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É domingo, 23 de Agosto de 1964. Dia da Festa Nacional. São oito horas da noite. Um pouco- antes do pôr do Sol. O chefe da milícia fora avisado, havia um quarto de hora, de que o moleiro Nicolas Acathiste tinha sido assassinado e que o corpo jazia num charco de sangue, no meio da estrada, em frente do seu moinho. Ouve-se, cada vez mais próxima, a sereia do jeep da milícia, que atravessa a aldeia dos Acathistes e sobe a estrada paralela ao rio, em direcção ao moinho. O jeep da milícia pára a dois passos do cadáver, atravessado na estrada. Dois milicianos saem. O primeiro a aproximar-se do cadáver é Mavid Zeng, chefe da milícia da província de Vrância, que vem efectuar investigações sobre o assassínio. Nunca, enquanto foi vivo, o bravo moleiro teria pensado que um dia o terrível Mavid Zeng se deslocaria por sua causa. E eis que Mavid Zeng se deslocou por causa do moleiro. Desde que o mundo existe, sempre se deu mais importância aos mortos que aos vivos.
Mavid Zeng é uma personagem insignificante, enfezada, de cerca de sessenta anos, a quem nenhum serviço de recrutamento, não importa de que exército do mundo, teria alguma vez dado uma farda de soldado. De resto, fora rejeitado. Não cumpriu o serviço militar. Isso não obsta a que ostente hoje um uniforme de gala de coronel, com botas de verniz, enormes dragonas que parecem, duas bandejas com galões, à maneira moscale, e o peito coberto de condecorações. Mavid Zeng é coronel miliciano. Tem no boné, nas dragonas e na gola as letras P. C., bordadas a ouro. São as iniciais do Partido dos Colaboradores, que domina a província. O P. C. compreende os auxiliares do invasor moscale, que ocupou o país em 23 de Agosto de 1944. É precisamente
Os moscales não são os moscovitas, habitantes da cidade de Moscovo, mas hordas invasoras que, sob o comando dos tiranos de Moscovo, constituíram um flagelo para os povos da Europa Oriental. Em toda a literatura popular dos países do Leste, moscale é sinónimo de bárbaro, invasor, ladrão; a poesia popular romena canta que sobre os caminhos por onde passam os moscales a erva não torna a crescer, nem, nos céus, os pássaros tornam a cantar.
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O coronel Mavid Zeng soube do assassínio do moleiro Nicolas Acathiste na tribuna oficial, armada no centro da cidade, donde assistia ao desfile do povo vencido de Vrância, essa província montanhosa situada ao sul de Petrodava, na encosta oriental dos Cárpatos, em pleno coração da Roménia.
O coronel Mavid Zeng abandonou imediatamente a tribuna e chegou ao local do crime de uniforme de grande gala, ao qual tinha acrescentado a pistola-metralhadora, que traz dependurada do ombro. Mavid Zeng dirige-se para junto do cadáver sem o olhar. Próximo do morto encontra-se já um miliciano, aguardando em sentido, que faz o seu relatório sem que para tal seja solicitado.
- O assassínio foi cometido há apenas uma hora. A vítima está identificada. Trata-se do moleiro Nicolas Acathiste, de quarenta e três anos, domiciliado no Moinho da Condottiera. Segundo as primeiras averiguações, foi atacado por trás. Como vê, cravaram-lhe uma faca nas costas. Precisamente entre as omoplatas. A vítima, com a violência da pancada, caiu sobre o ventre. E assim ficou. Deve ter morrido instantaneamente. Não teve tempo de se torcer, de se debater, de se encarquilhar. Caiu como que fulminada.
O miliciano que fala é Zid Caracal. É o responsável pela aldeia dos Acathistes. Na organização social gregária instituída pelo ocupante é uma função de alta importância. O responsável por uma aldeia responde por ela, tal como um pastor pelo seu rebanho. É ele quem decide o que a população deve comer, onde deve dormir, quando deve levantar-se, como deve vestir-se, o que deve dizer e pensar. Os invasores moscales organizam as terras que conquistaram da mesma forma que administram os seus rebanhos nas estepes. Dividem o povo vencido em rebanhos- ou secções - e nomeiam um responsável para cada rebanho. O responsável, à maneira do pastor, tem de distribuir a alimentação, as habitações, o vestuário. O rebanho de homens tem, por sua vez, de oferecer ao responsável tudo aquilo que produz: exactamente como os carneiros têm de dar ao pastor o seu leite, a sua carne, as suas crias, a sua pele, a sua lã...
Ao contrário de Mavid Zeng, o responsável pela aldeia é um colosso, de rosto cor de azeitona, braços e pernas de gorila. Está vestido com umas calças e um blusão de cabedal preto e tem o rosto brilhante de suor. Porque fala com dificuldade. Para Zid Caracal, falar é tão fatigante como britar pedra. É um defeito de nascença. Nasceu com a língua demasiadamente grande e grossa. Tem uma língua enorme, como a língua dos bois. A sua língua gigante não lhe cabe na boca, e, por causa disso, as palavras só saem da boca de Zid Caracal à custa de grandes esforços musculares. Diz-se que, de noite, para dormir, Caracal tem de conservar a boca aberta, que a língua sai da sua posição normal e pende sobre o lábio como a língua dos cães quando estão encalorados. Mas não é unicamente por dormir com a língua de fora que ele tem semelhanças com os cães. Zid Caracal possui um carácter de cão mau. O seu único prazer na vida é fazer mal, ver as pessoas sofrerem fisicamente. Como os cães, gosta de morder e de rasgar a carne.
- Faço notar a Vossa Camaradagem que, apesar de estarmos perante um assassínio, acto cometido, evidentemente, por um homem, não se encontrava ninguém, à hora do crime, na aldeia dos Acathistes. Absolutamente ninguém. Saiba Vossa Camaradagem que me interrogo a mim próprio acerca de quem teria podido matar o moleiro que aqui jaz, uma vez que não estava lá ninguém para o fazer. Porque é trabalho de homem. Não foi um fantasma que cravou a faca nas costas do moleiro. Ora todos os homens estavam no meeting, para o desfile. Partiram sob a minha vigilância, ao romper do dia. Contei-os. Fiz duas vezes a chamada, numérica e nominal, antes de os pôr em ordem de marcha, com a bandeira e os letreiros à cabeça. Nenhum habitante da aldeia voltou ainda do desfile. O corpo foi descoberto por estes dois garotos, que imediatamente foram a correr ao Castelo da Vaca, a fim de prevenir as sentinelas... É tudo quanto tenho para relatar de momento a Vossa Alta Camaradagem...
Zid Caracal trata o seu chefe por Vossa Camaradagem. Exactamente como noutros tempos se tratavam os superiores por Vossa Grandeza ou Vossa Eminência. Desde 23 de Agosto de 1944, dia da ocupação da província pelos invasores moscales, que foi instaurada uma nova sociedade do tipo gregário. O povo, despojado de todos os seus bens, foi dividido em rebanhos. Cada um com o seu chefe e responsável, fardado e armado. Nessa sociedade, em que os homens são organizados como os animais, as formas de cortesia, como "senhor", "senhora" ou "menina", foram abolidas. Toda a gente era obrigada a tratar-se por tu e por camarada. Ao principio, as pessoas sentiam-se pouco à vontade, porque se as vacas podem tratar-se por tu entre elas, chamando-se ((camarada vaca", é-lhes difícil tratarem o seu vaqueiro por "camarada". A gente do rebanho teve dificuldade em chamar "camarada" ao miliciano do P. C. Saltava à vista que não eram camaradas. Não se tratava de uma diferença de classe ou de condição, mas de uma diferença de espécie, como a que existe entre a vaca e o vaqueiro. Os colaboradores do ocupante estavam na posse de tudo, designadamente do direito de vida e de morte sobre os componentes do rebanho humano que comandavam. Convencionou-se então que o povo tratasse os colaboradores, não por ((camaradas", porque se verificou que isso era absurdo, mas por "vossa camaradagem". Sempre na terceira pessoa, como "vossa grandeza". Zid Caracal, embora fosse também miliciano e pudesse tratar o seu chefe por "camarada", prefere, por servilismo, tratá-lo, como o rebanho dos cidadãos, por "vossa camaradagem".
- De que garotos falas? - pergunta Mavid Zeng.
Mas, voltando a cabeça, descobre realmente dois garotos: um rapaz de cerca de oito anos e uma rapariguinha mais nova. Estão os dois vestidos com camisas de cânhamo, muito sujas. Têm os cabelos eriçados, as caras sujas de lama. Os dois garotos, que nunca se lavaram e cujos cabelos não conhecem a tesoura, conservam-se, assustados, junto do cadáver, à beira da estrada, com os pés descalços sobre as ervas daninhas.
- Foram vocês que descobriram o cadáver?
Os olhos azuis do chefe da milícia da província de Vrância faíscam de cólera. Zeng grita:
- Uma vez que descobriram o cadáver, é porque ficaram na aldeia, em lugar de irem assistir à grande parada do povo.
Subitamente, o problema do assassínio do moleiro Nicolas Acathiste passa a ser um caso secundário. O verdadeiro crime, agora, é o dos dois garotos que não tomaram parte na Festa Nacional e que acabaram por ser desmascarados.
Mavid Zeng volta completamente as costas ao cadáver e dirige-se, ameaçador, às crianças:
- Na Festa de 23 de Agosto, no dia glorioso em que as armas vitoriosas dos moscales pisaram o nosso solo, nesse dia, ouvem?, ninguém, nenhuma criatura humana, tem o direito de se abster de participar nas grandes manifestações populares de regozijo e nos meetings de simpatia para com os moscales... É a Festa Nacional do povo. É por causa disso que o povo está presente. Aquele que se abstém de gritar a sua alegria é um inimigo do povo. Os habitantes que ainda não podem andar por serem muito pequenos devem participar nas manifestações colectivas ao colo das mães ou das amas. Os mais idosos, os inválidos, os estropiados e os doentes têm de estar presentes nas suas cadeiras de rodas, ou transportados em macas pelos seus enfermeiros ou parentes. Mas todos, absolutamente todos, têm de estar presentes no cortejo, na parada de 23 de Agosto...
Por causa da pronúncia estrangeira, a voz do chefe da milícia, a voz do sangrento Mavid Zeng, que aterroriza a província de Vrância há vinte anos, parece mais ameaçadora ainda.
Antes que as duas crianças tenham tempo de abrir a boca para retorquir, Mavid Zeng berra:
- Respondam rapidamente e sem rodeios à minha pergunta: porque estão ausentes do meeting nacional e como se chamam?
- Eu chamo-me Sava Trifan, Vossa Alta Camaradagem. Tenho oito anos. A rapariga é minha irmã. Chama-se Tinka Trifan. Vai fazer seis anos no Outono, daqui a seis meses...
- Porque não foram ao cortejo popular?
- Afastámo-nos das grandes manifestações, neste dia glorioso, Vossa Camaradagem, porque eu e minha irmã temos sarna...
- Que é que vocês dizem?
- Não pudemos ir à Festa Nacional, eu e minha irmã, para não pegarmos a sarna às massas populares, aproximando-nos delas...
- Sarna?-grita Mavid Zeng.-Vocês têm sarna? É possível que haja sarna no território de uma república popular?
Mavid Zeng está de tal maneira furioso que pisa, com as botas de verniz, a mão direita do morto, esmagando os dedos do cadáver na poeira da estrada.
- Têm sarna? - pergunta outra vez Mavid Zeng.
- Sim, Vossa Alta Camaradagem, temos sarna - responde Sava, com uma inflexão de orgulho.
O caso assume tais proporções e tal amplitude que o rapaz toma consciência do valor inestimável e da importância da sua própria sarna e da sarna da sua irmazita Tinka. Tem orgulho nela. As pessoas têm sempre orgulho em possuir uma coisa de valor. A sarna deles é motivo de preocupação de Sua Alta Camaradagem, o chefe da milícia. A sarna deles é mais importante que o próprio assassínio do moleiro, cujo cadáver foi esquecido e cujas mãos o chefe da milícia pisa com as botas, esmagando-as, sem reparar nelas. A sarna de Sava e Tinka Trifan é mais importante que o assassínio, mais importante mesmo que o crime de não estarem presentes às Festas de 23 de Agosto. E isso é o apogeu na hierarquia, porque se o assassínio de um homem pode, em rigor, ser perdoado, faltar às Festas de 23 de Agosto é um crime capital, um pecado mortal que ninguém e nada pode perdoar. E eis que se encontrou agora qualquer coisa mais importante que isso. Uma coisa que eles têm, eles, Sava e Tinka Trifan, na sua pele. De sua inteira propriedade. A sua sarna. De momento, a sua sarna é a coisa mais importante na república popular de Vrância.
- Não é possível que haja sarna, não acha, camarada Zid? Não há sarna na nossa república popular. Estão a mentir, não estão?
- Eles têm realmente sarna, Vossa Camaradagem. Não estão a mentir. Verifiquei com os meus próprios olhos. E fui eu quem lhes proibiu que participassem nas gloriosas manifestações, para não a transmitirem às massas populares em tão glorioso dia...
- Eu disse que não há sarna numa república popular!-grita Mavid Zeng.
- Certamente que não há sarna numa república popular, Vossa Camaradagem! Certamente que não há. É absurdo e inconcebível que haja sarna entre nós. Por causa disso é que cheguei à conclusão de que estes dois garotos frequentaram clandestinamente os meios religiosos... Abri um inquérito criminal. E provarei que os garotos aqui presentes apanharam a sarna na igreja da aldeia... Durante as cerimónias medievais. Só a reacção pode ter sarna. Uma república popular, não. Tenho a certeza de que frequentaram a igreja, que é estritamente proibida aos menores de menos de dezoito anos. E apanharam sarna. É a prova flagrante. Só na igreja é que ela se apanha nos nossos dias. com os religiosos...
- Mostrem-me as mãos! - diz Mavid Zeng, furioso.
Os dois garotos, que continuam na berma da estrada, com os pés sobre as ervas daninhas, aproximam-se. Entre eles e Mavid Zeng está o cadáver do moleiro assassinado. Os garotos estendem as mãozitas sujas por cima do morto, sob os olhos azuis do chefe da milícia.
- Separem os dedos! - ordena Zeng.
Sava e Tinka obedecem. São uns dedos sujos, magros como ossinhos de frango. Entre eles, no sítio em que a pele é branca e fina, há inúmeras incisões, como cabelos vermelhos. A pele, entre os dedos das crianças, está cortada como que por uma lâmina. Isto são sinais de sarna. Os seus parasitas, introduzidos na pele dos pobres, cortam-na interiormente, provocando finas incisões. Vê-se então na pele uma espécie de teia de aranha ensanguentada. É o trabalho clandestino dos pequenos parasitas da sarna. Apenas entram na pele dos pobres, das crianças e dos vencidos. Onde a pele está endurecida pelo vento, pelo sol e pelo trabalho, os parasitas da sarna não conseguem serrá-la por dentro. Estão lá, mas não se vêem. É exactamente como nos casos de injustiça social, de opressão, de descontentamento profundo e de revolta; na sociedade, apenas se vêem essas desgraças nos meios puros, finos, sensíveis e claros, como a pele de entre os dedos: nos estudantes, nos poetas, nos filósofos, nos padres. Na pele fina. Se se quer ver a infelicidade de um povo, é procurar os poetas na juventude estudantil. O resto da sociedade é como a pele endurecida dos calcanhares, da sola dos pés, da cara: nela nunca se vê a sarna, que rói de dentro para fora. Nunca.
-- Ainda hoje mesmo, até à noite, tirem-me estes sarnosos da aldeia e isolem-nos impõe Mavid Zeng.
Numa sociedade limpa, materialista como Auma república popular, qualquer infecção provocada pelo contágio dos meios medievo-religiosos deve ser imediatamente cauterizada com ferro em brasa, suprimida, amputada, sem qualquer piedade. Para que o corpo são da república popular continue vigoroso.
- Eles já estão isolados do nosso corpo social, Vossa Camaradagem - elucida Zid Caracal. - Foi exactamente por estarem isolados que não participaram no glorioso meeting nacional, como todas as crianças do povo. Estão há dois dias sob a guarda de uma inválida, a velha Anastásia, que também não pôde participar nas grandes manifestações populares por causa dos seus achaques...
- Há uma outra pessoa que não tomou parte no desfile?-grita Mavid Zeng.
- É uma velha inválida, Vossa Alta Camaradagem- explica Zid Caracal.
E, devido à sua língua de boi, fala cada vez com mais dificuldade.
- Inválida, diz você? Não foi dada ordem para que os inválidos, os doentes e os estropiados, principalmente esses, estejam presentes em todos os cortejos que desfilam perante os chefes do P. C. em 23 de Agosto? São justamente eles que obtêm mais sucesso nos desfiles populares. Quando aparecem em coluna, nas suas cadeiras de rodas, empurrados pelos enfermeiros, ou deitados nas macas, transportados aos ombros dos serventes de batas brancas, a gritar "Viva o Partido dos Colaboradores, vivam os moscales, viva a república popular", as massas ficam electrizadas pela emoção. É então que há verdadeiro entusiasmo. Nós próprios, chefes do Partido, que recebemos essas homenagens nas tribunas e que não fazemos, a maior parte do tempo, mais que isso, ficamos também realmente comovidos... O cortejo dos tuberculosos, transportados nas suas camas de hospital, que gritam com o que lhes resta dos pulmões "Viva a república popular", arranca-nos lágrimas, a nós, nas tribunas. Ouvir os moribundos a gritar "Viva o Partido" é o que há de mais comovente...
- Justamente por essas razões é que a velha Anastásia não participou no cortejo, Vossa Camaradagem. É surda-muda. Não teria podido gritar "Viva o Partido", como os outros doentes. E uma vez que ela está privada de voz para gritar a glória do nosso Partido, pensei que era desperdiçar uma maca fazê-la desfilar. Disse para comigo que serão unicamente os mudos que não gritarão a nossa glória. E pensei que a melhor forma de utilizar a sua pessoa para a Festa Nacional seria confiar-lhe a guarda de duas crianças sarnosas. Mantendo as crianças sarnosas longe do povo, colaborava, sob o ponto de vista profiláctico, na Festa Nacional e no bem-estar da república popular...
- Se as crianças sarnosas estavam fechadas em casa da velha surda-muda, como puderam andar a passear na aldeia, vir até aqui e descobrir o cadáver? Fugiram? Por que razão circulavam livremente pelas ruas, passeando a sua sarna por toda a parte? É um crime deixar um sarnoso andar a passear...
- É verdade, Vossa Camaradagem, que andavam pelas ruas... Se não o fizessem, não teriam descoberto o cadáver do moleiro. Mas a aldeia estava deserta. Totalmente despovoada de qualquer criatura humana... Não havia ninguém na aldeia para apanhar a sarna...
- São um perigo público. Não tinham o direito de passear pela aldeia. Não havia nenhum ser humano nas ruas e nas casas, diz você?
--Não havia ninguém. Ninguém podia ser contaminado pela sarna. Afirmo-o.
- E os animais, esses não podiam apanhar a sarna? - pergunta Mavid Zeng. - Os animais também são um bem colectivo. Exactamente como os seres humanos. Também fazem parte do inventário nacional. Porque passeavam eles nas ruas? Para contaminar os animais? E principalmente numa tarde tão gloriosa, no dia da Festa Nacional?...
- Não andávamos a passear, Vossa Camaradagem!- grita Tinka Trifan, chorando.
- Que faziam nas ruas, se não andavam a passear?
- íamos buscar a farinha que o moleiro deixa à porta do moinho para nós, Vossa Camaradagem. Juramos que não era passeio. Era só para levar a farinha à velha Anastásia.
- Que história é essa da farinha? - pergunta Mavid Zeng.
O seu furor atinge o paroxismo. Abandonou a tribuna oficial durante o desfile para fazer o inquérito sobre o assassínio do moleiro Acathiste. Antes mesmo de começar, descobre na aldeia pessoas que se ausentam do grande meeting. Primeiro os miúdos, sob o pretexto de terem sarna. Depois a velha, com o pretexto de ser surda-muda. Boicotar a Festa de 23 de Agosto é mais grave que cometer um assassínio. Descobre que os sarnosos passeiam livremente pelas ruas, ameaçando contaminar a colectividade humana e animal. Descobre também um tráfico clandestino de farinha.
A Vocês iam buscar a farinha directamente ao moinho? A farinha é para ser distribuída exclusivamente nos armazéns do povo, na presença da milícia, contra um talão e a justificação de que se trabalha para merecer o pão. Qualquer outra distribuição de farinha, fora do circuito oficial, é um crime contra o povo. Não é um crime ordinário, como o assassínio deste homem que jaz aos nossos pés, que se pune com prisão perpétua. O tráfico do pão pune-se com a pena de morte. Administrativamente. Sem perder tempo com os juizes. Exactamente como os crimes contra a segurança da república popular...
- Não se trata de pão vulgar, Vossa Camaradagem. É farinha para as prosphoras, para o pão ázimo...
- É mais grave ainda, camarada Zid. Quem se permitiu fornecer farinha para as práticas religiosas?
- É farinha mesmo nossa, Vossa Camaradagem- afirma Sava Trifan. - Não a pedimos a ninguém. Fazemos as prosphoras para a liturgia com espigas que nós próprios apanhamos nas ruas e no campo... São espigas perdidas. Não há tráfico nenhum.
- Não há tráfico nenhum - confirma Zid Caracal. - Eu fiz o meu inquérito. Os habitantes da aldeia entregaram uma petição assinada por todos, a pedir duzentos e cinquenta gramas de farinha branca por semana para os ofícios religiosos. Como no plano quinquenal do Partido não está prevista em parte alguma a cedência de farinha para a prática de superstições, indeferimos o requerimento.
- Se querem utilizar a sua ração de pão para as práticas mágicas, em vez de a comer, ninguém os impede de o fazerem. Mas não peçam farinha ao Partido...
- Eles não querem utilizar a nossa farinha na igreja. Afirmam que a farinha da república popular é impura, misturada com milho, centeio e aveia. Para as hóstias, exigem farinha de trigo pura. E porque lhes recusámos o pedido, todos os praticantes da superstição cristã apanham nas ruas, nos campos, por toda a parte, as espigas de trigo perdidas, depois da ceifa. Levam essas espigas ao moinho e fazem o seu pão de superstição, as suas prosphoras. Não os perco de vista. Sei tudo quanto fazem. E apenas fazem isso. Não há tráfico de trigo. A quantidade de farinha que tiram é ínfima...
- É todavia um crime contra o povo o que eles fazem. Toda a espiga, todo o grão, tudo o que a terra produz, pertence à colectividade e deve ser entregue nos armazéns do Partido, que faz a distribuição. As espigas perdidas nos campos e nas ruas também pertencem ao povo. Aquele que as encontra e as apanha deve levá-las aos armazéns. Caso contrário, é um ladrão. E um ladrão é um criminoso. Os nossos camaradas da China e da Albânia começaram a aplicação do primeiro plano quinquenal pela condenação à morte e ao extermínio de todos os pássaros que voam no céu das Repúblicas Populares da China e da Albânia. Isso porque os pássaros roubam os grãos de trigo, de milho e de arroz, que pertencem aos homens. Os nossos camaradas matam os pássaros porque são ladrões. E ninguém pode roubar impunemente a alimentação dos cidadãos. Digo bem: nem mesmo os pássaros do céu têm o direito de roubar o pão dos homens e dos animais que trabalham. E se os pássaros não compreendem isso, muito bem, matam-se. Todos. Como se matam os criminosos e os assassinos. Qualquer camarada chinês e albanês tem o direito de matar o pássaro que ousa pousar no solo da sua república popular para roubar os grãos. É natural que o crime, que é punido com a pena de morte, mesmo quando se trata de pássaros do céu, não possa ser tolerado aos beatos medievais supersticiosos e aos praticantes das mágicas religiosas. Se os fanáticos da igreja colherem as espigas perdidas nas ruas e nos campos, têm o dever de as levar aos armazéns do Partido. E se as esconderem, para as utilizarem em práticas tenebrosas, serão punidos, como os pássaros da China e da Albânia, com a pena de morte... Nada mais a este respeito. Voltemos agora ao cadáver que jaz aos nossos pés. Como descobriram vocês o cadáver? Foram vocês, realmente, os sarnosos, que o descobriram?
- Sim - responde Sava Trifan.
O garoto pensa nos pobres pássaros da China e da Albânia. A Santa Bíblia, que lhe lêem à noite, diz que "Deus criou todos os pássaros". E ele viu que isso era bom... E abençoou-os dizendo que os pássaros se multipliquem na Terra. Foi no quinto dia da criação. Depois, quando aconteceu a desgraça do dilúvio, Deus lembrou-se também dos passarinhos e ordenou a Noé: "Levem sete machos e sete fêmeas dos pássaros do céu, a fim de conservar a raça sobre a Terra." Sava Trifan sentiu sempre ternura por Deus porque, como ele, Deus ama os pássaros. Na sua cólera, antes do dilúvio, principalmente porque Deus é uma pessoa crescida, poderia ter esquecido os pássaros. As crianças é que dão atenção às pequenas coisas. Nunca as pessoas crescidas. Pois bem, apesar de Deus ser tão grande e tão importante, pensou nos pequenos e belos pássaros e nas pequenas coisas. É que Deus é um grande poeta.
- Perguntei como é que vocês descobriram o cadáver!...-grita Mavid Zeng.
- Foi assim, Vossa Camaradagem. Nós íamos de mão dada, a minha irmãzinha e eu. íamos buscar a farinha para as prosphoras. A velha Anastásia tinha-nos dito que o padre Théophore viria esta noite buscá-las, depois do desfile. Quando chegámos perto do moinho, a minha irmãzinha Tinka parou e disse que já não queria ir buscar a farinha. Queria voltar para casa da velha Anastásia. Dizia que tinha medo de ir comigo. Puxei-a pela mão, tentando levá-la à força. Porque estávamos quase a chegar. Mas ela sentou-se no chão, no meio da estrada. Chorava, recusando-se a avançar. Puxei-a. Alguns metros depois, vimos o pobre moleiro morto, estendido num charco de sangue, com a faca cravada nas costas. Nesse momento, compreendi porque é que a minha irmãzinha não queria avançar. As raparigas, como os cavalos, sabem sempre as coisas mesmo antes de as terem visto com os olhos. As raparigas e os animais farejam a morte e a desgraça de longe, com as narinas, com a pele. Como se tivessem olhos e ouvidos secretos. Compreendem os mistérios da vida e do destino. Nós, os homens, temos necessidade de ver as coisas, de lhes tocar primeiro, para tomarmos conhecimento de que existem. com as raparigas é diferente...
- Que fizeram vocês ao verem o morto?
- Primeiro, aproximámo-nos. Olhámos bem para ele. O moleiro estava como o vêem agora, estendido no meio da estrada, um pouco atravessado, com a face direita encostada à terra. Antes de lhe tocarmos, chamámo-lo pelo seu nome com quanta força tínhamos. Ele não respondia. Evitámos pisar o seu sangue com os nossos pés. Porque havia sangue em toda a volta do seu corpo. E é um grande pecado pisar o sangue de um homem, é como se lhe espezinhassem a vida. A alma e a carne. Olhámos para a cara do moleiro. Estava branca como a dos anjos, porque já não tinha sangue. Como os anjos, que, também eles, não têm sangue. Todo o seu sangue havia corrido. Agora já não se vê. Porque a terra o bebeu completamente. Da mesma maneira, a sua cara já não está branca. Agora está amarela, roxa como todas as caras dos mortos. Mas quando nós chegámos, ainda não estava bem morto, ainda estava quente.
- Como é que vocês sabem que não estava morto?
- Porque a cara não tinha a cor da morte, Vossa Camaradagem, estava branca. Além disso, estou a dizer-lhe que estava quente. A minha irmãzinha Tinka e eu próprio debruçámo-nos sobre ele e, sem tocar na faca, encostámos-lhe, primeiro um, depois outro, o ouvido às costas. Escutámos e não ouvimos o martelar do coração. Então compreendemos que estava morto. Trememos. Tivemos medo. Era verdade, estava morto. Não respirava. Não dava sinais de vida. O corpo esfriava aos poucos. No peito do moleiro havia silêncio. Morte. O pobre Nicolas Acathiste estava bem morto...
- Dizias que a tua irmãzinha sentia receio de avançar antes de ter visto o morto. E depois de o ver já não tinha medo. Encostou mesmo o ouvido às costas do cadáver. Isso não faz sentido. Onde está a verdade?
- A verdade é esta, Vossa Camaradagem. Tinka tinha um medo terrível antes de ver o morto. Na estrada, quando se sentou no chão e se recusou a avançar, via o perigo. Sentia-o, sem saber precisamente do que é que se tratava e tinha medo. Mas logo que viu o morto, Tinka deixou de ter medo. Nunca se tem medo do que se vê, mas do que se receia ver... Então via-se a desgraça. Claramente. Já não havia de que ter medo. A desgraça estava à nossa vista...
- Portanto, ao ver o moleiro morto, com uma grande faca espetada nas costas e deitado num charco de sangue, a tua irmãzinha não teve medo. És tu que o dizes. Mas não pode ser assim. Vocês escondem qualquer coisa. Onde está a verdade?
- Juro-lhe que é a verdade. A minha irmãzinha deixou de ter medo ao ver o moleiro morto. Estávamos cheios de dor, de tristeza e de piedade. Já não havia em nós lugar para o medo. Onde é que o medo poderia instalar-se, quando o nosso coração estava cheio de dor? Benzemo-nos, muito piedosamente. Eu roguei em voz alta e Tinka repetiu conforme eu disse: "Que o Senhor, que criou o Céu e a Terra, tenha piedade do moleiro Nicolas Acathiste." Depois corremos ao Castelo da Vaca e contámos à sentinela aquilo que vimos: como o moleiro jazia morto em frente do seu moinho, com uma grande faca cravada nas costas... A sentinela deu o alarme. Depois, Sua Camaradagem Zid Caracal trouxe-nos aqui, para lhe mostrarmos o morto.
- Há portanto a certeza de que o assassínio foi cometido há cerca de uma hora assegura Mavid Zeng.
- Quando eu cheguei ao local do crime, o sangue da vítima ainda estava quente diz Zid Caracal. - Pus o dedo no sangue, mesmo ao pé da faca, no ferimento. O sangue estava quente. Por coagular. Tinha acabado de correr das artérias. A chaga parecia ainda mesmo pingar, porque as pequenas gotas de sangue, em volta da faca, estavam frescas como rubis. Isso prova que o assassino passara por ali alguns minutos antes de nós. O sangue nunca engana. O sangue indica a hora do crime como um cronometro.
- Tem a certeza de que na aldeia não estava ninguém que pudesse ter cometido o crime, Caracal?
- Ninguém, Vossa Camaradagem. Absolutamente ninguém.
Nesse mesmo momento ouvem-se passos. Passos de homem. Ficou tudo estupefacto. E não ousavam olhar. Havia, pois, um homem na aldeia, e esse homem andava. A dois passos do moinho, na estrada. Aproximava-se. Todos ao mesmo tempo, os milicianos e os garotos, levantaram a cabeça com angústia e ficaram de boca aberta. O padre Acathiste, irmão do moleiro assassinado, estava ali, no meio da estrada, a alguns passos de distância. Avançava lentamente para o grupo que rodeava o cadáver.
Quando os milicianos e as crianças o fixaram com os seus olhos estupefactos, o padre parou bruscamente, surpreendido. O seu corpo ficou imóvel; depois, sentiu-se que queria fugir, desaparecer, esconder-se. Mas a voz de Mavid Zeng ordena:
- Aproxima-te, frade. Aproxima-te. Enquanto o padre avançava a passos
muito pequenos, em que se podia ler o medo, o terror e a surpresa, Mavid Zeng gritou, carregando nas palavras como se fossem pragas:
- Dizias-nos, camarada Caracal, que não havia ninguém, absolutamente ninguém, na aldeia, não era?
O padre Théophore tinha agora acabado de chegar junto do cadáver do irmão. Olhava para o morto, estendido na terra, com as calças brancas cingidas, a camisa branca manchada de sangue. Uma enorme mancha vermelha. E, no meio da mancha vermelha, a faca, cravada nas costas do homem, como um espargo, como um alho-porro. Mesmo no meio, entre os ombros. Ô padre ergueu os olhos para as duas crianças. Estavam assustadas porque o viam ali. Ele tornou a olhar para os milicianos, levantou a mão direita para a levar à testa e fazer o sinal da cruz. Mas a voz de Mavid Zeng paralisou-lhe o gesto. E o padre deixou cair a mão direita, sem se benzer.
- Estás há muito tempo na aldeia, frade?
- Estou na aldeia há cerca de uma hora, Vossa Alta Camaradagem - responde o padre.- Há mais de uma hora.
Seguiu-se um silêncio de chumbo, um silêncio de metal muito pesado, como o silêncio que cai nas prisões e esmaga os presos, depois de os guardas terem dado duas voltas às chaves nas fechaduras das portas de ferro das celas. Esse silêncio terrível abateu-se sobre o morto e sobre os vivos que o cercam. Dir-se-ia que os próprios relógios pararam, que a seiva parou de subir nos troncos das árvores e nos rebentos da erva, que o rio Osana parou. Tão grave, esmagadora, sem equívoco é a declaração do frade Théophore Acathiste. As suas palavras não fecham unicamente as portas de uma prisão, é também o Céu que elas trancam.
O próprio padre não pode suportar aquele silêncio provocado pelas suas palavras. Também não suporta os olhos fixos nele. Sente na carne, como pontas de lança, os olhos azuis de Mavid Zeng, os olhos negros de Zid Caracal, os olhinhos de esquilos cativos de Tinka e Sava Trifan. Todos, imóveis, olham para o frade Acathiste com terror, com estupefacção, como fulminados. Podia esperar-se tudo, mas não aquilo. Não. Um padre, um frade, um santo. Porque, mesmo os inimigos da Igreja, os sem Deus, reconhecem que o frade é um santo. E eis que ele, o padre, o frade, o santo, matou o seu próprio irmão. Cravou a faca nas costas do moleiro. com a sua mão de santo e de asceta, com a mão que toca o corpo de Deus no altar. O padre matou. O facto está ali. Há o morto. E o criminoso também. E ele confessa:
- Cheguei à aldeia há mais de uma hora. Talvez hora e meia, não sei, porque não tenho relógio...
O frade fala para romper o silêncio. Um silêncio que, como uma imensa redoma de vidro, a todos cobre e sufoca.
- Desfilei durante as oito horas, de acordo com as normas. Desfilei com os tuberculosos. Ao chegar ao meeting, esta manhã, disseram-nos que não havia bastantes homens para transportar as camas dos tuberculosos no cortejo. E destacaram-me da minha coluna para transportar os tuberculosos. Todos os padres desfilaram com os tuberculosos. O desfile dos doentes terminou às cinco horas, porque era preciso levá-los para o hospital e para os sanatórios. Quanto a mim e aos outros padres, deram-nos ordem de voltar para casa. E antes de ir para a minha igreja, fui aos Acathistes, a casa da velha Anastásia, buscar as prosphoras. Informou-me por gestos que as crianças haviam ido buscar farinha ao moinho. Que se esperasse me faria as prosphoras para toda a semana. Depois de ter esperado um bom bocado, vendo que os dois garotos não voltavam, pensei para comigo que as crianças se tinham posto a brincar e esquecido de ir ao moinho. Disse à mãe Anastásia que iria eu mesmo buscar a farinha. A casa de meu irmão. Sabia onde a encontrar, junto da porta. E encontrei-os aqui. E, desgraça das desgraças, vejo o meu irmão morto e Vossas Altas Camaradagens à sua volta... O padre desfaz-se em lágrimas.
- Afirmas, então, que estás na aldeia há mais de uma hora, não é verdade?
- Sim, é verdade, Vossa Camaradagemresponde o padre. - Não tenho relógio, mas estou certo, mesmo assim, de que se passou mais de uma hora, talvez mesmo hora e meia, desde que cheguei à aldeia.
O olhar do padre descobre a faca nas costas do irmão. Não a tinha visto devido à emoção, embora o cabo de madeira verde da faca brotasse como uma planta das costas do morto. Vê-o agora através das lágrimas. E não pode continuar a dominar-se. Dá um passo para ajoelhar junto do morto e rezar.
- Queres ver de perto o que aconteceu ao teu irmão? - pergunta Mavid Zeng.
Fala num tom irónico. Melhor, quer falar ironicamente, mas não consegue porque é tudo muito grave. Não há lugar para a ironia. A gravidade avassalou tudo. O Céu e a Terra. Os corações e os olhares. As vozes e os gestos. Tudo é grave. Vive-se sem pensar nas contas a prestar no Juízo Final, quando Deus perdoará tudo a todos os homens, com a sua divina misericórdia, mas não perdoará aos anjos. Eles serão condenados. E não voltarão a ser julgados. O frade que vive na Terra - como os anjos- não tem direito à clemência sem limite de que beneficiam os seculares, os laicos. Os frades terão o julgamento reservado aos anjos. O crime de um frade não é igual aos crimes dos homens. O crime do frade é semelhante aos crimes dos anjos. O anjo pecador torna-se subitamente demónio, transformando o seu corpo de ouro e de luz num corpo negro de trevas e de chamas. O Juízo Final é apenas para os homens, não é para os anjos. Não há dúvida de que os frades comparecerão em presença do juiz, mas, como o afirma São Teodoro Estudita, não escaparão ao castigo vingador de Deus.
O padre-monge Théophore Acathiste tem mais de cinquenta anos, mas não aparenta esta idade. Apesar dos cabelos brancos e da
São Teodoro Estudita, Grandes Catéchèses, Livro II, 8, 53.
barba grisalha, dir-se-ia um adolescente. É alto, mede quase dois metros, mas é extremamente magro, com um rosto ascético. A sotaina comprida, de mangas largas, parece uma bandeira negra que flutua sobre o seu corpo, extenso e seco como um mastro de navio. Continuando a chorar, o frade benze-se. Fá-lo à maneira dos frades da Santa Montanha Athos, assentando com força os três dedos da mão direita, reunidos, na testa, no peito, mas muito acima da cintura. Quando os dedos do padre tocam no seu ombro direito, desfaz-se numa torrente de lamentações. Correm-lhe grossas lágrimas sobre a barba e as faces. Apesar da comprida barba, muito rala, de pêlos longos e sedosos, vêem-se-lhe as faces ascéticas, com os ossos do rosto quase descobertos, como o rosto de um morto.
- Frade, aproxima-te - ordena Mavid Zeng. - Guarda as lágrimas e as lamentações para mais tarde. Terás todo o tempo para o fazer. Agora é preciso que respondas às minhas perguntas. Vês o teu irmão morto aos teus pés?
O frade acena afirmativamente com a cabeça. Olha para seu irmão Nicolas a seus pés, deitado na poeira do caminho e no sangue. A mancha vermelha na camisa é como uma enorme rosa com as pétalas desfeitas e espalhadas.
O moleiro, teu irmão, foi assassinado há menos de uma hora. Ouves-me bem?
Ouço-vos, Vossa Alta Camaradagem, ouço-vos.
- Cravaram a faca, como vês, nas costas do teu irmão. com força. É um assassínio cometido por um adulto. Estás de acordo que foi um adulto quem fez este trabalho, não estás? Não se pode afirmar o contrário. A lâmina da faca penetrou uma boa dezena de centímetros nas costas do teu irmão. O assassino tinha a força de um adulto, de um homem. Estou satisfeito que estejas de acordo connosco até aqui. Espero que estejamos também no que se segue. Ouve-me bem- sabemos ao certo que na aldeia não estava nenhum homem. Ao amanhecer, todos a deixaram para irem participar no meeting da Festa Nacional. Não havia portanto na aldeia nenhum homem que cometesse o monstruoso assassínio. E, exactamente no momento em que perguntávamos a nós mesmos quem poderia ter matado o teu irmão, surges na nossa frente. Vieste sem que ninguém te chamasse. De tua livre vontade. E afirmas-nos mesmo que estavas na aldeia na ocasião do crime...
- Estava na aldeia na ocasião da desgraça- repete o padre. - É verdade, mas ignorava o que se passava...
- Eras o único homem na aldeia, padre. Portanto, o assassínio do moleiro, teu irmão, só tu o poderias cometer. Não é um assassínio, é um fratricídio... E o assassino, o fratricida, é, além disso, frade e padre...
- Não, Vossa Alta Camaradagem..., não podeis dizer isso...
- Se não és tu, então quem é o assassino? Estes dois garotos sarnosos? Teriam necessidade de um banco, para chegarem às espáduas do teu irmão e cravarem a faca. E mesmo que subissem a um banco, não poderiam enterrar a lâmina toda no corpo do teu irmão. É preciso ter força para isso. Não é trabalho para crianças, a não ser que afirmes que lhe cravaram a faca nas costas com a ajuda de um martelo, como se pregassem um prego na parede... Não é honesto. Não se pode acusar os garotos de terem matado o teu irmão... Resta a paralítica, a surda-muda, a velha Anastásia. Dizem que nunca saiu do seu pátio. Não pretendes fazer-nos crer que foi a paralítica que se deslocou até aqui para matar o teu irmão? Não? E é bem melhor que o não digas. Além dos dois garotos sarnosos e da paralítica, não havia ninguém na aldeia.
Foste, portanto, tu que fizeste a obra. Foste tu que mataste o teu irmão.
Mavid Zeng viu as horas. Tinha de voltar para a tribuna oficial, armada no centro da cidade, a fim de assistir ao desfile iluminado dos povos vencidos de Vrância, que gritarão toda a noite, empunhando tochas, como são felizes por terem sido invadidos e ocupados pelas hordas dos moscales vindos do Leste... E como esse dia, 23 de Agosto, dia em que perderam a sua liberdade, é belo para eles... E toda a noite, os povos de Vrância empunharão os fachos de resina, gritando que amam o ocupante moscale, que amam os seus carrascos, os colaboradores e os auxiliares do invasor, que adoram os seus tiranos e que são os homens mais felizes do mundo desde que perderam a liberdade... Aquele que não grita tudo isso é acusado de crime contra a segurança do Estado... E todos gritam. E as montanhas de Vrância, que são as únicas mudas nas festas de 23 de Agosto, choram com todas as suas nascentes, inundando os vales de lágrimas...
- Ô assassínio do moleiro é um assunto quase arrumado - diz Mavid Zeng. - Apanhámos o criminoso. Fará declarações completas. Eu, camarada Caracal, volto para o meeting, para o desfile iluminado. Pega na faca e em tudo o que haja nas algibeiras da vítima. Leva tudo isso, com o preso, para o Castelo da Vaca. Eu conduzo-os lá. E voltarei mais tarde, durante a noite. Não esqueças: amanhã, os sarnosos têm de desaparecer da aldeia.
Mavid Zeng está contente consigo. Olha para o cadáver. Deita um olhar ao frade.
O mistério do crime ficou esclarecido
em menos tempo do que se pensava. O assassínio é afinal um odioso fratricídio. Um imundo fratricídio perpetrado no dia da nossa Festa Nacional, 23 de Agosto. Ver-se-á mais tarde como e porquê o frade o cometeu. Será trazido à luz um novo e tenebroso caso medievo-religioso, com recalcamentos místicos, bruxedos e outras práticas que já não têm cabimento numa república popular. Somos um corpo social limpo, asséptico. E é bom que esses supersticiosos, esses irmãos de Rasputine, esses continuadores da Idade Média sangrenta, se manifestem, para serem eliminados como focos de infecção. E, depois da sua cauterização, haverá uma república asséptica, limpa, sã. A Igreja Cristã é o tumor, o foco de infecção do nosso corpo social...
Enquanto Mavid Zeng fala, Zid Caracal debruça-se sobre o cadáver. Tira a faca das costas do moleiro. A enorme faca sai da carne do morto como uma cenoura da terra molhada, como uma beterraba vermelha. Caracal coloca a faca assassina ao lado do cadáver. Não há necessidade de revistar as algibeiras do morto. O fato dos camponeses de Vrância não tem algibeiras. Atada ao cinto do moleiro está a chave do moinho. Uma bela e grande chave de ferro. No cinto de cabedal preto encontra-se também um lenço bordado com as iniciais do morto: N. A. - Nicolas Acathiste. Era tudo o que o moleiro tinha com ele no último momento da sua vida. Não trazia nem documentos de identidade nem dinheiro. Nada. Zid Caracal embrulha a faca e a chave do moinho no lenço e coloca-as no carro.
- Põem-se-lhe as algemas? - pergunta Zid Caracal, empurrando o frade para o assento de trás do jeep.
- Não é necessário-responde Mavid Zeng, subindo para a direita do motorista.
No assento de trás, o padre está ao lado de Zid Caracal. O carro recua, descreve uma curva e sobe pela estrada que conduz ao Castelo da Vaca. Lá ficarão o preso e os corpos de delito, ao cuidado de Zid Caracal. Mavid Zeng partirá para tomar o seu lugar no meio da tribuna oficial, para assistir ao desfile dos archotes...
Em frente do moinho, a meio da estrada, no sítio onde caiu morto com a faca cravada nas costas, jaz o cadáver do moleiro. O seu sangue está agora quase negro. Para a remoção do cadáver, não se tomou qualquer disposição. Os cadáveres não são como as festas nacionais. Os cadáveres podem esperar. As crianças sarnosas, essas foram abandonadas igualmente junto do moinho, tal como o cadáver. Para elas também as ordens de afastamento e de isolamento virão mais tarde. Amanhã, como para o morto. As crianças com sarna não são mais importantes que os mortos.
O pôr do Sol acaba no céu de Vrância num charco de sangue que mancha todo o Ocidente, como o sangue do moleiro Acathiste manchou de vermelho a sua camisa e a terra em frente do seu moinho.
- Fica aqui, ao pé do morto, Tinka -ordena o rapaz à irmãzinha, depois de o carro ter desaparecido em direcção aos píncaros do Castelo da Vaca, por detrás dos pinheiros. - Fica aqui - repete Sava. - Eu vou a casa da mãe Anastásia buscar velas e fósforos. É preciso acender uma vela à cabeceira do defunto. Pobre moleiro Nicolas! Não se pode deixá-lo sem uma vela acesa...
- Eu não fico aqui! - grita Tinka.
Agarra-se ao braço do irmão. Tem medo, como tinha medo de avançar em direcção ao moinho, na estrada em que se encontrava o morto. Agarra o braço do irmão com os dedos cuja pele está gretada pela sarna...
- Não fico só com o morto...-repete Tinka.
- É preciso que fiques, pequena. É um pecado grave deixar um morto sozinho. Antes de ir a enterrar devemos velá-lo.
Depois da invasão dos moscales e da instauração da sociedade tipo rebanho de animais, em que os homens não têm direito às práticas espirituais, porque os animais não têm espírito nem religião, é proibido aos padres ensinar o catecismo às crianças. Apesar disso, os órfãos, Sava, que tem oito anos, e Tinka, que tem seis, conhecem as regras da fé tão bem como o padre. Foi a avó quem lhes ensinou tudo. Sava Trifan está triste com a morte do moleiro, mas menos do que seria de esperar. É que a avó mostrou-lhe as linhas do livro de São Dinis que se referem à morte, e ele sabe que a morte não é um mal. No Geronticon está escrito: "Um frade acaba de anunciar a outro que seu pai morreu. "Pára de blasfemar", diz-lhe o outro. "O meu pai é imortal."" Sava, como qualquer cristão, sabe
Evalgie: Práticos, II, 95.
que os corpos e as almas ressuscitarão. Mesmo a carne apunhalada do moleiro ressuscitará. ((Porque os corpos que foram submetidos ao mesmo jugo que as almas e que cumpriram a mesma peregrinação, que foram alistados com elas e que combateram com elas no mesmo combate, receberão, em recompensa dos seus sofrimentos, a imortalidade, como as almas." Um cristão considera a morte, mesmo violenta, como uma vitória, porque o combate dessa vida terminou.
- O moleiro está agora no Paraíso, está ao lado da Panaghia e dos santos... Porque tens medo de ficar com um santo? - pergunta Sava.
- O moleiro não era um santo...
Agora está no Paraíso. Nessa mesma noite, o moleiro está ao lado de Deus. Porque aquele que mata um homem, ao mesmo tempo que lhe tira a vida, iliba-o dos seus pecados. E aquele que morre assassinado, como o moleiro, vai direito ao Céu, porque já não tem um único pecado... Está puro, como se acabasse de sair das águas da pia baptismal... Todos os seus pecados foi o assassino quem lhos tirou, ao mesmo tempo que a vida...
São Dinis P. G., in, 553 A.
- Eu não fico com o morto! - insiste a pequena Tinka. - Tenho medo...
- É preciso que fiques, pequena. És estúpida e supersticiosa - diz Sava Trifan, empregando as palavras que ouvira há alguns instantes da boca do chefe da milícia.
- Porque tens medo dos mortos? Os mortos são melhores que os vivos. Porque os mortos já não podem pecar. É verdade que já não podem fazer o bem, e arrepender-se também não. A não ser que sejam santos, porque os santos continuam a fazer o bem mesmo depois da sua morte. Mas o moleiro não era um santo. Está no Paraíso. O santo é o irmão, é o padre Théophore.
- Foi ele quem matou o irmão moleiro e tu dizes que ele é santo...
- Imbecil, cala-te ou irás para o Inferno. Como podes repetir, a respeito dos santos, as palavras dos homens sem Deus, como Zeng e a milícia? Tu não sabes o que a milícia disse a respeito de Nosso Senhor? E não sabes o que a milícia fez a Nosso Senhor? É por servir santo, como Nosso Senhor, que o padre Théophore é acusado de crime e será imolado... mas ele não matou...
- Não, tenho medo-diz Tinka. E chora ao saber que o padre Théophore será imolado como Cristo.
- Se tens medo dos mortos, vai para junto dos vivos - diz Sava com furor. - Vai a casa da velha Anastásia. Tira uma vela ou duas. Estão no tecto, debaixo da trave, ao pé da caixa do incenso. Não entornes nada. Tira as velas e volta depressa. E não te esqueças dos fósforos...
Não há velas à venda há vinte anos. Desde a invasão e a ocupação de Vrância pelos moscales. Pensam suprimir a fé, suprimindo as velas. Mas, ao mesmo tempo que aprenderam o catecismo teórico, os pequenos Sava e Tinka aprenderam também o catecismo prático. A velha Anastásia palavra que significa ressurreição-ensinou-lhes a nunca deitarem fora a cera, quando lhes dessem um favo de mel para comer. E todas as crianças cristãs que comem mel em todas as terras de Vrância levam ao padre os bocadinhos de cera que mastigam. com essa cera, mastigada pelas crianças, guardada e oferecida por elas, fundem-se as velas. E são essas velas que se acendem na liturgia, nos casamentos, nos baptizados e à cabeceira dos mortos. E nunca os mortos nem as igrejas tiveram falta de velas...
Na hora que se seguiu ao inquérito de Mavid Zeng e da milícia, Nicolas Acathiste tinha junto da cabeça, por altura da testa, duas pequenas velas espetadas na terra solta. Feitas de cera mastigada por Tinka e Sava Trifan. Enroladas com as mãos, desajeitada mas piedosamente. Eram tão bonitas aquelas duas pequenas velas. Tão bonitas que o Céu - lá no alto-acendeu instantaneamente duas estrelas, por cima da cabeça do moleiro morto, como resposta àquelas pequenas chamas.
Meia hora depois, ao regressarem, cansados, do desfile forçado em que haviam sido obrigados - entre as baionetas e as pistolas da milícia - a gritar que se sentiam felizes com a ocupação imposta pelos invasores do Leste, os habitantes da aldeia dos Acathistes descobriram o cadáver. Foram imediatamente procurar sob as traves das suas casas velas iguais às que os garotos sarnosos tinham levado. E antes de comer, de beber, ou de mudar de roupa, cada habitante de Vrância havia acendido uma vela junto do corpo do moleiro morto. Por cada vela acesa na poeira da estrada acendia-se no Céu uma estrela, a resposta à pequena luz terrestre.
E quando a noite caiu finalmente na aldeia dos Acathistes, o corpo do moleiro Nicolas Acathiste estava rodeado por dezenas e dezenas de velas, que ardiam à volta do seu corpo como uma auréola, como o resplendor que rodeia, nos ícones, não só a cabeça mas todo o corpo do Cristo Glorioso. E lá no alto, também como uma auréola, igualmente acendida em torno do homem morto na Terra, na província de Vrância, brilhavam as estrelas.
Mas nenhum dos habitantes de Vrância, nem mesmo as crianças que tudo vêem, reparou nas estrelas brilhantes do firmamento, por cima do morto.
Era verdade que naquela noite os habitantes da aldeia dos Acathistes olhavam para o alto, como de costume. Mas não olhavam para o Céu. Olhavam para o Castelo da Vaca, o centro do Partido e da milícia, onde estava fechado o frade Acathiste, o padre e o confessor da aldeia. Um castelo medieval situado como um miradouro, como uma torre de vigia, no cume da província de Vrância. Sabia-se que era ali que estava fechado o padre-monge, Théophore Acathiste, o irmão do morto.
Os habitantes de Vrância não ousam pensar em nada. Os seus olhos mantêm-se suspensos do Castelo da Vaca. Os homens têm dores no pescoço. Olham, olham, e não ousam acreditar em nada. Nada. Porque têm medo de que o Céu lhes caia em cima, como um tecto que desabasse e os esmagasse a todos. Semelhante crime não é admissível. Não. É um domingo - nesse ano de 1964 o dia 23 de Agosto foi um domingo. O nono domingo depois do Pentecostes. Não se oficiou a liturgia em parte alguma, porque os padres foram obrigados a desfilar. E naquele domingo, a milícia afirma que o padre dos Acathistes, o padre deles, matou o irmão, o moleiro. E ninguém tem coragem para se ir deitar, porque tal crime deve ter um castigo imediato. Terrível. Como o de Sodoma e Gomorra. Nessa noite, o Céu desabará, a Terra abrir-se-á e absorverá nas suas entranhas, de fogo e de enxofre, toda a província de Vrância. Por causa do crime cometido pelo santo frade, ninguém tem coragem de levantar os olhos para o Céu. E é pena, porque a câmara-ardente, a câmara do firmamento-com todas as estrelas brilhando por um homem assassinado-, é mais bela que a da Terra: é todo o cosmos que chora, enlutado, o assassínio do moleiro Nicolas Acathiste. Porque o cosmos foi criado, no espaço de seis dias, especialmente para o homem. E se o homem morre, o cosmos não tem razão de ser. Por isso se diz que quem quer que mate um só homem prestará contas pelo universo inteiro. O cosmos sem o homem é uma criação inútil, apesar de todas as suas belezas vegetais, minerais e animais... Todas as maravilhas, a Lua e o Sol, os dias e as noites, as flores e as árvores, os mares e as montanhas, todas foram criadas para o homem. E é unicamente pelo homem que todas essas criações podem chegar à plenitude, à divinização. Sem o homem, nada chega à plenitude. E eis que um homem morreu. Uma hipótese de plenitude para o cosmos desapareceu. O cosmos está de luto. Aquele que tinha por missão devolver a plenitude a qualquer criação, santificando-a - o homem-padre-, matou o próprio irmão. Têm-se visto todas as espécies de crimes e todas as espécies de pecados sob a luz do Sol. Mas nunca se viu um maior. E a Lua, a própria Lua, nasceu nessa noite, sobre Vrância, como uma viúva do cosmos, vestida de crepe negro. Os homens que se estendiam nas suas camas sentiam o pecado pesar-lhes sobre o peito, como mós de moinho. Estavam todos esmagados, quase a perderem o fôlego, sufocados. O crime do santo frade era muito pesado de suportar.
AS VÉSPERAS NO CASTELO DA VACA
ENQUANTO os habitantes da aldeia dos Acathistes voltavam da Festa Nacional e descobriam, morto na estrada, o seu moleiro, o frade penava no Castelo da Vaca. O jeep da milícia tinha-o lá deixado sob a vigilância de Zid Caracal. O padre Théophore estava fechado numa sala vazia do castelo.
O Castelo da Vaca está construído como um miradouro, como uma torre de vigia, no cume mais alto da província de Vrância. Do Castelo da Vaca vê-se toda a região, em baixo, como se vêem as letras num livro aberto. Foi edificado pelos déspotas que sucessivamente dominaram a província. Data de tempos imemoriais, porque o despotismo e a tirania são velhos como o mundo. De cada vez que os invasores estrangeiros caem sobre a província e a ocupam, os novos tiranos instalam-se sempre no Castelo da Vaca. Daí, vêm a região conquistada a seus pés, têm-na debaixo de olho, dia e noite, podendo vigiá-la de todas as janelas, de todos os terraços. Exactamente como, dos seus miradouros, as sentinelas das prisões vigiam os presos.
Depois da partida dos turcos que ocuparam o Castelo da Vaca durante cinco séculos, chamando-lhe o Serralho, os déspotas fanariotas instalaram-se lá. Eram chamados os bonjuristas, porque, durante a sua permanência de um século no Castelo da Vaca, a única palavra que trocaram com o povo da terra conquistada foi bonjour.
Eram pessoas escolhidas entre a ralé internacional do Leste e do Fanar. Aventureiros da pior espécie, que, antes de tomarem posse da província, faziam um estágio nas. cadeias de Paris. Ao instalarem-se nos Cárpatos, quiseram introduzir no Castelo da Vaca o ambiente parisiense. Começaram por podar as árvores, cortando-lhes os ramos, como tinham visto fazer nos parques dos castelos do Loire. com os ramos podados, as árvores vigorosas dos Cárpatos apresentavam o aspecto miserável de forçados a quem tivessem rapado o crânio. Os sátrapas bonjuristas construíram, depois, em toda a volta do Castelo da Vaca, jardins à francesa, como desenhos de crianças sobre as folhas quadriculadas dos cadernos de aritmética. O olhar procurava, em vão, um canto de sombra, de mistério, de poesia. Havia apenas linhas e ângulos. As poças de água geométricas com que tinham manchado o cenário, chamando-lhes lagos, eram tão tristes que nem as próprias rãs queriam viver na sua água estagnada. Quanto à arquitectura, as inovações tinham sido mais infelizes ainda. Decidiu-se fazer, em todas as divisões do castelo, tectos e paredes com molduras douradas, como nos castelos de França. Não havia materiais franceses. Um mestre-de-obras informou os déspotas bonjuristas de que poderia fazer as molduras misturando a argila da província de Vrância com pêlo de bovídeos. Fizeram-se experiências. Argamassa, reforçada com pêlo de vaca, era boa de moldar, e, uma vez seca, ficava tão sólida como betão armado. Em vez de fio de ferro, misturou-se pêlo de vaca na argamassa, obtendo-se uma mistura vaca-betão. Começaram a fazer-se molduras por toda a parte, em todas as salas, nos quartos e nas galerias do Castelo da Vaca. Mas o pêlo de vaca esgotou-se depressa, apesar de os bonjuristas possuírem grandes manadas. Quis-se substituí-lo por lã de carneiro, por crina de cavalo, por pêlo de gato ou de cão. Não deu resultado. E os cães e os gatos foram inutilmente tosquiados. No comércio, não se encontrava aquele estranho material. Foi então ordenado que se requisitasse o pêlo de todas as vacas, bois e vitelas que existissem na província de Vrância. O exército e a polícia foram encarregados de executar a tosquia dos bovinos. Foi uma das épocas mais tristes da província de Vrância. As vacas, tosquiadas como recrutas, como forçados, estavam hediondas. Uma vaca sem pêlo é como um enorme morcego, como um animal apocalíptico. Os cães, à vista de tão feios e insólitos animais, encarniçavam-se em persegui-los, pois apavoravam as crianças e desfeavam a paisagem. Quase todas as vacas de Vrância foram mordidas pelos cães. E, mais ainda, as vacas já não se entreolhavam, e perseguiam-se umas às outras, não podendo suportar a fealdade das suas irmãs. Bebiam no rio com os olhos fechados para não verem, reflectida na água, a fealdade do seu próprio corpo. Deixaram, dentro de pouco tempo, de parir e de dar leite. Porque a tristeza seca as tetas e rouba a vontade de ter filhos. Apesar de tudo isto, continuou-se, durante anos, a tosquiá-las, e mesmo a rapá-las. Era um trabalho que a polícia fazia de dia e de noite. Depois, tudo acabou. O castelo ficou ornamentado com molduras de pêlo de vaca. E porque todos esses embelezamentos só foram possíveis graças às vacas, chamou-se-lhe Castelo da Vaca. O último sátrapa bonjurista deixou o castelo no decorrer da Segunda Guerra Mundial, em 1941, e fixou-se no Ocidente. O castelo foi vendido por uma bagatela, por menos de um pedaço de pão. É que os castelos não se compram, tomam-se pela força. E era a primeira vez, decorridos mil anos, que o Castelo da Vaca fora comprado e não tomado como espólio de guerra. Quem o comprou, pagando pelo castelo e seus anexos menos do que se dá por uma junta de bois, foi Mavid Zeng. Apesar da quantia ridícula que ele pagou ao déspota em fuga, ninguém foi enganado. Nem o vendedor, nem o comprador. O bonjurista vendia uma coisa que geralmente se abandona. E Mavid Zeng comprou uma coisa que não se pode adquirir com dinheiro. Enquanto durou a guerra, Mavid Zeng não morou no castelo. Transformou-o em depósito de mercadorias.
Esse Mavid Zeng, o novo proprietário, era o homem mais conhecido da província de Vrância. Contudo, não se sabia donde vinha nem onde morava, se era casado, se tinha família ou não. Não se sabia nada a seu respeito. Mas era visto por toda a parte.
Estava em todas as estradas, em todas as feiras, em todas as aldeias, em todas as cidades. As crianças, mesmo as de colo, conheciam Zeng. Usava um grande chapéu de feltro, um capote largo que nunca tirava, mesmo no tempo mais quente, e um bengalão de abrunheiro ao ombro, do qual estava dependurado um rolo de peles de animais. Antes de o verem, pressentiam-lhe a presença pelo cheiro, porque logo que uma vaca, um cavalo, um cão ou um gato morriam numa aldeia, no dia seguinte, como que atraído pelo cheiro do animal morto, Mavid Zeng aparecia lá. Falava com o antigo dono, perguntava se o cadáver estava no pátio ou nalgum campo. Fazia negócio. Depois, tirava de um saco escondido sob o capote uma série de instrumentos apropriados: facas, machados, tesouras, serras. Tudo brilhava. E enquanto ele se preparava, toda a aldeia, dos mais pequenos aos mais importantes, mesmo os curas, os mestres-escola e os guardas, todos estavam reunidos em volta do animal morto e de Mavid Zeng, como para um grande espectáculo. Sem tirar o chapéu nem o capote, Zeng começava a esfolar o animal, o que fazia com uma destreza nunca vista. Jamais estragara uma pele. Mesmo quando chegava demasiadamente tarde, depois de um dia de calor, e o animal já estava cheio de vermes, inchado, podre, Mavid Zeng debruçava-se sobre ele e, começando pelo ventre, esfolava-o, tirava-lhe a pele como se descalça uma luva. Às vezes, o mau cheiro era tão forte que os espectadores afastavam-se uma dezena de metros para não caírem sufocados. As narinas de Mavid Zeng pareciam desprovidas do sentido olfactivo. Continuava com o nariz em cima do cadáver, esfolando-o com método, com minúcia. O mau cheiro sufocava os outros. A ele não. As mulheres grávidas adoeciam só à vista da carne podre e dos vermes. Mavid Zeng trabalhava com as mãos sem luvas enterradas na podridão do cadáver sem nunca se enojar. Os outros receavam aproximar-se se o animal tivesse morrido de doença, mas Mavid Zeng não tinha medo da doença, assim como não ficava enjoado por ver e cheirar os cadáveres. Estava imunizado. Depois de haver esfolado o animal, raspava a pele com cuidado, devagar, eliminando os pedaços de carne, de sangue, de gordura, a podridão, os vermes. Seguidamente, limpava a pele e contemplava o seu trabalho, enxugando a testa com as mãos. Então, puxava por um chifre de boi amarrado ao cinto e espalhava sal por cima da pele. Por fim, enrolava-a como um objecto precioso, atava-a e pendurava-a no bengalão que trazia ao ombro e partia, depois de cumprimentar, sem proferir uma palavra, levando os dedos ao chapéu de abas largas. Deixava atrás dele, como que um rasto que persistia durante horas, o cheiro do cadáver e da pele que levava consigo. Havia épocas em que Mavid Zeng não encontrava peles de bois, nem de cavalos, nem de vacas. Então, contentava-se com peles pequenas. E com a mesma minúcia, procurava e esfolava os cadáveres de cães, gatos e ratos. Mavid Zeng era o espectáculo mais estranho, quase o único espectáculo a que as crianças da província de Vrância podiam assistir. Corria-se ao encontro de Mavid Zeng, mal ele aparecia com o seu chapéu, o seu capote de burel, o seu bengalão, o seu cheiro. Indicavam-lhe todos os cadáveres de gatos, de cães, de ratos que houvesse nas bermas das estradas e nos arredores da aldeia. E assistia-se ao terrível espectáculo da esfola.
As pessoas faziam toda a espécie de perguntas a respeito de Mavid Zeng, esse homenzinho franzino, de olhos azuis, avaro de palavras, que vivia de cadáveres e de peles de animais mortos, mas esbarravam sempre perante o mistério e o desconhecido. Algumas vezes pagava o cadáver, e ficava-se a pensar como poderia ganhar dinheiro com ele. E porque não teria escolhido outro modo de vida? Ninguém ousava fazer-lhe perguntas. Olhava-se para ele com horror, com nojo, com os olhos espantados, arregalados. Mavid Zeng pertencia a outro universo. Nunca ninguém o via sentar-se, nem comer, nem beber. Passava todo o tempo a andar. E quando andava com o rolo de peles de animais ao ombro, não olhava para a esquerda nem para a direita, olhava sempre para o chão, em frente dos pés. Pensava-se, ao vê-lo, que era muito fraco. Mas nunca estava doente, porque passava a vida a andar. E os doentes não andam como ele, de dia e de noite. As pessoas bem gostariam de saber onde morava, porque ele havia de ter uma casa. Depois, diziam de si para si que não devia ter residência certa, visto que andava de dia e de noite pelas estradas. Não se sabia nada a seu respeito, se tinha um deus e qual. Os guardas pediam-lhe, com frequência, os documentos. Guardava-os no saco, juntamente com os instrumentos de esquartejar os cadáveres. Estavam em ordem, mas não se ficava a saber nada a seu respeito. Nada, a não ser que não estava em falta perante as autoridades. Quando, em 1941, se soube que Mavid Zeng comprara o Castelo da Vaca, ninguém, na província de Vrância, ficou admirado, porque o bonjurista não encontrava quem o quisesse comprar. Pretendera vendê-lo à comuna dos Acathistes, que não quis pagar as despesas das escrituras, porque não tinha tal quantia. Sabia-se que Mavid Zeng apanhara o Castelo da Vaca como apanhava os cadáveres dos animais. O castelo era uma espécie de cadáver imobiliário. Dizia-se que os próprios documentos de venda haviam sido pagos pelo vendedor.
As pessoas sentiam nojo, dó, horror, por Zeng, o esfolador. Ninguém teria pensado em tratá-lo como um homem. E não o tratavam como a um homem. Nunca. Como dar tratamento de homem a alguém que não tem um ofício de homem? Ele tinha um ofício de hiena, de ratazana. O seu pão quotidiano, o pão que tirava dos cadáveres, não era pão para os humanos. Era mais para os vampiros, para os dragões, para as criaturas que metem medo nas noites de pesadelo... Depois da passagem de Zeng, o esfolador de cadáveres e negociante de bichos mortos, as pessoas cuspiam, benziam-se e iam lavar as mãos e a cara...
E no dia 23 de Agosto de 1944, quando as hordas moscales invadiram e ocuparam a província, pondo tudo a ferro e fogo, os habitantes viram chegar a Vrância com os moscales, vestindo um uniforme de coronel moscale, com as condecorações e as insígnias do P. C., Partido dos Colaboradores, misturado com os invasores, Zeng, o esfolador. Mavid Zeng em pessoa. Tão sujo como dantes, mas de uniforme. Instalou-se no Castelo da Vaca, onde mandou afixar o seguinte aviso: ((O camarada Mavid Zeng oferece esta casa como centro do P. C. e da milícia." E como ele era o chefe do P. C. e da milícia da província de Vrância, começou por morar no castelo. Instalou-se no salão das molduras douradas feitas à moda francesa, mas com pêlo de vaca. Recebia as pessoas gabando-se de ser um herói da guerra e de ter ajudado os moscales a conquistar a Roménia. À guisa de recompensa pela sua traição, recebeu deles o comando da província de Vrância. Praticou crueldades antes nunca vistas, nem mesmo nos contos ou lendas. Muita gente foi fuzilada, quase um terço da população, nos poucos meses que se seguiram à invasão dos moscales. Todos os bens, móveis e imóveis, foram confiscados. Já ninguém possuía nada. Os habitantes de Vrância foram enviados em comboios, amontoados como animais, para os trabalhos forçados ou para os matadouros, sempre por ordem de Mavid Zeng, o esfolador de animais mortos, que, por decisão dos invasores, passou a ser esfolador de seres humanos. As cidades e as aldeias foram evacuadas dos seus habitantes. E aquilo durava havia vinte anos. A obra dos esfoladores e dos matadores começou em 23 de Agosto de 1944, com a ocupação da Roménia. E cada ano, no dia 23 de Agosto, todas as actividades são interrompidas. Os habitantes, os sobreviventes, são reunidos em rebanho, obrigados a desfilar em frente dos colaboradores, com cartazes, gritando que amam o invasor e o ocupante, que amam os seus carrascos, que são os homens mais felizes do mundo porque são dirigidos por Mavid Zeng, o esfolador, o negociante de peles de animais mortos e traficante de cadáveres.
Toda a província de Vrância cheira a sangue. Principalmente o Castelo da Vaca, centro do P. C. e da milícia. O nome de Mavid Zeng está impregnado de terror. Basta pronunciá-lo para se ser fulminado pelo cheiro sinistro a cadáver, a animais mortos, ao qual se acrescenta o cheiro a sangue fresco, o cheiro das vítimas torturadas no Castelo da Vaca.
Foi esse cheiro a morte, a sangue e a lágrimas, esse cheiro a podre, a esfolado, a crime e a assassínio que o padre-monge Théophore Acathiste sentiu ao entrar no Castelo da Vaca, sob a vigilância de Zid Caracal, à hora das Trindades, nessa noite 23 de Agosto de 1964. Levantou os olhos para o céu, mas viu apenas as molduras douradas do tecto. Olhou para o chão. O pavimento de madeira rara, muito bonito, estava agora coberto por uma camada de sujidade e queimado pelas pontas dos cigarros dos milicianos. Havia um cheiro pesado a álcool, a tabaco, a suor, a sangue e a urina. Via-se que uma só vez - durante aqueles vinte anos - tinham tentado limpar o chão do Castelo da Vaca. Mas haviam-no feito, como se se tratasse de madeira branca ou das latrinas das prisões, com água a ferver e lixívia. E foi a morte definitiva do soalho do Castelo da Vaca. O castelo transformou-se numa espécie de matadouro, onde foram mortos, dia e noite, durante muitos anos, inúmeras mulheres e homens da província de Vrância, por meio de torturas terríveis. Porque é principalmente no Castelo da Vaca que se tortura, que se mutila, que se viola e que se mata. O Castelo da Vaca é o matadouro sinistro do povo vencido de Vrância. É lá que os sobreviventes são amarrados como bovídeos e enviados para os campos de trabalhos forçados. Aqueles que foram levados pelo caminho que sobe, por entre os pinheiros, para o Castelo da Vaca, quase nunca voltaram às suas casas. Nunca. Os que lá morreram, apodrecem- há vinte anos - na ravina para onde foram atirados por Zid Caracal e pelos colaboradores dos moscales.
O padre Théophore, apesar de frade e apesar de - teoricamente - não dever ter medo da morte nem da tortura, nem de sofrer o martírio, exactamente como Cristo, o seu grande bispo do Céu, é sacudido por um arrepio de terror. É fraco. Sabe que Cristo, seu bispo, teve, ele próprio, um momento de medo e de dor, no jardim de Getsemani. O frade dirige-se à Panaghia, à Santíssima Maria, Mãe de Deus, porque tem um medo terrível e sente-se indefeso. Sabe que está, ao mesmo tempo, muito fraco de corpo. Não será nunca capaz de sair vivo do Castelo da Vaca, como alguns raros privilegiados. Porque a ele, ao frade Théophore Acathiste, podem matá-lo com uma única bofetada, com um só murro. O frade chora, porque tem um medo terrível.
No momento em que o medo o invadia como água gelada, a chave dá duas voltas na fechadura da porta com dourados. Zid Caracal entra, rindo. Vê-se que está embriagado.
- Há uma boa notícia para ti, frade - diz Zid Caracal.-Tenho ordem de não te fazer perguntas e de não te tocar com um dedo. Sua Alta Camaradagem reserva para si o direito de te interrogar.
Zid Caracal procura uma cadeira. Mas não há mobília nenhuma. Encosta-se à parede. Diz:
-Temos quase a mesma idade, padre Acathiste - e desata a rir. Ri mostrando os grandes dentes, dentes de cavalo, sacudindo o corpo de baleia, todo vestido de cabedal preto. Continua a fazer esforços para que as palavras saiam, porque a sua grande língua quase o impede de falar.
- Temos quase cinquenta e três anos os dois, mas tu hás-de morrer antes de mim... É por causa disso que eu rio. Mataste uma só vez na vida, e um único homem. E irás apodrecer e morrer no fundo de uma prisão. Eu, há vinte anos que não faço outra coisa senão matar. Sou um bom calculador e contudo não posso dizer quantos homens mandei para o outro mundo. E para isso, para matar, recebo dinheiro, comida, condecorações. É que matar é uma arte. É a mais difícil das artes. Uma ciência. Tu tens instrução, tu estudaste. Deves, em teoria, fazer as coisas melhor que eu, que não tive instrução. A propósito disso, quero perguntar-te: como pudeste fazer um trabalho tão lamentável? Nunca vi, em toda a minha vida, um crime tão mal, tão lamentavelmente executado. És o pior assassino que existe...
O padre Théophore Acathiste sente-se atordoado. Está de pé, com a sua grande batina, avermelhada pelas intempéries. Não tem consciência do que lhe acontece. Um frade é como uma borboleta, só se sente bem no silêncio, no recolhimento interior, na oração e na solidão. No mundo, está perdido. É por essa razão que o padre Acathiste, que tinha passado todo o dia no desfile, no meio da confusão e dos gritos, tem agora a impressão de que foi apanhado por uma torrente, que o enrola antes de o esmagar. Tem uma barba meio preta, meio branca, rala e sedosa. No seminário monacal de Vrância diziam-lhe: "Acathiste, és um homem que não está completamente encarnado." E é verdade. Nunca teve bastante corpo. Nem bastante osso, nem bastante carne. A sua encarnação foi começada, mas nunca foi acabada. Não tem a alma completamente vestida de carne e osso. Mesmo os cabelos, que usa compridos, caindo-lhe sobre os ombros, e a barba não são suficientemente espessos. Apesar de ser frade e padre, a barba mais parece uma baforada de fumo que lhe rodeia o queixo e lhe cobre uma parte do rosto. As suas faces são ossudas, magras, amarelas. Tem a pele como pergaminho. Os olhos são febris. Desprende-se de toda a sua pessoa uma atmosfera de renúncia, de solidão, de jejum e de misticismo.
- Se querias livrar-te do teu irmão para lhe ficares com a mulher, coisa compreensível principalmente no teu caso, pois, por seres frade, não tiveste com frequência, talvez nunca, ocasião de ver mulheres nuas e de perto, repito, se lhe querias ficar com a mulher e livrar-te dele, podias desembaraçar-te melhor... Queres ver, eu...
- Eu não matei o meu irmão - diz o padre Acathiste.
- Não é a mim que é preciso dizê-lo. Recebi ordens para não te interrogar. Não te faço perguntas. Tenho apenas obrigação de te vigiar. É tudo. Estou a dizer-te apenas o meu espanto. Deixaste vestígios do teu crime em toda a parte. Assinaste-o dezenas de vezes. E é isso que eu não compreendo. Como se pode matar tão desajeitadamente. Que o tenhas querido matar, isso percebo, mas exaspera-me que o hajas feito com tanta falta de jeito. O próprio Diabo, que tem milhares de truques, não te poderia defender, sabes? Estás completamente tramado... Se me tivesses pedido conselho sobre a maneira de te arranjares...
- Eu não matei o meu irmão-diz o frade. - Como poderia cometer semelhante acção? Sou um frade, um padre, um solitário. Um homem que renunciou a tudo o que o mundo pode oferecer. E isto desde a idade de dez anos, quando entrei para o convento. Não, Vossa Camaradagem, mesmo sendo vós homem sem Deus, não podeis acusar-me de ter matado o meu irmão... Não é admissível. Para matar um homem, para matar o próprio irmão, é preciso estar completamente cego por uma paixão, por um interesse, pela loucura ou pela ..nOriaguez. Toda a gente sabe, Vossa Camaradagem, que eu não tenho qualquer interesse no mundo. Nunca possuí nada de material. Mesmo as vestes que uso não me pertencem. Não tenho qualquer paixão. Melhor que isso, tento, há mais de quarenta anos, destruir, como as ervas daninhas, não só as paixões de qualquer natureza, mas também a causa das paixões... Porque ser frade significa não só renunciar a tudo, mas também ser livre de paixões. Ser apathes, sem qualquer paixão. Nem boa, nem má. Não conheço nenhuma loucura, nenhuma embriaguez, porque a embriaguez que esperava ter, a de Deus, não consegui encontrá-la. Não subi ainda bastante alto, na escala da perfeição espiritual, para chegar à embriaguez e à loucura de Deus... Como poderia ter assassinado o meu irmão? Nada me prende à Terra...
- Isso é o que tu dizes... Eu não acredito em ti. Está-se sempre preso à Terra, sempre. Mas é a Sua Camaradagem Mavid Zeng que explicarás porque cometeste esse crime. O que é evidente, apesar do teu palavreado, é que tu mataste o teu irmão. Não queria estar no teu lugar. Nunca vi um criminoso mais desprovido de alibis e de meios de defesa...
Subitamente, Zid Caracal começa a rir à gargalhada.
- Amanhã, vai valer a pena ver a cara das pessoas que forem à igreja e que lerem na porta fechada à chave: "Encerrada por motivo de assassínio. O padre está na prisão por ter apunhalado o seu próprio irmão..." Foi talvez por causa disso que o camarada Mavid Zeng me ordenou que não te fizesse mal... É a primeira vez que me diz isso em vinte anos. Acha sempre que não sou bastante duro com os prisioneiros. Não há castigo suficientemente grande, a seu ver, para os cativos. É muito exigente no capítulo do castigo. Nunca sentiu dó. Para ele, os presos são iguais aos animais mortos que esfolava... Mas contigo procede de maneira diferente. É que tu prestaste-nos um grande serviço. Merecias mesmo a medalha da luta anti-religiosa. Nunca a nossa propaganda anticlerical teve um argumento tão bom para repelir, de uma vez para sempre, todas as superstições dos padres e da Igreja como aquele que tu nos forneceste matando o teu irmão. Não há dúvida de que se fez publicidade anti-religiosa, difundindo o caso dos padres que roubaram, que fornicaram, que cometeram o adultério, que se embebedavam... Mas nunca ninguém nos deu, para a luta anti-religiosa, um presente tão belo como o teu. Mataste o teu irmão, cravando-lhe uma faca nas costas, para te apoderares da mulher dele. Como podem continuar a dizer que as mãos dos padres e dos frades são santas?
- Não matei o meu irmão...-diz, chorando, o frade.
Zid Caracal deixa-o chorar e sai, fechando a porta atrás de si. O frade Acathiste começa a rezar o Saltério, porque é a hora das vésperas. Subitamente, ilumina-se, volta a encontrar a paz. Os seus olhos, o seu rosto, todo o seu corpo se ilumina. Está inocente. Não matou o irmão. Apesar disso, será castigado por assassínio, por fratricídio. Mas é justo, porque ele, o frade Acathiste, cometeu no passado um assassínio pelo qual nunca foi perseguido nem castigado. E uma pelo que não cometeu. Continua a sua oração, aliviado, disposto a suportar todas as torturas, pensando que as sofre pelo crime que realmente praticou e que escapara à justiça dos homens... O frade Théophore Acathiste chora. E prepara-se para sofrer a dor, a vergonha e a morte que lhe planeiam.
O OUTRO CRIME DO FRADE THÉOPHORE, DE VRÂNCIA
O frade Théophore Acathiste está decidido a expiar o assassínio de seu irmão. Não cometeu esse crime, apesar dos depoimentos esmagadores da milícia. Mas cometeu, há mais de quarenta anos, na sua infância, um crime terrível. Matou um homem. Esse assassínio não interessa à justiça dos homens. Porque, na verdade, foi um assassínio cometido em espírito. Mas para um frade, os crimes cometidos em espírito têm a mesma gravidade que os praticados materialmente. O espírito é a base dos actos. Se o espírito não estiver puro, nenhum acto é puro. Matar um homem em espírito é como cravar-lhe uma faca nas costas.
Foi em grande parte por causa desse assassínio, perpetrado aos seis anos e meio, que Théophore Acathiste se fez frade. Foi por causa desse crime que ele escolheu passar toda a vida em penitência e oração. É também por causa desse assassínio que aceitará agora o castigo de um crime que não cometeu.
Naturalmente, Zid Caracal, que é um carrasco, e Mavid Zeng, que sempre tirou o próprio pão dos cadáveres e do crime, nunca compreenderão a atitude do padre Acathiste. Nenhum juiz a compreenderá. Mas um cristão - que sabe que o espírito e a matéria são partes iguais da pessoa humana, e que não há homem algum que seja unicamente espírito, como não há homem algum que seja unicamente matéria - compreendê-lo-á, porque a matéria e o espírito são componentes inseparáveis do homem. Non totus homo sed pars melior hominis anima est, nec totus homo corpus est, sed inferior hominis pars est. Cometer um assassínio com o braço ou com o espírito é sempre um crime. Porque seria mais culpado aquele que mata com a mão que aquele que mata com o espírito? E o padre Acathiste cometeu esse verdadeiro crime.
Eis como se passaram os factos: O padre Théophore Acathiste nasceu ali, próximo do Castelo da Vaca, na bela província de Vrância, no Leste da Europa, na encosta oriental dos Cárpatos, na Roménia.
Santo Agostinho P. L. XLY, 399.
A aldeia natal chama-se dos Acathistes. Como ele próprio. O nome Acathiste é o do mais belo hino, da mais bela oração da Igreja. Assim chamado porque, quando os fiéis o cantam, devem estar de pé. A-cathiste significa, em grego, não sentado.
Mas o nome da aldeia de Vrância nada tem que ver com o hino religioso, tem uma origem diferente.
A aldeia do padre-monge chama-se dos Acathistes, dos não sentados, dos sempre de pé, porque se compõe unicamente de pessoas que não possuem terras, de ((braços para alugar", de trabalhadores. É gente que passa a vida de pé, pronta a ser contratada e a seguir o patrão. Não sentados é a posição própria dos pobres, dos criados, dos deserdados e dos proletários. Os pobres estão sempre de pé. Os ricos é que estão sentados. Como todas as terras pertenciam ao Castelo da Vaca, os habitantes da aldeia eram toda a vida uns não sentados. Ganhavam o seu pão como criados de quintas, como trabalhadores agrícolas, como jornaleiros. Foi por causa da sua condição de pobres que se passou a chamar aos habitantes da aldeia os Acathistes, os não sentados. Não ficavam de pé por estarem sempre em oração, mas simplesmente por serem proletários.
A família do frade Théophore Acathiste era a mais pobre, entre os pobres, dos não sentados. E, assim, os seus componentes usavam duas vezes o nome de não sentados, uma por causa da aldeia e a outra por ser o seu nome de família. Essa família merecia a dupla designação de pobre.
Os não sentados de Vrância eram proletários que não só estavam sempre de pé, como também andavam permanentemente de um lado para o outro. Na Primavera, logo após o degelo, os homens pegavam nas suas trouxas e desciam a pé até às planícies, onde se empregavam como trabalhadores agrícolas durante todo o Verão. No Outono, depois da ceifa, tornavam a pegar nas trouxas e subiam até aos cumes, onde rachavam lenha todo o Inverno até ao degelo, altura em que pegavam uma vez mais nas trouxas e tornavam a descer à sua aldeia, onde ficavam algum tempo, mas não o bastante para se sentarem, porque tinham de voltar a pegar nas trouxas e descer até às planícies férteis para os trabalhos de Verão.
Era esta a vida dos não sentados, dos Acathistes. Nenhum nome lhes assentaria melhor que aquele que usam.
O pai do frade Acathiste ficou com a perna direita, algumas costelas e o braço esquerdo esmagados por um carvalho que lhe caiu em cima quando rachava lenha. Ficou aleijado. Era um Acathiste, um não sentado, que não podia continuar de pé, nem andar. Para um homem que, na vida, só tem o direito de estar de pé, era um drama terrível ser obrigado a sentar-se. Os pobres não têm o direito, sob pena de morte, de estarem sentados. Ora, como continuar de pé, como continuar Acathiste, quando se tem uma perna esmagada?
Na aldeia não havia trabalho para os homens, não havia terra para cultivar. O clima era áspero. E mesmo que houvesse algum trabalho, quem ousaria contratar um aleijado?
O cura da aldeia dos não sentados, o padre Agathon, pensou que, uma vez que o pobre inválido já não era útil aos vivos, poderia prestar auxílio aos mortos. Os mortos são menos exigentes que os vivos. Na aldeia dos não sentados morre-se muito. Os pobres fornecem três vezes mais clientes à morte que os ricos. Há, em primeiro lugar, os recém-nascidos. Em dez crianças, apenas duas se conservam vivas. E, dessas, somente duas em cada dez chegavam à idade da razão. Morria-se depois, ainda adolescente, numa proporção de cinquenta por cento. O falecimento dos adultos situava-se por volta dos quarenta anos. Havia, portanto, um grande número de mortes na aldeia. Uma vez que os habitantes só tinham o direito de viver não sentados, na primeira ocasião que os obrigavam a sentar-se morriam. Normalmente, o homem estropiado pela queda de um carvalho tinha de morrer, porque já não podia conservar-se de pé. Normalmente, os irmãos Acathiste, o frade Théophore e o moleiro Nicolas, deveriam ter ficado órfãos. Mas o cura Agathon, condoído do pobre aleijado, propôs-lhe um negócio:
- Em vez de morreres, põe-te ao serviço dos mortos-disse-lhe o padre Agathon.- Não podes estar de pé, nem andar. És obrigado a morrer de fome. Tens mulher e dois miúdos que também vão morrer de fome. Anda cavar as sepulturas. Eu já não tenho idade para o fazer sozinho.
Por ser o único homem válido na aldeia, o padre era, ao mesmo tempo, coveiro. Mas agora estava demasiadamente velho para esse trabalho duro. Um trabalho que, na aldeia dos Acathistes, só podia ser executado por um homem. A terra do cemitério era muito dura, quase rocha. As mulheres não podem abrir sepulturas naquela terra rochosa. Além disso, cinco meses no ano, a terra está gelada, e o gelo é tão duro como a pedra. É um trabalho muito pesado cavar a sepultura de um morto no cemitério dos Acathistes. E, ainda para mais, havia dias em que era necessário abrir duas ou três sepulturas.
- Contrato-te como christiae - propôs o padre. - Uma vez que és um homem ainda novo, poderás mesmo só com um braço e uma perna válidos abrir as sepulturas dos mortos. Demorarás, simplesmente, o dobro do tempo, mais nada. Claro, varrerás a igreja, cantarás os responsos na liturgia e nos ofícios e levarás o turíbulo, os ícones, a cruz e os estandartes em todas as cerimónias religiosas.
- E assim arranjarei comida para a minha mulher, para os meus dois filhos e para mim próprio? - perguntou o aleijado.
- Dar-te-ei de comer, de vez em quando. Nem sempre, certamente. E nunca terão, nem tu nem a tua família, comida que os farte. O salário do christiae consiste no que ele recebe, como esmola, dos fiéis. Depois, e é o principal, o christiae é convidado para todas as refeições mortuárias. Será nessas refeições que comerás verdadeiramente. Só lá.
Era um emprego que não se aceitava com grande alegria, mas era o único. O pai dos irmãos Acathiste, o aleijado, passou portanto a ser christiae, servidor da igreja. Essa nova actividade não alterava muito a sua frágil situação económica, mas melhorava-a um pouco. Por abrir uma sepultura, recebia o chapéu roto do morto, ou uma camisa do morto, ou outro objecto qualquer. Mas como os mortos têm sempre irmãos, irmãs, filhos, quando se distribuem as suas roupas é na família que se pensa em primeiro lugar e, na maioria das vezes, esquece-se o christiae que abriu a cova do desaparecido, que levou a cruz e o incenso e que cantou com o padre Memória Eterna. O christiae recebia apenas o convite para a refeição funerária, o ágape mortuário, em que poderia comer, com os membros da família, à memória do morto.
Parecia, contudo, que a vida começava a sorrir ao inválido. Porém, meses depois de haver sido contratado como christiae, teve de abrir a tumba da sua própria mulher, que morrera repentinamente. Ficou com os dois rapazes. O mais novo, Nicolas, foi para casa de uma boa mulher que, tendo perdido um bebé, não sabia que fazer do leite e tomou conta do filho do christiae para lhe dar de mamar. Nicolas não voltou para casa do pai, cresceu junto da ama e mãe adoptiva.
Théophore-cujo nome de baptismo é Théodore - ficou só com o pai. E como se aborrecia muito por viver só com o pai inválido, e sofria terrivelmente com a fome, tinha uma única distracção e um único prazer: perguntar ao pai, quando ele voltava de uma ceia mortuária, o que tinha comido, fazendo-o descrever em pormenor os pratos. Perguntava como eram e qual o gosto e a cor de cada prato. Enquanto o christiae contava ao filho esfomeado o que comera, Théodore, que tinha cinco anos, lambia os lábios e, algumas vezes, chorava de prazer. Mas aquelas cenas cortavam o coração do pai. Não podia furtar-se à descrição. Todo o dia, o filho, que tinha o estômago vazio, o obrigava a dizer como e o que comera. Para acabar com aquelas cenas cruéis, o pai encontrou uma solução. A fome e o amor despertam, ambos, o sentido inventivo e o engenho. Para conseguir que o filho fosse convidado para as ceias mortuárias e comesse também, o pai já nunca se deslocava sem ele. Levava-o para a igreja e cantavam ambos; levava-o para o cemitério e abriam ambos as sepulturas, principalmente quando a família do morto estava presente. O pequeno Théodore, a partir da idade de seis anos, transportava a cruz, à cabeça do cortejo, em todas as cerimónias religiosas, levava o turíbulo, cantava o mais alto que podia, ao lado do pai, a Aleluia, o Kyrie Eleison, os Améns, todos os responsos dos ofícios. Aos seis anos, cantava sozinho o Pater Noster, de pé, no meio da igreja. E isso fazia chegar as lágrimas aos olhos dos fiéis, e principalmente aos olhos do pobre pai aleijado. Consumados e adquiridos esses hábitos, o christiae ousou apresentar-se nas ceias mortuárias levando pela mão o filho e ajudante. Ninguém ousava escorraçá-lo, embora todos os mortos fossem muito pobres e cada bocado de pão contado. O christiae sentava o filho nos joelhos durante a refeição, e repartia com ele a sopa, o pilau e a coliva, comendo os dois com a mesma colher, bocado ao pai, bocado ao filho. Passadas duas ou três ceias, criou-se o hábito, na aldeia, de ver sempre o christiae sentado à mesa com o filho nos joelhos. É verdade que, para pagar o seu quinhão, o pequeno Théodore cantara, antes e depois da refeição, mais alto e com mais fervor que o padre e que o pai: ((Faz que o Teu servo repouse em paz, Senhor, e leva-o para o Paraíso onde os coros dos santos e dos justos brilham como astros. Faz que o Teu servo repouse em paz... Memória eterna, memória eterna..."
O rogo fazia chorar toda a assistência. Depois, a família do morto guardava uma enorme gratidão por Théodore, que cantara com tanto fervor pelo desaparecido, com a sua voz de anjo. Mas, apesar do grande número de mortos que os pobres fornecem, numa aldeia de duzentos habitantes as ceias mortuárias davam de comer ao christiae e ao filho apenas uma vez por semana, de dez em dez dias e mesmo uma vez por mês.
Na província de Vrância, a estação mais cruel é a Primavera. Assim como os pobres que vivem à beira-mar tiram toda a sua alimentação da água, o povo de Vrância alimentava-se do que lhe fornecia a floresta. Havia, em primeiro lugar, os cogumelos de inúmeras variedades; havia, depois, as amoras, as framboesas do bosque, as cerejas, o mel das abelhas selvagens e todas as espécies de raízes e de plantas. Mas na Primavera não existia nada. A terra ficava como se tivesse havido um bombardeamento. Não se encontrava uma raiz, uma folha para mastigar e esquecer a fome. Os abastecimentos de Inverno estavam, havia muito tempo, esgotados e a altura das novas colheitas ainda longe de chegar.
Todos os homens, os Acathistes, todos os não sentados, ficavam na aldeia até ao degelo, pois o corte das matas terminara. Não podiam descer à planície, porque era ainda muito cedo. Ninguém tinha nada para se alimentar, e as pessoas definhavam durante essa terrível estação, sofrendo atrozmente.
A mais fervorosa prece dos habitantes Acathistes era: "Senhor, salva-nos da Primavera." Porque a Primavera era mais cruel que o fogo, que, nas casas deles, pouco tinha para destruir com as suas chamas. A Primavera era mais cruel que as inundações, porque as águas pouco tinham para levar de casa dos pobres, quando subiam e saíam do seu leito. A Primavera era mais cruel que as epidemias, porque não poupava ninguém, ao passo que a cólera e a peste matam muitas pessoas, mas poupam ainda algumas.
A Primavera do crime foi a mais longa e a mais cruel que o frade conheceu. Aquela Primavera tinha começado muito cedo e nunca mais acabava, porque, quando se julgava que ia terminar, caía e tornava a cair neve. Depois chegava o sol. Mas na noite seguinte havia geada. As pessoas endoideciam por causa da fome, da espera e da instabilidade do tempo, que já não queria correr como é próprio das estações. Havia depois o foelm, esse vento vertical que bate de cima, no meio da cabeça, e fere as pontas dos nervos doentes. E o pior de tudo é que, além desse tempo que não queria passar nem permitia que chegasse a verdadeira Primavera, também as doenças se agarravam aos doentes, não os deixando nem curar-se nem morrer. A Primavera é a estação da morte para os tísicos, para os velhos, para os fracos. Naquela Primavera, todos os doentes agonizavam. Nenhum podia curar-se ou morrer. Não se fizeram enterros durante semanas, embora houvesse uma dúzia de moribundos na aldeia dos Acathistes. Entre estes havia um jovem tuberculoso, um aprendiz de sapateiro, que, por causa da sua doença e da sua miséria, fora obrigado a deixar a cidade e a aprendizagem para ir morrer em casa dos seus pobres pais, na aldeia. Esse jovem aprendiz de dezoito anos já quase não tinha pulmões. Cuspira-os, até ao último bocado, durante o Inverno. Estava agonizante havia meses. As pessoas sabiam que os tuberculosos morrem na Primavera. É toda a aldeia esperava pela Primavera, a fim de que o jovem aprendiz fosse libertado do seu sofrimento. Pois bem, a Primavera - essa desastrosa Primavera-chegou. E os sofrimentos do agonizante não terminaram. Era a vítima mais cruelmente atingida pelo tempo, porque, quando o doente estava já pronto a entregar a alma, o gelo, a neve e o Inverno voltavam. E ele continuava ainda com vida, para continuar a ser torturado.
Uma outra vítima da Primavera era Théodore Acathiste. Já não podia continuar a suportar a fome. Comeu feno e palha. Comeu fragmentos de parede e de terra. E isso ainda o punha mais doente que a fome. Uma noite, acordando por causa da fome, Théodore pediu a Deus que lhe permitisse comer com a maior brevidade possível. Para ele, comer significava ter uma ceia mortuária. Portanto, era preciso que alguém morresse na aldeia, e com urgência. Théodore pensou no jovem aprendiz de sapateiro que agonizava havia meses e que já não tinha pulmões. Théodore desejou ardentemente, e com toda a sua carne, a morte do doente, para conseguir comer. Era uma coisa atroz desejar a morte de um homem para poder comer, desejar que um homem morresse para encher o estômago. Apesar de ter apenas seis anos e meio, Théodore Acathiste teve consciência do desejo criminoso que tomara posse dele. Acordou. Caiu de joelhos em frente do ícone e pediu perdão ao Senhor:
"Suplico-Vos, meu Deus, perdoai-me. Sei que é um crime desejar a morte do próximo. Mas eu não sou um criminoso. Não foi o meu coração nem a minha razão que quiseram a morte do sapateiro. Foi unicamente o meu ventre torturado pela fome, que sabe que eu só como quando morre alguém na aldeia. E foi por causa disso que o meu ventre desejou a morte do pobre doente. Senhor, a minha alma, a minha vontade e todo o meu ser não são da opinião do meu ventre. Suplico-Vos que me perdoeis..."
Mal Théodore acabou a sua oração, ouviu que alguém lhe batia à porta.
Era a mãe do sapateiro doente.
-O meu pobre filho acaba de morrerdisse a mãe, despedaçada pela dor. - Entregou a alma a Deus há minutos. Christiae, ide tocar os sinos pelo repouso da sua alma... Tocai todos os sinos.
A mãe arrancava os cabelos e chorava. Théodore sentiu-se culpado da morte do sapateiro. Cantou na cerimónia do enterro, mas na refeição que se lhe seguiu não tocou nos alimentos. Foi ter com o padre Agathon e pediu-lhe que o confessasse.
- Cometi um crime-disse Théodore, implorando de seguida: - Confessai-me!
- Que crime cometeste tu, na tua idade, pobre criança?
- Eu lho direi em confissão.
E Théodore ajoelhou em frente do altar e do ícone do Senhor. Espera que o padre lhe coloque a estola - o epitrakhelion sobre a cabeça e lhe pergunte:
"Meu irmão, não tenhais vergonha de dizer porque viestes à presença de Deus e à minha, porque não é a mim que vos confessais mas a Deus, em presença de quem estais..." Mas o padre Agathon não coloca a estola na cabeça do pequeno penitente.
- Théodore, és muito pequeno para te confessares. Não tens a idade da razão. Não tens, portanto, pecados. Para cometer um pecado é preciso ter discernimento, saber o que é o bem e o mal... Espera algum tempo. Por enquanto, estás puro de qualquer pecado, porque és muito novo...
- Matei um homem, padre-disse Théodore, chorando. - Quero confessar-me.
- Mataste-o com as tuas próprias mãos?
- Não, padre... Foi com o meu ventre que o matei...
Chorou. Explicou como tinha desejado a morte do sapateiro e como este morrera instantaneamente no momento em que lhe ansiava a morte, para comer na sua refeição mortuária...
Théodore esperou que o padre dissesse: "Meu filho, tu que te confessaste à minha humildade, eu, indigno e pecador que sou, não tenho poder para te perdoar os pecados neste mundo: só Deus pode fazê-lo. Contudo, em virtude da divina palavra que, depois da Sua ressurreição, foi dita aos apóstolos: "Aqueles a quem vós perdoardes os pecados serão perdoados e aqueles a quem vós os conservardes serão conservados", e confiando nestas palavras, eu também declaro: tudo o que tu hás confiado à minha muito humilde baixeza, tudo o que tu hás omitido de me dizer, por ignorância ou por esquecimento, seja o que for, que Deus vo-lo perdoe, neste mundo e no outro."
Em vez destas palavras, que queimam os ouvidos, a alma e a carne como um fogo purificador, Théodore sentiu a mão do padre acariciar-lhe a cabeça. Estava esmagado pelo seu pecado, estava doente, quase a morrer. E desmaiou.
Durante longas semanas, Théodore Acathiste esteve entre a vida e a morte. Depois, curou-se. As cerejeiras, os damasqueiros e as macieiras estavam cobertas de flor, como vestidos de noiva. A primeira coisa que Théodore descobriu, ao recuperar a saúde, foi que seu pai estava a morrer. O velho Acathiste tinha febre, delirava. Parecia uma sombra. Disse ao filho:
- Théodore, vou-me embora deste mundo. Dentro em pouco estarei morto. Teu irmão está em casa da antiga ama, que lhe serve de mãe. Mas tu, que ainda não tens sete anos, estás só no mundo, absolutamente só. Por causa disso, esperei com a alma nos lábios que te curasses, a fim de te falar antes da minha partida.
- Quero ser frade, pai!
- Não podes ir para frade... Tens seis anos e meio... És muito novo...
A única coisa que se podia fazer de uma criança pobre, sem mãe e na perspectiva de perder o pai, era oferecê-la a uma família rica. Mas os não sentados da província de Vrância, se podem, de tempos a tempos, estar em contacto com o Céu e com os anjos, não têm relações absolutamente nenhumas com os ricos. Não se podia oferecer Théodore aos ricos, porque eles estão mais afastados dos Acathistes do que a Lua e os astros. Restava o exército e o convento. Quando se dá uma criança ao exército ou aos conventos, eles são obrigados a aceitá-la, porque não podem deitá-la ao rio. Têm de ficar com ela. Levaram, portanto, Théodore Acathiste ao convento de Vrância e entregaram-no aos frades. Exactamente como se oferece um porco, um galo, duas galinhas ou sacos de milho aos conventos. Os frades receberam a criança. Puseram-na a guardar os gansos do convento, no prado que margina o rio. Quando cresceu, confiaram-lhe a guarda dos porcos. Depois, puseram-na a apascentar os cordeiros e os carneiros. Quando fez dez anos, promoveram-na. Passou a vaqueiro. A etapa seguinte, a última na hierarquia a que tinha acesso, era guardar os cavalos e os bois do convento. E isso para toda a sua vida terrestre.
Em paga do seu trabalho, Théodore era alimentado e vestido a expensas do convento. Comia o que ficava na trapeza, a mesa dos frades. Gostaria de assistir, pelo menos de tempos a tempos, aos serviços religiosos, mas o seu trabalho retinha-o para lá dos muros, nos prados, e não tinha possibilidade de entrar na igreja, nem mesmo na Páscoa. O seu lugar era perto dos animais e não perto dos santos. Era um Acathiste, um não sentado. Mesmo no convento, tinha de estar de pé. E fora dele também.
O estranho é que, depois de ter confiado o filho aos monges, o pai moribundo recuperou a saúde. O christiae Acathiste retomou o seu lugar entre os outros não sentados. Continuou a abrir as tumbas para os mortos, a cantar em todos os ofícios, a levar os estandartes, a cruz e o turíbulo em todas as cerimónias religiosas.
Nicolas, o irmão mais novo de Théodore, que era então adolescente, voltou para junto do pai. Era forte, alto, e amava apaixonadamente o trabalho e a terra. Nicolas Acathiste era o primeiro a descer às planícies, na Primavera, e o último a voltar. Tinha o amor do dinheiro e da matéria. O seu sonho era vir a ser, um dia, moleiro. Nicolas Acathiste estava inteiramente orientado no sentido do mundo. Foi ao convento para buscar o irmão e levá-lo para a aldeia. Théodore recusou-se a voltar para o mundo.
Enquanto guardava os gansos, as ovelhas, os porcos e as vacas do convento, nunca deixou de pensar no sapateiro a quem tinha desejado a morte para poder matar a fome. Desejar a morte a alguém é cometer um assassínio. Confessou-se, mas a confissão não restitui a virgindade perdida.
Como explica S. Nicodemo, o Hagiorita: "O pecado é como uma ferida. E uma ferida pode fechar à vontade, a cicatriz marca-a, o cunho do pecado persiste na alma, e é impossível que se apague completamente nesta vida... Quem uma vez roubou, ou fornicou, ou assassinou, não pode voltar a ser tão inocente e tão puro como se nunca tivesse roubado, nem fornicado, nem assassinado..." Também Basílio o Grande, no seu discurso sobre a virgindade, diz que a penitência pode desfazer o pecado de um homem ou de uma mulher, mas não pode, todavia, fazer com que a virgem corrompida deixe de estar corrompida e volte de novo a ser virgem.
Agora o frade é acusado de assassínio. Está decidido a suportar as acusações injustas de fratricídio, a fim de expiar o seu primeiro crime. Volta-se para o Oriente e começa a recitar o Saltério. No Castelo da Vaca, os galos cantam o fim da noite. Devem ser agora três horas da madrugada. É a hora do Orthros, do ofício da manhã.
Nesse momento, ouvem-se nos corredores passos, pragas e pancadas. Sua Alta Camaradagem Mavid Zeng, chefe da milícia, acaba de chegar da Festa Nacional. Pede que lhe tragam o monge fratricida para o interrogar sobre o assassínio do moleiro Nicolas Acathiste.
O CASO DAS ROSAS
MAVID ZENG fica só com o frade Théophore Acathiste. O antigo negociante de peles de bichos mortos, o antigo esfolador de cadáveres fétidos, que sempre assombrou a província de Vrância por andar noite e dia sem nunca se cansar, continua ainda a assombrá-la, agora que se tornou esfolador de seres vivos, milionário e chefe todo-poderoso da província. Zeng não está nada cansado. Assistiu, o dia inteiro, ao desfile dos vencidos e à marcha luminosa. Depois, participou no banquete dos colaboradores. E em vez de ir deitar-se na sua cama dourada, com coberturas bordadas a ouro, ao lado de uma das suas mulheres, chega às três horas da manhã para fazer o inquérito sobre o assassínio do moleiro.
- Caracal, deixa-me só com o frade-ordena Mavid Zeng. - Põe os guardas em frente da porta e vai-te deitar. Eu quero ouvir a confissão da meia-noite do monge fratricida. Zeng abre o processo do padre e diz:
- Assassinaste o teu irmão Nicolas para lhe ficares com a mulher, não é verdade? Foi por esse motivo que o mataste?
- Eu não o matei.
-Vejo no teu processo que estavas decidido a matar o teu irmão há muito tempo. Não era uma ideia nova. Ou é?...
- Nunca pensei em matar o meu irmão.
- E esse caso das rosas? - pergunta Mavid Zeng. - Lembras-te, não é verdade? Há testemunhas de que quiseste matá-lo, porque arrancou as roseiras que plantaste perto de tua casa.
- Não, Vossa Alta Camaradagem. Não é verdade que eu tenha querido matar Nicolas. Nada disso. As coisas passaram-se doutra forma... Bem sabeis que nós, os irmãos Acathiste, éramos os pobres da aldeia. O homem que está na miséria é igual ao homem que se encontra no meio de um rio, prestes a afogar-se. Tenta tudo, tudo, para sair de lá. A miséria é contra a natureza. O homem não pode ficar nela muito tempo, como não pode ficar com a cabeça debaixo de água. Estrebucha para sair dela. Eu e o meu irmão éramos diferentes quanto à maneira de nos livrarmos da nossa miséria. Éramos diferentes em tudo. Em primeiro lugar, fisicamente. Nicolas era alto, musculoso, cheio de vida e de força; eu fui sempre descarnado e magro. Ele amava apaixonadamente a matéria; eu amava o espírito. Ele cresceu em casa da ama, perto da terra; eu cresci no convento, perto do Céu. Quando ele fez catorze anos, voltou para casa, para junto de meu pai. Eu já lá não estava, já era frade. Era ele quem mandava em nossa casa. Tomou conta dela. Era o chefe. Estava decidido a vencer a miséria e a enriquecer. Teve necessidade de mim. Por isso foi ao convento e disse-me:
(- Larga a batina e volta para casa. Vem trabalhar comigo. com cinco braços (porque o nosso pai só tinha um) chegaremos a ser ricos. Eu encarrego-me de tudo. Vem ajudar-me. Dentro de alguns anos poderemos comprar um moinho. Um belo moinho. Será o moinho dos Acathistes.
"-Eu fico no convento-respondi.- Consagrei-me a Deus.
(-Justamente porque te consagraste a Deus, deves deixar este convento e vir ganhar dinheiro. Deus só está contente quando os homens estão felizes. Deus quer que os homens tenham que comer, que beber e que vestir. Então, só assim é que Deus está contente, lá em cima, no Céu. Deus quer que os homens, que são feitos à Sua imagem, façam bons negócios, prosperem e vivam sensatamente, na opulência... Bem sabes que só assim é que Deus está contente... Vocês, os frades, fazem-se infelizes, e assim tornam infeliz o próprio Deus, porque não se pode ser feliz quando se tem a barriga vazia, quando se está sempre de pé e vestido com farrapos. Os frades, ao passarem fome eles próprios, fazem Deus passar fome. Ao andarem esfarrapados, os frades vestem Deus com farrapos. Por não aquecerem o corpo, mantêm Deus no frio e na miséria. Quando um frade dorme com a cabeça sobre uma pedra, a servir de almofada, é a cabeça de Deus que repousa sobre uma pedra..."
- Meu irmão dizia que era ele, Nicolas, quem daria alegria a Deus quando tivesse o seu moinho, quando fosse moleiro. Sustentava que todo o Céu se regozijaria nesse dia e que os anjos e os santos dançariam no Céu, por cima do seu moinho.
"-Não é o frade, mas o moleiro, quem melhor serve Deus - disse Nicolas para me convencer a segui-lo. - É o moleiro quem fabrica a farinha, o pão para as bodas e os baptizados, portanto para a vida, e também para as ceias mortuárias. O próprio Deus, sobre a mesa do altar, saiu das mãos do moleiro. Porque é o moleiro quem fabrica a farinha para as hóstias, para o corpo de Cristo... O moleiro trabalha para o Céu e para a Terra, para a vida e para a morte, para a história e para a eternidade... Em todo o cosmos, que haverá de mais belo do que a farinha que corre no -moinho, numa inesgotável nascente branca que alimenta e que dá alegria aos vivos, que torna os mortos presentes na memória e que restitui Deus à Terra e aos homens, na hóstia e no cálice?"
- Mas tu tinhas inveja do teu irmão e recusaste-te a voltar para casa, trabalhar, não é verdade?
- Não deixei o convento, mas acompanhei o meu irmão a casa. Queria por força mostrar-me a sua obra, as suas realizações. Eu fui. De visita. Para lhe ser agradável. Por algumas horas. E fiquei perturbado até às lágrimas com o que ele havia feito. Se não fosse frade, não me teria podido dominar. Ter-me-ia atirado a ele para lhe bater, porque ele destruíra todos os meus sonhos de criança. Tinha-os arrancado, atirado ao fogo, juntamente com as roseiras... Certamente que não me compreende. Mas quando eu era garoto, desde a mais tenra idade, nunca deitava fora um caroço de cereja, de pêssego ou de damasco. Guardava-os cuidadosamente, punha-os a secar, e na Primavera metia-os na terra. Perto de casa. Toda a minha infância plantei dálias, lilases e todas as espécies de flores em volta de nossa casa. Mais precisamente, em volta da barraca miserável que nos servia de guarida. A casa dos Acathiste, toda rodeada de árvores e coberta até ao telhado de roseiras-trepadeiras e de todas as qualidades de flores, era como um grande ramo no meio da aldeia. Deixava de se ver a miséria e a pobreza. Estava tudo coberto de flores e de folhas. Era exactamente como com os mortos: cobrem-se os cadáveres com flores, e eles cheiram bem e ficam bonitos e agradáveis à vista, no seu caixão... E eis que, voltando a casa, vejo que meu irmão tinha arrancado as roseiras e as flores e deitara-as para o lume. Lavrara a terra em toda a volta da casa e semeara couves, batatas, cenouras, cebolas e toda a espécie de legumes. Mostrou-me os seus legumes dizendo que a melhor terra para uma horta é em volta da casa. É aí que a terra é gorda.
(-Acendi uma grande fogueira e deitei no braseiro as flores todas. As pessoas não se alimentam de rosas e de dálias - disse-me Nicolas.-Agora, o nosso pai encontra alguma coisa em cima da mesa. Há sempre qualquer coisa para comer. Não se fica como antigamente, de barriga vazia, a olhar para as flores."
- E foi nessa altura que te ocorreu a ideia de matar o teu irmão?
- Não. Nunca tive a ideia de matar o meu irmão. Estava simplesmente desgostoso, muito desgostoso. E chorei.
- E depois?
-Depois, voltei o mais depressa possível para o convento.
- Ficaste-lhe, desde esse dia, com um ódio mortal, e o desejo de vingança apoderou-se de ti, não foi? Esperavas uma ocasião propícia. E essa ocasião apresentou-se ontem à tarde, dia 23 de Agosto de 1964. Quando estavam os dois sozinhos na aldeia. E mataste-o à traição, como um cobarde, cravando-lhe uma faca nas costas.
- Não matei o meu irmão...
- Tinhas razões para o fazer.
- Não, Vossa Alta Camaradagem. Fui ferido no meu coração, mas um frade está preparado para receber golpes, afrontas, e perdoá-los. Um frade não odeia, não guarda rancor, nem inimizade. O frade, durante toda a sua vida, não faz outra coisa além de se treinar para receber ofensas sem se zangar e amar aquele que o fere...
- Tinhas um segundo motivo de inveja do teu irmão. Parece que o teu protector te abandonou para se ocupar unicamente dele.
Outra ofensa que tu não pudeste digerir. E tu odiava-lo.
- Nunca tive protector, além do meu pai que está no Céu.
- Nada de mentiras - diz Mavid Zeng.
- Quem te tirou dos campos e te mandou para a escola? Foi o teu protector, porque tu eras vaqueiro e moço de pocilga no convento, não eras?
- Fui moço de pocilga e vaqueiro. É verdade, Vossa Alta Camaradagem, é absolutamente verdade. Ainda não tinha sete anos quando entrei para o convento. O meu pai estava a morrer. Para não me deixar só e abandonado ofereceu-me aos frades. Os frades não me podiam recusar. Nunca se recusa um presente, mesmo se ele não nos agrada. Mesmo se ele nos estorva. Aos seis anos não podia ser rasophore. Eles não me podiam vestir uma batina e fazer-me frade. Então mandaram-me guardar os gansos do convento. Depois, quando cresci, confiaram-me a guarda dos perus e a seguir tomei conta das ovelhas e dos carneiros. Aos dez anos, acharam que eu era já bastante crescido para me fazerem moço de pocilga, e moço de pocilga fui por algum tempo. Mais tarde, confiaram-me a guarda das vacas e
dos bois.
- Eras vaqueiro, no convento, quando Ovid Panteleimon, o teu protector, reparou em ti, não é verdade?
- Era, na verdade, vaqueiro. E tinha a certeza de que servia o meu pai do Céu guardando as vacas...
- Foi então que esse indivíduo disse aos frades que tu merecias um trabalho melhor que o de vaqueiro?
- O professor Ovid Panteleimon passava as suas férias no convento de Vrância. Havia muitas pessoas que, no Verão, iam repousar para ali. Um dia, o professor ouviu-me cantar. Enquanto guardava os animais cantava salmos e hinos. No convento, nunca ia à igreja, porque tinha de tomar conta dos animais, mesmo ao domingo. Mas sabia todos os ofícios de cor. Cantava-os desde pequeno, na igreja da aldeia. O professor disse-me que eu tinha uma voz muito bonita. Pediu-me que lhe cantasse o Axion Estin: "É digno, na verdade, celebrar-Te, Mãe de Deus..." Cantei-o o melhor que pude. Amava esse hino, porque sabia que um anjo o tinha escrito com o dedo na parede do convento da Santa Montanha, especialmente para um frade muito ignorante que não sabia como rezar... O professor falou, nesse dia, com o superior e pediu-lhe que me mandasse para o seminário. Não se podia recusar o pedido do professor Panteleimon, que era amigo dos metropolitas, dos bispos e dos ministros. Logo no dia seguinte fui mandado para o seminário, que ficava na cerca do convento. Soube depois que Ovid Panteleimon é o maior poeta da minha terra. Pedi-lhe os seus livros. Deu-mos com belas dedicatórias. E deu-me fatos, sapatos, cadernos e livros... Depois interessou-se, como um pai, pelos meus trabalhos escolares. Os meus professores diziam que eu não só tinha uma bela voz, como uma boa memória e dotes para os estudos... O professor sentia-se feliz por me apreciarem no seminário e por ser bom aluno. No Verão seguinte, convidou-me para jantar com ele à mesa do superior. Durante a refeição, disse que Acathiste é o mais belo nome que existe e que se sentiria muito feliz se se chamasse Acathiste. Depois, disse ao padre superior: "Este rapaz tem dons artísticos. Qualquer dom artístico vem do alto. O espírito criador é da mesma substância que as línguas de fogo que desceram do Céu sobre a cabeça dos Apóstolos, no dia do Pentecostes. Os poetas, os músicos, os filósofos e todo o espírito criador estão ao nível dos padres, porque são investidos pelo Céu com os dons do Espírito Santo."
- No dia em que o teu protector travou conhecimento com Nicolas, que tu próprio lhe apresentaste, abandonou-te, não é verdade?
A partir da altura em que Panteleimon o conheceu deixou de te ligar importância e prodigalizou-lhe todas as atenções... E a antiga inveja que tinhas do teu irmão desencadeou-se. Já não o podias suportar. Querias suprimi-lo, porque o invejavas.
- Não era eu quem tinha necessidade de protecção, mas o meu irmão, que vivia no mundo. A um frade basta a protecção da Panaghia, a Santíssima Mãe de Deus...
- De qualquer maneira, estavas louco de raiva contra o teu irmão, que te roubou o teu protector. Porque ele deixou de proteger-te. No Verão, quando chegava ao convento, ia todos os dias a casa de teu irmão à aldeia, não ia?
- Eu estava contente por o ver ajudar Nicolas... Nós, os Acathistes, nunca fomos ajudados por ninguém, Vossa Camaradagem. Ninguém nos conhecia no mundo, a não ser Deus.
- Panteleimon ofereceu a teu irmão o moinho dos seus sonhos, não foi?
- Foi a Mãe de Deus que ofereceu o moinho a meu irmão. Foi a Condottiera. O professor ajudou-o a crer, a desejar, a esperar. Mas não foi ele quem ofereceu o moinho.
- O professor foi padrinho de casamento de teu irmão, não foi? Quando viste isso, o teu ciúme, a tua inveja, o teu ódio não tiveram limites. E o que fez extravasar o teu veneno foi o facto de o teu irmão não só ter o moinho dos seus sonhos e um protector rico e influente, como ter casado com uma linda rapariga. Porque tu também estavas loucamente apaixonado pela rapariga com quem teu irmão casou, não estavas? E foi com a sua ajuda e instigado por ela que mataste ontem o teu próprio irmão.
- Eu não matei o meu irmão.
- A faca que encontraram cravada nas costas do cadáver pertencia a teu irmão. Estava ontem à tarde no moinho, em cima da mesa. Ninguém entrou em sua casa desde ontem à tarde, salvo ele e a mulher. Ela é tua cúmplice. Foi ela quem te trouxe a faca. E foste tu quem a cravou nas costas de teu irmão, quando ele voltava da Festa Nacional. Matando-o, pretendias ficar só com a mulher dele. O seu testemunho o provará, porque eu mandei prender a mulher da vítima. Dentro de pouco tempo estará aqui. Serão acareados. Saberemos então como prepararam, os dois, esse crime monstruoso.
Mavid Zeng levanta-se e ordena aos guardas que vigiem o frade prisioneiro, sem o perderem um segundo de vista.
OS IRMÃOS ACATHISTE E A CONDOTTIERA
O frade Théophore Acathiste está aturdido com as acusações que lhe atiram para cima. Tudo o que Mavid Zeng, o Esfolador, acaba de lhe dizer, lendo o processo policial, é completamente falso.
É verdade que os irmãos Acathiste eram diferentes um do outro. A história das rosas que ele plantara em volta da casa para esconder a miséria é verdadeira. Sofreu imenso quando o irmão arrancou as flores para plantar couves e legumes. Contudo, nunca odiou o irmão por isso. Pelo contrário, admirou-o pelo seu desembaraço e pela sua arte. Nicolas Acathiste amava a Terra. Théophore amava o Céu. Um estava amarrado à matéria, o outro ao espírito. Era tudo.
A vida de Nicolas Acathiste tomou um sentido diferente desde o dia em que a Panaghia Condottiera chegou à província de Vrância. E foi o professor Ovid Panteleimon quem para lá a levou. As coisas passaram-se assim: Nicolas Acathiste chegou um dia ao convento. Não para visitar o irmão frade, pois um homem do campo não perde um dia de Verão com uma visita. Nicolas possuía então um cavalo e uma carroça. Viera comprar tábuas de pinho. O convento tinha uma serração. Se falasse com o superior podia comprar as tábuas que não estavam bem cortadas - os desperdícios da serração- por um preço muito económico. Nicolas carregou a carroça ao máximo, pagando apenas metade do que contava gastar. Era um bom negócio que acabava de fazer. Por isso estava de bom humor, e porque estava de bom humor lembrou-se de que tinha um irmão no convento e foi cumprimentá-lo.
Na cela do irmão, Nicolas encontrou o professor Ovid Panteleimon. Era a primeira vez que o via. O professor era um homem de idade madura, corpulento, com os cabelos muito pretos e muito falador. Simpatizou logo com Nicolas Acathiste e convidou os dois irmãos Acathiste para almoçarem na estalagem que ficava fora dos muros do convento. Durante a refeição, o professor Panteleimon não deu palavra ao frade. Falou unicamente com Nicolas, com o Acathiste que amava a terra.
- O meu sonho, mestre, é ter um moinho- disse Nicolas.
- Um moinho? - perguntou o professor, rindo às gargalhadas. E acrescentou: - Eu sonho ter tudo aquilo que encontro. Sonhei possuir um comboio, uma estação, mas nunca desejei ter um moinho.
- Fez mal - replicou Nicolas. - Não há nada que valha um moinho. Possuir um moinho aqui, na província de Vrância, é possuir o Céu sobre a Terra, mestre.
O professor entristeceu e calou-se. Foi como se tivesse, subitamente, abandonado a superfície das coisas para mergulhar nas profundezas. com a sua intuição de poeta, desceu às galerias mais fundas do seu povo, representado por Nicolas. O desejo de ter um moinho era o desejo de ter pão. O pão que faz falta, o pão dos que têm fome. Desejar um moinho significa ter fome. Uma fome endémica, permanente.
- O moinho é o sonho da sua infância
- corroborou o frade Théophore. E sorriu.
- O teu irmão Nicolas tem razão em sonhar com um moinho - disse o professor.
- Não tens razão para sorrir. Aquilo com que ele sonha é muito sério.
- Não é sério sonhar com um moinho, mestre-replicou Nicolas.-Nunca se deve sonhar com coisas que se não podem ter. Um Acathiste, um não sentado, nunca poderá, até à consumação dos séculos, possuir um moinho.
O poeta Ovid Panteleimon, que se tinha impressionado, alguns anos atrás, com o outro Acathiste, o frade-criança que cantava o Axion Estin enquanto guardava as vacas do convento, estava agora impressionado pelo Acathiste que amava a terra e a matéria, como se ama o corpo da amante.
Quando fala com o Acathiste frade, o poeta está ligado, como um posto receptor, à antena do Céu, à alma do povo romeno.
Ao ouvir agora o outro irmão Acathiste, Ovid Panteleimon está ligado à Terra. Sente e ouve o corpo material da sua terra, exactamente como se sente o movimento do sangue no corpo da bem-amada.
Ovid Panteleimon é o poeta da Roménia. Isso significa que é o ouvido e a boca do seu povo e que a sua vida mais íntima se identifica com a história desse mesmo povo. Quando o irmão Acathiste sonha com um moinho, o poeta compreende que o povo tem fome, que deseja pão. O poeta tem, ele próprio, realmente, fome, mesmo que a sua mesa esteja coberta de iguarias. O poeta grita com os revoltados, chora com os aflitos, sofre a clausura com os presos, reza com os frades e ama com os apaixonados. Um poeta faz parte integrante do seu país, como as montanhas, os rios, as planícies, o clima e as estações são inseparáveis da pátria. Quando se mata um poeta não é um homem que se mata: amputa-se uma parte do corpo vivo da nação. Matar um poeta é furar um olho, cortar uma orelha, esmagar um braço à nação. Se tirarem o Tamisa à Inglaterra, Londres deixará de ser a cidade que é. Mas se tirarem Shakespeare à Inglaterra, então as Ilhas Britânicas deixarão de ser elas próprias. É mais grave que tirar o Tamisa. Ovid Panteleimon faz parte integrante da Roménia, tal como o Danúbio e os Cárpatos. O poeta é mais que as montanhas e os rios de um país. É o próprio país. A antiga Grécia é Homero, Eurípides, Platão. O resto é secundário. E tendo desaparecido o resto, a Grécia continua, apesar disso, a viver, porque Aristóteles, Sófocles e Esquilo não morreram. Para se conhecer um país, um povo, não são os seus ministros e os seus reis que é preciso conhecer, mas os seus profetas. O povo de Israel, sem possuir um único grama de terra de seu, vive na história, há milénios, pelos seus profetas, pelo seu Livro. A Roménia é Ovid Panteleimon, o poeta. E, por seu lado, é natural que ele, o poeta, viva a sua própria vida com os irmãos Acathiste. Reza com Théophore Acathiste, que é o céu da Roménia; sonha com Nicolas Acathiste, que é a terra da Roménia. Ovid Panteleimon ama os dois, porque não pode existir, ele, o poeta, senão através dos dois irmãos. Um é o céu e a alma do país, o outro é a terra e o corpo do país.
- Nicolas Acathiste - disse bruscamente Ovid Panteleimon-, escuta-me bem, terás o teu moinho. Sou eu, o poeta, quem to diz.
- Tê-lo-ei nos meus sonhos, mestre-respondeu Nicolas.
- Se o desejas ardentemente e se o queres, serás moleiro - disse o poeta.
- Oh!, mestre, falais como meu irmão, o frade - respondeu Nicolas. - Desejar e querer a chuva não significa tê-la.
- Se o queres, realmente, terás o moinho dos teus sonhos.
- Se me der agora um maço de notas para o comprar, então estou certo de que o terei. Mas com a fé não se faz crescer o trigo...
Ovid Panteleimon, apesar de muito orgulhoso, não ficou ofendido com as palavras de Nicolas. Achou natural que o camponês fosse materialista. Um camponês não tem o direito de sonhar. Tem de cavar, lavrar, tratar e revolver a matéria.
- Juro-te aqui, ao pé dos muros deste convento da Dormição da Virgem Maria, que terás o teu moinho, Nicolas, se o desejares com todo o teu ser. Se não o tiveres, a culpa será tua. A culpa será de não teres querido com bastante paixão.
- No que diz respeito ao meu desejo, não tenhais receio, mestre. Sonho ter esse moinho desde que vim ao mundo, mas desejar não significa possuir...
- Nicolas, leste os meus livros?-perguntou bruscamente o poeta; mas dominou-se e disse: - Desculpa-me de te fazer esta pergunta. É estúpida. Não os leste. Um camponês não lê poemas, escreve-os com a charrua na terra, pela Primavera. Um camponês não lê poemas, escreve-os, ele próprio, com a foice, cortando a erva em estrofes verdes e dispondo-as, como os versos de um soneto, no prado. vou contar-te, pois, o que escrevi num dos meus livros. Em primeiro lugar, diz-me, Nicolas, ouviste falar em Colombo? Foi ele quem descobriu as terras da América. Esse marinheiro, que se chamava Cristóvão Colombo, decidira descobrir a América, exactamente como tu estás decidido a ter um moinho. Colombo aparelhou então três navios, preparando-se para descobrir as terras sonhadas. Fez todos os sacrifícios que um homem corajoso pode fazer para realizar o seu sonho. Sem nada poupar. Antes, porém, confiou-se à Panaghia Theotocos, à Santíssima Mãe de Deus, e hasteou a bandeira da Virgem ao lado da bandeira do seu rei. E partiu. Esperavam-no provas sobre-humanas. Venceu-as, navegando sempre a direito, sonhando com as terras da América e confiando na Virgem. A Mãe de Deus sabia que as terras da América que Colombo queria descobrir não existiam. Mas não podia deixar tanta coragem, tantos sofrimentos e tanta fé sem recompensa. Então, para premiar a coragem e a fé de Colombo, criou as duas Américas, exclusivamente para recompensar a tenacidade e a fé inabalável do homem.
- As terras da América não existiam antes de Colombo? - perguntou, estupefacto, Nicolas Acathiste.
- Não, a América não existia antes da partida de Colombo. Onde se encontram hoje a América do Norte, a América Central e a América do Sul somente havia a água do oceano. As Américas foram criadas pela Mãe de Deus, porque a Mãe de Deus recompensa sempre aqueles que sabem realmente crer e querer. Se te confiares à Panaghia Theotocos, como Colombo, e se fizeres tantos sacrifícios como ele, terás também o teu moinho.
Nicolas Acathiste tinha as maçãs do rosto vermelhas de emoção e de prazer. Estava decidido a ultrapassar em fé, em tenacidade e em esperança esse marinheiro extraordinário que fora Colombo. Estava decidido mesmo a deslumbrar a Mãe de Deus com a sua fé e a sua tenacidade.
- Vês, Nicolas, desde que a Mãe de Deus criou do nada esse enorme continente a fim de recompensar a coragem de um único homem, ser-lhe-á fácil, a ela, Mãe de Deus, dar-te um moinho, aqui, na província de Vrância. Comparado com a América, um pequeno moinho de água nada é para a Rainha do Céu. Terás, acredita, o teu moinho... Não há nenhuma dúvida, absolutamente nenhuma... Sou eu quem to garante.
O poeta falara de tal maneira que Nicolas Acathiste já não tinha a menor dúvida. Sim. Agora estava certo de que seria moleiro. Era como se possuísse já o seu moinho, tão seguro se mostrava de o vir a ter. É apanágio dos poetas tornar todos os sonhos reais.
Ovid Panteleimon tirou da algibeira um pequeno medalhão com a imagem de Maria, Mãe de Deus, com Jesus nos braços. A Panaghia segura o menino com a mão esquerda e com a direita aponta para Jesus. É a cópia de um ícone pintado pelo apóstolo evangelista Lucas. Este apóstolo não era apenas um homem de fé, possuidor do Espírito Santo e um grande escritor, mas também médico e pintor. O ícone de S. Lucas tem o nome de Hodigitria, palavra que, em grego, significa "aquela que indica o caminho", a condutora, a guia.
- Ofereço-te este ícone, Nicolas. Veio da Sicília. Lá, nessa bela ilha perto de Palermo, há uma colónia de albaneses. Estão mais de cem mil na Sicília e na Calábria. Estabeleceram-se ali quando fugiam dos turcos, há cinco séculos. Antes de se fixarem na Sicília, os refugiados albaneses tentaram desembarcar em todos os portos da Itália. Foram escorraçados de toda a parte. Perguntavam-lhes, ao escorraçá-los, quem era o seu chefe, o seu condottiere. Eles respondiam, sem se cansar, que a sua Condottiera era Maria, a Mãe de Deus. Não mentiam. Na qualidade de exilados, não tinham outro chefe além da Mãe de Deus. Aqueles que são escorraçados de toda a parte, que não têm o direito de permanência, que não têm o direito de estar sentados, os Âcathistes de todos os tempos e de todos os lugares, não têm outro chefe além da Condottiera, a Mãe de Deus. É ela a única que aceita assumir o comando dos não sentados, dos Acathistes. O teu próprio chefe, Nicolas, o teu verdadeiro chefe, é também a Condottiera. Ela só. Vê bem, a Mãe de Deus mostra-te já, no medalhão, o caminho que tu procuras. Já é a tua Hodigitria, a tua Condottiera. Eu acho que é o mais justo e o mais belo título que os homens têm dado à Mãe de Deus: a Condottiera. Foi assim que a Hodigitria, a Condottiera, desceu à bela província de Vrância, no coração da Roménia, e tomou sob o seu comando os irmãos Acathistes e os outros não sentados, os outros sempre de pé, os pobres e os oprimidos dos Cárpatos...
Foi o poeta Ovid Panteleimon quem levou a Condottiera para a província de Vrância.
A partir do dia em que a Condottiera desceu até aos Acathistes de Vrância, eles tiveram coragem. E isso já era muito, porque a coragem, o sonho e a esperança são como as velas para um navio. Quanto maiores estas são, mais depressa o navio anda. E por cima das velas da esperança, no mastro dos Acathistes de Vrância, flutuava o estandarte da Condottiera, seu chefe e seu comandante.
A esperança no coração dos Acàthistes era tão forte depois de terem ficado sob as ordens da Condottiera que tudo na terra corria melhor. As couves, os feijões, o milho cresciam incomparavelmente mais, e mais depressa, que dantes; as galinhas punham ovos maiores e em maior quantidade; as vacas davam mais leite. É verdade que Nicolas Acathiste continuava a passar fome, miséria, como os outros Acàthistes. Mas daquela vez era certo que, se seguisse o caminho indicado pela Condottiera, teria um moinho. E nesse dia haveria na província de Vrância farinha, pão e polenda. Os vivos estariam contentes. E os mortos também. Haveria farinha para o pão das refeições dos homens e para o pão ázimo da liturgia.
Os dois irmãos Acathiste, o frade e o camponês, deixaram de ser diferentes um do outro. Depois da vinda da Condottiera para junto deles, eram unidos em tudo. O Céu do frade Théophore estava misteriosamente misturado com a terra de Nicolas. E o Céu e a terra eram apenas um. Era exactamente como na liturgia do domingo, quando o Céu desce à Terra, os fiéis misturam-se com os anjos e os santos, e já não se podem distinguir as coisas terrenas das coisas celestes. Agora era o Céu que descia com a Condottiera à província de Vrância, para ajudar Nicolas a adquirir um moinho. Assim, o moinho de Nicolas Acathiste pertenceria tanto à Terra como ao Céu. Um moinho para os vivos e para os mortos. Para o mundo cá de baixo e para o mundo lá de cima. Moerá o trigo para a história e para a eternidade. E os dois Paraísos, o de cima e o de baixo, graças ao moinho de Nicolas Acathiste, fundir-se-ão e serão apenas um único Paraíso, que começará cá em baixo, na história e na província de Vrância, para terminar na Eternidade e no Céu. Já ninguém duvidava de que haveria um dia, graças à Condottiera, o moinho dos dois Paraísos...
No Verão seguinte, o professor Ovid Panteleimon não foi passar as férias ao convento de Vrância. Estava-se em guerra. Em 1939, os Moscales, esse povo dos confins orientais da Europa e das estepes da Ásia, invadiram as províncias romenas da Bucovina e da Bessarábia, que imediatamente a subjugaram e anexaram, ampliando assim a já enorme superfície do seu imenso império bicontinental.
O professor Ovid Panteleimon foi nomeado ministro da Agricultura. Fundou um jornal e voltou a vestir o uniforme de oficial. Foi ele quem mobilizou os corações e os inflamou para a luta contra os invasores moscales. "A liberdade", escrevia, "é a prerrogativa suprema dos homens e dos anjos. É pela liberdade que os homens se assemelham ao seu criador, a Deus. Aquele que perde a liberdade, perde a qualidade de criatura humana; passa a ser um escravo que não pode fazer nem o bem nem o mal." Vinte milhões de romenos - sem diferenças de classes-sentiam bater o coração em uníssono com o do poeta. Era um momento trágico da história. Mas era ao mesmo tempo um momento sublime na vida de todo um povo, que não era mais, em frente do perigo, que um só corpo e uma só alma. E essa alma romena estava de harmonia com o Céu e a Terra.
Nicolas Acathiste foi mobilizado. Vestiu a farda de soldado de infantaria e partiu com os primeiros para o campo de batalha do Leste. Os camponeses são sempre, em todas as guerras, os primeiros a serem enviados para a linha de fogo. Dessa vez, Nicolas Acathiste sabia que, para merecer o seu moinho, tinha, antes de mais nada, de ganhar a guerra contra os invasores. combateu, por isso, mais ardentemente que os outros, porque lutava pelo seu moinho.
Théophore Acathiste, no seu convento, redobrou as devoções, os jejuns e as orações, a fim de que Deus continuasse junto dos Romenos naquela hora de desgraça. O frade Théophore suprimiu todas as refeições à quarta e à sexta-feira, dias em que não se deitava para rezar fervorosamente pela vitória contra os moscales, porque, se perdessem a guerra, os frades perderiam o direito de rezar e de fazer baixar o Céu sobre a sua terra. A Roménia estava transformada numa única chama, dentro da qual já não se podiam distinguir os pobres dos ricos, os Acathistes dos Cathistes, os laicos dos frades, os jovens dos velhos, porque todos estavam transfigurados pela luta e pelo perigo.
Nicolas Acathiste foi gravemente ferido. Passou longas semanas nos hospitais. No fim de 1942, o cabo de infantaria Nicolas Acathiste foi desmobilizado, condecorado e mandado para a sua aldeia, com um louvor pela sua bravura e com uma pequena, pequeníssima, pensão. Embora desmobilizado, podia usar o seu uniforme e as condecorações. Ostentava-as com orgulho, todos os dias, por toda a parte.
No princípio do mês de Agosto de 1943, o cabo Nicolas Acathiste recebeu uma carta de seu irmão frade: "No Dia da Dormição de Maria, Mãe de Deus, nossa Condottiera, farei os votos solenes. Suplico-te, meu querido irmão" que venhas ao nosso santo convento, para tomares parte na celebração da santa liturgia, durante a qual receberei a imposição das mãos, a quirotonia, e serei elevado a dignidade sacerdotal. Tu serás o representante da minha família no mundo, porque, além de ti, querido irmão Nicolas, não tenho outros parentes carnais."
Nicolas Acathiste limpou as condecorações, passou a ferro a farda, deu brilho aos botões de cobre do dólman e ao calçado e apresentou-se no convento. Reservaram-lhe uma stalle na igreja, ao lado dos dignitários, porque ele era duas vezes dignitário, primeiro como herói que deu o seu sangue pela defesa da liberdade, depois como único parente daquele que ia receber o Espírito Santo e ser santificado como padre. Nicolas, o camponês rude e apaixonado pela matéria, debulhou-se em lágrimas, que lhe queimaram o rosto bronzeado quando o irmão, de joelhos, recebeu a consagração do sacerdócio. Nesse momento, Nicolas sentiu que tinha perdido o irmão definitivamente, que perdia o irmão cá neste mundo, para ganhar um irmão, que não morreria nunca, na Eternidade. Depois da cerimónia, Nicolas almoçou com o bispo, o superior e os frades na trapeza, o refeitório do convento.
Era uma mesa comprida de madeira de tília, muito asseada. Comia-se em pratos de barro e bebia-se água das bilhas de terracota. Durante a refeição, um frade, de pé, lia a vida de Santa Maria Egípcia, essa mulher asceta que viveu, completamente nua e só, no deserto. No final, cantou-se o Axion Estin. Todos se sentiam imensamente felizes. Tal como sucedia com Nicolas Acathiste. Porque a trapeza era um refeitório com as paredes revestidas de imagens, como a igreja, e as pessoas alimentavam-se de duas espécies de pão: o da vida e o da eternidade.
Nicolas disse ao superior:
- Santíssimo padre, sou o único parente de Théophore. O nosso pai era christiae, servo da Igreja. É uma grande promoção social para nós que Théophore seja padre. Autorizai-o a vir celebrar a divina liturgia à nossa aldeia natal e a vir rezar uma oração pelos nossos mortos ao cemitério dos Acathistes.
O superior acedeu ao pedido do heróico cabo. Assim, saíram os dois irmãos, o soldado e o frade, no dia 15 de Agosto de
1943, da cerca do convento de Vrância. Partiram a pé. Um ao lado do outro. O frade também estava muito comovido. Ia oficiar como padre na igreja em que tinha sido baptizado e em que seu pai fora christiae. Foi nessa igreja que Théophore começou a sua vida, quando, para ter direito a participar nas refeições mortuárias, tinha de cantar, ao lado de seu pai, durante a cerimónia fúnebre do defunto. Essas refeições, que se realizavam depois dos enterros, foram as únicas verdadeiras refeições da sua infância...
Os dois irmãos Acathiste estavam agora felizes. As pessoas que encontravam na rua, ao atravessarem as aldeias de Vrância, cumprimentavam-nos à sua passagem com respeito e admiração. Os dois irmãos iam de uniforme. Théophore, o frade, levava batina, o uniforme do Céu, e Nicolas vestia o uniforme dos heróis da Terra, ostentando as suas condecorações. Pararam junto de uma nascente e Nicolas mergulhou o rosto demoradamente na água. Adorava as nascentes, como todas as riquezas da Terra. Saboreou a água com a boca, com a pele do rosto, com os cabelos, com a pele do peito, que lavou também, desabotoando o dólman. Não era só por causa do calor que fazia isso, era para gozar os tesouros da mãe-terra, porque uma nascente de água é um tesouro para os caminheiros como eles.
Como todos os anos no Dia da Dormição, a 15 de Agosto, o tempo estava pesado e quente. A poeira da estrada queimava a planta dos pés, através das solas dos sapatos. O ar era denso, como mel aquecido. A atmosfera estava não só quente como também perfumada, embalsamada, adocicada, por causa das flores que desabrochavam, com o seu pólen e com todas as suas pétalas largamente abertas ao sol.
- O meu moinho vai chamar-se Moinho da Condottiera- disse Nicolas, depois de ter bebido muita água da nascente. - Agrada-te o nome do meu moinho?
Nesse momento ouviu-se trovejar. O céu, por cima da montanha, tornara-se negro como o alcatrão. Alguns minutos depois, a trovoada desabou sobre a província de Vrância. Os dois irmãos encontraram abrigo sob um enorme carvalho, cujas folhas os protegiam como um telhado de zinco verde.
- Há sempre trovoadas no Dia da Dormição - disse Nicolas.
Então ouviu-se o ruído do trotar de um cavalo que se aproximava puxando uma carroça. Nicolas saiu do seu abrigo para mandar parar a carroça e arranjar transporte até à aldeia. Mas, apesar de estar no meio da estrada, fardado, sob a forte bátega de água, a mulher que guiava a carroça deu uma chicotada no cavalo, contornou Nicolas, deixando-o no meio da estrada, e desapareceu.
- Malvada!...- exclamou Nicolas. Absteve-se de rogar mais pragas, porque
comungara no convento. Mas, apesar da comunhão, que queria respeitar permanecendo calmo e evitando irritar-se, o sangue fervia-lhe. Voltou para o abrigo debaixo do carvalho, para junto do irmão.
- Estou completamente encharcado disse Nicolas. - Ela ia sozinha na carroça. E não quis parar. Contudo, viu que eu estava fardado...
O frade sorriu. O orgulho do irmão tinha sido atingido.
Desde que fora desmobilizado, Nicolas julgava-se alguém, porque era o único homem novo que vivia na aldeia. Todas as raparigas olhavam para ele com um sorriso nos lábios, porque apenas viam garotos e velhos. Nicolas faz sucesso em toda a parte. Mesmo os guardas o cumprimentam, porque foi ferido e condecorado. É um herói. O facto de uma mulher se ter recusado a transportá-lo na sua carroça, só não o atropelando porque Nicolas se afastou rapidamente do meio da estrada, feriu-o. Ajusta o dólman. E parte, aborrecido, ao lado do irmão, a pé. A chuva cessara tão bruscamente como começara. Ao aproximarem-se do rio Osana, que tinham de atravessar a vau, Nicolas deteve-se, apurando o ouvido. Depois disse ao irmão:
- O rio leva muita água... Não é possível atravessá-lo. Ouve como ruge. Se não pudermos passar, voltaremos para trás. Dormiremos no convento. E partiremos de novo, amanhã, antes de o dia romper...
- É preciso ver primeiro, talvez se possa passar -disse Théophore.
Aproximando-se, viu as águas negras que trasbordavam e corriam com um estrondo medonho, arrastando ramos, troncos de árvores e pedras enormes como mós de moinho. Rolando nas águas sujas, as pedras faziam um barulho de trovão quando chocavam umas nas outras ou quando embatiam nas rochas das margens... Depois de cada trovoada, por mais pequena que seja, as águas do Osana, que é um rio minúsculo, crescem e saltam do leito, correndo sobre uma extensão de mais de um quilómetro. É que toda a água que caiu nos cumes dos Cárpatos se esgota pelo rio Osana. As suas águas crescem numa fracção de segundo. Os irmãos Acathiste aproximaram-se, e, quando viram o vau, ficaram apavorados. Ali, no meio da água, que não parava de subir, encontravam-se imobilizados a carroça e o cavalo branco conduzidos pela mulher que não quisera transportá-los.
Sem dizer uma palavra, Nicolas correu para prestar socorro à mulher. Alguns segundos mais, e o cavalo, a carroça e a infeliz seriam derrubados e arrastados pelas águas furiosas da torrente... Enquanto corria, Nicolas Acathiste atirou o quépi ao irmão, que o seguia. Sem perder a carroça de vista, despiu o dólman e atirou-lho também. Quereria, do mesmo modo, descalçar as botas, antes de se lançar na torrente, mas não dispunha de tempo. Entrou na água, gritando qualquer coisa à mulher que estava de pé dentro da carroça. O rio, turvo e negro, continuava a arrastar ramos, troncos de árvores, pedras. A água subia. Chegava já ao peito do cavalo. A carroça, metida na água até aos varais, estava prestes a ser arrastada, a afundar-se. O que ainda a segurava era o cavalo, mas esse já cambaleava, como se estivesse embriagado. O animal, com a cabeça baixa, olhava para a água, cada vez mais de perto, como que hipnotizado, e todo o seu corpo balouçava. E quando o cavalo balouçava, a carroça oscilava. O animal e a carroça cairiam ao mesmo tempo e seriam arrastados dentro de segundos pela corrente, tal como eram arrastados os ramos, os troncos de árvores, as pedras...
Nicolas Acathiste entrou na água até à cintura. Avançava com dificuldade. Desequilibrou-se duas, três vezes, mas chegou junto da carroça. Gritou à mulher que se conservasse quieta e avançou para o cavalo. Este oscilava. Dir-se-ia o pêndulo de um relógio. Nicolas tinha já água até ao peito. Chegando perto do cavalo, levantou as duas mãos e cobriu com as palmas os olhos do animal, para o impedir que visse. O cavalo debateu-se, oscilou ainda mais. Mas Nicolas continuava a tapar-lhe os olhos. Tudo isto durou apenas alguns segundos; contudo, parecia que tinha decorrido uma eternidade. Produziu-se o milagre. O animal já oscilava menos. O seu corpo, principalmente as patas, voltava a ter firmeza, e lutava para se conservar de pé. Quando Nicolas notou que os jarretes do cavalo já estavam mais firmes, puxou-o para a outra margem, mantendo-lhe os olhos sempre tapados.
A explicação era simples. O cavalo, já velho, ao passar o vau e ao olhar para a água, que lhe corria cada vez mais depressa por entre as pernas, fora acometido de vertigens. Teve medo, e, quanto mais medo tinha da água, mais olhava para ela. E, quanto mais a via correr a uma velocidade louca, mais vertigens sentia. Quando estava como que embriagado, o cavalo parou. Esticou o pescoço, com os olhos esbugalhados, fixando a água que fugia debaixo dele. E ficou à espera da morte, do afogamento. Nicolas, tapando-lhe os olhos, havia-o impedido de ver a água que o atordoava. Nicolas Acathiste conhecia tudo o que dizia respeito ao tempo, à terra, aos animais e à Natureza.
Quando chegou à outra margem, Nicolas destapou os olhos do cavalo, recebendo do animal um olhar de gratidão. Os olhos do cavalo, quentes como duas chávenas de chá, fumegavam de medo, de angústia e de reconhecimento.
Nicolas dirigiu-se depois para a mulher. Queria ralhar-lhe por se ter aventurado a atravessar o rio durante a cheia. Queria-lhe mal por ela não ter parado na estrada para os transportar na carroça, a ele e ao irmão. Queria dizer-lhe que o acontecido, aquela aventura onde estivera tão perto da morte, não era mais que o castigo da sua falta de respeito e de caridade para com um herói e um padre. Mas Nicolas, quando descobriu o rosto da mulher, não foi capaz de a censurar. Não era uma mulher, mas uma criança. Na carroça estava uma rapariga de treze ou catorze anos, toda molhada pela chuva, pelas águas da torrente e pelas lágrimas. E tremia de medo. Chorava, não ligava importância ao seu salvador. Voltou-se e começou a rebuscar na carroça, completamente inundada como um barco que metesse água. Quanto mais rebuscava na carroça, mais desesperada ficava. A água tinha molhado, sujado, estragado as coisas que ela transportava.
- Mas... é um caixão que tu levas aí, pequena? - perguntou Nicolas, perplexo.
- É o caixão do meu pai - disse a garota, sem olhar para ele.
Chorava, cada vez mais alucinada, vendo o caixão cheio de água. Ao lado do caixão, havia pães do feitio de rodas. Eram os pães para a cerimónia fúnebre, pães quase do tamanho das rodas do carro. Pareciam agora montes de lama. Havia velas. E longos pedaços de crepe. E também os sapatos pretos que o morto haveria de levar. Tudo boiava na água que enchia a carroça - molhado, sujo, estragado...
- Amanhã é o enterro do meu pai - lamentou a rapariguita.
Torceu a saia como se fora um esfregão, porque estava na carroça, dentro de água, exactamente como numa banheira, com água até aos joelhos.
- Porque foi que te mandaram sozinha buscar o caixão? Não é trabalho para uma criança - ralhou Nicolas.
As suas belas botas, as suas calças de militar escorriam água. Estava furioso com a garota. Era por causa dela que tudo aquilo tinha acontecido!
- Sou só...-explicou a rapariga.- Não havia ninguém, não tinha ninguém para ir à cidade.
Nicolas compreendeu então o drama.
- Agora és órfã? - perguntou.
- Sim, senhor.
- E foi o teu pai que morreu? É para ele o caixão?
- Sim, senhor.
A rapariguita explicou que vivia só com o pai. Não tinha mãe, nem irmãos, nem irmãs. Não tinha família. Eram só ela e o pai. Este acabava de morrer e no dia seguinte devia realizar-se o enterro. E agora não sabia que fazer, pois o caixão estava cheio de água, os pães do feitio de rodas tinham-se desfeito e tudo o que se destinava à cerimónia ficara estragado. Chorava. Subitamente, olhou Nicolas nos olhos e disse:
- Sou a Sabina, senhor Acathiste... O senhor conhece-me. Porque me pergunta então o que se passa? Sabe muito bem que o meu pai morreu ontem. Era amigo dele.
Nicolas olhou atentamente para a rapariga. Não a reconhecia.
- És a filha do moleiro Stoica, a Sabina? Sabia, realmente, que o moleiro tinha
uma filha. Mas era uma criança. E eis que essa criança cresceu. Muito depressa, como as águas da torrente. Agora é uma adolescente, quase uma mulher. Não podia reconhecê-la, como não se pode reconhecer o pequeno rio Osana quando as suas águas sobem depois da chuva.
Nesse momento, Nicolas apercebeu-se de que estava a acontecer um milagre. Correu até o mais perto possível da água e gritou ao irmão, que ficara na outra margem, muito alto para que ouvisse, pois o fragor da torrente era terrível.
- Théophore, fica com o meu boné e o meu dólman e seca-os bem durante a noite. Vai dormir ao convento. Virás à aldeia amanhã, quando o rio não estiver tão cheio, e trazes-me o dólman. Encontrar-me-ás no moinho. Ouviste o que te disse? Não estarei em nossa casa, vai directamente ao moinho... Ali aguardarei o teu regresso.
Fazendo um aceno de adeus ao irmão, Nicolas subiu para a carroça. Despejou a água do caixão, pôs os pães em lugar enxuto, juntou as velas. Depois, empurrou a rapariga para a sua esquerda, pegou nas rédeas, como se o cavalo e a carroça lhe pertencessem, e partiu em direcção ao moinho, como se fosse já o seu moinho. Estava fascinado. Exactamente como ficam fascinados os santos que são protagonistas de milagres, como S. Paulo, que foi lançado por terra. Nicolas sabia apenas uma única coisa: que a Panaghia Condottiera, que lhe falara pela primeira vez no convento de Vrância pela boca do poeta Ovid Panteleimon, prometendo-lhe um moinho, cumprira a sua palavra. Porque a Condottiera dava-lhe agora um moinho. A Condottiera acabava de oferecer um moinho a Nicolas Acathiste, dentro de água, em plena torrente. A Condottiera havia, mais uma vez, posto Nicolas à prova. Queria ver se ele se lançava à água, se ele desafiava a morte, como Colombo, se ele era corajoso, se sabia lidar com o cavalo que estava com vertigens e se podia salvar a rapariga. Foi só depois de o ter submetido a essa última prova que a Condottiera, Mãe de Deus, deu o moinho dos Stoica a Nicolas. Porque agora o moinho era dele, era uma dádiva do Céu. Uma dádiva acompanhada de um caixão. Fará um enterro magnífico ao moleiro, jura-o. E o moinho que dele receberá virá acompanhado da filha, sua futura mulher.
Nicolas voltou-se para Sabina e olhou para ela atentamente.
- Que idade tens tu agora, Sabina?
- Catorze anos, senhor - respondeu, sem olhar para ele.
Mas já não chorava, porque também ela deixara de estar só. Tinha encontrado no meio das águas um marido e um moleiro.
- Só catorze anos? - perguntou Nicolas. Pensou imediatamente que, para se casar,
uma rapariga deve ter, pelo menos, quinze anos. A Mãe de Deus não podia enviar-lhe uma rapariga que não tivesse idade para casar. A Condottiera tudo o que faz é bem feito, nunca comete erros.
- Faço quinze anos daqui a seis meses! -respondeu Sabina.
O rosto de Nicolas ilumina-se. A Condottiera impõe-lhe o luto de filha, porque uma filha deve usar luto pelo pai durante seis meses. Então, nesse prazo de seis meses, exigido pelas leis civis e pelas leis morais, Nicolas porá o moinho em ordem. Conhece-o bem... O velho Stoica estava doente havia muito tempo. O moinho já não funcionava. Será necessário dragar o rio, reconstruir os diques do lago, reparar a grande roda e, principalmente, substituir as quatro mós, desde há muito inutilizadas. É esse o grande trabalho a fazer. Serão precisos, pois, esses seis meses para que no dia do casamento a roda do moinho gire, para que o moinho funcione. Naturalmente, haverá músicos, mas a principal melodia, essa, será a roda do moinho, sob o impulso da água, que a executará.
Timidamente, Nicolas observa, pelo canto do olho, a que está a seu lado e será sua mulher. Não tem necessidade de perguntar à rapariga se está de acordo. Não, seria um sacrilégio. Ela foi-lhe dada pela Condottiera Panaghia-a Mãe de Deusno meio da torrente, logo a seguir à última prova. Nicolas vê que a rapariga é muito bonita. Principalmente depois de ter chorado, as suas faces estão rosadas como a flor da cerejeira. Mas, verificando a beleza da moleira, chega à conclusão de que comete um sacrilégio. Sabina foi-lhe dada, como o moinho, pela Mãe de Deus, para recompensar a sua coragem e a sua tenacidade. Pelos seus ferimentos e a sua luta contra os moscales, exactamente como a América foi criada e dada a Colombo para o recompensar da sua coragem. Nicolas não tem o direito de apreciar o valor e a beleza do presente. Qualquer dádiva se recebe com gratidão, sem ser examinada.
A carroça do cavalo branco, conduzida por Nicolas Acathiste, chega ao moinho.
Nicolas acende velas à cabeceira do moleiro morto. Depois, descarrega o caixão e começa a fazer preparativos para o enterro. Não pergunta nada a Sabina, está em sua casa. A rapariga também não faz perguntas. Porque ela pensa que as coisas vão entrar na ordem com a presença de Nicolas. Este armou a sua cama no sótão do moinho, dormiu no seu moinho. No dia seguinte, chegou o frade Téophore Acathiste, com o quépi e o dólman do irmão. Para o enterro, Nicolas pôs todas as condecorações e seguiu, ao lado de Sabina, atrás do caixão. Foi Nicolas Acathiste quem conduziu o cortejo fúnebre. Toda a gente achou isso natural. Ninguém fez qualquer pergunta. Para todos, Nicolas Acathiste era agora o novo moleiro e Sabina, a rapariga órfã, a moleira. Faltava apenas cumprir certas formalidades. Esperar seis meses para atingir o termo do luto, esperar seis meses para a rapariga fazer os quinze anos, como o exigem as leis civis e morais.
Na própria noite do enterro, Nicolas Acathiste escreveu, do moinho, uma longa carta ao seu amigo ministro, o poeta Ovid Panteleimon: "Excelência, vi agora com os meus olhos que o que vem nas Sagradas Escrituras é verdade e que Deus fala aos homens pela boca dos poetas e dos profetas. A Condottiera, a Mãe de Deus, prometeu-me, pela vossa boca, um moinho, como prometeu as Américas a Colombo. Ontem, dia da Festa da Dormição, recebi o moinho que me anunciastes. As coisas passaram-se assim: a Mãe de Deus levou-me até à margem do rio Osana. Aí, a Condottiera fez desencadear uma tempestade. Uma trovoada como não se vêem muitas vezes. As águas do rio subiram em poucos minutos e transformaram-se numa torrente impetuosa. A Mãe de Deus disse-me: "Olha, uma carroça puxada por um cavalo branco, um caixão e uma rapariguinha encontram-se dentro de água. O cavalo tem vertigens e cairá dentro de instantes, e as águas arrastarão tudo. Tens alguns segundos para mostrar a tua coragem e salvá-los. Se os salvares, quando chegares à outra margem, dar-te-ei, como recompensa, o moinho que te prometi, pela boca do meu poeta Panteleimon. Além disso, casarás com a rapariga que está dentro da carroça; será a tua moleira." Foi isto que me disse a Mãe de Deus. Eu não estava a sonhar. Meu irmão, que tinha acabado de ser ordenado padre nesse mesmo dia, estava comigo, porque a Mãe de Deus queria que o seu milagre fosse presenciado por um santo. O meu irmão estava lá por causa disso, para testemunhar o que tinha visto. Atirei-me à água e salvei, como a Condottiera ordenara, a carroça, o cavalo, o caixão e a rapariga. E a Mãe de Deus, ao ver a minha bravura, disse-me: "Nicolas, és o meu soldado preferido. Dou-te o moinho. Tens na carroça o caixão do antigo moleiro. Enterra-o com todas as honras. Depois, repararás o moinho com a ajuda do meu poeta Panteleimon, que eu fiz ministro. E seis meses mais tarde casarás com Sabina, a rapariga que eu pus dentro da carroça." E tudo se passou como me fora ordenado. Agora, seguindo sempre as ordens da Condottiera, peço-vos que me ajudeis a pôr o moinho a funcionar. Seria grande pecado não cumprir à risca as ordens da Condottiera. Eu faço-vos uma lista completa das coisas necessárias para pôr o moinho a trabalhar, o qual chamar-se-á, de futuro, o Moinho da Condottiera. O mais importante são as quatro mós, de que vos dou as dimensões exactas. Por causa da guerra, essas mós não se podem adquirir na Roménia. Peço-vos que as encomendeis, vós mesmo, na Alemanha, na cidade de Leipzig, cuja direcção vos indicarei. Porque sois não só o poeta da Condottiera, mas também o ministro, podeis fazer que essas mós me sejam enviadas para o moinho, na altura própria, porque no dia do meu casamento o moinho tem de funcionar para a felicidade dos homens na Terra e para a glória do Céu... Já encomendei, por intermédio de meu irmão Théophore, no convento de Vrância, um ícone de mosaico representando a Condottiera. Outro ícone, de madeira, será colocado na igreja da aldeia. Mandá-lo-emos benzer, na vossa presença, no dia do nosso casamento. Tenho a certeza de que vireis à igreja para ser nosso padrinho. A Condottiera, no Céu, ficará muito feliz com o vosso apadrinhamento. Porque foi pela vossa boca de poeta que ela prometeu o moinho e anunciou o milagre que acaba de realizar-se..."
Depois de ter enviado a carta, Nicolas iniciou os trabalhos. Queria terminar a dragagem do rio antes do Inverno e reconstruir a barragem. Trabalhava noite e dia. Não olhava sequer para Sabina, porque só seria a sua moleira dentro de seis meses. E só então é que a olharia.
Quando a neve cobriu as montanhas e as planícies e a província de Vrância ficou toda de branco, como se estivesse vestida de noiva, as mós do moinho chegaram da Alemanha, transportadas num trenó. No Dia da Teofania, a 6 de Janeiro, o ícone da Panaghia Condottiera foi fixado na parede fronteira do moinho. Era um belo ícone, executado em mosaico esmaltado pelos hierozógrafos do convento de Vrância, segundo o protótipo da Hodigitria pintado por São Lucas. O frontão do Moinho da Condottiera era tão belo como a fachada de uma igreja. O ícone fora executado segundo os cânones rigorosos e as regras da hermenêutica, que diz: "A imagem da Mãe de Deus deve ser diferente de todas as imagens do mundo visível, para que o seu rosto nos ajude a subir até às realidades celestes e para que, graças à imagem da Santíssima Virgem, possamos vislumbrar da Terra as belezas eternas. O pintor deve, portanto, afastar os seus olhos da Terra e, ao pintar, elevar o seu olhar, escolhendo unicamente as belezas celestes entre as mais belas."
O ícone da Hodigitria Condottiera, fixado na frontaria do moinho, tem as dimensões requeridas pelos cânones: "É de estatura e de idade médias. Os seus cabelos são da cor do trigo maduro, os seus olhos muito belos, as sobrancelhas e as pestanas compridas, o nariz médio, as mãos finas e os dedos longos. Está vestida com uma modéstia muito piedosa, usando apenas um maphorion que põe em evidência o seu rosto luminoso como o Sol e os tesouros inestimáveis de que é cumulada."
Todos os preparativos estavam terminados. Na Primavera, quando as águas do rio Osana se libertaram das suas prisões de gelo, de que tinham estado cativas todo o Inverno, encontraram uma soberba roda de moinho, uma roda gigante, que começaram a fazer rodar, espargindo em toda a volta espuma branca, em faixas imaculadas como o véu das noivas.
Depois, sempre para o casamento de Nicolas Acathiste, as cerejeiras, as macieiras e todo o reino vegetal vestiu-se de flores e de branco. Mesmo os próprios rochedos cobriram-se também de verde, de branco e de vermelho-das mesmas cores que as flores. Depois, rodeado por todos os dignitários da província de Vrância, como convém a um poeta da Condottiera, chegou Ovid Panteleimon. Foi o próprio bispo que celebrou o casamento, acolitado por sete padres e diáconos. Não se casa todos os dias um homem que recebeu a esposa como dádiva da Mãe de Deus, e não é todos os dias que um -ministro e poeta desce a uma aldeia, para ser padrinho de um aldeão moleiro. Durante três dias e três noites, festejou-se o casamento de Nicolas Acathiste, o moleiro, com Sabina Stoica. Também ela estava deslumbrante, porque não era uma noiva vulgar. O poeta Panteleimon explicou que ela não era apenas uma bonita rapariga e uma bela moleira, mas, em primeiro lugar, uma dádiva que o Céu fizera a Nicolas Acathiste para recompensar todos os Acathistes, todos os não sentados, todos os proletários, da sua resistência, da sua fome, das suas humilhações... Dando um moinho a um Acathiste, a Mãe de Deus alimentava simbolicamente todos aqueles que têm fome há séculos e séculos, mostrando também que os não esquece e que os protege lá do Céu. E tal como Nicolas Acathiste recebeu um moinho, uma fonte donde corre a farinha, os outros Acathistes serão também recompensados, se forem corajosos e fiéis à Condottiera, como Nicolas o foi. E todos os Acathistes terão um dia, como prémio dos seus sofrimentos, moinhos e belas moleiras...
Entretanto, admirava-se o lindo Moinho da Condottiera. Tudo nele era belo, como na igreja, porque o moinho era o resultado de uma colaboração entre o homem e a divindade. E porque o homem e o Céu tinham trabalhado de mãos dadas para a sua realização, o moinho pertencia tanto ao Céu como à terra. Era uma espécie de vestíbulo que vai da história à eternidade, um moinho que pertencia aos dois Paraísos, o do Céu e o da Terra...
A inauguração do moinho e o casamento realizaram-se na Primavera de 1944. Alguns meses mais tarde - a 23 de Agosto de 1944-, de madrugada, antes do nascer do Sol, as tropas dos invasores moscales entraram na província de Vrância. A Roménia foi toda ocupada pelos soldados estrangeiros. Depois de eles passarem, a erva não voltava a crescer; ficava apenas terra queimada, lágrimas e luto. Os próprios pássaros, por piedade pelos Romenos, deixavam de cantar.
Logo que os moscales chegaram à aldeia dos Acathistes, prenderam o moleiro e mandaram-no para o cárcere. Procediam da mesma forma em todas as aldeias. Sabina foi presa e violada vezes sem conta pelos moscales e seus colaboradores. Depois, mandaram-na também para a prisão. Os frades do convento de Vrância foram todos presos e enviados para campos de trabalhos forçados. A Théophore Acathiste sucedeu-lhe o mesmo que aos outros frades.
Todas as terras foram confiscadas, assim como todas as casas. O povo vencido nada mais possuía além disso. Os governantes do país passaram a ser os colaboradores do ocupante: o P. C. Foram eles que receberam os poderes de vida ou de morte sobre o rebanho do povo vencido. A Roménia passou a chamar-se R. P. R., o que significa, na realidade, República Penitenciária da Roménia. As fronteiras foram rodeadas de arame farpado. O regime em que viviam os cidadãos era o de qualquer penitenciário. Os colaboradores do ocupante é que decidiam se as pessoas deviam viver ou morrer, onde e em quê deviam trabalhar, o que deviam comer e quando. O povo estava reduzido à condição de rebanho. Enquanto os governantes desse país penitenciário dispunham de todos os direitos e de todos os poderes, os homens e as mulheres que viviam na República Penitenciária da Roménia tinham exactamente os mesmos direitos que os carneiros e as vacas num rebanho. Os cidadãos deviam submissão absoluta ao Partido dos Colaboradores, e estes conduziam-nos como se conduzem as vacas, faziam-nos trabalhar como os bois e os cavalos, tosquiavam-nos, apoderavam-se do fruto do seu trabalho e dos seus filhos. Quando estavam fartos deles, matavam-nos, como matavam os animais para lhes tirarem a pele, a carne, ou para se verem livres deles.
À sua entrada na província de Vrância, os invasores eram guiados por Mavid Zeng, o negociante de peles de animais mortos e esfolador de cadáveres, e por outros colaboradores do ocupante. Foram eles, os colaboradores do inimigo, que fizeram correr mais lágrimas e sangue na terra. Eram piores que os moscales, e tinham poderes absolutos. Os ocupantes deixavam-nos à vontade. Era um velho método dos moscales. Esse povo estranho, quando era nómada, fez uma descoberta graças à qual sobreviveu na história. Os moscales nómadas descobriram quanto era útil adestrar animais para os aproveitarem como auxiliares. Logo que adestraram os seus cães, deixaram de se ocupar dos rebanhos. Quando passaram a ser sedentários, os moscales aplicaram às suas sociedades humanas as mesmas leis que aplicavam aos animais, nos tempos da sua existência nómada. Assim, o povo moscale foi sempre tratado com o knut (uma arma terrível, de sua invenção), como os rebanhos de animais. A sociedade moscale dividia-se em duas classes: o rebanho do povo e os guardas. Para guardar homens, os moscales já não utilizavam cães, como faziam quando se tratava de cavalos, de vacas e de carneiros. Para os rebanhos de homens, os moscales utilizavam sempre gente de raça diferente: eram os cossacos. Eram eles que constituíam a guarda de corpo do Grande Moscale. Eram a gendamaria e a polícia secreta. Ao invadirem a Roménia, os moscales constituíram uma matilha de guardas ferozes, recrutados entre os criminosos, os forçados, os aventureiros e a ralé do povo. Eram eles, constituídos num P. C. - Partido dos Colaboradores-, os senhores absolutos do pobre povo romeno vencido. Todos eram da classe de Mavid Zeng e de Zid Caracal. Não se esperava qualquer piedade, qualquer justiça, da parte dos colaboradores. Como os Chineses, que mataram as aves do seu céu para terem mais cereais, também os colaboradores do ocupante na Roménia Penitenciária mataram para pilhar. Quase metade da população de Vrância pereceu ou desapareceu nos primeiros meses da ocupação rnoscale, por ordem de Mavid Zeng.
Nos seus infernais campos de trabalho forçado, os irmãos Acathiste, como todos os sobreviventes de Vrância, conservavam ao peito o ícone da Condottiera, da Theotocos, da Panaghia - a Mãe de Deus-, que era, agora mais que nunca, a sua única esperança e o seu único guia.
E a Condottiera, da mesma maneira que deu o moinho a Nicolas Acathiste, fez um milagre para todos os fiéis que viviam na República Penitenciária da Roménia.
Esse milagre deu-se em 5 de Março de 1953, às nove horas e cinquenta minutos.
Na manhã de 5 de Março, o Grande Moscale - o homem que podia gabar-se de ter matado mais homens desde que o mundo existe, porque matou à metralhadora, dia e noite, durante quarenta anos-caiu aos pés dos seus lugares-tenentes, envenenado com o seu próprio veneno. Torceu-se de dor, debatendo-se como os epilépticos, num sofrimento atroz, em cima do tapete, durante mais de uma hora. Nenhum dos seus lugares-tenentes se debruçou sobre o tirano, atormentado pela dor como um cão envenenado. O Grande Moscale morreu sem que ninguém fizesse um gesto para lhe valer. Os seus lugares-tenentes começaram imediatamente a disputar entre si a sucessão à chefia do grande império bicontinental dos moscales. Foi uma luta sangrenta e acerba, que durou dois anos. O vencedor foi um gordo ucraniano. A primeira coisa que o novo Grande e gordo Moscale fez foi visitar os maravilhosos países do Ocidente.
contavam-se então, entre os moscales, coisas inauditas acerca da América e da Europa. Mas durante o reinado do falecido Grande Moscale ninguém teve autorização para ir ao estrangeiro. Agora, tendo os seus lugares-tenentes tomado conta do Poder, peregrinavam constantemente de um país para o outro. Nos Estados Unidos da América, os ianques, que são os negociantes mais espertos do mundo, sabendo que o novo Grande Moscale era um camponês da Ucrânia, fizeram-no visitar as herdades dos Estados Unidos.
Os Americanos mostraram ao Grande Moscale vacas bonitas, enormes, opulentas como as cantoras da Ópera de Moscovo, que davam milhares de litros de leite por ano. As tetas dessas vacas americanas eram como fontes artesianas, donde corria o leite sempre sem parar, como no Paraíso dos Muçulmanos. O Grande Moscale, maravilhado, admirou o milho cujos grãos eram brilhantes como o ouro e grandes como avelãs. Viu espigas de trigo maiores que pardais. A terra dos Estados Unidos produzia cem vezes mais trigo, mais milho e mais feijão que a terra dos moscales. O Grande Moscale, que amava os campos e os animais-tinha a paixão da agricultura-, chorou ao ver tantas riquezas. Convidou os lavradores americanos a virem a sua casa, na qualidade de conselheiros. Explicaram então ao Grande Moscale que a principal condição para que o trigo cresça melhor, as vacas dêem mais leite e a terra produza cem vezes mais, é as pessoas que se encarregam de tudo isso serem livres. O trabalho forçado e a sujeição do homem reduz a produção. Ao regressar a Moscovo, o Grande Moscale ordenou que se desse liberdade ao povo. Lá é assim: ordena-se que se seja livre, sob a ameaça da pistola. Quando os moscales se fizeram cristãos, foi sempre debaixo de ordens e à força de baionetas. A polícia conduziu o povo como um grande rebanho até às margens dum grande rio. Ordenou às pessoas que se despissem, que entrassem na água, e, às vozes dos padres prisioneiros raptados aos Gregos, que mergulhassem a cabeça três vezes na água. Foi o baptismo colectivo dos moscales. Os que se recusavam, chegavam atrasados ou não punham a cabeça debaixo de água ao sinal dos padres, eram mortalmente espancados pelos cossacos. Agora não era de se tornarem cristãos que se tratava, porque os moscales tinham-se afastado da cristandade. Sempre por ordem do Grande Moscale e com a ajuda dos cossacos. Agora o povo recebia a ordem de passar a ser livre. A pontapés no traseiro, puseram os prisioneiros fora dos campos e das prisões. Tinham de executar a ordem e passarem a ser livres de um dia para o outro, sob pena de morte. Libertando os cativos, o Grande Moscale esperava que o leite corresse das tetas das vacas como de uma nascente. Esperava que as terras dessem três colheitas por ano, porque agora, sob a ameaça do revólver e do knut, todos os moscales eram livres.
Alguns anos mais tarde, por causa da fome, ordenou-se também às populações dominadas pelos moscales que passassem a ser livres, no âmbito da sua república penitenciária. Na Roménia, o povo foi posto em liberdade, sob a vigilância dos colaboradores e no âmbito dos seus campos penitenciários. Assim, Sabina Acathiste recebeu ordem de sair do seu campo de trabalho e de se comportar como uma mulher livre, em 1956, depois de doze anos de prisão. Ao mesmo tempo, foi igualmente posto em liberdade o frade Théophore Acathiste, que, como não sabia para onde ir, porque o convento estava fechado, voltou para a aldeia. Nicolas Acathiste, que passou catorze anos na prisão pelo crime de ter sido moleiro durante alguns meses, foi posto em liberdade em 1958. Ordenaram-lhe que trabalhasse no moinho por conta do Partido dos Colaboradores, a quem pertencia o moinho confiscado.
Todos os anos, no dia 23 de Agosto, levavam o povo romeno para as ruas, como se se tratasse de um grande rebanho, e obrigavam-no a gritar que era feliz e que amava os colaboradores e o ocupante estrangeiro.
Pela mesma época, os Chineses também abriram o seu céu aos pássaros, aos quais haviam interditado o território e o céu da sua república. Eles expulsaram e mataram os pardais, porque estes comiam uma quantidade exagerada de cereais. Os pássaros eram bicos inúteis, mas, quando deixou de haver pássaros na China para comer os vermes e os insectos, estes devoraram as searas. A terra da China já nada produzia. Todas as searas foram atingidas. Os Chineses, apesar da sua paciência, não conseguiram exterminar os insectos e os vermes. Então, chamaram de novo os pássaros. Perceberam que os bicos inúteis eram indispensáveis. Os moscales e os colaboradores dos países por estes conquistados verificaram também que as pessoas que prendiam, matavam e encarceravam eram úteis, indispensáveis. E, ao mesmo tempo que os Chineses, que para não morrerem de fome faziam voltar os pássaros à China, o Partido dos Colaboradores e o ocupante da Roménia chamavam as pessoas das prisões, dos campos, do exílio, para trabalharem com eles, porque esses indesejáveis tornavam-se de repente imprescindíveis, exactamente como os pássaros da China.
A vida dos irmãos Acathiste corria agora melhor. O regime continuava gregário e os homens eram ainda tratados como um rebanho pelos colaboradores. A Roménia continuava a ser uma república penitenciária, mas os prisioneiros tinham um pouco mais de liberdade. Esta segunda fase da vida da Roménia ocupada não durou muito tempo. Em 1964, vinte anos depois da ocupação pelos moscales, os colaboradores eram todos milionários. Estavam redondos como suínos, viviam todos em cidades interditas ao povo e tinham os seus armazéns, alimentação especial e água canalizada nas suas casas. O Partido dos Colaboradores vivia como um outro povo, no meio do povo romeno. Havia colaboradores que chegavam a possuir dez ((Rolls-Royce" para seu uso pessoal. As mulheres dos colaboradores andavam de avião como se anda de táxi, dia sim dia não, para irem ao cabeleireiro, a Viena, a Roma ou a Paris. Os colaboradores viviam entre si, completamente separados do resto do país, e ligavam-se mutuamente uns com os outros. Eram outra raça, outra casta, outro universo. O povo, sempre conduzido em rebanho, não possuía nada, absolutamente nada, salvo o direito ao azorrague.
No dia em que tudo o que existia na terra romena passou a pertencer-lhes, os colaboradores reconheceram de novo o direito da propriedade individual, porque queriam que tudo o que tinham confiscado ao povo lhes pertencesse juridicamente, pessoalmente, para poderem deixar aos filhos os castelos, as terras e as riquezas que haviam roubado. Restabeleceram, portanto, a propriedade individual. Tudo foi posto em seu nome pessoal, todo o país. Mesmo que se mudasse de regime, passando-se do sistema gregário e colectivista ao sistema capitalista, seriam sempre eles os donos, porque possuíam em plena-propriedade-em seu nome- todo o país.
As requisições foram transformadas em actos de benevolência. Foi assim que, no princípio do mês de Agosto de 1964, o moleiro Nicolas Acathiste recebeu a visita de Zid Caracal, o responsável pela aldeia.
- Tens de fazer uma escritura de doação do teu moinho ao Partido - propôs Zid Caracal.
Nicolas Acathiste ficou aturdido com semelhante proposta. Respondeu:
- Mas vós já haveis ficado com o meu operário. Sou vosso operário. Como posso dar aquilo que não é meu? Já não tenho moinho.
- Tens confiança nos colaboradores? perguntou Zid Caracal.
--Que remédio tenho eu - respondeu Nicolas Acathiste.
- O Partido dos Colaboradores decidiu restabelecer a propriedade individual.
- Restituem-me o meu moinho?
-Restituímos-te o teu moinho - respondeu Zid Caracal. - É para isso que estou aqui.
Nicolas Acathiste caiu de joelhos, voltado para o Oriente, e disse: "Panaghia Condottiera, obrigado por me restituíres o moinho. O nosso moinho, o teu e o meu..."
--Restituímos-te o teu moinho, mas tomas o compromisso de fazeres doação dele ao Partido... Compreendeste?
- Não - respondeu Nicolas. - Não compreendi nada, Vossa Camaradagem. Tirastes-me o meu moinho e ficastes com ele. Para quê restituir o que me tornam a tirar? Guardai-o, é mais simples.
- Não, -contrariou Caracal.-Não queremos ouvir dizer que espoliámos o povo, que tomámos pela força os bens do povo.
Doravante, já não o poderá afirmar. Restituímos tudo o que tomámos. A toda a gente...
- Como a toda a gente, se matastes a maioria dos proprietários!-gritou Sabina, entrando no moinho. - Nada podereis restituir aos mortos!
- Aos mortos, não. Já não podemos. Mas aos vivos, restituimos-lhes os seus bens. E aos herdeiros dos que morreram no decorrer destes vinte anos, desde que assumimos o Poder...
Zid Caracal pôs em cima da mesa as certidões de propriedade do moinho, passadas em nome de Stoyan Stoica, o falecido pai de Sabina. E a certidão de casamento de Sabina com Nicolas Acathiste, casamento que os tornava herdeiros do moinho.
- Eis as certidões de propriedade do vosso moinho - disse Zid Caracal. - Eu cumpro o que prometo.
- Somos então novamente proprietários do nosso moinho? - perguntou Sabina.
- Sim, sois novamente donos. Todavia, com a promessa de fazer doação dele ao Partido, como prova de admiração pelos colaboradores e porque estais convencidos de que é mais justo que o moinho pertença ao Partido que a um indivíduo.
- Podeis matar-nos!-gritou Sabina. - Nunca faremos semelhante escritura, nunca. Há vinte anos que nos martirizais e quereis que vos ofereçamos o nosso moinho como prova de gratidão, de reconhecimento pelas torturas que nos infligistes.
- Vocês já não possuem o moinho-disse Zid Caracal.- De qualquer modo, fazem-nos presente de uma coisa que já não vos pertence...
- Nunca na vida!-respondeu Sabina.
- Antes a morte.
- Ouve, Sabina. Sua Camaradagem Zid Caracal tem razão. Oferecemos ao Partido uma coisa que já não nos pertence... Não perdemos nada. Podemos assinar este papel. Que temos nós a perder?
- Antes a morte! - gritou Sabina. - Tiraram-me o meu moinho pela violência, que o guardem pela violência... Nunca terão a doação do moinho, nunca. Antes morrer, antes deitar-lhe fogo.
- Não sejas teimosa, Sabina - disse Nicolas. - Praticamente, essa escritura que Sua Camaradagem nos pede não tem qualquer importância para nós.
- Tem a maior importância - disse Sabina.- Foi a mesma coisa que eles fizeram comigo. Aquando da invasão da aldeia, os moscales e os colaboradores violaram-me em frente do meu moinho, uma vez, duas vezes, inúmeras vezes. Mas eu, perante Deus, perante o meu marido, perante mim mesma e perante o mundo, considero-me pura, como se fosse virgem, porque o que eles tomaram pela violência, contra a minha vontade, não me pode ser atribuído como pecado. E se agora eles me pedirem que confirme por escrito que fui possuída dezenas de vezes pelos moscales e pelos colaboradores por minha vontade e por meu desejo, então eu sou a maior meretriz do mundo, a mais suja e abjecta das mulheres... Vês, homem, a diferença. Enquanto a nossa vontade não está comprometida somos puros. O que eles fizeram com o meu moinho e com o meu corpo não conta, pois foi contra a minha vontade. Mas se tu assinares que lhes dás o teu moinho é como se eu própria tivesse assinado que quis ser possuída pelos soldados que invadiram o meu país e que me violaram...
E, pegando na faca de cortar o pão, em cujo cabo estava escrito Unsere Tdgliche Brot, a qual lhes havia sido oferecida pelo fabricante alemão das mós, Sabina, ameaçadora, apontou-a para Nicolas, seu marido, e disse:
- Nicolas, se deres o moinho aos homens que nos reduziram à condição de animais, a esses criminosos, mato-te, com esta faca, pelas minhas próprias mãos.
Depois bateu com a porta e saiu.
Zid Caracal também se foi embora. Isto passou-se na quinta-feira, 6 de Agosto, Dia da Transfiguração.
No dia 23 de Agosto, portanto duas semanas depois desta cena, Nicolas ofereceu o seu moinho aos colaboradores dos moscales, na praça pública, em presença da multidão reunida para a Festa Nacional, como Zid Caracal lhe ordenara. Duas horas mais tarde, Nicolas Acathiste foi apunhalado pelas costas, em frente do seu moinho. Exactamente com a mesma faca com que a mulher o havia ameaçado. No local do crime, prenderam o irmão da vítima, o frade Théophore. Tudo era claro. Evidente. Fora ele - o frade - quem matara o irmão com a faca que Sabina lhe dera. Por instigação da rapariga. E por causa do moinho.
A ACAREAÇÃO ENTRE O FRADE E A MULHER
A milícia chegou ao moinho durante a noite e levou o cadáver do moleiro Nicolas Acathiste. Na poeira da estrada ficaram o sangue da vítima e os restos das velas que a tinham alumiado. Sabina Acathiste, a mulher do moleiix" assassinado, foi, nessa mesma noite, presa e fechada no Castelo da Vaca.
Logo que correu a notícia do assassínio, toda a província de Vrância se sentiu dolorosamente atingida. Não por causa da morte do moleiro. Há vinte anos - desde que a província fora ocupada-que se chacinam pessoas como se matam moscas. A morte deixou de impressionar. Nada impressiona os Acathistes, os não sentados.
Mas o facto de um frade, um santo homem, um padre, ter matado o seu próprio irmão para lhe ficar com a mulher é que não se pode suportar, é inadmissível. A santidade era a única coisa que os invasores moscales não tinham conseguido confiscar e proibir. E eis que a própria santidade era manchada. O povo nada mais tinha, era como uma rapariga pobre que não possuísse outro tesouro além da virgindade. Se a perdesse, ficava sem nada. Agora, a virgindade da Igreja estava perdida. Um frade tornara-se assassino e fratricida. A província de Vrância já tinha perdido a terra. Se perdia agora o Céu, que seria dos seus habitantes? Mesmo as pessoas que não iam à igreja com tanta frequência como deviam, que não diziam à noite, antes de se deitarem, "Pai nosso que estais no Céu", tinham a esperança do Céu. Agora o Céu cairá sobre elas, partido como uma cúpula de vidro, porque elas tinham-no profanado. Até o Céu fora profanado. Enquanto os habitantes de Vrância estão consternados com o que acabou de se passar, o frade Théophore Acathiste e a sua cúmplice são introduzidos, para acareação, no gabinete de Sua Alta Camaradagem Mavid Zeng.
O frade Théophore e a cunhada envelheceram nessa noite alguns anos. Estão pálidos, têm os olhos pisados de quem não dormiu. Sabina é uma mulher de pequena estatura. com trinta e cinco anos, já está velha, de cabelos grisalhos. Os doze anos que passou na prisão deixaram-lhe no rosto marcas profundas, como cicatrizes. Chorou toda a noite, na sua cela, na cave do Castelo da Vaca. Chorou a morte do seu moleiro. Nunca tratava Nicolas por "meu marido", mas por "meu moleiro". E ele chamava-lhe sempre ((minha moleira", mesmo depois de terem perdido o moinho. Tinha os olhos vermelhos de chorar e estava rouca por ter passado toda a noite a lamentar-se em altos gritos. Agora não era do seu enorme desgosto, do seu desgosto de viúva que se tratava. Mas do seu crime.
Mavid Zeng abre o processo e diz:
- Colhemos inúmeros testemunhos que confirmam, sem equívoco, que tu, Sabina Acathiste, havia semanas que ameaçavas de morte, quase diariamente, o teu marido. Proferias as ameaças mesmo em público. com cinismo, pegavas numa grande faca e dizias que, se o teu marido fizesse doação do moinho ao Partido, o matarias com as tuas próprias mãos, cravando-lhe a faca nas costas, o que aconteceu. Sabina Acathiste, reconheces esta faca?
Mavid Zeng mostra-lha. Tem uma lâmina de mais de vinte centímetros. A lâmina está manchada de sangue. No cabo está escrito: Unsere Tágliche Brot ("nosso pão quotidiano").
À vista da faca, as lágrimas correm de novo pelo rosto de Sabina.
- É a nossa faca - diz. - É a faca do pão...
- Foi com esta faca que ameaçaste o teu marido, não foi?
- Sim, Vossa Alta Camaradagem! - confirma Sabina.
- Ameaçaste-o que lhe cravavas esta faca nas costas, se ele desse o moinho ao Partido, não foi?
- Sim, Vossa Alta Camaradagem, ameacei.
- No dia 23 de Agosto, o teu marido fez a entrega solene do moinho ao Partido. Leu a escritura da doação em presença do povo, na tribuna oficial. Duas horas depois, mataste-o, como tinhas ameaçado fazer, não é verdade?
- Não, Vossa Alta Camaradagem. Não matei o meu moleiro.
- Não o mataste por tuas mãos, como te gabaste que o farias, é verdade. Os peritos são formais: ((Foi um homem quem cravou a faca nas costas da vítima." Mas foi instigado por ti. Como se passou isso?
- Não sei, Vossa Alta Camaradagem. Sabina chora.
- vou dizer-te como se passou. Tu deste a faca ao teu cunhado, pedindo-lhe que a cravasse nas costas do irmão. é verdade ou não?
- Não, Vossa Alta Camaradagem. Eu não matei o meu marido. E não pedi a ninguém que o matasse. Eu amava o meu marido.
- Confessas ter dito publicamente que o matarias se ele desse o moinho?
- Ameacei-o. Mas eram palavras, simples palavras, mais nada.
- Conta-nos: como e quando o ameaçaste?
- Já não me lembro bem - diz Sabina. -Vós sabei-lo melhor do que eu. A primeira vez, parece-me, foi no dia 6 de Agosto, Dia da Transfiguração. Zid Caracal foi a nossa casa pedir ao meu moleiro que fizesse doação do nosso moinho ao Partido. Foi nessa altura que me encolerizei e, pegando na faca que estava em cima da mesa, o ameacei de morte se o fizesse.
- Facto que se consumou exactamente como tu o disseste. Imediatamente após a doação, foi apunhalado com a mesma faca. O frade, teu cunhado, estava presente quando ameaçaste o teu marido de morte?
- Não - diz Sabina.
- Ele morava contigo no moinho?
- Nem sempre - responde Sabina.- Estava na igreja de dia e de noite.
- O frade vivia ou não vivia no moinho contigo?
- Vivia - diz Sabina. - Fora enviado para os campos de trabalhos forçados ao mesmo tempo que eu. E quando de lá saiu, depois de dez anos de detenção, encontrou o convento fechado. Então foi para o moinho, e lá se instalou. Mas passava os dias e as noites na igreja.
- Estavas só no moinho, nessa altura? Então, tu e ele viviam juntos, sós, no moinho, porque o teu marido foi solto dois anos depois, não é verdade?
- Sim, Nicolas foi solto dois anos mais tarde - diz Sabina.
- Durante esses dois anos, tu e o teu cunhado tiveram uma ligação?
- Não!-grita Sabina.
- Sim! Tu eras amante do teu cunhado.
- O padre Théophore é um homem santo. Como podeis dizer que eu era amante de um santo? Os santos têm amantes?
- Viu-se a santidade dos frades com Rasputine. Estamos elucidados a esse respeito... Que fizeste no dia do assassínio? Porque não tomaste parte na Festa Nacional?
- Caracal vos dirá porquê. Tinha avisado de que não iria à parada de 23 de Agosto. Nem que me fuzilassem.
- Quando é que disseste ao camarada Zid Caracal que não tomarias parte na festa?
- No dia 22 de Agosto, à tarde. Sua Camaradagem foi ao moinho. Já era escuro. Levou ao meu marido, como dádiva do Partido, um fato nacional completo: calças, camisa, casaco, sapatos, cinto... tudo. Disse ao meu marido que tinha de vestir um fato novo para fazer boa figura quando estivesse na tribuna oficial, ao lado de Vossa Alta Camaradagem, para ler a escritura da doação do moinho.
- E tu disseste ao camarada Caracal que te recusavas a tomar parte nas Festas?
- Disse que, mesmo que me fuzilassem, não iria ver e ouvir o meu marido dar o nosso moinho ao Partido.
- Ficaste, portanto, escondida todo o dia e, no regresso do teu marido ao moinho, com a cumplicidade do frade, teu amante e teu cunhado, mataste-o. Exactamente como tinhas ameaçado fazer.
- Não matei o meu moleiro.
- Não tens qualquer alibi, qualquer possibilidade de te defenderes. Como se explica que a faca, que estava de manhã no moinho, em cima da mesa, fosse encontrada nas costas da vítima? Ninguém podia entrar no teu moinho para a tirar de lá, salvo tu e o teu cunhado. O moinho estava fechado à chave.
Sabina cala-se. A faca estava realmente em cima da mesa na manhã do crime, onde estava sempre. E, para entrar no moinho, só ela, Nicolas e o padre Théophore tinham chave.
- A faca estava de manhã em cima da mesa - diz Sabina. - É verdade. Mas não sei quem a tirou. Eu não fui.
--Chega-te para aqui - ordena Mavid Zeng, fazendo sinal ao padre Théophore para se aproximar.
- Deixaste a Festa às cinco da tarde, não foi?
- Sim, Vossa Alta Camaradagem, saí da Festa às cinco da tarde.
- Era para voltares à aldeia e matar o teu irmão, não era?
- Não, Vossa Alta Camaradagem. Saí mais cedo porque desfilei com os tuberculosos. Ordenaram aos padres que desfilassem nessa coluna. O desfile dos tuberculosos terminou às cinco horas. Os doentes tinham de recolher às suas camas do hospital às seis horas... Ordenaram-nos também a nós, padres, que voltássemos para casa, como os tuberculosos.
- Assististe à doação solene do moinho feita por teu irmão?
- Sim, Vossa Alta Camaradagem. Vi meu irmão subir à tribuna e colocar-se à vossa direita. Ouvi-o ler o documento de doação do moinho ao glorioso Partido dos Colaboradores, que ajudaram os moscales a instaurar a nova sociedade na nossa província.
- Estavas contente por o teu irmão dar o moinho ao Partido?
- Nem contente nem descontente, Vossa Alta Camaradagem. Eu sou frade, não tenho que julgar as coisas deste mundo.
- O teu irmão fez bem em dar o moinho ao Partido? Responde com um sim ou com um não.
- Os nossos santos padres dizem que as coisas corporais são matéria e aquele que ama o mundo, ama automaticamente as ocasiões de pecado. Se acontecer a um frade perder alguma coisa de material, deve receber a perda com alegria e reconhecimento, considerando-se liberto de uma preocupação. É esta a minha opinião sobre a perda do moinho e de qualquer outra coisa material. É o ensinamento que eu recebi dos Apotegmas dos padres. Mas esta é a opinião de um frade, válida para os frades.
- Portanto, assististe à doação. Viste depois o teu irmão descer da tribuna e dirigir-se para a aldeia?
- Vi-o descer, mas não o vi dirigir-se para a aldeia. Era tanta a gente que, depois de ele ter descido, não o voltei a ver.
- Seja! Mas chegaste antes dele à aldeia.
- Não, Vossa Alta Camaradagem. Foi Nicolas quem chegou primeiro. Quando eu cheguei ao moinho já ele estava morto, e vós perto do seu corpo.
- Além de ti e do teu irmão, não havia ninguém na aldeia no momento do crime. Não queres dizer que foram as duas crianças sarnosas ou a velha Anastásia que cometeram o assassínio...
- Não foram as crianças nem a mãe Anastásia que mataram o meu irmão, Vossa Alta Camaradagem. Não quero dizer isso.
- Foste então tu quem o matou? Mais ninguém o poderia fazer. Foi instigado pela tua cunhada que cometeste esse odioso fratricídio? Foi ela quem te levou a faca? Assistiu ao assassínio?
- Não matei o meu irmão, Vossa Alta Camaradagem.
-A mulher do teu irmão, tua cúmplice neste assassínio, é tua amante há muito tempo?
- Eu não tenho amante, Vossa Alta Camaradagem, sou frade, sou um homem casto e virgem...
- Isso não é defesa, porque tu não tens defesa possível. A nossa república popular aboliu a pena capital. Caso contrário, tu e a tua miserável amante e cúmplice seriam condenados à morte. Os juizes condenar-vos-ão a prisão perpétua. E, na frente dos juizes, ambos contarão tudo: a vossa cumplicidade, o vosso amor odioso, o fratricídio... Fora daqui, larva da terra... Os cidadãos da república verão agora o que são capazes de fazer as mãos dos frades, essas mãos que eles continuam a beijar... As santas mãos que matam e que roubam a mulher de um irmão...
O interrogatório de Sabina Acathiste e do frade terminou. O processo do assassínio fechou-se. A culpabilidade dos acusados não oferece qualquer dúvida. A palavra pertence agora aos juizes.
Sabina e o frade foram fechados, os dois, na mesma cela, para os humilhar, para os expor à troça, às grosserias e às injúrias dos guardas e das pessoas de fora. Era uma ofensa terrível pôr o frade e a mulher a dormirem na mesma cela...
CINCO ESTRELAS:
É O ALGARISMO DO SEGREDO
E DO SILÊNCIO
O frade Théophore Acathiste está fechado na mesma cela que Sabina, na cave do Castelo da Vaca. Logo que o guarda fechou a porta, dando duas voltas à chave, o padre Acathiste teve a impressão terrível de ser exilado para um universo desconhecido, vazio e estranho. Está assustado até ao desespero. O crime de fratricídio de que é acusado, o escândalo, a injustiça e as desgraças que o esperam no futuro já não o preocupam. Está completamente perdido, porque, apesar dos seus cinquenta e três anos, é a primeira vez na sua vida que se vê fechado numa casa sozinho com uma mulher. Théophore Acathiste nunca na vida se aproximou de uma mulher. Até à idade de seis anos e meio viveu com o pai. Depois, viveu com os frades, no mosteiro. Não chegou a conhecer a mãe e nem teve irmãs.
O universo feminino é-lhe completamente estranho e desconhecido.
No mosteiro explicaram-lhe logo de princípio que um frade é como o sal extraído do mar: o frade nasce de uma mulher como o sal é extraído do mar. Mas ao primeiro contacto com a água, o sal desaparece, dissolve-se. Ao primeiro contacto com uma mulher, também o frade está perdido. O primeiro mandamento para um frade é, portanto, fugir da mulher, sempre e em toda a parte. Um frade não deve nunca olhar para o rosto, nem mesmo para o vestuário, de uma mulher. Se o frade for obrigado a falar com uma mulher - o que deve evitar com todas as suas forças, deve até manter-se afastado da voz das mulheres-, tem obrigação de baixar os olhos. Nunca deve fixar uma mulher. Não porque a mulher seja uma criatura má ou diabólica, não. A mulher é uma das mais belas criaturas de Deus. Os frades sabem reconhecer as imensas qualidades e a beleza da mulher. Mas a mulher pertence ao mundo. E ser frade significa, em primeiro lugar, abandonar o mundo. A renúncia ao mundo, a apotage, é total. Quer dizer que se renuncia não só às coisas más, como às coisas boas e belas.
Quando o guarda fechou a porta da cela, Sabina cobriu o rosto com as mãos. Deitou-se em cima do leito de pedra da sua prisão e começou a lamentar-se. O padre Théophore quis consolá-la, mas, ao voltar os olhos para a cunhada, viu-lhe o corpo estendido, como um trapo amarfanhado, mole, em cima da cama. Foi a sua primeira surpresa. Nunca tinha suspeitado que um corpo de mulher pudesse ser tão elástico, tão maleável. Porque o corpo de Sabina parecia não ter um único osso. Estava caído em cima da cama, tomando a forma da dor e do desespero, como uma luva toma a forma dos dedos e da mão que a usa. Não era a boca da mulher que gemia, mas toda a sua carne. Eram os seus cabelos, os seus braços, as suas costas, tudo chorava. Não era como nos homens. Não, o frade compreendeu que a mulher é uma criação diferente da do homem. Está escrito no Génese que Deus tirou um osso do homem e com ele fez a mulher. O homem foi criado da terra, da matéria bruta, mas a mulher foi criada de uma matéria que já tinha sido moldada uma vez pela mão de Deus. Já não era matéria bruta. A mulher é feita de uma matéria superior, pré-trabalhada. É talvez por causa disso que ela é tão diferente. Foi pelo menos o que pensou o irmão Théophore.
A mesma dor que os feria, a ele e a Sabina, ao mesmo tempo e com a mesma força, tinha repercussões diferentes em cada um. Exactamente como um ruído que se ouve numa sala de concertos vazia, em que estão alinhados todos os instrumentos de uma orquestra. O mesmo barulho faz vibrar, chorar quase, a ponto de lhes quebrar as cordas, os instrumentos delicados, como o violino e a lira. Ao lado de Sabina, que sofre estendida no seu leito de pedra, o frade toma conhecimento da sua cegueira masculina, da espessura do homem. É invadido pela piedade, porque se tem sempre pena daqueles que são frágeis, vulneráveis, desprovidos de força. Théophore quis consolar a mulher que chorava junto dele, mas não sabia o que havia de fazer. Não ousava aproximar-se dela, porque, e isso era o mais assombroso de tudo, apesar de todo o corpo de Sabina estar coberto pelo vestido e não se lhe ver o rosto nem as pernas, esse corpo parecia nu. A mulher parecia despida. Era o seu sofrimento, as suas lamentações e o seu choro que a despiam. E o frade não ousava aproximar-se de uma mulher nua. É que uma mulher que chora, uma mulher que sofre e cai, abatida pela dor, está mais nua que uma mulher que não tem roupa para se cobrir. Toda a nudez feminina é visível, apesar daquilo que a cobre. É que a dor, para uma mulher, é como uma incisão na pele, quando se vê a carne e o sangue. Uma mulher que chora deixa ver não só a pele, a sua nudez exterior, mas também a carne, o sangue, as entranhas. Na mulher, o sofrimento é integral, até aos ossos. Mais profundo que os ossos, até à medula.
- Sabina, minha irmã e minha filha, queres rezar comigo? - diz o frade, sem se aproximar.
Tem muita vergonha de ter falado. compreende que foi desastrado e estúpido. Efectivamente, a oração é a melhor coisa que existe no mundo, mas talvez que aquela mulher, naquele mesmo momento, tenha necessidade doutra coisa menos importante, mas mais urgente. E ele, o infeliz frade, não sabe oferecer outra coisa senão um convite à oração. Apenas sabe isso, mais nada. Porque a mulher continua a chorar, sem o ouvir, diz:
- vou rezar só por ti, minha irmã e minha filha...
O frade volta-se para o Oriente. Cai de joelhos. E murmura:
- Maria a Panaghia, Maria a Theotocos, Maria a Condottiera dos não sentados, consente-me que reze por esta mulher que está demasiadamente perturbada para o fazer ela própria... Theotocos, a Condottiera, valei-lhe, porque a sua dor dilacera-me e ninguém senão vós a podeis ajudar...
- Irmão Théophore!-grita a mulher, saltando da cama, como se a tivesse mordido uma serpente. - Irmão Théophore, estais aqui?
Olha para ele com uns olhos vermelhos, perdidos, arregalados.
Vê o frade pela primeira vez. Até à altura em que ele caiu de joelhos, voltado para o Oriente, não o tinha visto. Não via senão a sua dor. Ele volta-se para ela. A mulher havia recuperado as suas formas. Está angulosa. Recuou, como um animal amedrontado, até ao leito de pedra em que se lamentava. Procura estar o mais longe possível do frade. Encolhe-se, juntando as pernas ao queixo, deixou de ter carne. Não tem senão ossos, para ser o menos mulher possível. Ele, que se voltou para ela, olha por cima dela. É assim que a vê menos.
- Sim, minha filha, estou aqui.
- Padre, perdoai-me--diz Sabina.
- Que o Senhor te perdoe, minha filha
- responde o frade.
Levanta o braço direito, junta os dedos e, fazendo com eles o monograma de Cristo, abençoa Sabina. Lembra-se de que, no seminário, lhe diziam que Deus fez a mão do homem com cinco dedos para que possa formar com eles o nome de Jesus Cristo.
- Perdoai-me de não vos ter dito a verdade- implora Sabina.
- Deus já te perdoou, porque ele perdoa tudo...
- Eu sei quem matou Nicolas, padre...
- Cala-te agora - diz o padre. - Coritar-me-ás mais tarde. Deus perdoou-te já. Primeiro, descansa e acalma-te.
Nunca, desde que é padre, o frade Théophore sentiu tão pesadamente a sua missão de confessor. Se é pesado para um homem suportar os seus próprios pecados, é ainda incalculàvelmente mais pesado pôr aos ombros e carregar com os pecados dos outros. Sobretudo se esses outros são entes queridos e chegados. O irmão Théophore tem medo e não quer ouvir agora o relato de Sabina. Não pode ouvi-la dizer, com pormenores, como pegou na faca e como matou Nicolas. Claro que tem de ouvir o relato da assassina. É padre. E um padre, no Juízo Final, tem de dar contas a Deus não só dos seus próprios pecados, das suas culpas pessoais, mas especialmente das culpas dos seus filhos e das suas filhas. Um padre é portador dos pecados de todos os seus fiéis. E os pecados dos seus fiéis ser-lhe-ão censurados mais duramente ainda que os seus próprios pecados.
Sabina matou o marido, mas é ele também, o padre, o pai espiritual de Sabina, que é culpado, porque os pais são sempre responsáveis pelos crimes, os pecados, as culpas dos seus filhos. O irmão Acathiste quer adiar, ao menos por alguns instantes, a terrível confissão da mulher, sua filha e cunhada, que assassinou o marido por causa de um moinho que nem sequer lhe pertencia. É um crime atroz, inaudito. O padre pede a Deus força para ouvir calmamente, como convém a um hierofrade - a um monge e a um padre -, o relato do crime de homicídio. E a voz da mulher sobe do seu leito de pedra. A voz é de novo a carne. com a voz, a mulher torna a ser elástica e mole. Para o frade, é como se estivesse nua. Fecha os olhos, mas a mulher continua a ser mole aos seus ouvidos.
- Não tive coragem de vo-lo contar, padre- diz Sabina. - Perdoai-me porque vós sois bom, misericordioso e santo. Padre, foi Ovid Panteleimon quem matou Nicolas. E eu sabia-o, desgraçada, que ele o mataria...
- Quem matou Nicolas? - pergunta o padre. - Repete o que acabas de dizer. Quem matou Nicolas?
- Foi Ovid Panteleimon, padre. Foi ele o assassino, mas foi por minha causa que matou...
Trata-se de uma revelação terrível, incrível. Já havia na aldeia dos Acathistes seis criaturas de Deus que estavam a mais: as crianças sarnosas, a surda-muda, a mulher do moleiro, o frade e o próprio moleiro com a faca espetada nas costas, tesa como um alho-porro. Agora, passaria a haver também o poeta. E na cela continua a haver o frade e a mulher.
O relato de Sabina parte-se bruscamente, como um fio donde se suspende um peso demasiadamente pesado, porque a sua dor é imensa.
- A culpa é minha, inteiramente-repete ela. - Nicolas, o meu querido Nicolas, morreu por minha causa. Desgraçada mulher que eu sou. Foi por causa de Eva, por causa de uma mulher, que o homem perdeu o Paraíso. E, por consequência, cada desgraça que cai sobre o homem é por culpa da mulher. Sempre por causa de uma mulher. E eu fui também a perdição de Nicolas. ..
O padre Théophore Acathiste começa a compreender que Sabina perdeu a razão. Endoideceu de dor. O que ela diz não tem qualquer sentido. O professor Ovid Panteleimon - o poeta da Condottiera - desapareceu há vinte anos. Morreu, certamente, há muito tempo. Foi condenado à morte, várias vezes, pelos moscales, por ser reaccionário. Os moscales, ao mesmo tempo que pilharam o país, destruíram tudo o que era nacional, autêntico, romeno, cristão. Os bispos, os poetas, os filósofos, todo o criador do espírito desapareceu sem deixar rasto, exactamente como Ovid Panteleimon. Os moscales queriam ter o rebanho do povo, sem qualquer guia, para lhe porem à cabeça colaboradores como Mavid Zeng e Zid Caracal. Os chefes espirituais da nação romena foram exterminados. Os livros antigos queimados. Quando Sabina disse que foi o professor Ovid Panteleimon quem matou Nicolas, são palavras de mulher louca. E não é de admirar que Sabina tenha endoidecido. Aquando da invasão dos moscales, foi violada durante dias inteiros, até perder os sentidos. Durante várias semanas, ficou como morta, sem falar, sem ouvir, sem ver. Mas voltou a si. E logo que recuperou os sentidos violaram-na de novo. E mandaram-na para os terríveis campos de trabalhos forçados, no canal Danúbíomar Negro, onde morreu um milhão de romenos. Toda a elite do povo romeno foi assassinada nesse canal que o escriba colaborador dos moscales cantou num livro de mil páginas intitulado O Caminho sem Poeira. Foi o único homem no mundo que cantou a beleza do trabalho forçado, os esplendores dos campos de prisioneiros, o sublime do terror policial e os encantos poéticos do genocídio... Depois de passados doze anos nesse campo de extermínio onde os cativos viviam e morriam ao ar livre - acorrentados-, Sabina Acathiste regressou à aldeia. Mas as marcas são indeléveis. E se hoje, vendo-se presa novamente, endoideceu, é natural.
- Dizes que foi Ovicl Panteleimon quem matou Nicolas?-pergunta o padre.
- Sim, padre. Estava no moinho havia mais de dois meses...
- O professor Ovid Panteleimon estava escondido em vossa casa? É isso que queres dizer?
- Sim, padre. Não acreditais?
- Acredito em ti, certamente. Mas se ele estivesse no moinho, eu tê-lo-ia visto também, Sabina. Ia quase todos os dias a vossa casa. Sabe-lo bem. E eu não vi o poeta...
- Estava lá, padre.
O padre tem a certeza de que a mulher delira. Perdeu a razão. Inventou - com a sua cabeça desnorteada - um culpado para se absolver do crime que cometeu e que a sua pobre consciência não pode suportar. Designou como culpado o primeiro nome que lhe surgiu na memória. O frade é invadido por uma imensa piedade pela pobre mulher que está a seu lado, no infortúnio, na desgraça e no terrível pecado de crime de homicídio... Ele não a vê. Deixou mesmo de ter consciência da sua presença porque a penumbra devorou a cela. Mas no leito de pedra, quando a mulher se cala, continua a ouvir-se uma respiração. A mulher existe porque respira. Elas não têm a mesma forma de gemer que os homens. Ei-la furiosa agora!
- Não acreditais quando digo que é o professor Ovid Panteleimon o assassino de Nicolas?
- Mas, com certeza, com certeza, minha filha. Acredito.
- Ele estava havia dois meses no moinho
- diz ela. - Não o vistes. Claro que não o vistes. Estava escondido na velha arrecadação das ferramentas. Conheceis a arrecadação das ferramentas, padre, não é verdade? Lembrais-vos? É o cubículo que fica ao lado do nosso quarto, em cima, mesmo sobre as mós... Foi lá em cima que Nicolas instalou a cama de Panteleimon. Ele nunca saía do seu esconderijo. Nunca haveis reparado que a velha arrecadação das ferramentas estava sempre fechada?
-Acredito em ti, minha querida Sabina.
Claro que acredito. Uma vez que tu mo afirmas. Mas se o professor estivesse escondido em vossa casa, no moinho, eu também estaria ao corrente. Tê-lo-ia sabido, tê-lo-ia visto. Nicolas ter-me-ia dito que ele estava lá. O professor também me teria falado.
- Foi o professor quem nos proibiu de vo-lo dizer. Dizia que se a polícia o descobrisse e se nos executasse aos três, seria bastante. Não era preciso um quarto morto. E principalmente não queria que vós, um padre, perdêsseis a vida por causa dele. Dizia que os padres são os lugares-tenentes da Condottiera, os únicos guias do povo romeno nestes tempos de desgraça. Era preciso poupar os padres. Proibiu-nos de vos dizer que estava lá escondido. Sofria terrivelmente por causa do seu segredo. Porque queria confessar-se e comungar. Mas não queria expor-vos à morte. Pedia-nos que lhe levássemos todos os domingos um pedaço de antidoron, de pão bento. Nunca haveis reparado que vos pedia sempre um antidoron a mais, depois da liturgia? Era para ele. Mas ele matou o meu marido... O criminoso!
Sabina chora. O frade não pode acreditar naquela história. Volta a pensar no sal tirado do mar. Ao primeiro contacto com a água, o sal dissolve-se. O frade está no outro extremo da cela, no canto oposto àquele onde se encontra a mulher. Mas, na noite que foi toda consumida pela sombra, sente a sua presença, com os joelhos unidos ao queixo, encolhida, fechada. Tem de desconfiar dela. O primeiro mandamento para um frade é fugir da mulher. E aquela insiste. Não se furta ao contacto, embora esteja longe, ossuda, invisível. Não, a mulher encarniça-se a convencê-lo. É isso o contacto. Théophore dá conta de que estremece ao ouvir a voz de Sabina.
- Continuais a não acreditar em mim? Juro-vos que é verdade. Ele estava em nossa casa havia dois meses. E foi Ovid quem matou Nicolas, com a faca que estava em cima da mesa, quando este voltou da Festa. Estavam sós no moinho...
- Ovid Panteleimon não tinha qualquer razão para matar Nicolas. Admitindo que estava no moinho, apenas se podia mostrar grato, porque Nicolas encobria-o. E, além disso, sempre gostou de Nicolas, desde o primeiro dia que o encontrou. Apesar de ministro, foi à aldeia para ser testemunha do vosso casamento... É absurdo dizer que Ovid Panteleimon matou Nicolas... De resto, minha querida Sabina, o pobre Ovid Panteleimon deve estar morto já há mais de vinte anos... Os colaboradores não o deixaram vivo. Era um poeta demasiadamente grande e amava demasiadamente a Roménia para ser perdoado pelos invasores e pelos seus colaboradores.
- Julgais-me louca, padre? - pergunta Sabina, em tom de desespero. - Estou a dizer-vos a verdade e olhais-me como se estivesse a delirar. Não é justo, padre! Acreditais realmente que estou louca?
- Louca não, certamente. Mas estás vencida pela dor. A dor é pior que o álcool. A dor tira-nos a razão, faz-nos divagar, dizer o que calha. A dor é mais terrível que a aguardente...
- Não acreditais, portanto, que Ovid Panteleimon estava no moinho e que matou Nicolas?
- Há vinte anos que o poeta Ovid Panteleimon desapareceu, minha querida Sabina... Os colaboradores esquadrinharam até às entranhas da Terra. Mataram todos aqueles que tinham valor, não podiam falhar Ovid Panteleimon. Para eles, era mais perigoso que todo o exército. Dizem que se se puser numa balança, de um lado, todo o povo e do outro a alma do poeta nacional, a alma do poeta pesa mais que todo o povo. Os moscales não podiam deixá-lo vivo. Mataram-no. Está morto. Não podia, portanto, estar escondido no moinho. Não podia, portanto, matar Nicolas. Descansa e, mais tarde, confessar-te-ás. Porque Deus perdoa tudo, tudo.
- Falais como a milícia, padre - diz Sabina, chorando. - Vós, padre, recusais acreditar-me...
A mulher cai de joelhos. O frade não volta a cabeça para a mulher-fardo, a muIher-roupa, a mulher que suplica. A súplica é o mar. Todo o sal da Terra poderia derreter-se nele, o mar avassalador, o mar maternal. A Virgem dos não sentados, a Condottiera, é, também ela, um monte de entranhas. O frade obstina-se em não ver, em ouvir apenas aquela mulher única, toda curvas, toda languidez, toda carne, que se fez concha para o menino-Deus. E volta a sentir uma piedade imensa por Sabina. Imensa e precisa - porque o sal deve sempre defender-se da água, mesmo pura.
- Acredito em ti, porque tu mo afirmas. Dizes então que o professor Ovid Panteleimon estava escondido no moinho havia dois meses, na velha arrecadação das ferramentas, por cima das mós. E que me esconderam a sua presença para não me exporem à morte, não é verdade?
- É isso exactamente... Não vos queríamos dizer que ele estava lá. Ovid repetia-nos: "Se me descobrem aqui, somos fuzilados todos três. Assim, três seres humanos morrerão. Mas se morrer também um padre, será Deus que morrerá com ele, não unicamente os homens. Um padre é o portador do Espírito Santo. Um padre diviniza o mundo. E se matarem um padre, é um divinizador que morre, neste tempo de blasfémias, de sacrilégio e de desgraça, quando unicamente a santificação e a divinização podem conservar-nos ainda vivos, sobrenaturalmente, porque, historicamente, nós estamos votados ao extermínio... É preciso poupar a vida do irmão Théophore, é preciso esconder-lhe que eu estou no moinho. Poupando o padre, poupa-se Deus, e conserva-se Deus na terra dos Acathistes, na província de Vrância. Enquanto o padre estiver aqui, é Deus que aqui está. Entre nós. E, assim, podemos continuar a ter esperança e coragem, apesar dos milhões de soldados moscales que ocupam a nossa terra e nos matam há vinte anos, com as mãos ensanguentadas do Partido dos Colaboradores..." Era isto que ele nos dizia, a mim e a Nicolas, cada vez que nos via no moinho.
- E foi ele quem matou Nicolas?
- Sim, padre. Foi ele. Por minha causa... Devagar, muito devagar, parando de vez em quando para chorar, Sabina contou como, dois meses atrás, durante a noite, cerca das três horas da madrugada, ela e Nicolas ouviram abrir a porta do moinho e a seguir passos que subiam a escada. Depois sentiram abrir a porta do quarto em que dormiam. "Fiquem quietos e não façam barulho", ordenou o homem que entrara no quarto dos moleiros.
Sabina encolhera-se junto do marido. Tinha um medo terrível. Lá fora estava escuro e chovia a cântaros. O homem que entrara no quarto trazia um saco posto pela cabeça para se proteger da chuva. Via-se no escuro o contorno da sua silhueta terrível. Todavia, o mais terrível ainda era o cheiro que exalava. Logo que entrara, fechando a porta sem fazer barulho atrás de si, o quarto encheu-se de um odor a saco molhado, a palha podre, a estrume e a animal perseguido... Sufocava-se. Sentia-se que, se não se abrisse a tempo a janela, se desfaleceria.
O homem estava de pé, em frente da porta. E era dele, da sua silhueta negra, assustadora, que emanava aqueles cheiros de inferno. Um cheiro como o da caça, sobretudo o dos veados e o dos cabritos monteses quando caem mortos, não por causa das balas, mas devido ao cansaço, ao medo, depois de terem sido perseguidos durante muito tempo.
- Não faças barulho, Nicolas Acathiste. Não acendas a luz. Sou Ovid Panteleimon, o poeta da Condottiera. Ou, mais exactamente, o que resta ainda do poeta Ovid Panteleimon...
Dizendo estas palavras, mestre Panteleimon sentou-se no chão, em frente da porta. No sítio onde se encontrava. Deixou-se escorregar até cair, com o corpo na posição em que cai um casaco que estava mal pendurado. Ouvia-se a água que escorria dos seus andrajos, sentia-se o suor que lhe corria sobre a pele. Não estava propriamente sentado. Não, estava caído como um fato molhado cai do cabide. Estava morto de cansaço.
- Sei, meus queridos moleiros, meus queridos Acathiste, que aquilo que vos trago esta noite, entrando em vossa casa, é a morte. Se me descobrem, tu, Nicolas, e tu, Sabina, sereis fuzilados pela milícia no sítio em que estiverdes, imediatamente, sem qualquer julgamento, pelo crime de me terem dado guarida. Qualquer pessoa que abrigar o poeta Ovid Panteleimon será fuzilada imediatamente. Os poetas são as mais temíveis testemunhas da ocupação estrangeira. Por causa disso, matam-nos. Mas eu estou vivo. Foi a Condottiera, a Theotocos, a Mãe de Deus, que me conservou vivo, como só a Panaghia sabe fazê-lo. Há vinte anos, desde o dia 23 de Agosto de 1944 - dia da ocupação e da criação da República Penitenciária Romena-, que vivo num armário, no centro de Bucareste, a alguns passos de distância do antigo palácio real. Durante vinte anos, esperei sair do meu armário e fugir para o Ocidente. Mas os dias passavam e eu deixava-me ficar no meu reduto. Um armário um pouco maior que um caixão. Há algumas semanas, a milícia expulsou todos os habitantes do prédio. Mandaram vir os bulldozers e arrasaram todo o bloco de casas. E o meu armário também. Tive de sair. A pessoa que me havia escondido foi instalada num apartamento em que não existia armário para mim. E então fugi, como os ratos cujo navio está a arder. Fugi para o Ocidente, como o Sol. Mas o Sol foge para o Ocidente durante o dia e eu fugi de noite, julgando que no Ocidente me poderia sentar, deitar, dormir. Como o Sol. Tentei todos os métodos de evasão com que sonhei durante vinte anos. Mas se, de tempos a tempos, se pode fugir das prisões mais temíveis, é impossível fugir da República Penitenciária. É verdade que sou demasiadamente velho. Se fosse mais novo, teria conseguido. Em face dos meus fracassos, arrepiei caminho. Errei pelas montanhas, e lembrei-me, ao chegar à província de Vrância, que é aqui que se encontra o Moinho da Condottiera. Espreitei, vi que estáveis vivos. Tu Nicolas, meu afilhado, e tu, Sabina, minha afilhada. E eu entrei para vos trazer a morte. Vós, em troca, podeis dar-me a vida, recolhendo-me. Cada um dá o que tem e o que pode. A troca não é justa, porque eu trago-vos a morte e vós dais-me a vida. Não é uma troca para propor a negociantes, mas uma troca que nós, os cristãos, fazemos, a exemplo de Cristo. Há dois mil anos. Aceitam a morte para me darem a vida?
Fez-se um silêncio.
- Já não posso andar. Se não aceitais a morte que vos trago com a minha presença, ide avisar a milícia. Terei força bastante para descer até ao meio da estrada, para não ser morto aqui, no moinho. Mais longe, não poderei ir...
Nicolas e Sabina choravam sobre as almofadas ao ouvi-lo, sem mesmo darem por isso. Evidentemente que aceitaram a troca proposta pelo poeta, porque eram cristãos. Era a única coisa que restava. E aceitaram a morte para dar a vida ao poeta, esperando, dia após dia, pela desgraça inevitável. Todas as manhãs, ao acordar, Nicolas e Sabina preparavam-se para ser fuzilados durante o dia, e todas as noites, ao deitar, dispunham-se a ser acordados e mortos, porque o poeta podia ser descoberto de um segundo para o outro. Foi um milagre que não o tivesse sido. O moinho está cheio, durante o dia, de pessoas que espreitam por toda a parte, que procuram por toda a parte. E o professor está escondido mesmo por cima das suas cabeças. Mas ninguém o descobriu. A desgraça devia vir doutro lado, como sempre, porque as verdadeiras desgraças vêm de dentro, de nós mesmos, não vêm de fora.
Sabina cala-se. O frade pode finalmente suportar o silêncio. A narrativa do crime fez sair a mulher da cela. Entre as quatro paredes há apenas o crime e o frade.
- Que se passou? - pergunta.
- Tenho vergonha de o dizer, padre Théophore, muita vergonha, porque a culpa é minha. Eu soube, a partir do instante em que o poeta entrou, que o drama explodiria. Nicolas disse-lhe que ficasse no moinho como em sua casa, que os perigos não contam quando se está disposto a dar a vida para salvar um poeta, porque um poeta é a própria pátria. Então o professor disse:
"-Será talvez Sabina, a tua mulher, a que a Panaghia Condottiera te deu, no meio das águas, como o moinho, que irá em teu lugar prevenir a milícia. Porque talvez não queira morrer...
"-Nunca cometeria tal crime, mestre
- disse eu.
"Ao ouvir a minha voz, o professor sorriu. Estávamos às escuras. Notavam-se-lhe apenas os contornos da cabeça, a barba hirsuta, espessa, e os ombros largos. E mal sorriu, viu-se-lhe o rosto. O seu sorriso era luminoso, padre, o seu sorriso era fosforescente. Não sabia, até esse momento, que quando um homem sorri com vontade, na escuridão, o seu sorriso brilha como a luz. Antes disso, não sabia que a felicidade do homem é luminosa, que se pode ver na escuridão. E vi com os meus próprios olhos que o sorriso é realmente uma luz. Todo o sorriso e toda a luz brilham como o ouro e como as pedras preciosas na escuridão, nas trevas. Claro que há também a brancura dos dentes a fazer brilhar um sorriso na escuridão. Mas no poeta, que sorria feliz, não eram os dentes que brilhavam. Era toda a sua cabeça que resplandecia de luz, como uma cabeça de santo cercada por vima auréola. Compreendi que se sentia feliz não só porque o tínhamos acolhido em nossa casa, no moinho, como porque ouvira a minha voz, uma voz de mulher. Ele próprio o confessou, dizendo:
((-Como é doce ouvir, mesmo ao pé do ouvido, a voz de uma mulher... De uma mulher nova. Nada é mais doce no mundo do que a voz de uma mulher... Nenhuma música se lhe compara. Durante vinte anos, no meu armário, não ouvi uma única vez uma voz feminina... E era a coisa mais dura de todo o meu cativeiro...
"-Podeis ficar, mestre -disse Nicolas. "E com o seu espírito prático, organizou tudo. Ao amanhecer, Ovid Panteleimon tinha o seu esconderijo preparado. Estava lavado, barbeado, vestido de novo. com a roupa de Nicolas.
"-O teu irmão, o frade Théophore, ainda está vivo? -perguntou o professor.
"-Cumpriu, como todos os romenos, uma dúzia de anos de prisão. Saiu ao mesmo tempo que Sabina, em 1956, quando os homens dos Cárpatos e os pássaros da China foram amnistiados, quando lhes permitiram voltar à vida. Como o seu convento estava fechado, veio para a aldeia. É o nosso prior, o nosso confessor. Somos uma das raras aldeias que ainda têm um prior. Um prior que crê em Deus, porque nas outras aldeias puseram colaboradores de batina, que falam, nas igrejas, dos milagres dos moscales, dos milagres de Mavid Zeng e do seu Partido. Teoricamente, o nosso padre e irmão Théophore mora no moinho, mas, na realidade, nunca aqui está. Continua, na igreja da aldeia, os ofícios do convento, com liturgia diária, com os ofícios da noite e a oração constante. Vem ao moinho apenas de tempos a tempos para lavar a camisa e tomar algum alimento. É um frade acemeta - que quase nunca dorme-para não interromper a oração. Quando quer descansar, senta-se numa cadeira, no meio da igreja, com a face voltada para o altar, e adormece a recitar o Saltério, dizendo até que os lábios já não aguentem: " Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim, pobre pecador." Diz isto ao ritmo das pulsações do coração. E quando os lábios já não podem mais, quando adormece, o coração continua a proferir a mesma frase, a cada pulsação. Afirma que os frades não devem interromper as suas orações, nestes tempos em que os fiéis já não o podem fazer, porque os frades devem rezar em substituição de um povo que se encontra sob o domínio de uma nação estrangeira que não tem o direito de o subjugar.
((-É preciso não dizer ao santo padre Théophore que estou aqui - diz Ovid Panteleimon. - Não devemos pôr a sua vida em perigo, porque se o fuzilam interrompe-se a oração constante do nosso povo. E o fio da oração que nos liga ao Céu não deve ser cortado, nunca. Esse fio é a nossa única hipótese de esperança e de salvação...
Sabina chora. As lágrimas são o mar. O frade torna a ficar só. Fecha os olhos. A voz da mulher entra nele para o dissolver, em nome da caridade, em nome de Deus.
-Vedes agora, padre, porque não quisemos dizer-vos que Ovid Panteleimon estava escondido no nosso moinho. Foi para conservar o nosso Deus à aldeia, mantendo-vos vivo.
- Que fazia ele todo o dia no seu esconderijo? Escrevia? Lia?
- Nunca - responde Sabina.--O esconderijo era tão pequeno que apenas podia estar estendido. Nicolas queria fazê-lo sair de lá de vez em quando, mas ele recusava. Dizia que depois dos vinte anos que tinha passado num armário parecia-lhe que a vida já não lhe podia correr normalmente se não estivesse estendido como um morto no caixão. Julgo- que rezava. Rezava todo o tempo. Dizia que era o poeta da Condottiera. De longe a longe, falava-nos dos seus projectos de fuga para o Ocidente. Mas, depois das tentativas que fez e que falharam, já não tinha coragem de experimentar. Estava muito cansado. Mesmo para sonhar, estava cansado. Só quando eu me aproximava dele ou lhe falava é que o seu rosto se iluminava. Panteleimon tornava-se belo, tinha coragem, tinha esperança. Voltava a ser inteligente e brilhante como antigamente, porque no resto do tempo ninguém diria que tinha sido o poeta mais brilhante e um professor de mérito. Estava embrutecido, reduzido à vida vegetal. Quando notei que voltava a ser ele próprio logo que me via ou sentia a minha presença perto do seu esconderijo, então compreendi que estava apaixonado por mim. Disse isso a Nicolas. Ele riu-se. Afirmou que Ovid Panteleimon estava velho, que não era sequer a sombra do que havia sido noutros tempos. Mas, várias vezes, ao levar-lhe de comer ao seu esconderijo, tocou-me com medo, mas sem equívoco, na mão. Depois na anca. Eu fingia que não percebia. Consentia. Era como se deixasse uma criança brincar. Uma vez que isso lhe restituía a felicidade, a única felicidade, e, uma vez que era puro e sem qualquer pecado, consentia. Mas ele começava a olhar-me de tal maneira que sentia os seus olhos sobre a minha pele, as minhas ancas e os meus seios como caracóis húmidos que subiam por mim. Lançava-me olhares tão insistentes que os sentia materialmente, como serpentes, que se me metiam por debaixo do vestido, da camisa, e que subiam pelo meu corpo. Deixei de o poder suportar e evitei levar-lhe a comida. Era Nicolas que o fazia em meu lugar. E foi então que começou a sofrer.
A cela está como a praia quando a maré sobe. Cada grão de sal, muito tempo antes, sente a proximidade da água. Quando ela rebenta, e o enrola, inunda e absorve, há muito tempo que ele viveu a sua doce agonia. O frade volta a ser uma molécula de sal, com facetas e ângulos. Quase como um juiz, pergunta:
- Ele disse alguma coisa?
- Nada. Mas ofendeu-se. Sabia que eu tinha dito ao meu marido. Estava humilhado, magoado até ao mais fundo da sua alma. Tive dó. Fui de novo levar-lhe a comida. Então já não olhava para mim, odiava-me. Todo o amor passara a ser ódio, como o vinho mais puro se transforma em vinagre. Sofria atrozmente. Odiava principalmente Nicolas, mais do que me odiava a mim, porque fora aos olhos do meu moleiro que havia sido humilhado e rebaixado como homem. Dizendo a Nicolas o que se passava, isso significava que preferia meu marido a ele. E tinha a certeza de que o único obstáculo entre ele e eu era o meu marido. Tornava-se tenebroso. O seu olhar mostrava as suas intenções criminosas. Disse a Nicolas que o professor queria matá-lo, mas Nicolas riu-se. Expliquei-lhe que os poetas são geralmente pessoas irritáveis, complicadas. E depois de vinte anos vividos num armário, tudo há a esperar de um poeta. São realmente doidos. Disse a Nicolas que escondesse a faca que estava em cima da mesa. Temia pela sua vida... E eis que não me foi poupado o que tanto receava. No dia 23 de Agosto, quando Nicolas regressou, saíram juntos, para o professor dar um passeio em frente do moinho, uma vez que não havia ninguém na aldeia para o ver, e foi então que ele o matou, para se vingar da sua humilhação. Num gesto de loucura, pois já não estava completamente normal. Evidentemente, os poetas nunca são seres normais, têm sempre um pouco de loucos. Mas se permanecerem vinte anos fechados num armário, então a sua loucura desenvolve-se ao máximo. E Ovid Panteleimon estava louco e matou o meu marido...
- Não o viste cometer o crime com os teus olhos? - pergunta o padre.
com o assassínio de Nicolas Acathiste era o mar que se retirava.
- A faca ficara em cima da mesa. Só ele lhe podia pegar e cravá-la entre as espáduas de Nicolas... Sentia há muito tempo que ele o faria. Havia dias e dias que tinha a certeza de que ele viria de noite matar Nicolas, com a faca que estava em cima da mesa... Sou mulher, padre, e sinto, sem ter necessidade de ver e de tocar, o que se passa à minha volta e o que está dentro da cabeça e do coração das pessoas que me rodeiam... Ovid Panteleimon queria, havia muito tempo, matar Nicolas. Esperava unicamente uma ocasião, a qual se lhe deparou no dia 23 de Agosto, quando se encontrou só com Nicolas na aldeia...
- Também podia querer mal a Nicolas por ele ter dado o moinho aos Colaboradores.
- Não. Afirmava não ter qualquer opinião sobre esse assunto porque estava morto. E os mortos não têm opinião sobre as coisas do mundo. Não tinha opinião acerca de nada.
Tudo o que Sabina contara ao padre Acathiste era verdade. Há inflexões que não podem enganar. E porque aquilo era verdade, seguiu-se-lhe um longo silêncio, um silêncio terrível.
- Ele matou Nicolas. Mas ninguém o pode condenar, padre. Ele não estava em si. Depois de vinte anos num armário, padre, quereis que um homem proceda normalmente? Não. O seu acto não é condenável, apesar de ter cometido um crime. Além disso, a culpada sou eu, porque fui eu que provoquei o seu ódio contra Nicolas e o seu ciúme de Nicolas. Fui eu, foi a minha presença. Eu era a sua tentação. Esta maldita carne de mulher. É ela a verdadeira criminosa. A autora do assassínio é a minha carne.
- Não tens nada que censurar-te - diz Théophore Acathiste.
- Tenho, padre. A minha presença bastava. Foi para evitar semelhantes crimes que os marinheiros proibiram as mulheres de irem aos seus navios de guerra e que os frades não autorizam também que nenhuma mulher ponha os pés nos seus conventos.
Sabina bate violentamente no peito com os punhos. O frade ouve as pancadas, mas, sob as pancadas, a mulher deixou de ter ossos. A suavidade que recebe afoga a violência com que bate. E a mulher fala. Quer esconjurar toda essa suavidade, quer esconder toda essa fraqueza. E ei-la toda suavidade, ei-la toda fraqueza.
- Apesar da minha idade e mesmo depois de tantos sofrimentos, e após doze anos de prisão, com as minhas rugas e os meus cabelos brancos, continuo a ser uma tentação, uma instigadora de crime, uma ocasião de queda... maldita seja a minha carne de mulher...
Continuava a chorar. Depois levantou-se bruscamente e disse:
- Padre, que se há-de fazer agora? Dizei-me, que se há-de fazer? Deixamo-nos condenar por um crime que não cometemos? Ou então dizemos a verdade? É fácil verificar que foi Ovid Panteleimon quem matou. As suas impressões digitais devem estar na faca. A sua cama, o seu esconderijo, o seu rasto, tudo isso se encontra ainda no moinho. Mesmo que ele tenha fugido depois do assassínio, a milícia pode verificar, tomar conhecimento de que foi ele quem matou o meu moleiro, que não fostes vós. E que não fui eu.
Sabina cai de joelhos, mortificada.
-Se confessamos estar inocentes do crime que nos imputam e que acolhemos o poeta Ovid Panteleimon, em vez de nos mandarem para a prisão até ao resto da nossa vida, fuzilam-nos imediatamente. Porque, por termos morto um homem, somos condenados a trabalhos forçados e a prisão perpétua, mas por termos dado abrigo ao maior poeta romeno, aquele que apenas cometeu um crime, o de ter amado o seu povo e o seu país, incorremos na pena de morte, sem julgamento, imediatamente. É um crime imperdoável. É o maior aos olhos dos ocupantes e dos colaboradores.
- Deixar-nos-emos condenar, apesar da nossa inocência?
- Como culpados, temos de escolher a pena menor. Guardemos segredo. Não diremos que foi Ovid Panteleimon quem matou, para poupar as nossas vidas e confiá-las a Maria, a Condottiera.
- Eu não quero ir para a prisão, padre. -Só podes escolher entre a prisão e a
morte. Escolheremos a prisão, porque somos cristãos. E sabemos que enquanto formos vivos e nos conservarmos puros, Maria, a Condottiera, nossa protectora, não nos esquecerá... Não diremos nada a respeito de Ovid Panteleimon, absolutamente nada. Na praia, no infinito, o mar baixou. A areia voltou a encontrar a paz. O frade voltou a encontrar a estrela. A sua estrela chama-se certeza. Brilha na escuridão da sua cela. Ilumina, fulgura. Restitui à mulher toda a exiguidade das suas formas e a imensidão do seu infortúnio e da sua piedade. A prisão abre-se sob os pés do frade e da mulher. Mas a prisão não é nada. A prisão é o homem, e o homem não pode nada contra a estrela.
- Entre nós, o sinal é cinco estrelas. É o algarismo do segredo e do silêncio e é utilizado pelos pintores de imagens do Ocidente. Tem origem numa história muito bela. Havia em Praga, na Idade Média, um padre chamado João Nepomuceno. Era o confessor da rainha. O rei, deveras ciumento, perguntou ao padre confessor se a rainha lhe dissera que tinha um amante, que enganava o marido. O padre guardou segredo da confissão e por causa disso foi morto e atirado do alto de uma ponte para as águas do Moldava. Morreu como um mártir. Os pintores escreveram sobre a sua imagem a palavra TACUI - silêncio. Depois, as cinco letras da palavra TACUI, na imagem do santo mártir, foram substituídas por cinco estrelas. As estrelas são mais belas que as letras. E desde esse momento as cinco estrelas significam, iconogràficamente, o silêncio e o segredo da confissão. O nosso algarismo, de futuro, será cinco estrelas. Guardaremos silêncio, não divulgaremos o nome daquele que matou Nicolas. Será Deus quem o julgará. Quanto a nós, aceitaremos a sorte que Deus permitir que os invasores do nosso país e os seus colaboradores reservem para nós. Mas Sabina, como cristãos que somos, seremos optimistas, porque temos fé e confiança no nosso Deus. E, como disse São Paulo, "A fé é uma garantia das coisas que se esperam." Sabina sorri. Pensa nas cinco estrelas e na Condottiera, Mãe de Deus, cujo estandarte será ornado, daí em diante, com cinco estrelas.
A TRANSFERÊNCIA
PASSOU uma semana sobre o assassínio do moleiro Nicolas Acathiste. O inquérito policial terminou. O processo está concluído. Os dois acusados-o frade Théophore e a sua cunhada Sabina, que estão presos no Castelo da Vaca - esperam o julgamento e a condenação. O auto decorrerá na praça principal da cidade. Serão julgados por um tribunal do povo e armado um estrado como para o desfile de 23 de Agosto. Milhares e milhares de pessoas assistirão ao julgamento do frade que matou o irmão para lhe ficar com a mulher. Ninguém ousa testemunhar a favor de dois criminosos. O seu acto é demasiadamente monstruoso, não tem desculpa nem na Terra nem no Céu. Depois de terem estado presos juntos, os acusados foram separados. Estão ambos acorrentados à parede da sua cela. Durante a noite, o frade Théophore ouve os gemidos e os choros de Sabina. Ela está fechada numa cela que dá para o mesmo corredor, a qual se encontra suficientemente perto da do frade para que este ouça os seus gritos e as suas lamentações, mas demasiadamente distante para que lhe possa valer. Entre a mulher e o frade há apenas a espessura de uma parede. A voz da mulher atravessa essa parede. O frade ouve-a, mas modificada, imprecisa. Uma voz que se teria vestido, uma voz de visita. Mantém acordada a piedade do frade, mas perdeu o vago sortilégio do mar. A voz de Sabina não é mais que a voz da desgraça, e a desgraça não tem sexo. As noites do frade Théophore estão cheias da voz da desgraça. Espera. É como uma poeira nas mãos do vento. Vão julgá-lo, com a cunhada, por fratricídio, vão arrastá-lo, em cima de um estrado, à vista do povo reunido, vão acusá-los de assassínio e de fornicação, vão condená-los à prisão. O frade não tem medo da prisão. Não há prisão neste mundo senão para quem perdeu a fé. Théophore pensa no grito da mulher: "Não quero voltar para a prisão!" É sem dúvida isso que ela declara, de noite, às voltas, fardo de carne molhado de lágrimas, sobre o leito de pedra da sua cela. Todas as noites a mulher chora. Todas as noites o frade reza.
Em 29 de Agosto, Dia da Degolação do venerável chefe, do santo e ilustre profeta e precursor João Baptista, pelas duas horas da tarde, abriram-se as portas das duas celas e fizeram sair o frade e a mulher.
- Sigam-me e andem depressa - intimou Zid Caracal.
As sentinelas enquadraram os presos e empurraram-nos para fora.
Em frente do Castelo da Vaca, um. carro preto esperava, com dois civis.
- Subam depressa para o carro-ordenou Caracal.
Estava azafamado, pois os dois civis eram certamente altas individualidades vindas da capital. Caracal mostrava-se servil, desfazia-se em mesuras e tratamentos de "Vossa Alta Camaradagem".
No automóvel, o frade e a mulher foram empurrados para o assento de trás. Não tinham levado nada com eles. Os dois civis
- dois milicianos altos, muito elegantes subiram para a frente. Antes de abalar, Zid Caracal inclinou-se perante eles, com um documento na mão:
- Assinem-me o recibo-pediu Caracal. O polícia que estava ao volante assinou,
sem descalçar a luva.
- Voltareis a trazê-los para nós, Vossa Alta Camaradagem?
- É uma transferência definitiva-disse
o civil.
Zid Caracal entristeceu bruscamente. O cruel gigante - o terrível carrasco da província de Vrância, o braço direito de Mavid Zeng-empalideceu, vacilou mesmo. Não lhe agradava nada que lhe levassem os dois prisioneiros e que não os voltassem a trazer. Os civis notaram a perturbação de Zid
Caracal.
- Não estás contente de te veres livre disto? - perguntou o polícia que assinou o recibo.
O carro arrancou de repente. Desceram rapidamente a encosta, atravessaram a aldeia dos Acathistes, passando em frente da igreja e do moinho, e dirigiram-se depois para o sul. Os prisioneiros tiveram apenas alguns segundos para verem a sua aldeia. Tinham a certeza de que era a última vez que a viam, e o padre benzeu-se. Era o princípio da sua mais longa viagem. No termo estaria a morte. Os dois milicianos à paisana cheiravam a água-de-colónia, a brilhantina, e fumavam cigarros americanos, perfumados, uns atrás dos outros. Consultavam os relógios nervosamente. Não tiveram um único olhar para os prisioneiros que se encontravam no assento de trás. Era como se não existissem. Estavam ali como encomendas.
- Para onde é que nos levam, padre?
- perguntou Sabina, angustiadamente.
Durante uma semana de cativeiro, tinham-se habituado à ideia de serem julgados, apupados pelo povo, lapidados e depois condenados e atirados, carregados de correntes, para o fundo de uma prisão. E subitamente tudo se passava doutra maneira. Eram raptados naquele belo carro. Não tinham correntes, não estavam escoltados por milicianos de pistola em punho, não os insultavam, não lhes batiam. Quando Sabina falou com o padre, perguntando para onde os transferiam, os polícias não lhe bateram, ordenando-lhe que se calasse. Nem mesmo escutaram o que ela disse ao seu companheiro de prisão. Mas um preso nunca deve fiar-se nas aparências. Quando os carcereiros sorriem aos cativos, oferecendo-lhes cigarros, é justamente porque querem fuzilá-los. Sabina e o padre Acathiste sabiam isso tudo. Os anos que passaram nos campos de trabalho forçado ensinaram-nos.
-Acha que nos vão fuzilar sem julgamento?- perguntou a mulher.
-Estejamos prontos para sofrer tudo, minha filha!
No canal, quando os milicianos que vinham de fora levavam alguém, era sempre para o executar... Nunca mais o viam...
A mulher chora. Os milicianos vêem-na através do retrovisor, mas conservam-se indiferentes.
O hierofrade Théophore Acathiste não quer assustar mais Sabina. Por isso, cala-se, mas julga compreender a mudança brusca que se deu. A milícia prendeu certamente o professor Ovid Panteleimon. Este deve ter confessado que matou o moleiro e agora vão acareá-los com Panteleimon. Foi por isso que os levaram. Não lhes puseram correntes, não os cercaram de sentinelas e deixam-nos falar, porque agora a milícia sabe que não são eles os verdadeiros assassinos do moleiro Nicolas. Há sempre uma justiça de Deus que faz surgir a verdade perante a luz.
Subitamente, o padre entristece, porque se estão ilibados da acusação de assassínio, têm a pena agravada. Já não serão julgados publicamente e condenados a trabalhos forçados para toda a vida por crime de fratricídio e por assassínio. Serão simplesmente fuzilados sem julgamento por terem recolhido e escondido o poeta Ovid Panteleimon. É um crime mais grave que o homicídio.
Os polícias ligaram a telefonia e ouviu-se uma música langorosa. Rolavam agora na planície. Era a planície fértil à qual desciam os Acathistes - os não sentados - havia gerações, todas as Primaveras, para trabalharem a terra dos outros durante a boa estação. As aldeias ficaram vazias. As colheitas estão opulentas, maduras, doiradas. O frade Théophore tem um sentimento de bem-estar, porque a planície está fértil. E uma terra fértil faz bem ao olhar e é agradável aos olhos como o veludo e a seda. Théophore está orgulhoso da fertilidade da terra romena. É a terra da sua pátria, é o prolongamento da sua pessoa física, da sua própria carne. Uma carne que ressuscitará no Juízo Final, no Apocastase. Então, não só a carne e os ossos dos homens ressuscitarão e se conservarão de pé, mas também a terra, as árvores, todo o cosmos que o homem santificou e divinizou pela sua vida. Toda a terra romena ressuscitará no dia do Juízo Final.
Antes de 23 de Agosto de 1944, a Roménia era um país com fronteiras redondas como a Lua e o Sol. Depois da invasão e da ocupação, as províncias da Bessarábia, da Bucovina e uma parte da Dobroclgeia foram anexadas ao império moscale. O país está agora mutilado fisicamente, como também está mutilado espiritualmente. Tiraram a liberdade aos homens, suprimiram os seus direitos, acorrentaram-nos. E amputaram as fronteiras do país. No mapa, como na história, a Roménia é uma grande mutilada, um país inválido, ferido. E que mantêm cativo, acorrentado. Para aumentar as humilhações, a dor e o sofrimento das terras e dos homens, mudou-se mesmo o nome do país. Deturparam-no, proibindo que se escreva România. É o único país no mundo que conserva o seu nome, de origem romana. É isso mesmo que proíbem. É proibido, sob pena de prisão, escrever România, é obrigatório escrever Romínia com i, para suprimir a visível origem dos Romenos. Para que não se perceba que Romanos e Romenos é a mesma palavra, que designa aqueles que descendem de Roma.
Subitamente, o carro pára. Está-se numa grande cidade, uma cidade da planície. No centro, em frente do maior edifício, um palácio. Podia ser, em tempo normal, a Câmara Municipal. Agora, sob a ocupação, em 1964, o edifício maior de uma cidade não é o do concelho municipal, mas a sede da milícia e do P. C., o Partido dos Colaboradores.
- Fora! - grita o miliciano elegante que está ao volante, desligando a telefonia.
O irmão Acathiste e Sabina tentam abrir as portas. Mas elas continuam fechadas. Não sabem como fazer. É a primeira vez na sua vida que andam num carro de turismo.
-Saiam vocês os dois!-grita o miliciano.- Não compreendem o romeno?
Nem se dá ao trabalho de verificar que o frade e a mulher não sabem abrir as portas. Para eles, para os colaboradores como para o ocupante, que andam sempre de automóvel, não se admite tal hipótese.
As duas sentinelas de serviço à porta principal do enorme edifício chegam a correr. Abrem as portas. Sabina e o frade descem.
-Avancem, avancem, com mil diabos!
- berra o miliciano.
Empurram os presos para a enorme escada de pedra. Os milicianos à paisana vão atrás. As duas sentinelas também. Sobem a correr, têm muita pressa.
- Levem-nos depressa para o depósito. São os "sarnosos" por causa de quem telefonaram de manhã do Praesidium Supremo, dando ordem para os prepararem rapidamente. Dentro de cinco minutos, tudo tem de estar acabado...
O miliciano que está à entrada faz a continência para mostrar que compreendeu.
- Recebi ordens a respeito deles. Estávamos à vossa espera, os trajos estão prontos... Empurraram a mulher e o frade pelo enorme vestíbulo de mármore e depois por um longo corredor. Em frente de todas as portas há um plantão silencioso, armado de espingarda com baioneta. Ninguém fala, ninguém se mexe, excepto o miliciano que empurra os dois presos, por trás, sem brutalidade, mas com pressa. O irmão Acathiste e Sabina ouviram a palavra ("sarnosos". Compreenderam que se tratava deles. Depois, os milicianos disseram que tinham telefonado a seu respeito, da parte do Praesidium Supremo. Isso quer dizer que os dois milicianos à paisana e o carro pertenciam ao Praesidium Supremo. Na linguagem dos moscales, Praesidium é o equivalente ao Palácio Imperial. Aquilo deve ser muito grave. Falaram depois dos trajos. É um termo de gíria. Pode querer dizer que lhes vão pôr correntes, algemas, porque são esses os trajos dos prisioneiros. Talvez os centuriões tivessem empregado o mesmo termo ao ordenarem que se pusesse a Cristo a coroa de espinhos.
- Esperem aqui - ordena o miliciano. Bate a uma porta. E explica:
- São os "sarnosos" enviados pelo Praesidium Supremo. É preciso vestir-lhes rapidamente os trajos. O carro está à espera deles lá em baixo...
O irmão Théophore tem agora a certeza de que prenderam Ovid Panteleimon e de que a acareação se realizará no Praesidium Supremo - no Palácio Imperial dos ocupantes-;, em presença de algumas altas individualidades. É essa a razão da sua rápida transferência.
- Entrem, entrem!-grita um ajudante da milícia.
Está vestido com uma bata branca. Sabina e o frade são empurrados lá para dentro. É uma enorme sala com tectos muito altos, onde estão guardados, como num grande armazém, em cabides, milhares e milhares de fatos, fardas, casacas, chapéus altos... Reina um cheiro a desinfectante.
- Qual é a tua medida, frade? - pergunta o encarregado do depósito de fatos.- E tu, mulher, qual é a tua?
Nem o padre, nem a mulher o sabem. Nunca se deixaram medir. Não havia razão para isso. Para que serve, num convento, saber qual é o tamanho do seu corpo em centímetros?
- São uns atrasados - diz o miliciano com desdém.
Há vinte anos que os invasores moscales dizem aos Romenos que, ao ocuparem a sua terra, os fizeram sair da Idade Média e os civilizaram, que introduziram na Roménia as ruas asfaltadas e a luz eléctrica. Mesmo os H. L. M. são apresentados como um milagre realizado pelos moscales no país ocupado. Era exactamente como se o presidente da República Francesa, em 1964, tivesse a pretensão de ser maior que S. Luís, porque, sob a sua presidência, os Campos Elísios são iluminados elèctricamente e os Franceses têm aparelhos de televisão. É a forma de vida de todo o planeta que mudou. Os invasores moscales não têm qualquer mérito. Enquanto os colaboradores dos moscales construíram alguns quilómetros de estradas asfaltadas para seu próprio serviço e para passar com os seus próprios carros e enquanto edificaram no território aprisionado algumas fábricas, os canibais da África abandonaram as palhotas em que viviam para se instalarem em casas de betão armado, com água corrente e electricidade, sem serem ocupados pelos moscales. Foi todo o planeta que progrediu. E o progresso é, exclusivamente, obra dos países livres do Ocidente, que o difundiram generosamente pelo mundo inteiro, tanto entre os Indianos como entre os Moscales, como entre os Negros. Desde que o mundo existe, as únicas obras que os invasores estrangeiros realizaram acorrentando os povos e reduzindo-os à escravatura, foram as lágrimas e as maldições. Tais são as realizações de qualquer ocupação e as obras de qualquer colaboração com o ocupante estrangeiro. Progresso, nunca, porque onde não há liberdade não há progresso.
- Não há tempo para fazer fatos à medida deles, camarada - diz o miliciano.- Dá-lhe uma batina do stock. E deixa a mulher escolher o casaco e o vestido que lhe servirem. E depressa, dentro de cinco minutos devem estar a caminho...
O padre Théophore Acathiste é conduzido a uma galeria onde há, pendurados em cabides, dezenas e dezenas de batinas e fatos pretos eclesiásticos. Em prateleiras, há inúmeros chapéus de padres, de frades, de bispos. Dir-se-ia estar-se no vestiário de um grande concílio ecuménico. Essa impressão não é falsa, porque os padres, os metropolitas, os diáconos e os bispos cujos anterions, chapéus e casacos estão ali depositados, encontram-se reunidos no mais santo dos sínodos, no Céu, para onde foram como mártires. Nesse depósito da milícia estão empilhados os fatos daqueles que foram assassinados por se terem recusado a dobrar os joelhos perante os invasores e os seus colaboradores.
- Porque esperas, frade? - grita o encarregado. - Pega no que te agradar e veste-te depressa. É à custa do Partido... Isso acontece com frequência aos frades.
Como o irmão Acathiste hesita, o encarregado do depósito atira-lhe um anterion de seda. O padre entristece. É um hábito de bispo que morreu pela sua fé.
- Não queres experimentá-lo?
- É um anterion de bispo - responde o padre Acathiste. - Eu sou apenas padre.
- Então, procura outro!-ordena o encarregado.
Alguns metros atrás, numa outra galeria, onde estão os vestidos de mulher, Sabina começa a chorar e a lamentar-se. Também ela não ousa escolher, também ela, como o padre Théophore, passou doze anos nos campos de trabalhos forçados. Conhece a proveniência daquele vestuário, como se tivesse etiquetas de sangue. É o vestuário dos romenos mortos pelos moscales e principalmente pelos colaboradores. Antes de atirarem os cadáveres dos prisioneiros para a vala comum, despiam-nos e enterravam-nos nus. É preciso coragem para usar aqueles fatos.
O encarregado e o miliciano escolhem eles próprios. O padre põe a batina que lhe deram. Deixa a sua, que está velha, rota.
Sabina veste um casaco preto. Dão-lhe uma mala de mão. Depois, empurrando-os agora com violência, porque estão atrasados, conduzem-nos para o carro, que continuava à espera deles. Os dois milicianos estão à frente. O rádio do automóvel está a tocar. Nem mesmo olham para os prisioneiros. Se estão vestidos ou nus, isso não lhes interessa. Quando as sentinelas fecharam as portas de trás, o carro parte a toda a velocidade. Mal se encontra de novo ao lado do irmão Acathiste, Sabina agarra-se a ele, com dedos que parecem garras.
- Para onde nos levam, padre?
Nem um nem outro ousam entreolhar-se, para não verem os fatos dos mártires que foram obrigados a vestir. Cometem um sacrilégio, usando as relíquias dos mártires.
- Porque nos deram fatos novos?
- Certamente prenderam Ovid Panteleimon e levam-nos a Bucareste, para nos acarearem com ele.
- Continuamos a negar que ele esteve escondido no moinho? - pergunta Sabina.
- É demasiado tarde para negar. Diremos a verdade.
- Eles vão fuzilar-nos, padre.
- Tem confiança na Condottera dos Acathistes - diz o padre. - Mais dia, menos dia, temos de morrer. Não vale a pena assustarmo-nos muito.
Os prisioneiros calam-se. Não têm mais nada a perguntar um ao outro, nem nada a dizer. A palavra pertence agora, realmente, à Condottiera, à Mãe de Deus. Só ela pode alterar as coisas. Por isso, em vez de chorar e de perguntar ao padre tudo o que lhe passa pela cabeça, Sabina imita Théophore. Reza como ele, dizendo: ((Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim." Depois de algumas horas de caminho, já o Sol se punha no Ocidente, chegaram à capital. Ainda não era noite cerrada, mas as luzes de Bucareste estavam acesas como estrelas. Nem o frade nem Sabina tinham ainda visitado a capital. No entanto, apenas a verão de longe porque, ao chegar aos arredores de Bucareste, o carro volta à esquerda. Em vez de se dirigirem para o centro, atravessaram os bairros dos subúrbios, onde, ladeando as ruas sujas e mal iluminadas, apenas se vêem fábricas e casernas.
Eles pensam que os levam para uma fortaleza-prisão, daquelas que ainda se encontram nos arredores da cidade. É aí que fecham os grandes criminosos. Os da dimensão de Ovid Panteleimon, que cometeu o maior crime que existe, o de amar o seu povo e o seu país.
- Estamos a sair da cidade-diz Sabina. O carro afasta-se da cidade por estradas secundárias. Já não há casas nem de um lado nem do outro, nem casernas, nem fábricas. Em contrapartida, vêem-se arames farpados. E uma inscrição: Instalações militares.
É a carreira de tiro do exército", pensa o padre. Tem a certeza de que os vão fuzilar à noite. Nessa mesma noite estará no Céu. Doutra maneira, não os levariam para ali, para fora da cidade. É para os executar, porque, apesar de os homens terem mudado muito em dois mil anos, as execuções fazem-se sempre fora da cidade, como no tempo de Cristo.
"É aqui que vamos morrer, a leste de Bucareste", pensa o padre.
- Se nos querem matar, padre, porque nos terão vestido com belos trajos? - pergunta Sabina.
-Vão filmar a nossa execução - diz o padre. - Não vejo outra razão. Não é para nos executar secretamente que nos vestiram. Teremos direito a uma execução pública, em frente das câmaras cinematográficas e da televisão, em frente dos aparelhos fotográficos e na presença de jornalistas.
O padre sabe que Cristo também foi obrigado a mudar de fato antes de ser transportado para fora da cidade e executado. Também lhe deram um fato vermelho e puseram-lhe mesmo uma coroa na cabeça. A ele, ao miserável frade Théophore Acathiste, deram-lhe uma bela batina que pertencera a um santo mártir e confessor. É um trajo mais glorioso que um manto real.
O hierofrade já se habituou à ideia de morrer. Já não sofre. O que o envergonha atrozmente é o facto de ser fuzilado em público, em frente dos projectores e dos jornalistas. Não há dúvida. É por causa das câmaras que lhes deram os fatos. E o facto de morrer em público põe o irmão Théophore doente. Não se importa de morrer, anui, mas não em frente de espectadores, sob a luz dos projectores. A morte é o mais pudico de todos os actos que o homem pode realizar na vida terrena. Há os actos naturais, menos importantes que a morte, como por exemplo o amor, que os homens não podem realizar sem pudor, e sempre com os resposteiros corridos e as portas fechadas à chave. O pudor da morte é ainda maior. Nesse mesmo momento, o frade tem a consciência de que morrer diante de estranhos, num lugar público, é uma vergonha terrível, um grande sofrimento. Principalmente para um frade, porque um frade tem vergonha de todos osseus actos naturais. Por causa do pudor, um frade não deve comer nem mesmo um simples fruto em público; deve fazê-lo sempre sozinho ou em companhia dos seus irmãos. Nessa noite, não se trata de comer, mas de morrer em público, como Cristo, que foi, também ele, crucificado, e que agonizou em público; como os grandes criminosos, que, também eles, são executados nas praças públicas em frente das multidões...
- Padre, rezai por mim também, que eu já não posso rezar. Tenho um medo terrível.
Atravessam agora os campos. Nem uma luz, nem mesmo uma aldeia. A escuridão é total.
Subitamente, o carro sai da estrada. Passam então por cima de um prado. Sente-se, sob as rodas, a erva espessa, macia como uma almofada, sente-se mesmo o perfume da terra e o cheiro da erva, esmagada pelas rodas do carro. E quando a vista já está habituada à escuridão, eis que aparece de frente, a toda a velocidade e cegando-os com os seus grandes faróis, um outro carro. É uma furgoneta com bancos de madeira, igual às utilizadas no transporte de prisioneiros. O interior está iluminado e vêem-se dois homens sentados, ambos fardados. A furgoneta parou bruscamente, esmagando a erva do prado, a certa distância do carro onde vinham os prisioneiros. Um dos homens da furgoneta desce, deixando a porta aberta. Grita aos dois civis:
- Filhos de um cão, sabem que chegaram com mais de uma hora de atraso? Que é que encontraram na estrada?
É ordinário, violento, grosseiro. Vê se os dois presos estão no carro e grita-lhes que saiam. O frade e Sabina tentam de novo abrir as portas sem o conseguirem.
- Não passam de cães imundos!-grita o homem da furgoneta.
Abre a porta e puxa Sabina para fora como se fora um trapo e depois o padre, gritando-lhes:
- Fora, cães imundos, fora. Subam para a furgoneta. E depressa!
Empurra o irmão Acathiste com toda a força para a furgoneta. O frade tropeça na sotaina e cai ao subir. Antes que ele se levante, Sabina é também empurrada para a furgoneta, cujo motor não deixara de trabalhar. A viagem não durou mais que dois ou três minutos e pararam. Estavam em frente de uma escada.
- Subam rapidamente, depressa, mais depressa...
Pela primeira vez na sua vida, os prisioneiros viram-se perante um avião.
Segundos depois, o irmão Théophore Acathiste e a sua cunhada Sabina estavam dentro do avião, que tinha os motores a trabalhar. Uma hospedeira recebera-os à porta. Também ela estava furiosa, porque os esperava havia muito tempo. Tinham ordem para esperar por eles, de não descolar sem eles. E agora voltavam-se contra os recém-chegados. Todos olhavam os retardatários com ódio. A hospedeira indicou dois lugares ao frade e a Sabina. Eram os únicos que ainda estavam vazios. Os outros estavam ocupados por pessoas de todos os géneros: militares, mulheres e muitas crianças. Logo que Sabina e o frade se sentaram e que lhes amarraram os cintos, o avião levantou voo. No momento em que o avião descolou, a cabeça de Sabina caiu para trás. O seu corpo tornou-se mole, como um vestido. Desmaiara, não pudera aguentar mais. Achava-se exactamente como o seu cavalo branco, no dia em que voltava da cidade com o caixão do pai. O cavalo estava parado no meio da água, que lhe corria demasiadamente depressa sob os cascos, tomado de vertigens. E sem o socorro de Nicolas, que tinha entrado na água e lhe tapara os olhos, o cavalo teria caído. Sabina, neste momento, também sentira vertigens. Os acontecimentos haviam-se sucedido com demasiada rapidez. Demasiadamente inesperados, demasiadamente angustiosos. Não podia viver, tal como no meio da torrente. Foi tomada de mal-estar, como o seu cavalo branco no meio das águas que subiam e que corriam cada vez com mais força e cada vez mais ameaçadoras.
- A senhora está doente? - pergunta a hospedeira, que lhe oferecia bombons e que notara que Sabina não respondia.
Trouxe-lhe água. Um aviador fardado saiu da cabina de pilotagem e, aproximando-se do irmão Théophore Acathiste, disse-lhe:
- Durante todo o percurso, nem vós nem a senhora falareis a quem quer que seja. Compreende-me bem? Nem uma palavra. A ninguém.
- Compreendi - responde o frade.
- Nem mesmo à hospedeira. Se tiverem qualquer coisa para dizer, fazem-me sinal. Estou na cabina de pilotagem, ao lado do piloto... Entendidos?
- Sim.
E irresistivelmente, levado por uma força que não conhecia e contrariamente a todos os seus hábitos, ousou perguntar:
- Para onde nos levam?
- Para Frankfurt-am-Main - diz o aviador; e desapareceu.
Sabina bebeu a limonada que lhe deram. Não tinha comido durante todo o dia. Enquanto ela bebia o seu copo de limonada, o irmão Théophore pensou no nome de Frankfurt-am-Main. Esse nome tinha-se-lhe fixado dentro da cabeça como que marcado a letras de fogo. Não sabia nada ou quase nada acerca de Frankfurt-am-Main. Supunha que deveria ser uma cidade da Alemanha. Era mesmo certo que fosse o nome de uma cidade. Era tudo o que podia lembrar-se a respeito desse nome. No seminário do convento de Vrância, os noviços aprendem como devem proceder para alcançar o Paraíso. O irmão Acathiste fora um muito aplicado seminarista. Conhece todas as vidas dos santos, os Apotegmas dos padres, sabe o Saltério de cor, sabe as hierarquias celestes e a estratégia terrível que um frade deve usar nos seus combates... Em geografia, em história e em todas as outras ciências terrestres, o frade Théophore é ignorante, porque um frade é uma pessoa que abandonou definitivamente a Jerusalém terrestre e se meteu a caminho em direcção à Jerusalém celeste. Evidentemente que ainda não chegou ao Céu. Isso é certo. Mas não é menos certo que abandonou a Terra. Por essa razão, o frade não tem interesse em aprender as coisas que dizem respeito a um mundo de que ele já não faz parte...
Subitamente, o padre toma consciência de que, mesmo sabendo tudo o que um homem pode saber acerca de Frankfurt-am-Main, isso não lhe serviria de nada. Que utilidade poderia ter para ele, naquele momento, o facto de saber a quantos quilómetros se encontra Frankfurt-am-Main, o número dos seus habitantes, a sua superfície? Conhecer as suas riquezas, o seu passado, os seus tesouros? Isso não lhe serviria de nada. Seria uma ciência inútil, como todas as ciências profanas que ensinam como são as coisas e quantas existem, mas que não respondem nunca à pergunta "porquê?)) e "com que intenção?" O frade mesmo que tivesse aprendido tudo-não ficaria mais bem elucidado. Não sabe porque o tiraram da sua prisão, porque os vestiram, a ele e a Sabina, com os despojos dos mártires e porque os meteram naquele avião para os transportar a Frankfurt. E é isso, contudo, que é o essencial.
Os outros passageiros dormitam, lêem, fumam, bebem ou falam uns com os outros.
- Quer tomar mais alguma coisa? - pergunta a hospedeira a Sabina.
- Mais um copo de água, se faz favor.
- E vós, reverendo?
- Bem, hoje é dia de jejum. É a degolação de São João Baptista.
- À vossa vontade - diz a hospedeira, irónica.
- Porque estamos ainda no avião, padre? Para onde nos levam agora? - pergunta Sabina.
- Para Frankfurt-am-Main - responde o padre Théophore.
- Que é Frankfurt-am-Main?
- Uma cidade. Penso que é na Alemanha, mas não tenho a certeza...
- E porque nos levam para lá?
- Não sei. Só Deus o sabe. E a milícia. Em volta deles não há nenhum miliciano,
porque dali ninguém se pode evadir. É uma prisão volante. Um avião com as iniciais R. P. R., República Penitenciária da Roménia.
O SOL PÕE-SE NO OCIDENTE
O avião em que se encontram fechados o hierofrade Théophore e a cunhada descolou há uma hora. Voa em direcção ao oeste. A sua chegada a Frankfurt-am-Main está prevista para antes da meia-noite.
É já noite avançada do dia 29 de Agosto de 1964. A alguns quilómetros do aeroporto em que o avião dos prisioneiros aterrará encontra-se um edifício de vidro e betão dos Serviços Secretos americanos na Europa. Foi construído, como todas as casernas do Exército dos Estados Unidos da América, na orla de um bosque, em pleno campo, longe de qualquer habitação. É um edifício - igual a todas as construções administrativas dos E. U. A. na Europa-imensamente triste, asséptico. É uma edificação semelhante a um deserto electrificado. Dir-se-ia a estátua arquitectónica do deserto. É o próprio deserto reconstruído de vidro e de betão. As pessoas que trabalham nos escritórios geométricos, com oleado, néon e plástico, estão longe delas mesmas e longe dos outros homens, exactamente como num deserto. Um deserto onde o homem não só não encontra ninguém, como não se encontra a si próprio. O homem abandonou a sua pessoa, o seu eu, para passar a ser americano e funcionário, quer dizer, para se integrar, como num classificador, num escritório semelhante ao dos Serviços Secretos americanos em Frankfurt-am-Main. A tragédia da civilização americana é eles procederem como o faria um escultor genial que um dia, porque realizou obras-primas de granito e de mármore, se obstina a modelar a água com os mesmos instrumentos que lhe serviram para partir e modelar a pedra. Não quer, por orgulho, compreender que, com o martelo, fez realmente obras sublimes de mármore, mas que nunca poderá cortar e modelar a água. Os Americanos aplicam às coisas do espírito as mesmas técnicas, a mesma ferramenta e os mesmos métodos que lhes serviram para construir uma formidável civilização material. Cometem apenas um erro: tratam as coisas do espírito da mesma maneira que as operações bancárias, industriais ou comerciais. E isso é a mesma coisa que pretender modelar a água com o martelo e a faca, sob o pretexto de que esses instrumentos deram as suas provas no granito... Um dos seus homens é David Lincoln Goldwin, coronel dos Serviços Secretos americanos na Europa. Está agora no seu escritório- asséptico, perto do aeroporto. Em presença do coronel Goldwin encontra-se o poeta Ovid Panteleimon, vestido de novo, barbeado, com os cabelos bem cortados. O professor Ovid Panteleimon está há quatro dias no Ocidente. Evadiu-se depois do assassínio do moleiro Nicolas Acathiste. Já não tinha armário nem moinho para se esconder. E foi por causa disso que a sua fuga para o Ocidente resultou. Porque, para se conseguir uma coisa excepcional, é necessário estar na posição de um homem que tem a cabeça debaixo de água. Tem de emergir para respirar. Tem de vir ao cimo da água. O statu quo é a morte. Chegado ao Ocidente, à Austrália, o país livre mais próximo da Roménia, o poeta Ovid Panteleimon foi preso e levado para os serviços americanos de contra-espionagem. São os Serviços Secretos americanos que acolhem qualquer refugiado vindo de Leste. Nos escritórios especiais da Alemanha Federal, os fugitivos são tratados como uma substância química no decurso das análises de laboratório. Julga-se assim descobrir se os refugiados são realmente pessoas que já não podiam respirar nas repúblicas penitenciárias como os homens com a cabeça debaixo de água, ou se são agentes enviados pelos moscales. O resultado desse trabalho - porque é exclusivamente mecânico, como se se tratasse de uma análise clínica - é todos os espiões moscales passarem despercebidos e a maioria dos infelizes continuarem a viver sob o domínio dos moscales ou numa das suas repúblicas penitenciárias do Leste da Europa. com o professor Ovid Panteleimon as coisas passaram-se mais depressa. Era conhecido pelas suas obras, traduzidas em todas as línguas ocidentais. Era conhecido porque fora ministro e o maior poeta da Condottiera e da Roménia. Há quatro dias e quatro noites que Ovid Panteleimon está fechado nos escritórios dos Serviços Secretos e não tem o direito de falar com ninguém, excepto com os agentes da contra-espionagem americanos, que se obstinam totalmente-em fotografar a alma, os sentimentos e os sonhos do genial poeta, como se fotografam coisas materiais. Desde o momento que fotografaram a Lua-dizem para consigo, com o seu orgulho de técnicos geniais-, porque não conseguiriam fotografar o espírito do homem, os seus sentimentos religiosos, as suas inquietações metafísicas e os seus sonhos?
Nessa noite de 29 de Agosto, enquanto o poeta Ovid Panteleimon lia na Bíblia, que os americanos lhe tinham oferecido, juntamente com as roupas, os cigarros, as embalagens de chocolate e de pastilhas elásticas, a passagem do Evangelho que seria cantada no dia seguinte, 30 de Agosto, no ofício do décimo domingo de Pentecostes-e onde está escrito: "Em verdade vos digo, se tiverdes a fé do tamanho de um grão de mostarda, direis àquela montanha: "Desloca-te daqui para ali", e ela se deslocará, "e nada vos será impossível"-, nessa noite de 29 de Agosto levaram-no à presença de Goldwin.
- Professor, deu-nos a conhecer a história mais formidável que ouvimos nos últimos vinte anos que decorreram depois da Segunda Guerra Mundial... A sua história é terrível, pungente. Evadiu-se da República Penitenciária da Roménia. Está aqui, no mundo livre. The free world. Está mesmo rico, muito rico, porque a sua fortuna está iminente. A sua narrativa - as aventuras da evasão-render-lhe-ão a quantia...
- Já calculou as tiragens da narrativa que eu ainda não escrevi e já sabe quanto ganharei... com as vossas máquinas electrónicas que calculam quantos grãos de areia há na Lua, isso não me admira nada. Mas apesar do meu deslumbramento e da admiração sem limites que tenho por si, repito-lhe, coronel, que não me evadi para salvar a pele. Se fosse por causa da minha pele, já o teria feito há muito tempo... Evadi-me para salvar da morte e da prisão dois seres humanos, os mais caros que tenho na Terra, um santo frade e uma mulher, sua cunhada, que foram odiosamente acusados de um crime medonho. Dentro dalguns dias, amanhã ou terça-feira, serão julgados. Foi por causa deles que me evadi... Viajando pendurado, como um garoto de quinze anos, eu, um velho, debaixo dos vagões...
- É justamente por causa disso que a sua história terá um sucesso inaudito. Calculámos tudo. É o lado altruísta que é o elemento principal. O senhor, um homem de sessenta anos, arriscou a sua vida, desafiou perigos de uma forma inacreditável, atravessando campos de minas, saltando arames farpados... Sofrendo fome e sede durante cinquenta e quatro horas, pendurado debaixo de um vagão. Na sua idade é fenomenal. Vocês, os do Leste da Europa, espantam-nos com os vossos recursos de tenacidade, de resistência, de invenção... A vossa vida é incrível. O senhor, grande poeta, professor da Universidade, director de jornais, antigo ministro, viveu vinte anos num armário debaixo do nariz da polícia, em pleno centro de Bucareste, sob a ocupação estrangeira... É uma façanha sem precedentes. É um campeonato. Bateu todos os records estabelecidos até à hora actual... Até os do próprio Monte-Cristo.
- É tudo quanto fixou, coronel? - pergunta o professor.
- Fixo o essencial. Bateu o record mundial de resistência ao ocupante e ao invasor do seu país. É um record que será homologado na história do nosso tempo.
- Não é uma questão de campeonato, coronel. Não me evadi para bater o record mantido por Monte-Cristo nem para escrever um best-seller, mas para salvar a vida de dois seres, um santo e uma mulher, que estão num perigo de morte terrível. Não cometeram o crime de que são acusados e por que serão mortos. Suplico-lhe que me compreenda... Comparecerei brevemente no Tribunal Supremo e não me perguntarão se bati o record de resistência física conservando-me vinte anos dentro de um armário, ou ultrapassando as fronteiras, como um gangster profissional, nem se obtive uma grande tiragem na venda da narrativa das minhas aventuras... Não, coronel, ser-me-á perguntado se fiz tudo, ao chegar aqui, para o convencer a salvar a vida do frade e da mulher que serão, dentro dalguns dias ou dalgumas horas, condenados por um crime que não cometeram. Eu fui testemunha, vi do moinho que eles não mataram. Vi com os meus olhos como e por quem foi morto o moleiro Nicolas Acathiste, com uma facada nas costas... É o meu dever de testemunha que tenho de cumprir. É um dever para com a verdade do Céu e da Terra, um dever sagrado para salvar a vida do frade e da mulher.
- O senhor atira tudo para a metafísica, para o abstracto, para o irreal - diz o coronel Goldwin. - É o vosso defeito. Todos os povos do Leste da Europa têm o defeito de misturar e de embrulhar as coisas mais simples. Nunca serão capazes de se limitarem ao essencial. De serem Sachlich, como dizem os alemães.
-Ser SaMich, limitar-se ao essencial, é justamente salvar esses dois seres que a partir de segunda-feira, a partir de depois de amanhã, têm a vida em risco por um crime que não cometeram.
- Temos a confirmação da sua narrativa. Conhecemos perfeitamente a exactidão de tudo o que nos contou. Os jornais romenos relatam pela primeira vez um crime com grandes pormenores, descrevendo- como um padre-monge matou o seu próprio irmão, apunhalando-o pelas costas, no Dia da Festa Nacional, para lhe ficar com a mulher e para se vingar de ele ter feito doação do seu moinho ao Partido dos Colaboradores. É exacto o que nos contou. Vimos isso nos jornais, imediatamente a seguir à sua evasão. Sabemos que o frade e a mulher correm risco de morte. O senhor esteve escondido apenas dois meses no Moinho da Condottiera. Mas a sua descrição, gravada nos nossos magnetofones, da vida desses honrados camponeses de Vrância- os Acathistes, os não sentados-é dramática. Não se esqueceu de nada. É um poeta muito, muito grande ainda, apesar dos seus vinte anos passados num armário, o que o podia ter levado à decadência física e moral. A sua evasão confirma que, fisicamente, ainda está em forma, em plena forma. Um campeão mesmo. E a sua narrativa sobre a vida dos Acathistes, dos povos das repúblicas penitenciárias do Leste da Europa, confirma-nos a sua força moral. Não está diminuído por vinte anos de vida dentro de um armário. Espiritualmente também é um record. Os nossos oficiais do C.I.C. ficaram perplexos quando o ouviram. É a primeira vez que têm, da parte de uma só testemunha, um quadro completo dos sofrimentos dos povos nas repúblicas gregárias instauradas pelos moscales em metade do globo. O Governo dos Estados Unidos será ainda mais forte para continuar a luta armada por toda a parte e instaurar no mundo o american way of life. A sua narrativa confirma-nos, pois, que devemos continuar a guerra, a fim de podermos impor a nossa democracia... A sua narrativa ajudar-nos-á, encora] ar-nos-á a utilizar a própria bomba atómica, se for preciso, para estabelecer a liberdade americana em todo o mundo. A sua narrativa será difundida por toda a parte e distribuída gratuitamente aos nossos boys que lutam contra o domínio moscale na Ásia, na África, na América Latina. A sua narrativa tornará ainda mais fortes os nossos marines. Redobrarão de ardor no combate.
-Trata-se precisamente doutra coisa, coronel... É absolutamente necessário salvar...
- Logo que for publicada, a sua narrativa do Moinho da Condottiera será um best-seller... E o senhor tornar-se-á mais conhecido que uma vedeta da rádio ou da televisão, mais conhecido até que Kravchenko. Será ainda mais conhecido que Churchill. Sabe qual é a tiragem das memórias de Churchill?...
- A partir de segunda-feira, a partir de depois de amanhã, a vida daqueles inocentes, o frade e a mulher, está em perigo. Os colaboradores julgá-los-ão. E condenam-nos, coronel... É preciso salvá-los. Ajude-me! É isso a única coisa que conta, não a tiragem, não a coragem dos fuzileiros, nem o encorajamento para a utilização da vossa bomba atómica... Evitemos dois assassínios, que serão cometidos se nada fizermos... E o senhor pode fazer qualquer coisa. Representa a grande América, a formidável América.
- Take it easy, Mr. Panteleimon. Nós não esquecemos nunca, nunca, o essencial. E o que eu acabo de dizer é o essencial. Recapitulemos, se assim o quiser, porque eu preciso do seu consentimento para aquilo que nós decidirmos fazer.
- Fará alguma coisa pelo santo frade e pela pobre mulher?
- Claro que faremos. Os ianques são sempre pessoas eficientes, muito eficientes. Fazem sempre alguma coisa, quando a devem fazer. Recapitulemos, portanto. Tudo, desde o princípio. No domingo 23 de Agosto, quando o Partido dos Colaboradores romenos festeja o dia da invasão e a ocupação do país pelos moscales, ocupação que todo o povo romeno é obrigado a celebrar como a sua Festa Nacional, o senhor estava só no Moinho da Condottiera, no seu esconderijo.
- Não-diz o professor.-Sabendo que não havia ninguém em redor do moinho, nem na aldeia, porque todos os habitantes sem excepção têm de estar nas praças públicas a gritar em coro que estão felizes por terem sido ocupados pelos moscales e despojados das suas propriedades, felizes por terem sido organizados em rebanhos dentro da nova sociedade gregária, felizes por terem sido reduzidos à condição de animais de carga e por viverem numa sociedade de tipo "rebanho" com guardiões armados que têm plenos poderes de vida e de morte sobre eles... sabendo que não havia ninguém na aldeia, para me ver e denunciar, saí do meu esconderijo. Mesmo quando vivia em Bucareste, no armário, saía para fazer exercício sempre que tinha a certeza de que não havia ninguém que me visse. Foi por isso que, sabendo-me só no moinho, andei a passear lá por dentro. Espreitava pela janela, mas não ousava sair, porque sabia que era sempre muito perigoso. Pelas cinco horas da tarde ouvi um barulho de motor. Escondi-me por detrás dos reposteiros e vi o jeep da milícia. O meu amigo, o moleiro Nicolas Acathiste, voltava da Festa, vestido com um fato novo, com o trajo nacional, oferecido pelo Partido, para que ele o usasse no dia da doação do moinho. Zid Caracal, que guiava o jeep, desceu com Nicolas. Entraram juntos. Eu escondi-me e vi-os entrar. Nicolas estava cansado, moído de ter desfilado em frente da tribuna de Mavid Zeng. Eu via-os e ouvia-os muito bem do meu esconderijo. Sentia mesmo o resfolegar de Zid Caracal, porque ele estava muito perto de mim. Havia apenas um tabique de tábuas de pinho a separar-nos. Zid Caracal, essa personagem sinistra que fora, antes da ocupação, negociante de gado, saltimbanco de feiras, gatuno, e que passara a maior parte do seu tempo na prisão, esse criminoso de direito comum que os moscales entronizaram mestre da aldeia dos Acathistes e ajudante de Mavid Zeng, recusou sentar-se. Observava Nicolas, que acabara de beber dois grandes copos de água fresca. Zid disse:
"-Agora está tudo em ordem. Fizeste doação do teu moinho ao Partido. A posteridade já não poderá dizer que os colaboradores e os fundadores da ordem gregária pilharam o povo. Já não se poderá dizer que te espoliaram, que te roubaram e que te tomaram o teu moinho pela força. Agora, há a escritura assinada por ti e lida no estrado, em público. Estás contente, espero...
"- Estou contente, Vossa Alta Camaradagem- respondeu Nicolas. Parecia cansado. Tinha vontade de ficar sozinho, de se deitar. Mas não podia dizer a Zid Caracal que se fosse embora. O guardião entra onde estão os animais quando lhe apetece, mas os animais não têm o direito de lhe dizer que saia do seu estábulo.
"-Vês, Nicolas, como nós somos razoáveis? Quando cometemos um erro, não temos vergonha de o confessar e, depois, de o reparar.
"Zid Caracal abriu a janela. Olhou para fora e continuou:
- O principal, na vida, não é não cometer erros. É humano cometer erros. O Partido dos Colaboradores também erra. Seria estúpido da nossa parte afirmar o contrário. Mesmo os moscales, que são tão poderosos, cometem erros. É humano. O nosso mérito está em que os reparamos. Ouviste falar no caso dos pássaros da China? O Partido fez estatísticas, estabeleceu cientificamente que os pássaros do céu da China, esses bicos inúteis, comiam uma tão grande quantidade de grãos de trigo, de arroz, de milho, de painço e de outros cereais que poderiam ter alimentado algumas dezenas de milhões de chineses durante todo o ano. A fim de recuperar essas centenas de toneladas de grãos roubados pelos pássaros para os dar aos Chineses, o Partido dos Colaboradores de lá decretou a mobilização do povo e a morte de todos os pássaros que cruzam o céu da China. E a ordem foi executada. Nos meses que se seguiram, todos os pássaros foram exterminados. Esperava-se, pois, que o ano seguinte fosse de fartura, mas foi uma decepção. Os pássaros já não estavam na China para comer os grãos, mas três quartos das colheitas foram devorados pelos insectos, vermes e outros bichos minúsculos, que conseguiram sobreviver, uma vez que já não havia pássaros para debicar nos campos. E os bichos minúsculos comeram a colheita. Verificaram, portanto, o erro, e deram então ordem para que as aves sobreviventes voltassem, porque os pássaros faziam um trabalho indispensável para a agricultura chinesa, devorando os insectos e as larvas que formigavam pelos campos. Os Chineses não podem - apesar da sua disciplina e da sua tenacidade - substituir os pássaros, porque os insectos são demasiadamente pequenos, quase invisíveis. Amnistiaram, portanto, os pássaros. Ordenaram-lhes que voltassem para a China o mais depressa possível. Nós aqui fizemos a mesma coisa. Em 23 de Agosto de 1944, no dia da instauração da nossa república popular, exterminámos e eliminámos da sociedade um número desmedido de pessoas. Era por motivos de higiene social, de assepsia. Tu, moleiro, a tua mulher, o teu irmão frade e milhões doutros foram expulsos ou exterminados, como os pássaros da China. E nós amnistiámo-vos em 1956 e trouxemo-vos dos campos de trabalho. Hoje fomos ainda mais longe. Restituímos os bens confiscados, dizendo-vos que os dessem vós mesmos ao Partido, como prova de veneração. Foi o que tu fizeste com o teu moinho. Não achas que foi bonito leres no estrado a carta que dizia que não amas nada no mundo como o Partido dos Colaboradores e os moscales, que lhes ofereces tudo o que tens de mais precioso na Terra, o teu próprio moinho, e que imploras ao Partido que te dê a honra de aceitar? Viste que as pessoas tinham as lágrimas nos olhos? Viste quanto estavam comovidas? Não é verdade que estás contente?
"- Estou muito contente, Vossa Alta Camaradagem- respondeu Nicolas. Encostou as costas à parede, porque não se aguentava de pé, mas também não ousava sentar-se, enquanto o grande, o todo-poderoso Zid Caracal estivesse de pé.
"-Não conheces a decisão do Partido na China, meu pobre Nicolas. É uma obra-prima. Depois de os pássaros amnistiados voltarem ao território chinês, deram-lhes a saber que deviam comer apenas os vermes e os bicharocos pequenos prejudiciais à agricultura, e não tocar nos grãos, como antes da expulsão. Os grãos são para os Chineses, não são para os pássaros. Não sabias isso, Nicolas?
-Nada sabia, Vossa Alta Camaradagem.
"-Mas acreditas em mim, uma vez que to afirmo que é verdade?
"-Acredito, Vossa Alta Camaradagem... Claro que acredito. Mas não compreendo bem como é que o Partido chinês pôde dirigir-se aos pássaros, dizendo-lhes que comessem unicamente os bichos prejudiciais e não os grãos? Os pássaros não sabem ler, nem falar. Como tomaram conhecimento das ordens do Partido?
"-Foi pelo medo. Sabes, Nicolas, quando se tem medo não há necessidade de ler, nem de compreender. Quando se tem medo, obedece-se. Automaticamente. Sem mesmo tomar conhecimento da ordem. Isso compreendes tu, não é verdade? Compreendes o que eu quero dizer?
"-Sim, Vossa Alta Camaradagem.
"-E acreditas que os pássaros executaram a ordem de não tocarem num único grão e de se contentarem apenas com os vermes e os insectos?
"Nicolas Acathiste sorriu sem querer. O que Zid Caracal acabara de lhe contar era demasiadamente exagerado. Claro que era obrigado, como os vinte milhões de romenos de há vinte anos para cá, a dizer o que os ocupantes e os colaboradores com o ocupante dizem, mas sorriu.
"-Eu acredito em vós, Vossa Alta Camaradagem, mas duvido de que os pássaros, dada a sua natureza animal, comam unicamente os vermes e não toquem nos grãos por ordem do Partido. Compreendei-me bem, Vossa Camaradagem, não digo que não seja verdade... Talvez que os pássaros entendessem - tal como os homens-que vima ordem do Partido deve ser estritamente executada e que, sabendo que cada grão pertence ao Partido dos Colaboradores chinês, não devem tocar com o bico no mais ínfimo grão...
"-Aí enganas-te, Nicolas. Os pássaros não executaram a ordem do Partido chinês. São da mesma categoria que os inimigos do Partido, os padres, os moleiros, os intelectuais, os proprietários agrícolas, os comerciantes, os industriais, os... É isso, os pássaros. Uma categoria que não compreende nada de nada, que não é recuperável, que não pode ser integrada numa sociedade organizada. Verificou-se que os pássaros da China não são um rebanho disciplinado que pode ser comandado, como os carneiros, as acas ou os outros bovinos, como as crianças, as mulheres e os homens. E porque recusaram a disciplina do Partido e a vida na sociedade gregária, tipo "rebanho", que exige que se coma o que é dado e que se faça apenas o que é ordenado, os Chineses decidiram exterminá-los de uma vez para sempre. Desta vez não voltará a haver amnistia, porque não tornará a haver pássaros vivos na China. Os lavradores chineses receberão óculos-microscópio. Substituirão eles os pássaros. E também nós exterminaremos e mataremos qualquer elemento que possa vir a tornar-se indisciplinado. Todos os moleiros sonharão com o seu moinho. E nunca serão bastante disciplinados. Estás de acordo?
-Eu não sei bem. Eu sonhei toda a vida ser moleiro porque tinha fome. Havia séculos e séculos que tinha fome, sentia que a minha fome não era unicamente pessoal, mas hereditária. E sonhei, sonhei com pão, com polenda, sonhei com um moinho. Mas fui moleiro apenas alguns meses.
"-Foste moleiro alguns meses. E sonharás toda a vida voltar a sê-lo. Por causa disso, teu irmão matar-te-á... porque és um elemento prejudicial. Perigoso.
"-Meu irmão matar-me-á? - disse Nicolas. - Estais a brincar. O meu irmão um santo. Nunca matou uma mosca. Por que razão me mataria? Estais a brincar, Vossa Alta Camaradagem. No que diz respeito aos pássaros da China, tenho dúvidas e peço desculpa, mas quanto ao meu irmão estou certo de que me não matará. Nem a mim nem a ninguém. Daria a vida por quem quer que fosse. Não tirará a vida a ninguém, nem a um animal, nem a um homem. Nunca. É um santo.
-Olha para ele - disse Zid Caracal.- Eis que chega o teu irmão!...
"Nicolas Acathiste e Zid Caracal estavam perto da janela. Um ao lado do outro. Olharam para a estrada e viram o padre chegar.
"-Vês o teu irmão?
"-Claro que o vejo-respondeu Nicolas.-Vi que ele desfilou no cortejo dos tuberculosos, dos tísicos, como todos os padres. O desfile dos doentes acabou. O meu irmão regressa à aldeia. É natural, não é?
"- O teu irmão vem para te matar. Aproveitará estarem apenas vocês os dois na aldeia. Cravar-te-á uma faca nas costas. Olha, aquela mesmo, a tua faca. Cravar-ta-á entre as espáduas e tu morrerás. Será um bem para todos nós. A aldeia ficará limpa de ti, que estarás morto, do teu irmão e da tua mulher, que irão para a prisão por fratricídio assassínio. A aldeia dos Acathistes ficará limpa.
"-Estais a gracejar, Vossa Alta Camaradagem. Não sei onde quereis chegar. Porque dizeis que a minha mulher e o meu irmão irão para a prisão?
"- Porque te matarão. Não acreditas em mim?
"-Não acredito em vós, Vossa Alta Camaradagem.
"-Anda, vamos perguntar ao teu irmão se ele não vem agora, de combinação com a tua mulher, Sabina, para te matar. Vais mostrar-lhe a faca e vais perguntar-lhe se é verdade que ele regressa à aldeia mais cedo que os outros para te matar ou não...
"-com certeza que vou.
"Zid Caracal e Nicolas saíram para ir ao encontro do padre Théophore, a fim de lhe perguntarem se era verdade que ele queria matar o seu irmão moleiro.
"A meio da estrada, em frente do moinho, Nicolas parou e disse:
"-Vossa Alta Camaradagem, é estúpido que eu pergunte ao meu irmão semelhante coisa, é um sacrilégio. Eu sei que ele é um santo. Não é possível que eu pergunte uma coisa dessas a um santo...
- Não acreditas então que ele vem à aldeia, neste mesmo momento, para te matar?
"-O meu irmão é um santo, Vossa Alta Camaradagem. Um santo. Ele não pensa em matar-me.
"-Se ele não pensa em matar-te, pior para ele. Sou obrigado a fazê-lo eu próprio em seu lugar.
"Dizendo isto, Zid Caracal ficou um pouco para trás e cravou, com toda a sua força, a faca nas costas do moleiro Nicolas Acathiste, que caiu morto.
- Não saiu para prestar socorro à vítima?
- Claro que sim. Imediatamente após ter cometido o crime, Zid Caracal subiu para o jeep e desapareceu por detrás dos pinheiros, pela estrada que sobe em direcção ao Castelo da Vaca. Corri para junto de Nicolas. O seu coração tinha parado. Quis fazer qualquer coisa, ajudar o pobre, o admirável Nicolas Acathiste. Mas atrás de mim, na estrada, apareceram duas crianças. Eram Sava e Tinka Trifan, as duas crianças sarnosas da aldeia. Vi-as aproximarem-se do corpo do morto, auscultarem-lhe o coração e subirem em seguida, a correr, ao Castelo da Vaca para anunciarem a Zid Caracal o assassínio. Eu estava consternado. Nicolas Acathiste representava para mim a terra romena, com tudo o que ela tem de mais característico. Ele era o aldeão. Tinha sonhado toda a vida ter um moinho. Possuiu-o durante alguns meses. Depois, esteve catorze anos na prisão, justamente por causa desse moinho, e em 23 de Agosto de 1964, vinte anos depois, é morto. Sempre por causa do seu moinho. Ele, o pobre, que não chegou a ser moleiro um ano... Sofrer toda a sua vida e morrer por isso! Penso que Deus e a Condottiera, a Mãe de Deus, lhe darão, no Paraíso, um moinho com uma roda que girará para toda a eternidade!...
O professor Ovid Panteleimon chora. Enxuga as lágrimas. Tem um desgosto terrível. Amava os irmãos Acathiste, que simbolizavam, para ele, o Céu e a terra da sua pátria.
- Gravámos, desde o princípio, todas essas coisas - diz o coronel Goldwin. - É extremamente doloroso, mas é um pouco duro de engolir. Não duvidamos da autenticidade da narrativa. Pudemos verificá-la pelos artigos dos jornais romenos. Tudo é verdade. Mas para nós, Americanos, e mesmo para certos europeus, para os Ingleses, os Franceses ou os Belgas, essa história não é verosímil, porque não se passam coisas dessas connosco. E o homem apenas acredita verdadeiramente naquilo que lhe acontece, pessoalmente ou à sua família. Para voltar ao assunto, depois do crime, o senhor fugiu do moinho.
- Parti, certamente. O moinho estava, agora, nas mãos dos colaboradores. Já não havia Nicolas para me esconder. Corri para oeste, agarrei-me como um doido ao primeiro comboio, por baixo dos vagões, e cheguei a Viena. Os polícias austríacos entregaram-me aos americanos e estes trouxeram-me para aqui, para Frankfurt, para a vossa terra. E aqui, peço-lhes de joelhos, se for preciso, a vocês, Americanos, que são os donos de metade do mundo: salvem a vida daqueles dois inocentes, o padre Théophore e a viúva Sabina Acathiste. Dentro dalguns dias serão mortos. Salvem-nos, suplico-lhes. Podem fazê-lo. Zid Caracal é o assassino, vi-o com os meus olhos...
- É impossível intervir -diz o coronel Goldwin. - Só há uma forma de prestar declarações. É voltar para a Roménia e fazer o seu depoimento a Zid Caracal, que dirige o inquérito e que é ao mesmo tempo o assassino, mas isso não é conveniente.
- Há a O. N. U., a Liga dos Direitos do Homem, a Interpol, o Tribunal Internacional de Justiça... Tantas instituições internacionais...
- Nenhuma instituição internacional tem o direito de se imiscuir nos assuntos internos de um país. Um assassínio é um assunto interno. Qualquer país é livre de condenar, executar ou deixar fugir o assassino ou os assassinos. Qualquer lei que diga respeito ao crime é nacional. Não há leis internacionais. Se os Ingleses, por exemplo, tiverem vontade, uma noite, de deitar quinhentas pessoas ao Tamisa-e se quiserem deixar os assassinos sem castigo - é perfeitamente legal. Ninguém tem o direito de se imiscuir no assunto. O crime, o assassínio, o roubo, são assuntos nacionais. Cada estado é soberano. Nós, os Americanos, explorando o petróleo na Arábia Saudita, somos obrigados a ver como a polícia saudita corta a mão de um garoto por ter roubado um figo. É a lei deles. Temos apenas o direito de dar uma injecção ao desgraçado antes de lhe cortarem a mão, para que sofra menos. E só obtivemos esse direito passados anos e anos de negociações. Não podemos impedir os Romenos de condenar os amigos do senhor por um crime que eles não cometeram. Tal é a situação. Dura lex sed lex. Não serão os primeiros inocentes injustamente condenados. Nem, infelizmente, os últimos...
-Suplico-lhe, salve-os!
- Apenas prometemos o que podemos cumprir. É verdade que podemos muito, somos os donos do mundo. É verdade. E somos pragmáticos, práticos. Sachlich. Mesmo em religião e em metafísica, somos uns homens realistas e práticos. Cá, uma igreja é tão rica e tão bem organizada como um banco ou como um comércio de legumes. E para lhe dar uma prova da nossa humanidade e do nosso pragmatismo, porque temos essas duas naturezas, sendo ao mesmo tempo sentimentais e materialistas, eis o que fizemos por si e pelos seus amigos.
O coronel Goldwin pede pelo telefone que mandem entrar Mr. Oppenheimer. É um civil, exactamente como os outros homens de negócios americanos.
- Professor, Mr. Oppenheimer é o presidente do Free Committee. No entanto, esclareço-o de que se trata de uma organização privada dos Estados Unidos, não tendo nada que ver com a Administração ou o Governo.
O professor Ovid Panteleimon levanta-se e responde ao how do y ou do de Mr. Oppenheimer.
- O Free Committee é uma organização poderosa - diz o coronel Goldwin- e muito rica. É mais eficiente que as autoridades governamentais, por ser particular. É rica porque na América as obras de beneficência são isentas de impostos. E ao mesmo tempo que fazem beneficência, os grandes banqueiros fazem também bons negócios. Mr. Oppenheimer e o Free Committee encarregaram-se do caso que o preocupa. Há dois anos que fecharam um acordo com o Governo da República Romena, em virtude do qual, contra dez mil dólares depositados no agente da R. P, R., o vosso país liberta em quarenta e oito horas qualquer ser humano reclamado pelo Free Committee. A entrega das pessoas protegidas pelo Free Committee e o pagamento do seu preço em dólares efectua-se aqui, no aeroporto de Frankfurt-am-Main. com uma mão dá-se e com a outra recebe-se a encomenda...
- Qual encomenda?
- A pessoa pedida pelo Free Committee e que os agentes da R.P.R. nos cedem! comprámos até agora milhares de pessoas. As repúblicas penitenciárias do Leste europeu têm uma necessidade terrível de divisas. Verificaram que nós compramos em grande quantidade, regularmente e sempre a pronto pagamento, homens, mulheres e crianças, e são muito conscienciosos no que diz respeito às entregas. Vestem-nos de novo antes, de os mandarem. A embalagem conta muito como em qualquer comércio. Na hora presente, a R. P. R. ganha mais divisas com a venda de homens que com todos os outros artigos de exportação. Realizam cada ano quantias fantásticas, exportando mercadoria humana viva. A princípio, cediam um homem por vinte mil dólares. Era extremamente caro. Eram principalmente famílias americanas que compravam, que resgatavam o seu filho, a sua mãe, o seu irmão ou o seu pai. Era um caso sentimental, e os sentimentos custam caro. Logo que o Free Committee tomou conta do negócio, o preço de um homem baixou para metade. Já não se paga mais de dez mil dólares por cabeça. Isto convém aos Romenos, porque presentemente já não se trata de um pequeno comércio, de uma transacção de tempos a tempos, como antigamente. Agora é um grande comércio, um supermercado. O Governo romeno recebe dez mil dólares, cinco milhões de francos franceses. E que nos cede ele em troca? Um homem, uma mulher, ou um velho, que lá na terra deles não tem valor algum e não produz nada. Pior do que isso. É geralmente um homem que apodrece, improdutivo, numa prisão. Vendendo-o, ganham dez mil dólares. Ensinamos-lhes assim que a vida humana tem um preço, um grande preço. E que a vida humana vale o seu preço em dólares, porque cada vez que eles nos cedem um exemplar humano recebem em troca divisas fortes. Em dinheiro, bons dólares. Os nossos teólogos felicitaram-nos, dizendo que é dessa forma que vamos fazer compreender aos moscales que a pessoa humana tem um valor em dólares... E eles acabarão por deixar de tratar os homens como animais e de os matar. Pouparão a vida humana.
- Pouparão vidas humanas porque sabem que as podem vender ao estrangeiro -diz o professor Ovid Panteleimon.
Está profundamente perturbado. Há vinte anos que os colaboradores e os ocupantes moscales despojaram o povo romeno de todos os seus bens. Reuniram-no em rebanho, batem-lhe e fazem-no trabalhar, exactamente como se trata os animais, porque aos animais tira-se-lhes o leite, tosquiam-se, tiram-se-lhes os filhos, acasalam-se quando se quer e põem-se a pastar onde se quer. Depois, quando deixam de servir para os trabalhos e já não são produtivos, matam-se. E agora o professor fica a saber que os colaboradores dos ocupantes não só matam homens como animais, depois de os terem tratado durante toda a sua existência como tal, mas também os vendem ao estrangeiro, como se vende o gado. Vendem-se homens, em 1964, em plena Europa, sob as vistas do mundo inteiro. Por dez mil dólares cada cabeça humana. Preço fixo.
-Vendem homens como se vendem os animais. Exportam carne humana contra os dólares. Para o estrangeiro...
O professor Ovid Panteleimon chora, com grossas lágrimas, como uma criança.
- Complica as coisas inutilmente, professor- diz o coronel Goldwin.- É preciso
ser pragmático.
- Eles vendem-vos homens e os senhores dão-lhes dólares. Dólares com que eles aumentam a sua força, dólares com que eles compram as suas armas, para melhor guardarem os prisioneiros na República Penitenciária da Roménia.
- Engana-se, professor. Eles já não compram armas com os dólares que nós lhes damos. Verificando que nós somos correctos em negócios e que lhes compramos cada vez mais prisioneiros, ganharam confiança. com os dólares que recebem de nós, compram-nos - e sempre a nós - produtos de beleza para as suas mulheres, automóveis americanos, aparelhos domésticos, fatos... Construíram, na Roménia, cidades interditas, onde apenas vivem os dirigentes do país, num luxo e numa opulência que nenhum milionário americano poderia permitir-se. Evidentemente que o povo não tem o direito de entrar nessas cidades interditas, as cidades do P.C. Como nas Mil e Uma Noites. Em toda a volta, há campos minados, arame farpado, fossos de água, a fim de que o povo não veja o luxo fantástico dos colaboradores e não os apedreje. Há dezenas e dezenas de cidades interditas na Roménia. É isso que eles fazem com o nosso dinheiro. Assim, os dez mil dólares que nós pagamos por cada homem voltam para as nossas algibeiras com lucro. Comprámos o seu padre e a mulher do seu moleiro. Estarão aqui antes da meia-noite, no aeroporto de Frankfurt-am-Main. Não merece a pena agradecer-nos. Fazendo boas acções, fazemos também bons negócios. Está contente?
- Já não sei nada - diz o professor.- Eles foram vendidos como animais... Não posso sentir-me feliz.
- O senhor ainda está fora do mundo, tem muitas coisas a aprender. Ainda não está reintegrado na história. Na realidade, vê-se, de longe, que saiu de um armário. A propósito de armário, a televisão americana, que ontem redigiu um contrato exclusivo consigo, mandou fazer um armário idêntico àquele em que o senhor viveu vinte anos. Enviou repórteres a Bucareste. E mandou fazê-lo segundo o que eles viram lá e segundo as suas declarações gravadas em fita... Vão, deste modo, apresentá-lo à televisão com o seu armário, aquele em que viveu durante vinte anos. Vão fazer reviver toda a história. Autenticamente, porque amamos o realismo, a verdade e os documentos. E, além disso, o senhor será a vedeta dos espectadores... Bem o merece, professor. É um campeão... Pense bem: vinte anos num armário! É uma coisa inconcebível, única! Foi mais resistente que Monte-Cristo. E, ao mesmo tempo, estou contente porque vai voltar a ver as pessoas que encomendou. Refiro-me ao frade e à mulher. Vão conduzi-lo ao aeroporto para os receber. É melhor serem recebidos por uma cara conhecida... coitados! Mas serão felizes... como nós...
Ovid Panteleimon esconde o rosto nas mãos e reza: "Condottiera, Mãe de Deus e dos bem-aventurados, porque me conservastes vivo durante vinte anos naquele armário se tinhas apenas coisas terríveis para me desvendar na história? Porque não me deixaste, de preferência, morrer lá?"
E a Mãe de Deus disse a Ovid Panteleimon:
"Tu és o meu poeta. Tu és o poeta da Condottiera. O poeta do teu povo. Tu és o poeta de todos os não sentados, de todos os Acathistes da Terra. Conservei-te vivo durante vinte anos e fiz-te sair são e salvo do teu armário para que possas dizer como o servo de Job: "Fui eu só que fugi, a fim de testemunhar o que presenciei." E a fim de que, graças ao teu testemunho, os homens, que se sentem tão orgulhosos do seu progresso, saibam exactamente como estão no ano de 1964."
Na aldeia dos Acathistes, o rio corre paralelo à estrada. A estrada conduz ao moinho. As velas do moinho giram. A surda-muda está muda e surda. As crianças sarnosas já não têm sarna, ou melhor, têm-na. Há formas de sarna que não se sentem, como a ausência de Deus. Mas não se deixa de ter sarna.
Mavid Zeng continua a ir à aldeia. Cheira a morte, a sangue e a lágrimas. Cheira a podre, a esfolado, a crime e a assassínio.
As velas do moinho giram.
Do alto, cai o olhar de Maria a Panaghia, Maria a Theotocos, Maria a Condottiera, a mãe de todos os não sentados.
Virgil Gheorghiu
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