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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CONDESSA DE CHARNY 1º Volume / Alexandre Dumas
A CONDESSA DE CHARNY 1º Volume / Alexandre Dumas

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CONDESSA DE CHARNY

1º Volume

 

       Os nossos leitores, que, por que assim digamos, se nos têm de algum modo enfeudado, que nos seguem por toda a parte, que têm por curiosidade nunca abandonar, nem sequer nos seus desvios, um homem que, como nós, empreendeu a tarefa ingente de desenrolar folha por folha cada página da monarquia, compreenderam decerto, ao ler a palavra fim por baixo do último folhetim do Ângelo Pitou, no jornal a Presse, e mesmo por baixo da última página do oitavo volume publicado pelo nosso editor e amigo Alexandre Cadot, que havia nisso algum erro monstruoso, que mais dia menos dia lhes explicaríamos.

       De facto, como é possível supor que um autor, cuja principal pretensão, porventura deslocada, é saber fazer um livro com todas as condições convenientes, do mesmo modo que um arquitecto tem a pretensão de saber construir uma casa com todas as suas condições, abandone um o livro no meio do seu interesse, outro a casa no terceiro andar?

       E, todavia, seria o que se dava com o pobre Ângelo Pitou, se o leitor tomasse a sério a palavra fim colocada justamente no lugar mais interessante do livro; isto é, quando o rei e a rainha se resolvem a deixar Versalhes por Paris, quando Charny principia a conhecer que uma mulher encantadora, que pelo espaço de cinco anos lhe não merecera a menor atenção, cora no momento em que os seus olhares se encontram, ou em que as suas mãos se acham em contacto; quando Gilberto e Billot mergulham um olhar sombrio mas resoluto no abismo revolucionário que se abre diante deles, cavado pelas mãos monárquicas de Lafayette e Mirabeau, que representam maravilhosamente um a popularidade, o outro o génio da época; quando finalmente o pobre Ângelo Pitou, o herói humilde desta humílima história, tem atravessado nos joelhos, a meio da estrada de Villers-Cotterets a Pisseleux, Catarina desmaiada ao último adeus do seu amante, que através dos campos, ao galope do seu cavalo, alcança, acompanhado pelo criado, a estrada de Paris.

       Além disso, figuram ainda neste romance outros personagens, secundários é verdade, mas a quem queremos crer que os nossos leitores tiveram a bondade de acolher com algum interesse; e todos sabem que é nosso costume, quando pomos um drama em cena, seguir até a mais vaporosa distância do teatro, não só os seus principais heróis, senão também os mais insignificantes comparsas.

       Temos o abade Fortier, esse rígido monarquista, que decerto se não prestará a transformar-se em padre constitucional, e preferirá a perseguição ao juramento.

       Temos o jovem Sebastião Gilberto, composto das duas naturezas, em luta naquela época, dos dois elementos em fusão havia dez anos, do elemento democrático herdado do pai e do elemento aristocrático que herdou da mãe.

       Temos a Srª. Billot, pobre mulher, mãe antes de tudo, que cega como mãe, acaba de deixar a filha na estrada por onde passou, e que sozinha se recolhe à sua granja, tão solitária depois da partida de Billot.

       Temos o tio Clouis com a sua cabana no meio da floresta, e que ainda não sabe, se, com a espingarda que Pitou acaba de lhe dar, em troco daquela que lhe levou dois ou três dedos da mão esquerda, matará, como matava com a primeira, cento e oitenta e duas lebres e outros tantos coelhos, nos anos ordinários, e cento e oitenta e três nos anos bissextos.

       Temos finalmente Cláudio Tellier e Desiré Maniquet, esses revolucionários de aldeia, que almejam por seguir a pista dos revolucionários de Paris, mas a quem o honrado Pitou, seu capitão, seu major, seu coronel, seu oficial superior, enfim, há-de servir, como devemos esperar, de guia e de freio.

       Quanto acabamos de dizer não pode deixar de renovar o pasmo do leitor quando se lhe deparou a palavra fim, tão singularmente colocada no capítulo que ele termina, que suporia ser a antiga esfinge acocorada à entrada do seu antro no caminho de Tebas, propondo aos viajantes beócios um enigma insolúvel.

       Daremos pois a explicação deste enigma.

       Houve um tempo em que os jornais publicavam simultaneamente:

      

        Os Mistérios de Paris, de Eugênio Sue.

        A Confissão geral, de Frederico Soulié.

        Mauprat, de George Sand.

        O Conde de Monte-Cristo, O Cavaleiro da Casa Vermelha e A Guerra das Mulheres, obras minhas.

      

       Esse tempo era o bom tempo do folhetim, mas era também o tempo mau da política.

       Quem se ocupava então dos artigos de fundo dos srs. Armand Bertin, Dr. Véron e deputado Chambolle? Ninguém.

       E tinham razão; porquanto, não tendo restado coisa nenhuma desses desgraçados artigos, é que não valia a pena que deles se ocupassem.

       Tudo quanto tem um valor qualquer anda sempre ao cima de água, e arriba sempre a alguma parte.

       Só existe um mar que absorve para sempre quanto lhe lançam. É o mar Morto.

       É provável que fosse nesse mar que os artigos de fundo de 1846, 1847 e 1848 foram lançados.

       Então com esses artigos dos Sr. Armand Bertin, Dr. Véron e deputado Chambolle, também lançaram de envolta naquele mar os discursos dos srs. Thiers e Guizot, dos srs. Barrot e Berryer, dos srs. Molé e Duchâtel, o que pelo menos devia enfadar tanto os srs. Duchâtel, Molé, Berryer, Barrot, Guizot e Thiers, como os srs. deputado Chambolle, Dr. Véron e Armand Bertin.

       É verdade que em troca disso se coordenavam com o maior esmero os folhetins dos Mistérios de Paris, da Confissão geral, de Mauprat, do Conde de Monte-Cristo, do Cavaleiro da Casa Vermelha e da Guerra das Mulheres, os quais, depois de se lerem pela manhã, se punham de lado para à noite se tornarem a ler.

       É verdade que isso produzia muitos assinantes aos jornais, e muitos clientes aos gabinetes de leitura; é verdade que isso ensinava a história aos historiadores e ao povo; é verdade que isso criava à França quatro milhões de leitores, e cinqüenta milhões ao estrangeiro; é verdade que a língua francesa, vertida em língua diplomática, desde o décimo sétimo século, considerava-se língua literária no décimo nono; é verdade que o poeta, que ganhava dinheiro suficiente para se tornar independente, escapava à pressão que a aristocracia e a realeza exerciam até ali sobre ele; é verdade que se criava na sociedade uma nova nobreza e um novo império: era a nobreza do talento e o império do génio; é verdade, finalmente, que isso trazia consigo tão grandes e honrosos resultados para os indivíduos, tão gloriosos para a França, que se ocuparam seriamente de fazer cessar um estado de coisas que produzia essa desorganização social, que ia dar a devida consideração aos homens que a merecessem, que ia fazer com que a glória e até o dinheiro pertencessem àqueles que verdadeiramente adquiriram estes dons.

       Os homens de Estado de 1847 iam pois, como já disse, ocupar-se seriamente de dar este escândalo, quando ocorreu a idéia ao Sr. Odillon Barrot, que da sua parte também se queria tornar saliente, de não recitar na tribuna pomposos discursos, mas de dar miseráveis jantares nos diferentes locais em que o seu nome era ainda respeitado.

       Era necessário, contudo, dar um nome a esses jantares.

       Em França pouco importa que as coisas tenham o nome que lhes convém, contanto que tenham um nome qualquer.

       Foi por isso que chamaram a esses jantares banquetes reformistas.

       Havia então em Paris um homem que, depois de ser príncipe, fora general; depois de ser general, exilado; sendo exilado, fora professor de geografia; depois de ser professor de geografia, viajara na América; depois de viajar na América, residira na Sicília; depois de haver desposado a filha de um rei, entrara novamente em França; e que depois de entrar novamente em França e ser elevado à dignidade de alteza real por Carlos X, acabara por se fazer rei. Esse homem era Sua Majestade Luís Filipe I, eleito do povo.

       Pelo menos assim se apelidam antes de os enviarem a Santa Helena ou a Hollywood, a Clearmont ou a outros lugares.

       Esse homem, que era eleito do povo, e que depois de se ver obrigado a viver do seu subsídio como emigrado a quem o rei Luís XVIII restituíra todos os seus bens, que podia não lhe restituir, por isso que todos os bens tinham sido vendidos para pagar as dívidas paternas; esse homem, a quem o rei Luís XVIII restituíra o Palais-Royal, Neuilly, le Raincy Eu, Villers-Cotterets, seus bens paternos, seus apanágios, que sei eu! Esse homem, que, chegando a ser rei, guardara, não só todos aqueles bens, a que não tinha direito, visto que a primeira lei do estado a isso se opunha: esse homem, que não só se apropriara de tudo isso, mas a quem ainda deram de doze a quinze milhões de lista civil, as Tulherias, Saint-Cloud, Rambouillet, Fontainebleau, Blois, quinze castelos reais com seus bosques, plainos, parques, dependências, rendimentos e abundante caça; esse homem, que era rei de França, isto é, rei desse reino que Maximiano, se fosse Deus, teria deixado ao seu filho segundo, como o império mais belo que poderia haver depois do império do Céu; esse príncipe, esse general, esse professor, esse viajante, esse rei, numa palavra, esse homem, a quem a desgraça e a prosperidade deviam ter ensinado tantas coisas, sem nada ter aprendido; esse homem concebeu a idéia de proibir ao Sr. Odillon Barrot que desse os seus banquetes reformistas, persistiu nessa idéia, sem se lembrar de que era a um princípio que declarava guerra, e como todo o princípio nos vem de cima, e é por conseqüência mais forte do que quem surge de baixo; como todo e qualquer anjo deve esmagar o homem com quem luta, ainda que fosse Jacob, o princípio esmagou o homem, e o rei Luís Filipe foi derrubado com a sua dupla geração de príncipes, com os seus filhos e os seus netos.

       Não diz a Escritura: O erro dos pais cairá sobre os filhos até à terceira e quarta geração?

       Fez isso grande estrondo em França, para que por muito tempo se não ocupassem, nem dos Mistérios de Paris, nem da Confissão geral, nem de Mauprat, nem do Conde de Monte-Cristo, nem do Cavaleiro da Casa-Vermelha, nem da Guerra das Mulheres, nem sequer, forçoso é confessá-lo, dos seus autores.

       Não, só se ocupavam de Lamartine, de Ledru-Rollin, de Cavaignac e do príncipe Luís Napoleão.

       Mas, como por fim se restabelecesse algum remanso, e se observasse que todos estes senhores eram infinitamente menos divertidos do que Eugénio Sue, Frederico Soulié, George Sand, e até do que eu, que humildemente me coloco em último lugar, reconheceu-se então que a sua prosa, à excepção da de Lamartine, não era para comparar com a dos Mistérios de Paris, da Confissão geral, do Mauprat, do Conde de Monte-Cristo, do Cavaleiro da Casa Vermelha e da Guerra das Mulheres, e por isso convidaram o Sr. de Lamartine, sabedoria das nações, a fazer alguma prosa, conquanto que não fosse política, e os outros cavalheiros, inclusivamente eu, a fazê-la literária.

       Foi justamente a este trabalho que desde logo nos dedicámos, sem que fosse preciso convidar-nos para isso.

       Tornaram então a aparecer os folhetins, os artigos de fundo tornaram a desaparecer; continuaram então a falar sem eco os mesmos faladores que falavam antes da revolução, que falaram depois dela e que nunca deixarão de falar.

       No número de todos estes faladores havia um que não falava, pelo menos por costume.

       Era considerado por isso, saudavam-no todos quando passava com a sua fita de representante.

       Subiu um dia à tribuna... Ah! É necessário dizer-lhes o nome, mas esqueci-o.

       Subiu um dia à tribuna... Ah! É necessário dizer-lhes uma coisa: estava nesse dia de muito mau humor.

       Paris acabava de escolher para seu representante um desses homens que compunham folhetins.

       Do nome desse homem me recordo eu. Chamava-se Eugénio Sue.

       A câmara estava pois de muito mau humor, por ter sido eleito Eugénio Sue; tinha deste modo sobre os seus bancos três ou quatro nódoas literárias, que lhe eram insuportáveis.

       Lamartine, Hugo, Felix Pyat, Quinet, Esquiros, etc.

       Subiu pois à tribuna esse deputado, de cujo nome me não recordo, aproveitando-se destramente do mau humor da câmara.

       Todos emudeceram; todos escutavam.

       Disse que o folhetim dera causa a que Ravaillac assassinasse Henrique IV, Luís XIII assassinasse o marechal d’Ancre, Luís XIV assassinasse Fouquet, Damiens assassinasse Luis XIV, Louvel assassinasse o duque de Berry, Fieschi assassinasse Luís Filipe, e finalmente, que Praslin assassinasse sua mulher.

       Acrescentou mais:

       Que todos os adultérios que se cometiam, todas as concussões que se faziam, todos os roubos que se perpetravam, de tudo isto era o folhetim a causa.

       Que bastava suprimir o folhetim ou impor-lhe um selo para obrigar o mundo a parar imediatamente, e em lugar de prosseguir no seu caminho em direcção a um abismo, voltaria para o lado da idade de ouro, onde não poderia deixar de chegar um dia, contanto que recuasse tantos passos quantos tinha avançado.

       Houve um dia em que o general Foy clamava:

       “Em França nunca deixam de ecoar as palavras - pátria e honra!”

       Sim, é verdade, no tempo do general Foy havia esse eco; nós ouvimo-lo, e muito folgámos com isso.

       Do mesmo modo muito folgámos de ter visto o imperador, que há muito tempo não víamos, e que, louvado seja Deus, nunca mais veremos.

       - Onde está esse eco? - perguntar-nos-ão.

       - Qual eco?

       - O eco do general Foy.

       - Está onde estão as velhas luas do poeta Villon, e pode ser que o encontremos um dia. Esperemos.

       Tanto assim é, que nesse dia (não no dia do general Foy) havia na câmara outro eco.

       Era um eco singular; - dizia ele:

       “É tempo finalmente de ofuscar aquilo que a Europa admira, e que nós vendíamos o mais caro possível, aquilo que outro qualquer governo daria por nada, se tivesse a ventura de o possuir”:

       “O gênio”.

       Cumpre dizer que este pobre eco não falava por sua conta; não fazia mais do que repetir as palavras do orador.

       A câmara, com pequenas excepções, constituiu-se o eco do eco.

       Mas ah! é esse o papel que as maiorias representam há quarenta anos; na câmara, como no teatro, vêem-se tradições bem fatais!

       Ora, sendo a maioria de opinião que todos os roubos que se faziam, todas as concussões que se praticavam, todos os adultérios que se cometiam, eram inquestionavelmente por culpa do folhetim, que se Praslin envenenara sua mulher; se Fieschi assassinara Luís Filipe; se Louvel assassinara o duque de Berry; se Damiens assassinara Luís XIV; se Luís XIV assassinara Fouquet; se Luís XIII assassinara o marechal d’Ancre; finalmente, se Ravaillac assassinara Henrique IV, todos estes assassínios eram evidentemente obra do folhetim.

       A maioria adoptou o selo.

       Talvez que o leitor não reflectisse bem no que é o selo, perguntando a si mesmo, como era possível matar o folhetim por meio do selo, isto é, com o imposto de um centésimo em cada folhetim?

       Quer dizer, o dobro daquilo que se paga ao autor, quando este se chama Eugénio Sue, Lamartine, Sandeau, Mery, George Sand ou Alexandre Dumas.

       É o triplo, é o quádruplo, quando o autor possui um nome honroso; mas contudo nós só invocamos os nomes que acabamos de citar.

       Ora dizei-me: haverá, porventura, grande moralidade num governo em impor sobre qualquer produção um imposto quatro vezes mais considerável do que o seu valor intrínseco?

       Sobretudo quando essa produção é um objecto, cuja propriedade nos contestam, isto é:

       “O talento”.

       Resulta pois daqui que já não há jornal bastante caro que possa comprar folhetins-romances.

       Resulta daqui que quase todos os jornais publicam folhetins-história.

       Que dizeis vós, caro leitor, dos folhetins-história do Constitucionel?

       - Ora!

       - Pois bem, é isso justamente.

       O folhetim morreu.

       Eis aí o que queriam os homens políticos, para que se não falasse mais dos homens literários.

       Sem contar que esse sistema impele o folhetim para uma vereda muito moral.

       Por exemplo, vêm-me propor, a mim que fiz O Conde de Monte-Cristo, Os Três Mosqueteiros, A Rainha Margot, etc., vêm-me propor que faça a história do Palais-Royal.

       Uma espécie de conta em partida dobrada muito interessante.

       Dum lado casas de jogo; do outro casas de alcouce.

       Vêm-me propor a mim, o homem religioso por excelência: A história dos crimes dos papas.

       Vêm-me propor... Não posso dizer-lhes o que me vêm propor.

       Ainda nada seria, se não fizessem mais do que propor-me que faça.

       Mas vêm-me propor que não faça mais!

       Deste modo recebi um dia de Emílio de Girardin a seguinte carta:

      

       “Meu caro amigo

       Desejo que Ângelo Pitou não contenha mais de meio volume em lugar de seis, que dez capítulos em lugar de cem.

       Tome as suas medidas como lhe parecer, e corte, se não quer que eu corte.”

      

       Por Deus! Compreendi-o perfeitamente!

       Emílio de Girardin tinha as minhas Memórias nos seus velhos cartões; preferiu publicar as minhas Memórias que não pagavam selo, a Ângelo Pitou que o pagava.

       Foi por isso que me suprimiu seis volumes de romance para publicar vinte volumes de Memórias.

       Eis aqui, querido e muito amado leitor, o que deu lugar a que a palavra fim fosse colocada antes do fim, o que deu lugar a que Ângelo Pitou fosse estrangulado à maneira do imperador Paulo I, não pelo pescoço, mas sim pelo meio do corpo.

       Mas vós bem o sabeis pelos Três Mosqueteiros, que duas vezes julgastes mortos, e que duas vezes ressuscitaram: os meus heróis não se estrangulam tão facilmente como os imperadores.

       Pois o mesmo que aconteceu aos Três Mosqueteiros acontece agora a Ângelo Pitou, que não tinha morrido, mas que só desaparecera; vai tornar a aparecer, e peço-vos, no meio destes tempos de barulhos e de revoluções, que acendem tantos fachos e apagam tantas velas, que não considereis os meus heróis no número dos finados sem que de mim recebam participação assinada do meu próprio punho.

       E ainda assim!...

 

A taberna da ponte de Sèvres

       Se o leitor quiser ter a condescendência de se lembrar por um momento do nosso romance Ângelo Pitou e, abrindo o segundo volume, correr a vista peio capítulo intitulado A noite de 5 para 6 de Outubro, há-de encontrar nele alguns factos, que importa rememorar antes de dar começo à leitura deste livro, a que dão princípio os acontecimentos da madrugada do dia 6 do mesmo mês.

       Depois de citar algumas linhas importantes desse capítulo, resumiremos em poucas palavras os factos que devem preceder o prosseguimento da nossa narrativa.

       Eis aqui essas linhas:

      

       “Até às três horas, repetimos, não houvera novidade. A própria Assembléia ficara descansada, e, em vista das partes que tinham dado os meirinhos, levantara a sessão.

       Todos esperavam que o sossego não fosse perturbado.

       Todos se enganaram.

       Em quase todos os movimentos populares, que precedem as grandes revoluções, há um tempo de espera, durante o qual todos se persuadem que tudo está acabado e se pode dormir descansado.

       É uma ilusão

       Por detrás dos homens que operam os primeiros movimentos, estão os que esperam que esses movimentos se tenham efectuado, e que os seus autores, fatigados ou satisfeitos, não querendo ir mais adiante, se entreguem ao repouso.

       É então que esses homens desconhecidos, agentes misteriosos de paixões fatais, saem por entre as trevas, apoderam-se do movimento no ponto em que foi abandonado, e levando-o aos últimos limites, espantam ao acordar os que lhes abriram o caminho e retiraram a meio da obra, julgando haverem alcançado o seu fim e concluído a sua empresa.”

      

       Três desses homens já nós nomeámos no livro donde copiámos as poucas linhas que acima deixamos transcritas.

       Que nos seja permitido introduzir na nossa cena, isto é, à porta da taberna da ponte de Sèvres, um personagem, que por não ter sido nomeado por nós, nem por isso deixara de representar nessa terrível noite um importante papel.

       Era um homem de quarenta e cinco a quarenta e oito anos, vestido de jornaleiro, isto é, com um calção de bombazina, garantido por um desses aventais de couro com bolsos, como usam os ferradores e os serralheiros; calçava meias pardas e sapatos de fivelas de cobre; trazia na cabeça uma espécie de boné de pele, cortado pelo meio, semelhante aos bonés dos hulanos; bastos e já encanecidos cabelos apareciam por baixo do boné e juntavam-se às enormes e espessas sobrancelhas, que com eles se confundiam; grandes olhos à flor do rosto, vivos e inteligentes, cujo reflexo era tão rápido, e a graduação da cor tão volúvel, que fora difícil dizer se eram verdes ou pardos, azuis ou pretos: tinha o nariz bastante saliente, beiços grossos, dentes brancos e a cútis queimada pelo Sol.

       Sem ser alto, era admiravelmente bem constituído; tinha os pés pequenos e também se notava, através da cor bronzeada dos jornaleiros costumados a trabalhar o ferro, que as mãos eram assaz belas e delicadas.

       Mas subindo das mãos aos cotovelos, e destes até ao lugar do braço onde a camisa arregaçada descobria o princípio de um bíceps vigorosamente desenhado, poder-se-ia ver que, apesar do vigor da musculatura, a pele que a cobria era fina, quase aristocrática.

       Este homem estava de pé, como já dissemos, à porta da taberna da ponte de Sèvres, e trazia consigo uma espingarda de dois canos, com ricos embutidos de ouro, em cujo cano se podia ler o nome de Leclèrc, espingardeiro que principiava a adquirir voga entre a aristocracia dos caçadores parisienses.

       Talvez nos perguntem como era que nas mãos de um simples jornaleiro se encontrava arma tão boa.

       A isto responderemos que em dias de alvoroço - e alguns presenciámos nós - nem sempre as armas mais ricas se vêem nas mãos mais mimosas.

       Aquele homem chegara de Versalhes havia cerca de uma hora, e sabia perfeitamente o que se passara, por isso que às perguntas que o taberneiro lhe fizera, servindo-lhe uma garrafa de vinho, respondera:

       Que a rainha vinha com o rei e com o delfim.

       Que partira próximo do meio-dia.

       Que se decidira finalmente a habitar o palácio das Tulherias, o que faria que no futuro não faltasse provavelmente pão em Paris, visto que ia ter padeiro, padeira e o mocinho do padeiro.

       E que estava ali para ver passar o cortejo.

       Esta última asserção podia ser sincera, e contudo era fácil notar que o olhar se dirigia mais curiosamente para o lado de Paris do que para Versalhes, o que parecia inculcar que se não julgara obrigado a declarar ao taberneiro a sua verdadeira intenção.

       Passados alguns momentos, a sua expectativa foi completamente satisfeita: um homem vestido quase como ele, e parecendo exercer a mesma profissão, avistou-se no alto da subida que limitava o horizonte da estrada.

       Esse homem caminhava com passo pesado, e como viageiro fatigado.

       À proporção que se aproximava, tornava-se mais fácil observar-lhe as feições e a idade.

       Esta correspondia à do desconhecido, isto é, podia-se afirmar afoitamente, como diz a gente do povo, que declinava já para os seus quarenta.

       Quanto às feições, eram as de um homem ordinário, de baixas inclinações, de instintos vulgares.

       O olhar perscrutador do desconhecido fixou-se curiosamente nele, com singular expressão, e como se quisesse medir num simples lance de olhos o que se poderia extrair de impuro e de mau do coração daquele homem.

       Quando o operário que vinha do lado de Paris estava apenas a uns vinte passos de distância do homem que esperava à porta da taberna, entrou este, despejou o vinho da garrafa num dos dois copos que estavam em cima da mesa, e voltando para a porta com o copo na mão, disse:

       - Eh! Camarada! O tempo vai frio e a estrada é comprida; não seria bom bebermos um copo de vinho para nos animar e aquecer?

       O operário que vinha do lado de Paris olhou em volta de si, como para ver se era com efeito a ele que o convite se dirigia.

       - Fala comigo? - perguntou ele.

       - Com quem diabo quer que eu fale, se não está aqui mais ninguém?

       - E oferece-me um copo de vinho?

       - E porque não?

       - Ah!

       - Acaso não somos nós do mesmo ofício?

       O operário olhou outra vez para o desconhecido.

       - Todos podem ter o mesmo ofício; o caso está em saber se somos oficiais ou mestres.

       - Pois será isso o que havemos de verificar, conversando um pouco, depois de bebermos um copo de vinho.

       - Pois seja - disse o operário encaminhando-se para a porta da taberna.

       O desconhecido apontou para a mesa, e apresentou-lhe o copo.

       O operário pegou nele, examinou o vinho, como se concebesse alguma desconfiança, desconfiança que desapareceu quando o desconhecido se serviu de um copo do mesmo líquido.

       - Então - perguntou ele - seremos tão orgulhoso que não toquemos com o convidado?

       - Não, decerto, pelo contrário, lá vai: À nação!

       Os olhos pardos do operário fixaram-se um momento no homem que acabava de fazer um tal brinde, repetindo depois:

       - Eh! Por vida minha! Sim, diz bem: à saúde da nação!

       E de um trago deitou abaixo o conteúdo do copo.

       Em seguida limpou os beiços com a manga.

       - Olá! Este é de Borgonha!

       - E já velho, hem! Recomendaram-mo, é excelente; mas assente-se, camarada, ainda resta algum na garrafa, e na adega não falta.

       - Então, diga-me - perguntou o operário - o que faz o senhor aqui?

       - Bem vê, venho de Versalhes, e espero pelo cortejo para o acompanhar a Paris.

       - Qual cortejo?

       - Ora! O do rei, da rainha e do delfim, que voltam para Paris em companhia das mulheres do mercado, de duzentos membros da Assembléia, e debaixo da protecção da guarda nacional e do Sr. de Lafayette.

       - Então sempre se decidiu a ir para Paris o nosso querido patrão, hem?

       - Que remédio tinha ele?

       - Assim me pareceu esta noite, quando, pelas três horas da manhã, parti para Paris.

       - Ah! Ah! Partiu esta noite pelas três horas da manhã; e deixou assim Versalhes sem ter tido a curiosidade de saber o que ali se ia passar?

       - Oh! Eu algum desejo tinha de saber o destino do nosso patrão, tanto mais que, sem me gabar, contraí com ele algumas relações; mas bem sabe que primeiro que tudo está o trabalho; a gente tem mulher e filhos para sustentar, e já se não pode contar com a forja real.

       O desconhecido deixou passar sem resposta alguma as duas alusões.

       - Foi então algum trabalho urgente que o obrigou a ir a Paris? - perguntou o desconhecido.

       - Foi, sim; urgente, e bem pago – acrescentou o operário fazendo tinir no bolso alguns escudos; - é verdade que foi um criado quem me pagou, o que não é lá muito delicado, e de mais a mais um criado alemão, com quem não pude conversar.

       - Então gosta de conversar?

       - Que se há-de fazer? Quando se não diz mal dos outros, serve de distracção.

       - E até quando se diz, não é assim?

       Os dois homens puseram-se a rir.

       O desconhecido mostrou uns dentes de jaspe, os do outro, pareciam todos arruinados.

       - Então - replicou o desconhecido como homem que avança passo a passo - o trabalho era urgente e foi bem pago?

       - É verdade.

       - Alguma fechadura de segredo, hem?

       - Uma porta secreta. Imagine numa casa dentro de outra, alguém que desejasse esconder-se, não é assim? Pois bem, pode-se estar em casa e parecer que não se está; toca-se a campainha, o criado abre a porta: O senhor? - Não está em casa! – Procure bem. - Pois que o procurem! Dou um doce a quem for capaz de o encontrar. Uma porta de ferro, uma espécie de caixilho ou moldura, compreende? Sobre tudo isto há-de assentar-se uma camada de carvalho antigo, e portanto será impossível distinguir o ferro da madeira.

       - Sim, mas batendo-lhe em cima?

       - Ora essa! Uma espessa camada de madeira, posta sobre ferro da grossura de uma linha, não deixará de fazer que o som seja igual. Tique, taque, taque, taque; eu mesmo me iludi.

       - E onde diabo fez essa obra?

       - Ah! Eis aí...

       - O que não quer dizer.

       - O que não posso dizer, visto que eu mesmo não o sei.

       - Vendaram-lhe então os olhos?

       - Nem mais nem menos; esperava-me na barreira um trem. Perguntaram-me; - É fulano? Respondi que sim. - Bom, é o mesmo que esperávamos, entre. - É necessário que entre? - Sim. Entrei então, vendaram-me os olhos, o trem rodou pouco mais ou menos pelo espaço de meia hora, em seguida abriu-se uma porta, uma grande porta; subi dez degraus, entrei num vestíbulo, onde encontrei um criado alemão, que disse aos outros: Está bem, retirem-se que não se carece agora de vocês.

       Assim o fizeram; tiraram-me a venda dos olhos, e mostraram-me o que devia fazer. Meti mãos à obra como bom operário, e dali a uma hora tudo estava concluído. Pagaram-me em belos luíses de ouro, tornaram-me a tapar os olhos, meti-me outra vez no trem, que me conduziu ao mesmo sítio onde antes me tinha recebido, deram-me os bons dias, e eis-me aqui.

       - Sem que nada visse, nem sequer pelo rabo do olho? Que diabo! Um lenço nem sempre se aperta por tal modo, que se não possa pescar alguma coisa.

       - Hum! Hum!

       - Ora vamos, vamos, confesse que alguma coisa viu - disse o desconhecido com vivacidade.

       - Quando tropecei no primeiro degrau, fiz um certo movimento que fez com que o lenço se desarranjasse alguma coisa.

       - E depois? - perguntou o desconhecido com a mesma vivacidade.

       - Depois vi uma fileira de árvores do lado esquerdo, o que me faz acreditar que a casa era no boulevard, e nada mais.

       - Nada mais?

       - Palavra de honra.

       - Isso pouco ou nada quer dizer.

       - Visto que os boulevards são muito compridos, e que do café de Saint-Honoré até à Bastilha se encontram muitos portões.

       Em seguida encheu um copo de vinho ao companheiro, batendo com a garrafa vazia na mesa, para dar sinal ao taberneiro para trazer outra.

       - De sorte que não pode conhecer a tal casa?

       O serralheiro reflectiu um momento.

       - Não - disse ele - decerto que não a conhecerei.

       O desconhecido pareceu satisfeito com a certeza que o jornaleiro acabava de lhe dar.

       - Mas - disse ele de súbito, como passando a outra ordem de idéias - em Paris não há serralheiros, e é necessário ir buscá-los a Versalhes quando se quer fazer uma porta?

 

Mestre Gamain

       O serralheiro levou o copo à altura dos olhos, observando o vinho com delícia.

       - Sim, serralheiros não faltam em Paris; pois haviam de faltar?

       E bebeu ainda algumas gotas.

       - E então?

       - Também há mestres.

       E tornou a beber.

       - É o que eu dizia comigo.

       - Sim, mas é preciso notar que há mestres e mestres.

       - Ah! Ah! - exclamou o desconhecido sorrindo-se; - vejo que é como Santo Elói, não só mestre, mas mestre dos mestres.

       - E acima de todos. O senhor é do ofício?

       - Quase.

       - Qual é então o seu ofício?

       - Espingardeiro.

       - Tem consigo algum objecto que o certifique?

       - Veja esta espingarda.

       O serralheiro pegou na espingarda do desconhecido e examinou-a com atenção; com um movimento de cabeça aprovou o lavrado dos fechos, lendo ao mesmo tempo o nome que se achava embutido no cano e nos fechos.

       - Leclèrc! - disse ele. - É impossível, amigo; Leclèrc! Não tem mais de vinte e oito anos, e nós caminhamos ambos para os cinqüenta; seja dito sem ofensa.

       - É verdade - acudiu o outro - eu não sou Leclèrc, mas vem a ser a mesma coisa.

       - Como assim?

       - É como lhe digo, porque sou mestre dele.

       - Ora essa! - exclamou o serralheiro rindo; - é como se eu dissesse: não sou o rei, mas isso vem a dar na mesma.

       - Porquê? - redargüiu o desconhecido.

       - Também é tal qual porque sou mestre dele - disse o serralheiro.

       - Oh! Oh! - exclamou o desconhecido, levantando-se e parodiando a vénia militar ; - será porventura ao Sr. Gamain a quem tenho a honra de falar?

       - A ele mesmo em pessoa e para o servir – disse o serralheiro muito satisfeito, vendo o efeito que o seu nome produzira.

       - Diabo! - disse o desconhecido - não sabia que tratava com um homem de tanta consideração.

       - Hem?

       - Com um homem de tanta consideração – repetiu o desconhecido.

       - Quer dizer tão conseqüente?

       - É isso mesmo. Perdão - replicou, rindo, o desconhecido; - mas bem sabe que um pobre espingardeiro não fala francês como o fala um mestre, e então que mestre, o do rei de França!

       E prosseguindo de novo a conversação no mesmo tom:

       - Ora diga-me, isso de ser mestre do rei deve ser coisa muito agradável, não é assim?

       - Porquê?

       - Ora essa! Se é preciso calçar luvas para dar os bons dias ou as boas noites...

       - Não é tal.

       - Se é necessário dizer: Pegue Vossa Majestade nesta chave com a mão esquerda; senhor, pegue nesta lima com a mão direita...

       - Eh! Justamente, é isso mesmo que o encanta, por isso que é bom homem na essência; quando está na oficina com o seu avental e de mangas arregaçadas, ninguém dirá que é o filho mais velho de S. Luís, como todos lhe chamam.

       - Com efeito, sim, tem razão; é singular como um rei se parece com outro homem.

       - Não é assim? Há muito tempo que aqueles que estão em contacto com ele o conhecem.

       - Isso nada seria, se aqueles que se acham em contacto com ele fossem os únicos que o conhecessem - disse o desconhecido rindo, com um sorriso sardónico; - mas são aqueles que se desviam dele que principiam a reparar...

       Gamain olhou para o seu interlocutor com certa admiração.

       Este, porém, que já se tinha esquecido do papel que representava tomando uma palavra por outra, não lhe deu tempo para pesar o valor das frases que havia pronunciado, e voltando à conversação encetada, disse:

       - Mais uma razão; é um homem como qualquer outro, mas a quem é forçoso dar o tratamento de majestade. Pela minha parte acho a coisa muito humilhante.

       - Não era necessário chamar-lhe majestade; quando estava na oficina, não havia precisão de nada disso; eu chamava-lhe patrão, e ele chamava-me Gamain; contudo não me atrevia a tratá-lo por tu, apesar dele me tratar assim.

       - Sim, mas quando chegava a hora do almoço ou do jantar, mandavam-no assentar à mesa dos criados?

       - Não, senhor, pelo contrário, mandava vir uma mesa servida para a oficina, e muitas vezes, sobretudo ao almoço, assentava-se à mesa comigo, e dizia:

       - Nada; não vou almoçar com a rainha, e não terei de lavar as mãos.

       - Não percebo.

       - Não percebe que quando o rei está a trabalhar comigo, manuseando o ferro, por Deus! Tem as mãos sujas como as nossas, sem que por isso deixemos de ser homens de bem: causava riso quando a rainha lhe dizia com ar delambido: “Jesus, senhor, como tem as mãos sujas!” Como se um serralheiro pudesse ter as mãos limpas!

       - Não me fale de semelhante coisa - disse o desconhecido - que me dá vontade de chorar.

       - Em suma o homem só se deleitava com o trabalho da oficina, ou então, no seu gabinete de geografia, comigo ou com o seu bibliotecário; mas parece-me que gostava muito mais de mim.

       - Também não é muito agradável ser mestre de um mau discípulo.

       - De um mau discípulo! - exclamou Gamain; - ah! Não, isso não se diz: é até para lamentar que ele viesse ao mundo rei, para se ocupar de tantas frioleiras, como as de que se ocupa, em lugar de continuar a fazer progressos na sua arte. Nunca há-de ser mais do que um pobre rei; pois é bem honrado, e dava um excelente serralheiro. Há um, por exemplo, que eu execrava pelo tempo que ele lhe fazia perder; era o Sr. Necker. Como ele lhe roubava o tempo, meu Deus!

       - Com contas, não é assim?

       - Sem dúvida, com contas azuis, contas no ar, como diziam.

       - E então, meu amigo?

       - O quê?

       - Um discípulo desse calibre, devia ser boa pechincha para o mestre.

       - Pois não era, não! Engana-se; e aí tem porque eu não posso ver o seu Luís XVI, o seu pai da pátria, o seu restaurador da nação francesa, como lhe chamam nas medalhas: é que, devendo ser rico como Creso, acho-me pobre como Job.

       - Pois é pobre? Então que fazia ele ao dinheiro?

       - Bom! Dava metade aos pobres, e a outra metade aos ricos, de sorte que andava sempre sem real. Os Coigny, os Vaudreuil e os Polignac, devoravam-no... Pobre homem!

       Um dia quis reduzir os ordenados do Sr. de Coigny, mas este foi esperá-lo à porta da oficina, e quando o rei entrou vinha pálido como um defunto, e só lhe ouviram estas palavras:

       “- Safa! julguei que me batia!”

       “- E os ordenados, senhor? - lhe perguntei eu.

       “-Deixei-lhos ficar - respondeu ele; - o que havia de fazer?”

       - Noutra ocasião quis fazer algumas observações à rainha sobre um enxoval da Srª. de Polignac, um enxoval de trezentos mil francos.

       - Já é alguma coisa.

       - Pois a rainha não achou bastante, obrigou-o a dar um de quinhentos mil. Deste modo, veja, esses Polignac, que há dez anos eram uns pobretões, acabam de sair de França recheados de milhões. Se ao menos tivessem talento! Porém, meta nas mãos de todos esses figurões uma bigorna e um martelo, e verá que não são capazes de forjar nem uma ferradura; dê-lhes uma lima e um torno, e verá que não são capazes de fabricar um reles parafuso de fechadura; mas, em troca disso, são muito bons tagarelas, óptimos cavaleiros, como eles dizem, que impeliram o rei para diante, e que hoje o deixaram na arriosca em que o meteram com os srs. Bailly, Lafayette e Mirabeau; e a mim, a mim, que lhe teria dado tão boas lições se ele quisesse aceitá-las, deixou-me num canto com mil e quinhentas libras de renda que me doou; a mim, seu mestre, seu amigo; que lhe meti a lima na mão e que lhe ensinei o ofício.

       - Sim, mas quando trabalha com ele sempre apanha alguma coisa?

       - Essa é boa! Porventura trabalho agora com ele? Em primeiro lugar seria comprometer-me. Depois da tomada da Bastilha, não pus mais os pés no palácio; encontrei-o uma ou duas vezes, da primeira havia gente na rua, e apenas me cortejou; da segunda, era no caminho de Satory, estávamos sozinhos; fez parar a carruagem, e soltando um suspiro, disse:

       “- Então, meu pobre Gamain? - Bons dias! – As coisas não vão como desejas, não é assim? mas ao menos terás aprendido à tua custa... E tua mulher, e teus filhos? - interrompeu ele - como passam?

       “- Perfeitamente - respondi eu - parecem aprendizes do inferno, e nada mais.

       “-Sim? - disse o rei; - hás-de dar-lhes este mimo da minha parte.

       E procurando nas algibeiras, conseguiu reunir uns nove luíses, que me deu, acrescentando:

       “-É quanto trago comigo, meu pobre Gamain, e muito feliz me considero de poder agora dar-te tão diminuto presente.

       - Ora na verdade, há-de convir comigo, que era caso para uma pessoa se considerar feliz. Um rei que apenas tem nove luíses no bolso, um rei que faz a um camarada, a um amigo, um presente de nove luíses... Por isso...

       - Por isso recusou, hem?

       - Não; disse comigo: vamos sempre pegando no dinheiro, que ele é capaz de encontrar outro com menos vergonha do que eu, que o aceite; mas não importa, pode estar descansado, que não serei eu que ponha os pés em Versalhes, sem que me mande buscar, e assim mesmo, ainda há-de ser o que Deus quiser.

       - Coração grato! - murmurou o desconhecido.

       - Que diz?

       - Digo que é para enternecer, mestre Gamain, ver uma dedicação como a sua sobreviver a tanta desventura! Mais um copo de vinho à saúde do seu discípulo.

       - Na verdade ele pouco ou nada o merece; mas não importa, vá lá à saúde dele.

       Depois de beber, continuou:

       - E quando penso que o sujeito tinha nas suas adegas mais de dez mil garrafas de vinho, do qual o mais ordinário valia dez vezes mais do que este, e que nunca disse a um criado: “Vai levar uma canastra de garrafas de vinho a casa do meu amigo Gamain.” Pois não! antes quis dá-lo a beber aos guardas, aos suíços e aos soldados do regimento de Flandres; aproveitou-lhe muito.

       - Que quer - disse o desconhecido esgotando o copo a pequenos tragos - os reis são todos assim, uns ingratos... Mas caluda que não estamos sós.

       Efectivamente, três indivíduos, dois homens do povo e uma regateira, acabavam de entrar na mesma taberna, assentando-se a uma mesa que se achava em frente daquela onde o desconhecido acabava de esgotar a segunda garrafa com mestre Gamain.

       O serralheiro olhou para eles, e examinou-os com uma atenção, que fez sorrir o desconhecido.

       Com efeito, os três personagens pareciam dignos de alguma atenção.

       Um dos dois homens era todo tronco, o outro todo pernas; quanto à mulher, era difícil saber o que era.

       O homem que era todo tronco assemelhava-se a um anão; não teria mais de cinco pés de altura; talvez o fizesse parecer mais baixo a flexão dos joelhos, que quando se punha em pé, se tocavam pela parte de dentro, apesar da separação dos pés. O rosto, em lugar desta disformidade, parecia torná-la mais sensível: os cabelos ensebados e imundos alastravam-se-lhe sobre a fronte deprimida, e as sobrancelhas, mal desenhadas, pareciam ter nascido por mero acaso; os olhos eram envidraçados no estado habitual, empanados e sem fogo, como os do sapo; apenas nos momentos de irritação lançavam de si uma centelha, como a que rebenta da pupila contraída de uma víbora furiosa; o nariz era achatado, desviava-se da linha recta e tornava mais saliente a proeminência das faces; finalmente, completando este todo hediondo, a boca torta encobria com os beiços amarelentos alguns dentes abalados e denegridos. À primeira vista parecia girar-lhe fel nas veias em lugar de sangue.

       O outro, em oposição, cujas pernas eram disformes, parecia uma garça real sobre umas andas; a sua semelhança com a ave, a que o comparámos, era tanto mais saliente, que giboso como ela, tinha a cabeça completamente perdida entre os ombros, só se distinguia pelos olhos, que dir-se-iam duas nódoas de sangue, e pelo nariz longo e agudo como o bico da águia.

       Como a garça real, ainda se julgaria que tivesse a faculdade de estender o pescoço para ir cegar em grande distância o indivíduo a quem quisesse fazer essa graça; mas não era assim; só os braços pareciam dotados dessa elasticidade, que o pescoço não tinha, de modo tal, que não lhe foi preciso mais do que estender um, sem inclinar o corpo, para apanhar um lenço, que deixara cair depois de ter limpado a testa encharcada ao mesmo tempo em suor e chuva.

       O terceiro ou a terceira, como quiserem, era um ente anfíbio cuja espécie facilmente se poderia conhecer, mas cujo sexo dificilmente se distinguia; era homem ou mulher de trinta a trinta e quatro anos, vestido elegantemente de regateira, com o seu cordão e brincos de ouro, toucado e lenço de rendas. As suas feições, que mal se podiam distinguir através da camada de alvaiade e vermelhão que as cobria, através dos sinais de todos os feitios, que pareciam estrelas sobre aquela camada branca e vermelha, estavam ligeiramente apagadas como as dessas raças viciadas e corruptas. Uma vez que ao seu aspecto se entrasse na dúvida que acabámos de expender, esperava-se com impaciência que abrisse a boca para pronunciar algumas palavras, por isso que também se esperava que o som da voz lhe desse à duvidosa pessoa um carácter que ajudasse a conhecê-la; mas não aconteceu assim. Aquela voz, que parecia de soprano, deixava o curioso e o observador ainda mais fundamente mergulhado na dúvida que o aspecto despertara; a orelha não explicava o olhar, o ouvido não completava a vista.

       As meias e os sapatos dos dois homens, assim como os da suposta mulher, estavam tão sujos de lama, que indicavam terem caminhado bastante.

       - É célebre! - disse Gamain - parece-me que conheço aquela mulher.

       - Que importa! - disse o desconhecido pegando na espingarda, e enterrando o boné na cabeça; - estas três pessoas que estão juntas, é que alguma coisa têm que fazer, portanto convém deixá-las.

       - Conhece-as? - perguntou Gamain.

       - Sim, de vista - respondeu o desconhecido. - E o mestre?

       - Já vi a mulher nalguma parte.

       - Provavelmente na corte - disse o desconhecido.

       - Ora essa! Uma regateira!

       - Vão agora lá muitas vezes.

       - Se os conhece, nomeie-me então os dois homens; que isso há-de ajudar-me muito a conhecer a mulher.

       - Os dois homens?

       - Sim.

       - Qual quer que lhe nomeie em primeiro lugar?

       - O cambaio.

       - João Paulo Marat.

       - Ah! Ah!

       - E depois?

       - O corcunda.

       - Próspero Verrières.

       - Ah! Ah!

       - Então conhece agora a regateira?

       - À fé que não.

       - Veja bem.

       - Espere... Mas não, não!

       - Deveras?

       - É impossível!

       - Não padece dúvida, que à primeira vista parece impossível. É...

       - Vamos, vejo finalmente que nunca a nomeará, e que é necessário que eu a nomeie. A regateira é o duque de Aiguillon.

       Ouvindo este nome, a regateira estremeceu e voltou-se logo conjuntamente com os dois homens.

       Todos três fizeram um movimento para se levantar, como o fariam na presença de um superior a quem quisessem mostrar a sua deferência.

       Mas o desconhecido levou o dedo à boca e passou para diante.

       Gamain seguiu-o, parecendo-lhe que sonhava.

       Ao sair foi de encontro a um indivíduo, que parecia fugir perseguido por várias pessoas que gritavam:

       - O cabeleireiro da rainha! O cabeleireiro da rainha!

       Entre essas pessoas, que corriam e gritavam, vinham duas que conduziam cada uma, na ponta de uma lança, uma cabeça ensangüentada.

       Eram as cabeças dos dois infelizes guardas Varicourt e Deshuttes, que, separadas do corpo por um aparelho chamado o Grande Nicolau, tinham sido espetadas na ponta dos chuços.

       Já dissemos que essas cabeças faziam parte da multidão, que corria atrás do desgraçado que esbarrou com Gamain.

       - Olha, é o Sr. Leonardo - disse este.

       - Silêncio! Nada de proferir o meu nome! - exclamou este, precipitando-se para dentro da taberna.

       - Que lhe querem eles? - perguntou o serralheiro ao desconhecido.

       - Quem sabe? - respondeu este. - Querem talvez obrigá-lo a frisar as cabeças daqueles pobres diabos. Há idéias tão extravagantes em tempos de revolução!

       E confundiu-se na multidão, deixando livre Gamain, do qual provavelmente colhera quanto carecia, para alcançar, como melhor entendesse, a sua oficina em Versalhes.

 

Cagliostro

       Era tanto mais fácil ao desconhecido confundir-se na multidão, quanto ser certo que essa multidão era assaz numerosa.

       Era a vanguarda do cortejo do rei, da rainha e do delfim.

       Tinham partido de Versalhes, como o rei determinara, pela uma hora depois do meio-dia.

       A rainha, o delfim, madame Royale, o conde de Provença, Isabel e Andréa1 vinham todos na carruagem do rei.

       Cem trens conduziam os membros da Assembléia Nacional, que se haviam declarado inseparáveis do rei.

       O conde de Charny e Billot tinham ficado em Versalhes para prestar os últimos deveres ao barão Jorge de Charny, morto, como já dissemos, na terrível noite de cinco para seis de Outubro, e para impedir que não lhe mutilassem o cadáver como tinham feito aos dos guardas reais, Varicourt e Deshuttes.

       Aquela vanguarda, que partira de Versalhes duas horas antes do cortejo real, e que o precedia um quarto de hora, pouco mais ou menos, vinha de algum modo unida às duas cabeças dos guardas, que lhe serviam de bandeiras.

       Tendo parado as duas cabeças na taberna da ponte de Sèvres, também a vanguarda ali parou.

       Compunha-se de miseráveis esfarrapados e quase nus, espuma flutuante sobre a superfície de qualquer inundação, quer seja de água, quer de lava.

       De repente sentiu-se naquela multidão um grande tumulto. Acabavam de enxergar as baionetas da guarda nacional e o cavalo branco de Lafayette, que precediam imediatamente a carruagem do rei.

       Lafayette gostava muito dos ajuntamentos populares; era no meio do povo de Paris, de quem era o ídolo, que ele verdadeiramente reinava.

       Mas do que ele não gostava era do populacho.

       Paris tinha, como Roma, a sua plebe e a sua plebécula.

       Não gostava sobretudo daquela casta de execuções que a populaça fazia; viu-se que ele fizera quanto lhe fora possível para salvar Flesselles, Foulon e Berthier de Sauvigny.

       Fora pois para lhe ocultar o seu troféu e conservar as insígnias sangrentas da sua vitória, que essa vanguarda se lhe adiantara.

       Parece contudo que, reforçados talvez pelo triunvirato que tiveram a dita de encontrar na taberna, acharam aqueles porta-estandartes um meio de iludir Lafayette, por isso que se recusaram a partir com os seus companheiros, e decidiram que, tendo Sua Majestade declarado que não queria separar-se dos seus guardas fiéis, queriam por isso esperá-lo para lhe fazer o cortejo.

       Reforçada assim a vanguarda, pôs-se a caminho.

       A multidão, que desfilava pela estrada de Versalhes a Paris, semelhante ao terrível enxurro que depois de uma tempestade arrasta nas ondas denegridas e lodosas os habitantes de um palácio que encontrara na passagem e derrubara com a sua violência, formava de cada um dos lados da estrada uma espécie de borbulhões compostos pelas populações das aldeias próximas da mesma estrada, que corriam a ver o que passava.

       Entre os que assim corriam, alguns (o menor número) misturavam-se na multidão, fazendo cortejo ao rei, soltando gritos e clamores no meio de todos aqueles clamores e de todos aqueles gritos; mas o maior número conservava-se imóvel e silencioso nos dois lados da estrada.

       Dirão que portanto lhes eram muito simpáticos o rei e a rainha. Não eram: porque, todos que não pertenciam à classe aristocrática, incluindo os burgueses, sofriam mais ou menos da fome que acabava de se estender por toda a França. Não insultavam o rei, nem a rainha, nem o delfim: mas calavam-se, e o silêncio da multidão é talvez mais assustador do que os seus insultos.

       Em troca deste silêncio, essa multidão gritava com toda a força dos seus pulmões: “Viva Lafayette!” que tirava a espaços o chapéu com a mão esquerda, saudando com a espada na direita, e “Viva Mirabeau!” que também a espaços deitava a cabeça pela portinhola da carruagem, que ocupava com mais cinco companheiros, a fim de aspirar o ar exterior, tão necessário aos seus vastos pulmões.

       Desse modo, o desventurado Luís XVI, para quem tudo era silêncio, ouvia aplaudir na sua presença o que perdera - a popularidade, e o que sempre lhe faltara - o génio.

       O doutor Gilberto, como fizera na outra viagem do rei, caminhava só, confundido com a multidão, junto à portinhola da carruagem real, isto é, do lado da rainha.

       Maria Antonieta, que nunca percebera aquela espécie de estoicismo de Gilberto, a quem a rudeza americana dera nova rispidez, observava com admiração aquele homem, que, sem amor nem devoção pelos seus soberanos, cumpria simplesmente junto deles aquilo a que chamava um dever, resolvido contudo a fazer por eles quanto se faz por amor e por dedicação. Mais ainda, por isso que estava disposto a morrer, o que decerto muitas devoções e muitos amores não fariam.

       Dos dois lados da carruagem do rei e da rainha, além da espécie de fileira de gente a pé, que se apoderara desse posto, uns por curiosidade, outros para estarem ao alcance de socorrer, em caso necessário, os augustos viajantes, mui poucos com más intenções, marchavam pela extremidade da estrada, patinhando num lodaçal de seis polegadas de altura, as mulheres e os cépticos do mercado, que pareciam rolar de espaço a espaço no meio do seu caudaloso rio mosqueado de ramos e de fitas, e formavam um rio ainda mais compacto e caudaloso.

       Este rio consistia em algumas carretas de artilharia, ou alguns caixões, carregados de mulheres, que cantavam em voz alta, atroando os ares com seus berros.

       O que cantavam era a velha e bem conhecida canção popular:

      

       Bastos escudos tem a padeira

       Que pouco lhe custam a ganhar...

      

       O que diziam era esta nova fórmula da sua esperança:

       “Agora não nos há-de faltar o pão; levamos connosco o padeiro, a padeira e o seu mocinho.”

       A rainha parecia ouvir tudo aquilo sem entender nada; levava em pé sobre os joelhos o delfinzinho, que olhava para a multidão com esse ar espavorido com que os filhos de príncipes costumam olhar, como vimos olhar o rei de Roma, o duque de Bordéus, e o conde de Paris.

       Com a diferença, porém, que essa multidão é mais desdenhosa e mais magnânima do que aquela, por isso que é mais forte, e porque entende que está no caso de perdoar.

       O rei, pela sua parte, observava tudo com o seu olhar cavo e pesado. Na noite precedente, apenas passara pelo sono, comera pouquíssimo ao almoço, faltara-lhe o tempo para pentear e empoar o cabelo, a barba estava crescida, a roupa amarrotada, tudo, absolutamente tudo, o ajudava. - O pobre rei não era decerto o homem das circunstâncias difíceis.

       E por isso em todas as circunstâncias difíceis curvava a cabeça: houve um só dia em que a levantou; foi no cadafalso, no momento em que ela ia cair.

       A princesa Isabel era o anjo de doçura e de resignação, que Deus colocara junto daquelas duas criaturas condenadas, que devia confortar o rei na prisão do Templo, na ausência da rainha; e na Conciergerie, confortar a rainha da morte do rei.

       O conde de Provença conservava o seu olhar oblíquo e falso; bem sabia que, pelo menos naquele momento, não corria o menor risco. Que motivo haveria para isso? Não se sabe. Talvez fosse por ter ficado na França quando seu irmão, o conde de Artois, a abandonara.

       Mas se o rei pudesse ler no íntimo do coração do Sr. de Provença, Deus sabe se o que ali lesse deixaria intacto o reconhecimento que lhe votava pelo que supunha mera dedicação.

       Andréa parecia de mármore. Não dormira melhor do que a rainha, nem comera melhor do que o rei; mas as necessidades da vida não pareciam feitas para aquela natureza excepcional; não teve tempo para cuidar do penteado, nem para mudar de vestido; e contudo, nem um só dos seus cabelos estava em desalinho, nem uma única prega do vestido indicava o mais pequeno desarranjo. Como uma estátua, sem que parecesse prestar atenção a coisa alguma, esses rios que ondeavam em volta dela, pareciam também torná-la mais plácida e mais branca. Era pois evidente que aquela mulher possuía na cabeça e no coração um único e luminoso pensamento só para si, ou dirigia a alma, como a agulha tocada pelo imã dirige para a estrela polar, espécie de sombra entre os viventes. Uma única coisa indicava que vivia, era o involuntário relâmpago que lhe escapava do olhar, todas as vezes que encontrava o de Gilberto.

       Uns cem passos antes de chegar à taberna, de que falámos, parou o cortejo.

       Os gritos redobraram em toda a linha.

       A rainha inclinou-se ligeiramente para fora da portinhola, e este movimento, que se assemelhava a uma saudação, produziu na multidão um prolongado murmúrio.

       - Sr. Gilberto! - disse ela.

       Gilberto aproximou-se.

       Como desde Versalhes trouxesse o chapéu na mão não precisou por isso de tirá-lo para dar à rainha uma demonstração de respeito.

       - Senhora! - disse ele.

       Esta única palavra, pela entoação precisa com que fora pronunciada, indicava que Gilberto estava todo às ordens da rainha.

       - Sr. Gilberto - replicou ela - o que canta, o que diz, o que grita o seu povo?

       Bem se deixa ver, até pela forma desta frase, que a rainha a combinara com antecipação, e que, desde muito a mascara entre os dentes antes de a cuspir na face daquela multidão.

       Gilberto soltou um suspiro, que significava:

       - Sempre a mesma!

       E depois, com profunda expressão de melancolia, disse:

       - Ai, senhora, este povo, a quem chama o meu povo, também noutro tempo era de Vossa Majestade, e há quase vinte anos que o Sr. de Brissac, um gentil cortesão, que debalde tenho procurado aqui, lhe mostrava da varanda da casa da câmara este mesmo povo que gritava : “Viva a delfina”, e lhe dizia : “Senhora, aí tendes duzentos mil namorados.”

       A rainha mordeu os beiços; era impossível encontrar aquele homem em contradição ou em falta de respeito.

       - Sim, é verdade - disse a rainha; - mas isso só prova a volubilidade dos povos.

       Desta vez, Gilberto inclinou-se, sem nada responder.

       - fiz-lhe uma pergunta, Sr. Dr. Gilberto – disse a rainha com o fervor que empregava sempre em apurar as coisas, ainda mesmo as que deviam ser-lhe desagradáveis.

       - Sim, senhora - tornou Gilberto - e responderei à pergunta de Vossa Majestade, uma vez que assim o determina. O povo canta:

      

       Bastos escudos tem a padeira,

       Que pouco lhe custam a ganhar...

      

       Vossa Majestade sabe a quem o povo chama padeira?

       - Sim, senhor, sei que me faz essa honra; já estou acostumada a essas alcunhas: chamava-me a Srª. Défice. Haverá alguma analogia entre este primeiro sobrenome e o segundo?

       - Há sim, senhora, e para Vossa Majestade se convencer disso, basta meditar nos dois primeiros versos que acabo de dizer:

      

       Bastos escudos tem a padeira

       Que pouco lhe custam a ganhar...

      

       A rainha repetiu:

       - Tem bastos escudos que pouco lhe custam a ganhar!... Não compreendo, senhor.

       Gilberto calou-se.

       - Então - replicou a rainha com impaciência - não vê que eu nada percebo?

       - E Vossa Majestade continua a insistir em querer uma explicação?

       - Decerto.

       - Isso quer dizer, senhora, que Vossa Majestade teve ministros muito condescendentes, sobretudo, os ministros das finanças... O Sr. de Calonne, por exemplo; o povo sabe que Vossa Majestade tinha quanto exigia, e como não custa muito trabalho exigir nem sequer pedir, quando quem exige ou pede é uma rainha, visto que pedir é o mesmo que mandar, é por isso que o povo canta:

      

       Bastos escudos tem a padeira

       Que pouco lhe custam a ganhar…

      

       o que quer dizer, que só lhe custam a pedir.

       A rainha apertou raivosa a alva mão que levava sobre o veludo encarnado que forrava o postigo da carruagem.

       - Bem. Seja assim - disse ela - isso é quanto às canções; agora, Sr. Gilberto, tenha a bondade de me explicar o que ele diz.

       - Sim, minha senhora; diz: “Agora não nos faltará o pão, porque temos seguros o padeiro, a padeira e o mocinho”.

       - Terá a bondade de me decifrar essa segunda insolência com tanta clareza, como fez com a primeira? Conto com a sua condescendência.

       - Senhora - prosseguiu Gilberto com a mesma doçura melancólica - se Vossa Majestade quisesse meditar, não sobre as palavras talvez, mas sobre a intenção deste povo, veria que não tinha razão de se queixar como julga.

       - Vejamos - disse a rainha com um sorriso nervoso - sabe que muito desejo ser esclarecida, Sr. doutor; queira dizer.

       - Ou com razão ou sem ela, senhora, disseram a este povo que se fazia em Versalhes um grande comércio de farinha, e que era por isso que as farinhas não chegavam a Paris. Quem sustenta este pobre povo? O padeiro e a padeira do bairro. Para quem estende o pai, o marido, o filho as mãos suplicantes, quando, por falta de dinheiro, o filho, a mulher ou o pai morrem de fome? Para o padeiro e para a padeira. A quem suplica, além de Deus, que faz brotar as searas? Àqueles que distribuem o pão. Não é Vossa Majestade, não é el-rei, e não é esse augusto menino, finalmente não são, todos três, os distribuidores do pão de Deus? Não se admire pois do doce nome que o povo lhe dá e agradeça-lhe a esperança que ele tem, de que, achando-se o rei, a rainha e o delfim no meio de um milhão e duzentos mil esfaimados, a estes desgraçados nada há-de faltar.

       A rainha fechou por um momento os olhos, e viu-se-lhe fazer um movimento com o queixo e com o pescoço, como se procurasse engolir, com a acre saliva que lhe abrasava a garganta, a raiva que a devorava.

       - E o que o povo grita por diante e por detrás de nós, deveremos agradecer-lho? Deveremos agradecer-lhe também as alcunhas que nos dá, as cantigas que nos canta?

       - Oh! Sim, senhora, e ainda com mais sinceridade, por isso que essa canção que ele canta não é mais do que a expressão do seu bom humor, por isso que as alcunhas que lhe dá não são mais do que a manifestação das suas esperanças; esses gritos que solta são a expressão do seu desejo.

       - Ah! O povo deseja que os srs. de Lafayette e Mirabeau vivam?

       A rainha, como se observa, tudo ouvira; os cânticos, as conversações e os vivas.

       - Sim, senhora - disse Gilberto; - porquanto, vivendo os srs. de Lafayette e de Mirabeau, que estão separados neste momento, como vê, separados pelo abismo, à beira do qual está suspensa a família de Vossa Majestade, podem facilmente reunir-se, e reunindo-se salvar a monarquia.

       - Quer dizer, senhor - clamou a rainha - que a monarquia está tão abatida, que não pode ser salva senão por esses dois homens?

       Gilberto ia responder, quando se ouviram gritos de alarme, misturados com atrozes gargalhadas, e quando se viu a multidão fazer um grande movimento, que em lugar de desviar Gilberto mais o aproximou da carruagem, em cujo estribo se empoleirou, adivinhando que alguma coisa se passava ou ia passar-se, que ia talvez carecer de empregar em defesa da rainha a sua palavra e a sua força.,

       Eram os dois porta-cabeças que, tendo feito frisar e empoar pelo infeliz Leonardo as que traziam espetadas nas lanças, queriam dar-se ao horrível prazer de as apresentar à rainha, como os outros, talvez os mesmos, o tinham tido de apresentar a Berthier a cabeça do seu sogro Foulon.

       Estes gritos eram os que o povo soltava à vista das duas cabeças; essa enorme multidão que, atropelando-se a si mesma, corria espavorida para as ver passar.

       - Em nome do Céu, senhora - disse Gilberto; - não olhe para o lado direito.

       A rainha não era mulher que obedecesse a uma ordem tão expressa sem se assegurar do motivo que dava lugar a uma tal exigência.

       Por conseqüência, o primeiro movimento que fez foi voltar os olhos justamente para aquele lado.

       Soltou um grito horrível.

       Mas de repente desviou os olhos do terrível espectáculo, como se acabasse de se lhe deparar outro ainda mais terrível, e como se os atraísse uma cabeça de Medusa, de modo que se não podiam desprender dela.

       Esta cabeça de Medusa era a do desconhecido que vimos praticando e bebendo com mestre Gamain na taberna da ponte de Sèvres, e que se conservava de pé, com os braços cruzados, encostado a uma árvore.

       A mão da rainha desprendeu-se do postigo de veludo, e levando-a ao ombro de Gilberto, parecia deleitar-se em cravar nele as unhas.

       Gilberto voltou-se de súbito.

       Viu a rainha pálida, com os lábios descorados e trémulos, e os olhos fixos.

       Talvez ele tivesse atribuído aquela excitação extremamente nervosa à presença das duas cabeças, se a visse dirigir o olhar para uma ou outra.

       Mas o olhar da rainha ia horizontalmente cravar-se no desconhecido.

       Gilberto seguiu-lhe a direcção, e, como a rainha soltara um grito de horror, ele soltou por seu turno um grito de espanto e admiração.

       Em seguida, ambos murmuraram ao mesmo tempo:

       - Cagliostro!

       O homem encostado à árvore via perfeitamente a rainha e Gilberto.

       Ele fez um sinal com a mão a este último, como para o chamar.

       Neste momento fizeram as carruagens um movimento para se porem de novo a caminho.

       Por um impulso maquinal, instintivo e natural, a rainha afastou Gilberto para que a roda o não atropelasse.

       O doutor julgou que ela queria impeli-lo para aquele homem.

       Primeiro que tudo, a rainha não o teria impelido, uma vez que ele o reconhecera pelo que era, e Gilberto não podia de modo nenhum deixar de se dirigir a ele.

       Por conseqüência, imóvel, deixou desfilar o cortejo, depois seguiu o falso operário, que a espaços se voltava para ver se era seguido, entrou numa pequena vereda, subiu em direcção à Bela-Vista por uma rampa bastante íngreme e desapareceu por detrás de um muro, no mesmo momento em que do lado de Paris desaparecia o cortejo, tão completamente escondido pelo declive da montanha, como se se tivesse despenhado num abismo.

 

A fatalidade

       Gilberto seguiu o seu guia, que o precedia a coisa de vinte passos de distância, até ao meio da montanha. Ali, achando-se em frente de uma grande e bela casa, o que ia adiante tirou do bolso uma chave, com a qual abriu uma porta pequena, destinada para serventia do dono quando este queria entrar e sair sem que os criados soubessem.

       Deixou a porta entreaberta, o que indicava, tão claramente quanto possível, que o primeiro convidava o que o seguia a entrar também.

       Gilberto entrou e empurrou de mansinho a porta, que girou silenciosa nos gonzos, tornando a fechar-se sem que se ouvisse a bulha da lingüeta.

       Semelhante fechadura não deixaria de causar admiração a mestre Gamain.

       Gilberto achou-se num corredor, em cujas paredes estavam embutidas na altura de um homem, isto é, de maneira que se não perdesse nenhum dos seus maravilhosos detalhes, algumas lâminas de bronze modeladas sobre aquela com que Ghiberti enriquecera a porta do baptistério de Florença.

       Os pés enterraram se lhe num macio tapete da Turquia.

       À esquerda via-se uma porta aberta.

       Gilberto pensou que era por seu respeito que aquela porta estava aberta, e entrou num salão forrado de cetim da índia, com mobília do mesmo estofo. Um desses pássaros fantásticos, como os imaginam e bordam os chineses, cobria o tecto com as suas asas de ouro e azul, sustentando entre as garras o lustre, cujos candelabros de trabalho magnífico, representando ramos de lis, serviam para alumiar a sala.

       Um único quadro servia de adorno àquela sala, e correspondia ao espelho que havia sobre o fogão.

       Esse quadro representava uma virgem de Rafael.

       Gilberto estava ocupado em admirar aquele primor, quando ouviu, ou antes quando adivinhou, que uma porta se abria por detrás dele.

       Voltou-se de súbito, e viu Cagliostro, que saía de um quarto de vestir.

       Bastara-lhe um momento para apagar as nódoas dos braços e do rosto, para dar aos cabelos, ainda pretos, a graça mais aristocrática, e para mudar inteiramente de fato.

       Já não era o operário de mãos negras, cabelos empastados, sapatos cobertos de lama, calção de rico e camisa de oleado.

       Era o cavalheiro elegante, que já por duas vezes apresentámos aos nossos leitores, primeiro no José Bálsamo, depois no Colar da Rainha.

       O vestuário, ricamente bordado, as mãos, cintilantes de jóias, contrastavam com o fato preto de Gilberto, e com o simples anel de ouro, presente de Washington, que trazia no dedo.

       Cagliostro dirigiu-se a Gilberto com rosto prazenteiro, estendendo-lhe os braços.

       Gilberto lançou-se neles.

       - Querido mestre! - clamou ele.

       - Ah! Um instante - disse rindo Cagliostro; - o senhor tem feito, meu caro Gilberto, desde que nos separámos, tão grandes progressos, sobretudo em filosofia, que é hoje o mestre e eu mal sou digno de ser seu discípulo.

       - Obrigado pelo cumprimento - disse Gilberto; - mas, supondo mesmo que fizesse tais progressos, como pode sabê-lo, tendo já decorrido oito anos que não nos vemos?

       - Julga-se no caso, meu caro doutor, desses homens que se ignoram, porque se deixam de ver; há oito anos que não o vejo, é verdade, mas no decurso desse tempo poderia dizer-lhe, dia por dia, o que tem feito.

       - Ora essa!

       - Ainda duvida da minha vista dupla?

       - Bem sabe que sou matemático.

       - Quer dizer incrédulo. Vejamos então. Veio a França a primeira vez por causa de negócios de família; esses negócios não são da minha competência, e portanto...

       - Nada, nada - disse Gilberto, julgando atrapalhar Cagliostro - diga, querido mestre.

       - Pois bem, dessa vez devia ocupar-se da educação de seu filho Sebastião, de o meter num colégio, numa pequena cidade a dezoito ou vinte léguas de Paris, e de regular as suas coisas com o seu caseiro, um honrado homem, que detém em Paris bem contra vontade dele, que por mil razões muito precisaria de estar na terra.

       - Na verdade, meu mestre, é assaz prodigioso.

       - Oh! Espere. Da segunda vez veio a França, porque os negócios políticos assim o exigiam; depois fez uma certa brochura, que enviou a Luís XVI, e como ainda hoje existe em si uma porção do mesmo homem, é mais orgulhoso da aprovação de um rei, que não seria talvez do meu predecessor em educação junto do senhor, João Jacques Rousseau, que contudo seria mais alguma coisa que um rei, se ainda vivesse. O senhor desejava saber o que pensava do doutor Gilberto o neto de Luís XIV, de Henrique IV e de S. Luís; por desgraça, existia um velho negociozinho em que não tinha pensado, e acerca do qual o encontrei um dia todo ensangüentado numa gruta das ilhas dos Açores, onde o meu navio arribara por acaso; tinha o peito varado por uma bala. Este negociozinho dizia respeito à menina Andréa de Taverney, hoje condessa de Charny, em serviço da rainha. Ora, como a rainha nada podia recusar à mulher que desposara o conde de Charny, a rainha pediu e obteve uma carta régia para que o prendessem, como efectivamente foi preso, na estrada do Havre a Paris, e conduzido à Bastilha, onde estaria ainda, meu caro doutor, se o povo não a tivesse derrubado com um piparote. Como bom realista, o meu caro Gilberto foi logo unir-se ao rei, de quem é médico. Ontem, ou antes esta manhã, contribuiu poderosamente para salvar a família real, correndo a despertar o bom Lafayette, que dormia o sono dos justos, e quando há pouco me viu, julgando que a rainha, que, seja dito entre parêntesis, meu caro Gilberto, o detesta, corria grande perigo, dispunha-se a fazer à sua soberana uma trincheira com o seu corpo. Diga, não é isto? Esqueci alguma particularidade pouco importante, como uma sessão de magnetismo em presença do rei, uma certa caixa que se subtraiu de certas mãos, que dela se tinham apoderado por meio de um tal Pas-de-Loup? Vamos, diga se cometi algum esquecimento, que estou pronto a receber correcção.

       Gilberto ficara estupefacto daquele homem singular, que tão bem sabia dispor os seus meios de efeito, que aquele sobre quem operava se via tentado a acreditar que, igual a um Deus, possuía o dom de abraçar simultaneamente o conjunto do mundo com as suas particularidades, e ler no coração dos homens e nos desígnios de Deus.

       - Sim, é isso mesmo - disse ele - e o senhor é sempre o famoso mágico, o feiticeiro, o encantador Cagliostro.

       Cagliostro sorriu com satisfação; era evidente que se ufanava de ter produzido em Gilberto a impressão que, a seu pesar, o rosto deste manifestava.

       Gilberto continuou:

       - E agora, como lhe quero decerto tanto quanto me quer a mim, meu caro mestre, e o meu desejo de saber o que foi feito do senhor desde que nos separámos, é pelo menos tão vivo como aquele que o moveu também a informar-se de mim, peço-lhe que tenha a bondade de me dizer, se porventura não for indiscreta a minha pergunta, em que local do mundo espalhou o seu génio e exercitou o seu poder?

       Cagliostro sorriu.

       - Oh! - disse ele - fiz como o senhor, vi reis, muitos reis até, mas com outro fim; o senhor chega-se a eles para os manter, eu chego-me a eles para os derribar; o senhor procura fazer um rei constitucional, e não o consegue; eu faço imperadores, reis, príncipes filósofos, e consigo-o.

       - Deveras? - interrompeu Gilberto com ar de dúvida.

       - Muito seriamente. Verdade é que já tinham sido admiravelmente preparados por Voltaire, d’Alembert e Diderot, esses novos Mecenas, esses sublimes desprezadores dos deuses, e também por aquele caro rei Frederico, que tivemos a desventura de perder; mas enfim, o senhor sabe muito bem que, excepto aqueles que não morrem, como eu e o conde de S. Germain, todos são mortais. Tanto assim é que as rainhas são belas, meu caro Gilberto, e que recrutam soldados que combatem contra si mesmos, reis que trabalham para o desmoronamento do altar. Deste modo temos em primeiro lugar o imperador José II, o irmão da nossa muito amada rainha, que suprime as três quartas partes dos mosteiros, que se apodera dos bens eclesiásticos, que expulsa das suas celas os próprios carmelitas, e que envia a sua irmã Maria Antonieta várias gravuras representando alguns religiosos sem capuz trajando à moda, alguns monges outrora rapados, fazendo-se frisar pelos cabeleireiros. O rei da Dinamarca, que principiou por ser o carrasco do seu médico Struensée, e que, filósofo precoce, dizia aos dezessete anos: “Foi o Sr. de Voltaire que me fez homem, e que me ensinou a pensar”. Temos também a imperatriz Catarina, que caminha com passos tão agigantados para a filosofia, ao mesmo tempo que vai desmembrando a Polónia, que Voltaire escreveu-lhe: “Diderot, d’Alembert e eu, elevamos-te altares”. Temos ainda a rainha da Suécia, temos finalmente muitas rainhas do império e toda a Alemanha.

       - Resta-lhe apenas converter o papa, meu caro mestre; e como julgo que nada lhe é impossível, tenho para mim que há-de consegui-lo.

       - Ah! Quanto a esse, há-de ser muito difícil; acabo de lhe escapar das garras; há seis meses que estive no castelo de Santo Angelo, como o senhor esteve há três na Bastilha.

       - Ora adeus! Acaso os Transteveranos derrubaram também o castelo de Santo Angelo, como o povo do bairro de Santo António derrubou a Bastilha?

       - Não, meu caro doutor, o povo romano ainda não foi tão longe. Oh! Esteja descansado, que isso há-de acontecer um dia, o papado há-de ter também o seu cinco e seis de Outubro, e a esse respeito Versalhes e o Vaticano hão-de dar as mãos.

       - Mas julgava que uma vez que se entrava no castelo de Santo Angelo nunca mais se saía?

       - Ora! E Benvenuto Cellini?

       - Arranjou asas como ele, e qual novo Ícaro, voou por cima do Tibre, não é assim?

       - Isso seria difícil, porque me tinham alojado, por precaução evangélica, num cárcere muito profundo e escuríssimo.

       - Mas, enfim, conseguiu sair?

       - Decerto, visto que me vê aqui.

       - Corrompeu à força de ouro o carcereiro?

       - Tive a infelicidade de me darem um carcereiro incorruptível.

       - Incorruptível! Diacho!

       - Sim! Mas por felicidade não era imortal; o acaso (outro qualquer diria a Providência) permitiu que morresse ao terceiro dia depois daquele em que se recusou a abrir-me as portas da prisão.

       - Subitamente?

       - Tal qual.

       - Ah!

       - Foi necessário substituí-lo, e assim o fizeram.

       - E o novo não era incorruptível?

       - Esse, no mesmo dia em que principiou a funcionar, quando me trouxe a ceia, disse-me: “Coma bem, adquira forças, porque esta noite teremos que andar muito”. Por Deus! O honrado homem não mentia, porque nessa mesma noite cada um de nós arrebentou três cavalos, andando cem milhas.

       - E que fez o governador quando deu pela sua fuga?

       - Mandou vestir com o fato que eu deixara o cadáver do outro carcereiro, que não tinham ainda sepultado, deu-lhe um tiro de pistola no meio da cara, deixou-lhe cair a arma ao lado, declarou que me tinha suicidado, sem saber o modo por que pudera obter a pistola; fez lavrar auto do suicídio, e mandou enterrar o carcereiro com o meu nome, de sorte que sou considerado hoje um perfeito cadáver, meu caro Gilberto, e ninguém acreditaria que me encontro vivo, por mais que eu o dissesse; mas não será necessário provar nada disso; convinha-me muito, nessa ocasião, desaparecer do mundo; dei portanto um mergulho até à margem sombria, como diz o ilustre abade Delille, e tornei a aparecer debaixo de outro nome.

       - Então como se chama agora? Cumpre não cometer alguma indiscrição.

       - Chamo-me o barão Zanone, sou banqueiro genovês, e desconto as rendas dos príncipes; é um bom papel, não é assim? É no género do cardeal de Rohan. Mas por felicidade, nos meus empréstimos, não é o interesse que me domina. Bem sabe que a minha ciência, o meu coração e a minha bolsa hoje, como sempre, estão à sua disposição.

       - Obrigado!

       - Ah! Julga talvez que isso me seja sensível, por ter-me encontrado em trajo de operário? Oh! Não se admire disso; é um dos meus disfarces. Sabe as minhas idéias acerca da vida; é um longo carnaval, onde sempre se anda mais ou menos mascarado; em todo o caso, meu caro Gilberto, se alguma vez carecer de dinheiro, aqui tem nesta secretária a minha caixa particular, entende? A grande está em Paris, na rua de Saint-Claude. Portanto se tiver precisão de dinheiro, quer eu aqui esteja, quer não, pode entrar afoitamente; eu lhe ensinarei a abrir a porta pequena; olhe, aqui tem como se aperta a mola... Achará sempre à sua disposição, pouco mais ou menos, um milhão de francos.

       Cagliostro apertou a mola, e a tampa da secretária abriu-se por si, deixando a descoberto um monte de ouro e muitos maços de notas do banco.

       - O senhor, na verdade, é um homem prodigioso - disse rindo Gilberto; - mas, bem o sabe, com as minhas vinte mil libras de renda, ainda sou mais rico do que o próprio rei. Agora não receia que o incomodem em Paris?

       - A mim! Por causa do negócio do colar? Ora adeus! No estado em que se acham os espíritos, bastava que eu dissesse uma palavra para promover logo um tumulto. Esquece-se que sou um pouco amigo de tudo quanto é popular: de Lafayette, de Necker, do conde de Mirabeau e do senhor?

       - O que veio fazer a Paris?

       - Quem sabe? Talvez o que o senhor foi fazer aos Estados Unidos - uma república.

       Gilberto meneou a cabeça.

       - O espírito da França não é republicano – disse ele.

       - Nós lhe daremos outro, e nada mais.

       - O rei não cai.

       - Pode ser.

       - A nobreza há-de pegar em armas, e nesse caso, que fará o senhor?

       - Não faremos uma república, faremos uma revolução.

       Gilberto deixou pender a cabeça sobre o peito.

       - Se chegarmos a esse ponto, José, o negócio será terrível - disse ele.

       - Terrível, se encontrarmos no caminho muitos homens da sua força, Gilberto.

       - Não sou valente - disse Gilberto; - sou honrado, e nada mais.

       - Ai de mim! Isso é muito pior, Gilberto, e é por isso que desejava convencê-lo.

       - Estou convencido.

       - De que há-de opor-se à nossa obra?

       - Pelo menos de que os faremos parar no caminho.

       - Está louco, Gilberto; não compreende decerto a missão da França. A França é o cérebro do mundo; é necessário que a França pense, e que pense livremente, para que o mundo obre como ela há-de pensar também, livremente. Sabe quem derrubou a Bastilha, Gilberto?

       - Foi o povo.

       - Não me entende: toma o efeito pela causa. Durante quinhentos anos, meu amigo, encerraram na Bastilha muitos condes, muitos fidalgos, muitos príncipes, e a Bastilha sempre se conservou de pé. Veio um dia em que um rei teve a idéia de encerrar ali o pensamento, a quem é necessário o espaço, a extensão, o infinito; o pensamento fez estalar a Bastilha, e o povo entrou pela brecha.

       - É verdade - murmurou Gilberto.

       - Não se recorda do que escrevia Voltaire ao Sr. de Chauvelin, em 2 de Março de 1764, isto é, há quase vinte e sete anos?

       - Diga.

       - Escrevia:

       “Tudo quanto vejo lança as sementes de uma revolução, que chegará infalivelmente, e que não terei a satisfação de presenciar. Os Franceses são tardios em se decidir; mas por fim decidem-se. A luz acha-se por tal modo espalhada, tão gradualmente, que na primeira ocasião brilhará ovante, e então que motim não haverá!

       Os moços, esses são mais felizes; eles verão muitas e mui lindas coisas.»”

       - O que diz do motim de ontem e de hoje, hem?

       - Terrível!

       - Que diz das coisas que tem visto?

       - Espantosas!

       - Pois bem, está apenas no começo do drama, Gilberto.

       - Profeta de desgraça!

       - Olhe, há três dias que estive em casa de um médico de grande mérito, um filantropo; sabe em que se entretém?

       - Busca talvez um remédio para alguma moléstia que se repute incurável.

       - Pois não! Busca curar, não da morte, mas da vida.

       - Que quer dizer? Não o entendo.

       - Quero dizer, pondo de parte o epigrama, que ele acha, tendo a peste, a cólera, a febre amarela, as bexigas, as apoplexias fulminantes, quinhentas e tantas moléstias reputadas mortais, e mil e duzentas que o serão, se não forem bem tratadas; quero dizer que, tendo o canhão, a espingarda, a espada, o sabre, o punhal, a água e o fogo, a queda dos telhados, a forca, a roda, acha ele que ainda não são suficientes os meios de sair da vida, quando não há mais do que um para nela entrar; e inventa neste momento uma máquina engenhosíssima, que pretende oferecer à nação e com a qual a nação poderá dar morte a cinqüenta, sessenta e oitenta pessoas em menos de uma hora. Pois bem, meu caro Gilberto, julga que quando um médico tão distinto, um filantropo, tão humano, o doutor Guillotin, enfim, se ocupa de semelhante máquina, se não deva reconhecer que a necessidade de uma tal máquina se fazia sentir, tanto mais, que eu a conhecia já e que por isso não era uma coisa nova, mas apenas desconhecida? A prova de que a conhecia está em que um dia, em que me encontrava em casa do barão de Taverney... É verdade, o senhor deve recordar-se disso, porque também lá estava; mas nesse tempo não tinha olhos senão para uma rapariguinha chamada Nicola. - A prova, dizia, é que a rainha, indo ali por acaso, ainda era simples delfina, ou por melhor dizer, ainda nem delfina era, a prova é que lhe fiz ver essa máquina dentro de uma garrafa de cristal, e que o objecto lhe causou tanto medo, que soltou logo um grande grito, perdendo os sentidos. Pois bem, meu caro, essa máquina, que nessa época ainda estava no limbo, se quiser vê-la funcionar, ela um dia destes é experimentada, nesse dia o farei prevenir, e, ou há-de ser cego, ou há-de reconhecer o dedo da Providência, que se lembrou de que tempo virá em que há-de haver muito trabalho, se se empregarem somente os meios ordinários, e que por isso se deve inventar um novo para o aliviar.

       - Conde, conde, na América não era tão aterrador.

       - Decerto! Na América estava eu no meio de um povo que se levanta. Em França estou no meio de uma sociedade que decai. Tudo caminha para o túmulo no nosso mundo encanecido, nobreza e realeza, e esse túmulo é um abismo.

       - Oh! Abandono-lhe a nobreza, meu caro conde, ou antes a nobreza abandonou-se a si mesma na famosa noite de 4 de Agosto; mas salvemos a realeza; é o paládio da nação.

       - Oh! Que grandes palavrões esses, meu caro Gilberto! Porventura o paládio salvou Tróia? Salvemos a realeza! Julga que seria fácil salvar a realeza com semelhante rei?

       - Mas, enfim, é o descendente duma grande raça.

       - Sim, de uma raça de águias, que degeneraram em papagaios. Para que os utopistas, como o senhor, pudessem salvar a realeza, meu caro Gilberto, seria necessário, em primeiro lugar, que a realeza fizesse algum esforço para se salvar a si. Vejamos, em consciência, viu Luís XVI; vê-o muitas vezes, e o senhor não é homem que veja sem estudar; pois bem, vejamos, diga francamente: pode viver a realeza representada por um tal rei? É essa a idéia que faz de um porta-ceptro? Julga que Carlos Magno, S. Luís, Filipe Augusto, Francisco I, Henrique IV e Luís XIV tinham as carnes balofas, os lábios pendentes, aquela atonia nos olhos, aquela dúvida nas deliberações? Não, esses eram homens, havia neles seiva e sangue, muita vida debaixo do manto real; eles ainda se não tinham depravado pela transmissão de um único príncipe; é porque a mais simples noção médica foi desprezada por esses homens verdadeiramente míopes. Para conservar as espécies animais e até as vegetais numa dilatada juventude e num constante vigor, a natureza indicou por si mesma os cruzamentos das raças e a mistura das famílias. Do mesmo modo que o enxerto no reino vegetal é o princípio conservador da bondade e da beleza das espécies, também nos homens o casamento entre iguais mui chegados é uma causa da decadência dos indivíduos. A natureza sofre, desfalece e degenera quando muitas gerações se reproduzem com o mesmo sangue; pelo contrário, vivifica-se, regenera-se, robustece-se quando um princípio prolífico estranho e novo se introduz na concepção. Veja quem são os heróis que firmam as grandes raças, e quais são os homens frágeis que as terminam: veja Henrique III, o último dos Valois; veja Castão, o último dos Médicis; veja o cardeal de Iorque, o último dos Stuart; veja Carlos IX, o último dos Hapsbourgs; pois esta primeira causa da degeneração das raças, o casamento na família, que se faz sentir em todas as casas de que acabamos de falar, é ainda mais sensível na casa de Bourbon, do que em nenhuma das outras; deste modo, remontando-nos de Luís XV a Henrique IV e a Maria de Médicis, acha-se que Henrique IV é cinco vezes o trisavô de Luís XV, e Maria de Médicis cinco vezes a sua trisavô: deste modo, remontando-nos a Filipe III de Espanha e a Margarida de Áustria, Filipe III é três vezes seu trisavô, e Margarida de Áustria três vezes sua trisavó. Eu, que nada mais faço do que calcular, assim calculei todas estas coisas. Sobre trinta e dois trisavós de Luís XV, encontram-se seis pessoas da casa de Bourbon, cinco da casa de Médicis, onze da casa de Áustria-Hapsbourg, três da casa de Sabóia, três da casa de Lorena, duas da casa de Baviera, um príncipe da casa dos Stuarts, e uma princesa dinamarquesa. Submeta o melhor cão de raça a esta prova, faça passar o mais famoso corcel de sangue por este cadinho, e à quarta geração terá um cão gozo e um sendeiro; como diabo quer então que soframos tudo isto, nós que não somos mais do que homens? O que diz do meu cálculo, doutor, o senhor que é matemático?

       - Digo, caro feiticeiro - respondeu Gilberto levantando-se e pegando no chapéu - que o seu cálculo me assusta e me faz recordar cada vez mais de que o meu lugar é junto do rei.

       Gilberto deu alguns passos para a porta.

       Cagliostro deteve-o.

       - Escute, Gilberto - lhe disse ele - o senhor sabe se, para lhe poupar uma dor, eu seria capaz de me expor a sofrer mil dores; pois bem, escute um conselho.

       - Qual é?

       - Que o rei se salve, que saia de França enquanto é tempo; daqui a três meses, daqui a seis, daqui a um ano, talvez já seja tarde.

       - Conde - acudiu Gilberto - aconselharia o senhor um soldado a que abandonasse o seu posto, porque nele corresse perigo?

       - Se esse soldado estivesse preso, desarmado, se não pudesse defender-se, se sobretudo a sua vida exposta pusesse em risco a vida de meio milhão de homens; sim, dir-lhe-ia que fugisse, e até o senhor mesmo o dirá ao rei, e o rei há-de querer então escutá-lo; mas já será muito tarde. Não espere pois para amanhã, diga-lho ainda hoje; não espere para esta noite; diga-lho daqui a uma hora.

       - Conde, sabe que sou da escola fatalista. Aconteça o que acontecer, enquanto eu tiver alguma influência sobre o rei, não há-de sair de França e conservar-me-ei sempre ao lado dele. Adeus, conde; ver-nos-emos em combate, e talvez que durmamos ambos um a par do outro no campo de batalha.

       - Vamos - murmurou Cagliostro - estará pois decretado que o homem, por mais inteligente que seja, não possa escapar ao seu mau destino?! Procurei-o só para lhe dizer o que acabo de dizer-lhe. Bem o ouviu: como a predição de Cassandra, a minha é inútil; adeus.

       - Vejamos, francamente, conde - disse Gilberto, parando no limiar da sala e olhando fixamente para Cagliostro - tem aqui, como na América, a pretensão de me fazer acreditar que lê no rosto o futuro dos homens?

       - Gilberto - redargüiu Cagliostro - tão certo como tu lês no Céu o caminho que descrevem os astros, ao passo que o comum dos homens os julga imóveis ou errantes ao acaso.

       - Muito bem, mas... Bate alguém à porta.

       - É verdade.

       - Diga-me qual é a sorte de quem bate àquela porta, seja quem for; diga-me de que morte há-de morrer e quando morrerá.

       - Pois sim - tornou Cagliostro - e vamos nós mesmos abrir, que já lho digo.

       Gilberto dirigiu-se para a extremidade do corredor de que falámos, com um palpitar de coração que lhe estava dizendo ser nele um grande absurdo tomar a sério aquele charlatanismo.

       Abriu-se a porta.

       Um homem de porte assaz distinto, bastante alto, e do qual o rosto era impregnado de uma forte expressão de vontade, assomou à porta lançando sobre o doutor Gilberto um olhar rápido, mas que não era isento de inquietação.

       - Bons dias, marquês - disse Cagliostro.

       - Bons dias, barão - respondeu o recém-chegado.

       Depois, como Cagliostro observasse que não desfitava a vista de Gilberto, disse:

       - Marquês, é o Sr. Dr. Gilberto, meu particular amigo. Meu caro Gilberto, é o Sr. marquês de Favras, um dos meus mais distintos clientes.

       E ambos se saudaram.

       - Marquês - disse ele - tenha a bondade de passar à sala, e de me esperar aí um instante.

       O marquês saudou segunda vez, e passando por diante deles desapareceu.

       - Então? - perguntou Gilberto.

       - Quer saber de que morte morrerá o marquês? - perguntou-lhe Cagliostro.

       - Não se obrigou a dizer-mo.

       Cagliostro sorriu-se de um modo singular, e observando se poderia ser ouvido, perguntou:

       - Nunca viu enforcar um fidalgo?

       - Não.

       - Pois como é um espectáculo curioso, vá o meu caro Gilberto à praça de Grève no dia em que enforcarem o nobre marquês de Favras.

       E conduzindo Gilberto até à porta, acrescentou:

       - Olhe, quando quiser vir a minha casa sem bater, sem ser visto e sem ver mais ninguém senão a mim, faça mover este botão da direita para a esquerda, e de baixo para cima... Assim. E adeus.

       - Adeus.

       - E desculpe-me, que não convém fazer esperar muito aqueles a quem pouco tempo resta de vida.

       E retirou-se deixando Gilberto aturdido com aquela infalibilidade que podia excitar-lhe a admiração, mas nunca vencer nele a incredulidade.

 

As Tulherias

       Durante este tempo, o rei, a rainha, toda a família real continuavam o seu caminho em direcção a Paris.

       A jornada era vagarosa, demorada pelos guardas reais, que marchavam a pé, pelas regateiras de couraça montadas nos seus cavalos, pelos homens e mulheres das praças e dos mercados, assentados em carretas de artilharia cheias de fitas, pelas cem carruagens dos deputados, por algumas trezentas carroças carregadas de cereais e de farinhas trazidas de Versalhes e cobertas com os amarelados ramos do Outono, de sorte que só pelas seis horas é que a carruagem real, que continha tantas dores, tantos ódios, tantas paixões e tantas inocências, chegou à barreira.

       O príncipe sentiu fome no caminho, e deu indícios de querer comer.

       A rainha olhara em volta de si; nada havia mais fácil do que procurar um bocado de pão para o delfim; cada popular trazia um pão espetado na baioneta.

       Procurou Gilberto com os olhos.

       Gilberto, como sabemos, seguira Cagliostro.

       Se Gilberto ali estivesse não hesitaria a rainha em pedir-lhe um bocado de pão para o delfim.

       Mas não quis fazer esse pedido a nenhum daqueles populares que tanto odiava; de modo que, chorosa e apertando o delfim contra o peito, disse:

       - Meu filho, não temos pão; espera até à noite, que talvez então o tenhamos.

       O delfim estendeu a mãozinha para os homens que levavam pão nas pontas das baionetas, e disse:

       - Aqueles homens levam pão, mamã.

       - Sim, meu filho, mas aquele pão é deles; foram buscá-lo a Versalhes, porque segundo dizem, não o tinham há três dias em Paris.

       - Pois há três dias que não têm comido, mamã?

       A etiqueta exigia que o delfim tratasse sua mãe por senhora; mas o pobre menino fizera como faz o simples filho do pobre; e como tinha fome, chamava-lhe mãe.

       - Não, meu filho - respondeu a rainha.

       - Nesse caso - replicou o menino dando um suspiro - devem ter muita fome, coitadinhos!

       Pobre filho de rei, que mais de uma vez, antes de morrer, devia, como acabava de fazer, pedir pão inutilmente!

       Pararam de novo na barreira; desta vez não foi para descansar, mas para celebrar a chegada.

       A chegada devia ser festejada por meio de cânticos e de danças.

       Paragem singular! Quase tão ameaçadora na sua alegria, quanto as outras o tinham sido no seu terror.

       Com efeito, as regateiras apearam-se dos cavalos, isto é, dos cavalos dos guardas, pendurando nos arções das selas os sabres e as clavinas.

       As mulheres e os carregadores desceram dois canhões, que se apresentaram na sua horrível nudez.

       Formaram então uma roda que envolveu a carruagem do rei, separando-a da guarda nacional e dos deputados, emblema formidável do que mais tarde devia acontecer.

       As pessoas que formaram a roda estavam possuídas das melhores intenções, e para mostrarem o seu júbilo à real família, cantavam, gritavam, berravam. Os homens abraçando os homens, as mulheres fazendo saltar as mulheres, como nas cínicas (quermesses) de Teniers.

       Isto passava-se quase à noite, por um tempo sombrio e chuvoso, de sorte que a estrada, alumiada apenas por velas de artilharia e peças de artifício, tomava nas suas gradações de sombra e de luz uma cor fantástica, quase infernal.

       Depois de meia hora de gritos, de clamores, de cânticos, de danças por cima da lama, o cortejo soltou um prolongado hurra! Quantos tinham uma espingarda carregada, homens, mulheres, e crianças, a descarregaram para o ar sem lhes importarem as balas, que tornando a cair por todos os lados, dir-se-iam um chuveiro de granizo.

       As crianças choravam e tinham tanto medo, que já se não lembravam da fome.

       Seguiram a linha do cais, e chegaram à praça da casa da câmara.

       Via-se ali formado um quadrado, de tropa para impedir que outra qualquer carruagem que não fosse a do rei, outras quaisquer pessoas que não fossem as que pertenciam à família real ou à Assembléia Nacional, entrassem na casa da câmara.

       A rainha avistou então Weber, o seu criado de confiança, o filho da sua ama, um austríaco, que viera com ela de Viena, e que fazia todos os esforços para entrar antes dela na casa da câmara.

       Ela chamou-o.

       Weber chegou-se logo.

       Como vira em Versalhes que a guarda nacional tinha as honras do dia, a fim de se dar uma importância com que pudesse ser útil à sua rainha, vestira-se com o uniforme de guarda nacional, ao qual ajuntara as insígnias de oficial do estado-maior.

       O estribeiro da rainha emprestara-lhe um cavalo para não despertar suspeitas pelo caminho, e Weber pusera-se de parte, na intenção de se aproximar se a rainha precisasse dele.

       Conhecido e chamado por ela, correu imediatamente.

       - Por que motivo queres tu entrar tão precipitadamente? - lhe perguntou a rainha, que conservara o costume de tratar Weber por tu.

       - Para estar perto de Vossa Majestade, senhora.

       - Ser-me-ás inteiramente inútil na casa da câmara - disse a rainha - quando noutra parte me podes ser de maior utilidade.

       - Onde, senhora?

       - Nas Tulherias, meu caro Weber, nas Tulherias, onde ninguém nos espera, e onde, se não nos precederes, não acharemos nem uma cama, nem um quarto, nem um bocado de pão.

       - Ah! - disse o rei - teve uma excelente idéia, senhora.

       A rainha falara em alemão; o rei, que compreendia essa língua, sem a falar, respondera em inglês.

       O povo também ouvira, mas não entendia aquela linguagem, a que tinha uma aversão instintiva, o que deu em lugar, em volta da carruagem, a um murmúrio prestes a tornar-se rugido, quando o quadrado se abriu diante da carruagem da rainha, e se tornou a fechar por detrás dela.

       Bailly, uma das três popularidades da época, que já vimos na primeira viagem do rei, quando as baionetas das espingardas e as bocas dos canhões desapareciam por baixo dos ramos de flores, que na segunda viagem tinham totalmente esquecido, Bailly aguardava o rei e a rainha junto de um trono improvisado para os receber.

       Trono pouco firme, pouco sólido, rangendo debaixo do veludo que o cobria, verdadeiro trono de ocasião.

       O maire de Paris disse ao rei o mesmo que lhe dissera na sua primeira viagem.

       O rei respondeu-lhe:

       - É sempre com prazer e confiança que vejo os habitantes da minha cidade de Paris.

       O rei falara baixo, com voz enfraquecida pela fadiga e pela fome, Bailly repetia a frase em voz alta, para que todos ouvissem, com a diferença que ou de propósito ou por descuido, esquecera-se de pronunciar a palavra confiança.

       À rainha não lhe escapou esta falta.

       O seu azedume sentia-se muito feliz em achar uma vereda por onde saísse.

       - Perdão, Sr. Maire - disse ela bem alto, para que aqueles que a rodeavam não perdessem uma única palavra da frase - ou entendeu mal, ou a sua memória é muito fraca.

       - Que diz, senhora? - balbuciou Bailly volvendo sobre a rainha aquele olhar de astrónomo, que tão bem via no Céu, e que tão mal via na Terra.

       Qualquer revolução, no nosso país, tem o seu astrónomo, e sobre o caminho desse astrónomo cava traiçoeiramente o poço onde ele deve cair.

       A rainha replicou:

       - Senhor, o rei disse que era com prazer e confiança que via os habitantes da sua boa cidade de Paris. Ora, como alguém pode duvidar de que ele venha com prazer, cumpre que se saiba, pelo menos, que vem com confiança.

       Depois subiu os três degraus do trono, assentando-se ao lado do rei, para ouvir os discursos dos eleitores.

       Durante este tempo, Weber, diante de cujo cavalo se abria a multidão, graças ao seu uniforme de oficial do estado-maior, chegara ao palácio das Tulherias.

       Desde muito tempo que o alojamento real das Tulherias, como outrora lhe chamavam, alojamento mandado construir por Catarina de Médicis, pouco tempo habitado por ela, e abandonado depois por Carlos IX, por Henrique III, por Henrique IV, por Luís XIII, para darem preferência ao Louvre; por Luis XIV, por Luis XV e por Luís XVI para residirem em Versalhes, não era mais do que uma espécie de filial do palácio, no qual habitavam pessoas da corte, mas onde talvez nem o rei nem a rainha tivessem entrado.

       Weber visitou todos os quartos, e conhecendo os costumes do rei e da rainha, escolheu o que habitava a condessa de La Mark, irmã dos marechais de Noialles e de Mouchy.

       A ocupação deste alojamento, que a senhora de La Mark imediatamente abandonou, tinha alguma coisa de bom, porque estava inteiramente pronto para receber a rainha, abundando em móveis, roupa, tapetes e cortinas, que Weber comprou.

       Pelas dez horas ouviu-se o ruído da carruagem de Suas Majestades, que entrava.

       Tudo estava pronto; e correndo ao encontro de seus augustos amos, Weber gritou:

       - Sirvam el-rei.

       O rei, a rainha, a princesa real, o delfim, a infanta Isabel e Andréa efectuaram a sua entrada.

       O Sr. conde de Provença tinha voltado ao castelo de Luxemburgo.

       O rei volveu com inquietação os olhos para todos os lados; mas entrando no salão, divisou uma porta entreaberta, que deitava para uma galeria, no fim do qual se via uma ceia completamente servida.

       Abriu-se a porta de repente, aparecendo logo um oficial de serviço, que disse:

       - El-rei está servido!

       - Ah! Que homem de recursos é este Weber! - disse o rei com uma exclamação de alegria; - dir-lhe-á da minha parte, senhora, que estou mui satisfeito com ele.

       - Assim o farei, senhor - respondeu a rainha.

       E com um fundo suspiro, que correspondia à exclamação prazenteira do rei, entrou na sala de jantar.

       Os talheres do rei, da rainha, da princesa real, do delfim e de Isabel estavam prontos.

       Não havia talher para Andréa.

       O rei, apertado pela fome, não notara essa omissão, que de resto nada tinha de ofensiva, porque era feita segundo as leis da mais estrita etiqueta.

       Mas a rainha, a quem nada escapava, percebeu-a logo.

       - El-rei há-de permitir que a condessa de Charny ceie na nossa companhia, não é assim, senhor?

       - Pois não! - exclamou o rei - hoje comemos em família, e a condessa também é da família.

       - Senhor - disse a condessa - é uma ordem que Vossa Majestade me dá?

       O rei olhou para ela com admiração.

       - Não, condessa - respondeu ele - é um pedido que o rei lhe faz.

       - Nesse caso - acudiu ela - peço a Vossa Majestade se digne dispensar-me; não tenho vontade de comer.

       - Como! Não tem vontade de comer! – exclamou o rei, que não compreendia como era possível não ter vontade de comer às dez horas da noite, depois de uma jornada tão fatigante, e estando sem comer desde as dez horas da manhã, hora a que tão mal tinham almoçado.

       - Não, meu senhor - tornou Andréa.

       - Nem eu tão-pouco - disse a rainha.

       - Nem eu tão-pouco, disse a infanta Isabel.

       - Oh! Não fazem bem - tornou o rei; - do bem-estar do estômago depende o bem-estar do resto do corpo até do espírito; existe a este respeito uma fábula de Tito-Lívio, imitada por Shakespeare e Lafontaine, sobre a qual as convido a meditar.

       - Bem a sabemos, senhor - acudiu a rainha; - é uma fábula que disse num dia de revolução o velho Menécio ao povo romano; nesse dia o povo romano estava sublevado, como hoje está o povo francês: tem pois razão: sim, essa fábula vem muito a propósito nas actuais circunstâncias.

       - Então! - disse o rei apresentando o prato para que lhe servissem mais cozido - a semelhança histórica não a decide, condessa?

       - Não, meu senhor, e sinto dizer a Vossa Majestade, que quando quisesse obedecer-lhe, não poderia fazê-lo.

       - Não tem razão, condessa, este cozido está delicioso; por que motivo é esta a primeira vez que assim mo servem?

       - Porque tem um cozinheiro novo, o da condessa de La Mark, cujos quartos ocupamos.

       - Tomo-o para o meu serviço, e desejo que faça parte da minha casa. Este Weber é na verdade um homem milagroso! - disse o rei.

       - É verdade - murmurou tristemente a rainha; - é uma desgraça que não possa ser nomeado ministro.

       O rei não ouviu, ou não quis ouvir; somente, como visse Andréa, de pé e muito pálida, ao passo que a rainha e a infanta Isabel, conquanto não comessem mais do que Andréa, estavam assentadas à mesa, voltou-se para a condessa de Charny e disse:

       - Condessa, se não tem vontade de comer, não dirá ao menos que não está cansada. Se recusa comer, não recusará dormir.

       Depois disse à rainha:

       - Senhora, peço-lhe que dê licença à Srª. condessa para se retirar; que o sono supra a comida.

       E tornando a voltar-se para a mesa:

       - Espero que não aconteça o mesmo com a cama da Srª. condessa como aconteceu com o talher; julgo que não se esqueceriam de lhe aprontar um quarto.

       - Oh! Senhor - disse Andréa - como quer que se ocupem de mim no meio de tanta barafunda; basta-me uma cadeira.

       - Nada, nada - acudiu o rei; - dormiu pouquíssimo, ou talvez nada; portanto é necessário que durma bem esta noite; a rainha não só precisa das suas forças, mas também das dos seus amigos.

       Durante este tempo entrou o criado que se fora informar.

       - O Sr. Weber - disse ele - sabendo do favor com que a rainha honra a Srª. condessa, julgou entrar nas intenções de Sua Majestade mandando reservar para a Srª. condessa um quarto junto ao de sua Majestade a rainha.

       A rainha estremeceu, lembrando-se que, não havendo mais do que um quarto para a condessa, era natural que esse quarto fosse para a condessa e para o conde.

       Andréa notou o calafrio que percorrera as veias de Maria Antonieta.

       Nenhuma das sensações que cada uma daquelas mulheres sentia, deixava de ser reciprocamente observada.

       - Por esta noite, mas só por esta noite – disse ela - aceitarei, minha senhora. O quarto de Vossa Majestade é demasiadamente restrito para que eu aceite um cómodo que necessariamente há-de incomodá-la; é provável que no sótão do palácio haja um cantinho para mim.

       A rainha balbuciou algumas palavras ininteligíveis.

       - Condessa - disse o rei - tem razão, amanhã tudo se arranjará, e alojar-se-ão o melhor que for possível.

       A condessa saudou respeitosamente o rei, a rainha e a infanta Isabel, saindo logo precedida por um criado.

       O rei seguiu-a um momento com os olhos, conservando o garfo imóvel na altura da boca.

       - É na verdade uma interessante criatura esta mulher - disse ele; - quanto não é feliz o conde de Charny por haver encontrado na corte semelhante fénix!

       A rainha encostou-se ao respaldo da cadeira para disfarçar a palidez, não ao rei, que decerto não a veria, mas sim à infanta, que podia assustar-se.

       Sentia-se quase desfalecer!

 

As quatro velas

       Assim que os meninos comeram, a rainha pediu licença ao rei para se retirar para o seu quarto.

       - Com muito gosto, senhora--tornou-lhe o rei - por isso que deve estar fatigada.

       A rainha saiu, levando consigo os dois filhos.

       O rei ficou à mesa para concluir a ceia: a infanta Isabel, em quem em certas ocasiões nem a vulgaridade do rei podia alterar a dedicação, deixou-se ficar junto dele para lhe prestar os desvelos que escapam aos criados, por mais vigilantes que sejam.

       A rainha respirou mais livremente logo que se viu no seu quarto; nenhuma das damas a acompanhara; todas tinham ficado em Versalhes até nova ordem.

       Ocupou-se pois de procurar um largo canapé ou uma boa poltrona onde dormisse, contando deitar os filhos na cama que lhe fora destinada.

       O delfim já dormia. Apenas satisfez o apetite que o devorava, deixara-se adormecer.

       A princesa real não dormia, e se fosse necessário velaria toda a noite. Tinha muito a peito o sossego da rainha, por isso, deitando o príncipe num sofá, tanto ela como a rainha trataram de procurar o que precisavam.

       A rainha aproximou-se de uma porta; ia abri-la quando do outro lado da mesma porta sentiu um ligeiro suspiro; escutou, e ouviu outro suspiro; abaixou-se então até à altura da fechadura, e pelo buraco viu a pobre Andréa de joelhos numa cadeira baixa e orando.

       Recuou então nos bicos dos pés sem desviar a vista da porta, com uma expressão pungente e dolorosa.

       Em frente daquela porta havia outra, que a rainha abriu, deparando-se-lhe um gabinete alumiado apenas por uma lamparina, a cuja luz descobriu, num sobressalto de júbilo, duas camas tão frescas e tão brancas como dois altares: o coração dilatou-se-lhe então e uma lágrima ardente, cheia de reconhecimento se lhe deslizou das pálpebras.

       - Oh! Weber! - murmurou ela - a rainha disse ao rei que era uma infelicidade não te poder nomear ministro, mas a mãe diz-te que mereces ainda mais do que isso!

       E como o delfim dormisse, quis obrigar a princesa real a deitar-se; mas esta, com o respeito que sempre tivera por sua mãe, pediu-lhe licença para ajudá-la a despir, para por sua vez poder deitar-se também.

       A rainha sorriu tristemente: a filha pensava que ela pudesse dormir depois de uma noite tão dolorosa, depois de um dia de humilhações. Deixou-a nessa grata ilusão.

       Principiaram pois por deitar o delfim; depois, segundo o seu costume, a princesa pôs-se de joelhos e fez as suas orações junto do leito.

       - Parece-me que rezas hoje mais do que de ordinário, Teresa - disse a rainha à jovem princesa.

       - É porque meu irmão deixou-se adormecer sem rezar, pobre menino! - acrescentou ela; - e como todas as noites tenho por costume rezar pela rainha e pelo rei, quis rezar também por ele, para que nada falte no que temos a pedir a Deus.

       A rainha apertou-a contra o coração. A fonte de lágrimas, que tinham já aberto os cuidados do bom Weber, avivada pela piedade da princesa, precipitou-se-lhe dos olhos impetuosa e ardente.

       Ficou de pé e imóvel junto do leito da filha querida, como o anjo da maternidade, até ao momento em que viu fecharem-se os olhos da jovem princesa, e em que sentiu afrouxarem-se-lhe os músculos das mãos, que apertavam as suas com tão terno e tão profundo amor filial.

       Pousou-lhas então docemente ao lado do corpo, cobriu-as com o lençol, para que não sentissem frio se acaso o quarto viesse a arrefecer durante a noite, e dando depois na fronte adormecida da futura mártir um beijo ligeiro como um sopro, e doce como um sonho, retirou-se para o seu quarto.

       O quarto era alumiado por um candelabro com quatro velas, colocado sobre uma mesa.

       A mesa estava coberta com um pano escarlate.

       A rainha foi assentar-se junto dela e com os olhos fixos deixou cair os punhos fechados, sem ver outro objecto que não fosse o mesmo tapete que tinha diante de si.

       Duas ou três vezes meneou a cabeça à vista daquele sangrento reflexo: afigurava-se-lhe que os olhos se lhe inundavam de sangue, que as fontes palpitavam febris, e que os ouvidos zumbiam.

       Depois, como por entre um nevoeiro, toda a sua vida deslizou diante dela.

       Recordava-se que nascera em 2 de Novembro de 1755, dia do terremoto de Lisboa, que matara mais de cinqüenta mil pessoas e derrubara duzentas igrejas.

       Recordava-se que no primeiro quarto onde dormira em Estrasburgo, representava a tapeçaria a morte dos Inocentes; e nessa mesma noite, à luz vacilante de uma lamparina, se lhe afigurara ver que o sangue corria das feridas daquelas pobres criancinhas, ao passo que os rostos dos assassinos tomavam uma expressão tão terrível, que, assustada, bradara por socorro, e ordenara que logo ao romper da alva saíssem sem falta daquela cidade, que devia deixar-lhe tão triste recordação da primeira noite que passara em França.

       Recordava-se que, continuando a seguir para Paris, havia parado em casa do barão de Taverney, onde pela primeira vez encontrara aquele miserável Cagliostro, que depois do negócio do colar tivera uma terrível influência sobre o seu destino, e que naquela paragem, tão presente à sua memória, que parecia que este acontecimento se realizara na véspera, apesar dos vinte anos que eram decorridos, esse Cagliostro instara com ela para que visse dentro de uma garrafa de cristal alguma coisa de aparência monstruosa, uma máquina de morte terrível e desconhecida, e por baixo dessa máquina uma cabeça rolando separada de um tronco, e essa cabeça decerto não era outra senão a sua.

       Recordava-se que a Srª. Lebrun fizera o seu retrato, retrato encantador de uma jovem dama ainda bela e feliz, e dera a esse retrato, decerto sem a menor intenção, mas presságio terrível, a mesma atitude que a rainha de Inglaterra, mulher de Carlos I, tem no seu retrato.

       Recordava-se que no dia em que pela primeira vez entrou em Versalhes, no momento em que acabava de descer da carruagem, pusera o pé sobre o fúnebre pavimento desse pátio de mármore, onde na véspera tanto sangue correra, e sentira um grande trovão no momento em que caía um raio, que sulcara o ar do seu lado esquerdo, e tudo isto de um modo tão assustador, que o marechal de Richelieu, que não era susceptível de se assustar, meneara de súbito a cabeça dizendo: “Mau presságio!”

       E de tudo isto se recordava ela, vendo redemoinhar diante dos olhos esse vapor avermelhado, que lhe parecia tornar-se cada vez mais espesso.

       Esta espécie de deslumbramento era tão sensível, que a rainha, erguendo os olhos para o candelabro, viu que, sem motivo algum, acabava de se apagar uma das velas.

       Estremeceu, a vela ainda fumegava, e nada inculcava qual fosse a causa daquela extinção.

       Enquanto examinava o candelabro com admiração, parecia que a vela próxima se amortecia insensivelmente, e que a pouco e pouco a chama de branca se tornava vermelha, e de vermelha azulada; depois essa mesma chama se animava, se engrandecia, parecia separar-se do pavio, e finalmente, via-se balancear um instante como agitada por um sopro invisível, até extinguir-se de todo.

       A rainha observara com os olhos espantados a agonia daquela vela: o peito arfava-lhe cada vez mais; com as mãos estendidas aproximava-se do candelabro, à medida que a vela se extinguia; e finalmente, depois que de todo se extinguira, fechara os olhos, encostara-se à poltrona, e passara as mãos pela testa inundada de suor. Assim se conservara pelo espaço de dez minutos, pouco mais ou menos, e quando abriu os olhos, observara com horror que a luz da terceira vela principiava a alterar-se, como acontecera com as duas primeiras.

       Maria Antonieta julgou a princípio que era um sonho, e que se achava sob o peso de alguma alucinação fatal; quis levantar-se, mas pareceu-lhe que estava encadeada à poltrona; quis chamar pela infanta, que dez minutos antes não acordaria por outra coroa; mas a voz extinguiu-se-lhe na garganta; quis também voltar a cabeça, mas ficou fixa e imóvel, como se a terceira vela expirante atraísse a si o seu olhar e ia sua respiração. Finalmente, do mesmo modo que a segunda mudara de cor, a terceira por outra forma, empalideceu, alongou-se, flutuou da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita, até que de todo se apagou.

       Então o susto obrigou-a a fazer um tal esforço, que sentiu recobrar a fala, e ajudada por ela procurou adquirir de novo a coragem que lhe faltava.

       - Pouco me importa - disse ela em voz alta - o que acaba de acontecer às três velas; mas se a quarta se apagar como as outras, oh! Então desgraçada de mim!

       De repente, sem passar pelas mesmas fases por que tinham passado as outras, sem que a chama mudasse de cor, sem que parecesse dilatar-se, nem oscilar, como se a asa da morte a tocara de passagem, a quarta vela apagou-se também.

       A rainha soltou um grito agudo, levantou-se, deu duas voltas sobre si, estendeu os braços na obscuridade, e caiu sem sentidos.

       No momento em que o baque do corpo ecoou sobre o pavimento, abriu-se a porta de comunicação, e Andréa, coberta com um penteador de cambraia, assomou ao limiar, branca e silenciosa como uma sombra.

       Parou um momento, como se no meio da obscuridade visse passar como que uma sombra; prestou o ouvido, como se ouvisse agitar-se no ar as pregas de um sudário.

       Depois, abaixando os olhos, pôde descobrir a rainha estendida sobre o solo sem movimento.

       Recuou um passo, como se o primeiro movimento fosse fugir; porém dominando-se, sem proferir uma única palavra sem perguntar à rainha (o que seria inútil) o que tinha, levantou-a nos braços, e com uma força de que a julgariam incapaz, guiada unicamente por duas velas que alumiavam o seu quarto, e cujo clarão se prolongava através da porta até ao quarto da rainha, conseguiu deitá-la na cama.

       Depois tirou da algibeira um frasquinho de espírito, que chegou ao nariz de Maria Antonieta.

       Apesar da eficácia do espírito, o delíquio era tão profundo, que só passados dois minutos soltou um suspiro.

       A este suspiro, que anunciava a existência da sua soberana, Andréa quis ainda retirar-se; mas desta vez, como da primeira, o sentimento do dever, tão poderoso nela, ainda a deteve.

       Somente desviou o braço que sustinha a cabeça de Maria Antonieta, a fim de a preservar de alguma gota de espírito corrosivo, que podia ofender-lhe o rosto ou o peito.

       O mesmo movimento lhe fez desviar o braço que tinha o frasquinho.

       Mas a cabeça caiu então sobre o travesseiro; não cheirando já o frasquinho, a rainha parecia mergulhada num delíquio ainda mais profundo do que o primeiro.

       Andréa, sempre fria, quase imóvel, tornou a levantar-lhe a cabeça, e aproximou-lhe de novo o frasquinho, que produziu o seu efeito.

       Um ligeiro estremecimento percorreu o corpo da rainha, suspirou, abriu os olhos, reuniu as suas idéias, recordou-se do horrível presságio, e vendo uma mulher ao pé de si, lançou-lhe os braços ao pescoço, exclamando:

       - Oh! Defenda-me! Salve-me!

       - Vossa Majestade não carece que a defendam, visto que se encontra no meio dos seus amigos - respondeu Andréa - e julgo-a livre do delíquio em que caiu.

       - A condessa de Charny! - exclamou a rainha, deixando Andréa, que tinha abraçada e que no primeiro movimento quase repelira.

       Nem este movimento nem o sentimento que o inspirara tinham escapado a Andréa.

       Mas, no primeiro momento, ficara imóvel até à impassibilidade.

       E recuando depois um passo, perguntou:

       - Vossa Majestade quer que a ajude a despir?

       - Não, condessa, obrigada - respondeu a rainha com voz alterada - despir-me-ei só; volte para o seu quarto; deve ter necessidade de descanso.

       - Voltarei para o meu quarto, não para descansar, senhora - respondeu Andréa - mas para velar o sono de Vossa Majestade.

       E depois de a saudar respeitosamente, retirou-se com esse passo lento e solene que seria o das estátuas, se as estátuas andassem.

 

A estrada de Paris

       Na mesma noite em que ocorreram os acontecimentos que acabamos de referir, outro acontecimento não menos grave pusera em rumor todo o colégio do abade Fortier.

       Sebastião Gilberto desaparecera pelas seis horas da tarde, e à meia-noite, apesar das buscas minuciosas que se fizeram por toda a casa, executadas pelo mesmo abade Fortier e pela senhora Alexandrina Fortier, sua irmã, não tinha aparecido.

       Informavam-se de todos, mas ninguém dava notícias dele.

       Só a tia Angélica, que saía da igreja, onde fora arranjar as suas cadeiras, pelas oito horas da noite, julgava tê-lo visto seguir pela pequena rua que passa por entre a igreja e a prisão, e aproximar-se, correndo, do picadeiro.

       Esta notícia, em lugar de sossegar o abade, aumentara a sua inquietação; não ignorava as estranhas alucinações que às vezes se apoderavam de Gilberto, quando essa mulher a quem chamava mãe, lhe aparecia, e mais de uma vez no passeio, o abade, que estava prevenido dessa espécie de vertigem, o seguira com os olhos quando o vira penetrar demasiadamente nos bosques, e no momento em que receava vê-lo desaparecer, enviara em seu seguimento os melhores andarilhos.

       Estes encontravam o rapaz palpitante, quase sem sentidos, encostado a alguma árvore, ou deitado ao comprido na relva, tapete verdejante daquelas magníficas matas.

       Mas nunca essas vertigens o atacavam de noite; nunca, durante ela, havia necessidade de correr atrás dele.

       Era pois indubitável que alguma coisa extraordinária tivera acontecido; mas o abade Fortier, por mais que torturasse a cabeça, não podia adivinhar o que fosse.

       Para chegar a um resultado mais feliz do que o do abade Fortier, seguiremos Sebastião Gilberto, por isso que sabemos aonde foi.

       A tia Angélica não se tinha enganado; era com efeito Sebastião Gilberto que vira esgueirando-se por entre as sombras, e correndo a passos largos pela parte do parque, a que chamam terraço.

       Chegando ao terraço, passou junto da faisandaria, local onde se criam os faisões; depois, saindo dali, metera-se ao caminho que conduz em linha recta a Haramont.

       Em três quartos de hora, chegara à aldeia.

       Uma vez que sabemos que o alvo da correria de Sebastião era a aldeia de Haramont, não nos será difícil saber quem fora procurar nessa aldeia.

       Sebastião fora procurar Pitou, por isso que ele, como todos se recordarão, em seguida ao festim que fizera a guarda nacional de Haramont, depois de ter ficado de pé, como os antigos gladiadores, quando todos os outros tinham sido esmagados, deitou a correr atrás de Catarina, e também todos se hão-de lembrar, que só a encontrara desmaiada no caminho de Villers-Cotterets a Pisseleux, conservando apenas o calor do derradeiro beijo que lhe dera Isidoro.

       Pitou, na simplicidade do seu viver, julgava não ter precisão de fechar a porta, quer estivesse em casa, quer não; mas ainda que tivesse por costume fechá-la escrupulosamente, naquela noite estava tão preocupado, que decerto teria esquecido essa precaução.

       Sebastião conhecia o tugúrio de Pitou, como conhecia o seu; procurou isca e pederneira, achou a faca que servia de fuzil a Pitou, feriu lume, acendeu a vela e esperou.

       Mas Sebastião estava muito agitado para esperar sossegado, e sobretudo para esperar muito tempo.

       Ia incessantemente da chaminé à porta, da porta à esquina da rua; depois, como a irmã Ana, que nada via chegar, voltava para a cabana a fim de se assegurar que Pitou, durante a sua ausência, não tinha chegado.

       Finalmente, vendo que o tempo se passava debalde, aproximou-se de uma mesa já coxa, na qual havia penas, tinta e papel.

       Na primeira página daquele papel estavam escrupulosamente inscritos os nomes, pronomes e a idade dos trinta e três homens que formavam o efectivo da guarda nacional de Haramont, e que marchavam debaixo das ordens de Pitou.

       Tirou com o maior cuidado essa primeira folha, obra-prima da caligrafia do comandante, que, para que o trabalho fosse mais bem feito, não se envergonhava de descer algumas vezes ao posto de furriel.

       Depois escreveu o seguinte na segunda:

      

       “Meu caro Pitou

       Vim aqui para te dizer, que ouvi, há oito dias, uma conversação entre o Sr. abade Fortier e o vigário de Villers-Cotterets; parece que o abade Fortier tem certas convivências com os aristocratas de Paris, e dizia que se preparava em Versalhes uma contra-revolução.

       É o que depois soubemos, a respeito da rainha, que pôs o laço preto, e calcou aos pés o laço tricolor.

       Esta ameaça de contra-revolução, e o que depois soubemos acerca dos acontecimentos que se seguiram ao banquete, inquietou-me bastante a respeito de meu pai, que, como sabes, é inimigo dos aristocratas; mas esta noite, meu caro Pitou, ainda a coisa foi muito pior.

       O vigário foi outra vez visitar o cura; e como eu estava com cuidado em meu pai, julguei que não faria mal em escutar de propósito o resto daquilo que ouvira por acaso noutro dia.

       Parece, meu caro Pitou, que o povo se dirigiu a Versalhes, e matou muitas pessoas, e entre elas o Sr. Jorge de Charny.

       O abade Fortier acrescentava:

       - Falemos baixinho, para não incomodar o Gilberto, cujo pai estava em Versalhes, e podia ser morto com os outros.

       Bem deves ver, caro Pitou, que não esperei um momento.

       Saí sorrateiramente do meu esconderijo, sem que ninguém me sentisse, tomei pelo jardim, achei-me na praça do castelo, e deitei a correr para aqui, a fim de te pedir, meu caro Pitou, que me acompanhasses a Paris, o que não deixarias de fazer da melhor vontade, se estivesses em casa.

       Mas como não estás, como podes tardar, porque provavelmente foste à floresta de Villers-Cotterets à caça das lebres; como nesse caso só chegarás de madrugada, o meu receio cresce cada vez mais, e não posso esperar tanto tempo.

       Portanto parto só; fica descansado, que sei o caminho, e demais, do dinheiro que meu pai me deu, ainda me restam dois luíses, que me habilitam a tomar um lugar na primeira diligência que encontrar no caminho.

        Sebastião”

        “P. S. Fiz esta carta muito extensa; em primeiro lugar para te explicar o motivo da minha partida e em segundo porque sempre esperava que voltasses antes de a concluir.

       Concluí-a, e tu não voltaste; vou partir; adeus, ou antes até à vista; se nada aconteceu a meu pai, e se ele não correr risco, voltarei.

       Quando não, estou decidido a pedir-lhe com instância que me conserve junto dele.

       Sossega o abade Fortier sobre a minha partida; mas sobretudo tranquiliza-o somente amanhã, a fim de que já não tenha tempo de correr no meu encalço.

       Decididamente vou partir, uma vez que não te vejo chegar.

       Adeus, ou antes até à vista.”

      

       Dizendo isto, Sebastião Gilberto, que conhecia quanto era económico o seu amigo Pitou, apagou a vela, correu à porta, e partiu.

       Dizer que Sebastião Gilberto não estava algum tanto comovido empreendendo de noite tão longa viagem, seria mentir; mas essa comoção não era a mesma que sentiria outro qualquer rapaz, a do medo: era pura e simplesmente o sentimento completo da acção que empreendia, a qual era uma desobediência às ordens do pai, se bem que fosse ao mesmo tempo tão grande prova de amor filial, que todos os pais não deixariam de perdoar essa desobediência.

       Além de que, Gilberto tinha crescido muito desde que nos não ocupamos dele; um pouco pálido, um pouco débil, um pouco nervoso para a sua idade, Gilberto ia fazer quinze anos. Nessa idade, com o temperamento de Sebastião, e sendo filho de Gilberto e de Andréa quase que se podia considerar um homem.

       Sebastião, sem outro sentimento além dessa comoção inseparável da acção que cometia, deitou a correr em direitura a Largny, que em breve descobriu ao pálido clarão das estrelas, como diz o velho Corneille.

       Seguiu a vila, passou a grande barreira que vai daquela até Vauciennes e que serve de caixilho aos lagos de Walue; em Vauciennes, deparou-se-lhe a estrada real, pela qual foi seguindo sossegadamente.

       Além disso, Sebastião, que era moço de muito juízo, e que falando latim, fora de Paris a Villers-Cotterets em três dias, sabia perfeitamente que se não volta a Paris numa só noite.

       Desceu portanto a passo a primeira, subiu a segunda montanha de Vauciennes, e chegando depois a um terreno plano, foi caminhando um pouco mais depressa.

       Talvez que esta precipitação no caminhar de Sebastião fosse excitada pela aproximação de um péssimo desfiladeiro, que se encontra no caminho, e que naquela época passava por ser uma emboscada, hoje completamente perdida. Este desfiladeiro, chama-se a Fonte de água clara, por isso que um límpido manancial corre a vinte passos de dois rochedos que, semelhantes a dois antros do inferno, abrem suas fauces sombrias aos viandantes.

       Se Sebastião teve ou não medo, atravessando aquele sítio, é o que ninguém poderá dizer, por isso que ninguém lhe viu apressar o passo: podendo passar pelo lado oposto do caminho, não se desviou nem uma só polegada do principal, apressou o passo um pouco mais adiante, mas provavelmente porque chegou a uma pequena subida, e também ao ponto onde se reúnem as duas estradas de Paris e de Cressy.

       Todavia, chegando ali, parou de repente; quando fora de Paris não tinha notado o caminho que seguira; voltando a Paris ignorava qual deveria seguir.

       Seria o da esquerda ou o da direita?

       Ambos eram guarnecidos de árvores iguais; ambos calçados igualmente.

       Não estava ali ninguém que pudesse responder à pergunta de Gilberto.

       As duas estradas, partindo do mesmo ponto, desviam-se logo uma da outra; resultando daqui que se Gilberto, em lugar de tomar por aquela que lhe convinha, tomasse a contrária, achar-se-ia na madrugada do seguinte dia muito distante do seu verdadeiro caminho.

       Parou, portanto, indeciso.

       Procurou algum indício que o ajudasse a reconhecer qual era a estrada que já seguira; mas este indício, que não teria encontrado de dia, mal podia encontrá-lo em plena escuridão.

       Acabava de se assentar, desanimado, no ângulo das duas estradas, tanto para descansar, como para reflectir, quando se lhe afigurou ouvir ao longe, do lado de Villers-Cotterets, o galopar de um ou dois cavalos.

       Levantou-se, apurando o ouvido.

       Não se enganava; o ruído das ferraduras dos cavalos aproximava-se cada vez mais, tornava-se mais distinto.

       Gilberto ia pois colher os precisos esclarecimentos que tanto desejava.

       Dispunha-se a fazer parar os cavaleiros quando passassem, e pedir-lhes esclarecimentos.

       Em breve pôde enxergar-lhes a sombra no meio da escuridão da noite, ao passo que debaixo das férreas patas dos cavalos se espargiam inumeráveis centelhas; levantando-se então de todo, atravessou o fosso e esperou.

       A cavalgada compunha-se de dois homens, que galopavam a três passos de distância um do outro.

       Gilberto pensou que o primeiro era o amo e o segundo o criado.

       Deu pois três passos para se dirigir ao primeiro.

       Este, vendo surgir um homem dentre o feno, e julgando ser alguma emboscada, levou a mão aos coldres.

       Sebastião viu este movimento e disse:

       - Senhor, não sou ladrão; sou um pobre rapaz a quem os últimos acontecimentos de Versalhes chamam a Paris, a fim de procurar meu pai, e não sei qual destas duas estradas devo seguir; tenha a bondade de me indicar qual delas me conduz a Paris; é tudo quanto lhe suplico.

       A distinção das palavras de Sebastião, a sua voz juvenil, que parecia não ser desconhecida ao cavaleiro, fez que, apesar de tão apressado como parecia, fizesse parar o cavalo.

       - Meu filho - perguntou ele com benevolência - quem é e como se arrisca a tais horas em semelhante estrada?

       - Não lhe pergunto quem é, senhor, só lhe peço que me indique o caminho que devo seguir para saber se meu pai é morto ou vivo.

       Havia nesta voz, quase infantil, um acento de firmeza e denodo, que muito impressionou o cavaleiro.

       - Amigo - disse ele - a estrada de Paris é a mesma que nós seguimos; eu mesmo não a conheço bem, porque apenas tenho ido a Paris duas vezes; mas nem por isso deixo de conhecê-la.

       Sebastião inclinou-se agradecendo.

       Os cavalos careciam de resfolegar; o cavaleiro, que parecia o amo, seguiu de novo a sua carreira, porém menos aceleradamente.

       O criado também o seguiu, e perguntou:

       - O Sr. visconde não conheceu bem aquele rapaz?

       - Não; mas parece-me...

       - Pois quê, o Sr. não conheceu Sebastião Gilberto, pensionista do abade Fortier?

       - Sebastião Gilberto?

       - Sim, senhor, aquele que de tempos a tempos aparecia na granja da menina Catarina, em companhia de Pitou.

       - Tens razão, agora me recordo.

       Depois, fazendo parar o cavalo, e voltando-se, perguntou:

       - É Sebastião?

       - Sou, sim, Sr. Isidoro - respondeu o rapaz, que conhecera perfeitamente o cavaleiro.

       - Então aproxime-se, meu amigo - disse o cavaleiro – e diga-me, por que se encontra sozinho nesta estrada e a estas horas?

       - Já lho disse, Sr. Isidoro, vou a Paris para me certificar se meu pai foi morto ou se ainda vive.

       - Ai, meu pobre amigo - exclamou Isidoro com profundo sentimento de tristeza - também eu vou a Paris por motivo igual, a diferença é que já não vou em dúvida!

       - Seu irmão?...

       - Um deles, meu irmão Jorge, foi morto ontem pela manhã em Versalhes.

       - Oh! Sr. de Charny!

       Sebastião fez um movimento para diante, estendendo as mãos para Isidoro.

       Este, tomando-as entre as suas, apertou-as dizendo:

       - Pois bem, meu amigo, uma vez que a nossa sorte é quase igual, cumpre que não nos separemos nunca: deve ter desejos de chegar a Paris quanto antes.

       - Oh! Se tenho!

       - Mas poderá ir a pé?

       - Iria bem a pé, mas é muito longe, e por isso tenciono amanhã tomar um lugar na primeira diligência que encontrar no caminho na direcção de Paris.

       - E se não a encontrar?

       - Irei a pé.

       - Tome outro arbítrio melhor, meu amigo; monte na garupa do cavalo do meu criado.

       Sebastião retirou as mãos dentre as de Isidoro, e disse:

       - Obrigado, Sr. visconde.

       Estas palavras foram pronunciadas com entoação tão expressiva, que Isidoro julgou ter ofendido o mancebo oferecendo-lhe a garupa do cavalo do criado.

       - Ou então, reflectindo melhor, monte antes na sela; ele irá ter connosco a Paris; informando-se nas Tulherias, todos lhe dirão onde poderá achar-me.

       - Torno a agradecer-lhe, visconde - disse Sebastião com voz um pouco mais suave porque compreendera a delicadeza do novo oferecimento; - obrigado, não quero privá-lo do serviço do seu criado.

       Só faltava entenderem-se bem; os preliminares da paz estavam estabelecidos.

       - Pois então, ainda melhor, Sebastião, monte na garupa do meu cavalo. Vai alvorecer; às dez horas da manhã estaremos em Dammartin, isto é, metade do caminho; deixaremos os dois cavalos, que não devem conduzir-nos mais longe, e tomaremos aí uma sege de posta, que nos conduza a Paris; é o que tencionava fazer, e em nada altera as minhas disposições.

       - Isso é verdade, Sr. Isidoro?

       - Palavra de honra.

       - Nesse caso... - pronunciou o mancebo como hesitando, porém ansioso por aceitar.

       - Apeia-te, Baptista, e ajuda o Sr. Sebastião a montar.

       - Obrigado; é inútil, Sr. Isidoro - disse Sebastião, que, ágil como um estudante, saltou, ou antes, pulou para a garupa.

       Depois, metendo os cavalos a galope, em breve desapareceram todos três do outro lado da subida de Grondreville.

 

A aparição

       Os três cavaleiros tinham continuado o seu caminho, como haviam convencionado, a cavalo até Dammartin, onde chegaram às dez horas.

       Todos estavam precisados de tomar alguma refeição; de mais, era necessário procurar uma sege e cavalos de posta.

       Enquanto serviam o almoço a Isidoro e a Sebastião, abraçaram-se ambos, o primeiro com tristeza, o segundo dominado pela incerteza, sem trocarem entre si uma única palavra.

       Baptista cuidava dos cavalos, e tratava de procurar uma carreta para si, e uma sege de posta para seu amo.

       Ao meio dia estava o almoço pronto, e a sege de posta esperava à porta.

       Isidoro, que correra sempre a posta em sege sua, ignorava que, viajando em seges de aluguel, fosse necessário mudá-las todas as vezes que se mudava de cavalos, resultando daí que os mestres de posta, que faziam observar estritamente o regulamento, sem que eles mesmos o observassem, nem sempre tinham seges, nem cavalos.

       Portanto, tendo os viajantes partido ao meio-dia de Dammartin, só chegaram à barreira pelas quatro horas e meia, e às portas das Tulherias pelas cinco.

       Ali foi necessário darem-se a conhecer. Lafayette tinha-se apoderado de todos os postos; em tempos de barulho, prometera à assembléia responder pelo rei, e não podia deixar de o guardar conscienciosamente.

       Contudo, assim que Charny se nomeou, assim que invocou o nome de seu irmão, as dificuldades aplanaram-se, e introduziram Isidoro e Sebastião no pátio dos Suíços, donde passaram ao pátio do meio.

       Sebastião queria que o conduzissem logo à rua de Saint-Honoré à casa onde o pai habitava; porém Isidoro fez-lhe observar que, sendo Gilberto médico do rei, mais facilmente se obteriam noticias dele no palácio, do que noutro qualquer lugar.

       Sebastião, que tinha uma razão claríssima, anuiu a esta observação.

       Acompanhou portanto Isidoro.

       No palácio das Tulherias já se tinha estabelecido uma tal ou qual etiqueta, apesar da família real só ter chegado na véspera, Isidoro foi introduzido pela escada de honra, e um oficial de serviço mandou-o esperar numa sala forrada de verde, e debilmente alumiada por dois candelabros.

       O resto do palácio estava também pouco iluminado; tendo sido habitado por particulares, a grande iluminação, que faz parte do luxo real, fora descurada completamente.

       O oficial de serviço devia informar-se ao mesmo tempo do conde de Charny e do doutor Gilberto.

       O mancebo assentou-se num canapé; Isidoro passeava de um para outro lado.

       Passados dez minutos, voltou o oficial.

       O conde de Charny estava com a rainha. Quanto ao Dr. Gilberto, nada lhe acontecera; julgava-se até, mas sem que se afirmasse, que estava com el-rei, que se encontrava alguma coisa incomodado.

       Todavia, como o rei tinha quatro médicos além do que ordinariamente lhe assistia, não era fácil saber se era o Dr. Gilberto que naquele momento estava no quarto de Sua Majestade ou se era outro.

       Se fosse, preveni-lo-iam, quando saísse, de que alguém o esperava nas antecâmaras da rainha.

       Sebastião respirou livremente, já nada tinha que recear: seu pai vivia e estava salvo.

       Dirigiu-se pois a Isidoro para lhe agradecer o favor que lhe devia.

       Isidoro abraçou-o chorando.

       A idéia de Sebastião encontrar o pai vivo tornava-lhe ainda mais penosa a perda do irmão.

       Neste momento abriu-se a porta, gritando um dos oficiais de serviço:

       - O Sr. visconde de Charny?

       - Sou eu - respondeu Isidoro voltando-se logo.

       - Esperam pelo Sr. visconde nos quartos da rainha - disse o oficial, desviando-se para o lado.

       - Espera por mim, Sebastião, não é assim? – disse Isidoro - lembre-se de que sou responsável por si a seu pai, salvo se o Sr. Dr. Gilberto vier buscá-lo.

       - Sim, senhor - disse Sebastião - e digne-se receber novamente os meus agradecimentos.

       Isidoro seguiu o oficial, a porta tornou a fechar-se, e Sebastião assentou-se novamente no canapé.

       Então, sossegado acerca de seu pai, sem receio de que o doutor lhe negasse o perdão, as suas recordações caíram naturalmente sobre o abade Fortier, sobre Pitou, e sobre a inquietação que a sua fuga causaria a um, e a sua carta ao outro.

       Admirava-se como, havendo-se demorado tanto pelo caminho, Pitou o não tivesse alcançado, quando lhe não era necessário mais do que abrir as compridas pernas para galgar o caminho tão depressa como a posta.

       E naturalmente, por um simples mecanismo das suas idéias, pensando em Pitou, também pensava no sítio que este habitava, isto é, naqueles belos e umbrosos caminhos, naquelas distâncias azuladas que terminam os horizontes das florestas; depois por um encadeamento gradual de idéias, recordava-se das visões singulares, que lhe apareciam às vezes por debaixo dessas árvores; na profundeza das imensas veredas; da mulher que tantas vezes vira em sonhos, e uma só em realidade; no dia em que passeava no bosque de Satory, onde viu desaparecer como uma nuvem, arrebatada numa caleche magnífica pelo galopar de dois soberbos corcéis, a formosa e querida visão.

       E recordava-se da comoção profunda que sempre lhe causava aquela vista, e meio mergulhado nesse sonho, murmurava em voz baixa:

       - Minha mãe! Minha mãe!

       De repente, a porta que se fechara por detrás de Isidoro de Charny abriu-se de novo, e desta vez foi uma mulher que apareceu.

       Os olhos do mancebo estavam por acaso pregados naquela porta no momento da aparição.

       A aparição estava tanto em harmonia com o que se lhe passava no pensamento, que vendo animar-se o seu sonho com uma criatura real, o mancebo sentiu-se estremecer.

       Porém, muito maior foi a impressão que sentiu quando naquela mulher, que acabava de entrar, viu ao mesmo tempo a sombra e a realidade.

       A sombra dos seus sonhos, a realidade de Satory.

       Pôs-se então de pé, como se uma mola o obrigasse a levantar-se.

       Os lábios descerraram-se-lhe, abriu os olhos e as pupilas dilataram-se-lhe.

       Com o peito arquejante, nem sequer pôde articular palavra.

       A mulher passou majestosa, altiva, desdenhosa, sem reparar nele.

       Conquanto parecesse plácida interiormente, aquela mulher, de sobrolhos carregados, cor pálida, respiração sibilante, devia achar-se debaixo do peso de uma grande irritação nervosa.

       Atravessou, diagonalmente a sala, abriu a porta oposta àquela por onde entrara, e penetrou no corredor.

       Desta vez julgou Sebastião que ainda lhe escaparia, se porventura se não apressasse. Com gesto assustado observou a porta por onde ela entrara, aquela por onde desaparecera, e precipitou-se-lhe logo no encalço, antes que a sombra do vestido se lhe extinguisse de todo na volta do corredor.

       Ela, porém, sentindo passos atrás de si, caminhou mais depressa, como se receasse que alguém a seguisse.

       Sebastião também por seu turno apressou o passo; o corredor era sombrio, e ele tornou a recear que aquela sombra querida ainda se eclipsasse.

       Ela, sentindo que alguém se aproximava, voltou-se para a pessoa que a seguia.

       Sebastião soltou um pequeno grito de alegria. Era com efeito ela, sempre ela!

       A mulher, da sua parte, vendo um rapazinho que a seguia com os braços estendidos, ignorando o motivo daquela pertinácia, chegou ao cimo de uma escada, pela qual desceu rapidamente.

       Apenas porém, descera o primeiro lanço, apareceu-lhe Sebastião, no fim do corredor, gritando: - minha senhora! Minha senhora!

       Aquela voz produziu extraordinária sensação em todo o ser daquela mulher; afigurou-se-lhe que um golpe meio doloroso, meio agradável, lhe ferira o coração, e que do coração, correndo com o sangue pelas veias, se lhe espalhara por todo o corpo um singular calafrio.

       Todavia, não podendo compreender nem aquela chamada, nem a comoção que sentia, redobrou o passo, passando de algum modo a andar apressadamente.

       Mas não ia suficientemente adiantada para poder escapar ao mancebo.

       Chegaram ambos quase ao mesmo tempo ao fundo da escada.

       A jovem senhora entrou no pátio, onde a esperava uma carruagem, cuja portinhola fora aberta por um criado.

       Entrou rapidamente para ela e assentou-se.

       Mas antes de fechar a portinhola, pôde Sebastião introduzir-se entre ela e os criados, e tendo-se apoderado da fímbria do vestido da fugitiva, beijava-o apaixonadamente, exclamando:

       - Oh! Minha senhora! Oh! Minha senhora!

       Então ela encarou com aquele belo mocinho, que primeiro a assustara, e com voz mais doce do que a que ordinariamente tinha, se bem que conservasse ainda um misto de comoção e de susto, disse:

       - Então, meu menino, para que corre atrás de mim, para que me chama, que me quer?

       - Quero - disse o mancebo com voz arquejante - quero vê-la, quero abraçá-la; - depois, com voz bastante baixa para que só ela pudesse ouvi-lo – quero chamar-lhe minha mãe!

       A senhora soltou um grito, tomou a cabeça do mancebo entre as mãos, e como por uma súbita revelação, aproximando-o de si com vivacidade, pousou-lhe na testa os lábios ardentes.

       Depois, como se receasse por seu turno que alguém viesse arrebatar-lhe o mancebo que acabava de encontrar, puxou-o para si até conseguir que entrasse na carruagem; fê-lo assentar do lado oposto, fechou a portinhola, e abaixando o vidro, que tornou logo a levantar, gritou:

       - Para minha casa! Rua Coq-Héron, n.º 9, a primeira porta indo da rua Plastrière.

       Depois, voltando-se para o mancebo, perguntou:

       - Como te chamas?

       - Sebastião.

       - Ah! Vem, Sebastião, vem, aqui... aqui... sobre o meu coração.

       E encostando-se depois, quase desfalecida, murmurou:

       -Oh! O que é esta sensação desconhecida? Acaso será aquilo a que se chama felicidade?

 

O pavilhão de Andréa

       O caminho não foi mais do que um beijo eterno entre a mãe e o filho.

       Deste modo, aquele filho que o seu coração nunca desmentira, que fora arrebatado numa noite de angústia e de desonra, que desaparecera sem que o seu rapto deixasse outro rasto mais que as pegadas sobre a neve; aquele filho, que tanto detestara, que amaldiçoara até, antes de lhe ouvir o primeiro vagido, antes de lhe recolher o primeiro gemido; aquele filho, que ela chamara, que procurara, que seu irmão perseguira na pessoa de Gilberto até pelo oceano; aquele filho, que pranteara quinze anos, que esperava tornar a ver, com o qual apenas sonhava, como se costuma sonhar com um defunto sempre adorado, com uma sombra idolatrada, no lugar onde menos esperava que lhe aparecesse; aquele filho encontra-se repentinamente com ela como por milagre, como por milagre a conhece, corre por sua vez atrás dela, segue-a, chama-lhe mãe sem que nunca a tivesse visto, ama-a com amor filial, do mesmo modo que ela o ama com amor maternal... E os lábios dele, ainda virgens de qualquer beijo, encontram todos os prazeres da sua vida perdida no primeiro beijo que ela lhe dá!

       De tudo isto se conclui que por cima da cabeça dos homens existe alguma coisa além desse espaço onde rolam os mundos; que existe na vida alguma outra coisa além do acaso e da fatalidade!

       “Rua Coq-Héron, n.º 9, a primeira porta, indo da rua Platrière” dissera a condessa de Charny.

       Singular coincidência, conduziu o filho quinze anos depois, à mesma casa onde nascera, onde aspirara os primeiros sopros da vida, e donde fora arrebatado pelo pai.

       Aquela pequena casa, comprada noutro tempo pelo velho Taverney, quando com o insigne favor com que a rainha honrara a sua família, adquirira o barão mais alguns bens de fortuna, fora conservada por Filipe de Taverney, e era habitada por um velho almoxarife, que parecia ter passado para o serviço do novo proprietário quando a casa foi vendida. A casa servia de hospedagem ao mancebo, quando voltava das suas viagens, ou à condessa quando estava em Paris.

       Depois da última cena que Andréa tivera com a rainha, na noite que passara com ela, resolveu Andréa desviar-se daquela rival, que lhe reenviava a repercussão de cada uma das suas dores, e na qual os infortúnios da rainha, por grandes que fossem, eram sempre inferiores às angústias e desgostos da mulher.

       Portanto, assim que amanheceu, mandara a sua aia à pequena casa da rua Coq-Héron, com ordem para preparar o pequeno pavilhão, que os nossos leitores já conhecem, e que se compunha de uma antecâmara, uma pequena casa de jantar, uma sala e uma alcova.

       Noutro tempo Andréa, a fim de alojar Nicola ao pé de si, fizera da sala uma segunda alcova; mas tendo desaparecido essa necessidade, tudo voltou ao seu estado primitivo, e a aia, deixando os quartos do andar de baixo livres à sua ama que, de mais a mais, raras vezes ali ia, e sempre só, acomodara-se numa pequena água-furtada.

       Depois pedira desculpa à rainha por não ocupar o quarto próximo ao dela, tornando por pretexto que achando-se Sua Majestade tão acanhadamente alojada, decerto preferiria ter ao pé de si uma aia, do que uma pessoa que não era particularmente dedicada ao seu serviço.

       A rainha não insistira com Andréa para que ficasse; e esta, tendo ido a sua aia, pela volta das quatro horas da tarde, anunciar-lhe que o pavilhão estava pronto, ordenara-lhe que partisse logo para Versalhes, que reunisse toda a roupa, que na precipitação da partida deixara no quarto que ocupava no palácio, e que fizesse conduzir tudo no dia seguinte à rua Coq-Héron.

       Às cinco horas a condessa de Charny saíra pois das Tulherias, considerando como suficiente despedida as poucas palavras que dissera pela manhã à rainha, deixando-lhe também a facilidade de dispor do quarto que ocupara uma noite.

       Fora justamente quando saiu do quarto próximo do da rainha, que ela atravessara a sala verde, onde Sebastião estava, e que, seguida por ele, fugira através dos corredores, até ao momento em que Sebastião se precipitara após ela dentro da carruagem, a qual, alugada antecipadamente pela aia, a esperava à porta das Tulherias no pátio dos príncipes.

       Desse modo tudo concorria para proporcionar a Andréa uma noite feliz, que ninguém devia perturbar. Em lugar do seu aposento de Versalhes ou do seu quarto de Paris, onde não poderia receber aquele filho tão milagrosamente encontrado, onde, pelo menos, não poderia abandonar-se a toda a expansão do seu amor maternal, possuía uma casinha propriamente sua, um pavilhão isolado, sem criados, sem um único olhar interrogador.

       Foi por isso que indicou ao cocheiro, com a mais íntima satisfação, a sua nova residência.

       Seis horas soavam quando o portão se abria ao tocar do cocheiro, e a carruagem parava à porta do pavilhão.

       Andréa nem sequer esperou que o cocheiro descesse da almofada: ela mesmo abriu a portinhola, saltou ao primeiro degrau do portal e levou Sebastião atrás.

       Em seguida, dando ao cocheiro uma moeda de ouro, que era talvez o dobro do aluguer, e levando sempre Gilberto pela mão, entrou no interior do pavilhão, depois de ter fechado com o maior cuidado a porta da antecâmara.

       Chegando à sala, parou.

       Esta estava apenas alumiada pelo lume do fogão, e por duas velas acesas sobre a pedra deste.

       Andréa conduziu o filho para uma espécie de sofá, onde se concentrava a dupla claridade das velas e do fogão.

       Depois, com uma expressão de alegria em que transparecia ainda algum receio, disse:

       - Oh! Meu filho; és tu quem efectivamente tenho em meus braços?

       - Minha mãe - respondeu Gilberto com uma expressão de júbilo tal que derramava sobre o coração palpitante e nas veias febris de Andréa como que um orvalho vivificador.

       - Foi aqui! Aqui! - exclamou Andréa olhando em volta de si, voltando-se para a mesma sala onde dera à luz Sebastião, e lançando os olhos com horror para o mesmo quarto donde ele fora arrebatado.

       - Aqui? - repetiu, Sebastião ; - que quer isso dizer, minha querida mãe?

       - Quer dizer, meu filho, que quase são decorridos quinze anos que nasceste neste quarto onde nos achamos, e que bendigo a misericórdia do Senhor Todo Poderoso, que, ao cabo de quinze anos quis que tão milagrosamente aqui tornasses, para eu poder ver-te tão gentil e apertar-te nos meus braços.

       - Oh! Sim, milagrosamente - tornou Gilberto; - porquanto, se eu não receasse pelos dias de meu pai, não teria partido só e não teria ficado em dúvida sobre qual das duas estradas deveria seguir. Não teria esperado ali, não teria interrogado o Sr. Isidoro de Charny, não teria ele oferecido para trazer-me consigo a Paris, não me conduziria ao palácio das Tulherias, e não a teria visto no momento em que atravessava a sala verde, não a teria reconhecido, não teria corrido atrás de si, não a teria alcançado, não lhe teria finalmente chamado minha mãe, a palavra mais doce e mais terna que é possível pronunciar.

       A estas palavras de Sebastião: “Se não receasse pelos dias de meu pai”, sentira Andréa um agudíssimo aperto de coração; fechara os olhos e deixara pender a cabeça para trás.

       A estas: “O Sr. Isidoro de Charny não me teria conhecido, não se teria oferecido para trazer-me consigo a Paris, não me conduziria ao palácio das Tulherias”, os olhos tornaram a abrir-se-lhe, o coração dilatou-se-lhe, e com o olhar agradeceu ao Céu, por isso que fora efectivamente um verdadeiro milagre que lhe trouxera Sebastião conduzido pelo irmão de seu marido.

       Finalmente a estas: “Não lhe teria chamado minha mãe, a palavra mais doce e mais terna que é possível pronunciar”, chamada de novo ao sentimento da sua ventura, tornou a apertar Sebastião contra o seio.

       - Oh! Sim, tens razão, meu filho - disse ela, muito doce; - só existe uma que talvez seja ainda mais terna e mais doce, e é a que pronuncio apertando-te contra o coração: Meu filho! Meu filho!

       Seguiu-se depois um breve silêncio, durante o qual se sentia apenas o doce estremecimento dos lábios maternais vagueando por sobre a fronte do filho.

       - Mas enfim - disse de súbito Andréa - é impossível que tudo fique assim misterioso em mim e em volta de mim; tu explicaste-me bem como ali te achavas, mas não me explicaste como me reconheceste, como correste atrás de mim, como me chamaste tua mãe.

       - Como lhe direi tudo isso? - respondeu Sebastião olhando para Andréa com indizível expressão de amor. - Eu mesmo não o sei; fala de mistérios, e na verdade tudo é mistério em mim como na minha mãe.

       - Mas, enfim, alguém te disse quando eu passava: “Aquela é tua mãe”.

       - É verdade, foi o meu coração.

       - O teu coração?

       - Escute, minha mãe, vou dizer-lhe uma coisa que parece um prodígio.

       Andréa tornou a aproximar-se do filho, fitando os olhos no Céu, como para lhe agradecer o haver-lho assim restituído.

       - Há dez anos que a conheço, minha boa mãe! - exclamou ele.

       Andréa estremeceu.

       Ao passo que ele olhava, meneava a cabeça.

       - Permita que lhe diga, que tenho muitas vezes sonhos, a que meu pai chama alucinações.

       Esta recordação de Gilberto passou como uma ponta de aço dos lábios do filho ao coração da mãe.

       Andréa estremeceu de novo.

       - Já a vira vinte vezes, minha mãe.

       - Como assim?

       - Nos sonhos de que há pouco lhe falei.

       Andréa também se recordou dos sonhos terríveis que lhe tinham agitado a vida, e a um dos quais devia o filho o seu nascimento.

       - Imagine, minha mãe - continuou Sebastião - que sendo ainda pequenino, quando brincava com as crianças da aldeia e que com elas vivia, as minhas impressões eram exactamente as mesmas que elas sentiam, e em volta de mim nada via além dos objectos verdadeiros e naturais. Mas logo que saía da aldeia, logo que passava os últimos jardins, logo que me embrenhava na floresta, sentia passar junto a mim como que o roçar de um vestido. Estendia o braço para o apanhar, mas não apanhava mais do que o ar. O fantasma desviava-se então, mas de invisível que primeiro era, ia a pouco e pouco tornando-se visível: era como que um vapor, a princípio transparente como uma nuvem, semelhante àquela em que Virgílio envolvia a mãe de Eneias quando aparecia a seu filho na montanha de Cartago; o vapor ia-se gradualmente desvanecendo e tomava uma forma humana.  Esta forma humana, que era de uma mulher, em lugar de caminhar pela terra, parecia resvalar por sobre ela.  Então um poder desconhecido, estranho, irresistível, me arrastava para junto dela; abismava-se nos lugares mais sombrios da floresta, onde a seguia com os braços estendidos, e silencioso como ela; porquanto, ainda que tentava chamá-la, nunca a minha voz conseguia articular um único som, e era assim que a seguia sem que conseguisse alcançá-la, até que o prodígio que me anunciara a sua presença me designava a sua partida. A forma humana desvanecia-se insensivelmente, mas parecia sentir, tanto como eu, esse poder do Céu que nos separava um do outro: porquanto desviava-se sem de mim desfitar os olhos, e eu, acabrunhado de fadiga, como se a sua presença me detivesse, caía no mesmo lugar onde ela, como por encanto, desaparecia.

       Aquela espécie de segunda existência de Sebastião, aquele sonho vivaz na sua vida, assemelhava-se muito ao que acontecera a Andréa, para que deixasse de se reconhecer no filho.

       - Pobre amigo - disse ela apertando-o nos braços fora pois debalde que o ódio o separara de mim! Deus aproximava-nos sem que eu o conhecesse. Somente, menos feliz do que tu, meu caro filho, não te via nem em sonhos nem em realidade; e todavia, quando atravessei aquela sala verde, senti um estremecimento; quando dei pelos teus passos atrás de mim, uma espécie de vertigem me atravessou o espírito e o coração; quando me chamaste senhora, estive quase para parar; quando me chamaste mãe, estive prestes a desmaiar; reconheci-te quando te toquei.

       - Minha mãe! Minha mãe! Minha mãe! - repetiu Sebastião três vezes, como se quisesse consolar Andréa de não ter ouvido por tanto tempo pronunciar aquele doce nome.

       - Sim, tua mãe - repetiu ela com um transporte de amor impossível de descrever.

       - E agora que nos encontrámos - disse o mancebo - uma vez que parece tão satisfeita por me tornar a ver, nunca mais nos separaremos, não é assim?

       Andréa estremeceu; apoderara-se do presente, fechando um pouco os olhos para o passado, e fechando-os de todo sobre o futuro.

       - Meu pobre filho - murmurou ela suspirando - como te bendiria se pudesses operar um tal milagre.

       - Escute - disse Sebastião Gilberto – prometo que hei-de arranjar isso.

       - De que modo? - perguntou Andréa.

       - Minha mãe, ignoro as causas que a separam de meu bom pai...

       Andréa empalideceu.

       - Mas por mais graves que sejam, desaparecerão aos meus rogos, e se for necessário às minhas lágrimas.

       Andréa, meneando a cabeça, exclamou.

       - Nunca! Nunca!

       - Escute - continuou Sebastião, recordando-se das palavras que Gilberto lhe dissera: “Filho, nunca me fales de tua mãe”, devia julgar que fora ela a causa da separação: escute, meu pai adora-me.

       As mãos de Andréa, que segurava as do filho, afrouxaram logo. Sebastião pareceu não dar por semelhante movimento.

       Continuou:

       - Dispô-lo-ei a vê-la, contar-lhe-ei a felicidade que desfruto junto de si; depois, um dia tomá-la-ei pela mão, levá-la-ei junto dele, e dir-lhe-ei: “Ei-la aqui, olhe meu pai, como é bela!”

       Andréa desviou Gilberto e levantou-se.

       O mancebo olhou para ela; estava tão pálida, que metia medo.

       - Nunca! Nunca! - repetiu ela.

       E desta vez a sua voz revelava alguma coisa mais do que susto; exprimia ameaça.

       O mancebo recuou por sua vez no canapé. Acabava de descobrir naquele rosto de mulher as terríveis linhas que Rafael costuma dar aos anjos irritados, e perguntou:

       - Por que motivo se recusa a ver meu pai, que é tão meigo, tão bom, tão generoso?

       A estas palavras, como o choque de duas nuvens numa tempestade, o raio estalou.

       - Perguntas-me o motivo por que me recuso a vê-lo? - redargüiu Andréa; - vejo que nada sabes, pobre filho!

       - Sim - acudiu Sebastião com firmeza - pergunto que motivo é.

       - Pois bem - repetiu Andréa, incapaz de sofrer por mais tempo todas as mordeduras da odienta serpente que lhe devorava o coração - é porque teu pai é miserável! É um infame!

       Sebastião deu um pulo do sofá onde estava assentado, e achou-se diante de Andréa.

       - É de meu pai que fala senhora! – exclamou ele - de meu pai, isto é, do Dr. Gilberto, daquele que me educou, daquele a quem devo tudo, daquele que só eu conheço! Enganei-me, vejo agora que a senhora não é minha mãe.

       O mancebo fez um movimento para sair.

       Andréa deteve-o.

       - Escuta - disse ela - tu não podes saber, não podes compreender, não podes julgar.

       - Decerto que não; mas posso sentir, e sinto que já não a amo.

       Andréa soltou um grito doloroso.

       Porém, no mesmo momento, um ruído veio fazer diversão à comoção que sentia, conquanto essa comoção a tivesse de súbito invadido completamente.

       Esse ruído era da porta da rua que se abrira, e de uma sege que parara diante do portão.

       A esse ruído correu pelos membros de Andréa um tal calafrio, que o mancebo sentiu-lhe também o efeito.

       - Escuta - lhe disse ela - escuta e cala-te.

       O mancebo obedeceu.

       Ouviu-se abrir a porta da antecâmara, e sentiram-se passos que se aproximavam da porta que dava para a sala.

       Andréa levantou-se imóvel, muda, com os olhos fixos na porta, e esperou fria como uma estátua.

       - Quem anunciarei à Srª. condessa? – perguntou o velho almoxarife.

       - Anuncie-lhe o conde de Charny, e pergunte-lhe se me quer fazer a honra de me receber.

       - Oh! - exclamou Andréa - para este quarto, meu filho, para este quarto; não quero que te veja, não convém que saiba que existes.

       E dizendo isto, impelia o mancebo, assustada, para o gabinete próximo.

       Depois, fechando apressadamente a porta sobre ele, acrescentou:

       - Espera aí, e quando ele se retirar, eu te direi, eu te contarei... Não, não, nada disso, meu filho... Abraçar-te-ei, e então poderás compreender que sou realmente tua mãe.

       Sebastião Gilberto apenas lhe respondeu com uma espécie de gemido.

       Naquele momento abriu-se a porta da antecâmara e o velho almoxarife, com o barrete na mão, desempenhou-se da comissão de que vinha encarregado.

       Por detrás dele, no meio da penumbra, o olhar penetrante de Andréa adivinhou uma forma humana.

       - Mande entrar o Sr. conde de Charny - disse ela com a voz mais firme e resoluta que lhe foi possível tomar.

       O velho almoxarife retirou-se, e o conde de Charny com a cabeça descoberta, assomou por seu turno ao limiar da porta.

 

Mulher e marido

       O conde de Charny apresentou-se coberto de luto pela morte do irmão, que dois dias antes fora assassinado.

       E como aquele luto estivesse, como o de Hamlet, não só no fato, mas também no coração, o seu rosto macilento e abatido demonstrava as copiosas lágrimas que derramara e as pungentes dores que sofrera.

       A condessa, com um rápido relancear de olhos, abrangeu aquele todo; nunca os belos rostos parecem tão belos como depois de chorar; nunca Charny parecera tão belo.

       Fechou um instante os olhos, inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como para dar ao peito a faculdade de respirar, e comprimiu com a destra o coração, que sentia despedaçar-se-lhe.

       Quando abriu os olhos, um segundo depois de os ter fechado, a condessa viu Charny no mesmo lugar em que antes se achava.

       O gesto e o olhar de Andréa perguntaram-lhe ao mesmo tempo e tão visivelmente por que não tinha entrado logo, que ele naturalmente respondeu:

       - Estava esperando, minha senhora.

       E deu um passo para diante.

       - V. Exª. quer que a sege se retire? – perguntou o almoxarife, visivelmente instado pelo criado do conde para fazer esta pergunta.

       As pupilas do conde espargiam sobre Andréa um olhar de tão inexplicável expressão, que ela, como que deslumbrada, fechou outra vez os olhos e ficou imóvel, sem respiração, como se não ouvisse a interrogação, como se não visse aquele olhar.

       Todavia, penetrara-lhe até ao íntimo do coração.

       Charny procurou em toda aquela estátua viva algum sinal que lhe indicasse o que devia responder; depois, como o calafrio que escapara a Andréa, podia ser tanto pelo receio de que o conde se não retirasse, como pelo veemente desejo de que ficasse, respondeu:

       - Diga ao cocheiro que espere.

       A porta tornou a fechar-se, e talvez pela primeira vez depois do seu casamento, o conde e a condessa acharam-se sós.

       Foi o conde o primeiro a romper o silêncio, dizendo com a maior serenidade:

       - Perdão, minha senhora, se a minha presença inesperada lhe parece indiscreta. Estou de pé, a sege espera-me, retirar-me-ei, se assim o ordenar.

       - Não, senhor - disse Andréa com vivacidade. - Sabia que estava são e salvo, mas nem por isso deixo de estimar muito vê-lo, depois dos terríveis acontecimentos que se têm passado.

       - Teve então a bondade de se informar de mim, minha senhora? - perguntou o conde.

       - Decerto, informei-me ontem e esta manhã; responderam-me que estava em Versalhes com a rainha.

       Estas últimas palavras conteriam uma censura, ou teriam sido pronunciadas inocentemente?

       O certo é que o conde, ignorando o verdadeiro sentido delas, ficou um momento preocupado.

       Mas quase em seguida, apelando provavelmente para o seguimento da conversação, a fim de ver levantado o véu que lhe caíra sobre o espírito respondeu:

       - Minha senhora, um dever triste e compassivo me reteve em Versalhes ontem e hoje; um dever, que considero sagrado, na situação em que a rainha se encontra, me conduziu a palácio logo que cheguei a Paris.

       Andréa quis também por sua vez conhecer, em todo o seu realismo, a intenção das últimas palavras do conde.

       Depois, reflectindo que devia sobretudo uma resposta às primeiras palavras que ele lhe dirigira:

       - Sim, senhor, soube a terrível perda que...

       E hesitou um instante.

       - Que sofreu.

       Andréa esteve quase a dizer que sofremos, mas não se atreveu a fazê-lo, e prosseguiu:

       - Teve a desgraça de perder seu irmão, o Sr. barão Jorge de Charny.

       Dir-se-ia que Charny esperava de passagem as duas palavras que sublinhámos, por isso que estremeceu no momento em que cada uma delas foi pronunciada, e respondeu:

       - Sim, minha senhora, é como acaba de dizer, uma perda terrível para mim a morte daquele pobre moço, uma perda que por felicidade, não pode avaliar, porque pouco o conheceu.

       Havia uma doce e melancólica censura nas palavras por felicidade.

       Andréa compreendeu-a, mas nenhum sinal exterior manifestou que tivesse feito nela o menor reparo.

       - Só uma única coisa me consolaria daquela grande perda, se porventura pudesse ser consolado - replicou Charny; - se soubesse que o infeliz Jorge morreu da mesma maneira que Isidoro há-de morrer, da mesma maneira que eu provavelmente morrerei, isto é, cumprindo o meu dever.

       Estas palavras: “da mesma maneira que eu provavelmente morrerei”, impressionaram profundamente Andréa.

       - Ai de mim, senhor! - exclamou ela – julga então as coisas tão desesperadas, que ainda sejam necessários novos sacrifícios de sangue para desarmar a cólera celeste?

       - Creio, minha senhora, que se a hora dos reis não chegou já, em breve chegará. Creio que há um mau génio que persegue a monarquia. Creio, finalmente, que se ela cai no abismo que esse mau gênio lhe prepara, deve necessariamente arrastar na queda todos aqueles que tomaram parte no seu esplendor.

       - É verdade - disse Andréa - e quando chegar esse dia, acredite que me há-de achar, como o senhor, disposta para tudo.

       - Ah! - acudiu Charny - deu sobejas provas dessa dedicação no passado, e eu sou quem menos duvida dessa dedicação no futuro, e talvez que tenha menos direito de duvidar da sua do que da minha, que talvez pela primeira vez acaba de recuar na presença de uma ordem da rainha.

       - Não o compreendo, senhor - disse Andréa.

       - Chegando de Versalhes, intimaram-me a ordem de me apresentar sem demora a Sua Majestade.

       - Ah! - exclamou Andréa sorrindo tristemente.

       Depois, passado um instante de silêncio, acrescentou:

       - Isso é naturalíssimo; a rainha vê, como o senhor, o porvir misterioso e sombrio, e quer reunir em volta de si os homens com quem julga poder contar.

       - Engana-se - respondeu Charny - não era para me aproximar de si que a rainha me chamava, era, pelo contrário, para afastar-me.

       - Para o afastar dela! - disse vivamente Andréa, dando um passo para o conde.

       Depois, passado um momento, apercebendo-se de que o conde desde o começo da conversação ficara de pé junto da porta, apontando para uma cadeira, disse:

       - Perdão, senhor, não quer assentar-se?

       E dizendo isto, incapaz de conservar-se por mais algum tempo de pé, a condessa deixou-se cair no canapé, onde alguns momentos antes estivera com Sebastião.

       - Afastá-lo de si! - repetiu ela com uma agitação que não era de todo isenta de alegria, lembrando-se que Charny e a rainha iam ser separados; - e com que fim?

       - Com o fim de ir a Turim desempenhar uma missão junto dos srs. condes de Artois e duque de Bourbon, que deixaram a França.

       - E aceitou?

       Charny olhou fixamente para Andréa.

       - Não, minha senhora.

       Andréa empalideceu de tal modo que Charny deu um passo para ela, como para a socorrer; mas a esse movimento a condessa recuperou de novo as forças e tornou a si.

       - Não! - balbuciou ela; - respondeu não a uma ordem da rainha, o senhor!...

       E estas últimas palavras foram pronunciadas com uma entoação de dúvida e de admiração impossíveis de descrever.

       - Respondi, minha senhora, porque julgava que a minha presença, neste momento sobretudo, era mais necessária em Paris do que em Turim, que outro qualquer podia desempenhar a missão com que queriam honrar-me, e justamente acabava de chegar da província outro irmão meu que estava às ordens de Sua Majestade e pronto para partir em meu lugar.

       - E a rainha aceitou decerto com alegria a substituição, não é verdade, senhor? - perguntou Andréa com certa expressão de azedume, que não pôde conter, e que pareceu não escapar a Charny.

       - Não, minha senhora, pelo contrário; a recusa pareceu molestá-la profundamente; ver-me-ia obrigado a partir, se por felicidade o rei não entrasse naquele momento e se eu o não constituísse juiz da contenda.

       - E o rei deu-lhe razão! - replicou Andréa com um sorriso irónico; - e o rei foi, como o senhor, de parecer que devia ficar nas Tulherias? Oh! Como Sua Majestade é bom!

       Charny nem sequer pestanejava, e replicou:

       - O rei disse, que efectivamente meu irmão Isidoro era muito competente para essa missão, tanto mais, que vindo à corte pela primeira vez, e quase pela primeira vez a Paris, não seria notada a sua ausência, e acrescentou que era crueldade da parte da rainha exigir que em tais circunstâncias eu me ausentasse da condessa.

       - De mim! - exclamou Andréa; - pois o rei disse semelhante coisa?

       - Repito-lhe as suas próprias palavras; procurando em volta da rainha, e dirigindo-se a mim, perguntou-me :

       “- Mas, onde está a condessa de Charny? Não tornei a vê-la desde ontem à noite.” - Como era principalmente a mim que esta pergunta se dirigia, julguei do meu dever responder-lhe: “Meu senhor, tenho a infelicidade de ver tão poucas vezes a Srª. de Charny, que me seria impossível dizer neste momento, a Vossa Majestade, onde está; mas, se deseja sabê-lo, digne-se perguntá-lo a Sua Majestade a rainha, que decerto não o ignora.” E insisti, porque vendo franzir-se os sobrolhos da rainha, julguei que alguma coisa por mim ignorada, se passou entre ela e a condessa.

       Andréa parecia escutar com tanta avidez, que nem sequer se lembrava de responder.

       Então Charny continuou:

       “- Senhor - respondeu a rainha - a condessa de Charny saiu das Tulherias haverá uma hora.”

       “- Como! Pois a condessa de Charny saiu das Tulherias, senhora?”

       “- Saiu.”

       “- Mas para voltar logo?”

       “- Não o creio.”

       “-Não o crê! - replicou o rei; - mas que motivo teve a condessa de Charny, a sua melhor amiga?...”

       “A rainha fez um movimento.”

       “- Sim, digo, a sua melhor amiga, para abandonar as Tulherias nesta ocasião?”

       “- Creio que se acha mal alojada – redargüiu Maria Antonieta.”

       “- Mal alojada, decerto, se a nossa intenção fosse de a deixar no quarto próximo do nosso; mas nós lhe destinaríamos outro mais cómodo para ela e para o conde. Não ficaria satisfeito com isso, conde? Creio que sim.”

       “- Meu senhor - respondi eu - Vossa Majestade sabe que sempre me darei por satisfeito em qualquer posto que me seja designado pelo meu rei, uma vez que esse posto me ofereça ocasião de o servir.”

       “- Eh! Bem o sabia - acudiu o rei. - Então a Srª. de Charny retirou-se? Sabe para onde, senhora?”

       “- Não, senhor, não sei.”

       “- Como! pois a sua amiga separa-se de si, e não lhe pergunta para onde vai?”

       “- Quando os meus afeiçoados me deixam, deixo-os livres para irem para onde quiserem, e nunca tenho a indiscrição de lhes perguntar para onde vão.”

       “- Bom - disse o rei - amor de mulher, Sr. de Charny; preciso dizer duas palavras à rainha. Vá esperar-me no meu quarto, e apresente-me seu irmão; esta mesma noite partirá para Turim. Sou da sua opinião, Sr. de Charny, preciso do conde, e por isso ficará.”

       - Mandei chamar meu irmão, - continuou o conde - que me espera na sala verde.

       A estas palavras na sala verde, Andréa, que quase esquecera Sebastião, tal era o interesse que parecia ligar à narrativa do seu marido, recordou-se de tudo quanto se passara entre ela e o filho, e volveu os olhos com amargura para a porta da alcova onde o fechara.

       - Mas, perdão - disse Charny - entretenho-a talvez com coisas que mediocremente lhe interessam, e sem dúvida desejava saber o motivo que me traz aqui, e a maneira como aqui vim ter.

       - Não, senhor - disse Andréa - pelo contrário, o que faz a honra de contar é para mim do mais vivo interesse; e quanto à sua presença nesta casa, sabendo os receios que tive a seu respeito, provando-me que nada lhe aconteceu de sinistro, não pode deixar de ser-me agradável; portanto, peço-lhe que continue; o rei dissera-lhe que o fosse esperar no seu quarto, e o senhor tinha prevenido seu irmão.

       - Apresentámo-nos no quarto do rei; dez minutos depois entrou ele. Como a missão para os príncipes era urgente, foi por ela que o rei principiou; tinha por fim instruir Suas Altezas dos acontecimentos que acabavam de se passar. Um quarto de hora depois, já meu irmão tinha partido para Turim.

       “Ficámos sós.”

       “Sua Majestade o rei passeou por alguns momentos muito pensativo.”

       “Depois, parando de súbito diante de mim, disse:

       “- Sr. conde, sabe o que se passou entre a rainha e a condessa?”

       “- Não, meu senhor.”

       “- Todavia, é indubitável que alguma coisa se passou - acrescentou ele - por isso que encontrei a rainha de muito mau humor, e segundo me pareceu, muito injusta para com a condessa, o que não é costume dela a respeito dos seus amigos, que defende, até quando são culpados.”

       “- Não posso fazer mais que repetir a Vossa Majestade o que tive a honra de lhe dizer - repliquei; - ignoro completamente o que se passou entre a condessa e a rainha, e até se se passou alguma coisa. Em todo o caso, meu senhor, atrevo-me a afirmar antecipadamente que, se houve faltas de um lado ou de outro, supondo que a rainha possa cometer faltas, só as haveria da parte da condessa.”

       - Agradeço-lhe, senhor - disse Andréa - por ter feito de mim tal conceito.

       Charny inclinou-se.

       “- Em todo o caso - acudiu o rei - se a rainha não sabe onde está a condessa, o senhor deve sabê-lo.”

       - Eu, que pouco mais instruído estava do que a rainha, redargüi:

       “- Meu senhor, sei que a senhora condessa tem uma casa na rua Coq-Héron; foi talvez para ali que se retirou.”

       “- Ah! Sim, sem dúvida, é aí - disse o rei; - corra, conde, tem licença até amanhã, uma vez que amanhã nos restitua a condessa.”

       O olhar de Charny, ao pronunciar estas palavras, tinha-se fixado por tal modo em Andréa, que esta, um pouco perturbada, e sentindo que não podia evitar aquele olhar, fechou os olhos.

       “- Dir-lhe-á - continuou Charny falando em nome do rei - que nós lhe procuramos aqui um alojamento mais pequeno do que aquele que tinha em Versalhes, mas muito suficiente para marido e mulher. Vá, Sr. de Charny, vá; ela deve estar com cuidado no conde e o conde com cuidado nela; vá!”

       - Depois, vendo que eu já tinha dado alguns passos para a porta, chamou-me e estendendo-me a mão, que beijei, disse afectuosamente:

       “- A propósito, Sr. de Charny, vendo-o vestido de luto, deveria perguntar-lhe, primeiro que tudo: teve a desgraça de perder seu irmão? Os próprios reis são impotentes para consolar essa sorte de infortúnios; mas um rei pode perguntar: seu irmão era casado? Tinha mulher e filhos? A mulher e os filhos podem ser adoptados por mim. Nesse caso, Sr. conde, se existem, vá buscá-los, apresente-mos, a rainha encarregar-se-á da mãe e eu dos filhos.”

       E como, ao pronunciar estas palavras, se deslizaram algumas lágrimas nas pálpebras de Charny, Andréa perguntou:

       - E provavelmente, o rei não fazia mais do que repetir-lhe as palavras da rainha?

       - A rainha - acudiu Charny com voz vacilante - nem sequer me fez a honra de me dirigir uma única palavra a tal respeito, e é por isso que essa recordação do rei toca tão profundamente que, vendo-me sensibilizado e em pranto, disse-me:

       “- Vamos, vamos, Sr. de Charny; talvez fizesse mal em lhe falar de semelhante coisa; mas procedo quase sempre segundo os ditames do meu coração, e o coração insinuou-me que fizesse o que fiz. Volte para junto da nossa querida Andréa, conde; porquanto, se aqueles que amamos não podem consolar-nos, podem ao menos chorar connosco e nós com eles, o que é sempre um alívio.”

       - Tal é, minha senhora - continuou Charny – o motivo que me trouxe aqui; foi por obedecer às ordens do rei, e por isso talvez me desculpe.

       - Ai, senhor - exclamou Andréa levantando-se com vivacidade e estendendo as mãos a Charny - porventura duvida disso?

       Charny, apoderando-se com ardor das mãos de sua mulher, imprimiu nelas mil beijos.

       Andréa soltou um grito, como se aqueles lábios fossem um ferro em brasa que lhe queimasse as carnes, e caiu outra vez sobre o canapé.

       Mas como as mãos hirtas de Andréa se tinham prendido às do conde de Charny, e esta ao cair no canapé o arrastasse consigo sem que ele mesmo o desejasse, Charny achou-se assentado ao lado dela.

       Naquele momento, porém, Andréa, parecendo-lhe ouvir algum ruído no quarto próximo, desviou-se tão vivamente de Charny, que este, não sabendo qual fosse o sentimento a que devesse atribuir o grito da condessa e o brusco movimento que ela fizera, levantou-se de súbito, e ficou em pé diante dela.

 

A alcova

       Charny apoiou-se ao encosto do canapé soltando um suspiro.

       Andréa deixou pender a cabeça sobre as mãos.

       Dir-se-ia que o suspiro de Charny suspendera, por que assim digamos, o que Andréa estava prestes a exalar.

       O que naquele momento se passava no coração daquela mulher ninguém seria capaz de descrever.

       Casada, havia quatro anos, com um homem que adorava, sem que ele, sempre distraído com outra mulher, formasse jamais uma idéia do terrível sacrifício que ela fizera desposando-o; com a abnegação de seu duplo dever de mulher e de súbdita, vira tudo, tudo suportara e tudo concentrara em si.

       Afigurava-se-lhe, todavia, desde certo tempo, por alguns olhares mais doces do seu marido, por algumas palavras mais rudes da rainha, que a sua dedicação não era de todo estéril. Durante os dias que acabavam de deslizar, dias terríveis, cheios de incessantes angústias para todos, sozinha talvez no meio de todos aqueles cortesãos e entre aqueles servos sobressaltados, Andréa ressentira comoções alegres e os mais doces estremecimentos, quando, nos momentos supremos, um gesto, um relancear de olhos, uma palavra de Charny pareciam mostrar-lhe que ele se ocupava dela, procurando-a com alegria; quando um leve aperto de mão às furtadelas, comunicando um sentimento desapercebido a toda aquela multidão que os rodeava, fazia viver só para ele um pensamento comum. Enfim, eram sensações deliciosas essas, desconhecidas àquele corpo de neve, àquele coração de diamante, que jamais conhecera outro amor senão o amor doloroso, isto é, a solidão.

       E de súbito, quando a pobre criatura, isolada, acabava de encontrar o filho e de considerar-se mãe; quando alguma coisa como uma aurora de amor, se lhe levantava no horizonte triste e sombrio até ali; - estranha coincidência, que bem prova que a ventura não se criara para ela - aqueles dois acontecimentos combinavam-se por tal forma, que um destruía o outro, inevitavelmente; a vinda do marido afastava-lhe o amor do filho, ou a presença do filho assassinava o amor nascente do marido.

       Eis o que Charny não podia adivinhar no ai que escapara da boca de Andréa, na mão que o repelira, e no silêncio cheio de tristeza que sucedeu aquele ai, tão semelhante a um ai de dor, e que era um ai de amor, e ao movimento que parecia inspirado pela repulsão, e que só fora inspirado pelo receio.

       Charny contemplou Andréa um momento com uma expressão, que não a teria iludido se tivesse erguido os olhos para o marido.

       Charny deu um gemido, e tornando a tomar a conversação no ponto em que a deixara, perguntou:

       - Que devo dizer ao rei, minha senhora?

       Andréa estremeceu ao ouvir o som daquela voz, e lançando ao conde de Charny um olhar límpido e puro, respondeu:

       - Senhor, tenho sofrido tanto desde que resido na corte, que foi com o maior reconhecimento que obtive licença da rainha para deixar o serviço; não nasci para viver no meio da sociedade; tenho sempre encontrado no remanso da solidão, senão a felicidade, ao menos o descanso; os dias mais felizes da minha vida foram os que passei, ainda moça, no castelo de Taverney, e mais tarde os que vivi retirada no convento de Saint-Denis, junto daquela santa a quem chamavam a infanta Luísa. Mas, se mo permite, habitarei este pavilhão, cheio de recordações para mim, que, apesar de tristes, não deixam de ter alguma doçura.

       À licença que Andréa lhe pedia, Charny inclinou-se como um homem não só disposto a anuir a um pedido mas também a obedecer a uma ordem.

       - É então essa a sua resolução?

       - É sim, senhor - respondeu Andréa com doçura, mas também com firmeza.

       Charny inclinou-se de novo, e disse:

       - Agora, minha senhora, só me resta perguntar-lhe uma coisa, e vem a ser, se de ora em diante me será permitido fazer-lhe algumas visitas?

       Andréa de Taverney fixou em Charny o olhar, ordinariamente plácido e frio, mas então cheio de admiração e doçura.

       - Decerto, Sr. conde - disse ela; - e como tenciono não receber aqui ninguém, sempre que os seus deveres nas Tulherias lhe permitirem alguns momentos, ser-lhe-ei muito reconhecida se mos quiser conceder, por mais curtos que sejam.

       Nunca Charny vira tanto encanto no olhar de Andréa; nunca lhe notara tanta ternura na voz.

       Sentiu que alguma coisa lhe corria pelas veias, semelhante ao grato calafrio que se sente quando se recebe uma primeira carícia.

       Olhou atento para o lugar que ocupara junto de Andréa e que deixara vazio quando se levantou.

       Charny daria de boa vontade um ano de existência para se assentar ali sem que Andréa o repelisse, como fizera da primeira vez.

       Mas, tímido como uma criança, não se atrevia a fazê-lo sem que ela lho permitisse.

       Andréa, pela sua parte, teria dado também não só um ano, mas dez da sua vida, para sentir ali, a seu lado, aquele que tanto tempo vivera longe dela.

       Mas cada um ignorava o que se passava no coração do outro, e ambos se conservavam imóveis, numa posição quase dolorosa.

       Charny ainda desta vez foi o primeiro que rompeu o silêncio, cuja interpretação só a poderia dar aquele a quem é permitido ler nos corações.

       - Diz que tem sofrido muito desde que reside na corte? - prosseguiu ele; - o rei não a tratou sempre com um respeito que quase degenerava em veneração, e a rainha com uma ternura, que quase se tornava idolatria?

       - Oh! Decerto, senhor - respondeu Andréa: - o rei foi sempre bom para comigo.

       - Permita-me que lhe observe, que apenas responde a uma parte da minha pergunta. A rainha seria para com a condessa menos complacente do que o rei?

       Os queixos de Andréa apertaram-se, como se a natureza revoltada se recusasse a uma resposta; mas fazendo um esforço, disse:

       - Nada tenho que censurar à rainha; e seria injustíssima se não fizesse a Sua Majestade a justiça que me merece.

       - Pergunto-lhe isto - instou Charny - por me parecer que a amizade, que ela lhe consagrava, tem de algum modo diminuído desde certo tempo para cá; mas provavelmente é ilusão minha.

       - É possível, e por isso desejo deixar a corte.

       - Mas, enfim, atenda a que ficará aqui inteiramente isolada.

       - Não o tenho estado sempre? - respondeu Andréa suspirando - não só enquanto criança, mas enquanto solteira... e enquanto...

       Andréa deteve-se, vendo que ia muito longe.

       - Conclua, minha senhora.

       - Oh! O senhor adivinha; ia dizendo... como mulher.

       - Terei acaso a felicidade de lhe merecer alguma censura?

       - Alguma censura, Sr. conde! - replicou vivamente Andréa. - Que direito teria eu, meu Deus, para censurá-lo? Julga que esqueci as circunstâncias em que nos colocámos? Ao contrário dos que juram aos pés dos altares um amor recíproco, uma protecção mútua, jurámos uma indiferença eterna, uma separação completa; não teríamos pois que fazer censuras um ao outro sem que um de nós se esquecesse do juramento que prestou.

       Um suspiro repelido pelas palavras de Andréa ficou abafado no coração de Charny.

       - Vejo que a sua resolução é inalterável, mas ao menos permitir-me-á que me informe do modo como viverá aqui. Não passará mal?

       Andréa sorriu-se tristemente e disse:

       - A casa de meu pai era tão pobre, que ao pé dela este pavilhão, que julga desprovido, acha-se mobiliado com um luxo a que não estava habituada.

       - Todavia, o retiro encantador de Trianon, o palácio de Versalhes...

       - Oh! Eu bem sabia que não era ali mais do que hóspede.

        - Mas não lhe faltavam comodidades.

       - Acharei aqui tudo que noutro tempo possuía.

       - Vejamos - disse Charny querendo formar idéia da casa que Andréa escolhera para habitar, e começando a olhar em volta de si.

       - Que pretende ver? - perguntou Andréa levantando-se arrebatadamente, e lançando um olhar rápido e inquieto para o lado da alcova.

       - Mas se acaso não tem demasiada humildade nos seus desejos, este pavilhão não é decerto uma morada confortável; atravessei uma saleta, e eis-me já na sala; esta porta (e abriu uma porta lateral) sim, esta porta é a da casa de jantar. E esta?

       Andréa lançou-se entre o conde e a porta para que ele se dirigia, e por detrás da qual ela via idealmente Sebastião.

       - Senhor! Suplico-lhe, nem mais um passo!

       E com os braços estendidos opunha-lhe como que uma barreira.

       - Sim, compreendo - disse Charny dando um suspiro; - esta conduz ao seu quarto de cama!

       - Conduz - balbuciou Andréa com voz sufocada.

       Charny olhou para a condessa, pálida e convulsa; o susto nunca se manifestara com uma expressão tão verdadeira como a que acabava de se espalhar no rosto de Andréa.

       - Ah! Senhora - murmurou ele com lágrimas na voz - eu sabia que me não amava, porém ignorava que me odiasse tanto!

       E como se fosse incapaz de se demorar mais tempo junto de Andréa sem cometer algum desatino, cambaleou um momento como homem embriagado, e reunindo todas as suas forças, correu para fora da sala soltando um grito de dor, que foi ecoar tristemente no mais íntimo do coração de Andréa.

       Esta seguiu-o com os olhos até que desapareceu; prestou ouvido atento enquanto sentiu o rumor da carruagem que a pouco e pouco se ia perdendo ao longe; depois, sentindo que o coração quase se lhe despedaçava, e convencida de que o seu amor maternal não era suficiente para combater o outro, entrou na alcova gritando:

       - Sebastião! Sebastião!

       Mas ninguém lhe respondeu à chamada: ao seu grito de dor não respondia eco algum que a consolasse!

       À luz da lamparina, que alumiava o quarto, examinou-o com ansiedade, em volta de si, convencendo-se de que ninguém ali estava.

       E todavia muito lhe custava a acreditar nos seus próprios olhos.

       E chamou pela segunda vez:

       - Sebastião! Sebastião!

       O mesmo silêncio.

       Foi então que reparou que a janela estava aberta, e que o ar exterior, penetrando no quarto, fazia bruxulear a luz da lamparina.

       Fora por aquela mesma janela que, quinze anos antes, o menino desaparecera pela primeira vez.

       - Ah! É justo; não me disse ele que eu não era sua mãe?

       Vendo então que tudo perdia ao mesmo tempo, filho e marido no momento em que julgava tudo encontrar, Andréa atirou consigo para a cama com os braços estendidos e as mãos hirtas.

       Só lhe restavam gritos, lágrimas, soluços, e o imenso sentimento da sua dor.

       Passou cerca de uma hora naquela prostração, naquele esquecimento do mundo inteiro, naquele desejo de destruição universal, que acode aos desgraçados, na esperança de que o mundo, tornando ao caos donde saíra, os arraste também consigo.

       De repente afigurou-se-lhe que alguma coisa mais terrível do que a sua dor se introduzia entre essa dor e as lágrimas, uma sensação que só experimentara umas três ou quatro vezes, e que sempre precedera as situações supremas da sua existência, invadindo mansamente a sensibilidade que lhe restava ainda. Por um movimento, quase independente da sua vontade, foi-se levantando; a voz extinguiu-se-lhe de todo; o corpo, como impelido involuntariamente, girou sobre si; os olhos através das copiosas lágrimas que os inundavam, julgaram distinguir que não estava só; e quando enxugou as lágrimas, o olhar fixou-se e esclareceu-se.

       Um homem, que parecia ter saltado o parapeito da janela para penetrar no quarto, estava em pé diante dela. Andréa quis chamar, gritar, estender a mão para o cordão da campainha, mas foi-lhe impossível fazê-lo; acabava de sentir o entorpecimento invencível, que outrora lhe anunciava a presença de Bálsamo; numa palavra, naquele homem, que viu de pé diante de si, fascinando-a com o olhar, reconhecera Gilberto.

       De que modo se achava ali Gilberto, aquele pai execrado, em lugar do filho tão querido, que ela buscava?

       É o que vamos explicar aos nossos leitores.

 

Um caminho conhecido

       Era efectivamente o Dr. Gilberto quem estava com o rei quando, por ordem de Isidoro, e a pedido de Sebastião, o oficial de serviço foi informar-se.

       Cerca de meia hora depois, saiu Gilberto. O rei, cada vez depositava nele mais confiança. À sua rectidão apreciava toda a lealdade do coração do seu médico e conselheiro.

       Quando este saiu, o oficial de serviço disse-lhe que o esperavam na antecâmara da rainha.

       Acabava de entrar no corredor que conduzia ali, quando viu abrir e fechar uma porta particular que dava passagem a um mancebo, que ignorando decerto o interior do palácio, hesitava em tomar para a esquerda ou para a direita.

       Viu então Gilberto vir direito a ele, e parou com o fim de interrogá-lo.

       Gilberto também parou de súbito; a luz de uma lâmpada batia de frente no rosto do mancebo.

       - O Sr. Isidoro de Charny! - bradou Gilberto.

       - O Dr. Gilberto; - exclamou Isidoro.

       - É o senhor que me quer falar?

       - Sim, doutor, sou eu, e em seguida mais alguém.

       - Quem?

       - Alguém - continuou Isidoro - que terá muito prazer em tornar a ver.

       - Será indiscrição perguntar-lhe quem seja?

       - Não, mas seria cruel demorá-lo por mais tempo. Venha, ou antes, conduza-me à parte das antecâmaras da rainha a que chamam a sala verde.

       - Realmente - disse Gilberto rindo - não sou mais forte do que o senhor na topografia do palácio, e sobretudo das Tulherias; em todo o caso, verei se posso servir-lhe de guia.

       Gilberto passou adiante, e depois de algumas apalpadelas empurrou uma porta.

       A porta dava para a sala verde.

       Não havia ali ninguém.

       Isidoro buscou por toda a parte e chamou um escudeiro; a confusão era ainda tão grande no palácio, que, contra todas as regras da etiqueta, não havia um só escudeiro na antecâmara.

       - Esperemos um instante - disse Gilberto – o escudeiro não pode estar longe, e enquanto esperamos, se nada se opõe a esta confidência, diga-me quem era a pessoa que me procurava.

       Isidoro, olhando inquieto em volta de si, perguntou:

       - Não adivinha?

       - Não.

       - Alguém que encontrei no caminho, e que, inquieto com o que pudesse ter-lhe acontecido, dirigia-se a pé para Paris, e que eu conduzi na garupa do cavalo.

       - Não é de Pitou que fala?

       - Não, doutor, falo de seu filho Sebastião.

       - De Sebastião! - exclamou Gilberto um pouco sobressaltado - então onde está ele?

       E com os olhos percorreu rapidamente todos os cantos da vasta sala.

       - Estava aqui, e prometera esperar por mim; talvez que o escudeiro a quem o deixei recomendado, não quisesse deixá-lo só, e o levasse consigo.

       Naquele momento entrou o escudeiro, que vinha só.

       - Que foi feito do mancebo que deixei aqui? - perguntou Isidoro.

       - Que mancebo? - respondeu o escudeiro.

       Gilberto tinha um grande poder em si; sentiu-se estremecer, mas soube conter-se.

       Aproximou-se também.

       - Ai, meu Deus! - murmurou o barão de Charny, lutando já com mil cuidados.

       - Vejamos, senhor - disse Gilberto com voz sacudida - veja se se lembra; ele é meu filho; não conhece Paris, e se por desgraça saiu só do palácio, corre grande risco de se perder.

       - Um rapazinho? - perguntou outro escudeiro entrando.

       - Sim, um rapazinho, mas já bastante crescido.

       - Duns quinze anos?

       - É isso mesmo.

       - Vi-o nos corredores correndo atrás de uma dama que saiu do quarto de Sua Majestade.

       - Sabe quem era a dama?

       - Não, senhor; levava um véu caído sobre o rosto.

       - Mas enfim, que fazia ela?

       - Parecia fugir, e o pequeno seguia-a gritando: “Minha senhora! Minha senhora!”

       - Desçamos - disse Gilberto - o guarda-portão nos dirá se ele saiu.

       Isidoro e Gilberto tomaram pelo mesmo corredor por onde uma hora antes passara Andréa seguida por Sebastião.

       Chegaram à porta do pátio dos príncipes.

       Interrogaram o guarda-portão, que respondeu:

       - Sim, efectivamente vi uma dama caminhando tão rapidamente que parecia fugir; um rapazinho seguia-a, e ela entrou para uma carruagem, em que o pequeno se meteu também.

       - E depois? - perguntou Gilberto.

       - Depois, a dama puxou o mancebo para dentro da carruagem, abraçou-o com ardor, indicou ao cocheiro a sua morada, fechou a portinhola e a carruagem partiu.

       - Recorda-se da morada? - perguntou Gilberto.

       - Perfeitamente; rua Coq-Héron, n.º 9, a primeira porta da rua Plátrière.

       Gilberto estremeceu.

       - Eh! - disse Isidoro - essa morada é a da minha cunhada, a condessa de Charny.

       - Fatalidade! - murmurou Gilberto.

       Naquela época era-se demasiado filósofo para se dizer Providência!

       Depois acrescentou em voz baixa:

       - Talvez a conhecesse.

       - Pois bem - disse Isidoro - vamos a casa da condessa de Charny.

       Gilberto sentiu a posição em que ia colocar Andréa, se se apresentasse em casa dela com o irmão do marido, e disse:

       - Senhor, se o meu filho se acha em casa da Srª. condessa de Charny, deve considerar-se em segurança; e como tenho a honra de a conhecer, creio que em vez de me acompanhar, seria mais conveniente que se pusesse a caminho; porque, pelo que ouvi dizer no palácio, presumo que é o senhor quem deve partir para Turim.

       - Sou eu efectivamente.

       - Então receba os meus agradecimentos pelos serviços que prestou a Sebastião, e parta quanto antes.

       - Contudo... doutor.

       - Uma vez que lhe digo que nada receio já, pode partir; em qualquer parte que Sebastião se ache agora, quer seja em casa da Srª. condessa de Charny, quer noutro qualquer lugar, fique descansado que o hei-de encontrar.

       - Então já que o doutor assim o quer...

       - Peço-lho.

       Isidoro estendeu a mão ao doutor, que lha apertou com mais cordialidade do que costumava fazer aos homens daquela classe, e enquanto Isidoro voltava para o palácio, dirigiu-se ele para a praça do Carroussel, seguiu pela rua de Chartres, atravessou diagonalmente a praça do Palais-Royal, costeou a rua de Saint-Honoré, e perdido um momento naquele dédalo de pequenas ruas, que iam dar a Halle, achou-se na esquina de duas ruas.

       Eram as ruas Plátrière e a rua Coq-Héron.

       Ambas eram para Gilberto de terríveis recordações: ali, muitas vezes, naquele mesmo lugar onde estava, palpitara-lhe o coração, talvez com mais violência do que naquela ocasião palpitava; por isso ele pareceu hesitar entre as duas ruas, mas decidiu-se afinal, tomando pela de Coq-Héron.

       A porta da casa de Andréa era-lhe bastante conhecida; não foi portanto com o receio de se enganar que ali se demorou: não, era evidente que procurava um pretexto para penetrar naquela casa, e como não o achasse, procurava um meio.

       A porta que empurrara com o fim de ver se, por um desses milagres que às vezes faz o acaso em favor de muitos, estaria aberta, resistiu ao impulso.

       Costeou o muro, que tinha dez pés de altura.

       A altura já ele conhecia bem; mas examinava se estaria ali casualmente algum carro que lhe facilitasse o meio de subir a cima do muro.

       Se o conseguisse, lesto e vigoroso como era, facilmente saltaria no interior.

       Não encontrou carro nenhum, nem meio de poder entrar.

       Aproximou-se então da porta, pôs a mão na aldraba, que levantou; porém, meneando a cabeça, deixou-a cair devagarinho, sem fazer o menor ruído.

       Era evidente que outra idéia, despertando-lhe uma esperança quase perdida, lhe derramara no espírito um raio de luz.

       - Efectivamente - murmurou - é muito possível!

       E tornou a subir a rua Plátrière.

       Quando passou junto da fonte, onde, dezesseis anos antes, mais de uma vez molhara o pão negro e duro que recebia da generosidade de Teresa e da hospitalidade de Rousseau, volveu para ela os olhos soltando um suspiro.

       Rousseau morrera, já não existia; ele crescera, achava-se em boa posição, adquirira reputação e fortuna. Mas ai! Era porventura mais feliz, menos agitado, menos angustiado, do que no tempo em que, abrasado por uma paixão louca, ia molhar o triste bocado de pão naquela mesma fonte?

       Continuou o seu caminho.

       Finalmente parou, sem hesitar, defronte de uma porta de grades, que dava entrada para a alameda.

       Parecia ter conseguido o seu fim.

       Todavia encostou-se por um momento contra a parede, ou porque as recordações dolorosas o torturassem, ou porque, chegando àquela porta com uma esperança, receou encontrar ali alguma decepção.

       Apalpou, finalmente, a porta, e com um sentimento de alegria inexplicável, achou um cordelinho, com que facilmente se abria o fecho.

       Gilberto recordou-se que muitas vezes se esqueciam à noite de puxar o cordelinho para dentro; que ele mesmo se aproveitara uma vez deste descuido para entrar no quarto que ocupava nas águas-furtadas.

       Segundo parecia, a casa era habitada, como noutro tempo, por gente pobre, que não receava ladrões. O mesmo descanso ocasionava o esquecimento.

       Gilberto puxou pelo cordel; abriu-se a porta, e achou-se no corredor úmido e escuro, ao fim do qual, como uma serpente erguida sobre a cauda, havia a escada escorregadia e viscosa.

       Gilberto tornou a fechar a porta cuidadosamente, e conseguiu sem dificuldade encontrar às apalpadelas os primeiros degraus da escada.

       Tendo subido dez, resolveu-se a parar.

       Uma frouxa claridade, que penetrava através duma vidraça suja, indicava que a noite, conquanto sombria, era menos escura fora do que dentro de casa.

       Através daquela vidraça tão embaciada viam-se brilhar as estrelas num dos pontos limpos do Céu.

       Gilberto procurou o fecho da vidraça, abriu-a e desceu ao jardim pelo mesmo caminho que já duas vezes seguira.

       Apesar dos quinze anos decorridos, o jardim estava tão presente na memória de Gilberto, que tudo conheceu, árvores, alegretes, e até o recanto disfarçado por uma videira, onde o jardineiro encostava a escada.

       Ignorava se àquela hora da noite as portas estariam fechadas, ignorava se o conde de Charny estaria com sua mulher ou se na ausência deste haveria ali algum criado ou criada.

       Resolvido a tudo para encontrar Sebastião, nem por isso deixara de combinar consigo mesmo a idéia de só em caso extremo comprometer Andréa: havia de empregar todos os meios para encontrá-la só.

       O seu primeiro ensaio recaiu sobre a porta exterior, que cedeu ao primeiro impulso.

       Pareceu-lhe então que, uma vez que a porta não estava fechada, não devia Andréa estar só.

       Só uma grande preocupação pode fazer que uma mulher isolada num pavilhão se esqueça de fechar a porta.

       Empurrou-a muito de leve, considerando-se todavia felicíssimo por saber que teria aquela entrada como último recurso.

       Penetrou logo no interior do pátio, e foi aplicar a vista à janela que, quinze anos antes, abrindo-se de súbito impelida pela mão de Andréa, lhe fora de encontro ao rosto, na noite em que com os cem mil escudos na mão, fora oferecer à altiva donzela o desposá-la.

       Aquela janela era a da sala.

       A sala estava alumiada.

       Mas como havia cortinas por detrás dos vidros era impossível ver o que se passava no interior.

       Gilberto continuou a sua ronda.

       De repente pareceu-lhe ver vacilar sobre a terra e sobre as árvores uma débil claridade, que partia de uma janela aberta.

       Era a janela do quarto de cama; conheceu-a imediatamente, porquanto fora por ela que levara aquele a quem naquela hora procurava.

       Desviou-se no intuito de sair do círculo de luz projectado pela janela, e de poder ver no meio da escuridão, sem que ninguém o visse.

       Tendo chegado a um sítio que lhe permitia poder mergulhar a vista no interior do quarto, viu em primeiro lugar a porta da sala aberta, e em seguida, no espaço que com os olhos podia abranger, uma cama.

       Na cama vira uma mulher hirta, desgrenhada, desfalecida; rouquenhos sons como os do estertor de um agonizante lhe escapavam da boca, interrompidos a espaços por gritos e soluços.

       Gilberto aproximou-se lentamente, contornando aquela linha luminosa, na qual hesitava em entrar com receio de ser visto por alguém.

       Foi nesta hesitação que encostou a cabeça ao ângulo da janela.

       Gilberto já não podia duvidar; aquela mulher era Andréa e estava só.

       Mas porque estava ela só? Porque chorava? Era o que não podia adivinhar.

       Foi então que sem o menor ruído conseguiu franquear a janela, achando-se junto de Andréa no momento em que a atracção magnética, a que era tão acessível, a obrigou a voltar-se.

       Os dois inimigos acharam-se pois, mais uma vez, na presença um do outro.

 

O que fora feito de Sebastião

       O primeiro sentimento de Andréa ao ver o Dr. Gilberto, foi um terror profundo, e também uma repugnância invencível.

       Para ela o Gilberto americano, o Gilberto de Washington e de Lafayette, aristocratizado pela ciência, pelo estudo e pelo engenho, era sempre o miserável Gilberto, o gnomo subterrâneo perdido nas latadas do jardim de Trianon.

       Pelo contrário, Gilberto conservava por Andréa, apesar dos desprezos, apesar das injúrias, apesar das perseguições, não o amor ardente, que fizera cometer um crime ao mancebo, mas o interesse terno e profundo, que instigaria qualquer homem a prestar-lhe um serviço, até em risco da própria vida.

       É que no censo íntimo com que a natureza dotara Gilberto, na rectidão imutável, que recebera da educação, julgara-se a si, compreendera que todas as desgraças de Andréa provinham dele e que só se exoneraria para com ela quando lhe restituísse uma soma de felicidade igual à dos infortúnios que ela lhe devia.

       Ora, como e de que maneira poderia ele influir de um modo benéfico no futuro de Andréa?

       É o que lhe era impossível saber.

       Encontrando, pois, aquela mulher, que vira lutando com um desespero sempre vivo, tudo quanto havia de magnanimidade e de misericórdias no seu coração se comovera por aquele grande infortúnio.

       Por isso, em lugar de usar de súbito do poder magnético, que já uma vez ensaiara nela, procurou antes falar-lhe com doçura, para que, no caso de a encontrar rebelde, como sempre fora, lançar mão desse meio correctivo, que não podia escapar-lhe.

       Resultou daqui, que Andréa, envolvida logo no fluido magnético, sentiu que a pouco e pouco, pela vontade, e diremos quase com a permissão de Gilberto, esse fluido se ia dissipando como nevoeiro que se evapora e que permite aos olhos mergulharem-se nos horizontes longínquos.

       Foi ela a primeira que tomou a palavra.

       - Que me quer, senhor, como se acha aqui e por onde é que veio?

       - Por onde vim, minha senhora? - respondeu Gilberto; - por onde vim noutro tempo; portanto, descanse, que ninguém me viu, ninguém supõe que eu esteja aqui.

       “Como me acho aqui? Vim, porque tenho de reclamar um tesouro, indiferente para a senhora, precioso para mim: o meu filho.”

       “Que lhe quero? Quero que me diga onde está o mancebo que a seguiu, e que trouxe para aqui.”

       - Não sei dele - redargüiu Andréa - fugiu-me; habituou-o também a odiar a mãe!

       - A mãe, minha senhora! É realmente mãe dele?

       - Oh! - exclamou Andréa - vê a minha dor, ouve os meus gemidos, contempla o meu desespero, e ainda me pergunta se sou mãe dele!

       - Ignora então onde está?

       - Mas, se lhe digo que fugiu, que estava neste quarto, que entrei aqui, julgando encontrá-lo, e que achei esta janela aberta e o quarto vazio!

       - Oh! Meu Deus! - exclamou Gilberto - onde iria ele! O desgraçado não conhece Paris e já passa da meia-noite!

       - Oh! - exclamou também Andréa, dando um passo para Gilberto - julga que lhe aconteceria algum mal?

       - É o que vamos saber - disse Gilberto - é o que vai dizer-me.

       E estendeu a mão para Andréa.

       - Senhor, senhor - bradou ela recuando para se subtrair à influência magnética.

       - Nada receie, minha senhora, é uma mãe que vou interrogar a respeito do seu filho; para mim é sagrada.

       Andréa soltou um suspiro e caiu numa poltrona murmurando o nome de Sebastião.

       - Durma - disse Gilberto; - mas, ainda que adormecida, veja com o coração.

       - Durmo - disse Andréa.

       - Devo empregar toda a força da minha vontade - perguntou Gilberto - ou está disposta a responder voluntariamente?

       - Dirá ainda a meu filho que não sou mãe dele?

       - Conforme; diga-me se o ama.

       - Oh! Pergunta-me se o amo, a esse filho das minhas entranhas! Oh! Sim, amo-o, e com o maior ardor.

       - Nesse caso é mãe dele, como eu sou o pai, por isso que o ama como eu o amo.

       - Ah! - proferiu Andréa respirando.

       - Então vai responder-me voluntariamente?

       - Deus permitir-me-á que o veja?

       - Não lhe disse já que era mãe dele, como eu sou o pai? Ama seu filho, minha senhora, por isso há-de tornar a vê-lo.

       - Obrigado - disse Andréa, com indizível expressão de alegria e batendo as palmas; - agora pode interrogar-me. Eu somente vejo...

       - O quê?

       - Sigo-o desde o seu encontro, para poder encontrar-lhe o rasto.

       - Pois seja.

       - Onde a viu ele?

       - Na sala verde.

       - Por onde a seguiu

       - Através dos corredores.

       - Aonde a alcançou?

       - No momento em que eu entrava para a carruagem.

       - Para onde o conduziu?

       - Para minha casa.

       - Onde se assentou?

       - Junto a mim, no canapé.

       - Demorou-se aí muito tempo?

       - Cerca de meia hora.

       - Por que motivo a deixou?

       - Porque se ouviu o rodar de uma carruagem.

       - Quem vinha nessa carruagem?

       Andréa hesitou.

       - Quem vinha nessa carruagem? - repetiu Gilberto em tom mais firme e com enérgica força de vontade.

       - O conde de Charny.

       - Onde ocultou Sebastião?

       - Impeli-o para dentro deste quarto.

       - O que lhe disse ele quando entrou para aqui?

       - Que eu já não era sua mãe.

       - Por que motivo lhe disse ele isso?

        Andréa calou-se.

       - Por que lhe disse ele isso? Fale, assim o quero!

       - Porque eu lhe disse...

       - O que lhe disse?

       - Porque eu lhe disse (Andréa fez um esforço) que o senhor era um miserável, um infame.

       - Examine o coração do pobre moço, minha senhora e calcule o mal que lhe fez.

       - Oh! Meu Deus, meu Deus! - murmurou Andréa - perdão, meu filho, perdão!

       - O Sr. de Charny tinha alguma desconfiança de que Sebastião estivesse aqui?

       - Não.

       - Está certa disso?

       - Estou.

       - Então por que não ficou?

       - Porque o Sr. de Charny não fica nunca em minha casa.

       - Então o que veio aqui fazer?

       Andréa ficou um momento pensativa, com os olhos fixos como se procurasse ver na escuridão.

       - Oh! - disse ela - meu Deus! Meu Deus! Olivier, meu caro Olivier!

       Gilberto olhou para ela com admiração.

       - Oh! Quanto sou desgraçada! - murmurou Andréa - ele vinha procurar-me, e era para ficar a meu lado que recusara a missão de que o encarregavam; ainda me ama; ainda me ama!...

       Gilberto principiava a ler confusamente neste drama horrível.

       - E a senhora também o ama?

       Andréa suspirou.

       - Também o ama? - repetiu Gilberto.

       - Porque me faz essa pergunta?

       - Leia no meu pensamento.

       - Ah! Sim, bem vejo, a sua intenção é boa, quer fazer-me assaz feliz para me fazer também esquecer o mal que me faz, mas eu recusaria essa ventura, se viesse do senhor; odeio-o, e quero continuar a odiá-lo.

       - Pobre humanidade! - murmurou Gilberto - acaso te estará destinada uma tão grande soma de felicidade para que possas escolher aqueles de quem deves recebê-la?! Então a senhora ama-o? – acrescentou Gilberto.

       - Amo, sim.

       - Desde quando?

       - Desde o momento em que o vi, desde o dia em que eu vinha com a rainha.

       - Desse modo, sabe o que é amor, Andréa? -murmurou tristemente Gilberto.

       - Sei que o amor foi dado ao homem – respondeu ela - para que ele tenha a medida do que pode sofrer.

       - Pois bem! Eis-te finalmente mulher, eis-te finalmente mãe! Diamante bruto, estás enfim lapidado pelas mãos desse terrível lapidário a quem chamam a dor. Mas voltemos a Sebastião.

       - Sim, sim, voltemos a ele; proíba-me que pense no Sr. de Charny; essa idéia perturba-me, e em lugar de seguir meu filho, posso seguir talvez o conde.

       - Muito bem! Esposa, esquece-te de teu esposo; mãe, pensa unicamente em teu filho!

       A expressão de lenta doçura, que por um instante se apossara, não somente da fisionomia, mas de toda a pessoa de Andréa, desapareceu para dar lugar à sua expressão habitual.

       - Onde estava ele enquanto conversava com o Sr. de Charny?

       - Estava aqui, provavelmente escutando. Ali, ali, junto daquela porta.

       - O que ouviu ele dessa conversação?

       - Toda a primeira parte.

       - Em que momento se decidiu a sair deste quarto?

       - No momento em que o Sr. de Charny...

       Andréa deteve-se.

       - No momento em que o Sr. de Charny?... – repetiu desapiedadamente Gilberto.

       - No momento em que o Sr. de Charny me beijou a mão, e eu soltei um grito.

       - Vê-o, então?

       - Sim. Vejo-o com a fronte franzida, com os lábios lívidos, com um dos punhos fechados sobre o peito.

       - Siga-o, pois, com os olhos, e, a partir deste momento, não pense senão nele, não o perca de vista.

       - Bem o vejo, bem o vejo - disse Andréa.

       - O que faz ele?

       - Examina em volta de si se haverá alguma porta, dirige-se à janela, abre-a, olha pela última vez para o lado da sala, franqueia o parapeito da janela e desaparece.

       - Siga-o na obscuridade.

       - Não me é possível.

       Gilberto aproximou-se de Andréa passando-lhe a mão por diante dos olhos.

       - Deve saber que não há noite para a senhora; veja! Ordeno-o!

       - Ah! Ei-lo correndo pela alameda, junto ao muro; lá chegou ao portão, lá o abre sem que ninguém o veja, lá entra pela rua Plátrière... Ah! Lá parou para falar a uma mulher.

       - Escute bem - disse Gilberto - e oiça o que ele diz.

       - Estou ouvindo.

       - O que diz?

       - Pergunta pela rua de Saint-Honoré.

       - Sim; é onde moro. Entraria em minha casa, espera por mim. Pobre filho!

       Andréa meneou a cabeça.

       - Não - disse ela com uma expressão visível de inquietação - não, não entrou em sua casa, não o espera.

       - Então onde está?

       - Deixe-me segui-lo.

       - Oh! Sim, siga-o, não o perca de vista! – exclamou Gilberto antevendo que Andréa adivinhasse alguma desgraça.

       - Ah! - disse ela - ainda o vejo, ainda o vejo.

       - Bem!

       - Ei-lo que entra na rua Grenelle... ei-lo que entra na rua de Saint-Honoré... lá atravessa, sempre correndo, a Praça do Palais-Royal; indaga de novo o caminho... lá corre outra vez... ei-lo na rua de Richelieu... agora na rua dos Frondeurs... entra na rua de Saint-Roch... Pára, filho! Pára! Sebastião! Sebastião! Não vês essa carruagem que vem pela rua da Sourdière? Vejo-a eu, vejo-a eu. Os cavalos... Ah!...

       Andréa soltou um grito terrível, levantando-se; a angústia maternal transparecia-lhe no rosto, no qual deslizavam em grossas bagas o suor e as lágrimas.

       - Oh! - exclamou Gilberto - se lhe acontecer alguma desgraça, pensa bem que essa desgraça cairá sobre a tua cabeça!

       - Ah! - proferiu Andréa respirando, sem escutar, sem ouvir o que Gilberto dizia; -ali! Deus seja louvado! O peito do cavalo foi de encontro a ele, empurrou-o para o lado... Lá está estendido sem sentidos, mas não está morto, oh! Não, não está morto... Desmaiado, desmaiado apenas... Socorro!... Socorro!... É meu filho!... É meu filho!...

       E com um grito doloroso, Andréa caiu também quase desfalecida na poltrona.

       Qualquer que fosse o desejo de Gilberto para saber mais alguns pormenores, concedeu a Andréa palpitante um momento de que tanto carecia.

       Receava que levando-a mais longe, se lhe rompesse alguma fibra do coração, ou alguma veia do cérebro.

       Mas, assim que julgou que podia interrogá-la sem perigo, perguntou:

       - Então?

       - Espere! Espere! - respondeu Andréa; - junta-se muita gente em volta dele. Oh! Por favor, deixem-me passar, deixem-mo ver! É meu filho, é o meu Sebastião! Oh! Meu Deus! Não haverá entre os senhores um cirurgião, ou um médico?

       -Oh! Eu corro - exclamou Gilberto.

       - Espere, espere - disse Andréa sustendo-o pelo braço. - A multidão desvia-se; sem dúvida, aparece aquele a quem chamaram, aquele que se esperava. Venha, venha, senhor! Bem vê que não está morto, bem vê que ainda se pode salvar! Ah!...

       E soltando um brado, que mais parecia um grito de espanto, exclamou:

       - Oh!...

       -Que tem? Meu Deus! - perguntou Gilberto.

       - Não quero que aquele homem toque em meu filho! - gritou Andréa. - Não é um homem, é um anão, um gnomo, um vampiro! Oh! Hediondo! Hediondo!

       - Senhora, senhora! - murmurou Gilberto todo trémulo; - em nome do Céu, não perca Sebastião de vista.

       - Oh! - respondeu Andréa com o olhar fixo, com os lábios a tremerem-lhe, apontando com o dedo - descanse, não o perderei de vista.

       - Que faz então esse homem?

       - Leva-o nos braços, sobe com ele a rua da Sourdière, entra no beco de Sainte-Hyacinthe, que fica do lado esquerdo; aproxima-se de uma porta baixa, que se acha meio aberta; abre-a, abaixa-se, desce uma escada, e deita-o numa mesa, onde há uma pena, um tinteiro e vários papéis impressos e manuscritos; despe-o, arregaça-lhe a manga da camisa e aperta-lhe o braço com ligaduras que lhe trás uma mulher suja e hedionda como ele; abre um estojozinho, donde tira uma lanceta, vai sangrá-lo. Oh! Não quero ver! Não quero ver o sangue de meu filho!

       - Pois bem! Torne a subir - disse Gilberto – e conte os degraus da escada.

       - Já os contei; são onze.

       - Examine a porta com atenção, e diga-me se vê aí alguma coisa de notável.

       - Sim, vejo um postiguinho quadrado, com um varão de ferro em cruz.

       - Muito bem; é tudo quanto preciso saber.

       - Corra, corra, encontrá-lo-á.

       - Quer despertar já, para se lembrar de tudo, ou quer despertar só amanhã pela manhã, para tudo esquecer?

       - Desperte-me já; quero recordar-me de tudo.

       Gilberto passou os dois polegares por sobre as sobrancelhas de Andréa, seguindo-lhe a curva; assoprou-lhe sobre a fronte e pronunciou esta única palavra:

       - Desperte!

       Então os olhos de Andréa animaram-se de súbito; os membros dilataram-se-lhe; olhou para Gilberto quase com terror, e continuando, acordada, as recordações do seu sono, disse:

       - Oh! Corra, corra! E arranque-o das mãos daquele homem, que tanto medo me causa.

 

O homem da Praça de Luís XV

       Gilberto não carecia que o animassem; precipitou-se para fora do quarto, e como se demorasse muito em seguir o caminho por onde viera, correu direito à porta da rua Coq-Héron, que abriu sem carecer do auxílio de ninguém.

       Conservara perfeitamente na memória o itinerário traçado por Andréa, e por isso correu logo em busca de Sebastião.

       Chegando à praça do Palais-Royal, foi costeando a rua de Saint-Honoré, que estava deserta, por isso que já era uma hora depois da meia noite. Chegando à esquina da rua Sourdière, tomou à direita, depois à esquerda, achando-se por este modo no beco de Sainte-Hyacinthe.

       Foi ali que empregou uma inspecção mais minuciosa, a fim de reconhecer a localidade.

       Na terceira porta à direita conheceu pelo postigo com o varão de ferro em cruz, a porta que Andréa indicara.

       A designação fora tão positiva, que era difícil enganar-se e bateu.

       Ninguém respondeu; bateu segunda vez.

       Pareceu-lhe então que alguém subia a escada com passo tímido e desconfiado.

       Bateu pela terceira vez.

       - Quem é? - perguntou uma voz de mulher.

       - Abra! - respondeu Gilberto - e nada receie: sou o pai desse mancebo ferido que recolheu.

       - Albertina - disse outra voz. - É o Dr. Gilberto.

       - Meu pai! Meu pai! - bradou terceira voz, em que Gilberto reconheceu a de Sebastião.

       Gilberto respirou.

       Abriu-se a porta; Gilberto, balbuciando um agradecimento, desceu a escada de corrida.

       Chegado ao último degrau, achou-se numa espécie de alcova alumiada por uma lâmpada colocada sobre uma mesa coberta dos papéis manuscritos e impressos, que Andréa vira.

       No meio da sombra, e deitado numa espécie de grabato, descobriu Gilberto o filho, que lhe estendia os braços, chamando por ele. Por mais poderosa que fosse a força de Gilberto sobre si, o amor paternal era ainda mais potente, por isso que pôde vencer o decoro filosófico, correndo para o filho, que apertou contra o peito, tendo todo o cuidado em lhe não tocar no braço sangrado, nem no peito contuso.

       Depois, quando num beijo paternal, quando por esse doce murmúrio de duas bocas que se buscam, se explicaram sem proferir uma palavra, Gilberto voltou-se para o dono da casa, que mal vira.

       Estava de pé, com as pernas abertas, observando atento, à claridade da lâmpada, a cena que em volta de si se passava.

       - Vê, Albertina - disse ele - e agradece comigo o acaso que me permitiu prestar este serviço a um de meus irmãos.

       No momento em que o cirurgião pronunciava estas palavras enfáticas, voltara-se Gilberto como já dissemos, lançando o seu primeiro olhar sobre o ente deforme que tinha diante de si.

       Era uma coisa amarela e verde, com os olhos pardos que lhe saíam da cabeça, um desses camponeses perseguidos pela cólera de Latona, e que dispostos a verificar a sua metamorfose, nem se podem considerar homens, nem sequer sapos.

       Gilberto estremeceu a seu pesar; afigurava-se-lhe, como num sonho horrível, como através de um véu ensangüentado, ter já visto aquele homem.

       Chegou-se de novo para Sebastião, que abraçou ainda com mais ternura do que da primeira vez.

       Todavia, Gilberto triunfou daquele primeiro movimento, e dirigindo-se ao homem extraordinário que Andréa vira no seu sono magnético e que tanto a assustara, disse:

       - Senhor, receba todos os agradecimentos de um pai a quem conservou o filho; estes agradecimentos são sinceros, são inspirados por um coração grato e reconhecido.

       - Senhor - respondeu o cirurgião - não fiz mais do que o meu dever, que o coração me suscitava, e que a ciência me ordenava. Sou homem, e como diz Terêncio, nada de tudo que é humano me é desconhecido; além de que, possuo um coração compassivo, não posso ver sofrer um insecto e muito menos o meu semelhante.

       - Poderei ter o gosto de saber quem é o respeitável filantropo a quem tenho a honra de falar?

       - Não me conhece, colega - disse o cirurgião rindo com um riso, que poderia inculcar como benévolo, sendo aliás horrível e medonho; - pois eu conheço-o perfeitamente, é o Dr. Gilberto, o amigo de Washington e de Lafayette (proferiu este último nome de um modo singular); o homem da América e da França, o homem utopista, que fez sobre a realeza constitucional magníficas memórias, que enviou da América a Sua Majestade Luís XVI, e pelas quais Sua Majestade o recompensou mandando-o para a Bastilha no momento em que pôs os pés no território francês. O senhor quis salvá-lo, desembaraçando-lhe antecipadamente o caminho do futuro; ele abriu-lhe o de uma prisão. Foi um reconhecimento real!

       E desta vez o cirurgião tornou a rir-se, mas com um riso terrível e ameaçador.

       - Se me conhece, senhor, é mais uma razão para insistir no meu pedido e para ter a honra de o conhecer também.

       - Oh! Há muito tempo que nos conhecemos, senhor - disse o cirurgião; - há vinte anos; foi na terrível noite de 30 de Maio de 1770; tinha o senhor a idade deste mocinho, foi-me conduzido como ele ferido, moribundo, esmagado, foi meu mestre Rousseau que o trouxe, e sangrei-o sobre uma mesa toda cercada de cadáveres e de membros mutilados. Oh! Nessa noite terrível, e de feliz recordação para mim; nessa noite, graças ao ferro que sabe até onde deve cortar para cicatrizar, consegui salvar muitas existências.

       - Oh! - exclamou Gilberto - então o senhor é João Paulo Marat, - e a seu pesar recuou alguns passos.

       - Olha, Albertina - disse Marat - o meu nome produz o seu efeito.

       E desatou a rir, mas com um riso sinistro.

       - Mas - acudiu vivamente Gilberto - por que motivo o encontro aqui nesta cova, alumiado por uma lâmpada vaporosa? Julgava que era médico do Sr. conde de Artois.

       - Quer dizer veterinário das cavalariças? – respondeu Marat - mas o príncipe emigrou, e portanto nada de príncipe, nada de cavalariças, nada de veterinário; além disso, eu já tinha pedido a minha demissão; não quero servir tiranos.

       E o anão endireitou-se tanto, quanto lho permitia a ínfima estatura.

       - Mas, enfim - disse Gilberto - para que está metido nesta espécie de caverna?

       - Porquê, Sr. filósofo? Porque sou patriota e estou resolvido a denunciar os ambiciosos; porque Bailly me teme, porque Necker me odeia, porque Lafayette me vigia com a sua guarda nacional, porque esse ditador ambicioso pôs a preço a minha cabeça; mas eu guerreio-o do fundo da minha cova, persigo-o e denuncio-o. Sabe o que ele acaba de fazer?

       - Não - respondeu Gilberto.

       - Acaba de mandar fabricar no bairro de Santo António quinze mil caixas de tabaco com o seu retrato; isto leva água no bico, não lhe parece? É por isso que peço a todos os bons cidadãos que as quebrem logo que lhe venham às mãos; nelas acharão a senha do grande conluio realista, como o senhor não deve ignorar, e ao passo que o desventurado Luís XVI chora com lágrimas de sangue as loucuras que a austríaca o obriga a fazer, conspira esta com Lafayette.

       - Lafayette com a rainha! - repetiu Gilberto pensativo.

       - Sim, com a rainha. O senhor não pode duvidar de que ela conspira; nestes últimos dias tem distribuído tantos laços brancos, que a fita branca encareceu três soldos em cada vara; isto é certíssimo, disse-mo uma das filhas da Bertin, a modista da rainha, o seu primeiro ministro, aquela que diz: “Trabalhei esta manhã com Sua Majestade”.

       - Onde denuncia o senhor todas estas coisas? - perguntou Gilberto.

       - No meu jornal, no jornal que há pouco criei, e do qual já publiquei vinte números; no Amigo do Povo, ou publicista parisiense, jornal político e imparcial. Para pagar o papel e impressão dos primeiros números, olhe, veja, até vendi os lençóis e os cobertores da cama em que o seu filho está deitado.

       Gilberto voltou-se e viu efectivamente que o filho estava estendido num colchão absolutamente nu, onde, menos agitado pela presença do pai, acabava de adormecer vencido pela dor e pelo cansaço.

       O doutor aproximou-se dele para se assegurar de que não fosse aquele sono algum esvaimento; sossegado, porém, pela respiração branda e igual, voltou para junto daquele homem, o qual, mau grado seu, lhe inspirava, pouco mais ou menos, o mesmo interesse de curiosidade que poderia inspirar-lhe um animal selvagem, um tigre ou uma hiena.

       - Quem são os seus colaboradores nessa obra gigantesca?

       - Os meus colaboradores - disse Marat - ah! Ah! Ah! São os perus, que marcham em chusma: a águia anda sozinha; os meus colaboradores são estes.

       E Marat apontou para a cabeça e para a mão direita.

       - Vê esta mesa, doutor? - continuou ele; - é a oficina (a comparação é muito apropriada, não é assim?) onde forjo os meus raios. Todas as noites escrevo oito páginas em oitavo para vender pela manhã; muitas vezes não são suficientes estas oito páginas, e preciso dobrar-lhes o número. Dezesseis páginas também às vezes não chegam; o que principio em letra grada quase sempre é acabado em letra miúda. Os outros jornalistas aparecem por intervalos, revezam-se, fazem-se ajudar; eu trabalho sozinho. O Amigo do Povo (pode ver o original que ali está); o Amigo do Povo é todo obra da mesma pena; por isso não é simplesmente um jornal, não, é um homem, não, é uma personalidade, também não, sou eu!

       - Mas - perguntou Gilberto - como pode resistir a tão enorme trabalho?

       - Ah! Eis aí o segredo da natureza; é um pacto entre mim e a morte; dou-lhe dez anos da minha vida, e ela concede-me dias que não precisam de descanso, noites que não precisam de sono. Escrevo... Escrevo de noite e de dia; a polícia de Lafayette obriga-me a viver escondido, encerrado; faz-me consagrar ao trabalho, redobrar a minha actividade... Esta vida, que a princípio me pesava, deleita-me agora. Apraz-me ver o mundo miserável através do estreito e oblíquo postigo da minha cova. Do fundo desta cova úmida e sombria, reino sobre o mundo dos vivos; julgo sem apelação a ciência e a política; derrubo com uma das mãos Newton, Franklin, Laplace, Monge, Lavoisier; com a outra faço vacilar Bailly, Necker, Lafayette; hei-de desmoronar todo este colosso; sim, do mesmo modo que Sansão desmoronou o templo, e debaixo das ruínas, que talvez me esmaguem também, hei-de sepultar comigo a realeza.

       Gilberto estremeceu a seu pesar; aquele homem repetia-lhe numa cova, e sob os andrajos da miséria, o que Cagliostro, sob o seu fato bordado, aproximadamente lhe dissera num palácio.

       - Mas - disse ele - por que motivo, popular como é, não quis fazer parte da assembléia?

       - Porque o dia que espero ainda não chegou – respondeu Marat.

       Depois, como exprimindo uma saudade, acrescentou:

       - Oh! Se eu fosse apoiado por alguns milhares de homens decididos, afianço-lhe que dentro de seis semanas a constituição seria perfeita; que a máquina política caminharia o melhor possível; que nenhum tratante se atreveria a desorganizá-la; que a nação seria livre e feliz; que em menos de um ano se tornaria florescente e temida; e que assim se conservaria enquanto eu vivesse.

       E a vaidosa criatura transformava-se aos olhos de Gilberto; as pupilas cobriam-se-lhe de sangue; a cútis amarelenta luzia com o suor; tornava-se grande pela sua deformidade, como outros se tornam grandes pela beleza.

       - Sim - continuou ele voltando o seu pensamento no mesmo ponto em que o entusiasmo o interrompera - sim, mas infelizmente não sou tribuno, não tenho à minha disposição os milhares de homens que me seriam precisos. Não, mas sou jornalista, tenho aqui a minha escrivaninha, papel e penas; não, mas tenho os meus assinantes, tenho os meus leitores, para os quais sou um oráculo, um profeta, um adivinho; tenho o meu povo, cujo amigo sou, e que conduzo tremendo de traição em traição, de descoberta em descoberta, de assombro em assombro. No primeiro número do Amigo do Povo, denunciei os aristocratas; disse que havia em França seiscentos culpados, para os quais bastavam seiscentos pedaços de corda. Ah! Ah! Ah! Há um mês enganei-me um pouco; vieram os dias 5 e 6 de Outubro, e aclararam-me a vista; por isso não são seiscentos culpados que é necessário julgar, são dez mil, são vinte mil aristocratas, que é necessário enforcar.

       Gilberto sorriu; o furor chegado àquele auge parecia-lhe loucura.

       - Tenha cuidado! - disse ele - talvez se não encontre em França linho para tantas cordas.

       - Mas - acudiu Marat - encontrar-se-ão, assim o espero, novos meios mais expeditos. Sabe quem espero esta noite? Quem daqui a dez minutos há-de bater àquela porta?

       - Não, senhor.

       - Espero um dos seus colegas, um dos membros da Assembléia Nacional que também conhece: o cidadão Guillotin.

       - Sim - disse Gilberto - aquele que propôs aos deputados que se reunissem no Jogo da Péla, quando os expulsaram da sala das sessões: um homem muito sábio.

       - Pois bem! Sabe o que o cidadão Guillotin acaba de encontrar? Uma máquina maravilhosa, que mata sem dor; - porque é necessário que a morte seja uma punição e não um sofrimento; acaba de descobrir esta máquina, que havemos de experimentar um dia destes.

       Gilberto estremeceu; era a segunda vez que aquele homem no fundo da sua cova lhe fazia lembrar Cagliostro. A máquina era decerto a mesma de que Cagliostro lhe falara.

       - Ah! Ouviu? - disse Marat. - Bateram; é sem dúvida ele. Albertina vai abrir.

       Esta levantou-se do banco em que estava assentada meio adormecida e dirigiu-se maquinalmente e cambaleando para a porta.

       Quanto a Gilberto, perturbado e como que dominado por uma vertigem, encaminhou-se instintivamente para o lado onde estava Sebastião, dispondo-se a tomá-lo nos braços, a fim de o transportar para casa.

       - Veja - exclamou Marat com entusiasmo - é uma máquina que funciona apenas com o auxílio de um só homem, e que pode, mudando três vezes a faca, cortar trezentas cabeças por dia!

       - Acrescente - disse por detrás de Marat uma voz aflautada - que pode cortar trezentas cabeças, sem causar o menor sofrimento, sem outra sensação mais que uma suave friagem no pescoço.

       - Ah! É o doutor! - exclamou Marat voltando-se para o recém-chegado.

       Era um homem baixo, de quarenta a quarenta e cinco anos, cujo vestuário, extremamente asseado, e cujo porte simpático faziam singular contraste com Marat.

       Este, vendo que ele trazia na mão uma caixa da dimensão e da forma das que se vendem com brinquedos para crianças, perguntou:

       - O que me traz aí?

       - O modelo da minha máquina, meu caro Marat... Mas, creio que não me engano - acrescentou ele afirmando-se para um canto escuro da cova - é o Sr. Dr. Gilberto que está ali?

       - Sim, senhor - respondeu Gilberto inclinando-se.

       - Estou encantado de o encontrar; o senhor aqui não é demais, e muita honra terei em ouvir a opinião de um homem tão distinto sobre a invenção que vou apresentar brevemente. A propósito, meu caro Marat, saiba que encontrei um hábil carpinteiro, chamado Guidon, que se encarrega de fazer a máquina em tamanho conveniente... Quer cinco mil e quinhentos francos; é caro, mas estou decidido a fazer todos os sacrifícios, que sejam para o bem da humanidade... Dentro de dois meses estará pronta, meu amigo, e poderemos experimentá-la; depois hei-de propô-la à Assembléia Nacional. Espero que o senhor apóie a proposta no seu interessante jornal, posto que a minha máquina - acrescentou ele voltando-se para o Dr. Gilberto - se recomende por si mesma, como vai julgar, vendo-a; mas umas linhas no Amigo do Povo não lhe farão mal nenhum.

       - Oh! Esteja certo de que não serão só umas linhas que lhe hei-de consagrar, mas uma folha toda.

       - É muito amável, meu caro Marat, mas, como costuma dizer-se, não quero vender-lhe gato por lebre.

       E tirou da algibeira da casaca uma caixa, que seria pelo tamanho da quarta parte da que tinha na mão, e que parecia conter alguns animais impacientes por estarem presos, os quais produziam um certo ruído, que não escapou ao ouvido subtil de Marat, que perguntou:

       - Oh! Oh! O que traz aí dentro?

       - Já vai ver - respondeu o doutor.

       Marat estendeu a mão para pegar na caixa.

       - Tome cuidado - disse o Dr. Guillotin - tome cuidado para não os deixar fugir, porque não poderíamos tornar a apanhá-los; são uns poucos de ratos a que vamos cortar a cabeça... Então, Dr. Gilberto, o que faz?... Quer deixar-nos?...

       - Sim, senhor - respondeu Gilberto - e com muito pesar meu; mas meu filho, ferido esta noite por ter sido atropelado por um cavalo, depois de sangrado pelo Dr. Marat, que humanamente o recolhera, e a quem eu próprio devo a vida por me ter prestado em tempo igual socorro, meu filho, repito, precisa agora repousar numa cama confortável, e que prestem os cuidados que o seu estado reclama; por isso não posso assistir à sua interessante experiência.

       - Mas promete que há-de assistir à que fizermos com a máquina no seu tamanho natural dentro de dois meses, não é assim, doutor?

       - Prometo.

       - Confio na sua palavra.

       - Está dada.

       - Doutor - disse Marat - é escusado recomendar -lhe segredo a respeito do lugar em que me oculto.

       - Oh! Senhor...

       - É porque, se o seu amigo Lafayette o descobrisse, far-me-ia fuzilar como um cão, ou enforcar como se fosse um ladrão.

       - Fuzilar! Enforcar! - exclamou Guillotin. – Vão acabar todas essas mortes de canibais; vai haver uma morte suave, fácil, instantânea! Uma morte que os velhos desgostosos da vida e que queiram terminar a existência filosófica e sensatamente, preferirão à morte natural! Venha ver isto, meu caro Marat, venha ver!

       E sem se importar com o Dr. Gilberto, Guillotin abriu a caixa grande e começou a armar a máquina sobre a mesa de Marat, que olhava para ela com tanta curiosidade como entusiasmo.

       Gilberto aproveitou este ensejo para pegar em Sebastião adormecido, e levá-lo nos braços. Albertina acompanhou-o até à porta, e fechou cuidadosamente.

       Logo que chegou à rua, sentiu pelo frio que estava suado e que a brisa da noite lhe gelava o suor na fronte.

       - Oh! Meu Deus - murmurou ele - o que será desta cidade, cujos subterrâneos ocultam, talvez, neste momento, quinhentos filantropos ocupados em obras semelhantes à que acabo de ver preparar, e que um belo dia brilharão à luz do Céu?...

 

Catarina

       Da rua da Sourdière até à casa em que Gilberto habitava apenas distavam alguns passos.

       A casa era situada um pouco mais distante do que a Assunção, no lado oposto da rua, defronte de um marceneiro chamado Duplay.

       O movimento e o frio tinham despertado Sebastião: ele queria ir por seu pé, mas o pai não lho consentiu, continuando a levá-lo nos braços.

       Chegado à porta, o doutor pôs Sebastião de pé por um momento, e bateu com força, para que, no caso que o porteiro dormisse, não tivesse que esperar na rua muito tempo.

       - É o Sr. Gilberto? - perguntaram de dentro.

       - Ora esta! - disse Sebastião - é a voz de Pitou.

       - Ah! Deus seja louvado! - exclamou Pitou abrindo a porta - encontrou-se afinal o Sebastião!

       E voltando-se depois para a escada, em cuja profundeza se principiava a enxergar a claridade de uma vela, bradou:

       - Sr. Billot! Encontrou-se o Sebastião, e espero que sem algum acidente. Não é assim, Sr. Gilberto?

       - Sem algum acidente grave, pelo menos - disse o doutor - Vem, Sebastião, vem.

       E deixando a Pitou o cuidado de fechar a porta, subiu com Sebastião nos braços, à vista do porteiro estupefacto postado no limiar do seu cubículo, onde se conservava de barrete de algodão e em mangas de camisa.

       Billot ia adiante alumiando o doutor; Pitou seguia depois.

       O doutor morava no segundo andar. As portas abertas de par em par anunciavam que se esperava por ele; entrou, e deitou Sebastião sobre a sua cama.

       Pitou seguia-o, inquieto e tímido. À vista da lama que lhe cobria os sapatos, as meias e os calções, e que lhe salpicava o resto do fato, era fácil conhecer que acabava de chegar de uma grande jornada.

       Com efeito, depois de haver reconduzido Catarina desolada a sua casa, depois de saber da própria boca da moça, fundamente impressionada para ocultar a dor, que esta dor provinha da partida de Isidoro para Paris, Pitou, a quem a expressão daquela dor despedaçava duplamente o coração, não só como amante, mas como amigo, Pitou despedira-se de Catarina, que estava deitada, e da mãe Billot, que chorava junto do leito, e com passo mais tardio do que aquele que ali o levara, encaminhou-se para o lado de Haramont.

       A lentidão do passo, o número de vezes que se voltara para olhar tristemente para o casal, de que se desviava com o coração afectado, tanto pela dor de Catarina, como pela sua própria, tudo foi motivo para só chegar a Haramont ao romper do dia.

       A sua preocupação fez com que, como Sextus quando encontrou a mulher morta, se fosse assentar na cama com os olhos fixos e as mãos cruzadas sobre os joelhos.

       Levantou-se finalmente e semelhante a um homem que desperta, não do sono, mas do meditar, lançou um olhar em volta de si e viu ao pé da folha de papel, que escrevera, outra escrita por letra diferente.

       Aproximou-se da mesa e leu a carta de Sebastião.

       Cumpre dizê-lo em honra de Pitou, naquele momento esqueceu-se inteiramente das suas penas pessoais para se ocupar exclusivamente dos perigos que Sebastião poderia correr durante a viagem que empreendera.

       Depois, sem se importar com a distância que o mancebo, que partira na véspera, poderia levar-lhe, Pitou, confiando nas pernas, correu-lhe logo no encalço, esperando alcançá-lo, se, não tendo encontrado meio de transporte, Sebastião se visse obrigado a continuar a pé o seu caminho.

       E daí era de supor que Sebastião se demorasse, ao passo que ele não pararia nunca.

       Pitou não curou de bagagem; cingiu os rins com um cinto de couro, como costumava usar quando tinha que andar muito; meteu debaixo do braço um pão de quatro arráteis, dentro do qual introduziu um salsichão, empunhou o seu cajado de viagem, e pôs-se a caminho.

       Pitou com o seu passo ordinário, andava légua e meia numa hora; apressando um pouco mais o passo, andaria duas.

       Todavia, como lhe era necessário parar para beber, para atar os sapatos quando se lhe desatavam e para perguntar notícias de Sebastião, gastou dez horas para ir da extremidade da rua de Loigny à barreira da Vallete.

       Mais uma hora para ir da barreira da Vallete a casa do Dr. Gilberto, perfaz ao todo onze horas; tinha partido às nove horas da manhã, e chegara às oito da noite.

       Era justamente a hora a que Andréa saíra com Sebastião das Tulherias, e em que o Dr. Gilberto falava com o rei. Não encontrou pois nem o doutor nem Sebastião.

       Mas encontrou Billot.

       Billot não ouvira falar de Sebastião, e não sabia a que horas entraria Gilberto.

       O infeliz Pitou estava tão inquieto, que nem se lembrou de falar a Billot relativamente a Catarina; a sua conversa não foi mais do que um prolongado gemido sobre a desgraça que tivera de não encontrar Sebastião quando este foi procurá-lo.

       Depois, como trazia consigo a carta de Sebastião para se justificar com o doutor em caso de necessidade, deu-se de novo ao trabalho de tornar a ler essa mesma carta, o que, a falar a verdade, era inútil, por isso que já a tinha lido tantas vezes, que a sabia de cor.

       O tempo deslizou tão vagaroso e triste para Pitou, como para Billot, desde as oito horas da noite até às duas horas da madrugada.

       Seis horas era um espaço bem longo. Pitou não precisara de metade desse tempo para ir de Villers-Cotterets a Paris. Pelas duas horas da manhã retinira a aldraba da porta pela décima vez, depois que Pitou chegara.

       De cada vez que a aldraba batia, precipitava-se Pitou pelos degraus, e apesar dos quarenta que havia de descer, chegava sempre à porta no momento em que o porteiro abria.

       A sua esperança ficava sempre iludida; nem Gilberto, nem Sebastião apareciam, e todas as vezes que descia, subia de novo, mais triste do que descera.

       Enfim, já dissemos que tendo descido mais precipitadamente pela última vez, fora a sua esperança coroada do melhor êxito, vendo aparecer ao mesmo tempo o pai e o filho, o Dr. Gilberto e Sebastião.

       Gilberto agradeceu a Pitou, como devia, isto é, dando-lhe um aperto de mão; depois, como pensasse que, tendo feito uma viagem de dezoito léguas, devia o viajante carecer de algum descanso, deu-lhe as boas noites e mandou-o deitar.

       Mas, sossegado pelo que dizia respeito a Sebastião, Pitou tinha ainda a comunicar a Billot as suas confidências; fez-lhe pois sinal para que o seguisse, e Billot assim fez.

       Quanto a Gilberto, esse não quis confiar a ninguém o cuidado de tratar do filho. Ele mesmo examinou a equimose que Sebastião tinha no peito, aplicou o ouvido a diversos lugares do corpo, e havendo-se assegurado de que a respiração estava perfeitamente livre, deitou-se num canapé ao lado do filho, que, apesar da febre ser bastante forte, adormeceu profundamente.

       Mas, lembrando-se logo do cuidado com que Andréa devia estar, assim como ele o tivera, chamou o criado de quarto, e ordenou-lhe que fosse sem demora lançar no correio uma carta, que apenas continha as seguintes palavras:

       “Tranquilize-se; encontrei Sebastião, que não corre o menor perigo”.

       Na manhã seguinte, Billot mandou pedir licença a Gilberto para entrar no seu quarto, a qual lhe foi logo concedida.

       O rosto cheio de bondade de Pitou apareceu risonho à porta, por detrás do de Billot, cuja expressão triste e severa não escapara a Gilberto.

       - Que há de novo, meu amigo? O que tem? –perguntou o doutor.

       - O que tenho, Sr. Gilberto? Tenho a dizer-lhe que fez muito bem em me demorar aqui, porque posso ser-lhe útil e ao país. Mas enquanto eu aqui me demoro, tudo vai pessimamente noutra parte.

       Que não se julgue contudo, à vista destas palavras, que Pitou revelasse os segredos de Catarina e falasse dos seus amores com Isidoro; não, a alma nobre do bravo comandante da guarda nacional recusava-se a uma delação.

       Dissera somente a Billot que a colheita tinha sido má, que os centeios tinham faltado, que uma grande parte dos trigos fora derrubada pela saraiva, e que encontrara Catarina desmaiada na estrada de Villers-Cotterets a Pisseleux.

       Ora, a Billot pouco se lhe dava da falta de centeios e da perda dos trigos; mas sentiu-se profundamente aflito ao saber do desmaio de Catarina.

       É porque sabia, o honrado pai Billot, que uma rapariga do temperamento e da força de Catarina não perde os sentidos sem algum motivo forte.

       De mais, interrogara bastante Pitou, e por conhecer nele alguma reserva nas respostas, por mais de uma vez meneara a cabeça, dizendo:

       - Vamos, vamos, creio que é tempo de sair daqui e voltar para casa.

       Gilberto, que também acabava de sentir quanto um coração de pai era capaz de sentir, entendeu desta vez o que se passava em Billot, quando ele lhe transmitiu as notícias que Ângelo Pitou trouxera.

       - Vá, meu caro Billot - lhe disse ele - já que a casa, as terras e a família o reclamam; mas não esqueça que, em nome da pátria e em caso urgente, posso dispor do senhor.

       - Uma só palavra, Sr. Gilberto - respondeu o honrado lavrador - e doze horas depois estarei em Paris.

       Em seguida, tendo abraçado Sebastião, que, depois de uma noite bem passada, se achava de todo livre de perigo, e apertando a mão fina e delicada de Gilberto nas suas largas e calosas, tomou dali a duas horas o caminho do casal, que deixara por oito dias, e donde se achava ausente havia três meses.

       Pitou seguiu-o, levando consigo o mimo que lhe fizera o Dr. Gilberto, vinte e cinco luíses, para ajuda do fardamento e equipamento da guarda nacional de Haramont.

       Sebastião ficou com o pai.

 

Tréguas

       Uma semana depois dos acontecimentos que acabamos de referir tomaremos novamente o leitor pela mão para o conduzir ao palácio das Tulherias, que é de hoje em diante o teatro principal das grandes catástrofes que vão realizar-se.

       Oh! Tulherias! Esperança fatal legada pela rainha do S. Bartolomeu, pela estrangeira Catarina de Médicis aos seus sucessores, palácio da loucura, que atrai a si para devorar. Que fascinação pode existir no teu pórtico boquiaberto, que chama para si todos esses loucos coroados que se querem chamar reis, que só se julgam verdadeiramente sagrados depois de dormir debaixo dos teus tectos alcunhados reais, e que friamente vomitas, uns após outros, uns, já cadáveres decapitados, outros, fugitivos sem coroa?

       Há sem dúvida nas tuas pedras cinzeladas, uma espécie de jóia de Benvenuto Cellini, algum malefício fatal, algum talismã mortal oculto nos teus umbrais; conta os cinco últimos reis que recebeste e dize-me, o fim que tiveram; desses cinco só um único foi depositado no carneiro, juntamente com os seus antepassados, e dos quatro que a história te reclama, um subiu ao cadafalso e os três saíram para o exílio!

       Certo dia uma assembléia em massa quis arrostar o perigo estabelecendo-se no lugar dos reis e assentar-se, mandatária do povo, onde se tinham assentado os eleitos da monarquia: desde esse momento, apoderou-se dela uma vertigem; desde esse momento ela própria se destruiu: o cadafalso devorou uns, o exílio engoliu outros, e uma singular fraternidade reuniu Luís XVI e Robespierre, Collot-de-Herbois e Napoleão, Billaud Varennes e Carlos X, Vadier e Luís Filipe.

       Oh! Tulherias! Tulherias! Muito insensato será aquele que se atrever a ultrapassar os teus umbrais, a entrar por onde entraram Luís XVI, Napoleão, Carlos X e Luís Filipe; por isso que, mais tarde ou mais cedo, hão-de sair pela mesma porta por onde aqueles saíram.

       E contudo, palácio fúnebre, cada um deles entrou ali no meio das aclamações do povo, e a tua vasta varanda viu-os sorrir, uns depois dos outros, a essas aclamações, acreditando nos votos e nos emboras da multidão que os impelia, o que fez que tão depressa se viram assentados sobre o dossel real, cada um deles se pusesse a trabalhar para si em lugar de trabalhar para o povo, o que, sendo um dia percebido pelo povo, o despediu como se despede um rendeiro infiel, ou o castigou como se castiga um mandatário ingrato.

       É deste modo que, depois da marcha terrível do dia 6 de Outubro, por entre clamores, por cima de lama e de sangue, o pálido Sol do seguinte dia veio encontrar, quando nasceu, o pátio das Tulherias invadido pelo povo entusiasmado e comovido pelo regresso do seu rei e ansioso por vê-lo.

       Durante esse dia recebera Luís XVI os corpos constituídos; a multidão esperava fora, procurava-o, espionava-o através dos vidros; aquele que julgava enxergá-lo soltava um grito de alegria e mostrava-o ao que lhe ficava próximo dizendo:

       -Não o vê? Não o vê? Lá está ele!

       Pelo meio-dia foi necessário que aparecesse na varanda, e nessa ocasião retumbaram de toda a parte bravos e aplausos unânimes.

       À noite desceu ao jardim: então foi mais alguma coisa do que bravos e aplausos; foram lágrimas, foram ternuras.

       A princesa Isabel, dotada de um coração ingênuo e piedoso, mostrando o povo a seu irmão, dizia-lhe:

       - Parece-me que não será muito difícil governar tão boa gente.

       O seu aposento era no andar térreo; à noite mandou abrir as janelas e ceou à vista de todos.

       Homens e mulheres todos o olhavam, todos o aplaudiam e saudavam; as mulheres, sobretudo, faziam subir os filhos ao parapeito das janelas, ordenando a estes inocentinhos que enviassem beijos àquela grande dama e lhe dissessem que era muito linda.

       E as criancinhas repetiam: “Sois muito formosa, senhora”; e com as suas nédias mãozinhas lhe enviavam beijos sem número.

       Todos viam terminada a revolução, todos diziam: “Eis aí o rei arrancado à sua Versalhes, aos seus cortesãos e aos seus conselheiros: o encanto que longe da capital tinha a realeza cativa no meio daquela multidão de autómatos, de estátuas e de copadas árvores, a que se chama Versalhes; esse encanto que separava o rei do seu povo, quebrara-se; o rei voltara à vida e à verdade, isto é, à natureza real do homem. “Vinde, senhor, vinde para o meio de nós; até aqui, cercado como estáveis, só tínheis a liberdade de fazer mal; hoje, no meio de nós, no meio do vosso povo, tendes toda a liberdade para fazer bem”.

       Muitas vezes as massas e até os indivíduos se enganam a respeito do que são, ou antes a respeito do que vão ser; o susto que se sentira durante os dias 5 para 6 de Outubro, havia atraído para o rei, não só uma multidão de corações, mas ainda muitos espíritos, muitos interesses; os gritos na escuridão, o despertar no meio da noite, as fogueiras no pátio de mármore alumiando as grandes paredes de Versalhes com seus fúnebres reflexos, tudo isso impressionara profundamente todas as imaginações. A assembléia assustara-se, sobretudo quando o rei fora ameaçado; então ainda ela acreditava que dependia do rei; mas não decorreram seis meses sem que conhecesse que pelo contrário, era o rei que dependia dela. Cento e cinqüenta dos seus membros tiraram logo passaportes. Mounier e Lally, o filho do Lally morto na praça de Grève, ambos fugiram.

       Os dois homens mais populares em França, Lafayette e Mirabeau, voltaram realistas para Paris.

       Mirabeau dissera a Lafayette: “Unamo-nos e salvemos o rei”.

       Por desgraça Lafayette, homem de bem por excelência, mas espírito limitado, desprezava o carácter de Mirabeau, e não lhe compreendia o génio.

       Contentou-se com ir procurar o duque de Orleans.

       Tinha-se dito muita coisa acerca de Sua Alteza Real; dissera-se que fora visto, durante a noite, com o chapéu para os olhos e de chibata na mão, agitando os grupos no pátio de mármore, incitando-os ao saque do palácio, sem dúvida na esperança de que o saque trouxesse o assassínio.

       Mirabeau pertencia todo ao duque de Orleans.

       Lafayette, em lugar de se entender com Mirabeau, foi procurar o duque de Orleans, convidando-o a deixar Paris; o duque discutiu, lutou, resistiu; mas Lafayette era verdadeiramente rei, e não teve outro remédio senão obedecer.

       - Mas quando voltarei? - perguntou ele a Lafayette.

       - Quando lhe disser que é tempo de voltar, meu príncipe.

       - E se eu, aborrecido, voltar sem sua licença? - perguntou o duque com altivez.

       - Nesse caso - respondeu Lafayette - Vossa Alteza Real me fará a honra de se bater comigo.

       O duque de Orleans partiu, e só voltou quando foi chamado.

       Lafayette era pouco realista antes de 6 de Outubro, mas, depois desse dia, tornou-se realista decidido e sincero; salvou a rainha e protegeu o rei.

       Os homens dedicam-se mais pelos serviços que prestam, do que por aqueles que recebem. É que no coração humano existe quase sempre mais orgulho do que gratidão.

       O rei e a princesa Isabel, conhecendo que, inferior e até superior àquele povo, havia um elemento fatal, que não queria misturar-se com ele, alguma coisa odiosa e vingativa, como a cólera do tigre, que ruge quando afaga, sentiam-se vivamente impressionados.

       Mas não acontecia o mesmo a Maria Antonieta; a má disposição em que se achava o coração da mulher era nociva ao espírito da rainha, as suas lágrimas eram lágrimas de despeito, de dor, de ciúme; dessas lágrimas, que derramava, contavam-se tantas por Charny, que via prestes a escapar-se-lhe dos braços, como pelo ceptro, que também via prestes a escapar-se-lhe das mãos.

       Por isso via ela todo aquele povo, ouvia todos aqueles gritos com o coração ressequido, com o espírito irritado.

       Era na realidade mais moça do que a princesa Isabel, ou talvez da mesma idade; mas a virgindade da alma e do corpo tinham envolvido esta última numa túnica de inocência e de frescor, que ainda não despira, ao passo que as paixões ardentes da rainha, o ódio e o amor, lhe tinham feito empalidecer as mãos, que pareciam de marfim, comprimido os lábios descorados, e espalhado por sobre as pálpebras algumas dessas nódoas denegridas, que revelam um padecimento profundo, incurável e permanente.

       A rainha estava doente, profundamente doente de uma moléstia que ninguém pode curar-se, por isso que o seu único remédio consiste na paz e na ventura, e a pobre Maria Antonieta conhecia ter perdido para sempre estes inapreciáveis dons.

       Era por isso que, no meio de todos aqueles entusiasmos, brados e vivas, quando o rei estendia a mão aos homens, quando a princesa Isabel sorria e chorava ao mesmo tempo para as mulheres e para as crianças, a rainha sentia os olhos, umedecidos com as lágrimas do seu próprio penar, tornarem-se enxutos à vista do público regozijo, da geral satisfação.

       Os vencedores da Bastilha quiseram apresentar-se-lhe, mas ela recusou-se a recebê-los.

       As regateiras, chamadas as damas do mercado, também, por seu turno, se apresentaram; essas, porém, resolveu ela recebê-las, mas de longe, bem separada delas por muitos guardas; além disso aquelas mulheres, como vanguarda destinada a defendê-la de qualquer contacto queriam postar-se junto a ela.

       Era um grande erro que cometia Maria Antonieta: as mulheres do mercado eram realistas, e muitas desaprovavam o dia 6 de Outubro.

       Então essas mulheres dirigiram-lhe a palavra, porquanto em semelhantes grupos há sempre oradores mais ou menos eloqüentes.

       Uma delas, mais atrevida do que as outras, arvorando-se em conselheira, disse:

       - Senhora rainha, permitis que vos dê um conselho, mas olhai, um conselho de mão cheia, quero dizer, cá do fundo do coração?

       A rainha fizera com a cabeça um sinal tão imperceptível, que a mulher nem sequer o vira.

       - Não respondeis? Não importa! Sempre vo-lo darei. Eis-vos no meio de nós, no meio do vosso povo, isto é, no seio da vossa família; agora é necessário desviar de vós todos esses cortesãos que perdem os reis, e amar um pouco estes pobres parisienses, que desde vinte anos que vos achais em França talvez vos não tenham visto quatro vezes.

       - Senhora - respondeu secamente a rainha – fala desse modo, porque não conhece o meu coração; amei-vos em Versalhes, amar-vos-ei do mesmo modo em Paris.

       Isto não era prometer muito.

       Seguiu-se por isso segunda oradora, bradando:

       - Sim, sim, vós nos amáveis em Versalhes! Era então por amor, que no dia 14 de Junho queríeis sitiar a cidade e fazê-la bombardear? Era então por amor que no dia 6 de Outubro queríeis fugir para as fronteiras, com o pretexto de ir, pela alta noite, para Trianon?

       - Quer dizer - acudiu a rainha - que lhe disseram isso, e que o acreditou; é justamente do que resulta a desgraça do povo e do rei.

       E contudo, pobre mulher, ou antes pobre rainha, no meio da resistência do seu orgulho, e das angústias do seu coração, encontrou uma inspiração feliz.

       Uma daquelas mulheres, natural da Alsácia, dirigiu-lhe a palavra em alemão.

       - Senhora - respondeu a rainha - tornei-me por tal modo francesa, que de todo esqueci a minha língua materna.

       Isto era belo para se dizer; mas, desgraçadamente, foi pouco a propósito.

       As mulheres do mercado podiam retirar aos gritos de: “viva a rainha!” e retiraram resmungando por entre os dentes algumas frases grosseiras.

       À noite, quando reunidos, o rei e a princesa Isabel, provavelmente para se consolarem um ao outro, recordavam-se de tudo quanto tinham achado de útil e de consolador naquele povo: ela só achou um facto para ajuntar aos demais; era um dito do delfim, que ela repetiu muitas vezes nesses dias e nos seguintes.

       Com o motim que fizeram as mulheres do mercado, quando entraram no régio aposento, o pobre delfim correra gritando para a mãe:

       - Oh! Mamã! Mamã, o dia de hoje será o de ontem?...

       O infeliz delfim estava presente, ouvia o que sua mãe dizia dele, e ufano como todas as crianças que vêem que se ocupam delas, aproximou-se do rei observando-o com ar pensativo.

       - Que queres tu, meu Luís? - perguntou o rei, acariciando o menino.

       - Queria - respondeu o delfim - perguntar-lhe uma coisa de bastante gravidade.

       - Pois bem - disse o rei puxando-o para si – que queres tu saber? Vamos, fala.

       - Queria saber - continuou o menino - porque é que o povo, que o amava tanto, se pôs tão depressa de mal consigo, e o que lhe fez para ele se pôr de tão mau humor.

       - Luís! - murmurou a rainha com ar de censura.

       - Deixe-me responder-lhe - acudiu o rei.

       A princesa Isabel sorria-se para ele.

       Luís XVI assentou o filho no colo, e pondo a política do dia ao alcance da inteligência do menino, disse:

       - Meu filho, eu quis fazer o povo mais feliz do que era; precisei de dinheiro para pagar as despesas ocasionadas pelas guerras, pedi-o ao meu povo, como sempre fizeram os reis meus predecessores; alguns dos magistrados que compõem o meu parlamento opuseram-se a isso, dizendo que só o povo tinha direito de me votar esse dinheiro; convoquei os primeiros homens de cada cidade, pelo seu nascimento, fortuna e talento; é a isto que se chama os Estados Gerais. Assim que se acharam reunidos, pediram-me coisas que não posso fazer nem por mim, nem por ti, que serás o meu sucessor... Alguns malvados sublevaram então o povo, e os excessos que se praticaram nos últimos dias são obra sua. Porém, meu filho, não devemos por isso querer mal ao povo.

       A esta recomendação, Maria Antonieta apertou os beiços, e era evidente que, encarregada da educação do delfim, lhe não teria decerto inspirado o esquecimento das injúrias: não eram esses os seus princípios.

       No dia seguinte a cidade de Paris e a guarda nacional mandaram pedir à rainha que comparecesse no teatro, para provar assim com a sua presença e com a de el-rei, que residiam com prazer na capital.

       A rainha respondeu que muito prazer teria em anuir ao convite que se lhe fazia, mas ainda precisava de algum tempo de descanso para se esquecer dos dias aziagos que tinham decorrido.

       O povo já se tinha esquecido de tudo; ficou admirado, que ela se não tivesse igualmente esquecido.

       Quando soube que o seu inimigo, o duque de Orleans, saiu de Paris, a rainha sentiu um momento de satisfação; mas não quis reconhecer que essa saída fosse devida a Lafayette; julgou que era devida a um negócio pessoal entre o príncipe e Lafayette.

       Ela assim o acreditou ou fingiu acreditar.

       Não quis dever nada a Lafayette; verdadeira princesa de Lorena, pelo rancor e pelo orgulho, só queria vencer e vingar-se.

       “As rainhas não podem afogar-se” - dissera Henriqueta de Inglaterra no meio dum grande temporal, e Maria Antonieta era da mesma opinião.

       Além disso, não tinha Maria Teresa estado mais próxima da morte do que ela, quando tomou o filho nos braços para o mostrar aos seus húngaros fieis?

       Aquela heróica recordação da mãe influiu na filha: foi um erro, um erro horrível só próprio dos que comparam as situações sem as julgar!

       Maria Teresa tinha o povo por si, Maria Antonieta tinha o povo contra ela.

       E demais, era mulher; e talvez houvesse julgado melhor a situação, se o seu coração estivesse mais sossegado; talvez odiasse menos o povo, se Charny a amasse com mais ardor.

       Aí está o que se passava nas Tulherias durante os poucos dias em que a revolução fizera alto, em que arrefeciam as paixões exaltadas, e em que, durante as tréguas, amigos e inimigos se reconheciam e afagavam, para na primeira declaração de hostilidades principiarem novamente um combate mais encarniçado, uma batalha mais mortífera e sangrenta.

       Esse combate é tão provável, essa batalha tão iminente, que poremos os nossos leitores, não só ao alcance do que podem ver à superfície da sociedade, se não de quanto se trama nas profundezas dessa mesma sociedade.

 

O retrato de Carlos

       Nos poucos dias que tinham decorrido, e durante os quais os novos hóspedes das Tulherias ali se estabeleceram, entregando-se aos seus costumes usuais, Gilberto, que não fora chamado para junto do rei, não julgara dever apresentar-se; mas enfim, tendo chegado o seu dia de visita, entendeu que o seu dever lhe serviria de desculpa.

       O pessoal de serviço nas antecâmaras era o mesmo, que acompanhara o rei de Versalhes a Paris; Gilberto era portanto conhecido nas antecâmaras das Tulherias como nas de Versalhes.

       Além disso, o rei, conquanto não quisesse recorrer ao doutor, nem por isso se esquecia dele. Luís XVI era dotado de um espírito muito recto, para não conhecer facilmente os seus amigos e os seus inimigos.

       E Luís XVI sentia bem, até ao mais íntimo do coração, em despeito de quaisquer prevenções da rainha contra Gilberto, que este era, se não amigo do rei, pelo menos amigo da realeza, que vinha a ser a mesma coisa.

       Recordava-se pois que era aquele o dia de serviço de Gilberto, e dera ordem para que, assim que o doutor chegasse, lhe fosse apresentado.

       Resultou daí que apenas franqueou o limiar da porta, o criado de serviço o introduziu logo no quarto de el-rei.

       El-rei passeava de um para o outro lado tão preocupado, que não deu pela chegada do doutor, nem pelo anúncio que o precedera.

       Gilberto parou à porta, imóvel e silencioso, esperando que o rei desse pela sua presença e lhe dirigisse a palavra.

       O que procurava o rei (e isso era fácil de ver, porque de tempos a tempos parava pensativo diante dele), era um retrato de Carlos I, em pé e de tamanho natural, executado por Van Dick.

       É o mesmo que se acha hoje no palácio do Louvre e que um inglês prometeu cobrir de peças de ouro se lho quisessem vender.

       O leitor deve conhecer esse retrato, se não pela tela, ao menos pela gravura.

       Carlos I está de pé, debaixo de algumas dessas árvores raras e fanadas, como as que vegetam nas praias; um pajem segura-lhe o cavalo ajaezado; o mar forma o horizonte.

       A fronte do rei está impregnada de melancolia. Em que pensa aquele Stuart, que teve por predecessor a bela e infeliz Maria e que terá por sucessor Jaime II?

       Ou então em que pensava o pintor, aquele grande engenho, que tinha génio bastante para dotar a fisionomia do rei com o supérfluo do seu ideal?

       Em que pensava, pintando-o antecipadamente, como nos últimos dias da fuga, de simples cavaleiro, prestes a entrar em campanha contra as cabeças redondas?

       Em que pensava, pintando-o assim à beira do tempestuoso mar do Norte, com o seu cavalo ao lado, pronto para o ataque, mas pronto também para fugir?

       Porventura se aquele quadro, onde Van Dick pusesse tanta tristeza, se voltasse, não se veria no reverso algum esboço do cadafalso de Whitehall?

       Era necessário que a voz daquele retrato falasse bem alto para se fazer ouvir por aquela natureza toda material, e para que, à semelhança da nuvem, que ao passar lança o seu reflexo sombrio sobre os prados verdes e as douradas messes, a fizessem escurecer?

       Por três vezes interrompeu Luís XVI o seu passeio para parar diante daquele retrato, e outras tantas, dando um suspiro, continuou o mesmo passeio, que por fatalidade parecia ter por alvo o mesmo quadro.

       Por fim, Gilberto entendeu que há circunstâncias em que um espectador é menos indiscreto em anunciar a sua presença do que conservar-se mudo.

       Fez portanto um movimento, Luís XVI estremeceu, voltando-se e disse:

       - Ah! É o doutor? Venha, venha, muito folgo em o ver.

       Gilberto aproximou-se inclinando-se.

       - Há muito tempo que estava aí, doutor?

       - Há poucos minutos, real senhor.

       - Ah! - exclamou o rei tornando-se pensativo.

       Depois, conduzindo Gilberto diante da obra prima de Van Dick, perguntou:

       - Conhece este retrato, doutor?

       - Conheço, sim, senhor.

       - Então onde o viu?

       - Em casa da Srª. Dubarry, quando eu era criança; apesar disso, confesso que não deixou de me impressionar profundamente.

       - É verdade, é isso, em casa da Srª. Dubarry - murmurou Luís XVI.

       E seguindo-se depois um silêncio de alguns segundos, perguntou novamente:

       - Conhece este retrato?

       - Vossa Majestade fala da história do rei, que ele representa, ou da história do mesmo retrato?

       - Falo da história do retrato.

       - Não, senhor; sei unicamente que foi feito em Londres, em 1645 ou 1646; é quanto posso dizer; mas ignoro completamente como veio para França e como se acha hoje no quarto de Vossa Majestade.

       - Como veio para França, posso eu dizer; como se acha neste quarto, ignoro-o.

       Gilberto olhou para Luís XVI com alguma admiração.

       - Como veio para França? - repetiu Luís XVI - eu lho digo; e compreenderá então o motivo que me obriga a parar diante dele.

       Gilberto inclinou-se em sinal de que escutava com a maior atenção.

       - Há cerca de trinta anos que isso aconteceu - disse Luís XVI -; há cerca de trinta anos que houve em França um mistério fatal; para mim principalmente - ajuntou ele suspirando - porque lhe recordava a morte do pai, que julgara ter sido envenenado pela Áustria. - Esse mistério foi o de Choiseul. Foi depois substituído pelo ministério de Aiguillon e de Maupeou, para aniquilar do mesmo golpe o parlamento.

       Mas aniquilar parlamentos era uma acção que assustava muito meu avô, el-rei Luís XV. Para o fazer faltava-lhe a resolução, que perdera com os despojos do homem velho, era necessário construir um homem novo, e para o fazer, só havia um único meio, era fechar esse vergonhoso harém, que, com o nome de Parque dos Veados, tanto dinheiro custara à nação e tanta popularidade à monarquia; era necessário, em lugar daquela chusma de raparigas, que lhe definhava o resto da virilidade, dar a Luís XV uma única amante que não tivesse sobre ele bastante influência para lhe fazer seguir uma linha política, mas que tivesse memória suficiente para lhe repetir a cada momento uma lição que fosse bem estudada.

       O velho marechal sabia onde havia de procurar essa qualidade de mulheres; procurou-a com efeito, e achou a que lhe convinha.

       O senhor conheceu-a, porque ainda há pouco me disse ter visto em casa dela esse retrato.

       Gilberto inclinou-se.

       - Nem a rainha, nem eu gostávamos dessa mulher; a rainha menos do que eu, talvez por isso que, austríaca instruída por Maria Teresa na grande política européia, cujo centro deveria ser a Áustria, via na elevação do Sr. de Aiguillon a queda do seu amigo Choiseul. Não gostávamos dela, disse eu, e, contudo, devo fazer-lhe a justiça de que, destruindo o que existia, obrava ela segundo os meus desejos particulares, e di-lo-ia em consciência, segundo o bem geral. Era uma hábil actriz; representava maravilhosamente o seu papel; surpreendeu Luís XV por uma audácia familiar, desconhecida até à realeza; divertia-o zombando dele ao mesmo tempo; fê-lo homem, fazendo-lhe acreditar que já o era.

       O rei deteve-se de súbito, como arrependido de falar assim do seu avô na presença de um estranho; mas lançando um olhar sobre o rosto franco e sincero de Gilberto, conheceu que àquele homem que tudo compreendia tão bem, nada devia ocultar.

       Gilberto conheceu também o que se passava no espírito do rei, e sem impaciência, sem o interrogar, encarando de frente o olhar escrutador de Luís XVI, aguardou o que este ia dizer-lhe.

       - O que lhe digo senhor - replicou o rei com certa nobreza de gesto que lhe não era habitual – não deveria talvez dizer-lho, porque é o meu pensamento íntimo, e um rei não deve deixar ver o íntimo do coração senão àqueles em cujo coração pode ler. Corresponder-me-á nesta intimidade, Sr. Gilberto? Se o rei de França lhe disser tudo quanto pensa, dir-lhe-á também o que pensa?

       - Senhor - respondeu Gilberto - juro que se vossa Majestade me fizer essa honra, me prestarei gostoso aos seus desejos. O médico tem a seu cargo o corpo, do mesmo modo que o padre tem a seu cargo a alma; mas, mudo e impenetrável para os outros, consideraria um crime não dizer ao rei a verdade, quando me faz a honra de me interrogar.

       - Desse modo, Sr. Gilberto, nada de indiscrições.

       - Senhor, se Vossa Majestade me dissesse que dentro de um quarto de hora, e por sua real ordem, seria conduzido ao patíbulo, não me julgaria com direito a fugir, se Vossa Majestade não acrescentasse a palavra fuja!

       - Faz bem em me falar desse modo, Sr. Gilberto. Com os meus melhores amigos, com a mesma rainha, muitas vezes só falo em voz baixa. Com o senhor falarei e pensarei sem reserva.

       E continuou:

       - Pois bem, essa mulher, que sabia avaliar a pouca perspicácia de Luís XV, quase nunca se separava do lado dele, para que lhe não escapassem os menores gestos, as mais insignificantes palavras. Acompanhava-o no conselho, encostando-se-lhe à cadeira; diante do chanceler, diante dos mais graves personagens, diante dos velhos magistrados, lançava-se-lhe aos pés requebrando-se como um macaco, tagarelando como um periquito, assoprando-lhe finalmente a realeza de noite e de dia. Mas isto ainda não era bastante, e a singular Egéria talvez tivesse perdido o tempo, se àquelas palavras imperceptíveis o Sr. de Richelieu não tivesse tido a idéia de dar um corpo, que tornasse material a lição que ela repetia.

       “Sob pretexto de que o pajem que se vê naquele quadro se chamava Barry, comprou-se-lhe o quadro, como se fosse um quadro de família. Aquele rosto melancólico, que adivinha o dia 30 de Janeiro de 1648, colocado no camarim daquela rapariga, ouviu as suas gargalhadas desaforadas, viu os seus lascivos devaneios. O quadro servia-lhe para isto: sem deixar de rir, tomava Luís XV pela mão, mostrava-lhe Carlos I dizia-lhe: ‘Não vês, La France? Aí tens um rei a quem cortaram a cabeça por ser fraco para com o seu parlamento; anda continua a tratar o teu como até aqui.’”

       - Luís XV dissolveu o parlamento e morreu tranqüilo no trono.

       “Exilamos então esta mulher, para quem devêramos ter sido talvez mais indulgentes.”

       “O quadro ficou nos sótãos de Versalhes, e nem sequer me lembrou de perguntar por ele. De que modo venho encontrá-lo aqui? Quem ordenou a sua colocação neste quarto? Por que motivo me segue ele, ou antes por que motivo me persegue?”

       E meneou tristemente a cabeça.

       - Doutor, não vê em tudo isto uma fatalidade?

       - É uma fatalidade, senhor, se este retrato nada lhe diz, mas uma providência se lhe fala.

       - Como quer que semelhante retrato não fale a um rei na minha situação, doutor?

       - Depois de Vossa Majestade me permitir que lhe diga a verdade, quererá também permitir que o interrogue?

       Luís XVI pareceu hesitar um momento.

       - Interrogue, doutor - disse ele.

       - O que diz este retrato a Vossa Majestade?

       - Diz-me que Carlos I perdeu a cabeça por ter guerreado o seu povo, e que Jaime II perdeu o trono por ter descurado o seu.

       - Nesse caso, senhor, este retrato é como eu, diz a verdade.

       - E então? - perguntou o rei, como solicitando Gilberto com um olhar escrutador.

       - Então uma vez que Vossa Majestade me permitiu que o interrogasse, perguntar-lhe-ei o que responde a este retrato, que tão habilmente lhe fala?

       - Sr. Gilberto - disse o rei - dou-lhe a minha palavra de fidalgo que nada resolvi ainda; aconselhar-me-ei com as circunstâncias.

       - O povo receia que o seu rei se resolva a guerreá-lo.

       Luís XVI meneou a cabeça.

       - Não - disse ele - decerto que não posso guerrear o meu povo sem auxílio estrangeiro, e conheço bastante o estado da Europa para confiar nesse poderoso auxílio. O rei da Prússia oferece-se para entrar em França com cem mil homens, mas eu conheço suficientemente o espírito intrigante e ambicioso daquela pequena monarquia, que deseja engrandecer-se, que promove a desordem em toda a parte, esperando que no meio dessa desordem encontre alguma nova Silésia que possa apanhar. A Áustria, pela sua parte, põe à minha disposição outros cem mil homens, mas não gosto do meu cunhado Leopoldo, Juno com duas caras, filósofo devoto, cuja mãe, Maria Teresa, mandou envenenar meu pai. Meu irmão de Artois propõe-me também o auxílio da Sardenha e da Espanha, mas não confio nessas duas potências dirigidas por meu irmão de Artois. Depois dele temos o Sr. de Calonne, isto é, o mais cruel inimigo da rainha, o mesmo que ditou (vi o manuscrito) o folheto satírico da Srª. de La Motte acerca do infame negócio do colar. Sei bem o que por lá se passa. No último conselho trataram de me depor e de nomear um regente, que seria provavelmente o meu outro querido irmão o conde de Provença. Meu primo, o Sr. de Condé, propôs-se entrar em França e a marchar sobre Lyão, acontecesse ao rei o que acontecesse. Quanto à grande Catarina, é outra coisa: essa limita-se aos conselhos. Assentada à mesa, para devorar a Polónia, não pode levantar-se sem que tenha concluído o seu banquete. Deu-me um conselho, que parecendo sublime à primeira vista, não é mais do que um conselho ridículo, principalmente depois do que se passou nestes últimos dias. “Os reis, - disse ela - devem seguir a sua marcha sem se inquietarem com os gritos do povo, do mesmo modo que a lua segue o seu curso sem se inquietar com os latidos dos cães”. É natural que os cães russos se contentem com ladrar; mas que mande perguntar a Deshuttes e a Varicourt se os nossos não sabem morder.

       - O povo receia que o rei pense em fugir, em sair de França.

       O rei hesitou em responder.

       - Senhor - disse Gilberto sorrindo - não convém tomar ao pé da letra a licença concedida por um rei. Vejo que sou indiscreto, e da minha interrogação faço pura e simplesmente uma expressão de queixa.

       O rei pôs a mão no ombro de Gilberto e disse:

       - Doutor, prometi dizer-lhe a verdade, e hei-de dizer-lha. Sim, tratou-se disso; assim mo propuseram muitos e leais servidores que me rodeiam, aconselharam-me que fugisse. Mas na noite de 6 de Outubro, no momento em que a rainha em lágrimas apertava contra o seio os caros filhos, esperando como eu, a morte, fez-me jurar, que nunca fugiria só; que partiríamos todos, a fim de nos salvarmos ou perecermos juntos. Assim o jurei, senhor, e hei-de cumprir a minha palavra. Ora, como não creio que seja possível fugirmos reunidos, sem que nos prendam antes de chegar à fronteira, tenho resolvido não fugir.

       - Senhor - disse Gilberto - vê quanto me surpreende o raciocínio tão justo de Vossa Majestade: Oh! porque não há-de ouvi-lo a França inteira como eu acabo de o ouvir! Oh! Quanto se não adoçariam os ódios que perseguem Vossa Majestade! Quanto não diminuiriam os perigos que o rodeiam!

       - Ódios! - disse o rei - julga então que o meu povo me odeia? Perigos! Não tomando ao sério as sombrias idéias que este retrato me suscita, dir-lhe-ei que julgo desvanecidos os que mais se receavam.

       Gilberto olhou para o rei com profundo sentimento de melancolia.

       - Não é este também o seu parecer, doutor? - perguntou Luís XVI.

       - O meu parecer, senhor, é que Vossa Majestade apenas tem encetado a luta, e que os dias 14 de Julho e 6 de Outubro não são mais do que os dois primeiros actos do terrível drama que a França vai representar à face das nações.

       Luís XVI empalideceu levemente e disse:

       - Creio que se engana, doutor.

       - Não, senhor, não me engano.

       - Como é possível saber mais do que eu, que tenho à minha disposição toda a polícia e a contra-polícia?

       - Senhor, é verdade que nem tenho polícia nem contra-polícia à minha disposição; mas, pela minha posição, considero-me o intermediário natural entre o que toca no Céu, e o que se oculta nas entranhas da terra. Sim, senhor, o que nós sentimos, ainda não é mais do que o abalo de terra, resta-nos combater o fogo, a cinza e a lava do vulcão.

       - Disse combater, senhor; não teria falado com mais acerto se dissesse fugir?

       - Disse combater, senhor, é verdade.

       - Conhece a minha opinião com respeito à intervenção estrangeira; nunca a consentirei em França, salvo se - não falarei da minha vida, que me importa a minha vida! há muito que fiz dela o sacrifício; salvo se a vida de minha mulher e dos meus queridos filhos correr grande risco.

       - Quisera prostrar-me aos pés de Vossa Majestade para lhe agradecer tão louváveis sentimentos. Não, senhor, não é precisa intervenção estrangeira. Para que havia de lançar mão desse recurso, sem ter primeiro esgotado os seus próprios recursos? Vossa Majestade receia que a revolução se lhe adiante, não é assim, senhor?

       - Confesso-o.

       - Pois bem, temos dois meios de salvar o rei de França.

       - Queira dizê-los, e muito bem merecerá de ambos.

       - O primeiro, senhor, colocar-se à frente do movimento e dirigi-lo.

       - Arrastar-me-iam consigo, Sr. Gilberto, e eu não quero ir aonde eles vão.

       - O segundo é meter-lhe na boca um freio bastante sólido que possa domá-la.

       - Como se chamará esse freio, senhor?

       - A popularidade e o génio.

       - E quem há-de forjar esse freio?

       - Mirabeau.

       Luís XVI olhou fixamente para Gilberto como se tivesse percebido mal.

 

Mirabeau

       Gilberto conheceu que tinha de sustentar uma luta, mas já estava preparado para ela.

       - Mirabeau - repetiu ele - sim senhor, Mirabeau.

       O rei voltou-se para o retrato de Carlos I.

       - Que responderias tu, Carlos Stuart – perguntou ele ao quadro poético de Van Dick - se, no momento em que sentisses tremer a terra debaixo dos pés, te aconselhassem que te apoiasses em Cromwell?

       - Carlos Stuart teria recusado, e teria feito bem - disse Gilberto - por isso que não há a menor semelhança entre Cromwell e Mirabeau.

       - Não sei como encara as coisas, doutor – disse o rei - mas para mim a traição não tem gradação; um traidor, é um traidor, e não sei diferençar o menor do maior.

       - Senhor - acudiu Gilberto com o maior respeito, mas ao mesmo tempo com a mais invencível firmeza - nem Cromwell nem Mirabeau são traidores.

       - Então o que são? - exclamou o rei.

       - Cromwell é UM súbdito rebelde e Mirabeau UM fidalgo descontente.

       - Descontente de quê?

       - De tudo: do pai, que o meteu no castelo d’If e na prisão de Vincennes; dos tribunais, que o condenaram à morte; de el-rei, que não conheceu o seu génio e que ainda hoje o não conhece.

       - O génio do homem político, Sr. Gilberto – disse o rei com vivacidade - é a honestidade.

       - A resposta é bela, senhor, digna de Tito, de Trajano ou de Marco Aurélio; mas, desgraçadamente, a experiência reprova-a.

       - Como assim?

       - Seria porventura Augusto um homem honesto, que compartilhava o mundo com Lépido e com António, exilando o primeiro e matando o segundo, para ficar de posse do mesmo mundo? Seria Carlos Magno um homem honesto, mandando enclausurar seu irmão Carloman, e para acabar com o seu amigo Witikind, quase tão grande homem como ele, fazendo cortar todas as cabeças da sua raça que ultrapassassem a altura da sua espada? Seria Luís XI um homem honesto, revoltando-se contra o pai para o destronar, o que, apesar de não o conseguir, inspirou ao pobre Carlos VII um terror tal que, receando ser envenenado, se deixou morrer de fome? E contudo, nem uns nem outros, Deus louvado, causaram o menor dano à realeza! Seria Richelieu um homem honesto, cortejando a mulher do seu rei, entregando ao assassino ou ao carrasco os que julgava mais felizes do que ele? Seria Mazarino um homem honesto, assinando um pacto com o Protector, e não só recusando meio milhão e quinhentos homens a Carlos II, mas expulsando-o ainda de França? Seria Colbert um homem honesto, traindo, acusando e derrubando Fouquet, o seu protector, e enquanto lançavam este vivo numa masmorra, donde só deveria sair cadáver, assentando-se, impúdico e ufano, na mesma cadeira ainda quente? E, contudo, nem uns nem outros causaram dano aos reis!

       - Porém, Sr. Gilberto, bem sabe que Mirabeau não pode ser meu, visto que pertence ao duque de Orleans.

       - Ai, senhor, uma vez que o Sr. duque de Orleans se acha exilado, com certeza não pode Mirabeau pertencer a ninguém.

       - Como quer que me fie dum homem que se vende?

       - Comprando-o! Não pode Vossa Majestade dar-lhe mais do que outro qualquer?

       - Um insaciável, que pedirá um milhão.

       - Se Mirabeau se vender por um milhão é o mesmo que dar-se. Julga que ele valha menos dois milhões do que um Polignac ou uma Polignac?

       - Sr. Gilberto!

       - Se el-rei me retira a palavra, calar-me-ei – disse Gilberto inclinando-se.

       - Não, pelo contrário, fale!

       - Já falei, senhor.

       - Discutamos, então.

       - De bom grado, senhor; sei de cor todo o meu Mirabeau.

       - É amigo dele?

       - Desgraçadamente não tenho essa honra. Além disso, Mirabeau só tem um amigo, que é também um afeiçoado da rainha.

       - Sim, o conde de La Marck, bem o sei, lançamos-lho em rosto todos os dias.

       - Vossa Majestade, pelo contrário, devia proibir-lhe, sob pena de morte, que se malquistasse com ele.

       - E qual é a importância que quer dar a um fidalgote como Riquetti de Mirabeau?

       - Primeiro que tudo, senhor, permita Vossa Majestade que lhe diga que o Sr. de Mirabeau é um fidalgo e não um fidalgote; há poucos fidalgos em França que datem do século XI, por isso que, para terem alguns ao seu lado, tiveram os nossos reis a indulgência de não exigir daqueles, a quem concedem a honra de entrar nas suas carruagens, mais do que as privanças de 1399. Não, senhor, não se é fidalgote quando se descende dos Arrighelli de Florença, quando se aparece em seguida a uma derrota do partido gibelino. Não se é fidalgote por descender de um avô negociante em Marselha, por isso que bem sabe Vossa Majestade que a nobreza de Marselha, como a de Veneza, têm o privilégio de se não amesquinhar exercendo a vida mercantil.

       - Um devasso - interrompeu o rei - um carrasco de reputações, um sorvedouro de dinheiro.

       - Ah! É necessário tomar os homens como a natureza os fez. Os Mirabeau foram sempre tempestuosos e desordenados na sua mocidade, mas amadurecem envelhecendo; em rapazes, são desgraçadamente como Vossa Majestade diz; quando chefes de família, são imperiosos, altivos, mas austeros; o rei que os desconhecesse seria ingrato, por isso que eles forneceram ao exército mui intrépidos soldados, à armada mui audaciosos marinheiros. Bem sei que o seu espírito provinciano é odioso a toda e qualquer centralização; bem sei que na sua situação meio feudal e meio republicana arrostam do alto do seu castelo com a autoridade dos ministros, e algumas vezes a dos próprios reis; bem sei que lançaram mais de uma vez no rio Durance os argos do fisco, que queriam exercer o ofício nas suas terras; bem sei que confundiam no mesmo desdém, que cobriam com desprezo igual os cortesãos e os empregados, os arrematantes gerais e os letrados, apreciando unicamente duas coisas, o ferro da espada e o ferro da charrua; bem sei que um deles escreveu: “O serviço de criados é destinado aos cortesãos com cara e coração de gesso, como é destinado aos patos o patinhar na água”; mas nada disso, senhor, cheira de modo nenhum a fidalgote; pelo contrário, nada disso se deve reputar da mais sólida moral, é certo, mas pode reputar-se com segurança da mais elevada fidalguia.

       - Vamos, vamos, Sr. Gilberto - disse com algum despeito o rei, que julgava conhecer melhor do que ninguém os homens consideráveis do seu reino; vamos, como o senhor disse, sabe de cor os seus, Mirabeau; para mim, que não os tenho lido, pode continuar: antes de nos servirmos dos homens cumpre entendê-los.

       - Sim, senhor - replicou Gilberto picado pela espécie de ironia que descobria na expressão com que el-rei lhe falava - direi a Vossa Majestade: foi um Mirabeau, um Bruno de Riquetti que, no dia em que o Sr. de La Feuillade inaugurava na praça da Vitória a estátua da mesma Vitória com as suas quatro nações agrilhoadas, ao passar com o seu regimento dos guardas por cima do Pont-Neuf, parou e fez parar o regimento diante da estátua de Henrique IV, e tirando o chapéu disse:

       “- Meus amigos, saudemos este, que vale mais do que outro qualquer”.

       - Era Mirabeau aquele Francisco de Riquetti que, na idade de dezessete anos, voltando de Malta, e encontrando sua mãe Ana de Pontèves de luto, quando seu pai tinha morrido havia dez anos, lhe perguntou:

       “-Por que motivo está de luto?”

       “- Porque fui insultada.”

       “-Por quem?”

       “- Pelo cavaleiro de Griasque.”

       “-E não se vingou? - perguntou Francisco, que conhecia bem o génio da mãe.”

       “- Tive grande desejo de o fazer - respondeu ela - um dia encontrei-o só, apontei-lhe uma pistola às fontes e disse-lhe: se eu fosse só, esmigalhar-te-ia agora os miolos, o que, como vês, te poderia fazer, se quisesse, mas tenho um filho valoroso, que decerto me há-de vingar mais honrosamente.”

       “-Fez bem, minha mãe - respondeu o mancebo”.

       E sem mudar de rosto, lança mão do chapéu, torna a cingir a espada, vai procurar o Sr. de Griasque, Um famoso espadachim, um consumado esgrimista, provoca-o, entra num jardim, bate-se, e deixa-o morto aos seus pés. Mirabeau era o marquês João António, que tinha seis pés de altura, a beleza de Antinous, a força de Milo, e a quem todavia a avó dizia na sua gíria provençal: “Não sois homens, sois o diminutivo de homens” e que educado por aquela Virago, possuía, como depois disse o neto, a mola e o apetite do impossível. Mosqueteiro aos dezoito anos, sempre no fogo, procurando apaixonadamente os perigos como outros procuram os prazeres, comandava uma legião de homens terríveis, encarniçados, indomáveis como ele, de tal modo que os outros soldados, quando os viam passar, diziam:

       “-Não vês aquelas coisas encarnadas? São os Mirabeaux, isto é, uma legião de diabos comandada por Satanás”.

       - E enganavam-se com o comandante chamando-lhe Satanás, porque era um homem religiosíssimo, tão religioso que um dia, incendiando-se-lhe uma das matas, em vez de dar ordem para apagarem o fogo pelos meios ordinários, ordenou que trouxessem o Santíssimo, que desde logo fez cessar o incêndio. Verdade é que essa piedade era a de um verdadeiro barão feudal, e que o capitão achava às vezes meio de tirar o devoto de um grande embaraço, como lhe aconteceu um dia, em que uns desertores, que queria mandar fuzilar, se tinham refugiado dentro da igreja de um convento italiano: ordenou à sua gente que arrombasse as portas; iam obedecer quando as portas se abriram por si, e o abade se apresentou no limiar in pontificalibus, trazendo o Santíssimo Sacramento.

       - E depois então? - exclamou Luís XVI, evidentemente cativado com aquela narração cheia de entusiasmo.

       - Ficou um momento pensativo, por isso que a posição era bastante embaraçosa, depois, como iluminado por uma idéia sublime disse ao seu porta-bandeira:

       “- Delfim, chame já o capelão do regimento para ir arrancar o Santíssimo das mãos daquele marau”.

       - O que fielmente foi cumprido, senhor, pelo capelão do regimento, auxiliado pelos mosqueteiros, por aqueles diabos vestidos de encarnado.

       - Sim, bem me recordo desse marquês António - disse Luís XVI. - Não foi ele que disse ao tenente Chamillard, depois de uma acção em que este pouco se distinguira:

       “- Senhor, muito feliz é seu irmão em o ter; se não fosse o senhor, seria ele o homem mais estúpido do reino”.

       - Não há dúvida, senhor, e foi por isso que numa promoção que se fez de marechais, não teve o ministro Chamillard a coragem de incluir o nome do marquês seu irmão.

       - E como acabou esse herói, que me parece ser o Conde da raça dos Riquetti? - perguntou o rei.

       - Senhor, quem vive bem, morre do mesmo modo - respondeu gravemente Gilberto. - Encarregado na batalha de Cassano de defender uma ponte atacada pelos imperiais, segundo o seu costume, mandara deitar os seus soldados, e ele, gigante, ficara de pé, oferecendo-se como alvo ao fogo do inimigo, resultando daí principiarem a chover balas em volta dele, sem que por isso deixasse de assemelhar-se a um marco de pedra, desses que servem para indicar o caminho aos viandantes. Uma bala quebrou-lhe o braço direito; mas, para ele, isso nada era. Pegou num lenço, pôs o braço ao peito e travou de um machado com a mão esquerda, repelindo com esta arma, que lhe era familiar, os golpes de sabre e de espada que lhe dirigiam; mas apenas fizera esta manobra, outro tiro atravessou-lhe a garganta e cortou-lhe uma jugular e os nervos do pescoço. Dessa vez foi o negócio mais sério; todavia, apesar de tão horrível ferimento, ainda o colosso se conservou de pé um instante, mas sufocado pelo sangue teve de baquear como uma árvore decepada pelas raízes. À vista desse desastre, o regimento desanima e foge; com o seu chefe acabava de perder a alma! Um velho sargento, que o julga ainda com alentos de vida, arremessa-lhe contra o rosto uma marmita quando passou junto dele, e em seguida ao seu regimento, todo o exército do príncipe Eugénio, cavalaria e infantaria, lhe passou por cima do corpo. Concluída a batalha, trataram de enterrar os cadáveres e o magnífico uniforme do marquês atrai então a atenção dos soldados e ele é reconhecido por um dos prisioneiros. O príncipe Eugénio, vendo que ele resfolga, ou antes que ainda se lhe ouvia o estertor, ordena que o conduzam ao campo do duque Vendôme. Essa ordem é executada, e depositam o corpo do marquês na barraca do príncipe, onde se encontra por acaso o famoso cirurgião Dumoulin. Era um homem cheio de fantasia; mete-se-lhe na cabeça ressuscitar aquele cadáver; tenta-o a cura tanto mais quanto parece ser impossível. Além daquele ferimento, que, se não fosse a espinha dorsal e alguns pedaços de carne, lhe separaria quase a cabeça do tronco, todo o corpo, por cima do qual tinham passado três mil cavalos e seis mil infantes, não era mais do que uma chaga. Durante três dias todos duvidam que torne a si; mas ao quarto viu-se-lhe abrir os olhos; dali a dois dias viu-se-lhe mexer um braço, e finalmente corresponde ao encarniçamento de Dumoulin com um encarniçamento igual, e passados três meses, vê-se de novo o marquês João António com um braço quebrado, com vinte e sete feridas espalhadas por todo o corpo, mais cinco do que César, e com a cabeça sustida por um pescoço de prata! A sua primeira visita foi a Versalhes, aonde o conduziu o duque de Vendôme. O rei perguntou-lhe como era possível que tendo dado provas de tanta coragem não fosse ainda nomeado marechal de campo.

       “- Senhor - respondeu o marquês António – se em lugar de ficar a defender a ponte de Cassano, viesse purgar a corte de alguns sevandijas que a infectam, teria sido recompensado com menos do que recebi”.

       - Não era assim que Luís XV gostava que lhe respondessem, por isso voltou as costas ao bravo marquês.

       “- João António, meu amigo - lhe disse o Sr. de Vendôme quando saiu - daqui em diante em lugar de te apresentar ao rei, apresentar-te-ei ao inimigo”.

       - Alguns meses depois, o marquês, com vinte e sete feridas, com o braço quebrado, e com o colar de prata, desposou a menina de Castellane-Norante, da qual teve filhos, no intervalo de mais sete campanhas. Raras vezes, como verdadeiro valente, falava da famosa batalha de Cassano, e quando falava dela tinha por costume dizer: Foi a batalha em que eu morri!

       - Explica maravilhosamente - replicou Luís XVI, que visivelmente se comprazia ouvindo falar daquela maneira dos antepassados de Mirabeau; - explica maravilhosamente, meu caro doutor, o modo como mataram o marquês João António, mas ainda não disse como ele morreu.

       - Morreu no castelo de Mirabeau, rude, e agreste retiro, situado sobre um rochedo escarpado, que sem cessar é açoitado pelo vento do Norte; e morreu coberto dessa cortiça imperiosa que se cria sobre a pele dos Riquetti à medida que envelhecem, educando os filhos na submissão e no respeito, e conservando-os a uma tal distância que o mais velho deles dizia: “Nunca tive a honra de tocar nem com a mão nem com os lábios na carne daquele homem venerando”.

       O filho mais velho foi o pai do actual Mirabeau, pássaro bravio, cujo ninho foi construído entre os seus quatro torreões; que nunca quis enversalhar-se, como ele diz, o que faz decerto com que Vossa Majestade não só o não conheça, como nem lhe faça a justiça que merece.

       - Engana-se, senhor - disse o rei - engana-se! Pelo contrário, conheço-o bem: é um dos chefes da escola economista; tomou parte na revolução que se efectuou, dando a indicação das reformas sociais e popularizando muitos erros e algumas verdades, o que é tanto mais culpável da sua parte, porquanto previa já a situação, quando disse: “Hoje não existe ventre algum de mulher, que não albergue dentro de si um Arteveld ou um Mazaniello”. Não se enganava; o ventre da sua trouxe ainda muito pior do que tudo isso.

       - Senhor, se existe em Mirabeau alguma coisa que repugne a Vossa Majestade, ou que o assuste, permita-me que lhe diga que é o despotismo pessoal e o despotismo real que assim operam em seu ânimo.

       - O despotismo real! - exclamou o rei.

       - Sem dúvida, senhor, porquanto, se não fosse o rei, o pai nada poderia. E na verdade, qual foi o crime tão grave cometido pelo descendente dessa grande raça, para que o pai o enviasse aos catorze anos para uma escola de correcção, onde foi inscrito, para o humilhar, não debaixo do seu nome de Riquetti de Mirabeau, mas debaixo do nome de Ruffières? O que tinha feito para que aos dezoito anos o pai obtivesse uma ordem de prisão contra ele para o encerrar na ilha de Rhé? O que tinha feito para que aos vinte anos o mandasse, com um batalhão disciplinar, fazer a campanha da Córsega, com a seguinte predição:

       “Embarcará no dia 16 do próximo Abril, navegando sobre um mar que se sulca por si mesmo. Praza a Deus que ele aí não chegue a remar!”

       - O quê tinha feito, para que, no fim de um ano de casado, o pai o mandasse exilado para Maiorca? O que tinha feito para que, decorridos seis meses em Maiorca, o fizesse transferir para o forte de Loux? O que tinha feito, finalmente, para depois de fugir da sua prisão, ser preso em Amsterdão e encerrado no castelo de Vincennes, onde, a ele que sufoca no mundo, a clemência paternal, reunida à clemência real, lhe deram um cárcere de dez pés quadrados, onde se agitava a sua mocidade, rugia a sua paixão, mas onde, ao mesmo tempo, se lhe engrandecia o espírito e fortificava o coração? O que fizera para merecer tudo isto, vou dizê-lo a Vossa Majestade: Seduziu o seu professor Poisson, pela facilidade com que aprendia e compreendia quanto lhe ensinava; recusou-se à ciência económica; tendo encetado a carreira militar, desejava continuá-la; reduzido a seis mil libras de renda para se sustentar a si, à mulher e ao filho, viu-se obrigado a contrair uns trinta mil francos de dívidas; rasgou a sua carta de nobreza para espancar um fidalgo insolente, que lhe insultara a irmã; cometeu o rapto de uma senhora nova a um marido velho, caduco, rabugento e zeloso, sendo esse o crime mais grave que se lhe pode imputar.

       - Sim, senhor, e pouco depois abandonou-a – disse o rei -; de sorte que a infeliz senhora de Monnier, vendo-se só com o seu crime, suicidou-se.

       Gilberto, por toda a resposta levantou os olhos para o Céu e soltou um suspiro.

       - Vejamos, que responde a isto, senhor? De que modo desculpará o seu Mirabeau?

       - Com a verdade, senhor, com a verdade, que tão dificilmente penetra no coração dos reis, e que Vossa Majestade, que a procura, solicita e chama, quase sempre ignora. Não, a Srª. de Monnier não morreu por causa do abandono de Mirabeau, porque, tendo saído de Vincennes, a primeira visita de Mirabeau foi a ela; entrou, disfarçado de bufarinheiro no convento de Gien, onde ela foi pedir um asilo; encontrou Sofia indiferente, constrangida; seguiu-se uma explicação; Mirabeau acaba por conhecer que a Srª. de Monnier não só o não ama já, mas ama outro, o cavaleiro de Raucourt, com quem vai casar. Mirabeau saíra cedo de mais da prisão. Contavam com o seu cativeiro; terão de contentar-se com a sua honra. Mirabeau cede o lugar ao seu rival e retira-se. A Srª. de Monnier está para casar com o Sr. de Raucourt, mas este morre subitamente. A pobre criatura dera todo o seu coração, toda a sua vida àquele último amor. Decorreu um mês; no dia 9 de Setembro, encerra-se no seu quarto e asfixia-se! Os inimigos de Mirabeau gritaram logo que ela morria abandonada pelo seu primeiro amante, quando aliás morria pelo segundo. Oh! Aí está, real senhor, como se costuma escrever a história!

       - Ah! Foi então por isso que ele recebeu essa notícia com a máxima indiferença.

       - Como a recebeu, ainda o poderei dizer a Vossa Majestade, porque conheço quem lha foi anunciar: é um dos membros da Assembléia ; queira Vossa Majestade interrogá-lo a ele próprio, que não ousará mentir, porque é um padre, é o cura de Gien, o abade Vallet, que se assenta nos bancos opostos àqueles onde se assenta Mirabeau; atravessou a sala, e com grande admiração da junta, foi assentar-se ao lado dele.

       - Que diabo vem aqui fazer? - perguntou Mirabeau.

       Sem lhe responder o abade Vallet entregou-lhe a carta, que anunciava, nas suas menores circunstâncias, a fatal notícia.

       Abriu-a e esteve muito tempo a lê-la; talvez não pudesse acreditar no que lia. Tornou a ler, pela segunda vez, e durante essa segunda leitura o rosto empalidecia-lhe, as feições decompunham-se-lhe; de espaço a espaço corria as mãos pela fronte, limpava ao mesmo tempo os olhos, tossindo, escarrando, esforçando-se por se tornar senhor de si; viu-se enfim obrigado a ceder; levantou-se saiu precipitadamente; e não compareceu três dias na Assembléia. Oh! Senhor! Senhor! Perdoe-me o entrar em todas estas minúcias, mas basta ser um homem de génio ordinário para ser em tudo caluniado, quanto mais sendo esse homem um gigante!

       - E por que motivo há-de ser isso assim, doutor, que interesse podem achar em caluniar o Sr. de Mirabeau?

       - Que interesse podem achar, senhor? O interesse que tem toda a mediocridade em se conservar junto do trono. Mirabeau não é um homem que possa entrar no templo sem expulsar os vendilhões; Mirabeau ao lado de Vossa Majestade é a morte das pequenas intrigas, é o exílio dos pequenos intrigantes; Mirabeau ao lado de Vossa Majestade é o génio traçando o caminho à probidade. E que importa a Vossa Majestade que Mirabeau vivesse mal com a mulher; que importa a Vossa Majestade que Mirabeau raptasse a Srª. de Monnier; que importa a Vossa Majestade que Mirabeau deva meio milhão de francos; pague esse meio milhão que ele deve, senhor, junte a esse quinhentos mil francos um milhão, dois milhões, dez milhões, se tanto for necessário. Senhor, Mirabeau está livre, não o deixe escapar, aproveite-o, nomeie-o seu conselheiro, seu ministro, escute o que a sua voz potente lhe disser e transmita-a depois ao seu povo, à Europa, a todo o mundo.

       - O Sr. de Mirabeau, que se fez mercador de panos em Aix, para ser nomeado pelo povo, não pode mentir aos seus constituintes, abandonando o partido do povo para adoptar o da coroa.

       - Senhor, senhor! Repito a Vossa Majestade que não conhece Mirabeau. Mirabeau é um aristocrata, um nobre, um realista sobretudo: fez-se eleger pelo povo, porque a nobreza o desdenhava, porque havia nos Mirabeau a sublime necessidade de chegarem ao que todos os homens de génio desejam chegar, por qualquer meio que se lhes ofereça; ele não seria nomeado nem pela nobreza, nem pelo povo, se não entrasse no parlamento como entrou Luís XV, de botas e esporas, argüindo o direito divino; não deixará o partido do povo pelo partido da corte, diz Vossa Majestade? Ai, senhor, por que motivo se designa um partido do povo e outro da corte; por que não formam estes partidos um só partido? Pois é o que Mirabeau há-de fazer; sim, aproveite Vossa Majestade Mirabeau; senão, amanhã, repelido por Vossa Majestade, voltar-se-á talvez contra; então, senhor, então, sou eu que o digo, e é esse retrato de Carlos I que lho dirá depois de mim, como já lho disse antes, então tudo será perdido!...

       - Mirabeau voltar-se-á contra mim, diz o senhor? Não o fez ele já?

       - Fez, na aparência, talvez, mas no coração Mirabeau ainda pertence a Vossa Majestade; pergunte ao conde de La Marck o que ele lhe disse depois da famosa sessão de 21 de Junho, por isso que só Mirabeau sabe ler no futuro com espantosa sagacidade.

       - O que disse ele?

       - Estorcendo os dedos de dor, exclamou: “É assim que conduzem os reis ao cadafalso”. E, três dias depois, disse mais: “Esta gente não vê o abismo que cava debaixo dos pés da monarquia; o rei e a rainha aí perecerão, e o povo dará palmas à vista dos seus cadáveres!...”

       O rei estremeceu, tornou-se lívido, olhou para o retrato de Carlos I, pareceu prestes a decidir-se; mas de súbito, disse:

       - Hei-de falar disso à rainha; talvez que ela se decida a falar a Mirabeau, mas eu decerto lhe não falarei; gosto de apertar a mão daqueles a quem falo, Sr. Gilberto, como aperto neste momento a sua, mas não quisera em troca do meu trono, da minha liberdade, da minha vida, apertar a mão do Sr. de Mirabeau.

       Gilberto ia talvez replicar, ia talvez insistir; mas nesse momento entrou um oficial de serviço.

       - Senhor - disse este - a pessoa que Vossa Majestade pretende ver, acha-se nas antecâmaras.

       Luís XVI fez um movimento de inquietação olhando para Gilberto.

       - Senhor - disse este - se não devo ver a pessoa que espera Vossa Majestade, sairei por outra porta.

       - Não, senhor - respondeu Luís XVI - saia por esta; sabe que o tenho por meu amigo e que não tenho segredos para o senhor, além de que a pessoa que me espera é um pobre fidalgo, que noutro tempo servia na casa de meu irmão e que vem por ele recomendado; é um servo fiel e vou ver se poderei fazer alguma coisa, quando não seja em favor dele, ao menos em favor da mulher e dos filhos. Vá, Sr. Gilberto, bem sabe que sempre será por mim bem recebido, mesmo quando vier para falar de novo do Sr. de Riquetti de Mirabeau.

       - Senhor - perguntou Gilberto - deverei considerar-me completamente derrotado?

       - Já lhe disse que falarei à rainha e que reflectirei acerca do que me disse; e veremos.

       - Até então, senhor, pedirei a Deus que ilumine Vossa Majestade e o faça decidir a tempo.

       - Oh! Oh! Julga porventura o perigo iminente?

       - Não consinta que retirem nunca do seu quarto o retrato de Carlos Stuart; é um excelente conselheiro que Vossa Majestade aqui tem.

       E inclinando-se respeitoso, saiu no mesmo momento em que a pessoa que Luís XVI esperava se apresentou à porta para entrar.

       Gilberto não pôde conter um grito de surpresa; o fidalgo que ia ter a audiência de Sua Majestade era o mesmo marquês de Favras, que oito ou dez dias antes encontrara em casa do conde de Cagliostro, e cuja morte, próxima e fatal, este lhe anunciara.

 

Favras

       Enquanto Gilberto se retirava, lutando com um terror desconhecido, que lhe inspirava, não o lado verdadeiro, mas o lado invisível e misterioso dos acontecimentos, era o marquês de Favras, como já dissemos no capítulo antecedente, introduzido no quarto de Luís XVI.

       Do mesmo modo que Gilberto, parara no limiar da porta, mas o rei fez-lhe sinal para que se aproximasse.

       Favras entrou e inclinou-se, esperando respeitoso que o rei lhe dirigisse a palavra.

       Luís XVI fitou sobre ele o olhar investigador que parece fazer parte da educação dos reis, e que é mais ou menos superficial, mais ou menos profundo segundo o génio daquele que o emprega e o aplica.

       Tomás Mahi, marquês de Favras, era um fidalgo de elevada estatura, duns quarenta e cinco anos de idade, de presença elegante e ao mesmo tempo firme, com uma fisionomia franca e sincera.

       O exame foi-lhe portanto favorável, e uma espécie de sorriso se divisou nos lábios do rei, entreabrindo-se já para o interrogar.

       - É o marquês de Favras? - perguntou o rei.

       - Sim, meu senhor - respondeu o marquês.

       - Desejou ser-me apresentado?

       - Manifestei a Sua Alteza real o Sr. conde de Provença o meu vivo desejo de depositar as minhas homenagens aos pés de Vossa Majestade.

       - Meu irmão tem grande confiança no marquês.

       - Assim o creio, meu senhor, e confesso que a minha mais ardente ambição é que essa confiança seja compartilhada pelo meu rei.

       - Meu irmão conhece-o há muito tempo, Sr. de Favras.

       -E Vossa Majestade não me conhece... bem entendo, senhor - interrompeu o marquês - mas se Vossa Majestade se dignar interrogar-me, em menos de dez minutos me conhecerá tão bem como seu augusto irmão.

       - Queira falar, marquês - disse Luís XVI lançando um olhar de revés para o retrato de Carlos Stuart, que não podia nem sair-lhe de todo da idéia, nem separar-se-lhe inteiramente da luz dos olhos – queira falar, que o escuto.

       - Vossa Majestade quer saber?

       - Quem é, e o que tem feito.

       - Quem sou? O anúncio do meu nome deve ser o bastante para Vossa Majestade o saber; sou o marquês de Favras; nasci em Blois, no ano de 1745; alistei-me nos mosqueteiros aos quinze anos, e fiz neste corpo a campanha de 1761. Em seguida fui capitão e ajudante-mor do regimento de Belzunce; depois tenente dos suíços da guarda do senhor conde de Provença.

       - E foi nessa qualidade que conheceu meu irmão? - perguntou o rei.

       - Já tinha tido a honra de lhe ser apresentado um ano antes; de sorte que Sua Alteza já me conhecia.

       - E deixou o serviço?

       - Em 1775, para ir a Viena, onde fiz reconhecer minha mulher como filha única e legítima do príncipe d’Anhalt Schauenbourg.

       - A marquesa nunca foi apresentada?

       - Não, meu senhor, mas neste momento tem ela a honra de estar nos quartos de Sua Majestade a rainha com meu filho.

       O rei fez um movimento de inquietação, que parecia dizer: “Ah! A rainha está no seu quarto?”

       E depois de um momento de silêncio, que empregou a passear pelo quarto e a lançar furtivamente um novo olhar para o retrato de Carlos I, perguntou:

       - E depois?

       - Depois, há três anos, por ocasião da revolta contra o stathouder, comandei uma legião, e contribuí para o restabelecimento da autoridade, depois, volvendo os olhos para a França, e vendo o mau espírito que principiava a desorganizar tudo, voltei a Paris para pôr a minha espada e a minha vida à disposição de el-rei.

       - E então, marquês, viu com efeito mui tristes acontecimentos, não é assim?

       - Senhor, presenciei os dias 5 e 6 de Outubro.

       O rei pareceu querer mudar de conversação.

       - E diz então - continuou ele - que meu irmão o conde de Provença, deposita no marquês tanta confiança, que o encarregou de um empréstimo considerável?

       A esta pergunta inesperada, quem pudesse presenciar esta cena, veria tremer de uma agitação nervosa as cortinas que fechavam a alcova do rei, como se alguém estivesse oculto por detrás dessas cortinas, e estremecer o marquês de Favras, como costuma estremecer um homem preparado para uma pergunta e a quem se dirige outra, que não esperava.

       - Efectivamente, meu senhor, se é uma prova de confiança o entregar a um fidalgo interesses ou negócios de dinheiro, essa prova de confiança, fez-me Sua Alteza a honra de ma dar.

       O rei esperou a continuação, olhando para Favras, como se a direcção que acabava de dar àquela investigação oferecesse à sua curiosidade muito maior interesse do que até ali lhe oferecera.

       O marquês continuou, mas visivelmente contrariado.

       - Sua Alteza real, achando-se privado dos seus rendimentos em conseqüência das diferentes operações da Assembléia, e julgando que era chegado o momento, em que, mesmo para sua própria segurança, era conveniente que os príncipes tivessem à sua disposição uma forte soma, Sua Alteza real, repito, confiou-me alguns contratos...

       - Sobre os quais achou quem lhe emprestasse dinheiro?

       - É verdade, meu senhor.

       - Uma soma considerável como diz?

       - Dois milhões.

       - Em casa de quem?

       Favras hesitou quase em responder ao rei, tanto lhe parecia ter-se desviado a conversação do seu trilho, passando dos grandes interesses gerais ao conhecimento dos interesses particulares, descendo enfim da política para a polícia.

       - Pergunto-lhe em casa de quem efectuou o empréstimo? - repetiu o rei.

       - Meu senhor, dirigi-me primeiro aos banqueiros Schaumel e Sartorius; mas não podendo efectuar a negociação, socorri-me de um banqueiro estrangeiro, que tendo conhecimento do desejo de Sua Alteza real, se antecipou a fazer-me os seus oferecimentos, tal é o amor que consagra aos nossos príncipes e o respeito ao nosso rei.

       - Ah! E esse banqueiro chama-se?...

       - Meu senhor... - disse Favras hesitando.

       - Bem sabe, marquês - insistiu o rei - que um tal homem deve ser conhecido, e que desejo saber-lhe o nome, ainda que não fosse mais que para lhe agradecer a dedicação, se porventura se oferecer oportunidade para o fazer.

       - Meu senhor - disse Favras - chama-se o barão Zannone.

       - Ah! - disse Luís XVI - é um italiano?

       - É genovês, meu senhor.

       - E mora?

       - Em Sèvres, mesmo defronte do lugar - acrescentou Favras, que esperava por este meio influir no ânimo do rei - mesmo defronte do lugar onde a carruagem de Vossa Majestade foi mandada parar no dia 6 de Outubro, no regresso de Versalhes, quando aqueles assassinos, guiados por Marat, Verrières e pelo duque de Aiguillon, faziam frisar pelo cabeleireiro de Sua Majestade a rainha na taberna da ponte de Sèvres, as duas cabeças cortadas de Varicourt e de Deshuttes.

       O rei enfiou, e se naquele momento voltasse os olhos para a alcova, teria visto agitarem-se as cortinas ainda mais nervosamente do que já o tinham sido. Era pois evidente que aquela conversa lhe pesava, e que muito se arrependia de a ter encetado.

       Foi por isso que se resolveu a pôr-lhe ponto quanto antes.

       - Está bem - disse - vejo que é um servidor fiel da realeza e prometo que me não hei-de esquecer do marquês em ocasião oportuna.

       E fez com a cabeça esse gesto, que nos príncipes significa: “Há já bastante tempo que lhe faço a honra de o escutar e de lhe responder; pode retirar-se”.

       Favras entendeu perfeitamente.

       - Perdão, meu senhor, mas julgava que Vossa Majestade ainda queria perguntar-me mais alguma coisa...

       - Não - disse o rei meneando a cabeça, como se efectivamente procurasse no espírito alguma nova pergunta para fazer-lhe; - não, marquês, nada mais tenho que perguntar-lhe.

       - Engana-se, senhor - disse uma voz, que fez voltar o rei e o marquês para o lado da alcova – desejava saber que meio empregou o avô do Sr. marquês de Favras para salvar o rei Estanislau de Dantzig, conduzindo-o são e salvo até à fronteira prussiana.

       Ambos soltaram um grito de surpresa. Aquela terceira pessoa, que aparecia como por encanto tomando parte na conversação, era a rainha.

       A rainha pálida e com os lábios a tremer-lhe; a rainha, que se não contentava com os poucos esclarecimentos que dera Favras, e que, receando que o rei, entregue a si, não ousasse levar mais longe as suas interrogações, viera pela escada e corredor secretos, a fim de continuar a conferência no momento em que o rei tivesse a fraqueza de a querer terminar.

       Além de que, aquela intervenção da rainha e aquela maneira de reavivar a conversação ligando-a à fugida do rei Estanislau, facilitava ao rei o ouvir tudo através do transparente véu da alegoria, até os oferecimentos que Favras vinha fazer-lhe acerca da própria fuga de Luís XVI.

       Favras da sua parte, percebeu logo o meio que se lhe oferecia de patentear o seu plano, e conquanto nenhum dos seus antepassados nem parente seu tivesse concorrido para a fuga do rei da Polónia, apressou-se a responder inclinando-se:

       - Vossa Majestade quer falar talvez de meu primo o general Steinficht, que deve a ilustração do seu nome a esse grande serviço prestado ao rei; serviço que teve sobre Estanislau a feliz influência de o arrancar, em primeiro lugar das mãos dos seus inimigos, e em seguida, por meio de uma concorrência providencial de circunstâncias, de fazer dele o avô de Vossa Majestade.

       - É isso mesmo, senhor, é isso mesmo! - disse vivamente a rainha, ao passo que Luís XVI olhava, suspirando, para o retrato de Carlos Stuart.

       - Pois bem! - disse Favras - Vossa Majestade sabe... Perdão, meu senhor!... Vossas Majestades sabem que o rei Estanislau, livre em Dantzig, mas cercado por todos os lados pelo exército moscovita, estava quase como perdido, se se não decidisse a uma pronta fuga...

       - Oh! Inteiramente perdido! - interrompeu a rainha - pode dizer-se que perdido de todo, Sr. de Favras.

       - Senhora - disse Luís XVI com certa severidade - a Providência que vela sobre os reis, faz com que nunca se considerem inteiramente perdidos.

       - Ai, senhor - disse a rainha - prezo-me de ser tão religiosa e tão crente na Providência como Vossa Majestade, e contudo é minha opinião que convém ajudá-la.

       - Era também a opinião do rei da Polónia, meu senhor - acrescentou Favras - porquanto declarou positivamente aos seus amigos, que não considerando segura nem a sua posição, nem a sua vida, desejava que lhe submetessem alguns projectos de fuga.

       “Apesar das dificuldades, foram-lhe apresentados três projectos... Digo apesar das dificuldades, senhor, porque Vossa Majestade observará que era muito mais difícil ao rei Estanislau sair de Dantzig, do que a Vossa Majestade, se, por exemplo, a fantasia lhe inspirasse a idéia de sair de Paris. Com uma sege de posta (se Vossa Majestade quisesse partir sem estrondo e sem escândalo), com uma sege de posta, poderia Vossa Majestade, num dia e numa noite, ganhar a fronteira, ou então, querendo sair de Paris como rei, dar ordem a um fidalgo que merecesse a confiança de Vossa Majestade para reunir trinta mil homens e vi-lo buscar ao palácio das Tulherias... Em qualquer destes casos, o resultado seria infalível, a empresa teria o melhor êxito.

       - Senhor - replicou a rainha - o que o marquês acaba de dizer é exactamente a verdade; Vossa Majestade bem o sabe.

       - Sim - disse o rei - mas a minha situação, senhor, está muito longe de ser tão desesperada como era a do rei Estanislau. Dantzig estava cercada pelos moscovitas, como disse o marquês; o forte de Wechselmund, o seu último baluarte, acabava de capitular, ao passo que eu...

       - Ao passo que o senhor - interrompeu a rainha com impaciência - está ainda no meio dos parisienses, que tomaram a Bastilha em 14 de Julho; que na noite de 5 para 6 de Outubro quiseram assassiná-lo, e que no dia 6 o conduziram à força a Paris, insultando-o, ao senhor e à sua família, enquanto durou o trânsito... Ah! O que é certo é que a situação é bela, e que é muito preferível à do rei Estanislau!

       - Todavia, senhora...

       - O rei Estanislau só corria o risco da prisão, talvez da morte, ao passo que nós...

       Um relancear de olhos do rei deteve-a.

       - E demais - continuou a rainha - Vossa Majestade é que manda; decida, portanto.

       E foi assentar-se um tanto impaciente defronte do retrato de Carlos I.

       - Sr. de Favras - prosseguiu ela - acabo de falar com a marquesa e com seu filho; achei-os com muita coragem e resolução, como convém à mulher e ao filho de um valente fidalgo; qualquer coisa que possa acontecer, podem contar com a protecção da rainha de França; não os há-de abandonar, não: é filha de Maria Teresa: sabe apreciar e recompensar o mérito e a coragem.

       O rei, como estimulado por estas palavras da rainha, replicou:

       - Diz então, que três meios de evasão foram propostos ao rei Estanislau?

       - Sim, meu senhor.

       - E esses meios consistiam?...

       - O primeiro, meu senhor, era vestir-se de camponês. A condessa de Chapska, paladina de Pomerânia, que falava o alemão como língua materna, oferecia-lhe (confiada num homem que experimentara, e que conhecia perfeitamente o país) disfarçar-se em camponês, e fazê-lo passar por seu amigo. Era este o meio de que há pouco falei ao rei de França, dizendo-lhe a facilidade que nele acharia, uma vez que quisesse fugir incógnito e de noite...

       - E o segundo? - perguntou Luís XVI, como se visse com certa impaciência fazer à sua própria situação uma aplicação qualquer daquela em que se achara Estanislau.

       - O segundo, meu senhor, era lançar mão de mil homens, e arriscar com eles uma brecha através dos moscovitas... Foi também o que há pouco apresentei ao rei de França, fazendo-lhe observar que tinha à sua disposição trinta mil homens em lugar de mil...

       - Bem viu de que me serviram esses trinta mil homens no dia 14 de Julho - respondeu o rei. - E o terceiro?

       - O terceiro, é o que Estanislau adoptou disfarçando-se em camponês para sair de Dantzig, não com uma mulher, que podia servir-lhe de embaraço no caminho, não com mil homens, que podiam ser todos mortos antes de conseguirem a projectada brecha, mas unicamente com dois ou três homens seguros, que passam sempre por toda a parte. Este terceiro meio foi proposto pelo Sr. Monti, embaixador de França, e apoiado pelo meu parente o general Steinflicht.

       - Foi esse o que foi adoptado?

       - Sim, meu senhor; e se qualquer rei, achando-se, ou julgando achar-se na situação do rei da Polónia, quisesse adoptar este partido, dignando-se honrar-me com a mesma confiança, com que o augusto avô de Vossa Majestade honrou o general Steinflicht, poderia responder pela sua segurança à custa da minha própria cabeça, principalmente se as estradas estivessem tão desembaraçadas como as de França e se esse rei fosse tão bom cavaleiro como Vossa Majestade.

       - Sim! - disse a rainha. - Mas na noite de 5 para 6 de Outubro jurou-me o rei “que nunca fugiria sem mim, e que não formaria projecto algum de partida sem que eu entrasse nesse projecto...” A palavra do rei acha-se comprometida, senhor, e decerto não há-de faltar a ela.

       - Minha senhora - disse Favras- isso torna a viagem mais difícil, mas nem por isso a torna impossível, e se eu tivesse a honra de dirigir uma tal expedição, comprometer-me-ia a conduzir a rainha, o rei e a família real, todos sãos e salvos, a Montmédy ou a Bruxelas, do mesmo modo que o general Steinflicht conduziu a Marienwer, são e salvo, o rei Estanislau.

       - Não ouve, senhor? - exclamou a rainha - parece-me, que com um homem como o Sr. de Favras, há tudo a ganhar e nada a perder.

       - Sim, minha senhora - respondeu o rei - também assim o penso; mas parece-me que ainda não chegou esse momento...

       - Está bem, senhor - disse a rainha - espere, como esperou aquele cujo retrato nos observa, e cuja presença, pelo menos assim o julgava eu, devia dar-lhe um conselho melhor... Espere que o forcem a uma batalha... Espere que essa batalha se perca... Espere que o façam prisioneiro... Espere que levantem o cadafalso debaixo da sua janela! E então, o senhor, que hoje diz: “Ainda é cedo!” será obrigado a dizer: “Já é tarde!”

       - Em todo o caso, meu senhor, quando el-rei quiser - disse Favras, inclinando-se com receio de que a sua presença, que provocava esta espécie de conflito entre a rainha e o rei, o fatigasse. - Não tenho mais do que a minha existência a oferecer ao meu soberano; não direi que lha ofereço, direi antes que em todo tempo teve é terá sempre o direito de dispor dela, por isso que lhe pertence.

       - Está bem, Sr. marquês - disse o rei - e no caso em que haja, algum desastre, reitero, acerca da marquesa e de seu filho, a mesma promessa que lhe fez a rainha.

       Desta vez era uma verdadeira despedida; o marquês viu-se obrigado a retirar-se, apesar do desejo que ainda tinha de insistir. Saiu portanto do quarto sem voltar as costas aos seus augustos interlocutores.

       A rainha seguiu-o com os olhos até cair o reposteiro da porta por onde saiu.

       - Ah! Senhor - disse ela, apontando para o quadro de Van Dyck - quando mandei pendurar este retrato no seu quarto, julguei que o inspirasse melhor!

       E altiva, e como desdenhando seguir a conversação, dirigiu-se para a porta, onde, parando de repente, disse:

       - Senhor, confesse que o marquês de Favras não foi a primeira pessoa que recebeu esta manhã.

       - Não, senhora, tem razão; antes do marquês de Favras, recebi o Dr. Gilberto.

       A rainha estremeceu.

       - Ah! - disse ela - já o desconfiava... e o Dr. Gilberto, segundo parece...

       - É da minha opinião, senhora; não devemos sair de França.

       - Mas, sendo ele dessa opinião, não deixará de dar algum conselho a Vossa Majestade, que nos assegure a nossa residência aqui?

       - Sim, senhora, deu-me um; desgraçadamente, acho esse conselho, não direi mau, mas impraticável.

       - Qual é?

       - Quer que compremos Mirabeau por um ano.

       - Por que preço? - perguntou a rainha.

       - Por seis milhões... E um sorriso seu.

       A fisionomia da rainha tomou um carácter profundamente pensativo.

       - Com efeito - disse ela - talvez fosse um meio...

       - Sim, mas um meio ao qual se recusará, não é assim?

       - Não respondo nem sim nem não, senhor – disse a rainha com essa expressão sinistra que toma o anjo do mal, seguro do seu triunfo; - eu pensarei nisso...

       Depois, em voz baixa, ao retirar-se, acrescentou:

       - E hei-de pensar!

 

Em que o rei se ocupa de negócios de família

       O rei, tendo ficado só, conservou-se por um momento de pé e imóvel; receando depois que a retirada da rainha fosse simulada, dirigiu-se à porta por onde ela saíra, abriu-a e percorreu com olhos escrutadores as antecâmaras e os corredores; como nada visse além da gente de serviço, chamou a meia voz:

       - Francisco!

       Um criado, que se levantara quando a porta do aposento real se abriu, e que aguardava de pé as ordens, chegou-se logo, entrando no gabinete atrás do rei.

       - Francisco - disse Luís XVI - sabe qual é o alojamento do Sr. de Charny?

       - Senhor - respondeu o criado - o Sr. de Charny não tem alojamento: tem apenas uma água-furtada no pavilhão de Flora.

       - Como? Uma água-furtada, a um oficial daquela importância!

       - Quiseram dar ao Sr. conde um melhor, mas recusou, dizendo que aquela água-furtada lhe era suficiente.

       - Bem - disse o rei. -Sabe onde é a água-furtada?

       - Sei sim, real senhor.

       - Pois então vá chamar o Sr. de Charny; desejo falar-lhe.

       O criado saiu, fechando a porta; subiu à água-furtada do Sr. de Charny, que encontrou encostado à janela, fixando os olhos no oceano de tectos que se perdia no horizonte em ondas de telhas e de ardósias.

       O criado bateu duas vezes, sem que o conde, embevecido em suas meditações, o ouvisse, o que deu lugar a que este se resolvesse a entrar, cônscio como estava das ordens do rei.

       Ao ruído que fez quando entrou voltou-se o conde.

       - Ah! É o Sr. Stue - disse ele; - vem buscar-me da parte da rainha, não é assim?

       - Não, Sr. conde - respondeu o criado - venho da parte de el-rei.

       - Da parte de el-rei! - replicou o Sr. de Charny com certa admiração.

       - Da parte de el-rei - insistiu o criado.

       - Está bem, Sr. Stue; diga a Sua Majestade que estou às suas ordens.

       O criado retirou-se com toda a etiqueta, e o Sr. de Charny, com essa cortesia que a antiga e verdadeira nobreza empregava sempre para todos aqueles que iam da parte do rei, acompanhou-o até à porta.

       Quando ficou só, o Sr. de Charny conservou-se um momento com a cabeça apertada entre as mãos, como para forçar as idéias, então confusas e agitadas, a serenarem-se, e depois de restabelecer assim a ordem do cérebro, cingiu a espada, meteu o chapéu debaixo do braço e desceu aos aposentos reais.

       Encontrou Luís XVI no seu quarto de dormir, com as costas voltadas para o quadro de Van Dyck, onde lhe serviam o almoço.

       O rei levantou a cabeça quando avistou o Sr. de Charny.

       Ah! É o conde - disse ele; - muito bem... Quer almoçar comigo?

       - Vejo-me obrigado a recusar o honroso oferecimento de Vossa Majestade, porque já almocei – disse Charny inclinando-se.

       - Nesse caso - tornou Luís XVI - como lhe pedi que viesse para falarmos de negócios seriíssimos, espere um momento... Não gosto de falar de negócios quando estou comendo.

       - Estou às ordens de Vossa Majestade – respondeu Charny.

       - Em lugar de falar de negócios, falaremos de outra coisa... Por exemplo, do conde.

       - De mim, meu senhor? E em que posso eu merecer que el-rei se ocupe da minha pessoa?

       - Quando há pouco perguntei onde era o seu alojamento nas Tulherias, quer saber o que o Francisco me respondeu, meu caro conde?

       - Não, meu senhor.

       - Respondeu-me que recusou o alojamento que lhe ofereceram, para aceitar apenas uma água-furtada.

       - É verdade, meu senhor.

       - Por que motivo, conde?

       - O motivo foi porque, sendo só, e não tendo outra importância mais da que o favor de Suas Majestades se dignam conceder-me, não julguei útil privar o governador do palácio de um bom alojamento, quando uma simples água-furtada era suficiente para mim.

       - Perdão, meu caro conde, o senhor responde como se ainda fosse simples oficial e solteiro... Mas ocupa junto de nós um lugar importante, e de mais a mais é casado... E a condessa também está na água-furtada?

       - Mas senhor - respondeu Charny com um acento de melancolia que não escapou ao rei - apesar de ser pouco acessível a esse sentimento, não creio que a Srª. de Charny me faça a honra de compartilhar o meu alojamento, quer seja grande, quer pequeno.

       - Mas, enfim, conde, a Srª. de Charny, sem ter obrigações junto da rainha, é sua amiga; como sabe, a rainha, não pode passar sem a condessa, ainda que tenha observado que há tempo a esta parte existe entre elas uma certa indiferença... Quando a Srª. de Charny vier ao palácio, onde se alojará?

       - Parece-me que sem expressa ordem de Vossa Majestade, a condessa não volta ao palácio.

       - Ah! Ah!

       Charny inclinou-se.

       - É impossível! - disse o rei.

       - Peço perdão a Vossa Majestade - acudiu Charny - mas julgo ter a certeza do que avanço.

       - Pois admiro-me menos disso do que poderia supor, meu caro conde... Acabo de lhe dizer que, segundo me parece, tenho observado uma certa indiferença entre a rainha e a sua amiga.

       - Efectivamente, é certo o que Vossa Majestade se dignou observar.

       - Arrufos de mulheres! Nós trataremos de as reconciliar... Mas parece-me, que, sem me aperceber, me conduzo para com o meu caro conde de um modo tirânico.

       - Como assim, meu senhor?

       - Obrigando-o a residir nas Tulherias, quando a condessa reside... Onde, conde, onde reside a condessa?

       - Na rua de Coq-Héron.

       - Pergunto, pelo hábito que os reis têm de interrogar, e talvez pelo desejo que tenho de saber a morada da condessa; por isso que, como não conheço melhor Paris do que um russo de Moscovo, ou um austríaco de Viena, ignoro completamente se a rua Coq-Héron fica perto ou longe das Tulherias.

       - Fica perto, meu senhor.

       - Pois ainda bem, porque isso explica-me porque só tem um quarto nas Tulherias.

       - O quarto que tenho nas Tulherias, meu senhor - respondeu o conde de Charny com um acento de melancolia igual ao que o rei lhe notara já na voz - é um alojamento permanente, onde me encontrarão a qualquer hora do dia ou da noite, a que Vossa Majestade me faça a honra de mandar procurar-me.

       - Oh! Oh! - exclamou o rei espreguiçando-se na cadeira; - que quer isso dizer, conde?

       - Perdoe-me Vossa Majestade, mas eu não percebo bem a pergunta que se digna fazer-me...

       - Ora essa! Sabe que me tem por bom homem, não é assim? Por um bom pai, por um bom marido sobretudo; que quase me ocupo tanto do interior do meu paço, como do exterior do meu reino?... Que quer isso dizer, meu caro conde? Depois de três anos de casado, o conde de Charny tem um alojamento fixo nas Tulherias, e a condessa de Charny um alojamento também fixo na rua de Coq-Héron!

       - Meu senhor, não posso responder outra coisa a Vossa Majestade mais do que dizer-lhe: “A Srª. de Charny deseja habitar sozinha”.

       - Mas, enfim, vai vê-la todos os dias... não?... duas vezes por semana?...

       - Meu senhor, não tornei a ter o gosto de ver a Srª. de Charny desde o dia em que el-rei me ordenou que fosse saber notícias dela.

       - Mas isso já foi há mais de oito dias!

       - Foi há dez, meu senhor - acudiu Charny com voz ligeiramente comovida.

       O rei compreendia melhor a dor do que a melancolia, e na voz do conde pôde descobrir um vislumbre de comoção, que este deixara escapar.

       - Conde - disse Luís XVI com essa bonomia que cabia tão bem a um pai de família, como ele às vezes se chamava a si mesmo - conde, o senhor deve ser o culpado de tudo isso...

       - Eu culpado? - disse Charny com vivacidade e corando mau grado seu.

       - Sim, sim, é o culpado - insistiu o rei. – Dos desgostos de uma mulher tão perfeita como a condessa, só o marido deve ser acusado.

       - Meu senhor!...

       - Dirá que isso não deve importar-me, meu caro conde, e eu responder-lhe-ei: “Importa, sim; um rei pode muito com a sua palavra...” Vejamos, seja franco, o senhor foi ingrato para com a pobre menina de Taverney que tanto o ama?

       - Que tanto me ama, meu senhor?... Perdão, não disse Vossa Majestade - redargüiu o conde com leve expressão de azedume - que a menina de Taverney me ama? E muito...

       - A menina de Taverney, ou a Srª. de Charny, vem a ser a mesma coisa, creio eu.

       - Sim, e não, meu senhor.

       - Pois bem - disse que a Srª. de Charny o ama e não me desdigo.

       - Vossa Majestade bem sabe que não é permitido desmentir el-rei...

       - Oh! Desminta quando quiser, que eu bem o sei.

       - E Vossa Majestade conheceu por certos sinais, em que ninguém mais fez reparo, que a Srª. de Charny me ama... E muito?

       - Ignoro se alguém mais viu esses sinais, meu caro conde, mas o que não ignoro é que naquela noite de 6 de Outubro, desde o momento em que se reuniu a nós, não o perdeu ela de vista um só instante, e que os olhos lhe exprimiam todas as angústias do coração, de tal modo que quando a porta do Olho-de-Boi esteve quase a ser arrombada, vi a pobre senhora fazer um movimento para se lançar entre o conde e o perigo que o ameaçava.

       O coração de Charny comprimiu-se; julgou reconhecer na condessa alguma coisa semelhante àquilo que o rei acabava de dizer; mas as particularidades da última entrevista com Andréa estavam ainda muito presentes ao seu espírito, para o não tornarem superior à vaga afirmativa do coração e ao depoimento positivo de Luís XVI.

       - E tão grande foi a atenção que a isso prestei - acrescentou o rei - que por ocasião da minha jornada a Paris, quando me foi enviado pela rainha à casa da câmara, ela me disse positivamente que a condessa quase desfalecera de dor na sua ausência e de alegria quando voltou.

       - Meu senhor - disse Charny sorrindo tristemente - Deus permitiu aos que nasceram superiores a nós, que recebessem como privilégio da sua raça esse olhar que vai buscar ao fundo do coração segredos que os outros ignoram. O rei e a rainha assim o viram, assim deve ser; mas a fraqueza da minha vista fez com que eu visse por diferente prisma. Eis a razão que me obriga a pedir a el-rei, que não se inquiete demasiadamente com esse grande amor da senhora de Charny. Se pois Vossa Majestade quer encarregar-me de alguma comissão perigosa ou longínqua, nem por isso a recusarei.

       - Todavia, quando há oito dias a rainha o quis enviar a Turim, o senhor mostrou desejos de querer ficar em Paris.

       - Julguei meu irmão suficiente para desempenhar essa comissão, meu senhor; quis reservar-me para outra mais difícil ou mais perigosa.

       - Pois bem, meu caro conde, é justamente por ser ocasião oportuna para lhe confiar uma missão, hoje difícil, e talvez perigosa para o futuro, que lhe falei do isolamento da condessa, a quem quisera vê-la ao pé de uma amiga, por isso que lhe roubo o marido.

       - Escreverei à condessa, meu senhor - disse gravemente o conde de Charny - para lhe comunicar os benéficos sentimentos de Vossa Majestade.

       - Como! Escrever-lhe? Pois não quer vê-la antes de partir?

       - Só me apresentei uma única vez em casa dela sem lhe pedir licença, meu senhor, e à vista do modo como me recebeu, só por ordem expressa de Vossa Majestade novamente lhe pedirei essa licença.

       - Vamos, não falemos mais de semelhante coisa... Eu falarei de tudo isto à rainha durante a sua ausência - disse o rei levantando-se da mesa.

       Depois, tossindo duas ou três vezes com a satisfação de um homem que acaba de comer bem e que está certo de que fará boa digestão, observou:

       - Por minha fé! Os médicos têm muita razão para dizerem que todos os negócios têm duas faces: a que os oferece, tristonha, a um estômago vazio, e a que, risonha, os apresenta a um estômago cheio... Passe ao meu gabinete, meu caro conde; sinto-me com disposição para lhe falar com o coração nas mãos.

       O conde seguiu Luís XVI, reflectindo em silêncio, que inúmeras vezes uma testa coroada deve perder muito da sua majestade, pelo lado material e vulgar que a altiva Maria Antonieta não podia deixar de censurar ao seu real esposo.

 

Em que el-rei se ocupa de negócios de Estado

       Conquanto el-rei apenas estivesse havia dez dias instalado nas Tulherias, já duas casas do paço estavam completamente mobiladas.

       Estas casas eram a sua forja e o seu gabinete.

       Mais tarde, e numa ocasião que não teve no destino do desgraçado príncipe uma influência menor do que esta; nós introduziremos o leitor na forja real: mas, por enquanto, é no seu gabinete que temos de tratar. Entremos pois atrás de Charny, que se conservava de pé diante da secretária do rei, à qual este acabava de assentar-se.

       A secretária estava carregada de mapas, de livros de geografia, de jornais ingleses e de papéis entre os quais se distinguiam os que eram escritos por Luís XVI, pela multiplicidade das linhas que os cobriam, e que não deixavam nenhum espaço em branco, nem em cima nem em baixo, nem na margem.

       O carácter revela-se na mais pequena particularidade; o económico Luís XVI não só não deixava perder o mais pequeno bocado de papel em branco, senão que na sua mão esse papel cobria-se de tantas letras quantas materialmente podia conter.

       Charny havia três ou quatro anos que se achava na familiaridade dos dois augustos esposos; estava muito habituado a todos estes pormenores para fazer as observações que aqui consignamos; é por isso que, sem que fixasse os olhos sobre objecto algum, esperou respeitosamente que o rei lhe dirigisse a palavra.

       Mas tendo chegado ali, o rei, apesar da confidência já anunciada de antemão, parecia sentir um certo embaraço para entrar em matéria.

       Em primeiro lugar, e como para se revestir de alguma coragem foi abrir uma gaveta da secretária, tirando de um compartimento secreto alguns papéis, que colocou em cima da mesa, e sobre os quais pôs uma das mãos.

       - Sr. conde de Charny - disse ele por fim - tenho notado uma coisa...

       E deteve-se olhando atento para Charny, que esperava respeitosamente que o rei continuasse.

       - E é que na noite de 5 para 6 de Outubro, tendo que escolher entre a guarda da rainha e a minha, vi que colocou seu irmão junto da rainha, ficando o senhor junto de mim.

       - Meu senhor - respondeu Charny - sou o chefe da família, como Vossa Majestade o é do Estado; tinha pois o direito de morrer ao lado de Vossa Majestade.

       - É justamente o que me fez pensar – continuou Luís XVI - que se eu tivesse que dar uma missão secreta, difícil e perigosa, poderia ao mesmo tempo confiá-la à sua lealdade como francês, e ao seu coração como amigo.

       - Oh! Meu senhor - exclamou Charny – apesar da honra que Vossa Majestade me concede, nunca terei a pretensão de ser mais do que um súbdito fiel e reconhecido.

       - Sr. de Charny, é um homem grave, apesar de ter apenas trinta e seis anos; não atravessou os acontecimentos que acabam de desenrolar-se em volta de nós, sem deles tirar uma conclusão qualquer. O que pensa da minha situação, e se fosse meu primeiro ministro, que meios me proporia para melhorar essa situação?

       - Meu senhor - respondeu Charny com mais hesitação que embaraço - sou um soldado, um marinheiro... Essas questões sociais são superiores à minha inteligência.

       - Conde - disse o rei estendendo a mão a Charny com certa dignidade, que parecia brotar da mesma situação em que acabava de se colocar - um homem, e outro homem, que o julga seu amigo, pergunta-lhe pura e simplesmente, ao conde, que tem um coração recto, um espírito são, que é um súbdito fiel, o que faria no seu lugar?

       - Meu senhor - disse Charny - numa situação não menos grave do que esta em que nos achamos, a rainha fez-me um dia a honra que Vossa Majestade me faz neste momento, de me perguntar a minha opinião... Foi no dia da tomada da Bastilha. A rainha queria mandar atacar os cem mil parisienses que se rolavam armados como uma hidra de ferro e de fogo pelos boulevards e pelas ruas do bairro de Santo António, pelos seus oito ou dez mil soldados estrangeiros. Se eu fosse menos conhecido da rainha, se Sua Majestade visse no meu coração menos respeito e dedicação, a minha resposta indispô-la-ia decerto, contra mim... Ah, meu senhor, não posso recear hoje, que interrogado pelo rei, a minha resposta demasiadamente franca o possa ofender?

       - Que respondeu então o conde à rainha?

       - Que não sendo Vossa Majestade bastante forte para entrar em Paris como conquistador devia entrar como pai.

       - E não foi esse o conselho que segui?

       - Não há dúvida, meu senhor.

       - Resta-nos agora saber se fiz bem em o seguir; porquanto diga o senhor mesmo se eu entrei como rei ou como prisioneiro.

       - Meu senhor - redargüiu Charny - Vossa Majestade permite-me que lhe fale com toda a franqueza?

       - Fale, conde; é justamente o que desejo.

       - Meu senhor, desaprovei o banquete de Versalhes, supliquei à rainha que não fosse ao teatro na sua ausência, fiquei desesperado, quando Sua Majestade calcou aos pés o laço da nação para arvorar o laço preto, o laço austríaco...

       - Julga então, Sr. de Charny, que fosse essa a verdadeira causa dos acontecimentos de 5 para 6 de Outubro?

       - Não, meu senhor, mas foi pelo menos o pretexto. Vossa Majestade não é injusto para com o povo, não é assim? O povo é bom, ama-o, o povo é realista; mas o povo sofre, tem frio e tem fome; está rodeado de maus conselheiros, que o querem perder; marcha, exaspera-se, tudo derruba, porquanto ele mesmo não conhece a sua força; uma vez lançado, espalhado, rolando, é uma inundação ou um incêndio; tudo afoga, tudo queima!

       - Pois bem, Sr. de Charny, suponha (o que é bem natural) que eu não queira ser nem queimado, nem afogado, que devo então fazer?

       - Meu senhor, cumpre não dar pretexto à inundação para que se não espalhe, ao incêndio para que se não ateie... Mas, perdão! - disse Charny; - esquecia-me que mesmo por uma ordem de el-rei...

       - Quer dizer por uma súplica... Continue, Sr. de Charny, continue; o rei assim lho pede.

       - Pois bem, Vossa Majestade bem o viu, esse povo de Paris, tanto tempo viúvo dos seus soberanos, tão ávido de os ver, viu-o Vossa Majestade ameaçador, incendiário, assassino!... Ou antes julgou vê-lo assim, por isso que em Versalhes não era o povo! Viu-o, dizia eu, nas Tulherias, saudando debaixo da varanda do palácio de Vossa Majestade, à rainha, à família real, penetrando nos seus quartos, representado pelas suas deputações de mulheres, de guardas cívicas, de corpos municipais; e os que não tinham a ventura de ser deputados, os que não tinham a honra de penetrar nos quartos de Vossa Majestade e de lhe falar, a esses viu-os Vossa Majestade aglomerados junto das janelas da sala de jantar, através das quais, estendendo as mãos, enviavam - doces ofertas - aos ilustres comensais os beijos dos filhos?...

       - Sim - disse o rei - tudo isso vi, e daí é que nasce a minha hesitação. Pergunto a mim mesmo qual é o verdadeiro povo, se o que assassina e incendeia, se o que afaga e aclama?

       - Oh! Meu senhor, é o último que nomeou. Confie nele, que o defenderá.

       - Conde, o senhor repete-me exactamente o que me disse, haverá duas horas, o Dr. Gilberto.

       - Pois meu senhor, é possível que tendo ouvido a opinião de um homem tão profundo, tão sábio, tão grave como é o doutor se digne interrogar-me, a mim, que sou um simples oficial?

       - Repito, Sr. de Charny - respondeu Luís XVI – é porque existe, segundo creio, uma grande diferença entre os dois; o senhor é dedicado ao rei, o doutor só o é à realeza.

       - Não percebo bem, meu senhor.

       - Quero dizer que uma vez que a realeza, isto é, que o princípio se salve, ele abandonará de boa vontade o rei, quero dizer, o homem.

       - Nesse caso, tem razão - disse Charny - há essa diferença entre ambos, e é que Vossa Majestade é ao mesmo tempo para mim o rei e a realeza; é pois com este título que peço a Vossa Majestade que disponha de mim como lhe aprouver.

       - Primeiro que tudo, Sr. de Charny, pretendo saber a quem se dirigiria, neste momento de calmaria, em que nos achamos no meio talvez de duas tempestades, para apagar os vestígios da tempestade passada e conjurar a futura?

       - Se eu tivesse a honra e a desgraça de ser rei, meu senhor, recordar-me-ia dos gritos que cercaram a minha carruagem na volta de Versalhes, e estenderia a mão direita a Lafayette e a esquerda a Mirabeau.

       - Conde - exclamou o rei com vivacidade – como é possível que assim me fale, conhecendo a nulidade de um e desprezando os costumes do outro?

       - Não se trata aqui das minhas simpatias, meu senhor, trata-se da salvação do rei e do futuro do seu reino.

       - É exactamente o que me disse o Dr. Gilberto - murmurou o rei, como se fosse consigo mesmo.

       - Meu senhor - acudiu Charny inclinando-se pela segunda vez - a minha satisfação não tem limites, ao lembrar-me que sou da opinião de um homem tão eminente como o Dr. Gilberto.

       - Desse modo, meu caro conde, julga que da união desses dois homens poderia surgir o sossego da nação e a segurança do rei?

       - Com o auxílio de Deus, meu senhor, muito esperaria da sua união.

       - Mas, enfim, se me prestasse a essa união, se consentisse nesse pacto, e, apesar do meu desejo, apesar talvez do seu, se malograsse a combinação ministerial que devia reuni-los, que pensa que deveria fazer?

       - Creio que tendo esgotado todos os meios, depositados nas suas reais mãos pela Providência, creio que tendo cumprido todos os deveres impostos pela sua posição, seria tempo enfim de el-rei se lembrar da sua segurança e da de sua família.

       - Então propor-me-ia que fugisse?

       - Proporia a Vossa Majestade que se retirasse com os seus regimentos e com os seus gentis homens, sobre cuja fidelidade poderia contar, para alguma praça forte, como Metz, Nancy ou Estrasburgo.

       O rosto do rei resplandecia.

       - Ah! Ah! - disse ele - e no meio de todos os generais, que tantas provas me têm dado de dedicação; vamos, diga francamente, Charny, o senhor, que os conhece, a qual deles confiaria a arriscada missão de conduzir ou de receber o seu rei?

       - Oh! Meu senhor - murmurou Charny - é gravíssima a responsabilidade de guiar el-rei numa tal ocasião... Reconheço a minha ignorância, a minha fraqueza, a minha impotência... Recuso-me.

       - Pois, senhor, vou desafrontá-lo - disse o rei; - essa escolha já está feita; e é a esse homem que quero enviá-lo. Eis aqui a carta que deverá entregar-lhe. O nome que me indicar não terá influência alguma sobre a minha determinação; servirá para me designar mais um servidor fiel, o qual, por seu turno, terá decerto ocasião de mostrar a sua fidelidade... Vamos, Sr. de Charny, se o senhor tivesse que confiar o seu rei à coragem e à inteligência de um homem, qual seria esse homem?

       - Meu senhor - disse Charny depois de reflectir um momento - não é decerto, juro-o a Vossa Majestade, porque laços de amizade e quase de família me prendem a ele; mas existe no exército um homem, que, como governador das Iles-sous-le-Vent, protegeu eficazmente as nossas possessões das Antilhas por ocasião da guerra da América, tomando até aos ingleses algumas ilhas; encarregado depois de diversos comandos importantes, é hoje, segundo creio, governador da cidade de Metz; esse homem, meu senhor, é o marquês de Bouillé. Como pai, confiar-lhe-ia meu filho; como filho, confiar-lhe-ia meu pai; como vassalo, confiar-lhe-ia o meu rei!

       Por pouco demonstrativo que fosse Luís XVI, seguia com visível ansiedade as palavras do conde, e seria fácil ver esclarecer-se-lhe o aspecto à medida que julgava reconhecer o personagem de que Charny lhe falava. Ao nome desse personagem pronunciado pelo conde, não pôde conter um grito de alegria.

       - Tome, tome, conde - lhe disse ele - leia o sobrescrito desta carta, e veja se não é a mesma Providência que me inspirou a idéia de me dirigir ao senhor.

       O conde de Charny pegou na carta e leu o sobrescrito, que dizia:

      

        “Ao Sr. Francisco Cláudio Amour, marquês de Bouillé, governador da cidade de Metz”.

      

       Lágrimas de prazer e de orgulho assomaram às pálpebras de Charny.

       - Meu senhor! - exclamou ele - à vista do que vejo, só tenho a dizer a Vossa Majestade uma única coisa, é que estou pronto a morrer por Vossa Majestade.

       - E eu dir-lhe-ei que depois do que acaba de se passar não me julgue com direito a ter segredos para com o conde, visto que, chegada a hora, só ao senhor, unicamente ao senhor, é que confiarei a minha pessoa, a da rainha e a de meus filhos. Escute-me, pois; eis o que me propõem e o que eu recuso.

       Charny inclinou-se, prestando toda a sua atenção ao que o rei ia dizer.

       - Não é a primeira vez, bem o deve pensar, Sr. de Charny, que me ocorreu a idéia, tanto a mim, como àqueles que me rodeiam, de executar um projecto análogo àquele de que nos ocupamos neste momento. Durante a noite de 5 para 6 de Outubro, lembrei-me de fazer evadir a rainha; a carruagem devia conduzi-la a Rambouillet, aonde me dirigiria a cavalo, e dali facilmente ganharíamos a fronteira; porquanto a vigilância que hoje nos cerca ainda então não era exercida. Este projecto não pôde realizar-se porque a rainha não quis partir sem mim, fazendo-me jurar que não partiria sem ela.

       - Eu estava presente, meu senhor, quando esse sagrado juramento se prestou entre el-rei e a rainha, ou antes entre a esposa e o esposo.

       - Depois, o Sr. de Breteuil entabulou negociações comigo por intervenção do conde de Innisdal, e há oito dias recebi uma carta de Soleure...

       O rei deteve-se aqui, e vendo que o conde ficava imóvel e silencioso, perguntou:

       - Não responde, conde?

       - Meu senhor - prosseguiu Charny inclinando-se - bem sei que o Sr. barão de Breteuil é o homem da Áustria, e muito receio ofender as legítimas simpatias de el-rei, no que respeita à rainha, sua real esposa, e ao imperador José II, seu cunhado.

       O rei apertou a mão de Charny e inclinando-se-lhe ao ouvido, disse-lhe em voz baixa:

       - Não receie, conde, não gosto mais da Áustria do que o senhor.

       A mão de Charny estremeceu de surpresa entre as de el-rei.

       - Conde - continuou Luís XVI - quando um homem brioso como o senhor vai dedicar-se, isto é, vai fazer o sacrifício da vida por outro homem, que apenas tem sobre ele a triste vantagem de ser rei, é necessário que conheça esse por quem vai sacrificar-se. Conde, já lhe disse que não gosto da Áustria; não gosto de Maria Teresa, que nos envolveu na guerra de sete anos, onde perdemos duzentos mil homens, oitocentos milhões, e mil e setecentas léguas de terreno na América; não gosto daquela imperatriz, que chamava à Srª. de Pompadour, a uma prostituta, sua prima, e que fazia envenenar meu pai, um santo, pelo Sr. de Choiseul; que se servia de suas filhas como de pessoas diplomáticas; que governa Nápoles por intervenção da arquiduquesa Carolina, e conta governar a França por influência de Maria Antonieta.

       - Meu senhor, meu senhor - exclamou Charny - Vossa Majestade esquece que sou um estranho, um simples súbdito do rei e da rainha...

       E Charny sublinhou na mente a palavra rainha, como nós a sublinhamos com a pena.

       - Já lhe disse, conde - acudiu o rei - que o senhor é um amigo... e posso falar-lhe com a maior franqueza, porquanto o preconceito que tinha concebido contra a rainha se acha completamente apagado no meu espírito. Porém, mau grado meu, desposei uma mulher daquela casa, duas vezes inimiga da casa de França; inimiga como austríaca e como lorena; mau grado meu, vi na minha corte o abade de Vermont, preceptor da delfina na aparência, espião de Maria Teresa na realidade, que eu encontrava duas ou três vezes por dia, tal era a recomendação que ele tinha de me não perder de vista, e a quem no decurso de dezenove anos, não dirigi uma única palavra; mau grado meu, depois de dez anos de luta, encarreguei o Sr. de Breteuil da administração da minha casa e do governo de Paris; mau grado meu tomei por meu primeiro ministro o arcebispo de Tolosa, um ateu; mau grado meu, finalmente, paguei à Áustria os milhões que ela queria extorquir à Holanda. Hoje mesmo, na hora em que lhe falo, sucedendo a Maria Teresa, morta, quem aconselha e dirige a rainha? É o irmão José II, que felizmente se definha; por quem se aconselha ela? Sabe-o, como eu, pelo órgão desse mesmo abade de Vermont, do barão de Breteuil e do embaixador da Áustria, Mercy de Argenteau. Por detrás desse velho está escondido outro velho, Kaunitz, ministro septuagenário da centenária Áustria. Esses dois velhos presumidos, ou antes duas velhas deserdadas, guiam a rainha de França pela Bertin, sua modista, e por Leonardo, seu cabeleireiro, aos quais dão boas pensões; e aonde a guiam eles? À aliança da Áustria! Da Áustria, sempre funesta à França, quer como amiga, quer como inimiga; da Áustria, que pôs nas mãos de Jacques Clément uma faca, nas de Ravaillac um punhal, nas de Damiens um canivete! A Áustria católica e devota noutro tempo, e que abjura hoje e se faz meio filósofa com José II! A Áustria imprudente, que volta contra si a sua própria espada, a Hungria! A Áustria descuidada, que deixa arrebatar pelos padres belgas a mais bela pérola da sua coroa, os Países Baixos! A Áustria vassala, que volta as costas à Europa, que não devia perder de vista, empregando contra os turcos, nossos aliados, as suas melhores tropas em proveito da Rússia! Não, não, não, Sr. conde de Charny, aborreço a Áustria, e aborrecendo-a não podia confiar nela.

       - Meu senhor, meu senhor, murmurou Charny - estas confidências são muito honrosas, mas ao mesmo tempo muito perigosas para aquele a quem se fazem... Arrepender-se-á algum dia de mas ter feito?

       -Oh! Nada receio do senhor, e a prova é que vou concluir.

       - Vossa Majestade ordenou-me que o ouvisse; por isso, aqui me tem.

       - Este projecto de fuga não é a primeira vez que me é aconselhado... Conhece o Sr. de Favras, conde?

       - O marquês de Favras, o antigo capitão do regimento de Belzunce, o antigo lugar-tenente nos guardas do senhor de Provença? Sim, senhor, conheço perfeitamente.

       - É esse mesmo - replicou o rei carregando sobre a última qualificação - o antigo lugar-tenente dos guardas do senhor de Provença. Que pensa dele?

       - Penso que é um valente soldado, um fidalgo leal, arruinado pela desgraça, o que o torna irrequieto e o impele a muitas tentativas arriscadas, a muitos projectos insensatos; mas é homem honrado e há-de morrer sem recuar um passo, sem soltar um gemido, para sustentar a sua palavra... É um homem em quem Vossa Majestade teria razão de se confiar por um só aperto de mão; mas receio muito que nada faça como chefe de uma empresa.

       - É por isso - replicou o rei com certo azedume - que não há-de ser o chefe dessa empresa... Há-de ser meu irmão... Sim, meu irmão, que faz dinheiro, que tudo prepara, que, dedicando-se até ao fim, ficará, quando eu partir, se porventura eu partir com Favras!

       Charny fez um movimento.

       - Que tem, conde? - prosseguiu o rei - esse não é o partido da Áustria, é o partido dos príncipes, dos emigrados, da nobreza.

       - Meu senhor, desculpe-me... Já o disse, não duvido,nem da lealdade, nem da coragem do Sr. de Favras; a qualquer lugar que ele prometa conduzir Vossa Majestade, há-de conduzi-lo, ou há-de morrer defendendo-o... Mas por que não parte o Sr. conde de Provença com Vossa Majestade? Porque fica ele em Paris?

       - Fica por dedicação, já lho disse... E talvez, no caso de se depor o rei e se nomear um regente para que o povo se não canse muito em procurar esse regente.

       - Meu senhor - exclamou Charny - Vossa Majestade tem terríveis apreensões!

       - Digo-lhe o que todos sabem meu caro conde, o que seu irmão ontem me escreveu... isto é, que no último conselho dos príncipes, em Turim, se tratou de me depor e de nomear um regente; que nesse mesmo conselho, o Sr. de Condé, meu primo, propôs marchar sobre Lião! Já vê portanto que, salvo caso extremo, não posso aceitar Favras, nem Breteuil, nem a Áustria, nem os príncipes. Eis aqui, meu caro conde, o que não disse ainda a ninguém senão ao senhor, a fim de que, não lhe tendo ninguém, nem mesmo a rainha, (ou por acaso ou de propósito, Luís XVI carregou nas palavras que sublinhamos), mostrado uma confiança igual à que lhe manifesto, o conde se dedique unicamente a mim.

       - Meu senhor - perguntou Charny inclinando-se - o segredo da minha viagem deve ser segredo para todos?

       - Pouco importa que se saiba que parte, uma vez que se ignora o fim da sua missão.

       - E esse fim só deve ser revelado ao Sr. de Bouillé?

       - Sim, mas só depois de estar bem seguro dos seus sentimentos. A carta de que o encarrego é uma simples carta de introdução. Sabe quais são os meus receios, as minhas esperanças e sobretudo conhece a minha posição. Sabe tudo isto, melhor do que; a rainha, minha mulher, melhor do que Necker, meu ministro, melhor do que Gilberto, meu conselheiro; actue portanto como lhe parecer... Entrego-lhe o fio e a tesoura, corte ou desenrole segundo as conveniências.

       E entregando depois ao conde a carta ainda aberta disse:

       - Leia.

       Charny pegou na carta e leu:

       

        “Palácio das Tulherias, 29 de Outubro.”

       “Espero que continue a estar contente com o seu lugar de governador de Metz. O Sr. conde de Charny, lugar-tenente dos meus guardas, que passa por essa cidade, lhe perguntará se deseja de mim mais alguma coisa. Nesse caso, aproveitarei a ocasião de lhe ser agradável, como aproveito a de lhe renovar o protesto de todos os sentimentos de estima que lhe consagro.

        Luís”

      

       - E agora - disse o rei - pode partir, Sr. de Charny; tem plenos poderes para fazer ao Sr. de Bouillé as promessas que julgar convenientes se porventura for necessário; só lhe recomendo que essas promessas sejam de tal natureza, que eu possa cumpri-las.

       E pela segunda vez lhe apertou a mão.

       Charny beijou-lhe a mão com certa comoção, dispensando-se assim de novos protestos, e saiu do gabinete, deixando o rei convencido (e era verdade), de que por meio daquela confiança acabava de adquirir o coração do conde ainda mais facilmente do que se lhe oferecesse todas as riquezas e todos os favores de que podia dispor nos dias do seu poder.

 

No quarto da rainha

       Charny saiu do gabinete do rei possuído dos sentimentos mais opostos.

       Porém, o primeiro desses sentimentos, o que subia à superfície daquelas vagas de opiniões que lhe tumultuavam no cérebro, era o reconhecimento profundo que sentia pela confiança sem limites que o rei acabava de testemunhar-lhe.

       Aquela confiança impunha-lhe efectivamente deveres tanto mais sagrados, quanto a sua consciência estava longe de se calar com a recordação das faltas em que se achava para com aquele digno rei, que no momento de perigo se lhe encostava ao ombro, como se fosse seguro e fiel encosto.

       Era por isso que, reconhecendo-se Charny criminoso para com o seu rei, se sentia agora mais disposto a ser-lhe leal, a consagrar-se inteiramente ao seu serviço.

       E esse sentimento de respeitosa dedicação, aumentando cada vez mais no coração de Charny, fazia diminuir ao mesmo tempo o sentimento menos puro, que no decurso de muitos anos consagrara à rainha.

       Por esse motivo Charny, retido pela primeira vez por uma esperança vaga, nascida no meio dos perigos, como as flores que desabrocham sobre os precipícios e perfumam os abismos, esperança que instintivamente o atraíra para junto de Andréa, tendo perdido essa esperança, acabava de aceitar com desvelo uma missão, que o desviava da corte, onde sofria a duplicada tortura de ser ainda amado pela mulher que já não amava, e de não ser ainda amado (pelo menos assim o julgava o pobre moço) pela mulher que amava já.

       Aproveitando-se pois da frieza que há alguns dias se introduzira nas suas relações com a rainha, entrava no seu quarto decidido a anunciar-lhe a sua partida por meio de uma simples carta, quando encontrou Weber, que o esperava à porta.

       A rainha queria instantemente falar-lhe, e desejava vê-lo sem demora.

       Não havia meio de subtrair-se a esse desejo da rainha; os desejos da coroa são decretos.

       Charny deu algumas ordens ao seu criado, a fim de que atrelassem os cavalos e desceu atrás do colaço da rainha.

       A rainha estava numa disposição de espírito inteiramente oposta à de Charny. Recordava-se da sua dureza para com o conde, e lembrando-se da dedicação que ele lhe mostrara em Versalhes à vista do irmão todo ensangüentado, estendido no corredor contíguo ao seu quarto, espectáculo que tinha sempre presente, sentiu uma espécie de remorso, confessando a si mesma que, conquanto Charny lhe mostrasse apenas dedicação, ela tinha recompensado muito mal essa dedicação.

       Mas não tinha ela também o direito de pedir a Charny outra coisa que não fosse simples dedicação?

       Todavia, reflectindo bem, tinha porventura Charny merecido todas as argüições que lhe fazia?

       Não devia atribuir-se ao luto fraternal a espécie de indiferença que ele lhe patenteara ao voltar de Versalhes? E demais, não era essa indiferença toda superficial, e não se precipitou ela em condenar Charny quando lhe fez propor a missão de Turim, para o desviar de Andréa, o que ele recusou? A sua primeira idéia de ciúme, fora que essa recusa era causada pelo nascente amor do conde por Andréa, e pelo desejo de ficar com a mulher; com efeito esta, partindo das Tulherias às sete horas, foi seguida duas horas depois pelo marido até ao seu retiro da rua Coq-Héron; mas a ausência de Charny não tinha sido longa: às nove horas voltara para o palácio, onde recusou o alojamento composto de três quartos, que, por ordem do rei, lhe propuseram, contentando-se com a água-furtada, que era destinada ao criado.

       Toda esta combinação foi considerada pela nobre rainha como uma combinação em que a sua vaidade e o seu amor tinham tudo a sofrer; mas a investigação mais severa não pôde surpreender Charny fora do palácio, e excepto para negócios de serviço, era bem constante aos olhos da rainha, como aos dos outros comensais do palácio, que desde a sua volta a Paris e entrada no Paço, Charny raras vezes saíra do seu quarto.

       Por outro lado, desde que saíra do palácio, nunca mais Andréa voltara.

       Se Andréa e Charny se tinham visto, fora só durante uma hora, no dia em que o conde recusou a missão de Turim.

       Verdade é que, durante aquele período, Charny não procurara ocasião de ver a rainha; mas em lugar de reconhecer nessa obstinação um sinal de indiferença, uma vista perspicaz não descobriria pelo contrário uma prova de amor?

       Charny, estimulado pelas injustas desconfianças da rainha, não poderia ter deixado de aparecer-lhe, não por excesso de frieza, mas por excesso de amor?

       A rainha confessava ser injusta e cruel para com Charny: injusta por ter estranhado que ele se não separasse do rei durante a noite de 5 para 6 de Outubro e tê-la deixado só, ter olhado uma vez para Andréa, ao passo que para ela só olhara duas vezes; e cruel, por não tomar parte com o coração mais terno na profunda dor que Charny sentira quando viu morto o irmão.

       É deste modo que se procede quando se ama com amor profundo e verdadeiro. O que é objecto desse amor, quando está presente, oferece-se aos olhos daquele ou daquela que entende dever queixar-se, com todas as asperezas da existência; na pequena distância que o separa de nós, todas as censuras que se lhe fazem parecem fundadas: defeitos de carácter e extravagância de espírito, aumenta tudo como se fora visto através de um vidro; não se concebe que se tenha estado tanto tempo sem ver todas essas deformidades amorosas, nem que por tanto tempo se tenham suportado. Mas ausentando-se por sua própria vontade ou por força o objecto desta fatal investigação, apenas ausente, desaparecem os contornos demasiado confusos, cai o realismo rigoroso debaixo do sopro poético da distância e à luz fagueira da saudade. Já se não julga, compara-se; entra-se em si mesmo com um rigor compassado pela indulgência que se sente por aquele que se reconhece ter apreciado mal, e o resultado de toda essa lida do coração é que, depois duma ausência de oito ou dez dias, a pessoa ausente nos parece mais cara e mais necessária do que nunca.

       É evidente que supomos o caso em que nenhum outro amor se aproveita dessa ausência para ir ocupar no coração o lugar do primeiro.

       Tais eram pois as disposições da rainha a respeito de Charny, quando se abriu a porta, e que o conde, que saíra como vimos, do gabinete do rei, se apresentou com o irrepreensível garbo de um oficial de serviço.

       Mas no seu porte, sempre respeitoso, divisava-se um não sei quê de frieza, que parecia repelir os eflúvios magnéticos prestes a espargirem do coração da rainha para irem buscar ao coração de Charny todas as doces recordações que ali se tinham amontoado no decurso de quatro anos, à proporção que o tempo, alternativamente rápido ou vagaroso, fizera do presente passado, e futuro do presente.

       Charny, inclinando-se, quase se não atreveu a ultrapassar o limiar da porta.

       A rainha olhou em volta de si, como para ver o motivo que assim continha o mancebo e convenceu-se de que a vontade de Charny era a única causa de tanta reserva.

       - Pode aproximar-se, Sr. de Charny - disse ela - estamos sós.

       Charny aproximou-se; e com voz doce, mas ao mesmo tempo tão firme, que fora impossível reconhecer nela a mais pequena comoção, disse:

       - Eis-me aqui às ordens de Vossa Majestade.

       - Conde - replicou a rainha com voz afectuosa - não lhe disse que estávamos sós?

       - Disse sim, minha senhora - acudiu ele – mas não vejo em que possa alterar essa solicitude o respeito com que um súbdito deve falar à sua soberana.

       - Quando o mandei chamar, conde, sabendo por Weber que o seguia de perto, julguei ser um amigo que vinha falar a uma amiga.

       Um amargo sorriso se desenhou ligeiramente nos lábios de Charny.

       - Sim, conde - tornou ela - compreendo esse sorriso, e sei o que fundamente pensa. Pensa que fui injusta em Versalhes e que em Paris sou caprichosa.

       - Injustiça ou capricho, minha senhora - redargüiu Charny - tudo é permitido a uma mulher, e muito mais a uma rainha.

       - Ai, meu caro conde - disse Maria Antonieta com todo o encanto de que pôde impregnar os olhos e a voz - sabe muito bem que o capricho quer seja da mulher ou da rainha, não pode apartar-se do conde, como conselheiro ou como amigo.

       E estendeu-lhe a mão branca e mimosa, um pouco emagrecida, mas sempre digna de servir de modelo a um estatuário.

       Charny pegou na mão da rainha e depois de a beijar respeitosamente, dispunha-se a abandoná-la, quando sentiu que Maria Antonieta lhe detinha a sua.

       - Pois bem - disse a pobre mulher respondendo com as suas palavras ao movimento que ele fizera; - sim, fui injusta, fui cruel. Perdeu ao meu serviço, querido conde, um irmão que amava com um amor quase paternal; esse irmão morreu por mim; eu devia compartilhar a sua dor, chorá-lo como o senhor o chora... Nesse momento, o terror, a cólera, o ciúme (que quer, conde, sou mulher!), tudo suspendeu as minhas lágrimas; mas quando fiquei só, durante esses dez dias que o não vi, paguei-lhe a minha dívida, pranteando-o amargamente; e a prova aqui a tem; olhe, senhor, veja que ainda choro.

       E Maria Antonieta inclinou levemente para trás a sua bela cabeça, para que Charny pudesse ver-lhe as lágrimas, límpidas como diamantes, deslizarem pelos sulcos, que a dor principiava a imprimir-lhe nas faces.

       Ah! Se Charny pudesse adivinhar a quantidade de lágrimas que deviam seguir-se àquelas que corriam diante dele, ter-se-ia comovido de tão funda compaixão, que decerto teria caído aos pés da rainha, pedindo-lhe perdão de todos os males que lhe tinha causado.

       Mas o futuro, por vontade do Senhor misericordioso, está envolvido num véu que ninguém pode levantar, onde pessoa nenhuma pode penetrar antes da hora; e o negro estofo que o destino fizera a Maria Antonieta, era ainda muito enriquecido de bordados de ouro para que pudesse conhecer-se nele um estofo de luto.

       Além de que, pouco tempo tinha decorrido depois que Charny beijara a mão do rei, para que o ósculo que acabava de depositar na mão da rainha pudesse ser mais do que um sinal de respeito.

       - Acredite, minha senhora - disse ele - que muito reconhecido estou por esta recordação que me é dirigida e pela dor que sente por meu irmão... Infelizmente, tenho apenas o tempo necessário para lhe exprimir o meu sincero reconhecimento...

       - Como assim? O que pretende dizer? – perguntou a rainha muito admirada.

       - Quero dizer, minha senhora, que vou sair de Paris dentro de uma hora.

       - Vai sair de Paris dentro de uma hora?

       - Vou sim, minha senhora.

       - Oh! Meu Deus, abandona-nos como os outros? Emigra, Sr. de Charny?

       - Ai de mim! - disse Charny - Vossa Majestade acaba de provar-me, com essa cruel pergunta, que muitas faltas cometi, mau grado meu, contra à minha rainha.

       - Perdão, meu amigo; mas como diz que nos deixa... Por que motivo se retira?

       - Para cumprir uma missão, de que el-rei me fez a honra de me encarregar.

       - E sai de Paris? - perguntou a rainha com ansiedade.

       - Saio de Paris, sim, minha senhora.

       - Por quanto tempo?

       - Ignoro.

       - Mas há oito dias recusou uma missão, segundo me parece?

       - É verdade, minha senhora.

       - Então por que motivo, tendo recusado há oito dias uma missão, aceita hoje outra?

       - Porque em oito dias, minha senhora, podem fazer-se muitas mudanças na existência de um homem, e por conseqüência nas suas resoluções.

       A rainha pareceu fazer um esforço na sua vontade, e ao mesmo tempo sobre os diferentes órgãos submetidos a essa vontade e encarregados de a transmitir.

       - E parte... só? - perguntou ela.

       - Sim, minha senhora.

       Maria Antonieta respirou.

       Depois, como oprimida pelo esforço que fizera, concentrou-se por um instante, fechou os olhos, e passando o lenço de cambraia pela fronte pálida, perguntou:

       - E onde vai?

       - Minha senhora - respondeu respeitosamente Charny - bem sei que el-rei não tem segredos para Vossa Majestade; e se a rainha perguntar a seu augusto esposo o fim da minha viagem e o objecto da minha missão, estou certo que lhos dirá.

       Maria Antonieta, tornando a abrir os olhos, e cravando em Charny um olhar de admiração, perguntou:

       - Mas para que me dirigirei a ele, podendo dirigir-me ao conde?

       - Porque o segredo que me confiaram pertence a el-rei, minha senhora, e não a mim.

       - Parece-me - tornou Maria Antonieta com certa altivez - que se esse segredo pertence a el-rei, também pertence à rainha.

       - Não duvido minha senhora - respondeu Charny inclinando-se - e é por isso que ouso afirmar a Vossa Majestade que el-rei não terá a menor dificuldade em lho confiar.

       - Mas, enfim, essa missão é no interior da França ou no estrangeiro?

       - Só el-rei pode dar a Vossa Majestade todos esses esclarecimentos.

       - Desse modo - disse a rainha com o sentimento de uma dor profunda, que momentaneamente era mais saliente do que a irritação que lhe causava a reserva de Charny; - desse modo afasta-se de mim, vai sem dúvida arrostar alguns perigos, e eu não saberei, nem onde se acha nem os perigos que corre?

       - Em qualquer parte onde me ache, aí terá Vossa Majestade, posso jurá-lo, um súbdito fiel, um coração dedicado... E quaisquer que sejam os perigos a que me exponha, ser-me-ão agradáveis, por isso que me exponho em serviço das duas pessoas que mais venero neste mundo.

       E inclinando-se, o conde pareceu nada mais aguardar do que as últimas despedidas da rainha para se retirar.

       A rainha soltou um suspiro que se assemelhava a um soluço abafado, e comprimindo a garganta com uma das mãos, como para ajudar as lágrimas prestes a rebentar a voltarem ao seio donde dimanavam, disse:

       - Está bem, senhor, parta...

       Charny inclinando-se de novo, dirigiu-se para a porta com passo firme.

       Mas, no momento em que punha a mão no puxador, a rainha, com os braços estendidos para ele exclamou:

       - Charny!

       O conde estremeceu e voltou-se muito pálido.

       - Charny! - continuou ela - venha aqui.

       Ele aproximou-se cambaleando.

       - Venha aqui perto - acrescentou a rainha; - olhe para mim... O senhor já me não ama, não é assim?

       Charny sentiu um calafrio percorrer-lhe as veias; julgou um momento que ia desfalecer.

       Era a primeira vez que a mulher altiva, que a soberana orgulhosa se curvava diante dele.

       Noutra qualquer circunstância, noutro qualquer momento, cairia aos pés de Maria Antonieta e ter-lhe-ia pedido perdão, mas a lembrança do que se passara entre ele e el-rei, deteve-o, e chamando em seu auxílio todas as suas forças, o nobre mancebo respondeu:

       - Minha senhora, depois das provas de confiança e de bondade que el-rei acaba de dar-me, eu seria na verdade um miserável, se neste momento assegurasse a Vossa Majestade outro sentimento que não fosse o do meu respeito e da minha veneração.

       - Está bem conde - disse a rainha; - é livre... Parta.

       Um desejo irresistível acometeu Charny por um momento; esse desejo era de se arrojar aos pés de Maria Antonieta; mas a invencível lealdade que nutria veio afugentar sem os sufocar os restos desse amor que ele julgava extinto, e que estivera prestes a reanimar-se mais ardente e mais vivaz do que nunca.

       Precipitou-se pois para fora do quarto, com uma das mãos na cabeça, e a outra sobre o coração, murmurando palavras sem nexo; mas, que por incoerentes que fossem, teriam convertido num sorriso de triunfo as lágrimas de Maria Antonieta, se porventura ela as tivesse ouvido.

       A rainha seguiu-o com a vista, esperando sempre que ele voltasse outra vez.

       Mas viu abrir-se a porta diante dele e tornar-se a fechar depois de sair, e sentiu-lhe os passos, que ecoavam nas antecâmaras e nos corredores.

       Cinco minutos depois de ter desaparecido, e de estar completamente extinto o ruído dos seus passos, ainda ela olhava e escutava.

       De repente, foi a sua atenção distraída por um novo ruído que vinha do pátio.

       Era o de uma carruagem.

       Correu à janela e reconheceu a sege de Charny, que atravessava o pátio dos Suíços e seguia pela rua do Carroussel.

       Tocou a campainha.

       Weber entrou.

       - Se eu não estivesse como prisioneira no palácio - disse ela - e quisesse ir à rua Coq-Héron, que caminho deveria seguir?

       - Minha senhora - disse Weber - seria necessário sair pela porta do pátio dos Suíços, voltar pela rua do Carroussel, e seguir depois a rua de Saint-Honoré até à...

       - Está bem, basta.

       Depois - como falando consigo - murmurou:

       - Vai dizer-lhe adeus.

       Em seguida, encostando por um momento a fronte abrasada aos vidros gelados, continuou em voz baixa e com os dentes cerrados:

       - Oh! É necessário que eu saiba o partido que devo tomar.

       Depois, em voz alta, disse a Weber:

       - Irás à rua Coq-Héron, n.º 9, a casa da Srª. condessa de Charny, e dir-lhe-ás que desejo falar-lhe esta noite.

       - Perdão, minha senhora - disse o criado – mas julgava que Vossa Majestade já tinha disposto do seu serão em favor do Sr. Dr. Gilberto?

       - Ah! É verdade - disse a rainha hesitando.

       - Que determina Vossa Majestade?

       - Vai dizer ao doutor que a nossa conferência fica transferida para amanhã.

       Depois disse consigo:

       - Sim, amanhã pela manhã trataremos de política... E demais a conversação que vou ter com a Srª. de Charny talvez possa influir alguma coisa na determinação que hei-de tomar.

       E com um gesto despediu Weber.

 

Horizontes sombrios

       A rainha enganara-se. O Sr. de Charny não ia a casa da condessa.

       Ia à posta real para tomar cavalos para a viagem.

       Mas enquanto os atrelavam à sege entrou em casa do dono da posta, pediu tinteiro e papel, e escreveu à condessa uma carta, que entregou a um criado para lha levar a casa.

       A condessa, meio deitada num canapé colocado no ângulo do fogão da sala, tendo diante de si um velador, ocupava-se em ler a carta do marido, quando Weber, segundo o privilégio daqueles que vinham da parte do rei ou da rainha foi introduzido sem anúncio algum preliminar.

       - O Sr. Weber! - disse o criado de quarto abrindo a porta.

       Weber apresentou-se logo.

       A condessa dobrou a carta com vivacidade e meteu-a no seio, como se o criado da rainha viesse com o desígnio de lha roubar.

       Weber falou-lhe em alemão. Era sempre um grande prazer para aquele homem quando podia falar na sua língua natal e todos sabem que Andréa, tendo aprendido na sua infância esta língua e com os dez anos de familiaridade que tivera com a rainha, falava-a perfeitamente.

       Uma das coisas que muito pesar causava a Weber era a ausência de Andréa, a sua separação da rainha, e a ocasião que perdera o digno alemão, de falar muitas vezes a sua língua.

       Era por isso que desejava sinceramente a reconciliação das duas amigas. Para que Andréa não faltasse sob qualquer pretexto à entrevista da rainha, repetiu-lhe muitas vezes que Sua Majestade adiara a conferência que devia ter com o Dr. Gilberto a fim de poder dispor inteiramente da noite.

       Andréa simplesmente respondeu que cumpriria as ordens de Sua Majestade.

       Weber saiu, e a condessa ficou um instante imóvel, com os olhos fechados, como quem deseja repelir do espírito qualquer estranho pensamento que não fosse aquele que lho preocupava.

       Quando tornou a si, lançou novamente mão da carta que tinha no seio, e continuou a leitura.

       Concluída ela, beijou a carta com ternura, colocando-a depois sobre o coração.

       E com um suspiro cheio de tristeza, disse:

       - Deus te guarde, alma querida da minha vida! Ignoro onde estás, mas Deus bem o sabe, e as minhas preces também sabem onde está Deus!

       Então, conquanto lhe fosse impossível adivinhar o motivo pelo qual a rainha a mandara chamar, sem impaciência, nem receio, aguardou o momento de se dirigir às Tulherias.

       Outro tanto não acontecia à rainha; quase prisioneira no paço, vagueava, a fim de gastar a sua impaciência, do pavilhão de Flora para o pavilhão de Marsan.

       O conde de Provença ajudou-a a passar uma hora: tinha ido às Tulherias para saber como Favras fora recebido pelo rei.

       A rainha, que ignorava a causa da viagem de Charny e queria reservar essa via de salvação, empenhando o rei ainda mais do que ele mesmo se empenhara, disse ao conde que prosseguisse no seu projecto que quando chegasse o momento ela se encarregaria de tudo.

       O conde de Provença, pela sua parte, estava contente e cheio de confiança. O empréstimo que negociara com o banqueiro genovês, que nós vimos por um momento na sua casa de campo de Bellevue, estava concluído, e na véspera, o Sr. de Favras, intermediário daquele empréstimo, havia posto à sua disposição os dois milhões, dos quais o conde não pudera fazer aceitar a Favras mais do que cem luíses, de que tinha absoluta necessidade para remunerar a dedicação de dois homens, sobre os quais Favras lhe jurara que podia contar, e que deviam ajudá-lo no rapto real.

       Favras quisera dar ao conde de Provença alguns esclarecimentos acerca dos tais dois homens; porém ele, sempre prudente, não só se recusara a vê-los, mas nem quisera saber-lhe os nomes.

       O conde fingia ignorar quanto se passava.

       Dava dinheiro a Favras, porque este noutro tempo lhe era dedicado; mas o que Favras fazia desse dinheiro, não o sabia ele, nem tão-pouco desejava sabê-lo.

       Demais, no caso em que o rei partisse, já dissemos que o conde de Provença ficaria, e afectava não tomar parte no conluio; clamava contra o abandono da sua família, e como achara meio de se fazer muito popular, era provável, uma vez que a realeza se achava ainda muito enraizada no coração da maior parte dos franceses, que, como Luís XVI dissera a Charny, fosse nomeado regente.

       O conde retirou-se, e a rainha entreteve ainda outra hora nos quartos da Srª. de Lamballe. A pobre princesinha, dedicada até à morte (assim o tinha provado em ocasião oportuna) não era demasiadamente querida de Maria Antonieta, que sucessivamente a abandonara por Andréa, e pelos Polignac, mas nem por isso deixava de a conhecer; não precisava de dar mais do que um passo para aquela amiga verdadeira, para que ela, com os braços e com o coração abertos, fizesse o resto do caminho.

       Nas Tulherias, e depois do regresso de Versalhes, a princesa de Lamballe ocupava o pavilhão de Flora, onde tinha o verdadeiro salão de Maria Antonieta, como a Srª. de Polignac fazia em Trianon. Todas as vezes que a rainha sofria qualquer pesar, qualquer incómodo, era para a Srª. de Lamballe que se chegava, o que prova evidentemente que era ali que ela se sentia amada.

       Então, sem ter precisão de dizer nada, sem sequer confiar à amiga os seus pesares, os seus incómodos, apenas reclinava a cabeça sobre o ombro daquela estátua viva da amizade, e as lágrimas que deslizavam dos olhos da rainha misturavam-se logo com as que corriam dos olhos da princesa.

       Oh! Infeliz mártir! Quem ousará indagar nas trevas das alcovas se a fonte daquela amizade era pura ou criminosa, quando a história inexorável, terrível, vier, com os pés sobre o teu sangue, dizer qual foi o preço por que pagaste essa amizade?

       Depois passou-se outra hora com o jantar. Jantavam em família com a princesa Isabel, a Srª. de Lamballe e os meninos. Os dois augustos comensais estavam preocupados; cada um tinha um segredo para o outro.

       A rainha o negócio de Favras.

       O rei o de Bouillé.

       Bem pelo contrário do rei, que preferia dever a tudo a sua salvação, até a uma revolta, de preferência aos estrangeiros, a rainha preferia estes a tudo.

       Além de que, cumpre dizê-lo, o que nós, os franceses, chamamos estrangeiros, era uma família para a rainha. Como era possível que ela pusesse na balança esse povo, que lhe matava os soldados, essas mulheres, que iam insultá-la aos pátios de Versalhes, esses homens, que queriam assassiná-la nos seus quartos, essa multidão, que lhe chamava a austríaca, com os reis a quem pedia socorro? Com José II, seu irmão, com Fernando I, seu cunhado, com Carlos IV, seu primo por parte do rei, de quem era mais próxima parente do que os Orleans e os Condés?

       A rainha não via pois, na fuga que preparava, o crime de que depois foi acusada; via só, pelo contrário, o único meio de conservar a dignidade real, e no regresso com mão armada, que esperava realizar, só via a expiação aos insultos que recebera.

       Nós patenteamos o coração do rei: desconfiava dos reis e dos príncipes; não queria pertencer à rainha, como muitos julgavam, conquanto por parte de sua mãe fosse alemão, porque os alemães não consideram os austríacos como seus patrícios.

       Não, o rei pertencia só aos padres.

       Confirmou todos os decretos contra os reis, contra os príncipes e contra os emigrados, e aplicou o seu veto ao decreto contra os padres.

       Por estes arriscou ele o 20 de Junho, sustentando o 10 de Agosto, suportou o 21 de Janeiro.

       Foi por isso que o papa, não podendo fazer dele um santo, fez ao menos um mártir.

       Contra o seu costume, a rainha naquele dia pouco se demorou com os filhos.

       Bem sentia que, não pertencendo o seu coração todo ao pai, não tinha direito naquela ocasião aos carinhos dos filhos. O coração da mulher, essa víscera misteriosa que gera as paixões e faz brotar o arrependimento, o coração da mulher é o único que conhece as estranhas contradições.

       A rainha retirando-se cedo ao seu aposento, onde se fechou, disse que tinha de escrever, deixando Weber à porta de atalaia.

       Além de que, o rei pouco notou a sua retirada, tal era a preocupação que também o agitava acerca de ocorrências de pouca monta, é verdade, mas não destituídas de gravidade, de que Paris estava ameaçada, e acerca dos quais o intendente de polícia, que o esperava, vinha falar-lhe.

       Eis, em duas palavras, essas ocorrências:

       A Assembléia, como vimos, tinha-se declarado inseparável do rei, e uma vez que este se achava em Paris, também ela ali se achava.

       Enquanto se arranjava a sala do picadeiro, que lhe era destinada, escolhera ela, para celebrar as suas sessões, a sala do arcebispado.

       Foi ali, que, por um decreto, trocou Luís XVI o título de rei de França e de Navarra pelo de rei dos franceses.

       Proscreveu as fórmulas reais de “nossa ciência certa” e de “nosso pleno poder...” substituindo-lhes estas: “Luís por graça de Deus e pela lei constitucional do Estado...”

       O que provava que a Assembléia Nacional, como todas as Assembléias parlamentares de que era filha ou avó, se ocupava muitas vezes de coisas fúteis quando deveria ocupar-se de coisas sérias.

       Por exemplo, deveria ter-se ocupado de sustentar Paris, que morria literalmente de fome.

       A volta de Versalhes e a instalação do padeiro, da padeira e do seu mocinho nas Tulherias, não tinha produzido o efeito que se esperava.

       A farinha e o pão continuavam a faltar.

       Todos os dias se juntava à porta dos padeiros grande multidão de povo, que quase sempre promovia as maiores desordens. Mas como era possível evitar esses ajuntamentos?

       O direito de reunião estava consagrado pela Declaração dos direitos do homem.

       Mas a assembléia tudo ignorava, os seus membros não eram obrigados a postarem-se à porta dos padeiros, e quando por acaso algum deles sentia fome durante a sessão, tinha sempre a certeza de achar saborosos pãezinhos em casa de um padeiro, chamado Francisco, que morava na rua do Marché-Palu, distrito de Notre Dame, o qual fazia seis ou sete fornadas por dia, tendo sempre cuidado de ter boa reserva para os senhores da Assembléia.

       O intendente da polícia dava parte, como já dissemos, a Luís XVI dos receios que tinha de tais desordens, que de um momento para o outro podiam tornar-se em tumultos revolucionários, quando Weber abriu a porta do pequeno gabinete da rainha anunciando a meia voz:

       - A Srª. condessa de Charny!

 

Mulher sem marido, amante sem amante

       Conquanto fosse a rainha quem mandara chamar Andréa, e por conseqüência esperasse o anúncio que acabava de receber, nem por isso deixou de estremecer quando ouviu as palavras pronunciadas por Weber.

       É que a rainha não podia dissimular que entre ela e Andréa, no pacto formado, por assim dizer, desde os primeiros dias, em que, ainda novos, se encontraram no castelo de Taverney, havia uma troca de amizades e de serviços prestados, em que Maria Antonieta era quem ficava sempre mais obrigada.

       Ora, não há nada que constranja mais os reis do que as obrigações que contraem, sobretudo quando essas obrigações se acham em contacto com as mais fundas raízes do coração.

       Resultava daí que a rainha, que mandara chamar Andréa, julgando ter grandes censuras a fazer-lhe, só se lembrava, diante da condessa, das obrigações que lhe devia.

       Quanto a Andréa era sempre a mesma, fria, plácida, severa, pura como o diamante, mas cortante e invulnerável como ele.

       A rainha hesitou um momento para saber com que nome saudaria a branca aparição que passava da sombra da porta para a penumbra do quarto, e que ia a pouco e pouco penetrando no círculo de luz projectada pelas três velas do candelabro, colocado sobre a mesa onde ela se reclinava.

       Finalmente, estendendo a mão para a sua amiga, disse:

       - Bem-vinda seja, tanto hoje, como sempre, Andréa.

       Conquanto resoluta e disposta, como se apresentava sempre perante a rainha, não deixou também Andréa de estremecer, por seu turno. Percebeu nas palavras que a rainha lhe dirigia, uma recordação do tom com que a Delfina noutro tempo lhe falava.

       - Preciso porventura dizer a Vossa Majestade - respondeu Andréa, entrando na questão com a sua franqueza e candura ordinárias - que falando-me sempre, como neste momento me fala, não será necessário, para me ver, mandar-me procurar fora do seu palácio?

       Nada convinha melhor à rainha do que a linguagem com que Andréa entrava na matéria.

       - Ai de mim! - disse ela - devia sabê-lo, Andréa; a condessa, tão bela, tão casta, tão pura, cujo coração ainda não foi perturbado por ódio algum, cuja alma ainda não foi maculada por nenhum amor e a quem as nuvens da tempestade podem cobrir e fazer desaparecer, mas só momentaneamente e como estrela, que, todas as vezes que o vento dissipa a tempestade, reaparece no firmamento mais bela e brilhante; devia saber que nem todas as mulheres, por mais elevada que seja a sua jerarquia, possuem a sua inalterável serenidade... Eu principalmente, eu que lhe pedi socorro, e a quem tão generosamente o prestou!

       - Vossa Majestade - disse Andréa - fala de tempos que tenho esquecido, e dos quais julgava que a rainha já se não recordasse.

       - A resposta é severa, Andréa - disse-a rainha - e todavia eu mereço-a, e a condessa tem razão para ma dar... É verdade que, enquanto fui feliz, não me lembrei da sua dedicação, e isso talvez porque poder nenhum humano, nem mesmo o poder real, me oferecia um meio de me desobrigar para com a condessa... Julgar-me-ia ingrata, Andréa, mas talvez por isso que aquilo que considerasse ingratidão não passasse de fraqueza.

       - Teria direito para a acusar, minha senhora, se eu porventura tivesse desejado alguma coisa e a rainha se opusesse ao meu desejo; mas como quer Vossa Majestade que me queixe, se nunca desejei coisa alguma nem lha pedi?

       - Pois bem, quer que lhe diga, minha cara Andréa, é justamente essa espécie de indiferença que tem pelas coisas deste mundo o que me espanta... Sim, parece-me um ente sobrenatural, uma criatura de outra esfera, arrebatada por um turbilhão, e lançada no meio de nós, como essas pedras depuradas pelo fogo e que não se sabe donde caem. Resulta daqui o grande susto que sentimos da nossa fraqueza ao acharmo-nos em presença daquela que nunca fraquejou; depois de nos tranqüilizarmos, pensamos que a suprema indulgência se acha na suprema perfeição; que é na fonte mais pura que devemos lavar a nossa alma e no momento de uma dor profunda, todos fazem o que acabo de fazer, Andréa: manda-se chamar esse ente sobrenatural, cuja censura se receava, a fim de lhe pedir alguma consolação!

       - Ai de mim! Minha senhora - disse Andréa – se é isso que Vossa Majestade de mim exige, muito receio que o resultado não corresponda às suas esperanças.

       - Andréa, Andréa, esquece as circunstâncias terríveis em que deu lenitivo à minha dor?!

       Andréa empalideceu visivelmente; a rainha vendo-a vacilante e com os olhos fechados, como alguém, a quem as forças abandonam, fez um movimento com o braço para assentá-la no mesmo canapé em que estava, mas Andréa resistiu e continuou a ficar de pé.

       - Minha senhora - disse ela - se Vossa Majestade tivesse compaixão da sua fiel serva, poupar-lhe-ia recordações que ela quase conseguira já repelir de si. Não deve ser boa consoladora quem a ninguém pede consolação, nem sequer a Deus, supondo que Ele não possa consolar certos pesares.

       A rainha fixou em Andréa um olhar límpido e profundo.

       - Certos pesares! - disse ela - pois tem ainda mais alguns pesares além dos que me confiou?

       Andréa não respondeu.

       - Vejamos - continuou a rainha - chegou a ocasião de nos explicarmos, e foi para isso que a mandei chamar... Diga-me, ama o Sr. de Charny?

       Andréa tornou-se pálida como uma defunta, mas continuou a ficar silenciosa.

       - Ama o Sr. de Charny? - repetiu a rainha.

       - Sim, amo - respondeu Andréa.

       A rainha soltou um rugido, semelhante ao da leoa, quando se sente ferida, e disse:

       -Oh! Já desconfiava!... E desde quando o ama?

       - Desde o momento em que o vi.

       A rainha recuou assustada diante de Andréa, que mais parecia uma estátua de mármore.

       - Oh! - disse ela - e deixava-se assassinar?

       - Vossa Majestade sabe-o melhor do que ninguém.

       - Por que motivo?

       - Porque percebi que também o amava.

       - Quer dizer que o amava mais do que eu, por isso que eu nada vi?

       - Ah! - exclamou Andréa com azedume – Vossa Majestade não viu nada, porque ele a amava também!

       - É verdade... E agora vejo a razão por que já me não ama... É isto que quer dizer, não é assim?

       Andréa ficou calada.

       - Responda - disse a rainha tomando-lhe não da mão, mas do braço - responda e confesse que ele já me não ama...

       Andréa não respondeu, nem por palavras, nem por gestos, nem por um único sinal.

       - Na verdade - exclamou Maria Antonieta – isto é para morrer! Mas assassine-me já, dizendo-me que ele já me não ama. Vamos, não me ama não é verdade?

       - O amor ou a indiferença do Sr. de Charny são segredos dele; não me cabe a mim descobri-los – respondeu por fim Andréa.

       -Oh! Os seus segredos! Não são só dele... julgo que ele a constitui sua confidente! - disse a rainha com certa acrimónia.

       - O Sr. de Charny nunca me disse uma única palavra acerca do seu amor ou da sua indiferença por Vossa Majestade.

       - Nem esta manhã?

       - Não vi esta manhã o Sr. de Charny.

       A rainha cravou em Andréa um olhar que parecia querer penetrar-lhe no mais fundo do coração.

       - Quer dizer que ignora a partida do conde?

       - Não é isso que quero dizer, minha senhora.

       - Como sabe então que ele partiu se lhe não falou?

       - Escreveu-me a participar-mo.

       - Ah! - disse a rainha - escreveu-lhe?

       E do mesmo modo que Ricardo III bradara num momento supremo: “A minha coroa por um cavalo!” Maria Antonieta esteve prestes a bradar: “A minha coroa por essa carta!”

       Andréa conheceu logo o ardente desejo da rainha mas quis ter o prazer de deixar um momento a sua rival lutando com a ansiedade.

       - E essa carta que o conde lhe escreveu quando partiu, não a trás consigo?

       - Trago, sim, minha senhora.

       E tirando-a do seio morna e perfumada, Andréa apresentou-a à rainha.

       Esta pegou nela toda convulsa, apertou-a um momento entre os dedos, não sabendo se devia conservá-la, se restituí-la; e olhando para Andréa com os sobrolhos carregados, depois de repelir de si qualquer hesitação, disse:

       - Oh! A tentação é demasiadamente forte!

       E abrindo a carta, chegando-se à luz do candelabro, leu o seguinte:

      

       “Minha senhora.

       Dentro de uma hora sairei de Paris por ordem expressa de Sua Majestade Luís XVI.

       Não posso dizer-lhe onde vou, nem o motivo da minha partida, nem o tempo que me demorarei fora de Paris, circunstâncias estas que provavelmente pouco lhe importarão, mas que muito desejaria comunicar-lhe se para isso me achasse autorizado.

       Ocorreu-me um instante a idéia de a procurar para lhe participar pessoalmente a minha partida, mas não me atrevi a fazê-lo sem a sua licença...”

      

       A rainha sabia o que desejava saber; quis restituir a carta a Andréa, mas esta, como estivesse no caso de mandar e não de obedecer, disse:

       - Leia até ao fim, minha senhora.

       A rainha continuou a leitura.

      

       “Tinha recusado a última missão que se me tinha oferecido, porque julgava então (pobre louco!) que alguma simpatia me retinha em Paris; mas depois, (ai de mim!) adquiri a prova do contrário, e aceitei esta ocasião para me ausentar dos corações a que sou indiferente.

       Se durante esta viagem me acontecer o mesmo que aconteceu ao meu infeliz Jorge, todas as minhas medidas estão tomadas para que seja a primeira a saber do golpe que me feriu, e da liberdade que lhe será restituída. Só então saberá, minha senhora, o grau de profunda admiração que no meu coração produziu a sua sublime dedicação, tão mal recompensada por aquela a quem sacrificou, jovem, bela e nascida para ser feliz, a mocidade, a beleza e o amor.

       Então, minha senhora, tudo quanto peço a Deus e a si, é que conserve uma saudade ao desgraçado, que tão tarde conheceu o valor do tesouro que possuía.

       Todos os respeitos do coração.”

        “Conde Olivier de Charny”.

      

       A rainha tornou a entregar a carta a Andréa, suspirando e deixando pender a mão inerte e quase desanimada.

       - Então, minha senhora - murmurou Andréa - foi atraiçoada?... Faltei porventura, não direi a promessa que lhe fizesse, porque nunca lhe prometi coisa nenhuma, mas à fé e confiança que em mim depositou?

       - Perdoe-me, Andréa - disse a rainha. Tenho sofrido tanto!

       - Tem sofrido, minha senhora! E atreve-se a dizer diante de mim que tem sofrido! E que direi eu?... Oh! Não direi que tenho sofrido, por isso que não quero empregar a mesma palavra de que já se servira outra mulher para exprimir a mesma idéia. Não, ser-me-ia necessária uma palavra inteiramente nova, inaudita, que fosse um resumo de todos os sofrimentos, a expressão de todas as torturas!... Vossa Majestade tem sofrido!... E contudo não viu o homem, a quem amava, indiferente a esse amor, voltar-se de joelhos e com o coração nas mãos para outra mulher... Não viu seu irmão, zeloso dessa outra mulher, que adorava em silêncio, como ama um pagão a sua divindade, bater-se com o homem a quem amava... Não ouviu o homem a quem amava, ferido por seu irmão, de modo que por um momento se julgou mortal, chamar unicamente, no seu delírio, por essa outra mulher, de quem Vossa Majestade fosse confidente... Não viu passar ligeiramente essa outra mulher, como uma sombra, pelos corredores onde Vossa Majestade vagueava também para ouvir esses acentos de delírio, que provavam que, se um amor insensato o fazia sucumbir, acompanhava-o ao menos até à beira do sepulcro... Não viu esse homem, tornando à vida por um milagre da natureza e da ciência, levantar-se do leito para se ir lançar aos pés da sua rival, sim, minha senhora, da sua rival, por isso que em amor, é só pela sua grandeza que se mede a igualdade das classes... Não se retirou então, no meio do seu desespero, na idade de vinte e cinco anos, para um convento, procurando apagar, aos pés gelados do crucifixo, esse amor que a devorava...

       - E quando um dia, depois de um ano de orações, de vigílias, de jejuns, de desejos impotentes, de gritos de dor, Vossa Majestade julgava ter, se não extinta, ao menos adormecida, a chama que a consumia, não viu essa rival, sua antiga amiga, que nada compreendera, que nada adivinhara, vir procurá-la na sua solidão para lhe pedir o quê?... Em nome de uma amizade antiga, que os sofrimentos não puderam alterar, em nome da sua salvação como esposa, em nome da majestade real comprometida, vir pedir-lhe para ser a mulher de quem? Desse homem que no decurso de três anos adorava... Mulher sem marido, bem entendido, simples véu lançado entre as vistas da multidão e a ventura de outrem, do mesmo modo que se vê uma mortalha estendida entre um cadáver e o mundo!... Vossa Majestade não aceitou, não direi por compaixão (o amor zeloso não tem misericórdia, e Vossa Majestade, que me sacrificou, bem o sabe), não aceitou dominada pelo dever, essa imensa dedicação... Não sentiu esse homem meter-lhe no dedo um anel de ouro, o qual, penhor de uma eterna união, não fosse para si mais do que um vão e insignificante símbolo... Não deixou uma hora depois da celebração do matrimónio seu esposo para não o tornar a ver... Senão como amante da sua rival! Ai, minha senhora, minha senhora, os três anos que acabam de decorrer, são, asseguro-lhe, anos sem fim!

       A rainha levantou a mão desfalecida, procurando encontrar a de Andréa, que lha desviava.

       - Nada prometi, e todavia cumpri tudo religiosamente. Vossa Majestade - continuou a desventurada condessa, constituindo-se acusadora - tinha-me prometido duas coisas...

       - Andréa! Andréa! - exclamou a rainha.

       - Tinha-me prometido não tornar sagradamente a ver o Sr. de Charny, promessa tanto mais sagrada, quanto não fui eu que a exigi...

       - Andréa!...

       - Depois também me prometeu (oh! desta vez foi por escrito!), prometeu tratar-me como irmã, promessa esta tanto mais sagrada, quanto não foi por mim solicitada.

       - Andréa!

       - Será necessário que lhe recorde os termos dessa promessa, que me fez num momento solene, num momento em que vinha de lhe sacrificar a minha vida, ainda mais do que a minha vida, o meu amor, isto é, a minha ventura neste mundo e a minha salvação no outro... Sim, a minha salvação no outro, pois que se não pequei por actos, minha senhora, quem me diz que o Senhor me perdoará os meus desejos insensatos, os meus votos ímpios?... Pois bem, nesse momento em que tudo lhe sacrifiquei, Vossa Majestade entregou-me um bilhete, no qual ainda vejo cada letra fulgurar diante dos meus olhos!

       Esse bilhete era assim concebido:

      

       “Andréa, salvou-me; pertence-lhe a minha honra, a minha vida! Em nome do homem que tão caro lhe custa, juro-lhe que pode chamar-me sua irmã... Experimente-o, que não me verá corar.

       Deposito este escrito nas suas mãos; é o penhor do meu reconhecimento, o dote que lhe dou.

       O seu coração é o mais nobre de todos os corações; ele saberá avaliar o mimo que lhe ofereço.”

        “Maria Antonieta.”

      

       A rainha soltou um gemido de abatimento.

       - Sim, percebo - disse Andréa - como queimei esse papel, julgava que o tivesse esquecido; não, minha senhora, não; veja que rememorei cada uma das suas palavras, e parecendo que não se lembrou dele, eu pelo contrário recordo-me cada vez mais!

       - Ah! Perdoe-me, perdoe-me, Andréa! Eu julgava que ele a amava...

       - Julgava então possível a existência de uma tal lei do coração que, por isso que a amava menos, deveria ela amar outra?

       Andréa tinha sofrido tanto, que por sua vez se tornava cruel.

       - Então também conheceu que ele me amava menos? - disse a rainha com a expressão de uma dor profunda.

       Andréa não respondeu: contemplava a rainha consternada, e uma espécie de sorriso se lhe desenhava nos lábios.

       - Mas que hei-de fazer, meu Deus! Que hei-de fazer para conter este amor, isto é, a minha vida, que se extingue?... Oh! Se acaso o sabe, Andréa, minha amiga, minha irmã, diga-mo, suplico-lho!

       E a rainha estendeu as duas mãos para Andréa.

       Andréa recuou um passo.

       - Posso porventura sabê-lo, minha senhora, eu a quem ele nunca amou?

       - Sim, mas pode amar-te... Um dia, pode vir lançar-se a teus pés, fazer uma confissão pública dos seus delitos passados, pedir-te perdão de quanto te fez sofrer... E os sofrimentos esquecem-se tão depressa, meu Deus! nos braços daquele que se ama, o perdão é tão depressa concedido àquele que nos fez padecer!...

       - Pois bem, se acontecesse essa desgraça (sim, desgraça para ambos, minha senhora), não vê que antes de ser mulher do Sr. de Charny, teria um segredo que comunicar-lhe, uma confidência que fazer-lhe? Segredo terrível! Confidência mortal! Que imediatamente assassinaria esse amor, que tanto receio?... Não vê que teria de lhe contar o mesmo que contei já a Vossa Majestade?

       - Dir-lhe-ia que foi violada por Gilberto! Dir-lhe-ia que tem um filho?!

       - Oh! Minha senhora, que conceito faz de mim, julgando-me capaz de ocultar semelhante coisa!

       A rainha respirou.

       - Desse modo - disse ela - nada faria para adquirir o amor do Sr. de Charny?

       - Nada, minha senhora; faria no futuro o mesmo que fiz no passado.

       - Pois nem sequer lhe daria ocasião para reconhecer o seu amor?

       - Não, minha senhora, salvo se ele mesmo me desse a conhecer o seu, isto é, se me dissesse que me amava.

       - E se lhe disser que a ama, se a senhora lhe disser que o ama, jura-me...

       - Oh! Minha senhora - exclamou Andréa interrompendo a rainha.

       - Sim - disse a rainha - sim, tem razão, Andréa, minha irmã, minha amiga, tem razão; eu é que sou muito injusta, muito exigente, muito cruel... Oh! Mas quando tudo me abandona, poder, reputação, amigos, oh! quisera ao menos que esse amor, ao qual sacrifiquei amigos, reputação, poder, quisera ao menos que esse amor me não abandonasse.

       - E agora, minha senhora - disse Andréa com a frieza glacial que só a abandonara ao falar das torturas que sofrera - tem mais alguns esclarecimentos que dar-me, mais algumas ordens que transmitir-me?

       - Não, nada mais, obrigada... Queria restituir-lhe a minha amizade, e a condessa recusa... Adeus, Andréa, leva ao menos consigo o meu reconhecimento.

       Andréa fez um gesto com a mão, que parecia repelir esse segundo sentimento, como já repelira o primeiro, e depois de uma fria e profunda reverência, saiu vagarosa e em silêncio como se fosse uma aparição.

       - Oh! Tu tens razão, corpo de gelo, coração de diamante, alma de fogo, tens razão em recusar o meu reconhecimento e a minha amizade; sinto-o profundamente, peço perdão a Deus, mas aborreço-te, odeio-te... Como ainda não odiei pessoa nenhuma! Porquanto, se ele ainda te não ama, decerto te amará um dia!

       Depois, chamando Weber, perguntou:

       - Viste o Dr. Gilberto?

       - Sim, minha senhora - respondeu o criado.

       - A que horas ficou ele de vir?

       - Às dez da manhã.

       - Está bem, Weber; previne as minhas damas que me deitarei esta noite sem o seu auxílio, e que, doente e cansada, desejo que me deixem dormir amanhã até às dez horas... A primeira e única pessoa que receberei será o Dr. Gilberto.

 

O padeiro francês

       Não procuraremos descrever como decorreu aquela noite para as duas mulheres.

       Só pelas nove horas da manhã encontraremos de novo a rainha, com os olhos afogueados pelas lágrimas, com as faces pálidas pela insónia; às oito horas, isto é, quase no começo do dia (era no triste período do ano, em que os dias são pequenos e sombrios); às oito horas, levantara-se da cama, onde procurara debalde o descanso, durante as primeiras horas da noite, e onde, no correr das últimas, apenas tivera um sono febril e agitado.

       Ninguém se atrevera a entrar no seu quarto, mas sentia as idas e vindas, os súbitos ruídos, os rumores prolongados, que anunciavam que alguma coisa de insólito se passava no exterior.

       Foi nesse momento que a rainha, já vestida, ouviu as nove horas.

       No meio de toda aquela bulha confusa, que parecia prolongar-se pelos corredores, distinguiu a voz de Weber, que reclamava silêncio.

       Chamou então o fiel criado.

       O ruído cessou imediatamente.

       Abriu-se a porta.

       - Que há de novo, Weber? - perguntou a rainha; - o que se passa no palácio, e que significam todos esses rumores?

       - Minha senhora, parece que há algum motim para o lado da cidade.

       - Algum motim! - disse a rainha. - Qual é o motivo?

       - Ainda se ignora; diz-se que o alvoroço é por causa do pão.

       Noutro tempo não se persuadiria a rainha que houvesse gente que morresse de fome; mas depois que, durante a viagem de Versalhes, ouvira o delfim pedir-lhe pão, sem que ela pudesse dar-lho, compreendeu o que fosse a miséria e a fome.

       - Pobre gente! - murmurou ela, recordando-se das palavras que ouvira no trânsito, e da explicação que Gilberto dera dessas palavras; - ele bem vê agora que não é por culpa do padeiro nem da padeira que não tem pão.

       Depois, em voz alta, perguntou:

       - E receia-se que esses alvoroços se tornem graves?

       - Não posso dizê-lo a Vossa Majestade; os boletins são contraditórios - respondeu Weber.

       - Pois bem - replicou a rainha - corre à cidade, Weber; não fica daqui muito longe; vê com os teus próprios olhos o que se passa, e vem dizer-mo.

       - E o Sr. Dr. Gilberto? - perguntou submissamente o criado.

       - Previne Champan ou Miséry de que o estou esperando; qualquer delas que o introduza.

       Em seguida soltou esta última frase, no momento em que Weber se retirava:

       - Recomenda bem que o não façam esperar, Weber; ele, que tudo sabe, nos informará do que se passa.

       Weber saiu do castelo, ganhou o postigo do Louvre, dirigiu-se à ponte, e guiado pelos clamores, seguindo a vaga que rolava em direcção ao arcebispado, chegou à praça de Nossa Senhora.

       À medida que se aproximava da cidade velha, via engrossar a multidão; os clamores cada vez se tornavam mais enérgicos.

       No meio daqueles gritos, ou para melhor dizer, daqueles berros, ouviam-se dessas vozes que se ouvem somente no Céu em dias de tempestade, e na terra em dias de revolução; ouviam-se vozes que gritavam:

       - É um esfaimador!... morra!... à lanterna! à lanterna!

       E milhares de vozes, que nem sequer sabiam do que se tratava, e entre as quais se distinguiam a das mulheres, repetiam cheias de confiança, e na esperança de ver um desses espectáculos que fazem saltar de alegria o coração das multidões:

       - É um esfaimador! morra! à lanterna!

       De repente sentiu-se Weber impelido por um desses violentos abalos, como acontece numa grande massa de homens fendida por uma torrente; viu surdir da rua Chanoinesse uma vaga humana, uma catadupa vivaz, no meio da qual se agitava um desgraçado, pálido e com o fato todo rasgado.

       Era contra ele que o povo corria; era contra ele que se elevavam aqueles clamores, aquelas ameaças, aqueles berros.

       Um único homem o defendia contra aqueles canibais, um único homem fazia um dique àquela torrente humana.

       Esse homem, que empreendera uma tarefa de compaixão, muito superior às forças de dez, vinte, cem homens, era Gilberto.

       Verdade é que alguns da multidão, tendo-o reconhecido, principiavam a bradar:

       - É o Dr. Gilberto, um patriota... O amigo do Sr. de Lafayette e do Sr. Bailly... Ouça-se o Dr. Gilberto!

       A estes brados seguiu-se um momento de silêncio, uma espécie de calmaria passageira que se espalhou sobre as ondas no meio de duas rajadas.

       Weber aproveitou-se deste interregno para se dirigir ao doutor, o que conseguiu com bastante custo.

       - Sr. Dr. Gilberto! - disse o criado particular da rainha.

       Gilberto voltou-se para o lado donde vinha esta voz.

       - Ah! - disse ele - é você, Weber?

       E fazendo-lhe sinal para se aproximar mais, disse-lhe em voz baixa:

       - Vá dizer à rainha que talvez vá mais tarde do que esperava ir: estou tratando de salvar este homem.

       - Oh! Sim - disse o desgraçado ouvindo estas últimas palavras - o senhor há-de salvar-me, não é assim, doutor?... Diga-lhes que sou inocente; diga-lhes que minha mulher anda de esperanças... juro-lhe que não escondi nem sequer um pão, Sr. doutor!

       Porém, como se aqueles queixumes e aquelas súplicas do desgraçado tivessem posto novamente fogo à raiva e à cólera, já meia extinta, da multidão, os gritos aumentaram com mais força e as ameaças iam-se convertendo em vias de facto.

       - Meus amigos! - bradou Gilberto lutando com uma força sobre-humana contra os furiosos – este homem é um francês, um cidadão como vós; não se pode nem se deve assassinar um homem sem o ouvir... Conduzam-no ao distrito, e depois veremos o que se deve fazer.

       - Sim - gritaram algumas vozes dos que conheciam o doutor.

       - Sr. Gilberto - disse Weber - sustente o seu posto; eu vou prevenir os oficiais do distrito... O distrito não é longe; dentro de cinco minutos estarei aqui.

       E desapareceu por entre a multidão, sem esperar sequer a aprovação de Gilberto.

       Todavia, quatro ou cinco pessoas tinham corrido em auxílio do doutor e feito com os seus corpos uma espécie de trincheira ao infeliz ameaçado pelo encarniçamento da multidão.

       Aquela trincheira, conquanto bastante frágil, conteve momentaneamente aqueles assassinos, que continuavam a cobrir com os seus clamores a voz de Gilberto e a dos bons cidadãos que se tinham unido a ele.

       Felizmente, passados cinco minutos, divisou-se um movimento na multidão, seguindo-se um murmúrio, que foi traduzido por estas palavras:

       - Os oficiais do distrito! Os oficiais do distrito!

       À vista deles cessaram as ameaças; desviou-se a populaça, os assassinos ainda provavelmente não tinham recebido o santo.

       O desgraçado foi conduzido à casa da câmara.

       Agarrou-se ao doutor e não queria deixá-lo.

       Ora, quem era aquele homem?

       Vamos dizê-lo.

       Era um pobre padeiro chamado Dionísio Francisco, o mesmo, cujo nome já pronunciámos, que fornecia pãezinhos aos membros da Assembléia.

       Uma velha entrara naquela manhã na sua loja da rua do Marché-Palu, no momento em que ele acabava de distribuir a sexta fornada de pão, e em que começava a cozer a sétima.

       A velha pediu pão.

       - Não o há cozido - disse Francisco - mas espere pela sétima fornada, e será servida com preferência aos demais.

       - Quero-o imediatamente - respondeu ela – aqui está o dinheiro.

       - Repito-lhe que não há mais pão cozido.

       - Deixe-me ver.

       - Oh! - disse o padeiro - entre, veja, procure... não lhe ponho obstáculos.

       A velha entra, procura, fareja, indaga, abre um armário, e acha três pães duros de quatro arráteis cada um, que os moços tinham guardado para si.

       Lança mão de um, sai sem pagar, e como o padeiro reclamasse, amotina o povo gritando que Francisco é um esfaimador e que esconde metade das fornadas.

       O grito de esfaimador designava a uma morte quase infalível àquele que lhe dava causa.

       Um antigo recrutador de dragões, chamado Fleur-d’Epine, que bebia numa taberna fronteira, sai à rua e com voz de bêbedo repete o grito que a velha tinha soltado.

       Àquele duplo grito o povo corre, logo amotinado; informa-se do negócio de que se tratava, repete também os gritos já encetados, precipita-se na loja do padeiro, força a guarda de quatro homens que a polícia postara à porta, espalha-se pelo interior da casa, e entre os dois pães duros que a velha anunciara, encontra umas dez dúzias de pãezinhos moles reservados para os deputados, que celebravam as suas sessões no arcebispado, isto é a uns cem passos dali.

       Desde logo, o pobre homem é condenado; não é uma só voz, são cem mil que gritam! É um esfaimador! É um esfaimador!

       Uma grande multidão berra: à lanterna!

       Naquele momento o doutor, que vinha de visitar o filho, que pusera em casa do abade Brardier, no colégio de Luís o Grande, foi atraído por aquele motim; vê o povo em massa que pede a morte de um homem, e corre logo em socorro desse homem que querem assassinar.

       Ali, por algumas palavras de Francisco, sabe do que se trata; reconhece a inocência do padeiro, e decide-se a defendê-lo.

       Então os amotinados tinham arrostado consigo, tanto o infeliz que ameaçavam, como o seu defensor, cobrindo-os a ambos com o mesmo anátema, e prestes a assassiná-los com o mesmo golpe.

       Foi nesse momento que Weber, enviado pela rainha, chegara à praça de Nossa Senhora e conhecera Gilberto.

       Já vimos que depois da retirada de Weber tinham chegado os oficiais do distrito, e que o infeliz padeiro fora conduzido, escoltado por eles, à casa da câmara.

       Tanto o acusado, como a guarda do distrito e a populaça irritada, tinham entrado em confusão na casa da câmara, cujo largo se enchera logo de operários sem trabalho, e de miseráveis que morrendo de fome, estavam sempre dispostos a tomar parte em todos os tumultos, e a fazer participar aqueles que fossem a causa da miséria pública, de uma parte do mal que sofriam.

       Foi por isso que os gritos aumentaram logo que o malfadado Francisco desapareceu por baixo do portão da casa da câmara.

       Vários indivíduos de feia catadura incitavam a chusma, dizendo a meia voz:

       - É um esfaimador pago pela corte, e aí está a razão por que o querem salvar.

       E estas palavras: “É um esfaimador! É um esfaimador!” serpeavam entre aquela populaça ávida de sangue, como uma mecha de artifício, acendendo todos os ódios, deitando fogo a todas as cóleras.

       Por desgraça ainda era cedo e nenhum dos homens que tinha poder no povo, nem Bailly, nem Lafayette, estavam presentes.

       Bem o sabiam os que repetiam no meio dos grupos: “É um esfaimador! É um esfaimador!”

       Enfim, como não vissem aparecer de novo o acusado, os gritos converteram-se num imenso urro, as ameaças num uivo geral.

       Os homens, de que há pouco falámos, introduziram-se por baixo do portão, treparam ao longo da escada, e penetraram até à sala onde estava o pobre padeiro, a quem Gilberto defendia o melhor que lhe era possível.

       Da sua parte, os vizinhos de Francisco, atraídos pelo tumulto, certificavam que ele dera, desde o princípio da revolução, as maiores provas de zelo, cozendo até dez fornadas por dia; que, quando os seus colegas não tinham farinha, os fornecia da sua; que, para servir mais prontamente o público, além do seu forno, alugara o de um pasteleiro, onde fazia secar a lenha.

       No fim dos depoimentos foi demonstrado que, em lugar de castigo, o homem merecia uma recompensa.

       Porém, no largo, nas escadas e até na sala, continuavam a gritar: “esfaimador!” e a pedir a cabeça do criminoso.

       De repente, uma irrupção inesperada na sala, rompendo a ala da guarda nacional que cercava Francisco, separa-o dos seus protectores, e Gilberto, rechaçado do lado do tribunal improvisado, vê estenderem-se vinte braços... Agarrado, arrastado, fisgado por eles, o acusado clama por socorro, estende as mãos suplicantes, mas tudo inútil!... Debalde Gilberto faz um esforço desesperado para se aproximar dele; a abertura pela qual o infeliz desaparece fecha-se a pouco e pouco sobre ele; como um nadador, impelido por um turbilhão, ainda lutou um instante com as mãos hirtas, com o desespero nos olhos, com a voz sufocada na garganta; depois a onda cobriu-o, o abismo engoliu-o...

       Desde esse momento estava para sempre perdido.

       Rolando do alto da escada, a cada degrau recebia uma ferida; quando chegou ao portão, já o corpo era todo uma chaga.

       Já não é a vida que pede, é a morte.

       Onde se ocultava pois a morte, que tão prontamente aparecia naquela época?

       Num segundo a cabeça do mesquinho Francisco foi separada do corpo e espetada na ponta de um chuço.

       Aos gritos da rua, os amotinados que se acham nas escadas e nas salas precipitam-se uns após outros; é necessário que vejam o espectáculo até ao fim.

       É muito curioso ver uma cabeça espetada na ponta de uma lança; ainda se não tinha visto outra desde 6 de Outubro e já se estava a 21!

       - Oh! Billot! Billot! -exclamou Gilberto fugindo para fora da sala - como és feliz em ter saído da capital!

       Acabava de atravessar a praça de Grève, seguindo a margem do Sena, deixando desviar-se pela ponte de Nossa Senhora aquela lança, aquela cabeça ensangüentada, e o seu perigoso cortejo, quando no meio do cais Pelletier sentiu que lhe tocavam no braço.

       Levantou a cabeça, soltou um grito, quis parar e falar; mas o homem, que conheceu, meteu-lhe um bilhete na mão, levou um dedo aos lábios, e dirigiu-se logo para o lado do arcebispado.

       Este personagem queria decerto guardar o incógnito, mas foi observado por uma das mulheres do mercado, que bateu as palmas exclamando:

       - Olá! É a nossa mãezinha Mirabeau!

       - Viva Mirabeau! gritaram quinhentas vozes: viva o defensor do povo! Viva o orador patriota!

       E a cauda do cortejo, que seguia a cabeça do infeliz Francisco, ouvindo este brado, voltou-se e fez escolta a Mirabeau, que uma multidão imensa acompanhou, gritando sempre, até à porta do arcebispado.

       Era, com efeito, Mirabeau que, dirigindo-se à Assembléia, encontrara Gilberto, e lhe entregara um bilhete, que acabara de escrever para ele sobre o balcão de uma taberna, e que se dispunha a enviar-lhe a casa.

 

O partido que se pode tirar de uma cabeça cortada

       Gilberto leu rapidamente o bilhete que ocultamente lhe entregara Mirabeau; leu-o mais pausadamente uma segunda vez, meteu-o no bolso do colete, e chamando um carro deu ordem ao cocheiro para que o conduzisse às Tulherias. Chegado ali, achou fechadas todas as grades, e sentinelas dobradas por ordem de Lafayette, o qual, sabendo que havia desordem em Paris, começara por se ocupar da segurança do rei e da rainha, dirigindo-se depois ao local da desordem.

       Gilberto deu-se a conhecer ao porteiro da rua de l’Echelle e penetrou logo nos aposentos reais.

       Assim que a Srª. Campan o avistou, correu logo ao seu encontro, como lhe fora ordenado, introduzindo-o sem a menor demora. Weber, para obedecer à rainha, tinha voltado em busca de notícias.

       À vista de Gilberto, a rainha deu um grito.

       Uma parte do vestuário do doutor sofrera bastante na luta que sustentara, a fim de salvar o desventurado Francisco, e algumas gotas de sangue lhe salpicavam a camisa.

       - Senhora - disse ele - peço perdão a Vossa Majestade de me apresentar neste desalinho; mas já que mau grado meu, a fiz esperar tanto tempo, não quis que Vossa Majestade se impacientasse.

       - E o pobre desgraçado, Sr. Gilberto?

       - Já não existe, senhora; assassinaram-no, despedaçaram-no!

       - Era criminoso?

       - Não, senhora.

       - Oh! Aí estão os frutos da sua revolução, doutor! Depois de assassinarem os grandes, os funcionários, os guardas, ei-los que assassinam também os seus!... Mas não haverá meio de castigar esses assassinos?

       - Ocupar-nos-emos disso, senhora; mas fora melhor evitar o crime, do que puni-lo.

       - E de que modo se poderá isso conseguir? Tanto o rei como eu muito o desejamos.

       - Senhora, todas estas desgraças provêm de uma grande desconfiança do povo para com os que governam. Ponham-se à testa do governo que tenham a confiança pública, e asseguro a Vossa Majestade que tais desordens se não repetirão mais.

       - Ah! Sim, o Sr. de Mirabeau e o Sr. de Lafayette, não é assim?

       - Julguei que Vossa Majestade me mandara chamar para me dizer que obtivera de el-rei que deixasse de hostilizar a combinação que lhe propus.

       - Em primeiro lugar, doutor - disse a rainha – devo declarar-lhe que cai num grande erro (erro contudo, em que muitos também caem): julga que tenho grande influência em el-rei; julga que ele segue as minhas inspirações; engana-se... Se alguém tem essa influência, é a princesa Isabel, e não eu: e a prova é que ainda ontem encarregou ele de uma comissão um dos meus servidores, o Sr. de Charny sem que eu saiba, nem onde vai, nem o objecto dessa comissão.

       - E, contudo, se Vossa Majestade quisesse vencer a repugnância que tem pelo Sr. de Mirabeau, asseguro-lhe que havia de resolver el-rei a anuir aos meus desejos.

       - Ora vamos, Sr. Gilberto - replicou a rainha com vivacidade - diga-me francamente se a repugnância que em mim nota não é bastante motivada?

       - Em política, senhora, não deve haver nem simpatias nem antipatias; deve haver conformidade de princípios ou combinação de interesses; e devo dizer a Vossa Majestade, para vergonha dos homens, que as combinações de interesses são ainda mais sólidas do que a conformidade de princípios.

       - Doutor, acaso sustentará seriamente que devo confiar-me a um homem que promoveu os dias 5 e 6 de Outubro e pactuar com um orador, que publicamente me insultou no tribunal?

       - Acredite Vossa Majestade que não foi Mirabeau quem promoveu os dias 5 e 6 de Outubro; mas sim a fome, a necessidade, a miséria, que encetaram a obra do dia; foi um braço potente, misterioso, terrível, que promoveu a obra da noite... Talvez que um dia possa defendê-la dessa tenebrosa potência, que não só a persegue, mas a todas as testas coroadas, que não só ameaça o trono de França, mas ainda todos os tronos da terra! É tão verdade, senhora, que Mirabeau não teve parte nessas terríveis jornadas, como é verdade ter eu a honra de pôr aos pés de Vossa Majestade e de el-rei a minha própria vida; Mirabeau soube unicamente na assembléia, talvez um pouco antes do que os seus colegas, por um bilhete que lhe foi enviado, que o povo marchava sobre Versalhes.

       - Negará também o que é público, isto é, o insulto que ele me fez na tribuna?

       - Senhora, Mirabeau é um desses homens que conhecem o seu próprio valor, e que se exasperam quando, reconhecendo a sua capacidade e o auxílio que podem prestar, os reis se obstinam em não querer utilizá-los... Sim, senhora, para que Vossa Majestade volva os olhos para ele, empregará Mirabeau até a injúria; por isso que há-de preferir que a ilustre filha de Maria Teresa, rainha e mulher, lance sobre ele um olhar de indignação, do que deixe absolutamente de olhar para ele.

       - Desse modo, Sr. Gilberto, julga que esse homem consentiria em voltar-se para nós?

       - Já o está, senhora. Quando Mirabeau se separa da realeza, é como um cavalo que se desvia do verdadeiro trilho para voltar a ele, logo que sente a força do freio e a roseta da espora.

       - Mas uma vez que já pertence ao duque de Orleans, não pode pertencer a mais ninguém.

       - Eis onde está o erro.

       - Pois Mirabeau não pertence ao duque de Orleans? - perguntou a rainha.

       - Pertence tão-pouco ao Sr. duque de Orleans que, quando soube que o príncipe se retirara para Inglaterra diante das ameaças de Lafayette, disse, amarrotando nas mãos o bilhete do Sr. de Lauzun, que lhe anunciara essa retirada: “Julgam que esse homem seja meu amo, quando eu nem para lacaio o quisera!”

       - Vamos, isso reconcilia-me um pouco com ele - disse a rainha procurando sorrir - e se julgasse que se podia contar seriamente com ele...

       - Então?

       - Então, talvez não tivesse tanta repugnância, como tem el-rei, de o chamar para junto de mim...

       - Senhora, no dia seguinte àquele em que o povo conduziu Vossa Majestade e a real família de Versalhes para Paris encontrei o senhor de Mirabeau.

       - Ébrio com o seu triunfo da véspera, não é verdade?

       - Assustado dos perigos que a família real corria e dos que ainda podia correr.

       - Com efeito!... Tem a certeza disso? – perguntou a rainha como duvidando.

       - Quer Vossa Majestade que lhe repita as mesmas palavras que ele me disse?

       - Sim, faça-me esse favor.

       - Pois bem! Ei-las: gravei-as na memória esperando que um dia teria ocasião de repeti-las a Vossa Majestade: “Se tem algum meio de se fazer entender do rei e da rainha, persuada-os que tanto eles como a França estão perdidos, se a família real não sai de Paris. Eu ocupo-me de um plano para os fazer sair. Poderia o senhor assegurar-lhes que podem contar comigo?”

       A rainha tornou-se pensativa.

       - Desse modo - disse ela - o parecer de Mirabeau é também que deixemos Paris?

       - Nessa época era esse o seu parecer.

       - Então mudou depois?

       - Sim, se dermos crédito a um bilhete que recebi haverá meia hora.

       - De quem?

       - Dele mesmo.

       - Pode-se ver esse bilhete?

       - É dirigido a Vossa Majestade.

       E Gilberto tirou o bilhete do bolso.

       - Vossa Majestade desculpará a insuficiência do papel; foi escrito numa taberna.

       - Oh! Não importa... Tudo está em harmonia com a política do dia.

       A rainha pegou no papel e leu:

      

       “O acontecimento de hoje muda tudo de face.

       Pode tirar-se um grande partido daquela cabeça cortada.

       A assembléia terá medo e pedirá a lei marcial.

       Mirabeau pode apoiar e fazer votar essa lei.

       Mirabeau pode sustentar que não há segurança sem que se restitua a força ao poder executivo.

       Mirabeau pode atacar o Sr. de Necker sobre as subsistências e derrubá-lo.

       Em lugar do ministério Necker, que formem um ministério Mirabeau e Lafayette; Mirabeau responde por tudo”.

       - Mas este bilhete não está assinado?

       - Não tive a honra de dizer a Vossa Majestade que foi o próprio Mirabeau que mo entregou?

       - O que diz a tudo isto?

       - A minha opinião, senhora, é que Mirabeau tem muita razão, e que só a aliança que propõe pode salvar a França.

       - Seja assim... Que Mirabeau me envie pelo senhor uma memória acerca da situação e um projecto de ministério; eu apresentarei tudo a el-rei.

       - E Vossa Majestade apoiá-lo-á?

       - Sim.

       - Então como primeiro penhor dado à realeza, Mirabeau poderá sustentar a lei marcial e pedir que a força seja dada ao poder executivo?

       - Pode fazê-lo.

       - Em troca, no caso em que a queda do Sr. de Necker se torne urgente, não será desfavoravelmente recebido um ministério Lafayette-Mirabeau?

       - Por mim, decerto que não... Quero provar que estou pronta a sacrificar todos os meus sentimentos pessoais ao bem do Estado. Somente, bem o sabe, não respondo por el-rei.

       - Ajudar-nos-á o Sr. conde de Provença neste negócio?

       - Creio que o Sr. conde de Provença tem projectos seus que o impossibilitarão de auxiliar os estranhos.

       - E... desses projectos do Sr. de Provença, não tem Vossa Majestade a menor idéia?...

       - Creio que é da primeira idéia de Mirabeau, isto é, que o rei deve sair de Paris.

       - Vossa Majestade autoriza-me a dizer a Mirabeau que a memória e o projecto de ministério são exigidos por Vossa Majestade?

       - Constituo o Sr. Gilberto juiz das conveniências que deve guardar diante de um homem que só desde ontem é nosso amigo e que amanhã pode tornar-se outra vez nosso inimigo.

       - Ah! A esse respeito confie em mim, senhora; mas como as circunstâncias são graves, não há tempo a perder; permita-me pois que vá à Assembléia e que procure ver Mirabeau hoje mesmo. Se o vir, dentro de duas horas terá Vossa Majestade uma resposta.

       A rainha fez um gesto de assentimento e despedida e Gilberto saiu. Num quarto de hora estava ele na Assembléia.

       A Assembléia achava-se muito agitada, em conseqüência do crime que se cometera às suas portas, e na pessoa de um homem que de algum modo era seu servidor.

       Mirabeau era o único que se conservava imóvel no seu lugar. Aguardava alguém e tinha os olhos fixos na tribuna pública.

       Quando viu Gilberto, a sua figura de Leão reanimou-se.

       Gilberto fez um sinal a que ele respondeu por um movimento de cabeça.

       Seguidamente Gilberto rasgou uma página do seu livrinho de lembranças e escreveu:

      

       “As suas propostas foram acolhidas, senão pelas duas partes, ao menos pela que julgávamos mais influente.”

       “Exige-se uma memória para amanhã, e um projecto de ministério para hoje.”

       “Faça restituir a força ao poder executivo e o poder executivo contará com o conde”.

      

       Depois dobrou o papel em forma de carta e escreveu no sobrescrito: “Ao Sr. de Mirabeau.” Chamou o contínuo e mandou a carta ao seu destino.

       Da tribuna, onde estava, viu entrar o contínuo na sala; viu-o dirigir-se ao deputado de Aix, e entregar-lhe o bilhete.

       Mirabeau leu com ar de tão profunda indiferença, que fora impossível à pessoa que lhe estava mais próxima perceber que aquele bilhete correspondia aos seus mais ardentes desejos; e com a mesma indiferença traçou algumas linhas em meia folha de papel que tinha diante de si; dobrou-a negligentemente, e sempre com a mesma aparente indiferença entregou-a ao contínuo, dizendo:

       - Para a pessoa que lhe deu o bilhete que me trouxe.

       Gilberto abriu o papel com avidez.

       Continha estas poucas linhas que talvez encerrassem em si outro futuro para a França, se o plano que elas propunham pudesse ser levado à execução:

      

       “Falarei.”

       “Amanhã mandarei a memória.”

       “Eis a lista exigida. Podem ser alterados dois ou três nomes:

       Necker, primeiro ministro...”

      

       Este nome fez quase duvidar Gilberto de que o bilhete fosse escrito por Mirabeau.

       Mas como uma nota metida entre dois parêntesis se seguia a este nome, assim como aos demais, continuou:

      

       “Necker primeiro ministro (é necessário torná-lo tão fraco quanto tem de incapaz, conservando contudo o rei a sua popularidade).

       “O arcebispo de Bordéus chanceler (recomendando-se-lhe que escolha com esmero os seus redactores). O duque de Liancourt para a Guerra (é honrado,firme e pessoalmente afeiçoado a el-rei, o que dará a este toda a segurança).

       “O duque de La Rochefoucauld para a casa real e cidade de Paris (Thouret com ele).

       “O conde de La Marck para a marinha (não pode ficar com a repartição da guerra, que tem de ser dada ao Sr. de Liancourt; o Sr. de La Marck tem fidelidade,carácter e resolução).

       “O bispo de Autun, ministro das finanças (a sua moção eclesiástica adquiriu-lhe este lugar. Laborde com ele).

       “O conde de Mirabeau conselheiro do rei, sem pasta (os pequenos escrúpulos de respeito humano já não são da época; o governo deve afirmar bem alto que os seus primeiros auxiliares serão de hoje em diante os bons princípios, o carácter e o talento).

       “Target, maire de Paris (a rábula o guiará).

       “Lafayette, do conselho, marechal de França, generalíssimo, com a missão de reformar o exército.

       “O Sr. de Montmorin, governador duque e par (pagas as suas dívidas).

       “O Sr. de Ségur (da Rússia) nos negócios estrangeiros.

       “O Sr. Moussier para a biblioteca do rei.

       “O Sr. Chapellier, edifícios”.

      

       Por baixo desta nota estava escrita outra:

      

        “Parte de Lafayette:

       “Ministro da justiça, o duque de Rochefoucauld.

       “Ministro dos negócios estrangeiros, o bispo de Autun.

       “Ministro das finanças, Lambert, Haller ou Clavières.

       “Ministro da marinha...”

      

        “Parte da rainha:

       Ministro da guerra ou da marinha, La Marck.

       “Chefe do conselho de instrução e educação pública o abade Sieyès.

       Guarda do selo privado do rei...”.

      

       Esta segunda nota indicava evidentemente as modificações que podiam fazer-se na combinação proposta por Mirabeau, sem causar obstáculo às suas vistas.

       Tudo isto estava escrito com letra ligeiramente tremida, o que provava que Mirabeau, conquanto indiferente na aparência, sentia interiormente uma certa comoção.

       Gilberto leu rapidamente, rasgou uma nova folha do livrinho de lembranças, e nela escreveu as seguintes linhas:

      

       “Vou procurar de novo a dona da casa que pretendemos alugar, e mostrar-lhe-ei as condições que oferece para ficar com a casa e para lhe fazer os reparos de que carece.”

       “Mande-me dizer a minha casa, na rua de Saint-Honoré, por cima da Assunção, defronte de um marceneiro, chamado Duplay, o resultado da sessão, logo que ela termine”.

      

       Sempre ávida de movimento e de agitação, esperando combater por meio de intrigas políticas as paixões do coração, a rainha esperava com impaciência a volta de Gilberto, escutava a nova narração que Weber lhe fazia.

       A narração era o terrível desenvolvimento da horrível cena, cujo princípio Weber observara, e cujo fim acabava de presenciar.

       Enviado pela rainha a colher novas informações, chegara à extremidade da ponte de Nossa Senhora, ao passo que na outra extremidade aparecia o sangrento cortejo, trazendo como estandarte de morte a cabeça do pobre padeiro, a qual, por uma dessas irrisões populares, com que já tinham enfeitado as cabeças dos guardas do corpo, na ponte de Sevres, também fora enfeitada com um barrete de algodão por um assassino mais faceto do que os outros.

       A meio da ponte, uma mulher ainda moça, pálida, espavorida, banhada em suor, e que, apesar de um começo de gravidez, corria tão veloz quanto lhe era possível para a casa da câmara, parou ali como extasiada.

       Aquela cabeça, cujas feições ainda não tinha podido distinguir, produzira nela ainda mesmo de longe o efeito terrível do raio!

       Mas, à medida que a cabeça se aproximava, era fácil de ver, pela decomposição das feições da pobre criatura, que ainda não estava de todo petrificada.

       Quando o horrível troféu estava apenas a vinte passos de distância, soltou um grito, estendeu os braços com um movimento desesperado, e como se os pés se lhe desprendessem da terra, caiu meia morta sobre a ponte.

       Levaram-na dali sem sentidos.

       Era a mulher de Francisco, grávida de cinco meses!

       - Oh! Meu Deus! - murmurou a rainha - é uma lição que ensinais à vossa humilde serva, para lhe provar que há entes ainda mais desgraçados do que ela.

       Neste momento entrou Gilberto, introduzido pela Srª. Campan, que substituíra Weber na guarda da porta real.

       Encontrou, não a rainha, mas sim a mulher, isto é, a esposa, a mãe oprimida sob o peso daquela narrativa, que duas vezes lhe traspassara o coração.

       A disposição não podia ser melhor, por isso que Gilberto, segundo a sua opinião, vinha oferecer o meio de pôr termo a todos aqueles assassínios.

       E por isso a rainha, limpando os olhos marejados de lágrimas, e o rosto, donde gotejava copioso suor, tomou das mãos de Gilberto a lista que lhe levava.

       Mas antes de lançar os olhos sobre o papel, conquanto ele fosse importante, disse:

       - Weber, se essa pobre mulher não morreu, quero vê-la amanhã, e se com efeito está grávida, quero ser madrinha do filho.

       - Ai, senhora, senhora! - exclamou Gilberto – por que não hão-de presenciar todos os franceses, como eu presencio, as lágrimas que Vossa Majestade verte, e ouvir as palavras que acaba de proferir!

       A rainha estremeceu; eram aquelas aproximadamente as mesmas palavras, que em circunstâncias não menos críticas lhe dirigira Charny.

       Lançou um rápido olhar sobre a nota de Mirabeau; mas muito perturbada naquele momento para dar uma resposta conveniente, disse:

       - Está bem, doutor, deixe-me esta nota; hei-de reflectir e amanhã lhe darei a resposta.

       Depois, talvez sem saber o que fazia, estendeu para Gilberto a mão, que este, todo admirado, mal tocou com as pontas dos dedos e com os lábios.

       Era já uma terrível conversão para uma mulher tão altiva como Maria Antonieta o discutir um ministério de que faziam parte Mirabeau e Lafayette, e dar a mão a beijar ao Dr. Gilberto.

       Às sete horas da noite um criado sem libré entregou a Gilberto o seguinte bilhete:

      

       “A sessão foi bastante acalorada.”

       “Votou-se a lei marcial.”

       “Buzet e Robespierre queriam a criação de um grande tribunal.”

       “Fiz decretar que os crimes de leza-nação (é termo novo, que acabamos de inventar) seriam julgados pelo tribunal real do Châtelet.”

       “Sem subterfúgio algum, coloquei na realeza a salvação da França, e os três quartos da Assembléia aplaudiram-me.”

       “Estamos em 21 de Outubro e parece-me que a realeza tem andado bem desde o dia 6.”

        “Vale et me ama”

      

       O bilhete não estava assinado, mas era de letra igual à da nota ministerial e à do bilhete que recebera de manhã, o que vinha a ser a mesma coisa, por isso que aquela letra era de Mirabeau.

 

O Châtelet

       Para que bem se compreenda todo o alcance do triunfo que Mirabeau acabava de alcançar, e por conseqüência a realeza, da qual se constituíra mandatário, cumpre explicar aos nossos leitores o que era o Châtelet.

       Além de que, uma das primeiras sentenças vai dar matéria a uma das mais terríveis cenas que se passaram na praça de Grève, no decurso do ano de 1790, cena que, não sendo estranha ao nosso objecto, terá infalivelmente lugar na continuação desta história.

       O Châtelet, depois do século XIII tivera grande importância histórica, não só como tribunal, senão também como prisão, recebeu do bom rei Luís IX todo o poder que exerceu pelo espaço de cinco séculos.

       Outro rei, Filipe Augusto, era um monarca edificador.

       Construiu o templo de Nossa Senhora.

       Fundou os hospitais da Trindade, de Santa Catarina e de S. Nicolau do Louvre.

       Calçou as ruas de Paris, as quais, cobertas de lama, o impossibilitavam pelo seu mau cheiro - segundo diz o cronista - de chegar à janela.

       Dispunha, na verdade, de um grande recurso para todas essas despesas, recurso que os seus sucessores desgraçadamente esgotaram: eram os judeus.

       Em 1189 foi acometido da loucura do tempo.

       A loucura consistia em querer reconquistar Jerusalém aos soldões da Ásia.

       Aliou-se com Coração de Leão, e partiu com ele para a Terra Santa.

       Mas antes de partir, para que os seus bons parisienses não perdessem o tempo, e nos seus momentos perdidos, se não lembrassem de se revoltar contra ele, como se tinham revoltado, por instigação sua, mais de uma vez os vassalos e até os filhos de Henrique II de Inglaterra, deixou-lhes um plano, e ordenou-lhes que o executassem imediatamente depois da sua partida.

       O plano era uma nova cinta, que devia construir-se em volta da cidade, cinta, como já dissemos, para a qual ele mesmo dera o risco, e que devia compor-se de uma sólida muralha, de uma verdadeira muralha como as do século XII, guarnecida de torres e de portas.

       Essa muralha foi a terceira que envolveu Paris.

       Como todos observarão, os engenheiros encarregados deste trabalho não tomaram bem a medida da capital; engrossara muito depressa desde Hugo-Capeto, e prometia fazer estalar em breve a terceira cinta, como já fizera estalar as duas primeiras.

       Deixaram-lhe pois essa cinta folgada, encerrando dentro, por precaução para o futuro, uma grande quantidade de lugarejos, destinados a formarem mais tarde parte daquele grande todo.

       Estes lugarejos e aldeias, por muito pobres que fossem, tinham cada um a sua justiça senhorial.

       Ora, todas estas justiças senhoriais, que a maior parte do tempo se contradiziam umas às outras, encerradas dentro do mesmo recinto, tornaram a oposição mais sensível e acabaram por se chocar entre si tão violentamente, que espalharam uma grande confusão na capital.

       Havia ali, naquela época, um fidalgo de Vincennes, o qual, tendo, ao que parece, mais razão de se queixar daquele conflito do que outro qualquer, resolveu-se a pôr-lhe um termo.

       Esse fidalgo era Luís IX.

       Cumpre aqui prevenir, tanto as crianças como as pessoas adultas, que, quando Luís IX fazia justiça debaixo do famoso carvalho que se tornou proverbial, fazia essa justiça como fidalgo e não como rei.

       Ordenou pois, como rei, que todas as causas julgadas por aquelas pequenas justiças senhoriais, seriam, por meio de apelação, levadas perante o seu Châtelet de Paris.

       A jurisdição do Châtelet tornou-se deste modo omnipotente, encarregada como estava de julgar em última instância.

       O Châtelet ficara portanto constituído em tribunal supremo até ao momento em que o parlamento, invadindo por seu turno a justiça real declarou que conheceria por meio de apelação das causas julgadas no Châtelet.

       Mas a Assembléia acabava de suspender os parlamentos.

       “Enterrámo-los vivos” - dizia Lameth ao sair da Assembléia.

       E, em lugar dos parlamentos, por insistência de Mirabeau, acabava ela de restituir ao Châtelet o seu antigo poder, ainda mais ampliado com outros poderes.

       Era pois um grande triunfo para a realeza, que os crimes de leza-nação, dependentes da lei marcial, fossem levados perante um tribunal que lhe pertencia.

       O primeiro crime em que teve de intervir o Châtelet, foi o que acabamos de referir.

       No mesmo dia da promulgação da lei, dois dos assassinos do infeliz Francisco foram enforcados na praça de Grève sem outro processo mais do que a pública acusação, e a publicidade do crime.

       Um terceiro, que era um recrutador Fleur-d’Épine, cujo nome já referimos, foi julgado regularmente e condenado pelo Châtelet; e seguindo os seus dois camaradas, lá se foi juntar com eles na eternidade. Duas causas lhe restavam para julgar.

       A do fornecedor geral Augeard, e a do inspector geral dos suíços, Pedro Vítor de Besenval.

       Eram dois homens extremamente dedicados à corte, e por isso, se apressaram em levar as suas causas perante o Châtelet.

       Augeard era acusado de ter fornecido dinheiro, com o qual a camarilha da rainha pagara em Julho às tropas reunidas no Campo de Marte. Augeard era pouco conhecido e por isso a sua prisão não fez grande arruído; a população não lhe queria portanto mal.

       O Châtelet absolveu-o sem demasiado escândalo.

       Restava Besenval.

       Besenval era outra coisa; o seu nome não podia ser mais popular, olhando pelo lado pior da palavra.

       Fora ele quem comandara os suíços na casa de Réveillon, na Bastilha e no campo de Marte. O povo recordava que nestas três circunstâncias, carregara sobre ele e por isso não se lhe dava de tomar a desforra.

       As ordens mais precisas, tinham sido dadas pela corte ao Châtelet: debaixo de pretexto algum, nem o rei nem a rainha queriam que Besenval fosse condenado.

       Não precisava mais do que esta dupla protecção para o salvar.

       Ele mesmo se reconhecera culpado, por isso que, depois do dia 14 de Julho, se tinha evadido. Preso a meio caminho da fronteira, fora reconduzido a Paris.

       Por isso, quando entrou na sala, muitos gritos de morte o saudaram quase simultaneamente.

       - Besenval à lanterna! Besenval à forca! – berravam de todos os lados.

       - Silêncio - gritaram os oficiais.

       E com grande custo conseguiram restabelecer o silêncio.

       Um dos assistentes, aproveitando-se desse silêncio momentâneo, bradou com magnífica voz de baixo.

       - Peço que seja dividido em treze pedaços, e que se mande um a cada cantão.

       Porém, apesar de tudo isto, apesar da animosidade do auditório, Besenval foi absolvido.

       Indignado com esta segunda absolvição, um dos que a presenciavam escreveu estes versos sobre um bocado de papel, do qual fez uma bolinha, que atirou ao presidente:

       

        Magistrados, que lavais Augeard

        Que lavais Besenval, que lavaríeis a peste.

        Vós sois como o papel pardo:

        Vós tirais a nódoa, mas a nódoa vos veste!

      

       Esta quadra ia assinada. Ainda não é tudo: o presidente voltou-se para ver se conseguia descobrir o autor.

       O autor estava de pé sobre um banco, atraindo por gestos os olhares do presidente.

       Mas o presidente abaixava os olhos diante dele.

       Não se atrevia a mandá-lo prender.

       É verdade que o autor era Camilo Desmoulins, o proclamador do Palais Royal, o homem da cadeira, da pistola, das folhas de castanheiro.

       Foi por isso que um daqueles que saíam em chusma, e que pelo seu trajo se poderia tomar por um simples sujeito do Marais, dirigindo-se a um dos indivíduos que lhe ficava mais próximo, e pondo-lhe a mão no ombro, conquanto o outro parecesse pertencer a uma classe superior da sociedade, disse-lhe:

       - Então, Sr. Dr. Gilberto, que pensa destas duas absolvições?

       Aquele a quem se dirigiam estas palavras estremeceu, olhou para o seu interlocutor, e conhecendo a cara como conhecera a voz, respondeu:

       - É a si e não a mim que o deve perguntar mestre... O senhor que tudo sabe, o presente, o passado e o futuro!

       - Pois eu penso que depois destes dois réus absolvidos, deve considerar-se perdido o inocente que aparecer em terceiro lugar.

       - Porque julga que será um inocente que lhes há-de suceder? - perguntou Gilberto - e que se lhes suceder há-de ser castigado?

       - Pela simples razão - respondeu o interlocutor com a ironia que lhe era natural - de que neste mundo se devem castigar os bons em lugar dos maus...

       - Adeus, mestre! - disse Gilberto dando a mão a Cagliostro, porque nas poucas palavras que pronunciou, já os nossos leitores reconheceriam decerto o terrível céptico.

       - Por que me diz adeus?

       - Por ter que fazer - acudiu Gilberto sorrindo.

       - Alguma entrevista?

       - É verdade.

       - Com quem?... Com Mirabeau, com Lafayette, ou com a rainha?

       Gilberto olhou para Cagliostro com ar inquieto.

       - Sabe que me assusta às vezes! - disse ele.

       - Pelo contrário, deveria animá-lo - disse Cagliostro.

       - Como assim?

       - Não sou eu seu amigo?

       - Assim o creio...

       - Pode acreditá-lo... E se quiser uma prova...

       - Como?

       - Venha comigo, e dar-lhe-ei sobre a negociação, que julga secretíssima, alguns pormenores igualmente tão secretos, que o senhor, que julga ser o intermediário deste negócio, ignora completamente.

       - Escute - disse Gilberto - talvez zombe de mim, ajudado por alguns desses prestígios que lhe são familiares; mas não importa! As circunstâncias em que nos achamos são tão graves, que se me fosse oferecido algum esclarecimento do próprio Satanás, aceitá-lo-ia. Estou pronto para o seguir até onde me quiser conduzir.

       - Oh! Descanse, que não há-de ser muito longe e sobretudo há-de ser a um lugar que lhe não é desconhecido. Consinta-me somente que chame aquele carro que além passa; este traje não me permitiu que viesse na minha carruagem.

       A carruagem aproximou-se; ambos se meteram nela.

       - Onde quer que o conduza, meu patrão? - perguntou o cocheiro a Cagliostro, como se conhecesse, que era este (ainda que simplesmente vestido) quem dirigia o que o acompanhava.

       - Bem o sabes... - disse Bálsamo, fazendo uma espécie de sinal maçónico.

       O cocheiro olhou para Bálsamo com admiração.

       - Perdão, meu senhor - disse ele, respondendo àquele sinal, com outro idêntico - não o tinha conhecido.

       - Não me aconteceu a mim o mesmo – redargüiu Cagliostro com voz firme e altiva; - conquanto sejam muito numerosos os meus súbditos, conheço-os desde o primeiro até ao último.

       O cocheiro fechou a portinhola, subiu para a almofada, e, ao grande galope dos cavalos dirigiu o carro através daquele dédalo de ruas que conduziam do Châtelet até ao boulevard das Filhas do Calvário; e continuando a carreira em direitura à Bastilha, só parou à esquina da rua de Saint-Claude.

       Parou então e abriu a portinhola com tal rapidez, que bem testemunhava o seu zelo respeitoso.

       Cagliostro fez sinal a Gilberto para descer primeiro.

       - Não tens nada que me dizer? - perguntou ele ao cocheiro.

       - Tenho, meu senhor - lhe respondeu este; - se não tivesse a fortuna de o encontrar, far-lhe-ia à noite o meu relatório.

       - Pois dize.

       - O que tenho a dizer a vossa excelência não pode ser ouvido pelos profanos.

       - Oh! - tornou Cagliostro sorrindo-se - aquele que nos escuta não é inteiramente um profano.

       Foi então Gilberto que se desviou por discrição.

       Todavia não pôde deixar de tomar sobre si o prestar toda a atenção que lhe fosse possível.

       À medida que o cocheiro fazia o seu relatório, distinguiu um sorriso nos lábios de Bálsamo.

       Ouviu distintamente os nomes do conde de Provença e de Favras.

       Concluído o relatório, tirou Cagliostro do bolso um dobrão de ouro, que quis dar ao cocheiro.

       Mas este meneou a cabeça, dizendo:

       - Vossa excelência bem sabe que nos é proibido receber coisa alguma pelos nossos relatórios.

       - É por isso que te não pago este relatório – disse Bálsamo - mas sim a corrida que fizeste.

       - Sendo assim, aceito - disse o cocheiro.

       E tomando o dinheiro, acrescentou:

       - Obrigado, meu senhor; aqui está o meu dia todo bem pago!

       E saltando lestamente para a almofada, meteu os cavalos a trote, fazendo estalar o chicote, e deixando Gilberto completamente espantado de quanto acabava de presenciar.

       - Então! - disse Cagliostro, que, com a porta aberta, esperava que Gilberto entrasse; - entra ou não, meu caro doutor?

       - Eis-me aqui - disse Gilberto; - desculpe a minha distracção.

       E franqueou logo o limiar, de tal modo aturdido, que cambaleava como um homem embriagado.

 

Outra vez a casa da rua de Saint-Claude

       Todos sabem o poder que Gilberto tinha em si. Ainda não tinha atravessado toda a extensão do grande pátio solitário, já se achava de todo restabelecido; já subia a escada com passo firme e resoluto.

       Além de que, a casa onde entrava já lhe era conhecida pela razão de já a ter visitado numa época da vida, que lhe deixara no coração as mais fundas recordações.

       Encontrou na antecâmara o mesmo criado alemão, que dezesseis anos antes ali vira; conservava-se no mesmo lugar, e trajava uma libré semelhante àquela que então trazia; a única diferença que se observava, tanto nele como no conde, é que ambos tinham envelhecido naqueles dezesseis anos decorridos.

       Fritz, tal era o nome do digno criado, adivinhou logo pelo olhar o sítio onde o amo queria conduzir Gilberto; e abrindo rapidamente duas portas, parou no limiar da terceira, para ver se Cagliostro tinha alguma ordem que dar-lhe.

       Essa terceira porta era a da sala.

       Cagliostro fez sinal com a mão a Gilberto para entrar, e com a cabeça um gesto a Fritz para que se retirasse.

       Apenas acrescentou em alemão:

       - Não estou em casa para ninguém até nova ordem.

       E voltando-se depois para Gilberto, continuou.

       - Não é para que não compreenda o que digo ao meu criado que lhe falo em alemão; sei que fala também esta língua; mas é porque Fritz, que é tirolês, entende melhor o alemão do que o francês... Agora sente-se, meu caro doutor, sou todo seu.

       Gilberto não pôde deixar de lançar em volta de si um olhar de curiosidade e no decorrer de alguns momentos, fixou os olhos sucessivamente nos diferentes móveis e quadros que guarneciam a sala. Cada um daqueles objectos parecia entrar-lhe um por um na memória.

       A sala era a mesma que dantes; os oito quadros de mestres continuavam a existir pendurados nas paredes; as cadeiras de seda cor de cereja, bordadas a ouro, continuavam a brilhar na penumbra produzida pelos espessos cortinados que pendiam de todos os lados; a grande mesa via-se colocada no mesmo lugar, e os escaparates carregados de porcelana de Sèvres também estavam colocados entre as janelas.

       Gilberto soltou um suspiro, e deixou pender a cabeça entre as mãos. À curiosidade do presente sucederam-se, ao menos por um momento, as recordações do passado.

       Cagliostro olhou para Gilberto do mesmo modo que Mefistófeles devia olhar para Fausto, quando o filósofo alemão tivera a imprudência de se entregar aos seus sonhos diante dele.

       Mas, de súbito, com voz estridente, perguntou:

       - Segundo me parece, o doutor conhece esta sala?

       - Conheço - disse Gilberto - e recorda-me as obrigações que lhe devo.

       - Ora adeus! Deixemo-nos de quimeras!...

       - Na verdade - disse Gilberto, falando tanto consigo como com Cagliostro; - é na verdade um homem singular! E se a omnipotente razão me permitisse acreditar nos prodígios mágicos, que nos transmitiram os poetas e os cronistas da idade média, quase acreditaria que é feiticeiro, como Merlin, ou fabricante de ouro, como Nicolau Flamel.

       - Sim, sou exactamente isso para todos, meu caro Gilberto, menos para o senhor... Nunca procurei deslumbrá-lo por meio de prestígios, bem o sabe; sempre lhe fiz sondar o fundo das coisas, e se algumas vezes à minha chamada vê a verdade surgir do seu esconderijo um pouco mais garrida do que o costume, é porque, como verdadeiro siciliano que sou, tenho gosto pelos ouropeis.

       - Foi aqui, conde, bem o deve saber, que deu cem mil escudos a um pobre rapazito esfarrapado, com a mesma facilidade com que eu daria um soldo a um miserável mendigo.

       - Esquece alguma coisa ainda mais extraordinária, Gilberto - disse Cagliostro com gravidade; - é que esses cem mil escudos me foram restituídos pelo tal rapazito esfarrapado, à excepção de dois luíses que despendera na compra de um fato.

       - O rapaz não foi mais do que honrado, ao passo que o senhor foi grande, liberal, generoso!

       - E quem lhe diz, Gilberto, que não seja mais fácil, ser liberal do que honrado?... É mais fácil dar cem mil escudos quando se possuem milhões, do que restituir esses cem mil escudos quando se não possui um único soldo?

       - Assim será - disse Gilberto.

       - E demais, tudo depende da disposição de espírito em que nos achamos. Acabava de me acontecer a maior desgraça, Gilberto; não me importava coisa nenhuma deste mundo, e teria dado a minha vida (Deus me perdoe!) se mo tivessem pedido, com a mesma facilidade com que dei os cem mil escudos.

       - Está então sujeito à desgraça como outro qualquer homem? - perguntou Gilberto olhando para Cagliostro com certa admiração.

       Cagliostro soltou um profundo suspiro.

       - Ah! Fala de recordações que esta sala lhe trás à memória... E se eu lhe falasse do que ela me recorda!?... Mas não... Que antes de concluir essa história, os meus cabelos encaneceriam... Falemos de outra coisa; deixemos dormir os acontecimentos passados envoltos na sua mortalha, o esquecimento, envolto no passado, o seu túmulo: Tratemos do presente, tratemos até do futuro, se isso lhe convém.

       - Conde, ainda há pouco, o senhor me trazia à realidade; ainda há pouco parecia desprezar o charlatanismo; e aí está de novo a pronunciar essa palavra sonora: o futuro! Como se o futuro estivesse na sua mão, e os seus olhos pudessem ler-lhe os inexplicáveis hieróglifos!

       - Mas o senhor esquece que, tendo eu à minha disposição maior soma de meios do que os outros homens, nada deve admirar que veja melhor e mais longe do que eles vêem.

       - Palavras, e nada mais, conde!

       - Esquece-se dos factos, doutor?

       - Que há-de ser, se a minha razão se recusa a acreditá-lo...

       - Lembra-se daquele filósofo que negava o movimento?

       - Lembro.

       - O que fez o adversário?

       - Pôs-se a andar por diante dele... Ande o senhor também, que eu observo-o... Ou antes, fale, que eu escuto-o.

       - Com efeito, viemos aqui para isso mesmo, e já nos temos distraído muito tempo noutras coisas... Vamos, doutor, em que estado se encontra o nosso ministério de fusão?

       - Como, o nosso ministério de fusão?

       - Sim, o nosso ministério de fusão.

       - Não passa de vãos boatos, que ouviu repetir como outros, e quer conhecer-lhe a realidade interrogando-me.

       - Doutor, o senhor é a dúvida incarnada, e o que há de mais terrível, é que duvida, não porque não acredite, mas porque não quer acreditar!... Quer então que lhe diga em primeiro lugar o que sabe melhor do que eu? Seja assim! Depois lhe direi o que sei melhor do que o senhor.

       - Queira dizer, conde.

       - Há quinze dias que falou ao rei a respeito de Mirabeau, como do único homem capaz de salvar a monarquia. Nesse dia, saía o senhor do gabinete do rei no momento em que Favras ali entrava; não se recorda?

       - O que prova que nessa época ainda ele não estava enforcado - disse Gilberto rindo.

       - Oh! É muito apressado, doutor; não o julgava tão cruel... Deixe mais alguns dias àquele pobre diabo! Fiz-lhe a predição em 6 de Outubro, estamos em 6 de Novembro, apenas tem decorrido um mês... Não recuse à alma para sair do corpo do pobre homem, o tempo que se concede a um inquilino para sair da casa: o trimestre!... Mas observo-lhe, doutor, que me desvia do caminho direito.

       - Volte a ele conde; muito desejo segui-lo.

       - Falou pois ao rei a respeito de Mirabeau, como do único homem capaz de salvar a monarquia?

       - É essa a minha opinião, conde, e por isso apresentei ao rei uma combinação de ministério.

       - E é também a minha, doutor; por isso, a combinação que apresentou ao rei há-de gorar.

       - Há-de gorar?

       - Decerto... Bem sabe que não quero que se salve a monarquia!

       - Continue.

       - O rei, bastante abalado com o que lhe disse... Perdão, vejo-me obrigado a repetir o que já disse, a fim de lhe provar que não ignoro uma só frase dessa negociação; o rei - dizia eu - assaz abalado com o que lhe disse, falou à rainha da sua combinação, e com grande pasmo dos espíritos superficiais, quando a grande tagarela que se chama história disser em voz alta o que dizemos aqui em voz baixa, a rainha opôs-se menos ao seu projecto do que o rei esperava! Ela mandou-o então chamar; discutiu consigo os prós e os contras, e concluiu por autorizá-lo a falar a Mirabeau. Não é esta a verdade, doutor? - disse Cagliostro olhando fixamente para Gilberto.

       - Devo confessar, conde, que não se tem desviado até aqui da verdade.

       - Depois disto, Sr. orgulhoso, retirou-se muito satisfeito, levando consigo a funda convicção de que aquela conversão real era devida à sua lógica irrefragável e aos seus argumentos irresistíveis!

       Ao tom irónico com que foram ditas aquelas palavras não pôde Gilberto deixar de morder ligeiramente os lábios.

       - E a quem se deveria essa conversão se não fosse a minha lógica e os meus argumentos? Queira dizer, conde; o estudo do coração é para mim tão precioso como o estudo do corpo... O senhor inventou um instrumento, como auxílio do qual se pode ler no seio dos reis; confie-me esse maravilhoso telescópio, conde; seria um inimigo da humanidade se o guardasse só para si!

       - Já lhe disse que não tinha segredos para o doutor; vou portanto, segundo o seu desejo, confiar-lhe o meu telescópio... Pode à sua vontade observar pelo lado que diminui e pelo lado que aumenta. Pois bem, a rainha cedeu por dois motivos: o primeiro porque na véspera sofrera uma dor de coração, e por isso propor-lhe uma intriga era o mesmo que propor-lhe uma distracção; o segundo, porque a rainha é mulher, e porque lhe falaram de Mirabeau como de um leão, de um tigre, de um urso, e uma mulher não sabe nunca resistir ao desejo, tão lisonjeiro para o amor próprio, de domesticar um urso, um tigre ou um leão. Ela disse consigo: “Seria curiosíssimo que eu fizesse prostrar a meus pés esse homem, que me odeia; que impusesse uma condenação honrosa a esse tribuno, que me insultou... Vê-lo-ei de joelhos, será essa a minha vingança! Depois, se dessa genuflexão resultar algum bem para a França e para a realeza, tanto melhor!” Mas, como decerto entende, este sentimento era secundário.

       - O senhor edifica sobre hipóteses, conde, e tinha-me prometido convencer-me somente por meio de factos.

       - Recusa o meu telescópio? Pois não falemos mais nisso: voltemos às coisas materiais, àquelas que se podem ver a descoberto... Por exemplo, às dívidas de Mirabeau... Aí tem coisas que não precisam telescópio para se verem.

       - E nisso, o conde tem ocasião oportuna para mostrar a sua generosidade.

       - Pagando as dívidas de Mirabeau?

       - E porque não? Não pagou o senhor as do cardeal de Rohan!

       - Ah! Não me censure por essa especulação; foi uma das que mais me produziu...

       - O que lhe produziu?

       - O negócio do colar! Foi óptimo, segundo me parece... Por semelhante preço pagaria também as dívidas de Mirabeau. Mas neste momento bem sabe que não é comigo que ele conta; conta com o futuro do generalíssimo Lafayette, que o faz correr por cinqüenta miseráveis mil francos, que provavelmente lhe não dará, como um cão corre atrás de bolos.

       - Oh! Conde!

       - Pobre Mirabeau! Como todos esses néscios, todos esses enfatuados com quem tratas fazem pagar ao teu génio as loucuras da mocidade! Verdade é que tudo isso é providencial, e que Deus é obrigado a proceder por meios naturais e humanos. “O imoral Mirabeau!” - diz o conde de Provença - que é impotente. “O pródigo Mirabeau!”- diz o conde de Artois - a quem o irmão pagou as dívidas três vezes. Pobre homem de génio! Sim, tu salvarias, talvez, a monarquia, mas como a monarquia não deve ser salva, “Mirabeau é um monstruoso tagarela!” - diz Rivarol; - “Mirabeau é um tratante! - diz Mably; - “Mirabeau é um extravagante!” - diz La Poule; - Mirabeau  é um celerado! - diz Guillermy; - “Mirabeau é um assassino!” - diz o abade Maury; - “Mirabeau é um homem morto!” - diz Target; - “Mirabeau é um homem já enterrado!” - diz Duport; - “Mirabeau é um orador mais escarnecido do que aplaudido!” - diz Pelletier; - “Mirabeau tem sarampo na alma!” - diz Champcenetz; - “Mirabeau deve ser enforcado!” - diz Marat. E que Mirabeau morra amanhã, o povo lhe fará uma apoteose, e todos esses pigmeus, acima dos quais ele se eleva tanto, e sobre os quais há-de pesar enquanto viver, hão-de seguir-lhe o saimento cantando e gritando: “Infeliz França, que perdeu o seu tribuno! Infeliz realeza que perdeu o seu apoio!”

       - Acaso me vaticinará a morte de Mirabeau? - exclamou Gilberto quase assustado.

       - Vamos, francamente, doutor, diga-me: julga por acaso uma longa vida àquele homem, cujo sangue ferve, cujo coração sufoca e a quem o génio devora? Julga porventura que forças tão gigantescas se não definhem, lutando eternamente contra a torrente da mediocridade? É como o rochedo de Sísifo a obra que ele empreendeu! No decurso de dois anos cairá esmagado com esta palavra: imortalidade? Todas as vezes que julga repelir até ao cimo da montanha esta palavra, fazendo para isso esforços inauditos, torna ela a cair-lhe em cima ainda mais pesada do que antes era! O meu caro amigo sabe o que foram dizer ao rei, que quase adoptara a opinião da rainha, sobre a nomeação de Mirabeau para primeiro ministro?

       “Senhor! Paris bradará imoralidade! A França bradará imoralidade! A Europa toda bradará imoralidade! Como se Deus fundisse os grandes homens na mesma, forma em que funde qualquer simples mortal, e como se o círculo que abraça as grandes virtudes se não dilatasse para abraçar também os grandes vícios! Esmorecerá, Gilberto, assim como esmoreceram mais dois ou três homens de inteligência que quiseram fazer Mirabeau ministro, isto é, o que foram Turgot, um pigmeu, Necker, um pedante, Calonne, um enfatuado; Bienne, um ateu; e Mirabeau não há-de ser ministro, porque tem cem mil francos de dívidas, que seriam pagos se ele fosse filho de um fornecedor geral, e porque foi condenado à morte por ter roubado a mulher de um velho imbecil, a qual depois se asfixiou por um gentil capitão! Que comédia não é a tragédia humana, meu amigo, e quanto não choraria eu se não preferisse tomar o partido de rir?”

       - Mas que predição é essa que me faz? - perguntou Gilberto, o qual, ao passo que aprovava a excursão que Cagliostro acabava de fazer no país da imaginação, somente se inquietava da conclusão que tirara.

       - Digo-lhe - repetiu Cagliostro com o tom de profeta, que lhe era peculiar - digo-lhe que Mirabeau, o homem de génio, o homem de estado, o grande orador, há-de consumir a vida, há-de aproximar-se do túmulo sem chegar a ser o que todos hão-de ser, isto é, ministro... Oh! A mediocridade é uma excelente protecção, meu caro Gilberto.

       - Mas enfim, opõe-se porventura o rei?

       - Pois não! Nessa não cai ele, teria de discutir com a rainha, com quem quase que empenhou a palavra. Bem sabe que a política está na palavra quase: ele é quase filósofo, quase delicado quando aconselhado pelo conde de Provença. Vá amanhã à assembléia, meu caro doutor, e veja o que lá se passa.

       - Não poderia explicar-mo já?

       - Não, vá ver.

       - Mas vá-mo já dizendo.

       - Seria roubar-lhe o prazer da surpresa.

       - Amanhã... Vem muito longe!

       - Então, pode fazer ainda melhor. Dentro de uma hora há-de abrir o clube dos Jacobinos; e bem sabe que aqueles senhores são aves nocturnas... Pertence à sociedade?

       - Não; Camilo Desmoulins e Danton fizeram-me admitir nos Franciscanos.

       - Pois bem, como ia dizendo, dentro de uma hora há-de abrir-se o clube dos Jacobinos. É uma sociedade bem organizada, onde achará um bom lugar e poderá estar descansado. Vamos jantar ambos; depois de jantar tomará uma carruagem, ou eu o farei conduzir à rua de Saint-Honoré e quando sair do velho convento, sentir-se-á edificado. Demais, prevenido doze horas antes, talvez tenha o tempo necessário para evitar o golpe.

       - Como! Pois o senhor janta as cinco horas?

       - Precisamente; sou um precursor em tudo; dentro de dez anos não haverá em França mais do que duas refeições por dia: um almoço às dez horas e um jantar às seis da tarde. E quem fará essa alteração nos costumes?

       - A fome, meu caro, a fome!

       - Na verdade, é um profeta de desgraças.

       - Não, por isso que lhe vaticino um óptimo jantar!

       - Tem mais alguns convidados?

       - Estou absolutamente só; mas deve saber o ditado do antigo gastrónomo: “Lúculo janta em casa de Lúculo”.

       - O Sr. conde está servido - disse um criado abrindo uma porta que dava entrada para a sala de jantar esplendidamente alumiada e sumptuosamente servida.

       - Vamos, Sr. filósofo, venha - disse Cagliostro dando o braço a Gilberto; - ora adeus, uma vez não são vezes!

       Gilberto seguiu o mago, subjugado pela magia das suas palavras, e talvez arrastado também pela esperança de lhe ver brilhar na conversação algum relâmpago que o pudesse guiar no meio das trevas em que caminhava.

 

O Clube dos Jacobinos

       Duas horas depois da conversação que acabamos de referir, uma sege sem armas e sem librés parou defronte da porta da igreja de Saint-Roch, cuja fachada ainda não estava mutilada pelas balas do dia 13 Vindemário.

       Apearam-se dessa sege dois homens vestidos de preto, como então se vestiam os membros do terceiro estado, e ao pálido clarão dos revérberos, que de espaço a espaço penetrava através da neblina que pesava sobre a rua de Saint-Honoré, seguindo uma espécie de sulco marcado pela multidão, costearam o lado da rua, indo direitos até à pequena porta do convento dos Jacobinos.

       Se os nossos leitores adivinharam, como é provável, que estes dois homens eram o Dr. Gilberto e o conde Cagliostro ou o banqueiro Zannone, como ele se inculcava naquela época, não teremos precisão de lhes explicar o motivo que os obrigou a parar defronte daquela porta, porque era esse o alvo da sua excursão.

       E demais, já o dissemos, os dois recém-chegados não tinham mais do que seguir a chusma, que era na verdade considerável.

       - Quer entrar na sala, ou prefere um lugar nas tribunas? - perguntou Cagliostro a Gilberto.

       - Julgava - respondeu este - que a sala fosse unicamente consagrada aos membros da sociedade.

       - E assim é; mas não pertenço eu a todas as sociedades? - disse Cagliostro rindo-se; - e uma vez que sou da casa, não o são também os meus amigos? Eis aqui um bilhete para o senhor; quanto a mim, basta que pronuncie uma palavra.

       - Conhecem que somos estranhos - disse Gilberto - e mandam-nos sair...

       - Primeiro que tudo, meu caro doutor, cumpre dizer-lhe uma coisa que decerto ignora, segundo vejo; é que a Sociedade dos Jacobinos, há três meses fundada, já conta em França cerca de sessenta mil membros, e contará antes de um ano mais de quatrocentos mil. E demais, meu caro - acrescentou sorrindo Cagliostro, - é aqui o verdadeiro Grande Oriente, o centro de todas as sociedades secretas, e não em casa do pateta do Fauchet, como vulgarmente se julga. Ora, se o senhor não tem direito para entrar aqui a título de jacobino, nem por isso deixa de ter um lugar reservado na qualidade de rosa-cruz.

       - Não importa - redargüiu Gilberto - gosto mais das tribunas. Dali pairaremos sobre toda a assembléia, e se houver alguma ilustração presente ou futura que eu ignore, o senhor ma fará conhecer.

       - Vamos então para as tribunas - disse Cagliostro.

       E tomou logo à direita por uma escada de prancha, que conduzia a umas tribunas improvisadas.

       As tribunas estavam cheias; mas à primeira que se dirigiu, Cagliostro só teve o incómodo de fazer um sinal e pronunciar uma palavra em voz baixa, para que dois homens, que estavam assentados no banco da frente, como se ali estivessem com o fim de lhes guardar os lugares, se retirassem logo, fazendo-lhes profunda vénia.

       Os dois recém-chegados assentaram-se.

       A sessão ainda não estava aberta; os membros da assembléia, estavam confusamente espalhados pela sala sombria, uns falando em grupos, outros passeando no pequeno espaço que lhes deixava livre o grande número dos seus colegas, outros finalmente, meditando isolados, ou sentados no escuro, ou em pé e encostados a alguma das maciças colunas do edifício.

       Algumas luzes bastante raras, espalhavam em reflexos meio luminosos, escassa claridade sobre aquela multidão, cujas individualidades apenas destacavam quando os rostos se achavam, por acaso, debaixo de um daqueles frouxos jorros de luz.

       Mas depois, naquela penumbra, era facílimo ver que se estava no meio de uma reunião aristocrática; os fatos bordados e os uniformes dos oficiais de terra e de mar abundavam, mosqueando a multidão com seus reflexos de ouro e de prata.

       Com efeito, naquela época, nem um só jornaleiro, nem um só indivíduo do povo, e diremos até, quase que nem um só burguês, democratizava a ilustre assembléia.

       Para a gente ordinária havia outra sala por baixo da primeira. Essa sala abria-se a outra hora, para que a plebe e a aristocracia se não acotovelassem. Para instrução desse povo, tinham fundado uma sociedade fraternal.

       Os membros dessa sociedade tinham por missão explicar-lhe a constituição e parafrasear-lhe os direitos do homem.

       Quanto aos Jacobinos, já o dissemos, era naquela época uma sociedade militar, aristocrática, intelectual, e sobretudo literária e artística.

       E efectivamente, os homens de letras e os artistas formavam a maioria dessa sociedade.

       Homens de letras eram La Harpe, autor de Mélanie; Chénier, autor de Carlos IX; Andrieux, autor dos Estouvados, que na idade de trinta anos já dava as mesmas esperanças que ainda havia de dar aos setenta, e morreu, prometendo sempre, sem nada cumprir; eram também Sedaine, antigo canteiro, protegido da rainha, realista do coração, como a maior parte dos que ali havia; Chanfort, o poeta laureado, ex-secretário do príncipe de Condé, leitor da princesa Isabel; Lacios, o homem do duque de Orleans, autor das Intimidades perigosas, que ocupava o lugar do seu patrono, e, segundo as circunstâncias, tinha a missão de o lembrar aos amigos, ou de o deixar esquecer aos inimigos.

       Artistas eram Talma, o romano, que no seu papel de Tito fez uma revolução; graças a ele, cortar-se-ão os cabelos, enquanto, graças a Collot-d’Herbois, seu colega, se não cortam as cabeças: era David, que sonhava Leónidas e as Sabinas; David, que esboçou o grande pano do Juramento do jogo da péla, e que talvez acabava de comprar o pincel com que pintaria o seu mais belo pano, e o seu hediondo quadro: Marat assassinado no banho; era Vernet, recebido havia dois anos, na Academia em prémio do seu quadro do Triunfo de Paulo Emílio, que se divertia em pintar cavalos e cães, sem pensar que a quatro passos de distância, na assembléia, se via pelo braço de Talma um moço tenente corso, de cabelos lisos e sem pomada, que lhe havia de preparar cinco dos seus mais famosos quadros: A passagem do Monte S. Bernardo, as Batalhas de Rívoli, de Morengo, d’Austerlitz e de Wagran; era Larive, o herdeiro da escola declamatória, que ainda se não dignava ver no jovem Talma um rival, que preferia Voltaire a Corneille, e Belloy a Racine; era Laís, o cantor, que fazia as delícias do teatro nos papéis de mercador na Caravana, de cônsul no Trajano e de Cina na Vestal; era Lafayette, Lameth, Duporth, Sieyès, Thouret, Chapelier, Rabaud, Saint-Étienne, Lanjuinais, Montlosier; e depois, no meio de tudo isto, o ar provocador, o modo altivo e presunçoso do deputado de Grenoble, Barnave, que os homens medíocres consideram rival de Mirabeau, e que Mirabeau esmagava todas as vezes que se dignava pôr-lhe os pés em cima!

       Gilberto lançou um olhar escrutador por sobre aquela brilhante assembléia, conheceu-os um por um, apreciando em seu espírito todas aquelas diversas capacidades, e todo aquele conjunto realista o deixou pouco satisfeito.

       - Mas diga-me - perguntou de súbito a Cagliostro - qual é o homem que aqui vê verdadeiramente hostil à realeza?

       - Deverei examiná-lo com os olhos de toda a gente, com os seus, com os de Necker, com os do abade Maury, ou com os meus?

       - Com os seus - respondeu Gilberto. - Não lhe disse já que são olhos de feiticeiro?

       - Pois bem! Saiba que existem dois.

       - Isso não é nada no meio de quatrocentos homens!

       - É bastante, se um desses dois homens for o assassino de Luís XV, e o outro o seu sucessor.

       Gilberto estremeceu.

       - Oh! Oh! - murmurou ele - temos então aqui um futuro Bruto, e um futuro César?

       - Nem mais, nem menos, meu caro doutor.

       - Mostra-mos, conde, não é assim? - disse Gilberto com um sorriso de dúvida nos lábios.

       - Ó apóstolo de olhos cobertos de tartaruga – resmungou Cagliostro - se quiseres, ainda farei mais do que mostrar-tos; tocá-los-ás com o teu próprio dedo. Por qual queres principiar?

       - Mas parece-me que será melhor principiar pelo derrubador... Respeito muito a ordem cronológica... Vejamos em primeiro lugar o Bruto.

       - Bem sabes - disse Cagliostro animando-se cada vez mais, como se se sentisse penetrado pelo sopro da inspiração - bem sabes que os homens nunca procedem pelos mesmos meios, ainda que seja para praticar um feito semelhante. O nosso Bruto, em nada se parecerá com o Bruto antigo.

       - Mais uma razão para ter curiosidade de o ver.

       - Pois então olhe, que ali o tem.

       E apontou para um homem encostado à tribuna e cujo rosto era a única parte do corpo em que a claridade das luzes reflectia.

       Aquela cabeça pálida e lívida assemelhava-se, como nos dias das antigas proscrições, a uma cabeça decepada, posta na tribuna dos discursos oratórios.

       Só os olhos pareciam viver com uma expressão de ódio desdenhoso, como a expressão da víbora que sabe que os dentes contêm um veneno mortal; seguiam, em suas numerosas evoluções, o ruidoso e difuso Barnave.

       Gilberto sentiu um calafrio, que lhe percorreu todo o corpo.

       - Com efeito - disse ele - o senhor já me tinha prevenido; nem é a cabeça de Bruto, nem sequer a de Cromwell.

       - Não - acudiu Cagliostro - mas talvez seja de Cassio. Sabe, meu caro, o que dizia César: “Não receio os homens gordos, os patuscos, que passam os dias à mesa e as noites em orgia, não; o que receio, são os meditabundos, secos, mirrados e pálidos”.

       - Aquele satisfaz completamente as condições estabelecidas por César.

       - Não o conhece? - perguntou Cagliostro.

       - Conheço - disse Gilberto, examinando-o com atenção - conheço-o, ou antes, reconheço-o por um dos membros da Assembléia Nacional.

       - É isso mesmo.

       - Que ninguém escuta quando fala...

       - É isso mesmo.

       - Um advogadozito de Arras; não é verdade que se chama Maximiano de Robespierre?

       - Perfeitamente. Olhe com atenção para aquela cabeça.

       - E então?

       - Que lhe divisa?

       - Não sou Lavater.

       - Não, mas é discípulo dele.

       - Vejo a expressão odienta da mediocridade lutando contra o génio.

       - Isso quer dizer que também o senhor o julga como todos os mais... Sim, não há dúvida, a sua voz fraca, um pouco acre; a descarnada e triste figura; a cútis da fronte, que parece pegada ao crânio como amarelento e imóvel pergaminho; os olhos vítreos, que deixam apenas escapar um raio esverdeado, que quase se apaga de súbito; aquela contínua aplicação dos músculos e da voz; aquela laboriosa fisionomia, que cansa pela própria imobilidade, aquele invariável fato cor de azeitona, vestuário único e severamente escovado; sim, tudo isso creio que deve fazer pouquíssima impressão numa assembléia rica de oradores, que tem o direito de se não deixar torcer, habituada, como está, ao rosto leonino de Mirabeau, à presunção audaciosa de Barnave, às réplicas agudas do abade Maury, ao calor de Cazalès, e à lógica castigada de Sieyès; mas àquele decerto não lhe hão-de censurar, como a Mirabeau, a imoralidade. Aquele é homem de bem, e se alguma vez se afastar da legalidade, há-de ser para sufocar o velho texto com a nova lei.

       - Mas, enfim - perguntou Gilberto - quem vem a ser esse Robespierre?

       - O amigo parece um aristocrata do século XVII! “Quem vem a ser esse Cromwell? - perguntou o conde de Strafford, a quem o protector havia de mandar cortar a cabeça. Um vendedor de cerveja, segundo creio”.

       - Quer dizer que a minha cabeça corre o mesmo risco que correu a de sir Thomas Wentworth? – disse Gilberto afectando um sorriso que se lhe gelava nos lábios.

       - Quem sabe? - disse Cagliostro.

       - É mais uma razão para eu colher esclarecimentos - tornou o doutor.

       - O que vem a ser Robespierre? Em França talvez o não saiba mais ninguém senão eu. Gosto de conhecer a origem dos eleitos da fatalidade; isso ajuda-me a adivinhar onde irão...

       “Os Robespierres são irlandeses; talvez que os avós fizessem parte dessas colónias irlandesas, que no século XVI vieram povoar os seminários e os mosteiros das nossas costas setentrionais: ali recebiam dos jesuítas a forte educação de civilizadores que eles davam aos seus educandos; eram tabeliães de pais a filhos. Um ramo da família, aquele de onde descende Maximiliano, estabeleceu-se em Arras, centro principal, como sabe, da nobreza e da igreja. Existiam na cidade dois senhores, ou antes, dois reis; um o abade de Saint-Waast, o outro o conde de Arras, cujo palácio deixa à sombra metade da cidade.

       “Foi ali que nasceu, em 1758, aquele que além vê. O que ele fez em rapaz, o que faz neste momento, vou dizer-lho em duas palavras: o que há-de fazer já lho disse numa só... Havia na casa quatro filhos; o chefe da família perdeu a mulher; era advogado no conselho d’Artois; caiu em sombria tristeza, deixou-se da advocacia, e partiu para uma viagem de distracção, donde não tornou a voltar. Aos onze anos achou-se este, o mais velho, chefe de família, tutor de um irmão e de duas irmãs, coisa singular naquela idade! Cumpriu o rapaz a sua tarefa fazendo-se homem imediatamente; dentro de vinte e quatro horas tornou-se naquilo em que ficou; um rosto que sorria às vezes, um coração que nunca ri! Era o melhor educando do colégio, e por isso, alcançaram-lhe do abade de Saint-Waast uma das bolsas de que o prelado dispunha no colégio de Luís o Grande. Chegou só a Paris, recomendado a um cónego de Nossa Senhora; no decurso do primeiro ano, morreu o cónego; quase ao mesmo tempo morreu também em Arras sua irmã mais nova, a que ele mais amava.

       “A sombra dos jesuítas, que acabavam de ser expulsos de França, ainda se projectava sobre os muros de Luís o Grande; o senhor conhece o edifício, onde cresce actualmente o seu Sebastião; os pátios sombrios e profundos, como os da Bastilha, fazem perder as cores aos mais rubicundos rostos; o do jovem Robespierre já era pálido; aqueles pátios tornaram-no lívido. Os outros alunos saíam às vezes; para eles tinha o ano domingos e dias santos; para o órfão pensionista sem protecção, todos os dias eram iguais. Ao passo que os outros respiravam o ar da família, respirava ele o da solidão, da tristeza, do aborrecimento, três aragens da tempestade que acendem nos corações a inveja e o ódio, e fazem murchar a flor da alma! Esse hálito definhou-o, tornou-o insípido. Um dia virá em que se não há-de acreditar que houvesse um retrato de Robespierre, na idade de vinte e quatro anos, com uma rosa na mão, e a outra mão posta no peito, com esta divisa: Tudo pela minha amada.

       Gilberto sorriu tristemente olhando para Robespierre.

       - Verdade é - continuou Cagliostro - que quando adoptou esta divisa, fazendo-se retratar daquele modo, jurava-lhe a namorada que nada seria capaz de lhes desunir o destino; também ele o jurava, resolvidíssimo a cumprir o juramento. De volta de uma viagem de três meses encontrou-a casada! O abade de Saint-Waast continuou a protegê-lo, e fazendo com que o irmão aproveitasse a bolsa do colégio de Luís o Grande, dera-lhe a ele um lugar no tribunal criminal, e logo vinte e um processos que julgar e um assassino que punir. Robespierre, cheio de remorsos por se atrever a ser o terceiro a dispor da vida de um homem, apesar de se conhecer que era criminoso, pediu a sua demissão.

       “Fez-se então advogado, por isso que precisava viver e sustentar sua irmã; o irmão passava mal no colégio, mas enfim lá ia passando. Assim que o seu nome foi inscrito no quadro dos advogados, vieram logo procurá-lo alguns camponeses e pedir-lhe para advogar a sua causa contra o bispo de Arras. Os camponeses estavam no seu direito; Robespierre convenceu-se disso pelo exame dos autos: advogou, ganhou a demanda, e todo ufano do seu triunfo, foi nomeado membro da Assembléia Nacional. Aí achou-se no meio de um ódio poderoso, e de um desprezo profundo; ódio do clero contra o advogado por ter pleiteado contra o bispo de Arras; desprezo dos nobres de Artois contra o pigmeu educado por caridade...

       - Mas, enfim - interrompeu Gilberto - o que tem ele feito até hoje?

       - Oh! Meu Deus! Quase nada para os outros, mas muito para si! Se não entrasse nos meus planos que este homem fosse pobre, dar-lhe-ia amanhã um milhão.

       - Mas, torno a perguntar, que tem ele feito?

       - Não se recorda do dia em que o clero veio hipocritamente à assembléia pedir ao terceiro estado, que se achava suspenso pelo veto real, que desse começo aos seus trabalhos?

       - Lembro.

       - Pois então torne a ler o discurso que fez nesse dia o letradito de Arras, e verá se naquela acre veemência, que o tornou quase eloqüente, se não descobre um futuro completo.

       - Depois?...

       - Depois? Ah! É verdade! Somos obrigados a saltar do mês de Outubro... Quando no dia 5 o delegado das mulheres de Paris, Mailard, se apresentou, em nome das suas clientes, a arengar à assembléia todos os membros desta ficaram mudos e imóveis; foi então que o advogadozito não só se mostrou azedo, senão mais audacioso do que nenhum dos outros. Todos os pretendidos defensores do povo se calaram; ele levantou-se duas vezes; a primeira no meio do tumulto; a segunda no meio do silêncio; apoiou Maillard, que falava em nome da fome e pedia pão.

       - Sim, decerto - disse Gilberto pensativo – isso torna-se mais sério; mas talvez mude.

       -Oh! Meu caro doutor, não conhece o incorruptível, como algum dia lhe chamarão! E demais, quem quereria comprar aquele letradito, de quem todos se riem? Aquele homem, que há-de vir a ser (ouça bem o que digo, Gilberto) o terror da assembléia é hoje o alvo dos seus motejos. Assentaram os nobres jacobinos em que Robespierre é o homem ridículo da assembléia, o que diverte e deve divertir a todos, aquele de quem qualquer pode e deve mofar. As grandes assembléias aborrecem-se às vezes; é necessário que um bobo as distraia... Aos olhos dos Lameth, dos Cazalès, dos Maury, dos Barnave, dos Duport, deve considerar-se Robespierre um pigmeu. Os amigos atraiçoam-no sorrindo às furtadelas; os inimigos apupam-no rindo às gargalhadas; quando fala, todos falam; quando levanta a voz, todos gritam; depois, quando pronuncia, sempre em favor do direito, sempre para defender algum princípio, um discurso, que ninguém escuta, um membro desconhecido, sobre o qual o orador fixa por um momento os olhos turvos, pede ironicamente a impressão do discurso. Só um dos seus colegas o adivinha e compreende; adivinhe quem é? É Mirabeau! “Este homem vai muito longe, - dizia-me ele antes de ontem - por isso que sente quanto diz!” E bem sabe que em Mirabeau esta linguagem é desusada.

       - Porém - disse Gilberto - tenho lido os discursos dele, e parecem-me medíocres e rasteiros.

       - Não lhe digo que seja um Demosthenes ou um Cícero, um Mirabeau ou um Barnave; oh! não, decerto! Considero-o apenas o Sr. de Robespierre, como afectadamente lhe chamam. Além disso, os discursos dele são tratados pela imprensa com a mesma sem-cerimónia com que são tratados na tribuna; na assembléia interrompem; na imprensa mutilam-nos. Os jornalistas nem sequer lhe chamam o Sr. de Robespierre; não, os jornalistas não lhe sabem o nome; chamam-lhe B... N... ou M...

       “Oh! Só Deus e eu, talvez, saibamos quanto fel se amontoa naquele peito descarnado, quantas tempestades se aglomeram naquele escasso cérebro; porquanto, para esquecer todas essas injúrias, todos esses insultos, todas essas traições, o orador apupado, que sente contudo a sua força, não tem a distracção do mundo, nem o alívio da família.

       “No seu lúgubre aposento do triste Marais, no seu frio albergue da rua Saintogne, pobre e sem mobília, onde vive mesquinhamente do seu subsídio de deputado, está sozinho como vivia nos úmidos pátios de Luís o Grande. Até ao ano findo ainda o rosto se lhe conservara jovem e ameno; veja-o agora seco como essas cabeças dos chefes Caraíbas, que os Cooks nos trazem da Oceania. Não deixa os Jacobinos, e com as comoções invisíveis a todos, que sente no meio deles, adquire hemorragias, que já por duas ou três vezes o deixaram sem sentidos. O senhor, que é um grande calculista, emprazo-o para calcular, pelas multiplicações mais exactas, o sangue que há-de custar à nobreza que o insulta, aos padres que o perseguem, aos reis que o ignoram, o sangue que Robespierre tem perdido!

       - Mas para que vem ele aos Jacobinos?

       - Ah! É porque, apupado na assembléia é ouvido nos Jacobinos. Os Jacobinos, meu caro doutor, são minotauro criança: sustentam-se do leite de uma vaca; mais tarde devorarão um povo inteiro. Robespierre é o tipo dos Jacobinos; a sociedade resume-se nele; é a sua expressão, nada mais e nada menos. Caminha a passo com ela, sem a seguir, sem a ultrapassar. Não prometi mostrar-lhe um instrumentozinho, de que neste momento se ocupam, e que tem por fim decepar uma cabeça, talvez duas em cada minuto? Pois bem, de todos os personagens aqui presentes, aquele que há-de dar mais que fazer a esse instrumento de morte, há-de ser o letradito de Arras, o Sr. de Robespierre.

       - Na verdade, conde - disse Gilberto - está muito lúgubre, e se o seu César me não consola mais que o seu Bruto, ver-me-ei obrigado a esquecer o motivo que me trouxe aqui... Perdão, mas para onde se meteu, para onde se sumiu o César?

       - Olhe, não o vê além? Fala com um indivíduo que ainda não conhece, e que mais tarde terá uma grande influência no destino dele. Este homem chama-se Barras; conserve bem este nome, e recorde-se dele em ocasião oportuna.

       - Ignoro se se engana, conde - disse Gilberto - mas em todo o caso escolhe muito bem os seus tipos. O seu César tem uma verdadeira fronte para cingir a coroa, e os olhos, cuja expressão não posso ver facilmente...

       - Sim, por isso que olham para dentro; são dos olhos que adivinham o futuro, doutor.

       - O que diz ele a Barras?

       - Diz que, se defendesse a Bastilha, não a tomariam.

       - Não é então um patriota?

       - Os homens, como ele, nada valem, antes de ser tudo.

       - Nesse caso, sustenta o seu gracejo a respeito daquele tenentezinho?

       - Gilberto - disse Cagliostro estendendo a mão para Robespierre - é tão verdade que este reconstruirá o cadafalso de Carlos I, quanto é certo que aquele (e apontou para o corso de cabelos lisos) há-de reconstruir o trono de Carlos Magno!

       - Então - exclamou Gilberto desanimado – vejo que a nossa luta pela liberdade será inútil.

       - E quem lhe diz que um não faça tanto por ela com o seu trono, como o outro com o seu cadafalso?

       - Será então um Tito, um Marco Aurélio, o Deus da paz vindo consolar o mundo da idade de bronze?

       - Há-de ser ao mesmo tempo Alexandre e Aníbal. Nascido no meio da guerra, há-de crescer com a guerra, e há-de cair com ela.

       - E o que resultará de toda essa bulha, de todo esse fumo, de todo esse caos?

       - O que resulta de toda a génesis, Gilberto? Estamos encarregados de enterrar o mundo velho; os nossos filhos verão desabrochar o mundo novo; aquele homem é o gigante que há-de guardar a porta; como Luís XIV, como Leão X, como Augusto, dará o seu nome ao século que vai abrir-se.

       - Como se chama esse homem? - perguntou Gilberto subjugado pelo modo convicto de Cagliostro.

       - Ainda se não chama mais do que Bonaparte - respondeu o profeta - mas um dia chamar-se-á Napoleão.

       Gilberto reclinou a cabeça, e caiu numa meditação tão profunda, que nem sequer deu fé (tal era a distracção das suas idéias!) que havia principiado a sessão, e que subia à tribuna um orador.

       Uma hora tinha deslizado sem que o ruído da assembléia ou das tribunas, por mais tempestuosa que fosse a sessão, arrancasse Gilberto da sua meditação, quando sentiu inesperadamente pousar-lhe no ombro uma mão poderosa e hirsuta.

       Voltou-se então. Cagliostro desaparecera; mas no seu lugar estava Mirabeau.

       Mirabeau, com o rosto transtornado pela cólera!

       Gilberto fitou-o com um olhar interrogador.

       - Então?! - disse Mirabeau.

       - O que há de novo? - perguntou Gilberto.

       - Há que zombam connosco, que nos escarnecem, que nos traem; há que a corte não me quer, que o tomou ao senhor por um simplório e a mim por um asno.

       - Não o compreendo, conde.

       - Pois não ouviu?

       - O quê?

       - A resolução que se acaba de tomar?

       - Onde?

       - Aqui.

       - Que resolução?

       - Então estava a dormir?

       - Não - disse Gilberto - meditava!

       - Pois bem, amanhã, em resposta à minha moção de hoje, que propõe convidar os ministros a assistirem às deliberações nacionais, três amigos do rei vão pedir que nenhum outro membro da assembléia possa ser ministro durante a sessão. Neste caso aquela combinação tão laboriosamente calculada destrói-se ao sopro caprichoso de Sua Majestade Luís XVI! Mas, - continuou Mirabeau estendendo, como Ajax, o punho fechado para o Céu - pelo meu nome de Mirabeau que me hei-de vingar; e se o sopro do rei pôde derrubar um ministro, eu hei-de provar-lhe que o meu pode derrubar um trono! Irei à assembléia, lutarei até ao fim! Sou daqueles que se não enterram facilmente debaixo das ruínas.

       E Mirabeau, meio fulminado, saiu mais belo e mais terrível com o sulco divino, que o raio acabava de lhe imprimir na fronte.

       Efectivamente, no dia seguinte, por proposta de Languinay, apesar do génio sobre-humano desenvolvido por Mirabeau, a Assembléia Nacional, por maioria, adoptou a moção de que nenhum membro da assembléia poderia ser ministro durante a sessão.

       - E eu - exclamou Mirabeau quando se votou o decreto - proponho um aditamento, que em nada altera a nossa lei. “Todos os membros da actual assembléia poderão ser ministros, à excepção do conde de Mirabeau”.

       Olharam uns para os outros aturdidos de tanta audácia; depois, no meio de um silêncio geral, desceu Mirabeau do seu lugar com o mesmo passo com que caminhara direito ao Sr. de Dreux-Brézé, quando lhe disse:

      

       “Estamos aqui pela vontade do povo; e só sairemos com as baionetas na barriga”.

      

       E saiu da sala.

       Dir-se-ia que a derrota de Mirabeau parecia uma vitória.

       Gilberto nem sequer fora à assembléia. Ficara em casa, meditando nas singulares predições de Cagliostro, sem contudo lhes dar crédito; mas ao mesmo tempo sem as poder repelir do espírito.

       O presente parecia-lhe acanhado em comparação do futuro.

       Talvez que alguém me pergunte como poderei eu, simples historiador do tempo já passado (temporis acti), explicar a predição de Cagliostro relativa a Robespierre e a Napoleão?

       A quem me fizer essa pergunta pedirei imediatamente que me explique a predição da Lenormand a Josefina.

       Neste mundo depara-se-nos sempre e a cada momento uma coisa inexplicável; para os que não podem explicá-la é que a dúvida foi inventada.

 

Metz e Paris

       Conforme dissera Cagliostro, conforme adivinhara Mirabeau, fora o rei quem fizera abortar os projectos do Dr. Gilberto.

       A rainha, que, nas propostas feitas a Mirabeau empregara mais despeito de amante e curiosidade de mulher, do que política de rainha, viu cair, sem grande pesar, os alicerces constitucionais, que principiavam a levantar-se a despeito do seu desmedido orgulho vivamente ofendido.

       Quanto ao rei, a sua política consistia em esperarem ganhar tempo, para se aproveitar das circunstâncias.

       Além disso, duas negociações encetadas ofereciam-lhe, quer de um, quer de outro lado, a oportunidade de fugir de Paris para refugiar-se numa praça forte: era este todo o seu plano.

       As duas negociações eram, como sabemos, as que se achavam entabuladas, de um lado por Favras, o valido do conde de Provença; do outro pelo conde de Charny, mensageiro de Luís XVI.

       Charny fizera a jornada de Paris a Metz em dois dias, e encontrara ali o Sr. de Bouillé, a quem entregou a carta do rei.

       A carta, como bem nos devemos lembrar, não era mais do que um meio de pôr Charny em contacto com o Sr. de Bouillé; foi por isso que este, ao passo que testemunhava o seu descontentamento pelo que se passava, principiou logo por adoptar a maior reserva.

       Efectivamente, a proposta feita naquele momento ao Sr. de Bouillé alterava todos os planos deste; a imperatriz Catarina acabava de lhe fazer alguns oferecimentos, e estava disposto a escrever ao rei, para lhe pedir licença de entrar ao serviço da Rússia, quando recebeu a carta de Luís XVI.

       O primeiro movimento do Sr. de Bouillé fora portanto, a hesitação; mas o nome de Charny, a lembrança do seu parentesco com o Sr. de Suffren, o boato que corria de que a rainha o honrava com toda a sua confiança; tudo isto fizera que ele, como fiel realista, se sentisse penetrado do desejo de subtrair o rei àquela liberdade fictícia, que muita gente considerava como um cativeiro real.

       Todavia, sem ter decidido coisa alguma com Charny, o Sr. de Bouillé, pretendendo que os poderes daquele não eram suficientes resolveu enviar a Paris o filho, o conde Luís de Bouillé, a fim de se entender directamente com o rei acerca de tão importante projecto.

       Charny ficaria em Metz durante as negociações; nenhum desejo pessoal o chamava a Paris, e os seus princípios de honra, talvez um pouco exagerados, impunham-lhe quase o dever de se conservar algum tempo em Metz, como em reféns.

       O conde Luís chegou a Paris pelo meado do mês de Novembro.

       Nessa época era o rei guardado à vista por Lafayette, e o conde Luís era primo de Lafayette.

       Hospedou-se em casa de um amigo, cujas opiniões patrióticas eram bastante conhecidas, e que se achava então viajando em Inglaterra.

       Entrar no palácio do rei a ocultas de Lafayette, era-lhe, senão completamente impossível, pelo menos arriscado e dificílimo.

       Por outro lado, como Lafayette devia ignorar absolutamente as relações estabelecidas por Charny entre o rei e o Sr. de Bouillé, nada era mais simples para o conde Luís do que fazer-se apresentar ao rei pelo próprio Lafayette.

       As circunstâncias pareciam favorecer os desígnios do moço oficial.

       Havia três dias que se achava em Paris, sem ter decidido ainda coisa alguma, cogitando no meio de falar ao rei; e perguntando a si mesmo, como acabamos de dizer, se não seria mais seguro dirigir-se ao próprio Lafayette, quando recebeu deste um bilhete, prevenindo-o de que a sua chegada a Paris não era ignorada, e convidando-o a ir procurá-lo ao estado maior da guarda nacional, ou ao palácio de Noailles.

       Era de algum modo a Providência que respondia em voz alta à súplica que lhe dirigia em voz baixa o Sr. de Bouillé; era uma boa fada, como se vêem nos engraçados contos de Perrault, tomando o cavaleiro pela mão, e conduzindo-o ao alvo dos seus desejos.

       O conde Luís não se demorou pois em dirigir-se ao estado maior.

       O general acabava de partir para a casa da câmara, onde devia receber uma comunicação do Sr. de Bailly.

       Na ausência do general encontrou o ajudante de ordens Romeuf.

       Romeuf servira no mesmo regimento em que servira o jovem conde, e conquanto um pertencesse à democracia, e o outro à aristocracia, tinham existido entre eles algumas relações.

       Desde então Romeuf, que passara para um dos regimentos dissolvidos depois do dia 14 de Julho, apenas acabava de entrar de serviço na guarda nacional, onde ocupava o posto de ajudante de ordens, favorito do general Lafayette.

       Os dois moços, conquanto diferissem de opinião sobre alguns pontos, estavam contudo de acordo em respeitar a lei.

       A única diferença era que um a respeitava à maneira dos patriotas, isto é, com a condição de jurar a constituição; o outro respeitava-a à maneira dos aristocratas, isto é, com a condição de recusar o juramento, e de recorrer aos estrangeiros, se isso fosse necessário para obrigar os rebeldes a entrarem na ordem.

       Eram considerados rebeldes pelo Sr. de Bouillé os três quartos da assembléia, a guarda nacional, os eleitores, etc.; isto é, as cinco partes da França.

       Romeuf tinha vinte e seis anos, e o conde Luís, vinte e dois; era portanto difícil que se entretivessem muito tempo com política. E demais, o conde Luís não queria sequer que o supusessem capaz de se ocupar de semelhante coisa.

       Declarou muito confidencialmente ao seu amigo Romeuf, que deixara Metz, com o único fim de ir ver a Paris uma mulher que adorava.

       Quando o conde Luís fazia esta confidência ao ajudante de ordens, apareceu Lafayette no limiar da porta, que se achava aberta; porém, apesar de ver o recém-chegado num espelho que lhe ficava fronteiro, nem por isso Bouillé deixou de continuar a narração e apesar dos sinais de Romeuf, que afectava não perceber, levantou a voz de maneira que o general não perdesse uma única palavra do que dizia.

       O general tudo ouvira; era perfeitamente o que desejava o conde Luís.

       Foi-se adiantando muito de mansinho, até pôr uma das mãos no ombro de Bouillé.

       - Ah! Sr. libertino! - lhe disse ele - é essa a razão que o obriga a esconder-se dos seus respeitáveis parentes?

       Não era um juiz bem severo, nem um mentor carrancudo, o moço general, que contava então trinta e dois anos, e era muito galanteador naquela época; foi por isso que o conde Luís não se mostrou muito assustado com a repreensão que o esperava.

       - Ocultava-me tão-pouco, meu caro primo, que hoje mesmo ia ter a honra de me apresentar ao mais ilustre deles, se me não prevenissem antecipadamente por meio deste bilhete.

       Em seguida mostrou ao general Lafayette o bilhete que recebera.

       - E dirão ainda que a polícia de Paris é mal feita, srs. provincianos - disse o general com um ar de satisfação em que punha certa dose de amor próprio.

       - Sabemos muito bem general, que nada se pode ocultar àquele que vela sobre a liberdade do povo e a salvação do rei!

       Lafayette olhou de revés para o primo, com o ar ao mesmo tempo bom, espirituoso e um pouco zombeteiro, que sempre lhe conhecemos.

       Bem sabia que a salvação do rei importava muito àquele ramo de família, mas que pouco lhe importava a liberdade do povo.

       Foi por isso que só respondeu a uma parte da frase.

       - E meu primo, o Sr. marquês de Bouillé – disse ele acentuando um título a que renunciara desde a noite de 4 de Agosto - meu primo não encarregou seu filho de alguma comissão para o rei, por cuja salvação eu tanto velo?

       - Encarregou-me de depor a seus pés a homenagem dos seus sentimentos mais respeitosos – respondeu o mancebo - se o Sr. de Lafayette me não julgasse indigno de ser apresentado ao meu soberano.

       - Apresentá-lo... e quando?

       - O mais breve possível, visto que, creio ter tido a honra de o dizer ao senhor ou a Romeuf, achando-me em Paris sem licença...

       - Disse-o a Romeuf, mas vem a ser o mesmo; por isso que tudo ouvi... Pois bem, vamos, não convém demorar o que é bom; são onze horas da manhã; todos os dias, ao meio dia, tenho a honra de ver Suas Majestades, o rei e a rainha; almoce comigo, e conduzi-lo-ei logo às Tulherias.

       - Mas - retorquiu o mancebo percorrendo com a vista o seu uniforme e as botas - estou porventura em trajo decente, meu primo?

       - Em primeiro lugar - respondeu Lafayette - dir-lhe-ei, meu pobre amigo, que a grande questão da etiqueta, com que foi educado, acha-se se não morta, pelo menos bastante enferma, desde que daqui se retirou. Depois observo-lhe que o seu fato não merece censura, as suas botas são muito decentes; e daí que trajo convém melhor a um fidalgo disposto à morrer pelo seu rei, do que o seu uniforme de guerra? Vamos, Romeuf, veja se já serviram o almoço; depois dele conduzirei às Tulherias o Sr. de Bouillé.

       Este projecto correspondia de um modo assaz directo aos desejos do mancebo, para que este lhe opusesse séria objecção; inclinou-se portanto, em sinal de anuência, de resposta e de reconhecimento.

       Meia hora depois, as sentinelas das portas apresentavam as armas ao general Lafayette e ao jovem conde de Bouillé, sem pensarem que faziam ao mesmo tempo as honras à revolução e à contra-revolução.

 

A rainha

       Lafayette e o conde Luís de Bouillé subiram as escadas do pavilhão Marsan, e apresentaram-se nos quartos habitados pelo rei e pela rainha.

       Todas as portas se abriram na presença de Lafayette; as sentinelas apresentavam as armas, os criados inclinavam-se - reverentes; era fácil de conhecer o rei do rei, o maire do palácio, como lhe chamava Marat.

       Lafayette foi primeiramente introduzido nos quartos da rainha; quanto ao rei, estava na casa da forja, e foram-no prevenir imediatamente.

       Havia três anos que Bouillé não via Maria Antonieta.

       Durante esse tempo tinham-se reunido os Estados Gerais, a Bastilha fora tomada, e as jornadas de 5 e 6 de Outubro tinham-se realizado. A rainha chegara à idade de trinta e quatro anos; “idade interessante - diz Michelet - que Van Dick tantas vezes se deleitou a pintar; idade da mulher, idade da mãe, e em Maria Antonieta, sobretudo, idade da rainha!”.

       No decorrer destes três anos muito sofrera o coração e o espírito da rainha, muito macerados foram o seu amor e o seu orgulho. Os trinta e quatro anos patenteavam-se, em volta dos olhos daquela pobre mulher, por meio dessas sombras nacaradas e roxas, que revelam os olhos prenhes de lágrimas, as noites vazias de sono, que acusam, sobretudo, esse mal profundo da alma, de que a mulher, rainha que seja, não pode nunca curar-se completamente.

       Era a idade de Maria Stuart prisioneira, idade em que ela sentiu as suas mais profundas paixões; idade em que Douglas Mortimer, Norfolk e Babington se sentiram apaixonados, se dedicaram e morreram por ela.

       A vista daquela rainha prisioneira, odiada, caluniada, ameaçada (a jornada de 5 de Outubro provara que as ameaças nada tinham de fantásticas), fez uma profunda impressão no coração cavalheiresco do jovem Luís de Bouillé.

       As mulheres não se enganam acerca do efeito que produzem; e como os reis e as rainhas são dotados de grande reminiscência, que de algum modo faz parte da sua educação, Maria Antonieta, assim que avistou o Sr. de Bouillé, conheceu-o, e convenceu-se de que se achava na presença de um amigo.

       Resultou daqui que ainda antes do general fazer a sua apresentação, antes de ele chegar ao divã em que a rainha estava reclinada, esta se levantara, e do mesmo modo que se costuma praticar com um antigo conhecimento, que muito se estima tornar a ver, e com um servidor, sobre cuja fidelidade pode contar-se, exclamara:

       - Ah! Sr. de Bouillé!

       E sem se ocupar do general Lafayette, estendera a mão para o jovem conde.

       Este hesitou um instante; não podia acreditar tão grande favor.

       Porém, vendo que a mão real continuava a oferecer-se-lhe, o conde pôs um joelho em terra, e com os lábios trémulos mal tocou aquela delicada mão.

       Era um erro que cometia a pobre rainha; outros muitos cometeu iguais a este. Sem aquele favor já o conde de Bouillé lhe era devotado e com tal favor feito na presença de Lafayette, que nunca recebera igual, estabelecia ela a linha de demarcação, e ofendia o homem que mais precisava tornar amigo.

       Por isso, com a cortesia, que era incapaz de esquecer um só momento, mas com uma certa alteração na voz, Lafayette disse:

       - Na verdade, meu caro primo, fui eu que me ofereci para o apresentar a Sua Majestade, mas, segundo vejo, é o senhor que deve apresentar-me.

       A rainha estava tão alegre de ver um desses servidores com quem podia contar, a mulher estava tão ufana do efeito que lhe parecia ter produzido no conde, que, sentindo no coração um desses raios de mocidade, que julgava de todo extintos, e em volta de si, como uma dessas brisas da primavera e de amor, que julgava mortos, voltou-se para o general Lafayette, e com um desses sorrisos de Trianon e de Versalhes, disse:

       - Sr. general, o conde Luis não é um severo republicano como o senhor; vem de Metz, e não da América; não vem a Paris para trabalhar na constituição, vem para me apresentar as suas homenagens. Não se admire pois que lhe conceda, eu pobre rainha meia destronada, um favor que, para ele, pobre provinciano, ainda merece este nome, ao passo que ao senhor...

       E a rainha fez um galante requebro, quase um requebro de menina, que queria dizer com certeza: Ao passo que ao Sr. de Lafayette, Sr. Scipião, Sr. Cincinato, pouco lhe importam semelhantes afectações!

       - Senhora - respondeu Lafayette - eu passaria respeitoso e devoto por junto da rainha, sem que a rainha compreendesse nunca o meu respeito, sem que nunca apreciasse a minha dedicação. Será para mim uma grande desgraça talvez; para ela é uma desgraça muito maior!

       E fez-lhe uma profunda vénia.

       A rainha observou-o com o seu olhar profundo e límpido. Lafayette tinha-lhe repetido estas palavras mais de uma vez; mais de uma vez reflectira ela nas palavras que Lafayette lhe dirigira, mas por desgraça sua, como este acabava de dizer, ela sentia uma repulsão instintiva contra aquele homem.

       - Vamos, meu caro general, seja generoso, perdoe-me.

       - Eu perdoar a Vossa Majestade! O quê?

       - A predilecção que consagro a esta boa família de Bouillé, que tanto me ama, e da qual este mancebo se quis constituir o fio condutor, a cadeia eléctrica... Foi o pai, os tios, toda a família que me pareceu ver diante de mim, quando ele se me apresentou e me tocou a mão com os lábios!

       Lafayette fez uma nova vénia.

       - E agora - disse a rainha - depois do perdão façamos as pazes: um bom aperto de mão, general... à inglesa, ou à americana!

       E estendeu-lhe a mão aberta para ele tocar.

       Lafayette tocou ligeiramente a mão da rainha, dizendo ao mesmo tempo:

       - Sinto que Vossa Majestade se não recorde nunca de que sou francês, minha senhora. Todavia não há muita distância do dia 6 de Outubro ao dia 6 de Novembro.

       - Tem razão, general - disse a rainha fazendo um esforço sobre si e apresentando-lhe a mão - eu é que sou uma ingrata.

       E reclinando-se novamente no divã, como que abatida pela comoção, continuou:

       - E daí não lhe deve admirar; sabe que é a censura que me fazem...

       E meneando depois a cabeça, perguntou:

       - Então general, que há de novo em Paris?

       Lafayette tinha uma pequena vingança que tirar; aproveitou portanto a ocasião e respondeu:

       - Quanto sinto que Vossa Majestade não estivesse ontem na assembléia! Teria assistido a uma cena de impressionar e que decerto sensibilizaria o coração de Vossa Majestade; apareceu ali um ancião, que foi agradecer à assembléia a ventura que lhe devia a ela e a el-rei, porque a assembléia nada pode sem a sanção real...

       - Um ancião? - repetiu a rainha distraída.

       - Sim, minha senhora, mas que ancião! O decano da humanidade! Um camponês do Jura, da idade de cento e vinte anos levado à barra por cinco gerações de descendentes, e que foi agradecer à assembléia os seus decretos do dia 4 de Agosto. Compreende, minha senhora? Um homem que foi servo pelo espaço de meio século, durante o reinado de Luís XIV, e oitenta anos depois!

       - E que fez a assembléia em favor desse homem?

       - Levantou-se em massa, e obrigou-o a sentar-se e a cobrir-se.

       - Ah! - disse a rainha com a expressão que lhe era peculiar - devia ser na verdade edificantíssimo; mas com muito pesar meu não estava lá... O senhor sabe melhor do que ninguém, meu caro general, - acrescentou sorrindo - que nem sempre estou onde quero...

       O general fez um movimento, que significava que alguma coisa tinha para responder, mas Maria Antonieta continuou, sem lhe dar tempo a falar:

       - Não; estava aqui... Recebi a pobre viúva do infeliz padeiro da assembléia, que a mesma assembléia deixou assassinar à sua porta... Que fazia então a assembléia nesse dia, Sr. de Lafayette?

       - Minha senhora - respondeu o general – Vossa Majestade fala numa das desgraças que mais afligiram os representantes da França. A assembléia não pôde prevenir aquele assassínio, mas ao menos castigou os culpados.

       - É verdade, mas o castigo não consolou a pobre viúva. Esteve quase a perder o juízo, e todos julgam que dará à luz uma criança morta. Se nascer viva, prometi-lhe que seria a madrinha, e para que o povo conheça que não sou tão insensível quanto se diz, às desgraças que lhe sobrevêm, pedir-lhe-ei, meu caro general, que o baptizado se faça na igreja de Nossa Senhora, se para isso não houver inconveniente.

       Lafayette levantou a mão, como homem que está quase a pedir a palavra, e que muito deseja lha concedam.

       - Minha senhora - disse ele - é a segunda alusão em poucos momentos que Vossa Majestade faz a esse pretendido cativeiro, em que querem fazer acreditar aos seus servos fiéis que eu a tenho... Apresso-me a dizê-lo, minha senhora, diante de meu primo, repeti-lo-ei, se tanto for necessário, na presença de toda a cidade de Paris, na presença da Europa, na presença de todo o mundo; escrevi-o ontem a Mounier, que se lamenta no fundo do Delfinado, acerca do cativeiro real: Vossa Majestade está livre, e eu só nutro um único desejo, só lhe faço uma súplica, é que manifestem essa liberdade, el-rei continuando nas suas caçadas e nas suas viagens, e Vossa Majestade acompanhando-o nessas digressões.

       A rainha sorriu como uma pessoa vencida.

       - Quanto a ser madrinha do pobre órfão que vai nascer no meio do luto, a rainha, prometendo-o à infeliz viúva, obedeceu decerto à bondade do seu magnânimo coração, bondade que a torna respeitada por todos que têm a elevada honra de a rodear. Quando chegar o dia da cerimónia, escolherá a rainha a igreja que mais lhe aprouver para se celebrar esse acto religioso; dará as suas ordens, e tudo se fará. Por agora - continuou o general inclinando-se - aguardo submisso aquelas com que Vossa Majestade se dignar honrar-me.

       - Por enquanto, meu general - disse a rainha - não tenho outro favor a pedir-lhe, se não o de convidar seu primo para o acompanhar a uma das recepções da Srª. de Lamballe, se porventura ele se demorar alguns dias em Paris: bem sabe que a Srª. de Lamballe recebe por si e por mim.

       - E eu, minha senhora - respondeu Lafayette - aproveitarei também o convite para mim; se Vossa Majestade ainda me não viu em casa da Srª. de Lamballe, é porque provavelmente se tem esquecido de me manifestar o desejo de me ver lá.

       A rainha respondeu com uma inclinação de cabeça e um sorriso.

       Era também sinal de despedida.

       Cada qual tomou a parte que lhe tocava.

       Lafayette a saudação; o conde Luís o sorriso.

       Saíram ambos recuando sem voltarem as costas à rainha, levando consigo, um mais azedume, o outro mais dedicação.

 

El-rei

       Ao saírem do gabinete da rainha, os dois visitantes encontraram o criado de quarto de el-rei, Francisco Hue, que os esperava.

       O rei mandava dizer a Lafayette que, tendo começado, para se distrair, uma obra de ferreiro muito importante, lhe pedia que subisse à casa da forja.

       Assim que Luís XVI chegou às Tulherias, a primeira coisa de que se informou foi se ali existia uma forja, e sabendo que esse objecto fora esquecido nos planos de Catarina de Médicis e de Felisberto Delorme, escolhera no segundo andar, por cima do seu quarto de dormir, uma grande casa, com escada interior e exterior, a fim de estabelecer ali a sua oficina de serralheiro.

       No meio das graves preocupações que o acometeram, e no decurso das cinco semanas que habitava nas Tulherias, Luís XVI, nem um só instante esquecera a sua forja, era a sua idéia fixa. Presidira à sua colocação; e ele mesmo designou os lugares do fole, da lareira, da bigorna, do banco e do torno. Finalmente, a forja instalara-se debaixo das suas vistas: limas redondas, limas bastardas, limas de serrar, línguas de carpa e bicos de jumento, tudo estava no seu respectivo lugar; martelos de todas as qualidades pendurados nos seus competentes pregos, tenazes de torquês, tenazes de chanfro, tenazes para remexer o carvão, tudo isso se achava igualmente nos seus respectivos lugares. Luís XVI não pôde resistir ao desejo do trabalho, entregara-se logo pela manhã a essa grande distracção, em que se teria elevado a mestre, se, como já vimos, com grande mágoa de mestre Gamain, um bando de ociosos, tais como Turgot, de Calonne e Necker, o não tivessem distraído daquela sábia ocupação, entretendo-o não só com os negócios da França, o que em rigor lhe permitia mestre Gamain, mas também, o que lhe parecia bem inútil, com os negócios do Brabante, da Áustria, da Inglaterra, da América, e da Espanha!

       Tudo isto explica como Luís XVI, no primeiro ardor do seu trabalho, em lugar de descer para falar a Lafayette, lhe mandara pedir que subisse.

       Talvez houvera para isso ainda outro motivo: tendo já por muitas vezes patenteado ao comandante da guarda nacional a sua fraqueza de rei, queria também patentear-lhe agora a sua majestade de serralheiro.

       Como para conduzir os visitantes à forja real, o criado não julgasse oportuno atravessar com eles os quartos, e fazê-los antes subir pela escada particular, tanto Lafayette como o conde Luís seguiram pelos corredores, subindo depois pela escada pública, o que lhes tornara o caminho mais longo.

       Resultou deste desvio e desta demora a oportunidade do poder fazer o conde Luís algumas reflexões.

       Portanto reflectiu.

       Conquanto se lhe tivesse dilatado o coração com o afável acolhimento que a rainha lhe fizera, não pôde desconhecer que ela não esperava por ele: nem um só gesto misterioso lhe deram a conhecer que a augusta prisioneira, como ela pretendia ser, tivesse conhecimento da missão de que ele vinha encarregado, e que contasse com ele para a arrancar do seu cativeiro. Mas como tudo isto se combinava bem com o que dissera Charny sobre o segredo que o rei a todos guardara, até à própria rainha, era evidente que não era ela que devia dar-lhe solução da importante mensagem.

       Portanto, era ele que devia estudar na recepção que o rei lhe fizesse, se na palavra, ou nos gestos de Sua Majestade se descobriria algum sinal, só a ele compreensível, que lhe indicasse que Luís XVI estava mais ao facto do que Lafayette dos motivos que o traziam a Paris.

       Chegando à porta da casa da forja, voltou-se o criado que os acompanhava, e como ignorasse o nome do Sr. de Bouillé, perguntou:

       - Quem anunciarei?

       - Anuncie o general em chefe da guarda nacional - disse Lafayette -; eu mesmo terei a honra de apresentar este senhor a Sua Majestade.

       - O Sr. comandante em chefe da guarda cívica! - disse o criado.

       El-rei voltou-se logo.

       - Ah! Ah! - exclamou ele - é o Sr. de Lafayette! Peço-lhe perdão de o fazer subir até aqui; mas o serralheiro assegura-lhe que é bem-vindo à sua forja. Um carvoeiro dizia a meu avô Henrique IV; “Um carvoeiro é senhor em sua casa”; e eu digo-lhe, general: “Que o senhor é tanto em casa do serralheiro, como em casa do rei”.

       Luís XVI, como vemos, atacava a conversação do mesmo modo que a atacara Maria Antonieta.

       - Senhor - respondeu Lafayette - quaisquer que sejam as circunstâncias em que tenha a honra de me apresentar a Vossa Majestade, em qualquer andar, e debaixo de qualquer trajo que se digne receber-me, será sempre para mim el-rei; e aquele que, neste momento, lhe oferece as suas humildes homenagens, será sempre o seu fiel súbdito, o seu mais humilde servo.

       - Não duvido, marquês... mas o senhor não vem só. Mudou porventura de ajudante de ordens? Este jovem oficial veio substituir o lugar de Gouvion ou de Romeuf?

       - Este oficial, senhor, que peço licença a Vossa Majestade para lhe apresentar, é meu primo, o conde Luís de Bouillé, capitão dos dragões do Sr. conde de Provença.

       - Ah! Ah! - exclamou o rei estremecendo ligeiramente, o que não escapou ao jovem fidalgo - ah! Sim, o Sr. conde Luís Bouillé, filho do marquês de Bouillé, governador de Metz.

       - É isso mesmo, senhor - disse o mancebo com vivacidade.

       -Ah! Sr. conde, desculpe-me por não o ter logo conhecido; sou muito curto de vista... Saiu de Metz há muito tempo?

       - Há cinco dias, meu senhor, e achando-me em Paris sem licença oficial, mas com permissão especial de meu pai, vim solicitar de meu primo, o Sr. de Lafayette, a honra de me apresentar a Vossa Majestade.

       - Do Sr. de Lafayette?... Fez bem, Sr. conde; ninguém era mais competente para o apresentar a qualquer hora, e essa apresentação não podia ser-me mais agradável.

       O a qualquer hora indicava que Lafayette podia entrar nas Tulherias como e quando quisesse, sem o menor embaraço.

       Quanto ao mais, as poucas palavras que pronunciou Luís XVI foram suficientes para indicar ao jovem conde que devia ter a maior cautela naquela entrevista. Sobretudo, a pergunta: “Há muito tempo que saiu de Metz?” Significava: “Saiu de Metz depois da chegada do conde de Charny?”

       A resposta do mensageiro devia esclarecer suficientemente o rei. “Saí de Metz há cinco dias, e estou em Paris sem licença formal, mas com permissão especial de meu pai”. Isto queria dizer: “Sim, meu senhor, vi o senhor de Charny, e meu pai mandou-me a Paris para me entender com Vossa Majestade, e para adquirir a certeza de que o conde ia efectivamente da parte de el-rei”.

       Lafayette lançou um olhar curioso em volta de si. Muitos haviam penetrado no gabinete do rei, na sala do conselho, na biblioteca e até no oratório, mas poucos tinham tido o insigne favor de ser admitidos na oficina onde o rei era aprendiz, e onde o verdadeiro rei, o verdadeiro mestre era Gamain.

       O general notou a perfeita ordem em que se achavam todos os utensílios, o que, contudo, não deve admirar, por isso que só desde pela manhã se tinha dedicado o rei ao férreo trabalho.

       Hue servia-lhe de aprendiz, dando aos foles.

       - Vossa Majestade - disse Lafayette bastante embaraçado do objecto que iria tratar com um rei que o recebia de mangas de camisa arregaçadas, com a lima na mão e o avental de couro diante de si - Vossa Majestade empreendeu alguma obra importante?

       - Sim, general, empreendi a grande obra de serralharia! Digo-lhe que o faço para que Marat, sabendo que me dedico ao trabalho da oficina, não imagine que me ocupo em forjar ferros para a França; o senhor o desenganará... E o Sr. de Bouillé não é nem oficial nem mestre?

       - Não, meu senhor, sou aprendiz; e se pudesse ser útil a Vossa Majestade para alguma coisa...

       - É! Não há dúvida, meu caro primo, o marido de sua ama não era também serralheiro, e seu pai não dizia, apesar de medíocre admirador do autor de Emílio que, se seguisse os conselhos de João Jacques, faria do senhor um serralheiro?

       - Não há dúvida, e é por isso que tive a honra de dizer a Vossa Majestade que se tivesse precisão de um aprendiz...

       - Um aprendiz não me seria inútil, senhor – disse o rei - ; mas é sobretudo, um mestre que eu preciso.

       - Que qualidade de fechadura fabrica Vossa Majestade? - perguntou o conde com a quase familiaridade que autorizava não só o trajo do rei, mas o lugar onde se achava.

       - Oh! Oh! O meu caro primo - exclamou Lafayette - ignoro o que poderá fazer como homem prático; mas como homem de teoria parece-me muito ao alcance, já não digo do ofício, por isso que um rei o enobreceu, mas da arte!

       Luís XVI escutara com visível satisfação a pergunta que lhe dirigira o jovem fidalgo.

       - É uma simples fechadura de segredo, a que se chama uma fechadura bénarde, que abre para ambos os lados, mas receio muito ter presumido demasiadamente das minhas forças. Ah! Se eu tivesse ainda o meu pobre Gamain! Ele, que se considerava o mestre dos mestres!

       - Então o pobre do homem morreu, senhor?

       - Não - respondeu o rei lançando sobre o mancebo um olhar de inteligência - não; está em Versalhes, na rua dos Reservatórios; naturalmente não se atreve a vir visitar-me às Tulherias.

       - Por que motivo, meu senhor? - perguntou Lafayette.

       - É talvez com medo de se comprometer. O rei de França está actualmente muito arriscado, meu caro general, e a prova é que todos os meus amigos se acham, uns em Londres, outros em Coblentz ou em Turim. Todavia meu caro general - continuou o rei - se não vê algum inconveniente em que venha ajudar-me com um dos seus aprendizes, mandá-lo-ei chamar num destes dias.

       - Senhor - respondeu vivamente Lafayette - Vossa Majestade sabe muito bem que se acha completamente livre para mandar chamar quem quiser, e para ver todas as pessoas que lhe aprouver.

       - Sim, com a condição de serem apalpados pelas sentinelas os visitantes, como se costuma fazer na fronteira aos contrabandistas... Oh! Se tal sucedesse o meu pobre Gamain julgar-se-ia perdido se lhe tomassem a trouxa por mochila, e as limas por punhais!

       - Senhor, não sei como possa desculpar-me para com Vossa Majestade; mas respondo a Paris, à Europa, pela vida de el-rei, e por isso devo tomar todas as precauções para salvar esta vida. Quanto ao homem de que falámos, pode Vossa Majestade ordenar o que for da sua real vontade.

       - Está bem; obrigado, Sr. de Lafayette; mas isso não tem pressa, só daqui a oito ou dez dias terei precisão dele - acrescentou o rei lançando um olhar de soslaio a Bouillé; - dele e do seu aprendiz... Mandá-lo-ei prevenir pelo meu criado de quarto Durey, que é um amigo dele.

       - E logo que se apresente será admitido à presença de Vossa Majestade; o seu nome lhe servirá de passaporte. Deus me livre da reputação em que me têm de carcereiro, de porteiro, de chaveiro! Nunca el-rei esteve tão livre, como actualmente; vinha até pedir a Vossa Majestade que voltasse às suas caçadas, às suas viagens.

       - Oh! Às minhas caçadas não; obrigado... e demais, actualmente, bem vê, tenho outra coisa de que me ocupe... Quanto às minhas viagens, isso é diferente: a última que fiz, de Versalhes a Paris, tirou-me de todo o desejo de viajar... pelo menos com tão numerosa companhia.

       E o rei lançou novo olhar ao conde de Bouillé, que por um simples movimento de pálpebras deixou perceber que o compreendera.

       - E o senhor - disse o rei dirigindo-se ao jovem conde - retira-se com brevidade de Paris?

       - Senhor - respondeu o fidalgo - devo sair dentro de dois ou três dias, mas não para voltar a Metz; tenho minha avó em Versalhes na rua dos Reservatórios e devo ir prestar-lhe os meus respeitos; em seguida, estou encarregado, por meu pai, de terminar um negócio de família de bastante importância, e só daqui a oito ou dez dias poderei ver a pessoa de quem deverei receber as ordens nessa ocasião. Não verei pois meu pai senão nos primeiros dias de Dezembro, salvo se el-rei, por qualquer motivo, quiser que eu apresse a minha retirada para Metz.

       - Não, senhor - disse o rei - não, demore-se o tempo que quiser; vá a Versalhes, desempenhe os encargos do marquês, e quando o tiver feito, vá dizer-lhe que me não esqueço dele, que o considero um dos meus súbditos fiéis, e que um dia o recomendarei ao Sr. de Lafayette, para este o recomendar ao Sr. Du Portail.

       Lafayette sorriu ligeiramente ouvindo aquela nova alusão à sua omnipotência.

       - Senhor - disse ele - há muito que teria recomendado a Vossa Majestade os srs. de Bouillé, se não tivesse a honra de ser parente desses cavalheiros. O receio de que alguém diga que faço recair os favores de el-rei sobre a minha família, é o único motivo que me tem impossibilitado até aqui de lhe fazer essa justiça.

       - Pois bem, Sr. de Lafayette, ocupar-nos-emos desse negócio, não é assim?

       - Peço licença a Vossa Majestade - acudiu de Bouillé - para lhe dizer que meu pai consideraria um desfavor, um desagrado, qualquer adiantamento que lhe arrebatasse, no todo ou em parte, os meios de servir o seu rei.

       - Oh, isso entende-se bem, conde - disse Luís XVI; - e não consentirei decerto que toquem na posição do Sr. de Bouillé, salvo se for para que se melhore segundo os seus e os meus desejos. Deixe este negócio entregue a mim e ao cuidado do Sr. de Lafayette, e entregue-se aos seus prazeres, sem que todavia isso lhe faça esquecer os negócios... Vão, meus senhores, vão.

       E despediu assim os dois fidalgos com ar tão majestoso, que fazia um contraste singular com o fato vulgar que trajava.

       Em seguida, logo que se fechou a porta:

       - Vamos - disse ele - creio que o rapaz me entendeu, e que dentro de oito ou dez dias, terei aqui mestre Gamain e o seu aprendiz para me ajudarem a colocar a minha fechadura.

 

Antigos conhecimentos

       Na mesma noite do dia em que o conde de Bouillé tivera a honra de ser recebido em primeiro lugar pela rainha, e em seguida pelo rei, passava-se na rua da Judiaria, pela volta das seis horas, numa velha, suja e sombria casinha, uma cena, que pedimos aos nossos leitores queiram presenciar.

       Para isso tomá-los-emos pela mão à entrada da Pont-au-Change, quer seja descendo das suas carruagens, quer dos seus fiacres, segundo possuam seis mil libras para gastar por ano com cocheiro, cavalos e carruagem, ou trinta soldos para dar por dia a uma simples sege numerada, isto é, de praça.

       Seguiremos juntamente com eles a Pont-au-Change; entraremos na rua de Pelleterie, que seguiremos até à da Judiaria, onde pararemos defronte da porta do lado esquerdo.

       Bem sabemos que a vista dessa porta (que os inquilinos da casa não costumam fechar, tal é o pouco ou nenhum receio que têm de ladrões) não é decerto muito atraente; mas já o dissemos, precisamos das pessoas que habitam esses casebres; e como essas pessoas não vêm procurar-nos, iremos nós, meu caro leitor, ou minha adorada leitora, denodadamente procurá-los.

       Firmem pois os seus passos, tanto quanto for possível, para não escorregarem na lama viscosa de que se acha coberta a estreita vereda por onde vamos penetrar; apertemos o fato ao corpo, para que nem sequer roce pelas paredes da escada úmida e gordurenta que se estende ao fundo dessa vereda, como os troços unidos duma serpente; cheguemos ao nariz um frasquinho de vinagre ou um lenço perfumado, para que o mais subtil e o mais aristocrata dos nossos sentidos, o olfacto, escape tanto quanto seja possível, ao contacto daquele ar impregnado de azote, que se respira simultaneamente pelo nariz e pelos olhos; paremos no patamar do terceiro andar defronte dessa porta, em que a mão inocente de um pintor novato traçou a lápis algumas figuras, que à primeira vista poderiam tomar-se por sinais cabalisticos, não sendo mais do que alguns simples e desgraçados ensaios da sublime arte dos Leonardo de Vinci, dos Rafael e dos Miguel Ângelo.

       Uma vez chegados ali, espreitemos, se for da sua vontade, através de um buraco da fechadura, para que os meus caros leitores, se a memória os ajudar, conheçam os personagens que aí se encontram. Demais, se os não conhecerem pela vista, aplicarão o ouvido à porta e escutarão; há-de ser então dificílimo, por pouco que lessem o Colar da Rainha, que o ouvido não venha logo em auxílio da vista. Os sentidos robustecem-se uns com os outros.

       Primeiro cumpre dizer o que se observa olhando pela fechadura.

       É o interior dum quarto, que indica miséria, e é habitado por três pessoas; um homem, uma mulher e uma criança.

       O homem tem quarenta e cinco anos; a mulher trinta e quatro, parecendo ter quarenta; a criança cinco; ainda não teve tempo de envelhecer duas vezes.

       O homem está vestido com um antigo uniforme das guardas francesas, uniforme venerado desde o dia 12 de Julho, dia em que as guardas francesas se reuniram ao povo para arrostar as balas dos alemães de Lambesc, e dos suíços de Bezenval.

       Tem na mão um baralho de cartas completo, desde o az, passando pelo duque, o terno e a quadra, até ao rei de cada naipe, e ensaia pela centésima, pela milésima vez, um jogo infalível; um cartão pintado com tantos buraquinhos quantas são as estrelas que brilham no firmamento, descansa a seu lado.

       Dissemos descansa e apressamo-nos a corrigir-nos. Descansar é uma palavra impropriíssima empregada em relação àquele cartão; por isso que o jogador (é incontestável que é um jogador) incessantemente torturado, o consulta de cinco em cinco minutos.

       A mulher traja um vestido de seda muito antigo. A miséria torna-se tanto mais saliente, porquanto se apresenta ali com alguns restos de luxo. Tem os cabelos atados ou seguros com um pente de cobre, outrora dourado; as mãos estão escrupulosamente limpas, e à força de limpeza, têm conservado, ou antes, têm adquirido uma certa aparência aristocrática; as unhas, que o barão de Taverney, no seu realismo brutal, tão grosseiramente classificava, viam-se habilmente limpas e pontiagudas; finalmente calçava umas chinelas que tinham passado da moda, estavam rotas em várias partes, e tendo sido noutro tempo bordadas a ouro e seda; as meias eram abertas.

       Quanto ao rosto já o dissemos, era o de uma mulher de trinta e quatro a trinta e cinco anos, e se fosse mais favorecido pelos enfeites da moda, poderia permitir à que o possuía inculcar a idade, em que, durante um lustro, como diz o abade de Celle, e até durante dois, as mulheres se empoleiram descaradamente nos seus vinte e nove anos; mas que, privado do carmim e do alvaiade, despido, por conseqüência, de todos os meios de ocultar as suas dores e misérias (terceira e quarta asas do tempo), acusava quatro ou cinco anos mais do que realmente tinha.

       Afinal, por mais desprovida que seja essa criatura, todos, ao vê-la, pareceram sonhar; e sem que possam explicar os seus sonhos (tanto hesita o espírito, por mais rápido que seja o seu vôo, a franquear uma tal distância) todos perguntarão a si mesmos qual foi o palácio dourado, qual a carruagem de seis cavalos, qual a poeira real, no meio da qual um rosto resplandecente de que aquele não era mais que pálido reflexo.

       A criança tem cinco anos, já o dissemos. Tem os cabelos frisados como um querubim, as faces redondas como uma maçã, os olhos diabólicos como os da mãe, a boca gulosa como a do pai, a preguiça e os caprichos de ambos.

       Traja o resto de um vestido de veludo encarnado, e enquanto comia um bocadinho de pão coberto de marmelada, ia desfiando os restos de um velho cinto tricolor franjado de cobre, no fundo de um velho chapéu de feltro pardacento.

       O quadro era alumiado por uma vela de sebo de morrão gigantesco, a que servia de castiçal uma garrafa vazia, colocada em cima de uma velha mesa.

       Posto isto, e como, segundo nossas previsões, da inspecção dos olhos nada podemos colher, escutemos.

       É a criança quem rompe o silêncio, atirando por cima da cabeça com a fatia de pão, a qual foi cair na cama, que se reduzia a um simples colchão.

       - Mamã - disse ela - não quero mais pão com marmelada...

       - Então o que queres, Toussaint?

       - Quero um torrão de açúcar.

       - Não ouves, Beausire? - disse a mulher.

       E vendo que, absorto nos seus cálculos, Beausire não respondia, repetiu mais alto:

       - Não ouves, Beausire? - disse a mulher.

       O mesmo silêncio.

       Então, tirando uma chinela do pé e arremessando-a ao calculador, exclamou:

       - Eh! Beausire!

       - O que temos? - perguntou este com visível expressão de mau humor.

       - Toussaint pede um torrão de açúcar, porque já está farto de pão com marmelada... Pobre criança!

       - Amanhã o terá.

       -Quero-o hoje mesmo, esta noite, sem demora! - bradou o rapazito com um modo que ameaçava tornar-se muito tempestuoso.

       - Toussaint, meu amigo - disse o pai - aconselho-te que te cales, aliás terás que ver com o papá.

       O pequeno soltou um grito, devido mais ao capricho, que ao medo.

       - Se lhe puseres o dedo, borrachão, eu to direi! - disse a mãe estendendo para Beausire a mão branca, cujas unhas, graças ao esmero com que estavam aparadas, podiam servir-lhe de garras.

       - Quem diabo lhe quer tocar? Bem sabes que isto é modo de falar, Oliva, e que, se de tempos a tempos se sacode a roupa à mãe, nem por isso tem deixado de se respeitar sempre a do filho... Vamos, vem abraçar este pobre Beausire, que daqui a oito dias há-de ser rico como um rei... Vamos, vem minha Nicolazinha.

       - Quando fores rico como um rei, então te abraçarei; mas enquanto o não fores, isso nunca!...

       - Mas se te digo que é como se já tivesse aqui um milhão... Faze-me um adiantamento, que isso há-de dar-nos felicidade... e o padeiro fia-nos mais pão.

       - Um homem que nada em milhões, e pede fiado ao padeiro um pão de quatro arráteis!

       - Quero um torrão de açúcar - gritou o pequeno de modo cada vez mais ameaçador.

       - Vamos, homem dos milhões, dá a esta criança um torrão de açúcar.

       Beausire fez um movimento para levar a mão ao bolso; a mão porém nem sequer chegou a meio do caminho.

       - Ora - disse ele - bem sabes que te dei ontem o único dinheiro que possuía, que eram vinte e quatro soldos!

       - Então, como tu tens dinheiro, mãe - disse o pequeno Toussaint voltando-se para aquela a quem o respeitável Beausire acabava de chamar alternadamente Oliva e Nicolazinha - dá-me um soldo para ir buscar um torrão de açúcar.

       - Aqui tens dois, traquinas, e toma sentido não caias na escada.

       - Obrigado, mãezinha! - disse o rapaz saltando de contente e estendendo a mão.

       - Vamos, chega-te aqui para te pôr o cinto e o chapéu, para que se não diga que o Sr. de Beausire deixa sair o seu filho à rua em completo desalinho; a ele pouco lhe importa isso, porque não tem vergonha; mas a mim tingem-se-me as faces.

       O pequeno pouco se importava, mau grado do que pudessem dizer os vizinhos acerca do herdeiro presuntivo da casa Beausire, com o chapéu de palha e o cinto, objectos que só apreciara enquanto novos; mas como o cinto e o chapéu eram uma das condições essenciais da moeda de dois soldos, não houve mais remédio, por muito recalcitrante que fosse, senão sujeitar-se de bom grado a essa condição.

       Consolou-se, contudo, com ir colocar, antes de sair, a sua moeda de dez centésimos no nariz do pai, o qual, embevecido nos seus cálculos, se contentou unicamente com sorrir daquela galante travessura.

       Depois, ouviram-se-lhe os passos tímidos, ainda que apressados pela gulodice, em que ia descendo a escada.

       A mulher, depois de seguir o filho com os olhos, até que a porta se fechou sobre ele, passou a olhar para o pai, e depois de um momento de silêncio, disse:

       - Vamos, Sr. de Beausire, é necessário que a sua inteligência nos arranque da miserável posição em que nos achamos; se o não fizer, ver-me-ei obrigada a recorrer à minha.

       E pronunciou estas últimas palavras requebrando-se toda, como mulher a quem o espelho dissera, ainda naquela manhã: “Sossega, que com essa cara não se morre de fome!”

       - Tu bem vês, minha Nicola - respondeu Beausire - que me ocupo seriamente da nossa fortuna.

       - Sim... embaralhando cartas, e picando cartões.

       - Mas se te digo que encontrei!

       - O quê?

       - O meu verdadeiro jogo.

       - Bom! Torna à sua mania, Sr. Beausire? Previno-o de que hei-de encontrar, entre os seus antigos conhecimentos, alguém que tenha poder para o encaixar, como doido, em Charenton...

       - Mas se te digo que é infalível!

       - Ah! Se Richelieu não tivesse morrido! – murmurou ela.

       - Que dizes?

       - Se o cardeal de Rohan não estivesse arruinado!

       - Hein?

       - E se a Srª. de La Motte não tivesse fugido!

       - Como?

       - Encontraríamos recursos, e não me veria obrigada a compartilhar a miséria de um velho intrigante como este...

       E com um gesto de rainha, Nicola Legay, apelidada a Srª. Oliva, apontou desdenhosamente para Beausire.

       - Mas se te digo - replicou este em tom de convicção - que amanhã seremos ricos!

       - De milhões?

       - De milhões, sim!

       - Sr. de Beausire, mostre-me os dez primeiros luíses de ouro; e acreditarei nos seus milhões.

       - Pois bem, esta noite os verás; é justamente a soma que me é prometida.

       - E dás-mos, meu Beausirezinho? – perguntou Nicola com vivacidade.

       - Dou-te cinco para comprares um vestido de seda para ti e outro de veludo para o pequeno; depois, com os cinco restantes...

       - Com os cinco restantes?...

       - Arranjar-te-ei o milhão prometido.

       - Beausire, vais tentar outra vez o maldito jogo! Desgraçado!

       - Mas, se te digo que consegui achar um meio infalível de ganhar.

       - Sim, um meio como aquele com que deste cabo das sessenta mil libras que te restavam ainda do teu negócio sobre Portugal.

       - Dinheiro mal adquirido não luz - disse silenciosamente Beausire - e sempre tive na idéia, que foi a maneira como foi adquirido aquele dinheiro, que trouxe a nossa desgraça.

       - Este vem-nos então de alguma herança?... Tinhas um tio na América ou nas Índias, que morreu e te deixou dez luíses?

       - Estes dez luíses, Srª. Nicola Legay - disse Beausire com certo ar de superioridade - estes dez luíses, percebe-me? hão-de ser ganhos não só honradamente, mas também honrosamente e numa causa em que muito me interesso, bem como toda a nobreza de França.

       - É então nobre, Sr. de Beausire? - perguntou Nicola em ar de zombaria.

       - Diga de Beausire, Srª. Legay; de Beausire - repetiu ele - como certifica o auto de reconhecimento de seu filho, redigido na sacristia da igreja de Saint-Paul, e assinado pelo seu servo João Baptista Toussaint de Beausire, no dia em que lhe dei o meu nome.

       - Magnífico presente lhe fizeste! - murmurou Nicola.

       - É toda a minha fortuna - acrescentou enfaticamente Beausire.

       - Se Deus lhe não mandar outra coisa – disse Nicola meneando a cabeça - o pobrezinho terá que viver de esmolas e morrer no hospital!

       - Na verdade, Srª. Nicola - disse Beausire com ar despeitado - nunca está contente. Isso é insuportável!

       - Pois não o suporte - clamou ela rompendo o dique que por tanto tempo lhe contivera a cólera. - Mas, santo Deus! Quem lhe pede que o suporte?... Graças a Deus, nem me embaraça a minha pessoa, nem a de meu filho; e esta noite mesmo procurarei a minha vida fora daqui.

       E Nicola, levantando-se, deu três passos em direcção à porta.

       Beausire foi também direito à porta, diante da qual formou uma barreira com os braços.

       - Mas se te digo, masona - replicou ele - que a fortuna...

       - Então? - perguntou Nicola.

       - Deve chegar-nos esta noite!... Já te disse que, ainda mesmo que os meus cálculos falhassem, o que é impossível, apenas se perderiam cinco luíses, e nada mais...

       - Há ocasiões em que cinco luíses são uma fortuna, percebe, senhor perdulário... Ignora isto, o senhor que comeu um volume de ouro maior do que esta casa!

       - Isso prova o meu grande mérito, Nicola; se comi esse ouro é porque posso ganhá-lo... E demais, há um Deus que protege os homens... hábeis e sagazes.

       - Pois não, conta com isso!

       - Ó Nicola, serás tu ateísta?

       Nicola encolheu os ombros.

       - Serás porventura da escola de Voltaire, que nega a Providência?

       - És um asno, Beausire - redargüiu Nicola.

       - Não seria para admirar que, saída do povo, fossem essas as tuas idéias... Previno-te que não são decerto as que pertencem à minha casta social nem às minhas opiniões políticas.

       - Sr. de Beausire, é um insolente!

       - Eu creio, entendes? Tenho fé! E se alguém me dissesse: “Teu filho, João Baptista Toussaint, que desceu para comprar dez cêntimos de açúcar, vai subir com uma bolsa cheia de ouro na mão”, a minha resposta seria “Pode ser, se for essa a vontade de Deus!”

       E Beausire levantou religiosamente os olhos para o Céu.

       - És um pateta, Beausire - disse Nicola.

       Ainda bem não eram pronunciadas estas palavras, quando se ouviu na escada a voz do jovem Toussaint.

       - Papá! Mamã - gritava ele.

       Beausire e Nicola prestaram ambos ouvido atento àquela voz querida.

       - Papá! Mamã - repetia a voz aproximando-se cada vez mais.

       - Que aconteceu? - gritou também Nicola abrindo a porta com solicitude maternal... - Vem cá, meu filho, vem!

       - Papá! Mamã! - continuou a voz aproximando-se sempre, como a de um ventríloquo que finge abrir a tampa de uma cova.

       - Não me hei-de admirar - disse Beausire, observando a alegria daquela voz - não me hei-de admirar de ver o milagre realizado, isto é, que o pequeno achasse a bolsa de que falei.

       Neste momento, assomava o pequeno no último degrau da escada, e precipitando-se no quarto com um torrão de açúcar na mão e apertando debaixo do braço esquerdo um saquinho de doces, mostrava na direita um luís de ouro, que à frouxa claridade da mirrada vela, reluzia como a estrela Aldebaran.

       - Ai, meu Deus, meu Deus - exclamou Nicola deixando a porta fechar-se por si mesma - que te aconteceu, meu pobre e querido filho?

       E cobria a cara gelatinosa do pequeno Toussaint com os beijos maternais, a que nada pode repugnar, porque tudo purificam.

       - O que há? - disse Beausire apoderando-se destramente do luís, e examinando-o mais próximo da luz; - há que é um verdadeiro luís de ouro, que vale vinte e quatro libras.

       E voltando-se depois para junto do pequeno, disse:

       - Onde achaste isto, meu caturra? É preciso ir buscar os outros.

       - Não o achei, papá - disse o rapazinho; - deram-mo.

       - Como! Deram-to? - exclamou a mãe.

       - Sim, mamã... Um senhor.

       Nicola esteve quase a perguntar, como Beausire fizera acerca do luís, onde estava o tal senhor.

       Mas, prudente por experiência, porque sabia que Beausire era muito ciumento, contentou-se em repetir:

       - Um senhor?...

       - Sim, mãezinha - disse o rapaz, continuando a roer o torrão - um senhor.

       - Um senhor? - repetiu Beausire.

       - Sim, paizinho, um senhor, que entrou na loja de confeiteiro quando eu lá estava e disse:

       “- Sr. confeiteiro, não é ao filho de um fidalgo chamado Beausire, que tem a honra de servir neste momento?”

       Beausire empertigou-se todo; Nicola encolheu os ombros.

       - O que respondeu o confeiteiro, meu filho? – perguntou Beausire.

       - Respondeu: “Não sei se é fidalgo, mas chama-se efectivamente Beausire.”

       “- E não mora próximo daqui? - perguntou o tal senhor.”

       “- Mora aqui mesmo, na casa da esquerda, no terceiro andar, ao cimo da escada.”

       “- Dê a este menino dos melhores doces que tiver, que pago tudo.”

       - Depois, voltando-se para mim disse:

       “- Toma, pequerrucho, aí tens um luís; há-de servir-te para comprar outros bolos, depois de comeres esses todos...”

       - Então deu-me o luís, o confeiteiro entregou-me também este embrulho, e saí de lá saltando de contente... Mas, onde está o meu luís?

       E o pequeno que não vira a ligeireza das mãos de Beausire, pôs-se a procurar o luís por todos os cantos.

       - Talvez o perdesses desmazelado! - disse Beausire.

       - Não perdi tal! Não, não e não! - exclamou o pequeno.

       Esta discussão poderia tornar-se mais séria, se não fosse o acontecimento que se seguiu e que necessariamente devia pôr-lhe termo.

       Enquanto o rapazinho, duvidando ainda de si mesmo, procurava por todos os lados o luís, que jazia no bolso do colete de Beausire, enquanto este admirava a inteligência de Toussaint, que ele acabava de manifestar pela narração que descrevemos, um pouco mais floreada pela nossa pena; enquanto Nicola, ao passo que compartilhava o entusiasmo do amante por aquela precoce facúndia, perguntava a si mesma quem poderia ser aquele homem que lhe presenteara o filho tão generosamente, abriu-se a porta de mansinho, e uma voz cheia de doçura fez ouvir estas palavras:

       - Boas noites, senhora Nicola; boas noites, Sr. de Beausire, boas noites, meu lindo Toussaint.

       Todos se voltaram ao mesmo tempo para o lado donde partia aquela voz.

       No limiar da porta, risonho e alegre, apareceu um homem elegantemente vestido.

       - É o senhor dos doces! - exclamou o jovem Toussaint saltando.

       - O Sr. conde de Cagliostro! - exclamaram juntos Nicola e Beausire.

       - Tem na verdade um menino muito interessante, Sr. de Beausire - disse o conde - e deve considerar-se muito feliz de ser pai de tal criança.

 

No qual terá o leitor a satisfação de encontrar o Sr. de Beausire do mesmo modo que o deixou

       Depois das graciosas palavras do conde, seguiu-se um momento de silêncio, durante o qual avançou Cagliostro até ao meio do quarto, lançando um olhar escrutador em volta de si, talvez para apreciar a situação moral, e sobretudo a pecuniária, dos seus antigos conhecidos, no meio dos quais se achava em virtude desses terríveis enredos, cujo centro único era o resultado daquela vista de olhos, a qual, em homem tão perspicaz como era o conde, não podia deixar a menor dúvida.

       Qualquer observador, por mais superficial que fosse, adivinharia a verdade, isto é, que aquela pobre família estava reduzida aos últimos recursos.

       Dos três personagens, em quem a aparição do conde lançara a surpresa, o primeiro que recuperou a palavra foi aquele cuja memória se limitava apenas a recordar os acontecimentos daquela noite, e a quem por isso a consciência infantil nada tinha que repreender-lhe.

       - Ai, meu senhor, que desgraça - disse o pequenito - perdi o meu rico luís.

       Nicola ia a abrir a boca para dizer a verdade, mas reflectiu que o seu silêncio valeria talvez ao filho outro luís, e que esse seria ela quem o apanharia.

       Não se enganou.

       - Perdeste o luís, meu pobre pequerrucho? – disse Cagliostro; - pois bem, aqui tens dois; agora toma cuidado não percas também esses.

       E tirou de uma bolsa, cujo vulto atraiu o olhar ávido de Beausire, outros dois luíses, que depositou na mãozita glutinosa do pequeno.

       - Olha, mamã - disse este correndo para Nicola - estão aqui um para ti, e outro para mim.

       E a criança repartiu o seu tesouro com a mãe.

       Cagliostro notara a tenacidade com que o olhar do falso sargento seguira a bolsa, que abrira para dar passagem às quarenta e oito libras, nas diferentes evoluções que fizera desde que saíra do seu esconderijo até que lá entrara de novo.

       Ao vê-la desaparecer na profundeza do colete do conde, o amante de Nicola soltou profundo suspiro.

       - Que é isso, Sr. de Beausire - disse Cagliostro - está sempre triste e melancólico?

       - E o Sr. conde sempre milionário.

       - O senhor é um dos maiores filósofos que tenho conhecido, tanto na idade moderna como na antiga, e deve decerto conhecer este axioma, que em todas as épocas tem tido grande mérito: O dinheiro não faz a ventura! Conheci-o rico... relativamente.

       - Sim - respondeu Beausire - é verdade; possuía até cem mil francos!

       - É possível; mas na época em que o encontrei, já o senhor tinha comido, pouco mais ou menos, uns quarenta mil, de sorte que não tinha mais do que sessenta mil, soma muito bonita ainda para um antigo quadrilheiro.

       Beausire deu um suspiro e disse:

       - Que vem a ser sessenta mil libras comparadas com as somas de que o senhor pode dispor?

       - A título de depositário, Sr. de Beausire, por isso que, se bem contarmos, creio que será o senhor o S. Martinho e eu o pobre, e que será obrigado, para me não deixar gelar de frio, a ceder-me metade do seu capote. Pois bem! Meu caro Sr. de Beausire, recorde-se das circunstâncias em que o encontrei; possuía então, como há pouco lhe disse, umas sessenta mil libras; era então mais feliz?

       Beausire soltou um suspiro retrospectivo, que podia passar por um gemido.

       - Vamos, responda - insistiu Cagliostro - quereria trocar a sua posição actual, apesar de possuir unicamente o miserável luís, que roubou ao pobre Toussaint?...

       - Senhor! - interrompeu o antigo quadrilheiro.

       - Nada de nos agoniarmos, Sr. de Beausire... Agoniámo-nos uma vez, e viu-se obrigado a ir buscar à rua a sua espada, que saltara pela janela... Não se recorda disso?... Recorda, não é verdade? - continuou o conde, que via que Beausire nada respondia - já é alguma coisa ter memória... Pois bem, torno a perguntar-lhe: quereria trocar a sua posição actual, apesar de possuir esse miserável luís que roubou ao pobre Toussaint (desta vez não houve reclamação) contra a posição precária de que muito estimei arrancá-lo?

       - Não, Sr. conde - disse Beausire; - efectivamente tem razão, não a trocaria... Ai de mim! Nessa época estava separado da minha querida Nicola!

       - E perseguido pela polícia por causa do seu negócio de Portugal... Que diabo foi feito desse negócio? Terrível negócio! Se bem me lembro.

       - Caiu na água, Sr. conde - respondeu Beausire.

       - Ah! Tanto melhor! Por isso que muito devia inquietá-lo... Todavia não conte demasiadamente com esse naufrágio; na polícia há redes mergulhadoras, e por mais turvo e profundo que seja o pélago, é mais fácil pescar um negócio dessa natureza, do que uma das mais formosas pérolas.

       - Enfim, Sr. conde, salva a miséria a que nos vemos reduzidos...

       - Acham-se felizes... De sorte que lhe bastaria um milhão de luíses para que essa felicidade fosse completa?

       Os olhos de Nicola brilhavam como duas estrelas, os de Beausire pareciam duas chamas.

       - Quer dizer - acudiu este último - que se nós tivéssemos mil luíses, isto é, quarenta e quatro mil libras, compraríamos logo uma quintarola com metade desse dinheiro, e com a outra metade constituiríamos um pequeno rendimento, fazendo-me eu lavrador.

       - Como Cincinato...

       - Ao passo que a Nicola dedicar-se-ia toda à educação do nosso filho.

       - Como Cornélia!... Ora! Sr. de Beausire, isso não só seria exemplar, mas muito edificante. Mas diga-me, não espera ganhar essa soma no negócio de que trata neste momento?

       Beausire estremeceu e perguntou:

       - Que negócio?

       - O negócio em que se conduz como sargento dos guardas reais; o negócio, enfim, acerca do qual deve ter certa noite uma entrevista debaixo da arcada da praça Real.

       Beausire tornou-se pálido como um defunto.

       - Ai, Sr. conde! - exclamou ele juntando as mãos de um modo aterrador.

       - O que é?

       - Não me deite a perder!

       - Bom! Aí está agora divagando! Sou porventura membro da polícia para o perder?

       - Aí tens, não to dizia eu? - exclamou Nicola; - não te dizia que te metias em camisas de onze varas?

       - Ah! Sabe que negócio é, menina Legay? – perguntou Cagliostro.

       - Não, Sr. conde, mas quando ele me oculta qualquer negócio é porque é mau. Oh! Isso não tem dúvida!

       - Pois bem, quanto a este, querida menina Legay, posso assegurar-lhe que se engana; pelo contrário, talvez seja excelente!

       - Ah! Não é verdade? - exclamou Beausire; - o Sr. conde é fidalgo, e nesta qualidade compreende que toda a nobreza será interessada...

       - Em que o negócio se realize... Verdade é que o povo todo deseja o contrário. Agora, meu caro Sr. Beausire, se me acredita (repare em que é um conselho que lhe dou, um conselho de amigo); se me acredita, não tome partido, nem pela nobreza, nem pelo povo.

       - Mas então por quem o tomarei?

       - Por si.

       - Por mim?

       - Sem dúvida, por ti - disse Nicola. - Já tens trabalhado muito para os outros, é tempo de trabalhares para ti.

       - Ouviu? A menina Legay fala como S. João Boca de Ouro... Bem, Sr. de Beausire, todo o negócio tem duas faces, uma boa e outra má; a que é boa para uns, é má para os outros; qualquer que ela seja, não pode ser má para todos, nem boa para todos; trata-se pois unicamente de escolher o melhor lado.

       - Ah! Ah! Parece então ao Sr. conde que me não acho do lado bom!

       - Não é tanto assim, Sr. Beausire; nem tanto nem tão-pouco, e acrescentarei até que, se teimar muito (bem sabe que faço às vezes de profeta) acrescentarei até que, se teimar muito, não correrá só desta vez o risco da fortuna, mas correrá também o risco da vida... Sim, seria provavelmente enforcado?

       - Senhor - disse Beausire, procurando mostrar presença de espírito, mas limpando o suor que lhe deslizava em bagas pelo rosto - não se enforca assim um fidalgo.

       - É verdade: mas para o degolarem, meu querido Sr. Beausire, ser-lhe-ia preciso provar a sua nobreza, o que decerto levaria tanto tempo, que o tribunal, enfastiado de esperar, o mandaria enforcar provisoriamente... Além disso dirá talvez que, quando a causa é boa, pouco importa o suplício: É o crime que envergonha, e não o cadafalso! Como dizia um grande poeta.

       - Contudo... - balbuciou Beausire cada vez mais assustado.

       - Sim... contudo o senhor não é por tal modo agarrado às suas opiniões, que lhe sacrifique a vida… Bem o compreendo... Com a fortuna! não se vive mais do que uma vez, como dizia outro poeta, menos insigne que o primeiro, mas que ao menos podia ter razão neste ponto.

       - Sr. conde - disse Beausire - tenho observado, nas poucas relações que temos tido, que possui um modo de falar de certas coisas, que faria arrepiar os cabelos de um homem que fosse tímido.

       - Oh! Não é essa a minha intenção - disse Cagliostro. - E demais o Sr. não é tímido!

       - Não - respondeu Beausire; - bem longe disso... Todavia dão-se às vezes certas circunstâncias...

       - Percebo... por exemplo, quando vemos atrás de nós as galés por crime de ladrão, e adiante a forca por crime de leza-nação, como se chamaria hoje ao crime que tivesse por fim raptar o rei.

       - Senhor! Senhor! - exclamou Beausire, todo espavorido.

       - Desgraçado! - disse Oliva - era sobre esse rapto que tu baseavas os teus sonhos de ouro?

       - E não deixava de ter alguma razão, minha querida senhora; a diferença está em que, como há pouco tive a honra de lhe dizer, todas as coisas têm duas faces, uma sombria e outra iluminada. O Sr. de Beausire não fez bem em afagar a face sombria, em adoptar o lado mau; que se volte, e tudo mudará de aspecto.

       - E ainda será tempo? - perguntou Nicola.

       - Ainda.

       - O que é preciso fazer, Sr. Conde? – perguntou Beausire.

       - Suponha uma coisa, meu caro senhor – disse Cagliostro meditando.

       - Qual?

       - Suponha que falha o seu conluio; suponha que os cúmplices do homem mascarado e do homem de capote escuro são presos; suponha (é necessário supor tudo no tempo em que vivemos), que sejam condenados à morte... Não foram absolvidos Besenval e Augeard? Já vê que tudo se pode conjecturar... Suponha (não se impaciente, que de suposições em suposições chegaremos a um facto), suponha que é um desses cúmplices; suponha que tem a corda no pescoço, e que lhe dizem para responder aos seus queixumes em tais ocasiões, porque, por mais corajoso que seja o homem, nunca deixa de se lamentar mais ou menos...

       - Conclua, Sr. conde, suplico-lhe; afigura-se-me que me afogam!...

       - Ora! Não admira, quando o suponho já com a corda no pescoço!... Pois bem, suponha que venham dizer-lhe: “Ah! pobre Sr. Beausire, ah! Sr. Beausire, a culpa foi sua!”

       - Porquê? - perguntou Beausire.

       - Aí tem; de suposições em suposições chegamos a uma realidade, respondeu-me isso, como se já lá estivesse.

       - Confesso-o.

       - Porque - responderia essa voz; - porque, não só podia escapar à funesta morte que o tem nas garras, mas até ganhar mil luíses, com que poderia comprar a tal casinha de campo, onde devia viver em companhia da senhora Oliva, do seu Toussaint, e das quinhentas libras de renda, juntas com as doze mil que lhe sobejassem da compra da casa... viver, como bom lavrador, de chinelas no Verão e de tamancos no Inverno... ao passo que, em vez desse horizonte encantador, descobrimos além (o senhor principalmente), a praça de Grève guarnecida de duas ou três hediondas forcas, a mais elevada das quais lhe estende os braços... Safa! Meu pobre Sr. de Beausire, que terrível perspectiva!

       - Mas, enfim, como poderia escapar a essa morte cruel? Como poderia ganhar esses mil luíses que asseguravam o meu sossego, de Nicola e de Toussaint?

       - Perguntaria o senhor, não é assim?... “Nada mais fácil - responderia a voz. Tinha a dois passos de si o conde de Cagliostro... (Bem o conheço – responderia o senhor - é um cavalheiro estrangeiro que habita Paris para se divertir, e que se aborrece de morte, quando não tem ou não vê alguma coisa de novo). É isso mesmo! Pois bem, não tinha mais do que ir procurá-lo e dizer-lhe: ‘Sr. conde...’”

       - Mas eu ignorava a sua residência - acudiu Beausire; - ignorava que estivesse em Paris, ignorava até que ainda vivesse.

       - É por isso mesmo, meu caro Sr. de Beausire - lhe responderia a voz; - é por isso mesmo que ele veio procurá-lo e uma vez que veio procurá-lo, bastava que lhe dissesse:

       “- Sr. conde, sei quanto é ambicioso de notícias; tenho-as e das mais frescas: o Sr. conde de Provença, irmão do rei, conspira...!”

       “-Ora adeus!”

       “- É verdade, com o marquês de Favras...”

       “- Não é possível!”

       “-Não o duvide; falo-lhe com conhecimento de causa, por isso que sou um dos agentes do Sr. de Favras...”

       “- Sim? E qual é o fim da conspiração?”

       “-Raptar o rei e conduzi-lo a Péronne... Pois bem, Sr. conde, para o distrair, vou, dia por dia, hora por hora, se isso for necessário, pô-lo ao corrente do negócio”.

       - Então, meu caro amigo, o conde, que é um cavalheiro generoso, responder-lhe-ia:

       “- Quer realmente fazer o que diz?”

       “- Quero, sim.”

       “- Pois então, como todo o trabalho merece salário, logo que se realize a sua palavra, tenho ali num cantinho umas vinte e quatro mil libras, que contava aplicar a uma boa acção; aplicá-las-ei antes a este capricho, dê por onde der... e no dia em que o rei for raptado ou preso o Sr. de Favras virá procurar-me, e à fé de fidalgo que as vinte e quatro mil libras lhe serão entregues, do mesmo modo que lhe são entregues estes dez luíses, não como adiantamento, não a título de empréstimo, mas unicamente como simples mimo!”

       E dizendo isto, como um actor que se ensaia com os acessórios, o conde de Cagliostro tirou da algibeira a pesada bolsa, em que introduziu o polegar e o índex, e com destreza que testemunhava bem a sua habilidade neste género de exercício, tirou exactamente os dez luíses.

       Beausire, cumpre fazer-lhe essa justiça, estendeu a mão para os receber.

       Cagliostro desviou-lhe brandamente a mão, dizendo:

       - Perdão, Sr. de Beausire, parece-me que estamos fazendo suposições...

       - É verdade - redargüiu Beausire, cujos olhos brilhavam como duas brasas - mas não me tinha dito, que de suposições em suposições chegaríamos à realidade?

       - E já lá chegámos porventura?

       Beausire hesitou um momento.

       Convém dizer, que não era a probidade, a fidelidade da palavra dada, a consciência indignada que ocasionava essa hesitação; afirmamo-lo para que os nossos leitores conheçam bem o Sr. de Beausire e não nos desmintam. Não; era o simples receio de que o conde não cumprisse a sua promessa.

       - Meu caro Sr. de Beausire, tem muita razão, hesito em trair a confiança que um homem de bem depositou em mim.

       E levantando os olhos para o Céu, meneou a cabeça como alguém que exclama: “Ah! Isto é cruel!”

       - Não, não é isso - replicou Cagliostro - e o senhor é para mim uma nova prova da verdade dessa frase vulgar: “O homem não se conhece”.

       - Então que é? - perguntou Beausire algum tanto arrepiado, vendo a facilidade com que o conde lia no mais profundo dos corações.

       - É porque duvida que lhe dê os mil luíses que lhe prometi.

       - Oh! Sr. conde!

       - E isso é naturalíssimo; sou o primeiro a confessá-lo, e por isso lhe ofereço uma caução...

       - Uma caução! Pois é preciso...

       - Uma caução que responda por mim em corpo e alma!

       - Qual é a caução? - perguntou Beausire com a maior timidez.

       - A senhora Nicola Oliva Legay.

       - Oh! - exclamou Nicola - o que o Sr. conde nos promete é como se já o tivéssemos na mão, Beausire.

       - Veja, senhor, aí está o resultado de cumprir escrupulosamente as promessas que se fazem... Um dia em que esta senhora estava na situação em que o senhor está, menos a respeito da conspiração, isto é, um dia em que esta senhora era muito procurada pela polícia, fiz-lhe o oferecimento de que viesse refugiar-se em minha casa. Hesitou: receava pela sua honra; dei-lhe então a minha palavra; e apesar de todas as tentações que deviam acometer-me, e que o senhor compreende melhor do que ninguém, mantive sempre intacta essa palavra. Não é isto verdade, minha senhora?

       - Oh! Lá isso é verdade - disse Nicola - juro-o sobre o nosso Toussainzinho!

       - Acredita então a Srª. Nicola, que hei-de cumprir a palavra que hoje dou ao Sr. de Beausire, de lhe entregar vinte e quatro mil libras no dia em que o rei fugir, ou no dia em que Favras for preso?... Sem contar, bem entendido, que hei-de desatar o nó, que ainda há pouco o estrangulava, e que nunca mais se tratará de corda, nem de forca, a seu respeito, pelo menos por causa do tal negócio... Fora disso não respondo por mais nada! Entendemo-nos bem! Há certas vocações...

       - Quer dizer, Sr. conde - respondeu Nicola – que para mim é como se o tabelião fizesse a escritura.

       - Pois bem, minha querida senhora - disse Cagliostro alinhando em cima da mesa os dez luíses que tinha ainda na mão - faça com que a sua convicção passe ao coração do Sr. de Beausire, e o negócio ficará concluído.

       E com a mão fez sinal a Beausire para ir entender-se um momento com Nicola.

       A conversação durou apenas cinco minutos, mas cumpre dizer, que foi das mais animadas.

       Enquanto durou, examinava Cagliostro à luz da vela o cartão picado, fazendo movimentos com a cabeça, como para saudar um antigo conhecimento.

       - Ah! Ah! - disse ele - é o famoso cálculo de Law que encontro aqui... Já perdi um milhão com este jogo.

       E afectando a maior negligência, deixou cair o cartão em cima da mesa.

       Esta observação de Cagliostro pareceu dar nova actividade à conversação de Nicola e de Beausire.

       Por fim Beausire pareceu decidido.

       Foi direito a Cagliostro com a mão estendida, como um vendilhão que conclui um ajuste indissolúvel.

       Mas o conde recuou, carregando o sobrolho.

       - Entre cavalheiros, senhor, a palavra vale bem o jogo; dei-lhe a minha, dê-me a sua.

       - À fé de Beausire, Sr. conde, estamos de acordo.

       - Basta, senhor - disse Cagliostro.

       E tirando do bolso um relógio, em que se via o retrato de Frederico, rei da Prússia, cravejado de diamantes, disse:

       - São nove horas menos um quarto, Sr. de Beausire; às nove em ponto esperam pelo senhor debaixo da arcada da praça Real do lado do palácio Sully. Tome estes dez luíses, meta-os no bolso do colete, vista o gibão, cinja a espada, passe a ponte de Nossa Senhora e siga a rua de Saint-Antoine: é necessário que não se faça esperar muito tempo.

       Beausire não esperou que lho dissesse outra vez; pegou nos dez luíses, meteu-os no bolso, vestiu o gibão e cingiu a espada.

       - Onde tornarei a encontrá-lo, Sr. conde?

       - No cemitério de Saint-Jean, se for do seu agrado... Quando se quer falar, sem ser ouvido, de negócios iguais a este, vale mais conversar em casa dos mortos, do que em casa dos vivos.

       - A que horas?

       - Às que quiser; o primeiro que chegar esperará.

       - O Sr. conde tem alguma coisa que fazer? – perguntou Beausire um tanto inquieto, vendo que Cagliostro se não dispunha a segui-lo.

       - Tenho - respondeu Cagliostro - preciso falar com a Srª. Nicola.

       Beausire fez um movimento de surpresa.

       -Oh! Esteja descansado, meu caro Sr. de Beausire: respeitei-lhe a honra quando era solteira, com muito mais razão a hei-de respeitar quando é mãe... Vá, Sr. de Beausire, vá!

       Beausire lançou a Nicola um olhar, que parecia dizer-lhe:

       - Srª. de Beausire, torne-se digna da confiança que tenho em si!

       Depois, abraçou com ternura o pequeno Toussaint, saudou o conde com um respeito misturado de receio, e saiu no mesmo momento em que o relógio de Nossa Senhora dava três quartos para as nove.

 

Édipo e Loth

       Era quase meia noite, quando um homem que desembocava da rua Royale para a de Saint-Antoine, seguiu por esta última até ao chafariz de Sainte-Catherine, parando um momento por detrás da sombra que o mesmo projectava, a fim de se assegurar que ninguém o observava; tomou então pela travessa de Saint-Paul, e chegando ali, penetrou sem hesitar pela rua quase sombria e inteiramente deserta do Roi-de-Cicille; em seguida, encurtando o passo, à medida que avançava para a extremidade da rua que acabámos de nomear, entrou, com uma espécie de reserva, pela do Croix-Blanche, parando, cada vez mais receoso, diante da porta férrea do cemitério de Saint-Jean.

       Chegando ali, e como que receando ver surgir da terra algum espectro, resolveu-se a esperar naquele mesmo lugar, limpando com a manga da farda de sargento das guardas o suor que lhe corria em bagas da fronte.

       E com efeito, no mesmo momento em que principiava a soar a meia noite, alguma coisa, semelhante a uma sombra, se divisou deslizando através dos freixos e dos ciprestes. Essa sombra aproximou-se da porta de grades, e em breve, ao ranger de uma chave na fechadura, pôde perceber-se que o espectro, se com efeito o era, tinha a faculdade, não só de sair do seu jazigo, mas também do cemitério.

       O militar recuou, ouvindo aquele rangido.

       - Então, Sr. de Beausire - disse a voz zombeteira de Cagliostro - não me conhece, ou esqueceu-se da nossa entrevista?

       - Ah! É o senhor - disse Beausire respirando como homem cujo coração se sente aliviado de um grande peso - ainda bem! Estas diabólicas ruas são tão sombrias e tão desertas, que não sabemos se vale mais encontrar nelas uma alma viva, ou percorrê-las sozinho...

       - Ora adeus - disse Cagliostro - o senhor receia alguma coisa a qualquer hora do dia ou da noite? Qual! Não mo faz acreditar... Um valentão como o senhor, que traz consigo uma espada! Contudo, passe para este lado da grade, meu caro Sr. de Beausire, e fique tranqüilo, que não encontrará ninguém mais do que eu.

       Beausire aceitou logo o convite, e a fechadura, que tinha rangido para abrir a porta, tornou a ranger para a fechar assim que ele passou além das ombreiras.

       - Bem... Agora - disse Cagliostro - siga esta pequena vereda, Sr. de Beausire, e a vinte passos daqui encontraremos uma espécie de altar arruinado, em cujos degraus estaremos perfeitamente para conversar acerca dos nossos negócios.

       Beausire tratou logo de obedecer a Cagliostro, mas depois de um momento de hesitação, perguntou:

       - Onde diabo vê o senhor um caminho? Não vejo mais do que tojos que me rasgam as botas, e bastas ervas que me chegam até aos joelhos.

       - Não há dúvida que este cemitério é dos mais mal tratados que conheço, mas isto não admira; bem sabe que poucas pessoas aqui enterram, além dos criminosos executados na praça de Grève, e para esses pobres diabos não precisam esmerar-se muito... Contudo, meu caro Sr. de Beausire, temos aqui algumas ilustrações; se fosse dia, mostrar-lhe-ia o jazigo de Bouteville de Montmorency, decapitado por se ter batido em duelo; o do cavaleiro de Rohan, também decapitado por ter conspirado contra o governo; o do conde de Horn, rodado por ter assassinado um judeu; o de Damiens, esquartejado por haver tentado assassinar Luís XV... Que sei eu? Oh! Não tem razão para dizer mal do cemitério de Saint-Jean, Sr. de Beausire! É um cemitério mal tratado, mas muito bem habitado.

       Beausire seguia Cagliostro cadenciando os passos tão regularmente, como faz o soldado que segue o chefe em segunda fila.

       - Ah! - disse Cagliostro parando de súbito de modo que Beausire, que não esperava essa paragem, se viu forçado a dar-lhe um encontrão; - olhe, aqui tem uma coisa moderníssima... É a sepultura do seu camarada Fleur-d’Épine, um dos assassinos do padeiro Francisco, que foi enforcado há oito dias, por sentença do Châtelet. Isto deve interessar-lhe, Sr. de Beausire; era, como o senhor, um falso sargento, um verdadeiro espadachim.

       Os dentes de Beausire rangiam literalmente; afigurava-se-lhe que aquele tojo, no meio do qual caminhava, eram outras tantas mãos hirtas, que surgiam da terra para lhe puxar pelas pernas, e para lhe fazer compreender que o destino já ali tinha marcado o lugar onde ele devia dormir o sono eterno.

       - Ah! - disse afinal Cagliostro, parando ao pé de uma espécie de ruínas - eis-nos chegados.

       E assentando-se numa pedra, com o dedo indicou a Beausire outra, que parecia estar ali colocada de propósito junto da primeira, a fim de poupar a Cinna o trabalho de chegar a sua cadeira para junto da de Augusto.

       Era tempo; as pernas do antigo quadrilheiro cambaleavam por tal modo, que caiu sobre a pedra primeiro que se assentasse.

       - Vamos, agora que nos achamos aqui muito à nossa vontade para conversar, meu caro Sr. de Beausire - disse Cagliostro - diga-me o que se passou esta noite debaixo das arcadas da Praça Real. A sessão devia ser muito interessante!

       - Na verdade - exclamou Beausire - confesso-lhe, que neste momento sinto a cabeça um pouco transtornada, e creio que ambos ganharíamos muito com que o senhor me interrogasse.

       - Pois seja assim - disse Cagliostro; - sou condescendente, e contanto que saiba o que pretendo saber, pouco me importam as fórmulas. Quantos se reuniram debaixo das arcadas da praça Real?

       - Seis, comigo.

       - Seis, consigo, meu caro Sr. de Beausire. Vejamos se são as pessoas que eu presumo: primeiro, o senhor, isso não oferece dúvida...

       Beausire soltou um suspiro indicando que antes quisera que nisso houvesse dúvida, e disse:

       - Faz-me muita honra em principiar por mim, quando havia a meu lado personagens de maior consideração.

       - Meu caro, sigo os preceitos do Evangelho. Não diz o Evangelho: “Os primeiros serão os últimos?” Se os primeiros devem ser os últimos, estes ficarão sendo naturalmente os primeiros. Procedo, portanto, como já lhe disse, conforme o Evangelho. Havia, pois, o senhor, em primeiro lugar?

       - Sim, senhor - disse Beausire.

       - Depois, o seu amigo Tourcaty, não é verdade, um antigo oficial recrutador encarregado de organizar a legião de Brabante?

       - Sim, senhor, Tourcaty.

       - Depois, um bom realista chamado Marquié, sargento outrora nas guardas francesas, hoje tenente de uma companhia do centro?

       - Sim, Sr. conde, havia também Marquié.

       - Depois, o Sr. de Favras?

       - Não há dúvida, lá estava também.

       - Depois um homem mascarado.

       - Sim, senhor.

       - Tem algum esclarecimento a dar-me acerca do mascarado, Sr. de Beausire?

       Beausire, olhando para o conde de Cagliostro tão fixamente que os olhos pareciam acender-se no meio da escuridão, disse:

       - Mas...

       E deteve-se, como se receasse cometer um sacrilégio, indo mais adiante.

       - Mas o quê? - perguntou Cagliostro.

       - Mas...

       - Ora vamos, meu caro Sr. de Beausire, tem porventura algum nó na língua? Cuidado! Os nós na língua trazem às vezes os da garganta, e estes, conquanto sejam corredios, não deixam de ser dos mais perigosos!

       - Mas, enfim - replicou Beausire forçado nos seus entrincheiramentos - não é o Sr. conde?

       - Que conde? - perguntou Cagliostro.

       - O Sr. conde de Provença, irmão do rei.

       - Vamos, Sr. de Beausire, que o marquês de Favras, que tem todo o interesse em fazer acreditar que neste negócio anda a mão de um príncipe de sangue, diga que o homem mascarado era o conde de Provença, isso é fácil de conceber-se. Quem não sabe mentir não sabe conspirar; mas que o senhor e o seu amigo Tourcaty, dois recrutadores, isto é, dois homens acostumados a tomar a medida do seu próximo por linhas, por polegadas e por pés, se deixem enganar desse modo, não é muito provável.

       - Efectivamente... - disse Beausire.

       - O Sr. conde de Provença tem cinco pés, três polegadas e sete linhas - disse Cagliostro - e o mascarado tem quase cinco pés e seis polegadas.

       - Não há dúvida - disse Beausire - já o tinha notado; mas se o sujeito não é o Sr. conde de Provença, quem diabo pode ser, Sr. conde?

       - Ora essa! Muito me vangloriaria, meu caro Sr. de Beausire - disse Cagliostro - em ter alguma coisa a participar-lhe quando esperasse que fosse o senhor que ma participasse.

       - Nesse caso - disse o antigo quadrilheiro, que ia a pouco e pouco entrando no seu estado normal, à medida que também a pouco e pouco entrava na realidade - nesse caso, sabe quem era esse homem, Sr. conde?

       - Se sei!

       - Acaso seria indiscreto se lhe perguntasse?...

       - O nome dele?

       Beausire fez um sinal com a cabeça de que era isso mesmo que queria perguntar.

       - Um nome é sempre uma coisa gravíssima para dizer, Sr. de Beausire; na verdade, quisera antes que adivinhasse.

       - Adivinhar! Há quinze dias que busco esse nome.

       - Ah! Uma vez que ninguém nos ajuda...

       - Ajude-me o Sr. conde.

       - Não me recusarei... conhece a história de Édipo?

       - Mal, Sr. conde; vi representar a peça uma vez no teatro francês e no fim do quarto acto tive a infelicidade de adormecer...

       - Pois desejo-lhe sempre dessas infelicidades, meu caro senhor.

       - Bem vê o senhor conde que a infelicidade não foi tão pequena, visto que hoje causa-me algum prejuízo.

       - Pois bem, em duas palavras dir-lhe-ei o que era Édipo. Conheci-o criança na corte do rei Políbio, e velho na do rei Admeto, pode portanto acreditar melhor o que eu lhe disser, do que se lho dissessem Ésquilo, Sófocles, Séneca, Corneille, Voltaire ou Ducis, que pode ser que tivessem ouvido falar muito do tal Édipo, mas que não tiveram a ventura de o conhecer.

       Beausire fez um movimento como para pedir a Cagliostro uma explicação sobre aquela extraordinária pretensão, por ele emitida, de ter conhecido um homem que morrera havia três mil e seiscentos anos; mas pensou que não valia talvez a pena interromper o narrador por tão pouca coisa. Suspendeu, pois, o seu movimento continuando-o por um sinal que queria dizer:

       - Continue, continue, que sou todo ouvidos.

       E efectivamente, como se nada tivesse notado, Cagliostro lá ia continuando sempre.

       - Conheci pois Édipo. Tinham-lhe vaticinado que seria o assassino do próprio pai, e marido da mãe. Ora se dermos crédito a Políbio, o pai deixou-o sem dizer palavra, e partiu para a Fócida. No momento da partida, aconselhei-lhe que, em vez de seguir a estrada real de Daulis a Delfos, tomasse antes pela montanha por um caminho que eu conhecia; mas ele teimou, e como não podia explicar-lhe o motivo do meu conselho, todas as minhas exortações para o resolver a mudar de caminho foram inúteis. O resultado dessa teima foi realizar-se exactamente o que eu tinha previsto. Na estrada de Delfos a Tebas encontrou um homem seguido de cinco escravos; o homem ia sobre um carro, que tomava toda a estrada. Tudo se arranjaria se o homem do carro consentisse em carregar um pouco para a esquerda e Édipo para a direita; mas ambos queriam ocupar o meio da estrada. O homem do carro era de um temperamento colérico; Édipo de um natural pouco paciente; os cinco escravos lançaram-se, uns após outros, na frente do seu senhor, e uns após outros caíram por terra; depois deles também o senhor caiu! Édipo passou por sobre seis cadáveres, entre os quais estava o pai!

       - Com a fortuna! - exclamou Beausire.

       - Depois seguiu a estrada de Tebas; ora, nessa estrada elevava-se o monte Phicion, e numa vereda mais estreita do que aquela em que Édipo matara o pai tinha um singular animal a sua caverna. O animal tinha as asas de águia, a cabeça e os peitos de mulher, o corpo e as garras de leão.

       -Oh! Oh! - exclamou Beausire - julga porventura, Sr. conde, que existem semelhantes monstros!

       - Não posso afirmá-lo, Sr. de Beausire – respondeu gravemente Cagliostro - visto que, quando eu ia a Tebas pelo mesmo caminho, mil anos depois dos Epaminondas, já a esfinge tinha morrido. Em suma, na época de Édipo vivia ela e uma das suas manias era postar-se no meio da estrada, propondo aos viajantes um enigma, e devorando-os se não o decifravam. Ora como isto durasse já havia três séculos, tornavam-se os viajantes cada vez mais raros, e a esfinge devia ter o maior apetite quando avistou Édipo. Foi colocar-se no meio da estrada, e alçando a pata para fazer sinal ao mancebo que parasse, disse-lhe:

       “-Viajante, sou a esfinge.”

       “- Que tenho eu com isso?” - perguntou Édipo.

       “- O destino enviou-me à terra para propor aos mortais um enigma; pertencem-me, se o não adivinham; se o adivinharem pertencerei eu à morte, e eu mesmo me precipitarei no abismo, onde até hoje tenho precipitado os cadáveres de todos aqueles que têm tido a desventura de me encontrar nesta estrada”.

       Édipo olhou para o fundo do precipício, que estava coberto de brancas ossadas, e perguntou:

       “- Qual é o enigma?”

       “- Ei-lo - disse o pássaro-leão: Qual é o animal que anda de manhã a quatro patas, em duas ao meio dia e três à tarde?...”

       Édipo reflectiu um momento; depois, com um sorriso que não deixou de inquietar a esfinge, disse:

       “- E se eu não o adivinhar, precipitar-me-ás no abismo?”

       “- É essa a lei” - respondeu a esfinge.

       “- Pois bem - respondeu Édipo - esse animal é o homem!”

       Como assim? – interrompeu Beausire, que tomava interesse na conversação, como se se tratasse de um facto contemporâneo.

       - Sim, o homem... o homem que na sua infância, isto é, na manhã da vida, anda com os pés e com as mãos; na idade madura, isto é, ao meio dia, anda nos dois pés, e pela tarde, isto é, na velhice, encosta-se a um bordão.

       - Ah! - exclamou Beausire - não há dúvida que isso é verdade. E a esfinge ficou com cara de asna?

       - Sim, meu caro Sr. de Beausire, e por tal modo que se precipitou logo de cabeça para baixo no medonho abismo, e tendo a lealdade de se não querer servir das asas, o que provavelmente o senhor achará bem estúpido, despedaçou a cabeça contra os rochedos! Quanto a Édipo, continuou o seu caminho, chegou a Tebas, encontrou Jocasta viúva, casou com ela, cumpriu-se assim a profecia do oráculo, que dissera que mataria o pai e casaria com a mãe!

       - Mas enfim - perguntou Beausire - que analogia encontra o senhor entre a história de Édipo e a do homem mascarado?

       - Oh! Uma perfeita analogia! Espere... Em primeiro lugar, desejou saber-lhe o nome.

       - Assim é.

       - E eu disse-lhe que ia propor-lhe um enigma. Verdade é que a massa de que sou feito é muito melhor do que a da esfinge, e que não o devorarei se tiver a desdita de o não adivinhar... Atenção, que principio: Qual é o senhor da corte que é neto do pai, irmão da mãe, e tio das irmãs?

       - Com os demónios! - exclamou Beausire, caindo numa meditação mais profunda do que aquela em que caíra Édipo.

       - Vamos, procure, meu caro senhor - disse Cagliostro.

       - Ajude-me também, Sr. conde.

       - Com muito gosto... Perguntei-lhe se conhecia a história de Édipo?

       - Fez-me essa honra.

       - Agora vamos passar da história pagã para a história sagrada. Conhece a história de Loth?

       - Com as filhas?

       - Justamente.

       - Ora, se conheço!... Mas espere... Ah! Sem dúvida... o que se dizia do velho Luís XV e da filha, a princesa Adelaide...

       - Quente, quente, meu caro senhor Beausire...

       - Seria então o homem mascarado?...

       - Cinco pés e cinco polegadas.

       - O conde Luís...

       - Vamos, vamos!

       - O conde Luís de...

       - Caluda!...

       - Mas, não disse que aqui só residiam mortos?...

       - Não há dúvida, mas sobre as suas sepulturas cresce erva; cresce ainda melhor do que noutra parte; pois bem, se esta erva, à maneira das canas do rei Midas... Sabe a história de Midas?

       - Não, Sr. conde.

       - Eu lha contarei noutro dia; por agora tratemos da nossa - e tomando o seu ar severo, perguntou:

       - Dizia então?...

       - Perdão, mas creio que era o senhor que interrogava?

       - Tem razão.

       Enquanto Cagliostro preparava a sua interrogação, Beausire murmurava:

       - Não há dúvida, é exactíssimo! o neto do pai... o irmão da mãe... o tio das irmãs... É o conde Luís de Nar...

       - Atenção - disse Cagliostro.

       Beausire interrompeu-se no seu monólogo, e prestou ouvido atento.

       - Agora, que já não temos a menor dúvida acerca dos conjurados, mascarados ou não mascarados, passemos ao fim da conspiração.

       Beausire fez um sinal com a cabeça, como para indicar que estava pronto a responder.

       - O fim dessa conspiração é efectivamente arrebatar o rei, não é assim?

       - Não há dúvida.

       - E conduzi-lo a Péronne?

       - Sim, senhor.

       - Agora saibamos os meios.

       - Pecuniários?

       - Sim, em primeiro lugar os pecuniários.

       - Há dois milhões... Que empresta um banqueiro genovês... Conheço esse banqueiro: e não há outros?

       - Ignoro.

       - Quanto a dinheiro, vamos bem; mas a respeito de homens?

       - Lafayette acaba de autorizar a organização de uma legião para ir socorrer o Brabante, que se revolta contra o império.

       - Oh! Meu bom Lafayette - murmurou Cagliostro, - esse rasgo bem o dá a conhecer.

       E em voz alta:

       - Muito bem, haverá uma legião; mas uma legião não é bastante para executar o projecto; é necessário um exército.

       - Ah! Vejamos o exército.

       - Hão-de reunir-se em Versalhes mil e duzentos cavalos; no dia designado às onze horas da noite partem dali, e às duas da manhã chegarão a Paris em três colunas.

       - Bem!

       - A primeira há-de entrar pela grade de Chaillot; a segunda pela barreira de Roule; a terceira pela de Grenelle. A coluna que entrar pela barreira de Grenelle dará cabo do general Lafayette; a que entrar pela grade de Chaillot dará cabo de Necker; enfim, a que entrar pela barreira de Roule há-de dar cabo de Bailly...

       - Bom - repetiu Cagliostro.

       - Depois dos tiros feitos, encravam-se os canhões; reúnem-se nos Campos Elísios, e marcha-se sobre as Tulherias, que serão nossas.

       - E então a guarda nacional?

       - É daí que deve operar a coluna do Brabante, reunida a uma parte da guarda, assalariada, a quatrocentos suíços, e a trezentos conjurados da província. Graças às inteligências que temos na praça, essa força apodera-se das portas exteriores, entra nos quartos de el-rei, exclamando: “Senhor, o bairro de Santo António está todo sublevado... Temos pronta uma carruagem... é necessário fugir!” Se o rei consente em fugir, bem vai o negócio; se não consente, leva-se à força, e conduz-se a Saint-Denis.

       - Bom!

       - Achar-se-ão ali vinte mil homens de infantaria, aos quais se juntam os mil e duzentos de cavalaria, a legião do Brabante, os quatrocentos suíços, os trezentos conjurados, dez, vinte, trinta mil realistas, que se reunirão pelo caminho, e com esta grande força conduzir-se-á o rei a Péronne.

       - Cada vez melhor!... E o que farão em Péronne, meu caro Sr. de Beausire?

       -Em Péronne encontrar-se-ão vinte mil homens, que chegam ao mesmo tempo da Flandres marítima, de Picardia, do Artois, de Champagne, de Borgonha, de Lorena, da Alsácia e do Cambrésis. Finalmente, Sr. conde, trata-se de comprar vinte mil suíços, doze mil alemães e doze mil sardos, que reunidos à primeira escolta do rei, formarão um efectivo de cento e cinqüenta mil homens.

       - Já é alguma coisa - disse Cagliostro.

       - Finalmente com estes cento e cinqüenta mil homens marcharão sobre Paris; intercepta-se o rio para cortar os víveres; Paris, assim sitiada, capitulará; dissolver-se-á a Assembléia Nacional, e colocar-se-á de novo o rei (mas como verdadeiro rei) no trono de seus avós.

       - Ámen! - disse Cagliostro.

       E levantando-se, acrescentou:

       - Meu caro Sr. de Beausire, tem uma conversação das mais agradáveis; mas, enfim, acontece-lhe o mesmo que acontece aos grandes oradores, quando têm dito tudo, nada mais têm que dizer... e já disse tudo, não é verdade?

       - Sim, Sr. conde, por enquanto.

       - Então, boas noites, meu caro Sr. de Beausire, e quando carecer de dez luíses (sempre a título de mimo, bem entendido), vá procurar-me a Bellevue.

       - A Bellevue? E perguntarei pelo Sr. conde de Cagliostro?

       - Pelo conde de Cagliostro! oh! não, que não o entenderiam. Pergunte pelo barão de Zannone.

       - Pelo barão de Zannone! - exclamou Beausire - mas não é o nome do banqueiro genovês que descontou os dois milhões de títulos do Sr. conde de Provença!

       - Pode ser - disse Cagliostro.

       - Como?

       - Sim... Como trato de muitos negócios, pode ser que o confundisse com os outros... É por isso que me não lembrei logo; mas, efectivamente, agora me recordo.

       Beausire estava como estupefacto diante daquele homem, que assim esquecia negócios de dois milhões, e principiava a acreditar que, ainda que não fosse senão com vistas pecuniárias, valia mais estar ao serviço do que empresta, do que daquele que pede emprestado.

       Mas como a estupefacção lhe não fazia esquecer o lugar onde se achava, assim que Cagliostro se mexeu, Beausire pôs-se em movimento, e seguiu-o tanto a passo, tão unido a ele, que dir-se-iam dois autómatos movidos pela mesma mola.

       Só à porta, e depois da grade fechada, os dois corpos pareceram separar-se de uma maneira visível.

       - E agora - perguntou Cagliostro - para que lado vai, Sr. de Beausire?

       - E o senhor?...

       - Para o lado oposto ao seu.

       - Eu vou ao Palais Royal, Sr. conde.

       E nisto ambos se separaram. Beausire saudando o conde com profunda vénia, este correspondendo-lhe com uma leve inclinação de cabeça; ambos desapareceram quase de súbito no meio da escuridão, Cagliostro pela rua do Templo, e Beausire pela da Varrerie

 

Prova-se que Gamain é verdadeiramente mestre dos mestres, mestre sobre todos

       Os nossos leitores hão-de recordar-se do desejo que exprimira o rei na presença de Lafayette e do conde Luís de Bouillé, de ter junto de si o seu antigo mestre Gamain, para ajudá-lo no afanoso trabalho de serralheiro.

       Acrescentara mesmo (e não julgamos inútil repeti-lo) que um hábil aprendiz não seria demais para completar a trilogia forjante: o número três, que agrada a Deus, não desagradara a Lafayette, e por isso ordenara que mestre Gamain e o seu aprendiz tivessem entrada franca no palácio, e fossem conduzidos à casa da forja assim que se apresentassem.

       Ninguém, pois, se admirará ao ver, alguns dias depois da conversação a que nos referimos, mestre Gamain, que não é nenhum estranho para os nossos leitores, por isso que lho mostrámos na manhã do dia 6 de Outubro, bebendo uma garrafa de vinho com um espingardeiro desconhecido numa taberna da ponte de Sèvres; ninguém se admirará, pois, dizíamos, de ver, alguns dias depois daquela conversação, mestre Gamain, acompanhado de um aprendiz, apresentar-se com ele, com o fato de trabalho, à porta das Tulherias, e depois dali introduzidos, o que não sofreu a menor dificuldade, penetrarem pelos quartos reais, seguirem o corredor comum, subirem a escada de cima, e dizer os nomes e qualidades ao criado de serviço.

       Os nomes eram: Nicolau Cláudio Gamain e Luís Leconte.

       As qualidades eram: quanto ao primeiro, a de mestre serralheiro; quanto ao segundo, a de aprendiz.

       Apesar de não haver em tudo isto nada de aristocrático, assim que Luís XVI ouviu os nomes e as qualidades dos que o procuravam, correu à porta, gritando:

       - Entrem, entrem!

       - Aqui me tem, aqui me tem! - disse Gamain, apresentando-se com a familiaridade, não só de um comensal, mas de um mestre. - Então que há por cá?

       Ou fosse que estivesse menos habituado ao trato real, ou que a natureza o dotasse de um grande respeito para com as testas coroadas, debaixo de qualquer trajo que se apresentassem, ou debaixo daquele com que se lhes apresentasse, o aprendiz, sem responder ao convite, e tendo deixado um intervalo conveniente entre a aparição de mestre Gamain e a sua, ficou de pé, com a jaqueta no braço e o barrete na mão, junto da porta, que o criado tornou a fechar depois de terem entrado.

       Demais, talvez que ele se achasse ali melhor do que numa linha paralela à de Gamain para gozar o fulgor de alegria que brilhava no olhar desbotado de Luís XVI, e para responder a esse olhar por um respeitoso movimento de cabeça.

       - Ah! És tu meu caro Gamain? - disse Luís XVI; - folgo muito de te ver. Na verdade, já não contava contigo; julgava que me tinhas esquecido.

       - E é por isso que tomou um aprendiz... – disse Gamain. - Fez bem, estava no seu direito, por isso que eu já aqui não estava; infelizmente – acrescentou ele com um gesto avelhacado - o aprendiz não é nenhum mestre, hein!

       O aprendiz fez um sinal ao rei.

       - Que queres, meu pobre Gamain - disse Luís XVI, - tinham-me assegurado que não querias tornar a ver-me nem ao pé, nem ao longe; diziam que tinhas medo de te comprometer.

       - Ora Vossa Majestade devia convencer-se de que em Versalhes não era lá grande coisa ser do número dos seus amigos; vi frisar ao pé de mim, pelo Leonardo, na taberna da ponte de Sèvres, duas cabeças de guardas, que faziam uma triste figura, por se terem encontrado nas suas antecâmaras no momento em que os seus bons amigos, os parisienses, o iam visitar.

       Uma nuvem deslizou pela fronte do rei, e o aprendiz abaixou a cabeça.

       - Mas - continuou Gamain - dizem que isto por cá vai melhor desde que chegou à capital, e que faz actualmente dos parisienses quanto quer... Não admira, os seus parisienses são tão tolos, e a rainha tão amável quando está para isso!...

       Luís XVI nada respondeu, mas assomou-lhe às faces um ligeiro rubor.

       Quanto ao aprendiz, parecia bastante contrariado com as familiaridades de mestre Gamain.

       Por isso, depois de limpar o rosto coberto de suor com um lenço talvez um pouco fino demais para um aprendiz de serralheiro, veio aproximando-se.

       - Quer Vossa Majestade - disse - permitir-me que lhe diga como mestre Gamain tem a honra de se achar na presença de Vossa Majestade, e como eu me encontro também na companhia dele?

       - Quero, sim, meu caro Luís - respondeu o rei.

       - Ah! Ora aí está; meu caro Luís! - disse Gamain resmungando; - meu caro Luís, a um sujeito conhecido há quinze dias, a um operário, a um aprendiz! Que se deve então dizer a mim, que o conheço há vinte e cinco anos? A mim que lhe meti a lima na mão? A mim que sou mestre? Aí está o resultado de ter a língua dourada e as mãos brancas!

       - Dir-te-ei: “Meu bom Gamain. Chamo a este moço meu caro Luís, não porque se explique com mais elegância do que tu, não porque lave as mãos mais vezes do que talvez faças; pouco aprecio essas ninharias; mas por ter sido ele quem achou meio de trazer-te cá, meu amigo, quando me tinham dito que já não querias nada comigo!”

       -Ah! Não era eu, decerto, quem pensava assim; porque, apesar de todos os seus defeitos, ainda o estimo do mesmo modo; era minha mulher, a tia Gamain, que me dizia a cada momento: “Tu tens péssimos conhecimentos, Gamain, conhecimentos altos demais para ti: não é bom ver os senhores aristocratas, neste tempo! Nós possuímos, felizmente, alguns bens, e é preciso olhar por eles; temos filhos, é necessário educá-los; se o delfim também quer aprender o ofício de serralheiro, que procure outro mestre... Não faltam serralheiros em França”.

       Luís XVI olhou para o aprendiz, e sufocando um sorriso meio zombeteiro, meio melancólico, disse:

       - Sim, não há dúvida, não faltam serralheiros em França; mas nem todos são como tu.

       - É isso mesmo que eu disse ao mestre, senhor, quando me apresentei a ele da parte de Vossa Majestade; disse-lhe: “Mestre... o rei traz entre mãos uma fechadura de segredo e precisa de um ajudante serralheiro; falaram-lhe em mim e tomou-me para o seu serviço... já é uma honra! Mas a obra que faz é muito delicada; enquanto à colocação da fechadura, ainda vamos bem, mas quando se trata da lingüeta tudo são embaraços e dificuldades para o oficial!”

       - Isso não tem dúvida - disse Gamain - a lingüeta é a alma da fechadura.

       - É a obra prima do serralheiro quando é bem feita - disse o aprendiz; -mas há lingüeta de contrapeso para mover o meio círculo; há lingüeta de carreta para mover os ferros: pois bem! Imaginemos agora ter uma chave brocada, cujo centro seja entalhado por meio de uma lâmina com uma aberturazinha, com duas rodas, e um segão hasteados por fora; qual seria a lingüeta mais adequada para esta chave? Essa é que é a questão.

       - O que é certo é que nem todos poderão resolvê-la.

       - Justamente... É por isso - continuei - que vim procurá-lo, mestre Gamain. Todas as vezes que o rei se via embaraçado, dizia logo com um suspiro: “Ah! Se o Gamain estivesse aqui!” Eu disse então ao rei: “Pois bem, mande Vossa Majestade chamar o seu hábil Gamain, e veremos o que ele faz!” Mas o rei respondeu: “É inútil, meu pobre Luís! Gamain esqueceu-se de mim!” – “Esqueceu-se de Vossa Majestade, acudi eu, um homem que teve a honra de trabalhar com o seu rei? É impossível! Pois vou procurar este mestre dos mestres!”. Disse então o rei: “Vai, mas decerto o não trarás contigo!” Tornei-lhe então: “Hei-de trazê-lo”, e parti.

       - Ai, senhor, não sabia avaliar a tarefa de que me encarregava, nem o homem a quem me dirigia! E demais, quando me apresentei a ele como aprendiz, fui obrigado a passar por um exame ainda pior do que se fosse para entrar na escola dos cadetes. Mas, enfim, eis-me em casa dele. No dia seguinte resolvi-me a dizer-lhe que ia da parte de Vossa Majestade; então julguei que me punha no meio da rua. Chamou-me espião!... Debalde lhe asseverei que era Vossa Majestade que me enviava; a nada se movia! Só quando lhe disse que tínhamos principiado uma obra que não podíamos concluir, é que pareceu ouvir-me. Mas não se decidia; dizia que era um laço que os seus inimigos lhe armavam; enfim, só ontem, quando lhe entreguei os vinte e cinco luíses, que Vossa Majestade lhe mandou dar, é que ele disse:

       “- Ah! ah! parece que vem efectivamente da parte do rei... Pois bem! seja - acrescentou - iremos amanhã; quem não se arriscou não perdeu nem ganhou!”

       “Entretive o mestre todo o dia nas suas boas disposições, e esta manhã disse-lhe:”

       “- Vamos, é necessário meter pernas ao caminho.”

       - Ainda pôs algumas dificuldades; mas afinal, pude decidi-lo; atei-lhe o avental à cintura; fiz-lhe pegar no bordão, empurrei-o para fora de casa, tomámos o caminho de Paris, e eis-nos aqui!

       - Pois sejam bem-vindos - disse o rei agradecendo num movimento de olhos ao mancebo, que parecia ter tido tanta dificuldade em compor a narração que acaba de ler-se, quanta teria mestre Gamain para fazer um discurso de Bossuet ou um sermão de Fléchier. Agora, meu amigo - continuou o rei – como pareces apressado, nada de perder tempo.

       - É justamente o que eu pretendo; além de que, prometi à Srª. Gamain voltar a casa ainda esta noite. Vejamos, onde está essa magnífica fechadura?

       O rei entregou a mestre Gamain uma fechadura quase concluída.

       - Então! Dizias tu que era uma fechadura bénarde? - disse Gamain dirigindo-se ao aprendiz; - uma fechadura bénarde fecha-se de ambos os lados, meu toleirão! Esta é uma fechadura de cofre... Vejamos, vejamos... Ainda não está boa, hein? Pois bem! Mestre Gamain lho dirá!

       E Gamain fez diligência para voltar a chave.

       - Aqui está, aqui está - exclamou ele.

       - Descobriste o defeito, meu caro Gamain?

       - Ora!

       - Vejamos, mostra-me isso.

       -Ah! Não há-de ser muito difícil; olhe: a lingüeta da chave prende, não há dúvida, a grande barba; esta descreve bem metade do seu círculo; mas chegando aqui, como não é fendida em bisel, não pode escapar sozinha... eis aqui o negócio... A carreira da barba, sendo de seis linhas, deve ter a espalda de uma só.

       Luís XVI e o aprendiz olharam um para o outro, como maravilhados da ciência de Gamain.

       - A coisa é bem simples - disse este animado pela tácita admiração dos que ouviam - e nem posso perceber como isto lhe escapou. É que naturalmente, desde que me não vê tem-se ocupado de outras frioleiras que lhe fazem perder a memória... Tem, pois, três barbas, não é assim? Uma grande e duas pequenas, uma de cinco linhas, duas de duas linhas...

       - Sem dúvida - disse o rei, seguindo com certo interesse a demonstração de Gamain.

       - Pois bem! Assim que a chave soltar a grande barba, é necessário que ela possa abrir a lingüeta que acaba de fechar, não é isto?

       - Decerto - disse o rei.

       - Então é necessário que quando voltar pelo mesmo caminho, possa agarrar em sentido inverso a segunda barba, no momento em que larga a primeira!

       - Ah! Sim, sim! - disse o rei.

       - Ah! Sim! Sim! - repetiu Gamain em tom chocarreiro; - pois bem! Como quer então que a chave sirva, se o intervalo entre a grande e a pequena barba não é igual à grossura da carranca?

       - Ah!...

       - Ah!... - repetiu ainda Gamain - ora aí está! De que lhe serve ser rei de França; de que lhe serve dizer: “Quero!” se a pequena barba diz: “Não quero!” e muito boas noites... É como quando se enfada com a assembléia, é sempre ela que triunfa por ser a mais forte!

       - Contudo, Gamain, isto ainda tem remédio? – perguntou o rei.

       - Ora essa! - exclamou este; - há remédio para tudo: basta talhar a primeira barba em bisel, profundar o espaço de uma linha, desviar quatro linhas a primeira barba da segunda, e restabelecer na mesma distância a terceira barba, a que faz parte do talão, e que pára sobre o gato da fechadura, e tudo ficará concluído.

       - Mas - observou o rei - para todos esses trabalhos será necessário um dia inteiro, meu pobre Gamain?

       - Oh! Decerto, seria um dia de trabalho para outro qualquer, mas para Gamain bastam duas horas... Exijo unicamente que me deixem sozinho, e que me não arreliem com observações... Deixem-me sozinho... a forja parece-me suficientemente provida, e daqui a duas horas... bem, daqui a duas horas – acrescentou Gamain sorrindo - poderão entrar, porque a obra estará infalivelmente concluída.

       O que Gamain exigia era justamente o que o rei desejava: a solidão de Gamain oferecia-lhe ocasião para ter uma conferência com o aprendiz.

       Todavia, afectou algumas dificuldades, dizendo:

       - Mas se tu careces de alguma coisa, meu pobre Gamain?

       - Se tiver precisão de alguma coisa, chamarei pelo criado, e uma vez que tenha ordem para me dar o que lhe pedir, é quanto desejo.

       O rei foi em pessoa à porta, e abrindo-a ordenou:

       - Francisco, não te desvies daqui. O Sr. Gamain, meu antigo mestre serralheiro, aqui fica também para me corrigir um trabalho errado... Dar-lhe-ás tudo quanto precisar, principalmente uma ou duas garrafas de Bordéus.

       - Se me dá licença, recordar-lhe-ei que gosto mais do Borgonha... O diabo do Bordéus... é como se bebesse água morna!

       - Ah! Sim, é verdade, esquecia-me - disse Luís XVI rindo; - contudo, tocámos junto dos nossos copos mais de uma vez, meu pobre Gamain... Do Borgonha, Francisco, entendes, de Volney!

       - Bem - disse Gamain correndo a língua pelos lábios - recordo-me desse nome.

       - E faz-te crescer água na boca, hein?

       - Não me fale de água, senhor... Não sei para que possa servir a água senão para molhar o ferro... Os que lhe têm dado outra aplicação, decerto a desviaram do seu verdadeiro destino... Água! Ora essa! É o Que me faltava!...

       - Pois bem, descansa; enquanto aqui estiveres, não ouvirás falar de semelhante líquido, e receando que a palavra escape a qualquer de nós, deixar-te-ei sozinho... Quando concluíres, manda-me chamar.

       - Que vai fazer neste intervalo?

       - Ora! Vou fazer o armário para que é destinada esta fechadura.

       - Esse é o trabalho que lhe convém... Felicidades!

       - Coragem - respondeu o rei.

       E dirigindo com a cabeça um adeus familiar a Gamain, saiu com o aprendiz Luís Leconte, ou com o conde Luís, como melhor convier ao leitor, a quem supomos bastante perspicácia para que duvidemos de que tenha conhecido no falso serralheiro o filho do marquês de Bouillé.

 

Em que se trata de coisas bem diferentes da serralharia

       Desta vez não saiu Luís XVI da sua oficina pela escada exterior e comum a todo o serviço; desceu pela escada secreta e reservada para ele só.

       A escada conduzia ao seu gabinete de trabalho.

       Uma das mesas do gabinete estava coberta por uma enorme carta de França, o que provava que o rei tinha estudado, mais de uma vez, o caminho mais curto e mais fácil para sair do reino.

       Mas só depois que desceu a escada, só depois de fechada a porta sobre ele e o companheiro, é que Luís XVI, circunvagando a vista pelo gabinete pareceu conhecer o moço que o acompanhava de jaqueta ao ombro e barrete na mão.

       - Finalmente, estamos sós, meu caro conde; permita que, em primeiro lugar, o felicite pela sua sagacidade e lhe agradeça a sua dedicação.

       - E eu, meu senhor - respondeu o mancebo – peço a Vossa Majestade desculpa de me atrever (ainda que em serviço do meu rei) a apresentar-me extravagantemente vestido, e falando como falei.

       - Falou como um verdadeiro e leal fidalgo, meu caro Luís, e seja qual for o seu vestuário, é sempre um coração brioso o que lhe palpita no peito... Mas vamos, não temos tempo para perder; todos, até a própria rainha, ignoram a sua presença aqui; ninguém nos escuta; diga depressa o motivo da sua vinda.

       - Não se dignou Vossa Majestade honrar meu pai, enviando-lhe um oficial da sua casa?

       - Sim, o Sr. de Charny.

       - Não há dúvida, o Sr. de Charny... Era encarregado de entregar uma carta.

       - Insignificante - interrompeu o rei; - não passava de introdução para uma missão verbal.

       - Essa missão verbal desempenhou-a ele, meu senhor, e é para que tenha a devida execução, que por ordem de meu pai e na esperança de falar a sós com Vossa Majestade, vim a Paris.

       - Então está ao facto de tudo?

       - Sei que Vossa Majestade deseja num dado momento ter a certeza de poder sair de França.

       - E que conta com o marquês de Bouillé, como com o homem mais capaz de secundar esse projecto.

       - E meu pai ficou muito ufano e reconhecido pela honra que Vossa Majestade houve por bem dispensar-lhe.

       - Mas vamos ao principal. Que diz ele do projecto?

       - Que é bastante arriscado, exige grandes precauções, mas não é impossível.

       - Em primeiro lugar - redargüiu o rei - para que a cooperação do Sr. de Bouillé tenha toda a eficácia que a sua lealdade e dedicação me afiançam, não seria conveniente que se juntasse ao seu governo de Metz o de várias outras províncias, particularmente o da Franche-Conté?

       - É essa a opinião de meu pai, meu senhor, e muito estimo que fosse Vossa Majestade o primeiro a exprimir a sua opinião a este respeito; o marquês receava que Vossa Majestade lhe atribuísse alguma ambição pessoal...

       - Ora essa! Não conheço eu bastante o desinteresse de seu pai?... Vamos, diga-me agora, se ele lhe disse alguma coisa acerca do caminho que deverei seguir.

       - Antes de tudo, meu senhor, meu pai receia uma coisa.

       - Qual?

       - É que muitos outros projectos de fuga sejam presentes a Vossa Majestade, ou da parte da Espanha, ou da parte do império, ou da parte dos emigrados de Turim, e que, contrariando-se entre si todos esses projectos, venha o seu a abortar por alguma dessas circunstâncias fortuitas que se costumam atribuir à fatalidade, e que são quase sempre o resultado da inveja ou da imprudência dos partidos.

       - Meu caro Luís, prometo que hei-de tolerar que todos intriguem em volta de mim (é uma necessidade dos partidos, uma necessidade da situação em que me acho). Enquanto o espírito de Lafayette e as vistas da assembléia seguirem esses fios, que só terão por fim desorientá-los, nós, sem outros confidentes mais do que as pessoas estritamente necessárias à execução do projecto, seguiremos o nosso caminho com tanta mais segurança, quanto mais misterioso ele for.

       - Meu senhor, uma vez de acordo neste ponto, eis o que meu pai, mui respeitosamente, tem a honra de propor a Vossa Majestade.

       - Vejamos - disse o rei - inclinando-se sobre a carta de França, a fim de seguir com os olhos os diferentes projectos que o moço conde ia expor.

       - Há diversos pontos para onde V. Majestade se pode retirar.

       - Decerto.

       -Vossa Majestade já escolheu algum?

       - Ainda não. Esperava o conselho do Sr. de Bouillé, de que presumo que o conde é portador.

       O mancebo fez com a cabeça um sinal respeitoso e ao mesmo tempo afirmativo.

       - Fale - disse Luís XVI.

       - Em primeiro lugar, temos Besançon, meu senhor, cuja cidadela oferece um ponto muito forte e vantajosíssimo para reunir um exército, e para dar sinal e ajudar os suíços; reunidos estes ao exército, poder-se-ia avançar através de Borgonha, onde os realistas pululam, e marcham dali sobre Paris.

       O rei fez um gesto, que parecia dizer: “Preferirei antes outra coisa.”

       - Temos depois Valenciennes, ou outra qualquer praça da Flandres que tenha uma guarnição segura. O Sr. de Bouillé apresentar-se-ia lá pessoalmente com as tropas do seu comando, antes ou depois da chegada de Vossa Majestade.

       Luís XVI fez um segundo gesto, que queria dizer: “Outra coisa, senhor.”

       - Vossa Majestade - continuou o mancebo – pode também sair pelas Ardenas e pela Flandres austríaca, para entrar depois por essa mesma fronteira, dirigindo-se a uma das praças que meu pai governasse, e na qual antecipadamente se reuniriam tropas.

       - Logo lhe direi a razão que me obriga a perguntar-lhe se não tem alguma coisa melhor do que tudo isso - disse o rei.

       - Vossa Majestade pode, finalmente, dirigir-se a Senan ou Montmédy; o general, achando-se ali no centro do seu comando, teria toda a facilidade de operar, quer Vossa Majestade quisesse sair de França, quer preferisse marchar sobre Paris.

       - Meu caro conde - disse o rei - vou explicar-lhe em duas palavras o que me obriga a recusar as três primeiras proposições e a aceitar provavelmente a quarta. Em primeiro lugar, Besançon fica muito longe, e por conseqüência correria o risco de ser preso antes de lá chegar. Valenciennes fica em boa distância, e talvez me conviesse a razão do excelente espírito dos habitantes da cidade; mas o Sr. de Rochambeau, que comanda no Hainaut, isto é, às suas portas, entregou-se inteiramente ao espírito democrático. Quanto a sair pelas Ardenas e pela Flandres para que a Áustria me socorresse, isso não... Além de não gostar da Áustria, que só se envolve nos nossos negócios para os embrulhar, tem ela neste momento bastante em que se entreter com a doença de meu cunhado, proveniente da guerra dos turcos e da revolta do Brabante, sem que para isso lhe dê mais uma causa de embaraço. Além disso não quero sair de França; quando um rei põe pé fora do seu reino, nunca sabe se lá tornará a entrar... Veja Carlos II; veja Jacob; um apenas entrou no fim de três anos, o outro nunca mais entrará! Não, prefiro antes Montmédy; Montmédy acha-se numa distância razoável, no centro do comando de seu pai; diga pois ao marquês seu pai que a minha escolha está feita, e que é para Montmédy que me retirarei.

       - Vossa Majestade acha-se bem resolvido a efectuar esta fuga, ou não é por ora mais do que um projecto? - arrojou-se a perguntar o conde.

       - Meu caro Luís - respondeu Luís XVI - nada está por ora decidido, tudo se acha ainda pendente das circunstâncias. Se vir que a rainha e meus filhos correm novos perigos, como os que correram na noite de 5 para 6 de Outubro, decidir-me-ei, e diga a seu pai, meu caro conde, que uma vez tomada a decisão será irrevogável.

       - Agora, meu senhor - continuou o conde - se me fosse permitido, submeteria a sabedoria de Vossa Majestade a opinião de meu pai relativamente ao modo de se efectuar a viagem de Vossa Majestade.

       - Oh! Diga, diga.

       - A sua opinião, meu senhor, é que se diminuam os perigos dessa viagem, dividindo-os.

       - Explique-se.

       - Vossa Majestade partiria por um lado com a Srª. princesa real, e com a Srª. infanta Isabel ao passo que Sua Majestade a rainha partiria por outro com Sua Alteza real o Sr. delfim; de sorte que...

       Luis XVI não deixou completar aquela frase ao conde de Bouillé.

       - É inútil discutir esse ponto, meu caro Luís - disse ele; - tanto eu como a rainha concordámos num momento solene que não nos separaríamos. Se seu pai nos quer salvar, que nos salve juntos, ou então deixemo-nos disso.

       O jovem conde, inclinando-se disse:

       - Quando chegar o momento, meu senhor, dará as suas ordens, e elas serão cumpridas. Permitir-me-á somente Vossa Majestade que lhe observe que há-de ser muito difícil encontrar uma carruagem grande onde Suas Majestades, seus augustos filhos, a Srª. infanta Isabel, e as duas ou três pessoas de serviço que devem acompanhá-los possam ir com alguma comodidade.

       - Não se inquiete com isso, meu caro Luís; manda-se fazer uma, expressamente para esse fim; o caso já foi previsto.

       - Mais uma coisa, meu senhor, duas estradas conduzem a Montmédy; resta-me perguntar qual das duas prefere Vossa Majestade, para mandá-la explorar por um engenheiro de confiança.

       - O engenheiro de confiança temos nós já. O Sr. de Charny, que nos é dedicadíssimo, levantou as cartas dos arredores de Chandernagor com fidelidade e talento espantosos. Quanto menos pessoas metermos no segredo, melhor será. Temos no conde um servidor a toda a prova, inteligente e decidido: sirvamo-nos dele. Quanto ao caminho que devo seguir, vai ver que me ocupei disso; como tinha escolhido Montmédy, as duas estradas que aí conduzem já estão marcadas nesta carta.

       - Pode dizer-se que há três, meu senhor - disse respeitosamente Bouillé.

       - Sim, bem sei: é a que vai de Paris a Metz, que se deixa depois de atravessar Verdun, para seguir ao longo do rio Mosa a estrada de Stenay, de que Montmédy fica apenas distante três léguas...

       - Há a de Reims, de Isle, de Rhétel e de Stenay, - disse o jovem conde com bastante vivacidade para que o rei visse a preferência que o seu interlocutor dava àquela.

       - Ah! Ah! Parece-me que é essa a estrada que prefere? - disse o rei.

       - Oh! Não sou eu, meu senhor. Deus me defenda. Eu, que sou quase uma criança, a tomar a responsabilidade de uma opinião emitida em negócio de tanta gravidade! Não, meu senhor, não é opinião minha, é de meu pai, e funda-se em que o país que percorre é bastante pobre, quase deserto, e exige por conseqüência, menos precauções. Acrescenta que o real-alemão, o melhor regimento do exército, o único talvez que ficasse completamente fiel, acha-se aquartelado em Stenay, e poderia encarregar-se da escolta do rei desde Isle ou Réthel. Desse modo evitar-se-ia o perigo de um grande movimento de tropas.

       - Sim - interrompeu o rei; - mas passar-se-ia pela cidade de Reims, onde fui sagrado, e onde o primeiro que me visse poderia conhecer-me. Não, meu caro conde, sobre este ponto tenho tomada a minha decisão.

       E o rei pronunciou estas palavras com voz tão firme, que o conde Luís de Bouillé nem sequer tentou combater esta decisão e perguntou:

       - Então, está Vossa Majestade decidido?...

       - A seguir a estrada de Châlons por Varennes, evitando Verdun. Quanto aos regimentos, postar-se-ão nas pequenas cidades situadas entre Montmédy e Châlons. Não vejo até inconveniente - acrescentou o rei - em que o primeiro destacamento me esperasse nesta última cidade.

       - Meu senhor, quando lá chegarmos - disse o conde - discutir-se-á esse ponto, isto é, qual a cidade até onde esses regimentos devem postar-se. Vossa Majestade bem sabe que em Varennes não há mudas de cavalos.

       - Gosto de o ver tão orientado, Sr. conde - disse o rei rindo-se; - é uma prova de que meditou seriamente no nosso projecto. Mas não se inquiete por isso; nós acharemos meio de encontrar cavalos prontos, quer seja dentro, quer fora da cidade; o nosso engenheiro se encarregará disso.

       - E agora, meu senhor - disse o moço conde - agora, que tudo se encontra mais ou menos combinado, quer Vossa Majestade autorizar-me a citar-lhe, em nome de meu pai, algumas linhas de um autor italiano, que lhe pareceram de tal modo apropriadas à situação em que Vossa Majestade se encontra, que me ordenou que as decorasse cautelosamente para poder ter a honra de comunicar-lhas?

       - Queira dizê-las.

       - Ei-las: “A demora é sempre prejudicial; em todos os negócios que se empreendem nunca se encontram circunstâncias inteiramente favoráveis de modo que aquele que espera por uma ocasião favorável, não poderá nunca empreender qualquer coisa, e se a empreender, há-de sair-se muitas vezes mal dela”. É o autor que fala, meu senhor.

       - Sim, senhor, e esse autor é Machiavel. Terei pois em consideração, pode acreditá-lo, os conselhos do embaixador da magnífica república! Mas caluda! Sinto passos na escada... é Gamain que desce. Vamos ao encontro dele, para que não presuma que nos ocupamos de outra coisa que não seja o armário.

       A estas palavras abriu o rei a porta que dava para a escada secreta.

       Era tempo: o mestre serralheiro já descia o último degrau com a fechadura na mão.

 

Em que se demonstra que existe verdadeiramente um Deus para os borrachos

       No mesmo dia, pela volta das oito horas da noite, um homem vestido de operário e segurando cauteloso o bolso da véstia, como se o bolso naquela noite contivesse uma soma mais considerável do que a que contém ordinariamente o bolso de um operário; um homem, dizemos, saía das Tulherias pela ponte Tournant, inclinando-se para a esquerda, e seguindo de uma à outra extremidade o renque de árvores que prolonga, do lado do Sena, essa porção dos Campos-Elíseos, a que se chamava Porto de Mármore, para depois se chamar Porto das Pedras, e que hoje se chama Carreira da Rainha.

       Chegando ao fim das árvores, o nosso homem achou-se no cais da Saboaria.

       Este cais era naquele tempo divertidíssimo de dia, e à noite muito alumiado por grande número de tabernas onde os bons burgueses compravam ao domingo as provisões líquidas e sólidas, que embarcavam com eles em canoas fretadas por dois soldos cada pessoa, para irem passar o dia à ilha do Cisne, ilha onde, sem aquela precaução, morreriam de fome nos dias ordinários da semana, porque era completamente deserta, e nos domingos e dias festivos, por ser extraordinariamente concorrida.

       À primeira taberna que encontrou no caminho, o homem vestido de operário parecia lutar consigo mesmo sobre se deveria ou não entrar, luta de que por fim saiu vencedor.

       Portanto não entrou e seguiu para diante.

       À segunda taberna, apoderou-se dele a mesma tentação, e dessa vez outro indivíduo que o seguira desde a altura da Patache, como se fosse a sua sombra, sem que ele desse por isso pôde acreditar que cedia à tentação, por isso que, desviando-se da linha recta em que ia inclinou-se de modo tal diante daquela filial do templo de Baco, como naquele tempo se dizia, que lhe ia ultrapassando os umbrais.

       Não obstante, ainda dessa vez triunfou a temperança, e é provável que, se não encontrasse terceira taberna no caminho, e lhe fosse preciso voltar atrás para quebrar o juramento que parecia ter feito a si mesmo, é provável, dizemos, que continuasse o seu caminho com o mesmo estoicismo; não em jejum, porquanto o sujeito parecia ter já tomado uma boa dose do líquido que alegra o coração do homem, mas conservava-se ainda com tanta força nas pernas, que podia mantê-las em linha suficientemente recta, durante o caminho que tinha de percorrer.

       Infelizmente, porém, encontrava-se-lhe ainda no caminho não só terceira, mas também quarta, décima, vigésima taberna; o resultado foi que, sendo as tentações muitas vezes repetidas e não se achando a força da resistência em harmonia com a sensação, teve o infeliz caminheiro que sucumbir à terceira prova!

       Convém dizer entretanto que, por uma espécie de transacção consigo mesmo, o demónio do vinho tão desgraçadamente combatera, entrando na taberna, limitou-se a chegar ao balcão e a pedir simplesmente meia garrafa.

       Afinal o demónio do vinho, contra que ele lutava, parecia ser vitoriosamente representado pelo desconhecido que o seguia de perto, tendo cuidado em se conservar no escuro, mas sem o perder de vista.

       Foi naturalmente para gozar daquela perspectiva, que parecia ser-lhe particularmente agradável, que se assentou mesmo defronte da taberna, onde o operário despejava a sua garrafita, pondo-se outra vez a caminho cinco segundos depois dele, tendo esgotado o copo, e franqueado o limiar da porta para seguir o seu.

       Mas quem pode dizer onde pararão os lábios que uma vez se umedeceram na taça fatal da embriaguez, e que perceberam, com o pasmo misturado de satisfação, que tão particular é aos borrachões, que nada produz mais sede que o beber?

       Assim que deu uns cem passos, a sede que o devorava moveu-o a parar de novo para mitigá-la; mas desta vez entendeu que meia garrafa não bastaria e pediu uma.

       A sombra, que não o deixava, nem por isso se mostrou descontente; parecia folgar com aquelas paragens que lhe retardavam o caminho; parou mesmo à porta da taberna, e apesar do bebedor se ter assentado para estar à sua vontade e gastar uma boa meia hora em despejar a garrafa, a benévola sombra não deu o menor sinal de impaciência, limitando-se no momento da saída a segui-lo no mesmo passo em que até ali o fizera.

       Ao cabo de outros cem passos, aquela longanimidade foi sujeita a nova e mais rude provação; o operário fez terceira paragem, e desta vez, como a sede aumentasse, pediu outra garrafa, que tratou de despejar.

       Mais outra meia hora de demora para o paciente argos que o vigiava.

       Aqueles cinco minutos, àquele quarto de hora, aquela meia hora sucessivamente perdidos, produziram talvez uma espécie de remorso no coração do bebedor; por isso que, não querendo tornar a parar, ao que parecia, mas desejando continuar a beber, fez consigo mesmo uma espécie de transacção, que consistiu em munir-se no momento da partida de uma garrafa de vinho desarrolhada, que pretendia constituir em companheira da jornada.

       Resolução prudente e que não demorava quem a tomava, à excepção das curvas e dos ziguezagues, mais ou menos reiterados que foram o resultado das freqüentes visitas do gargalo aos lábios sequiosos do nosso desconhecido.

       Numa dessas curvas, agilmente combinadas franqueou a barreira de Passy sem obstáculo algum, visto que os direitos de saída dos líquidos tinham sido abolidos na capital.

       O desconhecido que o seguia saiu também com a mesma facilidade.

       Foi a cem passos da barreira que o nosso homem devia felicitar-se da engenhosa precaução que tomara, por isso que dali em diante se tornavam as tabernas cada vez mais raras, até que, por fim, desapareceram de todo.

       Mas que importava isso ao nosso filósofo! Como o antigo sábio, levava consigo não só a fortuna mas também a sua alegria!

       Dizemos a sua alegria, porque quando chegou a meia garrafa, pôs-se o nosso bebedor a cantar, e ninguém poderá contestar que o canto seja um sinal de satisfação e alegria.

       A sombra do bebedor mostrava-se bastante sensível à harmonia daquele canto, que parecia repetir baixinho, e à expressão daquela alegria, cujas frases seguia com particular interesse; mas por desgraça, aquela alegria foi efémera, e o canto de curta duração; a alegria durou apenas o tempo que durou o vinho na garrafa, e vazia esta, e inutilmente espremida entre as mãos do bebedor, o canto foi substituído por grunhidos, que acentuando-se cada vez mais, vieram a degenerar em imprecações.

       As imprecações dirigiram-se a perseguidores desconhecidos, de quem se queixava, tropeçando a cada passo, o nosso infeliz caminheiro.

       Miserável! - dizia ele; - a um antigo... amigo... a um mestre... dar-lhe zurrapa. Irra. Que me mande chamar outra vez para lhe emendar as fechaduras... sim, que me mande chamar pelo patife do oficial que me abandonou... e eu lhe direi: “Boas noites, senhor, a tua Majestade que te emende as fechaduras.” E veremos então se uma fechadura se faz como se faz um decreto... Ah! eu te arranjarei! Fechaduras de três barbas! Deixa estar! Lingüetas de gatilho, hein! Chaves brocadas . Oh! Miserável! Decididamente, envenenaram-me!...

       E ao pronunciar estas palavras, vencida decerto pela força do veneno, a desgraçada vítima deixou-se cair pela terceira vez nas pedras da estrada, cobertas por fofa camada de lama.

       Das duas primeiras vezes que caíra pôde o nosso homem levantar-se sozinho; a operação foi difícil, mas, enfim, desempenhou-a com glória sua!

       Porém, da terceira vez, depois de terríveis esforços, viu-se obrigado a confessar que a tarefa era superior às suas forças, e com um suspiro que mais parecia um gemido, pareceu decidir-se a adoptar por cama, naquela noite, o seio da terra, nossa mãe comum.

       Era provavelmente nesse ponto de desfalecimento e de fraqueza que o esperava o desconhecido, que desde a praça Luís XV o seguira com tanta perseverança; por isso que, depois de o deixar lutar à distância, aproximou-se-lhe cautelosamente, observou o estado em que ele se achava, e chamando uma carruagem que passava, disse ao cocheiro:

       - Amigo, o meu companheiro acaba de achar-se incomodado. Tome lá este escudo de seis francos, meta o pobre diabo no seu carro, e conduza-o à taberna da ponte de Sèvres; eu vou na almofada.

       Nada havia que admirar na proposta feita ao cocheiro, porque o que lha fazia aparentava também uma condição vulgar; por isso, com a confiança que os homens dessa condição têm uns nos outros respondeu:

       - Seis francos! E onde estão os seis francos?

       - Estão aqui - disse o que oferecera esta soma, apresentando ao cocheiro um escudo sem se mostrar ofendido.

       - E ao chegar à taberna - replica o cocheiro já adoçado com a vista da real efígie - não haverá também uma gorjeta, patrão?

       - Conforme nos servires... Anda, mete esse pobre diabo no carro; fecha cautelosamente os postigos; faze a diligência para que os teus dois sendeiros consigam sustentar-se nas pernas, e quando chegarmos à ponte de Sèvres veremos isso... Conforme te portares, assim me portarei eu.

       - Santa palavra - disse o cocheiro - isso é que é falar; descanse o patrão, que tenho entendido. Suba para a almofada e evite que as pilecas nos façam por aí alguma asneira de marca. Que quer? Cheira-lhes a cavalariça e querem ir para casa: mas eu lhes direi!

       O generoso desconhecido seguiu sem observação alguma as instruções que lhe foram dadas; o cocheiro, pela sua parte, levantou nos braços o borracho, deitou-o brandamente dentro do carro, fechou a portinhola, subiu para a almofada, onde achou já instalado o desconhecido, fez voltar o carro e fustigou os cavalos, os quais com a melancólica andadura que é familiar a estes mesquinhos quadrúpedes, atravessaram logo o lugarejo do Point-du-Jour, chegando dali a uma hora à taberna da ponte de Sèvres.

       É no interior desta taberna, e passados dez minutos consagrados a descarregar o cidadão Gamain, já naturalmente conhecido do leitor, que encontramos o digno mestre dos mestres assentado à mesma mesa, e defronte do mesmo espingardeiro, tal qual o vimos no primeiro capítulo desta história.

 

                                                                                         Alexandre Dumas

 

 

                      

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