Biblio "SEBO"
Mais de mil anos antes de Sir Thomas Malory imortalizar a lenda do rei Artur e de seu Camelot, um reino emergiu das brumas da Irlanda - um reino fundado na coragem, na honradez e nos sonhos de um homem.
Conn, das Cem Batalhas derrotou o seu rival, Cathair Mor, e unificou a Irlanda sob uma só coroa. Os talentos do guerreiro Conn precederam a sua reputação como estadista e rei.
Depois de fixar o trono em Tara, Conn dedicou-se à criação de uma legião de guerreiros chamada de Fianna, à qual se deve uma era gloriosa de proezas admiráveis.
Pela primeira vez na história da Irlanda, homens ajoelharam-se diante do seu rei para tomar os votos da cavalaria, conquistando o coração e o espírito do povo irlandês durante séculos sucessivos.
Mestres no amor e na guerra, Conn e o seu Fianna ainda hoje são celebrados na poesia, na lenda, na canção, bem como no romance A Conquistadora, a história de um rei poderoso e de uma jovem que, com o seu amor, o levou a pôr a prova tudo aquilo em que acreditava...
Kevin O’Artagain entrou na gruta desembainhando a espada com as mãos tremulas. A vergonha misturou-se com o medo quando recordou o juramento feito perante o seu rei. Por menores que fossem as probabilidades de vitória, a sua arma nunca devia estremecer em suas mãos. Se os seus camaradas de armas o vissem agora, ficariam incrédulos dos seus membros vacilantes. Tinham-no visto atacar selvagemente homens e feras, de dentes cerrados e sorriso gozador nos lábios. Mais alto do que a maioria dos seus adversários, não era homem com que muitos gostassem de se deparar na escuridão.
E ali estava ele no corredor sombrio da gruta, sentindo um formigar no couro cabeludo enquanto o suor lhe escorria por entre as tranças, gelado e serpenteante. O medo brilhava em seus olhos; as sombras projetadas pelas tochas agigantavam-se nas paredes.
Continuou, avançando lateralmente, como um caranguejo aleijado, sempre de costas para a parede. Uma tocha muitíssima grande ao fundo da gruta incendiou-se com o estalido de uma pequena explosão. Virou para baixo a sua arma, saltou para o centro do corredor e agachou-se atrás de uma pedra que chegava ao teto. A luz exuberante revelou o que o aguardava. O vazio negro que sentia no estômago aumentou de volume, ameaçando deixa-lo aterrorizado.
O espectro perseguia-o silencioso, ágil, traçando sombras funestas nas paredes de pedra. Um capuz de carrasco escondia-lhe as feições. Olhos verdes faiscavam nas pontas do capuz como uma ilusão ótica, levemente vista e depressa desaparecendo. A espada maciça na mão enluvada da demoníaca aparição aproximou-se da rocha atrás da qual Kevin se acocorou, num convite medonho. Kevin fechou os olhos e pensou nos quatro homens que ali tinham entrado antes dele. Quatro guerreiros mortos atirados para o exterior, onde apodreceram como legumes nauseabundos sobre o musgo do bosque.
A fúria começou a acumular-se, tomando o lugar do medo paralisante. Começou no dedo pequeno do pé e subiu por ele acima como uma planta já adulta. Forneceu aos seus membros o amparo de que precisavam para devagar se endireitarem, permitindo-lhe deixar o abrigo improvisado e enfrentar o demônio. Um sorriso temerário entortou-lhe os lábios. Empunhando a espada com as duas mãos, avançou e aparou o primeiro golpe perverso da arma brandida pelo seu inimigo.
A volumosa capa negra que embrulhava o monstro dançava a cada investida; Kevin sentiu-se pequeno. A destreza que exibia como uma medalha de honra só servia para transformar o martírio num pesadelo projetado em câmara lenta no espaço mal iluminado. A criatura atingiu-o, rasgando mais um pouco de carne macia, deixando à vista músculo, tecido e uma torrente de sangue que engrossava continuamente.
A tocha ao fundo da gruta faiscou quando Kevin O’Artagain, guerreiro do rei, se baixou numa tentativa de impedir que o movimento rápido da espada lhe furasse o esterno e deixasse no peito um fogo impiedoso. Num gesto de desespero, agarrou no aço fino da lâmina. Apertou-o com a força necessária para que ele lhe cortasse os dedos da mão direita enquanto lia a inscrição gravada no cabo de ouro polido - Vingança.
A espada soltou-se das suas mãos com facilidade. A última imagem que ficou marcada no seu cérebro moribundo foi a da criatura que se encontrava à sua frente retirando-se com uma graciosidade rara e caiu sobre o abdômen. O último som que ouviu antes dos seus olhos se fixarem na expressão da morte foi a doce ondulação da gargalhada de uma menina.
O dia estava cinzento, tão sombrio e calmo como os rostos que enchiam o salão da entrada. As nuvens que se acumulavam no céu do fim da tarde prometiam chuva; a tensão pairava no ar e não parecia querer desaparecer tão cedo. Mer-Nod franziu o sobrolho, vincando mais as rugas que lhe marcavam a testa, enquanto contemplava a rara tristeza que se abatera sobre a corte naquele dia melancólico.
Não se ouviam vozes arrebatadas discutindo. Não se ouviam gargalhadas, música, as histórias dos poetas. Uma espessa camada de apreensão pousava sobre as línguas das pessoas, reduzindo centenas de vozes a um murmúrio. Os poetas sentavam-se aos pés de Mer-Nod, identificando-o como o seu chefe apesar do seu silêncio. Encostadas às paredes de teixo macio, as harpas continuavam por tocar, como brinquedos esquecidos. Pelo salão circulavam criados que enchiam as taças de cerveja e os ouvidos de boatos. Com a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados numa prece muda a Morigu, um malabarista sentado no chão de pernas cruzadas embalava as nove maçãs douradas que tinha no colo.
Mer-Nod puxou para trás o cabelo longo e escuro que lhe caía sobre os ombros. Madeixas grisalhas emolduravam-lhe o rosto, suavizando a severidade do seu nariz aquilino e dos seus olhos escuros e penetrantes. Um lábio inferior carnudo contradizia a solenidade do queixo proeminente, onde despontava a barba grisalha de um dia. Assentou um pé na cadeira e olhou por cima da multidão.
Uma pequena onda de ansiedade atravessava o ar agreste como as lâminas reluzentes enfiadas nas bainhas dos homens, que se empertigavam em todos os pontos de observação do salão. Nos seus rostos queimados pelo sol desenhavam-se as linhas finas que só o vento sabe gravar. Gibões justos sem mangas expunham corpos sólidos e musculosos sem um grama de gordura.
Os guerreiros espalhavam-se pelo salão de entrada, alguns fazendo a corte às jovens, outros conversando em voz baixa com camponeses e pastores. Quando atravessaram o salão, foram recebidos com palmadinhas nas costas e palavras de estímulo da multidão que abrira caminho para lhes dar passagem. Eram os membros do Fianna, os protetores e adoradores de Erin. Guerreiros e caçadores, que percorriam a ilha fazendo amor e criando lendas a cada hora dos seus dias errantes. E agora muitos deles morriam, um a um, os seus corpos mutilados apodrecendo na umidade dos bosques.
Mer-Nod suspirou e fechou os olhos, sabendo que assim ninguém ousaria dirigir-lhe a palavra. Todos partiriam do princípio de que ele estava compondo. Como gostaria de agradar-lhes! A sua mão ansiava por uma pena. Que história vitoriosa haveria sobre a vitória de Kevin sobre o monstro! Já fazia planos para a métrica da peça, os dedos longos martelando o compasso no braço de carvalho da sua cadeira.
À porta, o burburinho subia de tom e as pessoas empurravam-se umas às outras numa grande excitação, dando passagem ao rei, que ia participar com eles na vigília. Os rostos fechados de tanta inquietação abriram-se em sorrisos encorajadores, não se atrevendo a mostrar medo ao homem que com eles se misturava.
As suas passadas eram longas e seguras. Substituíra o traje de cerimônia por uma túnica curta, semelhante à usada pelos seus soldados. Com um metro e oitenta, tinha a altura mínima requerida para entrar no Fianna. O seu corpo era musculoso e uma graciosidade leonina caracterizava cada movimento. Um ou outro fio branco crescia obstinado na cabeleira escura e cacheada.
O seu rosto atraía as atenções. Olhos azul-escuros rodeados por uma espessa franja de cílios espreitavam por trás da madeixa de cabelo que ameaçava escondê-los. O nariz era reto, não fino o suficiente para ser considerado aristocrático. Uma barba escura cobria-lhe o queixo, em volta dos lábios cheios. A boca alargava-se num sorriso juvenil que deslumbrava os seus cortesãos; uma boca que se reduzia a um traço quando comandava seus homens numa batalha.
Não era homem de esconder as suas emoções, e se o encostavam à parede seus olhos azuis escureciam, brilhantes e impenetráveis como pedras preciosas. Chamavam-lhe Conn, das Cem Batalhas e varrera a ilha de Erin como o fogo em uma floresta, unificando e conquistando até ter toda a região sob o seu jugo.
Mer-Nod permitiu que um sorriso raro se desenhasse nos seus lábios. A caminhada de Conn rumo ao trono foi interrompida por apertos de mãos, palmadas nas costas e um ou outro beijo a uma criança obrigada por alguém a encostar o rosto ao seu.
Conn piscou um dos olhos a Mer-Nod quando chegou à cadeira do juiz.
- Para quê esse ar taciturno, poeta! Renuncio aos seus impostos em troca de um sorriso genuíno.
Em pé diante do trono, ergueu os braços cumprimentando o povo. De imediato o salão se calou. Apenas o choro estridente de um bebe rompia o silêncio.
Todos os olhares se concentraram em Conn, que declarou:
- Os mensageiros aproximam-se pelo norte. Devem chegar dentro da próxima hora. Trazem as notícias que aguardamos. - As vozes subiram de tom, depois voltaram a silenciar-se enquanto ele deixava a estreita plataforma e caminhava para trás e para frente diante do trono. - Vejo muitos rostos assustados. - Parou para lançar à multidão um olhar acusador, mas logo retomou as suas passadas. - Puseram-nos perante um grande desafio... um dragão ávido dos nossos espíritos. Desejoso de destruir os nossos homens, mas também as nossas vontades. - Conn virou-se para a multidão, as mãos tocando levemente os quadris. - A questão é... vamos deixá-lo ser bem-sucedido nas suas tentativas?
Na fila da frente, uma mulher mordeu nervosa o lábio inferior, e dois soldados entreolharam-se, de pé no chão abaixo do rei.
Uma voz anasalada, por cima da multidão, fez-se ouvir:
- E a resposta é...
Todos os olhos, incluindo os de Conn, se viraram para ele. Acima da parede via-se uma prateleira estreita e empoeirada, nessa plataforma um anão agarrava um trapézio pendurado no teto. A multidão suspirou em uníssono quando o pequeno homem deixou graciosamente o seu poleiro com os joelhos dobrados em volta da barra do trapézio. De pernas para o ar, quase bateu com a cabeça nas dos homens mais altos do Fianna. Terminou a sua frase com uma careta:
-... não, pelo menos enquanto eu for vivo!
A tensão quebrou-se e as gargalhadas encheram o salão. Um sorriso largo estampou-se no rosto de Conn, que avançou para o meio da multidão.
Quando o anão voltou a passar por ele, Conn puxou o trapézio e virou para si o corpo do acrobata.
- Em nome de Behl, que esta fazendo, Nimbus? - perguntou.
Tendo perdido o chapéu devido à precariedade da posição em que se encontrava, o bobo arrancou um do homem que estava mais próximo.
- Excelência, que maravilhosa surpresa!
A multidão rompeu às gargalhadas enquanto Conn torcia o trapézio com uma lentidão agonizante.
- Rendo-me! - gritou Nimbus. - Estes súditos leais de vossa excelência podem ficar revoltados se eu despejar em cima das cabeças deles a sopa de feijão que comi ao almoço. - Vários homens e mulheres fugiram correndo da terrível ameaça.
- A única coisa revoltante aqui é você - retorquiu Conn, puxando o anão pelas orelhas até o ter de novo à sua frente.
Nimbus encostou-se ao ouvido de Conn e segredou:
- Receei que estivesse perdendo a atenção deles, excelência. Só quis ajudar.
Conn respondeu no mesmo tom:
- Sempre é melhor do que fingir que estava enforcando-se como fez da outra vez. Eu quase tive uma apoplexia. - Sem pré-aviso, empurrou o trapézio, que balouçou de novo fazendo Nimbus guinchar.
Conn gritou à multidão:
- Embora me custe admiti-lo, o bobo tem razão. O nosso espírito tem de triunfar.
Desviou-se para evitar que Nimbus lhe puxasse pelo nariz quando o trapézio voltou a passar por ele. Os aplausos não se fizeram esperar.
Um homem, identificado como talhante pelo avental amarrotado e ensanguentado, ergueu a voz e a taça:
- Civilizamos este país! - As aclamações transformaram-se num bramido.
Um soldado bem-apanhado de olhos castanhos juntou a sua voz ao coro:
- Somos ou não o povo que empurrou Eoghan Mogh, o inimigo de Erin, para sul, para uma terra tão negra e árida como a sua alma? - Os malabaristas começaram a atirar as suas maçãs douradas ao ar, uma a uma.
- E os romanos estão ou não receosos de pôr os pés nas nossas praias, com medo que os enviemos de volta, em lágrimas, às suas deusas da guerra? - gritou uma camponesa esquelética.
Dois dos poetas começaram a contar em uníssono a história de Macha Mong Ruad, a amazona de cabelos cor de fogo, filha de Red Hugh. A sala alterou-se, os olhos brilharam de esperança. Por todo o salão ergueram-se taças em brindes às proezas de Kevin, à generosidade de Conn e aos sonhos de uma nova nação baseada na honra e no cavalheirismo.
Conn esperou que o trapézio parasse de balançar, arrancou dele o pequeno homem e com cuidado colocou-o de pé no chão. Caminharam juntos até o trono, mas Nimbus parou uma vez para puxar o cabelo de um soldado louro mal-encarado que o seguia com olhos semicerrados enquanto esfregava a cabeça dolorida.
- Para que fez aquilo? - perguntou Conn enquanto se sentava no trono.
- Não gosto de O’Caflin. O olhar dele não me inspira confiança.
- Já que é tão bom para avaliar pessoas, diga-me, qual é a sua opinião sobre mandarmos Kevin lutar? - perguntou Conn, afagando a barba.
Nimbus encarrapitou-se no braço do trono e afagou o queixo numa imitação perfeita do rei. Desviando-se da mão distraída de Conn, respondeu:
- A criatura é apenas um homem e não um monstro ou um gigante.
- Um homem capaz de matar sozinho, quatro membros do Fianna? Não me faça rir, Nimbus.
- Além disso - continuou Nimbus como se ninguém o tivesse interrompido, - creio que o homem é aliado de Eoghan Mogh, enviado para antagonizá-lo e nos distrair a todos.
Mer-Nod, que tinha ouvido tudo quando avançou para se encostar à parede, disse:
- Eoghan Mogh fugiu para o Sul como uma criança, para junto dos que o criaram. Não vai dar-nos trabalho durante algum tempo.
Conn soltou uma gargalhada de desprezo.
- Há quem diga que ele construiu um reino no Sul e planeja atacar Tara. No estado em que o deixei, não deve conseguir arranjar ouro nem para erguer uma tenda.
Nimbus deslizou do trono e, com um ar travesso, começou a arrancar penas do manto de Mer-Nod.
Conn fechou os olhos e recostou-se no trono.
- Conta-me uma história, Mer-Nod. Estou cansado e preciso ouvir falar em coisas gloriosas.
Quando abriu a boca para responder, Mer-Nod sentiu alguém puxar repetidamente pela parte posterior da sua túnica. Virou-se e lançou a Nimbus um olhar furioso quando o viu reaparecer com uma mão-cheia de penas vermelhas e douradas.
- Que os deuses o amaldiçoem, raquítico. Larga a minha capa!
Conn sorriu e Mer-Nod, que se orgulhava da sua aparência digna, começou a correr em volta do trono, atrás de Nimbus que ria à gargalhada.
Uma corneta tocou no exterior do baluarte , interrompendo o ímpeto assassino de Mer-Nod, bem como qualquer outra atividade no salão. As mãos de Conn fecharam-se, implacáveis. Nimbus deu meia volta, retomou a sua posição contra a parede e, com esforço, deu ao seu rosto uma expressão indiferente. Várias maçãs douradas caíram ao chão quando um malabarista se virou para a porta. Os poetas calaram-se no meio dos seus versos, com as suas histórias abortadas no meio da batalha. As crianças que por ali corriam foram imobilizadas pelas mãos das suas mães.
Conn levantou-se enquanto as duas partes da porta maciça se abriam de rompante. Um véu protetor baixou para lhe esconder os olhos. Como um prado soalheiro escurecido por uma grande nuvem de trovoada, o rosto dele fechou-se numa mascara ilegível.
À porta estavam um homem e uma mulher cobertos de suor e imundície. Eram corredores, atletas lendários capazes de dar a volta à ilha de Erin num só dia.
A mulher saiu e quando reapareceu, após vários minutos depois, a causa da sua demora tornou-se dolorosamente evidente. Voltou conduzindo um cavalo para o meio da sala. No seu dorso malhado, Kevin O’Artagain fizera a sua derradeira cavalgada. Um soluço abafado irrompeu da multidão e uma jovem caiu ao chão num desmaio fatal.
O corpo de Kevin jazia perpendicular ao dorso do cavalo com uma espessa camada de sangue colada ao seu cabelo ruivo. As manchas cor de ferrugem contrastavam vivamente com a palidez da morte. A cabeça retorcia-se para um lado; os olhos fitavam o vazio enquanto o cavalo avançava para o centro do salão. Os que estavam mais próximos estremeceram e recuaram um passo, imaginando o que teriam, aqueles olhos aterrorizados, visto pela última vez. A borda esfarrapada de uma ferida abria-lhe as costas no ponto em que a espada tinha deixado o seu coração. Vários membros do Fianna pensaram ter ouvido o eco do riso de Kevin nos corredores das suas memórias. Com as mãos tremulas, um soldado que observava o sinistro desfile esvaziou a sua cerveja de uma só vez.
Apenas o som do choro acompanhou Conn, que desceu do estrado pasmo com o que via à sua frente. Os seus olhos eram farrapos de gelo azul. Quando se aproximou do cavalo, estendeu as mãos e embalou a cabeça do seu querido amigo. Inclinando-se como para sussurrar qualquer coisa, Conn emitiu um ruído que começou como um urro na sua garganta. Os cabelos da nuca de Nimbus eriçaram-se com o grito de batalha que exteriorizou o desgosto de Conn.
O salão espocou numa atividade febril. Dos lábios cerrados dos homens do Fianna que rodearam Conn saltaram pragas negras e sangrentas. Conn virou-se para o soldado mais próximo e murmurou qualquer coisa que tirou toda a cor do rosto do homem. O homem correu e Nimbus seguiu-o de imediato.
De braços erguidos, Conn silenciou o salão:
- Eu próprio vou matar o miserável. - Os seus lábios retorceram-se numa careta. – Sean O’Finn, foi preparar a minha montaria. Mer-Nod será o regente até o meu regresso.
O silêncio do salão transformou-se em tumulto. Protestos em voz alta misturaram-se aos gritos de encorajamento, numa algazarra ensurdecedora.
Mer-Nod saiu do seu lugar junto à parede e dirigiu-se a Conn, tentando fazer-se ouvir por cima da cacofonia de vozes.
- Conn, está louco! Não podemos dar-nos ao luxo de te perder!
Com os olhos brilhando, Conn replicou:
- Não me vão perder. Quando regressar a Tara, trarei comigo a cabeça do monstro que assassinou Kevin. Homem ou fera morrerá às minhas mãos.
Sean O’Finn regressou. Desviando o olhar, disse a Conn:
- A sua montaria está pronta. Há mantimentos para cinco dias.
Nimbus também reapareceu, arrastando com dificuldade uma espada maior do que o seu corpo.
Conn pegou na espada e ergueu-a no ar. A sua voz trovejou pelo salão:
- Por Kevin, por Fianna, por Erin, a criatura tem de morrer! Embainhando a espada, correu porta fora e saltou para o dorso do enorme garanhão que o aguardava. Incitou o cavalo a galopar e atravessou intempestivo o portão do baluarte.
Nimbus permaneceu no meio da multidão, onde quase não se dava por ele. Uma mão pequena e encardida subiu para abrandar o latejar das suas têmporas.
O céu desolado começou a render-se a uma escuridão ainda mais desoladora enquanto Conn se afastava a galope da fortaleza. Farrapos de nuvens deslocavam-se no horizonte, empurradas por impulsos nervosos do vento frio. Sem o calor do Sol, a unidade do dia acentuou-se à medida que a luz foi desaparecendo ao oriente. Nas árvores, as folhas estremeceram anunciando a noite que se avizinhava. O clarão roxo do crepúsculo permeou a paisagem, transformando os campos verdes num veludo escuro. Os únicos sons que cortavam o anoitecer cada vez mais profundo eram as pancadas cadenciadas dos cascos do cavalo de Conn e o grito solitário e distante de uma andorinha-do-mar. Quando Conn saiu da estrada e se meteu por um terreno encharcado, começou a cair um chuvisco. A última claridade do dia desapareceu enquanto ele punha o cavalo em trote e adentrava no arvoredo mais espesso pelo emaranhado de trepadeiras e folhagens.
Aconchegou a capa contra si enquanto o cavalo avançava com cuidado por entre a mata. A fúria corria em círculos dentro da sua cabeça. Reagia ao gelo do ar como se outra pessoa estivesse com frio e fosse seu dever agasalhar esse mortal. A imagem de Kevin sem vida parecia gravada no seu cérebro por um ferro em brasa. O Kevin outrora exuberante e irascível, imóvel e a escorrer sangue. O seu corpo teria que ser amortalhado, entregue ao seu clã pelo Fianna como uma triste recordação do juramento feito quando se juntou às suas fileiras: Juraram aceitar a morte ou a incapacitação de Kevin sem pedir satisfações e sem vingança, exceto a que os seus irmãos guerreiros quisessem levar a cabo. A escuridão da raiva borbulhou nas veias de Conn. Mal saiu da floresta e entrou num prado, mandou o cavalo galopar.
A chuva caía e a Lua começava a sua lenta descida quando chegou a uma clareira e desmontou. A maçã que trazia na mochila foi parar à boca do cavalo e Conn sorriu pela primeira vez desde que deixou a fortaleza. Silent Thunder atravessara o oceano no porão de um navio de carga para se tornar o seu cavalo de batalha. Passou as mãos pelo negro acetinado da garupa do animal. Nem uma mancha a estragar a solidez da sua beleza. Enrolou as rédeas num arbusto e deixou-o pastar.
Sacudindo a chuva do cabelo, vagueou pela floresta recolhendo ramos e folhagem suficientes para proteger a sua pessoa e a fogueira da água que caía obstinada. Estendeu as mãos para as chamas, a fim de aquecê-las, e pensou que seria bom ter ali Nimbus para quebrar o silêncio. Memórias de outras florestas acumularam-se em seu redor; o calor de outras fogueiras aqueceu as suas mãos. Os espíritos dos cinco mortos rodearam-no, rindo e tagarelando, planejando batalhas futuras. Durante uma fração de segundo, o seu nariz detectou o aroma de carne de veado assado ao ar livre.
Pôs-se de pé, amaldiçoando as suas fantasias. Pareceu-lhe que a floresta se agitava à sua volta e voltou a sentar-se perguntando a si mesmo se dormir ia ser difícil ou impossível. Com os dedos tensos esfregou um bocado de queijo num naco de pão. O fogo da sua ira ardia demasiado fundo para dar espaço ao medo. Desmascararia o assassino encapuzado, dar-lhe-ia uma morte impiedosa. Embrulhou-se na capa e preparou-se para dormir. No dia seguinte àquela hora alcançaria a gruta. Tinha de estar em forma. Mergulhou no abismo de um sono felizmente desprovido de sonhos.
Quando o Sol nasceu na manhã seguinte, Conn e Silent Thunder seguiam já rumo ao norte. O dia amanhecera com uma brisa quente do sul a afagar-lhe as feições, como se quisesse apagar as rugas de preocupação gravadas na sua testa. Cotovias e andorinhas cantavam num céu da cor do azul delicado de um ovo de tordo . De vez em quando uma nuvem, branca e felpuda como o ventre de um cordeiro após o nascimento, atravessava devagar a sua tela serena. À medida que avançava para norte, o terreno tornava-se mais montanhoso, e sob os cascos do cavalo o tapete verde-esmeralda dava lugar a pedras e arbustos raquíticos.
O Sol surgiu com a forma de uma gloriosa bola laranja por detrás do horizonte ocidental, tão diferente da despedida mal-humorada da tarde anterior. Tinham chegado às colinas. Os contrafortes eram íngremes, mas seguiam até os montes e planícies que rodeavam a enevoada montanha de Tara.
A escuridão envolveu a paisagem. Conn acendeu uma tocha para iluminar o caminho. Pedras traiçoeiras espalhavam-se pelo chão, dispostas a fazer qualquer cavalo tombar. Os olhos de Conn mal discerniam as reentrâncias obscurecidas nos rochedos onde ele sabia que se escondiam pequenas grutas. Pelos seus cálculos, a gruta maior que procurava devia ficar a menos de uma légua de distância. Um fio de suor escorreu-lhe pela nuca.
Parou Silent Thunder, fechou os olhos e entregou-se aos seus pensamentos. Um jovem desesperado por se juntar ao Fianna fizera aquele mesmo percurso para conquistar a criatura que já tinha dado a três membros do grupo mortes sangrentas. Foi o único a voltar. A sua descrição histérica de um gigante envolto numa capa que retirou no último minuto a ponta da espada da sua garganta apavorada e a libertá-lo não tardou a chegar aos ouvidos de Conn. Justamente o que a fera pretendia, pensou com amargura.
Ainda de olhos fechados, tentou imaginar o rosto de cada um dos homens que morreu naquela gruta. Cinco valorosos guerreiros desaparecidos, deixando em suas mãos a tarefa de vingar o seu sangue.
Abriu os olhos e conduziu o cavalo a trote, soltando mais uma vez o grito de batalha que tanto arrepiara Nimbus. Reverberou pelas encostas um eco trovejante. Sabia que se alguém ou alguma coisa estivesse à sua espera, aquilo seria suficiente para morderem a isca. O vento estimulou a tocha presa em sua mão e o clarão ajudou-o a guiar o cavalo usando apenas os joelhos.
Mesmo à frente, a uns duzentos passos de distância, viu no rochedo uma abertura grande e convidativa. Um brilho verde derramava-se no chão e no ar. Conn abrandou o cavalo, cada músculo um feixe rígido, tenso.
Gritou:
- Maldito, além da minha tocha a única coisa que vai ver são as labaredas do inferno!
Encolheu o braço e atirou a tocha para a entrada da gruta. Virou o cavalo e avançou paralelamente ao escarpado . Quando deixou de ver o clarão verde por cima do ombro, desceu do cavalo e soprou devagar para o seu focinho. Puxou a espada maciça e continuou subindo a escarpa a pé, dando cada passada com cuidado para que as pedras que se soltassem não deslizassem. Parou uma única vez para olhar para trás e trepou até chegar ao topo da rocha onde se encontrava a gruta.
Guardou a espada na bainha e, de joelhos, passou as mãos pela superfície rochosa. De baixo não veio qualquer som. Junto ao pico da colina encontrou o que procurava. Os seus joelhos, feridos apesar do tecido das calças, pousaram de repente num retalho de erva macia. Escavou-o com as mãos e descobriu os contornos de um alçapão improvisado que consistia numa tábua de madeira coberta com terra e plantas. Inclinou-se para trás, os lábios retorcidos num sorriso de desagrado. Naquele ponto de observação era possível ver qualquer cavaleiro solitário que saísse das planícies, antes mesmo dele entrar nas montanhas em volta da gruta. Cada vez se convencia mais de que estava lidando com uma criatura inteligente e talvez gigantesca.
Pousou uma mão na espada embainhada. Levantou um milímetro o alçapão e viu uma luz tênue na caverna localizada por baixo. Os seus olhos azuis escureceram quando puxou o alçapão para o lado e tombou dolorosamente, silencioso como um grande gato caído em cima de uma pedra impiedosa.
Deu consigo acocorado ao fundo de um compartimento grande e vazio. O único ruído que cortava o silêncio era o da água pingando cadenciadamente das estalactites . Atrás dele havia uma simples parede de pedra. À direita, distinguia-se a custo uma passagem que conduzia às entranhas da gruta. Junto à entrada principal tinham sido colocadas na parede duas filas de tochas responsáveis pelo clarão assustador que se via do exterior. E entre Conn e essa entrada erguia-se o inimigo, ainda olhando para a noite, sem saber que havia um intruso na sua propriedade.
O rapaz que regressara aterrorizado daquele lugar não tinha mentido. Uma capa enorme e negra cobria o demônio da cabeça aos pés, com uma altura talvez duas vezes a do próprio Conn. Uma leve marca nas costas de um cabelo marcava o ponto onde acabava a cabeça e começava o corpo. Os olhos de Conn ficaram suspensos da espada cintilante presa nas mãos da criatura.
Para pôr fim àquela confrontação bastava correr em frente sem avisar e enterrar a espada no meio das costelas da criatura. Mas o mesmo código de honra que o levara a não enviar mais do que um homem para derrotar uma só criatura deteve-o. Puxou a espada, deixando que o centro vermelho da sua fúria regressasse e fizesse brilhar com o seu calor o punho dourado que segurava.
Recuou um passo.
- Vire-se, demônio cruel, para ver as chamas do inferno que te prometi. - A sua voz passou de murmúrio a rugido.
A criatura virou-se tão depressa que vacilou, perdendo algo do débil domínio do seu equilíbrio. Graças às tochas que ardiam por trás, Conn viu que a capa não era opaca, mas sim quase transparente. Piscou os olhos, convencido de que havia algo de errado por debaixo dela.
Mas não podia perder tempo com suposições. Quando a criatura recuperou o equilíbrio, com a espada que segurava nas mãos desferiu em Conn um golpe que lhe acertou no ombro e quase o atirou ao chão. Conn grunhiu, aparando a segunda investida com facilidade. A sua fúria culminou numa raiva que lhe percorreu o corpo como pura energia. Mirando o centro da capa negra, a sua espada não sentiu o contato da carne. Voltou a investir enquanto tentava calcular onde ficava o coração do gigante.
Ainda tentando equilibrar-se, a criatura atacou de novo procurando atingir o pescoço de Conn. Conn desviou-se com um salto, enquanto a lâmina açoitava junto à sua garganta, e respondeu ao ataque do gigante com outro. As espadas colidiram novamente e o clangor amargo do metal ecoou pela gruta. Conn lutava como um louco.
Desviou-se inteligentemente, mas foi surpreendido pela reação do gigante, rápida como um relâmpago. A lâmina inimiga cortou-lhe o braço esquerdo, fazendo o sangue correr. A dor cegou-o, mas sentiu o sangue ensopar a manga da sua túnica. Recuou para junto da parede enquanto a criatura avançava, a cada passo aproximando mais do seu rosto a lâmina reluzente. Os golpes de Conn sucediam-se sem parar, não permitindo à criatura mais do que defender-se das suas investidas. O esforço suplementar que lhe foi exigido para atingir um peito tão acima da sua cabeça deixou-lhe os braços doridos, pesados que nem chumbo. A parede atrás de si tornou-se uma armadilha, um túmulo.
O gigante inclinou-se para frente e pela primeira vez Conn distinguiu o faiscar de uns olhos verdes por debaixo do capuz. Brandindo a espada como se fosse um pesado martelo, a criatura acertou na orelha de Conn, que sentiu a cabeça dar voltas. Agarrou com força a espada enquanto ouvia sinos tocar ao seu redor. A criatura avançou para o golpe final.
Conn reuniu as forças que lhe restavam e enfiou a espada no que estava à sua frente. Esperando perfurar o joelho ou a coxa do gigante, foi com espanto que sentiu a espada penetrar em carne sólida. A criatura balançou e Conn aproveitou a oportunidade para apontar a espada para o alto, bastante acima da sua cabeça, onde voltou a sentir o contato da carne e do osso. O cheiro do sangue e do medo chegava-lhe às narinas.
Numa dança macabra o gigante rodopiou, a capa enrolada nas pernas. Conn pôs-se de joelhos e viu, espantado, a criatura tombar, dividindo-se ao meio. Um grito estridente foi abafado pelo estardalhaço da espada caindo no chão, produzindo um eco que reverberou pela gruta e pela cabeça dolorida de Conn.
Demasiado incrédulo e exausto para se mexer, Conn viu a metade inferior do gigante engatinhar para fora da volumosa capa e fugir noite afora, deixando apenas um rastro de sangue assinalando o seu trajeto. De olhos escancarados, Conn rastejou até à parte remanescente. A capa envolvia a protuberância inerte que restava.
Estendeu um braço e pegou numa das extremidades da capa. O sangue quente que a ensopava colou em seus dedos. Com cuidado a puxou e descobriu que tinha à sua frente o rosto de um menino.
Uma palidez horrível tingiu o rosto do rapaz. O seu pequeno peito subia e descia por baixo da capa. Com dedos descrentes, Conn friccionou a pele translúcida que se esticava por cima das maçãs daquele rosto, tentando desesperadamente descobrir a idade do menino, mas em vão. O polegar de Conn seguiu os círculos escuros por debaixo dos seus olhos. Um murmúrio de protesto escapou-lhe dos lábios entreabertos.
Conn puxou para trás o tecido fino e deitou o rapaz no colo para lhe examinar as feridas. A sua espada tinha rasgado a face posterior de um ombro ossudo, entre a coluna e um braço, falhando o coração por pouco. O sangue escorria abundantemente do ferimento. A mente de Conn, ainda debaixo do choque, agia independentemente das mãos, que rasgavam tiras de pano da capa para estancar o interminável fluxo sanguíneo.
Não era um gigante guerreiro o que jazia inerte nos seus braços. O rapaz era uma das duas personagens que atuavam juntas com uma coordenação de movimentos tão perfeita que nenhum membro do Fianna tinha percebido que eram partes diferentes. Se tivesse, não sobreviveria para contar a história. Conn enxugou o suor da testa; os seus dedos amarraram a ligadura improvisada. Queria o menino vivo. Sentado em cima dos calcanhares, sentiu um fio de sangue escorrer lentamente do golpe fundo que tinha no seu próprio braço. Esticou-se e apanhou a espada que estava a menos de meio metro de distância e observou, maravilhado, aquela verdadeira obra de arte. A sua mente detectou qualquer coisa de familiar. Gravada no punho, viu uma palavra cujas letras, grandes e irregulares, não correspondiam à delicadeza com que os rubis lá tinham sido engastados.
- Vingança - murmurou.
O rapaz inspirou estremecendo. Era inconcebível a facilidade com que a manejara. O peso da prata martelada provocava dores que subiam pelos braços exaustos de Conn. Passou uma mão pelo braço do rapaz. Era um braço magro - macio liso e estranhamente musculoso, comparado com as faces encovadas e as omoplatas , que se projetavam em ângulo reto por cima da ferida.
Cheio de atividade, Conn pegou no que restava da capa e embrulhou a espada, que prendeu ao cinto. Não havia maneira de saber se a metade inferior da criatura ia viver o suficiente para obter ajuda de alguma fonte desconhecida. O seu primeiro golpe de espada bem-sucedido devia ter atingido a barriga da pessoa em cima da qual o menino se encontrava.
Pegou o rapaz no colo como se fosse um bebê. Ele encostou a cabeça ao ombro de Conn; o cabelo curto tocou a barba de Conn e tinha um perfume fresco como as águas da nascente que borbulhavam no fundo da gruta. Uma onda de indignação invadiu Conn quando sentiu sob os dedos o familiar cabedal puído do vestuário igual ao seu. Havia cinco cintos de cabedal em volta da cintura do jovem, cada um marcado com o nome do clã de um homem que agora repousava sob o memorial dos seus antepassados. Quando Conn se dirigiu à abertura da gruta, as suas mãos apertaram os ombros e as pernas do rapaz. O rapaz escondeu o rosto na túnica de Conn. Um leve gemido escapou-lhe da garganta. Conn segurou-o com menos força.
Desceu o caminho estreito até ao ponto onde Silent Thunder aguardava, solto. Colocou o rapaz em cima do dorso do cavalo e depois montou, sentando-se atrás dele. O topo da cabeça do rapaz raspou o queixo de Conn, surpreendendo-o com a sua altura.
A lua pálida foi-se escondendo atrás do horizonte enquanto Conn conduzia Silent Thunder para sul, rumo a uma floresta de árvores gigantescas. O tapete espesso de agulhas secas abafava-lhes os passos. Avançaram por entre as árvores até depararem com um ribeiro inundado pelas chuvas de verão que corria por cima de musgo espesso. Os gemidos do rapaz tornavam-se mais frequentes a cada movimento convulsivo do cavalo.
Conn desmontou o pequeno corpo e deitou-o na margem macia, verificando com os dedos tensos o estado das ataduras. O rapaz emitiu um suspiro baixo quando Conn o encostou a um monte de terra. Cílios cor de fuligem subiram e desceram na face sardenta do rapaz, depois pararam. O polegar de Conn afagou a pureza gaélica daquele rosto. No queixo macio ainda nem sombra de penugem se via. O menino era muito mais novo do que os rapazes que apareciam no Fianna com o coração repleto de sonhos. Mais novo do que Kevin era quando se ajoelhou diante de Conn para jurar vassalagem . O rapaz virou o rosto para a mão de Conn; a sua boca tocou a palma calejada. Conn afastou a mão. Por mais jovem que ele fosse, tinha idade suficiente para matar.
Com o cantil de couro na mão, Conn deu alguns passos ao longo do riacho até encontrar uma saliência de terra. Debruçou-se para enchê-lo de água fresca e apetitosa.
Um sentido mais forte do que o ouvido ou a visão fê-lo virar a cabeça. Deitou-se de lado enquanto um punhal assobiava rente à sua cabeça. Estendeu um braço poderoso, mas só apanhou ar. O rapaz voou por cima dele e precipitou-se de cabeça nas águas rápidas do ribeiro. Conn saltou para dentro da água gelada. As suas mãos procuraram sob a superfície, agarraram o gibão do rapaz e puxaram-no para cima. O punhal de Conn, molhado e letal, brilhava no punho fechado do rapaz. Conn pegou-lhe no pulso e torceu-o, soltando a arma, que foi cair na margem enlameada. As unhas afiadas que arranharam o braço ferido de Conn desencadearam a sua fúria.
Conn cerrou os lábios e empurrou o rapaz para debaixo de água. Puxou-o, a cuspir e a balbuciar, e quando voltou a mergulhá-lo um punho fechado acertou no seu queixo. De novo puxou o rapaz, que praguejava contra a temperatura gélida da água. Pouco a pouco Conn percebeu que as mãos que agarravam o seu pescoço o faziam por desespero e não mais com o intuito de matá-lo.
Empurrou o rapaz para o lado como se ele fosse uma boneca de trapos. Sem forças para se aguentar de pé, o rapaz ajoelhou-se e desapareceu debaixo da água. Conn arrastou-se para longe do ribeirinho e atravessou, cambaleando, a clareira.
Olhou para trás e viu a superfície plana do rio quebrada apenas por uma pequena área de espuma branca. Hesitou, pois não queria mostrar-se ansioso por saber se o rosto bonito do diabrete tinha voltado para o buraco de onde saíra. A água corria veloz, no local onde o rapaz desaparecera.
Praguejando, Conn mergulhou no riacho. As suas mãos ficaram presas no cabelo do rapaz. Puxou-o para fora da água e arrastou-o para a margem lodosa. Tossindo fortemente, o corpo inerte ganhou vida e enroscou-se em volta dos tornozelos de Conn. Os dentes do rapaz cravaram-se nas canelas de Conn e os dois rebolaram para longe do rio praguejando. Conn enterrou os joelhos nos ombros do rapaz, imobilizando-o, e levantou a mão para lhe dar uma surra.
Parou para respirar fundo. O gibão do rapaz tinha-se desabotoado. A camisa de linho estava colada como uma segunda pele aos montes e vales do peito ofegante preso entre as suas coxas. Praguejou em voz baixa quando viu uns seios pequenos, mas incontestavelmente femininos. A criança instável dominada pelo seu corpo era uma moça e não um rapaz. O juramento do Fianna que prometia tratar bem todas as mulheres ecoou na sua cabeça, fazendo-o sentir simultaneamente medo e vergonha.
O seu corpo descontraiu-se quando sentiu os músculos da moça ceder. O rosto dela era um paroxismo de dor e as lágrimas corriam, traçando uma linha suja entre os seus olhos e as orelhas. Conn limpou-lhe a face com as costas da mão, perguntando a si mesmo como era possível tê-la tomado por um rapaz. Levantou-se e pegou-a ao colo. O pequeno corpo afundou-se quando Conn lhe acariciou o cabelo cortado rente.
A voz dela, abafada pelo ombro dele, mal se ouviu quando pronunciou três palavras roucas:
- Onde está ele?
Conn falou com suavidade, apesar de as suas mãos a apertarem com mais força:
- Se refere ao que estava com você, ele morreu.
Conn fitou o horizonte cada vez mais claro, na esperança de ter contado a verdade. Duvidava de que um mortal sobrevivesse a tamanho ferimento. Por instantes pensou regressar aos montes em volta da gruta e procurar o corpo do rapaz, mas nem queria arrastar a moça consigo, nem se atrevia a deixá-la ali sozinha. Ela tinha se contraído ao ouvir as palavras de Conn, que imediatamente se certificou de que o punhal continuava em cima da lama a alguns centímetros de distância.
- Por favor, solte-me - disse a moça, erguendo a cabeça, mas evitando o olhar dele.
- Para quê? - perguntou Conn. - Para me atacar de surpresa a algumas léguas daqui? - Sacudiu a cabeça. - Não, obrigado. Já te vi manejar objetos afiados e não anseio voltar a vê-lo.
- Quero sepultá-lo. Não tive oportunidade de enterrar o meu pai nem a minha mãe. - Uma lágrima solitária deslizou-lhe pela face, mas as palavras saíram com frieza e calma.
Mudou-a de posição para olhá-la de frente, mas a moça continuava a evitá-lo.
- Mas quem, pelo sangue dos deuses, era o seu pai e a sua mãe? Quem foi suficientemente cruel para dar à luz uma alma assassina como a sua? - Lançou-lhe a isca, na esperança de encontrar a verdade por entre as falhas que pressentia na reserva forçada dela. Como a única resposta que obteve foi o silêncio, perguntou: - Que idade tem? E quem era aquele homem?
Um estremecimento atravessou-a.
- Tenho mil anos de idade. Que tem a ver com isso?
O olhar de Conn acompanhou a curva insolente de um rosto suficientemente cândido para pertencer a uma sacerdotisa druida e quase acreditou no que ela disse. Apertou-lhe o pulso, pressionando aquela carne jovem. A pele em volta dos lábios dela embranqueceu, mas a moça nem pestanejou. Conn semicerrou os olhos.
Subtilmente, Conn deixou de fazer força. A sua mão deslizou pelo braço da jovem, pelo cabedal gasto do gibão. Com a palma da mão, sentiu a pele úmida por cima da veia que pulsava no pescoço dela. Quando os seus dedos lhe acariciaram os cabelos minúsculos da nuca, a moça não pôde deixar de estremecer.
- É uma mulher ou uma criança? - perguntou Conn numa voz amável.
Um silêncio de pedra foi à resposta à sua pergunta.
Passou um dedo pela curva do pescoço dela.
- A sua pele é estranhamente lisa para alguém com tanta idade.
A moça virou-se e olhou a floresta. Conn praguejou, a sua paciência começava a esgotar-se, a evaporar-se numa onda de fúria e exasperação. Deixou as suas mãos entrarem no gibão puído. Endireitou-a como se ela fosse uma marionete e o calor que a indiferença dela o fez sentir desceu inadvertidamente pelo seu corpo.
- Ficou claro que tem idade suficiente para matar os meus homens e roubar-lhes as roupas. Se nem o seu rosto nem os seus lábios me querem dizer qual a sua idade, vou procurar debaixo do gibão de Conor, O’Murchada, as minhas respostas.
A moça continuou imóvel, de costas voltadas para ele. O seu ar indefeso intrigava-o. Empurrou-a para baixo. Encostou os dedos à ligadura escondida pelo gibão; e ficaram sujos de uma água cor-de-rosa.
- Esta sangrando outra vez. Quer se matar?
Os olhos arrogantes dela fitaram os olhos azul-escuros dele.
- Não, Conn. Quero matar você. - Os lábios dela retorceram-se num sorriso.
Conn sentiu-se hipnotizado por aqueles olhos brilhantes, cor de esmeralda - uns olhos de mulher, amargos e revoltados, engastados num rosto de criança. Teve outra vez uma incomoda sensação de familiaridade. Sem tirar os olhos dela, foi até ao cavalo e tirou um pedaço de corda da mochila. A moça não ofereceu resistência quando ele lhe amarrou as mãos.
- Sabe quem eu sou - disse ele. - Quando resolver dizer quem é lhe solto. Entretanto, gostaria que pensasse bem no que vai lhe acontecer quando chegarmos à minha fortaleza.
A moça continuou impassível. Empertigou ligeiramente o queixo numa atitude de desafio enquanto fitava, muda os olhos azuis de Conn.
- Vai ser julgada pelo assassinato de cinco homens, Conor O’Murchada, Ryan O’Brosnahan, Brian MacRuairc, Kyle MacRuairc, que tinham a infelicidade de pertencer ao mesmo clã, e Kevin O’Hartagain. Deve conhecer os nomes. - Apontou para a cintura dela, onde se viam os cintos de cabedal que a condenavam sem serem necessárias palavras. - Se eu conseguir que os MacRuaircs não te arranquem o coração antes do julgamento, o tribunal público determinará a sua culpa. Se decidirem que é culpada, sou eu que dito a sentença.
Ajoelhou-se ao lado dela, com a mão teimosa a segurar-lhe no queixo.
- Lhe deixarei então escolher entre dois merecidos castigos. Ou a entrego aos clãs dos homens que matou (procurou no rosto dela algum vestígio de emoção), ou mando lhe decapitar. - A moça estremeceu imperceptivelmente, o único sinal de que ouviu as suas palavras.
Sem dizer mais nada, Conn amarrou-lhe os pés e colocou a capa em cima dela. O sol flutuava no horizonte quando a exaustão adormeceu aos dois. O sono de Conn foi leve, agitava-se ao menor som.
Quando acordou, tinha as roupas secas pelo sol da tarde. Sacudindo a dormência do sono, pôs os braços em volta dos joelhos e observou a moça que dormia a seu lado. O repouso tinha dado ao seu rosto uma expressão serena e tirado cinco anos à sua idade, fosse ela quem fosse. Os cílios espessos e compridos fechavam-se sobre as faces sardentas, protegendo-o do ódio que iria encontrar naqueles olhos quando ela acordasse. Conn sentiu uma inesperada ponta de desejo quando ela bocejou em silêncio e se aconchegou na capa dele. Por instantes lamentou não ser outro tipo de homem.
Sacudiu a cabeça, incrédulo, ao pensar na inocente e implacável assassina que partilhava aquele corpo. Um rubor não natural, pois ninguém podia culpar o sol do seu aparecimento, surgiu no rosto dela. Conn passou a mão suavemente por uma das faces da moça. A pele macia pareceu quente aos seus dedos calejados. Os olhos abriram-se e fitaram os seus, depois voltaram a fechar-se como se a vista não lhe tivesse agradado.
- Água? - gemeu ela.
- Ia buscar água para você quando tentou empurrar-me rocha abaixo com o meu próprio punhal encostado às costas.
Conn levantou-se. Voltou com um cantil cheio de água cristalina e sentou-se no chão. Com um braço em volta dos ombros da moça, levantou-a e encostou o gargalo úmido do cantil aos lábios dela. A moça encostou-se em Conn e bebeu com sofreguidão. Com um canto da sua túnica, Conn enxugou os pingos que tinham escapado à sua boca sequiosa. A moça fechou as mãos amarradas. Disfarçou os seus tremores tossindo de vez em quando, mas Conn percebeu que embora o sono a tivesse libertado da raiva, não lhe tirara o medo. Conn bebeu a água fresca, que lhe aliviou a garganta seca.
- Temos de seguir viagem. A sua ferida está infectando. Precisa ser tratada por um dos meus médicos.
- Não seria mais conveniente que eu morresse pelo caminho? - perguntou a moça num tom ardente e com um olhar frio.
Conn sacudiu a cabeça.
- Demasiadas perguntas sem respostas. Se tem tanta vontade de morrer, volto a pedir que espere pelo menos até eu saber o seu nome. - Tirou da mochila um pedaço de carne. - Toma. Precisa comer. - Desamarrou-a e colocou-lhe a tira fina de carne nas mãos.
- Não posso comer isto. A carne é o alimento dos reis e dos poetas. - Naquele rosto não havia sarcasmo, apenas confusão.
- Não tem fome, criatura sem nome?
Com relutância, a moça deu uma dentada na carne. Uma expressão de voracidade e prazer transformou o rosto dela no de uma criança. Conn disfarçou um sorriso enquanto a via levar a carne à boca com mãos ávidas.
Conn levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro, as mãos cruzadas atrás das costas.
- Tal como vejo as coisas, se me disser quem é o homem, talvez não seja necessário dizer às pessoas da fortaleza quem é. Disse que o seu pai estava morto. Este homem era seu irmão ou primo?
A moça sacudiu a cabeça sem parar de comer.
Conn ignorou-a e continuou:
- É muito jovem. Parece-me que esse tal homem quis que todo o sangue deste caso sujasse as suas mãos e não as dele.
De olhos semicerrados, a moça engoliu ruidosamente a última dentada.
- Esse homem a usou e a fez de idiota, obrigando-a a travar uma batalha tola que deveria ser dele.
A moça levou a mão à cintura, a uma espada que não estava lá.
- Ele não fez nada disso. Ele me amava!
Uma expressão assustada revelou que ela percebeu que tinha cometido um erro. Passou uma mão nervosa e suja pelos cabelos arruivados.
Conn olhou-a de frente.
- Então ele era o seu amante?
A moça fitou-o durante algum tempo:
- Era.
Conn afastou-se uns passos.
- Deve ter sido um grande amante, sem dúvida. O bastante para matar por ele.
A moça levantou o queixo:
- O melhor. Melhor do que qualquer membro do Fianna alguma vez pensou ser.
Conn franziu a testa:
- E o que a levou e a seu homem assassinar os meus homens?
- Não foi assassinato. Foi justiça.
O fantasma de um sorriso pairou nos lábios de Conn, que atravessou a clareira em duas passadas e se ajoelhou em frente dela. A moça encolheu-se, mas recusou-se a baixar o olhar.
- Mente - disse ele. - Um homem quer uma mulher na sua cama e não uma menina suja numa gruta. Se ele era seu amante, viveu tempo de mais dentro da gruta. Apodreceu.
A moça cruzou os braços.
- Acreditar no que mais o agradar. É o que vai fazer. É o que sempre fez.
Conn esfregou a nuca para não lhe bater. Expirou devagar.
- Minha querida - disse, pronunciando cada palavra com uma paciência extrema. - Não estou perguntando se é verdade. Estou afirmando.
A moça abriu muito os olhos:
- Muito bem, isso muda tudo, não é verdade? - Conn viu-a pôr-se de pé com dificuldade. Ela tirou um chapéu imaginário e fez uma reverencia, tocando os joelhos com a testa.
- Mil perdões, Conn. Vou confessar. O homem era... - um suspiro provocador; um olhar matreiro por debaixo dos cílios -... meu amante.
- Mentirosa. Provavelmente nunca beijou um homem a não ser com a ponta da sua espada. De certeza que se tratava um irmão ou pri...
Ainda Conn não terminara a frase, já ela tinha pousado a boca na dele, num beijo que teve tanto de infantil como de comovente. As mãos de Conn desceram até à cintura dela, para empurrá-la, mas acabaram por parar em cima da calça de linho. Conn podia ter contado as costelas dela sem abrir os olhos.
Recuou um passo.
- Ótimo - disse, com rispidez. - Quer dizer que esta bem preparada para as atenções do clã MacRuiarc, caso eles decidam não pôr fim à tua vida. Dado que escolheu divulgar a sua associação criminosa com esse tal homem, é justo que passe o resto da sua vida presa à cabeceira da cama de um camponês, à mercê dos seus filhos e parentes.
O rosto da moça empalideceu. Conn fitou friamente aqueles olhos assustados, ignorando um leve remorso.
- Esta muito disposta a defender esse homem, fosse ele quem fosse, mas receio não gostar muito de assassinas mentirosas que acham justo deixar um rastro de viúvas e órfãos desamparados.
A moça deixou-se cair pesadamente no chão. Arrancou distraída um tufo de musgo. Falou em voz baixa:
- Não há justiça para os órfãos neste mundo. Quanto mais cedo souberem, melhor para eles.
Conn cobriu-lhe os ombros com a capa:
- E para os que os tornam órfãos?
A moça dirigiu-lhe um meio sorriso que teria sido encantador não fosse o ódio cego que brilhava nos seus olhos:
- O senhor é que sabe.
Conn atravessou a clareira e atirou a mochila para o dorso de Silent Thunder. Apertou as correias e perguntou bruscamente:
- Se eu jurar que não faço mais perguntas acerca do homem me dirá por que nome deverei te tratar?
- Gelina.
O murmúrio veio de perto das costas dele. Quando ia virar-se, a pedra caiu na sua nuca com uma pancada surda. Antes de cair no chão, a moça já tinha desaparecido, depois de lhe tirar o cinto e o punhal.
Gelina tropeçou numa pedra e foi chocar com uma árvore. A dor explodiu no seu ombro. Dobrou o corpo e usou todas as suas forças para não gritar. Encostou-se à árvore à espera de conseguir voltar a respirar. Os seus olhos revistaram a floresta. Pôs-se à escuta, mas ouviu apenas o sussurrar das agulhas no alto dos pinheiros que o vento embalava. Viu o sol cada vez mais baixo e correu para a esquerda, saltando por cima das folhas caídas como um veado assustado. O barulho dos seus pés nus pisando a caruma profanava o silêncio sagrado da floresta. Em voz baixa, pediu que alguma deusa druida piedosa e solidária tivesse pena dela e a escondesse do monstruoso rei.
Correu até a dor no ombro se transformar num sofrimento insuportável. O sol mergulhava a leste, afagando a sua testa com dedos de fogo e projetando na floresta sombras recortadas. Voltou a tropeçar e caiu. Deixou-se cair de joelhos, a cabeça pendendo entre os ombros. Cravou as unhas no solo fresco. Pôs-se de pé.
Entrou numa clareira sombria e encontrou não uma deusa, mas um deus irado, a sua silhueta imponente e escura projetada pelos últimos raios inclinados do sol. Caiu de joelhos e levantou os braços. Ouviu-o rugir o seu nome. O aviso veio tarde de mais.
Conn estava a meio metro de distância, de espada na mão, quando ela tirou o punhal da bainha e o brandiu à sua frente com as duas mãos. Conn parou. Devagar, acocorou-se, usando a largura da sua lâmina como se fosse um escudo.
- Dá-me o punhal, moça - disse num tom suave.
Uma onda de calor e dor percorreu Gelina. Pestanejou para aclarar a visão. Conn aproximou-se. O punhal tremia-lhe com violência nas mãos.
- Daqui o punhal só sai para o seu coração, se não me deixar em paz - ameaçou ela.
- Não tem hipótese de vencer contra mim neste momento. E não me agrada nada a magoar.
- Antes maltratada pela sua espada do que pelos homens a quem vai me entregar. As armas que usariam contra mim seriam mais terríveis do que qualquer das que traz.
Conn fechou os olhos por um breve instante.
- Falei sob a fúria e a pressa, moça. Só queria arrancar de você a verdade.
A gargalhada dela transformou-se num soluço.
- Mais mentiras. Saem tão facilmente de lábios macios como os seus. Continua certo de que me convence com esses olhos azuis e amáveis. É tudo mentira. Uma mentira perversa. Dolorosa.
Sem baixar os olhos, Conn pousou a espada a seu lado. Levantou os braços num ato de rendição.
- O meu coração, milady. O meu coração pelo seu punhal. Em prova da minha lealdade.
Gelina atirou-lhe o punhal. Foi um lançamento falho e Conn não precisou de se baixar para evitar, pois ele foi parar a uma mão de distância. A moça virou-se para fugir, tropeçou numa raiz e caiu de bruços.
O braço de Conn estava na cintura de Gelina antes que ela tivesse tempo para gritar. O sol poente dava à lâmina que ele tinha na mão o brilho laranja do fogo. Gelina fechou os olhos, agradecida pela tática da gentileza a que ele recorrera ter chegado ao fim, revelando o monstro que se escondia atrás daqueles olhos azuis e amáveis. Aguardou o beijo da espada na sua garganta.
O punhal enrolou-se na saia e no gibão de Gelina, rasgando-os e deixando o ombro dela exposto à carícia enamorada do pôr do Sol. Conn cortou a atadura que ela tinha no ombro. Proferiu uma praga curta, descritiva. O seu peso desapareceu. A moça continuou deitada na terra, soluçando baixinho, até ele a levantar com cuidado. Cobriu-a com a sua camisa. Ela tombou contra o peito nu de Conn como uma boneca de trapos e fechou os olhos.
Conn franziu a testa, pois não conseguia lembrar-se da tirada ardente que tão bem ensaiara. Após uma pausa curta, incomoda, perguntou:
- E aonde ia com tanta pressa, milady?
- Enterrar o meu... - Parou de repente, fez uma careta e depois um largo sorriso. - Amante. Sim, ia enterrar o meu amante. - A frase provocou uma pequena onda de alegria que se transformou num ataque de tosse. Conn embalou o corpo minúsculo contra o seu até ela se encostar, cansada e tremula, aos seus braços. - Perdão, senhor. Infelizmente tenho mais vontade que me mimem do que me amaldiçoem. Mas não se aflijas. Isto está quase passando, ou estou quase morrendo. Poupa os custos da execução.
Conn pegou no queixo dela:
- Não se atreva a morrer. Não admito.
- Sempre arrogante - comentou ela com um pequeno sorriso. Esticou um braço e tocou a barba macia dele com a ponta dos dedos. - Pensei que o beijar era como beijar um urso.
Conn pegou na mão dela.
- Foi a primeira vez que beijou, não foi?
Ela concordou, baixando a cabeça.
- E a última, creio eu. Não esperava que confessasse, não é? Não consigo calar-me quando tenho mentiras ou verdades dentro da minha cabeça. Não é muito educado de a sua parte me fazer essa pergunta. Pare, lhe peço. - Gelina fechou os olhos e agitou uns dedos voluntariosos.
A resposta dele foi suave. Quase musical.
- Milady, se eu acreditasse que é tão versada nas artes do amor como é na matança e no roubo, como diz, teria-me visto obrigado a recusar a sua doce oferta.
- Doce... - repetiu ela num tom irônico. Quando respirou fundo, o seu peito subiu ligeiramente, mas a camisa de Conn não se mexeu.
- Doce - disse ele. Quando deu por si, estava inclinando-se para beijar os lábios entreabertos de Gelina. Apressou-se a dirigir o beijo para a ponta do nariz da moça, receando que, se deixasse de lhe tocar, ela fugisse.
O peito dela manteve-se imóvel durante algum tempo. Conn encostou a face aos lábios dela, desejoso de sentir um sopro de vida. Algo mais profundo do que o frio da febre fez Gelina começar a tremer.
- Doce - murmurou sem abrir os olhos. Fungou duas vezes e percebeu que, para seu próprio horror, ia chorar. Encostou o rosto aos pêlos molhados do braço de Conn. - Não pode cortar a minha cabeça e acabar com tudo de uma vez? Rodney ficaria tão decepcionado comigo se soubesse. Você foi simpático e eu o beijei em vez de te matar, como devia ser.
- Não foi por falta de tentar - disse Conn em voz baixa. Uma nuvem cor-de-rosa deslizava em direção ao pôr do Sol. - Rodney? É um nome incomum para um rapaz nascido na ilha de Erin. - Acariciou a testa seca e quente de Gelina. - Na verdade, só conheci um rapaz com esse nome em toda a Erin. O pai dele andava no mar e gostava de dar aos filhos nomes que aprendia nas suas viagens. Creio que também tinha uma filha, uma menina com cabelo cor de fogo e um sorriso maravilhoso.
Conn inclinou o queixo dela com um dedo. Observou aquele rosto exausto, aqueles olhos sombrios. Uma dor irradiou pela nuca de Gelina, que estremeceu.
- Rodney O’Monaghan? Era o nome do seu irmão? - A moça fez que sim com a cabeça. Conn continuou em voz baixa: - Então você é... - Hesitou, mas ela terminou por ele numa voz que era quase um murmúrio:
- Gelina O’Monaghan, filha de Rory O’Monaghan e Deirdre.
Conn passou a mão pela face macia dela, espantado:
- Muitas vezes te peguei no colo e atirei ao ar até desatar aos gritos. Eras uma coisinha linda. Não pode ter mais de dezessete anos.
- Dezesseis. - Disfarçando uma súplica, Gelina virou-se para os olhos azul-escuros que há tanto a atormentavam. - Não quero falar. Dói.
A cor das suas faces escureceram. Conn sentiu o calor que irradiava do corpo dela. Assobiou baixinho. Silent Thunder atravessou a clareira a trote.
Gelina pôs os braços em volta do pescoço de Conn e ele sentou-a no cavalo. Montou atrás dela e puxou a capa de modo a cobrir os dois. O seu braço agarrou-a pela cintura mais ternamente do que desejava. O cavalo avançou trotando.
Gelina recostou-se, rendendo-se ao conforto sedutor do peito largo e forte de Conn. Sentiu uma segurança bizarra, diferente de tudo aquilo de que se lembrava. Pouco e pouco os tremores deixaram-na, embora a memória do que os causara permanecesse com ela. O seu olhar incidiu sobre as mãos de Conn, nas quais as rédeas estavam enroladas e uma cicatriz profunda atravessava dois dos seus dedos. Gelina mordeu os lábios e os tremores voltaram. Pousando o queixo na cabeça dela, Conn esperou que ela voltasse a descontrair-se. Gelina caiu numa espécie de torpor e começou a sonhar.
Estava em cima de um cadafalso no pátio de uma fortaleza a grande altitude. Com uma corda que tinha ao pescoço que provocava-lhe comichão. Encolheu-se quando uma cebola podre lhe atingiu o rosto. Olhos azuis brilhavam por debaixo do capuz do carrasco. Espalhados pela multidão, esqueletos com bocados de carne putrefatas agarradas aos ossos olhavam-na de lado e apontavam para ela com dedos acusadores.
Em cima do cadafalso, sentia o calor aumentar, as chamas aproximavam-se cada vez mais. O carrasco estendeu a mão enfiada numa luva preta e puxou o mecanismo que abria o alçapão do fundo do cadafalso. Ali ficou pendurada, sem conseguir respirar e sem conseguir morrer. O seu corpo balançou e ficou virado para o carrasco. Quando ele retirou o capuz com um floreado, Gelina viu à sua frente os olhos negros do irmão e voltou a ouvir a gargalhada sinistra que ouvira na noite em que eles tinham emboscado o primeiro guerreiro de Fianna. Tentou gritar no meio daquele calor insuportável, mas não foi capaz de extrair qualquer som da parte do seu corpo que ficava abaixo da asfixiante corda.
Abriu os olhos e viu que Conn a olhava de punhal na mão. Engasgou-se na bílis que lhe subiu à garganta e soltou o grito que o sonho lhe negara.
A voz suave de Conn convenceu-a de que ainda estava sonhando:
- Gelina, tenho de abrir a sua ferida e lavá-la. Quero que beba isto.
Cuspiu o líquido amargo cor de âmbar que entrou na sua garganta. Um calor, esse sim, agradável aqueceu o trajeto até o seu estômago. Primeiro, sentiu umas mãos suaves virá-la de lado e apalpar o seu ombro, depois uma agonia intolerável espalhou-se por todo o seu corpo, produzindo, como um vulcão em erupção, um grito que ecoou pelas planícies.
No dia seguinte acordou uma vez apenas. Abriu os olhos e viu estrelas brilhando no céu de ébano. Tremores violentos sacudiram-lhe o corpo dolorido. A brisa da noite percorreu-a como uma nortada gélida. Olhou para o desconhecido deitado a seu lado.
Com cautela, Conn pôs uma mão debaixo da nuca da moça e sentiu-a tremer incontrolavelmente. Gelina encostou o rosto à palma da mão dele, ansiando pelo calor daquela pele. Com um movimento brusco, Conn aconchegou a sua capa em volta dela, depois se deitou de costas olhando fixamente o céu noturno. Espreitou-a por instantes, parecendo tão febril como ela. Gelina não pôde deixar de o olhar intrigada, perguntando a si mesma que teria feito para lhe desagradar. Ele respirou fundo, depois se enfiou debaixo da capa e apertou-a contra si. Os tremores de Gelina abrandaram e ela podia jurar que sentiu os lábios dele em cima do cabelo emaranhado que lhe caía sobre a testa.
Nimbus estava sentado de pernas cruzadas, encostado à parede de madeira exterior do salão. Aninhado a seu lado, um cão preto e branco dormia. O bobo enfiou um naco de frango cozido na boca, ignorando o fio de gordura que escorreu para as suas calças de serapilheira . Mastigou vorazmente, na esperança de que os seus maxilares afastassem a tensão que a sua mente não conseguia eliminar.
Cinco dias e nada de notícias do norte. O ambiente no interior do castelo estava pesado o suficiente para fazer a espera do malogrado regresso de Kevin parecer um Carnaval. Nem as palhaçadas de Nimbus conseguiam animar fosse quem fosse. Tinha passado a manhã agachado debaixo da mesa da cozinha, escondido atrás da toalha cheia de nódoas, e só depois de aturar a longa criticas da cozinheira acerca da insensatez do rei é que conseguiu colocar as mãos no frango.
Foi de maneira que a ave ainda levou a melhor, só de imaginar os berros da rotunda cozinheira quando descobrisse que o seu frango assado escapara da capoeira. Do banquete restava apenas uma perna quando ouviu um tropel de cascos cada vez mais perto da fortaleza. O cão levantou a cabeça e lançou-lhe um olhar indignado.
Cinco poderosos cavalos entravam a trote no pátio, mais adequados ao trabalho rural do que à longa viagem que o seu pêlo lustroso acusava. Os homens que os montavam enxugavam as testas avermelhadas, parecendo também mais adequados aos campos do que aos pátios.
- Idiota, o rei voltou?
Nimbus esforçou-se por não se mostrar ofendido com o tratamento vulgarmente dado ao bobo, mas não pôde evitar um rápido revirar de olhos.
- Ainda não há sinal dele. Podem deixar os cavalos lá. - Indicou o estábulo, pondo-se de pé.
Para lá conduziram os cavalos enquanto o homem mais jovem lhe dizia por cima do ombro:
- Somos os MacRuiarcs. Viemos certificar-nos de que se vai fazer justiça.
O pé do homem grisalho ao lado dele bateu-lhe ao de leve na orelha.
- Não lhe deve explicações. Ele é estúpido. Atrasado. Não percebe.
Quando eles lhe viraram as costas, Nimbus fez um gesto indecoroso com o dedo, segurando a perna de frango esquecida na outra mão. O cão depressa o aliviou desse fardo e desapareceu à esquina. Nimbus olhou-o furioso, demasiado humilhado para persegui-lo.
Todo mundo partia do princípio de que à uma estatura atrofiada correspondia um cérebro igualmente atrofiado. Nimbus costumava dizer a Conn que embora a sua altura não atingisse os cento e vinte centímetros, noventa deles estavam ocupados pelos seus miolos. Com uma piada sarcástica sobre as costelas de Conn e um olhar lascivo dirigido a uma jovem que por ele passasse, discursava então sobre a composição dos outros trinta. Um sorriso surgiu no seu rosto quando recordou o riso de Conn, para desaparecer tão depressa como tinha aparecido.
O ruído de cascos voltou a distraí-lo, quando um belo cavalo branco trotou pelo pátio dentro. Reagiu com um suspiro à presença do soldado alto e louro que desmontou. Barron O’Caflin tinha cavalgado bastante nos últimos dias, instigava a sua montaria em direção ao norte para regressar horas depois com suor na testa e um sorriso irônico nos lábios finos.
Prendeu o cavalo em um poste e perguntou a Nimbus:
- Há notícias?
O anão cruzou os braços e encostou-se à parede.
- Ah, caro senhor, vejo que resolveu dirigir-me a palavra! A que grande ocasião devo a honra? - Piscou os seus inocentes olhos cor de cacau.
- A grande ocasião vai ser o seu enterro se não calar essa sua boca imunda - replicou Barron, inclinando-se para ele com um gesto ameaçador.
- Vai meter-se com alguém do seu tamanho, Barron... uma barata, por exemplo.
Barron abaixou-se a agarrou-o pelos colarinhos, erguendo-o do chão.
- Fiz uma pergunta simples, para que um simplório como você fosse capaz de responder.
- Queria fazer-lhe uma pergunta, O’Caflin.
Barron atirou Nimbus ao chão quando ouviu a voz de comando atrás de si. Virou-se e deu de cara com Mer-Nod, o seu rosto severo retorcido numa careta.
Fez uma reverencia, manifestando pelo chefe dos poetas o respeito que lhe era devido. Tirou o chapéu com um floreado e declarou:
- Para você, senhor, nenhuma pergunta é demasiado difícil.
Com uma expressão de desprezo, Nimbus levantou-se e sacudiu a terra do fundo das calças.
Mer-Nod não teve meias medidas.
- Todos os dias atravessa as planícies rumo ao norte, depois vira para sul, contornando a fortaleza. Afinal o que anda fazendo?
O sorriso estampado no rosto de Barron desvaneceu-se e a sua pele empalideceu.
- Quem te disse uma coisa dessas?
Mer-Nod deixou o sorriso enigmático alargar-se.
- Não se esqueça de que Cesard, o mágico, é meu antepassado. E dá-me a honra de murmurar segredos ao meu ouvido.
Barron esforçou-se para não perder a compostura. Os seus olhos demoraram-se no poeta como se esperasse ver uma aparição pairar por cima da sua orelha. Fingindo indiferença, destampou o cantil que trazia à cintura e bebeu um longo gole, limpando a boca com as costas da mão. As finas linhas vermelhas nos seus olhos pareceram espalhar-se instantaneamente.
- Gosto de passear - respondeu, encolhendo os ombros. Esta inatividade em que estamos, esperando que o rei regresse, é exasperante para mim. - Recuou em direção à porta. - É sempre um prazer conversar com você, Mer-Nod.
Vendo Mer-Nod olhar para Nimbus, Barron respirou fundo e continuou:
- E com você também, Nimbus, claro. - Bateu com o ombro na moldura da porta, deu meia volta e desapareceu.
Nimbus emitiu um som gutural.
- Nunca pensei que alguém como você tomasse o meu partido. Onde foi buscar aquela informaçãozinha preciosa?
Mer-Nod franziu a testa, caçoou:
- O quê? Não acredita na minha intuição?
- Nada.
- Ao menos é franco, Nimbus. Um amigo de infância de O’Caflin seguiu-o uma noite depois de Conn sair.
Nimbus coçou a cabeça:
- Qual será o plano dele?
- Ele sabe que eu não sei. Mantém-no debaixo do olho, Nimbus. Vê se escuta as conversas dele. - Mer-Nod voltou devagar para dentro da fortaleza.
- É para já, desastrado - respondeu Nimbus. E murmurou para consigo: - Nunca gostei de O’Caflin. Olhos traiçoeiros.
As horas foram passando, os dias sucederam-se. O ar estava quente e pesado tanto dentro como fora da fortaleza. O calor tornava a espera intolerável; as cinzas dentro da lareira estavam frias. As famílias deixaram por fazer as suas tarefas agrícolas e partiram rumo ao salão de entrada, onde participaram na vigília. Muitos dormiam, tentando sepultar os seus medos num repouso instável, cochichando, agitando-se. Só o clique das unhas de um ou outro cão pisando os soalhos de madeira maciça quebrava o silêncio. Os futuros dos homens do Fianna, que tinham jurado prestar vassalagem a Conn até à morte, pairavam ali, presos a um fio palpável, fácil de destruir e impossível de consertar.
Cabisbaixos, os soldados presentes formavam um círculo a um canto. Alguns rezavam aos deuses - Agron, Roi mac Dairi e Behl. Outros estavam simplesmente sentados, de olhos fechados e mentes vazias. Só um deles rezava pela morte de Conn, com a cabeça dourada virada para baixo, numa atitude fingida de oração e preocupação.
O desespero de Sean O’Finn aumentava à medida que o sol ia subindo no horizonte, assinalando a chegada de mais uma tarde. Carregava sozinho o peso das palavras que Conn lhe confiara no dia em que partiu para matar o monstro: Sete dias, Sean. Se eu não regressar ao fim de sete dias, declara-me morto e escolhe um rei. Não perca tempo, pois Eoghan Mogh vai cair em cima desta fortaleza em menos de quinze dias.
Uma cinta de ferro apertava o coração de Sean na tarde do sexto dia. Nimbus estava sentado com a cabeça escondida nos braços, na mais absoluta tristeza. O salão perdera a sua atmosfera de expectativa. A falta de esperança dominava. Até ao bobo da corte faltava o ânimo.
A cabeça de Nimbus empertigou-se quando uma corneta produziu uma única nota dourada. Ninguém se mexeu. Olhares cruzaram-se, incrédulos, desconfiando da precisão dos seus ouvidos. Seguiu-se outra nota, estridente, tensa de tão aguda. O salão entrou em atividade. Homens e mulheres acotovelaram-se em direção à porta, empurrando-se uns aos outros. Os que dormiam foram repentinamente acordados por botas a saltar por cima das suas mãos e pontapés rápidos nas costas. A massa de corpos alcançou a porta, cuja largura ficou diminuta e quase deteve o fluxo. Os que estavam atrás praguejavam na ânsia de furar a multidão. Nimbus gatinhou por entre o aglomerado de pernas e emergiu junto à porta, onde a luz do meio-dia quase o cegou.
Protegendo os olhos, olhou para a torre do canto e viu Mer-Nod conversar com o sentinela. O salão foi-se escoando para o pátio e todos os olhos se cravaram na torre.
Mer-Nod levantou os braços a implorar silêncio.
- Aproxima-se um cavaleiro vindo do norte. Vem montado no cavalo de Conn.
A multidão aclamou em uníssono. Desconhecidos abraçaram-se, chapéus voaram por toda a parte. Os músicos da corte pegaram em harpas, flautas, tambores e bandolins e começaram a tocar uma melodia festiva, embora bastante desafinada. Um camponês rotundo agarrava o chapéu nas mãos, com o rosto banhado em lágrimas silenciosas. Dois jovens amantes trocaram um beijo arrebatado, aproveitando os seus pais estarem muito empolgados para repreendê-los. Indiferente a tudo, Nimbus deu três saltos mortais sucessivos, os seus músculos tensos a exprimir o que sentia de uma forma que ele nunca conseguiria verbalizar.
Quando os portões de madeira se abriram para o interior, os homens do Fianna avançaram para flanquear a entrada. Agora se via o cavaleiro ao longe, o seu cavalo cobria a trote a última etapa da viagem. O porte daquela cabeça era inconfundível.
Silent Thunder levou Conn para o pátio e todos aplaudiram, de braços no ar a manifestar a sua alegria. Um tapete de narcisos e urze cobriu o chão que ele pisava. Ninguém prestou atenção à trouxa inerte que Conn trazia ao colo até ele levantar o braço para acenar e o pano cair, revelando uns olhos verde-esmeralda implantados num rosto lívido.
Gelina espreitou por cima do braço de Conn, maravilhada com a emoção que vinha daquela multidão enorme. Adoração, respeito, alegria e agora espanto desprendiam-se da mancha de rostos que os seus olhos a pouco e pouco discerniam. A presença de tamanho fluxo de sentimentos esmagava-a. O mundo girara em torno dela e do irmão durante tanto tempo que quase se sentiu desaparecer na presença de tanta gente. Encostou-se a Conn, comprimindo as costas contra o peito dele, e as mãos sem rosto que as acariciaram ajudaram-na a enfrentar o medo.
Exclamações de pasmo saltaram da multidão quando o seu rosto ficou à vista. Gritos subiram no céu da tarde.
- Quem é?
- Onde está o monstro?
- Matou-o?
- Queremos a sua cabeça em sangue! - A voz veio do canto onde se encontravam os MacRuaircs.
- É uma criança!
- Será um rapaz ou uma moça?
- Mais cerveja! Mais cerveja! - Quem gritou foi um camponês tão embriagado que já nem sabia o que se passava à sua volta. O homem ao lado dele bateu-lhe nas orelhas.
Gelina olhou em frente quando Conn parou o grande garanhão diante de uns degraus estreitos que conduziam à torre de vigia. Quando levantou os olhos, pareceu-lhe ver um homem armado e, por um breve instante, com o sol a ofuscá-la, uma águia gigante pousada ao lado dele. Os seus olhos demoraram algum tempo a traduzi-los num homem alto com uma capa orlada de penas. Piscou os olhos e olhou para o chão. Os últimos três dias febris tinham-na deixado confusa e receava as peças que a sua mente pudesse pregar-lhe.
Conn desmontou e virou-se para colocá-la no chão. A altura dela tornou-se evidente quando Gelina deslizou erriçada, fazendo todos especular sobre o seu sexo.
A multidão tomou-a por um duende assustado. O sol fazia brilhar seu cabelo vermelho, despenteado pelo vento e pelo capuz que o tinha escondido. As olheiras escuras realçavam o tamanho dos olhos no rosto magro.
Resistiu quando Conn a empurrou inexoravelmente para os degraus. Os olhares deles cruzaram-se e a mão de Conn agarrou-a pela cintura, pressionando-a com força e em silêncio até a pele em volta dos seus lábios ficar branca. Os olhos de Conn tornaram-se impenetráveis, a única mensagem que transmitiam era tensão, cautela. Gelina baixou a cabeça em sinal de submissão, mas não pôde deixar de endireitar de súbito as suas costas enquanto subia as escadas atrás dele. Toda ela tremia por dentro, sabendo que se tentasse fosse o que fosse destruiria o plano dele. Passou uma mão pela perna dele e sentiu o contorno familiar do punhal atado por cima do joelho.
Quando chegaram ao topo da torre, Mer-Nod afastou-se para lhes dar passagem. Os aplausos atingiram um crescendo novo e Conn avançou de braços levantados. Olhou de relance para a multidão até o silêncio prevalecer e todos os olhos se fixarem nele.
- O nosso rei regressou triunfante! - exclamou. Uma nova onda de aplausos veio da multidão.
- Onde está a criatura? - gritou uma voz de mulher.
Conn fez que sim com a cabeça.
- Quando saí, prometi voltar com a cabeça do assassino coberta de sangue. - Todos baixaram a cabeça em sinal de aprovação.
Gelina fechou os olhos, à espera do momento em que ele ia exibi-la e decapitá-la à vista de todos. Imaginou a sua cabeça lançada do topo da torre, com a boca aberta de surpresa, a esborrachar-se em cima das pedras como uma abóbora.
Conn continuou, ouvindo atrás de si alguém respirar rapidamente.
- Sim, matei a criatura que derrotou os nossos homens. Venho contar que quando a criatura expirou... (baixou com dramatismo a voz, embora ela ainda se ouvisse em todo o pátio)... corri para o local onde ele morreu mas só encontrei isto!
Subiu o tom de voz e Gelina gritou quando ele se pôs atrás dela, tirou a sua enorme capa preta da mochila e desdobrou-a na torre, de onde a deixou cair ao sabor do vento.
Uma mulher soltou um grito enquanto a multidão sustentava a respiração e fugia do ponto onde a capa parecia ir aterrar. Dois soldados do Fianna esticaram-na de modo que ela atingisse toda a sua largura; os poetas correram para tirar-lhe as medidas. Mer-Nod deu um passo em frente mesmo a tempo de agarrar na mão da moça, que se preparava para fugir.
Para desviar as atenções de Conn, Mer-Nod silvou:
- Com certeza não acredita em fantasias como inimigos a desvanecer-se. Nem parece seu.
Conn virou-se para Mer-Nod, que franzia a testa com uma expressão de curiosidade, protegendo os olhos do sol com a mão.
- Talvez tenha decidido contribuir para as sua coleção de poesia.
O tom da sua voz era suficientemente duro para ferir e Mer-Nod viu-o de olhos semicerrados puxar a moça para a sua frente.
Com o reaparecimento do misterioso intruso, a multidão voltou a calar-se e a olhar para cima. As mãos de Conn pousaram nos ombros da moça como que desafiando qualquer um a tirá-las de lá. Os seus dedos largos percorreram-lhe as clavículas num gesto de proteção, mas também, estranhamente, de ternura. Lutando contra a exaustão, Gelina encostou a cabeça ao ombro de Conn e aguardou a declaração que, estava certa, se seguiria.
- Encontrei outra coisa nesta viagem. - A voz de Conn ecoou pelo pátio. - Presa na gruta com o monstro, mantida prisioneira, estava esta jovem, que foi roubada e os seus pais assassinados.
Do pátio veio um murmúrio de solidariedade. Gelina virou-se para Conn e os seus olhos incrédulos cruzaram-se com a compaixão espelhada no rosto dele. Olhou a multidão de frente enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto.
Conn pôs um braço forte em volta da cintura dela e continuou:
- Vamos recebê-la bem aqui. - Mer-Nod franziu o cenho, detectando uma nota quase defensiva na voz de Conn. - O inimigo do povo morreu! Que comecem os festejos!
Enquanto a multidão dispersava emitindo um sussurro contínuo de alegria, Conn abriu uma porta e chamou a mulher gorda que limpava as mãos ao avental no quarto ao lado.
- Moira, pode servir o caldo. - Os seus olhos evitaram os de Mer-Nod e, levando a moça nos braços, desapareceu na fortaleza.
Aqueles olhos continham um aviso. Mer-Nod, de pé, franziu o cenho. Nimbus subiu as escadas correndo e Mer-Nod bloqueou-lhe a passagem com o joelho.
- Tira essa maldita perna da minha frente, mocho nojento! Quero falar com Conn.
- É melhor esperar, Nimbus. - Os olhos de Mer-Nod brilhavam de curiosidade. - Deixa-o em paz por algum tempo.
Nimbus cruzou os braços e encostou-se à porta, fitando Mer-Nod com um ar resignado.
- Então deixe-o em paz você também.
O poeta fez que sim com a cabeça, compadecido.
- Acho que é isso mesmo que vou fazer.
Gelina falava no seu sono agitado, tentando puxar a manta que lhe embrulhava os pés para cima do seu corpo tremulo. Mas a coberta tanto resistiu que ela acabou por abrir os olhos, irritada. Abafou um grito estridente quando viu os olhos castanhos e cintilantes do leprechaun que, do outro lado, agarrava com igual força o tecido fino. Com a coberta enrolada nas mãos, estava agachado aos pés da cama, um sorriso manhoso no rosto pequeno. Gelina não sabia explicar o quanto aquilo a enervava.
Rangendo os dentes, cravou as unhas na manta e puxou com quanta força tinha, fazendo-a voar, na companhia do leprechaun, por cima da sua cabeça até bater na cabeceira de madeira. Meditou sobre a sensatez do seu ato quando ouviu um praguejar abafado erguer-se do cobertor e viu um pequeno punho acenar ameaçadoramente. Gatinhou até aos pés da cama, de punhos fechados, pronta para esmurrar o traste risonho, se necessário fosse.
O punho que acenava transformou-se numa mão estendida quando a coberta deixou o rosto do leprechaun à vista, com um canto formando um capuz espesso para protegê-lo de possíveis ataques.
- Como tem passado? Sou Nimbus, o bobo extraordinário. Prazer em conhecê-la. - As palavras foram ditas com cautela e mais do que um toque de sarcasmo.
Gelina ficou espantada ao ouvir aquela voz grave e agradável. Apertou a mão estendida e encolheu os ombros, como se pedisse desculpa.
- Pensei que era um leprechaun e me queria fazer travessuras. - A mão foi levada aos lábios do anão, que lhe deu um beijo estralado. Gelina afastou-o.
- Pensando melhor, fez mesmo uma travessura. Por que não me deixa dormir?
Foi à vez dele encolher os ombros.
- Dormiu por horas. - Tirou o cobertor da cabeça. - Queria que acordasse e falasse comigo. Sabia que baba enquanto dorme?
A boca dela abriu-se num círculo furioso.
- Permita-me que discorde! Não babo nada!
- É encantador, na verdade. Eu às vezes babo acordado. - Nimbus deu uma palmadinha no travesseiro de penas a seu lado. - Sente-se ao aqui mais perto de mim. Para conversarmos.
Com os olhos semicerrados de desconfiança, Gelina bocejou, gatinhou até à cabeceira da cama e sentou-se ao lado do intruso. As suas mãos não largavam a manta de lã.
- Está muito calor para lãs. Se ocorrer ele cobriu-me com isto para me castigar.
Ouvindo-a reclamar, Nimbus perguntou:
- Se está muito calor para lãs, por que estava puxando a manta tão desesperadamente? E quem é esse tirano cruel que ousou embrulhá-la em lã?
Gelina olhou muito séria para ele.
- Aquele... sabe. O seu benevolente governante. Onde está ele?
- O meu benevolente governante está lá em baixo no banquete sendo homenageado como o herói que é - replicou Nimbus, observando-a com desconfiança.
- Ah, sim, o meu salvador. - A ironia colava-se às palavras de Gelina como se fosse mel envenenado.
- Ele salvou sua vida. Esta sendo muito ingrata, tendo em conta as circunstâncias do seu resgate.
- Sim - respondeu ela apenas. - De fato ele salvou-me a vida.
Ficaram num silêncio agradável durante alguns minutos, escutando os ecos dos festejos no salão em baixo.
- Não devia estar lá em baixo divertindo a multidão com o seu espírito? - perguntou Gelina.
- Provavelmente. E você?
- Eu não posso. Não sou um bobo, não sei fazer habilidades nem dizer piadas. - Enrugou o nariz.
- A multidão quer vê-la. Querem ouvir a história do seu cativeiro e comentar a palidez da sua pele. Conn recusou todos os pedidos para leva-la à festa, respondendo apenas que esta muito doente e sofreu um lapso de memória.
- Sério? - Os seus dentes prenderam o lábio inferior, enquanto a curiosidade dela crescia. - Arranja-me qualquer coisa para vestir. Estou esfomeada.
O entusiasmo de Nimbus evaporou-se.
- Espera aí, pequena. Você esta doente. Não posso levar você lá para baixo assim sem mais nem menos, ainda por cima contra a vontade de Conn.
- Mas ele vai ficar radiante por saber que a sua enferma recuperou tão depressa. Bobo, onde esta o seu espírito de aventura?
- Ta na minha cabeça, que eu gostaria de continuar vendo em cima dos meus ombros.
O lábio inferior dela libertou-se e Gelina fitou com tristeza as mãos cruzadas no seu colo.
Nimbus esboçou um sorriso:
- Esta mesmo com fome?
- Morrendo. Há um mês que não como nada. - De olhos muito abertos, corrigiu: - Não como pelo menos há três dias.
- Conn mandou queimar as suas roupas, mas eu vou buscar qualquer coisa para vestir.
Desceu da cama, deixando-se deslizar até tocar com os pés no chão. O sorriso dela ia de um olho a outro, iluminando-os pela primeira vez. Nimbus fez uma pausa, ofuscado com a promessa de beleza que irradiava daqueles olhos amargurados.
- Só uma pergunta primeiro. - Nimbus avançou e pegou na mão dela. - Como se chama, princesa?
O sorriso dela desapareceu:
- Tudo menos princesa. Pode tratar-me por Gelina. Receio que o meu lapso de memória tenha apagado o nome do meu clã. - Apertou a mão dele e pediu-lhe que fosse no cumprimento da sua missão.
Nimbus voltou com uma trouxa, sussurrou umas instruções e deixou-a sozinha. Gelina saiu da cama sob o protesto de todos os músculos do seu corpo. As mãos dela agarraram-se à estrutura de madeira, numa tentativa de amparar as pernas vacilantes.
- Talvez Conn não tenha mentido. Posso estar muito doente - murmurou ela. Só de pensar nisso teve vontade de caminhar de cabeça erguida. Tirou a camisa de lã e dirigiu-se nua a um enorme espelho de prata polida encostado a um canto. Estendeu um braço e passou a mão pela moldura dourada. Cinco anos tinham passado desde a última vez que vira um metal belo como aquele. Os seus olhos detiveram-se na imagem refletida no espelho.
Estava lívida. Tinha os ossos das costelas salientes; as faces, tão rechonchudas que ansiavam beliscá-las quando era pequena, estavam encovadas, como se tivessem sido usadas para avolumar as protuberantes maçãs do rosto. O cabelo castanho-avermelhado e curto mal lhe cobria as orelhas, à frente, e atrás tocava a curva do pescoço. Espetava em todas as direções. Gelina virou-se e passou timidamente a mão pela ferida que tinha nas costas. Embora ainda não estivesse curada, mas perdera o tom escarlate da infecção. Ouviu o eco do seu próprio grito quando sentiu uns olhos azuis a arder nos seus. Fechou-os e estremeceu, afastando a mão da ferida.
Sacudiu a cabeça, desconsolada, e examinou a camisa e o vestido de seda que Nimbus lhe trouxera. Lavou o rosto, molhou o pente na água, penteou-se e em seguida vestiu com relutância a repugnante indumentária, ansiando por um confortável par de calças e pelo seu gibão de cabedal. O vestido ficava-lhe mal, pendia direto por cima dos seus seios pequenos e faltavam-lhe vários centímetros para que a larga bainha tocasse no chão. Rodopiou em frente ao espelho, quase se desequilibrando, tão pouca era a força que tinha nos joelhos.
Ouviu alguém aplaudir à porta. Virou-se e viu a cabeça do anão a espreitar para dentro do quarto.
- Desculpa o tamanho. Infelizmente a filha de Cook é tão gorda e baixa quanto você é magra e alta.
- Magra é uma palavra simpática, porque o que eu estou é esquelética. - Olhou para o espelho com um sorriso afetado. - Por que não me trouxe umas calças?
Nimbus engasgou-se.
- Nem pensei. Mas Conn cortaria-me a cabeça se eu aparecesse aqui com as calças dele - caminhou em volta dela. - Esta... bem... menos cadavérica.
- Obrigada, leprechaun. É a coisa mais agradável que ouvi nos últimos meses. Domina realmente a arte da lisonja.
- Venha aqui - ordenou ele.
Gelina obedeceu e ele a beliscou um pouco da bochecha que ainda lhe restava. Gritou e endireitou-se, empurrando-o.
Esfregou as faces e disse entre dentes:
- Mas que raio de ideia é essa?
- Se quer que Conn acredite que recuperou milagrosamente as forças, tem de ter alguma cor nas faces.
- Eu é que ponho uma cor em volta dos seus olhos se voltar a fazer isso - ameaçou.
Nimbus, sinceramente ofendido, baixou a cabeça e franziu o lábio inferior. Gelina sentou-se no chão e colocou as mãos dele nas suas faces.
- Deixa disso. Sei que só quer o meu bem.
Nimbus deu um sorriso radiante. Gelina ficou quieta, enquanto ele lhe ajeitava o cabelo com as duas mãos e descobria uma faixa para o vestido. Escondendo um sorriso com a mão, viu-o pentear-se e observar-se no espelho. Endireitou o gibão, virou-se para ela e deu-lhe o braço. Gelina estendeu a mão e pousou-a no braço dele o melhor que lhe foi possível, atendendo à diferença das alturas. Caminhando com graciosidade, saíram.
Agachada atrás de um cortinado num patamar bastante acima da multidão, Gelina assistiu ao que se passava lá em baixo de olhos arregalados e mãos fechadas. O calor abafado do dia fora substituído por uma neblina refrescante e duas fogueiras resplandecentes ardiam nas imensas lareiras das duas extremidades do salão, banhado de luz dourada. Tochas com labaredas amarelas e cor de laranja enchiam as filas de apliques dourados das paredes e a sua luz alegre refletia-se nas taças, nos punhos das espadas, nas joias e nas reluzentes travessas douradas. A um canto do salão, mal se distinguiam as mãos dos cinco malabaristas que atiravam ao ar espadas, maçãs douradas e bolas, a um ritmo perfeito.
- Brincadeira de crianças - sussurrou Nimbus. – Faço aquilo de olhos vendados.
Os criados enchiam jarros com um incessante fluxo de cerveja, ao mesmo tempo em que um novo brinde obrigava as taças a erguerem-se no ar. Os aplausos repercutiam-se nas traves do teto. Os criados esforçavam-se por manter as enormes mesas de cavalete encostadas à parede cheias com as carnes guisadas, das cabeças de javali das matas e das garças assadas que carregavam. O nariz de Gelina enrugou-se ao sentir o cheiro familiar dos alimentos fumegantes. O seu estômago girou perigosamente, pois recordava apenas o peixe apanhado nos recessos mais recônditos da gruta. Apertou a barriga com as mãos.
No salão o barulho era ensurdecedor. As harpas e os bandolins tentavam fazer-se ouvir por cima da algazarra. Um homem grande e esfarrapado recitou uma lenga-lenga grosseira acerca de uma mulher leviana chamada Kathleen que fez os ouvidos de Gelina arderem. Por fim, os músicos resolveram acompanhá-lo. A multidão aplaudiu. Os bobos davam cambalhotas em volta e no meio dos animados bailarinos, imitando-os com as suas acrobacias grotescas. Gelina viu, espantada, um grande porco avançar, indiferente, por entre a multidão, equilibrar-se nas patas posteriores e começar a dançar uma ginga movimentada e alegre.
- Aquele é Murphy. Não é bem um porco - explicou Nimbus.
Viu-a fixar os olhos numa mesa em cima de um estrado. O rosto dela empalideceu ao reconhecer Conn sentado à cabeceira, rindo inclinando a cabeça para trás, virado para uma morena cuja mão repousava intimamente no braço dele.
Gelina deu um encontrão a Nimbus, quase o derrubando da sua posição precária.
- É a mulher dele?
Nimbus sacudiu a cabeça enquanto tentava regressar à posição original.
- Ele não tem mulher. Aquela é Sheela, a Rosa Negra, viúva de Ryan O’Bronahan. Encontra no rei consolo para a sua dor.
Um tom esverdeado substituiu a palidez de Gelina assim que ouviu pronunciar aquele nome. Com os olhos vasculhou a mesa à qual Conn estava sentado. Os homens preferidos do rei riam, aclamavam, erguiam os seus copos em brindes sucessivos. Altos e bem constituídos, a cabeça inclinada como é próprio de quem pede, impõe e merece respeito, pareciam também reis em volta de Conn, que vestia o uniforme de gala exigido pela sua posição. O cabelo comprido estava solto e caía brilhante, sobre os ombros. Os coletes macios cobriam as camisas e as calças verde cor da floresta. Em volta de cada cintura estava apertado um cinto com o respectivo nome indelevelmente gravado com um ferro.
O’Murchada, O’Brosnahan, MacRuairc, O’Hartagain. Os nomes estavam também indelevelmente inscritos no cérebro de Gelina, tal como na sua cabeça dançavam visões de cadeiras vazias.
- Leve-me daqui para fora! - Ao endireitar-se, bateu com a cabeça na barra do trapézio pendurado num cabide. Vendo o pânico arder nos olhos dela, Nimbus estendeu uma mão para acalmá-la. - Leve-me daqui para fora! Já! Por favor, Nimbus.
- Que aconteceu? - Nimbus puxou-a por um ombro e ajudou-a a sair da alcova .
Tomando o gesto dele como uma tentativa de obrigá-la a ver o que se passava lá embaixo, Gelina rodopiou e ficou enredada no cortinado de veludo vermelho que há muito esperava uma oportunidade como aquela para se soltar do seu suporte e se precipitar no piso inferior, em cima de um grupo de dançarinos e do porco chamado Murphy.
Pela segunda vez naquele dia interminável, Gelina sentiu todos os olhos virarem-se para ela mal a música parou. O homem grande de aspecto rude ainda pronunciou mais umas estrofes acerca de Kathleen antes de um homem ainda maior e mais rude lhe tapar a boca com a mão.
Conn pôs-se de pé devagar, de olhos fixos na figura alta e elegante por cima deles, com todos os músculos do seu corpo tensos. Gelina olhou para Nimbus e viu-o tão aterrorizado como ela.
Reconhecendo a expressão assassina no rosto de Conn, Nimbus estendeu um braço com um floreado forçado.
- Damas e cavalheiros, a vossa atenção, por favor.
Esperou que, lá em baixo, o grupo atingido se libertasse do pesado cortinado, enquanto o porco humano, curioso, espetava o focinho na sua direção. Só a mão de Nimbus, empurrando-a para frente, impediu Gelina de fugir.
- Como sabem, temos um hóspede novo em Tara - Apontou para Gelina. - Uma jovem que foi salva de um grande sofrimento pelo nosso Ard-Righ .
Uma aclamação ergueu-se timidamente do aglomerado de pessoas que se viraram para Conn, sem saber bem como deviam reagir. Conn sentou-se e começou a coçar a barba, movimento que Nimbus conhecia muito bem.
Em seguida falou mais depressa:
- Esta linda donzela, apesar de debilitada e de pouco recordar da sua provação, pediu para estar presente e participar na nossa homenagem. - Desta vez as suas palavras foram recebidas com um forte aplauso.
Gelina exibiu um sorriso forçado enquanto murmurava pelo canto da boca:
- Esta indo longe demais, caro senhor.
Nimbus sussurrou-lhe:
- Eles adoram estas coisas. Acredite em mim.
Quando as palmas esmoreceram, Nimbus indicou com um gesto as escadas que tinham subido. Mas Gelina teve outra ideia. Estendeu os braços para o trapézio com um brilho infantil nos olhos em que Nimbus só reparou quando era já muito tarde. Agarrou-se à barra, tomou balanço e sobrevoou a multidão.
Foi recebida por bocas abertas de espanto e os seus pés quase bateram nas inúmeras cabeças.
Quando balouçou para perto de Nimbus, gritou-lhe, alegre:
- Eles adoram estas coisas! Acredite em mim!
O anão tinha tapado o rosto com as mãos e espreitava por entre os dedos, à espera de ouvir o corpo dela cair no meio do chão. O trapézio perdeu velocidade; Gelina ignorou tanto a mão esticada de um rapaz corado como a dor no ombro e desceu sem ajuda. A multidão abriu caminho até à mesa de Conn, que continuava sem mexer um só músculo.
Depois de respirar fundo, Gelina obrigou os seus pés nus a andar. Mãos anônimas projetaram-se da multidão para lhe tocar os braços, os ombros. Gelina ia-se desviando, sem saber ao certo quais as intenções deles, até se aperceber de que havia uma grande solidariedade implícita nas mãos que a empurravam para junto do rei. Subiu ao estrado e estremeceu quando viu os homens do Fianna porem-se em sentido, um a um. Conn foi o último a levantar-se e Gelina deu consigo a olhar as botas dele para não ter de encará-lo. Conn estendeu-lhe uma mão tão rígida que Gelina percebeu que recusá-la podia custar-lhe caro.
A voz de Conn continuou cautelosamente neutra quando disse para todos ouvirem:
- Bem-vinda. Tara é a sua casa enquanto quiser aqui permanecer.
Gelina pegou na mão dele, fascinada com o azul impenetrável dos seus olhos e as gotas de suor que lhe cobriam a testa. Flexionou um joelho e levou a mão dele aos seus lábios.
- Meu soberano - disse numa voz clara.
Um forte aplauso percorreu a multidão e só Gelina ouviu as palavras de Conn quando ele se inclinou e murmurou:
- E a sua lealdade?
Sem lhe responder, Conn endireitou-se e pediu silêncio.
- Terei uma audiência particular com a nossa hóspede. Mer-Nod irá comigo.
Não largou a mão de Gelina e puxou-a para junto de uma porta lateral enquanto Mer-Nod se despedia dos poetas da sua mesa e os seguia. A morena que estava sentada ao lado de Conn viu-os partir com um brilho novo nos olhos escuros. Nimbus, sentado no estrado com as penas a balançar, perguntou a si mesmo se teria acabado de cometer um erro.
Gelina também se perguntou sobre o que tinha acabado de fazer quando sentiu os dedos apertados pela mão de Conn. A sala em que entraram estava austeramente decorada com uma mesa baixa em madeira ladeada por dois bancos corridos. O único toque de luxo era a tapeçaria ricamente trabalhada que enfeitava a parede do fundo. Gelina distinguiu imagens de batalhas violentas traçadas a fios vermelhos. Um homem seguiu-os até à sala iluminada pela lareira e fechou atrás de si a pesada porta de carvalho. Gelina reconheceu o homem que tomara por uma ave de rapina gigante na torre de vigia.
Conn largou a mão dela e Gelina ficou de pé no meio da sala meio atrapalhada. Conn sentou-se no banco mais próximo, de costas para a mesa e braços cruzados. O homem com o manto de penas pôs-se ao lado dele. Gelina pensou ver um raio de simpatia naqueles olhos escuros.
- Foi uma atuação encantadora, guerreira. Mas queria provar exatamente o quê? Conheço Nimbus há tempo suficiente para saber quando ele está improvisando, em especial se o faz tão depressa e tão mal como esta noite - disse Conn numa voz ríspida.
- Ele não teve culpa. Eu é que o convenci. Ele bem tentou dissuadir-me.
Conn deu um sorriso de escárnio:
- Não sabia que a sua especialidade era a persuasão. Como fez? Encostou uma faca no pescoço dele e ameaçou cortar-lhe a cabeça?
Piscando os olhos de medo, Gelina olhou para o homem ao lado de Conn.
Conn respondeu à pergunta que ela não precisou fazer:
- Ele está observando. É Mer-Nod. O chefe dos poetas, o juiz de Tara é o sábio que me vai ajudar a tomar uma decisão a seu respeito.
O tom determinado das suas palavras a fez estremecer até aos cabelos. Vendo que ela não parava de tremer quase imperceptivelmente, Conn indicou com um gesto o outro banco.
Gelina contornou a mesa e sentou-se à frente dele.
- Está aberta a sessão - declarou num tom cáustico, cruzando as mãos para ninguém perceber como tremiam.
Conn levantou-se e caminhou pela sala, detendo-se diante da tapeçaria. Virou-se para Gelina e perguntou:
- Preciso que me conte tudo o que sabe sobre a tua família. Detalhadamente.
- Por que você não me conta tudo o que sabe sobre a minha família?
- Perguntei primeiro.
A posição insolente do queixo dela não lhe passou despercebida.
- O meu pai era rei - respondeu ela.
- Todos os camponeses com dois porcos e uma parcela de terra acham que são reis. - Sentou-se no banco à frente dela.
- O meu pai não era um camponês. Vivíamos num castelo maravilhoso cheio de risos e música. Não tínhamos apenas porcos. Tínhamos malabaristas e menestréis e mil maneiras agradáveis de passar o tempo. A hospitalidade do meu pai era lendária.
Conn passou a mão pelos olhos, como se as palavras dela o perturbassem.
- Continua - ordenou.
Gelina continuou com um sorriso amargo.
- Havia um homem que nos visitava frequentemente e estava sempre bem-disposto. Era jovem e ria muito, por isso Rodney chamava-lhe o homem dos sorridentes olhos azuis. Um dia ofereceu à minha mãe uma pequena espada dentro de uma bainha e a mim uma joia da cor dos meus olhos. - Esses olhos cor de esmeralda cruzaram-se com os de Conn e por uma fração de segundo uma espécie de sorriso suavizou os lábios dela. - Eu achava você o homem mais bonito e simpático do mundo, depois de meu pai.
Conn e Mer-Nod trocaram um olhar antes de Conn apoiar a cabeça nas mãos e friccionar as têmporas com os dedos.
O sorriso que iluminara o rosto dela transformou-se numa expressão de desprezo:
- Até que deixou de aparecer. Aliás, nunca mais ninguém nos visitou ou foram-se todos embora. A minha mãe só chorava e o meu pai fechou-se num quarto e disse que nunca mais queria nos ver. Passou o Inverno e ninguém voltou. Um dia, Rodney e eu fomos brincar em uma das passagens secretas que davam para o salão principal. Porque ninguém queria saber de nós. Ouvimos a porta da frente bater com um estrondo tal que eu pensei que era uma trovoada. A porta abriu-se e centenas de homens entraram correndo no salão. O homem dos sorridentes olhos azuis estava de volta. Só que os seus olhos já não sorriam.
Apertou os braços em volta de si mesma, comprimindo a carne jovem dos seus braços até ela ficar vermelha e depois arroxeada. Conn não se mexeu.
- Nós vimos tudo. Você obrigou o meu pai a ajoelhar-se, bateu-lhe, disse-lhe coisas horríveis. Depois partiu no seu grande cavalo negro. - As palavras dela caíram como fragmentos de gelo no silêncio da sala.
- Rodney tapou-me a boca com a mão para eu não gritar quando decapitaram o meu pai. Os homens... violentaram a minha mãe repetidamente. Por fim, enterraram-lhe uma espada no peito. O único bobo que restava foi torturado e pendurado nas traves do teto até as suas pernas deixarem de balançar. Quando os homens fugiram com a cabeça do meu pai amarrada a umas das rédeas, pegamos a espada dele e corremos até chegar à gruta.
Conn continuava imperturbável, com a cabeça apoiada nas mãos. Mer-Nod ouvia, magnetizado, as palavras amargas da moça. Gelina olhava o vazio, pensando na névoa escura de uma gruta distante. A dor ainda fresca da morte de Rodney feria-lhe em ondas intermináveis.
Conn levantou-se, foi até ela e colocou as mãos em cima dos seus ombros, até o feitiço se quebrar e ela registrar, parecendo surpreendida, a presença dele.
- Quero que me ouça. - Conn falou num tom baixo e firme. - Enquanto eu estiver falando, não rejeite e nem aceite o que eu disser. Ouve apenas. Importa-se?
Gelina sentia-se insuportavelmente cansada - a ferida começava a doer - e desistiu de combater a pressão firme exercida sobre os seus ombros. Fez que sim com a cabeça e pela primeira vez viu tão bem quanto a exaustão lhe permitiu, rugas de alegria e bondade no rosto dele.
- O seu pai era um traidor. - Os olhos dela escureceram e Conn apertou-lhe os braços, recordando-lhe silenciosamente o acordo que tinham feito. Gelina não disse nada. - É verdade que eu o considerava um querido amigo até perceber de que confiar em Rory O’ Monaghan era aceitar que a espada dele se espetasse nas nossas costas. Os seus próprios homens deixaram-no quando descobriram que as promessas dele eram vãs e a sua proteção inexistente. Traiu-me mais do que uma vez. Aceitei as suas desculpas esfarrapadas. Mas chegou o dia da retribuição.
Gelina virou a cara, mas ele puxou-lhe pelo queixo e obrigou-a a olhar na sua direção.
- Nunca disse que ele não tinha sido um bom pai. Não mandei matá-lo, nem à tua mãe... Violentar e matar. Mandei trazê-los à minha presença. Mas isso foi antes do Fianna e os homens que lá estavam naquele dia eram irrefletidos e sanguinários. Os que hoje tenho sob as minhas ordens nunca teriam cometido as atrocidades que descreveu.
Gelina fitou-o sem pestanejar:
- Foram castigados?
Foi à vez de Conn desviar o olhar.
- Eram tempos menos civilizados. Muitos atos infames ficaram por castigar.
O brilho de triunfo dos olhos dela recordou-lhe o olhar aflito que encontrara debaixo do capuz do inimigo, na gruta. O seu queixo ficou tenso de raiva.
- Não se esqueça de que você também é uma assassina, minha princesinha. Matou homens inocentes, alguns com mulheres e filhos. Matou-os em lutas desiguais, tirou-lhes os corações e deixou-os apodrecendo no bosque. Sabia que Kyle MacRuairc foi encontrado com a espada ainda na mão? Só que a mão já não estava ligada ao pulso.
Gelina sacudiu a cabeça, o olhar vazio:
- Eu não... eu não podia...
Mer-Nod pigarreou enfaticamente e Conn tirou a mão do rosto de Gelina, deixando nele a marca escura da sua mão.
Esqueceu a raiva e pegou nas mãos dela:
- Nesse caso, foi o seu irmão. Sei que ele era muito importante para você, mas está morto e você livre dele. Agora pode viver a sua própria vida, Gelina.
Com uma expressão confusa, Gelina fitou-o numa prece sem palavras.
Conn começou novamente a andar para frente e para trás, para disfarçar a súbita emoção que o desespero dela o fez sentir.
- Sabe o que é a Lex Talionis , Gelina? - perguntou Mer-Nod.
Gelina abaixou a cabeça, depois a sacudiu.
- Já ouvi falar. Sei que é uma lei. Mas não sei a que se refere.
- É uma lei, sim - disse Mer-Nod. - Uma lei seguida pelo pai de Conn, Feidlimid Rechtmar, conhecido como o Justiceiro. A Lex Talionis concede a um homem o direito a fazer justiça de modo a garantir uma rigorosa reciprocidade entre a pena recebida e o crime cometido.
- Olho por olho - murmurou Gelina.
Conn ajoelhou-se em frente dela enquanto os seus dedos grossos lhe acariciavam ligeiramente as mãos.
- Tenho uma proposta a fazer-lhe. Você culpa-me pela morte dos seus familiares... e talvez com razão. Eu culpo-a pela morte dos meus homens. De acordo com a Lex Talionis, fez-se justiça. Se eu tirei a sua família, é meu dever dar-lhe outra. Esta será a sua família de criação. Vai ser criada aqui, a meu cargo, até atingir a idade adulta.
Gelina ficou olhando para ele sem perceber.
- Há uma condição - acrescentou. – Tem de me jurar lealdade aqui e agora. E tem de ser sincera. Se as suas palavras forem vazias como eram as do seu pai, o seu destino será igual ao dele. Não vou estar sempre a espreitar por cima do ombro à espera de sentir o seu punhal deslizar entre as minhas omoplatas. Não tolero nem tolerarei qualquer traição da sua parte. É jovem. As suas cicatrizes podem sarar aqui sob os meus cuidados. Será criada com o melhor que eu puder lhe dar. Mas tem de me jurar fidelidade hoje, com Mer-Nod por testemunha. Será tratada com todas as honrarias. Pode falar.
Gelina ficou calada. Na terrível escolha entre os laços de sangue e a vida, apenas uma pergunta lhe veio à cabeça:
- E se eu recusar a sua oferta?
Os dois homens entreolharam-se. Foi Mer-Nod quem respondeu, a sua voz bem modulada a ditar cruamente o destino dela:
- Partirá já esta noite num barco para Inglaterra e nunca mais porá os pés em Erin. Conn não pode permitir ter traidores em Tara, mas vai deixá-la viver se for essa a sua escolha.
De pé, Conn baixou a cabeça derrotado, antecipando a decisão dela. Gelina levantou-se, incomodada com uma leve sensação de simpatia.
Pela segunda vez naquela noite, ajoelhou-se no chão de madeira, encostou a mão quente dele aos lábios e murmurou:
- Meu soberano. - Com a outra mão, Conn levantou-lhe o queixo até os olhares deles se cruzarem. - Tem a minha lealdade.
Visões dançavam como a névoa nos corredores dos sonhos de Gelina. Segurando na mão a longa, forte e reluzente espada da retribuição, movia-se acima dos seus inimigos, com as pernas presas nos ombros fortes do irmão. Brandindo a sua espada, Vingança, como uma extensão natural da sua mão, rodou-a várias vezes, batendo-a e espetando-a no grupo de guerreiros idênticos de olhos azuis até o sangue correr como um rio pelo chão da gruta. Demasiado sangue. O seu exultante grito de batalha transformou-se noutra coisa quando viu Rodney tropeçar por debaixo dela e ficar com os pés mergulhados no sangue. Não. Rodney nunca tropeçava, nunca tombava. Carregara-a ao colo horas e horas, dias e dias. Nunca, nunca a deixaria cair.
As fundações da sua vida tinham ruído e ela precipitava-se. Cada vez mais fundo, mil léguas de escuridão, um momento suspenso no tempo até o rio de sangue a sugar para um mundo nublado tingido de cor-de-rosa.
O irmão fazia-a rodopiar, mais uma volta, mais uma volta. De olhos escuros e brilhantes, cabelo negro de azeviche, agarrava-a com as mãos quentes enquanto dançavam no salão do castelo do pai. Fazia-a rodar cada vez mais depressa, o seu sorriso tornando-se mais largo a cada volta. Gelina tinha dez anos de idade e estava cheia de medo.
Queria suplicar-lhe que parasse, mas sabia que ele ia rir e fazer troça dela, chamaria-lhe de bebe. Também sabia que as costas da mão do irmão iam limpar as lágrimas provocadas pelos ralhos dele, por essa razão quase bem-vindas. Quase. Assim, os seus pequenos pés pisavam o soalho enquanto o medo aumentava a cada passo. O salão girava num rodopio de cor e luz, numa paisagem traiçoeiramente inconstante em que as mãos de Rodney eram a única coisa sólida. Sentiu uma vertigem e os seus olhos encontraram o chão numa prece silenciosa pedindo que o seu estômago parasse de rolar.
Os movimentos no chão perfumado cessaram. Ossos humanos, descorados e antigos, atapetavam o chão de parede a parede, em fragmentos quebradiços que lhe cortavam os pés, onde deixavam fitas de sangue.
Um grito soltava-se do seu peito sempre que os ossos embatiam uns nos outros numa macabra e estridente dança da morte, até que viu à sua frente um exército de esqueletos, espadas ensanguentadas presas em dedos que chocalhavam. Os olhos de Gelina seguiram dos braços aos dedos de Rodney, mas as mãos que ela encontrou eram apêndices ossudos desprovidos de carne. Os maxilares do irmão pendiam abertos, e deles saía um riso agudo que lhe deixou a pele dos braços arrepiados. Olhos azul-escuros brilhavam no vazio das suas órbitas e Gelina gritou, gritou, sem parar.
Conn dirigia-se aos seus aposentos, rindo com as piadas dos dois soldados que o ladeavam, quando gritos de terror chegaram aos seus ouvidos. Parou e em seguida e desatou a correr. Os homens seguiram-no com as espadas em riste.
Entrou de rompante no quarto, os seus olhos vasculhando as sombras. O clarão tênue da meia-lua que entrava pela janela permitia ver uma cama vazia, uma coberta amarrotada. O seu olhar incidiu sobre Gelina e por instantes pensou que daria o seu reino para não voltar a ver aquela expressão no rosto dela.
Estava agachada ao fundo, num canto, com os olhos muito abertos, mas sem ver, agarrando com as duas mãos uma longa vela de sebo, como se fosse o punho de uma espada.
- Deixem-nos a sós - ordenou aos seus homens.
Eles entreolharam-se, voltaram a colocar as espadas nas bainhas e saíram do quarto. Conn nem olhou para eles uma segunda vez. Sabia que eles iriam obedecer-lhe.
- Gelina - disse num tom suave, aproximando-se dela de mão estendida.
Os olhos verdes fitaram-no com o desespero de um animal encurralado.
O medo dela era terrível, palpável, e Conn estremeceu diante de tanta intensidade.
Gelina ergueu a vela com as duas mãos e ele pensou, com um arrepio, que se aquilo fosse uma espada teria atravessado o braço que ele levantou num gesto de defesa. Em duas passadas pôs-se junto dela e agarrou-lhe os pulsos, cuidadosamente, mas com força. Queria a todo o custo evitar um confronto barulhento. Os seus homens tinham-se retirado do quarto, mas sabia que esperavam no corredor e especulavam sobre o curioso comportamento da moça.
Os olhos vazios de Gelina indicavam-lhe que ela o tinha visto sem ver. Sem lhe dar tempo para abrir a boca e gritar mais uma vez, encostou o rosto dela ao seu ombro e embalou-a até senti-la deixar de resistir. Ele próprio parou de respirar quando os braços da moça lhe rodearam o pescoço. Afagou-lhe os ombros e sentiu os músculos descontraírem-se sob a ponta dos seus dedos.
As palavras de Gelina bateram no seu peito.
- Assustei-me.
- Pesadelos outra vez?
Gelina fez que sim com a cabeça. Conn levantou-a nos braços e pousou-a no colchão de penas, voltando a reparar na desproporção entre a leveza e o comprimento daquele corpo. Gelina afastou-se dele assim que tocou a cama. Os últimos vestígios do pesadelo abandonaram os seus olhos e uma expressão de aborrecimento cruzou brevemente o seu rosto para logo ser substituída por um pavor menos intenso. A vontade de protegê-la misturou-se com a exasperação quando Conn viu que o vestido que ela tinha usado naquela noite fora substituído por um gibão desbotado e calças largas.
- Já estou melhor. Obrigada. Pode ir - disse Gelina com um sorriso educado que quase fazia a boca tocar os olhos.
Conn reprimiu um suspiro:
- Se eu quisesse mandar executar-te por não me dar atenção ou por me evitar, oportunidades não me teriam faltado nas últimas semanas.
- Prometi-lhe a minha lealdade, não o meu afeto - respondeu Gelina num tom infantil, desafinado. Pigarreou.
Conn inclinou-se para frente e pousou as mãos ao lado das pernas dela. Gelina desviou-se, mas ficou ainda mais perto dos braços musculosos. Era impossível resistir ao olhar dele. O luar escondia os planos mais perigosos daquele rosto, suavizando as linhas fluidas numa imagem irresistível que punha o seu coração batendo contra as costelas.
- Quero ser seu amigo, Gelina - disse ele num tom suave.
Gelina fitou uma área por debaixo da barba dele.
- E calculo que esteja habituado a conseguir o que quer.
Conn respondeu ao tom irônico dela com um ruído muito parecido com um rosnado e passou uma mão pelo cabelo. Gelina recostou-se relutante no travesseiro, quando percebeu que ele não tinha intenção de sair. Fechou uma mão na outra e observou-o com indiferença, os olhos escurecidos pela espessa franja de cílios que os contornava.
- Não queria ofender, alteza. Mas dificilmente o imagino negligenciando as suas violências e pilhagens só para entreter uma infeliz sem abrigo.
Conn respirou fundo, os lábios franzidos, dividido entre a vontade de rir e o desejo de lhe puxar as orelhas.
- Lamento desiludir-lhe, mas nem eu nem nenhum membro do Fianna costumamos violentar ou pilhar. O roubo e a mutilação perderam o interesse para o Fianna.
- Que trágico para vocês!
Conn desistiu de ser educado e desatou a rir.
- É uma criaturinha birrenta, não és?
Gelina pestanejou com um ar doce:
- Se o meu rei assim quer pensar. E Vossa Alteza acha que é capaz de corrigir tal defeito?
- Bem - Conn coçou a barba. - Penso que não posso fazê-lo, pois isso apenas agravaria a péssima opinião que tem a meu respeito. Vire-se, por favor.
Gelina escancarou os olhos, assustada com aquela ordem súbita.
- Como?
- Não reclame. Não tenciono deixar a mão aproximar-se do seu traseiro, por mais que o mereça. Quero ver a sua ferida.
Refletindo, Gelina virou-se de barriga para baixo e apoiou a cabeça nos braços. As mãos de Conn descobriram-lhe habilmente o ombro. Gelina estremeceu quando ele a tocou, quando sentiu aquela coxa musculosa contra a sua anca. O polegar de Conn passou levemente pelo seu ombro e perguntou a si mesma quantos inimigos, teriam aquelas mãos fortes estrangulado.
- Não pode parar de tremer como um coelho assustado?
Gelina espreitou-o por cima do ombro. Ele olhou-a de um modo que a obrigou a desviar o olhar.
- Não tenho medo de nada - disse ela, levantando ligeiramente o queixo. - Sobretudo não tenho medo de você.
Conn tossiu para disfarçar um sorriso. Os seus dedos tocaram a cicatriz que pouco e pouco se tornava rosada.
- Quase espetei o seu coração, Gelina, tremo só de pensar nisso - murmurou, mais para si próprio do que para ela.
Gelina fechou os olhos por um momento, nervosa. Num acordo tácito, nenhum deles se referira à gruta. Se alguém ousasse fazer-lhe perguntas acerca do seu passado, depressa desistiria perante o gelo azul dos olhos de Conn.
Os dedos dele massagearam levemente a pele sensível em volta da cicatriz.
- Se o seu irmão não me tivesse voltado às costas quando o feri, teria conseguido parar o meu golpe, não é verdade? Como via através da capa?
- Bati a capa nas rochas até o pano ficar muito fino. Tínhamos as tochas à nossa frente. E você não feriu o meu irmão. Matou-o.
- É exímia com a espada - disse Conn, ignorando a resposta dela. Os seus dedos deslizaram sobre uma clavícula proeminente que começava a arredondar-se. - Foram precisos anos de prática para manejá-la tão bem.
- Tempo foi coisa que nunca nos faltou. - Gelina afastou um cacho de cabelo dos olhos e fitou-o por cima do ombro. - Treinei, treinei, até ter a certeza de que era capaz de vencer qualquer guerreiro sem ficar com a impressão que era um monstro ou um gigante.
- E ainda é?
Gelina não sabia se a expressão dele era de desafio, mas encarou-o de frente:
- Sim, milorde.
Uma brisa fria veio da janela aberta e levantou os cabelos de Gelina. O silêncio formal entre eles aprofundou-se quando a palma da mão de Conn afastou os últimos vestígios do pesadelo da nuca de Gelina. A mão desceu-lhe pelas costas com uma determinação própria, avaliando cada saliência da coluna com o polegar. A pele sedosa subia e descia sob a mão dele. Conn percebeu que ela estava adormecendo. As pregas do gibão impediam a sua exploração involuntária e preparou-se para ultrapassá-las quando reparou no que estava fazendo. Ficou olhando para as suas mãos tremulas.
Pôs-se de pé num pulo, como se o colchão de penas fosse uma catapulta .
- Não exijo que me trate por milorde - disse, numa voz que até aos seus próprios ouvidos pareceu enervada e imperiosa. - Pode tratar-me por Conn.
Gelina recostou-se e o fato de ver frustrada a promessa de um sono sem pesadelos e da tranquilizadora proteção do calor das mãos dele não melhorou o seu humor.
- Há mais alguma coisa que eu não deva fazer milorde? Talvez comer? Respirar?
As gargalhadas súbitas e francas dele aligeiraram o ambiente tenso.
- Pelo que vi, come como um leitão. Começa parecer mais cheia.
Passou as costas da mão pela face macia de Gelina, que fez um esforço para disfarçar um sorriso sincero.
- Isso é graças a Nimbus. Ameaça-me com uma canção e uma dança se eu não comer uma dúzia de bolos de aveia por dia.
- Até eu engordaria só para evitar as gracinhas e as travessuras dele.
Os olhos de Conn percorreram o quarto e ele fez uma careta, desagradado com a mesa riscada e a cadeira de madeira que encontrou. Cinzas de muitos invernos amontoavam-se na lareira suja. Teias de aranha pendiam, como festões, das traves do teto. Com o pé, tateou o chão para esconder a tensão pouco familiar do seu corpo híspido.
- Amanhã à noite - disse - vai comigo ao salão de entrada. Vou ensiná-la a jogar xadrez. Acho que vai gostar. Tem muito a ver com guerras e conquistas.
- Conheço o jogo. O meu pai tinha muitos adversários excelentes.
Vindos das brumas da sua memória, Conn viu um par de olhos verdes minúsculos e curiosos espreitando por cima de um tabuleiro de xadrez em madeira requintadamente trabalhada.
- Sim, tinha - murmurou e apertou a mão de Gelina antes de se dirigir à saída.
Abriu a porta. As tochas acesas no corredor iluminaram o rosto de Conn quando ele olhou para dentro.
- Não pode reprimir os seus sorrisos eternamente, Gelina. O meu charme é tão famoso como a minha capacidade guerreira.
- E a sua humildade?
- E igualmente lendária. - Com uma reverencia, saiu para o corredor, piscou o olho e fechou a porta.
Conn teria gostado de ver o sorriso que brincava nos lábios de Gelina quando ela se virou de lado e puxou a manta até aos ombros. Ficou algum tempo encostado à porta dela, na esperança de ouvir um gemido ou um suspiro, e não quis admitir a decepção que sentiu quando não escutou nem uma coisa nem outra.
Quando acordou na manhã seguinte, Gelina bocejou repousada, e espreguiçou-se de tal maneira que os seus músculos ultrapassaram a fronteira do conforto, para logo a ele voltarem. Ficava sempre admirada com a primeira golfada de ar que inspirava de manhã não ter o cheiro de unidade, e mofo da gruta. No quarto cheio de sol ressoavam os cantos matinais das cotovias e dos piscos.
Sentou-se e tirou as pernas compridas da cama, espantada por sentir debaixo dos pés uma coisa macia em vez do frio da madeira. Esfregou as pálpebras e olhou em volta, perguntando a si mesma se ainda estaria sonhando.
Um fogo ardia na lareira e os troncos em chamas consumiam o frio da manhã. Saiu da cama, enterrando os dedos dos pés no tapete felpudo. Sem pensar, caminhou até à mesa de madeira do canto e descobriu que o tampo estragado estava coberto por uma toalha de flores. Pastéis fumegantes, recheados com maçãs e pêssegos e pincelados com mel, aguardavam numa travessa dourada. Espetou um dedo curioso na massa e levou-o à boca, deliciada com o doce que cobriu a sua língua.
Em cima da arca ao lado da bacia e do jarro de barro estavam um pente e uma escova com cabo de marfim que ela nunca tinha visto antes. Pegou na escova e obrigou-a a entrar no cabelo desgrenhado, que começava a enroscar-se na curva do pescoço.
Espreitou atrás de um biombo ornamentado que escondia um canto do quarto e descobriu uma tina cheia de água, quente e perfumada, ali levada por alguma criada silenciosa enquanto ela dormia. Sem hesitar, despiu o gibão e entrou na tina, enrugando o nariz para saborear o cheiro forte de gardênias. Mergulhou o corpo na água e fechou os olhos.
Com a mão procurou a ferida das costas, numa imitação desajeitada da carícia de Conn. Torceu-se para ver a sua imagem no espelho. A cicatriz quase desaparecera, tal como as recordações do pesadelo. Só a simpatia de Conn parecia tangível sob o intenso sol matinal do quarto acolhedor.
Secou-se e escolheu um dos vestidos simples de algodão que estavam pendurados atrás de outro biombo. O tecido ajustou-se graciosamente ao seu corpo alto. Dobrou as calças de cabedal que Nimbus surripiara de um soldado adormecido e guardou-as debaixo do travesseiro. Não queria agradar a Conn, disse para si mesma, mas sim divertir Nimbus.
Percorreu os corredores da fortaleza. O Sol que entrava pelas janelas sem portas projetava padrões delicados nas paredes caiadas de branco. Gelina cantarolava em voz baixa e rodopiava, encantada com a maneira como a saia girava em volta dos seus tornozelos. Ficou com a melodia entalada na garganta quando à frente surgiu uma figura enorme.
Tinha o rosto escondido pela sombra, mas as tranças que lhe pendiam da cabeça eram inconfundíveis. Media mais de dois metros de altura e tinha um pulso erguido. Gelina encostou-se à parede, muda de terror.
Depois de sair das sombras para a zona do corredor onde se projetava um quadrado de luz, a aparição falou:
- Não tenha medo, pequena. Trouxe-lhe isto. - A voz suave era inesperada num corpo tão grande.
Pela primeira vez Gelina viu que a sua mão peluda segurava um ramo de azáleas.
Estendeu uma mão trêmula para recebê-las enquanto ele dizia:
- O meu nome é Goll MacMorna. Sou o chefe do Fianna. Mande-me chamar se precisar de alguma coisa. - Baixou a cabeça, tímido, e desapareceu ao fundo do corredor tão silenciosamente como aparecera.
- Obrigada - balbuciou Gelina enquanto se sentava sem desencostar as costas da parede, com as delicadas flores silvestres nas mãos.
Tinha a proteção do Fianna, andava bem alimentada e vestida pelo mesmo homem que eles tinham jurado destruir. Passava os dias na alegre companhia de Nimbus, entretida com jogos, até cair de cansaço na cama de mogno esculpido importada de um país que ela nunca tinha visto.
E Conn. O monstro de olhos azuis que odiavam, para onde quer que olhasse, lá estava ele. Levava-a para visitar os estábulos, deixava Sheela para ir dar-lhe uma rápida lição de xadrez. Quanto pior o humor dela, mais se divertia a provocá-la. Sempre que dava uma resposta torta, ele fazia o que podia para arrancar um sorriso dos lábios dela. Gelina quase sentia o seu ódio derreter-se com o charme quente dele.
- Que diria Rodney? - murmurou para as sombras. Deu à pergunta a única resposta que conhecia: - Não pode saber. Nunca saberá. Morreu.
O perfume espesso e doce das azáleas espalhou-se pelo quarto e Gelina adormeceu.
Na colina sobre o pátio, Barron O’Caflin, que assistia à cena que se desenrolava em baixo, franziu o nariz em sinal de desagrado. Ao som das gargalhadas que chegavam lá de cima, ajeitou-se na sela do cavalo. Com um poste de madeira, o anão e a moça tinham construído um trapézio que penduraram no pátio. O idiota não parava de fazer gestos com as mãos, tentando convencer a moça a dar um salto mortal, caindo com toda a segurança sobre uma pilha de feno.
Barron carregou ainda mais as sobrancelhas quando o seu olhar incidiu sobre o homem de cabelo escuro encostado a um monte de feno, de braços cruzados e com a cabeça inclinada para trás de tanto rir. Tinha atirado a túnica para cima do feno e estava apenas de calças de cabedal. Com o clarão dos dentes brancos destacando-se do rosto moreno e da barba escura, o rei de Erin parecia um camponês num dia de Verão.
Barron viu a moça risonha ganhar balanço e erguer-se mais a cada movimento. Desejou que a corda se partisse, para ela flutuar até bater na parede lateral do celeiro. Ela falhou uma vez, continuou agarrada pelos joelhos, o que impediu o salto mortal. O anão coçou o cabelo, frustrado. Conn tanto disse que ele não pôde deixar de rir. A moça fez nova tentativa e completou o salto mortal, pousando de pé no feno macio, quase em cima do anão. Conn aplaudiu e disse qualquer coisa que os pôs a rir às gargalhadas.
Barron esporeou o cavalo e conduziu-o para norte, furioso com a cena que acabava de presenciar. Nem reparou na beleza daquele dia. As flores amarelas do tojo foram pisadas pelos cascos do cavalo sem que ele olhasse para elas uma só vez. Tinha visto à órfã, uma miúda esquelética que raramente sorria transformar-se numa moça risonha, cujas faces mais salientes estavam cheias de cor.
Resmungou, contrariado. Havia qualquer coisa de errado na jovem, tinha certeza. A estranha tensão entre ela e Conn na noite em que a apresentaram à corte fazia-o sentir uma desconfiança que não o largava. Só um idiota não veria isso. Conn deixara claro que ela ia ser tratada como sua filha. O bastardo arrogante não deu qualquer explicação.
Barron chegou mesmo a dirigir uma oração aos druidas que tão raramente venerava. Agradeceu o fato da misteriosa órfã de Conn ser uma moça. Fosse ela um rapaz, e devidamente forte, poderia pôr o trono em perigo quando o destino iminente de Conn chegasse. Mas assim não passava de um aborrecimento. Também era uma sorte nenhum bastardo ter aparecido para dizer que o rei era seu pai.
Logo que Mer-Nod lhe revelou que tinha conhecimento daqueles passeios, Barron conseguiu que um dos homens de Eoghan fosse com ele à pequena aldeia de Balybay. Cavalgou aldeia dentro baixando majestosamente a cabeça aos camponeses por quem passava. Com o calor do Sol no seu cabelo dourado, desmontou diante da taberna caiada. A tabuleta pendurada no beiral do telhado rangia, embalada pelo vento. A cabeça de um lobo, o pêlo ralo coberto de sangue, sorriu-lhe na tabuleta. Devolveu o sorriso, aliás, muito semelhante ao do lobo.
Atou as rédeas a um poste, entrou na taberna e avançou devagar para a mesa do fundo, permitindo que os seus olhos se ajustassem à pouca luz. Piscou os olhos, admirado, quando viu duas figuras sentadas à mesa em vez de uma. Os seus olhos percorreram nervosamente a interminável capa e o capuz que envolviam o desconhecido com surpresa. Olhou para o homem, que conhecia, com uma pergunta no olhar.
De pé, o homem corpulento apontou para o desconhecido, que continuava de cabeça inclinada.
- Foi enviado por Eoghan. Quer que vocês se encontrem. Vão trabalhar juntos nos próximos meses.
A figura esguia deixou cair o capuz e Barron deparou-se com os olhos mais negros que tinha visto em toda a sua vida.
Gelina praguejou em voz baixa quando as linhas do bordado que tinha na mão se enredaram umas nas outras pela quarta vez. Conn baixou o mapa que estava estudando e puxou carinhosamente um dos cachos ruivos de Gelina. Ela rejeitou a carícia, lançando-lhe um olhar de aviso. Conn tapou o rosto com o mapa, para esconder a sua exasperação, a sua perplexidade. Ela podia tolerar a sua companhia, mas continuava a não mostrar qualquer sinal de afeto. Nimbus estava sentado ali perto, imobilizado pelas meadas coloridas com que Gelina tinha amarrada as suas mãos.
- Detesto costura - lamentou-se ela, incapaz de encontrar a longa agulha dourada que deixara cair em cima da almofada.
- Também eu - reclamou Nimbus, roendo as linhas que lhe prendiam os cotovelos.
- Não consigo perceber por que razão Moira insiste em ensinar-me as artes femininas quando está provado que não tenho qualquer jeito. - Gelina puxou pelo fio escarlate enrolado no pescoço de Nimbus numa tentativa de salvá-lo. Ignorou os ruídos que provocou e virou-se, esperançosa, para Conn: - Há alguma tarefa útil que queira que eu faça? Polir as suas botas ou afiar o seu punhal?
Conn não baixou o mapa.
- As minhas botas estão ótimas, obrigado, e o punhal nas suas lindas mãos não é coisa que me agrade ver.
Na lareira, um tronco partiu-se libertando uma chuva de fagulhas. Conn baixou o pergaminho e viu que Gelina estava de olhos fixos na dança das labaredas. A luz projetava sombras pensativas no rosto dela, eliminando a insolência, suavizando-lhe as feições. Conn franziu a testa, assaltado pela imagem da mulher em que ela se tornaria. Empurrou o queixo dela para cima com dedos inseguros. Os olhos verdes de Gelina exprimiam uma ansiedade que há muito ele se esforçava por suprimir.
- Desculpa, falei sem pensar - disse, numa voz tão meiga que nem os ouvidos de Nimbus reconheceriam como sua.
- Eu diria que é uma falta de educação impedir uma pessoa até de se aproximar o suficiente para ao menos ouvir - disse Nimbus, rebentando as suas amarras com tanta força que só se viam fios a cair por toda a parte.
Antes de Conn conseguir tirar um pedaço de linha verde que tinha ido parar ao cabelo de Gelina, ela já estava de novo fora do seu alcance. Com um suspiro, Conn recostou-se na cadeira.
- Ia agora mesmo falar para Gelina de uma tarefa que penso seja mais a seu gosto. Faltam poucos dias para a festa do solstício . Assim que o ourives acabar de fazer a minha máscara, vou precisar pintar uma cara feroz.
Gelina endireitou-se:
- Uma festa de máscaras? Oh, mas vou estar muito ocupada com a minha para pintar a sua.
Conn fez uma careta. Gelina voltou a apoiar-se nos calcanhares, uma nuvem de decepção cruzou-lhe o rosto.
- Tenho muita pena - disse Conn - mas a festa acaba sempre no caos e na devassidão, ao fim de umas centenas de canecas de cerveja.
- Lá isso é verdade - concordou Nimbus, visivelmente deliciado.
- Lembro-me de que no ano passado, Colum o apicultor, acordou ao lado da beldade mascarada que carregara ao ombro para o bosque na noite anterior e descobriu que tinha levado para a cama a sua própria mulher. E gostou, ainda por cima. E não me lembro quem...
Nimbus calou-se assim que Conn pigarreou.
- Portanto compreenda, Gelina - disse Conn - uma jovem perambulando por Tara na véspera do solstício pode ser uma presa fácil para um predador dissoluto.
- Como você, chefe? - perguntou Nimbus, sincero.
- Sim, como... - Conn fuzilou Nimbus com o olhar. - Como eu estava dizendo, Gelina, pode participar nos jogos desse dia, mas ao cair da noite quero-a fechada em segurança no seu quarto, como uma menina bonita.
Pela posição do queixo de Gelina, Conn percebeu que tinha cometido um erro.
- Não sei por que insiste em tratar-me como uma criança. Até a cozinheira diz que já não tenho idade para ser adotada.
Conn abriu muito os olhos:
- A cozinheira disse-lhe uma coisa dessas?
- Bem... não. Mas disse a uma das criadas quando eu estava escondida debaixo da mesa esperando que os pastéis saíssem do forno.
Conn olhou para Nimbus, que tinha os olhos fixos nas traves do teto.
- Peço-lhe que nos dê a honra de partilhar conosco a sabedoria da cozinheira.
Gelina cruzou o olhar de desafio de Conn com o seu.
- Ela disse que com a minha idade a maioria das moças já está casada ou comprometida. Ou por conta.
Conn coçou a barba:
- Por conta?
- Por conta, sim - respondeu ela com convicção, de modo a esconder o fato de que não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer.
Conn juntou os indicadores e apoiou neles o queixo.
- E você gostaria de estar comprometida ou casada, Gelina?
- Oh, não. Assim deveria ter de andar sempre de vestido. - Baixou a cabeça e pôs-se a puxar pelos fios que tinha ao colo. - Mas acho que estar por conta não deve ser mau, desde que se esteja por conta da pessoa certa.
Conn estendeu a mão para lhe acariciar o rosto, mas o olhar severo de Nimbus deteve-o. Retirou a mão sem que ela se tivesse dado conta do gesto.
Franziu a testa.
- Quero que fique sossegada no seu quarto na véspera do solstício, entendido?
- Sim, milorde - murmurou Gelina. Conn teria ficado satisfeito com aquela rendição se não a tivesse visto olhar de lado para Nimbus.
O anão pôs-se de pé, ainda sacudindo pedaços de linha, e fez uma reverencia:
- Se me da licença, chefe, retiro-me. Parece que vai ser um dia atarefado.
Nimbus parou junto à porta e olhou para trás, para a cena tranquila em volta da lareira. A fogueira lançava a sua luz suave sobre o rosto de Gelina, que retomara a tarefa de desembaraçar a linha. Conn passou a mão pelos cachos ruivos e pela primeira vez ela não o repeliu. Nimbos aguçou os ouvidos, ansioso por escutar:
- Não me julgue mal, Gelina. Depois do que você passou nunca me perdoaria se lhe acontecesse algum mal, agora que esta sob a minha guarda.
Nimbus pestanejou e desviou os olhos do halo de luz para onde tinham sido atraídos, franzindo a testa às intrigantes palavras de Conn. Desapareceu nas sombras, com as mãos pequenas enfiadas nos bolsos do gibão.
As sombras da escuridão abateram-se sobre a quente e ventosa véspera do solstício. Gelina abriu um pouco da porta e espreitou para o corredor iluminado por tochas. Os seus olhos incidiram sobre a silhueta com chifres que estava à sua porta. Dois buracos abertos num lençol de pano branco deixavam ver uma orelha e um olho castanho. O olho percorreu a indumentária de Gelina; o lençol agitou-se, num sinal de desaprovação que pôs os guizos do topo dos chifres tilintando.
- Não serve - sussurrou a voz de Nimbus por debaixo do lençol. - Pensei que você se fantasiar de moça podia ser uma boa ideia.
- Eu sou uma moça, Nimbus.
- Oh, desculpa.
Gelina abriu a capa de veludo vermelho numa atitude sarcástica.
- O seu talento para a lisonja aumenta a cada dia que passa. - Saiu para o corredor e fechou a porta do quarto.
Nimbus caminhou em volta dela, murmurando e amaldiçoando entre dentes.
- Receio que a sua altura ira lhe denunciar. Experimenta andar agachada.
Gelina dobrou os joelhos por debaixo das pesadas pregas da capa e deu uma meia dúzia de passos.
Os sinos tilintaram com redobrada violência.
- Não, não, não. Parece um ganso aleijado.
Gelina endireitou-se e pôs as mãos nas ancas.
- Tenho certeza de que também ninguém vai lhe reconhecer. Talvez o tomem por Goll MacMorna ou Large Bob, o talhante. - Puxou o lençol até o buraco deixar à vista metade do nariz dele e outro olho cintilante. Suspirou: - Acho que não conseguimos melhor do que isto.
Mal ouviu uns risos nas escadas, Nimbus correu para o patamar e, com um aceno, ordenou a Gelina que avançasse.
- Mas não se esqueça – sussurrou-lhe - de puxar o capuz para cima e a cabeça para baixo.
Gelina puxou o capuz de veludo para cima da cabeça até ele tapar a máscara fina de ouro equilibrada na ponta do seu nariz. Seguiu atrás de Nimbus de cabeça baixa. Passaram pelas sombras que se fundiam nas escadas e foram ao salão de entrada, de onde vinha uma mistura de vozes e gargalhadas.
As tochas foram-se consumindo nos seus suportes à medida que a noite caía, transformando o salão num mundo estranho e sombrio, onde desconhecidos de máscaras e capas deslizavam, misteriosos e graciosos. Gelina e Nimbus caminharam em volta deles, com o cuidado de se manterem no perímetro da multidão, a fim de não serem reconhecidos.
Gelina deu uma cotovelada em Nimbus quando foram empurrados para perto de um grupo de homens que discutiam em voz alta.
- Estão jogando, Nimbus – sussurrou. - Conn disse que eu podia participar nos jogos.
Os guizos tiniram violentamente.
- Não era destes jogos que ele estava falando.
Gelina varreu com o olhar o interior da roda de homens, espreitando por detrás da capa de um soldado.
- Qual é o objetivo? Por que recuam as mulheres como carneiros, rindo e corando?
- Se o homem de olhos vendados tocar numa, ela tem de deixar que ele a beije - explicou Nimbus. - E se o homem adivinhar quem ela é depois do beijo, tem direito a beijá-la outra vez.
- Não tenho vontade de jogar esse jogo. O primeiro que se atrever a me beijar iria logo parar no meio do chão - declarou Gelina, arrebatada.
- Aquele não ia derrubar facilmente - disse Nimbus, ao mesmo tempo em que o seu lençol estremecia de forma suspeita.
Gelina viu então pela primeira vez o homem que estava no centro, de braços estendidos. Uma venda de pano grosso tapava-lhe a máscara e usava uma capa de camponês, mas foi impossível não identificar o seu riso quando os soldados o agarraram pelos ombros e o fizeram girar até ficar tonto. A boca de Gelina abriu-se pasma.
- Repara que a viúva O’Brosnaham continua aos pulos em frente dele enquanto finge que está quieta - sussurrou Nimbus.
- Se ele nos vê, estamos perdidos - disse Gelina.
As mãos de Conn ficaram a dois centímetros do pescoço de Sheela e Gelina puxou um dos chifres de Nimbus. Nimbus não se moveu.
- Ele não nos vê. Tem os olhos vendados.
Um soldado avançou um passo e fez rodar Conn, ignorando os seus protestos e risos. O soldado à frente de Gelina levou aos lábios um copo de chifre. Quando inclinou a cabeça para beber a última gota de cerveja, o seu corpo descreveu um arco perfeito. Caiu no chão no meio das gargalhadas e dos aplausos da multidão. Gelina ainda olhava para o seu rosto quando Conn saiu da roda. Os seus dedos compridos rodearam-lhe a cintura.
- Ela não estava jogando, mas está agora - gritou um homem, erguendo num brinde a taça, que quase se entornou.
Nimbus resmungou e Gelina viu que Sheela tinha ficado amuada por ele a ter levado para a roda.
- Finalmente apanhei uma mulher linda - gritou Conn triunfante.
O corpo de Gelina ficou tenso quando as mãos dele se fecharam nos seus ombros. Ainda pensou fingir que desmaiava, mas sabia que ia ser desmascarada se caísse no chão. A multidão aclamou quando Conn segurou o rosto dela nas mãos debruçando-se para ele. Hesitou como se sentisse que havia mais do que simples reticência na atitude dela. Gelina fechou os olhos quando os lábios quentes e secos dele pousaram nos seus, onde se demoraram com uma doçura que a paralisou e sugou o ar do seu corpo trêmulo.
Teria fugido se as mãos dele não tivessem descido e agarrado com força os seus ombros.
- Quem é ela, Conn? - gritou um soldado. - Já a tinha provado antes?
- Diz o nome dela e prova-a outra vez - gritou outro.
- Quem é você? - Conn falou tão baixo que só Gelina ouviu as suas palavras.
- Diz o nome dela ou largue-a, Conn. São as regras.
Gelina deixou-se cair nos braços dele quando reconheceu a voz de Nimbus. As mãos de Conn agarravam os seus cotovelos, mas ela soltou-se, fugindo dos dedos que tentavam prendê-la. Desatou a correr por entre a multidão, na esperança de já estar longe quando Conn tirasse a venda. Ouviu passos apressados, e quando baixou a cabeça descobriu que Nimbus ia a seu lado. Saíram da fortaleza para a quente noite de Verão.
Havia fogueiras acesas em volta do pátio e os ventos quentes que sopravam das planícies arrancavam delas labaredas caóticas. Sombras dançavam em volta dos fogos ao ritmo sensual de um tambor.
Gelina encostou-se à parede, tentando recuperar o fôlego e refrescar as faces ardentes.
- Perdoe-me, Gelina, a minha intenção não era fazê-la correr riscos - disse Nimbus, caindo de cansaço ao lado dela.
Gelina sacudiu a cabeça e soltou uma gargalhada tremula.
- Não teve culpa, Nimbus. Os jogos do Fianna foram sempre muito perigosos para mim.
Nimbus indicou a porta com a cabeça.
- Podem vir atrás de nós. Segue-me.
Gelina seguiu-o por entre os arbustos, incapaz de desviar os olhos das máscaras maliciosas e das capas ondulantes dos dançarinos. Sobressaltou-se quando alguém gemeu a plenos pulmões e os ramos escuros se agitaram. Seguiu-se um rugido e o barulho de passos furtivos ecoou na noite. O grito agudo de uma mulher terminou tão repentinamente como começou. Gelina ficou imóvel até a mão de Nimbus sair do lençol e puxar pela sua capa. Ele pigarreou numa imitação perfeita de Conn e obrigou-a a caminhar, sentindo-se culpada.
- Nem acredito que conseguiu me convencer a fazer isto - refilou Nimbus. - Conn ainda me corta a cabeça se sabe o que fizemos e vimos esta noite.
- Eu não vi nada, e nada do que fiz foi culpa dele - protestou Gelina, sem conseguir disfarçar a nota de decepção que havia na sua voz, enquanto seguia atrás dos chifres bamboleantes de Nimbus.
Só queria tirar da cabeça o asfixiante capuz e deixar o vento quente penetrar nos seus cachos. O seu coração batia ao ritmo do tambor, enviando sangue jovem e curioso a todas as partes do seu corpo. O peso sufocante da saia de veludo tolhia-lhe as pernas.
- Não me leve para o meu quarto agora, Nimbus. Eu não te arranjo mais problemas, prometo. - Parou e arrancou a ponta da sua capa da mão dele.
Ele virou-se, com o olho visível semicerrado.
- Se alguma vez tivesse visto Conn furioso, não se atreveria a correr mais riscos.
Aquelas palavras permitiram-lhe fazer uma pausa. Caminhou mais depressa atrás dele, mordendo o lábio inferior, amuada.
Foi chocar com as costas de Nimbus, que tinha parado de repente praguejando em voz baixa. Um grupo de dançarinos embriagados cercou-os numa explosão de risos e trechos de canções. Gelina ficou vendo impotente, Nimbus ser posto nos ombros de dois deles e levado dali para fora.
- ...para o seu quarto - disse a voz dele, antes de se perder entre os gritos das mulheres e as gargalhadas dos homens.
Mas o soldado que saiu dos arbustos ainda amarrando os cordões das botas tinha outras ideias. Cumprimentou a figura solitária de Gelina baixando a cabeça numa espécie de reverencia; uma máscara dourada com olhos de dragão pintados apareceu no nível dos seus olhos.
- Tão cedo e já foi abandonada, querida?
Gelina recuou quando o cheiro ácido da cerveja bateu no seu rosto.
- Estou um pouco tonto neste momento - disse ele numa voz arrastada - mas se me der um tempo para recuperar as forças vai ver que sou um bom consolo para a sua solidão.
Gelina endireitou-se:
- Acho que por esta noite já consolou o suficiente.
- Que disparate, posso ainda consolar mais do que uma moça nesta amena véspera do solstício.
A mão dele agarrou-lhe o pulso com uma força assustadora. Empurrou-a para as sombras dos arbustos. Pelo canto do olho da sua máscara, Gelina via as labaredas ondularem e os pares girar loucamente ao som do tambor numa horrorosa caricatura da paixão. Os seus olhos viraram-se instintivamente para a cintura do soldado e verificou que ele não trazia espada. Fechou a mão, tomou balanço e deu-lhe um murro no estômago com toda força que tinha.
O soldado dobrou-se ao meio com um rugido. Gelina deu meia volta e preparou-se para fugir, mas como estava sempre espreitando por cima do ombro para ver se ele vinha atrás dela não deu pelo homem que parou à sua frente e em cujo peito aplicou um soco tão forte que ficou tonta. Ergueu os olhos e fitou os bigodes de leão que ela própria tinha pintado.
Virou-se, pisando-o sem querer, e puxou o capuz com força. Sentia o coração bater dentro dos seus ouvidos, sobrepondo-se à cadência do tambor. O soldado cambaleou na direção deles, esfregando a barriga com as mãos.
Umas mãos firmes pousaram nos seus ombros; a voz dele foi um murmúrio profundo e agradável para os seus ouvidos:
- Ele incomodou-a, minha beldade perdida?
Gelina fez que sim com a cabeça, não ousando falar, se não ele a seguiria e tiraria-lhe a máscara.
O soldado parou assim que viu quem estava atrás dela. Parou de repente, de boca aberta.
- Há decerto muitas mulheres desejosas de dar uma volta esta noite, Liam. Não precisa perseguir as que não querem. Não somos selvagens.
Embaraçado, o soldado passou uma mão pelo cabelo.
- Estava só brincando. Nunca quis fazer-lhe mal.
- Acreditarei nisso quando souber que você esta na segurança da sua cama... quanto antes.
- Sim, chefe. Desculpe. - O soldado bocejou ruidosamente e olhou para a escuridão. - É tarde. Estou farto de festejos, como estava dizendo à moça. Acho que vou... - E a sua voz perdeu-se na noite.
Conn riu. Gelina sentiu o calor das mãos dele nos ombros, por cima da capa de veludo do vestido. Os seus dedos mudaram de percurso sutilmente; deslizaram pela clavícula com força e ternura. Gelina agradeceu em silêncio o fato de estar escuro e não se distinguir a cor do seu cabelo quando ele empurrou ligeiramente o capuz para trás. Todo o seu corpo estremeceu quando os dedos largos de Conn lhe acariciaram o pescoço, detendo-se sobre a veia que ali pulsava violentamente. O seu bafo quente soprou os cachos junto à sua orelha.
- O seu coração bate como o de um pássaro preso numa gaiola. Agora que nos vimos livre dele, beleza, vem comigo?
Tomou o silêncio dela por uma rendição e Gelina não teve outro remédio senão segui-lo quando ele lhe pegou na mão e a levou para uma porta escondida por trás de uma cortina de hera. Puxou o capuz para o rosto com uma mão desesperada quando se abaixaram e entraram num longo corredor. Homens e mulheres rindo apareceram ao virar uma esquina. Antes que Gelina se atrevesse a protestar, Conn fez deslizar um painel secreto e puxou-a para um túnel vazio, protegido dos olhos curiosos da multidão. O túnel continuava curvando-se à frente deles como o intestino de alguma fera gigantesca. Uma tocha solitária brilhava no seu suporte.
Gelina recusou-se a avançar quando Conn a empurrou em direção à luz intermitente. Encostou-se à parede sabendo que a luz era suficiente para ele ver o contorno da sua face vermelha. Conn inclinou-se para frente e apoiou as mãos na parede, uma de cada lado de Gelina. Havia uma graciosidade especial nos movimentos dele que a avisaram de que ele bebera a sua quota de cerveja na festa do solstício.
Passou uma mão pelo rosto dela, mas Gelina resistiu à tentativa de virar a sua cara para a luz.
- Tão tímida e doce - murmurou. - Não tenha medo de mim.
- Ouvi o soldado falar com você. Sei quem é... o rei - disse em voz baixa, com medo de, sem querer, dizer o nome dele.
- Hoje fui rei. Esta noite sou apenas um homem.
Os lábios dele roçaram os dela. Gelina entreabriu-os e a boca dele colou-se a sua com alguma insistência, o sabor quente, doce e forte da cerveja na sua língua.
A boca dele moveu-se:
- Estava com medo de nunca mais a encontrar e a doçura do seu beijo me perseguir para sempre.
A mão de Conn envolveu o queixo de Gelina. Com os dedos, entreabriu-lhe os lábios tímidos. Os lábios dele insistiram, pressionaram experientes, até ela ceder, vulnerável ao ardor daquele beijo. A outra mão deslizou pelo braço de Gelina e tocou-lhe suavemente o seio. O sangue quente coloriu-lhe as faces. O veludo que separava o polegar dele do bico sensível dos seios dela fundiu-se, um condutor do calor e do desejo dele. O sangue escaldante que queimava as faces de Gelina percorreu-lhe o corpo num fluxo estonteante. Sentia os movimentos ardentes e determinados da boca e da mão dele em todos os centímetros da sua pele sensível.
A cabeça de Gelina rodopiou quando ele a encostou à parede com a força de um beijo, pousando as mãos quentes nos seus ombros, por debaixo da capa. Encostou todo o seu corpo ao dela numa carícia que nunca dedicaria a uma moça inocente.
Afastou-se e Gelina tentou recuperar o fôlego, a luz tênue do túnel desaparecendo diante dos seus olhos aterrados. Só os braços dele a impediram de cair.
- Então sabe quem eu sou - murmurou Conn. - É mais do que justo eu saber também quem é você. Não suporto voltar a perdê-la.
Antes que ela conseguisse falar, Conn agarrou cuidadosamente os dois pequenos pulsos numa mão. Estendeu a outra para lhe retirar a máscara. Gelina não teve tempo para pensar nas consequências. Encostou os lábios aos dele num beijo tremulo e sentiu a boca dele abrir-se, surpresa com o fervor da sua paixão. Conn abafou um gemido, esqueceu a máscara e abraçou-a, levantando-a do chão até todas as curvas do corpo dela se encaixarem no seu. Gelina ficou sem forças quando uma sensação simultaneamente aterradora e maravilhosa a atravessou, o perigo e o desejo era uma espada de dois gumes nas mãos experientes de Conn.
Gelina abriu os olhos para a escuridão e ouviu guizos a tilintar levemente na curva do túnel.
- A tocha - murmurou.
- A tocha que vá para o diabo - respondeu Conn com uma rouquidão na voz que Gelina desconhecia. - Só preciso da escuridão e de você. - Empurrou-a para o chão com uma persistência delicada.
Gelina agarrou-se à túnica dele; escondeu o rosto no ombro que tão bem conhecia.
- Por favor... Conn.
Nunca chegou a saber se foi aquela súplica, o nome dele na sua boca, ou o vigor renovado do tilintar na escuridão que o fez largá-la com um suspiro.
Encostou os lábios à testa dela.
- Espera aqui. Eu já volto.
Fundiu-se na escuridão, deixando Gelina sentada contra a parede, sentindo-se estranhamente perdida. O painel secreto deslizou para o lado. Uma mão pequena acenava-lhe freneticamente. Gelina pegou nela e esgueirou-se pela abertura cada vez maior. Nimbus fechou o painel com força, ignorando a exclamação de surpresa de Conn. Desataram a correr pelo corredor de mão dada, os joelhos de Nimbus muito dobrados para acompanhar as longas passadas de Gelina.
Tropeçou num pastor que gemia deitado na porta do salão da entrada, e ficou estendido no chão. Gelina levantou-o por cima da barriga do camponês - upa! - e colocou-o de pé. O camponês virou-se para o lado sem parar de ressonar.
Mais dois passos e encontraram o caminho bloqueado por uma mulher de máscara que dava o braço a um soldado bêbado. Gelina viu, pasma, o homem deixar-se cair em cima de uma pilha de feno e arrastar a mulher para cima de si. Com um floreado, puxou-lhe as saias para cima do rosto, revelando umas coxas gordas, e saltou para cima da mulher soltando um grito de triunfo e agitando as ancas enquanto ela esperneava.
Com total falta de delicadeza, Nimbus puxou o capuz da capa de Gelina e empurrou-a para as escadas. Subiram os degraus dois a dois, com medo e alívio escaparam por entre gargalhadas ofegantes. A porta do quarto de Gelina fechou-se ruidosamente atrás deles. Nimbus deu a volta à chave com um gesto teatral. Saltaram para a cama e desataram a rir no meio dos travesseiros de penas. Gelina virou-se de lado e, apoiada nos cotovelos, atirou a máscara para as cinzas da lareira.
- Pensou que eu a tinha abandonado? - perguntou Nimbus, empurrando o lençol para o lado e passando a mão pelo cabelo ralo.
- Tinha as minhas dúvidas. Pensei que estava perdida quando Conn me puxou para aquele túnel.
- Receio que a culpa tenha sido minha. Ele viu-me no meio da multidão que se aproximava e sabia que eu seria impiedoso se o visse a meter-se com uma jovem casadoira. Tomei um susto quando percebi de quem se tratava. Tem certeza de que ele não suspeitou de nada?
Gelina não respondeu. Nimbus reparou na súbita mudança de atitude dela. Estavam vermelhas as faces que ela escondia com as mãos. Nos lábios, um meio sorriso.
Agitou uma mão em frente dos olhos pensativos de Gelina.
- Não percebeu que era você, não é? - repetiu Nimbus. - Que me enfiem nas catacumbas se ele percebeu.
Gelina fez um gesto com a mão.
- Claro que não faz a mínima ideia que era eu. Eu estava de máscara e ele tomou-me por uma daquelas mulheres lindas. Que os homens desejam.
Nimbus começou a falar, mas depois se arrependeu.
Gelina friccionou a cabeça com as mãos.
- Estou cansada, Nimbus.
- Vou-me embora - respondeu ele, saltando da cama.
Nimbus virou-se para lhe desejar uma boa noite. Gelina fitava o vazio, como se ele já ali não estivesse. O bobo abriu e fechou a porta sem fazer barulho.
Gelina levou a mão aos lábios. Estavam quentes e inchados, sob os dedos trêmulos. Enterrou o rosto quente no travesseiro, sem perceber por que razão não conseguia chorar.
A manhã encontrou Gelina sentada na cozinha de olhos fixos numa tigela de caldo, o queixo apoiado na palma da mão. Incapaz de suportar o silêncio do seu quarto e o alvoroço dos seus pensamentos, descera as escadas passando por cima dos corpos que ressonavam espalhados pelo salão, e procurou o pouco conforto da cozinha e a companhia da cozinheira.
- Não gosto nada daqueles bêbados nojentos. Metem-se sempre em bagunças. Enchem os seus malditos corpos com veneno e depois querem que aqui a cozinheira passe o dia servindo-lhes caldo como uma ama-seca. Isso é que era bom!
A cozinheira pontuava o seu discurso batendo uma galinha depenada na lareira e arrancando-lhe as vísceras com uma ferramenta capaz de meter medo ao mais valente membro do Fianna. As gotas de gordura dos braços dela estremeciam de indignação.
Gelina concordou murmurando qualquer coisa e fez girar a colher de madeira com que comia o caldo. Olhou para a porta e voltou a olhar para o caldo quando Nimbus entrou seguido de um Conn mal-encarado.
- Bom dia, pequena - disse Conn, despenteando-a. - É o primeiro rosto não afetado pelas dificuldades da noite passada que vejo esta manhã.
Gelina sabia que ninguém ia adivinhar que tinha sido muito afetada. Continuou de cabeça baixa e balbuciou uns bons-dias.
Conn recostou-se na sua cadeira e passou uma mão pela barba.
- Espero que tenha dormido bem. Que o barulho não lhe tenha incomodado.
Gelina levantou os olhos, que se cruzaram com o olhar penetrante de Conn, e concordou, sacudindo a cabeça. Reparou pela primeira vez nos pêlos escuros e fortes que se enroscavam nas costas da mão dele. Levou a colher à boca com uma mão tremula.
Nimbus empoleirou-se numa cadeira abanando as pernas.
- Dormi que nem um anjo. O único barulho que me incomodou foi o de alguém batendo os pés escadas acima e entrando no quarto... sozinho.
Conn virou-se para Nimbus. Gelina deu-lhe um pontapé por debaixo da mesa. A cozinheira pousou com força uma tigela de caldo fumegante em frente de Conn, resmungando entre dentes, depois pôs uma panela de ferro no fogo com grande estardalhaço.
Conn agarrou a cabeça com as mãos e gritou:
- Quer despertar os mortos, cozinheira? - E, com uma careta: - Um dia destes ainda mando torcer o pescoço daquela mulher.
- Calma, calma - interveio Nimbus. - E a que se deve a sua excelente disposição esta bela manhã?
- Pelo menos estou consciente - replicou Conn - o que não se pode dizer da maioria dos membros do Fianna.
- Com mais pena fico - murmurou Nimbus.
Gelina observava Conn por detrás dos seus olhos meio fechados, incapaz de desviar os olhos das rugas minúsculas em volta dos olhos dele. O sol implacável que entrava a rodos na cozinha em nada diminuía a sua beleza. O ar juvenil que a luz da tocha emprestara a Conn tinha desaparecido, deixando no seu lugar um metro e oitenta de força e determinação masculinas, embrulhadas numa vida de experiências que ela nunca poderia igualar. Gelina sentiu-se pálida e pequena diante de tanto poder. Olhou para a espessa cabeleira escura que se enroscava por cima do linho acinzentado da túnica dele, consciente de que, se naquele momento alguém a obrigasse a juntar duas palavras numa frase coerente, não o conseguiria fazer.
Conn passou uma mão pelo seu cabelo desgrenhado e franziu a testa, inesperadamente pensativo.
- Se quer saber, conheci a mulher mais bela e doce a noite passada, mas fugiu dos meus braços antes de sequer saber o seu nome. Eu correria a ela se soubesse onde ela estava, só para voltar a ver aqueles lábios ternos.
Gelina engasgou-se, devolvendo uma colherada de sopa à tigela, pois nunca tinha ouvido as palavras belas e doce aplicadas à sua pessoa.
Nimbus contornou a mesa e deu-lhe uma forte palmada nas costas, ao mesmo tempo em que entornava uma tigela de caldo para o colo de Conn.
Conn levantou-se praguejando enquanto limpava o colo com o guardanapo e não chegou a ver que o rosto de Gelina passara de vermelho a roxo. Quando olhou para ela, Gelina estava branca como a cal. As suas olheiras pareciam nodoas negras.
Conn atravessou-se na mesa e examinou-lhe o rosto:
- Esta doente, pequena?
Gelina não suportou aquele ar paternal. Tapou o rosto com o guardanapo, rompeu em lágrimas e saiu correndo.
- Mulheres! - exclamou Conn, exasperado.
Quando voltou a sentar-se, o seu cotovelo derrubou a nova tigela de caldo que a cozinheira lhe servira. Conn respirou fundo e viu furioso, que Nimbus sorria triunfante.
Conn partira com o Fianna havia quase um mês quando, certa noite, Gelina acordou de um sonho com o corpo doendo e agitado de uma maneira que ela não compreendia. Sentou-se na cama muito direita, agarrada à coberta, enrolada ao pescoço. Saltou da cama, correu para a janela e abriu as portas de madeira com as mãos tremendo. Debruçou-se para a noite; o ar frio bateu-lhe na testa quente.
Um cavalo solitário entrou no pátio iluminado pelo luar. Gelina recuou para as sombras do seu quarto, resistindo à vontade de se inclinar e gritar as boas-vindas.
Conn desmontou devagar e passou uma mão pouco convicta pela garupa de Silent Thunder. Amarrou o cavalo em um poste e caminhou rumo à luz tênue que vinha da cozinha. Parou e olhou para trás. Fixou o olhar na janela de Gelina.
Gelina escondeu-se melhor na escuridão do seu quarto, sabendo que ele não podia vê-la, mas sentindo a carícia daquele olhar até na medula dos seus ossos. Conn ficou olhando para a janela durante algum tempo, com uma expressão sombria. Quando finalmente ele baixou a cabeça e desapareceu na escuridão da entrada, Gelina fechou as portas de madeira e encostou a testa na madeira rude. Conn veio passar o inverno em casa.
Uma camada fina de neve cobria o chão, projetando uma claridade estonteante. A lua cheia estava baixa no céu. Sentada à frente da lareira do escritório de Conn, com um xale de lã em volta dos ombros, Gelina estudava o tabuleiro de xadrez com olhos conhecedores. Conn, sentado à sua frente, tinha um sorriso devastador nos lábios.
- Aha! - Gelina soltou um grito de triunfo quando colocou o seu cavalo entre o rei e a rainha de Conn. Apesar das frágeis tréguas entre eles, Gelina ainda gostava de derrota-lo sempre que tinha oportunidade.
Conn franziu a sobrancelha e Gelina passou a língua pelos lábios, observando, desconhecendo por completo a luta que ele travava para não sorrir. Fingindo indiferença, Conn passou a sua torre de mármore para o lugar do cavalo dela.
Recostou-se e cruzou os braços:
- Xeque-mate.
Gelina olhou para o tabuleiro, depois para ele. Incapaz de resistir ao sorriso matreiro rendeu-se e riu em voz alta, batendo-lhe com a ponta do xale.
- Devo confessar Gelina, que é uma adversária cada vez mais difícil.
- E é para admirar? Tive por professor o guerreiro mais impiedoso de toda Erin. - Levantou-se e pôs-se a caminhar afetadamente pela sala.
- A jactância não te leva a lado algum. Esta muito bonita com esse vestido - disse Conn. Gelina virou-se e sorriu-lhe. Conn baixou o seu tom de voz: - Fica muito melhor do que aquelas enormes calças com que a vi andar por aí esta manhã.
Gelina olhou para a luxuosa tapeçaria pendurada na parede do fundo, tentando desviar a atenção dele e ao mesmo tempo evitar novo sermão.
- Que batalha tão sangrenta! Está ali um homem a quem cortaram a cabeça. Até admira a linha vermelha não se ter esgotado.
Conn colocou-se atrás dela, com as mãos nos seus ombros, puxando o corpo esguio para si num gesto natural.
- É a batalha de Loch Erne. - As suas feições tornaram-se carregadas. - Um amigo jurou-me vassalagem e prometeu enviar-me quinhentos homens para me ajudar de madrugada. Eoghan Mogh cercou-nos. Ouvimos as trombetas e vimos chegar os reforços. Imagina como ficamos horrorizados quando os homens do meu amigo voltaram as suas espadas contra nós. Eram em muito maior número, cinco para um, mas os derrotamos. Os rios de Erin encheram-se de sangue nessa noite. Perdi cerca de mil dos meus homens.
De repente Gelina sentiu necessidade de falar, dizer qualquer coisa que o impedisse de continuar aquela descrição. Loch Erne. O nome era uma nota desafinada na memória dela, como uma harpa caindo ruidosamente em cima de pedras.
Gelina afastou-se.
- Não gosta mesmo das minhas calças? Eu detestava ter que trocá-las por saias eternamente.
- Como vou conseguir fazer de você uma noiva quando todos os seus pretendentes a tomam por um dos meus soldados?
Gelina baixou a cabeça, incapaz de suportar o olhar provocador dele.
- Esta brincando. Não tenho pretendentes. Quem quer uma moça tão alta como eu?
Conn levantou-lhe o queixo até os olhos dela fitarem os seus.
- Qualquer homem que aprecie éguas fogosas. - Os lábios dele roçaram a testa dela. - Mas não é qualquer um que vai me roubar a minha pequena.
Gelina riu para esconder a alegria que lhe tinha posto as mãos a tremer. Deu-lhe o braço e regressaram os dois ao tabuleiro de xadrez.
Enquanto dispunha cuidadosamente as peças, Gelina perguntou:
- Esta primavera, Conn, podemos fazer um piquenique? Você, eu, Mer-Nod, Nimbus? Moira prepara uma cesta e procuramos a colina mais bonita e verde de Erin. - Baixou os olhos brilhantes. - Sheela também pode ir, se quiser.
- Por quê? Você a detesta.
Gelina encolheu os ombros.
- Não gosto muito de mulheres fracas e tolas. - Concentrou-se na escolha correta do quadrado onde o rei e a rainha deviam ser colocados, mudando-os de posição três vezes.
- Não gosta é das mulheres que andam sempre de vestido. E ela só foi tola quando você e Nimbus lhe puseram aquelas formigas no pó de arroz. - Trocou a posição do rei e da rainha dela. - Seja como for, esse piquenique talvez nunca se realize. Vou estar fora na primavera.
Olhando-o sobressaltada, Gelina recostou-se na cadeira:
- Fora? Alguma invasão?
- Devo demorar mais do que isso. Vou à Britânia.
- Por quê? Está ocupada pelos romanos.
- E por isso mesmo que eu vou lá. Para me certificar de que eles não pensam fazer o mesmo a Erin. - Conn desviou os olhos, sem saber ao certo qual a emoção que eles transmitiam.
- Quanto tempo vai demorar?
- Três meses. Talvez mais - suspirou. - Não quero voltar a falar do assunto.
Gelina fechou a boca, embora a sua vontade fosse continuar a fazer perguntas. Jogaram em silêncio durante algum tempo.
- Então fazemos o piquenique no primeiro dia quente antes de partir.
Conn sacudiu a cabeça e riu.
- Pobre do homem que um dia vai ter de viver ao lado desses olhos suplicantes. Como queira Gelina.
- Dá sua palavra de honra?
- Alguma vez deixei de cumprir o que te prometi? - O olhar dele perturbou a concentração da moça, que levantou os olhos do tabuleiro.
- Não, nunca - murmurou, olhando para baixo. Moveu a rainha, piscou os olhos e declarou: - Xeque-mate.
Nessa mesma noite de inverno, numa outra sala iluminada por outra lareira, tinha lugar um tipo diferente de jogo. Barron O’Caflin tinha a cabeça apoiada na palma da mão e uma expressão pensativa. Dois homens sentados à sua frente aguardavam uma resposta.
Por fim se levantou e começou a caminhar junto à lareira.
- É muito grave o que me pedem. Não foi nada disso que me disseram no início. Uma coisa é espiar o meu rei, outra muito diferente é organizar a sua morte.
- Não lhe pedimos que matasse o seu rei - murmurou o homem mais alto - mas apenas que nos ajude a fazer com que ele desapareça. Só precisa fazê-lo ir parar às nossas mãos para que possamos fazê-lo chegar às mãos dos mercadores de escravos romanos.
A figura encapuzada que há uns meses O’Caflin conhecia muito bem puxou uma faca escondida nas pregas da sua capa e passou a lâmina pela parte posterior do seu polegar. Deixou como rasto uma linha fina e vermelha.
- Para quê perder tempo a enviá-lo aos romanos? Eu próprio lhe corto o pescoço, se me deixarem.
A voz melodiosa do seu companheiro tornou-se mais dura.
- Nenhum de vocês tem motivo de pôr em causa as minhas ordens, mas sim obedecer-lhes. Não quero o sangue de Conn sujando as minhas mãos. Ou as suas. Tenho as minhas razões. Só que prefiro não partilhá-las com vocês.
O homem de capuz levou o polegar à boca e chupou o sangue como uma criança petulante. Barron pousou as palmas da mão na mesa.
- E se Conn escapa dos mercadores de escravos e volta?
- Não vai escapar. Se o chicote não o matar, a vergonha cuidará disso.
- Não me pede para trair apenas Conn - acrescentou Barron. - Trairei homens que conheço desde pequeno. Alguns homens do meu próprio clã irão nesses navios.
- E prometo que nada sofrerão. Depois de drogar os membros do precioso Fianna de Conn, os meus homens poderão entrar a bordo livremente e roubar o rei debaixo do nariz deles. Pouparemos o máximo de vidas. As que se perderem pelo caminho morrerão por uma boa causa. Conn tem de desaparecer de Erin. Eu tenho de reclamar o trono. - O homem alto levantou-se da sua cadeira. - Fica do meu lado, como jurou O‘Caflin, ou do lado de Conn e dos seus... amigos de infância? - O seu tom sarcástico transformou a pergunta numa coisa muito desagradável.
- Estou do seu lado. Será o Arrigo de Erin e ocupara o trono de Tara.
Quando as gargalhadas do homem de capuz ecoaram, estridentes, na pequena sala, Barron teve de fechar as mãos com força para não o espancar, cego de raiva.
A primavera não tardava. Gelina abriu as portas da sua janela, debruçou-se e respirou fundo. O ar fresco e doce encheu-lhe os pulmões. A manhã era a parte do dia que preferia, mas naquela ninguém batera jovialmente à sua porta. Nimbus partira para o norte, enviado por Conn para a costa rochosa onde os navios se preparavam para navegar rumo a Britânia.
Em Tara não se falava outra coisa. Uns diziam que Conn queria conquistar a Britânia, outros insistiam que ele ia ajudar os romanos na sua conquista, de olho na partilha do prêmio. Gelina não se dava ao trabalho de especular, nem sequer de pensar nos longos meses em que Conn estaria ausente.
Naquela manhã, também ela tinha uma missão a cumprir. Lavou-se e vestiu as calças e o colete de cabedal, que haviam se tornado uma visão habitual na fortaleza às primeiras horas da manhã.
Abriu a porta e olhou para um e outro lado, à procura de algum sinal da presença de Conn. Ele já tinha ameaçado levar dali o seu uniforme improvisado se a apanhasse vestida com ele. O corredor estava vazio. Enterrou bem as mãos nos bolsos, atravessou a entrada e, depois de percorrer vários corredores, chegou a uma porta de madeira maciça.
Quando abriu a mão e apertou com força o puxador, ouviu espantada, uma voz dizer atrás dela:
- Então é você o rapaz que anda roubando as minhas roupas. Devia dar cabo de você neste mesmo instante!
Gelina sentiu alguém agarrar com força no seu braço e virou-se, para dar de cara com um soldado assustado. A sua boca escancarou-se por debaixo do grande bigode castanho assim que ele a reconheceu. Largou-a e Gelina chocou com a porta. Os seus olhos verde-esmeralda abriram-se ainda mais e a franja dos cílios escuros apanhou-o desprevenido.
Numa tentativa de mostrar um mínimo de compostura o rapaz disse:
- Desculpa. Não me passava pela cabeça que fosse você.
Gelina encostou-se à porta, aliviada.
- Tem razão. As roupas são suas e eu roubei-as.
O rapaz limpou a testa transpirada com as costas da mão.
- Nunca tinha visto uma mulher de calças. Muito menos com as minhas.
Gelina podia jurar que ele tinha corado ligeiramente, apesar de ter a pele queimada pelo sol. Falou depressa para tranquilizá-lo.
- Sinto-me mais confortável de calças. Claro que isso não é motivo para roubar. Eu já as devolvo.
O soldado estendeu um braço, como se temesse que ela as despisse ali no meio do corredor.
- Estão velhas e gastas. Pode ficar com elas.
Gelina ia perguntar se podia também ficar com o colete, mas depois decidiu não abusar de tanta generosidade. O soldado olhava para a porta com um ar consternado.
A explicação de Gelina não se fez esperar:
- Nimbus mostrou-me quase tudo o que há em Tara, mas ainda não vi a sala de armas. Receio que Nimbus não queira nada com elas, a não ser quando as usa nos seus malabarismos.
O soldado franziu a testa, desejando lhe perguntar por que queria tanto vê-las.
- Está fechada à chave, sabe - disse. A decepção lia-se no rosto dela.
- Mas... por acaso trago a chave comigo.
Tirou uma chave de ferro do bolso, reparando com prazer no sorriso que se desenhou no rosto dela. Abriu a porta e só parou para dizer:
- Chamo-me Sean O’Finn.
Gelina fez que sim com a cabeça, mordendo o lábio para não dizer que Nimbus já lhe tinha falado nele justamente na tentativa de evitar aquele encontro.
As duas portas abriram-se para dentro, para um salão tão espaçoso como o salão de entrada de Tara. Gelina abriu a boca de espanto. Do chão ao teto só se viam instrumentos de guerra e morte. Espadas, machados de batalha, lanças, clavas, maças e azagaias revestiam as paredes com uma camada reluzente de ouro, prata e bronze. Havia tochas de pinheiro ardendo em suportes de ferro pendurados no teto alto e curvado.
- Dizem que a luz conserva as armas brilhantes e afiadas - murmurou Sean, numa voz em que o ambiente sagrado do lugar dava um tom solene.
Gelina entrou, pensando que nunca tinha visto uma coisa tão maravilhosa. Sean seguiu-a, abismado. Nunca tinha visto uma mulher reagir daquela maneira a uma sala de armas. Mas também nunca tinha visto uma mulher com as suas calças vestidas.
Cristais de luz projetados pelas tochas cintilantes davam uma cor alaranjada às extremidades das armas, um fantasma do sangue derramado muitos anos atrás. Os seus passos leves ecoavam pelo espaço vazio.
- Algumas destas armas costumam ser usadas em batalhas? - perguntou Gelina.
Sean respondeu:
- Em períodos de paz, como este, apenas três batalhões do Fianna permanecem ativos. O que deixa quatro batalhões de reserva, que podem ser convocados se houver guerra. As armas seriam distribuídas dependendo da situação. - Deu-lhe o braço e conduziu-a a uma parede distante. - As minhas preferidas. Conn preservou-as em nome dos nossos antepassados.
As armas tinham as marcas da idade. Gelina leu o que estava escrito por debaixo de um machado enorme, soletrando dolorosamente as palavras como Rodney lhe tinha ensinado.
- Machado de batalha de Macha Mong Ruad, filha de Red Hugh. - Oh, Sean, é mesmo verdade?
- Tanto quanto sabemos. Olha para esta. - Apontou para uma espada com uma serpente enrolada à volta do punho dourado. - Espada de Cathbad, filho de Ross, e Wizard. Diz-se que a espada foi roubada mas reapareceu exatamente aqui onde estamos a vendo, depois de o seu ladrão ter tido morte prematura devido... a picada de uma serpente.
Gelina expirou devagar e sacudiu a cabeça.
Sean indicou um espaço aberto na parede.
- Um dia a espada de Conn, a Libertação, será ali pendurada. Por cima das espadas dos inimigos derrotados por ele, para mostrar a sua supremacia às gerações vindouras.
Gelina fez que sim com a cabeça e em seguida os seus olhos fixaram-se no ponto que ele indicava. Deixou de sorrir quando viu à sua frente uma espada em cujo punho estavam gravadas umas letras estranhas, oblíquas... Vingança. Estendeu uma mão e passou-a pelo punho tão familiar, pelo metal frio que aos seus dedos pareceu um velho amigo. As recordações apertaram-lhe o coração, dificultando-lhe a respiração.
Num duelo com Rodney, investindo, aparando a lâmina de madeira esculpida dele até não conseguir voltar a levantar os braços.
- Essa é a espada que Conn encontrou na gruta com o monstro que assassinou - esclareceu Sean, observando os movimentos dela.
- Eu sei - replicou Gelina, sem tirar a mão e os olhos da espada.
Quase atingindo em dois verões a altura do próprio Rodney. Galopando pelos bosques, empoleirada nos ombros dele. Colidindo com um ramo quando ele se abaixou com um segundo de atraso. Navegando pelos bosques, de espada ainda na mão.
Sean tossiu e virou-se.
- Desculpe. Esqueci-me.
Gelina estendeu a outra mão e retirou a espada do seu suporte. Os olhos fixos, os movimentos rígidos, mecânicos.
Correndo em frente soltando um grito estridente. Enfiando a espada no peito do soldado que surpreenderam para ficar com a capa. Arrancando a espada do seu esterno com um movimento rotativo. Entregando Vingança ao irmão, pedindo-lhe para cortar os cachos ruivos que lhe chegavam à cintura e tinham atraído o homem para a sua morte.
Ergueu os olhos para Sean e um sorriso familiar substituiu o olhar parado:
- Aceita um duelo, Sean O’Finn? - Deu um salto para trás e abaixou-se em posição de luta.
- Não me parece apropriado.
- Roubar as suas roupas também não foi apropriado. Infelizmente sou uma pessoa muito pouco apropriada. - Fez um movimento rápido em direção ao peito do rapaz, que viu surpreendido, a lâmina dela estremecer a dois centímetros da sua barriga.
- Milady, obriga-me a retaliar. Aceito o desafio. - Desembainhou a espada e respondeu a uma distância segura.
Foi com surpresa que descobriu que ela era uma parceira à altura. Viu os músculos dos braços magros de Gelina contraírem-se quando ela tentou desarmá-lo sem pôr em risco a saúde da sua pele. Ambos riram quando ela se baixou para fugir do golpe dele, obrigando-o a desequilibrar-se.
- Onde aprendeu essas habilidades, milady? - perguntou o rapaz, ofegante, desviando-se para o lado.
- Não me lembro - respondeu ela, lacônica.
Gelina só teve tempo para ver o rosto escandalizado de Sheela junto à porta antes de dar consigo encostada à parede, quase sem conseguir respirar. Deixou-se cair até ficar sentada no chão. Vingança tombou com grande estardalhaço. Um par de olhos azuis, zangados e familiares, fixou-se nela. Esforçou-se por recuperar o fôlego enquanto aquele olhar frio como o aço oscilava à sua frente, impedindo-a de ver o resto da sala.
Sean embainhou a espada de boca aberta de espanto.
- Conn, que esta fazendo? Estávamos brincando. - Estendeu o braço numa súplica: - O que foi aquilo?
Conn virou-se para o rapaz de punhos cerrados, numa atitude bem conhecida de Sean.
- Os jogos dela podem ser fatais. - Os seus olhos atravessaram a sala para se fixarem em Sheela, que, de pé apoiada na moldura da porta, o fitava assustada. - Saiam já daqui! Os dois! Imediatamente! - berrou.
Sean fez uma última tentativa:
- Chefe, não estou entendendo...
- Fora!
Falou num tom mais baixo, mas mais mortífero. Sean sabia que era a última vez que Conn o ia mandar embora. Confuso, deu o braço a Sheela e saiu com ela da sala sem olhar para trás.
Gelina fechou os olhos, na esperança de que a sua cabeça parasse de latejar e tentando desesperadamente ver-se livre do nó que tinha na garganta. O silêncio era insuportável. Abriu os olhos e viu Conn em pé perto dela, de braços cruzados e olhando-a fixamente.
Falou numa voz fria.
- Vamos, chora.
A voz abafada de Gelina respondeu:
- Não lhe darei essa satisfação.
Qualquer coisa próxima da vergonha atravessou o rosto dele, mas a sua boca não se abriu.
- Ele disse a verdade - começou Gelina, hesitante. - Estávamos só brincando.
- O que me garante uma coisa dessas? O que me garante que não estava esperando uma oportunidade para lhe fincar a espada? - Começou a andar de um lado para o outro a frente dela.
- Estou em Tara há quase um ano, Conn. E quantos dos seus homens já ataquei com a espada? - Sacudiu a cabeça, frustrada.
- Parecia um pesadelo, Gelina. Entro aqui e dou com você lutando com um dos meus melhores guerreiros. Reconheci os seus movimentos, o modo como maneja a espada. Recordei o que foi vê-la investir na minha direção.
Furiosa, subiu o tom de voz:
- Então ainda me odeia. Confessa. Entrou aqui e pensou logo no pior.
Conn não respondeu. Respirou fundo e viu-a fazer um esforço para não chorar. Olhou para ela e não viu uma moça alta e magra encostada à parede. Viu os olhos cor de esmeralda que o desafiaram diante do tabuleiro de xadrez. Viu saias de cetim rodopiando e mãos agarradas às suas ao som de uma dança movimentada.
Ajoelhou-se ao lado dela e acariciou-lhe delicadamente a nuca. Gelina encolheu-se quando o sentiu tocá-la.
- Esta convencida de que eu a odeio? - perguntou numa voz mais calma.
- Sim. Não. Não sei - respondeu Gelina fungando.
Conn levantou-se e passou uma mão pelos cachos desalinhados.
- Nunca devia te ter trazido aqui. Isto foi tudo culpa minha. Não é justo obrigá-la a conviver com o Fianna todos os dias da sua vida.
- Lamenta não me ter deixado morrer na gruta?
- Claro que não, mas podia tê-la enviado para Rath Crogan, a minha fortaleza no norte. O Fianna nunca vai lá.
- Nem você - murmurou Gelina, muito baixo para que Conn a ouvisse.
- Talvez seja melhor não vê-los todos os dias... nem a mim - acrescentou. Fingiu observar as armas da parede para não mostrar o quanto lhe tinha custado dizer aquelas palavras.
- Talvez - respondeu Gelina friamente, o rosto sem emoção nem cor.- Posso levar as minhas coisas comigo?
Conn não pôde deixar de se virar para ela, chocado com aquela súbita rendição. Tentou falar de forma igualmente monótona:
- Claro. Posso tratar disso hoje.
- Obrigada.
Conn não sabia como deter aquela avalanche de coisas erradas que se intrometera entre eles. Para esconder a sua impotência, dirigiu-se à porta, incapaz de encarar o verde gélido dos olhos dela. Encostou-se à porta que fechou atrás de si com uma estranha mistura de emoções esgotando as forças do seu corpo. Com um ruído surdo, vários centímetros de aço surgiram ao lado da sua face. Reconheceu a ponta de prata da espada que atravessara a madeira.
- A pequena quer então, matar-me.
Abriu de rompante as duas portas e parou para arrancar a espada ainda a balançar, enterrada na porta de madeira. Gelina estava sentada a poucos centímetros do ponto onde a deixara, o rosto escondido nas mãos. Confuso, percebeu que ela não podia saber de que lado ele se encontrava. As lágrimas de Gelina soltaram-se em soluços roucos.
Atravessou o quarto e parou à frente da moça. Gelina ergueu para ele os olhos chorosos e viu que ele trazia uma espada na mão.
- A sua arma, milady. Talvez queira voltar a experimentar acertar em mim.
Gelina abriu muito os olhos, mas em vez de pegar na espada soluçou ainda mais. Conn suspirou e rolou os olhos.
- Para com isso, Gelina. Ainda vai enferrujar as armas se continuar a chorar dessa maneira.
Gelina soluçou ainda mais alto, fazendo uma pausa apenas para limpar o nariz na manga.
Conn ajoelhou-se e apoiou o queixo na cabeça dela. Os cachos de Gelina pareciam feitos de seda, comparados com a barba áspera dele. Gelina chorou convulsivamente, encharcando-lhe a camisa de linho.
- Não vou mandá-la embora, Gelina. Nunca foi minha intenção. - Não se lembrava de mais nada que pudesse pôr fim àqueles soluços amargos. Continuou falando, na esperança de acalmá-la com o som da sua voz. - Em breve, Gelina. Em breve faremos o seu piquenique.
De repente fez-se silêncio sob o queixo dele.
- Acha que Moira nos faz umas empadas?
Conn riu baixinho.
- Basta falar em comida que se anima logo. - A sua voz voltou a estar séria. - Tenho uma coisa para lhe pedir antes que erga esses malditos olhos e eu volte a sentir-me culpado. - Gelina quis levantar a cabeça, mas o queixo dele continuava a pressioná-la. - Por favor, Gelina, nunca mais entre na sala de armas. - Fez-lhe uma caricia no braço. - E, por favor, Gelina... perdoe-me.
Um único e sutil aceno de cabeça indicou que ela o tinha ouvido, mas isso para Conn foi suficiente. Esfregou o rosto no cabelo dela e fechou os olhos com força.
Gelina saltou da cama, correu para a janela e abriu as portas. Tinha chegado o dia. A inclinação dos raios de sol sobre o seu rosto era diferente da habitual. Por baixo do escudo da noite o mundo tornara-se verde. Não daquele verde mais escuro do verão que se cola à relva, mas do verde-menta das folhas novas que se desenrolam, brilhantes e úmidas, um verde que um vento forte podia soprar para longe. Uma névoa leve cobria as montanhas distantes, embrulhando a sua vítima final antes de ser deposta pelo calor do sol.
Gelina arrumou-se escolhendo um vestido simples de linho amarrado na frente e que cobria a sua figura alta até meio da perna. De pé em frente do espelho, passou a escova de marfim pelos seus cachos, depois se inclinou para frente a fim de ver a sua imagem. Era sua imaginação ou o vestido estava mais apertado naquela manhã?
Pousou uma mão curiosa no peito e murmurou:
- Não acredito que o meu peito está maior.
- Por que não? Já não era sem tempo! - Nimbus apareceu à porta com um sorriso de provocação nos lábios.
- Oh! - gritou Gelina, mostrando-lhe a escova num gesto ameaçador.
- Nunca te disseram que não se entra no quarto de uma senhora sem bater primeiro à porta?
Nimbus estendeu os braços numa súplica, mas também para se proteger da escova:
- Ora, Gelina, estava brincando.
Gelina baixou o braço e esperou que Nimbus fizesse o mesmo. Então, voltou a estendê-lo e a escova foi bater-lhe no estomago.
- Uff! - Nimbus dobrou-se ao meio e ficou estendido no chão.
Gelina correu para ele, com medo de que a sua surpresa lhe tivesse tirado a vida. Ajoelhou-se e sacudiu-o, agarrando-o pelos ombros.
- Ai, daqui vê-se perfeitamente que o seu peito está maior. - O seu sorriso apanhou-a desprevenida e Nimbus agarrou-lhe a mão para ela não pegar outra vez na escova. Gelina desceu e ajudou-o a levantar-se.
- Conn ainda está na cama? - perguntou, sabendo que Nimbus dava passeios matinais pelo castelo para saber quem estava dormindo e com quem.
- Está acordado desde que o dia rompeu. Certamente não se esqueceu de que ele parte amanhã - respondeu Nimbus, observando-a pelo canto do olho.
Gelina encolheu os ombros como se a partida de Conn fosse a última coisa em que ela estava pensando. O som estridente de uma voz feminina abalava a tranquilidade do corredor quando chegaram perto dos aposentos de Conn. Com o consentimento mútuo de dois conspiradores, trocaram olhares, incapazes de resistir à tentação. Gelina tapou a boca com a mão para reprimir a pequena gargalhada que podia denunciá-los. Nimbus fez uma careta quando a voz indignada de Sheela lhe espicaçou os nervos.
- É difícil acreditar que prefere gastar o seu precioso tempo com aquela infeliz e não comigo.
Gelina esticou a cabeça, mas não ouviu a resposta contida no murmúrio de Conn.
Sheela voltou a levantar a voz.
- O meu falecido marido nunca me trataria desta maneira. - A voz de Sheela assemelhava-se a um rugido. Nimbus colocou as mãos em volta do seu pescoço e fingiu vomitar.
Gelina dobrou-se, mas do quarto só veio silêncio. Era evidente que Conn tinha encontrado uma maneira de silenciar Sheela, pois nada se ouviu atrás da porta entreaberta durante alguns minutos.
- É que ela é tão esquisita. Parece mais um rapaz do que uma moça. O que você vê naquela pequena? - perguntou Sheela, abrindo a porta sem avisar.
A pequena a que se referira apareceu à frente de uma Sheela pasmada e amuada, com mais uns bons centímetros de altura.
- Oh... - Sem se lembrar de nada mais inteligente para dizer, Sheela bateu com o pé no chão e fugiu corredor fora, ignorando Nimbus, que estava de língua de fora e olhos escancarados.
O próprio Conn saiu do quarto tentando parecer severo, enquanto olhava os dois transgressores de testa franzida. Gelina dirigiu-lhe um sorriso radiante e pegou-lhe numa mão. Nimbus pegou-lhe na outra. Conn tentou resistir-lhes, mas logo em seguida cedeu à vontade de sorrir e apertou a mão de Gelina.
- Anda pequena, vamos fazer o tal piquenique.
Nimbus amuou:
- Presta sempre mais atenção à pequena do que a mim - disse, numa imitação perfeita da voz de falsete esganiçada de Sheela. Encolheu-se numa tentativa vã de escapar à palmada de Conn.
Mer-Nod encontrava-se no pátio, tentando exibir um ar digno apesar da saca de serapilheira que trazia ao ombro. Nimbus pôs-se a dançar atrás dele, fazendo caretas grotescas até Mer-Nod tirar a saca das costas com um sorriso manhoso.
Conn aproveitou as imprecações de Nimbus para dizer a Gelina:
- Tive de arranjar um guarda-costas. Não posso correr riscos no meu último dia aqui.
Gelina suspirou:
- Um membro do Fianna, com certeza, não?
- Sim, mas acho que vai gostar dele.
Como quem responde a uma deixa, Sean O’Finn apareceu num canto. Sorriu a Gelina, com o desconforto que a recordação da última vez que tinham se encontrado o fazia sentir. Ela virou-se para Conn e baixou a cabeça, fornecendo-lhe a informação que ele procurava.
Com um último pontapé nas canelas de Mer-Nod, Nimbus saltitou para o lugar da frente e encabeçou o desfile que atravessou o portão. Percorreram as colinas verdejantes, deixando a brisa fresca secar as suas testas transpiradas. Gelina corria de monte em monte, parando para apanhar violetas azuis. Conn seguia com o olhar aquela figura esguia, escutando deliciado as suas gargalhadas guturais. Sentiu a sombra de Nimbus colocar-se a seu lado e abrandou as passadas até ficarem os dois para trás.
- Tenho de partir Nimbus - disse, sem olhar para baixo.
- Eu sei.
- Um homem como eu... um homem do Fianna... Vive muito inquieto para se satisfazer com os confortos do lar, da vida de família, de filhos.
- Claro, tem de partir. Vi aquele brilho nos seus olhos Conn. - Nimbus seguiu o olhar de Conn até ao rosto de Gelina, entretida colocando uma grinalda de flores em volta do pescoço de Sean. - Aquela ânsia por uma coisa diferente, nova, inexplorada.
Conn olhou-o espantado.
- Como a Britânia, claro - completou Nimbus.
Conn cerrou os lábios. Voltou a olhar para Gelina.
- Toma conta dela, Nimbus?
- Sempre.
- Ela é apenas uma criança em tantos aspectos...
Nimbus tirou uma flauta do bolso.
- Quem você quer enganar? A mim ou a você?
Antes de Conn conseguir puxá-lo pela gola, Nimbus já dançava ao mesmo tempo em que tocava uma melodia alegre. Sean sentou-se numa pequena elevação livre dos espinhos do tojo e Mer-Nod encostou-se a uma árvore.
Nimbus continuou tocando enquanto Gelina dançava por debaixo da frondosa copa do ulmeiro . Os seus pés descalços saltavam. Com a saia rodopiando em volta das pernas queimadas pelo sol, parecia um espírito da floresta, tão irreal como o orvalho que desaparecia sobre as plantas. Conn agarrou-lhe as mãos e os dois dançaram ao som das palmas batidas por Sean. Giravam cada vez mais depressa. Conn não tirava os olhos dos cachos ruivos iluminados pelo sol.
Sean tanto fez que conseguiu arrancar a flauta das mãos de Nimbus e uma música que ele treinara durante muitas noites, acampado numa colina longínqua, ergueu-se no ar, queixosa e doce. Nimbus tirou três grandes maçãs da saca de comida e atirou-as ao ar, uma de cada vez. Gelina interrompeu a dança e estendeu uma mão. Nimbus lançava-as para ela, que riu assim que apanhou uma. As outras duas voaram também na direção dela. Usou-as num número de malabarismo, até ser apenas uma mancha assoviando por cima das suas mãos. Atirou-as para Conn, Nimbus e Mer-Nod, que as agarraram, espantados. Um sorriso raro, sincero e sem ponta de sarcasmo, cruzou o rosto do poeta.
O sol do meio-dia encontrou-os comendo carne de vaca e queijo em cima de nacos de pão recém assados. Ao lado deles viam-se cálices dourados cheios de hidromel. Conn colocou metade do conteúdo do cálice de Gelina no seu, ignorando a expressão de protesto dela.
Inclinou-se, o seu hálito quente contra o ouvido dela, e sussurrou:
- Não quero a minha protegida cambaleando no salão. Moira cortaria-me o pescoço.
Gelina respondeu também num murmúrio, sentindo o calor da bebida nas veias:
- Mas foi Moira que colocou a bebida no saco, não foi?
Conn enfiou a mão no saco e tirou de lá uma garrafa:
- Também pôs leite de cabra.
Gelina franziu a testa:
- Tenho mesmo de bebê-lo?
- Claro. - Mas enquanto falava destapou a garrafa e deixou o leite amarelado escorrer num fluxo contínuo.
Nimbus dormia e ressonava sonoramente. Mer-Nod e Sean discutiam, entusiasmados, um velho poema.
Gelina tocou distraidamente na barba de Conn, arrancada dos seus sonhos pelo zumbido de uma abelha:
- Conn?
- Que foi?
- Acho que nunca fui tão feliz. - Deitou-se de barriga para baixo na relva macia e arrancou uma folha longa que passou pelo seu queixo.
Conn compreendeu. Nem naquele castelo dominado tão distante ela tinha se sentido tão feliz.
Conn pegou numa das mãos dela e suspirou:
- Que vai ser de mim tantos meses longe de você, guerreira?
Gelina retirou a mão e sorriu:
- Tem de me trazer um presente.
- É mesmo uma mulher - refilou Conn. - E o que anseia o seu coração, milady?
- Um vestido.
Os olhos de Conn abriram-se de espanto:
- Pensei que um belo par de calças fosse mais do seu agrado.
- Não. Quero um vestido vermelho, dourado e verde.
- Não havia na alma cores mais berrantes para escolher - riu Conn.- Nimbus contratou-a para a feira ambulante?
A voz sonolenta do anão chegou da parte posterior da árvore.
- Ela é boa demais para a feira.
- ...ou para o Fianna - disse Sean em voz baixa. Conn deu-lhe um olhar.
- O Sol está se pondo, Gelina. Temos de voltar para Tara - disse, obrigando-a a levantar-se.
Ficaram os dois de pé, de mãos dadas, a um segundo de se separarem ou partirem juntos. Nimbus teve de desviar os olhos, que ardiam de forma pouco habitual.
Quando virou a cara, viu em cima da colina uma silhueta masculina cujas feições a contraluz o impedia de distinguir. Parecia um fantasma pairando por cima do grupo. Conn foi o único que não se espantou com aquela aparição. Mer-Nod olhou-o com uma expressão interrogativa.
Barron O’Caflin chamou:
- Conn, o navio está à nossa espera. Os homens já embarcaram.
Gelina olhou para os seus pés sujos de terra com um sorriso no rosto.
Conn dirigiu-se ao grupo silencioso:
- Quis evitar uma cerimônia amanhã. Vou partir agora. Mer-Nod exercerá as funções de regente.
O chefe dos poetas concordou, baixando levemente a cabeça. A questão tinha sido discutida repetidamente desde que a ideia da viagem surgira no espírito de Conn. Gelina continuou de cabeça baixa.
- Sean será o guarda-costas de Gelina, visto que Mer-Nod vai estar muito ocupado governando Erin. - Sean pareceu intrigado, mas disfarçou a sua decepção quando Conn lhe dirigiu um sorriso agradecido.
- O seu cavalo aguarda do outro lado da colina - gritou Barron. Tentou interpretar a cena que via em baixo. Não ouvia o que diziam, mas percebeu qual o ambiente que lá se vivia.
Nimbus estava encostado à árvore, de braços cruzados. Gelina não olhava para ninguém. Mer-Nod endireitara-se, sentindo o peso da responsabilidade assentar nos seus ombros estreitos. Conn tinha um ar sombrio e Sean O’Finn, amigo de infância de Barron, parecia apenas resignado. Mal sabia ele que tinha sido o próprio Barron que sugeriu que ele permanecesse no castelo.
Conn deu uma palmada no ombro de Nimbus.
- Você, meu amigo, tem de levantar o ânimo das pessoas. Quero-as sorrindo até eu voltar. Se perderem a esperança, Eoghan acaba por conquistar Tara.
Nimbus concordou consciente, como poucos, da sua importância.
Concordando em silêncio, Nimbus, Mer-Nod e Sean O’Finn começaram a caminhar na direção da fortaleza, que mal se via no céu enevoado da tarde. Barron desapareceu atrás da colina. Gelina e Conn ficaram a sós. Gelina levantou a cabeça e olhou ao redor, para as montanhas que ficavam além da sombra de Tara. Nos olhos, nem uma lágrima. Uma brisa despenteou-lhe o cabelo.
- Voltará, não voltará? - perguntou. Os seus olhos ainda estavam fixos nas colinas distantes.
- Tenho de lhe trazer o tal vestido, não é verdade?
- Vermelho, dourado e verde. - Era uma afirmação e não uma pergunta. Conn fez que sim com a cabeça. Cansada, Gelina afastou uma madeixa de cabelo dos olhos. - Tem de partir.
Conn segurou o rosto dela com a mão e virou-o para si. Os olhos de Gelina estavam estranhamente frios, a sua luz extinguira-se. Qualquer coisa faiscava por debaixo da sua cor de esmeralda. Por uma fração de segundo, Conn viu à sua frente a mulher em que ela se transformaria, viu o passado refletido naquele verde brilhante. Os pais dela tinham morrido diante dos seus olhos... o irmão caíra aos seus pés, empurrando-a contra a pedra... e agora ele ia abandoná-la.
Num instante de clareza inesperada, Conn respirou fundo, sentindo a dor dela como a de um punhal retorcendo dentro de si. Gelina viu-o, cautelosa, dobrar um joelho e levar as costas da mão dela aos seus lábios. Não disse nada e afagou-lhe o cabelo, insegura em relação àquele gesto pouco habitual. Conn levantou-se sem pronunciar uma palavra e dirigiu-se à colina sem olhar para trás. Ao vê-lo desaparecer no horizonte, Gelina acenou-lhe um adeus que ele não viu. Depois se virou e correu rumo à fortaleza até o ar lhe faltar e o corpo lhe doer.
Um vento frio soprou por cima de Gelina, que caiu de joelhos, e, pela primeira vez, ouviu trovejar ao longe. Ainda estava ajoelhada quando a tempestade rebentou sobre os montes. Ondas de chuva precipitaram-se em cima dela, colando o vestido ao seu corpo. Ergueu o rosto para o céu, deixando a chuva lavar as suas lágrimas ainda antes de elas rolarem.
A chuva já tinha parado. Conn estava sentado no curragh à espera que o levassem a remo para o navio, quando Nimbus deslizou a encosta rochosa abaixo, preferindo usar as costas a usar os pés.
Um soldado deu um passo em frente para lhe impedir a passagem. Nimbus esgueirou-se por entre as suas pernas. Ao ouvir o grito do soldado, Conn ordenou:
- Deixa-o passar.
Nimbus entrou na água e caminhou até agarrar a borda da instável embarcação com as suas pequenas mãos, imediatamente antes das ondas se avolumarem por cima da sua cabeça.
Com um braço, Conn içou o corpo encharcado para dentro do pequeno barco.
- E a que devo a honra desta visita? - perguntou, baixando-se enquanto Nimbus sacudia a água da cabeça como um cão.
Nimbus sorriu malicioso:
- Tenho um recado para lhe dar.
Conn enrugou a testa:
- E que recado é esse?
Nimbus coçou a cabeça distraído.
- A não ser que esteja interessado em partir para a Britânia, sugiro que se apresse.
- Bem... creio que as últimas palavras da jovem foram...
- Jovem? Mas que jovem?
- ...diz ao rei que eu compreendo. Hoje foi apenas um homem. Esta noite tem de ser um rei.
Conn sentou-se no banco corrido e fitou a fina camada de água no fundo do bote. Hoje fui rei. Esta noite sou apenas um homem. Ele próprio tinha dito essas palavras. A uma mulher que não lhe saía da cabeça desde aquela noite morna da véspera do solstício. Sentiu um nó na garganta ao recordar uma máscara dourada, uns olhos baixos, uns lábios esmagados como pétalas sob os seus. Procurou agarrar Nimbus pela gola no preciso instante em que ele saltou para as ondas como uma foca.
- Nimbus! - gritou.
Uma pequena cabeça emergiu a poucos metros da costa.
- Quem era ela? Tem de me dizer. - Conn pôs-se de pé. O curragh balouçou na espuma das ondas.
Nimbus virou-se de costas e bateu os pés alegremente em direção à praia.
- De quem é o recado, Nimbus? Espera até eu lhe colocar as mãos... - Conn brandiu um punho fechado.
Nimbus gatinhou para fora da água e começou a dançar na praia rochosa.
Conn pôs as mãos nas ancas, lábios cerrados de fúria.
- Na qualidade de rei de Erin, ordeno-lhe que me diga quem o mandou dar esse recado.
Nimbus fitou os dois soldados que de repente surgiram dos lados do rei. Com uma pequena reverencia rendeu-se, fechou as mãos em volta da boca e gritou:
- Ora, Gelina, claro! Quem havia de ser?
Com um sorriso, Nimbus viu Conn sentar-se tão repentinamente que o curragh se virou, lançando o rei no mar gelado.
Os soldados mergulharam para ir buscá-lo e Nimbus subiu a colina íngreme assobiando pelo caminho.
O verão terminou
Só sei uma história - os cavalos lastimam-se, a neve cai do céu, o verão terminou.
Depressa o sol se deixa mergulhar por trás das nuvens, altas e longas.
Os gansos selvagens lamentam a tempestade; as folhas caem, vermelhas, rasgadas.
As asas dos pássaros cobrem-se de gelo e só sei uma história - o verão terminou.
Autor desconhecido Século IX
O tempo continuou ameno ao longo do verão. Dos mares não veio notícia de Conn e a fortaleza empenhou-se corajosamente em manter o seu frágil equilíbrio. Três batalhões do Fianna patrulharam Tara e a zona circundante, dedicando uma atenção especial a Eoghan Mogh e aos seus homens. Para surpresa e alívio de todos nenhum ataque veio do seu pulso cruel. Os camponeses regressaram aos seus buailtean para cuidar do gado com uma energia renovada. A colheita foi boa nas planícies de Erin. Os carneiros espalharam-se pelos prados verdejantes, as suas pelagens mais espessas e fortes prontas para a tosquia.
Naquele dia quente, com o sol caindo em linha reta na sua cabeça, Gelina estava no pátio, balançando os pés nus sentada no trapézio. O balanço estava imóvel; não havia a mínima brisa que o movesse. O corpo dela estava tão quieto como o balanço, com uma característica expressão pensativa no rosto. Agarrava com força as cordas sempre que sentia que estava subindo no ar. Quando ouviu um riso familiar, atirou-se para o chão, caindo de bruços, e olhou em volta.
- Raios, Nimbus! Anda querendo me matar?
- Não. Mas estou farto de lhe ver com esse ar mórbido, como um fantasma. - Os olhos dele iluminaram-se quando a agarrou pelos ombros, que ficavam à sua altura quando ela se baixava.
Gelina não pôde deixar de rir.
- Estava comparando uma brincadeira com o túmulo, idiota.
Um sorriso substituiu o cenho carregado dele.
- Ainda sabe dar saltos mortais? - Subiu para o colo dela e agarrou o trapézio com as suas pequenas mãos.
- Oh, se saísse de cima de mim era mais fácil. - De pé, Gelina ajudou-o a segurar a barra estreita.
- O ideal - disse ele - era termos dois trapézios. Eu largava-me de um deles e você me apanhava no outro.
- Ou vice-versa - comentou Gelina com um sorriso maldoso.
Nimbus ignorou-a, deu um duplo salto mortal e caiu impecavelmente de pés. Gelina pegou na barra e subiu em cima dela. O trapézio ganhou balanço com os movimentos das suas pernas. Tirou as mãos, ficou presa pelos joelhos e viu três rostos sorridentes olhando para si.
Endireitou-se e olhou para baixo, para a suposta amante de Conn, que a observava na companhia de duas moças pouco mais velhas do que a própria Gelina. As presilhas douradas que lhes amarravam o cabelo e canudos chocavam umas nas outras, tilintando, quando elas sacudiam as cabeças a rir.
Uma delas, baixa e gorda com um rosto branco como o marfim onde sobressaiam as sobrancelhas pintadas de negro, chamou:
- Tem certeza de que Conn não adotou um filho em vez de uma filha?
Romperam em gargalhadas enquanto o rosto de Gelina corava, reação que não conseguiu evitar. Levou uma mão desajeitada aos cachos cortados curtos, morta por estragar o penteado elaborado das moças.
- Então, meninas - repreendeu a voz arrogante de Sheela - não devemos ridicularizar os menos afortunados. - Sacudiu a cabeça, fingindo censurá-las, agitando os seus cachos escuros. - A matéria-prima é tão fraca que não admira que a infeliz use vestuário masculino.
Desataram a rir novamente. A mão direita de Gelina ansiava por uma espada.
- Cabra . - Pronunciou a palavra no seu tom de voz normal e só quando reparou no silêncio que se fez à sua volta percebeu que tinha falado em voz alta.
As três mulheres tinham as bocas abertas, três verdadeiros círculos de pasmo. O aplauso de Nimbus quebrou o silêncio. Saiu das sombras e apareceu diante do inesperado público.
- A feira terminou Sheela, saiam.
A Gelina ele pareceu um gigante, de pé com as mãos nas ancas, enfrentando aquelas mulheres. Sheela deu um sorriso sarcástico como se quisesse dizer alguma coisa, mas mandou as moças seguirem em frente. Gelina ouviu as gargalhadas esmorecer quando elas entraram na fortaleza.
Quando se sentou calada no balanço, Nimbus virou-se para ela:
- Onde aprendeu aquela palavra? - perguntou.
Os olhos de Gelina semicerraram-se perigosamente.
- Quer ouvir outras?
As pernas dela balançaram, acelerando o trapézio à medida que a sua voz subia de tom. Uma corrente de obscenidades, algumas das quais Nimbus nunca tinha ouvido, jorraram-lhe dos lábios. Nimbus ouvia, os seus olhos redondos de incredulidade, enquanto ela terminava a tirada com um triplo salto mortal e aterrisava, de braços estendidos e ofegante, no feno.
Nimbus correu para o corpo prostrado e perguntou num tom amável:
- Esta bem?
Os olhos de Gelina abriram-se, mas ela não deu a resposta abrupta que lhe veio aos lábios, lembrando-se da forma oportuna como ele se vira livre de Sheela.
- Nimbus?
Nimbus falou num tom mais delicado do que o habitual, como se receasse provocar uma explosão impossível de parar:
- Sim, Gelina?
- Me ensina a pentear o meu cabelo?
- Não precisa de canudos e presilhas. É bonita assim.
Estendeu-lhe uma mão e suspirou de alívio quando ela a aceitou. Um pouco de força foi o suficiente para fazê-lo mergulhar de cabeça no feno. Repetindo algumas palavras que a ouviu pronunciar minutos antes, Nimbus reapareceu com o cabelo coberto de palha.
- Me ensina a pentear o meu cabelo, Nimbus! - Ele reparou no tom de súplica que ela usara.
Pôs-se de pé e fez-lhe uma reverencia:
- Como poderia recusar fosse o que fosse à menina do rei?
Gelina ouviu a resposta e sorriu.
Escuridão.
Uma cortina escura e nublada asfixiava-o, silenciando todos os sons à exceção do infindável sussurro do oceano por baixo do seu ouvido. Estava deitado às escuras há tanto tempo que já não sabia dizer se tinha os olhos abertos ou fechados. Uma tábua rachada fazia vezes de travesseiro, gravando sulcos sangrentos no seu rosto a cada solavanco do navio. O latejar agonizante das mãos e dos pés atados finalmente dera lugar a uma misericordiosa dormência. Embora por vezes desejasse gritar bem alto, recusava-se a dar aos seus captores essa satisfação. Conn, das Cem Batalhas jazia no silêncio da exaustão, sonhando com os dias ensolarados que tinham precedido aquela noite interminável. Sonhando com a liberdade que ele tomara por garantida antes de ir parar no porão dos escravos de um navio romano.
Dois barcos partiram de Erin naquele dia do piquenique. Os veleiros iam carregados de membros do Fianna. Conn comandava o navio da frente enquanto um solene Barron O’Caflin comandava o outro. O entusiasmo dominava os homens enquanto se afastavam da costa agreste e rochosa. A espuma do mar que lhes polvilhava os rostos parecia aumentar o seu apetite de aventura. Muitas luas tinham aparecido e desaparecido desde o dia em que os homens do Fianna foram ao mar. Conn acompanhou-os no seu exuberante cântico à medida que o litoral de Erin deixava de se ver.
Uma brisa fresca carregada de sal atingiu Conn, debruçado na amurada do navio. O fantasma de um sorriso perseguia-o desde que Nimbus lhe fizera chegar a sua critica mensagem. Ainda não percebia como era possível os lábios que tinham encostado aos seus tão deliciosamente naquela morna e ventosa festa do solstício eram os de Gelina. Ainda não acreditava que a misteriosa sereia que o enfeitiçara apenas com um beijo inocente era Gelina. A primeira coisa que ia fazer quando regressasse a Tara era repreendê-la por lhe ter desobedecido, disse a si mesmo com firmeza. Mas à medida que a recordação de cada carícia inebriante que ousara fazer, de cada viagem dos seus lábios pela carne fresca dela, o assaltava com uma força inquebrantável, a repreensão passava a um sorriso amargo. Se ela levasse uma espada debaixo da capa nessa noite, ele já não estaria ali.
Talvez devesse tê-la levado naquela viagem. Riu em voz alta ao imaginar a reação dos romanos àquela criança-mulher, àquela filha de Erin de espada em riste.
O grito de um dos homens empoleirado no passadiço interrompeu as suas divagações.
- O‘Caflin diz que há barris de cerveja por debaixo do convés. Vamos a eles?
- Só se a primeira caneca for para mim - gritou-lhe Conn.
Quando os barris rolaram para o convés e as suas torneiras se abriram, os homens aclamaram ruidosamente. Conn bebeu a primeira caneca de um trago e os outros seguiram o seu exemplo.
Um calor agradável desceu pela sua garganta e penetrou no seu estômago. Mas havia uma tristeza peculiar enroscada no seu cérebro como uma serpente mareada. Semicerrou os olhos, confuso, enquanto via os seus homens surgir um a um no convés, atordoados de sono. Um riso tonto escapou-se dos seus lábios. Era apenas um eco oco quando o convés subiu ao seu encontro.
Estava ali deitado, paralisado pelo veneno, quando o navio familiar passou perto deles. Enquanto os homens mascarados corriam ao convés do seu navio, cortavam metodicamente os pescoços dos seus homens. Não pôde fazer nada por eles, para salvá-los. Só pôde continuar ali estendido, escutando os gorjeios dos moribundos, à espera que algum inimigo invisível cortasse o seu próprio pescoço. Quando percebeu que só podia ter sido um homem do Fianna a traí-los, quase ansiou pelo golpe ávido da lâmina.
Mas em vez disso amarraram-lhe os pés e as mãos e arrastaram-no por um convés manchado com o sangue dos seus camaradas. Só quando o atiraram contra a amurada é que ele viu a embarcação que se aproximava a leste a toda a velocidade. Só então viu a bandeira romana hasteada no topo do mastro mais alto. Só então a escuridão tomou conta dele.
- Gelina, esta deslumbrante.
- Muito engraçado, Nimbus.
De pé à frente do espelho comprido, Gelina sentia-se tudo menos deslumbrante. O seu cabelo em cachos, que, entretanto já lhe chegava aos ombros, estava preso, cada madeixa diligentemente enrolada num trapo por um bobo com uma paciência raro. Gelina aguardava o resultado dos esforços de ambos. Era agradável sentir a camisa de seda suave sobre a pele queimada pelo sol.
- Pareço idiota. - E bateu com o pé no chão.
- Sinto-me ofendido. - Nimbus virou a cara, amuado, cruzando os braços e esticando o lábio inferior.
- Oh, desculpa Nimbus. Esqueci-me de que é um idiota! - Parecia verdadeiramente arrependida. Nimbus esticou o lábio mais um pouco.
- Ora, ainda piorei mais as coisas. Moira arranjou o vestido?
Nimbus esqueceu a desastrada escolha de palavras de Gelina. Foi correndo até o biombo, olhou para um e outro lado e puxou para fora uma caixa de madeira. Gelina disfarçou um sorriso, certa de que não havia espiões atrás do biombo. Com dificuldade, Nimbus colocou a caixa pesada no centro do quarto. Ofegante, abriu a tampa esculpida. Gelina ajoelhou-se ao lado dele e ficou de boca aberta quando viu o seu conteúdo.
Pregas e pregas de um dourado diáfano saltaram do interior da caixa. Um leve perfume a sândalo desprendeu-se do cetim quando Gelina o agarrou com mãos ansiosas e encostou o vestido à sua figura esguia. O vestido tinha um corpete muito decotado e franzido junto à cintura. Mangas de balão afunilavam junto aos cotovelos. Amarrava à frente com umas fitas estreitas e negras.
Nimbus sacudiu a cabeça, maravilhado.
- Exatamente como Moira disse, é o vestido mais maravilhoso do mundo. - Saltitou em volta de Gelina, batendo palmas. - Atravessou o oceano, disse ela.
Gelina girou até ficar em frente do espelho; a ampla saia chegava-lhe ao tornozelo, pendurada à frente do seu corpo alto.
- Era mesmo da mãe de Conn?
- Moira disse que foi o pai dele que lhe ofereceu, mas ela nunca chegou a usá-lo. - Semicerrou os olhos, ao reparar no intervalo entre a bainha e o chão. - Moira pode acrescentar um babado, se quiser.
Gelina riu:
- Eu gostaria. Esta corte já me viu descalça vezes suficientes.
A cabeça escura e inconfundível de Moira, com o seu impecável bico de viúva espreitou a porta.
- Me dê o vestido, moça, se o quer pronto para esta noite - Gelina entregou-lhe com relutância. Moira examinou-o, maravilhada, e disse, mais para si mesma do que para os outros ouvirem: - Ela devia tê-lo usado. Mas aquele rapaz apareceu e estragou tudo.
Gelina e Nimbus trocaram olhares intrigados.
- Que rapaz? - perguntou Gelina, sabendo que era mais provável a cozinheira responder a ela do que a Nimbus.
Regressando ao presente, Moira sacudiu a cabeça:
- Estava só conversando com os meus botões. Vou arranjar isto. - E saiu precipitadamente do quarto, deixando Nimbus franzindo a testa.
Gelina encolheu os ombros. Sentia a cabeça latejando.
- Quando posso soltar o cabelo?
Nimbus examinou a cabeça da moça, ajoelhada à sua frente.
- Falta pouco, muito pouco. - Gelina suspirou de alívio. - Umas três horas, pelo menos.
Furiosa, deu-lhe uma palmada que ele evitou baixando-se.
Visões. Elas perseguiam-no na escuridão que se projetava nos recessos mais remotos das suas pálpebras.
O cadáver ensanguentado de Kevin O’hArtagain atormentava-o, estava tão próximo que era impossível escapar-lhe.
- É um idiota, Conn. Quando aprenderá que não se pode confiar em todo mundo? É muito ingênuo para governar Erin e agora nunca mais voltara a fazê-lo. Não soube usar o seu poder. Por conseguinte, perdeu-o. O riso trocista rodeou-o enquanto o cadáver meio apodrecido se dissipava no ar. Uma febre percorreu as suas veias e aquele odor doentio permeou os seus sentidos adormecidos.
Gelina dançava à sua frente, como fizera no piquenique, de lágrimas nos olhos por trás da máscara dourada. Usava um vestido comprido de seda vermelha debruado de verde e dourado. Os seus pés sujos de terra executavam piruetas perto dele. Conn estendeu uma mão fraca para lhe retirar a máscara e limpar as lágrimas com beijos, sabendo que os seus lábios encontrariam os dela mesmo que ele não o quisesse. Gelina rodopiava tão depressa que acabou por se tornar uma simples mancha, deixando-o com apenas o cetim verde do debrum em cima dos olhos, incendiando-o.
Verde. O verde brilhante dos olhos cor de esmeralda. Conn estava fixo a umas rochas. Não conseguia se mexer. Viu a espada enterrada no seu peito, pregando-o à pedra como um inseto. A lâmina prateada retorceu-se lentamente, incendiando o seu coração, tal como os seus olhos. Seguiu com o olhar a espada até à mão forte que a retorcia e viu um rosto de mulher. Era o rosto adulto de Gelina com a boca franzida num sorriso cruel que o imobilizava mais eficazmente do que a espada.
Fazia frio. Arrepios fizeram o seu corpo estremecer com tal violência que sacudiu as amarras que há muito desistiu de partir. Havia neve. Estava deitado na neve, amordaçado e amarrado a menos de quatro metros da janela de onde ele e Gelina tinham debruçado para ver a lua há tanto tempo. Ela estava lá agora. Pensativa, olhando a neve, com um braço apoiado no parapeito, a testa encostada à madeira fria da porta aberta.
Enquanto tentava arrebentar as suas cordas, viu o clarão do fogo atrás de Gelina. Sentiu o calor nos seus olhos e de alguma maneira percebeu que ela andava à sua procura. Ouviu um rugido baixo a seu lado e o medo eriçou-lhe os cabelos da nuca.
Virou-se. Um chacal de pêlo negro sorriu-lhe, a boca aberta revelando os dentes aguçados, desumanos. O animal sacudia a cabeça, determinado. Conn viu com horror o animal virar-lhe as costas e correr em direção à janela. Saltou contra as portas e rasgou o pescoço de Gelina com um só movimento enquanto Conn tentava se soltar. A visão desapareceu e pela primeira vez desde que era adulto chorou, engasgando-se com as lágrimas que entravam na sua boca.
Luz. Fechando com força as pálpebras, ouviu, numa outra visão, a voz de comando de um adulto.
- Por Júpiter! Olha o que fiz! É ele! Está vivo! Aproxima-se, idiota, e tire-o dali!
Conn sentiu o seu corpo ser inclinado e esforçou-se em abrir os olhos. A luz intensa do sol atingiu-o como uma pancada entre os olhos e Conn desmaiou de dor, deixando-se cair nos braços dos que o transportavam.
Eoghan Mogh era um homem paciente. Na sua fortaleza, no sul, entretinha-se fazendo planos para o seu futuro reino. Os dois navios em tempos tripulados pelos mais destemidos guerreiros de que o Fianna dispunha eram agora manobrados pelos seus próprios homens. Os soldados de Conn estavam mortos, assassinados pelo veneno implacável que Barron O’Caflin introduzira na sua cerveja. Lamentava ter mentido a Conn acerca das suas intenções quase tanto como lamentava o desperdício de homens que podiam servi-lo como tinham servido Conn. Mas não se atrevera a deixar um único regressar a Tara e estragar o seu plano. Era indispensável que todos eles desaparecessem no mar sem deixar rastro, tal como o povo de Conn tinha de acreditar que acontecera ao seu rei.
Apesar do êxito de todos os seus planos, agora tinha de esperar. Se reclamasse o trono imediatamente, todo o trabalho e toda a astúcia teriam sido em vão.
Depois de um intervalo de tempo considerável, O’Caflin representaria o último ato da tragédia. Conn seria oficialmente declarado morto. O seu povo enlutado ergueria um magnífico túmulo em memória do seu nobre Ard-Righ. Eoghan iria a Tara prestar homenagem ao rei desaparecido. Levaria a ordem para onde reinava o caos.
Tornaria-se o rei supremo de Erin sem levantar uma única espada. Tempo. O tempo era agora o seu inimigo. E o seu único aliado.
Nimbus evitou os olhos de Gelina, coisa que tinha feito várias vezes naquela véspera de outono.
- Lamento, mas vou estar muito ocupado esta noite. Com o grande espetáculo e isso tudo. Mas arranjei outro par para você.
- Quer dizer que depois deste trabalho todo não vai comigo à festa? - perguntou Gelina, espantada e decepcionada.
- Infelizmente não. Bem, tenho de ir. - Abriu a porta do quarto dela e lá estava Sean O’Finn com um aspecto bastante comprometido. - Este homem tomará conta de ti.
Contornou Sean e desceu o corredor com passadas largas, tentando esconder os seus novos sentimentos. Quando eles já não podiam ouvi-lo, disse para consigo:
- É mais parvo do que parece. Pessoas como ela não são para você.
Por sorte não reparou na expressão do rosto de Sean quando o soldado dirigiu um longo olhar de apreciação a Gelina. Só os seus olhos cheios de amor viam a mulher que existia sob aquele exterior infantil e despreocupado. Tinha permitido que o vestido falasse por si, como a parte mais ornamentada do conjunto, deixando a simplicidade de Gelina complementá-lo. Os cachos suaves que penteara caíam-lhe sobre os ombros, com uma simples presilha dourada em forma de concha a apanhá-los por cima da orelha direita. A altura e os ombros direitos de Gelina davam-lhe uma graça que era a antítese da gordura sofisticada da maioria das mulheres da corte.
Os olhos brilhavam finamente sublinhados a Kohl - as faces resplandeciam com a passagem suave do suco de algumas frutas. O seu rubor intensificou-se perante o olhar de Sean. Teve de resistir ao forte desejo de se esconder debaixo da cama.
Pigarreou e encarou Sean. Ele teve a feliz ideia de parecer embaraçado.
Ofereceu-lhe o braço e disse num tom afável:
- Vamos, milady?
Gelina pousou uma mão no braço dele e o vermelho vivo das unhas recém-pintadas destacou-se contra o verde da túnica do seu par. Uma timidez nova invadiu-os enquanto caminhavam em direção ao salão da entrada.
Gelina deu voltas à cabeça tentando lembrar-se de alguma coisa para dizer.
- Esta calor lá fora, não é verdade?
Ele olhou-a de um modo estranho e ela corou ainda mais quando se lembrou de que já se falava em neve devido ao vento frio que soprava das montanhas.
- Estava brincando, claro - corrigiu rapidamente. - Conn disse que eu trouxe a neve comigo. Disse que não nevava há muito tempo antes deu vir para Tara.
Sean riu.
- Se é verdade que trouxe a neve, Gelina, olha que também trouxe o sol. Nunca vi tão pouca chuva e tão pouco nevoeiro. - Em silêncio, felicitou-se a si próprio por uma frase tão cavalheiresca.
Tinham chegado à entrada do salão. Gelina respirou fundo e fechou os olhos um instante antes de Sean abrir a porta de par em par. O burburinho que lhes chegou aos ouvidos confortou-os durante uns momentos. Gelina receara que se fizesse um silêncio súbito. Agora tinha a certeza de que ela e Sean passariam despercebidos no meio da multidão.
O som de uma corneta interrompeu o falatório e as gargalhadas. Gelina olhou para o estrado e viu o seu companheiro de brincadeira agitando um chifre na mão.
Todos se viraram para ele, que gritou numa voz de trovão:
- Damas e cavalheiros... Lady Gelina, filha do Ard-Righ.
Por mais que Gelina quisesse, o chão não se abriu nem a engoliu. Não lhe restava alternativa. Ergueu a cabeça e enfrentou o olhar dos súbditos do seu rei. Todos os olhos se fixaram nela no silêncio total do salão. Ao fim de alguns minutos embaraçosos Sean avançou orgulhoso, consciente das expressões invejosas dos seus colegas.
- Vamos dançar? - perguntou, alto o suficiente para ser ouvido pelos músicos à sua esquerda, que pegaram nos seus instrumentos e, após algumas notas desafinadas, encontraram a melodia alegre que procuravam.
Gelina aceitou o braço dele. Contou os compassos em voz baixa até ambos apanharem o ritmo. A noite passou num instante. Seguiram-se mais danças, umas com homens do Fianna, outras com um camponês audacioso que a conduzia como se ela fosse um pedaço de vidro raro. Dançarinos experientes deram as mãos e rodopiaram em volta do salão. Gelina estremecia ligeiramente cada vez que dava a mão a uma das familiares figuras de tranças, mas depressa isso deixou de acontecer à medida que se ia habituando à conversa e aos movimentos elegantes. Sean aguardava impaciente, uma oportunidade para voltar a dançar com ela.
Aproveitou estar sozinha num dos intervalos da música para massagear as pernas cansadas e procurou entre os bobos que pinoteavam um rosto familiar. Não o encontrou. O estrado estava praticamente vazio, embora a cortina de veludo se agitasse sempre que Gelina olhava para ela. Fez uma careta quando viu Sean aproximar-se com um cálice de hidromel em cada mão.
- Pensei que podia precisar disto - disse.
- Precisei há uma hora.
Sean desatou a rir.
- Pensei que ia subir a parede e fazer Nimbus cair ao chão quando ele tocou aquela trombeta.
- Silencio Sean. Nem todos sabem do que eu sou capaz.
Bebeu um gole de hidromel e pelas suas veias espalhou-se uma agradável sensação de calor que parecia ter mais a ver com os belos olhos castanhos de Sean do que com a doçura da bebida.
- Há alguém que não parece muito contente com a metamorfose da lagarta. - Sean apontou para um canto onde Sheela, amuada, os observava de olhos semicerrados. - Acho que prometi à simpática viúva dançar com ela esta noite, mas não consigo sair daqui.
- Tem de ser. Não pode decepcionar a senhora do rei. - O sorriso dela desapareceu, mas Sean não reparou.
- É só por esta noite. Não tenho estômago para as provocações dela. - Olhou para Gelina e apercebeu de que se tinha esquecido de que não estava na companhia dos seus colegas de armas.
Gelina falou depressa, tentando disfarçar o efeito que as palavras dele tinham exercido sobre ela.
- Esta gigas são cansativas. Pede-lhes que toquem aquela música que você tocou no piquenique e vamos mostrar-lhes como se dança!
Ele concordou, com um brilho no olhar.
- Mas tem de me prometer uma coisa.
- Tudo o que quiser, meu bom senhor. - Pestanejou e franziu a boca de um modo que fazia Sheela parecer uma principiante.
Sean levantou o indicador:
- Nada de malabarismos.
As primeiras notas tristes da flauta pareciam agulhas ferindo o coração de Gelina. Quando os seus pés começaram a dançar, o rosto de Conn surgiu na sua memória. Os outros dançarinos recuaram, deixando a pista para ela e para Sean.
Gelina rodopiou com uma graciosidade genuína até o próprio Sean parar. A sua promessa de não se descalçar voou para longe, tal como as suas sandálias. Ninguém sabia que o brilho dos seus olhos cor de esmeralda se devia às lágrimas que ela tentava não chorar. A saia dourada ondulava em volta dos seus tornozelos. Quando a música terminou, o tecido diáfano dobrou-se, prega após prega, junto aos pés de Gelina, que baixou a cabeça.
Fez-se silêncio até um camponês começar a bater palmas com as suas mãos calejadas, dando um encontrão a um homem que estava a seu lado de boca aberta. Ele também aplaudiu e em breve toda a corte se unia num aplauso ensurdecedor.
Quando abriu os olhos Gelina viu que Sean lhe estendia a mão.
- Vê? Não fiz malabarismos - disse ela com um sorriso.
Foi apenas o princípio. Noite após noite, Gelina dançou no salão de entrada, obstinadamente aclamada pelo povo de Conn. Embora continuasse a sentir-se mais confortável nas calças de Sean, deixou-as de lado e passou a usar as saias que Moira lhe costurava. Mas para dormir continuava usando um grande gibão de homem, vestimenta que surripiara dos aposentos de Conn com as suas próprias mãos.
Nimbus tornou-se cada vez mais difícil de convocar para qualquer tipo de brincadeira e Gelina passou a estar menos tempo na sua companhia. Apesar da sua nova popularidade, a sua solidão foi aumentando à medida que os meses sem Conn se prolongavam.
As neves do inverno chegaram, tal como os poetas tinham previsto. Já havia se passado oito meses desde que Conn partira. Uma leve sombra de dúvida cruzava os olhos dos homens e das mulheres da sua corte, embora todos tentassem disfarçá-la com uma piada, uma canção.
Numa noite fria de Inverno Gelina entrou de rompante na sala de xadrez, deixando para trás as gargalhadas e a música. Na lareira as cinzas tinham esfriado esquecidas. O tabuleiro coberto de pó aguardava em cima da mesa. A lua nova projetava na sala uma luz suave. Gelina suspirou e dirigiu-se à janela.
Abriu a janela de madeira e debruçou-se para o frio da noite. Tinha começado outra vez a nevar, flocos suaves batiam como penas no seu rosto. Uma fina camada de neve cobria a terra, iluminando-a ao refletir o rosto da Lua. Uma lágrima rolou pela sua face e entrou na sua boca, onde o gosto salgado causou uma impressão ao mesmo tempo estranha e reconfortante. Gelina deixou-se ficar ali algum tempo, sem reparar nos olhos esfomeados que a observavam na escuridão da noite.
O navio descia lentamente a costa de Erin, cortando o banco de nevoeiro. Ouviam-se as pancadas regulares das ondas contra a proa do navio por detrás da neblina espessa. Uma figura solitária erguia-se junto à amurada, admirando o mundo de silêncio à sua frente. De barba e capa, o homem via a costa rochosa tornar-se cada vez mais nítida com olhos ávidos, semicerrados, a boca tensa reduzida a uma linha. Nem sentiu a falha de madeira ferir-lhe a ponta do dedo quando apertou o corrimão. Ia a caminho de casa.
Gelina olhou para o papel amarrotado que tinha na mão e todo o seu corpo estremeceu. Não foi preciso voltar a ler a mensagem para fixar as palavras: “Ajude a destronar o rei bastardo.”
Tinha aberto o pergaminho elaboradamente selado deitada na cama e sem pensar duas vezes. Procurou na mensagem rabiscada uma pista, mas não encontrou nenhuma. O pergaminho podia ter vindo de qualquer ponto da fortaleza. Caminhou pelo quarto a passos largos, hábito que mantinha quando se sentia aflita.
- Ora! - Passou uma mão nervosa pelo cabelo, despenteando-o, deixando-o precisamente da maneira que o tornava tão difícil de domar.
A quem falar daquela missiva? Não podia contar a Sean, porque ele nem suspeitava quais eram as suas origens. Sem certezas quanto ao que Nimbus sabia e não sabia não se atrevia a fazer-lhe confidências. Mer-Nod, o seu único potencial confidente, era um homem muito ocupado. Dois meses atrás, enviara uma embaixada à Britânia, que regressou com péssimas notícias. Nem Conn nem qualquer dos seus homens tinham sido vistos lá. Dois navios, mais de trezentos homens e o rei supremo de Erin desaparecidos sem deixar rasto há mais de dez meses.
Dada a frequência de idas e vindas na fortaleza, qualquer pessoa podia ter deixado a missiva. Clãs de regiões a léguas de distância vinham constantemente apresentar as suas condolências pelo desaparecimento do rei e dar conselhos sobre o futuro de Erin. O salão de entrada assistia a discussões todas as noites. Até Sean achava um alívio saber que a sala de armas se encontrava fechada à chave, de acordo com a tradição.
Os homens do Fianna realizavam demoradas conferências marcadas pela discórdia. Quem seria o novo rei? Teriam os homens dirigidos por Conn morrido também? Seria Mer-Nod capaz de tomar todas as decisões iminentes? Estaria Conn realmente morto?
Essas perguntas não paravam de girar na cabeça de Gelina, pois as perspectivas eram cada vez mais negras. Nos últimos meses só encontrava paz de espírito nos seus passeios com Silent Thunder, o cavalo de Conn. Sean estava continuamente fechado em reuniões e ela aproveitava para se esgueirar até os estábulos com uma capa velha a tapar o cabelo e as roupas de Sean a esconder o corpo. Toda a sua concentração e frustração eram investidas no controle do voluntarioso garanhão. Teria ido procurar consolo naquele instante, se não fosse o nevoeiro.
Empurrado desde a costa, nuvens grandes e ameaçadoras, cobriam a terra com uma massa impenetrável. A umidade misturava-se no castelo e Gelina só sentia algum conforto junto à lareira do seu quarto. Foi aí que se dirigiu para encostar o papel às chamas até um canto pegar fogo e arder.
Era preciso dar tempo ao tempo. Quem quer que tenha levado a mensagem não podia estar longe. Caminhou até ao canto e abriu a sua arca. Escondidos por debaixo das dobras dos vestidos estavam uma bainha e um punhal pequeno e afiado.
Levantou a saia, amarrou a arma à coxa e sentiu-se em segurança. Parou diante do espelho para passar, pensativa, o pente de marfim pela sua farta cabeleira. Iria lá abaixo procurar o inimigo de Conn, que também era, sem o saber, seu inimigo.
Sentado nas escadas, o queixo apoiado nas mãos, Nimbus observava a cena que se desenrolava em baixo. Mãos a gesticular e lábios a moverem-se enchiam o salão de entrada. Todos os homens e mulheres que se apinhavam em Tara pareciam expressar opiniões de uma importância avassaladora. Suspirou desgostoso por não conseguir deixar de ouvir algumas das ideias expostas.
- Dizem que um monstro marinho os engoliu a todos.
- Foi um bom rei. - Um agricultor embriagado tombou, mais perto do chão a cada palavra. - Foi um rei muitíssimo bom.
- Acho que o nosso próximo rei devia ficar em casa em vez de andar por aí passeando metendo o nariz onde não é chamado.
Os homens do Fianna juntaram-se discutindo, as suas vozes graves sobrepondo-se às da multidão.
- Goll MacMorna devia ser o rei. É o mais corpulento.
- Que bobagem. Ele é manso como um cachorrinho.
- Não quando lhe dá para arrancar a cabeça a alguém... já o vi fazer isso.
Nimbus só queria tapar os ouvidos com as mãos e gritar, deixar de ouvir os disparates que se propagavam pela fortaleza como uma praga estúpida. A anarquia substituía a todo o vapor o sistema de governo estabelecido por Conn. Até o mais prático dos súditos parecia estar deixando-se cair sob o seu feitiço.
- Talvez eu devesse me oferecer para ser rei. Estou certo de que todos estariam de acordo - murmurou Nimbus para consigo, sacudindo a cabeça à sua própria fantasia. Baixou a cabeça envergonhado quando pensou na tarefa de que Conn o incumbira no dia em que partiu para Britânia. O mais triste era que o próprio Nimbus tinha deixado de acreditar que Conn ia mesmo voltar. Não havia brincadeiras nem malabarismos que detivessem a escuridão que alastrava dentro de si à medida que via a esperança vacilar rumo à extinção.
Ouviu passos nos degraus atrás de si, virou-se e deu de caras com Gelina. O andar desajeitado da jovem fora substituído por passos lentos e elegantes que exigiam um esforço visível no seu rosto. Nimbus sorriu e ela sentou-se a seu lado nas escadas, compondo a saia de modo a ficarem apenas os pés à vista. Os olhos dela eram do mesmo verde da saia, mas Nimbus não pôde deixar de ver neles inquietação. A nova maturidade ficava-lhe bem, mas parecia trazer consigo a tristeza.
- Milady. - Tirou o chapéu de plumas.
- Poupe-me essas formalidades, Nimbus. Sou Gelina, não Sheela.
Começou a provocá-la, mas parou, notando na voz dela uma tensão que lembrava a corda de uma harpa tão esticada que parecia prestes a partir-se.
- Desculpa. - Pousou a sua pequena mão no braço dela, um gesto pouco habitual.
Com um sorriso gracioso, Gelina deu-lhe a mão e ficaram os dois sentados olhando para o salão. Gelina não sabia bem o que estava procurando, mas se o visse, reconheceria. Dois fogos ardiam nas lareiras gêmeas, numa tentativa de combater a umidade daquela noite encoberta. A Gelina, porém, a lareira trazia luz, mas não calor. A sala estava fria. Rostos gélidos emitiam ruídos ininteligíveis. Uma música glacial era extraída dos instrumentos como farelo arrancado pelo vento. As notas ficavam suspensas no ar como se a qualquer momento fossem cair e desfazer-se num milhão de fragmentos. O Fianna estava reduzido a um grupo de rapazes agressivos. O próprio Sean gesticulava diante de alguns homens reunidos a um canto, alguns dos quais sacudiam a cabeça violentamente. Gelina e Nimbus entreolharam-se, cada um mais desesperado do que o outro. Ambos viram Mer-Nod entrar no salão e subir ao estrado onde se encontrava o trono vazio de Conn. O manto debruado com penas pendia pesadamente dos seus ombros. Aquele ano não o tinha poupado; imprimira-lhe rugas novas em volta da boca e dos olhos. Ergueu os braços pedindo atenção, esperando que o som débil da trombeta silenciasse a sala.
Baixou os braços e ficou calado um instante, como se não soubesse se devia ou não prosseguir. Gelina sentiu uma serpente desenrolar-se dentro do estômago e combateu o impulso de fugir. Nimbus agarrou-lhe na mão e Gelina viu, surpresa, Sean aparecer à sua frente, protegendo-a de uma ameaça invisível.
A voz de Mer-Nod trovejou por cima da multidão:
- Um dos membros da expedição regressou.
O murmúrio transformou-se numa aclamação e Nimbus nem sentiu as unhas de Gelina cravarem-se na sua pele quando lhe apertou a mão, sem ousar encher-se de esperança.
Mer-Nod continuou não se deixando assustar pelo alvoroço.
- Vou pedir ao soldado que conte a sua história.
Deu um passo para o lado e um homem de barba e cabelo louro despenteado subiu ao tablado. Gelina fechou os olhos e reprimiu a bílis que lhe veio à boca assim que o reconheceu. Era Barron O’Caflin, o corpo esquelético, o cabelo sujo e ralo.
Levantou um braço tremulo que calou eficazmente o salão.
- Os dois navios desapareceram numa tempestade na noite em que partimos de Erin. - Pontuou a frase com uma tosse ligeira. - Acordei na manhã seguinte à tempestade agarrado ao lado partido do navio comandado por Conn. Flutuei até uma ilha da qual fiquei prisioneiro até ser salvo ontem por um barco de pesca. Que eu saiba, não houve mais sobreviventes.
Uma voz gritou:
- Então o rei morreu?
Barron sacudiu a cabeça devagar, como se o fato estivesse despedaçando o seu próprio coração. Gelina, de pé, em transe, não sentiu a mão de Sean sobre o seu ombro.
- Não pode afirmar que ele está morto. Não pode garantir. Nós pensávamos que você estava morto e afinal não esta. - A voz dela atravessou clara a sala, como uma bofetada que o rosto de O’Caflin assinalou com uma expressão de aborrecimento.
- Não imaginam como foi. Pensamos que os céus iam partir ao meio. O barulho dos trovões era ensurdecedor. Os relâmpagos cercavam-nos como uma teia. Ondas com o triplo do tamanho dos navios arremessavam-se contra as proas. Os barcos desfizeram-se em tábuas. - Abriu os braços numa prece silenciosa, ignorando a moça alta que teimava em não se sentar.
- Mas ainda há hipóteses de Conn sobreviver. Se um dos homens que participou na viagem sobreviveu, não há razão para não ter acontecido o mesmo a outros.
- Silêncio! Vou então contar tudo. Quis proteger as senhoras da tremenda verdade, mas se sou obrigado a revelá-la, é o que farei. - A voz de Barron era tenebrosa e estridente. - Vi o rei. Vi o seu corpo inchado passar por mim a boiar durante a tempestade. - Lançou a Gelina um olhar traiçoeiro.
Num inglês com um forte sotaque irlandês ouviu-se:
- Que tempestade? Não houve qualquer tempestade.
A figura alta, de capa, encontrava-se a poucos passos da porta. Barron ficou lívido assim que reconheceu aquela voz irônica. Sheela caiu, desmaiada, em frente do estrado. Um grande aplauso ergueu-se da multidão quando uma bela criatura de cabelo ruivo desceu os degraus correndo para se lançar nos braços do homem que acabava de chegar. O homem pegou-a e a fez rodar, deixando as lágrimas da moça molharem ambos os rostos. Conn, das Cem Batalhas estava de volta.
- Estive fora um ano, pequena. O que lhe fizeram?
Conn e Gelina estavam a sós nos aposentos dele. Ele tinha os braços esticados e as mãos pousadas nos ombros dela. Gelina não parava de sorrir.
- Com algumas sugestões de Moira, Nimbus meteu na cabeça que havia de me transformar numa mulher. Agrada-lhe o resultado? - Recuou um passo e virou-se devagar, de braços abertos.
O calor dos olhos azuis dele deu-lhe a resposta que tanto queria. Conn ficou olhando-a como se receasse que ela desaparecesse da sua vista a qualquer instante.
- Foi uma sorte os membros do Fianna não terem abandonado os seus postos só para se aproximarem de você.
Gelina procurou no rosto dele uma sombra quando o ouviu pronunciar o nome Fianna, mas encontrou apenas uma felicidade infinita.
- Também está mudado milorde. - Deu uma palmadinha nas entradas grisalhas que realçavam o cabelo escuro e rebelde de Conn. - Talvez seja mais correto perguntar o que lhe fizeram.
O sorriso desapareceu e Conn desviou o olhar.
- O que aconteceu lá, fica lá. Não quero falar do assunto. O cão responsável pela tragédia será executado e o seu nome manchado em todos os registros da história.
- Vai levar os seus planos adiante? - Gelina dirigiu-se devagar à janela fechada.
- Não aprova?
- Pelo contrário. Eoghan Mogh escolheu o seu próprio destino. Teria o maior prazer em usar o machado para castiga-lo por aquilo que te fez. - O clarão feroz dos olhos dela esmoreceu. - Mas não posso esquecer que há pouco tempo enfrentei um destino semelhante. Só a sua misericórdia me poupou.
- Não foi por misericórdia - recordou-lhe Conn. - Foi por justiça. - Obrigou-a a sentar-se a seu lado num banco coberto com tecido. - Se eu expulsasse Barron, ele estaria de volta ao acampamento de Mogh em menos de um dia. Prendê-lo seria mais cruel do que condená-lo à morte. Depois de provar as doces águas das nascentes de Erin e dormir sob um milhão de estrelas, a vida numa pequena cela não seria vida. - Suspirou. - Vi Barron O’Caflin passar de rapaz magricela encantador, a guerreiro intrépido. Mas nunca vi a sua alma tornar-se escura como a meia-noite. Se o que me aconteceu tivesse sido o único crime dele, talvez fosse mais indulgente. Mas trezentos dos melhores homens de Erin pereceram por causa da traição de O’Caflin. Jurei vingar as suas mortes.
- Então é isso que deve fazer e tem a minha bênção.
Conn apertou as mãos dela e sorriu, admirado com a importância que dava à bênção dela. Fitou aqueles olhos brilhantes e lembrou-se da sua intenção de castigá-la por lhe ter desobedecido na véspera do equinócio, mas as palavras morreram-lhe nos lábios. Os seus polegares largos acariciaram as mãos dedicadas apertadas nas suas. Castigá-la por lhe ter oferecido, ainda que erradamente, o que ele estava disposto a aceitar? Devido à cerveja, as recordações que tinha daquela noite eram, no mínimo, vagas, mas o que se lembrava dos momentos que passara com ela era suficientemente nítido para despertá-lo no meio da noite ansiando por qualquer coisa que não conseguia identificar. Abriu a boca, depois voltou a fechá-la, sem saber ao certo se o que dela iria sair era um sermão ou um pedido de desculpa.
Invadido por uma timidez desconhecida, Conn sacudiu a cabeça.
- Olhe para você. É uma mulher. Acho que nunca mais vou sentir tão orgulhoso como quando entrei naquele salão e a vi enfrentar O’Caflin. Os seus olhos pareciam fogo verde e apontava para ele como se já soubesse quem era o traidor.
- Apontei? Só me lembro de ouvir a sua voz como por magia.
Conn ajeitou um cacho que teimava em cobrir a orelha de Gelina.
- Não me diga que acredita em magia. Acho que até Mer-Nod já desistiu de dizer que herdou os poderes de Cesard, o Mágico.
- Quem sabe? Se calhar foi Mer-Nod que lhe fez voltar para mim.
- Lamento desiludi-la Gelina, mas foi um navio verdadeiro que me levou a dar a volta ao mundo.
Uma expressão sonhadora cruzou o rosto dela.
- Gostaria de ir a Roma um dia. As coisas não melhoraram quando seu amigo o salvou?
- Demorei uma lua inteira recuperando o tempo que passei na galé dos escravos, mas Demetrius foi um bom anfitrião e tornou a minha estada tão agradável quanto possível. A única coisa que Eoghan não levou em conta quando me embarcou para Roma foi o número de aliados romanos do meu pai quando combateu ao lado deles contra os nórdicos mais do que uma vez. Demetrius era um velho e querido amigo do meu pai que visitou Tara quando eu era criança. - Soltou uma gargalhada. - Não imagina como ficou chocado quando um dos seus centuriões lhe contou que um mercador de escravos que havia acabado de ancorar estava gabando-se de ter o próprio rei de Erin fechado no seu porão. Também calcula o meu espanto quando acordei em Roma, a milhares de léguas de Erin e Britânia.
Conn haveria de recordar para sempre o momento em que a luz do sol explodiu no meio da escuridão. Tinha desmaiado, e quando recuperou os sentidos encontrou o seu corpo ungido com óleos aromáticos e embrulhado em panos perfumados com mirra . Confuso, pensou por momentos que tinha morrido. Depois entreviu o rosto de Demetrius. Mais velho, mas igualmente enérgico.
- Sentirei para sempre em dívida para com esse grande amigo do seu pai - disse Gelina. - Pois foi ele quem o trouxe de volta.
- Prometi a você que regressava, não foi? Aqui estou.
Gelina estendeu-lhe os braços e encostou a cabeça ao seu ombro. Foi com espanto que Conn constatou como era agradável sentir o corpo perfumado dela contra o seu. Cruzou as grandes mãos nas costas elegantes de Gelina, lutando contra a vontade de apertá-la contra si, temendo mais a ausência de protestos da parte dela do que o protesto propriamente dito. Quando ouviu bater à porta, parou, sentindo-se inexplicavelmente culpado.
Sheela entrou de rompante no quarto, com o cabelo negro todo desgrenhado. Gelina rolou os olhos, virou-lhe as costas e fitou o fogo.
- Oh, meu querido! Se pudesse tinha vindo mais cedo. Não me viu no salão de entrada? Desmaiei quando o vi ali como um fantasma. Tentei vir a você assim que recuperei os sentidos, mas aquele bobo diabólico sentou-se em cima de mim!
Os ombros de Gelina estremeceram de forma suspeita. Sheela lançou-lhe um olhar venenoso.
- Sentou-se em cima de você? - perguntou Conn, educado, franzindo a testa.
- Isso mesmo! Disse que debilitada como eu estava não me fazia bem andar por aí. E depois se sentou em cima do meu peito! As pessoas andavam todas de um lado para o outro. Ninguém se deu conta e ele ali ficou horas em cima do meu delicado peito. Ia desmaiando outra vez.
Dobrou-se e encostou o delicado peito ao braço de Conn. Ele amparou-a e conduziu-a a uma cadeira. Pelo canto do olho, Gelina viu Sheela pregar um beijo nos lábios de Conn, parecendo tudo menos desmaiada. Endireitou-se e pigarreou ruidosamente, o que só fez com que Gelina se agarrasse a Conn com mais força. Ele soltou-se com dificuldade.
- Vou-me retirar agora. Comi mais cedo e estou sentindo-me um pouco... tonta - disse Gelina, com um sorriso doce.
- Acho que a pequena está me insultando. Ela está insultando-me? - Sheela virou os seus olhos castanhos e indignados para Conn.
Não querendo comprometer-se, Conn encolheu os ombros e disfarçou um sorriso.
- Estão preparando um banquete no salão. Vemo-nos lá, Conn - disse Gelina ao sair do quarto.
Fechou a porta e encostou-se, sentindo um misto de excitação e náusea. A caminho do salão encontrou Nimbus encostado a uma parede e de braços cruzados.
- Sentou-se em cima dela? - perguntou.
Nimbus puxou-a para o canto e ambos tiveram um violento ataque de riso.
Agachou-se a um canto, a cabeça apoiada nos joelhos. O seu cabelo comprido e sujo chegava-lhe abaixo dos ombros, como uma manta comida pelas traças. O frio que vinha do chão de pedra percorria os seus ossos até o topo do crânio. Passou a língua pelos lábios rachados e a mão pelo cabelo outrora glorioso. Sondou a escuridão e os seus olhos fixaram-se nas paredes da masmorra.
Barron O’Caflin tinha-se tornado um homem ciente nos últimos meses. Já sabia o que era o exílio. Sabia o que eram promessas não cumpridas. Sabia pela primeira vez na vida o que eram a dúvida e a incerteza. E agora também sabia o que era o medo. Os homens dos navios de Conn tinham sido assassinados, as suas gargantas cortadas com o auxílio do torpor induzido pela cerveja envenenada. Poucos acordaram a tempo de oferecer alguma resistência aos soldados de Eoghan Mogh. Barron precisou de todos os gramas de coragem e manha que possuía para impedir que os homens o assassinassem como fizeram aos seus companheiros. Cercado pelos cadáveres dos amigos e camaradas sentiu uma dormência tomar conta da sua mente. Não esperava que as coisas tomassem aquele rumo. Mas tomaram.
Agora estava de volta. Trancado numa cela miserável onde não entrava um pingo de luz. Sentado de cabeça baixa, não alimentava a ilusão de que Eoghan Mogh ia irromper pelo castelo antes da sua execução. Poupou-se dessa esperança vã. Conn já tinha visitado a sua cela. Emoldurado pela luz que vinha da porta, mais parecia um espírito maligno enviado pelos deuses para atormentá-lo.
Os seus planos tinham falhado desde o instante em que aquela ruiva atrevida ousou enfrentá-lo. Lançou a dúvida sobre as suas palavras, virou a multidão contra si, o que aliás, pouca importância teve quando a voz de Conn ecoou pelo salão. Sentado na cela abafada, recordou outros tempos. O orgulho que sentia pelo Fianna desaparecera há muito nas chamas da sua perversa ambição, mas pensar nele agora lhe custava. As gargalhadas dos jovens perseguiam-no. Baixou a cabeça, reconhecendo o erro que cometera. Conn, das Cem Batalhas não era alguém que se traísse sem causar dano. O silêncio fechou-se a seu redor.
Acenderam-se círios de uma ponta à outra do salão. Os clarões dos rostos tornavam a sala ainda mais luminosa. A um canto os músicos afinavam habilmente os seus instrumentos. Naquela noite não se ouviriam canções obscenas no grande salão. O menestrel principal tinha garantido que a música das flautas e harpas ia ser bela a ponto de arrancar lágrimas aos corações mais insensíveis.
A agitação parou e um aplauso forte ergueu-se da multidão quando Conn entrou no salão. Acenou, agradecido, e permitiu que um sorriso quase adolescente lhe cruzasse o rosto ao aproximar-se do trono.
Tinha rejeitado a ideia, sussurrada por Nimbus, de fazer uma entrada teatral depois das pessoas esperarem algum tempo, com uma explicação simples:
- Já esperaram o suficiente.
Por cima da camisa branca costurada com fio dourado vestia um casaco escarlate cujas pregas largas chegavam ao chão. Uma faixa dourada na qual estavam embutidos rubis e esmeraldas marcava-lhe a cintura. Trazia em volta do pescoço uma gargantilha em ouro com um fecho de safiras da cor dos seus olhos. O cabelo, escuro e rebelde, tocava-lhe os ombros, com as recentes entradas grisalhas a refletir a luz das milhares velas de sebo. Sentou-se no trono e estendeu as longas pernas enquanto observava o frenesi dos preparativos com um prazer impossível de disfarçar.
A cozinheira saiu da cozinha carregando uma cabeça de javali precariamente equilibrada entre a mão e a anca.
- Saiam do meu caminho, idiotas! Ou ainda deixo esta carne toda cair em cima de suas cabeças! - anunciou, obrigando as criadas e os criados a darem-lhe passagem.
- Talvez não fosse má ideia recrutá-la para o Fianna - murmurou Conn a Mer-Nod, que estava perto dele no estrado.
Quando viu o rei, a cozinheira recuou um passo, quase deixando cair a sua carga. Depositou-a em cima da mesa mais próxima e saiu de costas, fazendo reverencia pelo caminho.
A notícia da chegada de Conn espalhou-se pela fortaleza e pelos terrenos adjacentes, o salão encheu-se. Ninguém se importou que fosse quase meia-noite. As crianças foram arrancadas das camas e embrulhadas em roupas, apesar dos seus protestos. Conn recebeu os apertos de mão dos homens e os beijos tímidos das mulheres mais ousadas.
Em pé e de braços erguidos, não teve dificuldade em conseguir a atenção de todos os que se encontravam no salão.
- Voltei!
- E já não era sem tempo! - exclamou um dos soldados entre gargalhadas.
Conn sorriu:
- Sim, já não era sem tempo. Passei muitas noites em cima de um telhado olhando a cidade de Roma, uma cidade de uma beleza inimaginável, em que só acreditamos depois de ver. Rodearam-me de hospitalidade, mulheres exóticas (de um dos cantos veio um assobio) e uma abundância de comida rica, incrível. - Fez uma pausa. - Mas sabem o que eu mais desejava? - Baixou o tom de voz e os rostos expectantes aguardaram a resposta: - O rosto fresco de uma moça de Erin e uma caneca de cerveja. - As gargalhadas ondularam pelo salão.
Os menestréis começaram a tocar uma movimentada giga e um bobo deu início à dança, puxando por uma moça bonita que soltou um grito, fingindo-se admirada.
Conn recostou-se no trono, passando os olhos pela multidão que aderia à dança.
- Onde estão Nimbus e Gelina? - perguntou a Mer-Nod, esforçando-se por ser ouvido por cima do burburinho.
- Fazendo das suas, com certeza - respondeu Mer-Nod encolhendo os ombros. Olhou para o salão.
- Sean não está aqui. Isso talvez explique a ausência de Gelina.
Conn franziu o cenho, e quando se inclinou para fazer mais perguntas, Gelina apareceu na entrada. A doce voz de contralto de um musico ergueu-se numa melodia suave enquanto Gelina passava por entre a multidão. Contra a sua própria vontade, Conn levantou-se e a sala pareceu conter apenas a figura esguia que chegava. Gelina fitou o estrado e deu meia volta, exibindo o cetim dourado da sua saia, os olhos muito abertos, ansiosos pela aprovação dele.
A expressão de Conn não se alterou. Desceu do estrado e atravessou a multidão, que abriu caminho à sua passagem. Os dançarinos pararam e só os implacáveis beliscões e gestos frenéticos de Nimbus impediram que o menestrel mandasse os seus músicos interromper a melodia sentimental. Gelina sorriu indecisa, quando viu Conn à sua frente. A expressão de medo que ele tanto odiava atravessou o rosto dela.
Ofereceu-lhe o braço e disse em voz baixa:
- Dança milady?
- Melhor do que antes, espero - respondeu Gelina, soltando um pequeno suspiro de alívio que não passou despercebido ao seu par.
- Continua a ter medo de mim. - Foi uma afirmação de Conn enquanto a puxava para o centro do salão e não uma pergunta. Os seus dedos enterraram-se nas costas nuas de Gelina, quentes e sedosas.
- Tive medo que se zangasse quando me visse com o vestido da sua mãe. E você ainda tem medo de mim?
Conn olhou-a nos olhos e respondeu:
- Mais do que nunca, talvez.
Gelina desviou o olhar e depois voltou a encará-lo com determinação.
- Não tenho nenhuma espada escondida debaixo do vestido.
Conn riu daquele tom sério:
- O vestido cola-se de tal maneira ao seu corpo que duvido que caiba aí alguma arma, tirando a beleza com que a natureza a presenteou.
Gelina, corada e atrapalhada, pisou-o. Conn tropeçou e riu ainda mais.
- Faz o favor de não rir de mim. Na opinião de muita gente eu sou tudo, menos divertida.
- Não se incomode Gelina. Acho-a mais bonita do que divertida e orgulho-me muito do modo como a minha protegida desabrochou.
A provocação dele irritou-a e Gelina afastou-se, sacudindo a cabeça.
- Se me da licença, lembrei-me de que prometi esta dança a outra pessoa.
Deixou Conn no meio do salão, com um raro ar espantado, enquanto serpenteava por entre a multidão e desaparecia por detrás das mesas compridas. Conn endireitou-se e regressou ao estrado, onde um Nimbus de sorriso sarcástico o cumprimentou:
- Qual é o problema, Conn? Esqueceu-se de como se lida com as senhoras durante as suas viagens?
Expulsando-o do trono, Conn replicou:
- Quais senhoras? Eu estava dançando com Gelina.
Olhando-o com uma expressão desconfiada, Conn perguntou:
- O que disse?
- Nada, nada. Mas parece que há mais quem pense que Gelina é uma senhora muito atraente.
Apontou para a pista. Sean O’Finn levava Gelina para dançar. O rosto sorridente da moça virou-se para ele como se partilhassem uma piada privada. Um nó desconhecido apertou o estômago de Conn, que os observava de boca aberta. Nimbus não tirava dele os seus olhos semicerrados.
- Ficaram amigos. É bom - comentou Conn.
- E esplêndido - segredou-lhe Nimbus antes de desaparecer no meio da multidão. Conn sentiu-se muito sozinho enquanto assistia à cena que se desenrolava à sua frente.
Gelina rodopiava pelo salão nos braços de Sean, toda a sua atenção concentrada em coadunar os seus pés compridos e estreitos com os passos breves da dança. Toda a sua concentração e o seu sorriso eram dedicados a Sean, que parecia radiante e não parava de falar.
- Barron, quem diria? Ele e eu crescemos juntos. Fomos companheiros de brincadeiras desde bebês. Suponho que tenha sido por isso que teve o cuidado de me deixar para trás quando aqueles navios zarparam para Erin. - Sacudiu a cabeça, perplexo. - Nunca se sabe até onde uma pessoa é capaz de ir! De fato ele falava muito em Eoghan Mogh, dizia que admirava a sua estratégia, mas nunca pensei que as suas intenções fossem tão funestas.
Gelina já tinha ouvido o suficiente e decidiu intervir antes de Sean a interromper.
- Se um de vocês tivesse dado ouvidos a Nimbus...
- Conn não desconfiava de nada. Ele é um bom avaliador de caráter. Mas ao menos voltou a tempo de evitar uma catástrofe.
Quando ouviu mencionar o nome de Conn, Gelina olhou para o estrado e encontrou o trono vazio. Pelo canto do olho viu uma das portas laterais do salão fechar-se devagar. Afastou-se de Sean, murmurou uma desculpa qualquer e contornou os pares que dançavam. Abriu a porta e espreitou. Conn estava sentado junto a uma janela, olhando o céu encoberto da meia-noite.
Entrou no quarto e fechou a porta, transformando a música num eco delicado. Conn tinha qualquer coisa nas mãos que virava de um lado para o outro. Gelina estendeu a mão para ver o que era e verificou que se tratava da figura esculpida da rainha branca do tabuleiro de xadrez que ainda estava onde eles o tinham deixado.
- Sonhei com você uma vez - disse sem olhar para ela. - Sonhei que estava aqui à minha espera.
Gelina sentou-se no parapeito largo e encostou-se na moldura de madeira. Rindo devagar, disse:
- Se calhar estava mesmo. Vim aqui muitas vezes.
- Lamento se a magoei ali fora. - Lançou-lhe um olhar franco. - Esqueci-me de que, entretanto tinha crescido e não posso brincar com você como costumava.
- Se não brincar mais comigo, me dará mais desgosto. Acho que estou muito acostumada aos hábitos das senhoras da corte. É essencial ver-se amuar pelo menos uma vez por semana - explicou, embaraçada.
- E você procura fazer tudo como fazem as damas da corte? - Conn parecia alarmado.
Gelina apressou-se a tranquilizá-lo:
- Oh, não! Tudo, não. - Conn suspirou de alívio e ela continuou: - Recuso-me terminantemente a deixar cair às luvas para serem apanhadas por um idiota qualquer. E ainda monto sem sela.
Com uma sonora gargalhada, Conn perguntou:
- Que tal é a Buebell?
Gelina recuperou depressa da expressão aflita que lhe cruzou o rosto.
- A égua que deixou para que eu a montasse? Meiga como um gatinho. Monto-a muitas vezes.
- Estou morto por dar uma volta no Silent Thunder. Espero que o moço da estrebaria o tenha exercitado.
Gelina pigarreou e respondeu:
- Sempre que o vi, Silent Thunder pareceu-me em excelentes condições.
- Trouxe o seu presente.
Encantada, Gelina arregalou os olhos:
- Devido às circunstâncias, parti do princípio de que havia me esquecido.
- Depois do tanto que me aborreceu com a história do vestido vermelho, dourado e verde? Não me atrevia a voltar sem ele. Por que razão você pensa que fui a Roma? Fazia parte do plano para lhe arranjar o infernal vestido. Pedi a uma criada que o levasse para o seu quarto.
Gelina parou de sorrir assim que se lembrou do bilhete que tinham deixado no seu quarto. A sua estupefação pareceu-lhe a anos de distância e não apenas horas. Conn olhou-a, intrigado com a súbita mudança de expressão.
- Gelina, passa-se alguma coisa?
Voltando rapidamente a sorrir, a moça respondeu:
- Não, nada. Estava pensando que a noite correu muito mal até você chegar. - De repente decidiu não falar da mensagem a Conn, pois nada podia estragar o seu regresso a casa.
As notas sentimentais de uma flauta chegaram do salão de entrada e Conn inclinou a cabeça para ouvir. Respondeu ao sorriso de Gelina com outro e ambos recordaram um dia quente de primavera com o queijo derretendo ao sol e o gosto do hidromel na língua.
Gelina levantou-se, fez uma reverencia e ofereceu-lhe o braço. Conn olhou-a por instantes, uma sensação nova de desejo percorrendo-lhe o corpo. Deu-lhe o braço e a conduziu à porta. Abriu-a com uma mão, pôs o outro braço em volta dela e os dois foram dançando para o salão, como se nunca de lá tivessem saído.
Não conseguiam ser discretos como julgavam que estavam sendo. Gelina era suficientemente alta para o olhar de frente e mexia-se com a graciosidade atlética de uma leoa. Rodopiavam cada vez mais depressa. De cabeça inclinada para trás, Gelina ria às gargalhadas.
Junto às mesas, Sheela, que os observava de boca aberta, deixou a taça de hidromel que segurava na mão entornar-se para cima da parte da frente do seu vestido. Na entrada de serviço, a cozinheira fez sinal a uma moça e apontou para o rei e o seu par, exibindo um sorriso largo. Sean interrompeu a dança para olhar. Sentiu um comichão incomodo na nuca e lembrou-se de uma moça vestida de homem encostada a uma parede na sala de armas, os pulmões quase sem ar. De testa franzida, retomou a dança, varrendo a recordação e as respectivas implicações da sua memória.
- Malditos sejam os deuses! É mesmo coisa daquele degenerado, esgueirar-se da sepultura para vir destruir os nossos planos. - Eoghan Mogh sentou-se na sela do seu cavalo nervoso e irrequieto, de olhos fixos no nevoeiro, um músculo da face contraído.
O cavaleiro que lhe tinha trazido à notícia estava estoicamente sentado na sua montaria, sem saber se ia ou não ser aniquilado em troca do seu trabalho.
- Eu próprio começo a pensar que ele é imortal. Talvez seja um desses deuses que amaldiçoo. - O homem de capa empoleirado no terceiro cavalo sacudiu a cabeça, horrorizado.
- Ele pode ser um deus, mas garanto que quando o ano chegar ao fim ele já não será o Ard-Righ de Erin. Sabe o que tem de ser feito? - Eoghan examinou a figura de cabelo escuro e mãos nas rédeas.
Um sorriso manhoso invadiu as feições angulosas do homem de capa.
- Sei. E estou preparado. Há muito tempo que estou preparado.
Lembrando-se do mensageiro silencioso que os observava, Eoghan tirou um punhado de moedas de ouro de um saco de pano e atirou-as para a mão dele. Sem mais palavras, o cavaleiro desapareceu na neblina rumo a Tara.
Eoghan Mogh mordeu o lábio inferior, embrenhado nos seus pensamentos:
- Temos de pegá-la.
- Oh, vamos pegar. Você precisa dela. Eu preciso.Vamos pegá-la. Isso eu prometo.
A expressão dos olhos escuros do seu companheiro preocupou Eoghan. Era como se um abismo negro espreitasse logo abaixo da respectiva superfície.
A preocupação desapareceu tão depressa como tinha aparecido assim que o outro soltou uma gargalhada e disse:
- Estou mesmo vendo a cara daquele parvo do O’Caflin quando Conn entrou no salão.
Eoghan sacudiu a cabeça:
- Ele afinal não nos foi de grande utilidade, não é?
- Para a próxima será melhor.
- Espero que assim seja. - Eoghan estremeceu. - É melhor sairmos desta umidade, se vai haver uma próxima vez.
Esporeou o cavalo e dirigiu-o para sul. O seu companheiro virou-se na direção de Tara de olhos semicerrados. Um pequeno sorriso percorreu lentamente o seu rosto e ele riu alto enquanto instigava a sua montaria e seguia Eoghan A Mogh pelo nevoeiro a fora, a galope.
Sentado em cima do fogão da cozinha, de perna cruzada, Nimbus fechou os lábios com toda a força.
- Ria se quiser, Nimbus. Quero a sua opinião sincera. - De pé diante dele e mãos nas ancas, Gelina exibia o vestido que Conn lhe trouxe do outro lado do mar.
De repente o rosto de Nimbus ficou sério:
- Esta diferente, Gelina. O vestido fica-lhe maravilhosamente.
- Devo confessar que me sinto uma idiota. É como se andasse por aí de camisa de dormir.
- Isso tem nome? - perguntou Nimbus.
- Conn diz que se chama tiga.
Gelina olhou para baixo, tentando avaliar o efeito da seda lisa e fluida presa num ombro enquanto o outro ficava nu. O tecido vaporoso rodeava-lhe a cintura irregularmente e depois caía até ao chão direito, apenas interrompido por uma fenda que mostrava um pouco da perna bem feita quando ela caminhava. Cumprindo a sua palavra, Conn mandara fazer o vestido em seda verde, debruada a cetim vermelho e dourado.
Gelina fez que sim com a cabeça e disse:
- Acho que gosto.
- Vá gostar dele em outro lugar. A cozinheira e eu temos uma refeição para preparar. - Moira interrompeu o auto-exame de Gelina quando passou carregando um grande recipiente cheio de guisado fumegante.
Nimbus saltou do fogão.
- Anda Gelina. Vamos para onde a nossa presença é bem-vinda.
- Espero que esse lugar exista, baixote - disse a cozinheira.
Quando passaram pela mesa, Nimbus empurrou sem ninguém ver uma dúzia de pastéis de ameixa para o seu bolso. Gelina seguiu-o e esperou até estarem os dois fora da cozinha para tirar um pastel ainda quente do bolso do amigo e enfiá-lo na boca.
- Onde foi Conn esta manhã?
- Tem passado a manhã fechado na sala de trabalho com Mer-Nod. Creio que estão falando de política - respondeu, com dificuldade porque tinha a boca cheia de frutas e sucos.
Gelina suspirou:
- Que pena. Queria mostrar-lhe o vestido.
Indicando com um gesto a figura que avançava na direção deles, Nimbus disse:
- Aqui vem a sua hipótese de ouvir uma segunda opinião.
Gelina fez uma careta quando reconheceu o cabelo penteado em cachos.
- Que diabos de vestido é esse, Gelina? É pavoroso.
Com um meio sorriso, Gelina agarrou no punho fechado de Nimbus para impedi-lo de aplicar um murro em Sheela, o que teria sido bastante desagradável.
- Chama-se tiga. Veio de Roma.
O rosto de Sheela empalideceu, tal como Gelina previra.
- Suponho que tenha sido uma oferta de Conn. Ele é um homem muito generoso, mesmo para com os órfãos que tanto o sobrecarregam. - Passou a língua pelos lábios vermelhos num gesto conscientemente felino.
- É de fato generoso. A sua generosidade para com as viúvas mais velhas não tem igual. Ele lhe trouxe alguma coisa?
De olhos quase fechados, Sheela respondeu:
- Trouxe-me ele próprio. Há melhor presente? - Com uma última olhada ao traje de Gelina, agarrou nas saias e desceu rapidamente o salão.
Gelina ficou vendo-a desaparecer:
- O que vê ele nela, Nimbus? Ela e três das suas amiguinhas não valem, juntas, um ser humano.
Nimbus encolheu os ombros.
- Se pensar bem não é um ser humano que um homem procura debaixo dos lençóis.
- Então mais vale arranjar um carneiro - disse Gelina, zangada. - Seja como for, já tomei uma decisão. Não gosto do vestido.
- Não?
- Adoro-o. - Tirou mais um pastel do bolso dele e comeu-o, de cabeça bem erguida.
O sol nasceu e pôs-se sem que Conn saísse da sala onde estava fechado com Mer-Nod e os outros soldados. Só uma decisão escapou daquela porta fechada. A execução de Barron O’Caflin seria adiada mais um dia. Nenhuma cabeça rolaria no pátio naquela noite.
Gelina deixou o salão de entrada já tarde e arrastou-se até o seu quarto, cheia de dores nos pés. O espelho captou a sua imagem ao entrar e ela fez uma careta, troçando da sua própria ingenuidade. Passou uma mão pelo pescoço alto e macio, perguntando a si mesma o que outra mão a faria sentir, e depois correu para a janela.
A lua cheia erguia-se, volumosa, no céu. O vento fizera desaparecer a neblina do dia anterior e agora fustigava as ervas altas da charneca , que ondulavam furiosamente. Uma nuvem atravessou veloz, a face da Lua, escondendo a sua claridade por momentos antes de ser soprada para frente das estrelas, que teimavam em brilhar no céu ventoso. A noite estava tão agitada como ela própria. Com um suspiro profundo, pegou no frasquinho de sândalo que trazia escondido no peito e esfregou o perfume nos pulsos e no pescoço.
Um sorriso travesso iluminou-lhe o rosto. Avançou para o biombo e procurou os calções e a camisa. Vestiu-se depressa, colocou uma capa por cima dos cachos presos com grampos e limpou das faces ligeiramente sardentas o vermelho que as coloria.
Saiu pela janela do segundo piso com o auxílio de uma corda que tinha à mão, para usar em noites como aquela, e em seguida saltou para o chão. O vento estava morno, anunciando a primavera. A excitação crescia dentro dela; o seu coração batia ao ritmo do vento furioso.
Correu para os estábulos, tremendo de entusiasmo. Não viu o lerdo moço da estrebaria em lado nenhum. Silent Thunder relinchou, cumprimentando-a, assim que ela entrou na baia dele. Gelina soprou-lhe o nariz para acalmá-lo.
- Tem paciência. Hoje não há maçã. Não me atrevi a passar pela cozinha - sussurrou, enquanto o conduzia para fora do estábulo puxando-o por uma corda amarrada em volta do elegante pescoço. O animal seguiu-a docilmente.
Montou sem sela recuando alguns centímetros e correndo até ganhar balanço suficiente para saltar para o dorso do cavalo. Só conseguiu à segunda tentativa, mas o animal não mexeu um só músculo. Agarrou a corda e mandou-o seguir a galope.
A paisagem estava iluminada como se fosse de dia, tão intenso era o luar. O vento passou por eles assobiando até o animal conseguir dominá-lo. Um silêncio atemporal rodeava-os. Gelina dobrou-se, agarrada ao corpo sinuoso de Silent Thunder, sentindo-se ela própria parte do ritmo poderoso do animal. Voaram pelas charnecas, os cascos do cavalo tocando apenas momentaneamente as gramas altas. Gelina abriu a boca num grito surdo de pura alegria enquanto galopavam pelas encostas verdejantes. Fez o cavalo descrever um círculo largo e depois cavalgaram de regresso a Tara.
O vento evaporou a película de transpiração que os cobria quando ela ordenou ao animal que trotasse. Entraram na cerca que contornava o estábulo e Gelina mandou o cavalo parar e desceu exausta, mas feliz. Amarrou o animal a um poste e foi buscar um pano para secá-lo. Foi com espanto que sentiu alguém agarrá-la pela gola.
- Idiota! Sabia que era atrasado, mas nunca pensei que fosse estúpido a ponto de arriscar a sua vida e a do meu cavalo correndo na escuridão. - Era a voz furiosa de Conn. Gelina pediu ajuda aos santos e tentou manter o rosto à sombra. - Pedi-lhe que exercitasse o cavalo, mas não que lhe desse uma morte prematura. Perdeu o juízo, rapaz? - Conn sacudiu-a e Gelina achou que ia morrer sufocada, a que talvez fosse o desfecho ideal.
- Responde-me quando eu falar com você! Sei que mudo você não é!
Gelina não conseguiu senão emitir um som gutural baixo e quando Conn a largou ia tendo um colapso com a sensação maravilhosa de poder voltar a respirar. Murmurou qualquer coisa incompreensível e apologética e puxou o boné para frente, para tapar mais o seu rosto.
- Diz qualquer coisa, palerma. Tenciono dar-lhe a maior surra da sua vida! - Gelina não precisava olhar para Conn para saber quando ele estava falando a sério. - Venha cá, vamos ver que dano causou.
Gelina sabia que se ele a apanhasse lá fora o luar destruiria a sua camuflagem, de modo que fincou os pés no chão e não se mexeu quando Conn tentou arrastá-la da porta. Com um movimento súbito, ele obrigou-a a levantar os pés, mas ela agarrou-se com toda a força a moldura da porta quando ele a puxou pela cintura. Conn largou-a tão depressa como a tinha agarrado. Gelina fechou os olhos e encostou o rosto à porta, desejando que os seus pais nunca se tivessem conhecido.
- Muito bem. Vai levar a surra aí mesmo. - A voz dele era calma, mas mortal.
Puxando-a pelo braço, Conn voltou-a para si para largá-la logo a seguir.
Como já tinha sido o alvo da fúria dele várias vezes, Gelina tomou uma decisão repentina e com o outro braço fez tombar o gorro que lhe tapava o rosto e encarou-o, de olhos muito abertos e ansiosos.
- Estavas a hesitar entre deixar que eu desse cabo de ti ou revelar-me quem eras. - A voz de Conn continuava calma e ameaçadora.
- Sabia que era eu? - Gelina respirou fundo, mas depois se arrependeu quando viu que os olhos dele ainda ardiam de raiva.
- É ligeiramente mais macia do que o escudeiro e nunca soube que ele se perfumasse com sândalo! - A voz dele subiu de tom e, sem querer, Gelina recuou um passo.
Conn ficou a olhá-la até ela se sentir embaraçada:
- Nunca saí com o cavalo numa noite má - começou. - E hoje há tanto luar que é como se fosse de dia.
- Então saiu várias vezes no meu cavalo, não é verdade? - Gelina fez uma careta, percebendo o erro cometido. - Onde diabos estão as pessoas que iriam tomar conta de você na minha ausência?
- Sean não tem culpa. Saí pela janela. Ele nunca soube de nada. - Incriminou-se ainda mais na tentativa de salvar o seu guarda-costas. - Eu nunca faria mal a Silent Thunder. Você sabe. - Levantou as mãos numa súplica.
- Quero lá saber de Silent Thunder! E você? - Conn pôs-se a andar de um lado para o outro, incapaz de conter a sua indignação.
- Eu? - perguntou Gelina em voz baixa.
Conn virou-se para ela com uma expressão impiedosa.
- Acha que estive fechado todo o dia porque quis? Acha que tenho patrulhas em volta desta fortaleza porque gosto? O inimigo anda por aí. - Apontou para a escuridão. - Faz ideia do que os homens de Eoghan Mogh eram capazes de fazer se a apanhassem?
- Nunca pensei...
- Nunca pensa! Se não caísses numa turfeira e partisse o pescoço, podia ter sido capturada e feita refém... ou pior. - Procurou no rosto de Gelina sinais de que ela sabia o que era o “pior”.
Gelina mordeu os lábios e sentou-se.
- Vai, bate-me. Acho que mereço. - Ergueu os olhos, obstinada, numa atitude de desafio.
- Não me provoque. Anda. Eu acompanho-a ao seu quarto, que é onde vai passar os próximos dias. - Gelina não aceitou a mão que ele lhe estendia e levantou-se sozinha.
Conn foi até ao quarto dela sem dizer nenhuma palavra e quando lá chegou demorou-se apenas o suficiente para retirar a corda amarrada ao poste da cama e atirá-la pela janela com uma expressão eloquente.
- Vai ficar aqui durante três dias. Moira virá trazer suas refeições. Se eu a apanho lá fora, dou-lhe a tal surra que prometi. - E bateu-lhe a porta na cara.
De pé no meio do quarto, Gelina ficou um momento olhando a porta fechada. Foi até à arca, retirou a escova de marfim e arremessou-a contra a parede, onde ela foi bater com um estrondo considerável.
Olhou para a imagem desgrenhada refletida no espelho e começou a tirar os grampos de pérolas que lhe prendiam o cabelo, deixando-o cair sobre os ombros.
Conn caminhou devagar até os seus aposentos, sentindo-se frustrado por não ter dado o passeio da meia-noite por que tanto ansiara. A discussão com Gelina esgotara-o. Regressar e se deparar com uma bela mulher em vez da pequena que lá tinha deixado encheu-o de esperança de que ela tivesse abandonado os seus modos pouco disciplinados. Mas não passou realmente de uma esperança, pensou, servindo-se de uma caneca de cerveja já no seu quarto. Despiu as roupas pesadas que usou todo o dia e enrolou um simples pano em volta da cintura.
O dia tinha sido cansativo. Passou muitas horas fechado copiando uma lista de possíveis traidores do seu reino. Durante os trinta dias que passou acorrentado no porão do navio de escravos romano, aprendeu o valor da desconfiança. Com os acontecimentos da noite ainda frescos na sua memória, suspirou ao pensar num nome que teria ido parar à lista se os seus companheiros soubessem a verdade - Gelina O’Monaghan, assassina de cinco membros do Fianna. A ideia causou-lhe grande sofrimento e fechou os olhos, engolindo um gole rápido de cerveja. A dormência em que o seu cérebro mergulhou foi bem-vinda.
Pensou em mandar chamar Sheela, mas decidiu que o conforto que iria encontrar nos braços dela não iria compensar a tagarelice que teria de aturar. Deitou o corpo cansado no divã sem costas e bebeu mais um pouco. Sobressaltou-se quando ouviu bater suavemente à porta.
Depois de abrir a porta, recuou um passo e pôs as mãos nas ancas.
Gelina fitou-o sem pestanejar:
- Queria mostrar como me fica a minha tiga e queria pedir desculpa.
Conn serviu-se de mais um copo de cerveja.
- Não é “tiga”, é “toga”, e preferia a sua obediência ao seu arrependimento - respondeu, ríspido.
Gelina entrou. Seguindo o exemplo dele, pegou num copo, soprou para cima dele a fim de lhe remover o pó e esperou que ele o enchesse.
Conn olhou para ela e disse:
- Não lhe convidei para vir aqui e muito menos ofereci uma cerveja.
Gelina encolheu os ombros e pousou o copo. Percorreu o quarto com o olhar, à procura de um ponto de interesse. Aquele peito largo coberto de cachos castanhos estava enervando-a. Conn observava-a, intrigado. A toga evidenciava o corpo alto e bem feito de Gelina. O cabelo solto passava-lhe dos ombros. O suave aroma de sândalo chegava-lhe intacto, apesar do cheiro do cavalo. Ela sorria insegura, e Conn acabou por ceder, apesar da fúria que ainda sentia.
- Toma, bebe isto - ordenou. Encheu um copo com um líquido dourado contido numa garrafa diferente e lhe estendeu.
Gelina bebericou a bebida, agradecida, sentindo que parte da fúria já o tinha abandonado.
- Conn, na verdade eu vim dizer que lamento muito. Vou ficar três dias fechada no meu quarto, se assim quiser, mas não suporto saber que esta zangado comigo. Eu estava tão nervosa passei todo o dia querendo vê-lo sem poder.
Ele quase sorriu:
- Foi um dia pavoroso. Chegou ao cavalo mais cedo do que eu. Ainda estou tão tenso que sinto dores por todo o corpo.
Sentou-se no divã. Gelina sentou-se atrás dele e começou a massagear-lhe os nós dos músculos da nuca. Conn gemeu baixinho e depois riu:
- Os deuses leem os meus pensamentos. Tanto desejei ter uma esposa que me fizesse isso. - Os olhos dela iluminaram-se. - Creio que uma filha também serve, mesmo uma filha teimosa. - Não viu o sorriso dela desaparecer.
Gelina passou um dedo pelas costas de Conn, acompanhando uma cicatriz que se destacava na carne musculosa. Com uma exclamação de solidariedade, encostou os lábios no ombro dele. Conn não estava de modo algum preparado para o arrepio que sentiu na espinha. Pôs-se em pé de repente e virou-se. Gelina ficou olhando para o vazio.
- Gelina? - chamou, sem saber se ela o estava ouvindo.
Gelina voltou-se como se tivesse sido despertada de um transe e sorriu, desconcertando-o completamente com a emoção sincera que o seu rosto denunciava. Conn atravessou o quarto e olhou pela janela. O início da madrugada aclarara o céu.
- É melhor ir embora. - Nem ele próprio sabia se era um aviso o que ouvia na sua voz velada.
- Está bem. Mas vai visitar-me se puder nestes três dias. - E, com um sorriso melancólico: - Boa noite.
Conn não se virou, continuou fitando a estrela cadente até ouvir a porta fechar-se. Olhou para as mãos. Estavam tremulas.
Gelina sentiu-se desorientada quando entrou no seu quarto. Era como se estivesse num beco sem saída. Sentiu as pálpebras ficarem pesadas quando nuvens rosadas começaram a destacar-se na escuridão do céu. Foi logo para a cama, sem se dar ao trabalho de despir a toga.
Puxou para trás uma coberta de pele de raposa muito suave e reparou que um objeto redondo e cinzento estava em cima do seu travesseiro. Perplexa, pegou nele e revirou-o nas mãos. Era um pendente feito do metal mais fino que tinha visto em toda a sua vida. O medalhão abriu-se quando a sua mão carregou sem querer numa mola que havia num dos lados. No interior estava gravada uma única palavra. Recordação.
Gelina acordou no início da tarde do dia seguinte e sentiu uma coisa mole bater repetidamente na sua barriga. Resmungou e abriu os olhos, desconfiada. Viu os olhos cintilantes de Nimbus cumprimentá-la por cima da almofada de penas com que ele lhe estava batendo. Agarrou-a por uma ponta e arrancou-lha das mãos.
- Isto começa a ser redundante, Nimbus. Não pode deixar uma moça ter a noite descansada que merece? - Esfregou os olhos, irritada.
- Uma noite e meio dia quer dizer. O sol já terminou a sua subida e começou a descer há cerca de uma hora.
- Só me deitei quando o sol iniciou essa subida.
- Bem sei.
Procurou no rosto dele sinais de boa disposição, mas só encontrou uma expressão preocupada. Desviou o olhar e perguntou a si mesma a que conclusões teria chegado.
Nimbus bateu as suas pequenas mãos com força:
- Vim lhe buscar. Há uma grande reunião no salão.
Feliz com a mudança de assunto, Gelina já estava meio fora da cama à procura da escova de cabelo, que continuava caída no chão, quando se lembrou de repente.
- Onde estou com a cabeça? Não posso sair daqui durante três dias.
- Por quê?
Esticou o lábio inferior.
- Portei-me mal.
- Quem disse? - ralhou ele, disposto a cortar ao meio o vilão que a tinha ofendido.
- O nosso querido rei e senhor. - Nimbus ficou muito pensativo, começou a falar, mas depois se arrependeu. Gelina continuou: - Conn decidiu que eu não posso sair do meu quarto durante três dias. Pode ter problemas por ter vindo me visitar.
- Não compreendo. Foi Conn que me mandou vir buscá-la.
Passando a escova pelos cachos despenteados, Gelina pensou em voz alta:
- O que o terá feito mudar de ideia? Afinal o que se passa lá em baixo?
Nimbus arrancou-lhe a escova das mãos e começou ele próprio a penteá-la.
- Não sabe?
Gelina respondeu que não, esforçando por se ver livre da confusão do sono.
- Vou dar-lhe uma pista. - Nimbus virou a escova para a sua cabeça e fez um ruído que simulava uma faca cortando.
- A execução de O’Caflin!
- Espero lá fora. Depressa - ordenou Nimbus.
Gelina vestiu-se o mais depressa que conseguiu e assim que pôde enfiou a mão por debaixo do travesseiro. Suspirou de alívio quando os seus dedos tocaram o metal frio do pingente. Sabia que Conn tinha de ser informado da misteriosa oferta, mas com as relações entre eles já tão difíceis não tinha qualquer vontade de tocar em memórias dolorosas.
Quando por fim abriu a porta, Nimbus praticamente puxou-a para fora do quarto.
Como lhe tinha dito, o pátio estava numa grande agitação. Um cadafalso tinha sido erguido ao centro e havia grupos de homens, mulheres e crianças aglomerados em volta. Um burburinho ensurdecedor desprendia-se da multidão que avançava, empurrava, na ânsia de conseguir um bom lugar. Uma figura imponente aguardava impassível, em cima do cadafalso, com o corpo tapado por um capuz negro que pouco fazia para disfarçar a sua silhueta.
Nimbus sussurrou-lhe:
- Goll MacMorna é o chefe do Fianna. Como querem denunciar O’Caflin publicamente, é Goll quem vai levar a cabo a execução.
Gelina recordou um ramo de flores silvestres empunhado por um punho peludo. Agarrou com mais força a mão de Nimbus, quase sem se dar por isso.
Uma voz ergueu-se da torre acima deles.
- Nimbus, traz Gelina. - Sean ordenou-lhes que subissem. A multidão abriu caminho para que eles conseguissem chegar às escadas.
Mer-Nod e Sean estavam ambos em cima das escadas. Quando eles se aproximaram, o poeta murmurou:
- Pode ir lá para baixo ver, Nimbus. Mas Gelina fica conosco.
Nimbus simulou um sorriso doce:
- Obedeço, águia.
Sozinho num canto da torre, Conn observava a multidão de braços cruzados, o rosto uma máscara triste. Gelina largou a mão de Nimbus dando-lhe uma palmadinha tranquilizadora e foi ficar com Conn. Puxou-lhe pelo braço e ele pareceu admirado de vê-la ali.
Havia dor naquele olhar e Gelina percebeu o quanto aquela execução lhe custava. Sorriu-lhe e depois regressou para junto de Nimbus. Conn voltou a concentrar-se na multidão.
Um rugido feroz começou a um canto do pátio e foi-se enrolando como uma onda até a multidão parecer fora de si. A agitação depressa ficou explicada, quando O’Caflin foi levado para o pátio. Tropeçou, mas os guardas que o acompanhavam correram a endireitá-lo. O homem não via a luz do sol, com uma venda tapando-lhe os olhos. Gelina estremeceu quando um tomate podre atirado por uma mão anônima se esborrachou no rosto dele. O’Caflin não se mexeu. Até Nimbus pareceu impressionado.
Gritos ferozes soltaram-se da multidão como mísseis:
- Traidor!
- Bastardo!
- Cão de Eoghan Mogh!
Quando o conduziram pelos degraus, uma velha cuspiu-lhe no rosto sem que os guardas pudessem evitar.
Conn ergueu um braço e gritou:
- Parem!
A multidão calou-se e todos os olhos se viraram para a torre. As palavras de Conn foram rápidas e incisivas:
- A execução deste homem valerá como um castigo. Os outros abusos cessarão. - Alguns pareceram chocados, mas outros continuaram a olhar para O’Caflin com hostilidade. Conn respirou fundo. - É para mim extremamente doloroso ver um homem do Fianna ter este fim. Mas Barron O’Caflin escolheu o seu caminho. Escolheu trair o nosso reino. Escolheu deixar os seus irmãos morrerem. - A sua voz foi endurecendo de fúria. - Sei que muitos de vocês perderam jovens dos seus clãs por causa da traição de O’Caflin.
Gelina sentiu os olhos encherem-se de lágrimas quando viu um camponês desatar a chorar incontrolavelmente.
- Não posso devolver-lhes os seus homens. Eram meus homens também e choro com vocês. Hoje será feita justiça e ela será feita publicamente para que todos os que pensam trair Erin saibam qual o destino que os espera.
Os guardas não obrigaram O’Caflin a pôr-se de joelhos. Foi voluntariamente ele que se ajoelhou diante da multidão como um carneiro que vai ser sacrificado e colocou a cabeça sobre o bloco de madeira. O carrasco de capuz pegou no machado de bronze. A lâmina cintilava ao sol. Gelina reprimiu o grito que lhe subia pela garganta e olhou para Conn. Foi a única pessoa a ver a tensão que lhe comprimia todos os músculos do corpo e sabendo que ele tinha tanta vontade de gritar como ela.
A multidão calou-se quando os passos pesados de Goll MacMorna ecoaram pelo pátio. Aproximou-se do patíbulo e ergueu no ar o enorme machado.
Gelina não deixou os seus olhos verem a cena macabra, e quando os virou eles incidiram sobre uma figura alta, de capa, que se encontrava ao fundo do pátio. O capuz tapava-lhe completamente o rosto, mas ela teve a certeza de que o homem estava olhando para ela.
Ele levantou uma mão e empurrou o capuz para trás, apenas o suficiente para revelar as suas feições. Gelina não chegou a ver o machado cair. Não chegou a ouvi-lo silvar enquanto decepava a cabeça de O’Caflin. Não chegou a ver a cabeça decapitada rolar do cadafalso abaixo. A única coisa que ela viu foram uns olhos escuros e risonhos e umas feições que ela amava tanto como as suas, antes de cair no chão da torre enquanto o mundo ao seu redor ficava negro.
Quando abriu os olhos, Gelina viu o rosto preocupado de Conn a poucos centímetros do seu. Sentado ao lado dela na cama de dossel, fitava-a como se temesse que ela fosse evaporar. Inconscientemente, Gelina esticou os braços e puxou-o para si, escondendo o rosto no ombro forte e saboreando o seu cheiro másculo. Os braços de Conn rodearam-na por instantes, depois a encostaram ao travesseiro, a relutância na ponta dos dedos.
- Perdoa-me - murmurou. - Eu não devia ter permitido que assistisse à execução. - Gelina virou-se com uma expressão indecifrável nos olhos. Naquela voz havia um remorso pouco habitual. - Por vezes esqueço que viveu um inferno.
Gelina não se atreveu a falar, sabendo que se confessasse a ele e a si mesma, tudo o que tinha visto, estaria perdida. Seria o fim da vida que descobrira em Tara. Manteve o silêncio, preservando a única felicidade de que se lembrava.
- Gelina, não diz nada? Segundo os meus médicos, o medo pode fazer uma pessoa perder a voz.
- Isso seria sorte demais para você, Conn. - Conseguiu sorrir e soltar uma gargalhada. - Que aconteceu?
- Perdeu os sentidos na torre. Mer-Nod socorreu-a e eu a trouxe para o seu quarto. Esteve inconsciente alguns minutos.
- Que humilhante! Sheela viu-me desmaiar? - suspirou, envergonhada.
Exasperado, Conn perguntou:
- Essa é a sua única preocupação?
- Bem, não. Não caí em cima de Nimbus, não é? Ele é tão querido e pequeno.
- Pregou-me um susto de morte e fica ai dizendo piadas. Merecia uma coça. - Conn ergueu o punho esforçando-se por não mostrar a sua raiva.
Gelina pegou na mão dele e levou-a aos lábios, quase sem sorrir.
- Assustei-o?
Conn tirou a mão daqueles lábios macios como se a tivesse queimado e beijou-a na testa.
- Não foi só a mim que assustou. Vou dizer aos outros que esta bem. Anda por aí um anão histérico. Quero que passe esta noite no seu quarto.
- De castigo?
Conn sacudiu a cabeça.
- Para o bem da sua saúde. Vou mandar Moira trazer uma tigela de caldo.
Gelina fez uma careta, mas ele apontou-lhe o dedo e não foi preciso dizer nem mais uma palavra. Gelina recostou-se nos travesseiros sem reclamar. Conn saiu e fechou a porta.
Gelina saltou da cama e foi até à janela. Para seu alívio não viu nenhuma figura de capa espreitando lá embaixo. Pôs os braços em volta do corpo, receando a solidão e as recordações que ela lhe traria - ainda pensou em chamar Conn e suplicar-lhe que mandasse Nimbus ou Sean fazer-lhe companhia, mas sabia que não devia aumentar as suspeitas dele.
Ao canto, a arca chamava por ela. Tirou de lá uma peça de tecido fino. Fios enredados e pedaços amarrotados denunciavam-no como obra sua. Encontrou a agulha e começou a refazer meticulosamente o bordado, concentrando toda a sua atenção numa tarefa que detestava.
A tarde passou o tempo medido pelos pontos no pano e pelas minúsculas picadelas da agulha no seu dedo. Bateram à porta.
- Entra Moira. - Nem levantou os olhos. O bordado começava a parecer uma mancha indistinta aos seus olhos cansados.
A porta abriu-se devagar. Como ninguém a cumprimentou, ergueu a cabeça e foi com uns olhos arregalados e estupefatos que viu o irmão à sua frente.
Não se lembrava de que ele era tão alto. Tinha cabelo negro desalinhado. Os seus olhos negros fitavam-na com uma intensidade que lhe cortou a respiração.
- Fecham-na a sete chaves, não é verdade, princesa?
- Fecham-me?
Quando ele deu um passo em direção à cama, Gelina encolheu-se instintivamente e recuou para a cabeceira.
De mão estendida, parecia que ele estava falando com um animal assustado:
- Não sou um fantasma, Lina. Vim buscá-la. Vim tirá-la das mãos dele.
- Ele me disse que estava morto.
- Pareço morto? Alguma vez acreditamos no que ele disse? - Tinha o ódio gravado nas feições. Como a irmã não respondesse, continuou: - Conheci pessoas como nós, Lina. Pessoas que o odeiam tanto como nós. Juntos vamos libertar Erin da sua tirania.
Gelina semicerrou os olhos:
- Por que esperou tanto tempo para vir me buscar?
- No início não sabia que estava viva. Estive doente muito tempo. O ferimento que ele me infligiu infeccionou. Só queria vir buscá-la quando tivesse condições para fazer o que tem de ser feito.
- E já tem?
Ele riu e o som produzido foi desagradável:
- Sim. Conn, das Cem Batalhas há de lamentar o dia em que usurpou o trono de Erin. - Aproximou-se dela que continuava encolhida na cama, e acariciou um cacho rebelde. - Lina, sou Rodney. O seu lugar é ao meu lado. - A sua voz era um murmúrio suave e as lágrimas correram pelo rosto de Gelina, que reprimiu a vontade de abraçá-lo.
- Não posso ir com você - disse, virando o rosto.
- Por quê? Vim resgatá-la. Não me interessa o que ele fez por você. Eu farei melhor - respondeu, com uma nota de desespero na voz.
Gelina riu:
- Apenas me deu uma casa e uma família.
Uma canção de embalar veio das escadas, entoada pela doce voz de soprano de Moira.
- Tenho de ir agora. - Rodney falou bruscamente, enquanto agarrava o rosto da irmã com as mãos e a olhava nos olhos: - Vai me encontrar ao nascer do sol. Ao sul, nas colinas. Estarei lá à sua espera.
E desapareceu antes que Gelina tivesse tempo para sacudir a cabeça, a rejeição que a atormentava atravessada na garganta. Moira entrou, atarefada como sempre, segundos depois, com uma tigela de caldo fumegante nas mãos.
Pousou a mão experiente na testa de Gelina.
- Esta branca como a neve, moça. Talvez esteja doente e isso é que a fez desmaiar. Os médicos de Conn virão vê-la amanhã, senão melhorar.
Muito tempo depois de Moira ir embora o caldo ainda estava por comer na tigela. O quarto escureceu, as sombras da noite estenderam-se sem piedade. Gelina não saiu da cama nem para acender uma vela. Ficou horas olhando para a escuridão, presa nas teias da tristeza, do pasmo e da confusão. Rodney estava vivo. Conn tinha mentido.
A meia-noite chegou. Gelina dobrou o seu corpo esguio e pôs os pés no chão. Iria falar com Conn. Estava disposta a enfrentá-lo e tentar entender por que razão a tinha enganado. Conhecia-o bem demais para condená-lo sem julgamento.
Alisou a saia amarrotada e caminhou descalça até aos aposentos dele. Como a porta estava entreaberta, bateu de leve e entrou. Suspirou ao encontrar o quarto vazio e a cama por desfazer. Se ele estava com Sheela, só regressaria daí a muitas horas. Decidiu esperar.
Bocejou e subiu para o colchão de penas com os acontecimentos do dia pesaram-lhe nas pálpebras. Os seus olhos fecharam-se automaticamente assim que se recostou na cama. Uma brisa fresca entrou, enviada pela noite amena. Puxou pela coberta que estava aos pés da cama e cobriu-se, deixando para trás as emoções daquele dia.
Conn subiu as escadas correndo. Não conseguia livrar-se da desagradável sensação de que alguma coisa estava a escapar-lhe. Gelina não era versada nos artifícios que a maioria das mulheres que ele conhecia usavam e o medo que vira nos olhos dela naquela tarde era real... Ela não tinha sido capaz de disfarçá-lo. Queria descobrir o que a perturbara com uma urgência desconhecida nele.
Duas vezes se pôs a caminho do quarto dela, e duas vezes regressou à sua cadeira, cheio de dúvidas acerca dos seus motivos. A lareira do escritório não lhe deu respostas. As labaredas limitaram-se a refletir a apreensão dos seus olhos, hipnotizando-o até o sono chegar.
Agora estava parado à porta do quarto de Gelina, a mão pousada na maçaneta. O silêncio era ensurdecedor. Em volta dele a fortaleza dormia. Retirou a mão e suspirou, tentando afastar a ideia de que alguma coisa a assustava, atribuindo-a aos seus próprios sentimentos confusos. Talvez fosse ele quem andava assustado.
Abriu a porta do seu próprio quarto e sentiu o frio penetrar-lhe nos ossos. Fechou as janelas e praguejou em voz alta contra o criado que se esquecera de acender a lareira. Atirou as roupas para o chão. Da cama veio um leve sussurro que o sobressaltou.
Debaixo da sua coberta, uma figura encolhida procurava afundar-se mais no calor da cama. Conn sorriu e sacudiu a cabeça. Devia ter-se lembrado de que Sheela não era mulher para ser ignorada e desde o seu regresso praticamente não lhe dera atenção. Aproximou-se da cama, na esperança de encontrar junto a ela o conforto de que tanto precisava.
Enfiou-se por debaixo da coberta e sentiu o calor que irradiava daquele corpo antes mesmo de lhe tocar. Segurou-a por um ombro e, com cuidado, virou-a para cima. Com um braço de cada lado de Gelina, encostou o corpo e os lábios aos dela. O cheiro a sândalo atingiu-o como um murro e não pôde evitar o movimento dos seus lábios, da mesma maneira que não podia evitar os batimentos do seu coração.
Estremeceu ao sentir o corpo esguio e jovem de Gelina contra o seu enquanto os lábios dela se entreabriam sob a força do seu beijo. O seu corpo cobria o dela, empurrando-o contra a suavidade do colchão de penas com um carinho urgente. O pouco da sua mente que ainda conseguia ser racional tentou afastá-lo, mas quando sentiu os braços dela em volta do seu pescoço, o desejo tomou conta da sua alma, ensurdecendo-o às súplicas da sua mente.
Os seus lábios famintos demoraram-se nas têmporas, no pescoço, deslizando pelo veludo quente daquela pele. Fios de cabelo despenteado ficaram presos na sua boca como algodão doce. A sua mão percorreu o corpo dela, explorando a delicadeza sob a blusa e a saia. Com uma mão levantou-lhe ligeiramente o pescoço e com a outra puxou a saia para cima, revelando uma coxa sedosa.
O calor da coxa macia nos seus dedos incendiou-o por dentro e saltou para fora da cama, enrolando um pano à volta da cintura.
De joelhos, esforçou-se por recuperar o fôlego. Gelina tinha-se sentado na cama e o luar refletia-se nos seus olhos.
- Em nome de Behl, que diabos esta fazendo aqui? - gritou Conn, ofegante.
- Eu é que devia fazer essa pergunta. - Toda ela estremecia enquanto tentava por sua vez recuperar o fôlego.
- Visto que fui eu que a encontrei na minha cama, acho que devia ser você a responder primeiro. - Tinha uma expressão furiosa nos olhos, mas Gelina pressentiu uma emoção nova na voz dele - medo.
Engoliu em seco:
- Vim falar contigo. E adormeci.
- Cogitava revelar a sua identidade antes ou depois de eu seduzi-la? - Pôs-se de pé, apertou o pano em volta da cintura e foi buscar a garrafa de cerveja.
- Sabia muito bem que era eu - respondeu Gelina, esticando o pescoço, orgulhosa.
- Não sabia. Pensava que era Sheela.
- Esta mentindo. - A voz cristalina dela ecoou no silêncio do quarto.
Conn aproximou-se da cama de olhos semicerrados e Gelina esforçou-se para não se mexer. Olhou para ela e sacudiu a cabeça:
- Não consegue manter-se fora do perigo, não é?
- Não vi qualquer perigo em ficar aqui à sua espera. Sabia que era eu. - Olhou tristemente para a manta e balbuciou: - Não é a primeira vez que mente.
- Não sabia que era você - repetiu ele. - Não tenho qualquer interesse em ir para a cama com uma criança.
Gelina virou o rosto para ele não ver quanto a tinha magoado.
- Esta zangado, não é?
- Claro que estou zangado. Quase violentei a minha filha adotiva! - As palavras roucas dele atingiram-na com a força de mísseis.
Gelina sacudiu a cabeça sem conseguir dizer que, em sua opinião, o que acabava de acontecer pouco tinha a ver com violação. Conn coçou a cabeça e olhou para ela.
- Conn, por favor...
- Cala-te, Gelina. - Cortou-lhe a palavra antes que ela soubesse exatamente o que queria dizer. - Estou decidindo o que vou fazer com você.
O tom decisivo assustou-a mais do que todas as repreensões que ele pudesse proferir. Eram os olhos frios de um desconhecido que estavam a avaliá-la. Gelina sentiu o seu rosto corar. Sentou-se no meio da enorme cama sentindo-se muito pequena, desgrenhada, zangada.
Conn olhou para a janela, recusando-se a encará-la de frente.
- Receio que só haja uma coisa a fazer. Vai casar com Sean O’Finn antes que a semana termine. Vou dar-lhe um bom dote e ele poderá levá-la daqui para fora.
- Não amo Sean. Não pode fazer uma coisa dessas. - Gelina saltou da cama e pousou uma mão no braço dele.
Conn sacudiu-a.
- Posso fazer o que eu bem entender. Sou o Ard-Righ.
- Foi esse tipo de atitude que lhe deu a fama de homem justo?
- Não grite. Irrita-me - respondeu ele entre dentes.
Gelina fez uma reverencia exageradamente elaborada:
- Perdoa a minha grosseria, senhor. Mas revolta-me saber que vou ser obrigada a casar com um homem que não amo.
- Sean gosta muito de você. Ele próprio me disse. Qualquer mulher gostaria de ter um soldado do Fianna por marido. Talvez uma penca de filhos a ajude a ganhar juízo.
- É preciso muito mais do que uma penca de filhos para que eu ganhe juízo.
- É tão absurdo quanto pensar que gostei de encontrá-la na minha cama - replicou Conn, injuriosamente.
A mão de Gelina ergueu-se contra sua vontade e ele apertou-a com força enquanto dizia devagar:
- Nem pense sequer numa coisa dessa. Tira já essa ideia da sua cabeça. - A ameaça era real. A escuridão enchia os olhos dele, uma escuridão que ela se esforçava por esquecer.
- Pode casar-me com Sean, mas isso não vai mudar o que sentiu minutos atrás, não é?
Sem dizer uma palavra, Conn foi até à porta e abriu-a. Gelina saiu, recusando-se a ceder às lágrimas amargas antes de chegar ao fundo do corredor. Sentou-se no chão e chorou como um bebe. Quando ouviu outra porta bater, correu para o jardim e tropeçou na lama, cega pelas lágrimas. De joelhos, olhou para uma janela iluminada por uma lareira. A cena no quarto era dolorosamente nítida, como se ela própria estivesse lá dentro. Conn atravessava o quarto com passadas largas. A pergunta morreu nos lábios de Sheela quando Conn a puxou para si com a mão sobre a massa de cachos escuros, inclinando-a para trás. Os lábios dele pousaram violentamente nos dela. Ela abraçou-o e Gelina deixou de vê-los. Enterrou os dedos no chão molhado como se quisesse agarrar o que estava já fora do seu alcance.
Não lhe passava pela cabeça que o coração se encontrasse tão perto do estômago, por isso não esperava sentir a dor física que a obrigou a dobrar o corpo. Respirava com dificuldade por entre os lábios cerrados. Ficou prostrada no jardim uma eternidade. Os seus soluços foram-se tornando menos frequentes e mais abafados. A lama fria por debaixo dos seus joelhos manchou-lhe a saia. As lágrimas do seu rosto secaram, deixando marcas. Pela segunda manhã consecutiva, viu o céu ficar cor-de-rosa a oriente. Uma raiva atroz, bárbara, começou a substituir gradualmente a dor enquanto a sua respiração se tornava quase normal. A manhã vinha aí.
Correu pelos corredores da fortaleza adormecida até chegar ao quarto. De boca aberta, Sean dormia profundamente em cima da manta. Observou-o com ternura por um momento, depois lhe revistou as roupas e encontrou uma chave.
Lembrava-se bem de onde ficava a sala de armas, iluminada pelas filas de tochas que se refletiam nas superfícies brilhantes dos instrumentos da morte. Regressou ao quarto com a espada escondida na prega da saia comprida. Despiu-se. O ar da manhã que entrava pela janela acariciou-lhe a pele antes de vestir o gibão masculino e os calções. Vasculhou a arca de madeira até encontrar o gorro. Escondeu nele os seus longos cabelos e depois parou e olhou para o espelho.
O punhal estava onde o tinha deixado. A sua respiração tornou-se irregular assim que pegou nele. Os cachos caíram ao chão como um sonho a desaparecer, deixando-a com um cabelo curto que se recusava a ser domado. Pendurou o pingente no pescoço. Embrulhou-se numa capa grande com capuz, muito parecida com a que vira o irmão usar.
Com o peso familiar da espada na mão, abriu a porta. Uma figura solitária estava encostada à parede em cima das escadas, de braços cruzados e sem nenhum vestígio de sorriso nos olhos.
Gelina ouviu-o petrificada:
- Ele não vai deixá-la partir.
- Não há outra hipótese, Nimbus. Vou partir e já. - O tom dela era simultaneamente de ameaça e súplica.
- É uma loucura. - Nimbus avançou de braços estendidos.
- Sim, sou louca. Ele é louco. Enlouquecemos todos um pouco. - No murmúrio dela havia uma nota de desespero.
- Fica Gelina. Casa comigo. Eu a amo, sabe?
- Oh, Nimbus! - Com os olhos cheios de lágrimas, pegou na pequena mão do amigo. - Eu também te amo, mas não dessa maneira. Tem de me deixar partir.
Nimbus sacudiu a cabeça e ficou algum tempo olhando o vazio.
- Tem para onde ir?
- Penso que sim.
Olharam-se em silêncio durante algum tempo, depois Gelina ajoelhou-se ao lado dele e abraçou-o. Foi Nimbus quem, com relutância, se afastou primeiro.
- Cuide de você e esconda-se bem. Ele vai procurá-la e não vai demorar.
Gelina não pôde deixar de soltar uma gargalhada amarga.
- Duvido muito. Vai achar um alívio ver-se livre da sua adotada. - Nimbus sacudiu a cabeça. - Tenho de ir. O dia está cada vez mais claro.
Dirigiu-lhe um último sorriso triste, deu meia volta e começou a descer as escadas, a mão no punho da espada, a capa esvoaçando atrás de si. Nimbus via-a afastar-se depois se sentou e ficou olhando o vazio.
No estábulo não havia ninguém a barrar-lhe o caminho, nem sequer o cavalariço roncandor. Examinou cada baia antes de parar diante daquela onde se encontrava o cavalo de Conn. Um sorriso intimidador retorceu-lhe os lábios. Montou o cavalo, saltando-lhe para o dorso. Os guardas sonolentos abriram os portões da fortaleza sem pestanejar. Já a tinham visto sair a cavalo em horas mais estranhas durante a ausência de Conn. Um grito de batalha atravessou-lhe na garganta. Silent Thunder saiu da fortaleza a galope rumo às colinas do sul enquanto o sol se erguia a leste no horizonte.
Conn acordou com um gosto amargo na boca e uma sensação de desconforto no estômago. Bastaram poucos minutos para perceber por que - o gosto amargo era o resultado da grande quantidade de cerveja que bebera antes de entrar de rompante no quarto de Sheela na noite anterior. Sheela dormia a seu lado, com um braço em cima do seu peito, a ressonar suavemente. Afastou o braço dela e saltou para fora da cama, suprimindo um gemido quando os seus joelhos bateram no chão frio de madeira. Vestiu-se e saiu. O silêncio proclamava a chegada da manhã. Tinha de falar com Gelina. Praguejou contra si mesmo quando recordou o encontro deles na íntegra, incluindo as palavras duras que tinha proferido.
A porta dela abriu-se com um rangido. Parou espantado com a desordem que ia naquele quarto. A arca não tinha nada lá dentro e havia vestidos espalhados de uma ponta à outra do quarto. A cama estava vazia, feita. A mesa fora esvaziada com um simples gesto, a julgar pelos pentes de marfim e frascos de barro tombados no chão. O cheiro de sândalo era intenso. Recuou um passo, enquanto uma suspeita horrível se instalava no seu espírito.
Alguns soldados dormiam no salão de entrada em volta da lareira, onde as brasas ainda ardiam. A cozinha estava vazia, bem como o escritório. Parou junto ao tabuleiro de xadrez onde alguma coisa tinha chamado a sua atenção. Respirou fundo e verificou que a rainha branca não se encontrava no seu posto.
Correu para a sala de armas e abriu-a com a sua chave. Os seus temores confirmaram-se. Passou os dedos gelados pela parede vazia, murmurando o nome dela numa prece silenciosa.
Correu para os estábulos, revistou todas as baias até chegar à de Silent Thunder. Escancarou a porta. Uma estreita tira de couro estava pendurada num prego à sua frente. Arrancou-a da parede. Era um cinto do Fianna, onde estava gravado o seu próprio nome. Atirou-o para o chão, praguejando violentamente.
- Foi embora.
Deu meia volta. Nimbus estava encostado à parede atrás de si.
- Onde está ela?
- Eu avisei. Foi embora. - Conn avançou, agarrou-o pela gola e levantou-o do chão até conseguir olhá-lo de frente.
- Para onde ela foi?
- Vai lá, Conn - gritou Nimbus - espanca a mim também! Destrói mais qualquer coisa hoje!
Conn largou-o e virou-se tentando controlar a sua respiração.
- Afinal o que foi que lhe fez? - perguntou Nimbus.
- Nada - respondeu Conn, amargo. - Acho que ela é o problema.
- Ela amava-o, sabe. - Nimbus pronunciou a palavra.
- Claro. Eu tomava conta dela.
- É cego? - perguntou Nimbus abrindo muito os olhos. - Ela amava-o como uma mulher ama um homem. Já o amava antes de ir para Roma. - O bobo pôs-se a andar de um lado para o outro.
Conn encostou-se à parede, sem forças.
- Tem idade para ser minha filha.
- Não seria o primeiro rei a criar uma moça e a escolhê-la para noiva.
- Não seja ridículo, Nimbus. É como disse. Vi-a sempre como uma filha.
- Aposto que nem sempre - disse Nimbus sarcástico.
- E sabe para onde ela foi? - perguntou Conn baixando a voz.
- Isso eu pergunto, visto que é o único que sabe de onde ela veio.
- Vou encontrá-la. - Conn endireitou-se e semicerrou os olhos. Nimbus não gostou da expressão do olhar dele. Conn apanhou o cinto do chão, para onde o tinha atirado. Colocou-o em volta da cintura e repetiu: - Hei de encontrá-la.
Pobre da mulher que ama um homem
quando não é amada por ninguém
Fugir do amor é o que deve fazer.
O amor morde quem amor não tem.
Autor desconhecido Século IX
O crepúsculo adensava-se à sua volta, tal como o perfume da alfazema na quietude do verão. No horizonte, a escuridão aumentava a leste. Galopou pelas colinas verde-esmeralda ouvindo apenas o ruído dos cascos do cavalo abafado pela grama alta. Os seus pensamentos fugiam de um lado para o outro, imbuídos da angústia e do cansaço da longa viagem. Conhecendo o desespero dos seus tempos no porão do navio romano, Conn sabia que o que sentia naquele momento ultrapassava em muito os respectivos limites. Ao longe ouviu o rugido de um animal e voltou a pensar no chacal da sua visão.
Todo o dia avançava um pouco mais e só regressava a Tara no meio da noite. Os aldeões saudavam a figura desesperada que viam passar. Por vezes ia acompanhado de soldados, mas o mais frequente era cavalgar sozinho. Cumprimentavam-no, ofereciam-lhe comida, mas ninguém lhe dava o único conforto que ele procurava : notícias de Gelina. Tinha desaparecido sem deixar rastro. Ao fim de uma semana, viu-se obrigado a desistir da ideia de que ela tinha apenas amuado e acabaria por regressar, gelada e faminta, disposta a fazer as pazes. Ao fim de um mês, deixou de ter muitas outras esperanças também.
Todos os anos no verão os homens do Fianna eram enviados para vários pontos da ilha, onde viviam ao relento exercendo as funções de força de manutenção da paz e defendendo as regiões ainda ameaçadas pela presença indesejável de Eoghan Mogh. Desta vez, porém, a missão era outra. Encontrar Gelina. As pessoas ouviam falar do seu desaparecimento sem fazer perguntas, ninguém sabia se ela tinha sido raptada ou tinha partido de livre vontade. Perante o olhar perdido e atormentado de Conn ninguém se atrevia a perguntar por que ou como ela tinha desaparecido.
Apenas Nimbus, o bobo cujas piadas eram cada dia mais amargas, sabia como Conn se sentia culpado quando se sentava na sala de trabalho, o rosto escondido nas mãos, ao fim de mais uma noite a cavalo, mais um dia de buscas vãs. Nimbus tentava animá-lo, oferecendo-se para usar o tabuleiro de xadrez que repousava a um canto, coberto de pó. Os olhos assombrados de Conn, quando ele os mostrava, eram um argumento suficiente para o bobo o perdoar e o deixar a sós.
Para Conn, o Verão sempre fora uma época de passeios pelos campos de Erin na companhia de outros membros do Fianna. Uma época de canções e poemas sob o céu estrelado enquanto se banqueteavam com carne grelhada em covas abertas no chão cheio de carvões em brasa. Uma época em que as pessoas combatiam quando era necessário e treinavam quando não havia ninguém com quem lutar. Uma época de camaradagem entre homens que tinham um sonho comum. Mas agora o verão significava montar e procurar, nada mais. Os dias eram intermináveis e as noites mais longas ainda.
Parou o garanhão castanho no cume de um monte enquanto a negritude da noite substituía em silêncio o roxo do crepúsculo. Deslizou para o chão, puxou um saco cheio de provisões e sentou-se em cima de uma pedra achatada, fitando a noite. Comeu metodicamente, reconhecendo estar muito cansado para sentir o sabor da carne fria.
Estudou as estrelas suspensas por cima do vasto terreno, estranhando a sua solidão. Nunca tinha sentido o ferrão da noite vazia como agora.
A estrela mais brilhante só lhe recordava uns sorridentes olhos verde-esmeralda, mais resplandecentes do que qualquer estrela.
As palavras cruéis que lhe tinha dirigido ecoavam na sua mente, eliminando recordações doces de lábios entreabertos e tufos de cachos. Pôs a mão no bolso e retirou a madeixa de cabelo ruivo que o tinha atingido como um murro no estômago quando a encontrou no meio do chão do quarto dela, junto de muitas outras iguais. Segurou-a entre os dedos, sentindo-se muito perto dela. Era quase como se estendesse a mão e sentisse o calor do seu corpo na noite fresca. Tinha a certeza de que Gelina estava viva.
- Onde se meteu? - murmurou rouco.
A noite não lhe deu resposta, troçando dele com o seu silêncio. De pé, Conn gritou o nome dela só para ouvi-lo flutuar por cima dos montes e regressar na forma de um eco. Montou e perguntou a si mesmo se estaria perdendo os sentidos. Instigou o cavalo em direção à fortaleza, como se estivesse sendo perseguido por demônios. O vento soprava com tanta força que quase lhe arrancava os cabelos. Conn cavalgava cada vez mais depressa, conduzindo o garanhão na noite deserta. O vento secava as suas lágrimas antes mesmo dele as sentir.
Na fortaleza não havia a habitual agitação do inverno naquela noite quente de verão. Com os soldados distribuídos pelos quatro cantos de Erin e os pastores acampados nas pastagens com os seus animais, apenas alguns retardatários permaneceram na fortaleza. A fogueira não estava acesa na lareira do salão de entrada. Uma brisa quente entrava pelas portas abertas.
Mer-Nod e Nimbus estavam sentados no pátio, o bobo encarrapitado num fardo de feno e Mer-Nod confortavelmente reclinado na sua cadeira de poeta que ele próprio carregara para o ar livre num acesso de prepotência. Olhavam um para o outro à cautela, nenhum deles falava. O sol já se tinha posto uma hora atrás naquela noite lenta e ambos aguardavam o regresso de Conn, sabendo que nada garantia que ele voltasse nessa noite nem na seguinte. Sobressaltaram-se quando ouviram o som de cascos ao longe, mas logo a seguir viram decepcionados, Sean O’Finn entrar no pátio e descer do cavalo.
- Conn já voltou? - perguntou-lhes, ofegante.
- Acha que estaríamos aqui sentados se ele já tivesse chegado? - retorquiu Nimbus.
Mer-Nod olhou-o com frieza e disse:
- Ficaríamos muito mais confortáveis se certa pessoa se retirasse.
Nimbus mostrou-lhe a língua e Sean ergueu os braços, exasperado:
- Vocês aí brigando como duas crianças quando eu tenho informações importantes a dar a Conn.
- Há novidades? - Nimbus endireitou-se.
Sean encolheu os ombros.
- Isso será Conn a decidir. - Puxou um fragmento de feno do fardo onde Nimbus estava sentado e enfiou-o ao canto da boca, esforçando-se em parecer desinteressado.
- Suponho que prefere não divulgar essa informação antes de Conn chegar - disse Mer-Nod.
- Não precisa esperar muito, porque ali vem ele. - A voz de Nimbus era quase um murmúrio e todos se viraram para Conn, que entrava em trote, de cabeça baixa. Levantou a mão numa saudação pouco enérgica. Sean e Mer-Nod trocaram um olhar e foi Mer-Nod quem falou, quebrando o silêncio, a tensão:
- Sean O’Finn quer uma audiência com você. Tem uma coisa importante para lhe comunicar.
- Encontrou-a. Está morta, não está? - Conn saltou do cavalo e atirou as rédeas para um poste sem sequer levantar a cabeça.
- Não Conn. Podemos entrar? - perguntou Sean.
Os dois homens apressaram-se a entrar e Nimbus correu atrás deles. Mer-Nod estendeu o seu longo braço e ergueu-o pela gola, ignorando o pontapé maldoso que recebeu na canela.
Conn conduziu Sean à sala de trabalho e fechou a porta. Apoiado na mesa virou-se para ele.
- O que se passa? - Os seus olhos meio fechados estavam indecifráveis.
Sean pigarreou e interrogou-se sobre a sensatez das suas palavras.
- Houve novos ataques ao sul.
Conn torceu o nariz:
- Isso não é novidade. Parece que Eoghan Mogh gosta mais de usar os músculos no calor do verão.
- Estão pilhando as aldeias exigindo riquezas. Atacam na calada da noite e apanham as pessoas desprevenidas. - Sean procurava as palavras certas.
- Pensa que eu não sabia? Ainda sou rei, muito embora tenha andado ocupado com outras coisas nas últimas semanas.
Não havia raiva nas palavras de Conn, apenas cansaço.
- Não disse que anda mal informado, Conn. Os relatórios que recebi das províncias do sul indicam que o responsável pelos ataques é sempre o mesmo grupo. Um homem com uma longa capa preta foi visto em diversas ocasiões. Parece ser o chefe deles. - Sean passeou pelo quarto e parou para olhar pela janela aberta.
- Mesmo assim isso não é novo. Deve ser um dos amigos de Eoghan Mogh. Se tem alguma coisa a dizer, Sean, desembucha. Estou ansioso por uma cama macia e uma cerveja forte.
Sean olhou-o de frente.
- Há uma mulher - Conn ficou petrificado, os seus olhos convidaram-no a continuar. - Dizem que é quase da altura dele e luta como um homem.
Os olhos de Sean brilhavam com uma espécie de admiração.
- Trabalha para eles, com uma poderosa espada na mão e uns cabelos que ao luar ficam da cor do sangue. Uns dizem que as feições dela são familiares. Outros dizem que a escuridão da noite não lhes permite vê-la. Está se tornando uma lenda.
Conn coçou a barba:
- Quando foi vista pela primeira vez?
- Há cerca de duas, três semanas. Não traria o assunto ao seu conhecimento se não tivesse passado pela sala de armas. Verifiquei que a espada desapareceu.
- Fez bem em falar comigo. - Afastou-se e murmurou: - Então aconteceu. - Os seus ombros estremeceram.
- Posso estar enganado. Não se aflija tanto.
Conn virou-se com o rosto coberto de lágrimas. Sean recuou um passo, convencido de que o seu rei tinha perdido o juízo, não tinha suportado o choque. Conn estendeu-lhe a mão e tentou falar, mas as palavras faltaram-lhe e só conseguiu respirar fundo antes de um ataque de riso o dominar, obrigando-o a dobrar-se.
Sean sorriu nervosamente, sem saber a causa de tanta alegria, mas achando que devia fazer companhia ao rei na sua histeria. Em breve começou a rir à gargalhada. Conn estendeu-se em cima da mesa, agarrado ao próprio corpo, e Sean cambaleou pelo quarto até se encostar à parede. Ambos tentaram respirar fundo e controlar-se, mas assim que olhavam um para o outro desatavam novamente a rir.
Mer-Nod e Nimbus, agachados do outro lado da porta, escutavam, intrigados. Nimbus não pôde deixar de sorrir. Não ouvia Conn rir a muito tempo. A porta abriu-se de repente fazendo-os precipitar-se para dentro da sala. Mer-Nod levantou-se e endireitou o manto com dignidade. Conn estava encostado à mesa, de braços cruzados e rindo.
A voz de Conn ecoou pela sala:
- Não foi preciso muito tempo para a nossa menina mostrar de que lado está. Fecha a porta, Nimbus. Conn, das Cem Batalhas voltou pronto para a guerra. Temos planos a fazer.
Todos os seus músculos gritaram em protesto quando caiu de costas no feno e um gemido baixo se soltou dos seus dentes cerrados. Suspirou e fechou os olhos, deixando os braços caírem aos lados do corpo exausto. O cheiro do feno acabado de ceifar provocou-lhe comichão no nariz. A sua mão cansada não se mexeu para coçá-lo. Respirando devagar, profundamente, sentiu a tensão erguer-se do seu corpo e expandir-se para além do telhado do celeiro atarracado. Aquele dia ia ser bom. O cansaço ia protegê-la, resguardá-la da dor penetrante que a ameaçava mesmo em repouso. O seu sono não teria sonhos. Quando acordasse ao fim do dia, durante algum tempo, talvez até uns minutos, a dor não conseguiria encontrá-la. O sol da tarde incidiria sobre o seu rosto através da janela existente no piso superior e o ar puro limparia os seus pulmões. Teria algum tempo, antes de recordar o que lhe causava dor.
Eoghan Mogh examinou com interesse as suas unhas bem aparadas:
- A sua irmã não está feliz, sabia?
- Claro que está feliz. Estamos juntos, não estamos? É a única coisa que lhe interessa - respondeu Rodney na defensiva, tirando uma maçã da taça que estava em cima da mesa.
- Não. Isso é o que interessa a você. A ela não - replicou Eoghan.
Rodney mordeu a maçã e começou a mastigar furiosamente.
- Aquele bastardo enfeitiçou-a. Mas ela está fazendo um bom papel, não é verdade?
- Não tenho nada a dizer da sua capacidade de batedora . Eu próprio detestaria encontrá-la no meio de uma noite sem luar.
Com um sorriso, Rodney respondeu:
- Fui eu quem lhe ensinou tudo, claro. Há muito tempo que lhe digo que seria preciosa para nós.
- A questão não é essa. Ela não está feliz. Eu diria mesmo que a moça está infeliz. - Eoghan pronunciou cada palavra como se estivesse explicando a métrica de um poema a uma criança. - Fale com ela. Vê se consegue alegrá-la.
- Conseguia sempre fazê-la rir quando éramos crianças. - Rodney olhou para fora da cabana rudimentar, com uma expressão triste. - Talvez tenhamos exigido muito dela rapidamente. Uma semana de exercícios e três semanas de ataques pode ter sido um esforço grande demais. Não a viu em Tara. Uma autêntica senhora.
Eoghan desviou os olhos dos ávidos dele recusando-se a interferir num assunto que não lhe dizia respeito.
- Quero-a pronta para a fortaleza daqui a um mês. Iremos pelo norte. Quanto mais nos formos aproximando dele, mais difícil tudo será para ela. Tem de estar preparada.
- Um mês não é muito tempo - disse Rodney, a dúvida na sua voz.
- Terá de bastar. Não temos mais.
- Vou animá-la. - Rodney saiu e atirou o miolo da maçã para Eoghan com um sorriso vaidoso. Assobiando uma melodia alegre, foi até ao celeiro onde Gelina dormia. O piso superior estava vazio, o feno ainda quente no lugar onde o corpo dela se aninhara. Desceu e dirigiu-se ao ribeiro onde Gelina se lavava todas as tardes.
Atravessou furtivamente os bosques até chegar à pequena clareira onde o ribeiro gorgolejava por cima das pedras achatadas. Gelina estava sentada na margem de calças arregaçadas, os pés mergulhados na água. Rodney passou por uma árvore e sentou-se antes de começar a falar.
- Isto me recorda os tempos em que fazíamos piqueniques na floresta junto à gruta.
Gelina olhou para ele espantada:
- Lembro-me muito bem. Mandava-me comer os olhos dos peixes. Dizia que faziam bem. Parece que os piqueniques são a minha especialidade - respondeu seca.
Ele levantou-se e sentou-se ao lado da irmã de pernas cruzadas.
- Estou tão feliz por ter você comigo.
- E eu estou feliz por estar vivo. - Gelina olhou-o com um sorriso genuíno, coisa rara desde que fora ter com ele naquela manhã galopando como se estivesse fugindo de um pesadelo.
- Pensava mesmo que eu estivesse morto?
Gelina pegou numa pedra e atirou-a à água sem qualquer expressão no rosto.
- Foi o que me disseram.
- Foi o que Conn lhe disse, não é verdade?
Gelina encolheu os ombros e atirou outra pedra para o lado em que a água era mais funda, fazendo-a saltitar à superfície e desfazer o reflexo do sol da manhã.
- Ele mandou divulgar que dará uma recompensa a quem a encontrar, mil moedas de ouro - disse Rodney em voz baixa. Como não obteve resposta, continuou: - Correm muitos boatos em Erin. Uns dizem que ele quer encontrá-la porque te ama. Outros dizem que é porque levou uma coisa que lhe pertence e ele quer reaver. Há até quem diga que ele quer matá-la. - Gelina rolou os olhos e sacudiu a cabeça, mas continuou calada. - Ou que quer encontrá-la por outra razão completamente diferente.
Gelina olhou-o por instantes e depois atirou uma pedra que em vez de ir parar à água ricocheteou violentamente da margem oposta.
Rodney suspirou:
- Mas creio que os rumores pararam ontem quando a recompensa foi alterada.
- Alterada para quê?
- Cinco mil moedas de ouro pelo seu regresso. Morta ou viva.
Gelina viu as árvores andar à volta, embora não tivesse feito qualquer movimento que pusesse o mundo girando subitamente. Os seus olhos pousaram em Rodney escuros como a noite. Esforçou-se por se manter imóvel sob o olhar inflexível do irmão.
- O quê?
- Desculpe-me princesa, mas precisava saber. Temos de matá-lo antes que ele a mate. Com Eoghan Mogh no trono, poderemos ser ricos e tudo correrá a nosso favor. Recuperaremos o lugar a que temos direito. O nome O’Monaghan será para sempre um nome honrado. - Falou depressa, sem querer travar o fluxo de palavras. - Seremos...
- Morta ou viva? - A voz dela chocou com ele e as palavras precipitaram-se no chão como cristais de gelo.
Sacudindo a cabeça, Rodney estendeu a mão à irmã, que quase se desequilibrou e caiu à margem enlameada.
- Maldito! - exclamou Gelina.
Rodney baixou-se quando ela desembainhou a espada, tão perturbada que quase lhe decepou uma orelha. Gelina ergueu a espada e apontou-a aos ramos de uma sorveira-brava. Soluços abafados misturaram-se com injúrias disfarçadas enquanto troncos e folhas voavam pelos ares. Rodney gatinhou até estar fora do raio de destruição. Pancadas cadenciadas chamaram a sua atenção quando a espada encontrou um alvo sólido. Gelina estava batendo com a espada numa enorme tília , o que lhe deixou o cabelo coberto de fragmentos de casca.
- Pelos deuses, Lina. Isso não é um machado! - Esperou que a espada ficasse enterrada na madeira teimosa e nesse preciso momento agarrou-a pela cintura e atirou-a ao chão, fazendo a espada cair aos pés da árvore com grande estouro. Quase sem se atrever a respirar, agarrou-a até os soluços persistentes darem lugar ao silêncio. Encostou o rosto ao cabelo dela, saboreando a sua delicadeza.
Gelina sentou-se e ele imitou-a, o braço ainda a prendê-la pela cintura. Gelina esfregou os olhos como uma criança sonada, encostou o rosto coberto de lágrimas no casaco do irmão e ambos choraram. Afagando-lhe suavemente o cabelo, Rodney entoou uma canção de embalar que ambos conheciam uma melodia suave cantada no sotaque agradável da sua mãe.
- Rodney?
- Sim?
- Canta muito mal.
- Obrigado, Lina. Também gosto muito de você. - Encostou os lábios à testa da irmã e sentiu-a palpitar docemente.
No fim dessa tarde Rodney sentou-se sozinho em cima de uma pequena elevação que dava para um prado banhado pelo pôr do Sol dourado do Verão. Lá em baixo, a sua irmã galopava em cima do monstro cor de ébano que tinha o nome de Silent Thunder. Corria para frente e para trás de espada em riste, soltando um terrível grito de batalha e dando a um inimigo imaginário uma morte tenebrosa. Rodney ouviu alguém rir atrás de si e quando se virou viu Eoghan Mogh de pé, com os braços cruzados.
- É uma mulher notável, a sua irmã! A fez rir?
O sorriso de Rodney esmoreceu quando ele respondeu:
- Não, mas também serviu.
- Que quer isso dizer?
- Enfureci-a.
Os dois viram calados, Gelina percorrer os campos com a vingança gravada nas suas feições delicadas. Um grito de batalha estridente passou por eles e atravessou a noite, fazendo Eoghan sentir um arrepio na espinha.
Foi o primeiro dos muitos gritos de batalha que eles ouviriam naquele longo verão. Com o cabelo escondido num gorro e a capa a flutuar, Gelina conduziu-os aldeias dentro no meio da noite, hora em que apanhariam as pessoas desprevenidas dormindo. Várias vezes, acompanhados por uma centena de homens, andaram de porta em porta exigindo o tesouro da respectiva família para financiar o reinado de Eoghan Mogh. Em troca, as vítimas eram presenteadas com a própria vida. Gelina ficava de sentinela à porta das pequenas cabanas montada no seu grande cavalo negro. Poucos se davam conta de que ela era uma mulher.
À medida que se aproximavam do norte, os seus cofres começavam a transbordar. Mais de uma vez, Gelina, Rodney e Eoghan partilharam um copo de cerveja enquanto as moedas de ouro caíam por entre os dedos de Gelina formando uma pilha no meio do chão. Agora isso se tornara para eles um hábito.
Gelina sentia-se encurralada num sonho vago, sem princípio nem fim. As moedas frias que deslizavam pelas pontas dos seus dedos condiziam com o gelo que tomara conta do seu espírito. A ganância acabou por se implantar na sua alma e as suas gavinhas asfixiavam os instantes de remorso e nostalgia que ameaçavam tomar conta dela.
Numa noite quente, Gelina aguardava montada em Silent Thunder, o traidor que não havia meio de sair de uma casa coberta de branco. Por debaixo da pesada capa, o suor escorria pelo seu corpo e ela mudou de posição em cima da sela esperando, em vão, acabar com a comichão que os fios de transpiração provocavam. De repente, ouviu um barulho e agarrou imediatamente as rédeas.
O cavalo deu meia volta e ficou virado para um soldado de espada na mão. Assim que viu a estatura e as tranças do homem, Gelina percebeu a mando de quem ele vinha. Resmungou e desejou que ele fosse para um país que ela não conhecia. Mas o homem continuou ali. A única alternativa que lhe restava era puxar a espada e brandi-la com um uivo feroz. Também assim ele não desapareceu.
- Avança e luta, patife - gritou ele e pela sua voz esganiçada Gelina percebeu que não passava de um garoto.
Gelina desceu do cavalo e agachou-se em posição de combate. O jovem guerreiro apontou-lhe a espada. Descobriu que tinha falado em vão quando ela aparou o seu ataque facilmente, desviando-se para o lado e quase lhe tirando a espada da mão com um toque hábil da sua arma. Percebeu que o homem que aguardava já estava de volta e assistia à cena com um sorriso e um saco de ouro em cada mão.
As espadas voltaram a cruzar-se uma vez e outra ainda e o clangor do metal frio ecoou no calor da noite. Gelina respondia a cada investida com uma estratégia igualmente inteligente. Agarrando a espada com as duas mãos, apanhou o jovem de surpresa ao saltar para o lado e rodar, tocando-lhe no pulso com as costas da espada. A arma do rapaz voou pelos ares e ele caiu de joelhos com a mão no pulso, gritando de dor. Gelina preparou-se para montar o seu cavalo.
- Cuidado! - Ao ouvir as palavras do homem que levava o ouro, Gelina virou-se de espada em riste.
O jovem foi enfiar-se na ponta aguçada da espada, enquanto o seu punhal caía ruidosamente sobre as pedras da rua. Um fio de sangue jorrou-lhe do canto da boca.
- Muito bem, colega. - As palavras de admiração do homem que a avisara foram acompanhadas de uma palmada nas costas que a fez ficar sem ar nos pulmões.
Enquanto ele se dirigia à habitação seguinte, Gelina ajoelhou-se junto ao morto. Os dedos dela procuraram o habitual cinto de couro. Gelina fechou os olhos e exclamou em voz baixa:
- Oh não, outro MacRuairc!
Sentada no chão de terra da cabana, pôs os braços em volta dos joelhos. A manhã ainda não tinha chegado e a noite estava carregada de escuridão. Como se tinham habituado a dormir de dia e a atacar de noite, não conseguia adormecer com os nervos ainda prisioneiros da escuridão.
Eoghan Mogh baixou-se e entrou pela pequena porta com uma garrafa de barro na mão.
- Rodney foi buscar vitela. Estou esfomeado.
Pousou o seu fardo em cima da mesa, admirado com o silêncio dela.
- Que aconteceu, Gelina?
- Matei um soldado do Fianna esta noite. - Levantou os olhos para ele, uns olhos muito abertos, invadidos pelos demônios da dúvida.
Antes que Eoghan tivesse tempo para responder, Rodney entrou radiante:
- Já sei tudo, Lina. Magnífico! Martin assistiu à cena inteira. Anda por aí dizendo a todos que o garoto é um grande guerreiro. Vamos brindar!
Colocou três canecas em cima da mesa ruidosamente e encheu-as até a cerveja transbordar. Praticamente dançando pôs-se a rodopiar com uma caneca em cada mão. Os outros olhavam sem dizer palavra.
- Que foi? Parecem membros do clã do moço, chorando - perguntou Rodney, chocado.
- Gelina está um pouco desconcertada - explicou Eoghan, tirando-lhe as canecas muito cheias das mãos.
- Oh! - O rosto de Rodney mudou de expressão como o de um rapazinho, mas depressa recuperou o seu sorriso quando se ajoelhou e apertou as mãos da irmã nas suas. - Lina, deveria se sentir orgulhosa. O mundo só tem a ganhar com a perda de um deles. Fez o que tinha de ser feito.
- Será? - perguntou ela num tom frio, retirando as mãos.
- Foi inevitável, Gelina - disse Eoghan. Gostava sinceramente da moça e custava vê-la triste. - Assim que os homens de Castela chegarem, Tara será cercada.
- Que homens?
Rodney sorriu:
- Eoghan tem uma beldade castelhana morena escondida nas montanhas... a sua esposa, Beara. O pai dela, Heber Mor, que por acaso é o rei de Castela, prometeu-nos quinhentos guerreiros que devem chegar dentro de um mês. - Deu uma palmada enérgica nas costas de Eoghan, felicitando-o pela sua astúcia.
- Não me parece correto envolver estrangeiros - observou Gelina de testa franzida.
- Correto? - O sorriso de Rodney desapareceu. - E acha correto Conn ter mandado assassinar os nossos pais? Acha correto os homens dele terem pendurado o nosso bobo nas traves? Acha correto ele ter dito que eu estava morto?
Gelina fechou os olhos. Abriram-se assim que Rodney a agarrou pelos ombros e a chacoalhou.
- Acha isso tudo correto, Lina?
Eoghan estendeu um braço para detê-lo, mas parou quando ouviu a voz de Gelina.
- Pare! Largue-me! Não vou permitir que seja violento comigo. Se o fizer não é melhor do que ele! - Saiu porta fora para a escuridão da noite.
Rodney preparava-se para ir atrás dela quando sentiu o peso da mão de Eoghan no seu ombro.
- Deixa-a. Dá-lhe tempo.
Lá fora, Gelina pôs-se a andar de um lado para o outro, com os olhos ardendo, mas muito furiosa para chorar. Uma enorme fogueira ardia no centro da clareira. Em volta dela aglomeravam-se os homens de Eoghan. Sem os hábitos e a inteligência do Fianna, até o mais asseado parecia permear o ar com o odor forte de corpos por lavar. O cabelo sujo caía-lhes pelos ombros. Nenhum deles reparou em Gelina, que se aproximou da fogueira.
- Bela colheita, a desta noite. Não acha, Martin? - disse um homem corpulento cujo gibão estava adornado com uma caveira e dois ossos em cruz.
- A melhor de sempre. Mas para mim ainda foi melhor porque encontrei uma linda pastorinha numa das habitações.
Gelina reconheceu o homem que falou, era um dos que ela aguardava quando o jovem a desafiou. Enojada, cuspiu para o chão.
Os homens riram e outro disse:
- Tem sempre sorte, Martin. Deve ser esses seus dentes que as senhoras gostam tanto.
Martin sorriu, mostrando dois espaços vazios no lugar onde deviam estar dois dentes.
- Ela gostou mais da minha língua do que dos meus dentes. Quando propus deixar-lhe umas moedas, ofereceu-se logo para demonstrar a sua gratidão de várias maneiras. - Fez uma careta sugestiva e todos desataram a rir e a congratulá-lo.
Ainda fora do círculo de luz projetado pela fogueira, Gelina tirou o gorro e atirou-o ao chão.
- Malditos - disse para si mesmo sem reparar que o seu súbito movimento tinha anulado a proteção da escuridão.
- Ora bem, que se passa ali? - Os olhos dos homens fixaram-se nela e, nervosa, Gelina passou a mão pelo cabelo antes de pousá-la sobre o punho da espada. O homem forte que tinha falado disse:
- Não admira que aquele tipo esteja sempre fechado com O’Monaghan e O’Mogh. Não é um homem.
Dois dos homens levantaram-se, com os olhos esfomeados postos nela.
- Ela não era de se jogar fora se tivesse mais cabelo. - Romperam às gargalhadas, lascivas, desagradáveis.
- Eu não a acho nada mal.
Gelina susteve a respiração quando um dos homens avançou na sua direção. Puxou a espada e ergueu-a, provocante.
- Mais um passo e será o seu fim, canalha.
O homem riu e olhou para os outros, incrédulo. Alguns encolheram os ombros.
O homem a quem chamavam Martin falou, calando os outros.
- Ela não esta brincando. - Todos os olhos se viraram na sua direção. - Ela é a tal de que falei. Matou o soldado do Fianna.
- Deve esta delirando. Esta... - Procurou a palavra certa e apontou para Gelina: - ...garota matou um dos guerreiros de Conn?
- Isso mesmo. - Martin fitou a fogueira, contraindo um músculo da face.
O homem estudou o rosto de Martin por instantes, depois se virou para Gelina, que não tinha mexido um centímetro, de pés afastados em posição de ataque, os olhos semicerrados num aviso. A lâmina afiada da sua espada refletia a luz das labaredas.
Da entrada da cabana, a voz autoritária de Eoghan falou com desprezo:
- Não quero desentendimentos entre os meus homens. Nem tampouco entre as minhas mulheres. Se isso acontecer, como vão conseguir unir-se e ajudar-me a conquistar Erin?
- E o primeiro que voltar a ameaçar a minha irmã vai descobrir que não tem a cabeça em cima dos ombros no espaço de um segundo. - A figura enfurecida de Rodney passeou por entre os homens de espada na mão.
- Sei cuidar de mim, Rodney. - Gelina voltou a arrumar a espada na bainha com toda a dignidade e dirigiu-se a Eoghan.
Eoghan estudou-a e o seu ar divertido, especulativo, pareceu-lhe familiar, embora Gelina não soubesse identificá-lo. Com uma mão no ombro dela, virou-a para os homens. A sua voz atravessou a noite:
- Gelina O’Monaghan é uma de nós. Merece o mesmo respeito e será tratada melhor do que qualquer outro. É corajosa e está decidida a livrar Erin da tirania de Conn.
Gelina fitou aqueles olhos azul-escuros e após apenas um segundo de hesitação puxou da espada e gritou:
- Morte ao tirano!
Os homens trocaram olhares desconfiados, mas em seguida puxaram as espadas um a um. Até Rodney lhe seguiu o exemplo, esquecendo sua fúria à medida que o ódio puro e simples a Conn lhe percorria as veias. Os seus gritos ergueram-se no céu noturno e ecoaram pelas montanhas:
- Morte a Conn!
Os castelhanos foram ter com eles uma semana depois. Os quinhentos guerreiros que Heber Mor prometera enviar viram-se reduzidos a duzentos antes de os seus navios alcançarem as costas rochosas de Erin. Eoghan recebeu-os sem protestar e todos rumaram ao norte, conquistando aldeias inteiras pelo caminho, sempre sob a cobertura da noite. Tal como Eoghan previra, o número de soldados enviados por Conn para detê-los duplicou e no mês seguinte triplicou.
Eoghan organizou enormes acampamentos. Os castelhanos de olhos escuros e língua estrangeira misturavam-se com os homens de Erin, causando grande confusão. Havia mulheres entre eles, era cada vez maior o número de mulheres que acompanhavam os soldados em busca de ouro e prestígio. Gelina passava os dias fechada com Rodney e Eoghan esboçando os seus planos em enormes mapas de pergaminho. Gelina transcrevia as decisões deles em textos claros que revelavam um talento raro para a estratégia.
Num dia quente e abafado, Gelina sentou-se no interior da tenda elaborando o plano para a semana que precedia a chegada a Tara. Dentro da tenda sufocante, a tinta pingava da página para cima das suas calças.
- Ei, O’Monaghan, trouxe-lhe uma coisa. - Um homem enfiou a cabeça dentro da tenda.
Gelina praguejou contra a caneta que lhe escorregou das mãos pela milésima vez.
- Desculpa Martin. Estou tendo algumas dificuldades. O que quer?
Tinha-se tornado amiga do soldado desdentado desde que ele impedira os outros homens de atacá-la revelando que ele não era o ogro que podia parecer.
- Um homem deixou isto para você e depois partiu a galope. Disse que era para lhe ser entregue pessoalmente. - Entregou-lhe uma pequena bolsa de juta bem apertada com cordões.
- Que homem? Como era ele?
Puxou pelos cordões e quando finalmente a bolsa se abriu o seu conteúdo caiu-lhe no colo. Três maçãs douradas.
Martin encolheu os ombros.
- Vinha de burro. E era anão.
- É estúpido? Não percebe? - Gelina agarrou Rodney pelo casaco e sacudiu-o com violência.
- Percebo que esta histérica. - Retirou com firmeza as mãos dela da sua lapela. - Por Behl, Lina, para de gritar e veja se acalma.
Suspirando, exasperada, a moça começou andando para trás e para diante no espaço restrito da tenda.
- Conn sabe Rodney. Sabe onde eu estou. Anda à minha procura.
- Entendeu mal, Lina. Nós é que andamos atrás dele. Você não lhe interessa. Se ele quer apanhar alguém, esse alguém é Eoghan Mogh, o homem que quase o matou há alguns meses. - Rodney deixou-se cair numa pequena cadeira esculpida com os pés apoiados na mesa. - Provavelmente já nem se lembra de você.
Gelina sacudiu a cabeça e disse, numa voz cada vez mais assustada:
- Esta enganado. Eoghan é inimigo dele desde sempre. Eu é que o traí. Ele disse que me mataria se alguma vez eu o traísse. E é um homem de palavra.
Rodney bufou e disse:
- Devia ser a última pessoa a acreditar numa coisa dessas.
- Se ele me encontra morro, Rodney. Tem de me ajudar.
Gelina levantou as mãos numa súplica, as calças largas que usava realçavam a sua vulnerabilidade. Rodney levantou-se e conduziu-a a cadeira, onde a sentou pressionando-lhe os ombros. Ajoelhou-se aos pés dela.
- Se você e aquele bobo eram amigos, não há hipótese do contato dele ter um significado positivo? Talvez ele queira juntar-se a nós. Se olhar lá para fora, princesa, vera que estamos rodeados por pessoas dia e noite. Mesmo que Conn andasse à sua procura, nunca conseguiria apanhá-la. Certo?
- Errado. Se Conn quiser muito, há de arranjar maneira de chegar até mim. E Nimbus nunca trairia Conn.
- Os idiotas como ele não são capazes de uma lealdade tão total. Esta superestimando o anão - disse Rodney num tom de desprezo.
- E você esta subestimando Conn. - Gelina protegeu o rosto cobrindo os olhos com a mão. - Que tipo de homem era o nosso pai, Rodney? - perguntou, olhando-o repentinamente por entre os dedos.
- Rory O’Monaghan era um homem bom. Foi um excelente guerreiro e lutou pelo nobre Conn em muitas batalhas. Não se lembra das histórias que ele nos contava? - Sem tirar os olhos dela, serviu-se de uma caneca de cerveja. Tinha as mãos trêmulas.
- Tem certeza de que ele era um homem bom?
Atirando a caneca de barro para cima da mesa com força suficiente para parti-la, respondeu:
- É claro que tenho. Vejo que acreditou no que aquele patife lhe disse em vez de acreditar no seu próprio irmão!
- Sua mão esta sangrando - disse Gelina, calma.
Levantou-se e pegou na mão do irmão. Um estilhaço de louça espetara-se na palma. Extraiu-o com dedos cuidadosos, depois embrulhou a mão numa atadura improvisada feita com uma tira de pano que rasgou do seu gibão.
Rodney fez-lhe uma festa no cabelo com a outra mão:
- Não vou permitir que ele lhe faça mal, Lina. Ele nunca mais lhe fará mal.
Os olhos dela fitaram os dele sem pestanejar.
- Assim espero. Porque ele anda atrás de mim.
- Não. Na véspera do equinócio nós é que vamos atrás dele.
A luz saia da fortaleza em ondas intermitentes. Os portões estavam abertos de par em par e havia tochas acesas em todas as entradas e janelas. A véspera do equinócio em Tara cativava com a sua luz. Gelina chegou montada em Silent Thunder, o lábio inferior preso entre os dentes. Desviou os olhos das paredes tão familiares com dificuldade, erguendo-os para o céu estrelado. O vento quente soprava por cima das estrelas, tornando-as mais brilhantes e despenteando o cabelo que emoldurava o seu rosto. Recordou outra véspera de equinócio ventosa, mãos ternas nos seus ombros, polegares suaves passeando pelo seu pescoço, lábios conquistando a sua boca e o seu coração num primeiro beijo que bem podia ser um beijo de despedida. Uma tristeza profunda invadiu-a quando pôs a mão no bolso do casaco e retirou a maçã dourada que lá tinha guardado.
Rodney ia nervoso em cima do seu cavalo reprimindo as palavras que tanto desejava pronunciar. De lábios cerrados, Gelina enterrou o brinquedo no fundo do bolso. Com a outra mão puxou a capa para trás deixando à vista o punho da espada que trazia à cintura. Silent Thunder estacou nervoso quando ela puxou as rédeas com força.
Trocou um olhar sombrio com Rodney e fez o cavalo avançar. Três homens seguiam-nos, e enquanto galopavam colina abaixo as capas negras que usavam pairavam atrás deles como aves de rapina. Para trás tinham deixado mais de duzentos homens que aguardavam o sinal da tocha na escuridão da noite.
Os cavalos entraram pelo portão a trote. Gelina sentia atrás de si a presença de Rodney e aos ombros o peso da liderança. Conhecia bem o interior da fortaleza e seria ela a indicar o caminho. Com um gesto ordenou a Rodney que avançasse. Os olhos dele passearam pelo pátio vazio.
Desmontaram e atiraram as rédeas para os postes sem as amarrar. Gelina sussurrou ordens a três homens que desapareceram a uma esquina. Passou uma mão tremula pelo cabelo e levou Rodney pela mão até à porta de madeira escondida atrás de uma espessa cortina de hera. Abaixaram-se e entraram na passagem escura.
Viram uma nesga de luz ao fundo do corredor e avançaram. Caminharam em direção à luz, Gelina à frente, rente à parede. Estavam diante da porta da sala de armas. Gelina sacudiu a cabeça quando a viu ligeiramente aberta. Rodney franziu a testa, sem compreender a hesitação da irmã. Com a mão tremula, empurrou a porta pesada aumentando o círculo de luz no corredor escuro.
Abriu muito os olhos. Encaixados em suportes de ferro, as tochas iluminavam as paredes negras e vazias.
Gelina recuou um passo, a boca aberta de pavor.
- É uma armadilha - sussurrou. Rodney olhou para a irmã sem perceber e ela empurrou-o desesperadamente para o salão: - Foge!
Aos tropeções percorreram o corredor até à porta por onde tinham entrado, mas encontraram-na trancada por fora. Furiosa, Gelina bateu nela até ferir as mãos. Mas ela não se mexeu. Ofegante, encostou-se à porta.
As suas palavras atropelavam-se umas às outras, o medo na sua voz era quase palpável:
- Não se ouve nada, Rodney! Eu devia ter calculado! Nem risos, nem música, só aquela maldita luz! Temos de ir aos outros e tirá-los daqui.
Rodney parecia hipnotizado em frente da irmã. Ela empurrou-o. Correram pelo labirinto de corredores até ao centro da fortaleza o mais depressa que as suas perras tremulas permitiam. Com as mãos nas armas, entraram no salão.
Cerca de mil velas de sebo iluminavam o espaço vazio. Gelina ouviu ao longe o ruído típico de uma batalha. Espadas colidindo no silêncio da noite. Rodney imobilizou-se a seu lado, quando ouviu simultaneamente os gritos dos homens e o tropel dos cavalos. O pesadelo da escuridão estava mais próximo a cada segundo.
- Vai por aquele corredor, Rodney. Mandei os homens entrar pela torre. Procura-os. Espero-lhe lá fora junto aos cavalos.
Rodney obedeceu sem fazer perguntas e desapareceu, deixando Gelina sozinha no salão de entrada. O som da batalha ecoava pelo salão como a memória de um conflito há muito travado. Tremendo Gelina pegou na espada e desceu por um corredor estreito. O barulho de passos pesados descendo as escadas ao fundo do corredor obrigou-a a parar. Procurou freneticamente com as mãos o painel que sobressaía da parede. Respirou fundo e acocorou-se para entrar no túnel secreto. A luz bruxuleante de uma tocha fixa no meio da parede projetava sombras longas, sinuosas, no chão que ela pisava.
Gelina correu para a tocha confortada pela espada fria que empunhava. O ar de mofo encheu-lhe as narinas. Dobrou a esquina tão depressa como recuou.
Conn esperava-a e os seus olhos azuis arderam quando a encostou à parede, a espada a centímetros dela. Gelina inspirou os olhos desesperados avaliando expressão de ódio do rosto dele. Conn bateu na lâmina da espada dela com a sua e Gelina sentiu a pancada repercutir-se das pontas dos dedos até ao seu coração.
- Encontrei-a finalmente, minha beldade perdida - murmurou numa voz tão suave e ameaçadora como um focinho negro e aveludado, cuja aparente intimidade sufocou Gelina.
Gelina recuou um passo e ficou comprimida contra a parede. Conn voltou a tocar na espada dela.
- O que se passa Gelina? Já mostrou que é capaz de vencer um soldado do Fianna numa luta leal. Perdeu a coragem? - Bateu com a espada na dela e o som do metal contra o metal ecoou no corredor deserto.
Gelina não disse nada, sabendo que o silêncio era a sua única arma.
Os lábios dele retorceram-se num sorriso cruel:
- Vai deixar que eu te mate sem lutar? Olha que não me admiraria nada!
Gelina deu um salto para o lado quando a espada de Conn assobiou junto à sua garganta e ergueu a Vingança para aparar o golpe que ele dirigiu ao seu peito. Os olhos cor de esmeralda dilataram-se, o seu peito tremeu, ofegante.
Conn riu e o som oco percorreu o túnel vazio.
- Defendeu-se, mas não vira a espada para mim. É uma idiota, Gelina O’Monaghan.
Baixou o braço e segurou a espada apenas com a ponta dos dedos.
- De que esta à espera? Ataca Gelina. Mostra que é uma grande guerreira. Vinga o nobre nome dos O’Monaghan.
Deu um passo em frente, encostando o seu peito largo à lâmina tremula da espada dela. Os seus olhos de safira fixaram-se nos lábios de Gelina.
- Deixa-a entrar, minha linda, ou eu a empurrarei - disse, numa voz doce traída pela raiva implacável dos seus olhos.
A ponta da espada de Gelina atravessou o couro da túnica de Conn. Uma súplica morreu na boca dela quando os lábios que tanta vezes desejara se curvaram num sorriso carinhoso que se retorceu em uma careta malévola. A mão que segurava Vingança baixou-se lentamente até a lâmina tocar o chão. Conn virou a cara com uma pequena gargalhada, depois voltou a olhá-la e encostou a ponta da espada à garganta macia de Gelina.
- Larga a sua arma - ordenou.
Gelina engoliu em seco sentindo o aço frio sobre o pescoço dolorido. Baixou o braço e os seus dedos largaram o punho da espada com uma relutância agonizante. No instante em que Vingança chocalhou contra o chão de madeira, a ponta afiada de uma espada atravessou o ombro de Conn e surgiu coberta de sangue vermelho. Conn caiu de joelhos e deixou tombar a espada. Gelina fitou os olhos negros de Rodney, que arrancava a sua espada das costas de Conn.
- Ora bem. Chegou a sua vez. - Rodney puxou a espada para trás e apontou-a para a nuca de Conn.
Conn levantou a cabeça devagar e olhou para Gelina. Uma mensagem crítica estava contida na dor que ela viu no olhar dele.
- Não! - Gelina agarrou o punho do irmão.
Rodney virou-se para a irmã, incrédulo, e exclamou:
- Que esta fazendo? Perdeu o juízo? - Ouviram-se passos no corredor, cada vez mais próximos. - Acabar com ele não vai levar muito tempo. Sai do meu caminho - gritou Rodney, tentando soltar-se das mãos dela.
- Eu disse não! - rugiu Gelina, pegando na sua espada e passando por Conn, que seguia todos os movimentos dela com um olhar gélido. - Eles vêm. Temos de fugir. - Os gritos dos homens enchiam a passagem.
- É a nossa última oportunidade, Lina.
Enquanto falava, Rodney começou a recuar. Gelina imitou-o, depois parou e virou-se para Conn. Deixou cair à espada, ajoelhou-se, rasgou uma tira de pano da sua túnica e tentou estancar o fluxo contínuo de sangue que corria da ferida dele. Engoliu em seco e evitou o seu olhar, que refletia um ódio mais negro do que a noite.
- Que esta fazendo, Gelina? - gritou Rodney do fundo do corredor, esbravejando furiosamente.
Gelina virou-se para o irmão e respondeu:
- Já vou com você.
Conn não precisou ouvir mais nada. Os seus braços fortes envolveram-na, apertaram-na contra o seu peito. Pela segunda vez na mesma noite, Gelina sentiu o frio do metal na garganta quando Conn encostou um punhal aguçado à sua pele macia. Com um braço, prendeu-a firmemente pela cintura.
Horrorizado, Rodney olhava ora para eles, ora para a passagem onde as vozes se tornavam cada vez mais nítidas. O sangue quente de Conn ensopou as costas de Gelina quando ambos caíram ao chão, Conn ainda apertando-a com força. Gelina descontraiu-se e deixou o seu corpo encostar-se ao dele, fechando os olhos. Uma estranha paz invadiu-a quando se desviou do punhal frio que pressionava o seu corpo contra o dele.
- Vai, Rodney. Deixa-me. Segue o seu caminho - disse-lhe, os olhos ainda fechados.
- Não posso abandoná-la. - As vozes estavam cada vez mais perto e Rodney deu um passo na direção delas com o rosto retorcido de raiva pela sua impotência.
- Vai. Ele não me fará mal - murmurou Gelina.
Rodney virou-lhe as costas e afastou-se.
Só ela sentiu o bafo quente no seu ouvido e escutou as palavras murmuradas assim que Rodney desapareceu.
- Não esteja tão certa disso, minha linda.
Depois o mundo de Gelina escureceu, quando a dor disparou do seu braço rumo ao cérebro, bloqueando misericordiosamente todas as sensações.
O mundo está desaparecendo como o mar na
maré baixa; fuja para longe dele e procure a segurança.
Autor desconhecido Século VII
Sentia o chão gélido e áspero sob a face. O espanto por estar ainda viva penetrou na sua mente confusa. Levantou a cabeça uma fração de centímetro e sacudiu-a, procurando afastar as teias de aranha do seu cérebro antes de se atrever a abrir os olhos. Tentou em vão afastar os membros dormentes do corpo dobrado. Mas nenhum parecia estar funcionando.
Abriu os olhos cautelosamente e viu que Conn se encontrava a seu lado.
Estava vestido com o marrom e o verde de um guerreiro do Fianna. Botas de couro macio amarradas até aos joelhos a condizer com o cinto em volta da cintura. Não usava espada, apenas um punhal de aspecto cruel amarrado à coxa. A maneira como olhava para ela tirava-lhe a respiração.
Gelina franziu a testa e perguntou num murmúrio:
- A sua ferida?
- O seu irmão é um espadachim muito pouco competente. - Pronunciou as palavras de forma sinistra.
- Tanto sangue - murmurou ela.
- Felizmente a minha querida filha estava lá e estancou-me o sangue. - O sarcasmo da sua voz era espesso como o mel.
Gelina pestanejou e olhou em volta. Estavam cercados por paredes de pedra úmidas com as superfícies molhadas repletas de concavidades e protuberâncias.
- Onde estamos?
- Não sabe? Olhou em volta da câmara alta fingindo-se espantado. - Isto se parece tanto com a gruta de onde apareceu que parti do princípio que reconheceria.
Gelina reprimiu uma resposta agressiva.
Conn pôs-se a andar de um lado para o outro atrás dela, as mãos cruzadas atrás das costas.
- Estamos dentro de uma gruta, minha querida.
- Pensava que era uma masmorra, não uma gruta.
Conn rodou nos calcanhares.
- Então as suas as expectativas eram muito elevadas, não é verdade?
- Infelizmente tive sempre esse problema em relação a você. Por que razão estamos numa gruta?
Conn apontou para ela:
- Porque eu não quis interferências de qualquer tipo. Nimbus encontrou-a por mim, mas não é ele que decide o que fazer com você. Ele ainda tem a ilusão de que pode haver algo de bom nesse seu coração diabólico.
- E você não tem essas mesmas ilusões? - perguntou Gelina, desafiando-o.
- Nem pensar. Por isso é que estamos aqui. Sozinhos e isolados, longe de olhos e corações indiscretos.
Um arrepio percorreu-a de alto a baixo quando Conn se virou para ela, uma luz terrível no fundo dos seus olhos.
Como as crianças, Gelina continuou falando para esconder o medo que se espalhava pelas suas veias:
- Não tenho medo de você. O pior que podia acontecer já aconteceu. Encontrou-me. Já não há nada a temer.
Conn ajoelhou-se ao lado dela e enfiou uma mão nos seus cachos desgrenhados. Aproximou o rosto dela do seu:
- Se pensa que já lhe aconteceu o pior que podia acontecer, minha querida, tem uma imaginação muito pobre. - Os dedos dele contraíram-se e os seus olhos encheram-se de lágrimas de dor.
- Não sinto os braços - disse Gelina, procurando disfarçar o súbito estremecimento dos seus membros.
Conn largou o cabelo dela com desdém.
- Esta bem presa, mais ou menos como eu quando o seu amiguinho Eoghan Mogh me tentou vender como escravo aos romanos. - Fez um sorriso simpático: - Uma sensação agradável, não é?
- Se é - respondeu ela, começando a sentir-se cansada dos joguinhos dele.
Com um movimento súbito, Conn tirou o punhal do cinto e cortou as cordas dos braços de Gelina. A dormência começou, intensificando-se no braço direito até ela gritar de dor.
- Oh, que me fez? - Gelina dobrou o braço, combatendo as lágrimas.
Conn obrigou-a a sentar-se. Com uma mão em volta do pescoço dela, deitou-lhe um líquido ardente pela garganta abaixo. Gelina tossiu e cuspiu, tentando desesperadamente recuperar o fôlego. O líquido âmbar e viscoso escorreu-lhe pelo queixo.
Com lágrimas nos olhos, ouviu-o dizer friamente:
- Quis certificar-me de que não iria usar a espada por uns tempos. Não tenha medo. O osso não partiu.
- Muito obrigada - respondeu ela, sarcástica.
- Só o quebro se tiver mesmo de ser. - Conn sentou-se nos calcanhares, pegou o cantil e bebeu um longo gole. - O whisky ajudou?
- Tanto como quando me feriu. Ou seja, nada.
Concentrou a sua visão toldada numa rocha, sem vontade de mostrar que estava prestes a romper em soluços. O ardor que lhe queimava o estômago desencadeou uma enorme tristeza enquanto a voz fria do desconhecido dizia atrás dela:
- E como está o caro Eoghan?
- Conhece-o?
- Já nos cruzamos. - Os olhos velados de Conn recusaram-se a revelar mais.
- Você é que me devia dizer como está Eoghan. Provavelmente é a única pessoa que sabe se ele e Rodney ainda estão vivos. - Fungou. - Embora eu duvide que me conte a verdade.
Conn encolheu os ombros.
- Se eles sobreviveram após combaterem contra quinhentos dos meus homens, devem andar por aí. Ambos sabemos que o seu irmão tem um talento desgraçado para a sobrevivência.
- Não tão desgraçado como o seu. - Gelina estava furiosa e a fúria tornava-a descuidada.
Conn fechou as mãos que agarravam a túnica dela. Ergueu-a no ar e atirou-a contra a parede num movimento fluido. Gelina esforçou-se por recuperar o fôlego e olhou para o cabelo escuro e encaracolado que crescia por cima das têmporas grisalhas. As mãos dele seguraram-na pela cintura. Conn inclinou o corpo para frente, o joelho dobrado entre as pernas dela. Gelina sentiu o calor que o corpo dele irradiava.
- Cuidado, milady - disse em voz baixa. - Pode ter de pagar caro por cada palavra e cada ato.
À luz tênue o rosto dele era o rosto de um desconhecido. Gelina fitou aqueles olhos brilhantes e qualquer coisa dentro dela nasceu e morreu no mesmo instante quando ela percebeu do que a fúria o tornava capaz. Olhou para a sua própria cintura, onde um cinto de couro com o nome MacRuiarc gravado funcionava como uma confissão de culpa fatal.
Deslizou suavemente para o chão, de costas contra a parede da gruta. Conn agachou-se ao lado dela e voltou a amarrar-lhe os pulsos, a cabeça inclinada a poucos centímetros do rosto dela. Gelina olhou os cachos negros semeados de branco e sentiu um desejo absurdo de encostar a cabeça ao ombro dele e pedir-lhe perdão, apelar à sua misericórdia. Conn levantou os olhos; o desejo não disfarçado que viu nos olhos dela apanhou-o despercebido. Sem mais uma palavra pôs-se de pé e saiu. Deitada no chão de pedra, Gelina fechou os olhos, exausta, e, à cautela, esvaziou a mente.
Já fora da gruta, Conn deixou-se cair contra as rochas. Cobriu o rosto com as mãos e perguntou a si mesmo que diabos lhe tinha passado pela cabeça quando decidiu levá-la para lá. Partira do princípio de que, assim que lhe colocasse as mãos, o resto aconteceria naturalmente. Era insuportável ter de admitir que não fizesse ideia do que esse “resto” seria. A miserável assassina que o perseguira em sonhos ao longo do verão quente jazia no interior da gruta à mercê dos seus caprichos.
Mas a cor de mel da pele macia dela estava escurecida pelo sol. Gelina tentava disfarçar o pavor que ele lhe inspirava por trás dos cílios escuros que orlavam os seus olhos. A boca grande denunciava sem palavras uma beleza que ele não podia negar. Nem o clarão avermelhado do cabelo cortado curto a escondia. Por debaixo do couro das roupas dela escondia-se a carne doce de uma mulher.
Ela despertava o pior que havia nele. Nunca lhe tinha passado pela cabeça que um dia iria quebrar os juramentos do Fianna que lhe eram tão caros como a própria vida. Jurara vingar as mortes dos seus guerreiros, mas, num momento de fraqueza, tinha-a deixado viver. E ela tinha voltado a matar. Pela milésima vez, perguntou a si próprio por que razão ela teria partido naquela noite fresca de primavera. Olhou para as estrelas, reprimindo a vontade de praguejar. Não havia dúvida. Conn, das Cem Batalhas estava com medo.
- Conn! - A voz, algo exasperada, flutuou até ao local onde ele dormia.
Desenredou-se da manta e correu para dentro da gruta, a mão em cima do punhal. Gelina estava deitada no mesmo lugar, os músculos contraídos, os dentes cerrados, a olhar para a perna.
- Tira-a daqui!
Os seus enormes olhos viam, aterrorizados, uma enorme aranha rastejar por cima da coxa de Gelina, as patas peludas com uma envergadura do tamanho da mão de um homem. As lágrimas reprimidas começavam a soltar-se por entre os cílios dela.
Um sorriso desagradável cruzou o rosto dele:
- Então não gosta de aranhas?
Lançando-lhe um olhar de ódio, Gelina suplicou:
- Tira-a daqui!
De braços cruzados, Conn respondeu em voz baixa:
- Se pedir “por favor”, prometo que vou dar atenção ao assunto.
- Por favor. - Gelina cuspiu as palavras, desprezando-se a si mesma, mas a ele ainda mais. Os seus olhos não largavam a aranha.
Conn baixou-se e enxotou a aranha com a ponta do punhal. O corpo de Gelina descontraiu-se, aliviado.
- Preciso me levantar.
- Por quê? - perguntou ele guardando o punhal.
Uma leve cor tingiu as faces de Gelina:
- Tenho... necessidades a satisfazer.
Conn fingiu que não percebia.
- Necessidades?
O rubor dela intensificou-se.
- Preciso ser mais explícita?
- Talvez. - Conn fez um sorriso inocente, divertido com o embaraço dela.
Gelina fitou o chão e sacudiu a cabeça. Conn puxou-a pelas costas da túnica e levantou-a.
Na voz dele não havia qualquer vontade de rir:
- Vou desamarrá-la. Tens três minutos. Se tiver ideias idiotas, é melhor que sejam boas, porque se assim não for vou buscar outra vez a sua amiguinha peluda.
Gelina engoliu em seco enquanto ele lhe desamarrava os nós e a empurrava para fora da gruta.
Ao fim de pouco mais de um minuto ela reapareceu, o luar por detrás dela transformando a sua figura esguia numa simples silhueta. Aproximou-se dele de punhos estendidos preparada para voltar a ser amarrada. Conn pegou as mãos dela e virou-as para cima enquanto os seus polegares largos acariciavam a pele endurecida. Gelina baixou a cabeça, tentando, em vão, que o seu lábio inferior parasse de tremer.
- Acho que não vale a pena perguntar como passou o verão - disse Conn.
Tinha as palmas das mãos calejadas de noites inteiras puxando rédeas.
Gelina olhou-o de frente. Conn apertou as mãos dela numa das suas e passou a outra pelo rosto sujo, manchado de lágrimas. Com o polegar, contornou o lábio inferior dela.
- A sua ferida está outra vez sangrando - disse Gelina sem pensar, incapaz de suportar o calor que sentia.
Conn soltou-a como se ela o tivesse queimado e, surpreendido, passou uma mão pela mancha que alastrava na sua túnica.
- Eu trataria dela, mas com o braço assim não sou capaz.
- Antes ser tratado por uma víbora, obrigado. - Apesar do que disse, Conn despiu a túnica e rasgou-a em tiras finas. Enrolou uma delas à volta do ombro e tentou dar-lhe um nó junto à axila.
Gelina cruzou os braços para reprimir a vontade que tinha de ajudá-lo vendo-o tão atrapalhado com a ligadura improvisada. Torceu os lábios quando ele tentou pela terceira vez amarrá-la, mas o trapo escorregou para o chão. Praguejou em voz alta e imaginativamente.
- Vai morrer de hemorragia antes de conseguir amarrá-la.
Sem esperar pelo protesto dele, Gelina pegou a atadura com a mão esquerda. Conn semicerrou os olhos parecendo desafiá-la a estrangulá-lo com a tira inocente. Mordendo o lábio inferior Gelina enrolou-a em volta do ombro dele, mas deixou-a enrodilhar-se entre os seus dedos. Sentiu uma dor forte no ombro e no lado direito. Ambos suspiraram, exasperados.
Gelina teve uma ideia:
- Ajoelha à minha frente - ordenou.
- Era o que você queria, não era? - Endireitou-se ainda mais, ignorando o fio de sangue que escorria pelo seu tronco nu.
- Sangra até à morte, então. Para mim é indiferente. - Gelina disparou as palavras na direção dele, sentindo que a sua paciência estava chegando ao limite.
Conn ficou mais algum tempo de pé e depois se ajoelhou com as costas eretas e uma expressão furiosa.
- Termina.
Usando as duas mãos, Gelina conseguiu fazer um curativo eficaz e bem apertado. Pelo rugido que ouviu soltar-se da garganta de Conn receou tê-lo apertado com uma força excessiva.
Conn sentou-se no chão com as suas pernas altas esticadas em frente e sem tirar os olhos dela. Gelina sentou-se diante dele, com as pernas cruzadas e esforçando-se por lhe transmitir uma calma que não sentia. Perguntou-se o que estaria a passando por detrás daqueles olhos opacos, mas não teve muito tempo para adivinhar.
- O seu irmão é louco - disse Conn como se estivesse falando do tempo.
- Isso é mentira - replicou ela, controlando-se com dificuldade.
Conn continuou, decidido.
- Se fosse minha irmã, não a deixava comigo.
- Ele não tinha alternativa.
- Não? Nem se fosse um conhecimento vago eu a deixava comigo.
A segurança da voz dele a fez sentir um arrepio. Desviou o olhar para não mostrar que estava com medo.
- Como me encontrou Nimbus?
- Não foi difícil. O que é difícil é sermos surpreendidos quando temos mil castelhanos atrás de nós. Nimbus até viajou com você durante alguns dias seguiu todos os seus movimentos.
- Nunca o vi.
Conn encolheu os ombros.
- Quando Nimbus não quer ser visto, em geral consegue-o.
- Ele sabe que você me prendeu?
O sorriso de Conn foi uma espécie de pancada no coração de Gelina.
- Se ele soubesse, o mais natural era estar aqui a puxar-me pelas pernas, implorando-me que lhe desse outra oportunidade.
- O que é, claro, impossível. - Gelina nem se deu ao trabalho de perguntar.
- Completamente impossível. - Os olhos dele voltaram a exibir aquele brilho perigoso.
Gelina recusou-se a virar-lhe o rosto e procurou em vão vestígios do amigo que ele fora em outros tempos. Acabou por baixar os olhos, decepcionada. De pé à sua frente, Conn caminhava de um lado para o outro, a cada passo mais distante, mais enterrado na sua fúria.
- Sabia que quando eu nasci disseram que vim ao mundo para vingar a morte impiedosa de um soldado do Fianna? E também para revelar a delicadeza de todas as mulheres.
- Delicadeza foi coisa que eu nunca tive, não é verdade, Conn? - O veneno da voz dela obrigou-o a parar.
- Talvez tivesse se acabasse com essa triste mania de matar meus soldados. - As mãos ardiam de vontade de bater naquela moça insolente que não se fartava de provocar. - Se fosse um homem a esta hora já teria tirado a tua vida com as minhas próprias mãos.
- Se eu fosse homem nunca conseguiria. Acho que ia voltar a mandar os seus homens fazer todo o trabalho sujo. Por isso ofereceu aquela recompensa.
- Ofereci uma recompensa a quem a trouxesse de volta. Em segurança.
- Isso é mentira. Não sabe o que é ser verdadeiro. Rodney disse-me que me queria em Tara morta ou viva. Ofereceu moedas de ouro, não foi? - Gelina não pôde deixar de pronunciar as palavras que tanto tinham ferido o seu coração. - Tem uma cruel tendência para a mentira. Mentiu acerca da morte de Rodney. E provavelmente também é mentira o que contou sobre o meu pai. A única coisa que me surpreende é ter tido coragem para confessar que foi a seu mando que aqueles porcos o mataram e violentaram a minha mãe. É um canalha, Conn, que finge ser um homem honrado quando lhe convém.
Gelina continuava de pé, com as mãos nas ancas, ofegante. A raiva escurecia-lhe os olhos, fazendo Conn recordar dolorosamente o irmão dela. Se ela tivesse uma espada na mão decerto se repetiria o confronto do dia em que se conheceram.
A voz calma dele rompeu o silêncio tenso:
- Sente-se, O’Monaghan. Já!
Gelina ainda pensou em desobedecer à ordem dele, mas atirou-se para o chão, bateu com as costas na parede e agradeceu a dor provocada. A pele branca por cima dos ossos da mão mostrava a intensidade da sua fúria.
- Pensei em você e procurei-a vinte e quatro horas por dia. - Gelina ergueu os olhos espantada com a dor que sentiu na voz de Conn. - Só percebi por que razão fugiu quando descobri que o seu irmão estava vivo. A seguir soube que tinha aliado a Eoghan Mogh. - Passou a mão pelos cachos despenteados. - Inventei formas de lhe ir buscar. Passei noites em claro olhando para a escuridão e pensando em como havia de te vingar. As coisas que me vieram à cabeça... - continuou numa voz rouca, passando a mão pelos olhos.
- Fui embora porque mentiu pra mim’. O meu irmão estava vivo. O meu lugar era ao lado dele e não de um rei hipócrita que aliviava a consciência brincando de pai adotivo.
Virando a cara para não mostrar quanto às palavras dela o tinham magoado, Conn suspirou.
- Então só pode ser verdade que esteve sempre em contato com o seu irmão. Sabia, quando parti para a Britânia, que eu ia ao encontro da morte. Na noite em que a encontrei nos estábulos, talvez regressasse de um encontro com Eoghan Mogh.
A acusação dele deixou-a de boca aberta.
- Não é verdade! Só soube que Rodney estava vivo no dia em que fugi.
- Acredito. - O riso sarcástico dele contradizia as suas palavras. - Nimbus contou-me tudo acerca do seu querido irmão. Contou-me que ele a vigia, descreveu-me o olhar dele, o modo como a toca.
- Que quer dizer com isso? - perguntou ela de dentes cerrados, a testa coberta de gotas de suor.
- Talvez você e o seu irmão sejam mais chegados do que me deu a entender, princesa. Talvez a sua intimidade ultrapasse aquilo que o seu sangue sujo permite.
A insinuação atingiu-a como uma bofetada na cara. Uma fúria gelada, branca, percorreu as suas veias e a energia resultante impeliu-a como louca para Conn. Desatou a bater-lhe, procurando derrubá-lo de todas as formas possíveis. Lágrimas ferventes rolaram-lhe pelas faces. As suas unhas abriram sulcos sangrentos nos braços dele.
Prendendo-a nos seus braços, Conn atirou-a ao chão e os dois rolaram unidos num emaranhado de braços e pernas. O corpo dele pressionou o dela contra o chão, impedindo o mais breve gesto ou movimento. Os olhos de Conn pareciam de fogo e pela primeira vez Gelina perguntou a si mesma que tinha ela feito.
Conn queria matá-la. Queria despedaçá-la, calar para sempre a sua voz jovem e acusadora. Um lado cruel da sua pessoa queria empurrá-la para o abismo, para o passado que ela tentara ignorar tão audaciosamente. Quando ele desembainhou o punhal com o seu braço musculoso Gelina fechou os olhos com força e preparou-se para morrer.
Com um movimento hábil e único do pulso Conn apagou a tocha que ardia a três metros de distância, deixando-os às escuras. A corda tensa que o mantinha sob controle partiu-se assim que a escuridão o protegeu da única arma que Gelina possuía - os seus olhos enormes e assustados.
O azul dos olhos dele brilhou na escuridão quando a sua boca desceu sobre a dela sem hesitar. Agarrou o queixo de Gelina com a mão. Com o polegar obrigou os lábios dela a abrirem-se preparando o terreno para os seus. A sua língua explorou os recessos mais profundos da boca dorida dela, avançando e afagando, deixando-a incapaz tanto de respirar como de protestar. A vergonha e o medo invadiram-na perante a violação tão impiedosa da sua boca. Os seus olhos encheram-se de lágrimas quentes. À medida que as lágrimas se foram precipitando sobre a mão dele, Conn foi soltando.
Gelina soltou-se com um grito de desespero e cambaleou até à entrada da gruta. Parou virada para o luar. Não ouviu passos, mas de repente ele estava atrás dela com o corpo quase encostado ao seu.
- Não pode rejeitar-me. Sou o teu rei.
Conn nunca tinha usado aquelas palavras com nenhuma mulher nem nunca tinha pensado usá-las. Sabia que era a coisa mais cruel que podia dizer, mas não pôde deixar de dizê-lo naquele momento. Um desejo estranho e doloroso tomou conta dele, aniquilando todos os vestígios de honra e compaixão.
Fechou as mãos sobre os ombros dela. Os seus dedos deslizaram por debaixo da túnica e empurraram-na para um lado entregando os ombros às carícias da lua e dos seus lábios. Gelina inclinou a cabeça para trás deixando a boca dele percorrer o seu pescoço. Conn estremeceu quando a sentiu gemer antes mesmo de ouvi-la. Vendo Gelina imóvel como uma estátua nos seus braços, despiu-lhe a túnica puxando-a suavemente pela cabeça. Desapertou o cordão que lhe segurava as calças e empurrou-as até às ancas, sentindo a pele dela tremer por debaixo dos seus dedos.
A pressão dos joelhos dele foi o bastante para que Gelina se inclinasse para Conn. Tombaram ambos para cima das dobras da manta onde ele dormia. A boca de Conn pousou na dela com avidez, num beijo que a levou para o abismo de fogo que o consumia.
Gelina rodopiou na espiral escura do desejo dele. Sem espada nem vontade própria, sabia que travavam uma espécie nova de batalha e que Conn tinha todas as armas na mão. O calor úmido da boca dele contra os seus lábios entreabertos, a palma calejada da mão que lhe amparava o pescoço, a solidez suave do peito dele em cima da carne nua - eram essas as armas e ele sabia tirar delas um partido devastador. Apesar da neblina da sua inexperiência, Gelina percebeu que a espada ardente que ele introduzira nas reentrâncias macias do seu corpo seria rápida e implacável, eficiente na invasão e na conquista da sua arrogância infantil. Agarrou-se aos ombros musculados trêmula, apavorada. O beijo que ele lhe deu incendiou-lhe as veias, tão intenso e inebriante como o uísque que sentia na boca dele.
Sem parar de beijá-la, Conn desamarrou as calças. Afastou-se dela com a sua respiração pesada rompendo o silêncio. Gelina observava-o com uns olhos tão opacos como a lua que neles se refletia. As costas da mão dele percorreram a curva do rosto dela. Aterrorizada por causa da teia que ele tecia com a sua imitação de ternura, Gelina agarrou-o pelos cabelos e puxou-o para si, os seus olhos ardentes a recordar-lhe a batalha que iriam travar.
A fúria contida produziu nele uma erupção tão violenta que a única coisa que lhe importava era a vontade que tinha de possuí-la. Sentindo o calor daquele corpo jovem por debaixo do seu, afastou-lhe as pernas com um joelho inflexível. Gelina fechou os olhos com força e viu a lua desfazer-se em chamas à frente dos seus olhos.
Com um movimento dominador, Conn entrou nela. Depois parou, enquanto o seu mundo se reduzia à simples respiração de Gelina e às unhas que ela cravava nas suas costas como punhais minúsculos. Não podia voltar atrás. O seu desejo levou-o mais longe, tornando-o surdo ao grito de dor que ela soltou. A cada investida brutal aproximava-se mais do ponto em que tudo seria esquecido, em que ele se fecharia num lugar imprudente onde nenhum pensamento teria lugar até ter o corpo dela imobilizado, conquistado, debaixo do seu.
Conn, que sabia matar com as próprias mãos de mais de cem modos diferentes, já se tinha saído bem de muitas situações difíceis na vida. Mas nunca enfrentara um pavor tão grande como naquele momento. Exausto e aflito, sentou-se.
O estreito feixe de luar iluminava um rosto doce, infantil, em repouso. Só os movimentos do peito lhe garantiam que ela estava viva. Com a mão trêmula, Conn acariciou-a entre as pernas e em seguida olhou, confuso para as pontas dos seus dedos sujas de sangue. Sem vontade de demorar mais os olhos na consequência do seu ato, enrolou a sua túnica em volta dela, vestiu as calças e cambaleou para a noite quente de verão.
Incapaz de encarar as estrelas, sentou-se encostado numa rocha e baixou os olhos. Um desespero aflitivo invadiu-o quando pensou no que tinha feito. Passou o que lhe pareceu ser uma eternidade escura.
- Houve muitas estrelas este verão.
A voz familiar, despreocupada, sobressaltou-o como um fantasma do passado, e quando espreitou viu Gelina emergir das sombras vestida com a sua túnica. Chegava-lhe aos joelhos. A luz do luar, o rosto dela parecia muito pálido.
Só depois de observar as estrelas durante algum tempo Gelina se atreveu a olhar para ele. Os olhos dele fixaram-se nos dela. Qualquer coisa dizia a Gelina que se lhe almejasse cortar o pescoço de Conn naquele instante, ele próprio lhe estenderia o seu punhal.
- Suponho que era inevitável Conn. - Olhou para o céu, mordendo o lábio inchado.
- Não tente consolar-me. - Foi à resposta brusca dele.
- Não faz mal. - Conn sacudiu a cabeça ao ouvir aquelas palavras e quando ela recomeçou escondeu-a nos braços. - A minha mãe não era uma mulher forte, sabe. Não era como eu. Depois dos homens fazerem o que queriam com ela e fugirem, levantou-se e cambaleou pela sala, murmurando e gemer como um cão espancado. - Gelina olhou para Conn e viu que ele a olhava fixamente.
- Eu quis ir com ela. Quis dizer-lhe que Rodney e eu estávamos vivos. Ainda tentei chamá-la, mas Rodney tinha mais força do que eu e cobriu-me a boca com a mão. Como se tivesse adivinhado o que eu ia fazer.
- Os soldados não mataram Deirdre? - perguntou Conn, o horror estampado nos olhos.
- Fizeram-lhe muitas coisas, mas não a mataram. Quando ela viu o cadáver do meu pai, pegou na espada dele, encostou-a ao peito e deixou-se cair em cima dela. Não chegou a procurar-nos. Não sei se alguma vez perdoarei. Acho que foi a vergonha que a levou a matar-se e não o desgosto. Era uma pessoa fraca.
De pé, Conn equilibrava-se com dificuldade. Apesar da pouca luz, a sua palidez era visível. Gelina olhou alarmada para a mancha escura que se expandia rapidamente no seu peito. O sangue pingava para cima da cintura das calças, impregnando o tecido escuro.
- Faz qualquer coisa por mim, minha Gelina - disse, arrastando as palavras. - Vou cair. Depois disso, peço-lhe que me mate ou me abandone.
Antes de acabar de falar, caiu ao chão. Gelina atirou-se para trás dele, a fim de lhe amortecer a queda no instante em que ele perdia os sentidos.
Sentada na lama fria com a cabeça de Conn retorcida no seu colo, Gelina inclinou-se e sussurrou:
- Visto que provavelmente vai morrer quero que saiba que o amo quase tanto quanto o odeio.
Conn pestanejou uma única vez e murmurou:
- Também eu.
As pernas curtas de Nimbus abanavam como trapos; as suas mãos agarravam o corpo de Sean enquanto galopavam pelas colinas. Ao fim de um dia galopando daquela maneira, sentia que tinha uma papa entre os ouvidos e que nas suas pernas já não havia ossos.
- Ei! - Com um grito poderoso que ninguém diria vir de alguém do seu tamanho, arrancou as rédeas das mãos de Sean e puxou-as com os punhos fechados.
- Por que parou o cavalo, idiota? - berrou Sean, enquanto o animal se imobilizava de súbito, quase os atirando ao chão.
- Porque estou exausto. Deve haver uma dúzia de grutas só nesta cadeia montanhosa. Nunca os encontraremos! - Esticou uma perna por cima do dorso do cavalo dando um pontapé no cotovelo de Sean, e saltou para o chão, aterrando de pé com o máximo de elegância que lhe foi possível.
Friccionando o cotovelo, Sean desmontou, resistindo à tentação de empurrar o seu companheiro colina abaixo. Com uma careta de repugnância sacou uma garrafa com leite de cabra e um naco de queijo.
- É quase tão cansativo como Mer-Nod me avisou que era. Primeiro suplica que o leve à procura deles, agora aqui esta agindo como um idiota. Bem, mas isso é impossível evitar, é a ideia que eu tenho. - Sean riu da sua própria piada.
- Talvez devesse ser você o bobo, O’Finn. Tem ideias de muitas piadas... um verdadeiro idiota.
Sean recusou-se a responder, preferindo sentar-se encostado a uma elevação do terreno e comer um pouco de queijo. Nimbus aproximou-se dele de mão estendida.
- Tira essa pata nojenta da minha vista. Recuso-me a fazer as pazes com você depois deste último insulto - respondeu Sean com a boca cheia de queijo.
- Não é fazer as pazes que eu quero. É o queijo.
Sabendo como os pontapés do anão podiam ser dolorosos para um homem da sua estatura, Sean achou mais sensato ceder do que prolongar a discussão. Partiu o queijo e deu a parte menor a Nimbus. Nimbus fitou-a uns instantes e depois se virou para o companheiro, de olhos semicerrados. Sem uma palavra, Sean entregou-lhe a sua metade e ficou com a menor, que estava em equilíbrio precário na mão de Nimbus.
Comeram em silêncio, embalados pela luz da manhã. O sol dançava nas planícies em baixo. Uma brisa morna soprava do oeste, agitando a grama alta. Ao longe, uma floresta brilhava ao sol, o verde-escuro das suas folhas graças à riqueza do solo. Nimbus suspirou, pensando como era possível correr tudo tão mal numa manhã tão favorável.
- Não sei por que andamos a procura deles. A estas horas talvez já mataram um ao outro - disse, mais para consigo do que para Sean.
- Estou à procura de Conn. Estou aqui em missão de estado a fim de me serem dadas instruções sobre o que fazer com um prisioneiro de guerra. - Sean falou pausadamente.
Nimbus aplaudiu:
- Bem dito! Suponho que não lhe interessa para nada o destino de certa prisioneira de guerra... Gelina.
- Realistamente falando, Nimbus, destino é talvez o termo correto. Você não estava lá quando Conn saiu da fortaleza com ela... Nunca o tinha visto tão... determinado. Conn nunca me levantou a mão, mas vi a morte nos olhos dele nessa noite. Apareceu correndo, coberto de sangue, levando-a nos braços como se ela fosse uma criança. O pescoço dela estava inerte e o rosto tão pálido que não me admirava nada que estivesse já... - As palavras dele esmoreceram e cessaram de um modo estranho.
Nimbus levantou-se caminhando até à beira do rochedo, de mãos nas ancas e boca bem fechada. Ficou olhando para a colina.
- Desculpa Nimbus. Fui um bruto. Gostaria de saber que diabos ele vê nela.
- Eu sei - sussurrou Nimbus.
O apetite de Sean desapareceu e o resto do queijo foi dispensado.
- Eu também gostava dela, sabe. Nem quero pensar que ele a matou ou coisa do gênero. Não me agrada nada saber que ela pode estar morta dentro de uma daquelas grutas.
A boca de Nimbus abriu-se e fechou-se, mas dela saiu apenas um grito.
- Não lhe quis ofender, Nimbus. - Sean foi a ele e deu-lhe uma palmadinha no ombro.
Mas foi ele quem precisou ser amparado quando olhou para a ravina abaixo deles e a sua boca se escancarou.
Conn flutuava através de um túnel negro, num arroio de água quente, depois de perder toda a sensibilidade e de se entregar à felicidade da inconsciência. Nem luz nem dor; apenas um calor agradável à sua volta. Era de novo um garoto flutuando pela vida, sem um só erro manchando a sua honra virgem. Ficaria ali eternamente, até que ouviu a voz.
A voz não era violenta, mas perpetuava-se, falava de forma interminável. Só queria poder calá-la, sabendo que era a única coisa que o impedia de se afogar na água meiga onde apenas a superfície revelava por onde a sua cabeça ia passando. Mas a voz continuava.
Era a voz do seu pai:
- Mantém a proa firme. O trono de Erin nunca será seu se não for capaz de manter a proa firme. - O tom severo era reconfortante.
- Claro que gosto de você. É o meu único filho. - Levavam-no para o colo da mãe; inspirou o perfume a sândalo.
Uma voz de rapaz provocou-o:
- É apenas um bastardo. Nunca será um verdadeiro homem.
Silêncio. A água passou por cima da sua cabeça.
A seguir veio à voz do anão, tão aguda que o fez pôr a cabeça fora da água sobressaltado.
- Ela gosta de você como uma mulher gosta de um homem. Ela já gostava de você antes de ir para Roma.
A sua própria voz era a pior:
- Vou deixar-lhe escolher o seu castigo. Ou a entrego aos clãs dos homens que matou... ou mando decapitá-la.
Quando ouviu um tumulto cadenciado na água a seu lado, ousou abrir os olhos. Tinha se adaptado à escuridão; virou a cabeça para seguir o som.
Patinando ao seu lado estava o chacal. Com os músculos elegantes brilhando dentro de água, seguiu-o sem esforço corrente abaixo. Os maxilares abriram-se num sorriso, revelando dentes aguçados de onde pingava sangue vermelho. Se pudesse, naquele instante teria tapado a cabeça com a água, como se ela fosse uma manta, destruindo o chacal para sempre. Mas a voz voltou e o chacal desapareceu.
Era uma voz feminina, cristalina e com os tons da juventude. Falava em dançar descalça e nas frutas de que se obtinha o mais brilhante dos vermelhos. Falava de cavalos mais rápidos do que o vento e de ciúme num jardim de lama. As boas espadas distinguiam-se das ruins pelo peso. Comparava a sopa de lentilhas à carne de vaca quanto à capacidade de aquecer um estômago frio, vazio. E a voz prosseguia, falando das coisas mais triviais e importantes da vida, enquanto ele flutuava ao sabor da corrente.
De cada vez que começava a afundar-se, a voz falava mais alto e mais depressa, descrevendo os prazeres da vida com tal intensidade que ele começava a lutar sozinho contra o peso da água. A sua viagem parecia tão interminável como a voz. Acabou por adormecer, sabendo que quando acordasse a voz lá estaria incentivando-o.
Quando voltou a abrir os olhos havia luz e à sua frente, a tigela de sopa com o aspecto mais terrível que alguma vez tinha visto na vida.
- Há olhos nesta sopa. - A sua voz estava fraca, mas não tão fraca como o seu estômago quando encarou a repugnante sopa.
- Vão lhe dar muita força. Fartei-me de comê-los quando era nova e agora olha para mim.
Esforçou-se por se concentrar na mancha por trás da tigela, ver o jovem canibal que lhe estendia a sopa fumegante.
- Esses olhos são de quem?
Uma sonora gargalhada estremeceu o ar.
- De ninguém, palerma. São do peixe com que a sopa foi feita. Não lhe obrigo a comê-los. Prova só o caldo.
Sem lhe dar tempo para responder, uma colherada de sopa entrou pela sua garganta dolorida. O sabor não lhe era desconhecido. Pensou quantas tigelas de sopa de olhos teria já comido na vida.
O rosto por detrás da tigela tornou-se nítido quando a neblina desapareceu dos seus olhos, empurrada pelo vapor que se desprendia da sopa.
- Gelina - murmurou.
- Em carne e osso. Receio que tenha voltado a desobedecê-lo. Não o matei nem fugi. Vai precisar ter paciência. Talvez a sopa o mate.
Deu-lhe outra colherada pela boca abaixo enquanto ele tentava sentar-se. Uma onda de dor fê-lo sentir-se tonto e Gelina empurrou-o para baixo.
Sacudindo a cabeça, ela pegou uma garrafa e colocou na colher umas gotas de um líquido âmbar. Ele bebeu-o sem protestar.
- Infelizmente acabou - disse ela. - Precisei lhe dar muito disto ultimamente.
- Ultimamente? - Fez um esforço para se lembrar e verificou que ela ainda vestia a sua túnica, fechada à frente com uma corda estreita. Na gruta escura as pernas dela pareciam queimadas pelo sol.
- Três dias. Perdeu tanto sangue que quase morreu. - Foi lavar a colher e a tigela numa poça de água.
Sangue. Do sangue ele lembrava-se. Do sangue dela na ponta dos seus dedos.
- Porquê...?
Ela interrompeu-o:
- Precisa descansar. Vou pôr estas coisas para secar ao sol.
E desapareceu antes que ele conseguisse balbuciar outra palavra. Ela tinha a voz rouca; linhas escuras manchavam-lhe a pele branca por debaixo dos olhos. Suspirou, sabendo de quem era a voz que o arrancara ao curso negro da morte.
O sol banhava o seu corpo num conforto esquecido. Com dificuldade e rindo, Gelina tinha-o arrastado centímetro a centímetro até ele se sentar nas pedras na entrada da gruta. Conn fechou os olhos e perguntou a si mesmo se alguma vez tinha se sentido tão bem. Até da horrível sopa de peixe começou a gostar depois de pedir a Gelina que tirasse os olhos da tigela. Tinha recuperado os relutantes sentidos já há três dias. Ainda estava fraco como uma criança. Mas já sentia a força acumular-se no interior do seu corpo. Esticou os membros enferrujados como um leão sonolento.
Fingiu que estava dormindo e olhou para Gelina, que andava de um lado para o outro, ocupada com os seus poucos pertences. Parou junto ao fogão improvisado construído por cima de uma pequena cova na borda da rocha. Tinha a testa franzida de tão concentrada. Praguejou em voz baixa quando a estrutura desabou pela terceira vez, recusando-se, teimosa, a equilibrar-se em cima das pedras irregulares. Olhou em volta e descobriu uma pedra grande e achatada capaz de suportar os gravetos, depois admirou a sua obra com um sorriso.
- Conheço homens no Fianna que não sabem viver ao ar livre tão bem como tu.
Gelina olhou para ele radiante. O seu sorriso desvaneceu-se quando viu que ele não parava de olhá-la com intensidade. Virou a cara timidamente, perguntando a si mesma que pensamentos estariam a formular-se por detrás daqueles olhos cor de safira. Ansiosa para pôr fim àquele silêncio incomodo, dirigiu-se à gruta.
- Venha cá.
Gelina parou ao ouvir aquele tom autoritário. Ficou algum tempo à entrada, de costas, antes de dar meia volta e olhar para Conn.
- Sim, Alteza.
Os olhos dele nada revelavam, mas Gelina sabia que a sua resposta provocara nele uma ligeira irritação. Ajoelhou-se.
Conn pegou na mão dela e passou os dedos pela palma numa carícia terna.
- Salvou-me a vida.
- É verdade, confesso. Podia me dar uma medalha para eu pregar no seu casaco. - Sorrindo levemente, olhou para as mãos entrelaçadas como se elas fossem de outras pessoas.
- Magoei-a. - O olhar dele varreu o vale cheio de sol que se espalhava diante deles, mas a mão percorreu suavemente o braço dela. - Possuí-a pelas piores razões.
Um rubor manchou as faces de Gelina. As palavras atropelaram-se na sua boca.
- Dizem que magoa sempre. Teria magoado mesmo que não fosse essa a sua intenção.
- Oh, mas era essa a minha intenção - respondeu Conn com brusquidão. - Sabe com certeza que eu podia ter facilitado as coisas para você. Ou talvez não saiba. - Os olhos dele fixaram-se nos dela com o espanto de uma criança. - Eu teria morrido por você, Gelina. Em que lhe decepcionei? Por que razão me traiu? Se alguém me dissesse que eu iria um dia impor-lhe a minha vontade, teria matado essa pessoa.
Baixou a cabeça. Foi ela quem lhe levantou o queixo e beijou os lábios dele sem pensar duas vezes, tentando aliviar-lhe o sofrimento. Conn entreabriu a boca, orientando-a na sua inexperiência. Incapaz de parar endireitou o pescoço, sentindo uma promessa de ternura que lhe era desconhecida. Conn ganhou forças, abraçou-a e apertou-a contra si.
Uma voz trocista interrompeu abruptamente o beijo deles.
- Então é assim que o rei supremo de Erin passa o tempo enquanto o seu bobo preferido quase fica doido à procura dele?
Conn não demorou a responder:
- Meu ex-bobo favorito, obrigado.
De braços cruzados e pernas afastadas, Nimbus retorceu os lábios num sorriso. Sean assistia à cena de cima do rochedo fingindo-se interessado, mal disfarçando a sua consternação por terem sido tão pouco oportunos. Gelina pôs-se de pé e entrou na gruta praticamente sem olhar para Nimbus. O bobo trocou um olhar desconfortável com Conn e seguiu atrás dela.
O aspecto e a palidez do rei não passaram despercebidos a Sean. Ajoelhou-se ao lado do rei e examinou a atadura do seu ombro com mãos experientes.
- Sente-se bem, Conn?
- Estou vivo - respondeu Conn, encolhendo os ombros. Vendo que Sean olhava para a gruta, acrescentou: - Não foi ela. O irmão é que me atacou pelas costas.
- Apanhou-o? - As feições corretas de Sean torceram-se numa incaracterística expressão sanguinária.
- Pela sua cara depreendo que também não o apanhou - disse Conn sacudindo a cabeça.
Sean baixou os olhos reprimindo um sorriso:
- Não. Mas pegamos outra pessoa. - Reagindo à testa franzida de Conn, acrescentou: - Na companhia de uns trezentos castelhanos, um tal Eoghan Mogh definha na nossa masmorra.
Conn soltou uma gargalhada amarga.
- O querido Eoghan. A morte é muito boa para ele. Que destino daremos ao miserável traidor?
- Conhece a lei da deusa Danu tão bem como eu. Um homem aleijado não pode sentar-se no trono de Erin.
- Lembra bem. Talvez lhe arranque os olhos depois dele ver pela última vez o trono onde nunca se sentará.
Sean levantou-se e foi até à beira do penhasco, voltando às costas a Conn.
- Lamento, mas tenho de lhe pôr a par de outra dificuldade.
- Qual é?
Sean virou-se, hesitando em responder:
- Gelina. Há quem diga que ela ajudou e encorajou os rebeldes. Dizem que deve ter o mesmo destino de Eoghan Mogh.
Embora parecesse impossível a Sean, Conn empalideceu ainda mais:
- Quem se atreveu a dizer uma coisa dessas?
- Ninguém sabe de onde vem o boato. Disseram que a mulher do cavalo negro estava se tornando uma lenda.
Com a boca fechada, Conn perguntou:
- Alguém sabe que ela está comigo?
- Não. Eu disse-lhes exatamente o que você me mandou dizer. Que estava no sul com o terceiro batalhão ajudando-os a acabar com a última leva de castelhanos. - Sean fitou-o com uma expressão sincera. - Agora quero fazer-lhe uma pergunta.
- Desembucha.
- Também acha que ela deve ter o mesmo destino de Eoghan Mogh?
Os olhos de Nimbus estavam já adaptados a pouca claridade da gruta. Gelina sentou-se de costas para a parede com os braços em volta dos joelhos. Tinha o queixo esticado numa posição que ele conhecia muito bem.
- Gelina... - O nome foi um sussurro nos lábios dele.
Gelina virou o rosto.
- Por favor - disse ele, sem saber bem o que estava a pedir-lhe.
- Não sabia Nimbus? – A voz dela soltou um grito de desprezo. - Quando foi à minha procura não sabia que ele queria matar-me?
- Esta viva não é verdade? Eu sabia que ele não lhe faria mal.
O olhar acusador de Gelina cruzou-se com o dele, que o desviou sabendo perfeitamente o quanto ela tinha sofrido às mãos do rei.
Respirou fundo e estremeceu.
- Não viu o estado em que ele ficou quando foi embora. Devastado. Procurou-a dia e noite. Dias seguidos cavalgando. Não comia. Quase não dormia. Bebia demais. Até dispensou Sheela.
- Pobrezinho - comentou ela, sarcástica.
- Quando soube que estava na companhia de Eoghan Mogh, tudo mudou. Acho que ele a odiou. Sei que quis matá-la. Mas também sei que nunca seria capaz de uma coisa dessas.
- O que fez foi muito arriscado.
- O seu lugar é do nosso lado, Gelina. Tinha de lhe encontrar e entregar a Conn.
- Então me perseguiu para o meu próprio bem.
Em frente dela, Nimbus obrigou-a a levantar os olhos e encará-lo de frente.
- Ainda pus a hipótese de não lhe contar que a tinha encontrado. Foi a primeira vez na vida que pensei em mentir a Conn. Por isso viajei com você. Quis ver se era feliz longe de nós. - Suspirou, relutante em continuar. - Uma noite a vi sentada na frente da fogueira. Tinhas um olhar triste. Parecia que a luz que havia nele se tinha apagado. Foi então que o vi. O seu irmão. Seguia todos os seus movimentos como um animal esfomeado prestes a atacar. Estava ganhando tempo. De modo que desisti de desperdiçar o meu e fui contar a Conn os seus planos.
A mão trêmula de Gelina ergueu-se para enxugar a testa suada.
Nimbus inclinou-se para frente e levantou timidamente o queixo dela com a sua pequena mão.
- Pelo que acabamos de ver, eu diria que esta muito mais perto daquilo que queria do que estava quando fugiu. - Largou-a e afastou-se.
- Espera!
Nimbus parou assim que ouviu a voz dela atravessar o ar abafado.
- Acho que isto lhe pertence.
Gelina atirou ao ar as maçãs douradas, que rodopiaram formando um padrão elaborado. Giraram pelo ar e só pararam graças aos reflexos rápidos das palmas das mãos doloridas do bobo.
- Obrigado. - Nimbus ficou olhando para as maçãs, na esperança de que ela falasse mais.
Gelina raspou a terra com um pé descalço.
- Trouxe alguma coisa para comer?
- Isso é pergunta que se faça?
Esperou que ela sorrisse, mas como tal não aconteceu, fez uma reverencia e saiu. Voltou com um saco de onde retirou três pães, dois queijos e seis fatias finas de carne seca. Gelina baixou a cabeça em sinal de aprovação. As vozes de Conn e Sean calaram-se quando o banquete foi levado para o exterior.
Sean ofereceu-se logo para ir caçar qualquer coisa. Voltou quando o Sol começava a pôr-se trazendo dois coelhos.
- Para mim chega, mas o que vocês vão comer?
- Eu daria tudo por um pouco de carne fresca - disse Conn do seu lugar.
Gelina não respondeu nem olhou para ele, mas levou-lhe uma tigela cheia de sopa de peixe morna. Conn balbuciou qualquer coisa e sorriu, mas ela virou-se e enfiou-se dentro da gruta.
Desconcertado, Conn viu a escuridão aumentar por cima do grupo sentado em volta da acolhedora fogueira. Gelina reapareceu vestida com a roupa de Sean e deslocou-se graciosamente pelo acampamento, ajudando Nimbus a enfiar os coelhos no espeto e a rodá-lo. O cheiro da carne assada encheu a noite.
Conn não conseguia tirar os olhos dela. A luz dava ao cabelo curto e encaracolado de Gelina um maravilhoso tom vermelho vivo. Gelina não olhou para ele uma única vez. Conn começou a pensar que a criatura quente e meiga que se recordava de ter abraçado tão brevemente não passava de um produto do seu delírio. Para seu desgosto, estava descobrindo que tinha sensibilidade em partes do corpo de que até então estivera muito debilitado para notar.
Só se deu conta da sua própria expressão agressiva quando reparou no olhar perplexo de Sean. Sorriu, comprometido, e agradeceu-lhe o prato que ele lhe estendia.
Comeram em silêncio até Nimbus arrotar de satisfação. Sean protestou.
- Desculpem - disse Nimbus bem-disposto e mostrando-se tudo menos arrependido.
- Não há que pedir desculpa de uma boa refeição entre amigos - respondeu Conn.
Procurou os olhos de Gelina, mas ela virou o rosto e fitou a escuridão. Nimbus levantou o cantil para fazer um brinde com os olhos castanhos brilhando.
- Detesto interromper a nossa tranquilidade, mas vejo-me obrigado a convocar uma reunião de estado - disse Conn com um suspiro. - Sean e Nimbus vieram a nós por uma razão, Gelina. - Um véu de desconfiança desceu sobre os olhos dela e detestou-se por ser o seu causador. - Um prisioneiro aguarda na masmorra que eu pronuncie uma sentença. Eoghan Mogh.
- Ele está bem? - perguntou Gelina sem pensar.
- Eu diria que o traidor está melhor do que o nosso rei - respondeu Sean com raiva na voz. - Os homens do Fianna não são dados a apunhalar pelas costas.
Gelina fechou os olhos por momentos, incapaz de enfrentar a ira pouco habitual nos olhos do soldado. Conn levantou a mão pedindo silêncio.
- Sean trouxe outro assunto à minha consideração - disse, retomando o tom de comando que ninguém ousava interromper. - Parece que há em Tara quem afirme que você ajudou os rebeldes. Exigem que seja julgada tal como Eoghan.
- Então o jogo acabou. Não posso viver escondida debaixo do seu manto eternamente, Conn. Está na altura de cortar a velha cabeça. - Até Nimbus se encolheu quando ela se levantou e começou a andar de volta da clareira, esvaziando o cantil de uma só vez.
- Tudo tem conserto, Gelina - disse Conn.
- Ah, mas quando vai aprender Conn? Nem tudo se pode consertar. Há certas coisas que depois de estragado nunca, nunca mais podem ser consertadas. Cuspiu as palavras, os olhos fixos nos dele numa batalha silenciosa. Conn teve de desviar o olhar.
- Basta convencê-los de que foi coagida - disse Sean calmamente. - Não vamos pedir-lhes que acreditem que não ajudou Mogh. Pedimos apenas que acreditem que foi raptada e feita refém, obrigada a fazer o que fez.
Gelina deixou-se cair pesadamente no chão e olhou para a fogueira.
- O que prefere? Prefere confessar que é uma traidora? Prefere partir daqui esta noite e ser para sempre uma fugitiva? - Enquanto falava, Conn tentou pôr-se de pé, ignorando a mão estendida de Nimbus. - Vamos levá-la de volta, Gelina. Vamos ajudá-la. Não é isso o que quer?
- Sou culpada do que me acusam e de mais ainda. Mereço ser castigada tanto quanto Eoghan merece. - Olhou para o círculo de rostos intrigados.
- Não sei o que quero. Só sei que quero uma vida nova. E não sei se quero que qualquer de vocês faça parte dela. - Virou-se e correu pelo carreiro estreito para a noite.
A lua já quase não se via quando Gelina voltou e encontrou Conn sozinho sentado junto às cinzas ainda quentes da fogueira. Conn viu-a aproximar-se da luz intermitente, depois voltou a olhar para o objeto que tinha nas mãos. De Nimbus e Sean, nem sinal.
- Foram embora - disse Conn, respondendo à pergunta silenciosa dela.
- Como sabia que eu ia voltar?
Conn riu:
- Não acredito que vá para algum lado sem a sua espada. - Olhou para as cinzas moribundas durante algum tempo e perguntou:
- Percebe o que eu lhe ofereci há pouco, Gelina?
- Não sei.
- Ofereci-lhe a minha proteção.
- A que preço, Conn? - perguntou ela com frieza. - Da última vez o preço era a lealdade e não a consegui. Qual é o preço da sua proteção desta vez? Ou será que já está paga?
- Nunca saberemos, não? A oferta foi recusada. - Os seus olhos pousaram nos dela; Gelina sentiu um arrepio pela espinha abaixo. - Acha que precisa ser castigada, Gelina? Se for isso que quer, eu a castigarei.
- De que esta falando? - perguntou ela em voz baixa, receando a resposta.
- Ajoelha a meu lado - ordenou ele. Gelina obedeceu de imediato. Conn passou uma mão pelo cabelo macio dela e começou: - Revogo a sua cidadania. Revogo a sua liberdade, Gelina O’Monaghan. A partir deste momento é uma fuidir. É minha serva. Pertence-me. Servira-me sem questionar. Fará o que eu te mandar sem protestar.
Falou num tom tão terno que Gelina levou algum tempo a registrar as suas palavras. Furiosa, quis levantar-se, mas o seu cabelo estava preso nas mãos fortes de Conn. Os seus olhos verteram lágrimas de dor.
- Cozinhara o meu pão. Lavara as minhas roupas. Será minha escrava.
- Mas os fuidir são... - Calou-se, horrorizada, quando percebeu que estado era agora o seu.
- Isso mesmo. Prisioneiros de guerra. Fugitivos. Oferecem a sua liberdade para reparar um erro, pagar uma dívida. Ninguém naquela corte se atreverá a discordar da minha decisão.
- Não pode roubar-me a minha liberdade! - Desistiu de lutar quando sentiu que ele a agarrava cruelmente pelo cabelo.
- Claro que posso! Nunca lhe devia dado, para começar. Pode espetar-me a sua espada quando eu estiver dormindo se quiser, mas não esqueça que a morte do seu dono não a liberta. Sean foi à frente com a notícia da sua captura e do seu castigo. Se alguma coisa me acontecer aqui, será procurada nos quatro cantos do mundo.
Puxou o rosto dela para junto do seu com a mão forte a agarrar-lhe o pescoço. Ergueu o objeto que tinha nas mãos e colocou-o à frente de Gelina. O objeto familiar, esculpido, dançou diante dos olhos dela.
- Veja, Gelina. Apanhei a rainha branca.
Gelina alisou a sua saia de linho com dedos gelados, esquecendo o bulício das criadas e dos criados atrás de si. Não levantou os olhos nem sequer quando a cozinheira lhe deu um encontrão de sobrolho carregado. A estranha cor escura do seu vestuário atormentava-a.
Estava vestida de negro da cabeça aos pés. O vestido, muito pequeno, estava apertado no peito e ficava curto. As fitas franjadas das sandálias negras serpenteavam-lhe as pernas acima sobre umas meias negras e opacas. Conn não teria divulgado melhor a sua condição de escrava se lhe tivesse gravado na testa a palavra fuidir. Gelina afastou o cabelo do seu rosto, que o contraste com a escuridão do pano tornava ainda mais pálido. As gargalhadas do salão de entrada chegaram à cozinha. Gelina só queria tornar-se invisível, como ultimamente se sentia.
Conn não lhe dirigia a palavra desde que lhe revogara a liberdade, embora ela muitas vezes erguesse os olhos da tarefa que tinha em mãos e descobrisse que ele a fitava com um irritante ar simultaneamente divertido e triunfante. Nos dias que tinham passado na gruta limitara-se a pedir-lhe que preparasse as refeições e o ajudasse a pôr-se de pé enquanto não recuperava completamente as forças.
Mais do que uma vez Gelina teve vontade de empurrá-la rochedo abaixo quando ele ia passear em volta do acampamento. Conn lançava-lhe um sorriso superior, como se lhe lesse os pensamentos através da testa furiosa, irritando-a ainda mais. As tréguas entre eles eram frágeis. Gelina recusou-se a agarrar-se ao corpo dele quando Silent Thunder os devolveu a Tara e foi com prazer que Conn escolheu o caminho mais acidentado, embora, nos momentos mais perigosos, a agarrasse, evitando que ela caísse do cavalo abaixo por pura teimosia.
O medo que crescera no coração dela à medida que se aproximavam de Tara florescia agora que ela se encontrava na cozinha, sem sequer sentir o calor do forno. Conn levara-a da torre para os cuidados de Moira. Não estava lá nenhum Nimbus, nem nenhum Sean para recebê-la. Moira virou-lhe a cara e entregou-lhe o traje infernal ao mesmo tempo em que ordenava que tomasse banho e fosse imediatamente para a cozinha. A água do banho não estava quente, nem perfumada, nem dentro de uma ampla tina de madeira. Estava morna dentro de uma bacia de barro meio rachada num compartimento minúsculo da ala da criadagem.
A cozinheira voltou a dar-lhe um encontrão. E mais outro. Desta vez Gelina teve de levantar os olhos e pegar na travessa dourada carregada de fatias finas de pão com mel que a cozinheira lhe estendia.
- Vai servir à mesa do rei - ordenou e Gelina perguntou a si mesma se alguém seria capaz de voltar a olhá-la de frente.
Com uma ousadia repentina, agarrou no braço da cozinheira, espantada com a solidez dos músculos que ondulavam por debaixo das várias camadas de gordura.
- Que sabem as pessoas?
A cozinheira soltou-se da mão dela:
- Sabem o suficiente.
Gelina sentiu, apesar de não ver, toda a atividade cessar atrás delas e sabia que olhos não cruéis, mas curiosos, estavam cravados nas suas costas. Respirou fundo, agarrou bem a travessa com as mãos trêmulas e saiu pela porta de vaivém que dava para o salão.
Por instantes foi capaz de fingir que nada ia acontecer que o cantor de baladas não ia engasgar com a sua última palavra gutural. Que o flautista não ia desafinar e tocar uma nota estridente antes de baixar o instrumento e a cabeça. Que o salão de entrada não ia cair num silêncio pesado, embaraçado, quando a moça alta vestida de negro caminhasse por entre as mesas de cavalete. Mas tudo isso não passou de uma esperança. O silêncio foi um monstro sufocante, repugnante, que se enredou nas pernas dela, quase a deitando no chão.
Uma criada gorda dirigiu-lhe um grande sorriso quando passou por ela, um sorriso que Gelina recordaria até ao fim da vida. Subiu os degraus até à mesa em volta da qual Conn e os seus homens estavam sentados. Quase dobrou os joelhos de alívio quando vários soldados retomaram as suas conversas ao mesmo tempo, enchendo de palavras o terrível silêncio.
O olhar de Conn passeou pelo rosto dela como o de qualquer desconhecido quando Gelina colocou uma grossa fatia de pão no prato dele. Inclinado para o homem a seu lado, Conn parecia entusiasmado com o que ele dizia. Nimbus estava sentado do outro lado de Conn, com os seus olhos castanhos faiscando. Quando o olhar de Gelina se cruzou com o do bobo, foi ela quem virou a cara, temendo que ele encontrasse nos seus olhos vestígios da mesma raiva que havia nos dele.
A noite decorreu a um ritmo confortável, embora novo para ela. Levava comida. Trazia travessas vazias. Levava mais comida. Os degraus do estrado tornaram-se mais altos e longos à vigésima vez que teve de subi-los carregando com dificuldade uma enorme e fumegante cabeça de javali.
Não teve tempo para protestar quando Nimbus saltou da sua cadeira e contornou a grande mesa de braços estendidos pronto para ajudá-la com a sua carga.
- Nimbus! - Conn falou em voz baixa, mas a ordem funcionou melhor do que se ele tivesse gritado.
O bobo virou-se para o rei e Gelina pensou, durante um breve momento em que nem ousou respirar, que ele ia enfrentar Conn. Os seus pequenos ombros baixaram-se e Nimbus regressou à sua cadeira. Mas não escondeu a fúria que ardia nos seus olhos quando se virou para Conn.
Gelina colocou a travessa em cima da mesa e tratou de trinchar a carne, os ouvidos à escuta do nome que ouvira ao aproximar-se do estrado.
- Mandou os estrangeiros da língua de trapos de volta para Castela, Conn. E quanto a Eoghan Mogh? Já decidiu qual vai ser o destino dele? - perguntou Goll MacMorna.
- Devia ter enforcado a todos, em minha opinião. Para os porcos nojentos aprenderem a não meter o nariz onde não são chamados - interrompeu um soldado de cabelo louro.
Conn recostou-se na cadeira, bebendo a sua cerveja de uma taça de prata.
- Não achei necessário executar os castelhanos. Eles apenas cumpriam ordens dadas pelo seu rei, tal como vocês cumpririam as minhas se eu os enviasse a Castela. Já Eoghan Mogh é uma questão diferente.
- E o da capa? Descobriu quem era?
Gelina sentiu os olhos de Conn pousarem nela um instante, mas quando terminou a sua tarefa já não os encontrou.
- Não. Conseguiu escapar-me... desta vez.
A faca escorregou da mão de Gelina, que levou à boca um dedo ferido.
- Mas diz lá o que decidiu quanto a Eoghan. - Um dos soldados inclinou-se, ansioso, na direção de Conn. - Vai cegá-lo? Castrá-lo? Cortar-lhe a cabeça, um braço? Como pensa fazer justiça, Conn?
- Sei que vou dar a Eoghan tempo para meditar sobre os seus atos. Vou deixá-lo algum tempo apodrecendo na nossa masmorra.
- Um milhão de anos será suficiente? - exclamou Goll MacMorna, erguendo a sua taça.
Conn riu e os outros homens levantaram os copos e brindaram à justiça que reinava no salão. Gelina cambaleou degraus abaixo, contente por ter chegado a altura de se retirar e deixar de ouvir as piadas deles. A caminho da cozinha, um braço rude agarrou-a pela cintura e uma mão calejada enfiou-se por debaixo da sua saia e agarrou-a pela coxa.
- Criada, pode trazer-me uma bebida tão quente, saborosa e alimentícia como essa que tens debaixo das saias? - gritou ao seu ouvido uma voz que cheirava a cerveja e a dentes podres.
Ainda nem tinha tido tempo para protestar quando ele a soltou. Foi bater contra a parede, o súbito silêncio latejando na sua cabeça, e quando se virou viu o pastor grosseiro deitado de costas com o pé de Conn em cima do seu peito e a ponta de uma espada brilhando rente ao seu pescoço. Nesse mesmo instante, um fio de sangue começou a correr-lhe da garganta, onde Conn tinha encostado a espada com um fogo azul-escuro nos olhos. O homem ergueu uma mão trêmula e suplicante.
Antes que Gelina conseguisse gritar, uma mulher de rosto amarelado irrompeu do meio da multidão e lançou-se aos pés de Conn, abrindo à sua volta a saia rodada.
- Misericórdia milorde, peço-lhe - gritou, o rosto lavado em lágrimas. - O meu marido esteve muito tempo no norte com os rebanhos. Não sabia.
Conn não deu sinais de tê-la ouvido e a ponta da sua espada não se mexeu. Por um longo momento os soluços irregulares da mulher foram a única coisa que se ouviu na sala. O olhar gélido de Conn deixou o grosseiro pastor e percorreu os rostos mudos, assustados, até se fixar em Gelina, encostada à parede, a saia torcida nas mãos, uma súplica nos olhos.
Afastou a espada do pescoço do homem. Um suspiro de alívio atravessou o salão como uma onda.
- Gostaria de falar com você lá fora - murmurou.
A multidão abriu caminho quando o viu dirigir-se à porta, ainda de espada na mão. De olhos fechados, o pastor rezou uma oração silenciosa antes de relutante, se levantar e segui-lo.
Gelina olhou para as suas mãos tremulas sem ouvir que a cozinheira se aproximava.
- Vê se acorda, moça. Há muito serviço a fazer - ralhou.
Gelina desencostou-se da parede e seguiu de bom grado a figura vestida de branco até à cozinha, longe dos olhares curiosos.
Em cima do estrado, Nimbus cobriu a boca com um lenço para esconder o seu sorriso.
Furiosa, Gelina amassou, obstinada, a bola de massa branca até as suas mãos a subjugarem. O sol do outono aquecia-lhe as costas. Coçou a ponta do nariz, deixando nele uma mancha branca. Reprimiu um protesto quando viu a cozinheira trazer outro alguidar cheio de massa.
- Assim que acabar isto, há tapetes para bater - disse, pousando o alguidar em cima da mesa.
Gelina concordou, baixando a cabeça com pouco entusiasmo, e praguejou quando a última das suas unhas rachadas se partiu e caiu em cima da massa elástica. Depois de pensar um segundo, continuou amassando sem se dar ao trabalho de extraí-la. Com alguma sorte, ainda ia parar à garganta de Conn, engasgando-o. Pôs de lado o primeiro alguidar e empurrou o segundo para a sua frente. Grandes manchas de farinha salpicavam a sua roupa negra. Gelina puxou com um dedo o lenço que lhe cobria os cachos de modo que ele cobrisse também o seu rosto.
Deixou a massa dos alguidares crescendo ao sol e abordou a tarefa seguinte com apreensão. Quatro espessos tapetes estavam empilhados à porta da cozinha. Com os dois braços por debaixo da pilha, tentou levantá-la. Para seu desgosto, ela não se mexeu. Olhou em volta para ver se havia alguém no pátio a assistir à sua aventura, mas estava vazio. Ansiou pela figura familiar de Nimbus, embora já tivesse visto Conn esticar a mão para impedir que ele a ajudasse dúzias de vezes.
Arrastou um tapete pelo chão de terra com as duas mãos. Ficou perplexa quando viu a altura da corda esticada de parede a parede. Levantou o queixo, tomou balanço e atirou o tapete lá para cima. O tapete voou por cima da corda e caiu ao chão, levando-a consigo. Sacudiu a cabeça. À terceira tentativa, o tapete aterrisou no estendal.
Pegou na gigantesca colher de pau e começou a bater o tapete. Uma nuvem de pó rodopiou em volta da sua cabeça, fazendo-a tossir. Recuou e voltou a bater. Decidiu usar a colher como se fosse uma espada. Desse modo as suas investidas não conseguiam extrair tanto pó, mas a tarefa tornava-se mais suportável.
Uma figura solitária espreitava-a de uma janela com grades localizada no segundo piso da fortaleza, bebendo cada um dos seus movimentos. Ria às gargalhadas daquela espécie de batalha. O quarto dela ficava agora longe do dele. No meio da noite, sob o efeito do sono, Conn via muitas vezes à sua frente à porta do quarto antigo dela. Abriu-a apenas uma vez, mas o cheiro intenso de sândalo fê-lo fugir para o corredor com um ardor no corpo. Ela estava em toda a parte. Estava no pátio, o seu pequeno corpo debruçado sobre um tanque de roupa suja. Estava no salão, de cabeça inclinada para a bandeja de canecas que levava nas mãos. O seu olhar cruzou-se com o dele por uma fração de segundo, com a luz das chamas realçando a sua posição subserviente. Apoiou a mão no parapeito da janela enquanto a observava.
Deu um pulo e afastou-se da janela quando ouviu alguém pigarrear atrás de si. Nimbus estava à porta com um sorriso manhoso no seu pequeno rosto.
- Peço que me receba, Conn.
Conn afastou-se da janela, as mãos cruzadas atrás das costas.
- Desde quando precisa pedir licença para falar comigo?
Nimbus não respondeu. Não tirou os olhos de Conn.
- Sei que não anda satisfeito comigo, Nimbus. Deixou isso bem claro. Mas o recebo com todo o prazer. Fala.
Conn sentou-se à beira do divã. Reparou que no fato que o bobo tinha substituído sua roupa gasta por uma jaqueta vermelha curta e um kilt verde-escuro. Disfarçou um sorriso e perguntou a si mesmo que assunto tão grave teria feito Nimbus mudar de indumentária.
Não precisou esperar muito pela resposta. Nimbus cruzou os braços e declarou:
- Quero casar com Gelina.
Conn ficou olhando para ele algum tempo. Engoliu a gargalhada que lhe nasceu na garganta, percebendo, ao fitar os olhos castanhos e determinados do bobo, que se desatasse a rir, a amizade deles terminaria para sempre. Pigarreou, feliz por se encontrar já sentado.
Reprimindo uma centena de palavras, encostou os dedos ao queixo e perguntou:
- Por quê?
Nimbus abriu os braços, começando a perder a calma.
- Porque não suporto vê-la rastejar de um lado para o outro como uma aranha, vestida com aquela roupa sinistra. Ela merece algo melhor.
- Esta sendo bem alimentada. Ninguém a trata mal. Você sabe isso melhor do que ninguém - replicou Conn, com uma ruga aparecendo entre as suas sobrancelhas.
Nimbus subiu o tom de voz:
- Esta sendo humilhada. É degradante. Não admito. Você não tem o direito...
- Tenho todo o direito. - Conn pronunciou cada palavra devagar; os seus olhos desafiaram Nimbus a continuar.
Nimbus baixou os olhos com dificuldade e repetiu:
- Quero me casar com Gelina. Não quero dote. Só quero a ela.
Aquelas palavras fizeram Conn levantar-se e caminhar até à janela.
Olhou para o pátio, os punhos fechados atrás das costas por alguma emoção desconhecida.
Nimbus deu dois passos e depois parou. As suas pernas recusaram-se a avançar, ele percebeu o que se passava.
- Não sou o primeiro, é isso, Conn?
- Já fui abordado nesse sentido.
- E qual foi a sua resposta?
Conn tentou encontrar as palavras certas.
- Não posso pedir a ninguém que case com Gelina. Ela não serve para o casamento.
- Por quê?
Nimbus recusou-se a virar a cara. Conn sentiu o seu olhar penetrante na nuca e teve que o encarar.
O bobo praguejava furiosamente:
- Eu sabia. Você a arruinou, não foi? Deu cabo da vida dela! - Nimbus virou-se, sentindo uma dor no estômago. - É a verdade, ou não é?
Conn passou a mão pelos olhos cansados e não lhe deu qualquer resposta.
- Não se limitou a estragar-lhe a vida, não foi? Magoou-a. Depois de tanta conversa sobre sermos cavalheiros e gentis com as damas! Me dá vontade de vomitar. - Nimbus virou-lhe as costas, inspirando através dos dentes cerrados. – Conte, Conn, como foi? Tratou-a como se ela fosse uma camponesa? Ao menos teve a gentileza de deitá-la em cima da sua cama quando lhe abriu as pernas? Ou foi mesmo em cima da terra como uma...
- Cala-se, Nimbus - gritou Conn.
- Não compreende, não é? A culpa foi minha. Entreguei-a. Embelezei-a para você. Para acariciá-la e amar como ela merece ser amada. Como eu nunca serei... - Calou-se, incapaz de reter as lágrimas.
- Você não sabe quais foram às circunstâncias, Nimbus.
- Mas sei uma coisa - respondeu devagar. - Sei que Gelina continua servindo para ser minha mulher. Deixa-me levá-la daqui.
- A minha resposta mantém-se.
Nimbus riu produzindo um som que era uma imitação amarga das suas gargalhadas habituais.
- Muito conveniente para você, não é verdade, Conn? A fez deixar de servir para outro homem, mas quer que ela fique aos seus pés para usá-la quando lhe convier. É você que vai visitá-la nos alojamentos dos criados ou é ela quem vai ao seu quarto? A primeira vez não lhe fez um filho, mas se na segunda a sua semente acertar o alvo, vai dar um jeito de casá-la com outro homem.
Conn estava pálido e visivelmente abalado.
- Não é justo, Nimbus. Não toco nela desde que regressamos a Tara.
O bobo encolheu os ombros:
- No entanto é só uma questão de tempo, não é? Qualquer dia levanta as saias de uma criada e descobre, com surpresa, que é Gelina.
Conn avançou para Nimbus com um olhar furioso.
- Esta me provocando, Nimbus. Esta me provocando mais do que alguém alguma vez se atreveu.
Nimbus fez uma reverencia com um floreado.
- Peço perdão, Alteza. Não me esqueci que é o rei. Acima de qualquer suspeita.
Conn passou por ele e saiu do quarto. Nimbus seguiu-o, já sem o seu sorriso trocista. Dirigiu-se à arca e tirou de cima dela uma caneca de barro. Atirou-a contra a parede e ela partiu-se com um espalhafato satisfatório.
Em baixo, no pátio, Gelina olhou para a janela e ouviu uma discussão em voz alta logo seguida de um estilhaçar de louça.
A música e as gargalhadas que vinham do salão de entrada estavam a pôr em franja os nervos de Gelina, ocupada a esfregar o assoalho de madeira. Começou a cantarolar baixinho, tentando abafar a algazarra da festa do piso inferior, onde ela já não era bem-vinda. Quando a sua voz encontrou as palavras que procurava, subiu de tom, entoando a letra de uma canção que Nimbus lhe tinha ensinado acerca de um homem e da sua cabra. Acompanhava a sua melodia não melódica com movimentos cadenciados da escova sobre o chão grosseiro. Pingos de água suja salpicavam as paredes sem que ela desse por isso. Tal como não reparou na porta que se abriu ao fundo do corredor.
- Mas que gritaria é esta?
A voz furiosa de Conn assustou-a. Pôs-se de pé num pulo e atirou a escova para dentro do balde com tanta força que os molhou aos dois.
- Pensei que alguém tinha esfolado um gato e deixado o bicho morrendo no corredor - berrou, ignorando a testa franzida e os lábios trêmulos da moça. - Um homem já não pode dormir descansado no seu próprio quarto?
Gelina ficou parada com as costas bem eretas, durante algum tempo e só então se lembrou da reverencia obrigatória diante de um rei.
- Perdão. Parti do princípio de que estava lá em baixo participando nos festejos.
- Como pode ver, não estou. Há horas que estou tentando adormecer. E justamente quando o sono começa a vencer-me, acordo ao som insuportável da sua... (fez uma pausa à procura da palavra certa) canção.
Virou as costas e voltou para o quarto.
- Venha comigo - disse por cima do ombro.
Gelina olhou em volta:
- Quem? Eu?
Conn não se dignou responder-lhe e ela seguiu atrás dele, apreensiva.
- Feche a porta - ordenou. Vendo-a hesitar, acrescentou: - Por favor.
Gelina fechou a porta devagar, obedecendo ao pedido suave e não às ordens agressivas. Conn despiu a túnica e ela recuou um passo, agarrando-se à maçaneta da porta. Conn ignorou os grandes olhos fixos no emaranhado de pêlos escuros do seu peito.
- Massageie-me os ombros, por favor - disse, sentando-se com uma perna de cada lado do divã.
- Com certeza. - Gelina largou a porta e voltou a fazer uma reverencia.
- E importa-se de parar de se mexer para cima e para baixo? É muito irritante.
Gelina dirigiu-se ao divã com o entusiasmo de quem se aproxima de um lagarto. Colocou-se atrás dele e deu um pulo quando o viu virar-se.
- Não esta armada, não?
Os lábios dela torceram-se.
- Não, senhor.
Continuou a olhar para ela com uma ternura que lhe pôs os cabelos em pé.
- Mas costuma andar armada, não é verdade?
- Não compreendo.
- Olha que sorte! Seria muito mais perigosa se compreendesse - disse ele, virando-se de costas.
- As minhas mãos devem estar um pouco ásperas. - Apertou os ombros dele.
Conn mexeu-se para disfarçar o arrepio que percorreu o seu corpo e resmungou qualquer coisa que não chegou a ser uma resposta. Com as mãos fechadas, Gelina massageou-lhe os ombros largos e depois as costas. Os seus dedos delicados e hábeis sentiram os músculos tensos. Conn abafou um grito de dor quando as pontas dos dedos dela obrigaram a sua pele dormente a obedecer-lhes.
Gelina bocejou, com uma vaga ideia das muitas horas que tinham passado desde que a cozinheira a arrancara da cama. As suas mãos tocavam a pele de Conn com uma suavidade cada vez maior, os seus próprios músculos começavam a ceder à exaustão. A carícia dos seus dedos pôs os braços de Conn arrepiados. As suas mãos imobilizaram-se e ele olhou-a, uma pergunta candente gravada nas feições tensas.
Os olhos de Gelina tinham-se fechado; os cílios longos e escuros destacavam-se contra as faces pálidas enquanto os seios pequenos subiam e desciam. Conn sorriu ao ver aquela ninfa adormecida no seu divã e pegou cuidadosamente nas mãos dela pousando-as em cima do seu colo. Afastou um cacho rebelde do rosto dela, mas afastou a mão quando as palavras de Nimbus estalaram na sua mente como um chicote. Deixou de sorrir.
Só queria pegar naquele rosto delicado com as mãos e beijar as marcas escuras que se viam por debaixo dos olhos. O fogo que se acendera na gruta incendiou a sua alma, deixando-o sem forças e receoso do rumo que as suas mãos iriam tomar se a abraçasse. Tinha sido um tormento não lhe tocar nas últimas semanas. E agora ali estava ela à sua frente, confiante como uma criança, agitando-se no seu sono, emitindo gemidos que penetravam no seu coração como uma espada.
Com uma determinação que quase lhe partiu o coração, deu um beijo na testa de Gelina e depois a acordou sacudindo-a com as mãos frias, impessoais, de um desconhecido.
As mãos de Gelina voavam enquanto ela cortava o pão escaldante. Uma grande fatia fugiu-lhe dos dedos e foi parar no chão. Sem olhar em volta, Gelina pegou-a e voltou a colocá-la no prato.
- Gelina!
A voz da cozinheira enervou-a. Atirou o pão sujo para o balde do lixo mais próximo. A loura gorda que enchia os pratos de barro à sua frente riu.
- Não ria, Audren. Já lhe vi fazer a mesma coisa centenas de vezes. - Gelina dirigiu um sorriso à simpática criada.
- Mas ela nunca me apanha com a boca na botija. Basta aproveitar quando ela não está olhando - segredou Audren piscando o olho. Para demonstrar atirou uma fatia de pão para a boca, sem pousar a faca, antes de levar a travessa para o salão de entrada.
A porta estava aberta para a escuridão do exterior e uma brisa fresca de outono atiçava o fogo dos dois fogões, um em cada extremo da cozinha. Gelina interrompeu a sua tarefa e respirou fundo. Enquanto o ar puro e doce expulsava o fumo dos seus pulmões, imaginou que bom seria cavalgar pela charneca montada no Silent Thunder naquela noite.
A cozinheira pôs fim às suas divagações.
- Anda moça. Barriga vazia não escuta sermões.
Motivada por aquela segunda repreensão, Gelina pegou numa travessa com um guisado de cebolas, lentilhas e açafrão. Audren entrou correndo quase a fazendo tombar.
- Calma Audren! Ia cair comigo no chão. - Gelina tirou a tigela de pimenta do tabuleiro da moça.
- Desculpa. Está uma multidão ali fora. Nunca vi tantas caras bonitas com a mania de apalpar. - Mordeu os lábios, sabendo que a mão do rei ia direta à sua espada se um homem olhasse para Gelina nem que fosse de lado. Falava depressa para disfarçar o silêncio incomodo. - A Rosa negra voltou.
Gelina semicerrou os olhos:
- Quem?
Audren tirou-lhe a travessa das mãos e colocou-a em cima da mesa depois de espreitar para se certificar de que a cozinheira não estava vendo. Puxou Gelina para junto da porta e apontou para a mesa em cima do estrado.
- Sheela... a Rosa Negra. Era o que lhe chamavam antes do marido dela morrer. - Riu. - Ouvi dizer que ela é difícil de comer, mas fácil de depenar.
Gelina ficou imóvel, combatendo a vontade de se dobrar. Um punho invisível instalou-se nos seus intestinos. Bolas douradas balançavam em cachos castanhos enquanto uns olhos lânguidos sorriam para Conn. Um vazio propositado caiu sobre as feições de Gelina.
- Audren, preciso que me ajude. - Puxou a moça de novo para junto da mesa. - Troca de mesa comigo esta noite. Eu sirvo as mesas do povo. Você serve a mesa do rei.
Só percebeu que estava torcendo o punho de Audren quando a moça o soltou e começou a esfregar. Os seus olhos deixaram os de Gelina.
- Não posso. Nem sequer por uma noite.
- Mas por quê?
- O rei deu ordem para ser você a servi-lo. Já devias saber. - Começou a empilhar pratos num tabuleiro, feliz pela tarefa a livrar do olhar aflito de Gelina.
- Maldito rei - murmurou Gelina, voltando a dirigir-se à porta.
Olhou para o estrado, mordendo o lábio inferior. Sheela vestia um vestido comprido em veludo azul-real com pregas profundas a partir da cintura. Nas mãos, luvas de um azul mais claro. O ouro das pulseiras brilhava com os seus gestos elaborados.
Gelina baixou os olhos para o linho negro do seu vestido e com uma mão tocou o lenço negro que lhe cobria o cabelo. O vestido estava cheio de costuras das várias emendas feitas pela noite adentro à luz de uma única vela de cera. Alisou a saia com uma mão calejada e rachada.
Endireitando-se subtilmente, Gelina voltou a pegar na travessa e ergueu-a a altura do seu ombro. Audren viu-a sair da porta de cabeça erguida.
Serpenteou por entre as mesas. O estrado assomou à sua frente, cada soldado um gigante à medida que os degraus se sucediam sob as suas sandálias gastas. Nimbus estava entalado entre dois soldados corpulentos. Interrompeu a piada que estava dizendo quando a viu aproximar-se. Olhou para Conn. O rei conversava com Sheela, mas os seus olhos seguiam Gelina, que pousava a sua carga na mesa.
Nimbus desceu da cadeira e tirou um prato dourado das mãos dela, indiferente ao olhar carregado de Conn. Gelina sorriu-lhe ligeiramente. Quando restavam apenas dois pratos, indicou-lhe que se sentasse e ele obedeceu com relutância e uma expressão amuada.
Com mãos firmes, Gelina colocou um prato em frente de Sheela, reservando o último para Conn. Os homens sentados àquela mesa aguardavam. Só podiam tocar na comida depois do prato do rei ter sido entregue. A voz de Sheela ecoou pela sala:
- Ora se não é a orfãzinha! Nem a reconhecia assim toda de preto. Fica-lhe bem, não é verdade? Já devia tê-la posto a servir há muito tempo, Conn. - E desatou a rir, à espera da aprovação de Conn.
Conn recostou-se na cadeira e cruzou as suas longas pernas. Uma expressão que talvez fosse de remorso cruzou o seu rosto. Gelina parou. Os lábios de Nimbus rezaram em silêncio quando viu o olhar de Gelina adensar-se como uma tempestade. Goll MacMorna sacudiu a cabeça, chocado, e lançou-lhe um olhar solidário. Gelina pegou no último prato.
- Criada, vai buscar a pimenta. E depressa. A minha comida está esfriando e você não vai - disse Sheela.
Um soldado num dos extremos da mesa pigarreou e baixou a cabeça, embaraçado. Gelina foi até ao tabuleiro de onde tirou a taça de pimenta com um gesto floreado. Toda a mesa se calou enquanto ela se dirigia a Sheela.
- Creio que vou precisar de outro prato. Depois de me arrumar o guardanapo, vai à cozinha e buscar-me um. A minha comida gelou enquanto andava à volta da mesa a passo de tartaruga. - Sheela fez uma cara amuada. - Talvez umas chicotadas lhe fizessem trabalhar mais depressa.
Conn deu um murro na mesa.
- Basta, Sheela. Ela é minha escrava, não sua.
Gelina caminhou mais devagar em direção à cadeira de Sheela. O seu rosto exibia um sorriso irregular.
- Milady deseja outro prato?
- Já - exigiu a mulher, enquanto tentava acalmar Conn pousando a mão na coxa dele.
- Com todo o prazer. - Sem mais uma palavra, Gelina despejou o conteúdo fumegante do prato de Conn em cima da cabeça de Sheela.
Um silêncio de pedra caiu sobre o salão, cortado apenas pelos gritos indignados de Sheela ao ver o molho pingar dos seus cachos encharcados para o vestido de veludo. Goll MacMorna engasgou-se com a sua cerveja e uma chuva dourada precipitou-se em cima da mesa. O soldado que se encontrava a seu lado deu-lhe um violento murro nas costas, incapaz de dominar as suas sonoras gargalhadas. O alvoroço foi subindo de tom até todas as atenções se concentrarem no espetáculo que decorria em cima do estrado.
- E quanto a você... - O burburinho cessou tão subitamente como tinha começado quando Gelina se virou para Conn e arrancou da cabeça o lenço que lhe escondia os cachos. - Que tenha um bom jantar. E que também se engasgue!
A multidão afastou-se para deixá-la passar, furiosa, agarrando as saias com as mãos. Conn saltou da cadeira e foi atrás dela. A multidão encolheu-se ainda mais quando o viu de punhos fechados e sobrolho carregado. Nimbus tentou deixar o estrado, mas os seus braços foram agarrados pelas mãos de Sean. O rosto de Sean contorceu-se enquanto Nimbus tentava soltar-se. Desistindo, deixou-se cair na sua cadeira.
Gelina saiu de rompante pela porta principal e atravessou o pátio com passadas largas e determinadas. Ouviu alguém berrar o seu nome, mas não moderou o seu ritmo.
Falou sem abrandar e sem olhar para trás.
- Não me importo, Conn. Espanque-me. Chicoteie-me. Não é o que se faz aos escravos desobedientes? Faça o que quiser, vou embora.
Quando a viu dirigir-se aos estábulos, Conn puxou-a pelo cotovelo e virou-a para si.
- Não pode. É uma escrava, mulher teimosa.
Gelina pestanejou docemente.
- Muito bem, reparou que sou uma mulher. Pensei que esse termo estava reservado àquela prostituta coberta de molho que enfeita a sua mesa.
Os lábios de Conn torceram-se desconfiados. Agarrou-a pelos ombros e encostou-a na parede.
Respondeu com uma doçura falsa:
- Gelina, minha gatinha. Parece-me que esta com ciúmes. - Com o polegar, afagou o lado interior do braço dela. Gelina sentiu os pêlos minúsculos da nuca porem-se de pé, algo mais forte do que o medo correndo nas suas veias. Tentou afastar-se, mas desta vez ele prendeu-a sem qualquer delicadeza.
Gelina repeliu-o com uma gargalhada maldosa.
- Não se envaideça, Conn. Só porque me usou uma vez não se convença que lhe permito isso. É privilégio do rei usar uma mulher uma vez e seguir o seu caminho, não é verdade?
Conn baixou o rosto até estar a um centímetro do dela e sussurrou brutalmente:
- O que quer, Gelina? Preferia que eu a usasse todas as noites? Podemos pensar nisso.
Respirar começava a ser difícil, mas ela retorquiu:
- Já tem uma amante. Para quê outra?
Combateu a vontade de se deixar deslizar pela parede assim que ele a largou. Conn virou-lhe as costas. Os seus ombros estremeceram quando desatou a rir às gargalhadas.
- Às vezes penso que foi enviada pelos deuses para me levar à loucura total. - Voltou a virar para ela os olhos que brilhavam a luz das velas. - Suponho que proporcionou à viuvinha o desfecho que ela merecia.
Gelina encolheu os ombros, sem saber qual deveria ser a resposta. Conn rompeu às gargalhadas e o rosto de Gelina contorceu-se num sorriso travesso. Conn dirigiu-se à baia central e abriu a porta. Silent Thumder relinchou baixinho, reconhecendo o cheiro do dono. Conn entrou no compartimento falando em voz baixa e passou a mão pela crina sedosa.
- Anda Gelina. Vamos dar uma volta nesta noite. - Puxou o cavalo para fora da baia.
- Está dizendo - balbuciou Gelina, incrédula - que vai me deixar montar? - Não conseguiu disfarçar o brilho que surgiu nos seus olhos.
- Vou deixar-nos montar - corrigiu ele.
- Não vai me largar no meio da charneca, não é?
Conn franziu a testa e respondeu com um ar sinistro:
- Talvez.
Gelina seguiu-o enquanto ele levava o animal para a noite estrelada. Com curiosidade, Conn viu-a recuar uns passos para tomar balanço, preparando-se para saltar para cima do cavalo. Quando Gelina passou por ele, Conn agarrou-a pela cintura.
- De saia não vai conseguir. Com licença. - Entrelaçou os dedos, formando uma espécie de estribo para ela pousar o pé e subir.
Gelina fez uma reverencia e subiu para o dorso do cavalo, arregaçando as saias na medida do possível. Conn montou a seguir. Entregou-lhe as rédeas e agarrou-se à cintura dela. Sentiu o calor do corpo de Gelina encostado ao seu, a parte de cima da cabeça sob o seu queixo.
Tocou com os lábios o cabelo dela num gesto delicado como as asas de uma borboleta. O seu braço, pressionado contra o dela, sentiu a pele sedosa contrair-se.
Ambos atiçaram o cavalo, que desatou a galopar. As nuvens encobriam a lua, projetando um padrão negro e prateado na grama alta. Galoparam noite fora. Gelina ria enquanto guiava o cavalo pelos prados, um riso que o vento demorava a tornar audível. Conn sorria-lhe quando ela o olhava por cima do ombro, o brilho do luar refletido nos seus olhos, o vento a fustigar-lhe os cabelos. O cavalo corria pelas charnecas, movendo os músculos numa arrogância descuidada. Quando alcançaram os contrafortes, Gelina relutante obrigou o cavalo a voltar para trás.
Não protestou quando Conn pegou nas rédeas. Conn espicaçou o cavalo com uma mão, deixando o outro braço em volta da cintura dela. Gelina encostou-se ao peito largo de Conn e a cabeça ao seu ombro, gozando aquele momento de paz provisória entre eles. A lua surgiu por detrás da última nuvem, banhando a noite com a sua glória luminosa.
Tensa, Gelina endireitou as costas quando viu Conn levar o cavalo a trote para uma floresta escura. O braço musculoso em volta da sua cintura continuava tenso. Gelina recostou-se, rendida à segurança que o corpo de Conn contra o dela a fazia sentir. Ele parou o cavalo em frente de uma ponte de madeira lascada por cima de um riacho estreito. Ficaram os dois calados, ouvindo a água dançar sobre as pedras.
O bafo quente de Conn que cheirava a cerveja e a canela, agitou os cabelos finos junto à orelha dela.
- Prefere que eu a estrangule na charneca ou a jogue no rio?
Gelina riu, mas sabia que ele estava brincando.
- Preferia que me apertasse o pescoço, obrigada. Não sei nadar e a última vez que você e eu fomos parar em um riacho, infelizmente você ganhou.
- Um dia me disse que não tinha medo de nada.
- Menti.
Conn desmontou sem dizer uma palavra, depois levantou os olhos para ela. Gelina fitou aquelas mãos sardentas. Pareciam enredar-se na crina negra e sedosa por sua alta recreação. Conn sabia que tinha de tirá-la do cavalo à força. Virou o rosto para esconder o quanto lhe doía perceber o medo que lhe inspirava. Os seus dedos contornaram o tornozelo de Gelina como se fossem de veludo. O seu rosto barbudo roçou a pele acetinada da perna dela.
- Fui eu que construí esta ponte, sabe, quando era praticamente um garoto.
Gelina fitou a cabeça inclinada de Conn, incapaz de perceber a razão da agonizante suavidade da sua carícia. Com os dedos trêmulos afagou-lhe o cabelo. Conn levantou os olhos e ela recordou a noite em que ele a sentou na lama à entrada da gruta e lhe suplicou que o matasse.
- A ponte tem durado - comentou num murmúrio que parecia vir de um desconhecido.
Conn fez que sim com a cabeça. Gelina sentiu o ardor dos lábios dele na perna e o seu coração respondeu batendo a um ritmo que ela não conseguiu abrandar. A mão dele foi subindo até os seus dedos sentirem a pulsação na parte posterior do joelho.
Gelina respirou fundo tentando recordar que a ternura dele era uma oferta facilmente retirada do que dada.
- Eu ainda nem era nascida quando esta ponte foi construída - murmurou.
Conn tirou a mão e os lábios de cima dela. Recuou um passo.
- Temos mais em comum do que eu pensava milady. Nenhum de nós joga limpo.
Sem mais uma palavra saltou para o cavalo e guiou-o para fora da floresta, para o prado. O braço em volta da cintura dela parecia uma barra de ferro, encostando a suavidade dela em todos os centímetros do seu corpo. Gelina sorriu.
Pôs o cavalo a trote quando viram as luzes da fortaleza brilhando lá em baixo. Conn retirou um braço e suspirou. Os ombros de Gelina contraíram-se e Conn afagou-lhe o cabelo encaracolado.
Gelina encostou-se a Conn e os seus olhos encheram-se de lágrimas. O cavalo entrou no pátio e parou diante dos estábulos.
Durante algum tempo nenhum deles se mexeu, ambos relutantes em pôr fim àquela tranquilidade. Com um suspiro, Conn levantou uma perna e saltou para o chão. Estendeu uma mão a Gelina. Ela aceitou-a e o seu corpo ficou completamente unido ao dele. Conn largou-a com um olhar distante.
- Escova o cavalo, faz favor - disse, afastando-se.
Gelina fez que sim com a cabeça e ia começar a falar quando viu que ele já se dirigia rapidamente para a fortaleza. Ficou olhando-o, espantada por o sentir tão próximo sem, no entanto não o conhecer.
Conn entrou no castelo pela porta da cozinha, pregando tal susto à cozinheira que ela quase caiu na tina da água de lavar a louça quando ele lhe gritou uma ordem e desapareceu no salão. Atravessou-o sem abrir a boca, embora a música tivesse parado e todos os olhos se concentrassem nele. Seguiu para o seu quarto, onde o fogo estava aceso para combater o frio. Sentou-se na cadeira à frente da lareira e aguardou.
Gelina caminhou em direção à luz da fortaleza, sem vontade de voltar para o meio dos risos e das perguntas. Sabia que Audren ia interrogá-la sem piedade acerca dos acontecimentos da noite. Desviou-se da porta da cozinha e entrou na ala dos criados. A figura rechonchuda de Audren apareceu num canto e Gelina resmungou em silêncio. Para seu espanto, a moça passou rente a ela no corredor sem levantar os olhos. Gelina achou estranho, mas encolheu os ombros e abriu a porta do cubículo onde dormia.
Mal os seus olhos se adaptaram à luz da vela reduzida a uma poça de cera, reparou que o quarto estava diferente. A cama estreita onde o seu sono agitado tinha lugar todas as noites estava tal como a tinha deixado, com um lençol de linho atirado em cima dela. Dirigiu-se à mesa e passou o dedo pela espessa camada de pó que deveria estar em parte coberta por uma bacia lascada e um jarro.
Perplexa, ajoelhou-se e abriu a arca onde deveriam estar o seu pente de marfim e a sua escova, tudo o que lhe restava da sua vida como filha de Conn. Não os encontrou. Com mãos frenéticas, puxou o trinco por baixo da tampa, mas a arca estava vazia. O pingente desaparecera. O seu quarto parecia um pergaminho onde o texto tinha sido apagado por uma mão desconhecida.
Passou os dedos pelo cabelo. Procurando, em vão, respirar normalmente, deu várias voltas procurando uma explicação. A silhueta da figura ampla e vigorosa de Moira surgiu à porta, o rosto escondido nas sombras. Gelina não viu, mas percebeu a vergonha dela.
Gelina estava com tanto medo da resposta que quase não conseguiu formular a pergunta.
- As minhas coisas? Vou seguramente poder ficar com os meus poucos pertences. Onde...?
Moira respondeu num tom meigo:
- Levaram-nos daqui. A ordem foi dada esta noite.
- Mas os levaram para onde?
Moira olhou em volta do quarto vazio.
- Para os aposentos de Conn.
Gelina começou a tremer dos pés à cabeça e por um instante Moira receou que a moça fosse desatar a chorar. Mas era a indignação que tornava os olhos cor de esmeralda brilhantes e não as lágrimas.
- Não vou tolerar uma coisa destas - disse com rispidez.
Sem mais palavras, avançou, deixando Moira colada ao batente da porta, imóvel e a murmurar uma oração, sem saber ao certo por quem rezava.
Gelina irrompeu pelo salão, a fúria estampada no rosto. Enquanto serpenteava por entre os dançarinos meio embriagados, sentiu uma mão agarrar o seu pulso, obrigando-a a parar.
- Aonde vai com tanta pressa, milady? Não esta cansada de andar sempre correndo de um lado para o outro? - Sean manteve-a presa, tentando puxá-la para a roda.
Mas Gelina soltou-se:
- Deixe-me em paz, Sean. Não desejo dançar.
Como Sean se recusasse a soltá-la, Gelina pousou calmamente o calcanhar em cima do peito do pé dele, recordando-lhe de forma dolorosa a primeira vez que dançaram juntos. Desapareceu no meio da multidão, deixando-o praguejando e massageando o pé dolorido. Evitou outras mãos com idêntica alegria, enviando três soldados e dois camponeses para longe com dores nas pernas.
Subiu os degraus dois a dois, esforço que a deixou cheia de dores no corpo. De tocha na mão atravessou o corredor, passando pelo seu antigo quarto com indiferença, os olhos fixos na porta ao fundo do corredor.
Sem hesitar, escancarou a porta, que foi bater contra a parede. Conn estava sentado em frente da lareira, com as pernas altas estendidas. A expressão dos seus olhos a fez parar.
- Quero as minhas coisas. Não pode me roubar mais. - Falou com uma voz mais estridente do que ela queria e reprimiu a vontade de tossir.
- Feche a porta - ordenou ele.
Gelina continuou parada uns instantes, depois fechou com estrondo a porta pesada. O barulho reverberou pelo quarto. Conn não se mexeu.
Gelina avançou para frente dele e, de braços cruzados, repetiu:
- Quero as minhas coisas.
- Não roubei as suas coisas. Mandei pô-las noutro lugar - respondeu com uma paciência infinita.
Gelina olhou em volta e viu a sua escova e o seu pente pousados em cima da arca dele. Ao lado, o pingente que Rodney lhe tinha dado, onde se refletia a luz da lareira.
- Mas por quê?
- Porque estes são os seus novos aposentos. Agora o lugar das suas coisas é aqui. - Cruzou os pés e examinou as botas de couro.
Gelina sentiu um arrepio pelas costas abaixo. A calma dele aterrorizava-a.
- E onde está Sheela? Debaixo da sua cama?
- Foi embora.
Gelina tentou eliminar da sua voz qualquer nota de súplica.
- Sei que foi por minha culpa que ela foi embora, mas também não era preciso obrigar-me a substituí-la, não acha?
- Eu é que a mandei embora.
As palavras de Conn lançaram Gelina na direção da porta antes da sua voz calma a fazer parar.
- Tem um guarda lá fora.
Gelina deu meia volta. Sem olhar para ele, caminhou até o divã e sentou-se.
- Parece que caí de cabeça na última das suas ratoeiras. Tenho de felicita-lo pela sua esperteza. Foi uma estratégia infalível. Não precisou de me arrastar aos gritos e aos pontapés pelo salão. Evitou uma cena de histerismo. - Espreitou-o através dos seus cílios espessos e riu baixinho. - Finalmente teve a sensatez de parecer arrependido.
De olhos muito abertos, Conn replicou:
- Um homem da minha posição tem de aprender a viver com alguns remorsos.
Levantou-se abruptamente e foi até à janela. Olhou a noite, com as mãos apoiadas no parapeito.
- Chega uma altura na vida, Gelina, em que um homem tem de decidir quanto do seu poder vai usar. Eu tomei essa decisão hoje.
- E consegue viver com essa decisão?
- Melhor do que sem ela. - Virou-se para Gelina. - Quando eu era pequeno, a única coisa que queria era ser o Ard-Righ de Erin... unir as tribos num elo comum. Quando enfrentei a morte na forma de um punhal encostado à minha garganta, a única coisa que queria era viver. Quando conheci o exílio num país estrangeiro, a coisa que queria era voltar a ter a terra de Erin debaixo dos meus pés.
Estava a poucos centímetros dela. Gelina fechou as mãos uma na outra para ninguém ver a violência com que tremiam.
Conn pegou no queixo dela e virou-a para si.
- Mas nunca quis nada com tanta intensidade como quero você.
Gelina expirou lentamente, para abrandar o súbito estremecimento dos seus lábios. Conn ajoelhou-se à frente dela e colocou uma mão em cada ombro de Gelina. Puxou-a contra si e beijou-a suavemente, a sua língua explorando os recessos mornos daquela boca.
Gelina soltou-se.
- Isto é um jogo, Conn? A última partida que joga com Rory O’Monaghan? E assim que quer que eu pague a minha dívida ao Fianna? - Agarrou na camisa dele e torceu-a, exigindo uma resposta.
Conn prendeu as mãos dela nas suas e levou-as aos seus lábios quentes.
- Não, Gelina. Eu é que estou em dívida. Naquela noite na gruta satisfiz uma luxúria nascida da raiva. Magoei-a. Machuquei-a. Não era assim que eu queria que as coisas acontecessem. Tenho de lhe provar.
- Se há um guarda do outro lado da porta, Conn, nada mudou. Isto continua a ser uma batalha e você continua a ser o inimigo. - Procurou as palavras que o obrigassem a compreender.
Conn colocou-a de pé.
- Esta noite pode haver uma batalha e amanhã também, mas não pode resistir eternamente.
- Está dizendo mais uma vez que não tenho o direito de rejeitá-lo?
As palavras dele mal se ouviram:
- Se me deixar esta noite, Gelina, deixa-me para sempre. Nimbus ofereceu-se para levá-la daqui. Não suporto tê-la tão perto de mim e não poder tocá-la. Isso está me destruindo. Se vai me deixar, vai agora... Pois receio nunca mais deixá-la partir.
Praticamente sem se atrever a respirar, Conn esperou ouvir a porta a bater. Gelina recordou outra noite, a cabeça de Conn baixa, derrotada, diante de uma órfã esquelética e assustada. Foi obrigada a ajoelhar-se e a jurar-lhe lealdade nessa noite. Aprendera a vencer muitas coisas ao longo da sua curta existência, mas não um Conn derrotado.
Uma mão afagou o cabelo dele. Depois, duas mãos viraram devagar o rosto dele para cima, para uns lábios delicadamente entreabertos. Um turbilhão de emoções soltou-se dentro de Conn, enquanto os seus braços abraçavam Gelina e os seus joelhos a apertavam num abraço tão doloroso quanto feliz.
Gelina deixou-se afogar no beijo dele, deixou-se morrer nos seus braços, mas não se importou. Nem enquanto os braços dele deslizavam para debaixo dos joelhos dela e a levavam para a cama. Ela libertou a sua boca do ataque terno dele. O beijo foi-se aprofundando à medida que ela sentia o seu corpo mover-se sob o dele. Gemeu um protesto quando ele a afastou.
Abriu os olhos. Conn recostou-se, o rosto coberto pelas sombras que a lareira projetava. Gelina reprimiu o medo que ameaçava tomar conta da sua garganta, recordando outra noite, um rosto na escuridão e mãos impetuosas, implacáveis. Como se adivinhasse o medo dela, Conn estendeu a mão e sentiu a macieza de um cacho aveludado entre os dedos. Explorou o rosto dela com dedos suaves, aliviando a tensão em volta dos olhos verdes. Sentiu a carne fresca por debaixo da sua mão e pousou os lábios nos dela, bebendo um vinho mais doce do que o néctar. O seu corpo forte empurrou-a para cima do colchão de penas.
Gelina virou o rosto para respirar quando a mão dele levantou a sua saia e se encostou à pele macia da coxa dela. Tinha os músculos tensos, da força com que ele tentava deter-se, quando Conn se sentou em cima da cama e as suas mãos tremulas lhe despiram a túnica. Com uma curiosidade infantil, os dedos de Gelina traçaram uma linha, do emaranhado de pêlos escuros e encaracolados do peito dele até ao abdômen. Os músculos dele contraíram-se violentamente sob essa caricia, essa curiosidade.
Com uma voz tão suave como as mãos que desapertaram os cordões do vestido dela, disse:
- Pensei que podia esconder a sua beleza debaixo desses andrajos. Mas enganei-me. - Os lábios dele roçaram o pescoço dela. - Nunca a desejei tanto como quando a vi entrar pelo salão vestida de escrava mas com porte de rainha. – A sua respiração acelerou enquanto o pano deselegante caía e deixava à vista uma camisa de seda fina que Gelina conseguira conservar dos bons tempos.
Levantou para Conn os olhos muito abertos quando as mãos dele agarraram a delicada seda. Com um sorriso travesso e rodando os pulsos, rasgou o tecido leve.
Gelina abriu a boca. As mãos com que tentou cobrir-se foram agarradas por Conn.
Encostou-se ao pescoço dela com uma gargalhada nervosa:
- Menina, menina... - Levantou a cabeça e olhou para ela. - Fico sem força de vontade e desajeitado perante a sua beleza. Não seja tímida comigo.
Gelina virou a cabeça e olhou para as mãos que a prendiam:
- Cedo, se assim quiser.
Conn fechou as mãos, depois as abriu. Gelina fitou os olhos dele. Tinha as mãos pálidas, quietas sob as dele. Beijou-lhe a linha dos maxilares e tomou-lhe o pescoço entre as mãos, confiante e rendida. Conn escondeu o rosto nos cabelos encaracolados, o nome dela uma oração de graças murmurada antes dos seus olhos pousarem num corpo ao qual a luz da lareira dava um brilho rosado.
Gelina sentiu-se tonta quando o sangue que lhe queimava as faces seguiu o trajeto ardente que Conn traçou com a boca. As suas mãos agarraram o cabelo de Conn quando os lábios dele roçaram pelos bicos doloridos dos seus seios. A pele dela ganhou vida sob o efeito das carícias provocantes daquela língua quente e áspera. Agarrou-se aos ombros dele quando um tremor lhe percorreu o corpo. A boca de Conn voltou a pousar na dela, prendendo e libertando, domando e conquistando com movimentos intensos.
As mãos de Conn a libertaram das últimas peças de roupa que os membros relutantes ainda se encontravam prisioneiros. Os seus olhos arderam como dois carvões azuis quando percorreu com a mão o corpo tremulo de Gelina até sentir sob os dedos o calor macio dela. Cobriu-lhe a boca com a sua, calando-lhe os gemidos. A sua mão explorou-a, afagando-a ritmadamente até ela estar úmida e a retorcer-se, o corpo estendido sob o dele como o de um anjo indisciplinado.
Gelina começou a respirar desordenadamente. Os beijos dele já não conseguiam silenciar os ruídos que a garganta dela produzia. Conn afastou-lhe as pernas e deitou-se entre elas. No preciso momento em que o mundo dela explodiu, ele penetrou-a mais profundamente. O mundo de Gelina ficou reduzido às doces investidas na qual ela estava prisioneira na noite luminosa. Conn esvaziou-se para dentro dela e tombou o rosto encharcado de suor e lágrimas. Encostou o rosto aos fios de cabelo encaracolado colados ao pescoço dela e adormeceu.
Uma luz tênue entrava pela janela oriental quando Gelina se esforçou por abrir os olhos. De qualquer ponto da fortaleza vinha o latido rouco de um cão. Gelina puxou a manta de peles para cima dos ombros e sentiu uma mão quente acariciando-lhe a cintura. Virou-se e viu Conn apoiado num cotovelo olhando-a fixamente.
- Esta me olhando maliciosamente, Alteza - acusou, passando uma mão pelos cachos despenteados.
- Não, estou olhando-a apaixonadamente. - Com a mão, Conn desenhou pequenos círculos nas costas dela. - Dormiu bem?
- Nem me dei por isso. - Espreguiçando-se como uma leoa saciada, Gelina pousou uma mão no peito dele. Estudou a zona coberta de pêlos escuros com interesse, permitindo que um dedo seguisse o emaranhado de cachos até abaixo do abdômen. Sentiu os músculos dele contraírem-se.
Inspirando rapidamente, Conn pegou-lhe na mão e sorriu:
- Agora sim, estou olhando-a com segundas intenções, milady.
- Oh, não, outra vez não - gemeu ela, cobrindo a cabeça com a manta, provocando-o.
Conn riu e com mãos delicadas deitou-a devagar com a superfície lisa da barriga virada para baixo. Gelina empurrou a manta para trás e espreitou-o por cima do ombro com uma expressão cômica nos olhos espantados.
Conn beijou-lhe o nariz sardento.
- Ainda é cedo, meu amor.
Quando Gelina voltou a acordar, o sol brilhante do final da manhã jogava os seus raios sobre a cama. Gelina resmungou e abriu os olhos. A seu lado a cama estava fria e vazia. Ergueu a cabeça e viu as últimas cinzas da lareira apagadas, negras. Sacudiu a cabeça, convencida de que a noite anterior fora apenas um sonho pungente. Essa ideia desapareceu assim que se sentou e sentiu nos músculos dores desconhecidas. Sorriu sonolenta, e deitou a cabeça nos joelhos.
O bater de sandálias no corredor deixou-a em pânico. Olhou em volta à procura de um esconderijo. Quando a porta se entreabriu, Gelina deitou-se rapidamente e cobriu-se dos pés à cabeça com a manta. Susteve a respiração enquanto ouvia saias a rumorejar e louça a tilintar.
- Bom dia, Gelina. Trouxe-lhe o café da manhã.
- Obrigada, Moira - replicou, no tom mais digno que conseguiu, dadas as circunstâncias. A manta não se mexeu nem um milímetro.
Depois da porta se fechar, ousou pôr de fora as faces coradas. Pousou os pés nus no chão e enfiou a camisa que Conn tão apressadamente despira na noite anterior. Dirigiu-se à pequena mesa onde estava uma bandeja dourada com um prato cheio de pastéis e panquecas. O sol incidiu sobre a bandeja, projetando diamantes de luz diante dos seus olhos.
Pegou no objeto que brilhava junto ao copo de leite de cabra e susteve a respiração. O ouro polido foi martelado até ficar tão fino que ela podia dobrar a tiara em volta da cabeça com dois dedos. As esmeraldas faziam a luz do sol projetar-se pelo quarto como estilhaços de vidro. Largou-a, embaraçada, quando ouviu alguém bater à porta.
- Entre - gritou alegremente, tentando esconder a confusão que sentia por ter convidado alguém a entrar nos aposentos do rei.
A cabeça loura de Audren espreitou à porta.
- Mandaram-me entregar isto. Posso entrar?
Para sua aflição, Audren entrou seguida por quatro moças com os braços carregados de seda, cetim, linho e lã. Uma delas trazia um manto de lã comprido debruado com pele de lontra. Gelina ia-se engasgando com o pastel e sentiu a garganta secar.
- O que vem a ser isto, Audren? - perguntou, lambendo a canela acumulada aos cantos da boca.
A moça fez uma reverencia.
- Viemos tirar medidas para os seus vestidos novos.
Gelina endireitou-a puxando-a por uma orelha.
- Não me faça reverencia, Audren. Não se fazem as escravas.
Audren encolheu os ombros e encostou uma peça de seda alfazema ao peito de Gelina.
- Fazem reverencia as escravas bem vestidas.
Moira resgatou-a das provocações e alfinetadas horas depois, conduzindo as moças para fora do quarto com firmeza perante o olhar agradecido de Gelina. Fechou a porta e virou-se para Gelina, que, de pé no meio do quarto, vestia apenas uma camisa fina de linho. Um rubor surgiu nas faces de Gelina, sob o escrutínio conhecedor de Moira.
Pressentindo o desconforto dela, Moira inclinou-se e pegou numa braçada de cetim:
- Este tecido não vai lhe favorecer nada esta noite, mas tenho lá fora uma arca com uma coisa que deve servir.
Dirigiu-se à porta. Já com uma mão no puxador virou-se para Gelina e olhou-a de frente:
- Conheço-o desde criança. Era um bom rapaz. Gostava de lutar, mas só quando o provocavam e nunca de forma desleal.
Sem mais palavra, fechou a porta deixando Gelina de olhos fixos nela, um pequeno sorriso brincando-lhe nos lábios.
O sol escondeu-se a oeste, deixando em seu lugar uma noite que lembrava o verão por causa da luz quente e limpa que incidia sobre Tara. Não havia ninguém no salão de entrada. Os seus ocupantes tinham jorrado da fortaleza para um terreno iluminado por tochas. Começou o Aonach. A cerveja corria livremente dos barris enquanto as estrelas despontavam no céu noturno uma a uma, competindo com a radiância dos sorrisos reunidos na grande feira de outono de Tara.
No centro do prado atuavam os músicos do rei. As suas melodias doces flutuavam ao sabor da brisa e ouviam-se para lá dos contrafortes. Os dançarinos deram as mãos e correram em volta das cestas cheias de pão e queijo. Conn e Mer-Nod passeavam por entre a multidão, desviando-se de bailarinos e malabaristas.
- Esta com bom aspecto - gritou Mer-Nod, esforçando-se por falar mais alto do que a multidão.
No meio da barba negra de Conn surgiu um sorriso radiante:
- Sinto-me bem. Sinto-me maravilhosamente. - Beijou a criança chorando que lhe apresentavam sem abrandar o passo.
Mer-Nod, que ia quase correndo para acompanhá-lo tropeçou numa coisa pequena e caiu de joelhos. A coisa pequena era Nimbus, cujo acidente foi recebido com um olhar furioso. O bobo apareceu atrás deles mexendo as pernas curtas com afinco. O trajeto de Conn rumo à fortaleza não admitia desvios. Quando chegaram às grandes portas, o motivo da sua pressa tornou-se evidente.
Uma figura recortava-se na soleira da porta à luz das tochas. Vasculhava o prado com os olhos, cuja cor de esmeralda era exatamente igual ao tom do seu vestido. Mer-Nod ouviu alguém engolir em seco, e mesmo sem olhar adivinhou que era Conn. Olhou para baixo e verificou, admirado, que Nimbus tinha desaparecido imerso na fila de dançarinos que passava a poucos centímetros deles.
Conn avançou sem a habitual autoconfiança e parou iluminado pelas tochas. Assim que Gelina pousou os olhos nele, os seus lábios esboçaram um sorriso radiante. Segurando na mão a saia rodada de veludo Gelina deu um passo em frente, para logo tropeçar quando uma sandália ficou presa na bainha dourada do vestido. Encolhendo os ombros, Gelina descalçou-se e deu um pontapé nas sandálias, que, após um longo voo, foram aterrissar em cima da cabeça de um camponês suficientemente sóbrio para examiná-las com interesse e procurar uma resposta no céu. Mer-Nod tossiu e aproveitou a mão com que cobriu a boca para esconder um sorriso.
- Boa noite, milorde. - Gelina fez uma reverencia. O ouro polido da joia brilhava sob os cachos habilmente puxados para cima da testa.
- Boa noite, Gelina - respondeu Mer-Nod.
Conn não tirava os olhos dela, maravilhado.
Mer-Nod pigarreou.
- Tenho de ir atender aqueles malditos poetas. Ainda põem a rainha Maeve a declarar guerra por causa de um simples carneiro, se não os vigiar. - Pediu licença, mas sentiu-se invisível, pois nem Conn nem Gelina assinalaram a sua partida com uma palavra ou sequer um olhar.
Conn pegou na mão dela e conduziu-a por entre a multidão. Gelina sentiu inúmeros olhos curiosos fixarem-se neles enquanto passavam. Uma mulher virou-se para o pastor que estava a seu lado sussurrando e apontando. Deitados em cima da grama que atapetavam o chão, dois soldados corpulentos de músculos salientes lutavam enquanto as pessoas se aglomeravam à sua volta e lhes jogavam moedas. O maior olhou para Gelina, desconcentrando-se o suficiente para o seu adversário lhe torcer o braço com um rugido assustador. O seu enorme rosto sorriu. Gelina devolveu o sorriso a Goll MacMorna.
Sempre puxando-a, Conn dobrou a esquina da fortaleza e quase tropeçou num casal que se beijava escondido pela grama alta. Abriu a porta coberta de hera do muro e levou-a para o jardim privado. A música tornou-se um eco melodioso quando ele fechou a porta. Largou a mão de Gelina e recuou um passo para melhor a admirar. Passou uma mão pelo cabelo e expirou nervoso como Gelina nunca o tinha visto.
- Estava com medo de lhe ver - confessou Conn.
Gelina sentou-se num pequeno banco de madeira, subitamente tímida. Conn sentou-se ao lado dela e pegou-lhe na mão. Gelina passou o dedo pela linha de cachos escuros que rodeava o pulso dele.
- Com medo por quê?
- Receei que tivesse tido tempo para meditar sobre o que aconteceu ontem à noite e me odiasses por isso.
- Na verdade odeio. - O rosto dele entristeceu e ela sorriu. - Odeio-o por permitir que aquelas supostas aias tivessem passado o dia torturando-me com alfinetes.
- É assim que agradece o novo guarda-roupa, milady? A maioria daqueles tecidos foi importada do estrangeiro e atravessou o mar ainda quando a minha mãe era viva.
- São lindos, mas eu estava bem sem eles.
- De maneira nenhuma. Não quero que ande por aí com calças de cetim.
Gelina disfarçou um sorriso e fez uma careta amuada, tentando mostrar-se ofendida.
- Acha que fico feia?
- Pelo contrário. Se ficava linda com aquele horroroso vestido negro, fica bem com qualquer coisa. Ou com nada. - Olhou-a de frente, não deixando dúvidas sobre a veracidade do que dizia.
- Lisonjeia-me, Conn. Sou muito alta e desengonçada para ser bonita.
- Quando os planos que tenho para você estiverem concluídos, vai ficar tão convencida de que é linda que passara a ser insuportável. - Conn pegou no rosto dela com as duas mãos e encostou os lábios nos dela. - Mas estou disposto a correr esse risco.
Enquanto os seus pés se afundavam na lama fresca por debaixo do banco, Gelina recordou outra noite passada naquele jardim. Afastou-se e olhou em volta. As plantas tinham começado a morrer, as suas folhas secas pendiam dos caules como bandeiras rendidas. Conn viu-a, espantado, concentrar-se mais acima e ficar com os olhos enevoados, fixos numa janela escura.
- Fico nos aposentos de Sheela, Conn?
O desânimo daquela voz obrigou Conn a levantar-se. Começou a dar voltas no pequeno jardim, com o coração aos pulos.
- Quero-a exatamente onde está... nos meus aposentos. Para quê essa pergunta?
Gelina encolheu os ombros.
- Pensei que agora fosse igual a ela.
Conn tentou fazer com que sua voz não denunciasse o medo que sentia.
- Sheela foi apenas uma... distração. Você é a minha melhor amiga.
- E a sua maior inimiga - murmurou Gelina.
Conn apontou-lhe um dedo.
- Estou disposto a esquecer disso se estiver de acordo.
- E eles, Conn? Que vão pensar agora da sua escrava? - Apontou para a porta do jardim, mas deu com a sua mão presa na dele. Conn ajoelhou-se.
Falou de forma rápida e precisa:
- Tanto quanto as pessoas sabem que foi coagida a lutar pelos seus raptores. Escolheu a escravatura como castigo pela sua fraqueza.
- Foi isso que lhes contou? - Em resposta ao silêncio dele, acrescentou: - E acreditaram em você?
- O fato de carregar uma grande espada e ser o rei acarreta certos privilégios. Ninguém põe em causa o que dizemos muito menos os que são espertos demais para pôr em risco a sua posição. Encostou as costas da mão dela à suavidade agreste da sua barba.
- Não adormeça à sombra dos seus louros. - Gelina deu-lhe um pequeno murro com a outra mão.
- Não há esse perigo. Posso sempre contar com certa mulher para questionar a minha credibilidade.
Deixou claro quem era essa mulher quando a puxou para cima e apertou contra si. Os seus lábios devoraram os dela. As suas mãos desceram saltaram os ombros dela e contornaram as costas elegantes.
Gelina afastou-o para o lado e correu até ter o banco a separá-los.
- Se não parar com isso acabaremos deitados no meio do chão como aqueles dois que vimos lá fora.
Conn perseguiu-a com um sorriso malicioso.
- E isso seria assim tão terrível?
- Canalha!
- Desavergonhada!
Gelina inclinou a cabeça para trás e desatou a rir enquanto Conn saltava por cima do banco e a pegava ao colo. Levou-a até à porta interior que dava para os seus aposentos. Olhando por cima do ombro, Gelina julgou ver a moça abandonada chorando no jardim enlameado desaparecer quando encostou o rosto ao pescoço de Conn e inspirou o seu perfume.
O cenário modificou-se; as cores tornaram-se acinzentadas, em seguida vermelhas. O nevoeiro rodopiou pelo espaço exíguo permitindo entrevê-los embrenhados num combate silencioso. Rodney desceu discretamente o corredor até ter à frente a coluna a frente do seu inimigo. Os olhos aterrorizados da irmã incentivaram-no a agir. Enfiou a espada nas costas de Conn, rindo à gargalhada com o barulho gratificante do metal cortando a carne. Conn caiu de joelhos e Rodney virou-se para a irmã. Os olhos dela brilhavam de amor e gratidão.
Rodney recolheu a espada.
- Chegou a sua hora, Conn.
- Não! - Sem pensar, Gelina agarrou-lhe o pulso.
Com um sorriso cruel, arrancou a espada ensanguentada da mão do irmão, tomou balanço e amputou a cabeça a Conn com um golpe seco. A cabeça rolou para junto dos pés de Rodney; os olhos azuis sem vida fitaram o nevoeiro.
Rodney acordou sorrindo, as noites em que despertara encharcado em suor e tremendo eram agora apenas uma recordação vaga, desagradável. A imagem dos olhos acusadores da irmã por detrás do punhal já não o perseguia quando fechava os seus. Numa centena de pesadelos, Conn enfiava a lâmina no pescoço dela, profanando a perfeição da pele de marfim com uma linha vermelha e deixando-o pender como o de uma boneca de trapos.
Rodney sentou-se e sacudiu a cabeça para afastar a terrível cena da sua mente. O seu estômago roncou, abafando o rumorejar das folhas que caíam. A clareira onde dormia era a sua maior amiga, abrigava-o dos ventos que sopravam cada dia mais frios. Rastejou até à nascente onde a água gorgolejava. Viu a imagem distorcida de parte do seu rosto refletida à superfície e sorriu. O cabelo desgrenhado, sujo, chegava-lhe aos ombros. Uma barba incipiente instalara-se no seu rosto, com os pêlos frágeis suavizando as linhas retas do queixo. O peito, sem camisa, estava pálido.
Espreitou por entre as árvores. Tara, a poderosa fortaleza, erguia-se por cima das planícies como um gigante adormecido. Cuspiu para o chão.
Um barulho à superfície da nascente chamou a sua atenção. Mergulhou uma mão na água fria. Um súbito sentimento de solidão percorreu-o e lamentou que a sua irmãzinha não estivesse ali para lhe censurar os hábitos alimentares. Olhou de novo para a fortaleza.
- A próxima vez que lhe apanhar, Gelina, nunca mais a largo.
O seu murmúrio foi abafado pelo barulho de qualquer coisa agitando a água e mergulhou a mão apanhando um peixe que se contorcia. As barbatanas cortaram-lhe a mão escorrendo sangue. Com uma só dentada amputou a irrequieta cabeça.
Gelina sentou-se na cama muito direita, sentindo um suor frio na testa. A seu lado, Conn agitou-se e pousou uma mão quente e possessiva na anca dela, sem abrir os olhos. A luz do luar que entrava pela janela sem portas de madeira, Gelina viu-o dormir, deliciada com a vulnerabilidade daquela boca aberta. Beijou-lhe suavemente as pontas dos dedos e depois encostou a mão aventureira dele ao seu peito. Toda a fortaleza dormia quando abriu a porta e entrou no corredor.
Não era a primeira vez que acordava de um sono profundo sentindo o coração pular dentro do peito como um pássaro enjaulado. Não se lembrava de ter sonhado, mas uma sensação de pavor aninhava-se ao fundo do seu estômago. A inquietação levava-a a perscrutar a fortaleza, incapaz de voltar a adormecer. A sua mão procurou no bolso da longa camisa de dormir o ferro frio da chave. A sala de armas chamava-a, tal como na noite do catastrófico cerco.
Abriu a porta. Uma corrente de ar frio arrepiou as suas costas mal agasalhadas. Nos seus suportes de parede, as tochas pouco iluminavam dada a aproximação da manhã. Sombras mutiladas espalhavam-se pelas paredes, transformando a sua própria sombra num gigante pairando por cima das espadas e lanças. Percorreu a divisão até ter à sua frente a parede do fundo.
Vingança estava onde Conn a colocara. Passou os dedos pelo punho familiar, sacudindo a pequena camada de pó que lá se tinha acumulado. Os seus dedos ansiavam por tocá-la, por sentir o conforto frio do metal. Cruzou as mãos atrás das costas, resistindo à tentação com dificuldade.
- Parece uma criança diante de um monte de guloseimas.
A voz interrompeu as suas divagações. Virou-se e viu Conn encostado à ombreira da porta, braços cruzados sobre o peito nu.
- Não estava planejando uma revolta. Estava só... - procurou a palavra certa, inquieta.
Conn caminhou na direção de Gelina e parou quando viu uma breve expressão de medo nos olhos dela.
- Por favor, não olhe assim para mim. Parece que esta esperando que eu a atire contra a parede.
- Talvez esteja.
Conn sacudiu a cabeça. Passou por ela e arrancou Vingança da parede. Atirou-lhe a arma. Apanhada desprevenida, Gelina deixou-a cair ao chão.
- Nasceu guerreira, mas há certas aptidões que só se adquirem com a prática. - Conn tirou da parede uma fina espada de prata e dobrou o corpo em posição de ataque.
- Alguma vez lutou a dois?
Gelina fez que não com a cabeça.
- Já calculava. Nunca teve um parceiro com quem valesse a pena lutar. - Olhou para ela por debaixo das sobrancelhas escuras. - Mas isso é outra questão.
Gelina resistiu ao desejo de se virar quando ele caminhou à sua volta e apoiou nela as costas firmes.
- Quando duas pessoas enfrentam em conjunto um adversário mais numeroso, a melhor maneira de lutar é costas contra costas. Rode comigo.
Com esforço, Gelina manteve as costas juntas às de Conn enquanto ele se deslocava pela sala, investindo contra um inimigo imaginário.
- Diga-me, Gelina. Eoghan Mogh é um guerreiro tão competente como eu?
Os pés dela pararam com a pergunta, mas Conn continuou rodando.
Ao tentar acompanhar as longas passadas dele, Gelina tropeçou nos próprios pés.
- É igualmente modesto, embora não igualmente competente - replicou ela.
- E quais são as suas aptidões? - A voz de Conn continuava calma, como se estivesse parado e não se movendo atrás dela.
- Por que você não lhe pergunta? Ele está apodrecendo nas suas masmorras.
Com a resposta dela, Conn acelerou o passo.
- Ele é um estrategista, não um guerreiro - gritou Gelina, ofegante. - Nunca o vi pegar numa espada.
Conn abrandou e ela respirou de alívio.
- Eoghan foi muito bom para...
As passadas dele voltaram a acelerar e Gelina, sábia, não disse mais nada.
Conn orientou-a através de uma série de exercícios até o simples esforço de erguer a espada lhe deixar o braço doendo.
- É como dançar - comentou ela.
Riu quando ele deu meia volta e lhe tirou a espada da mão com um golpe rápido. Deixou-se cair no chão, exausta, e sentiu o braço preso por uma força férrea.
- Há outra coisa que tem de aprender. Se alguém conseguir desarmá-la ou ao seu parceiro, como eu acabei de fazer, é imperativo colocar a mão a uma arma - explicou.
Ajudou-a levantar-se e depois se afastou uns metros, levando com ele a espada dela. Assombrada, Gelina viu-o atirar a arma ao ar. Cobriu a cabeça com os braços e correu para a porta.
A espada caiu no chão com grande estardalhaço.
- Muito bem - disse Conn.
Gelina descobriu a cabeça com um sorriso tímido. Foi ainda com uma expressão séria que Conn se aproximou e pôs as mãos nos seus ombros.
- Isto requer uma considerável confiança na pessoa responsável por lhe fazer chegar uma arma. É nas mãos dela que esta a sua vida. - Gelina estremeceu sob o calor e a força das mãos de Conn; os polegares dele acariciaram-lhe suavemente o pescoço por cima do linho fino da camisa de dormir. - Confia em mim?
Gelina fez que sim com a cabeça sentindo o coração pular.
Conn pôs-se atrás dela; os seus braços envolveram-na, demorando-se um instante na cintura antes de subirem até os ombros.
- Mostre-me onde quer que a espada caia. Qual a posição mais natural para apanhá-la e conseguir usá-la imediatamente?
Gelina estendeu um braço e sentiu-o segui-la como uma sombra.
- Não saia daí - ordenou ele.
Atravessou a sala com passos largos enquanto ela tentava que as suas mãos deixassem de tremer. Sem uma palavra, tomou balanço e fez a espada descrever um longo arco e em seguida girar na direção dela, a luz das tochas refletiam-se na lâmina polida. Os pés de Gelina queriam mover-se, mas ela manteve-os firmes.
A espada foi parar ao braço estendido de Gelina. O seu trajeto foi interrompido quando a mão dela a agarrou com firmeza, exatamente no ponto que ela indicara a Conn. Ficou com uma dor na mão, mas mal a sentiu, pois Conn correu para ela, abraçou-a e rodou-a até a levantar no ar. Gelina largou a espada com a bênção dele, que riu às gargalhadas enquanto lhe cobria de beijos a testa e as faces.
Os dias foram passando como um sonho para Gelina. As noites eram ainda melhores. O outono chegou morno, ideal para longas cavalgadas com Silent Thunder. Nos dias em que os afazeres prendiam Conn em casa, ele autorizava-a a sair no cavalo sozinha. A primeira vez, Gelina regressou e encontrou-o andando de um lado para o outro em frente do estábulo, com Nimbus por única companhia. Quando ele encostou os lábios quentes à sua testa, a moça percebeu-se do quanto lhe tinha custado conceder-lhe aquele pedaço de liberdade.
Ver a cabeça escura dele junto à cabeça ruiva dela tornou-se habitual em Tara. A cozinheira declarou que todos tinham perdido o juízo quando um dia, à meia-noite, entrou na cozinha e deu com Gelina sentada no colo do rei, vestindo ambos apenas as roupas de dormir, comendo os pastéis que tinham sobrado e rindo como duas crianças.
Eram inseparáveis. Conn acariciava-a cem vezes por dia e seguia o seu caminho, sem que ele próprio se desse conta da força que aquele contato subtil lhe transmitia. Bastava uma caricia na mão dela e a seguir compor suavemente um cacho desalinhado. Gelina conhecia-o suficientemente bem para saber que aquela era também a sua forma de dizer que ela era dele, tal como Erin era dele. E, para sua grande surpresa, isso não a incomodava.
Viviam contando os minutos, à espera da hora em que podiam retirar-se para os seus aposentos, a salvo dos olhares curiosos. Gelina resistia bem-disposta, aos avanços dele, pois sabia que Conn ainda gostava de ser o perseguidor. Mas seguia-se sempre a entrega terna que os deixava ofegantes e saciados, ela com os lábios encostados à veia que latejava no pescoço dele. Por vezes ficavam simplesmente deitados de mãos dadas como crianças que à noite têm medo do escuro.
Certa noite Gelina acordou ouvindo alguém soluçar desesperadamente, o nome do irmão um murmúrio nos seus lábios. Sentiu as mãos de Conn a afagá-la e só então percebeu que os soluços eram seus. Em voz baixa, enquanto ele limpava com beijos as lágrimas que lhe corriam pelas faces começou falando daquilo de que eles nunca tinham ousado falar.
- Sonhei com Rodney. Sonhei que ele estava tentando fazer-me mal. Sei que ele nunca, nunca seria capaz de me fazer mal.
Conn apertou-a contra si. De olhos fixos na escuridão, tentou perceber as palavras que ela proferia entre soluços.
- Fomos tão unidos naquele tempo de miséria na gruta. Só nos tínhamos um ao outro e aos nossos sonhos de vingança para nos aguentarmos naqueles dias e noites terríveis. Não sei como, conseguimos torná-los suportáveis. Encaramos como uma aventura.
Fez uma longa pausa, durante a qual o silêncio só foi interrompido quando ela fungou.
- Nimbus não mentiu, sabe. Rodney vigiava-me mesmo, às vezes virava-me para ele e via-o de olhos fixos em mim. Eram olhos esfomeados e me davam medo. Por que ele seria mau, Conn? Descobri que ele não era o que eu pensava, de um dia para o outro. Terá sido o meu sonho de vingança que o envenenou? Terá sido culpa minha? Como foi possível eu não ter percebido o que estava acontecendo? Por que não o impedi? - Rompeu aos soluços escondendo o rosto no peito dele.
Com uma expressão solidária, Conn respondeu:
- Não podia ter feito nada, Gelina. Também eu descobri de um dia para o outro que Rory O’Monaghan era um inimigo. Não me passava pela cabeça que isso fosse possível. Ele alimentou-me. A mulher dele cantou baladas para me adormecer. Confiava-me os seus segredos mais íntimos e eu contava-lhe os meus. Não percebi nada. Estava tão cego como você, minha querida. - Beijou-lhe delicadamente a orelha. - Mas agora temos os olhos abertos e só nos vemos um ao outro, como deve ser.
Deitou-a de costas e tentou perceber se as acusações que tinha feito contra o pai dela a tinham perturbado. Gelina abraçou-o e apertou-o contra si para que ele não visse o medo estampado nos seus olhos. Beijaram-se e, nas profundezas do amor que sentiam um pelo outro, enterraram a dúvida que continuava aninhada nos recessos mais remotos dos seus corações.
Gelina passeava pelo salão de entrada na manhã seguinte quando um corpo descaiu de uma corda suspensa por cima da cabeça dela. Uns pés minúsculos balançaram rente ao seu nariz.
Furiosa, deixou escapar um grito:
- Não é direito, Nimbus. Se assustar-me desta maneira ainda morro antes do tempo. - Descalçou uma sandália e preparou-se para lhe bater com ela.
Nimbus abriu um olho e piscou o outro:
- Não se atreva, Gelina. Um bom bobo precisa praticar. Criei este número para o funeral de Eoghan Mogh. Gosta? É adequado, não acha?
A única resposta dela foi uma careta de raiva.
- Desculpe. Esqueci-me que ele era seu conhecido. Seja boazinha e ajuda-me a sair daqui de cima.
O seu pedido foi recebido com silêncio. Gelina cruzou os braços e sorriu docemente.
- Por favor, milady? – perguntou em uma súplica nos seus olhos castanhos e vivos.
Com uma expressão de repugnância, Gelina subiu ruidosamente as escadas até o patamar. De barriga encostada ao corrimão, içou-o puxando pela corda trançada. Sentou-se de pernas cruzadas vendo-o remover o equipamento.
- Como se faz isso? - perguntou. Nimbus tirou o casaco e mostrou um arnês feito com tiras estreitas de couro cruzadas sobre o seu peito.
- Esta vendo isto? - Pegou no arnês e apontou para um amuleto em latão pelo qual passava uma correia de couro.
Gelina revirou-o na sua mão e perguntou:
- Para que serve isso?
- Para me salvar a vida. Garante que fico preso no arnês e não na corda. Vê o que está aqui gravado? Fui eu que o fiz.
- Que significa a coroa?
- Nimbus, rei supremo dos bobos. - Que havia de ser?
Gelina sacudiu a cabeça e olhou para baixo, para o salão deserto.
- Diz-me, Alteza, onde se meteram todos os seus súbditos nesta tarde cinzenta?
- Conn não lhe disse?
Gelina fez que não com a cabeça.
Nimbus pôs-se a passear pelo espaço limitado do patamar. Gelina disfarçou um sorriso quando o viu coçar o queixo numa imitação perfeita de Conn refletindo.
Virou-se para ela de sobrancelhas carregadas:
- O Fianna acabou de dar por encerrado o julgamento.
- Conn não me falou em julgamento nenhum. Quem foi julgado?
- Mas sem lhe dar tempo para responder, murmurou:
- Foi Eoghan, não foi? Por isso Conn não me disse nada. Eoghan está bem? Está vivo?
- Por enquanto.
- Condenaram-no à morte? - Gelina ajoelhou-se e agarrou em Nimbus pelos ombros. - Responde-me. Qual foi a sentença?
Nimbus suspirou:
- Conn e Eoghan vão travar uma batalha esta tarde num prado a poucas léguas daqui.
Uma nuvem atravessou os olhos de Gelina.
- Isso é impossível. Eoghan não está à altura de Conn e Conn sabe disso. Fui eu que lhe disse... - Agarrou na túnica de Nimbus com umas mãos frenéticas. - Para onde vão? Tem de me levar lá.
Nimbus arrancou a túnica das mãos dela e alisou a lapela.
- Não posso. Só os do Fianna têm autorização para assistir. Conn ia ficar furioso!
Gelina semicerrou os olhos com uma expressão malévola:
- Isso nunca foi impedimento nem para você nem para mim.
Contra a vontade de Nimbus, os seus lábios esboçaram um sorriso. Coçou a nuca, pensativo.
- Temos de ir e chegar lá antes deles. - Colocou-se de pé, deu-lhe o braço e ela arrastou-o para as escadas.
Mer-Nod desmontou da sua égua e sacudiu com força a capa orlada de plumas. No prado reinava o silêncio, pesado e quieto como o ar úmido, quebrado apenas pelo relinchar baixo de um cavalo. Nuvens cinzentas e negras cortavam o céu da tarde. Toda a sede de sangue foi cuidadosamente removida dos rostos endurecidos virados para Mer-Nod. Os homens convidados para assistir à batalha tinham sido escolhidos a dedo entre os mais experientes do Fianna. Chegaram a cavalo ao prado depois de atravessarem as sombras da floresta escura e fria para assistir à derradeira batalha entre o rei e o homem que era seu inimigo há um quarto de século.
Ouviu-se um burburinho quando Silent Thunder surgiu por entre as árvores. Conn montava o garanhão, coberto de alto a baixo de couro como um guerreiro, o rosto fechado. Sean O’Finn seguia-o a pé e a sua testa jovem, lisa e sem rugas, parecia ali estranhamente deslocada. Mer-Nod examinava o rei, guardando cada pormenor na memória com amor, para que a sua visão daquele dia pudesse ser recriada no poema que escreveria à luz das velas nessa mesma noite. O que escapou ao seu meticuloso escrutínio foi o par comodamente instado num resistente galho de carvalho por cima da sua cabeça.
Gelina agarrava a casca rugosa da árvore com uma mão e a túnica de Nimbus com a outra. Agachada no ramo estreito que pendia sobre o prado, esforçava-se por simultaneamente se equilibrar e esconder entre a folhagem úmida e murcha, proeza muito mais difícil para ela do que para Nimbus, sentado confortável no mesmo ramo. Lançou-lhe um olhar aborrecido e divertido quando ela lhe puxou pela túnica e quase o fez perder o equilíbrio. Tinha as saias enroladas em volta dos tornozelos.
A sua atenção deixou de concentrar-se na incomoda posição quando Conn desmontou e ergueu os braços pedindo um silêncio que já existia. Nimbus sentiu um aperto no coração quando viu o modo como os olhos de Gelina se fixavam em Conn. Desviou os seus e observou com interesse o que se passava lá em baixo.
A um sinal de Conn, Sean O’Finn desapareceu para logo reaparecer trazendo o prisioneiro. Eoghan Mogh entrou no prado sem apresentações. As vozes subiram de tom provando que não eram necessárias.
Gelina olhou para o homem que fora seu amigo há uma vida. As suas feições angulosas estavam mais magras do que nesses tempos. Não havia sinais de fome ou maus tratos no seu rosto lívido, mas as semanas passadas na masmorra tinham-lhe tirado a força. Espreitou as correntes grossas amarradas aos seus pulsos. Mesmo do ponto onde se encontrava, via-se a carne viva em volta dos elos de ferro. Abaixo das sobrancelhas escuras, os olhos dele brilharam de desprezo ao passar pelos guerreiros e por fim voltou-se para Conn.
Conn devolveu-lhe o olhar por instantes, antes de aclarar a garganta para que se fizesse silêncio.
- Todos sabem quem é este homem. Não me vou dar ao trabalho de enumerar as suas façanhas. Em vez disso vou enumerar os seus crimes. - Conn rejeitou o pergaminho que Mer-Nod retirou da capa, pois não precisava de listas. - Traiu o reino de Erin. Gorou todos os esforços para unir este país. Matou soldados meus e homens inocentes que se opuseram ao seu plano ganancioso de conquistar Tara, obrigando-os a servirem-no e roubando-lhes o seu ouro. Foi um ladrão de noite e um veneno na nossa terra.
Ergueram-se vozes indignadas. Eoghan ouviu impassível as acusações de Conn, com uma dignidade falsa projetando-se da sua figura alta.
- Envenenou os nossos homens e cortou-lhes a garganta sem que eles pudessem defender-se! - gritou uma voz no meio dos soldados.
Outro exclamou de punho erguido:
- O meu clã foi obrigado a entregar uma fortuna em ouro quando os porcos de Mogh lhe bateram à porta. Ameaçaram levar a filha mais nova do meu irmão se ele não fizesse o que eles queriam. Ela era apenas uma criança!
O homem ao lado dele concordou:
- Levou uma moça desta mesma fortaleza. Obrigou a bela Gelina a subir para o cavalo dele e juntar-se aos seus bandidos. Só a intervenção do nosso rei a salvou de um destino terrível.
Gelina ficou sem fôlego quando viu o olhar de Eoghan cruzar-se com o de Conn. Percebeu horrorizada de que Eoghan podia condená-la por muitos dos crimes que lhe tinham sido atribuídos. Conn não teria como defendê-la. Eoghan não abriu a boca, mas sorriu ao ver a palidez de Conn aumentar.
Conn desembainhou a espada num único movimento.
- Desacorrenta-o - disse a Sean Ó Finn.
Sem se dar um segundo para mudar de ideia, Gelina saltou do ramo, ignorando a mão de Nimbus, que lhe puxava, histérico, pela saia. Caiu de pé diante dos homens assombrados.
Virou-se para Eoghan e Conn.
- Peço perdão, Alteza. Queria assistir ao combate, por isso escondi-me ali em cima. - Apontou para o ramo onde se comprimia um bobo petrificado, longe dos olhares espantados. - Desequilibrei-me e infelizmente denunciei-me. - Pegou nas saias e fez uma reverencia com um sorriso propositadamente encantador. Conn guardou a espada na bainha.
Eoghan deu dois passos na direção de Gelina. Conn avançou e pôs as mãos nos ombros dela numa atitude protetora.
Só Gelina ouviu as palavras sussurradas pelo prisioneiro:
- O amor dele lhe cai bem. Está linda.
Gelina sorriu por entre as lágrimas que lhe saltaram dos olhos, pois sabia que aquela voz familiar, animadora, nunca a trairia. Não quis saber dos olhares hostis com que os homens reagiram à intimidade entre eles. Conn virou-a para si.
Foi com uma voz de aço que apontou para um espaço vazio no meio da multidão.
- Já que está aqui fique. –os vincos em sua testa deixavam claro que mais tarde esclareceria o assunto com ela. Gelina fez nova reverencia e recuou um passo.
Conn afastou-se uns metros e escolheu as palavras com cuidado:
- Tem alguma coisa a dizer em sua defesa, Eoghan Mogh?
- Não posso trair um reino a quem nunca jurei vassalagem. O meu desejo de governar Erin é tão legítimo como o seu - respondeu Eoghan, com uma voz que retiniu como uma campainha na sala vazia.
Levantou-se um coro de protestos. Conn deu um passo em frente e voltou a levantar os braços pedindo silêncio.
- Decidi dar-lhe o que me deu quando me vendeu aos traficantes de escravos romanos: uma oportunidade. - Caminhou em volta de Eoghan com as mãos atrás das costas. - Os seus homens não estão presentes. Se quer tomar o meu reino terá de lutar sozinho por ele.
Fortes aplausos receberam as palavras de Conn. Com um gesto rápido, Sean libertou o prisioneiro das correntes que foram cair sobre as ervas úmidas. Eoghan friccionou os pulsos sem nunca tirar os olhos de Conn.
Gelina mordeu o lábio para não gritar quando Sean colocou o punho de uma espada na mão de Conn.
Conn agarrou-a e fez uma pausa:
- Sei que muitos queriam a pena de morte para este homem. Mas eu não podia fazer isso. - Conhecendo Conn como conhecia, Gelina percebeu o quanto lhe ia custar dizer as palavras seguintes.
- Todos conhecemos a importância de pertencer a um clã. - Apontou para Eoghan. - Este homem sabe o que isso acarreta. Quando o nosso navio com destino à Britânia foi tomado pelos seus piratas, ele deixou bem explicado o que queria que fizessem comigo. Não queria que me matassem. Queria que me vendessem aos traficantes de escravos romanos que ele tinha enviado ao local da sua traição. Não queria que o meu sangue sujasse as suas mãos. - Fitou Eoghan de olhos semicerrados. – O fez porque pertence ao meu clã. É filho da irmã da minha mãe, e se o sangue dele tem de sujar as minhas mãos, que seja numa luta leal.
O prado explodiu em exclamações de incredibilidade. Gelina olhava para um e para outro, estupefata. Lembrou-se da forma como Eoghan a tinha olhado e percebeu quem é que ele tão dolorosamente lhe recordava.
- Silêncio!
A espada reluzente que Conn brandia no ar não deixava dúvidas sobre a verdade do que ele dizia. Todo o prado se calou.
Gelina nunca tinha ouvido Conn falar numa voz tão suave:
- Levante-se e luta, Eoghan Mogh. Luta... ou morre.
Gelina sentiu uma mão agarrá-la pelo ombro e percebeu que Sean a tinha visto avançar. Perante o seu olhar desvairado, ele sacudiu a cabeça e agarrou-a com mais força.
Gelina estremeceu quando Eoghan investiu contra Conn desajeitadamente. Conn baixou-se soltando uma gargalhada amarga e Gelina recordou uma noite quente de Verão em que o mesmo riso e a mesma espada tinham visado a ela.
- Cão sarnento - gritou Conn. - O seu pai nunca o ensinou a lutar? Ou será que nem sabe quem era o teu pai?
A espada de Conn colidiu com a de Eoghan que cerrou os lábios e esticou os braços.
- Vai morrer como o covarde que é, porco - murmurou Conn, tocando com a lâmina no braço de Eoghan. Uma linha fina e vermelha apareceu na túnica rasgada. O ar encheu-se de gritos pedindo mais sangue.
Através da neblina do seu medo, Gelina ouviu Sean sussurrar:
- Se Eoghan se render sob o peso dos insultos de Conn, a batalha está ganha. - A cena balançava à frente dela enquanto os seus olhos se enchiam de lágrimas de alívio e amor.
Eoghan recuou para a floresta de olhos escuros e desvairados. Conn perseguiu-o.
- A cabra castelhana com quem casou é uma vulgar prostituta, Eoghan.
Por um momento os olhos de Eoghan pousaram em Gelina e ela teve a certeza de que as palavras que ele proferisse a seguir seriam as últimas. Eoghan entreabriu os lábios e voltou a fechá-los. Gelina sentiu as mãos de Sean pressionar os seus ombros a apoiá-la enquanto as suas pernas tremiam.
Com um grito feroz Eoghan investiu, apontando a espada ao coração de Conn, que se defendeu facilmente torcendo-lhe o pulso. Eoghan caiu sobre as folhas úmidas e quando virou o corpo encontrou a ponta da espada de Conn encostada à sua garganta.
A voz de Conn tremia de emoção:
- É filho de uma prostituta, Eoghan Mogh.
- Isso é verdade - respondeu Eoghan, falando com uma clareza que imediatamente calou os gritos de triunfo. - A nossa mãe era uma prostituta, e você, meu querido irmão, é um bastardo.
Conn tomou balanço preparando-se para enfiar a espada tremula no pescoço de Eoghan.
- Mesmo diante da morte, porco, dos seus lábios só saem falsidades.
Uma figura volumosa e determinada surgiu das sombras da floresta e correu para junto deles sem se dar ao trabalho de fazer uma reverencia.
Ouviu-se apenas um suspiro nos ramos do carvalho quando a voz de Moira protestou:
- Pare, Conn. Não posso deixá-lo matar o seu próprio irmão.
Gelina escondeu o rosto na túnica de Sean enquanto Conn caía de joelhos ao lado de Eoghan e a sua espada ia parar ao meio das folhas.
Os lábios de Conn mexeram-se, mas deles não saiu um único som. Eoghan Mogh caminhava de um lado para o outro a pouca distância, dando olhares de desprezo a Conn. Os dois homens afastaram-se para deixar passar Moira, que parou diante de Conn. Conn olhou-a, aturdido, e Gelina esforçou-se por ouvir o que ela lhe dizia em voz baixa.
- Perdoe-me. Tem de saber a verdade... Antes que seja tarde demais.
Sean deu um passo em frente e pigarreou.
- Mando os homens saírem, Conn?
Conn fez que não com a cabeça.
- Podem ficar. Merecem saber a verdade. São meus irmãos. - Virou-se para Eoghan, que aguardava de braços cruzados. Fixou os olhos azuis nos olhos azuis e frios de Eoghan e estremeceu. - A verdade, por favor, Moira.
Moira baixou a cabeça, tirando de cima dos ombros o fardo de trinta e seis anos de silêncio.
- A sua mãe foi prometida ao pai de Eoghan quando era ainda uma menina. Casaram, mas Ulad Mogh pouco se ocupava ou se preocupava com a jovem esposa. Maureen era uma criança delicada e o marido, violento e dado à bebida, aterrorizava-a. Ao fim de um ano deu-lhe um filho a quem chamaram Eoghan.
Conn manteve-se imperturbável.
- Não vou mentir. Maureen nunca teria traído Ulad ou o seu filho. Essa criança era a alegria da sua triste existência. Mas um dia de Verão, estava banhando-se num rio, sozinha, apareceu-lhe à frente um guerreiro montado num cavalo negro como a noite. Não resistiu à beleza dela, aos seus olhos tímidos. Obrigou-a a amá-lo.
Conn olhou desesperado para Gelina que estava ansiosa por ir a com ele.
Moira continuou:
- Esse guerreiro era Feidlimid Rechtmar, o Legislador, rei da província de Meath. Mas o conquistador foi conquistado. Depois de conhecer a felicidade nos braços de Maureen, descobriu que não conseguia viver sem ela e tentou conquistá-la e compensar da brutalidade dos seus primeiros avanços. - A recordação levou Moira a esboçar um sorriso. - Ela regressava dos encontros com os olhos radiantes como o sol. Eu também era jovem e imprudente e achava os elaborados planos que inventávamos para que eles se pudessem ver um divertimento, sem nunca pensar no perigo que espreitava por detrás desse amor.
- Quando Ulad descobriu a infidelidade dela ficou furioso pelo fato de que a mulher que se deitava tão quieta e com tanto medo na sua cama se dava livre e alegremente a outro homem. Espancou-a, tentou matá-la e à criança que ela transportava no ventre e não era sua. Embora com metade do coração apertado, Maureen fugiu com o amante e deixou o filho mais velho com o pai. Sabia que Eoghan era a única coisa que Ulad Mogh amava verdadeiramente. - Moira ajoelhou-se aos pés de Conn, os seus olhos escuros suplicarem-lhe que perdoasse a bela e atormentada Maureen. - De modo que ela veio para a fortaleza de Feidlimid onde lhe deu à luz, Conn. Cresceu alimentado pelo amor deles. Tara encheu-se de alegria. Mas sempre que eu encontrava Maureen fitando as chamas sabia que era em Eoghan que ela pensava.
Moira ignorou o ruído de desprezo de Eoghan.
- Quando Ulad Mogh morreu embriagado, a minha irmã, que ajudara a criar Eoghan, enviou o rapaz para Tara. A pedido dele apresentou-o como filho de outra irmã que nunca existiu.
- Lutamos como duas feras todo o Verão - murmurou Conn.
Moira concordou:
- Eoghan pediu para voltar para a minha irmã. Não queria fazer parte da vida que Maureen escolhera nos braços de Feidlimid. Foi de coração despedaçado que a sua mãe se despediu do seu filho mais velho, mas fez-lhe a vontade. O passado dos seus pais era incompreensível para você e seguiu-os até à sepultura que eles partilham nos montes.
Uma brisa que anunciava chuva sacudiu as folhas. Eoghan soltou uma gargalhada amarga.
- Que história tão comovente, Moira! Por que eu havia de querer fazer parte da vida da mulher que me abandonou para criar o seu bastardo? Conn era tão encantador. O filho ideal... Tão belo e tão talentoso. Eu não passava de um intruso. Não havia lugar para a legitimidade em Tara.
Conn, que escutou o fim da história com o rosto escondido nas mãos, Olhou friamente para Eoghan.
Eoghan provocou-o:
- Quantos bastardos tem você espalhados por aí, Conn? Quantas moças obrigou a abrir as pernas em nome da sua realeza, para que pudesse satisfazer a sua luxúria? Está no seu sangue, não é verdade? É mais forte do que você.
O olhar azedo de Eoghan perscrutou a multidão. Quando pousou no rosto aflito de Gelina, uma curta onda de remorso invadiu-o.
- Levem-no daqui para fora - ordenou Conn.
Sean acorrentou rapidamente Eoghan e conduziu-o a uma montaria. Sem se mexer, Conn viu os soldados partirem, depois de montarem nos seus cavalos um de cada vez, de rostos sombrios.
Moira pousou suavemente a mão no braço dele.
- Não quis fazê-lo sofrer, Conn. Tal como Eoghan jurou junto ao leito de morte do pai nunca envergonhar a família revelando a traição da mãe, também eu jurei à sua mãe que se os visse ameaçarem-se um ao outro, contaria toda a verdade. Perdoa-me.
Conn não respondeu. Tocou na mão dela e dirigiu-se a Silent Thunder derrotado de ombros caídos.
- Conn? - chamou Gelina em voz baixa enquanto ele montava. Conn ignorou-a e desatou a galopar sem dizer palavra.
Nuvens negras acumulavam-se no horizonte; um nevoeiro opressivo rolava pelos contrafortes em direção ao prado. Gelina esfregou os braços nus e arrepiados. Ali ficou sozinha olhando o vazio até que Nimbus aterrissou a seu lado.
- Gelina? - disse, tocando-lhe num joelho.
Gelina baixou os olhos e viu a expressão preocupada dele.
- Espere um pouco.
Gelina apertou a mão dele na sua.
- Não posso.
- Tem cuidado. Ele talvez não esteja com disposição para lhe receber - preveniu Nimbus.
- Não seria a primeira vez.
Agarrou nas saias e correu até onde os últimos soldados montavam os seus cavalos. Viu Conn desaparecer ao longe cortando o nevoeiro em cima de Silent Thunder. Um soldado viu, espantado, ela avançar para ele e arrancar-lhe as rédeas das mãos.
- Preciso do seu cavalo - disse ofegante.
O soldado reconheceu-a e desceu do cavalo murmurando alguns protestos, mas não se atreveu a dizer que não. A sua boca escancarou-se quando ela saltou para cima do cavalo sem prestar atenção ao cair da sua saia, instigou o animal e partiu a galope.
O nevoeiro envolveu-os numa cortina cinzenta. Gelina pôs a égua a passo quando se aproximou da floresta onde Conn desaparecera. O animal estremeceu, sentindo que não levava no dorso o peso habitual. Gelina acalmou-o com umas caricias no pescoço. O som abafado das folhas molhadas sob os cascos atravessou o crepúsculo. Gelina lamentou não ter uma tocha consigo quando uma coruja piou junto ao seu ouvido, assustando-a. Tentou que as suas mãos parassem de tremer, murmurando para acalmar a si própria e à égua. Avançaram pela floresta silenciosa.
Teve vontade de gritar por Conn, mas não queria quebrar o silêncio. Praguejou contra si mesma por se ter esquecido do punhal que Conn lhe oferecera. Todos os seus músculos se contraíram quando a égua cavalgou por cima de um arbusto rasteiro que ainda não perdera o viço do Verão. Quando ficou com uma das patas presas numa raiz, o animal tropeçou.
Gelina agarrou-se à crina, deixando as rédeas fugir das suas mãos suadas. O animal empinou-se e ela escorregou do dorso e caiu, batendo com o traseiro no chão e soltando um grito de desespero. A égua desapareceu no nevoeiro. Gelina levantou-se e olhou em volta, com um nó de pânico na garganta. O nevoeiro e as folhas caídas impediam-na de voltar pelo mesmo caminho.
Sentou-se num tronco caído e tentou recuperar o fôlego. Os seus olhos pousaram nas cinzas a seus pés. Inclinou-se para frente e tocou-as com os dedos, mas não conseguiu perceber se o calor que sentia vinha da sua própria mão ou de uma fogueira recentemente abandonada.
O nervosismo dela aumentava. Revistou as árvores e teve a certeza de que alguém a olhava fixamente, o que a fez sentir um arrepio na nuca. Entrou em pânico, levantou-se e correu procurando abrigo na floresta. As sandálias caíram-lhe dos pés, o seu rosto foi fustigado pelos ramos e ficou com o cabelo preso num tronco. Libertou-o, mas não se atreveu a olhar para trás. Um estalido contínuo perseguiu-a através do arvoredo.
Como o estalido se tornasse mais intenso, olhou para trás, apavorada, sem abrandar a corrida. Corrida que terminou quando deparou com uma barreira sólida. Dois braços fortes apertaram-na.
Virou-se horrorizada e deu por si encostada ao peito largo de Conn. Conn olhou para ela com uma expressão sombria de tanta preocupação. Gelina abraçou-o sem hesitar e escondeu o rosto na túnica dele. As mãos dele acariciaram-lhe as costas, tentando pôr fim àquela ansiedade violenta. Em volta, as folhas molhadas gotejavam suavemente. Silenciosa, a vegetação rasteira não continha quaisquer segredos.
Conn levou-a para uma clareira onde ele tinha começado a construir um abrigo com ramos entrelaçados. Uma fogueira pequena ardia lá dentro, dissipando a escuridão e o frio. Conn colocou-a frente da chama tirou a camisa e a cobriu com ela. Recostou-se e olhou-a com curiosidade.
- Corri atrás de você. Perdi o meu cavalo. Bem, na verdade o cavalo não era meu - disse Gelina, pouco convicta. Esfregou a testa, alarmada. Conn franziu as sobrancelhas e deixou-a continuar. - Achei que estava sendo seguida. Tive medo.
Conn pegou num pau para atiçar o fogo e disse numa voz fria e distante:
- Não lhe passou pela cabeça que eu tinha vindo para aqui porque queria estar sozinho?
- Achei que não era bom estar sozinho - balbuciou ela. - Teve um dia difícil.
Conn riu amargamente:
- Descobrir que a minha vida toda foi uma mentira? Chama a isso um dia difícil?
Gelina aconchegou-lhe a túnica.
- Os seus pais amavam-se e amaram-lhe - disse. - A sua mãe foi muito mais corajosa do que a minha. Fez o que devia ser feito.
Gelina olhou para a fogueira. As chamas projetavam fios de luz dourada no cabelo dela, deixando-lhe os olhos na sombra.
Como Conn não dissesse nada, ela continuou:
- Quanto a ser o Ard-Righ, sabe tão bem como eu que governar Erin nunca teve a ver com a linhagem, mas sim com a espada. Nem sequer o seu pai foi suficientemente sábio ou corajoso para unir os reis de Erin.
Conn atirou o pau para a fogueira com uma careta.
- O que sabe a cerca do meu pai? Ainda é uma criança.
- É curioso. Ontem à noite não me achou uma criança. E também não foi uma criança que esta manhã acordou e descobriu que você...
- Cale-se!
Gelina praguejou frustrada, retendo as lágrimas que se acumulavam nos seus olhos. Conn escolheu cuidadosamente as palavras:
- Depois de falar com Rodney, Nimbus disse que me amava. Não acreditei nele.
- Às vezes penso que Nimbus sabe mais do que todos nós juntos - disse Gelina num tom suave.
- E que diz Nimbus de Eoghan Mogh? Que diz você sobre ele?
Gelina pousou as mãos nos joelhos.
- Foi bom para mim. Percebeu que eu estava infeliz. Suponho que me usou para levar a sua vontade avante. Precisava de mim porque eu conhecia a fortaleza e conhecia você. - Olhou para Conn que continuou olhando a lareira.
- Continue - ordenou.
- Ele é brilhante. O seu humor é muito seco e nunca percebemos bem se está rindo de nós ou conosco. Sabe ser persuasivo e encantador quando é preciso. Tratou-me bem. De certo modo, é parecido com você.
Pelo olhar dele, Gelina percebeu que não devia ter dito aquilo. Correu para junto de Conn e tocou-lhe na mão. Ele repeliu-a como se ela o tivesse queimado.
- Pensava que a minha mãe era uma mulher extraordinária. Quantas vezes ela terá me olhado e pensado no outro bebe de olhos azuis que tinha abandonado?
- Não teve alternativa, Conn. Não compreende? Ulad voltaria a bater-lhe e acabaria por matá-la ou ao bebe que tinha na barriga. Se ela tivesse levado Eoghan quando fugiu Ulad a teria seguido. Não haveria paz, felicidade. Tanto vocês dois, como Feidlimid acabariam mortos, ou então Ulad. Ela protegeu aqueles que amava com os recursos que dispunha. Uma mulher má nunca teria dado à luz a um filho como você.
- Quer dizer um homem de intenções tão puras? - perguntou ele provocando e abrindo muito os olhos.
Gelina baixou a cabeça incapaz de suportar o sarcasmo dele.
- Será verdade o que ele disse?
- O quê? - perguntou Conn rispidamente.
Gelina afastou um cacho dos olhos.
- Que tem vários filhos espalhados por aí?
Conn encolheu os ombros.
- É possível. Incomoda-se? - Estavam sentados lado a lado agora, sem que nenhum deles ousasse encarar o outro.
- É que nunca o imaginei por aí acasalando.
- É isso o que pensa que andei fazendo com você? Acasalando?
Gelina reprimiu uma louca vontade de rir e não respondeu.
- Talvez fosse melhor lhe mandar embora.
Ela olhou-o assustada:
- Está assim tão desejoso de se ver livre de mim? Tem de dar sempre essa resposta?
- Provavelmente Eoghan tem razão. - A sua voz rebentava de emoção, espantando-a com tanta veemência. - Só vou magoá-la. Lembra-se do que eu fiz um dia. Irá comigo para o túmulo a imagem do seu corpo torturado, sujo de sangue, mas quem garante que não vou fazê-lo outra vez? - Semicerrou os lábios. - Quem garante que se eu a desejasse agora e você resistisse não iria violentá-la outra vez? Você pode garantir uma coisa dessas? Eu posso?
Gelina ficou olhando para Conn, cujas mãos lhe agarravam os braços com força, as unhas enterradas na sua carne tenra. Combateu o impulso de se soltar. Os olhos dele ardiam com um brilho quente cor de safira.
- O que quer provar, Conn?
Sem uma palavra, Conn levou-a para o chão e prendeu o corpo dela com o seu. Pousou a boca na dela com um desejo selvagem, e quando os lábios dela se abriram as duas línguas fundiram-se sem resistência em apenas ternura.
Empurrou-a para trás, rouco:
- Se a minha mãe olhou para o meu pai dessa maneira não posso censurá-lo pelo que fez.
- Então eu também não o censuro - disse, tentando respirar regularmente. - Só censuro se negar o que existe entre nós.
- Não posso negá-lo. Mas uma coisa posso fazer. - Afastou o cabelo enredado da testa dela com dedos meigos.
- O quê? - perguntou ela receosa.
- Posso garantir que os nossos filhos não serão bastardos.
Os lábios dele abriram-se contra os dela, sufocando-a. Gelina abraçou-o enquanto a fogueira ardia no pequeno abrigo.
Na escuridão, uns olhos escuros e invejosos devoravam-nos.
Gelina corria pelo quarto fugindo de Nimbus com os cachos curtos enrolados em tiras de pano. Agarrado à saia rodada de linho, Nimbus foi levantado do chão por Mer-Nod, que ergueu os olhos do pergaminho que estava estudando para pôr fim àquela perseguição. Ignorando as pragas e a resistência inútil de Nimbus, Mer-Nod puxou um braço de Gelina.
- Isso é maneira da futura noiva do Ard-Righ se comportar? - ralhou.
Baixando a cabeça com uma expressão amuada e penitente, Gelina respondeu:
- Peço perdão, Mer-Nod.
Largou os dois ao mesmo tempo fazendo Nimbus cair no chão com um baque surdo. O bobo ainda abriu a boca, mas a mão de Gelina apressou-se a tapá-la. Com um sorriso educado saiu recuando do quarto, sempre agarrada a Nimbus. Mer-Nod franziu a testa enquanto seguia o barulho de passos seguido de uma gargalhada estridente.
Esfregou os olhos cansados e retomou a leitura do pergaminho. Diante dele estendia-se um mapa de Erin, cujas linhas lhe eram tão familiares como as da palma da mão. No entanto, um novo traço atravessava o pergaminho, grosso e desenhado pelo próprio punho de Conn. Mer-Nod sacudiu a cabeça e passou o dedo por cima do risco que dividia Erin de costa a costa.
Eoghan Mogh tinha saído da fortaleza em liberdade. Seguiram-se alguns dos homens que lhe tinham feito companhia na cela, protegendo os olhos do sol com a mão. Levava consigo um papel assinado pelo irmão. Os cavalos que lhes foram oferecidos levaram-nos para o sul e os ombros imponentes de Eoghan foram à última coisa que Mer-Nod viu quando eles desapareceram ao fundo da planície.
Mais uma vez, Mer-Nod sacudiu a cabeça ao recordar as palavras pronunciadas por Conn diante de um inabalável Eoghan Mogh e do mesmo tribunal que ouvira a confissão de Moira.
- Se quiser o sul, Eoghan, ele é seu. Não há lá terras com aproveitamento agrícola. Se conseguir erguer lá um reino, tanto melhor. Em troca tem de assinar este tratado, que estabelece a sua obrigação de proteger os que lá habitam não levar a cabo mais ataques fora dos limites do seu território e de se reunir comigo aqui uma vez por ano para discutirmos o nosso acordo.
As palavras de Conn arrancaram murmúrios e protestos aos homens que as escutaram. Mer-Nod escreveu-as velozmente, tentando captar todos os sentidos das suas palavras, apesar do seu próprio espanto. Só Eoghan Mogh permaneceu impassível, sentado em silêncio antes de receber o pergaminho que Conn lhe estendia. Os olhares deles cruzaram-se por instantes, não com ternura, mas manifestando um respeito contrariado que teria dado a Mer-Nod assunto para inúmeros volumes se ele o tivesse registrado.
Depois de mandar os guardas garantir que Eoghan e os seus homens sairiam em segurança, Conn saiu do quarto, deixando a controvérsia estalar atrás de si.
As gargalhadas de Gelina esvoaçaram através da porta, devolvendo Mer-Nod ao presente e à sua maior preocupação. Quando a decisão de Conn foi anunciada, surgiram duas correntes de opinião bem diferenciadas. Muitos o apoiaram confiando no seu discernimento e encantados com o anúncio do casamento com a bela Gelina, a pequena suja e esquelética que tinham visto transformar-se numa jovem deslumbrante. Mas também surgiram dissidentes, tanto nas fileiras do Fianna como no resto da população.
Depressa correu o boato de que Eoghan Mogh confidenciara qualquer coisa a Gelina no prado. Mer-Nod tinha passado os últimos dias ouvindo, impaciente, todas as acusações possíveis. A moça era uma bruxa, uma banshee . Tinha obrigado Conn a pôr em liberdade o malvado Eoghan. Fora enviada para a fortaleza exatamente para preparar esse desfecho. Ninguém a raptou, ela foi reunir-se a Eoghan, o seu amante. Os que ousavam pôr em duvida as decisões de Conn eram poucos, mas as suas acusações ferozes bastavam para instigar confrontos onde à honra de Gelina era ora difamada, ora defendida.
Cabia a Mer-Nod acalmar os ânimos, mesmo que isso implicasse confirmar os rumores sobre o parentesco de Conn, que se espalhavam como ondulações cada vez mais amplas a partir da fortaleza. Tinha a certeza de que o casamento serviria para confirmar essas histórias perversas. Os convidados já tinham começado a chegar. Conn ordenara que se organizasse uma semana de festas e banquetes e que não se poupasse em grandiosidade. Bem alimentados e abarrotados de cerveja, os seus súditos iam seguramente aceitar de braços abertos tanto a decisão de Conn como a sua jovem noiva. Mer-Nod sorriu com a ideia, de ânimo mais levantado.
- Quem são estas pessoas todas? - perguntou Gelina ao ver o curioso sortido que atravessava o pátio. Empoleirou-se no portão de madeira balançando as suas pernas compridas.
- São acrobatas ambulantes, bobos, cozinheiros, músicos, e vieram para lhe divertir, Gelina.
- Olha! Ali tem um igual a você! - Apontou para um anão de calças de um roxo berrante e barrete amarelo.
Nimbus olhou-a indignado.
- Nem morto me apanhavam assim vestido.
Gelina ignorou-o, de olhos muito abertos vendo o fluxo continuo de fatos brilhantes, instrumentos dourados e desconhecidos sorridentes desfilando junto às paredes da fortaleza. Prendeu os tornozelos no poste de madeira e fez o portão balançar para trás e para diante.
Bateu na cabeça de Nimbus e perguntou:
- Como vai competir com todo aquele talento?
- Não é difícil. Tenho o meu número da forca. Mais ninguém consegue fazê-lo.
- Mas como pensa usá-lo? Vai balançar pelo teto de trave em trave enquanto aqui em baixo eu troco votos com Conn? Até dava um toque engraçado aos votos.
- Lá isso dava. Antes de entrar na sala eu vou declarar que quem tencionava casar com a moça mais bela do mundo deve seguir o meu exemplo, pois ela já está tomada. Depois salto do estrado e prego um susto aos espectadores, entre eles o seu impaciente noivo.
- É a coisa mais idiota que ouvi na vida. Como se algum homem fosse pôr fim à vida por minha causa.
- Sean está bastante desgostoso. Acho que ele pensava que Conn estava guardando-a para ele.
- Que disparate. Sean estava bastante alegre durante o jantar ontem à noite babando diante do peito daquela criada.
- Bem, se houvesse espaço para um coração no meu minúsculo corpo, com certeza ele estaria despedaçado. - A gargalhada de Nimbus não afetou a expressão do seu olhar.
Gelina virou-se para o outro lado; o portão tomou balanço e parou. Ela saltou para o chão, alisando as saias. Inclinou-se e deu um beijo na face seca de Nimbus.
- Fica recebendo os convidados - disse, imitando deliberadamente o sotaque forte dele. - Tenho de ir desembaraçar estes cachos antes que o meu cabelo caia.
Nimbus acrescentou já em voz alta:
- Não se esqueça. Nada de falar com Conn. Se Moira descobre que ando por aqui com você, dá cabo de mim.
Encostou-se a um fardo de feno vendo-a ser engolida pela porta principal e o seu sorriso foi esmorecendo. Doíam-lhe os maxilares de tanto o prolongar. O Sol que incidia sobre os seus ombros pouco fazia para aquecê-los. Deu uma olhada desconsolada ao pátio.
- Bom dia, desconhecido. Parece que precisa de um pouco de alento. - Um desconhecido de barba estendeu-lhe uma garrafa e encostou-se ao fardo ao lado de Nimbus.
Nimbus examinou os olhos escuros e risonhos do homem antes de pegar na garrafa e beber demoradamente.
- Mais do que pensa.
- Diga-me onde são as instalações dos criados? Fiz uma longa viagem e gostaria de descansar antes do banquete. - O homem recuperou a garrafa e bebeu ao mesmo tempo em que enxugava o suor da testa com o outro braço. - A Primavera é sempre assim tão quente por estas bandas?
- Depende - respondeu Nimbus, sucinto. - De onde vem?
- Da costa.
- Erin está rodeada pela costa.
- Viajei muito nos últimos anos. - O homem apontou para a porta.
- Aquela é a noiva do rei de quem tanto se fala?
- Exatamente. - Nimbus voltou a tirar a garrafa da mão estendida do homem na esperança de que a cerveja o adormecesse.
- É linda - disse o desconhecido sacudindo a cabeça. - O nosso rei é um homem de sorte.
- Por vezes receio que ele nem se dê conta da sorte que tem - disse Nimbus amargo, a cerveja soltando-lhe a língua.
Para sua surpresa o homem desatou a rir.
- Não pude deixar de ouvir a declaração que tenciona fazer durante o casamento do rei. Um tributo comovente, sem dúvida.
Nimbus franziu as sobrancelhas, mas a sua voz não mudou de tom:
- É apenas uma piada idiota. Só um louco poria fim à vida por uma mulher que ama não o amar. - Sem disposição para trocar confidências com desconhecidos, Nimbus deixou o fardo de feno e pôs-se a caminho da fortaleza.
Não viu o sorriso matreiro do desconhecido, a expressão fria, calculista, dos seus olhos escuros enquanto levantava a garrafa como quem fez uma saúde.
- Pois é amigo. Só um louco, sem dúvida.
- Isto é bárbaro. Uma tortura - disse Conn entusiasmado quando olhou da sua janela para o jardim.
- É o que manda a tradição - respondeu Sean, incapaz de disfarçar um sorriso. Foi até a janela com Conn.
Lá em baixo, Nimbus e Gelina treinavam um número de malabarismo para duas pessoas e ela rompia às gargalhadas cada vez que as bolas douradas caíam umas atrás das outras falhando por pouco a cabeça de Nimbus.
Conn sorriu contra sua vontade:
- Não estou com ela há uma semana. Vejo-a todas as noites, mas não posso dançar com ela, nem falar com ela, nem...
-... nem tocar-lhe - terminou Sean, sabendo que o rei percorria inquieto a fortaleza adormecida noite após noite. - O casamento é amanhã. Terá trinta anos para falar com ela. Aposto que não vai ser capaz de calá-la por mais vontade que tenha.
- Posso não estar aqui daqui a trinta anos.
- Não há dúvida de que seguiu o juramento do Fianna na escolha da sua esposa. Conheceu-a sem dote com apenas a roupa que trazia no corpo.
- Roupa essa que nem sequer era dela - murmurou Conn. Levantou a mão cumprimentando em silêncio Gelina, que se virou para eles e levou dois dedos aos lábios.
Conn gemeu e Sean deu-lhe uma palmada no ombro.
- Não se aflija Conn. Esta é a última noite. Vou ficar à porta do seu quarto para ter a certeza de que não vai fraquejar.
- Cuidado, Sean. Posso esgueirar-me atrás de você e deixá-lo inconsciente.
- Estarei atento. Tenho tanto medo que ela me deixe inconsciente como você. Se for preciso eu a ponho inconsciente. - Desataram os dois a rir e Sean afastou-o da janela.
Gelina entrou no salão de entrada tropeçando nos saguis que, espalhados pelo chão, faziam acrobacias comandados pelo seu dono. Livrou-se deles e olhou em volta, maravilhada.
No meio de rostos familiares havia desconhecidos vestidos com cores e padrões exóticos. Os melhores homens e mulheres de Erin iam sentar-se à mesa de Conn naquela noite. Muitos tinham sido reis antes de se aliarem ao Ard-Righ. Olhos curiosos fitavam-na também. O coração de Gelina bateu a toda à velocidade quando ela percebeu de que faltavam apenas algumas horas para o seu casamento.
O salão era uma vitrine de confusão e alegria, os copos cheios até à borda esvaziavam-se e voltavam a encher-se. Gelina caminhou em direção à mesa, contornando com cuidado bobos e acrobatas. A sua mesa ficava à frente da mesa de Conn, suficientemente perto para poderem trocar uma ou outra piscadela de olho, mas nenhuma palavra. A silhueta volumosa de Moira ocupava já a cadeira do lado, para assegurar que não haveria entre os dois mais do que olhares torturados. Gelina sentou-se alisando o farto cetim cor-de-rosa da sua saia em sua volta.
Deu um pulo quando uma fanfarra de trombetas se fez ouvir a anunciar a chegada do rei. Conn entrou e dirigiu-se à sua mesa fazendo reverencias pelo caminho. Só Gelina percebeu as palavras silenciosas que os seus lábios esboçaram quando ele ergueu a sua taça num brinde.
- Também te amo - murmurou, para ser imediatamente beliscada na perna pelos dedos roliços de Moira. Desviou o olhar e massageou a perna debaixo da mesa.
Os criados andavam de mesa em mesa oferecendo iguarias, como camarões temperados mergulhados em manteiga e cerveja quente com especiarias. O apetite saudável de Gelina desapareceu assim que o nervosismo se instalou alegremente no seu estômago, não deixando lugar para mais nada. Mordiscou os camarões fumegantes do seu prato com indiferença e bebericou um pouco de cerveja.
Outro grupo de criados saiu da cozinha levando nas mãos tabuleiros carregados de pastéis de ameixa ainda quentes. Gelina esboçou um sorriso quando viu um rapazinho mexer em todos os pastéis antes de escolher um, de olhos muito abertos de espanto.
Um assobio perturbador emitido da mesa seguinte passou pelo seu ombro como um manto de desconforto. Virou-se, atraída pela melodia. Um criado servia atrás dela, de costas para os seus olhos curiosos.
- Um pastel, milady? - Rodopiou com a travessa na mão.
Gelina sentiu o chão por debaixo dos seus pés fugir-lhe quando viu à sua frente o rosto sarcástico do irmão. A barba escura que lhe escondia o queixo não conseguia disfarçar o seu sorriso frio. Sem lhe dar tempo para recuperar o fôlego ou gritar, Rodney desapareceu, serpenteando por entre as mesas sem olhar para trás.
Gelina virou-lhe as costas e bebeu a cerveja de uma vez só. Desesperada, olhou para Moira, mas ela estava distraída conversando com a dama a seu lado. Por momentos, ficou sentada com as mãos cruzadas no colo, os risos e as vozes formando um burburinho pouco nítido. Abriu muito os olhos e virou-se para Conn, antes de desaparecer no meio da multidão.
Conn pôs-se de pé, mas a mão de Sean segurou o seu ombro com firmeza.
O homem de armas sorriu.
- Esse truque não adianta, Conn. Ela deve ter comido alguma coisa que lhe fez mal.
Conn sentou-se, relutante, certo de que tinha visto um pedido de socorro nos olhos e nas faces pálidas de Gelina. Ignorou o arrepio que lhe percorreu a espinha, atribuindo-o ao nervosismo.
O pátio estava deserto. Pelo canto do olho, Gelina viu uma figura vestida de branco dar a volta ao estábulo. Seguiu-a instintivamente e deu de cara com Rodney. O beiral projetava sombras ameaçadoras nos planos geométricos do rosto dele. Sem dar por isso, Gelina recuou um passo. Ele continuou de braços cruzados encostado à parede do estábulo.
- Olá maninha. Desculpa se estraguei a festa.
Gelina parou e mordeu os lábios para se manter calada.
- Que foi? Admirada por eu estar vivo? Ou nem sequer se preocupou em saber o que me tinha acontecido depois do grande e glorioso cerco que fizemos a Tara?
- Perguntei. Ninguém me soube responder. Eoghan nunca mais o viu desde que entrou na fortaleza comigo - respondeu, esforçando-se por eliminar o medo da sua voz. - Que esta fazendo aqui?
Rodney abriu os braços, fingindo-se inocente.
- Não sabe? Não podia perder o maior casamento a que estas terras alguma vez assistiram. Decerto não vai impedir-me de assistir aos votos da minha única irmã.
- Vou. Vai embora.
- E vou. Vou sair de Erin. Um barco espera-me na costa. Não voltarei. Nunca mais. Pensei que talvez quisesse vir comigo. - Estendeu uma mão e afagou-lhe a face. - Não pode levar esta farsa por diante.
Gelina soltou-se do irmão.
- O meu lugar é aqui, Rodney. Foi sempre aqui.
- Aquele canalha lançou-lhe um feitiço qualquer. Sei que ele a obriga a dizer essas coisas. Fez de você a pega dele.
Gelina esbofeteou-o com força e o barulho ecoou pelo pátio vazio. Rodney olhou para ela espantado com os olhos feridos de quem não esperava aquilo dela, depois baixou a cabeça, derrotado. Os olhos de Gelina encheram-se de lágrimas.
- Perdoa-me, Rodney. Sei que passamos por muita coisa juntos, mas chegou à altura de deixar os velhos sonhos morrerem. Estavam errados. - Pegou na mão dele e apertou-a. - Tem de compreender. Não pode destruir isto. Destruir isto é destruir-me. Tem de sair daqui.
Rodney encostou-se ao estábulo, enfiando as mãos nos bolsos.
- Só lhe peço uma coisa, Lina.
Ela aguardou o pedido dele enxugando as lágrimas com as costas da mão.
- Deixe-me ficar e assistir às suas núpcias. Não suporto partir sem levar essa pequena recordação para me acompanhar ao longo dos dias e anos difíceis que me esperam.
Gelina virou-se e respondeu num murmúrio.
- Se Conn o reconhecer, não me responsabilizo.
Ele concordou baixando a cabeça e Gelina voltou-se para as luzes da fortaleza.
- Princesa - chamou ele. Ela parou e olhou-o, mantendo as costas direitas. - Lembra-se... - Com um sorriso triste, fez uma reverencia e desapareceu na escuridão.
Assim, Gelina lembrou-se. O quarto que tinha ocupado na qualidade de filha adotiva de Conn guardava as suas memórias. Sentou-se no chão duro vestindo apenas uma camisa de dormir e com os braços em volta dos joelhos. As horas escuras e silenciosas do início da manhã protegiam-na enquanto ela puxava pela cabeça tentando recordar.
Recordou o jovem e belo guerreiro que costumava visitar o seu pai. Em bicos de pés, ela espreitava por cima do tabuleiro de xadrez cravejado de pedras preciosas do pai, sentindo-se invisível até o guerreiro estender um braço para lhe torcer o nariz. Saía correndo do quarto apenas para regressar uma hora mais tarde e repetir a brincadeira.
Um dia começaram as discussões. Uma porta fechada era o que ela encontrava quando queria intrometer-se nos jogos do pai. Encostada à madeira pesada, ouvia as palavras amargas e as acusações sem as compreender, mas sabendo que os olhos do guerreiro pareciam gelo azul quando saía do castelo sem uma palavra para ela ou para Rodney. Que ordens teria Conn dado àqueles brutos? Será que quis fechar para sempre os seus pequenos olhos cor de esmeralda? Encolheu os ombros e recordou a força terrível da ira de Conn, que ela acabou por conhecer de perto.
No entanto, Conn protegera-a tantas vezes. Estava protegendo-a naquele momento. As distrações e os jogos de Nimbus não conseguiam esconder que havia quem a considerasse uma traidora, não conseguiam defendê-la dos olhares hostis. Mudou de posição, exausta, e perguntou a si mesma se Conn estaria ainda acordado.
Sonolenta e sorridente recordou as palavras que ele lhe disse numa tarde de chuva em que a puxou para o seu quarto: - Tenho de lhe possuir. Não posso estar longe de você. Quero-a com todas as minhas forças. - Seria aquele o mesmo homem que declarara que a queria de volta morta ou viva apenas alguns meses atrás?
- São muitas perguntas - murmurou. Enfiou o cetim amarrotado pela cabeça e amarrou-o com dedos determinados. Entrou no corredor e olhou para ambos os lados. Estava deserto, o único som que se ouvia era o de alguém a ressonar no quarto em frente ao dela. Começou a andar sem fazer barulho e suprimiu um gemido quando virou a esquina onde ficava o quarto de Conn e encontrou Sean encostado à porta.
- Não pode Gelina - exclamou Sean.
Gelina espreitou com um ar tímido.
- Preciso falar com ele.
Sean riu:
- Ele já me tentou convencer duas vezes a deixá-lo ir até você. São ambos incorrigíveis. Mas a resposta é não.
- Não compreende Sean, é...
-... uma questão de vida ou morte. - Sean terminou a frase. - A resposta continua a ser não. Dentro de poucas horas estarão casados. Com certeza podem esperar.
Gelina sacudiu a cabeça, derrotada.
- Vai ficar aí toda a noite?
Sean fez que sim com a cabeça.
- Guarde-o bem - disse Gelina com a mão no braço dele. - Pode dar-lhe um recado meu?
- Que quer que eu lhe diga?
Gelina franziu a testa:
- Diga-lhe que tenha cuidado.
- Estranha mensagem para um noivo - comentou Sean, pressentindo o nervosismo dela.
Gelina encolheu os ombros e foi-se embora.
- Gelina, não a deixo falar com ele porque isso poderia desencadear a ira dos deuses e provocar coisas terríveis.
- Coisas terríveis? - murmurou ela. Desatou a rir e dobrou a esquina, deixando Sean embasbacado olhando para ela.
Conn olhou com curiosidade para a porta que se abria muito lentamente, centímetro a centímetro. Não disfarçou um suspiro de decepção quando viu aparecer à cabeça desgrenhada de Nimbus.
- Sean disse que eu podia entrar se não estivesse dormindo - disse Nimbus, fechando a porta atrás de si.
- Pareço que estou dormindo? - Conn pôs-se de pé e espreguiçou-se, bocejando. Pôs as mãos nos ombros de Nimbus e conduziu-o à janela.
- Olha o Sol nascendo, Nimbus. O Sol nascendo no dia do meu casamento. De hoje em diante, Gelina O’Monaghan será minha.
Nimbus não respondeu.
Conn olhou-o preocupado receoso daquele silêncio pouco habitual.
- Qualquer coisa me diz que não veio aqui felicitar-me, amigo.
Nimbus encolheu os ombros.
- Parabéns, mas há outro assunto que gostaria de discutir com você.
Conn indicou-lhe uma cadeira e sentou-se no divã, enfiando uma túnica em cima do seu peito nu.
Nimbus ignorou a cadeira.
- Ocorreu-me que Gelina não tem uma família que lhe diga que esta é uma decisão acertada.
- Nós somos a família dela, Nimbus. Sabe bem. Se veio falar em nome dela, pode começar.
- Obrigado, Alteza - respondeu Nimbus com um toque do seu antigo sarcasmo.
Conn sorriu sem saber se devia sentir-se zangado ou divertido.
- Gelina é muito especial - declarou Nimbus. - Só queria certificar-me de que sabe disso.
- Não casaria com ela se ela não fosse especial. Acha que ela merecia melhor? Acha que o Ard-Righ de Erin não serve para marido dela?
- Se esta me perguntando se eu prefiro vê-la como sua amante ou sua mulher acho que já sabe qual é a resposta. - Levantou uma mão para calar Conn. - No passado mostrou certa incompreensão pela situação dela. Não quero que isso volte a acontecer.
Conn deu várias voltas no quarto antes de responder:
- Muito obrigado, Nimbus. Estou certo de que um bobo da corte se encontra habilitado a dar-me conselhos que não pedi a cerca do meu casamento. - divertido, fez uma reverencia. - Há coisas que Gelina e eu sabemos e que não lhe passam pela cabeça.
- Como o fato dela ter assassinado soldados do Fianna?
Conn empalideceu.
- Já sabia?
- Não. Fiquei sabendo agora.
Conn sentou-se, sem força nas pernas.
- Esse assunto está mesmo esquecido, Conn? Ela era apenas uma criança. Tem certeza de que lhe perdoou? Vai tratá-la bem, como sua mulher, sem nunca a ver com olhos acusadores?
Conn olhou-o de frente e a sua expressão emocionada deu a Nimbus a resposta que ele procurava.
- Amo-a - acrescentou numa voz rouca.
Um sorriso atravessou o rosto de Nimbus.
- Era só isso que eu queria saber. Não se esqueça, Conn (dirigiu-se à porta e fez uma reverencia; um ramo de rosas apareceu na sua mão), - as coisas nem sempre são o que parecem.
Com um sorriso enigmático, atirou as rosas a Conn e saiu do quarto.
Um raio de Sol começou a dançar sobre o seu rosto. Gelina abriu os olhos. O indolente resíduo de sono desapareceu quando saltou da cama e correu para a janela, admirando a beleza daquela manhã. Nenhuma nuvem manchava o céu do mesmo azul cor de safira dos olhos de Conn. O Sol aquecia-lhe o rosto, eliminando os medos sombrios que apenas umas horas atrás a tinham perseguido. Indiferente ao frio que se colava aos seus pés nus começou a dançar pelo quarto, de braços estendidos para um par imaginário. Parou de repente diante do espelho.
Tinha as faces coradas; cachos macios e despenteados emolduravam-lhe o rosto. Pôs os braços em volta do corpo, imaginou que Conn estava ao seu lado, abraçando-a. Sorriu e virou-se ora para um lado, ora para o outro, examinando os seios que ela temera nunca virem a desabrochar.
Da porta veio uma gargalhada que a obrigou a mudar de posição. Viu a cabeça de Audren observando-a.
- É o dia do seu casamento e você aí, admirando a si mesma!
- Não estava admirando-me. Estava lamentando a falta de certos atrativos - riu Gelina.
- Não parece ser essa a opinião de Conn, milady - respondeu Moira.
Moira entrou no quarto quase completamente escondida debaixo de montes de veludo cor de esmeralda.
- É lindo - suspirou Audren. - Gosta Gelina?
Moira comentou irônica:
- Se bem conheço a nossa menina, ela preferia umas calças de veludo verde.
Gelina estudou atentamente o vestido.
- Não se podem fazer umas emendas? - A pergunta mereceu-lhe uma pequena palmada na cabeça, o que fez Audren romper às gargalhadas.
Moira olhou para o teto.
- O dia mais importante da minha vida e tenho de aturar uma trupe de bobos. Ouçam-me as duas.
Tentaram fazer um ar sério perante o semblante grave de Moira, que lhes deu as mãos.
- Na devida altura, Audren e eu ajudamos a vesti-lo. Depois, Audren lhe acompanha à torre da outra ala, onde ficará sozinha até eu ir buscá-la. Nesse quarto encontrará uma gargantilha de ouro para por ao pescoço, uma faixa com pedras preciosas para amarrar à cintura e a aliança de ouro de Conn. Tudo isso simboliza que vera o dia chegar ao fim já como rainha de Erin.
Gelina sentou-se na cama, o rosto lívido.
- Que foi? - perguntou Audren, abanando a ponta da saia para refrescar.
- Não sei. É demais para mim. Ser a rainha de Erin nunca foi minha ambição. - Pousou as duas mãos na barriga, tentando em vão calar os ruídos que vinham do seu interior.
Moira acariciou-lhe o rosto.
- Mas para ser a mulher dele, vale a pena.
Gelina sabia que ela tinha razão. Lágrimas indesejadas correram pelo seu rosto. Abraçou-se a Moira e desatou a rir e a chorar ao mesmo tempo.
O meio-dia aproximava-se e as portas principais abriram-se de par em par para que os menos afortunados pudessem subir uns para cima dos outros e assistir à cerimônia. Uma centena de tochas ardia ao longo das paredes. Os suportes de cobre presos à madeira das paredes projetavam a sua luz irreal.
Rodney O’Monaghan encontrava-se no patamar por cima da multidão. Puxou o cortinado de veludo para o lado, apenas o suficiente para poder observar o que se passava lá em baixo. Os seus olhos semicerraram-se de desprezo quando viu os tronos cravados de rubis que dominavam o salão. Fitou-os durante algum tempo antes da sua atenção voltar a incidir sobre o estrado. Uma corda jazia dócil, a seus pés, com uma das extremidades presa ao teto por cima da sua cabeça. Três maçãs de ouro reluzentes enroscavam-se nas suas voltas. Num prego da parede estava pendurado um estreito arnês de couro. Rodney sorriu e pegou no arnês, rodando-o na sua mão.
Muito abaixo dele, Nimbus, de pé, com as mãos nas ancas, olhava para o patamar. Quase podia jurar que tinha visto o cortinado agitar-se, mas quando conseguiu atravessar a floresta de pernas para ver melhor, a cortina estava completamente imóvel, como se nunca se tivesse mexido. Teve um mau pressentimento na forma de comichão na nuca, mas resolveu coçá-la e não pensar mais no assunto. Talvez Gelina, incapaz de obedecer, tivesse ido espreitar a alegre confusão.
Audren juntou as fitas do vestido, as mãos tremendo violentamente.
- Estão lá muitas pessoas? - Gelina pigarreou para que a sua voz perdesse aquele irritante tom nervoso.
- Milhares. O salão está abarrotado. O pátio também está cheio. Até há pessoas nos terrenos em volta da fortaleza. Nunca vi tantos soldados ao mesmo tempo num só lugar. Talvez até vá arranjar marido.
Quando Audren acabou de amarrar a parte da frente do vestido, Gelina correu para o espelho. O vestido era cortado por debaixo do peito e tinha mangas de balão. A saia rodada caía graciosamente em volta das suas pernas elegantes. Nos pés, umas sandálias verdes e estreitas. Sem dizer palavra, Audren estendeu-lhe um braço e indicou a porta.
Percorreram os corredores desertos até à torre onde os acessórios da realeza iminente de Gelina as aguardavam. Nesse lado da fortaleza reinava a calma. Nem sequer um eco rompia o silêncio. Depois de apertar pela última vez o braço gelado de Gelina, Audren fechou a porta e deixou-a sozinha.
Gelina suspirou, invadida por uma inesperada tranquilidade. A vista da janela aberta era de cortar a respiração. Ali se deixou ficar por alguns momentos, inspirando o ar fresco que entrava pela janela, em seguida rodopiou, tonta de excitação.
Correu para a mesa comprida em frente da janela e pegou na gargantilha dourada, sentindo nos dedos o frio do metal polido. Colocou-a ao pescoço e agarrou na faixa. Os rubis e as esmeraldas engastados no ouro refletiam a luz do Sol projetando centelhas iridescentes no ar. Apertou-a à cintura, um peso raro para as suas ancas estreitas. Levou a aliança de Conn aos lábios antes de colocar no dedo.
De testa franzida observou os dois objetos remanescentes, sem se recordar de ter ouvido Moira mencioná-los. Estendeu a mão e pegou no objeto alongado de metal que estava em cima da mesa. Revirou-o na mão e viu que no lado inferior estava gravada uma coroa minúscula. As suas pernas começaram a tremer. Cada vez mais assustada olhou para o outro objeto pousado na mesa. Era uma minúscula maçã de ouro.
Saiu correndo, puxando pela saia quando a sentia presa nas falhas da madeira, sem recear que isso pudesse rasgá-la.
No alto patamar do salão de entrada, Nimbus enfiou o arnês pela cabeça e apertou-o.
Gelina quase voou pelos corredores desertos, o ritmo frenético do seu coração acompanhando o do ruído dos seus passos. Quanto mais corria, maior a fortaleza lhe parecia; os corredores prolongavam-se interminavelmente; respirava cada vez com maior dificuldade, tinha a boca seca.
Nimbus apareceu ruidosamente aclamado pela multidão. De pé, Conn cumprimentou o bobo com uma reverencia.
Ao dobrar a esquina, Gelina chocou com a parede, mas ignorou a dor no braço e os pequenos pingos de sangue que salpicaram o veludo amarrotado do seu vestido.
Nimbus abriu os braços pedindo silêncio à multidão.
Gelina desceu os degraus dois a dois e tropeçou na saia. O aplauso da multidão tornou-se mais intenso à medida que ela se aproximava, depois deixou de se ouvir.
- Senhoras e senhores, a vossa atenção, por favor. Hoje a moça mais bela de Erin tornar-se-á a mulher de outro. Na qualidade de seu pretendente de coração despedaçado, resolvi pôr fim à vida, despedir-me do amor. - Enfiou a cabeça na laçada da corda. Todos abriram a boca. Conn fez um sinal com a cabeça a Mer-Nod, escondendo com a mão um sorriso divertido.
Gelina correu pelo corredor que dava para o salão, mas viu-se mergulhada num emaranhado caótico de pernas e braços.
Com um gesto floreado, Nimbus indicou aos músicos que podiam começar a tocar.
De quatro, aos empurrões, aos encontrões, Gelina conseguiu chegar à porta.
As trombetas tocavam uma fanfarra alegre.
Gelina entrou de rompante no salão, caiu de joelhos e o seu grito foi abafado pelas exclamações da multidão quando Nimbus saltou do patamar.
O aplauso dos que já tinham assistido àquele número irrompeu pela multidão. Mas depressa se calou, ouvindo-se apenas o rangido da corda na qual o pequeno corpo balançava devagar. Conn abriu os olhos apavorado. Os seus olhos viajaram pela multidão emudecida até encontrarem Gelina, dobrada e ajoelhada no chão, com o veludo verde do vestido sujo e rasgado. O olhar da multidão acompanhou o seu.
Conn saltou do estrado e correu para as escadas quando se começaram a ouvir vozes:
- Está morto!
- Não era um truque!
- Tem o pescoço partido!
Ouviram-se crianças chorando enquanto os seus pais gritavam, horrorizados. No patamar, Conn puxou violentamente o cortinado de veludo. Aproximou-se do corpo de Nimbus e pegou nele ao colo.
Gelina olhou para cima, em pânico. O burburinho ficou reduzido a algumas fungadelas e um ou outro soluço quando Conn tirou a corda do pescoço do bobo e o apertou contra si. Ali ficou parado, os olhos fechados com força, até se ouvir um novo grito:
- Foi a pega do Eoghan que o matou! - Um dos soldados de Conn apontava para ela. Gelina sacudiu a cabeça, enlouquecida com aquela acusação.
- Ela é o demônio - exclamou uma mulher.
Sem lhe dar tempo para perceber o que estava passando, um soldado abriu-lhe à força a mão fechada, deixando à vista o amuleto de latão.
Ergueu-o na mão, triunfante:
- É a fivela do arnês do bobo! Ele não tencionava matar-se! Ela é que o matou!
O olhar de Gelina disparou em todos os sentidos, desesperado, enquanto ameaças terríveis pairavam em volta dela. As acusações deram lugar ao silêncio quando Conn desceu da plataforma com Nimbus ao colo, soluçando como uma criança. No salão de súbito imóvel, Gelina viu qualquer coisa mexer-se junto à porta. Reconheceu as costas do irmão, que desapareceu, deixando-a sozinha mais uma vez.
Conn desceu os degraus um a um até ao último, junto ao qual Sean aguardava pronto para receber a pequena trouxa. Um bafo gelado soprou por cima do pescoço de Gelina quando Conn se virou para ela. Um caminho através da multidão partiu até à sua silhueta ajoelhada.
Os olhares deles cruzaram-se, o de Gelina cada vez mais apavorado quando viu a determinação que havia no de Conn. Um instinto primitivo de sobrevivência levantou-a quando a mão dele pousou no punho da espada. Sacudiu a cabeça, emudecida, desistindo de negar fosse o que fosse diante daquela expressão implacável.
Conn desembainhou a espada com um movimento fácil. Gelina recuou, coordenando os seus passos com os dele, que avançou até a comprimir contra a parede. De narinas dilatadas, não tirou os olhos dela.
A espada demorou uma eternidade a ser recolhida, a luz das tochas refletida na sua lâmina. Os olhos de Gelina encheram-se de lágrimas.
A espada caiu ao chão quando Conn a agarrou pelos ombros brutalmente e a atirou para os seus soldados boquiabertos.
- Levem-na para a masmorra - ordenou. - Nunca mais vou conseguir olhar para ela.
Enquanto os seus homens a arrastavam para fora do salão, Conn cambaleou em direção à parede e escondeu o rosto nas mãos.
Nem correntes, nem masmorras escuras lhe
tornarão o caminho impossível;
ri dos mares e fortalezas
com a sua força invencível.
Autor desconhecido Século IX
Ela recusa-se a abrir a boca. Não me quer contar nada. - Enquanto falava, Sean virou as costas a Conn e olhou para a noite que espreitava do outro lado da janela. Sean não suportava ver o rosto de Conn tão desprovido de compaixão e ternura.
O rei sentou-se à frente da lareira.
- Não respondeu às suas perguntas?
Sean fez que não com a cabeça, reconhecendo a derrota.
- Nem confessou. Nem negou. Nem admitiu qualquer cúmplice. Não disse uma só palavra.
Conn levantou-se e caminhou pelo quarto. Passou uma mão pelo cabelo despenteado. A camisa larga pendia solta na cintura.
Virou os olhos raiados de sangue para Sean.
- Talvez o melhor seja deixá-la apodrecer até resolver a falar.
- Pela expressão dos olhos dela, acho que mesmo que ali fique cem anos não vai abrir a boca.
Conn ajoelhou-se diante do fogo e agitou a lenha até ela se cobrir de labaredas, manejando o atiçador como se fosse uma arma. As chamas projetavam estranhas sombras por todo o seu rosto. Os olhos cansados pareciam carvões em brasa, vítimas de sono a menos e cerveja a mais.
- A culpa é minha, sabe. Nimbus estaria vivo se eu tivesse desconfiado dela. - Largou o atiçador, foi até à janela e debruçou-se, para sentir o ar frio em cima de si. - Enterrei muitos amigos durante a vida, mas nunca nada me custou tanto como enterrar Nimbus. - Sacudiu a cabeça, pensativo.
- A sepultura é tão pequenina. Se eu não mandar lá erguer um monte funerário, vai ficar escondida pelos brincos-de-princesa quando chegar à primavera. É estranho. Quando estávamos tampando-a com terra, pareceu-me ouvi-lo rir ao longe, troçar de mim.
Sean pousou uma mão no ombro de Conn, sem saber o que dizer para aliviar o sofrimento do amigo.
O tom da voz de Conn mudou de repente.
- Vou fazer aquela cabra falar. Há de lamentar o dia em que nasceu. Dirigiu-se à porta, mas encontrou a silhueta hesitante de Sean barrando-lhe o caminho.
A alma de Sean tremia por ele se opor ao seu rei:
- Não acho que seja boa ideia ir lá abaixo agora.
Conn soltou uma gargalhada - um som oco, gélido.
- Tem medo que eu a mate? Acha que isso tem alguma importância?
- Só não acho boa ideia - repetiu Sean.
- Eu acho. Sai da frente.
Ainda Conn não tinha acabado de falar já um grito amargurado entrava pela janela, cheio de raiva e dor. Ao ouvir o ruído sobrenatural, Conn sentiu um arrepio na nuca, pois pareceu-lhe que ele incluía o nome do bobo. Com as mãos tremendo olhou para Sean.
O soldado fez que sim com a cabeça:
- É ela.
Visivelmente abalado, Conn entrou na antessala para onde davam os seus aposentos e bateu a porta com força, deixando Sean de pé no meio do quarto, sozinho e de ombros caídos.
Conn acordou abruptamente do seu sono agitado. Pôs os braços em volta do corpo, numa tentativa de minorar a dor que o torturava da cabeça aos pés. A voz de Nimbus dançava na sua memória, palavras provocadoras que não o deixavam em paz, fazendo-o revirar-se na cama, incapaz de evocar a resposta a uma pergunta que nunca tinha feito. Sentou-se e olhou para as brasas que passavam a cinzas. A sua mão tocou na cama gelada e vazia a seu lado. A dor intensa que sentia na virilha atormentava-o, de modo que resolveu atirar a manta para o lado e vestir as calças.
Descalço percorreu os corredores desertos. Os convidados do casamento tinham abandonado rapidamente a fortaleza, deixando para trás apenas uma vaga amostra de visitantes. A maioria dos homens do Fianna optou por se retirar preferindo reunir-se em volta das fogueiras na noite fria em vez de enfrentar os olhos atormentados do seu rei. Conn serpenteou pelo labirinto da fortaleza e penetrou nas suas profundezas ancestrais.
Um guarda de rosto impassível endireitou-se quando ele se aproximou, espantado por ver aquela figura familiar junto à pesada porta de carvalho. Os olhos furiosos de Conn impediram-no de fazer perguntas enquanto destrancava a porta e lhe entregava uma tocha. Conn desceu as escadas sozinho, com as chaves de ferro a tilintar nas mãos.
Passou de cela úmida em cela úmida até chegar à porta mais afastada. Com mãos tremulas, inseriu a chave na fechadura, rodou-a e empurrou a porta. A porta abriu-se de par em par, rangendo na escuridão.
Ergueu a tocha, que projetou sombras sinistras nas paredes de terra. Piscou os olhos, adaptando-os à escuridão. A luz irregular da tocha iluminou uma figura a um canto. Gelina estava aninhada contra a parede, rodeada por farrapos de veludo verde e sujo. Virou o rosto para a porta, protegendo a vista da intensidade da luz. Assim que o reconheceu, semicerrou os olhos numa careta de desprezo. Conn estremeceu apanhado desprevenido pelo ódio que havia naqueles olhos opacos.
Enfiou a tocha num suporte que havia na parede e caminhou pela cela escura sem tirar os olhos dela.
- Quero a verdade - disse, esforçando-se por eliminar a fúria da sua voz. - Por que razão matou Nimbus? Quem a ajudou a fazê-lo?
Enquanto os olhos impenetráveis dela troçavam dele, os seus lábios esboçaram um leve sorriso.
- Responde-me, Gelina. Já.
Ajoelhou-se à frente dela e agarrou-a pelos ombros. Enfiou os dedos na sua carne. O sorriso de Gelina alargou-se, para disfarçar uma careta de dor, quando ele a sacudiu até a cabeça dela pender como a de uma boneca de trapos.
- Quero a verdade - gritou.
Ergueu a mão fechada, mas acabou por baixá-la ao ver a expressão imperturbável de Gelina.
- Acabe, Conn - disse ela, numa voz rouca de não ser usada. - Ninguém vai ouvir os meus gritos. Ninguém se vai importar de ouvir os meus gritos. Acaba.
Conn baixou a mão e fechou os olhos por instantes.
- A verdade, Gelina - disse, largando o braço dela enquanto se endireitava.
Gelina apoiou o rosto nos joelhos.
- Ah, a verdade é uma coisa engraçada, não é? Nunca se deve acreditar na verdade. Nimbus teria achado divertido. Encontrava sempre um lado divertido mesmo nas situações mais tristes.
- Para de falar por charadas, O’Monaghan. Matou-o porquê?
- Então agora sou novamente a O’Monaghan, mais Rory do que Gelina. Tanto os seus afetos como o meu nome parecem mudar como o vento no verão. - Riu e começou a levantar-se.
Conn viu-se obrigado a ajudá-la, pois as pernas dela dobravam-se sob o seu próprio peso. Estava ainda mais pálida. Os seus olhos brilhavam sob a luz da tocha. Gelina riu em voz alta:
- Até onde está disposto a ir para obter as suas respostas, Conn? Vai espancar-me? Violar-me? Matar-me? Acredito que o crime é a única coisa a que ainda não recorreu nas suas miseráveis tentativas de me domar.
Conn levantou-a até os olhos dela brilharem a um centímetro dos seus.
- Deseja que eu a mate, milady? Ou quer que eu dê a minha própria alma por você?
- Você não tem alma – escarneceu ela.
- Finalmente, uma verdade. Perdi a minha alma no minuto em que a vi. - Apertou-a contra si até ter a certeza de que ela estava sentindo o seu corpo encostado a todos os centímetros do dela. - Nunca lhe daria a satisfação de matá-la. Adoraria verificar que sou tão terrível como sempre pensou que eu era.
- É mil vezes mais terrível do que eu imaginava. - Tomou balanço e deu-lhe um pontapé na perna.
Conn sacudiu a cabeça, mal sentindo o lamentável ataque, mas espantado com tanta ousadia. Largou-lhe os ombros, agarrou no pescoço dela com as suas mãos quentes e fortes e virou-a para si.
- Que tal eu partir o seu belo pescocinho?
Pensou ver uma sombra de medo nos olhos tristes de Gelina. Quase por vontade própria, os seus polegares, completamente controlados por ele, acariciaram a garganta de Gelina, detendo-se em seguida junto às veias que latejavam sob a pele macia.
- Se me despreza tanto, por que não me mata em vez de Nimbus? - perguntou, agarrando-a com mais força.
De queixo em riste, Gelina respondeu:
- Que pena não ter sido você. Quem me dera que estivesse morto, a balançar nas traves do teto, asfixiado com a própria bílis como o patife que é.
Por um instante, Conn agarrou-a com mais força ainda e as luzes oscilaram diante dos olhos de Gelina. Atirou-a ao chão, onde ela retomou a posição em que ele a encontrara virada para a parede.
- Primeiro não falava. Agora fala demais. - Dirigiu-se à porta. - Se continuar aqui, não sei o que vou fazer. Sean vai levá-la para longe, para tão longe que eu nunca mais vou ser obrigado a olhar para a sua alma infecta.
Saiu pela porta e deu a volta à chave. Fechou os olhos e escutou. Da cela não vinha qualquer som.
Gelina mordeu com força a saia esfarrapada até ouvir a segunda porta pesada bater ao longe. Só o guarda solitário ouviu os soluços que ecoara pela masmorra vazia.
Sean entrou na sala de trabalho e deu com Conn sentado na sala, cuja lareira estava apagada, de costas para a porta.
- Posso? - perguntou, esfregando os olhos sonados. - Mer-Nod acordou-me. Disse que queria falar comigo.
Conn falou sem mudar de posição.
- Quero que a leve para longe daqui, para uma das cabanas do lago. Não diz a ninguém para onde vai. Compreendido?
- Sim, Conn.
- Não sei se terá percebido.
Conn virou-se lentamente. Sean fez um esforço para não recuar um passo assim que viu o fogo perverso que ardia nos olhos de Conn.
- Nunca, mas nunca, quero saber para onde a levou.
Sean fez que sim com a cabeça.
Conn pôs-se de pé violentamente e Sean viu na mesa uma garrafa entornada em cima de uma poça de cerveja.
- Tem de jurar. Tem de jurar que nunca, mas nunca, vai me dizer onde ela está, por mais que eu o pressione.
- Juro.
Conn avançou na direção dele.
- Jura pelo deus que a sua tribo venera.
Sean levantou uma mão em sinal de protesto.
- Mas, Conn... Um juramento desses... Quebrá-lo decerto iria...
- Jura.
- Seja feita a vontade do meu rei. - Sean caiu sobre um dos joelhos sem tirar os olhos de Conn. - Juro que nunca revelarei o paradeiro dela. Juro pelo deus que a minha tribo venera.
Conn fez que sim com a cabeça, a exaustão presente em cada ruga do seu rosto desolado.
- Pode ir.
Virou-se e acenou. Sean fechou a porta com um suspiro, deixando Conn sozinho vendo pela janela à noite cor de ébano acinzentar-se.
De madrugada Gelina foi conduzida a um quarto minúsculo, onde a deixaram. Correu para a janela, a primeira que via há tantos dias. Agarrou as grades com as mãos e encostou a testa ao ferro frio. O pátio estava coberto de nevoeiro. Um cão uivava ao longe; o som solitário arrepiou-a. Não se via ninguém no pátio, à exceção de dois cavalos pacientemente presos junto ao estábulo.
Gelina virou-se quando a porta se abriu. Alguém atirou umas roupas para os seus pés.
- Troque-se - foi à ordem convicta do guarda antes de sair, batendo a porta.
Passou uma mão pelo tecido grosseiro e sorriu tristemente ao reconhecer as roupas. Despiu o que restava do seu vestido de casamento, atirou-o para o canto sem hesitar e enfiou a roupa macia, lavada. Por debaixo da pilha estava o seu gorro. Enfiou lá dentro os cachos despenteados e encostou-se à parede com as mãos nos bolsos.
Não precisou esperar muito. O guarda veio abrir a porta e fazer-lhe sinal para que saísse. Inspirou uma baforada de ar frio quando caminharam lá fora; ávidos de ar puro, os seus pulmões quase rebentaram.
Sean O’Finn estava ao lado dos cavalos imóveis. Recusou-se a olhá-la de frente quando juntou as mãos para ela montar o pequeno cavalo ruão. Perto, o outro guarda cerrou os lábios, demonstrando a sua hostilidade.
- Dá-me as suas mãos - ordenou Sean sem emoção.
Uma pergunta cruzou o rosto de Gelina, que se interrogou sobre o que lhe aconteceria se não obedecesse. Mal-humorada, esticou os braços. Ele amarrou-lhe os pulsos colocando um dedo por debaixo da corda para se certificar de que não estava muito apertada. Subiu para o outro cavalo e esperou que o guarda lhe passasse a corda de Gelina e a corda do cavalo dela.
Levou-os para fora do pátio a passo. Os ombros de Gelina contraíram-se quando se virou para ver Tara pela última vez. Numa janela do segundo andar, o olhar de uma figura solitária cruzou-se com o seu. Gelina semicerrou os olhos numa expressão de desprezo. Só desviou o olhar daí a algum tempo quando atravessaram o portão. Não o viu cair de joelhos e esconder o rosto nas mãos.
Sean sentiu a corda oferecer resistência enquanto atravessavam os campos. Virou-se, parou o seu cavalo e seguiu o olhar de Gelina, que fitava o pequeno monte de terra que se destacava no meio da vegetação. Sean julgou tê-la visto baixar a cabeça ao avistar a minúscula sepultura. Gelina agarrou a corda com força, ferindo os pulsos, apertou os joelhos contra o dorso do animal e os dois afastaram-se da fortaleza.
As costas crespas de Sean eram a única coisa que ela via enquanto galopavam pelos prados ou caminhavam por entre a espessa cobertura de arbustos. O Sol apareceu em cena ao final da manhã, o seu clarão morno pouco fazendo para aquecê-los no dia gélido.
Pararam quando o Sol pálido se encontrava por cima deles. Sean soltou-a e ordenou-lhe num tom firme que desmontasse. Gelina viu a mão dele em cima do punho da espada. De pé junto ao cavalo, continuava a evitá-la. Gelina ajoelhou-se à beira do pequeno lago e, com as mãos em concha, lavou o rosto. Ao inclinar-se, viu a imagem de Sean refletida na água. Estava olhando para ela.
Gelina rodopiou e viu-o virar a cara.
- Olhe para mim, Sean.
Ele levantou os olhos, sem se preocupar em disfarçar o desprezo que havia neles. Gelina virou-lhe as costas, incapaz de ver o que julgava estar preparada para ver.
- Por que fez aquilo, Gelina? - perguntou Sean de sobrancelhas carregadas.
- Fez-me essa pergunta na masmorra. É a pergunta errada. Quando fizer a pergunta certa, eu respondo.
- Ninguém lhe fará perguntas no lugar para onde vai. - Aproximou-se dela, amarrou-lhe as mãos, mas desta vez não verificou se a corda estava justa.
- Por que o escolheu para esta viagem, Sean? Não seria mais simples mandar alguém que não me conhecesse?
Sean ajudou-a a montar, depois respondeu:
- Escolheu-me por duas razões. Sei o que é capaz de fazer.
- E a outra?
Sean não desviou o olhar.
- Sabe o que eu não sou capaz de fazer.
Subiu para o cavalo sem mais palavras e seguiu a trote. Gelina agradeceu em silêncio a rajada de vento que aliviou o ardor que sentiu nos olhos.
Quando o dia deu lugar à noite, Sean parou o seu cavalo e tirou Gelina de cima do ruão. Deixando-a presa, foi apanhar ramos secos para a fogueira. Gelina ficou junto dos cavalos com as pernas doendo de alto a baixo.
Sean virou-se de punhal na mão quando ela ainda nem dois passos tinha dado.
- Estava só esticando as pernas - explicou ela, mostrando-lhe as mãos amarradas para se defender.
- Só se mexe quando eu lhe disser que pode fazer.
Guardou o punhal na bainha enquanto gotas de suor lhe escorriam pela testa. Imóvel, Gelina viu os ramos e gravetos pegar fogo.
- Pode sentar-se agora - ordenou, tirando os alforjes do seu cavalo.
Gelina sentou-se em cima das pernas dobradas. Sean desamarrou-lhe as mãos e comeram os dois em silêncio.
- Por que ele não me matou ou mandou executar?
- Foi misericordioso.
Gelina bufou.
Quando acabou de comer a tira de carne magra, Sean levantou-se e aproximou-se dela, com uma corda na mão.
- Tem de dormir com as mãos e os pés amarrados.
- Por quê?
- Foram as ordens que recebi. - Enrolou uma parte da corda nos tornozelos dela.
- E que ordens lhe deram para o caso de eu tentar fugir? Cortar-me a cabeça? - perguntou Gelina esboçando um sorriso frio.
- Talvez fosse melhor. - Gelina julgou ver uma centelha de piedade nos olhos dele.
Suspirou sem querer.
- Por quê?
- Porque me mandaram levá-la a Conn se tentar fugir. Ele próprio tratará do assunto.
Sem mais palavras, Gelina deitou-se como se fosse uma saca de farinha. Olhou para a fogueira, o lábio inferior saliente. Sean ficou algum tempo de olhos postos nela até os seus se fecharem de cansaço. Acordou apenas uma vez durante a noite e sentou-se, alerta, quando um gemido de dor interrompeu os seus sonhos agitados. Olhou para Gelina, que estava de olhos fechados e respirando normalmente. Sacudiu a cabeça e voltou a deitar-se, entregando-se mais uma vez ao consolo cego do sono.
Gelina acordou sem balbuciar, bocejar ou espreguiçar-se. Abriu simplesmente os olhos. O sol tênue da manhã envolveu o seu rosto no seu pouco calor. Era pouca a diferença entre estar acordada ou a dormir. Mesmo de olhos abertos, o corpo minúsculo de Nimbus balançava por cima da sua testa até aqueles olhos azuis furiosos o taparem. Os sonhos eram piores do que os pesadelos. Conn, atrás dela, apertava-a nos seus braços poderosos, rindo de cabeça inclinada para trás e com os olhos cheios de amor.
Recordava-se vagamente de ter chorado. Ficou com a corda vincada nas mãos quando as levantou para ver se tinham marcas de lágrimas. Esperava que o seu rosto estivesse limpo. Não queria que ninguém a visse em lágrimas.
Sean reuniu as coisas deles e ajudou-a a subir para o ruão. Tinha olheiras e Gelina sabia que o sono pouco contribuíra para o seu repouso.
O segundo dia foi uma amarga imitação do primeiro. A escuridão aproximava-se a passos largos quando Sean decidiu seguir a passo. O Sol desapareceu a ocidente, deixando uma lua fraca no seu lugar. O ritmo lento embalava Gelina, que cabeceava, de queixo encostado ao peito, e tentava combater o sedutor sono da exaustão. O movimento cadenciado cessou e a sua cabeça endireitou-se para encontrar Sean imóvel em cima do cavalo, de olhos fixos no vale em baixo. Parecia esquecido de que ela o seguia e não protestou quando Gelina apareceu a seu lado.
A colina descia para uma planície sem árvores que se estendia até ao sopé de uns picos sombrios, mais escuros do que o céu noturno. Gelina quase estremeceu quando uma rajada de vento lhe afastou o cabelo da cara. Uma desolação intensa e silenciosa como à paisagem triste esvaziou o seu coração ansioso, deixando apenas pavor a ocupá-lo.
Gelina deixou escapar uma gargalhada nervosa:
- Com o luar refletido pelas rochas, aquele casebre parece que está no meio de um lago.
Sean nem virou a cabeça.
- E está.
Gelina olhou para o borrão escuro que se destacava na paisagem, escutando no vasto silêncio o sussurro de ondas batendo nas pedras da praia. Uma fina película de suor revestia a palma das suas mãos. A Lua iluminava um telhado de colmo, arredondado, sólido.
- É um bom lugar para passar a noite, suponho - murmurou.
Em resposta, Sean começou a trotar. Montada no seu cavalo, Gelina seguia-o de pernas caídas, os joelhos muito trêmulos para se encostarem à pelagem transpirada do animal. A bacia formada pela planície varrida pelo vento protegia-os com os dedos impessoais do céu. Sean parou o cavalo e saltou para o chão; os seus dedos abriram dois alforjes com uma violência que não lhe era habitual. Empurrou Gelina do cavalo sem dizer uma palavra. Gelina olhou para o pesadelo de madeira velha que separava o areal da ilha.
Sean pôs os pés na ponte, indiferente ao seu aterrador balançar. Virou-se e viu Gelina imóvel junto às rochas, uma súplica profunda no olhar.
- Não sei nadar, compreende - disse ela num tom calmo.
Sean olhou para a ilha e tanto puxou pela corda que ela se viu obrigada a avançar, sob pena de cair ao lago. Encolheu-se quando a água gelada lhe encharcou as botas quase nem sentindo o relativo conforto da madeira velha debaixo dos pés. Agarrou-se à corda desfiada. Quando, puxada por Sean pisou a areia da ilha, tinha os olhos fechados. Resistiu à tentação de se ajoelhar e beijar a lama.
Sean atirou com os alforjes para o chão e desamarrou-lhe as mãos sem abrir a boca. Gelina friccionou os pulsos esfolados.
Em seguida Sean enrolou a corda nas mãos.
- Há lentilhas atrás da cabana e carne seca e cereal nos alforjes. Lá dentro há tochas e cobertores e tudo o que é preciso. Acho que não é necessário dizer onde está a água.
Dirigiu-se à ponte. Gelina agarrou-o por um braço.
- Vai deixar-me aqui? Assim sem mais nem menos? No meio da noite?
Sean soltou-se da mão dela.
- Volto quando os mantimentos estiverem chegando ao fim, para trazer mais.
- E isso quando é, Sean? Daqui a uma semana? Um mês? Um ano?
Sean entrou na ponte e começou a atravessar o lago.
A voz dela subiu de tom, em pânico:
- E se me vierem atacar, roubar?
- Que os deuses os ajudem.
Em pé, de mãos nas ancas, Gelina sentiu todo o seu corpo tremer.
- E o que me impede de sair daqui e ir enfiar uma espada no coração do seu precioso rei?
Ouviu o barulho do cascalho pisado quando Sean saiu da ponte para a praia. Sean virou-se para trás. Três raios de luz refletiram-se na espada dele, um atrás do outro, e Gelina viu, desesperada, a ponte cair ao lago insondável sem sequer uma bolha a assinalar a sua passagem. Sean montou e pegou na corda presa à égua.
- E se ele mudar de ideia, Sean? - gritou. - E se ele não lhe deixar voltar aqui? Se ele decidir deixar-me aqui apodrecendo até o mundo acabar? Vai voltar, não é verdade? Ele vai mandá-lo voltar até ser velho e grisalho e eu começar a desejar a morte. Patife sem coração...
Sean seguiu a trote. As imprecações de Gelina pontuaram a cortina aveludada da noite enquanto ele galopava por montes e vales com as palavras amargas dela a morrer nos seus ouvidos.
Gelina dirigiu-se à cabana e começou a arrancar punhados de vime lamacento. Gritou até já não reconhecer a sua própria voz, depois se deixou cair ao chão e as suas palavras passaram a soluços.
Soluçando sentou-se na lama com as mãos abraçando os joelhos, de costas para a cabana. As poucas estrelas que brilhavam no céu piscaram-lhe o olho, maliciosas. Em volta, o silêncio cresceu quebrado apenas pelo canto de um ou outro grilo na praia e pelas ondas batendo suavemente contra as rochas.
Gelina embrulhou a mão num farrapo de linho e raspou a turfa derretida da tampa de ferro. O aroma do pão acabado de cozinhar espalhou-se pela cabana quando ela despejou para cima da mesa a lata que continha o naco amarelado. Arrancou um pedaço e deu uma volta pela cabana sombria. Virou o rosto para o sol, atraída pelos picos arroxeados que rodeavam a planície. As calças e o colete estavam pendurados numa corda esticada entre a cabana e o telheiro, o que reduzia o seu vestuário a um vestido de linho sem forma que ela tinha encontrado todo amarrotado num dos alforjes.
Aconchegou a saia rasgada por debaixo dos joelhos e perguntou a si mesma, como já estava sendo um hábito, se estaria doida por se contentar em sentir o calor do Sol no seu rosto e o pão a desfazer-se na sua boca.
Desde a partida de Sean que os seus dias eram iguais uns aos outros, tão invariáveis como as suas emoções. Tanto podia estar ali há uma semana, como um mês ou um ano. Ocupava o tempo pescando, escavando turfa e apanhando o sol ou a chuva da tarde. As noites passava olhando as labaredas que dançavam na fogueira e dormindo um sono sem sonhos na cama desconjuntada.
Suspirou, odiando o Sol pelos raios pacificadores que lançava para a sua alma. Acabou o pão e lambeu os dedos, à espera que o fim do dia chegasse e os últimos raios de Sol incidissem sobre as encostas distantes até adquirirem o tom de safira dos olhos de Conn.
As nuvens negras avançavam sobre Tara, tão escuras e ameaçadoras como a expressão do rosto franzido de Conn. Da janela, Sean e Mer-Nod viram-no atravessar o prado montado em Silent Thunder e voltar. Parou o cavalo recuando tão violentamente que quase caiu da sela.
Mer-Nod virou as costas à janela praguejando em voz baixa. Sean fechou as portas de madeira quando os pingos de chuva começaram a molhar o parapeito.
Mer-Nod tirou um pergaminho de uma prateleira por debaixo do tampo da mesa e passou a ponta de uma pena pelos lábios.
- Não sei qual é o maior tormento, perder Nimbus e Gelina ou ver Conn neste estado miserável.
Sean concordou baixando a cabeça.
- Temos mais razões para desejar o regresso do rei que conhecíamos do que daqueles que realmente desapareceram.
- Entrou aqui de rompante ontem à noite e mandou-me apagar o nome dela de todos os registros históricos. Ameaçou destruir os meus poemas pessoais se eu não os escondesse num lugar onde os seus olhos nunca mais os vissem.
Sean sacudiu a cabeça, sentindo nos ombros o peso de algo horrível.
- Daqui a poucos dias volto lá.
- Nunca pergunta por ela?
- Nunca.
- Quantas vezes já foi lá?
- Três.
- E o que achou?
- Pareceu-me bem.
- Não foi isso que eu perguntei.
Sean abriu as portas, ignorando a chuva horizontal que caía sobre o seu rosto.
- Recusa-se a falar comigo. O tempo todo sozinha e nem sequer uma palavra de raiva ou censura quando vou lá.
- A raiva está fechada dentro dela - observou Mer-Nod.
- Pode ser verdade, mas eu não lhe viro as costas, vai que essa raiva venha outra vez ao de cima. Não quero ser outro Nimbus. - Encostou-se a moldura da janela e viu Conn atravessar o prado, tão determinado como os pingos de chuva que o perseguiam.
Sean acordou sobressaltado, certo de que a assustadora aparição aos pés da sua cama era um deus que vinha reclamá-lo. Foi um alívio quando percebeu que se tratava de Conn com o cabelo desgrenhado, como se tivesse sido despenteado por dedos agonizantes. Sentou-se, ansioso por se convencer de que as palavras que ia ouvir não passavam de uma fantasia sua.
- Onde está ela?
- Mas, Conn... Eu não posso...
Conn interrompeu-o com uma ordem firme:
- Diga-me onde está ela.
- O juramento, Conn. Eu prometi.
- Quebre-o.
Sean fitou-o, desconcertado:
- Conn, não me pode pedir... - Engoliu o resto, pois tinha a ponta fria de uma espada encostada à garganta.
- Quebre-o - repetiu Conn.
Os olhos ardentes de Conn viram-no deixar-se cair sobre o travesseiro com um protesto por fazer nos lábios.
Gelina derramou o caldo fervendo para a tigela e tirou a chaleira da grelha de ferro. Sentou-se de pernas cruzadas na lareira aberta, saboreando o calor que mantinha a noite à distância. Tinha parado de chover. A noite descia sobre a região pantanosa e ao mesmo tempo uma neblina subia do lago em espirais afuniladas, deixando tudo o que havia na cabana de uma umidade que gelava os ossos. Depois de pensar um instante puxou o vestido molhado para cima da cabeça e sentou-se coberta apenas pela camisa, com as longas pernas esticadas para as pedras achatadas e quentes.
O calor da tigela de barro aquecia-lhe os dedos. Tinha de sopra-los e lamber para que eles não se queimassem. Uma pancada na água desviou a sua atenção para a janela fechada.
Levou uma colher de caldo à boca sabendo que não era a primeira vez que um peixe menos precavido dava às barbatanas e saltava do lodo do lago para a lama da margem. Se a noite estivesse mais clara, talvez fosse lá fora atirar a pobre criatura ofegante para a água. Mas não ansiava abrir a janela com aquela escuridão. Receava que a vastidão selvagem asfixiada pelo nevoeiro cerrado despertasse no seu coração uma agonia solidária.
A tigela caiu ao chão quando a porta se abriu de repente, com tanta força que arrancou da parede punhados de vime. A porta apareceu Conn, envolto em neblina e com água escorrendo da sua cabeleira escura para as botas, numa cascata de lama. Olhava ora para cachos desgrenhados, ora para a camisa fina de algodão. Gelina entalou a camisa debaixo das coxas; fechou a mão em volta do ferro quente do atiçador pousado junto à fogueira.
- Enviei-a para este inferno para lhe castigar e o que vejo? Deitada em frente do fogo lambendo os dedos como um gato saciado. - Conn bateu com a porta.
Gelina pôs-se em pé num pulo e fez uma espécie de reverencia sem se preocupar em esconder o atiçador preso na sua mão fechada.
- Perdoa-me, Alteza. Definhar de braços cruzados não é a minha especialidade. Talvez lhe agradasse mais que eu tivesse sucumbido ao apelo do lago num acesso de desespero mais próprio de uma dama. O meu corpo inchado flutuaria para lhe saudar quando atravessasse o lago a nado.
Conn viu à sua frente um corpo tudo menos inchado. Dois meses naquele lugar tinham arredondado as feições juvenis de Gelina. O clarão avermelhado da fogueira atrás dela salientava, dolorosamente para ele, as suas curvas suaves. A camisa colava-se ao seu corpo como uma segunda pele cintilante. Os cabelos encaracolados passavam-lhe dos ombros, brilhando a luz do fogo como fios de ouro. Sem dar por isso, aproximou-se dela.
Gelina levantou o atiçador e os seus olhos faiscaram.
- Se me tocar o mato. Juro.
Conn parou, pressentindo uma determinação nova naquele tom baixo, sussurrado. Cruzou as mãos atrás das costas com um pequeno sorriso:
- Sempre foi uma criança estúpida. Suponho, porém, que herdou essa característica legitimamente. Toda a sua família foi amaldiçoada com falta de inteligência talvez causada por toda aquela consanguinidade da parte da família de Deirdre.
Baixou-se. O atiçador passou rente à sua orelha, tal como previra. Os seus lábios esboçaram um sorriso de satisfação quando se endireitou. Uma tigela de barro estilhaçou-se contra a sua testa. Gelina gritou quando o viu correr pela cabana como um louco, a ganir. Uma vassoura e uma chaleira de cobre sucederam-se rapidamente à tigela.
Gelina encostou-se à parede, fora do alcance de Conn e mantendo um fluxo consistente de objetos no ar, todos rumando à cabeça de Conn com considerável pontaria. Quando pegou numa colher de ferro, foi obrigada a parar por uma mão forte que lhe puxou o cabelo. Uns dedos brutais torceram-no até ela romper em lágrimas e não ter outro remédio senão ajoelhar-se aos pés de Conn. Os seus olhos turvos fitaram um rosto que podia ter sido feito de granito, tão frio era o seu olhar e tão impiedosa a sua expressão. Gelina fechou os olhos, sabendo que era capaz de localizar todas as rugas daquele rosto, como fizera um milhar de vezes nos últimos três meses.
- Isto fazia parte dos seus planos desde o início? - murmurou. - Vir aqui quando lhe dá na gana para me magoar?
A voz dele tremia:
- Se esse fosse o meu plano, a teria prendido aos pés da minha cama em Tara e a possuiria até me fartar. O meu plano era não voltar a pôr os olhos em cima da sua cara sardenta, linda.
Passou os lábios pela ponta do nariz dela. Afastou-se subitamente, surpreendido com a sua própria ternura. Sem tirar a mão do cabelo dela, obrigou-a a ajoelhar-se ao lado do colchão de penas e encostou a sua rigidez à macieza redonda de Gelina tão impetuosamente que rasgou a fina camisa de algodão. A dureza afastou-se das costas dela com um suspiro atormentado quando ela sentiu a outra mão mexer-se e percebeu que ele estava desamarrando o cordão das calças.
- Sei o que quer - disse Gelina em voz muito baixa. - Mas não mereço ser tomada assim, como um animal.
Conn soltou-lhe o cabelo, que caiu sobre o rosto dela numa sucessão de ondas vermelhas.
- Então como merece ser tomada? - Virou-a para si. - Como uma mulher amada? Como a querida esposa de um rei?
As lágrimas jorraram dos olhos de Gelina.
- Estou em suas mãos Conn. Desde que o conheci nunca pedi a misericórdia do rei supremo de Erin. Peço-a agora.
Conn recuou visivelmente.
- E uma atitude cruel da sua parte suplicar ao rei quando só lhe trouxe desonra e morte. O rei já matou por coisas de menor importância. Esta noite, é o homem que tem o seu destino nas mãos.
Gelina baixou a cabeça.
- Então não há esperança para mim?
Conn largou-a para lhe enxugar as lágrimas. Gelina correu para a porta e saiu para a noite nublada. Conn deu um salto e praguejou. Ouviu qualquer coisa cair à água e em seguida um silêncio ensurdecedor.
- Gelina! - gritou rouco.
O mergulho de Conn cortou a superfície vítrea do lago. Nadou de um lado para o outro debaixo de água, revistando como louco as suas profundezas turvas em busca de um centímetro de pele branca, de uma amostra de cabelo ruivo. Emergiu para respirar em pânico e voltou a mergulhar, a frustração dando lugar ao desespero. A maciez impossível dos fios de cabelo que puxara tão implacavelmente minutos atrás não lhe saía da cabeça. A água escureceu à sua volta e percebeu que a consciência estava prestes a abandoná-lo.
Arrastou-se para a margem lodosa e ali ficou deitado com a cabeça pousada nos braços cruzados, a mente desesperadamente vazia. Abriu os olhos e viu à sua frente dois pés nus, sujos de lama. O seu olhar ergueu-se a partir desses pés, passou por umas pernas bem torneadas e foi dar à ponta luzidia da sua própria espada suspensa nas mãos de uma mulher com um sorriso gélido.
- O barulho? - perguntou.
- O seu alforje. - Os olhos cor de esmeralda brilhavam como os de um duende sedento de vingança.
- E se eu tivesse afogado enquanto a procurava?
Gelina encolheu os ombros e Conn nunca esteve tão perto de odiá-la. Pousou a cabeça nas mãos e suspirou.
- Entra - disse ela. – Pode adoecer se continuar deitado na lama.
- Como recusar um convite tão encantador vindo de uma dama de espada na mão? - Sentou-se com um sorriso irônico e Gelina recuou dois passos.
- Cuidado. Não ponho as mãos numa espada há muito tempo e não quero arrancar sua cabeça inadvertidamente.
Conn não pôde deixar de rir enquanto se dirigia à cabana. Gelina seguiu-o com a espada encostada ao fundo das costas.
Conn baixou-se e entrou.
- As meninas deviam ter cuidado quando brincam com os brinquedos dos guerreiros. Podem...
A lâmina da espada atingiu-o entre a orelha e a testa. Deixou-se cair no chão de pedra e, antes de tudo se tornar escuro, lembrou-se de que a sua mãe tinha razão quando dizia que ele nunca sabia quando devia calar-se.
Conn abriu os olhos sentindo uma campainha tocar ruidosamente dentro da sua cabeça e uma dormência nos braços que o prevenia de que estava preso. Pestanejou. O Sol que entrava pelas fendas da janela dava à cena encantadora junto à lareira uma doçura que o fez perguntar-se se estaria ainda sonhando. Gelina mergulhou um trapo numa bacia velha cheia de água fervendo e passou-o pelos ombros e braços com a indolência de uma pessoa habituada a estar sozinha. A sua pele estava radiante. A água escorria-lhe em pequenos fios da coluna macia do pescoço até aos vales que a camisa pudicamente escondia.
Com algum esforço, Conn sentou-se. Gelina enfiou um vestido sem forma na sua figura elegante fazendo-o abafar uma exclamação.
Olhou, chocada, para a expressão ávida dele por um instante. Depois foi abrir as porta e o Sol entrou a jorros na cabana, colocando no seu cabelo um halo de fogo e enterrando o seu rosto na sombra.
- Por que será que sempre que eu a subestimo acordo com dores de cabeça? - perguntou ele.
Gelina encolheu os ombros e sentou-se na borda da lareira, o queixo apoiado nas mãos. Ao fim de um minuto de silêncio, durante o qual ambos se olharam com desconfiança, disse:
- É a primeira vez que tenho um rei como refém.
- Ninguém diria isso depois de ver estes nós. Sinto-me um porco à espera do talhante. Podia ser uma boa menina e soltar-me antes que eu fique sem braços, nem pernas.
Gelina mordeu pensativa o lábio inferior.
- É uma pena não haver ninguém para levar a Tara à notícia da tua triste situação.
Conn mostrou os dentes brancos num sorriso triunfante.
- Se me soltar tenho o maior gosto em dar eu próprio a notícia.
- Quem me dera saber nadar - suspirou ela.
- Experimenta. Nunca é tarde para aprender.
- Calculo que um resgate está fora de questão, uma vez que não há ninguém para dar o recado.
O sorriso de Conn desapareceu:
- Era exatamente o tipo de coisa que Nimbus teria adorado fazer.
Gelina levantou repentinamente a cabeça. Foi até ao fogão e, com as mãos trêmulas, derramou um nabo cozido e frio para dentro de um pilão. Triturou-o e pisou-o como se fosse o coração de Conn e não um infeliz vegetal.
- Não há carne - disse, entre duas pancadas. - Comi o último pedaço há uma semana. Sean não trouxe mais.
- Mas, minha querida, a sua carne está dentro do meu alforje no fundo do lago. Decerto não pensou que eu vim aqui só pelos seus lindos olhos.
A mão do pilão bateu no fundo da tigela com tanta força que a partiu. Gelina atirou os cacos para a lareira de uma só vez. Foi buscar outra tigela e outro nabo.
- Se não quer comer este nabo tal como está sugeria que tivesse cuidado com essa sua língua viperina até eu acabar isto - disse concentrada na sua tarefa.
- Por quem é. Sempre tive uma queda para nabos inteiros e frios.
Gelina olhou para ele e Conn percebeu que mais uma palavra e ela enfiaria-lhe o nabo, ou mesmo a tigela, pela garganta abaixo. Prudente, manteve a boca bem fechada.
Gelina ajoelhou-se ao lado dele brandindo uma colher cheia de nabo.
Conn fechou os lábios com mais força ainda e desviou-se dela.
- Como sei que isso não está cheio de cicuta ?
Exasperada, Gelina sentou-se sobre os calcanhares e respirou fundo.
- Se eu quisesse mata-lo tinha resolvido o assunto esta noite enquanto dormia.
- Há uma pequena diferença entre dormir e perder os sentidos com a pancada de uma espada.
- Não desvie o assunto. Abre a boca.
Conn abriu a boca revoltado e Gelina enfiou-lhe a colher na boca. Ele engoliu o nabo frio com um gesto teatral. Gelina olhou para a tigela para disfarçar um sorriso.
- Não posso comer mais - anunciou. - Tenho de ir lá fora. - Os olhos de Gelina escancararam-se diante daquele pedido. - Tenho... Como disse naquela noite na gruta? Ah, já me lembro..., necessidades a satisfazer.
Gelina levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro.
- Não posso soltá-lo. Não é de confiança.
Conn concordou baixando a cabeça.
- É verdade. Podia desamarrar-me só os pés e não as mãos. Teria muito prazer em aceitar o seu auxílio.
Gelina corou furiosa, e Conn rompeu às gargalhadas. Ela baixou-se e olhou para ele.
- Como fui me convencer de que era um homem decente?
Conn inclinou-se para frente até tocar com o nariz no dela:
- Era um homem decente antes de lhe conhecer.
Ela recuou um passo e Conn caiu para frente com um suspiro atormentado. Sentiu uma faca cortando as cordas. A ponta aguçada contra as suas costelas era indiscutivelmente a da sua espada.
- Se fizer um movimento suspeito que seja, atravesso-lhe - disse ela enquanto Conn se punha de pé.
- Preferia ser eu a atravessá-la - murmurou ele, suficientemente alto para ela ouvir.
Gelina torceu o pulso; a ponta da espada furou a túnica dele e tocou a pele nua. Conn respondeu com uma gargalhada.
Espreguiçou-se quando saíram da cabana e sentiram o calor do Sol, disfarçando a dor provocada pelo regresso dos seus músculos à vida. Gelina manteve-se à distância do seu braço esticado mais a lâmina, virada para os picos distantes.
- O seu pudor virginal é comovente, amor - disse Conn, sacudindo os ombros de tanto rir.
- Esqueci-me. Não respeita o pudor nem a virgindade. Característica que herdou do seu pai, sem dúvida.
Conn deu meia volta e apertou os cordões das calças. Gelina ouvia-o respirar e sabia que a única razão pela qual não tinha sido estrangulada era o metro e vinte de aço encostado à barriga musculosa dele.
- Para a cabana - ordenou, disfarçando o seu súbito pânico.
Conn só se mexeu ao fim do que lhe pareceu uma eternidade. Então a falsa suavidade substituiu a raiva fria dos seus olhos azuis e Conn avançou para a cabana.
Sentou-se no chão e estendeu os pulsos, franzindo ironicamente a testa. Gelina trocou a espada por uma faca e tentou amarrar suas mãos e segurá-la ao mesmo tempo.
- Quer que eu segure a faca?
- Só se enfiar entre as costelas - respondeu ela, dando um nó na corda.
Sentou-se absorta nos seus pensamentos, olhando para as palmas calejadas das mãos dele e para os pêlos escuros das costas, recordando a força meiga dos dedos que a tinham torturado e acariciado, ao que parecia com o mesmo prazer. Levantou-se e caminhou em direção à lareira, sem saber que Conn tinha visto a lágrima quente que caíra em cima da sua mão.
Para disfarçar a sua súbita inquietação, Conn perguntou num tom sarcástico:
- Diga, minha querida, se não pensa pedir um resgate para que me tem aqui prisioneiro? Para o seu prazer? Sei que as noites aqui são frias e solitárias, a não ser que tenha encontrado um tritão que satisfaça as suas necessidades.
Quando Gelina se virou abruptamente para ele, tinha os olhos secos:
- Encontrei uma colônia inteira de tritões... Milhares deles. Vêm a mim todas as noites e são muito melhores do que você alguma vez sonhou ser.
Conn olhou para ela através de seus cílios pretos:
- Então a sua memória é muito curta, querida.
Sem mais palavras, Gelina saiu da cabana e bateu com a porta.
Conn mediu o tempo recorrendo ao comprimento das sombras que rastejavam pelo chão. A fome fê-lo sentir uma dor no estômago e lamentou tê-la irritado. Passou a língua pelos lábios ressequidos e pensou em gritar, na esperança de que ela o ouvisse. O orgulho apagou as palavras antes delas se formarem na sua boca. A cabana estava escura e a chama reduzida a meia dúzia de brasas quando Gelina abriu a porta com um pontapé. Pousou ruidosamente no chão com um balde cheio de água e colocou uma braçada de lenha na fogueira.
A fome, a sede e outras necessidades por satisfazer chocavam-se dentro de Conn. Não se deu ao trabalho de disfarçar a animosidade contida nas suas palavras:
- Procurei reagir com galanteria ao seu joguinho, Gelina, mas cansei-me. Ordeno-lhe que me desamarre.
Gelina virou-se com uma gargalhada:
- Sempre o rei, Conn. Nunca conseguirá dominar os O’Monaghan. Quando vai meter isso na cabeça?
Os olhos dela faiscavam. Conn concentrou a sua força nos maxilares para impedir que a sua boca se abrisse quando ela agarrou no vestido sem feitio pela bainha e o puxou por cima dos cachos desgrenhados. Atirou-o para o lado e pôs mais lenha na lareira, com calma e graciosidade. Conn não tirava os olhos das curvas graciosas das suas costas e ancas estreitas, debruçada sobre a chama vestindo apenas a camisa. As labaredas cresceram projetando silhuetas de todas as curvas do seu corpo que nem a imaginação nem a memória de Conn eram capazes de lhe fornecer.
Conn estremeceu quando um pingo de suor lhe escorreu da testa.
Gelina sorriu docemente e estendeu-lhe um prato:
- Aceita um pouco de pão?
- Não tenho fome - mentiu ele.
Gelina encolheu os ombros e levou um pedaço de pão aos lábios, lambendo os dedos um a um como se deles escorresse manteiga e não migalhas secas. Os músculos dos braços de Conn contraíram-se quando puxou pelas cordas atrás das costas com toda a sua força.
- Talvez queira um pouco de água? - perguntou Gelina.
- Talvez.
Levou o balde da água para junto dele e ajoelhou-se.
- Nunca fui uma escrava lá muito dotada, mas vou tentar agrada-lo - disse, séria.
Todo o corpo de Conn ficou rígido quando ela se sentou ao seu colo e encostou os lábios quentes aos dele. A boca de Conn abriu-se sob a dela automaticamente, a língua vasculhando as profundezas que o perseguiam em sonhos desde que a expulsara do castelo. Gelina esfregou os seios macios contra o peito dele, ronronando como uma gata. Conn sentiu o corpo dela tremer e pensou que se não a abraçasse e apertasse contra si seguramente morreria. Enquanto os seus lábios procuravam o calor dela, o seu corpo encostou-se contra as concavidades macias de Gelina até ela abrir a boca e afastar-se com um olhar tão parado e perdido como o seu.
- Desamarre-me - pediu rouco.
Gelina levantou-se tropegamente. As suas mãos agarraram, determinadas, a pega do balde.
- Aqui tem a água.
Conn abriu a boca quando a água fria do rio caiu por cima dele. Semicerrou os olhos. Gelina recuou como se, num qualquer recesso recôndito da sua mente, receasse que as cordas se partissem com a força da fúria dele.
Riu - um som estranhamente desafinado e ofegante.
- Me dá pena, Conn. Você até tenta, mas ainda não me odeia como queria.
- Estou aprendendo - respondeu ele, sacudindo a água do cabelo como um leão enraivecido. - Quanto mais a conheço, mais me lembra do seu pai.
- O meu pai tinha cabelo negro.
- Bem sei. Mas por debaixo de toda aquela fanfarronice ele também era uma cabra.
Gelina bateu-lhe com força. A sua mão deixou uma marca vermelha no rosto branco de raiva. Conn baixou as pálpebras, reduzindo os olhos a ranhuras brilhantes.
- Quando eu desamarrar estas cordas - disse – vou pegá-las e...
Gelina recuou mal ele começou a descrever, de forma detalhada e imaginativa, tudo o que iria fazer-lhe quando se visse em liberdade.
- Pare! - gritou ela.
Conn começou a rir como um louco sem desistir da sua tirada. Gelina nunca tinha ouvido algumas daquelas palavras, mas as que conhecia bastaram para ter uma ideia do que lhe ia na cabeça.
Soltou um grito agudo, cobriu os ouvidos com as mãos, saltou para cima da cama de penas e puxou a manta para cima da cabeça. Adormeceu desesperada, muito antes de deixar de ouvir a voz de Conn, que se deixou cair, estafado, em cima da poça de água fria.
Conn acordou ouvindo os dentes batendo. Sentindo um misto de fome e frio, percebeu que aqueles dentes eram os seus. Tinha as roupas molhadas coladas ao corpo gélido. Olhou espantado para a figura debruçada sobre os seus pés. Gelina cortava-lhe as cordas com as duas mãos, a faca presa nos dentes. Os seus olhares cruzaram-se.
Segurou-lhe os braços ainda amarrados e ajudou-o a pôr-se de pé, encostando-o a um ombro quando as pernas doridas tentaram dobrar-se. Amparando-o, conduziu-o até uma enxerga colocada em cima das pedras quentes junto à fogueira. Tirou a faca da boca e pousou-a no chão. Conn sentou-se ao lado da fogueira que crepitava, reabastecida de lenha, e foi deixando de sentir o corpo gelado, à exceção da língua.
Gelina sentou-se à frente dele com uma tigela de sopa fumegante no colo. Levou-lhe à boca a colher de madeira. A sopa de lentilhas aqueceu-lhe o corpo entre a boca e o estômago. Ela continuou a dar-lhe de comer lentamente até a tigela ficar vazia.
Conn não protestou nem disse nada quando Gelina enrolou a corda aos tornozelos e lhe deu um nó. Deitou-se na enxerga sentindo a roupa endurecer à medida que secava. Esperou que o sono chegasse, sem tirar os olhos doloridos de Gelina.
Gelina abriu a janela e olhou para a luz tênue que incidia sobre a cabana. Afastou uma madeixa de cabelo dos olhos e encostou a testa a moldura da janela, o rosto pálido e exausto como a madrugada, os olhos secos como o ar da manhã. Conn fechou os olhos, cansado, levando para os seus sonhos a memória daqueles olhos áridos. Não sentiu umas mãos a aconchegar ternamente a manta em volta do seu corpo.
- Gelina?
- Hum? - Gelina cobriu os olhos com o braço e respondeu ao sussurro familiar com um murmúrio meigo.
- Gelina? - tornou o sussurro, desta vez mais alto.
Abriu relutantemente os olhos e concluiu, pela inclinação do sol pálido visto através das portas que já estavam na metade da manhã.
- Não queria incomodá-la, querida, mas uma nova incursão será extremamente benéfica.
Ao ouvir aquelas palavras rápidas, Gelina sentou-se de repente e atirou a manta para o lado. Conn estava sentado de costas para a lareira, as pernas dobradas contra o peito. As rugas da sua testa preveniam que a trégua da madrugada chegara ao fim.
Gelina esfregou os olhos e espreguiçou-se.
- Sua Alteza tem um pedido a fazer?
- Um pedido que não recusaria nem a um cão, tenho a certeza.
- Ah, mas os cães são leais, não é verdade? - Enfiou o vestido de linho pela cabeça com um bocejo e pisou o chão frio.
- Essa palavra é uma aberração nos seus lindos lábios.
Gelina sacudiu a cabeça e estalou a língua.
- Mas que mau humor! Talvez não dormiu bem.
Conn não respondeu. Os seus olhos azuis e frios semicerraram-se e Gelina riu para esconder os batimentos descontrolados do seu coração. O cabelo despenteado de Conn e a barba por fazer faziam-no parecer um antepassado bárbaro que não conhecia as palavras honra e gentileza - um homem que nunca tinha feito o juramento do Fianna. Um medo sem qualquer ligação racional com a força das cordas esvoaçou no estômago de Gelina.
- Talvez sair um pouco melhore a sua disposição - sugeriu ela.
Ajoelhou-se ao lado dele e dobrou-se, entregue à tarefa de lhe desamarrar as cordas dos tornozelos. Puxou pelos nós. Praguejou em voz baixa ao verificar que eles ofereciam resistência.
- Deixe-me ajudar - disse ele num tom suave.
Virou a lâmina para cima, cortou a corda e num movimento rápido encostou-a à garganta dela. Gelina ficou olhando e recordou o instante em que pousou a faca no chão para conseguir dar-lhe uma colher de sopa quente. A pressão suave, mas firme da lâmina fria contra o seu pescoço a fez levantar a cabeça e, contrariada, teve mesmo de olhá-lo de frente. O sorriso de desprezo recordou-lhe todas as ameaças que Conn proferira na noite anterior. A impressão no estômago intensificou-se.
Voltou a olhar para os pés dele e disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
- Fui simpática com você.
Conn franziu a testa, incrédulo:
- Comparada com quem? Eoghan Mogh? Os mercadores de escravos romanos?
- Dei-lhe uma manta. E de comer.
Enquanto falava, Conn apanhou as cordas espalhadas no chão:
- Pois eu vou dar-lhe mais do que uma manta. Vou dar-lhe uma cama. - A lâmina trêmula da faca empurrou a cabeça dela para cima. - E vou alimentá-la bem.
Sem dar tempo a Gelina para proferir qualquer palavra de protesto, virou-a de barriga para baixo e pousou os joelhos aos lados do corpo dela. Puxou os braços de Gelina para as costas e amarrou-os com a corda e sem qualquer delicadeza.
- Conn? - chamou Gelina num tom suave. - Suponho que este não seja um momento oportuno para pedir desculpas, mas eu tencionava liberta-lo hoje, acredite. Estava tão furiosa. Foi apenas uma brincadeira. Não queria fazer-lhe mal. Nunca eu... - Não falou mais sentindo que a corda começava a ferir a sua carne tenra. Os seus olhos encheram-se de lágrimas.
As mãos de Conn desceram até aos tornozelos de Gelina devagar, competentes, e um pontapé rebelde foi reprimido com um cotovelo encostado à parte posterior de um joelho. O chão abanou por debaixo dela quando o seu corpo foi içado para o ombro dele e lançado para a cama como uma saca de farinha. Aterrou de bruços e afundou-se no colchão de penas como uma pedra.
Conn abriu a porta e Gelina sentiu o ar fresco soprar para as suas pernas. O pânico apertou-lhe a garganta.
- Conn?
Pelo silêncio que se fez lá fora, deduziu que ele tinha parado.
Pronunciadas contra o colchão, as palavras dela mal se ouviram:
- Vai me deixar morrer aqui de fome... Ou de falta de ar?
- Talvez eu lamente não o tê-lo feito quando isto chegar ao fim. Se me da licença, milady, vou tratar do meu cavalo. Não pode alimentar-se de pedras e ervas secas eternamente.
- Não me disseste que Silent Thunder estava à sua espera.
- Posso ser suficientemente estúpido para vir aqui a nado, minha querida, mas nunca seria estúpido a ponto de vir a pé. Não se aflijas. Eu volto. Esta noite.
Gelina estremeceu quando Conn bateu com a porta. Torceu o nariz até conseguir retirá-lo do colchão sufocante e macio. A cama chiou sob os movimentos convulsivos dos seus braços e pernas. Respirou fundo e quando se virou verificou, tarde demais, que Conn a deixara à beira da cama e não ao centro. Rolou para o chão e caiu de barriga. Deixou escapar um suspiro quando deitou o rosto nas pedras e perguntou a si mesma por que razão se tinha dado ao trabalho de sair da cama.
Gelina acordou ouvindo a porta bater e passos cruzando rapidamente o chão. Sorriu ao pensar que Conn tinha encontrado a cama vazia. Pingos de água caíam sobre os seus pés nus. Pelo canto do olho que não estava encostado à pedra, viu Conn debruçado por cima dela envolto nas sombras do entardecer, esfolando um coelho começando pelas orelhas. Depois sacudiu a cabeça e atirou o coelho para a fogueira. Despiu as roupas molhadas até ter apenas um pedaço de couro macio enrolado à cintura. Gotas brilhantes de suor colavam-se aos seus cachos despenteados. Os olhos de Gelina pousaram, contra sua vontade, nos pêlos escuros que se encaracolavam nas coxas musculosas.
Gelina reprimiu um tremor quando ele se inclinou e a colocou na cama, com umas mãos simultaneamente fortes e ternas.
A boca dela abriu-se contra a pelagem macia e úmida do peito de Conn.
- Esperava me encontrar revoltada ou arrependida esta noite?
Conn apoiou o queixo na cabeça dela.
- Só esperava encontrá-la triste e esfomeada. É verdade?
Gelina fez que sim com a cabeça e ele deixou-a cair em cima das almofadas de penas. Olhou-o desconfiada. Conn desamarrou-lhe os pés, depois rastejou por debaixo dela para lhe soltar as mãos. Antes de ter tempo para massagear os pulsos doridos, Gelina sentiu umas mãos quentes e poderosas agarrarem na sua cabeça e inclinarem-na para trás até os seus olhos terem à frente os olhos abrasadores de Conn.
- Estou avisando, Gelina. Há instintos naturais em mim que terei dificuldade em reprimir se me apanhar outra vez desprevenido. Podia tê-la deixado a cara numa papa quando me prendeu, mas decidi não o fazer. - Passou os lábios pela testa dela. - Um rosto tão belo.
Gelina irritou-se quando deu por si estremecendo. Conn largou-a e espevitou a fogueira enquanto assobiava alegremente. Com o queixo apoiado nos joelhos, Gelina observou-o, resistindo à vontade de revistar o quarto à procura de algo que lhe servisse de arma. Conn inseriu o coelho no espeto com um movimento hábil. O seu sorriso malicioso deixou novamente tremendo. O perfume da carne assada espalhou-se pela cabana e o seu estômago roncou.
Conn levou-lhe o prato à cama e sentou-se de perna cruzadas. Gelina fitou a carne, com um apetite inversamente proporcional à benevolência do sorriso de Conn.
- Não posso... - começou ela.
Conn tirou-lhe o prato das mãos e pousou-o no chão.
- Lamento, mas já comeu o suficiente.
- Mas eu ainda não comi nada. Ia até pedir uma faca.
Conn encolheu os ombros tristemente.
- Nem facas, nem carne. Desapareceu tudo.
Gelina olhou para o coelho meio trinchado que estava em cima da grelha e perguntou a si mesma qual dos dois estaria enlouquecendo. Conn continuava com um sorriso radiante. Pegou um cantil que estava atrás das suas costas e estendeu-lhe.
Gelina estendeu o braço devagar. Fechou os dedos em volta do couro estalado. Depois de molhar os lábios com água fria, o cantil foi recolhido. Conn agitou-o por cima do ombro.
- Então, então. Não vale exagerar.
Gelina baixou os olhos, sentindo a raiva da impotência contrair-lhe os maxilares.
Conn continuava com um sorriso radiante quando ordenou:
- Dispa-se.
Gelina quase se engasgou com o ar que inspirou.
- O que disse?
- Dispa-se - repetiu com um ar paciente. - Dei-me o seu vestido.
Gelina fez que não com a cabeça. Os dedos de Conn percorreram a curva graciosa do lobo da orelha dela.
- Mas por que não? Tirou a roupa tão apaixonadamente quando eu estava preso. - O sorriso tinha desaparecido e Gelina fitou aqueles olhos azuis cheios de desejo.
Sem lhe dar tempo para responder, as mãos dele agarraram no vestido de linho e rasgaram-no do ombro à cintura. Um dedo forte ficou preso no tecido fino entre os seus seios e Gelina percebeu que a camisa teria o mesmo destino do vestido. Encolheu-se. O algodão esfarrapou-se nas mãos dele. Conn atirou-a para a cama e puxou os pulsos dela para cima da cabeça.
Gelina nunca o tinha ouvido falar num tom tão frio e suave:
- Diga-me as noites são frias na cabana, Gelina? Alguma vez acordou lavada em lágrimas nestes meses todos ansiando, úmida, por mim? - Gelina estremeceu quando ele passou os lábios pela testa dela, pelas faces, pelo pescoço. - Pode odiar-me, mas não pode dizer que não me deseja.
Largou-a. Gelina ficou deitada, imóvel e apavorada, sob o olhar implacável dele. A mão cruel de Conn pegou no queixo dela. Conn fitou os olhos de Gelina, onde as lágrimas se acumulavam. A sua outra mão deslizou por debaixo do que restava da camisa e subiu pela parte interior da coxa tremula. Tocou a intimidade dela, que mordeu os lábios tentando não chorar. A raiva e a vergonha amontoaram-se na sua garganta até ela perceber que se não chorasse morria asfixiada. Começou a soluçar como uma criança enquanto o seu rosto se enchia de lágrimas.
As mãos de Conn agarraram-lhe os ombros; sacudiu-a até ela ter o cabelo numa cascata emaranhada em volta do rosto.
- Para com isso! Não percebe? Eu já não acredito em você. Sei que é uma ordinária de coração negro.
O orgulho e a verdade travaram uma luta mortal na alma de Gelina, sem que ela conseguisse deter as lágrimas ou as palavras:
- Nunca imaginei que fosse capaz de me magoar desta maneira. Pensei que lamentava...
Conn puxou-a para si e apertou-a como se fosse extrair o ar do seu corpo tremulo.
- Oh, mas lamento. Lamento todas as palavras de amor que trocamos e todos os gestos de ternura que existiram entre nós.
Embalou-a para trás e para diante, as suas palavras uma litania de dor e perda.
- Por duas vezes fui enganado por você. Por duas vezes partiu o meu coração ao meio. Fiquei ali sentado o dia inteiro, naquela planície desolada varrida pelo vento, tentando que o meu coração ganhasse a coragem de que necessitava para não voltar para você. Porque sabia que voltar me destruiria. Que a minha violência e o meu desejo matariam os últimos vestígios de tudo aquilo em que eu acreditava quando criei o Fianna.
Afastou-se. Passou o polegar pela curva do pescoço dela.
- Mas voltei, não é verdade? Nem a ameaça da minha própria destruição conseguiu impedir-me de abraçá-la uma última vez.
Gelina olhou-o de frente, mal se atrevendo a respirar. Escondeu o rosto no ombro dele, entregando-se à mercê do rei supremo de Erin. Conn gemeu. Passou os seus lábios pelos cachos macios.
- A sua ternura fere-me mais do que a sua violência - disse.
Conn virou o rosto dela para si:
- Então pôs em minhas mãos a arma para dominar a sua alma.
Os seus lábios colaram-se aos dela com uma gentileza enternecedora, a sua língua explorou o calor da boca dela como se fosse à primeira vez.
Nunca, nem nos dias de maior felicidade que tinham vivido ele a tocara de forma tão agonizantemente suave, tão dolorosamente paciente. Gelina fechou os olhos e escondeu o rosto no travesseiro murmurando uma súplica.
A boca e as mãos de Conn arrebataram-na até ela estremecer e gemer sob a agonia lenta e prolongada do seu toque. Arqueou o corpo, afastando-o do colchão. Um grunhido leve soltou-se do fundo da garganta dela enquanto um prazer obscuro e temível alastrava a todos os nervos do seu corpo em ondas intermitentes de calor aveludado.
A boca dele pousou na diagonal na dela, úmida, quente, desesperada. O joelho de Conn separou as suas pernas. Gelina sentiu um coração em cima do seu. As mãos dele fecharam-se em volta do seu rosto e os dedos alongaram-se até tocar a sua cabeleira macia e desalinhada.
- Olhe para mim, Gelina - ordenou. - Quero ver a verdade nos seus olhos.
Relutante, Gelina abriu os olhos, pedindo a qualquer deus desconhecido que ele visse realmente a verdade neles contida. Penetrou-a centímetro a centímetro, as mãos largas e fortes sobre o rosto dela a obrigá-la a manter os olhos abertos mesmo que o seu desejo fosse fechá-los. Um soluço escapou-se-lhe dos lábios. Quando fitou as profundezas dos olhos cor de safira, qualquer coisa escura, terrível e maravilhosa passou por eles até Conn perceber que ou os fechava ou rendia-se para sempre. Os lábios dele roçaram nos dela. Apertou-a com força, provocando-a e tocando-a, penetrando-a cada vez mais profundamente até a boca se abrir sob a dele.
Um tremor percorreu o corpo de Conn, abalando Gelina com a sua violência inesperada. Cravou os dentes no ombro dele para não gritar as palavras que tomavam forma na sua garganta, sem saber se as lágrimas que molhavam o seu rosto eram suas ou dele.
Em seus sonhos, Conn fazia-a ajoelhar-se, mas Gelina não se lembrava quando. As suas mãos não largavam os ombros dele, inúteis de tanto desejo. A sua boca ávida só conseguiu tocar a curva da barba dele. Os olhos de Conn, de pálpebras pesadas, perscrutavam a alma de Gelina enquanto a mão dele se enredava no seu cabelo. Conn venceu, Gelina sempre soube que iria acontecer.
Em alguma parte dos seus sonhos Gelina abria os olhos e encontrava-o ajoelhado à sua cabeceira, vestindo o colete e as calças de couro, a espada entalada na cintura. Embrulhava-a na manta esfarrapada e erguia-a nos braços, os lábios mergulhados no seu cabelo macio. Levava-a para junto do calor da lareira e embalava-a ao colo, como se ela fosse uma criança. Enterrava-se na túnica dele, puxando-a para o lado e encostando o rosto ao peito peludo e macio com um suspiro de prazer. Ele levava um dos pulsos dela aos lábios e beijava ternamente as feridas que lhe manchavam a pele cremosa.
- Acabou-se, meu amor - murmurou ele.
Seus cílios roçaram no peito dele como penas minúsculas quando fechou os olhos em busca de um sono sem sonhos.
Estendeu uma mão e sentiu a cama vazia e gélida ao seu lado. Sentou-se e os seus lábios desenharam o nome de Conn. A lenha crepitava na lareira, contrastando, alegre, com a cabana vazia. Saltou da cama sem olhar para o vestido rasgado espalhado no chão. Com as mãos tremulas, puxou as calças e a túnica penduradas num prego na parede, muito receosa de obter o silêncio como resposta para gritar.
O céu cinzento cuspia neve em espirais leves. Dirigiu-se a parte de trás da cabana, procurando no horizonte qualquer sinal de homem ou cavalo Cercados de nuvens, os picos montanhosos guardaram os seus segredos.
Uma desolação gélida e hostil como o vento invadiu-a. Resmungando de si para si, ergueu os braços, desesperada:
- Oh, Nimbus - murmurou. Sentou-se no chão, de pernas cruzadas, sem enxotar os flocos de neve que caíam sobre os seus olhos. Viu a neve cair no lago de águas turvas e desaparecer sem deixar rasto.
Sean chegou ao mesmo tempo em que o Sol e encontrou-a na mesma posição, um gorro em cima dos cachos despenteados e uma pequena mochila a seu lado. Desmontou, dirigindo uma palavra tranquilizadora à égua amarrada ao seu cavalo, e nadou até à cabana com a agilidade de um peixe.
Gelina levantou-se quando o viu subir para a margem. Ao ver o olhar fixo dela, Sean percebeu que não eram necessárias explicações, mas o silêncio incômodo obrigou-o a falar.
- Vou levá-la para a costa. Para um navio.
Gelina fez que sim com a cabeça. Não protestou quando ele pôs os braços dela em volta do seu pescoço, nem quando ele lhe deu instruções rigorosas e mergulhou na água fria. Fechou os olhos com força e agarrou-se ao pescoço dele.
A égua relinchou levemente quando eles chegaram do lago encharcado. Gelina montou e estendeu os pulsos sem dizer nenhuma palavra.
Sean olhou para as feridas dela, depois para as montanhas.
- Obrigou-me a prometer que não lhe diria onde estava. Faltei à promessa.
Gelina voltou a baixar a cabeça. Sean enrolou uma corda à cintura dela e deu-lhe um nó sem levantar os olhos. Montou.
- Fez o que tinha de fazer - comentou Gelina enquanto Sean punha o cavalo a galopar. A tensão do desespero era sufocante sob o sol intenso. Enquanto cavalgavam pelo prado, Gelina soltou um fragmento minúsculo da sua angústia e sentiu-o atravessar a planície como uma coisa tangível. O vento batia no seu cabelo por debaixo do gorro. Fechou os olhos e por momentos sentiu os músculos de Silent Thunder vibrar entre as suas coxas.
Os seus olhos escancararam-se para expulsar o sonho. Não queria sentir uma mão suave no seu cabelo, um beijo leve como um murmúrio na curva do seu pescoço. O desespero envolveu-a como uma mortalha.
Sean pôs o cavalo a passo quando entraram numa floresta aonde o Sol chegava filtrado pela folhagem.
- Cuidado com os ramos baixos - preveniu Sean.
O cavalo de Gelina recuou e começou a resfolegar desvairadamente assim que a árvore por cima da cabeça de Sean expeliu o seu ocupante para cima do desprevenido soldado. Gelina tentou estabilizar a égua, mas Sean caiu ao chão e rolou pelo manto com o seu atacante. A égua empinou-se e deu meia volta, obrigando Gelina a olhar para o outro lado.
Ouviu um choque metálico. Caiu de rabo quando o cavalo de Sean trotou em direção a um retalho de relva e começou a comer. Torceu-se e viu Sean deitado no meio das folhas com o seu irmão por cima dele. Rodney tinha um punhal encostado à garganta de Sean. O seu riso triunfante ecoou pela floresta.
- Rodney, não lhe faça mal - ordenou ela, vendo o olhar furioso de Sean ir de um para o outro.
- Por minha vontade, deixaria-o aqui na floresta como fizemos com os seus camaradas, talvez com um braço ou uma perna a menos - sorriu Rodney. Os olhos de Sean abriram-se, assustados. - Mas este guerreiro vai trabalhar para nós... Irá dar um recado meu ao ilustre Ard-Righ.
- Que recado? - perguntou Sean entre dentes. - Que vocês dois planearam a morte de Nimbus? Provavelmente ele já sabe.
- Ah, mas isso é falso. - Rodney fez um gesto a Gelina, que se sentou com as mãos fechadas. - A minha irmã não sabia nada sobre a morte de Nimbus. Está inocente, foi condenada sem julgamento pelo homem que julgava amar.
Sean viu a verdade nos olhos de Gelina. O Sol brilhava por entre as folhas do arvoredo, tingindo a sua cabeça baixa de um fulgurante tom de cobre. Os seus olhos fecharam-se por instantes, esquecendo o aço frio na garganta enquanto se deixava invadir pelo remorso.
A cabeça de Gelina endireitou-se de repente:
- Então foi você que o matou - disse, acusando o irmão.
Rodney sacudiu tristemente a cabeça.
- Ele era um idiota, princesa, em todos os sentidos. Ele a amava, sabe? As palavras de despedida que tão ardentemente pronunciou antes de morrer eram sinceras. Estava muito infeliz para viver e era muito covarde para morrer, de modo que tive pena dele. Se algum fôlego restasse naquele corpo atrofiado, tenha a certeza de que me teria agradecido antes de morrer.
Gelina sacudiu a cabeça, estupefata com tanto horror.
Rodney levantou-se.
- De pé. - Foi a ordem que deu a Sean, encostando a ponta do punhal às costas dele. - Preciso das suas roupas. Agora que eu e a minha querida irmã estamos de novo unidos continuaremos a nossa viagem até ao navio que Conn tão atenciosamente pôs à nossa disposição.
Sean despiu-se praguejando entre os dentes e Rodney enfiou a espada de Sean no seu próprio cinto. Gelina sentou-se imóvel enquanto o irmão cortava a corda amarrada à sua cintura.
Vestido apenas com um pano enrolado à cintura, Sean tremia:
- Não vá com ele, Gelina - disse em voz baixa.
- Não tenho outro lugar para ir - respondeu Gelina, enquanto subia para o dorso do cavalo apoiada nas mãos. Sean não conseguiu enfrentar a expressão amarga do rosto dela.
Rodney montou atrás dela.
- Dê o seguinte recado ao seu rei. Nunca será um bom governante enquanto não aprender de quem deve desconfiar (colocou uma mão possessiva no ombro de Gelina) e em quem pode confiar.
Com um grito de batalha que ecoou pela floresta, pôs o cavalo a galope, enquanto Sean olhava para eles.
- Sei qual é a pergunta, Gelina - murmurou. - Sei qual é a pergunta que nunca fizemos.
Atiçou o cavalo e galopou em direção a Tara.
Gelina puxou pelas rédeas e o cavalo parou tão abruptamente que Rodney deslizou para cima dela. Ignorando o grito assustado do irmão, desmontou e seguiu a pé.
- Lina! Aonde vai? - Rodney passou uma perna por cima do cavalo, enredando-se na corda que pendia inútil, da sua garupa.
Por cima do ombro, Gelina berrou sem abrandar o seu passo determinado:
- Vou para o navio sem você. Vou-me embora desta maldita terra para sempre. -Rodney libertou-se da corda praguejando entre os dentes e correu atrás dela.
- Mas, princesa, está tudo combinado. Agora podemos ficar juntos. Parou quando ela se virou para ele de punhos fechados. Assim que o viu ao seu alcance, desferiu-lhe um murro no nariz. O golpe foi seguido de um soco rápido no queixo que o deixou esperneando no meio do chão de terra. Rodney esfregou o queixo.
- Está zangada.
Gelina apontou-lhe um dedo tremulo o rosto contorcido de raiva:
- Estragou tudo. Matou o meu melhor amigo. Quase morri por sua causa.
Rodney pôs-se de pé, sacudindo as calças.
- Eu sabia que Conn ia acabar por soltá-la. Não vim mais cedo porque seria perigoso, Sean vinha sempre na calada da noite. Não tive maneira de segui-lo até hoje.
- Perigoso? Perigoso para quem? Nada garantia que Conn não mandasse Sean partir-me o pescoço. Ou que não viesse ele mesmo fazer o serviço. - Friccionou os pulsos involuntariamente.
Rodney encolheu os ombros.
- Foi um risco que tive de correr. - Recuou e voltou a avançar, deixando um grande espaço a separá-los.
- Arriscou a minha vida?
- Tinha de lhe mostrar que tipo de homem Conn realmente era. O fiz por você.
- Favores desses dispenso, irmão. Teria tido uma vida feliz se não me mostrasse nada disso.
- Teria vivido uma mentira. Não compreende? - Arriscou deixar a proteção da árvore.
- Matou Nimbus a sangue-frio. Por mais que ele se opusesse ao meu casamento com Conn, nunca seria capaz de se matar de maneira a que eu fosse considerada culpada. É essa a diferença entre vocês dois. - Falava num tom cada vez mais impetuoso. - Eu devia ter me casado com ele. Confiava em mim e nunca me usou. Ainda estou para encontrar um homem que também tenha essas duas características. Era meu amigo!
Rodney olhou novamente para a árvore protetora quando a voz dela se transformou num berro. Gelina levantou as mãos, exasperada, e seguiu. O irmão cruzou os braços.
- Só pode entrar no barco acompanhada por um homem do Fianna. Por mais irônico que possa parecer, esse homem sou eu.
Gelina virou-se e verificou que ele estava dizendo a verdade quando o viu vestido com o uniforme verde dos soldados de Conn.
Falou em voz baixa e determinada:
- Vou com você. Mas quando desembarcarmos desse navio, seja lá onde isso for, estará por sua conta. Já não sou sua irmã.
Rodney baixou a cabeça concordando relutantemente. Ela não viu o sorriso maléfico do irmão quando montaram o cavalo e seguiram rumo ao mar.
Mer-Nod encostou-se à parede ao ver o seu rei passar por entre as mesas dispostas no salão de entrada. Tal como qualquer pessoa que conhecesse bem Conn, estava com medo. Havia um brilho nos olhos de Conn, uma arrogância no seu modo de caminhar, que gelava o coração de Mer-Nod. Viu Conn cambalear e chocar com uma das mesas e rir às gargalhadas.
Uma alegria caótica dominava o salão. Conn ordenara que se servisse naquela noite toda a cerveja encomendada para o casamento. Não era só Conn que cambaleava. Mer-Nod olhou para um jovem soldado que dançava com um capão equilibrado na cabeça cair e enfiar a cara em cima de uma travessa de pastéis. Uma jovem risonha endireitou-o, lambendo-lhe, sôfrega, as faces cobertas de comida.
Véus e luvas andavam pelo ar quando as mulheres formaram uma fila e começaram a dar a volta às mesas, bamboleando o corpo diante dos olhos embevecidos dos homens. Conn agarrou numa morena pálida que passou por ele e depositou-lhe um beijo demorado, úmido, desesperado nos lábios enquanto os soldados ao seu redor aplaudiam. O rufar de um tambor abafava o som das flautas e das liras.
Mer-Nod viu Conn empurrar a mulher para as escadas, sem tirar a boca de cima da boca dela. Só Mer-Nod viu os olhos de Conn abrirem-se num instante de sobriedade e pousarem na plataforma vazia acima deles. Viu-o enxotar a mulher, ignorando os seus protestos, e dirigir-se à sala de trabalho, fechando a porta depois de entrar. Mer-Nod esperou algum tempo antes de entrar, lançando um olhar de aviso à mulher, que estava pensando em fazer o mesmo.
Abriu a porta; a umidade da sala sem lareira penetrou-lhe nos ossos. O luar refletia-se, débil, nas peças de xadrez abandonadas. Conn estava junto à janela aberta, com a mão na moldura como se precisasse dela para se equilibrar.
- Vou morrer Mer-Nod - disse sem se virar.
- Eu sei.
- Já vi a morte à minha frente muitas vezes, mas nunca tão definitivamente. - Sacudiu a cabeça como se quisesse afastar um pensamento desagradável. - Devia tê-la deixado ficar aqui, em Tara.
- Se ela tivesse ficado aqui, já a tinha matado - disse Mer-Nod com convicção, sentindo-se mais velho do que na realidade era.
- Então devia tê-la deixado ficar na cabana para poder lá ir sempre que me agradasse. - A fala de Conn começava a tornar-se arrastada. - Podia tê-la até me fartar.
- Isso teria destruído os dois. Soltá-la era inevitável.
Conn soltou uma gargalhada amarga.
- Não eram essas as palavras que devia dizer, Mer-Nod. Nimbus teria dito as palavras certas. - Cambaleou e olhou para Mer-Nod. - Ele disse umas palavras. Não me lembro quais, mas eram importantes.
Mer-Nod amparou-o com a mão.
Conn agarrou-a, olhou-o nos olhos e perguntou com a candura de uma criança:
- Por que tinha o sangue dela de ser tão impuro, Mer-Nod?
Sem palavras pela primeira vez na vida, o poeta sacudiu a cabeça e murmurou:
- Devia ir para o seu quarto. Ainda não dormiu nada desde que voltou.
- Não é sono o que vou encontrar. Oh, não, Mer-Nod (com um gesto largo indicou a janela), as charnecas selvagens chamam por mim. Não as ouve?
Mer-Nod ia protestar quando Conn saiu do quarto para a desordem do salão. Reapareceu do outro lado da janela cambaleando, determinado, na direção do estábulo.
Ignorando o moço de estrebaria, Conn levou Silent Thunder para o pátio. Atirou-se para o dorso do cavalo com tanta força que quase foi cair do outro lado. Agarrado à crina do cavalo, desatou a rir, sob o efeito da bebida, e mandou o garanhão galopar. Atravessou o pátio e as charnecas a uma velocidade vertiginosa. A Lua, um gomo fino no céu, projetava mais sombras do que luz sobre o terreno irregular. Uma excitação louca apoderou-se dele enquanto o vento frio da noite lhe afastava o cabelo dos olhos doridos.
Sentiu o cavalo saltar por cima de formas escuras que o seu olhar turvo não distinguia. Cavalgaram pela floresta, o garanhão guinando violentamente para evitar os ramos baixos que se estendiam para Conn. Uma sombra surgiu à sua frente. Semicerrou os olhos e virou-os para a pernada de carvalho que o fez cair do cavalo.
Quando levantou a cabeça do chão gelado, viu Silent Thunder a pastar ali perto são e salvo. A cabeça doía-lhe, embora só viesse a ter consciência disso na manhã seguinte. Mexendo os membros um de cada vez, metodicamente, decidiu que estava muito ferido ou muito bêbado para se preocupar. Daquele ângulo via várias estrelas. Não se lembrou de nenhuma razão para se levantar. Satisfazia-o olhar para as nuvens que passavam correndo pela lua pálida. Imediatamente antes de se entregar nos braços do sono, ouviu Nimbus rir e dizer: - Não se esqueça Conn...
- Não me esqueça de quê, Nimbus? - murmurou, incapaz de manter os olhos abertos o tempo suficiente para ouvir a resposta.
Ali adormeceu até os soldados enviados por Mer-Nod o encontrarem e levarem para Tara.
Veio a manhã. As primeiras horas atravessaram os nervos de Conn torcendo e beliscando o seu coração amargurado. A dor que tinha na cabeça não era nada comparada com a agonia que o invadiu quando, sem abrir os olhos, tocou no travesseiro vazio a seu lado. Nem cachos despenteados, nem curvas suaves, nem as pálpebras inchadas que conferiam uma sensualidade matinal ao rosto de Gelina. Nem as gargalhadas sussurradas quando ele se colocava em cima dela e começava o dia em êxtase. Tudo isso desaparecera, exceto a dor na virilha e o sofrimento intolerável que o torturava.
Praguejando saltou da cama e passeou pelo quarto. Passou a mão pelos cachos desgrenhados e pensou em chamar uma mulher ao seu quarto. Pelo menos uma das causas da sua inquietação podia ser eliminada. Caminhou até à arca onde estava o seu cinto e olhou para ela, o seu interior vazio recordando-lhe o buraco negro que se abrira na sua vida. Moira não se atrevia a entrar naquele quarto poeirento quando ele lá estava, mas tinha ido lá durante a sua permanência na cabana e, diplomaticamente, recolhera o pente e a escova de marfim. Apenas a respectiva silhueta se recortava na camada de pó que a cobria.
Furioso, bateu com a mão na arca, projetando no ar inúmeras partículas de poeira. Ali ficaram refletindo a luz do Sol da manhã, quando uma jarra atirada para trás da arca se inclinou e em seguida se estilhaçou no chão. As flores jaziam inertes no meio dos cacos de louça, como as vítimas de uma batalha sangrenta. Ajoelhou-se e pegou numa delas, para logo a esmagar diante dos seus olhos. Rosas mortas. Nimbus. O dia do seu casamento.
Naquele dia, as rosas apareceram na mão do bobo como se fossem uma dádiva dos deuses. E ele disse: - ...nem tudo é o que parece.
Foi nesse momento que a porta se abriu e Conn viu, incrédulo, Sean O’Finn entrar vestindo apenas uma tanga.
O vento do mar soprou sobre Gelina em ondas sucessivas, atingindo-a como as vagas que batem na praia na maré baixa. Chegaram à costa a tempo de ver o Sol afundar-se no mar numa erupção laranja e violeta. Gelina aconchegou-se na sua túnica e olhou para trás, para Rodney, que se esforçava por acender uma fogueira no topo do pontal. Empilhou ordenadamente ramos secos e gravetos, mas logo a seguir uma rajada de vento os fez desabar. Um ramo passou pela orelha de Gelina, levantou voo no alto do penhasco e precipitou-se sobre as rochas pontiagudas lá em baixo. Espalhando o que restava dos resíduos com um violento pontapé, Rodney subiu para a pedra lisa e sentou-se ao lado dela, o queixo apoiado nas mãos. Gelina respirou fundo. O ar salgado, agridoce, refrescou-lhe os pulmões.
- Podíamos procurar um abrigo, mas tenho medo de perder o barco - disse Rodney ignorando o fato dela não lhe falar a horas.
- Como sabe onde encontrar o navio? - perguntou ela sem virar a cabeça para o irmão.
- Ouvi Conn dar a ordem ao mensageiro. Disse-lhe para ir ao norte mandar um navio descer ao longo da costa.
- Deve ter rondado a fortaleza como um abutre. - Gelina abraçou os joelhos para não se ver como eles tremiam.
- Fiz tudo...
- ...por mim - terminou ela. - Sei o que passou pela sua cabeça. Que a sua princesa foi enfeitiçada pelo rei mau. - Sorriu cansada. - Fui uma idiota.
- Ele fez de você uma idiota.
- Ele não precisou fazer nada - respondeu Gelina, afastando um cacho dos olhos. - Pensar que quase casei com o rei de Erin! Que ridículo.
Ele pôs um braço por cima dos ombros da irmã, mas tirou-o rapidamente, ao ver o olhar gélido dela e a altitude a que se encontravam. O mar convidava ao silêncio com o seu ritmo solidário.
Rodney levantou-se e virou as costas ao mar.
- Olha ali para trás, Lina. Tem certeza de que quer deixar isto tudo?
Erin espraiava-se diante dos olhos deles meio iluminada pela lua. As colinas brotavam da paisagem, pairando como sentinelas sobre a planície.
Gelina não virou a cabeça.
- Não quero olhar para trás. Quero sacudir dos meus pés a terra deste lugar para sempre.
- Agora é diferente. Eoghan já tem o seu território. Pode oferecer-nos proteção.
- E que temos nós para lhe oferecer, Rodney? Guerra civil? É impossível defender-me de Conn. Não escapo ao cadafalso uma quarta vez. Até você deve compreender isso. Ficamos aqui à espera do navio.
Rodney abriu a boca para falar, mas, quando a viu de queixo erguido, determinada, voltou a fechá-la. Dirigiu-se ao ruão e puxou um objeto comprido embrulhado num pano. Entregou-o a Gelina e viu-a desembrulhar o tecido fino. Observou o punhal, pensativo, antes de prendê-lo ao cinto de Gelina, devolvendo Vingança ao seu lugar.
Em cima da rocha, Rodney espreguiçou-se e fechou os olhos. Gelina fitou o mar com um tom tempestuoso nas profundezas cor de esmeralda dos seus olhos. Tirou o gorro e deixou o vento ferozmente gelado escovar o seu cabelo e limpar a sua mente confusa. Não se atreveu a libertar a sua raiva. Sem ela, não haveria garantia de que alguma vez ia sair daquela rocha, ser capaz de pôr um pé à frente do outro. Sem a sua raiva, pereceria.
Atormentando-se deliberadamente, recordou o azul amargo de uns olhos por cima de uma espada. Nada sugeria interrogação naqueles olhos, apenas condenação. Passou os dedos pelos pulsos magros e, com a dor, garras geladas de ódio enrolaram-se no seu coração. Olhou para o mar e rezou a deuses sem nome pedindo que o navio chegasse depressa.
Quando Rodney abriu os olhos na manhã seguinte, Gelina continuava na mesma posição. Esfregou os olhos e espreitou as planícies, cobertas por um nevoeiro baixo. O Sol brilhava no promontório, conferindo um tom radiante ao ar frio da manhã.
- Devia ter me acordado. Eu podia ter ficado de guarda parte da noite. Não dormiu? - perguntou à irmã.
- Preferi deixá-lo dormir. Uma pessoa tem de estar muito descansada para planear uma traição.
Rodney sentou-se e começou a assobiar uma melodia alegre, receando o que podia acontecer se lhe respondesse. Achando que seria mais seguro afastar-se da beira do rochedo, caminhou até o cavalo, desatou o alforje e retirou uma garrafa.
- Que porcaria é esta? - perguntou, torcendo o nariz. Inclinou a garrafa até o seu conteúdo branco-amarelado pingar para o chão num fluxo constante.
- Leite de cabra. Deve ter sido Moira que o pôs aí. Sabe que eu detesto leite de cabra.
Gelina levantou-se e dobrou-se, tentando desentorpecer os músculos. Rodney ofereceu-lhe queijo, mas ela afastou-se da mão estendida do irmão.
- Não aguento mais - explodiu ele. - Amo-a e você me trata como se eu fosse um leproso. Gostaria de saber o que fez ele para lhe virar contra mim dessa maneira.
- Ele não fez nada. Você é quem fez, Rodney.
Puxou-a por um braço e virou-a para si:
- Amo-a.
- Como amava a nossa mãe? - perguntou Gelina franzindo a testa.
A confusão que lhe retorceu o rosto era genuína.
- Sim, claro. Amava a nossa mãe do mesmo modo.
Gelina soltou o braço e disse com sarcasmo:
- Então por que razão a deixou matar-se? Por que razão não gritou antes dela enfiar a barriga na espada do nosso pai?
- Não sei do que esta falando. Os homens de Conn é que mataram a nossa mãe. Você estava lá. - Esfregou a testa, procurando suavizar as rugas que lá apareceram.
- Não, Rodney. O nosso pai foi assassinado. A nossa mãe julgava-nos também mortos. Andou pelo salão durante algum tempo. Houve tempo para um de nós chamar alguém e salvá-la.
- Mas ela perdeu a sua honra. Que razões tinha para viver? - perguntou, os seus olhos escuros perplexos e cândidos.
Gelina estremeceu:
- Deixou-me na cabana deliberadamente, não foi? Quis me dar tempo para pensar no que tinha feito.
Rodney pegou num dos cachos dela com as pontas dos dedos numa carícia irônica.
- E quando Conn chegou, tenho a certeza que achou a minha decisão sábia... Ele tinha de lhe castigar uma última vez por mim, princesa. Você traiu os nossos planos, os nossos sonhos de vingança. No entanto, estou disposto a perdoá-la. Levo-a de volta. Quer?
Gelina afastou-se dele e emitiu um som gutural. Virou-se para o mar, para não ver a expressão vaga, interrogativa do irmão. Duas gaivotas dançaram por cima deles, depois sobrevoaram o oceano. Gelina viu-as voar ao longo da costa e depois em volta de uns mastros.
- Rodney! É o barco! Chegou!
Como as suas palavras frenéticas não obtivessem resposta, virou-se. O irmão fitava as planícies, a boca fechada, a pele pálida esticada por cima dos ossos do rosto. Seguiu o olhar dele, semicerrando os olhos para reduzir os reflexos de luz emitidos pela neblina.
Ele saiu do nevoeiro como uma lenda. Gelina sentiu os seus pulmões ficarem sem ar quando reconheceu o garanhão gigantesco aonde ele vinha montado. O cavalo recuou, elevando as poderosas patas anteriores. Os dois observadores renderam-se à inevitabilidade do movimento do cavalo que se dirigia para o penhasco.
- Não. - O grito feroz de Gelina encheu o ar. Correu para a passagem estreita que ia dar ao local onde tinham estado empoleirados.
Rodney puxou-a para trás.
- Não pode ir por aí. Ele vai tomar esse caminho.
- Tenho de chegar ao navio. - Soltou-se com uma expressão apavorada. O seu olhar percorreu o rochedo em busca de outro acesso à praia, depois incendiou-se, cheio de fúria e determinação.
- Se não posso ir pela passagem, vou descer pela rocha.
Correu para a beira do rochedo. O seu estômago deu voltas quando olhou para baixo, para a água que batia nas rochas. Rodney não se mexeu, dividido entre o ruído dos cascos cada vez mais próximos e a irmã, que, de barriga para baixo, esticava os pés até encontrar uma concavidade onde os fincar.
Conn apareceu de repente de um lado do promontório, o peito negro da sua montada impedindo a visão de Rodney por instantes quando o gigantesco garanhão parou a um centímetro do seu nariz.
- Gelina! - gritou Conn.
Ignorando Rodney, saltou do cavalo e correu para o penhasco. Só se viam os dedos finos de Gelina agarrados à borda da rocha. Ouviu-se um grito e também eles deixaram de se ver.
Conn deitou-se de barriga para baixo, aterrorizado pensando no que o esperaria quando espreitasse lá para baixo. Gelina estava pendurada logo a seguir ao braço esticado de Conn. Tinha um pé sobre uma saliência estreita e curta. O outro balançava no ar. Os olhos dela estavam fechados.
- Dá-me a mão. - Esforçando-se por não perder o seu próprio equilíbrio precário, Conn estendeu uma mão para o corpo vacilante dela.
Gelina falou sem abrir os olhos.
- Não, obrigada. Quero descer, não subir.
- Pode ter a certeza que vai descer se não me der a mão. - Rangeu os dentes, frustrado. Olhou para Rodney, mas não viu qualquer intenção de ajuda naqueles olhos paralisados.
- Não quero a sua ajuda - gritou Gelina, o pé deslizando para o abismo, sem encontrar um apoio.
- Olha para mim, Gelina - gritou Conn no mesmo tom com que se dirigia a uma moça teimosa muito tempo atrás. Toda a majestade de Erin estava contida naquela voz.
Sem forças para resistir mais, Gelina abriu ligeiramente os olhos e virou-os para ele.
- Se ainda quer embarcar naquele navio, eu próprio a levarei lá. Tem a minha palavra. Dá-me a mão.
A protuberância de ardósia começou a partir-se. Uns olhos azuis e meigos bloquearam o sol. Gelina ergueu uma mão quando pedaços de ardósia se precipitaram no mar. Não tinha onde se agarrar. O braço musculoso de Conn agarrou o dela. Puxou-a com toda a sua força e depositou-a em terra firme só com um braço. As pernas de Gelina dobraram-se. O braço dele apertando-a contra si foi à única coisa que a impediu de cair de joelhos. O perfume agradável do couro avivou-lhe os sentidos.
Os lábios de Conn tocaram a orelha dela.
- Vá ou fique, mas a amarei até morrer - murmurou.
Gelina escondeu o rosto na túnica dele.
- Bem, Conn, se parar de acariciar a minha irmã, talvez possamos resolver este assunto.
Assim que viu Gelina livre de perigo, Rodney entrou em ação. Puxou da espada de Sean e rodou-a no ar.
Conn largou Gelina e desembainhou a sua própria espada. Libertação brilhou ao sol. Gelina recuou e ajoelhou-se, aturdida, ao ver o irmão encostar a espada ao peito de Conn. O barulho do metal contra metal ecoou nos seus ouvidos.
- Ele tem andado praticando - murmurou Gelina, confusa, ao ver Rodney aparar agilmente os golpes de Conn.
Foram avançando até à beira do penhasco. Rodney investia, investia, procurando a oportunidade que lhe ofereceria o golpe fatal. Gelina sentiu alguma reserva no ataque de Conn. Rodney deveria ser um adversário fácil para ele, mas as espadas cruzavam-se com galhardia e cada um tentava derrubar o outro.
O som surdo do metal cortando a carne pôs Gelina de pé. A infeliz égua recebera o impacto de um golpe destinado a Conn. A dor aguda na sua garupa obrigou-a a avançar como louca em direção a Gelina e ao rochedo íngreme.
Conn largou a espada e saltou para a égua. As suas mãos fortes agarraram a crina desgrenhada. Arrastou-se para o dorso do cavalo. O seu peso obrigou o animal a abrandar ligeiramente. Gelina rolou para o lado, sentindo uma rajada de vento quando a égua passou por ela e pela beira do penhasco a assoviar. Ficou deitada um longo momento de olhos bem fechados, com medo de abri-los e ver-se sozinha com Rodney no promontório.
Abriu-os quando ouviu a gargalhada estridente de Rodney. Conn estava agachado a uns metros de distância, de narinas dilatadas e olhos fixos em Rodney. Com um movimento desajeitado, Rodney atirou a espada de Conn pela borda do penhasco.
Rodney avançou impiedosamente. Conn afastou-se de Gelina, seguindo a beira do penhasco até ao outro lado da ribanceira. Rodney foi atrás dele, o que obrigou Conn a aproximar-se mais do abismo marinho a cada passo. Conn estendeu os braços, franziu os lábios. O seu olhar incidiu sobre Gelina, ajoelhada do outro lado da ribanceira. A despedida que viu nos olhos dele despedaçou-lhe o coração. Via Rodney de costas e pensou que aquela era a imagem que reteria do irmão, tantas vezes ele a tinha abandonado, deixado entregue ao seu destino.
Os olhos atônitos de Conn seguiram o movimento rápido dela quando desembainhou Vingança. Conn estendeu um braço, mal se atrevendo a acreditar no que os seus olhos viam.
Rodney deu meia volta, seguindo o olhar chocado de Conn, e viu Gelina atirar a espada ao ar, fazendo-a subir num arco.
A prata polida deu várias voltas no ar, refletindo o sol, até o seu punho ir parar certeiramente à mão de Conn.
Conn balançou a espada. Gelina fechou os olhos, incapaz de ver a cabeça do seu único irmão rolar de seus ombros. Ouviu uma pancada e seus olhos abriram-se a tempo de ver Rodney cair de joelhos, imobilizado pela parte mais larga da lâmina.
Conn largou a espada e olhou para Gelina. Tinha as mãos trêmulas. Gelina fitou-o durante um longo momento, depois se virou para o mar e o navio ali ancorado - o navio que estava à sua espera.
Conn baixou a cabeça, derrotado.
Rodney gemeu. Gelina apontou para ele:
- Não creio que o meu irmão possa viver conosco em Tara.
Por mais que Conn tentasse evitar, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Abriu os braços, oferecendo a Gelina o seu coração e a sua confiança, tal como um dia os oferecera a uma moça revoltada e assustada. Gelina saltou para os seus braços e cruzou as pernas em volta dele. Conn rodopiou enquanto lhe cobria o rosto com beijos. Lá em baixo, as ondas batiam contra as rochas num ritmo alegre, tal como as gargalhadas de certo anão histérico.
Conn, das Cem Batalhas teve duas filhas e três filhos. Foi o avô do lendário Cormac MacArt.
No ano 280, Oisin chefiou o clã Morna Fianna numa batalha contra o clã Baoscini Fianna e, uma vez que os seus homens se mataram uns aos outros, o Fianna foi aniquilado.
E Gelina? Bem, mulheres com espadas é coisa que não existe, fruto da imaginação. Os irlandeses ainda hoje falam de uma mulher que cavalga nas noites de vendaval montada num enorme garanhão negro, com o luar refletido em sua espada e segredos de amor e conquistas nos seus olhos límpidos e brilhantes.
Teresa Medeiros
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