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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CONSPIRAÇÃO FRANCISCANA - P.2 / John Sack
A CONSPIRAÇÃO FRANCISCANA - P.2 / John Sack

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

 

 

A mata escondeu-se atrás de Conrad no pórtico de uma casa junto à Praça de São Francisco. A noite exalava um cheiro de neve, gelo e lama. No ar cortante, o mais leve ruído — de ratos andando sorrateiros nos esgotos abertos, do vento fazendo ranger as correntes de onde pendia uma tabuleta — ecoava de forma assustadora pelas ruas desertas. Ela desejava poder encostar-se no frade para receber o calor do corpo dele, mas sabia que Conrad iria preferir que os dois morressem de frio a isso.

À sua esquerda, tinha uma ampla visão de toda a praça até a basílica; à direita, o portão trancado a barras de ferro da Porta di Murorupto bloqueava lhes o caminho. Ela e Conrad tinham se levantado de madrugada, ainda no escuro, quando os sinos da basílica convocaram os frades para as preces da manhã. Saíram discretamente da casa de Donna Giacoma com os manuscritos mais uma vez presos ao corpo de Amata. Até então, não tinham visto nenhum sinal das sentinelas de Bonaventura, mas a cada instante que passava e o portão permanecia fechado Amata ia ficando mais nervosa. Tremia de ansiedade e de frio, pois o vento atormentava seus pés, seus tornozelos e suas canelas. Uma gota de suor gelado traçou um caminho sinuoso pelas saliências de sua coluna. Apesar dos maxilares tensos, os dentes batiam uns contra os outros, e tão ruidosos que o frade se virou e franziu o cenho.

— O Ângelus já deveria ter soado — sussurrou ele.

O tempo parecia estar custando a passar também para Conrad, pensou Amata. O céu ainda continuaria escuro por algum tempo, mas, apesar disso, cada batida do coração media a passagem de uma eternidade.

De repente, Conrad murmurou algo inaudível. Ela esticou o pescoço para enxergar por cima dos ombros dele. Duas lanternas vinham balançando da Via San Paolo, o caminho pelo qual tinham acabado de passar, e diretamente para onde eles se encontravam. Mais alguns passos e ela poderia ver os frades que as carregavam. Sentiu uma necessidade urgente de urinar; o medo apertava a parte inferior de seu abdômen e dava-lhe a sensação de estar desmanchando seus órgãos.

— Espere aqui — ordenou Conrad.

Colocou no chão a comida que a cozinheira de Donna Giacoma tinha embrulhado para a viagem.

— Esteja pronta, vá assim que o portão abrir. Alcanço você na estrada.

Antes que ela pudesse responder, ele já ficara de pé e caminhava abertamente pela praça, num passo cada vez mais rápido, até que praticamente corria quando chegou à basílica. O que ele está fazendo? As lanternas mudaram de direção e foram também para a igreja. Ela manteve os olhos fixos na parede lateral da basílica, que permanecia envolta na escuridão, esperando vê-lo reaparecer por uma porta diferente, como ela fizera no dia em que trouxera os manuscritos de São Damião.

Conrad saíra antes de ela poder lhe contar a idéia que vinha acalentando. Desejara falar-lhe antes, mas teve medo de abrir a boca, até de sussurrar, de emitir o menor ruído que pudesse revelar o local onde se escondiam. Preferiu esperar até que estivessem fora da cidade. E agora ele se fora.

Ela já havia ensaiado (e reensaiado) mentalmente o que diria. Em resumo, era o seguinte: será que ele permitiria que ela fosse também para as montanhas depois de devolver os manuscritos para as Damas Pobres? Sua vida na casa de Donna Giacoma fora a melhor que tivera desde que Simone della Rocca a arrastara para fora de Coldimezzo; entretanto, ela ainda precisava ser inteiramente livre. E, embora soubesse que não teria coragem de dizer exatamente essas palavras, seus sentimentos por Conrad também haviam ficado mais fortes. Jamais conhecera um homem tão interessado no seu bem-estar, ainda que não usasse as palavras mais amáveis para expressar isso, e que não lhe pedisse nada em troca. Lembrava-se da suavidade dos lábios dele roçando em sua testa quando se encontravam na saliência da montanha. "Um beijo de despedida, se viermos a morrer." Amata precisava daquele beijo naquele momento. Sabia que nunca poderia esperar nada mais além de amizade da parte dele. Mas ela possuía um desembaraço, uma engenhosidade que faltava nele. Ela seria de grande ajuda para ele assim que aprendesse como viver nas montanhas. Poderia inclusive livrá-lo das tarefas cotidianas para que ele pudesse passar mais tempo em contemplação. Construiria uma outra cabana para si e viveriam juntos, mas separados, como dois eremitas santos, e ele poderia ser seu conselheiro espiritual.

Os frades com as lanternas entraram na basílica e o medo dispersou as fantasias dela. Conrad! Onde você se meteu?

O sino do campanário da basílica tocou três vezes, o ângelus, finalmente! Amata murmurou a prece, nunca antes de forma tão sincera, ao pôr-se de pé, acompanhando com o olhos o porteiro que saía em passos cambaleantes da casa do portão:

— "O anjo do Senhor anunciou-se a Maria,

E ela concebeu do Espírito Santo.

Ave Maria, gratia plena, Dominas tecum..."

O sino tocou mais três vezes e o porteiro suspendeu a barra de madeira que trancava o portão. Ainda não havia nenhum sinal de Conrad do lado de fora da igreja.

— "Eis a escrava do Senhor.

Que seja feita a Vossa vontade

Ave Maria, grafia plena..."

Ela tinha que ir. O sino iria tocar mais três vezes, quando o Verbo se fizesse Carne e habitasse entre nós, seguido de um terceiro momento de silêncio para a última ave-maria e a antífona, seguidos de um repicar prolongado enquanto os devotos, por toda a cidade, com os olhos vermelhos de sono, se levantariam de seus colchões.

Amata saiu das sombras e encaminhou-se para o portão; mas o terceiro badalar não veio. Já estava no meio da praça quando viu o porteiro parar e olhar para o campanário com ar de surpresa. Agora percebia por que Conrad a tinha deixado. Fora ele quem puxara a corda do sino, e os frades com as lanternas o haviam tirado de lá — ou pior, haviam-no capturado.

O guarda desviou os olhos da basílica para ela. Ainda segurava a barra do portão. Deu-lhe as costas apenas por um instante para repô-la no lugar. Uma lanterna apareceu na porta principal da basílica e dirigiu-se para o portão. Amata estava presa dentro da cidade!

Acima do limite das casas no extremo norte, uma colina coberta de arbustos raquíticos subia até a Rocca. Os baluartes da cidade serpenteavam montanha acima, abrangendo a cidadela, de forma que a muralha norte da Rocca também constituía uma parte das muralhas da cidade. Amata escondeu-se entre os arbustos. Esperava poder ir caminhando entre as casas e a fortaleza c, depois, contornar o morro até chegar à parte baixa da cidade antes que os frades tivessem tempo de avisai os porteiros do outro lado. Também esperava que nem o frade nem o guarda fossem em seu encalço, Sabia que não dava para se esconder nos arbustos. Com a lanterna, seria fácil seguir suas pegadas pela fina Gamada de neve que cobria a encosta da montanha.

Ainda estava perto da praça quando ouviu alguém chamando com voz autoritária:

— Você aí, frade! Pare!

Sem olhar para trás, começou a correr, mas as sandálias deslizaram na superfície irregular e na camada de gelo que se formara sob a neve. Perdeu o equilíbrio e deu um grito ao deslizar um pouco montanha abaixo. Suas têmporas latejavam, mas recuperou o equilíbrio e recomeçou a subida.

— Vou atrás dele — Amata ouviu alguém gritar. — Você corta caminho pela cidade e fica vigiando lá embaixo.

Ela continuou avançando pelos arbustos, na esperança de poder deixar para trás o homem mais velho que a perseguia ou, no mínimo, de que a subida fosse igualmente difícil para ele. Agarrava-se nos arbustos conforme passava, sentindo os galhos lhe dilacerarem a pele das mãos e braços, mas, ao mesmo tempo, ajudarem-na a se manter em pé, pois os usava para se segurar. Os ruídos atrás de si ficaram mais distantes, o suficiente para ela perceber que ganhara distância do guarda. No entanto, ele ainda a perseguia, pois ela escutava umas imprecações ou o tilintar de metal, que indicavam a localização do guarda quando ele escorregava. Adiante, as primeiras luzes acinzentadas do dia desenhavam o perfil do monte Subasio.

Na metade da subida, Amata chegou a uma picada aberta que ziguezagueava montanha acima através dos arbustos. Mesmo coberta por neve, como era o caso, ela reconheceu o caminho para a Rocca. Parou e calculou que talvez conseguisse se livrar do guarda se primeiro fosse direto para o cume e depois atravessasse para o outro lado. Pelo ruído de sua respiração, ele parecia estar cansado, e a subida íngreme talvez fizesse com que desistisse de persegui-la. Subiu uns poucos passos mas teve de parar, assustada com uma passada irregular vinda do caminho acima. Tarde demais, reconheceu o som cauteloso de cascos, já que o cavaleiro emergiu da escuridão quase em cima dela. Se estivesse galopando em ritmo normal, o enorme cavalo de guerra a teria atropelado.

Correu para se esconder no ponto mais afastado da trilha, mas o cavaleiro bloqueou seu caminho.

— Pare, frade — disse ele. — Deus colocou-o em meu caminho.

Amata reconheceu a voz gutural de Calisto di Simone e ficou paralisada. Em um delirante segundo, imaginou que o vigia noturno o tivesse avisado, mas logo se deu conta de que não haveria como ele saber da situação em que ela se encontrava. Enfiou cabeça no capuz e procurou se manter imóvel, embora pudesse ouvir estalidos na vegetação se aproximando.

— Você é padre? — indagou Calisto. — Meu pai está morrendo e precisa se confessar.

Ela precisava decidir rápido, encurralada como estava, num dilema sem saída. O guarda surgiria a qualquer momento de dentro da mata.

— Sou, signore — respondeu com a voz mais grave possível.

Não dissera uma palavra sequer desde que saíra da casa de Donna Giacoma, e a rouquidão natural dos primeiros momentos do dia colaborou para a sua farsa.

— Ajude-me a subir. Não temos tempo a perder.

Calisto soltou o pé esquerdo do estribo. Estendeu a mão para Amata, enquanto ela apoiava ali o pé calçado com a sandália. Embora quase todos os seus dedos se dobrassem ao redor da mão dela, o dedo indicador permanecia esticado, incapaz de vergar-se. Ela sorriu um sorriso desagradável por baixo do capuz ao dar impulso ao corpo para montar na garupa. Era uma pequena vingança, mas sabia que aquele homem jamais se esqueceria de uma menina que tentara violentar. Por um instante, passou-lhe pela cabeça terminar o serviço ali mesmo — enfiar sua faca entre as costelas de Calisto e lhe roubar o cavalo. Entretanto, assim continuaria aprisionada dentro das muralhas, e, sem dúvida, um frade galopando em um cavalo de guerra definitivamente chamaria a atenção.

— Segure-se no meu cinto — ordenou ele, enquanto esporeava o cavalo. Ela se segurou com todo o cuidado, desejando, em vez disso, agarrá-lo pela garganta. Golpeou o animal no traseiro para que ele fosse mais rápido. Naquele momento, agradeceu a Donna Giacoma por sugerir que ela amarrasse os livros na cintura, um na frente e o outro nas costas. Isso não só lhe dava maior flexibilidade, como o livro que estava na frente agora lhe servia de escudo entre seu corpo e o de Calisto. Provavelmente, ela assim também aparentava mais idade, com uma circunferência maior na cintura.

Avistou a entrada do castelo à sua frente, escura como breu e contornada por tochas, abrindo-se como uma goela voraz. Prepare-se para voltar ao inferno, caçoou uma voz dentro de sua cabeça. Estava ciente de que agora seu corpo tremia inteiro de medo, não mais de frio, pois o suor lhe escorria pelos lados e sob os seios apesar do ar gelado.

E se Calisto descobrisse quem era ela? Caso não a decapitasse com a espada larga ou a acha-de-armas, ela seria presa e seviciada para sempre. Sentiu-se tentada a pular da garupa e correr para se esconder outra vez, mas ai teria de se haver com um guarda decidido a agarrá-la, e isso ela também não queria. Restava-lhe, então, fazer o papel da pessoa que dizia ser. Presenciara a Extrema Unção ser ministrada somente uma vez, quando seu avô morrera, o nonno Capitanio. Sabia que envolvia a santíssima crisma, mas não trazia nenhum tipo de óleo consigo. Será que poderia usar o óleo de oliva da casa e murmurar algo semelhante a uma bênção sobre ele? Talvez pudesse alegar a urgência da situação para justificar a supressão de parte do ritual. Decidiu que se ofereceria para ouvir a confissão de Simone e pediu a Deus para inspirar seus atos daí para a frente.

— Abaixe a cabeça! — gritou Calisto, enquanto atravessavam o pátio num tropel.

A porta da frente da Rocca se abriu e ele entrou no castelo sem desmontar. Transpôs vários corredores até chegar ao salão principal. Amata saltou do cavalo, ele apeou e entregou as rédeas a um criado. Diversas pessoas segurando velas acesas estavam reunidas ao redor de uma cama, no centro do aposento.

Amata mal podia acreditar que aquela figura mirrada, afundada nos travesseiros, fosse seu antigo torturador — aquela mariposa murcha, branca como pó, de asas e antenas arrancadas, com pequenas cavernas pretas no lugar dos olhos. A exceção de um dos braços que repousava fora das cobertas, a roupa de cama envolvia o resto do corpo, do pescoço aos pés, como uma mortalha cm forma de casulo. Ela caminhou direto para ele e postou-se ao lado da cama, mantendo o capuz na cabeça.

— Por favor, saiam da sala e fechem as portas para que eu possa ouvir sua última confissão — disse ela.

— Ele não fala — explicou Calisto. — Apenas balbucia alguns sons quase ininteligíveis.

Amata não tinha considerado essa possibilidade. Olhou para o vulto imóvel.

— Está paralítico? Consegue mexer a mão, um dedo, pelo menos?

— Está paralítico, mas apenas de um lado.

— Então vou recitar a ladainha do pecado para ele, e poderá responder "sim" ou "não" movendo o dedo para cima e para baixo ou para os lados.

Calisto assentiu e retirou todos da sala. Quando a porta se fechou atrás deles e ela se viu a sós com Simone, dirigiu-se ao inseto nos travesseiros:

— Consegue me escutar, pecador miserável? — começou.

Uma expressão de terror acendeu-se nos olhos fundos de Simone ao se voltarem para ela.

— É isso mesmo, você está morrendo. Pediram me para vir salvar sua alma do fogo do inferno. Alguma vez deu falsos testemunhos ou proferiu o nome de Deus em vão? — a mão dele fez um leve movimento. — Claro que sim. Milhares de vezes, pois foram muitas as que ouvi com meus próprios ouvidos. E também não é verdade que desonrou a Santa Mãe de Deus e a senhora sua esposa com seus atos de adultério, abusando das criadas e dos criados e até mesmo de sua filha, entregando-se à luxúria de seu coração? Concorda que merece queimar no fogo do inferno por milhões de eternidades por causa de seus crimes?

Agora, o terror se misturava à súplica nos olhos encovados, mas ela não abrandou o tom.

— Não é verdade que matou Buonconte di Capitanio quando ele rezava na capela de Coldimezzo, com o filho e a esposa Cristiana? Não é verdade que escravizou a filha dele e submeteu-a às mais cruéis violências? Não tente negar seus pecados, Simone, pois Deus enxerga dentro dos mais profundos recessos de sua alma perversa.

O velho cavaleiro tentou soltar-se, mas ela o agarrou pelo ombro e o imobilizou. Amata tirou o capuz da cabeça.

— Olhe para mim com atenção — ela ordenou. — Pode ver que sou aquela mesma Amata, Amata di Buonconte, a quem você destruiu, e não um padre? Não tenho o poder de aliviar sua alma, ainda que quisesse. Nesta mesma noite, você vai dançar com o demônio no inferno, e em todas as noites daqui em diante por toda a eternidade. Você está condenado ao inferno, Simone! Condenado, perdido!

Reunindo suas últimas forças, Simone estendeu o braço ainda são para pegar uma sineta na mesa-de-cabeceira, mas Amata segurou-lhe o punho com firmeza e manteve a mão dele suspensa no ar Ela sentia todo o poder dele se esvaindo.

— Quando vivi aqui como prisioneira — ela disse —, você era como uma sanguessuga grudada no meu coração, que chupava o sangue da minha vida. Agora, finalmente, a criatura nojenta despregou-se e voltou para o seu coração, onde, assim espero, vai se empanturrar até você estar podre demais para alimentá-la.

O cavaleiro começou a tossir, e a saliva lhe escorria pelo queixo. Foi sufocando mais à medida que fazia força para libertar a mão, e a palidez do rosto primeiro adquiriu uma tonalidade róseo-azulada, passando em seguida para um roxo intenso. Conforme o rosto escurecia, fios curtos e espetados da barba branca iam surgindo em sua face. Para Amata, pareciam estrelas emergindo num céu que anoitece. A novidade da imagem captou sua atenção, embora parte de sua mente também registrasse que Simone não estava conseguindo respirar. Nesse estado de fascinação que se assemelhava a um sonho, segurou firme o punho do homem até ele parar de fazer força. Então, cruzou-o sobre seu peito. Tirou o outro braço de debaixo das cobertas e colocou-o sobre o primeiro.

— Canalha — disse ao deixar a mão cair.

Secou os olhos com as costas da mão para deter as lágrimas quentes que inesperadamente brotaram.

— Você chegou até a roubar o anel que nonno Capitanio deu a meu pai.

Tentou tirar-lhe do dedo o anel de lápis-lazúli, mas a mão estava muito rígida.

— Covarde, ladrão, canalha — disse entre dentes.

Tentou apanhar a faca que trazia presa à cintura, com a intenção de decepar-lhe o dedo do anel, mas naquele exato momento a porta se abriu com estrépito. Cobriu outra vez a cabeça com o capuz e disse numa voz soturna:

— Foi-se. Que a sua alma receba agora sua justa recompensa. Gesticulou com a mão sobre o cadáver, tomando cuidado para não fazer o sinal-da-cruz e abençoá-lo sem querer, depois se dirigiu para a porta. No corredor, Calisto se empertigou, numa pose condizente com o novo signore de Rocca Paida.

— Pare na cozinha antes de partir, padre.

Fez sinal para uma criada, e Amata seguiu a mulher.

Ela conhecia muito bem o caminho para a cozinha, assim como sabia onde todos os outros corredores daquele labirinto iam dar. Quantas vezes ela e sua ama tinham brincado de esconde-esconde naqueles corredores? Quantas vezes os utilizara para escapar de Simone e de seu filho? A certa altura, onde dois corredores se cruzavam, deixou que a criada fosse em frente enquanto tirava as sandálias e saía depressa, nas pontas dos pés, para a direita. Precisava alcançar a próxima esquina antes que a mulher se desse conta de que ninguém mais vinha atrás dela. Foi para a esquerda, depois para a direita, desceu um lance de escadas e chegou ao portão norte do castelo. Levantou a barra que o trancava e empurrou-o para abrir.

Estava livre, fora das muralhas do castelo e do lado de fora da cidade! Agora podia contornar Assis sem dificuldade, mantendo-se a uma distância segura das fortificações e usando a proteção dos bosques dos arredores enquanto seguia para São Damião. Devolveria os manuscritos e, então, se a boa sorte não a abandonasse, encontraria Conrad. Se ele tivesse conseguido escapar, fugiria para o eremitério; ela o seguiria até lá e lhe contaria seus planos.

O céu clareara, branco e límpido, salvo por uma nuvem de chuva solitária, tão escura quanto cinza de carvão, que pairava exatamente em cima da Rocca. Enquanto a observava, a nuvem começou a deslocar-se, devagar no começo, logo mais rápido, na direção do sul. Amata pensou: lá vai aquela alma tenebrosa e irredimível, acompanhada dos milhões de imagens sórdidas que a alimentavam. Visualizou Simone se contorcendo num mar de chamas, gritando de dor, sendo espetado por uma legião de demônios armados de lanças e forcados em brasa. Obrigada, Senhor, rezou, por permitir que eu tomasse parte na perdição da alma de Simone.

Vingara a morte dos pais — ainda que só parcialmente. Algum dia, de alguma forma, iria infligir vingança igual a Angelo Bernardone, o comerciante de lã que contratara Simone e seu filho sanguinário.

 

No primeiro dia, Conrad ficou numa cela isolada, esperando Bonaventura decidir seu destino. Dois frades o revistaram e levaram seu breviário, a carta de Leo, seu sílex e a faca que usava para comer. As anotações, ele as havia deixado para trás, na casa de Donna Giacoma. Quanto à carta, havia muito que a conhecia de cor e, de certa forma, teve uma sensação de alívio por se livrar de suas outras posses. Agora não tinha absolutamente nada, salvo a roupa do corpo que o recato exigia. Os frades deixaram-lhe os dois hábitos — a velha e esfarrapada túnica que ele insistira cm vestir ao sair da casa de Donna Giacoma, e a nova que ela insistira que ele vestisse por cima. A senhora achava que o guarda do portão ficaria mais propenso a deixá-lo passar se estivesse vestido como um irmão Conventual. Entretanto, os frades levaram embora a capa de lã e arrancaram o capuz dos seus dois hábitos, para indicar o estado de desonra cm que encontrava.

A cela úmida do subterrâneo tinha o aroma de terra recentemente remexida. Ficou grato pelo hábito extra, já que não podia movimentar-se para se manter aquecido. Um grilhão de ferro lixado na parede prendia-lhe um dos tornozelos e uma caleira de couro restringia os movimentos da parte superior de seu corpo. Passadas algumas horas no aposento sem janelas, ele perdeu toda a noção de tempo. Não soube em que ponto do dia ou da noite os frades voltaram. Um soltou-lhe o tornozelo e o outro puxou-o para fora por uma corrente presa à coleira. Lembrou-se de ter visto, em um festival da colheita, um urso ser puxado pela coleira e acorrentado a uma estaca, onde tivera que lutar contra uma matilha de cães ferozes e afinal sangrar até morrer devido às inúmeras feridas causadas pelas dentadas. Talvez tenha sido essa lembrança que provocou um mau pressentimento em seu coração.

A claridade do aposento em que finalmente entraram obrigou Conrad a fechar os olhos e apertá-los por um instante. Ao reabri-los pouco a pouco, viu um fogo crepitante num canto e, em uma pilha ao lado, uma ameaçadora coleção de tenazes, atiçadores de chamas e ferramentas de metal de formatos estranhos. Um terceiro frade estava inclinado sobre o fogo. Seus captores o haviam levado para uma sala de tortura!

Teve o súbito pressentimento de que Bonaventura pretendia marcar sua testa antes de deixá-lo partir — uma advertência para outros irmãos desobedientes. A entrada de Conrad, o irmão torturador extraiu das chamas um atiçador e soprou-lhe a ponta em brasa. Pequenas fagulhas se espalharam, e a ponta pulsou com um alaranjado vibrante. E agora vem a garra do grifo, pensou Conrad.

Os dois frades o levaram para uma parede, onde o acorrentaram pelos tornozelos e punhos. Um dos grilhões beliscou a pele de sua perna quando se fechou com um estalido e ele gritou sem querer. Sem virar o rosto, o homem que estava junto ao fogo disse:

— Como disse o gavião para a galinha ao agarrá-la: "Pode gritar agora, mas o pior ainda está por vir."

Conrad conhecia aquela voz, porém quando a escutara da última vez ela vinha de alguém tão aflito como ele estava agora. O homem se virou devagar e, na claridade incerta do fogo, o frade viu o cabelo cor de palha e a cicatriz que lhe cobria metade do rosto. A boca se contorceu num sorriso perverso, enquanto o olho bom de Zefferino o fitava.

— Uma aparência nada agradável, não é, irmão? Dá para entender por que pedi para ser o carcereiro aqui. Lá em cima, este rosto só causa repugnância e zombaria.

Fez sinal para os outros dois saírem na sala.

— Torturar é um trabalho novo para mim. Não quero que eles passem mal caso eu estrague o serviço — explicou a Conrad.

— O que você pretende fazer?

Zefferino virou-se de novo e falou para as chamas:

— Pretendo observar uma antiga lei: olho por olho.

Girou a cabeça e lançou um olhar de pura maldade para Conrad.

— Mas por quê?

— Por se meter onde não é chamado. Achou que podia desconsiderar a advertência do ministro geral sem ser punido? Quando si è in ballo, bisogna ballare. Quem vai para o baile tem de dançar.

— Zefferino, pelo amor de Deus! — implorou Conrad. — Eu lhe dei a absolvição quando você pensou que estava morrendo. Mandei que fossem socorrê-lo na capela.

O frade não respondeu, e Conrad continuou:

— Cristo aboliu a lei do Velho Testamento. Ele a substituiu pela nova lei do amor e do perdão. Perdoe seu inimigo setenta vezes sete.

Zefferino endireitou o corpo e soprou o atiçador pela ultima vez.

— Ele também disse "Se teu olho te ofende, arranca-o". E o teu olho, a tua visão sem obstáculos ofende-me muitíssimo, frei Conrad. É por tua causa que sou o que sou e estou hoje onde estou.

Enquanto o frade atravessava a sala, passou rapidamente pela mente de Conrad um episódio da vida de São Francisco, da época em que os doutores tentaram lhe curar a cegueira cauterizando as veias desde a mandíbula até a sobrancelha. Embora amedrontado, Francisco implorou ao Irmão Fogo: "Seja bondoso comigo nesta hora. Seja delicado. Modere seu calor para que eu possa suportá-lo quando me queimar." Conrad repetiu o apelo, dirigindo-se ao atiçador inanimado.

O cheiro do ferro em brasa perto de seu rosto ressecou-lhe as narinas, e ele cerrou os olhos. A explosão de uma dor cruel atravessou sua pálpebra quando a garra incandescente queimou-lhe a carne. Conrad gritou, a despeito da estóica imagem de São Francisco em sua mente.

— Alegre-se por eu ter perdido apenas metade da minha visão, irmão! — Zefferino gritou mais alto que os seus guinchos de dor, pouco antes de Conrad tombar, inconsciente.

 

Orfeo nunca imaginou que as muralhas de Assis pudessem lhe parecer tão acolhedoras. A última semana da viagem tinha sido terrível, com a neve cada vez mais alta e os lobos se tornando mais audazes a cada dia, em busca dos restos de comida deixados pelo comboio. Os romanos perderam dois cavalos, numa noite em que, assustados, os animais conseguiram se soltar e fugiram do acampamento, levando atrás de si a matilha de lobos. Só dois dias mais tarde os lobos voltaram.

As muitas horas de montaria o abateram. Se aprendera pelo menos uma lição nesta viagem, era saber que preferia mil vezes o banco duro de madeira de uma galera a uma sela de couro. Pelo menos o banco não saía do lugar. O papa, por ser mais velho, estava ainda mais esgotado que ele, pois sua carruagem ia aos solavancos pelo calçamento de pedra da estrada, adernando de um lado para o outro num sacolejar interminável. Tebaldo apreciava os pernoites nas vilas maiores e nas cidades, onde podia sair para esticar as pernas, enquanto agradecia os aplausos e a boa acolhida de seus moradores, e também dormir mima cama de verdade.

A comitiva papal entrou em Assis pelo portão sudoeste. A população se enfileirou ao longo da muralha sul, debruçando-se e acenando entre as ameias, e centenas de pessoas se espalhavam do lado de fora da cidade. Como em todos os outros lugares por onde passavam, as montanhas ao redor ressoavam com gritos de "Viva o papa!".

No sopé do morro, à esquerda, Orfeo avistou o convento onde as freiras de seu tio Francisco viviam. Uma mulher desacompanhada, vestida com um manto negro sobre um hábito cinzento, subia o caminho que vinha de São Damião. Dirigia-se para a estrada principal a passos rápidos, apressando-se para participar do espetáculo.

Orfeo apeou quando a carruagem do papa se deteve diante do portão. A multidão se afastou para dar passagem a um cidadão ricamente vestido e a um frade. O pontífice foi ao encontro deles.

Orfeo supôs serem o prefeito da cidade, que não reconhecia, e frei Bonaventura, o ministro geral que Tebaldo elogiava tanto. Faltava apenas o bispo de Assis para completar o quadro.

O jovem aproximou-se puxando seu cavalo, enquanto o líder secular e o religioso caíam de joelhos diante do papa e beijavam-lhe o anel. Ao se levantarem, Tebaldo conversou quase que somente com Bonaventura sobre a reforma da Igreja e o Concilio Geral, que pretendia convocar assim que estivesse acomodado à sua nova função. O ministro geral respondeu que o palácio do bispo, ora desocupado, fora preparado para a visita de Sua Santidade, e que desejava discutir com o papa sobre a vacância do bispado. Adiantou que tinha um excelente candidato em mente, um de seus frades. Os dois homens então recuaram quando Tebaldo fez sinal para que Orfeo se aproximasse.

— Queremos abençoá-lo, meu filho, antes que siga seu caminho. Saiba que seremos eternamente gratos por sua ajuda e que, se algum dia necessitar de um favor do papa, basta pedir.

Orfeo ajoelhou-se na neve derretida diante de Tebaldo, que colocou as duas mãos sobre sua cabeça e rezou em silêncio. Depois, segurou Orfeo pelos ombros e o ajudou a levantar-se.

— Lembre-se do que lhe falei. A animosidade entre pai e filho quebra a ordem natural das coisas. Vá e faça as pazes com os seus. Que muitos sejam os seus dias, e que sejam repletos de graças e alegrias, e que Nosso Pai o receba em Seu seio quando chegar a sua hora. Jamais o esqueceremos.

A multidão calara- se durante a bênção do papa. Ao olhar em volta, Orfeo viu um respeito próximo da reverência nos olhos dos espectadores. Sem dúvida, eles não o reconheciam como um dos seus, mas apenas sabiam que em alguém da predileção especial do santo padre.

Na frente da multidão, encontrava-se a mulher do manto negro. Era jovem, bela e parecia-lhe vagamente familiar, embora a maioria das mulheres da região tivesse aqueles olhos escuros amendoados. Ela também o fitava com curiosidade. Tentou imaginar que aparência ela teria seis anos antes, mas desistiu quando se deu conta de que seria pouco mais do que uma criança — como ele próprio, naquela época.

Outras autoridades se aproximaram para receber a bênção do pontífice. Orfeo puxou seu cavalo pela rédea e foi passando pelo meio do povo reunido rumo ao portão. Observou que a mulher o seguia a uma curta distância, talvez querendo ouvir o que ele diria ao guarda. Parecia interessada. Ele aproveitaria a oportunidade para se apresentar.

O porteiro o cumprimentou:

— Está pretendendo ficar uns tempos conosco, signore?

— Estou de volta. Ainda não sei por quanto tempo — e riu do olhar de espanto do guarda. — Não me reconhece, Adamo? Sou Orfeo di Angelo Bernardone.

— Meu Deus, como você cresceu — disse o guarda. — Era um molecote quando foi embora. Olhe só agora! Um homem feito.

Orfeo sorriu e relanceou os olhos com ar displicente para a mulher. A ferocidade do olhar dela ao passar apressadamente por ele e entrar da cidade o deixou perplexo.

 

Enquanto ia subindo pelas ruas da cidade, Amata visualizou o filho de Bernardone outra vez, o homem vagamente familiar que encontrara no portão e que se chamava Orfeo. Sua imaginação se agitou. O velho Angelo provavelmente sofreria muito mais com a morte do filho do que se ela o atacasse diretamente. Teria de perguntar ao Maestro Roberto onde vivia o clã. Inventaria um pretexto para ir até lá, num dia de feira, talvez, em que os Bernardones estivessem em grupo exibindo suas mercadorias. Para sua própria segurança, deveria exterminar toda a família, galho, tronco e raiz, mas, caso conseguisse se vingar apenas nesse Orfeo antes que alguém lhe tirasse a faca da mão, morreria satisfeita.

A euforia que tomara conta de Amata nos últimos dois dias, desde que despachara Simone della Rocca para o inferno, acabou se momentos depois de chegar à casa de Donna Giacoma.

— Bonaventura o pegou disse a senhora assim que Amata entrou em casa. O vazio daqueles olhos verdes refletia sua aflição. Pela primeira vez desde que Amata viera a conhecê-la, a senhora parecia ter perdido as esperanças e aparentar toda a idade que tinha.

— O menino Ubertino voltou ontem à noite. Contou que os frades capturaram Conrad na basílica e o levaram para a masmorra.

Amata precisou de uns instantes para absorver o choque daquela notícia. Sua mente ainda estava imersa em imagens da vingança contra Angelo Bernardone e seu filho. Quando finalmente falou, a voz estava tão desanimada quanto a disposição da nobre senhora.

— Voltei para avisar à senhora que queria ir com ele.

Donna Giacoma inclinou a cabeça e suspirou, recitando:

— Amor regge senza legge. O amor rege sem regras.

Pegou o braço de Amata.

— Nunca daria certo, filha. Onde quer que ele viva, livre ou encarcerado, Conrad será somente de Deus.

E acrescentou:

— Mas fique aqui conosco e seja paciente. Pode ser que ele ainda seja libertado. Amata assentiu, embora mal tenha escutado as palavras. Retirou o braço e foi para o quarto atordoada. Estirou-se na cama e escondeu o rosto com as mãos. Tocou a faca escondida sob a manga, resistindo à tristeza e à vontade de chorar. Realmente não me resta nada a não ser a vingança, pensou.

Sua mente levou-a de volta a Coldimezzo e, da balaustrada de sua torre, escutou novamente a discussão entre o pai e o comerciante de lã. Lembrava-se que os filhos de Angelo Bernardone tinham-se agrupado em torno do pai enquanto ele bradava e ameaçava. Todos, exceto um deles, o rapaz bonito que desencadeara nela o devaneio sobre bebês. O menino não dera qualquer atenção ao tumulto. Em vez disso, improvisara um fantoche com um lenço amarelo e virara-se na montaria para sorrir para ela — o mesmo sorriso complacente que acabara de ver em seu rosto quando se virará para ela no portão.

Não conseguiu mais abafar as lágrimas, que caíram livremente sobre o travesseiro.

— Ele não! — murmurou. — Oh, papa, mamma, Fabiano... Será que tem de ser ele a pagar?

Chorou até esgotar toda a tristeza de seu coração. Então, sentou-se na beirada da cama e enxugou o rosto com a manga. Enquanto o coração vazio se petrificava em seu peito, Amata sussurrou a promessa:

— Que seja. Ale mesmo ele.

 

Conrad tentou suportar seu sofrimento um instante de cada vez. Posso lidar com a dor por este instante, se não mais, repetia para si. Por este instante, se não mais. Por este instante...

Andava cambaleante atrás da luz da tocha de Zefferino, protegendo o olho mutilado com a palma da mão. Ouviu o clique de uma chave num cadeado e o carcereiro levantou a grade de uma cela. Ainda tremendo por causa do choque, Conrad o seguiu escada abaixo, pelos degraus gelados. Na câmara de tortura, Zefferino amarrara tiras parecidas com peias de falcoeiro em seus tornozelos e agora passava uma corrente através das alças e a prendia aos grilhões. Uma escuridão negra como o pecado mortal envolveu-o assim que o guarda fechou a grade e a luz da tocha desapareceu aos poucos na passagem que servia de corredor para aquele submundo. Lutou para não perder a consciência, mas acabou sucumbindo e mergulhou novamente num vácuo.

Mais tarde — minutos, horas ou dias, não saberia avaliar — fez força para se levantar. A tremedeira havia passado, mas a dor aguda no olho era excruciante.

Não era a mesma cela em que estivera antes. Nesta havia um declive que começava junto aos degraus e terminava na extremidade oposta. O silêncio também não era total. Escorria água pela parede à sua direita. Tateando as pedras da parede com uma das mãos, andou até encontrar uma área úmida e inclinou-se para receber no olho, agradecido, o fio de água gelada. Enquanto molhava a ferida, refletia sobre a ironia da situação: como, através dos intrincados propósitos da mente de Deus, ele e Zefferino haviam perdido um olho, e nenhum dos dois aprendera nada com isso. Ambos tinham sido igualmente impedidos de cumprir suas missões. Ele se tornara um prisioneiro de verdade; Zefferino estava praticamente encarcerado ali dentro. E, no entanto, apesar dessas características em comum, Zefferino insistia que eram inimigos.

Sentiu um fedor vindo do canto. A água deve empoçar ali e formar uma latrina ao escoar por um buraco na parede. Mas, se a latrina fedia, devia estar sendo usada. Virou-se e percorreu o ar pesado com a vista que lhe restava.

— Há mais algum prisioneiro aqui? — perguntou.

Um estalido de metal ecoou do outro lado. Uma voz fraca crepitou como o estertor de um moribundo.

— Por que estamos aqui, mamma? Por que não pudemos ir embora?

— Qual o seu nome, irmão? — perguntou Conrad.

A voz prosseguiu numa toada monótona:

— "Uma cerca de arvores me rodeia, a melodia do cuco soa para mim."

Conrad encostou de novo o rosto na parede molhada. A água escorreu-lhe pelo queixo e pelo hábito como uma fonte de desespero. Ele sabia que, ao longo dos anos, muitos frades haviam sido presos sob a acusação de serem cismáticos ou hereges e condenados à prisão perpétua, privados de livros e de sacramentos. Os ministros temiam tanto a influência desses homens que até os frades que lhes levavam comida eram proibidos de falar com eles. Todas as semanas, o hebdomadário relia suas sentenças nos capítulos dos vários mosteiros, com a clara implicação de que qualquer irmão que refletisse em voz alta sobre a injustiça dessas sentenças compartilharia igual destino. Conrad tinha consciência de que não era herege; contudo, Bonaventura poderia considerá-lo cismático e usar este pretexto para sentenciar-lhe prisão perpétua também. Quantos meses ou anos levaria, ponderou, para ficar igual ao pobre coitado do outro lado da cela?

O homem cantou novamente, dessa vez um poema que Conrad lembrava de seus tempos de menino:

— "O navio parte esta noite

Sob o brilho claro do luar,

Com velas brancas a ondular.

O navio parte esta noite."

Conrad teve um repentino c perturbador vislumbre da identidade do companheiro de cela. Aumentou o tom de voz como se tivesse chamando por alguém:

— Giovanni. Giovanni. Está na hora de entrar.

— Vengo, mamma — o homem respondeu com voz de criança. — Estou indo.

Os ruídos de passos arrastados e de metal tilintando ficaram mais próximos à medida que diminuía a distância entre eles. O homem parou a apenas alguns passos e Conrad afinal distinguiu uma criatura quase despida, cadavérica, cambaleante, pálida e espectral na escuridão. O prisioneiro bem poderia ser um esqueleto trazido pela maré se não fossem os cabelos brancos que lhe chegavam aos ombros e a barba desgrenhada, que lhe vinha quase até a cintura. Conrad estendeu a mão e tocou as costelas expostas do homem.

— Pobre menino — disse ele. — Perdeu seu manto.

Lágrimas salgadas fizeram arder fortemente o olho mutilado enquanto ele tirava o hábito de cima e ajudava a criatura a enfiá-lo pelos braços e cabeça. Depois, envolveu o atrofiado homem-criança um grande abraço e o embalou do mesmo modo que havia embalado a assustada Amata na saliência da montanha, oscilando ao som do retinir tios grilhões que os prendiam.

— Mettisi il cuore in pace, Giovanni. Pode ficar tranqüilo. Mamma vai cuidar de você.

— Por que não podemos ir embora daqui, mamma? — o homem perguntou de novo. — Não gosto deste lugar.

— Um dia — Conrad confortou-o —, um dia.

Propenso, como sempre, a ver a mão de Deus em todas as circunstâncias, a criatura que compartilhava a sua cela fez com que o frade voltasse a tremer, tamanho foi o desalento causado por seu lamentável reencontro com um herói que ele idolatrara tanto quanto frei Leo: o universalmente reverenciado ministro geral deposto Giovanni da Parma.

 

Uma fartura de cenários conhecidos abriu-se diante de Orfeo ao entrar a cavalo no mercado: o Templo Romano de Minerva e a Chiesa di San Niccolo, que ficava diante da casa de sua família. Durante sua ausência, a praça do mercado tinha sido pavimentada com tijolos, o que quase encobria os degraus que levavam ao templo e fazia com que os cascos do cavalo ressoassem de forma diferente. À esquerda da igreja viu a tenda permanente do mercado reservada para a sua família. Tanto a casa quanto os negócios não podiam estar melhor localizados, no coração da cidade; a praça se abria a apenas alguns passos do armazém onde os empregados de seu pai trabalhavam com os tosões que chegavam de toda a Úmbria.

A cavalo, Orfeo contornou a igreja até a casa de pedras onde vivera os primeiros quinze anos de vida. Tudo estava estranhamente calmo. O mais provável era que os criados da casa e os trabalhadores tivessem saído, como o restante dos moradores, para ver o papa.

Entrou no pátio, apeou, amarrou o animal e respirou fundo. Até o som de sua batida na porta ressoou misteriosamente oco na cidade silenciosa. Um criado que não conhecia abriu a porta — um homem alto e espadaúdo, que precisava se abaixar para olhar pela abertura. Parecia mais apto para ser um soldado do que um criado doméstico. Confirmou que os irmãos de Orfeo haviam saído.

— Então vou esperar aí dentro até que voltem — disse Orfeo. — Sou o filho mais novo do Sior Angelo.

Uma sombra de desconfiança passou pelo rosto do criado.

— Achava que conhecia todos os filhos do signore. Se é com seu pai que deseja falar, vai encontrá-lo no escritório de contabilidade. Vou mostrar-lhe o caminho.

— Não precisa. Sei onde fica.

Bem característico de seu pai, deixar escapar sua única chance na vida de ver um papa pessoalmente para ficar contando dinheiro. Na realidade, isso agradou Orfeo, pois assim teria a chance de conversar com o pai a sós, antes de seus irmãos voltarem. O reencontro já seria bastante difícil sem uma platéia.

— Vou assim mesmo — o homem replicou com voz firme. — Cruzou os braços, quase bloqueando a entrada de Orfeo na casa.

Orfeo deu de ombros e abriu as mãos.

— Claro. Ele não iria gostar dever uma pessoa estranha chegando sorrateira pelas sua costas.

Tentou sorrir, mas o outro não esboçou nenhuma reação.

O homem afastou-se e, lado a lado, atravessaram a casa até o escritório. O coração de Orfeo se acelerou quando o criado abriu a porta para deixá-lo passar. Enxugou na túnica as mãos úmidas.

O pai estava sentado à mesa iluminada pela luz que entrava por uma janela, de costas para a porta, com folhas de pergaminho espalhadas diante dele. Absorto no trabalho, lançou apenas uma olhadela superficial a Orfeo e ao criado.

Antes, Ângelo Bernardone fora sólido e robusto, como seu filho mais novo; todavia, muitas décadas sentado à escrivaninha o haviam transformado num ancião obeso. Na mão gorda que segurava a pena suspensa sobre a pele de carneiro reluziam pedras preciosas que enfeitavam cada um dos dedos roliços — com a finalidade, sem dúvida, de repelir as dores nas juntas. Usava uma braçadeira preta na manga.

— Trabalhando nos livros, pai, mesmo com o papa ali no portão da cidade? — Orfeo esperava que sua cordialidade não soasse muito afetada.

O pai resmungou, com o nariz ainda mergulhado nos seus afazeres:

— É esse maldito sistema de registro contábil por partidas dobradas que os florentinos inventaram.

Parecia que estava prestes a dar uma explicação, mas fez uma pausa e virou-se pesadamente no tamborete.

— Quem diabos é você?

— Será que mudei tanto assim? Sou eu, Orfeo.

De novo, o rapaz forçou os lábios a se abrirem num sorriso, apesar do desânimo que o acometia. Já pressentia que a tentativa de reconciliação estava fadada a um completo fracasso.

— Não conheço ninguém com esse nome. Saia da minha casa.

O criado tentou pegar a espada, mas Orfeo o fez parar, erguendo a mão.

— Papa, isso também não é fácil para mim. Viajei desde Acre com o novo papa e estou aqui porque foi ele quem insistiu pessoalmente para que eu viesse fazer as pazes com você.

As dobras do queixo de Angelo Bernardone ficaram rosadas como a pele de um porco depois de um banho de esfrega.

— O papa em pessoa, foi o que disse? E acha que isso deveria me convencer a perdoar um filho ingrato, que deu as costas ao próprio pai e aos irmãos? Não se esqueça de que cresci tendo de conviver na mesma casa com um lunático que todos em Assis proclamam ser um segundo Cristo. É evidente que me impressiono menos com homens santos do que você. Aqui estão as pazes que lhe ofereço, Orfeo último-dos-Bernardone, e ouça bem o que vou dizer: nunca mais você será parte de mim ou dos meus. Se você se casar, declaro viúva a sua mulher e órfãos os seus filhos. A sua herança, dôo a seus irmãos. E o único abrigo que lhe ofereço são os ventos que sopram dos quatro cantos do mundo. Eu o entrego aos animais da floresta, às aves do céu e aos peixes do mar.

E virou-se outra vez para suas tarefas.

— Essas são as pazes que tenho para você. Agora, saia da minha vista.

Orfeo já escutara o bastante calado, sem reagir.

— Não teme o inferno, velho assassino? Primeiro, você e Simone della Rocca mataram cruelmente aquelas pessoas em Coldimezzo; agora, declara seu próprio filho oficialmente morto? Até o pai do filho pródigo matou um bezerro gordo, não o filho.

As feições avermelhadas do pai de repente ficaram lívidas.

— Nem todos foram mortos. Simone poupou a filha — por um momento a arrogância de sua voz diminuiu.

— A criança ainda está viva?

— Não sei. Teria de perguntar a Simone, porque ele a levou para trabalhar como escrava em sua casa, mas ele morreu dois dias atrás — disse, apontando para a braçadeira preta no braço.

— Ah! Não é à toa que parece tão aterrorizado. Sente o peso dos pecados.

E, realmente, a ossatura do pai dava a impressão de sucumbir dentro da carapaça de sua pesada massa de carne. A mão do velho tremia ao recolocar a pena sobre a escrivaninha. Orfeo teve esperanças de que o medo do julgamento divino, se não outro motivo qualquer, ainda pudesse levá-los a alguma forma de reconciliação.

Então o pai falou novamente, na mesma voz baixa.

— Já ouviu meus votos para você.

A cabeça pesada do ancião caiu por um momento sobre o peito, erguendo-se, contudo, em seguida, como se tivesse se lembrado de algo, e, fixando o olhar em Orfeo por entre as pálpebras pesadas, disse:

— Mas tenho a intenção de lhe deixar uma lembrança. Vou dá-la a você agora, pois espero nunca mais ver esse seu rosto traiçoeiro neste lado do inferno.

Angelo mexeu em um dos seus anéis. Torceu o, tirando-o do dedo, e arremessou o para Orfeo. O anel caiu no piso do escritório, retinindo.

— Entregue isso a ele e depois o ponha para fora — o patriarca dos Bernardone ordenou ao criado.

O homem apanhou o anel e entregou-o a Orfeo, que girou o aro de ouro e passou, curioso, o dedo sobre a pedra azul. Enfiou-o num dedo, mas estava muito grande. Curvou-se ligeiramente cumprimentando seu pai e, em silêncio, acompanhou o criado pela casa até o pátio.

O jovem movia a cabeça enquanto puxava o cavalo pelo mercado. Fitava o pavimento de tijolos, ponderando como seu dia transcorrera tão mal depois da bênção de Tebaldo. Primeiro, a mulher perto do portão da cidade; agora, o pai, que o expulsava para sempre de sua casa e até mesmo se recusava a reconhecê-lo como um ser vivo. Pela primeira vez sentiu por inteiro o impacto da decisão, fruto apressado de sua imaturidade, que tomara seis anos antes. Não sabia que, ao bater a porta de casa atrás de si, seu pai iria trancá-la à chave.

A única notícia boa que ouvira desde que deixara a comitiva do papa fora a possibilidade de a menina de Coldimezzo ter sobrevivido. Se o novo signore da Rocca ainda a mantivesse como escrava, ele poderia, pelo menos em parte, expiar o crime do pai comprando a liberdade dela.

Fez uma careta diante da melancólica idéia. Mal tinha dinheiro para se sustentar por duas semanas, que diria para resgatar uma criança escrava! O saco de marujo tinha mais roupa do que qualquer outra coisa, e a bolsa de moedas, pouco dinheiro. Se não arranjasse trabalho bem depressa, teria de mendigar comida como os frades pedintes.

A população já estava voltando para a cidade. Tebaldo devia ter seguido para o palácio do bispo. Orfeo agora desejava ter ficado com o papa. Teria comida e, quem sabe, algum dia acabaria num porto. Talvez o melhor a fazer fosse juntar-se novamente a ele e à caravana de cavaleiros. Fizera amizade com alguns dos guarda-costas, que poderiam ajudá-lo também quando chegassem a Roma.

Piccardo, o irmão mais próximo de Orfeo em idade, foi quem o avistou primeiro. Orfeo até se surpreendeu por ele o ter reconhecido assim de imediato, chamando-o pelo nome, do outro lado do mercado. E depois correu para cumprimentá-lo, enquanto o resto do clã vinha atrás a passos lentos. Quando se aproximaram, Orfeo notou que quase nada havia mudado em seis anos: Dante ainda controlava os mais jovens.

— Orfeo — o irmão mais velho mostrou tê-lo reconhecido com um movi mento seco da cabeça ao se verem frente a frente, sem fazer o menor esforço para disfarçar o desdém. — Adamo nos contou que viu você passar pelo portão hoje. Não pense que vamos recebê-lo com abraços felizes, apesar da demonstração de infantilidade de Piccardo.

— Já estive conversando com seu pai, Dante — disse Orfeo. — Tenho certeza de que você reflete os sentimentos dele. Como sempre.

Encarou o irmão com firmeza. Odiava o que ia dizer, mas iria tentar, sem implorar nem vacilar:

— Esperava arranjar algum dinheiro, o suficiente para voltar a Veneza, ou um cargo na loja, até economizar o necessário.

— Então é melhor arranjar trabalho. Em outro lugar.

Dante inclinou a cabeça mais uma vez e retomou seu caminho, levando em seu rastro os outros homens da família. Só Piccardo ficou para trás, indeciso sobre para que lado seguir.

Orfeo abriu os dedos para que o irmão olhasse.

— Papa me deu isso. Uma lástima que a pedra esteja tão arranhada. Algum rico padrone poderia ter me dado algum dinheiro por ela. Está vendo, Piccardo? Só restam ossos para quem se levanta da mesa para urinar no meio do banquete.

O irmão meneou a cabeça, discordando. Seus olhos castanhos seguiram Dante até a figura corpulenta desaparecer atrás da igreja.

— O que está acontecendo? — perguntou Orfeo.

— Não use o anel — recomendou Piccardo. — Vai marcá-lo para a morte.

— Pela mão de quem?

— Não sei. Essa coisa tem uma história. Somente os membros da confraria da qual nosso pai faz parte podem usá-lo. Foi o que ouvi dizer. Se alguma pessoa de fora for apanhada com o anel, a confraria jurou matá-la na mesma hora. Mas não sei quem são os outros.

Orfeo mal disfarçou o riso, diante do ar solene de Piccardo.

— É, pode ser coisa séria — seus lábios se entortaram num sorriso cínico. — Um excelente presente do velho, é? Fico me perguntando se ele não o envenenou.

— Não ria, Orfeo. Isso é sério.

Orfeo enfiou o anel na bolsa de moedas.

— Obrigado, irmão, por sua preocupação. Agora estou seguro, com o anel fora da vista. Estava mesmo muito largo no meu dedo.

Pulou na garupa e o seu queixo se endureceu.

— Vejo-o no mercato, se não morrer de fome antes.

Piccardo segurou as rédeas. Parecia não querei que Orfeo se fosse.

— O comerciante de tecidos, Domenico, precisa de alguém para conduzir uma expedição de compras a Flandres. Você gasta de viajar e sabe a diferença entre samito e damasco.

— O antigo concorrente do pai? Seria perfeito.

Inclinou-se e bateu no ombro do irmão.

— Não se preocupe, Piccardo. Não vou ficar por aqui para constrangê-lo ou irritar seu pai.

Estendeu o braço, despedindo-se:

— A paz do Senhor esteja com você, como o tio Francisco costumava dizer.

Piccardo soltou a rédea e segurou o braço do irmão.

— E com você também, Orfeo. Sinceramente.

 

Em questão de semanas, o mundo da superfície pareceu perder a cor, como se Tosse sugado para o passado, para o pântano distante da memória de Conrad. Como o moribundo que vê a vida inteira passar diante dos próprios olhos, seus primeiros dias foram inundados pelas lembranças de Leo, de Giacomina e de Amatina. Sorriu amargamente quando os nomes tão familiares das duas últimas invadiram seus pensamentos. Ele mantivera uma distância tão cautelosa delas no mundo lá de cima; agora pareciam mais próximas do que nunca. E todos os dias ele recitava a mensagem de Leo para si próprio, a fim de não a esquecer, embora sua relevância começasse a lhe escapar.

Na maior parte do tempo, entretanto, pensava em Rosanna. Uma profusão de lembranças da infância enchia sua mente; mas logo já não conseguia distinguir as verdadeiras das que eram meramente fruto de sua imaginação. Conjeturava se ela saberia que ele fora preso, se finalmente estariam separados para sempre. Donna Giacoma não sabia que Rosanna existia, e Amatina não tinha como entrar em contato com ela, mesmo que tivesse conseguido escapar de Assis. Para Rosanna, pareceria que ele caíra da beira do mundo.

Contava os dias pelas refeições. A comida aparentemente era o que sobrava do almoço dos frades, e ele presumia que o guarda a empurrasse por baixo da porta, a cada tarde, após a hora nona, embora a cela estivesse sempre escura. O cardápio diário dos dois prisioneiros consistia em dez pedaços de pão, uma cebola, duas tigelas de um caldo ralo que às vezes continha um ou outro legume e uma maçã ou um punhado de azeitonas para cada um. Conrad guardava e separava a cebola e um pouco de pão para mais tarde, pondo a comida numa cesta pendurada na parede, fora do alcance dos ratos que entravam nadando no calabouço pela latrina, Em seguida, ele e Giovanni tomavam o caldo. Conrad dava algumas pequenas mordidas na maçã e cedia o resto para seu companheiro de cela. O frade mais jovem emagreceu, na esperança de que, em compensação, Giovanni ganhasse peso.

Uma tarde, pouco depois de sua prisão, Conrad surpreendeu-se com um pedaço de carne de porco em cada tigela.

— O que significa tanta generosidade? — gritou ele pela grade.

Conrad não esperava nenhuma resposta. O carcereiro nunca dizia nada. Mas nesse dia Zefferino murmurou: Buon Natale, e seguiu para distribuir a comida aos outros prisioneiros.

Natal? Tão rápido? Ele contara mais ou menos seus dias na prisão, mas perdera a noção das datas. Os frades em Greccio estariam em sua caverna hoje, ajoelhados diante da cena da Natividade. Ficou imaginando o pessoal do vilarejo subindo o caminho acidentado com as velas acesas nas mãos para ver o jumento, o boi e o bambino de verdade deitado na palha. Os frades e o povo uniam-se aos Três Magos, apresentando pequenas oferendas como prova de sua devoção ao Menino Jesus.

Conrad suspirou, desapontado por não ter nada para oferecer naquele ano. Olhou para Giovanni, encolhido como uma bola escura sobre o chão frio de terra. Lembrou-se das palavras de Cristo: Eu estava com fome e tu Me deste de comer. Ele tinha algo a oferecer. Pegou seu pedaço de carne e deu-o para o companheiro.

— Buon Natale, Giovanni — disse, ao apoiar a tigela no chão, ao lado do outro. Desse dia em diante, começou a fazer furos na parede para marcar a passagem dos dias.

A cada manhã, ou o que supunha ser a manhã por ouvir Zefferino arrastando os pés acima de sua cabeça, Conrad recitava em voz alta tanto quanto se lembrava do ofício da missa. Aos poucos, Giovanni começou a repetir com ele fragmentos dos salmos e orações, à medida que as repetições lhe chegavam a recantos da memória que havia muito não eram usados. Conrad se sentiu encorajado. Depois de cada refeição, ele dizia:

— Agora precisamos pagar ao nosso Divino Estalajadeiro na única moeda que possuímos.

Juntos, rezavam cinco Pater Nosters, ou dez Ave-Marias, ou Gloria Patris, ou outra oração conhecida que Conrad presumia estar alojada em algum lugar da cabeça do ex-ministro geral.

Às vezes, para espantar o frio, terminavam as refeições e a ação de graças com uma dança. Mexiam-se em passinhos miúdos como cavalos coxos, batiam palmas e faziam retinir as correntes, e Conrad puxava a cantoria. De propósito, evitava cantigas infantis, do tipo que Giovanni cantara no primeiro dia. Cantava uma paródia latina popular dos seus tempos de universidade ou um dos cânticos mais vivazes da liturgia da Igreja. Tinha esperança de reconduzir Giovanni, aos pouquinhos, através das lembranças de sua jovem idade adulta. Com a ajuda de Deus, um dia o ancião poderia realmente voltar a ser ele mesmo ou, no mínimo, recuperar-se até um ponto em que a memória deixasse de ter importância para ele.

Cerca de duas semanas depois do Natal, Zefferino voltou a falar. Não foi muito, mas o bastante para surpreender e animar o frade. Ele e Giovanni estavam dançando e cantando o Cântico do Irmão Sol, de São Francisco, quando escutaram uma terceira voz juntar-se às deles, baixa, vindo de cima. Quando o cântico terminou, ouviram-se os passos de Zefferino se afastando. Conrad encolheu os ombros e Giovanni respondeu com um sorriso travesso, depois cobriu os lábios com as pontas dos dedos e revirou os olhos. O ex-ministro geral não mais perguntava quando iriam sair dali.

O olho de Conrad tinha praticamente parado de doer, embora, em certas ocasiões, ficasse muito quente e latejante. Tanto quando podia supor, não havia infeccionado, e por isso ele agradecia em orações. Nas noites em que a dor voltava, Conrad se contorcia no chão. Os sonhos, caso dormisse, eram pesadelos povoados de monstros, torturadores, infernos em chamas e violentas tempestades no mar.

Numa dessas noites, perto do final de janeiro, o ruído da água escorrendo pela latrina reverberou em seus ouvidos como uma forte cachoeira. A chuva provavelmente estava caindo aos borbotões no mundo lá em cima, ou talvez a neve tivesse começado a derreter, aumentando o manancial de água, possivelmente a distorcida capacidade de avaliação dele, naquele estágio entre o sono e a vigília, estivesse exagerando sua força. A cela parecia estar balançando, e ele sonhou que se agarrava ao mastro de um navio sacudido por ondas monumentais. Gritos de pavor saíam da boca dos tripulantes indefesos. Ao redor de todo o navio, leviatãs e outras colossais criaturas marinhas arrojavam-se no ar, olhando os minúsculos seres humanos com ar faminto antes de desaparecerem de volta nas águas. De repente, um bando de espectros sinuosos com órbitas flamejando, dentes rangendo e bocas espumando se reuniu e voou em direção a Conrad. E quando ele caiu no convés do navio, todos se amontoaram em cima, mordendo lhe os tornozelos e o rosto. Enquanto tentava rechaçar seus ataques, não era mais ele quem se defendia, mas o pai que havia morrido afogado. Num pulo, sentou-se e gritou de pavor. Dois ratos fugiram correndo para a latrina.

Giovanni também acordou sobressaltado e começou a chorar baixinho.

— Estou bem — Conrad conseguiu balbuciar, assim que seu coração se acalmou um pouco e ele tomou fôlego. — Os demônios bateram muito em mim esta noite; mas já se foram. Volte a dormir, pequenino.

Nos dias tranqüilos, o olho não doía tanto e o frio era suportável. Giovanni dormia grande parte do tempo, e Conrad passava esses momentos de sossego em contemplação. Como não precisava mais se preocupar com a necessidade de se alimentar, de resolver o enigma de Leo e de enfrentar emoções que o levavam de um lado para o outro, suas preces se tornaram mais profundas do que antes, mais até do que quando rezava em seu eremitério. Nenhum som, nenhuma visão o distraía; a escuridão de dentro e a de fora pareciam fundir-se, e seu corpo era pouco mais que uma cortina diáfana que esvoaçava entre uma e outra a cada inalar e expirar. Às vezes, até esse leve impulso cessava quando sua respiração se interrompia por longos períodos.

No primeiro dia de fevereiro, a Igreja comemorava o ritual de purificação da mãe de Jesus, obrigatório para todas as mulheres judias depois do parto. Conrad meditava sobre o velho Simeão, que esperou durante anos na porta da sinagoga pela chegada do Messias. Depois de segurar o Menino Jesus em seus braços por um momento, Simeão glorificou a Deus, dizendo: "Agora, Senhor, deixe este Seu servo partir em paz, pois meus olhos já viram a Sua salvação"

Quanta doçura deve ter sentido o antigo profeta em seu coração. Comovido pela imagem, Conrad começou a rezar à Virgem com um propósito, pedindo-lhe para obter uma graça junto a seu Filho: que ele próprio pudesse experimentar, só por um breve instante, o mesmo regozijo que Simeão havia sentido ao segurar o Messias recém-nascido.

Enquanto rezava, a escuridão foi gradativamente dando lugar a uma suave luz azulada. Seu brilho foi ficando cada vez mais forte até cintilar com mais esplendor que a luz do sol. Conrad parecia estar de volta a sua montanha, pois deu por si num pequeno bosque de árvores de casca branca, ouvindo a música dos pássaros ao redor. Por entre as árvores vinha uma camponesa descalça carregando um bebê. Encaminhou-se com passos cuidadosos para Conrad e, sem dizer uma palavra, ofereceu-lhe a criança. Seus braços estendidos tremeram, mas o sorriso tranqüilizador da mulher devolveu-lhe a firmeza. Ele pegou a criança envolvida em faixas e aconchegou-a contra o peito. Muito levemente, encostou os lábios na face da criança, sentindo seu calor. Parecia que sua alma estava prestes a se dissolver, tão ardente ora o êxtase que fluía por seu corpo. Como em Porciúncula, uma vibração abrasadora subiu-lhe pela espinha, mas desta vez chegou sem obstáculos à base do seu crânio e lá irrompeu numa explosão de luz dourada que se espalhou de sua cabeça para fora. A energia pulsava atrás de suas órbitas e, embora tentasse abrir as pálpebras, não conseguia. A luz dourada continuou a se espalhar para alem dos limites de seu corpo e misturou-se à luz azul em torno dele. A cortina da sua carne, as árvores, o canto dos pássaros, tudo se fundia no seu brilho. Nada além de luz, dentro, fora, c então finalmente não havia mais nenhum dentro e nenhum fora. Suas forças se esvaíram e ele caiu para trás apoiando-se nos calcanhares, certo de que iria desmaiar de felicidade.

Quando por fim recuperou os sentidos, permanecia ajoelhado. A menina e a criança tinham ido embora. A escuridão tomava conta do lugar como antes, mas uma lanterna tremeluziu acima de sua cabeça. A grade se abriu e passos lentos desceram os degraus de pedra. Então, o carcereiro aproximou-se do frade e ajoelhou-se diante dele.

— Perdoe-me, frei Conrad — disse Zefferino —, não sabia que você era um deles. A luz que se derramou de sua cela e invadiu o corredor...

Calou-se, incapaz de expressar o quanto estava arrependido.

Correntes arranharam o chão atrás dele. Atraído pela lanterna e pelas vozes, Giovanni veio rastejando até os outros dois.

Zefferino pousou a lanterna no piso e estendeu as mãos, palmas para cima. À luz crepitante, eles uniram as mãos, formando um círculo. Durante muitos minutos, ficaram ajoelhados em silencio, três cartas surradas tiradas do baralho turbulento do Duecento: o enrugado e gasto rei mendigo de Parma, ladeado por seus dois valetes maltrapilhos e caolhos.

— Vamos agradecer — propôs Conrad, enfim — pelos acontecimentos que ligaram nossos destinos.

Juntos, ele sabia que poderiam resistir.

 

                                           Il Poverello Di Cristo

 

Festa di San Polycarpo

4 de fevereiro de 1274

Neno mal se mexia, sentado no surrado banco da carroça. Seguia silencioso e firme como um bloco de gelo, acocorado sobre os tirantes da carroça e com as costas voltadas para os ferozes ventos vindos dos Alpes, que o empurravam para a Úmbria e para casa. Como carroceiro-chefe, ia abrindo caminho para a caravana, tarefa que ficava menos árdua à medida que o dia avançava, pois as marcas deixadas no solo por outras carroças indicavam claramente o rumo da estrada. De manhã, porem, a história era bem diferente, sobretudo depois de ter nevado durante a noite, quando os sulcos do solo argiloso ficavam escondidos sob a neve fresca. Nesses dias, o mercador tomava a dianteira e cavalgava cuidadosamente de um lado para o outro da branca extensão, delineando as margens da estrada, com os cascos do seu cavalo.

O comerciante de tecido fizera bem em contratar aquele Orfeo, pensou Neno — um homem que sabia o que era trabalhar duro e bebia como um turco com os carroceiros, destemido na estrada, sem contudo se descuidar dos homens e animais confiados a ele. E uma perfeita raposa para pechinchar! Em dois meses, na feira de San Remi, em Troyes, ele não só vendera todas as mercadorias de Sior Domenico como recarregara, as mulas que haviam levado e acrescentara-lhes mais duas carroças cheias de mercadorias. Não foram poucos os negociantes flamengos que sucumbiram à sua lábia ao tentarem barganhar com ele.

No início da tarde, quando a caravana passou no sopé do morro onde ficava a cidade fortificada de Cortona, o mercador veio cavalgar ao lado de Neno e, apontando para a cidadela no cume da montanha, comentou:

— Aquele é outro lugar famoso da história do meu tio. Foi para lá que o ministro exilado, frei Elias, se recolheu para morrer. E também onde o bispo Illuminato, de Assis, viveu antes de ser promovido.

Neno concordou sem qualquer comentário, Assuntos relacionados à Igreja lhe interessavam bem menos do que a terra sobre a qual sua carroça agora rolava, a caminho do minúsculo vilarejo de Terontola, onde planejavam encontrar abrigo para pernoitar. Sentiu um calafrio ao forçar a vista para divisar, em meio às rajadas de neve, as pequenas propriedades rurais em ruínas. O rigoroso inverno matara de frio muitos animais dos arrendatários, e a combinação de vento, neve e forte geada também deixara as parreiras queimadas e quebrara os galhos das árvores frutíferas. Em alguns lugares, a força do gelo e da geada rachou troncos de árvores de cima a baixo; com isso, a seiva escorreu das feridas e muitas árvores estavam totalmente secas.

— Porco mondo! — murmurou Neno. A umidade de sua respiração espalhou-se ao vento como farrapos brancos. Graças a Deus, faltavam apenas alguns dias para chegarem a Assis.

Quando mais tarde, naquele mesmo dia, as rodas da carroça passaram ruidosamente pela praça da cidade de Terontola, Neno viu mais de dez carcaças rijas suspensas pelo pescoço, balançando ao vento como flâmulas cinzentas. Ira uma cena comum em toda a Toscana. Levados pela fome, os lobos se aventuravam à noite pelas pequenas cidades desguarnecidas de muros em busca de animais domésticos e crianças. Os moradores preparavam armadilhas para os lobos e penduravam os carniceiros nas praças públicas, do mesmo jeito que faziam com ladrões humanos, como um alerta ao restante da alcatéia.

A caravana finalmente se deteve, e os escudeiros espalharam-se por seus flancos.

— Mais um dia ficou para trás, Neno — soou uma voz atrás dele. — Prometo que, quando chegarmos em casa, vamos molhar nossas gargantas até nos afogarmos.

Pelo canto do olho, Neno reconheceu a barba escura do mercador. Com um tapinha, removeu os pedaços de gelo da própria barba.

— Isso mesmo, Maestro Orfeo — concordou. — Os guardas-civis vão ter de nos tirar da sarjeta quando o dia clarear, pois não vamos conseguir achar o i aminho de casa.

 

Amata chegou sua cadeira para perto do fogo. Para se proteger do frio intenso da madrugada, vestia toda a roupa que usara durante o dia, e por cima, enrolara seu pesado manto de inverno. Dobrou as pernas, sentou-se sobre os pés calçados por chinelos e, pelo que lhe parecia a milésima vez, deixou sua mente voltar àquela manhã em que Conrad sentara-se à sua frente, diante daquela mesma lareira, ouvindo os pingos da chuva sibilarem ao cair nas chamas, o mesmo som que a neve derretida produzia naquele momento. Seu amigo estava preso havia mais de dois anos, a despeito dos insistentes pedidos feitos por Donna Giacoma a frei Bonaventura. Consumida pelo esforço de ver suas súplicas negadas, a exaurida senhora por fim teve que desistir, quando o ministro geral deixou Assis para cuidar de suas novas obrigações como cardeal-bispo de Albano e conselheiro do consistório papal que estudava a reforma eclesiástica. Os frades informaram que o Papa Gregório X também havia pedido a Bonaventura para ajudar no Concilio Geral a ser realizado no verão seguinte em Lyons.

Que prazer seria a chegada do verão. Em seus dezenove anos de vida, Amata não se lembrava de inverno tão cruel e inclemente como esse. Os romeiros que vinham a Assis, hóspedes freqüentes da casa, narravam com pormenores assustadores as peripécias daqueles viajantes que se atreviam a enfrentar as nevascas, sob o risco de perderem os dedos das mãos e pés ou até a própria vida, caso não conseguissem encontrar um abrigo. Os romeiros haviam tocado os corpos congelados de cavalos e até de cavaleiros mortos. Um grupo empilhou corpos em sua carroça como se fossem pedaços de lenha e os entregou, cobertos de neve, no mosteiro mais próximo. O solo duro como pedra impedia que os peregrinos os enterrassem no local onde os haviam encontrado. Além do mais, nenhum bom cristão iria querer ser sepultado em terreno não consagrado.

Numa noite particularmente gélida do mês de janeiro, com todas as pessoas da casa reunidas ao redor de sua cama, Donna Giacoma morreu. Ao aproximar-se do fim, o som abafado de suas preces por um descanso eterno transformaram-se num estertor; a ronqueira foi ficando mais e mais fraca nos últimos instantes em que seu corpo ainda opôs alguma resistência, até que finalmente cessou por completo. Amata desejou de todo o coração que frei Conrad estivesse ali para fechar as pálpebras daqueles olhos verdes sem vida; entretanto, coube a ela própria essa triste missão.

Os homens da casa retiraram-se em silêncio do quarto para que Amata e as servas começassem suas lamentações fúnebres. Aquelas meigas mulheres rasgaram e tiraram suas toucas azul-celestes e arrancaram os cabelos. Abriram à força as costuras das túnicas de lã preta e arranharam rostos e braços com as próprias unhas. Fecharam-se num circulo e giraram apáticas pelo quarto, batendo com os punhos na cabeça e pranteando a morte de Donna Giacoma num queixume baixo e prolongado. O gemido angustiante acabrunhou Amata; um nó sufocante apertou seu coração e sua garganta, e a dor remexeu-lhe as entranhas. Às mulheres desprenderam a proteção da janela e, a cada volta do círculo, uma delas botava a cabeça para fora, para a noite frígida, anunciando a morte para toda a cidade e para os céus. O canto fúnebre continuou por dois dias, até a manhã do funeral de Donna Giacoma.

Os frades do Sacro Convento homenagearam a nobre senhora enterrando-a sob o púlpito da igreja inferior. Amata pediu que Donna Giacoma, na morte, pudesse repousar ao lado de seu amigo mais querido em vida, frei Leo. Ela também encomendou uma placa de mármore vermelho para ser colocada acima do túmulo. Por sugestão de frei Bernardo da Bessa, que atuava como porta-voz de Bonaventura na ausência deste, as inscrições na placa foram simples: Hic jacet Jacoba, sancta nobilisque romana. "Aqui jaz Jacoba, santa e nobre senhora romana." Como última homenagem, ela doou fundos para um afresco que retrataria a fidalga em seu hábito da Ordem Terceira. Frei Bernardo informou-a de que um famoso artista, o florentino Giovanni Cimabue, já fora contratado para decorar a abside da igreja inferior.

Além dessas, Amata tinha de tomar outras decisões que lhe tiravam o sono e a faziam passar a noite com os olhos fixos nas chamas da lareira enquanto o resto da casa descansava. Escorregava da cadeira para o chão, bem perto das labaredas que a custo aqueciam o quarto. Seu quarto, na sua casa.

A leitura, pelo notário, da carta de alforria assinada por Donna Giacoma, libertando os servos das obrigações de seus vínculos e deixando para Amata uma herança de tamanho considerável ("para bem da minha alma e para um fim piedoso, e porque pareceria meritório perante Deus"), não pegou ninguém de surpresa. O choque viera muitas semanas antes, quando a senhora chamou Amata a seu quarto e explicou suas intenções. Mesmo agora, ao lembrar-se daquele gesto de generosidade, quase chorava outra vez, enquanto a claridade da lareira tremeluzia com reflexos alaranjados. Era como se tivesse perdido a mãe duas vezes: a primeira, para os assassinos; a segunda, para a velhice.

Muito enfraquecida, Donna Giacoma sussurrara a Amata uma recomendação:

— Mulheres nobres solteiras têm pouco controle sobre seus destinos — disse. — Fosse você uma rainha poderosa e viúva, como Blanche de Castela, ou a esposa de um artesão que herdasse loja, ferramentas e aprendizes, ou até uma camponesa que assumisse a lavoura do Falecido marido, é provável que lhe permitissem vivei e trabalhar em paz. Mas os homens da família do meu marido não vão lhe conceder tais regalias. Assim que a notícia da minha morte chegar a Roma, vão tentar confiscar tudo o que lhe doei. Eles só me deixaram em paz porque eu tinha herdeiros homens; depois que os meus filhos morreram, não o fizeram por causa da minha idade avançada. Deu um risinho fraco.

— Tinham esperanças de que eu morresse logo.

A anciã segurou então a manga de Amata, os dedos cheios de sardas agarrando o tecido com uma força surpreendente.

— Em questão de semanas, todos na região vão tomar conhecimento da sua boa sorte. Os pretendentes vão enxamear em torno de você como abelhas na colméia. Você precisa se casar logo, Amatina, se quiser proteger sua herança das mãos dos Frangipani.

 

Listas! Por estranho que pareça, uma prática tão simples como listar coisas — coisas de toda e qualquer espécie — tornou-se a última esperança para a mente de Giovanni da Parma. Desde a Festa da Apresentação, dois anos antes, quando aquela extraordinária luz invadira a cela em que se encontravam, frei Giovanni aos poucos retornara ao mundo dos vivos. Isso era inegável. Com o mesmo assombro e prazer de uma criancinha que aprende o nome dos objetos e dos movimentos, das cores e odores, ele tinha começado a recobrar a memória. Para alegria de Conrad, tornou-se também bastante loquaz, com incursões freqüentes por cavernas cheias de lembranças, abandonadas havia muito tempo.

A primeira vez que frei Giovanni surpreendeu seu companheiro de cela com uma de suas litanias foi logo depois de tomarem a sopa diária.

— Acabei de me lembrar de um jantar, frei Conrad, e tão claramente como se tivesse sido o de ontem. Éramos muitos irmãos e jantávamos em companhia do rei de França. Tínhamos viajado para nosso mosteiro em Sens a fim de participar de um Cabido Provincial. Mas esse jantar... constava de pelo menos uma dúzia de pratos: primeiro, cerejas; depois, o mais delicioso dos pães de farinha branca; várias opções de vinho dignas do paladar real; favas frescas cozidas no leite; peixe, caranguejo; torta de enguia, arroz com leite de amêndoas e canela em pó; mais enguias assadas no molho; e, finalmente, travessas repletas de tortas e coalhada doce e frutas da estação.

O velho Frade lançou um olhar de soslaio para a tigela de caldo e deu de ombros. Depois tamborilou os dedos na testa, como se tentasse despertar à força outros detalhes da visita a Sens.

— O dia seguinte era um domingo continuou Giovanni. — Ao amanhecer, o rei Luís veio até a igreja pedir nossas orações, deixando sua comitiva perto da aldeia, à exceção apenas de seus três irmãos e de alguns cavalariços encarregados das montarias. Depois de se ajoelharem e prestarem suas homenagens diante do altar, seus irmãos olharam em volta procurando cadeiras ou bancos; o rei, porém, sentou-se no chão de terra, pois a igreja não tinha assoalho. E, depois de se encomendar às nossas orações, saiu da igreja para seguir caminho. Contudo, quando um servo lhe disse que seu irmão Carlos ainda rezava fervorosamente, o rei ficou feliz em esperar, paciente, sem montar em seu cavalo. Quando reparei no ardor com que Carlos rezava e na boa vontade com que o rei o aguardava, senti-me edificado, pois me dei conta da verdade contida nas Escrituras: "Irmão que ajuda irmão é como uma cidade poderosa."

Os números sete e doze tornaram-se os favoritos das reflexões de Giovanni, por causa dos seus significados bíblicos. De vez em quando, divergia do padrão e lançava uma lista de seis itens, enumerando, por exemplo, os seis pecados cometidos contra o Espírito Santo ou os seis estados de espírito que controlam as ações humanas.

Conrad estimulava esses exercícios mentais. Com um caco pontiagudo de louça, ele gravava as listas na parede da cela — não que conseguissem ler naquela escuridão, mas em razão do próprio exercício. Assim, gravou nas paredes os sete pecados capitais, as sete virtudes curativas, os sete carismas de Deus, as sete obras espirituais de misericórdia, os nomes dos doze apóstolos, as doze beatitudes. Dia após dia, as ranhuras ilegíveis espalhavam-se por toda a superfície musgosa, como se fossem declinações de verbos escritas por um aluno de latim.

Numa cena que normalmente tinha início enquanto comiam, frei Giovanni ficava calado e de vez em quando emitia um resmungo, um maneirismo que Conrad veio a reconhecer como uma espécie de meditação. Então, quando o frade mais jovem juntava as tigelas, o ex-ministro geral sugeria uma nova lista:

— Vamos nos concentrar nas sétimas últimas palavras de Cristo. Vendo como o Nosso Senhor enfrentou a morte, podemos aprender como receber bem nosso próprio fim.

Conrad pegou a lasca de cerâmica e postou se diante da parede enquanto Giovanni ditava:

— Eli, Eli, lamma sabacthani. "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"

Conrad fez uma pausa quando Giovanni acrescentou:

— Até Cristo conheceu o abandono, a solidão e a incerteza quando sua hora se aproximou. Ele vai nos compreender e nos confortar quando chegar a nossa hora.

Uma após outra, Giovanni proferia as frases, e a cada uma delas acrescentava uma curta explicação no final:

— Consummatum est. "Está terminado, Pai. Em tuas mãos, entrego meu espírito."

E o velho frade concluía:

— A morte põe um fim no nosso tempo na Terra, mas também dá significado às nossas ações terrenas. A morte é a hora de nos entregarmos como um presente a Deus.

— O que acha, irmão — indagou Conrad —, será que vamos terminar nossas vidas neste buraco? Será que nossas ações terrenas já terminaram?

Seu companheiro de cela assentiu. Conrad deixou cair o braço.

— Perdoe-me por vacilar na fé nos desígnios de Deus, frei Giovanni, mas por que deveria, ser negada à Santa Igreja a existência de alguém com o seu talento? Mesmo que trabalhasse fora da Ordem, muitos soberanos leigos e prelados se beneficiariam de seus conselhos espirituais. E se prometesse a Bonaventura nunca mais talar sobre o abade Joaquim e sua heresia? Assim, ele certamente não teria mais nenhuma justificativa para mantê-lo preso.

Conrad arrastou-se para perto de Giovanni c sentou-se desajeitadamente. À medida que os meses se passavam, os movimentos de Giovanni iam ficando cada vez mais difíceis; praticamente não se levantava, a não ser para ir cambaleando até a latrina. E, nessas ocasiões, era preciso que Conrad fosse ajudá-lo a subir a inclinação do piso da cela, para que não escorregasse.

Toda a escassa claridade que existia na cela refletiu-se nos olhos de Giovanni quando ele encarou Conrad.

— Você realmente acredita que sou mantido aqui por causa da minha fidelidade aos ensinamentos de Joaquim? A Igreja nunca condenou Joaquim, como você sabe, mas apenas a interpretação de suas profecias por Gerardino di Borgo San Donnino. Gerardino veio para esta prisão, por causa dessa mesma interpretação, um pouco antes de me prenderem. Estou aqui, e acho que você também, porque procurei imitar nosso fundador. Eu queria conduzir a Ordem como o próprio São Francisco o fez. Viajei de país em país, visitando pessoalmente todos os mosteiros, tentando liderar pelo exemplo, em vez de me basear em conselhos escritos. Contudo, aqueles que não faziam caso da Regra, nem do Testamento Final redigido por São Francisco para seus frades, achavam que eu era uma ameaça à vida confortável que levavam. E, assim, aqui estou, aqui estamos, nesse desconforto.

De repente, Conrad ficou alerta. Quase se esquecera do Testamento de Francisco! Começou a balançar o corpo de um lado para o outro, puxando pela memória. Em algum ponto de sua mensagem, Leo havia escrito que o inicio do Testamento iria lançar luz — fragmentos de luz, haviam sido as suas palavras exatas — sobre sua enigmática carta. Estranhamente, Conrad quase não pensava mais na busca que o levara à prisão.

Virou-se de novo para o antigo ministro geral:

— Padre, mesmo que jamais saiamos daqui, acho que Deus recuperou sua mente com algum propósito benéfico. Lembra-se exatamente como o Testamento começa?

Giovanni abaixou a cabeça por um momento, refletindo sobre a pergunta.

— Ora, começa com o relato de São Francisco sobre a própria conversão. Ele escreveu: "O Senhor concedeu-me começar a cumprir penitencia da seguinte maneira: Enquanto estava em pecado, era muito triste para mim ver os leprosos. Mas o Senhor, Ele mesmo, conduziu-me para perto deles e deles me apiedei. E quando me afastei deles, o que a mim parecia amargo transformou-se em doçura, e desse dia em diante abandonei minha vinda mundana." Nosso santo fundador tinha um carinho especial pelos leprosos. Não só trabalhou no meio deles, alimentando-os e vestindo-os, banhando-os e beijando-lhes as feridas, como exigia a mesma atitude de muitos dos primeiros frades. Ele os chamava de pauperes Christi, os pobrezinhos de Cristo.

Os dedos de Conrad fecharam-se em um punho cerrado sobre o colo.

— Frei Leo também trabalhava entre os leprosos?

— É mais do que provável.

Giovanni deu uma risadinha.

— Pensando novamente em minhas visitas aos mosteiros... Esgotei a paciência de doze secretários durante essa fase. Sempre fiz de meu secretário meu companheiro de viagem, como São Francisco fazia com frei Leo. Meu primeiro secretário, frei Andreo da Bologna, mais tarde veio a ser ministro provincial da Terra Santa e presidiu a penitenciaria pontifícia. Depois veio frei Walter, anglo de nascimento, um anjo de temperamento; e um terceiro, Corrado Rabuino, grande, corpulento e negro, um homem honesto. Jamais conheci um frade que devorasse lagano e queijo com tanto prazer...

Conrad permanecia imóvel, apenas em parte escutando os devaneios de Giovanni. Durante todo esse tempo, Leo queria que ele trabalhasse num leprosário, como ele próprio provavelmente fizera. Também se lembrou de que Leo se referira às unhas do leproso morto. Conrad refletiu: Se eu tivesse praticado antes essa parte da mensagem — servite pauperes Christi — em vez de retornar ao Sacro Convento, hoje não estaria apodrecendo nesta cela. Estremeceu quando surgiu em sua mente a outra terrível possibilidade: seus membros poderiam estar sofrendo o processo de putrefação da lepra caso ele tivesse entrado no leprosário. E como iria amealhar sabedoria nessa situação?

— O último frade veio para mim de Iseo, um velho, tanto em idade como em tempo dentro da Ordem, rico em sabedoria; entretanto, eu achava que ele posava de importante além das medidas, levando-se em conta que todos sabiam que sua mãe tinha trabalhado numa estalagem...

Senhor, se algum dia me concederes a graça de sair deste lugar, vou me oferecer para trabalhar no Ospedale di San Lazzaro, do lado de fora de Assis, aprender o que os leprosos de lá têm a me ensinar, seguir os passos de Leo (se for o caso) até o pior final possível. Do fundo de seu coração, Conrad procurava acreditar que Deus estivera só esperando que ele fizesse essa promessa para deixá-lo sair daquela gaiola.

 

— Amatina, acorde. Há uma visita para você.

Amata rolou na cama com um gemido. Passara outra noite em claro, preocupada com as novas responsabilidades domésticas e com a intimidante necessidade de escolher um marido, situação que se agigantava sobre sua cabeça como um machado na mão de um carrasco. Justamente como Donna Giacoma havia previsto, nas semanas que se seguiram à sua morte houve um desfile de homens ansiosos para se casar ou, no mínimo, querendo tomar posse da casa e das rendas das terras que a senhora deixara para o sustento de Amata. Os pretendentes iam desde aristocratas rurais, com a fortuna em frangalhos ou buscando aumentar suas terras, a comerciantes mais velhos e viúvos; entre estes, porém, ela não viu nenhum peixe que quisesse fisgar, nenhum com quem se deitaria com prazer naquelas noites frias de inverno. Pio, agora com dezesseis anos e achando se mais adulto a cada dia, estava mais apaixonado do que nunca por Amata e sempre ficava carrancudo no fazer entrar um visitante atrás do outro.

Amata piscou para o rosto que olhava para ela. A maioria dos antigos servos e servas de Donna Giacoma, inclusive (ainda bem!) Maestro Roberto, tinham continuado a trabalhar como criados contratados, circunstância que lhes permitia aproveitar a nova liberdade e a segurança no cargo. A criada que estava ao lado da cama, uma menina de rosto meigo, robusta, alguns anos mais moça que ela, havia crescido na casa e jamais conhecera outro lar. Amata oferecera de brincadeira a menina em seu lugar a um dos pretendentes e, quando ele objetou que a menina não tinha dote, ela citou Plauto: Dummodo morata recte veniat, dotata est satis, "Desde que tenha um comportamento digno, uma mulher tem um dote suficiente". O homem olhou-a com ar inexpressivo, pois não sabia latim. Se tivesse mostrado o menor indício de compreensão, quer da citação em si, quer do seu significado depois de Amata tê-la traduzido, é possível que ela mesma tivesse providenciado o dote. Talvez Donna Giacoma a tivesse instruído em excesso, tantos foram os professores que contratou depois da prisão de Conrad.

— Há um signore à sua espera no vestíbulo — a criada repetiu enquanto Amata limpava os olhos com as pontas dos dedos.

Que horas são, Gabriella?

O sino da manhã tocou não faz muito tempo. Ele devia estar empoleirado no portão da cidade, esperando que se abrisse.

— No portão?

A dedução da menina veio rápido demais para que a cabeça sonolenta de Amata pudesse acompanhar.

É o pretendente de Todi, irmão do cardeal. Diz que precisa falar-lhe. Com urgência.

 

A mata vestiu um robe azul-cinzento sobre a camisola de linho. Enrolou as trancas na nuca e prendeu o coque com uma rede. O que poderia querer o conde Roffredo tão cedo? Até mesmo um nobre do poderoso clã dos Gaetani deveria aguardar para se apresentar numa hora mais apropriada. Bem, ele não a veria na sua melhor forma; talvez encontrá-la ainda sem estar arrumada, na imperdoável luz da aurora, o fizesse desistir. Pelo menos, estariam quites: afinal, ele interrompera seu sono.

Roffredo Gaetani deixara em Amata a impressão de ser o mais repulsivo de todos os pretendentes que tinham vindo até ela. Pôde então entender o motivo do bom humor de Jacopone depois da luta na floresta, quando ele havia comparado aquela briga às antigas vitórias sobre os Gaetani nas ruas de Todi. Bastou-lhe um rápido contato com Roffredo para ela aceitar que seu primo meio maluco, que conhecia a família Gaetani desde a infância, os considerasse detestáveis. Isso, sem levar em conta a politicagem partidária — Guelfos ou Guibelinos — que dividia todas as cidades da Úmbria.

Embora tivesse apenas quarenta e poucos anos, Roffredo já enviuvara três vezes. Recusava-se, porém, a satisfazer a curiosidade de Amata sobre as esposas anteriores, afastando o assunto das suas mortes com um gesto da mão:

— Foram as pestes. Sempre as pestes. E a malária.

O amarelado de sua pele sugeria a possibilidade de ele próprio ter sido infectado pela malária e dava credibilidade à sua lacônica explicação.

Ainda assim, a maquinação por trás daqueles pequenos olhos escuros, que se recusavam a sustentar uma troca de olhares, além da aura fria, intensificada pela cor de sua tez, marcada de varíola, e pela calvície, levou-a a temer estar diante de um homem capaz de crueldades extraordinárias, um homem doentio por dentro e por fora. A pele dela se arrepiara só de olhá-lo. A conversa deles, ou melhor, os monólogos dele, giravam em torno das poderosas conexões da sua família com a comuna de Todi e com Roma, em especial sobre o elevado cargo do irmão, a cardeal Benedetto Gaetani, de quem Roffredo se gabava afirmando que um dia seria papa. Enrolava e desenrolava a corrente de ouro que lhe enfeitava o peito, com um leve sorriso pairando-lhe nos lábios, enquanto falava de dinheiro e propriedades, da fortuna que havia acumulado por meio dos casamentos anteriores, à qual a de Amata viria a se juntar formando uma aliança de peso. Pelo menos fora sincero, sem camuflar seus interesses com quaisquer estratagemas, e dera por encerrado o discurso dizendo que ela podia esquecer os outros pretendentes, pois ele estava determinado a tê-la, per amore o per forza — por amor ou à força. Sorriu de sua brincadeira, mas ao mesmo tempo deu um puxão que fez a corrente de ouro esticar-se completamente.

Amata foi direto para o banho depois que ele saiu; sentiu necessidade de se livrar do mal-estar que perdurara no ambiente com seus galanteios. Esse decerto nunca me "terá", jurou a si mesma. Prefiro morrer.

E agora lá estava ele, numa hora imprópria, para aborrecê-la mais uma vez. Ainda meio apática, Amata entrou no longo corredor onde Roffredo aguardava com seu escudeiro um pouco mais atrás, na porta principal. Postado em um dos lados, Pio não fez qualquer esforço para disfarçar seu desprazer quando os dois homens fizeram uma reverência.

— Passei a noite em claro, signore, e mal tinha conseguido dormir quando o senhor chegou. — Esperava que sua voz denunciasse um pouco da irritação que sentia. — O que o traz aqui tão cedo?

Os lábios dele se retorceram com o mesmo ar sonso e zombeteiro que tanto a irritara no primeiro encontro.

— Aquele que dorme negligencia os próprios interesses — ele declarou. — Vim para obter a sua resposta.

Ela o encarou, incrédula. Suas boas maneiras exigiam que se esforçasse para moderar a raiva que crescia dentro dela, mas Roffredo não ajudava.

— Nem mesmo um tolo iria expor-se a um revés antes do desjejum, signore. Mas, como foi direto, vou ser igualmente franca consigo. Não o amo, conde Gaetani.

Roffredo não pareceu nem um pouco contrariado com aquela resposta, provavelmente porque o amor nunca tivesse sido importante para ele.

— Assim fico desapontado, signorina. Meu irmão também vai ficar decepcionado. Está esperando em Todi para nos casar esta noite mesmo — ele simulou uma expressão de medo. — Sua resposta me preocupa, também. Pode ser muito perigoso deixar um cardeal esperando.

Amata concluiu que já tinha tratado aquele galo pedante da forma mais educada possível. Seu único desejo era vê-lo sair porta afora para que pudesse voltar a dormir.

— Com certeza ainda não me viu zangada, signore, ou não falaria de modo tão displicente sobre perigo. Já tem a minha resposta definitiva. Agora, insisto para que saia da minha casa.

Roffredo fez uma reverência, mas dessa vez o escudeiro não o imitou. Em vez disso, o homem escancarou a porta e dois cavaleiros que esperavam do lado de fora entraram correndo na casa. Pio precipitou-se na direção dos homens, mas um deles segurou-lhe o braço ainda no ar. O outro sacou o punhal do cinto e levou-o à garganta do menino. Antes que Amata tivesse tempo de reagir, Roffredo e o escudeiro agarraram seus punhos. Com a mão cultivada, o conde cobriu a boca de Amata. Ela tentou desvencilhar-se, mas eles a seguraram com mais força e Roffredo torceu-lhe o braço num tranco doloroso. Os lábios dele curvaram-se numa careta triunfal.

— Venha quieta conosco, signorina — disse —, ou a boca de seu pajem vai rir até debaixo do queixo.

Amata tentou gritar, mas a luva de couro abafou sua voz. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Seria possível que aqueles nobres degenerados chegariam ao ponto de arrancar as mulheres de suas casas e as forçarem a se casar? Seus olhos encontraram os de Pio, e o pânico que enxergou neles espelhava sua própria sensação de impotência.

Novamente tentou se desvencilhar, odiando tanto a sua vulnerabilidade quanto o conde, mas Roffredo segurou-a com firmeza pelo queixo, forçando-a a ver o filete de sangue que começava a escorrer pela lâmina encostada no pescoço de Pio. Ela parou de se debater e gritou por baixo da luva. Roffredo afrouxou um pouco a mão.

— O que disse?

— Solte-o. Eu vou com vocês.

 

A estrada para Todi saía da cidade pela Porta San Antimo, na muralha sul de Assis. Roffredo e seus comparsas apressaram a descida da mulher pela escadaria de pedra deserta que ia de sua casa até a cidade de baixo; ia envolta numa capa de inverno, e o capuz cobria-lhe toda a cabeça. Olhou ansiosa de um lado para o outro na luz fraca da manhã quando passaram pelas casas ainda fechadas, procurando por onde escapar. O cavaleiro que ameaçara Pio agora mantinha o punhal num lado do corpo dela. Ela presumiu que não teria nenhum valor para Roffredo se estivesse morta; mesmo assim, o conde com certeza não se incomodaria em casar com ela Morrendo. O cavaleiro já tinha provado que conseguia controlar a ponta da lâmina com meticulosa habilidade, e o cardeal faria o casamento dela com Roffredo, viva ou morta.

Bem depressa chegaram ao último lance de escadas. À sua frente, Amata viu as Ires igrejas: de Santo Antimo, São Leonardo e São Tomaso, e, mais adiante, o portão da cidade. Uma carruagem aguardava num ponto sombrio de uma vicia entre duas das igrejas. As pernas de Amata se dobraram ao perceber aquela imagem como algo irreversível, e ela caiu sobre as pedras do calçamento. Se ultrapassasse as muralhas, estaria totalmente à mercê de Roffredo.

Amata sentiu a pressão da mão forte do cavaleiro em seu braço quando ele tentou levantá-la, mas as pedras estavam escorregadias por causa da camada de gelo que as cobria e ela caiu de novo, dessa vez com o rosto no chão. Quando tentava levantar-se apoiando-se nas mãos e joelhos, viu uma outra pessoa também de quatro junto à esquina da Igreja de São Tomaso rodeada por um bando de madrugadores fazendo zombarias — mais um toque de anormalidade nessa manhã irreal. O homem estava de quatro no chão, carregava uma sela nas costas e gritava bem alto:

— Ninguém quer cavalgar neste humilde animal de carga? — Ele levantou sua cabeleira cor de areia e olhou para o céu com ar tristonho.

Uma mulher gritou:

— Eu cavalgo em você, Jacopone, se você montar na minha sela e cavalgar em mim.

— Jacopone! Aiuto! Ajude-me! — gritou Amata. — Salve-me de Gaetani! Antes que ela pudesse falar mais, o cavaleiro suspendeu-a do chão e bateu-lhe na boca com a palma da manopla. Roffredo e seus lacaios apertaram o passo na direção dos cavalos. Enquanto a arrastavam para a viela, ela viu o penitente levantar-se devagar com uma expressão intrigada no rosto. Então o cavaleiro a empurrou para dentro da carruagem e bateu a porta, acabando com a última esperança de Amata.

Oh, Deus, por favor, por favor! As rodas da carruagem começaram a se mover e aos poucos foram ganhando velocidade. A súbita inclinação do assento lhe indicava que a parelha de cavalos tinha dobrado a curva que dava no portão da cidade quando, vindo bem da frente deles, ela escutou o som agudo de uma trombeta. A carruagem começou a sacudir loucamente quando os cavalos dispararam por causa do barulho. Sentiu uma pancada, ouviu um grito de dor e então tudo se transformou num pandemônio. Algo pesado e duro bateu contra a cabine, jogando-a para um lado e despedaçando a estrutura de madeira. Ao redor dela, os relinchos dos cavalos assustados se misturavam a vozes humanas praguejando e ao mugido zangado de um boi.

Amata levantou-se em meio aos destroços. Mesmo com as pernas ainda bambas de susto, o rosto e os braços doendo, conseguiu escapulir daquela confusão e saiu correndo pela viela. Quando percebeu que não vinha ninguém no seu encalço, diminuiu o passo e escondeu-se depressa em uma esquina, e dali espiou o que havia acontecido. Jacopone estava deitado de lado na rua, imóvel, com a trombeta ainda pendurada nos dedos. Uma carreta de mercadorias estava presa aos escombros da carruagem, e rolos de tecido espalhavam-se por todos os lados no meio da rua. Os cavalos continuavam a corcovear e empinar, dando coices ora com as patas dianteiras ora com as traseiras, enquanto o boi, emaranhado nos arreios dos cavalos, balançava os chifres perigosamente perto da barriga deles.

Furioso, Roffredo Gaetani gritava a plenos pulmões, xingando o mercador, um homem troncudo e barbudo que revidava cada insulto. O conde e seus criados apearam, mas o mercador apenas arremessou sua capa sobre o ombro direito e sacou o espadim. Também não iria recuar se fosse preciso lutar. Os escudeiros do comerciante esporearam seus cavalos, adiantando-se, e até seu carroceiro apanhou um machado no meio da mercadoria amontoada.

— Nem tente levantar sua espada — o mercador advertiu um dos acompanhantes de Roffredo. — Neno vai arrancar seu braço antes mesmo que acabe de estendê-lo.

Um grupo de moradores caçoava de todos a uma distância segura, e algumas pedras caíram no local do conflito. Os dois lados colocaram-se em posição defensiva, hesitantes, avaliando um ao outro e pensando no que fazer em seguida. Os olhos de Amata iam e voltavam da briga para Jacopone, e depois para uma dupla de guardas-civis que afinal acorreram do portão, cada qual com a sua alabarda.

— Que confusão é essa? — um deles gritou.

E os dois lados recomeçaram a gritar e gesticular, e o mesmo fizeram os espectadores que a essa altura já tinham se aproximado. O guarda ergueu os braços pedindo silêncio. Amata saiu de seu esconderijo e empurrou o capuz para trás.

— Esses homens de Todi tentaram me raptar — disse —, embora eu seja uma cidadã de Assis. — Suas palavras saíram mal articuladas e sentia dor quando falava. O cavaleiro devia ter cortado seu lábio ao cobrir sua boca com a mão.

— É Donna Amata — disso uma voz feminina, do meio da multidão.

— Os cavalos atropelaram esse homem bom e pacífico continuou ela, apontando para o corpo de Jacopone. — Se não fosse por ele, o plano teria dado certo.

— Também bateram na minha carroça e destruíram metade da mercadoria queixou-se o mercador com voz irritada. — E também sou cidadão desta cidade.

Nesse ponto, o tumulto recomeçou. Amata encaminhou-se para o penitente e ajoelhou-se a seu lado. Ouvia a fúria contra Roffredo por parte das pessoas que a rodeavam.

— Fora daqui — disse o guarda. — Você mentiu sobre suas intenções ao entrar na cidade.

— E o que vai acontecer com a minha carruagem e a parelha?

— A carruagem virou lenha. Volte outro dia para buscar seus animais, mas não conte que vá recebê-los — disse o guarda. — Há cidadãos de Assis cujos prejuízos devem ser ressarcidos e pode haver uma acusação de assassinato à sua espera.

Amata ergueu a cabeça a tempo de ver o olhar feroz de Roffredo fulminá-la. Se Deus quisesse, ela jamais iria voltar a ver aquele rosto odioso. O conde e seus acompanhantes montaram em seus cavalos e saíram trotando rumo ao portão. A turba foi atrás deles, vaiando e atirando outra saraivada de pedras, enquanto os cavaleiros agora galopavam para fora da cidade.

Amata acariciou o rosto e a barba desgrenhada de Jacopone com os dedos.

— Primo, pobre primo — sussurrou. — Está me ouvindo? Um dos guardas aproximou-se por trás dela.

— Eles o mataram?

— Ainda está vivo, mas muito ferido.

Alguém se ajoelhou a seu lado, sobre as pedras do calçamento.

— Meu carroceiro e os homens armados vão tomar conta das mercadorias. Posso ajudá-la a levar esse homem para um abrigo?

Ela olhou direto nos olhos castanhos do mercador. Eles não vacilaram.

— Ficaria agradecida — respondeu. — Vou providenciar ventosas e um farmacêutico.

Correu os dedos pelos cabelos sujos e emaranhados e acrescentou:

— Ou, se for necessário, um enterro adequado.

O homem dobrou novamente a capa sobre os ombros e suspendeu o esquelético Jacopone em seus braços musculosos.

— Vá na frente. Estou à sua disposição, madonna.

A voz dele vibrava com tanta ternura, que ela se virou para vê-lo de relance mais uma vez. Estaria flertando com ela num momento como aquele? Um sorriso caloroso brilhou atrás de sua barba negra como tinta. Amata teve a impressão de que os olhos dele se fixavam na metade inferior do rosto dela.

Tocou os lábios doloridos com as pontas dos dedos e enrubesceu ao perceber que estavam inchados e sangravam. Devia estar com uma aparência horrível, pensou; e, pior ainda, toda despenteada, que era como se encontrava antes mesmo de o lacaio de Roffredo bater nela.

O mercador deu um sorriso simpático, mas não fez nenhum comentário sobre sua aparência — disse apenas uma palavra:

— A-ma-ta. — Ele prolongou cada breve sílaba, deixando o som rolar na língua como os provadores de vinho fazem ao experimentar um exemplar de uma nova safra. Seus olhos encontraram os dela e cintilaram de prazer. — Um nome bem escolhido, madonna.

 

Amata apoiava-se contra a porta entreaberta de sua casa. O mercador fora afinal cuidar da carroça avariada. Ainda bem! Ele se fora na hora certa, pois ela ficara muito surpresa com suas palavras ao partir. Mas por que, então, estava também desapontada?

Esticou o corpo para alcançar a janela mais próxima. Arrancou uma pedrinha de gelo presa na persiana, pressionou-a contra os lábios machucados e entrou. Sentia-se muito tola. O que se passara com ela na rua? Talvez estivesse tonta de susto depois de ter estado tão perto de uma desgraça com o conde Roffredo. Talvez o que dissera fosse fruto do desespero. De qualquer forma, viera tagarelando sem parar no caminho de volta até a casa. Surpreendeu-se querendo contar a esse estranho tudo sobre sua vida.

— Dois anos atrás, tudo que eu queria era viver uma vida simples como eremita numa cabana da floresta, mas os frades aprisionaram meu amigo — meu conselheiro espiritual, melhor dizendo. Então, durante meses, só pensei em vingar minha família dos... de algo que aconteceu quando eu era criança, mas o alvo da minha vingança desapareceu da cidade. Felizmente, no meio de toda essa confusão, vivi como criada com uma senhora muito bondosa pertencente à nobreza, embora ela me tratasse como filha ou neta, e agora que ela morreu, deixando-me sua casa e seu dinheiro, sou assediada por pretendentes gananciosos como o conde Roffredo. Aconselharam-me a casar para proteger meu patrimônio, mas esses pretendentes são todos tão horrorosos que passei a prezar muito a minha liberdade que é algo surpreendente, porque houve uma época em que tudo o que eu queria era me casar.

Tomou fôlego e disse abruptamente:

— Agora, não posso nem ouvir falar em casamento. O que acha do casamento, signore? É casado? Tem filhos?

Ficou vermelha de vergonha assim que fez a pergunta, vexada de sua tagarelice e ousadia — ousadia gerada, sem a menor dúvida, pela decisão que tinha de tomar, e bem depressa. O homem não caçoou dela, porém. Parou nos degraus, reacomodou um pouco o penitente que carregava em seus braços e virou-se para ela. E falou normalmente, sem ofegar e sem aparentar ter feito qualquer esforço.

— Não, madonna, não dispus de tempo nem dos meios para me casar. Mas não tenho nada contra o casamento. E sinto-me lisonjeado por ter perguntado.

— Oh, eu não pretendia... — ela começou a objetar, mas sabia que já tinha ido longe demais. E ela pretendia sim, e ele fora bastante sensato e franco fazendo-lhe o favor de eliminar os circunlóquios convencionais. Foi ela quem se sentiu na obrigação de mudar de assunto.

— Não está cansado? Um homem alto como Sior Jacopone deve ser bem pesado.

O mercador recomeçou a subir os degraus.

— Que nada. Este aqui é uma pluma. Acho que não come há uns três anos. Trabalhei como remador numa galera veneziana antes de entrar para o comércio. Aqueles anos de trabalho duro ainda me servem.

— Deve ter viajado muito, não?

— É, acho que posso dizer que sim. Acabamos de chegar de Flandres e de França. E já estive bem longe no Oriente, já fui até à Terra Prometida.

Ele sorriu e seus olhos se iluminaram.

— Poderia lhe contar tantas histórias, madonna...

Um retinir de armas e o ruído de passos apressados o interromperam: Pio, Maestro Roberto e outros homens que trabalhavam na casa de Amata vinham descendo as escadas correndo.

— Amatina! Graças a Deus está salva — exclamou o mordomo. — Viemos o mais rápido possível quando Pio nos contou o que aconteceu.

— Deus abençoe a todos. Estou um pouco machucada, mas o conde Roffredo foi posto para fora da cidade. Entretanto, preciso de um médico para o Sior Jacopone. Foi ferido ao tentar me salvar.

Roberto rapidamente avaliou a situação. Ordenou que um dos homens fosse a cidade buscar um médico. Recolheu a maioria das armas que os criados traziam e as foi empilhando nos braços de Pio. Em seguida, ele e outro homem tomaram Jacopone dos braços do mercador.

— Acomode-o no quarto que frei Conrad usava — ordenou Amata quando os homens subiam a escada. — Já vou subir. Quero agradecer a esse cavalheiro que me ajudou tanto.

Depois que os dois saíram apressados para realizar suas tarefas, Amata e o desconhecido retomaram a conversa. Pio usou o peso que carregava como justificativa para ficar para trás, mas a mulher diminuiu ainda mais o passo, não lhe deixando alternativa a não ser seguir em frente.

— Gostaria de ouvir essas histórias, signore — disse Amata quando ela e o mercador ficaram a sós mais uma vez.

— Com o maior prazer, madonna — respondeu ele. — Espero que me permita visitá-la dentro de uns dias. Agora que meu empregador me deve uma boa soma de dinheiro, tenho um assunto de família que preciso resolver. Uma espécie de vendeta ao avesso.

Algum tipo de instinto feminino deve tê-la impelido a fazer a pergunta seguinte. Ou então o mesmo atordoamento que lhe inspirara toda aquela conversa desde que tinham deixado a praça.

— Envolve alguma mulher? — ela sorriu para o mercador enquanto perguntava, mas notou que seu coração batia um pouco rápido demais para alguém que só queria fazer uma brincadeira.

Dessa vez o homem não sorriu.

— Mais uma vez sinto-me lisonjeado, madonna. Envolve, sim. Imagino que o objeto da minha missão hoje seja uma mulher, embora em minha mente ainda a veja como uma criança.

E Deus permita que continue a vê-la desse jeito, pensou Amata. Não queria a mente dele ocupada com outra mulher naquele momento.

Enfim, chegaram à porta da casa. Ela ofereceu ao mercador uma bebida quente e convidou-o para entrar e descansar um pouco em sua cozinha antes de seguir caminho, mas ele não aceitou.

— Um outro dia, madonna. Devo ir ao encontro de meus homens e supervisionar os negócios.

E estava prestes a sair quando ela percebeu que, em meio a toda a confusão e agitação, não tinha sequer perguntado o nome dele.

— Orfeo — respondeu ele, com uma mesura. — Orfeo di Angelo Bernardone. E, depois de uma saudação, dirigiu-se para a viela.

— A presto, madonna — disse, virando a cabeça.

Foi mesmo que bater fortemente com a cunha de um machado no meio dos olhos dela. Amata ficou paralisada, confusa, imóvel, todo o ódio e a amargura que havia conjurado no passado contra esse filho do seu inimigo refluíram para o seu coração. Bateu com o punho na ombreira da porta enquanto o som dos passos dele ia desaparecendo na escadaria e pressionou a cabeça contra a fria madeira de carvalho. Por que ele tinha de ser tão diabolicamente encantador?

 

Orfeo foi cavalgando pela trilha íngreme que levava a Rocca Paida, saboreando o sol de inverno que lhe batia no rosto. Numa árvore junto ao caminho, um esquilo saiu depressa de um buraco para examinar melhor o dia. O galho fino em que estava cedeu ao peso do bichinho, balançando como se acenasse para um bando de gansos, que seguia aos gritos para o norte por cima de sua cabeça. O mercador disse a si mesmo que não podia esquecer de raspar a barba e aparar o cabelo, que lhe chegava aos ombros, antes de ir ao encontro de Neno naquela tarde. Os ventos gelados dos desfiladeiros da montanha tinham ficado para trás; já não precisava do agasalho para pescoço e garganta, e um rosto barbudo não era muito bem-visto na sua cidade natal.

O tilintar de moedas na bolsa também o animava. Segundo as condições de sua commenda com Sior Domenico, recebera um quarto dos lucros da viagem. Agora trazia consigo uma renda de meio ano de trabalho, certamente mais do que o suficiente para comprar a liberdade da criança prisioneira — caso ela ainda vivesse na Rocca. Nenhuma das pessoas com quem falara na cidade sabia sobre essa menina, mesmo sendo uma cidade pequena. A impressão que se tinha era de que a fortaleza a engolira depois do ataque. A única novidade é que o velho Simone tinha morrido e o filho Calisto tomara o lugar do signore. Os cavaleiros da Rocca viviam num mundo à parte, encastelados muito acima das casas do populacho. Diziam que seria uma imprudência alguém se meter com a vida deles.

Entretanto, oferecendo-se uma quantia polpuda... talvez fosse uma outra história. Orfeo tinha esperanças de que não seria difícil chegar a um acordo com o novo signore; negociante que era, esperava conseguir um preço justo, com certeza inferior ao de uma escrava no mercado em Veneza. Afinal de contas, ainda tinha os próprios sonhos para financiar.

Seus pensamentos se voltaram para a mulher de Assis que acabara de conhecer, mal podendo acreditar na sua boa sorte. Linda, apesar dos ferimentos, ansiosa por livrar-se dos pretendentes, mas aparentemente tão contente em tê-lo conhecido quanto ele estava em conhecê-la — e, além do mais, herdara um bom patrimônio recentemente. Embora tivesse passado dois anos fazendo negócios pelo interior de toda a Europa por um salário que poderia ser considerado ''modesto", ele ainda sonhava um dia operar numa escala que se comparasse à dos Polo. A fortuna de Amata, somada às suas economias, poderia ser suficiente para permitir um avanço em sua vida — sobretudo se os seus assuntos com o signore da Rocca dessem certo. Não lhe faltavam motivos para sorrir, e a temperatura mais quente aumentava seu bom humor. Era um prenuncio de que a primavera estava próxima, trazendo crescimento e novos projetos.

Dos bastiões do castelo, vários guardas observavam os movimentos de Orfeo morro acima. O portão estava aberto, mas a grade levadiça fora abaixada como medida de precaução. O porteiro levantou-a apenas o suficiente para que Orfeo passasse com seu cavalo, depois de ter explicado que tinha negócios a tratar com o signore. O guarda então tomou o animal pelo cabresto e levou o mercador ao encontro de um grupo de cavaleiros reunidos no pátio. Fez sinal para que Orfeo aguardasse a uma certa distância. Um dos homens se afastou do grupo.

O porteiro inclinou-se diante dele:

— Meu senhor Calisto, este homem quer lhe falar. Diz chamar-se Orfeo di Angelo Bernardone.

Calisto della Rocca fez sinal para o criado sair. O guarda pegou as rédeas do cavalo de Orfeo e puxou-o para as estrebarias.

— Seu nome me é familiar — disse Calisto com voz gutural, enquanto ia caminhando à frente de Orfeo para o grande salão. — Por que será?

— Meu pai fez negócios com o falecido signore há uns oito anos.

Calisto lançou um olhar de esguelha para Orfeo. Mas não disse nada ao entrarem no prédio. Sentou-se numa ampla cadeira e gesticulou oferecendo um banco que havia por perto. Ficou cutucando uma ferida no pescoço enquanto o comerciante ajeitava seu manto.

Orfeo virou a cabeça quando duas criadas passaram pelo salão. Calculou que ambas eram mais velhas que a menina que procurava. O signore acompanhou seu olhar.

— Gosta delas? — E abriu um sorriso malicioso. — Se fosse passar a noite aqui como meu convidado, poderia ter as duas.

Orfeo percebeu que Calisto procurava seduzi-lo.

Na verdade, elas me fazem lembrar o propósito de minha visita — disse. — Estou à procura de uma mulher que hoje deve estar com dezoito a vinte anos, assim presumo.

A mão de Calisto desviou se para o punho de sua espada, embora a voz permanecesse jovial.

— Algum parente seu?

— Não. Nem ao menos sei o nome dela. Teve conhecimento do ataque de seu pai ao Coldimezzo, na comuna de Todi, alguns anos atrás?

— Se soube? Eu estava lá! E foi um belo trabalho, cheio de sangue. Nem ficaram sabendo o que os atingiu. — Os olhos pretos cintilavam enquanto falava.

Orfeo cerrou os dentes. Por ele, agarraria ali mesmo aquele fanfarrão animalesco pela garganta, do mesmo modo que esganaria o próprio pai se pudesse; mas lembrou-se de que viera a negócios. A primeira coisa que um comerciante tem de aprender é controlar a emoção.

— Havia uma menina — disse —, parece que seu pai fez dela uma escrava. Calisto ficou de pé num salto.

— Aquela rameira! Por que está procurando por ela? — Estendeu a mão direita. — Está vendo esta cicatriz? Ela tentou arrancar meu dedo. Mal consigo segurar uma espada desde então.

Orfeo foi se levantando bem devagar. Não estava disposto a encarar esse homem, cujo temperamento era, no mínimo, instável. Lordes dessa laia agrediam se lhes desse na veneta. Não queria permanecer sentado, vulnerável ao signore. Começou também a recear que a menina estivesse morta. Se ela atacara um homem desse tipo, era provável que tivesse pago um preço bem alto por isso.

— O senhor a castigou?

— Ela fugiu, aquela prostituta miserável! Foi embora no mesmo dia, na companhia da minha irmã religiosa. Que o diabo as carregue, mesmo que estejam protegidas por seus hábitos de freira.

A bolsa de dinheiro pendurada à cintura de Orfeo ficou mais pesada de repente. Se a menina estivesse segura atrás das muralhas de um convento, não havia por que pechinchar com esse filho de assassino. Ainda assim, teve curiosidade em conhecer o destino da menina.

— E como eu a encontraria, então, se desejasse vê-la?

— Está querendo o mal ou o bem dela? — Calisto estreitou os olhos, reduzindo-os a meras frestas. — Se lhe deseja o bem, corto seu pescoço neste mesmo instante e o penduro no mourão do meu portão.

A respiração de Orfeo ficou curta, embora externamente mantivesse a compostura.

— Não será necessário — disse. — Agora ela está nas mãos de Deus e não tenho mais com que me preocupar.

Esboçou um sorriso falso e fez uma saudação, mantendo os olhos fixos na mão do signore junto à espada. Ao curvar-se, a corrente ao redor de seu pescoço saltou de dentro da túnica e o anel balançou diante de seu peito.

Os olhos de Calisto se arregalaram, acompanhando o movimento do anel. Como é que conseguiu isso? — disse, tocando com um dedo na pedra do anel. — Uma inscrição bastante interessante.

— Ganhei de meu pai — respondeu Orfeo.

Calisto deu um passo para trás.

— Claro.

Orfeo girou o anel e examinou o entalhe no lápis-lazúli. O interesse demonstrado por Calisto deixara-o intrigado. Teria o anel alguma coisa a ver com os negócios entre os pais de ambos?

— Isso tem algum significado para o senhor? — perguntou. — Esta jóia é um enigma para mim.

Calisto fingiu que não ouviu a pergunta.

— Diga-me onde está hospedado, Sior Bernardone, para o caso de eu me lembrar de mais alguma coisa sobre a menina — a voz e as maneiras voltaram a ser gentis, quase untuosas.

— Acabei de voltar à cidade — Orfeo respondeu. — Poderá me encontrar na casa do comerciante Domenico.

Mal acabara de pronunciar essas palavras e arrependeu-se de ter falado. Lembrou-se na mesma hora do aviso do irmão. Fez outra rápida reverência e dirigiu-se às estrebarias tão depressa quanto o desinteresse simulado lhe permitia. Os pelos de sua nuca estavam eriçados, toda a atenção voltada para qualquer ruído que denunciasse que Calisto o seguia. Se o signore resolvesse atacá-lo, estaria indefeso contra esse homem c seus inúmeros cavaleiros.

 

Raios de sol e sombras alternando-se na parede branca.

Ar quente do interior de uma casa. Barulhos domésticos. Vassouras de gravetos sobre piso azulejado, lenha crepitando em cima da grade da lareira.

Rostos flutuando no ar, aparecendo e desaparecendo.

Dor. Nos ombros, costelas, joelho, por quase todo o corpo. Dor lancinante na cabeça.

Agora, Senhor Jesus, deixa este Teu servo partir em paz.

Vanna. Estou indo. Espere por mim.

Uma voz de mulher sussurrando:

— Ele está melhor?

Vanna?

— Dorme e acorda, Amatina. Tem um grande calombo na cabeça. Apesar disso, o médico acha que ele sobreviverá. É forte como um touro.

Uma carícia leve em seu rosto.

— Estou aqui, primo. Tem de lutar contra o demônio. Não deixe que o leve ainda.

Lutando para ouvir a voz. Um besouro preto lustroso se debatendo num lamaçal escuro à beira da estrada.

Querendo partir, deixar para trás esse vale de lágrimas. Buscando o eterno descanso. Ao lado de Vanna.

De quem é essa voz? De quem, se não é a de Vanna?

— Primo?

Rosto emoldurado de preto como o de uma freira, indistinto, flutuando para baixo na direção dele.

Cheiro de jasmim. Umidade fria na testa.

Sombras propagando-se. Palavras murmuradas à distância, misturando-se umas às outras.

Escuridão. Silêncio.

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim, uni pecador. Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de...

 

— Ouvi por acaso você conversando sobre Troyes. — Um frade corpulento e de rosto vermelho sentou-se no banco diante de Orfeo e Neno e encheu seu copo da jarra deles.

— Uma bênção por sua generosidade, amigos — disse.

— Todas as gargantas são irmãs — arrematou Orfeo de bom humor. O frade fez girar o vinho no copo e aproximou o nariz da borda.

— Os franceses vivem dizendo que os melhores vinhos têm três "Bs" e sete "Fs":

C'est bon et bel et blanc,

Fort et fier, fin et franc,

Froid et frais et frétillant. *

 

Sorveu o vinho e declarou:

— Não admira que eles nos deliciem com seu bom vinho, pois o vinho "faz a alegria de Deus e dos homens" como está escrito no capítulo 9.º do Livro dos Juízes.                                                                                  

Ergueu o copo:

— E deste vinho podemos dizer com segurança, como o sábio rei Salomão: " Dêem vinho forte para os que estão tristes, e vinho para aqueles que passam por aflições. Que bebam e esqueçam suas carências, e não se lembrem mais de seus pesares."

— Bem lembrado — disse Orfeo. — E, levantando a voz:

— Que a tristeza seja banida para sempre deste lugar.

Ele e Neno ergueram seus copos e todos brindaram. Uma porção de hurras ecoou dos cantos escuros da adega.

Orfeo bateu no peito quando terminaram de beber.

— Orfeo, antigamente dos Bernardoni, e Neno, tão forte e fiel como o boi que ele conduz.

O frade balançou a careca rosada:

— Frei Salimbene, recém-chegado de Romagna, a serviço de Deus e de todos os homens decentes... e das mulheres também, sejam decentes ou não — o frade caiu na gargalhada e puxou a papada gorda.

Neno começou a cantar. A letra, porém, terminou num murmúrio confuso, pois o carreteiro apoiara os braços sobre a mesa e fora abaixando a cabeça devagar sobre eles. Orfeo deu-lhe uma sacudidela e tornou a encher seu copo.

— Acorde. Talvez este bom frade tenha um poema para nós, ou uma música que consiga cantar até o finis.

Frei Salimbene aquiesceu e bateu com força na mesa para chamar a atenção dos presentes. Levantou-se, olhou ao redor e dirigiu-se a todos no aposento:

— Uns versos de Maestro Morando, que ensinava gramática em Pádua quando eu era menino. Deus tenha piedade da alma dele.

Tornou mais um gole e entoou, com voz tão sombria como se estivesse rezando a Missa:

 

Bebes vinho com mel, doce, glorioso?

Tens corpo robusto, teu rosto brilha,

Cospes com desenvoltura;

Bebes vinho velho, capitoso?

Tens alma alegre, ó maravilha,

E mente sagaz à altura.

 

Bebes vinho ralo, acinzentado?

Logo estarás endefluxado

E rouco, ruim da garganta.

Bebes zurrapa a cair de borco

E engordas que nem um porco?

O vinho feio não te espanta.

 

A rubra cor não desdenhes, porém,

Mesmo clara ou desmaiada,

Pois te deixa a tez encarnada;

Mas d'água branca se abstém

Todo homem honesto tomar

Pois se arrisca a enferrujar.

 

Orfeo bateu com as mãos abertas na mesa e socou os ombros caídos de Neno. Mandou trazerem um outro jarro enquanto Salimbene ajeitava o largo traseiro no banco.

— Já esteve na França, irmão? — perguntou o comerciante.

— Não nos últimos vinte e cinco anos — respondeu o frade. — No ano 1248 de Nosso Senhor Jesus Cristo, viajei para o Convento de Sens para participar do Capítulo Provincial de nossa Ordem na França. O senhor Luís, rei de França, e seus três irmãos também foram para lá, e eu estava ansioso para vê-los. O ministro provincial da França e o frei Odo Rigaldi, arcebispo de Rouen, também foram, e com eles Giovanni da Parma, nosso ministro geral, além de muitos custódios, definidores e discreti da nossa irmandade.

Fez uma pausa para outro gole, voltando os olhos para o céu, e prosseguiu:

— Nosso ministro geral se recusou a se destacar, preferindo seguir as orientações contidas no Eclesiastes: "Não te ensoberbeças no dia da tua honra" apesar de o rei tê-lo convidado para sentar-se a seu lado. Em vez disso, Giovanni resolveu sentar-se a mesa com os mais humildes, os quais honrou com sua presença, e muitos aperfeiçoaram suas virtudes devido a essa atitude dele.

— Que todos nós aprendamos com os homens piedosos — exclamou Orfeo.

Ergueu a taça em saudação:

— E vamos também beber à saúde das mulheres bonitas, sobretudo à de uma que conheci hoje.

— E às muitas mulheres encantadoras com cujo diretor me encontrei hoje — disse Salimbene.

Neno começou a roncar baixinho. Orfeo e Salimbene trocavam histórias das viagens. Para Orfeo, parecia que mal haviam começado a séria tarefa de se embriagar quando ouviram o repicar de um campanário nas proximidades.

— Epa! O danado do sino dos beberrões tocou cedo hoje.

Esvaziou o copo e bateu-o na mesa estrepitosamente. Pôs-se de pé com grande dificuldade, sacudiu Neno para que acordasse e ajudou-o a levantar-se.

— Addio, signore — gritou o frade da porta. — Venho procurá-lo aqui uma outra noite dessas.

Orfeo balançou sua lanterna em resposta ao frade. A brisa noturna fez arderem-lhe as maçãs do rosto, lisas e ainda sensíveis do barbear recente. As pedras do calçamento davam a impressão de estarem injustamente escorregadias quando ele e Neno atravessaram o umbral da porta e foram aos tropeços para a casa de Sior Domenico, mais precisamente para o sótão onde dormiam os homens que trabalhavam para ele. As ruas traiçoeiras inclinavam-se, perigosas. Neno parou um pouco diante da parede de uma casa para aprumar o corpo e se aliviar. Queria voltar a cantar, mas Orfeo o empurrou de leve para que prosseguisse.

— O toque de recolher já vai soar, amico. Temos de chegar à casa de Sior Domenico antes disso.

Três homens vinham devagar na direção deles pela ruela escura, os rostos encapuzados protegidos da luz da lanterna. Orfeo lembrou-se de que ainda carregava a bolsa de moedas e instintivamente enfiou a mão dentro da capa, segurando o punho de seu espadim. Neno, ignorando a presença dos homens, seguia cambaleante pelo outro lado da ruela, com a mão esticada buscando apoio no muro mais próximo.

— É ele — disse o mais alto ao se aproximarem. — O homem de barba. Antes que Orfeo pudesse reagir, os três correram para o carreteiro. As lâminas das adagas reluziram à luz trêmula da lanterna e Nemo caiu de joelhos com um gemido.

— Pegue o anel. Está no pescoço dele.

— Diabos! Não está, não. Nem nos dedos.

— Merda!

Orfeo deu um berro e atacou os homens por trás, investindo contra eles como um possuído ao fazer girar a lanterna e o espadim. O que estava mais perto se virou e foi ferido no pescoço. Os outros dois gritaram e saíram correndo rua abaixo, sem olhar para ver quem os havia atacado. O criminoso que não fugiu segurava a ferida com uma das mãos, ameaçando golpes de faca no vazio com a outra. Orfeo estendeu a lanterna como escudo e avançou para ele com a espada erguida. O homem tentou recuar, mas tropeçou e caiu em cima de Neno. Orfeo balançou a lanterna na direção da lâmina, atirando a arma no chão com estrépito. Tomado de fúria, retalhou o homem com a ponta do espadim como se empunhasse um machado. Continuou atacando até os gritos e movimentos cessarem. Só então pousou a lanterna e encostou-se em uma porta, ofegante, chorando, olhando para seu amigo jogado na ruela escura como um monte de roupa suja.

Enxugou o rosto com as costas da mão e puxou a corrente que trazia ao pescoço para pegar o anel. Apertou-o, praguejando contra o próprio pai, contra Calisto di Simone e os assassinos do signore. Agora fora ele a perder um amigo para um signore da Rocca, assim como a menina que fugira para o convento perdera a própria família. Mesmo sob o impacto da perda, sentiu-se mais ligado a ela do que nunca. Jurou que um dia, de alguma forma, iria vingar as duas afrontas.

Por seu gosto, arrancaria a corrente do pescoço e arremessaria o anel o mais longe possível. Resistiu, contudo, ao impulso, colocando-o de novo dentro da túnica, e guardou a espada. Pela segunda vez naquele dia, Orfeo ajoelhou-se para recolher uma vítima da violência desenfreada dos nobres. Sussurrou no ouvido agora insensível de Neno:

— Agora, amico, você está finalmente livre deste mundo brutal e sem sentido.

 

Jacopone pestanejou e abriu os olhos castanhos e redondos como florins de ouro. Com voz rouca, murmurou um pedido à mulher sentada num banco ao lado de sua cama:

— Tem algum resto de comida para um pobre pecador?

A mulher fez um sinal para o menino em pé ao seu lado.

— Diga a sua mãe que nosso doente está com fome. Só caldo e pão por ora, eu acho.

O penitente cheirou o antebraço e torceu o nariz em desagrado.

— Passamos ungüento nas suas feridas — explicou a mulher. — O médico também deixou um pó para você beber misturado com água. Para restabelecer suas forças.

— Deus me livre dos curandeiros charlatães — rosnou. — Poupe-me dos tônicos deles, meros destilados da bosta amassada dos leprosos. Nada de ungüentos, nem de paliativos, nem de calmantes. A natureza é o único médico de que preciso.

Fez uma careta e cuidadosamente passou os dedos pelos cabelos amarelados.

— Perdi meus miolos? — perguntou.

— Não, mas tem um caroço bem grande na cabeça. Deve tê-la batido nas pedras quando a carruagem o derrubou.

Os olhos cor de avelã, levemente estrábicos, tentaram focalizar a mulher.

— Já ouvi sua voz antes. Quem é você?

— Amata, prima de Vanna. Os invasores levaram-me embora de casa antes que fôssemos apresentados.

Eles haviam se conhecido na estrada mais de dois anos antes, é claro, mas ela não viu motivo algum para confundi-lo ainda mais, contando-lhe que eles tinham se encontrado enquanto ela se disfarçava de Fabiano.

—A pequena Amata di Buonconte? Viva? — o cenho do penitente formou um sulco em formato de "V" acima do nariz. Os olhos perscrutavam o quarto, tenteando respostas nas paredes caiadas de branco. Por último, pousaram no rosto dela e exploraram suas feições, até que as pálpebras pesadas se fecharam novamente.

— Foi de você que ela mais sentiu falta — e sua cabeça afundou mais no travesseiro enquanto dizia essas palavras. — Ela tentava imaginar o que lhe teria acontecido.

A mata tomou-lhe a mão imensa, entrelaçando seus dedos nos dele.

— É uma longa história, Sior Jacopone. Quando estiver forte o bastante para me ouvir, vou falar sem parar.

— Foi você quem me chamou na piazza, não foi?

Ela assentiu.

— Mas por que o Gaetani tentou raptá-la?

Amata torceu um dos cantos dos lábios num meio-sorriso.

— Aquilo foi o que o conde Roffredo Gaetani chama de fazer a corte a alguém. O homem que vier a se casar comigo será senhor de uma fortuna considerável.

Jacopone continuava com o olhar fixo nela, e Amata ficou impressionada com a limpidez daqueles olhos, tão diferentes dos seus, cobertos de veias vermelhas que se espalhavam como uma teia devido às noites de insônia dos últimos dias.

— Existe alguém com quem deseje se casar?

Ela sorriu e fez que não.

— Nenhum desses que até agora me propuseram casamento. Mas já me avisaram para escolher alguém logo, um cão de guarda que me proteja de lobos como Roffredo.

Jacopone teve um acesso de tosse.

— Não necessariamente... Você tem parentes, homens que poderiam agir como seus protetores... para cuidar de suas propriedades. — Falou com dificuldade, com a respiração ruidosa entre as frases. — Já fiz isso para outros... na minha vida passada.

O penitente começou a agitar a cabeça sobre o travesseiro, encolhendo-se e lutando com a inconsciência. Aquela mera sugestão surtiu um efeito hipnótico em Amata. Viu-se olhando fascinada para esse suposto lunático, porém tão instruído e experiente que poderia, com uma pena e um único pedaço de pergaminho, transformar o emaranhado das leis num atalho de salvo-conduto para ela.

A lista de seus parentes homens tornara-se na verdade bem curta. O avô Capitanio morrera um ano antes de seus pais, deixando para seu pai o anel que mais tarde fora roubado por Simone della Rocca. O tio-avô Bonifazio seria o último homem a quem ela iria procurar. Provavelmente iria lhe roubar até o último centavo e abandoná-la nas ruas como uma mendiga — ou trancafiá-la num convento, onde viveria o resto de seus dias como Suor Amata novamente. Mas um homem, seu tio Guido, pai de Vanna, podia ser a solução de seus problemas. Se o tio ainda estivesse vivo, seria hoje o único senhor do Coldimezzo. E se Jacopone falasse em nome dela... certamente o sogro do notário não haveria de se recusar, apesar do antigo escândalo envolvendo Bonifazio e ela. Os lábios de Jacopone, rachados pelas intempéries, abriram-se mais uma vez:

— Seu irmão.

— Fabiano?

— Se não tivesse feito os votos solenes de viver para sempre na pobreza, ele serviria.

À menção ao irmão morto, Amata aspirou com força o ar entre os dentes cerrados. Era uma lembrança dolorosa demais. Mas a alusão do primo ao voto de pobreza de Fabiano também a fez reprimir um sorriso. Um dia ela iria distrair Sior Jacopone com a história do "frei Fabiano".

Atrás dela ouviu-se o som do arrastar de sandálias, mais forte que as pisadas de Pio. A cozinheira em pessoa viera trazer a comida.

— Por favor, madonna, permita-me servir nosso hóspede, em agradecimento por ele ter salvo sua vida.

Amata sorriu.

— Viu, signore, quantas boas almas estão aqui para cuidar de você? — e ficou imaginando se o fato de ambos serem viúvos teria a ver com a atenção especial que a cozinheira dedicava ao doente.

Levantou-se para deixar a mulher sentar-se no banco e saiu discretamente do quarto, detendo-se numa das janelas do corredor. Espiou pelas venezianas as pedras úmidas do calçamento da vicia, que tinham adquirido um leve polimento acinzentado ao sol do meio-dia de inverno. Amata também viu um Orfeo Bernardone sem barba encaminhando-se para a porta da frente de sua casa, com a cabeça e os ombros caídos e o andar desanimado. Que falta de sorte a dele, ter aparecido justamente quando ela estava pensando no irmão. Se tivesse alguma dúvida sobre qual atitude tomar desde a última visita do rapaz, o fato de ele chegar naquele exalo momento deitou por terra qualquer incerteza.

— Tenho visita chegando— falou para dentro do quarto onde estava Jacopone. — Quero conversar com você mais tarde sobre o conselho que me deu.

Um esboço de um plano começou a se formar em sua cabeça enquanto atravessava o vestíbulo para receber Bernardone. Se desse certo, de uma só vez amarraria a vingança à sua necessidade de proteção. Assim que Jacopone estivesse forte o bastante para viajar, iriam até Coldimezzo — confiando que o conde Guido ainda morasse na propriedade. Não fazia a menor idéia se a castella sobrevivera ao ataque, mas Jacopone haveria de saber. Ela poderia continuar a mostrar-se interessada nesse Orfeo, pedir-lhe para acompanhá-los como proteção contra saqueadores no caminho e, quando chegassem a Coldimezzo... era o lugar perfeito para o filho de Bernardone pagar pelas mortes de sua família! O terreno rochoso do Coldimezzo ficaria feliz em absorver a oferenda que ela lhe faria; seria um altar de sacrifício, como as pedras achatadas banhadas em sangue sobre as quais os patriarcas hebreus imolavam cabras, bezerros e pombos para expiar seus pecados.

 

Apesar da fantasia da justiça final que fazia seu espírito flutuar, Amata ficou perturbada com a tristeza de Orfeo. Que satisfação teria ela em matar alguém que já dava a impressão de preferir estar morto? A palidez do rosto recém-barbeado apenas aumentava o aspecto de sofrimento. Ele se deixou cair numa cadeira do outro lado da lareira de pedra, diante de Amata, mas sem conseguir encará-la. Seu olhar, em vez disso, fixava-se nas labaredas.

— Por que esse olhar tão distante, signore? É sempre assim mesmo por baixo de suas suíças? Pensei que viesse me divertir com histórias de suas aventuras.

— Não devia ter vindo tão cedo. Foi um erro.

Caiu novamente em silêncio, remexendo-se no assento para ficar diante do fogo, mas não fez menção alguma de se levantar para ir embora. A boca estava frouxa, entreaberta, como a de um imbecil incapaz de se lembrar o que pretendia dizer em seguida.

Enfim, falou com uma voz tenebrosa.

— Precisava conversar com alguém. E vou de fato lhe contar uma história, de Ala-al-Din, o Velho da Montanha, um seguidor do tio de Maomé, Ali.

Ele fixou o olhar nas chamas ao começar:

— Esse chefe mora na região de Alamut, para além da fronteira da Armênia Maior. Construiu lá uni jardim repleto de todas as frutas e todas as flores aromáticas. Palácios de mármore decorados com peças de ouro, pinturas e sedas espalham se por suas propriedades. Através de tubos instalados nesses prédios, vinho, leite, mel e água pura fluem de fontes para todas as direções.

Dentro dos palácios, moram donzelas elegantes, que cantam e dançam ao som de liras e alaúdes e são peritas na arte da sedução.

Amata sorriu ao imaginar como seria. Por que ela não nascera num ambiente tão prazeroso quanto aquele, pagão, em vez de nessa vida de tanto rigor cristão? Espreitou o rosto de Orfeo, que continuava lúgubre como antes, fazendo um triste contraste com a rica descrição. Ela cerrou os olhos, não querendo estragar o devaneio com o que quer que fosse que o estivesse deprimindo.

— Poucos conhecem o paraíso terrestre de Ala-al-Din — continuou ele no mesmo tom monótono —, pois está escondido num vale guardado por um castelo poderoso, através do qual uma passagem secreta leva à entrada. Ao criar esse cenário celestial, ele teve em mente se passar por profeta, por aquele que tem o poder de admitir no paraíso os homens que fizerem a sua vontade.

Ele continuou:

— Em sua corte, Ala-al-Din mantém muitos jovens das montanhas vizinhas, selecionados por suas habilidades marciais e coragem excepcional. Depois de lhes ensinar sobre o paraíso e de gabar-se do poder de lhes conceder permissão para lá entrar, faz com que lhes seja servido um certo narcótico chamado "hashishin" Então, quando estão quase adormecidos de embriaguez, ele os leva para o palácio secreto, onde por muitos dias ficam ainda mais inebriados com os excessos de prazeres de todos os tipos, até que acreditam realmente que se encontram no paraíso.

Amata chegou-se para a ponta da cadeira.

— E esses rapazes bonitos nunca mais saem de lá?

— E eu disse que eram bonitos? — ele inclinou a cabeça e olhou-a de relance pelo canto do olho. — Eles não vão embora por vontade própria. O chefe faz com que sejam drogados de novo e os traz de volta para a sua corte. Pergunta onde estiveram e lhes assegura que, se obedecerem às suas ordens, ele os levará de volta para o paraíso que acabaram de visitar. Assim, os jovens ficam contentes em receber as ordens dele e até em morrer a seu serviço, pois acreditam que serão mais felizes depois da morte do que enquanto estão vivos. Caso algum príncipe da vizinhança insulte Ala-al-Din, acaba assassinado pelos guerreiros do chefe, que não temem perder a própria vida. Ninguém, por mais poderoso que seja, que se exponha à inimizade do Velho da Montanha pode escapar de seus "assassinos" pois é assim que vieram a ser chamados, por causa do"hashishin" que ingerem. Seus atos homicidas fizeram com que a palavra assassino chegasse até a nossa língua.

Orfeo fez uma pausa, limpando uma pequena mancha debaixo de uma unha. Amata bateu palmas entusiasmadas, mas mesmo assim não conseguiu fazer com que o comerciante se animasse.

— Uma história maravilhosa e assustadora, signore. É verdadeira?

— Verdadeira até demais.

Ele então cobriu o rosto com as mãos fortes. Quando voltou a olhá-la, havia um brilho úmido em suas pálpebras e seus olhos estavam vermelhos.

— Assassinos mataram meu primeiro carroceiro, e meu amigo, há duas noites — disse ele —, aquele homem que você viu com um machado e que manteve os soldados do conde Roffredo à distância.

Amata compreendeu a tristeza do comerciante. Mesmo assim, esforçou-se em evitar qualquer sentimento de solidariedade, fechando aquele canto de seu coração. Preferiu concentrar-se num único pensamento: foram assassinos também os que mataram minha família, assassinos contratados pelo pai de Orfeo di Bernardone.

— Era eu o alvo das adagas deles — continuou o comerciante. — Como raspei a barba e Neno não, eles se equivocaram.

A cadeira de Orfeo arranhou os azulejos quando ele se levantou e empurrou-a com a perna.

— Vim me despedir, madonna. Não sei por que despertei tamanha inimizade, mas sei que minha vida me será confiscada se permanecer em Assis. Vou pedir a Sior Domenico para providenciar outra expedição de compras. Só lamento ter de ir justamente agora, quando acabei de conhecê-la.

Ah não! Você não pode desaparecer de novo, pensou Amata.

— Mas não é exatamente isso o que esses assassinos esperam? — disse ela, impulsivamente. — Será que não estarão à espreita para atacá-lo fora das muralhas?

Ele se deteve e ela aproveitou o momento para trazer à baila o que era de seu interesse:

— Vou viajar para a Comuna de Todi dentro de alguns dias e preciso de uma pessoa armada para me escoltar. Estava pensando em chamá-lo.

E acrescentou logo em seguida:

— Seu inimigo não seria capaz de prever algo assim, e você e eu... — E você e eu? — calou-se antes que fizesse concessões à sua resolução, antes de mentir deslavadamente.

A melancolia que cobria as feições de Orfeo foi se dissipando mesmo antes de ela ter terminado. Amata não sabia se ele tinha sido mais atraído pela perspectiva da fuga ou pela palavra que ela não chegara a dizer.

Orfeo tomou-lhe a mão.

— Sinto-me honrado, madonna. Sinceramente honrado.

Uma fisgada inesperada aqueceu o interior das coxas de Amata quando ele pressionou os lábios o mais suavemente possível nas costas de sua mão.

 

— Gerardino está muito mal. A gripe atacou-lhe os pulmões e ele parou de comer. — Zefferino transmitiu o aviso pela grade quando fez descer a ração do dia para Conrad e Giovanni.

Giovanni da Parma abanou a cabeça com ar grave quando Conrad lhe entregou a tigela de caldo.

— Muitos acreditam que frei Gerardino di Borgo San Donnino foi o responsável involuntário pela minha prisão. Há quanto tempo você disse que ele e eu somos convidados de Bonaventura? Dezesseis anos? Tem sido um cerco maçante para alguém tão jovem e simpático. Você teria gostado muito dele, Conrad. Um teólogo brilhante: afável, religioso, moderado nas palavras e na comida, prestativo, com humildade e gentileza.

— Estas são as qualidades de um santo. O que foi exatamente que ele fez de errado? — perguntou o frade.

— Assim como eu, ele concordou com as profecias do abade Joachim. Mas ele levou as teorias de Joachim a conclusões anti-sacerdotais, e o clero secular em Paris ficou contra ele. Como ministro geral, eu deveria tê-lo punido, pois suas declarações realmente chegavam às raias da heresia, mas não pude, porque enxerguei a beleza lógica por trás delas. Na verdade, alguns dos escritos dele foram até atribuídos a mim. Conseqüentemente, quando ele caiu em desgraça, eu caí com ele. Era justamente a desculpa de que os Conventuais precisavam para me substituir.

Giovanni mergulhou um naco de pão no caldo morno até que ficasse macio o bastante para ser mastigado. Quando terminou o pão, levou a tigela à boca. Conrad procurou fazer seu companheiro voltar ao assunto.

— O que então Gerardino acrescentou aos ensinamentos de Joachim? Giovanni ergueu os olhos de repente para Conrad enquanto este lhe fazia

a pergunta. No rosto dele, Conrad notou um sobressalto, e o frade se preparou para uma das freqüentes digressões de seu companheiro.

— Perdoe-me, irmão, estava me recordando de partes de uma música que há anos estava esquecida para mim. As pessoas dizem que uma criança de colo foi quem primeiro a entoou, como um alerta do que aconteceria no futuro.

 

Certa vez um romano na cabeça de outro romano bateu.

Mas este romano ao primeiro foi Roma inteira o que deu,

E o leão foi à montanha e da raposa fez-se amigo, o ladino.

Mas vestiu pele de leopardo e assim leve um fim repentino.

 

Nunca fui capaz de descobrir quem eram os romanos, nem o leão nem a raposa, assim como não sei quem é o Anticristo ou a Abominação da Desolação nas profecias de Joachim. Durante anos acreditei que o imperador Frederico fosse o Anticristo; a mania que ele tinha de banhar-se diariamente, mesmo aos domingos, era prova de que não respeitava os mandamentos de Deus nem as festividades ou os sacramentos da Igreja. Entretanto, depois que Frederico morreu com o restante das profecias ainda por acontecer, comecei a duvidar. Quando perguntei a Gerardino qual era sua opinião, ele citou o capítulo 18 de Isaías, desde "Oh! Terra em que ressoa o ruído de asas" e assim por diante até o final, como se fizesse referência ao rei Alfonso de Castela. "Com certeza ele c o maldito Anticristo de quem todos os doutores e santos falaram" foi o que ele disse. Quanto à Abominação da Desolação, ele acreditava com igual certeza que o termo se referia a um papa simoníaco que viria em breve.

E foi por causa dessas interpretações que os ministros prenderam Gerardino? — indagou Conrad.

— Não só por elas, muito embora tenham sido grandes responsáveis por expô-lo ao escárnio dos lentes da universidade. O abade Joachim divide o tempo em três: no primeiro estágio, Deus, o Pai, introduziu os mistérios por intermédio dos patriarcas e profetas. Num segundo estágio, o Filho atuou por meio dos Apóstolos e seus sucessores, ou seja, o clero, e a respeito desse estádio ele diz: "Meu Pai atuou até agora; daqui para a frente, Eu atuo." No estágio final, o Espírito Santo vai agir por meio das ordens religiosas, dos frades, monges e freiras, conduzindo a hierarquia para novos caminhos. Não que o Antigo e o Novo Testamento tenham de ser abolidos, veja bem, mas os olhos dos homens serão abertos pelo Espírito de forma a verem uma nova revelação nas antigas Escrituras: um Evangelho Eterno que procede dos Testamentos, conforme o seu autor, o Espírito Santo, procede do Pai e do Filho. Mas, antes que isso ocorra, é preciso que aconteçam as convulsões previstas no Apocalipse, a Batalha de Armagedon que deve preceder ao reino dos santos. Nós acreditávamos que o ano da reviravolta seria o de 1260.

— E por que esse ano? — Conrad perguntou.

— Era bem evidente, considerando-se a história de Judith. Judith, depois de enviuvar, viveu três anos e seis meses, quer dizer 1.260 dias. Ela simboliza a Igreja, que sobrevive ao esposo Cristo, não por 1.260 dias, mas pela mesma quantidade de anos. O ano de 1.260 deve ser então o ponto decisivo na vida da Igreja.

— Mas se Nosso Senhor morreu aos trinta e três anos — Conrad indagou —, será que o ano da reviravolta não viria trinta e três anos após o ano 1260 de Nosso Senhor?

Giovanni fitou Conrad. Depois esfregou a testa com o punho:

— Claro! É por isso que os eventos vaticinados por Joachim ainda não ocorreram. Gerardino se esqueceu de levar isso em consideração. Havia mais coisas, porém. Ele publicou uma Introdução ao Evangelho Eterno contendo as obras mais famosas do abade Joachim, com prefácio e notas dele próprio. Os sacramentos seriam símbolos transitórios, afirmou ele, a serem postos de lado durante o reino do Espírito Santo. Ele também comparou o papado à Abominação da Desolação, como eu já disse, e, com apenas alguns anos faltando para o ano da reviravolta, o governo papai não ficou nada satisfeito. E ele também declarou que São Francisco era o novo Cristo que haveria de suceder a Jesus, que ele seria o Cristo da segunda era. As escolas de Paris não podiam permitir que uma declaração como essa passasse incontestada, e o assunto foi parar numa comissão papal em 1255. A comissão condenou a obra de Gerardino e queimou todas as cópias existentes. Agora, parece que Gerardino morrerá como um herege e excomungado devido à sua teimosia, pois ele nunca se retratou de suas idéias não-convencionais.

Não mais voltaram a falar sobre Gerardino até que, alguns dias mais tarde, a voz rouca de Zefferino anunciou o inevitável:

— O espírito de frei Gerardino deixou seu corpo enquanto ele dormia na noite passada.

— Que Nosso Senhor e Sua Abençoada Mãe recebam sua alma — disse Giovanni.

A grade se abriu e Zefferino desceu para junto deles.

— Bernardo da Bessa usou-o como exemplo no capítulo desta manhã — Zefferino franziu o cenho e baixou o tom da voz: — "Observem esse exemplo de extrema insensatez, quando um frade é censurado por homens de grande saber e ainda assim não recua de suas idéias falsas, mas continua atrevido e obstinado, vivendo de ilusões."

— Bernardo é quem agora conduz o capítulo? — perguntou Conrad.

— Essa é a outra notícia que trago — disse Zefferino. — Bonaventura viajou para Roma. O santo padre pediu que ele discursasse no concilio da Igreja em Lyons. Vai ficar afastado pelo menos por todo o verão.

Conrad abaixou a cabeça. Pôs-se de pé, revirando os dedos dos pés na terra fria e úmida que cobria o chão da cela. Arrastando seus grilhões, levou as sobras de comida para a cesta pendurada na parede. Durante dois anos havia alimentado a esperança de que o ministro geral pudesse apiedar-se e libertá-los, ele e Giovanni da Parma. Mas agora, ocupado com assuntos do papado, era menos provável ainda que Bonaventura se lembrasse dos frades intrometidos que deixara acorrentados nas profundezas do Sacro Convento. Ficariam presos ali por no mínimo mais meio ano.

Conrad examinou o frade idoso enquanto ele tomava o caldo. Giovanni tinha tanto tempo de prisão quanto Gerardino. O frade também lançou um olhar para as próprias mãos, pálidas, esqueléticas, e apertou um dos braços magros por dentro da manga da túnica. Será que ele e Giovanni terminariam seus dias numa cela de prisão como o rebelde Gerardino? Será que ele nunca poderia cumprir os votos pessoais de trabalhar com os leprosos? Por mais sem sentido que pudesse parecer, seria realmente essa a essência da vontade de Deus ao chamá-los para a Ordem — passar os dias na escuridão do subterrâneo, tendo apenas ralos como companhia? Vossos caminhos são realmente misteriosos, Senhor, refletiu enquanto recolhia a tigela de Giovanni e a entregava a Zefferino.

— Venha, irmão — disse, depois que o carcereiro saiu —, vamos agradecer mais uma vez pelo nosso alimento.

 

Quando Orfeo lhe perguntou para onde iriam, Amata limitou-se a esfregar de leve seu manto para limpar os respingos de lama endurecida.

— Logo vamos chegar lá — respondeu.

Ele reconhecia a estrada para a comuna de Todi, é claro, pois costumava fazer aquele percurso com o pai quando era menino. Na verdade, conhecia-a muito bem, pois sabia que, caso não se desviassem em alguma encruzilhada nos próximos quilômetros, passariam diretamente abaixo do Coldimezzo.

Que tipo de redemoinho obscuro teria de enfrentar por ter aceito a oferta da mulher? A minúscula caravana contornava um vórtice que poderia sugá-lo para o fundo sombrio de seus mais terríveis pesadelos e deixá-lo em pedaços lá embaixo. Gotas de suor brotaram e escorreram por sua testa e rosto, o que não estava de acordo com a temperatura amena de março, quando outra vez lhe veio à mente a destruição que presenciara naqueles sonhos — pessoas caindo sob os golpes das espadas e pisoteadas pelos cascos dos cavalos de guerra — e, recentemente acrescentada, a imagem da criança infeliz arrebatada e levada pelos assassinos contratados por seu próprio pai.

De propósito, ficou na retaguarda do grupo. Sua respiração curta mesclava-se ao gorjear das aves, cujo chamado tentava atrair potenciais parceiros nas árvores à margem da estrada. Até os pássaros faziam troça de sua mudança de humor. O que se havia iniciado como uma viagem de galanteria — seu cavalo lado a lado com o de Amata enquanto ele lhe contava sobre seu amigo Marco e ela filiava de Donna Giacoma e sobre a única grande viagem que fizera a Marches; o entusiasmo dele crescendo como a seiva nas árvores em volta ao despertar do sono de inverno — fora amortecido pela realidade que ele poderia ter de enfrentar numa curva qualquer dessa estrada.

Amata parecia igualmente ansiosa. Estava fria e distante, e fazia uma hora que não falava com ninguém. Havia puxado o capuz sobre a cabeça e sua montaria reduzira a marcha. Não dava a impressão de ir tratar de um simples negócio, motivo que usam para justificar a viagem. Até o menino Pio ficara desanimado e desistira do cavalgar ao lado dela.

Orfeo esporeou seu cavalo de guerra até emparelhar com a carroça de Jacopone. Os criados a haviam enchido de palha, cobrindo-a depois com várias camadas de mantas. Ainda machucado, Jacopone cochilava tranqüilo, sem se incomodar com a mosca que zumbia perto de seu rosto e saltava de sua testa nem com os trancos que a carroça dava no chão de terra. Continuaram morro acima depois de vadearem o rio Tibre; a estrada ia se tornando mais firme à medida que se afastavam do leito do rio. Um tapete de grama nova se espalhava pelos roçados que eles iam atravessando, e os fazendeiros apareciam aqui e ali, verificando se os campos estavam úmidos. Folhas tenras tingiam os arbustos e as árvores de verde, e os primeiros botões rosados e brancos enfeitavam como lantejoulas as árvores frutíferas que tinham sobrevivido ao inverno implacável.

Orfeo veio trotando até ficar atrás de Amata, em tempo de vê-la reprimir a custo um grito. Ela havia parado e olhava adiante. Ao retirar o capuz, o vento afastou-lhe do rosto os cachos de cabelo preto. Estavam apenas um pouco mais compridos do que os usados pelos homens, remanescência dos seus dias de convento, ela explicara. Foi preciso determinação para desviar os olhos do perfil de Amata para ver o que lhe causara tamanho sobressalto.

Esse deve ser o lugar, pensou ele. Mas tinha um aspecto diferente. Lembrava-se de uma barragem de terra que circundava o castelo, de uma floresta que crescia quase até o talude, de uma muralha cujo único tipo de pedra subia pelas torres e pelo arco que emoldurava a entrada. Este Coldimezzo tinha, em toda sua circunferência, altos blocos de fortificações. Acima das ameias, só se distinguia a torre de menagem, no último pavimento do castelo. As árvores e arbustos tinham sido cortados de modo que o inimigo que avançasse seria forçado a atacar num terreno íngreme, descoberto e escarpado, sem qualquer possibilidade de apanhar os ocupantes do castelo de surpresa.

— Eles o fortificaram — disse Amata baixinho para ninguém em particular —, mas o dano já está feito.

Deu a volta com seu palafrém e conduziu o animal até a carroça. Apoiou-se na barra lateral e acordou Jacopone com uma sacudidela.

— Acorde, primo. Estamos em casa.

Orfeo ficou estático sobre a sela, mudo como uma porta, enquanto o penitente procurava recuperar a consciência. Fitou a mulher como se a visse pela primeira vez, juntando as peças do que sabia sobre ela: a idade, a amizade com o fradei sua temporada como freira, a generosidade da senhora que a recebera em casa (por ela ser órfã?), a vendeta que ainda envenenava seu coração (contra os homens da Rocca?).

Aqui seguramente se via a mão de Deus, a mão que o arrancara de Acre e o levara de volta a Assis e agora a esse lugar, com essa mulher. Examinou as feições pálidas emolduradas pelo cabelo preto, esforçando-se para descobrir, no rosto de Amata, a criança que o espreitara timidamente da casa do portão. Quantos anos antes? Oito, sem dúvida. Com certo constrangimento, ela uma vez admitira já ter dezenove anos. Santo Deus, tinha de ser ela!

Seu coração batia com força, como o de alguém que acidentalmente tropeça numa moeda bem valiosa. E, como esse alguém que primeiro cobre a moeda com o pé até ter certeza de que ninguém está olhando, Orfeo resolveu que esconderia sua descoberta por enquanto. Em breve, quanto a hora e as circunstâncias lhe fossem favoráveis, revelaria a infeliz associação de suas histórias pessoais. Por enquanto, seria apenas um observador, estudando o passado dela à medida que o presente fosse se desenredando. Agora admirava a mulher sob uma nova forma, sabendo o quanto sofrerá.

Ainda cambaleante, Jacopone levantou-se do leito de palha e arrastou-se até o assento da carroça. Amata fez sinal para que a caravana seguisse em frente. Mais guardas tinham aparecido no alto da muralha desde que os avistaram se aproximando do castelo. Amata esquadrinhou os baluartes, como se procurasse um rosto conhecido entre os guerreiros. Um guarda gritou para eles quando chegaram mais perto, ordenando-lhes que se identificassem e dissessem o propósito de sua visita.

— Cleto Monti não é mais o guardião do portão aqui? — Amata gritou de volta.

— Não conheço ninguém com esse nome — respondeu o homem.

— Morreu faz oito anos, senhora — outra voz acrescentou. — Foi morto num ataque a este castelo.

— Eu não sabia — disse ela tão baixinho que só os que a acompanhavam escutaram. Suas costas curvaram-se por um momento, mas em seguida voltou a dirigir-se aos guardas:

— Amata di Buonconte, acompanhada de Jacopo dei Benedetti da Todi, solicita a hospitalidade de seu tio, conde Guido di Capitanio.

— Então é uma impostora — replicou o segundo homem. — Amata di Buonconte também está morta. Foi assassinada naquele mesmo ataque. E Sior Jacopo enlouqueceu e se matou depois que a senhora sua esposa morreu.

A cabeça de Jacopone aprumou-se bruscamente com aquelas palavras e ele berrou para o guarda;

— Vá buscar o tio dela, seu imbecil! Qualquer idiota com dois olhos pode ver que não somos fantasmas.

Inexplicavelmente, os olhos de Orfeo se encheram de lágrimas vendo o guarda desaparecer por trás do parapeito. Queria rir, queria chorar — por Amata e seu primo. Pressionou o elmo contra a cabeça e baixou a viseira para que ninguém pudesse notar como estava emocionado.

Muitos momentos se passaram; os dois lados permaneciam em silêncio e imóveis. Então, atrás da muralha, Orfeo escutou uma grande agitação, com muitos gritos agudos de mulheres em torno de uma voz forte masculina que parecia dar ordens a todos de uma só vez. Abruptamente, o portão se abriu e a voz gritou:

— Onde está ela?

Amata apeou e ficou de pé com o braço ao redor do pescoço do cavalo.

— Sou bem-vinda, tio? — disse para o grande urso que vinha pesadamente pela entrada ao encontro dos viajantes. Mais algumas largas passadas e ele já a suspendia em seus braços imensos. O palafrém afastou-se assustado para um lado enquanto o rosto de Amata desaparecia no meio da barba grisalha desgrenhada do tio. Por fim, ele a colocou no chão e a segurou pelos ombros com os braços esticados.

— Amata, querida criança. Procuramos por você em toda parte durante meses; parecia que a terra a havia engolido. Nenhum dos sobreviventes sabia dizer quem os havia atacado.

— Fui mantida prisioneira na comuna de Assis durante muitos anos. É uma história longa e não muito feliz. Mas agora estou aqui e sou uma mulher livre.

O conde Guido tomou suas mãos e meneou a cabeça.

— Senti tantas saudades suas quanto da minha Vanna. Nós também a perdemos cerca de um ano depois.

— Sior Jacopo me contou. Deve ter sido terrível para vocês.

O homem lançou um olhar ao redor como se só então percebesse o restante da caravana. Seu olhar foi de rosto em rosto, e Orfeo levantou a viseira outra vez. Por fim, os olhos castanho-avermelhados pararam no penitente, vestido de trapos, a tez pálida e acinzentada, sentado no banco da carroça.

— Sior Jacopo? — compadeceu-se. — Chegou a esse ponto?

— Esse ponto é bom — Jacopone conseguiu sorrir. — Fui ao inferno, suocero mio, mas agora estou de volta.

— É um belo dia para se abater um bezerro gordo — bradou o conde para as pessoas que aguardavam na entrada do portão. — Senhor capataz, ao trabalho, já. Queremos um banquete.

Tomou as rédeas do cavalo de Amata e, passando o outro braço pela cintura dela, praticamente a carregou para o castelo. Os ombros dela estremeceram, e enfim começou a chorar.

Orfeo também apeou e foi atrás. Enquanto andavam, captou alguns pedaços da conversa entre eles.

— Não tinha certeza...

— Ora! Bonifazio não passa de um excremento de boi. Todos nós sabíamos... A certa altura da conversa, conde Guido parou e olhou para o rosto dela coberto de lágrimas. Disse pausadamente:

— Seu pai sofreu todos os dias em que a castigou. Ele fez o que achou que devia fazer; mas de coração partido. Para ele, você era a dádiva mais preciosa deste mundo, e não soube o que fazer quando Bonifazio maculou a sua jóia. Foi o tio quem ele jamais perdoou.

Amata apoiou-se nos braços dele, enfiando a cabeça em seu ombro. Ao olhar por cima dela e ver Orfeo por ali, o senhor fechou a cara e sacudiu o braço de forma altiva:

— Leve os cavalos para a cocheira, homem. Os criados vão lhe mostrar o caminho. Não fique bisbilhotando os assuntos de sua patroa.

— Mas... — Orfeo protestou. Esperou que Amata explicasse que ele era um amigo especial, não apenas um guarda contratado, mas ela nem mesmo levantou a cabeça. Por fim, viu a carroça sendo levada embora e um criado ajudando Jacopone a andar para o salão. Orfeo tomou as rédeas do palafrém de Amata e foi atrás da carroça. O conde assobiou para uma criança de sete ou oito anos, com os cabelos cor de palha esfiapados.

— Teresina, venha cá. Vovô tem uma enorme surpresa para você.

 

Jacopone esticou os braços e as pernas doloridos sobre a ampla cama do sogro, perto da lareira do salão do castelo. O calor das chamas e o cansaço devido aos solavancos da carroça durante a viagem deixavam-no sonolento.

Ele e Vanna haviam se conhecido naquele aposento. O penitente cerrou os olhos e reviveu mentalmente aquele dia. Ela usava um vestido cinza sem adorno e uma coifa cobria-lhe o cabelo. Mal levantou os olhos para ele. Ficou olhando para baixo resolutamente, enquanto ele conversava com os pais dela, discutindo as condizes do casamento. Que diferença entre a modesta menina do interior e as mulheres ousadas que conhecera em Todi! Ao mesmo tempo que o agradava, a falta de requinte de Vanna frustrava seus planos: ele teria de aparar suas arestas antes de se sentir confiante para apresentá-la em público. Mas sua beleza natural, devidamente adornada e enfeitada com jóias, seria uma atração deslumbrante e um trunfo para a sua carreira. Os comerciantes da cidade iriam aos bandos à sua casa pelo simples prazer de beijar aquela mão jovem, acotovelando-se para os cumprimentos, por mais que essa mão fosse crestada pelo sol.

Vanna non vanitas. Ele teria tanto a aprender com Vanna se ela não tivesse morrido — e se ele estivesse aberto à verdade da vida que ela vivia diariamente. Por que fora necessário ocorrer um acidente fatal para que ele se livrasse de suas idéias falsas? Puxou o pesado cobertor de Guido, que exalava o odor pungente do velho soldado sem asseio, e cobriu a cabeça. Implorou: Quando, meu Deus, vais me libertar? Quando verei a alma radiante de Vanna para pedir-lhe perdão diretamente?

Do lado de fora do cobertor, o aposento fervilhava com o murmúrio de muitas vozes. Uma delas, mais grave que as outras, instava:

— Vá agora. Ele não morde.

Então apareceu o querubim. Com todo o cuidado, foi puxando a coberta, descobrindo-lhe os braços e o peito. Ele sentiu a mão fria e miúda segurar a palma áspera de sua mão. Abriu um olho. A luz oblíqua da tarde emoldurava-lhe a cabeça coberta de cachos e acrescentava um toque de deslumbramento ao ombro e à lateral da túnica branca, cingida na cintura por uma corda de ouro. O rosto pueril tinha a mesma boca, o mesmo queixo da imagem de Vanna que acabara de ver em sonho. Ele aceitou o prenuncio de todo o seu coração.

— Está na hora, então? — disse ele. — Veio buscar-me para me levar até ela? O querubim pulou como um passarinho e sentou-se na beirada da cama. Os olhos sérios fitavam silenciosamente o rosto dele. Jacopone arqueou as sobrancelhas, alternadamente enrugando e esticando a pele firme do rosto e da testa. Um formigamento indicou-lhe que continuava bem vivo.

— Nonno Guido diz que você é meu papa.

Jacopone correu os olhos pelo aposento. Seu sogro e Amata estavam de pé junto da entrada.

— Você está machucado? — a menina perguntou. — Vovô disse que você andou doente por muitos anos e que foi por isso que não pôde vir me ver.

Jacopone fechou os dedos em torno daquela mãozinha.

— Diga me o seu nome, criança.

— Teresa di Jacopo. Todos me chamam de Teresina.

— É um lindo nome. — Ele continuou a segurar lhe a mão enquanto sua mente retrocedia através das névoas do passado. De novo, viu o corpo esmagado de Vanna sendo levado para o quarto de dormir deles, as criadas torcendo as mãos nos aventais, a ama-de-leite chorando alto, as lágrimas descendo-lhe pelas faces enquanto a bambina mamava em seu seio. Ele mal tinha tomado conhecimento daquela delicada presença na casa, devido ao excesso de cuidados de Vanna e da ama para não perturbarem os negócios dele. O bebê não devia ter mais de dois meses naquela época.

Abriu os dedos, mas a menina deixou a mãozinha descansar sobre a palma da mão dele.

— A última vez que a vi, você não era maior que esta minha mão — ele disse. — Olhe para você agora, tão grande.

Voltou-se para Guido, que afinal se aproximara da cama:

— Deus o abençoe, suocero. Cuidou dela muito bem.

— Até o dia de hoje, ela era tudo o que me restava. Para mim, tem sido um presente dos céus.

O rugido do urso reduzira-se a um mero ronronar. Sentou-se ao lado da menina e o colchão afundou com seu peso. Passou os dedos pelos cachos da criança:

— Veja, vocês têm até a mesma cor de cabelo — disse para a menina —, embora seu rosto seja igual ao de sua mãe.

— Deo gratias — Jacopone riu. — Graças a Deus.

— Essa risada soou um pouco enferrujada — disse Guido. — Tenho um vinho delicioso que vai ajudar a lubrificá-la.

O conde Guido levantou-se e tirou Teresina de cima da cama.

— Vamos tomar conta direitinho de seu papa e engordá-lo, e logo, logo ele vai ficar forte para brincar com você — disse ele. — Agora, vamos deixar que descanse. Vão ter muito tempo para se conhecerem.

 

O mau humor azedava o estômago de Calisto di Simone. Seus homens tinham estragado totalmente seus planos de recuperar o anel da confraria e permitido que o jovem Bernardone escapasse para além dos limites da cidade. Para rematar sua desgraça, as feridas antes restritas ao seu pescoço tinham se espalhado para ambos os lados da coluna; nem mesmo conseguia sentar-se confortavelmente em sua cadeira de espaldar alto.

Estava deitado de barriga para baixo sobre uma mesa com pés em armação triangular enquanto uma criada abria os ferimentos putrefatos e colocava compressas quentes nas costas dele para drenar o pus. Um dos panos estava tão quente que o queimou; ele berrou de dor e deu um soco, atingindo a barriga da mulher.

— Você fez isso de propósito!

O soco derrubou a mulher ao chão; mas ela conseguiu falar, ofegante:

— Não, meu senhor, eu juro — e correu choramingando para o caldeirão de água fervendo, com os braços em volta da cintura. — Pela minha vida, prometo que não vai acontecer de novo.

— Pela sua vida, é melhor que não aconteça.

Um homem alto e esguio entrou no aposento e fez uma reverência diante do signore. As botas enlameadas, a calça justa e o manto eram indicação de que estivera cavalgando por bastante tempo. Calisto encarou-o com raiva no olhar.

— Está de volta, Bruno? Pensei que tivesse desaparecido de vez da minha frente.

O homem deu um sorriso forçado, sem tanto medo de seu insatisfeito senhor quanto a criada.

— Estive no rastro de Orfeo Bernardone — disse. — Sei onde está escondido.

— Então por que não acabou com ele e trouxe-me de volta o anel? Não quero notícias, quero resultados!

Bruno sentou-se num banco, curvou-se e começou a raspar as crostas de lama das botas com uma faca, atirando-as no chão em pequenos montes de terra. Nem mesmo se deu ao trabalho de levantar a cabeça quando explicou:

— Não conseguiria sozinho. Está entocado numa castella, logo acima da fronteira da comuna de Todi. Uni lugar chamado Coldimezzo.

Calisto apoiou-se nos cotovelos.

— Sei onde fica. Foi lá que raptamos Amata, a meretriz. Bernardone veio fazer perguntas sobre ela e sobre esse lugar naquele dia em que esteve aqui. Esfregou o dedo defeituoso e perguntou:

— O que ele iria fazer no Coldimezzo? Meu pai e eu deixamos o lugar em ruínas.

— Nem tão em ruínas assim. Está cheio de gente morando lá.

O mensageiro passou a lâmina da faca ao longo da sola para limpar os resquícios de lama e recolocou-a no cinto.

Calisto girou de lado e lançou um olhar feroz para a mulher encolhida de medo num canto escuro da sala.

— Tire esses malditos trapos das minhas costas.

A criada correu para a mesa e tirou as compressas tom as pontas dos dedos. Agradou-lhe ver que ela esticava bem os braços, assim mantendo distância segura dos punhos dele. Quando a mulher terminou, ele se sentou e enfiou os braços nas mangas de sua túnica, cuspindo logo. Prendeu a espada no cinturão enquanto atravessava o aposento.

Bruno olhava calmamente enquanto seu senhor flexionava e girava os ombros acima dele. A dor contraía as feições de Calisto. Ele estreitou os olhos enquanto pensava, e uma centelha de maldade acendeu-se nas pupilas pretas.

— Não suporto a idéia de deixar um serviço incompleto — disse. — Reúna meus cavaleiros. Diga-lhes que se aprontem para cavalgar. Podemos chegar a Coldimezzo amanhã. Desta vez não deixaremos nada para trás além dos escombros. E nenhum sobrevivente.

— Os homens vão gostar disso. Andam entediados por não terem nada para fazer.

Assim que Bruno ficou de pé, Calisto abruptamente deu-lhe um soco no peito, fazendo-o estatelar-se de costas por cima do banco. A cabeça do mensageiro bateu no chão de pedra e um esguicho de sangue jorrou de uma orelha. Ele tentou se levantar, com uma das mãos sobre a orelha e a outra tateando em busca de sua faca. Mas o signore já havia sacado a espada e encostou a ponta da lâmina na garganta de Bruno.

— Isso é por ter deixado Bernardone escapar da primeira vez. Fique atento e não me desaponte de novo, ou sofrerá muito mais.

 

Orfeo não fazia idéia do que esperar quando Amata mandou chamá-lo nos alojamentos dos criados. Desde a chegada, a falta de atenção dela fora nada menos do que gélida. A caminho da cozinha, lembrou a si mesmo que na realidade sabia muito pouco a respeito da mulher e de seus humores.

Mas Amata pareceu feliz em vê-lo.

— Peço desculpas por tê-lo ignorado, Sior Bernardone. Estar de volta à casa em que morei quando criança depois de tantos anos fez com que me esquece da cortesia mais elementar. Espero que me perdoe e aceite essa oferenda de paz. O criado atrás dela segurava uma cesta de piquenique e uma toalha dobrada.

— Pensei que pudéssemos escapar do alvoroço da casa por algumas horas completou ela.

— Aceito com muito prazer — respondeu Orfeo com uma mesura. — E espero jamais ser objeto de seu desagrado. Uma semana de tanta frieza seria intolerável.

Amata deu uma risada.

— Há uma clareira onde eu costumava brincar quando era pequena — disse. — Fica no meio da floresta, um pouco além das muralhas do castelo.

Maravilhou-se com a calma da própria voz. Bernardone fazia o papel de galante bobo da corte com o maior empenho; não suspeitava de absolutamente nada. Era mais bobo ainda por deixar a atração cegá-lo.

Ela foi andando na frente dos dois homens até a saída da fortaleza. Lá chegando, lançou uma olhadela para Orfeo, chamando sua atenção para a cesta. O rapaz fez um gesto de assentimento com a cabeça.

— Grazie mille — disse ele para o criado. — Daqui em diante, eu levo a cesta da minha patroa. — E abriu um sorriso largo, contente por ter recuperado as boas graças dela.

A mulher pouco falou enquanto Orfeo a seguia entre as árvores; limitava-se a responder com breves sorrisos às amenidades que ele lhe dirigia. Havia se preparado para esse dia e não pretendia deixai que ele a desviasse de suas intenções. Não permitiria que ele a envolvesse em sua alegria.

A clareira de que ela se lembrava tinha encolhido nos últimos oitos anos, invadida pelo mato. Ainda era usada, contudo, a julgar pela relva achatada e o caminho aberto que ia até lá. Amata rezou para que ninguém aparecesse por aquelas bandas; esquadrinhou a floresta, atenta ao ruído de vozes ou de pessoas caminhando. Apenas o som dos pássaros, das abelhas e das folhas ao vento invadia o silêncio.

A despeito de estar num excelente estado de espírito, Bernardone deixava transparecer sua tensão durante a conversa, enquanto comiam frutas e queijo e bebiam o primeiro dos dois jarros de vinho que ela trouxera. Talvez estivesse sendo muito reservada; afinal, precisava ter cuidado para não se trair. Ou talvez o rapaz estivesse mais tímido, agora que estavam inteiramente a sós, do que em geral deixava transparecer. Várias vezes, o rosto dele se tornara sisudo de repente, como quando uma nuvem passageira apaga por um instante o cintilar de uma ondulação na água. Todas as vezes que ele parecia prestes a falar de um assunto mais sério, porém, voltava atrás e retomava as brincadeiras. Santa Maria, será que ele pretendia aproveitar que estavam sozinhos e propor que se casassem? Ela se horrorizava com a possibilidade. Amata tinha de vê-lo apenas como o detestado inimigo de sua família.

Talvez ele estivesse esperando até tomar o último gole do segundo jarro antes de revelar seus pensamentos, aproveitando-se da coragem que o vinho lhe daria. Por ela, o melhor seria se ele tirasse um cochilo. Tornou a encher-lhe a taça enquanto ele tagarelava sobre suas viagens por aquela região quando menino. Deu um sorriso tranqüilizador ao apoiar o jarro e abrir a bainha onde guardava a faca debaixo da manga. Era uma pena que não soubesse as palavras rituais que os profetas hebreus entoavam antes dos sacrifícios de expiação, ou as recitaria para si agora. Beba, filho de Lúcifer, incitou-o em pensamento. Prepare-se para o ajuste de contas.

Ela nunca havia matado ninguém a sangue frio. Nem a briga com o monge de Gubbio facilitara a tarefa que tinha diante de si. Aquela facada fora um mero reflexo, uma luta pela sobrevivência. O monge teria esmagado seu crânio se ela não tivesse atacado primeiro. Desta vez, iria cortar a carne macia da garganta de um homem enquanto ele dormia, do mesmo jeito que o ajudante de cozinheiro arrancava a cabeça de um galo. Ou como Judith decapitara Holofernes, o opressor de sua gente, enquanto ele dormia depois de ter feito amor com ela. Amata já decidira que depois iria rezar sinceramente sobre o corpo de Orfeo, pois ele não era um sujeito perverso como Simone della Rocca; apenas uma pessoa que nascera na família errada. Depois, puxaria o corpo para a floresta para que os animais selvagens acabassem com ele e diria a seu tio que o patife fugira às pressas depois de roubar seu... maldição, tinha esquecido desse detalhe! Deveria ter trazido uma jóia ou algo de valor — depois de tê-la exibido diante de todos no castelo, é claro.

O sol cruzava o zênite e Orfeo bebia, e as sombras pouco a pouco penetravam na clareira pelo lado oeste. Enfim, o comerciante bocejou e se espreguiçou sobre a coberta, com as pálpebras pesadas por causa da bebida e do agradável calor da tarde. Da corrente de ouro ao redor do pescoço dele provavelmente pendia um crucifixo, concluiu ela, mas nem esse símbolo sagrado haveria de protegê-lo agora. Os músculos de seu antebraço se retesaram. Ah, como queria terminar logo com aquilo! Mais um pouco e a tarefa estaria cumprida. Finalmente se vingaria e estaria livre para seguir com sua vida. Amata soprou com força o ar dos pulmões, na tentativa de relaxar o tremor dos membros, e tirou discretamente a faca do estojo.

Uma movimentação no caminho causou-lhe um sobressalto. Enfiou depressa a faca nas dobras do vestido. Um alarido de vozes infantis e um bando de crianças, lideradas por Teresina, entrou correndo na clareira.

— Ela está aqui! Eu a encontrei! — grilou Teresina. Estatelou-se na grama aos pés de Amata, enquanto Orfeo se sentava, esfregava os olhos e sacudia o torpor de sua cabeça. As outras crianças, filhas dos criados, seguiram o exemplo de Teresina e espalharam-se ao redor dela.

— Prima Amata, conte-nos uma história — pediu a menina.

— Uma história sobre um príncipe e uma princesa — acrescentou outra menina.

Amata arfava do susto que as crianças lhe tinham dado. Apertou a mão no peito, tentando acalmar os batimentos acelerados do coração.

— Eu lhes conto uma história — disse Orfeo, sonolento. Tirou um lenço da manga e passou-o por cima e em volta do dedo mindinho. — Este é o príncipe explicou. Virou-se para Amata: — Também vamos precisar do seu lenço, madonna.

A mulher pensou no estojo vazio da adaga amarrado no braço.

— Esqueci-me de trazer um — balbuciou.

— Eu tenho um — disse Teresina, sentindo-se importante.

O tecido estava um pouco sujo, mas Orfeo agradeceu à menina com um floreio cavalheiresco. Fez Amata levantar um de seus dedos mindinhos e amarrou o lenço em volta dele.

— Você é a princesa — declarou. Ele esticou o dedo dela e começou:

— Era uma vez um jovem príncipe que viajou com o pai e irmãos para uma terra distante — a mão dele surgiu de repente diante das crianças com todos os dedos levantados. — Certo dia, eles pararam diante de um castelo e o príncipe viu uma linda princesinha, apenas um pouquinho mais velha que vocês, de pé no alto do baluarte. O príncipe acenou para ela com uma boneca igual a esta. — Orfeo levantou a mão de Amata acima da dele e olhou-a direto nos olhos enquanto fazia uma reverência com seu próprio dedo coberto com o lenço.

Amata evitou seu olhar. O que ele estava fazendo? E há quanto tempo sabia quem ela era? Seria isso o que estava tentando lhe dizer?

A voz de Orfeo ficou mais profunda ao retomar a história. Bateu seu dedo no de Amata.

— Porém, os pais deles discutiram, e o príncipe e sua família foram embora antes que ele tivesse a chance de falar com a princesa.

— Aah... — as crianças suspiraram numa só voz.

— O pai do príncipe estava muito zangado com o pai da princesa. Quando ele voltou para casa, contratou um cavaleiro muito mau para invadir o castelo. O cavaleiro matou o papa e a mamma da princesa e a levou consigo para a tenebrosa fortaleza em que vivia — Orfeo abraçou a "princesa" e puxou-a devagar para si. — O malvado cavaleiro a manteve como escrava por muitos anos, e durante esse tempo ela se tornou uma linda moça. Enquanto isso, o príncipe ficou tão triste e zangado com o próprio pai que fugiu de casa e navegou para a Terra da Promissão. Um dia, muitos anos depois, quando já era um homem adulto, ele conheceu o papa. E Il Papa lhe disse: "Você precisa voltar para casa, jovem príncipe, e reparar o crime de seu pai."

Os olhos das crianças se arregalaram quando Orfeu mencionou o papa, cujo papel foi representado por seu robusto polegar.

— Então o príncipe navegou de volta para sua terra natal — continuou. — Foi à procura da princesa no castelo do cavaleiro, mas, ao chegar lá, soube que ela havia fugido — abriu a mão depressa, soltando o dedo de Amata. — "Ela foi para um convento," disse o cavaleiro, enfurecido. E naquela mesma noite o cavaleiro malvado mandou seus homens matarem o príncipe para que ele nunca encontrasse a princesa. Quis o destino, porém, que os assassinos matassem o amigo do príncipe por engano.

A voz de Orfeo ficou entrecortada e sua mão começou a tremer. As crianças se entreolharam e depois voltaram os olhos para ele.

Percebendo como ele lutava com suas emoções, Amata retomou o fio da história:

— O príncipe procurou uma dama que ele havia acabado de conhecer para contar sobre a morte de seu amigo. Ela pediu que ele a acompanhasse como guarda armado na viagem que ela faria ao seu antigo lar no interior do país, e ele aceitou. E sabem o que aconteceu?

Amata olhou em torno, cheia de expectativa, para o círculo de meninos e meninas.

— Quando chegaram à casa dela, era o mesmíssimo castelo onde ele havia visto a princesa pela primeira vez.

Orfeo se recompôs e continuou.

— O príncipe soube, então, que a dama era a princesa por quem havia procurado durante anos.

Colocou o dedo embrulhado ao lado do de Amata.

— E eles se casaram e foram felizes para sempre? — perguntou Teresina.

Orfeo contemplou aqueles rostinhos esperançosos. Lançou um olhar de soslaio para Amata e a pergunta se formou em seus olhos.

Amata meneou a cabeça.

— A história é sua — disse.

— Não assim tão rápido — o rapaz disse por fim. — Primeiro, ele queria tentar reparar o mal causado à princesa. Implorou para que o deixasse servi-la como cavaleiro e sair numa expedição para ela.

Fez uma pausa e disse:

— Mas essa história fica para outro dia.

— Conte agora — choramingou Teresina.

— Agora preciso conversar com sua prima — respondeu Orfeo. — A sós.

Fez sinal para que as crianças se fossem.

— Vão ver o que podem encontrar de interessante na floresta. Mas não se afastem muito.

— Não se preocupe. Não vamos nos perder. Brincamos por aqui o tempo todo. Quando as crianças estavam fora de alcance da visão, Amata deitou-se de olhos fechados na toalha, mais atordoada que nunca. O tecido se esticou sob seu corpo quando Orfeo mudou de posição. O peito dele pressionou o seu ao virar-se para ela. Quando os lábios dele tocaram seu rosto, os cantos de seus olhos se encheram de lágrimas. Contudo, ela se recusou a abri-los para encará-lo. Passou o braço direito ao redor do pescoço dele e apertou-o contra seu corpo, enquanto a mão esquerda procurava a adaga. Bernardone!Bernardone! O nome ressoava como os tambores do demônio em sua cabeça. Apertou o punho da adaga e ergueu o braço, mas sua mão tremia tão incontrolavelmente que a arma lhe escapou dos dedos. Foi bater no ombro de Orfeo e de lá caiu em cima da coberta sem lhe causar dano algum.

Ele olhou a adaga e as lágrimas que escorriam do rosto de Amata. Com a mão em concha, segurou-lhe o queixo:

— Não sou seu inimigo, madonna — disse. — Meu pai era seu inimigo. Simone della Rocca era seu inimigo. O filho dele, Calisto, quer ver nós dois mortos. Estou aqui para ajudá-la, se puder — e olhou dentro dos olhos dela com uma expressão de vaga tristeza. — Amo você, Amatina.

A intensidade daquele olhar dissipou qualquer resquício de ódio do coração de Amata. Envolveu-o com os dois braços e puxou-o para perto de si.

— O que quer de mim, então? — sussurrou.

Orfeo aproximou seus lábios da orelha dela, tão perto que o calor da sua respiração fez-lhe cócegas.

— Quer mesmo que lhe diga, com as crianças brincando tão perto? Levantou a cabeça e afastou-se um pouco, com um sorriso divertido nos cantos da boca. Depois, seu rosto ficou sério novamente.

— É verdade o que eu disse sobre a reparação — ele disse. — Quero reparar pelo menos uma pequena parte da dor que minha família lhe causou. Tenho uma idéia de como fazer isso.

— Como?

— O príncipe realmente conheceu o papa e passou muitas semanas na companhia dele. O papa prometeu conceder-lhe qualquer ajuda que estivesse ao alcance de sua função.

A conversa tinha tomado um rumo interessante. Amata inclinou um pouco a cabeça de lado, imaginando aonde ele chegaria.

— Você certa vez mencionou um amigo eremita — Orfeo continuou —, um que o ministro geral mantém prisioneiro. Se o conde Guido puder dispor de alguns homens para a acompanharem de volta a Assis, vou o mais rápido possível a Roma e peço ao papa o perdão do seu frade. Infelizmente terei de ir de imediato, porque Gregório está de partida para Lyons, para o Concilio Geral que acontecerá em breve.

Mais uma vez, os olhos dele abrasaram-lhe a alma.

— Peço apenas um favor, Amatina. Prometa-me que não vai aceitar nenhum pretendente antes de eu voltar com o perdão do papa.

Uma ternura tranqüila irradiou-se se por seu peito, por seu corpo inteiro — em parte pelas palavras dele, mas também pelo alívio de não ter levado a cabo sua vingança. Segurou uma das fortes mãos calejadas nas suas e lembrou-se de que ele também tivera um passado de remador. Um homem interessante, e por tantos motivos...

— É uma oferta justa — concordou ela —, e um pedido justo. — Levou a mão dele aos seus lábios. — Não faça como o antigo poeta cujo nome você carrega. Não precisa olhar por cima do ombro para ter certeza de que estou atrás de você. Aceite minha palavra de que sua Eurídice o seguirá sempre pelas estradas mais sombrias, pelas ruas mais movimentadas, até que volte para casa. E, quando voltar com o perdão do papa, prometo que vai receber a recompensa justa por seus esforços.

Levantou-se, apoiada num cotovelo. Inclinou-se para ele e beijou seus lábios.

— Este é o sinal da minha fidelidade e da minha paciência.

 

Ao saírem da floresta e atravessarem a clareira na direção do castelo, Amata pensou como frei Conrad se orgulharia de seu controle sobre si mesma. Sozinha, ao lado de um homem maravilhosamente romântico que correspondia com toda sinceridade aos sentimentos que ela nutria por ele, um homem que na verdade linha se apaixonado por ela primeiro, ela se comportara com o maior recato e decoro. Conrad não ficaria mais surpreso do que ela própria, se bem que Orfeo também tivesse mostrado uma atenciosa moderação. Ela provavelmente adquirira maturidade na casa de Donna Giacoma sem que percebesse.

Seu coração estava em harmonia com a esperança do começo da primavera. Logo frei Conrad estaria livre; logo Orfeo regressaria da corte do papa. E, então, finalmente, ela poderia fazer as pazes com a felicidade. Até mesmo a terra novamente vibrante parecia palpitar sob seus pés.

Súbito, ficou imóvel, de ouvidos atentos. Sentira a terra tremer assim uma vez, quando Dom Vittorio e seus monges guerreiros subiram a galope o caminho para Santo Ubaldo. Orfeo avistou a nuvem de pó na parte mais distante da clareira no mesmo instante que ela. A cesta de piquenique caiu da mão dele.

— Rápido! Para o castelo! — gritou, agarrando o braço de Amata.

— As crianças! — ela gritou. — Ainda estão na floresta!

— Vou atrás delas. Corra para o castelo!

Ele a empurrou e ela correu tão depressa que seu peito parecia queimar. Dos baluartes vieram gritos e a porta se abriu. Ela se virou a tempo de ver Orfeo desaparecer entre as árvores e um único cavaleiro separar-se do grupo, galopando na direção dele.

— Orfeo! — ela gritou. — Atrás de você! — Mas seu grito se evaporou, fraco demais, frágil demais para resistir ao estrondo dos cascos e aos gritos de guerra dos atacantes.

 

Dentro do castelo, cavaleiros e arqueiros escalavam apressadamente

as muitas escadas que se apoiavam nas ameias. Amata identificou Guido

nos baluartes. Para o inferno com o recato, praguejou ela, agarrando a saia e subindo atrás de um soldado a escada mais próxima do tio.

Ocupado em organizar seus guerreiros, a princípio o conde Guido não notou a presença dela. Amata viu os cavaleiros se aproximando como hordas do inferno em meio a nuvens de pó. Ao chegarem perto da muralha, diminuíram a marcha. Finalmente, puxaram as rédeas com violência, fazendo os cavalos estacarem em desordem quando seu líder ergueu a espada no ar. O bando se dispersou diante do castelo como uma onda espumando na praia. Pareciam tão surpresos quanto ela ficara ao ver o local fortificado e bem guardado. Só um idiota avançaria contra uma praça-forte. Uma fortaleza como aquela só cairia em mãos inimigas caso fosse sitiada ou traída.

Os invasores olharam para cima, perplexos, para os arqueiros que aguardavam um sinal para arremessar as flechas. O líder trotava de um lado para o outro ao longo da fileira formada pelos cavaleiros, brandindo a espada com fúria.

— Com os diabos, onde está Bruno? — bradou.

Amata presumiu que se tratasse do homem que se afastara do grupo para perseguir Orfeo. Olhou ansiosa para a floresta e para a barreira formada pelas plácidas árvores. Achou que escutava o retinir de metal contra metal, mas na distância em que se encontrava do bosque, e com o relinchar nervoso dos animais, era difícil distinguir qualquer som.

— Identifique-se — gritou Guido para baixo. — O que quer, vindo até aqui Com sua cavalaria, todos armados contra nós?

O líder esporeou o cavalo no espaço entre seus homens e o portão principal e levantou a viseira. Usava um novo modelo de elmo com viseira articulada e uma cimeira leve de madeira. Seus membros e tronco estavam protegidos por quadrados de couro endurecido e ricamente decorados, amarrados nos lados, um equipamento mais leve copiado dos sarracenos, a última moda entre a nobreza da região da Úmbria.

Amata deu um grito de susto ao reconhecer a figura desprezível: Calisto della Rocca. O ruído chamou a atenção de Guido para o penteado feminino que se alinhava com os elmos polidos de seus combatentes. Lançou-lhe um olhar severo. Ela deu de ombros e percorreu a distância que os separava no alto da muralha defensiva, indo postar-se ao lado do tio.

— Sou o Signore Cal isto di Simone, lorde da Rocca Paida de Assis.

Girou a espada num longo semicírculo, gesticulando na direção de seus homens.

— Perdão se assustei as pessoas de sua casa, signore. Estamos procurando um ladrão chamado Orfeo di Angelo Bernardone, que fugiu de nossa cidade vindo nesta direção.

Uma desculpa esfarrapada para acobertar o apuro em que se encontrava. Amata saboreou o rubor no rosto de Calisto e o murmúrio entre seus homens, enquanto ele tentava justificar sua investida frustrada contra o castelo. Guido balbuciou o nome de Orfeo tentando se lembrar quem era.

— Meu escudeiro — disse Amata. — E posso lhe garantir que não é nenhum ladrão.

Ela se debruçou por uma das aberturas da muralha.

— Conheço você, seu covarde — gritou. — Seu pai matou Buonconte di Capitanio, senhor deste castelo, enquanto ele rezava, desarmado, e você, guerreiro poderoso contra mulheres indefesas, enfiou a espada na esposa dele, Cristiana, quando ela se debruçou sobre o corpo do marido. Você também abusou da filha deles quando ela era apenas uma criança desprotegida.

O tom conciliador do cavaleiro transformou-se em raiva:

— E eu conheço a voz dessa megera. Era você que o ladrão procurava quando saiu de Assis. Não tente escondê-lo, sua víbora, ou acabo com você e este lugar.

— Frocio! Covarde! Você não tem colhões para isso — escarneceu ela —, aliás, nem parece que é homem, com seu peruzinho minúsculo!

O rosto do cavaleiro foi do vermelho ao quase roxo quando algumas risadas se espalharam entre suas próprias fileiras. Guido acompanhava boquiaberto a discussão entre os dois, olhando ora para Amata ora para Calisto.

Já escutara mais do que o suficiente.

— O que o signore diz das acusações que ela lhe faz? — perguntou.

Sou um guerreiro. Não peço desculpas por vitimas guerra.

O rosto de Guido ficou duro como granito. Debruçou-se, expondo seu corpanzil:

— Também sou guerreiro, signore, e tenho parentesco de sangue com a dama que você assassinou. Alego o direito de consangüinidade para enfrentá-lo numa luta justa, aqui e agora.

Amata imaginava a mente de Calisto trabalhando: o homem tem a barba branca — o dobro da minha idade —, mas olhe o tamanho dele. A questão da honra seria a última coisa que ele iria considerar, ela sabia. Sorriu ao vê-lo esfregar os nós dos dedos da mão que empunhava a espada.

O cavalo pareceu ler também a mente de Calisto, ou talvez o signore tivesse puxado inconscientemente as rédeas para trás, pois o animal recuou até a fileira de cavaleiros. Para espanto de Amata, os homens inclinaram suas lanças e apontaram-na para o líder, um após o outro, recusando-se a deixá-lo escapulir para o meio deles.

— Não nos envergonhe, senhor — ela ouviu um dos homens dizer.

Bem rápido, Amata sussurrou algo no ouvido do tio. Ele deu uma risada.

— Você está me dizendo como lutar, mulher?

— Faça como lhe falei — ela disse. — Ele não tem força na mão direita.

Guido aprumou-se e chamou novamente:

— Diga a seus homens para se afastarem. Vou encontrá-lo a sós diante do portão da frente assim que tiver vestido a armadura. Vamos lutar no chão, com espadas e escudos.

Calisto inclinou a cabeça. Apeou e tirou o escudo amarrado no lombo do cavalo. Seu cavalariço adiantou-se e tomou as rédeas do animal. No mesmo instante, um cavalo sem cavaleiro veio trotando da floresta. Um dos soldados saiu das fileiras e galopou atrás dele. Depois de ter apanhado o animal, ele hesitou por um instante, olhando para as árvores, e trouxe o cavalo de volta para junto do grupo. Amata mordeu com força o nó do dedo, mas nada se movia na floresta.

— Desça da muralha agora — ordenou-lhe Guido. — Você não precisa assistir ao que vai acontecer.

— Estou esperando a chegada de Orfeo — ela retrucou. — Ele voltou para buscar as crianças. Um dos homens de Calisto foi atrás dele. O cavalo que acabou de aparecer sozinho era desse homem.

Uma pequenina luz de compreensão brilhou nos olhos melancólicos do conde.

— Preciso conhecer melhor esse Orfeo — disse — ele sobreviver. Se nós dois sobrevivermos.

Fez o sinal-da-cruz e desceu as escadas.

Sob os raios do sol poente, Amata viu as gotas de suor brilhando no rosto de Calisto. Desviou o olhar para a floresta e em seguida para a sala de armas, onde Guido desaparecera. Os homens no alto da muralha e os cavaleiros estavam mais à vontade e conversavam em voz baixa; da floresta, porém, não vinha som algum. A certa altura, Amata inclinou-se para o arqueiro mais próximo dela, dizendo:

— Se ele matar o conde Guido, atire-lhe uma flecha. As regras de cavalaria não se aplicam a um ser tão imundo. Você vai ser regiamente recompensado.

O homem deu um sorriso e preparou seu arco. Amata percorreu a muralha até o canto mais próximo da floresta, parando junto de cada arqueiro para repetir a ordem.

Por fim, o conde Guido saiu da sala de armas sob ovação de seus homens. Mais parecia uma montanha de metal, pensou Amata, com um colete de cota de malha e um capuz separado, do mesmo material. Cobrindo tudo, usava um gibão de couro duro, reforçado com placas metálicas em seu interior. Carregava debaixo do braço um elmo de estilo inglês em formato de cone, que oferecia apenas uma superfície oblíqua para um possível golpe de espada. Calisto vai borrar os fundilhos ao vê-lo. O escudo reluzente tinha o dobro do tamanho dos usados pelo pessoal de Assis, e a bainha da espada, tingida de carmesim e atada ao redor da cintura, era a mais comprida que ela já vira. Lembrou que as mulheres da casa sempre o chamavam spadalunga, "espada longa", quando ela era criança. Disfarçou o riso ao compreender, só depois de adulta, que era possível que tio Guido fosse dotado de outras qualidades heróicas desconhecidas de seu universo infantil. Se fosse verdade, ele devia ter apreciado a maneira pela qual ela havia se referido às partes íntimas de Calisto.

Amata voltou correndo para a sua posição anterior na muralha enquanto o conde se benzia mais uma vez e fazia sinal para um criado abrir a passagem. Ela queria ter visto a expressão de Calisto, mas ele já tinha baixado a viseira. As largas passadas de Guido consumiram o espaço entre eles e, mais rápido do que ela previa, ele desferiu um golpe violento com sua enorme espada no escudo do adversário. Os joelhos de Calisto se dobraram, mas ele se recuperou e revidou com um golpe também pesado. Equilibrados, colocaram-se os dois em posição de luta e Calisto investiu fortemente, fazendo com que o tio de Amata recuasse.

Ele não está fazendo o que lhe recomendei — exclamou Amata, preocupada, para o arqueiro ao seu lado.

Pouco o a pouco, Calisto obrigou o homem mais velho e mais lento a recuar, para alegria de seus cavaleiros. O conde parecia atordoado. Girava a espada num amplo arco lateral na direção da cabeça do oponente, mas Calisto, em sua armadura mais leve, esquivava-se da lâmina com facilidade. Mais uma vez, o signore da Rocca reagiu com uma série de golpes, empurrando o adversário para a sombra da muralha do castelo. Guido conseguia apenas aparar os golpes com seu escudo.

— Lembre-se de seus parentes! Lembre-se de minha mãe! — Amata gritava para ele lá embaixo; mas eram tantas vozes ao mesmo tempo que ela duvidava que ele a escutasse. Fez o sinal-da-cruz uma vez, duas vezes, e juntou as mãos em oração quando o tio caiu sobre um dos joelhos, segurando o escudo sobre cabeça.

Surpreendentemente, Calisto não investiu contra ele, talvez suspeitando de mu truque, e de fato Guido acertou-o nos tornozelos. O tio pôs-se de pé outra vez e atacou o escudo do adversário, provocando uma nova avalanche de golpes de Calisto. Entretanto, esses golpes foram perdendo intensidade, e o conde se postou meio passo à esquerda de Calisto.

— Isso mesmo — Amata incitava-o. — Isso mesmo!

Engenhoso, muito engenhoso, pensou Amata, quando percebeu a estratégia de Guido. Ele obrigara o homem jovem a cansar o braço enquanto poupava as forças do seu, mais velho. Agora, ele se distanciava da mão direita do adversário, forçando-o a aumentar o movimento circular a cada investida. O golpe seguinte resvalou fracamente pelo escudo de Guido quando a espada girou na mão de Calisto. O conde reagiu com uma tremenda pancada, amassando o quadrante superior esquerdo do escudo de Calisto. O conde deslocou-se mais meio passo para a esquerda enquanto o homem de Assis saltava para trás, para se recuperar. Calisto atacou de novo, porém com mais cautela do que antes; investia mais que golpeava com a espada e, na posição em que os contendores se encontravam, a lâmina mais comprida estava em vantagem, e Calisto não podia se aproximar. Os homens que os observavam montados em seus cavalos de guerra se aquietaram ao reconhecerem a desvantagem momentânea no duelo. Guido deu mais um passo à esquerda, aproveitando que o adversário dera um passo atrás para repensar sua tática. O tio posicionara-se onde havia mais sol, e Amata observou ansiosa que um outro passo para o lado deixaria Guido de frente para a claridade oblíqua do poente.

Os homens no alto da muralha ficaram tão silenciosos quanto os cavaleiros no campo. Os combatentes fintavam, simulando um ataque, mas nenhum dos dois avançava. À medida que a tensão e a ansiedade cresciam, todos os músculos do corpo de Amata se retesavam junto com os dos lutadores. Por fim, ela não agüentou mais o suspense e gritou com voz aguda:

— Ninguém tem medo da sua espadinha!

Uma explosão de gargalhadas rebentou nos dois grupos. Calisto berrou alguma coisa incompreensível e investiu contra Guido com a espada erguida. O velho girou ligeiramente o escudo, o bastante para que os raios do sol poente se refletissem direto nas fendas estreitas para os olhos da viseira de Calisto. Mais uma vez, Guido desviou-se para um lado e o golpe de Calisto passou longe do alvo. A espada escapuliu de sua mão. Enquanto ele cambaleava, sem equilíbrio, o conde enfiou uma vez a ponta de sua arma no espaço entre as tiras de couro que protegiam as costelas de Calisto, e outra vez mais fundo, entre as próprias costelas. O signore da Rocca caiu de joelhos com um ganido de dor. Guido afundou mais a espada e finalmente a puxou, retirando-a. Calisto voltou a cabeça para cima, para o alto da muralha.

— Chamem o capelão — suplicou —, estou morrendo! —A mancha vermelha do lado de seu corpo desceu para o quadril c a coxa e sujou a grama sob seu joelho. Ele tentou a custo remover o elmo. O conde aproximou-se por trás e tirou-o de sua cabeça. Amata viu que Calisto olhava diretamente para ela.

— Vai ter o mesmo padre que absolveu seu pai — disse ela. — Cobriu a coifa com o capuz de sua capa curta, uniu as mãos em prece com ar piedoso e entoou, na mesma voz grossa que usara ao lado da cama de Simone della Rocca: — Que a sua alma receba sua justa recompensa.

Os olhos de Calisto se reviraram, apavorados, quando aos poucos ele se deu conta do embuste. Caiu de frente, apoiando-se nas mãos e arrancando tufos de grama com as unhas.

— Meretriz. Meretriz desgraçada — sussurrou. Com um gemido, desmoronou sobre a terra úmida. Seu cavalariço levou o cavalo do signore até junto do corpo e, com a ajuda de Guido, colocou o morto atravessado em cima da cela do animal. Por fim, o conde, o senhor do momento, desenhou no ar um largo círculo com sua espada. A fila de cavaleiros deu meia-volta em seus cavalos de guerra e avançou pelo espaço aberto na direção de Assis.

Enquanto os homens de Guido o aclamavam, Amata correu escada abaixo e abraçou o tio quando este entrava no castelo. Ele retirou o elmo.

— Você estava certa. Ele não tinha força na mão direita.

Depois, ela passou correndo por ele e saiu na direção da floresta. Estava quase chegando no ponto onde tinham abandonado a cesta de piquenique quando Orfeo surgiu do meio das árvores, rodeado por um bando de crianças. Ela caiu de joelhos e uniu as mãos em prece. Ele vinha devagar, com a espada manchada de sangue balançando na mão direita e o braço esquerdo apoiado no ombro de Teresina. Então, Amata se deu conta de que as crianças não apenas o rodeavam, mas ajudavam-no a caminhar, vacilante, na direção dela. Amata ficou de pé num salto e precipitou-se para ele. Orfeo caiu pesadamente nos seus braços estendidos, a cabeça quase tocando o ombro dela. Enquanto tentava mantê-lo em pé, ele mordiscou seu pescoço e sussurrou:

— Espadinha?

 

Isso não é vida para um mercador — disse Orfeo. Ele descansava na espaçosa cama do conde Guido no grande salão, ao lado de Jacopone, escorado por uma montanha de travesseiros. — Não nasci para lutar com uma espada.

A pequena Teresina instalara-se em cima da colcha entre os dois homens, brincando com um gatinho que resolvera tomar posse do travesseiro menor. Amata estava sentada na beirada do colchão ao lado de Orfeo, enquanto seu tio se esparramava na sua imensa poltrona próxima à cama, coçando as orelhas de um cão de caça amarelado.

Amata apertou a mão de Orfeo.

— Está dispensado de suas obrigações como meu escudeiro — disse. — Tio Guido vai me escoltar com toda a segurança na volta para casa. Além do mais, você tem uma promessa a cumprir.

— E, a cada hora que fico aqui deitado, mais longe terei de ir para alcançar o papa.

Tateou à procura da corrente no pescoço.

— Aquele soldado de Calisto sabia quem eu era. Acho que foi ele um dos assassinos de Neno. Quando entrou na clareira, foi logo dizendo: "Seu anel ou sua vida, Bernardone." Mas o que ele queria mesmo eram as duas coisas.

Orfeo tirou a corrente do pescoço.

— Por que alguém mataria por uma pedra arranhada e sem valor? — questionou-se.

Amata arrebatou o anel da mão dele, mais rápida do que Guido, que também já estendera o braço.

— Onde conseguiu isto? — perguntou ela. — Simone Della Rocca roubou um anel igual a este de meu pai.

— Foi meu pai quem me deu.

O conde Guido levantou-se da poltrona e caminhou até a soppedana, a arca que ficava encostada ao pé da cama. Tirou de dentro dela um pequeno porta-jóias de madeira e o entregou a Amata.

— Não sei o que Simone lhe mostrou, mas o anel de seu pai é este aqui.

Perplexa, Amata abriu a tampa da caixa. O anel era igual ao que estava na corrente de Orfeo: a mesma pedra azul, a mesma curiosa gravação.

— Como foi parar em suas mãos? — perguntou.

— Seu irmão Fabiano entregou-o a mim quando foi viver com os monges negros.

Um pedaço de lenha na lareira estalou alto enquanto Amata balançava a cabeça, atônita.

— Não compreendi, não estou conseguindo acompanhar — disse. — O que quer dizer com "quando Fabiano foi viver com os monges negros"?

— Oh, Deus — exclamou Guido. — Apertou as duas mãos de Amata entre as suas, ao redor do anel que ela segurava. — Você nem sabia, não é mesmo, filha? Também, como saberia? Foi levada antes que os monges o encontrassem caído nas pedras sob a capela.

— O que está dizendo? Eu vi quando ele saltou para a morte.

— Não, Amata. Não para a morte. Ficou aleijado para sempre, mas sobreviveu à queda. Ele é assistente de despenseiro no Mosteiro de San Pietro, em Perúgia, e em breve será ordenado.

— Fabiano, um monge? — murmurou Amata, aturdida, estupefata.

— O nome dele não é mais Fabiano — acrescentou o tio. — Os monges negros o batizaram de Anselmo quando ele recebeu o hábito. É costume dos Beneditinos dar um novo nome àqueles que deixam o mundo para trás, de modo que não fique nenhum vestígio da vida passada.

Guido foi novamente à arca. Remexeu em montes de vestimentas e roupas de cama, depois voltou para a poltrona segurando um rolo de pergaminho amarrado com uma fita preta.

— Setenta e cinco anos atrás, durante a época das insurreições das comunas, quando as turbas armadas saqueavam e ateavam fogo às casas da nobreza, os condes de Coldimezzo colocaram este castelo e seus terrenos sob a proteção dos monges. A Abadia de San Pietro é poderosa, tanto no que se refere a armas quanto a imunidades pontifícias e imperiais.

Desenrolou o pergaminho e leu:

— "Caso uma comuna ou uma pessoa qualquer atacar os supramencionados castelão, o monastério promete ir em sua defesa. E se eles ou seus herdeiros e sucessores vierem a precisar, poderão livremente obter ajuda no supramencionado monastério, para o que quer que venha a ser necessário à sua vida. E se o acaso colocá-los nessa situação de extrema carência, da qual Deus nos livre, e decidirem entregar suas filhas em idade de casar, e que tenham escutado o chamado de Deus, aos conventos, o abade e os monges de San Pietro de Cassinensi se obrigam, a suas expensas, a fornecerem o dote e a acomodá-las em conventos para mulheres da regra de São Benedito. Os principais membros da família serão sempre recebidos e sentar-se-ão à mesa do abade."

Guido pôs o pergaminho nas mãos trêmulas de Amata.

— Os monges vieram o mais rápido que puderam quando souberam do ataque, mas é claro que chegaram tarde demais. Salvaram o que foi possível das construções e então encontraram Fabiano, à beira da morte e com vários ossos quebrados. Cuidaram dele até que ficasse curado e afirmaram que Deus o havia poupado e entregado a eles para que passasse o resto da vida em sua companhia. Até mesmo o seu irmão concordou com essa lógica. Adaptou-se como um patinho na lagoa.

— Meu irmão. Ainda vivo, todos esses anos. E eu chorando a morte dele.

— Amata virou-se para Orfeo com os olhos enevoados, cheia de alegria.

— Temos um ditado aqui em nossa terra, Sior Orfeo: "Irmã e irmão: feitos um para o outro."

Ela riu e acrescentou:

— Alguns até dizem: "Marido é uma coisa; mas irmão é uma coisa a mais."

— Espero que você não diga isso — replicou Orfeo. — Por que não vai visitar Fabiano cm Perúgia antes de voltar para Assis?

Amata lançou um olhar esperançoso para Cuido, que assentiu:

— Claro. Também gostaria muito de rever o menino.

Ela entregou o pergaminho a Jacopone, sabendo que suas implicações jurídicas iriam excitar a curiosidade do antigo notário.

— E Fabiano disse como veio a possuir o anel de papai? Ou, deveria dizer, do nonno Capitanio? — perguntou ao tio.

— Sim, contou que seu pai enfiou o anel às pressas no bolso dele quando os assassinos invadiram a capela. Buonconte mandou que ele pulasse, sabendo que Fabiano seria massacrado cruelmente se ficasse no local.

— Mas o que significa a gravação no anel, tio?

O conde Guido encolheu os ombros.

— Pode ser que seu avô tenha explicado a Buonconte se quisesse que o significado fosse passado adiante. Eu, porém, não sei de nada.

Jacopone tinha acabado de ler o pacto. Tornou a enrolá-lo e bateu com o rolo na testa como se quisesse despertar sua memória.

— Conheci um frade em Gubbio que poderia ter alguma opinião a respeito. Ele alegava que não sabia nada, esse frei Conrad, embora seja extremamente inteligente. Acho que ele sabia a resposta a todas as perguntas. Mesmo assim, nós nos perdemos na floresta.

— Vocês nunca estiveram perdidos, pelo menos não tão perdidos quanto imaginavam — Amata lhe garantiu. — Você foi um herói naquela floresta.

Era chegada a hora de contar a Jacopone a história do outro Fabiano — do noviço Fabiano, de hábito cinza — e do corajoso e invencível dragão que salvara a vida do menino.

 

À meia-luz de sua ceia, Conrad rabiscou os nomes da última lista de Giovanni da Parma, com todos os ministros gerais da breve história da Ordem. Zefferino observava, sentado num dos degraus que levavam ao calabouço, ajudando Conrad com a luz de sua lanterna.

— Os ministros das províncias transmontanas destituíram Elias em 1239 e elegeram Alberto da Pisa para sucedê-lo. Infelizmente, Alberto viveu por mais um ano apenas. Depois, seguiram-se Haymo de Faversham, Crescentius da lesi e, em 1247, eu. Quando os ministros me pediram para abdicar após dez anos no cargo, nomeei meu sucessor frei Bonaventura.

Enquanto Conrad garatujava o último nome nas pedras com um caco de louça, veio-lhe à cabeça, novamente, a advertência de Bonaventura, na noite em que o céu pareceu fender-se em dois mundos distintos e o ministro geral o obrigou a curvar-se e beijar-lhe o anel. A lembrança provocou uma outra indagação para a qual nunca encontrara resposta.

— Frei Giovanni — perguntou —, o ministro geral usa um anel representativo do cargo? Um símbolo que passa adiante na linha de sucessão?

O ancião esfregou os dedos sem adorno de sua mão esquerda.

— Usa, sim — respondeu por fim. — Um modesto anel de lápis-lazúli. Por que pergunta?

Conrad levantou o dedo. Virou-se para Zefferino.

— Per favore, irmão, poderia trazer sua luz um pouco mais para perto?

Zefferino levantou-se e suspendeu a lanterna até a altura do olho bom de Conrad, que logo raspou o limo de um pedaço da pedra. Depois de limpar uma área de bom tamanho, fez o desenho simples do bonequinho sobreposto pelo arco duplo que já vira duas vezes: entalhado na pedra do altar da igreja Inferior e gravado no anel do ministro geral.

— Será que se lembra ou soube algum dia o significado desses símbolos?

Havia um da comuna de Todi, Capitanio de Coldimezzo, o signore que doou a terra para a nossa basílica. O irmão de São Francisco, Angelo. O guardião da cidade, cavaleiro Simone della Rocca. E Giancarlo di Margherita, que era o prefeito de Assis naquele ano.

— E frei Elias.

— Elias cuidou do sepultamento, é claro. O secretário dele também serviu como amanuense para a confraria. Se ainda estiver vivo, provavelmente é o único outro frade que sabe onde estão as relíquias. — Giovanni sorriu satisfeito. — Dei o nome dos quatro?

— Melhor ainda, citou seis, sendo que o último é frei Illuminato — respondeu Conrad.

A maioria dos nomes dessa lista ele já sabia por intermédio de Donna Giacoma, mas agora tudo fazia sentido. Giovanni tinha levantado um pano de fundo aparentemente importante para o enigma de Leo — embora ainda faltasse saber o motivo para Elias querer esconder as relíquias sagradas. Decerto que precauções tão meticulosas assim, e toda aquela violência na praça, não haveriam de ser necessárias para proteger os ossos do santo. Como dissera a senhora, um suposto ladrão levantaria contra si uma cruzada santa. E Illuminato ter tentado frustrar a missão de Conrad fazia com que o frade ficasse mais desconfiado ainda. Será que haveria um elo fundamental entre a carta de frei Leo e essa confraria?

Um mapa! Fascinante! Sentiu uma necessidade urgente de interpretar as marcações. Será que conseguiria arrancar essa última informação de Giovanni?

Um ruído às suas costas serviu como resposta negativa, pelo menos naquele dia. Seu companheiro de cela recostara a cabeça no braço e tirava um dos seus freqüentes cochilos. Já começara a roncar suavemente quando Conrad acompanhou inúmeras vezes os dois arcos com as pontas dos dedos, como se quisesse descobrir seu significado apenas pelo tato.

 

Uma semana depois, um mercador de tez escura que levava barris de vinho da Toscana para a Cidade Eterna acampou com seu grupo dentro dos portões do Coldimezzo. Orfeo, razoavelmente recuperado e com as feridas já cicatrizando, aproveitou a oportunidade para ir a Roma ao encontro do papa. Além do mais, sabia que a viagem ao lado do mercador seria bem mais prazerosa do que quando saíra de Veneza com os guarda-costas romanos de Gregório. Os dois falavam a mesma linguagem, a dos negócios e a da juventude.

Amata inspirou profundamente o ar fria da madrugada ao acenar para Orfeo até que não mais pudesse enxergá-lo, um último momento de calma antes que ela e o tio partissem na direção oposta para um dia inteiro de cavalgada até Perúgia. Planejavam levar apenas alguns poucos homens com eles, pois sabiam que a estrada era bem movimentada e que chegariam à casa de hospedes da abadia antes do anoitecer.

Ela mal conseguira dormir na noite anterior ao imaginar que estaria frente a frente com o irmão na manhã seguinte, após quase oito anos de separação. E que surpresa ela seria para Fabiano, como um fantasma que se levanta do túmulo! Sorriu à idéia divertida de branquear a pele como as nobildonnas de Roma antes de encontrá-lo, embora o longo inverno a tivesse deixado pálida o bastante.

Jacopone concordou em permanecer no Coldimezzo, permitindo-se um pouco mais de tempo para se recuperar antes de levar a carroça de feno de volta para Assis. O conde Guido o convidara a morar na castella, evidentemente, e ele quase aceitou. Mas isso foi antes de Amata lhe contar sobre seu mais recente projeto, o de construir um scriptorium em sua casa, que empregaria tantos copistas dignos de confiança quanto ela conseguisse encontrar para fazer cópias do manuscrito de Leo. Contava que Jacopone seria o primeiro. A vontade de pôr novamente uma pena sobre um pergaminho provou ser irresistível para o outrora notário e, em vez de Jacopone mudar-se por tempo indeterminado para o Coldimezzo, o conde concordou em retornar a Assis com eles depois da visita a Perúgia. Teresina também iria para Assis, na carroça com o pai. A promessa de passar muitas semanas na casa de Amata deixou a menina pulando de alegria.

Naquele dia, porém, a menina não poderia ir com eles.

— Teresina — o cavaleiro recomendou à neta antes de partirem —, cuide para que seu pai fique feliz e bem alimentado, e deixe-o dormir quando estiver cansado.

Ela balançou a cabeça, muito séria, aceitando a responsabilidade como se fosse a administradora do castelo.

Amata ainda amadurecia seus planos para o scriptorium quando ela, o tio e seus escudeiros atravessaram com seus cavalos os portões do castelo. Sentia-se contente porque Jacopone dava a impressão de estar satisfeito por ter uma família outra vez, e Amata desconfiava que talvez os dias de perambulação como penitente estivessem terminados para sempre. Desejava de todo o coração que ele enfim aceitasse o acidente que levara sua Vanna e se permitisse saborear um pouco de paz.

Rapidamente, ela se acostumou ao ritmo do cavalo, com o espírito animado pela brisa quente e pelo desabrochai do primavera que cercava a estrada por todos os lados. Também experimentava uma sensação de paz que havia anos não sentia, um gosto doce como mel. Tinha agora a oportunidade de conhecer o tio pela primeira vez, ou assim lhe parecia, como adulta, e não do ponto de vista de uma criancinha que juntava todos os adultos num único bloco. Foi tomada por uma onda de gratidão por esse homem corpulento que, com um único abraço apertado, trouxera-lhe de volta sua inocência, sua família, seu passado. E ainda havia Fabiano, a ponte restaurada que a ligava à infância interrompida.

E a criança! Ficou imaginando o que a atraía tanto em Teresina: seria a pureza de espírito, a energia ilimitada e repleta de alegria, o jeito de cantarolar com os lábios fechados enquanto desenhava no chão de terra com uma vareta, ou a semelhança com a mãe, que por sua vez transportava Amata de volta para seu passado de inocência? Seria o desejo de ter os seus próprios filhos que essa angelina despertava? Qualquer que fosse o motivo, seu amor pela menina acrescentava um sabor especial a essa deliciosa taça de paz que agora parecia prestes a transbordar.

Em meio a essas reflexões, tão agradáveis à sua mente quanto um perfume de incenso almiscarado, e às histórias das cruzadas de Frederico que ouviu durante as horas passadas cavalgando ao lado do tio, o longo dia passou praticamente despercebido. As altas muralhas de San Pietro, o mosteiro beneditino que servia como o posto avançado mais ao sul da poderosa cidade de Perúgia, não tardaram a aparecer diante deles, quase pegando Amata de surpresa. Já era muito tarde para o encontro com Fabiano, ela sabia; mas, talvez, depois de se instalarem na casa de hóspedes dos monges negros e após o jantar, ela pudesse vê-lo de longe. A maioria das basílicas dos mosteiros tinha uma área na parte posterior da nave para os visitantes, em geral isolada dos monges por uma grade. Quem sabe, durante as Completas daquela noite, conseguisse identificá-lo entre as figuras sombrias curvadas nos bancos destinados aos monges ou pudessem ouvir sua voz naquele oceano de cânticos.

Sorriu dessa última impossibilidade. Sem dúvida, a voz de Fabiano teria ficado mais grossa desde a última vez que se viram. Ela não seria capaz de reconhecê-la. Seu irmãozinho estava agora com dezessete anos.

 

Frei Anselmo estava empoleirado num banco diante de uma escrivaninha alta, tão alerta ao vaivém à sua volta quanto uma ave do brejo. Uma de suas tarefas como assistente de despenseiro era anotar tudo o que era produzido para San Pietro nas chácaras de propriedade do mosteiro, além de registrar o nome do responsável pela produção e a quantidade e qualidade do que estava sendo entregue. Naquele dia, tratava-se de tecido para os hábitos dos monges, um produto da atividade doméstica realizada nos interiores das casas durante o longo inverno. O irmão despenseiro ia informando os detalhes enquanto o jovem anotava.

A pele descorada de seu rosto irradiava felicidade sob a luz da vela, que ardia inabalável sobre um suporte ao lado da escrivaninha. Preparava uma nova folha, começando como sempre com as letras A-M-D-G, Ad Magnum Dei Gloria, para maior glória de Deus. A Regra de San Benedetto identificava-se com a recitação de salmos como o Opus Dei, a Obra de Deus, e Anselmo dedicava-se ofício com igual convicção. Segurava a beirada da escrivaninha com a mão livre para se equilibrar enquanto escrevia e enroscava o pé saudável mima perna do banco para ter mais estabilidade. Mal tirou os olhos do que estava fazendo quando o hospedeiro entrou na despensa; imaginou que o monge tivesse vindo apanhar mantimentos para os alojamentos dos visitantes.

O monge confabulou com o despenseiro e este chamou o assistente:

— Anselmo, tem visitas esperando por você no pátio da casa de hóspedes. Podemos terminar isto mais tarde.

O mosteiro permitia visitas aos monges uma vez por ano, mas mesmo assim a notícia o pegou desprevenido. A primeira fase de sua curta vida parecia ficar mais distante a cada ano que ele passava em San Pietro.

— Meu tio?

— É, o conde Guido — respondeu o hospedeiro. — E dessa vez trouxe uma jovem com ele.

Anselmo pulou do banco, apoiando-se no pé saudável e sorrindo de orelha a orelha.

— Amatina! Sabia que um dia ela apareceria por aqui! — pegou um par de toscas muletas de madeira que estavam apoiadas na parede.

— Sua irmã que estava desaparecida? Por que acha que é ela?

— Você não a conhece, irmão. Ninguém jamais conseguiu derrotá-la no que quer que fosse. Se consegue visualizar um de nossos cavalos de guerra perugino investindo contra o vento norte que ataca furioso vindo das montanhas, sem jamais se curvar aos elementos, ou então enfrentando uma saraivada de flechas sem medo de arriscar a própria segurança: aí você tem uma pequena amostra de como minha irmã é obstinada.

— Isso é o que chamo de obstinação — disse rindo o despenseiro. — Tomara que seja ela. Agora vá e aproveite a visita.

Mesmo arrastando o pé inútil, Anselmo chegou ao pátio mais depressa do que o hospedeiro jamais imaginou ser possível. Assim como todos em San Pietro, aquele monge mais velho também gostava muito do órfão aleijado que viera morar com eles desde menino. Era o queridinho de todos, e eles o mimavam sem reservas, tanto quanto a Regra permitia.

O hospedeiro apontou para o homem e a mulher que aguardavam do outro lado do pátio e depois se retirou para o claustro. Anselmo viu seu tio tocar de leve a moça enquanto ele se aproximava claudicante pelo pátio.

— Fabiano! — gritou ela, praticamente voando para ele e o abraçando com tanta força, quase atirando-o ao chão. — Não o teria reconhecido!

— Anselmo — ele sorriu, meio constrangido. — Sou frei Anselmo agora. E acho que não posso abraçar uma mulher. Vai ver, terei de me prostrar diante de toda a comunidade e confessar esse pecado em nossa reunião amanhã de manhã.

— Ora, bobagem! — ela deu um passo atrás e olhou-o dos pés à cabeça. — Você está bem? Os ferimentos ainda doem?

— Não, estou bem. Estou vivo e tão feliz aqui como era antes, Amatina. Se não fosse pelos bandidos, hoje não estaria aqui, mas este é o meu lugar. E você também sobreviveu. Sempre achei que conseguiria.

— Sobrevivi, sim.

Talvez, no final das contas, isso fosse tudo que seu irmão precisava saber.

— Mas quem eram os homens que nos atacaram? Um fazendeiro que os viu levando você disse apenas que tomaram a direção leste. Tio Guido a procurou por toda parte. Era como se você tivesse desaparecido dentro de uma montanha — olhou de relance para o tio, para que ele confirmasse sua versão.

Guido respondeu:

— Eram mercenários, cavaleiros de Assis contratados por um mercador que discutira com seu pai uma semana antes.

— E o motivo da discussão era o pagamento de um pedágio para cruzar nossas terras — acrescentou Amata.

Anselmo fez que não:

— Foi de fato assim que a discussão começou, mas havia outro assunto — ele explicou. — Eu estava lá na arcada do portão. Papai também gritou com o mercador. Disse que sabia o significado do anel que o mercador tinha no dedo porque ele usava uma pedra igual. Exibiu-o diante dos olhos do outro e disse que, se alguém de sua casa sofresse algum mal, ele divulgaria o significado do anel para todo mundo.

— Não escutei essa parte — Amata enrubesceu ao lembrar a primeira vez que pusera os olhos em Orfeo. — Um moço muito bonito que fazia parte da comitiva desviou minha atenção.

O conde Guido interrompeu:

— Então você acha que o mercador matou seu pai por causa do anel, e não do pedágio?

— É o que me parece. Amata virou-se para o tio.

— Mas papai recebeu o anel de nonno Capitanio. Vovô não iria deliberadamente marcar o filho para a morte, que foi o que o pai de Orfeo fez.

— Não, claro que não — disse Guido. — Conhecendo seu pai, ele provavelmente achava que o significado era importante demais para não ser preservado, não importa qual fosse. Agora ficou evidente que Buonconte sabia. Algum dia ele lhe falou algo a respeito, Anselmo?

— Nunca notei a existência do anel até aquele dia — respondeu o rapaz. — Nem mesmo soube que ele o enfiou no meu bolso quando me mandou pular da janela. O monge que o devolveu ao senhor, meu tio, disse que o encontraram enquanto cuidavam dos meus ferimentos. O que papai sabia morreu com ele.

Guido dirigiu-se a Amata.

— Acho que deveríamos destruí-lo assim que voltarmos para casa. E você deve avisar Orfeo para fazer o mesmo com o dele. Esses anéis atraíram uma terrível maldição sobre todos nós.

— Bem... podemos ter certeza de que o anel de Simone está enterrado, se não no dedo dele, no do filho. O senhor meu tio se incumbiu disso — e ela sorriu, impiedosa.

Anselmo fixou o olhar na irmã e seus olhos subitamente se encheram de lágrimas, o que fez Amata também ficar com os seus cheios d'água. Depois, começaram a rir deles mesmos, enxugando os olhos nos punhos das mangas, como se ainda tivessem nove e onze anos. Amata puxou o irmão pela manga do hábito e levou-o para um banco, onde recordaram os tempos de infância. O tio também contou histórias dos primeiros dias de Coldimezzo, da época em que nenhum dos dois era ainda nascido, e lembranças de quando ele e o pai de ambos eram crianças.

Anselmo disse estar muito feliz em San Pietro e falou bastante sobre sua vida e seu trabalho no mosteiro; contou como sua habilidade para fazer cálculos o levara a trabalhar na despensa e como se sentia afortunado por ser útil à comunidade apesar de suas limitações físicas. Explicou que Amata era a primeira mulher que via em quase oito anos, uma visão tão rara quanto a visita de um anjo, e comentou que o toucado que ela usava lhe parecia ao mesmo tempo curioso e exótico — simplesmente porque fazia muito tempo que não via um.

E então foi a vez de Amata lhe contar sobre seus dias em São Damião e sua vida atual em Assis. O irmão parecia desapontado por ela não ter se entusiasmado pela vida religiosa. Como alguém podia não preferir uma vida dedicada a Deus?

Amata estava guardando a melhor surpresa para o final:

— Mas — perguntou — como eu poderia ser uma religiosa e uma mulher casada ao mesmo tempo?

— Você é casada?

Amata sorriu, exultante.

— Ainda não, mas pode acontecer em breve. E, quando acontecer, vamos chamar nosso primeiro filho de Fabiano... e o segundo de Anselmo. Ainda teremos um Fabiano na família e dois Anselmos.

Ponderou se devia explicar que Orfeo era filho do homem que contratara os assassinos, mas decidiu que não valia a pena no momento. Mas não deixou de lhe contar sobre a amizade de Orfeo com o papa e a viagem a Roma, o que, sabia, iria impressionar bastante o jovem monge.

Em um determinado momento o hospedeiro apareceu com comida e bebida, para que eles não precisassem sair do pátio. Então, depois de um longo dia em que conversaram sobre tudo o que aconteceu em suas vidas, ao cair da tarde, o sino chamou para as Vésperas, e Anselmo precisou voltar para a clausura.

— Você virá me ver?

— Todos os anos — respondeu Amata. — Tantas vezes quantas eles nos permitirem.

A pergunta seguinte a deixou espantada:

— E você já perdoou os assassinos de nossos pais? Sabe que você nunca terá paz a menos que o faça, não é?

Amata engoliu em seco.

— Já se foram, a maioria deles, e fiquei feliz por terem morrido. Durante todos esses anos pretendia me vingar e tinha muitas razões para isso. Mas estou a ponto de perdoá-los. Pergunte-me isso de novo no próximo ano, quando vier visitá-lo em companhia do meu marido.

— Até ano que vem, então. Reze por mim. Vou rezar por você.

Anselmo levantou se c escorou as muletas sob os braços. Então, antes que ele pudesse reclamar, Amata beijou o no rosto.

— Um beijo de despedida — ela disse — porque nós não morremos.

 

Frei Giovanni nunca voltou a falar sobre os anéis. O antigo ministro geral parecia arrependido das revelações que fizera, e Conrad não insistiu. Ao contrário, ouvia com paciência enquanto Giovanni se estendia nas conversas sobre sonhos, visões e aparições.

Em um desses sonhos, ele estava às margens de um rio turbulento e observava impotente vários de seus frades, levando nas costas pesadas cargas, entrarem nas águas caudalosas. A correnteza violenta os carregou e todos morreram afogados. Mas, enquanto ele chorava, outros frades se aproximaram e, por não levarem carga alguma, atravessaram o rio sem dificuldades.

— A verdade é que a Ordem precisa mais do que nunca da sua orientação — afirmou Conrad. — Os primeiros frades são os irmãos Conventuais, que carregam consigo todas as bagagens deste mundo. O segundo grupo é composto pelos irmãos Espirituais, que se mantêm fiéis à Regra de São Francisco quanto à pobreza e se sentem realizados em seguir Cristo despido na cruz. Você teria cruzado o rio facilmente na companhia deles.

— Creio que eu estava mais alinhado com os Espirituais em meu coração — admitiu Giovanni —, embora tentasse ficar acima das facções quando dirigi a Ordem. No entanto, os ministros provinciais me espionaram e desvendaram meus verdadeiros sentimentos, e é por causa deles que hoje lhe faço companhia.

Certa noite, as correntes de Giovanni fizeram tanto barulho que acordaram Conrad. Receoso de que os demônios estivessem atormentando o ancião já enfraquecido, Conrad implorou em voz alta pela proteção dos anjos da guarda de ambos e sacudiu Giovanni até despertá-lo do pesadelo.

— Sonhei com frei Gerardino e suas heresias — explicou quando recobrou a consciência. — Temo pela alma dele, embora não seja mais culpado do que os cronistas da nossa Ordem. Sua afirmação de que o nascimento de São Francisco marca a segunda vinda de Jesus não passa de uma interpretação lógica das lendas. Tenho certeza de que você já esteve no estábulo, nesta cidade, onde a senhora Pica Bourlemont di Bernardone deu à luz Francisco, apesar de seu marido ser o mais rico comerciante de Assis. E as histórias chegam a dizer que um ancião proclamou a santidade de nosso fundador enquanto ele ainda era bebê, da mesma forma que fez Simeão quando Jesus foi apresentado no Templo. Mais tarde, quando Francisco viajou a Roma para obter do Papa Inocêncio a aprovação da nova Ordem, fez-se acompanhar por precisamente doze discípulos. Um deles, frei Giovanni del Capello, mais tarde se desligou da Ordem por não ser capaz de viver à altura dos rigores da Regra. Os cronistas o estigmatizaram como um segundo Judas. E é assim que o fio vai sendo tecido em todas as histórias das proezas e milagres de Francisco. Giovanni continuou seu relato:

— Os afrescos de Giunta da Pisa, na igreja de baixo, que representam os acontecimentos da vida de nosso fundador, foram colocados defronte dos eventos da vida de Jesus. Isso nunca tinha sido feito antes nas igrejas construídas em homenagem a qualquer outro santo. Em todas as outras basílicas encontramos cenas do Novo Testamento diante de cenas do Velho Testamento. Mas nunca antes uma criatura humana, nem mesmo um grande santo, foi comparada tão abertamente com Nosso Senhor.

A vaga descrença de Giovanni deixou Conrad perturbado. Ele nunca ouvira um frade duvidar da verdade das lendas, embora Leo muitas vezes insinuasse a possibilidade de uma verdade mais profunda. Não esperava tamanho ceticismo de um antigo ministro geral.

— Mas não se pode esquecer dos estigmas — interrompeu Conrad. — Donna Giacoma segurou nos próprios braços o corpo ferido e quase nu de Francisco quando ele morreu. Ela me disse que ele se parecia exatamente com Jesus na hora que foi retirado da cruz.

Giovanni resmungou:

— Verdade. Havia os estigmas, e somente por esse milagre São Francisco pode ser considerado um segundo Cristo.

Conrad ainda não estava tranqüilo.

— Há ainda o testemunho do irmão que, numa visão, viu Nosso Senhor entrar na Catedral de Siena seguido por uma multidão de santos. Cada vez que Cristo levantava um pé, deixava Sua pegada marcada no chão. Todos os santos esforçaram-se para colocar seus pés nas marcas deixadas pelas passadas de Cristo, mas nenhum deles o conseguiu com perfeição. Por fim, veio São Francisco e seus pés se ajustaram perfeitamente às pegadas de Jesus.

— Ouvi inúmeros desses testemunhos — admitiu Giovanni. — Ainda assim, gostaria que os historiadores da Ordem não tivessem insistido tanto nessa comparação. Talvez assim Gerardino não tivesse cometido heresia ou, o que é mais importante, não perdesse sua alma imortal.

 

Diante da lareira do salão de sua casa, Amata apertava contra o peito a carta de Orfeo ainda fechada, enquanto o desdentado mercador romano não parava de tagarelar sobre sua viagem. O maxilar dela estava imobilizado num sorriso e os olhos concentravam-se na verruga cheia de pêlos no nariz do comerciante. Será que Pio nunca iria atender a seus chamados? Finalmente, o menino apareceu e ela lhe pediu que acompanhasse o homem à cozinha, repetindo o quão agradecida estava enquanto ele saía.

Correu para o pátio, onde podia aquecer-se ao sol do meio-dia e sentar-se confortavelmente sozinha para ler a carta. Arrancou o selo com as unhas e desenrolou o velino.

 

"Cara mia,

Os dias estão cada vez mais longos, menos por causa do solstício que se aproxima e mais pela distância que nos separa. Você está sempre em meus pensamentos. Sonho com a menina de tranças cor do ébano, com a mulher na clareira, o sol brincando em seus cabelos. Não lhe parece estranho? Embora você se queixe de que os cabelos lhe chegam apenas aos ombros, vejo-a com os cabelos voando acima das flores que carrega nos braços. Acho que é uma imagem profética: os botões de flores seriam bambinos, frutos do nosso futuro amor.

Minhas tentativas, lamento informar, foram em vão ou, no mínimo, proteladas. Aproximar-me de Gregório é quase impossível. Estava a ponto de perder as esperanças, imaginando que nunca mais o veria, quando encontrei um amigo, frei Salimbene, que faz parte da delegação de frades em Lyons. Ele me apresentou a um outro frade, Girolamo d'Ascoli, ministro provincial da Dalmácia, que recentemente foi nomeado legado de Gregório nas igrejas do Oriente.

Tenho a impressão de que esse frei Girolano não tem muito apreço por Bonaventura, pois quando lhe expliquei meus motivos ele deu a impressão de gostar da idéia de ver o ministro geral em dificuldades. Seja como for, conseguiu-me uma audiência e ajudou-me.

O papa mostrou-se sinceramente feliz por me ver, mas não atendeu ao meu pedido de imediato, receoso de ofender Bonaventura, que lhe deu sólido apoio e foi seu firme aliado no último ano. Ainda assim, pelo amor que sente por mim, Gregório afirmou que não tomaria uma decisão definitiva no momento, mas conversaria com o ministro geral após o concilio.

Gregório insistiu para que eu embarcasse com ele para Provença amanhã, mais uma vez como seu talismã da sorte. Concordei, na esperança de que ele venha a mudar de opinião tão logo as questões deste concilio estejam concluídas. De Marselha, subiremos o rio Ródano numa barcaça até Lyons. O mais provável é que os trabalhos na Catedral de Lyons já estejam em andamento quando você receber esta carta. Se Cristo permitir, espero estar de volta no final de junho e na companhia de frei Salimbene. O homem é um cronista e tem uma paixão imensa por história, sobretudo a da sua Ordem.

Embora os dias estejam ficando mais quentes por aqui, são gélidos se comparados com o fogo que arde no meu peito. E pensar que um dia lamentei ter perdido a oportunidade de ir conquistar tesouros na China, enquanto um tesouro muito maior estava escondido na cidade cm que nasci. Todas as noites agradeço a Deus a boa sorte de tê-la encontrado. Antes, sonhava em nadar nos lagos de águas claras do mundo, agora quero somente banhar-me e divertir-me nos lagos profundos dos seus olhos.

Debaixo da janela do meu quarto, um grupo barulhento de velhas cata gravetos, parecem corvos num campo relvado. Vão de um lado para o outro vestidas de suas saias pretas, circulando tão devagar quanto minhas noites insones; depois que enchem os aventais de gravetos, voltam afinal para casa. Da mesma forma, vou circular em torno do nosso papa até voltar para você com o pedido atendido. Enquanto não chega esse momento, não se esqueça de seu criado solitário e reze por mim, sabendo que serei sempre

Innamorato tuo, Orfeo"

 

Amata leu e releu a carta inúmeras vezes, enrolando uma media de cabelo nos dedos. Por mais decepcionada que estivesse com as notícias relativas a Conrad, dava por si voltando aos trechos em que Orfeu declarava seu amor. Ela o havia visto mais alegre no Coldimezzo, enquanto acompanhava sua recuperação mesmo tendo que lidar com a perda de seu amigo carreteiro. Era mu Orfeo com olhos vincados pelo riso fácil. Recebia com prazer a paixão que ele lhe demonstrava, as palavras que derreteriam o coração de qualquer mulher; o fogo que ardia nele enchia seu corpo de um calor agradável e palpitante enquanto as lia.

Apesar disso, outras palavras na carta a perturbavam. Talvez fosse apenas o modo de falar de um mercador; mas inquietou-se quando ele a comparou com um "tesouro" e sua "boa sorte". Teria sido verdadeiramente estimulado pelo amor ou levado antes de tudo pela dispendiosa ambição de viajar para lugares distantes? Talvez ela estivesse apenas demasiado desconfiada de pretendentes astutos ou em busca de fortuna desde o seu incidente com Roffredo Gaetani.

A palavra "China" também se destacava a seus olhos. Recordou as histórias que ele contara sobre o amigo Marco, que só veio a conhecer o pai aos dezessete anos. Filho meu não passará por esse tipo de separação, pensou, muito menos eu. Não queria um marido apenas no nome. Ela e Orfeo teriam de resolver esse assunto antes de se comprometerem. Felizmente, e graças ao tio Guido, que aceitara ser o gestor de seus bens, casamento era agora uma opção, não uma necessidade.

Ouviu ruído de passos no claustro atrás dela. O tio olhou com ar curioso ao passar por ela, as mãos entrelaçadas nas costas, fazendo um trejeito com os lábios.

— Uma carta de Orfeo — ela anunciou. O conde não respondeu, mas ela entendeu a pergunta em seus olhos.

— Sei que deveria amá-lo — disse —, mas parte do que ele diz me preocupa. De uma coisa tenho certeza, porém: prefiro-o a qualquer outro homem. Será que isso é base suficiente para um casamento, tio?

Guido sorriu com a sábia expressão de alguém que já cruzou esse tipo de oceano.

— Vai saber a resposta quando estiverem juntos de novo, Amatina. Seja como for, as pessoas podem se casar por amor e depois descobrir que amar pode se tornar um fardo.

Amata franziu os lábios e puxou-os com os dedos, ao refletir:

— Mas, se me casasse por qualquer outro motivo, será que um dia eu não teria de convencer meu marido a entregar-se ao amor para nos livrar da frustração?

— Você vai se sair bem, menina — disse o tio. Sobreviveu aos bárbaros. Posso garantir que também vai sobreviver ao casamento com Orfeo.

Retomou a caminhada, dizendo em seu íntimo: Que geração é essa! Casar por amor! Ora! Isso jamais teria acontecido na minha época.

 

Orfeo vestiu seu traje mais limpo sobre a túnica, alisou os cabelos com a mão e seguiu o mensageiro do papa até o refeitório menorita. Gregório convidara Orfeo, na qualidade de sobrinho de São Francisco, para jantar com ele e com os frades que deveriam dar testemunhos no segundo dia do Concilio Geral.

O séquito do pontífice ocupava toda a cabeceira da mesa. Um aceno vindo lá do final chamou a atenção de Orfeo. Frei Salimbene havia guardado um espaço no banco, entre ele e frei Girolamo d'Ascoli, o frade que ajudara Orfeo a ter acesso ao papa. O pequenino e ágil Girolamo, de feições delicadas, cabelos prateados e brilhantes olhos azuis, fazia um contraste marcante com o grandalhão e desmazelado Salimbene.

Gregório, de ótimo humor, irradiava alegria. Fez uma oração abençoando o alimento que iriam receber e acrescentou uma ação de graças pelo sucesso do primeiro dia de Concilio, especialmente pela bem-sucedida reconciliação com a igreja ortodoxa.

Ao chegar atrasado na catedral de Lyons naquela manhã, Orfeo acabara ficando à porta, comprimido, impedido de entrar por causa da multidão que se aglomerava no transepto. Entretanto, nas conversas que tivera com Gregório, compreendera que eliminar as desavenças entre as igrejas era o principal item na pauta de seu amigo papa. Nas pontas dos pés e valendo-se dos comentários dos que estavam à sua frente, Orfeo só conseguiu entrever a delegação oriental em suas brilhantes vestimentas quando seus membros se adiantaram e se ajoelharam diante do trono papal. Em voz alta, declararam: "Aceitamos a primazia e todas as convenções da igreja ocidental." Concordaram também com todas as questões conflituosas, inclusive a cláusula filioque, que explicitava na doutrina que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, e o uso de pão ázimo na liturgia da Eucaristia.

Enquanto Gregório repetia sua satisfação com os acontecimentos do dia, Orfeo sussurrou no ouvido de frei Girolamo:

— O que a igreja oriental recebeu em troca? — ele sabia que, como enviado de Gregório ao imperador bizantino Michael Palacologus, Girolamo compreendia muito bem as sutilezas das negociações.

— Muito pouco respondeu o frade falando baixinho. Prometemos ser tolerantes com a liturgia grega.

— Só isso?

— Precisa entender, jovem leigo, que a capitulação de Michael não tem nada a com questões religiosas. A cada ano, os sarracenos invadem mais um pouco o seu império. Ele precisa da nossa ajuda militar e não se encontra em posição de regatear.

Mergulhou um pedaço de pão na tigela de sopa e acrescentou, apenas insinuando um sorriso:

— Deus escreve certo por linhas tortas e não despreza nem mesmo as hordas mais pagãs.

Quando o volume das vozes em torno da mesa ficou mais alto, frei Salimbene entrou na conversa:

— Pode estar certo de que o restante do Concilio será mais difícil para o santo padre. Os cardeais levaram quatro anos para nomeá-lo sucessor de Clemente. No futuro, ele quer que fiquem confinados em celas individuais depois da morte de cada papa. Vai bloquear todas as fontes de renda dos cardeais enquanto estiverem isolados em seus conclaves, até escolherem um novo papa.

— Essa é apenas uma das questões — comentou Girolamo. — Amanhã também o dia não será nada agradável. Começarão as denúncias contra o clero secular. Embora tanto os frades pregadores quanto os menoritas estivessem bem representados entre as fileiras dos prelados — bispos, arcebispos e até cardeais —, Gregório acreditava que todas as maldades do mundo vinham dos padres e prelados seculares, que não deviam obediência a nenhuma comunidade religiosa.

Salimbene limpou com a manga o filete de molho que lhe escorria pelas dobras do queixo. Deu uma piscadela e um sorriso forçado:

— Non est fumus absque igne. Onde há fumaça há fogo. Até mesmo alguns cardeais podem acabar chamuscados.

— Inclusive seu próprio cardeal Bonaventura?

A expressão atônita no rosto de Salimbene em reação à pergunta confirmou sua ingenuidade nessas questões da Igreja.

— Não, não — respondeu o frade. — Ele é o responsável pelo testemunho contra os seculares.

Orfeo seguiu o movimento dos olhos dos frades ao fitarem frei Bonaventura, sentado ao lado do papa. O cardeal atacava um pedaço de porco assado especialmente gorduroso.

— Nosso ministro geral está quase tão rotundo quanto você, frei Salimbene

— Girolamo observou com um sorriso travesso. Falava com a dicção controlada de um orador experiente, deixando que a palavra "rotundo" ressoasse em todo o seu palato e ecoasse ao deixá-la escapar pelos lábios.

— É sim, e já estava na hora. Mas também se pode notar que ele não tem o meu bom humor nem meu colorido saudável. Um tanto abatido demais para meu gosto. E aquelas olheiras escuras... — Salimbene balançou a cabeça com falsa compaixão. — Até Sua Santidade está preocupado com ele. Reparou na expressão apreensiva no rosto do papa?

Orfeo forçou um sorriso diante da falta de respeito dos comentários sobre Bonaventura, a quem o resto do mundo tratava como uma celebridade. Desde que o grupo do papa chegara a Lyons, várias vezes Orfeo entreouvira conversas sobre Gregório estar treinando Bonaventura para sucedê-lo — notícias desanimadoras, em se tratando de seu objetivo de libertar o frade amigo de Amata.

Ele voltou ao assunto da discussão do dia seguinte.

— Quer dizer então que devo chegar à catedral em jejum amanhã de manhã e arranjar um lugar na primeira fila.

— Vai haver muito com o que se entreter, acredite — concordou Salimbene.

— Vale a pena ter um bom lugar. Enfie essa metade de pão no bolso. — O frade cortou um pedaço de pão com sua faca e entregou-o a Orfeo. — Se você nunca viu as janelas da catedral pelo lado de dentro nas primeiras luzes da manhã, terá um outro prazer esperando por você.

 

Orfeo deixou para trás o calor da manhã de junho e entrou na fria penumbra da catedral. Tanto quanto podia enxergar à luz da única vela que tremeluzia sobre o altar-mor, era a primeira pessoa a transpor as gigantescas portas do transepto.

Não só Lyons se expandira desde a última vez que estivera lá quando menino, mas as obras da catedral haviam progredido ao ponto de toda a região da Provença se gabar dos vitrais das novas janelas. Estivera em Lyons uma vez com o pai para a feira anual do linho, que começava na semana seguinte a Páscoa e ia até o final da primavera. A catedral fervilhava de tanta atividade. Orfeo viu senhores e senhoras da aristocracia se curvarem com a maior boa vontade para as juntas de bois das carroças de suprimentos e, como animais de carga, puxarem as caçambas carregadas de pedra e madeira, azeite e cereais para o local da obra. À noite, os trabalhadores enfileiravam as carroças num semicírculo ao redor da construção, com velas ou lamparinas acesas em cada caçamba. Comemoravam a vigília com hinos e cânticos e deitavam seus doentes sobre as carroças. Depois, levavam as relíquias dos santos a cada pessoa doente para aliviar suas enfermidades.

Enquanto as imagens daquela viagem com o pai iam desfilando em sua memória, os olhos foram se adaptando à escuridão; as formas do interior da catedral surgiram devagar. Observou que o prédio em nada se parecia com as igrejas ao estilo de Roma, maciças e sustentadas por pesados pilares, comuns na sua terra. Colunas estreitas elevavam-se para o céu, fazendo o olhar voltar-se instintivamente para o teto à procura de seu ápice, em algum ponto entre as sombras convexas da cúpula, onde se pode esperar encontrar a revelação dos mistérios de Deus. Tudo se dirigia para cima, diretamente para os céus. Tio Francisco teria adorado esse estilo, pensou ele, a despeito dos óbvios custos. Enquanto as primeiras Ordens acumulavam e guardavam riquezas, o tio as espalhava e dispersava, enviando seus frades aos quatro cantos no mundo. Ele fizera verdadeiramente um movimento, em todos os sentidos, como a nova arquitetura dessa igreja.

Enquanto o mercador contemplava o clerestório, uma luz fraca se infiltrava pelas imagens retratadas nas janelas ogivais e pelo delicado rendilhado de pedra das rosáceas acima delas. Anjos, santos e personagens bíblicos preenchiam todos os quadrados e curvas dos vitrais, enquanto os artesãos de Lyons apenas observavam dos cantos das cenas ou apareciam ocupados nos seus trabalhos diários de assar, feltrar ou tecer, deixando bem claro ao espectador que os admirava quem havia pago tais fabulosas criações. Mas esse suave prelúdio mal preparou Orfeo para o moteto que se seguiu. Aos poucos, o sol clareou o céu a leste do Ródano e a luz espalhou-se por toda a abside. Raios de tonalidades mágicas fragmentaram-se em todas as direções; todas as cores do manto da imagem de José inclinaram-se sobre o altar-mor e sobre o trono papal de ouro colocado ali para o concilio, cortando a nave escura com inúmeros seres celestiais vestidos com as cores do arco-íris. Orfeo imaginou um coro espiritual derramando incessantes aleluias em louvor ao Supremo enquanto descia até a terra cavalgando esses fachos de luz.

Infelizmente, o encantamento não podia durar para sempre. A porta fora do transepto começou a abrir-se e fechar-se à entrada dos cidadãos que vinham assistir aos debates do dia. Orfeo postou-se no canto em que o transepto se ligava à nave para ter uma boa visão do papa e dos frades que ficariam na frente da igreja. Enfiou a mão na bolsa de pano que trazia presa ao cinto e pegou o pedaço de pão seco que havia guardado do jantar.

— Vin, monsieur? Um copo do meu jarro por um penny.

Essa era uma surpresa agradável uma surpresa, porque uma das reformas propostas por Gregório seria livrar as igrejas da presença profana de vendedores ambulantes. Orfeo achava que o papa faria bem se conseguisse acabar com a presença de prostitutas nos cantos mais escuros.

O pórtico principal da extremidade oeste da nave abriu-se e Orfeo enfiou o último pedaço de pão na boca. Caminhando sob um baldaquino branco, o Papa Gregório X encabeçava o cortejo que entrou na catedral. Vestia uma casula alva como neve, dividida em quadrantes por uma cruz azul-clara. Os sapatos baixos de seda e a mitra também eram brancos, com os avessos das fitas da mitra revestidos de seda dourada. Na mão direita, uma bengala de madeira tosca servia de bastão episcopal e marcava suas passadas vagarosas. Enquanto subia os degraus até o trono e os cônegos da catedral acomodavam o baldaquino por cima do assento do papa, Orfeo reparou, com seus olhos de mercador de tecidos, que o paramento fora feito numa sarja simples da cidade de Rheims. Atrás, os cardeais vinham em sotainas e capas vermelhas, com chapéus de abas largas da mesma cor, seguidos pelos bispos, o clero e as testemunhas dos frades menoritas e pregadores. Os campos opostos — Ordens e seculares — instalaram-se, como se tivessem combinado de antemão, em lados contrários da nave. Os frades ocupavam a parede sul, diante de Orfeo; os seculares sentavam-se de costas para ele.

Orfeo tentou chamar a atenção de Salimbene, mas o frade não alterou sua fisionomia séria nem demonstrou tê-lo visto. Frei Illuminato, bispo de Assis, sentou-se à direita de Bonaventura, assumindo a função de seu secretário na ausência de Bernardo da Bessa. Orfeo reconheceu também Girolamo d'Ascoli e outros companheiros da mesa de jantar da véspera: o menorita francês Hugues de Digne e o frade Odo Rigaldi, arcebispo de Rouen. À esquerda de Bonaventura estava o ministro geral dos frades pregadores de São Domenico, em seu hábito branco.

O Papa Gregório falou primeiro sem se levantar, com os olhos indo de uma facção à outra.

— Há aqueles que afirmam que os padres seculares e prelados não estão mais qualificados para pregar, nem ouvir confissões, nem para celebrar a Eucaristia. Muitas cidades me pedem frades para desempenhar essas funções, pois perderam a confiança em seu próprio clero. O clero contesta essas afirmações, alegando que os frades têm um comportamento pior que o deles e que os privam dos rendimentos a que têm direito ao se incumbirem de tarefas que são prerrogativas exclusivas dos seculares. Hoje, examinaremos as duas acusações. Para começar, vamos ouvir a delegação dos frades.

Fez um sinal para o cardeal Bonaventura. O ministro geral dos menoritas levantou-se devagar, uma presença ao mesmo tempo plácida e imponente. Suas maneiras deixavam entrever que ele também havia escutado e acreditado nos rumores de que sucederia Gregório como papa. O frade falava em um tom quase enfadado, refletiu Orfeo, como se fosse um banqueiro contando dinheiro em seu depósito.

— O mundo parece estar muito pior agora do que antigamente. O clero enfraquece o mundo leigo, tanto em termos de moral quanto de fé, pelo péssimo exemplo que dá. Muitos de seus membros são lascivos e mantêm concubinas em casa, ou pecam aqui e acolá com diferentes pessoas. O povo mais simples seria levado a crer que esses atos pecaminosos são aceitos por Deus, se nós, os frades, não pregássemos contra eles; e as mulheres iludidas poderiam concluir que pecar com esses padres não seria pecado, argumento com que algumas foram persuadidas a isso, conforme é do conhecimento de todos. A mulher honesta tem medo de ficar mal-falada caso se confesse reservadamente com padres assim.

Bonaventura continuou:

— O último emissário do papa na Alemanha afastou os sacerdotes que pediram a freiras de qualquer Ordem que pecassem — afastou-os de seus cargos e privou-os de seus benefícios — e excomungou todos os que pecaram com eles. E foram muitos os que receberam essa sentença. No entanto, esses mesmos sacerdotes excomungados permaneceram em suas paróquias como se nada tivesse acontecido, crucificando Cristo todos os dias. As confissões que ouviam e as absolvições que davam foram anuladas, e os fiéis não podiam assistir às missas por eles celebradas. E assim paróquias inteiras foram arrastadas para o inferno por comungarem com um excomungado. O demônio ganha mais almas dessa maneira do que de qualquer outra. Pois os padres impuros, os filhos ilegítimos, os simoníacos — todos perderam o poder de unir e o de livrar dos pecados.

Fez uma pausa e depois concluiu:

— Ainda assim, eles criam empecilhos à prática do ministério pelos frades. Se dependêssemos dos padres locais para permanecer numa paróquia, pouquíssimas vezes nos seria permitido ficar. Seja por vontade deles, seja por instigação de seus bispos, iriam nos expulsar de suas paróquias mais rápido que aos hereges e judeus.

Um rumor surdo e prolongado vibrou do outro lado da nave.

— Generalidades. Generalidades difamatórias — alguém resmungou alto o bastante para sua voz alcançar os frades.

O arcebispo Odo Rigaldi levantou-se num salto.

— Em 1261, o Papa Urbano me pediu para convocar um concilio em Ravena com o intuito de angariar fundos para o combate aos invasores tártaros. Vocês, clérigos paroquiais, recusaram-se a contribuir até que tivessem discutido a usurpação dos seus privilégios pelos frades — Odo encarou ameaçadoramente as fileiras de padres seculares e continuou num timbre agudo: — Patifes! A quem devo confiar as confissões dos leigos sob minha guarda pastoral se as Ordens não estiverem lá para ouvi-los? Não posso, em sã consciência, confiá-los a vocês, pois as pessoas vêm em busca de bálsamo para a alma e vocês lhes dão veneno para beber. Vocês levam mulheres para trás do altar com o pretexto da confissão e depois agem como os filhos de Eli à porta do tabernáculo, assunto horrível para se narrar e mais horrível ainda para se fazer. Por essa razão, o Senhor reclama de vocês pela boca do profeta Oséias: "Vi uma coisa horrível na casa de Israel: as fornicações de Efraim". E, por essa razão, estão lamentando que os frades ouçam confissões, pois temem que eles fiquem sabendo por outros de suas más ações.

— Mais generalizações — entoou a mesma voz monótona de antes.

— É o bispo de Olmutz que resmunga sobre generalizações? — Odo apontou para um padre encostado à parede da nave. — Diga-me como poderia confiar a confissão de uma mulher ao padre Gerard aqui presente, quando sei muitíssimo bem que a casa dele é cheia de filhos e filhas, e que não seria impróprio descrevê-lo com as palavras do salmista: A prole dele deve ser como jovens oliveiras ao redor da mesa? E quem dera que Gerard fosse o único.

Varreu o clero com os olhos e, por fim, deteve-se em um bispo na primeira fileira:

— E quanto a você, Henri de Liège, entre suas concubinas não estão duas abadessas e uma freira? Não foi você que um dia se gabou de ter procriado quatorze crianças em vinte meses? Não é verdade que não sabe ler e que somente foi elevado ao sacerdócio onze anos depois de se ter tornado bispo?

Sentou-se pesadamente, as veias lhe saltando do pescoço gordo, ao mesmo tempo em que Henri, o acusado, com um sorriso irônico, revidava:

— Somos condenados por um frade cardeal e um frade arcebispo. No entanto, os frades elevados à prelazia exalam o mesmo fedor putrefato dos escândalos que você nos imputa.

Orfeo notou a fisionomia triste e pesarosa de Gregório durante o decorrer dos debates. O papa decerto já esperava toda essa agressividade e parecia preparado, pelo menos por enquanto, para deixar que tudo seguisse seu rumo.

O insulto de Henri fez com que o ministro geral dominicano se levantasse. Emoldurado pelas vestes brancas, parecia uma das imagens de santos dos vitrais da catedral. Falou em tom conciliatório.

— Quando Albertus Magnus, membro de nossa Ordem, aceitou o bispado de Ratisbon com a intenção de realizar as urgentes reformas, nosso ministro geral considerou essa aceitação como uma derrota: "Quem acreditaria que você, na velhice, viria macular a sua própria glória e também a dos Frades Pregadores, que com tanto esforço você buscou engrandecer? Atente para o que aconteceu àqueles prelados que assumiram esses cargos, a reputação que têm agora e como terminam seus dias!" Por causa disso, Albertus abdicou de sua Sé e morreu como um simples frade em Colônia. Embora eu tenha passado muitos anos como dirigente da minha Ordem, não me recordo de um único momento em que Sua Santidade (e não estou me referindo ao bom papa aqui presente) ou qualquer emissário ou colegiado tivesse pedido, a mim ou a nossos superiores, ou a qualquer um dos cabidos provinciais, que encontrasse para eles um bispo digno da função. Pelo contrário, escolhiam seus próprios frades à vontade, seja por nepotismo ou outro motivo não espiritual, e portanto não podemos ser culpados pelas escolhas que fizeram.

Voltou a ocupar seu assento, mas no mesmo instante frei Salimbene se levantou para prosseguir com o tema.

— Eu também, em minhas viagens, conheci muitos Frades Menores e Frades Pregadores que chegaram ao bispado muito mais por intermédio de suas famílias e parentes consangüíneos do que através da Ordem. Os cónegos das catedrais de qualquer cidade não gostam muito de ter homens santos de ordens religiosas em posições acima deles como prelados, por mais que estes brilhem como exemplos de vida e doutrina. Temem ser censurados por eles, preferindo viver em meio à luxúria e à licenciosidade.

— Ora! De novo a luxúria e a licenciosidade! — uma exclamação de horror fingido ecoou do lado da igreja em que estavam os clérigos.

— Isso mesmo. Confirmo o que digo. E que Cristo lhe permita ser fulminado por sua zombaria.

Salimbene esfregou o rosto rosado com um grande lenço de tecido. O interior da catedral estava consideravelmente mais quente e repleto de religiosos e de espectadores.

Soube dessa história por frei Umille da Milano, que morava cm nosso convento em Fano continuou ele. Em uma ocasião, durante a Quaresma! os montanheses vieram pedir lhe, pelo amor de Deus e pela salvação de suai almas, que se dignasse a vir até eles. Estavam ansiosos para se confessar. De modo que o frade foi ao encontro deles com mais um companheiro, e seus conselhos foram de grande valia. "Um dia, uma certa mulher veio se confessar com ele. Ela revelou ter sido não apenas convidada, mas compelida a pecar, por duas vezes, pelos padres com quem se confessara anteriormente. Frei Umile portanto disse a ela: "Não a convidei a pecar nem vou convidá-la a pecar; pelo contrario, convido-a a desfrutar as alegrias do paraíso que o Senhor lhe vai conceder se amá-Lo e se fizer penitência." Mas, quando lhe dava a absolvição, viu que ela segurava um punhal e perguntou-lhe: "O que significa essa faca em sua mão num momento como este?" E ela respondeu: "Padre, na verdade eu pretendia me apunhalar e morrer, no meu desespero, se o senhor também me tivesse convidado a pecar, como fizeram os outros padres"

O frade se entusiasmou com a própria oratória. As maçãs do rosto gorducho brilhavam, tão vermelhas que Orfeo receou vê-lo sucumbir a um ataque de apoplexia.

— Conheci padres que emprestavam dinheiro a juros altíssimos — disse —, forçados a enriquecer para sustentar seus inúmeros filhos bastardos. Conheci padres mantendo tavernas com letreiro na porta e vendendo vinho, e tendo a casa inteira repleta de filhos ilegítimos; que passavam as noites em pecado e no dia seguinte celebravam missa. E, depois que as pessoas recebiam a comunhão, esses padres enfiavam o restante das hóstias consagradas nas fendas da parede, embora fossem o próprio corpo de Nosso Senhor. Seus missais, panos de altar e ornamentos da igreja apresentavam-se em estado deplorável: surrados, enegrecidos e manchados. As hóstias que consagravam eram tão miúdas que mal podiam ser vistas entre seus dedos; e quadradas, não redondas, e todas sujas de excremento de moscas. Usavam vinho caseiro de má qualidade, ou vinagre, para a missa...

— Um defeito que indiscutivelmente seria uma ofensa a um frade conhecido por saborear bons vinhos em todos os cantos do mundo cristão — ribombou uma voz no fundo da catedral.

Um dos cardeais que ali estavam como observadores levantara-se e percorrera a nave, postando-se no centro da discussão, com sua capa escarlate esvoaçando. As sobrancelhas escuras e grossas, os olhos amarelados e o nariz aquilino trouxeram à mente de Orfeo a imagem de um falcão atacando a presa.

Orfeo virou se para as pessoas ao lado c perguntou:

— Quem é esse?

A maioria deu de ombros, mas um homem vestido com a longa veste preta e o chapéu de corte quadrado das universidades sussurrou:

— Benedetto Gaetani. Um compatriota seu, a julgar pelo traje. Ele aspira chegar ao papado.

Benedetto curvou-se quase até o chão diante do trono do pontífice.

— Perdão, santo padre. Sei que o dia de hoje foi reservado para o testemunho dos frades, mas não agüento mais me calar a respeito dos escândalos que presenciei em minha própria região. Como Vossa Santidade bem sabe, venho da Úmbria, da comuna de Todi. Passei toda a minha vida no mesmo solo que alimentou esses frades menoritas.

Gesticulou na direção a Bonaventura.

— Meu estimado irmão cardeal sabe muitíssimo bem que seus filhos errantes são igualmente corruptos como sacerdotes. Abusam da liberdade que tem entregando-se à gula e às intimidades com mulheres. Ele sabe melhor do que qualquer outro por que razões as autoridades menoritas foram forçadas a abdicar inúmeras vezes da direção espiritual das Damas Pobres pelos frades. Quanto aos seus votos de pobreza, os filhos de frei Bonaventura amealham tantas esmolas por todo o país que precisam de criados que lhes sigam os passos carregando cofres cheios de dinheiro. E os donos das tavernas bem sabem tomo eles o gastam. Esses frades escrevem os nomes dos que dão esmolas, prometendo rezar por suas almas; mas, assim que desaparecem atrás da colina seguinte, usam pedras-pomes para raspar por completo a superfície do pergaminho, de forma a venderem a mesma folha vezes seguidas. São populares entre a gente simples porque dão penitências suaves, evitando obrigações desagradáveis como a excomunhão.

Os dois aspirantes a papa trocaram olhares furiosos através da nave. Então, a frieza de aço dos olhos de Bonaventura inesperadamente deu lugar a um lampejo de perplexidade. Espalmou a mão sobre o peito, respirando com dificuldade. Depois de um momento, o ministro geral pôs-se de pé, vacilante, com o rosto acinzentado. Puxou a fita vermelha da mitra que lhe caía sob o queixo e que mantinha seu chapéu cardinalício no lugar; moveu o maxilar como se estivesse prestes a falar, mas voltou a sentar-se sem refutar as acusações de Benedetto.

Aproveitando-se do silêncio dele, o cardeal Gaetani, de dedo em riste para Bonaventura, retomou seu discurso:

Os frades que desejam imitar seu fundador em sua santa pobreza você expulsa da Ordem ou, pior ainda, tortura e encarcera. Até Giovanni da Parma, reverenciado em todos os lugares por sua santa reputação, está preso aos grilhões há dezesseis anos. Não é verdade, frei Bonaventura? Nega alguma coisa tio que acabei de afirmar?

O ministro geral dos menoritas lutou para retomar o controle dfl discussão:

— Busquei apenas a harmonia dentro da Ordem.

Sua fisionomia ficara branca como cal. Gemeu novamente, dessa vez mais alto e mais penosamente, e curvou-se em seu assento como uma folha seca consumida pelas chamas. O frágil Illuminato tentou ampará-lo, mas o peso de Bonaventura levou os dois ao chão. Um grito coletivo ergueu-se de todos os lados da catedral. Orfeo achou ter visto um sorriso pairar nos cantos dos lábios finos de Gaetani.

O mercador voltou sua atenção para o ponto central do tumulto em tempo de ver frei Illuminato fazendo o sinal-da-cruz sobre seu superior. O secretário, então, fez algo muito estranho: levou a mão de Bonaventura aos lábios como se pretendesse beijá-la; porém, em vez disso, lambeu um dos dedos do moribundo, tirou dele um anel e meteu-o no bolso.

Um Gregório estupefato levantou-se do trono, apoiando-se no bastão episcopal.

— Santa crisma, alguém acuda depressa! — exclamou finalmente. — Ele precisa dos últimos sacramentos!

Orfeo também fitava com assombro o cardeal fulminado. Ali estava o carrasco todo-poderoso de frei Conrad estirado no chão à sua frente, face a face com sua mortalidade e tão impotente quanto Neno ao ser mortalmente ferido. Assim como o cardeal Gaetani, Orfeo precisou se conter para não exultar de alegria, pois finalmente podia vislumbrar um desfecho feliz para a sua missão.

 

— Impressionante, Amatina. Quem lhe ensinou essas habilidades?

O conde Guido observava a sobrinha preparar uma folha de velino para as cópias: raspar o fino pergaminho com pedra-pomes, amaciá-lo com giz e por fim alisá-lo com uma plaina. Ela esticou o velino na escrivaninha alta de tampo inclinado, fez pequeninos buracos nas margens com um estilete de metal e depois usou uma régua para desenhar de leve linhas horizontais entre os buracos nas margens. Num atril ao lado de sua escrivaninha havia uma única pagina, cortada cuidadosamente do rolo manuscrito de frei Leo e coberta por um estêncil com uma janela enquadrando a linha a ser copiada.

— Sior Jacopo me ensinou como preparar uma folha. É um bom trabalho manual e mantém minha mente e minhas mãos ocupadas. Foi Donna Giacoma quem contratou os preceptores que me ensinaram a ler e escrever.

A cantoria de Teresina ecoou no aposento vazio junto da loggia do lado sul, onde as escrivaninhas haviam sido colocadas. Do outro lado do pátio, as marteladas dos carpinteiros ressoavam na galeria do lado oposto. Os homens montavam um quebra-vento no local para onde Amata planejava levar o escritório dos copistas durante os meses de inverno.

Ela apanhou uma faca fina e afiada e pôs-se a fazer a ponta de uma pena com gestos nervosos. O conde Guido tinha avisado que voltaria para o Coldimezzo no final da semana, e Amata andava inquieta desde então. Como dizer ao tio que desejava que Teresina ficasse com ela? A criança a seduzira por completo. Mas Amata também tinha um outro motivo. Em um tributo à generosidade de Donna Giacoma, desejava que tudo o que a nobre senhora lhe deixara de herança passasse para uma mulher da geração seguinte. Contudo, estaria o avô de Teresina disposto a partir sem ela? Ele derramara todo o seu amor sobre a menina desde que a filha Vanna morrera; Teresina se tornara todo o seu universo. E embora a criança pudesse morar com o pai verdadeiro em Assis, Amata tinha de admitir que Jacopone ainda não estava preparado para a paternidade — muito embora sua saúde estivesse melhor a cada dia, sobretudo agora que sua vida tinha um objetivo e uma rotina. Guido franziu as sobrancelhas para a página no atril.

— Para mim, não passam de rabiscos — comentou. — Nunca fui capaz de permanecer sentado o tempo necessário para aprender a ler; sempre contratei um notário para cuidar das minhas contas.

— Um notário honesto, assim espero — Amata sorriu ao ouvir atrás de si Teresina saltitando no aposento. Deus, como desejava um filho. E a vontade tinha ficado maior ainda depois da visita ao casto Fabiano. Dali para a frente, a responsabilidade de dar continuidade à família recaía somente sobre ela e Teresina.

Amata sonhara com o irmão na noite anterior, todo deformado e aleijado, mas mesmo assim com o rosto resplandecente de felicidade. Ser um eunuco em troca do reino do céu! Então o sonho mudou e ela se viu sozinha com Orfeo na clareira do Coldimezzo. Deixou-se levar o mais possível pela fantasia, excitada enquanto as mãos fortes dele exploravam bem devagar seu corpo úmido (embora as mãos talvez pudessem ser as dela própria), os olhos bem fechados, tentando se enganar e acreditar no sonho; e assim continuara a dormir até bem depois de as primeiras luzes da manhã penetrarem em suas pálpebras.

Ela poderia ter mergulhado de novo no mesmo agradável devaneio se Teresina não tivesse enfiado a cabeça dentro da loggia.

— Acabei de ver meu papai através da seteira. Ele está vindo correndo pela viela.

A menina deu uma risada:

— Papai parece uma cegonha de pernas altas quando corre.

O barulho dos pés descalços de Jacopone ecoou pela casa e subiu as escadas até a loggia. Deu uma parada brusca diante delas e apoiou-se na balaustrada para tomar fôlego.

— A delegação dos frades... — conseguiu dizer — ...está de volta de Lyons. Amata deu um salto do banco. Então, Orfeo devia estar chegando a Assis.

Talvez até tivesse viajado com eles. Ia abrindo a boca para falar, mas Jacopone suspendeu a mão.

— E tem mais. Bonaventura morreu e os ministros provinciais estão reunidos para eleger um novo ministro geral. Só posso prever coisas boas para frei Conrad.

Deu um tapa no ombro de Guido:

— Venha, suocero. Vamos à basílica para saber das novidades.

Os homens saíram de braços dados, com Teresina descendo as escadas aos pulos atrás deles. Amata juntou depressa as páginas do manuscrito que estavam no atril e as guardou, trancadas, com o restante do rolo. Embora dissesse a todos os frades que visitavam a casa que havia reservado o andar de cima para os aposentos familiares, o episódio com frei Federico a ensinara a ser mais cautelosa. Desfez o nó do avental manchado de tinta e ficou olhando horrorizada para as manchas negras nos dedos e mãos. Precisava se lavar.

Correu escada abaixo, mas não foi suficientemente rápida. O grito de Teresina veio da porta de entrada. Virou-se e viu a menina pendurada como um pingente gigante do pescoço de Orfeo, agitada, enquanto ele fazia o possível para sustentá-la com um dos braços ao redor da cintura. A outra mão segurava um pergaminho lacrado.

Um sorriso largo surgiu em meio à barba de dias e à poeira que cobria seu rosto ao ver Amata. Curvou-se até que os pés de Teresina tocassem o chão e soltou-a.

— Seu cavaleiro errante voltou — disse —, e trago comigo o Graal da liberdade para seu amigo Conrad.

Caiu sobre um joelho quando ela se aproximou, representando por inteiro o seu papel de cortesão. Estendeu a mão para segurar a dela; num ímpeto, Amata escondeu as duas mãos nas costas.

— Desgostei-a, minha dama? — perguntou. Teresina caiu na gargalhada.

— As mãos dela estão sujas de tinta. Ela anda escrevendo um livro.

— Já devia saber.

O largo sorriso de Orfeo abriu-se mais e ele meneou a cabeça ao ficar em pé.

— Acha que a descrevi bem, padre? — disse, por cima do ombro.

Amata não tinha notado a presença de um frade à espera do lado de fora da porta, mas reconheceu na hora a risada bem-humorada antes mesmo que ele colocasse um pé no vestíbulo:

— Bem-vindo, frei Salimbene — disse. — Vejo que, pela graça de Nosso Senhor, está mais robusto do que nunca.

— Já nos conhecemos, madonna? — perguntou.

— Claro que sim. Se for visitar sua sobrinha na casa das Damas Pobres durante esta sua viagem, vai saber que a acompanhante dela fugiu.

— É você? A pequenina, a vivaz? — Observou as feições de Amata com alguma curiosidade. — Deve ter uma boa história para contar.

— Assim que os dois estiverem instalados, e que eu tiver me lavado.

Voltou-se para Orfeo:

— Quero ir caminhando ao seu lado até o portão do Sacro Convento, quando for libertar Conrad. Quero ver-lhe o rosto quando ele sair e respirar pela primeira vez o ar da liberdade.

— Ainda vai demorar um pouco, Amatina. Temos de esperar até que 03 frades elejam um novo ministro geral para apresentarmos a ele o perdão de Gregório. Quem vai assumir com certeza será um amigo. Tanto Gregório quanto Caetanio Orsini, o Cardeal Protetor da Ordem, declararam sua preferência por Girolamo d'Ascoli, o frade de quem lhe falei na carta.

Orfeo abaixou a cabeça e esfregou os ladrilhos com a biqueira da bota.

— Além do mais, não creio que seja uma boa idéia você ver frei Conrad de imediato. Não sabe se ele mudou muito nesses dois anos. Se levar vim choque ao vê-lo...

De repente, olhou no rosto dela e ficou mudo, incapaz de terminar a frase. Ela achou que reconhecia nos olhos dele o mesmo desejo que vira na clareira imaginária, embora no sonho o rosto de Orfeo estivesse limpo e barbeado. Desejou que Teresina e o frade desaparecessem, mesmo que fosse por um momento, para que pudesse passar os braços ao redor de seu pescoço como a menina fizera e abraçá-lo bem junto a seu corpo. Seu desejo, porém, ficou suspenso, desconfortável, no silêncio entre os dois, até afinal Orfeo quebrar a tensão com mais um sorriso empoeirado.

Enfiou a mão na bolsa.

— Trouxe-lhe um presente da Provença. Este pequeno espelho de bronze.

Esfregou-o na manga e segurou-o diante dela.

— O que houve, Amatina? Está precisando de penas para a escrita? Foi obrigada a escrever com a ponta de seu lindo nariz?

 

Salimbene agitou a taça sobre o prato vazio, abençoando a refeição recém-terminada. Afagou o estômago e retomou sua história.

— Esse irmão Piero, dos Frades Pregadores, chegou a um tal nível de loucura por causa das honras que lhe prestavam e por seu talento para a pregação que passou a acreditar piamente ser capaz de operar milagres. Um dia, quando veio ao convento dos Frades Menores, deixou-se barbear por nosso barbeiro mas ficou muito ofendido porque os irmãos não cataram os pêlos de sua barba para guardar como relíquias, Mas frei Diotisalve, menorita de Fiorença e um bufão por excelência, respondeu ao doido na medida de sua doidice. Aconteceu de um dia ir ao Convento dos Pregadores, avisou-lhes que não ficaria com eles de jeito nenhum a não ser que lhe dessem um pedaço da túnica do Irmão Piero para guardar como relíquia. Deram-lhe então um pedaço bem grande do hábito de Piero, ao qual ele deu o uso mais desprezível ao aliviar-se após o jantar e depois atirou num esgoto. Em seguida, gritou bem alto: "Que infelicidade! Ajudem-me, irmãos, preciso achar a relíquia do seu santo, que perdi na sujeira." Quando eles correram para a latrina, atendendo ao chamado e deram-se conta da zombaria, ficaram ruborizados de vergonha.

O frade esvaziou a taça e estendeu-a para que um criado a enchesse, enxugando os lábios com as costas da mão. Enquanto o menino o servia, Salimbene continuou:

— Esse mesmo frei Diotisalve estava um dia andando pelas ruas de Florença durante o inverno e aconteceu de escorregar no gelo e cair de cara, todo esparramado no chão. Diante da cena, os florentinos, que são muito propensos a brincadeiras, começaram a rir, e um deles perguntou-lhe: "Está escondendo alguma coisa aí embaixo?" E frei Diotisalve respondeu: "Estou sim. Sua mulher." Os florentinos não se ofenderam com a resposta, na verdade riram mais ainda e elogiaram o frade, dizendo: "Que Deus o guarde, pois de fato é um dos nossos."

Amata achou graça, mas não tanta quanto tio Guido e os criados que comiam na mesa de baixo. Ela estava pensando em São Damião e nas visitas de Salimbene à sobrinha. Por algum motivo estranho, já não achava tanta graça nele quanto achara nos seus dias de convento. O frade continuaria falando até tarde, disso tinha certeza, quando todos tivessem ido para cama ou desmaiado de cansaço.

Embora ainda se lembrasse da opinião negativa que Conrad fazia de frei Salimbene, Amata correra o risco, mais cedo, naquele mesmo dia e na presença de Orfeo, de mostrar ao cronista algumas páginas do manuscrito de Leo. Explicou-lhe seu plano de fazer tantas cópias quantas ela e Jacopone conseguissem. Observou-lhe o rosto com atenção, viu seu entusiasmo ir crescendo à medida que lia. Quando lhe perguntou se desejava se unir a eles na tarefa, o frade se ofereceu de imediato:

— Posso fazer pelo menos uma cópia parcial antes que o desejo de viajar volte a me atacar — declarou ele —, mas preciso ver o restante dessa crônica.

— Sabe ser discreto, irmão? — perguntou Amata. — A Ordem pode não aprovara história de Leo, se souber da existência dela. A pergunta nasceu do repentino temor de ter sido ela a indiscreta ao mencionar o manuscrito a Salimbene e de estar se valendo demais da boa lembrança das visitas dele à casa das Damas Pobres.

— Pelo amor que sinto por você e por seu noivo, juro que serei discreto.

Amata ruborizou-se ao ouvir a palavra "noivo". Ainda não havia aceitado formalmente a proposta de Orfeo, nem o faria enquanto não tivesse a oportunidade de conversar a sós com ele. Notara, contudo, que Orfeo reagira ao comentário do frade com um sorriso cheio de si.

— Discreto mesmo depois de ter tomado uns copos, frei Salimbene? — a pergunta era uma grosseria, mas o frade não poderia condená-la por sua sincera preocupação.

— Madonna! A senhora me ofende — Salimbene fez a cara mais feia que a expressão jovial e o rosto redondo lhe permitiram.

Agora, findo o jantar, Amata rezou para que não tivesse se equivocado ao avaliar o homem do outro lado da mesa, vendo aquele nariz bulboso ficar cada vez mais rosado e ouvindo-lhe a voz cada vez mais impetuosa. Orfeo ou Jacopone teriam de acompanhá-lo sempre que ele saísse da casa.

Voltou-se e viu Orfeo sorrindo para ela, embora os outros estivessem rindo de algo que Salimbene tinha dito. Ele também estivera mais calado do que o habitual naquela noite. Seu irmão Piccardo o havia procurado naquela manhã para lhe avisar que o pai deles morrera durante a viagem de Orfeo a Lyons. A despeito do rancor com que seu pai o tratara, foi difícil para ele recebera notícia.

Por estranho que parecesse, Amata não sentiu nenhuma alegria quando Orfeo lhe contou sobre a morte do pai, muito embora Angelo Bernardone tivesse sido, até bem recentemente, o foco de sua raiva. Deu-se conta, então, de como a visita a Fabiano colocara um ponto final na sua necessidade de vingança. Se seu irmão, que ficara aleijado para sempre, podia perdoar os inimigos e até abençoá-los por lhe abrirem as portas para uma felicidade maior, espiritual, será que ela também não seria capaz de permitir que seus instintos mais elevados a guiassem? Estava aprendendo, graças aos vários mestres que haviam se ocupado dela durante os últimos anos. Se não fosse pela traição do velho Bernardone, Orfeo não teria se rebelado contra o pai e saído pelo mundo na odisséia que, um belo dia, o levara para os braços dela.

Amata se levantou, estendeu a mão para ele e, ao mesmo tempo, fez um gesto para que os outros permanecessem sentados e aproveitassem a ocasião. Conduziu-o para as poltronas ao lado da lareira vazia, onde tivera tantas conversas agradáveis com Donna Giacoma. Ficou imaginando se aquele seria um dia o recanto favorito deles nas noites frias de inverno... além da cama de casal.

Claro que eles iriam se casar. Ela o amava e já se comprometera antes de ele sair em busca da liberdade de Conrad. E, além de libertar o frade, ele a ajudou a se livrar de Gaetani e ainda defendera as crianças contra os bandidos de Calisto. Santo Deus, o que mais poderia querer daquele homem? A dúvida que lhe corroía a alma não seria pura maldade de sua parte?

Entretanto, aquela voz não lhe saía da cabeça. Uma voz que duvidava das intenções de Orfeo e insistia que, para sua paz de espírito, ela o submetesse a mais um teste, muito embora o futuro de ambos pudesse estar longe da cabeça dele naquela noite. Então, quando ele aproximou sua cadeira da dela, Amata perguntou:

— Já imaginou como será quando estivermos casados? Com que tipo de vida você sonha para nós?

Ele pensou por um momento, perturbado, o cotovelo apoiado no braço da cadeira, o queixo na mão.

— No melhor das hipóteses?

Ela assentiu.

Ele se curvou para a frente.

— Há um mundo ao sul daqui, Amatina, como nenhum que você possa imaginar, um mundo de calor o ano inteiro e de uma hospitalidade inimaginável. O oposto do frio e da animosidade que sofremos a maior parte de nossas vidas aqui na Úmbria. Há algo de nossa própria terra lá, mas misturado com todas as cores e musicalidade e sabedoria do Oriente. O imperador Frederico afirmou em certa ocasião: "Se Jeová tivesse sabido antes sobre a Sicília, não teria dado tanta importância à Terra Prometida."

— Frei Salimbene diz que Frederico era o Anticristo.

— Bobagem. Frederico era um gênio, apesar de ter desrespeitado mais de um papa. Quando ele exigiu a devolução de Jerusalém por parte dos sarracenos, não houve alarde e o patriarca da cidade se recusou a celebrar uma missa em honra dele. E sabe por quê? Porque ele o conseguiu devido à sua amizade com o sultão Al-Kamel, e não pelas armas. Ele se casou com a filha do sultão e com mais cinqüenta mulheres sarracenas além dela. Compartilhava do amor dos muçulmanos pela sabedoria e até mesmo admirava o Corão, o livro sagrado deles. Frederico povoou a Sicília de filósofos e astrólogos vindos de todo o Levante e contratou tradutores para passar as palavras dele para o latim. Seu tesouro favorito era um astrolábio que o sultão lhe dera de presente.

Pela primeira vez naquela noite, Orfeo demonstrou algum entusiasmo.

— Em Palermo, onde o imperador construiu sua maior fortaleza, podem-se ver mesquitas e casas brancas quadradas iguais às encontradas no Oriente. Dizem que, ao meio-dia, metade de sua corte se levantava para fazer as orações a Maomé. Turcos e negros cuidavam de sua casa, e ele nunca viajava sem levar junto seus camelos, leopardos, macacos, leões e pássaros exóticos, e até mesmo uma girafa.

— Você já viu essas criaturas?

— Já, Amatina, e no meu sonho você também as vê. Pensei em você quando estava em Lyons admirando os vitrais coloridos da catedral de lá e desejei compartilhar com você todas as maravilhas da terra.

— E a que tipo de trabalho você se dedica nesse sonho?

Orfeo sorriu.

— Sou enfim um mercador em larga escala. Viajo por todo o Oriente, e talvez para além da China. Essa é a parte imutável do meu sonho desde os meus dias com Marco.

— E eu? O que faço enquanto você viaja, negocia, compra e vende nos grandes mercados do mundo? Também somos parceiros nos negócios?

— Você fica aproveitando o sol em Palermo, cara mia — deu uma risada. — Os marinheiros jamais permitiriam a presença de uma mulher numa galera. Dá azar. Você é a minha esposa paciente e obediente.

Riu e acrescentou, sacudindo o dedo:

— E fiel. Alguém vai ter de educar nossos filhos. Meu sonho inclui muitos filhos.

— Então você navegará de volta para casa de vez em quando para me engravidar?

A rispidez da pergunta pegou Orfeo de surpresa.

— É só um sonho, Amatina — respondeu. — Pensei que você quisesse muitos filhos.

— E é verdade. Mas seu sonho parece muito dispendioso. Vai precisar de um grande volume de dinheiro para fazer comércio em grande escala.

— Mas quando juntarmos...

Ela botou o dedo contra os lábios dele.

— Lembre-se de que tio Guido é quem cuida da minha fortuna. Estou pensando em pedir a ele para separar uma grande parte dela antes de eu me casar Para Teresina. E, é claro, devo muita aos monges de San Pietro por ter salvado a vida de meu irmão. Eles estão querendo aumentar a casa de hospedes — ela observou os olhos dele, pois sabia que veria neles a resposta à sua próxima pergunta antes de escutá-la vinda de seus lábios. — Ainda estaria interessado em se casar comigo se a única renda que eu tivesse fosse apenas o necessário para as despesas desta casa?

Nem o reflexo da luz da vela nas pupilas de Orfeo conseguiu reacender a centelha que a pergunta apagara.

— Acho que está brincando comigo, madonna.

Empurrou a cadeira para trás no mesmo momento em que Teresina entrou tagarelando para dar beijos de boa-noite.

A criança o adora, pensou Amata. Como ela fica feliz quando ele a abraça! Eu também o amo, diabos, e quero que me abrace, mas...

O cansaço tomou conta dela junto com a frustração pelo desapontamento que acabara de ler no rosto de Orfeo. O "sonho" dele parecia confirmar seus piores medos, mesmo não sendo mais do que uma fantasia.

Ela beijou Teresina na testa e, ao levantar os olhos, viu o tio que se aproximava para buscar a menina.

— Vou ajudar nonno Guido a colocá-la na cama — disse Amata. — Preciso falar com ele.

— Sobre o quê? — indagou Teresina.

— Sobre você, pequenina.

Orfeo deixou-se cair de volta na cadeira, mal-humorado e taciturno, enquanto ela saía com a menina. Amata fez sinal para que ele a esperasse, mas ele virou o rosto. No outro lado do salão, o que havia sobrado da platéia de Salimbene ria-se a valer.

 

A lua cheia dE julho iluminava o quarto em que Amata normalmente dormia sozinha. Agradava-lhe muito o luxo de ter um quarto só seu na casa, o quarto que fora usado pelos filhos de Donna Giacoma, muito embora a senhora tivesse preferido partilhar o dormitório maior com as criadas. As últimas semanas tinham sido uma exceção. A pequenina figura de Teresina estava encolhida em um colchão no canto, com as pernas e os braços pálidos como os de um espectro nas sombras úmidas. Amata deitou-se de costas e esticou os braços acima da cabeça. Seus olhos bem abertos fixaram se no dossel e uma única lágrima escorreu-lhe pela têmpora. Essa deveria ter sido a noite mais feliz da minha vida. Estava rodeada de amor por todos os lados; no entanto, em algumas poucas horas o doce vinho da amizade se transformara em amargo fel.

Teria sido egoísta ou otimista demais, na esperança de que esses homens compreendessem O sonho dela? Contava que Guido concordasse sem criar problemas com os planos que ela fizera para Teresina. Depois que a menina terminou a oração e fechou os olhos, Amata levou o tio para o final do corredor e lá ele a ouviu em silêncio por um tempo. Seu olhar ficou triste, porém, quando Amata sugeriu que ele deixasse a menina com ela. Reconhecia que o jovem casal poderia educar melhor Teresina, mas não via motivo algum para a menina ficar apenas para aprender a ler e escrever. Por fim, disse que pensaria melhor sobre o assunto e daria uma resposta depois.

Mas um espírito maligno a fez acrescentar:

— Não estou certa de que deva me casar com Orfeo. Quero uma família de verdade. O fato de ele estar sempre ausente viajando me preocupa.

— Bobagem — retrucou Guido, enfático. — Os homens estão sempre ausentes. Não vi minha mulher durante três anos quando fui lutar na cruzada do imperador. Todo homem de caráter deve atender ao chamado de uma grande causa ou de um grande negócio. O mundo está se expandindo, Amata, e os aventureiros, como Orfeo, vão sempre querer ir além. Você deveria se sentir a mulher mais feliz deste mundo por ser cortejada por um homem de tanta energia.

— Mas, quando ele olha para mim, receio que não veja nada mais do que meu dote.

— Isso é perfeitamente normal.

Guido segurou-a pelos ombros e sacudiu-a de leve, como se quisesse passar algum juízo para a cabeça dela.

— O que está acontecendo com você, menina?

Olhou-a nos olhos, aproximando bem o rosto. O cheiro acre do vinho que ele bebera queimou as narinas de Amata enquanto ele talava:

— Posso lhe garantir o seguinte: não vou nem pensar em deixar Teresina aos seus cuidados antes do seu casamento. Não vou deixá-la numa casa em que reina a confusão. A menina e eu voltaremos para o Coldimezzo em três dias, como planejado.

O tio saiu pisando duro de volta para o salão, resmungando baixo, zangado. Ela esperou até que o rubor se dissipasse de seu rosto e das orelhas, quase temerosa de segui-lo, mas achou que devia desculpas a Orfeo. Desejou que ele ainda estivesse disposto a retomar a conversa, e que ela conseguisse encontrar uma forma mais clara de lhe explicar suas apreensões.

O salão estava praticamente deserto quando ela voltou, exceto pelos criados e frades dormindo num canto. Orfeo ainda a aguardava com ar aborrecido em sua cadeira, mas não lhe deu oportunidade de falar. Pelo contrário, pôs-se de pé num salto e disse bruscamente:

— Estou pensando em levar minhas coisas para a casa de Sior Domenico pela manhã e ficar por lá.

Mordeu o lábio inferior.

— Deixo com você o documento de perdão de seu amigo. Frei Salimbene providenciará para que o próximo ministro geral o receba.

O laconismo dele a feriu, tanto que esqueceu que havia voltado ao salão para pedir desculpas.

— Você virá me procurar? — perguntou. — Gostaria que continuássemos amigos, aconteça o que acontecer.

Ele respondeu com evasivas. Murmurou que Sior Domenico poderia querer que ele tomasse a estrada de novo, que fosse ao encontro dos outros homens.

Amata foi para a cama desolada. Por ter hesitado na hora de se comprometer a casar, tinha aborrecido Guido e ferido o orgulho de Orfeo, e aquele orgulho surgiu de repente como uma montanha intransponível entre eles. Esperava que esse mal-estar só durasse aquela noite. Enquanto enrolava o lençol nos ombros para se aconchegar, ousou desejar que Orfeo quisesse vê-la de novo. Mas será que algum dia ele conseguiria realmente compreendê-la?

— É que tenho tanto medo — sussurrou ao travesseiro as palavras que quisera dizer a Orfeo o tempo todo.

 

Zefferino veio arrastando os pés pelo túnel acima da cela de Conrad, seguido de outras passadas que o frade não conseguiu identificar. A primeira coisa que lhe veio à mente foi que o carcereiro estava trazendo um novo prisioneiro para o calabouço.

Ergueu a cabeça devagar quando a luz do archote se aproximou da abertura acima. O cadeado se abriu. Zefferino suspendeu a grade e ele e outro frade desceram de lado os degraus.

O carcereiro chamou Conrad e Giovanni ao descer.

— Irmãos! Frei Girolamo d'Ascoli, nosso novo ministro geral, está aqui para falar com vocês.

Os prisioneiros se levantaram com dificuldade, com as correntes tilintando. A um sinal de Girolamo, Zefferino retirou uma chave grande do anel preso à corda de sua cintura e agachou-se ao lado dos pés de Conrad. Abriu os grilhões dos tornozelos dele e atirou-os fora com um estrépito triunfal.

O ministro geral disse a Conrad:

— Nosso santo pai, o Papa Gregório X, perdoa suas ofensas contra a nossa Ordem, irmão. Está livre. Também será bem-vindo se quiser permanecer aqui no Sacro Convento até que recupere a saúde. Recomendo que não tenha pressa e que se entregue aos cuidados do irmão da enfermaria.

Conrad piscou os olhos à luz do archote. Sentia um formigamento nas pernas, agora que o sangue corria livre nelas. A despeito dos meses de expectativa, a ausência de emoção de sua repentina soltura tornava-a difícil de acreditar. Sacudiu as teias de aranha que haviam se formado em seu cérebro para ter certeza de que escutara direito.

Girolamo continuou:

— Em breve, quando estiver forte o bastante, vamos conversar de novo, frei Conrad. Tenho planos para você: quero que seja meu emissário junto aos irmãos Espirituais para ajudar-me a trazê-los de volta para o nosso meio. Como simpatiza com as práticas deles e é ex prisioneiro dos Conventuais, vão escutá-lo quando lhes explicar que é inevitável haver uma mudança para que a Ordem cresça e sobreviva. Tenho certeza de que frei Giovanni aqui presente reconhecia isto quando serviu como ministro geral.

A mente de Conrad tenteava, sem orientação, como a de um sonâmbulo.

— Sinto-me honrado pela confiança que deposita em mim, frei Girolamo — Disse —, mas recentemente fiz um juramento que, espero, me permitirá cumprir. Prometi a Nosso Senhor que se conseguisse sair da prisão iria trabalhar durante um tempo com os leprosos. Mas o frei Giovanni da Parma aqui presente é amado por todos os frades. Será que ele não serviria como seu emissário?

— Pretendo também libertar esse reverendo padre — disse Girolamo.

Perscrutou a figura decrépita do frade meio oculta pelas sombras. — Duvido, entretanto, que ele agüente as viagens que têm de ser feitas para o cumprimento dessa missão. — E, dirigindo-se a Giovanni: — Já havia pensado no que faria quando saísse daqui, padre?

Giovanni balbuciou a resposta.

— Pensei nisso centenas de vezes. Quero ir para Greccio... somente para Greccio. — E acrescentou, numa voz trêmula: — Quero terminar meus dias diante do estábulo onde São Francisco recriou a cena do nascimento de Nosso Senhor.

Enquanto Zefferino abria os grilhões de Giovanni, Girolamo virou-se para Conrad, com as mãos espalmadas.

— Viu? Frei Giovanni não quer ir. Fale-me sobre esse seu juramento. Por quanto tempo jurou permanecer entre os leprosos?

— Até aprender o que preciso.

— E o que é que precisa aprender?

— Não sei muito bem. Nem eu mesmo sei com certeza. Apenas sei que Deus vai me dizer quando chegar a hora. Pode levar um dia; pode ser que fique lá até morrer sem nunca descobrir.

Girolamo esfregou a face enquanto observava os prisioneiros.

— Meu desejo de unir a Ordem é tanto que me precipitei, irmãos. Obviamente, os dois precisam de um tempo até se ajustar à vida na Terra. Vá cumprir seu juramento, frei Conrad. Contudo, ainda tenho esperanças de usá-lo um dia, assim que terminar sua missão e recuperar as forças.

Uma fungadela barulhenta vinda dos degraus de pedra chamou a atenção deles. À luz do archote, Conrad viu lágrimas correndo pelo rosto do guarda.

— Frei Giovanni vai precisar de alguém que o acompanhe até Greccio — disse Conrad. — Talvez frei Zefferino... se for possível inventar uma espécie de máscara... porque ele se preocupa com o fato seu rosto estar desfigurado...

Girolamo inclinou a cabeça de lado, surpreso,

— Você advoga a favor de seu carcereiro?

— Ele fez o papel de bom pastor para nós durante esses dois anos. Acho que já está começando a sentir falta de seu pequeno rebanho.

Girolamo correu os olhos pelo trio, meditando em silêncio.

— O que me diz, Zefferino? — perguntou por fim. — Está pronto para entregar suas chaves a outro irmão e ir embora deste lugar?

Um riso contido escapou da garganta do carcereiro.

— Estou pronto, mas deveria ir com frei Conrad. Frei Giovanni precisa de um companheiro mais jovem e mais forte. Conrad, você e eu somos dois cegos que se completam, como um par de suportes de livros.

Conrad tocou a cicatriz acima da face.

— Não havia pensado na minha aparência aos olhos dos outros. Será que meu rosto pode assustar uma criança?

— Você envelheceu, amigo, parece mais velho do que é — disse Zefferino. — Quando veio para cá, seu cabelo era preto como a zibelina; agora carrega o capote de inverno do arminho. Coxeia como um jumento alquebrado e vai ficar cego como um morcego sob o sol forte do dia. Trocando em miúdos, sem contar a sua barba de profeta, fazemos uma dupla perfeita.

Distraindo-se por um momento, o carcereiro levou o archote para perto de seu próprio rosto a fim de que Conrad o enxergasse melhor; quando o calor lhe aqueceu a maçã do rosto, porém, afastou depressa o braço. Jamais esqueceria o anjo vingador da floresta à meia-noite.

Conrad foi claudicando até as escadas e apertou o ombro de Zefferino. Vá na frente então, irmão. Se cantar junto comigo hinos de louvor e agradecimento, nós dois formaremos uma dupla capaz de desconcertar todos aqueles que depositam esperanças nas graças mundanas.

 

Zefferino estava certo quanto à luz do sol. Ansioso por sair do Sacro Convento, Conrad mal passara do portão do mosteiro e teve de cobrir o olho com a manga de seu hábito. Com andar inseguro, foi se esconder no interior sombrio da basílica de baixo, seguido de perto por seu ex-carcereiro. Como uma criança aprendendo a andar, seguiu cambaleando até o túmulo de frei Leo. Reprimiu a vontade de ralhar com seu mentor. Em vez disso, lembrou-se do hino de louvor que mencionara a Zefferino ainda na masmorra e balbuciou agradecimentos, tentando reafirmar sua fé nos desígnios de Deus.

— Há algo de novo disse Zefferino atrás dele. — Esta placa não estava neste lugar na última vez em que vim aqui. É o túmulo de uma mulher. Jacoba... sancta romana.

— Jacoba? — Conrad persignou-se e depois estendeu a mão para baixo do púlpito e correu os dedos sobre a inscrição. — A data, irmão, qual é?

— Do último inverno. Eu lhe disse que era recente.

Conrad deixou cair o braço.

— Requiescas in pace, frei Jacoba.

Zefferino olhou para ele com ar de dúvida.

— Um frade com nome de mulher?

— Era uma senhora bonita e doce, e uma história para quando estivermos viajando. Vou contar-lhe tudo o que sei sobre ela enquanto caminhamos. — Ficou imaginando se Donna Giacoma teria conseguido realizar o plano de deixar sua herança para Amata.

Amata agora já devia ser uma mulher adulta. Mal havia pensado nela no ultimo ano, mas de repente precisava saber como estaria passando. Conjeturou se teria se esquecido dele tanto quanto ele dela. Esperava que não.

Uma severa repreensão ecoou do outro lado do transepto. Uma fileira de tochas iluminava o canto norte da basílica. Protegendo o olho, Conrad divisou duas pessoas que se moviam sob a claridade, subindo os andaimes. Não fosse pelo linguajar, lembrariam os anjos subindo e descendo a escada de Jacó. A voz que lhe chamara a atenção gritou mais uma vez, com o sotaque grave e rouco de um florentino idoso.

— Meus pigmentos estão prontos, Giotto. Rápido, menino. Traga a argamassa aqui para cima. Quero terminar a Virgem hoje.

Conrad cruzou a abside, aproximando-se dos andaimes para ver o pintor de afrescos trabalhar. Uma reprimenda brusca, porém, o fez estacar, constrangido.

— Agradeceria se os irmãos ficassem afastados. Estão distraindo meu aprendiz.

Conrad ficou estático. Abriu bem o olho, de repente sem se incomodar se podia ou não enxergar. De início, a luz intensa das tochas ofuscou sua visão, e ele imaginou se os santos de Deus estariam sempre banhados de tanta luz. As poucos, porém, conseguiu distinguir as cores nas paredes, e uma multidão de querubins rodeando uma Madonna inacabada sentada num trono. Nos braços, ela trazia um bebê que parecia real — e não uma miniatura de imperador romano, como o frade estava habituado a ver em afrescos daquele tipo.

A esquerda da Virgem encontrava-se a imagem viva de São Francisco, vestido com o hábito marrom-cinzento característico da Ordem. Tinha os olhos escuros calmamente fixos em algum ponto alem de Conrad; os lábios grossos não sorriam nem demonstravam desagrado. Uma auréola dourada emoldurava as orelhas salientes e a tez olivácea do santo, a barba por fazer e a tonsura acobreadas, e as ínfimas sobrancelhas. O artista havia pousado a mão direita de Francisco no peito, enquanto a outra segurava uma Bíblia, ou talvez a Regra da Ordem. As feridas dos estigmas estavam claramente visíveis em cada mão. Conrad observou também as marcas dos cravos nos pés descalços. A ferida da lança no lado do corpo de Francisco podia ser vista por um rasgo no tecido do hábito.

Os olhos sem expressão, pacíficos, prenderam a atenção do frade. Lembrou que Francisco era quase cego na época em que o serafim o marcou com as feridas. Foi tomado por uma sensação de gratidão pelo olho que lhe restava.

— Belo, signore — murmurou em voz alta para o velho pintor.

— A beleza é meu ofício.

Um traço de sarcasmo na voz do artista fez Conrad se perguntar se o homem estaria comparando sua obra com os dois frades que o observavam. Certamente, a ele e a Zefferino faltava beleza. O florentino, com toda a sua delicada sensibilidade, devia achá-los no mínimo repulsivos. A bravata que o animara enquanto estava na cela evaporou-se de repente, e Conrad se cobriu com o capuz.

— Vem, irmão — chamou o companheiro. — Sei de um lugar onde poderemos descansar e seremos bem recebidos.

 

Escondidos sob os capuzes, Conrad e Zefferino esperavam no salão da casa de Amata. O criado Pio não reconheceu Conrad nem quando o frade perguntou se ela morava ali. Ocorreu-lhe também a possibilidade de sua voz ter mudado por causa da friagem da cela, embora tivesse tido amplas oportunidades de usá-la na companhia de Giovanni durante o último ano.

Como fazia muito tempo que perdoara seu carrasco, Conrad não tinha se preocupado até então se Zefferino seria bem-vindo. Mas Amata vira o frade apenas uma vez na escuridão da capela abandonada, e o homem não revelara seu nome até Conrad ouvi-lo em confissão. A aparência de Zefferino também mudara em conseqüência da cicatrização das feridas e de todo aquele tempo passado no calabouço subterrâneo. Mas a reação de seu companheiro a Amata poderia ser outra caso ele viesse a fazer a ligação entre ela e o noviço que vira na estrada. Seria mais prudente se Conrad não mexesse nesse vespeiro nos poucos dias em que estivessem na casa dela. Baixou a cabeça depressa ao ouvir Amata entrar no aposento. Que a paz esteja convosco, irmãos. Procuram abrigo? Sim, Amatina — respondeu Conrad. — Para meu companheiro e para mim. A hesitação dela foi quase palpável.

— Conrad? — Sua voz tremeu.

— Eu mesmo. Estou livre.

— Oh, Deus! Deixe-me vê-lo! — Levou as mãos ao capuz para retirá-lo, mas ele ergueu a sua impedindo-a. Por favor, não. Iria assustá-la. As mãos dela contraíram-se enquanto as afastava devagar.

— O que eles fizeram com você?

— Não foram "eles", madonna — interrompeu Zefferino. — Fui eu o torturador.

— Você foi apenas um instrumento de Deus — Conrad interveio. — Não seja tão severo consigo mesmo.

— Irmãos! Basta! Parem com isso — reclamou Amata. — Agora, os dois é que estão me torturando.

Apoiou a mão no ombro de Conrad. Ele não a retirou.

— Então pretende se esconder debaixo do capuz para o resto da vida? Lembre-se de que está na casa de sua amiga mais verdadeira — e acariciou a cabeça de Conrad por cima do pano. — Por que não começar agora?

Conrad inclinou-se para o companheiro.

— Você também, Zefferino. Temos de fazê-lo, ou então vai ser melhor voltarmos para a masmorra.

Retiraram os dois capuzes ao mesmo tempo. Amata piscou para esconder as lágrimas. A jovem esfregou um nó do dedo no rosto e deu um passo atrás, fitando ora um ora outro. Para alívio de Conrad, não deu mostras de ter reconhecido Zefferino como o frade que tentara atacá-la com a lança.

Finalmente, os olhos dela se fixaram no amigo, e a atenção o fez enrubescer.

— Conrad, Conrad. Senti muito a sua feita. Nunca precisei tanto conversar com você como agora — falava com a voz inalterada, como se não visse nada de errado nele. Ate conseguiu sorrir de leve. — E tenho uma surpresa para você. Venha comigo.

Amata e Zefferino ajudaram Conrad a subir a escada para a loggia. Mais uma vez, ele não reagiu quando a mão dela segurou seu cotovelo. Começou a perceber o quanto ansiara por uma prova de afeto, por menor que fosse, durante aqueles meses todos, e quanto de afeição ele havia deixado passar despercebido naquela mesma casa anos antes.

Ao vencer o último degrau, Conrad viu dois escribas — um frade e um leigo — debruçados sobre suas escrivaninhas. Achou que já os conhecia, embora ainda não confiasse inteiramente em sua visão. Às vezes, tinha a impressão de que estava andando dentro de uma nuvem, e por isso o pequeno scriptorium de Amata pareceu-lhe algo mais fabuloso do que real.

— Frei Salimbene, Sior Jacopone — chamou Amata. — Vejam quem chegou. Lembram-se do nosso frei Conrad?

A tristeza anuviou o rosto de Jacopone quando ele ergueu a cabeça. Desviou o olhar para além da balaustrada da loggia. O frade, por sua vez, parecia apenas curioso. Salimbene não conhecera Conrad tão bem assim para se recordar de sua aparência anterior.

— Um documento inacreditável, esse que frei Leo confiou a você — comentou o cronista —, embora careça de milagres.

Rapidamente, Amata explicou o que os copistas tinham em cima de suas mesas.

— Espero que esteja feliz, Conrad. Certa vez, você me pediu para fazer exatamente isso — disse, lançando um olhar interrogativo.

Com a ajuda de Zefferino, Conrad foi até cada uma das escrivaninhas, examinando os velinos.

— Vocês são calígrafos muito bons — disse. Parou ao lado de frei Salimbene. Quanto aos milagres, frei Leo pretendia apenas escrever uma história verdadeira. Ele não se permitiria enfeitar seu relato com falsos acontecimentos, muito embora os leitores pudessem se sentir edificados por eles.

Salimbene curvou-se como se pedisse desculpas, talvez em consideração às condições físicas de Conrad.

— E ele estava certo em agir assim, é claro. Conheci muitos que simularam visões falsas para que fossem mais reverenciados do que os outros, como santos a quem os segredos de Deus são revelados. E só Deus sabe quantos fantasmas se originaram de mentes atordoadas, nubladas pelas próprias emanações, quando um homem acredita ser verdadeira a visão do que não passa de mera fantasia.

Animou-se com o assunto.

— Oh, e quantas falsas relíquias vi nas minhas perambulações! Os monges de Soisson exibem um duvidoso dente de leite do Menino Jesus, que caiu quando Ele fez nove anos. Já vi o cordão umbilical de Nosso Senhor em três relicários separados, embora evidentemente seja possível que cada um deles contenha apenas um pedalo do cordão. Mas também já vi o prepúcio de Jesus, em não menos de sete lugares. E todos o exibem com toda a pompa na Festa da Circuncisão.

Jacopone apoiou a pena com uma expressão mortificada no rosto:

— Uma vez toquei na pele do prepúcio e senti-me comovido. Serviu de inspiração para minhas orações durante semanas.

Salimbene deu um sorriso irônico, de costas para Jacopone.

— E assim vai a fé simples. Afinal, essa é a melhor justificativa para milagres e relíquias. As abstrações de nada valem para a viúva com seu óbolo na mão. Mas por um frasco contendo algumas preciosas gotas do leite da Virgem... ela não daria de bom grado o pouco que tem?

Conrad franziu o cenho, mas não respondeu.

— Estou muito cansado — disse para Amata, sem acrescentar que era Salimbene quem o cansava. — Onde posso descansar?

Quando chegaram ao pé da escada, fora do alcance dos ouvidos dos escribas, Conrad exprimiu sua preocupação com a escolha que ela fizera.

— Confio em Sior Jacopone e fico feliz por vê-lo à escrivaninha, mas receio que tenha errado ao mostrar o pergaminho de Leo para frei Salimbene. Ele pode parecer desinteressado e indiferente, mas simpatiza com os Conventuais.

— Ele é um cronista, Conrad — tranqüilizou-o Amata. — O interesse dele pela história da Ordem está bem acima de qualquer opinião que possa ter sobre suas facções.

— Mas o que vai acontecer depois que ele satisfizer a sua curiosidade?

— Ele prometeu solenemente. A mim e a... — Amata calou-se, não sabendo como caracterizar Orfeo. Com certeza não poderia chamá-lo de noivo, como fizera Salimbene. Nem sabia ao certo se ainda podia chamá-lo de amigo. — Preciso conversar com você, Conrad. Se frei Zefferino não se importar, gostaria que conversássemos a sós após o jantar.

Zefferino assentiu.

— Se quiserem tirar um cochilo até o jantar ou se precisarem de alguma coisa da cozinha, é só pedir. Minha casa está à sua inteira disposição.

Depois do jantar, levaria o amigo para um canto sombreado do pátio. Enquanto ele estivesse disposto ou fosse capaz de ouvir, ela lhe contaria tudo o que havia ganhado desde a separação de ambos e tudo o que havia perdido recentemente. E, se ele quisesse contar-lhe a sua história, ela o escutaria, compreensiva e solidária. Muita coisa havia mudado na vida de ambos nesses dois anos.

 

Orfeo examinou a lona que cobria a carga das carroças para se certificar de que estava tudo bem amarrado. Numa mesa ali por perto, o velho Domenico contava velos de carneiro, sacos de lã e peças de tecido. Vários carreteiros conduziam bois pelo pátio e os atrelavam às três carretas e carroças que ainda restavam.

As viagens, em geral, deixavam Orfeo animado. Mas não naquele dia. Bem que tentara se concentrar nos negócios; entretanto, apenas cumpria os preparativos para a viagem sem o menor entusiasmo.

Várias semanas haviam se passado desde que soubera que o "frei de Amata" tinha se instalado na casa dela de novo. Ela enviara a Orfeo um bilhete de agradecimento e o convidara para ir conhecer Conrad, mas ele não conseguira nem mesmo dar-lhe uma resposta. Ainda lhe doía o último encontro de ambos.

Atravessou o pátio para verificar o trabalho dos carreteiros. A maioria desses homens participara da longa e cansativa viagem do inverno anterior, da última expedição de compras a Flandres e à França. Eram sujeitos mal-encarados, corpulentos, desbocados, vestindo túnicas de couro iguais às dos ferreiros, com as adagas penduradas batendo-lhes nas coxas. Mas Orfeo sabia que essa turma era capaz de enfrentar qualquer obstáculo, viesse da natureza ou do homem. Somente um dos carreteiros era inexperiente — um homem de meia-idade que chegara para substituir Neno. Até o momento, os outros haviam aceitado o recém-chegado sem problemas.

Orfeo passou os dedos por baixo de urna canga, certificando-se de que estivesse protegida no ponto em que tocava o cachaço do boi, e correu os olhos pela fila de veículos. Perto do último carro, emoldurado pelo sol nascente, vinha um frade encapuzado, caminhando com dificuldade. A barba branca e comprida como a de um patriarca oriental descia-lhe desgrenhada pelo peito. O homem ergueu a cabeça ao se aproximar, fitando primeiro Sior Domenico e depois Orfeo. O mercador sobressaltou se ao ver o rosto do frade, com uma cavidade ocular coberta de cicatrizes e o olho bom semicerrado. Esse aí podia amaldiçoar uma alma apertas com o olhar, sem dizer qualquer palavra, pensou.

— Orfeo di Angelo Bernardone — o frade chamou em voz alta.

Ele pronunciou o nome sem a entonação de uma pergunta, secamente, como se estivesse apenas confirmando sua suposição. Naquele instante, Orfeo podia imaginar como seria o Anjo da Morte chegando para ceifar sua vida.

— Ele mesmo. O que quer de mim, frade?

— Para mim, nada. Já me fez bastante bem. Que Deus o recompense por ter ido ao papa buscar minha liberdade. — Com cautela, o frade retirou o capuz, expondo aos raios do sol uma venerável cabeleira branca emaranhada.

Espantado, Orfeo não disse nada a princípio. Imaginara um homem muito mais jovem, até mesmo bonito — alguém que pudesse atrair fisicamente Amata. A frieza com que ela o recebera ao voltar para casa trazendo o perdão do frade o fez suspeitar que ela talvez tivesse um outro motivo para querer libertar esse tal Conrad — sobretudo quando lhe disse que queria esperar por ele no portão do convento. Orfeo se sentiu usado, achou que ela tinha zombado dele e lhe virado as costas ao conseguir seu intento. Agora, vendo o amigo eremita em pessoa, deu-se conta do equívoco. Fez um gesto com a mão dispensando o agradecimento.

— Fiquei feliz em ajudar um inocente.

E voltou sua atenção para a canga.

— Também vim lhe dizer que você é um tolo — acrescentou o frade.

Os ombros de Orfeo se retesaram. Sior Domenico e vários carreteiros desviaram os olhos de suas tarefas. Notou que todos concentravam sua curiosidade nele, porém, evitando fitar o rosto de frei Conrad.

— Acho que não tem o direito de me dizer o que sou ou deixo de ser — disse, erguendo o queixo e colocando-se na defensiva.

— Arrisco-me a exercer esse direito, se me disser que não consegue amar uma mulher pelo que ela é, mas apenas pelo que ela tem. Conheço alguém que o ama tanto quanto à própria vida.

Conrad acabara de arrancar a crosta de uma ferida ainda não cicatrizada. Magoado e desconcertado, Orfeo lançou um olhar de relance aos seus conterrâneos.

— Com a sua licença, Sior Domenico — disse —, preciso de alguns momentos para conversar a sós com este frade.

Conrad encarou o velho comerciante. Domenico baixou os olhos para suas partidas de linho e, com um aceno, deu licença para que se fossem.

Orfeo saiu com o frade pela arcada do portão do pátio, o que será que Amata lhe contara?

O frade foi o primeiro a falar.

— Pelo que vejo em seus olhos, posso dizer que minhas suspeitas se confirmaram. Você sente tanta falta dela quanto ela de você. E, vendo seu empregador, ocorreu-me uma idéia. Pode dar certo se você quiser, se for sua intenção casar-se com Amatina só por amor, como ela tanto anseia.

Com o olhar, Orfeo incentivou o frade a se explicar. Sabia que sua voz iria tremer caso tentasse falar. Escutaria o que Conrad tinha a dizer, aproveitando para recuperar a calma.

O frade contou-lhe seu plano, entremeando cada etapa com um condicional: se você realmente a ama. O conselho era sensato, na opinião de Orfeo, o quê era espantoso, considerando-se que o frade não entendia nada de comércio. Quando Conrad terminou, Orfeo disse:

— Sior Domenico deve dar sua permissão, parece evidente, e meu irmão Piccardo também.

— Sim, claro, ele queria de todo o coração que a idéia de Conrad funcionasse. Seu peito ardia só de pensar na possibilidade. Apertou a mão do frade e sacudiu-a com força.

— Agora talvez tenha sido você que veio me salvar, irmão.

— Então que Deus permita que tudo dê certo — respondeu Conrad. Orfeo finalmente soltou-lhe a mão, e o frade acrescentou: — Faça-me o favor de levar uma mensagem minha, signore, quando estiver com Amatina. Não me despedi dela quando saí de casa hoje por recear que ela tentasse adiar minha partida. Diga-lhe, por favor, que fui para o Ospedale di San Salvatore delle Pareti e voltarei quando puder.

— O leprosário?

Conrad assentiu.

— Também deixei na casa dela o frade que me acompanha, sem explicar minhas intenções. Mais uma vez, agi assim porque não queria alarmar ninguém. Ele será bem-vindo se desejar me seguir, ou não, conforme Deus o oriente. Não posso afirmar quando voltarei, e a moradia que escolhi pode não ser do agrado dele.

O frade conseguiu dar um sorriso amargo.

— Addio, signore. Que Deus abençoe os dois: você e sua senhora.

 

Zefferino passou quase a noite toda se revirando no colchão, até que final mente caiu num sono entrecortado. A ansiedade o atingia como uma doença que se espalha pelo sangue. Não passara dos muros do mosteiro desde o dia em que os irmãos o encontraram quase morto na capela abandonada e o carregaram para o Sacro Convento. Quase nunca deixava os subterrâneos, a não ser para ir buscar comida para seus prisioneiros. Cobriu a cabeça com o braço, isolando-se dos corpos escuros volumosos e dos roncos das pessoas desconhecidas que dormiam perto dele; dobrou as pernas formando com seu corpo uma bola tensa. Seu único consolo vinha da respiração regular de Conrad no colchão ao lado do seu.

Em algum momento antes do raiar do sol, Conrad se mexeu. Com o olho entreaberto, Zefferino viu seu confrade dirigir-se para a porta, como fizera depois de ouvir-lhe a confissão na capela. Por um instante, Zefferino receou que fosse abandonado de novo, mas os ruídos em torno dele eram humanos, não de animais. Caiu de novo no sono.

Quando acordou novamente, foi por causa da agitação dos criados guardando os colchões, bocejando, se alongando e pedindo a Deus para abençoar o novo dia de trabalho. O colchão de Conrad estava vazio e ainda não fora enrolado. Talvez tivesse ido primeiro à latrina.

Zefferino levantou-se, amarrou bem o capuz ao redor da cabeça e seguiu na mesma direção dos demais. Reparou como todos visivelmente evitavam fitá-lo. Conrad podia não se dar conta disso, mas para Zefferino a aversão ou medo que os outros sentiam era evidente demais.

Não demorou muito para descobrir que o companheiro não estava em parte alguma, nem mesmo à mesa do desjejum. Enquanto o frade beliscava a comida, Amata aproximou-se dele e indagou sobre seu amigo. Zefferino, porém, apenas deu de ombros e olhou em torno do aposento. A tagarelice que envolvia a sala batia em suas orelhas como as asas dos morcegos que esvoaçavam pelos túneis do calabouço.

— Vou procurar por ele na capela — disse ela. — E foi-se pelos corredores chamando o nome de Conrad.

Havia algo na voz dela... "Conrad! Frei Conrad! Como o noviço na floresta. Quase podia ouvir aquela voz gritando: "Esses não são homens tementes a Deus, frei Conrad." E então a trombeta do anjo de fogo soara, um pouco antes de Zefferino cair em agonia. Nunca perguntara a Conrad sobre o anjo. Depois da visão do prisioneiro na cela, Zefferino compreendeu que o outro vivia num plano mais elevado que o dele. O guarda receava bulir muito com os mistérios sagrados.

Todos terminaram depressa desjejum, deixando Zefferino sozinho à mesa na enorme sala. Ao redor dele, criados empilhavam tigelas e canecas. O mingau gorgolejava dentro do seu estômago. Logo, os dois copistas recomeçariam seu dia de trabalho. Talvez Conrad tivesse ido para a loggia a fim de ajudá-los, agora que já podia andar sozinho.

Zefferino subiu as escadas de cabeça baixa. Encontrou apenas o escrita Jacopone. Ficou observando o copista usar uma faca para cortar uma página do rolo grosso e estendê-la sobre seu atril. O frade apanhou o rolo e examinou o delicado material. Tinha ouvido falar desse "papel", mais barato e mais fácil de usar, se comparado ao pergaminho, muito embora talvez não conseguisse agüentar o mofo das úmidas bibliotecas monásticas. Alguém fizera um buraco naquele rolo com a maior facilidade. Enfiou o dedo mindinho no buraco.

— Há uma história neste rasgão que você está tocando, irmão — disse Jacopone. — O manuscrito salvou a vida da senhora desta casa numa noite muito escura. A aparição sombria de um frade assassino teria lhe aberto as entranhas com uma lança se este rolo grosso não estivesse amarrado à cintura dela. Até hoje recomendo-lhe que agradeça a Deus por frei Leo gostar tanto de palavras.

Zefferino apertou o rolo com ambas as mãos.

— Um frade? Por que um frade iria querer matar alguém tão generoso para a irmandade?

— Não a chamaria de generosa para com os irmãos se a tivesse visto naquela noite. Ela lutou como um diabrete e despachou um deles sozinha, embora eles tivessem matado um dos nossos. For algum motivo, os frades queriam seqüestrar Conrad. Eles nos pegaram de surpresa na floresta depois que escureceu.

O olho de Zefferino se fechou. Escutou de novo o pavoroso encadeamento daquela noite: a gritaria ao redor dele, seguida do som da trombeta e do estrépito do fogo direto em seu rosto.

— Você também estava lá? — perguntou.

— Estava, embora tenha chegado um pouco tarde para ajudar. Transformei o líder deles numa tocha ardente e o resto do bando se espalhou como doninhas fugindo para a toca.

O rolo caiu com um baque surdo e foi-se desenrolando pela loggia. Jacopone deu um salto de seu banco e pegou-o antes que caísse lá embaixo.

— Cuidado, irmão! Está se sentindo bem?

Zefferino enfiou as mãos nas mangas e abaixou a cabeça. Sua garganta se contorcia e afinal ele tossiu — uma tosse áspera, amarga.

— Angelus Domini — disse. — Anjo do Senhor. Você!

O chão de madeira do galeria foi sacudido por um leve tremor. Amata subia correndo as escadas, com Salimbene ofegante atrás dela.

— Frei Conrad foi embora, irmão — disse a Zefferino. — Pediu que lhe avisássemos que poderá encontrá-lo no hospital de leprosos, se quiser.

— Virou-se para Jacopone, com o rosto rosado de tanta excitação, e comentou: Foi um mensageiro da parte de Sior Orfeo. Ele virá aqui amanhã e disse que espera trazer boas notícias.

Jacopone e Salimbene deram vivas.

— Sabia que ele não poderia ficar longe por muito tempo, madonna — comentou o frade gordo.

Amata virou-se outra vez para Zefferino, incapaz de conter o largo sorriso. Minhas desculpas, irmão, pela nossa comemoração particular. Meus amigos sabem como esta mensagem é importante para mim.

Olhou o bilhete que tinha na mão:

Estou preocupada com frei Conrad morando com aqueles leprosos imundos. Sabe por que ele foi para lá?

— Para cumprir uma promessa, madonna.

— Pretende se unir a ele? Posso mandar que preparem comida para levar. Conrad deve ter saído sem se alimentar.

Unir-se a ele? Unir-se ao homem que o abandonara no meio de seus inimigos? Zefferino abanou a mão diante do único olho, afastando a visão das chamas.

— Se me permite, madonna, gostaria de ficar aqui mais uma noite. Voltarei para o Sacro Convento pela manhã.

 

Foi Conrad, e não Orfeo, quem ocupou os últimos pensamentos de Amata antes que ela caísse no sono naquela noite. Ainda pensava no frade como o único homem que a amara incondicionalmente, nada pedindo em troca. Embora tivesse feito o possível para esconder a repulsa no dia em que ele voltara, sofria por seu amigo. Nunca mais veria aqueles olhos acinzentados repletos de luz. E se ele contraísse lepra no hospital, a despeito da pureza de seu coração? Murmurou uma prece pela segurança e proteção dele; todavia, estranhamente, invocou Donna Giacoma em vez de Deus. Virou-se de lado e dormiu pesadamente até acordar com gritos no meio da noite.

A criada Gabriella puxava-a pelo braço, praticamente arrancando-a da cama e do sono profundo.

Vista se depressa, madonna. Há um incêndio no pátio.

Movendo se através de uma névoa de sono e fumaça, Amata saiu correndo do quarto envolta em seu manto. O que poderia ter iniciado o fogo em pleno verão, com todas as lareiras, a não ser a da cozinha, limpas e fechadas? Alguém provavelmente se esquecera de apagar uma vela. Ao se aproximar do claustro, recuou diante do brilho alaranjado das chamas, que dançavam como um nascer do sol endiabrado contra os pilares e as paredes de pedra. Criados e hóspedes tiravam água da fonte no centro do pátio, enquanto outros corriam de um lado para o outro entre o incêndio e o poço público mais próximo.

Esfregou o rosto e olhou para o pátio sob a proteção de um dos arcos do claustro. Seu estômago se contraiu e ela mordeu o polegar para sufocar um grito. Viu horrorizada que a parte da galeria de madeira onde se encontravam as escrivaninhas era o foco da conflagração. Uma imensa bola de fogo engolia os degraus que levavam para a ala sul e toda a parede sul da casa. Os homens que lutavam para apagar as chamas subiam a escada ao norte e ao longo dos balcões laterais carregando baldes, numa tentativa de evitar que as labaredas se propagassem, mas as escrivaninhas já haviam sido consumidas pelo fogo. Muda, Amata esquadrinhou as chamas com os olhos, tentando localizar o armário em que guardara o manuscrito de Leo e as cópias inacabadas. Nisso, o balcão sul ruiu, trazendo junto a parte leste da loggia e espalhando grandes pedaços de madeira em chamas por todo o pátio. Entre os escombros, Amata viu parte de um atril e seu coração se apertou.

Tudo perdido!

As paredes de pedra e a cobertura de telhas agüentariam as chamas, os carpinteiros reconstruiriam a loggia, mas a crônica de Leo estava perdida para sempre. Só podia esconder o rosto nas mãos. Havia fracassado em seu compromisso com Conrad!

A batalha para salvar o resto de sua casa durou até o raiar do dia. O vigia noturno acordara os vizinhos de Amata, e todos os poços e baldes do quarteirão foram destinados ao trabalho como brigada de incêndio, espalhando-se em todas as direções desde a entrada principal. Pares de homens musculosos carregavam tinas enormes cheias de água. Amata, enquanto isso, ajudava as mulheres que batiam as brasas e fagulhas voadoras para evitar que o logo se alastrasse. Ela circulou apressada de um lado para o outro pelos corredores do pátio e do claustro até sentir que seus pulmões estavam a ponto de explodir de tanta fumaça, calor e exaustão; enquanto isso, a multidão ia crescendo, dentro e fora da casa, e com ela o barulho.

Finalmente, um pouco depois de o sino da Igreja anunciar a hora prima, Maestro Roberto foi procurá-la para avisar que haviam conseguido dominar o fogo. Aturdida, ela o acompanhou até o centro do pátio e olhou ao redor para a cantaria chamuscada e rachada, para os arcos de pedra enegrecidos. Dentro do perímetro do claustro, nada restara que fosse feito de madeira, nem mesmo os batentes das portas. No meio das cinzas, Jacopone estava sentado no banco de pedra, o mesmo onde ela havia conversado com Conrad na noite em que ele voltara; escondia a cabeça nos braços e balbuciava algo em voz alta, embora não houvesse ninguém por perto. Pio, coberto de fuligem, aproximou-se dela.

— Pio salvou sua casa, Amatina — disse o mordomo. — Ele sentiu o cheiro de fumaça e veio nos acordar.

Amata pousou a mão no peito do jovem.

— Deus o abençoe — sussurrou. Correu os olhos pelos outros moradores da casa, ocupados em apagar algum tição remanescente e em remover os escombros, formando pilhas longe das paredes. Nem frei Salimbene nem o companheiro de Conrad estavam entre eles.

— Os frades estão bem? — ela perguntou. — Ainda não os vi — respondeu Roberto.

— Vi seu escriba logo no começo — disse Pio. — Ele foi o primeiro a chegar na loggia. Também deve ter sentido o cheiro de fumaça. Depois que acordei os outros, corri para cá e o avistei descendo na carreira as escadas do lado norte. Achei que estivesse procurando baldes de água e gritei que fosse para a cozinha. Depois disso, não o vi mais.

Jacopone gritou para eles o mais alto que pôde.

— Angelus Domini. O frade cego profetizou.

— Um anjo? — Amata arqueou as sobrancelhas e fitou Roberto.

Ele deu de ombros.

— Lido com coisas práticas, madonna. Deixo para Sior Jacopone desvendar as causas mais profundas de tais acontecimentos.

Exaustos, viraram-se para entrar em casa. Uma única nota triste de trombeta ressoou vinda do canto em que Jacopone estava sentado. Amata girou nos calcanhares a tempo de ver o homem passar correndo por ela. Ele atravessou o corredor com suas longas passadas elásticas e saiu pela porta principal.

— Primo! — Amata gritou para ele.

O penitente, porém, já desaparecera.

 

Um leproso que estava agachado do lado de fora, tomando sol, foi quem primeiro o avistou. A criatura chacoalhou o sino de advertência antes mesmo que Conrad chegasse ao final do caminho que descia da floresta e separava os dois prédios mais compridos do ospedale. Alertados pelo barulho, outros espectros vestidos de túnicas marrons saíram de suas celas — mulheres e crianças da construção à esquerda, homens à direita — e começaram a ganir uma sinistra algaravia. Conrad estacou no caminho. Não teria ficado mais horrorizado do que se estivesse vendo um cemitério expelir seus cadáveres. Uma vez mais, Leo o conduzia para o cerne de seus medos mais profundos. Fechou os olhos e implorou perseverança. Servite pauperes Christi, sussurrou para si mesmo.

Duas cabanas menores ladeavam os alojamentos dos leprosos. Conrad presumiu que seriam as moradias dos monges e freiras da Ordem dos Crucigeri, que cuidava dos internos. Um dos monges enfiou a cabeça por uma janela aberta. Um outro homem, alto e magro, de pele morena e corada, vestido com a comprida toga e o barrete vermelhos de um médico, saiu do prédio e subiu o caminho ao encontro dele. Só quando os leprosos viram o médico é que interromperam a gritaria.

— Salve, irmão. Com uma voz rouca, o homem apresentou-se como Mateus Anglicus.

Mateus, o inglês.

— Que a paz de Deus esteja convosco — respondeu Conrad. — Eu vim para trabalhar.

Mateus examinou-o dos pés à cabeça, mas não evitou os olhos, como os homens de Orfeo haviam feito. Sem dúvida, ele já vira mais do que o suficiente em termos de horrores naquele lugar, e olhou Conrad da mesma maneira como o faria com um novo paciente.

— E por que iria querer trabalhar aqui?

— Quero imitar meu mestre, São Francisco, e cumprir um juramento solene que fiz.

— Suspenda um pouco a sua túnica — ordenou Mateus.

Conrad obedeceu, enquanto o médico torcia o nariz:

— Era o que eu pensava. Vai ter de esperar aqui enquanto vou apanhar umas sandálias. Primeira regra: nenhum dos meus assistentes anda descalço pela área do hospital.

— Não calço sandálias desde que entrei para a Ordem — objetou Conrad. — Iria violar meu voto de pobreza. Então vai ter de decidir qual dos votos solenes pretende manter — declarou Mateus. — Se pretende servir aqui, pode começar por entender que minhas ordens são como ordens de Deus para este lugar. Deixo a orientação espiritual dos pacientes nas mãos dos monges; os monges entregam os cuidados dos corpos deles em minhas mãos. Se precisar de alívio para sua consciência, posso lhe garantir que vai viver em grande pobreza. E vou arranjar para você as sandálias mais toscas que puder.

Conrad aceitou com certa relutância, e o médico achou graça: — Seja bem-vindo, então, irmão — disse. — Como acabou de sair do calabouço do mosteiro, presumo que seja um homem bom.

Conrad gaguejou:

— Como sabe...

Mateus apontou para o olho de Conrad.

— Você foi torturado. Seu cabelo está branco, mas sua pele está clara e fresca como a de uma donzela desacostumada à luz do sol. Sua barba não vê uma navalha há alguns anos. Tornozelos sem pêlos e com marcas de esfoladura de grilhões. Além disso, usa o hábito esfarrapado dos Espirituais e anda descalço: duas boas razões para estar na prisão durante a direção de Bonaventura.

— Você conhece a divisão...

— Certa vez, pensei em entrar para a sua Ordem, mas preferi este hábito vermelho ao cinzento de vocês. O Papa Honório proibiu que os padres estudassem medicina sessenta anos atrás; por isso, desisti de ser padre.

Conrad seguiu Mateus até o final do complexo do leprosário. Esperou até o médico voltar com as sandálias. Uma corrente de ar esfriou-lhe a testa, porém lhe trouxe às narinas um cheiro doce e repugnante de carne putrefata. Resistiu ao impulso de cobrir o nariz com a manga ou de ver onde haveria uma carcaça ou pilha de ossos por perto. Havia entrado no mundo dos mortos vivos e sabia que o cheiro nauseabundo que sentira era o da carne que ainda estava grudada naquelas criaturas esqueléticas que continuavam a fita-lo das alcovas de suas celas. O rosto do homem mais próximo dele, o que tocara o alarme, exibia os lábios grossos e o inchaço azulado dos doentes recentes. O nariz achatado era indício de que a cartilagem que lhe dava forma ai começara a se decompor. Conrad forçou-se a olhar os outros; felizmente, muitos escondiam os rostos atrás de véus, apenas dando a impressão de que lhe devolviam o olhar com olhos que não desejavam ser vistos. Os casos mais graves... Conrad viu crateras de pus onde antes havia olhos, cavidades em de composição no lugar de narizes e bocas, peles moles que passavam por queixos, orelhas penduradas e muitas vezes de tamanho diferente do encontrado na natureza, mãos sem dedos, braços sem mãos, peitos intumescidos ou carcomidos, pele encaroçada e feridas supuradas. Os leprosos olhavam-no indiferentes; algumas mulheres, contudo, viravam os rostos destruídos, envergonhadas. As poucas crianças que se acocoravam ao lado delas como anões de idade avançada mostravam a mesma apatia, encarando Conrad com seriedade de adultos.

O espetáculo de horrores dominou-o com a força de uma fascinação macabra. O frade perguntou a si mesmo se estaria tendo uma visão do próprio e inevitável futuro: seu cadáver doente nos últimos estágios de decomposição. Ansiou para que Mateus voltasse logo e só conseguiu se descontrair quando o médico apareceu com as sandálias. A visão dos leprosos o havia deixado desorientado. As inusitadas sandálias contribuíam para a estranheza, tirando-lhe a sensibilidade dos pés. Não sentiria mais os pedregulhos na terra do chão, nem a própria terra, nem uma única das folhas de capim. Apenas o couro universal. Toda a superfície do complexo parecia estar atapetada de couro.

— A primeira visão de perto é a mais difícil — disse Mateus. E levou Conrad para um quarto na cabana atrás da latrina dos leprosos. — Pode ficar esperando na minha cela até arranjarmos um cômodo para você.

O quarto do médico estava em completa desordem, contrastando com a monte analítica do dono. Havia uma cama estreita no canto mais afastado da porta, uma mesa pequena com dois bancos debaixo da única janela e uma mesa de trabalho comprida e retangular que ocupava todo o centro do aposento. Sobre a mesinha repousavam um crânio e uma ampulheta, e da parede pendia um crucifixo pintado — lembretes aos pacientes sobre a natureza transitória da vida e sobre a salvação que viria. Tocos de vela, frascos de urina, piluleiro, aludel, alambique, um pilão e uma pilha de manuscritos encadernados cobriam quase toda a mesa grande. Um livro aberto em cima dela mostrava um círculo colorido, talvez um anel de urina. Conrad lembrou-se de ter lido algo parecido num texto sobre uroscopia em Paris: se o fluido de uma pessoa doente fosse vermelho e espesso, ela teria um temperamento genioso; se vermelho e fino, seria cronicamente zangada. Cada matiz — roxo, verde, azul, preto — correspondia a uma enfermidade.

Frascos de pó cujas etiquetas ostentavam símbolos de elementos metálicos, um jarro de vidro contendo a narcótica mandrágora e ervas medicinais como canela, cubeba e noz-moscada ocupavam um consolo de lareira que pendia de uma parede. Na estante de livros ao lado da cama do médico havia mais volumes do que em qualquer outro lugar que Conrad estivera, à exceção da biblioteca do mosteiro.

— Não fique aí parado de boca aberta, irmão — disse Mateus. E, com um gesto, acrescentou: — Agradeço a Constantino da África por esses livros. Depois de perambular pelo Oriente a maior parte da vida, ele afinal se tornou monge e se instalou em Monte Casino. Dedicou o restante de sua vida de clausura à tradução de textos médicos para nós, estudantes em Salerno: os antigos mestres gregos eternizados em árabe, bem como obras dos sarracenos. Foi assim que Galeno se tornou nossa bíblia (peço desculpas pela comparação) e, de tanto ler os dez livros, aprendemos todo o Pantechne de Ali Abbas.

Conrad examinou a estante com uma mistura de emoções: admiração pelo tamanho, porém constrangimento por sua curiosidade de estudioso. São Francisco não teria aprovado! A arrumação das prateleiras identificava melhor a mente lógica que Conrad já observara no médico do que o aposento como um todo: os lendários gregos Galeno e Aristóteles na prateleira superior, os filósofos e médicos sarracenos logo abaixo. Encontrou quatro das quarenta e duas composições de Hermes Trismegistus, o Theatrum sanitatis de Abul Asan, um tratado sobre hidrofobia canina, o cânone da medicina de Avicenna e, na prateleira abaixo, obras do rabino Maimonides e de seus colegas espanhóis Avenzoar e Averroes.

A última prateleira continha obras dos mestres de Mateus em Salerno: um Trotula da Salerno e uma farmacopéia, Antidotorium, escrito por um Maestro Praepositus da mesma escola. O último estava em pé, apertado por uma pilha de obras sobre uso medicinal de ervas, inclusive a De virtutibus herbarum, de Platearius. Por que, perguntou-se Conrad, as obras dos autores cristãos estariam relegadas à prateleira inferior?

Abriu o Methodus medendo de Galeano e franziu o cenho para o frontispício: a ilustração do pagão Esculápio segurado o caduceu e tendo ao lado suas filhas Higéia e Panacéia.

— Um bom cristão pode encontrar motivos para criticar sua coleção — disse. — Preferiria ver os santos gêmeos Cosme e Damião ou Santo Antônio Abbas nesta página. Eles também são símbolos da crença no poder de cura de Nosso Senhor.

Mateus deu de ombros.

— Acredite-me, irmão, teria o máximo prazer em reunir médicos do nosso credo, mas conheço poucos além dos professores que tive em Salerno. Infelizmente, nossa Santa Madre Igreja insiste em considerar o corpo como uma maldição e a doença como um castigo divino. Certa vez, ouvi um penitente em Assis implorar, de maneira poética, por uma doença: "O Signor, per cortesia, manname las malsania!" Ele ficaria satisfeito com qualquer coisa: febre quarta ou febre terça, hidropisia, dor de dente, dor de barriga, convulsão. E eu lhe pergunto: de que modo meus conhecimentos de cura podem neutralizar esse tipo de atitude?

Conrad recolocou a obra de Galeno na estante e disfarçou um sorriso:

— Acho que sei quem é esse penitente. Você ficará satisfeito de saber que hoje ele goza de uma saúde que há anos não conhecia.

— Boas-novas, realmente. Espero que isso não seja um peso muito grande para ele.

Conrad esfregou a palma da mão no queixo cabeludo.

— Diga-me, qual você acredita ser a origem das doenças, se não for castigo por causa da natureza ruim do ser humano ou um desejo divino de testar sua resistência?

— Você se refere ao caso de Jó.

— Como um exemplo, sim — disse Conrad. — Ou, já que nos encontramos neste ospedale, podemos mencionar Bartolo, o leproso de Sào Gimignano. Ele carregava seu fardo com tamanha alegria e resignação que as pessoas o chamavam de Jó da Toscana.

O médico refletiu um pouco antes de responder:

— Na verdade, nem eu nem meus colegas médicos podemos afirmar onde está a origem das doenças. Conforme gostamos de dizer, Galeno vota "não"; Hipócrates vota "sim" Os doutores não chegam a um acordo e ninguém consegue dizer quem está certo.

Mateus folheou rapidamente uns manuscritos que estavam sobre sua mesa de trabalho enquanto falava. Afinal, pegou um tratado encadernado, de poucas páginas.

— Descanse um pouco perto da janela, irmão, e aproveite para passar os olhos neste aqui sugeriu. — Bem curto e escrito por um compatriota meu, Bartolomeus Anglicus, que foi irmão secular da sua Ordem. Leia-o, por favor, até que sua cela esteja preparada. Vai-lhe dar alguns elementos para o trabalho que fará por aqui.

Depois que Mateus saiu, Conrad trouxe o livro para perto do rosto. Desde que perdera a vista, era a primeira vez que tentava ler. Levou o pergaminho para perto da luz que entrava pela janela e apertou o olho para apurar as letras e palavras embaçadas.

No início da obra, frei Bartolomeus tratava das causas da lepra, começando com os alimentos que aqueciam o sangue em demasia ou que podiam se deteriorar depressa: pimenta, alho, carne de cachorros doentes, peixe e porco defumados com descaso, pães de qualidade inferior feitos de cevada ou centeio contaminados. E prosseguia com detalhes demais para as suscetibilidades de Conrad ao descrever a natureza contagiosa da doença: como um incauto poderia contrair a doença por meio de relação sexual com uma mulher que se deitara com um leproso, como um bebê que se alimentasse no peito de uma ama leprosa sugaria a morte pelas tetas da mulher, ou como poderia até mesmo ser uma doença hereditária. O pergaminho tremeu na mão de Conrad quando leu a última causa da lepra: "Até mesmo respirar ou ver a lepra pode ser calamitoso." De acordo com Bartolomeus, Conrad já poderia estar carregando a doença dentro de si, ainda que a maioria dos olhos voltados para ele ao longo do caminho não o tivessem enxergado de fato.

Reprimiu a aversão que sentia à franqueza do catálogo de Bartolomeus. O frade ultrapassava os limites do recato. No entanto, aqueles que contraíam lepra por conta da sensualidade recebiam o devido castigo por seu pecado. Nem Bartolomeus nem Mateus iriam convencê-lo do contrário nesse ponto. Quanto à hereditariedade, todos conhecem o ditado popular: "Os pais comem uvas verdes e os dentes dos filhos é que ficam embotados." Assim, mesmo nesse caso, o leproso pagava o preço da iniqüidade de seu antepassado. Bartolomeus reconhecia isso em seguida ao discorrer sobre o tratamento dos leprosos: "É muito difícil curar a lepra, salvo com a ajuda de Deus" — obviamente, uma vez que fora Deus a infligir a doença.

Não obstante, Bartolomeus listara várias opções não-espirituais para os médicos: sangria (no caso de o leproso estar forte o bastante); purgação de vermes e ulcerações; remédios para uso interno, emplastros e pomadas para uso tópico. O frade inglês concluía: "para curar a lepra ou escondê-la, o melhor remédio e a víbora vermelha de barriga branca, desde que o veneno seja removido e a canela e a cabeça extirpadas, o corpo, fervido com alho-poró, deve ser comido com freqüência".

Conrad recolocou o tratado na estante no momento em que Mateus entrava no quarto. Sentiu sua velha tendência para a contenda aflorar com força. Três anos antes, iria discutir por causa dessa obra de Bartolomeus; naquele momento, porém, ele segurou a língua. Deus o havia enviado àquele lugar para aprender. Devia perguntar e ouvir, não discutir.

— A sua experiência confirma as hipóteses de seu compatriota?

Mateus pegou o tratado e folheou-o rapidamente, meneando a cabeça enquanto lia.

— Alimentação — disse afinal, dando pancadinhas no livro. — Apenas servimos carne fresca aqui. E, nesta época do ano, quando há legumes, hortaliças e frutas disponíveis, conseguimos efetuar curas completas.

A resposta surpreendeu Conrad.

— Pensei que só um milagre pudesse curar a lepra.

— No meu país, soube de milagres de cura, especialmente no santuário de Thomas de Canterbury. Um poço na cripta do santo contém água benta misturada com uma gota do sangue do santo, e muitos afirmam terem ficado curados ao beberem dessa água. Mas aqui só posso atribuir algum sucesso à alimentação.

— Nesse caso, por que todos os seus pacientes não estão curados?

Mateus sorriu.

— Você é bem inteligente e curioso, irmão. Talvez consigamos transformá-lo num médico também. E suas perguntas são pertinentes.

Correu os dedos pelo manuscrito de Bartolomeus ate encontrar uma referência à lepra.

— A palavra lepra, ou "escamação" como diziam os gregos, referia-se a numerosas doenças escamosas de pele. Aparecem muitos desses casos por aqui, de pessoas forçadas a saírem de suas casas e abandonarem o meio de sustento por causa das afirmações de alguns padres que não sabem nada de medicina. Dizem que o sangue dos leprosos produz um chiado quando esfregado nas palmas das mãos, ou que flutua na superfície de um recipiente com água limpa, ou que há perda de sensibilidade nos dedos das mãos e dos pés, e que a pele adquire um tom de cobre. Algumas dessas doenças de pele são curáveis, e já mandamos muitos desses doentes de volta para suas famílias. Mas para o que chamo de "lepra verdadeira", e que os gregos denominavam de elephantiasis devido ao espessamento e aspereza da pele, não há remédio, tanto quanto minha experiência me permite afirmar. Já tentei purgar e fazer sangrar e tomei dúzias de outras medidas sugeridas por diversos autores, até mesmo cura com animais.

— Pela ingestão de carne de víbora?

— A cobra vermelha e branca é uma criatura rara nesta parte do mundo. Mas já cobri feridas dos leprosos com bezoar feito de olhos de cervos, seguindo a receita de Avenzoar. O tratamento tradicional para as feridas, a aplicação do calor de cães e gatos moribundos, também não funcionou.

Mateus retirou o barrete da cabeça e atirou-o no banco diante de Conrad, de repente demonstrando imenso desânimo.

O frade estudou com mais cuidado o rosto moreno do companheiro, as sobrancelhas finas, um pequeno caroço descolorado na testa, um inchaço no lóbulo da orelha que não havia observado antes. O médico deu um sorriso triste.

— É isso mesmo. Logo vai chegar a minha vez. — O tom de voz deu a entender que ele já aceitara o inevitável.

— Então a doença é mesmo contagiosa, como diz Bartolomeus. Aparentemente, sim, embora eu tenha vivido aqui durante quinze anos sem que os sintomas aparecessem. Entre os Crucigeri que me ajudam, bastam poucos anos de trabalho aqui para alguns deles contraírem a lepra. Você só vai realmente precisar se preocupar depois de ficar conosco por um longo tempo. No entanto, há vinte e cinco anos que uma freira idosa está aqui e não apresenta qualquer sintoma.

— Mas como, então, a doença se espalha?

— Isso é o que eu gostaria de saber. Tentei seguir as pistas de Bartolomeus. Por exemplo, conversei de forma bem específica com os casados antes de checarem aqui. A maioria continuou tendo contatos íntimos com maridos ou esposas, mesmo depois de os primeiros sintomas se tornarem visíveis, e em geral sem nenhum dano ao parceiro. As exceções foram aqueles que continuaram a beijar os parceiros, mesmo depois de as pústulas surgirem ao redor dos lábios. Mateus encolheu os ombros.

— Vejo que minha franqueza o perturba, irmão; contudo, estou apenas tentando dar uma resposta ao menos parcial à sua pergunta. O comportamento físico entre as pessoas interessa ao médico; o corpo nada mais é que a lousa sobre a qual escrevemos. Como já disse, deixo os julgamentos morais para vocês, padres. Seja como for, passei a acreditar que a boca é a parte mais infectada do corpo dos leprosos. E é por isso que meus assistentes calçam sandálias: para proteger as solas dos pés do cuspe dos pacientes.

Conrad revolveu a barba com os dedos, Imaginou Francisco, Leo e outros dos primeiros frades entre os leprosos daquele mesmo ospedale cerca de uns sessenta anos antes: descalços, jejuando e se alimentando com o mínimo de comida, até beijando essas almas infelizes na boca para darem prova de sua humildade. Entretanto, nunca ouvira falar de um caso sequer de lepra causado pela falta de precauções deles — se bem que eles desfrutassem da proteção especial de Deus em seu santo serviço. Conrad concluiu que as teorias de Mateus praticamente não passavam de conjeturas. Ainda assim, esfregou os dedos dos pés, grato por estarem dentro de sandálias.

 

Orfeo examinou a galeria destruída e as pilhas de pranchas e vigas de madeira chamuscadas no pátio da casa de Amata.

— Não é o melhor cenário para as notícias que trago — disse com ar solidário. — Fico feliz por pelo menos todos estarem a salvo, Amatina.

A mulher o tomou pelo braço e apoiou o rosto no ombro dele.

— A loggia não é nada — disse. — Estará refeita até o inverno. É a perda do pergaminho de Leo que me entristece.

— Nada que você tivesse feito poderia alterar o curso dos acontecimentos. Frei Conrad vai entender. Vai ver nisso os desígnios de Deus, o que é a pura verdade.

Ela conseguiu dar um sorriso conformado.

— Estou muito feliz com sua volta, Orfeo. Quase perdi as esperanças de revê-lo.

— Pensei que você não quisesse me ver. Da próxima vez que conversar com seu amigo frade, agradeça-lhe por me esclarecer. Acho que frei Conrad não lhe contou, mas eu tinha acabado de carregar as carroças de Sior Domenico e estava prestes a começar a viagem para Flandres quando ele me impediu de continuar.

— Não sabia disso. Conrad não voltou aqui desde que conversou com você. E Domenico não está zangado com você pelo atraso? Mal conseguirá chegar a Flandres antes da neve, se sair agora.

— Ele não é mais meu patrão — explicou Orfeo. Chutou um pedaço de madeira queimada, que voou e foi parar numa pilha perto da fonte.

— Não me diga, Orfeo! E agora, como vai viver?

Um sorriso iluminou lhe o rosto.

— É sobre isso que vim lhe falar. Sior Domenico está velho, cansado apôs anos de comércio. Ofereci me para comprar as mercadorias e as carroças, com os bois e tudo o mais. Até mesmo o armazém e a tenda no mercado. E ele aceitou. Não tenho dinheiro para cobrir o custo, é claro, mas meu irmão Piccardo concordou em entrar com metade, como meu sócio.

— Piccardo iria ser concorrente dos irmãos?

— Para ter a oportunidade de ser seu próprio patrão, sim. Quando nosso pai morreu, Piccardo recebeu algum dinheiro, mas o negócio da família foi para Dante, o primogênito. Piccardo tem sofrido sob o jugo de Dante desde então. De qualquer forma, nós dois vamos tomar emprestado de um agiota o restante da quantia. Com sorte e bons negócios, vamos conseguir pagar o total da divida em poucos anos. E agora vem a melhor parte: Piccardo está disposto a fazer a maioria das viagens. Eu fico aqui em Assis cuidando do armazém, do mercado e da escrita nos livros.

Virou-se para olhá-la de frente, afrouxando carinhosamente o aperto da mão dela em seu braço. Segurou as duas mãos de Amata nas suas e olhou dentro dos olhos dela. Por um momento, o pátio, as paredes de pedra enegrecidas, até o contorno do corpo e do rosto dele perderam o foco quando ela retribuiu seu olhar. Viu apenas o fogo ardente no fundo das pupilas dele, negras como carvão.

— Agora podemos nos casar, Amatina, e começar nossa família, se você me aceitar. E você que eu quero, é você que eu amo. O dinheiro não é tão importante para mim. Teremos o suficiente se estivermos juntos; o resto virá com o tempo e com muito trabalho.

Amata soltou as mãos.

— E você vai se satisfazer com os prazeres domésticos?

— Só posso prometer que farei todo o possível.

— E não posso pedir mais do que isso.

Hesitou somente um instante antes de saltar e lançar os braços em torno do pescoço dele.

— Orfeo, precisa saber que quero você mais do que qualquer outra coisa. Era o que eu desejava que você me dissesse na noite em que nos separamos.

Orfeo abraçou-a com força contra o peito.

— Você tem de compreender que, às vezes, eu sou muito cabeça-dura. Preciso de tudo bem explicado. Prometa me agüentar no futuro.

Amata aconchegou o rosto no calor da túnica dele até sentir os braços do rapaz se afrouxar. Reparou que ele olhava para alguma coisa ou para alguém por cima do ombro dela. Ao virar-se, deu com Pio parado, constrangido, no canto do palio. Atrás dele, nas sombras do claustro, um bando de criadas de repente começou depressa a tagarelar, varrer e limpar a poeira.

— O jantar está quase pronto, madonna — disse Pio.

Orfeo exclamou:

— Pio! Vamos nos casar!

O jovem riu de orelha a orelha, olhando ora para Orfeo ora para Amata. Por alguma razão inexplicável, a reação dele decepcionou Amata. Talvez esperasse menos satisfação de alguém que por tanto tempo fora apaixonado por ela.

— Con permesso, madonna. — Pio dirigiu-se à sua senhora com uma mesura quase até o chão: — Também desejo me casar.

— Você, Pio? Com quem? — Amata relanceou os olhos para o grupo de criadas e viu que todos os olhares se voltavam para Gabriella. A menina corou intensamente, e todos os criados saíram rindo para dentro do salão, seguidos de perto por um ruborizado Pio. Então, Amata se recordou de que na noite do incêndio fora acordada por Gabriella, e que o primeiro a acordar os homens linha sido Pio. Como não percebera nada antes? Donna Giacoma, com toda certeza, teria intuído o romance, por meio de um talento secreto qualquer.

Murmurou para Orfeo:

— Ainda bem que não sei de tudo o que acontece na minha casa durante a noite. Acho que minha indulgência ou minha ignorância foi o que salvou esse lugar.

Segurou a mão que ele estendia em sua direção e retomou seu modo habitual de caminhar, ao se dirigirem para o salão.

— Quanto ao dinheiro... eu apenas precisava ter certeza, Orfeo. Não precisamos de fato recorrer a um agiota. E vou trabalhar o seu lado tanto quanto qualquer homem, se for preciso. E também espero que você, que nós viajemos algumas vezes. Ambos sabemos que ainda corre água do mar em suas veias. Além disso, ainda não pude ver os vitrais coloridos da catedral de Lyons...

 

Após o desjejum da manhã seguinte, Mateus veio buscar Conrad.

— Venha fazer a ronda comigo, irmão. Vou apresentá-lo aos pacientes e também às suas tarefas.

Sob a orientação do médico, Conrad encheu um balde de água na cisterna e o seguiu pela clareira de terra batida que separava o refeitório do dormitório masculino. Mateus bateu de leve na porta do primeiro leproso, um dos muitos que estavam doentes demais para participar da refeição em comum.

— Esta é a cela do velho Silvano. Primeiro vamos limpá-lo e também limpar o q uai to, depois vamos alimentá-lo — o médico explicou.

Conrad concentrou-se no crucifixo preso do lado de fora da porta da cela, buscando forças para a desgraça que estava prestes a encontrar lá dentro. Um fedor nauseante escapou do aposento do leproso quando Mateus empurrou a porta. O gosto do mingau de aveia ainda por digerir amargou na garganta de Conrad.

Uma figura enrugada e curvada estava numa cadeira de madeira colocada num canto — cego, idoso, quase completamente escondido por baixo de uma túnica imensa feita de aniagem. Mateus fez sinal para que Conrad se postasse num dos lados da cadeira, enquanto ele gritava para o doente:

— O sol está brilhando hoje outra vez, Silvano. Vamos tomar ar fresco: você e esse quarto.

Os dois levaram o homem na cadeira para fora, posicionando-o de forma que o sol aquecesse suas costas.

— Este aqui é frei Conrad — o médico continuou em voz alta. — Daqui para a frente, ele vai cuidar de você.

Mateus cobriu o velho com um cobertor enquanto Conrad trocava a roupa da cama, cheia de sangue seco e pus endurecido, que forrava o colchão de Silvano. Jogou água no chão e pôs a esfregá-lo, quando terminou, Mateus sacudiu o leproso de leve:

— Você já vai tomar banho — disse.

Silvano, começando a reviver ã luz do sol, assentiu pela primeira vez.

O médico mandou Conrad à copa para apanhar água quente enquanto ele continuava atendendo à fila de pacientes, incentivando os menos doentes a saírem do quarto para tomar ar fresco.

Conrad tornou a encher o balde com a água quente de um caldeirão que estava sendo aquecida. Levou a água limpa de volta para a cela de Silvano, onde Mateus o fez retirar o véu do leproso e desatar-lhe a túnica. Para alívio de Conrad, ele conseguiu segurar no estômago a refeição que acabara de fazer, enquanto limpava o corpo e o rosto em decomposição de Silvano. Em vez de fazê-lo vomitar, que era o que temia, as feridas despertaram nele pena e compaixão. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto torcia o pano de lavar sobre o balde fumegante.

Mateus observava atentamente enquanto o frade colocava e recolocava o pano sobre as feridas de Silvano, retirando o máximo possível do fluido amarelado. Por fim, Conrad secou o corpo do ancião com uma toalha e embrulhou suas mãos e pés com ataduras de pano. Resistiu ao desejo de beijar o homem como São Francisco teria feito anos atrás. O aviso que Mateus lhe dera na véspera produziu o efeito desejado.

— Que a paz e a bondade do Senhor estejam com você, Sior Silvano — disse. O leproso fez um gesto com a mão em resposta.

— Ele está lhe agradecendo — disse Mateus.

— Ele não pode falar?

O homem sinalizou para a boca aberta, e só então Conrad notou o toco murcho que um dia tinha sido uma língua.

Ao passarem para cela seguinte, Mateus apoiou a mão no ombro do frade.

— Como está se sentindo?

— Envergonhado. Ontem mesmo julguei-os pecadores e, portanto, merecedores desse castigo. Mas são os verdadeiros pobrezinhos de Cristo, como disse São Francisco.

— Já começa a compreender, e é tudo o que importa por enquanto. Vai se sair bem aqui.

O paciente seguinte, um homem bem mais novo que Silvano, surpreendeu Conrad. Quase não havia feridas em seu corpo — apenas uma placa mole nas costas, franzida e enrugada como as pétalas de um cravo. Os dedos das mãos, porém estavam contraídos como garras, o polegar inútil dentro da palma, e uma névoa leitosa sarapintada de grãos parecidos com giz cobria as córneas de seus     olhos. Enquanto Conrad banhava a placa ressecada, olhava para Mateus com ar interrogativo.

Mesmo entre os verdadeiros leprosos, irmão, encontram-se muitas variedades da doença. Algumas não exibem nenhum tubérculo, ou apenas um, ou uns poucos. Variam também de cor, desde o rosado-claro, como este, ao rosado-escuro quase vermelho. E aparecem em qualquer parte do corpo. Mas mesmo que essa placa no momento esteja seca, não tem qualquer sensibilidade. Ele não sentiria a água mesmo que estivesse fervendo. Esse pedaço da carne dele está morto para sempre.

Mateus conversava sobre a lepra despreocupadamente, como se estivesse sentado em outro aposento. O homem, porém, olhava direto para a frente, não demonstrando nenhum interesse na conversa deles — era a mesma lassidão que na véspera fizera a pele de Conrad arrepiar-se quando imaginou estar entrando no mundo dos mortos-vivos. Abençoou o leproso ao terminar, como fizera com Silvano, mas esse paciente mostrou-se mais apático do que o ancião. Mateus esfregou o topo do crânio calvo do doente quando saíram, com os lábios apertados num sorriso amargo.

— Já vi muitos casos como o dele — acrescentou, quando estavam do lado de tora. — Chamo esses leprosos de "limítrofes". Como esse homem, exibem apenas uma única lesão, apesar de ainda não tão seca quanto a dele. Embora a sensibilidade no local tenha diminuído, continuam a sentir um pouco de dor. As lesões têm forma oval, muitas vezes com o centro afundado e o contorno nitidamente palpável — Mateus sacudiu a cabeça. — Essa doença é tão complexa... Duvido que algum dia eu vá compreendê-la totalmente.

Conrad voltou para a copa a fim de buscar água limpa, procurando absorver ao máximo em sua cabeça as explicações de Mateus. Tinha muito sobre o que refletir. No caminho, passou por inúmeros Crucigeri, também carregando água. Havia conhecido os cinco monges e as quatro freiras naquela manhã. Agora se cumprimentavam com um breve aceno, ocupados em suas tarefas.

Esses religiosos formavam um grupo melancólico se comparado com os monges negros de Dom Vittorio — talvez por viverem num mundo menos afastado do juízo final, talvez porque seu trabalho lhes desse poucos motivos para sorrir. Conrad admirou o silêncio deles e o fato de terem dedicado suas vidas a servir a esses proscritos. Ele se sentiria bem trabalhando para sempre com esses irmãos — até com as mulheres, criaturas igualmente modesta e dedicadas.

Talvez, embora não fosse médico, Deus o tivesse colocado ali precisamente naquele momento porque Mateus podia agora antever o final de seu próprio caminho. Entretanto, logo rejeitou essa idéia por ser arrogante, uma reação exagerada aos elogios que Mateus lhe fizera. A vaidade chega a cavalo e retira-se a pé — lembrou a si mesmo. Ele não possuía os conhecimentos especializa dos do bom médico, nem aquele vínculo especial que unia Mateus aos seu:. pacientes. Além do mais, no fundo do coração, continuava a acreditar que os desígnios de Deus, e não os esforços do homem, determinavam quem seria acometido da doença e quem seria curado — crença com a qual o doutor de Salerno evidentemente não compartilhava.

 

Passado um mês, Conrad entrosara-se inteiramente com os Crucigeri, executando suas tarefas rotineiras em pacífica monotonia. Conversava quase todos os dias com Mateus e muitas vezes trabalhava ao lado do médico depois que terminava de cuidar dos doentes sob sua responsabilidade. O frade aprendera muito sobre seus pacientes e sobre o espectro multifacetado da doença, mas nada que o ajudasse a entender as intenções de Leo ao direcioná-lo para o ospedale.

Embora as noites estivessem mais frias, as tardes continuavam quentes e ensolaradas o bastante para que os doentes permanecessem fora de suas celas. Num desses dias espetaculares, Conrad avistou a roupa vermelha do médico junto à fileira de celas e foi para lá com o balde de água quente. Mateus tinha acabado de levar um leproso para fora do quarto.

— Como vai indo, Mentore? — perguntou.

Com ar inexpressivo, o homem ergueu os braços, e as mangas escorregaram. Havia inúmeras feridas na pele, mas Conrad notou que eram, na maioria, cobertas por uma crosta cinzento-arroxeada. Os módulos do rosto também pareciam estar em processo de cura, e era a primeira vez que Conrad via qualquer sinal de melhora num paciente. Talvez Mentore tivesse uma dessas afecções de pele curáveis que o médico mencionara. O frade olhou esperançoso para Mateus, mas só lhe viu no rosto uma profunda tristeza.

— Está pronto? — perguntou o médico.

O leproso assentiu.

— Vou mandar um padre vir confessá-lo e administrar-lhe os sacramentos — disse Mateus. — Fez sinal para que Conrad se aproximasse.   Dê-lhe um banho especial hoje — disse. — Deve prepará-lo para o encontro com o Salvador.

— Mas as feridas dele parecem estar em melhores condições que as dos outros — disse Conrad.   A pele dele nunca teve tão boa aparência.

— Algumas das feridas terão desaparecido por completo amanhã — disse Mateus. — É o sinal de morte iminente, que todos por aqui aprenderam a reconhecer. E ficam ansiosos para que ela chegue; se não alegres, no mínimo aliviados.

De olhos cerrados, a fisionomia de Mentore mantinha-se absolutamente imperturbável. Se o leproso sentia qualquer emoção, não deixava transparecer. Conrad lembrou-se da conversa que tivera com Jacopone na estrada para Assis; os assuntos tinham sido poesia, experiência e a respiração espasmódica dos moribundos. No entanto, esse condenado esperava sentado em seu banco, respirando tão regularmente quanto o catarro lhe permitia, impassível como um cambista cuidando das balanças.

Conrad mergulhou a toalha na água quente e limpou uma das mãos do homem. Uma frase da carta de Leo veio-lhe à mente: As unhas de um leproso morto estão incrustadas de verdade. Com uma curiosidade que lhe pareceu quase mórbida, levantou o outro braço do leproso pelo punho, mas as duas mãos terminavam em cotos nas articulações dos dedos. O significado do que Leo queria lhe transmitir teria de esperar outra oportunidade. Mentore não linha dedos, muito menos unhas. O mesmo se aplicava aos pés. Deles não sobrara nada além de calombos retorcidos.

 

Naquela noite Conrad teve um sono agitado, interrompido por um ruído semelhante a uivos de lobos. Despertou aos poucos na escuridão e percebeu que o lamento indistinto vinha dos alojamentos dos leprosos. Deve ter acabado para Mentore, pensou. Uma batida na porta e a voz de Mateus chamando-o para ir à capela confirmaram suas suspeitas.

O médico levava um archote, já que o céu ficara nublado durante a noite e agora a lua estava escondida. Cruzaram o pátio debaixo de uma garoa fina.

Os monges já tinham carregado o corpo para a capela e ele estava estendido sobre uma mesa na nave, rodeado de velas. Homens e mulheres de Crucigeri recitavam os salmos penitenciais em uníssono nos dois lados do coro. Os leprosos que podiam caminhar se comprimiam nos fundos do prédio.

Conrad entrelaçou as mãos e seguiu Mateus até junto do corpo do leproso.

Queria acrescentar sua benção pessoal às orações da comunidade. Os tubérculos no rosto de Mentore tinham sumido por completo, conforme Mateus havia previsto. A pele, antes sarapintada, cintilava branca como o marfim sob o tremeluzir da vela próxima à cabeça do morto.

Os braços do leproso, dispostos em cruz sobre o peito, chamaram a atenção de Conrad. As feridas nas costas das mãos de Mentore estavam totalmente secas e coaguladas e brilhavam sólidas e escuras, lembrando cravos sob a chama das velas. Com os dedos trêmulos, Conrad ergueu a mão que estava por cima e virou-a. A lesão na palma tinha uma crosta igualmente dura e preta. Conrad passou nela a ponta do dedo, e o cravo inteiro, da palma às costas da mão, se moveu como uma peça única. Com todo o cuidado, ele recolocou o braço do leproso na posição em que estava antes.

Apoiando uma das mãos na beirada da mesa, ajoelhou-se e contemplou a imagem do Cristo crucificado acima do altar. Seu coração se encheu de uma paz que não experimentava desde o dia em que Amata aparecera em sua cabana. Toda a tensão e a angústia dos últimos trinta e quatro meses se esvaíram de seu corpo, flutuando nas ondas de sua respiração subitamente calma.

Afinal, compreendia! Assim como Giancarlo di Margherita, ele havia tocado a unha com as próprias mãos — a unha do leproso morto!

 

— Preciso saber de mais duas coisas.

Conrad foi para o quarto de Mateus depois do enterro.

— Os sintomas da lepra podem se manifestar de repente, vamos dizer, num período de quarenta dias?

Inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos na mesa do médico. Tinha todos os fios da história na mão, faltando apenas uns poucos nós de confirmação para juntá-los. A trama que Leo havia tecido para ele poderia dissipar para sempre a veneração universal a São Francisco. Entretanto, para Conrad, a verdadeira explicação dos estigmas era mais maravilhosa e sublime que o mito, da mesma forma que a verdade sobre a juventude perdulária de Francisco ultrapassava a versão censurada de Bonaventura.

— Em geral, os sintomas aparecem só aos poucos e durante um longo período — explicou Mateus. — Mas já vi casos em que as lesões irromperam da noite para o dia, numa explosão de espasmos dolorosos. Nessas situações, a inflamação cobre as costas das mãos e a parte de cima dos pés. As mãos, sobretudo, ficam quentes e inchadas e muitíssimo doloridas. — O médico passou o dedo ao longo das veias salientes das costas de sua própria mão para mostrar a área afetada. — Esse estado agudo pode durar alguns dias ou semanas até que desapareça. À medida que a inflamação vai cedendo, as juntas e tendões se contraem; congelam na posição em que repousavam durante o estágio agudo, como os dedos em garra que viu em alguns dos pacientes.

— E os olhos?

Mateus sinalizou sua aprovação à pergunta de Conrad.

— Você é um observador perspicaz, irmão. É verdade, essa lepra aguda ataca primeiro as mãos e os pés, mas também os olhos. Normalmente, termina em cegueira: primeiro, porque afina a íris; segundo, porque estimula a paralisia por todo rosto e o paciente não consegue fechar as pálpebras para proteger os olhos da violência dos raios solares. É por isso que fazemos nossos pacientes sentarem-se de costas para o sol.

Conrad abaixou a cabeça. Bateu de leve com a mão na barba branca contra o peito e balançou a cabeça.

— É tudo verdade, tudo o que Leo escreveu.

Uma sensação de vazio infiltrou-se em sua calma interior, uma sensação parecida com a depressão, como a sensação de perda que Rosanna contou-lhe ter experimentado depois do parto, ou igual ao que um artista provavelmente sente ao término de um longo trabalho.

— Irmão?

A preocupação na voz de Mateus trouxe o frade de volta à realidade. Sentiu um desejo momentâneo de compartilhar todas suas conclusões com o médico, todos os acontecimentos e descobertas de seus quase três anos de buscas. Um leigo inteligente, menos ameaçado por suas descobertas do que um seguidor de São Francisco, provavelmente teria mais paciência e compreensão para ouvi-lo do que seus irmãos frades.

As palavras que poderiam alterar para sempre a história da sua Ordem começaram a fluir dele naquele cômodo sombrio, no vale isolado que abrigava o leprosário. Conrad falou do amor de Francisco pelos leprosos, do monte LaVerna e dos louvores que o santo ditou quando lá estivera, da cegueira que começou quando ele se encontrava na montanha, da descrição que Donna Giacoma fizera da aparência do santo ao morrer, a pele branca como a neve e a ferida de lança igual a uma rosa. De como Elias seqüestrara e escondera o corpo de Francisco e de como os ministros tinham alterado os relatos da vida do santo. Por fim, contou ao médico sobre a carta de Leo e sobre suas buscas para desvendar-lhe o significado. Significado que agora parecia evidente: o pauper Christi, o leproso a quem Leo servira, fora ninguém mais que o pobrezinho de Assis, Il Poverello di Cristo.

Mateus ouvia em silêncio, fascinado, enquanto o frade desfiava toda a meada.

— E o seu São Francisco — perguntou ele afinal — nunca declarou os estigmas como fato verdadeiro, nunca proclamou, nas palavras de São Paulo: ego stigmata Domini Jesu Christi in corpore meo porto, "Carrego as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo no meu corpo"?

— Ele disse apenas: "Meu segredo é só meu" Contudo, a alegria dele no monte LaVerna é absolutamente plausível. Em sua profunda humildade, ele sempre procurou diminuir-se. Mais teria ele agradecido ao serafim pelo presente da lepra do que pelos estigmas, acreditando ser merecedor da doença e indigno dos estigmas. Depois de LaVerna, ele podia verdadeiramente dizer como o Senhor crucificado: "Sou um verme, não um homem." Podia compartilhar a humilhação de Cristo sem compartilhar a glória de Suas chagas.

— Mas você aceita que ele tenha visto um anjo — indagou Mateus —, a despeito de talvez já estar cego àquela altura?

O ceticismo na voz do médico ofendeu Conrad, apesar da própria interpretação que dera ao martírio no monte LaVerna.

— Até um homem cego consegue enxergar com sua visão interior — respondeu. — Depois de alguns momentos de hesitação, acrescentou brandamente: — Passei por algo semelhante na total escuridão da cela em que estava preso.

Mateus observou o frade em silêncio por um instante. Finalmente disse:

— É claro. Perdoe-me, irmão. Julgo esses fenômenos do ponto de vista de um médico. Não me surpreenderia, sob a perspectiva puramente médica, por exemplo, que um homem que jejuasse, vamos dizer, por quarenta dias enquanto meditava sobre o arcanjo Miguel e sobre a Santa Cruz, de repente avistasse, flutuando diante dele, um serafim ostentando as chagas de Cristo. Para mim, pessoalmente, o momento espiritual de São Francisco na montanha é mais significativo que suas manifestações físicas.

— Como assim? — perguntou Conrad.

— Quando um imperador premia a bravura de um soldado com um objeto bastante notável, as pessoas o reverenciam. Entretanto, o prêmio é apenas um sinal da bravura digna de recompensa.

Puxou a túnica na altura do peito.

— Meus pacientes olham com respeito minha roupa escarlate; no entanto, este traje não representaria nada sem os anos de estudo que ele simboliza. Compreende aonde quero chegar?

— Está dizendo que não importa o que tenha acontecido a Francisco fisicamente no monte LaVerna? Que a espiritualidade merecedora dos prêmios físicos é mais importante?

— No meu entender, sim; como um sincero cristão, assim espero. Fico muito mais impressionado com a vida dele de conquistas espirituais, que até eu posso tentar imitar, do que pelos estigmas, que estão muito além da minha compreensão e mesmo da minha imaginação.

Conrad fitou mais uma vez o pequeno nódulo da testa de Mateus.

— No entanto, um dia você pode vir a ter também as humildes feridas de Francisco.

— É bem possível, e vou usar esse pensamento daqui em diante para amenizar quaisquer sintomas de pesar.

Mateus tamborilou na mesa, ponderando se deveria falar mais. Por fim, lançou um rápido olhar para Conrad e acrescentou:

— Por motivos meramente físicos, jamais acreditei de fato na história dos estigmas de São Francisco.

Em resposta à expressão de surpresa estampada no rosto de Conrad, estendeu as mãos viradas para cima.

— Ao estudar anatomia, compreendi que Nosso Senhor não poderia ter sido trespassado pelas palmas quando os romanos o pregaram na cruz. A carne não teria agüentado o peso do corpo por três horas sem se rasgar.

Com o polegar esquerdo, Mateus pressionou os tendões do punho direito.

— Aqui é onde os cravos devem ter sido enfiados para segurá-Lo. Todavia, as feridas de São Francisco, pelo que ouvi, apareceram nas palmas. Sempre fiquei me perguntando o seguinte: se ele realmente recebera as chagas da crucificação, por que não apresentava também as lacerações no couro cabeludo provocadas pela coroa de espinhos? E o que dizer das quarenta chibatadas que Jesus recebeu nas costas? Nunca soube nada a respeito dessas marcas no santo.

— E nunca verbalizou essas dúvidas? — indagou Conrad. Mateus riu alto.

— Você é um puro de espírito para perguntar uma coisa dessas, considerando-se que acabou de sair das profundezas do inferno. Já ouviu falar no frade pregador Tomas d'Aversa?

Conrad fez que não com a cabeça.

— Numa época em que ele pregava em Nápoles, eu estudava em Salerno. Dizem que certa vez ele questionou a veracidade dos estigmas. Como resultado, o papa proibiu-o de pregar durante sete anos, o que, para um filho de São Domenico, equivale a proibir você de viver na pobreza. Atualmente, esse frei Tomas é o inquisidor de Nápoles. Ele alivia sua frustração, que atribui a São Francisco, nos seus irmãos Espirituais, matando-os devagar e com prazer por meio de diferentes e requintadas torturas. O que me leva de volta à sua pergunta: não, irmão, jamais dei voz às minhas dúvidas e jamais pretendo fazê-lo. Não sou homem de mijar contra o vento.

Mateus esticou os lábios naquele seu sorriso tenso característico e perguntou: O que você pretende fazer com essas novas informações?

Conrad resmungou e arqueou as costas. Vou explicar tudo a frei Girolamo d'Ascoli, nosso novo ministro geral. Acho que Deus deliberadamente escondeu a verdade de mim até agora, até depois da morte de Bonaventura. Girolamo é justo e honesto. Vai fazer o que e certo.

Mateus assobiou baixinho ao se levantar.

— Você tem sede de martírio, não é?

Parou sob o umbral da porta e olhou na direção do sol que nascia.

— Lastimo perdê-lo assim tão depressa — falou por cima do ombro.

— Estou feliz aqui — respondeu. — Se o ministro geral me autorizar, voltarei de bom grado.

Mateus virou-se e apontou para o céu, através da névoa:

— Olhe... a Arca da Aliança.

Conrad seguiu-lhe o gesto e viu um duplo arco-íris curvando-se acima das árvores.

— Do que mesmo você os chamou?

— Foi um trocadilho com "arco" irmão. O sinal do compromisso de Deus, de Sua aliança com Noé.

— Mas você o comparou à Arca da Aliança, o Santo dos Santos onde os hebreus guardavam as tábuas dos dez mandamentos.

Mateus deu uma risadinha de troça.

— Não procure interpretações tão profundas no que falei, irmão. Conrad desconsiderou o comentário com um gesto da mão.

— Compreendi o que disse. Mas minha mente já enveredou por outro caminho, meu amigo. Deus o abençoe, Mateus. Você acabou de me dizer onde foi que enterraram São Francisco.

 

Conrad esperava por Girolamo D'ascoli sob a luz mortiça do interior da igreja de baixo da basílica. Por precaução, havia pedido ao ministro geral que o encontrasse fora do mosteiro. Era uma alegria sentir a friagem dos ladrilhos sob os pés descalços e empoeirados, novamente livres. Que nunca mais, implorou, eles tivessem de agüentar o frio congelante de uma prisão subterrânea.

Por ser Dia do Senhor, o pintor dos murais e seu aprendiz não estavam trabalhando. O andaime erguia-se, esquelético e vazio, no canto nordeste da abside. Enquanto aguardava o ministro geral, Conrad apreciava o afresco, agora pronto, que o artista havia pintado representando a Madonna e São Francisco. Sem o pintor por peito para reclamar que estava sendo interrompido em seu trabalho, podia examinar a imagem do santo com mais atenção. Os lábios e as orelhas de Francisco davam a impressão de estar mais grossos do que quando Conrad vira o afresco pela primeira vez, e as pupilas fixas em um ponto distante, na eternidade, agora lembravam os pacientes cegos de Mateus. A expressão do santo quase imitava a impassibilidade que presenciara no lazareto.

Conrad ponderou que certamente a semelhança com os leprosos seria conseqüência de sua visão reduzida ou da escassa claridade proporcionada pela chama de uma única lamparina no altar-mor. O artista Cimabue não conhecera Francisco em vida e desenhara a imagem usando sua imaginação. Por outro lado, não teria o Espírito Santo guiado seu pincel ao produzir essa obra sagrada?

A porta nos fundos da nave fechou-se com um estrondo. Passos curtos e joviais ressoaram pelas sombras e detiveram-se perto do altar-mor.

— Frei Conrad! — Girolamo saudou-o com alegria. — Não esperava que estivesse de volta tão cedo.

Os olhos claros cintilavam à luz da lamparina.

— Nem eu esperava estar aqui. Mas aprendi algo de grande importância em minha temporada em San Salvatore, de tanta importância que me senti na obrigação de vir logo lhe contar.

— Aqui na igreja? Por que não no meu escritório?

Conrad contemporizou, não querendo admitir sua falta de confiança nem mesmo naquele bom ministro geral, mas afinal balbuciou:

— Não queria me submeter ao destino do mensageiro que traz más notícias.

Girolamo franziu o cenho.

— E que notícias são essas, irmão?

Conrad apontou para a imagem do fundador no afresco. Talvez pudesse obter, com a surpresa, uma concordância do ministro geral, indo direto ao ponto:

— Francesco Lebbroso. Francisco, o Leproso. Há uma associação, não acha?

Enquanto falava, Conrad observava o rosto de Girolamo, tentando detectar a mais leve reação. Os olhos azuis viraram-se ligeiros para a direção que ele indicava, mas não demonstraram qualquer compreensão.

Conrad continuou, usando as palavras que havia aprendido durante o mês em companhia de Mateus.

— O médico do hospital dos leprosos provavelmente o teria diagnosticado como "lepromatoso limítrofe", por ter uma única lesão oval e rosada no lado do corpo, além de perda de visão e crostas maculares nas mãos e pés.

Os olhos de Girolamo se estreitaram.

— Aaah... Entendi sua insinuação, frei Conrad — trinou ele, com aquela voz que se assemelhava à de um pássaro. — A pergunta que me faço é: por quê? Será que, enquanto estava acorrentado na prisão nesses três anos, você concebeu uma conspiração de mentiras, de acordo com todos os primeiros companheiros de São Francisco, talvez iniciada por nosso próprio mestre? Será que sua visita ao leprosário deu-lhe combustível para o tição que já queimava lentamente na sua imaginação? Você não é o primeiro a duvidar dos estigmas, irmão, embora eu tenha de admitir que esteja chocado ao ouvir essas dúvidas partirem de você. Deve ser o primeiro a chamar São Francisco de leproso.

— Por favor, frei Girolamo, ouça o que tenho a dizer.

O ministro geral suspirou, com os olhos refletindo a tristeza e a compaixão normalmente dedicadas aos insanos. Tinha tantos planos para você, diziam esses olhos, mas nunca imaginei que sua mente tivesse se afastado tanto da realidade. Apesar disso, fez sinal para que Conrad continuasse.

Conrad respirou fundo e mais uma vez contou a história de sua peregrinação. Enquanto levava Girolamo passo a passo pelo mesmo percurso que acabara de percorrer com Mateus Angelicus, o ministro geral o ouvia de braços abertos, Num certo ponto, entrelaçou as mãos delicadas nas costas e andou devagar e de cabeça baixa entre o afresco e o altar principal, às vezes levantando os olhos para a pintura. O rosto de Girolamo permaneceu neutro quando o frade finalizou seu relato.

— Frei Illuminato não lhe explicou tudo isso quanto assumiu o cargo? — indagou Conrad. — Não é parte dos conhecimentos secretos transmitidos para sucessão dos ministros gerais? Tive a impressão, quando estava preso, de que frei Giovanni da Parma sabia. Ele deu a entender que sim, sem de fato admitir abertamente.

— O cargo não veio com segredo algum — atestou o ministro geral. — Se Elias orquestrou esse mito cinco décadas atrás, nem você nem eu jamais saberemos ao certo. Pode ser que o bispo Illuminato saiba, mas não passou nenhuma informação secreta para mim. Além do mais, mesmo que sua teoria esteja correta, ainda me identifico com a decisão que frei Elias tomou. Poderia agir de forma parecida, dadas as mesmas circunstâncias.

— Mas estaria fomentando uma mentira. Por que faria uma coisa dessas?

Conrad retesou os punhos por baixo das mangas. — São Francisco jamais perdoaria uma falsidade assim.

Girolamo parou e estudou a figura em destaque no afresco. Depois, seu olhar voltou-se outra vez para Conrad, que prosseguiu:

— Na época do retiro no monte LaVerna, São Francisco já havia abdicado da liderança da Ordem em favor de Elias, seu representante oficial. Passou os últimos anos em contemplação, entregando-se às questões divinas, deixando para Elias a obrigação de governar sob o aspecto prático uma organização que estava desabrochando. Ainda assim — continuou Conrad —, Francisco permaneceu como figura de proa, o santo que inspirou moços e moças a abandonarem suas fortunas e a se unirem a nós, que convenceu príncipes e prelados a terminarem com suas rixas e incentivou os leigos a corrigirem seus maus hábitos. Acha que Elias poderia permitir que esse símbolo fosse trancafiado num leprosário, mesmo sabendo de fonte segura qual era a causa da transformação física de seu mestre? Acha que ele poderia deixar o mundo desconfiar que nosso santo e fundador havia pecado tanto que Deus o punira com a lepra? Acredite-me, irmão, São Francisco teria exercido uma influência benéfica muitíssimo menor, mesmo no papel de um segundo Jó, do que como um segundo Cristo.

Tomou fôlego e continuou sua explicação.

Elias compreendeu melhor do que qualquer outro homem os aspectos práticos da situação. Foi por isso que, guando o papa ficou entusiasmado em erigir um monumento para que se pudesse venerar São Francisco com dignidade, não encontrou ninguém mais qualificado do que Elias para cuidar da construção dessa mesma basílica, o projeto que faz seus amigos Espirituais o criticarem tanto. O frei conseguiu arrecadar o dinheiro e terminou a tarefa com rapidez inimaginável. No entanto, com o trabalho concluído, ele deixou sua marca no prédio da forma mais humilde, como Frater Elias peccator: irmão Elias, o pecador.

Girolamo segurou a barba do frade como se fosse um buquê oferecido por uma criança e fitou-lhe o rosto com carinho:

Você chegou cinqüenta anos atrasado com sua reivindicação, irmão. Se Leo realmente quisesse que o mundo soubesse da doença de Francisco, ele a teria divulgado àquela época. Em vez disso, passou a tarefa para você. Leve em consideração, também, que as pessoas acreditam naquilo que querem. Tenho a impressão de que vai descobrir que os estigmas de Nosso Senhor são muito mais atraentes para o imaginário popular do que o seu Francesco Lebbroso.

A voz do ministro geral ecoou por toda a extensão da nave e, ao perder a intensidade, indicou o fim da conversa. Enquanto ele soltava aos poucos a barba Conrad, as sombras negras e silenciosas da igreja envolveram o altar onde os dois se encontravam. Conrad imaginou os espíritos dos primeiros companheiros de Francisco saindo de seus túmulos na capela, reunindo-se na penumbra, exortando-o a continuar tentando trazer a verdade à luz.

— Mas podemos provar — insistiu. — Podemos exumar os restos mortais. O médico de São Salvatore disse que teria condições de afirmar se Francisco alguma vez teve lepra por meio do exame do esqueleto.

— E como sugere que façamos isso? Ninguém viu sequer um vestígio dos restos mortais dele desde que Elias os escondeu.

— O anel do cargo que o ministro geral usa. O mapa para se encontrar o ataúde está gravado na pedra do anel.

Girolamo pareceu momentaneamente atordoado. Os lábios se entreabriram e em seguida se fecharam. Levou a parte de trás do anel à boca, deu um suspiro e virou-se. Conrad o seguiu até a lamparina, junto da qual Girolamo expôs o lápis-lazúli à claridade. A pedra brilhava, mais lisa e polida que o azulejo sob os pés dele.

— Parecia ter sido muito arranhada. O bispo Illuminato ofereceu-se para mandar polir a pedra do anel para mim. — Um sorriso amargo repuxou os lábios do ministro. — A ansiedade dele em remover as marcas parece confirmar sua história.

— Claro que ele faria isso! Quer levar o segredo com ele para o túmulo! — exclamou Conrad. Mas a mesma figura está entalhada aqui, nesta pedra de altar. Descobri por acaso certo dia.

Levou Girolamo para o outro lado do altar, para o canto onde estava o desenho. Suspendeu o pano do altar e mais uma vez correu os dedos pelas ranhuras: o arco duplo, a figura humana esquematizada com os círculos concêntricos sobre os ombros — os círculos, que agora compreendia, representavam a cabeça do santo e o nimbo de uma auréola. E o círculo maior envolvendo a figura o que mais poderia ser além do próprio sarcófago?

Os olhos de Girolamo se arregalaram à luz mortiça.

— O anel tinha mesmo um desenho semelhante a esse. Acredito que os dois arcos representem os tabernáculos do altar-mor das duas igrejas, a de cima e a de baixo — explicou Conrad. — Contêm o Santo dos Santos, o corpo consagrado de Nosso Senhor, como a Arca original continha as tábuas entregues a Moisés. Essa figura com a auréola, fechada na cripta debaixo do arco inferior, é São Francisco. Estamos sobre o túmulo dele neste momento.

Girolamo roeu a unha do polegar por um instante, mas não se deu por vencido.

— É possível, suponho. Mas precisaria de evidências mais concretas do que a sua engenhosa interpretação desse desenho antes de destruir o altar e começar a cavar.

— Mas tem de fazer algo! — disse Conrad, em desespero. — Poderia obrigar o bispo Illuminato a admitir a verdade. Precisamos restabelecer a integridade das legendas.

Duas angústias apertavam-lhe simultaneamente o peito: dúvida e autopiedade. Então seus três últimos anos não teriam valido de nada? Teria sacrificado sua serenidade, seus anos de juventude e metade de sua visão por absolutamente nada?

— Não estou nem ao menos convencido de que isso seja necessário, irmão — respondeu Girolamo. — Ou que o bispo Illuminato queira apoiar sua história.

Cruzou os braços nas costas novamente e caminhou devagar ao redor do altar, examinando os ladrilhos e a base do altar como se os estivesse vendo pela primeira vez.

— Eis o que quero que faça, frei Conrad — disse, quando retornou ao ponto de partida. — Não quero que fale absolutamente nada sobre suas descobertas, a ninguém, até depois da Festa dos Santos Estigmas dentro de duas semanas por ser também o aniversário de cinqüenta anos da data em que São Francisco recebeu os estigmas, toda a cristandade estará aqui, inclusive o Papa Gregório, se sua saúde permitir. Há meses estamos planejando o evento e não quero nenhuma complicação agora. Pode me prometer isso? Ou devo obrigá-lo a meio mês de silêncio em sagrada obediência?

— Por que não me obriga ao silêncio perpétuo como o que Elias impôs a frei Leo?

Girolamo agarrou o ombro de Conrad e disse pausadamente:

— Porque, para ser franco, sinto-me tentado a acreditar em você; porque sei que sofreu ao ir em busca da verdade de Leo; e sobretudo porque prefiro que seu silêncio seja fruto de sua própria vontade.

Duas semanas. Será que o ministro geral estava/alarido sério? Ou seria um pretexto para ganhar tempo até que Girolamo encontrasse uma forma de silenciá-lo fala sempre?

Mudou o apoio do corpo para o outro pé, hesitando em tocar em assuntos particulares, espirituais, mas a situação tomara um rumo drástico. Sua voz vacilou quando finalmente disse:

Tive uma visão de frei Leo na noite em que recebi a mensagem dele. Ele repetia a ordem dada na carta para descobrir a verdade das legendas. Contudo, não veio só. São Francisco estava ao lado dele, como se ali estivesse para acrescentar sua autoridade pessoal aos pedidos de Leo.

— E o que ele disse?

Conrad deixou cair a cabeça:

— Nada. Nenhuma palavra, embora eu tivesse sentido uma onda de amor infinito que vinha dele.

— E aí, talvez, você vá descobrir a origem de toda a sua provação: Deus casula aqueles a quem ama. Seja como for, tem minha palavra de honra de que conversaremos mais sobre esse assunto depois da comemoração.

— Aqui?

Aqui, se quiser, ou no meu escritório. Não precisa ter medo de mim. Não sou um tirano. Não vou cortar sua língua nem arrancar o olho que lhe resta e insistir em sua crença. Mas quero duas semanas. O que me diz? Pode me dar esse prazo?

Conrad entrelaçou as mãos e fez uma profunda reverência ao seu superior.

— Não por ser obrigado a obedecer; porém em respeito à sua pessoa. Pode contar com duas semanas, então.

Fez uma genuflexão em direção ao altar com seu tabernáculo de ouro, inclinou a cabeça para as relíquias sagradas que agora sabia estarem enterradas ali embaixo e avançou para a escuridão da nave.

 

Um forte odor de madeira queimada pairava na viela que dava acesso à casa de Amata. Um cheiro de manhã de inverno, não de um começo de tarde de setembro pensou Conrad. Quando Maestro Roberto abriu a porta para ele, a fisionomia abatida do mordomo indicou-lhe que alguma coisa muito séria acontecera na sua ausência. Em vez de deixar as más notícias para a patroa, Roberto levou o frade diretamente para o pátio e mostrou-lhe a loggia em ruínas. Enquanto isso, Pio saiu correndo à procura de Amata, que veio ter com os dois homens perto da fonte.

Sem falar, Conrad balançava a cabeça para a base chamuscada de uma escrivaninha que se projetava do monte de entulho. Sua mente e suas narinas retraíram-se com o odor de destruição. Aos poucos, deu-se conta da presença da mulher a seu lado. Temia fazer a pergunta óbvia, especialmente depois de ter sido impedido pelo ministro geral de executar a outra tarefa que Leo lhe confiara.

— Não encontramos nenhum vestígio do rolo — disse Amata.

Deus castiga aqueles a quem ama, Conrad repetiu para si.

— Como isso aconteceu?

Ela arqueou os ombros.

— Jacopone pôs a culpa num anjo.

— Só um dos lacaios do anjo decaído, Lúcifer, poderia causar tanta destruição.

— Jacopone disse angelus Domini. Mas você sabe como às vezes os pensamentos dele são febris.

— Preciso falar com ele — disse Conrad.

— Ele se foi, irmão — interrompeu Roberto. — Perdeu seu norte. Deixou-se levar outra vez pela loucura.

— E o que aconteceu a frei Salimbene e a frei Zefferino?

Amata sacudiu a cabeça.

— Desapareceram durante o incêndio. Mas Pio viu Salimbene correndo pela loggia logo no início.

Conrad cofiou a barba, tentando recriar a cena improvável em sua cabeça. O corpulento cronista não era de se arriscar, muito menos de "sair correndo" para lugar algum. Talvez houvesse um lampejo de esperança.

— Salimbene não teria fugido enquanto ainda restasse qualquer possibilidade de recuperar a crônica de Leo — disse o frade. Por esse manuscrito, o homem arriscaria a própria vida. Seria até capaz de roubá-lo para preencher o que sabe ser uma lacuna na história da Ordem. Aposto como levou o manuscrito consigo quando desapareceu — declarou Conrad. Fechou a mão e com ela socou várias vezes a outra enquanto conjeturava. — Pode até ser que tenha posto fogo na loggia para acobertar o roubo premeditado.

— De certa forma, espero que esteja certo — disse Amata. — Pelo menos assim saberíamos que o rolo de pergaminho está em algum lugar.

— Com grande probabilidade, num dos armários de frei Lodovico. A Ordem é apaixonada demais pelo próprio passado para destruir todos os traças do registro de Leo.

Apertou os olhos para a parede enegrecida que fora a base do scriptorium de Amata.

— Ainda não é hora — disse, afinal. — Na hora certa, Nosso Senhor vai revelar onde a crônica está.

Sua própria observação fez com que se detivesse. Começou a refletir: o mesmo não se aplicaria à lepra de Francisco? Talvez aquele não fosse o momento indicado por Deus para anunciar suas descobertas. Talvez Girolamo houvesse pedido um adiamento por esse motivo, dando-lhe as duas semanas seguintes para que tivesse tempo de se conformar com esse mesmo ponto de vista. A incerteza parecia ser a única verdade absoluta naquele dia, e isso lhe agitava o estômago como uma comida indigesta.

— Tenho outras novidades — disse Amata, sondando o seu humor.

Conrad leu no rosto dela que essas seriam as boas notícias. Sorriu e disse:

— Seu mercador esteve aqui.

— Melhor que isso — respondeu Amata. — Publicamos os proclamas na igreja há dois domingos. Queremos que você celebre o casamento, pois foi você quem nos uniu.

Conrad fez umas contas.

— Os proclamas devem ser anunciados mais duas vezes. A última vez será o domingo antes...

— Antes da Festa dos Santos Estigmas, em homenagem ao tio de Orfeo — completou Amata. — Já havíamos pensado nisso. Orfeo acha que é bom presságio que nosso casamento coincida com a celebração da maior distinção de seu tio Francisco. Ele disse que podemos fingir que toda a decoração e pompa são em nossa homenagem. E São Francisco certamente vai abençoar nossa casa com muitos filhos.

Conrad já não sorria mais, porém guardou para si as suas apreensões. Era o primeiro teste porque passava a sua promessa ao ministro geral. Fez que sim.

— Na véspera da Festa dos Santos Estigmas, então.

Tornada por seu próprio entusiasmo, Amata não notou a mudança de humor do frade.

— Deus o abençoe, Conrad — disse ela. — Então, está tudo acertado. Voltou-se depressa para seu mordomo, toda risonha e agitada:

— Maestro Roberto, vamos preparar a festa de casamento para essa noite. E preciso que mande logo um mensageiro a cavalo avisar o conde Guido no Coldimezzo, e preciso comprar panni franceschi para meu vestido. Temos tão pouco tempo.

Agarrou Roberto pelo braço e levou-o para fora do pátio praticamente à força, falando sobre o ombro para Conrad:

— Pretendo também fazer uma surpresa para você na festa, Conrad.

O frade abriu as mãos com ar interrogativo, mas ela apenas riu.

— Não seria uma surpresa se eu lhe contasse agora — gritou antes de sair com o mordomo.

Quando eles se foram, Conrad remexeu na pilha de entulho. Abaixou-se e pegou um único fragmento de pergaminho de velino. Mal conseguiu ler as frases truncadas, sujas de fuligem, na caligrafia de Jacopone; ainda assim, dobrou-o e enfiou-o na túnica. Assim como Amata, esperava que a crônica tivesse sobrevivido intacta e estivesse segura — mesmo que inacessível a ele para todo o sempre — no Sacro Convento. Ou então aquele fragmento seria a única prova das cinco décadas de indignação de Leo.

 

Os dias que antecederam o casamento e até mesmo a própria cerimônia passaram como um sopro para Amata. Assim que o escuro pórtico e o severo campanário da igreja ficaram para trás, o estado de espírito do cortejo que acompanhava, à luz de tochas, os recém-casados para o jantar do casamento mudou imediatamente. Frei Conrad desculpou-se alegando que havia planejado passar a noite fora da cidade, em Porciúncula.

— Minha presença na sua festa é tão inútil quanto uma terceira roda numa carroça — justificou-se a Amata.

Livre das influências clericais, um dos convidados começou a entoar uma canção ao antigo deus romano do casamento:

"Hymen, O Hymenae, Hymen..." e acrescentava invocações a Vênus e ao querubim:

"Quando a seta de Cupido o ating..."

O vinho correu à vontade depois que todos se instalaram no grande salão da casa de Amata e Orfeo. A impressão que se tinha era a de que tio Guido havia trazido toda a sua adega do Coldimezzo. Criados se misturavam a carreteiros, mercadores e convidados mais nobres, e os brindes de felicidade logo passaram do meramente pagão para o obsceno. Diante da alegria no local da lesta — havia casais dançando, apertando-se nos bancos, sussurrando, corando —, Amata garantiu a Orfeo que, antes que a noite terminasse, seriam muitas as propostas de casamento e que ela esperava que depois não fossem renegadas à sóbria luz do dia.

Um desses casais tentou escapar, mas não passou despercebido. Procuravam a privacidade de um quarto no segundo andar, muito embora, por causa do incêndio, só conseguissem chegar lá usando uma escada de mão. A mulher agarrava-se à escada, já no topo, e muitos homens embriagados tentavam tirar seu companheiro dos degraus de baixo, deixando o homem a meio do caminho, no eterno cabo de guerra entre o paraíso e o inferno. Afinal, ele conseguiu subir para o quarto, e os convidados irromperam em vivas e aplausos delirantes quando ele arrancou a escada dos homens, puxando-a para cima. No meio do alvoroço, Orfeo sussurrou a Amata que aquele seria o momento perfeito para eles próprios escaparem.

O dia fora inusitadamente quente para meados de setembro, e nenhuma brisa fazia mexer as cortinas do dossel da cama. Amata notou com prazer que não precisariam de cobertas para sua nudez naquela noite. A luz alaranjada de uma única vela proporcionava uma claridade perfeita para os amantes: tênue o bastante para esconder algum defeito, mas suficientemente clara para di linear na penumbra os contornos arredondados e macios da mulher ou as ondulações dos músculos dos ombros do homem. Pelas venezianas da janela vinha um aroma de madressilva, perfumando o ambiente.

Ela desamarrou o cordão dourado que lhe prendia o vestido branco e comprido à cintura e tirou a coroa de flores do cabelo. Orfeo a observava com desejo, segurando ainda uma taça de vinho, enquanto ela sacudia os cachos do cabelo preto e tirava o vestido pela cabeça. Já estava no meio do caminho quando disse, com a voz mais natural possível:

— Lembra-se, meu amor, da história no Velho Testamento de um casal recém-casado que passou rezando as três primeiras noites após o casamento? Talvez devêssemos...

Ela se arrependeu por não ter esperado acabar de se despir para falar, pois perdeu a expressão no rosto de Orfeu. Ouviu-o engasgar, porém, e um desenho irregular marcou a parede onde o espirro de vinho foi parar. Orfeo sacudiu um dedo para ela, mas não disse nada, com medo de engasgar de novo. Ela sorriu por cima do ombro, empinando o traseiro convidativamente ao se esgueirar entre as cortinas da cama.

Ele tirou as botas e o cinto quando se juntou a ela, mas ainda vestia sua túnica multicolorida de noivo.

— Orfeo, por que você não se despiu? — queixou-se Amata. Os olhos pretos dele cintilaram na penumbra.

— Você vai ter de merecer essa túnica, como a mulher do chefe da tribo nômade.

Era a resposta dele à brincadeira que ela fizera. Correu um dedo por baixo dos seios dela e ao redor de um dos mamilos.

— Conhece a história do bufão Kareem?

— Ah, amor, não é hora de contar histórias.

— Você não vai se incomodar, juro. Vou pontuar cada frase com um beijo... ou outro carinho."

Bem devagar, ele atiçou lhe o desejo contando como um certo sultão havia recompensado Kareem por suas brincadeiras inteligentes com uma túnica tão colorida como o arco-íris, e a qual a mulher de um chefe disse querer muita para si quando o viu de longe se aproximando. "Tenha cuidado" a criada dela avisou, "Kareem não é o idiota que parece ser."

Mas a mulher gananciosa tinha caçoado da serva e convidou o bufão para ir à tenda dela. Depois de comer e beber do bom e do melhor, Kareem havia dito que só lhe daria a roupa em troca de um ato de amor, pois a beleza da mulher acendera nele um desejo diferente.

A essa altura havia fogo correndo em cada partícula do corpo de Amata, sedento do orvalho do amor que jorra do portão de Astarté. Todos os seus músculos estremeciam antes mesmo que Orfeo a penetrasse. Por um tempo delicioso, abençoado, imensurável, ele não falou, até que ela explodisse de prazer e ele a trouxesse de volta com cuidado, arquejante e trêmula, para uma pausa.

— Agora tire essa maldita túnica! — exclamou ela, ofegando.

— Foi exatamente o que a mulher do nômade disse para o bobo — replicou ele.   "Não", disse Kareem, "essa vez foi para você, porque a amo mais que qualquer outra mulher que conheci. Agora, será pela túnica."

E ele ficou tão firme quanto no começo. Quando Amata deixou escapar curtos gemidos involuntários acompanhando o ritmo dele, Orfeo começou a penetrá-la mais e mais depressa até afinal desmoronar com um grito prolongado sobre seu peito. Amata o abraçou, feliz por lhe dar tanto prazer.

— A túnica? — disse ela.

Respirando com dificuldade, Orfeo sussurrou:

— Essa vez foi para mim. Prometo que a próxima será pela túnica.

Inacreditavelmente, ele continuava pronto para mais. Na manha seguinte, Ela iria perguntar-lhe como conseguira, pois sua limitada experiência com homens lhe dizia que aquilo era fisicamente impossível. Mas não quis interrompê-lo naquele momento, no estado de máxima excitação em que ele se encontrava, a não ser para insistir:

— Primeiro, tire a túnica!

— De novo, as mesmas palavras da mulher do nômade — riu ele, finalmente despindo pela cabeça, com a ajuda frenética dela, e atirando sua vestimenta para fora das cortinas. O peito, os ombros e as costas dele eram tão largos que Amata mal conseguia abraçá-lo por inteiro. Todos os homens deviam ficar cinco anos trabalhando como remadores, pensou ela antes que ondas de êxtase afugentassem de novo todas as suas idéias, passando por ela muitas vezes enquanto Orfeo se prolongava por uma verdadeira eternidade.

— Venha, venha junto comigo — ela pediu.

— Vou sim — ele respondeu em voz baixa — mas, por hora, meu prazer é dar-lhe prazer.

Ela se entregou completamente, mergulhou, flutuou, voou alto, até achar que não conseguiria mais agüentar a doce aflição. A respiração de Orfeo ficou cada vez mais profunda enquanto ele sorvia o ar, gemendo como se também estivesse prestes a sucumbir e, dessa vez, desmaiaram juntos.

Permaneceram quietos por um longo tempo. Durante esse intervalo tranqüilo, Amata pressionou de leve o próprio abdome com as mãos, certa de que o momento em que haviam gozado juntos tinha milagrosamente gerado uma nova vida em seu ventre — um segredo que guardaria para si até ter certeza. Por fim, Orfeo apoiou-se num dos cotovelos e afastou os cabelos negros emaranhados da testa úmida de Amata enquanto sorria para os olhos dela. O carinho de seu toque emocionou-a tanto quanto a sensação física.

Amata riu de leve quando recuperou o fôlego, e sua voz tinha um tom de triunfo:

— A túnica é minha!

— Você também subestimou Kareem — disse ele baixinho. Girou o corpo e sentou-se na beirada do colchão, puxando a cortina para o lado. — "O dia está muito quente. Estou com sede" disse Kareem para a mulher depois que ela trocou uma das túnicas velhas do marido pela linda túnica dele. — Orfeo levantou-se e apanhou a taça de vinho. — Ele pegou a vasilha de água que ela lhe ofereceu e sentou-se no chão do lado de fora enquanto bebia. À distância, Kareem reconheceu o marido dela vindo a cavalo na direção da tenda. Mas, antes que o homem chegasse...

A taça escapuliu da mão de Orfeo e espatifou-se no chão.

— Orfeo, cuidado! — disse Amata.

Ele deu apenas um largo sorriso travesso.

— ...Kareem também quebrou a vasilha e começou a chorar. O chefe da tribo apeou e lhe perguntou o que acontecera para deixá-lo tão triste. Kareem explicou que a mulher do chefe tirara dele a bela túnica que o sultão lhe dera porque ele quebrara aquela simples vasilha de barro. O homem entrou como o vento na tenda, furioso com o tratamento vergonhoso que sua mulher dispensara ao bobo, pois acreditava que a hospitalidade era um dever sagrado. Jurara ao bufão que espancaria a mulher com muita força se ela não lhe devolvesse a túnica imediatamente.

— E ela...?

— E ela, muito sábia, devolveu a túnica e calou a boca.

— Mesmo assim — completou Amata —, Kareem pode ter despertado algo por amar tão bem a mulher do nômade. Ele provavelmente perturbou os sonhos dela por muitos anos.

A própria Amata tinha ainda um pesadelo para apagar, uma história em que faltava colocar um ponto final. Enquanto Orfeo descansava a seu lado, ela recomeçou a história do eremita Rustico e da jovem Alibech, a mesma história que começara a contar a Enrico na noite da luta na floresta. Mais uma vez, contou como o anacoreta superestimou sua capacidade de resistir à beleza da menina e como finalmente ensinou-lhe a pôr o demônio no inferno. Naquele ponto, Orfeo interrompeu a narrativa e passou a tomar parte ativa e entusiasmada na trama, fazendo o papel do eremita até o fim. Porém, enquanto o abraçava, parte de Amata condoía-se lembrando o desventurado Rico, que nunca teria oportunidade de conhecer uma felicidade como a deles. Talvez, com a ajuda de Orfeo, ela finalmente deixasse esse fantasma descansar.

Quando Orfeo se deitou de costas, exausto, Amata montou nele e apertou-lhe os quadris, imaginando que seus joelhos rodeavam um touro musculoso.

— Rústico — disse, em tom de queixume —, por que perde tempo descansando quando deveria pôr o demônio no inferno?

Orfeo olhou para ela por entre as pálpebras pesadas.

Pensei que quisesse terminar a sua história. Ela detectou um leve sinal de preocupação naquele olhar, exatamente o que precisava para continuar a história.

— Não termina nunca — avisou. — A princípio, Alibech pensou que o inferno deveria ser um lugar pavoroso, pois o demônio de Rústico causou-lhe muita dor; entretanto, quanto mais ela praticava o ato de devoção, mais delicioso ia ficando. Era verdade, ela pensou, que o Senhor havia dito: "Meu jugo é doce e Meu encargo é leve." Perguntou-se como era possível que todas as mulheres não fugissem da cidade para agradar tanto a Deus na floresta.

Amata massageou o peito e os ombros de Orfeo e disse com fingida tristeza:

— Entretanto, que infelicidade! Quanto mais o inferno dela ansiava por receber e prender o demônio de Rústico, mais o demônio fugia dela. "Pai", ela se queixou, "vim aqui para servir a Deus, não para ficar à toa." O eremita, que vivia somente de raízes e água e, portanto, não tinha forças para atender a todos os chamados da moça, explicou lhe que também precisava cuidar de seu jardim e que o demônio só merecia ser lançado no inferno quando erguia a cabeça por orgulho. O rapaz por fim acabou compreendendo, desalentado, que seria necessário haver uma profusão de demônios para acalmar inteiramente o inferno dela, e que, embora às vezes ele lhe desse prazer, a satisfação ocorria tão raramente que era como se uma vagem fosse atirada na boca escancarada de uma leoa faminta.

Aquela altura, a vela derretera e se apagara. Orfeo deu uma risada na escuridão. Amata aconchegou-lhe a cabeça junto a si quando ele se apoiou nos antebraços, com ela ainda montada nele, e beijou-lhe os seios. Oh, Deus, nunca vou conseguir terminar a história, pensou ela, embora ao mesmo tempo lhe agradasse a idéia de continuá-la noite após noite. Ela mesma dissera que, afinal de contas, a história não acabava nunca.

E fez o possível para contar o restante bem depressa.

— Enquanto continuava a discussão entre o inferno de Alibech e o demônio de Rustico, por causa do desejo excessivo de um lado e da falta de vigor do outro... — mas não pôde continuar, porque o demônio de Orfeo penetrou em seu inferno mais uma vez, arremetendo de baixo para cima e recusando-se a baixar a cabeça orgulhosa até as primeiras luzes da manhã.

No pálido e lânguido amanhecer, Amata louvou em silêncio as cortesãs de Acre e Veneza, ou quem quer que tivesse ensinado a Orfeo os inumeráveis e sutis segredos do amor e inspirado nele a paciência e persistência de praticá-los. Pela primeira vez, nos braços desse homem que tinha o cheiro do mar e do calor do Levante, dos vales invernosos e dos bazares de odores pungentes, ela se deu conta de toda a força sexual de seu próprio corpo, do prazer para o qual, agora compreendia, ela havia nascido.

Lágrimas de felicidade se acumularam nos cantos dos olhos de Amata.

— Estou feliz como um dia de sol, murmurou do fundo do coração, e então pensou: Estou tão contente por não tê-lo matado. Aninhou a cabeça no ombro de Orfeo, acariciando-lhe a barriga com a palma da mão, até que uma batida leve e ao mesmo tempo rude reverberou através da porta do quarto:

— Scusami, signore, signora. Está começando a procissão de São Francisco. Disseram que queriam ser avisados.

Ouviu passos tímidos sumindo no corredor enquanto um toque floreado de trombeta soava à distância. Amata adorou aquele "signora".

 

Tochas de resina estalaram e assobiaram a noite toda nos bosques ao redor de Porciúncula. Conrad saiu quando o céu clareou e viu muito mais tochas contornarem a subida da colina na direção da pequenina capela. Os membros das guildas tinham comparecido em peso e desfraldaram as bandeiras de seus vários ofícios assim que a borda do sol coroou o monte Subasio, no instante em que soou uma fanfarra de trombetas.

Conrad, o amante da solidão, deliberadamente imperceptível em sua túnica cinzenta, viu-se de repente dentro de um redemoinho de cores. Com os outros frades que haviam se reunido na capela, seguiu montanha acima na companhia de cavaleiros e guardas-civis. Atrás vinham os membros das guildas com seus estandartes balançando, rodeados pelo clero — pobres padres do interior com suas negras sotainas puídas e luzentes pelo uso e as sobrepelizes brancas; bispos e cardeais na frente deles com seus escarlates e arminhos — e, em algum lugar na dianteira da procissão, o Papa Gregório em pessoa.

Nem bem tinham começado a andar, o povo da cidade, trajando mantos e túnicas multicoloridas, atravessou o portão e acorreu alvoroçado ao encontro deles. Em sua exaltação, iam quebrando, ao passar, os galhos mais baixos do bosque de oliveiras que margeava o caminho, o mesmo bosque onde Conrad remexera na mistura de adubo três anos antes. A folhagem ondulante fazia um contraponto verde-claro aos estandartes das guildas, como espuma do mar batendo contra um pavilhão de praia. A Compagnia di San Stefano, banda de flagelantes de Assis que entoavam louvores, cantava um hino aos estigmas:

"Sia laudata San Francesco,

Quel caparve en crocefisso,

Como redentore..."

"Louvado seja São Francisco,

Que apareceu crucificado

Como o Redentor..."

Os cavaleiros se empenhavam em controlar seus cavalos, nervosos com o fogo das tochas e a aglomeração ruidosa de gente. O cheiro forte de estéreo fresco que subia do chão de terra lembrou a Conrad de atentar para onde pisava. O céu sem nuvens passou do cinza ao púrpura, ao azul-anil e ao azul-vivo durante a hora e pouco que a procissão levou para chegar às muralhas da cidade e à Porta San Pietro. Ali, a multidão se dividiu: os frades e prelados seguiram para a igreja de baixo da basílica, enquanto a massa de leigos seguia como um enxame para a igreja de cima, transbordando para a Piazza di San Francesco. Conrad afastou-se dos dois grupos, subindo apenas até a extremidade sul da praça, para que pudesse ter uma visão melhor de todo o espetáculo.

Alguns cidadãos importantes tinham sido convidados para a cerimônia principal na igreja de baixo: administradores do alto escalão e benfeitores locais. Conrad viu Orfeo e Amata, sonolentos, bocejando entre o segundo grupo. Imaginou que Amata provavelmente pagara pela tumba de Donna Giacoma. Depois se lembrou também que o marido dela era parente do santo e amigo pessoal do papa.

Orfeo conversava com alguém a seu lado que era parecido com ele, embora mais alto e mais magro — possivelmente o irmão Piccardo, seu sócio nos negócios. Enquanto isso, Amata agachara-se ao lado de uma maca transportada por quatro criados. O rosto de um desses criados parecia-lhe familiar, mas Conrad não confiava nem na visão nem na memória para tentar descobrir quem seria, estando tão distante da praça. Um cobertor curto cobria a pessoa inválida que estava na maca, que com certeza era uma mulher, porque usava um toucado igual ao das freiras. Tudo indicava que Amata conhecia a mulher doente, que provavelmente viera à basílica naquele dia na esperança de uma cura milagrosa. Mordeu o lábio ao conscientizar-se da credulidade maciça e delirante à sua volta, frustrado porque só ele e Girolamo compreendiam inteiramente a falsidade sobre a qual as esperanças da mulher inválida se baseavam.

Amata ergueu-se e esquadrinhou a fila de frades que entrava na igreja. Conrad seguiu o olhar dela. Pensou ter reconhecido Zefferino pela coxeadura, embora o frade andasse encurvado e com a cabeça abaixada por baixo do capuz. Incentivar o carcereiro a sair do calabouço do Sacro Convento tinha sido um erro; seu antigo companheiro ficara mais introvertido do que nunca. Avistou também o menino Ubertino, que o avisara do perigo dois anos antes. O jovem parecia cantar com convicção, mas Conrad notou que ele lançava olhares rápidos para a multidão o tempo todo, com uma curiosidade sem fim. Conrad ponderou se alguns dos frades Espirituais se arriscariam a entrar na igreja, ou se iriam celebrar a solenidade em outro lugar, na segurança de suas cavernas e cabanas ou locais de reunião secretos nas montanhas. Uma coisa era certa: esses frades que participavam da procissão não pareciam ser os malvestidos ou mal-alimentados amantes da pobreza.

Então, Conrad viu quem mais procurava: frei Salimbene, com os braços cruzados sobre a barriga de comilão, fazendo um par anômalo na procissão com o magricelo Lodovico. Sentiu uma necessidade urgente de falar com eles sobre o pergaminho de Leo, embora a cerimônia não tivesse ainda acabado, e desceu correndo as escadas para a igreja de baixo. Encontrá-los fora do mosteiro seria a sua única chance de saber com certeza se a crônica ainda existia ou, ao contrário, se queimara no incêndio. Embora quisesse acreditar em Girolamo, as lembranças dos dois anos no inferno ainda estavam bem frescas em sua mente; sabia que levaria anos até estar preparado de novo para entrar no Sacro Convento, e talvez nunca chegasse a tanto.

Estava quase chegando à fila quando um guarda-civil impediu que passasse. O homem segurava a lança na diagonal como uma barricada e empurrou Conrad e os que estavam ao lado dele para trás, contra o muro, liberando o caminho para a pequena praça.

— Dêem passagem para o doge de Veneza! — bradou o guarda.

O alarido da multidão aquietou-se enquanto um nobre ricamente vestido descia de sua liteira. O homem fez um leve cumprimento com a cabeça para um lado e para outro em reconhecimento à reverência dos espectadores. Flutuou alguns passos na direção da entrada da igreja, e o clamor de vozes recomeçou atrás de Conrad.

A procissão dos frades tinha também avançado. Conrad começou a sentir falta de ar no meio da multidão. Salimbene teria de esperar. Começou a subir outra vez as escadas, procurando um espaço mais livre, quando ouviu a voz de Amata chamando por ele:

— Frei Conrad! Aí está você, afinal! Venha cear conosco hoje.

— Se eu puder — respondeu. — Primeiro, tenho de falar com frei Girolamo.

— Você tem de vir — gritou ela de volta, gesticulando para a mulher na maca, mas a multidão o empurrou escada acima e ele não conseguiu ouvir as últimas palavras de Amata. Levou as mãos em concha às orelhas e acenou que não, que não tinha alternativa. Ela juntou as mãos em prece numa súplica final e ele fez que sim, que faria o possível para ir.

Finalmente conseguiu voltar ao lugar onde estivera antes, perto da extremidade da praça, onde achou que a aglomeração era mais suportável. Maestro Roberto, acompanhado pelo conde Guido e a neta, saiu do meio da multidão e veio ao seu encontro. O mordomo sorriu e fez um gesto majestoso com a mão.

— Já tinha visto um espetáculo como esse, irmão?

Conrad seguiu-lhe o gesto que abrangia toda a praça. A maior parte do povo estava de frente para a basílica; alguns choravam e batiam no peito e erguiam as mãos para o céu. Outros riam e abraçavam os vizinhos. Conrad escutou dois homens se desculpando, pedindo perdão por ofensas passadas. Alguns poucos estavam quietos, de olhos fechados, os lábios se movendo em preces silenciosas. Como sempre, os vendedores ambulantes ofereciam tortas de carnes e doces para aqueles cuja devoção também exigia alimento para o corpo. Havia um homem ajoelhado, afastado atrás da multidão, com a cabeça bastante inclinada sobre o peito e o corpo inteiramente escondido por um manto preto e pesado, apesar da temperatura quente do dia. A altura, o aspecto taciturno e os ombros largos fizeram Conrad lembrar-se do penitente apesar da louca veneração que o antigo notário tivera pelo falso prepúcio. Entretanto, qual seria a diferença entre Jacopone e essa pessoa, imersa em adoração por estigmas que nunca existiram?

Uma mescla de emoções — tristeza pela ilusão generalizada que testemunhava, perplexidade diante do entusiasmo da multidão, indignação por ver a antiga mentira de Elias proliferando por toda parte — deixou Conrad esgotado. As pessoas adoram um grande milagre, quanto mais fantástico melhor, repetiu o que guardava em algum lugar de sua memória. Recordou-se da conversa com Amata na encosta da colina fora de Gubbio, da descrição que fizera das equipes que subiam às carreiras o monte Ingino com suas pesadas velas. "Nilo importa quem seja o vencedor" dissera à menina, "as pessoas simples precisam de imagens simples que sirvam de estímulo à sua crença, não de sermões nem de panfletos."

Imagens como as de um santo humilde com as chagas de Cristo impressas em seu corpo! Como suas próprias palavras o corroíam por dentro agora! fossem reais ou não as feridas, Conrad tinha de reconhecer que a prova delas estava por todo lado a seu redor. Os estigmas de São Francisco acendiam a imaginação e o fervor religioso de crentes de todas as classes, ao menos por esse único dia de sua comemoração. Teria ele o direito, ou a obrigação, de retalhar essa fé — mesmo se tivesse o poder de persuadir todos esses devotos fanáticos a acreditarem nele?

O homem que estava ajoelhado levantou-se vacilante e olhou com olhar vazio por cima das cabeças da multidão, com os olhos vermelhos de chorar, os cabelos cor de areia grudentos e desgrenhados. Ele rezava, ignorando o tumulto ao redor, até mesmo quando a menina Teresina, que também o havia visto, correu e puxou o manto que o cobria, gritando mais alto ainda que o clamor da multidão:

— Papa! É você? Estive procurando você por toda parte!

 

A celebração pública dos estigmas só terminou no final da tarde, e Conrad teve de esperar até depois das Vésperas para a sua audiência. Quando entrou na sacristia da igreja de cima, onde Girolamo tinha combinado encontrá-lo, o frade viu, em vez do ministro geral da Ordem, um homem alto vestindo uma batina branca e um solidéu. Estava virado para a janela, com as mãos entrelaçadas nas costas. Nos dedos finos, brilhavam os anéis indicativos de seu alto cargo.

O clérigo virou-se calmamente. Sua pele amarelada esticava-se como um velino envelhecido sobre os pômulos salientes. Havia bolsas arroxeadas sob os olhos de pálpebras pesadas, que observaram Conrad por um momento desconfortável.

Bem-vindo, irmão — disse afinal, numa cadência imponente que contrabalançava o sibilar que lhe vinha dos pulmões. — Seu ministro geral houve por bem satisfazer nosso desejo de conhecer o frade cuja curiosidade o levou a prisão. Os elogios que Orfeo di Bernardone fez à sua pessoa despertaram a nossa curiosidade.

Conrad caiu de joelhos sobre o chão de pedra e curvou a cabeça.

— Devo minha vida a Vossa Santidade.

E permaneceu naquela humilde posição até sentir uma leve pressão na cabeça, enquanto o papa murmurava uma bênção em latim. Gregório segurou-lhe os ombros e ordenou que se levantasse.

Frei Girolamo não pôde vir se encontrar conosco. Está se preparando para viajar com o doge, que volta para Veneza amanhã.

O pontífice apontou para uma cadeira vazia e sentou-se numa outra em frente.

— Veja bem — disse Gregório —, nós precisamos ainda mais da liderança dele tio que a sua Ordem. Pedimos que voltasse a Bizâncio para amarrar a miríade de detalhes necessários para a reunificação da Igreja.

Conrad perguntou o quanto exatamente teria Girolamo contado ao papa a respeito dele próprio. Teria o ministro geral, em troca de aceitar a missão para o leste, pedido a autoridade suprema da Igreja para impedi-lo a lepra de São Francisco?

— À unidade dos membros do corpo místico de Grato é uma bênção de Deus — continuou Gregório —, sobretudo a união entre os irmãos. Frei Girolamo nos contou sobre seu plano de usar você como intermediário para extinguir a brecha em sua própria Ordem; assim que estivesse curado de seus próprios males, é claro. Uma tarefa sublime e laboriosa. Ele terá de fiar-se muito mais do que imaginava em frades como você, agora que o pegamos de volta para cuidar de nossos interesses. Falando em particular, assim como em nome da Igreja, nos sentimos recompensados por termos libertado você da prisão.

O pontífice observava seu rosto atentamente, e Conrad, de propósito, procurava mantê-lo desprovido de qualquer expressão. Ainda não tinha se recuperado da surpresa inicial. Também planejava guardar sua reação para quando ouvisse a proposta integral de Gregório.

— Frei girolamo simpatiza muito com seus amigos Espirituais. Ele cresceu em Ascoli, em Marches, onde eles se escondem. Não obstante, ele compreende que os irmãos moderados e mais práticos têm mais condições de levar adiante o plano de São Francisco de reformar a Igreja, de eliminar as barreiras entre padres e pessoas, do que os membros mais zelosos da Ordem. Em minha opinião, sua Ordem deveria dar menos ênfase à pobreza e mais à simplicidade, menos à ascese e mais à austeridade. A linha que separa esses conceitos é muito tênue, mas vai trazer mais conforto divino a um maior número de religiosos do que a sombra mais restrita que é projetada pelas práticas rígidas de seus amigos.

O papa apontou para a túnica de Conrad.

— Por exemplo: preferimos ver um frade usando uma túnica de tecido bom e pesado que vá durar muitos anos e que evitará que ele se desconcentre de suas devoções numa basílica gelada do que vê-lo vestido em trapos. Espero que chegue a essa mesma compreensão depois de um período de reflexão.

Gregório se levantou e andou outra vez até a janela, dando as costas para Conrad, que acariciou os remendos das mangas de sua túnica. Já tivera esse tipo de discussão com Donna Giacoma e podia sentir o sangue subindo-lhe ao rosto.

Gregório disse, então:

— Frei Girolamo nos contou que você ficaria satisfeito em servir num leprosário, mas acreditamos que Deus lhe reservou uma tarefa maior. Sugerimos ao seu ministro geral que você passasse um tempo de reclusão no mosteiro do monte LaVerna, paia meditar sobre o maior projeto da vida de São Francisco: sua missão para a Igreja como um todo, para todos os fiéis.

Ah, isso decerto tem a ver com me fazer calar.

— Por que o monte LaVerna? — perguntou Conrad, fingindo ignorância, mas convencido de que a única razão era por ter sido lá que as lesões haviam aparecido em Francisco. Gregório e Girolamo caçoavam dele. — Não é fato que a verdade permanece a mesma, inalterada, onde quer que se esteja? — perguntou, certo de que agora o papa sabia a qual verdade ele estava se referindo.

As costas do pontífice se retesaram.

— Quid est veritas? O que é a verdade? Pilatos perguntou a Nosso Senhor. Infelizmente para toda a humanidade ele não esperou pela resposta de Jesus. Toda a humanidade gostaria muito de ter ouvido aquela resposta. Nós vivemos o dobro de seus anos, frei Conrad, muitos deles passados lendo crônicas e histórias que se diziam verídicas. Chegamos à conclusão de que as penas dos escribas podem escrever verdades rasas e flexíveis com tanta facilidade quanto os martelos dos fabricantes de armas malham as espadas.

— Mas estou absolutamente certo sobre a lepra de São Francisco.

Gregório virou a cabeça, com uma expressão de mágoa no rosto, como a sublinhar a indelicadeza de Conrad ao falar de forma tão direta. O papa obviamente preferia falar sobre aquele assunto por circunlóquios.

— Certa vez, um sábio imaginou que Deus lhe estendia, em Sua mão direita, toda a verdade do universo; na esquerda, o Criador tinha apenas a busca diligente da verdade, incluindo a condição de que o homem sempre se perdesse nessa busca. Deus ordenou ao sábio: "Escolhe!" Humildemente, ele tomou o que havia na mão esquerda de Deus, dizendo: "Pai Divino, dê-me essa, pois a verdade absoluta pertence somente a Ti."

A voz sibilante do papa crepitou quando ele acrescentou:

— Você deve ter visto hoje na praça que a verdade a que se apega não é tão simples, tão absoluta. Sua verdade seria um golpe lancinante no âmago da fé das pessoas.

Conrad abaixou a cabeça. Levado pelas próprias convicções, havia ultrapassado os limites. Devia ao sumo-pontífice total obediência, além de gratidão.

— Perdoe-me, santo padre, por meu orgulho.

Fechou o olho, com a impressão de que seu coração iria explodir, agitado por tanto tumulto, tanta confusão. Continuou em voz baixa:

— Cheguei a mesma conclusão que Vossa Santidade ao observar a multidão e teria remorsos para sempre se causasse danos a devoção das pessoas. Certamente não é esta a hora para revelações, foi o que eu disse para mim mesmo. No entanto, em respeito a essa mesma verdade, não deveríamos fazer pelo menos uma observação em alguma crônica, para aqueles que vierem depois

De nós?

— Não.

A palavra foi dita em tom baixo, porém firme, e a mão do papa tocou-lhe o ombro.

— Não meu filho.

Conrad levantou o rosto mais uma vez, surpreso com a repentina ternura do pontífice.

— Mas, estamos em débito com você, pelo sofrimento que suportou e porque... porque, é simples, concordamos com frei Girolamo que você provavelmente está certo. Suas descobertas não deverão morrer mais do que... do que uma morte temporária. Quando for da vontade de Deus, Ele poderá ressuscitá-la com a mesma facilidade com que o fez com Seu Filho. Nosso acordo, então, é o seguinte: um frade vai acompanhá-lo a LaVerna; por intermédio dele, poderá começar a tradição oral da sua história de Francesco Lebbroso. Oral, não escrita. Não poderá fazer nada além disso: deixe o resto nas mãos de Deus.

— E o companheiro? Posso escolher?

O papa assentiu:

— Desde que seu ministro geral concorde.

Deus permita que ele aceite, pensou Conrad. Algumas centelhas de esperança luziram de repente no seu íntimo. E com isso veio-lhe uma paz inesperada, a sensação de confiança de que um frade de alguma geração futura finalmente iria trazer à luz a maquinação de Elias. Sentiu reacender-se sua antiga determinação, mas não precisava dizer nada sobre isso ao papa.

— Se frei Girolamo estivesse aqui, também pediria que me liberasse por esta noite para me despedir de Orfeo e da esposa. Prometi ir cear com eles.

— Não vejo problema algum nisso, irmão. E, por favor, acrescente a eles os meus cumprimentos, pois gosto muitíssimo de Orfeo.

Gregório fez uma pausa e sorriu, antes de indagar:

— Quando virá buscar seu companheiro?

— Se ele puder encontrar-se comigo na Porta di Murorupto depois das terças, amanhã de manhã...

O pontífice fez que sim e concordou em transmitir o pedido; depois acompanhou Conrad até a porta principal da basílica. E foi assim, facilmente, que o dilema que atormentara Conrad desde o seu encontro com frei Girolamo resolveu-se com o caráter decisivo e infalível de um decreto papal.

Enquanto Conrad conversava com o papa, a Piazza di San Francesco esvaziara-se. A multidão se dissipou para a refeição da noite. Um único vira lata, que remexia nas sobras que os peregrinos haviam deixado cair nas pedras do calçamento, veio cheirar os tornozelos do frade. O animal o seguiu ate a extremidade da praça, e Conrad desejou mais uma vez voltar à companhia das criaturas da floresta e que os últimos três anos jamais tivessem acontecido. Afagou a cabeça do cachorro, sentindo uma saudade repentina de Chiara, a corça mansa que pastava junto de sua cabana. Depois espantou o cachorro para que voltasse para a praça e prosseguiu sozinho.

 

A única questão ainda não resolvida era a existência ou o paradeiro da crônica de Leo. Conrad tivera a esperança de fazer a pergunta a frei Girolamo, mas, com o ministro geral de partida para Veneza, perdera aquela oportunidade. E sabia que, mesmo se pudesse de alguma forma questionar frei Salimbene ou o bibliotecário a respeito do pergaminho, não receberia uma resposta sincera. Restava-lhe usar uma alavanca para soltar as tábuas dos armários de livros na calada da noite, uma experiência que esperava nunca mais repetir, nem mesmo em seus mais terríveis pesadelos. Mas o companheiro de viagem para LaVerna... ao mesmo tempo em que receberia por herança a história da lepra de Francisco... poderia, quem sabe, herdar também a história de Leo.

Enquanto percorria o caminho para a casa de Amata, Conrad deu-se conta de que a repentina mudança dos acontecimentos o haviam deixado com uma verdadeira sensação de calma e alívio. Por três anos, o peso da mensagem de Leo havia vergado sua alma como um salgueiro que se curva sob pesada nevasca e esgotado as suas forças para evitar que se quebrasse. Mas o calor da autoridade de Gregório finalmente derretera essa carga, libertando-o para voltar à sua natural postura ereta. O jugo da obediência cega carregava em si a liberação de uma irresponsabilidade igual à das crianças. O desaparecimento tio manuscrito de frei Leo representava uma outra carga, mais um peso que ele agora entregava de bom grado nas mãos de Deus. Ansiou pelo retiro no monte LaVerna; tinha várias camadas de cargas como essas para se desfazer.

Ao chegar a casa de Amata, encontrou todo mundo reunido no grande salão, e a refeição já pela metade. A mesa dos criados estavam sentados os quatro homens que carregavam a maca perto da igreja de baixo naquela manhã. Mais de perto, pôde finalmente reconhecer o que lhe parecera familiar, o criado de Rosanna o mesmo que toda semana levava alimento para ele na cabana da montanha.

Conrad encaminhou-se depressa, cheio de expectativa, para a mesa principal, reservada para a família e os convidados especiais, mas Rosanna não estava lá. Deixou cair os ombros. Reconheceu o quanto ficara desapontado; era a mesma sensação que experimentara antes, naquela manhã em que partiu para o mosteiro e Rosanna não pudera se despedir dele.

Os olhares de Amata e Conrad se cruzaram, e ela acenou para o lugar que lhe estava reservado, entre ela e o conde Guido. Guido saudou o frade cordialmente e abriu mais espaço no banco, enquanto Amata fazia sinal para um ajudante da cozinha trazer mais um prato. Com a mente ainda girando com lembranças de seu eremitério, Conrad recordou-se naquele instante da adolescente de língua afiada que enchia a boca de uvas, uma atrás da outra, enquanto o repreendia em sua cabana. A jovem adulta ao lado dele era uma homenagem viva à sabedoria e à paciência de Donna Giacoma.

Eu lhe prometi uma surpresa, Conrad! — disse Amata. — Convidei Monna Rosanna para vir a Assis para o dia santo, embora eu não soubesse que ela estava doente. Esperamos que, pela intercessão das chagas de São Francisco, ela consiga uma cura durante sua permanência aqui.

— O estado dela é grave? — indagou Conrad.

A tristeza anuviou o rosto de Amata.

— Muito grave. A pessoa que aplica ventosas acha que ela não conseguirá sobreviver, a não ser por milagre. Muitos partos difíceis. É a bênção e a maldição das mulheres. — Conseguiu dar um leve sorriso presciente, reconhecendo que dentro de um ano a sua vida poderia estar suspensa por um fio entre a maravilha e o perigo mortal da gravidez e do parto.

Conrad enterrou a cabeça nas mãos e rangeu os dentes. A companheira mais querida de sua infância, obrigada a sofrer porque o marido tinha a auto-disciplina de um animal no cio! Não houvera um ano sequer desde o casamento em que ela não estivesse grávida. Embora zangado, frustrado e sentindo-se impotente, uma parte de si foi forçada a admitir que Rosanna e Quinto tinham Apenas cumprido o preceito bíblico de crescer e multiplicar-se. Teria a vida dela sido diferente caso tivesse se casado com alguém como ele?

Amata deu lhe um gole de sua taça. Tocou no braço de Conrad e acrescentou:

— Ela tem perguntado por você desde que chegou.

O frade imediatamente começou a se levantar, antes mesmo que a criada viesse com a comida, mas Amata apertou um pouco mais o braço dele.

— Ela está descansando confortavelmente, Conrad. Jante primeiro e nos conte sobre seus planos. Gostaríamos que ficasse conosco por um tempo. A sua companhia também seria benéfica para Jacopone. — E fez um gesto com a cabeça em direção a um banco de madeira que ficava abaixo de uma das tapeçarias do salão.

Teresina já tinha terminado de comer e estava ao lado do pai, com a cabeça apoiada no ombro dele e segurando sua mão enorme em suas duas pequeninas mãozinhas. O penitente girava a cabeça, sem energia.

A imagem da recaída entristeceu Conrad. Levou as mãos ao rosto, cobrindo-o por um momento, depois explicou que deveria viajar na manhã seguinte.

— Só me resta oferecer um conselho, Amatina — disse. — Faça com que Sior Jacopone escreva alguma coisa. Como seu notário, ou anotando os próprios poemas, copiando, seja lá o que for. Ele tem a sensibilidade nervosa dos artistas. Para essas mentes angustiadas, escrever é o melhor purgativo, talvez o único. Ele poderia até tentar morar no nosso mosteiro em Todi. Todos lá o conhecem, e foi bem respeitado antes que a loucura tomasse conta de seu espírito.

Conrad podia ver que sua resposta deixara Amata decepcionada, mas o papa havia ordenado a sua viagem e, acima de tudo, seu próprio espírito necessitava de cuidados. Sentiria saudades do carinho de todas essas pessoas, mas sabia que deveria renunciar a elas. Encontrava-se numa das encruzilhadas da vida, com mais uma irrevogável mudança de rumo em vista. Enquanto tomava seu caldo, Conrad pensou mais uma vez em Rosanna, a quem ele já havia renunciado duas vezes — quando fora para o mosteiro e ficara sabendo do noivado dela e, mais recentemente, quando abandonara sou eremitério para voltar a Assis. Agora, era provável que tivesse de deixá-la pela terceira e talvez última vez.

Naquela noite, a sopa não teve cheiro nem sabor para ele, e quase não percebia a conversa ao seu redor. Sua consciência já ia longe, para alguma noite escura, acenando para que sua alma a seguisse, e depressa. Sua mente parafraseava um verso curto de um poema popular: Despedi-me de meus amigos e embrenhei-me no outono de LaVerna. Mal tinha tocado a comida quando os criados responsáveis pela cozinha começaram a limpar o salão.

Amata permaneceu a mesa enquanto os outros foram em busca de seus colchões de enrolar.

— Conrad? — disse baixinho. — Se você não quer comer, vamos ver Rosanna agora. Mas antes de nos desejarmos boa noite, prometa-me que não vai desaparecer ao amanhecer, como fez no dia que foi embora para San Lazzaro.

— Prometo, Amatina.

Fez uma pausa e acrescentou:

— Espero que Deus guie meus passos para cá mais uma vez, mas por agora não posso prever nada além de LaVerna.

As palavras lhe faltavam, mas sabia que precisava dizer algo. Tentou explicar:

— Vou sentir saudades de vocês todos, saudades imensas, mas a separação será mais fácil porque sei que finalmente está vivendo na paz que Giacomina desejava para você, que todos nós queríamos que tivesse.

Mas ele desconfiava que não seria tão fácil como dizia. Separar-se de Amata poderia ser tão triste quanto a outra despedida que estava prestes a enfrentar.

Ele não opôs resistência quando ela lhe tomou pela mão e o levou para o mesmo quarto onde ele havia estudado os manuscritos. Ao parar na entrada, Amata sussurrou:

— Orfeo está esperando por mim — e voltou discretamente para o salão.

A lareira acesa no canto do quarto deixava escapar um filete de fumaça que subia pelas pedras da chaminé e ia para o teto, exatamente como ele se lembrava; mas a mulher deitada num colchão sobre o piso respirava sem dificuldade. Suas pálpebras estremeceram, depois se abriram ao perceber alguém a porta.

— Sou eu, Conrad.

O brilho alaranjado do fogo refletiu-se na névoa úmida que se formara nos olhos da mulher.

— O que fizeram com o meu amigo? Amata me avisou que você tinha mudado muito na prisão, mas nunca poderia imaginar...

Conrad ajoelhou-se ao lado do catre e tocou-lhe os lábios com o dedo.

— Dizem que Deus trata mal àqueles a quem ama; do mesmo jeito que as crianças tratam seus brinquedos favoritos. Devemos ser muito amados, você e eu, Rosanna.

Tomou-lhe a mão, num movimento instintivo, como se ainda tivessem dez anos, surpreendendo-se com a naturalidade do gesto.

— Amata disse que estava esperando por mim.

Ela virou a cabeça, com os olhos voltados para a fumaça lá no alto.

— Queria suas preces para libertação da minha alma e para a proteção de meu marido e filhos quando eu partir. Eu sei que vou morrer, Conrad.

Ele mal sentia a fraca pressão dos dedos dela na palma de sua mão.

— Também preciso confessar uma coisa — arrematou ela.

Conrad soltou-lhe a mão e assumiu uma posição mais ereta. Rosanna riu baixinho na penumbra.

— Não, não, nada tão formal assim. Confessei-me com o padre de Ancona antes de deixar a cidade, caso a viagem acabasse sendo dura demais para a minha saúde. Com você, a confissão é apenas entre amigos. Por favor, segure minha mão de novo.

Ele obedeceu, mas dessa vez segurou-lhe a mão de modo mais acanhado.

— Durante todos esses anos de meu casamento com Sior Quinto — continuou Rosanna — estive apaixonada por outro homem. Isso escandaliza você?

A respiração de Conrad ficou suspensa por um momento. Não fosse pelo débil estado de saúde dela, soltaria sua mão. Embora ela tivesse afirmado se tratar de uma limpeza de consciência informal, ele reagiu como um padre severo.

— Você o amou no sentido carnal? — perguntou, receoso da resposta.

De novo Rosanna deu uma risadinha, o som saindo em tênues sopros de ar.

— Não. Apenas nas minhas fantasias de menina. E agora nos meus sonhos de mulher madura. Acho que ele é o tolo mais ingênuo que existe, por jamais ter percebido nenhum dos indícios.

— Você o conhecia quando era menina? Por que não declarou seus sentimentos em vez de se casar com um estranho?

— Você bem sabe que as filhas não têm direito de fazer escolhas matrimoniais, Conrad. Declarei, sim, meu amor a ele, para meus pais, na noite em que me avisaram que fora prometida em casamento a Quinto. Tive o pior dos acessos de raiva que você pode imaginar e jurei que só me casaria com... você. Por que acha que o levaram correndo para o mosteiro?

O colchão rangeu sob o esforço que ela fez para ficar de lado.

— E veja onde fomos parar. Dois velhos bonecos de trapos aos frangalhos, que deveriam ter formado o casal mais feliz do mundo. Sei que você também me amou, mesmo que tivesse sido apenas um amor de adolescente.

O aperto em sua garganta o impediu de responder. A lua nascente iluminou um canto do quarto, insinuando-se através das folhagens e de uma brecha na parede. De repente, ele reconheceu a solidão de sua vida inteira naquele único e pálido raio de luar.

— Fale, Conrad. Deixe-me dizer addio a você em paz.

Apertou a mão dela entre as suas, acompanhando os dedos frágeis da mulher com as pontas dos seus. Falou, enfim, com voz rouca:

— Sabemos que nossas almas não morrem, Rosanna. Não devemos dar tanta importância assim a dizer adeus. Conversaremos outra vez um dia, num lugar mais feliz.

— Diga, Conrad. Por favor.

Ele tento se levantar, mas a mão dela o reteve:

— Conrad!

Ele soltou-lhe a mão e pousou-a sobre o corpo dela.

— Deus sabe como a amei, Rosanna. Até este instante, só Deus sabe que nunca deixei de amá-la. Só agora me dou conta disso. — Sorriu. — Acho que isso prova que sou mesmo um tolo ingênuo, como você diz.

Tocou com os lábios a testa úmida de Rosanna; depois, passou as mãos por baixo dos ombros dela e soergueu-a do colchão. Segurou-a contra seu peito por um longo momento, lutando contra as lágrimas. Deitou-a no colchão, e dessa vez permitiu que seus lábios tocassem os dela.

— Obrigada Conrad — sussurrou ela.

— Addio, Rosanna. Adeus, minha amiga.

Num esforço, ficou de pé e andou com dificuldade para a porta, onde parou vacilante. Apoiou-se no umbral e levantou os olhos para o céu que brilhavam além do claustro. Fez um leve gesto de cabeça para as estrelas e disse:

— Vejo você lá.

 

Em um impulso, Conrad atravessou o portal. Seguiu a trilha do luar e foi até o pátio de Amata. Lá, a luz resplandeceu em sua barba prateada, atraindo uma chuva de mariposas claras, que dançaram em volta de seu rosto e depois pousaram em seu cabelo. Desejou poder fincar raízes ali, no meio dos escombros deixados pelo incêndio, criando musgo como um carvalho venerável, servindo de lar para milhões de besouros e de sombra ao tranqüilo ambiente familiar de Amata, com suas folhagens, seu tronco e seus galhos sendo escalados pelos alegres bambinos dela.

Sua peregrinação, porém, não lhe permitia essa vida de prazer. Seu destino estava bem distante dali. Não só o monte LaVerna, uma simples parada no meio do caminho, mas nada menos do que o reino de Deus — escondido dentro de si, como Jesus ensinara.

Amanhã transmitiria o fardo de Leo para o companheiro que escolhera para a viagem: o frade da geração futura, frei Ubertino. Em toda aquela busca, não havia encontrado Deus, nem mesmo na túnica cinzenta e remendada que agora lhe cobria o corpo trêmulo. Sabia que o Pai habitava um lugar bem mais profundo do que todas as batalhas dos homens, do que aquele pedaço de pergaminho carbonizado que guardava no bolso e que representava a pureza da alma da Ordem, e até mesmo do que a imensa basílica que desalojara essa mesma alma. Muito além de qualquer coisa que Conrad pudesse nomear ou pensar, do que a sua mais inteligente noção de um Deus, que era apenas uma invenção.

Teve certeza de que o caminho para Deus iria desaparecer em mistério, talvez num lugar de absoluto nada, ainda que certamente não seria um lugar, e nem mesmo um vazio — nada além do puro amor. O Apóstolo, inspirado pelo espírito Santo, profetizara: "Deus é Amor"

E lá, no âmago do Amor Original, Conrad sabia que encontraria Rosanna unira vez.

 

Depois de sua temporada no monte LaVerna, frei Conrad da Offida ficou ou famoso como pregador itinerante e visionário. Permanentemente devotado à causa da facção Espiritual de sua Ordem, morreu em 1306 no mosteiro Santa Croce, em Bastia, e mais tarde foi beatificado. Um contemporâneo seu, frei Angelo Clareno, afirmou que Conrad usou a mesma túnica por cinqüenta anos, um duplo tributo à teimosia e resistência tanto do homem quanto do tecido. Dezesseis anos após sua morte, ladrões de Perúgia roubaram os ossos do beato Conrad e os guardaram em relicários em sua cidade.

Ubertino da Casale se tornou líder dos Espirituais nos últimos anos de l200. Na sua obra Arbor Vitae (A árvore da vida), ele faz menção ao manuscrito desaparecido de Leo. Ubertino citou algumas passagens do manuscrito que lhe foram transmitidas por frei Conrad, mas foi chamado de mentiroso por não mostrar o verdadeiro texto, que permanece desaparecido até hoje.

Em 1294, o cardeal Benedetto Gaetani foi eleito Papa Bonifácio VIII e mergulhou o papado na pior e mais longa crise de sua história. Admitindo-se que o raciocínio de Conrad estivesse correto, o de que as profecias do abade Joachim de Flora de fato apontavam para o ano de 1293, torna-se plausível que Bonifácio representasse a chegada da Abominação da Desolação prognosticada pela visão do abade.

Jacopone da Todi entrou para a Ordem Franciscana em 1278. E também se tornou um líder entre os Espirituais. Suas poéticas Laudas, escritas no vernáculo, conquistaram-lhe o amor do povo e o desdém de um poeta rival, Dante Alighieri. E, pelo fato de Jacopone atacar com todas as forças a corrupção dentro da Igreja, o Papa Bonifácio VIII o encarcerou na masmorra papal. Mas esta é uma outra história.

No ano em que seu pai entrou para o mosteiro, a adolescente Teresina viajou com Orfeo, Amata e os quatro filhos deles para Palermo, Sicília, onde Orfeo montou um posto avançado, negociando por todo o Levante, pouquíssimos anos antes das Vésperas Sicilianas — e esta também é uma outra história.

Em 14 de abril de 1482, o Papa Sisto IV canonizou o antigo ministro geral, frei Bonaventura. Além disso, em 1588, o Papa Sisto V proclamou santo um Doutor da Igreja, com o título especial de Doutor Angélico.

Em 1818, um grupo de operários que cavava na cripta sob a igreja de baixo da Basílica de São Francisco descobriu os restos mortais do santo — quinhentos e cinqüenta anos depois de terem desaparecido. As relíquias jamais foram analisadas para se verificar a existência de sinais de lepra.

 

* É bom, belo e branco, forte e orgulhoso, fino e franco, frio e fresco e buliçoso. Em português, seriam quatro "Bs" e cinco "Fs" portanto. (N. do T.)

 

 

                                                                                John Sack

 

 

                      

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