Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CONDESSA DE CHARNY Vol. III / Alexandre Dumas
A CONDESSA DE CHARNY Vol. III / Alexandre Dumas

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CONDESSA DE CHARNY

Volume III

 

Dupla vista

      A 19 de Julho, pelas oito horas da manhã, Gilberto passeava a largos passos no seu quarto da rua de Saint-Honoré, indo de vez em quando à janela e debruçando-se, como homem que espera impaciente alguém, que não vê chegar.

      Tinha na mão um papel dobrado em quatro, com letras e selos, que apareciam do outro lado da página, em que estavam impressos.

      Era decerto papel de grande importância, porque duas ou três vezes, durante esses ansiosos minutos de espera, Gilberto abriu-o, leu-o, dobrou-o de novo e tornou a lê-lo e a dobrá-lo para tornar a abri-lo, a lê-lo e a dobrá-lo.

      Finalmente, o ruído de uma carruagem, que parou à porta, fê-lo correr velozmente à janela; mas já era tarde; a pessoa que tinha vindo na carruagem entrara a porta.

      Entretanto, Gilberto não duvidara aparentemente da identidade do personagem, porque, empurrando a porta da antecâmara, disse:

      - Bastien, abra a porta ao Sr. conde de Charny, a quem estou esperando.

      E tornou a desdobrar o papel, que ia começar a ler, quando Bastien, em vez de anunciar o conde de Charny, anunciou:

      - O Sr. conde de Cagliostro!

      Este nome estava naquele momento tão longe do pensamento de Gilberto, que estremeceu, como se um relâmpago, anunciando-lhe um raio, lhe tivesse passado por diante dos olhos.

      Dobrou precipitadamente o papel, que ocultou numa das algibeiras da casaca.

      - O Sr. conde de Cagliostro? - repetiu ele ainda espantado do anúncio.

      - Eu mesmo, meu caro Gilberto - disse o conde. - Não era a mim que esperava, bem sei, era ao Sr. de Charny... Mas ele está ocupado, dir-lhe-ei em quê, daqui a pouco... De maneira que, não poderá estar aqui antes de meia hora. Pelo que, disse comigo: “Visto que estou no bairro, vou um instante a casa do Dr. Gilberto.” Julgo que, por não ser esperado, não serei menos bem recebido.

      - Querido mestre - disse Gilberto - bem sabe que a toda a hora do dia ou da noite, lhe estarão aqui abertas duas portas: uma é a da casa e a outra do coração.

      - Obrigado, Gilberto: um dia me será permitido também provar-lhe até que ponto o estimo. Em chegando esse dia, a prova não se fará esperar... Agora conversemos.

      - A que respeito? - perguntou Gilberto sorrindo, porque a presença de Cagliostro lhe anunciava sempre alguma nova coisa de admiração.

      - A que respeito? - repetiu Cagliostro; pois bem, a respeito da conversação do dia... Da próxima partida de el-rei.

      Gilberto estremeceu dos pés até à cabeça, mas o sorriso não lhe desapareceu um instante dos lábios, e graças à sua força de vontade, se não pôde evitar que o suor lhe molhasse a raiz dos cabelos, impediu ao menos que a palidez se lhe pronunciasse nas faces.

      - E como teremos de esperar por algum tempo que o assunto lhe preste - continuou Cagliostro - assento-me.

      E Cagliostro assentou-se efectivamente.

      Passado o primeiro movimento de terror, Gilberto reflectiu que, se era um acaso que tinha conduzido Cagliostro a sua casa, era pelo menos um acaso providencial; como Cagliostro não tinha o costume de conversar segredos, para com ele, ia sem dúvida contar-lhe tudo o que sabia da partida do rei e da rainha, sobre o que acabava de lhe dizer algumas palavras.

      - Então - ajuntou Cagliostro, vendo que Gilberto esperava - está pois decidida para amanhã?

      - Meu muito querido mestre - disse Gilberto - sabe que tenho o hábito de o deixar terminar; mesmo quando erra, há sempre para mim alguma coisa que aprender, não só num discurso, mas numa simples palavra sua.

      - E em que me tenho enganado até hoje, Gilberto? - disse Cagliostro, - Seria quando lhe predisse a morte de Favras, que entretanto no momento decisivo fiz tudo o que pude para evitar? Seria quando o preveni que o próprio rei intrigava contra Mirabeau, e que este não seria nomeado ministro? Seria quando lhe disse que Robespierre levantaria o cadafalso de Carlos I, e Bonaparte o trono de Carlos Magno?

      “Quanto a isso não pode acusar-me de erro, porque os prazos ainda não findaram, e destas coisas umas pertencem ao fim deste século, outras ao princípio do século próximo.”

      “Ora hoje, meu querido Gilberto, sabe melhor do que ninguém, que digo a verdade, dizendo-lhe que o rei deve fugir durante a noite de amanhã, por isso que o senhor é um dos agentes dessa fuga.”

      - Se assim é - disse Gilberto - não espera de mim que lho confesse, não é verdade?

      - Para que necessito da sua confissão? Bem sabe que não só sou aquele que é, mas também aquele que sabe.

      - Se é aquele que sabe - disse Gilberto – não ignora que a rainha disse ontem ao Sr. de Montmorin, a propósito da recusa que a princesa Isabel fez de assistir no domingo à festa do Corpo de Deus:

      “Ela não quer vir connosco a Saint-Germain-l'Auxerois, e isso aflige-me! Entretanto, podia muito bem fazer ao rei o sacrifício das suas opiniões.”

      - Ora - continuou Gilberto - se a rainha vai domingo com el-rei à igreja de Saint-Germain-l'Auxerois, não partem esta noite ou não partem para a viagem longa.

      - Sim, mas também sei - respondeu Cagliostro - que um filósofo disse:

      “A palavra foi dada ao homem para disfarçar o pensamento.”

      Ora Deus não é assaz exclusivo para ter dado a um só homem um dom tão precioso.

      - Meu caro mestre - disse Gilberto, tentando sempre permanecer no terreno do gracejo – acaso saberá aquela história do apóstolo incrédulo?

      - Que começou a crer logo que Cristo lhe mostrou os pés, as mãos e o lado... Pois bem meu caro Gilberto, a rainha, que está costumada a todas as comodidades e que se não quer privar dos seus costumes durante a viagem, suposto que só deva durar, se o cálculo do Sr. de Charny é exacto, trinta e quatro ou trinta e cinco horas, a rainha recomendou em casa de Desbrosses, na Rua de Nossa Senhora da Vitória, um encantador regalo, todo bordado de vermelho, que julgam destinado à irmã, a arquiduquesa Cristina, governadora dos Países-Baixos.

      “O regalo que ficou acabado ontem pela manhã, e só ontem à noite foi remetido às Tulherias, é para aquecer as mãos.”

      “Partem numa grande berlinda de viagem, espaçosa e cómoda, onde vão facilmente seis pessoas; foi encomendada a Luís, o primeiro fabricante de carruagens dos Campos-Elísios, pelo Sr. de Charny, que neste momento está em casa do fabricante, e lhe conta cento e vinte e cinco luíses, isto é, metade da soma convencionada; experimentaram-na ontem, fazendo-a correr a posta a quatro cavalos, e resistiu perfeitamente; por isso a informação que dela deu o Sr. de Charny foi excelente; é óptima para poupar os pés.”

      “Finalmente, o Sr. de Montmorin, sem saber o que assinava, assinou esta manhã um passaporte para a Srª. baronesa de Korff, seus dois filhos, duas criadas particulares, intendente, e mais três criados.”

      “A Srª. de Korff é a Srª. de Tourzel, aia dos infantes de França; os seus dois filhos são a Srª. infanta e o Sr. delfim; as duas criadas particulares são a Srª. princesa Isabel; o intendente é o rei; finalmente, os três criados, que devem, vestidos de correios, preceder e acompanhar a berlinda, são o Sr. Isidoro de Charny, o Sr. de Malden e o Sr. de Valory.”

      “O passaporte é exactamente o papel que o senhor tinha na mão quando cheguei, que dobrou e ocultou na algibeira, ao ver-me, e que é concebido nestes termos:

      

      Da parte de el-rei

     

      “Mandamos que se deixe passar a Srª. baronesa de Korff, com seus dois filhos, uma criada, um criado particular, e mais três criados.”

     

      “O ministro dos negócios estrangeiros

      Montmorin.”

     

      - É para facilitar o caminho. Estou bem informado, meu caro Gilberto?

      - Além de uma pequena contradição entre as suas palavras e a redacção do dito passaporte...

      - Qual?

      - Disse que a rainha e a Srª. princesa Isabel representavam as duas criadas da Srª. Tourzel, e vejo no passaporte uma única criada particular.

      - Ah!... É porque chegando a Bondy, a Srª. de Tourzel, que julga fazer a jornada até Montmédy, será convidada a apear-se: o Sr. de Charny, que é um homem dedicado com quem se pode contar, tomará o seu lugar, para responder à portinhola em caso de necessidade, e tirar um par de pistolas da algibeira, se se tornar preciso.

      “A rainha figurará então a Srª. Korff, e como além da Srª. infanta, que aliás faz parte das crianças, só haverá uma mulher na carruagem, a Srª. princesa Isabel, era inútil pôr no passaporte duas criadas particulares.”

      “Quer ainda outras particularidades? Dar-lhas-ei, porque não faltam. A partida devia realizar-se antes do dia 1.º de Julho, e o Sr. de Bouillé empenha-se muito nisso; a este mesmo respeito escreveu ele a el-rei uma curiosa carta, na qual o convidava a apressar-se, atendendo - diz ele - a que as tropas se corrompem de dia para dia, e que não responde por nada, se deixam prestar juramento aos soldados... Então, ajuntou Cagliostro com a sua expressão chocarreira, por estas palavras se corrompem, é bem claro que se deve entender, que o exército começa a conhecer que tendo a escolher entre uma monarquia, que durante três séculos sacrificou o povo à nobreza, o soldado ao oficial, e uma constituição, que proclama a igualdade perante a lei, que constitui graus para recompensa do mérito e da coragem, o ingrato exército inclina-se para a constituição... Mas nem a berlinda, nem o regalo estavam acabados; portanto era impossível partir no dia 1.º, o que foi uma grande desgraça, porque o exército pode corromper-se cada vez mais, e os soldados prestarem juramento à constituição.”

      “Razão por que a partida foi transferida para o dia 8; mas o Sr. de Bouillé recebeu muito tarde a determinação para esta data, e pela sua vez, foi obrigado a responder que não estava pronto. Então a coisa, de comum acordo, foi removida para o dia 12; teriam preferido o dia 11; mas uma mulher muito democrata, e demais a mais, amante do Sr. de Gouvion, ajudante de campo do Sr. de Lafayette, a Srª. de Rochereul, se quer saber-lhe o nome, estava de serviço junto do delfim, e temiam que ela percebesse alguma coisa e denunciasse, como dizia o pobre Mirabeau, a panelinha que os reis fazem ferver sempre em qualquer canto dos seus palácios.”

      “No dia 12 o rei lembrou-se que só faltavam seis dias para receber um quarto da sua pensão, seis milhões! Com os diabos! A coisa, há-de convir, meu caro Gilberto, valia bem a pena e esperar seis dias! Além disso Leopoldo, o grande contemporizador, o Fábio dos reis, acabava enfim de prometer que quinze mil austríacos ocupariam no dia 15 os desfiladeiros de Arlon.”

      “Então, compreende agora, que aos bons dos reis não é a vontade que lhes falta; mas têm sempre alguns pequenos negócios que terminar. A Áustria acabava de devorar Liège e o Brabante, e preparava-se para digerir a cidade e a província: a Áustria é como a jibóia: quando digere, dorme. Catarina preparava-se para derrotar o reizito Gustavo III, a quem finalmente concedeu tréguas, para que tivesse tempo de ir receber a Aix, na Sabóia, a rainha de França, quando se apeasse.”

      “Durante esse tempo, ela roerá o que puder da Turquia, e chuchará os ossos da Polónia; gosta de tutano de leão, a digna imperatriz! A Prússia filosófica, e a Inglaterra filantrópica estão quase a mudar a pele, para que uma possa razoavelmente estender-se pelas margens do Reno, e a outra no mar do Norte; mas esteja sossegado: como os cavalos de Diomide, os reis gostam de carne humana, e não hão-de querer comer outra coisa se não os perturbarmos no delicioso banquete! Enfim, a partida mudou-se para domingo 19, à meia noite; depois para 18, pela manhã; foi expedida nova ordem, transferindo a partida para segunda feira, 20, à mesma hora, isto é, para amanhã à noite; o que pode ter seus inconvenientes, visto que o Sr. de Bouillé tinha já dado ordens a todos os seus destacamentos, e que foi necessário mandar contra ordem... Acautele-se, meu caro Gilberto, acautele-se! Tudo isto cansa os soldados, e dá que pensar às povoações!

      - Conde - disse Gilberto - não buscarei enganá-lo; tudo o que disse é verdade; tanto menos o enganarei, quanto à minha opinião, e era que o rei não partisse, ou antes, que não deixasse a França. Agora, confesso-o francamente, à vista do perigo pessoal, à vista do perigo da rainha e dos filhos, se o rei devia ficar como rei, o homem, o esposo, o pai não está autorizado a fugir?

      - Muito bem! Mas quer que lhe diga uma coisa, meu caro Gilberto? Não é como pai, nem como esposo, nem como homem que Luís XVI foge; não é por causa dos dias 5 e 6 de Outubro que deixa a França; não. Pelo pai, é Bourbon, e os Bourbons bem sabem o que é encarar o perigo; não: deixa a França por causa da constituição, que acaba de fabricar, à maneira dos Estados Unidos, a Assembléia Nacional, sem reflectir que o modelo que seguiu foi feito para uma república, e aplicado a uma monarquia, não deixa ao rei a quantidade de ar suficiente para respirar; não deixa a França por causa do negócio dos cavaleiros do punhal, em que o seu amigo Lafayette procedeu irreverentemente com a realeza e os seus fiéis; não deixa a França por causa do passeio a Saint-Cloud, em que tentou verificar a liberdade de que dispunha e em que o povo lhe provou que era prisioneiro: não, saiba, meu querido Gilberto, o senhor que é um homem honrado, franco e lealmente realista-constitucional, o senhor, que acredita nessa doce e consoladora utopia de uma monarquia temperada pela liberdade, repito, saiba uma coisa, e é que os reis, à imitação de Deus, de quem julgam ser os representantes sobre a terra, têm uma religião, a religião da realeza; não só a sua pessoa, ungida em Reims, é sacrossanta, senão que o seu palácio e os seus criados são santos! O seu palácio é um templo, onde só se deve entrar orando, os seus criados são sacerdotes, a que só se deve falar de joelhos; não convém pois tocar nos reis, sobre pena de morte! Não se deve tocar nos seus criados sob pena de excomunhão! Ora no dia em que impediram o rei de fazer a sua viagem a Saint-Cloud, tocaram no rei: no dia em que expulsaram das Tulherias os cavaleiros do punhal, tocaram nos seus servidores.

      “Foi isso o que o rei não pôde suportar: é essa a verdadeira, a única calamidade; é essa a razão porque o rei, que recusara deixar-se raptar pelo Sr. de Favras, e não quisera fugir, com as tias, consente em fugir amanhã com um passaporte do Sr. de Montmorin, que não sabe quem seja aquele criado Durand, recomendando sempre, que não se esquecessem de meter na mala o fato encarnado bordado de ouro que trazia em Cherbourg.”

      Enquanto Cagliostro falava, Gilberto olhava para ele fixamente, tentando adivinhar-lhe o pensamento.

      Mas foi inútil; nenhuma vista humana tinha poder para ver através daquela máscara zombeteira, com que o discípulo de Althotas costumava cobrir o rosto.

      Portanto, Gilberto tomou o partido de encetar francamente a questão.

      - Conde - observou ele - tudo que acaba de dizer é verdade, repito-lho. Agora pergunto: com que fim vem dizer-mo? Debaixo de que título se me apresenta? Vem como inimigo leal, que previne que vai combater, ou vem como um amigo que se oferece para ajudar-me?

      - Venho primeiro, meu caro Gilberto – respondeu afectuosamente Cagliostro - como o mestre responde ao discípulo, para lhe dizer: amigo, fazes mal agarrando-te a essas ruínas que caem, a esse edifício que morre, e a que chamam monarquia.

      “Os homens, como tu, não são os homens do passado, não são mesmo os do presente: são os homens do futuro. Abandona aquilo em que cremos; não te afastes da realidade para seguires a sombra; e se não fores soldado da revolução, vê-a passar, e não tentes fazê-la parar na sua carreira. Mirabeau era um gigante, e apesar de tudo isso acaba de morrer na luta!”

      - Conde - disse Gilberto - responderei a isso no dia em que o rei, que confiou em mim, estiver em segurança. Luís XVI tomou-me por confidente, por auxiliar e por cúmplice, se assim o quiser julgar, na obra que empreende; aceitei essa missão, cumpri-la-ei até ao fim com o coração aberto e os olhos fechados.

      “Sou médico, meu caro conde; a salvação material do meu doente antes de tudo! Agora responda-me também: nos seus misteriosos projectos, nas suas sombrias combinações, precisa de que esta fuga se realize, ou que fique sem efeito? Se quer que fique sem efeito, é inútil lutar; diga: ‘Não partam!’ e ficaremos, curvaremos a cabeça e esperaremos o golpe.”

      - Irmão - disse Cagliostro - se impelido por Deus, que me traçou o caminho, me fosse necessário ferir um daqueles que o teu coração ama, ou que o teu génio protege, permaneceria oculto, e só pediria uma coisa a essa potência sobre-humana a que obedeço: seria que te deixasse ignorar a mão de quem partisse o golpe. Não, se não venho como amigo (não posso ser amigo dos reis eu que tenho sido a sua vítima), não venho entretanto como inimigo; venho com uma balança na mão dizer-te: “Pesei os destinos deste último Bourbon, e não creio que a morte seja conveniente à salvação da sua causa”; ora, Deus me livre a mim, que, como Pitágoras, não me conheço sequer com direito de dispor da vida do último insecto criado, de tocar imprudentemente na do homem, “o rei da criação!” Ainda há mais, não só venho dizer-te: “Ficarei neutro!” se não que acrescento: “Tens precisão do meu auxílio, ofereço-to!”

      Gilberto tentou pela segunda vez ler no fundo do coração de Cagliostro.

      - Bom! - disse este retomando o seu ar zombeteiro - aí estás tu duvidando!... Vejamos, homem de letras, não sabes a história da lança de Aquiles, que feria e curava? Eu possuo essa lança. A mulher que passou por ser a rainha nos bosques de Versalhes não pode passar por ser a rainha nas Tulherias, ou nalguma outra estrada oposta à que seguir a verdadeira fugitiva!... Vamos, não é para desprezar o que lhe ofereço, meu caro Gilberto.

      - Seja então franco até ao fim, conde, e diga-me porque me faz esse oferecimento.

      - Mas, meu caro doutor, é bem simples; com o fim de que o rei parta, com o fim de que o rei deixe a França, com o fim de que nos deixe proclamar a república?

      - A república! - disse Gilberto espantado.

      - Porque não? - disse Cagliostro.

      - Mas, meu caro conde, olho para a França, à roda de mim, do meio-dia ao Norte, do Oriente ao Ocidente, e não vejo um só republicano...

      - Pois engana-se... eu vejo três: Petion, Camilo Desmoulins, e este seu criado. Pode vê-los tão bem como a mim. Depois vejo ainda aqueles que o senhor não vê, mas que verá, quando for tempo que eles apareçam. Então venha ter comigo para ver uma mutação de teatro, de que se admirará; todavia, desejo sinceramente que na mutação não aconteçam acidentes muito graves; os acidentes recaem ordinariamente sobre o maquinista.

      Gilberto reflectiu um instante.

      Depois, estendendo a mão a Cagliostro, disse:

      - Conde, se se tratasse só de mim, se se tratasse só da minha honra, da minha vida, da minha reputação e da minha memória, aceitaria no mesmo instante; mas trata-se de um reino, de um rei, de uma rainha, de uma família, de uma monarquia, e não posso tomar sobre mim a responsabilidade de vigiar por eles. Fique neutro, meu caro conde, é tudo o que lhe peço.

      Cagliostro sorriu.

      - Sim! - disse ele - o homem do colar!... pois bem! Meu querido Gilberto, o homem do colar vai dar-lhe um conselho.

      - Silêncio! - disse Gilberto; - tocam a campainha.

      - Que importa? Bem sabe que quem toca é o Sr. de Charny: ora o conselho que tenho a dar-lhe pode ele também ouvi-lo e aproveitá-lo... Entre, senhor conde de Charny, entre!

      Charny efectivamente acabava de aparecer entre portas. Vendo um estranho, onde só contava encontrar Gilberto, parou inquieto e hesitando.

      - Este conselho - continuou Cagliostro - ei-lo: desconfie dos regalos muito ricos, das carruagens muito pesadas e dos retratos muito parecidos! Adeus, Gilberto, adeus, Sr. conde; e para empregar a fórmula daqueles a quem, como os senhores, desejo boa viagem, Deus os tenha em sua santa e divina guarda!...

      E o profeta, saudando amigavelmente Gilberto e cortesmente Charny, retirou-se seguido pelo olhar inquieto de um, e interrogador do outro.

      - Quem é este homem, doutor? – perguntou Charny, logo que o ruído dos passos se extinguiu na escada.

      - Um amigo meu, um homem que sabe tudo, mas que acaba de me dar a sua palavra de não nos trair.

      - E chama-se?

      Gilberto hesitou um instante.

      - O barão Zannone - disse ele.

      - É singular - disse Charny - não conheço esse nome, mas parece-me conhecer aquela cara... Tem o passaporte, doutor?

      - Ei-lo, conde.

      Charny pegou no passaporte, desdobrou-o vivamente, e absorvido completamente pela atenção que dava ao importante documento, parecia ter esquecido, momentaneamente pelo menos, o barão Zannone.

 

A noite de 20 de Junho

      Agora vamos ver o que se passava a 20 de Junho, das nove horas à meia noite, nos diversos pontos da capital.

      Não fora sem motivo que se desconfiara da Srª. de Rochereul.

      Conquanto o seu serviço tivesse cessado no dia 11, ela achara meio, suspeitando alguma coisa, de voltar ao paço, e conquanto o cofre das jóias continuasse a estar no mesmo lugar, notara que já lá não estavam os diamantes.

      Efectivamente tinham sido confiadas por Maria Antonieta ao seu cabeleireiro Leonardo, que devia partir na noite de 20, algumas horas antes da sua augusta ama, com o Sr. de Choiseul, comandante dos soldados do primeiro destacamento, estacionado na ponte de Somervele, encarregado, além disso, da muda de Varennes, que se devia compor de seis bons cavalos, e que esperava em casa, na rua de Artois, as ordens do rei e da rainha.

      Era talvez indiscreto embaraçar o Sr. de Choiseul com o mestre Leonardo, e um tanto imprudente levar consigo um cabeleireiro; mas que o artista conseguiria fazer rapidamente os admiráveis penteados que Leonardo fazia brincando?

      Que querem? Quando se tem um cabeleireiro, homem de génio, não se renuncia a ele facilmente!

      O resultado foi que a aia do delfim, adivinhando que a partida estava fixada para segunda-feira 20, às onze horas da noite, avisou não só o amante, o Sr. de Gouvion, senão também o Sr. Bailly.

      Lafayette fora procurar o rei para se explicar francamente com ele a respeito dessa denúncia, e o rei encolhera os ombros.

      Bailly fizera melhor; ao passo que Lafayette se tornara cego como um astrónomo, ele tornara-se cortês como um cavalheiro; e mandara à rainha a carta da Srª. de Rochereul.

      O Sr. de Gouvion, influenciado directamente, conservara maiores suspeitas; prevenido pela amante, tinha, sob pretexto de uma reunião militar, atraído a sua casa uma dúzia de oficiais da guarda nacional; pusera uns cinco ou seis em vedeta a diferentes portas, e ele próprio, com cinco chefes de batalhão, encarregara-se de vigiar as portas de quarto do Sr. Villequier, mais especialmente designadas à sua atenção.

      À mesma hora, na rua Coq-Héron, n.º 9, numa sala muito nossa conhecida, assentada no sofá em que a vimos, uma senhora nova, bela, aparentemente tranqüila, mas fortemente comovida no fundo do seu coração, falava com um moço de vinte e três a vinte e quatro anos, que estava em pé diante dela, trajando de correio, vestia cor de ganga calção justo de camurça, botas de canhão, e tendo por arma uma faca de mato.

      Tinha na mão um chapéu redondo agaloado.

      A senhora parecia insistir, o mancebo parecia defender-se.

      - Mas, repito-lhe, visconde - dizia ela - por que razão, estando ele há dois meses e meio em Paris, não veio aqui pessoalmente?

      - Meu irmão, desde o seu regresso, tem-me encarregado muitas vezes da honra de dar à condessa, notícias dele.

      - Bem sei e estou-lhes por isso muito grata, a ele e ao visconde; mas parece-me que no momento de partir podia muito bem vir dizer-me adeus.

      - De certo minha senhora; mas era-lhe impossível, e por isso me encarregou desse cuidado.

      - E a viagem que empreendeu será longa?

      - Ignoro, minha senhora.

      - Digo empreendem, porque, pelo seu vestuário, devo pensar que também parte.

      - Segundo toda a probabilidade, minha senhora, terei deixado Paris hoje à meia noite.

      - Acompanha seu irmão, ou segue uma direcção oposta à dele?

      - Julgo que seguimos o mesmo caminho.

      - Há-de dizer-lhe que esteve comigo, não?

      - Sim, minha senhora, porque pela solicitude que ele empregou em me enviar à Srª. condessa, pelas reiteradas recomendações que me fez de não me juntar a ele sem primeiro lhe ter falado, não me perdoaria o ter esquecido uma tal missão.

      A condessa passou a mão pelos olhos, deu um suspiro, e depois de ter reflectido um instante, disse:

      - Visconde, o senhor é fidalgo, e deve compreender toda a importância da pergunta que lhe faço; responda-me como se fosse verdadeiramente meu irmão, como responderia a Deus... Nessa viagem que empreendem, o Sr. de Charny corre algum perigo sério?

      - Quem pode dizer, minha senhora – respondeu Isidoro buscando iludir a pergunta - onde existe ou não o perigo na época em que vivemos? Se na manhã de 5 de Outubro perguntassem ao nosso pobre Jorge se corria algum perigo, ele teria certamente respondido que não, e no dia seguinte estava deitado, pálido, inanimado, à porta da rainha. O perigo, minha senhora, na época que atravessamos sai da terra e estamos muitas vezes em presença da morte, sem saber de onde vem, nem quem a chamou.

      Andréia empalideceu.

      - Então - disse ela - há perigo de morte, não é verdade, visconde?

      - Não disse isso, minha senhora.

      - Não, mas pensa-o.

      - Penso, minha senhora, que se tem alguma coisa importante que mandar dizer a meu irmão, a empresa em que ele e eu nos arriscamos, é assaz grave, para que de viva voz, ou por escrito me encarregue de transmitir o seu pensamento, o seu desejo e a sua recomendação.

      - Está bem, visconde - disse Andréia; - peço-lhe cinco minutos.

      E com o passo lento e frio, que lhe era habitual, a condessa entrou no seu gabinete, cuja porta fechou.

      Assim que a condessa saiu, o mancebo olhou para o relógio com certa inquietação.

      - Nove horas e um quarto! - murmurou ele - e o rei espera-nos às nove e meia... Felizmente que não são mais que alguns passos daqui às Tulherias.

      Mas a condessa de Charny não gastou o tempo que pedira.

      Passados alguns segundos, entrou, trazendo na mão uma carta fechada.

      - Visconde - disse ela com solenidade – confio isso à sua honra!

      Isidoro estendeu a mão para pegar na carta.

      - Espere - disse Andréia - e compreenda bem o que vou dizer-lhe. Se seu irmão, se o Sr. conde de Charny cumprir sem acidente a empresa em que se mete, nada mais há a dizer-lhe, além do que já lhe disse: simpatia pela sua lealdade, respeito pela sua dedicação e admiração pelo seu carácter!... Se for ferido (a voz de Andréia alterou-se ligeiramente), se for ferido gravemente, pedir-lhe-á que me conceda a graça de ir juntar-me a ele, e se ma conceder, o senhor me enviará logo um mensageiro, que me dirá com certeza onde o posso encontrar, porque partirei no mesmo instante... Se for ferido mortalmente (a comoção esteve quase a ponto de embargar a voz a Andréia), entregar-lhe-á esta carta que, se ele não puder ler, lhe lerá, porque, antes de morrer, quero que ele saiba o seu conteúdo... Pela sua fé de fidalgo, cumprirá o meu desejo, visconde?

      Isidoro, tão comovido como a condessa, estendeu a mão.

      - Pela minha honra, minha senhora! - disse ele.

      - Então pegue nesta carta, e vá, Sr. visconde!

      Isidoro pegou na carta, beijou a mão da condessa e saiu.

      - Oh! - exclamou Andréia caindo no sofá; - se morre, quero ao menos que morra, mas sabendo que o amo!

      Justamente no momento em que Isidoro deixava a condessa, e colocava a carta sobre o peito, ao lado da outra, cuja direcção acabava de ler à luz de um candeeiro à esquina da rua Coquillière, dois homens, vestidos exactamente da mesma maneira que ele, caminhavam para um sítio de reunião comum, isto é, para o toucador da rainha, onde já introduzimos os nossos leitores por duas serventias diferentes:,um seguia a galeria do Louvre, que costeia o cais, galeria em que está hoje o museu de pintura, e em cuja extremidade Weber o esperava; o outro subia pela pequena escada que vimos tomar a Charny, na sua chegada de Montmédy.

      No alto dessa escada, do mesmo modo que o seu companheiro era esperado no fim da galeria do Louvre por Weber, criado particular da rainha, era este esperado por Francisco Hue, criado particular do rei.

      Introduziram-nos ambos, e quase ao mesmo tempo, por duas portas diferentes.

      O primeiro que entrou era o Sr. de Valory.

      Alguns segundos depois, como dissemos, abriu-se outra porta, e com certa admiração, o Sr. de Valory viu entrar outro correio como ele. Era o Sr. de Malden.

      Os dois oficiais não se conheciam: entretanto, presumindo que tinham sido chamados ambos para o mesmo fim, dirigiram-se um para o outro e cumprimentaram-se amigavelmente.

      Nesse momento abriu-se outra porta, e apareceu Charny.

      Era o terceiro correio, tão desconhecido para os outros dois, como estes o eram para ele.

      Só Isidoro sabia para que fim estavam juntos, e qual era a obra comum que iam empreender.

      Decerto se dispunha a responder às perguntas que lhe eram feitas pelos seus futuros companheiros, quando se abriu a porta novamente e apareceu el-rei.

      - Senhores - disse Luís XVI dirigindo-se a Malden e a Valory - perdoem-me por ter disposto dos senhores sem a sua licença; mas é que os considero fieis servidores da realeza... Ao saírem das minhas guardas, convidei-os a passar por casa de um alfaiate, cuja morada lhes dei, para lhes fazer um fato de correio, e a acharem-se esta noite nas Tulherias, às nove horas e meia. A sua presença prova-me que, qualquer que seja, aceitarão de boa vontade a missão de que tenho que encarregá-los.

      Os dois antigos guardas inclinaram-se.

      - Meu senhor - disse o Sr. de Valory – vossa majestade sabe que não precisa consultar os seus criados para dispor da dedicação, da coragem e da vida deles.

      - Meu senhor - disse também o Sr. de Malden - o meu camarada, respondendo por si, respondeu também por mim, e segundo julgo, pelo nosso terceiro companheiro.

      - O seu terceiro companheiro, senhores, com quem os convido a fazer conhecimento, e bom conhecimento é esse, é o Sr. visconde Isidoro de Charny, um dos irmãos daquele que foi morto em Versalhes defendendo a porta da rainha. Nós estávamos costumados às dedicações dos da sua família, e essas dedicações são-nos agora tão familiares, que nem sequer as agradecemos já.

      - Em vista do que vossa majestade acaba de dizer - replicou o Sr. de Valory - o visconde de Charny sabe decerto o motivo que nos reúne, ao passo que nós o ignoramos, meu senhor, e estamos ansiosos por sabê-lo.

      - Senhores - disse o rei - não ignoram que sou prisioneiro do comandante da guarda nacional, da Assembléia, do maire de Paris, do povo, finalmente prisioneiro de todo o mundo... Pois bem, contei com os senhores para me ajudarem a sacudir esta humilhação e conquistar a minha liberdade.

      “A minha sorte, a da rainha e a dos meus filhos, está nas suas mãos; tudo está pronto para que possamos fugir esta noite. Tratem portanto de nos fazer sair daqui.”

      - Meu senhor - disseram os três mancebos - queira vossa majestade ordenar, que nós obedeceremos prontamente.

      - Como devem compreender, não podemos sair juntos... A nossa reunião comum é à esquina da rua Nicaise, onde o Sr. conde de Charny nos esperará com uma carruagem.

      “O visconde encarregar-se-á da rainha, e responderá pelo nome de Melchior; o Sr. de Malden encarregar-se-á da Srª. infanta Isabel e da Srª. princesa real, e chamar-se-á João; o Sr. de Valory encarregar-se-á da Srª. de Tourzel e do delfim, e o seu nome será Francisco.

      Não esqueçam os seus novos nomes, e esperem aqui novas instruções.”

      O rei apertou a mão aos três mancebos e saiu, deixando naquele quarto três homens prontos a morrerem por ele.

      Entretanto o Sr. de Choiseul, que declarara ao rei na véspera, da parte do Sr. de Bouillé, que era impossível esperar mais do que até ao dia 20, à meia-noite, e que tinha anunciado que no dia 21 às quatro horas da manhã partiria, se não houvesse novidade, e levaria consigo todos os destacamentos de Dun, de Stenay e de Montmédy, estava em sua casa, na rua de Artois, onde deviam ir as últimas ordens do paço, e como eram nove horas da noite, começava a desesperar-se, quando o único dos criados que conservara, e que o julgava a partir para Metz, o foi prevenir de que um homem queria falar-lhe da parte da rainha.

      Mandou-o subir.

      Um homem com um chapéu redondo enterrado até aos olhos, e coberto com um enorme casacão, entrou na sala.

      - É o Sr. Leonardo - perguntou o Sr. de Choiseul; - esperava-o com impaciência.

      - Se o fiz esperar, Sr. duque, não foi por minha culpa, mas sim pela da rainha, que me preveniu, há apenas dez minutos, de que tinha que vir a sua casa.

      - Ela não lhe disse outra coisa?

      - Disse sim, Sr. duque; encarregou-me de guardar todos os diamantes, e de lhe entregar esta carta.

      - Dê-ma - disse o duque com ligeira impaciência, que não pôde conter, vendo a grande consideração de que gozava o personagem, que lhe entregava a ordem real.

      A carta era extensa e recheada de recomendações. Anunciava que partiam à meia-noite; mandava o duque de Choiseul partir imediatamente, e de novo lhe repetia a súplica de levar o Leonardo, o qual, acrescentava a rainha, tinha recebido ordem de lhe obedecer como a ela própria.

      E sublinhava as palavras seguintes:

     

      “Renovo-lhe ainda aqui esta ordem”.

     

      O duque levantou os olhos para Leonardo, que esperava com visível inquietação. O cabeleireiro estava burlesco com o seu enorme chapéu e com o seu imenso casacão.

      - Vejamos - disse o duque - recorda-se de tudo; o que lhe disse a rainha?

      - Vou repetir palavra por palavra tudo o que sua majestade me disse.

      - Vamos, diga.

      - Mandou-me chamar há coisa de três quartos de hora.

      - Bom.

      - Disse-me em voz baixa...

      - Então, sua majestade não estava só?

      - Não, Sr. duque; el-rei conversava no vão de uma janela com a Srª. infanta Isabel; o Sr. delfim e a Srª. princesa real falavam também; quanto à rainha estava encostada à chaminé.

      - Continue, Leonardo, continue.

      - A rainha disse-me então em voz baixa:

      “-Leonardo, posso contar contigo?”

      “- Oh! senhora, respondi eu, queira dispor de mim! Vossa majestade bem sabe que lhe sou inteiramente dedicado.”

      “- Toma estes diamantes e guarda-os nas algibeiras; pega nesta carta e leva-a à rua de Artois, ao Sr. duque de Choiseul; só a entregarás a ele... Se não estiver em casa, encontrá-lo-ás em casa da Srª. marquesa de Grammont.”

      “Depois, como já me afastasse para obedecer às ordens da rainha, sua majestade chamou-me e acrescentou:”

      - Põe um Chapéu de abas largas e veste um grande casacão para não seres conhecido, meu caro Leonardo, e sobretudo obedece ao Sr. de Choiseul como a mim própria.

      - Então fui ao meu quarto, tomei o chapéu e o casaco de meu irmão, e aqui me tem o Sr. duque às suas ordens.

      - Então - disse o Sr. de Choiseul a rainha recomendou-lhe que me obedecesse como a ela própria?

      - São as augustas palavras de sua majestade, Sr. duque, afirmou o cabeleireiro.

      - Estimo muito que se lembre tão bem dessa recomendação verbal... Em todo o caso, para que lhe não restem dúvidas, aqui está a mesma recomendação escrita, e como tenho de queimar esta carta leia-a.

      E o duque de Choiseul apresentou a parte inferior da carta que acabava de receber de Leonardo, depois de dobrá-la, que leu em voz alta:

     

      “Dei ao meu cabeleireiro Leonardo ordem para lhe obedecer como a mim própria; renovo-lhe ainda aqui esta ordem”.

     

      - Entende, não é verdade? - disse o Sr. de Choiseul.

      - Oh! senhor - disse Leonardo - acredite que só bastava a ordem verbal de sua majestade.

      - Não importa - disse o Sr. de Choiseul.

      E queimou a carta.

      Neste momento entrou o criado e anunciou que a carruagem estava pronta.

      - Venha, Sr. Leonardo - disse o duque.

      - Como? Que vá! E os diamantes?

      - Levá-los-á consigo.

      - Para onde?

      - Para onde vai comigo.

      - Então onde me leva?

      - Algumas léguas distante daqui, onde tem que cumprir uma missão muito especial.

      - Sr. duque, é impossível!

      - Como impossível! A rainha não lhe disse que me obedecesse como se fosse a ela própria?

      - É verdade; mas que hei-de fazer? Deixei a chave na porta do quarto, e quando meu irmão entrar não achará nem o casaco, nem o chapéu... Não me vendo chegar, não saberá onde estou... E depois, a Srª. de l'Aage, a quem prometi pentear, e que me espera... A prova, Sr. duque, é que o meu cabriolé e o meu criado estão no pátio das Tulherias.

      - Pois bem, Sr. Leonardo - disse o Sr. de Choiseul rindo - que quer? Seu irmão comprará outro chapéu e outro casaco: o senhor penteará a Srª. de l'Aage outro dia, e o seu criado, não o vendo voltar, desaparelhará o cavalo e metê-lo-á na cavalariça... Mas o nosso está pronto, partamos!

      E sem atender mais às queixas e lamúrias de Leonardo, o Sr. duque de Choiseul fez subir para o seu cabriolé o cabeleireiro desesperado, e meteu o cavalo a grande galope pela barreira da pequena Villette.

      O duque de Choiseul ainda não tinha passado as últimas casas da pequena Villete, quando um grupo de cinco pessoas, que vinha do clube dos Jacobinos, desembocou na rua de Saint-Honoré, parecendo dirigir-se para o Palais-Royal, e notando a profunda tranqüilidade daquela noite.

      Essas cinco pessoas eram: Camilo Desmoulins (ele próprio conta o facto), Danton, Fréron, Chénier e Legendre.

      Chegados à altura da rua de l'Échelle, e volvendo os olhos para os lados das Tulherias, Camilo Desmoulins disse:

      - Pela minha honra, não lhes parece que Paris está mais que tranqüila esta noite? Parece abandonada! Durante todo o caminho que temos andado, só encontramos uma patrulha.

      - É - respondeu Fréron - porque as medidas estão tomadas para deixar o caminho livre ao rei.

      - Como, o caminho livre ao rei? – perguntou Danton.

      - Sem dúvida - disse Fréron, - visto que é esta noite que ele parte!

      - Ora a qual - disse Legendre; - não brinques com isso!

      - Talvez seja brincadeira - respondeu Fréron - mas preveniram-me disso numa carta...

      - Recebeste uma carta que te previne da fuga do rei? - perguntou Camilo Desmoulins - uma carta assinada?

      - Não, uma carta anónima... Trago-a comigo; aqui a têm, leiam.

      Os cinco patriotas aproximaram-se duma carruagem que estava parada junto da rua de Saint-Nicaise, e à luz das lanternas leram as linhas seguintes:

     

      “Previne-se o cidadão Fréron, de que é esta noite que o Sr. Capeto, a austríaca e os seus dois lobinhos deixam Paris, e vão reunir-se ao Sr. de Bouillé, o matador de Nancy, que os espera na fronteira”.

     

      - Toma! Sr. Capeto, disse Camilo Desmoulins, o nome é bom! Chamarei de hoje em diante a Luís XVI o Sr. Capeto.

      - E só haverá uma coisa que censurar-te – disse Chénier - é que Luís XVI não é Capeto, mas sim Bourbon.

      - Ora! Quem sabe isso? - disse Desmoulins; - dois ou três pedantes como tu... Não é verdade, Legendre, que Capeto é um nome muito bonito?

      - Mas afinal - observou Danton - quem sabe se a carta diz a verdade, e se é efectivamente esta noite que toda a família real deve safar-se!...

      - Uma vez que estamos nas Tulherias – disse Camilo, - vamos ver.

      E os cinco patriotas divertiram-se em dar a volta à roda das Tulherias.

      Voltando para a rua de Saint-Nicaise, avistaram o general Lafayette e todo o seu estado maior, que entrava no pátio do palácio das Tulherias.

      - Olhem - disse Danton - aí está o Blondinet, que vai assistir ao recolher da família real... O nosso serviço acaba e o seu começa... Boa noite, senhores! Quem vem comigo para o lado da rua de Paon?

      - Eu - disse Legendre.

      E aquele grupo de homens separou-se imediatamente em duas partes.

      Danton e Legendre atravessaram o Carrousel, ao passo que Chenier, Fréron e Camilo Desmoulins desapareceram na esquina da rua de Rohan e da rua de Saint-Honoré.

 

A partida

      Efectivamente, às onze horas da noite, no momento em que as Srªs. de Tourzel e Baunier, depois de terem despido e deitado a família real e o delfim, os acordaram e vestiram com o fato de viagem, com grande desespero do delfim, que queria o seu fato de rapaz, e recusara obstinadamente os de menina, o rei, a rainha e a infanta Isabel recebiam o Sr. de Lafayette e os srs. de Gouvion e Romeuf, seus ajudantes de ordens.

      Esta visita causava grande inquietação, especialmente depois das suspeitas que tinham a respeito da Srª. de Rochereul.

      A rainha e a princesa Isabel tinham ido de tarde passear ao bosque de Bolonha, e tinham voltado às oito horas.

      O Sr. de Lafayette perguntou à rainha se o passeio tinha sido bonito, acrescentando, que ela tinha feito mal em se recolher tão tarde, e que temia que a geada da noite lhe fizesse mal.

      - A geada da noite do mês de Junho! – exclamou a rainha rindo; - mas na realidade, só eu mandei fazer nevoeiros para ocultar a nossa fuga, supondo que continue a correr o boato de que partimos.

      - O facto é, minha senhora - disse Lafayette - que se fala mais do que nunca dessa partida, e recebi até informações de que se verifica esta noite.

      - Ah! - disse a rainha - aposto que foi o Sr. de Gouvion quem lhe deu essa bela notícia?

      - E por que motivo havia de ser eu, minha senhora? - Perguntou o jovem oficial corando.

      - Porque julgo que tem inteligências no paço... Ora veja o Sr. de Romeuf, que não as tem, estou certa de que responderia por nós.

      - E não faria grande coisa, minha senhora, - respondeu o jovem ajudante de ordens - visto ter el-rei dado a sua palavra à Assembléia de que não deixaria Paris.

      Foi a rainha quem corou então.

      Falaram de outra coisa.

      Às onze horas e meia, o Sr. de Lafayette e os seus ajudantes de ordens despediram-se do rei e da rainha.

      Entretanto o Sr. de Gouvion, pouco seguro, passou ao seu quarto do paço; encontrou ali os seus amigos de sentinela, e em lugar de os render, recomendou-lhes que redobrassem de vigilância.

      Quanto ao Sr. de Lafayette, esse foi ao palácio da câmara tranqüilizar Bailly sobre as intenções do rei, dado que Bailly tivesse alguns receios.

      Logo que o Sr. de Lafayette partiu, o rei, a rainha e a princesa Isabel chamaram os criados, e ordenaram que lhes fizessem os habituais serviços de toilette, depois do que, às horas do costume despediram todos.

      A rainha e a princesa Isabel vestiram-se mutuamente; o vestuário era mui simples e os chapéus tinham grandes abas que lhes ocultavam inteiramente a cara.

      Quando acabaram de se vestir, entrou o rei; trazia um fato pardo e uma dessas pequenas cabeleiras a que chamavam cabeleiras à Rousseau; o calção era curto, e trazia meias pardas e sapatos de fivelas.

      Havia oito dias que Hue, criado particular, vestido com um fato absolutamente igual, saía pela porta do Sr. de Villequier, que estava emigrado havia seis meses, e passava pela praça do Carrousel e pela rua de Saint-Nicaise. Tinham tomado esta precaução para que se habituassem a ver um homem vestido daquela maneira, passar todas as noites, e que não notassem o rei quando passasse também.

      Foram tirar do gabinete da rainha os três correios, os quais tinham ali esperado que chegasse a hora, e fizeram-nos passar pelo salão, para o quarto da princesa real, onde estava com o delfim.

      Esse quarto, na previsão da fuga, tinha sido mudado no dia 11 de Junho para o quarto do Sr. de Villequier.

      O rei mandara que lhe entregassem as chaves daquele quarto no dia 13.

      Chegados ao quarto do Sr. de Villequier, não havia grande dificuldade em sair do paço. Sabia-se que o quarto estava desocupado, ignoravam que o rei tivesse as chaves, e nas circunstâncias ordinárias não tinham sentinelas.

      E demais, as sentinelas dos pátios estavam habituadas a ver sair, depois das onze horas, muitas pessoas ao mesmo tempo.

      Era a gente de serviço, que não dormia no paço, e que voltava para suas casas.

      Paravam aí todas as disposições da viagem.

      O Sr. Isidoro de Charny, que tinha percorrido o caminho acompanhado pelo irmão, conhecedor de todas as passagens difíceis ou perigosas, correria adiante, e preveniria os postilhões, para que as mudas não sofressem demora alguma.

      Os srs. de Malden e de Valory, assentados na almofada, pagariam aos postilhões trinta sous pela parelha de guia. Ordinariamente dava-se vinte cinco, mas aumentaram cinco, atendendo ao enorme peso da carruagem.

      Se os postilhões fossem bem depressa, receberiam então gorjeta.

      Entretanto, os guias não receberiam mais de quarenta sous. O rei pagava à sua parte um escudo.

      O Sr. de Charny conservar-se-ia na carruagem, pronto a parar a qualquer acidente; estaria muito bem armado, assim como os três correios; cada um deles devia achar um par de pistolas na carruagem.

      Pagando trinta sous pelas guias, ainda que não fossem tão depressa como desejavam, tinham calculado que em treze horas estariam em Chalons.

      Todas estas instruções tinham sido reguladas entre o conde de Charny e o duque de Choiseul.

      Repetiram-nas muitas vezes aos três mancebos, para que cada qual se compenetrasse bem das suas funções;

      O visconde corria adiante e mandava preparar os cavalos;

      Os srs. de Malden e de Valory, assentados na almofada da carruagem, pagavam;

      O conde de Charny, dentro dela, chegaria a cabeça à portinhola, e falaria se fosse preciso.

      Prometeram todos cumprir o programa, apagaram as luzes e às escuras dirigiram-se para o quarto do Sr. de Villequier.

      O conde de Charny devia estar no seu posto havia mais de uma hora.

      Às apalpadelas, o rei tinha encontrado a porta.

      Ia meter a chave na fechadura, quando a rainha o deteve, dizendo:

      - Silêncio!

      Puseram-se todos à escuta.

      Ouviram-se passos e algumas palavras em voz baixa no corredor.

      Passava-se ali alguma coisa extraordinária.

      A Srª. de Tourzel, que habitava o paço, e cuja presença nos corredores, a qualquer hora que fosse, não podia causar admiração, encarregou-se de ir de volta, e de ver donde vinha aquele rumor de passos e de palavras.

      Esperaram sem fazer um movimento e contendo a respiração.

      Quanto maior era o silêncio, mais fácil era de perceber que no corredor havia grande número de pessoas.

      A Srª. de Tourzel voltou; tinha conhecido o Sr. de Gouvion e visto muitos uniformes.

      Era impossível sair pelo quarto do Sr. de Villequier, a menos que não tivesse outra saída além da que tinham escolhido primeiro.

      Porém não havia luz.

      Uma lamparina ardia na câmara da princesa real, onde a infanta Isabel foi acender a vela, que momentos antes apagara.

      Depois, alumiados por aquela luz, os fugitivos começaram a procurar outra saída.

      Por muito tempo julgaram a busca inútil e perdeu-se nisto um quarto de hora. Finalmente, encontraram uma pequena escada, que conduzia a um quarto isolado na sobreloja. Era o quarto do criado do Sr. de Villequier, e dava saída para um corredor, e daí para uma escada de serviço.

      A porta estava fechada.

      O rei experimentou todas as chaves; nenhuma servia.

      O visconde de Charny tentou empurrar a lingüeta com a ponta da faca de mato, mas ela resistiu.

      Havia uma saída, e contudo estavam tão fechados como dantes.

      O rei tirou a vela da mão da princesa Isabel, e deixando todos na escuridão, foi ao seu quarto de cama, e pela escada secreta subiu até à casa da forja. Ali, pegou numa porção de gazuas de formas diferentes e desceu.

      Antes de se ter reunido ao grupo, que o esperava cheio de ansiedade, já tinha feito a sua escolha.

      A gazua escolhida pelo rei entrou no buraco da fechadura, rangeu dando a volta, mordeu a lingüeta, deixou escapar duas vezes, mas à terceira, agarrou-a tão bem, que no fim de dois ou três segundos teve de ceder.

      A lingüeta recuou, a porta abriu-se e a respiração dos fugitivos, por algum tempo suspensa, voltou a todos.

      Luís XVI voltou-se para a rainha com um ar triunfante, e disse:

      - Então, minha senhora!

      - Sim, senhor - disse a rainha - é verdade... e não digo que seja mau ser serralheiro, mas digo que é bom também algumas vezes ser rei.

      Tratou de dispor a ordem da partida.

      A princesa Isabel foi a primeira que saiu, levando após si a princesa real.

      A vinte passos devia ser seguida pela Srª. de Tourzel, que levava o delfim.

      Entre as duas, ia o Sr. de Malden, pronto a socorrer tanto um como outro grupo.

      Estas primeiras contas destacadas do rosário real, aquelas pobres crianças, cujo amor as fazia olhar para trás, procurando esse outro amor que as seguia com os olhos, desceram trémulas e nos bicos dos pés, entraram no círculo de luz formado pelo candeeiro, que alumiava a porta do palácio, que dava para o pátio, e passaram diante da sentinela, sem que esta parecesse ocupar-se deles.

      - Bem! - disse a infanta Isabel - a maior dificuldade está vencida.

      Chegando ao postigo que dava sobre o Carrousel, encontraram a sentinela cruzando os seus passos com os dos fugitivos.

      Vendo-as aproximar, parou.

      - Minha tia, disse a princesa real, apertando a mão da infanta Isabel, estamos perdidas, se este homem nos conhece!

      - Não importa, minha filha - disse a infanta; - ficaremos da mesma sorte perdidas se recuamos!

      Continuaram o seu caminho.

      Quando estavam à distância de quatro passos, a sentinela voltou-lhes as costas e elas puderam passar.

      A sentinela tê-las-ia conhecido efectivamente? Sabia acaso que ilustres fugitivos deixava passar? As princesas estavam convencidas disso, e enviaram, fugindo, mil bênçãos àquele salvador desconhecido.

      Do outro lado do postigo, viram o rosto inquieto de Charny.

      O conde estava envolto num casacão azul, e tinha na cabeça um chapéu redondo de oleado.

      - Ah! Meu Deus! - murmurou ele - chegam finalmente!... Mas o rei? A rainha?

      - Seguem-nos, respondeu a infanta.

      - Venham - disse Charny.

      E conduziu rapidamente os fugitivos para a carruagem, que estava parada na rua de Saint-Nicaise.

      Uma sege de aluguer tinha vindo colocar-se ao lado da carruagem, como para a espionar.

      - Olá, camarada - disse o cocheiro vendo o conde de Charny acompanhado por todas aquelas pessoas - parece que arranjaste aluguer?

      - Como vês camarada - respondeu Charny com a maior simplicidade.

      Depois disse em voz baixa ao senhor de Malden:

      - Senhor, alugue aquela sege e vá à porta de Saint-Martin; não lhe será difícil conhecer a carruagem que nos espera.

      O Sr. de Malden compreendeu e saltou para a sege, dizendo:

      - E tu também tens aluguer... Para a ópera, depressa!...

      A ópera era então na porta de Saint-Martin.

      O cocheiro julgou tratar com um correio, que ia juntar-se com o amo no espectáculo, e partiu sem outra observação mais do que estas palavras, que indicavam, pelo preço da carreira, um aumento pecuniário.

      - Sabe que é meia-noite, patrão?

      - Sim, vai depressa e descansa!

      Como naquela época, os criados eram mais generosos que os amos, o cocheiro partiu a trote largo, sem fazer nenhuma outra observação.

      Apenas tinham voltado a esquina da rua de Rohan, quando pelo mesmo postigo que dera passagem às princesas, à Srª. de Tourzel e ao delfim, viram caminhar em passo ordinário, e como um amanuense que sai do escritório, depois de longo e trabalhoso dia, um homem vestido de pardo com o chapéu carregado para os olhos e as mãos nas algibeiras. Era o rei.

      Acompanhava-o o Sr. de Valory.

      No caminho caíra-lhe uma fivela dos sapatos, e continuara a andar sem mostrar ter dado por isso; o Sr. de Valory tinha-a apanhado.

      Charny deu alguns passos para ele; conhecera o rei, não por ele, mas pelo Sr. de Valory.

      Era daqueles que no rei vêem sempre um rei.

      Deu um suspiro de dor e quase de vergonha.

      - Venha, meu senhor, venha - murmurou ele.

      Depois, perguntou baixinho ao Sr. de Valory:

      - E a rainha?

      - Vem aí com o seu irmão.

      - Bem. Tome o caminho mais curto e vá esperar-nos à porta de Saint-Martin; eu irei pelo mais comprido. A reunião é ao pé da carruagem.

      O Sr. de Valory dirigiu-se para a rua de Saint-Nicaise, chegou à rua de Saint-Honoré, depois à praça das Vitórias, por fim à rua Bourbon-Villeneuve.

      Esperaram a rainha.

      Passou-se meia hora.

      Não tentamos descrever a ansiedade dos fugitivos, Charny, sobre quem pesava toda a responsabilidade estava como doido.

      Quis ir ao paço para se informar se havia algum inconveniente. O rei deteve-o.

      O delfim chorava, e chorando chamava: “Mamã, mamã!”

      A princesa real, a infanta e a Srª. de Tourzel não conseguiam consolá-lo.

      O terror redobrou quando viram, alumiada de archotes, a carruagem do general Lafayette. Entrava no Carrousel.

      Eis o que tinha acontecido:

      Na porta do pátio o visconde de Charny, que dava o braço à rainha, quis voltar à esquerda.

      Mas a rainha impediu-o perguntando-lhe:

      - Onde vai?

      - À esquina da rua de Saint-Nicaise, onde meu irmão nos espera.

      - A rua de Saint-Nicaise fica ao pé do rio? - perguntou a rainha.

      - Não, minha senhora.

      - Mas é no postigo do lado do rio que seu irmão nos espera.

      Isidoro quis insistir; porém a rainha parecia tão convencida do que dizia, que o pôs em dúvida.

      - Minha senhora, é preciso o maior cuidado... o menor engano nesta conjectura seria perigosíssimo - observou ele.

      - É ao pé do rio - repetiu a rainha; - eu bem ouvi.

      - Vamos então ao rio, mas se aí não encontrarmos a carruagem, voltaremos imediatamente para a rua de Saint-Nicaise, não é verdade?

      - Sim, mas vamos!

      E a rainha arrastou o seu guia através dos três pátios, separados, naquele tempo por um muro muito grosso, que apenas se comunicavam uns com os outros por uma estreita abertura, contígua ao palácio; essa abertura era fechada por uma cadeia e guardada por uma sentinela.

      A rainha e Isidoro passaram um após outro as três aberturas e saltaram as três cadeias.

      Por mera casualidade, nem uma sentinela se lembrou de os fazer parar.

      Quem havia de pensar, que aquela mulher, com fato de criada de uma casa rica, que dava o braço, a um belo rapagão com a libré do príncipe de Condé, ou coisa parecida, e saltava tão ligeiramente as pesadas cadeias, fosse a rainha de França?

      Chegaram à beira do rio.

      O cais estava deserto.

      - Então é do outro lado - disse a rainha.

      Isidoro queria voltar.

      Mas ela como tomada por uma vertigem, disse:

      - Não, não, é por aqui.

      E arrastou Isidoro para a ponte real.

      Atravessada a ponte, encontraram o cais da margem esquerda, tão deserto como o da primeira.

      - Vejamos nesta rua - disse a rainha. E forçou Isidoro a entrar na rua do Bac.

      Dando uns cem passos, conheceu então que se tinha enganado, e parou arquejante.

      As forças estavam quase a abandoná-la.

      - Então, minha senhora - disse Isidoro – ainda insiste?

      - Não - disse a rainha - agora pode levar-me onde quiser.

      - Minha senhora, em nome do Céu, tenha coragem! - exclamou Isidoro.

      - Oh! - disse a rainha - não é a coragem, são as forças que me faltam.

      Depois, inclinando-se para trás disse:

      - Parece-me que nunca poderei tomar a respiração. Meu Deus! Meu Deus!

      Isidoro sabia que a respiração, que faltava à rainha, lhe era tão necessária então, como o seria à corça perseguida pelos cães.

      Parou.

      - Respire, minha senhora - disse ele – temos tempo... Respondo por meu irmão; esperará se for necessário, até ao amanhecer.

      - Então acredita que ele me ama? - disse Antonieta tão imprudente como vivamente, apertando o braço do visconde contra o peito.

      - Acredito, que, tanto a vida dele como a minha, pertencem a vossa majestade, e que o sentimento que em nós é amor e respeito, é nele adoração.

      - Obrigada! - exclamou a rainha - dizendo-me isso faz-me muito bem... respiro... Vamos!... Vamos imediatamente.

      E com a mesma febre voltou atrás pelo mesmo caminho que andara.

      Porém, em lugar de entrar nas Tulherias, Isidoro fez-lhe tomar pelo postigo do Carrousel.

      Atravessaram a grande praça, que ordinariamente estava até à meia-noite cheia de lojas ambulantes e de carruagens de aluguer.

      Estava quase deserta, quase medonha. Entretanto ouviu-se como que um grande ruído de todas as carruagens e de passos de cavalos.

      Tinham chegado ao postigo da rua de l'Échelle; era evidente que os cavalos e a carruagem cujo ruído se ouvia, iam passar pelo postigo.

      Já se distinguia um clarão; decerto era dos archotes que acompanhavam a carruagem.

      Isidoro quis recuar; a rainha empurrou-o para diante.

      Isidoro correu para debaixo do postigo a fim de a proteger, exactamente no momento em que as cabeças dos cavalos, e os homens que levavam os archotes, apareciam na rua oposta.

      Empurrou-a para o lugar mais escuro e colocou-se diante dela.

      Mas o lugar mais escuro foi imediatamente cheio de luz pelos archotes.

      No meio deles, reclinado na carruagem, vestido com o seu elegante uniforme de general da guarda nacional, via-se o general Lafayette.

      No momento em que esta carruagem passava, Isidoro sentiu que um braço forte pela vontade, senão pelo poder, o afastava vivamente.

      Era o braço esquerdo da rainha.

      Na mão direita, tinha uma pequena varinha de bambu, como usavam as senhoras naquela época.

      Bateu com ela nas rodas da carruagem, dizendo:

      - Vai, carcereiro! Estou livre da tua prisão!

      - Que faz, minha senhora! - disse Isidoro - e a que se expõe?

      - Vingo-me! - respondeu a rainha. - Vale a pena arriscar alguma coisa para esse efeito.

      E atrás do último criado de archote, caminhou ela radiante como uma deusa, alegre como uma criança!

 

Uma questão de etiqueta

      A rainha teria dado uns dez passos além do postigo, quando um homem envolto num sobretudo azul, e com o rosto oculto pelas abas de um chapéu de oleado, lhe pegava convulsivamente num braço e a conduzia apressadamente para uma carruagem, que estava estacionada à esquina da rua de Saint-Nicaise.

      Era o conde de Charny.

      A carruagem era a que esperava toda a família real, havia mais de meia hora.

      Julgavam ver chegar a rainha consternada, abatida, moribunda; chegava risonha e alegre: os perigos que correra, a fadiga que sentira, o engano que tivera, o tempo que perdera, as conseqüências que a demora podia ter tido, tudo, a chibatada que dera na carruagem de Lafayette, e que ela julgava ter dado nele mesmo, lhe fizera esquecer.

      A dez passos da carruagem, estava um criado com um cavalo à mão.

      Charny não fez mais que mostrar com o dedo o cavalo a Isidoro.

      O irmão montou a cavalo e partiu a galope.

      Ia de guarda avançada a Bondy, para encomendar os cavalos.

      A rainha, vendo-o partir, dirigiu-lhe algumas palavras de agradecimento, que ele não ouviu.

      - Vamos, minha senhora, vamos, - disse Charny, mostrando a dedicação, e sobretudo, o respeito que os homens verdadeiramente enérgicos apresentam nos grandes lances, - vamos, que não há um minuto a perder.

      A rainha subiu para a carruagem, onde já estavam o rei, as princesas, o delfim e a Srª. de Tourzel, isto é cinco pessoas. Assentou-se no fundo da carruagem, e pôs o delfim no colo; o rei assentou-se ao pé dela; as princesas e a Srª. de Tourzel assentaram-se no assento da frente.

      Charny fechou a portinhola e subiu para a almofada, e para enganar os espiões, se os houvesse, fez voltar os cavalos, subiu a rua de Saint-Honoré, à Madalena e meteu aos boulevards, que foi seguindo até à porta de Saint-Martin.

      O coche esperava-os numa estrada, que conduzia a um sítio que chamavam la Voirie.

      A estrada estava deserta.

      O conde de Charny apeou-se da almofada e abriu a portinhola da carruagem.

      A do grande coche, que devia servir para a viagem, estava já aberta. Os srs. de Malden e de Valory conservaram-se aos lados do estribo.

      As seis pessoas que estavam na carruagem apearam-se imediatamente.

      O conde de Charny conduziu então a carruagem para a parte inferior da estrada, e fê-la resvalar para um fosso, voltando depois para o grande coche.

      Depois do rei, subiram a rainha e a infanta Isabel, e logo em seguida as reais crianças e após eles a Srª. de Tourzel.

      O Sr. de Malden subiu para a tábua do coche, o Sr. de Valory colocou-se ao pé de Charny na almofada.

      O coche era tirado a quatro. Uma chicotada fez largar os cavalos a trote rasgado.

      Dava um quarto depois da uma hora na igreja de Saint-Laurent. Gastaram uma hora para chegar a Bondy.

      Os cavalos aparelhados e prontos para serem metidos à carruagem, esperavam fora da cavalariça.

      Isidoro esperava junto dos cavalos.

      Do outro lado da estrada estacionava também um cabriolé, igualmente com cavalos de posta.

      No cabriolé estavam duas criadas particulares, pertencentes ao serviço do delfim e da princesa.

      Julgaram que encontrariam em Bondy uma carruagem de aluguer, e como não a achassem, arranjaram-se com o dono do cabriolé, que lho vendeu por mil francos.

      Este, satisfeito com a venda, e querendo sem dúvida ver quem eram as pessoas que tinham feito a loucura de lhe dar mil francos por semelhante carriola, esperava, bebendo, na estalagem das postas.

      Viu chegar o coche do rei conduzido por Charny.

      Este desceu da almofada e aproximou-se da portinhola.

      Debaixo do capote de cocheiro, trazia o seu uniforme; o chapéu estava na caixa da almofada.

      Estava convencionado entre o rei, a rainha e Charny, que em Bondy, Charny tomaria dentro do coche o lugar da Srª. de Tourzel, que então voltaria só para Paris.

      Mas para essa mudança tinham-se esquecido de consultar a Srª. de Tourzel.

      O rei apresentou-lhe a questão.

      A Srª. de Tourzel, além da sua profunda dedicação pela família real, era, a respeito da etiqueta, irmã da velha Srª. de Noailles.

      - Meu senhor - respondeu ela - a minha obrigação é velar pelos infantes de França, e não os deixar um só instante, sem que uma ordem expressa de vossa majestade, ordem que não acharia precedentes, me obrigue a abandoná-los.

      A rainha tremeu de impaciência. Uma dupla razão lhe fazia desejar ter Charny no coche: como rainha, via nele a sua segurança; como mulher, o seu regozijo.

      - Minha querida Srª. de Tourzel - disse a rainha - nós ficamos-lhe tão reconhecidos, quanto é possível; mas a senhora é doente... vem por uma exagerada, dedicação... Fique em Bondy: e onde quer que estejamos, venha juntar-se connosco.

      - Minha senhora - respondeu a Srª. de Tourzel - ordene el-rei e estou pronta a apear-me e a ficar, se tanto for necessário, na estrada, mas só uma ordem de el-rei pode fazer-me, não só faltar ao meu dever, mas renunciar ao meu direito.

      - Senhor - disse a rainha - senhor...

      Mas o rei não ousava pronunciar-se em tão grave questão; buscava um rodeio, uma saída, um subterfúgio.

      - O Sr. de Charny - disse ele afinal - não pode continuar a ficar na almofada?

      - Posso tudo que el-rei quiser - disse o conde de Charny; - porém, eu hei-de ficar com o meu uniforme de oficial (e com este uniforme vêem-me há quatro meses na estrada e todos me conhecerão), ou com o meu sobretudo e o meu chapéu de cocheiro; e creio que este trajo é um pouco modesto para tão elegante carruagem.

      - Suba para o coche, Sr. de Charny, suba! – disse a rainha. - Porei o delfim no colo, a Srª. infanta porá a Maria Teresa no seu e iremos perfeitamente... Estaremos um pouco mais apertados e nada mais.

      Charny esperava a decisão do rei.

      - É impossível, minha querida - disse o rei; - pense em que temos de andar noventa léguas.

      A Srª. de Tourzel conservava-se de pé, pronta para obedecer à ordem do rei, se a mandasse apear; mas ele não se atrevia a fazê-lo, tão grandes são entre as pessoas da corte os mais pequenos preconceitos.

      - Sr. de Charny - disse o rei ao conde - não pode tomar o lugar do seu mano e ir a cavalo adiante de nós para encomendar os cavalos?

      - Já disse a vossa majestade que estava pronto para tudo; porém, farei observar a vossa majestade que ordinariamente os cavalos são encomendados por correios e não por um cocheiro. Essa mudança, que admiraria aos donos da posta, poderá trazer grandes inconvenientes.

      - É justo - disse o rei.

      - Meu Deus! Meu Deus! - murmurou a rainha no auge da impaciência.

      Depois, voltando-se para Charny disse:

      - Arranje-se, como quiser - Sr. de Charny – mas eu não quero que nos deixe.

      - É também o meu desejo, minha senhora - disse Charny - e só vejo um meio para isso.

      - Qual é, diga depressa, que estou ansiosa por sabê-lo, Sr. conde.

      - É que em lugar de ir dentro do coche, de subir para a almofada, de ir a cavalo adiante do coche, siga em simples trajo de homem que corre a posta. Parta, minha senhora, e antes que tenha andado dez léguas, estarei a cinqüenta passos do seu coche.

      - Então volta a Paris?

      - Certamente, minha senhora; mas até Châlons vossa majestade nada tem que temer, e antes de Châlons ter-me-ei reunido a vossa majestade.

      - Mas de que modo vai voltar a Paris?

      - No cavalo em que veio meu irmão; é um excelente cavalo de corrida; teve tempo de descansar, e em menos de meia hora estou em Paris.

      - E então?

      - Então, minha senhora, vestirei um fato conveniente, tomarei um cavalo na posta e correrei a toda a brida até os encontrar.

      - Não há outro meio? - perguntou Maria Antonieta desesperada.

      - Não vejo outro - disse o rei.

      - Então - disse Charny - não percamos tempo... Vamos, João e Francisco para o seu posto! Em frente Melchior!... Postilhões a cavalo!

      A Srª. de Tourzel triunfante tornou a assentar-se, e o coche partiu a galope, seguido pelo cabriolé.

      A importância da discussão fizera esquecer que fossem entregues ao visconde de Charny e aos Srs. de Malden e Valory as pistolas carregadas, que estavam na caixa do coche.

      Que se passava em Paris, para onde o conde de Charny voltava a toda a brida?

      Um cabeleireiro chamado Buseby, que morava na rua de Bourbon, tinha durante a noite ido visitar às Tulherias um dos seus amigos, que aí estava de guarda; este tinha ouvido falar muito aos seus oficiais a respeito da fuga, que devia verificar-se nessa mesma noite, segundo eles afirmavam. Falou pois sobre isso ao cabeleireiro, que não pôde repelir do pensamento a idéia de que esse projecto fosse verdadeiro, e de que a fuga real, de que se falava havia tanto tempo, se executaria durante aquela mesma noite.

      Quando entrou em casa, contara à mulher o que soubera nas Tulherias; porém esta tratara a coisa como sonho; esta dúvida da parte da mulher do cabeleireiro tinha influído no marido, que acabara por se despir e deitar, sem dar mais vulto às suas suspeitas.

      Mas depois de deitado, fora acometido pela primeira preocupação, e desde então tornou-se tão forte, que não teve coragem de lhe resistir; levantara-se; tornara-se a vestir e correra a casa de um dos seus amigos chamado Hucher, que era padeiro e porta-machado no batalhão de Théatins.

      Ali, contara tudo o que se tinha dito nas Tulherias, e tinha comunicado de um modo tão expressivo os seus receios ao padeiro a respeito da fuga da família real, que este não só os tinha compartilhado, senão que, mais ardente que o próprio de quem o soubera, saltara da cama, e sem gastar mais tempo que o necessário para vestir uns calções, tinha saído para a rua, e batendo às portas, acordara uns trinta vizinhos.

      Era então perto da meia-noite e um quarto, e eram alguns minutos depois dos fugitivos encontrarem o Sr. de Lafayette debaixo do postigo das Tulherias.

      Os cidadãos acordados pelo cabeleireiro Buseby e pelo padeiro Hucher, decidiram que se fosse a casa do Sr. general Lafayette para o prevenir do que se passava.

      A decisão foi imediatamente executada. O Sr. de Lafayette morava na rua de Saint-Honoré, no palácio de Noailles, próximo do convento dos frades Bernardos. Puseram-se a caminho e chegaram a casa dele pela meia-noite e meia hora.

      O general, depois de haver assistido ao recolher do rei, depois de ter ido prevenir o seu amigo Bailly de que o rei estava deitado, depois de ter feito uma visita ao Sr. de Emmery, membro da Assembléia Nacional, acabava de entrar em casa, e ia despir-se, quando bateram ao portão do palácio de Noailles. O Sr. de Lafayette mandou o seu criado informar-se de quem seria.

      O criado voltou, dizendo que eram vinte e cinco ou trinta cidadãos, que queriam falar-lhe no mesmo instante, para negócios da mais alta importância.

      O general estava já costumado a recepções continuadas.

      Além disso, como um negócio, pelo qual se incomodavam vinte e cinco ou trinta cidadãos, podia e mesmo devia ser um negócio importante, ordenou que as pessoas que desejavam falar-lhe fossem introduzidas.

      O general só lhe faltava vestir a farda, que acabava de tirar, para se achar pronto para a recepção.

      Então os srs. Buseby e Hucher, em seu nome e no dos seus companheiros, expuseram-lhe os seus temores; o Sr. Buseby, apoiando-se no que ouvira dizer nas Tulherias, os mais no que tinham ouvido dizer diariamente de todos os lados.

      Mas de todos estes temores o general não fez mais do que rir, e como era bom homem, e muito amigo de conversar, contou-lhes de onde precediam esses boatos; como eles foram espalhados pela Srª. de Bochereul e pelo Sr. de Gouvion; o modo como, para se certificar da sua falsidade, tinha visto o rei deitar-se, como eles poderiam ver deitar o general Lafayette, se ficassem alguns minutos mais. Enfim, como toda esta conversa não parecesse suficiente para os sossegar, o Sr. de Lafayette disse-lhes que respondia pelo rei e pela família real, sobre a sua cabeça.

      Era impossível, depois disto, manifestar-se qualquer dúvida; contentaram-se pois em pedir ao Sr. de Lafayette a palavra de passe para que lhes não embaraçassem a retirada. Lafayette não pôs dificuldade em satisfazer a este pedido e deu-lhes o santo.

      Depois, munidos do santo, resolveram visitar a sala das sessões para saber se daquele lado havia alguma coisa de novo, e os pátios do paço para verem se havia por lá algo extraordinário.

      Voltaram à rua de Saint-Honoré, e iam entrar na rua de l'Échelle, quando viram um cavaleiro a todo galope aparecer no meio deles.

      Como em semelhante noite tudo para aquela gente era um acontecimento, apontaram as espingardas, gritando ao cavaleiro que parasse.

      O cavaleiro, parando, perguntou:

      - Que me querem?

      - Queremos saber onde vai - disseram os guardas nacionais.

      - Vou às Tulherias.

      - Que vai lá fazer?

      - Dar conta a el-rei de uma missão de que me encarregou.

      - A esta hora.

      - Porque não?

      Um dos mais espertos fez sinal aos outros para o deixarem falar e replicou:

      - Mas a esta hora o rei está deitado...

      - Sim - respondeu o cavaleiro - mas acordá-lo-ão.

      - Se tem negócios com o rei - continuou o mesmo homem - deve ter o santo.

      - Isso não seria uma razão - observou o cavaleiro, visto que eu poderia chegar da fronteira, em lugar de chegar muito simplesmente de três léguas distante daqui, e ter partido há um mês, em lugar de ter partido há duas horas.

      - É justo - disseram os guardas nacionais.

      - Então viu o rei há duas horas? - continuou o interrogante.

      - Vi.

      - E falou-lhe?

      - Falei.

      - Que ia ele fazer a essa hora?

      - Só esperava a saída de Lafayette para se deitar.

      - De maneira que tem o santo?

      - Certamente; o general sabendo que eu devia entrar nas Tulherias pela uma ou duas horas da madrugada, tinha-mo dado, para que eu não sofresse demora.

      - Qual é?

      - Paris e Poitiers.

      - Vamos - disseram os guardas nacionais - é isso exactamente. Boa jornada, camarada, e diga ao rei que nos encontrou velando à porta do paço, com medo que ele fuja.

      E afastaram-se.

      - Eu direi - respondeu este.

      E picando o cavalo, correu para o postigo das Tulherias, onde desapareceu.

      - Não seria mau esperar que ele saísse das Tulherias para sabermos se falou com o rei? - disse um dos guardas nacionais.

      - E se ele residir nas Tulherias - disse outro - havemos de esperar até amanhã?

      - É justo - disse o primeiro - e palavra de honra, visto que o rei está deitado, visto que o Sr. de Lafayette se deita, vamo-nos também deitar, e viva a nação!

      Os vinte e cinco ou trinta patriotas repetiram o grito de: “Viva a nação!” e foram deitar-se, felizes e altivos, por terem sabido da própria boca de Lafayette que nada havia a temer a respeito da fuga do rei.

 

A jornada

      Vimos partir, a todo galope os quatro cavalos de posta, o coche que levava a família real. Sigamo-la durante a jornada, como a temos acompanhado em todas as circunstâncias da sua fuga. O acontecimento é tão grande, e exerceu influência tão fatal no seu destino, que o menor acidente dessa jornada nos parece digno de curiosidade ou de interesse.

      O dia nasceu pelas três horas da manhã; o coche tomava mudas em Maux. O rei teve fome, e começaram a encetar as provisões. Estas eram um pedaço de carne fria, pão e quatro garrafas de vinho de Champagne não espumoso, que o conde de Charny mandara meter na frasqueira do coche.

      Como não tinham facas, nem garfos, o rei chamou João.

      Os nossos leitores devem estar lembrados de que João era o nome que na jornada tinha o Sr. de Malden.

      Este aproximou-se.

      - João - disse el-rei - empreste-nos a sua faca de mato para que eu possa cortar esta carne.

      E mostrou-lha.

      João tirou a faca de mato da bainha e apresentou-a a el-rei.

      Entretanto Maria Antonieta debruçava-se freqüentes vezes no postigo da carruagem e olhava para trás. Era certamente para ver se aparecia o conde de Charny.

      - Quer servir-se de alguma coisa, Sr. de Malden? - disse el-rei a meia voz.

      - Não, meu senhor - respondeu o Sr. de Malden, também em voz baixa - por enquanto ainda não tenho vontade.

      - Não faça cerimónia, nem o senhor, nem os seus companheiros - disse el-rei.

      Depois, voltando-se para a rainha, que continuava a olhar pelo postigo, disse:

      - Em que pensa, minha senhora?

      - Eu? - disse a rainha tentando sorrir – penso no Sr. de Lafayette... Provavelmente não há-de estar agora muito satisfeito.

      Depois, dirigindo-se ao Sr. de Valory, que pela sua vez se aproximava da portinhola, disse:

      - Francisco, parece-me que tudo vai bem e que já teríamos sido presos se o tivéssemos de ser... Ainda não saberão da nossa partida?

      - É de supor que não, minha senhora – respondeu o Sr. de Valory - porque não noto em parte nenhuma nem movimento, nem suspeita... Vamos, vamos, coragem, minha senhora! tudo vai bem!

      - A caminho! - gritou o postilhão.

      Os srs. de Malden e de Valory subiram para a almofada, e o coche continuou o seu caminho.

      Pelas oito horas da manhã chegaram à falda de uma grande montanha; à direita e à esquerda dela havia um lindo bosque, onde as aves cantavam, festejando os primeiros raios do sol de um dos mais belos dias de Junho, que os feria com as suas flechas de ouro.

      O postilhão meteu os cavalos a passo.

      Os dois guardas apearam-se da almofada.

      - João - disse o rei - faça parar a carruagem e mande abrir a portinhola... eu queria andar um pouco, e julgo que tanto os meus filhos como a rainha não desgostarão de fazer esta pequena caminhada a pé.

      O Sr. de Malden fez um sinal; o postilhão parou.

      A portinhola abriu-se: o rei, a rainha, a princesa Isabel e os meninos apearam-se. No coche ficou apenas a Srª. de Tourzel, pois o seu sofrimento não lhe permitia apear-se.

      No mesmo instante toda a pequena colónia real se espalhou pela estrada; o delfim pôs-se a correr atrás das borboletas, a princesa a colher flores.

      A princesa Isabel tomou o braço do rei e a rainha caminhou só.

      Ao ver aquela família espalhada assim pela estrada, os meninos brincando e correndo, a irmã encostada ao braço do irmão e sorrindo-lhe, aquela bela mulher pensativa e olhando para trás, tudo isto alumiado por um belo e matutino sol de Junho, que projectava a sombra transparente da floresta até ao meio da estrada, dir-se-ia ser uma alegre família que voltava para o seu castelo, para aí tomar novamente o curso da sua vida pacífica e regular, e não um rei e uma rainha de França que fugiam de um trono, para o qual haviam de reconduzi-los, para depois os levarem ao cadafalso.

      É certo que um incidente devia bem depressa lançar no meio daquele sossegado e sereno quadro a perturbação das diferentes paixões, que dormiam no fundo do coração das diversas personagens desta história.

      Repentinamente a rainha parou, como se os pés se lhe tivessem prendido à terra.

      Um cavaleiro aparecia, pouco mais ou menos, a um quarto de légua, envolto na nuvem de poeira, que o cavalo levantava.

      Maria Antonieta não ousou dizer: “É o conde de Charny!”

      Mas soltou um grito, que a seu pesar lhe saiu do íntimo da alma, dizendo:

      - Ah! Notícias de Paris!

      Todos se voltaram à excepção do delfim; a descuidada criança acabava de apanhar a borboleta, atrás de que corria, e pouco lhe importava as notícias de Paris!

      El-rei um pouco míope, tirou um pequeno óculo da algibeira.

      - Olá! - disse ele - julgo eu, o Sr. de Charny.

      - Sim, meu senhor - disse a rainha - é ele!

      - Continuemos, continuemos a subir - disse o rei; - reunir-se-nos-á sempre, e não temos tempo a perder.

      A rainha não ousou dizer que provavelmente as notícias que trazia o Sr. de Charny valiam bem a pena de ser esperadas.

      Além disso, era somente demora de alguns segundos; o cavaleiro aproximava-se, com a rapidez do cavalo.

      Ele mesmo, da sua parte, e à medida que se aproximava, olhava com grande atenção e parecia não compreender o motivo por que a gigante carruagem espalhara os viajantes pela estrada.

      Finalmente, reuniu-se-lhes no momento em que o coche chegava ao cume da montanha, onde parou.

      Era efectivamente o Sr. de Charny, como tinham adivinhado o coração da rainha e os olhos do rei.

      Trajava casaco verde com cabeção, colete branco, calções de anta, trazia um chapéu com grande laço e fivela, e grandes botas à militar, que lhe chegavam até ao joelho.

      A tez, que era ordinariamente de um branco pálido, estava animada em conseqüência da corrida que fora obrigado a fazer, e a chama que lhe afogueava o rosto parecia sair-lhe também dos olhos.

      Havia nele alguma coisa semelhante a um vencedor, tanto pela potente respiração, como pelo dilatado das ventas.

      Nunca a rainha o vira tão belo!

      Soltou um profundo suspiro.

      Ele apeou-se e inclinou-se diante de el-rei.

      Depois, voltando-se, saudou a rainha.

      Reuniram-se todos à roda dele, excepto os dois guardas, que por discrição se conservaram afastados.

      - Aproximem-se, senhores, aproximem-se - disse o rei - as notícias, que nos traz o Sr. de Charny dizem respeito a todos.

      - Em primeiro lugar, meu senhor, tudo vai bem - disse Charny - às duas horas da manhã ainda ninguém suspeitava da fuga.

      Todos respiraram.

      Depois as perguntas multiplicaram-se.

      Charny contou como entrara em Paris, como tinha encontrado na rua de l'Échelle a patrulha de patriotas, como fora interrogado por ela e como a deixara convencida de que o rei estava deitado e dormia.

      Depois contou como encontrara o interior das Tulherias em sossego como nos dias ordinários, subira ao seu quarto, mudara de fato, tornara a descer pelos corredores dos aposentos do rei, certificando-se assim de que ninguém suspeitava da fuga da família real, verificando-se portanto que até o Sr. de Gouvion, deixando de nutrir suspeitas, mandara retirar as sentinelas, dizendo aos oficiais que podiam recolher a suas casas.

      Então o Sr. de Charny montou de novo o cavalo, que deixara no pátio entregue a um criado, e pensando que teria grande dificuldade em mandar alugar outro, àquela hora, à ponte de Paris, partira para Bondy. O cavalo chegara quase aguado, mas enfim tinha chegado e era o que se precisava.

      Ali o conde tomara outro cavalo e continuara o seu caminho. Finalmente, não notara na estrada coisa alguma que pudesse causar inquietação.

      A rainha achou meio de estender a mão a Charny; tão boas notícias mereciam bem semelhante favor.

      Charny beijou respeitosamente a mão da rainha, a qual empalideceu.

      Por que motivo empalideceu ela?

      Seria de alegria por Charny lhe apertar a mão?

      Seria de dor por ele lha ter apertado?

      Tornaram a subir para a carruagem, que partiu; Charny ia a cavalo junto da portinhola.

      Na posta próxima acharam os cavalos aparelhados, menos o cavalo de Charny.

      Isidoro não o encomendara, ignorando que seu irmão precisasse dele.

      Houve pois uma demora por causa do cavalo, mas a carruagem partiu. Cinco minutos depois, Charny estava montado.

      E demais, estava convencionado que ele seguiria tão de perto, que a rainha, debruçando-se de vez em quando na portinhola, podia vê-lo e em cada muda chegava sempre a tempo de poder trocar algumas palavras com os augustos viajantes.

      Charny acabava de mudar de cavalo em Montmirail: julgava que a carruagem tinha um quarto de hora de avanço, quando, de repente, ao voltar de uma rua, o seu cavalo esbarrou contra a carruagem parada e contra os dois guardas, que tentavam consertar um tirante.

      O conde apeou-se, meteu a cabeça pela portinhola para recomendar ao rei que se ocultasse e à rainha que não estivesse inquieta. Depois abriu uma caixa onde estavam colocados todos os objectos, que um acidente qualquer torna necessários.

      Acharam aí um par de tirantes; pegaram num, e substituíram-no pelo tirante partido.

      Os dois guardas aproveitaram esta ocasião para pedirem as suas armas; mas o rei opôs-se formalmente a que lhas dessem. Apresentaram-lhe o caso de poder ser tomada a carruagem; ele porém respondeu que, nesse caso, não queria que corresse sangue por sua causa.

      Finalmente, o tirante estava consertado; os dois guardas tornaram a subir para a almofada, Charny montou a cavalo e o coche partiu.

      Porém perderam nisto mais de meia hora, quando cada minuto era uma perda irreparável.

      As duas horas chegaram a Châlons.

      - Se chegarmos a Châlons sem sermos apanhadas - tinha dito o rei - tudo irá bem!

      Chegaram a Châlons sem novidade, e metiam mudas.

      O rei chegou-se um instante à portinhola. No meio dos grupos formados à roda da carruagem, dois homens olharam para ele com minuciosa atenção.

      De repente, um deles afastou-se e desapareceu.

      O outro aproximou-se.

      - Senhor - disse ele a meia voz - não se descubra desse modo, senão está perdido!

      Então, dirigindo-se aos postilhões, disse:

      - Vamos, preguiçosos! é dessa maneira que se servem os generosos viajantes, que dão trinta sous de gorjeta?

      E meteu também mãos ao trabalho, ajudando os postilhões.

      Era o dono da posta.

      Finalmente, os cavalos estavam metidos e os postilhões montados; o primeiro postilhão quis fazer correr os cavalos.

      Caíram ambos.

      Os cavalos levantaram-se debaixo das repetidas chicotadas: querem partir os dois cavalos do segundo postilhão e caem também. O postilhão ficou debaixo do cavalo.

      Charny, que estava esperando, corre, puxa o postilhão para si e tira-o debaixo do cavalo, onde deixa as botas.

      - Oh! Senhor - exclama Charny dirigindo-se ao dono da posta, cuja dedicação ignora - que cavalos nos deu?

      - Os melhores da cavalariça - respondeu este.

      Porém os cavalos estavam de tal modo embaraçados nos tirantes que, por mais que tentassem levantar-se, mais se embaraçavam.

      Charny correu para os tirantes, dizendo:

      - Vamos, levantemo-los e tornaremos a atrelá-los... será o mais breve.

      O dono da posta, raivoso, meteu mãos ao trabalho.

      Entretanto, o homem, que se afastara e desaparecera, correu a casa do maire, declarou-lhe que naquele momento o rei e toda a família real mudavam de cavalos na posta, e pediu-lhe uma ordem para os prender.

      Felizmente o maire era pouco republicano e receou tomar sobre si uma tal responsabilidade. Em vez de se certificar do facto, pediu toda a espécie de explicações, duvidou, de que pudesse ser verdade, e finalmente, levado ao extremo, saiu e chegou à estalagem da posta no momento em que a carruagem desaparecia na esquina da rua.

      Perderam nisto mais de vinte minutos.

      Reina a confusão dentro da carruagem real: os cavalos caindo uns após outros, sem motivo, fizeram lembrar à rainha as velas singulares, que uma noite, no seu gabinete, se haviam apagado por si mesmas.

      Todavia, saindo as portas da cidade, o rei, a rainha e a princesa Isabel disseram ao mesmo tempo:

      - Estamos salvos!

      Mas a uns cem passos mais adiante, um homem, correndo, chegou-se ao postigo e gritou aos ilustres viajantes:

      - As suas medidas foram mal tomadas e serão apanhados!

      A rainha deu um grito; o homem passou para o lado e desapareceu num pequeno bosque.

      Felizmente estavam a quatro léguas da ponte de Sommevelle, onde encontraram o Sr. de Choiseul e os seus quarenta hussards.

      Porém eram três horas da tarde, e haviam-se atrasado perto de quatro horas.

 

Fatalidade

      Os nossos leitores devem estar lembrados de que o Sr. de Choiseul corria a posta com Leonardo, que ia desesperado por ter deixado aberta a porta do quarto, levado o chapéu e o casaco do irmão e faltado à promessa que fizera à Srª. de l'Aage, de ir penteá-la.

      Entretanto, o que consolava o pobre Leonardo, era que o Sr. de Choiseul lhe tinha dito positivamente que o conduzia a duas ou três léguas de Paris, para o encarregar de uma missão particular da rainha, e que depois ficaria livre.

      Por isso, chegando a Bondy e sentindo parar a carruagem, respirou e dispôs-se a descer.

      Porém o Sr. de Choiseul deteve-o dizendo:

      - Ainda não é aqui.

      Os cavalos estavam encomendados de antemão; em poucos segundos foram metidos na carruagem, que partiu como um raio.

      - Mas, senhor - disse o pobre Leonardo – onde vamos nós?

      - Contanto que o Sr. esteja de volta amanhã pela manhã - respondeu o Sr. de Choiseul - que lhe importa o resto?

      - O caso é - disse Leonardo - que uma vez que eu esteja às dez horas da manhã nas Tulherias para pentear sua majestade a rainha...

      - É tudo o que precisa, não é assim?

      - Sem dúvida; porém, se lá estiver antes, não será mau, atendendo a que poderei tranqüilizar meu irmão e explicar à Srª. de l'Aage que não foi por culpa minha que faltei à promessa que lhe fiz.

      - Se é só isso, tranquilize-se, meu caro Leonardo, que tudo se há-de arranjar o melhor possível - respondeu o Sr. de Choiseul.

      Leonardo não tinha motivo algum para supor que o Sr. de Choiseul o levasse raptado; por isso tranquilizou-se, pelo menos, momentaneamente.

      Porém, em Claye, vendo que mudavam novamente os cavalos à carruagem, e que de modo nenhum tratavam de se apear, o desgraçado exclamou:

      - Então, Sr. duque, vamos ao fim do mundo?!

      - Ouça, Leonardo - disse então o Sr. de Choiseul com modo sério - não é a uma casa próxima de Paris que eu o conduzo, é à fronteira.

      Leonardo deu um grito, pôs as mãos nos joelhos e olhou para o duque com modo aterrado, balbuciando:

      - À... à... fronteira?!

      - Sim, meu querido Leonardo, devo lá encontrar no meu regimento uma carta da mais alta importância para a rainha. Não lha podendo entregar pessoalmente, precisava de um homem de segurança, por quem lha remetesse; pedi à rainha que mo indicasse: escolheu o senhor por ser, pela sua afeição, o mais digno da sua confiança.

      - Oh! Senhor - exclamou Leonardo - decerto que sou digno da confiança da rainha, porém como hei-de eu voltar? Estou de sapatos, meias de seda branca e colete de seda! Não tenho nem roupa, nem mesmo dinheiro!

      O excelente rapaz esquecia que tinha nas algibeiras mais de dois milhões em diamantes da rainha.

      - Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo! - disse o Sr. de Choiseul; - tenho na minha carruagem botas, casacas, roupa branca e dinheiro, enfim, tudo que lhe for necessário, e portanto não se aflija, pois nada lhe faltará.

      - Sem dúvida que com o Sr. duque estou bem certo de que nada me há-de faltar... Mas o meu pobre irmão de quem trouxe o chapéu e o casacão... mas a pobre Srª. de l'Aage, a quem só eu posso pentear... Meu Deus! Meu Deus! Como acabará tudo isto?

      - Do melhor modo, meu querido Leonardo, pelo menos assim o espero - disse o Sr. de Choiseul.

      Corriam como o vento. O Sr. de Choiseul ordenara ao seu batedor, que tivesse preparadas duas camas e uma ceia em Moritmirail, onde passaria o resto da noite.

      Chegando a Montmirail, os viajantes encontraram as duas camas prontas e a ceia na mesa.

      Pondo de parte o casacão e o chapéu do irmão, não falando no pesar de ter obrigado a faltar à sua palavra para com a Srª. de l'Aage, Leonardo estava quase consolado. De tempo a tempo, soltava até uma expressão de contentamento, pela qual era fácil de ver que o seu orgulho estava lisonjeado por a rainha o ter escolhido para tão importante missão, como parecia a de que o haviam de encarregar.

      Depois da ceia, os dois viajantes deitaram-se, tendo o Sr. de Choiseul recomendado antes, que a sua carruagem o esperasse pronta às quatro horas.

      Às quatro menos um quarto, deviam vir bater-lhe à porta do quarto para o acordarem, no caso de que ele ainda estivesse dormindo.

      Às três horas ainda o Sr. de Choiseul não tinha adormecido; de repente no seu quarto, situado por cima da porta de entrada das postas, ouviu o rodar de uma carruagem, acompanhado de dois estalos de chicote, com que os postilhões ou os viajantes anunciam a sua chegada.

      Levantar-se da cama, e correr à janela, foi para o Sr. de Choiseul objecto de um instante.

      Estava parado à porta um cabriolé; dois homens, vestidos com o uniforme de guardas nacionais, desciam dele e pediam cavalos apressadamente.

      Quem eram aqueles guardas nacionais? Que procuravam eles às três horas da manhã, e por que motivo era aquela pressa em pedirem cavalos?

      O Sr. de Choiseul chamou o criado, e ordenou-lhe que mandasse pôr a carruagem.

      Depois acordou Leonardo.

      Os dois viajantes tinham-se deitado vestidos, portanto estavam prontos.

      Quando desceram, a carruagem e o cabriolé estavam ambos prontos.

      O Sr. de Choiseul ordenou ao postilhão que deixasse passar adiante o cabriolé dos guardas nacionais. Porém devia segui-los de modo que não os perdesse de vista um só minuto.

      Depois examinou as pistolas, que tinha no alçapão da carruagem, e renovou-lhe as escorvas, o que deu algum cuidado ao cabeleireiro.

      Correram assim uma légua, ou légua e meia, porém, entre Etoges e Chaintry, o cabriolé meteu por um atalho, que devia dar a Jalons, ou a Epernay.

      Os dois guardas nacionais, a quem o Sr. de Choiseul supusera más intenções, eram dois honrados cidadãos, que voltavam de Ferté para suas casas.

      Tranqüilo sobre este ponto, o Sr. de Choiseul continuou a sua viagem.

      Às dez horas atravessou Châlons; às onze chegou a ponte de Sommevelle.

      Ali informou-se, e soube que os hussards ainda não tinham chegado.

      Detém-se na casa das postas, desce, pede um quarto e veste o seu uniforme.

      Leonardo olhava para todos estes preparativos com viva inquietação e acompanhava-os com suspiros, que comoviam o Sr. de Choiseul, que lhe disse:

      - Meu caro Leonardo, é tempo de lhe dar a conhecer a verdade.

      - Como! A verdade? - exclamou Leonardo caindo de surpresa em surpresa; - então ainda não sei a verdade?

      - Sabe uma parte e vou dizer-lhe o resto.

      Leonardo juntou as mãos.

      - O senhor é dedicado a seus amos, não é assim, meu caro Leonardo?

      - Para a vida e para a morte, Sr. duque!

      - Pois bem! Dentro de duas horas, aproximadamente estarão aqui.

      - Oh! Meu Deus! É possível! - exclamou o pobre rapaz.

      - Sim - continuou o Sr. de Choiseul - aqui... com os infantes e com a princesa Isabel... Sabe os perigos que têm corrido? (Leonardo fez com a cabeça um sinal afirmativo) e que perigos ainda correm? (Leonardo levantou os olhos ao Céu). Pois dentro de duas horas estarão salvos!

      O cabeleireiro não podia responder; chorava como uma criança.

      Contudo, conseguiu balbuciar:

      - Dentro de duas horas... aqui... está bem certo...

      - Sim, dentro de duas horas... Devem ter partido das Tulherias ontem às onze e meia da noite; ao meio dia devem ter chegado a Châlons... Demos-lhes hora e meia para andarem as quatro léguas, que acabamos de percorrer... Estarão aqui às duas horas, o mais tardar. Vamos mandar vir o jantar. Eu espero aqui um destacamento de hussards, comandado pelo Sr. Goguelat; faremos durar o jantar o mais que pudermos.

      - Oh! Senhor - interrompeu Leonardo - não tenho vontade de comer!

      - Não importa! Fará um esforço e comerá alguma coisa.

      - Sim, Sr. duque.

      - Faremos, pois, durar o jantar o mais possível, a fim de termos um pretexto de demora... Ah! Olhe! Aí chegam os hussards.

      Efectivamente ouviu-se ao mesmo tempo o som dos clarins e os passos dos cavalos.

      Neste momento o Sr. de Goguelat entrou no quarto e entregou ao Sr. de Choiseul um maço de papéis, da parte do Sr. de Bouillé.

      Esse maço continha seis papéis assinados em branco e uma cópia da ordem formal, dada pelo rei a todos os oficiais do exército, qualquer que fosse a sua patente e antiguidade, de obedecerem ao Sr. de Choiseul.

      O Sr. de Choiseul mandou recolher os cavalos, distribuiu aos hussards pão e vinho, e pela sua parte também começou a jantar.

      As notícias que trazia o Sr. de Goguelat não eram boas. Por toda a parte, durante o seu caminho, tinha encontrado uma grande agitação; havia mais de um ano que os boatos da partida do rei circulavam, não só em Paris, mas também na província, e os destacamentos de diferentes armas, estacionando em Sainte-Menehould, e em Varennes, tinham provocado suspeitas.

      Até tinha ouvido tocar a rebate numa aldeia próxima à estrada.

      Tudo isto era bastante para tirar o apetite ao Sr. de Choiseul. Por isso, depois de ter passado à mesa uma hora, e ao tempo que o relógio dava meio-dia e meia hora, levantara-se, e deixando o comando do destacamento ao Sr. Boudet, dirigiu-se para a estrada, que, colocada à entrada da ponte de Sommevelle, numa colina, permitia que se pudesse alongar a vista a mais de meia légua de distância.

      Não se via nem batedores, nem carruagem; isso porém não causava admiração; não se esperava, como dissemos (porque o Sr. de Choiseul contava os acidentes imprevistos), o batedor antes da uma hora ou hora e meia da tarde, e o rei antes da uma e meia ou duas horas.

      Entretanto o tempo passava e nada aparecia na estrada, pelo menos, nada se esperava.

      De cinco em cinco minutos o Sr. de Choiseul puxava pelo relógio e de cada vez que o fazia, Leonardo exclamava com tristeza:

      - Ah! Eles não virão!... Meus pobres amos, meus pobres amos! Aconteceu-lhes alguma desgraça!

      E o pobre rapaz, com a sua desesperação, aumentava ainda as inquietações do Sr. de Choiseul.

      Às duas horas e meia, às três, às três e meia, nada de batedor nem de carruagem! Os leitores devem estar lembrados que o rei saiu de Châlons às três horas.

      Porém enquanto o Sr. de Choiseul espera na estrada, a fatalidade preparava na ponte de Sommevelle um acontecimento, que devia ter a mais grave influência sobre todo este drama, que narramos.

      A fatalidade, repetimos, fizera que, justamente alguns dias antes os aldeões de uma fazenda pertencente à Srª. d'Elboeuf, fazenda situada próximo da ponte de Sommevelle, tivessem recusado o pagamento dos direitos não extintos. Então tinham-nos ameaçado com uma execução militar; porém a confederação produzira os seus frutos, e os aldeões dos lugares vizinhos tinham prometido auxílio de mão armada aos da fazenda da Srª. d'Elboeuf, se as ameaças se realizassem.

      Vendo chegarem e estacionarem os hussards, os aldeões julgaram que vinham com intenções hostis.

      Portanto foram expedidos correios da ponte de Sommevelle para as aldeias vizinhas, e perto das três horas começou a tocar a rebate por todos os arredores.

      Ouvindo este ruído, o Sr. de Choiseul tornou a entrar na ponte de Sommevelle e encontrou o tenente Boudet muito agitado.

      À surdina faziam-se ameaças aos hussards, que eram exactamente, nessa época, dos corpos de exército mais aborrecidos; os aldeões insultavam-nos, e cantavam-lhes na presença canções insolentes.

      Além disso, pessoas mais bem informadas, com mais perspicácia, começavam a dizer em voz baixa que os hussards estavam ali, não para obrigarem a pagar os aldeões da Srª. d'Elboeuf, mas para esperarem o rei e a rainha.

      Dão quatro horas, sem que tenha aparecido nem batedores, nem notícias.

      Apesar disso, o Sr. de Choiseul decide-se a esperar ainda; entretanto, manda meter os cavalos na carruagem, encarrega-se dos diamantes de Leonardo e manda este a Varennes, recomendando-lhe que diga em Sainte-Menehould, ao Sr. Dandoins, em Clermont, ao Sr. de Damas, e em Varennes, ao Sr. de Bouillé filho, a situação em que se achava.

      Depois, para acalmar a exaltação que se manifestava em volta dele, declarou que nem ele nem os seus hussards estavam ali para procederem contra os arrendatários da Srª. d'Elboeuf, mas sim para esperar e escoltar um tesouro, que o ministro da guerra mandava ao exército.

      Infelizmente, a palavra tesouro, que envolve um sentido duplo, acalmando a irritabilidade sobre esse objecto, confirmava as suspeitas sobre o outro ponto.

      O rei e a rainha são também um tesouro, e era esse certamente o tesouro que o Sr. de Choiseul esperava.

      Passado um quarto de hora, o Sr. de Choiseul e os seus hussards estavam de tal modo apertados e rodeados, que ele compreendeu não poder conservar-se mais tempo, e que, se por infelicidade o rei e a rainha chegassem nesse momento, os seus quarenta hussards nada poderiam.

      As suas instruções ordenavam-lhe que procedesse de modo que a carruagem do rei continuasse o seu caminho sem obstáculo.

      Em vez de ser uma protecção, a sua presença tornava-se um obstáculo.

      Portanto, o melhor que tinha a fazer, ainda que o rei estivesse muito próximo a chegar, era partir imediatamente.

      A sua partida deixaria efectivamente o caminho livre.

      Mas para isso precisava um pretexto.

      O mestre das postas estava ali a pouca distância, no meio de quinhentos ou seiscentos curiosos, a quem bastava uma palavra para se tornarem inimigos.

      Como os outros, olhava ele com os braços cruzados; estava mesmo por baixo da janela do Sr. de Choiseul.

      - Sabe - perguntou-lhe o duque - de algum comboio com dinheiro, que tenha sido mandado estes últimos dias para Metz?

      - Esta manhã mesmo - respondeu o mestre das postas - a diligência levou para lá cem mil escudos; ia escoltada por dois gendarmes.

      - Deveras? - - disse o Sr. de Choiseul, encantado da parcialidade com que o acaso o favorecia.

      - Ora! - disse um gendarme - é tão verdade, que fui eu e o Robin, quem o escoltámos.

      - Então - disse o Sr. de Choiseul, voltando-se tranquilamente para o Sr. de Goguelat - o ministro preferiu esse meio de transporte, e como a nossa presença já aqui não é precisa, julgo que podemos retirar-nos... Vamos, hussards, aparelhem os cavalos.

      Os hussards, bastante inquietos, apressaram-se a obedecer àquela ordem.

      Num instante aparelharam os cavalos e montaram.

      Formaram em linha.

      O Sr. de Choiseul passou à frente da linha, lançou um olhar para o lado de Châlons e disse suspirando:

      - Vamos, hussards; metam a quatro, a passo, marche!

      E saiu da ponte de Sommevelle, com os clarins na frente, no momento em que o relógio dava cinco horas e meia.

      A duzentos passos da aldeia, o Sr. de Choiseul tomou por um atalho, para não passar por Sainte-Menehould, onde se dizia que reinava grande agitação.

      Exactamente, nesse momento, Isidoro de Charny, instigando com as esporas e com o chicote o cavalo, em que percorrera quatro léguas em duas horas, chegava à posta, mudava de cavalo, informava-se ao mesmo tempo se tinha ali sido visto um destacamento de hussards, e sabendo que acabava de partir a passo, havia um quarto de hora, pela estrada de Sainte-Menehould, encomendava cavalos para a carruagem do rei, e esperando alcançar o Sr. de Choiseul e detê-lo na sua retirada, partira a todo galope noutro cavalo.

      Porém, como acabamos de ver, o Sr. de Choiseul deixara a estrada de Sainte-Menehould, e tomara por um atalho precisamente no instante em que o visconde de Charny chegava à posta; de modo que o visconde de Charny não pôde alcançá-lo.

 

Fatalidade

      Dez minutos depois da partida de Isidoro de Charny, chegou a carruagem do rei.

      Como previra o Sr. de Choiseul, o ajuntamento tinha-se totalmente dissipado.

      O conde de Charny, sabendo que devia encontrar o primeiro destacamento na ponte de Sommevelle, não julgara que fosse urgente ficar à retaguarda: galopava portanto à portinhola, apressando os postilhões, que pareciam ter recebido ordem expressa para só caminharem a meio trote.

      Chegaram à ponte Sommevelle, e não viram nem hussards nem o Sr. de Choiseul, o rei inquieto deitou a cabeça fora do postigo.

      - Por Deus, meu senhor - disse Charny - não apareça! Vou informar-me.

      E entrou na casa das postas.

      Cinco minutos depois, tornou a aparecer; acabava de saber tudo e repetiu-o a el-rei o mais minuciosamente que pôde.

      El-rei compreendeu imediatamente que tinha sido para lhe deixar o caminho livre que o Sr. de Choiseul se retirara.

      O importante era ganhar terreno e chegar a Sainte-Menehould. Sem dúvida o Sr. de Choiseul retrocedera para lá, e encontrariam em Sainte-Menehould reunidos os hussards e os dragões.

      No momento de partirem, Charny aproximou-se da portinhola.

      - Que ordena a rainha? - perguntou ele; - devo ir adiante ou seguir a pouca distância?

      - Não me deixe - disse a rainha.

      Charny inclinou-se em cima do cavalo, e começou a galopar ao lado da carruagem.

      No entanto Isidoro corria adiante, nada compreendendo dessa solidão em que via a estrada traçada em linha de tal modo recta, que em certos pontos se pode alcançar com a vista até à distância de légua e meia.

      Inquieto, incita o cavalo, ganhando sobre a carruagem mais dianteira do que nunca, receando que os habitantes de Sainte-Menehould tivessem suspeitado dos dragões do Sr. Dandoins, como os da ponte de Sommevelle tinham suspeitado dos hussards do Sr. de Choiseul.

      Não se enganava: a primeira coisa que viu em Sainte-Menehould foi um grande número de guardas nacionais espalhados pelas ruas. Eram os primeiros que se encontravam desde Paris.

      Toda a cidade parecia em agitação, e no bairro oposto àquele por onde entrava Isidoro de Charny, tocava a rebate.

      O visconde atravessou as ruas a galope, sem parecer inquietar-se de modo algum com todo aquele movimento; atravessou a praça principal e parou na casa das postas.

      Ao atravessar a praça notou uns poucos de dragões, que com bonés de polícia, estavam assentados num banco.

      A alguns passos deles, encostado a uma janela baixa estava o marquês Dandoins, também de boné de polícia e com um chicotinho na mão.

      Isidoro passou sem parar, e não demonstrou que tivesse reparado em coisa nenhuma. Presumia que o Sr. Dandoins, sabendo qual devia ser o vestuário dos batedores do rei, o reconheceria, e portanto não teria necessidade de nenhum outro indício.

      Um mancebo de vinte e oito anos, com os cabelos cortados à Tito, como os patriotas usavam naquela época, de bigode e barba preta, estava encostado à porta da casa das postas, vestido de chambre.

      Isidoro procurava alguém a quem se dirigisse.

      - Que deseja, senhor? - lhe perguntou o mancebo de bigode preto.

      - Falar ao mestre das postas - respondeu Isidoro.

      - O mestre das postas está ausente por algum tempo, mas eu sou filho dele, João Baptista Drouet... e se posso substituí-lo diga o que quer.

      O mancebo acentuara as palavras: “João Baptista Drouet” como se adivinhasse que aquelas palavras, ou antes aquele nome, obteriam na história uma fatal celebridade.

      - Desejo seis cavalos de posta para duas carruagens, que me seguem.

      Drouet fez um sinal com a cabeça, que queria dizer que o batedor ia ter o que desejava, e entrando no pátio, gritou:

      - Olá postilhão! Seis cavalos para duas carruagens e um poldro para o batedor.

      Neste momento o marquês Dandoins entrou apressadamente.

      - Senhor - disse ele dirigindo-se a Isidoro - precede a carruagem do rei, não é assim?

      - Sim, senhor, e estou bastante admirado por ver, tanto o senhor, como os seus soldados, de bonés de polícia.

      - Não fomos prevenidos, senhor... Além disso, em volta de nós fazem-se demonstrações ameaçadoras; tentam seduzir os meus soldados. Que devo fazer?

      - Como o rei não tarda a chegar, vigiar a carruagem, obrar conforme as circunstâncias e partir meia hora depois da família real para lhe guardar a retaguarda.

      Depois, interrompendo-se de repente, o visconde Isidoro de Charny disse:

      - Silêncio! Espiam-nos... Ouviram-nos talvez... Vá reunir-se ao seu esquadrão e faça o que lhe for possível para manter a sua gente.

      Efectivamente Drouet achava-se à porta da casinha, onde se travava esta conversação.

      O Sr. Dandoins afastara-se.

      No mesmo momento ressoaram-se os estalos dos chicotes dos postilhões; a carruagem do rei chegou, atravessou a praça e parou diante da porta.

      Ao ruído que fez, o povo agrupou-se à volta dela com curiosidade.

      O Sr. Dandoins, que tinha a peito explicar a razão porque o encontrava, tanto a ele como aos seus soldados, repousando, em vez de os achar em armas, precipita-se para a portinhola com o boné de polícia na mão, e com todas as demonstrações de respeito dá as suas desculpas ao rei e à família real.

      O rei respondendo-lhe, deitara muitas vezes a cabeça de fora do postigo.

      Isidoro, com o pé no estribo, estava próximo de Drouet, que olhava com muita atenção para dentro da carruagem. No ano anterior estivera ele na confederação e vira lá o rei, e agora julgava conhecê-lo.

      Nessa manhã, recebera uma soma considerável em assinados: e examinou um por um esses assinados, onde estava gravado o retrato do rei, para ver se seriam falsos, e o perfil do rei, gravado na sua memória, parece gritar-lhe: “O homem que está diante de ti é o rei!”

      Tirou um assinado da algibeira, comparou com o original o retrato gravado no papel e murmurou:

      - Decididamente é ele!...

      Isidoro passou para o outro lado da carruagem; seu irmão cobrira com o corpo a portinhola, a que a rainha estava encostada.

      - O rei foi conhecido - disse ele - apressa pois a partida da carruagem e olha bem para esse rapaz trigueiro... é o filho do mestre das postas; foi ele quem conheceu o rei. Chama-se João Baptista Drouet.

      - Está bem - disse Olivier - eu o vigiarei... parte imediatamente.

      Isidoro partiu a galope para ir encomendar cavalos a Clermont.

      Teria apenas chegado ao fim da cidade quando os postilhões, estimulados pelas instâncias dos srs. de Malden e Valory, e pela promessa de um escudo de gorjeta, partiram com a carruagem a grande trote.

      O conde não tinha perdido de vista Drouet.

      Drouet não se movera; porém falara em voz baixa a um criado da cavalariça.

      Charny aproximou-se dele e perguntou:

      - Não lhe encomendaram um cavalo para mim?

      - Encomendaram sim, senhor - respondeu Drouet - mas já não há nenhum.

      - Como! Já não há cavalos? - disse o conde; - mas então que cavalo é aquele que estão selando no pátio?

      - É o meu.

      - Não poderia ceder-mo? Pagá-lo-ei pelo que quiser.

      - É impossível, senhor, faz-se tarde e tenho que ir a uma parte, onde não posso faltar, nem posso demorar a partida.

      Insistir seria causar suspeitas; tentar tomar o cavalo à força seria comprometer a situação.

      E demais, Charny achou meio de conciliar tudo.

      Viu o Sr. de Dandoins, que seguia com os olhos a carruagem do rei até voltar a esquina.

      O Sr. Dandoins, sentindo porem-lhe a mão no ombro, voltou-se.

      - Silêncio! - disse Charny - sou eu... o conde de Charny... Já não há cavalo para mim na posta; apeie um dos seus dragões e dê-me o cavalo; é necessário que siga o rei e a rainha, só eu sei onde estão as mudas do Sr. de Choiseul, e se lá não estiver, o rei não poderá passar de Varennes.

      - Conde - respondeu o Sr. Dandoins - não é o cavalo de um dos meus dragões, que vou dar-lhe, é um dos meus.

      - Aceito... A salvação do rei e da família real dependem do menor acidente: quanto melhor for o cavalo, tanto melhor será a probabilidade de chegarmos primeiro.

      E ambos se afastaram dirigindo-se ao aposento do marquês Dandoins.

      Antes de se afastar, Charny encarregou um quartel-mestre dos dragões, para que observasse todos os movimentos de Drouet.

      Por desgraça, a casa do marquês era a quinhentos passos da praça: quando os cavalos estivessem selados teriam perdido, pelo menos, um quarto de hora; dissemos os cavalos, porque, pela sua parte o Sr. de Dandoins também montava a cavalo, e conforme a ordem que lhe dera o rei, ia seguir a carruagem servindo-lhe de escolta.

      De repente pareceu a Charny ouvir grandes gritos e entre eles as palavras: “O rei!... A rainha...”

      Precipitou-se para fora da casa, recomendando ao Sr. Dandoins que lhe mandasse conduzir o cavalo para a praça.

      Efectivamente toda a cidade estava em tumulto. Apenas os srs. Dandoins e Charny saíram da praça, Drouet, como se somente esperasse por esse momento para falar, exclamou:

      - A carruagem que acaba de passar é a do rei... O rei, a rainha e os príncipes vão naquela carruagem.

      E saltou sobre o cavalo.

      Muitos dos seus amigos procuravam detê-lo. Onde vai? Que faz? Qual é o projecto?

      Ele respondeu-lhes em voz baixa:

      - O coronel e o destacamento de dragões estavam aqui... Não havia meio de prender o rei sem uma colisão, que podia ter um mau resultado para nós! O que não pude fazer aqui fá-lo-ei em Clermont... Demorem os dragões; é tudo o que lhes peço!

      E partiu a galope, sobre os vestígios do rei.

      Foi então que se espalhou o boato que o rei e a rainha iam na carruagem, que acabava de passar, e que os gritos, que chegavam aos ouvidos de Charny, se fizeram ouvir.

      A estes gritos, o maire e a municipalidade correm, e o maire intima os dragões a tornarem a estar no quartel, atendendo a que já tinham dado há pouco oito horas.

      Charny ouviu tudo; o rei fora conhecido; Drouet partira; o conde, impaciente, desespera-se.

      Neste momento o Sr. Dandoins veio ter com ele.

      - Os cavalos! Os cavalos! - gritou Charny logo que o avistou.

      - Já os trazem - respondeu Dandoins.

      - No meu mandou meter pistolas nos coldres?

      - Sim.

      - Estão prontas?

      - Eu mesmo as carreguei.

      - Bom! Agora tudo depende da velocidade do seu cavalo... É mister que eu alcance um homem, que já leva quase um quarto de hora de avanço, e é preciso matá-lo.

      - Como!... Matá-lo?

      - Sim! Se não o mato, está tudo perdido!

      - Com os demónios! Vamos ter com os cavalos, vamos! Não percamos tempo.

      - Não se importe comigo! Ocupem-se dos seus dragões, que procuram seduzir para a revolta... Olhe! Repare no maire, que lhes fala!... O senhor também não tem tempo a perder... Vá! Vá!...

      Neste momento chegou o criado com os dois cavalos; Charny salta, ao acaso, sobre o que estava mais próximo dele, arranca as rédeas das mãos do criado, junta-as, mete esporas e parte a toda a brida, no encalço de Drouet, sem reparar nas últimas palavras, que lhe dirigia o marquês Dandoins.

      Estas últimas palavras, que o vento acabava de levar, tinham bastante importância.

      O Sr. Dandoins gritara-lhe:

      - Montou no meu cavalo, em lugar de montar no seu, e nesse as pistolas não estão carregadas.

 

Fatalidade

      Entretanto, a carruagem do rei, precedida por Isidoro, voava pela estrada de Sainte-Menehould a Clermont.

      O dia declinava, como dissemos; acabavam de dar oito horas e a carruagem entrava na floresta de Argonne, pela qual passava a estrada real.

      Charny não pudera prevenir a rainha do contratempo que o retinha na retaguarda, visto que a carruagem partira antes mesmo que Drouet lhe tivesse respondido que já não tinha cavalos.

      Saindo da cidade, a rainha notou que o seu estribeiro não ia junto da portinhola da carruagem; porém não havia meio nem de afrouxar a carreira, nem de interrogar os postilhões.

      Dez vezes talvez, ela se debruçou para fora da carruagem para olhar para trás; porém nada avistou.

      Uma vez pareceu-lhe distinguir um cavaleiro, galopando a uma grande distância; porém começava já a confundir-se com as sombras nascentes da noite.

      Entretanto (para inteligência dos acontecimentos, e a fim de esclarecer todos os pontos desta terrível jornada, devemos ocupar-nos sucessivamente, ora de uns ora de outros, dos actores deste drama), enquanto Isidoro, como batedor, precedia a carruagem do rei, enquanto a carruagem corria pela estrada de Sainte-Menehould a Clermont, e acabava de entrar na floresta de Argonne, enquanto Drouet corria atrás da carruagem, e Charny corria sobre Drouet, o marquês Dandoins reuniu-se ao seu esquadrão e mandou tocar a bota-selas.

      Porém, quando os soldados tentaram marchar, as ruas estavam de tal modo cheias de gente, que os cavalos não podiam dar passo.

      No meio de toda aquela multidão estavam uns trezentos guardas nacionais, fardados e com espingardas na mão.

      Tentar o combate (e tudo demonstrava que seria violento) era perder o rei.

      Mais valia ficar, e ao mesmo tempo conter todo aquele povo. O Sr. Dandoins parlamentou com ele; perguntou aos cabeças de motim o que pretendiam, o que desejavam, e por que motivo eram aquelas ameaças e demonstrações hostis. Entretanto, o rei chegaria a Clermont, e lá encontraria o Sr. de Damas, e os seus cento e quarenta dragões.

      Se tivesse cento e quarenta dragões, como o Sr. de Damas, o marquês Dandoins tentaria alguma coisa; porém apenas tinha trinta. Que se podia fazer com trinta dragões contra três ou mais de quatro mil homens?

      Parlamentar, e já o dissemos, foi o que fez.

      Às nove horas e meia, a carruagem do rei, que Isidoro precedia somente a alguns centos de passos, tanto tinham corrido os postilhões, chegou a Clermont. Gastara apenas uma hora e um quarto para percorrer as quatro léguas que separam uma cidade da outra.

      Isto explicava à rainha, até certo ponto, a ausência de Charny.

      Ele os alcançaria, enquanto tomassem mudas.

      O Sr. de Damas esperava a carruagem do rei fora da cidade. Foi prevenido por Leonardo; conheceu a libré do batedor e detendo Isidoro, disse:

      - Perdão, senhor, precede com efeito el-rei?

      - E o senhor - perguntou Isidoro - é o Sr. de Damas?

      - Sou.

      - Pois bem, precedo efectivamente el-rei. Reúna os seus dragões e escolte a carruagem de sua majestade.

      - Senhor - respondeu o conde de Damas – sopra por aqui um vento de insurreição, que me assusta, e vejo-me obrigado a confessar-lhe que não respondo pelos meus dragões, se alguém conhece o rei... Tudo o que posso prometer é, depois da carruagem passar, retroceder sobre ela e fechar assim o caminho.

      - Faça o que puder, senhor - disse Isidoro. – Aí chega el-rei.

      E mostrava no meio da escuridão a carruagem que chegava, cujo trajecto se podia seguir com o auxílio das faíscas, que rompiam debaixo das patas dos cavalos.

      Quanto a Isidoro, o seu dever era correr adiante e encomendar as mudas.

      Cinco minutos depois, apeou-se em frente da casa das postas.

      Quase ao mesmo tempo do que ele, chegaram o Sr. de Damas e cinco ou seis dragões.

      Depois apareceu a carruagem do rei.

      A carruagem seguia Isidoro tão de perto, que ele não teve tempo de tornar a montar a cavalo. Esta carruagem, sem ser magnífica, era de tal modo notável, que grande número de pessoas começaram a agrupar-se diante da casa das postas.

      O Sr. de Damas estava diante da portinhola, sem dar mostras de conhecer os ilustres viajantes.

      Porém nem o rei nem a rainha puderam assistir ao desejo de tomarem informações.

      De um lado o rei fez sinal ao Sr. de Damas; do outro a rainha fez sinal a Isidoro.

      - É o Sr. de Damas? - perguntou o rei.

      - Sim, meu senhor.

      - Então porque não estão em armas os seus dragões?

      - Meu senhor, vossa majestade retardou-se cinco horas; o meu esquadrão estava a cavalo às quatro; demorei-me assim o mais possível; porém a cidade começava já agitar-se, e até os meus soldados faziam conjecturas, que me inquietavam... Se a fermentação rebentasse antes da passagem de vossa majestade, tocava-se a rebate e o caminho ficaria tomado: por isso só conservei uns doze homens a cavalo, e mandei os outros a quartéis; mas fechei os clarins em minha casa, a fim de mandar tocar a montar, assim que fosse mister. Além disso, vossa majestade bem vê que tudo vai bem, visto que o caminho está livre.

      - Muito bem, senhor - disse o rei - obrou como homem prudente... Assim que eu partir, mandará tocar bota-selas, e seguirá a carruagem a coisa de um quarto de légua de distância.

      - Senhor - disse a rainha - quer ouvir o que diz o Sr. Isidoro de Charny?

      - O que diz ele? - perguntou el-rei, com certa impaciência.

      - Diz que vossa majestade foi conhecido pelo filho do mestre das postas de Sainte-Menehould; que está bem certo disso; que viu esse rapaz com um assinado na mão, certificar-se da semelhança do retrato, comparando-o com o seu; que seu irmão, prevenido por ele, ficou atrás, e que sem dúvida, passa-se alguma coisa grave a esta hora, visto que o Sr. de Charny ainda não voltou.

      - Então, se estamos descobertos, mais uma razão para nos apressarmos, senhora. Sr. Isidoro, faça aviar os postilhões e corra adiante...

      O cavalo de Isidoro estava pronto; o mancebo saltou para a sela, gritando aos postilhões:

      - Estrada de Varennes!

      Os srs. de Malden e de Valory, assentados na almofada, repetiram:

      - Estrada de Varennes!

      O Sr. de Damas, retirou-se saudando respeitosamente o rei, e os postilhões partiram com os seus cavalos.

      A carruagem tinha tomado mudas, e num abrir e fechar de olhos afastara-se com a rapidez de um relâmpago.

      Saindo da cidade encontrou-se com um quartel-mestre de hussards, que entrava.

      O Sr. de Damas tinha tido por um instante a idéia de seguir a carruagem do rei com os poucos homens que tinha disponíveis; porém o rei acabava de lhe dar ordens inteiramente contrárias; julgou portanto dever conformar-se com elas, tanto mais, que uma certa agitação começava a espalhar-se pela cidade, os burgueses corriam de casa em casa; as janelas abriam-se e viam-se aparecer nelas luzes e cabeças. O Sr. de Damas só se inquietava com uma coisa, e era com o rebate, que podia soar de um momento para outro; por isso correu à igreja, cuja porta guardou.

      Além disso, o Sr. Dandoins ia chegar em breve com os seus trinta homens e seria mais um reforço.

      Entretanto tudo parecia sossegar. Passado um quarto de hora, o Sr. de Damas voltou à praça; encontrou lá o seu chefe de esquadrão, o Sr. de Noirville; deu-lhe as instruções para o caminho, e ordenou-lhe que mandasse pôr em armas a sua gente.

      Neste momento vieram prevenir o Sr. de Damas, de que um oficial subalterno de dragões, mandado pelo Sr. Dandoins, o esperava em sua casa.

      Este oficial vinha anunciar-lhe que não devia esperar nem pelo Sr. Dandoins, nem pelos seus dragões, porque o Sr. Dandoins estava retido na municipalidade pelos habitantes de Saint-Menehould, e que além disso (o que o Sr. de Damas já sabia) Drouet partira a toda a brida para seguir a carruagem, a qual provavelmente não pudera alcançar, visto que ainda não aparecera em Clermont.

      Neste momento anunciaram ao Sr. de Damas uma ordenança dos hussards de Lauzun.

      Esta ordenança era mandada pelo Sr. de Rohrig, comandante, juntamente com os srs. de Bouillé filho e de Raigecourt, no posto de Varennes. Inquietos por verem correr as horas, sem que ninguém lhes aparecesse, os dignos fidalgos mandaram saber do Sr. de Damas se haviam algumas notícias do rei.

      - Em que estado deixou o posto de Varennes? - perguntou primeiro o Sr. de Damas.

      - Perfeitamente tranqüilo - respondeu a ordenança.

      - Onde estão os hussards?

      - No quartel, com os cavalos selados e prontos.

      - Encontrou alguma carruagem pelo caminho?

      - Encontrei uma puxada a quatro e outra a dois.

      - São as mesmas de que vem buscar notícias. Tudo vai bem - disse o Sr. de Damas.

      E por isso entrou em casa e deu ordem aos clarins para tocarem a bota-selas.

      Dispunha-se a seguir o rei e a prestar-lhe auxilio em Varennes, se fosse necessário.

      Cinco minutos depois, tocavam os clarins.

      Portanto tudo ia o melhor possível, não falando no incidente, que detinha em Saint-Menehold os trinta homens do Sr. de Dandoins.

      Porém com os seus cento e quarenta dragões o Sr. de Damas podia bem dispensar esse aumento de forças.

      Voltemos à carruagem do rei, que em lugar de seguir, ao sair de Clermont, a linha recta, que conduz a Verdun, voltou à esquerda e rodou sobre a estrada de Varennes.

      Já dissemos qual era a situação topográfica da cidade de Varennes, dividida em cidade alta e cidade baixa; dissemos como se tinha decidido que tomariam mudas na extremidade da cidade do lado do Dun, e como para chegarem lá era necessário deixar a estrada que segue a costa, tomar o caminho que conduz à ponte, passando por baixo do arco da torre e alcançarem as mudas do Sr. de Choiseul, em volta das quais deviam velar os srs. de Boillé e de Raigecourt. Quanto ao Sr. de Rohrig, moço oficial de dezoito anos, não tinham tido confiança nele, e ele por sua vez, julgava estar ali, unicamente para escoltar o tesouro do exército.

      Além disso, chegados a este ponto difícil, como os leitores devem estar lembrados, era Charny quem devia guiar a carruagem real no dédalo de ruas, por isso que ele se havia demorado quinze dias em Varennes, para estudar a cidade, e desenhara tudo, de modo que conhecia todos os pontos, sem exceptuar os becos mais insignificantes.

      Por desgraça, Charny não estava com eles.

      Por isso a inquietação da rainha duplicava. Para que Charny, em semelhante circunstância, não estivesse junto da carruagem, era mister que lhe tivesse acontecido algum acidente grave.

      Aproximando-se de Varennes, até o rei se inquietou; contando com Charny, nem trouxera consigo a planta da cidade.

      E depois a cidade estava absolutamente sombria, iluminada unicamente pela luz das estrelas: era uma dessas noites, em que era fácil uma pessoa perder-se mesmo em localidades conhecidas, e com muita mais razão nas ruas de uma cidade desconhecida.

      A ordem de Isidoro (ordem dada pelo próprio Charny), era parar diante da cidade.

      Aí o irmão substitui-lo-ia e como já o dissemos, retomaria o encargo de conduzir a caravana.

      Porém como a rainha, e talvez tanto como ela, Isidoro estava inquieto pela ausência do irmão. A única esperança que lhe restava era que o Sr. de Bouillé, ou o Sr. de Raigecourt, na sua impaciência, tivessem vindo ao encontro do rei e esperassem aquém de Varennes.

      Como havia dois ou três dias que estavam na cidade, conhecê-la-iam e serviriam então facilmente de guias.

      Por isso chegando à falda da colina, e vendo duas ou três luzes raras, que brilhavam na cidade, Isidoro parou indeciso, e lançou os olhos em volta de si, procurando penetrar na escuridão com o olhar.

      Não viu nada.

      Então começou a chamar em voz baixa, depois em voz alta, e finalmente a gritar pelos srs. de Bouillé e de Raigecourt.

      Ninguém respondeu.

      Ouviu-se o rodar da carruagem, a um quarto de légua apenas, e que aumentava, como um trovão longínquo, aproximando-se a pouco e pouco.

      Isidoro teve uma lembrança. Talvez aqueles senhores estivessem escondidos na floresta, que se estendia à esquerda da estrada.

      Entrou na floresta e examinou minuciosamente toda a orla.

      Ninguém.

      Não havia outra coisa que fazer senão esperar, portanto esperou.

      Não seriam passados cinco minutos chegou a carruagem do rei.

      O rei e a rainha debruçaram-se nos postigos da carruagem, e perguntaram ambos ao mesmo tempo com a maior ansiedade:

      - Não viu o conde de Charny?

      - Meu senhor - respondeu Isidoro - não o vi, e visto que se não acha aqui, é que lhe aconteceu alguma coisa grave, ao perseguir Drouet.

      A rainha soltou um gemido.

      - Que faremos? - disse o rei.

      Depois, dirigindo-se aos srs. de Malden e de Valory, que se tinham apeado, perguntou-lhes:

      - Conhecem a cidade?

      Nenhum deles a conhecia e por isso a resposta foi negativa.

      - Meu senhor - disse Isidoro - tudo está em silêncio, e por conseqüência tudo parece tranqüilo... Digne-se vossa majestade esperar aqui alguns minutos; vou entrar na cidade e procurar obter notícias dos srs. de Bouillé e de Raigecourt, ou pelo menos, do lugar onde estão as mudas do Sr. de Choiseul... Vossa majestade não se recorda do nome da estalagem, onde deviam esperar os cavalos?

      - Ah! Não - disse o rei; - soube-o, mas esqueceu-me. Não importa, vá sempre; no entanto, procuraremos tomar aqui algumas informações.

      Isidoro correu na direcção da cidade baixa, e desapareceu em breve por detrás das primeiras casas.

 

João Baptista Drouet

      Estas palavras do rei: “Vamos tomar aqui algumas informações” eram motivadas pela presença de duas ou três casas avançadas da cidade alta, que se estendiam à direita da estrada.

      Numa delas a mais próxima, ao ruído das duas carruagens, tinha-se aberto uma janela e a porta, e pela abertura desta viram brilhar uma luz.

      A rainha desceu, aceitou o braço do Sr. de Malden e dirigiu-se para essa casa.

      Porém à sua aproximação, a porta tornou a fechar-se.

      Todavia ela não fora empurrada tão depressa, que o Sr. de Malden, que tinha percebido as intenções pouco hospitaleiras do dono da casa, não tivesse tempo de se precipitar e deter a porta, antes que a lingüeta entrasse na chapa da fechadura.

      Com o impulso do Sr. de Malden, e não obstante a resistência que opunham da parte de dentro, a porta abriu-se de novo.

      Por detrás da porta, e esforçando-se para a fechar, estava um homem de uns cinqüenta anos, com as pernas nuas, de chambre e chinelas.

      Não foi sem certa admiração, e isto compreende-se, que o homem do chambre se viu repelido dentro de sua casa, a abrir a porta sob o impulso de um desconhecido, atrás do qual estava uma mulher.

      O homem do chambre lançou um olhar rápido sobre a rainha, cujo rosto fora alumiado pela luz que ele tinha na mão, e estremeceu.

      - Que quer, senhor? - perguntou ele ao Sr. de Malden.

      - Senhor - respondeu este - não conhecemos Varennes, e rogamos-lhe que tenha a bondade de nos ensinar o caminho para Stenay.

      - E se eu o indicar - disse o desconhecido - e se se souber que fui eu que lho indiquei e ficar perdido?

      - Ah! exclamou o Sr. de Malden, ainda que corresse algum perigo em nos fazer esse serviço, é decerto muito cavalheiro para que deixe de obsequiar uma senhora, que se vê numa perigosa situação...

      - Mas - respondeu o homem do chambre - a pessoa que está atrás do senhor não é simplesmente uma pessoa qualquer, essa senhora (ao dizer isto aproximou a boca do ouvido do Sr. de Malden) é a rainha!

      - Senhor!...

      - Conheci-a.

      A rainha, que tinha ouvido, ou antes adivinhado o que se acabava de dizer, puxou pela farda do Sr. de Malden, e disse:

      - Antes de continuar, previna el-rei de que fui conhecida.

      O Sr. de Malden, num segundo, cumpriu essa missão.

      - Pois bem! - disse o rei - diga a esse homem que venha falar-me.

      O Sr. de Malden voltou; depois, julgando que era inútil dissimular, disse ao homem do chambre:

      - El-rei deseja falar-lhe.

      O homem deu um suspiro, largou as chinelas, e descalço, para fazer menos ruído, caminhou para a carruagem.

      - O seu nome? - perguntou-lhe o rei assim que o viu.

      - Préfontaine - respondeu ele, hesitando.

      - O que é?

      - Major de cavalaria, e cavaleiro da ordem real e militar de Saint-Louis.

      - Pela sua duplicada qualidade de major e de cavaleiro de Saint-Louis, fez-me, por duas vezes, juramento de fidelidade. É portanto do seu dever auxiliar-me no embaraço em que me vejo.

      - Certamente - respondeu o major balbuciando - mas suplico a vossa majestade que se apresse; poderiam ver-me...

      - Então! - disse o Sr. de Malden - se o vissem, tanto melhor! Nunca teria mais bela ocasião de cumprir o seu dever.

      O major, que não parecia ser deste parecer, soltou uma espécie de gemido.

      A rainha encolhia os ombros com ar de compaixão, e batia o pé com impaciência.

      El-rei fez-lhe sinal; depois dirigindo-se ao major disse:

      - Teria por acaso ouvido dizer que alguns cavalos esperassem uma carruagem que devia passar, e viu os hussards que desde ontem estão na cidade?

      - Sim, senhor, cavalos e hussards estão do outro lado da cidade: os cavalos na estalagem do Grande-Monarca; os hussards no quartel provavelmente.

      - Obrigado; agora volte para sua casa... Ninguém o viu; portanto nada deve temer.

      - Senhor...

      O rei, sem o atender mais, deu a mão à rainha para ela subir para a carruagem, e dirigindo-se aos srs. de Malden e de Valory, que esperavam as suas ordens, disse:

      - Senhores, aos seus lugares, e ao Grande-Monarca!

      Os dois oficiais obedeceram e gritaram aos postilhões: “Ao Grande Monarca!”

      Porém, no mesmo instante, uma espécie de sombra a cavalo, um cavaleiro fantástico se arremessou do bosque, e cortando a estrada em diagonal, bradou:

      - Postilhões! Nem mais um passo!

      - Por quê? - perguntaram os postilhões admirados.

      - Porque conduzem o rei, que foge... Mas, em nome da nação, ordeno-lhes que se não movam!

      Os postilhões, que já tinham feito um movimento para seguirem com a carruagem, pararam murmurando:

      - O rei...

      Luís XVI, vendo que o momento era supremo, exclamou:

      - Quem é o senhor para dar aqui ordens?

      - Um simples cidadão... mas represento a lei e falo em nome da nação. Postilhões, não se movam, - ordenou-lhes segunda vez - Conhecem-me bem, sou João Baptista Drouet, filho do mestre de postas de Sainte-Menehould.

      - Oh! Desgraçado! - gritaram os srs. de Malden e de Valory precipitando-se da almofada e empunhando as facas de mato. - É ele!

      Mas já Drouet tinha enterrado as esporas na barriga do cavalo e metido pelas ruas da cidade baixa.

      - Ah! Charny! Charny! - murmurou a rainha; - que será feito dele?

      E encostou-se no fundo da carruagem, quase indiferente ao que ia passar-se.

      Que tinha acontecido a Charny, e como deixara ele passar Drouet?

      Sempre a fatalidade!

      O cavalo do Sr. de Dandoins era bom corredor; porém Drouet levava-lhe perto de vinte minutos de dianteira.

      Era necessário ganhar esses vinte minutos.

      Charny enterrou as esporas na barriga do cavalo, este pulou, lançou fumo pelas ventas e partiu a galope.

      Da sua parte, Drouet, sem saber se era ou não perseguido, corria à rédea solta.

      A diferença consistia em que Drouet montava um cavalo de posta e Charny um bom cavalo de raça.

      O resultado foi que, ao cabo de uma légua, Charny ganhara sobre Drouet a terça parte do caminho.

      Então Drouet, percebendo que era perseguido redobrou os seus esforços para escapar a quem procurava agarrá-lo.

      No fim da segunda légua, Charny tinha continuado a obter vantagem na mesma proporção, e Drouet voltava-se mais vezes e com crescente inquietação.

      Drouet, partira tão rapidamente, que lhe tinham esquecido as armas.

      Ora, o jovem patriota não temia a morte, bem o provou depois, mas receava ser detido na carreira, receava deixar fugir o rei, e que lhe escapasse a fatal ocasião que se lhe oferecera para ilustrar para sempre o seu nome.

      Tinha ainda que andar duas léguas para chegar a Clermont; porém era evidente que seria apanhado no fim da primeira légua, ou pelo menos antes da terceira, desde a sua partida de Sainte-Menehould.

      E todavia, para estimular o seu ardor, sentia adiante de si a carruagem do rei. Dizemos sentia, porque eram com efeito nove horas e meia da noite, e apesar de se estar nos dias mais compridos do ano, anoitecera.

      Drouet redobrou as esporadas e chicotadas. Só estava a três quartos de légua de Clermont, porém Charny vinha a duzentos passos dele.

      Sem dúvida (Drouet sabia que não havia posta em Varennes), sem dúvida o rei ia continuar a jornada por Verdun.

      Drouet começava a desesperar: antes de alcançar o rei, seria ele alcançado.

      A meia légua de Clermont, ouvia já o galope do cavalo de Charny, que seguia o dele e os relinchos do mesmo cavalo respondendo ao que montava.

      Era necessário renunciar à empresa, ou decidir-se a fazer frente ao seu adversário; já o dissemos, Drouet não tinha armas.

      Repentinamente, e quando Charny estava apenas a cinqüenta passos dele uns postilhões montando cavalos de retorno, cruzam-se com Drouet; este conhece-os como sendo os que conduziam as carruagens do rei, e disse-lhes:

      - Ah! São vocês... Estrada de Verdun, não é verdade?

      - Que diz, estrada de Verdun? - perguntaram os postilhões.

      - Digo - repetiu Drouet - que as carruagens que vocês conduziam tomaram a estrada de Verdun.

      E passou adiante, apertando vigorosamente o cavalo.

      - Não - gritaram-lhe os postilhões - estrada de Varennes!

      Drouet soltou um brado de alegria.

      Estava salvo e o rei estava perdido.

      Se o rei tivesse seguido a estrada de Verdun era obrigado (o caminho formava uma linha recta de Sainte-Menehould a Verdun) a seguir a linha recta.

      Mas o rei tomara pela estrada de Varennes; em Clermont, a estrada de Varennes volta à esquerda em ângulo quase agudo.

      Drouet dirigiu-se para a mata de Argonne, da qual conhecia todos os trilhos. Cortando através do bosque, ganharia um quarto de hora sobre o rei; além disso a escuridão da mata protegia-o.

      Charny, que conhecia a topografia geral do país, quase tão bem como Drouet, compreendeu que este pretendia escapar-lhe e soltou um grito de cólera.

      Quase ao mesmo tempo que Drouet, dirige o cavalo para a estreita planície que separa a estrada da mata, bradando:

      - Pára! Pára!

      Drouet não respondeu; inclinou-se sobre o pescoço do cavalo, excitando-o com as esporas, com o chicote e com a voz. Chegar ao bosque é quanto lhe era preciso, e estava salvo!

      Para isso, porém, tinha que passar a uns dez passos de Charny.

      Este pegou numa das pistolas e fez a pontaria bradando:

      - Pára, ou morres!

      Drouet inclina-se ainda mais sobre o pescoço do cavalo e esporeia-o com mais força.

      Charny dá ao gatilho; porém as faíscas da pederneira caindo sobre o fuzil brilham sós na escuridão.

      Charny, furioso, atira com a pistola a Drouet, pega na segunda, arremessa-se no bosque atrás do fugitivo, vê-o por entre as árvores, faz fogo novamente; porém, como da primeira vez, a pistola erra.

      Foi então que se lembrou, de que, quando se afastava a galope, o Sr. de Dandoins lhe dissera alguma coisa que não compreendera.

      - Ah! - disse ele - enganei-me no cavalo; sem dúvida me avisou de que as pistolas do cavalo que eu tomava não estavam carregadas... Não importa: alcançarei esse miserável, e se for preciso estrangulá-lo-ei com as mãos!

      E continuou a perseguir a sombra que ainda entrevia através da escuridão.

      Mas apenas deu uns cem passos na mata, que não conhecia, o cavalo caiu num fosso, Charny virou os pés pela cabeça, levantou-se, e cavalgou novamente; porém Drouet tinha já desaparecido!

      Eis como Drouet escapou a Charny; eis a razão porque acabava de passar pela estrada real, semelhante a um fantasma ameaçador, e ordenando aos postilhões que conduziam o rei que não dessem nem mais um passo.

      Os postilhões pararam, porque Drouet lhes falara em nome da nação, que começava a ser mais poderoso do que o nome do rei.

      Apenas Drouet se meteu pela cidade baixa, ouviu-se em troca do galope do seu cavalo que se afastava, o galope de outro que se aproximava.

      Pela mesma rua por onde Drouet se dirigia, apareceu Isidoro.

      Os seus esclarecimentos são os mesmos que foram dados pelo Sr. Préfontaine.

      Os cavalos do Sr. de Choiseul, de Bouillé e de Raigecourt estavam na outra extremidade da cidade, na estalagem do Grande-Monarca.

      O terceiro oficial, o Sr. de Rohrig, estava no quartel com os hussards.

      O moço de uma loja de bebidas, que estava fechando o estabelecimento, deu-lhe estas notícias como exactas.

      Mas em vez da alegria que julgava dever causar aos ilustres viajantes, achou-os abismados no mais profundo terror.

      O Sr. de Préfontaine lamentava-se; os srs. de Malden e de Valory ameaçavam alguma coisa invisível e desconhecida.

      Isidoro parou no meio da sua narração, e perguntou inquieto:

      - Que aconteceu?

      - Não viu, na rua por onde veio, um homem que passava a galope?

      - Vi sim, meu senhor.

      - Pois esse homem era Drouet - disse o rei.

      - Drouet - exclamou Isidoro com pungente gemido - então... Está meu irmão morto.

      A rainha soltou um grito e escondeu a cabeça entre as mãos.

 

A torre de portagem da ponte de Varennes

      Houve um momento de inexplicável prostração entre todos aqueles infelizes viajantes, ameaçados como estavam, por um perigo desconhecido mas terrível, vendo-se parados na estrada real.

      Isidoro foi o primeiro a cobrar ânimo.

      - Meu senhor - disse ele - morto ou vivo, não pensemos mais em meu irmão; pensemos em vossa majestade. Não há um momento a perder! Os postilhões conhecem a estalagem do Grande-Monarca... A galope, e à estalagem do Grande-Monarca!

      Mas os postilhões não se moveram.

      - Não ouviram? - bradou Isidoro.

      - Ouvimos.

      - Então porque não seguem?

      - Porque o Sr. Drouet o proibiu.

      - Como! O Sr. Drouet proibiu-o? E quando el-rei manda e Drouet proíbe, é a este que obedecem?

      - Obedecemos à nação.

      - Vamos, senhores - disse Isidoro aos seus dois companheiros - há momentos em que a vida de um homem não tem valor algum... Encarreguem-se desses dois homens que eu me encarrego deste... Nós mesmos conduziremos depois a carruagem.

      E agarrou pelo pescoço o postilhão que lhe ficava mais próximo e chegou a ponta da faca de mato ao peito.

      A rainha viu brilhar os três ferros e soltou um grito.

      - Senhores - disse ela - senhores, por favor!...

      Depois aos postilhões:

      - Meus amigos, cinqüenta luíses para repartir imediatamente entre os três, e uma pensão de quinhentos francos a cada um, se salvarem o rei!

      Ou assustados pela demonstração dos três mancebos, ou seduzidos pela oferta, os postilhões aparelharam os cavalos e continuaram o caminho.

      O Sr. de Préfontaine voltou para sua casa tremendo, e fez uma barricada.

      Isidoro galopou na frente da carruagem; tratava-se de atravessar a abóbada e passada a ponte estariam em cinco minutos na estalagem do Grande-Monarca.

      A carruagem desceu rapidamente a ladeira, que conduz à cidade baixa.

      Mas, chegando à abóbada que dá sobre a ponte e que passa por debaixo da torre, viram que um dos postigos da porta estava fechado.

      Abre-se o postigo e vêem dois ou três carros que obstruíam a ponte.

      - A mim, senhores! - disse Isidoro apeando-se e afastando os carros.

      Nesse momento ouviram-se os primeiros rufos do tambor e as primeiras badaladas do toque a rebate.

      Drouet operava.

      - Ah! Miserável! - exclamou Isidoro rangendo os dentes - se te encontro!...

      E por um esforço inaudito empurrou para o lado um dos dois carros, enquanto os srs. de Malden e de Valory empurravam o outro.

      Restava atravessado um terceiro.

      E ao mesmo tempo a carruagem entrou debaixo da abóbada.

      De repente, por entre as xalmas do terceiro carro; vêem-se aparecer os canos de quatro ou cinco espingardas.

      - Nem mais um passo, ou morrerão, senhores! - disse uma voz.

      - Senhores, senhores - disse o rei deitando a cabeça fora do postigo - não tentem forçar a passagem, ordeno-lhes!

      Os dois oficiais e Isidoro deram um passo à retaguarda.

      - Que nos querem? - perguntou o rei.

      Ao mesmo tempo, ouve-se um grito de terror soltado na carruagem.

      Além dos homens que interceptavam a passagem da ponte, dois ou três outros se esgueiraram por detrás da carruagem e os canos de muitas espingardas apareceram além dos postigos.

      Um deles é dirigido ao peito da rainha.

      Isidoro viu tudo. Corre, agarra o cano da espingarda e desvia-o.

      - Fogo! Fogo! - gritaram muitas vozes.

      Um dos homens armados obedece; felizmente a espingarda erra, Isidoro levanta o braço e vai para o apunhalar com a faca de mato; a rainha detém-lhe o braço.

      - Ah! Senhora - exclamou Isidoro furioso – em nome do Céu, deixe-me matar este canalha!

      - Não, senhor - disse a rainha - embainhe o sabre! Ouve?

      Isidoro não obedece inteiramente; deixa cair a faca de mato, mas não a mete na bainha.

      - Ah! Se encontro Drouet! - murmurou ele rancorosamente.

      - Quanto a esse - disse a rainha em voz baixa e apertando a mão de Isidoro de Charny com uma força extraordinária, quanto a esse, entrego-lho!

      - Mas enfim, senhores - repetiu o rei energicamente - que querem?

      - Queremos ver os passaportes - responderam duas ou três vozes.

      - Os passaportes? Pois sim - disse o rei; - vão procurar as autoridades da cidade que nós lhos mostraremos.

      - Ah! Põem-se com tantas cerimónias! - exclamou, fazendo pontaria ao rei, o homem cuja espingarda já tinha errado fogo.

      Mas os dois guardas lançaram-se sobre ele e seguraram-no.

      Na luta, a espingarda deu fogo, porém a bala não feriu ninguém.

      - Olá - gritou uma voz - quem disparou?

      O homem calcado aos pés pelos guardas soltou um rugido, gritando:

      - A mim!

      Os cinco ou seis outros homens armados correram em seu socorro.

      Os guardas tiraram as suas facas de mato e prepararam-se para combater.

      O rei e a rainha faziam inúteis esforços para conterem uns e outros.

      A luta ia começar, terrível, desesperada e mortal.

      Neste momento, precipitaram-se dois homens no meio dos inimigos, um trazendo faixa tricolor e o outro uniformizado.

      O homem da faixa tricolor era o Sr. Sausse, membro da comuna; e outro o Sr. Hannonet, comandante da guarda nacional.

      Atrás deles viam-se brilhar à luz de dois ou três archotes umas vinte espingardas.

      El-rei compreendeu que naqueles dois homens estavam, senão um socorro, pelo menos uma garantia, e disse-lhes:

      - Estou pronto a confiar-me aos senhores, assim como as pessoas que me acompanham; porém defendam-nos das brutalidades desta gente.

      E apontava para os homens armados de espingardas.

      - Abaixem as armas, senhores! - exclamou Hannonet.

      Os homens obedeceram, murmurando.

      - Queira desculpar-nos, senhor - disse Sausse, dirigindo-se ao rei - mas espalhou-se o boato de que sua majestade Luís XVI tinha fugido, e é do nosso dever certificar-nos se assim é, e, se o for, opor-mo-nos a que passe.

      - Certificarem-se se assim é! - exclamou Isidoro. - Se é verdade que esta carruagem encerra o rei, os senhores deviam estar aos pés de sua majestade; se, pelo contrário, só contém uma simples particular, com que direito o detêm no seu caminho?

      - Senhor - disse Sausse continuando a dirigir-se a el-rei - é com o senhor que eu falo; quer fazer-me a honra de me responder ao que disse?

      - Meu senhor - disse em voz baixa Isidoro – ganhe tempo; o Sr. de Damas e os seus dragões seguem-nos, sem dúvida, e não tardarão em chegar.

      - Tem razão - disse o rei.

      Depois, respondendo a Sausse, prosseguiu:

      - E se os nossos passaportes estivessem conformes, deixar-nos-iam continuar o nosso caminho?

      - Sem dúvida.

      - Então, Srª. baronesa - continuou o rei falando com a Srª. de Tourzel - tenha a bondade de procurar o nosso passaporte e de o dar o mais breve possível a estes senhores.

      A Srª. de Tourzel compreendeu o sentido destas palavras: “Tenha a bondade de procurar o nosso passaporte”.

      Começou com efeito a procurá-lo, mas nas algibeiras onde ele não estava.

      - Ora! - disse uma voz mostrando impaciência e ameaça - bem se vê que não têm passaporte!

      - Enganam-se senhores - disse a rainha – temos um passaporte, porém, ignorando que nos seria pedido, a Srª. baronesa de Korff não sabe onde o guardou.

      Levantou-se entre a multidão um grande alarido, indicando que se não deixava iludir com este subterfúgio.

      - Há uma coisa mais simples a fazer - disse Sausse. - Postilhões, conduzam a carruagem ao meu estabelecimento; estes senhores entrarão em minha casa e tudo se explicará... Postilhões, caminhem! Srs. guardas nacionais, escoltem a carruagem.

      Este convite assemelhava-se muito a uma ordem para que tentassem recusar-se.

      Além disso, ainda que o tentassem nada teriam conseguido. Os sinos continuavam a tocar a rebate, e a multidão, que rodeava a carruagem, aumentava a todo o momento.

      A carruagem começou a rodar.

      - Ai! Sr. de Damas! Sr. de Damas! - murmurou o rei; - queira Deus que chegue antes que tenhamos entrado nessa maldita casa!

      A rainha nada dizia: pensava em Charny, abafava os soluços e retinha as lágrimas.

      Chegaram à porta da casa do Sr. Sausse, sem terem aparecido notícias do Sr. de Damas.

      Que aconteceria, pois, por esse lado, e quem impediria aquele fidalgo, sobre cuja dedicação sabiam que se podia contar, de executar as ordens do rei, e a promessa que lhe fizera?

      Vamos explicá-lo em duas palavras, para que finalmente fiquem para sempre esclarecidos todos os pontos desta lúgubre história1.

      Deixámos o Sr. de Damas fazendo tocar a bota-selas pelos clarins, que para maior segurança tinha conservado consigo.

      No momento em que o primeiro toque do clarim soou, guardava o dinheiro, que tinha na gaveta da secretária, e tirava também daí alguns papéis, que não queria deixar ficar, nem levar consigo.

      Ocupava-se nisto, quando a porta do quarto se abriu e muitos membros da municipalidade apareceram no limiar.

      Um deles aproximou-se do conde.

      - Que me quer? - perguntou ele espantado por esta visita inesperada, e endireitando-se para ocultar um par de pistolas, que estava em cima do fogão.

      - Sr. conde - respondeu um dos visitantes mais com cortesia, que com firmeza - desejamos saber por que motivo parte a esta hora.

      O Sr. de Damas olhou com surpresa para quem fazia esta pergunta a um oficial superior do exército do rei e respondeu:

      - É bem simples, senhor; parto a semelhante hora, porque recebi ordem para isso.

      - Com que fim parte, Sr. coronel? - insistiu o interrogante.

      O Sr. de Damas cravou nele um olhar cada vez mais admirado.

      - Com que fim parto? Em primeiro lugar, eu mesmo o ignoro, em segundo, ainda mesmo que o soubesse não lhe diria.

      Os deputados da municipalidade olharam uns para os outros, animando-se mutuamente com o gesto, de maneira que o que começara a dirigir a palavra ao Sr. de Damas continuou:

      - Senhor, o desejo da municipalidade de Clermont é que parta, não esta noite, mas só amanhã pela manhã.

      O Sr. de Damas sorriu, com esse mau sorriso de um soldado a quem ordenam, ou por ignorância ou para o intimidar, uma coisa contrária à disciplina, replicou:

      - Ah! O desejo da municipalidade de Clermont é que fique até amanhã.

      - Tal qual.

      - Pois bem, senhor, diga à municipalidade de Clermont, que tenho a grande audácia de opor-me ao seu desejo, visto que lei nenhuma, pelo menos que eu saiba, autoriza a municipalidade de Clermont a embaraçar a marcha das tropas. Quanto a mim, só recebo ordens do meu chefe militar; eis a minha guia de marcha.

      E dizendo estas palavras, mostrou aos deputados da municipalidade a guia.

      O que estava mais próximo do conde, recebeu-a das suas mãos, e passou-a aos seus companheiros, enquanto o Sr. de Damas agarrava por detrás de si as pistolas, postas sobre a chaminé e ocultas pelo seu corpo.

      Depois de haver examinado com os seus colegas o papel que lhe fora dado, o membro da municipalidade, que já tinha dirigido a palavra ao Sr. de Damas, disse:

      - Senhor, quanto mais formal for esta ordem, mais nos devemos opor a ela; porque sem dúvida lhe recomenda uma coisa que para a felicidade da França não deve cumprir-se. Declaro-lhe, pois, em nome da nação, que está preso.

      - E eu, senhores - disse o conde apresentando as pistolas e apontando-as aos dois membros da municipalidade que lhe ficavam mais próximos - declaro-lhes muito terminantemente que parto.

      Os membros da municipalidade não esperavam esta ameaça. Por um sentimento de temor, ou talvez de espanto, afastaram-se do Sr. de Damas. Este transpôs a porta da sala, correu pelas escadas, encontrou o seu cavalo à porta, saltou-lhe em cima e dirigiu-se a toda a brida para a praça, onde se formava o regimento, e falando com o Sr. de Floirac, um dos seus oficiais, que encontrou a cavalo, disse:

      - É preciso sairmos daqui conforme pudermos, porque o mais importante é salvar-se o rei.

      Para o Sr. de Damas, que ignorava a partida de Drouet de Sainte-Menehould, e que só sabia da sublevação de Clermont, o rei estava salvo, porque tinha passado para além de Clermont e ia chegar a Varennes, onde estavam estacionadas as mudas do Sr. de Choiseul e os hussards de Lauzun, comandados pelos srs. Luís de Bouillé e de Raigecourt.

      Apesar disso, dirigindo-se ao quartel-mestre do regimento, que foi dos primeiros a aparecer na praça, acompanhado dos furriéis, disse-lhe:

      - Sr. Remy, parta, tome a estrada de Varennes... Vá a toda a brida, alcance as carruagens, que acabam de passar; a sua cabeça responde-me por isto.

      O quartel-mestre picou o cavalo e partiu com os furriéis, e quatro dragões; mas, chegando a um sítio em que a estrada se repartia em duas, tomou um mau caminho e perdeu-se.

      Tudo correu mal naquela noite fatal.

      Na praça, o regimento formava-se vagarosamente; os membros da municipalidade, fechados no quarto do Sr. de Damas, tinham saído facilmente arrombando a porta, e depois excitaram o povo e a guarda nacional, que se reunia com outro ardor e muito diferente aspecto que os dragões. Qualquer movimento que o Sr. de Damas fizesse (ele bem o percebeu) seria logo o alvo das pontarias de três ou quatro espingardas, cuja mira jamais o deixara, o que não era muito satisfatório. Via os soldados pensativos; passava por entre as fileiras, tentando reanimar a dedicação ao rei, mas os soldados meneavam a cabeça. Supostos que ainda estivessem todos juntos, julgou que era tempo de partir; deu a voz de marche, mas ninguém se mexeu!

      Entretanto, os membros da municipalidade gritaram.

      - Dragões! Os seus oficiais são traidores; querem conduzi-los à morte!... Os dragões são patriotas!... Vivam os dragões!... Vivam!...

      Quanto aos guardas nacionais e ao povo gritavam:

      - Viva a nação!

      A princípio o Sr. de Damas, que dera a meia voz, a voz de marche, julgou que eles não tinham ouvido.

      Voltou-se e viu que os dragões da segunda fila se apeavam e fraternizavam com o povo.

      Conheceu imediatamente que nada mais tinha a esperar dos seus homens. A um sinal feito com os olhos reuniu todos os oficiais em volta de si e disse:

      - Senhores, os soldados traem o rei... Apelo dos soldados para os fidalgos... Quem for meu amigo acompanhe-me a Varennes. Vamos!

      E enterrando as esporas na barriga do cavalo, foi o primeiro a correr por entre a multidão, seguido, pelo Sr. de Floirac e mais três oficiais.

      Estes três oficiais, ou antes estes três subalternos, eram o ajudante Foucq e os dois quartéis-mestres Saint-Charles e La Potterie.

      Cinco ou seis dragões fiéis saíram das fileiras, e seguiram também o Sr. de Damas.

      Algumas balas, que atiraram sobre esses heróicos fugitivos, foram perdidas.

      Eis como o Sr. de Damas e os seus dragões se não tinham encontrado ali para defender o rei, quando fora preso no arco da torre da portagem de Varennes, sendo obrigado a apear-se e conduzido a casa do Sr. Sausse membro da comuna.

 

A casa do Sr. Sausse

      A casa do Sr. Sausse, pelo menos o que dela viram os ilustres prisioneiros e os seus companheiros de infortúnio, compunha-se de uma loja de especiarias, ao fundo da qual, e através de uma vidraça, se via uma sala de jantar, donde se podia, estando à mesa, distinguir os fregueses que entravam na loja, entrada que, além disso, era anunciada por uma campainha, posta em movimento pela abertura de uma pequena porta do óculo, como as que fecham durante o dia os estabelecimentos da província, que os seus proprietários, ou por cálculo ou por humildade, parecem não ter direito a subtrair às vistas de quem passa.

      Num canto da loja havia uma escada de madeira com degraus velhos e toscos que conduzia ao primeiro andar.

      O primeiro andar compunha-se de dois quartos; o primeiro, suplemento da loja, estava cheio de fardos amontoados no chão, candeias presas ao tecto, formas de açúcar enfileiradas sobre o fogão, nos seus grosseiros papéis azuis e cobertas com as suas carapuças pardas, que podiam levantar-se para ver a qualidade do género; o segundo compartimento era o quarto de cama do dono, que acordado por Drouet, saíra deixando os sinais da desordem ocasionada por aquele repentino despertar.

      A Srª. Sausse, meio vestida, saía do primeiro quarto e aparecia no alto da escada, no momento em que a rainha, que ia adiante, depois o rei, em seguida os infantes e finalmente as Srª. princesas Isabel e de Tourzel, transpunham os umbrais do armazém.

      O membro da comuna, precedendo os viajantes, entrara primeiro.

      Mais de cem pessoas acompanhavam a carruagem, e ficaram diante da casa do Sr. Sausse, que era situada numa pequena praça.

      - Então? - disse o rei entrando.

      - Então, senhor - respondeu Sausse - falou-se em passaporte... se a senhora, que diz ser a dona da carruagem, quer mostrar o que tem, levá-lo-ei à municipalidade, onde se formará conselho, para verificar se é válido.

      Como o passaporte dado pela Srª. de Koff ao conde de Charny, e por este à rainha, estava em forma, o rei fez sinal à Srª. de Tourzel para o dar.

      Ela tirou o precioso papel da algibeira e entregou-o a Sausse, que encarregou sua mulher de fazer as honras da casa aos seus hóspedes misteriosos, e partiu para a municipalidade.

      Ali os espíritos estavam muito animados, porque Drouet assistia à sessão. O Sr. Sausse entrou com o passaporte; todos sabiam que os viajantes tinham sido conduzidos para casa dele, e à sua chegada estabeleceu-se o silêncio da curiosidade.

      Pôs o passaporte diante do maire.

      Já relatamos o teor desse passaporte; portanto o leitor sabe, que nada havia que se lhe dizer.

      Por isso, depois de o ter lido, o maire disse:

      - O passaporte está conforme.

      - É verdadeiro? - perguntaram oito ou dez vozes.

      E ao mesmo tempo estenderam as mãos para o receber.

      - Sem dúvida, verdadeiro, disse o maire, pois tem a assinatura do rei!

      E passou o passaporte para as mãos, que se estendiam e que se apoderaram imediatamente.

      Mas Drouet quase que o arrancou das mãos de quem o tinha.

      - Assinado pelo rei, é verdade! Mas também o está pela Assembléia Nacional?

      - Está sim - disse-lhe um dos que estava mais próximo e que à luz do mesmo candeeiro lia o passaporte, ao mesmo tempo que ele - e eis a assinatura dos membros de uma das juntas.

      - Concordo - disse Drouet - mas está assinado pelo presidente?... E além disso - atalhou o jovem patriota - a questão não consiste nisso. Os viajantes não são a Srª. Korff, senhora russa, com seus filhos, intendente duas criadas particulares e três criados; os viajantes são o rei, a rainha, o delfim, a infanta, a princesa Isabel, alguma fidalga e três correios... a família real finalmente! Querem, ou não, deixar sair de França a família real?

      A questão estabeleceu-se debaixo do seu ponto de vista verdadeiro; mas por estar assim estabelecida, tornava-se por isso mesmo mais difícil de resolver por aqueles pobres vereadores da municipalidade de uma cidade de terceira ordem, como Varennes.

      Trataram pois de deliberar; porém, parecendo ao membro da comuna que a sessão havia de ser demorada, resolveu deixá-los discutir à sua vontade, e voltou para casa.

      Encontrou os viajantes em pé na loja.

      A Srª. Sausse tinha insistido para que subissem, depois quisera que se assentassem na loja, e tomassem alguma coisa; mas tudo tinham recusado.

      Parecia-lhes que, instalando-se naquela casa, ou assentando-se, ou tomando qualquer coisa, fariam uma concessão aos que os tinham preso e renunciariam à próxima partida, que era o alvo de todos os seus desejos.

      Todas as suas faculdades estavam, por assim dizer, suspensas, até à volta do dono da casa, que devia trazer a decisão da municipalidade sobre o ponto tão importante do passaporte.

      De repente viram-no aparecer entre a multidão, que cercava a porta, e fazer esforços para entrar em casa.

      O rei deu três passos para ir ao seu encontro.

      - Então - lhe perguntou ele com uma ansiedade, que em vão tentava disfarçar e que manifestava a seu pesar; - então, o passaporte?

      - O passaporte - respondeu Sausse - devo dizer que provoca neste momento uma grande questão na municipalidade.

      - Que questão? - perguntou Luís XVI. – Acaso duvidariam da sua autenticidade?

      - Não; mas duvidam que pertença verdadeiramente à Srª. Korff, e espalha-se o boato de que é na realidade el-rei e sua família, que temos felicidade de possuir na nossa casa.

      Luís XVI hesitou um instante em responder, depois, deliberando-se repentinamente, disse:

      - Pois bem, sim, senhor, sou o rei... aqui está a rainha e os meus filhos... e convido-o a tratar-nos com as atenções que os franceses costumam ter para com os reis.

      Como dissemos, a porta da rua tinha ficado aberta e era cerrada por grande número de curiosos; as palavras do rei foram ouvidas, tanto dentro como fora da casa.

      Por infelicidade, conquanto quem acabava de pronunciar estas palavras as tivesse dito com certa dignidade, o casaco pardo, o colete de fustão o calção e as meias pardas, e a pequena cabeleira à João Jacques, que trazia, não correspondiam a essa dignidade.

      E realmente, como conhecer um rei de França debaixo daquele ignóbil disfarce?

      A rainha sentiu a impressão produzida sobre a multidão, e corou.

      - Aceitamos o que a Srª. Sausse nos oferece, disse vivamente, e subamos ao primeiro andar.

      A Srª. Sausse pegou numa luz e dirigiu-se para a escada, para indicar o caminho aos seus ilustres hóspedes.

      Durante este tempo, a notícia de que era o rei quem estava em Varennes, e que a confissão fora feita pela sua própria boca, corria rapidamente e espalhava-se pelas ruas da cidade.

      Na municipalidade entrou um homem todo esbaforido.

      - Senhores - disse ele - os viajantes presos em casa do Sr. Sausse são o rei e a família real... Acabo de ouvir esta confissão da própria boca do rei!

      - Então, senhores - exclamou Drouet - que lhes dizia eu?!

      Ao mesmo tempo ouviram-se grandes rumores pela cidade, e os tambores e os sinos continuaram a tocar.

      Por que razão todos estes diferentes rumores não atraíam para o centro da cidade e para junto dos fugitivos o Sr. de Bouillé2, o Sr. de Raigecourt, e os hussards estacionados em Varennes para esperar o rei?

      Vamos dizê-lo.

      Pelas nove horas da noite, os dois moços oficiais acabavam de entrar na hospedaria do Grande-Monarca, quando ouviram o rodar de um veículo.

      Estavam numa sala do pavimento inferior e correram à janela.

      O veículo era um simples cabriolé; entretanto os dois fidalgos estavam prontos, se fosse preciso a fazer sair as mudas.

      Mas o viajante que viram não era el-rei, era um grotesco personagem, coberto com um chapéu de abas largas e embuçado num enorme casacão.

      Iam retirar-se, quando o viajante gritou:

      - Olá! Alguns dos senhores é o Sr. Júlio de Bouillé?

      Bouillé parou e disse:

      - Sim, senhor, sou eu.

      - Nesse caso - disse o homem do casacão e do chapéu das grandes abas - tenho muito que dizer-lhe, meu caro senhor.

      - Então - disse de Bouillé - estou pronto a ouvi-lo, posto que não tenha a honra de o conhecer; queira portanto apear-se e entrar nesta hospedaria para falarmos.

      - De boa vontade, meu senhor, de boa vontade - disse o homem do casacão.

      E saltando do cabriolé, sem tocar no estribo, entrou apressadamente na hospedaria.

      De Bouillé notou que ele se mostrava embaraçado.

      - Ai Sr. de Bouillé - disse o desconhecido – vai dar-me os cavalos que tem aqui, não é verdade?

      - Como os cavalos que tenho aqui?

      - Sim, vai dar-mos... Não tem precisão de me ocultar nada... sei tudo!

      - Senhor, permita que lhe diga que a surpresa não me deixa responder-lhe, replicou o Sr. de Bouillé, e que nada compreendo do que quer dizer.

      - Repito-lhe que sei tudo, insistiu o viajante. El-rei partiu ontem à noite de Paris; mas há suposições de que não tenho podido seguir o seu caminho; já preveni disso o Sr. de Damas que mandou retirar as mudas... O regimento de dragões sublevou-se; há movimento em Clermont... A mim custou-me muito a passar.

      - Mas finalmente - disse o Sr. de Bouillé com impaciência - quem é o senhor?

      - Sou Leonardo, cabeleireiro da rainha... Como! não me conhece?... Imagine que o Sr. de Choiseul me trouxe consigo contra minha vontade. Fui eu que lhe levei os diamantes da rainha e da princesa Isabel... E quando penso, senhor, que meu irmão, de quem trouxe o chapéu e o casacão, não sabe o que é feito de mim, e que a pobre Srª. de l'Aage, me esperava ontem para a pentear, e que ainda me espera a estas horas... Oh! Meu Deus! Meu Deus! Que história!

      E Leonardo passeava a largos passos na sala, erguendo desesperadamente os braços para o tecto.

      O Sr. de Bouillé começava a entender, e disse:

      - Ah! É o Sr. Leonardo?

      - Certamente, sou Leonardo - respondeu o viajante suprimindo, como os grandes homens, o tratamento que lhe dera o Sr. de Bouillé - e como agora me conhece, vai dar-me os cavalos, não é verdade?

      - Sr. Leonardo - respondeu o fidalgo, obstinando-se em fazer entrar o ilustre cabeleireiro na classe ordinária dos mortais - os cavalos que tenho aqui são de el-rei e só el-rei se servirá deles.

      - Mas desde que lhe digo que não é provável que el-rei passe...

      - É verdade, Sr. Leonardo; mas el-rei pode passar, e se passasse sem encontrar cavalos, e lhe dissesse que lhos tinha dado, talvez me respondesse que lhe dava uma má razão.

      - Como má - disse Leonardo - acredita que, numa extrema situação como aquela que estamos, el-rei me repreenderia por ter levado os cavalos.

      O fidalgo não pôde deixar de sorrir-se.

      - Não julgo, meu caro Sr. Leonardo - disse ele - que el-rei o censurasse por se ter servido dos cavalos, mas acharia com toda a certeza, que eu tinha feito muito mal em lhos dar.

      - Ah! - disse Leonardo - diacho?... Não tinha encarado a questão por esse lado... Recusa-me então os cavalos, Sr. de Bouillé?

      - Positivamente.

      Leonardo deu um suspiro.

      - Mas ao menos - disse ele voltando à questão - empenhar-se-á para que mos dêem?

      - Oh! Quanto a isso, meu caro Sr. Leonardo – disse o Sr. de Bouillé - de boa vontade!

      Efectivamente, Leonardo era um hóspede muito impertinente; não só falava alto, senão que juntava às palavras uma pantomima, que graças às abas imensas do chapéu e à largura desmedida do casacão, tomava uma forma grotesca, cujo ridículo não deixava de reflectir algum tanto sobre os seus interlocutores.

      O Sr. de Bouillé apressava-se o mais possível em se desembaraçar de Leonardo.

      Mandou por conseqüência chamar o dono da hospedaria do Grande-Monarca, pediu-lhe para procurar cavalos que pudessem conduzir o viajante até Dun, e feita esta recomendação, abandonou Leonardo à sua sorte, dizendo-lhe (o que era verdade) que ia saber novidades.

      Os dois oficiais, o Sr. de Bouillé e o Sr. de Raigecourt, entraram efectivamente na cidade, atravessaram-na inteiramente, andaram um quarto de légua pela estrada de Paris, nada viram nem ouviram, e começaram a crer também, que o rei, que tinha oito ou dez horas de demora, não chegaria. Voltaram à hospedaria.

      Leonardo acabava de partir. Davam onze horas.

      Já muito inquietos, antes mesmo de terem ouvido o que dissera o cabeleireiro da rainha, tinham expedido uma ordenança pelas nove horas e um quarto. Fora essa ordenança que encontrara a carruagem à saída de Clermont, e que vimos chegar a casa do Sr. de Damas.

      Os dois oficiais esperaram até à meia-noite.

      À meia-noite deitaram-se, mas vestidos.

      À meia-noite e meia hora foram acordados pelo sino, pelo tambor e pelos gritos.

      Chegaram à janela da hospedaria e viram toda a cidade alvorotada, correndo, ou antes precipitando-se para o lado da municipalidade.

      Muitos homens armados corriam na mesma direcção.

      Esses homens levavam, uns espingardas de munição, outros espingardas de dois canos, outros iam simplesmente armados com sabres, espadas e pistolas.

      Os dois fidalgos foram às cavalariças e começaram por fazer sair os cavalos do rei, que a todo o risco e para os conservar, conduziram para fora da cidade.

      Atravessando esta, el-rei encontrá-los-ia ali.

      Depois voltaram a buscar os seus cavalos, que levaram para junto dos cavalos de el-rei, guardados pelos postilhões.

      Estas idas e vindas tinham causado suspeitas, e para saírem da hospedaria com os seus próprios cavalos, tiveram que sustentar uma espécie de combate em que dois ou três tiros de espingardas foram disparados sobre eles.

      Ao mesmo tempo, no meio dos gritos e das ameaças souberam que el-rei fora apanhado e conduzido a casa do Sr. Sausse, membro da comuna.

      Formaram conselho sobre o que deviam fazer. Deviam reunir os hussards e tentar um esforço para livrar el-rei? Deviam montar a cavalo e prevenir o marquês de Bouillé, que encontrariam, segundo toda a probabilidade, em Dun e com toda a certeza em Stenay?

      Ora, Dun só era distante dali cinco léguas e Stenay oito; em hora e meia podiam chegar a Dun, e em duas horas a Stenay e marchar imediatamente sobre Varennes, com a pequeníssima fracção de exército, comandado pelo Sr. de Bouillé.

      Combinaram neste último partido, e à meia-noite e meia hora, exactamente quando el-rei se decidia a subir para o quarto da Srª. Sausse, decidiram-se a abandonar a muda que lhes fora confiada, e partiram a grande galope para Dun.

      Era ainda um dos imediatos socorros, com que el-rei contava, e que lhe escapara!

 

XII

 

O conselho da desesperação

     

      Estarão lembrados os leitores da situação em que se achara o Sr. de Choiseul, comandante da primeira posta, na ponte de Sommevelle; vendo aumentar a insurreição em volta de si, e querendo evitar um combate, dissera negligentemente, sem esperar el-rei, que segundo todas as probabilidades o tesouro tinha passado, e retirara para Varennes.

      Porém, para não passar por Sainte-Menehould, que devem lembrar-se estava em grande agitação, tomara um atalho, tendo cuidado, até ao momento em que deixara a estrada real, de andar a passo, para que o correio se lhe pudesse reunir.

      Mas o correio não aparecera e em Orbeval meteu ao atalho.

      Atrás dele ia Isidoro.

      O Sr. de Choiseul acreditara firmemente que el-rei fora embaraçado por algum acontecimento imprevisto; além disso, se tinha a felicidade de se enganar, e se el-rei continuava o seu caminho, não encontraria o Sr. de Damas em Clermont?

      Já vimos o que acontecera ao Sr. de Dandoins, retido com os seus homens na municipalidade, e ao Sr. de Damas, obrigado a fugir quase só.

      Mas o que nos é conhecido, a nós, que pairamos na altura de sessenta anos sobre esse dia terrível, e que temos diante dos olhos a relação de todos os actores desse grande drama, era ainda oculto ao Sr. de Choiseul pelas nuvens do presente.

      O Sr. de Choiseul, que metera pelo atalho em Orbeval, chegou à noite ao bosque de Varennes, no momento em que Charny, noutra parte da floresta, se entranhava nesse bosque em busca de Drouet.

      Na última vila colocada na raia, isto é, na Ponte de Neuville, foi obrigado a perder mais de meia hora à espera de um guia.

      Entretanto o sino tocava a rebate em todas as aldeias próximas, e a retaguarda composta de quatro hussards era atacada pelos camponeses.

      O Sr. de Choiseul, prevenido imediatamente só conseguiu chegar junto deles no meio de uma carga a fundo.

      Os quatro hussards foram libertados; mas desde então o sino continuou a tocar a rebate com maior violência e não parou.

      O caminho através do bosque era extremamente difícil e muitas vezes até perigoso. O guia, ou de propósito ou contra vontade, fez perder a caravana; a todos os momentos para subir ou descer alguma montanha a pique, os hussards eram obrigados a apear-se; muitas vezes o caminho era tão estreito, que se viam nas circunstâncias de marchar a um de fundo.

      Um hussard caiu num precipício, e como pelos seus gritos de socorro conheceram que não tinha morrido, os camaradas não quiseram abandoná-lo: perderam nisto três quartos de hora. Foi exactamente durante esse tempo que o rei, sendo preso, foi obrigado a apear-se e a deixar-se conduzir a casa de Sausse.

      À meia-noite e meia hora, quando os Sr.s de Bouillé e de Raigecourt fugiam pela estrada de Dun, o Sr. de Choiseul com os seus hussards, apresentava-se na outra extremidade da cidade, vindo por um atalho.

      Na altura da ponte foi recebido por um vigoroso:

      - Quem vive!

      Este quem vive era dado por um guarda de sentinela.

      - França! E hussards de Lauzun! - respondeu o Sr. de Choiseul.

      - Não se passa! - respondeu o guarda nacional.

      E chamou às armas.

      Imediatamente fez-se um grande movimento na população; viram condensar-se às escuras massas de homens armados, e à luz dos archotes e das velas, que apareciam às janelas, brilhar espingardas pelas ruas.

      Não sabendo do que se tratava nem o que tinha acontecido, o Sr. de Choiseul quis primeiro fazer-se conhecer.

      Começou por pedir para falar ao comandante da estação de Varennes; o pedido trouxe conferências, e por fim decidiram-se a condescender com o desejo de Choiseul.

      Mas enquanto tomavam esta decisão e a executavam, o Sr. de Choiseul podia ver que os guardas nacionais empregavam bem o tempo preparando meios de defesa, fazendo barricadas com árvores e apontando sobre eles e os seus quarenta homens duas peças de artilharia de pequeno calibre.

      Quando o chefe de peça acabava de fazer a pontaria, chegou a força da polícia dos hussards, mas apeados; os homens que a compunham só sabiam que el-rei, segundo lhes tinham dito, acabava de ser preso e conduzido à casa da câmara.

      Quanto a eles foram surpreendidos e apeados pelo povo; ignoravam o que tinha sido feito dos seus camaradas e onde paravam.

      Quando acabavam de dar esta explicação, o Sr. de Choiseul julgou ver caminhar no meio da escuridão, uma pequena força de cavalaria, e ao mesmo tempo ouvir bradar:

      - Quem vive?

      - França! - respondeu uma voz.

      - Que regimento?

      - Dragões de Provença!

      A estas palavras retiniu um tiro de espingarda atirado por um guarda nacional.

      - Bom! - disse em voz baixa o Sr. de Choiseul ao oficial inferior, que estava ao pé dele - eis aí o Sr. de Damas e os seus dragões!

      E sem esperar mais, desembaraçando-se dos dois homens que se lhe tinham agarrado à rédea do cavalo e lhe gritavam que o seu dever era obedecer à municipalidade e reconhecê-la como único superior, mandou meter ao trote, derrubou os que o queriam fazer parar, forçou a passagem e penetrou nas ruas, iluminadas e cheias de gente.

      Aproximando-se da casa do Sr. Sausse, viu a carruagem de el-rei, desmontada, depois uma pequena Praça, na qual, defronte de uma casa de pouca aparência, estava postada uma guarda numerosa.

      Para não pôr a sua gente em contacto com os habitantes, foi direito ao quartel dos hussards, cuja posição sabia.

      O quartel estava deserto; aí aquartelou os seus quarenta hussards.

      Quando o Sr. de Choiseul saía do quartel, dois homens vindos da câmara prenderam-no e intimaram-no para comparecer na municipalidade.

      Mas o Sr. de Choiseul, cuja voz ainda podia ser ouvida pelos seus hussards, despediu os dois homens, dizendo-lhes que iria à municipalidade, quando tivesse tempo para isso, e ordenou em voz alta à sentinela, que não deixasse entrar ninguém.

      Dois ou três guardas da cavalariça tinham ficado no quartel; o Sr. de Choiseul interrogou-os, e soube por eles que os hussards, não sabendo o que era feito dos seus chefes, tinham seguido os burgueses, que os tinham vindo buscar, e espalhados pela cidade bebiam com eles.

      A esta notícia o Sr. de Choiseul entrou no quartel. Estava reduzido aos seus quarenta homens, cujos cavalos tinham andado mais de vinte léguas durante o dia. Homens e cavalos estavam estafados.

      Entretanto não havia que vacilar na presente situação. O Sr. de Choiseul principiou por fazer a inspecção às pistolas, para ver se estavam carregadas, depois declarou em alemão aos hussards, que não entendendo sequer uma palavra de francês, não tinham compreendido do que se passava à roda deles, que estavam em Varennes, que el-rei, a rainha e a família real acabavam de ser presos, e que se tratava de os tirar das mãos daqueles, que os conservavam prisioneiros, ou morrer!

      O discurso foi curto, mas ardente; pareceu produzir sobre os hussards uma grande impressão; Der Koenig! Die Köenigin! repetiram eles com assombro.

      O Sr. de Choiseul não lhes deu tempo para se acalmarem: mandou desembainhar os sabres e avançar por quatro à direita, e foi a grande trote para a casa, onde vira a guarda, na certeza de que era ali que el-rei estava preso.

      Ali no meio das invectivas dos guardas nacionais e sem se preocupar com elas, colocou duas sentinelas à porta e apeou-se para entrar na casa.

      No momento em que ia transpor o umbral, sentiu que lhe tocavam no ombro.

      Voltou-se e viu o conde Carlos de Damas, cuja voz tinha conhecido, respondendo ao quem vive dos guardas nacionais.

      Talvez o Sr. de Choiseul tivesse contado um pouco com este auxiliar.

      - Ah! É o senhor - disse ele; - tem alguma força à sua disposição?

      - Estou só, quase só, respondeu o Sr. de Damas.

      - Então como?

      - O meu regimento não quis acompanhar-me, e estou aqui com cinco ou seis homens.

      - É uma desgraça... Mas não importa! restam-me os meus quarenta hussards; vejamos o que temos a fazer com eles.

      El-rei recebia uma deputação da câmara, conduzida por Sausse.

      Esta deputação vinha dizer a Luís XVI:

      - Visto que não é duvidoso para os habitantes de Varennes terem a felicidade de possuir o seu rei, eles vêm receber as suas ordens.

      - As minhas ordens? - disse el-rei; - então mandem aprontar imediatamente as minhas carruagens para que possa partir.

      Não se sabe o que ia responder a esta ordem precisa a deputação municipal, quando ouviram o galope dos cavalos do Sr. de Choiseul e quando viram por entre os vidros os hussards formarem na praça, com os sabres desembainhados.

      A rainha estremeceu; um raio de alegria lhe passou pelos olhos.

      - Estamos salvos! - murmurou ela ao ouvido da princesa Isabel.

      - Deus o queira! - respondeu a santa ovelha real, que referia tudo a Deus, bem e mal, esperança e desespero.

      El-rei endireitou-se e esperou.

      Os membros da municipalidade, inquietos, olharam uns para os outros.

      Neste momento ouviu-se um grande ruído na antecâmara, guardada por camponeses armadas de foices. Trocaram-se algumas palavras, depois uma luta, e o Sr. de Choiseul, sem chapéu, com a espada na mão, apareceu no limiar da porta.

      Por cima do ombro dele via-se a cabeça do Sr. de Damas, que estava pálido, mas resoluto.

      Havia no olhar dos dois oficiais uma tal expressão ameaçadora, que os deputados da câmara afastaram-se, deixando livre o espaço que separava os recém-chegados do rei e da família real.

      Quando entraram, o interior da câmara apresentava o aspecto seguinte:

      No meio estava uma mesa, sobre a qual havia uma garrafa de vinho, pão e alguns copos.

      El-rei e a rainha em pé ouviam os deputados da câmara; ao pé da janela estavam a princesa Isabel e a infanta; na cama, quase desmanchada, dormia o delfim prostrado de cansaço; ao lado dele, a Srª. Tourzel estava assentada, com a cabeça encostada às mãos; em pé, atrás dela, estavam as Srª.s Brunier e de Neuville; finalmente, os srs. de Malden, de Valory e Isidoro de Charny, esmagados ao peso da dor e da fadiga, escondiam-se na penumbra, sobre cadeiras.

      Avistando o Sr. de Choiseul, a rainha atravessou o quarto em toda a sua extensão e pegando-lhe na mão, disse:

      - Ah! Sr. de Choiseul! Seja bem-vindo!

      - Ai, minha senhora - disse o duque - parece-me que chego muito tarde!

      - Não importa, se chega bem acompanhado.

      - Não, minha senhora, estamos quase sós: o Sr. Dandoins foi retido com os seus dragões na municipalidade de Sainte-Menehould e o Sr. de Damas foi abandonado pelos seus...

      A rainha meneou tristemente a cabeça.

      - Mas - continuou o Sr. de Choiseul - onde está o cavalheiro de Bouillé? Onde está o Sr. de Raigecourt?

      E o Sr. de Choiseul procurava-os com os olhos à roda de si.

      Entretanto el-rei tinha-se aproximado.

      - Ainda não vi esses senhores - disse ele.

      - Meu senhor - disse o Sr. de Damas - dou-lhe a minha palavra de honra, que os julgava mortos debaixo das rodas da carruagem de vossa majestade...

      - Que se há-de fazer? - perguntou el-rei.

      - Salvar a vossa majestade - disse o Sr. de Damas. - Dê-me as suas ordens.

      - Meu senhor - disse o Sr. de Choiseul - tenho aqui quarenta hussards: andaram hoje vinte léguas; mas ainda chegarão bem até Dun.

      - E nós? - perguntou o rei.

      - Queira vossa majestade ouvir - respondeu o Sr. de Choiseul; - eis a única coisa, que julgo poder fazer-se. - Tenho quarenta hussards, como lhe disse, mando apear sete; vossa majestade montará num dos cavalos, tendo o delfim nos braços; a rainha montará o segundo; a princesa Isabel, no terceiro; a Srª. infanta no quarto; e as Srª.s de Tourzel, de Neuville e Brunier, que não quer abandonar, farão o mesmo... Nós os cercaremos com os trinta e três hussards que ficam a cavalo; abriremos o caminho a golpes de sabre, e desta maneira teremos um meio de salvação! Mas reflicta bem, meu senhor, que é uma medida a adoptar-se imediatamente se for aceita, porque numa hora, num quarto de hora talvez, os meus hussards fugirão.

      O Sr. de Choiseul calou-se esperando a resposta do rei; a rainha parecia consentir no projecto e com os olhos pregados em Luís XVI interrogava-o ardentemente com o olhar.

      Porém ele, ao contrário parecia evitar o olhar da rainha e a influência que ela podia ter no seu espírito.

      Finalmente, olhando para o Sr. de Choiseul, disse:

      - Sim, bem sei que é um meio, talvez o único... Mas pode responder-me que, nesse desigual combate de trinta e três homens, contra oitocentos, uma bala de espingarda não matará meu filho, ou minha filha, a rainha ou minha irmã?

      - Meu senhor - respondeu o Sr. de Choiseul – se uma tal desgraça acontecesse, por ter cedido ao meu conselho, só me restaria matar-me aos olhos de vossa majestade.

      - Pois bem, então em lugar de nos deixarmos arrebatar por todos esses projectos, pensemos friamente.

      A rainha deu um suspiro e dois ou três passos para trás.

      Nesse momento, em que não podia dissimular a sua aflição, encontrou Isidoro, que atraído pelo tumulto da rua e esperando sempre que esse tumulto fosse motivado pela chegada do irmão, aproximara-se da janela.

      Trocaram em voz baixa duas ou três palavras, e Isidoro correu para fora do quarto.

      O rei continuou, sem parecer ter notado o que acabava de passar-se entre a rainha e Isidoro.

      - A municipalidade - disse ele - não recusa deixar-me passar; só pede que espere aqui até ao nascer do dia. Não falo do conde de Charny, que nos é tão profundamente dedicado, e de quem não temos notícias: mas o Sr. de Bouillé e o Sr. de Raigecourt partiram, segundo me afirmaram, dez minutos depois da minha chegada, para prevenir o marquês de Bouillé e fazer marchar as tropas, que estão decerto prontas. Se estivesse só, seguiria o seu conselho e passaria; mas a rainha, os meus dois filhos, a minha irmã e essas senhoras, é impossível arriscar tanto, com a pouca gente que tem, e de que seria necessário apear ainda uma parte, porque decerto não partiria deixando aqui os meus três guardas. (Tirou o relógio e consultou-o). São quase três horas... Bouillé partiu à meia noite e meia hora, e o pai tem decerto postado as tropas de distância em distância; as primeiras serão advertidas por Júlio de Bouillé; chegarão sucessivamente. Não são mais do que oito léguas daqui a Stenay; em duas horas, ou duas e meia, podem muito bem andar-se a cavalo; chegarão pois destacamentos toda a noite, pelas cinco ou seis horas o marquês de Bouillé poderá estar aqui pessoalmente; e então sem perigo para a minha família e sem violência, deixaremos Varennes e continuaremos o nosso caminho.

      O Sr. de Choiseul reconhecia a lógica deste juízo; entretanto, o seu instinto dizia-lhe que há certos momentos em que não convém escutar a lógica.

      Voltou-se para a rainha, e com o olhar parecia suplicar que lhe desse outras ordens, ou pelo menos, obtivesse do rei que revogasse as que acabava de dar.

      Mas ela meneando a cabeça, disse:

      - Não quero ser responsável por coisa nenhuma, compete a el-rei ordenar; o meu dever é obedecer. Além disso, sou de opinião de el-rei: o Sr. de Bouillé não pode tardar em chegar.

      O Sr. de Choiseul inclinou-se e recuou alguns passos acompanhado pelo Sr. de Damas, com quem tinha precisão de combinar, e fez sinal aos dois guardas para que tomassem parte no conselho que iam formar.

 

Pobre Catarina!

      O quarto mudara alguma coisa de aspecto.

      A infanta não pudera resistir ao cansaço, e a princesa Isabel e a Srª. de Tourzel tinham-na deitado ao lado do irmão.

      Adormecera.

      A princesa Isabel conservava-se em pé com a cabeça encostada a um dos ângulos do leito.

      A rainha, encolerizada, estava de pé junto da chaminé, em sentido oposto a el-rei, que se assentara num fardo de mercadorias, e aos quatro oficiais, que deliravam junto da porta.

      Uma mulher octogenária estava de joelhos, como diante de um altar, ao pé do leito em que dormiam as duas crianças: era a avó do Sr. Sausse, que impressionada pela beleza das duas crianças e pelo ar altivo da rainha, caíra de joelhos, chorando e rezando em voz baixa.

      Qual seria a súplica que dirigia a Deus? Seria para que Deus perdoasse àqueles dois anjos ou para que eles perdoassem aos homens?

      O Sr. Sausse e os membros da municipalidade tinham-se retirado prometendo a el-rei que os cavalos iam ser metidos à carruagem.

      Mas o olhar da rainha dizia perfeitamente que não acreditava nessa promessa. Por isso o Sr. de Choiseul dizia aos srs. de Damas, de Floirac e de Foucq, que o tinham acompanhado bem como aos dois guardas os srs. de Malden e de Valory.

      - Senhores, não nos fiemos na fingida tranqüilidade de el-rei e da rainha; a questão não é desesperada, encaremo-la como ela é.

      Os oficiais fizeram sinal, que ouviam e que podia falar.

      - É provável que a estas horas o Sr. de Bouillé esteja ciente, e que chegue aqui pelas cinco ou seis horas da manhã, pois que deve estar em Dun ou Stenay com o destacamento do Real Alemão; é possível até que a sua vanguarda esteja aqui meia hora antes dele, porque nas circunstâncias em que nos achamos, tudo o que é possível, deve ser feito. Mas devemo-nos lembrar que quatro ou cinco mil homens nos cercam e que no momento em que avistarem as tropas do Sr. de Bouillé, será o de um grande perigo e de uma efervescência espantosa... Quererão levar o rei para fora de Varennes, buscarão fazê-lo montar a cavalo e conduzi-lo a Clermont; hão-de ameaçar-lhe a vida; talvez atentem contra ela... Mas esse perigo, senhores - continuou o Sr. de Choiseul - só durará um instante, e forçada a barreira, logo que os hussards entrem na cidade, a derrota será completa. Serão pois dez minutos que temos de sustentar; somos dez; com a disposição das localidades, podemos esperar que só matem um homem por minuto; por conseqüência temos tempo!

      Os ouvintes contentaram-se em fazer um sinal da cabeça afirmativo; a dedicação, que ia até à morte, era aceita com a mesma simplicidade.

      - Pois bem! Senhores, julgo que é o que temos a fazer - continuou o Sr. de Choiseul: - aos primeiros tiros que ouvirmos, aos primeiros gritos dados lá fora, precipitar-nos-emos no quarto, mataremos todos os que se encontrarem, e apossar-nos-emos da escada e das janelas. Há três janelas: três de nós as defenderemos; os outros sete dividir-se-ão pela escada, cuja disposição em caracol a torna fácil de defender, por isso que um homem só aí pode fazer face a cinco ou seis assaltantes. Os próprios cadáveres dos que dentre nós forem morrendo, servirão de trincheira aos outros. Há pois cem a apostar contra um, que as tropas estarão senhoras da cidade, antes que sejamos degolados, até ao último; e, ainda que o fôssemos, o lugar que ocuparíamos na história, seria magnífica recompensa da nossa dedicação.

      Apertaram mutuamente as mãos como deviam fazer os esparciatas no momento de combate; depois cada qual tomou o seu lugar de combate: os dois guardas e Isidoro de Charny, cujo lugar estava reservado, conquanto ele estivesse ausente, ocuparam as três janelas, que davam para a rua; o Sr. de Choiseul o patamar inferior da escada; atrás dele o conde de Damas, depois o Sr. Floirac, o Sr. Foucq e os dois outros oficiais subalternos do regimento de dragões, que tinham permanecido fiéis ao Sr. de Damas.

      Quando se tomaram estas disposições, ouviu-se um certo rumor na rua.

      Era segunda deputação, composta de Sausse, que parecia ser o elemento principal de todas as deputações, de Hannonet, comandante da guarda nacional, e de três ou quatro membros da municipalidade.

      Mandaram-se anunciar, e el-rei, que julgava que vinham dizer-lhe que os cavalos estavam finalmente na carruagem, viu-se forçado a ordenar que fossem introduzidos.

      Entraram os moços oficiais, que interpretavam todos os gestos, todos os sinais, todos os movimentos, julgaram notar na fisionomia de Sausse uma certa hesitação, e na de Hannonet uma vontade contrariada, que não lhe pareceram de bom agouro.

      Ao mesmo tempo subiu Isidoro de Charny, disse em voz baixa algumas palavras à rainha e tornou a descer precipitadamente.

      A rainha empalideceu, recuou um passo e encostou-se à cama, onde dormiam os filhos.

      Quanto ao rei, interrogava com os olhos os enviados da municipalidade, esperando impaciente que lhe dirigissem a palavra.

      Mas estes, sem falar inclinaram-se diante do rei.

      Luís XVI mostrou enganar-se na intenção.

      - Senhores - disse ele - os franceses só estão perturbados, mas a dedicação ao rei é verdadeira. Fatigado pelos contínuos ultrajes que recebo na capital, é para o centro das minhas províncias, onde ainda vive a sagrada chama do amor, que estou resolvido a retirar-me... Aí estou certo de encontrar o antigo amor do meu povo para com os seus soberanos.

      Os deputados inclinaram-se novamente.

      - E estou pronto a dar prova da minha confiança para com o meu povo - continuou o rei - Por isso vou tomar aqui metade dos homens da guarda nacional e metade da tropa de linha, e esta me acompanhará até Montmédy, para onde estou decidido a retirar-me. Por conseqüência, comandante, peço-lhe que escolha o senhor mesmo os homens, que me hão-de acompanhar, entre os soldados da sua guarda nacional, e que mande meter os cavalos à minha carruagem.

      Houve um momento de silêncio, durante o qual, sem dúvida Sausse esperava que Hannonet falasse, ao passo que este esperava que Sausse tomasse a palavra.

      Finalmente, Hannonet, inclinando-se, respondeu:

      - Senhor, seria com muito gosto que obedeceria às ordens de vossa Majestade, mas há um artigo da constituição que proíbe a el-rei sair do reino e aos bons franceses coadjuvá-lo na fuga.

      O rei estremeceu.

      - Por conseguinte - continuou Hannonet fazendo um sinal com a mão para pedir a el-rei que o deixasse acabar - por conseguinte, a municipalidade de Varennes decidiu que antes de permitir que el-rei passasse além, enviaria um correio a Paris, e esperaria a resposta da Assembléia Nacional.

      O rei sentiu o suor correr-lhe pela fronte, ao passo que a rainha mordia de impaciência os lábios pálidos, e a princesa Isabel erguia as mãos ao Céu.

      - Olá! Senhores - disse o rei com certa dignidade, que lhe chegava quando era impelido até aos extremos - não serei senhor de ir aonde me convém? Nesse caso, sou mais escravo que o último dos meus vassalos!

      - Senhor - respondeu o comandante da Guarda Nacional - vossa majestade é sempre o senhor... Porém todos os homens, rei e simples cidadãos, estão presos pelo seu juramento... Vossa majestade jurou: seja o primeiro a obedecer à lei; é não só um grande exemplo, mas também um nobre dever a cumprir.

      Durante este tempo, o Sr. de Choiseul consultava com os olhos a rainha e pela resposta afirmativa à pergunta muda que ele lhe fazia, desceu também.

      O rei compreendeu que, se se sujeitasse sem resistência a esta rebelião, que segundo o seu pensamento, era uma rebelião de aldeia estava perdido.

      Além disso, reconhecia esse mesmo espírito revolucionário que Mirabeau quis combater na província, e que já vira erguer-se diante dele, nos dias 14 de Junho, 5 e 6 de Outubro e 18 de Abril, dia em que, para fazer uma experiência da sua liberdade, quisera ir a Saint-Cloud, e fora impedido pelo povo.

      - Senhores - disse ele - isto é uma violência; mas não estou tão isolado como parece; tenho ali diante da porta quarenta homens fiéis, e à roda de Varennes dez mil soldados. Ordeno-lhes pois, Sr. comandante, que mande meter os meus cavalos à carruagem imediatamente... Entende, ordeno-lho, quero!

      A rainha aproximou-se do rei e em voz baixa disse:

      - Bem! Bem! Senhor, arriscamos nisso a nossa vida, mas não abandonamos a nossa honra!

      - E se recusarmos obedecer a vossa majestade - disse o comandante - que resultará?

      - Resultará, senhor, que recorrerei à força, e que serão responsáveis pelo sangue que eu não queria fazer correr, e que neste caso será derramado verdadeiramente pelos senhores.

      - Pois, bem, senhor, seja assim - disse o comandante; - tente chamar os seus hussards; eu vou reunir a guarda nacional.

      E desceu.

      O rei e a rainha olharam um para o outro quase assustados; talvez que um ou outro tivesse tentado um esforço supremo, afastando a velha, que continuava a orar junto do leito, se a mulher de Sausse se não tivesse aproximado, e não tivesse perguntado à rainha com a brutalidade e franqueza da mulher do povo.

      - Ah! Senhora, é a rainha, não é verdade?

      A rainha voltou-se, sentindo-se mordida na sua dignidade por esta interpelação mais que familiar.

      - Sou sim, pelo menos assim o julgo.

      - Pois bem, se é a rainha - continuou a Srª. Sausse sem se perturbar - dão-lhe vinte e quatro milhões para sustentar o seu lugar... O lugar é bom, segundo julgo, porque é bem pago: por que motivo o quer deixar?

      A rainha deu um grito de dor, e voltando-se para el-rei, disse:

      - Oh! Senhor, tudo, tudo, antes que todas estas indignidades!

      E tomando o delfim, adormecido, sobre a cama, correu à janela, abrindo-a e disse:

      - Senhor, mostremo-nos a este povo e vejamos se está inteiramente gangrenado... Nesse caso, recorramos aos soldados, e animemo-los com a acção. É menos que merecem aqueles que vão morrer por nós.

      O rei seguiu maquinalmente e apareceu depois com ela na varanda.

      Toda a praça, em que se mergulharam as vistas de Luís XVI e Maria Antonieta, apresentava o espectáculo de uma viva agitação.

      Metade dos hussards do Sr. de Choiseul estavam a pé, a outra a cavalo.

      Os que estavam de pé, espalhados, perdidos no meio dos grupos dos burgueses, deixavam conduzir-lhes os cavalos em todas as direcções; já pertenciam à nação; os que estavam a cavalo pareciam ainda submissos ao Sr. de Choiseul, que lhes falava em alemão; mas eles apontavam para o esquadrão como para lhe mostrar que faltavam metade dos seus camaradas.

      Isidoro de Charny com a faca de mato na mão, parecia estranho a todo este tumulto, esperava um homem, como um caçador espera a caça.

      O grito de: “O rei! O rei!” soou imediatamente, proferido por quinhentas bocas.

      Era efectivamente o rei e a rainha que apareciam à janela; a rainha como dissemos tinha o delfim nos braços.

      Se Luís XVI estivesse investido com o manto real, ou com o uniforme militar; se tivesse na mão um ceptro ou uma espada; se tivesse falado com essa voz forte e imponente, que nessa época parecia ainda ao povo a voz de Deus, ou do seu enviado, baixado do Céu, talvez tivesse obtido sobre aquela multidão a influência que esperava.

      Mas o rei, ao nascer do dia, à claridade daquele crepúsculo bastardo, que afeia a própria beleza, o rei vestido de criado, com uma casaca parda, sem pós, com a ignóbil e pequena cabeleira que dissemos, o rei, pálido, sujo, com a barba de três dias, os lábios grossos, o olhar embaciado que não exprimia idéia alguma, nem tirania, nem protecção; o rei gaguejando alternativamente estas duas palavras:

      - Senhores... Meus filhos...

      Ah! Não era isso o que esperavam daquela varanda nem os amigos nem os inimigos da realeza.

      Entretanto o Sr. de Choiseul gritou:

      - Viva el-rei!

      Isidoro de Charny gritou:

      -Viva el-rei!

      E tal era ainda o prestígio da realeza que, apesar desse aspecto, que correspondia tão mal à idéia, que tinham feito do chefe do grande reino, algumas vozes entre a multidão gritavam com entusiasmo:

      - Viva el-rei!

      Mas um grito respondeu, dado pelo chefe da guarda nacional, que foi repetido de outra maneira muito diferente, e que teve um eco mais forte, foi o grito de:

      - Viva a nação!

      Este grito, na presente ocasião, era uma rebelião, e o rei e a rainha tiveram tempo de ver, que ele tinha sido pronunciado por alguns hussards.

      Maria Antonieta deu também uma espécie de grito de raiva, e apertando contra o peito o delfim, pobre criança, ignorante da gravidade dos acontecimentos que se passavam debruçou-se mascando entre os dentes e cuspindo na multidão esta palavra:

      - Miseráveis!...

      Alguns ouviram-na e responderam com ameaças.

      Na praça havia um grande tumulto e um imenso clamor.

      O Sr. de Choiseul, desesperado, queria suicidar-se; porém tentando um último esforço, bradou:

      - Hussards! Em nome da honra, salvem o rei!

      Mas neste momento um novo actor, entre uns vinte homens armados, apareceu em cena.

      Era Drouet, que saía da municipalidade, onde tinha conseguido que se decidisse impedir que o rei prosseguisse a jornada.

      - Ah - exclamou ele, caminhando para o Sr. de Choiseul - queria roubar o rei?... Pois bem! sou eu que lhe digo, que só o terá morto!

      O Sr. de Choiseul deu também um passo para Drouet, com o sabre levantado, mas o comandante da guarda nacional estava ali.

      - Se dá mais um passo - disse ele ao Sr. de Choiseul, mato-o.

      A estas palavras, correu um homem, sem que nem os grupos, nem as ameaças pudessem embaraçá-lo.

      Era Isidoro de Charny; o homem que ele esperava, era exactamente Drouet.

      - Para trás! para trás! - gritou ele apartando a multidão com o peito do cavalo; - este homem pertence-me!

      E com a faca levantada arremessou-se sobre Drouet.

      Mas no momento em que ia agarrá-lo, dois tiros partiram ao mesmo tempo; um de pistola, outro de espingarda.

      A bala da pistola foi achatar-se na clavícula de Isidoro.

      A bala da espingarda atravessou-lhe o peito.

      Os dois tiros partiram de tão perto, que o desgraçado se achou literalmente envolto numa onda de chamas e numa nuvem de fumo.

      Viram-no inteiriçar os braços, e ouviram-lhe murmurar:

      - Pobre Catarina!

      Depois, deixando cair a faca de mato, tombou na anca do cavalo, e daí rolou até à terra.

      A rainha deu um grito terrível quase deixou cair o delfim dos braços e fugiu para dentro do quarto, sem reparar num novo cavaleiro que chegava a toda a brida do lado de Dun, e se introduzia, por assim dizer, no sulco que acabava de traçar, no meio da multidão, a passagem do pobre Isidoro.

      Atrás da rainha o rei entrou e fechou a janela. Já não eram só algumas vozes que gritavam: “Viva a nação!” não eram só os hussards a pé; era toda a multidão, e com ela os vinte hussards que tinham ficado fiéis, única esperança da realeza angustiada!

      A rainha foi assentar-se numa cadeira com a cabeça entre as mãos, pensando que acabava de ver morrer por ela, a seus pés, Isidoro de Charny, como vira cair Jorge.

      Mas, de repente, fizeram um grande barulho à porta, que a obrigou a levantar a cabeça.

      O que se passou, num segundo, no coração daquela mulher, daquela rainha, não tentaremos descrevê-lo.

      Olivier de Charny, pálido e todo ensangüentado pelo último abraço do irmão, estava de pé à porta.

      Quanto ao rei, parecia aniquilado.

 

Charny

      A câmara estava cheia de guardas nacionais e de estranhos, que a curiosidade para ali tinha guiado.

      A rainha foi pois detida no seu primeiro movimento, que era de correr ao encontro de Charny, limpar com o lenço o sangue de que estava coberto, e dizer-lhe algumas dessas palavras de consolação, que partindo dum coração, chegam a outro coração.

      Mas só pôde erguer-se sobre a cadeira, estender os braços para ele, e murmurar:

      - Olivier!...

      Este sombrio e sossegado, fez um sinal aos assistentes estranhos, e com voz doce e firme disse:

      - Senhores, perdão, é preciso que eu fale a suas majestades.

      Os guardas nacionais tentaram responder que estavam ali, ao contrário, para impedir que o rei tivesse comunicação com pessoas de fora; Charny contraiu os lábios pálidos, encrespou as sobrancelhas, abriu o casaco, deixando ver um par de pistolas, e repetiu com voz mais doce que da primeira vez, mas por isso mesmo mais ameaçadora:

      - Senhores, já tive a honra de lhes dizer que tinha necessidade de falar em particular ao rei e à rainha.

      E ao mesmo tempo fazia com a mão sinal aos estranhos para que saíssem.

      Àquela voz e ao poder que Charny, exercendo-o sobre si mesmo, exercia sobre os outros, o Sr. de Damas e os Sr.s de Malden e de Valory recuperaram toda a sua energia, um instante alterada, e empurrando adiante de si guardas nacionais e curiosos, fizeram despejar o quarto.

      Então a rainha compreendeu de que utilidade seria um tal homem na carruagem do rei, se a etiqueta não exigisse que a Srª. de Tourzel ali fosse no seu lugar.

      Charny olhou à roda de si, a fim de se certificar de que não ficavam, por então junto da rainha mais do que fiéis servidores, e aproximando-se dela, disse:

      - Senhora, eis-me aqui... Tenho setenta hussards às portas da cidade; julgo poder contar com eles. Que ordena de mim?

      - Oh! Primeiro que tudo, disse a rainha em alemão, que lhe aconteceu, meu pobre Charny?

      Charny, por um sinal, advertiu a rainha que estava ali o Sr. de Malden, que falava o alemão.

      - Ah! Ah! - disse a rainha em francês, não o vendo - julgava-o morto!

      - Infelizmente, minha senhora - respondeu Charny com profunda melancolia - não fui eu que morri... Foi meu pobre irmão Isidoro.

      E não pôde reter uma lágrima.

      - Mas - murmurou ele em voz baixa - também me há-de chegar a vez!

      - Charny! Charny! Pergunto-lhe o que lhe aconteceu - disse a rainha - e por que motivo desapareceu assim?

      Depois acrescentou em voz baixa:

      - Olivier, tem-nos feito muita falta... a mim, especialmente!

      Charny inclinou-se.

      - Julgava - disse ele - que meu irmão teria tido a honra de dizer a vossa majestade a causa que me havia afastado momentaneamente da sua carruagem.

      - Sim, bem sei... Perseguiu esse homem, esse maldito Drouet, e por um instante tememos que lhe tivesse acontecido alguma desgraça nessa perseguição.

      - Aconteceu-me efectivamente uma grande desgraça... Apesar de todos os meus esforços, não o pude alcançar a tempo: um postilhão de retorno disse-lhe que as carruagens de vossa majestade, que ele julgava seguirem a estrada de Verdun, tinham tomado a de Varennes. Então embrenhou-se nos bosques de Argonne; disparei sobre ele duas pistolas que infelizmente não estavam carregadas! Tinha-me enganado no cavalo em Sainte-Menehould e montei no do Sr. de Dandoins em lugar de montar no que me estava destinado... Que quer, minha senhora? Uma fatalidade!... Nem por isso deixei de o perseguir na floresta, mas ignorava o caminho, e ele conhecia-lhe até os menores atalhos; depois a escuridão tornava-se cada vez maior... Enquanto pude vê-lo, segui-o como a uma sombra; enquanto pude ouvi-lo, segui-o pelo som; mas o som cessou, como a sombra se desvanecera e achei-me só, embrenhado no meio da floresta, e perdido nas trevas... Oh! Minha senhora, tenho coragem, bem o sabe, e neste momento não choro; pois no meio da floresta, da escuridão, derramei lágrimas de cólera, soltei gritos de raiva.

      A rainha estendeu-lhe a mão.

      Charny inclinou-se e tocou aquela mão trémula com a extremidade dos lábios.

      - Mas ninguém me respondeu - continuou Charny; - errei toda a noite, e quando amanheceu, achei-me junto da aldeia de Gèves, na estrada de Varennes a Dun. Teriam vossas majestades tido a felicidade de escapar a Drouet do mesmo modo que ele me escapou? Era possível. Se tinham atravessado Varennes era inútil que eu aí fosse... Se estavam presos em Varennes? Então estava só e a minha dedicação era-lhes inútil.

      Resolvi continuar o meu caminho para Dun. Um pouco antes de chegar à cidade, encontrei o Sr. Deslon com cem hussards. O Sr. Deslon estava inquieto, mas não havia recebido notícia alguma; porém tinha visto passar, fugindo a toda a brida, do lado de Stenay, o Sr. de Bouillé e o Sr. de Raigecourt.

      Por que motivo não lhe disseram nada? Decerto desconfiaram dele. Mas eu tenho o Sr. Deslon na conta de um bom e leal fidalgo; adivinhei que vossa majestade tinha sido presa em Varennes, que os srs. de Bouillé e de Raigecourt tinham fugido, e iam prevenir o general. Disse tudo ao Sr. Deslon; roguei-lhe que me acompanhasse com os seus hussards, o que ele fez imediatamente, deixando contudo trinta dos seus soldados para guardar a ponte do Mosa. Uma hora depois, estávamos em Varennes, tendo andado quatro léguas numa hora! Quis começar imediatamente o ataque e destruir todos os obstáculos para chegar ao pé do rei e de vossa majestade.

      Encontramos barricadas sobre barricadas; era uma loucura tentar saltá-las, Então procurei pactuar. Uma estação de guarda nacional se apresentou: pedi-lhe licença para reunir os meus hussards, aos que estavam na cidade; recusaram-mo; pedi para vir receber as ordens de el-rei, e como se preparassem para recusar este segundo pedido, assim como tinham feito ao primeiro, piquei o meu cavalo, saltei a primeira barricada, depois a segunda... Guiado pelo motim, corri a galope e cheguei à praça, quando vossa majestade, voltando-se para trás, deixava a janela... E agora - continuou o conde de Charny - espero as ordens de vossa majestade.

      A rainha apertou ainda uma vez as mãos de Charny entre as suas. Depois, virando-se para el-rei, mergulhado sempre no mesmo torpor disse:

      - Senhor, ouviu o que acabou de dizer o seu fiel servidor, o conde de Charny?

      El-rei não respondeu.

      A rainha, levantando-se, dirigiu-se-lhe dizendo:

      - Senhor, não há tempo a perder, e por infelicidade já temos perdido muito... Aqui está o Sr. de Charny, que dispõe de setenta homens seguros para o que for necessário, e que pede as suas ordens.

      El-rei meneou a cabeça.

      - Senhor, em nome do Céu dê as suas ordens!

      E Charny implorava com a vista, enquanto a rainha implorava com a voz.

      - As minhas ordens? - disse el-rei; - não tenho ordens que dar, porque sou prisioneiro; faça o que lhe parecer.

      - Bem - disse a rainha - é tudo o que lhe pedimos.

      E chamando Charny à parte, disse:

      - Tem carta branca; faça como lhe disse el-rei, tudo o que puder fazer.

      Depois acrescentou em voz baixa:

      - Mas depressa e com vigor, senão estamos perdidos!

      - Bem, senhora - disse Charny; - deixe-me conferenciar um instante com estes senhores, e o que decidirmos será executado imediatamente, pois de facto não há tempo a perder.

      Neste momento entrou o Sr. de Choiseul.

      Trazia na mão alguns papéis sujos de sangue embrulhados num lenço.

      Estendeu-o para Charny, sem dizer nada.

      O conde compreendeu que eram os papéis encontrados a seu irmão.

      Estendeu a mão para receber essa herança ensangüentada, aproximou o lenço dos lábios e beijou-o.

      A rainha não pôde conter um soluço

      Porém Charny nem sequer se voltou, e guardando os papéis, disse:

      - Meus senhores, querem ajudar-me no último esforço, que vou tentar?

      - Estamos prontos a sacrificar as vidas; - responderam os mancebos.

      - Julgam poder responder por uns dez homens fiéis?

      - Nós somos já oito ou nove.

      - Pois bem! Eu volto para junto dos meus setenta hussards. Enquanto ataco as barricadas pela frente, façam uma diversão pela retaguarda; com o socorro dessa diversão forçarei as barricadas, e com as nossas duas forças reunidas penetramos até aqui e levamos el-rei.

      Os mancebos por única resposta estenderam a mão ao conde de Charny.

      Este voltou-se então para a rainha dizendo:

      - Senhora, dentro de uma hora vossa majestade estará livre, ou eu estarei morto.

      - Oh! Conde! Conde! Não pronuncie essa palavra, que me faz muito mal!

      Olivier contentou-se com inclinar-se em confirmação da sua promessa, e sem se inquietar com os novos rumores, que rebentavam e que pareciam abismar-se na casa, caminhou para a porta...

      Mas no momento em que punha a mão na chave, a porta abriu-se e deu passagem a um novo personagem, que ia envolver-se também no enredo, já bastante complicado daquele drama.

      Era um homem de quarenta a quarenta e dois anos, de rosto sombrio e severo; o colarinho caído sobre os ombros, o casaco aberto, os olhos vermelhos de cansaço, o fato cheio de pó, tudo indicava que, impelido também por alguma violenta paixão, acabava de fazer uma carreira desesperada.

      Trazia um par de pistolas à cinta e um sabre ao lado.

      Arquejante, quase com a voz extinta no momento em que abriu a porta, só sossegou quando conheceu o rei e a rainha.

      Um sorriso terrível de vingança se lhe manifestou na fisionomia e sem se importar com os personagens secundários, que ocupavam o fundo da câmara, da mesma porta, que obstruía inteiramente com a sua elevada estatura, estendeu a mão, dizendo:

      - Em nome da Assembléia Nacional, são todos meus prisioneiros!

      Por um movimento tão rápido como o pensamento, o Sr. de Choiseul avançou com uma pistola na mão, e estendeu o braço para queimar os miolos, àquele recém-chegado, que parecia exceder na insolência e na resolução tudo o que até ali se tinha visto.

      Mas, com um movimento mais rápido ainda, a rainha suspendeu essa mão ameaçadora, dizendo em voz baixa ao Sr. de Choiseul:

      - Não adiante a nossa perda... Tenha prudência! Com tudo isto ganhamos tempo, e o Sr. de Bouillé não pode estar longe.

      - Sim, tem razão - respondeu o Sr. de Choiseul.

      E ocultou a pistola.

      A rainha lançou um volver de olhos sobre Charny, admirada por não o ter visto aparecer neste novo perigo; mas, coisa estranha! Charny parecia desejar não ser visto pelo recém-chegado, e para lhe escapar decerto às vistas, acabava de se esconder no recanto mais escuro do quarto.

      Entretanto, a rainha, que conhecia o conde, estava bem certa de que no momento oportuno, sairia ao mesmo tempo dessa escuridão e desse mistério.

 

Mais um inimigo

      Toda esta cena do Sr. de Choiseul ameaçando o homem que falava em nome da Assembléia Nacional tinha-se passado sem que este tivesse sequer parecido notar que acabava de escapar a um perigo de morte.

      Além disso parecia estar possuído de outro sentimento muito mais poderoso que o do temor.

      Não havia que enganar-se na expressão do rosto; era a de um caçador, que vê, finalmente reunidos e amontoados, na mesma caverna, o leão, a leoa e os leõezinhos, que lhe devoram o filho único.

      Entretanto à palavra prisioneiros, que havia feito exaltar o Sr. de Choiseul, el-rei levantara-se.

      - Prisioneiros! Prisioneiros em nome da Assembléia Nacional! Que quer dizer? Não o compreendo.

      - É bem simples - respondeu o homem - e por conseqüência muito fácil de entender. Apesar do juramento que fez, de não deixar a França, fugiu de noite, faltando à sua palavra, traindo a nação e o povo; de maneira que a nação gritou: “Às armas!” de maneira que o povo e a nação lhe dizem pela voz de um dos seus últimos súbditos, a qual, por partir de um homem de classe inferior, nem por isso é menos poderosa: Senhor! Em nome do povo, em nome da Assembléia Nacional, é meu prisioneiro!

      No quarto próximo sentiu-se um rumor de aprovação acompanhado, ou antes seguido de frenéticos bravos.

      - Senhora! Senhora! - murmurou o Sr. de Choiseul ao ouvido da rainha - não se esqueça de que foi vossa majestade que me fez parar, e que, se não fosse a extrema piedade que teve deste homem, não sofreria semelhante ofensa...

      - Isso tudo nada será, se nos vingarmos - disse em voz baixa a rainha.

      - Sim - respondeu o Sr. de Choiseul; - mas se nos não vingarmos?

      A rainha deu um profundo e doloroso gemido.

      Charny estendeu lentamente a mão por cima do ombro do Sr. de Choiseul, e foi tocar no braço da rainha.

      Maria Antonieta voltou-se vivamente.

      - Deixe falar e operar este homem - disse muito baixo o conde; - eu me encarrego dele.

      Entretanto el-rei, espantado pelo novo golpe que acabava de sofrer, olhava admirado para o sombrio personagem, que em nome da Assembléia, da nação e do povo, acabava de lhe falar uma linguagem tão enérgica, e a este espanto reunia-se uma certa curiosidade, porque parecia a Luís XVI, que, suposto já se não lembrasse onde, não era a primeira vez que via aquele homem.

      - Mas, finalmente - disse ele - vejamos, o que me quer? Pode falar.

      - Senhor, quero que nem vossa majestade, nem a família real dêem mais um passo para fora do reino.

      - E vem decerto, acompanhado de milhares de homens armados para se opor ao meu caminho? - disse el-rei, que se exaltava na discussão.

      - Não, senhor, estou só... ou antes somos só dois: o ajudante de ordens do general Lafayette e eu, isto é, um simples paisano. Porém, a Assembléia publicou um decreto, contou connosco para o executar e há-de ser executado!

      - Entregue-me esse decreto, disse el-rei, ao menos quero vê-lo!

      - Não sou eu que o tenho, é o meu companheiro... Ele foi enviado pelo Sr. de Lafayette e pela Assembléia para dar execução às ordens da nação... Eu fui enviado pelo Sr. de Bailly, e especialmente por mim mesmo, para vigiar este companheiro e fazer-lhe saltar os miolos se hesitasse!

      A rainha, os srs. de Choiseul, de Damas e todos os outros assistentes olharam-se admirados.

      Até então só tinham visto o povo opresso ou furioso, pedindo graça ou assassinando; viam-no agora, pela primeira vez, sossegado, erecto, com os braços cruzados, conhecendo a sua força e falando em nome dos seus direitos.

      Por isso Luís XVI compreendeu que nada havia a esperar de um homem daquela têmpera, e desejando despedi-lo perguntou:

      - Muito bem: onde está o seu companheiro?

      - Ali - respondeu ele - atrás de mim.

      E a estas palavras, dando um passo para a frente, desembaraçou a porta, por cuja abertura puderam ver um mancebo vestido com o uniforme de ajudante de ordens, encostado à janela.

      Este, em lugar de manifestar força, ao contrário parecia abatido. Tinha o rosto inundado de lágrimas e um papel na mão.

      Era o Sr. de Romeuf, isto é, o jovem ajudante de campo do general Lafayette com quem o nosso leitor decerto se lembra, fizemos conhecimento na ocasião da chegada de Luís de Boillé a Paris.

      O Sr. de Romeuf, como se pode inferir da conversação que teve com o jovem realista, era patriota sincero; mas durante a ditadura do Sr. de Lafayette nas Tulherias, encarregado particularmente de vigiar a rainha e de acompanhar nos seus passeios, mostrara nas suas relações com ela tão respeitosa delicadeza que a rainha muitas vezes lhe testemunhara o seu reconhecimento.

      Por isso, conhecendo-o, a rainha exclamou:

      - Oh! É o senhor!

      Depois, com um gemido doloroso, como o da mulher, que vê abater um poder, que julgava invencível, acrescentou:

      - Oh! Nunca o teria acreditado!

      - Bom! - murmurou o segundo mensageiro - parece-me que fiz bem em vir.

      O Sr. de Romeuf, avançou com os olhos baixos, com lentidão e conservando o papel na mão.

      Mas el-rei, impaciente, não deu ao mancebo tempo de lhe apresentar o decreto; deu um passo para ele e arrancou-lho da mão.

      E depois de ter lido, disse:

      - Já não há rei em França!

      O homem que acompanhava o Sr. de Romeuf sorriu, como se quisesse dizer: “Bem o sei!”

      A estas palavras de el-rei, a rainha fez um movimento como para o interrogar.

      - Ouça, senhora - disse ele - eis o decreto que a Assembléia ousou publicar.

      E leu com voz trémula de indignação as linhas seguintes:

     

      “A Assembléia ordena que o ministro do interior expeça imediatamente correios para os departamentos, com ordem para todos os funcionários públicos, guardas nacionais e tropas de linha do reino, de prender ou mandar prender toda e qualquer pessoa que saia do reino, bem como de impedir qualquer saída de bagagens, armas, munições, dinheiro em ouro ou prata, cavalos e carruagens; e no caso dos correios encontrarem el-rei, ou alguém da família real, e os indivíduos que tiverem concorrido para a sua fuga, os ditos funcionários públicos, guardas nacionais ou tropas de linha, serão obrigados a tomar todas as medidas possíveis para embaraçar a dita fuga e impedi-los de continuar o seu caminho, dando conta depois ao corpo legislativo.”

     

      A rainha ouvira com uma espécie de torpor, mas quando el-rei acabou, meneando a cabeça, como para acordar as suas idéias, disse, estendendo também a mão para o decreto fatal:

      - Dê-mo. É impossível!...

      Entretanto o companheiro do Sr. de Romeuf sossegava com um sorriso os guardas nacionais e os patriotas de Varennes.

      Esta palavra impossível, pronunciada pela rainha, tinha-os inquietado, conquanto tivessem ouvido do princípio ao fim o teor do decreto.

      - Oh! Leia, senhora - disse el-rei com amargura: - se ainda duvida, leia... Está escrito e assinado pelo presidente da Assembléia Nacional.

      - E quem ousou escrever e assinar um tal decreto?

      - Um nobre, senhora - respondeu el-rei - o marquês de Beauharnais!

      Não é coisa estranha, e que bem prova as ligações do passado com o futuro, que o decreto, que embaraçava a fuga de Luís XVI, da rainha e da família real, fosse firmado por um nome, que, obscuro até então, ia de uma maneira brilhante ligar-se à história do começo do século XIX!

      A rainha pegou no decreto e leu-o, com as sobrancelhas franzidas e com os lábios contraídos.

      El-rei tirou-lho das mãos para o tornar a ler, e depois de o ter lido segunda vez, arremessou-o para cima da cama, onde dormiam insensíveis àquela discussão, que decidia da sua sorte, o delfim e a infanta.

      A rainha, vendo isto, e não podendo conter-se por mais tempo, correu veloz, agarrou o papel, amarrotou-o nas mãos e atirou-o para longe do leito, exclamando:

      - Oh! Senhor, tenha cautela! Não quero que este papel suje os meus filhos!

      Elevou-se na casa próxima forte murmúrio; os guardas nacionais fizeram um movimento para se precipitarem no quarto em que estavam os ilustres fugitivos.

      O ajudante de ordens do general Lafayette deixou escapar um grito de terror.

      O seu companheiro deu um grito de raiva.

      - Ah! - murmurou este último entre os dentes - insultam a Assembléia! Insultam a Nação! Insultam o povo!... Está bem!...

      E voltando-se para os homens, já preparados para a luta, que enchiam a primeira casa, armados de espingardas, de foices e de sabres, gritou:

      - A mim cidadãos!

      Estes, para penetrarem no quarto fizeram um movimento, que só era o complemento do primeiro, e Deus sabe o que resultaria do choque daquelas duas cóleras, quando Charny, que desde o começo da cena apenas pronunciara as poucas palavras que referimos, e que desde então se conservara afastado, avançou, e agarrando pelo braço o guarda nacional desconhecido, no momento em que levava a mão ao punho do sabre, disse:

      - Uma palavra, se faz favor, Sr. Billot; desejo falar-lhe.

      Billot, porque era ele, deixou pela sua vez escapar um grito de espanto, tornou-se excessivamente pálido, ficou um instante indeciso, e embainhando o sabre meio fora da bainha, disse:

      - Pois bem, vamos a isso... Eu também tenho que falar-lhe, Sr. de Charny.

      E dirigindo-se imediatamente para a porta, disse:

      - Cidadãos, dêem-nos lugar, façam favor. Tenho que falar um instante com este oficial... Mas tranquilizem-se - acrescentou ele em voz baixa - nem o lobo, nem a loba, nem os lobinhos nos escaparão... Estão ali e respondo por eles.

      Como se aquele homem, que lhes era tão desconhecido a eles, como o era, à excepção de Charny, a el-rei e ao seu séquito, tivesse direito de lhes dar ordens, saíram deixando a casa livre.

      Além disso, todos tinham que contar aos companheiros de fora o que acabava de passar-se no interior, e recomendar aos patriotas que vigiassem mais do que nunca.

      Entretanto, Charny dizia em voz baixa à rainha:

      - O Sr. de Romeuf é-lhe dedicado, senhora; deixo-lho; tire dele todo o partido possível.

      E isto tornava-se-lhe tanto mais fácil porquanto, chegando ao quarto imediato, Charny fechou a porta, e encostando-se a ela, impedia que o próprio Billot entrasse.

 

O ódio de um homem do povo

      Charny e Billot, achando-se cara a cara, olharam-se um instante, sem que o olhar do fidalgo pudesse fazer baixar o olhar do homem do povo.

      Mais ainda: Billot foi o primeiro a falar.

      - O Sr. conde fez-me a honra de dizer-me que tinha alguma coisa que comunicar-me; espero que tenha a bondade de começar.

      - Billot - perguntou Charny - donde procede encontrá-lo aqui, encarregado de uma missão de vingança? Eu julgava-o nosso amigo, e além disso bom e fiel súbdito de el-rei.

      - Fui bom e fiel súbdito de el-rei, Sr. conde; fui, não seu amigo, semelhante honra não estava reservada para um pobre lavrador como eu, mas fui um dos seus mais humildes criados.

      - E então?

      - Então, Sr. conde, como vê, já não sou nem uma nem outra coisa.

      - Não compreendo, Billot,

      - Para que quer compreender-me, Sr. conde? Acaso lhe pergunto eu as causas da sua fidelidade a el-rei, os motivos da sua dedicação à rainha? Não; presumo que tem as suas razões para proceder assim, e que como é um homem de bem e prudente, as suas razões hão-de ser boas, ou pelo menos, assim o julga. Não tenho a sua elevada posição, Sr. conde, não tenho a sua sabedoria; todavia conhece-me, ou conheceu-me homem de bem, e também prudente... Suponha pois, que, como o senhor, tenho as minhas razões, senão boas, ao menos que assim me parecem.

      - Billot - disse Charny, que ignorava completamente os motivos de ódio que o lavrador podia ter contra a nobreza ou contra a realeza - conheci-o, ainda não há muito tempo, de uma maneira muito diferente do que está hoje.

      - Oh! Decerto, não o nego - disse Billot com um sorriso amargo - sim, conheceu-me de uma maneira muito diversa do que estou actualmente!

      “Vou dizer-lhe como era, Sr. conde; era um verdadeiro patriota, dedicado a dois homens, e a uma coisa; os dois homens eram el-rei e o Dr. Gilberto; a coisa era o meu país.”

      “Um dia, os agentes de el-rei vieram a minha casa, e meio por vontade, meio por surpresa, levaram-me um cofre, depósito precioso que me fora confiado pelo Dr. Gilberto.”

      “Logo que fiquei livre, parti para Paris; aí cheguei no dia 13 de Julho à noite.”

      “Era no meio do motim causado pelos bustos do Sr. duque de Orleans e do Sr. Necker.”

      “Traziam os bustos pelas ruas, gritando: ‘Viva o duque de Orleans! Viva o Sr. Necker!’ Isto não fazia muito mal a el-rei, e todavia os soldados atacaram-nos: vi pobres diabos, que não tinham cometido outro crime senão o de gritar: vi dois homens, que provavelmente não conheciam, cair à roda de mim, uns com a cabeça aberta a golpes de sabre, outros com o peito atravessado pelas balas; vi o Sr. de Lambesc, amigo do rei, perseguir até às Tulherias, mulheres e crianças, que não tinham gritado, e pisar com as patas do cavalo um velho de setenta anos. Isto continuou a malquistar-me com el-rei.”

      “No dia seguinte, fui ao colégio onde estava Sebastião, o filho do Dr. Gilberto, e soube pela pobre criança que o pai estava na Bastilha por ordem de el-rei, solicitada por uma senhora da corte; e continuei a dizer, que o rei, que supunham tão bom, tinha no meio dessa bondade, grandes momentos de erro, de ignorância ou de esquecimento; e para resgatar, tanto quanto pudesse, uma das faltas que o rei tinha cometido num desses momentos de esquecimento, de ignorância ou de erro, contribuí com todas as minhas forças para a tomada da Bastilha.”

      “Alcançámo-la não sem trabalho! os soldados de el-rei atiraram sobre nós, e mataram-nos, pouco mais ou menos, duzentos homens, o que me deu novamente ocasião de não ser da opinião de todos a respeito da bondade do rei... Mas enfim a Bastilha foi tomada; numa das enxovias encontrei o Dr. Gilberto, por quem acabava de arriscar a vida muitas vezes, e a alegria de o encontrar fez-me esquecer muitas coisas.”

      “Além disso, uma das primeiras coisas que me disse o doutor foi que el-rei era bom; que ignorava a maior parte das indignidades que se faziam em seu nome, e que não era a ele que se devia odiar, mas sim aos seus ministros. Ora, como tudo o que me dizia o Dr. Gilberto era para mim nessa época palavras do Evangelho, acreditei-o vendo a Bastilha tomada, o Dr. Gilberto livre, Pitou e eu sãos e salvos; esqueci as descargas da rua de Saint-Honoré, os ataques das Tulherias, os cento e cinqüenta ou duzentos homens mortos pelo capricho do príncipe de Saxe, e a prisão do Dr. Gilberto, por simples pedido de uma senhora da corte... Mas perdão, Sr. conde - disse Billot interrompendo-se - nada disso lhe diz respeito, e não pediu para me falar em particular para ouvir as repetições enfadonhas de um pobre rústico, sem educação, o senhor que é ao mesmo tempo um grande senhor e um sábio.”

      Billot fez um movimento para levar a mão à chave e entrar no quarto onde estava el-rei.

      Charny suspendeu-o.

      Para o impedir tinha duas razões:

      A primeira é que ficava sabendo as causas da inimizade de Billot, o que numa tal situação não deixava de ter importância; a segunda é porque ganhava tempo.

      - Não, conte-me tudo, meu caro Billot, disse ele; sabe a amizade que lhe tínhamos, tanto eu como os meus pobres irmãos, e o que me está dizendo interessa-me no último ponto. Repito-lhe: continue.

      - Pois bem, disse ele; então vou contar-lhe tudo, Sr. de Charny, e sinto que os seus pobres irmãos... especialmente... o Sr. Isidoro, não estejam presentes para me ouvirem.

      Billot pronunciara estas palavras: “Especialmente... o Sr. Isidoro” com tão singular expressão, que Charny comprimiu o movimento doloroso que o nome de seu irmão querido lhe acordava na alma, e sem responder a Billot, que ignorava visivelmente a desgraça acontecida a Isidoro de Charny, cuja presença ele desejava, fez sinal que podia continuar.

      Billot continuou, dizendo:

      - Por isso, quando o rei se pôs em marcha para Paris, não vi nele mais do que um pai, que voltava para o centro de seus filhos; caminhava com o Dr. Gilberto ao pé da carruagem real, fazendo àqueles, que ela encerrava, uma muralha com o meu corpo e gritando como um desesperado: viva o rei! Foi na primeira jornada do rei.

      Havia em volta dele, diante, atrás, pela estrada, debaixo das patas dos cavalos, debaixo das rodas da carruagem, bênçãos e flores. Chegando à praça do palácio da câmara, notaram que el-rei não trazia o laço branco, mas também que ainda não tinha o laço tricolor.

      “Gritaram: o laço! o laço! Tirei o do meu chapéu e dei-lho; agradeceu-mo e pô-lo no seu, com grandes aclamações da multidão.”

      “Estava louco de alegria por ver o meu laço no chapéu daquele bom rei, e por isso gritei eu só: ‘Viva el-rei!’ mais alto do que todos; era tão entusiasta por aquele bom rei, que fiquei em Paris; a minha colheita estava pronta e tinha precisão da minha presença, mas que importava! era assaz rico para perder uma colheita, e se a minha presença era útil nalguma coisa àquele bom rei, ao pai do povo, ao Restaurador da liberdade francesa, como nós, simplórios, lhe chamávamos naquela época, mais valia que ficasse em Paris, do que voltar para Pisseleux... A minha colheita, que tinha confiado aos cuidados de Catarina, foi a pouco e pouco perdendo-se... Catarina, segundo parece, tinha outra coisa em que cuidar, além da colheita... não falemos mais nisso.”

      “Entretanto dizia-se que não era com muita franqueza que el-rei aceitava a revolução; que procedia constrangido e forçado; que não era o laço tricolor, que desejava trazer no chapéu, mas sim o branco... Os que diziam isso eram os caluniadores, o que foi suficientemente provado no banquete dos srs. guardas do corpo, em que a rainha não pôs nem o laço tricolor, nem o branco, nem o nacional, nem o francês, mas simplesmente o laço de seu irmão José II, o laço austríaco, o laço negro! Ah! confesso-lho, nessa ocasião a minha dúvida recomeçou, mas, como o Dr. Gilberto me dizia: ‘Billot não foi el-rei que fez isso, foi a rainha,; ora, a rainha é mulher, e para com as mulheres é necessário ser condescendente’; eu acreditei-o; tanto que, quando vieram de Paris para atacar o paço, ainda que pensasse no mais íntimo do meu coração, que os que vinham atacar o paço não faziam inteiramente mal, pus-me do lado dos defensores: de maneira que fui eu quem foi acordar o Sr. de Lafayette, que dormia, pobre homem, que era um encanto, e que o conduzi ao paço justamente a tempo de salvar o rei. Ah! nesse dia vi a princesa Isabel apertar nos seus braços o Sr. de Lafayette; vi a rainha dar-lhe a mão a beijar; ouvi el-rei chamar-lhe seu amigo, e disse comigo mesmo: pela minha honra! parece que o Dr. Gilberto tem razão!”

      “Certamente, não é por medo que um rei, uma rainha e uma princesa real dão tais demonstrações de afecto, e se eles não participassem das opiniões deste homem, por maior que fosse a utilidade de que ele lhe pudesse ser neste momento, três personagens desta qualidade não se abaixariam a mentir! Ainda dessa vez, voltei a lamentar a pobre rainha, que só era imprudente, e o pobre rei, que só era fraco. Porém deixei-os ir para Paris, sem mim... Eu estava ocupado em Versalhes, sabe em quê, Sr. de Charny?...”

      Charny deu um suspiro.

      - Disseram - continuou Billot - que aquela segunda jornada não foi tão alegre como a primeira; disseram que em lugar de bênçãos, tivera maldições; que em lugar de vivas, houve gritos de morte; que em lugar de flores abundantemente lançadas debaixo das patas dos cavalos e das rodas da carruagem, houve cabeças cortadas e espetadas nas pontas das lanças...

      “Nada disso sei, não estava lá; tinha ficado em Versalhes. Deixava sempre a herdade abandonada... oh! Era assaz rico para depois de ter perdido a colheita de 1789 perder também a de 1790!”

      “Mas numa linda manhã, Pitou chegou e disse-me que estava a ponto de perder uma coisa que um pai nunca é suficientemente rico para perder... era a minha filha!”

      Charny estremeceu.

      Billot olhou fixamente para Charny e continuou:

      - É preciso dizer-lhe, Sr. conde, que há a uma légua da nossa casa, em Boursonnes, uma família nobre, uma família de nobres senhores, uma família poderosamente rica. Compunha-se de três filhos. Quando eram crianças, e que iam a Boursonnes a Villers-Cotterets, os mais novos dos três irmãos faziam-me quase sempre a honra de parar na herdade; diziam que nunca tinham bebido tão bom leite como o das minhas vacas, comido tão bom pão como o da tia Billot, e de vez em quando acrescentavam (julgava eu, pobre simplório, que era para me pagar a hospitalidade!) que nunca tinham visto uma criança tão linda, como a minha filha Catarina. E eu agradecia-lhes por beberem o leite das minhas vacas, comerem o meu pão e acharem linda a minha filha Catarina! Que quer, acreditava tanto no rei, que é segundo dizem, meio alemão pela mãe, que bem podia acreditar neles, que eram franceses! Por isso, quando o mais moço, que tinha deixado o país havia muito tempo, e que se chamava Jorge, foi morto em Versalhes, junto da porta dos aposentos da rainha, na noite de 5 para 6 de Outubro, desempenhando valorosamente o seu dever de fidalgo, Deus sabe até que ponto senti o golpe que o matou.

      “Ah! Sr. conde, o seu irmão segundo viu-me, ele, que não vinha a casa, não porque fosse soberbo, faço-lhe essa justiça, mas porque tinha deixado o país muito mais novo ainda que o seu irmão Jorge; o seu irmão mais velho viu-me de joelhos diante do cadáver, derramando tantas lágrimas, como ele tinha derramado sangue... Parece-me ainda ali estar... no fundo dum pequeno pátio cheio de erva e úmido, para onde o tinha transportado nos meus braços, para que não fosse mutilado, pobre moço, como o tinham sido os seus companheiros, os srs. de Varicourt e des Huttes... suposto que eu tivesse tanto sangue no meu fato, como tem no seu, Sr. conde. Oh! é porque era um excelente mancebo, que me parece ver ainda, quando ia para o colégio de Villers-Cotterets, no seu cavalito baio, com o cestinho na mão; e é tanto verdade, que, pensando nele, se fosse o único em que penso, creio que choraria ainda, como chora, Sr. conde... mas penso no outro, ajuntou Billot, e não choro.”

      - No outro! Que quer dizer - perguntou Charny muito admirado.

      - Espere - disse Billot - já lá vamos... Pitou tinha voltado de Paris e tinha-me dito duas palavras, que me provavam que não era a minha seara que corria perigo, mas a minha filha; que não era a minha fortuna que ia ser destruída, mas a minha felicidade!

      “Deixei pois o rei em Paris. Como estava de boa fé, e segundo me dizia o Dr. Gilberto, tudo ia a melhor, quer eu ali estivesse quer não, voltei para a herdade.”

      “Julguei primeiro que Catarina só estava em perigo de vida: tinha delírios, uma febre cerebral, que sei eu?... O estado em que a encontrei inquietou-me muito, e ainda mais quando o doutor me proibiu que entrasse no quarto enquanto não estivesse restabelecida; mas, não podendo entrar no quarto, pobre pai desesperado, julguei que me era permitido escutar à porta. Escutei pois. Então soube que ela quase tinha morrido, que tinha febre cerebral, finalmente que estava quase louca, porque o seu amante partira!”

      “Eu também tinha partido um ano antes, e em lugar de enlouquecer por seu pai a deixar, sorriu à minha despedida... A minha partida dava-lhe liberdade para ver o amante!”

      “Catarina melhorou, mas perdeu a alegria; um mês, dois meses, seis meses se passaram sem que um único raio de alegria alumiasse aquele rosto, que os meus olhos nunca abandonavam. Uma manhã vi-a sorrir e tremi: o amante ia sem dúvida voltar, visto que ela sorria...”

      “No dia seguinte, um pastor que o vira passar, disse-me que nessa manhã tinha chegado. Não duvidei que na noite desse dia ele fosse a minha casa, ou antes a casa de Catarina. Por isso quando anoiteceu, carreguei a minha espingarda de dois canos e pus-me à espera.”

      - Billot - exclamou Charny - fez isso?...

      - Porque não? - disse Billot; - ponho-me à espera para matar o javali, que vem estragar as minhas searas, o lobo que vem devorar as minhas ovelhas, a raposa que vem estrangular as minhas galinhas, e não me havia de pôr à espera para matar o homem, que ia roubar a minha felicidade, o amante que ia desonrar a minha filha?

      - Mas chegado a esse ponto faltou-lhe o ânimo, não é verdade, Billot? - disse vivamente Charny.

      - Não - disse Billot - o ânimo não, mas a pontaria e a mão... Um rastro de sangue me provou, que o tiro não tinha sido inteiramente perdido. Porém, bem o compreende, acrescentou Billot com amargura, entre um amante e um pai, a minha filha não tinha hesitado... Quando entrei no quarto de Catarina, tinha desaparecido!

      - E não a tornou a ver depois? – perguntou Charny.

      - Não - respondeu Billot; - mas para que hei-de tornar a vê-la? Ela bem sabe que se a visse, matava-a!

      Charny fez um movimento, que denotava o terror que lhe inspirava aquele génio tão poderoso.

      - Voltei aos trabalhos da minha herdade – continuou Billot; - que me importava a minha desgraça, contanto que a França fosse feliz? O rei não caminha desembaraçado na estrada da revolução? Não devia presidir à festa da Confederação? Não ia tornar a ver o bom rei, a quem dera um laço tricolor no dia 16 de Julho, a quem tinha quase salvo a vida no dia 6 de Outubro? Que alegria não seria para ele ver toda a França reunida no Campo-de-Marte, jurando como um único homem o princípio da unidade da pátria? Por isso, quando o vi, por um instante esqueci tudo, até Catarina... Não, minto, um pai nunca esquece a sua filha!

      “Ele também, quando lhe competiu, jurou; pareceu-me que jurava mal, que jurava com a extremidade dos lábios, que jurava no seu lugar em vez do jurar sobre o altar da pátria; mas tinha jurado; e era o essencial. Um juramento é um juramento; não é o sítio em que se pronuncia que o torna mais ou menos sagrado, e quando se faz juramento todo o homem honrado o cumpre.”

      “É verdade que, voltando para Villers-Cotterets, como nada mais tinha que fazer senão ocupar-me da política, não tendo a minha filha, ouvi dizer que o rei queria fazer-se roubar pelo Sr. de Favras, mas que o plano fora malogrado; que o rei tinha querido fugir com as tias, mas que o projecto não tivera resultado; que o rei tinha querido ir a Saint-Cloud, daí passar a Rouen, mas que o povo se tinha oposto; é verdade que ouvi dizer tudo isto, mas não acreditava. Não tinha eu visto no Campo-de-Marte o rei estender a mão? Não o tinha ouvido prestar o juramento à nação?”

      “Qual era o meio de acreditar que um rei, que tinha jurado em presença de trezentos mil cidadãos, não mantivesse um juramento, por menos sagrado que fosse? Não era possível. Por isso quando anteontem ia para o mercado de Meaux, fiquei bastante admirado, quando ao amanhecer (deverei dizer-lhe que tinha ficado em casa do dono da posta, um dos meus amigos com quem tinha feito um grande negócio de trigo) numa carruagem que tomava mudas, vi e conheci o rei, a rainha e o delfim. Não podia enganar-me; estava costumado a vê-los de carruagem, porque no dia 16 de Junho os tinha acompanhado de Versalhes a Paris, Então ouvi um desses senhores vestidos de amarelo, que dizia: ‘Estrada de Châlons.’ A voz fez-me impressão, voltei-me e conheci, quem? Aquele que me tinha roubado Catarina, um nobre fidalgo, que fazia o seu dever de batedor correndo adiante da carruagem do rei.”

      A estas palavras, Billot olhou fixamente para Charny para ver se este compreendia que se tratava de seu irmão Isidoro; mas o conde limitou-se única e simplesmente a limpar com o lenço o suor que lhe corria da fronte.

      Billot continuou:

      - Quis persegui-lo: já estava longe. Montava um bom cavalo, estava armado, e eu não. Um instante, rangi os dentes, com a idéia de que o rei escapava à França, como o raptor me escapava a mim: mas de repente, uma idéia se me apresentou: “Vamos – disse eu - também prestei juramento à nação, e logo que o rei falta ao seu, devo observar o meu?... Pela minha honra, sim, conservemo-lo! Só estou a dez léguas de Paris; são três horas da manhã; num bom cavalo é negócio de duas horas. Falarei a este respeito com o Sr. de Bailly, um homem de bem, que me parece ser partidário dos que observam os juramentos, contra os que o não observam. Deliberado isso, para não perder tempo, pedi ao meu amigo, o dono da posta de Meaux (bem entendido, sem lhe dizer o que ia fazer) que me emprestasse o seu uniforme de guarda nacional, o sabre e as pistolas.

      “Montei no melhor cavalo da cavalariça, e em lugar de partir a pequeno trote para Villers-Cotterets, meti a galope para Paris. Pela minha honra! Cheguei a propósito: sabiam já da fuga do rei, mas ignoravam para que lado fora. O Sr. de Romeuf tinha sido enviado pelo Sr. de Lafayette, pela estrada de Valenciennes; mas, veja o que é o acaso! na barreira tinha parado, e obtivera que o fizessem voltar para a Assembléia Nacional, e aí entrava justamente no momento em que o Sr. de Bailly, instruído por mim, dava a respeito do itinerário de sua majestade os mais minuciosos esclarecimentos.”

      “Não havia senão a escrever uma ordem bem em regra e a mudar de itinerário. Fez-se isso num instante: o Sr. de Romeuf foi expedido pela estrada de Châlons, e eu recebi ordem de o acompanhar, missão que cumpro, como vê.”

      “Agora, acrescentou Billot com ar sombrio, apanhei o rei que me enganou como francês, e estou tranqüilo, porque não me há-de escapar; resta-me apanhar o homem que me enganou como pai, e juro-lhe, Sr. conde, que também me não há-de escapar.”

      - Ai, meu caro Billot - disse Charny, soltando um suspiro - engana-se!

      - Como?

      - Digo que o infeliz de que fala, lhe escapou.

      - Fugiu? - perguntou Billot com incrível expressão de raiva.

      - Não - disse Charny - morreu.

      - Morreu?! - bradou Billot estremecendo a seu pesar e limpando a fronte que se tinha instantaneamente coberto de suor.

      - Morreu! - repetiu Charny; - e o sangue que vê, e ao qual há pouco teve razão de comparar àquele de que estava coberto no pequeno pátio de Versalhes, é dele!... E se duvida, desça, meu caro Billot, e encontrará o corpo deitado num pequeno pátio quase semelhante ao de Versalhes, e ferido pela mesma causa que o outro!

      Billot olhou para Charny, que lhe falava com uma voz tão doce, ao passo que as lágrimas lhe corriam pelas faces, com o olhar feroz e o rosto assombrado.

      Depois, repentinamente, dando um grito, exclamou:

      - Ah! Então é certo haver justiça no Céu!

      E correndo para fora do quarto, disse:

      - Sr. conde, acredito nas suas palavras: mas não importa! Vou certificar-me, com os meus próprios olhos, que se fez justiça!

      Charny, viu-o afastar-se, sufocando um suspiro e enxugando as lágrimas.

      Depois, conhecendo que não havia um minuto a perder, correu para o quarto da rainha, e dirigindo-se a ela, disse em voz baixa:

      - O Sr. de Romeuf?

      - Pertence-nos, respondeu a rainha.

      - Tanto melhor - disse Charny; - porque do outro nada temos que esperar.

      - Então o que havemos de fazer? - respondeu a rainha.

      - Ganhar tempo até que chegue o Sr. de Bouillé.

      - E chegará?

      - Sim, porque vou eu mesmo procurá-lo.

      - Oh! - exclamou a rainha - as ruas estão cheias de gente; é conhecido e não o deixarão passar... matá-lo-ão!... Olivier! Olivier!

      Mas Charny, sorrindo, abriu sem responder a janela que dava para o jardim, fez uma última promessa ao rei, uma última cortesia à rainha e saltou os quinze pés que o separavam do terreno.

      A rainha deu um grito de terror e escondeu a cabeça entre as mãos; mas os meninos correram à janela, e por um grito de alegria, responderam ao grito de terror da rainha.

      Charny acabava de saltar o muro do jardim e de desaparecer do outro lado deste muro.

      Era tempo: neste momento, Billot apareceu novamente no limiar da porta do quarto.

 

O Sr. de Bouillé

      Vejamos o que fazia, durante aquelas horas angustiosas, o Sr. marquês de Bouillé, que esperavam com tanta impaciência em Varennes, e sobre quem se fundavam as últimas esperanças da família real.

      Às nove horas da noite, isto é, pouco mais ou menos, no momento em que os fugitivos chegavam a Clermont, o Sr. marquês de Bouillé deixava Stenay com o seu filho, o Sr. Luís de Bouillé, e caminhava para Dun, para se aproximar do rei.

      Entretanto, chegando a um quarto de légua daquela cidade, temeu que a sua presença aí fosse notada, parou com a sua gente na orla da estrada, e estabeleceu-se num fosso, conservando os seus cavalos pela parte de trás.

      Ali esperaram. Era a hora em que, segundo toda a probabilidade, devia estar a aparecer o correio de suas majestades.

      Em tais circunstâncias, os minutos parecem horas e as horas séculos.

      Ouviram bater lentamente e com a impassibilidade que os que esperam desejariam regular pelas pulsações do coração, dez, onze horas, meia-noite, uma, duas e três horas da manhã.

      Entre as duas e três horas, o dia começara a despontar. Durante essas seis horas de espera, o menor ruído que chegava aos ouvidos dos vigias, quer se aproximasse, quer se afastasse, trazia-lhes a esperança ou o desespero.

      Ao amanhecer a pequena tropa tinha perdido as esperanças.

      O Sr. de Bouillé pensou que tinha sobrevindo algum acidente; mas ignorando qual fosse, mandou-a marchar outra vez para Stenay, a fim de que, encontrando-se no centro das suas forças, pudesse, quanto possível fosse, obviar a qualquer acidente.

      Tornaram pois a montar a cavalo e tomaram vagarosamente e a passo a estrada de Stenay.

      Teriam andado um quarto de légua, quando o conde Luís de Bouillé, avistou ao longe a poeira produzida pelo galope de muitos cavalos.

      Pararam e esperaram.

      À medida que os novos cavaleiros se aproximavam, julgavam conhecê-los.

      Enfim, bem depressa deixaram de duvidar: eram os Sr.s Júlio de Bouillé e de Raigecourt.

      A pequena força foi ao encontro deles.

      No momento em que se reuniam, todas as vozes de um dos dois ranchos faziam a mesma pergunta, e todas as do outro simultaneamente davam a mesma resposta.

      - Que aconteceu?

      - El-rei foi preso em Varennes.

      Eram quase quatro horas da manhã.

      A notícia era terrível, tanto mais, que os dois moços oficiais, estacionados no extremo da cidade, na hospedaria do Grande-Monarca, onde se tinham visto cercados repentinamente pela revolução, tinham sido obrigados a abrir caminho através da multidão, e isto sem levarem consigo nenhuma informação precisa.

      Entretanto, por mais terrível que fosse esta notícia, não destruía todas as esperanças.

      O Sr. de Bouillé, como todos os oficiais superiores, que confiam numa absoluta disciplina, acreditava, sem pensar nos obstáculos, que todas as suas ordens tinham sido executadas.

      Ora, se o rei tinha sido preso em Varennes, os diferentes destacamentos, que tinham recebido ordem de formar na retaguarda da passagem do rei, deviam ter chegado a Varennes.

      Esses diferentes destacamentos deviam compor-se:

      Dos quarenta homens do regimento de Lauzun, comandados pelo duque de Choiseul.

      Dos trinta dragões de Sainte-Menehould, comandados pelo Sr. Dandoins.

      Dos cento e quarenta dragões de Clermont, comandados pelo Sr. de Damas.

      E finalmente, dos sessenta hussards de Varennes, comandados pelos srs. de Bouillé e de Raigecourt, com quem os mancebos não tinham realmente podido falar no momento da partida, mas que tinham ficado às ordens do Sr. de Rohrig.

      Era também verdade que nada tinham querido confiar ao Sr. de Rohrig, mas ele receberia as ordens dos outros chefes, os srs. de Choiseul, de Dandoins ou de Damas, e reuniria os seus homens aos que corriam em socorro do rei.

      O rei devia pois ter à roda de si, naquele momento, alguns cem hussards, e cento e sessenta, ou cento e setenta dragões.

      Era mais do que o preciso para se opor à sublevação de uma pequena cidade de mil e oitocentos habitantes.

      Vimos como os acontecimentos tinham feito sair errados os cálculos estratégicos do Sr. de Bouillé.

      Quando os srs. de Bouillé e de Raigecourt informavam o general, viram aproximar um cavaleiro a todo o galope.

      O cavaleiro trazia decerto notícias.

      Todos os olhos se voltaram para ele, conheceram o Sr. de Rohrig. Portanto, o general dirigiu-se-lhe.

      Estava numa daquelas disposições de espírito, em que se não importava descarregar a sua cólera, ainda que fosse sobre um inocente.

      - Que tem que dizer, senhor - bradou o general - e por que motivo abandonou o seu posto?

      - Meu general - respondeu o Sr. de Rohrig - desculpe-me, mas vim por ordem do Sr. de Damas.

      - Então o Sr. de Damas está em Varennes com os seus dragões?

      - O Sr. de Damas está em Varennes sem os seus dragões, meu general, com um ajudante, outro oficial e dois ou três homens.

      - E os outros?

      - Os outros não quiseram marchar.

      - E o Sr. Dandoins e os seus dragões? – perguntou o Sr. de Bouillé.

      - Diz-se que estão prisioneiros na municipalidade de Sainte-Menehould.

      - Mas, ao menos - perguntou o general - o Sr. de Choiseul está em Varennes com os hussards, que comanda, e com os seus?

      - Os hussards do Sr. de Choiseul voltaram-se para o partido do povo e gritaram: “Viva a nação!” Os meus estão detidos no quartel pela guarda nacional de Varennes.

      - E o senhor não se pôs à frente deles? Não atacou toda aquela canalha, nem foi agrupar-se à roda do rei?

      - O meu general esquece que eu não tinha ordem nenhuma: que os srs. de Bouillé e de Raigecourt eram os meus chefes e que ignorava completamente que sua majestade passasse por Varennes.

      - É verdade - disseram ao mesmo tempo os srs. de Bouillé e de Raigecourt.

      - Ao primeiro rumor que ouvi - continuou o tenente - saí, informei-me e soube que uma carruagem, que diziam encerrar o rei e a família real, tinha sido apanhada, havia pouco mais de um quarto de hora, e que as pessoas que iam nessa carruagem tinham sido conduzidas para casa de um membro da comuna. Havia grande multidão de homens armados; os tambores e os sinos tocavam a rebate; no meio de todo esse tumulto, senti que me tocavam no ombro; voltei-me e conheci o Sr. de Damas, com um casaco por cima do uniforme; perguntou-me:

      “- É o tenente comandante dos hussards de Varennes?

      “- Sim, meu coronel.

      “- Conhece-me?

      “- É o Sr. conde Carlos de Damas.

      “- Pois bem, monte a cavalo imediatamente; parta para Dun, para Stenay, corra até encontrar o Sr. marquês de Bouillé: diga-lhe que Dandoins e os seus dragões estão prisioneiros em Sainte-Menehould; que os meus hussards recusaram seguir; que os hussards de Choiseul estão quase a tomar o partido do povo, e que o rei e a família real, que estão ali presos, só nele têm esperança...”

      - A semelhante ordem, meu general, entendi que não devia fazer observação alguma, senão que, pelo contrário, era meu dever obedecer cegamente. Montei a cavalo, parti a toda a brida e eis-me aqui!

      - E o Sr. de Damas não lhe disse mais nada?

      - É verdade; disse-me também que empregariam todos os meios para ganhar tempo a fim de que o meu general possa chegar a Varennes.

      - Vamos - disse o Sr. de Bouillé dando um suspiro - vejo que todos têm feito o que têm podido... A nós resta-nos agora fazer o melhor que pudermos.

      Depois, voltando-se para o conde Luís, disse:

      - Luís, eu fico aqui. Estes senhores vão levar as diferentes ordens, que vou dar. Primeiro que tudo, os destacamentos de Mouza e de Dun marcharão imediatamente sobre Varennes, guardando a passagem do Mosa, e começarão o ataque. Sr. de Rohrig, leve-lhes esta ordem da minha parte e diga-lhes que serão protegidos de perto.

      O mancebo, a quem fora dada a ordem, cumprimentou e partiu na direcção de Dun para a executar.

      O Sr. de Bouillé continuou:

      - Sr. de Raigecourt, vá ao encontro do regimento suíço de Castela, que está em marcha para Stenay; em qualquer parte em que o encontre diga-lhe a urgência da situação, e a ordem que lhe dou de acelerarem a marcha... Vá!

      Depois, vendo partir o jovem oficial numa direcção oposta à que seguia com toda a velocidade do seu cavalo, já fatigado, o Sr. de Rohrig, voltou-se para o segundo filho, e disse:

      - Júlio, muda de cavalo em Stenay e parte para Montmédy. Que o Sr. de Klinglin faça marchar sobre Dun o regimento de infantaria de Nassau, que está em Montmédy, e que vá pessoalmente para Stenay... Parte!

      O mancebo fez a continência e partiu também.

      Finalmente, voltando-se para o filho mais velho, perguntou:

      - Luís, o real-alemão está em Stenay?

      - Está sim, meu pai.

      - Recebeu ordem para estar pronto ao nascer do dia?

      - Eu mesmo levei da sua parte a ordem ao coronel.

      - Vai buscá-lo... Esperarei aqui, na estrada; talvez me cheguem mais novidades... o real-alemão é seguro, não é verdade?

      - É sim, meu pai.

      - Então será suficiente; marcharemos com ele sobre Varennes... Vai!

      E o conde Luís partiu também.

      Dez minutos depois tornou a aparecer.

      - O real-alemão segue-me - disse ele ao general.

      - Então encontraste-o pronto?

      - Não, o que bastante me admirou; é necessário que o comandante me compreendesse mal ontem, quando lhe transmiti a sua ordem, porque o encontrei na cama... mas levantou-se e prometeu-me ir ele mesmo aos quartéis para apressar a partida. Temendo que se impacientasse, vim dizer-lhe a causa da demora.

      - Bem - disse o general; - vai então chegar?

      - O comandante disse que me seguia.

      Esperaram dez minutos, um quarto de hora, vinte minutos; ninguém aparecia.

      O general, impaciente, olhou para o filho.

      - Volto lá, meu pai - disse este.

      E metendo o cavalo a galope, entrou na cidade.

      O tempo tão longo como parecera ao Sr. de Bouillé, tinha sido mal aproveitado pelo comandante; apenas alguns homens estavam prontos. O jovem oficial queixou-se amargamente, renovou a ordem do general, e perante a promessa positiva do comandante de que, em cinco minutos, os seus soldados e ele estariam fora da cidade, voltou para junto do pai.

      Ao voltar, notou que a porta, pela qual já tinha passado, estava guardada pela guarda nacional.

      Esperaram novamente cinco, dez minutos, um quarto de hora; ninguém aparecia.

      Entretanto, o Sr. de Bouillé sabia que cada minuto perdido era um ano diminuído na vida dos prisioneiros.

      Viram vir um cabriolé pela estrada, do lado de Dun.

      O cabriolé era o de Leonardo, que continuava o seu caminho, cada vez mais perturbado.

      O Sr. de Bouillé fê-lo parar; mas à medida que se aproximava de Paris, a recordação do irmão, cujo chapéu levava, da Srª. de l'Aage, que só era bem penteada por ele, e que o esperava para esse fim, passavam-lhe pela idéia, e produziam-lhe um tal aborrecimento, que o Sr. de Bouillé não pôde tirar dele coisa alguma que o pudesse orientar.

      Efectivamente Leonardo, tendo partido de Varennes antes da prisão do rei, nada podia dizer ao Sr. de Bouillé.

      Este pequeno incidente serviu para fazer, durante alguns minutos, acalmar a impaciência do general; mas quase uma hora era já decorrida depois da ordem dada ao comandante do real-alemão; o Sr. de Bouillé mandou o filho pela terceira vez a Stenay, com ordem de não voltar sem o regimento.

      O conde Luís partiu furioso.

      Chegando à praça, a sua cólera aumentou; apenas cinqüenta homens estavam a cavalo.

      Começou por tomar estes cinqüenta soldados, e com eles foi apoderar-se da porta que lhe assegurava a entrada e a saída livre: depois voltou para junto do general, que continuava a esperar; assegurando que, desta vez, era seguido pelo comandante e pelos seus soldados.

      Assim o julgava; mas só no fim de dez minutos, e quando pela quarta vez ia a entrar na cidade, é que avistaram a vanguarda do real-alemão.

      Em qualquer outra ocasião, o Sr. de Bouillé teria feito prender o comandante pelos próprios soldados; mas naquele momento, temeu descontentar chefes e soldados; contentou-se pois em lhe dirigir algumas censuras pela sua demora; depois, falando aos soldados, disse-lhes a que honrosa missão eram destinados; que a liberdade, a vida do rei, da rainha e da família real dependiam deles; prometeu aos oficiais honras, e aos soldados recompensas, e para começar, distribuiu quatrocentos luíses por estes últimos, os quais ficaram radiantes.

      O discurso, terminado deste modo, produziu o efeito que era de esperar; ouviu-se um imenso grito de: “Viva o rei!” e todo o regimento partiu a grande trote para Varennes.

      Em Dun encontraram, guardando a ponte de Mosa, o destacamento de trinta homens, que o Sr. de Deslon, abandonando Dun com Charny, ali tinha deixado.

      Reuniram a si essa pequena força de trinta homens e continuaram a marcha.

      Havia a caminhar oito grandes léguas por um país montanhoso e cheio de subidas e descidas; não marchavam pois no passo que queriam e era preciso chegar, mas principalmente chegar com Sol, dado que pudessem sustentar a carga.

      Entretanto conhecia-se que avançavam em país inimigo. À direita e à esquerda as aldeias tocavam a rebate; na sua frente ouviam estalar alguma coisa, que parecia uma descarga.

      Avançavam sempre.

      No Bosque-da-Granja, um cavaleiro, sem chapéu, curvado sobre o cavalo, que parecia devorar o caminho, apareceu, fazendo de longe sinais de chamada. Apressaram a marcha; o regimento e o homem aproximaram-se.

      O cavaleiro era o Sr. de Charny.

      - Ao rei! Senhores, ao rei! - gritou ele do mais longe que poderiam ouvi-lo e levantando a mão.

      - Ao rei! Viva o rei - gritaram ao mesmo tempo soldados e oficiais.

      Charny tomou lugar entre as fileiras; expôs em quatro palavras a situação. O rei ainda estava em Varennes, quando o conde daí partiu; portanto, nem tudo ainda estava perdido.

      Os cavalos estavam muito fatigados; mas isso que importava? Estavam fartos de aveia e sustentariam o passo; os homens estavam entusiasmados pelo discurso e pelos luíses do Sr. de Bouillé. O regimento avançou como um furacão, gritando: “Viva o rei!”

      Em Crépy encontraram um sacerdote. Este padre era constitucional, e vendo toda aquela tropa que se precipitava para Varennes; exclamou:

      - Vão! Vão! Felizmente chegarão muito tarde!

      O conde Luís de Bouillé ouvi-o, e correu para ele com o sabre levantado.

      - Desgraçado! - grita-lhe o pai - que fazes!

      Com efeito, o jovem conde conhece que ia matar um homem indefeso, e que esse homem era um eclesiástico, duplicado crime; tira um pé do estribo e dá com ele no peito do sacerdote.

      - Chegarão muito tarde - repetiu o sacerdote caindo no chão.

      Continuaram o caminho amaldiçoando o profeta de desgraça.

      Entretanto aproximavam-se a pouco e pouco do tiroteio.

      Era o Sr. de Deslon e os seus setenta hussards, que combatiam com um número quase igual de homens da guarda nacional.

      Carregaram sobre a guarda, dispersaram-na e passaram. Após isto o Sr. de Deslon diz-lhe que o rei tinha partido de Varennes às oito horas.

      O senhor de Bouillé puxou pelo relógio e viu que eram nove horas menos cinco minutos.

      Embora! não perderam toda a esperança: não convinha pensar em atravessar a cidade por causa das barricadas; costearam Varennes.

      Deram a volta pela esquerda; pela direita era impossível, por causa da disposição do terreno.

      À esquerda tinham que atravessar o rio; mas Charny afirmou que era vadeável.

      Deixaram Varennes à direita e caminharam através dos campos.

      Atacariam na estrada de Clermont a escolta, por mais numerosa que fosse; libertariam o rei, ou seriam mortos.

      A dois terços do comprimento da cidade encontra-se o rio; Charny foi o primeiro a avançar com o seu cavalo; os srs. de Bouillé seguiram-no, os oficiais atrás destes, e os soldados atrás dos oficiais. Em pouco tempo o rio ficou encoberto pelos cavalos e militares; em dez minutos passaram a vau.

      Esta passagem através da água corrente refrescou cavalos e cavaleiros. Acto contínuo tornaram a meter a galope, correndo a toda a brida pela estrada de Clermont.

      Repentinamente, Charny que precedia a força, pelo menos vinte passos, pára e dá um grito.

      Estava na margem de um canal muito fundo, do qual a superfície era ao nível da terra.

      Tinha esquecido aquele canal, notado por ele nos seus trabalhos topográficos. O canal estende-se por muitas léguas, e por toda a parte apresenta a mesma dificuldade, que no sítio em que estavam.

      Se não o atravessassem imediatamente, nunca o atravessariam.

      Charny para dar o exemplo lançou-se à água primeiro que todos.

      O canal não era vadeável, mas o cavalo nadou vigorosamente para a outra margem do rio.

      A margem é uma elevação escabrosa e escorregadia, na qual não puderam firmar-se bem as ferraduras do cavalo.

      Por três ou quatro vezes Charny tentou subir; porém, apesar de toda a ciência do hábil cavaleiro, sempre o cavalo, depois de ter feito esforços desesperados, inteligentes, e quase humanos para saltar sobre a margem, escorregou por falta de apoio sólido para as mãos e tornou a cair na água, respirando custosamente e meio virado sobre o cavaleiro.

      Charny conheceu que o que não pôde fazer o seu cavalo, animal de raça e de escolha, guiado por um entendido cavaleiro, não o conseguiriam os quatrocentos cavalos do esquadrão.

      Era pois tentativa baldada; a fatalidade era mais poderosa, o rei e a rainha estavam perdidos! E logo que os não pôde salvar, só lhe restava um dever a cumprir: era perder-se com eles.

      Tentou um último esforço inútil como os outros para ganhar a ribanceira; mas nesse esforço enterrou o sabre no lodo até ao meio da folha.

      O sabre ficou ali como um ponto de apoio inútil ao cavalo, mas que serviu ao cavaleiro.

      Efectivamente, Charny abandona estribos e rédeas e deixa o cavalo lutar só, com aquela água fatal; nada para o sabre, deita-lhe a mão, agarra-se a ele com força, e consegue depois de alguns esforços pôr-lhe o pé e arremessar-se para a rampa.

      Então voltou-se, e do outro lado do canal viu os srs. de Bouillé pai e filho, chorando de raiva, e todos os soldados sombrios e imóveis, compreendendo quanto lhes seria inútil tentar passar aquele canal invencível, depois da luta mais que temerária que o denodado conde de Charny acabava de tentar à sua vista.

      O senhor de Bouillé, especialmente, torcia os braços com desespero, ele cujas empresas todas até então, tinham logrado bom êxito; ele, cujas acções eram sempre coroadas de bom resultado; ele que no exército tinha dado origem ao provérbio: Feliz como Bouillé!

      - Oh! Senhores - exclamou ele com uma voz dolorosa - digam ainda que sou feliz!

      - Não, general - respondeu Charny do outro lado: - mas tranquilize-se e diga que fez tudo o que um homem pode fazer, e sendo eu que o diga, acreditar-me-ão... Adeus, general!

      E a pé, através das terras, todo sujo de lodo, escorrendo água, desarmado do sabre que ficara no canal, sem pistolas, cuja pólvora estava molhada, Charny começou a andar, e desapareceu no meio dos grupos de árvores, que, como sentinelas avançadas da floresta, estavam já colocadas na estrada.

      Esta estrada finalmente era aquela por onde conduziam o rei e a família real, prisioneiros; não havia mais que seguir para os encontrar.

      Mas antes de a seguir, voltou-se pela última vez, vê na margem do canal maldito o Sr. de Bouillé e a sua tropa, que, apesar da impossibilidade bem conhecida de avançar, não puderam decidir-se a retirar.

      Faz-lhe um último sinal perdido, depois avança pela estrada, dobra um cotovelo, e tudo desaparece.

      Porém fica-lhe para o guiar o imenso rumor que o precede, e que se compõe de gritos, clamores, ameaças, risos e maldições de dez mil homens.

 

A partida

      Sabe-se como o rei partiu.

      Entretanto falta-nos dizer algumas palavras tanto a respeito da partida como da jornada, durante as quais veremos cumprir-se os diversos destinos dos fiéis servidores, e dos últimos amigos que a fatalidade, o acaso ou a dedicação tinham reunido em volta da monarquia moribunda.

      Voltemos pois a casa do Sr. Sausse.

      Charny tinha apenas tocado o solo, dissemos nós, quando a porta se abrira e Billot aparecera logo no limiar.

      Tinha o rosto sombrio, as sobrancelhas franzidas, o olhar penetrante e investigador. Passou revista a todos os personagens do drama, mas no círculo, que percorreu com o olhar, só pareceu notar duas coisas:

      A fuga de Charny era patente, o conde já ali não estava, e o Sr. de Damas fechava a janela sobre ele; inclinando-se para diante, Billot poderia ver o conde saltar o muro do jardim.

      Depois, a espécie de pacto que acabava de concluir-se entre a rainha e o Sr. de Romeuf, que o mais que tinha podido prometer era permanecer neutro.

      Atrás de Billot, a primeira casa estava cheia de homens do povo, armados de espingardas, foices e sabres, que a um gesto do lavrador haviam saído.

      Além disso, esses homens pareciam arrastados instintivamente, por uma influência magnética, a obedecer àquele chefe plebeu como eles, e no qual adivinhavam um patriotismo igual ao deles, digamos melhor, um ódio igual ao seu.

      Billot volveu a vista para trás de si, e cruzando-se com o olhar dos homens armados, convenceu-se de que podia contar com eles, mesmo no caso de ser preciso recorrer à violência.

      - Então! - perguntou ele ao Sr. de Romeuf - estão decididos a partir?

      A rainha lançou sobre Billot um desses olhares oblíquos, que teria reduzido a pó os imprudentes a quem ela o dirigisse, se lhe pudesse juntar o poder do raio.

      Depois, sem responder, assentou-se, agarrando-se ao braço da cadeira, como se quisesse entrincheirar-se.

      - El-rei pede ainda alguns instantes – respondeu Romeuf - ninguém dormiu durante a noite e suas majestades estão fatigadíssimas.

      - Sr. de Romeuf - respondeu Billot - bem sabe que não é por suas majestades estarem cansadas que pedem alguns instantes, mas é porque esperam que durante esses alguns instantes o Sr. de Bouillé chegue. Porém - acrescentou ele com ironia - que suas majestades se acautelem, porque, se recusam vir por vontade, serão arrastados pelos pés até à carruagem.

      - Miserável! - exclamou o Sr. de Damas, lançando-se sobre Billot com o sabre na mão.

      Mas Billot voltou-se cruzando os braços.

      Na realidade não tinha precisão de se defender; oito ou dez homens correram também para o segundo quarto e o Sr. de Damas viu-se ameaçado ao mesmo tempo por dez armas diferentes.

      O rei viu que não era necessário mais do que um gesto, ou uma palavra de Billot para que os dois guardas de corpo, o Sr. de Choiseul, o Sr. de Damas e os dois ou três oficiais, que estavam ao pé dele fossem mortos.

      - Está bem - disse ele - mande meter os cavalos à carruagem; partiremos.

      A Srª. Brunier, uma das duas aias da rainha, deu um grito e desmaiou.

      Esse grito acordou os meninos.

      O delfim pôs-se a chorar.

      - Ah! Senhor - disse a rainha dirigindo-se a Billot - não tem decerto filhos, visto ser cruel até esse ponto para com uma mãe.

      Billot estremeceu; mas imediatamente com um sorriso amargo, disse:

      - Não, senhora, não tenho filhos.

      Depois ao rei:

      - Não é necessário meter os cavalos à carruagem; já lá estão.

      - Pois bem! Faça-a chegar.

      - Está à porta.

      O rei aproximou-se da janela e viu efectivamente a carruagem pronta. No meio do imenso motim, que faziam na rua, não a tinham ouvido chegar.

      O povo viu o rei por entre os vidros.

      Então um formidável grito, ou antes, uma formidável ameaça se elevou da multidão. O rei tornou-se pálido.

      O Sr. de Choiseul, aproximando-se de Maria Antonieta, perguntou:

      - Que manda vossa majestade? Eu, e os meus camaradas preferimos morrer a ver o que se passa aqui.

      - Julga o Sr. de Charny salvo - perguntou em voz muito baixa e vivamente a rainha.

      - Oh! Sim - disse o Sr. de Choiseul - por isso responderia eu.

      - Pois bem! Partamos; mas em nome do Céu, ainda mais por si, do que por nós, não nos abandone, o senhor e os seus amigos!

      O rei adivinhou o temor que tinha a rainha.

      - É verdade - disse ele - os Sr.s de Choiseul e de Damas acompanham-nos, e não vejo onde estejam os seus cavalos.

      - É verdade - disse o Sr. de Romeuf, dirigindo-se a Billot - não podemos impedir que estes senhores acompanhem o rei e a rainha.

      - Esses senhores - disse Billot – acompanharão el-rei e a rainha se puderem. As nossas ordens são de reconduzir o rei e a rainha e não falam desses senhores.

      - Mas eu - disse o rei com mais firmeza do que se podia esperar dele - declaro que não partirei, sem que estes senhores tenham os seus cavalos.

      - Que dizem a isto - perguntou Billot voltando-se para os homens, que enchiam o quarto - o rei não partirá se estes senhores não tiverem os seus cavalos!

      Os homens deram uma gargalhada.

      - Vou mandá-los chegar - disse o Sr. de Romeuf.

      O Sr. de Choiseul, avançando um pouco e embaraçando-lhe o caminho, disse:

      - Não deixe suas majestades; a sua missão dá-lhe algum poder sobre o povo, e é da sua honra, que nem um cabelo caia da cabeça de suas majestades.

      O Sr. de Romeuf parou.

      Billot encolheu os ombros.

      - Pois bem, disse; lá vou eu.

      E foi o primeiro a sair.

      Voltando-se porém no umbral da porta, acrescentou franzindo as sobrancelhas:

      - Seguem-me, não é verdade?

      - Oh! Esteja tranqüilo! - disseram os homens soltando uma gargalhada, a qual indicava que, em caso de resistência, nada havia a esperar da parte deles.

      Com efeito chegados a esse ponto de irritação, aquela gente teria com toda a certeza empregado a violência contra a família real, ou feito fogo sobre qualquer, que tentasse fugir.

      Por isso Billot nem sequer teve o trabalho de tornar a subir a escada.

      Um dos homens que se colocou ao pé da janela, seguindo com os olhos todos os movimentos que se faziam na rua disse:

      - Aí estão os cavalos! A caminho!

      - A caminho! - repetiram os seus companheiros, com uma entoação que não admitia réplica.

      O rei foi o primeiro.

      Seguiu-se o Sr. de Choiseul, dando o braço à rainha; depois o Sr. de Damas, dando o braço à princesa Isabel; depois a Srª. de Tourzel com os dois meninos, e à roda deles, formando um grupo, o resto da pequena comitiva fiel.

      O Sr. de Romeuf, como enviado da Assembléia Nacional, e por conseqüência, como revestido de um carácter sagrado, tinha ordem de vigiar particularmente a família real.

      Mas convém dizê-lo, o Sr. de Romeuf, tinha muita precisão de que o vigiassem a ele.

      Tinha-se espalhado a notícia terrível de que não só executara com fraqueza as ordens da Assembléia, mas que, senão activamente, pelo menos pela sua inércia, favorecera a fuga de um dos mais dedicados servidores do rei, o qual, segundo diziam, só tinha abandonado suas majestades para ir transmitir ao Sr. de Bouillé a ordem de vir o mais breve possível em seu socorro.

      Resultou daí que, chegando à porta, enquanto o comportamento de Billot era exaltado por todo aquele povo, que parecia disposto a reconhecê-lo como único chefe, o Sr. de Romeuf ouviu murmurar à roda de si, acompanhadas de ameaças, as palavras aristocrata e traidor.

      Subiram para as carruagens, seguindo a mesma ordem, que tinham observado para descer a escada.

      Os dois guardas tomaram os seus lugares na almofada.

      Ao descer, o Sr. de Valory aproximara-se do rei.

      - Meu senhor - dissera - o meu camarada e eu vimos pedir a vossa majestade um favor.

      - Qual, senhores - respondeu o rei admirado de que houvesse, em momento tão precário um favor de que ainda pudesse dispor.

      - Visto que não podemos servir a vossa Majestade como militares, é de ocuparmos o lugar dos seus criados.

      - Dos meus criados, senhores! - exclamou o rei; - é impossível!

      O Sr. de Valory inclinou-se, e replicou:

      - Meu senhor, na situação em que vossa majestade se acha, a nossa opinião é que este lugar faria honra a príncipes de sangue, e com muita maior razão a pobres fidalgos como nós.

      - Pois bem, seja assim, senhores - disse o rei com as lágrimas nos olhos; - fiquem... Nunca nos abandonem.

      Foi desta maneira que os dois mancebos, fazendo uma realidade da sua libré e das suas funções fictícias de correios, tinham tomado os seus lugares na almofada.

      O Sr. de Choiseul fechou a portinhola da carruagem.

      - Senhores - disse o rei - dou positivamente ordem de me conduzirem a Montmédy... Postilhões, a Montmédy!

      Mas uma única voz, voz imensa, não a voz de uma única povoação, mas de dez povoações reunidas gritou:

      - Para Paris! Para Paris!

      Depois de um momento de silêncio, Billot, mostrando com a ponta do sabre o caminho que deviam seguir, disse:

      - Postilhões, estrada de Clermont!

      A carruagem pôs-se em movimento para obedecer a esta ordem.

      - Tomo-os a todos por testemunhas de que me violentam! - disse Luís XVI.

      Depois, o desventurado rei, abatido por este esforço de vontade, que excedia todos os que até ali tinha feito, caiu assentado no fundo da carruagem, entre a rainha e a princesa Isabel.

      A carruagem continuou o seu caminho.

      No fim de cinco minutos, e antes que tivesse andado duzentos passos, ouviram grandes gritos na retaguarda.

      Pela disposição das pessoas, e talvez também pela dos temperamentos, a rainha foi a primeira a deitar a cabeça fora da portinhola. Mas, quase no mesmo instante, recolheu-se, cobrindo os olhos com as mãos.

      - Oh! Desgraça sobre nós! - disse ela; - assassinam o Sr. de Choiseul!

      O rei quis fazer um movimento, mas a rainha e a princesa Isabel puxaram-no para trás e fizeram-no tornar a assentar-se entre elas. Além disso, a carruagem acabava de voltar uma esquina, e era impossível ver o que se passava a vinte passos dali.

      Eis o que se passava:

      À porta do Sr. de Sausse, o Sr. de Choiseul e o Sr. de Damas tinham montado a cavalo; mas o cavalo do Sr. Romeuf, que tinha vindo na posta, desaparecera.

      O Sr. de Romeuf, o Sr. de Floirac e o ajudante Foucq seguiam pois a pé, esperando achar cavalos dos dragões ou hussards, quer lhos oferecessem, quer os encontrassem nas cavalariças abandonados pelos donos, dos quais, pelo menos a maior parte, fraternizavam com o povo e bebiam pela Nação.

      Mas não tinham dado quinze passos, quando o Sr. de Choiseul viu do postigo da carruagem que escoltava, que os srs. de Romeuf, de Floirac e Foucq, corriam o perigo de serem envolvidos, separados e assassinados pela multidão.

      - O meu outro cavalo ao Sr. de Romeuf.

      Apenas pronunciara estas palavras, o povo irrita-se, murmura e cerca-o gritando:

      - É o duque de Choiseul, é dos que querem roubar o rei... À morte o aristocrata! À morte o traidor!

      Sabe-se a rapidez com que nos movimentos populares o efeito segue a ameaça.

      Arrancado da sela, o Sr. de Choiseul é deitado para trás e desaparece engolido no sorvedouro terrível, a que chamam multidão, e no qual, naquele tempo de paixões exaltadas, só se saía feito em pedaços.

      Mas ao mesmo tempo que ele caía, cinco pessoas correram em seu socorro.

      Eram os srs. de Damas, de Floirac, de Romeuf, o ajudante Foucq e o criado James Brisack, de cujas mãos acabavam de arrancar o cavalo, que ele segurava, e que tendo-as livres, podia empregá-las em serviço do amo.

      Houve então um instante de refrega terrível, semelhante a um desses combates, que os povos da antiguidade, e nos nossos dias os árabes, dão em volta dos corpos ensangüentados dos feridos e dos mortos.

      Contra toda a probabilidade, felizmente, o Sr. de Choiseul não estava morto, nem ferido, ou pelo menos, apesar dos golpes perigosos, que lhe tinham atirado, os seus ferimentos eram leves.

      Um gendarme aparou no cano do mosquete um golpe de foice, que lhe dirigiam: James Brisack aparou outro com um pau, que tinha tirado a um dos assaltantes.

      O pau quebrou-se como uma cana, mas o golpe, desviado da sua direcção, só feriu o cavalo do Sr. de Choiseul.

      - A mim, dragões!

      Alguns soldados correram a este grito, e tendo vergonha de deixar matar o homem, que os tinha comandado, abriram caminho até ele.

      Então o Sr. de Romeuf avançou pessoalmente para a frente e exclamou:

      - Em nome da Assembléia Nacional, de que sou representante, e do general Lafayette, por quem sou enviado, conduzam estes senhores à municipalidade.

      Estas duas palavras: “Assembléia Nacional e o Sr. de Lafayette” gozavam então de toda a sua popularidade, e produziram o seu efeito.

      - À municipalidade! À municipalidade! – gritaram muitas vozes.

      Os homens de boa vontade fizeram um esforço, o Sr. de Choiseul e os seus companheiros foram arrastados para a casa da administração.

      Gastaram mais de uma hora e meia para lá chegarem. Cada minuto dessa hora e meia foi uma ameaça, ou uma tentativa de morte. Toda a abertura que os seus defensores faziam em volta dos presos dava passagem à lâmina de um sabre, aos dentes de um forcado, ou ao ferro afiado de uma foice.

      Finalmente, chegaram à casa da câmara. Um único empregado subalterno ficara assustadíssimo pela responsabilidade que pesava sobre ele.

      Para se livrar dessa responsabilidade, ordenou que os srs. de Choiseul, de Damas e de Floirac fossem encarcerados, e ali foram guardados pela guarda nacional.

      O Sr. de Romeuf declarou então que não queria deixar o Sr. de Choiseul, que se tinha exposto por sua causa a tudo que lhe acontecia.

      A municipalidade ordenou portanto que o Sr. de Romeuf fosse também encarcerado.

      A um sinal feito pelo Sr. de Choiseul ao seu criado, este que era pessoa muito insignificante, para que se ocupassem dele, eclipsou-se.

      O seu primeiro cuidado (não esqueçamos que James Brisack era moço de cavalariça) foi tratar dos cavalos.

      Soube que os cavalos, sãos e salvos, estavam numa estalagem, guardados por muitos facciosos.

      Descansado sobre este ponto, entrou num botequim, pediu chá, uma pena e tinta, e escreveu à Srª. de Choiseul e à Srª. de Grammont, para as sossegar a respeito da sorte do filho e do sobrinho, que segundo toda a probabilidade, estava salvo, visto estar preso.

      O pobre James Brisack avançava muito anunciando estas boas notícias. Sim, o Sr. de Choiseul estava preso; sim, estava num cárcere; sim, o Sr. de Choiseul estava debaixo da guarda da milícia urbana; porém, tinham-se esquecido de pôr sentinelas nas frestas do cárcere, e por elas atiravam sobre os presos amiudados tiros de espingarda.

      Foram portanto obrigados a refugiarem-se nos cantos.

      Esta situação bastante precária durou vinte e quatro horas, durante as quais, o Sr. de Romeuf, com admirável dedicação, recusou abandonar os seus companheiros.

      Finalmente, a 23 de Junho, tendo chegado a guarda nacional de Verdun, o Sr. de Romeuf obteve que os presos lhe fossem entregues, e só os deixou depois dos oficiais lhe darem a sua palavra de honra de velarem por eles até que estivessem nas prisões do tribunal superior.

      Quanto ao pobre Isidoro Charny, arrastaram-lhe o corpo para a casa de um tecelão, onde mãos piedosas, mas estranhas, o sepultaram; menos feliz, nesse ponto, do que Jorge, que ao menos recebera os derradeiros cuidados das mãos fraternais do conde, e das mãos amigas de Gilberto e de Billot.

      Naquele tempo ainda Billot era amigo dedicado e respeitoso. Temos visto, como essa amizade, essa dedicação, esse respeito, se mudaram em ódio, ódio tão implacável, quão profundos tinham sido a amizade, a dedicação e o respeito.

 

Via dolorosa

      No entanto a família real continuava o seu caminho para Paris, seguindo a que podemos chamar “via dolorosa”.

      Luís XVI e Maria Antonieta também tiveram o seu calvário! Remiram por essa paixão terrível as faltas da monarquia, como Jesus Cristo remiu a dos homens? É esse um problema que o presente ainda não resolveu, mas que o futuro talvez resolva.

      Caminhavam lentamente, porque os cavalos mal podiam avançar ao passo da escolta, a qual, compondo-se pela maior parte, conforme dissemos, de homens armados de foices, forcados, espingardas, chuços e manguais, completava-se com inúmera quantidade de mulheres e de crianças; mulheres que elevavam os filhos acima da cabeça para lhes fazerem ver esse rei, que conduziam à força para a sua capital, e que provavelmente nunca teriam visto se não fosse aquela circunstância.

      E no meio dessa multidão, que enchia a estrada, trasbordando dos dois lados para a planície, a carruagem do rei, seguida pelo cabriolé das Srªs. de Brunier e de Neuville, parecia um navio, seguido pela sua lancha, e perdido no meio de furiosas vagas, prestes a engoli-lo.

      De tempos a tempos uma circunstância inesperada fazia, permita-se-nos que prossigamos no símile, que aquela tormenta recobrasse novas forças; os gritos, as imprecações e as ameaças redobravam, aquelas vagas humanas agitavam-se, elevavam-se, baixando-se, subindo como uma cheia, e às vezes nos seus abismos ocultavam inteiramente o navio, que a custo as fendia com a proa, os náufragos que ele levava, e a frágil lancha que rebocava.

      Chegaram a Châlons sem terem visto diminuir a terrível escolta, conquanto tivessem andado perto de quatro léguas. Alguns dos homens que a compunham, e a quem as suas ocupações chamavam para suas casas, eram substituídos pelos que corriam dos arredores, e que queriam também gozar o espectáculo de que os outros estavam saciados.

      Entre todos os cativos, que conduzia a prisão ambulante, dois estavam mais particularmente expostos à cólera da multidão e eram o alvo das suas ameaças; eram os desgraçados guardas que iam assentados na ampla almofada da carruagem. A cada instante, e era esse um modo de ferirem a família real, a quem a ordem da Assembléia tornava inviolável, dirigiam-lhe as baionetas aos peitos e às cabeças ou introduziam pelos intervalos algumas foices, que eram realmente as da morte, ou alguma lança como uma serpente pérfida, que ia morder com o seu dardo agudo as carnes vivas, sendo depois retiradas por um movimento quase tão rápido, para mostrar que manejavam aquelas armas com tanta perícia que não erravam o golpe, e cheios de satisfação patenteavam-nas então à populaça tintas de sangue.

      De repente, viu-se com espanto um homem sem chapéu, sem armas, e com o fato sujo de lodo afastar a multidão, depois de ter simplesmente feito uma saudação ao rei e à rainha, com todo o respeito, precipitar-se sobre o jogo dianteiro da carruagem, e tomar lugar na almofada entre os dois oficiais.

      A rainha soltou um grito, ao mesmo tempo de receio, de alegria e de dor.

      Tinha reconhecido Charny.

      De receio, porque o que ele fazia à vista de todos era de tal modo audacioso, que era um milagre ter conseguido tomar aquele perigoso lugar sem ter sido ferido.

      De alegria, por ver que ele escapara aos perigos desconhecidos que devia ter corrido na sua fuga, perigos tanto maiores, quanto a realidade, sem lhe especificar nenhum, deixava à imaginação pintar-lhe ainda os mais medonhos.

      De dor, porque compreendia, que desde o momento que tornava a ver Charny só e naquele estado, devia sem dúvida renunciar a todo o socorro do Sr. de Bouillé.

      Além disso, a multidão, espantada pela audácia daquele homem, parecia tê-lo respeitado mesmo por causa dessa audácia.

      Ao ruído que se fizera em volta da carruagem, Billot que caminhava a cavalo na frente da escolta, voltou-se e conheceu também Charny.

      - Ah! - murmurou ele - estimo bem que nada lhe acontecesse... Porém, desgraçado do insensato, que tentasse agora agredi-lo porque decerto pagaria por dois.

      Chegaram a Sainte-Menehould perto das duas horas da tarde.

      A privação do sono durante a noite da fuga, as fadigas e comoções da noite que acabavam de passar, tinham actuado sobre toda a família real, e particularmente sobre o delfim. Chegado a Sainte-Menehould, a pobre criança estava atacada de uma febre terrível.

      O rei ordenou que parassem.

      Desgraçadamente, de todas as cidades situadas no caminho, Sainte-Menehould era talvez a cidade mais ardentemente levantada contra a desgraçada família que conduziam presa.

      Portanto não fizeram caso nenhum da ordem do rei, e uma ordem contrária foi dada por Billot para que metessem novos cavalos à carruagem.

      Obedeceram.

      O delfim chorava, e por entre soluços perguntava:

      - Porque não me despem e não me deitam na minha cama, se estou doente?

      A rainha não pôde resistir a estas queixas, e o seu orgulho foi por um instante quebrado.

      Levantou nos braços o jovem príncipe, lavado em lágrimas e a tremer, mostrando-o ao povo, disse:

      - Ah! Senhores, por dó deste menino, parem!

      Porém os cavalos estavam já metidos à carruagem.

      - A caminho! - gritou Billot.

      - A caminho! - repetiu o povo.

      E no momento em que o lavrador passava junto da portinhola para ir retomar o seu lugar na frente do cortejo, a rainha exclamou dirigindo-se a ele:

      - Ah! Senhor - repito-lhe decerto não tem filhos!

      - E eu respondo-lhe - disse Billot com o olhar sombrio, e com voz cavernosa - que os tive e que já os não tenho...

      - Façam pois o que quiserem - disse a rainha - são os mais fortes... Mas, tomem cuidado! Não há voz que grite mais alto “Maldição!” do que a débil voz das crianças!

      O cortejo continuou o seu caminho.

      O atravessar da cidade foi cruel; o entusiasmo que excitava a vista de Drouet, a quem era devida a prisão dos fugitivos, teria sido para eles uma terrível lição, se houvesse lição possível para os reis; porém naqueles gritos Luís XVI e Maria Antonieta só viam cego furor; naqueles homens patriotas, convencidos de que salvavam a França, o rei e a rainha só viam rebeldes.

      O rei estava aterrado; o suor da vergonha e da cólera corriam pela fronte da rainha; a princesa Isabel, anjo do Céu perdido sobre a terra, orava em voz baixa, não por ela, mas por seu irmão, por sua cunhada, por seus sobrinhos e por todo esse povo. A santa senhora não sabia separar os que considerava vítimas, dos que julgava algozes, e uma única oração punha a uns e outros aos pés do Senhor.

      À entrada de Sainte-Menehould, a multidão que, semelhante a uma inundação, cobria toda a planície, não coube toda na rua estreita. Trasbordou para os dois lados da cidade, e contornou-a exteriormente; porém, como só se demorariam em Sainte-Menehould o tempo necessário para tomarem mudas, na outra extremidade da cidade essa onda tumultuosa voltou com mais ardor a quebrar-se contra a carruagem.

      O rei julgava (e fora esse juízo que talvez o impelira num mau caminho) que só em Paris os espíritos estavam extraviados, fiava-se na sua boa província; agora a sua boa província não só lhe escapava, senão que se voltava sem piedade contra ele. A província tinha assustado o Sr. de Choiseul na ponte de Sommevelle; prendera o Sr. Dandoins em Sainte-Menehould; atirara sobre o Sr. de Damas em Clermont, e acabava por matar Isidoro à vista do rei. Tudo se pronunciava contra essa fuga, até os próprios padres, dos quais o cavaleiro de Bouillé derrubara um com o seu cavalo no meio da estrada.

      E ainda seria pior, se o rei pudesse ter visto o que se passava nas cidades e aldeias, onde chegava a notícia de que fora preso. Imediatamente as populações se levantavam em peso: as mulheres tomavam nos braços as crianças de berço; as mães conduziam pela mão as que andavam; os homens carregavam-se de armas, tantas quantas possuíam, ou prendendo-as em volta do corpo, ou levando-as aos ombros. Chegavam assim decididos, não a escoltarem o rei, mas a matá-lo, aquele rei que, no momento da colheita (triste colheita, a da pobre Champanhe, tão pobre que na sua linguagem expressiva, o povo lhe chamava a piolhosa de Champanhe!), ia buscar, para que a pisassem às patas dos seus possantes cavalos, os ratoneiros e os hussards ladrões! Porém três anjos velavam sobre a carruagem real: o pobre delfim, doente e todo trémulo no colo da mãe; a princesa real, que linda com a brilhante formosura das crianças russas, ia de pé à portinhola, olhando para tudo o que se passava; com os olhos espantados, mas firmes, e finalmente a princesa Isabel, já na idade de vinte e sete anos, mas a quem a castidade da alma e do corpo teciam em volta da fronte a auréola da mais pura mocidade. Aqueles homens viam tudo isso, depois o rei abatido, a rainha curvada sobre o filho, e a cólera desaparecia-lhes, pedindo outros objectos em que pudesse descarregar-se. Gritavam contra os guardas, injuriavam-nos, chamavam àqueles nobres e dedicados corações, corações de cobardes e traidores; e depois, sobre todas essas cabeças exaltadas, a maior parte descobertas e esquentadas pelo mau vinho das tabernas. Caía em cheio o Sol de Junho, descrevendo íris de chamas sobre a ténue poeira que o extenso cortejo levantava ao longo da estrada.

      Que teria dito aquele rei, que talvez se iludisse ainda, se tivesse visto um homem partir de Mézières, com a espingarda ao ombro, caminhar sessenta léguas em três dias para matar o rei, alcançá-lo em Paris, e vendo-o tão infeliz e tão humilhado, abanar a cabeça e renunciar ao seu projecto.

      Que diria se tivesse visto um rapaz marceneiro, que julgava que depois da fuga do rei seria imediatamente posto em processo e condenado, partir do fundo da Borgonha, correndo pelas estradas, para assistir ao julgamento e ouvir a sentença?

      No caminho um mestre do seu ofício explicou-lhe que isso seria mais demorado do que ele julgava, e deteve-o para fraternizar com ele; o marceneiro demorou-se em casa do mestre, e acabou por casar com a filha dele.3

      O que via Luís XVI era talvez mais expressivo, porém menos terrível, porque já dissemos como um tríplice escudo de inocência afastava dele a cólera, voltando-a contra os seus servidores.

      Saindo de Sainte-Menehould, talvez a meia légua da cidade, viram chegar através dos campos, a grande galope, um velho fidalgo, cavaleiro de S. Luís, cuja venera trazia ao peito.

      Por um instante, sem dúvida, o povo julgou que aquele homem corria, levado pela simples curiosidade, e abriu-lhe caminho; o velho fidalgo aproximou-se da portinhola com o chapéu na mão saudando o rei e a rainha, e tratando-os por majestades. O povo acabava de conhecer onde estava a força real, e a verdadeira majestade; indignou-se por ouvir dar aos seus prisioneiros um título, que lhe era devido a ele, e começou a resmungar e a ameaçar.

      O rei já aprendera a conhecer aqueles rugidos: tinha-os ouvido em volta da casa de Varennes, e adivinhava-lhes a significação.

      - Senhor - disse ele ao velho cavaleiro de S. Luís - eu e a rainha estamos muito comovidos pela prova de afeição que acaba de nos dar de modo tão público; porém em nome do Céu, afaste-se, porque a sua vida está em perigo!

      - A minha vida pertence a vossa majestade, e o meu último dia será o mais belo, se morrer pelo meu rei!

      Alguns ouviram estas palavras e murmuraram mais alto.

      - Retire-se, senhor! Retire-se - gritou o rei.

      Depois, debruçando-se na carruagem, disse:

      - Meus amigos, dêem passagem ao Sr. de Dampierre.

      Os mais próximos, aqueles que ouviram o pedido do rei, cederam e deram passagem; desgraçadamente, um pouco mais longe, cavalo e cavaleiro acharam-se apertados por todos os lados, o cavaleiro excitou o cavalo com as esporas e o freio; porém a multidão era de tal modo compacta, que não era senhora dos seus movimentos; algumas mulheres pisadas gritavam; uma criança assustada chorava; os homens mostravam os punhos cerrados e o obstinado velho fez-lhes frente.

      Então as ameaças mudaram-se em rugidos; rebentou a grande cólera popular e leonina...

      O Sr. Dampierre estava já sobre a orla daquela floresta de homens; meteu esporas ao cavalo; o cavalo saltou valorosamente o fosso, e partiu a galope através dos campos.

      Neste momento o velho fidalgo voltou-se e tirando o chapéu gritou:

      - Viva el-rei!

      Última homenagem ao seu soberano, mas também último insulto a esse povo.

      Ouviu-se um tiro de espingarda.

      Ele tirou então uma pistola da sela e retribuiu imediatamente tiro por tiro.

      Então todos os que possuíam uma arma carregada atiraram ao mesmo tempo sobre aquele insensato.

      O cavalo, crivado de balas, caiu.

      O homem teria sido ferido ou morto por essa horrível descarga?

      Nunca se soube.

      O certo é que a multidão correu como um turbilhão para o lugar, onde tinham caído o homem e cavalo, a uns cinqüenta passos distante da carruagem do rei; depois sentiu-se um desses tumultos, como se sentem à roda dos cadáveres, movimentos desordenados, um caos informe, um turbilhão de gritos e de clamores; depois de repente, na ponta de um chuço, viu-se elevar uma cabeça, coberta de cabelos brancos.

      Era a do desgraçado cavaleiro de Dampierre!

      A rainha soltou um grito e caiu no fundo da carruagem quase desfalecida.

      - Monstros! Canibais! Assassinos! - murmurou o conde de Charny.

      - Cale-se! Cale-se, Sr. conde! - disse Billot – aliás não respondo pelo senhor.

      - Embora - disse Charny - estou cansado da vida... Que pior me pode acontecer do que ao meu pobre irmão?

      - Seu irmão - disse Billot - era criminoso e o senhor está longe de o ser.

      Charny fez um movimento para saltar abaixo da almofada; os dois oficiais agarraram-no; vinte baionetas se voltaram contra ele.

      - Amigos! - disse Billot, com a sua voz forte e imponente - por mais que faça ou diga este, e apontou para Charny, proíbo que lhe toquem num só cabelo da cabeça... Respondo por ele a sua mulher.

      - A sua mulher! - murmurou a rainha estremecendo, como se uma dessas baionetas, que ameaçavam Charny, a tivesse picado no coração; - a sua mulher! Por quê?

      Por quê? O próprio Billot não o poderia dizer. Invocara o nome e a imagem da mulher de Charny, sabendo quão poderosos são esses nomes sobre a multidão, que se compõe sempre, pela maior parte, de pais e maridos.

 

Via dolorosa

      Chegaram tarde a Châlons. A carruagem entrou no pátio da intendência. Tinham sido enviados adiante correios para que mandassem preparar as pousadas.

      O pátio estava cheio pela guarda nacional e pelos curiosos.

      Foram obrigados a afastar os espectadores para que o rei pudesse apear-se.

      O rei foi o primeiro a descer, depois a rainha levando o delfim nos braços, depois a princesa Isabel e a infanta, e finalmente a Srª. de Tourzel.

      No momento em que Luís XVI punha o pé no estribo, dispararam uma arma e a bala assobiou aos ouvidos do rei.

      Havia nesse tiro uma intenção regicida, ou era um simples acaso?

      - Bom! - disse o rei, voltando-se com muito sossego - aí está um desastrado, que deixou disparar a espingarda! Depois em voz alta, acrescentou:

      - É preciso terem mais cuidado, senhores; de um instante para o outro pode acontecer algum desastre escusadamente!

      Charny e os dois oficiais seguiram sem constrangimento a família real e subiram atrás dela.

      Porém, já pondo de parte o aziago tiro de espingarda, parecera à rainha que entrava numa atmosfera mais suave: na porta, onde parara o cortejo tumultuoso da estrada real, tinham também cessado os gritos; um certo murmúrio de compaixão se fizera até ouvir no momento em que a família real descera da carruagem. Chegando ao primeiro andar, encontraram uma mesa, tão sumptuosa quanto possível, e servida com tal elegância, que os presos olharam uns para os outros com espanto.

      Lá estavam alguns criados esperando; porém Charny reclamou para si e para os dois oficiais o privilégio do serviço. Debaixo dessa humilhação, que hoje poderia parecer estranha, ocultava-se o desejo de se não afastar do rei, de ficar junto dele e pronto para o que pudesse acontecer.

      A rainha compreendeu-o; porém nem sequer se voltou para o lado dele, nem lhe agradeceu com a mão, com a vista ou com a voz. As palavras de Billot: “Respondo por ele a sua mulher!” rugiam como uma tempestade no fundo do coração de Maria Antonieta.

      Charny, que ela julgava arrebatar de França, que julgava expatriar consigo, voltava com ela para Paris e ia tornar a ver Andréia.

      Ele, pela sua parte, ignorava o que se passava no coração da rainha, ignorava que tivesse ouvido aquelas palavras; e além disso o seu espírito começava a conceber algumas esperanças.

      Como dissemos, Charny fora mandado com antecedência explorar o caminho, para poder desempenhar a sua missão convenientemente; sabia portanto qual era o espírito da aldeia mais insignificante. Ora Châlons, antiga cidade sem comércio, povoada de burgueses, de proprietários e de fidalgos, era pela maior parte uma cidade realista.

      Resultou que apenas os augustos convivas se assentaram à mesa, o seu hospedeiro, o intendente do departamento, adiantou-se, e inclinando-se diante da rainha, que nada esperava já de bom e olhava para ele com inquietação, disse:

      - Senhora, as meninas de Châlons solicitam a graça de virem oferecer as suas flores a vossa majestade.

      A rainha voltou-se muito admirada para a princesa Isabel, e depois para o rei, dizendo:

      - Flores!

      - Senhora - continuou o intendente - se o momento é mal escolhido, ou a pretensão demasiado ousada, vou dar ordem para que não subam.

      - Oh! Não, não, senhor! Pelo contrário – exclamou a rainha; - donzelas, flores... Oh! Por Deus, deixe entrar!

      O intendente retirou-se, e um instante depois, doze meninas de catorze a dezesseis anos, as mais lindas que se tinham encontrado na cidade, apareceram na antecâmara e pararam no limiar da porta.

      - Oh! Entrem, entrem, minhas filhas! – exclamou a rainha estendendo-lhes os braços.

      Uma das meninas intérprete, não só das suas companheiras, mas também da sua família e da cidade toda, tinha decorado um belo discurso, que se dispunha a repetir, porém àquele gesto da rainha, ao ver-lhe os braços abertos e a comoção da família real, a pobre criança só encontrou lágrimas, que eram a expressão da opinião e dos sentimentos gerais.

      - Oh! Vossa majestade... Que desgraça!

      A rainha pegou no ramalhete e abraçou a menina.

      Durante esse tempo, Charny, inclinando-se ao ouvido do rei, disse-lhe em voz baixa:

      - Meu senhor, talvez se possa tirar um bom partido desta cidade; talvez não esteja ainda tudo perdido... Se vossa majestade me concede licença por uma hora, descerei, e lhe relatarei depois o que tiver visto, ouvido e talvez que até feito.

      - Vá, senhor - disse o rei - mas seja prudente; se lhe acontecesse alguma desgraça, nunca me consolaria... Ai de mim! São já demais dois mortos na mesma família.

      - Meu senhor, a minha vida pertence a el-rei, como pertencia a dos meus irmãos.

      E saiu.

      Porém, saindo, enxugava uma lágrima.

      Era necessária a presença da família real para fazer desse homem de coração firme, mas terno, o homem estóico que afectava parecer. Achando-se só consigo mesmo, achava-se em frente da sua dor.

      - Pobre Isidoro! - murmurava ele.

      E apertou com a mão o peito para ver se estavam ainda na algibeira da casaca os papéis, que o Sr. de Choiseul lhe entregara, e que tendo sido encontrados no cadáver do irmão, ele tencionava ler, no primeiro momento de sossego, com a mesma religião com que leria um testamento.

      Depois das donzelas, a quem a princesa abraçou como irmãs, apresentaram-se os pais; eram quase todos, como dissemos, ou dignos burgueses, ou velhos fidalgos, que vinham tímida e humildemente pedir a graça de cumprimentarem os seus soberanos desgraçados.

      O rei levantou-se assim que os avistou, e a rainha com a sua voz mais suave, disse-lhes:

      - Entrem!

      Estavam em Châlons ou em Versalhes? Era apenas algumas horas antes, que os prisioneiros tinham visto, com os seus próprios olhos, degolar o desgraçado Sr. de Dampierre!

      Passada meia hora, Charny tornou a entrar.

      A rainha vira-o sair, e vira-o voltar; porém, seria impossível ao observador mais perspicaz ler-lhe no rosto o efeito produzido na alma, tanto à entrada como à saída do conde.

      - Então? - perguntou o rei inclinando-se para Charny.

      - Então, meu senhor - respondeu o conde – tudo vai o melhor possível; a guarda nacional oferece-se para conduzir amanhã vossa majestade até Montmédy.

      - Então - disse o rei - decidiu alguma coisa?

      - Sim, meu senhor, de acordo com os principais chefes... Amanhã, antes de partir, el-rei pedirá para ouvir missa; não podem recusar isto a vossa majestade, porque é o dia do Corpo de Deus. A carruagem esperará el-rei à porta da igreja; à saída, el-rei subirá para a carruagem, os vivas rebentarão então, e no meio deles el-rei dará ordem de virar os cavalos para Montmédy.

      - Muito bem - disse Luís XVI; - agradeço-lhe senhor de Charny. Se daqui até amanhã nada estiver mudado, faremos como diz. Mas vão descansar um pouco, o senhor e os seus companheiros, que devem ter ainda maior necessidade do que nós.

      Como bem se compreende, a recepção das donzelas, dos burgueses e dos excelentes fidalgos, não se prolongou muito pela noite adiante: o rei e a família real recolheram-se às nove horas.

      Quando entraram nos aposentos que lhe estavam destinados, uma sentinela que estava à porta recordou ao rei e à rainha que continuavam a ser prisioneiros.

      Todavia a sentinela apresentou-lhes a arma.

      Pelo movimento preciso com que foi feita esta homenagem à majestade real, mesmo cativa, o rei conheceu um velho soldado.

      - Onde serviu? - perguntou ele à sentinela.

      - Nas guardas francesas.

      - Então - continuou o rei com um tom seco - não me admira de o ver aí.

      Luís XVI não podia esquecer que no dia 13 de Julho de 1789 as guardas francesas se tinham unido ao povo.

      O rei e a rainha entraram no seu quarto; a sentinela estava mesmo à porta do quarto de dormir.

      Uma hora depois, saindo de sentinela, o soldado pediu para falar ao chefe da escolta. O chefe era Billot.

      Ceara na rua com os homens que tinham vindo de diferentes aldeias situadas à beira da estrada, e procurava determiná-los a ficarem até ao outro dia.

      Mas pela maior parte, aqueles homens tinham visto o que queriam, isto é, o rei, e mais de metade não renunciavam a festejar o Corpo de Deus na sua aldeia.

      Billot esforçava-se em demorá-los porque as disposições da cidade aristocrata o inquietavam.

      Os homens do campo respondiam-lhe:

      - Se não voltarmos para as nossas casas, quem festejará lá amanhã Nosso Senhor, e estenderá os panos diante das nossas casas?

      Foi no meio desta ocupação, que veio procurá-lo a sentinela. Ambos conversaram em voz baixa e de um modo bastante animado.

      Billot mandou depois procurar Drouet.

      A mesma conversação em voz baixa, animada e cheia de gestos significativos se renovou.

      Em conseqüência desta conversação, Billot e Drouet dirigiram-se a casa do mestre da posta, amigo deste último.

      O mestre da posta mandou-lhes selar dois cavalos, e dez minutos depois, Billot galopava na estrada de Reims, e Drouet na de Vitry-le-Français.

      Chegou o dia; apenas estavam uns seiscentos homens da escolta, os mais encarniçados ou os mais cansados.

      Tinham passado a noite nas ruas, sobre molhos de palha, que lhes tinham dado. Acordando aos primeiros raios do dia viram uma dúzia de homens uniformizados, que entravam na intendência, e que pouco depois saíam, correndo.

      Tinha havido em Châlons, um quartel das guardas da companhia de Villeroy; uma dúzia desses senhores moravam na cidade.

      Acabavam de receber as ordens de Charny.

      Charny tinha-lhes dito que vestissem as suas fardas e se apresentassem a cavalo diante da porta da igreja no momento da saída do rei.

      Tinham ido preparar-se para esse fim.

      Como já dissemos, alguns dos aldeões, que na véspera tinham servido na escolta ao rei, não se tinham retirado na noite antecedente, porque estavam cansados; porém pela manhã contaram as léguas: uns estavam a dez, outros a doze, e poucos a quinze das suas casas.

      Cem ou duzentos partiram por mais que os companheiros instassem para que ficassem.

      Os fiéis acharam-se pois reduzidos a uns quatrocentos, quatrocentos e cinqüenta quando muito.

      Ora podiam, pelo menos, contar com um número igual de guardas nacionais dedicados ao rei, sem contar os guardas reais e os oficiais, que se deviam recrutar, espécie de batalhão sagrado, pronto a dar exemplo, expondo-se a todos os perigos.

      E além disso, como se sabe, a cidade era aristocrática.

      Pela manhã, desde as dez horas, os habitantes mais dedicados à causa realista, estavam esperando a pé no pátio da intendência; Charny e os dois guardas estavam no meio deles e esperavam também.

      O rei levantou-se às sete horas, e mandou dizer que tinha tenção de assistir à missa.

      Procuraram Drouet e Billot para lhes participarem o desejo do rei; porém não encontraram nem um nem outro.

      Portanto nada se opunha a que se satisfizesse esse desejo.

      Charny subiu ao quarto do rei e anunciou-lhe a ausência dos dois chefes da escolta.

      O rei contentou-se com isso, mas Charny abanou a cabeça.

      Se não conhecia Drouet, pelo menos conhecia bem Billot.

      Porém tudo parecia favorável. As ruas estavam atulhadas de gente, mas era fácil de ver que toda aquela populaça era simpática.

      Enquanto as persianas do quarto do rei e da rainha estiveram fechadas, a multidão, para não perturbar o sono dos prisioneiros, tinha circulado com pequeno ruído, e com passos cautelosos, levantando as mãos e os olhos para o Céu, e tão numerosa, que apenas se viam, perdidos por entre ela, os quatrocentos ou quinhentos aldeões, que tinham preferido não voltar para as suas aldeias.

      Porém, apenas se abriram as tabuinhas das janelas dos augustos esposos, os gritos de: “Viva o rei!” e “Viva a rainha!” ressoaram com tal energia, que, sem terem comunicado o seu pensamento, espontaneamente, o rei e a rainha apareceram ao mesmo tempo na janela.

      Então os gritos foram unânimes, e uma última vez ainda esses dois condenados pelo destino puderam iludir-se com a esperança.

      - Tudo vai bem! - disse Luís XVI de uma janela para a outra, onde Maria Antonieta levantou os olhos ao Céu e não respondeu.

      Neste momento as badaladas do sino anunciaram a abertura da igreja.

      Depois, ao mesmo tempo, Charny bateu levemente à porta.

      - Está bom! - disse o rei - estou pronto, senhor.

      Charny lançou um olhar rápido sobre o rei; estava sossegado, quase firme; tinha sofrido tanto que, à força de sofrer muito, parecia ter perdido a irresolução.

      A carruagem esperava à porta.

      O rei e a família real subiram, rodeados por uma multidão, pelo menos, tão considerável como na véspera; porém, em lugar de insultar os prisioneiros, a multidão pedia-lhes uma palavra, um olhar, e julgava-se feliz por tocar o fato do rei, ou altiva por beijar a cauda do vestido da rainha.

      Os três oficiais retomaram os seus lugares na almofada.

      O cocheiro recebeu ordem de conduzir a carruagem para a igreja e obedeceu sem fazer a menor observação.

      Além disso, de onde poderia vir a contra-ordem? Os dois chefes continuavam a estar ausentes.

      Charny olhava para todos os lados e procurava em vão Billot e Drouet.

      Chegaram à igreja.

      A escolta dos camponeses tomara do mesmo modo o seu lugar à roda da carruagem; mas a cada momento, o número dos guardas nacionais aumentava, à esquina de cada rua desfilavam por companhias.

      Chegando à igreja, Charny calculou que podia dispor de seiscentos homens.

      Tinham reservado lugares para a família real sob uma espécie de dossel, e ainda que só fossem oito horas da manhã, os padres começaram uma missa cantada.

      Charny estimou isto. Nada receava tanto como uma demora, que podia ser mortal para as esperanças, que recuperara. Mandou prevenir o oficiante de que era muito essencial que a missa não durasse mais de um quarto de hora.

      - Compreendo - respondeu o padre - e vou orar a Deus para que conceda a suas majestades uma feliz jornada.

      A missa durou exactamente o tempo indicado, e todavia Charny, consultou mais de vinte vezes o relógio. O próprio rei não podia ocultar a sua impaciência: a rainha, de joelhos entre os dois filhos, encostava a cabeça sobre a almofada do genuflexório; a princesa Isabel, tranqüila e serena, como uma estátua da Virgem de alabastro, fosse porque ignorasse o projecto, fosse por que tivesse já entregue a sua vida e a do seu irmão entre as mãos do Senhor, não dava sinal algum de impaciência, encontrava-se como alheia ao que se passava.

      Finalmente, o padre, voltando-se pronunciou as palavras sacramentais: Ite, missa est.

      E descendo os degraus do altar, com o santo cibório na mão, abençoou, ao passar junto deles, o rei e a família real.

      Estes inclinaram-se, e ao desejo que se formulava no coração do padre, responderam em voz baixa: Amém.

      Depois dirigiram-se para a porta.

      Todos os que acabavam de ouvir a missa com eles, ajoelharam à sua passagem; os lábios moviam-se sem que som algum saísse das bocas; porém era fácil adivinhar tudo que pediam aqueles lábios mudos.

      À porta da igreja encontraram os dez ou doze guardas a cavalo.

      A escolta realista começava a tomar proporções colossais. E todavia era evidente que os homens do campo com as suas rudes vontades, com as suas armas, menos mortais talvez do que as dos cidadãos, porém mais terríveis à vista, porque um terço estava armado de espingardas e o resto de foices e chuços, era evidente, que esses homens do campo podiam, no momento decisivo, pesar de um modo fatal na balança.

      Não foi portanto sem certo receio que Charny, inclinando-se para o rei, a quem pediu as suas ordens, lhe disse para o animar:

      - Vamos, meu senhor...

      O rei estava decidido.

      Passou a cabeça por cima da portinhola, e dirigindo-se aos que cercavam a carruagem, disse:

      - Senhores, ontem em Varennes violentaram-me; eu dera ordem de ir para Montmédy, e à força conduziram-me para uma capital revoltada. Porém, ontem estava cercado de rebeldes, hoje estou no meio de bravos e fiéis súbditos, e portanto repito: para Montmédy, senhores!

      - Para Montmédy! - bradou Charny.

      - Para Montmédy! - repetiram os guardas da companhia de Vileroy.

      - Para Montmédy - repetiu depois toda a guarda nacional de Châlons.

      Depois um coro geral soltou o grito de:

      - Viva el-rei!

      A carruagem voltou a esquina da rua e retomou o caminho que tinha seguido na véspera.

      Charny não desviava os olhos de toda aquela população das aldeias. Parecia, na ausência de Billot e Drouet, comandada por aquele soldado da guarda francesa, que tinha estado de sentinela à porta do quarto do rei; ele seguiu e fez seguir o mesmo movimento pela sua gente, cujo olhar sombrio e silencioso indicava que gostavam pouco da manobra que se executava.

      Porém deixaram passar adiante toda a guarda nacional, fechando o cortejo, e formando-lhe a retaguarda.

      Nas primeiras fileiras marchavam os homens armados de chuços, de forcados e de foices.

      Depois seguiam-se perto de cento e cinqüenta homens armados de espingardas.

      Esta manobra, tão bem executada, como se fosse por tropas regulares, inquietou Charny, porém não havia meio de se lhe opor, e no lugar em que estava nem sequer podia pedir explicação dela.

      Porém esta explicação em breve se apresentou.

      À medida que avançavam para as portas da cidade, parecia, que apesar do ruído da carruagem, e apesar dos rumores e gritos dos que a acompanhavam, ouvia-se alguma coisa parecida com um trovão surdo, que ia aumentando.

      - Tudo está perdido! - disse ele.

      - Por quê? - perguntou o guarda que ia na almofada.

      - Então não conhece aquele ruído?

      - Parece o rufar do tambor... Então?

      - Então, já vai ver! - disse Charny.

      Neste momento, voltando uma esquina, entraram numa praça: duas outras ruas desembocavam nessa praça, a rua de Reims e a de Vitry-le-Français. Por cada uma dessas duas ruas, com os tambores na frente, com as bandeiras desfraldadas, avançavam duas forças consideráveis de guardas nacionais.

      Cada uma dessas forças parecia dirigida por um homem a cavalo.

      Um desses homens era Drouet, o outro era Billot.

      Charny não precisou mais do que lançar um olhar sobre a direcção que seguia cada uma dessas forças para compreender tudo.

      A ausência de Billot e Drouet, inexplicável até então, explicava-se agora muito claramente.

      Sem dúvida tinham sido prevenidos do que se tramava em Châlons: tinham partido um para ir apressar a chegada da guarda nacional de Reims, o outro para ir buscar a guarda nacional de Vitry-le-Français.

      As suas medidas tinham sido tomadas de combinação; ambos chegavam a tempo.

      Mandaram fazer alto às suas tropas nas entradas das praças que tapavam completamente.

      Depois, sem outra demonstração, deram ordem de carregar as armas.

      O cortejo parou.

      O rei deitou a cabeça fora da portinhola.

      Viu Charny em pé, muito pálido e com os dentes cerrados.

      - Que aconteceu? - perguntou o rei.

      - Os nossos inimigos foram buscar reforço, e como vê, carregam as armas... ao passo que na retaguarda da guarda nacional de Châlons, os camponeses estão com as suas armas já carregadas!

      - Que lhe parece isto, Sr. de Charny?

      - Parece-me, meu senhor, que estamos metidos entre dois fogos, o que não impedirá vossa majestade de passar, se quiser... Mas até onde irá vossa majestade? Realmente não o sei!

      - Está bem - disse o rei - voltemos para trás.

      - Vossa majestade está bem decidido?

      - Sr. de Charny, já tem corrido bastante sangue por minha causa, é sangue que choro com bem amargas lágrimas!... Não quero que se derrame nem mais uma gota: voltemos.

      A estas palavras, os dois mancebos da almofada precipitaram-se para a portinhola; os guardas da companhia de Vileroy correram também; aqueles bravos e ardentes militares nada desejavam tanto, como entrarem em combate com os paisanos; porém o rei repetiu a ordem, ainda mais positiva do que o fizera já.

      - Senhores. - disse Charny em voz alta e imperiosa - Voltemos, ordena el-rei!

      E tomando ele mesmo as rédeas dos cavalos, fez dar à pesada carruagem uma volta completa.

      Às portas de Paris, a guarda nacional de Châlons, tornada inútil já, cedeu o lugar aos paisanos, à guarda nacional de Vitry e à de Reims.

      - Acha que obrei bem, senhora? - disse Luís XVI a Maria Antonieta.

      - Sim, senhor - respondeu ela - porém acho também que o Sr. de Charny lhe obedeceu muito facilmente.

      E caiu na profunda e sombria meditação, que não pertencia toda à situação em que se viam, por mais terrível que fosse.

 

Via dolorosa

      A carruagem real seguia tristemente a estrada de Paris, vigiada por aqueles dois homens de aspecto sombrio, que acabavam de a fazer retroceder, quando, entre Epernay e Dormans, Charny, graças à sua elevada estatura, e do alto da almofada em que ia, pôde avistar outra carruagem, que vinha de Paris ao galope de quatro cavalos de posta.

      Charny adivinhou imediatamente que a carruagem trazia alguma notícia importante, ou algum personagem de consideração.

      Efectivamente, logo que chegou à vanguarda da escolta, viram, depois de terem trocado duas ou três palavras, as fileiras da vanguarda abrirem-se, e os homens que a compunham apresentarem as armas!

      A carruagem do rei parou e puderam ouvir fortes brados.

      Todas as vozes repetiam em coro: “Viva a Assembléia Nacional.”

      A carruagem, que vinha do lado de Paris, continuou o seu caminho até chegar à do rei.

      Então daquela carruagem apearam-se três homens, dos quais dois eram inteiramente desconhecidos dos augustos prisioneiros.

      A rainha, apenas viu o terceiro deitar a cabeça fora da portinhola, murmurou ao ouvido de Luís XVI:

      - O Sr. de Latour-Maubourg! A alma danada de Lafayette!

      Depois, meneando a cabeça, acrescentou:

      - Isto não nos pressagia nada bom!

      Daqueles três homens o mais velho caminhou adiante de todos, e abrindo brutalmente a portinhola da carruagem do rei disse:

      - Sou Pétion, e aqui estão os Sr.s Barnave e Latour-Maubourg, enviados como eu, e comigo, pela Assembléia Nacional para lhes servirmos de escolta, e ao mesmo tempo velar em que a cólera do povo não faça por si mesma justiça... Apertem-se um pouco e dêem-nos lugar!

      A rainha lançou ao deputado e aos seus dois companheiros um desses olhares desdenhosos, como costumavam cair de vez em quando do alto do orgulho da filha de Maria Teresa.

      O Sr. de Latour-Maubourg, fidalgo cortesão da escola de Lafayette, custou-lhe imensamente suportar aquele olhar, e disse:

      - Suas majestades estão já muito apertadas nesta carruagem: subirei para a carruagem do séquito.

      - Suba para onde quiser - disse Pétion; - quanto a mim, o meu lugar é na carruagem do rei e da rainha, e para ela subo.

      Ao mesmo tempo entrou na carruagem.

      No fundo estavam assentados o rei, a rainha e a princesa Isabel.

      Pétion olhou para cada um sucessivamente.

      Depois dirigindo-se à princesa Isabel, disse:

      - Perdão, senhora, mas, como representante da Assembléia, o lugar de honra pertence-me... Tenha pois a bondade de se levantar, e assentar-se na almofada da frente.

      - Oh! Que é isto... - murmurou a rainha.

      - Senhor! - disse o rei.

      - É assim mesmo... Vamos, levante-se, senhora, e dê-me o seu lugar.

      A princesa Isabel levantou-se, fazendo ao irmão e à cunhada um sinal de resignação.

      Entretanto, o Sr. de Latour-Maubourg tinha-se retirado, e fora pedir um lugar às duas damas do cabriolé, com mais cortesia certamente, do que acabara de fazer Pétion para com o rei e a rainha. Barnave ficara de fora, hesitando em entrar naquela carruagem, onde já estavam sete pessoas.

      - Então, Barnave - disse Pétion - não sobe?

      - Mas onde me hei-de eu assentar? – perguntou Barnave um pouco embaraçado.

      - Quer o meu lugar? - perguntou asperamente a rainha.

      - Agradeço-lhe, senhora - respondeu vexado Barnave; - um lugar na almofada da frente é suficiente.

      Por um movimento igual, a princesa Isabel puxou para si a infanta, enquanto a rainha assentava o delfim no colo.

      Desta maneira fez-se um lugar na almofada de diante, e Barnave achou-se defronte da rainha, cujos joelhos tocavam nos dele.

      - Vamos - disse Pétion sem pedir autorização ao rei - a caminho!

      E a carruagem continuou o seu caminho aos gritos de “Viva a Assembléia Nacional!”

      Ao povo chegara a vez de entrar na carruagem real, representado por Barnave e Pétion; quanto aos títulos, criara-os em 14 de Julho e em 5 e 6 de Outubro.

      Houve um momento de silêncio, durante o qual (excepto Pétion que, encerrado na sua brutalidade, parecia indiferente a tudo) todos se examinaram mutuamente.

      Permitam-nos que digamos algumas palavras a respeito dos personagens que acabámos de fazer entrar em cena.

      Jerónimo Pétion, chamado de Villeneuve, era um homem de quase trinta e dois anos, gordo, louro, rosado, fresco, e cujo mérito consistia unicamente na exaltação e na nitidez e consciência dos seus princípios políticos. Nascera em Chartres; constituíra-se advogado, e fora mandado a Paris como membro da Assembléia Nacional em 1789. Devia ser maire de Paris, gozar de uma popularidade destinada a ofuscar a dos Bailly e Lafayette, e morrer nas Charnecas de Bordeaux devorado pelos lobos. Os seus amigos chamavam-lhe o virtuoso Pétion. Ele e Camilo Desmoulins já eram republicanos em França, quando ainda ninguém em tal pensava.

      Pedro José Maria Barnave nascera em Grenoble. Tinha trinta anos apenas. Enviado à Assembléia Nacional, adquirira grande reputação e popularidade. Lutando com Mirabeau, no momento em que enfraquecia a popularidade e a reputação do deputado d'Aix, todos aqueles que eram inimigos de Mirabeau, e o grande orador gozava do privilégio dos homens de génio, isto é ter por inimigo tudo quanto é medíocre, todos os inimigos de Mirabeau, dizíamos, tinham-se feito amigos de Barnave e tinham-no sustentado, levantado e engrandecido nas lutas tempestuosas, que haviam acompanhado o fim da vida do ilustre tribuno. Barnave, como já dissemos, era um moço aproximadamente de trinta anos, que parecia ter, quando muito, vinte e cinco; tinha bonitos olhos azuis, a boca grande, o nariz arrebitado e a voz aguda. Apesar disso, a sua figura era elegante; arrebatado e espadachim, parecia um jovem capitão disfarçado em burguês; o seu aspecto era frio, seco maligno. Melhor seria não falarmos do seu aspecto.

      Pertencia ao partido realista-constitucional.

      No momento em que ele tomava o seu lugar na frente, e se assentava defronte da rainha, Luís XVI disse:

      - Senhores, começo por declarar-lhes, que a minha intenção nunca foi deixar o reino.

      Barnave, meio assentado, parou e olhou para o rei.

      - Deveras, senhor? - perguntou ele - nesse caso, eis uma palavra que salvará a França.

      Então passou-se alguma coisa extraordinária entre aquele partidário da burguesia de uma pequena cidade da província, e aquela mulher descida de um dos maiores tronos do mundo.

      Ambos procuraram ler no coração um do outro, não como dois inimigos políticos, que aí querem procurar segredos de Estado, mas como um homem e uma mulher, que aí procuram mistérios de amor.

      Donde precedia no coração de Barnave o sentimento, que aí surpreendeu, no fim de alguns minutos de estudo, o olhar penetrante de Maria Antonieta?

      Vamos dizê-lo e abrir um desses livrinhos do coração, que fazem as legendas secretas da história, e que no fim das grandes decisões da sorte pesam mais na balança que o grande livro dos acontecimentos oficiais.

      Barnave tinha a pretensão de ser, em tudo, o sucessor e herdeiro de Mirabeau; ora, segundo a sua opinião, era já o sucessor e herdeiro do grande orador na tribuna.

      Mas faltava outro ponto.

      Aos olhos de todos (nós sabemos o que nisso há de verdade), Mirabeau era honrado com a confiança do rei e com a benevolência da rainha; aquela única entrevista, que obtivera o negociador no paço de Saint-Cloud, fora transformada em muitas audiências secretas, nas quais a presunção de Mirabeau chegara até à audácia, e a condescendência da rainha até à fraqueza. Naquela época, usava-se não só caluniar a pobre Maria Antonieta, senão também acreditar nessas calúnias.

      Ora, o que Barnave ambicionava era a completa sucessão de Mirabeau. Daí procedeu o seu ardor em fazer-se nomear um dos três comissários que eram enviados ao rei.

      Fora nomeado e vinha com aquela firmeza de um homem que sabe, que no caso em que não tivesse o talento de se fazer amar, teria pelo menos o poder de se odiar.

      Eis o que, com o seu rápido relance de olhos a rainha pressentira, quase adivinhara.

      Depois, o que ela também adivinhara, era a preocupação actual de Barnave.

      Cinco ou seis vezes, durante o primeiro quarto de hora, em que Barnave lhe esteve fronteiro, o moço deputado voltou-se para examinar com escrupulosa atenção os três homens, que estavam na almofada da carruagem, e daí o seu olhar descia cada vez mais hostil sobre a rainha.

      Efectivamente, Barnave sabia que um daqueles três homens, (qual? ignorava-o) era o conde de Charny, e a opinião pública dava o conde de Charny por amante da rainha.

      Barnave era cioso. Explique quem puder esse sentimento no coração do mancebo, mas era verdadeiro.

      Eis o que a rainha adivinhou.

      E desde que o adivinhou, ficou forte: conhecia o fraco do coração do seu adversário: tratava-se só de feri-lo e de feri-lo certeiro.

      - Senhor - disse ela dirigindo-se a el-rei – ouviu o que disse o homem, que conduz a escolta?

      - A que respeito, senhora? - perguntou el-rei.

      - A respeito do Sr. conde de Charny.

      Barnave estremeceu.

      O estremecimento não escapou à rainha, que tocava com o seu joelho no dele.

      - Não declarou ele que tomava sobre si a responsabilidade da vida do conde? - disse el-rei.

      - Exactamente, e acrescentou que respondia por essa vida à condessa...

      Barnave fechou os olhos, mas ouviu de maneira que não perdeu uma sílaba do que ia dizer a rainha.

      - Então? - perguntou el-rei.

      - Então, senhor, a condessa de Charny é a minha antiga amiga Andréia de Taverney... Não acha, que na chegada a Paris, seria bom que eu despedisse o Sr. de Charny para que ele pudesse sossegar sua esposa?... Ele tem corrido grandes perigos; o irmão foi morto por nossa causa; parece-me que pedir a continuação dos seus serviços junto de vossa majestade, seria afligir os dois esposos...

      Barnave respirou e abriu os olhos.

      - Tem razão, senhora - respondeu el-rei – ainda que, a falar verdade, duvido que o Sr. de Charny aceite.

      - Nesse caso, cada um de nós - disse a rainha - terá feito a sua obrigação, nós, oferecendo a despedida ao Sr. de Charny, ele recusando-a.

      A rainha sentiu de algum modo, por uma comunicação magnética, afrouxar-se a ira de Barnave; ao mesmo tempo, ele, coração generoso, compreendeu a sua injustiça para com aquela mulher, e teve vergonha.

      Até ali conservara a cabeça levantada e insolente, como um juiz diante de uma culpada, a quem tinha direito de julgar e condenar, e eis que de repente essa culpada, respondendo a uma acusação que não podia adivinhar, falava a linguagem da inocência ou do arrependimento.

      E porque não da inocência?

      - Somos tanto mais fortes - continuou a rainha - que não trouxemos o Sr. de Charny, e que eu supunha-o bem tranqüilo em Paris, quando o vi aparecer de repente à portinhola da carruagem.

      - É verdade - respondeu el-rei; - porém isso prova que o conde não necessita ser chamado, quando julga que cumpre um dever.

      Era inocente, não há dúvida!

      Oh! Como Barnave se faria perdoar pela rainha do mau pensamento que tivera contra a mulher?

      Dirigir a palavra à rainha? Barnave não se atrevia a isso. Esperar que a rainha fosse a primeira a falar? Porém ela satisfeita com o efeito que produzira com as poucas palavras que dissera, não falava.

      Barnave tornara-se meigo e quase humilde, e implorava a rainha com os olhos; porém ela parecia não o ver.

      O mancebo estava num desses estados de exaltação nervosa, em que, para ser notado por uma mulher despercebida, se empreenderiam os doze trabalhos de Hércules, apesar do perigo de sucumbir ao primeiro.

      Ele pedia ao Ente Supremo, porque já em 1791 não se pedia a Deus, que lhe enviasse uma ocasião qualquer de atrair sobre si os olhos da real indiferente, quando repentinamente, como se o Ente Supremo tivesse ouvido a súplica que lhe dirigia o moço deputado, um pobre padre, que esperava na estrada a passagem do rei, aproximando-se para ver mais de perto o augusto prisioneiro, levantou ao Céu os olhos arrasados de lágrimas e as mãos suplicantes, dizendo:

      - Senhor, Deus guarde a vossa majestade!

      Havia muito que o povo não tinha motivo nem pretexto para se encolerizar; nada se apresentara desde que tinham esquartejado o velho cavaleiro de S. Luís, cuja cabeça acompanhava o séquito, sempre espetada na ponta de uma lança.

      Oferecera-se-lhe agora uma excelente ocasião, aproveitou-a com empenho.

      À acção do velho e à súplica que ele pronunciou, o povo respondeu com um rugido; lançou-se sobre o padre num instante, e antes que Barnave saísse ao seu êxtase, o padre estava por terra, e ia ser estrangulado, quando a rainha exclamou, dirigindo-se a Barnave:

      - Oh! Senhor, não vê o que se passa?

      Barnave levantou a cabeça, mergulhou um olhar rápido no oceano onde acabava de desaparecer o velho, que se agitava entre as vagas tumultuosas, bramindo em volta da carruagem, e vendo do que se tratava, exclamou, precipitando-se com tão grande violência, que a portinhola se abriu e ele teria caído, se por um desses movimentos do coração tão prontos na princesa Isabel, esta o não tivesse detido pelas abas da casaca.

      - Oh! Miseráveis! Oh! Tigres. Não são franceses, ou a França, o povo dos bravos, tornou-se um povo de assassinos?

      A apóstrofe talvez nos pareça um pouco pretensiosa, mas estava no gosto da época; além disso, Barnave representava a Assembléia Nacional; era o poder supremo que falava pela sua voz; o povo recuou imediatamente e o velho foi salvo!

      Ele levantou-se dizendo:

      - Fez bem em me salvar, mancebo; um velho pedirá a Deus pelo senhor.

      E fazendo o sinal da cruz, retirou-se.

      O povo deixou-o passar, dominado pelo gesto e olhar de Barnave, que parecia a estátua do poder.

      Depois, quando o velho já ia longe, o jovem deputado tornou a assentar-se, e com a maior simplicidade, parecendo ignorar que acabava de salvar a vida a um homem.

      - Senhor - disse a rainha - agradeço-lhe.

      A estas palavras, Barnave estremeceu completamente.

      É que, sem contradição, durante o longo período que acabamos de percorrer com a infeliz Maria Antonieta, ela tinha sido mais bela, porém nunca tão comovente.

      Efectivamente, em lugar de governar como rainha, imperava como mãe; tinha à sua esquerda o delfim, linda criança de cabelos louros, que passara, com a negligência e inocência da idade, do colo da mãe para as pernas do virtuoso Pétion, o qual se humanizava a ponto de brincar-lhe com os anelados cabelos; tinha à direita a filha, a infanta, que parecia o retrato da mãe na primeira flor da juventude e beleza; finalmente, ela mesma tinha no lugar da coroa de ouro da realeza, a coroa de espinhos da desgraça, e por cima dos olhos vermelhos e da fronte pálida, os magníficos cabelos louros, entre os quais brilhavam alguns fios de prata, vindos antes da idade, e que falavam mais eloquentemente ao coração do jovem deputado, do que o faria o mais doloroso queixume.

      Ele contemplava aquela graça real, sentia-se próximo a cair aos pés daquela majestade moribunda, quando o delfim deu um grito de dor.

      O menino fizera ao virtuoso Pétion não sei que travessura, de que este julgara conveniente puni-lo, puxando-lhe vigorosamente uma orelha.

      O rei fez-se vermelho de cólera; a rainha empalideceu de vergonha; estendeu os braços, e tirou o menino das pernas de Pétion, e como Barnave fez o mesmo movimento que ela, o delfim, transportado pelos quatro braços, e puxado para si por Barnave, achou-se sobre os joelhos deste último.

      Maria Antonieta quis puxá-lo para si.

      - Não - disse o delfim - estou aqui muito bem.

      E como Barnave, que vira o movimento da rainha, afastava o braço para a deixar livre na execução do seu projecto, a rainha, (seria galanteio de mãe? Seria sedução de mulher?) deixou o jovem príncipe, conforme o seu desejo, onde estava.

      Passou-se neste momento no coração de Barnave alguma coisa impossível de explicar: estava orgulhoso e feliz ao mesmo tempo.

      O menino pôs-se a brincar com as rendas da camisa de Barnave, depois com o cinto e finalmente com os botões da casaca do deputado. Os botões especialmente ocuparam o jovem príncipe: tinham gravada uma divisa. O delfim soletrou as letras umas após outras, e acabou, juntando-as, por ler estas palavras: “Viver livre ou morrer.”

      - Que quer isto dizer? - perguntou ele.

      Barnave hesitou em responder.

      - Isto quer dizer, meu pequerrucho, explicou Pétion, que os franceses juraram não ter mais senhor... Compreendes?

      - Pétion! - exclamou Barnave.

      - Então - respondeu Pétion com a maior naturalidade possível - explica a divisa de outra maneira se lhe conheces outro sentido.

      Barnave calou-se; aquela divisa, que achava sublime na véspera, parecia-lhe quase cruel na presente situação.

      Porém pegou na mão do delfim e beijou-a respeitosamente.

      A rainha enxugou furtivamente uma lágrima que lhe subira do coração às pálpebras. E a carruagem, teatro deste pequeno drama extraordinário, simples até à inocência, continuou a rodar através dos gritos da multidão, que bramia conduzindo à morte seis das oito pessoas que encerrava.

      Chegaram a Dormans.

 

Via dolorosa

      Ali nada estava preparado para a recepção da família real, que foi obrigada a apear-se numa estalagem.

      Fosse por ordem de Pétion, a quem o silêncio do rei e da rainha muito tinha ofendido durante a jornada, fosse porque realmente tudo estivesse ocupado, não se encontrou para os augustos prisioneiros mais do que três águas-furtadas, em que se instalaram pessimamente.

      Apeando-se da carruagem, Charny, segundo o seu costume, tinha querido aproximar-se do rei e da rainha para receber as suas ordens; porém a rainha, com um só olhar, fizera-lhe sinal para que se conservasse afastado.

      Sem saber o motivo desta recomendação, o conde apressara-se a obedecer-lhe.

      Foi Pétion quem entrou na estalagem e se encarregou das funções de fornecedor. Depois, nem se deu ao trabalho de descer, e foi um criado quem veio anunciar que os quartos para a família real estavam preparados.

      Barnave estava assaz embaraçado; ardia em desejos de oferecer o braço à rainha; porém temia que aquela, que outrora tanto escarnecera a etiqueta na pessoa da Srª. de Noailles, não a invocasse, quando ele, Barnave, faltasse a ela.

      O rei foi o primeiro a apear-se, encostando-se ao braço dos dois guardas, os srs. de Malden e Valory.

      Charny, como sabem, a um sinal de Maria Antonieta, tinha-se afastado.

      A rainha apeou-se depois, estendeu o braço para que lhe dessem o delfim; porém como se a pobre criança soubesse a precisão que sua mãe tinha dessa lisonja, disse:

      - Não, eu quero ficar com o meu amigo Barnave.

      Maria Antonieta fez um sinal de assentimento, acompanhado de um meigo sorriso. Barnave deixou passar a princesa Isabel e a infanta; depois apeou-se, com o delfim nos braços.

      A Srª. de Tourzel vinha depois, e ia para tirar o seu real educando das mãos indignas que o levavam; porém um novo sinal da rainha acalmou o aristocrático ardor da aia dos infantes de França.

      A rainha subiu a escada suja e tortuosa, encostando-se ao braço do marido.

      No primeiro andar parou, acreditando já ter feito muito subindo vinte degraus; porém o moço gritou:

      - Mais para cima! Mais para cima!

      A este convite, a rainha, bastante despeitada, continuou a subir.

      Barnave corava de vergonha.

      - Como, mais para cima? - perguntou ele.

      - Sim - disse o moço - aqui é a casa de jantar e os quartos dos senhores da Assembléia Nacional.

      Barnave teve uma tontura. Pétion tomara os quartos do primeiro andar para si e desterrara a família real para o segundo.

      Contudo o moço deputado nada disse; porém, temendo, sem dúvida, o primeiro movimento da rainha, quando visse os quartos do andar de cima, destinados por Pétion a ela e à sua família, chegando ao segundo andar, Barnave depôs o menino no patamar.

      - Senhora, senhora - disse o príncipe dirigindo-se à mãe - o meu amigo Barnave vai-se embora!

      - Faz muito bem! - disse a rainha, que acabava de olhar para o quarto.

      Este aposento, como dissemos, compunha-se de três pequeníssimas salas, que comunicavam umas com as outras.

      A rainha instalou-se na primeira com a infanta; a princesa Isabel tomou a segunda para si, para o delfim e para a Srª. de Tourzel, finalmente, o rei tomou a terceira, que era um pequeno gabinete, com uma porta para a escada.

      O rei estava fatigado; quis, esperando a ceia, deitar-se um pouco; porém a cama era tão curta, que no fim de um minuto, foi obrigado a levantar-se, e abrindo a porta pediu uma cadeira.

      Os srs. de Malden e de Valory já estavam no seu posto nos degraus da escada. O Sr. de Malden, que estava mais próximo, desceu, pegou numa cadeira da casa de jantar e levou-a ao rei.

      Luís XVI, que já tinha uma cadeira de pau no seu gabinete, acomodou-a com a que lhe levou o Sr. de Malden para fazer uma cama para a sua estatura.

      - Oh! Meu senhor - disse o Sr. de Malden, juntando as mãos e meneando a cabeça dolorosamente - vossa majestade conta passar a noite desse modo?

      - Certamente - disse o rei.

      Depois acrescentou:

      - Além disso, o que me gritam aos ouvidos da miséria do meu povo é verdade; quantos dos meus súbditos se julgariam felizes se tivessem este pequeno gabinete, esta cama e estas duas cadeiras!

      E deitou-se na cama improvisada, preludiando assim as longas dores do Templo.

      Um instante depois, vieram anunciar a suas majestades que a mesa estava posta.

      O rei desceu e, vendo seis talheres na mesa, perguntou:

      - Para que são seis talheres?

      - São - respondeu o moço - um para o rei, outro para a rainha, outro para a Srª. infanta, outro para o Sr. delfim e outro para o Sr. Pétion.

      - E porque não também para o Sr. Barnave e outro para o Sr. Latour-Maubourg? - perguntou o rei.

      - Estavam aí, senhor - respondeu o moço – porém o Sr. Barnave fê-los tirar.

      - E deixou o do Sr. Pétion?

      - O Sr. Pétion exigiu que ficasse.

      Neste momento a figura grave, e austera do deputado de Chartres apareceu à entrada da porta.

      O rei fez como se ele ali não estivesse e respondeu ao moço.

      - Só me assento à mesa com a minha família; comemos entre nós, ou entre as pessoas que convidamos: de outro modo não comemos.

      - Bem sabia - disse Pétion - que vossa majestade tinha esquecido o primeiro artigo da Declaração dos direitos do homem, porém julgava que, pelo menos, pareceria lembrar-se.

      O rei mostrou não ouvir Pétion, assim como mostrara não o ver, e com um sinal feito com os olhos ordenou ao moço que tirasse o talher.

      O rapaz obedeceu; Pétion saiu furioso.

      - Sr. de Malden - disse o rei - feche a porta, para que possamos estar quanto possível, à nossa vontade.

      O Sr. de Malden obedeceu, e Pétion ainda ouviu fechar-se-lhe a porta nas costas.

      O rei conseguiu assim jantar em família.

      Os dois guardas serviram como de costume.

      Quanto a Charny não apareceu: se já não era o seu servidor, era sempre o escravo da rainha.

      Porém havia momentos em que esta obediência passiva à rainha feria a mulher: assim durante toda a ceia, Maria Antonieta, impaciente, procurou com os olhos Charny; quisera que, depois de lhe ter obedecido um instante, acabasse neste momento por desobedecer-lhe.

      No momento em que o rei, terminada a ceia, ia para levantar-se da mesa, abriu-se a porta e o criado entrou e pediu em nome do Sr. de Barnave, que suas majestades tivessem a bondade de aceitar o aposento do primeiro andar, em lugar do do segundo.

      Luís XVI e Maria Antonieta olharam um para o outro. Conviria mostrar dignidade e desprezar a cortesia de um para punir a grosseria do outro? Talvez fosse essa a opinião do rei; porém o delfim correu para a sala, gritando:

      - Onde está o meu amigo Barnave?

      A rainha seguiu o delfim, e o rei a rainha.

      Barnave não estava na sala.

      Da sala a rainha passou aos quartos, que eram três, como no andar superior.

      Não tinham podido torná-los elegantes, porém tinham-nos tornado asseados: ardiam velas em castiçais de cobre, mas com profusão.

      Duas ou três vezes durante a jornada, a rainha soltara exclamações perante belos jardins guarnecidos de flores: o quarto da rainha estava guarnecido com as mais lindas flores da estação; ao mesmo tempo, que as janelas abertas permitiam a saída aos perfumes nocivos, as cortinas de cassa que cobriam essas janelas, opunham-se a que qualquer olhar indiscreto perseguisse no seu quarto a augusta prisioneira.

      Fora Barnave quem velara por tudo.

      Ela suspirou, a pobre rainha! Seis anos antes, teria sido Charny, quem teria todos aqueles cuidados.

      Demais, Barnave teve a delicadeza de não vir procurar um agradecimento.

      Seria também o que Charny teria feito.

      Como era, que um pequeno advogado de província tinha as mesmas atenções e as mesmas delicadezas, que teria tido o homem mais elegante e mais distinto da corte?

      Havia deveras motivo para dar que pensar a uma mulher, embora essa mulher fosse uma rainha!

      Por isso ela pensou uma parte da noite nesse singular mistério.

      Entretanto, o que fazia o conde de Charny?

      Como vimos, ao sinal que a rainha lhe fizera, tinha-se retirado, e desde então não tornara a aparecer.

      Charny, a quem o seu dever prendia à pessoa de Luís XVI e de Maria Antonieta, ficara satisfeito porque a ordem da rainha, de que nem sequer indagou a causa, lhe tivesse dado um momento de sossego e de reflexão.

      Vivera três dias tão rapidamente; vivera por assim dizer, tão fora de si mesmo; vivera tanto pelos outros, que estimava poder deixar, durante alguns instantes entregue a si mesmo a dor de outrem para pensar na sua.

      Charny era o fidalgo dos antigos tempos, era principalmente amigo da família: adorava os irmãos, a quem, como irmão mais velho, servia de pai.

      Pela morte de Jorge, a sua dor fora tão grande, mas ao menos tinha podido, ajoelhado junto do cadáver, naquele pequeno pátio de Versalhes, desafogá-la com as lágrimas; mas, ao menos, ficara-lhe o outro irmão, Isidoro, para o qual passara toda a sua ternura; Isidoro, que se lhe tornara ainda mais querido, se possível era, durante os três ou quatro meses, que precedera a sua saída de Paris, e que lhe servira de medianeiro junto de Andréia.

      Temos procurado, se não fazer compreender, pelo menos referir o singular mistério de certos corações, a quem a separação anima, em vez de afrouxá-los e que encontram na ausência um novo alimento para a recordação que os ocupa.

      Pois bem, quanto menos Charny via Andréia, mais nela pensava; e pensar em Andréia, era para ele amá-la cada vez mais.

      Efectivamente, quando estava junto de Andréia, quando a via, parecia-lhe pura, simplesmente estar junto de uma estátua de gelo, que o menor raio de amor faria derreter, e que temia tanto o amor, como uma estátua verdadeiramente de gelo, que estivesse à sombra, temeria o Sol; estava em contacto com aquele gesto lento e frio, com aquele modo de falar grave e reservado, com aquele olhar mudo e disfarçado; ele nada via, digamos melhor, nada entrevia.

      Tudo era branco, pálido, alvo como o alabastro, e frio como ele.

      Fora deste modo que, salvos raros intervalos de animação, produzidos por situações violentas, Andréia lhe aparecera durante as suas últimas entrevistas, e especialmente na que tinha tido com a infeliz senhora, na rua Coq-Héron, na noite em que ao mesmo tempo ela encontrara e perdera o filho.

      Porém, logo que se afastara dela, a distância produzira o seu efeito ordinário, apagando as tintas demasiado vivas, esfumando os contornos demasiado confusos. Então o gesto frio e lento de Andréia animava-se, a palavra grave e reservada tornava-se-lhe harmoniosa e sonora, o olhar mudo e frio levantava-lhe as longas pálpebras, e expelia uma chama úmida e devoradora; então, parecia a Charny que um fogo interior se acendia no coração da estátua, e que através do alabastro das suas carnes, via-lhe circular o sangue e bater o coração.

      Nesses momentos de ausência e solidão, Andréia era a verdadeira rival da rainha! Na obscuridade febril dessas noites, é que Charny julgava ver abrir-se repentinamente a parede do seu quarto, ou levantar-se o reposteiro, e aproximar-se do leito com os braços abertos, os lábios murmurando, o olhar cheio de amor, essa estátua transparente ; então também Charny chamava a doce visão e tentava apertar o fantasma contra o peito... Porém, o fantasma fugia-lhe, só abraçava o espaço e recaía na triste e fria realidade.

      Isidoro tinha-se-lhe pois tornado mais querido do que Jorge: e como vimos, o conde não tivera o sombrio prazer de chorar sobre o cadáver de Isidoro, como fizera sobre o de Jorge.

      Ambos, um após outro, tinham igualmente caído por causa dessa mulher fatal, por uma causa cheia de abismos!

      Pela mesma mulher, e num abismo semelhante, ele, Charny, cairia também pela sua vez...

      Pois bem, havia dois dias, desde a morte do irmão, desde o último abraço, que lhe deixara o fato cheio de sangue e os lábios quentes do suspiro da vítima, desde essa hora em que o Sr. de Choiseul lhe entregara os papéis, encontrados nas algibeiras de Isidoro, que nem sequer tivera um instante para consagrar-se a essa dor.

      O sinal da rainha, que o mandara conservar-se afastado, tinha-o pois recebido como um grande favor, com alegria.

      Desde então, procurara um canto, um retiro, onde, ficando ao alcance de acudir em socorro da família real ao primeiro grito, pudesse contudo estar bem só com a sua dor, bem isolado com as suas lágrimas.

      Achara uma água-furtada, situada ao cimo da escada, onde velavam os srs. de Malden e de Valory.

      Chegado ali, vendo-se só, fechado e assentado diante de uma mesa, iluminado por um desses candeeiros de cobre de três bicos, como ainda hoje encontramos nalgumas antigas casas de aldeia, tirara da algibeira os papéis ensangüentados, únicas relíquias que lhe tinham ficado do irmão.

      Depois, com a cabeça entre as mãos e os olhos pregados naquelas cartas, onde continuavam a viver os pensamentos daquele que já não existia, tinha durante muito tempo deixado correr sobre a mesa lágrimas contínuas e silenciosas.

      Finalmente, deu um suspiro, levantou e meneou a cabeça, pegou e desdobrou uma carta.

      Era da pobre Catarina.

      Havia tempo que Charny suspeitava da ligação de Isidoro com a filha do lavrador, e em Varennes, Billot se encarregara de contar-lha circunstanciadamente; mas só depois dessa narração lhe dera toda a importância que merecia.

      Esta importância aumentou ainda com a leitura da carta; viu então o título de amante santificado pelo de mãe, e nos termos simples, com que expunha o seu amor, toda a vida da mulher, oferecida em expiação pela falta da donzela.

      Abriu outra e outra; eram sempre os mesmos planos de futuro, as mesmas esperanças de felicidade, as mesmas alegrias maternas, os mesmos temores da amante, as mesmas saudades, as mesmas dores e os mesmos arrependimentos.

      De súbito, no meio de todas aquelas cartas, deparou-se-lhe uma, cuja letra lhe causou admiração.

      A letra era de Andréia.

      A carta era dirigida a ele.

      Um papel dobrado em quatro partes estava preso à carta por um selo de lacre com as armas de Isidoro.

      Aquela carta, escrita por Andréia, dirigida a ele, e encontrada entre os papéis de Isidoro, pareceu-lhe uma coisa tão extraordinária, que começou por abrir o bilhete anexo à carta, antes de abrir esta.

      O bilhete, escrito a lápis por Isidoro, sem dúvida em alguma mesa de estalagem e enquanto lhe aparelhavam o cavalo, continha estas linhas:

     

      “Esta carta é dirigida, não a mim, mas a meu irmão o conde Olivier de Charny; é escrita por sua mulher, a condessa de Charny; se me acontecer alguma desgraça, aquele que a encontrar a entregará ao conde Olivier de Charny ou a enviará à condessa.”

      “Eu recebia-a com a recomendação seguinte:

     

      “Se na empresa em que o conde está empenhado, for bem sucedido, restituir a carta à condessa;

      Se ele for ferido gravemente, mas sem perigo de vida, rogar-lhe que conceda a sua esposa a graça de se reunir a ele.

      Finalmente, se for ferido mortalmente, entregar-lhe esta carta, e se ele não a puder ler, ler-lha, para que antes de expirar saiba o que ela contém.”

     

      “Se a carta for entregue a meu irmão o conde de Charny, como certamente este bilhete lhe será entregue juntamente, procederá a respeito das três recomendações acima como a sua delicadeza lho aconselhar.

      Lego aos seus cuidados a pobre Catarina Billot, que habita na aldeia de Ville-d'Avray com meu filho.

      Isidoro de Charny”.

     

      A princípio, o conde pareceu muito absorto pela leitura do bilhete do irmão. As suas lágrimas, um instante suspensas, começaram a correr com a mesma abundância; depois, finalmente, os seus olhos, ainda arrasados de água, fixaram-se na carta da Srª. de Charny; contemplou-a por muito tempo, pegou-lhe, levou-a aos lábios, encostou-a ao coração, como para lhe comunicar o segredo que encerrava, e depois leu repetidas vezes a recomendação do irmão.

      Depois, a meia voz, e meneando a cabeça, disse:

      - Não tenho direito para abrir esta carta; mas hei-de pedir-lhe tanto, que ela por certo há-de deixar-ma ler.

      E como para se firmar nessa resolução, impossível a um coração menos leal do que o seu, repetiu ainda:

      - Não, não a lerei!

      E não a leu; porém o dia surpreendeu-o assentado à mesa, e devorando com os olhos o sobrescrito daquela carta umedecida pelo próprio hálito, tantas vezes a beijara.

      Repentinamente, no meio da bulha que se fazia na estalagem, anunciando que a partida se preparava, ouviu-se a voz do Sr. de Malden, que chamava o conde de Charny.

      - Aqui estou - respondeu o conde.

      E guardando na algibeira os papéis do pobre Isidoro, beijou mais uma vez a carta intacta, pô-la junto ao coração e desceu rapidamente.

      Encontrou na escada Barnave, que perguntava notícias da rainha, e que encarregava o Sr. de Valory de receber as suas ordens para a hora da partida.

      Era fácil de ver, que Barnave não se deitara, nem dormira mais do que o conde Olivier de Charny.

      Os dois homens saudaram-se, e Charny poderia decerto notar o relâmpago de ciúme, que passou pelos olhos de Barnave, ao ouvi-lo informar-se também da saúde da rainha, se lhe fosse possível preocupar-se com outra coisa, que não fosse a carta, que apertava contra o coração.

 

Via dolorosa

      Ao subir para a carruagem, o rei e a rainha viram com espanto, que só tinham em volta de si para os ver partir a povoação da cidade, e para os acompanhar a cavalaria.

      Era outra atenção de Barnave: sabia que na véspera a rainha, obrigada a andar a passo, sofrera com o calor, com a poeira, com os insectos, com a multidão, com as ameaças feitas aos seus guardas e aos fiéis súbditos, que vinham fazer-lhe uma última saudação; fingira ter recebido a notícia de uma invasão: o Sr. de Bouillé entrava em França com cinqüenta mil austríacos; era contra ele que devia marchar todo o homem que tivesse uma espingarda, uma foice, uma lança, finalmente, uma arma qualquer, e toda a povoação ouvira esse brado, e voltara para trás.

      É que então havia em França um verdadeiro ódio aos estrangeiros, ódio tão poderoso, que excedia o que tinham votado ao rei e à rainha, cujo maior crime era ser estrangeira.

      Maria Antonieta adivinhou donde lhe vinha aquele novo benefício; dizemos benefício, e não há exageração no termo.

      Agradeceu a Barnave com um olhar.

      Quando ia para tomar lugar na carruagem, o seu olhar procurou o de Charny; já estava na almofada; porém em vez de assentar-se no meio como na véspera, quisera obstinadamente ceder ao Sr. de Malden esse lugar, menos perigoso do que o que tinha até então ocupado o fiel guarda; Charny desejava ser ferido, para ter o direito de abrir a carta da condessa, que lhe queimava o coração!

      Não viu pois o olhar da rainha, que procurava o dele.

      A rainha soltou um profundo suspiro.

      Barnave ouviu-o.

      Inquieto por saber aonde se dirigia esse suspiro, o mancebo parou no estribo da carruagem.

      - Senhora - disse ele - notei ontem que estavam muito apertados nesta carruagem; uma pessoa de menos deixá-los-á mais à vontade... se vossa majestade o deseja, subirei para a carruagem do séqüito com o Sr. Latour-Maubourg, ou acompanhá-los-ei a cavalo.

      Barnave, fazendo este oferecimento, teria dado metade dos dias que lhe restavam a viver, e não eram muitos, para que ele fosse recusado.

      Efectivamente, sucedeu o que desejava.

      - Não - disse vivamente a rainha -fique connosco!

      Ao mesmo tempo, o delfim dizia, estendendo as pequeninas mãos para atrair o jovem deputado.

      - Meu amigo Barnave, meu amigo Barnave, não quero que te vás embora!

      Barnave, radiante, tomou o seu lugar da véspera; apenas aí se assentou, o delfim passou dos joelhos da rainha para os dele.

      A rainha, deixando-o ir, beijou o delfim.

      O sinal úmido dos seus lábios ficou impresso na face do menino. Barnave olhou para aquele vestígio do amor maternal, como Tântalo devia ter olhado para os frutos que lhe pendiam sobre a cabeça.

      - Senhora - disse ele à rainha - vossa majestade dignar-se-á conceder-me o favor de beijar o augusto príncipe, que, guiado pelo infalível instinto da sua idade, me chama seu amigo?

      A rainha fez com a cabeça um sinal de aquiescência.

      Então Barnave colou os lábios sobre o vestígio dos lábios da rainha com tal ardor, que o menino atemorizado deu um grito.

      A rainha seguia com os olhos todos os movimentos de Barnave; talvez que ela tivesse dormido tanto como ele e como Charny; talvez que aquela espécie de animação, que lhe restituía a vida aos olhos, fosse causada pela febre interior que a devorava; porém os lábios cobertos de púrpura e as faces levemente tintas de cor de rosa, quase imperceptível, faziam dela a perigosa sereia, que, com um só dos seus cabelos, tinha a certeza de conduzir os seus adoradores para um abismo.

      Graças à precaução de Barnave, a carruagem caminhava agora duas léguas por hora.

      Em Château Thierry pararam para jantar.

      A casa onde pararam era situada numa posição encantadora, e pertencia a um rico negociante de madeiras, que não tinha esperado que a designassem, mas que, na véspera, sabendo que a família real devia passar por Château Thierry, fizera partir a cavalo um dos seus caixeiros, para oferecer aos senhores delegados da Assembléia Nacional, assim como ao rei e à rainha, hospitalidade em sua casa.

      O oferecimento fora aceito.

      Logo que a carruagem parou, um concurso apressado de criados indicou aos augustos prisioneiros uma recepção muito diferente da que se verificara na véspera na estalagem de Dormans. A rainha, o rei, a princesa Isabel, a Srª. de Tourzel e os dois meninos foram conduzidos para quartos separados, onde tudo estava cuidadosamente preparado para que pudessem dar à sua toilette os mais minuciosos cuidados.

      Desde a sua partida de Paris, que a rainha não tinha ainda encontrado semelhante previdência: os costumes mais delicados da mulher acabavam de ser acariciados por aquela aristocrática atenção. Por isso Maria Antonieta, que começava a apreciar essas atenções, perguntou, com o máximo empenho pela sua boa hospedeira, para lhe agradecer.

      Um instante depois, uma mulher de quarenta anos, fresca ainda, e vestida com extrema simplicidade, apareceu. Até então tinha tido a modéstia de se conservar longe das vistas daqueles a quem recebia.

      - É a dona da casa? - perguntou Maria Antonieta.

      - Oh! Senhora - exclamou a excelente mulher derramando lágrimas - por toda a parte onde vossa majestade se digna parar, e qualquer que seja a casa honrada com a sua presença, onde está a rainha, é ela a única dona.

      Maria Antonieta olhou em volta de si para verificar se estavam sós.

      Depois, tendo-se certificado de que ninguém as ouvia, pegando-lhe na mão e abraçando-a como teria feito a uma amiga, disse:

      - Se se interessa pela nossa tranqüilidade e se aprecia a sua própria conservação, acalme e modere esses sinais de dor; porque, se chegassem a perceber o motivo que os causa, poderiam ser-lhe funestos... E deve compreender quanto, se lhe acontecesse alguma desgraça isso faria aumentar as nossas penas... Talvez nos tornemos a ver; modere-se pois, e considerá-la-ei como uma amiga, cujo encontro actualmente se me torna tão raro e sobremodo precioso.

      Depois de jantar continuaram a jornada; o calor era imenso. O rei notara muitas vezes que a princesa Isabel, prostrada pelo cansaço, deixava pender, mau grado seu, a cabeça sobre o peito; exigiu que a princesa ocupasse até Meaux, onde deviam pernoitar, o seu lugar no fundo da carruagem; por ordem expressa do rei a princesa Isabel cedeu.

      Pétion assistiu a todo esse debate sem oferecer o seu lugar.

      Barnave, vermelho de vergonha, ocultava a cabeça entre as mãos; mas por entre os dedos podia ver o sorriso melancólico da rainha.

      No fim de uma hora de caminho, a fadiga da princesa Isabel tornou-se tal que ela adormeceu inteiramente, e estava tão extinta nela a consciência do que fazia, que a sua linda cabeça de anjo, depois de haver um instante vacilado para a direita e para a esquerda, acabou por descansar sobre o ombro de Pétion.

      O que fez dizer ao deputado de Chartres, na relação inédita da sua jornada, que a princesa Isabel, a santa criatura! se apaixonara por ele, e descansando-lhe um instante a cabeça no ombro, cedia à natureza.

      Pelas quatro horas da tarde chegaram a Meaux e pararam defronte do palácio episcopal, que fora habitado por Bossuet, e em que, oitenta e sete anos antes morrera o autor do Discurso sobre a História Universal.

      O palácio era habitado por um bispo constitucional e ajuramentado. Notaram isso mais tarde pela maneira como ele recebeu a família real.

      Porém, à primeira vista, a rainha só foi impressionada pelo aspecto sombrio do edifício, em que ia entrar; em parte nenhuma, palácio principesco ou religioso, se elevava outra casa mais digna pela sua melancolia de abrigar o supremo infortúnio, que vinha pedir-lhe asilo por uma noite. Não era como em Versalhes, onde o luxo era magnífico; ali o luxo era simples; uma comprida ladeira de tijolos conduz aos aposentos, e esses dão para um jardim, ao qual as próprias muralhas da cidade servem de defesa.

      O jardim é dominado pela torre da igreja, torre inteiramente coberta de hera, e conduz, por uma aléia bordada de azevinhos, ao gabinete donde o eloqüente bispo de Meaux lançava, de vez em quando, um desses sinistros gritos que pressagiam a queda das monarquias.

      A rainha lançou os olhos sobre o lúgubre edifício, e encontrando-o conforme com o estado do seu espírito, olhou em volta de si, procurando um braço, onde encostasse o seu, para visitar o palácio.

      Barnave estava ali.

      A rainha sorriu.

      - Dê-me o braço, senhor - disse ela - e tenha a bondade de servir-me de guia neste velho palácio; não ousaria entrar ali só, temeria ouvir soar essa possante voz, que fez um dia estremecer a cristandade ao grito: “A rainha morre!... A rainha está morta!...”

      Barnave aproximou-se rapidamente e ofereceu o braço à rainha com uma rapidez misturada de respeito.

      A rainha lançou um olhar à volta de si; a ausência obstinada de Charny inquietava-a.

      Barnave que via tudo, notou esse olhar e perguntou:

      - Vossa majestade deseja alguma coisa?

      - Desejava saber onde está el-rei - respondeu Maria Antonieta.

      - Fez a honra ao Sr. Pétion de o receber – disse Barnave - e conversa com ele.

      A rainha pareceu satisfeita.

      Depois, como se necessitasse arrancar-se a si mesma e sair do próprio pensamento, disse:

      - Venha!

      Acompanhada de Barnave, atravessou os diversos aposentos do palácio episcopal.

      Dir-se-ia que fugia seguindo a sombra flutuante desenhada pelo seu espírito, não olhando nem para diante nem para trás de si.

      No quarto de dormir do grande pregador parou finalmente quase sufocada pelo cansaço.

      O acaso fez que ela estivesse defronte de um retrato de mulher.

      Levantou maquinalmente os olhos, e lendo na moldura estas palavras: Madame Henriqueta estremeceu dos pés à cabeça.

      Barnave sentiu o estremecimento, mas não o pôde compreender.

      - Vossa majestade tem alguma coisa? - perguntou.

      - Não - disse a rainha - mas aquele retrato... Madame Henriqueta!...

      Barnave adivinhou o que se passava no coração da pobre mulher.

      - Sim - disse ele - madame Henriqueta... porém madame Henriqueta de Inglaterra; não a viúva do infeliz Carlos I, porém a mulher do negligente Filipe de Orleans; não a que julgou morrer de frio no Louvre, mas a que morreu envenenada em Saint-Cloud, e que, morrendo, mandou o seu anel a Bossuet...

      E após um momento de hesitação, disse:

      - Gostava mais que fosse o retrato da outra.

      - Por quê? - perguntou Maria Antonieta.

      - Porque há bocas que ousariam dar certos conselhos, e essas são justamente as que a morte fechou.

      - E não poderia dizer-me, senhor, o que me aconselharia a boca da viúva de Carlos I? – perguntou a rainha.

      - Se vossa majestade o ordena...

      - Sim, ordeno.

      - “Oh! Minha irmã! lhe diria aquela boca, não notais a semelhança que há entre nossos destinos? Fui de França, como viestes de Áustria; eu era para os ingleses uma estrangeira, como vós o sois para a França; poderia ter dado a meu marido perdido, bons conselhos; guardei silêncio, ou dei-lhos maus; em lugar de o conciliar com o seu povo, e este com ele, excitei-o para a guerra; dei-lhe o conselho de marchar sobre Londres com os protestantes irlandeses; não só conservava uma correspondência com os inimigos da Inglaterra, senão que vim duas vezes a França para levar para Inglaterra soldados estrangeiros; enfim...”

      Barnave calou-se.

      - Continue - disse a rainha com as sobrancelhas franzidas e a boca contraída.

      - Para que hei-de continuar, senhora? – respondeu o jovem orador meneando a cabeça; - vossa majestade sabe, tão bem como eu, o fim desta sanguinolenta história...

      - Sim... Vou pois continuar a dizer-lhe o que o retrato de madame Henriqueta me diria, para que me diga se me engano: “Finalmente, os escoceses traíram e entregaram o seu rei; o rei foi preso no momento em que pensava passar a França... Um alfaiate foi prendê-lo; um cortador o conduziu à prisão; um carreiro legitimou o tribunal que devia julgá-lo; um fabricante de cerveja presidiu ao tribunal superior, e para que nada faltasse ao odioso julgamento e à revisão desse processo iníquo, apresentado diante do juiz soberano, que revê todos os processos, um carrasco mascarado decepou a cabeça de Carlos Stuart!...” Eis o que o retrato de madame Henriqueta me diria, não é verdade? Pois bem! meu Deus, sei isso melhor do que ninguém; sei-o tanto melhor, que nada falta à semelhança: temos o nosso fabricante de cerveja dos arredores; porém, em lugar de se chamar Cromwell, chama-se Santerre; temos o nosso cortador; porém em lugar de se chamar Harrison, chama-se... Como? Legendre, creio eu; temos o nosso carreiro; porém em lugar de se chamar Pridge, chama-se... Oh! Quanto a este, ignoro... É de tão pouca importância, que nem sequer lhe sei o nome, nem o senhor está certo nele, mas pergunte-lho, e ele lho dirá; é o homem que conduz a nossa escolta, um aldeão, um vilão, um... Que sei eu?... Pois bem, eis o que madame Henriqueta me havia de dizer.

      - E que lhe responderia?

      - Responder-lhe-ia: “Pobre e querida princesa, não são conselhos que me dá, é um curso de história, que me faz... O curso de história está feito: Agora espero os conselhos”.

      - Oh! Esses conselhos, senhora - disse Barnave - se não recusa segui-los, seriam não só os mortos, mas também os vivos, que lhos dariam...

      - Mortos ou vivos, todos que devem falar, que falem! Quem diz que, se os conselhos são bons, se não seguirão?

      - Oh! Meu Deus! Senhora, mortos ou vivos só têm um conselho que dar a vossa majestade.

      - Qual?

      - Que se faça amar do povo.

      - E é fácil a gente fazer-se amar do povo?!

      - Ah! Senhora, este povo é muito mais seu, do que meu, e a prova está que, na sua chegada à França, este povo adorava-a.

      - Oh! Senhor! Fala de uma coisa tão frágil, como é a popularidade!

      - Senhora - disse Barnave - se eu, desconhecido, saindo da minha obscura esfera, tendo conquistado essa popularidade, quanto mais fácil lhe seria conservá-la ou reconquistá-la!... Porém, não, - continuou Barnave, animando-se - não, a sua causa, a causa da monarquia, a mais santa, a mais bela das causas, a quem a tem confiado? Que vozes e que braços a têm defendido? Nunca se viu tão grande ignorância dos tempos! Semelhante esquecimento do génio da França!... Oh! Veja, eu... Eu, que solicitei a missão de vir ao encontro de vossa majestade com este único fim; eu que a vejo, que lhe falo finalmente, quantas vezes, meu Deus! Não tenho estado a ponto de ir oferecer-me a vossa majestade... De me dedicar... De me...

      - Silêncio! - disse a rainha - vem alguém... Tornaremos a falar nisso, Sr. Barnave; estou pronta a tornar a vê-lo, a ouvi-lo e a seguir todos os seus conselhos.

      - Oh! Senhora! - exclamou Barnave transportado.

      - Silêncio! - repetiu a rainha.

      - Vossa majestade está servida, disse aparecendo entre as portas o criado, de quem tinha ouvido os passos.

      Entraram na casa de jantar; o rei chegava por outra porta; vinha de falar com Pétion, durante o tempo que a rainha tinha falado com Barnave, e parecia muito animado.

      Os dois guardas esperavam de pé, reclamando como sempre o privilégio de servir suas majestades.

      Charny, o mais afastado de todos, conservava-se em pé no vão de uma janela.

      O rei olhou à volta de si, e aproveitando um momento em que estava só com a família, os dois guardas e o conde, disse em seguida a estes:

      - Senhores, depois da ceia, necessito muito falar-lhes; portanto, farão o favor de acompanhar-me ao meu quarto.

      Os três oficiais inclinaram-se.

      O serviço começou na forma do costume.

      Mas, suposto que preparada em casa de um dos primeiros bispos do reino, a mesa estava mal servida à noite em Meaux, quão bem servida estivera pela manhã em Château-Thierry.

      O rei, como sempre, tinha grande apetite, e comeu muito, apesar da comida ser má. A rainha só tomou dois ovos frescos.

      Desde a véspera, o delfim estava um pouco doente, pedia morangos, mas o pobre menino já não estava no tempo em que os seus menores caprichos eram satisfeitos; desde a véspera, todos aqueles a quem se havia dirigido lhe tinham respondido: “Não há” ou “Não se podem ir buscar.”

      E contudo, na estrada vira gordos filhos de camponeses comendo morangos, que eles mesmo tinham ido colher.

      Então, pobre criança, tinha invejado aqueles gordos rapazes de cabelos louros e faces rosadas, que não necessitavam pedir morangos, e que logo que os apeteciam, iam eles mesmo colhê-los, sabendo os canteiros onde brotavam, como as avezinhas sabem os campos, onde florescem os nabos silvestres e a semente de linhaça.

      Aquele desejo, que não tinha podido satisfazer, contristara muito a rainha; de maneira que quando o menino, recusando tudo o que lhe ofereciam, pediu novamente morangos, as lágrimas vieram aos olhos da mãe impotente.

      Procurou à volta de si a quem pudesse dirigir-se, e viu Charny mudo, em pé e imóvel.

      Fez-lhe duas vezes sinal; porém absorvido no seu pensamento, Charny não viu os sinais da rainha.

      Finalmente, com a voz trémula de comoção, disse:

      - Sr. conde de Charny?

      Charny estremeceu como se o tivessem tirado de um sonho, e fez um movimento para se aproximar da rainha.

      Mas neste momento a porta abriu-se e Barnave apareceu com um prato de morangos na mão.

      - A rainha desculpar-me-á - disse ele - se entro aqui deste modo, e espero que el-rei seja assaz bom para me perdoar; porém, muitas vezes, durante o dia, ouvi o Sr. delfim pedir morangos; achei este prato na mesa do bispo, peguei-lhe e apresento-lho.

      Entretanto Charny tinha-se aproximado da rainha; porém ela nem sequer lhe deu o tempo de chegar até onde estava.

      - Obrigado, Sr. conde - disse ela - o Sr. Barnave adivinhou o que eu desejava, e de nada mais preciso.

      Charny inclinou-se e sem responder uma única palavra, voltou para o seu lugar.

      - Obrigado, meu amigo Barnave - disse o delfim.

      - Sr. Barnave - disse o rei - o nosso jantar não é bom; porém se quer tomar parte nele, dar-nos-á muito prazer.

      - Senhor - disse Barnave - um convite de el-rei é uma ordem... Onde manda vossa majestade que me assente?

      - Entre a rainha e o delfim - disse o rei.

      Barnave assentou-se, louco de amor e de orgulho.

      Charny viu toda essa cena, sem que a menor vibração de ciúme lhe corresse do coração às veias; porém, olhando para a pobre borboleta, que também vinha queimar-se à luz real, murmurou:

      - Mais um que se perde! Este valia mais do que os outros...

 

 O calvário

      Depois voltando ao seu incessante pensamento, balbuciou:

      - Esta carta!... Esta carta!... Que pode ela dizer?

      Depois da ceia, os três oficiais, na conformidade das ordens que tinham recebido, subiram ao quarto do rei.

      A infanta e o delfim e a Srª. de Tourzel estavam no seu quarto. O rei, a rainha e a princesa Isabel esperavam.

      Quando os oficiais entraram, o rei disse:

      - Sr. de Charny, tenha a bondade de fechar a porta; não quero ser incomodado por ninguém, pois tenho a comunicar-lhes uma coisa da mais alta importância. Senhores - continuou o rei - ontem em Dormans, o Sr. Pétion propôs-me para lhes facilitar a evasão, por meio de um disfarce, porém eu e a rainha opusemo-nos com receio de que tal proposta fosse apenas uma cilada, e que somente tentassem afastá-los de nós para os assassinarem ou para os enviarem para qualquer província, encarregando-os de alguma comissão, que os condenasse a serem fuzilados, sem lhe deixar o menor recurso. Portanto, eu e a rainha tomamos sob a nossa responsabilidade o recusar semelhante proposta. Hoje, porém, o Sr. Pétion tornou a instar, dando-nos a sua palavra de honra de deputado; julgo por isso do meu dever dar-lhes parte do que ele receia e do que propõe.

      - Meu senhor - interrompeu Charny - antes que vossa majestade continue, nisto falo não só em meu nome, mas julgo ser o intérprete dos sentimentos destes senhores, quererá el-rei conceder-nos uma graça?

      - Senhores - respondeu o rei - a sua dedicação por mim e pela rainha, tem-os feito expor continuamente a vida há três dias... Há três dias, que a cada instante estão ameaçados por uma morte cruel; a cada instante, participam das vergonhas que nos oprimem e dos insultos que nos dirigem. Os senhores têm direito não só a solicitar uma graça, mas até a manifestar o seu desejo, o qual só não será imediatamente satisfeito, se estiver fora do alcance do meu poder e do da rainha.

      - Pois bem, meu senhor - disse Charny – pedimos humilde, mas instantemente a vossa majestade que, sejam quais forem as proposições dos senhores deputados a nosso respeito, nos conceda a faculdade de as aceitar ou se tal entendermos recusar, conforme o nosso agrado.

      - Senhores - respondeu o rei - dou-lhes a minha palavra de em nada os constranger; far-se-á o que desejarem.

      - Então, meu senhor - disse Charny - agora escutamos vossa majestade com todo o reconhecimento e respeito.

      A rainha, admirada, olhava para Charny; não compreendia a crescente indiferença, que nele notava, conjuntamente com a vontade obstinada de não se afastar um só instante do que tinha por dever.

      Por isso não respondeu e deixou o rei continuar a conversação.

      - Agora - continuou Luís XVI, deixando-lhes o livre arbítrio - eis as próprias palavras do Sr. Pétion: “Senhor; no momento da sua entrada em Paris não há segurança alguma para os três oficiais que o acompanham: nem eu, nem os srs. Barnave e Latour-Maubourg podemos responder pela sua vida, nem sequer com o perigo da nossa, e o sangue deles está antecipadamente prometido ao povo!”

      Charny olhou para os dois companheiros; um sorriso de desprezo lhe passava pelos lábios.

      - Então meu senhor - perguntou Charny - e depois?

      - Depois - disse o rei - eis o que o Sr. Pétion propõe... Preparar-lhes-á três uniformes de guardas nacionais; mandará abrir esta noite as portas do arcebispado e deixará assim a cada um dos senhores ampla liberdade de fugirem.

      - Meu senhor - replicou Charny, dirigindo-se novamente ao rei - os nossos dias foram dedicados a vossas majestades; dignaram-se aceitá-los como homenagem; portanto, ser-nos-á mais fácil morrer, do que separarmo-nos de vossas majestades... Conceda-nos pois o favor de nos tratar amanhã como nos tratou ontem: nem mais, nem menos. De toda a sua corte, de todo o seu exército, e de todos os seus guardas, restam-lhe ainda três corações fiéis; não lhes tire a única glória que ambicionam, qual é a de lhe serem fiéis até à morte.

      - Está bem, senhores - disse a rainha - aceitamos... Porém, bem o compreendem, a contar deste momento, tudo deve ser comum entre nós: não são já servidores nossos, são nossos amigos, nossos irmãos... Os seus nomes sei-os bem, mas digam-me (e tirou da algibeira o seu livrinho de lembranças) os nomes de seus pais, de suas mães, de suas irmãs... Pode acontecer que tenhamos a desgraça de os perder, sem que sucumbamos; então pertencer-me-ia o participar a esses entes que lhe são caros a sua desgraça, e ao mesmo tempo pôr em prática para os consolar tudo que estivesse em meu poder... Vamos, srs. de Malden e de Valory, digam afoitamente, em caso de morte, e estamos todos tão perto de ver realizar-se esse caso, que não devemos hesitar em proferir o termo, quais são os parentes ou os amigos que querem recomendar-nos?

      O Sr. de Malden recomendou a mãe, senhora idosa e doente, que habitava uma pequena propriedade nos arredores de Blois. O Sr. de Valory recomendou a irmã, menina órfã, que ele mandara educar num convento de Soissons.

      Eram sem dúvida corações varonis e cheios de coragem os daqueles homens, e entretanto, enquanto a rainha escrevia os nomes e moradas da Srª. de Malden e da menina de Valory, ambos faziam inúteis esforços para conter as lágrimas.

      Até a rainha se viu obrigada a cessar de escrever para tirar um lenço da algibeira e enxugar os olhos.

      Depois, quando acabou de escrever aqueles nomes, voltando-se para Charny, disse-lhe:

      - Ah! Sr. conde, quanto ao senhor, sei que não tem pessoa alguma que me recomendar... Seu pai e sua mãe já não existem, e os seus dois irmãos...

      A rainha não pôde continuar.

      - Meus irmãos tiveram a felicidade de morrer por vossa majestade... Sim, minha senhora – acrescentou Charny; - mas o último que morreu deixou-me uma pobre menina, que me recomenda numa espécie de testamento, que lhe encontrei na algibeira. Essa menina foi por ele raptada à família, da qual já não pode esperar perdão. Enquanto eu viver, nem ela nem o filho sofrerão a menor privação; mas, como vossa majestade disse há pouco, com a sua admirável coragem, estamos todos em frente da morte, e se a morte me ferisse, a pobre menina e o filho ficariam sem recursos... Minha senhora, digne-se vossa majestade de escrever no seu livrinho o nome de uma pobre aldeã, e se eu tiver, como meus irmãos, a felicidade de morrer pelo meu augusto amo, e pela minha nobre rainha, desça com a sua generosidade até à desgraçada Catarina Billot e a seu filho; encontrá-los-á ambos na pequena aldeia de Ville-d'Avray.

      Sem dúvida, que a imagem de Charny, expirando pela sua vez, como tinham expirado os irmãos, era um espectáculo demasiado terrível para a imaginação de Maria Antonieta, porque, encostando-se para trás, com um pequeno grito, deixou cair o seu livrinho de lembranças, e foi vacilante cair sobre uma cadeira.

      Os dois guardas correram para ela, ao passo que Charny, apanhando o livrinho, escrevia nele o nome e a residência de Catarina Billot e o colocava sobre a chaminé.

      A rainha fez um grande esforço e tornou imediatamente a si.

      Então os mancebos, compreendendo a necessidade que ela tinha de ficar só, depois de tal comoção, deram um passo para trás a fim de se retirarem.

      Porém ela, estendendo-lhes a mão, disse:

      - Senhores, não me deixarão, espero, sem me beijarem a mão.

      Os dois guardas adiantaram-se, na mesma ordem em que tinham dado os seus nomes e moradas; primeiro o Sr. de Malden e depois o Sr. de Valory.

      Charny foi o último que se aproximou; a mão da rainha trémula, esperava esse beijo, em troca do qual teria certamente oferecido os outros dois.

      Porém os lábios do conde apenas tocaram nessa bela mão, porque lhe parecia que, tendo a carta de Andréia junto ao coração, cometia um sacrilégio tocando com os lábios a mão da rainha.

      Maria Antonieta soltou um suspiro, que parecia um gemido; nunca tinha medido tão bem, como por esse beijo, o abismo que em cada dia, em cada hora e diremos quase em cada minuto, se abria, cada vez mais, entre ela e o amante.

      No dia seguinte, no momento da partida, os srs. de Latour-Maubourg e Barnave, ignorando sem dúvida o que se tinha passado na véspera entre o rei e os três oficiais, renovaram as suas instâncias para que se disfarçassem em guardas nacionais; porém eles recusaram, dizendo que os seus lugares eram na almofada da carruagem real, e que não tinham outro trajo que vestir senão o que o rei lhes tinha ordenado que trouxessem.

      Então Barnave quis que se pusesse uma tábua atada em cada uma das extremidades da almofada, a fim de que dois granadeiros pudessem ir ali assentados, e garantissem quanto pudessem a vida dos obstinados servidores do rei.

      Às dez horas da manhã deixaram Meaux. Iam entrar em Paris, donde estavam ausentes havia cinco dias.

      Cinco dias! Que insondável abismo fora cavado durante aqueles cinco dias!

      Apenas chegaram a uma légua de Meaux, o cortejo tomou um aspecto tão terrível, como ainda não fora visto.

      A população dos arredores de Paris afluía de todos os lados. Barnave tinha querido obrigar os postilhões a irem a trote, porém a guarda nacional de Claye impediu o caminho, apresentando as pontas das baionetas.

      Seria imprudente procurar transpor esse dique, e a própria rainha compreendeu o perigo e suplicou aos deputados que nada fizessem que pudesse aumentar a cólera do povo, formidável tempestade, que se ouvia bramir e aproximar.

      Em breve a multidão foi tal, que os cavalos dificilmente puderam caminhar a passo.

      Nunca estivera tanto calor: não era ar que se respirava, era fogo.

      A insolente curiosidade do povo perseguia o rei e a rainha até nos dois recantos da carruagem, onde se tinham refugiado.

      Alguns homens subiam aos estribos e metiam a cabeça dentro da carruagem: outros subiam para cima dela, outros à traseira e outros agarravam-se aos cavalos.

      Foi só por milagre que Charny e os seus dois companheiros não foram mortos mais de vinte vezes.

      Os dois granadeiros não bastavam para aparar todos os golpes. Rogavam, suplicavam, ordenavam mesmo em nome da Assembléia Nacional; porém as vozes perdiam-se no meio do tumulto, dos clamores e das vociferações.

      Uma vanguarda de mais de dois mil homens precedia a carruagem, e uma retaguarda de mais de quatro mil a seguia.

      Aos lados caminhava a multidão, que ia aumentando sem cessar.

      À medida que se aproximavam de Paris, parecia que faltava o ar, como se fora todo absorvido pela cidade gigante.

      A carruagem movia-se debaixo de um Sol de trinta e cinco graus, através de uma nuvem de poeira, da qual cada átomo era como que uma molécula de vidro ardente.

      Por duas ou três vezes a rainha caiu para trás, dizendo que morria sufocada.

      Na Bourget, o rei empalideceu de tal modo, que julgavam que ia desmaiar; pediu um copo de vinho pois faltavam-lhe as forças.

      Por pouco que lhe não apresentaram, como a Cristo, uma esponja embebida em fel e vinagre; houve mesmo quem disso se lembrasse, porém, felizmente, a proposta foi rejeitada.

      Chegaram a Villete.

      A multidão levou mais de uma hora a afastar-se o suficiente para se poder encostar às duas fileiras da casa, cujas pedras brancas, reflectindo os raios do Sol, redobravam o calor.

      Por toda a parte se viam homens, mulheres e crianças; nunca a vista humana envolveu uma multidão igual: as calçadas estavam cobertas, sem que aqueles que as cobriam pudessem mexer-se.

      As portas, as janelas e os telhados estavam cheios de espectadores.

      Todos tinham o chapéu na cabeça.

      Porque na véspera tinha sido pregada em todas as esquinas das ruas de Paris esta ordem:

     

      Quem saudar o rei será chibatado!

      Quem o insultar será enforcado!

     

      Tudo aquilo era de tal modo aterrador, que os comissários não ousaram meter pela rua de Saint-Martin, rua cheia de obstáculos e de ameaças; rua funesta, rua sanguinolenta, célebre nas memórias dos assassínios, desde a terrível história de Berthier.

      Resolveram portanto entrar pelos Campos Elíseos, e o cortejo rodeando Paris, tomou pelos boulevards exteriores.

      Eram mais três horas de suplício, e esse suplício era tão insuportável, que a rainha pedia que entrassem pelo caminho mais curto, ainda que fosse o mais perigoso.

      Duas vezes procurara baixar as tabuinhas da carruagem, e duas vezes, aos rugidos da multidão furiosa, fora mister tornar a levantá-las.

      Além disso, nas barreiras, uma forte escolta de granadeiros cercara a carruagem; muitos deles marchavam junto das portinholas, e com as suas barretinas de pelo, quase que tapavam as janelas da carruagem.

      Finalmente, pelas seis horas, a vanguarda apareceu por cima dos muros do jardim de Monceaux; trazia consigo três peças de artilharia, que ressoavam sobre a calçada, em pesados solavancos.

      Essa vanguarda compunha-se de cavalaria e infantaria, misturadas com ondas de povo, no meio das quais lhes era quase impossível conservarem unidas as suas fileiras.

      Os que a avistaram, refluíram para o alto dos Campos Elíseos. Era a terceira vez que Luís XVI ia entrar em Paris, por essa fatal barreira.

      Entrara por ela, a primeira vez, depois da tomada da Bastilha;

      Pela segunda vez, depois dos dias 5 e 6 de Outubro;

      Pela terceira desta vez, depois da fuga de Varennes.

      Paris em peso, ao saber que o cortejo devia entrar pela estrada de Neuilly, correra para os Campos Elíseos.

      Por isso, chegando à barreira, o rei e a rainha viram estender-se ante eles, a perder de vista, um imenso mar de homens silenciosos, sombrios e ameaçadores, todos com os chapéus na cabeça.

      Porém, o que era talvez, senão mais terrível, pelo menos mais lúgubre, era uma dupla fileira de guardas nacionais, com as armas em funeral, que se prolongava desde a barreira até às Tulherias.

      Era com efeito um dia de luto, luto imenso, o de uma monarquia de sete séculos.

      Essa carruagem, que rodava lentamente no meio do povo, era o carro fúnebre, que conduzia a realeza para o túmulo.

      Avistando essa longa fileira de guardas nacionais, os soldados, que escoltavam a carruagem, agitaram as armas, gritando:

      - Viva a nação!

      O grito de “Viva a Nação” retiniu imediatamente por toda a linha, desde a barreira até às Tulherias.

      Depois, a onda imensa, perdida por baixo das árvores, estendendo-se de um lado até às ruas do arrabalde do Roule e do outro até à ribeira, agitou-se, gritando:

      - Viva a Nação!

      Era o grito de fraternidade dado por toda a França.

      Apenas uma família, a que quisera fugir de França, era excluída dessa fraternidade.

      Gastaram uma hora para irem da barreira à praça de Luís XV. Os cavalos vergavam sob o peso; cada um levava um granadeiro.

      Atrás da carruagem em que ia o rei, a rainha, a família real, Barnave e Pétion, caminhava o cabriolé, encerrando as duas aias da rainha e o Sr. de Latour-Maubourg; finalmente, atrás do cabriolé uma carroça descoberta, porém protegida contra o Sol por um toldo, seguia, ocupado por Drouet, Guilherme e Maugin, isto é, por aquele que prendera o rei, e por aqueles que tinham prestado valioso auxílio para que fosse preso. O cansaço obrigara-os a recorrerem àquele meio de transporte.

      Só Billot, infatigável, como se o ardor da vingança o tivesse tornado de bronze, se conservara a cavalo, e parecia dirigir todo o cortejo.

      Entretanto na praça de Luís XV, o rei reparou que tinham vendado os olhos à estátua de seu avô.

      - Que quiseram eles significar com isso – perguntou o rei a Barnave.

      - Ignoro, senhor - respondeu este.

      - Mas sei-o eu - disse Pétion; - quiseram significar a cegueira da monarquia.

      Durante o caminho, apesar da escolta e dos editais, que proibiam insultar o rei, sob pena de ser enforcado, o povo rompeu, duas ou três vezes a fileira dos granadeiros, fraco e impotente dique contra esse elemento, a quem Deus esqueceu dizer, como ao mar: “Não passarás daqui!” Quando esse choque chegava, quando essa rotura se produzia, a rainha via, de repente, aparecerem às portinholas esses homens de rostos hediondos, de palavras implacáveis, que só em certos dias aparecem à superfície da sociedade, como esses monstros, que só nos dias de tempestade sobem à superfície do Oceano.

      De uma vez ficou ela de tal modo assustada com essa aparição, que abaixou uma das tabuinhas da carruagem.

      - Para que abaixam as tabuinhas? - gritaram dez vozes furiosas.

      - Vejam, senhores - disse a rainha - vejam em que estado estão os meus pobres filhos!

      E enxugando o suor, que lhe escorria pela fronte, acrescentou:

      - Nós sufocamos!

      - Ora! Respondeu uma voz, isso não é nada... Nós te sufocaremos doutro modo, está descansada!

      E um murro fez voar o vidro do postigo em pedaços.

      Entretanto, no meio deste espectáculo terrível, alguns episódios teriam consolado o rei e a rainha, se a expressão do bem chegasse a eles tão facilmente, como chegava a expressão do mal.

      Apesar do edital, que proibia saudar o rei, o Sr. Guilhermy, membro da Assembléia, descobriu-se; e como quisessem obrigá-lo a pôr o chapéu na cabeça, disse, atirando-o para longe de si:

      - Que ousem trazer-mo outra vez!

      À entrada da Ponte Girante encontraram vinte deputados, que a Assembléia acabava de enviar para protegerem o rei e a família real.

      Depois apareceu Lafayette e o seu estado maior.

      Lafayette aproximou-se da carruagem.

      - Oh! Sr. de Lafayette - exclamou a rainha assim que o viu, - salve os oficiais que nos acompanham!

      Este grito não era inútil, porque se aproximavam, do perigo e o perigo era grande.

      Durante esse tempo, uma cena que não deixava de ter certa poesia, passava-se às portas do palácio.

      Cinco ou seis aias da rainha, que depois da fuga de sua ama, tinham saído das Tulherias, julgando que a rainha as tinha deixado para sempre, queriam lá entrar para a receberem.

      - Arreda! - gritaram as sentinelas - apresentando-lhes as pontas das baionetas.

      - Escravas da austríaca! - berravam as peixeiras, mostrando-lhes os punhos fechados.

      Então através das baionetas dos soldados, e arrastando as ameaças das mulheres do mercado, a irmã da Srª. Campan deu alguns passos para a frente.

      - Escutem - disse ela - estou ligada à rainha desde a idade de quinze anos, dotou-me e casou-me: servi-a, quando era poderosa, devo abandoná-la, hoje, que é desgraçada?

      - Tem razão! - gritou o povo; - soldados, deixem passar!

      E a esta ordem, dada pelo amo, a que não se resiste, as fileiras abriram-se e as mulheres passaram.

      Um instante depois, a rainha viu-as nas janelas do primeiro andar agitando os lenços.

      Entretanto a carruagem rodava sempre, levando diante de si uma onda de povo e uma nuvem de poeira, como um navio abandonado impele diante de si as ondas do Oceano, levantando uma nuvem de espuma; e a comparação é tanto mais exacta, que nunca os náufragos foram ameaçados por um mar mais medonho e agitado, do que esse que se preparava para engolir a desgraçada família no momento em que procurasse chegar a essas Tulherias, que eram para ela a praça salvadora.

      Finalmente, a carruagem parou; tinham chegado aos degraus do grande terraço.

      - Ah! Senhores - disse mais uma vez a rainha, mas dirigindo-se agora a Pétion e a Barnave – os guardas! Os guardas!

      - Não tem pessoa alguma que recomendar-me mais particularmente de entre esses senhores? – perguntou Barnave.

      A rainha fitou nele os seus grandes olhos claros.

      - Ninguém - respondeu.

      E exigiu que o rei e os seus filhos fossem os primeiros a sair.

      Os dez minutos, que então decorreram - e não exceptuamos os que decorreram, quando a conduziram ao cadafalso - foram certamente os mais cruéis da sua vida.

      Estava convencida, não de que ia ser assassinada, a morte nada era, mas sim de que ia ser entregue ao povo, como um brinquedo, ou encerrada nalguma prisão, de onde só sairia depois de um processo infame.

      Por isso, quando pôs os pés no estribo da carruagem, protegida pela abóbada de ferro, que por ordem de Barnave formavam por cima da sua cabeça as espingardas e as baionetas dos guardas nacionais, uma vertigem se apoderou dela, e julgaram que ia cair sem sentidos.

      Porém quando os olhos estavam quase a fechar-se-lhe, num último olhar de angústia, em que se vê tudo, pareceu-lhe ver em frente de si o homem terrível, que no castelo de Taverney tinha, de modo tão misterioso, levantado para ela o véu do futuro; esse homem, que só tornara a ver uma vez, ao voltar de Versalhes, no dia 6 de Outubro, esse homem, enfim, que só aparecia para predizer as grandes catástrofes, ou no momento em que essas grandes catástrofes se cumpriam.

      Oh! Foi então que os olhos, que hesitavam ainda, depois de se terem assegurado bem de que não se enganavam, se lhe fecharam, e soltou um ai, deixando-se vencer ela, que tão forte era, contra as realidades, inerte e de todo impotente em presença daquela visão sinistra.

      Pareceu-lhe que a terra lhe faltava debaixo dos pés; que aquela multidão, aquelas árvores, aquele Céu ardente, aquele palácio imóvel, tudo lhe girava em volta. Vigorosos braços a seguravam, e sentiu-se levar no meio dos gritos, bramidos e clamores.

      Neste momento pareceu-lhe ouvir a voz dos guardas, que gritavam chamando a si a cólera do povo, que assim esperavam desviar do seu verdadeiro alvo.

      Abriu por um instante os olhos, e viu esses desgraçados arrebatados da almofada da carruagem, Charny, pálido e belo, como sempre, lutando só contra dez homens, com o raio do martírio nos olhos e o sorriso do desprezo nos lábios. Deixando Charny, as suas vistas voltaram-se para o homem que arrebatava no meio daquele imenso turbilhão, e conheceu com terror o misterioso personagem de Taverney e de Sèvres!

      - O senhor! O senhor! - exclamou ela, procurando repeli-lo com as mãos hirtas.

      - Sim, eu! - murmurou-lhe ele ao ouvido. - Tenho ainda necessidade de ti para impelir a monarquia ao seu último abismo... E por isso te salvo!

      Desta vez, era mais do que podia suportar: soltou um grito e desmaiou completamente.

      Entretanto, a multidão procurava fazer em pedaços os srs. de Charny, de Malden e de Valory, ao mesmo tempo que levava Drouet e Billot em triunfo.

 

O cálix

      Quando a rainha tornou a si, estava no seu quarto de dormir, nas Tulherias.

      A Srª. de Misery e a Srª. Campan, suas duas aias predilectas, estavam ao seu lado.

      A sua primeira voz foi para perguntar pelo delfim.

      O delfim estava no seu quarto, deitado na sua cama, vigiado pela Srª. de Tourzel, sua aia, e pela Srª. Brunier, sua camareira.

      A asseveração não bastou à rainha: levantou-se imediatamente, e desalinhada como estava, correu aos aposentos do filho.

      O menino tivera grande medo, chorara muito; porém as suas angústias tinham passado e dormia agora.

      Porém, a espaços, leves estremecimentos lhe agitavam o sono.

      A rainha esteve por muito tempo com os olhos pregados no filho, encostada à coluna do leito, e olhando-o por entre lágrimas.

      As terríveis palavras, que aquele homem lhe dissera em voz baixa, soavam-lhe sem cessar aos ouvidos: “Tenho necessidade de ti para impelir a monarquia ao seu último abismo... e por isso te salvo!”

      Era pois verdade! Era pois ela quem impelia a monarquia para o abismo?

      Necessariamente assim era, visto que os seus inimigos velavam pelos seus dias, encarregando-a da obra de destruição, que executava melhor do que eles mesmos.

      Esse abismo, para onde impelia a monarquia, fechar-se-ia depois de ter tragado o rei, a rainha e o trono? Ou seria preciso que lhe devorassem também os filhos?

      Não era o sacrifício, a inocência que nas religiões antigas tinha o poder de desarmar a cólera dos deuses?

      É verdade que o Senhor não aceitara o sacrifício de Abraão, mas deixara-se consumar-se o de Jephte.

      Eram sombrios pensamentos para uma rainha, e ainda mais sendo essa rainha mãe.

      Enfim, meneou a cabeça para o seu quarto, caminhando vagarosamente.

      Ali pensou no caos em que se achava. O vestido estava sujo e rasgado em muitos sítios, os sapatos estavam rotos pelas pedras agudas e escabrosas, por que tinha caminhado; finalmente, estava toda coberta de poeira.

      Pediu outros sapatos e um banho.

      Barnave fora duas vezes saber cuidadosamente notícias da rainha.

      Anunciando-lhe esta visita, a Srª. Campan olhava com admiração para a rainha.

      - Agradecer-lhe-á afectuosamente, Srª. Campan - disse Maria Antonieta.

      A Srª. Campan olhou-a ainda mais admirada.

      - Devemos muitas obrigações a esse moço – continuou a rainha, consentindo, suposto não fosse o seu costume, em dar explicação do seu pensamento.

      - Porém parecia-me, senhora - aventurou-se a dizer a dama - que o Sr. Barnave era um democrata, um homem do povo, a quem todos os meios eram bons para chegar... onde está...

      - Todos os meios que oferece o talento, sim, senhora, é verdade - disse a rainha; - repare bem no que vou dizer-lhe: eu desculpo Barnave; um sentimento de orgulho, que não ousarei censurar-lhe, fez-lhe apreciar tudo o que franqueava a estrada das honras e da glória para a classe em que nasceu... Nada de perdão para os nobres que se envolveram na revolução! Mas se recuperarmos o poder, o perdão de Barnave ser-lhe-á concedido... Vá e procure saber notícias dos srs. de Malden e de Valory.

      O coração da rainha acrescentava a estes dois nomes o do conde de Charny, porém os lábios recusaram-se a pronunciá-lo.

      Seguidamente vieram dizer-lhe que o banho estava pronto.

      Durante o intervalo, que acabava de decorrer desde a visita da rainha ao delfim, tinham postado sentinelas a todas as portas, até à porta do toucador, até à sala de banho.

      A rainha obteve a grande custo que a porta estivesse fechada enquanto tomava banho.

      Fez isso dizer a Prudhomm, no seu jornal Revoluções de Paris:

     

      “Alguns bons patriotas, em quem o sentimento de horror à realeza não extinguiu o da compaixão, pareceram inquietos do estado moral e físico de Luís XVI e da sua família, depois de uma viagem tão desastrosa como a de Sainte-Menehould.”

      “Sosseguem! O nosso ex-rei, sábado à noite, quando entrou nos seus aposentos, não se achou pior do que na volta de uma caçada fatigante e quase infrutífera; devorou a sua galinha na forma do costume, e no dia seguinte, no fim do jantar, brincou com o filho.”

      “Quanto à mãe, tomou um banho, logo que chegou; as suas primeiras ordens foram pedir sapatos, mostrando cuidadosamente que os da viagem estavam rotos: portou-se muito civilmente com os oficiais nomeados para a sua guarda particular, e achou ridículo e indecente ver-se obrigada a deixar aberta a porta da sala do banho e do quarto de dormir.”

     

      Vejam este monstro, que tem a infâmia de comer uma galinha, no dia da sua chegada, e brincar no seguinte com o filho!

      Vejam esta sibarita, que toma banho, depois de duas noites de estalagem e de três dias de jornada!

      Vejam esta mulher pródiga, que pede sapatos, porque os da viagem estão rotos!

      Vejam, finalmente, esta Messalina que achando indecente ver-se obrigada a deixar abertas as portas da sala do seu quarto de dormir, pede às sentinelas licença para as fechar.

      Ah! Sr. jornalista! Que bem me parece só comer galinha nas quatro principais festas do ano, não ter filhos, não tomar banhos e ir para a Assembléia Nacional com os sapatos rotos!

      Apesar do escândalo que o caso devia produzir, a rainha teve o seu banho e obteve que a porta se conservasse fechada.

      Por isso a sentinela não deixou de chamar à Srª. Campan aristocrata, no momento em que esta, voltando de colher informações, entrava na sala de banho.

      As notícias não eram tão más como as poderiam julgar.

      Desde a chegada à barreira, Charny e os seus dois companheiros tinham combinado um plano, o qual tinha por fim atrair sobre si uma parte dos perigos, que corriam o rei e a rainha. Por conseqüência, combinaram que, logo que a carruagem parasse, um saltaria para a direita, outro para a esquerda, e o que ocupava o centro, para a frente; desta maneira, dividir-se-ia a multidão de assassinos, e obrigando-os a seguir os três rumos diferentes, talvez ficasse um caminho, por onde o rei e a rainha chegassem livremente ao paço.

      Dissemos que a carruagem parou acima do primeiro lago, junto da grande varanda do palácio. A pressa dos assassinos era tão grande, que, precipitando-se ao encontro da carruagem, dois se feriram gravemente; por um instante, contudo, os dois granadeiros colocados sobre a almofada conseguiram defender os três oficiais; mas bem depressa, tendo sido lançados por terra, deixaram estes últimos sem defesa.

      Foi o momento que os mancebos escolheram: todos três saltaram, mas não tão rapidamente que não derrubassem cinco ou seis homens, que subiam às rodas e aos estribos para os arrancar da almofada. Então, como tinham pensado, a cólera do povo espalhou-se sobre três pontos.

      Apenas em terra, o Sr. de Malden achou-se debaixo das armas de dois porta-machados, os dois machados estavam levantados e só esperavam o momento de o ferirem; ele fez um violento movimento, graças ao qual se desembaraçou dos homens, que o conservavam agarrado pela gola, de maneira, que, durante um segundo, achou-se isolado.

      Então, cruzando os braços, disse:

      - Firam!

      Um dos dois machados ficou levantado; a coragem da vítima paralisara o assassino.

      O outro abaixou-se, sujo de sangue; porém, caindo, encontrou um mosquete, cujo cano o fez desviar, e só a ponta feriu o Sr. de Malden no pescoço, e lhe fez uma leve ferida.

      Então ele empurrou a multidão, que se abriu; mas no fim de alguns passos foi recebido por um grupo de oficiais, que querendo salvá-lo o empurraram para o lado da ala dos guardas nacionais, que faziam ao rei e à rainha um caminho seguro desde a carruagem até ao paço. Neste momento o general Lafayette viu-o, e dirigindo o cavalo para ele, pegou-lhe pela gola e puxou-o para junto dos estribos, a fim de o cobrir de algum modo com a sua popularidade; porém o Sr. de Malden, conhecendo-o, exclamou:

      - Deixe-me, senhor, ocupe-se unicamente da família real, e abandone-me à canalha!

      O Sr. de Lafayette deixara-o efectivamente, e vendo um homem, que conduzia a rainha, correra para ele.

      Então o Sr. de Malden tinha sido lançado por terra, levantado, atacado por uns e defendido por outros, e assim chegara, coberto de contusões, feridas e sangue, até à porta do palácio. Ali, um oficial de serviço, vendo-o prestes a sucumbir, agarrou-o pela gola, e puxando-o para si, exclamou:

      - Seria de mau agouro que um miserável morresse de morte tão suave... É preciso inventar um suplício para um velhaco desta espécie... Entreguem-mo, que eu me encarrego dele!

      E continuando a insultar o Sr. de Malden, dizia-lhe:

      - Anda velhaco! Vem por aqui!... Comigo é que te hás-de haver!

      E levou-o para um sítio sombrio, onde lhe disse:

      - Salve-se, senhor e perdoe-me a astúcia de que fui obrigado a servir-me para o arrancar das mãos daqueles miseráveis.

      Então o Sr. de Malden meteu-se nas escadas do paço e desapareceu.

      Uma coisa quase semelhante se passara com o Sr. de Valory. Recebera duas feridas graves na cabeça; porém, no momento em que vinte baionetas, vinte sabres e vinte punhais se levantavam contra ele, Pétion aparecera, e empurrando os assassinos, com toda a força de que era dotado, exclamara:

      - Em nome da Assembléia Nacional, declaro-os indignos do nome de franceses se não se retiram no mesmo instante, e se não me entregam esse homem... Sou Pétion!

      E Pétion, que, debaixo de uma aparência um pouco rude, ocultava uma grande honradez, um coração corajoso e leal, tinha, ao dizer essas palavras, de tal modo imposto respeito aos assassinos, que se retiraram entregando-lhe o Sr. de Valory.

      Então tinha-o conduzido, amparando-o, porque esvaído pelas feridas, que recebera, o Sr. de Valory podia apenas ter-se em pé, até à ala dos guardas nacionais e entregara-o ao ajudante de ordens Mateus Dumas, que respondera por ele sobre a sua cabeça, e efectivamente o tinha protegido até ao paço.

      Neste momento, Pétion ouvira a voz de Barnave. Este chamava-o em seu socorro, pois era insuficiente para proteger o conde de Charny.

      Porém não tardaria a sucumbir nesta luta desigual. Se Barnave, e depois Pétion, não tivessem diligentemente corrido em socorro dele.

      A rainha recebeu a notícia deste caso no banho; porém a Srª. Campan, que lho contava, só podia dar-lhe notícias certas dos srs. de Malden e de Valory, que tinham sido vistos no paço, feridos e ensangüentados, mas que, apesar disso, sabia-se que não estavam perigosos.

      Quanto a Charny, nada de positivo se sabia dele: dizia-se que tinha sido salvo por Barnave e Pétion, porém não o tinham visto entrar no paço.

      A estas últimas palavras da Srª. Campan, assomou tão lívida palidez ao rosto da rainha, que julgando que a palidez provinha do temor de alguma desgraça que tivesse acontecido ao conde, exclamou:

      - Mas não se mortifique vossa majestade por o Sr. conde de Charny não ter entrado no paço; a rainha sabe que o Sr. de Charny habita em Paris, e talvez o Sr. conde se tenha refugiado em casa da condessa...

      Era justamente essa idéia que acudira ao pensamento de Maria Antonieta, e a fizera empalidecer tão horrorosamente.

      E, saindo do banho, exclamou:

      - Vista-me, Campan! Vista-me depressa! É preciso absolutamente que saiba o que é feito do conde...

      - Que conde? - perguntou a Srª. de Misery entrando.

      - O conde de Charny! - exclamou a rainha.

      - O Sr. conde de Charny está na antecâmara de vossa majestade - disse a Srª. de Misery - e solicita a honra de um momento de conversação.

      - Ah! - murmurou a rainha respirando – então manteve ele a sua palavra!

      As duas damas olharam uma para outra, ignorando o que a rainha queria dizer, e ela, arquejante, incapaz de pronunciar mais uma palavra, fez-lhes sinal para que se apressassem.

      Nunca ouve toilette mais rápida: é verdade que Maria Antonieta se contentou com torcer o cabelo, que mandara lavar com água perfumada, a fim de lhe tirar a poeira, e compor sobre a camisa um penteador de cassa branca.

      Quando entrou na sua antecâmara, e que mandou entrar o conde de Charny, estava tão branca como o penteador.

 

O golpe

      Alguns segundos depois, o criado particular anunciou o Sr. conde de Charny, e este apareceu no limiar da porta, alumiado pelo reflexo de ouro de um raio de Sol que caminhava para o seu ocaso.

      Ele também, como a rainha, acabava de empregar o tempo que decorrera desde a sua entrada no paço, em fazer desaparecer os vestígios dessa longa jornada, e da luta perigosíssima, terrível, que tão valorosamente tinha sustentado à chegada.

      Vestiu o seu antigo uniforme, isto é, o de capitão de fragata, com vistas vermelhas, e tira da camisa de renda.

      Era o mesmo fato que trazia no dia em que encontrara a rainha e Andréia de Taverney na praça do Palais-Royal, onde, tendo-as conduzido a uma sege, as acompanhara a Versalhes.

      Nunca estivera tão elegante, tão tranqüilo, tão belo, e a rainha teve dificuldade em acreditar, ao vê-lo, que fosse o mesmo homem que uma hora antes tinha estado a ponto de ser despedaçado pelo povo.

      - Oh! Senhor - exclamou a rainha - devem ter-lhe dito quanto eu estava inquieta por sua causa e como mandei por todos os lados saber notícias suas.

      - Sim, minha senhora - disse Charny inclinando-se - porém, acredite vossa majestade que também eu não entrei no meu quarto sem primeiro ter perguntado às damas de vossa majestade se estava sã e salva.

      - Diz-se que deve a vida ao Sr. Pétion e ao Sr. Barnave... Será verdade, e deverei ainda ao último esta nova obrigação?

      - É verdade, minha senhora, e ao Sr. Barnave até lhe devo um duplo agradecimento, porque, não tendo querido deixar-me sem que eu estivesse no meu quarto, teve a bondade de dizer-me, que se tinha ocupado de mim durante a jornada.

      - Do senhor? De que maneira?

      - Expondo a el-rei a inquietação, que supôs que a antiga amiga de vossa majestade sentiria com a minha ausência... Estou longe de crer, como vossa majestade, na vivacidade dessa inquietação; todavia...

      E calou-se, porque lhe pareceu que a rainha, que já estava muito pálida, ia empalidecendo mais de momento a momento.

      - Todavia - continuou Charny - sem aceitar em toda a sua extensão a despedida, que vossa majestade tinha intenção de oferecer-me, com efeito que, seguro como estou agora da vida de el-rei, da de vossa majestade e da dos seus augustos filhos, é conveniente que eu dê pessoalmente notícias minhas à condessa de Charny.

      A rainha apoiou a mão esquerda sobre o coração, como se quisesse certificar-se de que não tinha sucumbido ao golpe que acabava de receber, e com a voz quase imperceptível, disse:

      - Justíssimo, Sr. conde; porém, pergunto a mim mesma como esperou tanto tempo para cumprir esse dever...

      - A rainha esquece que lhe dei a minha palavra de que não tornaria a ver a condessa sem o seu real consentimento.

      - E é esse consentimento que vem pedir-me?

      - É sim, minha senhora - disse Charny - e suplico a vossa majestade que mo conceda.

      - E se não lho concedesse, decerto passaria sem ele, tal é o ardor com que está a ver a condessa, não é verdade?

      - Creio que a rainha se mostra ingrata para comigo - disse Charny. - No momento em que deixei Paris, julguei que deixaria a condessa por muito tempo, senão para sempre. Durante toda a jornada fiz quanto humanamente estava em meu poder para que tudo terminasse em bem. Lembre-se vossa majestade de que não foi por minha culpa, que não deixei, como meu pobre irmão, a vida em Varennes, ou que não fui como o Sr. de Dampierre, feito em pedaços no caminho, ou no jardim das Tulherias... Se eu tivesse tido o prazer de conduzir vossa majestade para além da fronteira, ou a honra de ter morrido por vossa majestade, exilava-me no primeiro caso, e morria no segundo, sem ter tornado a ver a condessa... Mas, repito a vossa majestade, voltando a Paris, não posso dar à mulher, que tem o meu nome e bem sabe vossa Majestade como ela o honra! não lhe posso dar, digo, esse sinal de indiferença, e deixar de lhe dar notícias minhas, principalmente agora, que meu irmão já não existe para me substituir... Além disso, ou o Sr. Barnave se enganou, ou era ainda antes de ontem esse o parecer de vossa majestade.

      A rainha deixou cair a mão sobre o braço da cadeira, e seguindo com todo o corpo este movimento, que a aproximava de Charny, disse:

      - Ama então muito aquela mulher, senhor, para que, por causa dela me cause tão friamente uma tal dor!...

      - Há quase seis anos - respondeu Charny – que vossa majestade mesma, no momento em que eu não pensava em tal, porque na terra só existia para mim uma mulher, e essa mulher tinha-a Deus colocado de tal modo superior a mim que eu não podia aspirar a ela; há seis anos - repito - que me deu por marido a Andréia de Taverney, e que ma impôs por esposa; durante esses seis anos, a minha mão não tem sequer duas vezes tocado na dela; não lhe tenho dirigido dez vezes a palavra, sem necessidade absoluta, e parece-me que nem as nossas vistas se têm encontrado dez vezes... A minha vida tem sido ocupada e envolvida por outro amor, pelos mil cuidados, os mil trabalhos, os mil combates, que agitam a existência de um homem; tenho vivido na corte, medido as estradas reais, e tramado também, com o fio, que o rei se dignou confiar-me, a intriga gigantesca, que a fatalidade devera inutilizar. Ora, não tenho contado os dias, nem os meses, nem os anos; o tempo tem passado, tanto mais rápido, quanto mais ocupado tenho estado de todas as afeições, cuidados e intrigas, que acabo de mencionar. Porém, outro tanto não tem acontecido à condessa de Charny. Depois que teve o desgosto de deixar a vossa majestade, depois de ter tido sem dúvida a desgraça de desagradar-lhe, vive só, isolada e perdida no pavilhão da rua Coq-Héron... Essa solidão, essa vida isolada, esse abandono tem-os aceitado sem se queixar; porque, coração vazio de amor, não precisa das mesmas afeições que as outras mulheres; porém o que talvez não aceitasse sem se queixar seria o meu esquecimento para com ela dos deveres mais simples, ou das mais vulgares atenções...

      - Jesus! - exclamou a rainha - como está preocupado com o que a Srª. de Charny pensará ou não pensará do senhor, conforme o vir ou não o vir!... Antes de todo esse cuidado, seria bom saber se ela pensou no senhor quando partiu, ou se pensa agora, no momento da sua chegada.

      - No momento da minha chegada ignoro se a condessa pensa em mim, minha senhora; porém no momento da minha partida pensou, estou bem certo disso.

      - Viu-a então antes de partir?

      - Já tive a honra de dizer a vossa majestade que não tinha visto a condessa de Charny, desde o momento em que dei a minha palavra à rainha de não a ver.

      - Então escreveu-lhe?

      Charny não respondeu.

      - Vejamos - disse Maria Antonieta - escreveu-lhe, confesse-o!

      - Entregou a meu irmão Isidoro uma carta para mim.

      - E leu essa carta? Que dizia? Que podia ela escrever-lhe? E contudo, ela tinha-me jurado... Vejamos, responda depressa... Então, nessa carta dizia-lhe... Fale, senhor, pois não vê que estou desesperada?

      - Não posso repetir a vossa majestade o que a condessa me diz na carta, porque não a li.

      - Rasgou-a - exclamou a rainha radiante de alegria; - queimou-a, sem a ler? Charny! Charny! Se o fez é o mais leal dos homens, e eu fazia mal em me queixar: nada perdi!

      E a rainha estendeu os braços para Charny, como para o atrair a si.

      Mas Charny ficou imóvel no mesmo lugar.

      - Não a rasguei, nem a queimei.

      - Mas então - disse a rainha, tornando a cair na cadeira - porque não a leu?

      - A carta só me devia ser entregue por meu irmão, no caso em que eu fosse ferido mortalmente... Ai! Não era eu, que devia morrer, era ele!... Depois dele morto, trouxeram-me os seus papéis e entre eles estava a carta da condessa e este bilhete, que vossa majestade vê; queira recebê-lo minha senhora.

      E Charny apresentou à rainha o bilhete escrito por Isidoro, a que estava anexo à carta.

      Maria Antonieta, pegando no bilhete com a mão trémula, tocou a campainha.

      Anoitecera durante a cena que acabamos de contar.

      - Tragam luz! - bradou ela.

      O criado particular saiu; houve um minuto de silêncio, em que se ouvia a respiração arquejante da rainha e a pulsação precipitada do coração.

      O criado voltou com duas serpentinas que pôs em cima do fogão.

      A rainha nem sequer lhe deu tempo para retirar-se, e enquanto ele se afastava e fechava a porta, aproximou-se do fogão com o bilhete na mão.

      Duas vezes lançou Maria Antonieta os olhos sobre o papel sem nada ver.

      - Oh! - murmurou ela com desespero - isto não é papel, é fogo!

      Finalmente, à força de vontade, a mão cessou de tremer e os olhos começaram a ver.

      Leu com voz rouca, e que nada tinha de comum com a sua voz habitual:

     

      “Esta carta é dirigida, não a mim, mas a meu irmão o conde Olivier de Charny; é escrita por sua mulher, a condessa de Charny...”

     

      A rainha calou-se; alguns segundos depois continuou:

     

      “Se me acontecer alguma desgraça, aquele que a encontrar a entregará ao conde Olivier de Charny ou a enviará à condessa”.

     

      A rainha calou-se segunda vez, meneou a cabeça e continuou a ler:

     

      “Eu recebia-a com a recomendação seguinte...”

     

      - Ah! vejamos a recomendação, murmurou a rainha.

     

      “Se na empresa, em que está empenhado, o conde for bem sucedido, restituirá a carta à condessa...”

     

      A voz da rainha tornava-se cada vez mais sufocada, à medida que lia.

      Continuou:

     

      “Se ele for ferido gravemente, mas sem perigo de vida, rogar-lhe-á que conceda a sua esposa a graça de se reunir a ele...”

     

      -Oh! Isto é claro! - balbuciou a rainha.

      Depois, com voz quase ininteligível:

     

      “Finalmente, se for ferido mortalmente, entregar-lhe-á esta carta, e se ele mesmo não a puder ler, ler-lha-á para que antes de expirar saiba o que ela contêm...”

     

      - Pois bem, negá-lo-á agora? - exclamou Maria Antonieta cobrindo o conde com um olhar inflamado.

      - O quê?

      - Jesus que ela ama-o!...

      - A quem? A mim?... A condessa ama-me? Que diz, minha senhora? - exclamou Charny.

      - Oh! Quanto sou desgraçada! Diga a verdade!

      - A condessa amar-me! A mim! É impossível!

      - E porque não?... Também eu o amo!

      - Mas, durante seis anos, se a condessa me tivesse amor, por certo ter-mo-ia dito, ter-mo-ia deixado perceber...

      Tinha chegado o momento à pobre Maria Antonieta, em que sofrendo tanto e sentindo a necessidade de enterrar, como um punhal, o sofrimento no mais íntimo do coração, bradou:

      - Não, nada lhe tem deixado perceber, nada lhe tem dito, porque bem sabe que não pode ser sua mulher!

      - A condessa de Charny não pode ser minha mulher!... - repetiu Olivier.

      - É... - continuou a rainha inebriando-se cada vez mais com a sua própria dor - é que ela bem sabe que entre ambos há um segredo, que mataria o seu amor!

      - Um segredo que mataria o nosso amor?!

      - É que ela bem sabe que, desde o momento que falasse, o senhor a desprezaria!

      - Eu, desprezar a condessa!...

      - A menos que não se despreze a mulher que foi esposa sem esposo, mãe sem marido...

      Chegou a vez de Charny se tornar pálido como a morte e de buscar um apoio na cadeira que lhe estava mais próxima.

      - Minha senhora... Minha senhora! – exclamou ele - vossa majestade tem dito muito, ou muito pouco... E portanto creio ter o direito de lhe pedir uma explicação.

      - Uma explicação, senhor? A mim, à rainha, uma explicação?...

      - Sim, minha senhora - disse Charny - peço-lha!

      Neste momento abriu-se a porta.

      - Que me querem? - perguntou a rainha impaciente.

      - Vossa majestade - respondeu o criado particular - tinha dito que estava sempre visível para o Dr. Gilberto.

      - E então?

      - O Dr. Gilberto reclama a honra de apresentar os seus humildes respeitos a vossa majestade.

      - O Dr. Gilberto! - disse a rainha; - está bem certo que é o Dr. Gilberto?

      - Estou sim, real senhora.

      - Oh! Então que entre!

      Depois, voltando-se para Charny, disse elevando a voz:

      - Quer uma explicação a respeito da Srª. de Charny, peça-a ao Dr. Gilberto... Melhor que ninguém lha pode dar!

      Entretanto Gilberto entrara; ouvira as últimas palavras de Maria Antonieta, e ficara em pé e imóvel à entrada da porta.

      Quanto à rainha, entregando a Charny o bilhete do irmão, deu alguns passos para ir para o seu gabinete de vestir; porém, mais rápido que ela, o conde embaraçou-a na passagem, agarrando-a pelo pulso.

      - Perdão - disse ele - porém esta explicação é diante de vossa majestade que deve verificar-se.

      - Senhor - disse Maria Antonieta com o olhar febril e os dentes cerrados - esquece-se, parece-me, de que sou a rainha!

      - É uma amiga ingrata que calunia a sua amiga; é uma mulher ciosa que insulta outra mulher, a esposa de um homem que durante três dias arriscou a vida vinte vezes por vossa majestade; tê-la caluniado e insultado, há-de fazer-se-lhe a justiça que mereceu... Assente-se, pois, vossa majestade ali e espere!

      - Pois bem, seja - disse a rainha. - Sr. Gilberto - continuou ela, tentando rir de um modo indiferente, o que não conseguiu - ouviu o que deseja este senhor?

      - Sr. Dr. Gilberto - disse o conde de Charny em tom cortês e digno - ouviu o que ordena a rainha?

      Gilberto avançou, e olhando tristemente para Maria Antonieta, murmurou:

      - Oh! Senhora! Senhora!

      Depois, voltando-se para Charny:

      - Sr. conde, o que tenho a dizer-lhe é a vergonha de um homem e a glória de uma mulher... Um desgraçado, um camponês, um verme da terra, amava a menina de Taverney; um dia encontrou-a desmaiada, e sem respeito pela sua mocidade, pela sua beleza e pela sua inocência, o miserável violou-a!... É deste modo que a jovem foi esposa sem marido, e mãe sem esposo... A menina de Taverney é um anjo! A Srª. de Charny é uma mártir!

      Charny enxugou o suor que lhe caía do rosto.

      - Obrigado, Sr. Gilberto - disse ele.

      Depois, dirigindo-se à rainha, disse:

      - Senhora, ignorava que a menina de Taverney tivesse sido tão desgraçada, que a Srª. de Charny fosse tão respeitável! Sem o que, peço que o acredite, não teria passado seis anos sem lhe cair aos pés e sem a adorar como merece!

      E inclinando-se diante da rainha estupefacta, saiu, sem que a infeliz mulher ousasse fazer o menor movimento para o deter.

      Porém Charny ouviu o grito de dor que ela deu, ao ver a porta fechar-se sobre ele.

      É que a rainha compreendia que, sobre aquela porta, como sobre a do inferno, o demónio do ciúme acabava de escrever esta terrível sentença:

      Lasciate ogni speransa!

 

Date Lilia

     

      Digamos agora o que fazia a condessa de Charny enquanto se passava entre o conde e a rainha a cena, que acabamos de contar, e que acordara tão dolorosamente uma longa série de aflições.

      Em primeiro lugar, para nós, que conhecemos o estado do coração da condessa, é fácil imaginar o que ela sofreria desde a partida de Isidoro.

      Tremia ao mesmo tempo que aquele grande projecto, que adivinhara ser de uma fuga, tivesse bom ou mau êxito.

      Com efeito, se saísse bem, conhecia assaz a dedicação do conde a seus amos, para estar certa de que, uma vez exilados, nunca os abandonaria; se saísse mal, conhecia bastante a coragem de Olivier para estar certa de que lutaria até ao último momento, enquanto houvesse alguma esperança, contra os obstáculos, quaisquer que fossem.

      Desde o momento em que Isidoro se despedira dela, a condessa conservara sempre os olhos abertos para aproveitar toda a luz, os ouvidos constantemente atentos para perceber o menor ruído.

      No dia seguinte soube, como o resto da população parisiense, que o rei e a família real tinham deixado Paris durante a noite.

      Nenhum acidente fizera notar, nem sequer levemente, essa partida.

      Uma vez que houvera fuga, conforme ela previra, Charny afastava-se dela!

      Deu um suspiro e ajoelhou rezando pela feliz jornada do marido.

      Depois, durante dois dias, Paris ficou muda e por assim dizer sem eco.

      Finalmente, na manhã do terceiro dia, um grande boato se espalhou pela cidade de que o rei fora preso em Varennes.

      Nada mais se sabia: depois do trovão o silêncio: depois do relâmpago, a noite.

      O rei fora preso em Varennes, eis tudo.

      Andréia ignorava o que fosse Varennes. Aquela pequena cidade, tão fatalmente célebre depois; aquela vila, que devia mais tarde tornar-se uma ameaça para toda a realeza, participava naquela época da obscuridade, que pesava, e ainda pesa sobre dez mil vilas de França, tão pouco importantes e tão desconhecidas como ela.

      Andréia abriu um dicionário geográfico e leu:

     

      “Varennes-en-Argonne, cabeça de comarca; tem 1607 habitantes”.

     

      Depois procurou num mapa, e encontrou Varennes colocada como centro de um triângulo entre Stenay, Verdun e Châlons, na raia da sua floresta, sobre as margens da sua ribeira.

      Foi pois sobre esse ponto obscuro de França, que se concentrou dali por diante toda a sua atenção; foi ali que ela viveu em pensamentos, esperanças e receios.

      Depois, a pouco e pouco, em continuação da grande novidade, vieram as notícias secundárias, como ao nascer do Sol, após o grande conjunto que ele tira do caos, aparecem as particularidades mais minuciosas.

      Essas particularidades porém, apesar de insignificantes, eram imensas para ela!

      O Sr. de Bouillé, segundo diziam, quisera livrar o rei, atacara a escolta, e depois de encarniçado combate, retirara, deixando a família real nas mãos dos patriotas vencedores.

      Sem dúvida Charny tomara parte nesse combate; sem dúvida Charny fora o último a retirar-se se não tivesse ficado no campo da batalha.

      Depois disseram que um dos três oficiais, que acompanhavam o rei, tinha sido morto.

      Logo em seguida, declarou-se o nome desse oficial, porém ignorava-se se fora o visconde ou o conde, se fora Isidoro se Olivier de Charny.

      Era um Charny, nada mais se sabia.

      Durante os dois dias em que esta questão ficou indecisa, o coração de Andréia sofreu terríveis aflições!

      Finalmente, anunciaram o regresso do rei e da família real para sábado 25; os augustos prisioneiros tinham pernoitado em Meaux.

      Calculando o tempo e o espaço pelo modo ordinário, o rei devia estar em Paris antes do meio-dia; supondo que viesse pela estrada mais curta, o rei devia entrar em Paris pela rua de Saint-Martin.

      Às onze horas a Srª. de Charny, vestida com a maior simplicidade e com o rosto coberto com um véu, estava na barreira.

      Esperou até às três horas.

      Então, as primeiras ondas da multidão, empurrando tudo adiante de si, anunciaram que o rei costearia Paris, e por certo entraria pela barreira dos Campos Elíseos.

      Era necessário atravessar a cidade em toda a sua extensão, e atravessá-la a pé. Ninguém ousaria circular de carruagem por entre a multidão compacta, que enchia as ruas.

      Nunca desde a tomada da Bastilha, tinha havido semelhante ajuntamento no boulevard.

      Andréia não hesitou; tomou o caminho dos Campos Elíseos e foi das primeiras a chegar à barreira.

      Ali ainda esperou três horas, três horas aflitivas!

      Finalmente, apareceu o cortejo.

      Já dissemos a ordem e as condições em que marchava.

      Andréia viu passar a carruagem, e deu um grande grito de alegria, ao conhecer Charny na almofada.

      Respondeu-lhe um grito, que parecia o eco do seu, se não fosse de dor...

      Andréia voltou-se para o lado de onde partira esse grito. Debatia-se uma rapariga entre os braços de três ou quatro pessoas caritativas, que se apressaram a socorrê-la.

      Parecia possuída do mais violento desespero.

      Talvez Andréia lhe tivesse concedido uma atenção mais eficaz, se não ouvisse murmurar em volta de si todas as espécies de imprecações contra os três homens, que vinham sentados na almofada da carruagem real.

      Era sobre eles que devia cair a cólera do povo; eram eles os principais emissários da grande traição real; seriam indubitavelmente feitos em postas no momento em que a carruagem parasse.

      E Charny era um desses três homens!

      Andréia resolveu fazer todo o possível para penetrar no jardim das Tulherias.

      Mas para isso era preciso atravessar a multidão, voltar pela borda do rio, isto é, pelo cais da Conferência, e entrar no jardim, se fosse possível, pelo cais das Tulherias.

      Andréia tomou a rua de Chaillot e dirigiu-se para o lado do cais.

      À força de tentativas, a risco de ser esmagada vinte vezes, conseguiu transpor a grade; porém, tal multidão se aglomerava no sítio onde devia parar a carruagem, que não devia pensar em chegar à primeira fila.

      Andréia pensou que da varanda da margem do rio dominaria toda aquela multidão; é verdade que a distância seria muito grande para que nada pudesse ver circunstanciadamente, nada ouviria com certeza.

      Não importa! Veria e ouviria mal, isso valia mais do que não ver nem ouvir.

      Subiu pois à varanda da margem do rio.

      Dali, com efeito, via a almofada da carruagem, Charny e os dois oficiais; Charny, que não se podia lembrar de que a cem passos dele um coração batia tão violentamente por sua causa! Charny que, naquele momento, não tinha provavelmente pensamento algum para Andréia! Charny, que só pensava na rainha, que só esquecia a sua própria segurança para vigiar pela da rainha!

      Oh! Se ela soubesse que, naquele mesmo instante, Charny apertava contra o coração a sua carta, e lhe oferecia, no pensamento, o último suspiro, que julgava dar!

      Finalmente, a carruagem parou no meio dos gritos, dos uivos e das imprecações.

      Quase no mesmo instante fez-se à roda da carruagem um grande ruído, um grande movimento, um imenso tumulto.

      As baionetas, as lanças e os sabres levantaram-se; dir-se-ia uma seara de ferro, vergando debaixo de uma tempestade.

      Os três homens, precipitados da almofada, desapareceram, como se tivessem caído num sorvedouro... Depois houve um tal redemoinho na multidão, que as suas últimas fileiras vieram quebrar-se contra a parede que sustentava a varanda.

      Andréia, cheia de angústia, dizia, arquejante e com os braços estendidos, palavras ininteligíveis no meio daquele concerto terrível que se compunha de maldições; de blasfémias e de gritos de morte.

      Depois, não soube o que se passou; a Terra andou-lhe à volta, o Céu tornou-se vermelho, um zunido, semelhante ao da maré que enche lhe soou aos ouvidos.

      Era o sangue, que lhe subia do coração à cabeça e que lhe invadia o cérebro.

      Caiu meio desmaiada, compreendendo que vivia, porque sofria.

      Uma impressão de frescura fê-la voltar a si: uma mulher aplicava-lhe ao rosto um lenço umedecido com água do Sena, enquanto outra lhe fazia respirar um vidro de sais.

      Conheceu a mulher, que vira moribunda, com ela, na barreira, ignorando qual a analogia que, por um laço desconhecido, unia a dor dessa mulher à sua.

      Tornando a si, ainda bastante inquieta, as suas primeiras palavras foram:

      - Estão mortos?

      A compaixão é inteligente: os que cercavam Andréia compreenderam que se tratava dos três homens, cuja vida estivera tão cruelmente ameaçada.

      - Não - lhes responderam - estão salvos!

      - Todos três? - perguntou ela.

      - Todos três.

      - Oh! Seja Deus louvado!... E onde estão?

      - Julga-se que estão no paço.

      - No paço... Obrigada!

      E levantando-se, meneando a cabeça, orientando-se com um olhar perturbado, saiu pelo postigo das Tulherias.

      Pensava com razão, que desse lado a multidão seria menos compacta.

      Efectivamente, a rua des Orties estava quase deserta.

      Atravessou a praça do Carroussel, e chegada ao pátio dos príncipes, entrou na casa do porteiro.

      Este homem conhecia a condessa: tinha-a visto entrar no paço, e sair, durante os dois ou três primeiros dias da volta de Versalhes.

      Depois, tinha-a visto sair para nunca mais entrar, no dia em que, perseguida por Sebastião, Andréia levara o menino consigo na carruagem.

      O porteiro consentiu em ir colher informações.

      Pelos corredores interiores depressa chegou ao centro do palácio.

      Os três oficiais estavam salvos. O Sr. de Charny, são e salvo, retirara-se para o seu quarto.

      Pouco depois, saíra dali vestido de oficial de marinha, e dirigira-se aos quartos da rainha, onde devia estar naquele momento.

      Andréia respirou, estendeu uma bolsa a quem lhe dera tão boas notícias, e preocupada e arquejante, pediu um copo de água.

      Ah! Charny estava salvo.

      Agradeceu ao bom homem e tomou novamente o caminho do palácio da rua Coq-Héron.

      Chegada ali, foi cair, não sobre uma cadeira, mas diante do seu genuflexório.

      Não era decerto para orar; há momentos em que o reconhecimento para com o Senhor é tão grande, que faltam expressões para manifestar-lho; então são os braços, os olhos e todo o corpo; é todo o coração, toda a alma que voam para Deus.

      Estava mergulhada nesse bem-aventurado êxtase, quando ouviu abrir a porta; voltou-se vagarosamente, nada compreendendo daquele ruído da terra, que vinha perturbá-la no mais profundo da sua meditação.

      A criada estava de pé, procurando com a vista, tão perdida estava na escuridão.

      Atrás da criada elevava-se uma sombra, uma forma indecisa, mas a que o seu instinto deu imediatamente contornos e nome.

      - O Sr. conde de Charny - disse a criada.

      Andréia quis levantar-se, porém faltaram-lhe as forças: caiu de joelhos sobre a almofada, e meio levantada, apoiando o braço no genuflexório, murmurou:

      - O conde! O conde!

      E suposto que ele ali estivesse à sua vista, não podia acreditar na presença dele.

      Andréia fez um sinal com a cabeça, porque lhe foi impossível soltar uma palavra; a criada afastou-se para deixar entrar Charny e fechou a porta.

      Charny e a condessa ficaram sós.

      - Disseram-me que acabava de entrar, minha senhora - disse Charny; - acaso serei indiscreto, procurando-a neste momento?

      - Não - disse ela com voz trémula - não... seja bem-vindo, senhor... Estava de tal modo inquieta, que saí para saber o que se passava.

      - Tinha saído... Havia muito tempo?

      - Desde pela manhã... Estive primeiro na barreira de Saint-Martin, depois na dos Campos Elíseos. Ali, vi... Vi...

      Ela hesitou.

      - Viu o quê?

      - Vi o rei, a família real, e o senhor; fiquei sossegada... Momentaneamente, pelo menos. Temia pelo senhor, quando se apeasse; então voltei para o jardim das Tulherias... Ah! Ali, julguei morrer!...

      - Sim - disse Charny - a multidão era imensa; foi apertada, andou por certo em bolandas, sufocada quase... Compreendo...

      - Não, não - disse Andréia meneando a cabeça - oh! Não, não foi isso!... Finalmente informei-me; soube que o senhor estava salvo; voltei para aqui... E bem vê, estava de joelhos... Orava... Agradecia a Deus!

      - Visto estar de joelhos, minha senhora, visto orar a Deus, não se levante sem pedir pelo meu pobre irmão.

      - O Sr. Isidoro!... Ah! - exclamou Andréia – era então ele, o infeliz mancebo!

      E deixou cair a cabeça entre as mãos.

      Charny deu alguns passos para diante, e contemplou com profunda expressão de ternura e melancolia aquela casta criatura, que rezava.

      Havia além disso, naquele olhar, um profundo sentimento de comiseração, de misericórdia e mansidão.

      E alguma coisa mais, semelhante a um desejo oculto.

      Não lhe tinha dito a rainha, ou antes, não tinha deixado escapar a extraordinária revelação de que Andréia de Taverney o amava?

      Acabada a oração, a condessa voltou-se.

      - E morreu? - disse ela.

      - Morreu sim, minha senhora! Como o pobre Jorge pela mesma causa e cumprindo o mesmo dever.

      - E no meio dessa grande dor, que lhe deve ter causado a morte de seu irmão, pôde pensar em mim? - disse Andréia com a voz tão fraca, que mal se podiam perceber as palavras.

      Felizmente Charny ouvia com o coração e com os ouvidos ao mesmo tempo.

      - Minha senhora - disse ele - não tinha encarregado meu irmão de uma missão para mim?

      - Senhor... - balbuciou Andréia levantando-se sobre um joelho e olhando para o conde com ansiedade.

      - Não lhe tinha dado uma carta para mim?

      - Senhor!... Senhor! - repetiu Andréia com voz trémula.

      - Depois da morte do pobre Isidoro, entregaram-ma os papéis que lhe foram encontrados, e entre eles estava a sua carta.

      - Leu-a?! - exclamou Andréia ocultando a cabeça entre as mãos; - ah!

      - Não, minha senhora, eu só devia saber o conteúdo da carta, se fosse mortalmente ferido, e como vê, estou são e salvo.

      - Então a carta?...

      - Ei-la intacta, minha senhora, e tal qual a entregou a Isidoro.

      - Oh! - murmurou Andréia pegando na carta – e muito bom ou muito cruel o que fez!

      Charny estendendo o braço, pegou na mão de Andréia, e conservou-a entre as suas.

      Andréia fez um movimento para retirar a mão.

      Depois, como Charny insistisse, murmurou:

      - Por obséquio, senhor!

      Deu um suspiro, quase de espanto; sem força contra si, deixou a mão trémula e úmida entre as do conde.

      Então indecisa, não tendo onde fixar a vista, não sabendo como evitar o olhar de Charny, que sentia cravado nela, não podendo recuar, porque estava encostada ao genuflexório, disse:

      - Sim, compreendo, senhor, veio restituir-me a carta...

      - Sim, minha senhora... Mas vim também para outra coisa... Tenho que pedir-lhe perdão, condessa!

      Andréia estremeceu até ao íntimo do coração; era a primeira vez que Charny lhe dava este título sem o preceder da palavra senhora.

      Depois pronunciara a frase inteira, com uma inflexão de suavidade infinita.

      - Pedir perdão, a mim, o Sr. conde?! De quê?

      - Da maneira por que me tenho comportado para com a condessa durante seis anos.

      Andréia olhou para ele com profunda admiração.

      - Porventura queixei-me alguma vez, Sr. conde? - perguntou ela.

      - Não, minha senhora e não se queixou única e simplesmente porque é um anjo.

      A seu pesar, os olhos de Andréia arrasaram-se de água, e sentiu as lágrimas deslizarem-lhe pelas faces.

      - Chora, Andréia? - disse Charny.

      - Oh! - exclamou Andréia sufocada em lágrimas; - desculpe-me, senhor... Porém não estou acostumada a ouvi-lo falar assim... Ai, meu Deus! Meu Deus!...

      E foi assentar-se num sofá, deixando pender a cabeça entre as mãos.

      Depois, passado um instante, afastando as mãos e meneando a cabeça, disse:

      - Mas na verdade, estou louca!

      Repentinamente calou-se. Enquanto ela tivera a cabeça oculta entre as mãos, fora Charny ajoelhar-se-lhe diante.

      - Oh! O senhor de joelhos! O senhor a meus pés! - disse ela.

      - Não lhe disse, Andréia, que vinha pedir-lhe perdão?

      - De joelhos! A meus pés! - repetiu ela, como quem não pode acreditar o que vê.

      - Andréia, retirou-me a sua mão! – exclamou Charny.

      E estendeu-lha novamente.

      Porém ela, recuando com um sentimento, que se assemelhava ao terror, murmurou:

      - Que quer isto dizer?

      - Andréia - respondeu Charny com a mais doce voz - isto quer dizer que a amo.

      Andréia, levando rapidamente a mão ao coração, deu um grito agudíssimo.

      Depois levantando-se completamente, como se uma mola a fizesse mover, e apertando a cabeça entre as mãos, repetiu:

      - Ama-me! Ama-me! Mas é impossível!

      - Andréia, diga que é impossível amar-me, não diga porém que é impossível que eu a ame.

      Fitou os olhos em Charny, como para se certificar de que ele falava verdade: os grandes olhos pretos do conde diziam muito mais do que as suas palavras.

      Andréia, que podia duvidar das palavras, não duvidou do olhar.

      - Oh! - murmurou ela - meu Deus! Meu Deus! Há no mundo uma criatura mais infeliz do que eu?

      - Andréia - continuou Charny - diga que me ama... Ou se não diga ao menos que não me odeia!

      - Eu, odiá-lo?! - exclamou Andréia.

      E pela sua vez, os olhos tão sossegados, tão límpidos, deixaram-lhe escapar um relâmpago.

      - Oh! Senhor - acrescentou ela - seria bem injusto se tomasse por ódio o sentimento que me inspira!

      - Mas, finalmente, se não é ódio, se não é amor, o que é então, Andréia?

      - Não é amor, porque me não é permitido amá-lo... Não me ouviu há pouco dizer a Deus, que eu era a mais infeliz das criaturas da terra?

      - Porque lhe não é permitido amar-me, quando eu a amo, Andréia, com todas as forças da minha alma?

      - Ai! É o que não quero, o que não posso, o que não ouso dizer-lhe! - respondeu Andréia, torcendo os braços.

      - Mas - continuou Charny, adoçando ainda mais o som da voz - se o que não quer, não pode, nem ousa dizer, outra pessoa mo tivesse dito?

      Andréia apoiou as mãos nos ombros de Charny.

      - Quê? - disse atemorizada.

      - Se eu o soubesse? - continuou Charny.

      - Meu Deus!...

      - E se fosse por achá-la mais digna e mais respeitável por essa mesma desgraça, se fosse por saber esse segredo terrível, que me decidisse a vir dizer-lhe que a amava?

      - Se tivesse feito isso, senhor, seria o mais nobre e o mais generoso dos homens!

      - Eu amo-a, Andréia! - repetiu Charny; - amo-a! Amo-a!

      - Ah! - disse Andréia levantando as mãos ao Céu, - não sabia, meu Deus, que pudesse haver semelhante alegria neste mundo!

      - Mas, Andréia, diga-me também que me ama! - exclamou Charny.

      - Oh! Não! Nunca me atreveria - disse Andréia; - porém, leia essa carta, que lhe devia ser entregue no seu leito de morte.

      E deu ao conde a carta que ele lhe trouxera.

      Enquanto Andréia ocultava o rosto entre as mãos, Charny quebrou apressadamente o selo da carta, leu as primeiras linhas, deu um grito, depois, afastando as mãos de Andréia, e com o mesmo movimento puxando-a para o coração, disse:

      - Desde o dia em que me viste, há seis anos!... Oh! Santa criatura! Como te amarei bastante para te fazer esquecer o que tens sofrido?...

      - Meu Deus! - murmurou Andréia, dobrando-se como um vime ao peso de tanta felicidade - se é um sonho, fazei que nunca acorde, ou que morra ao despertar!

      E agora esqueçamos os que são felizes, para voltarmos aos que sofrem, aos que lutam, aos que odeiam, e a quem talvez o seu mau destino os esqueça como nós.

 

Uma pouca de sombra depois do Sol

      No dia 16 de Julho de 1791, isto é, alguns dias depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, dois novos personagens, que ainda não apresentamos ao leitor, escreviam ambos na mesma mesa numa pequena sala de um terceiro andar da hospedaria Britânica, na rua de Guénégaud.

      Essa sala dava, por uma das portas, para uma modesta casa de jantar, onde tudo revelava a mobília de uma hospedaria, e por outra porta para um quarto de cama, onde havia dois leitos iguais.

      Os que escreviam eram de sexo diferente e merecem cada qual menção particular.

      O homem parecia ter perto de sessenta anos; era alto, magro, de ar ao mesmo tempo austero e apaixonado. As linhas do rosto indicavam um pensador tranqüilo e sério, em quem as qualidades rígidas e justas do espírito sobrepujavam as fantasias da imaginação.

      A mulher não mostrava ter mais de trinta a trinta e dois anos, suposto que realmente já tivesse quase trinta e seis. Por uma certa força de sangue, por um certo vigor de carnação era fácil ver que descendia de origem popular; os olhos eram encantadores, desse tom indeciso que participa das diferentes misturas de pardo, do verde e do azul, olhos a um tempo, meigos e firmes; a boca grande mas de lábios frescos e os dentes claros; e o nariz arrebitados, as mãos belas conquanto um pouco fortes; a estatura rica, abundante, arqueada, a garganta maravilhosa, e os quadris da Vénus de Siracusa.

      O homem era João Maria Roland de la Plâtrière, nascido em 1732, em Villefranche, próximo de Lião.

      A mulher era Manon Joanna Philippon, nascida em Paris, em 1754.

      Tinham casado onze anos antes, isto é, em 1780.

      Dissemos que a mulher era de estirpe popular; provam-no os nomes: Manon Joanna Philippon; nome, pronome, sobrenome, tudo denuncia a origem. Filha de um gravador, também gravava, até que, na idade de vinte e cinco anos casou com Roland, que tinha vinte e quatro anos mais do que ela; então de gravadora tornou-se copista, tradutora e compiladora; livros, como a Arte do mineiro de turfeiras, a Arte do fabricante de lã lisa seca, o Dicionário das manufacturas, tinham absorvido em rude e ingrato trabalho os mais belos anos daquela mulher de espírito generoso, que permaneceu virgem de toda a culpa, se não de toda a paixão, não por esterilidade do coração, senão por pureza da alma.

      No sentimento que votava ao marido, o respeito da filha, excedia o amor de esposa; este amor era uma espécie de culto casto, e livre de todas as relações físicas. Chegava a deixar o seu trabalho do dia, que desforrava durante a noite, para preparar a comida do marido, cujo estômago fraco só podia suportar uma certa espécie de alimento.

      Em 1789, a Srª. Roland levava esta vida obscura e laboriosa na província. O marido habitava então a quinta da Plâtrière, de que tomou o nome. Essa quinta era situada em Villefranche, perto de Lião. Foi lá que o canhão da Bastilha os foi abalar.

      Foi ao ruído do canhão, que tudo quanto havia de grandioso, de patriótico e de santamente francês acordou no coração da nobre criatura. A França já não era um reino, era uma nação; já não era simplesmente um país, que se habita, era uma pátria! Chegou a federação de 90: lembrar-se-ão, que a de Lião precedera a de Paris. Joanna Philippon, que na sua casa paterna do cais do Relógio via todos os dias, olhando pela janela, o azul profundo do Céu, o nascer do Sol, que podia seguir com a vista até à extremidade dos Campos Elíseos, onde parecia mergulhar-se no cimo verde da folhagem das árvores, vira também desde as três horas da manhã nascer do alto de Fourvières esse outro Sol, bem diversamente abrasador e luminoso que se chama liberdade! Daí o seu olhar abrangera toda essa grande festa de cidadãos; de lá o seu coração mergulhara também em todo esse oceano de fraternidade e saíra dele, como Aquiles, invulnerável em toda a parte, excepto num só lugar; foi nesse lugar, que a feriu o amor; porém ao menos não sucumbiu a esse ferimento.

      Na noite daquele grande dia, toda entusiasmada pelo que vira, sentindo-se poetisa e historiadora, fizera a descrição da festa, descrição que enviara ao seu amigo Champagneux, redactor principal do Jornal de Lião. O mancebo, admirado, fascinado com o fogo da narrativa, publicara-a no seu jornal, e no dia seguinte a tiragem do jornal, que diariamente era de mil e duzentos a mil e quinhentos exemplares, subiu a sessenta mil.

      Expliquemos em duas palavras como aquela imaginação de poetisa, e aquele coração de mulher tomaram tanto ardor na política. É porque Joanna Philippon, tratada pelo pai como operária gravadora; a esposa de Roland, tratada pelo marido como um secretário, não se ocupando, tanto na casa paterna como na conjugal, senão das coisas austeras da vida; a Srª. Roland, cujas mãos nunca tinham tocado num livro frívolo, considerava como grande distracção e como supremo passatempo a leitura da Acta de 89 ou a Narração da tomada da Bastilha.

      Quanto a Roland, era um exemplo de quantas mudanças a Providência, o acaso ou a fatalidade podem, por um facto sem importância ocasionar na vida de um homem, ou na existência de um império.

      Era o único dos cinco irmãos; tinham querido fazê-lo padre, porém ele quis conservar-se homem. Aos dezenove anos deixou a casa paterna, e só, a pé e sem dinheiro, atravessou a França, chegou a Nantes, empregou-se em casa de um armador de navios e obteve ser mandado para as índias; no momento de partir, na mesma hora em que se aparelhava o navio, sobreveio-lhe um ataque de sangue pela boca, tão considerável, que o médico proibiu-lhe a viagem por mar.

      Se Cromwell tivesse partido para a América, em lugar de ficar em Inglaterra, detido por uma ordem de Carlos I, talvez que o cadafalso de White-Hall se não tivesse levantado! Se Roland partisse para as índias, talvez se não tivesse dado o 10 de Agosto.

      Roland, não podendo servir o armador, em cuja casa entrara, deixou Nantes e encaminhou-se para Ruão; aí, um parente, a quem se dirigiu, conheceu o merecimento do mancebo, e alcançou-lhe o lugar de inspector das manufacturas.

      Desde então, a vida de Roland tornou-se uma vida de estudo e de trabalho; a economia foi a sua musa, o comércio o seu deus inspirador; viajou, observou, colheu, escreveu! Escreveu memórias sobre a criação dos rebanhos, teorias sobre as artes mecânicas, as Cartas de Sicília, de Itália, de Malta, o Financeiro francês e outras obras, que já citamos, e que mandou copiar por sua mulher, com quem casara, como já dissemos em 1780. Quatro anos depois fez com ela uma viagem a Inglaterra. À volta, mandou-a a Paris solicitar cartas de nobreza e pedir a inspecção de Lião em lugar da de Ruão: a inspecção de Lião alcançou-a ela; mas não assim as cartas de nobreza.

      Eis Roland em Lião, e, mau grado seu, no partido popular, para o qual, aliás o impeliam os seus instintos e as suas convicções. Exercia portanto as funções de inspector do comércio e das manufacturas da generalidade de Lião, quando a revolução rebentou, e àquela aurora nova e regeneradora, tanto ele como sua mulher sentiram germinar no coração essa bela planta de folhas de ouro e flores de diamantes, que se chama o entusiasmo.

      Vimos como a Srª. Roland escreveu a descrição dos acontecimentos de 30 de Maio, como o jornal que a publicou tirou sessenta mil exemplares, e como cada guarda nacional que voltava para a sua aldeia, para a sua vila, ou para a sua cidade, levava consigo uma porção da alma da Srª. Roland.

      Mas como nem o jornal, nem o artigo eram assinados, cada qual pôde pensar que fora a própria liberdade, que, descendo à terra, ditara a algum desconhecido neófito aquela narração da sua festa, do mesmo modo que um anjo ditara o Evangelho a S. João.

      Os dois esposos estavam cheios de fé, de crenças e de esperanças, no meio de um pequeno círculo de amigos, Champagneux, Bosc, Lanthenas, e talvez mais dois ou três, quando inesperadamente o círculo aumentou com mais um novo amigo.

      Lanthenas, que vivia familiarmente em casa de Roland, onde passava dias, semanas e meses inteiros, levou-lhe uma noite um desses eleitores, de quem a Srª. Roland tanto admirara a acta.

      O novo apresentado chamava-se Bancal des Issarts.

      Era homem de trinta e nove anos, belo, simples, grave, terno e religioso; nada tinha de brilhante, mas possuía um bom coração e uma alma caridosa.

      Fora tabelião, e deixara o emprego para se entregar inteiramente à política e à filosofia.

      No fim de oito dias, depois que o novo hóspede tinha sido admitido em casa, Lanthenas, Roland e ele entendiam-se tão perfeitamente, este grupo formava uma trindade tão harmoniosa na sua grande dedicação à pátria, no seu respeito por todas as coisas santas, que os três homens resolveram nunca mais se separar, e viver juntos, tornando comuns os gastos.

      Foi principalmente quando Bancal os abandonou momentaneamente, que a necessidade de união se fez sentir.

     

      “Venha, meu amigo - lhe escrevia Roland – porque se demora? Viu a nossa maneira franca e clara de viver e de proceder; não é na minha idade que se muda, quando nunca se tem variado. Pregamos o patriotismo; elevamos a alma. Lanthenas exerce a sua profissão de doutor; minha mulher é enfermeira do cantão; o senhor e eu trataremos dos negócios da sociedade.”

     

      A reunião daquelas três mediocridades áureas fazia efectivamente uma coisa, que se parecia com uma fortuna. Lanthenas possuía umas vinte mil libras; Roland sessenta mil e Bancal cem mil.

      Enquanto esperava, Roland cumpria a sua missão, missão de apóstolo, e catequizava, nas visitas de inspector, os camponeses do país. Excelente caminheiro, com o bordão na mão, este peregrino da humanidade ia do norte ao meio-dia, de leste a oeste, semeando pelo caminho, à direita e à esquerda, adiante e atrás de si, a nova palavra, o grão fecundo da liberdade. Bancal, simples, eloqüente, apaixonado, sob uma aparência fria, era para Roland um auxiliar, um discípulo, um outro Roland; nem sequer passava pela idéia do futuro colega de Clavière e de Dumouriez, que Bancal pudesse amar-lhe a mulher nem ela corresponder-lhe. Não havia cinco ou seis anos, que Lanthenas, ainda moço, estava junto da mulher casta, laboriosa, sombria e pura, como um irmão junto de sua irmã? Não era a Srª. Roland, a sua Joanna, a estátua da força e da virtude?

      Por isso Roland ficou contentíssimo, quando, ao bilhete que acabamos de citar, Bancal respondeu por uma carta afectuosa e de terna adesão. Roland recebeu essa carta em Lião, e enviou-a imediatamente para Plâtrière, onde estava sua mulher.

      Oh! Não me leiam a mim, leiam Michelet, se querem, por uma simples análise, conhecer simplesmente a admirável criatura, que se chama a Srª. Roland.

      Recebeu a carta num desses dias quentes, em que a electricidade corre na atmosfera, em que se animam os corações mais frios, em que o próprio mármore deseja e estremece. Estava-se já no Outono, e contudo uma grande tempestade de Verão bramia no Céu.

      Desde o dia em que ela vira Bancal, uma coisa desconhecida acordara no coração da casta mulher; abrira-se-lhe, e como do cálix de uma flor, saíra dele um perfume, e um canto suave, como o da ave no interior dos bosques, lhe murmurara aos ouvidos. Dir-se-ia que a Primavera se estabelecia pela sua imaginação, e que, no campo desconhecido, que ela entrevia por detrás do nevoeiro que ainda o obstruía, a mão desse poderoso maquinista, que se chama Deus, preparava uma nova decoração cheia de bosques odoríferos, frescas cascatas, tabuleiros de relva cheios de sombra, pontos de vista admiráveis e cheios de Sol.

      Ela não conhecia o amor, mas, como todas as mulheres, adivinhava-o; conheceu o perigo, e com as lágrimas nos olhos, porém sorrindo, foi direita a uma mesa, e sem hesitação, sem rodeios, escrevera a Bancal mostrando, pobre Clorinda ferida, o lado fraco da sua armadura, fazendo a confissão, e com o mesmo golpe matando a esperança, que essa confissão podia fazer nascer.

      Bancal compreendeu tudo imediatamente: nunca mais falou na junção, passou a Inglaterra e aí se demorou dois anos.

      Eram corações de antiga têmpera! Por isso julguei que os meus leitores estimariam, depois de todas as paixões, que acabam de atravessar, descansar um instante à sombra fresca e pura da beleza, da força e da virtude.

      Não se diga que fazemos a Srª. Roland diferente do que ela é: casta na oficina de seu pai, casta junto ao leito de seu velho esposo e casta junto ao berço de seu filho, na hora em que se não mente, escrevia ela defronte da guilhotina:

     

      “Sempre dominei os meus sentidos, e ninguém menos do que eu conheceu a voluptuosidade”.

     

      E não atribuam à frieza da mulher o mérito da sua honestidade; não, a época a que chegamos, é uma época de rixas, bem o sei, mas também é uma época de amor; a França dava o exemplo. Pobre cativa, muito tempo prisioneira, muito tempo em ferros, quebravam-lhe as cadeias, restituíam-lhe a liberdade. Como Maria Stuart, ao sair da prisão, quereria depor um beijo nos lábios da criação, reunir toda a natureza nos seus braços, fecundá-la com a respiração, para que dela brotasse a liberdade do país e a independência do mundo.

      Não, todas aquelas mulheres amavam santamente, e todos aqueles homens amavam com ardor: Lucília e Camilo Desmoulins, Danton e a sua Luísa, a de Keralio e Roberto, Sofia e Condorcet, Vergniaud e a Condeille; nem sequer o frio e cortante Robespierre, frio e cortante como o ferro da guilhotina, deixou de sentir dilatar-se-lhe o coração nesse grande foco de amor: amou a filha do seu hospedeiro, a filha do marceneiro Duplay, com quem vamos vê-lo travar conhecimento.

      E não seria isso ainda amor, amor menos puro, bem sei - que importa, se o amor é a grande virtude dos corações! - do que o da Srª. Tallien, do que o da Srª. de Beauharnais, do que o da Srª. de Genlis, do que todos esses amores, cujo sopro consolador bafeja até sobre o cadafalso o rosto pálido dos moribundos?

      Sim, todos amavam naquela bem-aventurada época, e tomem aqui a palavra amor em todos os sentidos: uns amavam o espírito, outros a matéria; estes a pátria, aqueles o género humano. Desde Rousseau, que a necessidade de amar fora sempre em aumento; dir-se-ia que era necessário darem-se pressa em surpreender todo o amor na sua passagem: dir-se-ia que, na aproximação do sepulcro, do abismo, do despenhadeiro, todos os corações palpitavam como um sopro desconhecido, apaixonado, devorador; dir-se-ia, finalmente que todos os peitos sorviam a respiração no foco universal, e que esse foco eram todos esses amores reunidos num só.

      Afastámo-nos um pouco daquele velho e daquela rapariga, que escrevem no terceiro andar da hospedaria Britânica. Voltemos a ele.

 

Os primeiros republicanos

      A 20 de Fevereiro de 1791, Roland fora enviado de Lião a Paris como deputado extraordinário: a sua missão era advogar a causa de vinte mil trabalhadores sem pão.

      Havia cinco meses que estava em Paris, quando se verificou o terrível acontecimento de Varennes, que teve tamanha influência no destino dos nossos heróis e na sorte da França, que julgamos dever-lhe consagrar quase dois volumes.

      Ora, desde o regresso do rei, a 25 de Junho, até ao dia 16 de Julho, tinham-se passado muitas coisas.

      Todos tinham gritado: “O rei foge!” todos tinham corrido atrás do rei; todos o tinham trazido para Paris, e uma vez chegado a Paris e instalado nas Tulherias, ninguém sabia já o que se havia de fazer dele.

      Todos emitem a sua opinião; os conselhos vêm de todos os lados, e surgiam como vento durante a tempestade; mal do navio que estiver no mar com semelhante tempestade!

      A 21 de Junho, dia da fuga do rei, os Franciscanos tinham feito o seu edital, assinado por Legendre, o cortador francês, que a rainha indicava como equivalente ao cortador inglês Harrison.

      O edital tinha estes versos por epígrafe:

     

       Se entre os franceses houver um, traidor

       que lamente os reis, que deseje um senhor,

       que o pérfido morra no meio de tormentos,

       e sejam as suas cinzas lançadas aos ventos!

     

      Os versos eram de Voltaire. Eram maus e rimavam mal, tinham porém o mérito de exprimir francamente o pensamento dos patriotas, cujo edital todos decoravam.

      O edital declarava que todos os Franciscanos tinham jurado apunhalar os tiranos, que ousassem atacar o território, a liberdade e a constituição.

      Quanto a Marat, que andava sempre só, dando por pretexto que a águia vive solitária, e os perus vivem arrebanhados, propôs um ditador.

     

      “Tomem - diz ele no seu jornal - tomem um bom francês, um bom patriota; tomem o cidadão, que, desde o princípio da revolução tenha mostrado mais inteligência, mais zelo, mais fidelidade e mais interesse; tomem-no sem demora, ou a causa da revolução está perdida!”

     

      O que queria dizer: “Tomem Marat.”

      Quanto a Prudhomme, não propôs nem nome, nem governo novo; porém abominava o antigo na pessoa do rei e dos seus descendentes. Oiçamo-lo:

     

      “Na segunda-feira - diz ele - fizeram tomar o ar ao delfim na varanda das Tulherias, que dá para o rio. Quando avistavam um grupo assaz considerável de cidadãos, um granadeiro pegava no menino e assentava-o no parapeito da varanda. A criança, fiel à sua lição da manhã, enviava, beijos ao povo; era pedir indulgência para o papá e para a mamã. Alguns espectadores tiveram a franqueza de gritar: ‘Viva o delfim!’”

      “Cidadãos! Acautelem-se contra as carícias de uma corte, que rasteja aos pés do povo, quando não é mais forte!”

     

      E após estas linhas, vinham estoutras:

     

      “Foi no dia 27 de Janeiro de 1649 que o parlamento de Inglaterra condenou Carlos I a ser decapitado por ter querido aumentar as prerrogativas reais e firmar-se nas usurpações de Jacques I, seu pai; foi a 30 do mesmo mês que ele expiou os seus crimes, quase legitimados pelo uso e fortalecidos por um numeroso partido; porém a voz do povo fez-se ouvir: o parlamento declarou o rei ‘fugitivo, traidor, inimigo público’ e Carlos Stuart foi decapitado defronte da sala dos banquetes do palácio de White-Hall.”

     

      Bravo! Cidadão Prudhomme! Ao menos não estais atrasado, e no dia 21 de Janeiro de 1793, quando pela sua vez Luís XVI for decapitado, tereis o direito de reclamar a iniciativa, visto que propusestes o exemplo a 27 de Junho de 1791.

      É verdade que Prudhomme, não o confundamos com o do nosso espirituoso amigo Monnier; aquele é estúpido, mas é homem de bem; é verdade que Prudhomme, há-de com o tempo tornar-se realista e reaccionário, e publicará a História dos crimes cometidos durante a revolução.

      Que excelente coisa é a consciência!

      A Boca de ferro é mais franca; nada de hipocrisia, nada de palavras de duplo sentido, nada de sentido aleivoso. É Bonneville, o leal, o atrevido, o jovem Bonneville, um louco admirável, que divaga nas circunstâncias insignificantes, mas que nunca se engana nas de importância, que o redige. Está aberta a Boca de ferro na rua da Antiga-Comédia, perto de Odéon, a dois passos do clube dos Franciscanos.

     

      “Risquem do catálogo - diz ele - a palavra infame de rei. Não mais reis! Não mais antropófagos! Mudaram muitas vezes de nome até hoje e guardaram sempre o emprego. Nada de regente! Nada de ditador! Nada de protector! Nada de Orleans! Nada de Lafayette! Não gosto desse filho de Filipe de Orleans, que escolhe exactamente dia certo para entrar de guarda às Tulherias, nem do pai, que nunca se vê na Assembléia Nacional, e sempre se vê na varanda à porta dos Bernardos. Acaso uma nação necessita estar sempre debaixo de tutela? Que os nossos departamentos se reúnam e declarem que não querem tirano, nem monarca, nem protector, nem regente, nem nenhuma dessas sombras de reis, sombras tão funestas à causa pública, como a sombra dessa árvore maldita, o bohom-upas, que é mortal.”

      “Porém, não basta só dizer: ‘República!’ Veneza também foi república. É necessário uma sociedade e um governo nacionais: juntai o povo à face do Sol; proclamai que só a lei deve ser soberana; jurai que só ela reinará. Não haverá um único amigo da liberdade que deixe de repetir o juramento!”

     

      Quanto a Camilo Desmoulins, esse subira a uma cadeira no Palais-Royal, isto é, no teatro ordinário das suas façanhas oratórias, e dissera:

     

      “Senhores, seria deplorável que aquele homem perdido nos fosse restituído. Que faríamos dele? Viria, como Thersyte, chorar-nos as engorduradas lágrimas de que fala Homero. Se no-lo restituem, proponho que seja exposto três dias à irrisão pública, com o lenço vermelho na cabeça, e que o conduzam depois a pequenas jornadas até à fronteira”.

     

      De todas as propostas, devemos confessá-lo a da criança terrível que se chama Camilo Desmoulins, não era a mais louca.

      Ainda uma palavra, e ficará perfeitamente manifestado o sentimento geral. É Dumont quem a solta, um genovês pensionista de Inglaterra, e por conseqüência não suspeito de parcialidade de França.

     

      “O povo parecia inspirado por suprema sabedoria. Eis um grande embaraço desfeito - dizia alegremente; - se o rei nos deixou, a nação fica: pode haver nação sem rei, mas não rei sem nação”.

     

      Vê-se que no meio de tudo isto, a palavra república só foi pronunciada por Bonneville. Nem Brissot, nem Danton nem Robespierre nem o próprio Pétion, ousam erguer esse brado, que atemoriza os Franciscanos e indigna os Jacobinos.

      A 13 de Julho, Robespierre exclamou na tribuna: “Eu não sou nem republicano, nem monárquico!”

      Como se vê, se tivessem apertado com Robespierre, ficaria embaraçadíssimo para dizer o que era.

      Pois bem, quase todos estavam assim, excepto Bonneville, e essa mulher, que, defronte do marido, copia um protesto no terceiro andar da rua Guénégaud.

      No dia 22 de Junho, dia seguinte ao da partida do rei, escrevia ela:

     

      “O espírito da república, a indignação contra Luís XVI, o ódio aos reis, demonstram-se por toda a parte”.

     

      O espírito, bem o vedes, o espírito da república existe nos corações, porém o nome da república está apenas nalgumas bocas.

      A Assembléia, principalmente, é uma inimiga declarada dela.

      A grande desgraça das assembléias é pararem sempre no momento em que têm sido esclarecidas, desprezarem os acontecimentos, não caminharem com o espírito do país, não seguirem o povo para onde ele vai e pretenderem continuar a representar o povo.

      A Assembléia dizia:

     

      “OS COSTUMES DA FRANÇA NÃO SÃO REPUBLICANOS!”

     

      A Assembléia lutava com o Sr. de la Pallisse, e a nosso ver tinha vantagem sobre o ilustre pregador de verdades. Quem havia de ter formado os costumes da França para a república? Seria a monarquia! Não, decerto; a monarquia que era tão estúpida: a monarquia necessita obediência, servilismo, corrupção, e forma os costumes para o que necessita. É a república que forma os costumes republicanos; tenham primeiro a república, e os costumes republicanos virão depois.

      Houvera contudo um momento em que a proclamação da república teria sido fácil: fora o momento em que souberam que o rei tinha partido levando o delfim. Em vez de correr atrás deles e reconduzi-los, deviam ter-lhes dado os melhores cavalos de posta, vigorosos postilhões de chicote na mão e esporas nas botas; convinha empurrar os cortesãos atrás deles, os padres atrás dos cortesãos e fechar a porta atrás de tudo isso.

      Lafayette, que algumas vezes tinha lampejos de lucidez, raras vezes idéias, teve um desses lampejos.

      Às seis horas da manhã foram dizer-lhe que o rei, a rainha e a família real tinham partido; custou muito a conseguir que se levantasse; dormia com o sono histórico que já lhe tinham censurado em Versalhes.

      - Partiram? - disse ele - é impossível! Deixei-lhes o Gouvion, dormindo à porta da câmara!

      Entretanto levantou-se, vestiu-se e desceu. À porta encontrou Bailly, o maire de Paris. Beauharnais, o presidente da assembléia; Bailly com o nariz mais comprido e a cara mais amarela do que nunca; Beauharnais consternado!

      Coisa curiosa. O marido de Josefina, que ao morrer no cadafalso, deixou a viúva no caminho do trono, está consternado pela fuga de Luís XVI!

      - Que desgraça! - exclamou Bailly - não estar a Assembléia ainda reunida!

      - Oh! Sim - disse Beauharnais - é uma grande desgraça!

      - Então - disse Lafayette - é verdade que se foram?...

      - Infelizmente! - responderam em coro os dois homens de estado.

      - Infelizmente, por quê? - perguntou Lafayette.

      - Pois não percebe? - exclamou Bailly – Porque hão-de voltar com os prussianos, os austríacos e os emigrados; porque nos vão trazer a guerra civil e a guerra estrangeira!

      - Então - disse Lafayette um pouco convencido - acham que a salvação pública exija o regresso do rei?

      - Achamos, sim - disseram de um só grito Bailly e Beauharnais.

      - Nesse caso - disse Lafayette - corramos atrás dele!

      E escreveu este bilhete:

     

      “Tendo os inimigos da pátria raptado o rei, ordena-se aos guardas nacionais que os prendam”.

     

      Com efeito, note-se bem isto, toda a política do ano de 1791, todo o final da Assembléia Nacional assentou neste ponto.

      Visto que o rei é necessário à França, visto que o devem apanhar e reconduzir deve ter sido raptado e não ter fugido.

      Nada disso convencera Lafayette. Por isso, despedindo Romeuf, recomendara-lhe que não se apressasse muito. O jovem oficial tomou a estrada oposta à que Luís XVI seguia, para ter a certeza de não o encontrar.

      Infelizmente na estrada estava Billot.

      Quando a Assembléia soube a notícia, o terror foi grande. Na verdade, o rei tinha ao partir deixado uma carta ameaçadora; dera a entender perfeitamente que ia buscar o inimigo e que voltaria para chamar os franceses à boa razão.

      Os realistas, pela sua parte, erguiam a cabeça e baixavam a voz. Um deles, Suleau, creio eu, escrevia:

     

      “Todos os que quiserem ser compreendidos na amnistia que oferecemos aos nossos inimigos, em nome do príncipe de Condé, poderão inscrever-se nos nossos escritórios até ao mês de Agosto. Teremos quinhentos registros para comodidade do público”.

     

      Um dos que tiveram maior medo foi Robespierre. Tendo a sessão sido interrompida das três às cinco horas, correu a casa de Pétion; o fraco procurava o forte.

      Segundo ele, Lafayette era cúmplice da corte; tratava-se nada menos de um São Bartolomeu de deputados.

      - Serei um dos primeiros assassinados! - exclamava ele lamentoso - não devo durar vinte e quatro horas!

      Pétion, pelo contrário, de carácter sossegado e temperamento linfático, via as coisas doutra maneira.

      - Bom! - disse ele - agora conhece-se o rei, procederemos consoante.

      Chegou Brissot. Era um dos homens mais conceituados da época; escrevia no Patriota.

      - Vai publicar-se um novo jornal, do qual hei-de ser redactor - disse ele.

      - Como se intitula? - perguntou Pétion.

      - O Republicano.

      Robespierre, querendo sorrir fez uma careta.

      - O Republicano? - disse ele; - desejava que me explicassem o que é a república?

      Estavam nisto quando chegaram a casa de Pétion os Rolands; o marido, austero e resoluto, como sempre; a mulher tranqüila, mais risonha do que atemorizada, com os seus belos olhos límpidos e expressivos. Vinham de sua casa, da rua Guénégaud; tinham lido o edital dos Franciscanos e achavam como eles que não era necessário rei a uma nação.

      A coragem dos esposos incute ânimo a Robespierre; entra na Assembléia como observador, pronto a lançar mão de tudo, do canto em que está, como a raposa emboscada à boca da toca. Pelas nove horas da noite, vê que a Assembléia decai para o sentimentalismo, que se prega a fraternidade, e que para juntar o exemplo à teoria, se preparam para ir em massa aos Jacobinos, com quem estão muito de mal, e a quem chamam um bando de assassinos.

      Então Robespierre levanta-se, chega até à porta, sai sem ser visto, corre aos Jacobinos, sobe à tribuna, denuncia o rei, denuncia o ministro, denuncia Bailly, denuncia Lafayette, denuncia finalmente toda a Assembléia, repete a fábula da manhã, desenvolve um São Bartolomeu imaginário e acaba por oferecer a sua existência em holocausto sobre o altar da pátria.

      Quando Robespierre falava de si, atingia uma certa eloqüência. À idéia de que o virtuoso e austero Robespierre corria tão grande perigo, suspiraram.

      - Se morreres, morreremos todos contigo! – gritou alguém.

      - Sim, todos! Todos! - bradaram em uníssono os espectadores.

      E uns estenderam a mão para jurar, outros puxaram da espada e outros caíram de joelhos, com as mãos erguidas ao Céu.

      Naquele tempo levantavam-se muito as mãos ao Céu; era até o gesto da época: para o afirmarmos, basta dizer aos nossos leitores que vejam o Juramento do jogo da péla, de David.

      A Srª. Roland estava ali, sem compreender bem que perigo podia Robespierre correr; mas enfim, era mulher e por conseqüência acessível à comoção, a comoção era grande; comoveu-se e ela mesmo o confessa.

      Neste momento entrou Danton. Popularidade nascente, competia-lhe atacar a popularidade que fraquejava do general Lafayette.

      Por que motivo semelhante raiva de todos para com Lafayette?

      Talvez por ser ele homem de bem, e sempre enganado pelos partidos, quando os partidos recorriam à sua generosidade.

      Por isso, no momento em que o anunciam à Assembléia, onde, para dar o exemplo da fraternidade, Lameth e Lafayette, dois inimigos mortais, entram de braço dado, de todos os lados soou este grito:

      - Danton! À tribuna!... À tribuna, Danton!...

      Era o que Robespierre mais desejava, ceder o lugar; Robespierre, já o dissemos, era uma raposa e não um dogue: perseguia o inimigo ausente, saltava sobre ele por detrás, ferrava-se-lhe nos ombros, roía-lhe o crânio até aos miolos, porém raras vezes atacava de frente.

      A tribuna estava pois vaga, esperando Danton.

      Porém era bastante difícil a Danton subir a ela desassombradamente.

      Se era o único homem que devia atacar Lafayette, era este talvez o único que Danton não pudesse atacar.

      Por quê?

      Vamos dizê-lo. Danton tinha muito de Mirabeau, como em Mirabeau havia muito de Danton: o mesmo temperamento, a mesma necessidade de prazeres e de dinheiro, e por conseqüência a mesma facilidade de corrupção.

      Assegurava-se que do mesmo modo que Mirabeau, Danton recebera dinheiro da corte. Onde? Por que via? Quanto? Ignorava-se; porém tinha-o recebido; havia a certeza disso, ou pelo menos diziam-no.

      Eis o que havia de real em tudo isto.

      Danton acabava de restituir ao ministério o seu cargo de advogado no conselho do rei, e dizia-se que tinha recebido do ministério o quádruplo do preço do seu emprego.

      Era verdade.

      Porém o segredo estava entre três pessoas: o vendedor, Danton; o comprador, o Sr. de Montmorin; e o medianeiro, o Sr. de Lafayette.

      Se Danton acusasse Lafayette, este podia lançar-lhe em rosto a história do ofício vendido pelo quádruplo do valor.

      Outro qualquer recuaria.

      Danton pelo contrário avançou. Conhecia Lafayette, aquela magnanimidade de coração, que degenerava algumas vezes em necessidade; lembremo-nos de 1830.

      Danton disse consigo, que o Sr. de Montmorin, era amigo de Lafayette, e que o Sr. de Montmorin, que assinara os passaportes, estava muito comprometido naquele momento para que Lafayette lhe pusesse ao pescoço aquela pedra.

      Subiu à tribuna.

      O seu discurso foi breve.

      - Sr. presidente - disse ele - acuso Lafayette. O traidor vai aparecer. Levantem-se dois cadafalsos, e consinto subir a um, se ele não merecer subir ao outro!

      O traidor não ia aparecer, aparecia, e pôde ouvir a acusação terrível que saía da boca de Danton; mas como este o previra, teve a generosidade de não lhe responder coisa alguma.

      Lameth encarregou-se desse cuidado, espalhou sobre as chamas de Danton a água tépida de uma das suas pastorais ordinárias: pregou a fraternidade.

      Depois veio Sieyès, que também pregou calorosamente a fraternidade.

      Depois Barnave, que tornou a falar sobre o mesmo assunto.

      Aquelas três popularidades acabaram por tomar vantagem sobre a de Danton. Levaram a bem a Danton ter atacado Lafayette, mas também estimaram que Lameth, Sieyès e Barnave o defendessem, e quando Lafayette e Danton saíram dos Jacobinos, foi a Lafayette que acompanharam com archotes e com aclamações.

      O partido da corte acabava de ganhar uma grande vitória nessa ovação a Lafayette.

      As duas grandes potências do dia foram batidas nas pessoas dos seus chefes.

      Os Jacobinos em Robespierre.

      Os Franciscanos em Danton.

      Bem vejo que ainda é necessário deixar para o outro capitulo dizer qual era esse protesto, que a Srª. Roland copiava, defronte de seu marido, na pequena sala do terceiro andar da hospedaria Britânica.

 

A sobreloja das Tulherias

      Vamos saber o que continha o protesto que a Srª. Roland copiava, mas, para que o leitor esteja perfeitamente ao facto da situação e veja claramente um dos mais sombrios mistérios da revolução é preciso primeiro que passe connosco pelas Tulherias, durante a noite de 15 de Junho.

      Atrás da porta de um quarto, que dava para o corredor escuro e deserto, situado na sobreloja do palácio, estava uma mulher em pé, com o ouvido atento, com a mão na chave, estremecendo ao menor ruído, que acordasse um eco nos corredores.

      A mulher, se ignorássemos quem era, ser-nos-ia difícil conhecê-la, porque, além da escuridão, que mesmo em alto dia reina naquele corredor, era noite, e fosse acaso, ou fosse premeditação, a torcida do único candeeiro que ali ardia estava gasta e quase a apagar-se.

      Além disso, só a segunda câmara do aposento estava alumiada, e era contra a porta da primeira que essa mulher esperava, estremecendo, e escutando.

      Quem era a mulher que esperava? - Maria Antonieta.

      Quem esperava? - Barnave.

      Ó soberba filha de Maria Teresa! Quem vos diria, no dia em que vos sagraram rainha de França, que haveria um momento em que, escondida atrás da porta do quarto da vossa aia, esperaríeis, estremecendo de temor e esperança, um simples advogado de Grenoble, vós que tanto fizestes esperar Mirabeau, e que vos dignastes recebê-lo uma única vez!

      Mas não se enganem, era com um interesse puramente político que a rainha esperava Barnave; naquela respiração suspensa, naqueles movimentos nervosos, naquela mão, que tremia pegando na chave, o coração não tinha parte, só o orgulho era interessado.

      Dizemos o orgulho, porque, apesar das mil perseguições que o rei e a rainha sofreram desde o seu regresso, é evidente que a vida estava salva, e que toda a questão se resumia nestas palavras: “Os fugitivos de Varennes perderam o resto do seu poder, ou recuperaram o poder perdido?”

      Desde aquela noite fatal, em que Charny deixou as Tulherias para ali nunca mais entrar, o coração da rainha cessou de bater. Durante alguns dias ficou indiferente a tudo, mesmo aos ultrajes; mas a pouco e pouco conheceu que havia dois pontos da sua poderosa organização, pelos quais ela vivia; o orgulho e o ódio, e voltou a si para aborrecer e para se vingar.

      Não vingar-se de Charny, não aborrecer Andréia, não; quando pensava neles era a si mesma que aborrecia, era de si mesma que queria vingar-se, porque era muito leal para não atribuir a si todas as faltas e a eles toda a dedicação.

      Oh! Se ela pudesse aborrecê-los, seria bem feliz!

      Porém, o que ela odiava especialmente era aquele povo, que pusera a mão sobre ela, como sobre uma fugitiva ordinária, que a enchera de desgostos, perseguira com injúrias e cobrira de insultos.

      Sim, ela odiava muito o povo que lhe chamara a Srª. Défice, que lhe chamara a Srª. Veto, que lhe chamava a Austríaca, e que lhe devia ainda chamar a viúva Capeto.

      E se pudesse vingar-se, oh! como ela o há-de fazer!

      Ora o que Barnave lhe ia dizer no dia 15 de Julho de 1791, às nove horas da noite, enquanto a Srª. Roland copiava defronte do marido, naquela pequena sala da hospedaria britânica, o protesto cujo conteúdo ainda ignoramos, era talvez a impossibilidade e o desespero, mas também porventura seria o manjar divino a que vulgarmente se chama vingança.

      Efectivamente a situação era suprema.

      Sem dúvida que graças a Lafayette e à Assembléia Nacional, o primeiro golpe fora aparado com o escudo constitucional: o rei tinha sido raptado, não tinha fugido.

      Porém devem lembrar-se do edital dos Franciscanos, devem lembrar-se da proposta de Marat, da diatribe do cidadão Prudhomme, da saída de Bonneville, da proposta de Camilo Desmoulins, do axioma do general genovês Dumont, e finalmente, devem lembrar-se que se vai imprimir um novo jornal, que escreverá Brissot, e se intitula o Republicano.

      Querem saber o prospecto desse jornal? É curto, mas explícito; foi o americano Thomaz Payne quem o redigiu; depois foi traduzido por um jovem oficial, que fez a guerra da independência, e publicado com a assinatura de Duchâtelet.

      Que extraordinária fatalidade, que das quatro partes do mundo chama novos inimigos a este trono que abate! Thomaz Payne! Que vem aqui fazer Thomaz Payne, esse homem que é de todos os países, inglês, americano e francês; que tem exercido todas as profissões; que foi fabricante, mestre-escola, guarda da alfândega, marinheiro e jornalista? O que vem fazer? Vem misturar o seu fôlego a esse vento tempestuoso que sopra implacável à luz que vai extinguir-se.

      Eis o prospecto do Republicano de 1791, desse jornal que ia aparecer, ou que aparecia quando Robespierre perguntava o que era república.

     

      “Acabaríamos de ver que a ausência de um rei nos é mais conveniente que a sua presença. Ele desertou, por conseqüência abdicou. A nação nunca restituirá a sua confiança ao perjuro, ao fugitivo! A fuga é obra sua ou de outrem? Que importa! Velhaco ou idiota, é sempre indigno. Estamos livres dele e ele de nós; é um simples indivíduo, o Sr. Luís de Bourbon! Quanto à sua segurança está certa: a França não se desonrará; a realeza está acabada! O que é um cargo abandonado ao acaso do nascimento, que pode ser preenchido por um idiota? Não é nada, é uma coisa negativa!”

     

      É fácil compreender o efeito produzido por semelhante impresso, pregado nas esquinas de Paris. O constitucional Malouet ficou espantado, entrou esbaforido e fora de si na Assembléia Nacional, denunciando o prospecto e pedindo que se lhe prendessem os autores.

      - Pois sim - disse Pétion - mas leiamos primeiro o prospecto.

      Esse prospecto conhecia-o certamente Pétion, um dos raros republicanos que havia em França naquele tempo. Malouet, que o denunciara, recuou diante da leitura. Se as tribunas aplaudissem! - e era certo que o aplaudiriam.

      Dois membros da Assembléia, Chabroud e Chapellier, repararam o erro do seu colega.

      - A imprensa é livre - disseram todos; - sábios ou estúpidos, têm direito de emitir a sua opinião. Desprezemos a obra de um insensato e passemos à ordem do dia.

      E a Assembléia passou à ordem do dia.

      Pois bem, não falemos mais nisso.

      Porém é a hidra que ameaça a monarquia!

      Se uma cabeça cortada estrebucha, outra morde!

      Não esqueceram o conde de Provença, nem a conspiração Favras: logo que o rei se retirasse, o conde de Provença seria nomeado regente.

      Não se tratava já do conde de Provença. Esse fugiu ao mesmo tempo que o rei, e mais feliz do que ele, conseguiu alcançar a fronteira.

      Porém ficou o duque de Orleans.

      Ficou com a sua alma danada, o homem que o impelia para a frente: Laclos, o autor das Ligações perigosas.

      Existia um decreto a respeito das regências, porque não se aproveitaria?

      A 28 de Junho, um jornal ofereceu a regência do duque de Orleans. Luís XVI, como vêem, já não existe, suposto que ainda tenha por si a Assembléia Nacional: uma vez que oferecem a regência ao duque de Orleans, é que já não há rei.

      É escusado dizer, que o duque de Orleans mostrou admirar-se e recusou.

      Porém no 1.º de Julho, Laclos, com a sua autoridade particular, proclama abdicação e quer um regente; a 3, Real estabelece que o duque de Orleans é verdadeiramente guarda do jovem príncipe; a 4 pede na tribuna dos Jacobinos que se reimprima e proclame o decreto sobre a regência.

      Infelizmente, os Jacobinos, que ainda ignoram o que são, sabem ao menos o que não são; não são orleanistas, suposto que o duque de Orleans e o de Chartres fizessem parte da sua associação.

      A regência do duque de Orleans foi rejeitada nos Jacobinos, porém bastou a noite para Laclos recobrar alento; ele não era senhor dos Jacobinos, era contudo senhor do seu jornal, e ali proclamou a regência do duque de Orleans, e como a palavra de protector fora profanada por Cromwell, o regente, que terá todo o poder, se chamará moderador.

      E tudo isto, como vêem, foi uma campanha contra a realeza, campanha em que a realeza, impotente por si mesma, só teve por aliada a Assembléia Nacional; ora, havia os Jacobinos, que era uma assembléia muito mais influente, e principalmente muito mais temível do que a Assembléia Nacional!

      A 8 de Julho (vede como nos aproximamos) Pétion apresentou ali a questão da inviolabilidade real.

      Porém separou a inviolabilidade política da pessoal.

      Objectaram-lhe que se vão indispor com os reis, se depuserem Luís XVI.

      - Se os reis quiserem combater-nos – respondeu Pétion, depondo Luís XVI - tiramos-lhes o seu mais poderoso aliado, ao passo que deixando-o no trono, damos-lhe toda a força que lhe tivermos restituído.

      Brissot sobe também à tribuna e vai mais longe. Põe esta questão: “Pode o rei ser julgado?”

      - Mais tarde - disse ele - discutiremos, em caso de disposição, qual há-de ser o governo que substitua a realeza.

      Parece que Brissot foi superior.

      A Srª. Roland assistia a esta sessão.

      Vejam o que ela diz do orador:

     

      “Não foram aplausos, foram gritos, transportes: três vezes a Assembléia, arrebatada, se levantou, com os braços estendidos, os chapéus no ar e num entusiasmo inexplicável. Morra para sempre aquele que, tendo sentido e partilhado estes grandes transportes, puder ainda suportar os ferros!”

     

      Assim, aí temos que o rei não pode ser julgado, senão que é ainda aplaudido com entusiasmo quem resolve essa questão.

      Julgue-se que terrível eco aqueles aplausos teriam nas Tulherias!

      Por isso era necessário que a Assembléia Nacional terminasse essa grande questão.

      Os constitucionais, em lugar de recuarem diante do debate, provocaram-no: estavam certos da maioria.

      Porém a maioria da Assembléia estava longe de representar a maioria da Nação. Não importa: as assembléias, geralmente, inquietam-se pouco com estas anomalias. Elas fazem; compete ao povo desfazer.

      E quando o povo desfaz o que faz uma assembléia, chama-se a isso simplesmente uma revolução.

      A 15 de Julho as tribunas estavam cheias de pessoas com quem se podia contar, introduzidas com antecedência, com bilhetes especiais. É o que hoje chamaríamos claqueurs.

      Além disso os realistas guardavam os corredores. Encontraram para esse fim os cavaleiros do punhal.

      Finalmente, sob proposta de um membro, fecharam-se as Tulherias.

      Oh! Decerto que, na noite desse dia, a rainha esperaria Barnave tão impacientemente como na noite do dia 15.

      E contudo, naquele dia nada devia decidir-se, apenas seria lido o relatório feito em nome de cinco comissões.

     

      “A fuga de el-rei não é um caso previsto na constituição; porém a sua inviolabilidade está ali escrita”.

     

      As comissões, considerando pois el-rei como inviolável, só entregarão à justiça o Sr. de Bouillé, o Sr. de Charny, a Srª. Tourzel, os correios, os criados e os lacaios.

      Nunca a engenhosa fábula dos grandes e dos pequenos teve mais completa aplicação.

      Era nos Jacobinos, muito mais do que na Assembléia, que a questão se discutia.

      Como não era julgada, Robespierre ficava neutro. Não era republicano nem monárquico: tanto se podia viver livre com um rei, como sob as ordens de um senado.

      O Sr. de Robespierre era homem, que raras vezes se comprometia, e vimos até, no fim do capítulo antecedente, que terrores o acometiam, quando estava comprometido.

      Porém havia ali homens, que não tinham esta prudência preciosa; eram o ex-advogado Danton e o cortador Legendre: um cão de fila e um urso.

      - A Assembléia pode absolver el-rei - disse Danton; - o juízo será reformado pela França, porque a França o condena!

      - As comissões estão loucas! - disse Legendre: - se conhecessem o espírito das massas, voltariam à razão... Além de que - acrescentou - se falo assim é pela salvação comum.

      Semelhantes discursos indignavam os constitucionais. Infelizmente para eles, não constituíam maioria nos Jacobinos como na Assembléia.

      Contentaram-se com sair.

      Fizeram mal. Quem abandona o lugar faz sempre mal, e há a este respeito um velho ditado cheio de bom senso: “Quem vai ao ar, perde o lugar!”, como diz o provérbio.

      Não só os constitucionais perderam o lugar, senão que foi ele ocupado por deputações populares, que logo de entrada apresentaram pleitos contra as comissões.

      Eis o que se passava nos Jacobinos; por isso os deputados foram recebidos com aclamações.

      Ao mesmo tempo uma proclamação, que devia adquirir na sua parte uma certa importância nos acontecimentos que se vão seguir, era redigida no outro extremo de Paris, no interior do Marais, num clube ou antes numa sociedade fraternal de homens e mulheres, que se chamava a sociedade dos Mínimos, nome tirado do lugar onde se estabelecera.

      Esta sociedade era uma auxiliar dos Franciscanos: por isso era animada com o espírito de Danton.

      Um mancebo de vinte e três a vinte e quatro anos apenas, que Danton inspirara e tinha animado com a sua inspiração, pegava na pena e redigia a proclamação.

      O mancebo era João Lambert Tallien.

      A proclamação levava por assinatura um nome formidável: estava assinada - O POVO.

      A 14 apresentou-se à discussão na Assembléia.

      Desta vez era impossível também encher, como nas primeiras vezes, os corredores e as avenidas de realistas e cavaleiros do punhal; impossível, finalmente, fechar o jardim das Tulherias.

      O prólogo passara-se diante dos claqueurs, porém a comédia ia ser representada diante do verdadeiro público.

      E convém dizê-lo, o público estava mal disposto.

      Tão mal disposto, que Duport, ainda popular havia três meses, fora ouvido em profundo silêncio, quando propôs que caísse sobre o séquito de el-rei o crime do próprio rei.

      Foi contudo até ao fim, admirado de falar pela primeira vez, sem promover uma exclamação ou um sinal de aprovação.

      Era um dos astros daquela trindade, cuja luz ia gradualmente desaparecendo no Céu político: Duport, Lameth e Barnave.

      Depois dele, subiu Robespierre à tribuna. Robespierre, o homem prudente, que sabia tão bem eclipsar-se, o que iria ele dizer? O orador, que oito dias antes tinha declarado que não era monárquico nem republicano, por quem iria pronunciar-se?

      Não se pronunciou.

      Veio com a sua acerba doçura constituir-se em advogado da humanidade; disse que, segundo a sua opinião, haveria ao mesmo tempo injustiça e crueldade em só ferir os fracos; que não atacava o rei, visto que a Assembléia parecia olhá-lo como inviolável; porém que defendia Bouillé, Charny, a Srª. Tourzel, correio, criados e lacaios; finalmente todos aqueles que pela sua posição dependente tinham sido obrigados a obedecer.

      A Assembléia murmurou muito durante este discurso; as tribunas ouviam com a maior atenção, sem saber se deviam aprovar. Acabaram, por conhecer nas palavras do orador, o que aí havia verdadeiramente: um ataque real à realeza e uma falsa defesa aos cortesãos.

      Entre as tribunas aplaudiram com grande entusiasmo Robespierre.

      O presidente tentou impor silêncio às tribunas.

      Prieur (de la Marne) quis trazer o debate para um terreno perfeitamente livre de subterfúgios e paradoxos.

      - Mas o que faríeis, cidadãos - disse ele - se o rei, estando livre do processo, viesse pedir-vos para que fosse restabelecido no poder?

      A pergunta era tanto mais embaraçosa, quanto era directa; porém há momentos de impudência em que nada embaraça os partidos reaccionários.

      Desmeuniers levantou a apóstrofe, pareceu sustentar com detrimento do rei a causa da Assembléia.

      - A Assembléia - disse o orador - é um corpo todo poderoso, e na sua omnipotência tem direito para suspender o poder real, e manter esta suspensão até ao momento em que se termine a Constituição.

      Assim o rei, que não tinha fugido, mas que tinha sido raptado, seria suspenso momentaneamente, porque a Constituição não estava acabada; logo que esta estivesse completa, ele entraria de pleno direito no exercício das suas funções reais.

      - Finalmente - bradou o orador - visto que me pedem (ninguém lho pedia), visto que me pedem para redigir a minha explicação em decreto, eis o projecto que apresento:

     

      “1.º A suspensão durará até que o rei aceite a Constituição.”

      “2.º Se ele não a aceitar, a Assembléia declará-lo-á deposto”.

     

      - Oh! Sosseguem - replicou Grégoire do seu lugar - que não só aceitará, mas até jurará tudo o que quiserem.

      E tinha razão, devendo antes dizer: “jurará e aceitará tudo o que quiserem”.

      Os reis ainda juram mais facilmente do que aceitam.

      A Assembléia ia talvez aproveitar o projecto do decreto de Desmeuniers, porém Robespierre, disse:

      - Acautelem-se! Semelhante decreto decide desde já que o rei não será julgado!

      Eram surpreendidos em flagrante delito; não ousaram votar. Um ruído que se ouviu à porta, tirou a Assembléia do embaraço.

      Era uma deputação da sociedade fraternal dos Mínimos, que trazia uma proclamação inspirada por Danton, redigida por Tallien e assinada pelo povo.

      A Assembléia vingou-se dos suplicantes: recusou-se a ouvir a proclamação.

      Então Barnave levantou-se.

      - Que não seja lida hoje - disse ele; - porém amanhã oiçam-na, e não se deixem levar por uma opinião fictícia... A lei não tem mais do que declarar a sua opinião, ver-se-ão todos os bons cidadãos reunir-se-lhe!

      Leitores, reparai bem nestas poucas palavras, lede estas simples palavras, meditai esta frase: “A lei não tem mais do que declarar a sua opinião!” A frase foi pronunciada a 14; a matança de 17 está compreendida nesta data.

      Também não se contentaram com roubar ao povo a omnipotência de que ele se julgava senhor pela fuga do seu rei, digamos melhor, pela traição do seu mandatário; restituíam publicamente esta omnipotência a Luís XVI, e se o povo reclamasse, se o povo fizesse petições, não era mais do que uma opinião fictícia, de que a Assembléia, este outro mandatário do povo, se desembaraçaria declarando a sua opinião!

      Que significariam estas palavras: Declarar a opinião da lei?

      Era proclamar a lei marcial e arvorar a bandeira vermelha.

      Com efeito, no dia seguinte (dia 15), era o dia decisivo. A Assembléia apresentou um aspecto respeitável; ninguém a ameaçava, porém ela quis parecer ameaçada. Chama-se Lafayette em seu auxílio, e Lafayette, que sempre tinha passado junto do verdadeiro povo sem o ver, enviou à Assembléia cinco mil homens da guarda nacional, aos quais, para iludir o povo, juntou mil lanças do arrabalde de Saint-Antoine.

      As espingardas eram a aristocracia da guarda nacional; as lanças o acompanhamento.

      Convencida, como Barnave, que não tinha mais do que declarar a opinião da lei para reunir consigo, não o povo, mas Lafayette, o comandante da guarda nacional, e Bailly, o maire de Paris, a Assembléia estava determinada a acabar esta questão.

      Ora, suposto que nascida havia apenas dois anos, a Assembléia já estava organizada como uma Assembléia de 1829 ou de 1846; sabia que se tratava de cansar os membros e espectadores com discussões secundárias, e deixar para o fim da sessão a questão principal para a levar de assalto. Perdeu metade da sessão a ouvir a leitura de um relatório militar sobre os negócios do parlamento; depois deixou complacentemente falar dois ou três membros, que tinham o costume de discorrer largamente no meio das conversações particulares; depois, finalmente, chegando aos limites da discussão, calou-se para ouvir dois discursos, um de Sallis outro de Barnave.

      Dois discursos de advogados, que convenceram de tal modo a Assembléia que, Lafayette, tendo pedido o encerramento, ela votou-o com toda a tranqüilidade e sossego.

      E com efeito, naquele dia, a Assembléia nada tinha que temer: tinha feito as tribunas; perdoem-nos este termo de gíria, que empregamos como mais significativo; as Tulherias estavam fechadas; a polícia estava às ordens do presidente; Lafayette presidia ao centro da câmara, pedindo o encerramento; Bailly estava estacionado na praça à frente do conselho municipal e pronto a fazer as suas notificações. Por toda a parte a autoridade debaixo de armas oferecia combate ao povo.

      Por isso o povo, que não estava muito disposto a combater, retirou-se por detrás das fileiras de baionetas e lanças, e foi para o seu Monte Aventino, isto é para o Campo de Marte.

      E notem bem isto, ele não ia ao Campo de Marte para se revoltar; para se exordar ao combate como o povo romano; não, ia ao Campo de Marte, porque estava certo de aí encontrar o altar da pátria, que desde 14 ainda não tinham tido tempo de demolir, por mais prontos que sejam ordinariamente os governos em demolir os altares da pátria.

      A multidão queria redigir ali um protesto e fazê-lo chegar a Assembléia.

      Enquanto a multidão redigia o seu protesto, a Assembléia votava:

     

      1.º Esta medida preventiva:

     

      “Se o rei retratar o seu juramento, se atacar o seu povo ou não o defender, abdica, torna-se simples cidadão e é acusado pelos delitos posteriores à sua abdicação”.

     

      2.º Esta medida repressiva:

     

      “Serão perseguidos: Bouillé, como culpado principal, e como secundários, todas as pessoas que tomaram parte no rapto do rei”.

     

      No momento em que a Assembléia acabava de votar, a multidão tinha redigido e assinado o seu protesto; ela voltava para o apresentar à Assembléia, que encontrou melhor guardada que nunca.

      Todos os poderes naquele dia eram militares: o presidente da Assembléia era Carlos Lameth, um jovem coronel; o comandante da guarda nacional era Lafayette, um jovem general; até o nosso digno astrónomo Bailly, que tendo atado em volta do seu vestuário de sábio a banda tricolor e coberto com o tricórnio municipal a sua pensativa cabeça, teve no meio das suas baionetas e lanças um certo ar do guerreiro, de tal modo, que vendo-o assim a Srª. Bailly poderia tomá-lo por Lafayette, como diziam, que esta tomava às vezes este por aquele.

      A multidão parlamentou; era tão pouco hostil, que não havia meio de deixar de parlamentar. O resultado desta parlamentação foi que se permitiria aos deputados falarem aos srs. Pétion e Robespierre.

      Vejam como engrandeciam a popularidade de novos nomes à medida que diminuía consideravelmente a popularidade dos Dupont, dos Lameth, dos Barnave, dos Lafayette e dos Bailly?

      Os deputados, em número de seis, partiram para a Assembléia bem acompanhados.

      Robespierre e Pétion, prevenidos, correram a recebê-los na passagem dos Bernardos.

      Era muito tarde, a questão estava votada!

      Os dois membros da Assembléia que não eram favoráveis a esta votação, não a participaram provavelmente aos deputados do povo de maneira que lhes fizesse suportar com resignação o mau êxito: por isso os deputados, como era muito natural, voltaram furiosos àqueles que os tinham enviado.

      O povo perdera pois esta magnífica partida com o mais belo jogo, que a fortuna jamais colocou nas mãos de um povo!

      Por isso mesmo estava encolerizadíssimo: espalhou-se por toda a cidade e começou logo por fazer fechar os teatros.

      Os teatros fechados, como dizia um nosso amigo em 1830, é a bandeira preta desfraldada sobre Paris.

      A Ópera tinha guarda, resistiu.

      Lafayette, com as suas quatro mil baionetas e as suas mil lanças, não desejava outra coisa, senão reprimir este movimento nascente; a autoridade municipal negou-lhe as ordens.

      Até aqui a rainha tinha estado ao facto dos acontecimentos, porém as informações tinham parado aí, a sua continuação tinha-se perdido na noite, menos sombria do que eles.

      Barnave que ela esperava com tão grande impaciência, prometera ir relatar-lhe tudo o que se houvesse passado no dia 15.

      Todos sentiam a aproximação de algum acontecimento.

      O rei, que também esperava Barnave na segunda câmara da Srª. Campan, tinha sido prevenido da chegada do Dr. Gilberto, e para dar mais atenção ao relatório dos acontecimentos, voltara para os seus aposentos com Gilberto, deixando Barnave junto da rainha.

      Finalmente, pelas nove horas e meia soaram passos na escada, ouviu-se uma voz, que trocava algumas palavras com a sentinela que estava no patamar; depois um mancebo, vestido com um uniforme de tenente da guarda nacional, apareceu no corredor.

      Era Barnave.

      A rainha, com o coração palpitante, como se aquele homem fosse o amante mais adorado, abriu a porta, e Barnave, depois de ter olhado para todos os lados, entrou.

      A porta fechou-se imediatamente, e antes de qualquer palavra ouviu-se o ruído de uma fechadura.

 

O dia 16 de Julho

      O coração de ambos batia com igual violência, porém com impulsos bem diferentes.

      O coração da rainha batia com a esperança da vingança; o coração de Barnave batia com a esperança de ser amado.

      A rainha entrou apressadamente na segunda câmara, procurando, por assim dizer, a luz. Certamente não temia Barnave, nem o seu amor; sabia quanto esse amor era respeitoso e delicado, porém, por instinto feminino, evitava a escuridão.

      Chegada à segunda câmara, deixou-se cair numa cadeira.

      Barnave parou à entrada da porta e abraçou com um olhar toda a pequena sala alumiada unicamente por duas velas.

      Esperava encontrar ali o rei, que assistira às suas duas precedentes entrevistas com Maria Antonieta.

      A sala estava quase solitária.

      Pela primeira vez, desde o seu passeio na galeria do palácio episcopal de Meaux, ia estar frente a frente com a rainha.

      Levou maquinalmente a mão ao coração, de que procurou comprimir as pulsações.

      - Oh! Sr. Barnave - disse a rainha depois de um momento de silêncio - espero-o há duas horas.

      O primeiro movimento de Barnave a esta censura, feita com voz tão meiga, que deixava de ser acusadora para se tornar queixosa, teria sido lançar-se aos pés da rainha, se o respeito o não detivesse.

      O coração é que indica, que às vezes lançar-se aos pés de uma mulher é faltar-lhe ao respeito.

      - Ai, senhora, isso é verdade - disse ele; - porém espero que vossa majestade acredite, que não foi por minha vontade essa demora.

      - Oh! Sim - disse a rainha, afirmando por um pequeno movimento de cabeça - sei que é dedicado à monarquia.

      - Sou dedicado principalmente à rainha – disse Barnave; - e é disso que desejo que vossa majestade esteja bem convencida.

      - Não duvido, Sr. Barnave... Então não pôde vir mais cedo?

      - Tentei vir às sete horas, senhora, porém ainda era muito claro, e encontrei (como é que semelhante homem ousa aproximar-se do palácio de vossa majestade?) encontrei o Sr. Marat no terraço.

      - O Sr. Marat?! - disse a rainha, como procurando recordar-se; - não é um jornalista que escreve contra nós?

      - Que escreve contra todos; é esse... O seu olhar de víbora perseguiu-me até que desapareci pelas grades dos Bernardos... Passei sem olhar para as janelas. Felizmente, na Ponte Real, encontrei Saint-Prix.

      - Saint-Prix? Quem é? - disse a rainha com um desespero quase igual ao que mostrara antes; - um cómico?

      - Sim, real senhora, é um cómico – respondeu Barnave; - porém, que quer? É um dos caracteres da nossa época: cómicos e jornalistas, pessoas de que outrora os reis só conheciam a existência para lhes darem ordens, a que eles se consideravam muito felizes em obedecer; cómicos e jornalistas tornaram-se cidadãos, tendo a sua parte de influência, movendo-se segundo a sua vontade, obrando segundo a sua inspiração, podendo - rodas importantes da grande máquina, de que a realeza não é hoje mais do que a roda superior - podendo fazer bem ou mal... Enfim, Saint-Prix fez-me recuperar o que Marat deitara a perder.

      - Como assim?

      - Saint-Prix estava uniformizado. Sou amigo dele, senhora; aproximei-me, perguntei-lhe onde estava de guarda: era por felicidade no paço. Sabia que podia fiar-me na sua discrição; disse-lhe que tinha a honra de ter uma audiência de vossa majestade.

      - Oh! Sr. Barnave!

      - Seria melhor renunciar... à honra (Barnave ia dizer à felicidade, mas conteve-se), seria melhor renunciar à honra de ver a vossa majestade e deixá-la ignorar as importantes notícias que tenho a comunicar-lhe?

      - Não - disse a rainha - fez bem... E julga poder fiar-se no Sr. Saint-Prix?

      - Senhora - disse gravemente Barnave - o momento é supremo, acredite-o; os homens que lhe restam agora são amigos verdadeiramente dedicados, porque se amanhã, e isto há-de decidir-se amanhã, os Jacobinos tiverem vantagem sobre os constitucionais, os amigos de vossas majestades serão seus cúmplices. E bem tem visto, que a lei só afasta de vossas majestades o castigo, para ferir os seus amigos.

      - Isso é verdade - disse a rainha. - Então dizia o Sr. Barnave, que o Sr. Saint-Prix...

      - Saint-Prix disse-me que estava de guarda nas Tulherias, e que entrava de sentinela das nove às onze horas, que procuraria obter o posto das sobrelojas, e que então, durante essas duas horas, vossa majestade teria toda a liberdade para me dar as suas ordens... Porém ele mesmo me aconselhou que vestisse o uniforme de oficial da guarda nacional, e segui o conselho, como vossa majestade vê.

      - E encontrou o Sr. Saint-Prix no seu posto?

      - Encontrei sim, real senhora... Custou-lhe dois bilhetes de teatro para obter do sargento esse posto. Bem vê - acrescentou Barnave sorrindo - que a corrupção é fácil.

      - O Sr. Marat... O Sr. Saint-Prix... Dois bilhetes de teatro... - repetiu a rainha lançando um olhar de terror no abismo, de onde saem os pequenos acontecimentos, que nos dias de revolução tecem os destinos dos reis.

      - Sim - disse Barnave; - é singular, não é verdade, senhora? É verdade que os antigos chamavam fatalidade ao que os filósofos chamam acaso, e ao que os crentes chamam Providência.

      A rainha pegou num dos anéis dos seus cabelos e olhou para ele tristemente.

      - Isso é o que tem feito encanecer os meus cabelos! - disse ela.

      Depois, voltando a Barnave e ao lado político da situação, abandonado um instante pelo lado vago e pitoresco, continuou:

      - Porém julgava ter ouvido dizer que tínhamos obtido hoje uma grande vitória na Assembléia?

      - Sim, senhora, alcançámos uma vitória na Assembléia, infelizmente, porém, acabamos de sofrer uma derrota nos Jacobinos.

      - Mas, meu Deus - disse a rainha - nada compreendo; julgava que os Jacobinos eram dos senhores, isto é, dos srs. Lameth e Duport, que os tinham na mão, que faziam deles o que queriam?

      Barnave meneou tristemente a cabeça.

      - Assim foi - disse ele; - porém um novo génio soprou na Assembléia.

      - De Orleans, não é verdade? - disse a rainha.

      - Sim, agora é daí que vem o perigo.

      - O perigo? Mas, ainda uma vez, não lhe escapamos pela votação de hoje?

      - Entenda bem isto, real senhora, pois para afrontar uma situação é preciso conhecê-la; eis a votação de hoje:

     

      “Se um rei retratar o seu juramento, atacar ou não defender o seu povo, abdica, torna-se simples cidadão e é acusado por todos os delitos posteriores à sua abdicação”.

     

      - Pois bem - disse a rainha - o rei não retratará o seu juramento; o rei não atacará o seu povo, e se o atacarem o rei saberá defendê-lo.

      - Sim, mas por esta votação, senhora - disse Barnave - uma porta fica aberta aos revolucionários e aos orleanistas, A Assembléia nada deliberou a respeito do rei; votou medidas preventivas contra uma segunda deserção, porém deixou de parte a primeira, e esta noite nos Jacobinos, quer vossa majestade saber o que Laclos, o homem do duque de Orleans, propôs?

      - Oh! Decerto alguma coisa terrível! Que pode propor de bom o autor das ligações perigosas?

      - Pediu que se fizesse em Paris e por toda a França uma petição pedindo a abdicação. Respondeu por dez milhões de assinaturas!

      - Dez milhões de assinaturas! - exclamou a rainha; - meu Deus! Somos então de tal modo odiados, que dez milhões de franceses nos rejeitam?

      - Oh! Senhora, as maiorias são fáceis de conseguir!

      - E passou a proposta do Sr. Laclos?

      - Promoveu uma discussão... Danton apoiou-a.

      - Danton? Porém eu julgava que esse Sr. Danton era nosso!... O Sr. de Montmorin havia-me falado de um cargo de advogado dos conselhos do rei, vendido ou comprado, não sei bem, e que nos dava esse homem.

      - O Sr. de Montmorin enganou-se; se Danton pertencesse a alguém, seria ao duque de Orleans.

      - E o Sr. Robespierre falou?... Dizem que começa a ganhar uma grande influência.

      - Sim, Robespierre falou; reprovava a petição; a sua opinião era simplesmente uma proclamação às sociedades Jacobinas da província.

      - Seria necessário contudo possuirmos o Sr. de Robespierre, se ele adquirisse uma tal importância.

      - Não se possui o Sr. de Robespierre, senhora; Robespierre pertence a si mesmo, a uma idéia, a uma utopia, a um fantasma, a uma ambição, talvez.

      - Mas enfim, qualquer que seja a sua ambição, poderemos talvez satisfazer-lha... Supõe que ele queira ser rico?

      - Não, senhora.

      - Então, ser ministro!

      - Talvez queira mais do que ser ministro.

      A rainha olhou para Barnave com espanto.

      - Parecia-me que ser ministro - disse ela - era o fim mais elevado a que um dos nossos súbditos podia atingir?

      - Se o Sr. de Robespierre considerasse el-rei como deposto, não se julgaria súbdito do rei.

      - Então o que ambiciona ele? - perguntou a rainha estupefacta.

      - Há em certos momentos, senhora, homens que sonham novos títulos políticos em lugar de manterem os antigos.

      - Sim, compreendo que o Sr. duque de Orleans sonhe ser regente; o nascimento chama-o a essa alta função. Porém o Sr. de Robespierre, um simples advogado de província!...

      A rainha esquecia que também Barnave era um simples advogado de província.

      Barnave ficou impassível, quer o golpe passasse sem lhe tocar, quer ele tivesse a coragem de o receber e ocultar a sua dor.

      - Mário e Cromwell tinham saído das fileiras do povo, senhora - disse ele.

      - Mário e Cromwell!... Ai! Quando ouvi pronunciar esses nomes na minha infância, nunca me lembrei de que um dia eles soariam de modo tão funesto aos meus ouvidos!... Contudo, vejamos, porque sem cessar nos afastamos dos factos para nos lançarmos nas especialidades: o Sr. de Robespierre, segundo me disse, opunha-se à petição proposta pelo Sr. Laclos e apoiada pelo Sr. Danton.

      - Sim, porém nesse momento entrou uma multidão de povo, os gritadores ordinários do Palais-Royal, um bando de raparigas, uma máquina preparada para apoiar Laclos; e não só a proposta deste passou, mas foi comunicado que amanhã os Jacobinos reunidos ouviriam a leitura da petição, que havia de ser levada ao Campo de Marte, assinada sobre o altar da pátria e enviada a todas as sociedades da província, que pela sua vez a assinariam.

      - E quem redige essa petição?

      - Danton, Laclos e Brissot.

      - Três inimigos?

      - Sim, senhora.

      - Mas, meu Deus! Que fazem os nossos amigos constitucionais?

      - Ai, senhora... Estão decididos a ganhar ou perder tudo amanhã.

      - Porém eles já não podem ficar nos Jacobinos?

      - O admirável conhecimento que vossa majestade tem dos homens e das coisas, faz-lhe ver a situação tal qual é... Sim, guiados por Duport e Lameth, os seus amigos acabam de separar-se dos seus inimigos. Opõem os Bernardos aos Jacobinos.

      - O que é isso? Os Bernardos?! Desculpe-me, porém ignoro tudo isso. Entram tantos nomes e palavras novas na nossa linguagem política, que cada uma das minhas palavras é uma pergunta.

      - Senhora, os Bernardos é aquele grande edifício, situado junto à municipalidade, encostado à Assembléia por conseqüência, e que dá o nome ao terraço das Tulherias.

      - E quem é desse clube?

      - Lafayette, isto é, a guarda nacional, e Bailly, ou seja, a municipalidade.

      - Acredita em Lafayette?

      - Julgo-o sinceramente afecto ao rei.

      - Afecto ao rei, como o rachador ao carvalho, que corta pela raiz! Bailly, esse talvez: não tenho que queixar-me dele, direi mesmo mais alguma coisa: denunciou-me a mulher que adivinhara a nossa partida. Mas Lafayette...

      - Vossa majestade o julgará oportunamente.

      - Sim, é verdade - disse a rainha, deitando um olhar doloroso para o passado - sim... Versalhes... Mas? Voltemos ao clube; que vão lá fazer? Que vão lá propor? Que força terá ele?

      - Uma força enorme, visto que disporá ao mesmo tempo, como eu dizia a vossa majestade, da guarda nacional, da municipalidade e da maioria da Assembléia, que vai connosco. Quem ficará nos Jacobinos? Talvez cinco ou seis deputados: Robespierre, Pétion, Laclos e o duque de Orleans: todos elementos heterogéneos, que se encontraram para revolver a turba dos novos membros, dois intrusos, um bando de gritadores, que farão estrondo, mas que não terão influência nenhuma.

      - Deus o queira, senhor! Enquanto espera, o que conta fazer a Assembléia?

      - A Assembléia conta admoestar asperamente o Sr. maire de Paris pela sua hesitação e pela sua fraqueza de hoje. Daí resultará que o honrado Bailly, que pertence à família das pêndulas, e que, para andar só precisa que lhe dêem corda, tendo-se-lha dado, andará.

      Neste momento, deram três quartos para as onze e ouviu-se tossir a sentinela.

      - Sim, sim - murmurou Barnave - bem sei, é tempo de retirar-me, e contudo parece-me que tinha ainda mil coisas que dizer a vossa majestade.

      - E eu, Sr. Barnave - disse a rainha - só tenho uma que responder-lhe, e é que fico muito agradecida, tanto ao senhor, como aos seus amigos, pelos perigos a que se expõem por minha causa.

      - Senhora - disse Barnave - o perigo é um jogo em que, vencedor ou vencido, tenho tudo a ganhar; quer vencido, quer vencedor, a rainha mo pagará com um sorriso.

      - Ah! Senhor! - disse a rainha - esqueci já o que seja sorrir! Porém trabalha tanto em nosso favor, que procurarei recordar a época em que era feliz, e prometo-lhe, que o meu primeiro sorriso será para o senhor.

      Barnave inclinou-se com a mão no coração e saiu recuando.

      - A propósito - disse Maria Antonieta – quando o tornarei a ver?

      Barnave pareceu calcular.

      - Amanhã a petição e a segunda votação da Câmara... Depois de amanhã, a explosão e a repressão provisória... Domingo à noite, senhora, farei a diligência por vir dizer a vossa majestade tudo o que se houver passado, no Campo de Marte.

      E saiu.

      A rainha subiu pensativa à câmara do seu marido, que encontrou tão pensativo como ela. O Dr. Gilberto acabava de sair naquele momento, e havia-lhe dito, pouco mais ou menos, as mesmas coisas que Barnave dissera à rainha.

      Não necessitaram mais do que lançarem um recíproco olhar, para conhecerem que, dos dois lados, as notícias tinham sido sombrias.

      O rei acabava de escrever uma carta.

      Sem dizer uma única palavra, Luís XVI apresentou-a à rainha.

      Era uma carta de poderes concedidos ao conde de Provença, para que solicitasse em nome do rei de França, a intervenção do imperador de Áustria e do rei da Prússia.

      - O Sr. conde de Provença causou-me bastantes males - disse Maria Antonieta; - aborrece-me, e há-de causar-me ainda todo o mal que puder fazer-me, estou certa disso; mas, visto ter ele a confiança de vossa majestade, a meu pesar, dispensar-lhe-ei também a minha.

      E pegando na pena, escreveu heroicamente a sua assinatura ao lado da do rei.

 

Em que finalmente chegamos ao protesto que a senhora Roland copiava

      Parece-nos que a conversação da rainha com Barnave deve ter dado aos nossos leitores uma idéia exacta da situação, em que se achavam os partidos no dia 15 de Julho de 1791.

      Os novos Jacobinos tomando o lugar dos antigos;

      Os antigos Jacobinos criando o clube dos Bernardos;

      Os Franciscanos representados por Danton, Camilo Desmoulins e Legendre, reunindo-se aos novos Jacobinos;

      A Assembléia, tornada realista constitucional, decidida a manter o rei a todo o custo;

      O povo resolvido a obter a abdicação por todos os meios possíveis, mas ao mesmo tempo, resolvido a empregar primeiro o do protesto e o da petição.

      Agora, o que se havia passado durante as noites decorridas entre a entrevista de Barnave com a rainha, protegida pelo actor Saint-Prix, até ao momento em que vamos entrar em casa da Srª. Roland.

      Vamos dizê-lo em poucas palavras.

      Durante toda aquela conversação, e no mesmo momento em que ela acabava, três homens estavam sentados em volta de uma mesa, com papel, penas e tinta diante de si, ocupados em redigir a petição de que tinham sido encarregados pelos Jacobinos.

      Esses três homens eram Danton, Laclos e Brissot.

      Danton não era amigo desta espécie de reuniões; além disso, pela sua vida toda de prazer e de movimento, esperava sempre impaciente o fim de todas as comissões de que fazia parte.

      No fim de pouco tempo, levantou-se e saiu deixando Brissot e Laclos redigirem a petição como quisessem.

      Laclos viu-o sair, e seguiu-o com a vista até que ele desaparecesse, e com o ouvido até senti-lo fechar a porta.

      Esta dupla função dos sentidos pareceu tirá-lo um instante daquela sonolência fictícia, com que ocultava a sua infatigável actividade; depois, recostou-se na cadeira, e deixando cair a pena da mão, disse:

      - Meu caro Sr. Brissot, redija-nos isso como quiser; quanto a mim, dispense-me... Ah! Se fosse um mau livro, como dizem na corte, uma continuação das Ligações perigosas, tomaria a minha parte; porém uma petição... - acrescentou ele abrindo muito a boca com perigo de quebrar o queixo - enfastia-me horrivelmente!

      Brissot pelo contrário, era verdadeiramente o homem desta espécie de redacções.

      Convencido, pois, que redigiria a petição melhor do que ninguém, aceitou a procuração, que lhe dava a ausência de Danton, e a demissão de Laclos, o qual fechou os olhos, acomodando-se o melhor que pôde na cadeira, como se quisesse dormir, e preparou-se para pesar cada frase, cada palavra, cada letra, a fim de aí introduzir, em ocasião oportuna, uma idéia acerca da regência do seu príncipe.

      À medida que Brissot escrevia esta frase, lia-a, e Laclos aprovava com um pequeno movimento de cabeça e uma leve entoação de voz.

      Brissot apresentou o seu trabalho, fazendo sobressair a situação:

     

      1.º O silêncio hipócrita ou tímido da Assembléia, que não quisera, ou não ousara determinar coisa alguma relativa ao rei:

      2.º A abdicação de facto de Luís XVI, visto que fugira, e que a Assembléia o suspendera, perseguira e prendera.

     

      Não se persegue, não se prende, não se suspende o rei; se assim acontece, é que já não é rei.

     

      3.º A necessidade de prover à sua substituição.

     

      - Bem; muito bem! - disse Laclos ao ouvir a última palavra.

      Depois, como Brissot ia continuar, o secretário do duque de Orleans disse:

      - Espere... Espere! Parece-me que, depois das palavras “à sua substituição” há alguma coisa que acrescentar... Alguma coisa que nos atraia os espíritos tímidos. Nem todos têm, como nós, a coragem necessária para declarar a sua opinião.

      - É possível - disse Brissot. Que lhe acrescentaria?

      - Oh! Ao senhor é que compete arranjar isso, meu caro. Eu acrescentaria... Vejamos...

      Laclos mostrou procurar uma frase, que havia muito tempo tinha formulado no espírito, e que só esperava ocasião favorável para sair.

      - Pois bem - disse finalmente - depois dessas palavras: “necessidade de prover a sua substituição” acrescentaria: “Por todos os meios constitucionais”.

      Vejam, estudem e admirem, ó homens políticos, redactores presentes e futuros de petições, protestos e projectos de lei.

      Eram bem limitadas, não é verdade, estas palavras inofensivas?

      Pois vão ver, isto é, aqueles dos meus leitores que tiverem a felicidade de não ser homens políticos, vão ver onde nos levavam estas cinco palavras: “Por todos os meios constitucionais”.

      Todos os meios constitucionais de prover à substituição do rei, reduziam-se a um só.

      Esse único meio era a regência.

      Ora, na ausência do Conde de Provença e do conde de Artois, irmãos de Luís XVI e tios do delfim, e impopulares por causa da emigração, a quem pertencia a regência?

      Ao duque de Orleans.

      Esta pequena frase inocente, introduzida numa petição redigida em nome do povo, fazia pois, em nome desse mesmo povo, o Sr. duque de Orleans regente!

      A política é uma excelente coisa, não é verdade? Será necessário ainda muito tempo para que o povo se não veja embaraçado, quando tiver de tratar com homens da força do Sr. de Laclos!

      Fosse porque Brissot não adivinhasse a finura contida nestas cinco palavras, e pronta a rebentar quando fosse necessário, ou porque não visse a serpente, que se tinha introduzido debaixo daquele aumento e que ergueria a cabeça sibilante chegada a ocasião, ou porque finalmente ele mesmo, sabendo que nada arriscava como redactor daquela petição, não deixasse de estimar reservar-se uma saída, não fez objecção alguma e acrescentou a frase, dizendo:

      - Efectivamente, isto há-de atrair-nos alguns constitucionais... A idéia é boa, Sr. Laclos!

      O resto da petição era conforme ao sentimento, que o fizera redigir.

      No dia seguinte, Pétion, Brissot, Camilo Desmoulins e Laclos, dirigiram-se para os Jacobinos; levavam a petição.

      A sala estava quase deserta.

      Todos os membros tinham ido para os Bernardos.

      Barnave não se havia enganado; a deserção era completa.

      Pétion correu imediatamente aos Bernardos.

      Quem encontrou aí? Barnave, Duport e Lameth redigindo uma proclamação às sociedades Jacobinas das províncias, proclamação em que lhes anunciavam que o clube dos Jacobinos já não existia, e acabava de ser transportado para os Bernardos, com o título de Sociedade dos amigos da constituição.

      Assim, esta associação, que tanto custara a fundar, e que, semelhante a uma rede, se estendia por toda a França, ia cessar de funcionar, paralisada pela hesitação.

      Em quem acreditará ela? A quem obedecerá? Aos velhos ou aos novos Jacobinos?

      Entretanto, dar-se-á o golpe de estado contra-revolucionário, e o povo, que não terá ponto de apoio, adormecendo sob a fé dos que velam por ele, acordará vencido e garrotado.

      Trata-se de resistir à tempestade.

      Cada qual redigirá o seu protesto, que enviará para a província, onde julgar merecer alguma confiança.

      Roland era o deputado especial de Lião; tinha grande influência na população da segunda capital do reino.

      Danton, antes de ir para o Campo de Marte, onde devia, apesar dos Jacobinos, que não encontrou, ser assinada pelo povo a petição, passa por casa de Roland, explica-lhe a situação e pede-lhe que envie sem demora um protesto aos lioneses, entregando-lhe a redacção desse importante papel.

      O povo de Lião dará a mão ao povo de Paris, e protestará juntamente com ele.

      Era esse protesto, redigido por seu marido, que a Srª. Rolland copiava.

      Quanto a Danton, tinha ido juntar-se aos seus amigos no Campo de Marte.

      No momento em que ali chegou, agitava-se uma grande discussão; no meio da imensa arena estava o altar da pátria, erigido para a festa do dia 14, e que ali ficara como o esqueleto do passado.

      Era, como dissemos, a propósito da confederação de 1790, uma plataforma, a que se subia por quatro escadas, todas correspondentes aos quatro pontos cardeais.

      No altar da pátria estava um quadro, representando a coroação de Voltaire, que se efectuara em 12; por cima do quadro estava o edital dos Franciscanos, em que se lia o juramento de Bruto.

      A discussão versava sobre as cinco palavras introduzidas na petição por Laclos.

      Iam passar despercebidas, quando um homem, que parecia pertencer à classe popular pelo seu vestuário e pelas suas maneiras, de tal modo francas e desembaraçadas, que chegavam quase a ser violentas, interrompeu bruscamente o leitor.

      - Alto lá - disse ele; - enganam o povo!

      - Como? - perguntou o leitor.

      - Com estas palavras: “Por todos os meios constitucionais”. Substituem um por outro; criam uma realeza, e nós não queremos tornar a ter rei.

      - Não, nada mais de realeza! Não, nada mais de rei! - gritou a maior parte dos espectadores.

      Coisa estranha! Foram então os Jacobinos que tomaram o partido da realeza!

      - Senhores! Senhores - exclamaram eles - acautelem-se! Nada de realeza, nada de rei, é o mesmo que proclamar a república, e não estamos suficientemente civilizados para a república.

      - Não estamos civilizados? - disse o homem do povo, - de acordo... Porém um ou dois sóis como o de Varennes nos civilizarão.

      - Votos! A petição a votos!

      - Votos! - repetiram os que já tinham gritado: - “Nada de realeza! Nada de rei!”

      Foi necessário proceder à votação.

      - Todos que não querem reconhecer Luís XVI, nem qualquer outro rei - disse o desconhecido – levantem a mão.

      Foi tão grande a maioria que levantou a mão, que não houve necessidade de recorrer a contraprova.

      - Está bem - disse o lavrador; - amanhã domingo, 17 de Julho, toda Paris estará aqui para assinar a petição. Sou eu, Billot, que me encarrego de a prevenir.

      A este nome de Billot, todos conheceram o terrível lavrador que, acompanhando o ajudante de ordens de Lafayette, prendera o rei em Varennes e o conduzira a Paris, com toda a comitiva.

      Assim, do primeiro golpe estavam sobrepujados os mais ousados Franciscanos e Jacobinos, Por quem? Por um homem do povo, isto é, pelo instinto das massas; de tal modo, que Camilo Desmoulins, Danton Brissot e Pétion declararam que, segundo a sua opinião, semelhante acto da parte da povoação parisiense, não devia cumprir-se sem levantar alguma tempestade, e era importante obter já da municipalidade licença para se reunirem no dia seguinte.

      - Seja assim! - exclamou o homem do povo; - alcancem-na, e se não a alcançarem, eu a exigirei!

      Camilo Desmoulins e Brissot foram encarregados da execução deste projecto.

      Bailly estava ausente; só encontraram o primeiro sindico. Este nada quis resolver; não recusou, mas também não autorizou; contentou-se em aprovar vocalmente a petição. Brissot e Camilo Desmoulins saíram da municipalidade, julgando-se autorizados.

      Após eles, o primeiro síndico mandou prevenir a Assembléia do que se havia passado com ele.

      A Assembléia era apanhada em flagrante.

      Nada tinha determinado relativamente à situação de Luís XVI fugitivo, suspenso do seu título de rei, preso em Varennes, conduzido às Tulherias e aí guardado, desde 26 de Junho, como prisioneiro.

      Não havia tempo a perder.

      Desmeuniers, com todas as aparências de inimigo da família real, apresentou um projecto de lei, concebido nestes termos:

     

      “A suspensão do poder executivo durará até que o acto constitucional seja apresentado ao rei e aceito por ele.”

     

      O decreto, proposto às sete horas da tarde, estava aprovado às oito por grande maioria.

      Assim, a petição do povo era inútil; o rei suspenso unicamente até ao dia em que aceitasse a constituição, tornava-se por esta simples aceitação rei como dantes.

      Todo aquele que pedir a abdicação do rei, mantido constitucionalmente pela Assembléia, logo que o rei se mostre disposto a cumprir esta condição, será pois considerado rebelde.

      Ora como a situação era grave, perseguiriam os rebeldes por todos os meios que a lei põe à disposição dos seus agentes.

      Por isso houve reunião do maire e do conselho municipal à noite na casa da municipalidade.

      A sessão abriu às nove horas e meia.

      Às dez horas tinham determinado que no dia seguinte, 17 de Julho, às oito horas da manhã, o decreto da Assembléia, impresso e afixado em todas as esquinas de Paris, seria além disso, em todas as encruzilhadas, proclamado ao som da trombeta pelos notáveis e meirinhos da cidade, devidamente escoltados de tropa.

      Uma hora depois de ser tomada esta decisão, já ela era conhecida nos Jacobinos.

      Os jacobinos sentiam-se muito fracos: a deserção da maior parte deles para os Franciscanos, deixara-os isolados e sem força.

      Curvaram-se.

      Santerre, o homem do arrabalde de Saint-Antoine, o fabricante popular da Bastilha, aquele que devia suceder a Lafayette, encarregou-se, em nome da sociedade, de ir ao campo de Marte retirar a petição.

      Os Franciscanos mostraram-se ainda muito mais prudentes.

      Danton declarou que ia passar o dia seguinte a Fontenay-sous-Bois; seu avô o botequineiro, tinha ali uma pequena casa de campo.

      Légendre prometeu ir juntar-se-lhe com Desmoulins e Fréron.

      Os Roland receberam um pequeno bilhete, em que os preveniam de que era completamente inútil enviarem o protesto a Lião.

      Tudo tinha cessado ou estava adiado.

      Era quase meia-noite e a Srª. Roland acabava de copiar o protesto, quando chegou o bilhete de Danton, do qual era impossível compreender a menor coisa.

      Exactamente nesse momento, dois homens, assentados a uma mesa num quarto interior de uma taberna de Gros-Caillou davam, acabando a sua terceira garrafa de vinho de quinze sous, a última demão a um extraordinário projecto. Era um cabeleireiro e um inválido.

      - Ai quê! Que loucas idéias tem, Sr. Lajariette! - dizia o inválido rindo com um riso lascivo e estúpido.

      - É isso, tio Aémy - respondeu o cabeleireiro; - compreende, não é verdade? Antes de romper o dia, vamos ao campo de Marte; levantamos uma tábua do altar da pátria; introduzimos-nos debaixo e colocamos novamente a tábua, depois, com uma verruma grossa, fazemos buracos no sobrado... Uma multidão de jovens e formosas cidadãs irá amanhã ao altar da pátria para assinar a petição, e nós então, através dos buracos...

      O riso lascivo e estúpido do inválido redobrou...

      Era evidente que, na sua imaginação, já estava espreitando pelos buracos do altar da pátria.

      O cabeleireiro não ria de boa vontade: a honrosa e aristocrática corporação, a que pertencia, estava arruinada pela desgraça dos tempos; a emigração roubara aos artistas de cabelo - e pelo que vimos nos penteados da rainha, naquela época ser cabeleireiro era uma arte; a imaginação, dizemos, roubara aos artistas de cabelo os seus melhores fregueses. Além disso, Talma acabava de representar o papel de Tito, em Berenice, e a maneira como se havia penteado dera origem a uma nova moda, que consistia em trazer os cabelos curtos e sem pós.

      Em geral, os cabeleireiros eram realistas. Lede Prudhomme e vereis que no dia da execução do rei, um cabeleireiro, desesperado, degolou-se.

      Ora, era uma boa peça a pregar a todas aquelas velhacas patriotas, como lhe chamava o pequeno número de grã senhoras, que tinha ficado em França, ir espreitá-las por baixo das saias, e mestre Lajariette contava com as suas recordações eróticas para entreter durante um mês, o cavaco das manhãs.

      A idéia desta brincadeira viera-lhe bebendo com um velho guerreiro, seu amigo, e comunicara-a a este, que sentira estremecer os nervos da perna que deixara em Fontenoy, e que o Estado generosamente substituíra por outra de pau.

      Por conseqüência, os dois bebedores pediram uma garrafa de vinho, que o dono da casa se apressou a trazer-lhes.

      Iam encetá-la, quando o inválido, pela sua parte, teve também uma idéia.

      Era comprar um pequeno barril e vazar-lhe a garrafa dentro, em lugar de a vazar em dois copos; juntar-lhe mais duas e, deixando momentaneamente de beber, levaram o barril consigo.

      O inválido apoiava a sua proposta no axioma de que olhar para o ar faz secar a boca.

      O cabeleireiro dignou-se sorrir: e como o taberneiro observasse aos seus fregueses, que era inútil demorarem-se na taberna, se já não bebiam, os nossos dois folgazões compraram-lhe uma verruma e um barril, e quando dava meia-noite, através da escuridão dirigiram-se para o campo de Marte, levantaram a tábua, e com o barril entre si deitaram-se languidamente na areia e adormeceram como se estivessem na cama.

 

A petição

      Há certos momentos em que o povo, em conseqüência de sucessivas excitações, sobe como a maré, sendo preciso algum grande cataclismo para que entre, como o oceano, no leito que a natureza lhe cavou.

      Assim aconteceu ao povo parisiense, durante aquela primeira quinzena de Julho, em que tantos acontecimentos o tinham posto em ebulição.

      No domingo, 10, concorrera às exéquias de Voltaire; o mau tempo impedira que se fizessem, e o préstito parara na barreira de Charenton, onde a multidão estacionara todo o dia.

      Na segunda-feira, 11, o tempo melhorara, o préstito continuara o seu caminho e atravessava Paris no meio de imenso concurso de povo, parando diante da casa onde morrera o autor do Dicionário filosófico e da Donzela de Orleans, para dar tempo à Srª. Villette, sua filha adoptiva, e à família de Calas, de coroarem o caixão, saudado pelos coros dos artistas da Ópera.

      Na quarta-feira, 13, espectáculo em Notre-Dame; representou-se a Tomada da Bastilha, a grande orquestra.

      Na quinta-feira, 14, aniversário da confederação, romaria ao altar da pátria; três quartos de Paris estão no Campo de Marte, e as cabeças transtornam-se cada vez mais aos gritos de “Viva a nação!” e à vista da iluminação universal, no meio da qual o palácio das Tulherias, sombrio e mudo, parece um túmulo.

      Na sexta-feira, 15, votação na câmara, protegida pelas quatro mil baionetas e os mil chuços de Lafayette; petição das massas, encerramento dos teatros, boatos e rumor durante a tarde e parte da noite.

      Finalmente, no sábado, 16, deserção dos Jacobinos para os Bernardos; cenas violentas no Pont-Neuf, onde os agentes da polícia espancam Fréron e prendem um inglês, mestre de italiano, chamado Rotundo; excitação no Campo de Marte, onde Billot descobre na petição a frase de Laclos; votação popular sobre a abdicação do rei; combinação para no dia seguinte assinarem a petição.

      Noite borrascosa, agitada, cheia de tumultos, na qual, ao passo que os chefes dos Jacobinos e dos Franciscanos se escondem, por conhecerem o jogo dos adversários os homens conscienciosos e ingénuos do partido prometem reunir-se e confirmar, suceda o que suceder a empresa começada.

      Ainda há outros de atalaia, mas com sentimentos menos honrados e sobretudo menos filantrópicos; são esses homens cheios de ódio, que se encontram em todas as grandes comoções das sociedades, que prezam a desordem, o tumulto, a vista do sangue, como os abutres e os tigres gostam dos exércitos, que se batem e lhes fornecem cadáveres.

      Marat, no seu subterrâneo, onde o confina a monomania, Marat que se julga sempre perseguido e ameaçado, ou finge julgá-lo, vive nas trevas como os animais de presa e as aves nocturnas; dessa sombra, como do antro de Trofónio ou de Delfos, saem todas as manhãs sinistros oráculos, espalhados nas folhas daquele jornal, que se diz Amigo do Povo. Havia alguns dias que o jornal de Marat suava sangue; depois do regresso do rei, propôs, como único meio de defender os direitos e os interesses do povo, um ditador único e um morticínio geral. Segundo a opinião de Marat, convém, antes de tudo, degolar a Assembléia e enforcar as autoridades; depois, como variante, e porque lhe não bastem degolar e enforcar, propõe o cortar as mãos, cerrar os pulsos, enterrar vivo e empalar!

      É tempo que o médico de Marat lhe acuda e lhe diga: “Escreve vermelho, Marat, é preciso sangrá-lo.”

      Verrière, o abominável corcunda, o formidável anão de compridos braços, enormes pernas, que vimos aparecer no princípio deste livro, para fazer o 5 e o 6 de Outubro, e que feitos estes, tornou a entrar na obscuridade, durante a noite de 16 reaparece, tornam a vê-lo, visão do Apocalipse - diz Michelet – montado no cavalo branco da morte, em cujas ilhargas se bamboleiam as desmedidas pernas, com os trambolhos dos joelhos e os enormes pés; pára em todas as esquinas, em todas as encruzilhadas, e, arauto de desgraça, convoca o povo para o dia seguinte, no campo de Marte.

      Fournier, que aparece pela primeira vez, e a quem denominaremos o Fournier-Americano, não porque nascesse na América, porque era auvergnês, senão porque fora guardador de pretos em S. Domingos. Arruinado, altamente irritado por um processo que perdera, bastante exasperado pelo silêncio em que a Assembléia Nacional recebera as vinte petições sucessivas, que lhe enviara, coisa naturalíssima, visto que os chefes da Assembléia eram plantadores, como os Lameth, ou amigos de plantadores, como Duport e Barnave, jurara que na primeira ocasião se vingaria, e há-de cumprir a sua palavra; Fournier tinha no pensamento os sobressaltos dos brutos e no rosto o riso da hiena!

      Portanto, veja-se a situação de todos durante a noite de 16 para 17.

      O rei e a rainha esperavam ansiosamente nas Tulherias; Barnave prometera-lhes um triunfo completo sobre o povo.

      Não lhes disse qual seria o triunfo, nem de que maneira se operaria: pouco lhes importava! Os meios não lhes dizia respeito: trabalhava por eles. O rei deseja esse triunfo, porque tomará melhor posição da realeza; a rainha, porque será um princípio de vingança; aquele povo tem-a feito sofrer tanto, que, na sua opinião, era-lhe bem permitido vingar-se.

      A Assembléia apoiada numa dessas maiorias fictícias que sossegam as assembléias, espera com tranqüilidade; as suas medidas estão tomadas, terá, em caso de precisão, a lei a seu favor, e no caso contrário, invocará as supremas palavras: salvação pública!

      Lafayette também esperava sem temor: tinha a guarda nacional, que ainda lhe era inteiramente dedicada, e com a guarda nacional um corpo de nove mil homens, composto de antigos militares, de guardas francesas e de alguns voluntários.

      Esse corpo pertencia mais à marinha do que ao exército; além disso, é retribuído e por isso lhe chamam guarda assalariada.

      Se no dia seguinte houvesse alguma terrível execução que efectuar, seria esse corpo que a cumpriria.

      Bailly e a municipalidade esperaram também.

      Bailly, fora impelido subitamente para a política, para as praças e encruzilhadas.

      Admoestado na véspera pela Assembléia, pela fraqueza que mostrara na noite de 15, adormeceu com a cabeça encostada à lei marcial, que havia de aplicar no dia seguinte em toda a sua extensão, se fosse necessário.

      Os jacobinos esperavam, porém na maior prostração. Robespierre estava escondido; Laclos, que viu riscar a sua frase, amuou; Pétion, Brizot e Brissot conservavam-se prontos, na suposição de que o dia seguinte devia ser mau; Santerre, que às onze horas da manhã tinha de ir ao Campo de Marte para retirar a petição, dar-lhe-ia notícias.

      Os Franciscanos abdicaram. Danton, como dissemos, estava em Fontenoy, em casa do avô; Legendre, Fréron e Camilo Desmoulins reuniram-se-lhe. O resto nada faria: faltava a cabeça.

      O povo, que ignora tudo isto, irá ao Campo de Marte; aí assinará a petição e gritará “Viva a nação!” Dançará em volta do altar da pátria, cantando o famoso Ça ira de 1790.

      Entre 1790 e 1791, a reacção cavou um abismo; para encher esse abismo serão necessários os mortos de 17 de Julho!

      Fosse como fosse, o dia nasceu magnífico. Desde as quatro horas da manhã, todos os pobres industriosos que vivem das multidões, os boémios das grandes cidades, que vendem coco, pão de leite, bolos, começavam a encaminhar-se para o altar da pátria, que se elevava solitário no meio do Campo de Marte, semelhante a um grande túmulo.

      Um pintor, colocado a vinte passos, com a face voltada para o rio fazia escrupulosamente um desenho do que se passava à sua vista.

      Às quatro horas e meia, já ali se contavam umas cento e cinqüenta pessoas.

      Os que se levantam tão cedo são geralmente os que dormiram mal, e a maior parte dos que dormem mal, falo da gente do povo, são os que cearam mal ou não cearam de todo.

      De ordinário, quando se não ceia, e quando se dorme mal, está-se de mau humor às quatro horas da manhã.

      Havia, pois, entre essas cento e cinqüenta pessoas que cercavam o altar da pátria algumas de mau humor, e especialmente de má cara.

      Repentinamente, uma mulher, uma vendedeira de limonada, que subira ao altar da pátria, dá um grito.

      A ponta de uma verruma penetrara-lhe o sapato.

      Chama e acorrem todos. O sobrado estava cheio de buracos, de que não se compreendia a causa, nem a razão; porém a verruma, que acabava de penetrar no sapato da vendedeira de limonada, indicava a presença de um, ou de muitos homens debaixo da plataforma do altar da pátria.

      Que podiam eles ali fazer?

      Interrogam-nos, e ordenam-lhes que respondam, que declarem as suas intenções, que saiam e apareçam.

      Nada de resposta.

      O pintor corre a buscar o guarda.

      Este, que não vê numa mulher picada no pé por uma verruma, motivo suficiente para se incomodar, recusa o serviço e despede o pintor que fora chamá-lo.

      Quando este voltou, a exasperação estava no seu auge. Estavam todos reunidos em volta do altar da pátria, cerca de trezentas pessoas. Levantam uma tábua, penetram na cavidade, e encontram o nosso cabeleireiro e o inválido muito envergonhados.

      O cabeleireiro, que viu na verruma uma prova de convicção, deitou-a fora; porém não pensou em esconder o barril.

      Pegam-lhes na gola, obrigam-nos a subir para a plataforma, interrogam-nos sobre as suas intenções, e como balbuciem levam-nos a casa do comissário.

      Ali, interrogados, confessam o fim com que ali estavam; o comissário, não vendo nisso mais do que uma gaiatice sem conseqüência, deu-lhes a liberdade: porém à porta encontraram as lavradeiras do Gros-Caillou, de cacete em punho, muito melindrosas ao que parece, a respeito da honra das mulheres, e, Dianas irritadas, caem sobre os Acteons modernos a repetidas pauladas.

      Neste momento aparece um homem dizendo que encontrou debaixo do altar da pátria um barril de pólvora; os dois culpados estavam ali, não como disseram, para fazerem buracos e espreitar para cima, mas para fazer voar os patriotas.

      Não havia mais do que tirar o tampo ao barril, e certificar-se de que era vinho e não pólvora o que ele continha; não havia mais do que reflectir, que deitando fogo ao barril, os dois conspiradores, supondo que o barril tivesse pólvora, sofreriam primeiro a explosão do que os patriotas, e que portanto, os dois pretendidos culpados eram inocentes; porém há momentos em que não se reflecte, em que nada se verifica, ou antes em que não se quer reflectir, em que todos se abstêm de verificar.

      Imediatamente a borrasca mudou-se em medonha tempestade. Um grupo de homens apareceu. De onde saiu?

      Ignora-se.

      De onde saíram os homens que mataram Foulon, Berthier e Flesseles?

      De onde saíram os que fizeram os dias 5 e 6 de Outubro?

      Dos pontos para onde voltaram logo que a sua obra de morte se concluiu.

      Esses homens apoderaram-se do desgraçado inválido e do pobre cabeleireiro; lançaram por terra; um deles, o inválido, varado de punhaladas, não se levantou; o outro, o cabeleireiro, foi arrastado para debaixo de um candeeiro: passaram-lhe uma corda em volta do pescoço, içaram-no... Na altura de coisa de dez pés, o peso do corpo faz quebrar a corda! Cai vivo, luta um instante e vê a cabeça de seu companheiro espetada num chuço.

      Como havia ali um chuço? A esta vista, dá um grito e desmaia. Então, cortam-lhe, ou antes, serram-lhe a cabeça, e aparece outro chuço para receber o ensangüentado troféu!

      Em seguida a necessidade de passear por Paris aquelas duas cabeças apodera-se do populacho, e os portadores dos chuços, seguidos de uma centena de bandidos, seus iguais, meteram, cantando, pela rua de Grenelle.

      As nove horas, os oficiais municipais, os notáveis, com meirinhos e trombetas, proclamavam na praça do Palais-Royal o decreto da Assembléia, e as medidas repressivas, que atrairia sobre qualquer a infracção desse decreto, quando pela rua de Saint-Thomas-du-Louvre desembocava toda a malta sedenta de sangue, eram os assassinos.

      Era uma admirável lição à municipalidade: por muito rígidas que fossem as suas medidas, nunca atingiriam a gravidade do crime, que acabava de ser cometido.

      A Assembléia começava a reunir-se; da praça do Palais-Royal à casa da câmara não é longe: a notícia deu um salto e foi rebentar na sala.

      Não se diz porém que foram um cabeleireiro e um inválido, punidos severamente por uma brincadeira de colegiais; diz-se que foram degolados por terem recomendado aos revolucionários o respeito das leis.

      Então Regnault de Saint-Jean-d'Angely subiu imediatamente à tribuna.

      - Cidadãos - disse ele - peço a lei marcial, e peço que a Assembléia declare aqueles que, por escritos individuais ou colectivos, induzem o povo a resistir, criminosos de lesa-nação!

      A Assembléia levanta-se quase toda, e sob proposta de Regnault de Saint-Jean-d'Angely, proclama criminosos de lesa-nação todos aqueles que, por escritos individuais ou colectivos induzirem o povo à resistência.

      Desse modo os peticionários são declarados réus de lesa-nação. Era o que se queria.

      Robespierre estava oculto num canto da sala; ouviu proclamar o voto e correu aos Jacobinos para lhes participar a medida, que acabava de adoptar-se.

      Mandam Santerre ao Campo de Marte para prevenir os peticionários dos perigos que correm.

      Santerre encontra-os efectivamente em número de duzentos ou trezentos, que estavam assinando sobre o altar da pátria a petição dos Jacobinos.

      O homem da véspera, o lavrador Billot, era o centro desse vasto movimento.

      Como não sabia escrever, disse o nome, fez guiar a mão e foi dos primeiros a assinar.

      Santerre subiu ao altar da pátria, anunciou que a Assembléia acabava de proclamar rebelde todo aquele que ousasse pedir a abdicação do rei, e declarou que era enviado pelos Jacobinos para retirar a petição redigida por Brissot.

      Billot desceu os três degraus, e achou-se em frente do célebre fabricante de cerveja. Os dois homens do povo olham um para o outro, ambos são o símbolo das duas forças materiais, que representavam naquele momento um a província outro Paris.

      Ambos se reconhecem por irmãos; combateram juntos na Bastilha.

      - Está bem! - disse Billot - restituir-se-á aos Jacobinos a sua petição; porém faremos outra.

      - E essa petição - disse Santerre - bastará levá-la a minha casa, no arrabalde Saint-Antoine; eu a assinarei e farei assinar pelos meus operários.

      E estendeu-lhe a mão alentada, em que Billot pôs a sua.

      À vista desta poderosa fraternidade, que ligava a província à cidade, aplaudem.

      Billot dá a Santerre a petição, e este retira-se fazendo ao povo um desses gestos de promessa e assentimento, com que o povo se não engana; além disso começava a conhecer Santerre.

      - Agora - disse Billot - os Jacobinos têm medo, concedo: tendo medo, têm direito a retirar a sua petição, concedo ainda: porém nós, que não temos medo, temos direito a fazer outra.

      - Sim, sim - gritaram muitas vozes - outra petição! Aqui, amanhã!...

      - E por que razão não há-de ser já hoje? - perguntou Billot; - amanhã! Quem sabe o que acontecerá daqui até amanhã?

      - Sim, sim - gritaram muitas vozes - sim, hoje! Imediatamente!

      Um grupo numeroso de pessoas distintas se formou em volta de Billot; a força tem a virtude do íman, atrai.

      O grupo compunha-se de deputados dos Franciscanos, ou de Jacobinos, que mal informados, ou mais atrevidos que os chefes, tinham concorrido ao Campo de Marte, apesar da contra ordem.

      Estes homens, pela maior parte, tinham nomes muito desconhecidos então, que não deviam tardar a tornar-se célebres.

      Eram: Roberto de Karalio, os Roland, marido e mulher, Brune, tipógrafo, que foi depois marechal de França; Herbert, escritor público, futuro redactor do terrível Père Duchêne; Chaumette, jornalista e estudante de medicina; Sergent, gravador, que será cunhado de Marceau, e porá em cena as festas patrióticas; Fabre d'Eglantine, o autor da Intriga Epistolar; Henriot, o gendarme da guilhotina; Maillard, o terrível alcaide do Châtelet, que perdemos de vista desde 9 de Outubro, e havemos de encontrar a 2 de Setembro; Isabey pai e filho, sendo talvez este último o único dos actores desta cena, que possa contá-la, vigoroso como está ainda aos oitenta e oito anos.

      - Imediatamente! - gritou o povo: - sim, sim, imediatamente!

      - Uma grande explosão de aplausos se elevou no Campo de Marte.

      - Mas quem a redigirá? - perguntou uma voz.

      - Eu, vós, nós todos - gritou Billot; - esta será realmente a petição do povo.

      Um patriota afastou-se correndo: ia buscar papel, penas e tinta.

      Enquanto esperavam, pegaram nas mãos uns dos outros, e começaram a dançar farândolas, cantando o famoso Ça ira.

      O patriota voltou ao fim de dez minutos, com papel, penas, e tinta; tinha comprado uma garrafa de tinta, um maço de penas e cinco ou seis cadernos de papel.

      Então Robert pegou na pena, e ditando alternadamente a Karalio e os Roland, escreveu a petição seguinte.

     

      Petição à Assembléia Nacional, redigida sobre o altar da pátria, a 17 de Julho de 1791.

     

      Representantes da Nação:

     

      “Tocais o termo dos vossos trabalhos; bem depressa sucessores inteiramente nomeados pelo povo irão caminhar sobre as vossas pisadas, sem encontrarem os obstáculos que vos apresentaram as duas ordens privilegiadas, inimigas necessárias de todos os princípios da santa igualdade.”

      “Cometeu-se um grande crime: Luís XVI foge; abandona indignamente o seu posto; o império está a dois passos da anarquia; honrados cidadãos prendem-no em Varennes, e é reconduzido para Paris. O povo desta capital pede-vos instantemente, que não pronuncieis coisa alguma sobre a sorte do culpado sem ouvir a expressão do sentimento dos oitenta e dois departamentos restantes.”

      “Vós deferis: um grande inúmero de proclamações chegam à Assembléia, todas as secções do império pedem simultaneamente que Luís XVI seja julgado; e vós, senhores, previstes que ele era inocente e inviolável, declarando pelo vosso decreto de 16 que a carta constitucional lhe seria apresentada, logo que se acabasse a constituição. Legisladores! Não era esta a opinião do povo, e pensamos que a vossa máxima glória, o vosso mesmo dever, consistiria em serdes os órgãos da vontade do povo. Certamente, senhores, fostes arrastados a essa decisão pela multidão desses deputados refractários, que fizeram com antecedência o seu protesto contra a constituição; porém, senhores! porém, representantes de um povo generoso e confiado! lembrai-vos que esses duzentos e noventa protestantes não tinham voto na Assembléia Nacional; que o decreto está pois nulo na forma e no espírito; nulo no espírito; porque é contrário à opinião do verdadeiro soberano; nulo na forma, porque é aprovado por duzentos e noventa indivíduos sem qualidade.”

      “Estas considerações, todos estes planos para o bem geral, este desejo imperioso de evitar a anarquia, a que nos exporia a falta de harmonia entre representantes e representados, tudo nos impeliu a pedir-vos que, em nome de toda a França, revogueis aquele decreto; tomeis em consideração que o delito de Luís XVI está provado, que ele abdicou: recebais a sua abdicação e convoqueis um novo corpo constituinte para proceder de um modo verdadeiramente nacional ao julgamento do culpado, e especialmente à substituição e organização de um novo poder executivo”.

     

      Redigida a petição, pediu silêncio. Imediatamente cessa todo o ruído, todos se descobrem, e Robert leu em voz alta as linhas que acabamos de apresentar aos nossos leitores.

      Correspondiam ao desejo geral; por isso não se lhe fez observação alguma; pelo contrário, aplausos unânimes rebentaram à última frase.

      Tratava-se de assinar: não eram unicamente duzentos ou trezentos: havia talvez dez mil, e como por todas as entradas do Campo de Marte a multidão não cessava de chegar, era evidente que antes de uma hora mais de cinqüenta mil pessoas, quem sabe, talvez muitos mais milhares, cercariam o altar da pátria.

      Os comissários redactores assinaram em primeiro lugar, depois passaram a pena aos que estavam próximos, depois, como num segundo a parte inferior da folha estava cheia de assinaturas, distribuíram-se folhas de papel branco do mesmo formato que a petição, as quais, numeradas, se ajuntaram em continuação.

      Distribuídas as folhas, assinaram primeiro sobre as crateras que formavam os quatro ângulos do altar da pátria, depois nos degraus, nos joelhos, na copa dos chapéus, sobre tudo que oferecia ponto de apoio.

      Entretanto, depois das ordens da Assembléia, transmitidas a Lafayette, e que diziam respeito, não à petição que se estava assinando, mas ao assassínio da manhã, as primeiras forças chegaram ao Campo de Marte, e era tal a preocupação que causava a petição, que mal repararam nas tropas.

      E contudo o que vai passar-se tem alguma importância.

 

A bandeira vermelha

      As forças eram conduzidas por um ajudante de ordens de Lafayette. Qual? Ignora-se. Lafayette estava sempre mudando de ajudantes.

      Apesar desta ignorância, um tiro parte da esplanada, e vai ferir o ajudante; porém a ferida é pouco perigosa, e sendo o tiro isolado não quiseram responder.

      Uma cena exactamente do mesmo género se passava no Gros-Caillou.

      Foi pelo Gros-Caillou que se apresentou Lafayette com três mil homens e artilharia.

      Porém Fournier estava ali à frente de um bando de vagabundos provavelmente os mesmos que assassinaram o cabeleireiro e o inválido; estabeleceu-se uma barricada.

      Lafayette marchou contra a barricada e destruiu-a.

      Através das rodas de um carro e à queima-roupa, atiram sobre Lafayette. Felizmente a espingarda erra fogo; saltam a barricada e prendem Fournier.

      Levam-no à presença de Lafayette.

      - Quem é este homem - perguntou ele.

      - Aquele que atirou sobre o general, e a quem a espingarda errou fogo.

      - Soltem-no, e deixem-no ir para que seja enforcado noutra parte.

      Fournier não foi enforcado: desapareceu momentaneamente, e tornou a aparecer na carnificina de Setembro.

      Lafayette chegou ao Campo de Marte: assinava-se ali a petição; reinava a mais perfeita tranqüilidade.

      Era tal o sossego, que a Srª. de Condorcet passeava ali o filho, que tinha um ano de idade.

      Lafayette avança até ao altar da pátria, e informa-se do que fazem ali: mostram-lhe a petição. Os suplicantes declaram que entrarão em suas casas, logo que a petição esteja assinada. Nada vê de repreensível e retira-se com a sua tropa.

      Porém, se o tiro que feriu o ajudante de Lafayette e o que errou fogo sobre ele não foram ouvidos no Campo de Marte, tiveram um eco terrível na Assembléia!

      Não esqueçamos que a Assembléia queria um golpe de estado realista, e que tudo lhe servia.

      Lafayette foi ferido! E o seu ajudante morto!... No Campo de Marte assassina-se!...

      Tal é a notícia que corre em Paris e que a Assembléia transmite à municipalidade.

      Esta ignorando o que se passava no Campo de Marte, enviou ali três dos seus membros, os srs. Jacques, Renaud e Hardy.

      Do lado do altar da pátria os signatários da petição vêem avançar para eles um novo cortejo, que chegava do lado do rio.

      Enviaram uma deputação ao encontro do cortejo.

      Os três homens da municipalidade, que acabavam de entrar no Campo de Marte, caminharam direitos ao altar da pátria; porém em lugar dessa multidão de facciosos, que esperavam encontrar fora de si, em tumulto e cheia de ameaças, vêem cidadãos, uns passeando em grupos, outros assinando a petição, outros finalmente dançando as farândolas e cantando o Ça ira!

      A multidão estava tranqüila, mas talvez a petição fosse sediciosa. Os membros da municipalidade pedem que seja lida a petição.

      A petição é-lhes lida desde a primeira até à última linha, e como já acontecera, esta leitura foi seguida de bravos e de aclamações unânimes.

      - Senhores - disseram então os delegados municipais - estamos encantados de conhecermos as vossas disposições; disseram-nos que havia tumultos: enganaram-nos. Não deixaremos de relatar o que vimos, de dizer a tranqüilidade que reina no Campo de Marte, e longe de vos impedirmos que façais a vossa petição, nós vos ajudaremos com a força pública, no caso de tentarem perturbar-vos. Se não estivéssemos de serviço, nós mesmo a assinaríamos, e se duvidais das nossas intenções, ficaremos em reféns junto de vós até que todos tenham assinado.

      Assim o espírito da petição era o espírito de todos, visto que os membros da municipalidade a assinariam, e o que unicamente os impedia era a sua qualidade oficial.

      Esta adesão de três homens, que eles viam avançar com confiança, supondo-lhes intenções hostis, animaram os suplicantes. Na rixa, sem gravidade, que acabava de ocorrer entre o povo e a guarda nacional, dois homens foram presos; como quase sempre acontece em semelhantes circunstâncias, os dois prisioneiros eram puramente inocentes; os mais notáveis peticionários pediram a liberdade deles.

      - Não podemos tomar isso sob nossa responsabilidade; - responderam os delegados da municipalidade - porém nomeai uma comissão; esta nos acompanhará à câmara e far-se-lhes-á justiça.

      Então nomearam doze comissários, Billot, nomeado por unanimidade, fez parte dessa comissão, que tomou com os três delegados o caminho da municipalidade.

      Chegados à praça de Grève, os comissários ficaram admirados de encontrarem esta praça atulhada de soldados; a grande custo, abriram caminho por entre aquela floresta de baionetas.

      Billot guiou-os. Devem lembrar-se de que ele sabia onde era situada a câmara; mais de uma vez ali o vimos com Pitou.

      À porta da sala do conselho, os três delegados municipais convidam a comissão a esperar um instante, mandam abrir a porta, entram e desaparecem.

      A comissão espera uma hora.

      Nada de resposta.

      Billot impacienta-se, franze o sobrolho e bate o pé no chão.

      Repentinamente abre-se a porta. O corpo municipal aparece com Bailly à sua frente.

      Bailly estava muito pálido; é, primeiro que tudo, um matemático: tem o perfeito sentimento do justo e do injusto; conhece que o impelem a uma acção má: porém a Assembléia Nacional assim o manda, e Bailly executará pontualmente.

      Billot avançou para ele.

      - Sr. maire - diz ele, com aquele tom resoluto que os nossos leitores lhe conhecem - esperamos há mais de uma hora.

      - Quem é e o que tem a dizer-me – perguntou Bailly.

      - Quem sou? - respondeu Billot; - admiro que me pergunte quem sou, Sr. Bailly. É verdade que os que vão pelo mau caminho, não podem conhecer os que vão pelo caminho da justiça... Sou Billot.

      Bailly fez um movimento: aquele único nome recordava-lhe o homem que fora dos primeiros a entrar na Bastilha; que guardara a câmara nos terríveis dias da morte de Foulon e de Berthier; que caminhara junto da portinhola do rei ao voltar de Versalhes e prendera o laço tricolor ao chapéu de Luís XVI; que acordara Lafayette na noite de 5 para 6 de Outubro, e que finalmente, acabava de trazer Luís XVI de Varennes.

      - Quanto ao que tenho a dizer-lhe – continuou Billot - é que somos os enviados do povo, reunido no Campo de Marte.

      - E que pede o povo?

      - Pede que se mantenha a promessa feita pelos seus três enviados, isto é; que dê liberdade a dois cidadãos, injustamente acusados, e por cuja inocência nos responsabilizamos.

      - Bom! - disse Bailly tentando passar; - acaso podemos responder por semelhantes promessas?

      - E porque não?

      - Porque foram feitas a facciosos.

      Os comissários olharam uns para os outros.

      Billot franziu o sobrolho.

      - A facciosos! - disse ele; - ah! Agora somos facciosos!?

      - Sim - disse Bailly - a facciosos, e eu vou dirigir-me ao Campo de Marte para restabelecer a paz.

      Billot encolheu os ombros e começou a rir com aquele riso estridente, que passando por certos lábios, toma uma expressão ameaçadora.

      - Restabelecer a paz no Campo de Marte! – disse ele; - porém o seu amigo Lafayette acaba de sair dali; os seus três delegados também de lá vêm, e dizem-lhe que o Campo de Marte está mais sossegado do que a praça do município!

      Neste momento, o capitão de uma companhia do centro do batalhão Bonne-Nouvelle, correndo esbaforido, perguntou:

      - Onde está o Sr. Maire?

      Billot afasta-se para deixar ver Bailly.

      - Estou aqui - diz este último.

      - Às armas senhor maire! Às armas! - grita o capitão - batem-se no Campo de Marte, onde cinqüenta mil revolucionários se preparam para marchar sobre a Assembléia!

      Apenas o capitão acabou de pronunciar estas palavras, a pesada mão de Billot pousou-lhe sobre o ombro.

      - E quem diz isso? - perguntou o lavrador.

      - Quem o diz? A Assembléia.

      - A Assembléia mentiu! - respondeu Billot.

      - Senhor! - diz o capitão, tirando o sabre.

      - A Assembléia mentiu! - repetiu Billot agarrando o sabre, metade pelo punho, metade pela folha e tirando-o ao capitão.

      - Basta, basta, senhores! - disse Bailly; - vamos por nós mesmos certificar-nos... Sr. Billot, queira entregar o sabre; e se tem influência sobre os que os enviam, volte para junto deles e convide-os a dispersarem-se.

      Billot atirou o sabre aos pés do capitão.

      - A dispersarem-se? - disse ele; - que quer isso dizer? O direito de petição é-nos concedido por um decreto, e até que um decreto no-lo tire, a ninguém será permitido, nem ao maire, nem ao comandante da guarda nacional, impedir os cidadãos de exprimirem a sua opinião... Como vai ao Campo de Marte será precedido por nós, Sr. maire.

      Os que cercavam os actores desta cena só esperavam uma ordem, uma palavra, um gesto de Bailly para prenderem Billot: porém aquele conhecia que a voz que acabava de ouvir tão alta e tão firme, era a voz do povo.

      Fez um sinal aos soldados para deixar passar Billot e o resto da comissão.

      Chegaram à praça. Uma grande bandeira vermelha flutuava numa das janelas do palácio do município, as primeiras virações de uma tempestade subiam ao Céu.

      Infelizmente, aquela tempestade só durou alguns instantes; bramiu sem chuva, aumentou o calor do dia, espalhou mais alguma electricidade no ar, e eis tudo.

      Quando Billot e os seus onze companheiros voltaram para o Campo de Marte a multidão tinha aumentado quase um terço.

      Calculando, quanto possível, o grande número de pessoas que estavam na praça, devia ali haver perto de sessenta mil.

      Esses sessenta mil cidadãos estavam repartidos tanto nas eminências, como em roda do altar da pátria e sobre a plataforma e os degraus do mesmo altar.

      Billot e os onze colegas chegam. Opera-se um grande movimento; correm de todos os pontos, apertam-se e perguntam:

      - Libertaram-se os dois cidadãos? Que respondeu o Sr. maire?

      - Os dois cidadãos não foram soltos e o Sr. maire não mandou responder, mas ele mesmo respondeu que os suplicantes eram facciosos.

      Estes riem do título que lhes davam, todos tomam novamente os seus lugares, e passeiam ou continuam conversando.

      Durante todo esse tempo continuaram a assinar a petição.

      Já se contavam quatro ou cinco mil assinaturas; antes da noite contar-se-iam cinqüenta mil. A Assembléia será obrigada a capitular à vista desta admirável unanimidade.

      Repentinamente um cidadão corre esbaforido. Não só, como os comissários, tinha visto a bandeira Vermelha nas janelas do palácio da municipalidade, mas também ouvira o anúncio de que iam marchar sobre o Campo de Marte. Os guardas nacionais tinham dado gritos de alegria; depois carregaram as espingardas; depois, finalmente, carregadas as armas um delegado da municipalidade foi de fileira em fileira, falando baixo ao ouvido dos comandantes.

      Então toda a massa da guarda nacional e Bailly, com a municipalidade à frente, se pôs a caminho para o Campo de Marte.

      O que soube estes pormenores tomou a dianteira para anunciar aos patriotas estas sinistras novidades.

      Porém reina um tal sossego, uma tal união, uma tal fraternidade neste imenso recinto, consagrado pela confederação do ano precedente, que os cidadãos, que ali exerciam um direito reconhecido pela constituição, não podiam acreditar que fossem eles os ameaçados.

      Preferem pensar que o mensageiro se enganara.

      Continuaram a assinar; as danças e os cantos redobraram.

      Entretanto começou a ouvir-se o rufar de tambores.

      O rufar aproximou-se.

      Então olharam uns para os outros inquietos. Faz-se primeiro um grande ruído na esplanada: mostram-se baionetas, que brilham semelhantes a uma seara de ferro.

      Os membros das principais sociedades patrióticas reúnem-se, agrupam-se e propõem a retirada.

      Porém da plataforma do altar da pátria, Billot exclama:

      - Irmãos! Que fizemos e por que motivo é esse temor? Ou a lei marcial é dirigida contra nós ou não; se não é, de que serve fugir? Se é, publicá-la-ão, seremos advertidos pelas notificações... São necessárias três... Fiquemos... Fiquemos!

      E ficaram.

      No mesmo instante, os tambores rufaram mais próximo, e a guarda nacional apareceu nas três entradas do Campo de Marte.

      Um terço dessa massa armada apresentou-se pela estrada da Escola Militar.

      O outro terço pela estrada que fica mais abaixo.

      Finalmente, o terceiro, pela que fica defronte das alturas do Chaillot.

      Deste lado, a tropa atravessou a ponte de pau, avançou com a bandeira vermelha à frente, levando Bailly nas fileiras.

      Mas a bandeira vermelha é um guião, quase invisível, e que não atrai a vista da multidão mais sobre este corpo do que sobre os outros.

      Eis o que viam os peticionários do Campo de Marte.

      Agora o que vêem os que chegam?

      A vasta planície cheia de passeantes inofensivos, e no meio o altar da pátria, gigantesca construção, para sobre cuja plataforma se sobe, como dissemos, por quatro escadas gigantescas, por onde podem subir quatro batalhões ao mesmo tempo.

      Sobre essa plataforma elevavam-se ainda piramidalmente alguns degraus, que conduziam a um terrapleno coroado pelo altar da pátria, assombreado por uma elegante palmeira.

      Cada degrau, desde o mais alto até ao mais baixo, servia de assento, conforme a sua capacidade, a um número mais ou menos considerável de espectadores.

      A pirâmide humana elevou-se assim ruidosa e animada.

      A guarda do Marais e do arrabalde Saint-Antoine, cerca de quatro mil homens com a sua artilharia, chegava pela estrada, que confina com o ângulo meridional da Escola Militar.

      Formou em linha defronte do monumento.

      Lafayette fiava-se pouco nestes homens do Marais e dos arrabaldes, que formavam a parte democrática do seu exército, por isso lhe havia reunido um batalhão de guarda assalariada.

      A guarda assalariada eram os modernos pretorianos.

      Compunha-se, como dissemos, de antigos militares, de guardas franceses licenciados, de fayettistas desesperados, que, sabendo que tinham atirado sobre o Deus, vinham vingar esse crime, que era à sua vista um crime muito diferente do de lesa-nação que o rei cometera.

      A guarda chegara do lado de Gros-Caillou, e entrara, tumultuosa, formidável e ameaçadora, pelo centro do Campo de Marte, e desde que entrara, ficara defronte do altar da pátria.

      Finalmente, a terceira força, que desembocava pela ponte de madeira precedida da mesquinha bandeira vermelha. Esta força, como dissemos, compunha-se da reserva da guarda nacional, a que estava unida uma centena de dragões, e um bando de cavaleiros, com os competentes sabres, como era seu privilégio, e armados, além disso, até aos dentes.

      Pelas mesmas entradas, por onde passava a guarda nacional a pé, penetraram igualmente alguns esquadrões de cavalaria, que, levantando a poeira, mal apagada por aquela tempestade de um instante, que se podia olhar como um presságio, tiraram aos espectadores a vista do drama, que ia representar-se, ou só lho deixaram entrever através de um véu, ou através de largos rasgões.

      O que pôde ver-se através desse véu, ou por entre esses rasgões, vamos tentar descrevê-lo.

      Foi primeiro, a multidão fugindo diante da cavalaria, cujos cavalos metiam a toda a brida no vasto circo; a multidão que, completamente encerrada num círculo de ferro, refugiava-se ao pé do altar da pátria, como ao abrigo de um asilo inviolável.

      Depois, do lado do rio, uma só detonação e uma forte descarga, cujo fumo subiu para o Céu.

      Bailly acabava de ser acolhido pela apupada dos garotos, que cobriam a montanha do lado de Grenelle; no meio da apupada, ouviu-se um tiro, e uma bala foi, por detrás do maire de Paris, ferir ligeiramente um dragão.

      Então Bailly mandou fazer fogo, porém para o ar, e unicamente para meter medo.

      Porém, como eco dessa descarga, outra lhe respondeu.

      Era a guarda assalariada que atirava pela sua vez.

      Sobre quem? Por que motivo?

      Sobre aquela multidão inofensiva que cercava o altar da pátria.

      Um medonho grito sucedeu a essa descarga; depois viu-se o que então se vira tão pouco, e que depois tantas vezes se tem visto:

      A multidão fugitiva, deixando após si cadáveres e feridos, revolvendo-se no sangue.

      No meio do fumo e da poeira, a cavalaria encarniçada, perseguindo os fugitivos.

      O Campo de Marte apresentava um aspecto deplorável; o maior número de feridos foi de mulheres e crianças.

      Então aconteceu o que acontece sempre em semelhantes circunstâncias, a loucura do sangue e da carnagem foi passando de uns para outros.

      A artilharia meteu as peças em bateria e preparou-se para fazer fogo.

      Lafayette só teve tempo de correr a ela, e de pôr-se com o cavalo em frente das peças.

      Depois de ter divagado um instante, a multidão, perdida foi por instinto lançar-se nas fileiras da guarda nacional do Marais, e do arrabalde de Saint-Antoine.

      A guarda nacional abriu as fileiras e recolheu os fugitivos; o vento empurrava o fumo para o lado dela, de maneira que nada tinham visto, e julgava, que toda esta multidão fugia unicamente pelo medo.

      Quando o fumo se dissipou, viu-se com terror a terra manchada de sangue e juncada de mortos!

      Neste momento, um ajudante de ordens chegava a galope e dava ordem à guarda nacional do arrabalde Saint-Antoine e do Marais para avançar e varrer a praça, a fim de se unir com os dois outros corpos.

      Porém ela, ao contrário, carrega sobre o ajudante e os cavaleiros, que perseguem a multidão.

      Ajudante e cavaleiros recuaram diante das baionetas patrióticas.

      Todos os que fugiram para este lado, aí encontraram uma inabalável protecção.

      Num instante, o Campo de Marte foi evacuado; só ali ficaram os corpos dos homens, das mulheres e das crianças, mortos, ou feridos pela terrível descarga da guarda assalariada, e os dos desgraçados fugitivos acutilados pelos dragões, ou pisados pelos cavalos.

      E contudo, no meio desta carnificina, sem se atemorizarem pela queda dos mortos, pelos gritos dos feridos, debaixo das descargas de fuzilaria, ao alcance da artilharia, os patriotas recolhiam os cadernos da petição que, assim como os homens, encontraram um refúgio nas fileiras da guarda nacional do Marais, e do arrabalde de Saint-Antoine, e acharam, segundo toda a probabilidade, um asilo na casa de Santerre.

      Quem dera a ordem para fazer fogo? Ninguém soube. É um desses mistérios históricos que ficam sem explicação apesar das mais conscienciosas investigações. Nem o cavalheiresco Lafayette, nem o honrado Bailly amavam o sangue, e todavia este sangue perseguiu-os constantemente até à morte.

      A sua popularidade afogou-se nele nesse mesmo dia.

      Quantas vítimas ficaram no campo da carnagem?

      Ignora-se; porque uns diminuíram o número para atenuarem a responsabilidade do maire e do comandante da guarda nacional; outros aumentaram-no, para engrandecer a cólera do povo.

      Chegada a noite deitaram os cadáveres ao Sena; o Sena, cúmplice inconsciente, levou-os para o oceano; o oceano absorveu-os.

      Mas em vão Bailly e Lafayette foram, não só absolvidos, mas ainda felicitados pela Assembléia; em vão os jornais constitucionais chamaram a esta acção o triunfo da lei; este triunfo foi infamado, como merecem sê-lo todos aqueles desastrosos dias em que o poder mata sem combater.

      E o povo, que dá às coisas o seu verdadeiro nome, chamou a este pretendido triunfo: A matança do Campo de Marte.

 

Depois da matança

      Entremos em Paris e vejamos um pouco o que aí se passava.

      Paris tinha ouvido o estrondo da fuzilaria e estremecera. Paris ainda não sabia perfeitamente quem errava ou quem tinha razão; porém conhecia que acabava de receber uma ferida, pela qual corria sangue.

      Robespierre estava permanente nos Jacobinos, como um governador na sua fortaleza; ali era verdadeiramente poderoso. Porém, por agora, a cidadela popular fora tomada, e todos podiam entrar pela brecha que haviam feito, ao retirarem Barnave, Duport e Lameth.

      Os Jacobinos mandaram um dos seus colher informações.

      Quanto aos seus vizinhos, os Bernardos, não tinham precisão de mandar: estavam informados hora a hora, minuto a minuto. Era a sua partida, que se jogava, e acabavam de ganhá-la...

      O enviado dos Jacobinos entrou no fim de dez minutos. Tinha encontrado os fugitivos, que lhe haviam dado esta terrível notícia:

      - Lafayette e Bailly trucidaram o povo!

      Nem todos puderam ouvir os gritos desesperados de Bailly, nem todos podiam ter visto Lafayette lançar-se na frente das peças.

      O enviado voltou pois, dando pela sua vez um grito de terror, para a Assembléia aliás pouco numerosa. No velho convento estavam apenas reunidos trinta ou quarenta Jacobinos.

      Compreenderam que era sobre eles que os Bernardos iam fazer recair a responsabilidade das provocações. Não saíra do seu clube a primeira petição? Tinham-na retirado, é verdade, porém a segunda era evidentemente filha da primeira.

      Tiveram medo.

      Essa pálida figura, esse fantasma da virtude, essa sombra da filosofia de Rousseau, a que chamavam Robespierre, de pálido tornou-se lívido. O prudente deputado de Arras tentou evadir-se e não o pôde fazer: forçoso lhe foi ficar e tomar um partido. Esse partido foi inspirado pelo medo.

      A sociedade declarou que retratava os impressos falsos ou falsificados, que lhe tinham atribuído, e que jurava novamente fidelidade à constituição e inteira obediência a todos os decretos da Assembléia.

      Acabava apenas de fazer esta declaração, quando através dos velhos corredores dos Jacobinos, se ouviu um grande ruído vindo da rua.

      O ruído compunha-se de risos, apupadas, clamores, ameaças e cânticos. Os Jacobinos, com o ouvido atento, esperavam que passasse adiante e seguisse o seu caminho pelo lado do Palais-Royal.

      Nada! O ruído cessou, a multidão fixou-se defronte da porta baixa e sombria, que dava para a rua de Saint-Honoré, e para aumentar o terror, que já reinava, alguns dos presentes exclamaram:

      - São os guardas assalariados que voltam do Campo de Marte!... Vêm atacar a sala!... Querem arrasá-la!...

      Felizmente, por precaução, tinham colocado soldados de sentinela às portas. Fecharam todas as entradas, para impedirem que essa tropa furiosa e sedenta de sangue humano derramasse mais; depois, Jacobinos e espectadores saíram a pouco e pouco; a saída não foi demorada, porque assim como a sala continha apenas trinta ou quarenta membros, as tribunas não tinham mais de cem espectadores, talvez menos ainda.

      A Srª. Roland, que esteve em toda a parte, nesse dia, pertencia a estes últimos. Conta que um Jacobino, à notícia de que as tropas assalariadas iam invadir a sala, perdeu a cabeça a tal ponto, que saltou para a tribuna das mulheres.

      Ela envergonhou-o censurando-lhe tanto terror, e ele retirou-se por onde viera.

      Entretanto, como dissemos, actores e espectadores evadiam-se pela porta entreaberta.

      Robespierre saiu também.

      Hesitou um instante. Voltaria para a direita ou para a esquerda? Era para a esquerda que devia voltar para ir para casa. Como sabem, morava no fim do Marais, porém teria de atravessar as fileiras da guarda assalariada.

      Preferiu ganhar o arrabalde Saint-Honoré para pedir asilo a Pétion, que morava ali.

      Voltou para a direita.

      Robespierre tinha grande desejo de passar despercebido; mas como o poderia fazer, se era tão conhecido pela casaca cor de azeitona e pelos óculos, que testemunhavam que antes da idade aquele virtuoso patriota se tinha cansado em vigílias, sendo ainda denunciado pelo andar oblíquo, semelhante ao da doninha e da raposa?

      Apenas Robespierre dera vinte passos na rua, e já duas ou três pessoas tinham dito umas às outras:

      - O Robespierre!... Vês o Robespierre?!... É o Robespierre!

      As mulheres paravam e punham as mãos. As mulheres gostavam muito de Robespierre, que em todos os seus discursos tinha muito cuidado em declarar a sensibilidade do seu coração.

      - Como? O caro Sr. de Robespierre! É ele?

      - É sim.

      - Onde está?

      - Ali, ali... Vês aquele homem baixinho, delicado e bem polvilhado, que vai encostado à parede, e se oculta por modéstia?

      Robespierre não se ocultava por modéstia, ocultava-se por medo; porém, quem ousaria dizer que o virtuoso, que o incorruptível Robespierre, que o tribuno do povo se ocultava por medo?

      Um homem foi olhar para ele de frente para se certificar de que era o próprio Robespierre.

      Este carregou o chapéu, ignorando o fim com que olhavam para ele.

      O homem conheceu-o.

      - Viva Robespierre! - gritou.

      Robespierre estimava mais ter que tratar com um inimigo do que com semelhante amigo.

      - Robespierre? - gritou outro ainda mais fanático; - viva Robespierre! Se é necessário absolutamente um rei seja ele!

      Ó grande Shakespeare! “César morreu: seja feito César o seu assassino”.

      Um círculo imenso se formou em volta dele: falaram em levá-lo em triunfo!

      Deveras, se algum homem maldissesse já a sua popularidade foi Robespierre naquele momento.

      Olhou por baixo dos óculos para a direita e para a esquerda, procurando alguma porta aberta, algum sombrio corredor para onde fugisse, onde se escondesse.

      Exactamente, sentiu-se agarrado pelo braço, e puxado vigorosamente para o lado, enquanto em tom amigável, uma voz lhe dizia baixinho:

      - Venha!

      Robespierre cedeu ao impulso, deixou-se levar maquinalmente, sentiu uma porta fechar-se sobre ele e achou-se na loja de um marceneiro.

      Esse marceneiro era um homem de quarenta e dois a quarenta e cinco anos.

      Junto dele estava a mulher; num compartimento interior, havia duas lindas raparigas, uma de quinze, outra de dezoito anos, que preparavam a ceia da família.

      Robespierre estava muito pálido, parecendo que ia desmaiar.

      - Leonor - disse o marceneiro - traze um copo de água, depressa.

      Leonor, a filha mais velha do marceneiro, aproximou-se, tremendo, com um copo cheio de água.

      Talvez os lábios do austero tribuno tocassem os dedos da filha de Duplay. Porque era em casa do marceneiro Duplay que Robespierre estava.

      A Srª. Roland, que sabia o perigo que ele corria, e que ainda o exagerava, dirigiu-se inutilmente para o Marais para lhe oferecer um asilo em sua casa.

      Deixemos agora Robespierre, que está em segurança no meio daquela família Duplay, que ele vai tornar sua, para entrarmos nas Tulherias atrás do Dr. Gilberto.

      Ainda desta vez a rainha espera; mas como não é Barnave a quem espera, está, não na sobreloja da Srª. Campan, mas na sua câmara: não em pé, com a mão no fecho da porta, mas assentada numa cadeira, com a cabeça entre as mãos.

      Espera Weber, que mandara ao Campo de Marte, e que tudo vira das alturas de Chaillot.

      Para sermos justos para com a rainha, e para que bem se compreenda a raiva que ela consagra aos franceses, segundo diziam, e que tanto lhe têm censurado, depois de haver contado o que ela sofreu durante a viagem de Varennes, digamos o que sofreu desde o regresso.

      Um historiador poderia ser parcial; nós não somos mais do que romancista; a parcialidade é-nos vedada.

      Presos o rei e a rainha, o povo só teve uma preocupação; era que tendo fugido a primeira vez, podiam fugir segunda, e dessa alcançarem a fronteira.

      A rainha especialmente, era considerada como uma mágica capaz, como Medeia, de fugir por uma janela num carro puxado por dois dragões.

      Estas idéias não corriam unicamente entre o povo, tinham crédito até entre os oficiais, encarregados de guardar Maria Antonieta.

      O Sr. de Gouvion, que a deixara escapar no tempo da fuga de Varennes, e cuja amante denunciara a partida a Bailly; o Sr. de Gouvion declarara não assumir responsabilidade, se outra mulher, que não fosse a Srª. de Rochereul, (devem lembrar-se de que era o nome da aia) tivesse direito a entrar na câmara da rainha.

      Por conseqüência, mandara pôr no patamar da escada, que conduzia ao aposento real, o retrato da Srª. de Rochereul, para que a sentinela, verificando a identidade de todas as pessoas que se apresentassem, não permitisse a entrada a outra mulher.

      A rainha foi informada desta ordem; passou imediatamente ao gabinete do rei e queixou-se. O rei não o podia acreditar: mandou ao patamar da escada para se certificar do facto: era verdadeiro.

      O rei mandou chamar o Sr. de Lafayette e reclamou o desaparecimento daquele retrato.

      O retrato foi retirado e as damas ordinárias da rainha reassumiram novamente o seu serviço junto dela.

      Porém, em lugar desta humilhante ordem, uma precaução não menos ofensiva acabava de ser tomada: os comandantes de batalhão, que estavam postados, segundo o costume, na sala precedente à câmara da rainha, e a que chamavam o grande gabinete, tinham ordem de conservar a porta constantemente aberta, a fim de poderem ver sempre a família real.

      Um dia o rei arriscou-se a fechar a porta.

      Imediatamente o oficial foi abri-la.

      Um instante depois o rei tornou a fechá-la.

      Porém, abrindo-a novamente, o oficial disse:

      - Senhor, é inútil fechar a porta: quantas vezes a fechar tantas vezes a abrirei; é a ordem.

      A porta ficou aberta.

      Tudo o que se pôde obter dos oficiais, foi que a porta, sem estar completamente fechada, estivesse encostada à ombreira, quando a rainha se vestisse ou despisse.

      Vestida ou deitada a rainha, a porta tornava a abrir-se.

      Era uma tirania intolerável. A rainha teve a idéia de colocar junto do seu leito o da sua aia, de maneira que este se achasse de permeio entre ela e a porta.

      Aquele leito, guarnecido de cortinas, servia-lhe de biombo, atrás do qual, podia vestir-se ou despir-se.

      Uma noite o oficial, vendo que a aia dormia e a rainha velava, aproveitou o sono da dama para entrar na câmara, e vagarosamente se foi aproximando do leito da rainha.

      A rainha viu-o aproximar-se com aquela expressão que sabia tomar a filha de Maria Teresa quando lhe faltavam ao respeito: porém o bom do homem, que não julgava de maneira alguma faltar ao respeito à rainha, não se inquietou com aquele ar, e olhando-a, pela sua vez, com uma expressão de piedade, com que não era fácil enganar-se, disse:

      - Ai, real senhora, visto que a encontro só, convém que lhe dê alguns conselhos.

      E imediatamente, sem lhe importar saber se a rainha queria ou não ouvi-lo, explicou-lhe o que faria, se estivesse no seu lugar.

      A rainha, que o vira aproximar com cólera, sossegada pelo seu tom de bonomia, tinha-o deixado falar e acabara por o ouvir deleitadamente, mas com profunda melancolia.

      Entretanto, a dama acordou, e vendo um homem junto do leito da rainha, deu um grito e quis pedir socorro.

      Porém a rainha sossegou-a.

      - Não, Campan - disse ela - deixe-me ouvir o que diz este senhor. O senhor é um bom francês, enganado como tantos outros sobre as nossas intenções, e os seus discursos manifestam uma profunda dedicação à realeza.

      E o oficial continuou, dizendo à rainha o que tinha a dizer-lhe.

      Antes de partir para Varennes, Maria Antonieta não tinha um único cabelo branco.

      Durante a noite, que se seguiu à cena que contamos, entre ela e Charny, os cabelos embranqueceram-lhe quase completamente.

      Vendo esta triste metamorfose, sorriu com amargura, cortou um anel deles e mandou-o à Srª. de Lamballe, em Londres, com estas palavras:

     

      “Embranquecidos pela desgraça!”

     

      Vimo-la esperando Barnave, assistimos às esperanças deste, porém estas esperanças tiveram muita dificuldade em fazê-las compartilhar a rainha.

      Maria Antonieta temia as cenas de violência: até então, sempre essas cenas se haviam voltado contra ela; sirvam de prova o 14 de Julho, os 5 e 6 de Outubro e a prisão em Varennes.

      Ouvira nas Tulherias a detonação da fatal descarga no Campo de Marte; o coração inquietara-se-lhe profundamente. A jornada de Varennes fora para ela uma grande lição. Até então a revolução não excedera, a seu ver, a altura de um sistema de Pitt ou de uma intriga do duque de Orleans, e julgando o povo de Paris guiado por alguns agentes dele, dizia com o rei: “A nossa boa província!”

      Vira a província: era esta ainda mais revolucionária do que Paris.

      A Assembléia estava muito velha, muito desmembrada, muito decrépita para sustentar rigorosamente as promessas, que Barnave fizera em seu nome; além disso, estava próxima da morte. Não é muito salutar o abraço de um moribundo!

      Como dissemos a rainha esperava ansiosamente Weber.

      A porta abriu-se: voltou apressadamente os olhos para esse lado, mas em lugar da gorda cara austríaca do seu colaço, viu aparecer o rosto severo e frio do Dr. Gilberto.

      A rainha não gostava daquele realista de teorias constitucionais, tão bem acentuadas, que ela olhava-o como republicano; e contudo tinha por ele um certo respeito; não o teria mandado chamar nem numa crise física, nem numa crise moral; porém, uma vez presente, sofria-lhe a influência.

      Ao vê-lo, estremeceu.

      Não o tornara a ver desde o dia em que regressara de Varennes.

      - É o doutor? - murmurou ela.

      Gilberto inclinou-se e disse:

      - Sim, senhora, sou eu... Sei que esperava Weber; porém as notícias que ele traz, sei-as eu ainda mais precisamente. Ele estava do lado do sítio onde não se matava; eu estava do lado em que corria sangue.

      - Em que corria sangue? Então que aconteceu, senhor? - perguntou a rainha.

      - Uma grande desgraça, senhora: o partido da corte triunfou!

      - O partido da corte triunfou! E chama a isso uma grande desgraça, Sr. Gilberto?

      - Sim, porque triunfou por um desses meios terríveis, que debilitam o vencedor e que às vezes o prostram ao lado do vencido!

      - Então o que se passou?

      - Lafayette e Bailly atiraram sobre o povo, de maneira que aí os tem vossa majestade impossibilitados de servi-la para o futuro.

      - Por que motivo?

      - Porque perderam a popularidade.

      - E que fazia o povo sobre que atiraram?

      - Assinava uma petição, em que pedia a abdicação.

      - A abdicação de quem?

      - De el-rei.

      - E acha que fizeram mal em atirar sobre ele? - perguntou a rainha, cujo olhar brilhou.

      - Creio que teriam feito melhor em convencê-lo do que em fuzilá-lo.

      - Convencê-lo de quê?

      - Da sinceridade de el-rei.

      - Mas El-rei é sincero!

      - Perdão, senhora... Há três dias deixei el-rei; toda a noite se havia passado tentando fazer-lhe compreender que os seus verdadeiros inimigos são os seus próprios irmãos, o Sr. de Condé e os emigrados. Tinha suplicado de joelhos a el-rei que rompesse todas as relações com eles e adoptasse francamente a constituição, salvo se nela encontrasse artigos, cuja prática tornasse a aplicação impossível. El-rei, convencido, pelo menos eu assim julgava, teve a bondade de prometer-me, que tudo acabaria entre ele e os emigrados; e na minha ausência assinou e fez assinar a vossa majestade uma carta para seu irmão, o Sr. de Provença, na qual lhe dava plenos poderes junto do imperador da Áustria e do rei da Prússia.

      A rainha corou como uma criança surpreendida em flagrante; porém a criatura curva a cabeça, e ela, pelo contrário, revoltou-se.

      - Os nossos inimigos têm espiões no gabinete de el-rei?

      - Sim, senhora - respondeu tranquilamente Gilberto - e é o que torna perigosíssimo qualquer passo errado da parte de el-rei.

      - Porém a carta era inteiramente escrita por el-rei; foi depois assinada por mim, dobrada e lacrada por el-rei, e entregue ao correio, que a devia levar.

      - É verdade, senhora.

      - Então o correio foi atacado?

      - A carta foi lida.

      - Então estamos cercados unicamente de traidores?

      - Nem todos os homens são o conde de Charny!

      - Que quer dizer?

      - Ah! Quero dizer, senhora, que um dos agouros fatais, que pressagiam a perda dos reis, é afastarem de si os homens que deviam prender à sua fortuna com cadeias de ferro.

      - Eu não afastei o Sr. de Charny - disse amargamente a rainha: - foi o Sr. de Charny que se retirou. Quando os reis são infelizes, não há laços bastante fortes que conservem ao lado deles os seus amigos.

      Gilberto olhou para a rainha e meneou tristemente a cabeça.

      - Não calunie o Sr. de Charny, senhora, ou o sangue dos irmãos dele bradará do fundo da sepultura, que a rainha de França é ingrata.

      - Senhor - disse Maria Antonieta.

      - Oh bem sabe, que digo a verdade senhora - continuou Gilberto - bem sabe que no dia em que um verdadeiro perigo ameaçar vossa majestade o Sr. de Charny estará no seu posto, e que esse posto há-de ser onde existir o perigo.

      A rainha baixou a cabeça.

      - Finalmente - disse por fim impaciente – suponho que não veio aqui para me falar no Sr. de Charny?

      - Não, senhora, porém as idéias são às vezes como os acontecimentos, encadeiam-se por fios invisíveis e patenteiam-se muitas vezes, quando deviam ficar ocultas no íntimo do coração... Não, senhora, vinha para falar à rainha; perdão se involuntariamente falei à mulher, porém eis-me pronto a reparar o meu erro.

      - E que queria dizer à rainha?

      - Queria fazer-lhe ver bem a sua situação, a da França, a da Europa, queria dizer-lhe: “Senhora, joga a felicidade ou a desgraça do mundo, perdeu a primeira partida no dia 6 de Outubro, acaba, pelo menos aos olhos dos seus cortesãos, de ganhar a segunda. A contar de amanhã, entrará na que se chama dos mestres; se a perde, perderá o trono, a liberdade e talvez a vida”.

      - E - disse a rainha levantando-se vivamente - julga que recuaremos diante de tal receio?

      - Sei que el-rei é valente: é neto de Henrique IV; sei que a rainha é heróica: é filha de Maria Teresa; para com vossa majestade só usarei da convicção; infelizmente, duvido que consiga fazer passar para o coração da rainha e de el-rei a convicção que existe no meu.

      - Então, para que se dá a semelhante trabalho, se o julga inútil?

      - Para cumprir um dever, senhora... Acredite-me vossa majestade, é muito suave, quando se vive em tempos tão tempestuosos como os nossos, poder dizer, a cada esforço que fazemos, ainda que seja infrutífero: “É um dever que cumpro!”

      A rainha olhou para Gilberto.

      - Antes de tudo - disse ela - pensa que assim seja possível salvar el-rei?

      - Assim o creio.

      - E a realeza?

      - Também.

      - Pois bem, senhor - disse a rainha soltando um profundo suspiro - é mais feliz do que eu, pois creio que estão ambos perdidos, e só luto para sossegar a minha consciência.

      - Sim, senhora, compreendo isso, porque deseja a realeza despótica e o rei absoluto; como um avaro, que não sabe, mesmo tendo próximo de si uma praia que pode proporcionar-lhe mais do que ele perde no naufrágio, sacrificar uma parte da sua fortuna, e quer guardar todos os seus tesouros, afogar-se-á com os seus, arrastada pelo peso deles... Tome vossa majestade uma parte da tempestade, lance ao abismo todo o passado, se for necessário, e doravante nade para o futuro!

      - Lançar o passado ao abismo é romper com todos os reis da Europa.

      - Sim, mas é fazer aliança com o povo francês.

      - O povo francês é nosso inimigo. - disse Maria Antonieta.

      - Porque lhe ensinou a duvidar de vossas majestades.

      - O povo francês não pode lutar contra uma liga européia.

      - Suponha que esteja à sua frente um rei, que aceite francamente a constituição, e o povo francês fará a conquista da Europa.

      - Para isso era preciso um exército de um milhão de homens.

      - Não se faz a conquista da Europa com um milhão de homens, senhora; faz-se com uma idéia... Plante no Reno e nos Alpes duas bandeiras tricolores, com estas palavras: “Guerra aos tiranos! Liberdade aos povos!” e a Europa será conquistada.

      - Na verdade, senhor, há momentos em que julgo acreditar que os mais sábios tornam-se loucos!

      - Ai, senhora, ignora o que é, neste momento, a França aos olhos das nações! A França, com alguns crimes individuais, mas que não mancham o seu vestido branco, que não sujam as suas mãos puras, a França é a virgem da liberdade; todo o mundo é amante dela: dos Países-Baixos, do Reno, da Itália, milhões de vozes a invocam! Ela não tem mais do que pôr um pé fora da fronteira para que os povos a recebam de joelhos. A França chegando com as mãos cheias de liberdade, já não é uma nação, é a justiça imutável! É a razão eterna!... Oh! Senhora, aproveite o momento de não ter ela ainda começado com violências, porque se espera muito tempo, as mãos que ela estende sobre o mundo, voltá-las-á contra si mesma... Mas a Bélgica, a Alemanha e a Itália seguem todos os seus movimentos com olhares de amor e alegria; a Bélgica diz-lhe: “Vem!” A Alemanha diz-lhe: “Espero-te!” e a Itália: “Salva-me!” No interior do Norte, não escreveu uma pena desconhecida sobre a secretária de Gustavo: “Nada de guerra à França!” Além disso, nenhum desses reis, que chama em seu auxílio, está preparado para nos fazer a guerra. Dois impérios nos odeiam profundamente, quando digo dois impérios, quero dizer uma imperatriz e um ministro: Catarina II e Pitt; porém eles nada podem contra nós, pelo menos agora.

      Catarina II tem a Turquia debaixo de uma guerra e a Polónia debaixo da outra; é suficiente, para se entreter dois ou três anos, submeter uma e devorar a outra; impele os alemães contra nós e oferece-lhes a França; repreende seu irmão Leopoldo pela sua inacção, aponta-lhe o rei da Prússia invadindo a Holanda para causar um simples desgosto a sua irmã; e diz-lhe: “Marche!” porém ela não marcha. Pitt agora despoja a Índia; é como a jibóia: a sua laboriosa digestão adormenta-o; se esperamos que se acabe, ele nos atacará pela sua vez, não tanto com a guerra estrangeira, como com a civil... Bem sei que tem um medo mortal de Pitt; sei que confessa não falar nele sem se sentir desfalecer. Quer um meio de o ferir mortalmente? É fazer da França uma república com um rei! Em lugar disso, que faz, senhora, em lugar disso que faz a sua amiga, a princesa de Lamballe, que diz à Inglaterra, onde a representa, que toda a ambição da França é conseguir a carta constitucional; que a revolução francesa, guiada e disposta pelo rei, vai recuando! E o que responde Pitt? Que não sofrerá que a França se torne república; que salvará a monarquia; porém todas as instâncias, todas as súplicas da Srª. de Lamballe não têm podido fazer-lhe prometer, que salvará a monarquia, porque o odeia! Não foi Luís XVI, rei constitucional, rei filósofo, que lhe disputou a Índia e arrancou a América? Luís XVI! O que Pitt deseja é que a história encontre nele um equivalente de Carlos I!

      - Senhor! Senhor! - exclamou a rainha espantada - quem lhe diz semelhantes coisas?

      - Os mesmos homens que me dizem o que contêm as cartas, que vossa majestade escreve.

      - Então não temos um único pensamento que nos pertença?

      - Disse a vossa majestade que os reis da Europa estavam envolvidos numa rede invisível, em que aqueles que quisessem resistir se debateriam inutilmente. Não resista, senhora; ponha-se à frente das idéias que tenta fazer recuar, e a rede tornar-se-lhe-á uma armadura, e os que a odeiam tornar-se-ão seus defensores, e os punhais invisíveis que a ameaçam, tornar-se-ão espadas prontas a ferirem os seus inimigos.

      - Mas esquece sempre que aqueles a quem chama nossos inimigos, são os reis nossos irmãos?

      - Senhora, chame uma vez aos franceses seus filhos, e verá então o pouco que lhe são os seus irmãos segundo a política e a diplomacia! E demais, não vê que todos esses reis, todos esses príncipes estão marcados com o selo fatal, com o selo da loucura? Comecemos por seu irmão Leopoldo, caduco aos quarenta e quatro anos, com o seu harém toscano transportado para Viena, reanimando as suas faculdades moribundas com excitantes homicidas, que ele mesmo compõe...

      Veja Frederico; veja Gustavo; um está morto, o outro, morrerá sem posteridade, pois aos olhos de todos é conhecido que o herdeiro real da Suécia é o filho de Monk, e não o de Gustavo...

      Veja o rei de Portugal com as suas trezentas religiosas...

      Veja o rei da Saxónia com os seus trezentos e cinqüenta e quatro bastardos...

      Veja Catarina, essa Pasiphaé do Norte, a quem não somente bastaria um touro, por três exércitos por amantes...

      - Oh! Senhora, senhora, não vê, que todos esses reis e essas rainhas caminham para o pélago, para o abismo, para o suicídio, e que, se quiser, em vez de caminhar como eles para o suicídio, para o abismo e para o pélago, caminhará para o império do mundo e para a monarquia universal?

      - Porque não diz isso a el-rei Sr. Gilberto? – perguntou a rainha abalada.

      - Ah! Tenho-lho dito: mas, como vossa majestade, tem ele também os maus génios, que desfazem o que eu faço!

      Depois, com profunda melancolia, acrescentou:

      - Vossa majestade gastou Mirabeau, gastou Barnave; gasta-me depois a mim como a eles, e tudo estará terminado!

      - Sr. Gilberto - disse a rainha - espere-me aqui...

      Gilberto inclinou-se: a rainha passou por diante dele e saiu pela porta que conduzia ao gabinete do rei.

      O doutor esperou dez minutos, um quarto de hora, meia hora, finalmente abriu-se uma porta, mas oposta àquela por onde saíra a rainha.

      Era um oficial que, depois de ter olhado para todos os lados com inquietação, adiantou-se para Gilberto, fez um sinal maçónico, entregou-lhe uma carta e retirou-se imediatamente.

      Gilberto abriu a carta e leu:

     

      “Perdes o tempo, Gilberto; neste momento a rainha e o rei ouvem o Sr. de Bréteuil, que chega de Viena, e traz este plano político:

     

      “Fazer com Barnave como se fez com Mirabeau; ganhar tempo, jurar a constituição, executá-la literalmente, para mostrar que é inexecutável. A França esfriará e enojar-se-á; os franceses têm a cabeça leviana, inventar-se-á alguma moda nova e a liberdade será esquecida.”

      “Se a liberdade não esquecer, ter-se-á ganho um ano; e num ano estaremos preparados para a guerra.”

     

      “Deixa, portanto, esses dois condenados, que ainda por irrisão se chamam reis, e vai imediatamente ao hospício do Gros-Caillou; aí encontrarás um moribundo, menos doente que eles, porque a esse talvez o possas salvar, ao passo que estes, sem que o possas fazer, te arrastarão na sua queda!”

     

      O bilhete não tinha assinatura; porém Gilberto conheceu a letra de Cagliostro.

      Neste momento entrou a Srª. Campan; desta vez era pela porta por onde saíra a rainha.

      Entregou a Gilberto um pequeno bilhete, concebido nestes termos:

     

      Sua majestade el-rei pede ao Sr. Dr. Gilberto que lhe remeta por escrito todo o plano político que acabou de expor a sua majestade a rainha.

      “A rainha, detida por um negócio importante, tem o desgosto de não poder voltar ao Dr. Gilberto; seria pois inútil esperá-la mais tempo”.

     

      Gilberto leu, ficou um instante pensativo, e meneando a cabeça, murmurou:

      - Insensatos!

      - Não tem nada que dizer a suas majestades? - perguntou a Srª. Campan.

      Gilberto entregou à dama a carta sem assinatura, que acabava de receber, e disse:

      - Eis a minha resposta.

      E saiu.

 

Nada de mais senhor! Nada de mais senhor!

      Antes de seguirmos Gilberto ao hospital de Gros-Caillou, onde o reclamam os cuidados prestados ao ferido desconhecido, que Cagliostro lhe recomendara, relanceemos ainda uma vez os olhos pela Assembléia que vai dissolver-se, depois de aceita essa constituição, a que está ligada a não abdicação do rei, e vejamos que partido a corte tirara da fatal vitória de 17 de Julho, que dois anos mais tarde havia de custar a cabeça a Bailly. Depois voltaremos aos heróis desta história, que temos um pouco perdido de vista, arrebatados como somos pela tormenta política, que nos força a apresentar aos nossos leitores esses grandes tumultos em que os indivíduos desaparecem para cederem o lugar às massas.

      Vimos o perigo que Robespierre corria, e sabemos como, graças à intervenção do marceneiro Duplay, escapou ao triunfo, talvez mortal, que ia ser dispensado à sua popularidade.

      Enquanto ceia familiarmente numa pequena casa de jantar, que dá para o pátio, com o marido, a mulher e as filhas, os seus amigos, instruídos do perigo a que esteve exposto, inquietavam-se por ele.

      A Srª. Roland especialmente, criatura dedicada, esquece que fora vista e conhecida no altar da pátria e que corria tanto risco como os outros. Começa por dar asilo em sua casa a Roberto e à Srª. de Keralio; depois, como lhe disseram que a Assembléia devia, naquela noite, redigir um auto de acusação contra Robespierre, vai, para o prevenir, ao fim do Marais, e, não o encontrando, volta, pelo cais dos Theatinos, a casa de Buzot.

      Buzot era um dos admiradores da Srª. Roland, que sabia quanta influência tinha sobre ele. Foi por isso que se lhe dirigiu.

      Buzot mandou imediatamente entregar um bilhete a Gregório. Se atacasse Robespierre nos Bernardos, seria defendido por Gregório, se atacassem na Assembléia, seria Buzot quem ali havia de defendê-lo.

      Isto era da sua parte tanto mais meritório, por quanto não era amigo de Robespierre.

      Gregório foi aos Bernardos e Buzot à Assembléia. Não se tratou de acusar Robespierre, nem qualquer outro. Os deputados e os Bernardos estavam admirados da sua própria vitória, e consternados pelo passo sanguinolento que tinham dado em proveito dos realistas. Por falta de acusação contra os homens, apresentaram uma contra os clubes; um membro da Assembléia pediu o seu imediato encerramento. Julgou-se um instante que haveria unanimidade por esta medida, porém Duport e Lafayette reprovaram: fechar os clubes era fechar os Bernardos. Lafayette e Duport estavam ainda convencidos da força que esta arma lhes prestava; acreditavam que os Bernardos substituiriam os Jacobinos, e que, pela imensa máquina, dirigiriam o espírito dos povos da França.

      No dia seguinte, a Assembléia recebeu o duplo relatório do maire de Paris e do comandante da guarda nacional. Todos tinham interesse em enganar-se: a comédia foi portanto muito fácil de representar.

      O comandante e o maire falaram da imensa desordem, que lhes fora necessário reprimir; do assassínio da manhã e dos tiros da tarde, duas coisas que não tinham relação alguma; do perigo que ameaçara o rei, a Assembléia e toda a sociedade, perigo que eles sabiam melhor que ninguém não ter existido nunca.

      A Assembléia agradeceu-lhes a energia, que não tinham tido idéia de desenvolver, felicitou-os pela vitória, que lastimavam no íntimo do coração, e deu graças ao Céu, que permitia que se aniquilassem de um só golpe a revolução e os revoltosos.

      A dar crédito aos felicitados e às felicitações, estava a revolução terminada.

      E a revolução começava!

      Entretanto os antigos Jacobinos, tomando o dia seguinte pela véspera, julgavam-se atacados, perseguidos, encarcerados e preparavam-se para fazer perdoar a sua importância real à força de fingida humildade. Robespierre, ainda muito receoso por ter sido proposto rei em lugar de Luís XVI, redigiu uma proclamação em nome dos presentes e ausentes.

      Nesta proclamação felicitava a Assembléia pelos seus generosos esforços, pela sabedoria e firmeza com que se houvera, pela sua vigilância e justiça imparcial e incorruptível.

      Como é que os Bernardos deixariam de recuperar ânimo e não se teriam julgado omnipotentes, ao ver a humildade dos seus inimigos?

      Por um instante se julgaram não só senhores de Paris, mas ainda da França.

      Ah! Os Bernardos não tinham compreendido a situação: separando-se dos Jacobinos tinham criado mui simplesmente uma segunda Assembléia. A semelhança entre as duas era tal, que tanto nos Bernardos como na Assembléia só se entrava pagando décima, sendo cidadão activo e eleitor dos eleitores.

      O povo tinha duas câmaras ordinárias em lugar de ter só uma.

      Não era isso o que ele queria.

      Queria uma câmara popular, que fosse não aliada mas inimiga da Assembléia Nacional; que não ajudasse esta a reconstituir a realeza, mas que a forçasse a destruí-la.

      Os Bernardos não correspondiam de modo nenhum ao espírito público; por isso este os abandonou no curto trajecto, que acabavam de fazer.

      Perderam a popularidade ao atravessar a rua.

      Em Julho a província contava quatrocentas sociedades; destas, trezentas correspondiam-se igualmente com os Bernardos e com os Jacobinos: cem, só com os Jacobinos.

      De Julho a Setembro, criaram-se mais duzentas sociedades, das quais nem uma única se correspondia com os Bernardos.

      À medida que estas se enfraqueciam, os Jacobinos fortificavam-se debaixo da protecção de Robespierre, que começava a ser o homem mais popular da França.

      A predição de Cagliostro a Gilberto cumpria-se a respeito do deputado de Arras.

      Talvez a vejamos cumprida tão fielmente a respeito do corsozito de Ajaccio.

      Entretanto, soava a hora que devia marcar o fim da Assembléia Nacional; soava lentamente, é certo, como para os velhos, cuja vida se extingue e consome a pouco e pouco.

      Depois de ter votado três mil leis, a Assembléia acabava finalmente a revisão da constituição.

      A constituição era como que uma gaiola de ferro, em que, mau grado seu, tinha metido o rei.

      Dourara os varões da gaiola; apesar, porém, de dourados, não dissimulavam a prisão.

      Efectivamente, a vontade real tornara-se impotente; era uma roda que recebia o movimento em lugar de o imprimir.

      Toda a resistência de Luís XVI consistia no seu veto, que por espaço de três anos suspendia a execução dos decretos publicados, se não conviessem ao rei; então a roda cessava de girar, e pela sua imobilidade parava toda a máquina.

      Além desta força de inércia, a realeza de Luís XVI e de Henrique IV, toda a iniciativa no reinado destes dois grandes reis, já era mais do que uma majestosa inutilidade.

      Entretanto aproximava-se o dia, em que o rei devia jurar a constituição.

      A Inglaterra e os emigrados escreviam ao rei:

     

      “Morrei, se tanto for necessário, mas não vos avilteis jurando!”

      

      Leopoldo e Barnave diziam:

     

      “Jurai sempre: quem puder que mantenha”.

     

      Finalmente o rei decidiu com esta frase:

     

      “Declaro que não vejo na constituição meios suficientes de acção e unidade; mas visto que as opiniões são diversas a este respeito, consinto que a experiência se constitua um único juiz”.

     

      Restava saber onde devia ser apresentada a constituição à aceitação do rei, se nas Tulherias se na Assembléia?

      O rei cortou a dificuldade, anunciando que juraria a constituição onde tinha sido votada.

      O dia fixado pelo rei era o dia 13 de Setembro.

      A Assembléia recebeu esta participação com aplausos unânimes.

      O rei vinha ao seu grémio!

      Num transporte de entusiasmo, Lafayette levantou-se e pediu uma amnistia universal para os que eram acusados de terem tomado parte na fuga do rei.

      A Assembléia concedeu a amnistia, manifestando a maior satisfação.

      Aquela nuvem que por instante anuviara o Céu de Charny e de Andréia, dissipou-se logo depois de se ter formado.

      Foi nomeada uma deputação de sessenta membros para agradecer ao rei a sua carta.

      O guarda-selos levantou-se e correu a anunciar ao rei esta deputação.

      Nessa mesma manhã foi abolida por um decreto a ordem de Espírito Santo, autorizando unicamente o rei a trazer aquele cordão, emblema da alta aristocracia.

      A deputação encontrou o rei decorado unicamente com a cruz de S. Luís, e como Luís XVI notou o efeito que produzia nos deputados não ter também o cordão azul, disse-lhes:

      - Senhores, abolistes esta manhã a ordem do Espírito Santo, conservando-a só para mim; porém uma ordem, seja qual for, não tendo a meus olhos outro mérito senão o de poder ser comunicada, considero-a de hoje em diante tão abolida para mim, como para os outros.

      A rainha, o delfim e a infanta estavam em pé junto da porta; a rainha pálida, com os dentes cerrados, tremendo-lhe todas as fibras; a Srª. infanta, já apaixonada, violenta, altiva e impressionada das humilhações passadas, presentes e futuras; o delfim descuidado como uma criança, parecia, pelos sorrisos e pelos movimentos que fazia, um personagem vivo num grupo de mármore.

      Quanto ao rei, alguns dias antes, dissera ao Sr. de Montmorin:

      - Bem sei que estou perdido... Tudo o que de hoje em diante se tentar a favor da realeza, que seja em favor de meu filho.

      Luís XVI respondeu com sinceridade aparente ao discurso da deputação.

      Depois, logo que se acabou, voltando-se para a rainha e para a família real, disse:

      - Eis minha esposa e meus filhos, que compartilham todos os meus sentimentos.

      Sim, mulher e filhos compartilhavam-nos efectivamente, porque, logo que a deputação se retirou, o rei seguiu-a com o olhar inquieto, e a rainha com o olhar raivoso, os esposos aproximaram-se, e Maria Antonieta, descansando a mão fria e alva como o mármore no braço do marido, meneando a cabeça, disse:

      - Esta gente já não quer soberanos. Tratam de demolir a monarquia pedra por pedra, para com elas nos construírem o túmulo!

      Enganava-se, pobre mulher! Sepultada na vala dos pobres, nem sequer devia ter um túmulo!

      Porém no que se não enganava era nos ataques de todos os dias à prerrogativa real.

      O Sr. de Malouet era presidente da Assembléia; era um verdadeiro realista, e todavia julgou-se obrigado a submeter à deliberação da Assembléia se deviam estar em pé ou assentados, enquanto o rei pronunciasse o juramento.

      - Assentados! Assentados! - gritaram todos.

      - E o rei? - perguntou o Sr. de Malouet.

      - Em pé e descoberto! - gritou uma voz.

      Toda a Assembléia estremeceu.

      A voz era isolada, porém clara e vibrante; parecia ser a voz do povo, que se faz ouvir solitária para melhor ser escutada.

      O presidente fez-se pálido.

      Quem tinha pronunciado aquelas palavras? Tinham partido das salas ou das tribunas?

      Pouco importava! Tinham um tal poder, que o presidente foi obrigado a responder-lhes dizendo:

      - Senhores, não há circunstância alguma, em que a nação reunida na presença do rei, o não reconheça por seu chefe. Se o rei prestar o juramento em pé, peço que a Assembléia o ouça na mesma posição.

      Então ouviu-se a mesma voz dizendo:

      - Proponho uma emenda que harmoniza tudo. Decretemos que seja permitido ao Sr. de Malouet e a quem mais convier essa posição, ouvir o rei de joelhos, porém, sustentemos a proposta.

      Esta foi retirada.

      Era no dia seguinte a esta discussão, que o rei devia prestar o juramento. A sala estava trasbordando; as tribunas rangiam sob o peso dos espectadores.

      Ao meio dia anunciaram o rei.

      O rei falou de pé. A Assembléia ouviu-o na mesma posição. Depois, pronunciando o discurso, assinaram o acto constitucional e assentaram-se todos.

      Então o presidente, que era Thouret, levantou-se para pronunciar o seu discurso; porém, depois de ter dito duas ou três frases, vendo que o rei se não levantava, tornou a assentar-se.

      Esta acção provocou os aplausos das tribunas.

      A estes aplausos, muitas vezes repetidos, o rei não pôde deixar de empalidecer.

      Tirou o lenço da algibeira e enxugou o suor, que lhe corria da fronte.

      A rainha assistia à sessão numa tribuna particular, e não podendo suportar mais, levantou-se, e saiu, fechou violentamente a porta e ordenou que a conduzissem às Tulherias.

      Entrou sem dizer palavra, nem sequer aos seus íntimos. Desde que Charny a deixara, o seu coração absorvia o fel, mas não o vomitava.

      O rei entrou meia hora depois dela.

      - A rainha? - perguntou imediatamente.

      Indicaram-lhe onde ela estava.

      Um oficial quis ir adiante dele.

      O rei afastou-o com um sinal; ele mesmo abriu as portas e apareceu repentinamente no umbral da câmara, onde estava a rainha.

      Estava tão pálido, tão abatido, o suor corria-lhe tão amiudado do rosto, que a rainha, vendo-o, levantou-se e deu um grito.

      - Oh! Senhor - disse ela - que aconteceu?

      O rei, sem responder, caiu numa cadeira e rompeu em soluços.

      - Oh! Senhora! - exclamou ele - para que assistiu a semelhante sessão? Precisava de ter sido testemunha da minha humilhação? Foi pois para isto que, sob pretexto de ser rainha, eu a chamei a França?

      Semelhante explosão da parte de Luís XVI era tanto mais aflitiva, quanto era rara. A rainha não se pôde conter, e correndo para o rei, deixou-se cair de joelhos.

      Neste momento o ruído duma porta, que se abriu, fê-la voltar a cabeça, era a Srª. Campan que entrava.

      A rainha estendeu o braço para ela.

      - Oh! Deixe-nos, Campan - disse ela - deixe-nos.

      A Srª. Campan não se enganou no sentimento que induzia a rainha a afastá-la de si, e retirou-se respeitosamente; porém, em pé, atrás da porta, ouviu por muito tempo os dois esposos trocarem frases entrecortadas de suspiros.

      Finalmente os interlocutores calaram-se, os soluços diminuíram; meia hora depois, a porta abriu-se, e a rainha chamou a Srª. Campan.

      - Campan - disse ela - encarregue-se de entregar esta carta ao Sr. de Malden: é dirigida a meu irmão Leopoldo. Que o Sr. de Malden parta imediatamente para Viena; é preciso que esta carta ali chegue antes da notícia do que se passou hoje... Se ele necessitar duzentos luíses, dê-lhos, que eu lhos restituirei.

      A Srª. Campan pegou na carta e saiu. Duas horas depois o Sr. de Malden partia para Viena.

      O que havia de pior para a rainha em tudo isto, era ser-lhe preciso sorrir, acariciar e ter aparência alegre.

      Durante todo o resto do dia, reuniu-se nas Tulherias muito povo.

      À noite iluminou-se toda a cidade. Convidaram o rei e a rainha para irem passear aos Campos Elíseos de carruagem, escoltados pelos generais e ajudantes de ordens do exército parisiense.

      Apenas apareceram, os gritos de “Viva o rei! E Viva a rainha!” retumbaram nos ares. Porém no intervalo em que os gritos se extinguiam e em que a carruagem tinha parado, um homem do povo, de rosto feroz, e que se conservara de braços cruzados junto do estribo, disse:

      - Não os acreditem... Viva a nação!

      A carruagem continuou o seu caminho; então o homem do povo apoiou a mão na portinhola, caminhou a par da carruagem, e todas as vezes que o povo gritava: “Viva o rei! Viva a rainha!”, repetia ele com voz estridente:

      - Não os acreditem... Viva a nação!

      A rainha tinha o coração torturado por este incessante golpe, que a feria com a periodicidade da teima e do ódio.

      Organizaram-se representações nos diferentes teatros: primeiro na Ópera, depois na Comédia francesa e depois nos Italianos.

      Na Ópera e nos Franceses fizeram a sala, e o rei e a rainha foram recebidos com aclamações unânimes; porém quando quiseram tomar as mesmas precauções nos Italianos, já não era tempo: a platéia estava toda tomada.

      Compreenderam que não aconteceria o mesmo nos Italianos, como na Ópera e nos Franceses, e que provavelmente haveria tumulto durante o espectáculo.

      O temor mudou-se em certeza, quando viram o modo por que a platéia estava composta.

      Danton, Camilo Desmoulins, Legendre e Santerre ocupavam ali os primeiros lugares. No momento em que a rainha entrava no seu camarote, as galerias tentaram aplaudir.

      A platéia pediu silêncio.

      A rainha mergulhou a vista com terror naquela espécie de cratera, aberta diante dela, e viu como que através de uma atmosfera de chamas, olhos cheios de cólera e de ameaças.

      Quase que desconhecia aqueles homens; de alguns até ignorava o nome.

      - Que lhes fiz, meu Deus? - perguntava ela a si mesma, procurando dissimular a sua perturbação debaixo de um sorriso - e porque me detestam tanto?

      Repentinamente o seu olhar fixou-se num homem, que estava em pé, encostado a uma das colunas sobre que assentava a galeria.

      Este homem olhava para ela com admirável firmeza.

      Era o homem do castelo de Taverney, o homem da volta de Sèvres, o homem do jardim das Tulherias, o homem das palavras ameaçadoras, das acções misteriosas e terríveis!

      Logo que os olhos da rainha se fixaram naquele homem, nunca mais dele se puderam afastar. Exercia sobre ela a fascinação que a serpente exerce sobre a ave.

      O espectáculo começou: a rainha fez um esforço, quebrou o encanto, conseguiu afastar a cabeça e olhar para a cena.

      Representava-se os Acontecimentos imprevistos, de Grétry.

      Porém por mais esforços que Maria Antonieta fizesse para distrair o pensamento do homem misterioso, a seu pesar, e como por efeito de um poder magnético mais forte que a sua vontade, voltava-se e dirigia a vista desvairada para aquele lado.

      O homem conservara-se sem cessar no mesmo lugar, imóvel, sardónico, zombeteiro. Era uma obsessão dolorosa, íntima e fatal, uma coisa semelhante, durante a vigília, ao pesadelo durante o sono.

      Além disso na sala flutuava como que uma espécie de electricidade. Portanto, duas cóleras, por assim dizer suspensas, não podiam deixar de se chocar, como, nos tempestuosos dias de Agosto, duas nuvens vindas dos dois extremos do horizonte, e como estas duas nuvens, chocando-se, produzirem o relâmpago, senão o raio.

      A ocasião apresentou-se finalmente.

      A Srª. Dugazon, a encantadora mulher que deu o seu nome a um género, tinha a cantar um dueto com o tenor, no qual dizia este verso:

     

Oh! Quanto amo a minha soberana!

     

      A valente criatura caminhou para a frente da cena, levantou os olhos e os braços para a rainha e lançou a fatal provocação.

      A rainha compreendeu que estava ali a tempestade.

      Voltou-se atemorizada e os olhos fixaram-se involuntariamente, como que movidos por mola oculta, no homem encostado à coluna.

      Pareceu ter-lhe visto fazer um sinal, a que toda a platéia obedeceu.

      Efectivamente, numa só voz, porém terrível, a platéia bradou:

      - Abaixo os soberanos! Liberdade!...

      Mas a este grito, dos camarotes e galerias responderam:

      -Viva el-rei! Viva a rainha! Vivam para sempre os nossos soberanos!

      - Abaixo os soberanos! Liberdade! Liberdade! Liberdade! - bradou segunda vez toda a platéia.

      Após esta dupla declaração de guerra, oferecida e aceita, a luta começou.

      A rainha deu um grito de terror e fechou os olhos; não se sentia com força para olhar para aquele demónio, que parecia o rei do tumulto, o espírito da destruição.

      Os oficiais da guarda nacional cercaram-na imediatamente, formando-lhe uma muralha com os corpos, e levaram-na para fora da sala.

      Porém nos corredores continuaram a persegui-la com os gritos de:

      - Abaixo os soberanos! Abaixo o rei! Abaixo a rainha!

      Conduziram-na desmaiada para a carruagem.

      Foi a última vez que a rainha esteve no teatro.

      A 30 de Setembro, a Assembléia Constituinte, pelo órgão do seu presidente Thouret declarava que tinha cumprido a sua missão e terminava as suas sessões.

      Eis, em algumas linhas, o resultado dos seus trabalhos, que tinham durado dois anos e quatro meses.

      A completa desorganização da monarquia;

      A organização do poder popular;

      A destruição de todos os privilégios mobiliários e eclesiásticos;

      Duzentos milhões de títulos de renda vitalícia decretados;

      Hipoteca constituída nos bens nacionais;

      A liberdade dos cultos reconhecida;

      Os votos monásticos abolidos;

      As cartas de prisão destruídas;

      A igualdade dos cargos públicos estabelecida;

      As alfândegas interiores suprimidas;

      A guarda nacional constituída;

      Finalmente, a constituição votada e submetida à aceitação do rei.

      Seria necessário ter bem tristes previsões, para acreditar que tanto o rei como a rainha de França teriam mais a temer da Assembléia que ia reunir-se, do que da que se acaba de dissolver.

 

Despedida de Barnave

      A 2 de Outubro, isto é, dois dias depois da dissolução da Constituinte, à hora em que costumava ver a rainha, Barnave era introduzido, não na sobreloja da Srª. Campan, mas sim no quarto, a que chamavam o grande gabinete.

      Na mesma tarde do dia em que o rei jurara a constituição, sentinelas e ajudantes de ordens de Lafayette tinham desaparecido do interior do paço, e se o rei não era poderoso, era ao menos livre.

      Era uma pequena compensação à humilhação, de que o vimos tão amargamente queixar-se à rainha.

      Sem ser recebido publicamente e com aparência de uma audiência solene, Barnave desta vez não ia estar sujeito às precauções que até então precisava ter para ocultar a sua presença nas Tulherias.

      Estava muito pálido e parecia tristíssimo: a rainha notou uma e outra coisa.

      Recebeu-o de pé, suposto que conhecesse o respeito que ele lhe tributava, e estava bem certa de que, se se assentasse, ele não faria o mesmo que o presidente Thouret, vendo que o rei se não levantava.

      - Então o Sr. Barnave, deve estar contente; el-rei seguiu o seu conselho, jurou a constituição.

      - A rainha é muito bondosa - respondeu Barnave inclinando-se - dizendo que o rei seguiu o meu conselho... Se essa não fosse também a opinião do imperador Leopoldo e do príncipe Kaunitz, talvez sua majestade hesitasse mais em praticar este acto, o único, todavia, que podia salvar el-rei, se ele pudesse...

      Barnave calou-se.

      - Pudesse ser salvo... Não é isto o que quer dizer, senhor? - continuou a rainha encarando a questão de frente com a coragem e, podemos acrescentar, com a audácia que lhe era peculiar.

      - Deus me livre, senhora, de me tornar profeta de semelhantes desgraças! E todavia, próximo a deixar Paris, próximo a afastar-me para sempre da rainha, não queria desesperar muito sua majestade, nem deixar-lhe ilusões!

      - Deixa Paris, Sr. Barnave? Afasta-se de mim?

      - Os trabalhos da Assembléia, de que era membro, estão terminados, senhora, e como se decidiu que nenhum constituinte poderia fazer parte da Legislativa, já não tenho motivo para ficar em Paris.

      - Nem sequer o de nos ser útil, Sr. Barnave?

      Barnave sorriu tristemente.

      - Nem sequer o de lhe ser útil, senhora, porque a contar de hoje, ou antes de depois de amanhã, já em coisa alguma posso ser útil a vossa majestade.

      - Oh! Sr. Barnave - disse a rainha – presumo muito pouco de si!

      - Não, senhora; julgo-me e sinto-me muito fraco... Peso-me e acho-me muito leve... O que constituía a minha força, de que eu suplicara a monarquia que se servisse como de uma alavanca, era a minha influência na Assembléia, e o meu domínio nos Jacobinos, era finalmente a minha popularidade, tão penosa e tão laboriosamente adquirida; porém a Assembléia está dissolvida; os Jacobinos tornaram-se os Bernardos, e receio muito que os Bernardos fizessem, ao separar-se dos Jacobinos, um mau negócio... Finalmente, senhora, a minha popularidade...

      Barnave sorriu ainda mais tristemente que da primeira vez, e concluiu a frase, dizendo:

      - Enfim, a minha popularidade está perdida!

      A rainha olhou para Barnave, e um clarão estranho, que se assemelhava a um relâmpago de triunfo, lhe passou pelos olhos.

      - Então! - disse ela - viu agora como a popularidade se perde?

      Barnave deu um suspiro.

      A rainha compreendeu que acabava de cometer uma dessas pequenas crueldades, mas que nela lhe eram habituais.

      Efectivamente, se Barnave perdera a popularidade, se para perdê-la bastara um mês, se tinha sido obrigado a curvar a cabeça à palavra Robespierre, de quem era a culpa? Não seria dessa monarquia fatal, que arrastava para o abismo tudo aquilo em que tocava, abismo para que ela mesmo precipitadamente corria? Não seria do destino terrível que de Maria Antonieta fizera, como de Maria Stuart, uma espécie de anjo de morte, que votava ao sepulcro todos aqueles a quem aparecia?

      Retrocedeu portanto, e mostrando-se agradecida a Barnave por ter respondido com um simples suspiro, quando o poderia ter feito com estas palavras fulminantes: “Por quem perdi a minha popularidade, senhora, senão por vossa majestade?” prosseguiu:

      - Mas o Sr. não parte, não é assim?

      - Decerto - disse Barnave - que se a rainha me ordenar que fique, ficarei como um soldado que tendo a sua baixa, se conserva sob as bandeiras, reservando-se para a batalha; se fico, sabe o que acontecerá senhora? Em lugar de ser fraco, serei traidor?

      - Como, senhor? - disse a rainha levemente ferida; - explique-se, que não o compreendo.

      - Vossa majestade permite-me que a ponha bem ao facto da situação, não só daquela em que se acha, mas ainda daquela em que vai colocar-se?

      - Faça-o, senhor; estou costumada a sondar os abismos; se fosse acometida de vertigens, há muito tempo que me teria precipitado.

      - A rainha olha talvez como inimiga a Assembléia que se retira.

      - Distingamos, Sr. Barnave! Nessa Assembléia tive amigos, mas há-de convir que a maioria dessa Assembléia foi hostil à realeza.

      - Senhora - disse Barnave - a Assembléia só fez um acto hostil contra el-rei e contra vossa majestade, foi no dia em que decretou que nenhum dos seus membros poderia fazer parte da Legislativa.

      - Não o compreendo bem, explique-me isso – disse a rainha com o sorriso da dúvida.

      - É muito simples: a Assembléia arrancou o escudo do braço dos vossos amigos.

      - E também um pouco, segundo julgo, a espada da mão dos meus inimigos.

      - Ai, senhora, engana-se! O golpe parte de Robespierre, e é terrível como tudo o que vem daquele homem. Em primeiro lugar, a presença da nova Assembléia, lança-vos no desconhecido. Com a Constituinte, vossas majestades sabiam quem e o que combatiam: com a Legislativa, têm que fazer novo estudo. Depois, note bem isto, senhora, propondo que nenhum de nós pudesse ser reeleito, Robespierre quis pôr a França na alternativa de esconder entre a classe, que nos é superior, ou a que nos é inferior. Acima de nós nada existe: a emigração desorganizou tudo; e ainda que a nobreza tivesse ficado em França, não seria entre os nobres que o povo iria escolher os seus representantes. Abaixo de nós, seja! foi abaixo de nós que o povo escolheu os seus deputados; toda a Assembléia será democrata; haverá nuvens nessa democracia, e nada mais.

      Vi esses deputados - continuou Barnave - pois há já três dias que eles afluem a Paris; vi particularmente os que chegam de Bordéus. São quase todos homens sem nome, mas que têm pressa de adquiri-lo, e são tanto mais apressados porquanto são moços. Excepto Condorcet, Brissot, e mais alguns, os mais velhos de entre todos eles apenas têm trinta anos; é a elevação da mocidade, depondo a velhice, e destronando a tradição. Nada mais de cabelos brancos! Vai governar uma nova França de cabelos pretos.

      - E julga que tenhamos mais a temer dos que chegam, que dos que se retiram?

      - Sim, senhora; os que chegam vêm incumbidos de fazerem guerra aos nobres e aos padres! Quanto ao rei, ainda não se pronunciam a seu respeito; ver-se-á... Se se contentar com ser poder executivo, talvez lhe perdoem todo o passado.

      - Como! - exclamou a rainha - como! Perdoar-lhe o passado!... Mas é o rei que deve perdoar, julgo eu!

      - Muito bem! É isso exactamente: mas é também nisso que se não entenderão. Os que chegam, e infelizmente têm a prova disso, nem sequer guardarão as deferências hipócritas dos que se retiram... Para eles (sei isto por um deputado de Gironda, um dos meus colegas chamado Vergniaud), para eles o rei é um inimigo!

      - Mas como pode ser um inimigo!? - disse a rainha estupefacta.

      - Sim, senhora - repetiu Barnave - um inimigo! Isto é, o centro voluntário ou involuntário de todos os inimigos interiores e exteriores. Ah! Sim, deve confessar-se que não se enganam completamente esses recém-chegados, que crêem ter descoberto uma verdade, e que não têm outro mérito mais que o de dizerem em voz alta o que os mais ardentes adversários não ousariam dizer em voz baixa...

      - Inimigo!? - repetiu a rainha - o rei inimigo do seu povo? Oh! Sr. Barnave, aí está uma coisa de que nunca me convencerá, e que nunca poderei compreender!

      - E todavia, senhora, é a verdade; inimigo por natureza, inimigo por um temperamento! Há três dias que aceitou a Constituição, não é verdade?

      - Sim; e então?

      - Então, entrando aqui, o rei quase que adoeceu de cólera, e à noite escreveu ao imperador.

      - Mas também como quer que soframos semelhantes humilhações?

      - Ah! Como vê: inimigo, fatalmente inimigo... Inimigo voluntário, pois, tendo sido educado pelo Sr. Vauguyon, o general do partido jesuítico, o rei tem o coração nas mãos dos padres, que são inimigos da nação! Inimigo involuntário, porque é o chefe obrigado da contra-revolução; e supondo mesmo que ele não deixe Paris, está em Coblentz com a emigração, na Vendeia com os padres, em Viena e na Prússia com os seus aliados Leopoldo e Frederico. O rei nada faz, admito... Admito que nada faça - disse Barnave; - mas, na ausência da sua pessoa, empregam o seu nome; na cabana, no púlpito e no paço, é bom, é magnânimo, é santo o rei! De maneira que, ao reinado da revolução, opõem uma revolta terrível, a revolta da piedade!

      - Na verdade, Sr. Barnave, diz-nos essas coisas, e nem sequer é o primeiro a lastimar-nos?

      - Sim, senhora, lastimava-a, e lastimo-a ainda muito sinceramente! Mas vai grande diferença entre mim e aqueles de quem falo, e é que eles lastimam-na para a perder, ao passo que eu lastimo-a para a salvar!

      - Mas, finalmente, senhor, entre os que chegam, e que, segundo diz, vêm fazer-nos uma guerra de extermínio, há algum plano combinado antecipadamente para se pôr em execução?

      - Não, senhora, e ainda não surpreendi mais do que planos vagos: a supressão do título de majestade para a sessão da abertura; em lugar do trono uma simples cadeira de braços à esquerda do presidente.

      - Porventura vê nisso alguma coisa mais do que Thoureth assentando-se, porque o rei estava assentado?

      - É pelo menos um novo passo para a frente, em lugar de ser dado para trás... Depois, há ainda pior, é que os srs. de Lafayette e Bailly vão ser substituídos!

      - Oh! Quanto a esses - disse apressadamente a rainha - não me deixam pena.

      - Diz mal, senhora; os srs. Bailly e Lafayette são seus amigos...

      A rainha sorriu amargamente.

      - Seus amigos, senhora! Talvez os seus últimos amigos! Assim, aproveite-os: se lhes resta ainda alguma popularidade, aproveite-a; mas apresse-se, que a popularidade deles não tardará a emigrar, como fez a minha.

      - No fim de tudo isto, senhor, mostra-me o abismo, conduz-me até à cratera, faz-me medir a profundidade, mas não me diz o meio de o evitar.

      Barnave ficou mudo por um instante.

      Depois soltando um suspiro disse:

      - Ah! Senhora, porque a prenderiam na estrada de Montmédy?

      - Bem - disse a rainha - aí está o Sr. de Barnave aprovando a fuga de Varennes.

      - Não a aprovo, senhora, porque a situação, em que vossa majestade hoje se acha é a conseqüência natural dessa fuga; mas visto que ela havia de ter um tal fim, deploro que não fosse a efeito.

      - De maneira que hoje o Sr. Barnave, membro da Assembléia Nacional, delegado por esta Assembléia, com os srs. Pétion e de Latour-Maubourg para conduzirem o rei e a rainha a Paris, deplora que o rei e a rainha não tenham fugido?

      - Oh! Entendamo-nos bem, senhora, quem deplora isso não é o membro da Assembléia, não é o colega dos srs. Latour-Maubourg e Pétion, é o pobre Barnave, que não é mais do que um humilde servidor, pronto a dar a vida por vossa majestade; isto é, a dar quanto possui.

      - Obrigada, senhor; - disse a rainha - a firmeza com que faz o oferecimento prova-me que seria capaz de o manter; porém espero não ter semelhante sacrifício a exigir do senhor.

      - Tanto pior para mim - respondeu simplesmente Barnave.

      - Como tanto pior?

      - Sim... Cair por cair, queria pelo menos cair combatendo, mas não, como vai acontecer. Sepultado no interior do Delfinado, onde vou ser inútil a vossa majestade, farei votos, muito mais ainda pela mulher jovem e bela, pela mãe terna e dedicada, do que pela rainha; os mesmos erros que fizeram o passado prepararão o futuro; contará com o socorro estrangeiro que não chegará ou há-de chegar demasiado tarde; os Jacobinos apossar-se-ão do poder dentro e fora da Assembléia; os nossos amigos deixarão a França para evitar a perseguição; os que ficarem serão presos e encarcerados; eu serei destes, porque não quero fugir. Então serei julgado e condenado; talvez que a minha morte obscura não só lhe seja inútil, mas até desconhecida, ou, se a notícia da morte chegar até vossa majestade, ter-lhe-ei prestado tão diminuto auxílio, que terá esquecido as poucas horas, durante as quais tive a esperança de poder ser-lhe útil...

      - Sr. Barnave - disse a rainha, com muita dignidade - ignoro completamente qual seja a sorte que o futuro nos reserva, quer ao rei, quer a mim; o que sei porém é que o nome das pessoas que nos têm prestado serviços escrupulosamente escritos na nossa memória, e que nada do que lhes acontecer, bom ou mau, de felicidade ou desgraça, nos será indiferente...

      E depois de alguns momentos de silêncio, acrescentou:

      - Entretanto, Sr. Barnave, podemos nós alguma coisa em seu favor?

      - Muito; vossa majestade especialmente... Pode provar-me que eu não era um ente inteiramente sem valor a seus olhos.

      - E o que é necessário fazer para isso? – perguntou Maria Antonieta.

      Barnave pôs um joelho em terra.

      - Dar-me a mão a beijar, senhora.

      Uma lágrima assomou as pálpebras secas de Maria Antonieta; estendeu para o mancebo aquela mão branca e fria, que devia com intervalo de um ano, ser tocada pelos lábios mais eloqüentes da Assembléia: os lábios de Mirabeau e os de Barnave.

      Barnave apenas lhe tocou; via-se que o pobre insensato temia, que, aproximando muito os lábios daquela bela mão, não tivesse força para os retirar.

      Depois levantando-se continuou:

      - Senhora, não terei o orgulho de dizer que “A monarquia está salva!” porém digo a vossa majestade: “Se a monarquia está perdida, aquele que jamais esquecerá o favor que uma rainha acaba de lhe conceder, está perdido com ela!”

      E saudando a rainha, saiu.

      Maria Antonieta olhou para ele, afastou-se suspirando, e quando a porta se fechou sobre Barnave, disse:

      - Pobre limão sem sumo! Não foi necessário muito tempo para só te deixar a casca!...

 

                                                                                            Alexandre Dumas

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades