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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CONSPIRAÇÃO DE ASHWORTH HALL / Anne Perry
A CONSPIRAÇÃO DE ASHWORTH HALL / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Quando um grupo de poderosos protestantes irlandeses e católicos se reúnem em uma casa de campo, Ashworth Hall, para discutirem assuntos de convivência irlandesa, é de se esperar disputa, mas quando o moderador do encontro, o poderoso Ainsley Greville, é encontrado morto em sua banheira, as negociações parecem condenadas. Para piorar, parece que Greville teve uma vida privada menos honorável. Pitt e Charlotte devem descobrir a verdade ou a raiva latente e o ódio podem chegar a um ponto de colocar a Irlanda em uma guerra civil de destruição...

 

 

 

 

Pitt contemplou o corpo do homem que jazia sobre os paralelepípedos do beco. Era um cinza entardecer de outubro. Em Oxford Street, a só uns passos dali, circulavam apressadamente as carruagens e cabriolés, ouvindo o assobio das rodas na rua molhada e o cascatear dos cascos dos cavalos. As luzes estavam já acesas, luas pálidas na crescente escuridão.

O agente enfocou o rosto do cadáver com sua lanterna.

— É um dos nossos, senhor - disse com a voz tensa por causa da ira. — Ou ao menos o era. Conhecia-o. Por isso mandei buscá-lo pessoalmente, senhor Pitt. Agora estava metido em algo um tanto especial. Não sei exatamente do que se tratava. Mas era um bom homem, Denbigh. O asseguro.

Pitt se agachou para observá-lo de perto. O homem - chamado Denbigh, segundo o agente aparentava uns trinta anos e tinha a pele clara e o cabelo escuro. A morte não tinha apagado suas feições. Só parecia um tanto surpreso.

Pitt pegou a lanterna e percorreu lentamente com o feixe de luz o resto do corpo. Vestia uma calça comum de tecido barato, uma simples camisa de algodão e uma jaqueta de má qualidade. Poderia ter sido peão de pedreiro ou operário de uma fábrica, ou inclusive um jovem chegado de uma zona rural em busca de emprego. Era bem magro, mas tinha as mãos limpas e as unhas belamente cortadas.

Pitt se perguntou se teria esposa e filhos, parentes, alguém que lamentasse sua perda com a dor profunda e penetrante do amor, mais intenso que o que sentia por respeito o agente que se achava junto a ele.

— Em que delegacia de polícia trabalhava? - perguntou Pitt.

— Na Battersea, senhor. Foi ali onde o conheci. Nunca esteve destinado a Bow Street, e por isso não o conhecia, senhor. Mas este não é um assassinato comum. Morreu de um tiro, e os ladrões de ruas não levam armas de fogo. Usam navalhas ou paus.

— Sim, sei. - Pitt revistou os bolsos da vítima introduzindo os dedos neles com delicadeza. Só achou um lenço, limpo e cuidadosamente cerzido em um canto, e umas moedas, dois xelins e nove peniques. Não havia cartas nem documentos que identificassem o cadáver. — Tem certeza de que este homem é Denbigh?

— Sim, senhor; tenho certeza. Conhecia-o bem. Não nos encontramos muito tempo em Battersea, mas lembro essa marca que tem na orelha. É pouco comum. Procuro me fixar nas orelhas da pessoa. A pessoa pode mudar muito o aspecto se quer passar despercebido, mas quase todo mundo esquece que as orelhas continuam iguais. A única coisa que a pessoa pode fazer é deixar crescer o cabelo para as tampar. Tomara pudesse dizer o contrário, mas não; esse é Denbigh, o pobre desgraçado.

Pitt se ergueu.

— Nesse caso fez bem em me avisar, agente. Assassinar a um policial, mesmo se não estiver de serviço, é um delito muito grave. Iniciaremos a investigação assim que o legista chegar e levantar o cadáver. Não acredito que encontre testemunhas, mas pergunte a quantos possam saber algo. E volte a tentá-lo amanhã à mesma hora. É possível que haja pessoa que passe por aqui com regularidade a caminho de suas casas. Interrogue aos vendedores ambulantes, os cocheiros. Experimente nos botequins da vizinhança e também, claro está, em todos os edifícios com janelas para o beco.

— Sim, senhor!

— E não sabe onde trabalhava agora Denbigh?

— Não, senhor - respondeu o agente — mas imagino que continuava com algum departamento da polícia ou a administração.

— Então será melhor que me inteire.

Pitt meteu as mãos nos bolsos. Ali de pé, imóvel, começava a ficar passado. O frio do beco, um pequeno espaço confinado pela morte a só uns passos do barulho do trânsito, penetrava-lhe até os ossos.

A carruagem do necrotério se deteve ante a boca do beco e manobrou com dificuldade para entrar. Os cavalos relincharam e se sacudiram, nervosos pelo aroma de sangue e medo que flutuava no ar.

— É melhor será que reviste o beco se por acaso há algo que possa nos dar pistas -acrescentou Pitt. — Duvido que a arma esteja aqui, mas tudo é possível. A bala o atravessou de lado a lado?

— Sim, senhor, isso parece - respondeu o agente.

— Nesse caso, procure-a. Assim saberemos no mínimo se o mataram aqui ou o trouxeram depois de morto.

— Sim, senhor. Imediatamente, senhor - disse o agente, com tom ainda sério por causa da ira e da dor.

O fato era ainda muito recente, muito real.

— Denbigh - Cornwallis, subchefe de polícia, parecia preocupado, e seu rosto era especialmente sombrio devido a suas pronunciadas feições, em particular o largo nariz e a longa boca. — Sim, pertencia ainda à polícia. Não posso lhe dizer qual era com exatidão sua missão, porque o ignoro; mas guardava relação com a Questão Irlandesa. Como você bem sabe, existem muitas organizações lutando pela independência da Irlanda. A Associação Feniana é só uma delas, tristemente a mais conhecida. Em sua maioria recorrem à violência. Denbigh era irlandês. Tinha conseguido introduzir-se em uma dessas fraternidades, uma das mais secretas, mas o mataram antes de que pudesse nos revelar o que tinha descoberto, além de alguma ou outra informação que já conhecíamos ou dávamos por suposta.

Pitt permaneceu em silêncio.

— Este não é um assassinato comum, Pitt - prosseguiu Cornwallis com uma expressão tensa nos lábios. — Investigue-o pessoalmente e utilize a seus melhores homens. Tenho especial interesse em achar ao responsável. Denbigh era um bom homem, e muito valente.

— Sim, senhor; assim o farei.

Mas quatro dias depois, quando ainda não se produziram grandes avanços na investigação, Pitt recebeu a visita do Cornwallis em seu escritório. Nesta ocasião o acompanhava Ainsley Greville, um alto funcionário do Ministério do Interior.

— Compreenda, delegado Pitt, que é de vital importância que a reunião pareça em todos os sentidos uma festa campestre de finais de outono como qualquer outra. Na medida do possível, não deve escapar o menor detalhe que pudesse dar outra impressão -explicou Ainsley Greville. Desdobrando um persuasivo sorriso, acrescentou: — Por essa razão nos dirigimos a você em particular.

Greville, sem ser bonito, possuía grande distinção. Era alto e tinha o cabelo ondulado, com ligeiras entradas, e um rosto alongado e estreito de feições proporcionais. Devia aquele ar singular a seu porte e olhar inteligente.

Pitt o observava ainda sem compreender.

Cornwallis, com expressão séria, inclinou-se em sua cadeira. O subchefe de polícia estava há pouco tempo no cargo, mas Pitt o conhecia já o suficiente para intuir que se sentia desconfortável no papel que lhe correspondia desempenhar. Em outro tempo tinha sido capitão da Armada, e a lógica da política lhe era alheia. Preferia métodos muito mais diretos mas, assim como Greville, devia prestar contas ao Ministério do Interior, e não lhe tinham dado alternativa.

— Existem esperanças de alcançar resultados positivos - disse Cornwallis com convicção. — Devemos oferecer toda a cooperação possível, e você se encontra em uma posição idônea.

— Neste momento o caso Denbigh reclama toda minha atenção - respondeu Pitt. Não estava disposto a delegá-lo a ninguém por importante que fosse aquela nova missão.

Greville sorriu.

— Por razões que agora lhe explicarei, agradecer-lhe-ia pessoalmente sua colaboração, delegado. - Apertou os lábios. Ao cabo de um instante acrescentou:             — Razões que lamento profundamente. Por pouco que conseguíssemos avançar neste assunto, todo o Governo de Sua Majestade estaria em dívida com você.

Pitt pensou que Greville exagerava a transcendência do caso.

Como se tivesse lido a mente do Pitt, Greville moveu a cabeça em um leve gesto de negação.

— O objetivo da reunião é sondar o estado de opinião a respeito de certas reformas legislativas relacionadas com a propriedade da terra na Irlanda, um passo mais na emancipação da comunidade católica. Possivelmente agora compreenda tanto a importância de nossos propósitos como a necessidade de máxima reserva.

Pitt compreendeu no ato. As palavras do Greville eram de uma clareza inquietante. referia-se à Questão Irlandesa, como se costumava chamar, um problema que tinha mantido em xeque os sucessivos governos desde os tempos de Isabel I e causado o afastamento em pleno de mais de um ministro. Inclusive o grande William Ewart Gladstone, firme defensor da total autonomia da Irlanda, viu-se obrigado a demitir-se fazia tão somente quatro anos, em 1886. Mesmo assim, o assassinato do Denbigh era para Pitt um assunto prioritário, e certamente mais de acordo com suas aptidões.

— Sim, entendo-o - respondeu Pitt com um calafrio, — mas...

— Não de todo - o interrompeu Greville. — Sem dúvida se dá conta de que qualquer esforço por resolver nosso problema interno mais difícil exige discrição. Se não alcançarmos os resultados previstos, não convém que nosso fracasso se apregoe a tambor e pratos. Devemos aguardar e ver se nossas tentativas têm êxito, e em que medida, antes de decidir que versão fazer pública. - Seu rosto se escureceu ligeiramente, um indício de intranqüilidade que foi incapaz de ocultar. — Há outra razão, delegado. Como suporá, os irlandeses estão à corrente da celebração da conferência. Se eles não assistissem, de pouco serviria; eu pessoalmente lhe facilitarei a informação que possua e você necessite a respeito de todos os presentes. Ignoramos, não obstante, até onde chegou a notícia. Há círculos aos quais não temos acesso, traições, lealdades secretas... e abrangem todos os âmbitos da sociedade. - Sua expressão se tornou ainda mais lúgubre e na comissura de seus lábios se formou uma careta tensa. — Infiltramos um homem em uma das organizações clandestinas com a esperança de averiguar quais eram suas fontes de informação. - Exalou lentamente o ar dos pulmões. — Assassinaram-no.

Pitt notou que lhe gelava o sangue.

— Conforme soube, é o caso que você investiga. - Greville olhou Pitt nos olhos fixamente. — James Denbigh, um bom homem.

Pitt guardou silêncio.

— Também eu recebi ameaças de morte, e de fato fui vítima de um atentado, faz já umas três semanas, mas o recordo ainda como uma experiência em extremo desagradável - acrescentou Greville, e embora afetasse um tom despreocupado, Pitt percebeu tensão em seu corpo. Suas mãos longas e finas, apoiadas uma no joelho e a outra no braço da cadeira, permaneciam rígidas e imóveis. Embora soubesse dissimular, Pitt percebeu seu temor.

— Entendo - repetiu Pitt, e desta vez compreendia perfeitamente a gravidade da situação. — Assim, deseja uma discreta presença policial.

— Muito discreta - confirmou Greville. — A conferência terá lugar no Ashworth Hall...   - Notou um pulo em Pitt. — Com efeito - acrescentou em sinal de compreensão, — o imóvel de recreio da irmã de sua esposa, em outro tempo viscondessa do Ashworth e agora senhora Jack Radley. Entre os membros jovens do Parlamento, o senhor Radley é um dos mais brilhantes, e suporá uma valiosa contribuição às conversas. E naturalmente a senhora Radley será a anfitriã ideal. Sendo você e sua esposa da família, seria natural que também assistissem.

Não seria absolutamente natural. Para Emily Ellison, as bodas com lorde Ashworth tinha representado uma considerável ascensão no escalão social. Sua irmã, Charlotte, tinha escandalizado à alta sociedade contraindo matrimônio com um homem de posição muito inferior à sua. As raparigas de boa família não se casavam com policiais. Pitt falava com correção. Era filho de um guarda-florestal encarregado da vigilância em uma grande propriedade, e o dono, sir Arthur Desmond, tinha achado conveniente educá-lo junto com seu próprio herdeiro, Matthew, para que este tivesse um companheiro e alguém com quem comparar-se. Mas Pitt não era um cavalheiro. Sem dúvida Greville estava à corrente dessa circunstância, apesar de sua promoção ao posto de delegado... ou talvez não?

Pitt não devia incorrer no engano de imaginar que Greville tomava por alguém de sua própria posição simplesmente porque se achava sentado atrás daquela elegante escrivaninha, com sua toalha de verde de couro embutido na madeira. Seu predecessor no cargo, Micah Drummond, sim era de origem nobre e procedia do exército. Cornwallis certamente o era também, embora possivelmente de mais baixa linhagem. Tinha subido por méritos próprios em serviço ativo. Pensava Greville acaso que Pitt provinha dessa mesma extração? A idéia era aduladora... mas era obviamente uma vã ilusão. Greville necessitava de Pitt para proteger a conferência sem que se notasse.

— E acredita que a ameaça que pesa sobre você guarda relação com sua participação nos preparativos dessa conferência? - disse Pitt.

— Tenho a total certeza - respondeu Greville, observando ao Pitt atentamente.         — Existem diversos setores e indivíduos que desejam nosso fracasso. O assassinato do Denbigh é uma prova evidente disso, não lhe parece?

— Recebeu ameaças por correio? - perguntou Pitt.

— Sim, uma ou outra. - Greville deu de ombros, tirando importância ao fato. Depois de expressar seus temores com palavras parecia sentir-se menos isolado, e relaxou um pouco. — Sempre se espera certo grau de oposição, e inclusive ameaça. Em geral, não têm a menor transcendência. Se não tivessem atentado contra minha vida, teria passado elas por cima, pensando que alguém tinha decidido manifestar suas opiniões de uma maneira especialmente deplorável, embora não incomum. Como você bem sabe, a Questão Irlandesa reveste um caráter violento.

Essa afirmação não refletia nem remotamente a verdadeira gravidade do problema. Era impossível calcular o número de pessoas que tinham morrido em combates, distúrbios, fomes e assassinatos vinculados de maneira mais ou menos direta à conflitiva história da Irlanda. Pitt estava bastante bem informado a respeito dos alvoroços provocados no norte da Inglaterra por William Murphy, um protestante furioso que tinha viajado de aldeia em aldeia avivando o fanatismo anticatólico, devido ao qual se produziram saques, incêndios, a destruição de ruas inteiras e várias mortes.

— Melhor será que o acompanhe alguém de sua inteira confiança – sugeriu Cornwallis com tom circunspeto. — Como é lógico, postaremos alguns homens na propriedade e na aldeia disfarçados de guarda-florestal ou trabalhadores braçais. Mas convém que conte com alguém dentro da casa.

— Outro convidado? - perguntou Pitt, surpreso.

— Um criado - respondeu Cornwallis com um sombrio sorriso. — Quando se assiste a uma festa em uma residência de recreio, é bastante habitual que alguém leve dois ou três criados de seu próprio serviço. Basta que enviemos um de nossos melhores homens em função de valete. A quem proporia você? Tellman, possivelmente? Sei que não sente grande simpatia por ele, mas é uma pessoa inteligente, observador e não se arreda ante a ação física, se chegar a ser necessária, que Deus não o queira.

Pitt teria preferido não ocupar-se pessoalmente da missão do Ashworth Hall, mas compreendia que, em virtude de sua relação com os Radley, era o mais indicado.

Entretanto podia no mínimo deixar ao Tellman, seu homem mais apto, a cargo do caso Denbigh. Não era certo, de fato, que Tellman lhe inspirasse antipatia, ao menos desde que o conhecia melhor; mas achava, não obstante, que Tellman sentia ainda aversão por ele. Tellman não tinha dissimulado seu mal-estar pela promoção de Pitt. Este tinha subido do mais baixo do escalão policial e não era melhor que seus companheiros. Não devia aspirar a emular a seus superiores, e menos ainda a suplantá-los. Os cargos como o que previamente tinha ocupado Micah Drummond eram para cavalheiros. A posição social era o único requisito aceitável para assumir uma posição de autoridade. A ambição, em troca, não o era, e Tellman considerava Pitt um homem ambicioso.

Estava equivocado. Pitt de boa vontade teria permanecido em seu anterior posto se não tivesse uma família merecedora do melhor que ele pudesse lhe proporcionar. Mas isso não era assunto de Tellman.

— Duvido muito que Tellman aceite atuar como valete – respondeu Pitt a Cornwallis. — Nem sequer durante uma semana... e menos a meu serviço. Posso informar ao Tellman a respeito do Denbigh?

Um sorriso apareceu claramente nos olhos escuros do Cornwallis, mas não se refletiu em seus lábios.

— Ainda não - respondeu. — Estou convencido de que quando o senhor Greville explicar para Tellman a importância da missão, fará de bom grado quanto esteja a seu alcance. Embora, isso sim, deverá você ser paciente com sua inexperiência como valete.

Abstendo-se de responder, Pitt perguntou:

— Quais serão os convidados?

Greville voltou a recostar-se em sua cadeira e cruzou as pernas. Não lhe era necessário perguntar a Pitt se aceitava ou não o encargo. Pitt não tinha escolha.

— A fim de manter as aparências de um fim de semana totalmente normal, acompanhar-me-á minha esposa - respondeu. — Como possivelmente saiba, a política irlandesa não é composta só de católicos e protestantes, embora sejam essas as duas facções principais. Existe deste modo uma divisão em classes: quem possui terras e quem não as possui. - Fez um leve gesto de resignação e pesar. — Antes isso guardava relação direta com a religião. Durante décadas os católicos estiveram privados do direito à propriedade; só lhes permitia arrendar, e como já saberá, alguns latifundiários exerciam seu poder com a maior brutalidade. Também é certo que outros agiam de maneira muito diferente. Muitos chegaram a arruinar-se em seu esforço por sustentar a quem dependia deles durante a grande fome dos anos quarenta. Mas a memória é suscetível de grandes distorções, até sem a tergiversação da propaganda nacionalista e crenças populares perpetuadas em canções e lendas.

Pitt esteve a ponto de interrompê-lo. Ele só desejava saber quem iria, que número de pessoas devia ter em conta. Mas quando Greville se apropriava de uma situação, não se deixava dominar por ninguém.

— E em todo ponto de vista moderados e radicais, que às vezes se detestam mais entre si do que aborrecem à oposição -prosseguiu-. E as famílias que defenderam a supremacia protestante durante gerações, chegando a convencer-se de que é vontade de Deus, podem manter-se mais firmes em suas opiniões que qualquer mártir à antigo uso, o asseguro. Atreveria-me a dizer que alguns deles agradeceriam uma cova dos leões ou inclusive uma boa fogueira para serem queimados.

Pitt percebeu em sua voz um tom de exasperação e vislumbrou fugazmente os anos de frustração do aspirante a pacificador. Sentiu uma súbita compaixão pelo Greville que a ele mesmo surpreendeu.

— Os negociadores principais são quatro: dois católicos e dois protestantes - continuou Greville. — Seus particulares pontos de vista não têm por que lhe interessar, ao menos de momento, e provavelmente tampouco adiante. Estará Padraig Doyle, um católico muito moderado. Está muitos anos lutando pela causa da emancipação católica e reforma agrária. É um personagem muito respeitado e nunca esteve vinculado, pelo que sabemos, a nenhuma forma de violência. Em realidade, é meu cunhado. Mas prefiro que os outros participantes desconheçam por agora essa circunstância. Poderiam duvidar de minha imparcialidade, e não há razão para isso.

Pitt aguardou sem falar.

Cornwallis, juntando as pontas dos dedos, formou uma pirâmide com as mãos e escutou atentamente apesar de que já devia estar à corrente do que Greville dizia.

— Doyle virá só - prosseguiu Greville. — O outro representante da comunidade católica é Lorcan McGinley, um homem de menor idade e atitude muito diferente. Faz uso de um grande encanto pessoal quando lhe convém, mas vive em um estado de ira permanente. Perdeu a sua família na grande fome, e a terra por causa da supremacia protestante. Não oculta sua admiração por indivíduos como Wolfe Tone ou Daniel O’Connell. Advoga por uma Irlanda livre e independente sob um governo católico, e sabe Deus o que seria nesse caso dos protestantes. – Fez um gesto de dúvida. — Ignoro se seus laços com Roma são ou não muito estreitos. Os riscos de uma perseguição recíproca não podem passar-se por alto, mas também poderia ocorrer que fosse muito mais extremo de palavra que de fato. Esse é um dos aspectos que se sondarão na conferência. Nada desejamos menos que uma guerra civil, e lhe asseguro, delegado, que essa possibilidade não deve descartar-se absolutamente.

Pitt sentiu um calafrio. Recordava ainda claramente as explicações sobre a guerra civil inglesa que tinha ouvido nas aulas de história da escola, a morte e o ressentimento que marcaram à população durante gerações. As guerras ideológicas alcançavam uns níveis de brutalidade muito superiores aos de qualquer outra.

— McGinley irá acompanhado de sua esposa - continuou Greville. Não sei nada dela, salvo que é pelo visto uma poetisa nacionalista. Podemos supor, pois, que é uma romântica, uma dessas pessoas em extremo perigosas que criam histórias de amor e traição, batalhas heróicas e mortes gloriosas que nunca existiram, mas como usam as palavras de maneira muito persuasiva, e além disso lhes põem música, os poemas se convertem em lendas e a pessoa acaba acreditando no que contam. - Seu rosto se contraiu em uma careta de aversão e descontentamento, e também certa frustração. — Vi uma sala inteira de homens adultos chorar pela morte de um homem que jamais viveu e abandonar o lugar jurando vingar-se de seus assassinos. Se alguém tratar de convencer os de que o relato é pura invenção, são capazes de linchá-lo por blasfemo. Para eles equivaleria a privar a Irlanda de sua história. - Sua voz e a curva de seus lábios destilavam amargura.

— A senhora McGinley é, portanto, uma mulher perigosa - concordou Pitt.

— Iona O’Leary - murmurou Greville. — Sim, sem dúvida. E o ardor de seu marido se sustenta precisamente em histórias como as que ela cria, embora não sei até que ponto algum deles distingue já a verdade da fantasia. Mesclaram-se tantos sentimentos, e tantas tragédias e injustiças reais, que possivelmente já ninguém distinga um do outro.

— E McGinley não tem reparos em usar a violência? - perguntou Cornwallis.

— O mínimo - respondeu Greville. — Exceto pelo temor a um possível fracasso. Está disposto a dar a vida por seus princípios, sempre e quando servir para alcançar a liberdade a que aspira. Não tenho a menor idéia se sabe que classe de país produziriam esses princípios. Duvido que se expôs o futuro a tão longo agrado.

— E os protestantes? - perguntou Pitt.

— Fergal Moynihan - respondeu Greville. — Igualmente extremista como McGinley. Seu pai era um pastor protestante que pronunciava exaltados sermões sobre o pecado e o fogo eterno, e Fergal herdou sua convicção de que o catolicismo é obra do diabo e os sacerdotes são todos sanguessugas e libertinos, se não autênticos canibais.

— Outro Murphy - comentou Pitt com tom cáustico.

— Da mesma corda - confirmou Greville. — Um tanto mais sutil, ao menos na aparência, mas no fundo igualmente feroz e teimoso.

— Irá só? - perguntou Pitt.

— Não, acompanhá-lo-á sua irmã, a senhorita Kezia Moynihan.

— É, suponho, de suas mesmas crenças.

— Pouco mais ou menos - afirmou Greville. Não a conheço pessoalmente, mas sei de fontes fidedignas que, a sua maneira, é uma pessoa muito capacitada para a política. Se tivesse nascido homem, teria servido aos sua com grande eficácia. Dado seu sexo, é uma lástima que não tenha contraído matrimônio, porque poderia ser o cérebro cinza atrás de um homem de proveito. Mas está muito unida a seu irmão e possivelmente exerça uma influência positiva nele.

— Esperemos - disse Cornwallis, mas sua voz delatava escassa convicção e seu rosto de pronunciadas feições refletia pouco entusiasmo. Era um homem de estatura média, magro mas de ombros largos e retos. Sua prematura e completa calvície harmonizava de maneira tão natural com seus traços que alguém se surpreendia ao percebê-la.

Greville não respondeu.

— O último representante é Carson O’Day - concluiu. — Pertence a uma distinta família de fazendeiros protestantes e provavelmente seja o mais liberal e moderado de todos eles. Se Padraig Doyle e O’Day chegam a um acordo, talvez seja possível persuadir aos outros de que no mínimo escutem.

— Em total, quatro homens e duas mulheres, além de você e sua esposa e os senhores Radley - disse Pitt pensativamente.

— E também você e sua esposa, senhor Pitt - acrescentou Greville.

Naturalmente Charlotte devia ir. Não havia a menor dúvida a respeito. Mesmo assim, uma súbita inquietação assaltou ao Pitt ao vislumbrar os perigos, ou o absoluto caos, em que podia chegar a meter-se Charlotte. Pensando nas complicações que possivelmente criaria sua esposa com a colaboração do Emily, uma palavra de protesto se formou em seus lábios.

— E os respectivos criados, claro está - prosseguiu Greville inexoravelmente, passando por cima a expressão do Pitt. — Suponho que cada assistente trará ao menos um criado doméstico... provavelmente mais... e um cocheiro, cavalariço ou lacaio.

Aos olhos de Pitt, aquilo adquiria cada vez mais proporções de pesadelo.

— Isso é quase um regimento! - exclamou. — Terá que organizar o traslado em trem de todos eles e enviar a carruagem do senhor Radley a recolhê-los à estação. No máximo, podemos vigiar ou proteger um valete por cada homem e uma criada por cada mulher.

Greville vacilou, mas o raciocínio do Pitt era de uma lógica esmagadora.

— Muito bem - concordou. — Me encarregarei de que assim seja. Mas você acudirá, delegado, e acompanhado por seu próprio "valete".

Sobravam hesitações. Pitt não tinha alternativa.

— Sim, senhor Greville. Mas se quiser que minha presença lhe sirva de algo, deve seguir meus conselhos no referente a sua segurança.

Não sem certa reticência, Greville sorriu.

— Desde que me permitirem cumprir com meu dever, senhor Pitt. Poderia ficar em casa com um agente de guarda ante a entrada e não correr o menor perigo, mas desse modo não conseguiria o que me proponho. Eu sopesarei os riscos e as possíveis vantagens e agirei em conseqüência.

— Senhor, mencionou antes que sofreu um atentado - se apressou a dizer Pitt ao ver que Greville fazia gesto de levantar-se. — O que ocorreu?

— Viajava de carruagem de minha casa até a estação de ferrovia - explicou Greville, procurando manter um tom de voz desapaixonado, como se falasse de um assunto meramente anedótico. — No primeiro trecho, o caminho cruza uma zona de campo aberto, atravessa depois um par de milhas de bosque e em seguida uma distância similar de terras de lavoura até chegar ao vilarejo. Quando passava pelo lance de caminho bordeado de árvores, de repente saiu de uma travessia outra carruagem muito mais pesada e se aproximou por detrás quase em galope. Ordenei ao cocheiro que acelerasse até chegar a algum ponto onde pudéssemos sair sem perigo do caminho para lhe ceder a passagem. Mas em seguida vimos claramente que o condutor da outra carruagem não tinha intenção de diminuir a marcha, e menos ainda de ficar atrás.

Pitt notou que Greville adotava uma postura cada vez mais rígida à medida que revivia o fato. apesar de seus esforços por conservar a calma, seus ombros estavam tensos e sua mão não repousava já relaxadamente no joelho. Pitt recordou o cadáver do Denbigh no beco e soube que o temor do Greville era mais que justificado.

— Meu cocheiro - continuou Greville — se aproximou ao lado esquerdo do caminho, não sem certo risco, já que as recentes chuvas tinham deixado profundos sulcos, e puxou as rédeas para reduzir o passo. Assim e tudo, o outro veículo seguiu avançando a grande velocidade, e o condutor, em lugar de virar para nos esquivar, guiou a carruagem de propósito para nós para nos golpear de flanco. Quase nos fez derrubar. Nos rompeu uma roda, e um dos cavalos ficou ferido, felizmente não com gravidade. Uns minutos depois passou um vizinho e me levou ao vilarejo, e uma vez ali enviei ajuda ao cocheiro, que tinha ficado atendendo ao cavalo ferido. - Engoliu a saliva com dificuldade, como se tivesse a boca seca. — Se não tivesse passado ninguém mais por ali naquele preciso momento, não sei o que teria ocorrido. A outra carruagem se limitou a seguir adiante, aumentando de novo a velocidade até desaparecer.

— Descobriu quem ia nessa carruagem? - perguntou Pitt.

— Não - respondeu Greville com visível desânimo e o sobrecenho franzido.— Fiz indagações, claro está, mas ninguém mais viu o veículo nem a seus ocupantes. Não chegaram ao vilarejo. Certamente abandonaram o caminho e entraram outra vez no bosque. Vi o rosto do condutor quando nos ultrapassou. Voltou-se para mim. Tinha perfeitamente controlados a seus animais. Tratou de nos tirar do caminho. Não me será fácil esquecer seu olhar.

— E ninguém mais viu a carruagem antes ou depois? Ninguém pôde ajudar a identificá-lo? - insistiu Pitt, embora não guardasse a menor esperança. Pretendia só demonstrar ao Greville que tomava a sério seu problema. — Não foi alugado em algum estábulo da zona, ou possivelmente roubado em alguma granja ou propriedade vizinha?

— Não - respondeu Greville. — Não conseguimos averiguar nada de útil. Feirantes e camelôs circulam continuamente pelos caminhos. Uma carruagem sem brasão não se diferencia de qualquer outra.

— Não costumam viajar de carroça os feirantes e camelôs? - apontou Pitt.

— Sim, suponho - concordou Greville.

— Você entretanto fala de uma carruagem, fechada, com o condutor na boléia?

— Sim... sim, com efeito.

— Viajava alguém dentro? - perguntou Pitt.

— Eu não vi ninguém.

— E os cavalos iram ao galope?

— Sim.

— Eram, pois, bons cavalos e estavam frescos?

— Sim - disse Greville com o olhar fixo no rosto do Pitt. — Vejo a que se refere. Esses animais não vinham de longe. Deveríamos ter aprofundado mais no assunto. Possivelmente teríamos descoberto de quem eram e quem os tinha nesse momento ou os reservava para a ocasião. - Apertou os lábios. — Agora já é muito tarde. Mas se voltar a acontecer algo parecido, ficará em suas mãos, delegado. - Ficou em pé. — Obrigado, subchefe. Também lhe estou muito agradecido. Sou consciente de que fui a você sem prévio aviso, e entretanto atendeu a minha inteira satisfação.

Pitt e Cornwallis se levantaram e observaram ao Greville, que inclinou a cabeça, dirigiu-se para a porta com as costas eretas e saiu.

Cornwallis se voltou para Pitt.

— Lamento-o - se desculpou sem dar tempo ao Pitt a pronunciar palavra. — Eu mesmo recebi a notícia nesta mesma manhã. E sinto também que deva delegar o caso Denbigh, mas não há mais remédio. Obviamente é você a única pessoa apta para ir ao Ashworth Hall.

— Poderia deixar o caso em mãos do Tellman - se apressou a dizer Pitt — e levar a outro homem como "valete". Será difícil dar com alguém menos indicado para semelhante trabalho!

Uma ameaça de sorriso apareceu no rosto do Cornwallis.

— Seria difícil achar a alguém a quem lhe desagradasse mais a missão - corrigiu.    — Mas a levará a cabo à perfeição. Necessitará ali a seu melhor homem, alguém a quem conhece bem e é capaz de pensar por sua conta em uma situação nova, adaptar-se, atuar sem vacilação se se produzir outro atentado contra a vida do Greville. Deixe ao Byrne à frente da delegacia de polícia. É um homem digno de confiança; manterá tudo sob controle.

— Mas... - começou a dizer Pitt.

— Não há tempo para trazer outra pessoa - atalhou Cornwallis com severidade.       — atuaram que este modo por razões políticas. A Questão Irlandesa se encontra em um ponto extremamente delicado. - Olhou a Pitt com fixidez para comprovar se se dava conta da magnitude do problema. Deve ter concluído que não o compreendia plenamente, porque depois de uma breve hesitação acrescentou: — Como você sabe, Charles Stewart Parnell é o líder mais influente e unificador que teve a Irlanda há muitos anos. Ganhou o respeito de quase todas as facções. Em opinião da maioria, se se obtiver uma paz duradoura, ele será o único homem que toda a Irlanda aceita como líder.

Pitt moveu lentamente a cabeça em um gesto de assentimento. Adivinhava já o que ia dizer Cornwallis, uma vez que uma recente noticia ia a sua memória.

O rosto do Cornwallis delatava nervosismo e certo desconforto. Não gostava de falar de questões morais de caráter pessoal. Era um homem muito reservado, incapaz de relaxar em presença de mulheres porque os longos anos de navegação o tinham privado de sua companhia. Sentia um respeito por elas que nem todas mereciam, já que as considerava mais nobres e inocentes do que eram e lhes atribuía muito menos influência do que em realidade possuíam. Ao igual a muitos homens de sua idade e posição, achava que as mulheres eram frágeis do ponto de vista emocional e careciam dos apetites que avivavam e às vezes degradavam os homens.

Pitt sorriu e, saindo em ajuda do Cornwallis, disse:

— O caso de divórcio Parnell-O’Shea. Suponho que acabará chegando aos tribunais. A isso se refere, não?

— Sim, com efeito - respondeu Cornwallis com visível alívio. — É um assunto francamente desagradável, mas pelo visto estão dispostos a seguir adiante.

— Em particular o capitão O’Shea, suponho - precisou Pitt.

O capitão O’Shea não era um personagem que despertasse grandes simpatias. Segundo a versão mais ou menos pública do ocorrido, tinha mimado o adultério de sua esposa com o Parnell - de fato, tinha-o fomentado - pensando em obter algum benefício. Mais tarde, quando Katie O’Shea o abandonou definitivamente pelo Parnell, o capitão O’Shea iniciou um processo de divórcio para provocar um escândalo. A vista da causa se celebraria breve, e era difícil prever que repercussão teria na carreira parlamentar e política de Parnell.

Igualmente incerta era a reação de seus partidários irlandeses. Parnell pertencia a uma família de fazendeiros protestantes anglo-irlandeses. A senhora O’Shea tinha nascido e se educara na Inglaterra, no seio de uma refinada família. Sua mãe tinha escrito e publicado várias novelas. Também ela era protestante. Em troca o capitão William O’Shea, apesar de seu aspecto e acento ingleses, era de ascendência irlandesa e católico, embora não exercia como tal. As probabilidades de ira, traição e vingança eram infinitas. Confluíam todos os ingredientes necessários para a gestação de uma lenda.

O tema violentava ao Cornwallis. Não podia passá-lo por alto, mas continha aspectos de fraqueza pessoal e pudor que, a seu julgamento, deveriam haver-se mantido por decência na intimidade. Se um homem agia incorretamente em sua vida privada, podia ser condenado ao ostracismo por seus iguais; a pessoa estava autorizado inclusive a agir como se não o conhecesse quando o cruzava pela rua. Podia exigir-se o que abandonasse os clubes a que pertencia, e se possuía um mínimo de decoro renunciaria ele mesmo de antemão para não chegar a esse ponto. Mas não devia exibir sua fraqueza em público.

— Afeta o caso O’Shea de algum modo à reunião do Ashworth Hall? – perguntou Pitt para voltar ao tema que lhes correspondia.

— É claro - respondeu Cornwallis com um carrancudo semblante de concentração.   — Se denegrir ao Parnell publicamente e virem à luz detalhes de seu namorico com a senhora O’Shea que lhe granjeiem a antipatia das pessoas, apresentando-o como o homem que abusou da hospitalidade de seu anfitrião e não como o herói apaixonado por uma mulher infeliz e maltratada, a liderança do único partido irlandês viável ficará a mercê da ambição de qualquer um. Pelo que Greville me contou, tanto Moynihan como O’Day estariam dispostos a passá-lo no posto. O’Day ao menos é leal ao Parnell, mas Moynihan é muito mais intransigente.

— E os nacionalistas católicos? - Pitt estava desconcertado. — Não é Parnell também nacionalista?

— Sim, claro está. Só um nacionalista seria aceito como líder por uma maioria dos irlandeses. Mesmo assim, é protestante. Os católicos são partidários do nacionalismo, mas de um ponto de vista diferente, mais próximo a Roma. Nisso radica em boa parte o problema: a dependência de Roma; a liberdade religiosa; velhas rivalidades que se remontam aos tempos de Guillerme III de Orange e a batalha do Boyne, e Deus sabe que mais; leis agrárias injustas; a grande fome e a emigração em massa. Para lhe ser justo, às vezes penso que o conflito se reduz em grande medida a passadas rixas. Segundo Greville, outro dos pontos em litígio é a exigência católica de criar, a cargo das arcas do Estado, um sistema de ensino à parte para as crianças católicas. Tenho que admitir que não consigo entendê-lo. Sou consciente entretanto de que a ameaça de violência é real. Por desgraça, a história confirma sobradamente essa possibilidade.

Pitt voltou a pensar no Denbigh. Preferiria muito ficar em Londres para averiguar quem o tinha assassinado a ir ao Ashworth Hall para garantir a segurança de um grupo de políticos.

Cornwallis lhe adivinhou o pensamento e esboçou um irônico sorriso.

— Possivelmente não haja mais atentados - disse com sarcasmo. — Imagino que os representantes correrão maior perigo antes de chegar ou depois de sua marcha. Durante sua estadia no Ashworth Hall serão muito menos vulneráveis. E também Greville, em realidade. Teremos que postar no mínimo outra dúzia de homens no vilarejo e nos terrenos da propriedade. Mas se Greville acreditar que existe algum risco, devo ater-me a suas instruções. Se se produze o assassinato político de algum representante irlandês no Ashworth Hall porque não tomamos a sério a ameaça, não é preciso dizer que as conseqüências seriam desastrosas. Poderia adiar a paz na Irlanda outros cinqüenta anos!

— Sim, senhor - concordou Pitt. — Compreendo.

Cornwallis sorriu, e uma faísca de autêntico humor iluminou pela primeira vez seus olhos.

— Vá, pois, a informar ao Tellman de suas novas obrigações. Começarão este fim de semana.

— Este fim de semana! - exclamou Pitt, estupefato.

— Sim. Sinto muito. Como lhe disse, avisaram-nos com muito pouca antecipação. Mas não duvido que você saberá represar o assunto.

Tellman era um homem sério que se criara na mais extrema pobreza e esperava ainda novos golpes da vida. Trabalhava com esforço, era muito ativo e não aceitava nada que não ganhara com seu esforço. Assim que viu a expressão do Pitt, olhou-o com receio.

— Sim, Pitt? - disse. Nunca lhe dava tratamento de "senhor" se podia evitá-lo. Soava a excessivo respeito e inferioridade.

— Bom dia, Tellman - saudou Pitt. Tinha encontrado Tellman em um canto da sala de guarda; gozavam de intimidade suficiente para falar com a reserva que aquela conversa requeria. Além deles, só havia ali um sargento, e estava absorvido em tarefas administrativas. — Veio o senhor Cornwallis. Tem uma missão para você. Necessitam de nossa colaboração no próximo fim de semana. Fora de Londres.

Tellman tinha um rosto lúgubre de nariz aquilino e feições afiadas, a sua maneira diferente.

— Sim? - disse com ceticismo. Conhecia muito ao Pitt para deixar-se enganar por cortesias. Era capaz de lhe adivinhar o pensamento só olhando-o nos olhos.

— Devemos dar amparo a um político durante uma festa em uma casa de campo - prosseguiu Pitt.

— Ah, sim? - Tellman estava já na defensiva. Por sua mente, sabia Pitt, começavam a formar-se imagens de homens e mulheres ricos que viviam ociosamente de suas rendas, servidos por pessoas tão valiosas como eles mas relegadas pela sociedade a uma posição subordinada... e mantidas nesse papel por pura cobiça. — Um político acossado, não?

— Recebeu ameaças - respondeu Pitt baixando a voz. — E foi vítima de um atentado.

Tellman não se deixou impressionar.

— O pobre Denbigh foi vítima de algo mais que um "atentado", não acha? Ou isso acaso passou já a segundo plano?

Na sala reinava um silêncio tão profundo que Pitt ouvia o riscar da pena do sargento contra o papel. As janelas, fechadas por causa do frio, isolavam-na do ruído da rua. Fora, no corredor, falavam dois homens, mas a porta de madeira maciça amortecia suas vozes reduzindo-as a um murmúrio quase inaudível.

— Trata-se do mesmo caso, só que no extremo oposto - disse Pitt com severidade. — O político em questão se ocupa do conflito irlandês, e este fim de semana se tentará chegar no mínimo a um princípio de solução. É de vital importância que não se produza nenhum ato violento. - Respondeu com um sorriso ao olhar desafiante do Tellman. — À margem da opinião que lhe mereça pessoalmente, se conseguir que a Irlanda avance um só passo para a paz, o esforço de amparo haverá valido a pena.

Um sorriso apareceu muito fugazmente ao rosto do Tellman.

— Suponho que sim - admitiu a contra gosto. — Mas por que nós? Por que não a polícia local? Estão melhor preparados que nós para essa tarefa. Conhecem a zona; conhecem os aldeões. Eles perceberiam a presença de forasteiros e nós não. O meu é resolver assassinatos uma vez que se cometeram, e quero apanhar ao canalha que matou ao Denbigh. Em troca, não sei nada de como acautelá-los em reuniões políticas. E com o devido respeito, Pitt, você tampouco. - Embora tinha incluído a palavra "respeito" na frase, não era isso muito menos o que transmitia sua voz. Sua pergunta seguinte delatou sua verdadeira opinião sobre Pitt. — Aceitou, suponho. Não queria buscar problemas, verdade?

— Não, não queria. Além disso, era uma ordem - replicou Pitt com um sorriso não precisamente cordial. — Não tenho mais remédio que obedecer as ordens de um superior, e você está agora no mesmo caso, Tellman.

— Assim temos que abandonar ao Denbigh para rondar pelo imóvel de algum nobre e manter a distância camelôs, assaltantes e desconhecidos escondidos entre as flores, é isso? Um trabalho de pouca monta para o principal responsável pela delegacia de polícia do Bow Street, não acha.... senhor?

— Para ser exato - respondeu Pitt, — a reunião terá lugar no Ashworth Hall, a residência de recreio de minha cunhada. Eu assistirei no papel de convidado. Por isso sou a única pessoa apta para o trabalho. Do contrário, ficaria aqui, me ocupando do caso Denbigh, e enviaria a outro.

Tellman percorreu lentamente com o olhar a figura fraca e desajeitada do Pitt, com sua jaqueta de boa qualidade deformada pelos muitos objetos que levava nos bolsos, a impecável camisa branca com a gravata ligeiramente torcida, e o cabelo encrespado e muito longo.

— Ah, sim? - disse Tellman com semblante quase inexpressivo.

— E você me acompanhará como valete - acrescentou Pitt.

— Como?

Ao sargento lhe caiu a pena da mão, salpicando de tinta toda a folha..

— Você me acompanhará como valete - repetiu Pitt com voz totalmente isenta de emoção.

Por um instante Tellman pensou que Pitt brincava, fazendo uso de seu variável senso de humor.

— Não acredita que necessito de valete? - disse Pitt, sorrindo.

— Você necessita muito mais que de um valete! - prorrompeu Tellman, olhando ao Pitt nos olhos e dando-se conta de que falava a sério. — Necessita de um mago!

Pitt se ergueu, endireitou os ombros e puxou as lapelas para as colocar aproximadamente ao mesmo nível.

— Por desgraça terei que me conformar com você, o qual será uma grave desvantagem para alternar em sociedade. Mas possivelmente seja de mais utilidade para o político em questão, a não ser quanto a sua idéia do bom vestir, no caso de ter que lhe salvar a vida.

Tellman lhe lançou um olhar iracundo.

Pitt sorriu alegremente.

— Esteja em minha casa na quinta-feira às sete da manhã pontualmente, vestido de civil, com um traje negro. - Deu uma olhada aos pés do Tellman. — E compre umas botas novas se não tem mais que essas. Traga mudas para seis dias.

Tellman jogou adiante o afiado queixo.

— É uma ordem?

Pitt arqueou as sobrancelhas em um exagerado gesto de assombro.

— Deus santo! - exclamou. — Acaso acredita que o levaria comigo se não fosse uma ordem?

 

— Quando? - perguntou Charlotte com tom de incredulidade ao receber a notícia.     — Quando disse?

— Este fim de semana - repetiu Pitt com expressão só ligeiramente envergonhada.

— Impossível!

Achavam-se de pé no salão de sua casa do Keppel Street, na zona do Bloomsbury, a qual se mudaram depois da recente ascensão do Pitt. Até esse momento o dia tinha transcorrido como qualquer outro, ao menos para Charlotte. Aquela notícia a tinha deixado boquiaberta. Não sabia seu marido os preparativos que requeria um fim de semana como aquele? A resposta a isso era muito simples. Não, claro que não sabia. Dado que se tinha criado em uma propriedade rural, estava familiarizado com esse tipo de residências e conhecia provavelmente as obrigações do serviço e possivelmente inclusive a rotina diária quando tinha convidados. Mas essa experiência não lhe tinha permitido formar a menor noção a respeito da quantidade e a espécie de roupa que os convidados deviam levar consigo. Uma dama podia trocar-se até meia dúzia de vezes ao dia e, por conta, usar um vestido visivelmente diferente cada noite para o jantar.

— Quem mais irá ? - perguntou, olhando-o consternada.

A expressão de Pitt denotava que ainda não se apercebera da magnitude de sua exigência.

— A esposa do Ainsley Greville, a irmã do Moynihan e a esposa do McGinley - respondeu Pitt. — Mas a anfitriã é Emily. Toda a responsabilidade recairá nela. Não tem por que preocupar-se. Estará ali só para dar credibilidade a minha presença, porque a ninguém surpreenderá que estejamos sendo você irmã de Emily.

Um sentimento de frustração fervia no interior de Charlotte.

— Por Deus, Thomas! - exclamou, exasperada. — O que se supõe que vou vestir? Tenho só uns oito vestido de outono ou inverno, e a maioria são de dia. Como vou pedir emprestados outros dez daqui à quinta-feira? Para não falar já das jóias, sapatos, uma bolsa para a noite, um xale, um chapéu de passeio... dúzias de coisas cuja ausência revelaria imediatamente que não era uma convidada, mas uma parente pobre. O plano de dar à reunião a aparência de uma festa campestre como tantas outras fracassaria no primeiro momento.

De repente Charlotte percebeu preocupação e incerteza no rosto do Pitt, e imediatamente se arrependeu de não ter mordido a língua. Horrorizava-lhe a idéia de que suas atropeladas palavras induzissem a seu marido a acreditar que deveria lhe ter proporcionado uma situação econômica mais folgada para poder estar à altura de Emily. Às vezes Charlotte sentia falta dos preciosos objetos, da sofisticação e luxo de que se rodeava sua irmã, mas nesse momento nada havia mais longe de seu pensamento.

— Consegui-los-ei! - apressou-se a dizer. — Telefonarei a minha tia avó Vespasia, e certamente a própria Emily poderá me emprestar algo. E amanhã irei ver minha mãe. Quantos dias disse que passaremos fora? Acompanhar-nos-á Gracie, ou a deixaremos aqui para cuidar do Daniel e Jemima? Não vamos levar as crianças, não é? Crê que há autêntico perigo?

Pitt parecia ainda um tanto desconcertado, mas a inquietação começava a desaparecer de seu olhar.

— É necessário levar Gracie como criada. Está sua mãe disponível neste momento?

Caroline, a mãe de Charlotte, casara-se em segundas núpcias recentemente, e com um homem em extremo inapropriado: um ator dezessete anos mais novo que ela. Apesar de ter perdido vários amigos como resultado desse matrimônio, era muito feliz, e de fato tinha conseguido outras muitas amizades novas. Além disso, viajava com freqüência, já que Joshua trabalhava fora de Londres de vez em quando.

— Sim - respondeu Charlotte imediatamente, e caiu então na conta de que não falava com sua mãe desde há mais de quinze dias. — Ou isso acredito.

— Possivelmente não há o menor perigo - disse Pitt com sinceridade. — Mas não tenho a total certeza. Em qualquer caso, não levaremos ao Daniel e Jemima. Se sua mãe não puder fazer-se encarregada deles, deixaremo-los com os filhos de Emily em sua casa da cidade. E melhor será que telefone à tia Vespasia esta mesma noite.

Lady Vespasia Cumming-Gold era tia avó de Emily por parte do primeiro marido desta, mas tinha travado uma estreita amizade com as duas irmãs, e também com o Pitt, implicando-se com freqüência naquelas investigações que concerniam à alta sociedade ou a questões sociais nas que se achasse ativamente envolvida. De jovem tinha sido uma das mulheres mais belas de sua geração, e na velhice conservava uma elegância intemporal e possuía o porte e a dignidade de uma das grandes damas da Inglaterra. Além disso, não tinha já necessidade de pôr freio a sua língua, pois sua reputação era imune a tudo, e seu espírito não admitia compromissos artificiais.

— Fá-lo-ei - disse Charlotte. — Agora mesmo. Quantos dias serão, pois?

— Faz preparativos para cinco ou seis.

Saiu do salão sem perda de tempo, formando redemoinhos já em sua mente, idéias, problemas, detalhes domésticos, planos e dificuldades. Desprendeu o telefone e foi fácil estabelecer conexão com a residência de Vespasia em Londres. Em menos de três minutos falava já com a Vespasia.

— Boa noite, Charlotte - saudou Vespasia com tom afetuoso. — Como está? Vai tudo bem?

— Sim, obrigada, tia Vespasia, vai tudo bem. E você como está?

— Neste momento morta de curiosidade - respondeu Vespasia.

Charlotte percebeu seu sorriso no tom de voz. Propôs-se abordar o assunto de maneira indireta e com muito tato. Deveria ter imaginado que essas táticas de nada serviam com a Vespasia. Para ela, Charlotte era como um livro aberto.

— Curiosidade por quê? - disse Charlotte, fazendo-se de desentendida.

— Não sei - respondeu Vespasia. — Mas sem dúvida me dirá isso assim que prescindamos das banalidades que exige a cortesia.

— Thomas tem um caso que obrigará nos dois a passar uns dias em uma casa de campo - admitiu Charlotte depois de uma breve hesitação, omitindo o nome da casa, não porque desconfiasse da Vespasia, mas sim porque nunca tinha a total segurança de que a telefonista não ouvia a conversa.

— Entendo - disse Vespasia. — E necessita alguns conselhos sobre o vestuário?

— Sim, não sabe até que ponto!

— Muito bem, querida. Pensarei atentamente a respeito, e pode vir ver-me amanhã às onze.

— Obrigada, tia Vespasia - respondeu Charlotte com sincero agradecimento.

— Não mereço. A alta sociedade me é muito tediosa ultimamente. Tudo parece repetido. As pessoas continuam embarcando-se nas desastrosas alianças de sempre, e os observadores fazem uma e outra vez as mesmas observações ridículas e inúteis. Não me virá mal um pouco de entretenimento.

— Ai estarei - prometeu Charlotte, exultante.

Telefonou em seguida a sua mãe, que se mostrou encantada de ficar uns dias com as crianças. Assim que pendurou o telefone, subiu com passo enérgico ao piso superior para começar a selecionar anáguas, meias e regatas. Tinha deste modo que escolher a roupa que Pitt levaria. Também ele devia oferecer um aspecto apropriado para a ocasião. Isso era da maior importância.

— Gracie! - chamou assim que chegou ao patamar. — Gracie!

Tinha que informar Gracie no mínimo dos planos de viagem e o que se esperava dela, deixando para mais tarde os verdadeiros motivos. Havia centenas de tarefas por diante. Deviam preparar as malas das crianças e deixar a casa a ponto para fechá-la durante sua ausência.

— Sim, senhora?

Gracie saiu do quarto de jogo, que tinha começado a ordenar depois de deitar as crianças. Contava já vinte anos, mas podia passar ainda por uma menina. Era tão miúda que Charlotte ainda tinha que lhe cortar e lhe entalhar os vestidos, mas pelo menos suas formas se arredondaram um pouco e não parecia já a criatura desamparada que era aos treze anos, quando a recolheram. Não obstante, a mudança mais notável que tinha experimentado era a segurança em si mesma. Sabia ler e escrever e tinha colaborado de maneira concreta e decisiva em mais de uma investigação. Tinha os senhores mais interessantes do Keppel Street, ou possivelmente de toda Bloomsbury, e demonstrava que era muito consciente disso.

— Gracie, este fim de semana partiremos todos fora. Daniel e Jemima ficarão com minha mãe no Cater Street. A senhora Standish dará de comer aos gatos. Outros irão ao campo. Você me acompanhará como criada.

Gracie a olhou com os olhos arregalados. Esse era um trabalho para o que não se achava capacitada. Socialmente, o emprego de camareira estava vários postos por cima das tarefas domésticas, e ela tinha começado como criada para tudo. Nunca lhe tinha faltado valor, mas aquilo era inquietante, apra não dizer algo pior.

— Eu lhe indicarei o que deve fazer - assegurou Charlotte. Vendo alarme em seu olhar, acrescentou: — É um dos casos do senhor.

— Ah - Gracie permanecia por completo imóvel. — Entendo. Ou seja, que não temos escolha, não é? - Elevou um pouco o queixo. — Melhor será, pois, que nos ponhamos mãos à obra.

 

A carruagem, emprestada por tia Vespasia para a ocasião assim como à roupa, chegou ao Ashworth Hall no meio da amanhã da quinta-feira. Charlotte e Pitt foram sentados no assento posterior, frente à frente. Gracie e o policial, Tellman, ocupavam o assento dianteiro, contra o sentido da marcha.

Gracie nunca tinha andado em uma carruagem como aquela. Normalmente usava o ônibus se tinha que deslocar-se, necessidade que lhe apresentava em muito raras ocasiões. Nunca se tinha movido a semelhante velocidade, exceto uma vez que, horrorizada e boquiaberta, viajou no trem subterrâneo. Aquela foi uma experiência que não esqueceria, nem repetiria se pudesse evitar. Além disso, não contava, já que o trem avançava por um túnel escuro e não se via por onde passava. Viajar em um cômodo assento estofado, com molas, dentro de uma carruagem puxada por quatro cavalos perfeitamente emparelhados, deslizando pelos caminhos através da paisagem, era maravilhoso.

Não olhou uma só vez ao Tellman, mas percebeu em todo tempo sua presença, sentado junto a ela com o tronco erguido, destilando desaprovação. Gracie não tinha visto alguém tão mal-encarado em sua vida. A julgar por sua expressão, teria cabido pensar que vivia em uma casa com furos no encanamento da água. Não pronunciou uma só palavra em todo o trajeto.

Percorreram o longo e curvo caminho de entrada entre os olmos alinhados a esquerda e direita e se detiveram ante a escadaria da majestosa porta principal, flanqueada por lisas colunas clássicas. O lacaio da carruagem saltou a terra, abriu a portinhola e imediatamente saiu da casa outro lacaio para ajudar.

Ofereceram o braço como sustento ao descer, inclusive à Gracie, uma criada.

Possivelmente pensaram que podia cair, e provavelmente não se equivocavam, já que Gracie tinha esquecido a considerável altura a que se achava o estribo.

— Obrigada - disse melindrosamente, e arrumou o vestido. Nesse momento era a criada de uma dama e devia ser tratada como tal. Tinha que aceitar essas amostras de cortesia porque as merecia... ao menos durante o fim de semana.

Tellman deixou escapar um grunhido ao sair da carruagem, observando o lacaio de libré com manifesta indignação. Entretanto, percebeu Gracie, não pôde evitar erguer a vista e contemplar a casa, e apesar de sua desfavorável predisposição transpareceu um indício de admiração em seu olhar ante a magnificência das janelas georgianas, dispostas em fileiras umas sobre outras, e o liso muro de pilares sulcado por uma trepadeira de cor vermelha escarlate.

Charlotte e Pitt foram acompanhados ao interior.

Tellman fez gesto de seguir a Pitt.

— Pela entrada de serviço, senhor Tellman - murmurou Gracie.

Tellman se deteve em seco e a cor subiu a suas faces. Em um primeiro instante Gracie pensou que seu rubor era simples vergonha, mas em seguida reparou em seus ombros tensos e seus punhos apertados e soube que tinha avermelhado de ira.

— Não vá delatar ao senhor entrando por onde não lhe corresponde e passando por ridículo! - repreendeu Gracie em um sussurro.

— Pitt não é meu senhor! - replicou Tellman. — É um policial como qualquer outro. - Não obstante, deu meia volta e seguiu Gracie, que se deixou guiar pelo lacaio até o lado da casa, a uma considerável distância em uma casa daquelas dimensões.

Ao chegar a uma entrada menor, levou-os por um largo corredor e se deteve ante uma porta. Bateu, e quando recebeu permissão do interior, abriu e os fez passar.

— Tellman e Phipps, senhora Hunnaker, os criados pessoais dos senhores Pitt - anunciou o lacaio.

A seguir se retirou e fechou a porta, deixando-os em uma cuidada sala com poltronas providas de toalhinhas, um agradável tapete e dois quadros nas paredes. Na lareira revestida de azulejos, sobre um ralo de ferro forjado, ardia uma viva luz, e ainda por cima do aparador pendiam vários modelos de adorno.

A senhora Hunnaker passava dos cinqüenta anos e tinha o nariz reto e um atraente e abundante cabelo cinza que conferia certa graça a seu rosto. Oferecia o aspecto de uma distinta preceptora.

— Sou consciente de que estão em casa alheia - disse, observando-os atentamente, — mas procuraremos que se encontrem a gosto. Em seguida os acompanharão a seus quartos. As criadas sobem pela escada de frente; os homens, pela de trás. Não o esqueçam - explicou, dirigindo-se especialmente a Tellman. — Quanto ao horário de comidas, o café da manhã estará preparado às oito em ponto. Cereais e pão torrado. Naturalmente, comerão na copa com o resto dos criados. O almoço é de doze a uma e se janta antes que os convidados. Se seus senhores requererem seus serviços a essas horas, a cozinheira lhes guardará algo. Nunca se sirvam de comida por sua conta; peçam-na. Do mesmo modo, se seus senhores desejarem uma xícara de chá ou um lanche, perguntem à cozinheira se podem prepará-lo. Não podemos permitir que todos os criados da casa vão de um lado a outro a seu desejo; do contrário, nunca conseguiríamos servir uma comida como Deus manda. - Olhando a Gracie, acrescentou: — As lavadeiras se ocuparão da lavagem de roupa, mas deverá engomar você mesma a roupa de sua senhora.

— Sim, senhora - respondeu Gracie, obediente.

— Sem dúvida terão trazido seu próprio material de costura, escovas e demais equipamento de trabalho. - Não era uma pergunta mas uma afirmação. — Se necessitarem algo da adega ou a despensa, peçam ao senhor Dilkes, o mordomo. Não saiam da casa a menos que alguém os envie com algum recado. Em relação aos outros convidados, falem com eles só se lhes dirigirem a palavra, mas não aceitem mais tarefas que as que lhes encomendem seus próprios senhores. Se não acharem algo, perguntem. A casa é grande e é fácil perder-se. Confio que sua estadia aqui seja agradável.

— Obrigado, senhora - disse Gracie, inclinando a cabeça em meia reverência.

Tellman permaneceu em silêncio.

Gracie lhe deu um discreto golpe com o pé.

Tellman tomou ar com uma sibilante inalação e respondeu laconicamente:

— Obrigado.

A senhora Hunnaker puxou o cordão de uma campainha e quase imediatamente apareceu uma criada.

— Jenny, apresento os criados dos senhores Pitt. Mostre-lhes o tanque, a confeitaria, a despensa do senhor Dilkes e a copa. Depois leva Phipps a seu quarto e diga a um lacaio que acompanhe ao Tellman à sua.

— Sim, senhora - respondeu Jenny com uma total reverência e se voltou para eles para lhes pedir que a seguissem.

Nunca tinham chamado Gracie pelo sobrenome, mas supôs que era esse o costume em uma grande mansão. Charlotte lhe tinha advertido que às vezes se designava aos valete e camareiras de visita pelo nome de seus senhores. Assim, se algum criado de posição superior dizia "Pitt", estava referindo-se a ela ou ao Tellman. Não seria fácil acostumar-se; mas era uma extraordinária aventura, e Gracie estava sempre desejosa de novas experiências.

Tellman, por sua parte, tinha ainda o mesmo semblante como se tivesse chupado um limão.

O quarto que atribuíram à Gracie era agradável, embora um pouco menor que o seu de Keppel Street e certamente não tão acolhedor. Era tudo muito impessoal, mas provavelmente se ocupava só de vez em quando e nunca permanecia ali a mesma pessoa mais de uma ou duas semanas.

Deixou suas bolsas de viagem no chão, abriu uma e de repente recordou que devia ir primeiro desfazer a bagagem de Charlotte, colocar sua roupa no armário e certificar-se de que tudo estava em ordem. Isso se esperava de uma criada.

Perguntou-se se Tellman recordaria que também era essa sua obrigação. Entretanto Gracie não podia ajudá-lo, porque ignorava em que quarto o tinham acomodado.

Seguindo as indicações de uma criada, achou os aposentos de Charlotte e Pitt.

Bateu na porta e entrou. Havia um espaçoso dormitório com um tapete de cor rosa.

As enormes janelas davam a um extenso jardim povoado de altos abetos. À esquerda crescia um cedro com a copa recortada, uma das árvores mais formosas que Gracie jamais tinha visto. Seus delicados ramos se esparramavam em um amplo círculo verdinegro que se perfilava contra o céu varrido pelo vento. As cortinas, com cordões carmesim e um estampado de rosas, caíam em magníficas dobras.

— O que é isso! - exclamou com voz afogada, contendo-se bem a tempo.

Havia alguém no quarto de vestir. Gracie rodeou a mesa, em cujo centro se erguia um vaso com um ramo de crisântemos, e se aproximou nas pontas dos pés à porta entreaberta. Dispunha-se a bater quando viu Tellman, que observava imóvel Pitt enquanto este tirava sua roupa e a pendurava. Provavelmente Tellman nunca antes tinha visto trajes de gala como aqueles, nem sabia é claro quais cuidados requeriam. Mesmo assim, causava verdadeiro embaraço ver Pitt fazendo-se ele mesmo em uma mansão de tal classe. O que pensariam as pessoas?

— Eu o ajudarei, senhor - disse Gracie com tom enérgico ao mesmo tempo que abria a porta de par em par. — Você deveria estar lá embaixo para conhecer todas essas pessoas que tem que proteger.

Lançou um eloqüente olhar ao Tellman se por acaso lhe ocorria pensar que também a ele dava licença para partir.

Pitt se voltou para Gracie. Depois de uma breve hesitação, olhou por um instante ao Tellman e logo outra vez a ela.

— Obrigado - aceitou com um sorriso irônico, inclinou levemente a cabeça em direção ao Tellman e saiu.

Gracie abriu primeiro os três grandes baús de Charlotte. Em um deles, em cima de todo o resto, apareceu um esplêndido traje de noite de cetim nacarado guarnecido de pérolas e babados de chifon. Dando uma olhada ao pesponto lateral do corpete, Gracie percebeu que se tirara a costura com grande rapidez e perícia para alongar as costas. Sem dúvida pertencia a lady Vespasia Cumming-Gould. Gracie conhecia de sobra os escassos vestidos de Charlotte, e aquele certamente não era um deles. Levantou-o com supremo cuidado ao mesmo tempo que a invadia um súbito sentimento de gratidão por lady Vespasia por sua generosidade com Charlotte, graças a qual esta poderia salvar seu amor próprio ante aquela pessoa, em particular sua irmã, que tão bom marido tinha encontrado. No referente ao dinheiro, claro está, já que ninguém igualava a seu senhor em verdadeira importância.

Pegou um cabide e arrumou o vestido de maneira que pendurasse devidamente antes de deixá-lo no armário.

Tellman a contemplava com assombro.

— E a você o que lhe passa? - perguntou Gracie com brutalidade. — Alguma vez tinha visto os vestidos de uma dama? Acabe de pendurar esses trajes e vá logo inteirar-se de onde estão as pranchas, o fogão para preparar a goma, o quarto de banho e tudo isso. Certamente não sabe encher uma banheira? - Farejou o ar. — Tampouco deve ter usado alguma ultimamente, suponho? Nem saberá esquentar a água para o asseio da manhã? Nem limpar as botas do senhor? - Gracie notou um vislumbre de aversão no rosto do Tellman. — E não é que seja muito trabalho. Nem comparação com tudo o que eu tenho que fazer! Os cavalheiros só se trocam uma ou duas vezes ao dia; as senhoras usam até cinco vestidos diferentes em um mesmo dia. Mas terá que comprovar que o senhor Pitt leva sempre as camisas limpas! Se o faz ficar mal enviando-o aí fora com uma camisa que não esteja impecável, terá que se ver comigo.

— Pitt não é meu senhor - respondeu Tellman entre dentes. — E eu não sou uma condenada babá!

— Uma babá não, certamente; um condenado inútil é o que parece! – replicou Gracie. — E aqui, senhor Tellman, não use esse vocabulário. Não é o lugar indicado. Ouve-me?

Tellman seguia contemplando-a imóvel.

— Se o orgulho lhe impede de fazer bem seu trabalho, é você um néscio - continuou Gracie com aspereza ao mesmo tempo vez que se voltava para o baú e tirava outro vestido, um de tafetá amarelo outonal. Este sim era de Charlotte, e muito mais simples, mas combinava bem com seu cabelo castanho avermelhado. Olhando ao Tellman, ordenou: — Passe-me um desses cabides.

Tellman o deu a contra gosto.

— Olhe, senhor Tellman - disse Gracie enquanto colocava o vestido no cabide. A seguir o entregou ao policial para que o pendurasse no armário e extraiu a seguinte roupa, um vestido de passeio azul escuro de tecido de gabardine. Debaixo deste havia um vestido de manhã, e depois outro e outro mais. Os outros dois baús continham três trajes de noite mais e vários vestidos de passeio e de manhã, junto com as blusas, regatas, anáguas e demais roupa interior. Este último, decidiu, não o tiraria até que Tellman partisse. Não era assunto dele o que levava uma dama sob o vestido.

— Olhe - repetiu, — você e eu viemos para ajudar ao senhor a fazer seu trabalho e proteger a quem quer que seja que está em perigo. E a maneira de ajudá-lo é aparentar que visitamos casas como esta freqüentemente e sabemos o que temos entre mãos.          - Entregou ao Tellman outro vestido e lhe dirigiu um severo olhar. — A julgar pela careta que vejo em seus lábios, pensa certamente que o emprego de criado está muito abaixo de você...

— Eu acredito que nenhum homem deveria servir a outro - disse Tellman com frieza. — Não é minha intenção insultá-la, porque nem você nem eu temos a culpa de ter nascido pobres. Mas não há por que aceitá-lo como se alguém o merecesse, nem tratar aos ricos como se fossem melhores. Todo este assunto de fazer reverências e tirar o chapéu me revolve o estômago. Surpreende-me ver que você o admite como se fosse o mais natural do mundo.

— Acha-se muito importante, né? - disse Gracie filosoficamente. — Me parece que tem mais espinhos que um desses animaizinhos que vivem nas sebes. Tal como eu o vejo, há só duas opções: pode-se ser um bom criado e fazer bem as coisas, ou se pode ser um mal criado e fazer tudo mal. Eu tenho suficiente amor próprio para fazer meu trabalho o melhor possível.

Deixou escapar um grunhido, inclinou-se de novo sobre o segundo baú e começou a tirar vestidos, colocando-os com esmero sobre a cama para depois ir procurar mais cabides.

Tellman meditou sobre o assunto por uns instantes e finalmente concluiu aparentemente que, ao menos de momento, não tinha escolha. Com diligência, pendurou o resto da roupa de Pitt e depois colocou em seu lugar a escova para o cabelo, as abotoaduras de punhos, peitilho e colarinho, e os utensílios para barbear: sabão, pincel, navalha e loção.

— Vou dar uma volta pela casa - anunciou com tom sério ao terminar sua tarefa.     — Melhor será que me dedique também a meu verdadeiro trabalho. Para isso me fez vir o senhor Cornwallis.

Olhou para Gracie por cima do ombro, o que não foi muito difícil, já que em estatura lhe passava mais de um palmo. Era além disso quatorze anos mais velho que ela, e não estava disposto a consentir que uma mocinha de vinte anos tomasse liberdades com ele só porque sabia desfazer a bagagem.

— Boa idéia - respondeu Gracie com firmeza, e assinalando com o queixo a mala vazia de Pitt, acrescentou: — Agora que acabou com isso, já não faz aqui nenhuma falta. Há objetos da senhora que não está bem que você veja. Volte mais tarde para guardar os baús nas traseiras. E não ande por aí dando-se ares - advertiu quando Tellman chegava à porta, — ou se não, outros suspeitarão que não é um simples valete, embora um valete seja um criado de alta posição entre os criados. Recorde também isso e não dê muita confiança a moços e lacaios.

— E como está você tão bem informada se no fim de tudo tem aqui o mesmo tempo que eu? - perguntou Tellman, arqueando as sobrancelhas.

— Sirvo há anos - explicou Gracie. Não tinha por que lhe contar que sempre tinha trabalhado para Charlotte. Além disso, conhecia o funcionamento de uma casa como aquela por comentários que tinha ouvido e por alguma ou outra visita muito esporádica, e em boa medida, para ser sincero, por suas próprias hipóteses. Dirigiu ao Tellman um olhar imperturbável. — Vai ficar muito tempo aí parado como um desses artefatos onde deixam seu guarda-chuva os cavalheiros?

— Serventes! - resmungou Tellman com tom lúgubre, e se voltou para partir.

— Servir não tem nada de mau - disse Gracie quando Tellman, de costas a ela, saía já do quarto. — Durmo debaixo de um teto, quente e a gosto, toda noite, e como diariamente, que é mais do que muitos podem dizer! E me relaciono com pessoas decentes, e não como as que você trata!

Tellman não respondeu.

Gracie continuou desfazendo a bagagem eo Charlotte, deleitando-se com o tato do tecido e as magníficas cores dos vestidos emprestados, pendurando-os cuidadosamente, alisando as saias para que não se enrugassem, acariciando com as pontas dos dedos os os tecidos com contas de adorno, as rendas, o chifon, tão diáfano que poderia ler um livro através.

Quase tinha terminado de tirar a roupa interior quando bateram na porta. Dispunha-se já a encarar de novo Tellman e lhe dar outro sabão se mantivesse sua atitude renitente, mas ao abrir não se encontrou com Tellman mas com uma atraente mulher de cabelo castanho. Rondava os trinta anos, e embora vestisse uniforme de criada, tinha o porte de uma pessoa muito segura de si mesma. Gracie supôs imediatamente que era outra camareira. Só uma camareira ou uma preceptora mostravam essa superioridade, e naquela casa não havia preceptora.

— Bom dia - saudou a mulher com cautela. — Sou Gwen, a criada da senhora Radley. Bem-vinda ao Ashworth Hall.

— Bom dia - respondeu Gracie com um sorriso vacilante. Aquela mulher tinha obtido o que para Gracie era a máxima aspiração. Necessitaria de sua ajuda e seu exemplo para não defraudar ao Charlotte. — Muito obrigada.

— A senhora Radley me disse que possivelmente a senhora Pitt deseje tomar emprestadas algumas coisas para a ocasião. Se quer me acompanhar, indicar-lhe-ei o caminho e pode trazê-las aqui.

— Obrigada - falou Gracie. — Me parece muito bem.

Pensou em acrescentar algum comentário para esclarecer por que Charlotte precisava pedir roupa, mas se absteve. Provavelmente Gwen conhecia de sobra a razão. Poucas senhoras tinham segredos para suas criadas. Seguiu obedientemente Gwen, e esta lhe mostrou meia dúzia de vestidos de manhã e tarde e um traje de noite de intensas cores rosa e vinho que, na opinião de Gracie, era muito pouco indicado para a tez e o cabelo claros da senhora Radley. Ou tinha realizado uma péssima aquisição, ou o tinha comprado com o propósito de dar de presente à Charlotte.

— É lindo - comentou Gracie, procurando dissimular seu deslumbramento para que Gwen não a tomasse por uma ignorante.

— Estou certa de que a senhora Pitt ficará muito favorecida com este vestido - disse Gwen com generosidade. — E agora, se não há inconveniente lhe mostrarei o piso superior da casa e a apresentarei às outras criadas.

— Muito obrigada - repetiu Gracie. Era fundamental estar à corrente de tudo. Nunca se sabia que informação podia ser de utilidade chegado o caso. E se realmente se avizinhasse perigo, ou inclusive um assassinato, convinha-lhe conhecer a casa e às pessoas, assim como suas maneiras de ser e suas lealdades. Sorrindo, acrescentou:        — Por mim, encantada.

Gwen era uma mulher em extremo afável. Talvez a senhora Radley lhe tivesse confiado ao menos em parte o verdadeiro caráter daquela reunião. Gracie em seguida começou a sentir simpatia por ela, e a desfrutar da tarefa de familiarizar-se com o piso superior da casa, as diferentes escadas, o caminho mais rápido às cozinhas ou tanque, a sala de prancha e a confeitaria, e a maneira de evitar os lacaios, cavalariços e o mordomo, um homem de gênio variável que exercia uma autoridade absoluta.

Charlotte a tinha informado vagamente a respeito de que convidadas iriam , e Gracie conheceu a criada da senhorita Moynihan - uma jovem francesa de falar agradável e grande senso de humor -, a criada da senhora McGinley – uma mulher de maior idade com o costume de mover a cabeça em um gesto pessimista, como se augurasse algum desastre -, e Doll, uma moça de uns vinte e cinco anos e grande beleza, criada da senhora Greville. Doll era alta, quase um palmo mais que Gracie, e tinha uma admirável figura. Gracie pensou que possuía todas as qualidades de uma excelente criada, salvo por algo indefinido que se percebia nela, certa melancolia ou possivelmente uma atitude distante. Gracie teria que esperar para conhecê-la melhor para determinar do que se tratava exatamente.

Quando Gracie, depois de separar-se de Gwen, subia de novo pela escada, viu um jovem que começava a descer. Em um primeiro momento pensou só em quão bonito era o rosto do moço. Tinha o cabelo muito escuro, quase negro sob a iluminação interior, e uns lábios finos e delicados que lhe davam aspecto de sonhador.

Mas imediatamente lhe assaltou a suspeita de que se enganara de escada. Deteve- se e notou uma labareda de rubor nas faces, lamentando-se de ter que cruzar-se com um jovem como aquele precisamente quando tinha cometido um engano tão estúpido. E entretanto, ao olhar para o patamar, percebeu que era idêntico ao da escada por onde tinha descido: adornava a mesinha um vaso verde com crisântemos brancos e cobria a parede um papel pintado de cores verde pálida e branca. Inclusive havia um spot de gás com a tela de vidro esmerilhado como o do outro patamar. Com duas escadas tão parecidas era fácil confundir-se.

O moço também se deteve.

— Rogo-lhe que me desculpe - disse com um ligeiro sotaque irlandês muito diferente ao das criadas que tinha saudado. Devia ser de outra parte do país.

Sorrindo e olhando para Gracie nos olhos, afastou-se para lhe ceder a passagem. Tinha os olhos muito escuros, os mais escuros que Gracie tinha visto em sua vida.

— Acredito... acredito que estou subindo pela escada errada – balbuciou Gracie.       — Sinto muito.

— A escada errada? - perguntou ele.

— Esta não... não deve ser a escada das criadas, mas a dos homens - esclareceu ela, tão morta de calor que lhe ardiam as faces.

— Não - se apressou a responder o jovem. — Com certeza o engano foi meu. Nem sequer parei para pensar por qual escada tinha que descer. Você também deve estar aqui de visita, como eu, ou do contrário não hesitaria.

— Sim. Sim, trabalho para a senhora Pitt. Sou sua criada.

O moço voltou a sorrir.

— Eu sou o valete do senhor McGinley. Meu nome é Finn Hennessey. Sou do County Down.

— Eu me chamo Gracie Phipps - respondeu Gracie, lhe devolvendo o sorriso. Ela tinha nascido nos bairros pobres do Clerkenwell, mas não tinha intenção de dizê-lo. — Sou do Bloomsbury. - Ali vivia nesse momento, assim em realidade não mentia.

— Muito prazer, Gracie Phipps. - Inclinou ligeiramente a cabeça. — Me parece que teremos uma excelente festa este fim de semana, sobre tudo se mantém o bom tempo. Nunca tinha visto um jardim como este, com todas essas árvores enormes. É um país lindo. - A julgar pelo tom do comentário, dir-se-ia que estava um tanto surpreso.

— Alguma vez tinha visitado a Inglaterra? - perguntou Gracie.

— Não, nunca. Não é como esperava.

— E como imaginava?

— Diferente - respondeu o jovem pensativo.

— Diferente em que sentido? - insistiu Gracie.

— Não saberia dizer - admitiu ele. — Diferente da Irlanda, suponho. E ao menos esta pequena porção poderia ser a Irlanda, com essas árvores, a erva, as flores.

— É bonita a Irlanda?

Suas feições se suavizaram e todo seu corpo pareceu distender-se até que, em lugar de permanecer erguido, apoiou-se contra o corrimão com gesto elegante e um brilho no olhar.

— É um país triste, Gracie Phipps, mas é o mais formoso que Deus criou. Tem uma paisagem agreste, de vivas cores, e um ar tão limpo que terá que cheirá-lo para conceber tal pureza. É um país antigo onde antigamente viveram heróis, santos e sábios, e hoje em dia a dolorosa lembrança desse tempo passado está presente na cor da terra, nos altos penhascos, nas árvores perfiladas contra o céu, no som da tormenta. Mas agora não encontra a paz. As crianças passam fome e frio e a terra está em mãos de estrangeiros.

— É horrível - sussurrou Gracie.

Não via grandes diferenças entre aquilo e as penúrias que padeciam em todas partes, mas o pesar que transmitia sua voz a comoveu no ato e suas palavras lhe fizeram pensar em algo precioso e perdido. A injustiça sempre a tinha indignado, mais ainda desde que trabalhava para o Pitt, porque tinha presenciado seus esforços por combatê-la.

— Sim, é. - O moço, com um sorriso nos lábios, moveu a cabeça em um gesto de aflição. — Mas talvez desta vez ponhamos remédio a essa situação. Algum dia venceremos, isso o asseguro.

Gracie não teve ocasião de responder, porque nesse instante apareceu no alto da escada a criada da senhora Moynihan.

— É evidente que me confundi de caminho - se desculpou Finn Hennessey. — É fácil perder-se em uma casa deste tamanho. Perdoe.

Depois de dirigir um rápido olhar para Gracie, retrocedeu e se afastou. Gracie seguiu adiante, mas lhe dava voltas a cabeça, e ao cabo de cinco minutos tinha dobrado pelo corredor equivocado e tampouco ela sabia onde se achava.

Ao chegar, Pitt foi falar quase imediatamente com Jack Radley a respeito da situação que se expunha e anunciar sua presença ao Ainsley Greville. Devia, além disso, informar-se das medidas tomadas pela polícia local e criados do Ashworth Hall, e do que sabiam estes da situação e seus possíveis riscos.

Charlotte foi diretamente ver Emily, que estava no toucador do primeiro piso esperando sua chegada e desejosa de falar com ela.

— Não sabe quanto me alegro de que tenha vindo! - disse Emily, estreitando-a entre seus braços. Esta é minha primeira recepção política importante, e me assusta o que possa acontecer. Melhor dizendo, o que já está acontecendo. - Deu um passo atrás com o rosto mudado por causa de um profundo desassossego. — Você mesma notará a tensão no ambiente. Se esta pessoa for representativa do resto dos irlandeses, não entendo como pode alguém pensar que serão capazes de pactuar a paz entre eles. Inclusive as mulheres se têm verdadeira aversão.

— Tão irlandesas são elas como eles - observou Charlotte com um sorriso. — E também talvez igualmente católicas ou protestantes, ou expropriadas igualmente temerosas de perder aquilo que conseguiram com seu esforço.

Aparentemente, as palavras de Charlotte surpreenderam Emily.

— O que sabe de tudo isto? - perguntou. Usava um vestido verde pálido, uma cor que ficava maravilhosamente com sua tez e cabelo claros, e estava encantadora apesar de sua visível agitação.

— Só o que Thomas me contou - respondeu Charlotte, — que não é muito. Embora, claro está, tinha que me explicar o motivo de nossa visita.

— E qual é o motivo de sua visita? - Emily se acomodou em uma das amplas poltronas com estampado de flores e indicou outra, convidando ao Charlotte a tomar assento. — Demais é dizer que são bem-vindos; não interprete mal minha pergunta. Mas eu gostaria de saber por que consideram necessária a presença da polícia. Não chegarão às mãos, esses irlandeses, suponho. - Olhou Charlotte com um meio sorriso, mas em sua voz se percebia um tom de verdadeiro alarme.

— Duvido - respondeu Charlotte com franqueza. — Provavelmente não existe menor perigo, mas o senhor Greville recebeu ameaças de morte, e portanto convém tomar precauções.

— Não serão de algum dos convidados, essas ameaças! - exclamou Emily, horrorizada.

— Não acredito, lógicamente eram anônimas. Não, diria que é só questão de atuar com a devida prudência.

— Em todo caso, me alegro muito de que estejam aqui. - Emily relaxou um pouco.   — Este fim de semana vai representar uma dura prova para mim, e será mais suportável se conto com sua ajuda. Recebo pessoas freqüentemente, certamente, mas sempre escolho eu aos convidados e procuro que sejam pessoas em boas relações. Tente ser diplomática, pelo que mais queira.

— Acha que servirá de algo? - respondeu Charlotte com um irônico sorriso.

— É claro! Não fale de certos assuntos: religião, imunidade parlamentar, reforma, educação.... leis agrárias, rendas da terra, batatas.... divórcio...

— Batatas e divórcio! - repetiu Charlotte com incredulidade. — Por que ia eu falar de batatas ou divórcio?

— Não sei. Mas não mencione nada disso!

— E do que posso falar?

— De qualquer outra coisa. A moda... embora imagine que não está muito ao corrente. O teatro... mas tampouco vai ao teatro, exceto com mamãe quando atua Joshua... e melhor será não comentar que nossa mãe está casada com um ator, e judeu para cúmulo. Bom, provavelmente isso não importa. Católicos e protestantes têm já bastante odiando-se mutuamente para preocupar-se dos judeus. É muito possível, em troca, que concordem que qualquer um que suba a um cenário é um descarado. Fale do tempo e de jardinagem.

— Pensarão que sou boba! - protestou Charlotte.

— Rogo-lhe isso!

Charlotte deixou escapar um suspiro.

— De acordo - concordou. — Com efeito vai ser um fim de semana difícil, temo.

No almoço se cumpriu seu vaticínio. Sentaram-se em torno da mesa da espaçosa sala de jantar, bastante longa para acomodar vinte comensais mas preparada nessa ocasião só para doze. Jack Radley deu as boas-vindas à Charlotte, e depois das apresentações todos ocuparam seus lugares. O primeiro prato se serviu no ato.

Charlotte tinha Fergal Moynihan a sua esquerda e Carson O’Day a sua direita. Fergal era um homem de aparência agradável, de estatura um pouco superior à média e refinadas feições aquilinas, mas Charlotte percebeu escasso senso de humor em sua expressão. De entrada não despertou a menor simpatia, mas talvez a predispusesse injustamente contra ele sua imagem de protestante intransigente.

Carson O’Day, quinze ou vinte anos mais velho que ele, era mais baixo e tinha um aspecto muito mais anódino; entretanto possuía um vigor perceptível a simples vista. Era um homem de atitude benévola e cortês, mas atrás de suas gentilezas, obrigadas pelo caráter social do almoço, transparecia seu sério aspecto e o fato de que nem por um momento esquecia a verdadeira razão daquele encontro.

Em frente a ela se achava Padraig Doyle, também de certa idade, rondando possivelmente os cinqüenta e cinco anos. Tinha uma expressão cordial e um rosto de traços muito irregulares - além de um nariz largo e torcido - para qualificá-lo de atraente. Possuía, não obstante, gracejo e engenho, e Charlotte adivinhou que seria uma companhia amena até antes de ouvi-lo falar.

Embora fosse Emily a anfitriã, uma vez que comprovou que todos os convidados estavam em seus lugares e bem atendidos, aceitou sem o menor reparo que Ainsley Greville assumisse o comando da reunião. Sua esposa, Eudora, era uma mulher ruiva de notável beleza e aparentava uns anos menos que ele. Tinha os olhos castanhos, as maçãs do rosto pronunciadas e uma formosa boca, e seu natural recato não fazia mais que realçar seus encantos.

Pelas posições que ocupavam na mesa, Charlotte não via com igual facilidade às outras duas mulheres presentes na reunião, mas logo que se apresentou a oportunidade, observou-as discretamente. Kezia Moynihan se dava um ar a seu irmão. Era também loira e tinha os olhos muito claros, quase de cor água-marinha, e um abundante cabelo que parecia invejavelmente moldável. Entretanto, diferente de Fergal, possuía uma expressão viva, como se a risada lhe brotasse com naturalidade, e também possivelmente o mau gênio. Apesar da semelhança entre ambos, o rosto dela pareceu para Charlotte muito mais agradável.

Iona McGinley era o pólo oposto. Movia nervosamente suas mãos magras sobre a toalha branca. Tinha o cabelo quase negro e em seus olhos grandes, de um azul intenso e olhar sonhador, adivinhava-se uma personalidade vulnerável e uma rica vida interior. Falava pouco, e quando o fazia, sua voz doce de acento meridional soava tão melodiosa como a própria música.

Completava o grupo Lorcan McGinley, um homem de cabelo pálido, boca longa e olhos de um azul muito claro, quase celeste, e olhar inquietantemente direto.

A conversa começou com alguns comentários tão inofensivos que pareciam quase banais, em especial considerando que, salvo os Pitt, todos estavam já ali desde a manhã anterior e portanto aquela era a terceira ou quarta refeição que compartilhavam.

— Não faz nada de frio - disse Kezia com um sorriso. — Notei que ainda há muitas roseiras em flor.

— Alguns anos dão rosas até Natal - respondeu Emily.

— Não apodrecem as raízes com a chuva? - perguntou Iona. — Na Irlanda, acontece com freqüência.

— Mais a oeste não temos um clima tão chuvoso - apostilou Carson O’Day.

De repente se produziu um silêncio, como se o comentário tivesse conotações críticas.

Emily passeou o olhar de uns aos outros.

— Sim, apodrecem algumas vezes - respondeu sem dirigir-se a ninguém em particular. — Suponho que é questão de sorte. Parece que este ano os espinheiros estão carregados de fruto.

— Conforme dizem, isso anuncia um inverno frio - observou Lorcan sem afastar a vista do prato.

— Isso são contos de velhas - respondeu Kezia.

— Às vezes as velhas têm razão - indicou seu irmão sem sequer uma ameaça de sorriso. Voltou-se para a Iona, e embora desviasse imediatamente a vista, seus olhares se cruzaram fugazmente. Depois continuou com a sopa.

Emily experimentou tentar de novo com um tema diferente. Desta vez falou com Eudora Greville.

— Ouvi que lady Crombie planeja visitar a Grécia este inverno. Conhece esse país?

— Estive ali faz dez anos, mas na primavera - respondeu Eudora, aproveitando a oportunidade de sair em sua ajuda. — Um lugar muito formoso, sem dúvida - acrescentou, e passou a descrevê-lo.

Ninguém lhe prestou atenção, e possivelmente a ela pouco importava. Era um tema sem risco e contribuiu para reduzir a tensão.

Charlotte teria intervindo de boa vontade, mas só iam a sua mente assuntos como a política, o divórcio ou as batatas. Fosse qual fosse o tema de conversa, tudo parecia levar ao mesmo ponto.

Agradava-lhe mostrar-se cordial e simular um enorme interesse nas viagens, intercalando uma pergunta cada vez que o bate-papo decaía. Certamente dava a impressão de que seria um fim de semana interminável. Se aquela situação se prolongasse durante cinco ou seis dias, com três comidas diárias sentados todos à mesma mesa, sem contar a hora do chá, acabaria parecendo muito a um ano inteiro.

Examinou a outros comensais enquanto se retiravam uns pratos e se serviam outros. Ainsley Greville parecia tranqüilo, mas se alguém o observava com atenção, percebia que quando não tinha as mãos ocupadas na comida, em lugar de pousá-las relaxadamente junto às talheres, tamborilava em silêncio com um dedo, e de vez em quando o sorriso permanecia fixo em seus lábios, como se fosse forçado, não natural. A responsabilidade daquela conferência devia ser uma pesada carga para ele. Apesar de sua muita experiência, e as indubitáveis recompensa de seu trabalho, por um instante lhe inspirou lástima.

Eudora, em troca, não delatava o menor nervosismo. Era melhor atriz que seu marido? Ou ignorava acaso o verdadeiro objetivo da reunião?

Padraig Doyle também parecia desfrutar realmente do almoço e comia com fruição, transmitindo de vez em quando suas mais sinceras felicitações à cozinheira através de Emily. Entretanto, como representante de uma causa da maior transcendência, devia ser consciente da tarefa que tinham por diante e as dificuldades de achar no mínimo a um princípio de solução. Simplesmente, representava bem seu papel.

Observando-o enquanto se retirava o segundo prato e se servia a sobremesa, Charlotte acreditou ver em seu rosto a viva emotividade de um artista, o engenho de um bom conversador. Ofereceu certamente um ameno relato de suas viagens pela Turquia, imitando a diversos personagens que tinha conhecido e descrevendo sua indumentária e aparência com poéticos detalhes. Em várias ocasiões conseguiu provocar as risadas de todos os pressentes.

Charlotte notou que Padraig Doyle e Eudora conversavam com grande naturalidade, como se se conhecessem desde há tempo.

Reparou deste modo na crispada relação entre o Lorcan McGinley e Fergal Moynihan, incapazes de ficar de acordo sequer em trivialidades tais como o exorbitante preço de qualquer hospedagem medianamente aceitável no estrangeiro ou os desconfortos de viajar com mau tempo.

Kezia parecia muito unida a seu irmão e assinava todas suas opiniões. Entretanto nunca discrepava ou contradizia abertamente a O’Day.

Iona McGinley, por sua parte, dava a impressão de sentir um tanto coibida quando falava com o Fergal Moynihan ou, sem dirigir-se concretamente a ele, comentava alguma de suas observações.

De vez em quando Charlotte lançava uma olhada ao Pitt, percebendo em seus olhos uma ameaça de preocupação. Viu também que Jack e Emily cruzavam alguns olhares de mútua compreensão e apoio.

Quando o almoço tocava felizmente a seu fim, um lacaio se aproximou de Jack e anunciou a chegada do senhor Piers Greville e perguntou se devia deixá-lo entrar.

Jack vacilou por um instante e respondeu:

— Sim, naturalmente.

Olhou a seguir ao Ainsley e Eudora, notando em seus olhos expressão de surpresa.

— Não o entendo - se limitou a dizer Eudora. — Achava que estava ainda em Cambridge. Espero que não tenha ocorrido alguma desgraça.

— Claro que não, querida - assegurou Ainsley com tom tranqüilizador, mas seu semblante desmentia suas palavras. — Provavelmente foi para casa, que no fim das contas se encontra só a onze milhas daqui, e quando lhe disseram onde estávamos, decidiu vir nos ver. Não podia imaginar que sua visita seria inoportuna. - Voltou-se para Emily. — Lhe peço desculpas, senhora Radley. Confio em que não represente um aborrecimento para você.

— Absolutamente. Qualquer membro de sua família é bem-vindo nesta casa. – Era a única coisa que Emily podia dizer. Na alta sociedade, a pessoa costumava apresentar-se sem convite nas festas celebradas nas casas de campo. Sempre se acolhia a quem chegava de improviso, e se o anfitrião devolvia a visita em outro momento, recebia igual hospitalidade. A pessoa aparecia e ficava o tempo que fosse necessário, embora no presente as estadias não se prolongavam já tanto como antigamente, pois graças ao trem uma pessoa podia deslocar-se fácil e comodamente por todo o país. Anos atrás, os visitantes se viam às vezes obrigados a permanecer um mês ou dois fora de sua casa devido simplesmente ao esgotamento que provocava viajar, sobre tudo por péssimas estradas muito deterioradas por causa da chuva, ou inclusive intransitáveis em pleno inverno. Emily acrescentou: — será um prazer conhecê-lo.

Charlotte olhou para Pitt, sentado do outro lado da mesa. Lhe dirigiu um aflito sorriso. Aquele era um dos muitos imprevistos possíveis. Ninguém lhe tinha pedido sua opinião a respeito dessa visita, mas em caso de lhe perguntar teria se posto de manifesto a verdadeira importância de sua presença na casa, com o que perderia imediatamente a única vantagem com que contava.

O lacaio inclinou a cabeça e se retirou para cumprir as instruções recebidas.

Piers Greville entrou ao cabo de um momento. Embora não era tão alto como seu pai, tinha a pele e o cabelo claros como ele; as agraciadas feições, em troca, tinha herdado de sua mãe. Chegou sobremaneira iludido e com expectativa, com as faces ruborizadas e um intenso brilho nos olhos de cor azul cinzenta. Dirigiu-se primeiro à Emily, a quem reconheceu como anfitriã pelo lugar que ocupava na mesa.

— Senhora Radley, encantado em conhecê-la. É muito generoso de sua parte me permitir irromper aqui deste modo. Agradeço. Procurarei não lhe causar muitos transtornos, prometo. - Ainda sorridente, voltou-se para Jack. — O mesmo lhe digo, senhor Radley. Dou-lhe de antemão meu mais sincero agradecimento.

A seguir olhou ao redor e saudou um por um dos presentes, apesar de não conhecer nenhum deles.

Todos lhe devolveram o sorriso, uns imediatamente e com genuíno afeto, como Kezia Moynihan, outros de maneira mais renitente, por pura cortesia, como seu irmão e Lorcan McGinley.

Piers se voltou para seu pai.

— Papai, vim porque não disporei de outra oportunidade até dentro de dois meses, e pensei que a notícia não podia esperar. - Girou sobre os calcanhares e olhou a Eudora.   — Mamãe...

— Que notícia? - perguntou Ainsley com tom neutro, quase displicente.

Eudora escutava com perplexidade. O que seu filho estava a ponto de anunciar era obviamente inesperado. Cabia supor que não guardava relação com seus exames ou algum outro aspecto de seus estudos.

— E então? - insistiu Ainsley com as sobrancelhas arqueadas.

— Comprometi-me em matrimônio! - exclamou Piers, radiante de felicidade. — É a pessoa mais excepcional e maravilhosa que conheci. É linda. Vocês adorarão.

— Nem sequer sabia que tivesse conhecido a uma moça -disse Eudora com uma mescla de surpresa e inquietação. Obrigou-se a sorrir, mas em sua expressão se percebia um indício de dor.

Observando-a, Charlotte pensou por um instante em seu próprio filho, Daniel, perguntando-se se também a pegaria despreparada quando anunciasse que estava apaixonado, se sua relação não seria bastante próxima para que lhe confiasse suas intenções muito antes de propor o matrimônio a uma mulher. Sentiu uma pontada de temor ante a idéia da perda.

Ainsley adotou uma atitude mais prática.

— Muito bem. Imagino, pois, que devo felicitá-lo. Falaremos dos preparativos em um momento mais oportuno, e desejamos naturalmente conhecer seus pais. Sem dúvida sua mãe e a dela terão muitas perguntas que fazer-se.

O rosto do Piers se escureceu momentaneamente. Parecia muito jovem, e de repente também vulnerável.

— Não tem pais, papai. Morreram de febre quando ela era menina. Criaram-na seus avós, que por desgraça já hão falecidos também.

— Santo céu! - exclamou Eudora, estupefata.

— Com efeito, é uma desgraça, como você diz - concordou Ainsley. — Mas obviamente já nada pode fazer-se. E temos tempo de sobra por diante. Não pode pensar em se casar até que termine a carreira e leve um ou dois anos exercendo.

No rosto do Piers apareceu uma expressão tensa, e em seu olhar se desvaneceu parte da alegria. A perspectiva de tão longa espera desalentaria a qualquer jovem apaixonado, e ele sem dúvida o estava.

— Quando teremos ocasião de conhecê-la? - perguntou Eudora. — Está em Cambridge, suponho.

— Não... não, está em Londres - se apressou a responder Piers. — Mas virá aqui amanhã. - Voltou-se imediatamente para Emily. — Se der sua permissão, senhora Radley. Sei que é uma grave rabugice, mas estou impaciente por apresentá-la a minha família, e não teremos outra oportunidade em menos de dois meses.

Emily engoliu a saliva.

— Naturalmente. - Tampouco desta vez ficava outra alternativa. — Será bem-vinda. Parabéns, senhor Greville.

Um amplo sorriso se desenhou nos lábios do Piers.

— Obrigado, senhora Radley. É muito generosa.

Depois do almoço os homens se retiraram para iniciar suas conversas. Emily foi comunicar à governanta que devia preparar um quarto para outro convidado mais e que no dia seguinte se esperava a chegada de uma rapariga. A seguir se reuniu com as outras mulheres para passear pelo jardim sob o sol vespertino e lhes mostrar o labirinto, a estufa das laranjeiras, a ampla extensão de grama ladeada por maciços de crisântemos e áster, os lagos com nenúfares e por último o arvoredo, indo primeiro pelo caminho das samambaias e dedaleiras e voltando pelo passeio das faias para acabar no roseiral.

Não houve ocasião, nem necessidade, de entrar em conversa até a hora do chá, que tomaram no salão da parte traseira. Até esse momento tinha bastado algum ou outro comentário sobre as flores. Emily tinha caminhado junto à Eudora e Iona, enquanto que Charlotte e Kezia as seguiam uns passos atrás. Tinha sido um agradável passeio.

Uma vez no salão traseiro, cujas vidraças davam ao terraço e à encosta de grama que descia até ao roseiral, com o chiado de um vivo fogo de fundo e uma bandeja de prata bem sortida de pãezinhos torrados, manteiga, deliciosos sanduíches e porções de bolo gelado, era inevitável haver o bate-papo.

A criada tinha servido o chá e se retirara.

Para Charlotte lhe tinha aberto o apetite com o exercício, e achou deliciosos os pãezinhos. Não era fácil comê-los com a delicadeza própria de uma dama sem manchar de manteiga quente o peitilho do vestido. A tarefa exigia grande concentração.

Kezia olhou a Emily com expressão séria.

— Senhora Radley, acredita que será possível comprar um jornal no povoado amanhã se não houver inconveniente que envie um lacaio para trazê-lo?

— Aqui recebemos o Time diariamente - respondeu Emily. — Confio que se deram já instruções para que mandem vários exemplares, mas me assegurarei de todo modo.

— Muito obrigada - disse Kezia com um deslumbrante sorriso. — É muito amável de sua parte.

— Duvido que traga muitas notícias sobre a Irlanda - comentou Iona com olhar de recriminação. — Tratará só assuntos ingleses... notas de sociedade, resenhas de teatro e economia... e é claro incluirá uma parte de informação internacional.

Kezia a olhou com severidade e replicou:

— O Parlamento inglês governa também a Irlanda, ou não se lembra?

— Recordo-o inclusive em sonhos - respondeu Iona. — Todo irlandês que se aprecie, seja homem ou mulher, tem muito em mente esse fato. Só vocês os que desejam permanecer sob o jugo inglês se permitem esquecer o verdadeiro significado dessa situação e suas conseqüências: a vergonha, a aflição, a fome, a pobreza, a injustiça.

— Sim, a pobre a Irlanda leva a suas costas todo o peso da Inglaterra, já sei – disse Kezia com tom sarcástico. — Tão pequena é a Irlanda católica que não estranho que ache excessiva a carga! Vocês os católicos devem trabalhar como condenados a galeras para nos manter a todos.

Emily se inclinou em gesto de intervir, mas Eudora se adiantou.

— A fome padecida pela Irlanda se deveu à praga de añublo que estragou as colheitas de batatas - declarou com firmeza. — E isso não foi culpa de católicos nem de protestantes. Foi vontade de Deus.

— Que não é nem católico nem protestante - acrescentou Emily.

— "Uma praga sobre suas duas famílias!" - exclamou Charlotte, citando Shakespeare, e imediatamente se arrependeu de ter falado.

Todas se voltaram para ela com olhar atônito.

— É você atéia, senhora Pitt? - perguntou Eudora com incredulidade. — Não será seguidora do senhor Darwin, não é?

— Não, não sou atéia - respondeu Charlotte imediatamente, morta de calor.             — Simplesmente acredito que Deus deve enfurecer-se com todos nós ao ver odiar-se por suas respectivas crenças dois povos em teoria cristãos. É ridículo!

— Não falaria assim se compreendesse minimamente quais são as diferenças reais - reprovou Kezia, inclinando-se para Charlotte com viva emoção no rosto e os punhos apertados sobre a saia vinho de seu vestido. — A doutrina católica prega a intolerância, o orgulho, a irresponsabilidade e toda classe de imoralidades e ao mesmo tempo nega as grandes e belas verdades de Deus: a pureza, a diligência e a fé. Pode haver maior maldade que essa? Pode existir uma causa mais digna que lutar contra tais aberrações? Se algo lhe preocupar neste mundo, senhora Pitt, deveria ser isso. O que pode ser mais importante, mais valioso? O que pode haver pelo que mereça mais a pena viver e trabalhar? E se perdermos isso, o que fica?

— A fé e a honra, a lealdade aos nossos - replicou Iona com ardor. — A compaixão pelos pobres deste mundo, a faculdade de perdoar e a devoção pela verdadeira Igreja. Enfim, muitas coisas que vocês não compreenderiam, porque têm o coração endurecido e sentem prazer em julgar a outros. Se alguém, ao ver morrer de fome os pobres, tem a desfaçatez de afirmar que são eles os únicos culpados de sua miséria, esse é sem dúvida um protestante, ou mais concretamente um pastor protestante. Exortará sobre o fogo do inferno e ele mesmo prenderá as brasas enquanto fala. Enquanto se sacia em seu almoço paroquial, nada lhe satisfaz tanto como pensar nas crianças católicas sem um pedaço de pão que levá-la boca, e se algo o ajuda a dormir placidamente, é acreditar que morremos todos de frio em uma sarjeta quando nos expulsam de nossas casas e se apropriam de terras que nos pertencem por direito próprio, que foram de nossas famílias desde a origem dos tempos.

— Isso não é mais que uma fileira de estupidezes românticas, e você sabe! - exclamou Kezia com um brilho nos olhos claros, quase de cor turquesa na tênue luz.         — Durante a grande fome muitos fazendeiros protestantes se arruinaram por tratar de sustentar a seus arrendatários. Consta-me porque meu avô foi um deles. Quando acabou a crise, não sobrava um só penny. Isso faz já meio século. Esse é seu problema: seguem ancorados no passado. Alimentam a lembrança de antigas desditas como se lhes assustasse separar-se delas. Passeiam suas penas de um lado a outro como se fossem seus filhos. A emancipação católica é já uma realidade.

— Irlanda continua governada pelo Parlamento protestante de Londres – afirmou Iona, dirigindo-se só a Kezia, como se não houvesse ninguém mais no salão.

— E o que querem? - replicou Kezia. — Uma cúria católica em Roma? É isso, não? Que todos devamos prestar contas à Batata? Pretendem que as leis da propriedade da terra se rejam pela doutrina papista, não só para quem a aceita mas também para todo mundo. Esse é o problema! Eis aí a essência da questão! Pois bem, preferiria dar a vida a renunciar à liberdade de culto.

O olhar da Iona destilava desdém.

— Quer dizer, temem que se chegarmos ao poder, persigamo-los como vocês nos perseguiram. Preocupa-lhes ter que lutar por uma emancipação protestante que lhes permita possuir sua própria terra em lugar de passar séculos a mercê dos latifundiários, ou votar leis sobre a propriedade de uma terra que lhes pertence, ou exercer uma profissão como qualquer homem. É isso o que temem, não? Certamente aprendemos bem o que é a opressão; tivemos bons professores.

Eudora, pálida e com voz entrecortada, decidiu-se a intervir.

— Acaso querem viver para sempre no passado? - perguntou. — Querem estragar a oportunidade que agora nos apresenta de terminar com o ódio e o derramamento de sangue e criar um país digno com total independência?.

— Sob a liderança do Parnell? - disse Kezia com aspereza. — Acredita que sairá gracioso desta? Katie O’Shea se encarregou de anular essa possibilidade!

— Não seja hipócrita! - prorrompeu Iona. — Ele é tão culpado como ela. O único inocente em todo esse assunto é o capitão O’Shea.

— Pelo que eu sei - interrompeu Charlotte, — o capitão O’Shea propiciou essa relação com vistas a sua própria promoção política. Isso o faz tão culpado como todos mais, e por razões muito menos honrosas.

— Ele não cometeu adultério - arremeteu Kezia, vermelha de indignação. — Esse é um pecado quase tão grave como o assassinato.

— E o que me diz de manipular a outro homem para que se apaixone pela própria esposa e vender-lhe depois em troca de vantagens, e quando o plano não lhe dá resultado, pô-la no pelourinho? - perguntou Charlotte com incredulidade. — Lhe parece isso bem?

Emily deixou escapar um gemido.

Eudora olhou ao redor com desespero.

De repente Charlotte sentiu desejos de pôr-se a rir. Aquela cena era absurda. Mas se o fizesse, todas pensariam que tinha perdido o juízo. Embora talvez não fosse uma má solução. Algo seria melhor que aquilo.

— Quer outro pãozinho? - ofereceu Charlotte a Kezia. — Estão deliciosos. A conversa tomou um roteiro espantoso. Atuamos todas com uma descortesia imperdoável e chegamos a um ponto que não admite já uma retirada digna.

Todas a observaram como se falasse em outro idioma.

Charlotte respirou fundo e acrescentou:

— A única possibilidade é fazer como se não tivesse acontecido nada e começar de novo. Me diga, senhora Moynihan, se dispusesse de uma considerável soma de dinheiro e o tempo necessário, aonde gostaria de viajar e por quê?

Ouviu Emily engolir a saliva.

Kezia hesitou.

A lenha que ardia na lareira se desmoronou entre um redemoinho de faíscas. Em uns minutos Emily teria que chamar um lacaio para que o avivasse.

— Ao Egito - respondeu Kezia por fim. — Eu gostaria de remontar o Nilo em navio e visitar as grandes pirâmides e os templos do Luxor e Karnak. E você aonde iria, senhora Pitt?

— A Veneza - respondeu Charlotte imediatamente. — Ou possivelmente... - pensou em dizer Roma, mas se conteve. — Ou possivelmente a Florença - acrescentou finalmente com uma crescente sensação de histeria. — Sim, eu adoraria visitar Florença.

Emily se relaxou e fez soar a campainha para que acudisse o lacaio.

Gracie teve uma tarde muito ocupada. Encontrou no Gwen uma permanente ajuda, mas foi Doll, a criada da Eudora Greville, quem lhe ensinou a dar uma cor carne às meias de seda ao lavá-las. Bastava acrescentar à água sabão muito diluído e um pouco de tintura rosa - uma mescla de albayalde e extrato de casca do Brasil-, esfregá-las depois com um pano de flanela limpo e por último escorrê-las com pau de macarrão até as deixar quase seca.

— Muito obrigada - disse Gracie com sincero entusiasmo.

Doll sorriu.

— Há uns truques que vale a pena saber. Tem papel azul em abundância? Ou se não, serve também o tecido azul.

— Não. Para que?

— Guarda sempre a roupa branca à parte em um baú ou uma gaveta forrada de azul por dentro. Assim não fica amarela. Não há nada mais feio que as roupas brancas quando começam a amarelar. E já que estamos trocando dicas, suponho que sabe como cuidar das pérolas. - Pela expressão de Gracie, Doll adivinhou que não tinha a menor idéia.         — Quando se sabe, é muito fácil, mas ao mínimo engano pode as danificar, ou pior ainda, perdê-las por completo. Como, por exemplo, deixando-as em vinagre! - Soltou um risinho zombador. — Terá que ferver em água. Uma vez cozido, escorre-o e acrescenta um pouco de tártaro e ilumine. Com essa mescla, tão quente como pode agüentá-la, esfrega bem as pérolas entre as mãos até que fiquem outra vez brancas. Depois as enxágua com água morna e, envoltas em papel branco, põe-nas a esfriar em uma gaveta escura. O resultado é assombroso.

Gracie estava impressionada. Se prestasse atenção, depois de uns dias em Ashworth Hall iria a caminho de converter-se em uma verdadeira camareira. E além disso sabia ler e escrever.

— Obrigada - repetiu, levantando um pouco mais o queixo. — É muito gentil de sua parte.

Doll sorriu, relaxando um tanto sua cautelosa atitude.

Gracie teria desejado seguir falando com ela, aprender mais, mas se exibia muito sua inexperiência, suscitaria especulações sobre os motivos de Charlotte para manter uma criada tão ignorante.

— Tomo nota disso se por acaso nossas pérolas se empanarem ou perderem a cor - disse com aprumo, e depois de se desculpar subiu de novo a seu quarto.

Mas não demorou em aborrecer-se, e não tinha ali tarefas pendentes, assim decidiu explorar a parte da casa reservada ao serviço. No tanque achou lavadeiras conversando e rindo tranqüilamente depois de brigar toda a manhã com lençóis e toalhas fumegantes. Uma das domésticas estava engomando e o resto, conforme lhe informaram, tinha ido levar brasas aos quartos de vestir a fim de que os senhores tivessem o fogo aceso na hora de trocar-se para o jantar.

Viu Tellman sair do estábulo com lúgubre semblante e cruzar o pátio traseiro. Gracie sentiu pena dele. Estava fora de seu meio. Provavelmente não tinha a menor idéia de como fazer aquele trabalho; valetes dos outros cavalheiros, todos eles bem adestrados, sem dúvida o notariam. Devia lhe oferecer sua ajuda. Nesse momento parecia um menino malcriado ao um passo de um chilique.

Gracie tinha observado nos filhos do Charlotte, já uma vez superadas as manhas devidas à frustração própria dos três primeiros anos, que normalmente tais episódios se produziam quando por alguma razão se sentiam descuidados ou pouco importantes.

— Começa já a orientar-se, senhor Tellman? - disse alegremente. — Eu nunca tinha estado em um lugar tão grande, e menos mal que não devo me preocupar de nada fora da casa.

— Pois eu sim - respondeu Tellman com tom cortante e expressão azeda. — Se se apresenta algum problema, não será por limpar botas e conduzir brasas que me agradecerão.

— Você não deve conduzir brasas - se apressou a dizer Gracie. — É um criado de posição superior. De fato, está entre os dez principais, assim não consinta que ninguém se aproveite de você.

— Entre os dez principais! - repetiu ele com uma careta de desgosto. — Não diga tolices. Se uma pessoa passa o dia servindo a outra pessoa e recebendo ordens, é um criado e não há mais que falar.

— Está muito equivocado! - replicou Gracie com indignação. — Isso é como dizer que, entre policiais, não há diferença entre um inspetor veterano e com astúcia e um agente de pouca posição que faz a ronda com uma lanterna e não distingue a um assaltante de um padre a menos que alguém grite "Detenham o ladrão!".

— Mas você está sempre a inteira disposição de outra pessoa.

— E você não?

Tellman abriu a boca para desmenti-lo mas, ao ver o olhar franco e direto de Gracie, mudou de idéia.

— E se em algum momento não sabe o que fazer, eu o explicarei - ofereceu Gracie com generosidade. — Não convém que dê a impressão de que não conhece seu trabalho. Ensinar-lhe-ei como escovar devidamente a jaqueta de um cavalheiro e como tirar as manchas. Saberia limpar uma mancha de graxa?

— Não - admitiu Tellman a contra gosto.

— Limpa-se com uma prancha e papel de trapo grosso. A prancha tem que estar quente mas não muito. Apóie-a primeiro em uma folha de papel branco comum, e se não se chamuscar, está na temperatura correta. Se assim a mancha não se for de todo, esfregue-a com um pano limpo molhado em álcool. Se tiver alguma dúvida, venha me perguntar. Não deixe que outros se dêem conta de que não sabe. Eu lhe ensinarei todo o necessário.

Embora o rosto de Tellman delatasse um profundo mal-estar, compreendia os argumentos de Gracie.

— Obrigado - disse entre dentes. Depois se deu meia volta e se encaminhou para a casa sem olhar atrás.

Gracie moveu a cabeça em um gesto de resignação e prosseguiu seu percurso.

Na confeitaria achou de novo ao Finn Hennessey, reconhecendo no ato seu cabelo escuro e seus magros ombros. Seu porte tinha uma elegância inconfundível.

Ele se voltou assim que ouviu passadas e seu rosto se iluminou ao vê-la.

— Olá, Gracie Phipps. Procura a alguém?

— Não, só inspecionava a casa para saber onde está tudo - respondeu Gracie, encantada de encontrar-se ali com ele e entretanto tão coibida que era incapaz de achar algo inteligente para dizer.

— Muito sensato de sua parte - aprovou ele. — Isso mesmo estou fazendo eu. Tem graça, não? Depois de tantos dias de trabalho intenso para preparar esta viagem, e quando chegamos, não há nada a fazer até a hora do jantar, ou ao menos hoje assim foi.

— Bom, eu em casa me ocupo também das crianças - comentou Gracie, e de repente caiu na conta de que isso a catalogava como criada para tudo e se arrependeu de ter falado.

— E gosta dessa tarefa? - perguntou ele com interesse.

— Sim, muito. São crianças bastante obedientes, e tão espertas...

— E sãs?

— Sim - respondeu Gracie, surpreendida. Viu uma sombra de pesar em seu rosto.— — Estão doentes as crianças no lugar de onde você vem?

— No lugar de onde venho? - repetiu ele. — O vilarejo onde vivia minha mãe, e sua mãe antes dela, está agora em ruínas. Me abandonaram depois da grande fome. Havia quase cem habitantes entre homens, mulheres e crianças. Agora as casas parecem as tumbas desmoronadas de uma raça desaparecida.

Gracie sentiu sincera consternação.

— É horrível. Casou-se sua mãe e partiu a outra parte? Não tinha irmãos no vilarejo?

— Tinha três irmãos. Os dois maiores foram despejados quando se venderam as terras e os novos proprietários deixaram de cultivá-las para as dedicar ao pastoreio. Ao menor o condenaram à forca os ingleses, acusando o de feniano.

Gracie percebia dor no moço, mas não compreendia o fundo da história. Ela conhecia de sobra a pobreza. As ruas de alguns bairros de Londres podiam sem dúvida comparar-se a quão pior existisse na Irlanda. Tinha visto morrer de fome ou congelamento a mais de um menino. Ela mesma tinha passado frio e enfermidades com freqüência antes de começar a servir na casa dos Pitt.

— Acusando o do que? -sussurrou.

— De pertencer à Associação Feniana - esclareceu ele. — Uma fraternidade secreta que persegue a liberdade da Irlanda, o autogoverno e a possibilidade de que os irlandeses vivam conforme nossos costumes.... os poucos que ficamos. Sabe Deus que não devemos ser já muitos. Os latifundiários avaros nos expulsaram gradualmente das terras, e ao sul e ao oeste já só há vilarejos abandonados.

— Expulso de onde? - perguntou Gracie, tratando de imaginar. Essa era a única parte daquela história que escapava a sua experiência.

— Aos Estados Unidos, Canadá.... qualquer país que nos aceite e onde possamos achar um trabalho honrado que nos permita comer e viver sob um teto.

Gracie não sabia o que dizer. Aquela situação era trágica e injusta. Compreendia a ira do moço.

Ele percebeu compaixão em seu semblante.

— Imagina, Gracie? - disse em voz muito baixa, quase um murmúrio. — Vilarejos inteiros despojados da terra e as casas onde tinham trabalhado e lançado raízes, desalojados e sem lugar algum aonde ir, nem sequer no inverno. Anciãs com recém- nascidos nos braços e crianças agarradas a suas saias obrigadas a deixar seus lares e valer-se por si mesmos sob a chuva e o vento. Que classe de pessoa faria uma coisa assim a outra criatura?

— Não sei - respondeu Gracie com tom solene. — Nunca conheci ninguém capaz de algo semelhante. Só ouvi falar de algum ou outro fazendeiro que pôs a uma família na rua. É desumano.

— Nisso tem razão, Gracie. Me acredite, se lhe contasse todos os males da Irlanda, seguiríamos aqui muito depois de acabar-se esta reunião e ter tornado os políticos a Londres, Dublin ou Belfast. E isso não seria mais que o princípio. A pobreza existe em todas partes, sei. Mas isto é o lento assassinato de toda uma nação. Não estranho que na Irlanda chove até cobrir a terra de um verde resplandecente. Devem ser os anjos do Senhor que choram de pena pelo sofrimento dos irlandeses.

Gracie estava ainda representando-se aquelas imagens em sua mente e tentando vencer a tristeza quando os interrompeu Gwen, que foi à confeitaria em busca dos ingredientes para confeccionar uma pomada que servia para proteger os lábios do frio.

— Como se faz? - perguntou Gracie, sempre interessada em aprender.

— Pega-se duas onças de mel, uma de cera desencardida, meia de litargirio e outra meia de mirra - explicou Gwen amavelmente, contente de compartilhar seus conhecimentos. — A mescla se esquenta a fogo lento e se acrescenta algum perfume. Eu usarei leite de rosas. Deve estar nesse armário. - Assinalou com o queixo para um ponto situado justo em cima da cabeça de Gracie e sorriu ao Finn Hennessey. Ele se apressou a abrir o armário e lhe entregar o recipiente.

Gwen lhe dirigiu um cálido olhar, disposta ao parecer a ficar um momento de bate- papo. Gracie pensou por um momento permanecer também ali sem ceder terreno, mas decidiu que pareceria infantil. Desculpou-se e os deixou sós. Entretanto não pôde evitar perguntar-se se ele a contemplava afastar-se ou estava já absorto na conversa com Gwen.

Antes de dobrar a esquina do corredor, incapaz de resistir a tentação, voltou a cabeça, e lhe acelerou o coração quando seu olhar e o do moço se cruzaram e soube que sua mente continuava fixa nela.

No jantar se respirou um tenso ambiente do começo. Nenhuma das mulheres tinha esquecido a inflamada conversa da hora do chá, e tanto Charlotte como Emily temiam que se produzisse outro episódio semelhante.

Fergal Moynihan chegou com expressão sombria, mas manteve uma cortesia formal e uma calculada atitude de igualdade a respeito de todos os outros.

Iona McGinley estava linda, com uma beleza que poderia qualificar-se de intensa. Tinha escolhido um espetacular traje de noite azul, quase púrpura, que realçava a brancura de sua pele e conferia a seu pescoço e ombros um aspecto de extraordinária fragilidade. Charlotte tinha ouvido dizer que Iona era poetisa, e contemplando-a nesse momento não lhe era difícil acreditar. Ela mesma parecia um fragmento de um sonho romântico, e a seus lábios aparecia um peculiar e ausente sorriso que induzia a pensar que sua mente permanecia mais atenta a seus devaneios que às prosaicas formalidades de um jantar em sociedade.

Piers Greville se achava isolado em sua própria felicidade. Seus pais conversavam de temas inócuos e faziam todo o possível por comportar-se como se os ali presentes estivessem à vontade e em perfeita harmonia.

Kezia oferecia também uma magnífica aparência, mas muito diferente da Iona. Não teria sido fácil achar duas mulheres mais contrapostas. Kezia exibia um resplandecente vestido água-marinha guarnecido de um primoroso bordado assimétrico em um de seus lados. Tinha uns ombros brancos e sedosos e um atraente peito. Seu cabelo claro e espesso refletia a luz e parecia brilhar. Charlotte percebeu uma expressão ponderativa nos rostos do Ainsley Greville e Padraig Doyle, e não se surpreendeu.

Charlotte se tinha trocado com a ajuda de Gracie. Levava um dos vestidos da tia Vespasia, não o de cetim nacarado - esse o reservava para a ocasião mais destacada - mas um verde bosque, muito austero, que a favorecia muito mais do que tinha imaginado. Todo seu encanto residia no corte do peito e cintura e nas graciosas dobras que formava a saia em torno do quadril e mais abaixo da pequena anquinha, muito menos volumosa que as antigas, como exigia a moda. Notou mais de um olhar admirativo entre os homens e também, para maior satisfação dela, fugazes olhares de inveja entre as mulheres.

Fergal falou com a Iona, comentando alguma banalidade, e ao cabo de um momento Lorcan o interrompeu. Padraig Doyle tratou de limar asperezas contando uma anedótica aventura fronteiriça do oeste dos Estados Unidos, e todos se puseram a rir, embora com certo nervosismo.

Depois de servido o prato, Emily introduziu um tema inofensivo, mas lhe requereu um notável esforço impedir que a conversa tomasse outra aparência. Charlotte fez o que esteve em suas mãos para ajudá-la.

Depois do último prato, as senhoras se retiraram ao salão de recepções, mas os homens não demoraram em segui-las, e alguém sugeriu que ouvissem um pouco de música, possivelmente com a intenção de adular a Iona.

Era com efeito uma excelente cantora. Tinha uma voz cativante, muito mais grave do que cabia esperar de um corpo tão frágil. Eudora a acompanhou ao piano, demonstrando um extraordinário talento lírico, e cômoda ao parecer incluso com velhas canções populares irlandesas, melodias de insólitas cadências muito distintas da música inglesa.

A princípio Charlotte desfrutou muito do recital e, transcorrida meia hora, começou a sentir-se relaxada. Voltou-se para Pitt e cruzaram um olhar. Ele sorriu, mas Charlotte percebeu que continuava sentado com as costas totalmente eretas e de vez em quando dava uma olhada ao redor, escrutinando os rostos dos convidados, como se esperasse um episódio desagradável de um momento a outro.

Finalmente se originou onde Charlotte menos previa. As canções da Iona se tornaram mais emotivas, seu conteúdo mais estreitamente ligado à tragédia da Irlanda: a paz perdida, os amantes separados pela traição e morte, os heróis caídos na batalha.

Ainsley se moveu inquieto em sua cadeira, apertando os dentes.

Kezia tinha as cores cada vez mais fortes, sua boca reduzida a uma fina linha.

Fergal não afastava a vista da Iona, como se a beleza da música tivesse penetrado em sua alma e se mesclassem nela de maneira inextricable a aflição transmitida e as acusações contra seus próprios correligionários, sossegando seus protestos.

Chegado um ponto, Emily fez gesto de falar, mas Eudora continuou tocando, e Lorcan McGinley se interpôs entre ela e Iona, arroubado pelos relatos de amor traído e morte em mãos dos ingleses.

Foi Padraig Doyle quem interveio.

— É certamente uma formosa e triste canção - comentou com um sorriso. — Além disso, conta a história de meu parente. A heroína, Neassa Doyle, era minha tia por parte de mãe. - Olhou ao Carson O’Day, que escutava com expressão inescrutável e até o momento não tinha separado os lábios. — E o herói, pobre homem, poderia ser de sua família, juraria.

— Drystan O’Day - disse Carson com lúgubre semblante. — Uma tragédia como outras tantas, mas esta imortalizada pela música e poesia.

— E admirável sem dúvida - afirmou Padraig. — Mas por que não fazemos mostra da gentileza que nos caracteriza e cantamos também alguma das canções de nossos anfitriões? Alguma canção de amor mais alegre, por exemplo? Não quererão que os deixemos ir dormir com lágrimas nos olhos, não é? A autocompaixão nunca teve nenhum encanto.

— Acaso pensa que as tribulações da Irlanda são autocompaixão? – prorrompeu Lorcan com tom perigoso.

Padraig sorriu.

— Meu amigo, nossas tribulações são mais que reais. Deus e o mundo inteiro sabem. Mas para cantar ao valor serve tanto uma canção alegre como uma triste. O que lhes parece Take ao Pair of Sparkling Eyes? Não é essa uma bela canção? - voltou-se para Eudora. — Me disseram que sabe interpretá-la de cor. Ouçamo-la.

Obedientemente, Eudora atacou a encantada e rápida melodia e Padraig começou a cantar com acento irlandês e voz doce e sonora de tenor, cheia de júbilo. Sem dar-se conta, Emily começou a cantarolar, e ele, ao ouvi-la, incentivou-a com gestos a elevar o tom.

Em menos de dez minutos todos cantavam animadas peças de baile do Gilbert e Sullivan, vendo-se obrigados a esquecer, pelo menos durante uma hora, a ira e as tragédias.

Ao deitar-se, Charlotte caiu rendida de cansaço emocional, mas não dormiu placidamente. Assaltaram-na inquietantes sonhos, e quando despertaram uns gritos, teve a impressão de que soavam em sua mente.

Estava ainda sacudindo as teias de aranha do sonho quando Pitt se havia já levantado e corria para a porta.

Os gritos prosseguiram, uns gritos de cólera agudos e penetrantes. Não revelavam terror, mas unicamente uma fúria incontida e histérica.

Charlotte, com o cabelo preso em uma trança quase desfeita, esteve a ponto de cair ao sair da cama e enredar-se com a saia da camisola.

Pitt estava no corredor, com a vista fixa na porta aberta do quarto de frente, em cujo vão se achava Kezia Moynihan com os olhos dilatados, o olhar iracundo, o rosto lívido salvo por duas manchas de um vermelho intenso nas faces.

Emily, pálida e despenteada, chegava nesse momento da ala oeste, envolta em uma bata verde claro. Jack obviamente tinha madrugado, já que corria escada acima.

Padraig Doyle saiu de outra habitação do corredor e ao cabo de um segundo apareceu também Lorcan McGinley.

— Valha-me Deus! - exclamou Jack, olhando desesperadamente a uns e outros. — O que ocorreu?

Charlotte, atrás de Pitt, contemplava atônita o interior do quarto através da porta, que Kezia mantinha totalmente aberta. Viu uma enorme cama metálica com a roupa revolta, e nela a Iona McGinley, parcialmente levantada, com o cabelo esparramado sobre os ombros. A seu lado, com a camisa de dormir retorcida e enrugada, estava Fergal Moynihan. Iona fez uma vaga tentativa de cobrir-se com as mantas.

A cena não deixava lugar a dúvidas.

 

Emily foi a primeira em mover-se. Não tinha sentido negar o evidente. A cena admitia só uma interpretação. Aproximou-se de Kezia, pegou-a pela mão e puxou-a com brutalidade para afastá-la da porta; a seguir pegou a maçaneta e fechou.

Charlotte, saindo de sua estupefação, voltou-se para os outros, já reunidos no corredor.

— O que aconteceu? -perguntou Carson O’Day com uma expressão de inquietação que beirava ao medo.

Charlotte sentiu um intenso desejo de pôr-se a rir. Sabia que O’Day suspeitava que se produzira uma agressão - o via em seus olhos -, o ato violento que rondava a mente de todos eles, razão pela qual Pitt se achava ali. E entretanto tinha ocorrido algo completamente diferente, quase banal, a espécie de farsa ou tragédia doméstica que podia desencadear-se em qualquer parte.

— Todo mundo está bem -respondeu com voz clara e bastante alta. — Ninguém sofreu nenhum dano.

Charlotte reparou na palidez do Lorcan McGinley e se arrependeu de ter escolhido precisamente aquelas palavras, mas desculpar-se agravaria ainda mais as coisas.

Emily rodeava Kezia pela cintura com um braço e tentava em vão conduzi-la a seu quarto.

Pitt advertiu seus esforços e se situou do outro lado de Kezia.

— Venha - disse com firmeza, segurando-a pelo braço e forçando-a com delicadeza a

mover-se. — Aqui fora acabará resfriando-se.

A advertência carecia de sentido. Kezia levava um penhoar sobre a camisola e na casa não fazia frio. Exerceu, não obstante, o efeito desejado, arrancando-a momentaneamente do ensimismamiento da ira. Pitt e Emily, um a cada lado, afastaram-na dali.

Com isso, recaiu em Charlotte a responsabilidade de pensar algo que dizer a outros.

Jack estava já no alto da escada, mas ignorava o acontecido.

— Desculpem o alvoroço - começou Charlotte com toda a serenidade possível.         — Ocorreu algo que alterou muito à senhorita Moynihan, e também sem dúvida a alguns de nós. Em qualquer caso, nada pode fazer-se no momento. Será melhor que voltemos todos para nossos quartos para nos vestir. Aqui estamos de mais e só conseguiremos nos resfriar.

Nesta ocasião a advertência era mais fundada: salvo Eudora Greville, que tinha pego um penhoar antes de acudir ali atraída pelos gritos da Kezia, todos foram em camisa de dormir ou camisola.

— Obrigado, senhora Pitt - disse Ainsley com um suspiro de alívio. — Será o mais sensato. Sugiro que sigamos todos o conselho.

Continuando, pálido e com um sombrio sorriso, deu meia volta e retornou a seu dormitório. Depois de um segundo de desconcertada vacilação, Eudora se foi atrás dele.

Padraig Doyle olhou Charlotte com semblante preocupado, mas finalmente chegou à conclusão de que era melhor passar por cima o assunto, fosse o que fosse, e também ele partiu. Outros fizeram o mesmo, e frente a Charlotte ficou só Lorcan.

— Lamento-o, senhor McGinley - sussurrou Charlotte com um pesar tão sincero que ela mesma se surpreendeu. Lorcan não lhe tinha despertado uma simpatia espontânea, mas nesse momento sua compaixão por ele era genuína. Nada em seu semblante revelava se previamente tinha ou não a menor suspeita de que sua esposa o enganava com outro homem. A consternação que manifestava nesse instante, a lividez e os olhos afundados, podia dever-se à incredulidade e o posterior assombro, ou simplesmente à vergonha de que o fato tivesse ficado descoberto ante os outros convidados.

Em todo caso, acrescentar qualquer outro comentário teria servido só para piorar mais ainda a situação.

Lorcan não respondeu, mas seu olhar atemorizou ao Charlotte.

O encontro à hora do café da manhã foi deprimente. Emily não sabia o que dizer ou fazer para que se conservasse uma mínima aparência de conduta civilizada. É claro, não era a primeira vez que se cometia adultério em uma casa de campo durante uma festa. Para falar a verdade, provavelmente ocorria com muita freqüência. As diferenças a respeito daquele caso eram duas: a maioria das pessoas eram discretas e procuravam não ser descoberta, e se um convidado interrompia por acaso uma dessas lamentáveis cenas, guardava um sensato silêncio e olhava em outra direção. Certamente ninguém gritava até enrouquecer e despertava a toda casa. E normalmente se tinha a cautela de não convidar pessoas em más relações. Uma das principais habilidades de uma anfitriã consistia em saber quem estavam em boa harmonia e quem não.

Quando Jack se apresentou às escolhas ao Parlamento, Emily ignorava os dificuldades que deveria confrontar ao organizar recepções. Conhecia a perfeição as habituais escolhos da vida social, os problemas de achar e conservar a uma boa cozinheira e criado confiáveis em geral, de selecionar a vestimenta adequada a cada ocasião, de aprender a ordem de precedência dos diferentes títulos de nobreza, de confeccionar menus imaginativos mas não excêntricos, e de procurar entretenimentos interessantes mas sem risco de fracasso.

Os ódios nacionais e religiosos eram novos para ela, que de fato nem sequer concebia a idéia de odiar a alguém por suas crenças. No dia anterior a reunião tinha estado à beira do desastre uma ou duas vezes. Aquela manhã parecia esse seu final inevitável. Emily permaneceu sentada a um extremo da mesa do café da manhã enquanto os convidados chegavam um por um e desfilavam com seus pratos em frente ao aparador em que vários braseiros mantinham quentes as bandejas de peixe com arroz, rins com molho picante, ovos mexidos e quentes, bacon, salsichas, arenque e abadejo defumados e cogumelos à prancha.

Padraig Doyle se serviu de generosas porções. Emily não se equivocou ao julgá-lo um homem que desfrutava do bem-estar físico e se preocupava com conservar suas energias.

Ainsley Greville tampouco descuidou-se da comida, mas a ingeriu sem saboreá-la.

Tenso e absorto em seus pensamentos, não se moveu.

O’Day tomou o café da manhã frugalmente. McGinley deixou seu prato quase intacto, limitando-se a remover o conteúdo de vez em quando. Estava muito abatido, e ao cabo de dez minutos se desculpou e saiu da sala. Não tinha dirigido uma só palavra a ninguém.

Fergal Moynihan estava visivelmente desanimado, mas continuou sentado à mesa, embora sem separar os lábios. Iona tomou só chá, mas parecia menos afetada que ele, como se a sustentasse uma profunda convicção interior.

Piers, que desconhecia o ocorrido, tratou de iniciar alguma conversa, e para o Emily foi um prazer lhe perguntar por seus estudos em Cambridge e averiguar que cursava o último ano de medicina e esperava licenciar-se breve com boas qualificações. Naturalmente demoraria um tempo em conseguir seu próprio consultório, mas tinha grandes esperanças postas nisso.

De vez em quando Emily percebia uma ligeira expressão de surpresa no rosto de Eudora, como se acabasse de descobrir a profundidade dos sentimentos de seu filho. Talvez em casa Piers não se espraiava tanto, dando é claro que ela estava já à corrente de tudo.

Outros comensais se esforçaram por manter uma entrecortada conversa a respeito de trivialidades. Kezia nem sequer desceu, e ao cabo de uma meia hora Charlotte dirigiu um olhar para Emily e, depois de desculpar-se, levantou-se e se foi.

Emily tinha a certeza de que ia em busca de Kezia. Perguntou-se se era o mais prudente, mas possivelmente devia fazer-se, e sorriu agradecida a sua irmã.

Emily não se equivocara. Charlotte deixou a mesa em parte para interessar-se pela Kezia, que lhe tinha inspirado simpatia, mas sobre tudo porque lhe preocupavam Emily e Pitt. Se ninguém procurasse dar consolo a Kezia ou no mínimo apaziguar sua crescente histeria, se deixavam que se sentisse totalmente sozinha, podia perder o controle por completo e incorrer em comportamentos com efeitos ainda mais calamitosos. Era claro que aquele incidente a tinha transtornado.

No alto da escada, Charlotte viu uma moça muito atraente de cabelo dourado como o mel e excelente figura. Por sua beleza - e não era essa uma palavra exagerada em alusão a ela -, parecia uma criada, mas não levava touca, e uma criada não teria estado no piso superior naquele momento. Devia ser a criada de alguma convidada.

— Desculpe - disse Charlotte. — Poderia me indicar qual é o quarto da senhorita Moynihan?

— Sim, senhora - respondeu a jovem com tom receoso. Tinha uma expressão agradável, mas seus olhos e boca transpareciam seriedade, quase tristeza, como se nunca sorrisse. — É a segunda porta à esquerda indo por esse corredor, mais à frente do vaso de hera. - Hesitou por um instante e acrescentou: — A acompanharei.

— Obrigada - aceitou Charlotte. — Não será você sua criada?

— Não, senhora; sou a criada da senhora Greville.

— Sabe onde está a criada da senhorita Moynihan? - perguntou Charlotte enquanto a moça a guiava para o quarto. — Seria conveniente contar com sua ajuda. Deve conhecer bem a sua senhora.

— Sim, senhora. Acho que foi ao tanque ferver arroz.

— Como? - A resposta parecia absurda. — À cozinha, quererá dizer?

— Não, senhora; é para fazer água de arroz. - Um sorriso apareceu fugazmente a seu rosto. Não era antipática. — É um bom preparativo para lavar musselina; dá-lhe corpo. Mas antes deve preparar-se. No tanque guardam arroz com esse fim. As cozinheiras não nos permitem entrar na cozinha para isso. Ou ao menos esta cozinheira.

— Não, claro - concordou Charlotte. — Obrigada.

Detiveram-se ante a porta do quarto. Charlotte a teria encontrado sem ajuda da criada.

Bateu com os dedos.

Não recebeu resposta. Tinha previsto já essa possibilidade e decidido o que fazer se se produzisse. Voltou a bater e depois, tal como se fosse uma criada, abriu a porta e entrou.

Era um quarto encantador, decorado com alegres motivos florais de cores amarelo narciso e verde maçã, mais alguma pincelada de azul. Na mesa havia um vaso com crisântemos e flores de áster azuis e, a um lado, um montão de folhas de papel. Charlotte recordou que, conforme se dizia, Kezia participava de política tanto como seu irmão e possuía iguais dotes que ele, se não maiores. Só sua condição de mulher, e além disso solteira, lhe impedia de exercer mais abertamente sua influência.

Kezia se achava de pé frente à alta janela, contemplando a paisagem. A cabeleira lhe caía pelas costas e não se incomodara ainda em vestir-se. Provavelmente tinha pedido à criada que a deixasse sozinha.

Ao entrar Charlotte, não se voltou sequer, apesar de dever ter ouvido a porta, embora não talvez seus passos, amortecidos pela grosso tapete.

— Senhorita Moynihan...

Kezia se voltou lentamente. Tinha o rosto inchado e os olhos avermelhados. Olhou para Charlotte com certa surpresa e nascente exasperação.

Charlotte não esperava menos; no fim das contas, aquilo era uma intromissão de sua parte.

— Precisava falar com você - disse com um indício de sorriso.

Kezia a observou com incredulidade.

Charlotte, não obstante, não se arredou.

— Não podia tomar o café da manhã como se nada tivesse passado. Deve sentir-se muito desgostosa.

Kezia respirava fundo, e a cada inalação se via claramente o movimento de seu peito. Seu semblante refletia uma mescla de emoções: raiva, um intenso desejo de rir ou inclusive de recorrer a alguma forma de violência física para desafogar a fúria impotente que se aninhava em seu interior, e um virulento desprezo por Charlotte por sua rabugice e absoluta incompreensão.

— Não tem você a mais remota idéia - replicou com aspereza.

— Não, claro que não - admitiu Charlotte. Podia entender um estado de consternação e vergonha. Certa irritação era natural naquelas circunstâncias, mas não a veemente cólera que quase afogava Kezia. Até nesse instante, envolta em seu lindo penhoar branco orlado de rendas, todo seu corpo se estremecia de ira. — Como pôde Fergal fazer uma coisa assim? - clamou com um olhar tão resplandecente e duro como um diamante. — É uma infâmia injustificável, imperdoável. - Falava com voz entrecortada. — Achava conhecê-lo. Tantos anos lutando pelas mesmas causas, compartilhando os mesmos sonhos, padecendo as mesmas perdas, e agora isto! - A última palavra foi quase um alarido.

Charlotte notou que de novo começava a perder o domínio de si mesma. Devia intervir, dizer algo, algo, para mitigar a dor explosiva que Kezia levava dentro. Tinha que convencê-la de que ao menos ela estava de seu lado.

— Quando uma pessoa se apaixona, pode chegar a cometer muitas bobagens - disse, — inclusive coisas totalmente impróprias de seu caráter...

— Apaixonar-se? - repetiu Kezia gritando como se a frase carecesse de sentido.       — Uma pessoa? Fergal não é qualquer "pessoa". É filho de um dos pastores mais importantes que pregaram a palavra de Deus, um homem justo e reto que não se desviou uma só vez dos dez mandamentos e foi um raio de luz e uma esperança para o Ulster. Dedicou sua vida inteira a defender a fé e preservar a Irlanda da dominação e corrupção do papismo. - Assinalou a Charlotte em um gesto acusador. — Você vive na Inglaterra, e os ingleses não sofrem essa ameaça há séculos. Acaso não tem lido a história de seu próprio país? Não sabe a quantos homens condenou à fogueira Maria, a Sanguinária, por não renunciar às reformas da Igreja protestante, por negar-se a aceitar a superstição e as indulgências e o pecado em que vivia toda a hierarquia eclesiástica? - Com o rosto aceso e horrível aparência de cólera, falava ininterrumpidamente, sem deter-se sequer para respirar. — De uma Batata arrogante que achava falar em nome de Deus até uma Inquisição que torturava e matava às pessoas por pretender interpretar a seu modo as Sagradas Escrituras, e todos eles obstinados a uma licenciosa e idólatra veneração às imagens de gesso e convencidos de que seus pecados podiam perdoar-se pagando dinheiro à Igreja e rezando uns quantos rosários.

— Kezia... - disse Charlotte, mas ela não a escutava.

— E Fergal estava na cama não só com uma rameira católica - prosseguiu Kezia, erguendo cada vez mais o tom, — não só com uma adultera, mas também com uma mulher que mantém a Irlanda dividida escrevendo poemas infestados de mentiras e avivando a imaginação de homens ignorantes e néscios mediante muito sensíveis canções sobre heróis que nunca existiram e batalhas jamais liberadas.

— Kezia...

— E você pretende que compreenda os motivos de sua conduta e a passar por cima? Pretende que... ? - Um soluço afogou sua voz, quase lhe impedindo de continuar.              —Pretende que diga que não tem importância? Que foi só uma fraqueza humana e devemos perdoar? Jamais! - Tinha os punhos apertados ante si, com a pele branca e tensa e os dedos reluzentes. — Jamais! É imperdoável!

— Não deve se perdoar tudo se existir arrependimento? - sussurrou Charlotte.

— A traição não - respondeu Kezia com voz trêmula, erguendo altivamente a cabeça. — Ele traiu tudo. É um absoluto hipócrita. Não é nada do que aparentava ser.

— Errar é humano - replicou Charlotte. — Sem dúvida agiu mal, mas não foi o seu o mais compreensível dos pecados?

O cabelo da Kezia, iluminado pelo sol, formava uma auréola dourada em torno de sua cabeça.

— A hipocrisia? O engano? A mentira? A traição a todo aquilo que defendia, a todos quantos tinham sua confiança depositada nele? Não! Não, não é compreensível, nem pode perdoar-se. Ou eu ao menos não posso. - Deu meia volta e fixou de novo o olhar na paisagem, os ombros tensos, o corpo inteiro em atitude de resistência.

Não tinha sentido continuar discutindo. Kezia não faria mais que reafirmar-se em sua postura. Charlotte começava a entrever a profundidade dos ódios implícitos na Questão Irlandesa. Pareciam formar parte do sangue e da natureza. Ninguém estava disposto a transigir; não se faziam exceções. Aquele sentimento estava acima dos laços familiares ou inclusive do desejo de conservar o carinho e a harmonia nas relações com as pessoas a quem se estava mais estreitamente unido.

E entretanto Charlotte recordava sua própria dor pela decepção de descobrir, fazia já muito tempo, que Dominic tinha pés de barro, um caso muito semelhante a aquele.

Dominic era o marido de sua irmã mais velha, Sarah, e Charlotte o adorava de um modo muito pouco realista. A princípio o desvanecimento do sonho lhe tinha sido insuportável. Depois chegou a conhecê-lo de verdade, e surgiu entre eles uma espécie de amizade apoiada no afeto e esquecimento, muito mais limpa e sólida que a anterior.

— Se deseja passear sozinha, acredito que no labirinto não há ninguém, salvo talvez um jardineiro - disse.

— Obrigada.

Kezia não se moveu. Permaneceu ali de pé, agarrando-o penhoar que a envolvia como se lhe desse amparo e temesse que alguém tentasse arrancar-lhe. Charlotte partiu e fechou a porta ao sair.

As senhoras passaram a manhã escrevendo cartas, conversando sobre algumas das interessantes e atraentes peças de arte da casa, e folheando os álbuns de curiosidades colocados nas mesas do salão e do toucador. Estes eram coleções de desenhos, pinturas, gravuras, silhuetas, trabalhos de renda ou coisas pelo estilo que chamavam a atenção por sua beleza ou interesse. Sua elaboração era prática comum entre as damas da alta sociedade, e comparar as idéias ou habilidades de diferentes pessoas era todo um prazer. Emily entretanto não tinha adquirido tal costume. Detestava essa espécie de tarefas e se guardava de ter tempo livre que lhes dedicar, mas de vez em quando uma convidada lhe obsequiava um álbum e em algumas ocasiões se alegrava de tê-los.

Com Kezia ausente, a situação era ao menos mais suportável; se tivesse decidido permanecer com o grupo, teria sido insustentável. A discussão do dia anterior teria sido uma ninharia em comparação com a que poderia haver-se produzido essa manhã.

Os cavalheiros reataram suas conversas, com o Ainsley em qualidade de moderador. Como era previsível, apalpava-se um ambiente de crispação, mas O’Day e Padraig Doyle prorromperam em uma cáustica gargalhada ao cruzar o vestíbulo em direção à biblioteca e, atrás deles, Jack e Fergal Moynihan pareciam sustentar uma agradável conversa.

Tellman atravessava o pátio do estábulo andando desajeitado e expressão lúgubre quando Pitt o achou.

— Há muitos homens por aqui - disse Tellman quando a proximidade entre ambos lhe permitiu falar em voz baixa para que não o ouvissem os cavalariços e os cocheiros das imediações. — Não consegui identificar nem a metade deles.

— A maioria serve nesta casa há tempo - respondeu Pitt. Não estava de humor para consentir os preconceitos do Tellman. — Levam anos aqui e não têm a menor relação com a política irlandesa. É aos desconhecidos a quem devo vigiar.

— O que esperam que ocorra? - perguntou Tellman, arqueando as sobrancelhas em um gesto de sarcasmo. — Que chegue pelo caminho um batalhão de fenianos armados até os dentes? A julgar pelo ambiente que se respira na casa, perderiam o tempo. Essas pessoas acabarão matando-se entre si e lhes economizará o trabalho.

— Essas são as intrigas dos criados, não? - disse Pitt.

Tellman lançou um olhar assassino.

— Recorrer à violência aqui, na casa, não os conduziria a nada - explicou Pitt com paciência. Isso é bastante claro. Só serviria para converter em mártir à vítima e desacreditar ao agressor, que além disso seria condenado à forca. Nenhum dos homens aqui presentes possui o fanatismo necessário para cometer um ato tão desatinado.

— Acredita nisso? - disse Tellman, andando com a cabeça encurvada e as mãos nos bolsos.

Pitt viu um jardineiro cruzar o caminho e entrar no labirinto a uns cinqüenta passos deles.

— Caminhe erguido e tire as mãos dos bolsos - ordenou Pitt imediatamente.

— Como? - respondeu Tellman, lhe dirigindo um furioso olhar.

— Supõe-se que é você valete, assim caminhe como tal e não coloque as mãos nos bolsos - repetiu Pitt.

Tellman amaldiçoou entre dentes mas obedeceu.

— Isto é uma perda de tempo - afirmou com amargura. — Deveríamos voltar para Londres para averiguar quem matou ao pobre Denbigh. Isso sim é importante. Ninguém conseguirá jamais arrumar o conflito destas pessoas. Odeiam-se e sempre se odiarão. Nem sequer os condenados criados são capazes de falar-se com respeito. - Voltou-se para o Pitt com o sobrecenho franzido. — Sabia que os criados são ainda mais esnobes que seus senhores em questões de classe e posição social? - Exalou um suspiro. — Cada qual tem atribuídas suas tarefas, e deixariam que se paralisasse a casa inteira antes que permitir que um homem faça o trabalho de outro, embora se trate de algo tão insignificante como conduzir um caldeirão de carvão uns quantos passos. Os lacaios não levantam nenhuma carga se for obrigação das domésticas. Ficam de braços cruzados e contemplam como o fazem com muita dificuldade as pobres moças. Há tal quantidade de criados que não entendo nem como conseguem organizar-se. - Apertou os lábios em uma careta de desdém. — Comemos todos no refeitório, mas os dez principais se levam o pudim à sala de estar da governanta. Como compreenderá, delegado, a você o consideram aqui o cavalheiro de menor classe, e por conseguinte eu devo me colocar atrás dos outros valetes, em estrita ordem de precedência. - Fez o comentário com uma mescla de desprezo e malevolência.

— Vejo que lhe incomoda. - Pitt colocou as mãos nos bolsos cuidadosamente.         —Você pense só no verdadeiro motivo de nossa presença nesta casa. Embora seja um mal valete, o importante é que é um bom policial.

Tellman amaldiçoou de novo.

Rodearam a casa observando os diferentes acessos e possíveis esconderijos oferecidos pelos arbustos e dependências da propriedade.

— Está tudo isso bem fechado de noite? - perguntou Tellman, apontando para a fileira de janelas da fachada. — Embora pouca importância tem. Qualquer ladrão medianamente hábil cortaria o vidro e penetraria dentro em questão de segundos.

— Por isso o guarda-florestal ronda toda a noite com os cães - respondeu Pitt. — E a polícia do vilarejo vigia os caminhos e os campos. O pessoal do Ashworth Hall conhece o terreno melhor que qualquer possível intruso.

— Estão avisados os jardineiros?

— Sim, e também os lacaios e os cocheiros, assim como cavalariços e os criados da casa, no caso de alguém pretende entrar pela porta detrás.

— Não me ocorre, pois, que mais medidas tomar - admitiu Tellman. Olhando Pitt de soslaio, acrescentou: — Acredita em todo caso que essa pessoa chegará a um acordo?

— Não sei. Mas Ainsley Greville merece todo o respeito. Pelo visto, conseguiu que falem civilizadamente, o que é um notável êxito depois do ocorrido esta madrugada.

— O que aconteceu esta madrugada? – perguntou Tellman com expressão carrancuda. — Gracie desceu esta manhã contando que tinha ouvido uns gritos espantosos, mas não disse a que se deviam. Uma personagem curiosa, essa Gracie.         - Desviou o olhar e o fixou no cascalho do caminho, que rangia ruidosamente debaixo de seus pés. — Em alguns momentos é mais suave que uma luva, e daí a momentos puro orgulho e mau gênio, como se tivesse metido a mão em um arbusto de urtigas. Não sei a que ater-me. Mas tem brio e, para uma criada, não é tola.

— Não se engane com Gracie - advertiu Pitt com aspereza e também certo desfrute. Conhecia a opinião do Tellman sobre a criadagem. — Para falar a verdade é muito esperta, a sua maneira. Tem mais prática que você e provavelmente o iguala deste modo em capacidade para julgar às pessoas.

— Bom, a esse respeito tenho minhas dúvidas - protestou Tellman. — Diz que sabe ler e escrever, mas...

— E é verdade!

— ... mas é ainda muito jovem.

Pitt não se incomodou em lhe contrariar. Começou a subir por uma escada de lajes.

— E a que se deviam, pois, esses gritos? - insistiu Tellman, lhe alcançando e colocando-se de novo a seu lado.

— A senhorita Moynihan surpreendeu seu irmão na cama com a senhora McGinley -respondeu Pitt.

— Como? - Tellman tropeçou e esteve a ponto de cair. — O que disse?

Pitt repetiu.

Tellman amaldiçoou uma vez mais.

O almoço consistiu em salmão cozido frio, faisão em gelatina, empanada de caça ou guisado de lebre, verduras frescas e batatas novas. Ainda não tinham terminado quando o mordomo se aproximou discretamente de Emily, anunciou em um sussurro que acabava de chegar a senhorita Justine Baring e perguntou se devia fazê-la entrar na sala de jantar ou lhe pedir que esperasse no salão e lhe oferecer um refrigério.

— Ah, que venha aqui, por favor - se apressou a responder Emily, olhando ao redor para assegurar-se de que todos o tinham ouvido.

Piers ficou em pé com súbita alegria no semblante.

Eudora ergueu as costas em tensa espera.

Outros se voltaram para a porta por interesse ou simples cortesia.

A jovem que entrou acompanhada pelo mordomo era de estatura média e muito magra, muito de fato para o gosto de muita gente. Carecia das exuberantes curvas então em voga, como as que exibia por exemplo Kezia, sentada nesse momento à mesa, pálida e ainda manifestamente irada. Naquela jovem, o maior encanto residia no rosto. Era morena como Iona, mas possuía umas feições muito distintas. Nela não se percebia o menor traço de romantismo celta; tinha um aspecto mediterrâneo, exótico. O nascimento do cabelo formava um arco perfeito sobre a fronte lisa e tinha as pestanas longas e deliciosas, as maçãs do rosto salientes, os lábios delicados. Só quando mostrou o perfil ficou manifesto seu nariz longo e claramente curvo. Era o único elemento imperfeito de seu rosto, que a fazia única e lhe dava caráter.

— Bem-vinda a Ashworth Hall, senhorita Baring - saudou Emily afetuosamente.         — Deseja compartilhar o almoço conosco, ou comeu já? Uma sobremesa, possivelmente? Ou ao menos uma taça de vinho?

Justine sorriu, olhando ainda para Emily.

— Obrigada, senhora Radley. Seria um prazer almoçar em sua companhia se não for trabalho.

— Nada disso.

Emily fez um gesto ao mordomo, que esperava já junto ao aparador da baixela com talheres na mão. Imediatamente se aproximou da mesa e pôs um serviço para Justine, junto à Eudora e frente a Piers.

— Permite-me que a presente? - propôs Emily. — Acredito que não conhece ainda a seus futuros pais políticos, o senhor Ainsley Greville...

Justine se voltou para o Ainsley e seu corpo se esticou sob a lã de seu elegante vestido de cor rosa intenso. Embora carecesse de família, possuía sem dúvida dinheiro e bom gosto. Era um vestido magnífico. Respirou fundo e deixou escapar o ar lentamente, como se lhe requeresse um grande esforço controlar-se. Em suas faces não se apreciava cor, mas tinha a tez azeitonada, e talvez estivesse cansada da viagem. Para uma moça sem ascendência nem protetores na alta sociedade, apresentar-se aos pais de seu noivo devia ser uma difícil prova, mais ainda se, como naquele caso, eram de alto berço e sabida riqueza e ele ocupava um alto cargo no governo. Emily não a invejava. Recordava ainda seu primeiro encontro com os primos e tias do George - seus pais já não viviam -, que foi uma experiência aterradora. Aquilo era sem dúvida muito pior.

— Muito prazer, senhorita Baring - disse Ainsley depois de um longo momento de hesitação. Falou pausadamente, quase com parcimônia. — É um prazer conhecê-la. Apresento a minha esposa. -Tocou levemente no cotovelo de Eudora, que não afastava a vista do Justine.

A moça clareou a garganta e respondeu:

— Encantada, senhora Greville.

Eudora sorriu, também perceptivelmente nervosa.

— Muito prazer, senhorita Baring. É um prazer tê-la aqui. Espero que sua estadia se prolongue o tempo suficiente para que nos conheçamos bem.

— Obrigada - aceitou Justine.

— Isso, querida, depende principalmente da senhora Radley - se apressou a dizer Ainsley.

Eudora se ruborizou.

Emily se enfureceu com o Ainsley por envergonhar desse modo a sua esposa. Era impróprio do homem diplomático por quem ela o tinha.

— Já disse à senhorita Baring que é bem-vinda - afirmou Emily com tom categórico. — Será uma grata incorporação a esta festa durante todo o tempo que desejar ficar ou suas obrigações o permitam. -Sorriu para Justine. — As damas estão em desvantagem; faltam-nos duas.... de fato, três. Sua presença será muito valiosa para nós. E agora, se me permitir, apresentar-lhe-ei ao resto dos convidados.

Nomeou-os um por um na ordem em que estavam sentados à mesa. Fergal se mostrou frio mas correto, e Kezia conseguiu esboçar um sorriso. Padraig esteve encantador. Lorcan inclinou ligeiramente a cabeça e lhe deu a bem-vinda. Inclusive Carson O’Day expressou sua satisfação por conhecê-la.

Piers, naturalmente, não fez o menor esforço por dissimular seus sentimentos por Justine, e quando seus olhares se cruzaram, as emoções dela apareceram em seus olhos com igual clareza.

Ele continuava de pé, e correu a lhe afastar a cadeira da mesa para que tomasse assento, lhe roçando o ombro enquanto a ajudava. Depois voltou para seu lugar.

Todos, salvo possivelmente Kezia, puseram especial empenho em ocultar suas antipatias. Acaso era uma maneira de proteger-se a si mesmos ante alguém que, pelo visto, não tinha a menor idéia de quem eram nem de que razões os tinham levado a aquela casa, além de desfrutar de um longo fim de semana no campo. Se Justine reparou no desproporcionado número de nomes irlandeses, não deu sinais disso.

— Como se conheceram? - perguntou Emily cortesmente.

— Por acaso - respondeu Piers, agradado de falar de qualquer assunto relacionado com Justine. Não podia evitar lançar freqüentes olhares a sua noiva, e toda vez ela se ruborizava e baixava os olhos.

Emily teve a clara impressão de que a causa dessa confusão não era Piers nem nenhum natural acanhamento, mas a presença de seus futuros sogros, sentados a tão curta distância dela. Essa modéstia era o que se esperava dela, e Justine havia se proposto atuar exatamente igual a qualquer moça em seu lugar, até no mínimo detalhe.

Emily teria feito o mesmo.

Todos pareciam escutar.

— Eu saía do teatro com um grupo de amigos - prosseguiu Piers com entusiasmo.     — Nem sequer recordo qual era a peça, algo do Pinero, acredito; mas se apagou de minha memória assim que vi Justine. Ela também saía, acompanhada de um de meus professores, um homem brilhante, especialista em enfermidades do coração e da circulação sangüínea. O apropriado era me aproximar para saudá-lo, e além disso não podia deixar escapar a oportunidade de que apresentasse Justine. - Sorriu, fazendo brincadeira de sua própria atitude. — Estava certo que não era sua esposa. Ele é já um homem de certa idade, membro da junta reitora. Temia que fosse uma sobrinha, e ele não aprovasse que um simples estudante pretendesse conhecê-la.

Justine lançou uma olhada ao Ainsley, que estava observando-a. Ainsley desceu imediatamente o olhar, e ela pareceu desconfortável.

— E era sua sobrinha? - perguntou Eudora.

— Não - respondeu Piers com alívio. — Era só uma amiga. Contou-me que era filha de um antigo aluno com quem tinha mantido o contato até sua prematura e lamentável morte.

— Que triste! - exclamou Eudora, movendo a cabeça em um gesto de aflição.

— E não permitiu você que aquilo terminasse em uma simples apresentação - deduziu Emily com um sorriso.

— Claro que não! - prorrompeu Padraig, olhando-os alternativamente.                                — Nenhum jovem que se aprecie o permitiria. Se a pessoa descobre à mulher de sua vida deve segui-la a em qualquer lugar que vá, por cidades e campos, por montanhas e mares, até o fim do mundo se for preciso. Não é assim? - dirigia-se a todos os presentes em geral.

Piers sorriu.

— É claro.

Iona não afastou a vista do prato.

— Até onde for preciso - afirmou Fergal de repente, olhando primeiro ao Padraig e depois ao Piers. — Uma pessoa tem que armar-se de coragem e mandar ao diabo seus temores.

Kezia afundou o garfo em seu último pedaço de empanada de caça e disse com voz clara:

— Aconteça o que acontecer, embora traga a desonra. Alguém deve seguir adiante, guiar-se só por seus desejos, sem deter-se pensar no preço nem em quem terá que pagá-lo.

Aquelas palavras desconcertaram ao Piers. Ele era um dos poucos que ignorava o ocorrido essa manhã, mas sua própria felicidade não o cegava até o ponto de lhe impedir de notar a dor que a voz da Kezia destilava, e a ninguém teria passado inadvertida sua cólera, até sem conhecer o motivo.

— Não queria dizer isso, senhorita Moynihan - respondeu. — Eu não a teria cortejado se sua honra ou a minha tivessem estado em perigo. Mas, graças a Deus, ela estava tão livre como eu, e ao que parecia meus sentimentos eram correspondidos.

— Parabéns, filho - felicitou Padraig com sinceridade.

O mordomo serviu para Justine um pouco de salmão frio e umas rodelas de pepino e batata alinhadas com ervas e lhe ofereceu vinho branco.

Alguém fez um comentário a respeito de uma ópera que se representava por essas datas em Londres. Outro convidado disse que a tinha visto no Dublin. Padraig aludiu às dificuldades do papel de soprano, e O’Day concordou com ele.

Emily olhou ao Jack, e lhe sorriu discretamente.

O mordomo e uns lacaios, auxiliados por um par de valetes, aguardavam para servir o seguinte prato. Finn Hennessey estava ali; Tellman não, felizmente.

Os homens reataram suas conversas políticas. A simples vista, não parecia que existisse muito rancor entre eles. Se se tinha produzido alguma discussão subida de tom, não davam sinais disso.

As senhoras decidiram dar um passeio pelo arvoredo. Brilhava o sol e só algumas nuvens brancas deslizavam pelo céu, arrastadas pela suave brisa. Aquele excelente tempo não duraria. Podia mudar nessa mesma tarde e começar a chover ou descer bruscamente a temperatura. No dia seguinte podia levantar-se um vendaval, gelar ou cair neve, ou podia também continuar a bonança.

Ficaram as seis em caminho através da grama. Emily encabeçava a marcha em companhia da Kezia. Tratou de entabular conversa, mas em seguida percebeu que Kezia não desejava falar e acabou guardando um cortês silêncio.

Eudora e Justine as seguiam a uns quantos passos de distância, oferecendo entre si um marcado contraste: Eudora, com sua atraente figura e o sol refletido no cabelo avermelhado, caminhava com a cabeça erguida; Justine, muito esbelta, quase fraca, com o cabelo negro como a asa de um corvo, movia-se com peculiar elegância, e quando se voltava de perfil para falar, aparecia seu extraordinário nariz.

Charlotte permaneceu ao lado da Iona. Não era algo de seu agrado, mas as obrigações sociais assim o exigiam, e por lealdade por Emily não ficava outra opção. Lamentava não conhecer melhor o arvoredo para utilizá-lo como tema de conversa. A sua mente acudiam só as advertências do Emily sobre os temas que devia evitar: política, religião, o divórcio e as batatas.

Quase tudo o que lhe ocorria parecia conduzir indevidamente a alguma dessas questões. Era preferível passear em silêncio a ver-se obrigada a falar do tempo. Via Eudora conversar com Justine, aparentemente formulando uma pergunta atrás de outra. Dava a impressão de que estava ansiosa por conhecer os detalhes de um noivado sobre o qual nada sabia. Charlotte se perguntou por que Piers o teria oculto até esse momento.

Esteve a ponto de deixar escapar um comentário a respeito do Piers e Justine, mas se conteve, no caso dos idílios se somarem também à lista de temas proibidos. O que podia dizer-se a uma mulher casada a quem se surpreendeu na cama com outro homem nessa mesma manhã? Essa era uma questão que nenhum manual de protocolo tratava. Em teoria, as damas distintas se asseguravam de que uma coisa assim nunca ocorresse. Se alguma, por má fortuna ou por descuido, via-se em tal situação, atuava como se nada tivesse acontecido. Mas tal possibilidade ficava descartada quando outra mulher, ao descobri-lo, começava a gritar a pleno pulmão.

Uma galinha silvestre passou voando ante elas quando deixavam atrás a grama e tomavam o passeio dos rododendros.

— Não é linda? - exclamou Charlotte.

— Mau sinal - respondeu Iona.

— Como diz?

— É mau ver uma só galinha silvestre - explicou Iona. — Deveriam ver-se duas ou nenhuma.

— Por quê?

Iona ficou perplexa ante a pergunta.

— Simplesmente... assim é.

— Mas mau para quem? - insistiu Charlotte, mantendo um tom correto e interessado. — O dizem os granjeiros ou os ornitólogos?

— Não, mau para nós. É uma...

— Uma superstição?

— Sim! - respondeu Iona.

— Ah, já entendo. Que idiota sou! Desculpe. Achava que falava a sério.

Iona franziu o sobrecenho mas guardou silêncio, e Charlotte compreendeu sobressaltada que falava a sério. Possivelmente unia misticismo celta e cristianismo moderno. Percebia-se nela certa audácia romântica, uma espécie de temeridade, como se fosse capaz de ver outra realidade além da existência física ou o âmbito social. Talvez fosse essa a qualidade de Iona que mais tinha seduzido ao Fergal, um homem sem muita imaginação. Iona devia representar para ele um mundo de sonhos, idéias e possibilidades mágicas que nunca tinham passado por sua mente. De certo modo lhe tinha revelado uma nova vida. Charlotte se perguntou o que obtinha Iona em troca. Fergal parecia um homem um tanto rígido. Talvez a atraísse o desafio. Ou possivelmente imaginava nele qualidades que não existiam.

Pensou em algo mais que dizer. O silêncio era incômodo. Quando chegavam ao arvoredo, fez referência à abundância de escaramujos nas roseiras silvestres.

— Avizinha-se um cru inverno - vaticinou Iona. De repente se desenhou um sorriso em seus lábios e acrescentou: — Sabedoria popular, não superstição!

Charlotte se pôs-se a rir, e a partir desse instante se sentiram as duas mais à vontade.

— Sim, também o tinha ouvido dizer. Mas nunca pude comprovar se é verdade, porque quando chega o inverno, não recordo como estavam no outono as roseiras.

— Para lhe ser justa, eu tampouco - admitiu Iona. — E vendo-os tão cheios de fruto, espero que não se cumpra.

Caminharam entre os lisos troncos das faias. A brisa soprava entre os ramos nus e sob seus pés ouviam ranger o tapete de folhas caídas, de cores enferruje e bronze.

— Aqui na primavera há jacintos - prosseguiu Charlotte. — Florescem antes de sair as folhas.

— Já sei - se apressou a dizer Iona. — De tão azuis, é como andar entre dois céus.

Durante o resto do passeio conversaram sobre a natureza, e Iona contou lendas irlandesas a respeito das pedras e árvores, dos heróis e tragédias de um passado místico.

No caminho de volta alteraram a ordem de emparelhamento, salvo Eudora e Justine, que seguiram falando do Piers. Emily dirigiu ao Charlotte um olhar de gratidão e trocaram de acompanhante.

Viram reluzentes faisões bicar o grão caído ao bordo dos campos de lavoura que se limitavam com o arvoredo, e Charlotte fez um comentário a respeito. Kezia respondeu, mas com apenas uma palavra.

O sol estava já baixo, uma esfera de fogo dourado. As sombras se alongavam através do campo arado situado ao sul, os escuros sulcos arqueando-se sobre os desníveis do terreno. O vento tinha aumentado, e os estorninhos formavam redemoinhos nas correntes como folhas caídas, dispersando-se e voltando-se para unir.

Ao cair o sol, o entardecer era ainda mais claro, e as franjas de céu que se estendiam entre as nuvens pareciam quase verdes.

A idéia de tomar um chá quente e uns pãezinhos junto ao fogo começava a ser muito sugestiva.

Gracie estava muito preocupada enquanto ajudava ao Charlotte a colocar o vestido de cetim nacarado para o jantar.

— Fica maravilhosamente, senhora - disse com sinceridade, e a magnitude de sua admiração se refletiu em seus olhos. Ao cabo de um momento acrescentou: — Me informei um pouco mais de por que está aqui reunida essa gente. Espero que façam as pazes e devolvam a liberdade a Irlanda. Cometeram-se injustiças espantosas. Não me sinto orgulhosa de ser inglesa quando ouço algumas dessas histórias. – Retocou o penteado de Charlotte e lhe endireitou o diadema de pérolas. — Não é que acredite em tudo o que contam, certamente. Mas embora só uma pequena parte seja verdade, tem que haver homens muito cruéis na Irlanda.

— Em ambos os bandos, imagino - respondeu Charlotte com cautela. Estava olhando-se no espelho, mas prestava também atenção às palavras de Gracie. Observou seu pequeno rosto, contraído nesse instante pela inquietação e compaixão. — Fazem todo o possível - assegurou para tranqüilizá-la. — E acredito que o senhor Greville é um homem muito competente. Não se renderá.

— Ainda bem - Gracie abandonou todo esforço de simular interesse pelo xale que segurava em suas mãos. — Ocorrem ali grandes desgraças a toda classe de pessoas, a anciãs e crianças, e não só a homens capazes de defender-se. Possivelmente esses fenianos e outros como eles não fariam o que fazem se nós não tivéssemos entrado na Irlanda, onde nada nos tinha perdido.

— É inútil voltar para o passado, Gracie - disse Charlotte com voz serena.                       — Provavelmente tampouco deveríamos estar aqui. Mas quem deveria estar? Os normandos, os vikings, os dinamarqueses, os romanos? Na origem, todos os escoceses chegaram da Irlanda.

— Não, senhora, os escoceses são da Escócia - retificou Gracie.

Charlotte moveu a cabeça em um gesto de negação.

— Já sei que agora estão ali, mas antes ocupavam essas terras os pictos. Depois vieram da Irlanda os escoceses e expulsaram aos pictos.

— E aonde foram?

— Não sei. Possivelmente os mataram a quase todos.

— Bom, e se os escoceses vieram da Irlanda e se apropriaram de Escócia - continuou Gracie, espremendo os miolos, — quem vive na Irlanda? E por que não se dão bem, como nós?

— Porque alguns escoceses retornaram a Irlanda, e agora então eram protestantes, enquanto que o resto dos habitantes da ilha seguia sendo católico. Durante o tempo que passaram fora mudaram muito.

— Se for assim, não deveriam ter voltado.

— Possivelmente não, mas já era tarde para remediá-lo - disse Charlotte. — As coisas só podem arrumar-se no presente, não no passado.

Gracie refletiu longo momento sobre isso e assentiu quando Charlotte se dispunha já a sair do quarto.

Charlotte se achou com o Pitt ao pé da escada e foi para ela uma grata surpresa perceber seu súbito olhar de admiração. Notou calor nas faces. Pitt lhe ofereceu o braço, e ela o aceitou ao mesmo tempo que entrava majestosamente no salão.

No jantar se repetiu o tenso mal-estar de refeições anteriores, mitigada em arte pela incorporação do Piers e Justine, que proporcionaram aos pressentes um tema de conversa sem relação alguma com seus próprios interesses ou com trivialidades de uma intrascendencia lamentável.

O reduzido número de comensais sentados à mesa não permitia separar a aqueles entre os que existiam atritos. Aquela situação era o pior pesadelo de uma anfitriã. Devia se ter em conta uma ordem de precedência. Os convidados podiam ofender-se se essa ordem não se respeitava. Se não havia um título ou um cargo pelo que reger-se, recorria-se à idade. E entretanto não podia colocar-se ao Fergal ao lado ou diante do Lorcan McGinley, nem era possível sentar a este perto da Iona por razões óbvias para uns e desconhecidas para outros. Analogamente, Kezia e seu irmão tampouco podiam estar juntos. A ira bulia ainda nela, e cabia esperar uma explosão a qualquer momento.

Foi Carson O’Day quem salvou momentaneamente a situação. Parecia capaz de manter uma conversa amigável com qualquer um, e não teve inconveniente em fazê-lo, procurando temas em áreas tão diversas e inócuas como os variados modelos de faqueiro georgiano ou a última erupção do Vesúvio.

Padraig Doyle contou entretidas anedotas sobre um funileiro irlandês e um pároco, conseguindo provocar as risadas de todos, salvo Kezia, um fracasso que passou por cima.

Piers e Justine só prestavam verdadeira atenção o um ao outro.

Eudora estava um pouco triste, como se acabasse de descobrir a perda de algo que achava possuir, e Ainsley parecia aborrecido. De vez em quando Charlotte percebia uma ameaça de inquietação em seu olhar, dificuldades ao engolir ou um ligeiro tremor nas mãos. Se alguém lhe tivesse falado, não teria ouvido, como se tivesse o pensamento em outra parte. Uma conferência como aquela devia ser uma responsabilidade entristecedora. No fim das contas, o peso de conseguir o impossível tinha afundado homens superiores e inferiores a ele. E se além disso tinha medo, não lhe faltavam razões. Pendia ainda sobre sua cabeça uma ameaça de violência que possivelmente só ele e Pitt compreendiam realmente.

Ninguém tinha aludido ao caso de divórcio Parnell-O’Shea. Se os jornais publicavam algo a respeito, não se fez menção alguma.

Iam já pelo segundo prato - costas de cordeiro, tartaletas de vitela ou enguias em escabeche com pepino e cebola - quando se desencadeou a briga. Foi Kezia quem a iniciou. Com muita dificuldade tinha reprimido a cólera do começo do jantar, agindo como se Iona não estivesse e mantendo as formas com outros. Era seu irmão o alvo de sua ira.

Fergal fez um comentário muito geral a respeito da ética protestante.

— Em muitos aspectos é uma questão pessoal - disse, inclinando-se sobre a mesa para dirigir-se a Justine. — Tem que ver com a responsabilidade individual, a comunicação direta entre o homem e Deus, e não por mediação de um sacerdote, que em definitivo é um simples mortal e pode equivocar-se como qualquer ser humano.

— Uns se equivocam mais que outros - observou Kezia com rancor.

Fergal se ruborizou ligeiramente e fez ouvidos surdos.

— A missão do pastor protestante é só guiar a seus paroquianos - continuou com o olhar fixo em Justine. — A fé é da maior importância, uma fé simples e absoluta, mas não nos milagres e magia mas na faculdade redentora de Cristo para salvar as almas.

— Acreditam no esforço do trabalho, a obediência e uma vida casta e honrosa - acrescentou Kezia, olhando a Justine como se ninguém mais tivesse falado. — Ao menos isso dizem - de repente se voltou para Fergal. — Não é assim, meu querido irmão? A castidade é tão importante como a devoção. Nenhum homem impuro pode entrar no reino dos céus. Não somos como os crentes da Igreja romana, que podem pecar de segunda-feira à sábado sempre que confessarem suas faltas ao sacerdote no domingo, quando se sentar em seu escuro habitáculo atrás de uma persiana, escutar seus repugnantes segredos e lhes impõe de penitencia umas quantas orações que limpam por completo suas almas... até o seguinte domingo, em que se repetirá exatamente a mesma cena. Aposto algo a que o próprio sacerdote poderia recitar os pecados de seus fiéis, de tantas vezes que os ouviu...

— Kezia... - interrompeu-a Fergal.

Sem lhe prestar atenção, Kezia manteve fixa no Justine seu ardente olhar. Tinha as faces acesas e lhe tremiam as mãos, com o garfo e a faca ainda seguras.

— Nós não somos assim. Não contamos nossos pecados a ninguém, salvo a Deus... Como se Ele não os conhecesse já de sobra! Como se Ele não conhecesse até o mais imundo segredo de nossos imundos corações! Como se Ele não cheirasse o fedor de um hipócrita a milhas de distância!

Produziu-se um tenso silêncio em torno da mesa. Padraig limpou garganta, mas no último momento não soube o que dizer.

Eudora deixou escapar um gemido abafado.

— Francamente... - disse Ainsley mas se interrompeu.

Justine sorriu, sustentando o olhar da Kezia.

— A meu modo de ver, o que importa é se a pessoa está arrependida ou não de seus pecados. A quem lhe contem é o de menos. - Falava com suma delicadeza. — Se a pessoa for consciente de que agiu mal e não deseja repetir essas ações, deve mudar, e isso é sem dúvida o importante.

Kezia a contemplou atônita.

Foi Fergal quem pôs tudo a perder. Estava ruborizado, certamente por vergonha mas também por uma avivada atitude defensiva.

— A idéia de que devamos prestar contas a alguém além de Deus, de que um ser humano se ache em posição de nos julgar, de nos perdoar ou nos condenar...

Kezia se voltou para ele com um brusco movimento.

— Isso você gostaria, não é verdade? - Soltou uma áspera gargalhada. — Pensa que não há ninguém apto para te julgar - prosseguiu, erguendo grosseiramente a voz. — Quem se acredita que é, por amor de Deus? Nós lhe julgamos! Eu te julgo e te declaro culpado, hipócrita!

— Kezia, retire-se a seu quarto até que se acalme - ordenou Fergal entre dentes.     — Está histérica. É...

Não pôde terminar a frase, já que Kezia jogou atrás sua cadeira, pegou sua taça meio vazia e lhe lançou o vinho no rosto. A seguir ficou em pé e correu para a porta, enrolando quase a uma criada que entrava nesse instante com uma molheira e conseguiu esquivá-la por muito pouco.

Na sala de jantar se produziu um embaraçoso silêncio.

— Sinto muito - disse Fergal, pesaroso. — Kezia está... muito... excitável neste momento. Amanhã sem dúvida lamentará profundamente seu comportamento. Desculpem-na, senhora Radley, senhoras...

Charlotte cruzou um olhar com Emily e se levantou.

— Acredito que devo ir comprovar se se encontra bem. Parecia muito alterada.

— Sim, sim, boa idéia - concordou Emily, e Charlotte captou em seu olhar um indício de inveja, porque também ela teria desejado fugir.

Charlotte saiu da sala de jantar e, depois de dar uma olhada ao vestíbulo vazio, subiu pela escada. O único lugar onde Kezia tinha a intimidade assegurada era seu quarto. Esse mesmo refúgio teria procurado Charlotte se tivesse dado ela tal espetáculo. Em nenhum caso iria ao jardim de inverno ou o salão de recepções, onde existia o risco de que alguém fosse a atrás dela.

No corredor cruzou com uma das jovens ajudantes, aproximadamente da idade de Gracie quando começou a servi-los.

— Passou por aqui a senhorita Moynihan? - perguntou Charlotte.

A moça moveu a cabeça em um gesto de assentimento. Olhava-a com os olhos muito abertos e algumas mechas de cabelo escapavam de sua touca de renda.

— Obrigada.

Charlotte sabia já qual era o quarto de Kezia, e como na vez anterior, aproximou-se da porta, bateu e entrou sem esperar resposta.

Kezia jazia na cama feito um novelo, com os ombros encolhidos e a saia esparramada sob seu corpo.

Charlotte fechou a porta e foi sentar se aos pés da cama.

Kezia não se moveu.

Charlotte nada podia fazer para mudar o que Kezia tinha visto ou a única explicação possível que todos atribuíam ao episódio. Só podia tratar de incidir em seus sentimentos a respeito.

— Sente-se muito desventurada, não é verdade? - disse com voz serena e desapaixonada.

Kezia permaneceu imóvel por uns minutos. Finalmente se voltou, endireitou-se apoiando-se contra os travesseiros e olhou ao Charlotte com profundo desdém.

— Não me sinto "desventurada" - pronunciou a palavra com intencionada clareza,     — como você tão curiosamente disse. Ignoro quais são seus princípios morais, senhora Pitt. Possivelmente fornicar com a esposa de outro homem seja plausível em seus círculos, embora preferiria acreditar que não é assim. – Encurvou os ombros como se tivesse frio, apesar do quarto estar quente. — Para mim, essa conduta é abominável. É um pecado horrendo em qualquer pessoa. Tratando-se de alguém que se educou conforme a determinados valores, como é o caso de meu irmão, que se criou em uma família temerosa de Deus, com um pai que foi um dos pastores mais honrados, retos e valorosos de sua época, é imperdoável. - Um vislumbre de ira distorcia seu rosto, e seus olhos claros, avermelhados pelo pranto, ardiam de raiva.

Charlotte a olhou fixamente, procurando umas palavras capazes de transpassar aquele muro de intensas emoções.

— Eu não tenho irmãos varões - disse sem deixar de pensar. — Mas se minha irmã fizesse uma coisa semelhante, doer-me-ia mais que nada no mundo. Desejaria discutir com ela, perguntar-lhe-ia por que tinha renunciado a tanto por tão pouco. Duvido que lhe retirasse a palavra. Mas, claro, Emily é mais nova que eu, e adoto uma atitude protetora com ela. É Fergal mais velho que você?

Kezia a olhou como se a pergunta fosse um disparate.

— Não entendeu nada - reprovou. Começava a esgotar-se a paciência. — Me esforço em tratá-la com a devida cortesia apesar de entrar em meu quarto sem ser convidada e se sentou aí a me exortar sobre o que você faria em meu lugar, quando de fato não sabe nem remotamente de que fala. Não está em meu lugar nem nada parecido. Não tem ambições políticas, e embora as tivesse, carece das aptidões necessárias. Nem sequer concebe essa possibilidade em uma mulher. Está felizmente casada, e com filhos, suponho. É evidente que sente um grande afeto por seu marido, e ele por você. Faça o favor de partir e me deixar em paz.

Tanto seu tom de superioridade como suas pressuposições irritaram Charlotte, mas esta se conteve não sem esforço.

— Vim porque não podia seguir desfrutando tranqüilamente do jantar depois de vê-la tão alterada - respondeu. — Suponho que expor como reagiria eu em seu lugar não vem ao caso. Só pretendia lhe fazer entender que negando-se a falar com seu irmão, é você a mais prejudicada. -Enrugou a fronte. — Pare a pensar qual será o resultado se se separar dele.

— Não sei a que se refere - disse Kezia, jogando atrás a cabeça e entreabrindo os olhos.

— Acredita que interromperá sua relação com a senhora McGinley? – perguntou Charlotte. — Acredita que se dará conta de que sua conduta é errônea, de que é moralmente contraria aos princípios que professou toda sua vida e imprudente do ponto de vista político se aspirar a representar a seu povo? Por Deus, não é suficiente prova disso a situação do senhor Parnell?

Kezia a olhou com um indício de surpresa, como se ainda não tivesse considerado esse aspecto. E entretanto devia estar à corrente do julgamento de divórcio que se celebrava por essa data em Londres a pedido do capitão William O’Shea, onde aparecia comprometido como terceiro em discórdia Charles Stewart Parnell, o líder do Partido Nacionalista Irlandês. Possivelmente resistia a admitir o que significaria a vitória de O’Shea.

— Duvido muito que seu irmão se dê conta - prosseguiu Charlotte. — Quando a pessoa se apaixona loucamente, obsessivamente, raramente se detém para calcular o custo de seus atos se chegarem a ser descobertos. Se tudo o que correr o risco de perder não serviu para dissuadi-lo, acredita que seu rechaço o fará mudar de idéia?

— Não - respondeu Kezia, e se pôs-se a rir com estridência, como se a idéia lhe fosse muito engraçada de uma maneira dolorosa e retorcida. — Não, claro que não! Não atuo assim com a intenção de alterar seus sentimentos ou seus atos. Simplesmente estou tão furiosa que não posso evitá-lo. Não é nem sequer pela traição a seus princípios, a renúncia a sua carreira ou a deslealdade para com a pessoa que confia nele. É sua maldita hipocrisia o que não posso perdoar!

— Não pode? - perguntou Charlotte com uma entonação só levemente interrogativa. — Quando as pessoas que amamos caem tão baixo, muito mais baixo do que jamais teríamos imaginado, causa-nos um grande sofrimento. - Por sua mente desfilaram rapidamente as lembranças de sua própria dor, descobrimentos que preferiria não ter feito, e logo a lenta aprendizagem da aceitação, do esquecimento da pior parte, a posterior ternura para proteger o que a relação tinha de valioso. — Uma pessoa se enfurece porque acredita que essas coisas não deveriam ocorrer. Mas possivelmente sim convém que ocorram. Possivelmente seu irmão deve sucumbir a suas fraquezas para chegar a superá-las. À longa talvez se precipite menos ao julgar a outros. Ele...

Kezia lançou um grunhido de desgosto.

— Cale-se já, pelo que mais queira! - revolveu-se na cama e levantou os joelhos em um gesto quase de amparo. — Tudo isso é estupidez grandiloqüente. Se tivesse sido só uma fraqueza, perdoá-lo-ia imediatamente. Todos temos fraquezas. - Apesar de suas feições amplas e suaves, seu rosto se contraía por completo por causa da dor e da lembrança da dor. — Mas quando, pouco depois de morrer meu pai, apaixonei-me por um católico, ao que adorava com toda minha alma, Fergal não se dignou me escutar. Proibiu-me de vê-lo. Nem sequer me permitiu lhe anunciar eu mesma a ruptura. - Sua voz enrouqueceu de tal modo por causa da aflição passada que era difícil entendê-la. Ele disse a ele! Ele explicou ao Cathal que nunca toleraria aquele matrimônio, que seria uma blasfêmia. Também me disse isso! Eu era muito jovem para me casar sem permissão. Legalmente, Fergal era meu tutor, e se escapava, perderia o direito à bênção da Igreja. Escutei ao Fergal e obedeci. Deixei partir Cathal. - As lágrimas lhe inundaram os olhos e rolaram por suas faces, desta vez não devido à raiva porém à lembrança de doçura daquele amor e sua perda. — Agora está morto. Já nunca o acharei.

Charlotte guardou silêncio.

Kezia a olhou.

— Assim já vê: não posso perdoar ao Fergal por deitar-se com uma católica, e por cima esposa de outro homem. Quando levar flores à tumba do Cathal, como vou explicar.

— Possivelmente tampouco eu seria capaz de perdoar algo assim – admitiu Charlotte, sem mover-se dos pés da cama. — Lamento me haver precipitado ao pôr em dúvida seus motivos.

Kezia deu de ombros e procurou um lenço.

Charlotte pegou um da penteadeira e o entregou.

Kezia se assoou com força.

— Mas o que antes disse é certo de qualquer modo - acrescentou Charlotte com tom de desculpa. — É seu único irmão, não? Realmente deseja romper os laços que os unem? Não será isso tão prejudicial para você como para ele? Seu irmão se comportou de maneira deplorável. Cedo ou tarde sofrerá por isso, não acha?

— Justiça divina? - Kezia arqueou as sobrancelhas. — Não sei até que ponto acreditar nisso. Apertou os lábios em um gesto mais de consciência de sua própria atitude que de ressentimento. — Em todo caso, duvido que tenha a paciência de esperar até esse dia.

— Justiça divina não; vulgar e corrente culpa humana - corrigiu Charlotte. — E isso não costuma demorar a chegar, mesmo que a princípio não se reconheça como tal.

Kezia refletiu em silêncio.

— De verdade deseja criar um abismo entre você e seu irmão que mais tarde seja impossível salvar? - perguntou Charlotte. — Não por ele, por você?

Kezia tampouco respondeu imediatamente.

— Não... - disse por fim a contra gosto. Um leve sorriso apareceu em seus lábios.     —Suponho que não é você tão grandiloqüente como pensava. Peço-lhe desculpas.

Charlotte lhe devolveu o sorriso.

— Melhor assim. A grandiloqüência é tão aborrecida... e tão masculina.... não lhe parece? Desta vez Kezia riu abertamente.

A crispação foi a nota dominante durante o resto da noite. Kezia não voltou a descer, o que provavelmente foi o mais sensato; mesmo assim, bastava a presença do Lorcan como aviso do calamitoso incidente. O caso de divórcio Parnell-O’Shea se evitou por tácito acordo, com o qual se evitaram deste modo um sem-fim de especulações políticas. A conversa degenerou em lugares comuns, e todos acolheram de bom grado a idéia de retirar-se cedo, a seus quartos.

Sentada ante o penteadeira de seu dormitório, Charlotte passava um lenço de seda pelo cabelo para alisá-lo e lhe dar brilho.

— Isto é insuportável - comentou. — Com semelhante ambiente na casa, não há necessidade de preocupar-se com os dinamiteros e assassinos fenianos de fora.

Pitt estava já recostado na cama.

— O que lhe disse Kezia Moynihan? Vai seguir com seus escândalos todo o fim de semana?

— Tem de seu lado boa parte de razão - respondeu Charlotte, e repetiu o que Kezia lhe tinha contado.

— Possivelmente deveria proteger ao Fergal Moynihan - disse Pitt com tom sarcástico — da Kezia; do Lorcan McGinley, que tem de seu lado ainda maior parte de razão; da Iona, se brigarem, ou se ele decide romper a relação, ou se ela quer acabar e ele não...; ou do Carson O’Day, possivelmente furioso com o Moynihan por pôr em perigo a causa protestante.

— Ou de Emily – acrescentou Charlotte, — por converter uma reunião por si só desagradável em um absoluto pesadelo.

Deixou o lenço e apagou o abajur de gás do penteadeira, ficando o quarto às escuras salvo pelo resplendor das brasas procedente da lareira. Meteu-se na cama e se aninhou junto ao Pitt.

Pela segunda manhã consecutiva, despertou um grito penetrante e dilacerador.

Pitt xingou e se revolveu sob as mantas, tampando-a cabeça com o travesseiro.

O grito se repetiu, agudo e arrepiante.

A contra gosto, Pitt se levantou e procurou por seu roupão, movendo-se a tropeções pelo quarto. Abriu a porta e saiu ao corredor. Ali, frente à porta aberta do quarto de banho dos Greville, viu Doll, a atraente criada. Estava lívida e se apertava a garganta com as mãos, como se mal pudesse respirar.

Pitt se aproximou, pegou-a pelos ombros e a afastou. Ainsley Greville se achava na banheira, nu, com o peito, os ombros e o rosto inundados sob a água. Não cabia a menor dúvida de que estava morto.

 

Pitt deu meia volta e bloqueou a passagem com seu corpo.

— Leve-a daqui e cuide dela - disse a Charlotte, que estava já no corredor.

Obviamente se referia à Doll, que continuava junto a ele, cambaleando e respirando com dificuldade. Olhando Charlotte nos olhos, acrescentou: — Greville morreu.

Charlotte, com expressão tensa, hesitou apenas um instante e a seguir rodeou Doll com o braço e a afastou dali sem que ela opusesse a menor resistência.

Ao redor se tinham congregado já várias pessoas mais, recém saídas da cama, nervosas, mas pensando ainda na embaraçosa cena do dia anterior.

— E agora o que acontece? - perguntou Padraig Doyle, fazendo lado a Piers, que estava junto ao corrimão, sobressaltado e com o cabelo revolto. Um passo atrás dele achava-se Eudora, visivelmente preocupada mas não assustada.

Fergal Moynihan saía nesse momento de seu quarto, situado em frente ao de Pitt.

Piscava e tinha o cabelo de ponta, sinal inequívoco de que acabava de despertar. Deixou a porta totalmente aberta, revelando claramente que Iona não se achava dentro.

— O que ocorre? - insistiu Padraig, olhando alternativamente a Pitt e a Charlotte.

— Produziu-se um lamentável acidente - informou Pitt com serenidade. Era ainda muito cedo para aventurar qualquer outra possibilidade. — No momento nada pode fazer-se.

— Um acidente... mortal, quer dizer? - Um indício de temor apareceu apenas por uns segundos no semblante do Padraig. Não era homem que se deixasse vencer pelo pânico ou perdesse facilmente a compostura. — Ainsley?

— Por desgraça, assim é - respondeu Pitt ao mesmo tempo que estendia um braço para fechar a porta do banho.

— Compreendo - disse Padraig.

Imediatamente se voltou para a Eudora com grande delicadeza e lhe rodeou os ombros com o braço. Ela se alarmou pela própria ternura do gesto.

— O que ocorre? - perguntou Eudora. — Padraig? - desprendeu-se bruscamente de seu abraço e o olhou em rosto.

— Ainsley - respondeu Padraig, sustentando seu olhar. — Nada pode fazer-se já. Vamos. Levá-la-ei a seu quarto e ficarei fazendo-lhe companhia.

— Ainsley? - repetiu Eudora como se ainda não o compreendesse.

— Sim. Morreu, querida. Deve confrontar isso com integridade.

Carson O’Day se aproximava pelo corredor de trás deles. Iona apareceu no extremo oposto, envolta em um lindo roupão azul escuro cuja saia, com o movimento, inchava-se a suas costas como uma nuvem noturna.

Fergal pareceu sobressaltar-se, devido possivelmente às palavras com que Padraig se dirigiu a Eudora.

— Senhor Doyle... - começou a dizer Pitt.

Interpretando-o mal, Padraig explicou:

— Eudora é minha irmã.

Pitt moveu a cabeça em um gesto de negação e esclareceu:

— Só queria lhe sugerir que acompanhe à senhora Greville a seu quarto e peça à criada da senhora Radley que a atenda. Duvido que sua própria criada possa lhe servir de grande ajuda no estado em que se encontra. E se for amável, faça que enviem aqui Tellman.

Pitt olhou ao redor. Emily acabava de chegar, sobressaltada ante a perspectiva de um novo escândalo. Jack não tinha aparecido. Possivelmente também essa manhã tinha madrugado.

Emily observou Pitt e soube imediatamente que esta vez não se tratava de um simples deslize amoroso. Respirou fundo e fez o esforço consciente de serenar-se.

— Desgraçadamente, Ainsley Greville faleceu - anunciou Pitt a todos os presentes.   — Já nada podemos fazer por ele. Seria melhor que retornassem a seus quartos e se vestissem como de costume. Ainda não sabemos com exatidão o que aconteceu nem que medidas devem tomar-se a seguir. Enviem a alguém em busca do senhor Radley para lhe informar.

Padraig já partia com Eudora.

— Eu me encarregarei disso – se ofereceu O’Day. Estava pálido mas aparentemente conservava o domínio de si mesmo. — É uma tragédia que sua morte tenha sobrevindo neste preciso momento. Era um homem de grande talento. Nele se cifravam nossas esperanças de conciliação. - Depois de lançar um suspiro, virou sobre seus calcanhares e partiu escada abaixo amarrando o roupão à cintura, suas pegadas nos degraus de madeira eram silenciadas pelas sapatilhas.

Piers se aproximou do Pitt.

— Posso lhe ajudar em algo? - perguntou com voz empanada mas quase serena. Tinha os olhos arregalados e movia a cabeça em um gesto de incredulidade, como se ainda não tivesse compreendido de todo a situação. — Virtualmente terminei meus estudos de medicina. Seria mais rápido e discreto que trazer alguém do vilarejo. -Pigarreou. — Depois desejaria ir com minha mãe e ficar a seu lado. Padraig é um homem extraordinário, mas acredito que é minha obrigação... e de Justine. Afligir-se-á muito quando se inteirar. Possivelmente deveria dizer-lhe eu mesmo...

— Mais tarde - interrompeu Pitt. — Agora necessitamos que um médico examine seu pai.

Piers estremeceu.

— Sim - concordou com expressão tensa. — Sim, naturalmente.

Pitt abriu a porta do quarto de banho e entrou, indicando ao Piers que o seguisse. Outros se afastavam já pelo corredor. Tellman não demoraria a chegar.

Assim que Piers cruzou a porta, Pitt fechou. A seguir observou ao jovem dirigir-se para a banheira, cheia quase até o bordo, e ao cadáver de seu pai. Permaneceu perto dele se por acaso a visão lhe causasse um desvanecimento. Uma firme vontade nem sempre imuniza contra a comoção física. Por mais cadáveres que tivesse visto ao longo de sua carreira, nenhum podia comparar-se àquele.

Piers cambaleou por uns segundos, mas se inclinou e apoiou as palmas das mãos na banheira para manter o equilíbrio. Depois se ajoelhou lentamente e apalpou o rosto, os braços e as mãos do finado.

Pitt permaneceu atento. Tampouco ele tinha chegado a acostumar-se à presença da morte, até quando não era fruto da violência como naquele caso. Tinha visto Ainsley Greville vivo fazia só umas horas. Era um homem dotado de um vigor e uma inteligência pouco comuns, um homem com muita personalidade. Aquele corpo parcialmente submerso na banheira apresentava a mesma aparência e ao mesmo tempo não era ele absolutamente. De certo modo, não era já ninguém. A vontade e o intelecto se achavam em outra parte.

Pitt observou as mãos de Piers, magras e fortes. Podiam converter-se em mãos de cirurgião. Movia-as com instintiva profissionalidade, comprovando o grau de rigidez e a temperatura, apalpando o corpo em busca de uma ferida sem alterar nada. Que esforço devia lhe representar manter a calma? Tanto se sentia por ele um profundo amor como se não, estivessem ou não muito unidos, aquele homem era seu pai, uma relação única.

Pitt olhou atentamente ao redor, gravando na memória cada linha, cada aspecto e detalhe do que via. A água da banheira estava clara.

Onde demônios se colocou Tellman?

— Está morto desde ontem à noite - opinou Piers, fitando o pé — nisso é bastante claro. A água está fria. Cabe supor que estava quente quando se meteu na banheira. Isso terá atrasado umas horas a aparição do rigor mortis, mas provavelmente é um detalhe sem importância. - Ergueu-se e deu um passo atrás. Estava branco como o papel e lhe custava respirar. — É fácil deduzir o ocorrido. Tem um forte golpe na parte posterior da cabeça. Notei uma depressão no crânio. Deve ter escorregado ao entrar ou sair da banheira. -Evitava olhar o cadáver. — Possivelmente por causa do sabão. Não vi nenhum pedaço, mas há um pouco dissolvido na água. Provavelmente basta uma mínima quantidade para que se produza um acidente. Golpeou-se a cabeça e perdeu a consciência. Muita gente se afogou em uma banheira. Acontece com muita freqüência.

— Obrigado - disse Pitt, observando-o atentamente.

Aquela calma podia ocultar emoções quase insuportáveis; de um momento a outro podia dar passagem a um estado de choque.

— Naturalmente, terá que chamar a outro para estender o certificado de falecimento -se apressou a esclarecer Piers. — Não me aceitariam nisso, mesmo que não fosse seu... seu filho. - Engoliu a saliva. — Ainda não... não tenho o título.

— Compreendo-o.

Pitt estava a ponto de acrescentar algo quando bateram energicamente à porta. Abriu e entrou Tellman, que olhou primeiro ao Piers por um instante e depois ao cadáver da banheira. Finalmente se voltou para o Pitt.

— Posso ir já ver Justine? - perguntou Piers, observando ao Tellman com expressão carrancuda. Não entendia aquela intromissão por parte de um criado.

— É claro - respondeu Pitt. — E a sua mãe, claro está. Entendi que o senhor Doyle é seu irmão, não?

— Sim. Por que?

— Imagino que lhe ajudará com todos os preparativos necessários, mas agradeceria que me informassem antes de ficar em contato com qualquer pessoa fora do Ashworth Hall.

— Por que?

— Seu pai, como alto funcionário do governo, cumpria uma missão de caráter extremamente confidencial, em particular este fim de semana. Deveria notificar-se sua morte ao Ministério do Interior em primeiro lugar.

— Ah.... sim, claro. Não tinha pensado... - respondeu Piers. Se lhe surpreendeu que Pitt tomasse aquilo em consideração, absteve-se de fazer comentários. Ele provavelmente estava muito absorto em suas emoções para preocupar-se de tais trivialidades.

Assim que Piers saiu, Tellman se inclinou sobre a banheira para examinar com maior vagar o cadáver.

— Foi um acidente ou morreu por causas naturais? - perguntou com certo ceticismo na voz. — Não lhe parece estranho, depois de todos nossos temores e precauções?

Por pudor, Pitt pegou uma toalha e a estendeu sobre a metade inferior do corpo.

— Na aparência, escorregou, golpeou-se na cabeça com o bordo da banheira e perdeu a consciência - disse pensativamente.

— Afogou-se, pois? - Tellman observou o cadáver com o sobrecenho franzido.         — Suponho que sim. Mas me surpreende, tendo recebido antes ameaças.

Aproximou-se da pequena janela e a examinou. Era quadrada, de uns três palmos de lado, e se abria só até a metade. O quarto de banho estava a uma altura de vinte pés.

Pitt moveu a cabeça em um gesto de negação.

Tellman abandonou a idéia e retornou junto à banheira.

— Podemos movê-lo, ou há algum inconveniente? - perguntou.

— Teremos que fazê-lo, e muito antes de trazer um médico do vilarejo – afirmou Pitt. — Devo comunicarao Cornwallis, mas primeiro quero obter a maior informação possível.

Tellman soprou.

— Assim, não é preciso continuar simulando?

Pitt o olhou com um sorriso irônico.

— Sejamos discretos um momento mais. Levante-o e eu examinarei melhor a ferida da cabeça.

— Tem alguma suspeita? - disse Tellman, voltando-se para Pitt no ato.

— Simples cautela. Levante-o. Se puder, agarre o pelos braços e puxe para frente. Está muito rígido. Só quero ver a ferida.

Não muito contente com a tarefa, Tellman obedeceu, se irritando ao molhar as mangas.

Pitt observou de perto o golpe e logo apalpou suavemente o cabelo úmido com as pontas dos dedos. Como Piers havia dito, a concavidade do osso esmagado se percebia facilmente, uma fenda longa, arredondada e bastante longa na base mesma do crânio.

— Terminou já? - perguntou Tellman.

Pitt voltou a apalpar a ferida. Era reta, em extremo regular, aproximadamente da mesma largura que o bordo da banheira.

— O que acontece? - insistiu Tellman com impaciência. — Custa muito agüentá-lo! Está mais rígido que um pau, e escorregadio. Deve haver sabão na água.

— Nas banheiras costuma havê-lo - comentou Pitt. — Isso faz pensar que Piers tinha razão, mas provavelmente escorregou ao sair da banheira, não ao entrar.

— E isso que importância tem? - resmungou Tellman, cada vez mais molhado, e a água estava fria.

— Possivelmente nenhuma - admitiu Pitt. — Simplesmente dá mais verossimilhança. Refiro-me ao sabão, o fato de que a banheira esteja escorregadia.

— Deveria haver-se lavado em uma bacia, como todo mundo - grunhiu Tellman.       — Ninguém se afoga em uma bacia.

— Não coincide a forma - sussurrou Pitt.

Tellman estava a ponto de responder com um resmungo, mas se conteve ao reparar na expressão do Pitt.

— Que forma?

— A da ferida. Note: a borda da banheira é curva. A ferida, em troca, é reta.

— O que quer dizer? - perguntou Tellman, olhando-o com perplexidade.

— Não acredito que golpeou contra a borda da banheira.

— Com o que, pois?

Pitt se voltou e escrutinou o quarto de banho. Era amplo, de três metros por quatro. A banheira se achava no centro, frente à porta. Estava provido de dois toalheiros, uma tina e, junto a esta, um lavatório de porcelana azul e branca. Em uma mesa baixa havia um vaso e dois ou três objetos decorativos. Um biombo dobrado descansava contra a parede, perto da porta; devia usar-se para proteger a banheira das correntes de ar, mas pelo visto Greville não o tinha considerado necessário. Um grande espelho cobria boa parte de uma parede. No lado oposto do quarto havia uma mesa com a superfície de mármore, destinada às escovas para o cabelo e os potes com sais de banho e essências.

— Um desses, possivelmente? - sugeriu Pitt. — Talvez o de cor rosa. Parece do mesmo tamanho.

Levantou-se e se aproximou da mesa, deixando ao Tellman com o cadáver parcialmente erguido. Examinou o pote sem tocá-lo. A simples vista, não apresentava marca alguma nem manchas de sabão que indicassem que tinha sido utilizado. Rodeou-o com a mão experimentalmente. Era fácil agarrá-lo e tinha um peso considerável. Brandindo-o e aplicando a força suficiente, teria sido uma arma eficaz.

Levou-o a banheira e o apoiou cuidadosamente contra a base do crânio do Greville.

Era reto e a largura se correspondia com a da ferida.

— Assassinato? - aventurou Tellman com tom sério.

— Isso parece. Baixe-o lentamente e comprovarei se existe alguma possibilidade de que a borda da banheira e a forma da ferida coincidam.

Tellman obedeceu com visível esforço, encurvando os ombros para sustentar o peso e molhando ainda mais as mangas.

— E então? - perguntou com aspereza.

— Não - respondeu Pitt. — Não se golpeou contra a banheira. Essa ferida a causou este pote ou outro muito parecido.

— Vê-se algum sinal no pote? - disse Tellman. — Sangue? Cabelo? Tinha uma boa cabeleira, o pobre tipo. E não é que me fosse simpático!

Pitt fez virar o pote em suas mãos muito devagar, torcendo o gesto ao ouvir o comentário do Tellman.

— Não - anunciou por fim. — Mas isto é um quarto de banho; aqui não seria difícil limpar o pote. E em todo caso ninguém estranharia achar restos de sabão ou água em um pote de sais de banho. Muita gente deve tocá-lo com as mãos molhadas.

Tellman soltou o cadáver, e este deslizou para trás, rígido e pesado, inundando- se de novo e aparecendo os pés por cima da água.

— Entrou alguém e o golpeou pelas costas? - deduziu Tellman, pensando em voz alta.

— Greville está de frente à porta - indicou Pitt. — Assim, fosse quem fosse, ele não se alarmou. Não gritou, e permitiu que essa pessoa agarrasse o pote de sais e se aproximasse dele por detrás.

Tellman lançou um grunhido de ironia.

— Inconcebível! Que espécie de homem deixa entrar alguém no banheiro estando ele na banheira? É indecente, além de perigoso.

— Os cavalheiros não são tão pudicos como você - respondeu Pitt com tom mordaz. Percebia incredulidade e crescente desconcerto no rosto do Tellman. — Quem acredita que acrescenta água quente à banheira quando esfria?

— Não sei. Um valete? Um lacaio? Insinua que o matou um criado?

— Freqüentemente são as criadas quem levam a água e as toalhas quentes aos senhores - explicou Pitt. Notando a expressão do Tellman, acrescentou: — Não a mim. Eu sou tão pudico como você. Antes preferiria me banhar com água fria. Mas possivelmente Greville estava acostumado a que o servissem criadas.

— Uma criada entrou com um balde de água quente e lhe golpeou na cabeça com um pote de sais? - disse Tellman com visível ceticismo.

— A pessoa não se fixa nos rostos dos criados, Tellman - esclareceu Pitt com total seriedade. — Os criados se parecem muito entre si, sobre todos se levarem libré ou um simples vestido negro com avental e touca brancos. Em algumas casas inclusive se obriga aos criados de menor categoria a voltar o rosto para a parede quando se cruzam com um membro da família.

Tellman emudeceu de indignação, limitando-se a olhá-lo com uma expressão sombria nos olhos e com os lábios apertados.

— Poderia ter sido qualquer um, vestido de libré - concluiu Pitt.

— Um assassino profissional vindo de fora, quer dizer? - perguntou Tellman, erguendo o queixo.

— Não sei. Devemos interrogar a muitas pessoas. À hora em que Greville se banhava, todas as portas da casa tinham que estar fechadas com chave. E o pessoal externo vigiava os terrenos do imóvel.

— Falarei com todos - prometeu Tellman. — Pensa revelar nossa verdadeira identidade?

— Sim - respondeu Pitt. — Não fica alternativa.

— E que foi um assassinato?

— Sim.

Tellman endireitou os ombros.

— Terá que tirar o corpo daqui - decidiu Pitt. — Na casa deve haver um depósito de gelo. Peça a algum criado que o ajude a transladá-lo ali.

Quando Pitt abriu a porta, Jack aguardava no corredor. Seu atraente rosto, de olhos grandes e longas pestanas, apresentava uma carrancuda expressão pouco habitual nele, e as rugas que se formavam em torno de sua boca revelavam uma grande tensão.

— Terei que avisar ao Ministério do Interior - disse com tom lúgubre, e saudou o Tellman com a cabeça quando passou junto a eles em direção à escada. — E lhes perguntar o que se propõem fazer. Suponho que isto é o final da conferência e qualquer esperança de êxito. - Baixando a voz, acrescentou: — Maldita seja! Que desgraça tão inoportuna! Dá a impressão de que o diabo tenha um interesse real na Questão Irlandesa. Precisamente quando existia uma autêntica esperança. - Cravou no Pitt o olhar. — Greville era um homem de grande valia, você sabe. Tinha conseguido que ao menos Doyle e O’Day falassem de assuntos importantes. Havia esperanças!

— Sentindo muito, Jack, trata-se de algo ainda pior. - Inconscientemente, Pitt apoiou uma mão no braço do Jack. — Não foi um acidente. Assassinaram-no.

— Como? - disse Jack, olhando-o como se se negasse a compreender suas palavras.

— Foi um assassinato - repetiu Pitt em um sussurro, — cometido de modo que parecesse um acidente. A maioria das pessoas o teriam aceito como tal, e suponho que o responsável contava com que a polícia demoraria mais em chegar ao lugar do crime, ou não apareceria sequer.

— O que... o que ocorreu?

— Alguém entrou, deu-lhe um golpe na parte posterior da cabeça, possivelmente com um pote de sais de banho, e depois o afundou sob a água. Na aparência, tinha escorregado ao sair da banheira e se golpeou contra a borda.

— E está certo de que não foi assim? - perguntou Jack, resistente a admiti-lo.          — Completamente seguro? Como sabe que não foi uma queda acidental?

— Porque a fenda no osso é reta, e a borda da banheira, curva.

— Isso é uma prova conclusiva? - insistiu Jack. — Têm que coincidir com toda exatidão a forma da ferida e a do objeto?

— Não, mas não pode dar uma diferença tão grande. Um objeto curvo deixa uma fenda curva quando golpeia com força suficiente para fraturar o osso.

— Quem foi? - perguntou Jack, imaginando imediatamente o pior. — Uma das pessoas que está na casa?

— Não sei. Tellman foi em busca de ajuda para transladar o cadáver ao depósito de gelo; depois indagará se existe alguma possibilidade de que entrasse alguém de fora, mas não é provável.

— Não concebo que Greville deixasse entrar um desconhecido no quarto de banho sem dar a voz de alarme - disse Jack tristemente. — De fato, que razão poderia aduzir-se para interromper a um homem durante o banho?

— Bom, se eu desejasse entrar sem despertar suspeitas, vestir-me-ia de criado - sugeriu Pitt, pensando enquanto falava. — Levaria uma jarra de água quente ou um par de toalhas.

— Claro. Portanto, poderia ser qualquer um.

— Sim.

— O que vai fazer? - quis saber Jack.

— Me vestir, me pôr em contato com Cornwallis e depois, suponho, iniciar uma investigação. Onde está o telefone?

— Na biblioteca. Melhor será que eu vá ver Emily. - Um vislumbre de inquietação contraía seu rosto e uma risada amarga aparecia em seus olhos. — Meu Deus, e eu que ontem achava que as coisas já não podiam ir pior!

Sem responder, Pitt retornou a seu quarto. Charlotte não estava ali. Devia ter ido oferecer consolo a Kezia ou talvez ajudar Emily. Barbeou-se apressadamente e se vestiu. A seguir desceu à biblioteca e pediu a telefonista que o comunicasse com o escritório do subchefe de polícia de Londres.

— Pitt? - respondeu Cornwallis. Sua voz clara e pessoal revelava já um tom de preocupação.

— Sim, senhor. - Pitt titubeou por um instante, temeroso de dar a notícia, prova de seu fracasso. — Infelizmente ocorreu o pior...

O outro extremo da linha ficou em silêncio. Ao cabo de um momento, Pitt ouviu a respiração do Cornwallis.

— Greville?

— Sim, senhor - respondeu Pitt. — Na banheira, ontem à noite. Não o descobrimos até esta manhã.

— Na banheira?

— Sim.

— Um acidente? - Por seu tom de voz, Cornwallis parecia desejar que essa fosse a causa. — Um ataque de coração?

— Não.

— Tem certeza?

— Sim.

— Quer dizer que alguém o matou? Sabe quem foi?

— Não - admitiu Pitt. — Neste ponto, virtualmente ninguém está livre de suspeita.

— Entendo - disse Cornwallis. Depois de uma breve hesitação, perguntou: — O que tem feito até o momento?

— Uma vez estabelecido o juízo médico, pelo que seu filho pôde me dizer...

— O filho de quem?

— O filho do Greville. Chegou anteontem de improviso para anunciar a seus pais seu compromisso de bodas, e ontem se apresentou aqui sua noiva.

— Que tragédia! - exclamou Cornwallis com sincero pesar. — Pobre moço. É médico, pois?

— Está a ponto de terminar seus estudos em Cambridge. Na realidade, não havia muito que dizer.

— A hora da morte? A causa?

— A hora fica determinada pelo fato mesmo de morrer na banheira - explicou Pitt.     — A causa, um golpe na cabeça com um objeto contundente de forma arredondada, provavelmente um pote de sais de banho, e a posterior imersão até que pereceu afogado.

— Encontrou-o submerso na água?

— Sim.

— Já vejo.

A linha ficou de novo em silêncio.

— Senhor? - disse Pitt.

— Sim - respondeu Cornwallis com resolução. — Encarregue-se da investigação, Pitt. Conta com a colaboração do Tellman. Se for possível, evite no momento que a notícia se difunda. O caso de divórcio Parnell-O’Shea está quase em seu ponto culminante. Se o tribunal falhar contra Parnell, poderia arruinar sua carreira. Os nacionalistas irlandeses ficariam sem líder... até que encontrassem a um substituto, que bem poderia ser algum dos homens reunidos agora no Ashworth Hall. O que disse a essa gente?

— Ainda nada, mas terei que lhes informar.

— Onde está Radley?

— Com Emily - respondeu Pitt.

— Diga-lhe que me telefone. A conferência deverá interromper-se provisoriamente, embora só seja por consideração. Mas tampouco convém abandonar se existir um mínima possibilidade de seguir adiante.

— Sem o Greville? - disse Pitt, desconcertado.

— Por-me-ei em contato com o Ministério do Interior. Não deixe sair daí ninguém.

— É claro.

— Não será necessário recorrer à força para mantê-los aí: partir seria um suicídio diplomático. Mas se requerer ajuda da polícia local, está autorizado a solicitá-la. Diga ao Radley que me telefone dentro de meia hora.

— Sim, senhor.

Quando Pitt pendurou o aparelho, sentiu-se vazio e só.

O único objetivo de sua presença no Ashworth Hall era proteger a vida do Greville. Seu fracasso dificilmente poderia ter sido mais absoluto. E não tinha a menor idéia de quem o tinha matado. Teria sido melhor ficar em Londres procurando o assassino do Denbigh.

Saiu da biblioteca e subiu de novo ao piso superior. Charlotte continuava sem aparecer. Possivelmente estava ainda ajudando Emily a manter uma aparência de ordem entre os convidados, que conheciam já a morte do Greville mas ignoravam que não tinha sido um trágico acidente... todos salvo talvez um deles.

Viu sair de um quarto o jovem valete irlandês do Lorcan McGinley, com uma jaqueta pendurada no braço e umas botas na mão. Estava muito pálido.

— Sabe onde posso achar ao criado pessoal do senhor Greville? – perguntou Pitt.

— Sim, senhor. Cruzei-me com ele não faz nem dois minutos. Vi-o preparando uma xícara de chá. - Assinalando o caminho, acrescentou: — Duas portas mais à frente nessa direção.

Pitt lhe agradeceu e, seguindo suas indicações, chegou ao pequeno quarto provido de um bule e um fogão de gás. O homem que os utilizava nesse momento tinha por volta de quarenta e cinco anos e se mostrava de modo geral circunspeto e muito dono de si mesmo. Estava belamente penteado, com o cabelo alisado e sem uma só mecha caída sobre a fronte, e levava no pescoço um laço com um nó impecável; entretanto, era claro que se sentia indisposto. Sobressaltou-se quando ouviu a voz do Pitt e quase derramou a jarra de água quente que segurava.

— Desculpe - disse Pitt. — Como se chama?

— Wheeler, senhor. Posso lhe oferecer algo?

— Sou delegado de polícia, Wheeler. Encarregaram-me que investigue a morte do senhor Greville.

Wheeler deixou a jarra para não derramar a água. Tremiam-lhe as mãos. Lambeu os lábios.

— Sim.... senhor?

— A que horas preparou ontem à noite o banho para o senhor Greville? – perguntou Pitt.

— Às dez e vinte e cinco, senhor.

— E sabe se o senhor Greville foi banhar se imediatamente?

— Sim, senhor, ao cabo de um momento. Incomoda-lhe muito... incomodava-lhe muito achar frio o banho, e a água se esfria depressa em um quarto de banho grande.

— Viu-o você entrar?

Wheeler franziu o sobrecenho.

— Sim, senhor. Há algum problema, senhor? Conforme ouvi, escorregou ao sair da banheira. - Fechava e abria as mãos uma e outra vez. — Eu deveria ter estado ali. Sinto-me culpado. Não solicitou minha ajuda, mas se tivesse estado com ele, não teria escorregado.

Pitt refletiu por um instante e decidiu que de nada serviria ocultar a verdade.

— Não escorregou. Alguém lhe golpeou.

Wheeler o olhou com assombro, como se não entendesse o que acabava de ouvir.

— Quanto tempo passa normalmente na banheira o senhor Greville antes de sair ou pedir mais água quente? - perguntou Pitt.

— Como? Intencionalmente, quer dizer? - Wheeler ergueu a voz. — Quem cometeria uma atrocidade semelhante? Um desses malditos irlandeses! – Sua respiração se tornou ofegante quando compreendeu plenamente o sentido das palavras do Pitt. — Eles o assassinaram! O que vai fazer? Detê-los?

— Não até que saiba o que ocorreu - respondeu Pitt com discrição.

— Esses canalhas assassinos! Tinham-no tentado já uma vez, sabia? Uma, que eu saiba - prosseguiu Wheeler, erguendo cada vez mais a voz, incapaz de controlar-se.

Pitt apoiou uma mão em seu braço com firmeza.

— Averiguarei quem é o culpado e o deterei - prometeu. — Mas necessito de sua ajuda. Deve conservar a calma e pensar com clareza. Tudo o que você viu e ouviu pode ser de vital importância.

— Deveriam pendurá-los - resmungou Wheeler.

— Certamente assim se fará - respondeu Pitt sem a menor complacência.— Quando os descobrirmos e demonstrarmos sua culpa. Quanto tempo passa normalmente na banheira o senhor Greville antes de sair ou pedir mais água quente? Pediu ontem mais água?

Com um notável esforço, Wheeler conseguiu controlar-se.

— Não, senhor. Não o tinha por costume, e menos ainda quando se banhava de noite. Não demorava mais de quinze minutos em sair. Não gostava dos banhos longos, salvo quando montava a cavalo, que não era freqüentemente. Se cavalgava um dia inteiro, aliviava a dor de ossos com um bom banho quente.

— Assim, unicamente puderam encontrá-lo só no banheiro durante um espaço de tempo de uns quinze minutos - deduziu Pitt. — Neste caso, aproximadamente entre as dez e vinte e cinco e as onze menos vinte, não?

— Sim, senhor; assim é.

— Tem certeza? Por que recorda a hora com tal exatidão?

— É meu trabalho, senhor - respondeu Wheeler. — Não é possível atender devidamente a um cavalheiro sem uma adequada organização.

— Não percebeu, entretanto, que não tinha saído do quarto de banho?

Wheeler se via muito aflito.

— Não, senhor. Era tarde e estava cansado. Sabia que o senhor Greville não pediria mais água porque nunca o fazia, assim desci para lhe limpar as botas que acabava de tirar e a escovar a jaqueta para que estivessem a ponto pela manhã. Tinha já feitas todas as tarefas do dia. - Olhou fixamente ao Pitt. — Quando voltei a subir, era já mais tarde que o que pensava. Não encontrei a bandeja ante a porta do banho. Alguém a devia ter retirado .Às vezes ocorre em uma casa grande com muitos convidados. Tinha transcorrido muito mais tempo do que o senhor Greville estava acostumado a passar no banheiro. Bati na porta e não responderam. Depois fui a seu quarto, e quando vi que não estava, supus... -ruborizou-se ligeiramente. — Supus que tinha ido ao quarto da senhora Greville, senhor.

— Uma hipótese razoável - disse Pitt com uma ameaça de sorriso. — Ninguém esperaria que fosse comprovar isso. Que hora era então?

— Faltavam dez minutos para as onze, senhor.

— A quem mais viu no patamar da escada ou no corredor?

Wheeler se esforçou por recordar. Pitt percebeu em seu semblante o desejo de culpar a alguém, mas rebuscar na memória não lhe serviu de nada e foi incapaz de mentir.

— Vi essa mocinha miúda, a criada da senhora Pitt, dirigir-se para a escada de serviço - declarou por fim. — E vi também o jovem valete do senhor McGinley, Hennessey. Estava na porta de um dos quartos desse corredor. - Apontou com a mão. — Acredito que era a do senhor Moynihan.

— A alguém mais?

— Sim, o senhor Doyle me deu boa noite e partiu para seu quarto. A ninguém mais.

— Obrigado.

Pitt foi em busca do Jack. Devia lhe transmitir a mensagem do Cornwallis. Provavelmente nesse momento Jack tratava por todos os meios de salvar o aspecto conciliador da conferência e Emily fazia frente à catástrofe doméstica que representava uma morte, a dolorosa perda de um dos convidados.

Encontrou Gracie no vestíbulo, pálida e com os olhos arregalados. Percebia-se temor no forçado e um tanto orgulhoso ângulo da cabeça. Atrás dela viu a figura esbelta do valete do McGinley. Pitt sorriu a Gracie, e ela se esforçou em lhe devolver o sorriso, como se tudo estivesse sob controle e soubesse que ele resolveria o problema cedo ou tarde.

Pitt passou ante a porta aberta da sala de jantar e deu uma olhada dentro. Ali estava Charlotte, de pé e imóvel, escutando a Iona, que passeava de um lado a outro e falava em sussurros com aparente apresso.

Charlotte olhou ao Pitt e moveu quase imperceptivelmente a cabeça em um gesto de negação. Depois se aproximou da Iona.

Pitt achou Jack em seu escritório ante um montão de papéis. Acabava de fechar a porta quando voltou a abrir-se e apareceu Emily. Estava alterada, com as faces acesas e o cabelo, em geral muito cuidado, penteado precipitadamente, como se não tivesse podido ficar quieta enquanto a criada a arrumava. A julgar por sua expressão, sabia já que a morte do Greville tinha sido um assassinato. Seus sentimentos eram uma mescla de pesar e raiva.

Jack aguardou que Pitt falasse.

— Cornwallis me pediu que me ocupe da investigação - anunciou Pitt, olhando ao Jack. — Pode lhe telefonar dentro de quinze minutos? Para então já se pôs em contato com o Ministério do Interior. No momento todo mundo deve ficar aqui...

Emily deixou escapar um gemido e se colocou junto ao Jack.

— Sinto muito - se desculpou Pitt. — Sei que será muito desagradável, mas não posso deixar partir ninguém. A menos que entrasse alguém de fora, e Tellman está já fazendo averiguações a esse respeito, o culpado teve que ser alguém da casa.

— Inclusive se entrou alguém de fora, poderia estar implicada alguma pessoa da casa - corrigiu Jack com tom lúgubre, pegando Emily pelo braço. — Não fica alternativa, querida; devemos fazer todo o possível por descobrir a verdade quanto antes. Ao menos a senhora Greville tem aqui a seu irmão e seu filho para atendê-la. Poderia ter sido pior. E Charlotte te ajudará com os outros. - Voltou-se para Pitt. — Suponho que já não há perigo, não?

Emily se retesou.

Pitt hesitou por um instante. Não era possível tomar maiores precauções, e assustá-los não serviria de nada.

— No momento não, certamente. E faremos quanto esteja em nossas mãos para resolver logo.

Emily o olhou com incredulidade.

— Por onde vai começar?

— Bom, pela declaração de seu valete, sabemos que o mataram entre as dez e vinte e cinco e onze menos vinte de ontem à noite...

— E é isso confiável? - interrompeu-o Jack.

— O criado estava há dezenove anos ao serviço do Greville. Mas pedirei ao Tellman que o verifique. Não será difícil comprovar a que hora subiu a água quente para o banho. E Greville não poderia haver ficado na banheira mais de quinze minutos sem pedir mais água quente.

— Por que o mataram no quarto de banho? - disse Jack com expressão compungida. — Pobre homem, parece acrescentar indignidade a sua morte.

— Era o lugar onde mais probabilidades tinha que encontrá-lo a sós - replicou Emily, que começava a recuperar-se do desgosto e pensar com clareza. — E indefeso. Em qualquer outra parte teria estado com seu valete, com alguém que desejasse comentar algum assunto à parte, ou com a Eudora. O quarto de banho é o único lugar onde uma pessoa está sozinha, e com a porta aberta se por acaso for preciso mais água. Se para-se para pensar nisso, tem sua lógica. Não entrou ninguém alheio à casa, não é, Thomas? -disse com total certeza. — Foi alguém de dentro que escolheu muito bem o momento.

— Recordam onde estavam a essa hora? - perguntou Pitt.

— Eu em meu próprio banho - respondeu Jack com um calafrio.

— Não conhece, pois, o paradeiro de ninguém nesse momento?

— Não. Sinto muito.

— E você, Emily?

— Em meu quarto, com a porta fechada. Depois de um dia tão horroroso... - Esboçou um tenso sorriso, pensando possivelmente no dia anterior. Imediatamente se concentrou de novo no presente e acrescentou: — Estava cansada. Tampouco sirvo-lhe de ajuda, sinto muito.

Jack ergueu a vista.

— Não esqueça de telefonar ao Cornwallis - recordou Pitt com um fugaz sorriso.

Ao sair do escritório, esteve a ponto de tropeçar com o Tellman.

— Nenhuma entrada forçada - deduziu, vendo a expressão do Tellman.

— Nenhuma - confirmou Tellman.

Pitt lhe informou de suas averiguações sobre a hora da morte.

— Isso delimita um pouco a investigação - comentou Tellman, já mais animado. No mínimo voltava a dedicar-se a seu verdadeiro trabalho e não às tarefas de um criado.

Pitt o via em seus olhos.

— Deixaremos à senhora Greville para o final, assim terá tempo de serenar-se um pouco - disse Pitt. Interrogar aos seres queridos de uma vítima era uma das piores partes de qualquer investigação. Desta vez ao menos não se via na obrigação de comunicar a notícia. Além disso, o crime tinha um móvel político, não pessoal, e portanto Eudora não corria o risco de descobrir turvas relações e segredos. Não se produziria nenhuma revelação pública motivo de desonra. — Vá ver o que pode averiguar através dos criados.

Tellman apertou os dentes.

— Terei que lhes dizer quem sou! - respondeu, desafiando ao Pitt com o olhar a ordenar o contrário.

Pitt assentiu com a cabeça, e Tellman se retirou relativamente satisfeito.

Pitt foi em busca do primeiro convidado ao qual desejava interrogar. Ao passar ante a sala de jantar já não viu Charlotte nem Iona.

Subiu lentamente pela escada e bateu na porta dos aposentos dos McGinley. Ao ouvir Lorcan responder, abriu e entrou. Iona tinha retornado e se achava de pé junto à janela, na aparência muito mais sossegada que minutos antes na sala de jantar. Lorcan estava sentado ante a pequena mesa de centro, sobre a qual havia uma bandeja de café da manhã. Tinha comido bem a julgar pelo prato vazio.

— Que deseja, senhor Pitt? - perguntou Lorcan com frieza. Seu enxuto rosto, de olhos muito azuis, transbordava energia nervosa. Tinha os olhos afundados e rugas junto às comissuras dos lábios. Até esse momento Pitt não se deteve a pensar no enorme peso da responsabilidade que recaía em cada um dos representantes dos diferentes interesses sectários, e das críticas que posteriormente deveriam suportar à margem do que conseguissem ou deixassem de conseguir. E de repente, com a morte do Greville, todos seus esforços tinham sido em vão. A conferência terminaria indevidamente em fracasso e esperanças defraudadas.

— Vejo-me no triste dever de lhes comunicar uma desagradável noticia - disse Pitt, olhando ao Lorcan e Iona alternativamente-. Sou...

— Já sei que Greville morreu. - Lorcan ficou em pé, quase desdobrando-se. Era em extremo magro. É o final da conferência. Já não há nada que fazer. Um desastre mais. Deveríamos estar acostumados, mas cada um dói tanto como o anterior.

— Eu não vejo assim as coisas, senhor McGinley - respondeu Pitt. — Poderia buscar-se outro moderador...

— Tolices! Não necessito de seu consolo, senhor Pitt. É impossível achar um substituto a estas alturas, até se houvesse alguém com o valor e a perícia do Ainsley Greville.

— Com seu mesmo valor, seria difícil, certamente - concordou Pitt. — Sobretudo quando se souber, e se saberá, que o senhor Greville morreu assassinado.

Iona ficou como pedra, e em seus olhos arregalados se percebeu de repente verdadeiro temor.

Lorcan ergueu lentamente a vista para olhar ao Pitt, como se pensasse o que devia dizer-se em tais circunstâncias.

— De onde tirou isso? - perguntou. — E quem demônios é você para apresentar-se aqui e afirmar uma coisa semelhante?

— Sou policial, e o vi com meus próprios olhos.

Lorcan não afastou o olhar de Pitt.

— É isso... verdade?

— O que vai fazer? - perguntou Iona. — Entrou alguém na casa apesar de tudo? Achava que havia homens apostados no imóvel para assegurar-se de que não existia nenhum perigo. Foram os protestantes. Não querem que consigamos a independência. Não é a primeira vez que acontece. Quando não podem vencer com a razão ou a lei, assassinam-nos. Bem sabe Deus que o sangue dos mártires empapa a terra da Irlanda...

— Acalme-se - interrompeu-a Lorcan. — Se o senhor Pitt for policial, sem dúvida é de lamentar que não tenha conseguido proteger ao Greville; mas assim as coisas, não nos corresponde lançar acusações contra ninguém. Mantém, pois, a boca fechada. Não é muito pedir, acredito... a menos, claro está, que saiba algo que deva dizer ao senhor Pitt. -Torceu o gesto. — Onde estava seu amigo Moynihan, por exemplo. - Sua voz destilava sarcasmo e crueldade, mas Pitt não podia lhe jogar a culpa.

Iona se ruborizou de ira mas não replicou.

— A que horas se retirou ontem à noite? - perguntou Pitt.

— Não ouvi nada - respondeu Lorcan.

— Não se forçou nenhuma entrada - informou Pitt. — Alguém da casa matou ao senhor Greville. A que hora se retirou, senhor McGinley?

— Por volta das dez e quinze - disse Lorcan com um olhar frio e desafiante. — Depois não voltei a sair do quarto. - Voltou-se para sua esposa, aguardando sua resposta.

— Estava só? - insistiu Pitt sem esperanças de obter uma resposta útil. Uma mulher não podia ser obrigada a testemunhar contra seu marido, e uma declaração dela não corroborada carecia de valor.

— Não - respondeu Lorcan com brusquidão. — Hennessey, meu valete, esteve aqui comigo durante um momento.

— Recorda quando?

— Das dez e quinze até as onze menos dez aproximadamente - respondeu Lorcan.

— Recorda-o com muita exatidão.

— Há um relógio de pé no corredor - explicou Lorcan. Daqui ouço dar as horas.

— É muito tempo para reter aqui seu valete - observou Pitt. — Por que permaneceu no quarto mais de meia hora?

Lorcan parecia um tanto surpreso, mas não se atrasou em responder.

— Falamos de uma jaqueta de caça que tenho. É um objeto pelo qual sinto muito apego. Hennessey opina que deveria substituí-la. Falamos também dos méritos relativos dos camiseiros de Londres e Dublin.

— Entendo. Obrigado.

— Serve-lhe de algo?

— Sim, obrigado. Senhora McGinley?

— Estava em meu quarto. - Olhou friamente para Pitt. — Minha criada ficou durante um momento. Ajudou-me a tirar o vestido e me preparar para ir dormir.

— Sabe a que hora partiu a criada?

— Não. Mas se tivesse visto algo, o diria. Não vi nada.

Pitt não insistiu mais. Não havia motivos para duvidar da palavra da Iona.. Não obstante, contrastaria com o Hennessey a declaração do McGinley. Agradeceu-lhes e foi ver o Fergal Moynihan.

Encontrou-o só na sala de bilhar. Estava abatido e de muito mau humor.

— Polícia? - repetiu irado quando Pitt desvelou sua identidade. — Acredito que deveria ter sido um pouco mais franco conosco, delegado. O engano era desnecessário.

Pitt não se incomodou em dissimular um sorriso.

Fergal se ruborizou, mas Pitt teve a impressão de que se devia mais à indignação que ao embaraço. Talvez o tinha desconcertado ver-se surpreso publicamente com Iona McGinley, mas não se envergonhava de seus sentimentos por ela. Mas os defendia ou inclusive se orgulhava. Essa atitude formava parte de um profundo amor.

Só podia demonstrar seu paradeiro durante uma fração do período de tempo estabelecido como provável hora da morte. Tinha tido a oportunidade de abandonar seu quarto sem ser visto e ir até o quarto de banho do Greville.

— Mas não o fiz - declarou com firmeza.

A seguir Pitt interrogou a O’Day.

Estava de pé frente à lareira, com as mãos nos bolsos. Embora não fizesse comentário algum sobre o fracasso do Pitt, a recriminação se adivinhava em seu semblante, calculadamente inexpressivo.

— Não sei no que posso lhe ajudar. Afirma que não foi um acidente? Insinua, portanto, que o assassinaram?

— Sim, infelizmente.

— Entendo. Ignoro quem o matou, delegado. O motivo, em troca, é claro. A conferência tinha grandes probabilidades de êxito. Muitos elementos das facções nacionalistas mais radicais e violentas se opõem a qualquer pacto.

— Refere-se aos grupos que representa o senhor Doyle ou aos adeptos do senhor McGinley? - perguntou Pitt. — Ou suspeita acaso que outras facções podem ter infiltrado a alguém entre a criadagem de um dos dois, que um deles, sem sabê-lo, deu emprego a um feniano como valete?

— Não existe razão alguma para que um feniano não possa ser também valete, delegado.

— Não, naturalmente. Que interesse podem ter em que fracasse a conferência?

O’Day sorriu.

— Quanto a política, é você um ingênuo, delegado. Qualquer acordo é forçosamente uma transação. Há quem consideraria uma traição qualquer concessão ao inimigo, por mínima que fosse.

— Então por que vieram aqui? - perguntou Pitt. — Isso por si só será visto como uma traição por seus seguidores.

— Com efeito - assentiu O’Day. — Mas nem todo mundo é o que parece ou quer aparentar. Não sei quem matou ao Greville, mas se posso lhe ajudar a averiguá-lo, farei quanto esteja em minhas mãos. Embora com a conferência definitivamente cancelada, duvido que o caso possa resolver. -Tinha a pele firme e mais cinzenta do que a Pitt tinha parecido com luz artificial, e oferecia aspecto de cansaço e decepção, como se seus esforços tivessem sido inúteis e o tivessem deixado exausto.

— Possivelmente não se cancele - respondeu Pitt. — Whitehall tem ainda que pronunciar-se.

O’Day esboçou um amargo sorriso. As emoções de toda uma vida se ocultavam atrás de sua expressão, apaixonada, complexa, inescrutável.

-Cancelar-se-á, senhor Pitt. Me diga, quando e como mataram ao Greville? Inicialmente achava que tinha escorregado ao sair da banheira, e agora afirma você que não foi assim.

— Golpearam-lhe quando se achava ainda dentro - explicou Pitt. — E depois provavelmente o mantiveram submerso na água. Seu valete, segundo ele mesmo declarou, preparou o banho às dez e vinte e cinco, e o senhor Greville não demorou mais de cinco minutos para entrar. Não teria ficado mais de dez ou quinze minutos na banheira sem pedir mais água quente, coisa que não tinha por costume. Quando Wheeler voltou a subir às onze menos quarto depois de realizar umas tarefas, bateu na porta do quarto de banho. Como não recebeu resposta, deu é claro que o senhor Greville se deitara. Agora sabemos que estava já morto.

— Entendo. Assim, mataram-no aproximadamente entre as dez e quinze e as onze menos quarto.

— Provavelmente ao redor das dez e meia. Havia restos de sabão na água, assim teve tempo de começar a lavar-se.

— Entendo - repetiu O’Day. Mordeu o lábio em um indício de sorriso, como zombando de si mesmo. — Por desgraça, posso dar conta ao menos do paradeiro a essa hora do valete do McGinley e do próprio McGinley, o que é irritante. Quando me dirigia a meu quarto pelo corredor, vi o McGinley e a seu valete na porta. Continuaram ali no mínimo vinte minutos. Sei porque deixei aberta minha porta e ouvi a conversa. Falavam de camiseiros. Devo admitir que escutei com certo interesse. Admiro as camisas do McGinley, embora eu não gostaria que se inteirasse.

Pitt não pôde evitar sorrir. Percebia claramente a frustração de O’Day. Por outra parte, sua informação corroborava a declaração do McGinley. Pelo menos reduzia em três o número de suspeitos, e eram três que não tinham o menor desejo de proteger-se entre si.

— Obrigado - disse com sinceridade. — Seu testemunho me é de grande ajuda.

O’Day grunhiu e mordeu de novo o lábio.

Kezia ficou horrorizada quando Pitt lhe pôs à corrente enquanto passeavam pelo caminho de cascalho, notando em seus rostos o ar úmido. Cheirava a terra recém removida, folhas molhadas e grama cortada. Ela se voltou no ato para o Pitt com um brilho no olhar e sem cor nas faces.

— Está certo? – perguntou. — Não pode haver-se equivocado?

— Quanto à ferida não, senhorita Moynihan.

— Mas se equivocou ao princípio! Faz um momento achava que era um acidente. Quem o induziu a pensar que não o é?

— Ninguém - respondeu Pitt. — Ao examinar mais atentamente o cadáver vi que a ferida não podia dever-se a um golpe contra o bordo da banheira.

— É você médico?

— Parece-lhe impossível que se trate de um assassinato?

— Não - respondeu Kezia, desviando o olhar; — mas tomara o fosse.

Sua declaração não contribuiu com nada de novo. A essa hora se achava em seu quarto, só salvo pelas idas e vindas de sua criada.

Tellman se aproximou do Pitt quando retornava à casa.

— Hennessey diz que estava na porta da habitação do McGinley falando com ele de camisas - informou com tom sério. — Além disso, viu O’Day em seu quarto. Isso exclui os três. A declaração do Wheeler é confiável. Um lacaio e uma doméstica o viram abaixo, e não pôde voltar a subir a tempo de cometer o assassinato. Corroboraram também a hora a que se levou a água quente.

— E os outros criados? - perguntou Pitt enquanto subiam pela escadaria para o terraço de pedra.

Tellman olhava à frente com determinação, a majestosa balaustrada de pedra e a enorme fachada da casa.

— As criadas estavam acima, claro. Conforme parece, nenhuma das mulheres sabe tirar sozinha a roupa.

Pitt sorriu.

— Se estivesse casado, Tellman, saberia o que isso implica e por que lhes é tão difícil fazê-lo sozinhas.

— Ninguém deveria levar roupa que não é capaz de vestir e tirar – replicou Tellman.

— Isso é tudo?

Pitt abriu a porta, entrou primeiro e a deixou ir. Tellman parou o golpe.

— Sua Gracie estava no patamar da escada a essas horas. Viu dirigir-se a seu quarto o Moynihan ao redor das dez e dez, e viu descer Wheeler à hora que ele disse. Quando ela retornava com água quente por volta das dez e meia, cruzou com uma criada que levava umas toalhas.

— Que criada?

— Não sabe. Só a viu de costas. Mas todas as criadas estão descartadas. Nenhuma se ausentou de suas obrigações. Greville não foi assassinado por um intruso nem por um criado.

Pitt não respondeu. Era o que previa... e temia. Não podia adiar já mais a conversa com a família do Greville. Deu instruções ao Tellman para que continuasse indagando e contrastasse as versões dos valete e as criadas e depois subiu ao piso superior em busca de Justine.

Achava-se na pequena sala de estar contígua aos quartos de convidados da ala norte. Acompanhava-lhe Piers, visivelmente desassossegado. Este ergueu a vista assim que apareceu Pitt e o olhou com expressão interrogativa.

— Desculpem a intromissão, mas preciso saber algumas coisas - disse Pitt.

— Naturalmente - respondeu Piers, e fez gesto de levantar-se. — Não há necessidade de inquietar à senhorita Baring com os detalhes. Irei com você a outra parte.

Pitt permaneceu na porta, cortando a passagem.

— Não se trata de detalhes médicos, senhor Greville, precisou, mas sim de simples informação - esclareceu Pitt. — E deverei fazer também algumas pergunta à senhorita Baring.

— Por que? - Piers fixou nele o olhar, pressentindo ainda piores notícias. — É claro... - interrompeu-se.

— Lamento ter que dizer-lhe senhor Greville, mas a morte de seu pai não foi um acidente - explicou Pitt com delicadeza. — Sou policial.

— Policial! - exclamou Justine, sobressaltada, e imediatamente levou uma mão à boca. — Sinto muito. Pensava... - voltou-se para Piers. — Sinto muito!

Piers se aproximou mais a ela.

— Estava aqui para protegê-lo - prosseguiu Pitt. — Por desgraça, fracassei. Agora devo averiguar o que ocorreu e quem foi o autor do crime.

Piers não saía de seu assombro.

— Quer... quer dizer que... que o mataram intencionalmente? Mas como? Golpeou- se contra a banheira. Eu vi a ferida.

— Você viu o que se pretendia fazer passar por um acidente - retificou Pitt. Lançou uma olhada a Justine. Estava muito pálida e imóvel, mas olhava ao Piers, não ao Pitt. Depois do primeiro arranque de emoção não revelou o menor sinal de histeria ou desmaio.

— Sabiam já que existia risco de... assassinato? - Ao Piers não foi fácil pronunciar a palavra. — Por que veio aqui meu pai, pois? Por que não...?

Justine ficou em pé e apoiou uma mão no braço dele.

— A pessoa pode fazer só o que está a seu alcance, Piers. Dificilmente ia o senhor Pitt acompanhar seu pai ao quarto de banho. - Olhou ao Pitt. — Entrou alguém na casa?

— Não. Foi alguém hospedado aqui. Meu sargento o comprovou. Todas as portas e janelas estavam fechadas por dentro e há homens de vigilância nos arredores da casa noite e dia. Além disso, o guarda-florestal patrulha com os cães.

— Alguém da casa? - Piers ficou perplexo. — Um dos convidados, quer dizer? Previam que isto pudesse ocorrer? São todos irlandeses, agora caio na conta, mas realmente... - interrompeu-se de novo. — Isto era uma reunião política? É isso? E eu, sem saber, vim me colocar onde não me chamavam?

— Eu não o teria expresso com tal contundência, mas sim, assim é. Onde estava você à hora em que morreu seu pai, senhor Greville?

— Em meu quarto. Infelizmente não ouvi nada - respondeu Piers. Não concebeu sequer que Pitt pudesse suspeitar dele. Considerava que sua própria inocência estava fora de toda dúvida, e Pitt se sentiu inclinado a pensar o mesmo. Agradeceu a ambos e foi realizar o último e pior dos interrogatórios.

Bateu na porta do quarto de Eudora e respondeu Doyle. Parecia extenuado apesar de ser apenas meia amanhã. Tinha o cabelo alvoroçado e a gravata um pouco torcida.

— Ainda não me pus em contato com ninguém para iniciar os preparativos – disse ao ver Pitt. — Pedirei a Radley que mande trazer o médico do vilarejo. Não é necessário avisar ao próprio médico de cabeceira do Ainsley. A situação é tragicamente óbvia. Não obstante, enviarei uma mensagem a seu pároco. Deveria enterrá-lo no panteão familiar. Temo que isto é o final de nossos esforços para conseguir a paz da Irlanda, ao menos de momento. Terá que dispor tudo para que os convidados possam voltar para suas casas. Eu acompanharei a minha irmã.

— Ainda não, senhor Doyle. Por desgraça, apesar da causa da morte parecer evidente, não o era tanto. Foi um assassinato, e o subchefe de polícia Cornwallis me encarregou da investigação.

— Em qualidade do que tomou essa decisão? - perguntou Doyle com cautela. — Quem é você, senhor Pitt?

— O delegado do Bow Street - respondeu Pitt.

Doyle o olhou com expressão tensa.

— Entendo. E provavelmente desde o princípio estava aqui por essa razão? - deduziu. Embora não aludiu à ineficácia do Pitt, sua opinião a respeito transpareceu em seu olhar e em seus lábios ligeiramente arqueados.

— Sim. Sinto muito - disse Pitt, desculpando-se não por sua presença ali mas sim por seu fracasso.

— Suponho, pois, que não alberga a menor duvida a respeito de suas conclusões?

— Não.

— Inicialmente disse que tinha sido acidental – recordou-lhe. — O que o fez mudar de idéia?

Seguiam na porta do quarto. Dentro as cortinas se achavam parcialmente fechadas e a iluminação era escassa. Eudora estava sentada em uma poltrona. De repente se levantou e se aproximou deles. Estava consternada. Branca como o papel e com os olhos afundados, oferecia o aspecto de alguém que sofreu um golpe que escapa a sua compreensão.

— O que ocorre? - perguntou. Pelo visto, não tinha ouvido a conversa entre Doyle e Pitt. — O que aconteceu agora, Padraig?

Doyle se voltou para ela.

— Deve ser forte, querida. É uma má notícia. O senhor Pitt é policial, e sua missão era nos proteger durante a conferência. Diz que Ainsley morreu assassinado. Não foi um acidente como acreditávamos. - Apoiou as mãos nos ombros da Eudora para tranqüilizá-la. — Não fica mais opção que confrontar isso. Existia esse perigo, e ele era consciente. Não esperávamos que se produzisse aqui no Ashworth Hall incidente algum. - Olhou para Pitt. — Entrou alguém na casa?

— Não.

— Parece muito seguro disso.

— Estou - afirmou Pitt.

— Foi então algum convidado?

— Sim.

Eudora lhe dirigiu um olhar de dor e medo.

Doyle exerceu maior pressão em seus ombros.

— Obrigado por cumprir com o dever de nos informar - disse com firmeza. — Se necessitar de nossa ajuda para algo, conte com ela, mas no momento a senhora Greville desejaria ficar a sós. Estou certo de que o compreende, senhor Pitt.

— É claro - assentiu Pitt sem mover-se da porta. — Não me ocorreria incomodá-la se não fosse absolutamente necessário. Sentindo muito, ninguém pode partir até que averigüemos todo o possível e, espero, descubramos ao autor do crime. Quanto antes o consigamos, antes poderá retornar a sua casa a senhora Greville e chorar em paz a perda de seu marido. - Compadecia-se sinceramente de Eudora, mas não ficava alternativa.      — Não se trata só da morte de seu marido, senhora Greville; é um assassinato político de graves conseqüências. Não me é possível expressar em toda sua dimensão o delicado do assunto.

Eudora ergueu um pouco a cabeça. Tinha os olhos inundados em lágrimas.

— Compreendo-o - disse com voz empanada. — Sempre soube que existiam riscos. Suponho que me negava a acreditar que isto podia ocorrer. Amo a Irlanda, mas às vezes também a odeio.

— E não é isso o que sentimos todos? - sussurrou Doyle. — A Irlanda é uma amante cruel, mas já pagamos muito para abandoná-la, mais ainda estando já tão perto de nossa meta.

— Que deseja de mim, senhor Pitt? - perguntou Eudora.

— Quando viu pela última vez o senhor Greville?

Eudora refletiu por um instante.

— Não recordo exatamente a hora. Ele costuma ficar a ler até tarde. Eu me deito cedo. Veio me dar boa noite ao redor das dez, acredito. Mas se quiser, pergunte a minha criada; estava aqui nesse momento.

— Fá-lo-ei. Obrigado. E você, senhor Doyle?

— Retirei-me a meu quarto, também para ler - respondeu Doyle. — Não sei se se recorda que ontem à noite ninguém tinha muito interesse em prolongar a noite. O assunto do Moynihan era em extremo desagradável.

Pitt lhe dirigiu um olhar de assentimento.

— Agradecer-lhe-ia que de momento não informasse do ocorrido a ninguém alheio ao Ashworth Hall.

— Como queira.

— Estava com você seu valete, senhor Doyle?

Um sorriso triste e irônico apareceu no rosto do Doyle.

— Suspeita de mim? Sim, parte do tempo. Partiu por volta das dez e meia. Sabe a que hora foi assassinado Ainsley?

— Entre as dez e vinte e as onze menos vinte.

— Já vejo. Em tal caso, não, senhor Pitt, não tenho álibi para todo esse tempo.

— Padraig, por favor! - protestou Eudora com desespero. — Não diga isso nem em brincadeira!

— Não era brincadeira, querida. - Rodeou os ombros de sua irmã com um braço e a estreitou com força. — Imagino que o senhor Pitt vai ser muito consciencioso em seu trabalho, e isso significa implacável, não?

— Significa muito rigoroso, senhor Doyle - corrigiu Pitt, — muito preciso.

— É claro. E lhe asseguro que eu não matei ao Ainsley. Discrepávamos sobre muitas coisas, mas era o marido de minha irmã. Vá ver esses protestantes sentenciosos e virulentos, senhor Pitt, que esgrimem o nome de Deus para dar rédea solta a sua ira e seu afã de vingança. Entre eles achará ao assassino, convencido sem dúvida de ter completado a vontade de Deus. Esse é o problema da Irlanda: há muitas pessoas que atuam no serviço do diabo em nome de Deus!

Emily teve um dia espantoso. Sabia desde o começo que a vida do Ainsley Greville corria perigo, mas supunha que a possibilidade de um atentado era remota e, chegado o caso, a agressão procederia do exterior. E naturalmente Pitt e os criados a atalhariam sem problema. Quando Jack lhe comunicou a morte de Greville, ela, como outros, deu por certo que tinha sido um acidente.

Em um primeiro momento a preocupou unicamente o fracasso da conferência e como incidiria isso na carreira do Jack. Mas em seguida se envergonhou de seu egoísmo e pensou na dor da família, em particular sua viúva. Ela mesma conhecia bem a comoção que causava a morte violenta de um ser querido. Perguntou-se como podia oferecer consolo. Mas felizmente Padraig Doyle era irmão da senhora Greville e assumiu de bom grado a responsabilidade. Por que teria mantido em segredo seu parentesco até esse instante? Cabia supor que por razões políticas. Possivelmente temiam que os outros desconfiassem da neutralidade de Greville se soubessem que Doyle era seu cunhado. Ou acaso desejavam ocultar que Eudora era irlandesa, do sul, e portanto provavelmente católica, embora não fosse uma fervorosa crente.

Emily tinha pouca paciência com essa atitude intransigente em relação às crenças alheias.

Em qualquer caso, a presença do Doyle a eximia ao menos da imediata obrigação de oferecer consolo a uma pessoa em tal estado de comoção ou pesar ou abatimento. Isso lhe permitiria concentrar-se na difícil tarefa de manter a ordem e a calma entre a criadagem. Fizesse o que fizesse, em questão de minutos correria a voz de que se cometera um assassinato na casa, com os conseguintes ataques de histeria, choros, desmaios e disputas, e indevidamente alguém desejaria dar aviso do ocorrido e deveria proibir-se o porque ninguém podia sair da propriedade até que concluísse a investigação.

Era melhor que o anunciasse ela mesma e assim ao menos ninguém poderia lhe reprovar uma falta de cortesia ou franqueza. Jack estava já bastante ocupado com a malograda conferência e, de todo modo, o serviço era assunto dela, que no fim das contas tinha herdado Ashworth Hall e a todo seu pessoal, junto com a renda necessária para administrar a propriedade, de seu primeiro marido, e a mantinha em fideicomisso para seu filho. Os criados tratavam ao Jack com respeito mas, por costume, ainda viam a ela como responsável.

Desceu para informar o mordomo de que desejava falar imediatamente com os criados de maior categoria na sala de estar da governanta. Todos foram com a devida urgência e solenidade.

— Como já sabem, o senhor Ainsley Greville morreu ontem à noite na banheira - disse, evitando os habituais eufemismos para aludir à morte que usava em suas conversas com a maioria das pessoas. Falando de alguém que tinha morrido assassinado, teria sido absurdo dizer que "havia partido deste mundo" ou "exalado o último suspiro”.

— Sim, milady - respondeu a senhora Hunnaker com gravidade. Ainda mantinha o tratamento de Emily apesar de esta ter perdido o título ao casar-se em segundas núpcias. — Uma verdadeira fatalidade, sem dúvida. Significa isso que partirão os convidados?

— Ainda não - respondeu Emily. — Sentindo muito, não posso lhes dizer quanto tempo permanecerão ainda na casa. Depende das circunstâncias... e, até certo ponto, do senhor Pitt. - Respirou fundo e contemplou com desânimo os rostos atentos e corteses dos criados. — Como certamente já sabe a maioria de vocês, o senhor Pitt é policial. Por desgraça, a morte do senhor Greville não foi acidental como supusemos inicialmente. Foi assassinado...

A senhora Hunnaker empalideceu e se apoiou no espaldar de uma cadeira.

Dilkes, estupefato, abriu a boca para falar mas lhe faltou a voz.

O valete de Jack moveu a cabeça em um gesto de pesar e comentou:

— Por isso o senhor Pitt quer saber onde estava ontem à noite todo mundo e esse Tellman anda por aí inspecionando as janelas.

— Não entraria alguém à força? - vociferou a cozinheira, já à beira do pânico. — Deus nos livre!

— Não! - respondeu Emily com severidade. — Não entrou ninguém. De repente se deu conta de que a outra alternativa era ainda pior e lamentou sua precipitação. — Não. Trata-se de um assassinato político, relacionado com a Questão Irlandesa. Nada tem que ver conosco. O caso está em mãos do senhor Pitt. Nós devemos nos comportar como de costume...

— Nos comportar como de costume? - repetiu a cozinheira, indignada. — Poderíamos morrer todos assassinados em nossas camas! Rogo-lhe...

— O assassinato se cometeu em uma banheira, não em uma cama - corrigiu a governanta, com jeito de ninharia. — E não nos banhamos, senhora Williams. Lavamo-nos em uma bacia, como a maioria das pessoas. Não é possível cair em uma bacia.

— Em qualquer caso, não estou disposta a deixar entrar um só irlandês em minha cozinha ou em nosso refeitório! - prosseguiu a cozinheira. — Por aí não passa!

Emily raramente demonstrava indecisão ante a criadagem. Se os criados intuíam que podiam manipular a seus senhores, estes nunca mais podiam governar a casa. Tinha-o aprendido fazia muito tempo. Mas se a senhora Williams se negava a cozinhar nesse momento, Emily se veria em uma situação desesperada. A carreira política do Jack podia ver-se prejudicada se a organização doméstica de sua residência chegava a considerar-se pouco confiável, embora existissem de sobra razões para que tudo falhasse.

— Não têm por que ir a sua cozinha, senhora Williams - disse depois de um breve instante de hesitação. — E não representará o menor risco para você seguir cozinhando como de costume. Estou certa de que não deseja que paguem justos por pecadores...

— Para mim são todos igualmente pecadores por se odiarem entre si - a interrompeu a senhora Williams com um brilho de cólera no olhar. Tremiam-lhe as mãos e em seguida todo seu corpo começou a estremecer. — A Bíblia diz que isso é tão mau como o assassinato.

— Tolices! - exclamou Emily com tom enérgico. — Somos ingleses e não sucumbimos ao pânico só porque uns quantos irlandeses se tenham aversão. Nossa fortaleza nos permite confrontar isso e muito mais.

A senhora Williams se ergueu perceptivelmente.

— Não abandonaremos nossas obrigações por nenhum motivo - continuou Emily, percebendo que tinha escolhidos os argumentos apropriados. — Mas se prefere sentar à parte aos criados de visita, é muito livre de fazê-lo. Não por você, certamente - acrescentou, — a não ser em atenção às criadas de menor idade, que lógicamente poderiam estar alteradas. Você se comportará como deve, mas terá que vigiar aos membros mais jovens do serviço e assegurar-se de que não se assustam ou atuam de maneira incorreta. Temos uma importante posição social que manter.

— Sim, milady - disse a senhora Hunnaker, erguendo o queixo. — Não devemos nos deixar amedrontar por esses irlandeses.

— É claro que não - secundou o mordomo. — Fique tranqüila, senhora; encarregaremo-nos de que tudo siga seu curso normal.

Mas garantir tal normalidade escapava às faculdades de simples mortais. Duas das domésticas de menor idade sofreram ataques de histeria e tiveram que mandá-las à cama, uma delas depois de derrubar um balde de água na escada principal e empapar o tapete do vestíbulo. Um jovem lacaio quase pôs fogo à biblioteca porque se distraiu e empilhou muitas brasas na lareira. O valete do Fergal Moynihan e o engraxate se encetaram em uma briga e acabaram ambos com os olhos pisoteados; além disso, durante a briga quebraram três pratos da copa, como conseqüência do que a criada ficou também histérica. Uma lavadeira encheu mais da conta a caldeira e a água transbordou ao ferver, provocando a ira da lavadeira chefe, que arremeteu contra a moça, motivo pelo qual esta se despediu.

Ninguém cortou batatas nem cenouras, e os bolos da sobremesa ficaram esquecidos no forno e se chamuscaram.

Um lacaio se embebedou, tropeçou com o gato da cozinha e caiu de bruços. O gato se enfureceu mas ficou ileso. A senhora Williams pôs o grito no céu, mas não se despediu. E ninguém mostrou o menor interesse no almoço, assim o desastre passou inadvertido para todos salvo Emily, a quem não escapou um só detalhe.

Gracie, a criada do Charlotte, foi a única que conservou a prudência em meio daquele caos; entretanto Emily observou que cada vez que o jovem e bonito valete do Lorcan McGinley passava junto ao Gracie, coisa que fazia com desnecessária freqüência, ela perdia a concentração e agia com desacostumada estupidez. Emily, uma mulher em extremo ardilosa, soube interpretar imediatamente esses sinais.

E Tellman, o desatento ajudante do Pitt, fazia pergunta sem cessar a todo mundo com a mesma expressão que teria se alguém tivesse quebrado um ovo podre.

No meio da tarde voltou a telefonar Cornwallis para falar com o Jack.

— O que ocorre? - inquiriu Emily assim que ele pendurou o aparelho na forquilha.     — Acaba de se comprometer?

Achavam-se na biblioteca. Jack tinha ido ali a responder a chamada, e ela o seguiu assim que se inteirou pelo Dilkes de quem estava ao outro lado da linha.

Jack, visivelmente tenso e com os olhos dilatados, levantou o queixo como se de repente lhe apertasse o colarinho da camisa.

— O que ocorre? - repetiu Emily, erguendo a voz.

Jack engoliu a saliva.

— Cornwallis me comunicou que o Ministério do Interior deseja que eu siga com a conferência - sussurrou. Limpou garganta e acrescentou: — Em substituição do Greville.

— Não pode fazê-lo! - exclamou Emily imediatamente com a voz entrecortada pelo medo.

— Obrigado - respondeu Jack com o mesmo semblante que se lhe tivesse esbofeteado.

Emily abriu a boca para lhe dizer que se deixasse de estupidez, que aquele não era momento de suscetibilidades pueris. Greville tinha morrido assassinado naquela casa fazia menos de vinte e quatro horas. Jack podia ser a seguinte vítima. De repente, como se lhe tivesse caído um balde de água fria, Emily compreendeu que ele tinha interpretado mal suas palavras: achava que o considerava incapaz de realizar esse trabalho, pouco apto para ocupar o lugar do Greville.

Acaso era isso o que ele mesmo temia? Tinha-o impulsionado Emily, por sua própria ambição e expectativas, a chegar muito longe? Sem pretender, movida por sua admiração por outras pessoas e seus sonhos, tinha-lhe exigido tacitamente mais do que ele podia dar? Aceitava Jack aquele encargo para demonstrar a ela sua valia, para agradá-la, para ser, a seu modo, como imaginava que George Ashworth tinha sido? George possuía dinheiro, título de nobreza e encanto, mas carecia de aptidões profissionais. Não as necessitava.

Tentava Jack se sobressair no âmbito político para equiparar-se à família Ashworth? Sentia-se empurrado a assumir responsabilidades que lhe superavam? E realmente achava que também Emily duvidava de sua capacidade?

Emily o observou: o bonito rosto que lhe tinha aberto as portas da alta sociedade apresentava uma expressão sombria, com o olhar cravado no dela.

Com efeito achava que ela duvidava de sua capacidade.

— Queria dizer que é muito perigoso! - esclareceu Emily com aspereza. — Deve telefonar de novo ao Cornwallis e se negar a fazê-lo... até que Thomas averigue quem assassinou ao Greville. Não podem esperar que reate a conferência no ponto em que ele a deixou na noite de sua morte. - Aproximou-se de seu marido. — Jack, não entendem o que ocorreu aqui? Esses indivíduos são assassinos... ou ao menos um deles. - Apoiou as mãos nos ombros dele.

Jack a pegou pelos pulsos e, sem soltá-la, desceu-lhe os braços.

— Conheço os riscos, Emily. Era já muito consciente ao aceitar. Não se recusa um trabalho só porque seja perigoso. O que acha que seria de nosso país se um general morresse em combate e o seguinte oficial no escalão se negasse a tomar o comando?

— Você não é militar!

— Sim, sou...

— Não o é! Jack... - Emily se interrompeu.

— Emily, não discuta - disse Jack com uma firmeza que ela nunca antes tinha percebido em sua voz.

Emily soube que seria impossível dissuadi-lo, e isso assustou-a, porque admirou sua atitude mais do que teria desejado. Algo nela tinha escapado a seu controle. As emoções se amontoavam em seu peito. Um estremecimento de autêntico medo a percorreu, e era um sentimento horrendo. Não lhe causou a menor fascinação, mas unicamente angustia.

— Obrigado - disse Jack com ternura. — Vai estar muito ocupada. Confio que nunca mais deva assistir a uma festa tão espantosa como esta, e muito menos atuar em qualidade de anfitriã. Eu não poderei ajudá-la. Terá que contar com Charlotte. Sinto muito.

Emily esboçou um forçado sorriso. Sentia-se culpada. Até esse momento desconhecia o valor de Jack e o tinha considerado incapaz de assumir aquela responsabilidade. Pior ainda, tinha permitido que ele o percebesse.

— Naturalmente - respondeu Emily com mais segurança do que sentia. — Se você se vê com ânimo de se pôr à frente da conferência, quão mínimo posso fazer é procurar que a reunião seja... suportável. Divertida não será, mas ao menos podemos evitar novos escândalos.

Jack lhe devolveu o sorriso com um brilho de verdadeiro humor.

— Com a Iona McGinley na cama do Moynihan e Greville morto em sua banheira, a menos que a cozinheira se despeça, acredito que temos feito já as dez de últimas. A não ser, claro está, que alguém resolva fazer armadilha jogando cartas.

— Por favor, Jack, não o mencione sequer - respondeu ela com tom sério.

Mas Emily não conseguiu manter seu resoluto semblante muito além do jantar, que salvou com extraordinária habilidade. Eudora permaneceu em seu quarto, mas todos os outros se achavam pressentes, e se comportaram com dignidade e relativa cortesia. Foi depois, falando com Pitt na biblioteca, que perdeu a calma e deu rédea solta a seus temores.

— O que averiguou? - perguntou sem mais preâmbulos.

Pitt parecia exausto e em extremo desanimado. Levava o nó da gravata quase desfeito, os bolsos da jaqueta cheios de papéis e o cabelo tão revolto como se o houvesse mexido uma dúzia de vezes.

— Pelo visto, deve tê-lo feito Padraig Doyle, Fergal Moynihan ou uma das mulheres -respondeu, cansado. — Ou seu filho.

— Doyle é seu cunhado! - exclamou Emily com irritação. — E como ia fazê-lo seu filho, por Deus! Trata-se de um assassinato político. Deve ser Moynihan. E por que não McGinley ou O’Day?

— Porque os viram em outra parte na hora de cometer o crime.

— Nesse caso, foi Moynihan. Já o surpreendemos na cama com a esposa do McGinley. por que não teria que rebaixar-se também ao assassinato? Detém-no. Assim ao menos Jack estará a salvo.

— Não posso detê-lo, Emily. Não existem provas de sua culpa...

— Você mesmo disse que suspeita dele - replicou Emily. — Tem que ser ele. Ou se não, algum criado. O que faz Tellman? Não pode averiguar se foi um criado? Todos têm suas obrigações. Deveriam poder demonstrar onde estavam a essa hora. No que esteve empregando o tempo desde esta manhã?

Pitt abriu a boca para falar.

Atrás de Emily se ouviu o ligeiro ranger da porta da biblioteca, mas ela não se incomodou em voltar-se para ver quem tinha entrado. Sua preocupação por Jack absorvia toda sua atenção.

— Foi incapaz de impedir o assassinato do Greville! - prosseguiu Emily. — Poderia ao menos fazer algo para proteger ao Jack! Não deveria lhe ter permitido aceitar este trabalho. Não advertiu ao Cornwallis de quão perigoso é? Detém ao Moynihan antes de que por sua culpa Jack acabe também morto!

Charlotte se aproximou de um vaso com crisântemos colocado no centro de uma mesinha e tirou as flores. Ruborizada, situou-se frente a Emily com o vaso na mão e lhe dirigiu um olhar de ira.

— Fecha a boca se não quer que lhe esvazie o vaso em cima - ameaçou com voz rouca, mal controlada.

— Nem lhe ocorra! - respondeu Emily. — Jack corre um grande perigo, e Thomas não está disposto a mover...

Charlotte lhe lançou a água. Emily, empapada, afogou um grito de puro assombro.

Pitt ergueu uma mão em gesto de conter a alguém mas voltou a baixá-la, contemplando a cena com estupefação.

— Deixa de pensar em si mesma! - disse Charlotte. — Thomas não pode deter ninguém sem provas. Se depois resultasse que é outro o culpado, em que situação nos veríamos? Usa o bom senso. Pensa um pouco e tome cuidado com o que faz.

Emily ficou muda de raiva, sobre tudo porque não tinha nada ao redor que jogar em sua irmã. Girou sobre seus calcanhares e saiu a toda pressa da biblioteca. Correu escada acima, entrou em seu quarto e deu uma sonora portada. Jogou-se na cama e ficou ali imóvel, imersa no mais absoluto desconsolo. Tinha tratado injustamente primeiro a Jack e depois também a Pitt, que devia sentir-se desolado. Nem ele nem ninguém podia prever um assassinato planejado por outra pessoa da casa. Para cúmulo, brigou com Charlotte, cuja ajuda necessitava mais que nunca.

Aquele tinha sido um dos piores dias de sua vida. E, com toda probabilidade, o seguinte não seria melhor.

 

Pitt despertou com uma intensa dor de cabeça. O quarto se achava ainda às escuras. O silêncio era total, salvo pelos silenciosos passos de uma criada no corredor. Isso significava que passava já das cinco da madrugada.

Recordou então os fatos do dia anterior: os gritos, o cadáver do Ainsley Greville com o rosto sob a água. Tinha-o assassinado alguém da casa, um dos convidados.

McGinley estava em seu quarto falando com Hennessey, o valete; O’Day os viu. Isso excluía aos três. Qualquer dos outros teve possibilidade material de fazê-lo, mais provavelmente um homem que uma mulher, o que deixava Fergal Moynihan, Doyle e Piers. Moynihan começava a apresentar-se como o principal suspeito, exceto pelo fato de que parecia ter renunciado a seu veemente protestantismo e todos seus princípios pela aventura com Iona McGinley.

Podia um homem ter tão desdobrado o pensamento? Fergal cometia adultério, transgredindo assim um dos mandamentos mais estritos de sua fé, e além disso com uma mulher católica. Cabia conceber que perpetrasse um assassinato, descumprindo o mandamento mais importante, para preservar sua fé do papismo? Ou acaso para ele a defesa do protestantismo nada tinha que ver com a religião? Reduzia tudo a uma questão de dinheiro, propriedade da terra e poder?

Existiam fatores, possivelmente básicos, que Pitt ainda não conhecia.

Charlotte dormia ainda aninhada sob as mantas. Durante a noite tinha notado ela mover-se inquieta, virando-se uma e outra vez, deslocando os travesseiros. Embora não o tivesse manifestado explicitamente, temia por ele. Tinha aparentado um absoluto aprumo, mas Pitt a conhecia muito bem para deixar-se enganar. Em circunstâncias como aquelas, certos gestos delatavam sua preocupação: a maneira de fazer virar os anéis nos dedos, a maior tensão dos ombros.

Também Emily temia por Jack. Era compreensível. Possivelmente a vida do Jack corria perigo.

Pitt se levantou com sigilo. O fogo se apagara e o quarto estava frio. O pior era que essa manhã, já reveladas suas identidades, não cabia esperar que Tellman lhe levasse água quente.

Entrou descalço no quarto de vestir, também gelado, e começou a vestir-se. Barbear-se-ia mais tarde. De momento precisava pensar, e uma xícara de chá quente lhe limparia a

mente. Sabia onde estavam a despensa e o bule desse piso.

Enquanto fervia a água, aparecendo já no céu a primeira luz da alvorada, apareceu Wheeler.

— Bom dia, senhor - sussurrou o criado. Nunca falava em voz alta antes de que se levantassem os convidados. — Me permite que o eu prepare?

— Obrigado - respondeu Pitt, e se afastou do fogão. É claro era capaz de ocupar-se ele mesmo da tarefa, mas notou que Wheeler desejava ajudá-lo. Sentia-se mais cômodo fazendo seu trabalho que deixando-o em mãos de outro.

Com mãos direitas, Wheeler dispôs primeiro uma bandeja, detalhe do que Pitt teria prescindido. O valete se movia com certa elegância. Pitt sentiu curiosidade por saber que classe de pessoa era quando se despojava do disfarce de criado, que emoções e interesses o impulsionavam.

— Deseja a senhora Pitt outra bandeja, senhor? - perguntou.

— Não, obrigado. Acredito que ainda dorme - respondeu Pitt, e se apoiou contra o batente da porta.

— Me alegro de ter ocasião de lhe falar, senhor - disse Wheeler, olhando atentamente o bule enquanto começava a ferver a água. — Sabia que o senhor Greville sofreu outro atentado faz quatro ou cinco semanas?

— Sim, ele mesmo me informou. Uma carruagem o obrigou a sair do caminho, mas não chegou a saber quem foi o responsável.

— Exatamente, senhor. E o pessoal da propriedade fez todo o possível por averiguá- lo. Mas recebeu também notas de ameaça. - Verteu a água sobre o chá e a seguir olhou Pitt no rosto. — Essas notas continuam guardadas no Oakfield House, na gaveta da escrivaninha do senhor Greville. Aí não existia risco de que a senhora Greville as encontrasse nem as tocassem as criadas.

— Obrigado - respondeu Pitt. — Possivelmente chegue hoje até ali e dê uma olhada. Talvez contenham algo que nos indique quem está atrás disto. Obviamente se trata de mais de uma pessoa, porque o senhor Greville teria reconhecido ao cocheiro da carruagem que os investiu. Disse que tinha uns olhos pouco comuns, separados e de um azul muito claro. Esse homem não se encontra agora aqui.

— Não, senhor. Pessoalmente, atribuiria o crime aos fenianos, mas nesse caso terei que pensar em McGinley, e pelo que diz Hennessey, ele não pôde ser. Eu não concederia muito crédito ao Hennessey, salvo pelo fato de que sua declaração coincide com a do senhor O’Day, e conhecendo a relação entre protestantes como o senhor O’Day e católicos como o senhor McGinley, o senhor O’Day não diria isso se não fosse verdade.

Pitt assentiu tristemente com a cabeça e aceitou agradecido o chá.

Ao retornar ao quarto, achou ainda adormecida Charlotte e decidiu descer para tomar o café da manhã. Ainda era cedo e só Jack estava sentado à mesa, de modo que puderam falar com franqueza.

— Espera descobrir informação útil? - perguntou Jack com ceticismo. — Certamente se as notas de ameaça implicassem a alguém, ele mesmo lhe teria mostrado isso já.

— Possivelmente não sirvam de nada - admitiu Pitt. — Mas em muitas ocasiões provas que por si só são insignificantes tomam sentido ao serem reunidas. Tenho que comprová-lo. Poderiam me proporcionar uma descrição mais precisa do cocheiro. Possivelmente encontre algo mais na casa: cartas, papéis. Talvez algum criado saiba ou recorde algo.

Pitt olhou Jack por cima da longa mesa. A simples vista, parecia muito tranqüilo. Oferecia o cuidado aspecto de sempre. Possuía um atrativo natural e elegante. Tinha os olhos cinza e as pestanas longas, e um sorriso alegre e contagioso. Era necessário observá-lo com muita atenção para perceber certa rigidez em seu corpo, algum ou outro momento em que titubeava, respirava fundo e continuava imediatamente com o que estava dizendo, o ângulo de sua cabeça, inclinada como se permanecesse em parte pendente dos sons que se produziam fora da sala.

Pitt compreendia seu temor tanto do perigo físico que já havia custado a vida de Greville - mas do que acaso Pitt e Tellman podiam protegê-lo-como do possível fracasso em uma responsabilidade que excedia em muito a qualquer outro de quão cometidos tinha abordado em sua incipiente carreira política.

Doyle desceu ao cabo de um momento e os saudou com um sorriso. Dava a impressão de ser um homem a quem nenhuma situação, por embaraçosa ou trágica que fosse, fazia-o perder a compostura. Isso umas vezes resultava admirável e outras irritante. Pitt se perguntou se aquilo se devia a uma natural incapacidade de experimentar sentimentos profundos, uma superficialidade emocional, ou pelo contrário era fruto de uma extraordinária coragem e domínio de si derivados da consideração a outros, um dom inato para a liderança e uma espécie de dignidade pouco comum.

Quando Carson O’Day desceu para tomar o café da manhã, Pitt se desculpou e foi em busca de Tellman. Viu-o sair do refeitório com expressão séria e concentrada.

— Averiguou algo? - perguntou Pitt em voz baixa a fim de que não o ouvisse uma criada que passava com uma vassoura e um balde de folhas de chá molhadas para limpar os tapetes.

— Sim, aprendi como se limpam as facas de prata - respondeu Tellman com irritação. Isso daí é um manicômio. Ao menos seis criados ameaçaram despedir-se. A cozinheira demora menos em beber o madeira que o mordomo em trazê-lo, e a criada está tão assustada que grita cada vez que alguém lhe dirige a palavra. Não governaria uma casa nem por todo o dinheiro do mundo.

— Vou a Oakfield House, a mansão do Greville - disse Pitt com um indício de sorriso. — Está a dez ou onze quilômetros daqui. Devo dar uma olhada em seus papéis, em particular nas notas de ameaça que recebeu faz um ou dois meses.

— Acredita que achará alguma pista útil? - perguntou Tellman com escassa convicção.

— É possível. Inclusive se o culpado é Moynihan, sobre o qual tenho minhas dúvidas, não atuou só. Quero saber quem lhe apóia.

— Moynihan não necessita apoio de ninguém - disse Tellman, falando também em sussurros. — Leva bastante ódio dentro para matar sem necessidade de que o animem a isso. Embora terá sorte se McGinley não atacar contra ele antes de que acabe o fim de semana. Agora estão todos rezando suas respectivas orações. - Assinalou com o queixo em direção à capela. — Os católicos lançando olhadas assassinas aos protestantes, e vice versa. -Seu rosto refletia desconcerto e indignação. — Por mim, avivaria os fogos da cozinha para que se queimassem na fogueira uns e outros e terminassem já com isto de uma vez por todas. Compreendo a cobiça, o ciúmes, a vingança e inclusive certas formas de loucura. Mas esses indivíduos são prudentes, a sua maneira.

— Procure que não recorram à violência enquanto estou fora - disse Pitt, olhando fixamente para Tellman. Não sabia se aparentava despreocupação ou lhe revelava sua autêntica inquietação. — Permaneça perto do senhor Radley. Agora é ele quem mais perigo corre. - Não pôde evitar que lhe tremesse a voz. — Não poderá sentar-se junto a ele durante a reunião, mas monte guarda ante a porta. Eu retornarei ao anoitecer.

— Sim, senhor - respondeu Tellman, endireitando um pouco os ombros e abandonando por completo o tom mordaz. — Cavalgue com cuidado. Sabe montar a cavalo, suponho? - Parecia sinceramente preocupado.

— Sim, obrigado - respondeu Pitt. — Se por acaso não o recorda, criei-me no campo.

Tellman deixou escapar um grunhido e seguiu seu caminho.

Pitt foi procurar Charlotte para lhe comunicar seus planos. Mal a tinha visto desde sua chegada. Estava sempre em companhia de alguma das outras mulheres, tentando apaziguá-las ou conversando de trivialidades para ocultar a hostilidade de fundo.

Nessa ocasião demorou um quarto de hora em dar com ela e finalmente a achou no esquentador, um quarto destinado a manter a comida quente antes de servi-la, já que a sala de jantar se achava a uma distância considerável da cozinha. Continha um bom fogo, um armário esquentado ao vapor, um aparador e um magnífico sortimento de utensílios para abrir e decantar o vinho. Charlotte escutava com atenção Gracie. Ambas se interromperam assim que entrou Pitt. Gracie piscou um olho à Charlotte, desculpou-se e partiu.

— O que ocorre? - perguntou Pitt, observando afastar a figura miúda de Gracie.  Charlotte sorriu com uma expressão de tristeza e ao mesmo tempo de humor.

— Simples confidências femininas - respondeu.

Pitt compreendeu que não conseguiria lhe surrupiar nenhuma palavra mais. Não lhe tinha ocorrido pensar que Gracie tivesse confidências femininas que compartilhar. Deveria ter considerado a possibilidade. Tinha já vinte anos, apesar de que não avultava muito mais que quando foi a eles aos treze.

— Hoje viajarei a Oakfield House - anunciou. — Não é provável que as notas recebidas pelo Greville contribuam com nada de novo, mas nunca se sabe. Não posso passar por cima a menor possibilidade. Retornarei quanto antes.

Charlotte assentiu com olhar de inquietação.

— Tenha muito cuidado - disse, e imediatamente sorriu com a cabeça inclinada.       — Amanhã estará dolorido de cavalgar - inclinou-se para ele e o beijou com ternura.

Por um instante pareceu que desejava acrescentar algo, mas mudou de idéia e perguntou: — Como achará o caminho até ali?

— Pedirei indicações ao Piers. Em todo caso, necessito da permissão de Eudora, e também sua ajuda.

Charlotte voltou a assentir com a cabeça e o acompanhou até o vestíbulo.

Pitt achou Eudora com Piers e Justine no toucador do piso de cima. Não levava luto. Lógicamente não tinha incluído roupa negra em sua bagagem. O mais próximo que tinha encontrado era um vestido de cor marrom outonal, e continuava formosa apesar dos estragos da dor e comoção. Nada podia privá-la da beleza de seu cabelo ou a simetria de suas feições.

Justine oferecia um contraste extraordinário. Tampouco ela se vestia de negro. Como moça e solteira, não teria nada em seu vestuário dessa cor a menos que ela mesma estivesse ao final de um período de luto. Tinha escolhido um vestido verde escuro que, em combinação com o intenso negro de seu cabelo, resplandecia como uma pedra preciosa. Seu corpo parecia vibrar de vida. Inclusive em repouso, como se achava naquele momento, sentada junto à Eudora, a inteligência de seu rosto atraiu o olhar de Pitt.

Piers se achava de pé atrás das duas mulheres e mostrava uma expressão defensiva, como se estivesse disposto a protegê-las de maiores sofrimentos.

— Bom dia, senhora - saudou Pitt a Eudora com gravidade. — Lamento importuná-la de novo, mas necessito de sua autorização para ir ao Oakfield House e examinar os papéis do senhor Greville. Possivelmente encontre as malévolas cartas que recebeu.

Deu a impressão de que Eudora quase sentia alívio, como se esperar-se ouvir algo pior.

— Sim, naturalmente, senhor Pitt. Deseja que lhe dê minha permissão por escrito?

— Se for amável... e necessitarei deste modo algumas chaves. - Pitt se perguntou o que temia Eudora escutar dele. Outra desgraça, possivelmente? Ou suspeitava acaso de alguém em particular? No que a ela correspondia, o pior sem dúvida havia já passado.      — Lhes agradeceria também que me indicassem o melhor caminho para chegar até lá. Viajarei através do campo, ou do contrário levaria muito tempo. Quero estar de retorno antes da noite.

Piers olhou para Justine e depois para Pitt.

— Quer que o acompanhe? - ofereceu. — Assim seria muito mais fácil. Seria muito complicado lhe descrever o caminho ou inclusive desenhar um mapa.

— Obrigado - aceitou Pitt sem vacilar. Além da conveniência mesma de contar com o Piers como guia, isso lhe daria a oportunidade de falar com ele de maneira menos formal e talvez obter maior informação a respeito do Ainsley Greville. Sem ser consciente disso, Piers podia saber algo de útil.

— Do que vão servir-lhe esses papéis? - perguntou Justine com manifesto ceticismo. — Não serão em todo caso documentos oficiais... e confidenciais? - Olhou alternativamente para Piers e Eudora e depois se voltou de novo para Pitt. Baixando a voz, acrescentou: — Mataram-no nesta casa, e segundo você, o autor foi algum dos presentes. Não deveríamos... não deveríamos respeitar a intimidade do senhor Greville?

— Só verá esses papéis o senhor Pitt, querida - disse Eudora, piscando como se lhe surpreendesse a preocupação de Justine. — Em Oakfield não haverá nenhum documento importante; essa espécie de papéis devia deixá-los no Whitehall. Sim, pode ser que guardasse ali as desagradáveis notas que me consta que recebeu, e possivelmente nos ajudem... - respirou fundo —... a descobrir quem está detrás disto.

— Olhou ao Pitt com os olhos muito abertos e expressão sombria. — Certamente há mais de uma pessoa implicada, não é? Produziu-se também aquele incidente com a carruagem. - Tinha os punhos apertados.

— Certamente - concordou Piers. — Devemos examinar essas notas. E possivelmente encontremos alguma outra coisa que ele não mencionou...

Justine ficou em pé e pegou Piers pelo braço.

— Seu pai não está já aqui para proteger-se, para preservar sua intimidade - disse, afastando-se um pouco do Pitt. — Talvez tenha papéis privados ou documentos de negócios particulares ou outras cartas que não deveria ver ninguém alheio à família. Era um grande homem. Provavelmente atendia muitos assuntos de natureza confidencial. Sem dúvida tinha amigos que confiavam nele e possivelmente lhe escreviam sobre temas que causariam escândalo se se fizessem públicos. Todos cometemos... indiscrições... - Deixou a frase no ar e olhou ao Pitt diretamente nos olhos.

— Serei discreto, senhorita Baring - assegurou ele. — Imagino que o senhor Greville possuía muita informação reservada, mas duvido que mantivesse documentos dessa índole em sua própria casa. Por outra parte, como já se disse, esta tragédia não foi um fato isolado. O senhor Greville sofreu um atentado faz umas semanas...

Justine se voltou para a Eudora.

— Devia você temer tanto por ele. E agora isto. Suponho que essas notas eram só... a espécie de ameaças próprias da pessoa que quer conseguir algo, simples bravatas intimidatórias e vazias. - Dirigiu a vista a Pitt. — Devem averiguar quem as enviou, claro está. Não seria de estranhar que tivessem algo que ver com isto se se produziu já um atentado. - Olhou ao Piers. — O que ocorreu?

— Uma carruagem tentou tirar do caminho a carruagem em que ele viajava. Nessas datas eu estava em Cambridge e minha mãe em Londres. - Rodeou Justine meigamente com um braço. — Não se importa ficar aqui se eu for com o senhor Pitt?

Justine sorriu.

— Claro que não. Assim cuidarei de sua mãe. Acredito que com tantas tensões a pobre senhora Radley necessitará toda a ajuda que possamos oferecer. - Um indício de jocosidade, e possivelmente lástima, refletiu-se fugazmente em seus olhos. — Ouvi rumores do conflito entre os McGinley e os irmãos Moynihan, mas simularei que não sei de nada. Acredito que será a única maneira de chegar ao final do dia, que ameaça fazer-se interminável.

— Certamente agora se esquecerão disso. - Piers parecia perplexo. — O futuro da Irlanda pode depender do êxito do senhor Radley para manter as conversas. Depois do ocorrido, quem ia preocupar-se de algo tão... ?

Justine, sorridente, acariciou-lhe a face com um dedo.

— Querido, todos somos muito capazes de nos preocupar pelas ofensas sofridas e hábitos pessoais enquanto o mundo inteiro se afunda. Talvez nos seja mais simples pensar a essa pequena escala. Estou certa de que o Dia do Julgamento Final achará a mais de um discutindo pelo preço de uma fita ou por quem se esqueceu de apagar a vela. Seria impossível abranger com a mente a idéia do fim do mundo. - Olhou ao Pitt. — Não se preocupe conosco, senhor Pitt, sairemos da passagem.

Pitt sentiu mais simpatia por Justine do que tinha esperado. Não era uma moça comum. Perguntou-se o que lhe atraía tanto em Piers. Em comparação com o amadurecido senso de humor e equilíbrio de que ela fazia mostra, ele parecia muito jovem. Mas Pitt se deu conta de que estava julgando-os à ligeira, e isso não era justo. Só os conhecia ligeiramente.

Antes de partir, agradeceu a Eudora e combinou reunir-se com o Piers nos estábulos quinze minutos mais tarde.

O dia era frio mas agradável quando se puseram em marcha a lombos de dois excelentes cavalos. A meio galope, cruzaram os jardins, ladearam uns campos de lavoura e seguiram por um sinuoso caminho através de um arvoredo. Fazia anos que Pitt não montava. Entretanto era algo que, uma vez aprendido, nunca se esquecia. Os rangidos do couro, o aroma e o rítmico movimento lhe eram familiares, mas sabia que no dia seguinte se sentiria dolorido e duro. Estava usando músculos que não tinha exercitado em uma década. Imaginava já os comentários do Tellman e o discreto sorriso de Jack.

Enquanto o caminho lhes permitiu cavalgar rapidamente, não puderam falar; mas quando entraram no bosque e tiveram que ir a passo, a conversa surgiu de modo natural. Piers era bom cavaleiro, dotado da graça própria de um homem habituado à sela e aficionado aos animais.

— Abrirá um consultório na cidade? - perguntou Pitt, em parte por começar com um tema inócuo, em parte por curiosidade.

— Não, não - respondeu Piers imediatamente, erguendo a vista para olhar os ramos desfolhados sob os quais passavam. — A verdade é que eu não gosto de Londres, e me consta que Justine prefere viver no campo.

— Imagino que a morte de seu pai o obrigará a mudar de planos.

Avançavam ainda mais devagar por um tortuoso caminho. Piers se adiantou um pouco para vadear um arroio. Na borda oposta, os cavalos subiram com dificuldade, escorregando nas pedras, que rodavam para a água impulsionadas por seus cascos. O vento formou redemoinhos com as folhas caídas com um sussurro e à esquerda se ouviram uns latidos longínquos.

— Não me expus isso - disse Piers com franqueza. — Minha mãe ficará em Oakfield House, certamente. Não tem nem comparação com o Ashworth Hall. Não há granjas que administrar. Não me necessitará. Justine e eu possivelmente procuremos algo perto de Cambridge. Minha situação econômica será mais desafogada, suponho.

— Provavelmente não tenha necessidade de exercer a medicina - comentou Pitt.

Piers se voltou imediatamente para ele.

— Mas quero exercer! - respondeu. — Sei que meu pai teria desejado que me apresentasse ao Parlamento, mas não tenho interesse na política. Me interessa a sanidade pública. - De repente lhe brilharam os olhos e um vivo entusiasmo se refletiu em seu rosto, conferindo-lhe um aspecto muito diferente da imagem anódina que oferecia tão somente um momento antes. — Me preocupam em especial as enfermidades devidas à má nutrição. Faz idéia de quantas crianças inglesas padecem de raquitismo? Se até nos manuais de medicina o conhecem como o mau inglês! Ou escorbuto. Não só os marinheiros se vêem afetados pelo escorbuto. Ou a cegueira noturna. Há muitas enfermidades que estamos a um passo de poder tratar.

— Tem certeza de que não deseja ser deputado? - disse Pitt com tom irônico.

Saíam já a campo aberto, e tocou o cavalo para situar-se ao mesmo tempo do Piers.

— Não é possível propor leis se a pessoa não demonstrar antes que tem a razão. Primeiro deve obter-se que acreditem, depois que compreendam e por último que se preocupem. Só então chega a hora da legislação. Quero trabalhar com pessoa que necessita ajuda, não discutir com políticos e pactuar compromissos.

Pitt desmontou para abrir uma grade de um campo. Quando Piers a cruzou com os dois cavalos, fechou-a e voltou a montar, desta vez com algo mais de elegância que a primeira.

— Dito assim, parece muito arrogante, não é? - prosseguiu Piers com maior moderação. — Sei que os compromissos são necessários para muitas coisas. Simplesmente careço de aptidões para a negociação. Meu pai possuía um grande talento. Era capaz de cativar e convencer a qualquer um. Se alguém tinha possibilidades de êxito com a Questão Irlandesa, esse era ele. Era dotado de uma espécie de poder, quase uma invulnerabilidade. Não temia às pessoas como a tememos a maioria. Sempre sabia o que desejava obter de uma situação e quanto estava disposto a ceder ou pagar por isso. Nunca mudava de idéia.

Pitt meditou sobre essas palavras enquanto atravessavam um prado a meio galope. Ele mesmo tinha percebido no Greville esse aprumo, a serena determinação de um homem que se mantinha firme em suas resoluções e jamais fraquejava. Era uma qualidade imprescindível em sua profissão mas não muito atraente. Embora Piers não o tivesse admitido abertamente, tinha deixado entrever. Falava de seu pai sem afeto e com muito pouco pesar.

Oakfield House era, como ele havia dito, muito menor que Ashworth Hall. Mesmo assim, possuía um grande encanto. Aproximando-se desde poente, seu tamanho parecia o de uma mansão de dez ou doze dormitórios; viam-se deste modo numerosos estábulos e outras dependências. Era a casa de campo de um homem de bom gosto e posição, sóbrio mas rico.

Deixaram os cavalos ao cuidado do cavalariço e entraram na casa por uma porta lateral. Pitt notava já certa tensão nos músculos das pernas. No dia seguinte lamentaria aquela viagem.

O mordomo cruzou o vestíbulo com aspecto de desconcerto e o cabelo alvoroçado.

— Senhor Piers! Não o esperávamos. Sinto muito, os senhores estão ausentes neste momento. Mas naturalmente... - Percebeu a presença de Pitt e adotou uma atitude mais fria e formal. — Bom dia, senhor. No que posso lhes ajudar?

—Thurgood - disse Piers com calma. Aproximou-se dele e o pegou pelo cotovelo.   — Desgraçadamente se produziu uma tragédia. Meu pai foi assassinado. O tio Padraig ficou com minha mãe; eu devia acompanhar o senhor Pitt até aqui. – Indicou Pitt sem soltar o mordomo, que tinha começado a cambalear. — Temos que revisar os papéis e as cartas de meu pai e achar as notas de ameaça que recebeu recentemente. Se está informado de algo que possa nos ser útil, não hesite em dizê-lo.

— Assassinado? - repetiu Thurgood com visível estupefação. De repente se despojou de sua ligeira solenidade e pareceu velho e enrugado.

— Sim, infelizmente assim é - confirmou Piers; — mas comunique à criadagem que nada mudará. Devem continuar com suas tarefas como de costume e guardar silêncio a respeito, porque a notícia não apareceu ainda nos jornais nem informamos ao resto da família.

Pitt esteve a ponto de pedir ao Thurgood que não anunciasse sequer o fato, mas se absteve, consciente de que lhe seria impossível ocultá-lo. Sua consternação era já muito evidente. Outros o surrupiariam até contra sua vontade. A tragédia e o medo se respiravam já na casa.

— Poderia talvez nos trazer um uísque quente - prosseguiu Piers. — Fizemos um longo caminho a cavalo. E almoçaremos por volta de uma, frios ou empanada, algo.

— Sim, senhor. Acompanho-lhe no sentimento, senhor. Estou certo de que outros criados desejarão que lhe transmita também suas condolências - disse Thurgood, desconfortável ante a situação. — Quando se prevê que retorne a senhora? E naturalmente haverá... preparativos...

— Ainda não sei. Sinto muito. - Piers franziu o sobrecenho. — Compreenda, Thurgood, que de momento este assunto é um segredo de Estado. Talvez seja melhor que informe só à governanta. Exponha-lhe como se fosse um escândalo familiar. - Olhou ao Pitt e torceu ligeiramente a boca em um sorriso. — Trate-o com a mesma discrição que se tivesse ouvido por acaso uma confissão de um ato vergonhoso.

Thurgood obviamente não o compreendeu, mas seu rosto refletiu mansa obediência.

Quando se retirou, Piers guiou Pitt até a biblioteca, onde em um dos ângulos se achava a ampla escrivaninha de seu pai. Dentro fazia frio, mas a lenha estava preparada na lareira, e Piers se agachou e acendeu o fogo sem incomodar-se em chamar um criado. Depois de certificar-se de que tinha aceso, ergueu-se e tirou um jogo de chaves para abrir as gavetas da escrivaninha.

A primeira continha diversos documentos da contabilidade pessoal do Greville, que Pitt olhou sem grandes esperanças de achar algo de interesse. Havia faturas de alfaiates e camiseiros e recibos de dois pares de botas caras, de abotoaduras de ônix e de vários artigos femininos: um leque de marfim lavrado e renda, uma caixinha de pastilhas esmaltada com um retrato na tampa de uma dama em um balanço, e três frascos de água de lavanda. Todos levavam data do último mês. Pelo visto, Greville tinha sido um marido muito generoso. Esse detalhe surpreendeu ao Pitt. Não tinha observado nele tal afeto ou imaginação. Eudora lamentaria duplamente a perda. Em sua vida privada era aparentemente mais sensível e emotivo que em sua faceta pública como político.

Sustentando os papéis na mão, percorreu a biblioteca com o olhar, reparando no delicioso mobiliário, nas estantes repletas de livros contra as paredes e vários quadros excelentes, quase todos de cenas africanas, aquarelas da montanha da Tabla e os vastos céus da savana. Os livros eram em sua maior parte séries de tomos uniformemente encadernados em couro; só uma estante, a mais acessível da poltrona, alojava volumes diversos. Dar-lhes-ia uma olhada se tivesse tempo.

Depois de perceber sua humanidade, um vislumbre de seus sentimentos, Greville lhe parecia de repente um homem mais interessante, uma perda mais lamentável.

Piers revistava as gavetas do outro extremo da escrivaninha. Ao cabo de um momento se ergueu com umas cartas na mão.

— Acredito que dei com elas - anunciou com tom lúgubre, estendendo-as ao Pitt.     — Algumas contêm ameaças. - Parecia perplexo e doído. — Só três são anônimas ou têm conotações políticas. - Olhou ao Pitt sem saber o que dizer. Duas vezes abriu a boca com intenção de falar mas se interrompeu, e finalmente se limitou a entregá-las.

Pitt as pegou e leu a primeira, escrita com letras de forma e muito simples.

“Não traia a Irlanda ou se arrependerá. Conseguiremos a liberdade, e desta vez nenhum inglês nos vai impedir isso. Seria muito fácil matá-lo. Recorde-o.”

Como era de esperar, não levava assinatura nem data.

A seguinte era diferente em todos os sentidos. Escrita a mão com letra clara e traço firme, estava datada e incluía remetente.

 

“20 de outubro de 1890

Estimado Greville:

É, para mim, abominável ter que me dirigir a um cavalheiro por um assunto como este, mas sua conduta não me deixa alternativa. Suas atenções a minha esposa devem cessar imediatamente. Não tenho intenção de entrar em detalhes a este respeito. Você conhece de sobra sua transgressão, e não requer explicações de minha parte.

Se voltar a vê-la, à parte quando o exigir a vida social civilizada e sempre em público, empreenderei as ações legais necessárias para solicitar o divórcio e o nomearei a você segundo responsável no adultério. Demais é dizer o efeito que isso teria em sua carreira.

Não interprete estas linhas como uma ameaça vã. Devido ao comportamento de minha esposa com você, perdi todo o respeito por ela, e embora não desejaria lhe causar a ruína, fá-lo-ei antes que continuar me vendo traído deste modo.

Sinceramente seu, Gerald Easterwood.”

 

Pitt olhou ao Piers. A imagem que se formou do Greville fazia só um momento ficou feita em pedacinhos no ato.

— Conhece uma tal senhora Easterwood? - perguntou.

— Sim. Ou melhor dizendo, conheço sua reputação.... que não é tão boa, temo, como quer acreditar o senhor Easterwood.

— Era amigo de seu pai?

— Easterwood? Não. Pertenciam aos mesmos círculos sociais. Meu pai... – Piers titubeou. — Meu pai era bom amigo de quem lhe agradava ou daqueles que considerava seus iguais. Não imagino aproveitando-se da esposa de outro homem.... quer dizer, se esse homem fosse um amigo ou alguém próximo. Era muito leal com seus amigos. - Deu a impressão de que ia repetir essa última frase, mas de repente decidiu que tinha feito já insistência suficiente.

Pitt deu uma olhada a seguinte carta. Era outra ameaça por razões políticas, e explicitamente relacionada com o futuro da Irlanda, mas desta vez mais em defesa da supremacia protestante e a conservação das fazendas exploradas e financiadas pelos latifundiários anglo-irlandeses. Anunciava também represálias se Greville traísse seus interesses.

A essa seguia outra de caráter pessoal e com signatário.

 

“Meu querido Greville:

Nunca lhe agradecerei o suficiente a generosa ajuda que me brindou neste assunto. Sem você, me teria visto condenado a um verdadeiro desastre... possivelmente merecido. Seja como for, graças a sua intervenção sobreviverei, para atuar com maior cautela no futuro.

Fica eternamente em dívida com você seu humilde e agradecido amigo

“Langley Osbourne.”

 

— Conhece-o? - perguntou Pitt.

— Não - respondeu Piers com rosto inexpressivo.

Havia outras três cartas. Uma delas era uma ameaça irlandesa, mas estava tão mal escrita que mal se compreendiam os desejos expressos, salvo por uma vaga idéia de justiça. Sim ficava muito clara em troca a ameaça de uma grotesca morte, e se aludia à antiga lenda de uns amantes traídos pelos ingleses.

A seguinte carta era muito extensa, enviada por alguém com quem Greville compartilhava uma íntima e velha amizade. O tom vinha determinado pela arrogância social, a lealdade de classe, os interesses e lembranças comuns, e um afeto e confiança profundos e indisputáveis. Pitt sentiu uma aversão instintiva pelo remetente, um tal Malcolm Anders, e não pôde evitar que sua opinião do Greville se deteriorasse.

A última carta estava fechada apesar de levar carimbo de há quase duas semanas. Pelo visto, não interessava muito ao Greville. Cabia supor que tinha reconhecido a letra e não se incomodara em lê-la.

Possivelmente ao recebê-la não tinha o fogo aceso da lareira e, ante a impossibilidade de queimá-la, tinha preferido guardá-la sob chave a atirá-la ao cesto de papéis, onde um criado curioso podia vê-la e talvez lê-la se sua formação o permitisse.

Pitt a abriu com cuidado e a leu. Era uma carta de amor de uma mulher que assinava como Mary-Jane. Fazia referência a uma relação íntima que Greville tinha dado por concluída sem prévio aviso nem explicação alguma, sendo de supor, segundo a autora, que simplesmente se cansara dela. O assunto transparecia uma insensibilidade que Pitt achou repugnante. Por parte dele, o amor estava sem dúvida ausente, reduzindo-se tudo a uma mera utilização. Quanto a se ela o amava ou, a sua maneira, tinha-o utilizado também, Pitt só podia fazer conjeturas.

Devolveu as cartas ao Piers.

— Entendo por que concedeu tão pouca importância às ameaças - disse Pitt, atendo-se à questão que lhe incumbia. — Poderia tê-las escrito qualquer um, e pelo que se vê, procedem tanto dos nacionalistas católicos como dos unionistas protestantes. Não esclarecem nada, mas levaremos isso.

— Só... as notas de ameaça? - perguntou Piers imediatamente.

— Sim, naturalmente. Volte a guardar as outras cartas na gaveta e feche com chave. Poderá as destruir quando verificar que não têm relação com o caso.

— Que relação poderiam ter? - Pitt as segurava ainda na mão. — Não tem assunto político. Aludem só a um assunto sórdido.... melhor dizendo, a dois. Mas ambos terminaram... tinham terminado... quando se produziu a morte de meu pai. Não é possível queimá-las e manter segredo? Se minha mãe se inteirasse disto, o golpe seria ainda mais duro.

— Deixe-as na gaveta e guarde-as chaves - indicou Pitt com firmeza. — Quando o caso estiver resolvido, venha aqui e destrua todo aquilo que considere oportuno manter oculto. E agora me permita revistar as outras gavetas.

Entrou o mordomo, visivelmente abatido, e lhes serviu o uísque quente. Pareceu a ponto de perguntar se a busca tinha dado fruto, mas mudou de idéia e partiu.

Inspecionaram toda a biblioteca sem achar nada pertinente ao caso. Entretanto os livros e papéis arrojaram maior luz sobre a personalidade do Greville. Havia um rascunho de uma monografia sobre a medicina na antiga Roma, e Pitt se teria tomado o tempo necessário para lê-lo se tivesse encontrado alguma desculpa. Era um vívido relato da época. As prateleiras continham livros de temas tão diversos como a primeira etapa da pintura renascentista na Toscana ou as aves nativas da América do Norte.

Pitt se perguntou se Eudora tinha algum espaço reservado naquele aposento, se Greville e ela compartilhavam os mesmos interesses ou se, pelo contrário, seus universos intelectuais eram mundos à parte, como ocorria com tantos matrimônios. Muitos casais só tinham em comum a casa, os filhos, a vida social, o status e as circunstâncias econômicas. A imaginação, o humor e as grandes viagens do coração e a mente se levavam a cabo individualmente. Nem sequer compartilhavam a busca espiritual.

Em que medida sentiria falta de Eudora? Conhecia a realidade de seu lar ou via só o que queria ver? Muitas pessoas adotavam essa atitude para revestir de uma couraça sua vulnerabilidade e preservar todo aquilo que lhes permitia sobreviver. Pitt não culparia a Eudora se fosse esse seu caso.

Serviram-lhes o almoço na biblioteca e comeram junto ao fogo sem mal cruzar palavra. Piers tinha averiguado mais coisas a respeito de seu pai nas últimas duas horas que nos dez anos anteriores, e os recentes descobrimentos faziam mais intrincada a imagem que tinha dele. Havia traços dignos de admiração e outros merecedores de desprezo, aspectos que rasgavam as emoções e conferiam à dor uma complexidade muito maior que a de uma simples perda repentina.

Pitt guardou silêncio para não intrometer-se em seus sentimentos.

Depois do almoço foi interrogar ao cocheiro sobre o incidente com a outra carruagem

no caminho. Sem dúvida tinha sido uma séria tentativa de assassinato.

Encontrou-o nos estábulos lustrando um arnês. Ao cheirar o couro e o sabão, Pitt rememorou de repente sua juventude, a propriedade onde seu pai trabalhava de guarda- florestal e onde ele se criou. Viu-se de novo na infância, sentado em silencio em um canto, vivendo à custa de maçãs alheias e escutando os cavalariços e os cocheiros conversar de cavalos e cães, trocar falatórios. Imaginou retornando à cabana do guarda-florestal para jantar e deitar-se logo em seu reduzido quarto sob os beirais; ou voltando anos mais tarde a seu quarto no alto da casa grande, quando sir Arthur os acolheu a sua mãe e a ele depois da desonra de seu pai, depois de diluir-se indignação e a raiva pela injustiça padecida.

Entretanto retornaria a cavalo a Ashworth Hall e dormiria com o Charlotte, ao calor do fogo, na cama com dossel e lençóis bordados de um dos amplos dormitórios para convidados da mansão. Não se lavaria apressadamente com a água gelada da bomba, mas sim faria soar uma campainha e um criado lhe levaria fumegantes baldes com água suficiente para dar um banho se assim o desejasse. Disporia de um quarto à parte onde vestir-se e no café da manhã poderia comer até fartar-se, escolhendo entre meia dúzia de pratos diferentes. Usaria talheres de prata e um guardanapo de linho. E se sentaria junto a pessoas para quem aquela era a forma de vida habitual. Nunca tinham conhecido outra coisa.

Mas quando acabasse de comer, não iria ao quarto de estúdio que lhe permitia compartilhar com o Matthew Desmond, nem a realizar suas numerosas tarefas menores pela propriedade sob a tranqüilizadora tutela e supervisão de um adulto. Sobre ele recairia em troca a responsabilidade de esclarecer o assassinato de um alto funcionário do governo, um homem cujo amparo lhe tinha sido encomendado.... missão em que tinha fracassado.

Apoiou-se contra a parede do estábulo, seus pés afundados na agradável palha, de aroma tão familiar, e ouviu mover-se à vontade os cavalos nos compartimentos do extremo oposto.

Já se tinha apresentado ao cocheiro e o tinha posto à corrente da morte do Greville. Tinha duvidado sobre a conveniência de informá-lo, decidindo finalmente que se era um criado leal não diria nada importante a um desconhecido a menos que soubesse que seu senhor tinha morrido.

— Me descreva o incidente com a carruagem que lhes obrigou a sair do caminho - pediu.

O cocheiro falou com voz entrecortada, procurando as palavras, sem que suas curtidas mãos deixassem por um só instante de esfregar e lustrar o couro. Em essência, sua versão coincidia com a do Greville. Também ele recordava os olhos do outro condutor.

— Olhos de louco, pareceram-me - afirmou, movendo a cabeça. — Com um olhar intenso.

— Eram claros ou escuros? - perguntou Pitt.

— Claros como o reflexo da luz na água. Nunca em minha vida tinha visto um rosto como esse, e espero não voltar a vê-lo.

— Mas não conseguiram averiguar a procedência dos cavalos.

— Não. - O cocheiro desceu o olhar e a posou no arnês que segurava entre suas mãos. — Abandonamos a busca muito cedo, suponho. Se tivéssemos insistido mais, possivelmente agora o senhor Greville ainda vivesse. São uns lunáticos, esses irlandeses. Nem todos, claro está. A jovem Kathleen era boa garota. Caía-me bem. Senti-o muito quando partiu.

— Quem é Kathleen? - disse Pitt. Provavelmente não tinha a menor importância, mas nada perdia por perguntar.

— Kathleen O’Brien. Era uma criada da casa. Não muito distinta de nossa Doll, só que morena. Tinha o cabelo tão escuro como a noite e olhos azuis de irlandesa.

— E era de origem irlandesa?

— Sim, certamente! Tinha uma voz doce como o mel e cantava maravilhosamente.

— Quanto tempo faz que se foi?

— Seis meses - respondeu o cocheiro, e de repente seu rosto se escureceu e seus ombros se retesaram.

— Por que partiu? - insistiu Pitt. Não podia descartar a possibilidade de que a moça tivesse por irmão ou inclusive amante a um nacionalista exaltado.

— Kathleen não fez nada de mau - assegurou o cocheiro sem afastar a vista de seu trabalho. — Se pensar que teve algo que ver com isto, equivoca-se.

— Por que ia ter algo que ver com isto? - perguntou Pitt sem alterar. — Partiu com ressentimento? Existia alguma causa?

— Não tenho nada que dizer, senhor Pitt.

— Conduzia você a carruagem do senhor Greville também em Londres, ou só aqui?

— Estive muitas vezes em Londres. Nesta casa não há muito movimento de carruagens quando os senhores se encontram na cidade, e John pode ocupar-se de tudo. Ensinei-lhe um pouco o ofício.

— Assim, conduzia você a carruagem do senhor Greville em Londres?

— Isso disse .

— Conhece a senhora Easterwood? - perguntou Pitt.

A resposta foi desnecessária. Sua reação o delatou: a hesitação, a inclinação do corpo, a súbita imobilidade das mãos e o modo de reatar depois a tarefa, afundando os dedos no couro, os dedos brancos.

— Havia muitas outras mulheres como a senhora Easterwood? - disse Pitt sem alterar o tom de voz.

O cocheiro voltou a guardar silêncio.

— Compreendo sua lealdade - prosseguiu Pitt, — e a admiro, tanto se a mantém pelo senhor Greville como por sua viúva. - Pitt percebeu que o cocheiro contraía o rosto ao ouvir essa palavra. — Mas ao senhor Greville o assassinaram. Golpearam-no na cabeça e o afogaram em sua própria banheira. Depois o deixaram ali toda a noite, nu, com o rosto sob a água, até que Doll o achou pela manhã...

O cocheiro ergueu bruscamente a cabeça e lhe dirigiu um olhar iracundo com os olhos entreabertos.

— Não tem por que me contar isso! Não está bem que as pessoas saibam...

— As pessoas não sabem. - Pitt estendeu um braço e lhe aproximou um trapo limpo. — Mas me proponho descobrir aos responsáveis. Não foi um só homem, porque o cocheiro do olhar intenso não está no Ashworth Hall. Por manter isto em segredo também morreu assassinado um bom homem em Londres, um pai de família honrado. Quero apanhá-los a todos, e os apanharei. Se para isso tenho que averiguar algum ou outro sórdido detalhe das vidas de umas quantas mulheres como a senhora Easterwood e conhecer facetas do senhor Greville que o público ignora, fá-lo-ei.

— Sim, senhor - respondeu o cocheiro a contra gosto. Desgostava-lhe a idéia de falar daquilo, mas não via alternativa. Apertava o arnês entre suas mãos e tinha tensos os ombros.

— Havia outras mulheres como a senhora Easterwood? - repetiu Pitt.

— Umas quantas. - O cocheiro cravou seu olhar no do Pitt. Respirou fundo e deixou escapar o ar em um suspiro. — A maioria em Londres. Nunca esposas de seus amigos. Não tirava delas nada que não estivessem dispostas a dar. Todas eram mulheres fáceis... -interrompeu-se de repente.

— E essas não contam - acrescentou Pitt por ele, recordando o tom da carta do Malcolm Anders.

— Todo mundo conta, senhor Pitt.

— Inclusive as fulanas?

O cocheiro avermelhou.

— Não tem direito a chamar "fulana" a nenhuma mulher, senhor Pitt. Por muito delegado que seja, não penso ficar aqui parado escutando essa espécie de coisas.

— Inclusive moças como Kathleen O’Brien? Deitam-se com alguém para melhorar sua situação e... - Pitt se interrompeu também subitamente ao perceber raiva e dor no olhar do cocheiro. Passou dos limites. — Sinto muito - se desculpou sinceramente. Podia representar-se com toda clareza a história, uma entre uma dúzia de variações sobre o mesmo tema: uma criada atraente; um senhor acostumado a apropriar-se de quanto desejava muito e convencido de que os criados não eram pessoas como ele, com ternura, dignidade e honra. Para ele, essa distinção não era sequer intencional.

— Kathleen não era dessas - declarou o cocheiro, olhando-o com fúria. — Não tem direito a falar assim dela!

— Só pretendia provocá-lo para saber a verdade - admitiu Pitt. — O que ocorreu com a Kathleen?

O cocheiro continuava colérico. Ao Pitt recordava ao cocheiro da propriedade onde se criou, um homem taciturno, leal, franco até o extremo da brutalidade, mas dotado de uma paciência infinita com os animais e os jovens.

— Despediram-na por furto - explicou contra sua vontade. — Mas na realidade foi porque não estava disposta a deixar-se tocar por ninguém.

Pitt relaxou. Até esse momento não se dera conta de que tinha os punhos tão apertados que lhe doíam os músculos e arranhara as palmas das mãos.

— Retornou a Irlanda?

— Não sei. Demos-lhe tudo o que pudemos reunir, eu, a cozinheira e o senhor Wheeler.

— Bem, mas continua você sendo leal ao senhor Greville? - disse Pitt.

— Não, senhor - retificou o cocheiro. — Sou leal à senhora. Não quereria que se inteirasse dessas coisas. Algumas esposas sabem e podem viver com isso; outras não. Acredito que a senhora não poderia. Não é uma mulher amargurada, ou talvez alguns diriam realista. Não o contará, verdade?

— Não o contarei nada que não deva lhe contar - respondeu Pitt, mas o disse com pesar, porque sabia que essa resposta ambígua não oferecia ao cocheiro a tranqüilidade que procurava.

Retornaram ao entardecer, com a luz desvanecendo-se rapidamente no crepúsculo outonal, e Pitt se alegrou de não ter que viajar só entre as sebes e as árvores.

Embora mal soprava o vento, a temperatura descia mais e mais, e o nariz ardia por causa do ar frio. Os pequenos ramos caídos rangiam sob os cascos do cavalo e a respiração do animal formava nuvens brancas na escuridão.

Ao cabo de uma hora e meia viram as luzes do Ashworth Hall. Momentos depois entravam no pátio das quadras para desmontar. No passado Pitt sempre desencilhava ele mesmo seu cavalo, passeava-o para refrescá-lo, acariaçava-o e lhe dava de comer e beber; e às vezes se ocupava também do cavalo de Matthew.

Deixando ao animal em mãos de um moço e partindo sem mais, sentiu-se negligente e despreocupado. Era outro vestígio de suas longínquas origens. Em troca Piers, jovem, esbelto e dolorido, fê-lo com a mesma naturalidade com que alguém tira a jaqueta em sua própria casa.

Pitt entrou atrás dele pela porta lateral da casa, limpando antes as botas no ornamental ralo de ferro forjado colocada ali com esse fim.

Dentro a casa estava quente. Inclusive o amplo vestíbulo lhe pareceu muito acolhedor depois do cortante frio da noite. Um lacaio os aguardava serviçalmente.

— Ofereço algo ao senhor? - perguntou, dirigindo-se antes a Pitt, para surpresa deste. Por um momento tinha esquecido que ele era um convidado pessoal, e Piers só uma incorporação posterior, e além disso de menor idade. — Uma bebida quente? Um copo de uísque? Um ponche morno?

— Uma bebida quente não me virá mau, obrigado. Saiu já o senhor Radley da reunião?

— Não, senhor. Atreveria-me a dizer que as conversas vão melhor do que o previsto. - O lacaio olhou ao Piers. — Trago também a você uma bebida quente, senhor?

— Sim, obrigado. - Piers se voltou para Pitt. Não lhe tinha perguntado o que tinha intenção de contar. No fim das contas, já lhe tinha rogado discrição uma vez e ignorava o que lhe havia dito o cocheiro. — Subirei para ver a senhorita Baring. - Olhou ao lacaio.     — Sabe se está com minha mãe?

— Sim, senhor, no toucador azul.

— Obrigado.

Depois de lançar outro olhar ao Pitt, Piers subiu pela escada e se afastou pelo patamar.

— Eu também tomarei em cima a bebida - disse Pitt. — E acredito que tomarei um banho antes do jantar.

— Sim, senhor. Pedirei que lhe levem a água quente.

— Sim, por favor - respondeu Pitt com um sorriso. — Obrigado.

Foi Tellman quem apareceu com a água, e não de muito bom aspecto. Se não a derramou pelo caminho foi unicamente porque ele mesmo se teria empapado. Entretanto desfrutaria se no dia seguinte Pitt não pudesse se mover de dor.

— Averigüei muitas coisas - disse Pitt para iniciar conversa enquanto tirava a gravata e a deixava na cantoneira. Começou a desabotoar a camisa, situando-se atrás do biombo colocado para proteger a banheira das correntes de ar.

— Sobre o que? - resmungou Tellman.

Enquanto se despia, Pitt o pôs à corrente sobre as relações de Greville com a senhora Easterwood e outras como ela, e sobre a Kathleen O’Brien e o que o cocheiro havia dito, e calado, a respeito de sua demissão.

Tellman, com as mãos nos bolsos e expressão sombria, escutava reclinado contra a mesa de mármore em que se achavam os potes de sais e as saboneteiras.

— Parece que granjeou uns quantos inimigos - comentou pensativamente. — Mas as moças que sofrem um trato injusto não voltam para assassinar a seus senhores. - Trocou de lugar para manter o biombo entre ele e Pitt. — Se assim fosse, desapareceria a metade da aristocracia inglesa.

— Seria uma maneira rápida de acabar com os abusos - disse Pitt. Afundou um pé na água quente e lhe percorreu um calafrio. Era uma sensação deliciosa. Até esse momento não tinha tomado plena consciência de quão friorento e duro estava, nem do cansaço que o invadia. Levava muito tempo sem submeter-se a tal esforço físico. Deslizou lentamente na fumegante e perfumada espuma. — Duvido que guarde relação com o caso - prosseguiu com maior seriedade — mas devemos contemplar a possibilidade de que Kathleen O’Brien tenha algum parente nacionalista, ou inclusive feniano, e estivesse mais que disposta a facilitar informação. Motivos não lhe faltavam, certamente.

— Que importância poderia ter? - Tellman abriu um pote de sais e farejou com curiosidade, enrugando o nariz ao perceber o feminino aroma. — O matou alguém da casa. Obviamente não foram um marido ultrajado nem Kathleen O’Brien. Greville os teria reconhecido. Além disso, conhecemos já os antecedentes de todas as pessoas que estão agora aqui.

Pitt não tinha mais remédio que falar com Eudora. Quando se vestiu, sem ter visto ainda Charlotte, que ajudava Emily a entreter a Iona e Kezia, foi a saleta da Eudora e bateu na porta.

Abriu Justine. Um raio de esperança brilhou em seu olhar. Entretanto ao escrutinar o rosto do Pitt captou algo em sua expressão que não soube interpretar mas era sem dúvida doloroso. Piers não estava ali. Provavelmente seguia no banheiro ou se vestia para o jantar.

— Entre, senhor Pitt.

Justine abriu a porta de par em par e retrocedeu. Levava um vestido de cor azul violáceo, e sua magreza era tal que teria parecido frágil a não ser porque a natural gracilidade de seus movimentos lhe davam um ar de fortaleza, como o de uma bailarina. Era fácil entender a fascinação que exercia no Piers, dada sua extraordinária beleza, menosprezada só, e de maneira surpreendente, por seu singular nariz. Pitt nem sequer teria sabido dizer se era um nariz feio ou simplesmente diferente.

Atrás dela viu Eudora, sentada em uma grande poltrona ao amor da luz, como se tivesse frio apesar de a sala estar quente. Sua extrema palidez contrastava com a viva cor de seu cabelo. Olhou Pitt com cautela, sem interesse, como se não esperar-se dele mais que notícias tediosas, já conhecidas.

Justine fechou a porta quando Pitt entrou. Sem aguardar a que o convidassem a tomar assento, Pitt se acomodou frente a Eudora. Embora tinha pensado naquilo durante a maior parte da longa e fria viagem de volta ao Ashworth Hall, não tinha encontrado ainda a maneira menos dolorosa de dizer o que devia dizer, nem sabia o que podia lhe ocultar e que não. Algumas coisas chegariam a conhecer-se qualquer modo, e era melhor que ela se inteirasse em privado e antes que outros.

Quanto mais a contemplava à luz do fogo, com suas delicadas feições e seus adoráveis olhos e lábios, quanto mais desprezava ao Greville por suas traições. Sabia que o julgava com suma severidade. Em realidade, ignorava como era Eudora na estreita relação matrimonial, se era muito fria ou crítica, silenciosamente cruel, desdenhosa ou distante. E entretanto não podia julgar ao Greville de outro modo, porque não era essa a imagem que intuitivamente se formara de Eudora.

— Senhora Greville, li todas as cartas e papéis da escrivaninha de seu marido e falei com o cocheiro sobre o incidente do caminho. Compreendo por que seu marido não nos mostrou antes essas notas. São ameaças vagas e anônimas. Não servem de nada. Poderia tê-las enviado qualquer um.

— Não achou nada, pois? - perguntou Eudora como se não soubesse se sentia decepção ou alívio.

— Nessas cartas não -matizou Pitt-. Não obstante havia outras, e as conversas com os criados revelaram certos fatos.

— Ah, sim? Ainsley nunca me mencionou outras ameaças, possivelmente por me economizar preocupações.

Justine se aproximou da lareira e disse:

— Sem dúvida foi essa a razão. Não devia querer assustá-la desnecessariamente se podia evitá-lo.

Eudora lhe sorriu. Era evidente que a dor tinha criado já um vínculo entre elas. Justine mal conhecia Greville, mas parecia sofrer profundamente a perda.

— Recorda a uma criada que se chamava Kathleen O’Brien? - perguntou Pitt.

Eudora pensou por um momento.

— Sim, sim, era uma moça encantadora. Irlandesa, claro. - Enrugou a frente. — Não acreditará que tinha algo que ver com a Associação Feniana, não é? Era do sul, mas parecia muito agradável... Suponho que é absurdo atribuir idéias políticas a um criado. Insinua que poderia ter passado informação sobre nós a alguém? - concluiu com uma expressão de manifesta incredulidade.

— Acaso teria irmãos ou um amante - indicou Justine.

Eudora não ficou muito convencida.

— Mas o atentado ocorreu bastante tempo depois de partir Kathleen - aduziu. — O que ia dizer lhes que eles mesmos não pudessem averiguar vigiando o estábulo? Senhor Pitt, não aceitarei que se culpe a Kathleen sem provas sólidas. E certamente não está aqui este fim de semana. Vi às criadas da senhorita Moynihan e a senhora McGinley. Não, isto não tem nada que ver com a Kathleen.

— Por que deixou de servir em sua casa, senhora Greville?

Eudora vacilou. Pitt adivinhou a mentira em seus olhos até antes que falasse.

— Por algum assunto familiar. Voltou para a Irlanda. Por que diz isso? Eudora lhe dirigiu um olhar de surpresa e tristeza.

— Foi acusada de um furto - desmentiu Pitt.

Justine ficou tensa, mas sua expressão permaneceu inescrutável.

— Não acredito que fosse culpada - disse Eudora, evitando o olhar de Pitt. — Estou convencida de que foi um mal-entendido. Queria... - interrompeu-se. Conhecia já a verdade? Tinha aquilo alguma importância em todo caso? Era necessário fazê-la sofrer ainda mais privando-a da honrosa lembrança de seu marido? Pitt preferia não ter que chegar a esse ponto. Via-a já tão abatida, tão vulnerável. Possivelmente aquilo carecia realmente de toda transcendência para o caso.

Justine se tinha aproximado mais a Eudora, colocando-se frente a Pitt.

— Não acreditará, suponho, que essa garota teve algo que ver? - disse com calma. — Até se voltou para a Irlanda e simpatizava com a causa nacionalista, até se contou a alguém que tinha servido no Oakfield House, não podia oferecer informação valiosa. O senhor Greville foi assassinado nesta casa, e o atentado no caminho pôde cometê-lo qualquer um, mas não foi uma mulher. — Seu olhar era franco e sereno.

— Não, tem você toda a razão - admitiu Pitt. Exposta daquele modo, a possibilidade se desvanecia por completo. — Senhora Greville, conhece uma tal senhora Easterwood?

— Sim, vagamente - respondeu Eudora. Sua expressão contradizia a cautela de seu tom de voz. Ou conhecia ou suspeitava a relação entre ela e Greville, ou estava à corrente de sua reputação.

Percebendo possivelmente certo nervosismo na Eudora, Justine se aproximou ainda um pouco mais a ela e apoiou um braço no espaldar da poltrona em gesto protetor.

— Essas pessoas das que fala poderiam ter facilitado informação sobre os movimentos do senhor Greville, senhor Pitt? - perguntou Justine com um tom ainda cortês mas ligeiramente admonitório. — Acredita que saber quem são lhe permitirá descobrir o indivíduo desta casa que cometeu o assassinato? Ou a quem quer que matasse a esse outro pobre homem em Londres? Se algo disseram essas mulheres, deve ter sido involuntariamente, e nem sequer recordarão com quem falaram. – Um fugaz sorriso apareceu em seus lábios. — O culpado não foi um intruso, como o senhor Tellman estabeleceu interrogando ao serviço. Trata-se de um crime político, motivado pela postura pacificadora do senhor Greville e sua habilidade na mesa de negociações. Alguém deseja a paz só se pode impor suas condições; do contrário, prefere que continue a violência.

— Sei, senhorita Baring - reconheceu Pitt.

Compreendia e inclusive admirava seu desejo de proteger a Eudora de novos desgostos. Possivelmente intuía que a vida privada do Greville entranhava segredos difíceis de aceitar por sua esposa. O próprio Pitt compartilhava tais sentimentos.

Entretanto uma nova e desagradável suspeita começava a aninhar em sua mente, e não podia desprezá-la. Se Eudora conhecia as aventuras do Greville com a senhora Easterwood e outras de sua índole e imaginava o que realmente tinha ocorrido com a Kathleen O’Brien, tinha boas razões para odiar a seu marido. Possivelmente seu irmão, Padraig Doyle, estava também informado. Podia acaso concebê-lo como uma traição mais dos ingleses aos irlandeses? Tinha decidido vingar aquela injustiça ao amparo de uma suposta ameaça política? Ou inclusive como parte de uma ação política? Ninguém de fora tinha entrado no Ashworth Hall. Tinham encontrado os fenianos no Doyle a um assassino mais que disposto? Até esse momento Pitt tinha considerado pouco provável essa opção pelo laço de parentesco. Mas isso carecia já de valor.

— Senhora Greville - disse Pitt com voz baixa — as cartas que encontramos, assim como a informação dada pelos criados, muito contra sua vontade, revelam que o senhor Greville mantinha relações íntimas com várias mulheres. A menos que você deseje o contrário, economizar-lhe-ei os detalhes, mas não há outra interpretação possível. Lamento-o.

O elegante corpo de Justine se retesou como se Pitt tivesse atirado um golpe físico em Eudora. Olhou-o com um brilho de indignação em seus formosos olhos.

Eudora empalideceu e mal achou forças para falar e manter firme a voz. Mas quando olhou ao Pitt nos olhos, sua expressão refletia mais medo que dor.

— Muitos homens têm fraquezas, senhor Pitt - disse pausadamente. — Em especial os homens poderosos que ocupam altos cargos. Possivelmente a tentação se cruza em seu caminho com maior freqüência, e necessitam o desafogo de esquecer por um momento suas responsabilidades. Esses namoricos são breves e intrascendentes. Uma mulher sensata aprende logo a passá-los por alto. Ainsley evitou sempre qualquer situação que pudesse me ser embaraçosa. Era discreto. Não galanteava minhas amigas. Nem todas as mulheres podem considerar-se tão afortunadas.

— E Kathleen O’Brien? - perguntou Pitt, lamentando ter que mencioná-la outra vez.

— Era uma criada, disse! - prorrompeu Justine com desdém. — Não insinuará, senhor Pitt, que um homem da dignidade e posição do senhor Greville andaria paquerando uma criada? Isso é insultante.

Eudora se voltou para ela.

— Obrigada por sua lealdade, querida. Foi-me que grande ajuda nestes difíceis momentos, mas possivelmente deveria ir com o Piers. Também ele deve estar muito afetado por isso. Iria eu mesma, mas me consta que preferirá sua companhia. – Uma expressão de pesar arqueou fugazmente sua boca. — Assegure-se de que coma algo. Deve repor forças depois de uma viagem tão longo a cavalo.

Justine aceitou com dignidade o pedido da Eudora e se retirou, deixando a sós Pitt e Eudora.

Eudora se inclinou ainda mais para o fogo, como se tivesse ainda frio a pesar do calor quase cansativo da sala. O resplendor amarelo das chamas iluminava suas faces e o suave ângulo de seu queixo e projetava sobre a pele a sombra de suas pestanas.

Pitt se sentia cruel, mas não tinha escolha. Obrigou-se a recordar o rosto exangue do Greville sob a água, a indignidade de seu corpo, os gritos de Doll, e o cadáver do Denbigh em um beco de Londres.

— Era Kathleen O’Brien uma ladra? - perguntou.

— Não, não acredito - sussurrou Eudora.

— Foi despedida por negar-se a agradar os desejos de seu esposo?

— Essa... possivelmente fosse em parte a razão. Era uma moça... difícil - respondeu, resultando evidente que não diria nada mais. Percebia-se na rigidez de seus ombros. Apesar da delicadeza de seus contornos debaixo as dobras do vestido escuro, estava em tensão. Por seu aspecto e a cor mogno de seu cabelo, recordava Charlotte, mas era muito mais vulnerável.

— Estava informado seu irmão, o senhor Doyle, dos gostos e fraquezas do senhor Greville?

— Nunca o contei - respondeu Eudora imediatamente. Era uma resposta cheia de orgulho, mas ao mesmo tempo evasiva. — Uma mulher não fala dessas coisas. Seria vergonhoso... e desleal - acrescentou com uma nota de censura e a voz empanada como se estivesse à beira do pranto.

Pitt pensou em tudo o que Eudora tinha padecido nos últimos dias: primeiro o nervosismo pela pressão que devia suportar Greville, obrigado a sair gracioso em uma tarefa quase impossível, e o temor por sua vida; logo a chegada do Piers para anunciar seu compromisso de bodas, sem antes lhes haver dito sequer que estava apaixonado, nem é claro ter consultado com eles a respeito de seus planos; no dia seguinte o assassinato de seu marido. E por último aparecia Pitt e a obrigava a reconhecer que boa parte de sua vida tinha sido uma falsidade, que tinha estado perturbada pela traição a seus sentimentos, seu lar, seus valores mais arraigados. Sua dor devia ser intolerável.

E entretanto permanecia imóvel junto ao fogo, inexpressiva, mantendo as formas. Uma mulher de menor integridade teria chorado, gritado, teria reprovado sua crueldade com palavras ofensivas. Ao Pitt não agradava absolutamente ter que escavar mais ainda em suas feridas, mas não era muito menos impossível que Padraig Doyle tivesse matado ao Greville. O modo em que Greville tratava a Eudora eximia ao Doyle de toda lealdade familiar com respeito a ele. Era irlandês, católico e nacionalista. Greville devia confiar nele mais que em nenhum outro dos homens presentes na casa. Poderiam ter discutido, mas Greville jamais teria esperado dele uma ação violenta. Teria continuado na banheira sem o menor receio até o último momento, quando era já muito tarde para pedir auxílio.

— Deram alguma vez alojamento a seu irmão em Oakfield House? - perguntou por fim.

— Sim, mas faz muitos anos - respondeu Eudora sem olhar ao Pitt.

— E em sua residência de Londres?

— Às vezes. Em Londres recebemos muitas pessoas. Meu marido ocupa... ocupava um posto importante.

— Visita você a Irlanda com freqüência?

Eudora vacilou.

Pitt aguardou. As brasas se desmoronaram na lareira.

— Sim. Nasci na Irlanda. Volto de vez em quando.

Não tinha sentido seguir pressionando-a. Todas as perguntas pendentes flutuavam no ar. Eudora as conhecia já, mas não estava disposta a responder.

— Lamento me haver visto obrigado a falar com você deste assunto - disse Pitt ao cabo de um momento. — Desejaria ter podido queimar essas cartas sem mais.

— Compreendo-o - respondeu Eudora. — Ou isso acredito. - Ergueu a vista e o olhou nos olhos. — Senhor Pitt, Piers leu essas cartas?

— Sim, mas não estava diante quando interroguei aos criados. Não sabe nada a respeito da Kathleen O’Brien nem das outras mulheres de Londres.

— Far-me-ia o favor de lhe contar só o imprescindível? Ainsley era seu pai...

— É claro. Não é meu desejo empanar a reputação do senhor Greville a olhos de ninguém, e menos ainda dos membros de sua família...

Eudora lhe sorriu.

— Sei.. Não invejo seu trabalho, senhor Pitt. Às vezes deve ser muito penoso.

— Porque causa dor a outros - disse Pitt com tom compreensivo, — a pessoas que já sofreram muito.

Eudora manteve nele o olhar ainda por um instante e depois se voltou para a lareira.

Pitt se desculpou e foi ver se Jack se desocupara já. Ainda não se sentia preparado para reunir-se com Charlotte. Ela estava ali em seu ambiente. Movia-se com desenvoltura naquela grande mansão de tetos altos, deliciosos móveis e criados discretos entregues a seus trabalhos. Pitt recordava ainda com muita clareza o tempo em que ele mesmo tinha sido um criado e nem sequer era capaz de vê-los como tais. No fundo seria sempre um intruso.

 

Emily estava esgotada, e entretanto só conseguiu conciliar o sono a momentos. Na manhã seguinte à viagem do Pitt a Oakfield House, despertou até antes que a criada de menor categoria, salvo que ela em lugar de levantar-se permaneceu às escuras na cama rememorando os desastres desse fim de semana e temendo o começo do novo dia.

Quando se levantou, tinha uma surda e constante dor de cabeça, e a primeira xícara de chá não melhorou absolutamente seu estado, como tampouco a aliviou a água quente que lhe levou a criada para o asseio matutino, embora o aroma do extrato de lavanda que lhe deu a cheirar era muito agradável. Emily colocou um vestido azul esverdeado e se arrumou com esmero. Logo se olhou no espelho, mas sua imagem não lhe proporcionou a menor satisfação. Tinha um aspecto magnífico. Tinha recuperado já completamente sua silhueta de antes do nascimento de sua filha Evangeline, que nesse momento se achava na casa de Londres com seu meio irmão maior, George, e a babá. Aquele vestido era o último grito em moda feminina e a cor a favorecia, como qualquer verde ou azul. Seu cabelo loiro, de delicados cachos naturais que em outro tempo Charlotte tanto invejava, luzia um elaborado penteado, sem uma só mecha fora de lugar. Não dava problemas a nenhuma criada.

Mas tudo aquilo eram trivialidades. Inclusive a espantosa perspectiva de ter que convencer aos criados de que cumprissem com suas obrigações, acalmando-os, dissipando seus temores, lhes assegurando que não havia nenhum lunático na casa que ninguém mais seria morto, era simplesmente o dever de uma boa anfitriã.

Atrás de tudo isso se ocultava em realidade seu temor pelo Jack. Cornwallis lhe tinha proposto que substituísse ao Greville à frente da mesa de negociações, e ele tinha aceito como se não tivesse a menor consciência do risco que implicava. Se havia alguém tão interessado no fracasso da conferência para assassinar ao Greville, sem dúvida estaria disposto a matar também ao Jack.

E Pitt não fazia nada para protegê-lo salvo manter ao condenado Tellman pego a ele, como se isso servisse de algo. Nem sequer sabia de quem ou o que o protegia. Deveriam ter suspendido a conferência. Essa era a única solução sensata. Enviar mais policiais e interrogar a todo mundo até que se esclarecesse o crime. O próprio Cornwallis deveria estar ali.

Emily notou que o pânico se apropriava dela. Assaltaram sua mente imagens do Jack morto, o rosto lívido, os olhos fechados, e de repente lhe saltaram as lágrimas, se formou um nó no estômago e teve náuseas. Inútil o falso consolo de negar essa possibilidade. Claro que podia ocorrer. Tinha ocorrido já uma vez. Eudora Greville tinha ficado viúva. Estava sozinha. Tinha perdido ao homem que amava. Ou era de supor que o amava. Embora isso pouco tinha que ver com seus próprios temores. Ela sim amava ao Jack. Essa manhã, sentada ante o penteadeira com um broche entre os dedos trêmulos, compreendeu quanto o amava.

E estava furiosa com ele por aceitar presidir a conferência, embora em seu lugar ela teria feito o mesmo. Emily nunca se detinha ante nada quando se propunha um objetivo. Teria desprezado ao Jack se se tivesse arredado. Mas assim ao menos estaria a salvo. E embora recusasse admiti-lo, também lhe preocupava que Jack fracassasse, e não só porque a tarefa fosse provavelmente impossível, mas sim porque não possuía os dotes para a diplomacia do Ainsley Greville. Carecia da experiência, da sutileza, do conhecimento dos problemas irlandeses; em suma, não estava preparado para essa tarefa.

Todas essas reflexões flutuavam na periferia de sua mente, e não estava disposta a consentir que acontecessem primeiro plano. Não se permitiria expressá-las em palavras. Seria desleal, e possivelmente falso. Amava Jack por seu encanto, sua ternura, sua facilidade para rir, seu senso de humor e sua galanteria, sua capacidade de ver o lado belo das coisas e desfrutá-lo, e porque ele também a amava. Não necessitava que demonstrasse sua inteligência, alcançasse a fama ou conseguisse fortuna. Ela tinha já dinheiro de sobra, herdado do George.

Possivelmente Jack tinha a necessidade de fazer aquilo por si mesmo, ou ao menos tentá-lo, pôr a prova sua valia, sair gracioso ou fracassar. Emily teria desejado protegê-lo... tanto do um como do outro. Seu filho, Edward, era filho de George, não de Jack, e as vezes ela experimentava o mesmo desejo incontido de resguardá-lo de qualquer mal, inclusive das inevitáveis angustia do processo de crescer e amadurecer. Nunca se tinha considerado uma mulher maternal. A idéia mesma resultava absurda. Nada mais longe dela. Emily era prática, ambiciosa, ocorrente, acordada, capaz de adaptar-se a quase qualquer situação, e nunca se consolava com mentiras piedosas. Era uma realista de bom caráter.

Entretanto, essa manhã Emily discutiu com Jack, apesar de ser o último de seus desejos. Ele entrou no quarto de vestir justo depois de partir Gwen. Colocou-se detrás dela e, sorridente, olhou-a nos olhos através do espelho. Inclinou-se e a beijou na cabeça sem despenteá-la.

Ela se voltou em sua banqueta e o observou com expressão séria.

— Tomará cuidado, não é verdade? - apressou. — Não deixe que Tellman se separe de ti. Já sei que tem mau caráter, mas agüenta-o de momento.

Ficou em pé e inconscientemente ergueu as mãos para lhe endireitar as lapelas, apesar de estarem já retas, e a lhe tirar uma imaginária bolinha de algodão.

— Deixa já de preocupar-se, Emily - disse Jack sem alterar-se. — Ninguém vai atacar- me em público. De fato duvido que alguém tenha intenção de me atacar.

— Por que? Não se acredita capaz de continuar o que Ainsley Greville começou? Esteve presente desde o começo. Estou certa de que pode conseguir quão mesmo ele teria conseguido. - De repente Emily mudou de idéia, dando-se conta do que suas palavras implicavam. — Embora possivelmente seria preferível que se limitasse a manter vivo o interesse dos representantes. A conferência sempre poderia reatar-se mais adiante, em Londres...

— Quando for possível designar a outro moderador - acrescentou Jack com um sorriso.

Emily percebeu em seus olhos uma expressão doída.

— Quando for possível garantir sua segurança - retificou ela, consciente de que Jack não acreditava nela.

O que podia acrescentar para reparar o dano? Como podia convencê-lo de que confiava nele sem lhe importar a opinião de outros? Se se excedia em suas adulações, pioraria ainda mais as coisas. Por que tinha Jack que propor uma meta tão difícil? Talvez realmente carecia das aptidões necessárias para aquela missão.

Como podia induzi-lo a acreditar em algo do que ela mesma não estava certa? E, enquanto isso, o temor pela vida do Jack a corroia sem cessar, afastando-se de sua mente todo o resto, lhe impedindo de pensar com clareza. Tratou de persuadir-se de que era estupidez sua. Mas não o era. O cadáver do Ainsley Greville, que jazia no depósito de gelo, dava fé disso.

— Thomas velará por nossa segurança melhor que ninguém - afirmou Jack depois de um instante de silêncio. — A casa está cheia de gente. Não se preocupe. Basta que evite as possíveis brigas entre a Iona e Kezia e cuide da pobre Eudora.

— Assim o farei - respondeu ela como se se tratasse de uma tarefa simples. Jack nem sequer se dava conta de que o verdadeiro esforço era impedir que os criados brigassem, sucumbissem à histeria ou abandonassem a casa.

— Charlotte te ajudará - acrescentou Jack.

— Claro - disse Emily, estremecendo. Charlotte tinha muito boas intenções, mas seu escasso tato podia provocar um desastre. Deveria assegurar-se de que sua irmã não se aproximasse da cozinha. Um enfrentamento entre Charlotte e a cozinheira terminaria em uma absoluta catástrofe doméstica.

O café da manhã transcorreu dentro da habitual tensão mas sem incidentes. Os homens desejavam reatar com urgência as conversas e deixaram a mesa antes que descessem as mulheres, de modo que Kezia e Fergal puderam evitar-se.

Fergal e Iona trocaram um abrasador olhar ao cruzar-se na porta, mas não se dirigiram a palavra. Eudora continuava em seu quarto. Piers e Justine estavam muito apagados, mas ao menos ela conservou a serenidade e manteve uma agradável conversa a respeito de trivialidades em que, para alívio de Emily, acabaram participando todas as demais.

Outra coisa muito distinta foi a organização do serviço. O mordomo se sentia ofendido porque os valetes de visita não estavam sob seu controle, como, segundo ele, teria devido ser. Comiam à parte, e isso representava um grande aborrecimento. As lavadeiras não davam provisão porque uma delas estava em cama com vapores e havia muita lavagem pendente. A criada da senhorita Moynihan se dava muitos ares e tinha conseguido provocar à criada da senhora McGinley, e como resultado da disputa se derramou um balde de sabão no chão do tanque.

A criada tinha ataques de risada, e se geralmente não era já muito eficaz, nesse instante sua utilidade era nula. A criada da Eudora, imersa ainda na maior consternação, esquecia-se uma e outra vez de seus afazeres, e a pobre Gracie devia terminar tudo o que ela deixava pela metade, isso quando não estava ocupada contemplando Hennessey, escutando-o ou sentindo falta de sua presença.

O humor do Tellman piorava cada vez mais, e Dilkes começava a cansar-se dele. Sua função ali não parecia útil nem ornamental, embora possivelmente o fato de ser policial explicava essa atitude e por que Pitt o suportava.

Entretanto foi a senhora Williams, a cozinheira, quem finalmente encheu a paciência de Emily.

— Os guisados comuns não são minha tarefa - disse com indignação. — Eu sou uma cozinheira profissional, não uma cozinheira para tudo. Dedico-me às especialidades. Para esta noite quererá sem dúvida o pato ao forno e o bolo de nata e frutas ao xerez, não? Pois vale mais que as ajudantes de cozinha venham a mim, como deve ser, e não que seja eu quem tem que as perseguir cada vez que se põe a chorar ou se escondem dos duendes no armário de debaixo da escada. E não vou consentir que nenhum mordomo me diga como devo impor disciplina em minha cozinha, senhora Radley! Até aí podíamos chegar!

— Quem está no armário da escada? - perguntou Emily.

— Georgina. E esse não é nome para uma ajudante! Já lhe disse que se não sair agora mesmo enviarei a algo pior que uns duendes a procurá-la. Irei eu pessoalmente e amaldiçoará a hora em que lhe ocorreu meter-se aí! E não conte com que seja eu quem prepara as verduras, o arroz com leite ou o mingau. Eu tenho já bastante com o veado, os bolos de maçã, o robalo e sabe Deus que mais. São muitas tribulações para uma pessoa decente, senhora Radley, como o ouve.

Emily mordeu a língua. De boa vontade teria despedido a senhora Williams naquele mesmo instante, e com considerável sarcasmo, mas não podia permitir-se. Tampouco podia permitir-se perder a autoridade. A criadagem nunca o esqueceria, e o precedente daria pé a toda classe de complicações no futuro.

— Todos temos tribulações, senhora Williams - replicou Emily, obrigando-se a adotar uma expressão de cordialidade contrária a seus verdadeiros sentimentos. — Todos estamos assustados e inquietos. Minha maior preocupação é que a casa saia dignamente deste espantoso fim de semana para que depois as pessoas recordem o lado bom. O outro não nos atribuirá a não ser à política irlandesa...

— Bem... - disse a senhora Williams, soprando pelo nariz, — terá que ter isso em conta, suponho. Embora eu não consiga ver o lado bom.

— A comida é mais que boa; é excelente - respondeu Emily, o que, sem ser mentira, era um tanto exagerado. — Nos achamos ante um desses desastres em que se demonstra a diferença entre uma grande cozinheira e uma cozinheira simplesmente aceitável. Trata-se de uma prova de fogo, senhora Williams. Muita gente se desembrulha bem quando tudo vai sobre rodas e não é necessário recorrer à criatividade, o valor ou uma extraordinária disciplina.

— Bem! - A senhora Williams se endireitou perceptivelmente. — Devo lhe dar a razão, senhora Radley. Não a deixaremos na estacada. E agora, se me desculpar, preferiria não ficar aqui de conversa a menos que tenha algo mais que me dizer. Vale mais que me ponha mãos à obra se tiver que fazer também o trabalho dessa boba da Georgina.

— Sim, você vá, senhora Williams. Obrigado.

Emily voltou para cima e entrou no salão de manhã, onde achou ao Justine falando com a Iona e Kezia junto a um vivo fogo. Percebia-se um ambiente crispado mas dentro dos limites da urbanidade. No final, Kezia reservava para seu irmão sua maior indignação, e Charlotte tinha explicado o motivo. Emily supôs que em circunstâncias similares ela sentiria o mesmo.

— Estava pensando em dar um passeio - comentou Iona não muito convencida, contemplando o céu cinza através das altas janelas. — Mas parece que faz frio.

— Uma idéia excelente - afirmou Justine, e ficou em pé. — Será tonificante, e chegaremos com tempo de sobra para o almoço.

— O almoço! - exclamou Iona, surpreendida, e jogou uma olhada ao relógio da lareira, que marcava as onze menos vinte. — Nesse tempo poderíamos percorrer a metade do caminho a Londres.

Justine sorriu.

— Não com esse vento de frente, nem com estas saias.

— Puseram-se alguma vez bombachas? - perguntou Kezia com interesse. — Embora um pouco impudicos, parecem muito práticas. Eu adoraria prová-las.

— Sabem montar em bicicleta? - apressou-se a dizer Emily. As bicicletas eram sem dúvida um tema inócuo. Era exaustivo ter que pensar tanto antes de fazer inclusive as observações mais intrascendentes. — Vi modelos muito diferentes. Deve ser uma sensação maravilhosa. - Alongava qualquer comentário para fazer durar o tema. Era lamentável. Esperava com toda sua alma que Iona saísse a passear e deixasse na casa a Kezia, mas não devia apressá-la, ou sua insistência despertaria suspeitas. Em sua vida nunca tinha passado um fim de semana no qual todo mundo se sentisse tão perturbado.

Continuaram falando de bicicletas por uns minutos. Finalmente Justine tomou a iniciativa e saiu com a Iona em busca de bengalas e xales para o passeio. Emily ficou com a Kezia, esforçando-se por manter a conversa. Ao cabo de meia hora se desculpou e foi atrás de Charlotte. Por que não estava ali ajudando? Devia saber quão difícil era a situação. Emily confiava em sua irmã, e ela desaparecia. Certamente tinha ido consolar a Eudora, como se fosse possível.

Mas quando Emily subiu a saleta que usava Eudora, não achou ali ao Greville mas Pitt. Eudora se achava sentada em uma poltrona e Pitt, agachado frente à lareira, avivava o fogo. Isso não era tarefa sua. Para algo estavam os lacaios.

— Bom dia, senhora Greville - disse Emily com tom solícito. — Como se encontra? Bom dia, Thomas.

Pitt se ergueu com uma careta de dor devida às dores musculares e devolveu a saudação.

— Bom dia, senhora Radley - respondeu Eudora com um débil sorriso.

Parecia ter envelhecido dez anos desde sua chegada ao Ashworth Hall. Sua pele tinha perdido viço. Seus olhos seguiam tão formosos como sempre, mas tinha as pálpebras inchadas. Tinha dormido pouco, e seu cabelo não brilhava já como antes. Era assombrosa a rapidez com que a consternação e a tristeza. Menosprezavam o aspecto físico, com igual prontidão que qualquer enfermidade.

— Pôde conciliar o sono? - perguntou Emily com preocupação. — Se o desejar, posso pedir ao Gwen que lhe prepare algo para ajudá-la dormir. Temos abundante lavanda, e seu extrato é muito agradável. Ou prefere possivelmente tomar uma camomila com mel e umas bolachas antes de retirar-se esta noite a seu quarto?

— Obrigada - disse Eudora distraidamente, sem mal olhar para Emily. Tinha a atenção posta no Pitt.

Pitt se afastou do fogo e se voltou para Emily. Também ele estava tenso, como, se fosse muito consciente da aflição da Eudora.

— E uma infusão de verbena? - sugeriu Emily. — Ou de manjericão ou salvia se não quiser verbena? Deveria havê-lo pensado antes.

— Estou segura de que Doll se ocupará disso, obrigada - respondeu Eudora. — É muito atenciosa, mas não quero lhe dar mais trabalho do que já tem.

O comentário não era uma insinuação para que Emily partisse, a não ser simples distração. Seus pensamentos, e inclusive seu olhar, continuavam fixos no Pitt.

— Posso lhe oferecer algo? - insistiu Emily. Era sua obrigação. Eudora estava muito afetada, e inclusive Pitt fazia quanto podia por ela e de fato parecia muito preocupado. Percebia-se em seu rosto uma ternura mais visível ainda que sua característica compaixão.

Eudora se voltou para o Emily e por fim a olhou diretamente.

— Sinto muito. Não me tinha dado conta de quão emocionada estava. Há tantas coisas que... - interrompeu-se. — Sou incapaz de pensar com clareza. Há tantas coisas que... mudaram.

Emily recordou outras mortes violentas e investigações que tinham insone aspectos da vida de alguém previamente desconhecidos. Alguns eram meritórios, elogiáveis; a maioria, em troca, eram sórdidos e punham em perigo inclusive o que alguém considerava mais sagrado. De repente não existia o futuro, e às vezes até as lembranças mais apreciadas do passado se desvaneciam. Havia acaso Pitt revelado a Eudora algum desses aspectos em relação com seu marido? Era esse o motivo de sua manifesta ternura por ela?

— Compreendo-o - sussurrou Emily. — Pedirei que lhe subam uma infusão. E algo de comer. Deve comer um pouco, embora só seja pão com manteiga.

Emily se retirou e os deixou a sós.

Os homens continuavam reunidos, com Jack à frente tentando que chegassem a algum acordo. Quando descia pela escada, viu o mordomo dirigir-se ao salão com uma bandeja. Ao abrir a porta, Emily ouviu vozes subidas de tom. Imediatamente a porta voltou a fechar-se e o som se extinguiu. Uma das pessoas que se achavam ali dentro era o culpado do assassinato do Ainsley Greville, tivesse ou não cúmplices no exterior. Por que se dedicava Pitt a consolar a Eudora? A compaixão era um nobre sentimento, mas ele tinha outras obrigações. Charlotte devia encarregar-se disso. Onde se tinha metido?

Emily desceu ao vestíbulo e a caminho da estufa quase tropeçou com Charlotte, que voltava do jardim.

— O que esteve fazendo? - perguntou Emily com aspereza.

Charlotte fechou a porta ao entrar. Tinha as faces acesas e o cabelo revolto, como se o tivesse alvoroçado o vento.

— Fui dar um passeio - respondeu. — Por que o pergunta?

— Sozinha?

— Sim. O que tem de estranho?

Emily não pôde conter a irritação.

— Greville morreu assassinado. Por Deus sabe quem, mas certamente alguém desta casa; a vida do Jack corre perigo, e Thomas está acima sentado consolando à viúva em lugar de protegê-lo ou no mínimo tratar de averiguar quem matou ao Greville. Os irlandeses estão como o cão e o gato enquanto eu tento manter certa aparência de paz; os criados desmaiam, choram, discutem ou se escondem nos armários... e você sai para o jardim para dar um passeio! E para cúmulo se surpreende que o pergunte! Onde tem a cabeça?

Charlotte empalideceu por um instante e a seguir duas manchas de viva cor vermelha apareceram em suas faces.

— Estava pensando - disse com frieza. — Às vezes pensar um pouco é mais proveitoso que correr de um lado a outro para dar a impressão de que se faz algo...

— Eu não rodo de pessoas a pessoas de um lado a outro! - exclamou Emily.            — Achava que sua vida passada, já que não a presente, tinha-lhe ensinado que governar uma casa deste tamanho, com convidados, requer muita organização e habilidade. Confiava em que pelo menos se encarregaria de que Iona e Kezia mantivessem uma conversação pacífica.

— Justine se ocupou disso...

— E confiava também em que Thomas tentasse proteger ao Jack na medida do possível, e está acima - indicou para a escada com o polegar, — consolando Eudora.

— Provavelmente está interrogando-a - disse Charlotte com tom glacial.

— Pelo amor de Deus, não foi um assassinato por discrepâncias familiares! –respondeu Emily, esforçando-se por controlar a voz. — Se Eudora soubesse algo, o haveria dito a princípio. O assassino é um dos homens que há aí dentro.

— Isso sabemos todos - concordou Charlotte. — Mas quem? Possivelmente seja Padraig Doyle, parou a pensá-lo?

Emily não tinha concebido a possibilidade, nem se deteve considerá-la naquele momento.

— Bom, ao menos vá dar conversa a Kezia. Está sozinha no salão de manhã. Talvez consiga dissuadi-la de sua absurda atitude para o Fergal. Esse comportamento não beneficia a ninguém.

Dito isto, Emily endireitou os ombros e se encaminhou em direção às dependências de serviço, embora tinha esquecido que tinha que fazer ali.

Gracie estava também muito ocupada essa manhã, embora não com as coisas de Charlotte. Os vestidos próprios que tinha pego para o fim de semana requeriam poucos cuidados e os vestidos emprestados necessitavam só algum ou outro toque de prancha. Havia roupa interior por lavar, mas isso era tudo. Pegou-a, desceu e se dirigiu ao tanque pelos corredores da ala do serviço.

Ao chegar, achou Doll, que examinava com irritação a empanada superfície de uma prancha, falando entre dentes.

— Como está a pobre senhora Greville? - perguntou Gracie com tom compassivo.

Doll a olhou.

— A desventurada! - disse com um suspiro. — De momento está muito alterada. E acredito que se sentirá ainda pior antes de começar a repor-se. Viu a cera de abelha e a tinta vermelha?

— Se vi o que?

— A cera de abelha e a tinta vermelha - repetiu Doll. — Tenho que limpar esta roupa antes de usá-la com uma regata branca. - Segurava a prancha e, no alto, observando-a com olho crítico. A outra estava esquentando-se sobre o fogão.

— O senhor Pitt é muito preparado - assegurou Gracie com a intenção de tranqüilizá-la. — Averiguará tudo o que se deve saber, logo descobrirá quem o fez e o meterá no cárcere.

Doll se voltou para ela imediatamente e a olhou com expressão sombria, segurando firmemente a prancha.

— Todo tudo não acredito que precise sabê-lo - disse Doll, e a seguir pegou a outra prancha do fogão e começou a deslizar sobre o tecido branco de uma anágua apoiando seu peso nela.

— Surpreender-se-ia se visse como às vezes um pequeno detalhe se converte em uma pista importante - afirmou Gracie, — ao menos para alguém inteligente capaz de notá-lo e compreendê-lo. Apanhará ao culpado, fique tranqüila.

Doll estremeceu. De repente seu olhar se extraviou e deixou de mover a prancha, apertando com força o punho.

— Não tem por que se assustar tanto. - Gracie se aproximou o senhor Pitt é um homem justo. Não prejudicará a quem não o mereça, nem contará nada que não deva saber-se.

Doll engoliu em seco.

— Claro que não. Nem por um instante pensei... - interrompeu-se, desceu a vista e afastou a prancha da anágua. O tecido se queimou ligeiramente, formando uma marca marrom. Doll respirou fundo e lhe inundaram os olhos em lágrimas.

Gracie pegou a prancha e a deixou no fogão.

— Deve haver alguma maneira de tirar a mancha - disse com fingida convicção.       — Há truques para todos. Só é questão de saaber.

— Diz o senhor Wheeler que o senhor Pitt foi ontem a Oakfield House. - Doll olhou fixamente Gracie. — Por que foi? O que ia procurar ali? Ao senhor Greville matou alguém desta casa.

— Já sei - respondeu Gracie. — Como se tiram as marcas de prancha? Qual é a melhor maneira? Melhor será que limpemos isso antes que seja muito tarde.

— Cebola espremida, terra de menta, sabão branco e vinagre - respondeu Doll distraidamente. — Devem o ter já preparado em alguma parte. Olhe nesse pote. - Assinalou o pote que se achava junto à anilina, sobre uma prateleira situada detrás de Gracie. Havia também recipientes de farelo de cereais, arroz, bórax, sabão, cera de abelha, e sebo corrente, empregado para eliminar as manchas de tinta.

Gracie pegou o pote com as duas mãos e o entregou ao Doll. Pesava muito. As marcas de prancha deviam produzir-se com freqüência. Em troca, havia algo na infelicidade de Doll que não era muito comum. Gracie sentia a necessidade de desentranhá-lo, e não só por Doll, que lhe inspirava simpatia, mas também porque podia ser importante. O assassinato nem sempre era um fato tão simples como a pessoa achava, em particular a pessoa que não tinha tanta experiência na matéria como Gracie.

Entretanto seu intento se viu frustrado com a chegada de uma lavadeira que devia engomar o jogo de mesa para o jantar, e a conversa se desviou rapidamente para o cavalariço, e o que este havia dito ao Maisie, e o comentário do Tillie a respeito, e a razão pela que o engraxate o tinha repetido.

No meio da amanhã Pitt trocou de roupa. Gracie lhe limpou os sapatos. Tellman estava ocupado em outros afazeres, e em qualquer caso fazia mal o trabalho, o grande inútil. Gracie não permitiria que Pitt saísse ao vestíbulo pior vestido que os outros cavalheiros ali pressentes. Pegou um casaco e um chapéu muito elegante, emprestado pelo senhor Radley, e o cocheiro o levou a estação para tomar o trem das dez e quarenta e oito com destino a Londres. Gracie sabia que não desfrutaria da viagem. Ia ver o subchefe de polícia, que sem dúvida estaria muito aborrecido pelo assassinato do senhor Greville apesar das precauções tomadas. Teria desejado pronunciar algumas palavras de fôlego, mas tudo o que lhe ocorreu lhe pareceu muito vazio ou considerou que não correspondia a ela dizê-lo.

E Charlotte não foi se despedir, coisa que deveria ter feito. Estava com a senhorita Moynihan, que continuava muito zangada. Se todas as festas campestres eram como aquela, Gracie não entendia que houvesse alguém disposto a ir.

Decidiu tirar as flores do vaso do quarto de vestir. Haviam murchado, provavelmente pelo calor do fogo. Mataria o momento indo perguntar ao jardineiro se podia pegar outro ramo. Algo serviria, inclusive umas folhas, contanto que estivessem verdes e viçosas.

Deram-lhe permissão para escolher as flores que quisesse na estufa, mas não mais de uma dúzia. Era uma boa ocasião para usar o casaco novo que Charlotte lhe tinha comprado. Inclusive era de sua talha. Subiu para buscá-lo e desceu imediatamente, e quando cruzava o horta seguindo as indicações do jardineiro, viu o Finn Hennessey.

Apesar de estar de costas a ela, reconheceu-o no ato. Contemplava a um gato branco e avermelhado que caminhava pelo alto da taipa do horta em direção aos ramos da macieira. A julgar por seu passo lento e sigiloso, Gracie supôs que tinha visto um pássaro.

Gracie se ergueu, ergueu o queixo e quase inconscientemente rebolou um pouco. Devia atrair a atenção do Finn Hennessey sem deixar entrever que era esse seu desejo. Não se dava bem com a simulação; faltava-lhe prática. Tinha notado quão experimentadas eram as outras criadas. Sabiam paquerar tão bem que o faziam com toda naturalidade. Mas, claro está, elas não tinham nenhuma missão verdadeiramente séria que cumprir. Seriam incapazes de resolver um crime embora tivessem a resposta ante seu nariz. Às vezes pareciam um punhado de bobas rindo-se de qualquer tolice.

Gracie se achava já à altura do Finn Hennessey. Deveria passar ao largo sem dizer nada. Se consumia de frustração, mas não tinha intenção de rebaixar-se àquelas artimanhas que nem a um menino enganariam.

O gato saltou da taipa e traçou um arco pelo ar, salvando uma distância de uns dez pés. Fincou as garras na casca da árvore e deslizou um par de palmos tronco abaixo, mas finalmente conseguiu aferrar-se e subiu até o ramo no preciso instante em que o pássaro empreendia o vôo.

— Oh! - exclamou Gracie involuntariamente por medo de que o gato caísse.

Finn virou sobre seus calcanhares e um sorriso iluminou seu rosto.

— Olá, Gracie Phipps. Saiu a procurar ervas?

— Não, senhor Hennessey; devia pegar umas flores. As do quarto estavam murchas e as tirei. Dá-me igual umas que outras, desde que sejam frescas. Antes teria um punhado de folhas que flores murchas.

— Eu a ajudarei à levá-las - se ofereceu Finn, aproximando-se dela.

Gracie pôs-se a rir.

— Será um ramo pequeno. O jardineiro me disse que podia pegar uma dúzia da estufa. Mas pode levar isso se o desejar.

— Será um prazer - disse ele, sorridente.

Um ao lado do outro, percorreram o caminho, cruzaram a grade e o sebe de bojo e seguiram para a estufa, em cujos painéis de vidro se refletia irregularmente a luz cinza ao incidir em diferentes ângulos. A escura terra estava úmida, bem mexida e pronta para plantar na primavera. As teias de aranha resplandeciam nos ramos recortados da sebe. Um ajudante de jardineiro cortava os caules mortos das plantas perenes e os amontoava em um carrinho de mão. Fazia frio, e Gracie se alegrava de ter posto o casaco não só pela elegância mas também pelo calor que lhe proporcionava.

— No aroma se nota já a chegada do inverno - comentou Finn com satisfação. — Os fogos de lenha, essa é uma das coisas que mais eu gosto: fogueiras com folhas secas, a fumaça azul no ar gelado, o crepitar dos ramos. E quando a pessoa solta o fôlego, fica flutuando ante o rosto como uma nuvem branca. - Olhou Gracie de soslaio, ajustando seu passo ao dela. — E o que me diz dos amanheceres, quando o céu se tinge de um azul pálido e a luz é tão clara como no princípio dos tempos, quando as sebes estão cheias de bagos vermelhos e o ar é tão puro que o nariz arde ao respirar, quando o matagal de ramos nus se desenha nitidamente contra a luz e a gente dispõe de tempo para passear até cansar-se?

— Tem uns sonhos maravilhosos - disse Gracie com tom vacilante. Adorava lhe ouvir falar, e não só pelos disparates que dizia, mas também pela doce cadência de sua voz, estrangeira e musical. Mas não conseguia compreendê-lo.

— Essas são as coisas que podemos desfrutar de graça, Gracie, e se a gente luta com esforço por elas, ninguém pode arrebatar-lhe Mas terá que lutar, e depois por débito transmitir a seus filhos e os filhos de seus filhos. Assim é como sobrevivemos. Nunca o esqueça. Conhecendo nossos sonhos conhecemos nossa identidade.

Gracie guardou silêncio e continuou andando junto a ele, agradada do ter ao lado.

Ao chegar à estufa, Finn lhe abriu a porta. Em sua companhia era muito fácil comportar-se como uma dama e aceitar tais cortesias.

— Obrigada.

Gracie entrou e se deteve em seco, entusiasmada ante as fileiras de vasos de barro de flores dispostas sobre bancos. Era um mosaico de vivas cores, como centenas de tecidos de seda. Só conhecia os nomes dos crisântemos e áster. Deixou escapar um longo suspiro de puro prazer.

— Quer uma dúzia da mesma classe ou doze flores distintas? - perguntou Finn, atrás dela.

— Nunca tinha visto nada igual - sussurrou Gracie. — Nem nos postos de flores do mercado há tantas.

— Logo terminará a temporada e não ficará nenhuma.

— Sim, mas agora as temos aqui.

Finn sorriu.

— Às vezes, Gracie, é você muito sensata.

Finn apoiou uma mão em seu ombro. Gracie notou seu peso e imaginou que notava também seu calor. Havia-lhe dito que era sensata, e entretanto algo empenhava sua voz.

— Pensa no inverno? - perguntou Gracie. — Não esqueça que depois chegará a primavera. Tem tempo para tudo.

— Para as flores, sim; mas há invernos do coração que não deveriam existir, e invernos para os que passam fome. Nem todo mundo vive o suficiente para ver a primavera.

Gracie continuava contemplando as flores.

— Fala outra vez da Irlanda? - perguntou. Preferia não conhecer a resposta, mas não podia estar ali com ele e evitar o tema como se não passasse nada. Ela nunca se evadia da realidade.

— Se conhecesse você aquela tristeza, Gracie - sussurrou Finn. — Aquela opressiva tristeza. Vendo estas flores, recordo risadas e bailes, e depois tomba. Às vezes se acontecem tão depressa...

— Isso mesmo se passa em Londres - afirmou Gracie. Não sabia se o havia dito a modo de consolo ou por contradizê-lo. Em todo caso, também ela ia recordar quem era, e Clerkenwell tinha conhecido de sobra a fome e o frio, a cobiça e as armadilhas dos caseiros, as atividades de prestamistas e valentões, os ratos, os esgotos transbordados e os brotos de tifo e cólera. Todos conheciam alguém com raquitismo ou tuberculose. — Em Londres não nadamos na abundância, sabe? Também eu vi a bebês mortos nos portais, congelados, e a homens tão famintos que degolariam a qualquer um por um pedaço de pão.

— Você viu? - perguntou Finn, aparentemente surpreso.

— Não no Bloomsbury - respondeu ela. — No Clerkenwell, onde eu vivia antes de começar a servir em casa da senhora Pitt.

— Suponho que há miséria em quase todas partes - admitiu. — Mas é a injustiça o mais lamentável.

Gracie esteve tentada de discrepar. A enfureciam, entristeciam e faziam sentir impotência muitas coisas. Mas não desejava discutir com o Finn Hennessey. Gostaria de compartilhar com ele todo o importante, contemplar as flores, cheirar a terra úmida e falar do lado bom da vida, do hoje e o manhã, não do ontem.

— Que classe de flores quer levar? - perguntou Finn.

— Não sei. Ainda não me decidi. Você o que me recomenda?

Gracie se voltou e o olhou. Era bonito, com aquele cabelo negro e sedoso como a noite e uns olhos escuros que tão logo riam como se sumiam na mais profunda tristeza. Sentiu que lhe faltava o fôlego e se apropriavam dela confusas emoções.

— O que lhe parecem esses enormes crisântemos? - propôs ele sem mover-se.

Gracie teve que concentrar-se no quarto onde devia colocá-los. Tinha a mente revolta. Só recordava motivos florais. Era preferível não mesclar muitas cores.

— Levarei os brancos - disse finalmente por dizer algo, já que não tinha a menor idéia se ficariam bem. — Mal começam a abrir-se. Os vermelhos são muito intensos.

— E essa outra de cor marrom dourada? - perguntou Finn.

— Não vão com o quarto. Levarei os brancos.

— Eu os pegarei. - Rodeou ao Gracie e começou a examinar as flores de uma em uma para escolher as melhores. — É curioso que estejam aqui Padraig Doyle e Carson O’Day - comentou sorrindo enquanto arrancava o primeiro crisântemo.

— Ah, sim? Não são as pessoas adequadas para o que seja que vieram a fazer?

— Sim, provavelmente o são, se é que há "pessoas adequadas" para isso. Houve já muitas negociações como esta, sabia?

— Sim? Quer isso dizer que não serviram de nada?

Finn arrancou outra flor, cheirou sua fragrância com um suspiro e a estendeu a Gracie.

Ela a pegou e se aproximou as pétalas úmidas ao rosto. Era como respirar ar celestial.

— Não, não serviram de nada - respondeu Finn com apenas um fio de voz. — Houve uma história de amor. Neassa Doyle era uma jovem católica, da mesma idade que você, uns dezenove anos.

Gracie se absteve de interrompê-lo para precisar que ela tinha já vinte.

— Cheia de alegria e esperança - prosseguiu Finn, sustentando a outra flor na mão como se a tivesse esquecido. — Conheceu o Drystan O’Day por acaso. Nunca deveria ter ocorrido. Ele era protestante, tão furioso como o vento norte em janeiro, violento e cortante; toda sua família o era. - Soltou uma gargalhada, mas não se percebeu nela humor algum. — Para eles, a Batata era o diabo vindo ao mundo e os costumes da Igreja tão imorais como o pecado mesmo. Conheceram-se e se apaixonaram pelas humanas razões de sempre: viam a mesma beleza e magia na terra, a mesma delicadeza no céu; gostavam de cantar velhas canções e dançar até que o cansaço lhes impedia inclusive rir de si mesmos. - Apoiou-se contra o batente da porta e contemplou Gracie, procurando seu olhar enquanto falava. Ela soube que estava fazendo-a partícipe do que para ele era mais importante, uma parte de sua natureza mais íntima, as crenças que o impulsionavam.     — Tinham a esperança de achar a paz e viver de um trabalho honrado; de habitar em uma pequena casa e criar ali seus filhos, como poderia desejar você mesma, ou eu; de compartilhar longas noites ao final do dia, para conversar ou sentar-se tranqüilamente sabendo que estavam um junto ao outro.

— E o que ocorreu?

— Quando era muito tarde, descobriram que pertenciam a bandos opostos. Mas então a eles dois já não importava; mas importava a outros, naturalmente.

— A suas famílias? - perguntou Gracie, sobressaltada. — Mas como podiam impedi-lo? Ninguém pode dizer a outro a quem deve amar. Proibiu-a seu pai?

— Não - respondeu Finn, olhando-a fixamente. — Não se chegou a esse ponto. Os ingleses se inteiraram. Por essas datas quase tínhamos alcançado um acordo, mas os ingleses queriam nos manter divididos. Divide e vencerá. - Seu rosto se contraiu de dor e sua voz se desvaneceu até reduzir-se a um rouco murmúrio. — Utilizaram aos amantes para conseguir seus fins.

— Como? - sussurrou Gracie.

— O principal responsável foi um militar inglês. Chamava-se Alexander Chinnery. Era oficial, tenente de um dos regimentos anglo-irlandeses. Entabulou uma falsa amizade com Drystan O’Day. - Em seu juvenil semblante apareceu tal vislumbre de aflição e ódio que Gracie quase se assustou. — Eis aí a duplicidade - acrescentou com aspereza. — Também podia transmitir mensagens a Neassa. Ninguém suspeitou de nada. Prometeu ajudá-los a escapar. Conseguir-lhes-ia uma embarcação. Era verão. Drystan era um marinheiro perito. Poderia ter navegado sem problemas até a ilha do Man, que era seu suposto destino.

Gracie não afastava o olhar do Finn. Não ouviu a rajada de vento que arrastou contra o vidro as folhas caídas, nem as viu formar redemoinho sobre o telhado.

— O que aconteceu?

— Neassa era muito formosa - continuou Finn com voz baixa . — Igual à senhora Greville, cálida como os raios do sol outonal sobre as árvores. - Seus olhos se inundaram em lágrimas. — Chinnery se reuniu com ela tal como tinha anunciado. Neassa confiava nele, compreende? Acompanhou-o ao lugar onde deviam encontrar-se com Drystan. Ela não podia ir sozinha até ali porque era muito perigoso. - Cuspiu a última palavra como se lhe abrasasse a língua. — Uma mulher só na noite.

Gracie aguardou enquanto Finn tentava recuperar o controle para prosseguir.

— Levou-a a lugar da costa onde teoricamente estava atracada a embarcação, com o vento soprando sobre o mar. - Quebrou-lhe a voz. — E ali a violou...

Gracie teve a mesma sensação que se lhe tivessem esbofeteado.

— E lhe cortou o formoso cabelo - continuou Finn, cravando nela seu olhar como se a estufa, as fileiras de flores, o vivo colorido, o vento que açoitava os vidros, não existissem. — E ali a deixou para que as pessoas a encontrassem.

— Finn, isso é uma atrocidade! - Gracie exalou o ar dos pulmões, muito horrorizada para pronunciar palavras longas ou avivadas. Sentia-se paralisada por dentro. Aquela traição era como uma negra sombra que engolia tudo. — E o que fez o pobre Drystan? -Temia a resposta mas não podia ficar na incerteza.

— Encontrou-a - respondeu Finn com voz quase inaudível, seu punho apertado e branco. — Enlouqueceu de dor. O pobre, um homem confiante, não concebeu sequer que pudesse ter sido Chinnery.

Um estorninho percorreu a saltos o telhado e suas patas repicaram no vidro, mas nenhum dos dois o ouviu.

— O que fez? - repetiu Gracie.

— Perdeu totalmente a cabeça e atacou à comunidade católica, a todo aquele que achou. Matou a dois irmãos da Neassa e feriu o terceiro antes de que os soldados ingleses dessem com ele e o abatessem a tiros. - Respirou fundo. Isso aconteceu num 7 de junho, faz trinta anos. É claro, pouco tempo depois ambos os bandos descobriram a verdade. Os ingleses transladaram ao Chinnery a Inglaterra e ocultaram o ocorrido. Ninguém voltou a saber dele. Provavelmente por sua própria segurança - acrescentou com amargura. — Se algum irlandês o tivesse encontrado, o teria matado e as duas comunidades o teriam aclamado como a um herói.

— É horrível! - exclamou Gracie com a garganta quase fechada e dolorida. Os olhos lhe ardiam por causa das lágrimas. Teve que engolir a saliva. — Espantoso!

— Assim é a Irlanda, Gracie. - Finn arrancou outra flor e a entregou. — Nem sequer o amor triunfa - disse com um sorriso, mas seus olhos delatavam tanto dor como o que ela sentia por aquelas pessoas desaparecidas trinta anos atrás. O tempo não importava. A perda era real. Poderia haver ocorrido a qualquer um, a eles mesmos.

Finn se inclinou, aproximando-se tanto de Gracie que ela notou o calor de sua pele, e a beijou lentamente, com ternura, como se desejasse contar os segundos e recordá-los um a um. Depois lhe tirou as flores das mãos e as deixou no banco. Abraçou-a com delicadeza e voltou a beijá-la.

Quando por fim se afastou, Gracie tinha o coração acelerado. Abriu os olhos para olhá-lo, convencida de que o que veria a agradaria. Assim foi. Finn sorria.

— Leve suas flores brancas, Gracie Phipps - sussurrou. — E se cuide. Produziu-se já um desastre nesta casa e quem sabe se não ocorrerão outros. Lamentaria muito mais do que poderia imaginar que sofresse algum dano.

Ergueu uma mão e lhe acariciou o cabelo por um instante. Depois deu meia volta e saiu da estufa, deixando ali Gracie, que pegou uns quantos crisântemos mais e retornou à mansão quase sem tocar de pés no chão e com o sabor de seus lábios ainda na boca.

Charlotte mordeu a língua em lugar de responder ao Emily como teria desejado. O que pensava dizer a Kezia Moynihan tinha muito sentido, mas dificilmente acharia palavras para expressá-lo depois de discutir com sua própria irmã, sobre tudo porque conhecia os motivos da crispação de Emily. Temia pela integridade física de Jack, mas lhe preocupava também que ele não estivesse ao nível que lhe tinha fixado - ou se fixou ele mesmo - com relação a aquela maldita conferência.

Encontrou Kezia no salão de manhã, como Emily havia dito. Achava-se sentada no silvestre acolchoado da tela da lareira, com a saia torcida ao redor. Charlotte entrou com naturalidade e se sentou junto ao fogo como se tivesse frio, quando em realidade estava simplesmente furiosa.

— Acredita que clareará? - perguntou, dando uma olhada ao céu, de uma agradável cor cinza.

— Refere-se ao tempo? -disse Kezia com um débil sorriso.

— Também a isso - respondeu Charlotte com expressão de desânimo. — A situação é calamitosa, não?

— Totalmente. - Kezia deu de ombros. — E para lhe ser justa, duvido muito que melhore. Tem lido o jornal?

— Não. Vem alguma notícia interessante?

— Só os últimos comentários sobre o caso de divórcio Parnell-O’Shea. Dá-me a impressão de que Parnell tem os dias contados depois disto, seja qual for o veredicto.

Kezia tinha o semblante tenso. Charlotte imaginava o que acontecia à sua mente em relação com seu irmão. Expor-se a semelhante risco tinha sido uma insensatez por parte do Fergal.

Como se Charlotte tivesse expresso pessoalmente seus pensamentos, Kezia apertou os punhos e cravou o olhar no fogo da lareira.

— Quando penso em tudo o que estragou, seria capaz de odiá-lo - admitiu Kezia com amargura. — Compreendo a facilidade dos homens para chegar às mãos. Quando alguém enche nossa paciência, poder golpeá-lo sem contemplações deve proporcionar um grande desafogo.

— Sem dúvida - concordou Charlotte. — Mas possivelmente o desafogo dura pouco tempo, e logo terá que pagar as conseqüências.

— Que sensata é você! - disse Kezia sem um ápice de admiração.

— Atirei pedras contra meu próprio telhado muitas vezes para considerá-lo uma atitude inteligente - respondeu Charlotte, controlando seu mau gênio.

— Custa-me imaginá-lo - comentou Kezia, e pegando o atiçador, inclinou-se de meio lado e avivou com virulência o fogo.

— Isso se deve a que julga às pessoas precipitadamente e não é capaz de adivinhar seus sentimentos - replicou Charlotte, deixando-se levar por seu mau gênio com considerável satisfação. — Tenho a sensação de que a falta que crítica em seu irmão é a mesma que comete você.

Kezia ficou imóvel e ao cabo de um instante voltou a cabeça muito devagar, com o rosto avermelhado bem pela ira, bem pelo calor do fogo.

— Essa é a maior estupidez que lhe ouvi dizer até o momento. Ele e eu somos pólos opostos. Eu, obedecendo ao Fergal, deixei-me guiar por minha fé e me mantive leal a minha pessoa a custa da única pessoa que amei na vida. Ele, em troca, jogou tudo a perder, traiu-nos e cometeu adultério com uma mulher casada, que além disso é católica e representa portanto ao inimigo.

— Referia-me à incapacidade de ficar no lugar de outros e imaginar seus sentimentos - explicou Charlotte. — Fergal não compreendeu que você amava de verdade ao Cathal. O expôs só como uma questão de submissão a sua fé e lealdade à forma de vida de sua comunidade. Sem a menor compaixão, ordenou-lhe renunciar a ele.

— E o fiz! Deus me perdoe.

— Possivelmente Fergal nunca até agora tinha estado apaixonado, total e perdidamente apaixonado, como você o esteve.

— É isso uma desculpa? - perguntou Kezia com um brilho de ira em seus olhos claros.

— Não. É falta de compreensão, ou inclusive um nulo esforço de imaginação - respondeu Charlotte.

Kezia se surpreendeu.

— O que quer dizer?

— Que se esteve você tão apaixonada, por que é incapaz de imaginar o que sente Fergal agora pela Iona, embora não o aceite?

Kezia permaneceu em silêncio e desviou novamente o olhar, refletindo-as chamas em sua face.

— Seja franca, totalmente franca - prosseguiu Charlotte, — e pergunte-se se sentiria a mesma indignação em caso de não ter sido obrigada a renunciar a seu amor pelo Cathal. Não procede sua raiva em grande medida de sua própria dor?

— E o que tem se assim for? - Kezia segurava ainda o atiçador, empunhando-o como uma espada. — Acaso não lhe parece justo?

— Sim, parece-me justo; mas qual será o resultado?

— A que se refere?

— Qual será o resultado de negar seu perdão ao Fergal? - precisou Charlotte. — Não pretendo que considere correta sua conduta, porque não o foi. Iona é uma mulher casada. Mas isso terá suas próprias conseqüências à margem do que você faça. Minha pergunta é: O que conseguirá distanciando-se do Fergal?

— Não... não sei...

— Será você mais feliz?

— Não.... claro que não - respondeu Kezia. — Faz perguntas francamente estranhas.

— Será alguém mais feliz, ou mais sensata, ou mais audaz, ou mais gentil, ou mais de acordo a seus desejos?

— Bom.... não...

— Então por que adota essa atitude?

— Porque... Fergal é tão... injusto! - exclamou Kezia, irada, como se a resposta fosse óbvia. — Tão fraco moralmente! É um hipócrita dos pés à cabeça, e eu detesto a hipocrisia.

— Da hipocrisia não gosta ninguém - respondeu Charlotte. — Mas às vezes é cômica.

— Cômica! - repetiu Kezia, arqueando as sobrancelhas.

— Sim. Não tem você sentido do ridículo?

Kezia a olhou com expressão de assombro. Por fim começaram a relaxar suas mãos e a cobrar vida seus olhos de turquesa.

— É você a pessoa mais estranha que conheci.

— Suponho que terei que me contentar com isso - disse Charlotte com um leve gesto de resignação.

Kezia sorriu.

— Não é um cumprimento muito entusiasta, admito-o, mas tampouco há nele hipocrisia.

Charlotte deu uma olhada ao jornal estendido sobre a mesa.

— Se o senhor Parnell perder a liderança, quem acredita que o sucederá? - perguntou.

— Carson O’Day, imagino - respondeu Kezia. — Cumpre todos os requisitos. E tem além disso o espaldar de uma família importante. Seu pai possuía uma inteligência privilegiada, mas é já um ancião. Foi um dos grandes líderes de sua época. Não tinha medo de nada. - Distendeu-se, abandonando-se à lembrança. — Uma vez meu pai nos levou ao Fergal e a mim a escutá-lo em um comício político. Meu pai era um dos pregadores mais persuasivos do norte da Irlanda. Quando falava do púlpito, sua voz envolvia a uma pessoa como as ondas do mar ao romper, com a mesma espuma branca e uma corrente tão forte que arrancava uma pessoa do chão. - Sua voz, carregada de emoção, ergueu-se gradualmente. — Fazia ver e sentir a seus fiéis o céu e o inferno: os luminosos caminhos e os anjos do Senhor, o gozo infinito e os cantos; ou a escuridão e o fogo que tudo o consome, o asfixiante fedor a enxofre do pecado.

Charlotte não a interrompeu, mas a assaltou o desejo de aproximar-se da lareira. Aquele aquecimento lhe assustava. Não dava lugar à reflexão nem admitia a possibilidade de engano. Quando a pessoa adotava tal postura em público, não podia voltar atrás embora o futuro lhe ensinasse novas alternativas. Renunciava a toda possibilidade de mudança, retirada ou maturidade.

— Era um homem maravilhoso - afirmou Kezia, possivelmente mais para si que para Charlotte. — Nos levou a escutar ao Liam O’Day. Conforme contam, seu irmão Drystan morreu vítima dos ingleses por causa de seu amor pela Neassa Doyle.

— Por que? Quem era ela?

— Uma papista. É uma velha história. Neassa Doyle e Drystan O’Day se apaixonaram. Isso faz trinta anos. Um soldado inglês chamado Alexander Chinnery, amigo do Drystan, traiu-o. Violou e assassinou a Neassa e depois fugiu para a Inglaterra. Drystan foi em busca dos irmãos da Neassa, e se encetaram em uma sangüenta briga. Dois dos irmãos morreram, e também Drystan, este à mãos dos ingleses, que pretendiam encobrir a maldade do Chinnery. Mas os dois bandos se culparam mutuamente. A família Doyle assegurou que Drystan tinha seduzido a Neassa, e até hoje se negam a aceitar qualquer outra interpretação. Os O’Day pensaram que ela o tinha seduzido a ele, e agora odeiam aos nacionalistas. Carson é o segundo filho, mas Daniel, o primogênito, está prostrado pela tuberculose. Em princípio era Daniel quem devia liderar a causa, mas agora a responsabilidade recaiu no Carson. Carece do ardor do Daniel. - Sorriu. — Vi alguma vez ao Daniel quando era jovem, antes de adoecer. Era muito bonito, como seu pai. Mas possivelmente Carson seja mais apto. Tem uma mente mais equilibrada e é diplomático.

— Mas você não está de todo de acordo, não é?

Nos lábios da Kezia se desenhou um amplo sorriso.

— Não, claro que não. Por algo somos irlandeses. Não obstante, nossos pontos de vista são bastante afins para combater juntos aos papistas. Brigaremos entre nós depois.

— Uma atitude muito sensata - concordou Charlotte.

Kezia a olhou e de repente pôs-se a rir.

— Sim, entendo o que quer dizer.

Naquela mesma manhã, pouco depois, Charlotte se achava no terraço do salão, a curta distância de Jack, quando do balcão situado em cima se precipitou uma das urnas ornamentais. Caiu a só três passos dele e se fez em pedacinhos contra as lajes do chão, pulverizando-a terra e os restos de hera em um amplo raio.

Jack empalideceu, mas lhe tirou importância e proibiu à Charlotte que o dissesse à Emily.

Deu-lhe sua promessa, mas quando voltou a entrar na casa a assaltou de repente um incontrolável tremor e um intenso frio apesar de brilhar já o sol.

Pitt foi de trem a Londres. Em circunstâncias normais teria desfrutado da viagem. Gostava de ver passar a paisagem, e também a fumaça da locomotiva, o estalo continuado e a vertiginosa sensação de velocidade. Mas nessa ocasião pensava só no que diria ao Cornwallis, desejando que o transe acabasse quanto antes.

Não tinha desculpa alguma. Tinha sido incapaz de proteger a Ainsley Greville, e três dias depois não dispunha ainda de um só indício que pudesse levá-lo a descobrir o culpado. Por eliminação, Doyle e McGinley eram os principais suspeitos, mas não tinha a menor idéia de qual deles tinha sido.

— Bom dia, Pitt - saudou Cornwallis com expressão grave quando Pitt entrou em seu escritório.

— Bom dia, senhor - disse Pitt.

Tomou assento junto ao fogo a convite do Cornwallis. Era um gesto cortês, que os punha a ambos na mesma situação, sem a barreira de uma escrivaninha entre ambos. Entretanto isso não tranqüilizou a consciência do Pitt nem mitigou sua sensação de ter defraudado a confiança depositada nele.

— O que ocorreu? - perguntou Cornwallis, inclinando-se e juntando inconscientemente as pontas dos dedos de ambas as mãos. O resplendor do fogo reverberava em sua cabeça e faces. Era um homem em quem a calvície era completamente atural. De fato o favorecia, realçando suas pronunciadas feições.

Pitt lhe contou tudo o que sabia pertinente ao caso. Parecia muito, e entretanto se reduzia a nada por falta de provas concludentes.

Quando terminou, Cornwallis o olhou pensativamente.

— Assim, poderia havê-lo matado Moynihan por razões políticas. Seu pai era certamente um protestante furioso. É possível que para ele qualquer pacto equivalha a uma debilitação da supremacia protestante, como assim seria, suponho. Mas representaria deste modo uma maior justiça, e portanto paz, segurança e prosperidade para todos. - Moveu a cabeça em um gesto de incompreensão. — Mas o ódio está muito enraizado, mais que a razão ou a moralidade, ou inclusive a esperança de futuro. - Mordeu o lábio inferior e olhou ao Pitt com fixidez. — A outra possibilidade é Padraig Doyle, já seja por razões também políticas, ou pelo modo em que tratava a sua irmã. - Seu semblante revelou ceticismo. — Realmente acredita que a conduta do Greville com sua esposa era tão ofensiva para incitar ao assassinato? Muitos homens tratam mal a suas mulheres. A senhora Greville não recebia surras nem sofria privações econômicas ou humilhações públicas. Greville atuou sempre com extrema discrição. Ela não sabia, diz você?

— Não...

Cornwallis voltou a recostar-se e cruzou as pernas, movendo a cabeça em um gesto de negação.

— Se a senhora Greville o tivesse surpreendido na cama com uma mulher que competisse com ela por seu afeto, poderia havê-lo matado em um arrebatamento, um crime passional. Embora as mulheres raramente reagem assim, e menos ainda as mulheres da classe da Eudora Greville. Tinha muito que perder, Pitt, e nada que ganhar. A menos que desejasse ser livre para casar-se com outro homem, e não achou você prova alguma disso, não?

— Não - se apressou a responder Pitt. Em nenhum momento tinha suspeitado da Eudora. Não imaginava capaz de cometer um ato de tal violência. — A senhora Greville é... Conhece-a?

Cornwallis sorriu.

— Sim. É muito formosa. Mas inclusive as mulheres formosas podem reagir com virulência ante a infidelidade; mais que outras, de fato, já que não concebem que algo assim possa ocorrer a elas. A ofensa é maior.

— Mas Greville não incorreu nessa conduta em Ashworth Hall - disse Pitt peremptório. — Ela e eu falamos só do passado, e isso nada incluía que ameaçasse sua posição de esposa. Como você diz, as aventuras de seu marido nada tinham que ver com o amor; eram um simples abandono à luxúria.

— Por que, pois, ia Doyle a assassinar ao Greville por ela?

Pitt não tinha resposta.

Cornwallis entreabriu os olhos.

— O que ocorre, Pitt? Há algo mais, ou se não, nem sequer teria exposto a possibilidade. Sem dúvida é você tão consciente como eu, ou possivelmente mais, da escassa solidez de seu raciocínio.

— Acredito que a senhora Greville suspeita de Doyle - disse Pitt pausadamente, expressando a idéia em palavras pela primeira vez. — Mas possivelmente me equivoco quanto ao motivo. Acaso se trata de uma questão política.... nacionalismo irlandês, como todo o resto.

— Não todo o resto. - Cornwallis deu de ombros. Estava um tanto violento, com ligeiras manchas de rubor nas faces. — Hoje se conhecerá o veredicto sobre o pedido de divórcio de O’Shea.

— Qual será? Sabe?

— Do ponto de vista legal, acredito que o tribunal falhará a favor do Willie O’Shea. Sua esposa é culpada inquestionavelmente de um prolongado adultério com Parnell. A única dúvida é se o capitão O’Shea atuou em conivência com ela ou foi realmente enganado.

— E foi? - perguntou Pitt, que mal tinha lido nada sobre o julgamento. Não tinha tido tempo e, até esse momento, tampouco interesse. Não estava ainda muito certo de que relação podia guardar com os fatos do Ashworth Hall.

— Graças a Deus, não me corresponde ditar sentença - respondeu Cornwallis com tristeza. — Mas se tivesse que fazê-lo... - Titubeou. Essa classe de temas o incomodava. Considerava que existiam aspectos da vida de um homem que deviam manter-se no âmbito privado e lhe causava um grande embaraço que essas intimidades se fizessem públicas. — Mas me custaria acreditar que houvesse alguém tão confiante como ele quer aparentar. Embora algumas das provas raiam ao absurdo. Escapar por uma escada de incêndios quando o marido entra pela porta principal e apresentar uns minutos depois nessa mesma porta como se a pessoa acabasse de chegar é um comportamento indigno de alguém que assume a liderança de um movimento nacional para a unidade e a representação de seu povo no Parlamento.

Pitt ficou atônito, e o assombro deve ter se refletido em seu semblante.

Cornwallis esboçou um sorriso.

— Nem sequer cabe a opção do ter por um homem com senso de humor e apresentá-lo como um patife encantador que saiu impune de sua travessura. Parnell o tem feito com a expressão séria e pretendida moralidade e para cúmulo o apanharam.

— Arruinará sua carreira? - perguntou Pitt, olhando com atenção ao Cornwallis.

— Sim - respondeu Cornwallis taxativamente. Depois de pensar por um instante, acrescentou: — Sim, quase com toda certeza.

— Nesse caso, procurará o movimento nacionalista um novo líder?

— Sim; possivelmente não de maneira imediata mas sim em curto prazo. Talvez Parnell cambaleie por um tempo mas perdeu a autoridade.... acredito. E possivelmente também outros acreditam, se o perguntar você por isso. Seja como for, o julgamento suporá um sério reverso para a causa da unidade irlandesa, a menos que da conferência do Ashworth Hall saia algum acordo. Isso depende principalmente do Doyle e O’Day, com a colaboração ou a oposição do Moynihan e McGinley.

Pitt respirou fundo.

— Na manhã seguinte de nossa chegada - explicou, — a irmã do Moynihan, que pelo visto tem tanto interesse como ele na política, foi ao quarto deste para falar de sua estratégia e o surpreendeu na cama com a esposa do McGinley.

— Como? - disse Cornwallis com a mesma expressão como se não compreendesse suas palavras.

Pitt repetiu.

Cornwallis fixou o olhar no fogo e passou a mão pela cabeça. Ao cabo de um instante se voltou para o Pitt.

— Sentindo muito, não posso lhe enviar mais homens - murmurou. — Se decidiu manter em segredo a morte do Greville no momento. Confio em que quando chegar a hora de dá-la a conhecer, possamos anunciar também a detenção do homem que o assassinou.

Pitt sabia que Cornwallis tinha a obrigação de lhe dizer aquilo; mesmo assim se esticou ainda mais o nó que levava dentro, a sensação de ver-se esquecido em um espaço cada vez menor.

— Há alguma novidade no caso Denbigh? - perguntou.

— Apenas nada. - Agora tocava ao Cornwallis adotar uma atitude de desculpa.         — Rastreamos seus movimentos nos dias anteriores a sua morte, e sabemos que naquela noite visitou a taverna Dog and Duck do King Williams Street. Viu-o falar com um jovem de cabelo loiro, e mais tarde se uniu a eles um homem de maior idade, largas costas e um andar peculiar; com pernas tortas, a julgar pela descrição. - Olhou fixamente para Pitt.      — Segundo o taberneiro, tinha uns olhos pouco comuns, muito claros e brilhantes.

— O condutor da carruagem que atentou contra Greville... - Pitt deixou escapar um suspiro. — Agora tenho já duas razões para procurar a esse canalha.

— Temos, Pitt - retificou Cornwallis. — Buscaremos ele em Londres. Você concentre-se em averiguar qual desses quatro irlandeses matou ao Ainsley Greville. Precisamos sabê-lo antes de que abandone Ashworth Hall, e só podemos retê-los ali alguns dias mais.

— Sim, senhor.

 

Gracie arrumou os crisântemos brancos e colocou o vaso na mesa do quarto de vestir. Depois flutuou escada abaixo em um estado de devaneio. No vestíbulo não viu os retratos ancestrais nem as paredes revestidas de madeira; viu o reflexo da luz nos painéis de vidro e cheirou a terra, as folhas úmidas e as flores dispostas em fileiras. Tão logo desejava recordar até a última palavra daquela conversa como pensava que carecia de importância; a cálida sensação que a invadia era quão único contava. Se a examinava com muito vagar, por acaso se desvanecesse, como quando se separam os compassos de uma melodia. Gracie tinha visto as notas escritas em uma partitura, e não significavam nada para ela. A magia tinha desaparecido; já não era música.

Tinha pendurado no braço o vestido que Charlotte usaria para o jantar, e era difícil mantê-lo-bastante alto para não arrastar pelo chão a longa saia.

— Gracie!

Só ouviu vagamente essa voz.

— Gracie!

Deteve-se e se deu meia volta.

Doll corria escada abaixo atrás dela com semblante preocupado.

— O que ocorre? - perguntou Gracie.

— O que faz aqui? - disse Doll, pegando-a pelo braço. — Não devemos usar esta escada carregadas com roupa das senhoras. E se aparecesse alguém de repente na porta? Causaria uma péssima impressão. Para isso está a escada de trás. Só pode descer por esta se lhe enviarem por algum recado às habitações da parte dianteira.

— Ah! Ah, sim, claro! - exclamou Gracie. Já sabia que era essa a norma, mas lhe tinha ido o santo ao céu.

— Onde deixou a cabeça? - perguntou Doll com tom mais cometido. — Está na figueira?

— Na figueira? - repetiu Gracie, desconcertada. — O que tenho eu que fazer na figueira?

Sem dar-se conta, baixava gradualmente os braços e o vestido azul roçava já o chão. Doll o pegou. Media quase dois palmos de estatura mais que Gracie.

— Pegar figos, se lhe parecer. Quero dizer que tem a cabeça em outra parte. Foi engomar este vestido? Porque tal como está agora, vale mais que o faça... e também limpe e passe a prega da saia. - Contemplou a seda com expressão ponderativa. — É uma cor linda. Sempre imaginei que o mar tem esta cor ao redor das ilhas desertas.

Para Gracie não interessavam as ilhas desertas. As coisas melhores aconteciam nos jardins da Inglaterra, sob a luz outonal. O branco e o verde eram as cores mais formosas. Seguiu mansamente à Doll, e cruzaram a porta forrada de tecido que dava às dependências do serviço, percorreram o corredor, dobraram à esquerda, deixaram atrás a despensa destinada a pendurar os faisões e outras peças de caça e a carvoeira, e chegaram ao tanque e os quartos de engomar contíguos.

Doll pendurou o vestido num cabide e o inspecionou atentamente, sacudindo algumas bolinhas de pó. A seguir molhou um trapo, escorreu-o até deixá-lo só ligeiramente úmido e esfregou as zonas da prega que se sujaram ao roçar o chão.

— Não ficou mal - opinou por fim. — Deixa-o secar durante alguns minutos e depois engoma-o. A senhora Pitt não porá nenhum reparo. Trabalha em uma boa casa. Tem sorte.

Gracie afastou imediatamente de sua mente ao Finn Hennessey e recordou a desdita que às vezes percebia no semblante de Doll, sua expressão de profunda e dilaceradora solidão, reflexo de uma aflição que não era passageira, mas sim aninhava sempre em seu interior e aflorava em momentos de descuido.

— Você não se considera afortunada? - disse Gracie em um sussurro. Esteve a ponto de perguntar se a senhora Greville tinha alguma queixa dela, mas pressentiu que não era esse o problema. Lhe parecia muito superficial, muito intrascendente. E embora não podia adivinhar o trato que a pessoa dava a seus criados pela imagem que oferecia em público, não tinha a impressão de que Eudora fosse em excesso suscetível com a criadagem. O senhor Wheeler não exteriorizava o menor nervosismo no cumprimento de suas obrigações. Tinha ficado muito afetado pela morte de seu senhor e era consciente ao menos em parte do que implicava um assassinato, mas isso era diferente.

Doll tinha as costas rígidas e os ombros tensos como se tivesse duros todos os músculos.

— Você não se considera afortunada, pois? - repetiu Gracie. Aquilo subitamente tinha cobrado grande importância.

Doll começou a remover os potes dos armários como se procurasse amido, anilina ou algum outro produto, apesar do conteúdo de cada um deles aparecer indicado na etiqueta, e finalmente não pegou nenhum.

— Foi muito atenciosa comigo - disse Doll, escolhendo cuidadosamente as palavras e entretanto as pronunciando com afetada ligeireza. — Eu não gostaria de vê-la sofrer. - Sem motivo algum, trocou de lugar um par de potes, ainda de costas a Gracie. — Não se apaixone, Gracie. Não há problema em deixar-se beijar ou abraçar, mas não consinta a ninguém que passe daí. Além desse ponto as garotas como nós só podemos esperar dor. Não leve a mal. Já sei que não é meu assunto.

— Não a levar a mal - murmurou Gracie. Notou que o sangue subia às faces, mas era só vergonha. Se seus sentimentos eram tão claros para Doll, possivelmente o eram também para todos outros. Talvez inclusive para Finn. Devia concentrar-se e saber agir como uma detetive. Afinal de contas, tinha tido um bom modelo. — Você esteve apaixonada, pois?

Doll soltou uma gargalhada, um som amargo e dilacerador próximo ao soluço.

— Não.... nunca me apaixonei. Nunca conheci a ninguém... a ninguém por quem sentisse algo semelhante, e embora o conhecesse, é pouco provável que se dignasse me olhar.

— Por que ia negar se alguém a te olhar? - perguntou Gracie com franqueza. — É uma das moças mais bonitas que vi em minha vida.

Doll pareceu relaxar um pouco as costas.

— Obrigada - sussurrou. — Mas os homens não procuram só isso. Além disso terá que ser respeitável, ter dignidade.

— Boa reputação, quer dizer? - perguntou Gracie. — Suponho que sim, na maioria dos casos; mas isso nem sempre conta.

— Sim, sim conta, e muito - respondeu Doll, sem admitir discussão, como se ela mesma tivesse albergado essa esperança e a tivesse visto defraudada.

Gracie tinha a total certeza de que Doll pensava em alguém em particular.

— Por isso segue com os Greville apesar de ser uma boa casa?

Doll ficou imóvel.

— Eu não disse que não seja uma boa casa!

— Não vou por aí contando que disse isso - protestou Gracie. — Em todo caso, pode ser que a senhora Greville agora mude. As coisas serão diferentes agora que seu marido morreu. Pobre infeliz.

— O senhor Greville não era um pobre infeliz - replicou Doll com voz entrecortada.

— Referia-me a ela. Está muito pálida e assustada, como se soubesse quem o matou.

Doll se voltou muito devagar. Estava lívida e se aferrava a borda do suporte de mármore contíguo ao tanque como se temesse cair.

— Ei! - Gracie se jogou para ela. — Vai desmaiar? - Olhou ao redor mas não viu nenhuma cadeira. — Sente-se no chão se for cair. Poderia se machucar nestas lajes.

Apesar da oposição d Doll, Gracie a pegou e, apoiando contra ela seu insignificante peso, obrigou-a a deslizar até o chão.

Doll se desmoronou, arrastando consigo Gracie, e ficaram as duas sentadas na fria pedra.

Gracie a rodeou com um braço, lhe dando consolo, como faria com um das crianças.

— Sabe quem o matou, não é? - insistiu. Não podia deixar escapar a ocasião.

Doll, respirando com dificuldade, moveu a cabeça em um gesto de negação.

— Não! Não sei! - Pegou a mão de Gracie e a apertou com força. — Não sei; tem que me acreditar. Só sei que não fui eu.

— Claro que não foi você! - disse Gracie sem deixar de abraçá-la. Notou tremer seu corpo por causa do medo que a invadia e parecia inundar o ar.

— Poderia ter sido eu - afirmou Doll, obstinada a ela, com a cabeça inclinada e algumas mechas de cabelo começando a escapar das forquilhas e da touca. — Bem sabe Deus que desejei sua morte mais de uma vez.

Gracie sentiu um calafrio, como se seus temores se fizessem realidade.

— Desejava sua morte? - Estava obrigada a perguntá-lo. Precisava saber pelo Pitt, que atravessava momentos difíceis, e em qualquer caso Doll não podia seguir guardando aquilo dentro de seu peito. — Por que?

Em lugar de responder, Doll se pôs-se a chorar silenciosamente como se lhe rompesse o coração.

Gracie recordou que na noite do assassinato tinha visto uma criada de costas no corredor, perto do quarto de banho dos Greville. Com uma dor quase física, desejou que essa criada não fosse Doll e ao mesmo tempo temeu que fosse. Por um momento desejou apagar a lembrança de sua memória, mas era absurdo pretender negá-lo. Não só tinha visto essa criada, mas também além disso o havia dito já ao Pitt, e ele não o esqueceria.

Embora tampouco desejava que a imagem dessa criada se desenhasse com nitidez em sua mente, devia esforçar-se em revivê-la.

Doll continuava em silêncio, encolhida junto a ela, consumida pela aflição e medo.

Gracie tratou de recordar, de resgatar essa imagem do fundo de sua memória. Possivelmente algum detalhe lhe permitisse demonstrar que não era Doll. Nada foi a sua mente. Quanto mais se esforçava, mais escorregadio se tornava a lembrança. Respirou fundo.

— Por que desejava sua morte, Doll? - perguntou, deixando entrever menos medo

do que em realidade sentia. — O que te tinha feito esse homem?

— Meu filho... - sussurrou Doll, angustiada. — Meu bebê.

Gracie pensou em todos os bebês que tinha conhecido, os vivos e os mortos, os não desejados, queridos e bem atendidos que mesmo assim adoeciam ou sofriam acidentes, as duas crianças que estavam a seu cuidado no Bloomsbury, que não eram já bebês mas se comportavam como tais quando sentiam cansaço, medo ou dor. Possivelmente nesses momentos todo mundo voltava para a infância.

Abraçou Doll como se também ela fosse uma menina. Embora Doll fosse mais alta, mais formosa e de maior idade, a situação não tinha nada de absurdo. Naquele instante era Gracie a mais forte e amadurecida.

— O que fez a seu bebê? - murmurou.

Seguiu outro longo silêncio. Doll não conseguia reunir a coragem necessária para dizer. Gracie adivinhou do que se tratava até antes de que Doll obtivesse por fim responder.

— Obrigou-me a... matá-lo... antes de nascer...

Não existiam palavras de consolo para aquilo. Gracie só podia estreitá-la ainda mais, balançá-la, demonstrar consideração.

— Era ele o pai? - perguntou ao cabo de uns minutos.

Doll assentiu com a cabeça.

— Amava-o antes disso?

— Não! Não, eu só queria conservar o trabalho. Me teria expulsado se me negasse a agradá-lo. E se tivesse o menino, teria ficado na rua e sem reputação. Teria acabado em um bordel e provavelmente o menino teria morrido de qualquer forma. Ao menos assim o pobre não se inteirou de nada. Mas eu queria a esse menino. Era meu filho... tanto como se tivesse nascido. Era um pedaço de meu corpo.

— Claro que o era - afirmou Gracie. O frio que sentia em seu interior se converteu de repente em uma ira dura e gélida, como uma pedra no estômago. — Quanto tempo faz isso?

— Três anos. Mas a dor é a mesma agora que então.

Gracie experimentou certo alívio. Ao menos não era um fato recente. Se tivesse planejado matá-lo para vingar-se, não teria esperado três anos.

— Quem mais está informado disso?

— Ninguém.

— Nem a senhora Greville ou a cozinheira? As cozinheiras costumam ser muito observadoras - disse Gracie, e esteve a ponto de acrescentar "conforme ouvi", mas isso teria posto de manifesto que Charlotte não tinha cozinheira.

— Não - respondeu Doll.

— Algo deveram imaginar. Por força tinha que notar-se que tinha o coração quebrado. Ainda se nota.

Doll lançou um suspiro que terminou em soluço, e Gracie a apertou ainda mais contra si.

— Pensaram que me tinha apaixonado - disse Doll, e sorveu com força o nariz. — Tomara tivesse sido isso. Não teria sofrido tanto.

— Não sei - sussurrou Gracie. — Mas se você não o matou, quem o fez?

— Não sei. Algum dos irlandeses.

— Pois se eu fosse a senhora Greville e soubesse o que acaba de me contar, matá-lo-ia sem pensar duas vezes - assegurou Gracie com franqueza.

Doll ergueu o tronco. Tinha os olhos avermelhados e lágrimas nas faces.

— A senhora Greville não sabia! - disse com veemência. — Não sabia, Gracie! Teria sido incapaz de ocultá-lo. Consta-me. Eu estou com ela todos os dias.

Gracie guardou silêncio. Doll tinha razão.

— Vamos! - insistiu Doll com tom premente, esquecendo momentaneamente seu próprio medo. — Você também é criada. Está inteirada de tudo o que ocorre na casa, ou não? Sabe tudo de sua senhora. Conhece-a melhor que ninguém, melhor que seu marido ou sua mãe.

Gracie optou por não rebater-lhe. Sua casa não era como a do Doll, e certamente Charlotte não se parecia em nada a Eudora Greville.

— Suponho - respondeu com um suspiro.

— Não o conte a ninguém. - Doll a pegou pelo braço. — Não diga nada disto!

— A quem ia contá-lo? - Gracie moveu a cabeça em um leve gesto de negação. — Poderia acontecer a qualquer moça bonita.

Mas aquilo atormentou todo o dia Gracie, incapaz de afastar de seu pensamento a compaixão e a raiva que lhe inspirava tal revelação. E pior ainda, a confiança depositada nela por Doll entrava em conflito com sua lealdade a Pitt. Tomou a resolução de não falar a respeito. Achava sinceramente que Doll não tinha cometido o assassinato, e se Eudora tivesse estado inteirada do ocorrido, sem dúvida Doll se teria percebido. Que mulher seria capaz de ocultar algo assim à própria vítima e a todo mundo? Se Charlotte guardasse um segredo tão horrendo, Gracie o notaria.

Pitt retornou já depois do anoitecer, com a roupa suja e enrugada depois do longa viajem de trem. Estava ainda dolorido por causa da cavalgada através do campo no dia anterior, e nesse momento parecia tão cansado que possivelmente teria preferido deitar-se a trocar-se e descer de novo à sala de jantar, consciente do esforço que a cortesia implicava. Tinha que permanecer atento a quanto se falava ao redor, à tensão emocional. Via-se derrotado, e Gracie imaginava o que lhe haviam dito em Londres.

Charlotte tinha posto já o vestido azul de seda e, com um magnífico aspecto, tinha descido para o jantar. Tinha pensado que era melhor estar com outros e observá-los, se por acaso captava algo importante, mas isso não lhe deixou tempo mais que para saudar seu marido e lhe perguntar com inquietação como tinha transcorrido a conversa com o Cornwallis.

Só Gracie era consciente do sacrifício que lhe representou separar-se do Pitt tão logo. Estava tão tensa que para Gracie não foi fácil lhe apertar as correias do espartilho. Doía-lhe as costas e tinha essa espécie de enxaqueca que não desaparecia durante mais de meia hora por mais extrato de lavanda ou tanaceto que tomasse. Entretanto Charlotte não a mencionou sequer.

Gracie, de pé na porta do quarto de vestir, percebeu as dificuldades do Pitt para prender as abotoaduras do peitilho da camisa. Aquele Tellman era um inútil. Ele devia ocupar-se disso.

— Eu o ajudarei, senhor - se ofereceu Gracie, aproximando-se dele.

— Obrigado.

Pitt lhe entregou as abotoaduras, e Gracie as trespassou nas casas com dedos ágeis e flexíveis.

— Senhor?

— Sim, Gracie? -disse Pitt, voltando-se para ela e lhe prestando toda sua atenção.

Gracie não pensava dizer-lhe mas ao final não pôde conter-se. As palavras começaram a sair a fervuras de sua boca e foi impossível recorrer a evasivas ou fingir que não tinha feito à Doll a seguinte pergunta, e a seguinte.

Depois se sentiu culpada. Era já tarde para voltar atrás. Tinha traído a confiança de Doll, que já tinha sofrido muito. Mas e se a senhora Greville tinha assassinado a seu marido? Razões não lhe faltavam se conhecia seu comportamento. E Gracie não podia mentir ao Pitt, e naquelas circunstâncias calar equivalia a mentir. Devia muito ao Pitt para fazer uma coisa assim, e também à Charlotte. Jamais se perdoaria que Pitt fracassasse quando ela podia lhe ter facilitado informação para resolver o caso.

E Pitt tampouco teve alternativa. Durante todo o jantar deu voltas ao que Gracie lhe tinha contado. Teve só vaga consciência da conversa sustentada em torno da mesa; do olhar nervoso do Emily, pendente de uma vez dos convidados e criados; do bom humor exibido pelo Jack, sem dúvida muito diferente de seu verdadeiro ânimo; e da palidez e falta de apetite do Charlotte, esforçando-se continuamente em encher os vazios que se produziam na conversa.

Tampouco ele desfrutou da comida, deliciosos manjares que em condições normais não estavam ao alcance mais que de sua imaginação. A revelação de Gracie ocupava por inteiro seu pensamento. Era uma das histórias mais lamentáveis que jamais tinha ouvido, e já na sobremesa, consistente em bolo de groselha e merengue gelado, deu-se conta de que nem por um instante tinha duvidado de sua veracidade. Não contemplou sequer a possibilidade de que fosse mentira porque esse episódio corroborava sua própria opinião a respeito do Ainsley Greville. Concordava plenamente com o aspecto que refletiam as cartas achadas na biblioteca de Oakfield House. Destilavam essa mesma arrogância, essa mesma insensibilidade pelas mulheres. Greville considerava Doll de sua propriedade, comprada mediante o pagamento de seu salário semanal. O fato de que a tivesse utilizado para satisfazer seus desejos era de por si deplorável, embora por desgraça mais comum do que caberia desejar; mas pô-la ante a alternativa de abortar ou confrontar uma vida solitária nas ruas era imperdoável.

Pitt não podia passar isso por alto nem esquecer, e era um motivo tão poderoso para o assassinato que não podia renunciar a verificar.

Desculpou-se e abandonou a mesa antes que se servisse o Porto. Foi ao refeitório em busca do Wheeler. Se ignorava o ocorrido, receberia um brutal impacto ao conhecê-lo. Mas todo assassinato era brutal, como também o eram o medo, o sofrimento e desconfiança que assaltavam depois a pessoas inocentes, arruinando suas vidas.

— Sim, senhor? - disse Wheeler com o sobrecenho franzido quando Pitt o levou à parte à despensa do mordomo, aproveitando que Dilkes estava ocupado na sala de jantar.

Pitt fechou a porta.

— Não lhe perguntaria isto se não fosse imprescindível - esclareceu Pitt. — Lamento-o, e se posso evitar seguir adiante, fá-lo-ei.

Wheeler lhe escutou com visível preocupação. Era certamente um homem agradável, e acaso mais jovem do que Pitt tinha suposto ao vê-lo pela primeira vez na manhã posterior à morte do Greville. Apesar de seu sério semblante, percebia-se amabilidade em sua expressão, e possivelmente em outras circunstâncias era capaz de rir e dançar como qualquer pessoa.

— Wheeler, sem dúvida conhece você ao Doll, a criada da senhora Greville.

Ao ouvir isso, seu rosto se mudou de maneira quase imperceptível, apenas certa tensão nos músculos.

— Doll Evans? Sim, senhor; claro que a conheço. É muito boa garota, trabalhadora, eficaz. Nunca dá o menor problema.

Pitt notou no Wheeler uma atitude defensiva. Tinha respondido com excessiva urgência. Apreciava à moça ou simplesmente a protegia por pertencer à criadagem da mesma casa?

— Contraiu Doll uma enfermidade faz três anos? - perguntou Pitt.

Wheeler se acautelou contra ele. A intensidade de seu olhar delatou sua súbita cautela. Pitt teve a certeza nesse mesmo instante de que conhecia o ocorrido.

— Esteve um tempo doente, sim, senhor - respondeu sem indagar o motivo da pergunta.

— Sabe que enfermidade a afligiu?

Wheeler se ruborizou ligeiramente.

— Não, senhor. Eu não era ninguém para perguntar-lhe e ela não disse nada. Essas coisas são pessoais.

— Notou alguma mudança nela depois de seu restabelecimento? - insistiu Pitt.

O rosto do Wheeler se esticou até adotar uma expressão quase desafiante, mas a arraigada cortesia não desapareceu por completo, só se fez mais distante, um mero hábito.

— Notou alguma mudança? - repetiu Pitt.

Wheeler o olhou fixamente. Seus olhos cinza revelavam já uma franco cautela.

— Demorou muito tempo em recuperar-se de tudo, senhor. Suponho que esteve muito doente. Essas situações afetam de um modo especial a algumas pessoas. - Respirou fundo e tomou a decisão de prosseguir. — Quando a pessoa vive de seu trabalho, a idéia de contrair uma doença grave pode ser aterradora, senhor. Ninguém cuidaria de uma moça como Doll se não pudesse trabalhar, e isso todos sabemos. Procura-se não pensar nessas coisas, mas às vezes as circunstâncias obrigam a isso.

— Sei -disse Pitt. — Talvez esquece, senhor Wheeler, que sou policial, e não um cavalheiro como os outros convidados. Careço de rendas pessoais. Devo ganhar a vida com meu trabalho do mesmo modo que você.

Wheeler se ruborizou.

— Sim, senhor. Esquecia-o - se desculpou sem ceder o mínimo. — Ignoro por que me interroga a respeito de Doll, senhor, mas lhe asseguro que é uma moça decente e honrada. Dir-lhe-ia a verdade sobre algo ou guardaria silêncio, mas jamais mentiria.

— Sim, sim mentiria - retificou Pitt com delicadeza. — Por exemplo, para não ferir os sentimentos da senhora Greville, e mais se o mal não tiver já remédio.

Wheeler o olhou com estupefação. Pitt viu em seu semblante que nunca admitiria que estava informado da verdade. Possivelmente calasse por respeito a Eudora, mas Pitt teve a impressão de que o fazia por Doll. O rubor que tingia as faces do Wheeler era fruto de uma emoção, não da simples lealdade. Pitt não teve necessidade de pressioná-lo mais. Tinha averiguado o que desejava saber, e Wheeler era consciente disso.

— Obrigado - disse Pitt com uma leve inclinação de cabeça, e abriu a porta da despensa para sair.

Subiu por uma das escadas do serviço e retornou à parte da mansão reservada aos senhores pela porta forrada de pano do piso superior. Preferia não correr o risco de encotrar-se com alguém na escada principal para não ter que dar explicações. Aquilo era algo que estava obrigado a fazer, embora o temesse. Como tinha ocorrido à Gracie, a nova informação não lhe deixava alternativa.

Bateu na porta da Eudora. Tinha abandonado a sala de jantar ainda antes dele, e Pitt sabia portanto que a acharia ali. Esperava que se achasse a sós. Doyle seguiria com os outros homens, possivelmente bebendo ainda Porto, e se Piers tinha deixado já a mesa e estaria provavelmente com Justine.

Ouviu Eudora responder e entrou.

Também desta vez ocupava a poltrona próxima ao fogo. O tecido de seu vestido escuro se esparramava em torno dela formando uma densa sombra que contrastava com os delicados tons pastel da sala.

Ao ver Pitt, uma expressão tensa apareceu em seu rosto, e ele sentiu um nó de culpa na garganta. Fechou a porta ao entrar.

— O que acontece, senhor Pitt? - perguntou Eudora com voz trêmula. — Averiguou algo?

Pitt se aproximou e se sentou frente a ela. Teria desejado poder falar de outra coisa. Eudora estava assustada, possivelmente por Doyle. Não pelo Piers, certamente. Por que admitia Eudora a possibilidade de que Doyle tivesse matado a seu marido? Até que ponto tinha capacidade a violência no nacionalismo do Doyle? Na aparência era o mais racional dos quatro representantes irlandeses e sem dúvida estava mais predisposto à sensatez e o compromisso que Fergal Moynihan ou Lorcan McGinley.

— Senhora Greville - começou a dizer, visivelmente incomodado — quando alguém morre podem descobrir-se aspectos de sua vida que antes não se conheciam, aspectos que as vezes são dolorosos ou inclusive discordantes com a imagem que se tinha, e se amava, dessa pessoa.

— Sei - se apressou a responder Eudora, erguendo uma mão para lhe impedir de seguir. — Não é necessário o preâmbulo. Agradeço seus cuidados, mas já me fiz à idéia de que meu marido mantinha relações com outras mulheres a minhas costas. Preferiria não saber nada mais por agora. Certamente com o tempo irei me inteirando, mas neste momento me sinto muito... confusa... - Olhou ao Pitt com seriedade. Parecia ter muito em conta suas opiniões. — Suponho que considerará essa atitude uma fraqueza de minha parte, mas a verdade é que não sei exatamente a quem perdi. Algumas das coisas que já tenho descoberto me horrorizam - mordeu o lábio. — E quase me horroriza em igual medida o fato de ter permanecido na ignorância até agora. Por que não me tinha dado conta? Fechei voluntariamente os olhos ou em realidade me era impossível vê-lo? Quem era o homem a quem acreditava amar? Quem sou eu se ele me escolheu e fui incapaz de ver nada em tantos anos? - Piscou, como se quisesse afastar algo de sua vista e o encontrasse de novo em seu interior. — Me amou alguma vez, ou também isso era falso? E se me amou, quando se apagou seu carinho? E por que? - Procurou o olhar do Pitt.      — Foi minha a culpa? Deveu-se a algo que fiz... ou deixei de fazer? Defraudei-o?

Pitt tomou fôlego para negar essa possibilidade, mas ela o interrompeu com um gesto.

— Não, não me responda. Pelo que mais queira, senhor Pitt, não me console com mentiras piedosas. Algum dia terei que aceitar a verdade, mas me permita, por favor, fazê-lo lentamente. Eu mesma posso responder a essa pergunta. Sem dúvida o defraudei. Não o conhecia, e deveria tê-lo conhecido. Amava-o... não com paixão, possivelmente, mas o amava. Não posso deixar de sentir desse modo repentinamente, descubra o que descubra sobre ele. É um hábito de mais de meia vida, a pauta pela que se regeram meu pensamento e meus sentimentos. Compartilhava muitas coisas com o Ainsley... ou ao menos isso pensava, tanto se ele as compartilhasse em realidade como se não. Em um par de dias tudo o que acreditava saber sumiu no caos. - Esboçou um lúgubre sorriso.    — Por favor, senhor Pitt, não me conte nada mais de momento. Sou incapaz de mudar tão depressa.

Parecia muito vulnerável. Passava de quarenta anos, e entretanto seu rosto conservava ainda a firmeza da juventude, a linha intacta do queixo e pescoço, os lábios carnudos. Provavelmente era da mesma idade que Pitt. Talvez tinha dado a luz ao Piers antes de completar os vinte.

Pitt devia recordar o motivo de sua presença ali: descobrir a verdade. Não podia permitir-se proteger a quantos o necessitavam ou mereciam. Fossem quais fossem seus sentimentos, não estava autorizado a escolher a quem favorecer e quem não, nem podia prever as conseqüências de agir de tal modo.

— Senhora Greville, sabe já que seu marido mantinha relações com certas mulheres que eram de caráter meramente físico e não tinham nada que ver com o afeto - disse Pitt. Como podia expressar aquilo de maneira que lhe causasse a menor aflição possível? Era o tipo de mulher ante a qual nem sequer deviam mencionar-se as realidades mais violentas de que informava a imprensa, e muito menos o ordinarismo dos apetites íntimos, até não tratando-se já de seu marido mas sim de um desconhecido. Sentia-se culpado por obrigá-la a conhecer algo tão repugnante. Estava a ponto de fazer em pedacinhos suas lembranças, seu mundo, o pouco que ainda restava.

— Sim, sei, senhor Pitt. Por favor, não me conte mais. Prefiro não ter que imaginá-lo - respondeu Eudora. Falava com franqueza, sem ocultar-se atrás do orgulho, do mesmo modo que se confiasse nele como no amigo que parecia ser antes de revelar sua verdadeira identidade.

Pitt vacilou. Era realmente inevitável lhe informar sobre as desditas de Doll? Não tinha mais remédio que investigar essa possibilidade. Era motivo suficiente para induzir ao assassinato. Os outros devaneios dificilmente despertariam instintos homicidas em um homem, até sendo sua irmã a afetada, mas aquilo era diferente. E mais motivo ainda teria Doll ou qualquer que a amasse. Podia tratar-se do Wheeler? Pitt duvidava, mas não era impossível.

— Seu marido foi assassinado, senhora Greville. Não posso excluir da investigação ninguém com um motivo de peso para matá-lo, sejam quais forem meus desejos.

Inconscientemente, Eudora ficou tensa.

— O motivo o conhece já. Foi um crime político - disse como se não coubesse a menor dúvida. — Ainsley era a pessoa que podia levar às duas partes a um acordo. Alguns extremistas irlandeses se negam a aceitar qualquer pacto. - Negou com a cabeça, e sua voz adquiriu maior força e convicção. — Preferem continuar matando e morrendo a renunciar a nada do que consideram seu. Essa atitude se remonta a vários séculos atrás. Converteu-se em parte de nossa maneira de ser. Tão persuadidos estamos de que somos uma raça injustamente tratada que não podemos mudar de idéia. - Falava cada vez mais depressa. — Há muitos homens e mulheres cuja identidade se sustenta na luta por uma grande causa. Com a vitória, sua vida perderia todo objetivo. O que faz um herói de guerra em tempo de paz? Como é possível alcançar a glória quando não há nada por que morrer? Como vão acreditar então em si mesmos esses indivíduos?

Sem propor-se e inclusive talvez sem pensar em sua própria situação, tinha refletido simultaneamente sobre sua confusão e sua dor, sobre a perda do que até aquele momento considerava sua vida e seus valores. No transcurso de umas horas tudo se desintegrou e tomou logo uma nova e horrenda forma. A que se reduzia sua vida? Eudora não cometeria a indelicadeza de falar com o Pitt com franqueza disso; seria uma indiscrição, falta em que ela jamais incorreria. Entretanto transparecia em seu olhar, e Eudora era muito consciente de que Pitt o subentendia.

Pitt desejou com toda sua alma lhe oferecer o amparo e o consolo que necessitava, mas não podia. Em realidade, estava a ponto de fazer justamente o contrário, de piorar sua confusão de maneira incomensurável. Possivelmente inclusive acabaria lhe arrebatando à única pessoa de cujo afeto não duvidava, seu irmão. O próprio Piers permanecia a seu lado basicamente por dever filial, não por verdadeira compreensão. Estava muito apaixonado por Justine para interessar-se em ninguém mais e era muito jovem para entender em toda sua magnitude a aflição de sua mãe. Ainda não se tinha descoberto realmente a si mesmo, nem tinha tido tempo de entregar-se a algo de tal modo que a decepção pudesse rasgar sua identidade.

Pitt começou pela pergunta mais simples, a primeira possibilidade que descartar.

— Quando seu marido se achava no banheiro, você estava em seu quarto, não é assim?

— Sim. - Uma expressão de perplexidade apareceu no rosto da Eudora. — Já o disse no primeiro interrogatório.

— E estava com você sua criada, Doll Evans?

— Sim, quase todo o tempo. Por que? - Seu olhar se escureceu. — Até se me tivesse informado do comportamento do Ainsley, não me teria ocorrido jamais lhe fazer dano.          - Sorriu. — Dava por certo que me conhecia melhor, senhor Pitt. — Em nenhum momento pensei que pudesse tê-lo feito - disse Pitt com sinceridade. — O que me interessa saber é onde estava Doll.

— Doll? - Suas finas sobrancelhas se arquearam em um gesto de incredulidade, quase risonho. — Por que ia Doll desejar algum mal ao Ainsley? Essa moça é tão inglesa como você, e me guarda uma total lealdade. Não tem razão alguma para querer nos prejudicar, senhor Pitt. Quando esteve doente, fizemo-nos encarregados e a readmitimos no mesmo posto ao retornar. Seria a última pessoa deste mundo de quem esperaria algum dano.

— Esteve com você durante os quinze minutos que seu marido permaneceu no banheiro? - repetiu Pitt.

— Não. Foi procurar algo; não recordo o que. Uma xícara de chá, acredito.

— Quanto tempo demorou para voltar?

— Não sei. Não muito. Mas a idéia de que atacasse a meu marido no banheiro me é inconcebível.

A julgar por sua expressão, obviamente não temia que aquilo pudesse ser verdade. Estava convencida de que era absurdo.

— Visitava-os o senhor Doyle com freqüência, fosse em Londres ou em Oakfield House?

— Por que? Aonde quer ir parar, senhor Pitt? - disse Eudora, franzindo de repente o sobrecenho. — Suas perguntas carecem de sentido. Primeiro me interroga sobre Doll e agora sobre o Padraig. Por que?

— Que enfermidade afligiu Doll? Sabia o senhor Doyle?

— Não o recordo. - Fechou os punhos sobre o regaço. Por que? Não sei que enfermidade era. Que importância tem?

— Estava grávida, senhora Greville...

— Não do Padraig! - desmentiu Eudora horrorizada de maneira veemente e espontânea.

— Não, do senhor Doyle não - respondeu Pitt. — Estava grávida do senhor Greville, e não por vontade própria a não ser... sob coação.

— Teve... teve um menino! - disse Eudora com a respiração entrecortada. Inconscientemente levou a mão à garganta como se temesse que o corpete de seda do vestido fosse afogá-la.

Pitt sentiu o impulso de inclinar-se e lhe agarrar a mão para tranqüilizá-la, mas ela o teria interpretado como um excesso de confiança, ou inclusive um intrusão. Devia recordar sua missão, manter-se formal, distante, e continuar machucando-a, observando ao mesmo tempo seu semblante para julgar se sua surpresa era sincera ou fingida.

— Não - respondeu Pitt. — Ele insistiu em que abortasse, e Doll não estava em situação de desafiá-lo. Teria ficado na rua sem dinheiro nem reputação. Teria sido incapaz de cuidar de um filho. O teria perdido de todos os modos. - Escolheu com toda deliberação as palavras e viu desaparecer a cor de seu rosto e obscurecer-se seus olhos pelo horror.

Eudora olhou ao Pitt atônita, procurando em sua mente algo que desmentisse aquela revelação.

— Notei-a... diferente... quando voltou - declarou lentamente, mais para si que para o Pitt. — Estava... mais triste, muito calada, mais passiva, quase como se tivesse perdido a vontade... e o ânimo. Pensei que não se recuperara ainda de todo.

Assim que compreendeu que Pitt dizia a verdade, não tratou já de defender-se. Voltou a vista ao passado, tratando de recordar algum detalhe com que rebatê-lo, sem encontrá-lo. Era quase como examinar uma ferida. A metade de sua mente se mantinha fria, lógica, precisa; a outra metade contemplava a morte de uma parte de si mesmo.

— Pobre Doll - sussurrou. — Pobre Doll. É tão espantoso que mal consigo concebê-lo. Acaso poderia ocorrer algo pior a uma mulher?

— Lamento ter tido que dizer-lhe.

Era uma desculpa pouco convincente, uma simples desculpa onde não havia lugar para desculpas. Desde o começo estava certo de que ela não sabia. Entretanto tampouco se resistiu a acreditar nisso. Estava Doyle informado? Em tal caso, lhe teria concedido importância? Não por Doll, certamente. Ao fim e ao cabo, era uma criada, e as criadas ficavam grávidas com freqüência.

— Quem mais poderia ter estado ao corrente? - continuou Pitt. Wheeler sabia. Além da própria Doll, era o único criado dos Greville presente nesse momento no Ashworth Hall. A menos que os tivesse acompanhado um cocheiro. Oakfield House se achava relativamente perto e poderiam ter prescindido do trem. Não lhe tinha ocorrido perguntar-se transladaram até aqui em carruagem?

Eudora compreendeu imediatamente a intenção da pergunta.

— Sim.... mas... mas não sabia ninguém mais. Pensamos que Doll estava doente... de febre... Eu temia que pudesse ser tuberculose. Às vezes os doentes de tuberculose têm as faces avermelhadas e os olhos brilhantes. Doll parecia...

— Wheeler sabia.

— Wheeler? - Tampouco desta vez temeu que o valete pudesse ser culpado. Nem sequer contemplou a possibilidade. — Wheeler... nunca...

— O que?

— Nunca teria causado mal algum ao Ainsley.

— O que ia dizer, senhora Greville?

— Que em algumas vezes pensei que possivelmente Wheeler não sentia muita simpatia por ele, mas é um criado bem adestrado e jamais exteriorizaria essa espécie de sentimentos, claro está. - Moveu a cabeça em um gesto de negação para descartar isso. — É só uma impressão. Além disso, nesse caso não teria ficado conosco. Teria encontrado trabalho em outra casa sem problemas. É um excelente criado.

Pitt pensou que provavelmente era seu afeto pelo Doll o motivo de que tivesse permanecido na casa de um homem que desprezava, ou inclusive odiava, mas preferiu não dizê-lo. Pediria ao Tellman que se comprovasse se a declaração do Wheeler quanto aos horários era tão exata como tinham suposto.

Bateram na porta.

— Adiante - disse Eudora a contra gosto.

Apareceu Justine, seguida imediatamente de Charlotte. Pareciam as duas sufocadas e cansadas, como se tivessem estado sentadas muito perto do fogo do salão e a forçada conversa da noite lhes tivesse representado um grande esforço. Apesar do esgotamento e que uns quantos cachos escapavam já do penteado que Gracie lhe tinha feito, Charlotte oferecia um magnífico aspecto com aquele vestido azul de seda. Era um dos que Vespasia lhe tinha emprestado. Pitt lamentou não poder comprar a sua esposa roupa como aquela. Uma vez recordou com que naturalidade se movia Charlotte naquele ambiente. Era a vida que facilmente teria podido levar se tivesse contraído matrimônio com um homem de sua posição social, ou inclusive de posição superior, como era o caso de Emily.

Justine percebeu imediatamente a palidez da Eudora e a tensão de suas mãos, que se retorcia sobre o regaço. Aproximou-se dela no ato com visível preocupação.

Charlotte ficou na porta. Pressentia que ela e Justine os tinham interrompido no momento menos oportuno. Não teve essa impressão por nada em concreto, mas sim por certa expressão no rosto do Pitt e pelo ar pesaroso da Eudora ao voltar-se para ele antes de falar com Justine.

Perguntou ao Pitt ao respeito mais tarde, quando se preparavam para deitar-se. Procurou aparentar despreocupação. Como de costume, ele se meteu na cama antes dela. Gracie já partira, e Charlotte estava escovando o cabelo. Tinha-o muito enredado, e se não o desembaraçava, pela manhã o deixaria ainda pior. Além disso, havia na penteadeira leite de rosas para suavizar a pele, e tanto se servia de algo como se não, Charlotte adorava a voluptuosa sensação que produzia.

— Notei abatida a Eudora - disse sem olhar ao Pitt através do espelho. Ele a tinha posto já à corrente sobre os escassos resultados de sua reunião em Londres, mas Charlotte intuía que se produzira alguma novidade depois, algo que o tinha afetado muito mais. — O que averiguou desde sua volta?

Pitt tinha olheiras devido ao cansaço, e se endireitou na cama com dificuldade, apoiando-se contra os travesseiros. Continuava muito dolorido.

— Greville abusou de Doll e a deixou grávida - respondeu com voz baixa. — Depois lhe exigiu que abortasse, ameaçando-a deixá-la na rua sem nada se se negasse.

Charlotte ficou paralisada. Percebeu ira na voz do Pitt, mas com muita dificuldade podia equiparar-se com o horror que ela experimentou, como se algo gélido e agudo lhe tivesse transpassado as entranhas. Pensou em seus próprios filhos. Recordou a primeira vez que teve nos braços Jemima, frágil, imensamente querida, uma parte dela mesma e ao mesmo tempo um novo ser. Charlotte teria dado sua vida por proteger a sua filha, a teria dado sem vacilar. Se Doll tinha matado ao Ainsley Greville, Charlotte faria todo o possível por salvá-la, e ao inferno com a lei.

Voltou-se lentamente na banqueta e cravou o olhar no Pitt.

— Matou-o ela?

— Doll ou Eudora? -perguntou Pitt, sustentando seu olhar.

— Doll, é claro! - exclamou Charlotte, mas imediatamente caiu na conta de que também poderia ter sido Eudora, em resposta ao mesmo ato mas por razões distintas. Devia-se a isso a expressão de ternura que tinha detectado no Pitt ao entrar no quarto de Eudora? Compreendia-a e compadecia? Eudora era uma mulher formosa, vulnerável, com uma desesperada necessidade de fôlego e apoio. Seu mundo viera abaixo, o presente, o futuro e também boa parte do passado. Em tão somente uns dias se viu despojada de tudo o que era. Não era estranho que Pitt sentisse pena dela. O transe pelo que Eudora passava fazia aflorar todo o melhor dele: a delicadeza, a capacidade de entender sem julgar, de procurar a verdade e ao mesmo tempo sofrer pela dor que causava.

Pitt tinha muito de cavalheiro andante, o premente desejo de ser necessitado, o afã de lutar e resgatar, de medir suas forças contra os dragões da injustiça. Eudora era a perfeita donzela aflita. Charlotte, em troca, já não o era. Ela era vulnerável em um sentido muito diferente, só em seus adentros. Não lhe assaltava perigo algum, mas só uma ligeira sensação de ver-se em parte excluída, não de fato mas sim em um profundo plano emocional.

— Não, não acredito - respondeu Pitt em relação com a pergunta do Charlotte a respeito de Doll.

— Tem isso algo que ver com a morte do Greville?

— Não sei... não sei se direta ou indiretamente. Espero que não.

Charlotte se voltou para a penteadeira e pegou o frasco de leite de rosas. Não estava ainda preparada para deitar-se. Aplicou-a primeiro no rosto e esfregou uma e outra vez. Repetiu a operação no pescoço e logo depois de novo no rosto, estendendo-se a até as têmporas sem pôr especial cuidado em não lubrificar o cabelo. Demorou outros dez minutos em apagar a luz de gás e ir a aninhar-se junto a Pitt. Tocou-o com suavidade, mas ele estava já adormecido.

O café da manhã foi uma prova de paciência. Charlotte fez o esforço de madrugar, pelo qual não sentia o menor desejo; entretanto não podia deixar que Emily se arrumasse sozinha. Em realidade, foi primeira em chegar à sala de jantar, seguida quase imediatamente por Padraig Doyle. Saudou-o e o observou com interesse enquanto se servia de comida do aparador e ocupava seu lugar. Assim como nos dias anteriores, vestia-se impecavelmente, e seu cabelo liso e escuro quase resplandecia de tanto escová-lo. Seu rosto alongado, de boca e olhos zombadores, denotava uma total compostura.

— Bom dia, senhora Pitt - disse com tom corajoso.

Charlotte não soube se seu bom aspecto era genuína indiferença à amargura que se respirava na casa, uma firme determinação de vencê-la, uma natural vontade de combater o desespero unido à coragem necessária para não retroceder na batalha, ou simplesmente uma falsa impressão produzida pela musicalidade do sotaque irlandês.

Charlotte não pôde evitar responder com igual tom. Fosse qual fosse a razão de seu bom humor, era contagioso. Inspirava muito mais simpatia à Charlotte que Fergal Moynihan, com seu ar sério e pessimista. Se fosse Iona e andasse procurando alguém por quem apaixonar-se, ela teria escolhido mil vezes antes Padraig Doyle, apesar de diferença de idade, não menor de vinte anos. Sem dúvida sua companhia era muito mais interessante e amena.

— Bom dia, senhor Doyle - respondeu Charlotte com um sorriso. — Viu que limpo amanheceu o céu? Com este dia, será um prazer passear entre as árvores.

Doyle lhe devolveu o sorriso em um gesto tanto de compreensão como de cordialidade.

— Todo um alívio - concordou. — Com conversas tão infestadas de escolhos como as nossas, não é fácil achar no que ocupar os dias chuvosos.

Charlotte riu discretamente e pegou as torradas e a geléia de damasco.

Ao cabo de um momento entrou Iona, saudou-os os dois e se sentou em seu lugar. Como de costume, recusou a comida do aparador e tomou só uma torrada com mel. Vestia-se de um intenso e romântico azul que realçava o azul cinzento de seus olhos. Comeu sem voltar a falar. Era em extremo reservada. Possuía uma grande beleza, quase perturbadora, mas tão distante que para Charlotte resultava fria. Devia-se acaso a que estava absorta em seus próprios problemas e excluía todo o resto? Era muito profundo seu amor pelo Fergal Moynihan? Por que se tinha apaixonado por ele? Tinha amado alguma vez a seu marido ou se casara com ele por outras razões?

Charlotte ignorava a que idade Iona tinha contraído matrimônio. Possivelmente contava só dezessete ou dezoito anos e era por anto muito jovem para imaginar a mulher em que iria converter-se nos quinze anos seguintes, ou que desejos despertariam em seu interior ao longo desse tempo.

Amava-a Lorcan? Ante a embaraçosa cena do dormitório, revelou indignação e vergonha mas não pareceu afundar-se emocionalmente. Se Charlotte tivesse surpreendido Pitt em tal engano, seu mundo se teria vindo abaixo. Na aparência, Lorcan não estava muito menos destroçado. Mas naturalmente algumas pessoas não exibiam suas emoções em público. Por que fazê-lo? Talvez achava alívio à dor ocultando-a. Seria lógico. O orgulho era importante para a maioria das pessoas, em especial, os homens.

Saltava Iona de desastre em desastre, procurando companhia, um pouco de paixão ou fascinação compartilhada, ali onde alguma vez a acharia? Agia assim para provocar o ciúmes do Lorcan, para avivar um desejo ou uma necessidade que murcharam? Ou simplesmente a impulsionava a isso o afã de suscitar escândalos, fazer o que ninguém faria, dar que falar às pessoas, estar na boca de todos, alcançar a imortalidade, converter-se em outra Neassa Doyle, só que em vida?

Enquanto Charlotte refletia a respeito, apareceu Fergal.

— Bom dia - disse cortesmente, olhando um por um aos presentes.

Responderam ao uníssono com um murmúrio. Iona ergueu a vista imediatamente e voltou a baixá-la.

Depois de servir-se ovos, bacon, cogumelos, tomates e rins, Fergal ocupou um dos lugares da mesa mais afastados da Iona, mas do qual podia olhá-la, ou melhor dizendo, do qual era quase inevitável olhá-la. Sob a intensa luz do dia, seu rosto estava contraído, com apenas umas ligeiras rugas nas comissuras dos olhos, e a fenda entre o nariz e o lábio superior parecia mais pronunciada. Adivinhava-se nele certa autocomplacência. Se alguma emoção rasgava sua alma, dissimulava-o com consumada destreza. Tinha umas leves olheiras, mas não deixava entrever tensão, nem certamente os estragos da insônia que Charlotte padeceria em seu lugar.

Era isso o que atraía a Iona, o que necessitava, uma frieza que fundir com o calor de seus sonhos, um coração gélido onde exercer sua magia?

Ou prejulgava Charlotte ao Fergal injustamente porque lhe desagradava? E se devia acaso essa aversão a que o via através dos olhos da Kezia, através de sua dor e sua raiva?

— Parece que desfrutaremos de outro dia agradável - comentou Padraig, contemplando o céu pelas altas janelas. — Possivelmente possam dar um passeio depois do almoço.

— Pode ser que agüente sem chover - concordou Fergal.

— Não me incomoda um pouco de chuva outonal - disse Padraig com um sorriso.     — O tamborilar das gotas nas folhas caídas, o aroma da terra molhada. É melhor sem dúvida que a mesa de negociações!

— Não se livrará da reunião - advertiu Fergal.

Não olhou a Iona, mas Charlotte teve a sensação de que não esquecia nem por um instante sua presença, como se lhe representasse um grande esforço manter os olhos afastados dela.

Iona permanecia tão concentrada em seu chá e suas torradas como se estivesse comendo um peixe cheio de espinhos.

Nenhum deles tinha descido à sala com o jornal matutino. Era acaso porque aparecia o veredicto sobre o caso de divórcio Parnell-O’Shea?

A tensão se mascava no ambiente. Charlotte hesitava se dizia algo, por pouco natural que soasse, ou calava para não piorar as coisas.

Nesse instante entrou Justine e os saudou.

— Bom dia. Como estão?

Permaneceu um momento em atitude vacilante enquanto recebia em resposta gestos de assentimento e meios sorrisos.

— Bem, obrigado - respondeu Padraig. — E você, senhorita Baring? Isto não deve ser o que você esperava quando chegou aqui.

— Não, claro que não - disse com tato. — Uma pessoa nunca espera encotrar-se com uma tragédia. Mas devemos nos dar mútuo apoio. - Aproximou-se do aparador e se serviu de uma frugal porção de comida. Depois se sentou frente a Charlotte e lhe dirigiu um sorriso, não por simples cortesia mas cheio de tácita cumplicidade, e não isento de mordaz humor. Falando basicamente a ela, comentou: — Vi uns magníficos jasmins mais à frente das faias que se estendem a oeste. Devem estar esplêndidos na primavera. Eu adoro seu perfume; sob o sol, é quase embriagador.

— Sim, estão maravilhosos - afirmou Charlotte. Em realidade não tinha a menor idéia, porque nunca tinha estado ali na primavera; mas isso carecia de importância naquele momento. — E também os castanheiros em flor - acrescentou para seguir com o tema. Olhando diretamente a Iona, perguntou. — Há jasmins na Irlanda?

Iona pareceu surpreendida.

— Sim, sim, claro que há. Sempre pensei que é uma lástima que as flores não possam entrar nas casas - respondeu.

— Por que não podem entrar? - disse Fergal, aproveitando a ocasião de cruzar umas palavras com ela.

— Traz má sorte entrar tais flores nas casas - respondeu ela, olhando-o fixamente com seus faiscantes olhos azuis.

— Por que? - sussurrou Fergal, incapaz de afastar a vista dela.

— É má sorte para a criada que tem que limpar depois - atravessou Charlotte imediatamente. — Deixam cair centenas de diminutas pétalas... e também uma espécie de pontos negros...

— Insetos - apontou Justine com um sorriso.

Padraig fez uma careta, mas não de desgosto.

De repente a conversa cobrou fluidez, e Charlotte se relaxou um pouco. Quando Lorcan e Carson O’Day se uniram a eles, ouviam-se inclusive algumas risadas, que não se interromperam nem sequer quando entrou Piers.

Jack, Emily e Pitt chegaram pouco depois, e todos simularam ao menos certo grau de participação.

O’Day se sentia muito otimista, ou estava decidido a aparentá-lo.

— Visitou alguma vez o Egito? - perguntou a Jack com interesse. — Não faz muito li umas cartas apaixonantes. Estão há bastante tempo publicadas. Não sei como é possível que tenha demorado tanto descobri-las. - Sorriu a Emily e depois a Charlotte. — São cartas escritas por mulheres. Uma das autoras é a senhorita Nightingale, a quem sem dúvida todos conhecemos. Mas houve outras várias mulheres extraordinárias que viajaram tanto como ela e ficaram profundamente marcadas por suas experiências.

A seguir explicou o que tinha lido do Harriet Martineau e Amelia Edwards, atraindo o interesse de todos. Justine em particular o escutou fascinada, como teria feito Charlotte em outras circunstâncias.

Kezia foi a última a chegar, com um vestido verde pálido debruado de seda floreada. Eram as cores de Emily, embora não seu estilo, e com sua pele e cabelo claros a favoreciam muito. Charlotte se perguntou o que seria dela. Aproximava-se já aos trinta anos. Era em extremo inteligente, se não do ponto de vista acadêmico, sim em questões políticas. Apaixonara-se uma vez, total e apaixonadamente, e sua família e sua fé a tinham privado da consumação. Sacrificara então seus sentimentos para afundar em suas convicções. Considerava acaso que algo adquirido a tão alto preço devia lhe proporcionar compensações? Ou se sentia liberada de suas obrigações depois da traição do Fergal?

Observando-a do outro lado da mesa, Charlotte percebeu ainda raiva em seu movimento, o modo em que apertava o garfo, a rigidez dos ombros, e o fato de que falasse com amabilidade a todos os presentes salvo a seu irmão e Iona, a quem nem sequer dirigia a palavra.

A conversa derivou do Egito, o Nilo, seus templos e ruínas, seus hieróglifos e tumbas, a recente ópera de Verdi sobre a história do Otelo.

— Difícil papel - comentou O’Day ponderativamente ao mesmo tempo que estendia para Charlotte a geléia de laranja.— Se requer uma voz realmente heróica, e uma grande resistência.

— E também um bom ator, imagino - acrescentou Justine.

— Sim, sem dúvida. – O’Day meneou a cabeça em um gesto de assentimento enquanto se servia de outra xícara de chá. — E também para a parte de Iago.

Kezia se voltou para Charlotte como se se dispusesse a falar, mas hesitou por um instante e decidiu guardar silêncio. Em seu olhar se liam claramente suas opiniões sobre o adultério, a infidelidade, o ciúmes e os vilãos em geral.

— Um papel de barítono não menos importante - disse Justine com um sorriso, olhando a esquerda e direita. — Otelo é o tenor, suponho?

— Naturalmente. - Padraig pôs-se a rir. — Os heróis são sempre tenores.

— No Rigoletto o tenor faz um papel espantoso - indicou Emily, e imediatamente se ruborizou de ira por sua própria estupidez.

— Certamente - assentiu Kezia. — Um mulherengo hipócrita sem o menor sentido da moral, honra ou compaixão.

— Mas canta como um anjo - disse Padraig quase sem lhe deixar acabar.

— Se é que os anjos cantam - apostilou Fergal com tom irônico. — Possivelmente dançam ou pintam.

— Há pintura e tecidos no céu? - perguntou Lorcan. — Achava que ali era tudo imaterial... sem corpo nem partes nem paixões. - Olhou de soslaio primeiro ao Fergal e depois a Iona. — Visto assim, parece mais ao inferno... ao menos para alguns.

— Recebem nossas mensagens - afirmou Charlotte com tom concludente, — e seria muito difícil transmitir com clareza se tiver que expressar-se mediante a dança.  

Justine pôs-se a rir, e quase todos outros a imitaram, embora só fosse pela súbita distensão. Imaginaram absurdas pantomimas, e algum deles realizou cômicas sugestões. Quando reataram a conversa em um tom mais sério, O’Day pediu ao Jack que lhe falasse sobre a vida rural naquela zona.

Enquanto observava os presentes, Charlotte se perguntou se O’Day seria o seguinte líder da causa nacionalista no caso de que Parnell se visse obrigado a demitir.

Parecia com diferença o mais aberto à razão e a compaixão. Entretanto tinha herdado uma difícil situação, ao igual a todos outros, e deveria substituir a um homem poderoso. Seu irmão mais velho se achava prostrado por causa da tuberculose, ou do contrário teria correspondido a ele aquele dever; assim as coisas, tocava ao Carson cumpri-lo por ambos. Era uma pesada carga.

Charlotte contemplou de esguelha seu rosto, anguloso, liso, de pronunciadas maçãs do rosto e sobrancelhas retas. Era um rosto diferente em tudo a do Padraig Doyle; denotava imaginação, mas não engenho nem um vivo humor. Revelava em troca franqueza, concentração e clareza. Charlotte teve a impressão de que não era um homem fácil de conhecer a fundo, mas chegados a esse ponto devia oferecer uma lealdade completa. Teria compreendido que Iona tentasse seduzi-lo a modo de desafio. Mas os desafios não tinham o menor encanto a menos que a pessoa albergasse alguma esperança de êxito, por remota que fosse. Charlotte não achava que houvesse ninguém capaz de influir em Carson O’Day, exceto seu compulsivo desejo de triunfar.

Para Pitt, o café da manhã foi também um momento difícil, mas por razões distintas. A diferença de Charlotte, não se sentia obrigado a suavizar o trato social entre os convidados, embora se compadecia de Emily pelo apuro em que se achava. Estava absorto em suas especulações sobre o assassinato do Ainsley Greville e lhe preocupava que Eudora, apesar de suas declarações, soubesse algo e se negasse resolutamente a admiti-lo, possivelmente inclusive a ser sincera consigo mesma.

Não podia reprovar-lhe. Tinha sofrido já tanto que se decidia guardar lealdade a seu irmão, até em seu pensamento, era fácil compreendê-lo.

Pitt lançou uma olhada ao redor, avaliando e julgando. Doyle falava com eloqüência e semblante concentrado, erguendo um pouco as mãos por cima da toalha branca com a divisa do Ashworth bordada a uma só cor nas bordas. Sublinhava com gestos suas palavras.

Fergal Moynihan escutava aparentando interesse, mas lançava freqüentes olhares a Iona. Não era muito hábil em ocultar seus sentimentos.

Se Lorcan McGinley o percebeu, dissimulava muito melhor. Dirigia à frente seus olhos de cor azul quase cobalto, emoldurados no enxuto rosto de expressão intensa, e quando Padraig fazia um comentário especialmente engenhoso um repentino sorriso iluminava suas feições, conferindo-lhe vida. Depois se refugiava de novo em seu mundo, que não parecia um mundo de aflições mas sim de prazenteiro sonho.

De vez em quando Pitt cruzava um olhar com o Charlotte. Estava encantadora na clara luz outonal, sua tez com a quente cor do mel, suas faces levemente ruborizadas, seus olhos escurecidos pela inquietação. Parecia preocupada com todos. Freqüentemente observava a Kezia, como se temesse algum outro exabrupto de seu ainda acalorado ânimo. Esforçava-se em dar apoio a Emily, guiando a conversa, procurando mostrar-se alegre e evitando os temas que podiam suscitar controvérsias.

Chegado o momento em que era já aceitável abandonar a mesa sem risco a suspeitas, desculpou-se de bom grado e foi em busca do Tellman, que estaria cortante e aborrecido ainda por sua situação, pela casa e sua riqueza, pelo fato de que as quatro quintas partes de quem a habitava fossem criados; mesmo assim, ao menos não se veria obrigado a mostrar deferência com suas opiniões. Poderia falar com franqueza.

Jack saiu da sala imediatamente depois, e Pitt se deteve ao pé da escada a esperá-lo.

Jack fez uma careta de afetado desespero e lhe sorriu aflito. De perto, Pitt percebeu as finas rugas que nasciam nas comissuras de seus lábios e seus olhos. Não era já o jovem dandi de quem Emily se apaixonara, e cujo encanto natural lhe assustava, receando que pudesse ser muito frívolo. Conservava os atraentes olhos e as pestanas longas e escuras, mas se percebia nele uma solidez de que antes carecia. Naquela época não tinha dinheiro; seus únicos atributos eram a facilidade de palavra, o engenho e a habilidade de adular com sinceridade e divertir-se sem esforço. Sempre bem acolhido em todas partes, andava de casa em casa. Tinha convertido sua simpatia em profissão, sem assumir responsabilidade alguma.

Em troca agora tinha sobre seus ombros o peso do Ashworth Hall, uma cadeira no Parlamento e, sobre tudo, os objetivos que ele mesmo se fixara. Naquele fim de semana estava descobrindo a verdadeira natureza dessa carga, e Pitt não o tinha ouvido queixar-se nenhuma só vez. Tinha aceito suas obrigações com discreta elegância. Se o intimidavam, não dava indícios disso, salvo por uma leve sombra que Pitt percebeu no fundo de seu olhar, algo que se ocultava inclusive a si mesmo.

— Levo o colarinho da camisa muito alto - disse Jack, zombando de sua própria situação. Levou um dedo ao interior do colarinho e puxou-o, afastando-oo da garganta.    — Noto certo sufoco.

— É tão tenso o ambiente na mesa de negociações como na sala de refeição? - perguntou Pitt.

Jack vacilou e logo se encolheu de ombros.

— Sim. Necessita-se a paciência do santo Jó só para conseguir que comecem a falar de algo realmente importante. Não sei o que esperava obter Greville desta conferência. Cada vez que parecem estar a ponto de alcançar um princípio de acordo, um deles muda de posição e tudo vem abaixo. - Apoiou uma mão no poste da escada e se inclinou ligeiramente a um lado. — Nunca tinha tido consciência do poder dos velhos rancores, do arraigados que estão. Estas pessoas os levam no sangue. Formam parte de sua identidade. Dá a impressão de que se aferrem a suas rivalidades ancestrais por medo a perder uma parte essencial de si mesmos. O que posso fazer com isso, Thomas?

— Se soubesse, haver-lhe-ia dito já - respondeu Pitt. Apoiou uma mão no braço do Jack. — Duvido que Greville o tivesse feito melhor. No fim das contas, inclusive Gladstone se viu superado por este problema.

Desejou dizer algo mais alentador, algo que transmitisse ao Jack o afetuoso respeito que sentia por ele, mas nenhuma das palavras que foram a sua mente pareceu apropriada. Eram muito fúteis, muito corriqueiras em comparação com a realidade do ódio e a perda que flutuava em torno da mesa de negociações, e que Jack devia confrontar sozinho toda manhã e toda tarde. Retirou a mão de seu braço e a meteu no bolso.

— Eu estou igualmente perdido - admitiu Pitt.

De repente Jack pôs-se a rir.

— Tentamos nos manter a flutuar em muita loucura - disse. — E provavelmente nadamos na direção equivocada. Tenho que ir trocar este colarinho. Por certo, você o tem torcido, mas não se incomode em arrumá-lo. É um detalhe familiar em um mundo aterradoramente desconhecido. Tampouco abotoe o punho nem tire do bolso a corrente do relógio.

Sorriu com a despreocupação e facilidade que em outro tempo o caracterizava e, sem dar tempo ao Pitt a responder, afastou-se escada acima subindo os degraus de dois em dois.

Pitt começou a cruzar o vestíbulo em direção à porta forrada de pano verde que conduzia às dependências da criadagem, mas antes de chegar ouviu rápidas passadas a suas costas e uma voz que o chamava.

Ao voltar-se viu Justine aproximar-se dele com semblante preocupado. De repente assaltou ao Pitt o temor de que tivesse ocorrido algo a Eudora. Não tinha descido para tomar o café da manhã, mas naturalmente ninguém o esperava.  

Justine chegou até ele.

— Senhor Pitt, posso falar um momento com você?

— É claro – respondeu. — Do que se trata?

Justine indicou o salão da manhã, que se achava em frente deles e ao lado do escritório de Jack.

— Importa-lhe que entremos aí? Ainda é cedo e ninguém o usará ainda, acredito.

Pitt acessou e precedeu Justine até a porta para abrir-lhe. A moça se movia com uma graça única, mantendo a cabeça erguida e as costas retas, e ao mesmo tempo com maior flexibilidade que o comum das mulheres, como se dançar por puro e desenfreado prazer fosse surgir lhe de maneira natural.

— Do que se trata? - repetiu Pitt depois de fechar a porta.

Justine ficou de pé ante ele com expressão séria. Pela primeira vez Pitt percebeu indícios de tensão nela, uma momentânea hesitação, o movimento involuntário de um músculo a um lado da mandíbula. Aquela situação devia ser horrível para ela. Apresentara-se na casa de uns desconhecidos, por convite de seu noivo, para conhecer os pais deste. Encotraram-se com uma conferência política de caráter extremamente reservado e imprevisível. Na manhã seguinte tinham despertado com a notícia do assassinato do Greville e depois, quando Justine deveria ter sido o centro de atenção, tinham tido que assumir a inacabável e exaustiva tarefa de oferecer consolo e apoio a Eudora.

Pitt admirava seu valor e generosidade, sua capacidade de agüentar aquilo não só com dignidade mas também, além disso, com notável encanto. Piers tinha encontrado uma mulher fora do comum. Pitt considerava compreensível sua firme determinação de casar-se com ela, e o fato de que tivesse anunciado suas intenções a seus pais sem pedir antes permissão. Não se dera conta até esse momento do respeito que Piers lhe inspirava por tal atitude.

— Senhor Pitt - disse Justine em um sussurro, — a senhora Greville me contou que não teve mais remédio que lhe revelar o ocorrido a sua criada, Doll Evans.

Respirou fundo, e Pitt percebeu a tensão no tecido de seu vestido quando se retesou seu corpo. Parecia pensar as palavras com extremo cuidado, hesitando ainda se devia ou não falar.

— Desejaria que não tivesse sido necessário - assegurou Pitt. — Há muitos detalhes que seria preferível que não conhecesse.

— Sei. - Um indício de sorriso apareceu em seu rosto. — Existem muitas verdades que seria melhor ocultar. Às vezes a vida é já bastante difícil com o que forçosamente devemos saber. É mais fácil reconstruir as coisas se não se fizerem em pedacinhos antes de que tenhamos a fortaleza necessária para confrontar a tarefa em toda sua magnitude. Quando uma pessoa vê tudo por fazer, pode ver-se transbordado, e então é impossível reunir coragem sequer para tentá-lo e se fracassa até antes de começar.

— Que deseja me dizer, senhorita Baring? Não posso me desmentir em relação ao que já contei à senhora Greville. Não o teria mencionado sequer sem me haver certificado antes de que era verdade.

— Compreendo-o. Mas tem certeza de que foi assim, senhor Pitt, totalmente certo?

— Doll o disse à criada da senhora Pitt. À Gracie doeu trair sua confiança, mas viu que podia ser a causa do crime. É um motivo de peso para cometer um assassinato. Faz-se responsável, suponho? - perguntou Pitt com delicadeza.

— Sim - respondeu Justine com o rosto contraído pela emoção. — Se o senhor Greville realmente agiu assim com o Doll, compreendo... compreendo que ela pensasse que merecia morrer. E parece que teve... aventura com outras mulheres, com conhecidas.... mas essas mulheres, senhor Pitt, não se acham agora nesta casa. O importante é quem há aqui neste momento e quem teve ocasião de matar ao senhor Greville, não, senhor Pitt? Não é possível enterrar com ele suas indiscrições passadas em consideração à senhora Greville, Piers... e a própria Doll? No fim das contas, Doll esteve com a senhora Greville quase todo o tempo durante o qual se cometeu o assassinato. e...

— E o que?

Justine voltou a ficar tensa e a inquietação mudou seu semblante.

— E você não pode saber com absoluta certeza se essa história verdadeira. Sim, sem dúvida Doll ficou grávida e, por atroz que seja dizê-lo, não tinha mais opção que abortar. - Cravou no Pitt um olhar de ira contida. — Para o menino, foi uma morte melhor que qualquer outra das que o esperavam se tivesse nascido. Mas você não sabe se o senhor Greville foi o verdadeiro responsável.

Pitt a olhou desconcertado.

— Mas Doll acusou ao Greville. Quem...? Que insinua? Que o culpou quando em realidade tinha sido outro homem? Por que? Greville morreu... assassinado. Acusando-o, converte-se em suspeita, e do contrário ninguém teria pensado nela. Não tem sentido.

Justine sustentou seu olhar com olhos dilatados, tensa como um animal a ponto de atacar. Tão apaixonada estava por Piers que sentia a necessidade de defender seu pai com tal veemência e determinação? Admirou-a por isso. O caráter único de seu rosto não era casualidade, aquela súbita fortaleza onde a pessoa teria esperado só beleza.

— Sim, o tem -afirmou. — Se havia dito já antes a alguém que o responsável foi Greville, não podia retratar-se. E agora lhe convinha mais revelá-lo ela mesma que aguardar que o fato viesse à luz, dando a impressão de que o tinha ocultado. De modo que o contou a Gracie, sabendo que ela iria a você.

— Doll não tinha maneira de prever isso - aduziu Pitt. — De fato, Gracie não pensava dizer-me isso.

Justine sorriu com um brilho de humor.

— Você acredita, senhor Pitt? Por muitas diversas razões, a lealdade de Gracie acabaria impondo-se. Me consta, e Doll também devia sabê-lo.

— Mas Doll ignorava que houvesse alguém mais informado de sua tragédia - replicou Pitt.

— Disse isso? - perguntou Justine, arqueando as sobrancelhas.

— Possivelmente isso não seja certo - admitiu Pitt. — Sabia no mínimo outro criado, embora duvide que ela o contasse.

— Outro criado? Um homem? - apressou-se a dizer Justine. — Não, possivelmente o confiou a outra mulher, ou alguma o adivinhou. Essa é uma das primeiras coisas que suspeitaria uma mulher, senhor Pitt. As criadas da casa, ou algumas delas, deveram notar que lhe tinha ocorrido algo quando foi violada... se é que se tratou de uma violação; ou seduzida, que é mais provável. As mulheres são muito observadoras, sabia? Percebemos as menores mudanças na pessoa, em especial a de nosso próprio sexo. Surpreender-me-ia que ao menos a cozinheira e a governanta não se deram conta.

— E Doll lhes disse que tinha sido o senhor em lugar de delatar ao verdadeiro responsável? - Pitt achava ainda pouco sólida a hipótese, mas começava a lhe ver sentido. — Por que? Não seria isso em extremo arriscado? E se a falsa acusação chegasse aos ouvidos do Greville?

— Quem ia informá-lo? - perguntou Justine. — E se o responsável foi algum homem do serviço, sem dúvida tenderiam a proteger-se. Afinal, Doll não o contou a ninguém fora da casa. O senhor Greville não chegou a inteirar-se, e certamente tampouco a senhora Greville nem Piers.

Pitt refletiu seriamente a respeito. Não era impossível.

Justine percebeu a incerteza em seu semblante.

— Realmente acredita que um político e diplomata da talha do senhor Greville seduziria a uma criada em sua própria casa? - insistiu. — Senhor Pitt, achamo-nos ante um assassinato político. O senhor Greville desempenhava seu trabalho de maneira brilhante. Pela primeira vez nesta geração existe a esperança real de que se produzam avanços na Questão Irlandesa, e essa esperança a propiciou ele com seu talento diplomático e sua habilidade na mesa de negociações. Tais aptidões o convertiam em uma pessoa única, e sem dúvida por isso o mataram... aqui... e agora. - De repente adotou uma expressão mais grave. — Possivelmente o senhor Radley não o haja dito para não aumentar suas preocupações, senhor Pitt, mas ontem ocorreu um desagradável fato. Caiu uma urna no terraço de um balcão a só uns passos do senhor Radley. Se lhe tivesse acertado em cheio, com toda certeza teria morrido. Isso só pode dever-se a que agora ocupa o lugar do senhor Greville na conferência. É um assunto político, senhor Pitt. Faça o favor de conceder a sua família a oportunidade de recuperar-se da dor e chorar sua perda, sem turvar a lembrança que têm dele.

Pitt observou a seriedade de seu rosto. Estava fervorosamente convencida do que acabava de dizer, e era fácil compreendê-lo. Ele mesmo teria desejado proteger Eudora.

— Tem você um elevado conceito do senhor Greville - disse Pitt com gravidade.

— Naturalmente. Sei muito dele, senhor Pitt. Vou casar me com seu filho. Procure à pessoa que invejava sua inteligência, que temia seus lucros... e que tem especial interesse em que a Questão Irlandesa continue sem resolver.

— Senhorita Baring...

Pitt não pôde terminar a frase. De repente se produziu uma explosão. Tremeu o chão e se sacudiram as paredes. O espelho pendurado sobre a cornija da lareira saltou em pedaços e o ar se encheu de pó.

Os lampiões de gás caíram no chão feitos em pedacinhos e fora, no vestíbulo, alguém começou a gritar.

 

O ruído se desvaneceu. Pitt permaneceu imóvel por uns segundos, muito aturdido para dar-se conta do que ocorria. De repente tomou consciência. Uma bomba!

Alguém tinha feito explodir uma carga de dinamite dentro da casa. Deu meia volta e se lançou para a porta.

No vestíbulo flutuava uma nuvem de pó e fumaça. Pitt nem sequer viu quem gritava, mas a porta do escritório de Jack pendia de uma dobradiça e a mesinha contígua tinha ficado reduzida a lascas. O pó começava a dissipar-se no interior do escritório. A corrente de ar frio que penetrava pelas janelas quebradas arrastava-o para fora através da porta. Finn Hennessey jazia no chão, encolhido e assustado.

A mulher continuava gritando.

Jack!

Angustiado, Pitt entrou atropeladamente no escritório sem incomodar-se sequer em endireitar o que ficava da porta. Havia fragmentos de madeira por toda parte. Cheirava a gás e lã queimada. As cortinas, com os extremos feitos em farrapos, ondeavam movidas pelo vento, inchando-se como velas e perdendo de repente seu volume com um sonoro estalo. Os livros estavam espalhados pelo chão. O aroma de queimado aumentava cada vez mais. As brasas da lareira deviam ter-se esparramado pelo tapete com a explosão.

Atrás dos restos da escrivaninha jazia alguém, enfraquecido, com uma perna dobrada sob o corpo. Tinha o peito e o abdômen manchados de sangue, sangue de viva cor escarlate.

Pitt correu para ele passando por cima de papéis e pedaços de móveis e adornos, sem tratar sequer de procurar um caminho livre de escombros.

Tinha a mandíbula fraturada e a garganta aberta, mas assombrosamente o resto do rosto mal tinha ficado desfigurado. Era Lorcan McGinley. Apresentava uma expressão de ligeira surpresa, mas não de terror. Não tinha pressentido a iminência da morte.

Pitt se ergueu lentamente e retrocedeu para a porta. O vento agitou as cortinas de novo, e uma delas golpeou um quadro que oscilava suspenso de um só gancho. O quadro caiu ao chão com estrépito e o vidro se fez em pedaços.

Emily estava na porta. Tremia e tinha o rosto cinzento.

— É McGinley - disse Pitt com voz clara enquanto se dirigia para ela pisando em livros, folhas soltas, vidros quebrados e lascas.

O tremor do Emily se fez ainda mais violento. Esforçava-se por tomar ar como se estivesse afogando-se, sem dar-se conta de que começava a soluçar.

— É McGinley! - repetiu Pitt, segurando-a pelos ombros. — Não é Jack!

Ela ergueu os punhos e começou a lhe golpear às cegas, aterrorizada, desejando machucá-lo, compartilhar a insuportável dor que sentia.

— Emily! Não é Jack! - Pitt não queria levantar a voz. Ardia-lhe a garganta por causa do pó e da fumaça. A suas costas, o tapete do escritório começava a arder. Sacudiu Emily com força pelos ombros. —É Lorcan McGinley! Basta já! Emily, basta! Tenho que apagar o fogo antes que incendeie a casa. - Em meio de um violento acesso de tosse, tratou de pedir ajuda gritando. — Que alguém traga um balde de água! Depressa! Você! - apontou a uma figura imprecisa através do pó. A criada tinha deixado por fim de gritar. Ao vestíbulo começava a chegar mais pessoas, assustadas, sem saber o que fazer. Um lacaio com a libré poeirenta contemplava a cena paralisado. — Traga um balde de água! - ordenou-lhe Pitt. — Se gosta muito do tapete do escritório.

De repente o lacaio se moveu, virando sobre seus calcanhares para escapar.

Emily seguia tremendo e chorando, mas tinha baixado já os punhos. Começava a soltar o cabelo e estava lívida.

— Onde está Jack? - perguntou com voz rouca. — O que fez com Jack? Não era sua obrigação cuidar dele? Voltou-se bruscamente em gesto de lhe golpear de novo.

Ouviu-se ruído de passos e vozes.

— O que se passou? - disse O’Day. — Meu Deus! O que é isto? Há alguém ferido?    - Olhou ao redor. — Radley?

— Estou aqui.

Jack abriu passagem entre Doyle e Justine. Chegava mais gente da escada e a porta do serviço situada ao fundo do vestíbulo.

Emily nem sequer ouviu Jack. Continuava furiosa com o Pitt, e ele devia segurá-la com força para evitar seus golpes.

Um lacaio, de joelhos, segurava entre seus braços Hennessey, que parecia recuperar gradualmente os sentidos.

Jack se aproximou da porta do escritório, contemplou os destroços e empalideceu.

— McGinley - disse Pitt, olhando-o nos olhos. — Se produziu uma explosão. Dinamite, acredito.

— Está... morto?

— Sim.

Jack rodeou a Emily com um braço e a estreitou. Ela pôs-se a chorar, mas silenciosamente, como aliviada, liberando-se já do terror.

O’Day se aproximou com semblante sombrio e se deteve quase entre eles. Todos deviam perceber já o aroma de queimado.

— Onde demônios se colocou esse lacaio com a água? - gritou Pitt. — Quer que queime a casa inteira?

— Aqui, senhor! - disse o lacaio, aparecendo de repente junto a ele, cambaleante pelo peso dos dois baldes de água que conduzia.

Passou ante o Pitt e se dirigiu para as cortinas, que flutuavam na corrente de ar. Ao cabo de um instante jogou a água e ouviram o furioso chiado do vapor, seguido de uma baforada de fumaça que logo se dissipou. O lacaio saiu com a roupa suja e o rosto escaldado.

— Mais água! - exclamou com voz abafada, e outros dois lacaios obedeceram imediatamente.

Pitt permaneceu na porta, escondendo com seu corpo o interior do escritório. Aparentemente, estavam já todos pressentes, pálidos, consternados, assustados. Tellman se aproximou.

— McGinley - repetiu Pitt.

— Dinamite? - perguntou Tellman.

— Acredito que sim.

Pitt procurou Iona com o olhar. Achava-se entre o Fergal e Padraig Doyle. Possivelmente suspeitava já a verdade pela expressão do Pitt e pelo fato de que Lorcan não estava no vestíbulo com os outros.

Eudora se aproximou dela. Iona meneou a cabeça em um gesto de negação. Padraig a rodeou com um braço.

— O que ocorreu? - perguntou Fergal com o sobrecenho franzido, tratando de olhar por cima do Pitt. — Um incêndio? Há algum ferido?

— Pelo amor de Deus, não ouviu o ruído? - respondeu O’Day com tom irado. — Foi uma explosão! Dinamite, a julgar pelo som.

Fergal ficou atônito. Percebeu então temor no rosto da Iona. Voltou-se para o Pitt com semblante interrogativo.

— Infelizmente o senhor McGinley morreu - explicou Pitt com tom lúgubre. — De momento só sei que a explosão se produziu na aparência atrás da escrivaninha do senhor Radley. O fogo foi uma mera conseqüência da detonação. Devido à onda expansiva, as brasas da lareira caíram no tapete.

Enquanto falava, chegou um lacaio com mais água, e Pitt se afastou para deixá-lo passar.

— Está seguro de que não posso fazer nada pelo senhor McGinley? – perguntou Piers com inquietação.

— Totalmente seguro - confirmou Pitt. — Possivelmente possa atender à senhora McGinley.

— Sim. Sim, naturalmente.

Piers retrocedeu e falou com delicadeza a Iona como se não houvesse ninguém em frente, sua voz só ligeiramente trêmula.

Padraig Doyle se aproximou de Pitt com rugas de preocupação no rosto.

— Uma bomba no escritório do Radley - disse de costas a outros para que não o ouvissem. — E ao explodir apanhou o pobre Lorcan. Mau assunto, Pitt. Quem demônios a pôs?

— E me diga, Doyle, que demônios fazia aí McGinley? - perguntou O’Day com tom grave, olhando-os um por um como se esperasse que alguém tivesse a resposta.

Iona, em silêncio, abria e fechava as mãos. Fergal se aproximou dela e dissimuladamente lhe rodeou os ombros com um braço.

— Possivelmente procurava o Radley - sugeriu Padraig, seu olhar penetrante e sombrio. —Talvez para lhe pedir papel, tinta, lacre, quem sabe? - voltou-se para Finn Hennessey, que nesse momento ficava em pé com visível esforço, auxiliado pelo lacaio que minutos antes o segurava entre seus braços. Perguntou: — Sabe a que tinha vindo o senhor McGinley ao escritório do senhor Radley?

Finn piscava, ainda aturdido. Tinha o rosto e a roupa cobertas de pó. Mal parecia capaz ainda de concentrar a atenção.

— Sim, senhor - respondeu com voz rouca. — A dinamite... - Contemplou a porta destroçada do escritório e as nuvens de pó e fumaça.

— Sabia que havia aí a dinamite? - disse Padraig com incredulidade.

— Está... morto? - balbuciou Finn.

— Sim - respondeu Pitt. — Sinto muito. Quer dizer que McGinley sabia que a dinamite se achava aí?

Finn, piscando, voltou-se para ele. Era claro que estava ainda aturdido e sofria provavelmente uma comoção tanto física como emocional. Umedecendo os lábios ressecados com a língua, meneou a cabeça em um gesto de assentimento.

— Então por que diabos não foi em busca de ajuda? - perguntou O’Day em boa lógica. — E além disso, como sabia?

Finn o olhou fixamente.

— Ignoro como tinha descoberto, senhor. Só me disse... que montasse guarda ante a porta e não deixasse entrar ninguém no escritório. Assegurou-me que sabia mais de dinamite que ninguém na casa e que era melhor que se ocupasse ele mesmo.

Afastou a vista de O’Day para voltar-se para o Pitt.

— Quem pôs a bomba, pois? - perguntou Kezia com pânico na voz, olhando sucessivamente a cada um deles.

— A mesma pessoa que assassinou ao senhor Greville - respondeu Justine, pálida e tensa. — É evidente que a bomba ia dirigida ao senhor Radley porque teve a coragem de substituí-lo. Alguém se propõe impedir a toda custa o êxito destas negociações e está disposto a cometer um assassinato atrás de outro para alcançar seu objetivo.

Os lacaios tinham conseguido apagar o fogo. A fumaça se dissipou, mas o vento arrastava o desagradável cheiro da lã queimada e úmida e o pó que flutuava ainda no ar.

— Claro que ia dirigida ao senhor Radley - disse Eudora, e engoliu a saliva. — O pobre Lorcan certamente viu alguém colocar a bomba ou se deu conta de que estava aí... nunca saberemos... e entrou para tentar desarmá-la... mas não o obteve.

Iona lhes lançou um olhar intenso, com os olhos arregalados e inundados em lágrimas.

— Lorcan foi vítima de uma traição, como todos nós! - exclamou. — Agora é um mais dos irlandeses imortais que pereceram lutando pela paz, por fazê-la realidade. - Aproximou-se de Emily e Jack. — Recaiu sobre você uma grande responsabilidade, senhor Radley, uma dívida de honra, contraída com sangue e sacrifício. Não pode nos voltar as costas.

— Farei quanto esteja em minhas mãos por vocês, senhora McGinley – respondeu Jack, sustentando seu olhar-. Mas não deixarei que um sacrifício influa em minha consciência. Desejaria que Lorcan McGinley fosse o único homem que morreu pela paz da Irlanda, mas desgraçadamente é só um mais entre milhares. E agora temos muito que fazer. O delegado Pitt deve investigar outro crime...

— Não conseguiu grande coisa com o primeiro - disse O’Day com um súbito ressentimento que parecia impróprio dele a julgar por sua anterior atitude.                         — Possivelmente deveríamos solicitar mais ajuda. As coisas vão de mal a pior. McGinley é a segunda vítima em três dias...

— A terceira em uma semana - precisou Pitt. — Um bom homem morreu assassinado em Londres porque se infiltrou nos grupos fenianos e descobriu a respeito de seus planos.

O’Day se voltou imediatamente para ele com o rosto corado e olhar penetrante.

— Não nos tinha advertido disso. Não nos havia dito que estava informado que os fenianos planejavam tudo isto. Até sabendo-o, não o acautelou?

— Isso não é justo - atravessou Charlotte, que se achava na penumbra detrás de Emily e Jack e deu um passo à frente. — Os fenianos não entraram nesta casa. Quem quer que tenha feito isto - acrescentou, assinalando a porta aberta do escritório e dos escombros do interior - se encontra entre nós. Trouxeram vocês a morte consigo!

Alguém deixou escapar um grito abafado. Era impossível saber quem. O medo e a dor eram tão evidentes no ambiente como o pó e o aroma de queimado.

— Sim, tem você razão - se desculpou O’Day, esforçando-se por serenar. — Sinto muito, senhora Pitt, delegado. Tinha depositadas muitas esperanças nesta conferência, e é difícil, para uma pessoa,ver frustrados seus sonhos e não desejar jogar a culpa a alguém. Reconheço, não obstante, que é inútil. - Olhou ao redor, mas se dirigiu especialmente ao Padraig. — Vamos. Devemos deixar que o senhor Pitt cumpra com sua desagradável obrigação e nos preparar para prosseguir as conversas da melhor maneira possível a fim de frustrar os propósitos do demente que cometeu este ato de violência.

— Bravo - aprovou Padraig, erguendo as mãos em gesto de aplaudir e partindo a seguir.

— É claro - disse Jack depois de lançar um olhar ao Pitt. — Iremos ao salão da manhã quando o fogo estiver aceso, e pedirei ao Dilkes que nos traga um ponche com conhaque. Estou certo de que nos virá bem a todos. Emily...

Emily continuava branca como o papel, mas conseguiu sobrepor-se para responder com voz vacilante: — Se.... Se...

Começou a caminhar como se não notasse o chão sob os pés. Passou ante Iona sem deter-se. Foi Justine quem tomou Iona pelo braço e se ofereceu a acompanhá-la a seu quarto, ir chamar a sua criada, encarregar que lhe subissem uma infusão, com conhaque se o desejasse, e ficar com ela um momento. Charlotte estava junto ao Finn Hennessey, lhe falando com delicadeza, ajudando-o a recuperar-se da confusão e atordoamento. O moço tinha ainda o olhar perdido, como se mal soubesse onde se achava nem fosse capaz de compreender o que tinha ocorrido ou que fazia ele ali. Gracie se achava também a seu lado, muito pálida.

Pitt observou ao Charlotte com uma repentina admiração que lhe foi extranhamente dolorosa. Era tão competente, tão inteira... Não parecia necessitar apoio de ninguém. Se estava assustada, dissimulava-o bem. Mantinha as costas erguidas, a cabeça no alto, toda sua preocupação concentrada no Hennessey e Gracie.

Pitt deu meia volta, disposto a realizar seu trabalho. Tellman estava junto a ele. Não tinha percebido sua presença até esse momento.

Outros seguiram Jack para o salão de manhã; todos salvo Eudora e Tellman. Eudora, pálida, com uma mancha de pó na face, olhava fixamente ao Pitt.

— Senhor Pitt, sinto muito - disse com gentileza. — O comentário do senhor O’Day foi imperdoável. Ninguém pode nos defender de nossa mútua violência. Isto é espantoso, mas faz pensar que existe entre nós grande bondade e também maldade. Lorcan deu a vida tentando desarmar a bomba. Possivelmente fique ainda vontade suficiente para sair graciosos se averiguar você quem... quem colocou aí esse artefato. - Sem separar dele o olhar, perguntou: — Será... será capaz? Quero dizer se há alguma pista, se pode achar algo entre os escombros.

— Entre os escombros não - respondeu Pitt. — Poderia havê-lo feito qualquer das pessoas que estão na casa, mas interrogaremos aos criados e a todos outros para averiguar quem tinha passado por aqui nas últimas horas, onde estava todo mundo. Possivelmente descubramos algo.

— Mas... mas é possível que todos tenhamos cruzado o vestíbulo – protestou Eudora. — Isso não demonstra.. . Quero dizer... - interrompeu-se, com um nó na garganta, sua voz débil e aguda. — Quero dizer... - Moveu a cabeça em um gesto de desolação e partiu atrás dos outros, sua saia escura coberta de pó.

Tellman lançou um suspiro, lançou uma olhada ao interior do escritório e depois abriu caminho entre os escombros para a escrivaninha e o cadáver do Lorcan McGinley.

Ficando de cócoras, examinou primeiro o corpo e depois os restos da escrivaninha.

— Acredito que a dinamite estava na gaveta superior do lado esquerdo, ou possivelmente no segundo - disse Pitt, a suas costas.

— Isso parece - concordou Tellman, mordendo o lábio,— a julgar como se espalharam ao redor as lascas e todo o resto. Que desastre! Quem colocou a bomba queria assegurar-se de que o senhor Radley não saísse com vida, isso sem dúvida. Eu não gostaria de estar na pele de um político com a missão de reconciliar a essas pessoas. - Dirigiu de novo a atenção ao cadáver do Lorcan. — Devia estar justo em frente, o pobre tipo.

Pitt permanecia de pé com as mãos nos bolsos e a fronte enrugada.

— Certamente a bomba se ativava mediante um arame ou algo assim, e não um relógio - comentou pensativamente. Ninguém podia saber com certeza quando entraria Jack. Poderia ter explodido com o escritório vazio, e se a tivessem colocado sobre a escrivaninha, escandia entre os papéis e os livros, poderia havê-la movido um criado ao fazer a limpeza.

— Acredita que a esses indivíduos preocuparia muito? - disse Tellman ressentidamente. — Que importância tem para eles um criado inglês mais ou menos?

— Possivelmente nenhuma - admitiu Pitt. — Mas isso não lhes teria servido de nada. Teria sido um risco e uma atrocidade sem propósito algum. Não, o objetivo era concretamente Jack, e portanto a bomba devia estar em uma das gavetas que ninguém mais abriria.

Inclinou-se e procurou os restos das gavetas entre os escombros. Encontrou uma e a examinou sem descobrir nada especial. Pegou outra e lhe deu volta com supremo cuidado, apalpando-a com as pontas dos dedos. Ficava só uma das peças laterais e parte do fundo. Observou-a por debaixo. Uma fileira de tachinhas de cabeça plaina percorria a madeira de um extremo a outro. Sob uma delas havia uma parte de arame quebrado.

— Acredito que descobrimos onde estava instalado o mecanismo – sussurrou Pitt.    — Presa sob a gaveta para que, ao abrir-se, fizesse detonar o explosivo. Para preparar o dispositivo se requerem vários minutos. Deve-se esvaziar a gaveta, fixar o arame e depois devolver tudo a seu lugar.

Tellman se ergueu com olhar de assombro. Os joelhos lhe rangeram ao endireitá-lso.

— É uma lástima que McGinley tenha morrido - disse pausadamente. — Poderia esclarecer algumas duvidas importantes.

— Era um homem de grande valor. - Pitt moveu a cabeça em um gesto de pesar.     — Eu gostaria muito saber o que deduziu ele que nos passou por cima.

— O grande estúpido deveria nos ter avisado! - exclamou Tellman com raiva. — Esse é nosso trabalho. - De repente se ruborizou ligeiramente. — Embora desta vez não o temos feito muito bem, que digamos. Eu não sei nada de dinamite, e você?

— Não - admitiu Pitt. — Nunca tinha tido que investigar um assassinato com dinamite. Mas alguém colocou aqui a bomba e a preparou para que explodisse ao abrir a gaveta. Deveríamos ser capazes de averiguar quem o fez. Afinal, McGinley o descobriu.

— A mesma pessoa que matou ao Greville - respondeu Tellman. — E nos consta que não foram McGinley nem O’Day nem Hennessey, o valete, mas poderia ter sido qualquer dos outros.

— Nesse caso vale mais que averigüemos quando colocaram aqui a bomba. Obviamente foi depois da última vez que Jack abriu essa gaveta. Fale com os criados: as domésticas, o mordomo, os lacaios, qualquer um que tenha entrado aqui ou passado pelo vestíbulo. Informe-se de onde estiveram todos esta manhã, quem pode demonstrá-lo, quem viram e quando, em especial Finn Hennessey. Eu irei falar primeiro com o senhor Radley e depois com os convidados. Mas antes de começar será melhor que alguém lhe ajude a transladar o corpo do pobre McGinley ao depósito de gelo. - Deu meia volta.        — Podem usar a porta para transportá-lo. Pende de uma só dobradiça. Logo conviria pedir a algum criado que no mínimo cubra o vão com uma cortina para que a visão dos destroços não cause ainda maior angustia a alguém. E que murem também a janela se por acaso chover.

— Lamentável, não? - disse Tellman com expressão carrancuda. Desaprovava a forma de vida dos ricos, mas não gostava de ver a beleza destruída daquele modo.

Como quase todos na casa, Gracie tinha ouvido a detonação. A princípio pensou que se tratava de algum acidente doméstico. Entretanto em seguida intuiu que tinha ocorrido algo grave. Deixou a jarra de água que tinha na mão sobre a superfície de mármore da mesa da confeitaria, onde, a falta de roupa que arrumar, ajudava Gwen a preparar um remédio para as sardas.

— O que foi isso? - disse Gwen, sobressaltada. — Esse não é o ruído de bandejas ou frigideiras ao cair.

— Não sei, mas vou ver - respondeu Gracie sem vacilar.

Saiu a toda pressa da confeitaria e correu pelo corredor em direção à porta do serviço que dava ao vestíbulo, deixando atrás a carvoeira e a sala onde os lacaios limpavam as facas.

Tellman saiu do quarto do engraxate, pálido, com os olhos arregalados. Correu atrás dela e a alcançou a uns passos da porta do vestíbulo, agarrando-a pelo braço.

— Quieta, Gracie! Não sabemos o que pode ter sido.

Puxou-a com tal força que a obrigou a virar sobre seus calcanhares.

— Eu sei o que não é - disse Gracie com a respiração entrecortada. — Aconteceu algo. Terá sido uma pistola?

— As pistolas não fazem tanto ruído - respondeu Tellman sem lhe soltar o braço. — Soou mas bem a dinamite. Espere aqui. Eu entrarei para ver o que ocorreu.

— Não penso ficar aqui! O senhor Pitt poderia estar ferido!

— Se for assim, não há nada que você possa fazer - replicou Tellman com tom enérgico. — Espere aqui. Eu lhe avisarei...

Gracie escapou dele e abriu a porta de par em par. Imediatamente viu o pó e a porta quebrada do escritório. O coração lhe deu tal tombo que temeu que pudesse parar.

A seguir viu Pitt e lhe invadiu uma sensação de alívio tão intensa que a cabeça começou a lhe dar voltas. Se não andasse com cuidado, acabaria desmaiando como uma daquelas idiotas criadas. Teve que segurar-se a borda de uma mesa por um momento.

Produziu-se outro estrépito e quase morreu de susto. Simplesmente tinha sido um espelho ao cair e romper-se. Percebia-se um cheiro espantoso e havia nuvens de pó no ar. Demorariam semanas para limpar aquilo.

Chegava gente de todas direções. Graças a Deus também estava ali o senhor Radley. A senhora Radley golpeava e gritava com Pitt, uma reação possivelmente compreensível, embora deveria haver-se contido.

Tellman estava atrás dela.

— Encontra-se bem? - perguntou.

— Sim, claro que me encontro bem! - assegurou não sem esforço, Pitt se achava são e salvo, e Charlotte cruzava nesse momento o vestíbulo, branca como o papel mas ilesa. Acrescentou: — Obrigada.

— Agora não tem nada que fazer aqui - insistiu Tellman. — Depois haverá muito que limpar, mas de momento precisamos saber o que ocorreu e não queremos que se toque nada.

— Já sei - respondeu Gracie com tom irado. Claro que sabia. Acaso achava aquele homem que era tola?

Alguém pronunciou o nome do McGinley.

O valete de Doyle estava junto à escada.

Cheirava a queimado. Alguém pedia um balde de água.

De repente Gracie viu Finn no chão, parcialmente endireitado com a ajuda de um lacaio; perto se achava Charlotte. Lhe formou um nó no estômago. Abriu passagem entre a senhorita Moynihan e a senhorita Baring e se aproximou de Charlotte.

— O que aconteceu? - perguntou, erguendo a voz tanto como lhe permitiu seu nervosismo. — Se encontra... bem? - Olhava ao Finn.

— Sim, está bem - sussurrou Charlotte. — O senhor McGinley entrou no escritório e de algum modo ativou uma bomba feita com dinamite.

— Morreu?

— Sim, infelizmente. Devia estar justo ao lado da bomba.

Gracie tomou ar e esteve a ponto de afogar-se a causa do pó que flutuava no ar.

— É horrível! - exclamou. — Esses irlandeses estão loucos! Quem pode tirar algum proveito disto?

— Ninguém - murmurou Charlotte. — Diz Hennessey que o senhor McGinley sabia que havia uma bomba e tentou desativá-la, mas devia estar tão bem preparada que explodiu de qualquer modo.

—Pobre homem. - Gracie sentiu uma profunda lástima por ele. — Possivelmente se comportara de maneira tão valente pelo ocorrido de sua esposa com o senhor Moynihan. Possivelmente estava tão doído... - interrompeu-se. Não deveria haver dito aquilo. Não era assunto seu. — Foi muito valente - acrescentou. Olhou a Charlotte e depois ao Finn.

Charlotte a empurrou com uma ligeira cotovelada.

Gracie se aproximou e se ajoelhou junto ao Finn. Parecia aturdido, sem saber ainda claramente onde se achava.

Tinha o rosto e a roupa manchadas de pó e fuligem, e sob a sujeira se percebia a cor cinzenta de sua pele.

— Sinto muito - sussurrou. Acariciou-lhe uma mão, e ele a pegou agradecido. — Tem que ser valente, como o senhor McGinley. Comportou-se como um autêntico herói.

Finn a olhou fixamente, com os olhos muito abertos, quase afundados por causa da comoção e pesar.

— Não o entendo! - disse com desespero. — Isto não deveria ter acontecido. Sabia dirigir a dinamite. Deveria... - Moveu a cabeça para esclarecer as idéias. — Deveria ter podido... fazê-lo.

— Sabe quem a pôs aí? - perguntou Gracie.

— O que?

— Sabe quem pôs aí a dinamite?

— Não. Não, claro que não - respondeu Finn. — Se soubesse, já o haveria dito, não?

— Como descobriu o pobre senhor McGinley que estava aí?

Finn desviou o olhar.

— Não sei.

Gracie se sentiu envergonhada. Não deveria interrogá-lo naquele estado, assustado, aflito, machucado. Em lugar disso, devia tratar de consolá-lo.

— Perdoa - murmurou. — Claro que não o entende. Suponho que ninguém o entende, salvo quem pôs a bomba, e possivelmente nem sequer ele. Melhor será que vá descansar um momento. Ao senhor Dilkes não lhe importará que tome um pouco de seu conhaque. Bem sabe Deus que o necessita. Todos necessitamos tempo e um pouco de ajuda para nos serenar.

Finn voltou a olhá-la.

— É um encanto, Gracie. - Engoliu a saliva, tomou ar com uma trêmula e profunda inalação, e voltou a engolir a saliva. — Não sei como pode ter ocorrido.

— O senhor Pitt o averiguará - respondeu Gracie, tentando convencer-se também a si mesma. — Vamos sentar nos à sala da senhora Hunnaker. Logo estaremos muito ocupados.

— Sim... - concordou Finn.— Sim, claro.

Deixou que Gracie o ajudasse a levantar-se e, depois de agradecer ao lacaio, abandonaram juntos o poeirento vestíbulo e foram à sala da senhora Hunnaker, onde ninguém havia para lhes permitir ou lhes negar a entrada. Obrigou-lhe a sentar-se e depois, na ausência do mordomo para lhe proporcionar um pouco de conhaque, foi ao armário da cozinha, serviu-se de um bom copo de xerez por própria iniciativa e o levou a sala. Discutiria com a senhora Williams mais tarde. Sentou-se frente a Finn e tratou de consolá-lo, observando-o atentamente e lamentando sua estado de confusão e sua perda.

Quando apareceu Tellman para lhes perguntar onde tinha estado durante a manhã e o que tinham visto, Finn já quase se recuperara.

Tellman ficou junto à porta, o corpo anguloso, os ombros tensos. Aparentemente, não aprovava que Gracie estivesse sentada na beira da segunda melhor poltrona da governanta e Finn reclinado na melhor.

— Sinto muito, senhor Hennessey - disse com gravidade. — Lamento ter que interrogá-lo quando acaba de perder a uma pessoa próxima, mas devemos averiguar o que ocorreu. Alguém pôs ali a dinamite. Provavelmente a mesma pessoa que matou ao senhor Greville.

— É claro... - respondeu Finn, erguendo a vista para olhar ao Tellman. — Não sei quem o fez.

— Possivelmente não saiba de maneira consciente, ou do contrário o haveria dito.      - Tellman ia provido de papel e lápis para tomar nota das declarações. — Mas pode ser que tenha visto algo importante sem dar-se conta. O que fez desde as sete da manhã?

— Por que das sete?

— Limite-se a responder, senhor Hennessey.

A paciência do Tellman era muito menor do que teria estado disposto a reconhecer. Palpitava-lhe um músculo na têmpora e tinha os lábios brancos. Gracie compreendeu de repente com surpresa o peso de sua responsabilidade e quão preocupado devia estar. Tellman conhecia exatamente o longe que ele e Pitt estavam de achar uma solução, o estrepitoso fracasso que tinha sido até o momento aquela missão, e os nulos avanços conseguidos. Gracie deveria colaborar mais com ele. Afinal, era o ajudante do Pitt. Era essa a verdadeira obrigação dela. Não devia permitir que o mau caráter daquele homem desviasse sua atenção.

— Quer saber quem é o culpado do que passou ao senhor McGinley, não é verdade? - disse Gracie ao Finn com tom premente. — Qualquer de nós pode ter visto algo. - Voltou-se para o Tellman. — Eu não desci até muito depois das sete. Primeiro naturalmente me vesti e comprovei se o fogo do quarto de vestir da senhora estava devidamente aceso. Depois fui lhe buscar água para o asseio. Perguntei-lhe se desejava uma xícara de chá, mas não quis. Depois levei uma xícara de chá ao senhor Pitt, vendo que seu valete se descuidou.    - Lançou-lhe um eloqüente olhar.

Tellman se absteve de fazer comentário algum, mas Gracie viu a resposta em seus olhos.

— E... - disse Tellman, insistindo para continuar.

— E ajudei à senhora a vestir-se e pentear-se...

— Quanto tempo lhe levou isso? - perguntou Tellman, e Gracie acreditou perceber um tom de sarcasmo em sua voz.

— Eu não fico de braços cruzados olhando o relógio, senhor Tellman. Mas demorei mais do que o normal, tendo em conta que tenho que trabalhar por dois.

— Não me diga que ajuda a vestir-se o delegado? - perguntou Tellman com manifesta incredulidade.

— Claro que não! Mas como seu valete é um inútil e não se deixa ver, fui lhe buscar água, limpei-lhe os sapatos e lhe escovei a jaqueta. Depois desci com a roupa suja me cruzei na escada com o Doll, a criada da senhora Greville, e conversamos um...

— Isso não nos serve - interrompeu Tellman.

— E por volta das nove menos quarto fui a perguntar à senhora Pitt o que pensava vestir para o jantar, e vi à senhorita Moynihan descer pela escada principal e entrar no salão de manhã, e à senhora McGinley com o senhor Moynihan na estufa encostada à casa, muito perto da porta para o que estavam fazendo...

Tellman fez uma careta de inequívoco desdém.

Finn sorriu como se achasse tristemente cômica essa aventura amorosa.

— Adiante - disse Tellman com aspereza. — Viu a alguém mais?

— Sim. O senhor Doyle saía do vestíbulo em direção à porta lateral da casa.

— Aonde ia?

— Ao jardim, claro está.

— Que horas eram?

— Não sei. As nove menos dez, possivelmente.

— Está segura de que era o senhor Doyle?

— Não me olhe com essa cara! Acredita que o diria se não tivesse certeza? Se por acaso o esqueceu, trabalho em casa do senhor Pitt, e sei mais de muitos de seus casos que você mesmo.

— Tolices - replicou Tellman com desprezo.

— Asseguro-lhe que sim! Porque eu sei o que fazem a senhora Pitt e a senhora Radley, e disso você não tem a menor idéia.

Tellman a olhou com raiva.

— Não é você quem deve andar intrometendo-se nas investigações da polícia. Fará mais mal que bem e ao final resultará ferida, jovenzinha estúpida.

Para Gracie aquele comentário chegou à alma. Não lhe ocorreu resposta alguma equiparável nem remotamente ao insulto do Tellman, mas o guardaria, e quando se apresentasse a ocasião, pulverizá-lo-ia.

Tellman se voltou para o Finn.

— Senhor Hennessey, seria amável de me explicar o que tem feito e a quem viu desde as sete da manhã, incluído o próprio senhor McGinley. Possivelmente assim averigüemos como descobriu a dinamite e por que não se deu conta ninguém mais.

— Sim... - Finn tremia ainda, e lhe supôs um considerável esforço manter firme a voz. Primeiro me vesti e me barbeie. Depois, como Gracie, fui ao quarto de vestir do senhor McGinley para me assegurar de que a doméstica tinha aceso o fogo, coisa que com efeito tinha feito, e de que tudo estava limpo e sem pó. A criadagem desta casa é muito eficiente. - Não percebeu a careta de desgosto do Tellman nem seu profundo suspiro. — Preparei o palanganero, coloquei as escovas para o cabelo, unhas e dentes, fui buscar água quente, e pus o roupão e as sapatilhas ante o fogo para que se esquentassem. Depois, como de costume, afiei a navalha de barbear no suavizador; mas o senhor McGinley gosta de barbear-se ele mesmo, assim simplesmente deixei tudo arrumado.

— A que hora terminou? - perguntou Tellman com acrimônia.

— Às oito menos um quarto - respondeu Finn. — Já o disse.

Tellman tomou nota.

— Sabe a que horas saiu o senhor McGinley de seu quarto?

— Para tomar o café da manhã?

— Para algo.

— Desceu para tomar o café da manhã por volta das oito e quinze, acredito. Não estou certo porque eu tinha partido pouco antes para limpar suas melhores botas. Tinha que preparar mais betume.

— Prepará-lo? Não o compram já engarrafado, como todo mundo?

Uma careta de desdém apareceu no rosto do Finn.

— O betume manufaturado contém ácido sulfúrico. Danifica a pele. Qualquer bom valete sabe prepará-lo.

— Como eu não sou valete, não tenho por que sabê-lo. - respondeu Tellman.

— Doze onças de pó de marfim calcinado, outras doze de melaço, quatro onças de esperma de baleia e outras quatro de vinagre branco - informou Finn serviçalmente. — E se mistura tudo bem, claro está.

— Aonde foi prepará-lo? - perguntou Tellman sem deixar-se impressionar.

— Ao quarto do engraxate, naturalmente.

— Desceu pela escada de serviço para homens?

— É claro.

— Viu alguém?

— A Wheeler, o valete do senhor Doyle, o mordomo, e dois lacaios cujos nomes não conheço - enumerou Finn.

— Esteve em algum momento na parte dianteira da casa? - insistiu Tellman.

— Cruzei o vestíbulo ao ir folhear os jornais. Queria ver se traziam alguma notícia sobre o senhor Parnell. Nesse momento descia o senhor Padraig.

— Ele só?

— Sim.

— Aonde ia? - perguntou Tellman. — À sala do café?

— Não. Ia na outra direção, mas não sei aonde. Eu retornei com os jornais às dependências do serviço pela porta do vestíbulo.

— E depois? - prosseguiu Tellman com o lápis a ponto e o olhar fixo no Finn.

Finn hesitou.

— Tem que contar-lhe tudo - lhe apressou Grade. — É importante.

Finn parecia consternado.

Gracie desejou inclinar-se e lhe acariciar de novo a mão, mas não podia fazê-lo em presença do Tellman.

Tellman lambeu a ponta do lápis.

— O senhor McGinley me mandou chamar - disse Finn com voz trêmula.

— Desde onde? Onde estava o senhor McGinley? - perguntou Tellman.

— Como? Ah, em seu quarto, suponho. Sim, em seu quarto. Mas encontrei-o no alto da escada. Pediu-me que o acompanhasse e aguardasse no vestíbulo enquanto ele entrava no escritório do senhor Radley. Disse-me que alguém tinha posto dinamite ali e ele ia ... evitar uma desgraça.

— Entendo. Obrigado. - Tellman respirou fundo. — Lamento o que ocorreu ao senhor McGinley. Parece que morreu como um herói.

— Alguém o assassinou - disse Finn entre dentes. — Espero que apanhem a esse filho de Satanás e o pendurem de uma forca tão alta como o monumento a Nelson.

— Confio em que assim seja.

Tellman olhou Gracie como se se dispusesse a acrescentar algo, mas mudou de idéia e partiu. Gracie se voltou para o Finn, desejando poder ajudá-lo. Imaginava a dor e a consternação que sentia, a qual se somaria logo o temor por sua própria situação. Com a morte do McGinley se veria privado de seu posto de trabalho. Teria que começar a procurar uma nova casa, com as dificuldades, insipidezes e tribulações que isso implicava. Gracie lhe sorriu timidamente sem mais intenção que lhe transmitir sua compreensão e afeto.

Finn lhe devolveu o sorriso e estendeu uma mão para acariciar as dela.

Pitt achou Tellman entre os escombros do escritório uma hora mais tarde.

— O que averiguou? - perguntou sem levantar a voz, porque ainda não tinham substituído a porta.

Tellman repetiu ao Pitt a declaração do Finn.

— Isso é mais ou menos o que já sabíamos - comentou Pitt. — Alguma outra coisa?

— Uma criada entrou aqui para acender o fogo pouco depois das sete da manhã - respondeu Tellman, consultando sua caderneta. Tirou o pó da escrivaninha, encheu o tinteiro e comprovou se havia suficiente papel, lacre, velas, etc. Abriu a gaveta deste lado porque aí era onde estava guardado o material. Não notou nada de anormal. E trabalha nesta casa desde os tempos de lorde Ashworth.

— Assim, colocaram-na depois das sete e explodiu por volta das dez menos vinte e cinco. Isso nos deixa um intervalo de umas duas horas e meia.

— Todos os criados estavam acima ou tomando o café da manhã no refeitório – disse Tellman. — Ou se não, dedicados a suas tarefas no tanque, a confeitaria ou em qualquer lugar que se ocupem dessas coisas. Nunca teria imaginado que se requeria tanto trabalho para manter meia dúzia de damas e cavalheiros alojados, alimentados, bem dispostos e entretidos.

Seu semblante expressava claramente sua opinião a respeito da moralidade de tal situação.

— Pôde algum deles vir até aqui e colocar a dinamite? - perguntou Pitt sem fazer comentário algum sobre o número de criados.

— Não. Necessita-se um tempo considerável para armar uma bomba com dinamite e instalar o mecanismo que ative o detonador ao abrir a gaveta. Não seria possível deixá-la e sair correndo.

— Conforme parece, todas as mulheres estavam com suas criadas ou na sala de refeições - disse Pitt pausadamente. Tinha falado com todas elas, apesar de que em nenhum momento tinha contemplado seriamente a possibilidade de que uma mulher tivesse posto a dinamite no escritório do Jack. — À exceção da senhora Greville. Como não é de estranhar, ainda deseja passar sozinha a maior parte do tempo.

Tellman guardou silêncio.

— Isso deixa os homens - prosseguiu Pitt com expressão sombria, — quer dizer, Moynihan e Doyle. Piers Greville se achava com a senhorita Baring.

— Moynihan e a senhora McGinley estavam juntos na estufa encostada à casa - informou Tellman com um gesto de desalento. — Os viu ali seu Gracie. Embora, certamente, nada impede de pensar que poderiam ter atuado em cumplicidade, para desfazer-se do McGinley e poder casar-se... se essa classe de pessoa tem por costume casar-se.

— Sim, se casariam - afirmou Pitt com tom irônico, — desde que ficassem de acordo no rito, e alguma de suas respectivas igrejas concordasse a lhes dar a bênção. Suspeito que ambos os bandos são resistentes aos matrimônios mistos.

Tellman ergueu a vista ao teto por um instante.

— Moynihan está bastante louco por ela para matar a seu marido, e juraria que ela teria sido muito capaz de ajudá-lo. Por outro lado temos ao Doyle – indicou Tellman. — O viram duas vezes no vestíbulo, uma vez Hennessey e outra Gracie.

— Acredito que vale mais que vá falar com o senhor Doyle - disse Pitt a contragosto.

Sabia que Eudora temia por seu irmão pelo assassinato do Greville. Com a morte do McGinley, aumentaria sua inquietação... possivelmente com razão. Apesar de Pitt não gostar da idéia, posto que sentia simpatia pelo Doyle, o fato de que só McGinley conhecesse a existência da bomba - além da pessoa que a tinha colocado - fazia recair as suspeitas no Doyle. Tinham discrepado acaso sobre a estratégia para alcançar seus objetivos comuns? Estava Doyle disposto a recorrer novamente à violência, e McGinley o tinha descoberto?

Reuniram-se no toucador. Eudora, de pé junto à janela, observava alternativamente os rostos do Pitt e Padraig.

— Sim, passei pelo vestíbulo - admitiu Padraig com um indício de ira no olhar. — Mas não entrei no escritório. Fui da porta principal até a lateral para ver como estava o tempo e logo tornei a subir a meu quarto.

— Não, senhor Doyle; não voltou para seu quarto - desmentiu Pitt com voz baixa.    — Foi visto no vestíbulo depois que Hennessey recolheu os jornais.

— Como? - disse Doyle.

Eudora parecia aterrorizada. Permanecia imóvel como um animal encurralado, dando a impressão de que fugiria se pudesse abrir-se passagem entre eles. Olhou ao Padraig e depois a Pitt, e este percebeu a intensidade de sua tácita súplica.

— O valete do McGinley recolheu os jornais antes que você fosse visto no vestíbulo pela criada de minha esposa - explicou Pitt. Lançou uma olhada a Eudora e se concentrou de novo no Doyle. — Cometeu um engano em sua declaração... Vale mais que tente recordar com maior precisão, senhor Doyle. Entrou no escritório do senhor Radley?

Padraig cravou nele o olhar.

Pitt pensou por um momento que se recusaria a responder. Notou que o sangue subia às faces.

— Sim, entrei... e juro por Deus que nesse momento não havia nada na gaveta. Quem quer que tenha colocado ali a dinamite, fez isso depois de eu sair. Estive no escritório apenas um minuto. Peguei uma folha da gaveta. Me tinha acabado o papel e estava tomando notas para a reunião.

Eudora se aproximou dele e o pegou pelo braço, mas tremia, e embora possivelmente Padraig não se desse conta, Pitt soube que não acreditava nele. Eudora se teria posto-se a chorar se lhe tivesse ficado energia emocional para isso, mas estava exausta. Pitt desejou ajudá-la, mas não podia fazê-lo mais que contrastando as provas que incriminavam ao Padraig para demonstrar que não eram sólidas e as descartar.

— Passou ante a estufa? - perguntou Pitt.

Um amargo sorriso apareceu fugazmente no rosto do Padraig.

— Sim. Por que?

— Viu ali a Iona McGinley e Fergal Moynihan?

— Sim. Mas duvido que eles me tenham visto. Estavam muito ocupados.

— Fazendo o que?

— Pelo amor de Deus, senhor Pitt! - exclamou Padraig.

— O que faziam? - repetiu Pitt. — Exatamente. Se não for apto para os ouvidos da senhora Greville, estou certo de que nos desculpará.

— Não penso me separar de vocês - declarou Eudora, olhando fixamente ao Pitt e aferrando-se com mais força ao braço do Padraig.

— Quando ia para o escritório, sustentavam uma acalorada discussão – disse Padraig, observando ao Pitt com os olhos entreabertos.

— Descreva a cena - exigiu Pitt. — O que viu?

Padraig compreendeu por fim.

— Moynihan estava de pé frente à camélia, um pouco inclinado e com as mãos abertas. Não ouvi o que dizia, mas lhe notava exasperado. Falava com exagerada atenção, como quando a pessoa está a ponto de perder a paciência. De repente estendeu os braços e golpeou sem querer uma orquídea. Quebrou um caule e se zangou muito. Recolheu-o do chão e o lançou atrás de uma das palmeiras plantadas em vasos de barro. Ela se achava diante dele. Isso é tudo o que vi.

— E quando voltava com a folha de papel?

— Obviamente tinham feito as pazes. Estavam abraçados e se beijavam... muito intimamente. Ela tinha a roupa muito alvoroçada, em especial o corpete. - Fez uma careta de aversão e lançou um breve olhar a Eudora, possivelmente consciente de que a ela podia ser doloroso ouvir falar de um adultério apaixonado. — Não estou disposto a entrar em mais detalhes.

— Obrigado - disse Pitt.

Viu sorrir Eudora e albergou a sincera esperança de que Fergal Moynihan corroborasse a declaração de Padraig.

Encontrou ao Moynihan no salão da manhã em companhia do Carson O’Day. Embora profundamente envergonhado pelo interrogatório do Pitt, adotou uma atitude agressiva.

— Sim, quebrei a orquídea, mas não de propósito. Tivemos uma... uma ligeira discrepância. Durou só um momento. Não foi nada sério, de verdade.

— Reconciliaram-se em seguida? - perguntou Pitt.

— Sim. Por que? Como se inteirou? Que importância pode ter uma orquídea quebrada?

— Mais do que você acha, senhor Moynihan. Reconciliaram-se em seguida? Quanto tempo depois de quebrar a orquídea? Cinco minutos? Dez?

— Não, muito menos! Uns dois ou três minutos... por que?

Moynihan estava cada vez mais furioso porque não entendia a finalidade de suas perguntas e lhe era constrangedor manter aquela conversa em presença de O’Day. Seu rosto corava cada vez mais e gesticulava com movimentos bruscos, como se desejasse escapar, inclusive fisicamente. Vendo sua reação, Pitt se sentiu mais disposto a dar crédito à declaração do Padraig. Era em extremo embaraçoso saber-se observado em tal situação, e mais ainda tê-la que descrever depois a um homem que, no fim de contas, era policial.

— Seria amável de me contar como têm feito as pazes? - perguntou Pitt com certo desfruto. Percebia no Moynihan uma desagradável altivez.

— Até aí podíamos chegar, senhor Pitt! - exclamou Fergal, lhe lançando um olhar colérico. — Não tenho a menor intenção de satisfazer sua insalubre curiosidade. Não responderei.

Pitt o olhou nos olhos.

— Em tal caso não me deixa mais alternativa que perguntar à senhora McGinley, o que será muito mais indelicado. Tinha pensado, em vista de seu suposto afeto por ela, que preferiria lhe economizar esse transtorno. - Pitt passou por cima sua expressão de rancor. — Em especial agora que seu marido acaba de morrer assassinado, independentemente se o queria ou não.

— É você desprezível! - replicou Fergal.

Pitt arqueou as sobrancelhas.

— Porque lhe exijo que descreva suas próprias ações a fim de confirmar ou desprezar as suspeitas de assassinato que recaem sobre outros? Acaso não está você tão interessado como todos nós em descobrir a verdade?

Moynihan resmungou uma imprecação com profunda sanha.

— Se for amável? - insistiu Pitt, sorridente.

— Beijamo-nos - respondeu entre dentes com um olhar assassino. — Acho... Acho que lhe abri o corpete do... do vestido...

— Acha - perguntou Pitt com curiosidade. — Não é, pois, algo que recorde?

— Sim, o abri! - admitiu. Voltando-se para O’Day, que obviamente achava divertida a situação, dirigiu-lhe um olhar de aversão.

— Obrigado - disse Pitt. — A julgar pela outra descrição que já ouvi, parece que Doyle não esteve no escritório o tempo suficiente para armar a bomba.

— Dá-se conta, suponho, de que isso também me exclui - indicou Fergal com tom sarcástico.

— Claro que me dou conta - respondeu Pitt, ainda sorridente. — Esse ponto é da maior importância. Lógicamente, você foi o primeiro de quem suspeitei. Tem um dos motivos clássicos.

Um intenso rubor tingiu o rosto do Fergal.

— E também a senhora McGinley. - Pitt abriu os olhos exageradamente. — Um tanto descortês por minha parte lhe recordar que também ela fica livre de suspeita.

Fergal não podia dar crédito ao que ouvia.

— Não terá pensado... que ela...

— Não seria a primeira mulher que assassinasse a um marido não desejado para fugir com outro homem - observou Pitt. — Ou que se confabulasse com seu amante para matá-lo.

Fergal estava muito furioso para responder e além disso, como se transparecia em seu semblante, não achou argumentos que esgrimir.

— Quem foi, pois? - perguntou O’Day, franzindo o sobrecenho. — Seus raciocínios parecem chegar a um ponto morto, senhor Pitt.

Era certo, por desagradável que resultasse ouvir o de lábios de O’Day.

Fergal sorriu pela primeira vez.

— Nesse caso teremos que repassar novamente os movimentos de todo o mundo - respondeu Pitt. — E voltar para verificar. É claro que há um engano em alguma parte.

Uma vez dito isto, saiu do salão e foi em busca do Tellman.

Ao afastar-se do lugar da explosão, Charlotte estava trêmula e enjoada. Ardiam-lhe os olhos por causa do pó e engolia a saliva sem cessar, com o que o pó lhe penetrou também na garganta, lhe provocando um acesso de tosse. Por um momento teve a impressão de que o vestíbulo dava voltas ao redor e temeu desabar-se. Pegou-se ao braço de um enorme banco de madeira e se deixou cair nele. Viu-se obrigada a inclinar-se e agachar a cabeça até que desapareceu a sensação de vertigem.

Guiou lentamente com lágrimas nos olhos. Aquilo era ridículo. Desejava ter a seu lado Pitt, afetuoso, forte e preocupado por ela, dissipando seu medo e assegurando-se de que se achava bem, de que não estava assustada nem intranqüila. Mas, como era lógico, Pitt tinha que ocupar-se de seu trabalho e não cuidar de uma esposa que deveria possuir a fortaleza suficiente para cuidar de si mesma. Uma mulher estava tão capacitada como um homem para fazer frente à morte ou o temor à morte... embora se tratasse de uma morte violenta e um aposento destruído pela explosão de uma bomba. Não requeria força física nem conhecimentos especializados; tudo se reduzia a conservar o controle e interessar-se mais pelos outros que pela pessoa mesmo. Ela devia dar apoio ao Pitt, ajudá-lo, em lugar de esperar sua ajuda.

E à Emily. Devia pensar como reconfortar Emily, que obviamente era presa do pânico, e com razão. O objetivo daquela bomba era matar ao Jack. Só por um extraordinário azar Lorcan McGinley tinha entrado no estúdio e, sem perguntar, tinha aberto a gaveta.

Ou sabia acaso que a dinamite estava ali e, como alguns já diziam, tinha tratado de desativá-la... e deixado a vida na tentativa?

Pobre Iona. Devia lhe corroer o sentimento de culpa. E pior ainda, perguntava-se possivelmente se Fergal tinha tido algo que ver com aquilo?

O mais útil que Charlotte podia fazer era descobrir quem tinha assassinado ao Greville e tentado matar ao Jack, mas não sabia por onde começar. Naquela ocasião Pitt se confiou a ela muito menos que de costume. Possivelmente se devia a que ainda não tinha descoberto nada, ou mais provavelmente a que ela mesma tinha estado tão ocupada tentando ajudar ao Emily com aquela espantosa festa que com o passar do fim de semana se viram poucas vezes e sempre por uns breves momentos.

Charlotte não lhe tinha perguntado pela morte do Greville. Só sabia que lhe tinham golpeado na cabeça e depois o tinham submerso sob a água, e isso era já conhecido por todos na casa. Sabia deste modo que Finn Hennessey, a quem Gracie tinha mencionado em várias ocasiões, Carson O’Day e Lorcan McGinley tinham corroborado mutuamente suas declarações e, portanto, não podiam ser os culpados.

Eudora temia obviamente que o autor do crime fosse Padraig Doyle, e quando Charlotte se inteirou de como se comportou Greville com a Eudora, considerou mais que provável que seu irmão albergasse um intenso ódio contra ele. Embora a morte do Greville não faria mais fácil nem mais feliz a vida da Eudora. Mas raciocinavam acaso desse modo as pessoas de temperamento violento e descontrolado?

E Eudora era pelo visto uma mulher que despertava nos homens o desejo de protegê-la. Tinha uma aparência tão feminina e vulnerável... Embora algumas mulheres afetavam essa atitude quando de fato eram muito capazes de defender-se por si só. Contudo, Charlotte não duvidava da veracidade da dor e medo da Eudora, nem da sinceridade de seu comportamento. Se ao menos tivesse tido motivos para duvidar, lhe teria sido mais fácil agüentar a situação.

A necessidade de consolo da Eudora era autêntica, e Pitt respondia a ela como sempre fazia. Essa era uma das razões pelas quais o amava. Se Pitt perdesse essa qualidade, seria como se uma súbita frieza entrasse na vida de Charlotte, uma escuridão que envolveria tudo e lhe arrebataria a felicidade.

Pitt precisava dar apoio, ajuda, amparo. Sentada no banco, Charlotte espionou através da nuvem de pó que flutuava no vestíbulo e viu a preocupação do Pitt quando olhava para Eudora. Essa atitude punha de manifesto o melhor dele. E entretanto Charlotte desejou ser ela quem recebesse seu consolo em lugar da Eudora. Mas Pitt não achava que Charlotte o necessitasse. E tinha razão. O desejo e a necessidade eram coisas distintas.

Devia acaso fingir que o necessitava? Seria ele mais feliz, amá-la-ia mais se ela fingisse maior fragilidade, maior dependência? Estava afastando o dela com sua forma de ser independente? Era Eudora mais débil ou só mais ardilosa... e mais adorável?

Mas fingir não era honesto. Não a detestaria Pitt se simulava necessitá-lo quando em realidade podia arrumar-se só e ser útil em lugar de converter-se em uma carga mais para ele?

Podia possivelmente ter o um e o outro atuando com maior sutileza? Emily sempre parecia consegui-lo... o que era uma idéia humilhante.

Mas devia ser ela mesma, ao menos no momento. Sua incerteza era muito grande para pôr em prática novas estratégias. Só com que conseguisse contribuir a resolve aquele deplorável crime, as coisas voltariam para uma relativa normalidade. Eudora Greville partiria. Pitt a teria ajudado, e ela não o necessitaria mais.

Charlotte desejou ter a alguém com quem falar, mas Emily tinha passado ao largo junto a ela sem vê-la sequer. Não dispunha de tempo para prestar atenção em Charlotte e seus problemas emocionais. Seus pensamentos se concentravam exclusivamente no Jack. Charlotte em seu lugar teria reagido igual.

Ninguém ameaçava a vida do Pitt, mas aquele lamentável fracasso não faria nenhum bem a sua carreira. Considerariam que tinha sido incapaz de acautelar a morte do Greville. Pouco importava que ninguém tivesse podido evitá-la. Nenhum policial do mundo, por inteligente que fosse, teria acompanhado ao Greville ao quarto de banho para impedir que alguém entrasse e o afogasse. Era uma injustiça.

Desejou que sua tia avó Vespasia estivesse ali. Mas naturalmente se achava em Londres. Pitt tinha viajado a Londres de trem no dia anterior. Não existia razão alguma pela qual ela não pudesse fazer o mesmo. Levantou-se e se dirigiu para o telefone da biblioteca.

 

Uma vez tomada a decisão de viajar a Londres, Charlotte levou a cabo os preparativos necessários sem perda de tempo. Anunciou ao Pitt que ia visitar Vespasia.

— Agora? - perguntou ele com incredulidade.

—Sim. Há algumas questões nas quais sua ajuda pode ser útil – respondeu Charlotte. Não podia lhe dizer do que se tratava. Se insistisse, teria que inventar algo.

—Pensou em Emily? - replicou Pitt. — Necessita de você aqui. Está morta de medo pelo Jack. E com razão. - Interrompeu-se. — Acredito que deveria ficar.

— Não demorarei para voltar. - Não se deixaria dissuadir. A cena com a Eudora tinha ficado gravada em sua mente. Se tinha que apresentar batalha, necessitava antes falar com alguém, e Vespasia era a única pessoa que compreenderia sua situação. Charlotte se sentia tão vulnerável como Eudora ou Emily, mas por razões muito distintas. — Não estarei fora muito tempo - prometeu, e depois de beijá-lo na face, deu meia volta e se foi.

Emily não podia atendê-la nesse momento, do que Charlotte se alegrou. Deixou com Gwen uma mensagem para ela. Continuando, depois de falar brevemente com Gracie, solicitou a segunda melhor carruagem de Emily para trasladar-se à estação a tempo de tomar o seguinte trem. Na estação se informou sobre os horários de volta a última hora da tarde e especificou ao cocheiro que chegaria no trem das dez menos três quartos para que passasse a recolhê-la.

— Bom, querida - disse Vespasia com interesse, observando-a atentamente.

Charlotte estava muito elegante com seu vestido de viagem verde escuro e uma capa com cós de pele que lhe teria emprestado Emily. Apesar de o ar frio ter dado cor a suas faces, Vespasia percebeu claramente sua inquietação sob o aparente bem-estar.

— Como está, tia Vespasia? - perguntou Charlotte ao entrar no salão de cores quentes e suaves e estilo antigo, quase georgiano. Tinha mais vida, mais simplicidade, que os modernos desenhos que se puseram de moda quando a rainha subiu ao trono cinqüenta e três anos atrás.

— Estou igualmente bem como estava esta manhã quando me telefonou – respondeu Vespasia. — Toma assento e se esquente. Daisy nos trará um chá, e me contará o que lhe preocupa tanto para fazer a viagem de ida e volta a Ashworth Hall no mesmo dia. -Entreabriu os olhos e escrutinou ao Charlotte com expressão grave. — Não parece você mesma. Intuo que ocorreu algo muito desagradável. Vale mais que me conte.

Charlotte se deu conta de que ainda tremia um pouco com a lembrança do acontecido, apesar de que, com um imenso esforço, obrigar-se a pensar em outras coisas durante todo o trajeto. Entretanto nesse momento as imagens seguiam tão nítidas em sua memória como instantes depois de produzir-se. Notou que inclusive lhe custava controlar a voz.

— Esta manhã explodiu uma bomba no Ashworth Hall, no escritório do Jack...

Vespasia empalideceu.

—Que horror, querida!

Charlotte deveria ter sido mais cuidadosa. Não devia ter dado a notícia a Vespasia daquele modo, a queima-roupa. Apressou-se a segurá-la.

— Não se alarme! Jack está ileso! Não se achava ali nesse momento.

— Obrigada - disse Vespasia com dignidade. — Pode me soltar. Não vou perder a consciência. Suponho que se Jack tivesse sofrido algum dano me teria comunicado imediatamente e não com semelhante rodeio. Resultou alguém ferido? Quem cometeu um ato tão espantoso, e por que?

— Morreu um homem, um irlandês chamado Lorcan McGinley. - Charlotte respirou fundo, esforçando-se por tranqüilizar-se. —Não sabemos quem é o culpado. Faz parte de uma longa história.

Vespasia indicou um dos sofás situados junto à lareira, em que ardia um vivo fogo, esquentando todo o salão.

Charlotte tomou assento agradecida. Uma vez ali não era já tão fácil expressar seus temores com palavras. Como sempre, Vespasia se sentou com as costas eretas. Tinha o cabelo prateado e o tinha trançado em forma de diadema. Seus olhos cinza revelavam inteligência e preocupação. Lady Vespasia Cumming-Gold era uma aristocrata de uma antiga família com muitas terras e obrigações e grande conhecimento das questões da honra e os privilégios. Era capaz de atalhar uma rabugice a vinte passos de distância e fazer arrepender-se de ter falado o insolente. Era capaz de conversar com filósofos, cortesãos e dramaturgos. Duques e príncipes se haviam sentido honrados com um sorriso dela. Em seus oitenta anos, os ossos de seu rosto continuavam sendo deliciosos, a cor de sua tez delicada, seus movimentos muito menos ágeis mas ainda com o aprumo e o orgulho do passado. Era fácil acreditar que meio século atrás tinha sido uma das mulheres mais formosas de seu tempo. Por sua idade e sua riqueza, não lhe importava já o mínimo o que a alta sociedade pensasse dela, e desfrutava da admirável liberdade de ser sempre ela mesma.

Para fortuna de Charlotte, o primeiro marido de Emily era sobrinho neto da Vespasia, e esta tomou afeto tanto a Emily como a Charlotte, e também ao Pitt, o que era ainda mais assombroso considerando o abismo social que os afastava.

Vespasia olhava Charlotte com maior atenção.

— Posto que o assunto é pelo visto muito grave - disse com extrema seriedade,       — possivelmente seja melhor que comece pelo princípio, ou o que você considere como tal.

Isso era simples.

— Começou com a necessidade de ir ao Ashworth Hall para proteger ao Ainsley Greville - respondeu Charlotte.

— Entendo. - Vespasia moveu a cabeça em um gesto de assentimento. — Por razões políticas, suponho? Sim, por certo. O senhor Greville é um de nossos mais destacados diplomatas católicos; moderadamente católico, claro está. Não é homem que mescle a religião e a política. Contraiu matrimônio com a Eudora Doyle, uma mulher muito formosa de uma das principais famílias católicas e nacionalistas da Irlanda, mas sempre viveram aqui na Inglaterra. - Um indício de ironia se percebeu em seu rosto. — Tem algo que ver com esse absurdo assunto do caso de divórcio Parnell-O’Shea?

— Não sei - respondeu Charlotte. — Não acredito. Embora possivelmente esteja indiretamente relacionado. Não tenho certeza...

Vespasia apoiou muito suavemente sua mão longa e magra com anéis de opalas no regaço de Charlotte.

— Do que se trata, querida? Noto-te muito alterada. Essa inquietação só pode dever-se a alguém por quem sente um grande afeto. Pelo tom em que me anunciou sua morte, suponho que não é esse desafortunado senhor McGinley, e duvido muito que seja o senhor Greville. Não é um homem muito agradável. Possui considerável encanto, grande inteligência e certamente dote para a diplomacia, mas em essência é um egoísta.

— Sem dúvida o era - concordou Charlotte com um ligeiro sorriso.

— Não me diga que por fim viu a luz - respondeu Vespasia com incredulidade. Isso tenho que...

Charlotte se pôs-se a rir contra sua vontade, mas se interrompeu bruscamente.

— Não. Thomas estava ali para protegê-lo de seus inimigos, que o tinham ameaçado de morte, mas infelizmente fracassou em sua missão. - Respirou fundo. — Greville foi assassinado.

— Oh! -Vespasia ficou imóvel. — Entendo. Lamento-o. E suponho que não sabem ainda quem o matou?

— Não.... ainda não, mas deve ser um dos irlandeses que estão na casa este fim de semana...

— Mas você não veio para ver-me por isso. - Vespasia inclinou a cabeça. — Conheço relativamente bem a política irlandesa, mas não a identidade de assassinos individuais.

— Não.... claro - disse Charlotte. Desejou sorrir ante a idéia, mas a realidade era muito dolorosa. Conservava uma clara lembrança do acontecimento dessa manhã: o sobressalto inicial provocado pela explosão e a posterior consciência do ocorrido. Nunca tinha vivido de perto uma violência tão extrema. Percebia algo totalmente insólito e terrível no fato de que uma sala real ficasse reduzida a escombros por uma bomba.

— Possivelmente seja melhor que salte o princípio e vá à segunda metade da história. - Vespasia deslizou sua mão sobre a de Charlotte. — Se trata obviamente de algo muito grave. Ainsley Greville foi assassinado e hoje morreu esse senhor McGinley, e no momento não sabem quem os matou, a não ser só que foi uma das pessoas que se encontram ainda no Ashworth Hall. Você tem já experiência com outros crimes, e Thomas resolveu casos extremamente difíceis. Por que lhe afetou este até o ponto de ter que partir de Ashworth e vir aqui?

Charlotte contemplou as mãos, e a da Vespasia sobre as suas, mais velha, mais magra, sulcada de veias azuis.

— Porque Eudora Greville é uma mulher muito vulnerável - sussurrou. — Em uns dias perdeu tudo, não só a seu marido, e portanto a segurança, a posição, e os ganhos dele, se é que isso importa, mas sim também perdeu, e isso é o mais doloroso, a imagem que tinha dele. - Olhou a Vespasia. — Se viu obrigada a descobrir que era um mulherengo e, pior ainda, um homem que utilizava às pessoas sem a menor consideração a seus sentimentos nem às possíveis conseqüências de seus atos.

— Isso é muito desagradável - concordou Vespasia. — Mas me diga, querida: realmente acredita que não suspeitava de nada? Tão ingênua é? - Meneou a cabeça em um gesto de negação. — Duvido. O doloroso é que o resto das pessoas também descobrirão, ou ao menos a pessoa de seus próprios círculos. A partir de agora já não lhe será possível continuar negando a si mesma, que é o que tendemos a fazer quando a verdade nos aflige muito.

— Não, não se reduz só a isso - disse Charlotte, e ergueu a vista para olhar a Vespasia nos olhos. Com palavras severas, iradas e cheias de pesar, explicou-lhe as desventuras de Doll.

Vespasia adotou uma expressão sombria. Era uma anciã e tinha presenciado muitos horrores; mesmo assim, aquele fato impregnou no mais fundo de sua alma, na lembrança de seus próprios filhos entre seus braços, na consciência do milagre, a fragilidade e o infinito valor da vida.

— Era, pois, um homem de grande maldade - afirmou quando Charlotte concluiu. — Para sua esposa será em efeito muito difícil conviver com isso.

— E para seu filho - acrescentou Charlotte.

— Sem dúvida muito difícil - assentiu Vespasia. — Eu o sinto mais por seu filho. Por que lhe preocupa mais Eudora?

— A mim não, ao Thomas. - Charlotte sorriu, zombando de sua própria vulnerabilidade. — É a perfeita donzela aflita que deve resgatar.

Os segundos passavam no relógio do aparador da lareira, e suas setas negras afiligranadas avançavam a saltos. A criada entrou com o chá e o serviu, quente e fragrante. Ao terminar, retirou-se, deixando-as a sós.

— Entendo - disse Vespasia por fim. — E você também quer ser uma donzela aflita?

Charlotte não pôde evitar rir e chorar ao mesmo tempo. Estava mais perto do pranto do que imaginava.

— Não! - Meneou a cabeça em uma terminante negação. — Eu não necessito que me resgatem. E não me dou bem com a simulação.

— E preferiria que se desse melhor? - perguntou Vespasia ao mesmo tempo que entregava ao Charlotte seu chá.

— Não, claro que não. - Charlotte pegou a xícara. — Não.... desculpa. Quero dizer... quero dizer que não me interessam as estratagemas, a simulação. Se algo não for autêntico, não me serve.

Vespasia sorriu.

— O que está me perguntando, pois?

Era inútil prolongar. Seu temor não seria menos real por mais que se negasse a expressá-lo com palavras.

— Necessita possivelmente Thomas que me pareça mais com Eudora? Necessita acaso alguém a quem resgatar? - disse, e escrutinou o rosto da Vespasia procurando sua negação, esperando encontrá-la.

— Acredito que sim - respondeu Vespasia com delicadeza. — Exige-lhe muito em seu matrimônio, Charlotte. Exige-lhe um grande esforço. Se Thomas tiver que chegar a ser tudo o que você necessita que seja, se tiver que estar à altura da vida que teria levado em sua própria classe social, não tem mais remédio que dar sempre o melhor de si. Para ele não existem as decisões fáceis; não pode relaxar um só instante nem conformar-se com o segundo posto. Pode ser que às vezes o esqueça. - Apertou as mãos de Charlotte.          — Possivelmente às vezes recorde só os sacrifícios que realizou, o vestido que não pôde comprar, os criados, as festas à que não foi, as economias e sacrifícios que deve fazer. Mas você não tem uma comparação inalcançável com o que se medir.

— Tampouco Thomas - protestou Charlotte, horrorizada ante a idéia. — Eu nunca lhe exigi...

— Claro que não - concedeu Vespasia. — Mas estes dias esteve em Ashworth Hall, a casa de sua irmã ou, para ser mais exatos, uma de suas casas. Imagino que o pobre Jack às vezes tampouco agüenta facilmente essa situação.

As brasas se desmoronaram na lareira, despedindo um resplendor mais vivo.

— Mas isso eu não posso evitar - replicou Charlotte. — Estamos ali porque ao Thomas ordenaram ir, não por minha escolha. É seu trabalho o motivo da visita.

— E não tem nada que ver o fato de que Emily seja sua irmã?

— Bom.... sim, isso naturalmente o converte na pessoa idônea.... mas mesmo assim...

— Já sei que não foi por tua decisão. - Vespasia sorriu e negou com a cabeça. — O que quero te dar a entender é que se ao Thomas agrada que Eudora Doyle, quer dizer, Greville, apóie-se nele e encontre consolo em sua integridade, não tem nada de estranho, nem é desonroso para nenhum dos dois. E se isso lhe dói ou se preocupa, sempre pode fingir aflição e ocultar sua fortaleza na debilidade para que ele derrame em ti sua atenção. - Baixou um pouco a voz. — É isso o que deseja?

Charlotte ficou consternada pela sugestão.

— Não, seria desprezível. Odiaria a mim mesma. Não seria capaz de olhá-lo nos olhos nunca mais.

— Então aí tem a resposta a sua pergunta - disse Vespasia.

— Mas e se... e se for isso o que ele... quer? - insistiu Charlotte com desespero. — E se perder uma parte dele porque não... não necessito... que...?

— Charlotte, querida, ninguém é tudo para outra pessoa, nem deve pretendê-lo - explicou Vespasia com ternura. — Modera às vezes suas exigências, dissimula alguns de seus atributos menos afortunados, aprende a reservar a opinião sobre determinados assuntos, oferece de vez em quando elogios generosos embora não sejam de todo merecidos, mas mantenha-se fiel a seus princípios mais básicos. Às vezes o silêncio não faz mal algum, nem a paciência; as mentiras, em troca, sempre causam dano. Desejaria que Thomas fingisse para lhe agradar?

Charlotte fechou os olhos.

— Não o suportaria. Seria o fim de tudo o que é autêntico em nossa relação. Como poderia voltar a acreditar nele?

— Então voltou a responder você mesma a sua pergunta, não é assim? - Vespasia se reclinou ligeiramente contra o espaldar. — Consinta-lhe que resgate a outras. É uma parte de sua personalidade, possivelmente a melhor parte. Não leve a mal. E não subestime sua capacidade de amá-la tal como é. - As brasas se desmoronaram ainda um pouco mais, mas Vespasia não lhes emprestou atenção. — Me Acredite, de vez em quando descobrirá em você debilidade suficiente para satisfazê-lo. - Um sorriso apareceu em seus olhos.      — Dá o melhor de você. Nunca se rebaixe com a esperança de granjear o amor de alguém. Se ele se der conta, detestará você por tê-lo julgado, e pior ainda, você mesma se detestará. Isso é o mais destrutivo que existe.

Charlotte a olhou com expressão de assombro.

Vespasia chamou à criada com a campainha para que avivasse o fogo.

— E agora almoçaremos - anunciou, e ficou em pé valendo-se de sua bengala de ébano com cabo de prata e recusando o braço do Charlotte. — Há salmão cozido com verduras e logo bolo de maçã. Espero que tenhamos suficiente com isso. Enquanto isso, pode me pôr à corrente sobre esse lamentável problema irlandês, e eu lhe falarei do absurdo divórcio da senhora O’Shea. Riremo-nos juntas disso, e possivelmente também choremos um pouco.

— É triste? - perguntou Charlotte, caminhando junto a ela para a sala de café da manhã, onde Vespasia freqüentemente comia quando estava sozinha, porque era mais reduzida e acolhedora que a sala de jantar.

A sala tinha o chão de madeira e uma fileira de janelas com cortinas estampadas de flores que davam a um lugar pavimentado do jardim. Encostadas contra duas das paredes, havia vitrines com porcelanas, adornos de cristal, vasos e pratos. A mesa, de madeira de cerejeira e asas abatibles, estava posta para dois.

— Muito triste - respondeu Vespasia depois de sentar-se com a ajuda do mordomo e desdobrar o guardanapo.

Charlotte estava surpreendida. Não tinha imaginado que aquela espécie de coisas afetassem a Vespasia. Mas possivelmente não a conhecia tão bem como pensava. Quando Charlotte começou a tratar com ela, ela tinha vivido já mais de sessenta anos. Era uma rabugice supor que podia formar uma idéia exata da maior parte dessa vida.

O mordomo lhes serviu um consomé ligeiro e se retirou.

Vespasia percebeu a expressão do Charlotte e pôs-se a rir.

— Triste para a Irlanda, querida - esclareceu. — Todo esse assunto é tão obviamente ridículo... - Começou com o consomé. — Parnell não tem o menor senso de humor. Toma muito a sério a si mesmo. Esse é um defeito dos protestantes, mas não dos irlandeses, certamente. Você goste ou não, não pode acusar aos irlandeses em geral de falta de engenho. E entretanto Parnell se comportou como um personagem de uma farsa mau escrita. Nem sequer agora suspeita que seu público rirá dele e, lógicamente, deixará de lhe conceder crédito.

Charlotte começou também a tomar o consomé. Estava delicioso.

— Com certeza? - perguntou, pensando no Carson O’Day, suas ambições e as expectativas depositadas nele por sua família, seu pai, seu irmão maior, cujo lugar tinha ocupado.

— Você lhe daria crédito, querida? - respondeu Vespasia, arqueando suas finas sobrancelhas. — Conforme parece, quando o capitão O’Shea e sua esposa alugaram uma casa em Brighton, apresentou-se ali aos dois ou três dias um tal Charles Stewart, com uma boina metida até as orelhas. - Com muita dificuldade podia conter a risada. — Essas visitas se repetiram com freqüência, mas quase sempre quando o capitão O’Shea estava ausente. Chegava sempre pelo caminho da praia e levava a senhora O’Shea para passear de carruagem, nunca a plena luz do dia, sempre depois de escurecer.

— Com uma boina - murmurou Charlotte, desconfiada, esquecendo do consomé.     — Diz que Parnell não tem senso de humor, mas a senhora O’Shea deve ter ainda menos. Como pode uma mulher fazer o amor com um homem que chega às escondidas até sua porta pelas noites, quando seu marido não está em casa, com uma boina por disfarce e um nome falso que não enganaria a ninguém? Eu morreria de risada.

— E isso não é tudo - prosseguiu Vespasia com uma expressão jocosa nos olhos.    — Faz cinco anos, posto que o idílio persistiu durante um tempo considerável, Parnell foi a um leiloeiro do Deptford que atuava como agente imobiliário de um fazendeiro do Kent. - Ergueu as mãos enquanto falava. — Parnell se apresentou como o senhor Fox. Informaram-lhe que o imóvel em questão se reservara a um tal senhor Preston, e Parnell disse então que ele era Clement Preston. O agente respondeu que achava ter ouvido que se chamava Fox, e Parnell saiu dizendo que se alojava em casa de um tal senhor Fox, mas seu nome era Preston. Ocuparia a casa durante doze meses, disse, mas se negou a dar referências - arqueou as sobrancelhas — argumentando que não devia exigir-se tal requisito a um homem que tinha cavalos em propriedade.

— Cavalos? - Charlotte quase se engasgou com o consomé. — O que tem que ver os cavalos com isso? Os cavalos podem vender-se, ou adoecer, ou machucar-se, ou inclusive morrer.

— Nada absolutamente. Nos teatros de variedades vão tirar muito partido para essa anedota, junto com o detalhe da boina e o episódio da escada de incêndios - comentou Vespasia com um sorriso. — É tudo de uma inépcia e uma baixeza inconcebíveis. – Adotou de novo um semblante sério. — Mas é triste para a Irlanda. Possivelmente Parnell ainda não se deu conta, e possivelmente seus partidários mais próximos lhe darão um voto de confiança, por lealdade e para que não se diga que o abandonaram; mas as pessoas em geral já não o aceitarão como líder.

Suspirou e permitiu ao mordomo, de novo na sala, que levasse o resto de seu consomé e servisse o salmão com verduras. Quando o mordomo se foi, Vespasia dirigiu um olhar grave ao Charlotte.

— Dado que Ainsley Greville morreu, suponho que os objetivos políticos que defendia são agora inviáveis, que era o que se perseguia com seu assassinato.

— Não. Jack ocupou seu lugar, ao menos temporariamente - respondeu Charlotte.   — Quase com toda segurança a bomba colocada esta manhã no escritório ia dirigida a ele. A pobre Emily está aterrorizada, mas a única opção honrosa que tem Jack é continuar desempenhando o papel do Greville e fazê-lo-o melhor possível.

— Que horror! - exclamou Vespasia visivelmente alarmada. — Deve estar toda com a alma na mão. Tomara pudesse lhes ajudar de algum jeito, mas a Questão Irlandesa se originou faz séculos e se sustenta na ignorância, nos mitos e nos velhos rancores tanto em um bando como no outro. Causou inumeráveis tragédias.

— Sei. - Charlotte desceu a vista, recordando a história que Kezia lhe tinha contado. — Estão conosco Padraig Doyle e Carson O’Day.

Vespasia menou a cabeça em um gesto de desgosto e uma expressão de ira apareceu fugazmente em seu rosto.

— Esse lamentável assunto! - disse com tom lúgubre. — É um dos casos mais flagrantes, representativo das piores calamidades desse sórdido e traidor conflito.

— Mas os traímos - indicou Charlotte. — Um tal Chinnery, um militar, violou Neassa Doyle e fugiu depois para a Inglaterra. - Não fez o menor esforço em moderar a raiva e repugnância que sua voz destilava. — E Drystan O’Day era seu amigo. Não me surpreende que os irlandeses desconfiem de nós. Quando ouço coisas assim, envergonho-me de ser inglesa.

Vespasia se reclinou contra o espaldar de sua cadeira, esquecendo do salmão.

— Não se envergonhe, Charlotte. Sem dúvida cometemos grandes atrocidades ao longo de nossa história, atos de barbárie que transpassam o coração e escurecem a alma; mas não é este o caso.

Charlotte aguardou. Se Vespasia não conhecia a verdade sobre o fato, possivelmente não valia a pena desvelar-lhe. Era uma anciã. Não tinha sentido mortificá-la.

— Não é necessário que me trate com olhares - disse Vespasia com um ligeiro sorriso. — Vi mais coisas horríveis que você, querida. Neassa Doyle não foi violada. Seguiram-na seus irmãos, e foram eles quem lhe cortaram a cabeleira porque a consideravam uma rameira, prostituída além disso com um protestante...

Charlotte ficou boquiaberta. Era tão monstruoso, tão diferente da história que tinha ouvido e aceito, que tomou ar instintivamente para desmenti-lo.

— Eles a mataram e a deixaram onde Drystan O’Day pudesse encontrá-la - prosseguiu Vespasia. — A seu julgamento, Neassa os tinha traído, tinha desonrado a sua família ante seus iguais e faltado a sua fé ante Deus. Não só merecia a morte mas também o escárnio.

— Por apaixonar-se? - disse Charlotte, confundida. A raiva e os sentimentos encontrados que a assaltaram pareciam deslocados naquela sala tranqüila e elegante com os oblíquos raios do sol refletidos no lustroso chão de madeira, as cortinas de flores nas janelas, a emaranhada madressilva ao outro lado dos vidros, a toalha branca da mesa e as talheres de prata.

— Por ter planejado escapar com um protestante - precisou Vespasia. — Tinha defraudado a sua tribo, se o preferir. O amor não é uma desculpa válida quando a honra está em jogo.

— A honra de quem? - perguntou Charlotte. — Não tinha direito a escolher com quem casar-se, a decidir se estava disposta ou não a abandonar aos seu pelo homem a quem amava? Sei que deve pagar um preço, todos sabemos, mas quando se ama a alguém de verdade, não importa pagá-lo. Possivelmente não compartilhava sua fé? Pensou alguma vez nessa possibilidade?

Vespasia sorriu, mas seus olhos claros delatavam cansaço.

— Claro que não, Charlotte. por que o pergunta se de sobra conhece a resposta? Se fazes parte de um clã, também tem que pagar esse preço. A liberdade de não prestar contas a sua família, a sua tribo, implica uma grande solidão. Você foi mais afortunada que a maioria das mulheres. Às vezes penso que não o valoriza plenamente. Decidiu se casar com um homem que não era de sua mesma classe, nem o que sua família tinha escolhido, mas não lhe condenaram nem lhe excluíram por isso. Seu ostracismo social foi a conseqüência natural de seu matrimônio, não uma imposição de sua família. Seguiram estreitamente unidos a você, sem criticar sua escolha nem tentar dissuadi-la. -Tinha o semblante triste e cansado, o olhar perdido. — Neassa também teve a coragem de escolher, mas sua família não a compreendeu. Para eles, para seus irmãos, era uma vergonha com a qual não estavam dispostos a conviver.

— Mas e Alexander Chinnery? - Charlotte se tinha esquecido dele por um momento. — O que fez? Como sabe que ele não a matou?

— Porque em 8 de junho Alexander Chinnery já tinha morrido - disse Vespasia. — Se afogou no porto do Liverpool tratando de salvar a um moço que caiu à água embaraçado por uma corda que lhe tinha enredado na perna.

— Por que, pois, tanto católicos como protestantes acreditaram que ele matou Neassa Doyle? - insistiu Charlotte. — E por que pensaram que tinha sido violada se não era verdade?

— Por que se aumentam as lendas a partir de nada? - Vespasia pegou o garfo e continuou comendo lentamente. Porque alguém extrai conclusões precipitadas... conclusões que se ajustam às emoções que sentem e que desejam suscitar em outros. Ao cabo de um tempo todo mundo lhes concede crédito, e então, embora se saiba a verdade, é já tarde para dizê-la. Todos colaboraram com entusiasmo na construção do mito, e a verdade destruiria o que criaram e os converteria em uns mentirosos.

— Não mentem; realmente acreditam que foi assim. - Charlotte pegou sua taça de vinho, cheia de água clara e fria. — Suponho que se ocorreu faz trinta anos, não fica já nenhum dos implicados, ao menos participando ativamente na política. E em todo caso não admitiriam ante ninguém que então mentiram.

— Ninguém acreditaria neles - aduziu Vespasia. — O poder dessa classe de lendas que nos dizem quem somos e justificam o que desejamos fazer é muito grande para que a pessoa preste atenção a uns quantos dados e datas pouco convenientes.

— Tem certeza? - perguntou Charlotte com tom premente. — Não existe nenhuma possibilidade de que Chinnery morresse mais tarde, possivelmente no mesmo dia mas do ano seguinte? E de que em realidade a matasse ele e seus companheiros fizessem correr a voz de que os próprios irmãos da Neassa a tinham assassinado desse modo, lhe cortando antes o cabelo, e logo convencessem ao Drystan de que tinham sido os Doyle, para que ele os atacasse e acabasse também morto? Ou acaso sabiam que tinham sido os Doyle? - Apertou o garfo com força e lhe formou um nó no estômago.

— Sim, sabiam e o disseram ao Drystan - respondeu Vespasia. — Com o evidente resultado de que Drystan enlouqueceu de raiva e dor e atacou aos irmãos. – Falava com tom severo. — Assim os católicos acusariam aos protestantes de seduzir a uma de suas mulheres e aliar-se com um traidor inglês, como conseqüência do qual ela foi violada e assassinada; os protestantes acusariam aos católicos pouco mais ou menos do mesmo; e todos nos culpariam . E ao mesmo tempo não ficava ninguém vivo para dizer o contrário.

— Sabiam que Chinnery tinha morrido?

— Não, duvido-o. - Vespasia negou com a cabeça. — Mas sabiam que até se aparecesse e desmentisse tudo, ninguém lhe acreditaria, e depois lhe dariam um destino fora da Irlanda, que era o que contava.

— Mas e a família do Chinnery? - perguntou Charlotte. — Alguma vez fez algo por limpar seu nome? Acusaram-no de um delito monstruoso...

— Pelo que a eles se refere, não há nada que limpar. Morreu como um herói no porto do Liverpool.

— Mas isso ninguém sabe! - protestou Charlotte, irada.

— Sim, sim se sabe. Em seu momento a notícia apareceu na imprensa do Liverpool, e sua família vivia ali.

— Na imprensa? - Charlotte deixou cair o garfo. — Ou seja, que pode demonstrar-se.

— A quem quer demonstrar- perguntou Vespasia com tom sarcástico. — Às pessoas que contam histórias sobre o Drystan e Neassa? Aos poetas e harpistas que cantam junto ao fogo e à luz da lua para manter vivos os mitos? Querida, MacBeth foi em realidade um grande rei de Escócia, quando se estendia pelo sul até o Yorkshire, e seu reinado durou dezessete pacíficos e prósperos anos. - Seus olhos de cor cinza prateada transbordavam ironia. — E quando morreu, seu povo o enterrou na ilha sagrada dos reis. Sucedeu-o no trono Lulach, filho de lady MacBeth e legítimo herdeiro por linha materna. Lady MacBeth foi uma mulher excepcional que introduziu muitas reformas para garantir o bem-estar de viúvas e órfãos. Deu de ombros e a seguir cravou o garfo no salmão de seu prato. — Mas se aceitarmos isso, jogamos por terra uma das melhores obra do Shakespeare, assim ninguém deseja sabê-lo.

— Pois eu vou procurar esses jornais para demonstrar às pessoas que essa história em particular é uma mentira repugnante - declarou Charlotte com pleno convencimento.    — A estas alturas, a verdade sobre o MacBeth tem um interesse meramente acadêmico; isto em troca segue vigente.

Vespasia a olhou fixamente.

— Realmente lhe parece sensato? Ou acredita que servirá de algo? As pessoas vão às nuvens quando se demonstra a falsidade de seus sonhos. A emoção é o importante, a força que sustenta o sonho. Acreditam o que no que convém acreditar.

— Essa invenção fomentou o ódio...

— Não, querida, foi o ódio o que deu origem ao sonho - a interrompeu Vespasia, e tomou um gole de água. Lhes arrebate esse sonho e criarão outro para substituí-lo. Não pode resolver o problema da Irlanda. Entretanto, possivelmente consiga exercer alguma influência em uma ou duas pessoas. Embora duvide muito que aceitem a verdade só pelo que põe em um jornal e não sei como pode convencê-los.

Tampouco Charlotte sabia. Suas imediatas intenções eram de caráter muito mais prático, mas não desejava envolver nisso a Vespasia nem sequer lhe dando a conhecer o plano. Limitou-se a sorrir e continuou comendo.

Quando Charlotte partiu a primeira hora da tarde, depois de agradecer a Vespasia sua ajuda e seus conselhos, parou um cabriolé de aluguel para ir ao Museu Britânico. Entrou na sala de leitura e perguntou ao formal e sério bibliotecário se podia ver os jornais de Liverpool e Irlanda de junho de 1860. Felizmente, tinha na bolsa umas diminutas tesouras para unhas, que quase sempre levava consigo junto com uma lima, agulha e fio, um dedal e vários alfinetes de segurança – porque eram úteis nas mais diversas emergências.

— Sim, senhora - respondeu o bibliotecário com semblante circunspeto. — Se tiver a bondade de me seguir.

Guiou-a por estreitos corredores entre montanhas de livros e papéis até lhe achar um assento livre em uma mesa de leitura. Logo prometeu que breve retornaria com os jornais solicitados.

Sentado à mesa junto a ela havia um jovem de imponente bigode e expressão absolutamente séria, absorto em um panfleto político; tão concentrado estava na leitura que não parecia sequer respirar.

Do outro lado tinha a um ancião de aspecto militar que lhe lançou um olhar de indignação, como se acabasse de irromper em um clube só para cavalheiros, e considerando o que Charlotte se propunha, seu receio era mais que justificado.

Chegaram os jornais, e Charlotte agradeceu ao bibliotecário com um encantador sorriso; mas não tão encantador, esperava, para que posteriormente recordasse seu rosto.

Supôs-lhe um quarto de hora de diligente leitura achar os dois artigos que necessitava. Muito mais complicado era engenhar o modo de recortá-los sem ser vista. Provavelmente roubar recortes de jornal era um delito. Seria uma verdadeira desgraça que a detivessem e levassem presa à delegacia de polícia do Pitt, acusada de vandalismo e furto.

Voltou a cabeça e sorriu ao cavalheiro de aspecto militar.

Violentou-se e olhou em outra direção.

O estudioso da revolução não parecia sequer notar sua presença.

Charlotte sacudiu o jornal e sorveu ruidosamente pelo nariz.

O homem de aspecto militar se sobressaltou e a olhou com semblante de desaprovação.

Charlotte lhe dedicou um radiante sorriso.

O homem estava em extremo aborrecido. Ruborizou-se e extraiu um lenço do bolso para soar-se.

Charlotte tirou um lenço de renda e o estendeu, sorrindo-lhe ainda com maior entusiasmo.

Ele a contemplou horrorizado, ficou em pé e saiu fugindo.

Charlotte se curvou sobre o jornal, tampando-o pelo lado do revolucionário, e recortou primeiro um artigo e depois o outro. Tremia e sentia sufoco no rosto. Aquilo era um roubo e sabia, mas não havia outro modo de provar a verdade.

Fechou os jornais e os deixou sobre a mesa. Olhou ao redor para localizar ao bibliotecário. Nesse momento repreendia aparentemente a uma anciã com um chapéu de cor malva. Com os recortes e as tesouras já guardados na bolsa, Charlotte agachou a cabeça e saiu rápida e sigilosamente da sala de leitura, cobrindo-a boca com uma mão como se estivesse a ponto de vomitar.

Um jovem fez um morno intento de detê-la, mas em seguida abandonou a idéia.

Possivelmente pretendia lhe pedir que devolvesse a seu lugar o material de leitura ou o entregasse ao bibliotecário, ou possivelmente só desejava lhe oferecer ajuda. Charlotte nunca saberia.

O ar frio da rua lhe produziu uma sensação maravilhosa, mas tinha ainda abrasadora consciência dos recortes escondidos em sua bolsa. De boa vontade se teria rido a gargalhadas do homem de aspecto militar e posto depois a correr tão depressa como lhe permitissem as pernas até perder-se na multidão; em lugar disso, sorriu com dissimulação e começou a andar a bom passo mas sem chamar a atenção, até que viu um cabriolé livre, que parou, indicando ao cocheiro que a levasse a estação.

Quando Charlotte chegou a Ashworth Hall era já de noite e apertava o frio. Recebeu-a um lacaio visivelmente cansado. Todos outros se retiraram cedo, inquietos e assustados depois dos acontecimentos do dia. Tinham varrido e esfregado o vestíbulo, mas se via ainda pó por toda parte, e nenhuma legião de criadas com vassouras e trapos teria podido ocultar a porta estilhaçada do escritório, de novo fixada ao batente mas ainda cheia de marcas e claramente empenada.

— Obrigada - disse Charlotte cortesmente, aborrecida consigo mesma por ser incapaz de recordar o nome do lacaio por causa do cansaço.

— Deseja a senhora que lhe traga algo? - ofereceu ele serviçalmente.

— Não, obrigado. Passe já a chave e deite-se. Irei diretamente acima.

— A espera sua criada, senhora.

— Ah.... ah, sim, claro - disse Charlotte. Tinha esquecido que Gracie se tomava muito a peito suas obrigações de criada.

Nesse momento não tinha a coragem nem a força para explicar à Gracie que a história que Finn Hennessey lhe tinha contado era em essência falsa. Devia sabê-lo, mas podia esperar até o dia seguinte. Deteve-se na escada e se voltou.

— Está tudo em ordem? - perguntou ao lacaio, lamentando de novo ter esquecido seu nome.

— Sim, senhora. Não se produziu nenhum outro percalço desde esta manhã.

— Obrigada. Boa noite.

— Boa noite, senhora.

Encontrou Gracie feito um novelo na poltrona do quarto de vestir e profundamente adormecida. Nenhuma só ruga sulcava seu rosto limpo, mas inclusive à luz do único abajur aceso estava pálida, e parecia uma menina esgotada. Levava ainda posta a touca, mas caía a um lado e lhe tinha solto parcialmente o cabelo, liso e fino, brilhante e impossível de frisar. Fazia sete anos que estava com Charlotte e Pitt. Tinha com eles uma relação tão estreita ou mais que se fosse um membro da família.

Era uma pena despertá-la, mas não gostaria que alguém supusesse que não estava à altura de seus deveres. E em todo caso despertaria em algum momento da noite, intumescida de dormir naquela posição, e então se perguntaria o que tinha acontecido. Podia assustar-se se pensava que Charlotte não tinha retornado ainda.

—Gracie - disse Charlotte, lhe tocando a mão, fechada sob o queixo. Tinha-a tão pequena como uma menina e igualmente limpa como o rosto. — Gracie!

Gracie se revolveu e seguiu adormecida.

— Gracie - repetiu Charlotte com mais firmeza. — Não pode ficar aí, ou despertará mais dolorida que o senhor Pitt.

Gracie lançou uma exclamação e abriu os olhos. Ao ver Charlotte, uma sensação de alívio se refletiu imediatamente em seu rosto. Endireitou-se e ficou em pé.

— Quanto me alegro de que haja voltado sã e salva, senhora! Não deveria subir sozinha a esses trens. O senhor se deitou já, mas aposto que tampouco dormiu.

— Obrigada por me esperar - respondeu Charlotte, dissimulando um sorriso e lhe entregando a capa para que a pendurasse.

— Era meu dever - afirmou Gracie com satisfação. — Quer um pouco de água quente para lavar-se?

— Não, fria já está bem. - Charlotte negou com a cabeça. Não ia enviar Gracie abaixo por água quente a essa hora da noite. Acrescentou: — E tem que saber que os trens são muito seguros. Não havia razão para preocupar-se. Como foram aqui as coisas?

— Fatal. - Gracie lhe ajudou a desatar os cordões das botas e a desabotoar e tirar o vestido. Pela manhã limparia as botas, tiraria o barro da prega do vestido e lavaria a roupa interior. Enquanto pegava a pesada saia, disse: — Todo mundo tinha medo até de sua sombra. Um lacaio desarrolhou uma garrafa, e a criada, ao ouvir o ruído, começou a gritar como uma louca. É estranho que com esses alaridos não se quebrou os lampiões, os que ainda ficam inteiros.

— Meu Deus!

Charlotte tirou as forquilhas do cabelo e sentiu alívio ao notar cair o peso de sua cabeleira e começar a desenredar-lhe com os dedos.

Gracie lhe soltou os prendedores do espartilho.

— Quero dormir até as dez da manhã! - disse Charlotte, consciente de que seria impossível.

— Subimos-lhe aqui o café da manhã? - ofereceu Gracie serviçalmente.

— Não.... não obrigada. Não terei mais remédio que me levantar e descer, embora só seja para observar e escutar ou tratar de ajudar à senhora Radley.

— Como detetives, não estamos fazendo muito bom trabalho, não é? – comentou Gracie com pesar. — Pouca ajuda teve o senhor conosco.

— Muito pouca até o momento - concordou Charlotte com uma pontada de tristeza. — Estive mais preocupada com Emily e por esta desastrosa reunião. - Falava em sussurros para não incomodar Pitt se por acaso dormisse. — Não sei por onde começar.    - Enrugou a fronte. — Em geral, somos mais úteis se houver outras mulheres implicadas, problemas de família, assuntos humanos comuns. Não compreendo os conflitos relacionados com a religião e o nacionalismo.

Agarrou o lavatório e verteu água na bacia. Lavou o rosto, e o contato com a água fria lhe cortou a respiração.

— Eu entendo o ódio pelo que sofreram suas famílias devido à religião e o nacionalismo - respondeu Gracie, lhe dando a toalha. — Algumas de suas desgraças são tragédias como qualquer outra.

— Sei - se apressou a dizer Charlotte, desejando evitar a história da Neassa e Drystan essa noite. — Amanhã teremos que pensar nisso. Agora deve estar cansada, e eu certamente estou. Boa noite, Gracie, e obrigada por me esperar acordada.

— De nada, senhora - respondeu Gracie, abafando um bocejo mas de qualquer modo agradada.

Pitt estava só transposto, muito cansado para permanecer acordado mas incapaz de descansar devidamente até saber que Charlotte tinha retornado.

— Como estava Vespasia? - resmungou, e se embrulhou entre as mantas, levando-lhe sem dar-se conta para sua metade da cama e deixando sem roupa o lado de Charlotte.

— Muito bem - respondeu ela, metendo-se na cama e puxando as mantas.

Pitt lançou um grunhido, soltou-as e se estremeceu quando Charlotte o descobriu um instante para reacomodá-las e se aproximou dele com as mãos e os pés frios.

— Inteirei-me de algumas coisas - continuou Charlotte, até sabendo que o único desejo do Pitt era conciliar o sono. Possivelmente pela manhã não tivesse tempo de falar com ele antes de dizer-lhe ao Gracie. — Sobre o trágico amor da Neassa Doyle e Drystan O’Day.

Pitt respirou fundo.

— É algo importante?

— Talvez. Alexander Chinnery não violou nem matou a Neassa. Tinha morrido no Liverpool dois dias antes.

Pitt guardou silêncio.

— Está adormecido? - perguntou Charlotte.

— Eu gostaria - respondeu Pitt. — É só outra pincelada mais de farsa trágica neste assunto.

— E concluiu já o julgamento pelo caso de divórcio Parnell-O’Shea, e conforme parece, saiu à luz que Parnell se comportou como um perfeito imbecil - prosseguiu. — E Vespasia sustenta que perderá a liderança da causa nacionalista, se não imediatamente, a curto prazo. Suponho que isso afeta a os irlandeses que estão aqui reunidos.

Pitt voltou a grunhir.

— Descobriu algo? - perguntou Charlotte, aproximando-se inconscientemente a ele para esquentar-se, lhe provocando calafrios. — Lorcan McGinley demonstrou uma grande valentia tentando desativar a bomba. Averiguou como se inteirou de que estava no escritório?

— Não. - Pitt abriu por fim os olhos e se voltou sobre as costas. — Temos feito todo o possível por determinar seus movimentos ao longo da manhã: com quem falou, aonde foi. De momento sem resultado algum.

— Sinto muito. Não lhe servi de muita ajuda, não é verdade?

— Seria uma grande ajuda que calasse e dormisse - disse Pitt com um sorriso, rodeando-a com o braço. — Por favor!

Obediente, Charlotte se ajeitou ainda mais junto a ele e apoiou a cabeça no travesseiro, ficando em silêncio.

Na manhã seguinte, Charlotte decidiu que não podia deixar para mais tarde. Assim que terminou de vestir-se e deixou resolvida a parte mais física e substância absorvente dos preparativos para o dia, sentou-se frente ao espelho e Gracie começou a penteá-la.

— Ontem, em minha visita a Londres, fui ver lady Vespasia - disse.

— Como estava? - perguntou Gracie sem interromper sua tarefa.

Manter uma conversa cortês e fazer algo útil simultaneamente fazia parte das habilidades de uma boa criada. Não obstante, sentia uma grande admiração por lady Vespasia, e lhe impunha mais respeito que nenhuma outra pessoa, incluído o subchefe de polícia.... salvo possivelmente a rainha. Mas à rainha, claro está, não a conhecia pessoalmente, e talvez nem sequer lhe fosse simpática. Tinha ouvido dizer que era muito suscetível e quase nunca ria.

— Muito bem, obrigada - respondeu Charlotte. — Lhe contei, como não, o que está ocorrendo aqui.

— Deve ter ficado muito preocupada - disse Gracie, e apertou os lábios. — As coisas se puseram tão feias para o senhor, e para o senhor Radley, e para todos.

— Sim, claro que se preocupou. Está muito bem informada sobre a política irlandesa e tudo o que aconteceu.

— Tomara tivesse ela alguma solução para isso - respondeu Gracie com ardor.         — Algumas dessas desgraças bastariam para fazer chorar aos anjos. - Enquanto falava, seu rosto ficou tenso e a envolveu uma grande tristeza. — Quando penso nessa pobre garota que violaram e mataram porque era bonita e amava a um homem do outro bando, e em que os ingleses foram os culpados, envergonho-me, francamente.

— Não tem por que envergonhar - disse Charlotte com clareza. — Nós...

— Não, já sei que não fomos nós - a interrompeu Gracie com tom premente e voz um tanto empanada. — Mas foi coisa de uns ingleses, e como nós somos ingleses, também nos corresponde de algum jeito.

— Não, não me referia a isso. - Charlotte virou sobre o assento da banqueta até achar-se de frente à Gracie. — Me Escute bem. Cometemos muitos abusos na Irlanda, isso é indiscutível. Mas os ingleses não tiveram nada que ver no assassinato da Neassa Doyle. Verá. - Levantou-se, foi pegar sua bolsa e tirou os dois recortes de jornal que tinha roubado em Londres. — Lê isto, e fixe-se especialmente nas datas. Alexander Chinnery morreu em Liverpool dois dias antes que Neassa Doyle fosse assassinada por seus próprios irmãos. E não foi violada, graças a Deus.

Gracie se concentrou nas duas partes de papel. Manteve o olhar fixo neles tanto tempo que Charlotte esteve a ponto de oferecer-se a ler-lhe se por acaso tinha dificuldades com a letra impressa ou alguma palavra fosse muito longa.

Finalmente Gracie ergueu a vista, atônita e aflita.

— É horroroso - disse lentamente. — Pense em toda essa gente , tendo por verdade semelhante mentira. Todas essas canções e histórias; toda essa gente que odeia ao Chinnery quando em realidade ele não teve culpa de nada. E as outras histórias? Quantas delas serão falsas?

— Não sei - respondeu Charlotte. — Provavelmente algumas, não todas. O problema é que o ódio acaba convertendo-se em um hábito e então a pessoa odeia por odiar, até muito depois de esquecer o motivo. Nesse ponto começam a procurar razões que justifiquem seus sentimentos, e se não as encontram, inventam-nas. Não permita que lhe façam sentir-se culpada por algo que não tem nada que ver com você, Gracie. E pense que nem todas as canções e histórias contam a verdade.

— Acredita que se levariam melhor o senhor Doyle e o senhor O’Day se conhecessem a verdade? - perguntou Gracie com um fio de esperança na voz.

— Não - respondeu Charlotte sem vacilar. — Suas famílias obraram mau, e ninguém gosta de inteirar-se disso.

— Embora seja verdade?

— Menos ainda se for verdade.

Não obstante, quando Gracie dispôs de um momento livre depois do café da manhã, subiu ao quarto de Charlotte, pegou os dois recortes de jornal e foi procurar ao Finn Hennessey. Sem dúvida ele preferiria conhecer a verdade. Possivelmente algumas pessoas odiassem por hábito, como Charlotte dizia, mas Finn não era de esses. Ele sofria pelos verdadeiros padecimentos de seu povo, e não por males imaginários.

Encontrou-o no quarto do engraxate, mas não entrou até que se foi o valete de do senhor O’Day para poder falar a sós com ele. Não tinha recuperado ainda a cor da comoção e estava muito sério. Não tinha já trabalho, nenhuma razão para limpar sapatos, escovar jaquetas ou ocupar-se das numerosas tarefas próprias do criado pessoal de um cavalheiro, mas continuava realizando-as mecanicamente. Era melhor que ficar ocioso. Nesse momento dava brilho a um par de botas. Talvez fossem de outro cavalheiro, e Finn simplesmente se ofereceu para ajudar.

— Que tal se encontra? - perguntou Gracie, observando-o com preocupação da porta. — Juraria que tem uma dor de cabeça espantosa.

Finn esboçou um débil sorriso.

— Acertou, Gracie. É como se tivesse dentro a uma dúzia de homenzinhos com gordos tentando sair. Mas me passará. Pior estão outros.

— Tomou algo para aliviá-la? - perguntou Gracie com tom compreensivo. Trar-lhe-ei algo se quiser.

— Não, obrigado - recusou, relaxando um pouco. — Já tomei algo.

— Sinto muito pelo senhor McGinley - disse Gracie, contemplando como se refletia a luz em seu cabelo escuro quando se apoiou contra o banco.

Finn se movia com uma graça única, quase uma espécie de música. E se preocupava muito por outros. Nunca se mostrava indiferente ou insensível à dor alheia. Devia ser horrível pertencer a um povo que tinha sofrido tanto, que tinha sido vítima de tão graves injustiças. Gracie o admirava por sua compaixão, sua ira e seu valor. De fato se parecia um pouco ao Pitt, lutando a sua maneira pela justiça.

Talvez também ela deveria preocupar-se mais por seu próprio povo, lutar por melhorar sua situação. Mas quem formava seu povo? Os pobres de Londres? Aqueles que tinham crescido passando frio e fome, imersos na miséria e ignorância como ela mesma, lutando por cada pedaço de comida, por achar proteção e um pouco de calor, por manter-se com vida sem roubar nem prostituir-se?

E entretanto ali estava, no Ashworth Hall, vivendo como uma senhorita e tratando de esquecer-se de todas essas pessoas. Desprezá-la-ia Finn se soubesse? Gracie não desejava voltar para o Clerkenwell nem a nenhuma parte onde houvesse gente como a que ela tinha deixado atrás. Como podia lutar-se para mudar suas vidas se não era mudando a si mesma?

— A senhora Pitt foi ontem à cidade para visitar sua tia avó - disse Gracie. Pensar na Vespasia sempre lhe produzia certa agitação, como se lhe iluminasse de repente um raio de sol.

Finn pareceu surpreso.

— Sim? Viajou daqui a Londres depois do ocorrido ontem pela manhã?

Talvez não fosse sua intenção, mas Gracie percebeu em sua voz um tom crítico, como se pensasse que Charlotte tinha abandonado de certo modo suas obrigações e que deveria ter ficado no Ashworth Hall com outros.

Gracie adotou imediatamente uma atitude defensiva.

— Lady Vespasia é uma mulher muito especial. É uma das maiores damas do país. Se houver algo que ela não sabe, é porque carece de interesse.

— Vá, pois, se conhece a maneira de nos tirar deste embrulho, é uma lástima que a senhora Pitt não haja a trazido - comentou com pessimismo.

— Ninguém pode nos tirar deste embrulho, salvo o senhor Pitt - respondeu Gracie com uma convicção mais aparente que real, e imediatamente se envergonhou de si mesma por desconfiar do Pitt. Claro que resolveria o caso... cedo ou tarde. Energicamente, acrescentou: — Ele averiguará quem assassinou ao senhor Greville e quem pôs a bomba que matou ao senhor McGinley.

Finn sorriu.

— É muito leal, Gracie. Não teria esperado menos de você.

Gracie respirou fundo.

— Entretanto, ele não pode pôr remédio aos ódios da Irlanda. Lady Vespasia em troca sim fez algo a respeito. Contou à senhora Pitt a verdade sobre essa história da Neassa Doyle e Drystan O’Day, e é diferente do que lhes têm feito acreditar durante anos.

Finn ficou imóvel.

No corredor se ouviram umas passadas em direção ao quarto das facas. Um lacaio amaldiçoou entre dentes ao levantar um pesado balde de carvão.

— E o que sabia uma dama inglesa de Londres sobre um assassinato cometido faz trinta anos em uma colina irlandesa? - perguntou Finn cautamente, com voz calma e olhar firme.

Gracie percebeu sua atitude defensiva. Mas não era tão fraco para preferir uma mentira à verdade.

— Simplesmente o que saberia qualquer capaz de ler - respondeu Gracie sem desviar o olhar.

— E você o acreditou, Gracie? Onde está escrito? Por quem?

— Em um jornal - respondeu ela sem hesitações. — Está escrito em um jornal. Eu mesma o li.

Finn quase pôs-se a rir.

— Que jornal? Um jornal inglês? - Seu rosto e sua voz destilavam desdém.

— Pensa realmente que publicariam a verdade sobre algo assim? Um dos seus, um oficial de seu exército, um tenente, violou e assassinou a uma moça irlandesa e traiu a seu melhor amigo. Como iriam dizer isso? Lamento que a verdade seja ingrata, Gracie, mas deve confrontá-la. - Aproximou-se dela olhando-a com ternura. Baixou a voz e, com um tom de tristeza mais que de irritação, acrescentou sem perder a convicção: — Gracie, às vezes nossa própria gente comete atos que nos envergonham de tal modo que inclusive pensar neles nos é insuportável, e quando admitimos que são verdade, é como se uma pequena parte de nós morresse. Mas se forem verdade, fugir ou negá-los não muda as coisas; simplesmente nos converte em cúmplices desses atos, porque nos faltou a coragem necessária para confrontar a verdade. Você não deseja ser cúmplice de uma mentira, Gracie. Isso não é próprio de você. Por doloroso que seja, ponha-se do lado da verdade. É uma ferida mais limpa e acaba cicatrizando.

— Sim - sussurrou Gracie. — Mas não é fácil, Finn. Às vezes dói como se rasgasse por dentro.

— Seja forte - disse Finn. Sorriu e lhe estendeu a mão.

Gracie não a tomou. Vacilou por um instante. Tinha os dois recortes de jornal no bolso. Fechou os olhos. Era mais fácil dizer sem lhe olhar no rosto.

— Contou-me que Neassa Doyle foi violada e assassinada a noite de 8 de junho.

— Sim. É uma data que nenhum irlandês esquecerá. Por que?

— Por um tal Alexander Chinnery, um inglês que era o melhor amigo do Drystan O’Day ou fingia sê-lo?

— Sim, já sabe.

— Sim - respondeu Gracie. — Diz no recorte de jornal que a senhora Pitt trouxe de Londres.

— E aonde quer ir parar, pois? É verdade! Todos sabemos que é verdade!

— Tenho outro recorte. - Gracie abriu os olhos, de maneira espontânea, não de propósito. — É de um jornal de Liverpool, com data 6 de junho, dois dias antes.

Finn a olhou com expressão de perplexidade.

— E o que diz?

— Diz que o tenente Alexander Chinnery saltou às águas do porto do Liverpool para tentar salvar a um moço que estava a ponto de afogar-se...

— Assim era valente quando tinha vontade - a interrompeu Finn. — Eu nunca disse que fosse um covarde, mas só um traidor, um assassino e um violador.

— E também devia fazer milagres! - exclamou com voz entrecortada. — No dia 8 de junho já estava morto, Finn. Não salvou ao moço nem sobreviveu ele. Afogaram- se os dois. Tiraram os corpos da água, mas já era tarde. Quando Neassa Doyle foi assassinada, Finn, Chinnery levava dois dias morto. E havia dúzias de testemunhas. Dúzias de pessoas que trataram de salvá-los.

— Isso não é verdade! - Seu rosto mudou. — Não é verdade! É uma mentira para protegê-lo.

— Do que? - perguntou Gracie. — Não tinha feito nada.

— Isso é o que dizem vocês! - Retrocedeu com as faces acesas e um brilho de ira nos olhos. — O que vão dizer os ingleses? Não iriam admitir que o tinha feito um dos seus.

— Um dos seus tinha feito o que? - replicou Gracie. Notou que erguia gradualmente a voz e se esforçou por não acabar falando com gritos. Isso ocorreu dois dias antes de que Neassa fosse assassinada. Não havia nada do que proteger ao Chinnery. Está dizendo que o afogaram no porto do Liverpool para evitar que o acusassem de algo que ainda não tinha ocorrido?

— Não, claro que não. Mas não pode ser verdade. Há uma mentira em alguma parte. É uma manobra muito ardilosa...

— Não é mentira, Finn. Aqui só mentiram os irmãos da Neassa Doyle, que foram quem a mataram e lhe cortaram o cabelo por considerá-la uma fulana enredada com um protestante. Jogaram a culpa ao Chinnery porque não se atreveram a dar a cara por seus princípios.

— Não! Não, eles não...

— Quem o fez, pois? Porque Chinnery não pôde ser, a menos que voltasse da tumba e a matasse de um susto.

— Não fale disso nesse tom! - exclamou Finn, levantando a mão em gesto de esbofeteá-la. — Não tem nenhuma graça, maldita seja! - A emoção lhe empanava a voz. A ira e a confusão mal o deixavam falar. — Nem sequer sente respeito pelos mortos?

— Que mortos? Só os mortos irlandeses? - replicou Gracie sem arredar-se. — Claro que sinto respeito pelos mortos, tanto que quero que se saiba a verdade sobre eles. Mas também respeito aos mortos ingleses, e se Chinnery não a matou, não ficarei aqui de braços cruzados escutando acusações falsas contra ele. Isso não é honrado. - Tomou ar com uma trêmula inalação. Tinha as faces banhadas em lágrimas, mas não podia deter-se. — Me disse que confronte a verdade por dolorosa que seja. Disse-me que admitir que os nossos cometeram atos horríveis é como se morresse uma pequena parte de nós. - Ergueu um braço e indicou ao Finn. — Agora deve fazê-lo! Os Doyle assassinaram Neassa e carregaram a culpa ao Chinnery porque não tiveram fibra de dizer que a tinham matado eles por apaixonar-se por O’Day. Pois, bem, foram eles. Eis aí os fatos, e não mudaram embora o negue.

— É mentira - repetiu Finn, mas em sua voz não se advertia já convicção, a não ser só ira, confusão e dor. — Não pode ser verdade.

Gracie meteu a mão no bolso, tirou os recortes de jornal e os colocou ante os olhos sem mostrar a menor intenção de deixá-los em mãos dele.

— Você mesmo pode vê-lo. Sabe ler?

— Claro que sei ler. - Olhou os recortes sem tocá-los. — Conhecemos de sobra essa história há anos. Todo mundo a conhece.

— Não porque todo mundo a conheça deve ser verdade - replicou Gracie. — As pessoas só a conhecem porque alguém a contou. Toda essa gente não estava ali diante quando ocorreu, não é?

— Não, não diga estupidez! - replicou com ardente indignação. — Isso é uma idiotice...

— Então como se inteiraram? - Seu raciocínio era implacável. — Se inteiraram porque os irmãos Doyle o disseram. Drystan O’Day deve ter suspeitado que tinham sido eles, ou se não, não lhes teria atacado, não?

— Era protestante - respondeu Finn com sinistra lógica. — Claro que os teria atacado.

— Não. Isso é absurdo. Se tivesse suspeitado do Chinnery, não teria atacado aos Doyle; teria ido em busca do Chinnery. Não teria feito você isso? Seja sincero.

— Eu não sou protestante! - declarou Finn, levantando o queixo. Um ódio ancestral cintilou em seus olhos.

—Católicos e protestantes são iguais - respondeu Gracie com se desesperada convicção. — Não existe nenhuma diferença. Uns e outros se desmentem, aborrecem-se e matam-se mutuamente...

A reação do Finn não se fez esperar.

— Existe uma diferença abismal, pedaço de estúpida - afirmou gritando. — Não escuta? É tão... inglesa! Não tem a menor idéia de como é a Irlanda. – Deu um passo à frente, apontando Gracie com o dedo. — Essa é a típica arrogância inglesa: pensar que toda a Irlanda é igual, que está aí só para que possam roubar e saquear e logo voltar as costas quando a pessoa morre de fome e o ódio continua de geração em geração e de século em século. Dão-me asco. Não é estranho que lhes odiemos.

Gracie percebeu de repente a trágica estupidez da situação, e sua raiva se desvaneceu, dando passagem a uma profunda dor.

— Eu não digo que tenhamos razão nós - respondeu com voz serena, recuperado já o controle. — Digo que Alexander Chinnery não matou a Neassa Doyle e que estiveram mentindo a si mesmos durante muitos anos porque a mentira lhes convinha mais que a verdade, porque queriam que outros carregassem com a culpa, e quem melhor que os ingleses? - Moveu a cabeça em um gesto de tristeza. — Preferem viver em um sonho, e nunca conseguirão a paz se avivarem o ódio porque se consideram uma espécie de vítimas românticas.

Finn tentou replicar, mas Gracie tomou ar e ergueu a voz para fazê-lo calar.

— Não sei por que querem se sentir vítimas de alguém. Se não tem a culpa de seus males, nem sequer podem combatê-los, não lhe parece? Eu não desejo que todos meus problemas sejam culpa de outro. Não me converteria em uma pobre indefesa a mercê de outros? Eu não sou uma pobre indefesa. Cometo meus enganos, admito-os e logo retifico ou aprendo a viver com eles.

De repente Gracie virou sobre seus calcanhares, saiu do quarto e pôs-se a correr, ofegando, com a garganta ardendo, sem ver por onde ia por causa das lágrimas, com os recortes ainda na mão.

Quando avançava a toda pressa pelo corredor em direção à escada das criadas, chocou-se contra Tellman, que a pegou para evitar que caísse.

— O que acontece? - perguntou imediatamente.

— Nada! - exclamou Gracie, mas um soluço afogou sua voz. Tellman era a última pessoa que teria desejado ver naquele momento. —Não passa nada! Me solte!

Tellman a manteve segura e escrutinou seu semblante.

— Está muito alterada. Ocorreu algo. Alguém lhe fez mal? - insistiu com visível preocupação.

Gracie lutou para livrar-se do Tellman, mas ele resistiu a deixá-la ir. Para sua surpresa, apesar da firmeza com que a pegava, mostrava também grande delicadeza.

— Gracie?

— Ninguém me fez nada - respondeu ela com desespero. Sabia que tinha lágrimas nas faces; em realidade, quase lhe impediam de ver o Tellman. Estava a ponto de arrebentar de raiva e dor pelo Finn e aquela absurda situação. Não queria que Tellman soubesse que era vulnerável, e menos ainda que o visse com seus próprios olhos. Era um inútil, cheio ele mesmo de ira e ressentimento. — E se me tiverem feito algo, não é coisa sua. Não é assunto para a polícia, se por acaso é isso o que pensa.

— Claro que não é assunto da polícia - disse Tellman, incomodado. — Está assustada, Gracie?

— Não, não estou assustada - respondeu ela. Conseguiu por fim soltar-se. Sorveu-se o nariz com força e engoliu a saliva.

Tellman tirou um lenço, branco e limpo, e o ofereceu.

Gracie o aceitou só por necessidade, guardando antes os recortes no bolso.

Tinha que se assoar e secar as lágrimas.

— Obrigada - disse a contra gosto. Não estava disposta a permitir que precisamente Tellman a surpreendesse em uma falta de educação.

— Sabe algo, Gracie? - insistiu Tellman, segurando-a de novo. — Se souber algo, me deve contar isso.

Gracie o olhou indignada e se soou pela segunda vez. Irritava-a não poder controlar o pranto. Não gostava que Tellman visse sua fraqueza.

— Me deve contar – repetiu Tellman, levantando a voz como se ele mesmo estivesse assustado. — Não seja tola!

— Eu não sou tola! - replicou Gracie, afastando-se dele. — Cuidado com o que diz! Como se atreve...?

— Como vou protegê-la se não me contar qual é o perigo? - perguntou Tellman, zangado.

De repente Gracie notou que realmente havia medo em sua voz, e inclusive em seu rosto e em todos seus músculos, tensos pelo esforço de conter o desejo de mantê-la segura contra a vontade dela. — Acredita que não lhe porão também uma bomba, ou a empurrarão escada abaixo, ou simplesmente lhe retorcerão o pescoço se suspeitarem que conhece informação suficiente para enviá-los à forca? – Nesse momento também ele tremia.

Gracie ficou subitamente imóvel e o olhou com fixidez.

Tellman se ruborizou um pouco.

— Não sei nada, juro - respondeu Gracie com sinceridade. — Se soubesse algo, o diria ao senhor Pitt, ou acaso o duvida? Vá ver quem é o idiota agora? - Assoou-se por última vez e observou o lenço. — Lavá-lo-ei antes de devolvê-lo.

—Não é necessário... - disse Tellman com tom magnânimo, e se ruborizou mais intensamente.

Gracie tomou ar e o deixou escapar em um trêmulo suspiro.

— Vale mais que vá ocupar me de minhas tarefas. Se por acaso não o recorda, tenho trabalho dobrado porque o valete do senhor não serve para nada.

Dito isto, meteu o lenço no bolso e partiu, deixando ao Tellman no corredor vendo-a afastar-se.

 

Emily sabia que tinha tratado injustamente Charlotte e Pitt depois da explosão. Uma parte dela era consciente inclusive nesse mesmo momento, mas estava tão assustada, furiosa e aflita pelo imediato alívio, que suas emoções tinham escapado a seu controle. Agora, um dia depois, sabia que devia pedir desculpas.

Foi primeiro em busca do Pitt. Tinha a sensação de que seria mais fácil começar por ele. Afinal , tinha sido Pitt o alvo de seu ataque. À Charlotte seria mais difícil perdoar, porque agia em defesa de seu marido dado que ele era nesse instante mais vulnerável por seu próprio fracasso.

Emily se dirigia para a confeitaria e o tanque - onde, segundo Dilkes, acharia Pitt - quando a abordou uma ajudante de cozinha carregada com uma cesta vazia.

— Não penso entrar aí, senhora, embora passemos fome o resto da semana. Vamos, nem que morramos de fome, e não há mais que falar! - disse, e se plantou com os pés separados e um punho apoiado no quadril, quase como se esperasse que alguém tentasse levá-la pela força aonde quer que fosse que não desejava entrar.

— Onde não pensa entrar, Mae? - perguntou Emily com atitude razoável. Estava habituada a vacilação das criadas. Quase sempre podia esclarecer-se com um pouco de lógica e muita firmeza.

— Pegar a carne - respondeu Mae com determinação. — Não entraria por nada do mundo.

Olhou fixamente Emily sem o menor indício de hesitação, o que era mau sinal. Os criados não desafiavam assim a seus senhores se desejavam conservar seu emprego.

— É sua obrigação - indicou Emily, — se a cozinheira a enviou. Enviou-a ela?

— Não entraria aí nem que me enviasse o próprio Deus! - insistiu Mae sem pestanejar.

Aquele não era o momento idôneo para despedir uma ajudante de cozinha, e menos ainda uma que fazia bem seu trabalho. E até a data Mae tinha demonstrado ser competente. por que demônios teimava daquele modo? Possivelmente valia a pena tratar de raciocinar.

— Por que não? Entrou já muitas vezes.

— Mas antes não havia cadáveres no depósito de gelo - respondeu Mae com voz rouca. — E além disso de homens que foram assassinados e não descansam em paz. Os mortos que deixam este mundo antes da hora sempre procuram vingança.

Emily tinha esquecido que os cadáveres se achavam ali.

— Sim, claro; compreendo-o - disse Emily com toda a serenidade possível. — Em todo caso, não tem as chaves. Suponho que as tem o delegado Pitt. Eu mesma entrarei para pegar a carne.

— Como vai fazer isso? - saltou Mae, horrorizada.

— Alguém tem que fazê-lo - respondeu Emily. — Eu não matei a ninguém, assim esses cadáveres não me dão medo. Devo dar de comer a meus convidados. Volte para a cozinha e diga à senhora Williams que eu levarei a carne.

Mae não se moveu.

— Vá já - ordenou Emily.

Mae empalideceu.

— Você não pode carregar carne, senhora. - Respirou fundo. — Seria impróprio. Eu a carregarei se me jura que entrará comigo. Se me acompanhar, não me acontecerá nada.

— Obrigada - disse Emily com gravidade. — É muito valente, Mae. Irei pedir as chaves ao senhor Pitt e entraremos juntas.

— Sim, senhora.

Encontraram ao Pitt cinco minutos depois, quando retornava de falar com o valete do Padraig e ia em busca de Kezia.

— Thomas - disse Emily. Não podia desculpar-se por seu anterior comportamento diante da criada. Sorriu-lhe tão docilmente como foi possível e viu surpresa em seus olhos. — Thomas, ficamo-nos sem carne na cozinha e temos que entrar no depósito de gelo para mais. Acredito que guarda você as chaves, devido a... - Deixou a frase inacabada. — Seria amável de nos acompanhar? À Mae inquieta um pouco ir sozinha, e lhe prometi que entrarei com ela.

Pitt a observou por um momento sem responder. Finalmente lhe devolveu o sorriso e disse:

— Como não? Agora mesmo.

— Obrigada, Thomas - sussurrou Emily.

Não precisava dizer nada mais. Pitt sabia que isso era uma desculpa.

Encontrar Charlotte foi mais difícil, mas pior ainda foi escolher as palavras adequadas quando por fim deu com ela. Era evidente que continuava aborrecida e alterada. Tinha ido a Londres, sem explicar a ninguém o motivo da viagem, e retornado tão tarde que estava já todo mundo deitado. Normalmente em uma festa de fim de semana no campo os convidados prolongavam os serões até as duas ou as três da madrugada. Mas naquele fim de semana nada era normal. Ninguém desejava estar em companhia dos outros mais tempo do estritamente necessário para manter as aparências.

Emily e Charlotte se achavam nesse momento no primeiro espaço aberto da estufa encostada à casa, entre as palmeiras plantadas em vasos de barro e a orquídea que Fergal tinha quebrado, embora isso elas não sabiam. Ao passar pelo vestíbulo, Emily tinha visto ali Charlotte e tinha entrado. Entretanto, uma vez frente a ela, não soube por onde começar.

— Bom dia - saudou Charlotte com certa tensão.

— Por que diz "bom dia"? - respondeu Emily. — Nos vimos já no café da manhã.

— O que quer que diga? - perguntou Charlotte, arqueando as sobrancelhas. — Não me parece bom momento para bate-papos frívolos e não penso falar do caso com você. Acabaríamos brigando outra vez. E se não conhecer minha opinião sobre como tratou Thomas, não tenho inconveniente em lhe dizer isso.

Era uma óbvia ameaça; adivinhava-se em cada ângulo de seu corpo e cada linha de seu rosto.

Emily se desanimou. Não compreendia Charlotte quão aterrorizada estava pelo Jack, e não só por sua integridade física - que sem dúvida perigava como todos sabiam -, mas também pelo fato de que um fracasso naquela conferência podia representar o fim de sua carreira quando virtualmente ainda não tinha começado? Tinham-lhe pedido muito antes do tempo. Era extremamente injusto. Pitt não era o único que confrontava o risco de um fracasso, e no mínimo ninguém ameaçava sua vida. Emily necessitava a ajuda e a companhia de Charlotte, seu apoio, não sua ira. Mas se tinha que lhe suplicar, de nada servia. De repente sentiu mais afinidade com a Kezia Moynihan do que teria acreditado possível.

— Não, obrigada - respondeu com frieza. Essa não era a desculpa que tinha previsto. — Deixou já sobradamente clara com sua atitude.

Nada saía como tinha planejado.

Permaneceram face a face em incômodo silêncio, indecisas, apanhadas entre o que o temperamento e o orgulho lhes ditava e os impulsos que surgiam de sentimentos mais profundos.

A uns dez passos delas, do outro lado de uma densa trepadeira de flores amarelas em forma de sino, abriu-se uma das portas exteriores da estufa. Emily se voltou imediatamente, mas não viu ninguém através das folhas, apesar de ouvir-se claramente uns passos.

— Esse não é um comportamento razoável! - ouviram dizer. Era a voz do Fergal Moynihan, perceptivelmente exaltado.

A porta se fechou com um golpe seco.

— Porque não estou de acordo com você? - replicou a voz da Iona, igualmente severa e irada.

— Porque não é realista - respondeu ele, baixando um pouco o tom. — Os dois temos que transigir em maior ou menor medida.

— E você no que transige? - perguntou Iona. — Nega-se a me escutar quando lhe falo do mais essencial. Segundo você, são mistérios, sabedoria popular. Ri-se do mais sagrado.

— Eu não me rio de nada - protestou Fergal.

— Sim ri! Zomba de tudo isso. Dá-me adulação para não me irritar, mas no fundo não acredita...

Emily e Charlotte cruzaram um olhar de estupefação.

— Agora me acusa não do que digo ou faço, mas sim do que imagina que acredito? -Fergal começava a perder de novo o controle. — É impossível agradá-la! Só procura briga. Por que não é sincera...?

— Sou sincera! - exclamou Iona. — É você quem mente, e não só a mim mas também a si mesmo...

— Eu não minto! - respondeu ele gritando. — Digo a verdade! Esse é o problema. Você não gosta da verdade porque não concorda com seus mitos, seus contos de fadas e as superstições que regem sua vida...

— Não compreende a fé - reprovou ela. — Você só sabe impor normas e condenar às pessoas. Deveria tê-lo imaginado...

Ouviram-se uns rápidos passos e o som da porta ao abrir-se.

— Iona! - chamou Fergal.

Silêncio.

— O que?

Os passos do Fergal seguiram os dela para a porta.

— Amo-te.

— De verdade? - perguntou ela, mais sossegada.

— Já sabe que sim. Adoro-a.

Produziu-se um longo silencio, quebrado só por suspiros e os roçar do tecido, e finalmente pelos passos de ambos e o ruído da porta ao fechar-se.

Emily olhou a Charlotte.

— Não é um caminho de rosas, sua relação - sussurrou Charlotte. — Os beijos não resolvem as discrepâncias, ou ao menos não realmente.

— Os beijos não são a solução para tudo - concordou Emily. — É algo que alguém faz se gosta, mas não para resolver problemas. De certo modo servem só para mascarar o conflito. Pode ser muito agradável beijar a alguém, mas também pode impedir de pensar com clareza. Quando terminam os beijos e os dois se separam, o que fica?

— Em seu caso, não acredito que saibam ainda. - Charlotte moveu a cabeça em um gesto de negação. — E será uma pena se renunciarem a muitas coisas pela oportunidade de estarem juntos e depois descobrem que não é isso o que querem e a relação fracassa. Então ficarão com as mãos vazias.

— Duvido que desejem escutar isso - indicou Emily.

Charlotte sorriu pela primeira vez.

— Estou certa de que não. Pergunto-me o que sentirá Kezia quando isso ocorrer? Espero que seja capaz de não desfrutar muito.

Emily se surpreendeu.

— Por que? Gosta de Fergal? Achava que não muito.

— Não gosto dele. Acho-o frio e presunçoso. Mas sinto simpatia por ela. E à margem de como seja Fergal, é seu único irmão, de fato sua única família. Kezia se ferirá muito a si mesma se não lhe oferecer um pouco de compreensão.

— Charlotte...

— O que?

De repente não era já tão difícil. Não haveria ocasião melhor que aquela.

— Lamento ter arremetido ontem contra Thomas. Sei que foi injusto de minha parte. Estou aterrorizada pelo Jack. - Podia dizer tudo sem reservas. — Não só se por acaso voltam a atentar contra ele, mas também porque lhe encomendaram uma missão impossível, e se fracassar, possivelmente o joguem no rosto.

Charlotte lhe estendeu uma mão.

— Sei que tem medo. A situação em si é espantosa. Mas não se preocupe pelo possível fracasso do Jack com a Questão Irlandesa. Em trezentos anos ninguém achou uma solução. Possivelmente inclusive o odiariam se ele resolvesse o problema.

Emily esteve a ponto de pôr-se a rir, mas facilmente podia perder o controle e romper a chorar se descesse por um instante a guarda. Limitou-se a aceitar a mão de Charlotte e a estreitou com força. Depois a abraçou.

Depois de ajudar a tirar a carne do depósito de gelo, Pitt mudou de idéia e foi em busca do Tellman em lugar de ir ver Kezia. Tinham que começar outra vez desde o começo.

— De novo pelo Greville? - perguntou Tellman, arqueando as sobrancelhas. — Por mim, de boa vontade voltaria a começar a partir do assassinato do Denbigh, mas duvido que nos permitam isso. Detesto as conspirações.

— O que prefere? - perguntou Pitt com tom irônico. — Um agradável assassinato doméstico no qual as pessoas se conhecem há anos, possivelmente de toda a vida, e habita sob o mesmo teto em aparente harmonia e velado ódio, ou alguém que padeceu insuportáveis abusos e responde finalmente da única maneira que sabe?

Passeando, cruzaram a entrada do pátio do estábulo e o caminho de cascalho contíguo à esplanada de grama. A erva estava molhada, mas cheirava a limpo, e o ar não se movia apenas nem incomodava o frio.

— E o que me diz da simples cobiça? - resmungou Tellman. — Um homem golpeia a outro na cabeça para lhe roubar, e eu descubro o culpado e alegremente o encarcero e o vejo na forca. Bom, não felizmente, mas sim satisfeito.

— Eu ficaria muito satisfeito se visse este no cárcere - disse Pitt.

— E enforcado? - perguntou Tellman, olhando-o de soslaio. — Isso não seria próprio de você.

Pitt meteu as mãos nos bolsos.

— Poderia fazer uma exceção no caso dos indivíduos que tramam derrocadas políticas e recorrem à violência aleatória – respondeu. — Não me produz o menor prazer, mas posso compreender a necessidade.

— Primeiro teremos que apanhá-lo - recordou Tellman, e com um ligeiro sorriso meteu também as mãos nos bolsos.

— Quem matou ao Greville? - perguntou Pitt.

— Acredito que foi Doyle - respondeu Tellman. — É quem tinha melhores razões, tanto pessoais como políticas.... ou ao menos a mesma razão política que todos outros, por absurda que me pareça. - Franziu o sobrecenho. O roçar da erva lhe empapava as botas, mas estava habituado a molhar os pés. — Doyle, além disso, tem outro ponto a seu favor: uma paixão que poderia impor-se a seus princípios.

— Moynihan está bastante louco - replicou Pitt, imitando o tom empregado pelo Tellman momentos antes.

Tellman deu de ombros.

— Sua irmã tem mais coragem que ele.

— Estou de acordo. - Pitt assentiu com a cabeça enquanto passavam sob a sombra de um enorme cedro. — E não acredito que matasse ao McGinley. Isso parece mais um acidente. A bomba ia dirigida ao senhor Radley.

— E O’Day? - perguntou Tellman.

— Não pôde matar ao Greville - respondeu Pitt. — McGinley e seu valete o viram em seu quarto à hora em que se cometeu o crime. E ele ouviu a conversa deles sobre camisas.

— Doyle - repetiu Tellman. — Tem lógica. Por isso conhecia McGinley a existência da bomba; são do mesmo bando. Doyle deve ter feito algum comentário e se delatou. Bem isso, ou McGinley planejou o atentado com ele e no último momento pensou melhor e trocou de idéia.

Pitt permaneceu em silêncio. Tellman estava certo. Aquela argumentação tinha lógica, embora ele, por consideração a Eudora, resistisse a aceitar a idéia. Deixaram atrás o cedro, e a erva úmida se converteu em uma superfície uniforme e brilhante sob os raios de sol que transpassavam as nuvens.

— Por desgraça, é impossível demonstrá-lo - acrescentou Tellman com irritação.     —Poderia ser que mentissem todos para proteger-se mutuamente, inclusive a senhora Greville, talvez, apesar de a vítima ser seu marido. Se sabia algo de seus enredos, pouco carinho podia lhe ter. E é irlandesa, não? Católica... e nacionalista.

— Não sei - disse Pitt com tom sério. — Pode ser que ela desejasse a paz tanto como o próprio Greville. - Lançou um suspiro. — Eu gostaria de saber quem era a criada que viu Gracie no corredor.

— Eu não consegui averiguá-lo - admitiu Tellman sem rodeios. — Interroguei a todas, mas nenhuma reconhece ter passado por ali a essa hora.

— Talvez tenham medo.

Pitt contemplou a erva com semblante pensativo. Aproximavam-se da sebe onde terminavam os jardins e começavam os campos de lavoura, que se estendiam até uma alameda, as árvores já quase por completo desfolhadas. Para o poente, um feixe de sol reverberava com resplendor prateado sobre os telhados do vilarejo, e a agulha da igreja se recortava nitidamente contra o céu.

— Porque viu algo? - perguntou Tellman, olhando ao Pitt com ceticismo. — Não disse nada em seu momento e agora está assustada?

— É possível. Ou mais provavelmente não viu nada, mas lhe assusta ver-se envolvida. Nego-me a aceitar que este caso seja sem solução. Há só um limitado número de suspeitos. Dispomos de outros dois dias pelo menos. Averiguaremos a resposta, Tellman.

Tellman esboçou um forçado sorriso.

Pitt se voltou de novo para a elegante casa de Ashworth Hall. Sob a luz outonal, era um edifício realmente formoso. Na fachada oeste, a trepadeira constituía uma mancha vermelha escarlate sobre a quente cor da pedra. Só olhá-la era um prazer.

Deu uma olhada de soslaio ao Tellman e lhe agradou captar em seu semblante uma fugaz satisfação ao comover-se, a seu pesar, ante a beleza da mansão.

Puseram em marcha para a casa, caminhando ambos ao mesmo passo pela erva, seus pés empapados e já frios.

— Gracie, quero que recorde exatamente o que viu no corredor a noite que mataram ao senhor Greville - disse Pitt meia hora mais tarde quando a achou sozinha no quarto de prancha.

Estava muito aflita, como se tivesse estado chorando e seu único desejo fosse partir em silêncio e estar sozinha. Pitt supôs que sua tristeza guardava relação com o afeto que lhe tinha visto mostrar ao jovem valete irlandês, Finn Hennessey. Charlotte tinha advertido ao Pitt que abordasse esse ponto com delicadeza, e lhe incomodou que considerasse necessária a advertência. Depois Pitt reconheceu que em realidade até esse momento não foi muito consciente disso.

Apreciava muito Gracie. Por nada do mundo teria querido ferir seus sentimentos, e se zangou desnecessariamente pelo fato de que Hennessey a fizesse sofrer, embora não fosse essa sua intenção. Não sabia se lhe dizia que conhecia o motivo de seu pesar, ou se seria mais considerado fingir que não se dera conta.

Gracie sorveu o nariz e tentou concentrar-se.

— Já contei ao senhor Tellman o que vi. Não o disse? Como valete, é um inútil. Tampouco é bom policial?

— Sim, é bom policial - respondeu Pitt. — Embora diria que você é melhor como detetive que ele como valete.

— Desta vez de pouco lhe servi. - Fixou o olhar na prancha, apesar de não a ter posto a esquentar nem se incomodava sequer em simular que engomava. — Nem eu nem ninguém. Sinto-o muito, senhor.

— Não se preocupe, Gracie; resolveremos - disse com uma certeza que não sentia. — Me Fale da criada que viu com umas toalhas.

Gracie ergueu a vista, surpreendida. Tinha os olhos debruados, e Pitt soube que tinha chorado.

— Ainda não sabem quem era? A grande boba! Não tem nada que temer. Não fazia nada de mau... Levava só umas toalhas, como disse.

— Mas talvez viu algo ou a alguém - indicou Pitt. — É a única pessoa que não identificamos. Lembre-se, Gracie. No momento não temos muito no que nos apoiar. Quase qualquer um poderia ter colocado a dinamite no escritório do senhor Radley... salvo o senhor McGinley, suponho... e Hennessey.

Gracie voltou a sorver o nariz.

— Sim, suponho - disse com renovado ânimo. — Não sei quem era essa criada, senhor, ou já o teria dito.

— Descreve-a tão exatamente como te é possível.

—Bom, era mais alta que eu, mas isso não é muito dizer. Andava erguida, como com orgulho, e mantinha a cabeça muito reta...

— De que cor tinha o cabelo?

Gracie contraiu o rosto.

— Não recordo lhe haver visto o cabelo. Levava uma touca de renda. Era uma touca grande, não como a minha que fica em cima da cabeça. Lhe cobria a cabeça inteira. Muito grande, se quiser que lhe diga a verdade, mas algumas criadas gostam assim. O cabelo poderia ter sido de qualquer cor.

— Viu na casa a alguma criada com uma touca como essa?

— Sim. A criada da senhora McGinley leva uma assim. - O otimismo desapareceu de seu semblante. — Mas não era ela, ou isso acredito. É estreita de ombros, como uma garrafa, e a criada que eu vi tinha bons ombros, mais retos.

— Era grande ou miúda, Gracie? - prosseguiu Pitt. — Magra ou cheia?

— Me deixe pensar - disse Gracie, fechando os olhos e enrugando o rosto em um esforço por reviver a imagem.

— Começa pela parte superior do corpo - respirou Pitt. — O que recorda mais abaixo da touca e os ombros? Cintura larga ou estreita? Viu-lhe as mãos? Como tinha amarrado o avental? Algo que lhe venha à memória.

— Não lhe vi as mãos. - Manteve os olhos fechados. — Carregava uma pilha de toalhas. Ia a algum quarto de banho, suponho. Não tinha mal a cintura, mas as vi melhores. Não era magra, não realmente magra. Bastante robusta, diria. E agora que penso, não levava o avental bem amarrado. Não como Gwen, ponhamos por exemplo. Ensinou-me a fazer um laço lindo. Seguirei atando isso assim quando voltar a casa. - Olhou ao Pitt iludida.

— Estupendo. -Pitt sorriu. — Impressionaremos a todo Bloomsbury. Assim, não sabia fazer-se bem o nó do avental?

— Não. A senhora Hunnaker desfaz o nó de um puxão a qualquer garota que vê com um laço tão torpe como esse, assim não era criada de Ashworth Hall.

— Bravo! - exclamou Pitt com sincero entusiasmo. — Muito bem. Que mais?

Gracie permaneceu em silêncio, mas manteve uma expressão pensativa, com os olhos muito abertos e o olhar perdido.

— O que? - apressou Pitt.

— As botas - sussurrou Gracie.

— As botas? O que tinham as botas?

— Não levava botas!

— Ia descalça? - perguntou Pitt com incredulidade.

— Não. Como ia descalça? Levava um calçado de tecido, esses sapatos decotados que usam as senhoras. Tinha pego os sapatos de alguém!

— Como sabe? O que viu exatamente?

— Estava de costas a mim, como se fosse entrar por uma porta – respondeu Gracie. — Só vi o lado de um pé e o salto do outro.

— Mas eram sapatos de tecido? De que cor? Por que está tão certa de que não eram botas?

— Porque o pé era de tecido bordado... e o salto era azul. - Abriu os olhos desmesuradamente. — Sim, o salto era azul.

Pitt sorriu.

— Obrigado.

— Serve de algo? - perguntou Gracie, esperançada.

— Sim, isso acredito.

— Bem.

Pitt saiu do quarto de engomar com a sensação de que pela primeira vez desde que foi achado o cadáver do Ainsley Greville tinha uma pista real e tangível. Uma das mulheres fazia parte da conspiração. Não custava acreditar nisso. De fato, tinha sentido, muito sentido. Pitt se sentiu afligido pela suspeita. Eudora Greville, de solteira Eudora Doyle, irlandesa até a medula, tinha ajudado a seu irmão Padraig na luta pela liberdade de seu país do modo que ele considerou mais eficaz. O ódio que sentia pelo Greville devia havê-lo simplificado. E como não ia odiar se tinha a mais vaga idéia do tratamento que tinha dado à Doll? Pitt imaginava o que sentiria Charlotte por qualquer um que tratasse assim ao Gracie. Teria sorte se só lhe golpeava na cabeça e o afundava sob a água.

Eudora teria podido sair escondida de seu quarto com um vestido de Doll e uma touca, conseguida possivelmente no tanque.

A touca grande de renda era a escolha lógica, com vistas a ocultar a viva cor de seu cabelo. Só por esse traço, qualquer a teria reconhecido facilmente. Assim disfarçada e com uma pilha de toalhas, talvez suas próprias toalhas, seria virtualmente invisível no corredor. Era uma possibilidade remota que a visse Gracie, a criada mais observadora, e se fixasse em seus pés e depois além disso o recordasse.

Poderia ter entrado no quarto de banho com o rosto voltado para a parede. Greville não se teria dado conta até que fosse muito tarde. Se a tivesse visto e reconhecido, teria se perguntado que demônios fazia vestida de criada, mas tampouco se teria se assustado, nem pedido auxílio, chamado a atenção ou pronunciado seu nome a gritos.

Mas Padraig não tinha tido possibilidade material de colocar a bomba no escritório do Jack. Pitt sentiu um súbito desalento. Podia havê-lo feito também Eudora? Por que não? A tarefa requeria coragem e destreza, não força física. Por que não ia preocupar se Eudora pelo destino de seu país com o mesmo ardor e ousadia que qualquer político... ou simpatizante feniano?

Devia falar com o Charlotte. Ela poderia dar uma olhada ao calçado das convidadas sem despertar suspeitas, evitando assim que alguém ocultasse ou destruísse intencionalmente os sapatos. Possivelmente sabia já quem era a proprietária. Era possível que recordasse a vestimenta das outras mulheres, qual delas levava uns saltos azuis.

Mas não teve ocasião de falar com ela a sós até uma hora antes do almoço, quando se dispunha a dar um breve passeio com a Kezia, que se mostrou surpreendentemente amável, como se tivesse remetido sua ira. Pitt sentiu curiosidade por saber o que lhe havia dito Charlotte para induzi-la a perdoar por fim ao Fergal. Ele perguntaria mais tarde.

— Charlotte!

Ela se voltou, e quando ia responder, percebeu em seu rosto inquietação, e possivelmente tristeza.

— O que ocorre?

— Descobri algo que devo comentar com você - disse Pitt baixando a voz para que Kezia não o ouvisse. Podia ser ela a falsa criada. Possivelmente confabulada com o Fergal. Os outros dois irmãos. Era uma esperança.

Charlotte olhou a Kezia, já no terraço, justo ante a porta.

— Tenha a bondade de me desculpar - disse. — Devo aproveitar este momento para falar com Thomas. Sinto-o muito.

Kezia sorriu e ergueu a mão em um gesto de compreensão. Logo se afastou pela erva.

— O que ocorre? - repetiu Charlotte imediatamente. — Por sua expressão, adivinho que não é nada agradável.

— Descobrir ao autor de um crime não costuma ser agradável - respondeu Pitt com tom lúgubre. Continuando, advertindo seu olhar de alarme, acrescentou: — Embora tampouco diria que se trata de algo desagradável; de fato, é uma excelente observação de Gracie. Recordou algum detalhe mais a respeito da "criada" que viu no corredor na noite que mataram ao Greville.

— O que? Quem era? - Engoliu em seco e seu semblante mudou. — Não seria... Doll?

— Não - se apressou a responder Pitt. — Não, não era Doll. Essa mulher calçava uns sapatos decotados com peças laterais bordadas e saltos azuis.

— Como? - disse Charlotte, por um momento confusa.

Entretanto em seguida caiu na conta. Pitt soube que também ela pensava na Eudora. Viu um conflito de emoções refletida no rosto do Charlotte: primeiro um ligeiro alívio, quase satisfação, imediatamente depois lástima, e por último circunspeção. Pitt compreendeu o que acontecia com sua mente, ou ao menos isso acreditou. Ficou surpreso. Acaso Charlotte, sob sua aparência de mulher independente, era mais vulnerável do que supunha?

— Já vejo - disse ela com seriedade. — Isso significa que era uma das convidadas com um uniforme de criada em cima do vestido, e que portanto estava implicada.

— Em cima do vestido? - repetiu Pitt, momentaneamente desconcertado.

— Naturalmente - respondeu Charlotte. — Thomas, qualquer mulher demora uma eternidade em tirar um traje de noite. Para começar, abotoam-se todas pelas costas. Podia conseguir um uniforme de criada o bastante folgado para vesti-lo em cima e bastante largo para que cobrisse completamente o vestido. Teria bastado um par de dedos de cetim aparecendo sob a prega do uniforme para delatá-la. É só puro acaso que Gracie entrevisse os sapatos e os recordasse, mas o cetim teria chamado a atenção de qualquer um.

Pitt deveria ter pensado nisso.

— Ou seja, que provavelmente era mais magra do que parecia – prosseguiu Charlotte. — Dois vestidos podem mudar muito a figura. Sapatos de tecido azuis?

— Sim. Recorda que convidada se vestia de azul essa noite?

Charlotte esboçou um débil sorriso.

— Não. Mas possivelmente Emily o recorde. Perguntarei. E se não, teremos que começar a procurar. Já acharemos a maneira de averiguá-lo.

— Sem que ninguém se inteire - advertiu Pitt. — Se suspeitarem algo antes de que demos com esses sapatos, poderiam escondê-los ou destruí-los. A caldeira que alimenta os aquecedores da estufa é facilmente acessível. Se os queimassem, perderíamos uma prova fundamental.

— Em primeiro lugar perguntarei à Emily. E fique tranqüilo, serei discreta. Se me propuser isso, posso sê-lo, sabia?

— Sim, já sei.

Entretanto Pitt a observou com inquietação, embora ignorasse por que.

Possivelmente se devia mais aos sentimentos que tinha percebido nela que ao perigo que podia existir ou seus possíveis equívocos em relação com os sapatos.

— Uns sapatos de tecido com o salto azul -repetiu Emily-. Ou seja, que era uma de nós, e não uma criada. Ah... já vejo. Quer dizer que essa mulher matou ao Greville.

Emily tinha uma expressão perplexa e ao mesmo tempo grave. Charlotte a tinha encontrado quando retornava de dar instruções à cozinheira a respeito da comida do dia seguinte e uma previsão de até quando seguiriam na casa os convidados, apesar de, em realidade, não saber. Nesse momento cruzavam o vestíbulo em direção à galeria com vistas ao jardim de desenho formal, um lugar onde provavelmente não haveria ninguém a essa hora da tarde. Os homens tinham reatado as conversas, se por acaso ainda podia obter-se algum resultado, e as mulheres se dedicavam a seus diversos passatempos. Posto que duas delas eram viúvas recentes, não podia organizar-se nenhuma espécie de divertimento em comum.

Emily abriu a porta da galeria, um salão alongado com fileiras de janelas orientadas ao sul, inundado nesse momento por uma luz oscilante por causa do rápido passagem das

nuvens ante o sol, que aparecia e desaparecia de maneira intermitente.

— Quem se vestia de azul? - insistiu Charlotte, fechando a porta ao entrar.

— Não o recordo - respondeu Emily. — Além disso, uns sapatos azuis podem combinar-se com outra cor se forem os mais parecidos que alguém tem, ou os mais cômodos. Nenhuma delas, exceto possivelmente Eudora, está em situação econômica de comprar sapatos a jogo com cada vestido.

— Como sabe?

Emily a olhou de soslaio.

— Não seja ingênua. Porque sou observadora. Embora você não esteja à corrente, eu conheço muito bem a moda desta temporada e da anterior... e os preços da roupa. E como é restrito uma boa seda para outra troca, e a lã do casaco ou a mistura.

— E quem se estia de azul, pois?

— Me deixe pensar!

—Não acredito que fosse Kezia - disse Charlotte.

— Por que não? Porque lhe é simpática? Me dá a impressão de que tem fibra para fazer uma coisa assim - aduziu Emily. — E duvido, em troca, que Iona McGinley fosse capaz. Vive em um mundo de sonhos e idéias românticas. Imagino-a antes convencendo e instigando a outros.

— É possível - admitiu Charlotte. — Mas isso poderia ser uma pose. Entretanto tenho uma razão mais realista para descartar a Kezia. É uma mulher bastante opulenta. Com um uniforme de criada em cima do vestido seria .... enfim, enorme. Teria chamado a atenção de Gracie o tamanho. Além disso, que uniforme lhe caberia em cima do vestido? Há alguma criada realmente tão robusta?

— Não. Pode ser que tenha razão. Isso deixa a Eudora, como muito provável, e a Iona.

— E Justine - acrescentou Charlotte.

— Justine? Por que demônios ia Justine matar ao Ainsley Greville? - disse Emily com ironia. — Não é irlandesa. Por Deus, conhecia-o desde o dia anterior e planejava casar-se com seu filho!

— Não me ocorre nenhuma razão - concedeu Charlotte. — Duvido inclusive que haja uma grande fortuna em jogo.

— Que idéia tão rasteira! - reprovou Emily, arqueando os lábios em uma careta de aversão.

— Muita gente matou por dinheiro - apontou Charlotte.

Emily passou por cima o comentário, o que expressava claramente sua opinião.

— Um traje de noite azul - repetiu Charlotte.

— Estou pensando! Não vi a Eudora de azul. Prefere as cores quentes e os verdes. Não acredito que o azul fique bem. - Deu de ombros. — Embora isso não quer dizer que não o leve. A pessoa combina às vezes as cores de uma maneira espantosa. Lembra-se do Hetty Appleby, com o cabelo de cor rato e vestido de amarelo? Parecia um queijo.

— Não.

— Francamente, às vezes é muito pouco observadora - disse Emily com irritação.       — Não entendo que ajuda pode lhe oferecer ao Thomas.

— Justine vestia-se de cores creme e azul - respondeu Charlotte.

— Achava que estávamos de acordo em que Justine não tinha a menor razão para fazer uma coisa assim. E agora que lembro, Iona ia de azul, um azul escuro como o mar de noite. Tudo muito romântico. Fergal Moynihan não afastava a vista dela.

— Não a teria afastado levasse o que levasse. Melhor será que demos uma olhada a seu calçado.

— Agora? - disse Emily.

— Por que não?

— Para começar, porque estará em seu quarto. Não vamos interrompê-la e dizer: não tem inconveniente, revistaremos seu guarda-roupa para ver se há um par de sapatos de salto azul, porque suspeitamos que os levava postos quando matou ao Ainsley Greville na banheira.

— Eu não queria...

— Vá você durante o almoço - ordenou Emily. — Eu os manterei a todos ocupados na sala de jantar. Desculpe-se por qualquer razão, uma enxaqueca ou algo assim.

— O que quer dizer com isso de que "os manterá ocupados"? – perguntou Charlotte com tom sarcástico. — Enquanto almoçam, estarão já ocupados.

— Encarregar-me-ei de que ninguém deixe a mesa. Eu não poderia me escapulir por

uma enxaqueca embora a tivesse. Que problema há? Dá-lhe medo?

— Não, claro que não - replicou Charlotte, indignada. — Preferiria que não fosse Eudora, por Thomas, e que não fosse Justine, porque me é simpática.

— Eu preferiria que não fosse ninguém - acrescentou Emily, — porque, em minha opinião, Ainsley Greville era um absoluto descarado. Mas nossas preferências são algo secundário.

— Sei. Procurarei esses sapatos durante o almoço.

Quando Pitt partiu, o passageiro alívio do Gracie se desvaneceu por completo. Só uma coisa boa via naquilo. Agora estava convencida de que a "criada" que tinha visto não era Doll Evans. Não tinha a estatura de Doll, a esse respeito não guardava já a menor duvida. E não acreditava Doll capaz de pegar os sapatos de outra pessoa. Além disso, com uns saltos como aqueles Doll pareceria ainda muito mais alta. Só então tomou consciência do muito que temia até esse momento a possibilidade de que tivesse sido Doll a pessoa que entrou no quarto de banho, golpeou ao Greville na cabeça e o manteve submerso sob a água. Tinha certamente uma razão de peso. Gracie não sentia a menor lástima pelo Ainsley Greville. Qualquer homem que agisse assim com uma moça, e com seu próprio filho, merecia um castigo. Era uma pena que outras pessoas tivessem que sofrer também. Mas possivelmente sempre que alguém sofria arrastava a outros em sua aflição.

Não podia afastar Finn de seu pensamento. A dor dele a envolvia. A decepção era um dos reversos mais difíceis de suportar. Se tão equivocado estava sobre o assassinato da Neassa Doyle e do comportamento dos seus, no que outras coisas se equivocava? Em que outras mentiras acreditava? Se essa pessoa era capaz de assassinar a sua própria irmã, que classe de pessoas eram? Que causa defendiam? Se Finn tinha depositado tanta lealdade neles, como podia confrontar a idéia de que eram indignos dele e de qualquer um? Até onde chegavam as mentiras em tudo aquilo?

Ele mesmo devia estar fazendo-se essas perguntas naquele momento. Certamente se sentia muito só e confuso. Em menos de um quarto de hora, tinha-lhe arrebatado as crenças de toda sua vida, de seu povo, as lealdades, as causas de sua indignação, tudo aquilo que achava ser. Gracie se arrependeu de seu comportamento. Algumas verdades deviam revelar-se com delicadeza, inclusive pouco a pouco.

Não tinha nenhuma tarefa urgente. A roupa de Charlotte se achava em perfeito estado. E Charlotte sem dúvida não desejava que ficasse sentada lhe dando conversa, lhe lendo, lhe fazendo companhia, que eram às vezes as obrigações de uma autêntica criada. Além disso, Charlotte sempre tinha mais ocupações que tempo para as levar a cabo. Mas sua vida, claro, não era como a de uma dama. Gracie acharia aborrecido servir em uma casa de verdadeiros aristocratas depois de sua apaixonante experiência com os Pitt. Como podiam resistir essa monotonia Gwen, Doll e todos os criados em geral?

Devia ir ver o Finn e fazer as pazes com ele. O pobre necessitaria toda a amizade que pudesse lhe oferecer. E desejava deste modo desculpar-se. Tinha agido de uma maneira irrefletida.

A decisão estava tomada. Gracie saiu do quarto de prancha e foi em busca do Finn.

Não se achava em nenhum dos lugares onde normalmente desempenhava seus deveres. Preferia não perguntar por ele. Era já bastante desagradável imaginar que outros conheciam seus sentimentos. Produzia-lhe uma profunda vergonha. Sabia o quão observadora que ela mesma era com relação à conduta da pessoa. Tinha muitas vantagens trabalhar, como era seu caso, com apenas outra criada externa que se encarregava das tarefas pesadas. Dispunha-se de menos companhia mas de mais intimidade, e a maior parte do tempo não se estava pendente de outros. Em conjunto, era melhor assim.

Depois de procurar Finn durante três quartos de hora, dentro e fora da casa, só ficava um lugar por olhar, seu quarto. Nunca tinha estado ali, naturalmente. Mas talvez naquelas circunstâncias extraordinárias fosse o lugar mais indicado.

Embora os surpreendesse juntos ali dentro, Charlotte não a despediria quando lhe explicasse o motivo de sua visita. E McGinley não podia despedir Finn porque estava morto, o pobre. No pior dos casos, teriam que agüentar os cochichos e risadas de outros criados. E inclusive isso seria mais suportável que deixar Finn sofrer sua perda e decepção sem lhe dizer quanto o lamentava.

Cautelosamente, lançou uma olhada ao redor para comprovar se havia alguém antes de subir a toda pressa pela primeira escada. A criadagem fixa do Ashworth Hall se alojava nos quartos situados mais perto da escada; os criados de maior categoria se reservavam os melhores, lógicamente. Os lacaios, o engraxate e outros de posição equivalente ocupavam os menores e afastados. Os valetes e outros criados de visita estavam no piso superior, debaixo do telhado.

Mas qual era o quarto de Finn? Gracie se deteve para pensar. No refeitório tudo se organizava por ordem de precedência. Os criados entravam para comer, sentavam-se e recebiam suas porções segundo a ordem de importância de seus senhores. Isso convertia ao senhor Wheeler no criado de maior status nesse piso. Pertencia ao senhor Greville, que presidia aquela deplorável conferencia. Quem era o seguinte? Devia pensar depressa. Não convinha que a descobrissem ali. Ninguém acreditaria que era tão idiota para chegar precisamente a aquele corredor por pura desorientação.

O senhor Doyle e o senhor O’Day. Isso significava que Finn e o valete do senhor Moynihan ocupavam os quartos posteriores e mais à frente estava provavelmente Tellman. A idéia de entrar por engano na habitação do Tellman e encontrá-lo dentro bastou para que lhe formasse um nó na garganta que mal lhe permitia respirar.

Possivelmente não valia a pena correr o risco, depois de tudo?

Vamos, não seja covarde!, pensou. Atreva-se. Prova com uma. Não fique aí parada como uma das estátuas do jardim. Bata.

Não houve resposta.

Com as mãos tremendo, experimentou na seguinte porta.

Depois de uns instantes de silêncio, ouviram-se uns passos.

O coração lhe pulsava com tal força que parecia lhe soar nos ouvidos.

A porta se abriu. Era Finn.

Graças a Deus! E chegados a esse ponto, o que tinha que dizer?

— Sinto muito! - exclamou.

— Gracie! - disse Finn, desconcertado e momentaneamente confuso, sem saber o que dizer ou fazer.

— Lamento lhe ter contado do Chinnery - explicou. Se não o dissesse imediatamente, talvez mais tarde lhe faltasse coragem. — Não deveria ter soltado isso assim, sem mais. Possivelmente nem sequer deveria te haver falado disso. Uma só mentira não faz injusta toda a causa.

Finn a olhou com perplexidade.

Gracie não podia acrescentar nada mais. Não estava disposta a negar a verdade, nem ele tinha direito a esperá-lo. Talvez não tivesse sido boa idéia ir vê-lo. Mas Finn parecia muito abatido. Devia haver algo que pudesse fazer por ele. Alguma utilidade devia ter o amor.

Um sorriso começou a desenhar-se lentamente nos lábios do Finn.

— Melhor será que entre. — Afastou-se para deixá-la passar. — Se a vêem aqui, terá problemas.

Gracie hesitou apenas um instante. Entre eles ficavam ainda coisas por dizer. E Finn tinha razão. A aquela hora da tarde qualquer um podia aparecer ali de repente. Se a surpreendiam, resultaria muito embaraçoso. Entrou no quarto. Era muito simples, como o dela, um espaço cômodo para uma curta estadia, quase acolhedor: uma cama com lençóis e mantas, uma cadeira de madeira, cortinas de algodão na janela do teto abobadado, uma bacia e uma jarra, um pequeno armário para as jaquetas e calças, uma cômoda com três gavetas para a roupa interior e todo aquilo que pudesse render-se. Uma palhinha de nós cobria parte do chão. Completavam o mobiliário uma pequena escrivaninha encostada a parede da direita e, frente a ela, outra cadeira de madeira. Sobre a escrivaninha havia uma folha com algo escrito - possivelmente uma breve carta a julgar por sua disposição no papel - e ao lado um envelope, um livro aberto, uma carteira de couro, um pequeno montão de papel azul e umas quantas velas.

Finn permaneceu imóvel, contemplando-a.

— Não me importa o que digam dos irmãos Doyle - disse com certa frieza. — Possivelmente se acusou erroneamente ao Chinnery, mas o espírito é o mesmo. A fome e a tragédia são autênticas.

Voltou-se para Gracie como se ela o tivesse negado e a olhou com severidade, o queixo erguido, a mandíbula tensa.

Devia ter paciência, disse-se Gracie. Devia recordar sua dor. Para ela era mais fácil conservar a calma. Ninguém tinha desbaratado suas ilusões em torno das pessoas que mais admirava e queria, a pessoa a que devia sua identidade, a pessoa a quem tinha dedicado tempo e afeto.

Gracie respirou fundo e disse:

— Não o duvido. Se dava a entender algo diferente, precipitei-me ao falar.

Finn se relaxou um pouco.

Gracie devia procurar não ceder até tal ponto que ele a considerasse fraca ou desleal para com os seus. Essa atitude não despertaria nele a menor admiração, nem ela pretendia adotá-la. Era muito doloroso sentir apreço por alguém que se achava do outro lado de tal divisão de crenças, de lealdades que não podiam já mudar. Havia muitas dívidas, muitas experiências compartilhadas, muitas perdas sofridas em comum pelas quais oferecer consolo. Como salvariam tantas diferenças o senhor Moynihan e a senhora McGinley?

— Não entende nada - disse Finn pensativamente. — Não pode entendê-lo, e não é sua culpa. Teria que ser irlandesa para havê-lo visto, o sofrimento e a injustiça.

— Todo mundo sofre, de um modo ou outro - replicou Gracie. — Não só os irlandeses passam fome e frio, ou têm medo, ou se sentem sós, ou ficam sem proteção, ou são encarcerados por delitos que não cometeram ou não puderam evitar cometer. Essas desgraças ocorrem em todas partes. Às vezes inclusive os cavalheiros ingleses são enforcados por algo que não fizeram.

Finn a olhou com manifesta incredulidade.

— Lhe asseguro - disse Gracie com apresso. — Trabalho para um policial. Sei coisas das quais você não está informado. O sofrimento não é algo exclusivo dos irlandeses, sabia?

O rosto do Finn se escureceu.

— Não digo que não tenha direito a lutar por uma vida melhor - prosseguiu Gracie — nem que careça de importância que a Irlanda consiga a liberdade para organizar-se como quer. Mas e as pessoas como o senhor O’Day e o senhor Doyle? Também eles perseguem uma situação justa. Você não desejaria algo injusto, não é?

— A liberdade da Irlanda não é algo injusto - respondeu Finn, esforçando-se por conter a ira. — Me escute, Gracie - sentou-se na beira da cama e indicou a cadeira convidando-a a tomar assento. Ela aceitou. — Não pode entender em uma semana, nem em um ano, a usurpação da terra e as matanças que se produziram na Irlanda durante séculos, ou os motivos pelos quais o ódio está tão enraizado. – Com semblante tenso e aflito, meneou a cabeça em um gesto de negação. — Eu não posso fazer lhe compreender isso. Teria que vê-lo para acreditar que há pessoa capaz de tratar desse modo a outros seres humanos, a pessoas que são como eles, que têm as mesmas necessidades que eles, que trabalham e dormem e querem a seus filhos como eles, o que compartilham seus sonhos e seus temores respeito ao futuro. É desumano, mas ocorreu durante centenas de anos... e continua ocorrendo. - Inclinou-se ainda mais. Falava com voz colérica e peremptória. — Devemos acabar com essa situação para sempre, custe o que custar. O passado nos exige que não pensemos só em nós, mas sim pensemos em nossos filhos e nos filhos de nossos filhos.

Gracie guardou silêncio, olhando-o atentamente.

— Escuta, Gracie. - Tremia-lhe a mão de emoção. — Tudo aquilo que é precioso supõe um alto custo. Se desejamos consegui-lo, devemos estar dispostos a pagar o preço.

— Certamente - disse Gracie com voz calma, mas as palavras do Finn começaram a inquietá-la mal expressou seu assentimento.

— A história é às vezes cruel, Gracie - continuou Finn sem perceber a hesitação no rosto dela. Sorriu, e seu olhar se tornou menos pesaroso. — Devemos defender nossas crenças com coragem, e isso nem sempre é fácil, mas não são os covardes quem originam as grandes mudanças.

Pessoalmente, Gracie pensava que as vezes os originavam homens sem consciência, mas o calou.

— Obrigado por vir - disse Finn afetuosamente. — Brigar com você me deixou com muito mal sabor na boca. - Estendeu-lhe a mão.

Gracie lhe ofereceu a sua, e Finn a estreitou com seus dedos fortes e ternos. Atraiu- a para si, e ela não ofereceu resistência. Beijou-a docemente nos lábios e a deixou ir lentamente. Gracie voltou para a cadeira com uma sensação de paz e felicidade. A discussão não tinha terminado. Pensava ainda que algumas das idéias do Finn eram equivocadas, mas aquela sensação era em extremo agradável, e o resto podia esperar. O afeto era o importante. Sorriu-lhe e retirou os dedos de entre os dele para sentar-se de novo. Apoiou a mão na mesa e olhou de esguelha quando, sem querer, deslocou o papel azul e as velas.

— Não toque isso! - exclamou Finn, e ficou em pé de um salto com expressão tensa e severa.

Gracie o olhou desconcertada e ficou imóvel. Não o tinha visto nunca naquele estado, tão cheio de ira e de algum outro sentimento, algo mais alarmante e estranho. Gracie havia tocado duas das velas. Não tinham as duas o mesmo tato. Uma era de cera, como as velas a que estava acostumada. A outra era diferente, ligeiramente pegajosa.

— Deixa isso - disse Finn entre dentes.

— Perdão - se desculpou Gracie, estremecendo. — Não o fiz com má intenção.

— Não.... não, claro. - Finn se esforçou por achar algo que dizer, impulsionado por uma devoradora emoção que tentou em vão conter. — É só... você... não deveria...

Um formigamento de terror percorreu o corpo de Gracie. Possivelmente aquilo não era uma vela, como tinha suposto. Para falar a verdade, não tinha visto a mecha.

Seria esse acaso o aspecto da dinamite?

Gracie olhou Finn no rosto e soube com funda amargura que estava certa. Se tivesse sido uma simples vela, o fato de vê-la, tocá-la, não os teria convertido de repente em dois desconhecidos.

Gracie cruzou os braços, ocultando inconscientemente suas mãos trêmulas.

Finn continuava observando-a. Devia ter percebido sua mudança de expressão. Adivinhava possivelmente a horrenda suspeita que palpitava em sua mente?

— Gracie?

— Sim.

Tinha respondido com excessiva urgência. Gracie se deu conta no instante mesmo em que a palavra saiu de sua boca. Também ele o tinha notado. Finn guardava ali o material para fabricar a bomba que tinha instalado no escritório e matado ao Lorcan McGinley, seu próprio senhor. Como podia ter intervindo em semelhante traição? Era seu objetivo matá-lo a ele e não ao senhor Radley?

Quase sem dar-se conta, Gracie se levantou.

— Tenho que ir - disse com voz entrecortada. Engoliu a saliva e tomou ar. Dirigiu-se apressadamente para a porta e só no último momento, com a mão já na maçaneta, recordou que devia voltar-se e explicar o motivo de sua fuga. Valia qualquer desculpa, salvo a verdade. — Se alguém me achar aqui, colocaremo-nos os dois em uma confusão. Só queria me desculpar. Não deveria ter lhe falado desse modo.

Finn ficou em pé e se aproximou dela.

— Gracie...

Ela esboçou um forçado sorriso. Sabia que era falso, e Finn também deveu notá-lo. Mas tinha que sair dali... imediatamente... naquele mesmo instante. Em sua mente reinava o caos. Não podia dar crédito ao que seus olhos tinham visto; era muito horrendo. Devia haver outra explicação, mas não podia ficar para lhe perguntar.

Abriu a porta com as mãos trêmulas. Tropeçou e se golpeou contra o batente.

— Gracie! - disse Finn, e a seguiu.

Ela não voltou a vista atrás. Correu escada abaixo até o patamar do primeiro piso e logo desceu o outro lance. Já no corredor, quase chocou com Doll.

— Perdão - se desculpou com voz abafada. — Não queria pisar em você.

— Gracie! Encontra-se bem? - perguntou Doll com preocupação. — Tem muito mau aspecto.

— Dói-me a cabeça - respondeu Gracie, levando a mão à fronte como se realmente tivesse enxaqueca. Ouviu uns passos a suas costas. Devia ser Finn. Mas, com Doll ali, não se aproximaria. — Irei pôr... um pouco de extrato de lavanda ou algo assim. Uma infusão, possivelmente.

— Eu lhe prepararei - ofereceu Doll imediatamente. — Não estranho que tenha dor de cabeça com tudo o que está ocorrendo. Me acompanhe. Eu cuidarei de você.

Não teria aceito uma negativa.

Gracie aceitou, consciente de que evitar o oferecimento acabaria pouco menos que em uma discussão, e as idéias formavam redemoinhos de tal modo em sua cabeça que era incapaz de raciocinar. Obedientemente, seguiu Doll até a pequena despensa onde se achavam o fogão e o bule. Não viu ninguém no corredor. Sentou-se na cadeira enquanto Doll trabalhava com o chá.

O que tinha feito Finn? Como tinha conseguido a dinamite? Tinha fabricado ele mesmo a bomba? Não tinha verificado Pitt que não esteve no escritório? Pitt tinha que ter pensado nessa possibilidade; nunca lhe escapava nada. E Finn não se dispôs em oferta para matar ao senhor Greville. O senhor O’Day o tinha visto ou ouvido durante todo o quarto de hora em que se produziu o assassinato.

O bule começou a assobiar.

Devia ordenar seus pensamentos, esclarecer suas idéias a respeito. A cabeça lhe palpitava como o rufo de um tambor. Provavelmente Finn colaborava com alguém. O senhor Doyle era a opção mais lógica. Pertenciam ao mesmo bando.

— Gracie?

Não ouviu a voz de Doll. Devia haver outra explicação. Finn não conceberia por própria iniciativa atos tão violentos e cruéis. Não era dessa espécie de pessoas. Alguém muito mais malévolo o utilizava, contava-lhe aquelas histórias falsas sobre gente como Neassa Doyle e Drystan O’Day, e o induzia a cometer atrocidades sem compreender as conseqüências.

— Gracie?

Ergueu a vista. Doll se achava ante ela com uma xícara na mão. Rugas de preocupação sulcavam sua fronte.

— Obrigada - disse Gracie, e pegou a xícara com cuidado. Estava muito quente e cheirava a margaridas.

— É camomila - explicou Doll. — É boa para a dor de cabeça e desgostos. Realmente tem muito má cara. Será melhor que depois vá descansar um momento. Se quiser, eu atenderei à senhora Pitt por você em caso de que necessite algo.

Gracie se obrigou a sorrir.

— Fique tranqüila. Em seguida me porei bem. É só que... toda essa... toda essa gente odiando-se acaba por deprimir a uma pessoa. Nunca se sabe quem merece confiança ou quem trama em segredo algo horrível.

— Sei. - Doll se sentou na outra cadeira com uma xícara na mão. — Penso que não deveríamos confiar em ninguém, salvo possivelmente o senhor Pitt.

Gracie assentiu com a cabeça, mas ao mesmo tempo tomou a decisão de não informar ainda ao Pitt do que achava ter visto na habitação do Finn. Possivelmente estava equivocada. Em realidade, ela não sabia nada a respeito da dinamite. Talvez só tinha imaginado a expressão no rosto do Finn.

Tomou a camomila a goles. Estava muito quente, mas tinha um agradável sabor.

Gradualmente começou a sentir-se melhor.

Entretanto foi incapaz de sacudir o medo em toda a tarde. Devia contar ao Pitt? Possivelmente correspondia a ele determinar se aquilo era ou não dinamite, e se Finn sabia o que trazia entre mãos, ou pelo contrário alguém estava utilizando-o. No fim de contas, Finn tinha reagido com igual consternação que todos outros ante a morte do senhor McGinley. A isso Gracie constava. Tinha-o visto em seu semblante. E se tivesse sabido que a bomba ia explodir, não teria ficado tão perto da porta do escritório.

Nada daquilo tinha a menor lógica.

Achava-se no tanque clareando umas anáguas quando ergueu a vista e viu o Finn na porta. Nesse momento não havia ali ninguém mais. Gwen tinha estado um momento mas partira já, e as lavadeiras tinham ido tomar o chá. Gracie tinha escolhido essa hora de propósito, porque não desejava falar com ninguém. De repente desejou com toda sua alma que houvesse ali alguém mais, qualquer um.

— Gracie! - Finn deu um passo à frente. Sua expressão era sombria e preocupada. — Temos que falar.

— Aqui não - sussurrou Gracie. Engoliu a saliva, dando-se conta com tristeza de que realmente tinha medo dele. E era um medo físico, não o vago temor a que ele se negasse a aceitar a verdade ou tratasse de lhe explicar mais mentiras. — Poderia entrar alguém.     - Gracie percebeu o tom agudo de sua própria voz, quase um grito. — As outras garotas saíram só um momento para tomar o chá. Em seguida voltarão.

— Não - respondeu Finn com calma enquanto se aproximava dela. — Se foram faz só cinco minutos, e se tomam um descanso de meia hora, mais inclusive se não tiverem muito trabalho pendente.

Finn deu uma olhada ao redor e viu só algum ou outro objeto de roupa interior, e nenhum lençol ou toalha. As peças grandes já as tinham lavado, e como soprava um forte vento, secara-se tudo rapidamente e o haviam já entrado e pendurado dos trilhos. O ar cheirava a algodão limpo.

— Sim, voltarão de um momento a outro - mentiu Gracie, agarrando uma anágua molhada e retorcendo-a com toda sua força como se pudesse lhe servir de amparo.

Finn continuava aproximando-se. Percebia-se em seu rosto uma estranha expressão, como se aborrecesse o que tinha que fazer mas não visse maneira de evitá-lo.

Gracie retrocedeu sem desprender-se da anágua, dura e apertada de tão retorcida. Possivelmente teria sido melhor não escorrê-la?

— Só quero falar com você - assegurou Finn com semblante sério.

Gracie rodeou os tanques de madeira em direção à porta do fundo, além das caldeiras com a água ainda morna.

Finn continuava avançando.

Gracie pegou o enorme pau que empregavam as lavadeiras para remover os lençóis na água.

— Gracie! - exclamou Finn, doído, como se lhe tivesse golpeado já.

Aquilo era absurdo, pensou Gracie. Deveria ter fingido que não tinha visto nada e comportar-se com certa dignidade. O que imaginava? Que Finn ia estrangulá-la ali no tanque?

Sim, precisamente isso se imaginava. Por que não? O senhor Greville tinha morrido afogado em sua própria banheira e o senhor Radley teria perecido sentado ante sua própria escrivaninha se a bomba não tivesse matado antes ao senhor McGinley.

Gracie lhe arrojou o pau, deu meia volta e fugiu entre o repico de seus próprios passos contra o chão de pedra e o revôo da saia, que lhe enredava nas pernas, entorpecendo-a. Embora não se voltasse para comprová-lo, sem dúvida ele a perseguia. Ouvia seus passos, ouvia sua voz que a chamava. O que faria Finn se a apanhava? Estava furioso e ofendido. Notava-o em sua voz:  Gracie não sabia que pudesse correr tão depressa. Seus pés deslizavam pelo linóleo do corredor. Dobrou uma curva, escorregou e topou com a parede. Agitando os braços, recuperou o equilíbrio e reemprendeu a carreira, chocando imediatamente contra alguém. Devia ter lançado um grito de terror.

— Ei! O que lhe passa? Qualquer um diria que a persegue o próprio diabo!

Era uma voz com acento irlandês. Um homem. E a segurava.

Gracie levantou o olhar. Quase lhe parou o coração. Era o senhor Doyle. Tinha-a pegado pelos pulsos e sorria.

Fez virar bruscamente a anágua úmida que pendia de sua mão e alcançou ao Doyle com ela em um lado da rosto. A seguir lhe puxou um chute na tíbia com todas suas forças.

Ele a soltou com um grito abafado de dor e estupefação.

Gracie seguiu adiante, investiu a porta forrada de pano verde e entrou no vestíbulo.

Um lacaio a olhou com expressão de assombro.

— Encontra-se bem, senhorita? - perguntou com o sobrecenho franzido.

Gracie levava ainda na mão a anágua úmida. Tinha perdido a touca e devia ter as faces acesas.

— Sim, perfeitamente - respondeu com toda a dignidade possível. — Obrigada, Albert.

Respirou fundo e decidiu subir ao quarto de Charlotte. Provavelmente era o único lugar onde não correria perigo.

 

Não foi fácil dar com os sapatos de tecido com os saltos azuis. Charlotte deixou a mesa durante o almoço pretextando uma indisposição, sem concretizar qual. Assim outros suporiam que eram moléstias de estômago e não perguntariam muito a respeito. Por outra parte, ninguém se sentiria obrigado a acompanhá-la. Para essa espécie de coisas, a pessoa desejava sobre tudo intimidade.

Logo que se achou a uma distância prudencial da sala de jantar, pôs-se a correr pelo vestíbulo e escada acima. Um lacaio a observou com preocupação mas guardou silêncio. Não era ninguém para pedir explicações aos convidados por suas excentricidades.

Não era Kezia a mulher que Gracie tinha visto no corredor, disso Charlotte estava quase totalmente certa. Poderia ter sido qualquer das outras três convidadas. Suas suspeitas recaíam na Eudora. Tinha um motivo para cometer o assassinato que toda mulher entenderia.

Charlotte sabia já em que quarto se alojava cada qual. Começaria pela Eudora, que, graças a Deus, tinha aceitado almoçar na sala de jantar com outros. Teria sido um lamentável contratempo que alguma das duas recentes viúvas tivesse decidido ficar em seu quarto, como poderiam ter feito sem necessidade de maiores desculpas.

Para Emily tinha representado um considerável esforço persuadi-las. Não obstante tinha grandes dotes para a diplomacia e sem dúvida estava plenamente convencida da conveniência de resolver o caso no menor prazo possível. Custava-lhe ainda manter a compostura e não sucumbir a seus temores pela segurança e o futuro do Jack. Ao menos daquele modo dispunha de algo no que derrubar suas energias físicas e mentais, uma válvula de escape.

Charlotte bateu na porta da Eudora se por acaso Doll estivesse ali.

Não houve resposta.

Abriu a porta e entrou, indo direita ao quarto de vestir. Não tinha tempo mais que para localizar o armário onde se achava guardado o calçado da Eudora. Olhou no primeiro e viu uma fileira de vestidos. Horrorizava-lhe revistar o guarda-roupa de outra mulher nas costas dela. Eram todos lindos, de pesada seda e tafetá, de renda de excelente qualidade, de suave lã e tecido de gabardina. De um mesmo cabide pendiam uma capa de viagem e uma deliciosa estola de pele. As cores teriam sentado perfeitamente em Charlotte. E com toda segurança nenhum daqueles objetos era emprestado! Sentiu uma pontada de inveja.

Em seguida compreendeu o absurdo de sua reação. Que mulher desejaria o vestuário de uma rainha ao preço de estar casada com um homem como Ainsley Greville?

O calçado se achava no ralo situado debaixo dos vestidos e nas prateleiras laterais. Como Charlotte previa, todos os sapatos e botas eram de cores terra e tons quentes; não havia nenhum par azul ou de saltos azuis.

Charlotte não soube se sentia ou não alivio. Isso significava que a mulher disfarçada de criada era Iona ou Justine. Preferia que fosse Iona.

Andar farejando nos dormitórios alheios era repugnante. Tudo ali era muito pessoal. Só no dormitório se mostrava um tal como era, despojava-se de seus segredos e falsas aparências, baixava o guarda e se abandonava a sua própria vulnerabilidade, nu em todos os sentidos. Na habitação da Eudora flutuavam um ligeiro aroma de lírios e um aroma mais intenso. Devia ser seu perfume preferido.

Charlotte foi até a porta, abriu-a e saiu com cautela, dando-se conta imediatamente da inutilidade de tais precauções. Se alguém via mover-se a porta, descobriria também a ela. Não existia desculpa possível. Nada justificava sua presença no quarto de Eudora.

No corredor não havia ninguém.

Assim que Charlotte saiu, Doll dobrou a esquina do corredor. Estava mais formosa que em ocasiões anteriores e sorria pela primeira vez. Mantinha a cabeça erguida e se movia com soltura. Charlotte ignorava o que tinha provocado tal mudança, mas seu inicial sobressalto deu passagem em seguida a uma repentina satisfação. Se alguém naquela casa merecia um pouco de alegria, essa era Doll.

— Boa tarde, senhora Pitt - saudou Doll jovialmente. — Posso ajudá-la? Necessita de algo?

Charlotte estava longe de seu quarto e a essas alturas não podia pretextar que se perdera. Procurou uma mentira acreditável, mas não a achou.

— Não, obrigada - se limitou a dizer, e se encaminhou apressadamente para o extremo do corredor e o patamar.

Aquilo era um problema. Queria inspecionar o quarto de Justine, mas Doll continuaria nas imediações. Abaixo não demorariam para terminar de almoçar, e Emily não podia reter os convidados na sala de jantar indefinidamente. Revistar o quarto da Eudora lhe tinha levado um bom tempo, tempo suficiente para acabar de servir e comer ao menos um prato.

Não podia permitir-se vacilações. Valia mais que experimentasse primeiro no quarto da Iona.

Deu uma olhada ao redor para certificar-se de que não havia à vista algum outro criado; depois abriu a porta e entrou. As cortinas com estampado de flores estavam abertas e o sol banhava o quarto. As escovas e outros objetos pessoais do Lorcan, tais como as abotoaduras, tinham desaparecido da cômoda, mas quando Charlotte examinou os armários, viu que sua roupa e suas botas continuavam ali.

Assaltou-lhe uma desagradável sensação, um aviso da proximidade entre a vida e a morte. Em um só instante uma dava passagem à outra. Na manhã anterior Lorcan estava ainda vivo. Tinha demonstrado mais coragem e altruísmo do que Charlotte lhe teria atribuído. Agora era já tarde para conhecê-lo, para descobrir ao homem que se escondia atrás de sua crispada aparência e as virtudes que se ocultavam atrás dos veementes ódios e ambições. Parecia frio, e entretanto não podia sê-lo.

Como devia sentir-se Iona nesse momento? Seria aquilo o princípio do fim de seu namorico com o Fergal Moynihan? Sem dúvida dava a impressão de que tinha surgido entre eles uma repentina frieza, que tinham tomado consciência das diferenças que os afastavam e que nem a mais profunda fascinação conseguiria salvar.

Charlotte olhou no seguinte armário. Continha vestidos, mas não tantos como imaginava. Havia-os azuis e verde escuro, e um de uma magnífica cor arroxeada que despertou sua inveja. Eram cores chamativas, muito favorecedoras para uma mulher com o cabelo escuro e os olhos azuis. Iona sabia como tirar partido de sua beleza. Observando seus xales e blusas, Charlotte descobriu que sabia também dar variedade a um vestuário relativamente escasso.

Havia três pares de botas, marrons, negras e bege, e um par de sapatos de um verde intermediário.

Fechou a porta do armário e deu uma olhada ao redor. Não viu nada mais de interesse. Chamou sua atenção o cesto de papéis, um belo objeto de vime com um motivo floral em um lado. Continha os fragmentos de uma folha de papel rasgada. Envergonhada pelo que fazia, Charlotte se agachou e pegou dois ou três pedaços.

Examinou-os. Era uma conduta indesculpável. Formavam parte de uma carta de amor do Fergal. Liam-se só umas quantas palavras, mas a intenção era inconfundível.

Ruborizada, atirou-os de novo ao cesto de papéis. Kezia teria que demonstrar uma grande generosidade se seu coração o permitisse. Possivelmente Fergal teria aprendido algo sobre aquela espécie de teimosias, o amor e a perda, quão fácil era sucumbir aos desejos, e a necessidade de compaixão quando a pessoa mesmo chegava o momento da solidão e derrota.

Charlotte saiu ao patamar. Só ficava por revistar o quarto de Justine. A menos que a mulher disfarçada de criada fosse Kezia - apesar das dúvidas de Charlotte-, tinha que ser Justine.

Olhou com cuidado a esquerda e direita para comprovar se Doll continuava por ali. Felizmente não estava.

Charlotte correu pelo corredor e, depois de bater na porta, abriu e entrou. Uma vez no interior, fechou imediatamente.

Era um quarto de menores dimensões, preparado precipitadamente para uma convidada imprevista. O reduzido quarto de vestir permitia com muita dificuldade guardar os armários, a penteadeira, uma mesita de centro, uma poltrona baixa e uma lareira.

Charlotte olhou no primeiro armário. Havia vários vestidos, todos de boa qualidade e comprados aparentemente nos últimos dois anos. Eram de cores diversas, mas todos apropriados para uma jovem solteira. Embora Justine não tivesse família, era claro que sua situação era abastada. Seus pais, ou algum outro parente, tinham-na deixado bem provida.

Deu uma olhada ao calçado, também de excelentes confecção e estilo. Não havia nenhum par de sapatos de saltos azuis.

Charlotte não podia permanecer ali mais tempo. De um momento a outro os   convidados abandonariam a mesa e a surpreenderiam ali. Tomariam por uma ladra ou, no melhor dos casos, por uma intrometida que bisbilhotava entre a roupa e os objetos pessoais da pessoa.

Pensando melhor, possivelmente fosse preferível que a considerassem uma ladra.

Saiu ao corredor, e ao chegar ao patamar, achou-se com Justine, que subia pela escada.

— Está já melhor? - perguntou Justine com atitude solícita.

Charlotte teve a sensação de que um intenso rubor tingia suas faces.

— Sim.... sim, obrigada - balbuciou. — Muito melhor. Nem... nem sequer estava tão mal como achava. Possivelmente fazia muito calor na sala de jantar. Necessitava um... pouco de água.

Esse era um comentário absurdo. Havia água de sobra na mesa. Em nenhum outro lugar a teria encontrado mais facilmente. E a temperatura da sala de jantar não era muito menos excessiva. Sua culpa devia ser tão visível como uma mancha de vinho tinto em uma toalha branca.

Justine sorriu.

— Me alegro. Provavelmente se deve só às desagradáveis emoções dos últimos dias. Estou certa de que afetaram a todos de um modo ou outro.

— Sim - disse Charlotte, agradecida. — Sim, isso terá sido.

Justine seguiu seu caminho. Movia-se com extraordinária graça, as costas erguidas, a cabeça erguida, um muito leve balanço da saia. Um lado de seu vestido roçou uma das cadeiras do patamar. Charlotte, que a observava afastar-se, viu fugazmente o salto de um de seus sapatos, um salto azul. Justine levava um vestido de cor cinza fumaça azulada com um discreto estampado algo mais escuro. Os sapatos azuis combinavam perfeitamente. Sua primeira noite no Ashworth Hall, a noite em que Greville foi assassinado, vestia-se também de azul.

Charlotte ficou gelada, como se realmente estivesse indisposta e a ponto de desvanecer-se. Acaso se tinha equivocado Gracie? Afinal, tinha visto o salto só por um instante. Era possivelmente cinza ou verde? A luz de gás era muito enganosa. Alterava as cores. Todo mundo sabia, em especial as mulheres. Algumas cores assentavam maravilhosamente à luz do dia, e em troca com luz artificial davam a uma pessoa o aspecto de uma anciã de cem anos e, além disso, com icterícia.

Continuava imóvel no mesmo ponto quando Emily subiu pela escada.

— O que ocorre? - perguntou Emily. — Noto você com muito má cara. Não estará realmente doente, nã é?

— Não. Vi os sapatos...

Uma mescla de emoções se refletiu no rosto de Emily: satisfação, medo, inquietação.

— Estupendo! De quem são?

— De Justine. Leva-os postos.

Emily a olhou atônita.

— Tem certeza?

— Não... sim. Não, não tenho certeza. Mas sim tenho, porque não podem ser de nenhuma outra.

Emily guardou silêncio. de repente pareceu tão triste e doída como a própria Charlotte.

— Devo informar ao Pitt - disse Charlotte ao cabo de um momento. — Lamento que seja ela.

— Por que? - murmurou Emily, meneando a cabeça em um gesto de pesar.

— Porque me é simpática... - respondeu Charlotte languidamente.

— Não... Pergunto por que ia ela a matar ao Greville - esclareceu Emily. — Não vejo o menor sentido.

— Eu tampouco. - Charlotte ficou por fim em movimento. — Mas leva os sapatos, e isso vou dizer a Pitt.... simplesmente que leva os sapatos.

Assim que Charlotte entrou no salão, Pitt ficou em pé, desculpou-se ante outros e se aproximou dela com semblante preocupado.

— Encontra-se bem? - perguntou em um sussurro. — Está muito pálida. Localizou os sapatos?

— Sim...

— E então? Onde estão? - Pitt também empalideceu, acentuando-se seu aspecto de olheiras e abatido por falta de sono. — São da Eudora?

Charlotte esboçou um forçado sorriso. Pessoalmente, teria preferido que fossem da Eudora.

— Não.... são de Justine. Leva-os postos neste mesmo momento.

Pitt a olhou com estupefação.

— De Justine? - disse, repetindo exatamente as palavras do Emily. — Está segura? Não lhe vejo o menor sentido. Por que demônios ia Justine matar Ainsley Greville? Acabava de conhecê-lo... - interrompeu-se.

Padraig Doyle se afastou da lareira e se aproximou deles.

— Encontra-se bem, senhora Pitt? - perguntou.

— Sem dúvida será uma indisposição passageira - se apressou a responder Pitt, rodeando ao Charlotte com um braço. — Acredito que será melhor que suba ao quarto e se deite um momento. Provavelmente está desfalecida por causa da longa viagem a Londres de ontem. Se tiverem a bondade de nos desculpar a ambos...

Com um encantador sorriso, guiou ao Charlotte para a porta, e Kezia lhe desejou cortesmente um pronto restabelecimento.

— Dito assim, parece que sou uma doente - protestou Charlotte logo que Pitt fechou a porta. — Uma viagem de trem, e vou desmaiando por todos os rincões. Pensarão que não valho para nada.

— Não é momento de preocupar-se com o que possam pensar - replicou Pitt com impaciência. — Vamos acima. Devemos analisar isto a fundo e tratar de lhe achar sentido.

Charlotte obedeceu. Não tinha o menor desejo de passar toda a tarde conversando cortesmente no salão, e se Justine voltava a descer, seria incapaz de dissimular a confusão e a tristeza que sentia. Considerava-se uma boa atriz, capaz de ocultar bastante bem suas emoções, mas Emily pensava justamente o contrário. Sendo sincera consigo mesma, devia admitir a possibilidade de que Emily estivesse certa.

No alto da escada, Pitt não se encaminhou para seu quarto, a mas em direção oposta, por volta do quarto de banho dos Greville. Abriu a porta e entrou. Charlotte o seguiu e estremeceu, consciente de que seu frio era imaginário.

— Por que aqui? - perguntou imediatamente. — Não poderíamos pensar igualmente no quarto.

— Quero reconstruir exatamente o acontecido - respondeu Pitt, fechando e trancando o fecho.

— Servirá de algo?

— Não sei. Possivelmente não. - Pitt a olhou com as sobrancelhas arqueadas.         — Ocorre-lhe algo melhor?

Charlotte sentiu crescer em seu interior uma espécie de desespero. Procurou serenar-se. À margem das aparências, detrás de todo aquilo tinha que subjazer um motivo, um motivo emocional. Não havia ali nenhum louco, ninguém que atuasse por causas irracionais ou desconexas; simplesmente existia algum dado importante que ignoravam.

— Justine devia ter uma razão - disse Charlotte, sem responder diretamente à pergunta. — Não acredito que guarde relação com a Irlanda. Certamente é algo pessoal. Talvez nos equivocamos ao dar por sentado que não se conheciam.

— Nenhum dos dois deu mostras de reconhecer ao outro quando ela apareceu aquela noite - indicou Pitt, sentando-se na borda da banheira.

— O que significa simplesmente que não queriam que outros soubessem que já se conheciam - replicou Charlotte, — e disso se desprende por sua vez que não era uma relação que pudesse fazer-se pública.

Pitt franziu o sobrecenho.

— Entretanto Greville tinha por costume recorrer a criadas e esposas de conhecidos. Justine não pertence a nenhum desses dois grupos.

— Enfim, se sua relação com ele era dessas características - comentou Charlotte com um calafrio, — seria uma boa razão para desejar sua morte antes de que ele contasse possivelmente ao Piers e arruinasse suas expectativas de matrimônio. Além disso, acredito que Justine ama sinceramente ao Piers, e estou certa de que ele a ama.

Pitt deixou escapar um suspiro.

— Não duvido que Greville teria informado ao Piers a menor oportunidade. Sob nenhum conceito aceitaria que seu único filho se casasse com uma mulher que em outro tempo tinha sido sua amante, se pode empregar-se essa palavra para descrever a idéia que ele tinha das mulheres.

— Não no caso da pobre Doll Evans, certamente - respondeu Charlotte com amargura. — E pelo que me contou, tampouco talvez a respeito de algumas das outras que terminou desprezando.

Pitt se inclinou e começou a desatar os cordões das botas.

— O que faz? - perguntou Charlotte.

— Vou reconstituir o crime - respondeu Pitt. — Não quero raiar a banheira. Eu representarei o papel do Greville; você fará do Justine.

Tirou uma bota e passou a desabotoar a outra.

— Começarei da porta - disse Charlotte. — Não é necessário que saia ao corredor. E pode imaginar as toalhas.

Pitt ergueu a vista e lhe dirigiu um lúgubre sorriso. A seguir descalçou a outra bota e entrou na banheira. Estendeu-se em seu interior com cuidado, procurando colocar-se tal como tinha encontrado ao Greville.

Charlotte aguardava junto à porta.

— Muito bem - disse Pitt ao cabo de um momento. — Entra como se carregasse uma pilha de toalhas.

Charlotte ergueu ante si os braços e caminhou para o frente. Pitt a observou com atenção.

— Assim não serve - decidiu Pitt. — Melhor será que vá pegar umas toalhas e entre devidamente, sustentando-as ante o peito. O biombo não estava desdobrado; tudo se achava exatamente igual a agora. Greville jazia com a cabeça um pouco inclinada, acredito.

— Quer que traga o Tellman? - sugeriu Charlotte. — Para nos assegurar de que tudo estava igual? Possivelmente ele poderia fazer o papel do Greville e você observar?

— Tellman não tem a estatura necessária - indicou Pitt. — Mas sim, lhe diga que venha de todo modo. E traz as toalhas. Se, como suspeitamos, já se conheciam, sem dúvida lhe haveria dito algo ao vê-la entrar. Não receou de suas intenções?

— Duvido-o - respondeu Charlotte com uma ameaça de sorriso. — Greville era um homem arrogante. Estava habituado a utilizar e rechaçar mulheres. Talvez pensou que ela pretendia lhe suplicar misericórdia ou discrição.

— Nesse caso era mais néscio do que eu supunha - comentou Pitt com tristeza.

Charlotte saiu, deixando-o estendido na banheira com semblante abatido, e foi em busca do Tellman. Não demorou para encontrá-lo e retornou em menos de dez minutos com ele e com meia dúzia de toalhas empilhadas.

— Não vejo que vamos conseguir com isto - resmungou Tellman dando de ombros e lançando um olhar cauteloso ao Pitt, que certamente oferecia um estranho aspecto sentado dentro da banheira.  

Charlotte tinha posto ao Tellman à corrente a respeito de Justine e dos sapatos azuis. A notícia pareceu surpreendê-lo, e inclusive desconcertá-lo, mas Charlotte só podia intuí-lo pela expressão de seu rosto, já que em realidade ele não havia dito nada.

Pitt não respondeu, limitando-se a estender-se de novo para adotar a posição do Greville. A seguir indicou ao Charlotte com o olhar que começasse outra vez pelo princípio.

Com as toalhas sobre a palma de uma mão, fechou a porta como se acabasse de entrar.

— Não está bem posto - criticou Tellman ao Pitt. — Greville tinha a cabeça um pouco mais inclinada.

— Isso não mudaria em nada as coisas - indicou Charlotte. — Ele me veria de todo modo a menos que pusesse as toalhas ante o rosto. - Fez isso a maneira de demonstração. — E além disso eu não teria que olhar para ele.

— Sim o olharia ao passar por seu lado para o fundo do banho. - Pelo visto, Tellman estava por contrariá-la. Escrutinou de novo ao Pitt. — E você segue mal colocado. Está muito reto.

Pitt, complacente, inclinou o corpo ligeiramente a um lado.

Tellman o observou.

— Agora alterou também a posição dos ombros. A cabeça lhe caía um pouco mais...

— Tem isso alguma importância? - interrompeu-o Charlotte. — Não influía apenas em seu ângulo de visão.

— Possivelmente estava adormecido - disse Tellman com convencimento. Isso explicaria por que não reagiu nem gritou.

— Ela não podia prevê-lo - aduziu Pitt. — E Justine não deixaria algo assim ao acaso. — Foi um crime apoiado em circunstâncias propiciatórias - afirmou Tellman, obstinado ainda em discutir.

— Nada disso - refutou Charlotte. — Ia vestida de criada. Isso significa que agiu com premeditação. Até no caso de que e encontrasse por aqui um uniforme de criada, a touca de renda teve que ir procurá-la no tanque. Escolheu a única espécie de touca que podia lhe ocultar o cabelo.

— Mas, bom, continua sem colocar-se devidamente. - Tellman era inflexível. Aproximou-se do Pitt e lhe apoiou uma mão a um lado do rosto. Empurrando-o com suavidade, precisou: — Deve inclinar a cabeça outros quatros dedos para lá.

— Ai! - exclamou Pitt. — Se a torcer embora seja só dois dedos para esse lado, quebrar-me-ei o pescoço.

Tellman ficou imóvel. Depois se ergueu lentamente, seu corpo tenso.

Pitt lançou um longo suspiro e se endireitou , olhando fixamente a Charlotte.

— Tem certeza? - sussurrou ela. — Totalmente certo?

— Sim! - respondeu Tellman com tom cortante, mas sua própria teima entranhava certo grau de dúvida.

— Só há uma maneira de comprová-lo. - Pitt saiu da banheira. Como era próprio dele, não se incomodou em arrumar a roupa. — Teremos que ir ao depósito de gelo e dar uma olhada no cadáver.

Dirigiu-se para a porta.

— As botas - se apressou a lhe recordar Charlotte.

— O que?

— As botas - repetiu ela, e indicou as botas esquecidas ao pé da banheira.

Pitt retrocedeu e as pôs distraidamente. Depois dedicou um fugaz sorriso a Charlotte e seguiu ao Tellman.

Mas quando chegou ao patamar, saiu-lhe ao passo Gracie, alterada, sem touca, com o avental enrugado.

— Por favor, senhor, tenho que falar com você - disse com desespero, passando por cima a presença do Tellman, junto ao Pitt, e de Charlotte, na porta do quarto de banho.    — Em privado...

Pitt compreendeu imediatamente que se tratava de algo importante para ela, fosse ou não transcendente para alguém mais.

— Sim, é claro. Iremos ao quarto de banho - respondeu sem vacilar.

Deu meia volta e deixou ao Tellman no patamar. Logo cruzou um olhar com Charlotte, esperando que se fizesse encarregada. Assim que Gracie entrou, fechou a porta e perguntou:

— Do que se trata?

Era um molho de nervos. Retorcia-se sem cessar o avental com suas pequenas mãos.

— Como é a dinamite, senhor?

Pitt conteve com esforço sua surpresa, assim como uma repentina sensação de temor e esperança.

— Branca e consistente, parecida com o sebo das velas, mas distinta ao tato.

— Como... pegajosa? - disse Gracie com voz entrecortada.

— Sim, exato. Às vezes a envolvem em papel vermelho.

— Então isso é o que vi. Sinto muito, senhor, mas não posso lhe explicar o que tinha ido fazer ali. Não era nada de mau.

Parecia muito assustada.

— Já supunha que não fazia nada de mau, Gracie - respondeu Pitt com relativa sinceridade. Aparentemente aquilo estava dentro das competências de Charlotte, e ele certamente não pensava misturar-se. — Onde era?

— O quarto do Finn Hennessey, senhor. - Uma labareda de rubor cobriu seu rosto.    — Fui me desculpar por lhe contar a verdade sobre Neassa Doyle e Drystan O’Day e o senhor Chinnery. Tinha-lhe mostrado os recortes de jornal, compreende?

— Que recortes de jornal?

— Os que a senhora Pitt trouxe de Londres. Demonstravam que o senhor Chinnery não pôde fazê-lo, porque estava morto.

— Mas isso faz trinta anos. A notícia não apareceria nos jornais atuais – disse Pitt.   — Está certa disso, Gracie?

— Sim, senhor. Eram jornais antigos... só uns recortes.

— Recortes de jornais antigos? - repetiu Pitt com incredulidade.

— Sim. A senhora os trouxe de Londres - insistiu Gracie com expressão de completa inocência e profundo temor.

— Sem dúvida os trouxe de Londres. Mais tarde falarei disso com a senhora Pitt. Assim, viu algo que parecia dinamite na habitação do Finn Hennessey?

— Sim, senhor.

— Sabe ele que a viu?

— Acredito... - Gracie desceu a vista. — Acredito que sim. Depois veio atrás de mim, para me tentar explicar isso acredito. Não... não o escutei; saí correndo.

— Quanto tempo faz que viu essa dinamite, Gracie?

Ela evitou seu olhar.

— Umas duas horas - sussurrou.

Não era necessário dizer que deveria lhe haver informado imediatamente. Gracie já sabia.

— Entendo. Nesse caso melhor será que vá falar com ele. Você fique aqui com a senhora Pitt. E isso é uma ordem, Gracie.

— Sim senhor - respondeu ela sem atrever-se ainda a levantar a vista.

— Gracie...

— Sim...

— Se souber que a viu, possivelmente a tenha escondido; mas não pode havê-la tirado da casa.

Gracie ergueu lentamente o olhar.

Pitt lhe sorriu.

Os olhos de Gracie inundaram de lágrimas, que imediatamente começaram a rolar por suas faces.

Apoiou-lhe uma mão no ombro com ternura.

— Sei que foi uma decisão difícil para você - disse. — Mas não podia fazer outra coisa.

Gracie assentiu com a cabeça e sorveu o nariz.

Pitt lhe deu umas palmadas no ombro, desejando poder lhe demonstrar mais claramente seu afeto, e saiu para reunir-se com o Tellman.

Charlotte lhe dirigiu um olhar interrogativo.

— Acredito que devemos deter o Finn Hennessey - explicou com voz calma.

— Lamento que assim seja.  

Charlotte contraiu o rosto em uma expressão de pesar e entrou imediatamente no banheiro para consolar Gracie.

— Vamos - disse Pitt ao passar junto ao Tellman.

No alto da escada principal acharam ao Wheeler, surpreendentemente alegre. Para ser um homem cujo senhor acabava de ser assassinado e que tinha perdido portanto seu emprego, sua aparência de bem-estar era extraordinária. Parecia resplandecer com algum segredo interior que o animava e enchia de júbilo.

— Sabe onde está Hennessey? - perguntou Pitt.

— Sim, senhor - respondeu Wheeler imediatamente. — No pátio do estábulo, falando com um cavalariço. Parece que tem feito amigos. O pobre moço não tem muitas obrigações agora que o senhor McGinley morreu.

— Mais ou menos como você - observou Pitt.

Wheeler pareceu surpreender-se.

— Pois sim, suponho que assim é.

Pelo visto, sua própria situação não lhe perturbava muito, e depois de assegurar-se de que não necessitavam nada mais dele, seguiu seu caminho.

— O que acontece com Wheeler? - perguntou Tellman com irritação, alcançando Pitt no corredor para caminhar a seu lado para a porta lateral. — Para um homem sem emprego, parece que ganhou um prêmio.

— Não sei - respondeu Pitt. Dirigindo um radiante sorriso ao Tellman, acrescentou:   — Possivelmente tem algo que ver com Doll Evans, ou isso espero.

Cruzou a porta lateral e se encaminhou para as grades do estábulo, deixando que Tellman o seguisse.

Finn Hennessey, de pé no pátio, conversava com um moço que estava apoiado contra a porta do estábulo. Achavam-se resguardados do vento, e para meia tarde não fazia muito frio. Pitt diminuiu o passo. Não desejava que Finn pusesse-se a correr. Até sem a desagradável cena de uma perseguição, seria já bastante doloroso. Viu adiantar-se Tellman em direção ao extremo oposto do pátio, como se se propusesse sair por ali ao caminho.

— Senhor Hennessey - disse Pitt, detendo-se frente a ele.

Finn olhou ao redor, ergueu-se e puxou a palha que estava mordiscando. O cavalariço não parecia ter consciência de que ocorresse nada anormal.

— Sim? - respondeu Finn, e de repente percebeu algo no olhar do Pitt, em seu rosto ou talvez na tensão de seu corpo.

Durante uns segundos de inquietante silêncio permaneceu imóvel, com pânico no semblante, considerando a possibilidade de fugir. Finalmente se deu conta de que não havia escapatória e abandonou a idéia. Uma peculiar rigidez se apropriou de seu corpo, como se se preparasse para receber um golpe, e um véu cobriu a franqueza de seu olhar.

— Sim? - repetiu.

Pitt tinha visto antes essa mesma atitude. Não confiava que Hennessey admitisse sua presumível implicação nos assassinatos, mas se alguma esperança guardava, desvaneceu-se nesse momento.

— Finn Hennessey, eu gostaria de interrogá-lo em relação com a dinamite colocada no escritório do senhor Radley e feita explodir pelo senhor McGinley quando, supomos, tratava de desativá-la. Conhece a procedência dessa dinamite?

— Não - respondeu Finn com uma ameaça de sorriso.

— Tenho motivos para acreditar que pode haver ainda em seu quarto certa quantidade de dinamite - prosseguiu Pitt com gravidade. — Me proponho ir revistá-lo. Naturalmente se a tirou dali e a escondeu em alguma outra parte, seria melhor para você me dizer onde está antes que exploda e fira alguém... quase com toda certeza alguém alheio a seu conflito.

— Não tenho nada que dizer - respondeu Finn, imóvel, com a cabeça em alto e o olhar à frente.

Tellman se aproximou dele por detrás e o algemou. O cavalariço estava horrorizado. Abriu a boca para falar e não achou palavras.

Pitt deu meia volta e foi revistar o quarto do Hennessey. Levou consigo o mordomo, Dilkes, se por acaso achava algo e necessitava uma testemunha.

Dilkes ficou na porta com semblante sombrio, profundamente aborrecido por todo aquele assunto. Pitt entrou no quarto e começou a procurar metodicamente nos armários e gavetas. Descobriu as velas e a dinamite no interior de uma bota alta no fundo do roupeiro. Não estava à vista mas tampouco muito escondida. Hennessey tinha confiado no silêncio de Gracie, ou não tinha querido ocultá-la em outro lugar onde não fosse tão claro que lhe pertencia. Talvez seu sentido da lealdade incluía não tentar que a culpa recaísse em outro. Era um fervoroso defensor de sua causa, não um capanga ou por satisfação pessoal.

Na bacia havia cinzas de papel. Podia ser algo, possivelmente a carta que Gracie tinha visto na mesa. Ao menos, tinha tomado a precaução de eliminar toda prova que o vinculasse a outras pessoas. Isso merecia um indireto respeito.

Pitt mostrou a dinamite ao Dilkes. Depois voltou a deixá-la onde estava e pediu ao mordomo que fechasse a porta e lhe entregasse a chave. Se existia alguma outra chave, devia ir procurá-la e dar-lhe também. Havia na casa uma despensa com uma janela gradeada e uma sólida porta onde Hennessey poderia permanecer até que o levasse a polícia local possivelmente em um ou dois dias.

Pitt foi falar de novo com o Finn e lhe comunicou o achado da dinamite.

— Não tenho nada que dizer - repetiu Finn, olhando ao Pitt no rosto. — Sei que minha causa é justa. Vivi pela liberdade da Irlanda e morrerei por ela se for preciso. Amo a meu país e a meu povo. Simplesmente serei um mártir mais da causa.

— Ser enforcado por um assassinato não é um martírio - respondeu Pitt com tom cortante. — A maioria das pessoas pensariam que assassinar a seu senhor, um homem que confiava em você, outro irlandês que lutava pela mesma causa, é uma traição covarde e deplorável. E não só isso, mas também além disso um ato absurdo. Do que servia matar ao McGinley? Perseguia exatamente o mesmo que você.

— Eu não matei ao McGinley - instou Finn. — Eu não coloquei ali a dinamite.

— Espera que lhe acredite? - disse Pitt com desdém.

— Não me importa se me acredita ou não - replicou Finn. — Você não é mais que outro opressor inglês impondo sua vontade a pessoa indefesa.

— É você quem tinha a dinamite - replicou Pitt. — Foi você quem matou ao McGinley com a bomba, não eu.

— Eu não coloquei a dinamite! Além disso, a bomba não ia dirigida ao McGinley, estúpido - disse Finn com desprezo. — O objetivo era Radley. Pensava que se deu conta disso... - interrompeu-se.

Pitt sorriu.

— Se não a colocou você, como sabe a quem ia dirigida?

— Não tenho nada que dizer - repetiu Finn uma vez mais com tom irado. — Não trairei a meus amigos. Antes morrerei.

— Provavelmente - assentiu Pitt. Sabia que não conseguiria lhe arrancar muito mais, e a seu pesar sentiu respeito por aquela amostra de coragem. Já na porta, acrescentou:   — Estão usando-o.

Finn sorriu. Por causa do medo, estava pálido e tinha gotas de suor sobre o lábio superior.

— Mas eu sei quem me utiliza e para que e ponho-me a seu serviço voluntariamente. Você pode dizer o mesmo?

— Acredito que sim - respondeu Pitt. — Está certo de que aqueles a quem você utilizou compartilham essa convicção?

Finn retesou a mandíbula.

— As pessoas utilizam a quem deve utilizar. A causa o justifica.

— Não, não o justifica - respondeu Pitt. — Se destruir o que tem de bom em você, é uma má causa ou não a entendeu bem. Todos seus atos se convertem em parte dessa causa e em parte de você mesmo. Não pode desprender-se deles como se fossem roupa velha quando alcança sua meta. Não é roupa, Finn, é sua própria carne.

— Não, não o é! - gritou Finn, mas Pitt fechou a porta e retornou lentamente à parte principal da casa.

Sentia abatimento e ira. Finn tinha sido confiante, como outros muitos milhares de pessoas. Tinha sido enrolado e manipulado por pessoa mais cínica que ele. Sem dúvida estava disposto a recorrer à violência para emendar as injustiças que percebia e não lhe importava quem saísse prejudicado. Mas tinha a coragem de lutar por suas crenças. Tinha assumido pessoalmente ao menos parte do risco. Atrás dele havia outros homens, na sombra, que o tinham incitado a atuar, que tinham perpetuado as velhas lendas e mentiras, e as tinham utilizado para manter um estado de violência.

Teria desejado saber quem tinha escrito a carta que Finn tinha queimado. Esse era o homem a quem procurava, e provavelmente estava na casa. Temia que fosse Padraig Doyle.

Foi à biblioteca, onde mal que bem prosseguiam as negociações. Bateu na porta e entrou. Moynihan e O’Day estavam sentados a um lado da mesa; Jack e Doyle ao outro. Todos elevaram a vista quando Pitt apareceu.

— Desculpem, cavalheiros - disse, — mas devo falar com o senhor Radley. Sinto-o muito, mas o assunto não admite espera.

Moynihan lançou uma olhada a O’Day, que a sua vez observava ao Pitt.

— Naturalmente - se apressou em seguida a responder Doyle. — Confio que não tenha ocorrido alguma outra desgraça. Há alguém ferido?

— Acaso esperava que ocorresse algo? - perguntou O’Day.

Doyle simplesmente sorriu e fez um gesto de indiferença.

No vestíbulo, Pitt informou ao Jack do achado da dinamite e a detenção do Finn Hennessey.

— O que demonstra isso? - disse Jack com expressão carrancuda. — Quem está por trás dele?

— Não sei - admitiu Pitt.

Jack estava perplexo.

— Mas nos consta, pela declaração de O’Day, que nem McGinley nem Hennessey puderam matar ao Greville.

— Sei. Isso o fez Justine.

Jack ficou boquiaberto.

— Como? Vamos, Thomas! Aí te equivoca. Não estará insinuando que ela está atrás de tudo isto? É irlandesa?

— Não.... não, esse assassinato não tem nada que ver com a política. – Pitt suspirou. — Ainda desconheço a causa, mas disponho de provas. Viu-a Gracie... - Advertiu a expressão do Jack. — Melhor dizendo, viu seus sapatos - esclareceu. — Ia disfarçada de criada. Gracie a viu de costas, mas hoje recordou também os sapatos. - Interrompeu-se. O semblante do Jack lhe indicou que não era necessário continuar. Em um sussurro, acrescentou: — Devo comunicar a Iona e a senhora Greville que detive Hennessey. Se pode manter aos homens reunidos um momento mais, ser-me-ia de grande ajuda.

— Doyle? - perguntou Jack com tom triste e severo.

— Provavelmente - disse Pitt.

Demais era acrescentar que desejava que não fosse assim. Viu esse mesmo sentimento refletido no rosto do Jack. Mas a simpatia, o senso de humor e o engenho não eram fatores atenuantes no assassinato, mas simples coincidências, um doloroso elemento mais que somar à complexidade, a repugnância e a inutilidade da situação.

Pitt achou Iona sozinha na galeria, contemplando o vento e a crescente escuridão. Não se voltou, e por um momento Pitt permaneceu imóvel observando-a. Tinha uma expressão inescrutável. Pitt se perguntou que pensamentos a absorviam de tal modo que nem sequer se dava conta de que alguém tinha entrado, e menos ainda de que a observava.

Em um primeiro momento pensou que estava tranqüila. Parecia quase relaxada, suas feições livres de tensão. Não se percebia nela dor, nem tortura, nem emoções violentas, nem certamente a ira que freqüentemente acompanhava a uma perda. Não denotava o menor esforço por negar a realidade, por voltar atrás e recuperar o passado anterior à aflição.

Realmente não lhe importava a morte heróica de seu marido, não lhe produzia o menor sofrimento? Apesar de suas canções românticas, sua poesia e sua música, era em essência uma mulher fria, uma entusiasta da beleza da arte mas insensível à realidade. A idéia era repugnante. Pitt notou um calafrio apesar de a galeria estar quente.

— Senhora McGinley - disse por fim, desejando romper a sensação daquele instante.

Iona se voltou, sem sobressalto, só com certa surpresa.

— Sim, senhor Pitt?

Pitt captou tristeza e confusão em seu olhar. Estava desorientada, como se não soubesse o que sentia, além de dor. Não delatava ilusão nem alívio pelo fato de ser livre para ir-se com o Moynihan, nem sequer uma firme determinação de fazê-lo. Talvez não tinha ido a ele por amor mas sim por solidão?

— Sinto muito, senhora McGinley, vi-me obrigado a deter seu criado, Finn Hennessey, por posse de dinamite.

Iona abriu os olhos desmesuradamente.

— Dinamite? Finn?

— Sim. Guardava-a em seu quarto. Não o desmentiu; simplesmente recusou dar explicações. Nega não obstante ter fabricado e colocado a bomba.

— Quem o fez, pois?

— Ainda não sei, mas já é só questão de tempo. - Isso era falso. Não sentia tal certeza, mas desejava fazer Iona acreditar o contrário. Inclusive podia ser ela quem estivesse por trás de Finn, embora o duvidasse. Sabia que, no mínimo, não tinha colocado a bomba. Doyle e Moynihan confirmavam que se achava em outra parte naquele momento. — Informo-lhe só para que saiba por que não está já ao seu dispor. Sinto muito.

Iona desviou o olhar e o fixou de novo na escuridão através da janela, agora salpicada de gotas de chuva.

— Sempre demonstrou grande ardor pela Irlanda e pela liberdade. Suponho que não deveria me surpreender. Mas nunca teria suspeitado que pudesse causar algum dano ao Lorcan. Meu marido amava a Irlanda como o que mais. – Guardou silêncio por um momento, e quando prosseguiu, sua voz denotava uma espécie distinta de dor: — Pelo que sei do Lorcan, era essa sua maior paixão... maior, acredito, que seu amor por mim. A liberdade da Irlanda era seu único tema de conversa, e a isso dedicou toda sua vida. Não lhe importava absolutamente sacrificar seu tempo e seu dinheiro. Consta-me que a bomba ia dirigida ao senhor Radley, mas se Finn sabia que estava ali, caberia supor que tivesse impedido ao Lorcan... - Moveu a cabeça em um gesto de negação. — Não, provavelmente não. Talvez tivessem discutido. Talvez Finn tratasse de detê-lo, mas Lorcan estivesse resolvido a desativá-la. Não sei. Nem sequer porque. - Piscou. — São muitas as coisas que agora acho confusas... coisas das quais antes achava estar convencida.

Pitt não sabia o que dizer. Desejo poder lhe oferecer consolo, pronunciar palavras capazes de tranqüilizá-la, mas não as havia.

Iona o olhou e de repente um débil sorriso apareceu em seus lábios.

— Pensava que ia dizer algum lugar comum. Obrigado por não fazê-lo.

Pitt se ruborizou, alegrando-se de não ter falado. Contemplou-a ainda por um instante e depois partiu.

Nessa noite, depois do jantar, não teve mais remédio que ir examinar atentamente o cadáver do Ainsley Greville. Se Tellman estava certo e o corpo jazia na banheira no ângulo descrito, significaria que tinha o pescoço quebrado. Possivelmente o próprio golpe na base do crânio tinha provocado a fratura, mas lhe custava acreditar nisso, e não o aceitaria até que levasse a cabo um minucioso reconhecimento. O golpe, pelo que recordava, teria bastado para causar uma comoção cerebral mas não a morte, a menos que tivesse sido muito mais violenta do que parecia. Dava a impressão de que o ângulo de incidência não era o apropriado. Se Greville tinha o pescoço quebrado, não tinha morrido afogado. Pitt precisava sair das dúvidas.

Possivelmente esse detalhe não alterasse em essência a acusação, nem a culpa de Justine, mas estava por resolver, e Pitt não tinha intenção de deixá-lo assim.

Requeria a colaboração do Piers. E se era necessário algo mais que um exame externo, Piers deveria ocupar-se disso. Teria que solicitar permissão a Eudora. Essa era uma parte que lhe horrorizava, mas não ficava alternativa.

Charlotte o viu quando começava a subir pela escada.

— Aonde vai? - perguntou, aproximando-se dele e escrutinando seu rosto com inquietação.

— Pedir ao Piers que me ajude a examinar de novo o cadáver de seu pai - respondeu Pitt. — Está lá em cima com sua mãe. Por outra parte, necessito a permissão da Eudora ou, para ser mais exato, preferiria me economizar o tempo e as complicações de solicitar uma ordem judicial.

— Uma autópsia? - disse Charlotte com voz rouca e expressão tensa. — Thomas, não pode exigir ao Piers que realize a autópsia do cadáver de seu próprio pai. E... e quando vai dizer lhe que o matou Justine? O que vai fazer com ela?

— Ainda nada - respondeu Pitt, lhe olhando nos olhos. Percebeu seu medo e sua preocupação, apesar de sua aparente compostura. Se desejava ou necessitava consolo, não dava indícios disso.

— Quer que o acompanhe? - propôs Charlotte. — Se por acaso seu pedido afete muito a Eudora? Algumas pessoas consideram a autópsia uma espécie de horrenda intromissão... como se de algum modo seu ser querido pudesse ter consciência de... a violação de sua intimidade.

Pitt recusou instintivamente o oferecimento.

— Não, obrigado. Acredito que é melhor que intervenha nisto o menor número de pessoas possível. Nem sequer levarei ao Tellman. -Trocou de tema. — Como se encontra Gracie? Tomou muito mal o assunto do Hennessey.

— Sei - sussurrou Charlotte com tristeza e raiva no semblante. — Passará mal durante uma temporada. Provavelmente o melhor que podemos fazer é falar o menos possível disso. É só questão de tempo.

— A propósito, Charlotte - disse Pitt, lhe olhando no rosto, — de onde tirou os recortes de jornal que Gracie mostrou ao Hennessey?

— Ah... - Ela se ruborizou de vergonha. — Acredito que preferiria não sabê-lo. Por favor, não pergunte e assim não terei que lhe dizer.

— Charlotte...

Dedicou-lhe um radiante sorriso, acariciou-lhe uma mão e, sem lhe dar tempo a falar, partiu escada abaixo.

Já no vestíbulo, Charlotte voltou a cabeça e o observou subir pela escada. Sua momentânea alegria se desvaneceu. Sentia-se tão só que poderia haver-se posto-se a chorar, o que era absurdo. Estava cansada. Tinha a sensação de levar semanas procurando que reinasse a harmonia na casa, impedindo que as discussões passageiras degenerassem em brigados permanentes, tentando falar de trivialidades quando o único desejo de todos os pressentes era gritar uns com os outros, ou chorar de dor e medo, e agora também de confusão, inquietação e decepção.

Emily continuava temendo pelo Jack, e não lhe faltavam razões. Cada dia que passava estava mais pálida e fatigada. Além disso, aquilo não conduzia a nada; ninguém resolveria a Questão Irlandesa. Provavelmente cinqüenta anos mais tarde continuariam odiando-se. Valia a pena que se perdesse ou arruinasse uma só vida mais?

E Eudora? Onde acharia a força necessária para consolar ao Piers quando ouvisse a verdade sobre Justine... fosse qual fosse essa verdade? Voltaria Piers a achar a paz interior quando soubesse que a mulher que tanto amava tinha sido antes a amante de seu pai... e o tinha assassinado? Seu mundo se desmoronaria.

E Eudora não mantinha com ele uma relação suficientemente estreita para lhe dar a ternura e a tácita compreensão que necessitaria. Ela não tinha constituído uma parte bastante importante das experiências do Piers para ajudá-lo agora a superar aquilo. Charlotte o tinha constatado pelos comentários da Eudora, mas o intuía já pelo modo em que observava ao Piers sem saber como reagiria, o que o comovia ou lhe causaria risada. Charlotte tinha percebido o sentimento de exclusão da Eudora, sentimento que reconheceu em si mesma naquele momento com um repentino calafrio.

Contemplou as costas de Pitt quando chegava ao alto da escada e se perguntou se voltaria para olhá-la. Devia saber que ela continuava junto à coluna do vestíbulo.

Mas não se voltou. Tinha a mente posta na Eudora e Piers, e no que devia lhes pedir. Assim devia ser. Possivelmente ela pudesse concentrar seu pensamento em Emily, embora fosse só em parte.

Nesse momento os conselhos da tia Vespasia lhe pareciam muito vazios. Eram sem dúvida honoráveis, mas ofereciam pouco consolo. deu meia volta e retornou ao salão. Só estava ali Kezia. Devia falar com ela, não abandoná-la.

— Para que precisa examiná-lo de novo? - perguntou Piers, estremecendo. Estava pálido e cansado, como todos outros, mas absolutamente assustado. Talvez não conservasse aquela inocência além dessa noite.

— Antes de dizer-lhe preferiria comprovar se minhas suspeitas são certas - respondeu Pitt, lançando um olhar de desculpa a Eudora, que se tinha posto em pé e se achava junto à lareira do toucador. Não tinha afastado a vista do rosto do Pitt nem um só instante.

Felizmente Justine não estava ali. Pelo visto, tinha decidido retirar-se cedo a seu quarto.

— Se não há mais remédio - disse lentamente Eudora.

— É muito importante, senhora Greville, ou do contrário não o pediria – assegurou Pitt. — Lamento sinceramente. - Desculpava-se não só pelo presente, mas também pelo futuro.

— Sei - respondeu Eudora.

Sorriu ao Pitt, e ele percebeu uma calidez naquele sorriso da qual lhe teria sido impossível duvidar. Se realmente estava Doyle atrás de Finn Hennessey e a bomba, Eudora nunca se recuperaria. Receberia uma ferida mortal. Parte dele desejava permanecer ali e oferecer toda a compreensão possível; a outra parte queria fugir antes de dizer ou fazer algo, ou de que seu rosto delatasse seus temores por ela.

Hesitou por um instante.

Eudora o olhou com crescente desassossego, como se percebesse sua indecisão e adivinhasse os motivos.

Pitt se voltou para Piers.

— De nada serve adiar o que deve fazer-se - disse com gravidade. — Será melhor que comecemos já.

Piers respirou fundo.

— Sim, claro.

Olhou a sua mãe e pareceu a ponto de dizer algo, mas se absteve. Encaminhou-se para a porta e a abriu para deixar passar Pitt.

Em silêncio, desceram pela escada, cruzaram o vestíbulo, entraram nas dependências do serviço e percorreram o corredor, deixando atrás a cozinha e o refeitório. Pitt se muniu de lanternas portáteis e guiou Piers para o depósito de gelo, situado além da confeitaria, a despensa de caça, a carvoeira, o quarto de afiado e limpeza das facas e outros vários aposentos destinados ao armazenamento e diversas tarefas. Deixou as lanternas no chão e tirou as chaves. Piers permanecia rígido junto a ele, como se tivesse duros todos os músculos do corpo. Possivelmente Pitt não deveria lhe haver pedido uma coisa assim? Com a chave na mão, vacilou por um momento.

— O que acontece? - perguntou Piers.

Pitt continuou indeciso.

— Ocorre algo? - insistiu Pitt.

— Não.

Ao final, o resultado seria o mesmo. Introduziu a chave na fechadura e abriu. A seguir se agachou para recolher as lanternas e entrou. Sentiu imediatamente o frio, assim como a umidade e o aroma ligeiramente enjoativo. Ou possivelmente imaginava o fedor sabendo o que havia ali dentro.

— Há algum lampião? - perguntou Piers com voz trêmula.

— Não, só as lanternas. Suponho que costumam tirar a carne de dia – respondeu Pitt. — E provavelmente deixam a porta aberta.

Piers a fechou e ergueu uma das lanternas. A câmara era bastante espaçosa e os blocos de gelo estavam lindamente empilhados. O chão era de ladrilhos e o sulcavam diversos deságües. Grandes peças de carne pendiam dos ganchos presos ao teto: de vaca, de cordeiro, de porco. Os despojos estavam em recipientes e várias réstias de salsichas pendiam arqueadas entre os ganchos.

Instalou-se no centro uma enorme mesa de cavaletes, e as silhuetas de dois corpos humanos se desenhavam claramente sob uma velha cortina de veludo, já descolorida.

Pitt retirou a cortina e viu o rosto branco e extranhamente sério do Ainsley Greville.

Lorcan McGinley tinha o rosto envolto com um fragmento da cortina do escritório para ocultar o sangue e as feridas.

Piers tomou ar e o expulsou lentamente.

— O que devo examinar? - perguntou.

— O pescoço - respondeu Pitt. — O ângulo da cabeça.

— Mas se o moveram. Que importância pode ter isso agora? Golpearam-lhe por trás. Isso já sabemos. - Piers franziu o sobrecenho. — No que está pensando, senhor Pitt? O que sabe agora que desconhecíamos a primeira vez?

— Por favor, examine o pescoço.

— Um golpe como esse não podia fraturá-lo - Piers estava intrigado. — Mas até se o deixasse fraturado, que diferença haveria?

Pitt olhou o cadáver e o indicou com o queixo.

Piers obedeceu. Depois de uma breve relutância inicial, motivada pela consciência de quem era o homem que se dispunha a tocar em atitude tão profissional, colocou os dedos em torno do crânio e o moveu com suavidade várias vezes, explorando, totalmente concentrado.

Pitt aguardou. O frio o impregnava até os ossos. Não era de estranhar que a carne se conservasse em bom estado ali dentro. A temperatura não era muito superior ao ponto de congelamento, se chegava. A umidade do gelo parecia aderir-se à pele. O aroma e o sabor da carne morta lhe saturavam os sentidos.

As lanternas ardiam com chama estável. O ar não se movia.

— É certo! - Piers ergueu a vista, seus olhos escuros e desmesuradamente abertos na tênue luz. — Tem o pescoço quebrado. Não o compreendo. Um golpe dessas características não deveria ter provocado uma fratura assim. Nem a zona nem o ângulo se correspondem.

— Poderia ser esse golpe a causa da morte? - perguntou Pitt.

— Não estou muito certo, mas não acredito. Não vejo por que. - Piers engoliu a saliva, e Pitt viu a convulsão em sua garganta. — Não haveria maneira de saber se estava já morto quando inundou-se sob a água a menos...

Pitt esperou.

— Poderia comprovar se há água nos pulmões. Se não a houver, morreu por causa da fratura de pescoço e estava já morto antes de afundar-se.

— E o golpe na cabeça? - voltou a perguntar Pitt.

— Poderia averiguar se se produziu quando estava ainda com vida, ou já morto, pelo sangue e o hematoma. A própria água do banho limpou a parte externa, lógicamente. -Piers parecia curvado, e à luz da lanterna profundas sombras se projetavam sobre seu rosto. — Mas se... se realizasse uma autópsia.... não sei se... estou realmente qualificado para dar um juízo. Ante um tribunal não poderia, certamente... Não aceitaria minha opinião.

— Nesse caso, melhor será que trate com muito cuidado as provas - disse Pitt com um lúgubre sorriso. — O resultado da autópsia pode mudar radicalmente o curso da investigação.

— Sério? - perguntou Piers com manifesta incredulidade.

Pitt pensou em Justine, em Doll e em McGinley.

— Sim, sem dúvida.

— Não posso trabalhar aqui - disse Piers com gravidade.— Para começar, não há luz suficiente. Além disso, tenho tanto frio que me é impossível controlar o tremor das mãos.

— Utilizaremos um dos compartimentos do tanque - decidiu Pitt. — Ali disporemos de água corrente e de uma das mesas que empregam para esfregar. Não trouxe instrumental, suponho.

— Sou só um estudante - protestou Piers com voz tensa e um tanto aguda. — Mas estou quase licenciado. Apresento-me aos exames finais neste mesmo ano.

— Sente-se capacitado para isto? Não quero fazer vir o médico do vilarejo. Tampouco terá a preparação necessária para esta espécie de trabalho. E trazer alguém de Londres, devo solicitá-lo por mediação do subchefe de polícia, e o trâmite é muito lento.

—Compreendo. - Piers olhou ao Pitt com determinação. — Acredita que o culpado é meu tio Padraig e necessita as provas antes de que abandone Ashworth Hall.

Não tinha sentido negá-lo.

— Poderia trabalhar com as melhores facas da cozinha se estiverem bem afiadas?

Piers se estremeceu.

— Sim.

O traslado do corpo do depósito de gelo foi uma tarefa lamentável e difícil. Deviam manipulá-lo com supremo cuidado, ou do contrário corriam o risco de destruir as provas que procuravam. Greville tinha sido um homem alto e robusto. Se o colocavam sobre uma porta, Pitt, Tellman e Piers não teriam podido carregar seu peso sem ajuda.

— Pois não podemos recorrer a ninguém mais - disse Tellman com tom taxativo.       — Teremos que pensar em outra tática. Conheço já a estes criados e sei o que ocorreria se trouxéssemos um lacaio. Amanhã nos tachariam de necrófagos ou resurreccionistas.

— Temo que tem razão - concordou Pitt. — Poderíamos experimentar com pranchas, como as que usaram para murar a janela do escritório. Deve haver em alguma das dependências anexas.

— Com pranchas não conseguiremos mantê-lo em equilíbrio - replicou Pears. Só a idéia de manobrar com o cadáver sobre pranchas de madeira procurando que não caísse era grotesca. — A porta é a única solução.

— Pesa muito! - protestou Tellman.

— Uma cesta para a roupa - sugeriu Piers de repente. — Se o colocarmos dentro com cuidado, não alteraremos as provas.

Pitt e Tellman lhe dirigiram um olhar de aprovação.

— Excelente - disse Pitt. — Irei procurar uma. Vocês vão preparando-o.

Passavam das onze da noite quando Tellman se postou ante a porta do tanque, que naturalmente não tinha ferrolho, e Pitt observou ao Piers Greville enquanto começava a cortar o corpo de seu pai empunhando a melhor faca da senhora Williams com a mão direita. Os lampiões estavam acesos a plena intensidade e tinham disposto além disso três lanternas para evitar as sombras na medida do possível.

A autópsia pareceu prolongar-se durante horas. Piers trabalhava com lentidão e extremo cuidado, cortando tecidos, hesitando, escrutinando, voltando a cortar. Era evidente que aborrecia o que estava fazendo. Mas uma vez absorto na tarefa saiu a tona sua profissionalidade. Era um homem com grande vocação e tinha um peculiar prazer no delicado e destro manejo de suas mãos. Nenhuma só vez se queixou ou reprovou Pitt seu pedido. Fossem quais fossem seus temores a respeito do que as provas demonstrariam, soube ocultá-los.

No tanque o ambiente era quente e úmido por causa do vapor das caldeiras onde se ferviam os lençóis, toalhas e toalhinhas. Cheirava a sabão, ácido carbólico e roupa úmida.

Tellman montava guarda de costas à porta. Ninguém mais sabia o que estavam fazendo. Tinham transladado o cadáver depois de assegurar-se de que não havia criados à vista. A maioria se retirara já a seus quartos. Se se propagava o rumor de que se realizara a autópsia em um cadáver no tanque, as histórias começariam a aumentar-se até alcançar dimensões monstruosas, e nenhum criado quereria trabalhar mais em Ashworth Hall.

Eram já as onze e meia.

— Pode sustentar isso, por favor? - pediu Piers, assinalando os ossos do peito.

Pitt obedeceu. Incomodou-lhe segurar uma parte do corpo de um homem, e entretanto sabia tão bem como qualquer um que não era já um ser animado. Mesmo assim lhe foi desagradavelmente pessoal.

Transcorreram outros dez minutos. Ninguém falou.

Só se ouvia o chiado dos lampiões de gás. A casa inteira se achava imersa no maior silêncio, como se não se alojasse ninguém nas dúzias de quartos.

— Não há água nos pulmões - anunciou Piers por fim. — Não morreu afogado.

— Causou a morte o golpe na cabeça?

Piers não respondeu. Costurou o peito o melhor que pôde, limpou o sangue das mãos e pediu ao Pitt que lhe ajudasse a dar a volta ao corpo para examinar a ferida do pescoço.

Passaram outros vinte minutos.

— Não - disse com surpresa. — Não se aprecia hemorragia nessa zona. Não há hematoma propriamente dito, só um aplastamiento do osso. Aí. - Assinalou o lugar com o dedo. — E aí. -Parecia confuso. — Mataram-no... duas vezes... por assim dizer. Primeiro lhe fraturaram o pescoço, e com um golpe muito perito. Requer-se habilidade e força para romper o pescoço de um homem de um só golpe, como é o caso. Não se observam outras lesões ou machucados.

Tellman se aproximou em silêncio e olhou primeiro para Piers e depois para Pitt com os olhos desmesuradamente abertos.

— E depois alguém o golpeou na cabeça e o afundou sob a água - concluiu Piers.   — Não entendo com que intenção. É... absurdo... - Estava desconcertado.

— Tem certeza? - Ao Pitt invadiu uma sensação de júbilo superior a qualquer outra conhecida. — Totalmente certo?

Piers piscou.

— Sim. Pode pedir a um verdadeiro legista que o verifique, mas sim, estou certo. Por que? Que sentido tem? Sabe quem o matou?

— Não - respondeu Pitt com voz entrecortada. — Não.... mas acredito que sei quem não o matou...

— Bom, pelo que se vê, mataram-no duas pessoas. - Tellman observou o cadáver estendido na mesa. — Ou se propuseram matá-lo!

Pitt ficou imóvel. Perguntava-se se podia apresentar queixas contra alguém por golpear a cabeça de um cadáver e inundá-lo logo sob a água. Qual seria o delito? Profanação de um morto? Tomariam os tribunais o trabalho de processar ao culpado? Ee tinha mesmo algum interesse nisso?

— Senhor? - disse Tellman.

Pitt saiu de seu ensimesmamento.

— Sim... Sim, ponha tudo em ordem, Tellman. Eu devo ir para cima, acredito. Obrigado. - Olhou ao Piers. — Obrigado, senhor Greville. Agradeço-lhe muito tanto sua coragem como sua habilidade. Levem outra vez o cadáver ao depósito de gelo e, pelo que mais queiram, fechem a porta com chave e não deixem o menor rastro do que fizemos. Boa noite.

A seguir foi até a porta, saiu e retornou à parte principal da casa.

 

Charlotte já dormia quando Pitt chegou ao quarto, mas, assim como ela a sua volta de Londres, foi incapaz de esperar até a manhã seguinte para pô-la à corrente do que tinha averiguado. Não perdeu o tempo em falsas diplomacias. Entrou direito ao dormitório e acendeu a plena intensidade o lampião principal.

— Charlotte - disse.

Ela se queixou do vivo resplendor e deu lentamente a volta, tampando-a rosto com o cobertor.

— Charlotte - repetiu Pitt, e foi sentar se na cama. Lamentava sua própria brutalidade, mas não era momento para delicadezas. — Acorde. Tenho que falar com você.

Charlotte percebeu o tom peremptório de sua voz até entre os vapores do sono.

Com o cabelo solto e caído sobre os ombros, endireitou-se piscando e protegendo-os olhos com uma mão.

— O que quer? O que aconteceu? - Olhou para Pitt fixamente, sem alarmar-se ainda porque não percebia temor nele. — Sabe já quem matou ao Greville?

— Não.... mas não foi Justine.

— Sim, sim foi ela. - Charlotte estava já totalmente acordada, e embora piscasse ainda, deslumbrada pela luz, começava a sentir viva curiosidade. — Tinha que ser ela. O que ia fazer se não no corredor disfarçada de criada? Seria absurdo.

— Entrou no quarto de banho, golpeou ao Greville na cabeça e depois o afundou sob a água - concedeu ele. — Mas não o matou... porque já estava morto.

Charlotte o olhou como se não estivesse segura de lhe haver entendido.

— Já estava morto? Com certeza? Como sabe?

— Sim, tenho certeza, porque isso disse Piers...

— Piers? - Charlotte se achava já sentada na cama com as costas erguidas. — Se sabia, por que não o disse antes? - Seu rosto se escureceu. — Thomas.... sabia possivelmente que o tinha feito Justine e pretendia...

— Não. - Pitt tinha a total certeza. — Ele não sabe sequer do que se trata. Simplesmente me proporcionou as provas...

— Que provas? - perguntou Charlotte. Já sem o abrigo das mantas, começou a tremer. — Que provas conhece agora Piers que não conhecia antes?

— Transladamos o cadáver ao tanque e foi realizada uma autópsia... Charlotte, Justine tinha toda a intenção de matar ao Ainsley Greville, mas alguém a antecipou e fraturou o pescoço de Greville de um único e perito golpe.... alguém que sabe como matar e provavelmente o fez já outras vezes.

Charlotte estremeceu, mas ao que parecia tinha esquecido que tinha as mantas ao alcance da mão.

— Um assassino profissional, quer dizer? - murmurou. — Um dos irlandeses?

— Sim - respondeu Pitt. — Não me ocorre outra resposta.

— Padraig Doyle?

— Não sei. Possivelmente.

—Eudora nunca o superará. - Olhou atentamente ao Pitt. — Thomas...

—O que? - disse Pitt, pensando que ia falar lhe dos riscos da compaixão, lhe aconselhar que não se sentisse doído por ela, nem ter pena, e menos ainda culpado. Mas se equivocava.

— Deve se preparar para a possibilidade de que Eudora já saiba – respondeu Charlotte.

Repeliu a idéia; era espantosa. Era inconcebível que atrás daquelas delicadas feições e aqueles olhos afligidos se escondesse uma cúmplice, nem mesmo uma cúmplice passiva em um frio e indiscriminado assassinato político.

Charlotte o olhava com expressão de pesar, mas por ele, não pela Eudora.

— Está muito unida a seu irmão – prosseguiu — e é tão irlandesa como qualquer dos outros, embora não o pareça e não viva na Irlanda há vinte anos. Poderia guardar ainda os ódios e a injustiça de que aparentemente se contagiam quantos se implicam nesse conflito. - Estendeu o braço e apoiou sua mão com ternura sobre a dele. — Thomas, você mesmo os viu, ouviu-os discutir. Já se deu conta do que ocorre às pessoas assim que começam a falar da Irlanda. A liberdade de um homem se vê como a perda e a exploração de outro, ou como o roubo de todo aquilo que constitui o patrimônio que lhe foi legado pelas gerações anteriores, e pior ainda, a perda de sua liberdade de culto, algo cuja defesa é muito mais justificável. Uma Irlanda independente governada pelos nacionalistas seria católica. Suas leis seriam católicas, sem atender às distintas crenças individuais. censurar-se-iam os livros conforme ao indicador papal. proibir-se-iam muitas coisas. - Agarrou as mantas e se cobriu parcialmente. — Me incomodava que meu pai me dissesse o que devia ler e que não. Rebelar-me-ia se a Batata pretendesse fazer isso mesmo. A Batata não tem nada que ver comigo. Mas em uma Irlanda católica alguns livros seriam ilegais. Eu não saberia nem que existem. Inteirar-me-ia só do que a Igreja decidisse que me convinha saber. Possivelmente eu mesma não deseje ler esses livros.... Possivelmente inclusive estivesse de acordo com a Igreja... Simplesmente quero ser livre de escolher.

Pitt não a interrompeu.

— E sobre tudo quero leis votadas por meu próprio povo... - Esboçou um sorriso enviesado. — Para falar a verdade, eu gostaria de ter eu mesma direito ao voto. Mas em todo caso não aceitaria que um montão de cardeais de Roma me dissessem o que devo fazer.

— Está exagerando... - protestou Pitt.

— Nada disso. Em um Estado católico a Igreja tem a última palavra.

— Como sabe tudo isso?

— Falei com Kezia Moynihan. E antes que diga que também ela exagera, tem que saber que me deu provas disso. Muitas das coisas que contam os protestantes são contra os papistas; acusam-nos das mais diversas atrocidades. Mas este outro é verdade. Ali onde a Igreja romana consegue governar, seu poder é absoluto. Thomas, a religião não pode impor-se. Em essência, opino que os americanos têm razão. A Igreja e o Estado devem manter-se separados...

— O que sabe você dos americanos? - perguntou Pitt, atônito. Jamais tinha pensado que Charlotte pudesse interessar-se naqueles temas, e menos ainda conhecê-los.

— Emily esteve me falando disso. Sabe quantos irlandeses emigraram aos Estados Unidos desde a grande fome?

— Não. E você?

— Sim. Uns três milhões - respondeu sem vacilar. — Isso equivale aproximadamente a um terço da população, e em sua maior parte os mais jovens e sadios. Emigraram massivamente aos Estados Unidos porque ali podiam achar trabalho... e mantimentos.

— O que tem isso que ver com a Eudora? - disse Pitt. Aquele dado lhe impressionou, e também o fato de que Charlotte o conhecesse, mas nada conseguia se separar de sua mente a imagem da Eudora.

—Explico-lhe isso simplesmente para que compreenda que a situação é desesperada - respondeu Charlotte, olhando-o ainda com ternura. — Ante problemas tão graves, muita gente pensa que o fim justifica os meios, inclusive o assassinato de quem representa um obstáculo no caminho para o que eles consideram uma maior justiça.

Pitt guardou silêncio.

Charlotte hesitou, como se estivesse a ponto de inclinar-se e abraçá-lo mas mudasse de idéia. Em lugar disso, levantou-se da cama e foi procurar seu roupão.

— Aonde vai? - perguntou Pitt, surpreso. — Não irá falar com a Eudora?

— Não.... vou ver Justine.

— Para que?

Vestiu o roupão e atou o longo cinto. Estava já totalmente acordada, mas não se incomodou em lavar o rosto nem escovar o cabelo enredado.

— Para lhe dizer que não matou ao Ainsley Greville. Ela acredita no contrário.

Pitt ficou em pé.

— Charlotte, não estou certo se convém que Justine saiba...

— Sim, convém - respondeu Charlotte com firmeza. —Se amanhã tiver que deter o Padraig Doyle, deve resolver o de Justine esta noite. Não me acompanhe. Sós falaremos com maior liberdade. Precisamos saber a verdade.

Pitt voltou a sentar-se na cama. Era certo que precisavam saber a verdade; mesmo assim, ele a temia.

Com sigilo, Charlotte percorreu o corredor, cruzou o patamar e passou à outra ala.

Na casa reinava o silêncio.

Todos se tinham deitado fazia tempo à exceção do Pitt, Tellman e pelo visto Piers; entretanto este não iria ao quarto de Justine a aquelas horas, e menos ainda depois do que acabava de fazer. Não lhe ocorreria apresentar-se ante ela impregnado daquele aroma e imerso ainda no caos emocional que aquilo devia lhe haver provocado.

O corredor estava em penumbra, com os lampiões de gás acesos a intensidade mínima, o justo para guiar a qualquer que se levantasse em plena noite por alguma razão pessoal. Bateu na porta de Justine com um par de golpes secos e enérgicos e depois , sem esperar permissão, entrou.

O quarto se achava às escuras e em completo silêncio.

— Justine -disse com voz baixa mas claramente audível.

Ouviu-se o leve som de um movimento e depois o roçar dos lençóis.

— Quem está aí? - perguntou Justine com tom tenso e assustado.

— Sou Charlotte. Acenda a luz se for amável. Eu não encontro o abajur.

— Charlotte?

Produziu-se um momento de silêncio, seguido por novos movimentos, e finalmente se acendeu a luz.

Charlotte viu Justine sentada na cama mas completamente acordada, o cabelo negro azeviche caído sobre os ombros e uma expressão de inquietação e perplexidade no rosto.

— Ocorreu algo? - sussurrou. — Alguma outra desgraça?

Charlotte se aproximou e se sentou aos pés da cama. Devia surrupiar a verdade de Justine, mas não lhe ocorria nenhum subterfúgio para enganá-la, nem em realidade desejava enganá-la.

—De fato, não - respondeu Charlotte, ficando cômoda. — Mas temos mais informação que na hora do jantar, apesar de então termos já bastante.

O semblante de Justine não refletiu mais emoção que o alívio de saber que não se produziu nenhum outro desastre.

— Ah, sim? Sabem já quem foi que matou ao senhor McGinley?

— Não. - Charlotte sorriu com triste ironia. — Mas sabemos quem não matou ao senhor Greville...

— Isso sabíamos já - respondeu Justine, mantendo uma admirável compostura, dadas as circunstâncias. — Estão fora de suspeita o senhor O’Day e o senhor McGinley, e o valete, Hennessey, se também o tinham em conta. Confiava em que descartassem deste modo à senhora Greville e Piers, mas suponho que devem comprová-lo. É isso o que veio me dizer? Que não o matou a senhora Greville?

Apoiou a mão nas mantas em gesto de retirá-las para levantar-se.

Charlotte se inclinou e a deteve.

— Não sei se foi ou não a senhora Greville. - Olhou Justine nos olhos com serenidade. — Mas o considero improvável, embora bem poderia ser que soubesse quem é o culpado. Matou-o um assassino muito destro, muito profissional. - Observou com atenção Justine, seu olhar, seus gestos. — De um só golpe muito preciso.

Justine permaneceu imóvel, mas não pôde ocultar uma ameaça de assombro em seus olhos. Imediatamente depois apareceu neles um vislumbre de medo, sem dúvida ao perguntar-se o que sabia Charlotte, o que tinha adivinhado em seu rosto.

— Ah, sim? - perguntou com voz quase firme, e se soava minimamente empanada podia atribuir-se ao desagradável do tema ou ao fato de que acabava de despertá-la no primeiro sono.

— Sim. Tinha o pescoço quebrado.

Desta vez à surpresa se somou a perplexidade, e apesar de sua férrea vontade e sua estudada compostura, foi incapaz de dissimular suas emoções. Apressou-se à mascará-las assim que se sentiu descoberta por Charlotte. Percorreu-lhe um calafrio de repugnância.

— Que espanto!

— Necessita-se muito sangue-frio - comentou Charlotte. Escondeu seus punhos tensos no regaço para que Justine não os visse. — Menos compreensível que a ação da pessoa que entrou depois disso no quarto de banho, com uma touca e um uniforme de criada sobre seu próprio vestido, golpeou-lhe na cabeça com um pote de sais de banho e depois, acreditando que tinha perdido a consciência por causa do golpe, manteve-o afundado na água.

Justine empalideceu. Pegou os lençóis como se temesse afogar-se e fossem sua tábua de salvação.

— Alguém... fez... isso?

— Sim - respondeu Charlotte, excluindo com seu tom qualquer possibilidade de dúvida.

— Como...? - Justine engoliu a saliva, perdendo o controle por momentos. — Como... averiguou isso?

— Viram-na. Ou melhor dizendo, viram seus sapatos. - Charlotte esboçou um sorriso, mas um sorriso triunfal ou acusador. — Uns sapatos azuis de tecido, com os laterais bordados e saltos azuis. Não eram sapatos de criada. Levava-os você postos hoje no almoço, combinados com seu vestido de musselina.

Justine renunciou a todo artifício. Não estava disposta a perder a dignidade até o ponto de continuar defendendo-se quando a batalha havia já terminado.

— Por que? - perguntou Charlotte. — Devia ter uma poderosa razão.

Justine parecia exangue, como se a vida tivesse cessado em seu interior. Com umas poucas palavras, Charlotte tinha acabado com tudo aquilo no que tinha cifrado seus desejos e concentrado seus esforços, e que quase tinha já a seu alcance. Aparentemente não achou justificação alguma capaz de remediar a perda ou resgatar ao menos uma parte. Sua expressão não revelava ira, mas só resignação ante o absoluto desastre.

Charlotte esperou.

Justine começou a falar com voz baixa e a vista fixa na orla bordada do lençol, evitando o olhar de Charlotte.

— Minha mãe era criada. Casou-se com um marinheiro espanhol. Ele morreu quando eu era pequena. Desapareceu no mar. Minha mãe ficou sem dinheiro e com uma menina de curta idade que criar. Como se tinha casado com um estrangeiro, contra a vontade de sua família, eles a rechaçaram. Dedicou-se a lavar roupa e costurar, mas mal ganhava para nos manter. Não voltou a casar-se. - Esboçou um sorriso estranho, jocoso. — Nunca fui formosa. Tinha a pele muito escura. Quando era menina, chamavam-me cigana, negra e coisas piores. E zombavam de meu nariz. Mas ao crescer desenvolvi certa graça. Era diferente, e isso atraía algumas pessoas, em especial homens. Aprendi a explorar meus encantos, a despertar interesse e mantê-lo. Aprendi... - Continuava evitando conscientemente o olhar de Charlotte. — Aprendi a adular aos homens e fazê-los felizes. -Não especificou que classe de felicidade lhes proporcionava.

Charlotte acreditou compreender.

— E Ainsley Greville estava entre eles?

Justine ergueu de repente a cabeça, e apareceu em seus olhos um brilho de ira.

— Era o único! Mas quando se está desesperada e não se tem outro meio de subsistência, não se pode escolher. Alguém fica com o homem que tem dinheiro e não a maltrata nem lhe contagia enfermidades, ao menos visíveis. Acredita que eu gostava dessa vida? - Adotou uma atitude de desafio, como se se sentisse julgada por Charlotte.

— Pobrezinha - disse Charlotte com tom um tanto sarcástico.

Por um instante cintilou em seus olhos um olhar de raiva. Charlotte não pensou em nenhum momento que corresse perigo. Para efeitos práticos, tinha esquecido que Justine tinha tratado de assassinar a um homem só uns dias antes. Ou a tentativa tinha sido fracassada unicamente porque ele estava já morto. Até fazia dez minutos tinha a convicção de que o tinha matado.

Charlotte contemplou o precioso trabalho de renda da camisola de Justine. Era incomparavelmente mais bonito que o que ela usava, e mais caro.

— Eu gosto de sua camisola - comentou ironicamente.

Justine se ruborizou.

Permaneceram de novo em silêncio durante um momento.

Justine a olhou.

— Sim, admito-o... A princípio o fazia para sobreviver, mas logo tomei gosto aos luxos que podia me permitir. Quando se esteve na miséria, quando se passou fome e frio, uma pessoa nunca se sente já segura. Sempre se vive com a idéia de que pode voltar a ocorrer amanhã. Continuamente me expor deixar isso, me dedicar a algo respeitável. Mas... nunca parecia apresentar o momento oportuno.

— E por que queria assassinar ao Ainsley Greville? Tanto o odiava? Por que?

— Não, não o odiava até esse ponto - respondeu Justine com tom irado e uma expressão de intenso desdém nos olhos negros. — Sim, odiava-o, porque me desprezava como desprezava a todas as mulheres - acrescentou com virulência. — Salvo quando suas ocupações não lhe permitiam nem lembrar-se de nós. Sim, era a atitude característica dos homens que utilizam mulheres e ao mesmo tempo as detestam. Mas o matei porque teria contado ao Piers o que sou... o que era...

— Isso lhe importa? - disse Charlotte, mas nesta ocasião não a modo de desafio.

Justine fechou os olhos.

— Sim.... importava-me mais que nada no mundo. Amo ao Piers.... e não só porque me permitiria deixar de ser uma... uma fulana. - Obrigou-se a pronunciar essa palavra, e seu semblante revelou que era como atirar uma punhalada a si mesma. — O amo porque é amável, divertido e generoso. Tem esperanças e temores que compreendo, sonhos que posso compartilhar, e a coragem de tentar realizá-los. E me ama.... por cima de tudo, ama-me. - Quebrou-lhe a voz. — Como acredita que se sentiria se se inteirasse? Imagina a cena.... Ainsley rindo-se dele, lhe dizendo que sua preciosa noiva era a cortesã de seu pai? E teria desfrutado. Podia chegar a ser muito cruel. - Tinha as mãos presas à beira do lençol. — Incomodava-lhe a felicidade alheia, sobre tudo na pessoa que conhecia bem, porque possuíam algo do que ele carecia. Não encontrava a felicidade com nenhuma mulher porque não sabia amar. Ele nunca se permitia a ternura e, portanto, era incapaz de percebê-la em outros. Só via seu próprio reflexo: uma pessoa insatisfeita que procurava a fraqueza para explorá-la, que usava seu poder para fazer mal antes de que o fizessem a ele.

— Sim, odiava-o, não é? - disse Charlotte, captando não só as emoções que se escondiam atrás de suas palavras, mas também os verdadeiros motivos.

Justine a olhou nos olhos.

— Sim, odiava-o, e não só pelo que me fez , mas também pelo modo como tratava às mulheres em geral. E suponho que por um momento para mim todos os homens foram como ele. O que vão fazer comigo agora?

Charlotte tomou a decisão ao mesmo tempo que falava.

— Não o matou você, mas isso foi uma mera casualidade, ou boa sorte se o preferir. Entretanto tinha a intenção.

— Sei. O que vão fazer comigo? - repetiu Justine.

— Ignoro que espécie de delito é atacar a um homem que já está morto. Mas sem dúvida é um delito.

— Se... se o senhor Pitt for me deter... - Justine tomou ar com uma trêmula inalação. Não chorava. Possivelmente isso viesse mais tarde, quando ficasse sozinha e tudo tivesse terminado, e não tivesse por diante nada mais que o pesar. — Se o senhor Pitt for me deter, poderia explicar eu mesma ao Piers a razão? Acredito que preferiria... ao menos... - Produziu-se um novo silêncio. O suave sussurro do gás soava no spot. Não se ouvia nada mais na casa.

— Não sei se serei capaz! - exclamou de repente Justine com desespero. Estava rígida. Era realmente muito magra. Parecia muito tensa, todos seus músculos duros. Vendo-a, teria cabido pensar que a transpassava uma dor física.

—Sim será capaz - assegurou Charlotte. — Pode ser que seja espantoso, mas, em qualquer caso, se não o fizer sempre se arrependerá. Embora não fique nada, tenha ao menos a coragem. - Justine se pôs a rir com amargas gargalhadas vizinhas à histeria.

—Que fácil lhe é dizê-lo! Mas não é você quem deve apresentar-se ante o único homem a quem amou.... possivelmente a única pessoa além de minha mãe, que já está morta.... e lhe contar que é uma fulana, e uma assassina de coração, e não de fato só porque um irlandês louco chegou primeiro.

— Prefere a alternativa? - perguntou Charlotte com delicadeza. — Ou seja, que outra pessoa o diga. Se você o desejar, fá-lo-ei, mas só se me convencer de que verdadeiramente não seja capaz.

Justine, imóvel, cravou seu olhar no de Charlotte.

— Que deseja? - insistiu Charlotte. — Tempo? Por mais tempo que passe não haverá variação alguma no que deve fazer; mas se quiser, esperarei.

— A situação não mudará, verdade? - disse Justine ao cabo de um momento. — Não despertarei e descobrirei que aparecia você em um pesadelo?

Charlotte sorriu.

— Possivelmente eu desperte, e resulte que foi Kezia ou alguma criada quem o golpeou. Deu de ombros. — Ou possivelmente desperte o Rei Vermelho e desapareçamos todos.

— Como?

— Alice através do espelho - esclareceu Charlotte. — Se supunha que todo mundo formava parte do sonho do Rei Vermelho.

— E não pode você despertá-lo?

—Não.

— Vale mais, pois, que vá contar ao Piers - disse Justine.

Charlotte sorriu, mas guardou silêncio.

Justine se levantou da cama, vacilou, como se duvidasse se devia ou não vestir-se, e finalmente vestiu o roupão. Aproximou-se da penteadeira e pegou a escova para o cabelo. Com ele na mão, observou sua imagem no espelho. Estava cansada, pálida por causa do temor e tensão; tinha virtualmente desfeita a trança em que prendera o cabelo ao deitar-se.

— Eu não o faria - disse Charlotte, dando-se conta imediatamente de que não era assunto seu, e menos ainda naquele momento, tratar de influir em tal decisão.

Justine deixou a escova e voltou a olhá-la.

— Tem razão. Não é momento para a vaidade, nem para nada que pareça premeditado. - Mordeu o lábio. Não tinha o pulso totalmente firme. — Me acompanha?

Charlotte se surpreendeu.

— Tem certeza de que é isso o que quer? Este vai ser um dos momentos mais íntimos de sua vida.

— Não, não tenho certeza. Mas não me ocorre outra possibilidade. Se houver alguém mais presente, será mais fácil falar de maneira razoável e... e sincera. Em uma ocasião como esta, é melhor manter sob controle as emoções. A presença de outra pessoa evitará que nos digamos coisas que mais tarde desejemos haver dito de outro modo, ou não ter dito sequer.

— Tem certeza? - repetiu Charlotte.

—Sim. Por favor, vamos antes de que perca o aprumo.

Charlotte se levantou e seguiu Justine até o quarto do Piers, a curta distância no mesmo corredor. Justine se deteve ante a porta, respirou fundo e bateu.

Abriu-se a porta e Piers apareceu. Obviamente acabava de deitar-se e não tinha conciliado ainda o sono, o que não era de estranhar considerando o que lhe tinha proporcionado já aquela noite. Viu primeiro ao Justine.

— Acontece algo? - perguntou, alarmado. — Encontra-se mal?

Na exígua luz, seu rosto revelava funda preocupação.

— Sim -respondeu Justine com ironia. — Tenho que falar com você. Lamento vir a estas horas, mas amanhã ocorrerão outras coisas... possivelmente.

— Vestir-me-ei. - Dispunha-se a fechar quando viu Charlotte. — Senhora Pitt!

— Acredito que não há inconveniente em que entremos - disse Charlotte com determinação. —Podemos nos sentar no quarto de vestir.

— É muito pequeno... não há três cadeiras...

— Nas atuais circunstâncias, isso não importa muito - murmurou Charlotte, e se apressou a entrar. — Se ficamos falando no corredor ou passeamos pela casa mais do que o necessário, despertaremos a alguém, e não é conveniente.

— Por que? - Agora procurava dissimular se inquietação. Estava pálido e cansado. Tinha umas olheiras tão escuras como hematomas. Na frente o cabelo lhe caía sobre a testa e por detrás o tinha arrepiado. — O que aconteceu, senhora Pitt? Não morreu ninguém mais, não?

— Não - respondeu Charlotte imediatamente para tranqüilizá-lo. Embora possivelmente uma nova morte não teria sido pior noticia que o que Justine estava a ponto de lhe contar. — Sente-se, por favor. Eu ficarei de pé.

Manifestamente assustado, Piers obedeceu. Justine ocupou a outra cadeira e Charlotte se apoiou contra a parede, na penumbra do quarto de vestir. A escassa iluminação procedia de um único abajur. Piers devia tê-lo acendido antes de abrir a porta.

Justine lançou uma breve olhada a Charlotte e começou a falar.

— Piers, não sabemos quem fraturou o pescoço a seu pai, lhe causando a morte. Imagino que foi algum dos irlandeses, mas ignoro qual deles. - Mantinha a voz quase totalmente firme. Devia realizar um esforço colossal. — Mas fui eu quem lhe golpeou na cabeça com um pote de sais e o inundei na água... - interrompeu-se bruscamente e aguardou.

O silêncio era absoluto, salvo pelo leve sussurro do gás.

Duas vezes Piers abriu a boca para falar, descobrindo em ambas as ocasiões que não sabia o que dizer. Correspondeu ao Justine continuar. Sua voz enrouqueceu pela dor. Pela tensão de suas costas e a rigidez de seus ombros, Charlotte soube que tinha conservado certo grau de esperança até esse momento, e a partir daí a perdeu por completo. Falava com desespero.

— Tinha intenção de matá-lo - prosseguiu sem rodeios. — Se não o fiz, foi só porque estava já morto. Tempo atrás fui sua amante... por dinheiro.... e ele lhe ia dizer isso Sorrindo, zombando de si mesmo. — Pensei que não o suportaria. Ainda o amo, e desejava mais que nada neste mundo que você me amasse. Teria sido muito mais fácil de suportar que isto.... que ter que lhe contar isso eu mesma, e não só meu passado mas também o que agora fiz. Sinto... sinto me haver levado assim com você. Nunca entenderá quanto o sinto...

Piers a olhou como se não a tivesse visto até esse momento.

Justine lhe sustentou o olhar, sem evadir-se, quase sem pestanejar.

Charlotte permanecia imóvel. Haver-se-ia sentido como uma intrusa, se eles tivessem tido a menor consciência de que estava ali.

— Por que? - perguntou Piers por fim, seu rosto quase lívido por causa do horror e incompreensão. — Por que levava essa... essa espécie de... vida?

Desta vez Justine não empregou a palavra "fulana". Se esteve tentada de oferecer pretextos, resistiu. Charlotte nunca saberia se sua presença influiu de algum modo nisso.

— A princípio, para sobreviver - respondeu Justine com voz baixa e inexpressiva, como se seus sentimentos fossem muito profundos para deixá-los aflorar. — Meu pai morreu no mar, e minha mãe e eu ficamos sem nada. Ela estava condenada ao isolamento porque se casou com um estrangeiro. Sua família não nos ajudou. Depois , com o passar do tempo, acostumei-me às vantagens que essa vida me proporcionava: segurança, calor, e à longa liberdade da diária preocupação de como reunir o dinheiro para a comida e o aluguel da semana seguinte. - Respirou fundo e continuou. — Sabia que não duraria. As mulheres envelhecem e logo ninguém nos quer. Passados os trinta anos já não ganha muito, e depois dos trinta e cinco, menos ainda. Queria economizar para me estabelecer. Continuamente me fazia propósitos de deixar isso, mas era mais fácil continuar. Até que o conheci no teatro. Cheguei a amá-lo e compreendi então o preço que tinha pago por minha segurança. Abandonei essa vida naquele mesmo dia.

Piers permaneceu em silêncio, tremendo um pouco, como por efeito de uma comoção física.

Passaram os minutos: cinco, dez, um quarto de hora. Nenhum dos dois se moveu nem produziu o menor som.

Charlotte começava a ficar intumescida pela imobilidade e o frio, mas não devia interrompê-los. Justine não havia tornado a lhe dirigir o olhar. Fá-lo-ia se desejasse sua intervenção.

Finalmente Piers tomou ar e o deixou escapar em um prolongado suspiro.

— Não... - Meneou a cabeça em um leve gesto de negação. — Não se me... - Estava abatido, destroçado, confuso, muito doído para saber expressar-se. — Não me ocorre o que dizer – admitiu — Sin. ... sinto muito. Necessito um pouco de tempo... para pensar...

— Claro - se apressou a responder Justine com curiosa aceitação. Era a aceitação de uma derrota, de uma pequena morte em seu interior. Ficou em pé e olhou por fim para Charlotte. — Boa noite - disse ao Piers com um tom formal que era ao mesmo tempo absurdo e compreensível.

Que outra coisa podia dizer? Deu meia volta e se encaminhou para a porta.

Piers se levantou também e, com uma manifesta expressão de impotência, viu-a partir.

Charlotte a seguiu e fechou a porta ao sair. Retornaram pelo corredor para o quarto de Justine. Charlotte não sabia se ela desejaria estar sozinha, mas temia deixá-la, consciente de seu desespero. Sem perguntar, entrou no quarto atrás dela.

Justine caminhava como em um pesadelo. Parecia não saber sequer onde estava. Tropeçou com o canto da cama, batendo no ângulo de madeira, e mal percebeu a dor. Sentou-se bruscamente, mas não tinha forças nem para chorar.

Charlotte fechou a porta e se aproximou dela. Não havia nada que dizer com um mínimo de sentido. Teria sido ridículo falar de esperança ou inclusive imaginar planos futuros. Piers não podia ter agido de maneira distinta ou melhor, e todo esse caso fazia já parte do passado. Charlotte não sabia se seu contato proporcionaria consolo para Justine ou, pelo contrário, parecer-lhe-ia um intrometimento, mas instintivamente estendeu os braços para ela. Sentou-se a seu lado na cama e a abraçou com grande ternura.

Permaneceram imóveis naquela postura durante vários minutos, Justine rígida, paralisada pela dor. Finalmente relaxou e apoiou a cabeça no ombro de Charlotte. Aquilo não aliviava a ferida, mas aceitou a compartilhá-la por um momento.

Charlotte ignorava quanto tempo passaram ali sentadas. Aumentaram seu intumescimento e sua sensação de frio, salvo ali onde o corpo do Justine lhe transmitia calor. Começou a notar um formigamento em um braço. Quando não pôde resistir mais e os músculos começaram a ter cãibras falou.

— Convir-lhe-ia dormir um pouco. Se quiser ficarei lhe fazendo companhia, ou partirei se preferir.

Justine voltou lentamente a cabeça.

— Que egoísta de minha parte! - disse. — Fico aqui sentada como se não existisse ninguém mais no mundo. Deve estar esgotada. Desculpe-me.

— Não, não estou - mentiu Charlotte. — Deseja que fique? Em todo caso, poderia dormir aqui.

— Por favor... - Justine vacilou por um instante. — Não, seria uma tolice. Não vou esperar que fique comigo para sempre. Eu sou a responsável por minha desgraça.

— Todos somos responsáveis pela maior parte de nossas aflições – afirmou Charlotte com sinceridade. — Mas nem por isso as sofremos menos. Estenda-se na cama e abrigue-se. Possivelmente assim concilie o sono por um momento.

— Não quer deitar-se você também? Se não se cobrir, ficará gelada.

— Sim, claro que quero.

Charlotte se deitou, e Justine apagou a luz. Deitaram em silêncio. Charlotte perdeu a noção do tempo e não soube quanto tempo permaneceu acordada na escuridão até que a venceu o sono.

Despertou sobressaltada ao ouvir que batiam na porta. Demorou um momento em recordar que a pessoa deitada a seu lado não era Pitt mas Justine, e um instante mais recordar que fazia ali.

Levantou-se. Ainda levava posta o roupão. Colocou-se na cama sem incomodar-se em tirá-la. Procurou tateando o caminho para a porta. Abriu e viu o Piers no corredor, sua silhueta recortada contra o resplendor amarelo do abajur de gás. Pelas janelas do patamar não entrava ainda a menor claridade. Piers estava abatido, como se tivesse passado toda a noite em claro; entretanto olhou ao Charlotte fixamente, sem vacilar.

— Entre - sussurrou ela, fazendo-se a um lado.

Justine se endireitou lentamente, estendeu a mão para o abajur e o acendeu. Charlotte fechou a porta.

Piers se aproximou da cama e se sentou na beira, olhando para Justine. Ambos se esqueceram da presença de Charlotte.

— Como já sabe, a princípio pensei que o tinha matado minha mãe - disse com um enviesado sorriso. — Tinha uma boa razão. Ou Doll Evans, com maior razão ainda. Pobre Doll.

Justine escrutinou seus olhos, e em seu rosto se viu de repente que o desespero de horas antes dava passagem rapidamente a uma renovada esperança.

— Não se deu conta? - perguntou ela com doçura. — Wheeler está apaixonado por Doll, talvez há anos, mas depois do ocorrido com o Greville ela pensou que já não lhe interessaria...

— Por que não? - perguntou Piers, e lançou uma convulsiva gargalhada. — Doll não tinha nenhuma culpa. A pessoa pode deixar-se fascinar por alguém e sentir logo repugnância por essa mesma pessoa se não se ajustar ao ideal que alguém se formou.      - Mantinha o olhar fixo em Justine. — Mas quando se ama de verdade, espera que a outra pessoa seja real, como você o é, que tenha a faculdade e a possibilidade de agir estupidamente, de deixar-se levar pela ira e a cobiça, de cometer graves enganos... e que tenha deste modo a coragem de continuar tentando-o e a compreensão necessária para perdoar. E Wheeler nem sequer tem nada que perdoar à Doll.

Justine o olhava, e em seus olhos brilhava a esperança como um raio de luz na escuridão.

—São palavras muito valentes - sussurrou. — Acha que seremos capazes de nos guiar por elas?

— Não sei - admitiu Piers com franqueza. — Você tem a coragem de tentar? Acredita que vale a pena? Ou preferiria não correr o risco e se render agora?

Justine desceu a vista pela primeira vez.

— Duvido que disponha da oportunidade.... embora eu gostaria de tentar se pudesse. Tenho muitos defeitos, mas não sou covarde. Meu único desejo neste mundo é estar a seu lado. Ou isso, ou nada.

— Nesse caso... - começou a dizer Piers, lhe estendendo as mãos.

Justine as afastou.

— O senhor Pitt não o permitirá, Piers. Sou culpada de um delito.... não o delito que planejei, mas delito de todos os modos. Deter-me-á pela manhã, suponho. E se não então, mais tarde, quando descobrir ao verdadeiro assassino e esclarecer a morte do senhor McGinley.

— Possivelmente não o faça - interveio Charlotte. — Legalmente, é um delito, mas sem muita transcendência. - Olhou ao Piers. — A menos que você, como familiar mais próximo da vítima, apresente queixas contra ela pela profanação de um cadáver. Não sei o que decidirá. Tampouco sei o que pensará Tellman a respeito. Nem sei qual é sua obrigação.

Piers se voltou para o Charlotte com os olhos muito abertos.

— O que acontecerá com Justine? No pior dos casos a condenarão a alguns meses de prisão, suponho? - Olhou de novo a Justine. — Podemos esperar...

Justine abaixou a cabeça.

— Não diga tolices. Que clientela iria a sua consulta estando casado com uma mulher que tinha cumprido uma pena na prisão, e por cima por profanar cadáveres?

Piers guardou silêncio, tratando de achar argumentos.

— Não teria um só paciente - concordou Charlotte, lamentando a necessidade de ser realista. — Se veria obrigado a ir para o estrangeiro, possivelmente a América... - A perspectiva melhorava. — Além disso, desse modo Justine não correria o risco de encontrar-se com algum conhecido de outros tempos.

Justine voltou a cabeça para ela e a olhou com um sorriso irônico.

— Expressou-o com muito tato. - Olhou de novo ao Piers. — Não pode se casar com uma profanadora de cadáveres, querido, nem com uma fulana. - Fez uma careta de pesar ao pronunciar a palavra, usando-a para ferir-se a si mesma antes de que lhe ferisse ele. — Por exclusiva e cara que seja. - Pôs-se a rir. — Consta que muitas damas respeitáveis de boa posição e fortuna têm uma moral muito relaxada, mas o fazem por presentes, não por dinheiro, e existe uma grande diferença. Em realidade, não entendo por que. Elas não o fazem para ganhar a vida; têm dinheiro de sobra. Fazem-no por aborrecimento. Suponho que se trata do clássico abismo entre aficionados e profissionais. - Sua voz destilava sarcasmo. No fim das contas, o comércio é algo tão vulgar.

Os três prorromperam em uma risada ruidosa e entrecortada, próxima à histeria.

— Estados Unidos - sussurrou Piers, olhando primeiro para Justine e depois para Charlotte.

— Estados Unidos - repetiu Justine.

— E o que acontecerá com sua mãe? - perguntou Charlotte. — E se lhe necessitar?

— A mim? - disse Piers com surpresa. — Nunca me necessitou.

— E se seu tio Padraig for o verdadeiro assassino de seu pai e Lorcan McGinley?

Piers baixou o olhar com visível pesar.

— É muito possível, não?

— Sim. Pelo que parece, poderiam ter sido ele ou Fergal Moynihan, e sinceramente, não acredito que Fergal tenha coragem para isso.

Piers achou engraçada sua franqueza, mas era o humor do desespero.

— Não, eu tampouco acredito. Penso que Padraig, em troca, sim a tem. E não lhe faltam motivos, ao menos no que se refere a meu pai. Em qualquer caso, não vou ficar aqui, assim se minha mãe não quer retornar a Irlanda, com a família Doyle, que provavelmente a acolheria, será melhor que venha a América conosco. Duvido que se sinta em seu ambiente no longínquo oeste, mas todos teríamos que nos adaptar. Ali ao menos existirá uma grande necessidade de médicos, e não lhes importará muito se formos irlandeses, ingleses ou metade e metade, e certamente lhes trará sem cuidado nossa religião. E como você disse, não haverá grandes riscos de tropeçar com algum velho conhecido, ao menos se formos à fronteira. - Baixou um pouco a voz. — Mas viveremos na pobreza. O que tenho não nos durará muito. Suponho que ali a pessoa não pode pagar muito aos médicos, e possivelmente demorem um tempo em acostumar-se a mim e me aceitar. Terá que trabalhar duro. Não desfrutaremos de nenhum dos luxos a que aqui estamos habituados. Terá que prescindir dos criados, vestidos bonitos, cabriolés de aluguel, e entretenimentos refinados como o teatro, a música ou os livros. O clima será mais severo. Inclusive pode ser que haja índios hostis... Não sei. Continua disposta a ir?

Justine se sentiu dividida entre a esperança e o medo ao desconhecido, a austeridade e o perigo, um mundo acaso formoso mas aterradoramente novo para eles. Assentiu lentamente mas com absoluta convicção.

— Ainda temos que dizer algo a sua mãe.

Piers moveu a cabeça em um gesto de assentimento.

— Naturalmente. Mas ainda não. Vejamos primeiro o que faz o senhor Pitt com o tio Padraig e o que... decidiu a respeito de você.

Charlotte saiu por fim da escuridão.

— Não demorará para amanhecer. As criadas devem estar já levantadas. – Olhou ao Piers. — Acho que devemos voltar para nossos respectivos quartos e nos preparar para iniciar o dia. Necessitaremos de todas nossas forças, assim como a coragem e a inteligência que possamos reunir.

— É claro.

Piers foi à porta e a abriu para Charlotte. Voltou-se para Justine, e seus olhares se cruzaram em algo próximo a um sorriso.

— Obrigada - disse Justine a ambos. Depois, dirigindo-se ao Piers, acrescentou:      —Sou consciente de que temos ainda muito caminho por percorrer, inclusive se não me processarem. Deverei te demonstrar que sou quem me proponho ser. De nada serve lamentar uma e outra vez. Dar-lhe-ei prova disso estando a seu lado, cada hora, cada dia, cada semana, até dissipar todas suas dúvidas.

Charlotte e Piers saíram do quarto, olharam-se e se foram cada um por seu lado.  Quando Charlotte chegou a seu quarto, a lamparina do quarto de vestir continuava acesa, mas a porta do dormitório estava entreaberta e dentro não se via luz. Dispunha-se a tirar o roupão e entrar sigilosamente quando a sobressaltou um ruído a suas costas.

Deu meia volta e achou Pitt ao lado da porta, com o rosto abatido.

— Onde demônios se tinha metido? - inquiriu Pitt com voz empenhada pela inquietação.

Um súbito sentimento de culpa assaltou Charlotte. Nem sequer tinha pensado em lhe dizer onde se achava.

— Me perdoe - se desculpou, horrorizada de seu próprio comportamento. — Fiquei fazendo companhia à Justine. Estava... desolada. Contou tudo ao Piers. Levou-lhe toda a noite digeri-lo, que dadas as circunstâncias não é tempo apenas, mas acredito que o superarão. - Deu um passo para ele. — Sinto muito, Thomas. Não pensei...

— Não, certamente - respondeu Pitt. — Tentou matar ao Greville. Não pode protegê-la disso.

— E o que vai fazer? - perguntou Charlotte. — Detê-la por matar a um cadáver? Não duvido que seja um delito, mas que importância tem? Quero dizer... - Meneou a cabeça em um gesto de negação. — Sei que tem importância, mas o que ganhará processando-a?

Pitt guardou silêncio.

— Thomas.... sua conduta não ficará impune. Não pode ficar no país, e sabe disso. Quer abandonar sua antiga vida, e ela e Piers podem ir aos Estados Unidos, ao oeste, onde ninguém possa reconhecê-la.

— Charlotte... - disse Pitt, consumido pela tristeza.

— Não pode impedir que Piers se case com ela... se for esse seu desejo. E lhe contou...

— Tem certeza?

— Sim. Eu mesma a acompanhei. Não sei se o conseguirão ou não, possivelmente demorem anos em esquecê-lo. Mas Piers está disposto a tentar. Não pode simplesmente... fazer vista grossa ? Por favor? - A Charlotte passou pela mente dizer algo sobre Eudora, sobre o que isso significaria para ela, mas o descartou. Aquilo era um assunto entre ela e Pitt. Eudora Greville não tinha nada que ver. — A vida será já bastante difícil para eles -acrescentou. — Deixarão atrás tudo o que conheceram, levando consigo só seu amor, sua coragem e sua culpa.

Pitt se inclinou e a beijou longa e intimamente uma vez, e outra mais e ainda uma terceira.

— Às vezes me é impossível saber o que pensa - disse por fim com expressão de perplexidade.

Charlotte sorriu.

— Bom, não está nada mal, suponho.

Ao despertar, Gracie demorou um momento em recordar os acontecimentos do dia anterior: a vela estranha e pegajosa na habitação do Finn; seu olhar quando ela a tocou, um olhar de culpa que o delatou; depois sua ira quando ela fugiu, e por último sua detenção. Não era fácil mudar da noite para o dia seus sentimentos por ele. A lembrança de sua doçura seguia ainda muito viva em sua memória. Não podia desprender-se de uma emoção assim em só umas horas, não quando tinha impregnado tão fundo nela.

Levantou-se, lavou-se e se vestiu. Não lhe importava seu aspecto. Para seu trabalho, bastava-lhe ir limpa e asseada. A beleza já não lhe importava, face ao muito que lhe preocupava no dia anterior.

Ao descer, cruzou com Doll, muito ocupada mas com um sorriso distante no rosto. Gracie se alegrou por ela.

No refeitório achou Gwen, que tomava rapidamente um chá antes de levar a água quente para Emily.

— Sinto muito - disse Gwen com um gesto de lástima. Parecia um homem encantador. Mas é melhor que o tenha descoberto agora, e não com o passar do tempo. Um dia achará a um bom homem e se esquecerá disto. Ao menos conserva sua reputação e ninguém falará mal de você.

Gracie sabia que suas palavras eram bem-intencionadas, mas não achou consolo nelas. A dor da solidão continuava igualmente intensa como antes, ou mais intensa ainda, porque outros a conheciam. Provavelmente era melhor que fossem compreensivos com ela. Mas era surpreendente o muito que podia doer a amabilidade.

— Sim, suponho - respondeu, não porque estivesse de acordo, mas sim porque não desejava prolongar a conversa.

Serviu-se de uma taça de chá. Possivelmente o líquido quente mitigasse um pouco o frio que sentia dentro, e em todo caso lhe proporcionava algo que fazer para não ficar ali conversando. Talvez Gwen não demoraria para partir com a água. Logo a levaria também ela para Charlotte.

— Superá-lo-á - continuou Gwen. — É uma garota sensata e trabalha em uma boa casa.

As garotas sensatas sofriam igual às néscias, pensou Gracie, mas não o disse.

— Sim - assentiu distraidamente enquanto tomava o chá. Para que Gwen não pensasse que estava zangada, acrescentou: — Obrigada.

Gwen deixou sua xícara e partiu, dando uma palmada no braço de Gracie ao passar junto a ela.

Gracie tomou outro gole de chá sem saboreá-lo. Era já hora de levar a água para Charlotte. Supôs que convinha levar também para Pitt. Não era provável que Tellman tivesse pensado nisso.

O chá estava ainda muito quente para tomá-lo apressadamente. Não tinha bebido mais de meia taça quando se abriu a porta e apareceu Tellman. Tinha um aspecto horrível, como se tivesse passado a metade da noite em claro e lhe tivesse assaltado um pesadelo atrás de outro no pouco tempo que tinha estado na cama. Em circunstâncias normais teria sentido lástima por ele, mas naquele momento a consumia muito sua própria desgraça.

— Quer um chá? - ofereceu, lhe apontando o bule. — Está recém feito. Não lhe virá mau. Qualquer um diria que lhe deram uma surra.

— Encontro-me ainda pior que se me tivessem dado - respondeu Tellman, aproximando-se do bule. — Ontem à noite estive em pé até sabe Deus que hora. - Pareceu que se dispusesse a acrescentar algo e mudasse de repente de idéia.

— Por que? - perguntou Gracie, lhe estendendo o leite. — Está doente?

— Não - respondeu Tellman, evitando seu olhar.

Apesar de estar absorta em sua própria tristeza, Gracie percebeu que tinha ocorrido algo. Possivelmente guardava relação com o Finn. Devia inteirar-se.

— Por que ficou levantado até tão tarde, pois? Aconteceu algo?

Tellman escrutinou seu rosto e finalmente tomou uma decisão.

— O senhor Pitt também esteve em claro. Tentamos resolver o caso, isso é tudo.

— E está já resolvido? - insistiu Gracie.

— Não, ainda não.

— Ah.

Gracie não queria saber nada mais a respeito do Finn. Suspeitava do que podia tratar-se e o temia de tal modo que lhe formou um nó no estômago. E ao mesmo tempo desejava com desespero que Pitt achasse a resposta. Essa era sua principal lealdade, o fato decisivo que a tinha impulsionado a lhe informar sobre a dinamite.

Preferia não falar do assunto. Preferiria de fato desaparecer daquela casa. Mas não ficava mais remédio que ficar; em realidade, ninguém tinha outra opção, a menos que fugissem definitivamente.

— Vou levar a água - anunciou enquanto acabava o chá, já não tão quente. — A senhora Pitt deve estar a ponto de levantar-se.

— Duvido-o - respondeu Tellman. — Provavelmente despertou-a o senhor Pitt ao deitar-se. É possível que queira continuar dormindo.

—Pode ser, mas melhor será que vá comprovar - disse Gracie. Não queria ficar ali nada menos que com o Tellman. Dirigiu-se para a porta.

— Gracie...

— Sim - respondeu ela sem voltar-se. Não podia fazer-se de surda.

—O assassino do senhor Greville é uma pessoa acostumada a matar. Não agiu em um arrebatamento de ira, nem em defesa própria, nem por vingança, nem por algum outro motivo semelhante. Quero dizer... quero dizer que se tivesse sido Doll Evans ou a senhora Greville, ou alguém assim, a pessoa poderia justificá-lo. Não estaria bem, claro está, mas poderia compreender-se.

Gracie se voltou lentamente.

— Não foi Doll, sei, porque vi a mulher que o fez. Era mais baixa que Doll. Deve ser a senhora Greville ou a senhora McGinley, imagino.

— Não, não foi nenhuma das duas - respondeu Tellman com o olhar fixo nela e expressão tensa. A mulher que você viu tentou matá-lo, mas Greville estava já morto. Ela não sabia, mas ele tinha o pescoço quebrado. Isso averiguamos ontem à noite.

— O pescoço quebrado? Como sabe?

— Melhor será que não o diga. E não o conte por aí, entendido? É informação confidencial da polícia. É um segredo. Talvez fiz mal em dizer-lhe.

— E por que me disse? - perguntou Gracie.

— Não... - Tellman vacilou, visivelmente pesaroso. — Gracie.... eu não gosto de vê- la sofrer assim. - sentia-se perturbado e lhe ardiam as descarnadas faces; entretanto havia já começado e não se deteria. — Mas pensei que lhe ajudaria saber que a pessoa que matou ao Greville é um assassino profissional. Não é possível matar a alguém assim, de um só golpe, se não se tiver certa prática. - Seu mal-estar crescia cada vez mais.            — Provavelmente acham que o que fazem é correto, mas é uma atrocidade do ponto de vista de todo aquilo no que acreditam. Não pode perseguir a liberdade assassinando a outras pessoas pela simples razão de que as consideram um obstáculo. Que espécie de homem faria isso?

Tellman tinha razão. No fundo, Gracie já sabia. Compreendeu-o no instante em que viu a dinamite.

Foi como um raio de luz, como se se tivesse aberto uma porta. A partir desse momento, a suspeita cresceu em seu interior, convertendo-se em certeza. Não tinha perdido algo real; só tinha perdido um sonho. Mas os sonhos tinham às vezes muita importância, e era ainda cedo para sentir salva qualquer dor.

— Sim, sei - admitiu, sem olhar para Tellman. — Levarei a água de qualquer modo.  

— Gracie!

— O que?

— Tomara... tomara pudesse lhe oferecer consolo...

Gracie observou ao Tellman, de pé junto à mesa, desconfortável, tão cansado que tinha os olhos afundados, a cara larga. Ninguém o teria considerado belo, nem sequer bonito, mas Gracie percebeu nele uma ternura que a surpreendeu. Se não tivesse sido tão evidente, não teria dado crédito a seus olhos, mas Tellman se preocupava com ela, saltava à vista.

— Sim - sussurrou. — Acredito em você. É muito amável de sua parte. Vou... vou levar a água. Pode ser que a senhora Pitt esteja já acordada.

— Eu a levarei - se ofereceu Tellman. — Pesa muito.

— Obrigada - disse Gracie. Em todo caso, era seu trabalho, ou ao menos levar a água do Pitt o era, mas desta vez preferiu guardar o comentário.

Tellman foi até a porta e a abriu para que saísse. Depois encheu os baldes e os levou acima por ela, sem voltar a pronunciar palavra. Não sabia que mais dizer, e Gracie se deu conta. Não importava.

Quando Gracie entrou no quarto, Charlotte, longe de estar esperando-a, dormia profundamente, como Tellman tinha previsto, e tinha tal aspecto de cansaço que Gracie não teve coragem nem sequer dê fazer ruído, e muito menos de abrir as cortinas.

Deixou a água e saiu outra vez sigilosamente. Se Pitt devia levantar-se, era já outra coisa. Tellman deixou sua água no quarto de vestir, assim Pitt podia arrumar-se sem incomodar ao Charlotte. Sempre podia chamá-la quando despertasse.

Gracie desceu de novo, e ao passar ante a estufa, olhou de soslaio e viu dentro o senhor Moynihan e a senhora McGinley, muito perto um do outro e falando com a maior seriedade. Gracie sabia que não era assunto seu, mas se deteve para escutar.

— ... mas, Iona, não podemos nos separar assim, sem mais - disse Fergal, abatido.  — E como temos que fazê-lo? - perguntou ela com semblante triste e sereno, em marcado contraste com o dele, confuso e aflito. Inclusive se percebia em seu rosto certa zanga, como se não só se sentisse infeliz, mas também ofendido.

— Não se importa? - disse Fergal com um indício de ira na voz. — Só isso significa para você? Pode se despedir sem lutar pelo que deseja ou chorar quando o perde? Possivelmente eu dou mais valor a isto que você? - acrescentou em tom de desafio.

Não desejava que assistisse, mas se o fizesse, ele a tacharia de mulher fria, sem paixão nem sonhos, sem a realidade do amor.

— O que é exatamente o que você quer, Fergal? - perguntou Iona. — Sabe realmente? Quer-me , ou quer um grande idílio, uma causa perdida pela qual sofrer, e talvez uma desculpa para não ter que lutar por uma Irlanda protestante em que já não acredita?

— Não se confunda - respondeu Fergal, negando com a cabeça e entreabrindo os olhos. — Não se engane pensando que não sei para que luto na Irlanda. A esse respeito, jamais mudarei. Não me ajoelharei ante Roma, seja quem for a mulher a que ame, ou perca. Não venderei minha alma por uma superstição, por um punhado de contas de rosário e curas, renunciando às disciplinas e as virtudes de Deus.

— Isso pensava - respondeu ela com aborrecimento. — E imagino que você também sabe que não abandonarei a risada e o amor, a fé profunda de meu povo, em troca das lúgubres angustias do norte com seus ódios e suas acusações, seus castigos divinos e seus pastores avinagrados. Porque o amo sei que nos convém nos separar agora, enquanto ainda podemos guardar boas lembranças e lamentar a dor que nos causamos mutuamente, e não nos alegrar por ele. Quero recordá-lo com um sorriso.

Fergal ficou imóvel, ainda confuso. Iona tinha tomado uma decisão sem contar com ele, e isso também irritava ao Fergal.

Iona o olhou por um momento mais e depois se virou e se dirigiu para a porta do vestíbulo.

Gracie se viu obrigada a retroceder rapidamente uns passos a fim de afastar-se depois com certa dignidade, como se não os tivesse visto nem ouvido. Mas pensou nisso durante o resto da manhã enquanto realizava suas tarefas. Às vezes era tão fácil apaixonar-se, e tão difícil renunciar à magia, ao entusiasmo, ao colorido que o amor conferia a tudo. Mas essa espécie de sentimentos nem sempre resistia a prova da sinceridade, ou mais aflições que as momentâneas. Às vezes uma pessoa se mantinha leal a algo pela lealdade em si, não por convicção. O amor pelo amor era fácil de compreender. Era o que o senhor Moynihan sentia, e nesse momento estava indignado e doído porque seu amor não se transformou em algo duradouro.

A senhora McGinley podia prevê-lo. Demonstrava grande sensatez deixando-o antes de que se deteriorasse muito inclusive para recordá-lo.

Talvez também fosse melhor para Gracie afastar-se do Finn Hennessey quando podia ainda recordar agradando - na estufa com seus crisântemos e o aroma da pele do Finn e o contato de seus lábios. Era preferível não conhecer muito o resto, nem o abismo que existia entre eles. Algumas coisas não podiam explicar-se. Quanto mais as conhecia, pior era. Suas imaginações tinham coincidido em um ponto, e possivelmente isso era tudo.

Charlotte despertou sobressaltada. As cortinas continuavam corridas, mas obviamente era já meia amanhã. Pitt se tinha ido, e não ouvia criados no corredor.

Levantou-se imediatamente. Palpitava-lhe a cabeça e tinha a boca seca. Tinha dormido muito tempo e muito profundamente. Onde demônios se colocara Gracie e por que não a tinha chamado ninguém?

De repente recordou os acontecimentos da noite anterior: Pitt chegando já a uma hora avançada e lhe contando o que tinham descoberto; o encontro entre Justine e Piers e sua própria implicação; a irritação do Pitt e logo seu quente contato.

Mas não só o mundo do Piers se desmoronara; a menos escala, o mesmo tinha ocorrido à Gracie. Charlotte desejou poder ajudá-la, mas sabia que não havia nada que fazer. Não existia ajuda possível para essa espécie de dor, salvo não falar continuamente disso, não tentar convencer à pessoa afetada de que em realidade não sofria e que era o melhor que podia lhe ocorrer. Sobre tudo, nunca tinha que dizer-se às pessoas o que devia sentir e que não. Inclusive se a pessoa tinha passado antes pela mesma experiência, nunca era a mesma, porque cada pessoa era distinta e sua dor única.

Levantou-se lentamente da cama com a sensação de que lhe cairia a cabeça se não tivesse cuidado. Devia vestir-se. Ainda não sabia quem tinha assassinado ao Ainsley Greville e Lorcan McGinley, ao menos não oficialmente. Tinha a desagradável impressão de que tinha sido Padraig Doyle, com toda a aflição que isso implicaria.

Charlotte devia armar-se de forças para confrontá-lo. Eudora ficaria destroçada. Pitt se rasgaria de compaixão por ela, desejando ajudá-la, sentindo-se culpado por ser quem tinha descoberto e demonstrado a verdade.

Charlotte diria de boa vontade a Eudora que aquela era sua desdita e devia aprender a conviver com ela. Não era culpa do Pitt que ela não tivesse sido capaz de manter uma estreita relação com seu filho, ou que seu marido fosse um manipulador desalmado, ou que seu irmão fosse um assassino.

Mas se fosse sincera consigo mesma, em realidade queria dizer que Eudora tinha uma encantadora maneira de sofrer, e que sua vulnerabilidade absorvia uma parte do Pitt a que ela achava ter direito. Não era um sentimento muito digno de louvor.

A água dos baldes quase se esfriara. Podia chamar para pedir mais ou conformar-se com aquela. Em todo caso a água fria lhe ajudaria a despertar.

Abriu-se a porta e entrou Pitt. Deteve-se com expressão de surpresa.

— Está já acordada. - Franziu o sobrecenho. — Encontra-se bem? - Fechou a porta e se aproximou dela. — Tem mau aspecto.

— Obrigada - respondeu Charlotte com tom mordaz, afastando o cabelo dos olhos e procurando pegar a toalha.

Pitt a estendeu.

— Não seja sarcástica - reprovou. — Realmente está abatida. Suponho que não me tinha dado conta do esforço que representou para você evitar que isto se convertesse em um desastre, em especial para Emily.

— Está morta de medo pelo Jack... - respondeu Charlotte.

— Sei, e tem motivos para estar.

Bateram na porta, e Pitt foi abrir a contra gosto, esperando que fosse Gracie. Mas era Jack.

— Cornwallis está ao telefone; quer falar com você - disse.

Pitt deixou escapar um suspiro.

— Na biblioteca - acrescentou Jack. Parecia preocupado. Olhou Charlotte, esboçou um débil sorriso e seguiu ao Pitt.

Pitt desceu pela escada com uma sensação de aborrecimento e apreensão. Não tinha nada que dizer ao Cornwallis que lhe interessasse escutar. E entretanto havia algo ainda mais importante, um conflito mais essencial, que tinha conseguido aliviar. Um nó que o afogava se desenredou e se diluiu. Nunca compreenderia plenamente Charlotte. Tampouco o desejava. À longa, isso resultaria aborrecido. Havia ocasiões em que desejava que ela fosse mais obviamente vulnerável, mais dependente dele, ou mais previsível. Mas então teria sido também menos generosa, menos valente e menos sincera com ele, e esse seria um preço muito alto por tão exíguo consolo emocional. Charlotte não podia lhe oferecer todas as respostas que ele procurava, nem ele podia dar-lhe a ela. Mas o que se davam mutuamente bastava. O resto eram detalhes sem importância; podiam esquecer-se ou passar-se por alto.

Entrou na biblioteca e pegou o auricular do telefone.

— Bom dia, senhor - saudou.

Ouviu do outro lado da linha a característica voz do Cornwallis.

— Bom dia, Pitt. Tudo bem? Como vão as coisas por aí?

Pitt tomou uma decisão quanto à Justine sem dar-se conta sequer.

— Ontem examinamos o cadáver do Greville com maior vagar, senhor. Não se afogou. Morreu de um perito golpe no pescoço, à mãos de um assassino profissional ou no mínimo alguém que sabia bem o que fazia.

— Não é para surpreender-se - respondeu Cornwallis, decepcionado. — Isso só deve demonstrar o que já supúnhamos. Não podemos reter essa gente aí muito mais tempo, um dia ou dois no máximo, talvez nem isso. Não é possível mantê-lo em segredo, Pitt. O informe sobre a conferência deve apresentar-se amanhã. Não posso atrasá-lo mais de vinte e quatro horas.

— Sim, sei - disse Pitt pausadamente. — Descobri novos detalhes sobre o ocorrido, mas ainda não demonstram quem foi o autor do crime.

Falou com o Cornwallis do Finn Hennessey e a dinamite.

— Não pode lhe surrupiar nada? - perguntou Cornwallis, mas com uma inflexão descendente na voz, como se desse por sentada uma resposta negativa.

— Ainda não - respondeu Pitt, apesar de que um raio de esperança brilhava no fundo de sua mente, muito insignificante para aferrar-se a ele.

— O que pensa fazer agora? - insistiu Cornwallis. — Pelo que me contou, sem dúvida o culpado tem que ser Doyle ou Moynihan. E Hennessey dificilmente colaboraria com o Moynihan. Seus pontos de vista e seus objetivos são diametralmente opostos. Se não fosse assim, nem sequer existiria a Questão Irlandesa.

— Sou consciente de tudo isso, senhor - disse Pitt. — Mas não posso demonstrá-lo nem sequer para me convencer a mim mesmo, e muito menos a um tribunal. Entretanto voltaremos a investigar a colocação da bomba no escritório do Jack e tentaremos reconstruir melhor os movimentos do McGinley para averiguar como se inteirou de que a dinamite estava ali. Possivelmente possamos deduzir o que descobriu, e isso bastaria.

— Me informe esta noite do resultado, por favor - ordenou Cornwallis. — Embora não contribua com nada de novo.

— Sabe-se algo mais do pobre Denbigh? - perguntou Pitt. Não tinha esquecido o ponto de partida daquele caso, nem a indignação que lhe tinha produzido.

— Pouca coisa, e duvido que lhe sirva de muito. - A voz do Cornwallis soava muito longínqua, quase como se seus pensamentos estivessem também a grande distância.     —Pusemos a investigar a todos os homens que podemos nos permitir. Disponho de muito mais informação que há um par de semanas a respeito dos fenianos que atuam aqui em Londres. Mas o homem que seguia ao Denbigh, e que com toda segurança é responsável por sua morte, não está entre eles.

— Quer dizer que voltou para a Irlanda?

— Não.... essa é a questão. Era também um infiltrado; não pertence à organização. Reuniu certa informação sobre seus planos e a identidade de seus membros, e partiu. Suspeito que eles têm tanto interesse em apanhá-lo como nós.

Pitt ficou perplexo.

— Então quem é? E por que matou ao Denbigh?

— Acredito que essa é a chave - respondeu Cornwallis. — Possivelmente Denbigh o desmascarou, e ele o matou por isso, não para proteger aos fenianos. Mas a você isso não serve de nada, porque obviamente esse indivíduo não está no Ashworth Hall, ou já o teria visto. Tem um aspecto inconfundível. Seu homem só pode ser bem Doyle, ou Moynihan.

— Sim - concordou Pitt. — Sim, sei. Obrigado, senhor.

Pitt se despediu do Cornwallis e pendurou o auricular. Foi em busca do Tellman e o achou-o no refeitório com semblante sombrio, apoiado contra uma mesa.

— Tem chá?

— Não recém feito - respondeu Tellman com tom sério. Depois de um breve instante de hesitação, ergueu-se. — Prepararei um pouco.

Pitt esteve a ponto de detê-lo e dizer que tinham coisas importantes que fazer, mas mudou de idéia. De momento só precisavam pensar, e isso bem podia fazer-se com uma xícara de chá quente nas mãos.

Tellman retornou ao cabo de dez minutos com uma bandeja em que havia um bule, uma jarra de leite, xícaras, açúcar e pãezinhos. Deixou a bandeja na mesa com um grunhido de satisfação.

Pitt serviu o chá e ficou de pé com a xícara fumegante nas mãos.

— Repassemos tudo o que conhecemos a respeito dos movimentos do McGinley na manhã de sua morte - disse pensativamente. — Como sabia que a dinamite se achava ali? Hennessey não o disse, o que significa que Hennessey e seu senhor estavam em bandos opostos, suponho.

— Doyle - respondeu Tellman. — Hennessey trabalhava para o Doyle. Não tem outra explicação.

— Não mataram Denbigh os fenianos - informou Pitt. — Cornwallis acaba de me dizer isso.

O rosto do Tellman se iluminou por um instante.

— Apanharam ao culpado?

— Não... não, infelizmente não. Só sabem que não o matou um feniano. Foi outro infiltrado, como Denbigh. Os fenianos têm tanto interesse como nós em dar com ele.

— Porquê matou ao Denbigh?

— Possivelmente Deribigh descobriu sua verdadeira identidade.

— Do que nos serve isso? - disse Tellman, e tomou um gole de chá. Estava muito quente e, em lugar de beber, pegou um pãozinho. — Esse indivíduo não está aqui. Não o vimos. Não havia portas nem janelas forçadas, disso estou certo. Devem ter matado Greville Doyle ou McGinley. E de algum jeito um deles colocou também a dinamite, ou aqui alguém mente e em realidade pôs a bomba Hennessey.

Pitt guardou silêncio. Outra idéia rondava sua mente, ainda muito vaga.

Tellman começou a beber o chá com cuidado, soprando de vez em quando.

Pitt pegou um pãozinho e logo outro. Estavam deliciosos, rangentes e recém saídos do forno, cozidos com um pouco de manteiga. A seguir bebeu sua xícara.

— Vou interrogar ao Hennessey de novo - anunciou ao terminar. — Quero que você me acompanhe, e um par de lacaios. Poderia ser desagradável. Pedirei ao senhor Radley que também esteja presente, e Doyle, Moynihan e O’Day.

Tellman o olhou com assombro. Esteve a ponto de perguntar ao Pitt o que se propunha, mas se absteve. Deixou sua xícara e obedeceu.

O interrogatório teve lugar na biblioteca. Sentaram-se formando um semicírculo, e Tellman levou ali Hennessey e lhe tirou as algemas. Hennessey ergueu a cabeça e olhou ao Pitt com atitude desafiante, fazendo caso omisso a todos outros.

— Sabemos que trouxe você a dinamite a Ashworth Hall - começou Pitt. — Seria absurdo negá-lo, e em sua honra deve reconhecer-se que não o tentou sequer. Sim negou, em troca, ter colocado a bomba no escritório do senhor Radley, e acredito em você, porque outras provas indicam que não teve você possibilidade material de fazê-lo. Quem a colocou?

Finn sorriu.

— Nunca o direi.

— Deveríamos poder deduzi-lo - comentou Pitt.

Olhou aos presentes, concentrando-se primeiro em Fergal Moynihan, que estava sentado com as pernas cruzadas e tamborilava com os dedos no braço de couro de sua poltrona. Sua pele clara apresentava uma cor amarelada, e parecia aborrecido e mal-humorado. Junto a ele, Carson O’Day se mostrava impaciente e lançava nervosos olhares ao Pitt, Doyle e Hennessey. Era evidente que lhe irritava o enfoque de Pitt, convencido de que não chegaria a nenhuma parte. Padraig Doyle estava recostado em sua poltrona, mas mantinha uma atitude precavida. Jack simplesmente parecia em extremo preocupado.

— Isto é uma perda de tempo! - prorrompeu O’Day. — Imagino que nos perguntou já a todos onde estávamos exatamente, o que fazíamos, a quem vimos e quem nos viu. Isso é muito elementar.

— Sim, claro que o fiz - respondeu Pitt. — E com o que averiguamos, parece impossível que alguém colocasse a dinamite onde estava. Assim alguém mente.

— Pelo visto, lhe escapou uma possibilidade - disse O’Day com um tom de condescendência. — McGinley colocou a bomba. Não foi o herói que tentou desativá-la, como Hennessey nos induziu a pensar.... foi o assassino que a colocou para matar ao Radley. Só que era um assassino torpe, e só conseguiu que a bomba lhe explodisse nas mãos. Essa solução daria resposta a todas suas dúvidas, não?

— Todas as dúvidas quanto à explosão, sim - respondeu Pitt deliberadamente, começando a sentir um formigamento de entusiasmo no estômago. Devia andar com pés de chumbo. Ao menor deslize, perderia aquela oportunidade. — Mas não a respeito do assassinato do senhor Greville. McGinley não pôde matá-lo, porque você mesmo o ouviu falar com o Hennessey à hora em que se cometeu o crime.

O’Day o olhou fixamente, com os olhos cada vez mais abertos.

Ninguém se moveu.

— Não é certo que o ouviu? - perguntou Pitt com calma.

O’Day adotou a mesma expressão que teria se acabasse de escutar uma revelação assombrosa.

— Não... - sussurrou. — Não! Eu ouvi o Hennessey falar com o McGinley. – Voltou a cabeça para olhar ao Hennessey. — Eu ouvi você. Mas não ouvi as respostas do McGinley. Ouvi sua voz, Hennessey. Ouvi que respondia a perguntas, mas não ouvi a voz do McGinley. Em realidade não sei se estava ali... Dava-o como certo. Mas poderia estar você mentindo para encobri-lo, tal como fez em relação à dinamite. McGinley... -interrompeu-se. Não era preciso continuar. A súbita mudança de cor no rosto do Finn não deixava lugar a dúvidas. O’Day se voltou para o Pitt. — Aí tem seu assassino, delegado! Lorcan McGinley, ao serviço dos fenianos, os sabotadores da honra e a dignidade da Irlanda, da prosperidade e da liberdade dos irlandeses para escolher por si mesmos, e não mediante as balas ou a dinamite mas com o voto popular.... a verdadeira voz.

— Embusteiro! - prorrompeu Finn. — É um embusteiro! Um ladrão e um assassino! Onde vê a liberdade ou a honra em deixar morrer de fome a mulheres e crianças? Em expulsar a famílias inteiras de suas terras para apropriar-se. Vocês odeiam ao verdadeiro povo da Irlanda. Só se amam a si mesmos, sua cobiça, sua terra e suas escuras, hipócritas e tendenciosas maneiras de negar a verdadeira Igreja de Deus. São os fenianos os únicos defensores da Irlanda!

— O que sejam ou deixem de ser não é aqui a questão, Hennessey - disse Pitt com clareza. — Os fenianos não estavam atrás destes assassinatos.

O’Day ficou paralisado.

Doyle voltou bruscamente a cabeça para olhar ao Pitt.

Finn Hennessey o contemplou com total incredulidade.

— Sim, sem dúvida estava por trás alguém que queria sabotar a conferência - prosseguiu Pitt. — Porque temia as conclusões que pudessem alcançar-se e as recomendações que pudessem fazer-se ao Parlamento. O resultado das negociações não só preocupava aos fenianos.

— Foram os fenianos! -declarou Hennessey com tom desafiante.

— Não - lhe contradisse Pitt com crescente veemência. — Pergunte a seus amigos fenianos de Londres. Infiltrou-se em suas filas um homem de olhar fixo e olhos brilhantes que atentou já antes contra a vida do Greville, tratando de tirar sua carruagem do caminho, e mais tarde matou em Londres a nosso próprio infiltrado na organização...

— Seu infiltrado? - perguntou Doyle.

— Um policial chamado Denbigh. Foi assassinado pouco antes de iniciar a conferência. A princípio pensamos que o tinham matado os fenianos porque conhecia seu plano de assassinar ao Greville, mas agora averiguamos que não o matou um feniano. -Olhou ao Hennessey. — O utilizaram, Finn, como você já sabia; mas não o bando que você pensava. Utilizaram-no os protestantes. Eles o envolveram nisto, por suas próprias razões, e deixaram que vocês e os nacionalistas católicos carregassem com as culpas. Queriam que esta conferência fracassasse, porque não podem aceitar nenhum compromisso para não perder o apoio de seus próprios extremistas.

— Isso são tolices! - exclamou Moynihan. — É uma acusação absurda, mal-intencionada e irresponsável. Claro que foram os fenianos. É exatamente a espécie de táticas que empregam. Estávamos já perto de obter um acordo, e não podiam consentir que isso ocorresse. O culpado é Doyle!

— Estávamos perto de alcançar um acordo - interveio Jack com convicção. — Era um compromisso... um verdadeiro compromisso, no que ambas as partes cediam em algo. Mas possivelmente uma das partes não tinha interesse real em que as negociações chegassem a bom porto. Que lhes importava, pois, transigir, demonstrar uma atitude razoável, se sabiam que nada disso se levaria a efeito, que não sairia de fato dentre estas paredes?

— O homem dos olhos brilhantes... - murmurou Finn, olhando fixamente ao Pitt.           — Não era feniano?

— Não.

Finn se voltou para Doyle.

— Não. - Doyle negou com a cabeça e esboçou um leve sorriso. — Estamos buscando-o com tanto interesse como a polícia. - Lançou uma olhada ao Pitt. — Mas se repetir isso fora de Ashworth Hall, desmenti-lo-ei. - Voltou a olhar ao Finn. — Foi utilizado, Hennessey, e não pelos nossos.

Fergal, horrorizado, voltou-se de repente para O’Day.

Finn escapou de Tellman e se jogou contra O’Day, golpeando-o com os punhos. A poltrona de O’Day se derrubou, e rodaram os dois pelo chão.

Tellman fez gesto de intervir.

Doyle ergueu uma mão para detê-lo.

— Deixe-o, amigo - disse com tom lúgubre. — Se alguma vez um homem mereceu uma surra, esse é Carson O’Day. - Olhou ao Pitt com expressão de desgosto. — Não pode sequer acusá-lo de instigar o assassinato do Greville. E se não tivesse induzido ao McGinley a atentar contra Jack, o pobre não estaria agora morto por sua própria estupidez. Deus, é repugnante!

— Não - admitiu Pitt com irônica satisfação. — Mas com a colaboração do Hennessey, determinaremos a concatenação de provas e o enforcaremos por conspirar no assassinato do Denbigh, e isso bastará. - Baixou a vista para olhar para O’Day, que lutava no chão sob a raiva desenfreada do Finn, um homem utilizado, traído e finalmente condenado. — Acredito que o senhor Hennessey fará o possível para que isso ocorra.

— Sim, sem dúvida - concordou Doyle. — Que Deus ajude a Irlanda! 

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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