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VIA MASCAGNI
O despertador tocou às seis horas da manhã. Liliana travou-o imediatamente para não perturbar o sono do marido. Deslizou para fora da cama e saiu do quarto sem fazer barulho. O contacto dos pés descalços com o mármore do pavimento fê-la estremecer enquanto atravessava o vestíbulo para desactivar o alarme. Depois entrou na casa de banho. A água tépida do chuveiro deu-lhe alguma energia, sem conseguir dissipar a tensão acumulada nos dias anteriores. Também naquela noite tinha dormido poucas horas, e com a ajuda de um calmante. Vestiu um roupão macio e, com uma toalha pequena, esfregou o cabelo curtíssimo, escuro. Calçou os chinelos de veludo e foi até à cozinha. Levantou as persianas e abriu a janela. Minnie, a gata, deu um salto de cima do balcão, onde gostava de passar a noite, aterrou aos pés dela e, arqueando a espinha, começou a esfregar-se contra as suas pernas. O ar carregado de humidade daquela manhã quente de Julho invadiu o aposento, anulando a frescura do ar condicionado.
Liliana deu um biscoito a Minnie, enquanto preparava o habitual café americano, comprido e abundante, que foi tomar na varanda.
Observou os pássaros que esvoaçavam a chilrear pelo meio das árvores do jardim, lá em baixo, para lá do qual se estendia a via Mascagni onde, em volta do camião da limpeza, os lixeiros conversavam em voz alta. O céu opaco anunciava mais um dia tórrido. Não era o ar abafado do Verão de Milão que oprimia Liliana, mas sim a lembrança daquela mensagem que tinha encontrado alguns dias antes, bem à vista, em cima da secretária do escritório. Poucas linhas, escritas em letra de imprensa: VAIS PAGAR CARO, VAIS PAGAR TUDO, SERVA DO ESTADO. Uma estrela e a assinatura BRIGADAS VERMELHAS concluíam o texto.
A estratégia da tensão espalhava-se no país com atentados a jornalistas, empresários, intelectuais, magistrados, sindicalistas e grandes directores de empresas.
Liliana leu aquelas palavras e empalideceu. Depois foi ao gabinete do director da Collenit, a empresa para a qual trabalhava como directora de pessoal, e mostrou-lhe
o papel.
Ele recorreu à polícia, que constatou a autenticidade da ameaça e destinou a Liliana uma segurança armada. Há três dias que dois polícias a escoltavam para todo
o lado com um carro de serviço.
Liliana acabou de saborear o café, voltou a entrar na cozinha e fechou a janela. O ar condicionado fez-se sentir imediatamente. Foi até ao quarto de vestir e sentou-se
ao toucador. Ao lado do telefone havia uma moldura com a fotografia de Stefano, o filho de onze anos que estava na praia com a avó, a tia Rosellina e os primos,
filhos do seu irmão Pucci. Observou-a, pensativa, depois levantou o auscultador e marcou o número da villa de Forte dei Marmi, na Versilia. Sabia que a mãe se levantava
cedo, de manhã. Com efeito, atendeu ao primeiro toque.
- O teu filho ainda está a dormir. E os outros também, felizmente - disse.
- O que é que estás a fazer, mãe? - perguntou Liliana.
- Estou a preparar as sanduíches para o almoço na praia e, quando as crianças se levantarem, vou resmungar, vou distribuir umas sapatadas e vou implicar com a tua
irmã Rosellina, que é uma mandriona. Espero ver-te a ti e à família toda no fim-de-semana - respondeu, com o ar severo de sempre, sem ousar perguntar-lhe a razão
daquele telefonema a uma hora tão insólita. Geralmente só se falavam ao fim do dia, quando Liliana dava as boas-noites a Stefano.
- Tenho saudades do meu menino - sussurrou Liliana.
- Não inventes histórias. Se assim fosse, estavas aqui, ou então ele estava contigo em Milão. A verdade é que quiseste tornar-te uma mulher de poder, em vez de te
contentares com um bom trabalho que te permitisse estar perto do teu filho - censurou.
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Era a acusação que a mãe lhe repetia há anos, enquanto Liliana se obstinava a querer demonstrar que uma mulher pode construir uma carreira sem descurar a família.
- Está bem, mãe - rematou, e prosseguiu: - Diz ao Stefano que estou aí dentro de dois dias e que gosto muito dele.
- O amor demonstra-se com actos, não com palavras - interveio Sandro atrás dela, no momento em que pousava o auscultador.
Ela olhou para a imagem do marido no espelho. Vestia um roupão de seda estampada e tinha ainda o cabelo cinzento despenteado. Era um homem não muito alto, magro,
com um olhar doce e reflexivo. Tinha cinquenta e cinco anos, mais dezassete do que ela, e era a única pessoa de quem Liliana aceitava observações e críticas, sempre
calmas, sem reagir. Também desta vez não replicou.
Espalhou no rosto um creme hidratante, ao mesmo tempo que ele lhe pousava as mãos nos ombros e se inclinava para lhe dar um beijo no cabelo.
- És tão bonita, e eu sou um velho estúpido loucamente apaixonado por ti - sussurrou-lhe.
Os grandes olhos cor de âmbar de Liliana brilharam de ternura.
- É verdade - respondeu, a sorrir.
- O quê? - perguntou ele, acariciando-lhe o pescoço.
- Que eu sou bonita e que tu és o meu estúpido velho marido
- tentou brincar, sem conseguir esconder uma nota de ansiedade na voz. - Mas que sentido teria a minha vida sem ti? - perguntou-lhe, virando-se para o olhar nos
olhos.
- Às vezes penso que podias ter arranjado um companheiro mais jovem e brilhante - observou ele.
O toque da campainha da rua impediu Liliana de lhe responder.
- Os teus paladinos chegaram - anunciou Sandro.
Eram os polícias que a vinham buscar para a levarem até à via Paleocapa, aos escritórios da Collenit.
- Manda-os entrar, por favor, enquanto eu acabo de me vestir.
O marido assentiu. Quando ia a sair do quarto de vestir, dedicou-lhe um sorriso de encorajamento. - Está sossegada, minha pequenina, também desta vez te vais safar.
Sandro tinha razão. A vida tinha-a submetido a muitas provas, muito duras, que Liliana superara enfrentando-as com coragem
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e determinação. Mas nunca tinha recebido uma ameaça de morte. Poucos dias antes de encontrar a mensagem das Brigadas Vermelhas, o director de pessoal de uma grande
empresa tinha sido morto pelos brigadistas com um tiro de pistola quando ia a sair do metropolitano. Pela primeira vez na sua vida, Liliana sentia medo e não sabia
como reagir.
Despiu o roupão e vestiu um tailleur de linho azul que realçava a sua silhueta esguia. Olhou-se no espelho: estava pronta para enfrentar o dia.
Foi ao escritório e recolheu os documentos sobre os quais tinha estado a trabalhar durante a noite, para formular uma série de propostas a discutir com os representantes
sindicais.
Quando estava a meter os papéis na pasta, o telefone tocou.
- Sim? - disse com uma voz hesitante.
- Como estás? - Era o pai.
- Nunca estive tão bem - mentiu. - E tu? - perguntou.
- Liguei-te para te fazer uma proposta: vamos à praia, ter com os meninos. Pedi dois dias de férias, por isso podemos meter-nos já ao caminho. Não é uma óptima ideia?
- perguntou Renato Corti. Sabia que a filha estava em perigo e tentava afastá-la de Milão.
- É difícil recusar uma proposta tão aliciante - respondeu Liliana.
- Então vamos embora.
- Pai, estou a acabar uma negociação extenuante com os sindicatos. Se hoje tudo correr como espero, consigo encerrar a questão. Não me posso ir já embora.
O pai suspirou.
- Pai, ouviste-me?
- Gosto muito de ti - disse ele, e acrescentou: - Os teus anjos da guarda já chegaram?
- Estão à minha espera no vestíbulo.
- Liliana, não baixes a guarda. Os lobos maus são capazes de tudo para te despedaçarem.
- Está sossegado, pai, eu estou bem protegida. Um beijo.
- Tem um bom dia - respondeu Renato.
Pouco depois Liliana estava no elevador com os guarda-costas e recapitulava o esquema que se tinha proposto seguir nas negociações com os sindicatos.
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Precedida por um dos polícias - o outro estava ao lado dela - atravessou o átrio do edifício e chegou à porta que se abria sobre um curto lanço de escadas. O carro
blindado estava parado junto ao passeio e o motorista mantinha o motor ligado.
Não andava ninguém por ali.
Do outro lado da rua, apenas um lixeiro que tinha acabado o seu trabalho enfiava o apanhador no contentor de lixo, que estava aberto.
Liliana saiu com o polícia, que mantinha a porta aberta, e desceram os dois rapidamente os poucos degraus da escada. Ouviu um grito - "Para o chão!" - e três tiros
de pistola seguidos. Deu por ela deitada no passeio, esmagada pelo corpo do polícia que lhe gritava: - Fique quieta!
O falso lixeiro que tinha disparado saltou para cima de uma motoreta que apareceu de repente, conduzida por um homem de carapuço, e partiu a grande velocidade.
Liliana sentiu uma dor lancinante na perna esquerda que a fez perder os sentidos.
Tinha acontecido tudo em poucos segundos.
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SiTO DELLA GUASTALLA
Portanto, foi atingida por três projécteis - constatou o professor Nelson De Vito, que a tinha escutado em silêncio.
- Só dois, Sr. Professor: um trespassou-me a barriga da perna e o outro esmigalhou-me o perónio. O terceiro matou o polícia que ia à minha frente. Quando recuperei
os sentidos estava numa ambulância que me transportava para a clínica, de sirene ligada, e eu a gritar com dores - explicou Liliana, enquanto deslizava a mão pela
perna esquerda, sulcada por uma cicatriz muito fina. E acrescentou: - A recordação daquela violência acompanha-me já há mais de vinte anos.
O professor Nelson De Vito, um homem de sessenta anos, de rosto gorducho e olhos azuis muito vivos, era um excelente psiquiatra. Filho de um jornalista napolitano
e de uma pediatra inglesa, tinha nascido em Londres, onde os pais viviam e trabalhavam. Depois da licenciatura em Medicina, foi para os Estados Unidos fazer a especialização
em Psiquiatria e ali ficou a trabalhar em vários hospitais. Em Boston conheceu Maria, uma rapariga italiana, com quem se casou.
Cinco anos atrás tinha vindo a Itália com a mulher para dar assistência ao pai, que estava a morrer numa clínica de Milão. E nunca mais regressou. Arranjou uma casa
na via San Barnaba e abriu um consultório no Sito della Guastalla. Era um homem metódico e tranquilo que dedicava o seu tempo ao estudo, aos doentes e aos afectos
familiares.
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Às sete horas da tarde de um dia gélido de Fevereiro, enquanto a cidade festejava o Carnaval, acabou de se despedir de um jovem em grave depressão. Depois de limpar
cuidadosamente o cachimbo e organizar os seus apontamentos, olhou em volta para verificar se estava tudo em ordem. Era um bonito consultório: tinha as paredes revestidas
de estantes, luzes difusas, um pequeno divã de couro, duas poltronas confortáveis forradas de veludo azul e uma grande secretária antiga com alguns papéis rigorosamente
empilhados. Estava tudo direito. A seguir ligou o telemóvel e meteu-o no bolso do casaco. Naquele momento ouviu um som de passos que provinha do vestíbulo. Rita,
a secretária, tinha saído às seis horas, depois de ter mandado entrar o último paciente do dia. O professor saiu da divisão e encontrou-se frente a frente com uma
desconhecida. A mulher, já não muito jovem, decididamente bonita, alta, magra, envolvida num casaco de peles claro, fitava-o com uns olhos inquietos. O cabelo curto,
cinzento, com grandes traços brancos, deixava o rosto a descoberto.
- Boa-noite - disse-lhe.
A porta do elevador, que dava directamente para o vestíbulo, estava entreaberta e pensou que a mulher se tivesse enganado no andar.
- O senhor é o professor De Vito? - perguntou a mulher. Portanto, a visitante inesperada não se tinha enganado: procurava-o mesmo a ele. Nelson anuiu.
- O consultório está fechado, minha senhora - anunciou.
- Eu sei. O porteiro disse-me. No entanto, preciso absolutamente de falar consigo - replicou a mulher.
- Telefone na segunda-feira de manhã para a minha secretária e peça para lhe marcar uma sessão - acrescentou Nelson.
- Já fiz isso. A sua secretária propôs-me uma data impossível: Maio. Estamos em Fevereiro e eu não posso esperar tanto tempo. Preciso da sua ajuda agora - insistiu.
Nelson dedicou-lhe um sorriso afectuoso.
- É a signora... - perguntou, deixando a interrogação em suspenso.
- Desculpe, nem sequer me apresentei. Chamo-me Liliana Corti
- e estendeu-lhe a mão, que Nelson apertou. Logo a seguir tirou
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o casaco de peles e pousou-o num cadeirão, como se o médico a tivesse convidado a ficar.
Naquele momento, libertou-se dela o perfume quase imperceptível de uma flor muito comum no campo inglês, a primavera. Lily of the Moor, pensou Nelson, o mesmo perfume
de Evelyn, a sua mãe, que tinha nascido e crescido numa aldeia da Cornualha, para onde voltara depois da morte do marido.
O professor pensou que a mulher estava à espera dele em casa e que tinha de se despachar porque naquela noite, como todas as sextas-feiras, havia convidados para
o jantar. No entanto, o olhar sofredor de Liliana e aquele perfume familiar levaram-no a ficar. Fechou a porta do elevador e disse: - Faça o favor, signora - indicando-lhe
o consultório com um gesto largo.
Enquanto a mulher atravessava o aposento, Nelson reparou no seu andar ligeiramente vacilante.
Liliana trazia um pullover azul-celeste e uma saia justa, cor de tabaco, que sublinhava o corpo elegante e as pernas bem modeladas. Sentaram-se um em frente ao outro,
dos dois lados da secretária. -
Ela olhou-o nos olhos durante muito tempo, em silêncio. Depois disse: - Não consigo dominar a minha vida. Sinto-me como um navio que está prestes a afundar, derrubado
pelas ondas do mar em tempestade. É uma angústia terrível, que me corta a respiração.
- Há quanto tempo sofre desse distúrbio? - perguntou o médico.
- Os primeiros ataques de pânico tive-os logo a seguir ao atentado. A angústia já me persegue há uma vida.
E contou-lhe a emboscada das Brigadas Vermelhas.
- O seu telefone está a tocar - avisou Liliana, interrompendo o que estava a dizer.
- Daqui a pouco vai parar - tranquilizou-a o professor.
No gabinete de Rita entrou em funções o gravador de chamadas. Nelson tinha a certeza de que era a mulher a tentar ligar-lhe, preocupada por ele não ter ainda regressado
a casa. Dali a pouco tocaria o telemóvel, pensou. Por isso desligou-o. Nunca atendia o telefone durante as sessões com os seus pacientes, e Liliana tinha entrado
na lista das pessoas a tratar. Tirou da gaveta da secretária uma folha impressa, na qual inseriu o nome da nova paciente, e que a seguir lhe entregou.
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- Devido à lei sobre a privacidade, é necessário que tome conhecimento destas cláusulas estúpidas e que me autorize a tratar o
seu caso.
Liliana apressou-se a assinar.
- Sou advogada. Conheço este texto de cor - explicou, enquanto lhe restituía a folha. E continuou a contar. - Formei-me com vinte e três anos. Tinha muita pressa
em queimar etapas para ajudar os meus pais, que tinham feito muitos sacrifícios para me porem a estudar, a mim e aos meus irmãos. Eram operários. Olhe, veja isto
- disse, mostrando um patético relogiozinho de ouro que tinha no pulso, em contraste com o precioso diamante amarelado que brilhava no dedo anelar. - Foi a minha
mãe que mo deu e acho que para isso teve de abdicar de muitas coisas. Tinha eu então treze anos.
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CORSO LODI
Ernestina e os quatro filhos estavam sentados à volta da mesa da cozinha, coberta com uma toalha de oleado aos quadradinhos azuis e brancos. O jantar era arroz branco,
temperado com folhas de salva salteadas em manteiga, e puré de batata. Era uma comida saborosa e económica, que saciava toda a gente.
As crianças comiam em silêncio. Sentiam a preocupação da mãe que, de vez em quando, olhava para a cadeira vazia do marido.
No silêncio da cozinha ouvia-se o tilintar dos talheres, o tiquetaque do relógio em cima do balcão e o crepitar do carvão no fogão que aquecia, para além da cozinha,
uma pequena casa de banho e dois quartos: o de Ernestina e do marido e o das filhas, Liliana e Rosellina. Os rapazes, Giuseppe e Palmiro, cujos nomes tinham sido
escolhidos pelos pais em honra de Di Vittorio e de Togliatti, (1) dormiam na cozinha em duas camas de desarmar que durante o dia ficavam encostadas a uma parede.
Para aliviar a tensão, Liliana declarou:
- Gostava de ser rica para poder devorar costeletas à milanesa e vitela assada. Já estou farta de massa, de arroz e de batatas.
Liliana era a mais velha dos quatro filhos. Tinha treze anos e estudava com excelentes resultados. Os irmãos respeitavam-na e temiam-na um pouco, porque às vezes
era mais severa do que a mãe. Naquele momento tinha exprimido um desejo partilhado por todos.
1 Nome de dois heróis antifascistas italianos. (N. da T.)
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Ernestina saltou como uma mola e, através da mesa, deu-lhe uma bofetada que despenteou os cabelos escuros da filha.
- O teu protesto é um insulto a mim e ao teu pai, e um péssimo exemplo para os teus irmãos - censurou-a, com menos convicção do que quando lhe tinha batido.
Ernestina sentia-se culpada por não conseguir controlar o seu permanente estado de angústia. Estava sempre inquieta por causa do marido, que definia como "uma cabeça
quente". Renato Corti era um bom pai e um companheiro fiel, mas a fábrica, o sindicato e a Casa do Povo eram os seus interesses primordiais. Não perdia um comício,
marchava na primeira fila nas manifestações e distribuía panfletos em frente aos portões e nos vestiários da empresa onde trabalhava. Por isso, Ernestina vivia sempre
no terror de vir a ter um marido desempregado ou, pior ainda, preso durante uma das muitas manifestações em que participava.
Renato trabalhava na Righetti-Magnani desde a segunda metade dos anos trinta. Ali conhecera Ernestina e foi amor à primeira vista. Casaram-se à pressa, pouco antes
do nascimento de Liliana. Quando a Itália entrou em guerra, ele não foi recrutado porque os seus dois irmãos mais velhos estavam já a combater. Em vez disso, foi
obrigado a trabalhar naquela fábrica, que produzia material bélico. Ela confeccionava espoletas para as bombas, ele torneava as cápsulas dos projécteis.
Na fábrica, Renato tinha aderido a um comité que incitava os operários a diminuir a produção destinada ao exército alemão. Se fosse descoberto, seria deportado para
a Alemanha. Ernestina sabia disso e tremia de medo.
- Maldito o dia em que te deixei agarrar-me no meio dos caixotes! E depois tive de casar contigo! - desabafava, quando estavam sós.
- Mas gostaste! Gostaste e de que maneira - replicava ele, inchado de orgulho.
Renato era um rapagão, forte e bonito. Ela enlouquecia de satisfação entre os seus braços. Ele, enquanto a mantinha apertada e a cobria de beijos, contava-lhe os
seus sonhos de paz, de festa e de abundância. Ernestina acreditava. Mas eram apenas alguns instantes de felicidade naqueles anos de guerra, com um marido que tinha
a coragem de fazer greve numa cidade invadida pelos nazis. Depois
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a guerra terminou. Foram dias de euforia, mas a abundância acabou por nunca chegar. Ela teve quatro filhos e Renato continuou a anunciar-lhe um mundo melhor.
Agora estava incomodada por ter dado uma bofetada a Liliana e sorriu-lhe como se quisesse desculpar-se.
No entanto, foi a filha que murmurou: - Desculpa, mãe.
Ernestina abanou a cabeça e levantou-se da mesa. Cobriu os ombros com um xaile e foi até à varanda espreitar para o pátio, à espera de ver o marido chegar.
Naquele dia tinha havido uma greve geral contra o governo, convocada por todos os sindicatos. Os políticos no poder continuavam a ignorar os pedidos dos operários,
que reclamavam uma maior equidade salarial, e favoreciam os patrões. Renato, como muitos dos seus companheiros, tinha participado numa manifestação de protesto e
ela não ia ficar sossegada enquanto não o visse regressar. Até porque, em caso de desordem, a Celere 2, criada em
1949, usava bastões para dispersar os manifestantes e Renato já tinha sido atingido mais do que uma vez.
Enquanto ali estava, ansiosa, apoiada ao corrimão, Ernestina sentiu uma mão pousar-lhe no ombro.
- Vá lá, mãe, anda para casa. O pai deve estar a chegar - disse Liliana.
- Estou sempre nervosa. E isso não é bom nem para ti nem para os teus irmãos - sussurrou ela.
- Nós não ligamos a isso - disse a filha, para a tranquilizar.
Ernestina observou as janelas iluminadas que davam para o
pátio. Naquele prédio viviam, com as respectivas famílias, um alfaiate, uma costureira, um funcionário dos caminhos-de-ferro, um jardineiro e um enfermeiro do centro
de saúde. Tudo pessoas honestas e tranquilas. A única "cabeça quente" era o seu marido, pensou com raiva.
- Vamos para casa, mãe. Aqui a gente gela - insistiu Liliana.
- Está bem, vamos lá entrar - suspirou, resignada.
Ernestina trabalhava nove horas por dia numa fábrica de malhas onde tinha arranjado emprego logo depois do nascimento de
2. Corpo policial armado usado sobretudo para reprimir manifestações. (N. da T.)
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Rosellina, a última dos seus filhos. Quando regressava a casa, tratava deles e do trabalho doméstico. Mas não era o cansaço físico que a deixava nervosa. Era antes
o sentir-se prisioneira de uma situação sem saída. Tinha acreditado num futuro tranquilo ao lado de Renato, um homem extraordinário que, porém, nunca lhe garantiria
nenhuma estabilidade.
Na cozinha, Giuseppe estava a levantar a mesa. Tinha dez anos e desempenhava de boa vontade as pequenas tarefas domésticas.
Ernestina voltou a pôr o jantar do marido em cima do balcão. Já eram quase nove horas.
- Agora vão todos dormir - ordenou.
- Eu quero esperar pelo meu pai - protestou Rosellina.
Tinha cinco anos, era muito engraçada e toda a família lhe dava mimo.
Ernestina não admitia que os filhos lhe desobedecessem. Por isso fulminou a pequena com um olhar carregado e ela dirigiu-se rapidamente ao seu quarto. A mãe sorriu-lhe
e meteu-lhe um rebuçado na mão.
Os rapazes armaram as camas e, naquele momento, Renato escancarou a porta de casa. Tinha uma face inchada, que lhe alterava as linhas harmoniosas do rosto, e do
gorro de lã que lhe cobria a cabeça aparecia a ponta de um adesivo. Os lábios, porém, estavam entreabertos num sorriso radiante. Tinha o olhar vitorioso de um herói
que triunfou numa dura batalha. Abriu os braços como se quisesse apertar a família inteira contra o peito.
- Como é que está a minha tribo? - perguntou, feliz.
Ernestina respirou de alívio. Logo depois, a angústia que a tinha atormentado transformou-se em raiva.
- Vocês os dois, daqui para fora - ordenou aos filhos, indicando a porta do seu quarto.
Assim que os rapazes fecharam a porta, avançou para o marido e atingiu-o com uma bofetada pesada na face sã. Renato não fez nada para se esquivar à agressão, mas
foi rápido a agarrar-lhe o pulso. Levou aos lábios a mão da mulher e beijou-a.
- Deixei-te preocupada, lamento muito. Mas apanhei uma cacetada que me fez ver estrelas, minha querida Ernestina - disse-lhe, a sorrir.
Ela libertou a mão da do marido e virou-lhe as costas.
- Sentes-te mal? - perguntou, num tom rude.
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- Tenho sede - respondeu ele, sentando-se à mesa.
- Queres comer?
- Não tenho fome. Só quero água fresca.
Ela levou-lhe um copo de água, tirou-lhe o gorro de lã e afagou com ternura o curativo que lhe cobria a testa.
- Bateram-te outra vez - sussurrou. E acrescentou: - Estás a arder, como se tivesses febre.
- És muito bonita, Ernestina. E eu estou muito, muito apaixonado por ti. Quero-te tanto que até me dá vontade de chorar - disse baixinho.
Fê-la sentar nos seus joelhos e apertou-a nos braços com muita força.
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Liliana deitou-se. O quarto que dividia com Rosellina dava para a varanda. Era um aposento muito espartano que continha, para além das duas camas de ferro pintado,
uma mesa-de-cabeceira e um armário velho para pendurar os vestidos. Ernestina tinha tentado torná-lo mais acolhedor, forrando as paredes com papel florido.
A rapariga estava preocupada com o pai. Achava que aquele homem forte, bonito e sorridente devia ser dono do mundo. Mas não era assim. Liliana colocava a si própria
questões para as quais não encontrava uma resposta, e não conseguia conciliar o sono.
Levantou-se da cama e, em bicos de pés, foi à cozinha beber um copo de água. Palmiro, que todos tratavam por Pucci, e Giuseppe dormiam profundamente. Através da
porta fechada do quarto dos pais via-se um fio de luz. Ouviu a mãe que, em voz baixa, dizia a Renato:
- Estás a ver? Trinta e oito e meio. com um febrão destes, amanhã não podes ir trabalhar. - E acrescentava, com um tom afectuoso: - Vá lá, bebe o vinho quente. Vai-te
fazer suar e a febre desaparece.
- Tenho frio. Põe-me mais um cobertor em cima - pediu o pai.
- Tens os pés gelados. vou esfregá-los com força, para ver se aquecem.
Liliana sentiu que se tinha imiscuído na intimidade dos pais. Voltou rapidamente ao quarto e enfiou-se na cama, por baixo da coberta acolchoada. Recordou a ternura
com que a mãe cuidava do
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marido: nunca era assim tão meiga com os filhos. E com esta comparação adormeceu, finalmente.
Quando a mãe a sacudiu para a acordar, achava que tinha dormido apenas alguns instantes, embora fossem já seis e meia da manhã.
- vou trabalhar - anunciou Ernestína. - Recomenda aos teus irmãos que façam pouco barulho porque o pai está a dormir e eu não tive coragem de o acordar. Ontem à
noite estava com febre. Antes de ires para a escola, passa em casa do Fermo e diz-lhe que venha cá dar uma vista de olhos.
Liliana anuiu e levantou-se da cama. Depois de se ter lavado, vestiu a saia de flanela cinzenta às pregas e uma camisola com todos os tons do azul-escuro ao azul-claro
que a mãe lhe tinha confeccionado com restos de fios da fábrica de malhas. Escovou os cabelos e apertou-os com uma bandelete de metal dourado. Depois foi acordar
Pucci e Giuseppe.
Giuseppe era uma criança tranquila e simpática. Gostava de brincar com uma boneca que Liliana tinha abandonado há muito tempo e fazia-lhe roupas criativas com papel
amarrotado, demonstrando um notável bom gosto. Pucci, pelo contrário, tinha já revelado o seu aguçado espírito mercantil e trocava com os colegas de escola fisgas
e outros objectos, que construía sozinho, por livrinhos de cowboys e estojos de lápis.
Pucci e Giuseppe respeitavam a irmã mais velha, que nunca repetia duas vezes a mesma ordem. Por isso, quando os acordou, recomendando-lhes que fizessem pouco barulho
para não incomodar o pai, eles deslizaram para fora das camas e arrumaram-nas em silêncio. Depois de se lavarem e vestirem, sentaram-se à mesa em frente às tigelas
cheias de leite que Liliana tinha aquecido para eles.
As vossas pastas estão prontas? - perguntou a irmã, enquanto acabava de espalhar a manteiga nas fatias de pão.
ucci e Giuseppe anuíram.
Depois Liliana tratou de Rosellina, que foi ter com os irmãos à cozinha para tomar o pequeno-almoço.
Quando acabaram de levantar a mesa, vestiram os casacos e saíram todos juntos. Giuseppe e Pucci tinham de levar Rosellina à creche antes de irem para a escola. Liliana,
por sua vez, subiu ao terceiro andar e bateu à porta de Fermo, o enfermeiro. Foi uma senhora idosa, a mãe, quem veio abrir.
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- O meu pai não está bem. Será que pode pedir ao Fermo para ir lá vê-lo?
- Ele acabou de chegar do turno da noite. O que é que o Renato tem? - perguntou a mulher, curiosa.
- Não sei - disse a rapariga, dividida entre a preocupação com o pai e o receio de chegar tarde à escola.
- Ontem, durante a manifestação, foi muita gente parar à Urgência - acrescentou a mulher, repetindo aquilo que tinha acabado de ouvir do filho. - Também bateram
ao teu pai? - perguntou.
Liliana anuiu. O enfermeiro, chamado pela mãe, assomou à porta do quarto e ouviu o pedido de Liliana.
No bairro, toda a gente estava convencida de que Fermo era melhor do que um médico. Ia ver os doentes, dava injecções e media a tensão, tratava as feridas e sugeria
remédios. Era um homem muito generoso. Gostava de tocar guitarra e de recordar a mulher que, seis meses depois do casamento, tinha sido morta por um tiro perdido,
no fim da guerra.
- Eu trato do Renato. vou tomar um café e já desço - disse à rapariga.
Liliana foi para a escola com o coração mais leve. Era uma excelente aluna e naquela manhã a professora interrogou-a em Matemática, dando-lhe a nota máxima.
No fim das aulas, ao regressar a casa, foi fazendo como sempre projectos para o futuro. Muitas das suas colegas gostariam de vir a ser actrizes ou bailarinas, mas
ela sonhava ser a directora de uma grande biblioteca, como aquela onde tinha estado recentemente por causa de uma pesquisa sobre os himenópteros. Ou então via-se
na pele de uma corajosa exploradora que descobria um território desconhecido no coração da África. Naquela manhã pensou que gostaria de se tornar uma poderosa personagem
política para eliminar a injustiça social, como o pai a definia.
Liliana apercebia-se da diferença que existia entre ela e algumas das suas colegas, que usavam casacos elegantes, tinham aulas de dança, iam ao cinema e ao teatro
e faziam esqui e patinagem. Os pais iam buscá-las à escola de carro. O pai dela apenas lhe podia oferecer uma viagem de bicicloeta.
Mergulhada nestes pensamentos chegou a casa e, enquanto
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atravessava o pátio, ouviu alguém chamá-la de cima. Era a mãe de Fermo, que estava debruçada no corrimão da varanda.
- Levaram o teu pai para o hospital - disse, e acrescentou:
- Não te preocupes, o meu filho está com ele. Vai à Urgência, que encontras lá a tua mãe. Nós tratamos dos teus irmãos - concluiu a mulher.
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Para chegar ao hospital, Liliana apanhou o eléctrico e depois fez ainda um longo percurso a pé. Tinha o coração num tumulto e esforçava-se por não chorar. A ideia
de que o pai podia estar a sofrer ou, pior, de que podia morrer, enchia-a de tristeza. Enquanto caminhava, continuava a repetir a sua prece: "Jesus, ajuda o meu
pai a viver."
Quando chegou ao hospital, seguiu as indicações do pessoal e entrou num corredor comprido que terminava na porta envidraçada do bloco operatório. Foi ali que viu
a mãe. Estava com três homens e falava com um médico que tinha vestida uma bata verde comprida. Correu ao encontro dela e chamou-a:
- Mãe!
Ernestina abraçou-a e sussurrou: - Está tudo bem. O Sr. Professor acabou agora mesmo de operar o pai.
- Assim de repente? Porquê? - perguntou Liliana.
Os três homens - dois colegas de trabalho de Renato e Attilio, um delegado sindical - tranquilizaram-na: - Está sossegada. O teu pai vai ficar como novo.
O médico explicou que o golpe na cabeça que tinham feito a Renato no dia anterior lhe causara uma ligeira hemorragia. Durante a noite a situação agravara-se e, quando
Fermo o foi ver, Renato tinha perdido os sentidos. Levara-o então para o hospital, onde foi operado imediatamente.
- Aquela gente vai ter de pagar o que fez ao Renato - sublinhou Attilio.
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- Aquela gente, como você lhe chama, é uma gente desgraçada a quem mandam bater a outra gente desgraçada - comentou o médico, amargamente.
- Posso ver o meu marido? - perguntou Ernestina, que não tinha grande vontade de ficar a ouvir frases que conhecia de cor, nem de se estar a queixar.
- Só durante uns minutos. Mas depois vá para casa, ter com os seus filhos. Ele está em boas mãos - declarou o cirurgião.
- Embrulharam-no como uma múmia - comentou, preocupada, depois de ter visto Renato. E acrescentou: - Eu não saio daqui enquanto ele não acordar.
Assim Liliana regressou a casa sozinha e não se espantou ao descobrir que a máquina da solidariedade tinha entrado imediatamente em funcionamento. A costureira levara
um tacho de almôndegas, o dono do pomar tinha deixado ficar um cesto de laranjas e em cima da mesa da cozinha havia pacotes de bolachas e tabletes de chocolate.
Ela agradeceu a todos e entendeu que não se devia aproveitar de tanta generosidade. Era perfeitamente capaz de tratar dos irmãos. À noite, quando se sentaram à volta
da mesa, foi bombardeada com perguntas. Pucci, Giuseppe e Rosellina estavam muito excitados com aquele acontecimento, que fazia deles os heróis do prédio, felizes
com a abundância de comida, mas sobretudo ansiosos por saber o que tinha acontecido ao pai.
- O que é um hematoma? O que significa removê-lo? Se eu cair do baloiço e bater com a testa também me abrem a cabeça? Se o pai morrer, nós ficamos órfãos? Se ele
sarar, vê-se a marca da ferida? Amanhã podemos não ir à escola?
Liliana estava exausta com aquele interrogatório obstinado e acolheu com alívio o regresso da mãe, que parecia mais tranquila. Ernestina explicou que Renato estava
acordado e lúcido. Deixou-se cair numa cadeira e decidiu que, naquela noite, Pucci e Giuseppe iam dormir com ela na cama grande.
Depois perguntou: - Há alguma coisa que se coma? - Estava em jejum desde manhã.
Liliana ofereceu-lhe as almôndegas, que tinha mantido quentes.
- E agora, o que vai acontecer? - perguntou, por sua vez, sentando-se em frente à mãe depois de os irmãos terem ido dormir.
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A pergunta comportava uma série de considerações que Ernestina já tinha feito e repetiu à filha. Renato era uma espinha na garganta dos patrões, que privilegiavam
operários menos combativos. Depois de um episódio tão grave, ia haver alguma tensão na fábrica. A direcção iria fazer de tudo para o afastar, talvez até oferecendo-lhe
uma boa indemnização. Mas Renato não queria uma indemnização. Pretendia antes um salário mais adequado ao custo de vida, que era cada vez mais alto. - O sindicato
protege-o e o chefe de secção estima-o. Sabe que o teu pai é um homem justo e honesto. Tenho a certeza de que fará os possíveis para ele não perder o emprego. Pelo
menos, espero - concluiu Ernestina.
Liliana assentiu. Aquela conversa tranquila no silêncio da cozinha, enquanto a mãe depenicava uma almôndega e ela esfarelava uma bolacha, deixou-a descansada.
- O meu pai é uma rocha - sussurrou.
- Mas a rocha também se desfaz, às vezes - observou Ernestina. E prosseguiu: - Neste momento temos viradas para nós as atenções de toda a gente, só que as pessoas
cansam-se depressa e esquecem. Os nossos problemas, pelo contrário, mantêm-se. No entanto, temos de fazer força e continuar em frente. Não temos outra possibilidade.
Pelo menos para já - disse Ernestina. E acrescentou:
- Mas eu vou fazer tudo para que tu a possas ter. Prometo-te.
Levantou-se da mesa e foi abraçá-la.
Naquela noite, quando estava quase a adormecer, Liliana elaborou um novo projecto para o seu futuro: quando fosse grande ia ser advogada e ia servir-se da lei para
defender os fracos das prepotências dos poderosos.
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CORSO Da PORTA ROMANA
Parabéns, Liliana! Fizeste uma óptima tradução. Agora repete-me os verbos irregulares, começando por to be - pediu Angelina Pergolesi.
A rapariga disse-os todos, sem uma única hesitação.
Na salinha de estar rococó das senhoras Pergolesi, iluminada por um pálido sol invernal, Liliana sentia-se feliz por ampliar os seus conhecimentos. No liceu que
frequentava ensinavam apenas uma língua estrangeira: o francês.
O acaso tinha-a levado a conhecer uma senhora idosa, pequena e magra, que vivia com a mãe no primeiro andar de um edifício de finais do século XIX ao fundo do Corso
di Porta Romana, a pouca distância do lugar onde Liliana morava. Ao regressar da escola, a rapariga tinha-se cruzado muitas vezes, por acaso, com aquela mulher pequenina
e elegante que trazia pela trela um grande cão peludo, preto e branco. Quando o animal via Liliana, tentava atirar-se a ela a ladrar.
- Não tenhas medo. O Buck só quer brincar - disse-lhe a mulher um dia, revelando um acentuado sotaque estrangeiro. Liliana, mais sossegada, estendeu uma mão hesitante
e afagou a cabeça do cão. Ele emitiu uma série de latidos festivos.
- Gosta de ti - afirmou a mulher, satisfeita.
Assim, dia após dia, através de algumas trocas de palavras, Liliana ficou a saber que a mulher se chamava Angelina Pergolesi, e tinha nascido e crescido na América,
em Brooklyn, onde a mãe
se refugiara para escapar ao marido, um italiano com quem tinha vivido durante alguns anos em Milão e que a signorina Pergolesi definiu como "irreverente".
- Quando a minha mãe atravessou o Atlântico para regressar aos Estados Unidos, já me levava no ventre, mas ela não sabia. Tinha já dois filhos, os meus irmãos. O
mais velho, o Cesare, vive ainda em Brooklyn e é pastor da Igreja Anglicana, como o tio. O outro, o Mário, está em Toronto, no Canadá, e é muito rico. Negoceia em
peles. É uma longa história, Liliana - sussurrou-lhe um dia, com ar misterioso.
A ideia das aulas de Inglês surgiu um pouco por acaso. Eram gratuitas, obviamente, e tinham lugar ao domingo à tarde.
O convívio com as senhoras Pergolesi, mãe e filha, era muito estimulante para a rapariga, que aprendia uma nova língua estrangeira e, sobretudo, entrava em contacto
com maneiras de viver e de pensar muito diferentes das da sua família. Nunca se cansava de ouvir a tagarelice das duas senhoras. Em particular, fascinavam-na as
histórias da mãe Pergolesi, que usava uma linguagem muito viva e imitava as vozes das pessoas de quem falava.
Agora, depois de ter repetido os verbos irregulares, Liliana sentiu o aroma intenso do chocolate quente que Luisella, a empregada, servia pontualmente às cinco horas
da tarde.
- São horas do lanche - anunciou Angelina.
Liliana pousou a gramática e o caderno.
- Liga o rádio - pediu Angelina, quando saiu da sala.
Os Corti não tinham rádio. Mas as senhoras Pergolesi tinham um aparelho magnífico, dotado também de um gramofone que se enquadrava perfeitamente na decoração excessiva
da salinha. Àquela hora, a rádio transmitia um programa de música ligeira que Liliana nunca conseguia ouvir porque, com o anúncio do chocolate, comparecia também
a velha signora Pergolesi. Com um tilintar de pulseiras, sentava-se no meio do sofá e começava a conversar.
- Ouvi dizer que o teu pai voltou do hospital - começou, naquele dia. E apressou-se a pedir notícias.
- Está muito bem. Daqui a uma semana volta a trabalhar. Foi uma aventura complicada, mas ele não chegou a perder a boa disposição - disse Liliana.
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- Quando se é jovem tem-se sempre vontade de rir e de brincar. Eu também era assim, ou pelo menos fui assim até aos dezasseis anos, quando o engenheiro Pergolesi
colheu a flor da minha virtude e fui obrigada a casar com ele. Isso não o impediu de continuar na boa vida, se é que me entendes. Ele justificava-se dizendo que
eu era uma mulher enfadonha. Entretanto, com vinte anos já tinha dois filhos e ele punha-me uns cornos tão compridos que chegavam ao tecto. Os cornos pesam, querida
Liliana. Por isso decidi pôr o oceano entre mim e ele. Quem podia imaginar que eu já estava grávida da Angelina? Que, de resto, é igual ao pai. Quero dizer fisicamente,
não em temperamento. É rica em boas qualidades, mas ficou sempre uma menina. É claro que a culpa é toda do pai, que lhe deu muito mimo. - A velha senhora recuperou
fôlego e continuou: - Quando estávamos na América, eu era jovem e bonita e é claro que não me faltaram pretendentes. Não imaginas os ciúmes que a Angelina tinha
deles! Era caprichosa e insuportável. Agora somos duas velhotas, aliás três, considerando a Luisella, e pegamo-nos por tudo e por nada. Que mais podemos fazer? Esperamos
pelo domingo, porque tu trazes um toque de juventude a este asilo. Tudo por culpa do engenheiro Pergolesi, que foi à América reclamar os filhos ao fim de vinte anos
de separação. Eu estava bem na residência paroquial do meu irmão Alfredo. É verdade que tinha de aguentar a mulher dele, a Florence, uma inglesa de Dorset de nariz
empinado, mas de qualquer maneira era a irmã do pastor e desempenhava um papel de relevo na comunidade anglicana de St. Paul. Em suma, o Cesare e o Mário, os nossos
dois filhos, quando o pai disse: 'Vamos voltar para Itália', fizeram-lhe um manguito. A Angelina, porém, abandonou-se nos braços daquele papá desconhecido, como
se fosse o Salvador, e tanto disse e tanto fez que fui obrigada a regressar. Por isso tive de aguentar o fascismo, a guerra, as evacuações e mais alguns cornos até
que um enfarte fulminou o meu marido, em 1944. Fiquei em Milão com a Angelina, que consegue dar um sentido aos meus dias.
- Aqui está o chocolate - gritou Angelina, ao mesmo tempo que empurrava para dentro da sala o carrinho de latão e mogno, Posto com panos e guardanapos imaculados,
chávenas Rosenthal de porcelana branca, uma taça de pé cheia de biscoitos perfumados e a chocolateira de prata com uma pega comprida de ébano.
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- Não sentem um toque especial no aroma do chocolate? Hoje acrescentei uma pitada de canela. Em inglês, cinnamon, querida Liliana - explicou Angelina, enquanto servia
a primeira chávena à mãe.
- Sabes, estava a contar à nossa jovem amiga todas as loucuras que fizeste para seguir o teu pai até Itália - disse a velha senhora.
- Mãe, por favor! Essas coisas não interessam à Liliana. Não é verdade, querida? - protestou Angelina. Depois virou-se para a mãe: - A verdade é que a tia Flo estava
farta de te aturar e o tio Alfredo disse ao pai: "Por favor, leva-ma embora." Esta é que é a verdade.
Entre as duas senhoras começou uma daquelas habituais conversas que divertiam imenso Liliana.
- Olha, estás a ouvir? É tudo por minha culpa. Mas com o teu pai estavas em lua-de-mel! Sempre cúmplices, sempre a tramar alguma coisa contra mim - acusou a mãe.
Depois, com um tom vagamente mundano, voltou-se para Liliana: - Um dia tu também devias ir à América. Estão lá os nossos parentes todos e são uma tribo.
Angelina ficou logo entusiasmada.
- Assim que estiveres em condições de te exprimir correctamente em inglês, eu escrevo ao meu irmão Mário, que vai ficar muito feliz por te receber. A sobrinha dele,
a Beth, tem a tua idade. Também vais conhecer o outro sobrinho, o Brunetto, que é um cantor famoso em todo o Midwest. - E acrescentou: - Depois do lanche vou-te
levar a casa com o Buck, que vai ficar todo contente por dar um passeio.
Pouco depois saíram juntas e dirigiram-se ao corso Lodi. Dos dois lados da rua havia montes de neve suja e compacta. No céu, o sol apagava-se por entre uma neblina
pouco densa.
- Acha mesmo que, um dia, eu vou poder ir à América? - perguntou Liliana, quando estavam já perto do prédio onde vivia.
- Vais até ao fim do mundo, se quiseres. Não haverá nenhum caminho que te esteja vedado - afirmou Angelina, convicta.
Despediram-se e Liliana entrou em casa. A mãe estava a passar os lençóis a ferro em cima da mesa da cozinha. Fermo acompanhava à guitarra Renato, que interpretava,
com uma excelente voz de barítono, uma canção dos anarquistas: Addio Lugano Bella. Rosellina
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escutava, aninhada junto ao fogão. Pucci e Giuseppe ainda estavam no pátio a brincar com os amigos.
- Quando eu for grande, vou até ao fim do mundo - anunciou Liliana à família.
Renato parou de cantar e a mãe ficou com o ferro no ar. Rosellina perguntou: - Onde é esse fim do mundo?
- Isso mesmo, onde é? - perguntou Renato.
- É muito longe daqui. É em Filadélfia, no Midwest, em Nova Iorque, no Pólo, na China e sabe-se lá mais onde. vou viajar em grandes navios e aviões. vou falar todas
as línguas do mundo e ser amiga de gente famosa - afirmou com ênfase Liliana.
- Não tenho a certeza de fazer bem em deixar-te frequentar a casa daquelas duas senhoras da alta sociedade, que te enchem a cabeça com essas patranhas - disse Renato.
- Tu, que és uma pessoa que vive de sonhos, ainda tinhas a pretensão de que a tua filha fosse diferente de ti? - censurou Ernestina, e acrescentou: - A Liliana quer
melhorar. Devias ter orgulho nisso.
- vou lá para dentro estudar - declarou Liliana, mais do que nunca determinada a realizar os seus sonhos.
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- Já és uma senhora - constatou Ernestina, ao ver as cuecas que Liliana lhe mostrava.
Era Primavera. A mãe estava a fazer a sopa de massa e feijão, a que juntara um pouco de toucinho frito cortado em cubinhos. Estavam sozinhas na cozinha, invadida
pelo sol que entrava pela janela aberta. Ernestina gostaria de se estender mais sobre aquele assunto, sobretudo para pôr a filha em guarda relativamente às consequências
que esta nova condição comportava. Mas não sabia como se exprimir.
- Tenho algumas colegas que já tiveram as regras e que se armam imenso. Eu agora também me posso armar? - perguntou Liliana.
- Se te apetecer. Mas tens pouco para te gabar. Nem vale a pena fazer-te a lista dos problemas que poderás vir a ter daqui para a frente, porque de qualquer maneira
vais descobri-los sozinha - rematou a mãe.
- Queres assustar-me? - observou a filha.
Ernestina olhou-a nos olhos com ternura e depois abraçou-a.
- Minha querida, conheces-me suficientemente bem para saberes que não tenho nenhuma intenção de te assustar. Estou só emocionada por te ver crescer tão depressa
e tão bem. - Afastou-a de si e foi ao quarto buscar um embrulhinho atado com uma bonita fita de veludo vermelho.
- É um presente que te comprei no ano passado - explicou,
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enquanto o entregava à filha. - Chegou o momento de to dar: todas as senhoras têm um relógio de ouro no pulso.
As crianças e o pai entraram de repente na cozinha, fazendo terminar aquela breve intimidade entre mãe e filha.
Uns dias depois, num sábado à tarde, Angelina Pergolesi chamou Liliana do pátio.
- Se a tua mãe autorizar, venho propor-te umas horas de distracção - disse.
Ernestina concordou e Liliana apressou-se a ir ao encontro dela.
- Tenho de ir à via Orefici - anunciou Angelina. E prosseguiu: - O meu irmão Mário mandou-me um rico maço de dólares, que eu troquei por liras. Vamos às compras.
Liliana trazia um vestido azul com um casaco do mesmo tecido, confeccionados por Ernestina, que sabia cortar e coser melhor do que uma costureira. A grande fita
de seda branca às pintinhas azuis, que avivava o decote, era uma ideia de Giuseppe. O irmão tinha um talento natural para desenhar roupa feminina. Liliana, pelo
contrário, só fazia asneiras quando a mãe lhe metia na mão uma agulha e uma linha.
- O bom Deus fez alguma confusão - lamentava-se Ernestina a falar com ela. - Deu ao teu irmão um dom que devias ter tu. Receio que quando for grande venha a ser
alfaiate, em vez de estudar Medicina, como eu gostaria.
Agora Liliana caminhava ao lado de Angelina Pergolesi em direcção à piazza del Duomo.
- Estás muito elegante - constatou Angelina.
- You too, Miss Pergolesi - respondeu Liliana, que se sentia muito orgulhosa dos seus progressos com o inglês e aproveitava todas as oportunidades para o demonstrar.
Também Angelina estava graciosa, com um vestido de crepe de lã azul-claro e um casaco a sete oitavos aos quadrados grandes em tons de rosa e glicínia.
- Como se diz em inglês a palavra menstruação? - perguntou Liliana de repente.
- Periods. É plural - explicou Angelina; e logo a seguir os seus lábios, pintados com um bâton claro, abriram-se num largo sorriso: - Estás a dizer-me que...
A rapariga anuiu.
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- Mas isso é fantástico! Neste momento já és uma young lady. Dentro de pouco tempo vais ter muitos pretendentes e então poderás escolher o teu boyfriend.
- Por amor de Deus, que a minha mãe não a ouça dizer essas coisas. Ela é muito rígida, um bocadinho antiquada, em suma - disse Liliana, corando.
- A minha mãe também era e continua a ser ainda hoje. É claro que, quando eu era nova, só se podia sair com um rapaz depois dos dezoito anos. De qualquer maneira,
nunca tive nenhum pretendente, por um lado porque nunca fui bonita, por outro pelo facto de o meu irmão ser pastor, o que era uma espécie de barreira intransponível,
e finalmente porque a minha mãe teria desencorajado quem quer que fosse. Sempre castigou a minha feminilidade de todas as maneiras possíveis, obrigando-me até a
vestir roupas grotescas. Acho que me queria proteger das desilusões. Os meus irmãos chamavam-me o patinho feio. Só vivi o amor através das histórias das minhas amigas.
Liliana ficou comovida ao aperceber-se da nostalgia e da amargura de Angelina em relação a uma vida não vivida. Chegaram à via Orefici.
- A minha mãe não sabe que o Mário, de vez em quando, me manda dinheiro para eu gastar como me apetecer. Agora vamos ao cabeleireiro. Vamos cortar e arranjar o cabelo,
as duas - decidiu, com uma alegria quase infantil.
- Não posso aceitar que me pague o cabeleireiro. Faço-lhe companhia enquanto se põe bonita - declarou Liliana.
- Invejo o teu orgulho. Eu toda a vida fui de tal maneira ávida de atenções que sempre aceitei aquilo que me ofereciam, sem qualquer contenção - confessou Angelina.
E acrescentou: - Mas não me podes impedir de te dar uma prendinha para festejar a tua entrada na idade adulta.
A rapariga aceitou com entusiasmo um minúsculo bouquet de rosinhas de organza branca para espetar na lapela do casaco. Depois compraram um creme de rosto para oferecer
à signora Pergolesi, cortes de veludo colorido, cordõezinhos de seda e pompons, strass e missangas com os quais Angelina confeccionava bolsinhas de noite que enviava
às suas numerosas parentes americanas.
- Não gostava de voltar a Nova Iorque? - perguntou Liliana.
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- Sabes, receio que já não seja a cidade que eu conheci. E para
além disso tinha de deixar a mãe sozinha, porque ela não está em condições de enfrentar uma viagem tão longa. Nunca teria a coragem de fazer isso. Devo confessar-te
que olho para o meu futuro com muita aflição. A minha mãe tiraniza-me, é verdade, mas não consigo imaginar a minha vida sem ela.
Liliana entendia-a. Nem ela seria capaz de sobreviver sem Ernestina.
- Os pais também são importantes - observou a rapariga. E acrescentou: - A senhora não conhece o meu. É extraordinário, faz lembrar um antigo guerreiro que combate
de mãos nuas contra um exército armado até aos dentes. Porque ele está em guerra desde sempre, para defender os seus ideais.
- A sério? E quais são? - perguntou a senhora, curiosa.
- O meu pai defende que todos os homens têm os mesmos direitos e os mesmos deveres perante a lei. Por isso combate as prepotências e as injustiças dos patrões que
exploram os trabalhadores.
- Eu trabalhei com o meu pai na empresa dele e não acho que os empregados fossem explorados - comentou Angelina.
- Isso só quer dizer que a senhora estava do outro lado da barricada - respondeu com entusiasmo Liliana, que repetia aquilo que ouvia o pai dizer.
- Que palavrões! As barricadas, em inglês barricades, erguem-se quando há guerra. Nós, felizmente, agora estamos em paz e vivemos num país democrático onde o empresário
e o trabalhador podem discutir os seus problemas - explicou Angelina.
- Não me parece que apanhar bastonadas na cabeça e ir parar ao hospital, como aconteceu ao meu pai, seja uma discussão democrática - insistiu Liliana.
- Olha, querida, a democracia é um exercício difícil para um país como o nosso, que durante vinte anos sofreu uma ditadura. Temos de aprender a pô-la em prática
a pouco e pouco. Eu lembro-me que, quando na empresa do meu pai os trabalhadores ameaçavam uma greve, ele ia ter com eles e perguntava quais eram as suas reivindicações.
O pai ouvia-os, depois negociava e, quando podia, satisfazia-lhes os pedidos. Entendia as suas razões, como eles entendiam as dele. Era um diálogo democrático, em
suma. E nunca ninguém fez greve - explicou Angelina.
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- Os operários do seu pai defendiam os interesses deles, não os de toda a classe - replicou Liliana prontamente.
- Talvez tenhas razão. Eu sempre vivi numa redoma. Para além disso, hoje em dia os jovens como tu sabem muitas mais coisas do que eu, que já sou velha. Mas há alguma
coisa de novo que eu gostava de te ensinar. Tenho dois bilhetes para um concerto no teatro Dal Verme. Temos de nos despachar se quisermos chegar a tempo - disse
Angelina.
Liliana teria preferido ir ao cinema, mas não ousou replicar.
O grande cartaz, em frente ao teatro, anunciava a execução da Simple Symphony de Benjamin Britten. Liliana admirou a elegância da sala e do público e ficou fascinada
com aquela música límpida, maravilhosa, que lhe tocou o coração.
No caminho de volta, Angelina falou-lhe daquele compositor inglês.
- Escreveu esta sinfonia quando tinha doze anos.
- Era mais novo do que eu. Mas ele era um génio - constatou Liliana.
- Tu és muito inteligente e isso deve bastar-te - afirmou Angelina.
Quando entrou em casa, Ernestina olhou-a com ar de reprovação.
- Achas que são horas de chegar?
- Já sabias com quem eu estava - respondeu ela, irritada.
- Mas não onde estavas. És muito pequena para me fazeres estar em cuidado - resmungou a mãe.
- Tenho tantas coisas para aprender que tu nem imaginas - afirmou a filha, com uma voz firme.
Ernestina reparou no raminho de rosas de organza espetado na lapela do casaco. Olhou pensativa para a filha e perguntou-lhe:
- Mas onde é que tu queres chegar? Lembra-te de que a ambição é uma arma do diabo.
- Sabes, mãe, espera-me um caminho longo, muito longo - respondeu Liliana com um ênfase.
Ernestina escondeu um sorriso. Depois fez-lhe uma festa e disse: - Tem cuidado para não acabares como aquele desgraçado que procurou durante toda a vida, pelo mundo
fora, aquilo que tinha em casa.
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SITO DELLA GUASTALLA
Enquanto Liliana falava, o professor De Vito ia tomando notas. A violência parecia ter marcado a vida daquela mulher: as bastonadas da polícia contra o pai, as balas
dos terroristas contra ela. Para além disso, o conflito entre as personalidades opostas dos pais tinha criado a Liliana muitos problemas psicológicos que foi tentando
compensar com um aflitivo desejo de afirmação.
O psiquiatra sorriu-lhe e disse: - Vemo-nos na segunda-feira.
- Já acabámos? - lamentou Liliana.
- Continuamos a conversa para a próxima vez - assegurou o médico, enquanto se levantava para a acompanhar à porta.
- Faz-me bem falar consigo. A confusão permanece, mas sinto-me melhor - afirmou Liliana, antes de entrar no elevador.
Nelson regressou ao consultório e telefonou à mulher.
- Estás bem? - perguntou a signora De Vito, preocupada.
- Estou óptimo. Tive de atender uma pessoa que não está bem e por isso não atendi a tua chamada. Estou vergonhosamente atrasado. Pede desculpa aos nossos amigos.
Chego daqui a poucos minutos - prometeu.
O psiquiatra olhou para o relógio: eram oito e vinte e cinco. Levantou novamente o auscultador e telefonou à mãe.
- Aconteceu alguma coisa, querido? - perguntou Evelyn, sobressaltada. Habitualmente Nelson telefonava-lhe ao domingo à tarde, à hora do chá.
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- Tenho uma paciente nova que usa o teu perfume. Saiu agora e apeteceu-me ouvir a tua voz - explicou Nelson.
- Obrigada, meu filho. Um destes dias vou-te visitar - prometeu Evelyn, comovida.
Na adolescência, Nelson tinha-lhe dado muitos problemas, porque vivia de uma forma muito transgressora. Perdeu dois anos de escola e foi precisa toda a firmeza da
mãe para o convencer a retomar os estudos. Os sucessos posteriormente obtidos pelo filho como médico e estudioso acabaram por a compensar relativamente àquele período
difícil e atormentado.
Depois de ter falado com a mãe, Nelson fechou o consultório e foi-se embora. Saiu para a rua coberta de serpentinas e confetti, para o meio dos jovens que por ali
andavam a rir e a besuntar-se com espumas coloridas.
Quando entrou em casa, os convidados estavam prestes a sentar-se à mesa.
- Peço-vos desculpa pelo atraso - disse, enquanto os cumprimentava. Eram os Marra, um casal de velhos amigos, ambos neurologistas, que tinham conhecido no Boston
Medical Center no tempo em que Nelson era director do serviço de neuropsiquiatria.
A empregada serviu uma lasanha com pesto e um óptimo vinho siciliano.
Depois chegou à mesa o famoso rolo de carne da signora De Vito, que os convivas conheciam bem.
Começou então o habitual minuete entre a dona da casa, que se desculpava pela monotonia da sua cozinha, e os convidados, que enalteciam a delicadeza dos sabores.
O jantar terminou com um grande prato de doces de Carnaval: sonhos recheados de creme de pasteleiro, fritos estaladiços e filhós com passas. Mais tarde a dona da
casa serviu na sala de estar um chá de tília aromatizado com anis estrelado. Depois, enquanto Nelson e o seu amigo Marra enchiam os cachimbos, as senhoras fumaram
um cigarro, ao mesmo tempo que trocavam informações sobre os saldos do momento. Os dois homens, entretanto, comentavam uma pesquisa recente sobre os estados depressivos.
- A depressão é o grande mal da nossa época e constitui a resposta ao bem-estar económico da sociedade ocidental. Nos sítios
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onde se luta pela sobrevivência, a depressão está menos presente - observou Marra.
- No século XIX afectava sobretudo as mulheres da classe mais abastada e chamava-se melancolia. Hoje os homens também sofrem de depressão, sobretudo os jovens -
disse Nelson, recordando o rapaz de vinte anos que andava em tratamento havia alguns meses.
- Estou a tratar uma rapariga que é um caso extremamente complexo. Como psiquiatra, tu podias fazer muito por ela - propôs Marra.
- Tenho alguns casos bem encaminhados, a chegar ao fim. Eu aviso-te quando for altura de ma mandares.
- Será possível que vocês não consigam falar de outra coisa que não seja trabalho? - intrometeu-se Cecília Marra, apoiada por Maria De Vito.
- É só porque vocês não nos ligam - disse Nelson, amavelmente.
O casal De Vito passou um fim-de-semana caseiro, entre leituras de livros e jornais, o almoço dominical num restaurante e a arrumação de uma estante a abarrotar
de livros. Discutiram sobre quais seriam para conservar e quais deitariam fora. Ela tendia para uma eliminação drástica, ele para a conservação absoluta. Como sempre,
encontraram uma solução intermédia.
Nelson voltou a ver Liliana Corti na segunda-feira de tarde, às sete horas.
- Como correu o seu fim-de-semana? - perguntou-lhe, quando ela se sentou à sua frente.
- Não muito bem, mas talvez tenha identificado uma das causas da minha angústia. Estou num ponto crucial da minha vida porque deixei de trabalhar, concluindo assim
uma carreira de sucesso que me impediu, no entanto, de parar para reflectir sobre mim mesma. Só agora me pergunto que sentido tem a minha existência, como se todos
estes anos passados sempre a perseguir novos objectivos de trabalho não tivessem sido vividos por mim mesma, mas em função dos outros. Nem sequer sei quem são. Terá
valido a Pena afligir-me tanto para chegar aqui?
- Vamos procurar juntos a resposta para as suas questões - respondeu Nelson, para a encorajar.
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JARDINS PÚBLICOS DE PORTA VENEZIA
Aos dezanove anos Liliana teve finalmente o seu primeiro boyfriend. Chamava-se Danilo, tinha mais cinco anos do que ela e frequentava a faculdade de Filosofia na
universidade estatal. Nessa mesma universidade, Liliana inscrevera-se no primeiro ano de Direito. Encontraram-se na livraria. Ela acabava de adquirir um livro sobre
Direito Romano e Danilo estava a pedir ao empregado um romance muito vendido naquele período: O Leopardo. Liliana já o lera, porque a signorina Pergolesi lho tinha
emprestado.
- Lês a primeira página e nunca mais o largas até ao fim. É uma história fantástica - declarou, num impulso.
- Ora vê lá tu! Estava mesmo à espera da tua opinião para o comprar - respondeu Danilo, olhando-a com arrogância.
Era pouco mais alto do que ela, tinha uma melena rebelde em cima da testa ampla, um tom de pele claro e uns olhos azuis muito vivos. Vestia uma gabardina verde-tropa
e tinha na mão o cartão que dava direito a desconto na compra de livros.
Liliana corou violentamente.
- Mas por que é que eu não me meto na minha vida? - sussurrou, irritada consigo mesma.
- Ainda cheiras a liceu - comentou ele, com um sorriso de superioridade.
Liliana já estava habituada às piadas depreciativas dos "velhos" em relação aos caloiros. Enquanto ele acendia um cigarro, ela
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conseguiu ler o nome e a data de nascimento no cartão que tinha na mão.
- É pena - disse, devolvendo-lhe o sorriso depreciativo.
O vermelho do rosto tinha desaparecido e a rapariga já reencontrara a desenvoltura habitual.
- É pena o quê? - perguntou ele.
- Tens um olhar inteligente e fazes comentários de uma banalidade confrangedora. Mas, se calhar, tem tudo a ver com o facto de, com vinte e quatro anos, ainda não
teres acabado o curso - afirmou.
Deu meia-volta e dirigiu-se à porta.
Sentia-se muito orgulhosa da sua resposta e também do impermeável Pirelli, cor de tabaco, que vestira naquele dia pela primeira vez.
Liliana tinha batalhado durante muito tempo com a mãe para o conseguir.
- Mas que necessidade tens tu de um impermeável? O teu pai e eu nunca tivemos nenhum e crescemos na mesma - respondeu a mãe perante o pedido da filha.
- Vocês não andaram na universidade. Eu ando e não quero fazer má figura junto das outras alunas - contrapôs, determinada.
Por fim, Ernestina conseguiu arranjar um bom desconto na loja da Pirelli-Bicocca. Foram as duas, mãe e filha, comprar aquela preciosa peça de vestuário. Quando Liliana
a vestiu, Ernestina olhou com orgulho para a filha, tão bonita e tão elegante. Assim, além do impermeável, ofereceu-lhe também um lenço de seda com flores muito
garridas sobre um fundo branco.
Liliana não pagou a matrícula na universidade porque terminou o liceu com uma média muito alta. Cobria as suas pequenas despesas dando explicações de Matemática
e de Latim às crianças da zona que frequentavam o liceu.
Agora Liliana ia a sair da livraria com uma passada marcial, sentindo nas costas o olhar de Danilo.
Ele alcançou-a e pôs-se ao lado dela.
- Sabes que tens imensa graça? - começou.
- O mesmo não posso eu dizer de ti - respondeu ela, sem abrandar o passo.
- Sentes-te a rainha de Sabá mas não passas de uma miúda - continuou ele, ao mesmo tempo que acendia outro cigarro.
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- Por que é que fumas tanto? - perguntou Liliana.
- Porque não sei o que hei-de fazer às mãos - respondeu. E acrescentou: - Como é que te chamas?
- Liliana. E tu Danilo. Li no teu cartão.
Tinha chegado à paragem do eléctrico e parou.
Danilo era um bonito rapaz e agradava-lhe bastante, mas ela acabava de dar o melhor de si para o levar a fugir. com efeito, ele olhou para ela com uns olhos de gelo,
girou nos calcanhares e afastou-se. Ela encolheu os ombros, resignada. Mais cedo ou mais tarde, era sempre assim que acabavam as suas relações com os rapazes. Entrou
no eléctrico e encontrou-o ao seu lado. Olhou para ele, perplexa.
- Vou-te levar a casa. Posso? E não me digas que conheces o caminho - disse ele.
Danilo deixou-a à porta de casa.
- Vemo-nos amanhã. À mesma hora, na mesma livraria - declarou pouco antes de ir embora.
Começou assim uma série de encontros feitos de escaramuças e golpes de florete a que Danilo, às vezes, não conseguia responder. Falou-lhe de si: os pais morreram
quando ele era pequeno e vivia em Varese, numa velha casa com jardim, com a avó que o tinha criado e o mantinha a estudar. Para ganhar algum dinheiro, ensinava Italiano
e História aos alunos de uma escola privada, em Milão. Um dia convidou-a para comer um cachorro num café da piazza Beccaria. Depois foram a pé em direcção a San
Babila e dali seguiram pelo corso Venezia. Entraram nos jardins públicos e percorreram as alamedas cobertas por um tapete de folhas douradas. Sentaram-se num banco,
perto do zoo, e Danilo abraçou-a, puxando-a para si. O grito de um velho elefante e o soluço de uma foca serviram de fundo ao seu primeiro beijo.
- Estou louco por ti - sussurrou Danilo, com um tom levemente enfático.
- A quantas raparigas já disseste isso? - perguntou Liliana.
- A poucas, para falar verdade. Não tenho assim tanto tempo Para manter relações sentimentais. Nem tanto dinheiro.
- Então estamos quites.
- O que fazes ao domingo?
- Aprendo Inglês com a signorina Pergolesi. E tu?
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- vou à Casa da Cultura, em San Babila, onde se discute política. Somos todos socialistas.
- Que estranho, julgava que eras um liberal. Tens todo o ar do conservador que se está nas tintas - provocou-o.
- Nem podia ser. Os liberais são todos filhos do papá.
- Pois eu sou comunista. O meu pai tem uma longa história de militância e de luta - explicou Liliana.
- Mais uma razão para vires comigo à Casa da Cultura, pois assim podes rever as tuas convicções políticas. Nós, socialistas, tomamos posição sobre os acontecimentos
da Hungria e condenámos severamente a repressão russa, enquanto vocês, comunistas, ficaram calados e fizeram os possíveis e os impossíveis para a justificar.
Liliana recordou as palavras do pai quando rebentou em Budapeste a insurreição popular anti-soviética, sufocada pelos tanques russos.
- Aquilo que os soviéticos fizeram na Hungria é uma vergonha. Mas se o mundo quer progredir, tem, de qualquer maneira, de virar à esquerda.
Por isso disse a Danilo: - Os socialistas e os comunistas são primos e, entre parentes, nem sempre corre bom sangue. Mas estamos os dois do lado certo. Vou contigo
à Casa da Cultura. Mas agora tenho de te deixar.
Para estar com ele tinha desmarcado duas explicações, mas fê-lo de ânimo leve.
Chegou a casa a voar sobre uma nuvem de ouro. Danilo tinha-a abraçado quase a tremer e ela sentira uma espécie de inebriante poder sobre ele. Nunca tinha feito nada
para agradar aos rapazes. Detestava aquelas estúpidas, ridículas coqueterias das amigas. Ela queria agradar por aquilo que era e finalmente um rapaz tinha-lhe dito
"Estou louco por ti". Tinha imediatamente de contar aquilo a alguém que não fosse a mãe nem aquelas coscuvilheiras das colegas da universidade. Ia contar à signorina
Pergolesi.
Entrou na cozinha. Pucci e Rosellina estavam a fazer os deveres e mal a cumprimentaram.
- Onde está o Giuseppe? - perguntou Liliana.
- Está ali - disse Pucci, indicando o quarto dos pais.
A porta estava fechada. Abriu-a e viu o irmão sentado na beira da cama dos pais com um colega de liceu. Estavam a beijar-se.
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CORSO LODI
Liliana voltou a fechar a porta imediatamente. Aquilo que acabava de ver tinha-a desnorteado. Observou Pucci e Rosellina, que continuavam tranquilamente a fazer
os deveres, alheios àquilo que estava a acontecer no quarto ao lado. Pensou então nos pais. Como teriam eles reagido se tivessem apanhado Giuseppe nos braços de
um colega de escola?
Naquele momento os dois rapazes entraram na cozinha, visivelmente embaraçados. Liliana voltou-se para o amigo de Giuseppe: - Vais-te embora, não vais? - Mais do
que uma pergunta, era uma ordem peremptória.
O rapaz anuiu, mantendo os olhos no chão.
- Eu vou com ele - disse o irmão, que se preparava para seguir o amigo.
- Não, tu ficas em casa - afirmou Liliana, com um tom que não admitia contestação. Depois voltou-se para Pucci e Rosellina: Por hoje chega de trabalhos de casa.
Podem ir para o pátio brincar.
Agora estava sozinha com Giuseppe, que não se sentia com coragem para a enfrentar e continuava de costas voltadas, a mexer no lava-louça.
- Deves com certeza ter alguma coisa para me dizer - disse, perante o silêncio do irmão.
Giuseppe tinha dezasseis anos. Frequentava o curso complementar do liceu, na área das artes, com um excelente aproveitamento.
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Era muito bonito, falava pouco, ria raramente e tinha um cuidado quase obsessivo com a sua imagem.
Liliana nunca o tinha observado com particular atenção. Era simplesmente um dos seus irmãos. No entanto, de cada vez que precisava de fazer a bainha de uma saia,
ou de comprar um vestido novo, dirigia-se a ele, que ficava sempre satisfeito por poder ajudá-la.
Quando Giuseppe fez quinze anos, Ernestina disse-lhe: - Agora já és grande. O teu pai e eu pagamos-te os estudos. Quanto ao resto, tens de te governar sozinho. -
E Giuseppe arranjou um trabalho: três tardes por semana, no atelier de um alfaiate na via Lamarmora. Mexer em tecidos, fios e tesouras era a sua paixão e o dinheiro
que ganhava bastava-lhe para ir ao cinema ou para comprar alguma coisa que lhe apetecesse.
Ernestina não estava nada entusiasmada com aquele trabalho.
- A tua irmã dá explicações, enquanto tu pregas botões e forros. Pagamos-te o liceu, estás em artes, podias dar aulas de desenho
- dizia-lhe.
- Mãe, os miúdos não andam em explicações de desenho - defendia-se ele.
Chegados àquele ponto, a mãe gritava: - Eu já sei como isto vai acabar! Vais dar em alfaiate e eu vou deitar fora um monte de dinheiro para ter um filho que corta
e cose.
Agora Giuseppe voltou-se, com os olhos brilhantes de chorar.
- Não me humilhes - disse baixinho.
- Se há alguém aqui que se sente humilhada, sou eu - respondeu Liliana. - Ainda estou sem fôlego por causa daquilo que vi em cima da cama da mãe e do pai.
- Sinto muito - sussurrou ele.
Sentou-se à mesa e pousou a cabeça entre as mãos.
- Primeiro fazes a porcaria e depois dizes-me que sentes muito? - provocou ela, dominada pela cólera.
- Não era porcaria, Liliana. Não sei como hei-de dizer-te, mas eu sou... sou... sou diferente dos outros rapazes, e tenho muita pena.
- Estás a dizer-me que és um... invertido? - A última palavra foi apenas sussurrada e, logo a seguir, Giuseppe desatou num pranto desesperado.
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A homossexualidade era considerada como uma depravação da qual nem se devia falar.
No liceu, Liliana teve uma professora de História e Filosofia que referira a homossexualidade dos Gregos e dos Romanos, de muitos artistas famosos, assim como de
guerreiros e poetas. A professora tinha explicado que homossexualidade é uma palavra que deriva do grego e indica a tendência para encontrar o prazer sexual com
uma pessoa do mesmo sexo. "A homossexualidade, em suma, é uma maneira de ser", concluíra.
- Pois é, e eu sinto-me orgulhoso por não ser assim - exclamou um colega de turma de Liliana, suscitando a hilaridade geral.
O assunto ficou assim encerrado, com uma gargalhada. Mas agora Liliana não tinha nenhuma vontade de rir. As lágrimas do irmão destroçavam-lhe o coração. Aproximou-se
dele e abraçou-o.
- Giuseppe, ajuda-me a perceber - disse-lhe.
- Como é que eu te consigo explicar? Achas que me sinto feliz por ser diferente dos outros? Sempre fui assim, desde pequeno, e sofro desde sempre por causa da minha
diferença, que carrego com um sentimento de culpa. Escondo-a até daqueles como eu, e são mais do que tu imaginas. O Gino é o meu único amigo, o único com quem me
consegui abrir, porque ele também vive este drama em silêncio - desabafou. Soluçava sem parar no ombro da irmã.
Liliana gostaria de recordar as sensações extraordinárias que o beijo de Danilo tinha despoletado nela, fazendo-a construir castelos nas nuvens, sobre as asas da
sua feminilidade que começava a desabrochar. Mas tinha de medir forças com um drama que não sabia como abordar.
Enquanto mantinha o irmão apertado nos seus braços, disse apenas: - Vê se arranjas maneira de a mãe não saber.
Giuseppe limpou as lágrimas, assoou o nariz e arranjou forças Para sorrir.
A mãe já sabe há algum tempo. E acho que o pai também sabe.
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Rosellina e Pucci abstiveram-se de contestar a ordem de Liliana, apesar de não terem ainda acabado os trabalhos de casa e de saberem que o pátio estava interdito
à brincadeira antes das cinco da tarde.
Havia mais de um ano que a administração do condomínio apenas autorizava a utilização daquele espaço durante duas horas: das cinco às sete da tarde.
Tinha havido uma sublevação dos pais contra aquela disposição absurda, que os impedia de controlar os filhos num espaço protegido. Os inquilinos mais idosos, no
entanto, receberam-na com alívio, porque as crianças faziam barulho e por diversas vezes tinham partido vidros e vasos com a bola.
O prédio do corso Lodi pertencia a uma grande sociedade imobiliária que, com uma série de proibições, tentava há muito tempo tornar mais difícil a vida dos inquilinos
para os levar a mudar de casa. Efectivamente, no lugar daquele edifício, construído na segunda metade do século XIX, queria levantar um prédio moderno, com rendas
adequadas e lucros maiores. Por isso, além da limitação relativa ao pátio, tinha sido proibido usar a fonte para lavar roupa, transportar as bicicletas pelas escadas
e estender roupa nas varandas.
Os inquilinos tiveram de se habituar ao novo regulamento e as crianças encontraram outros sítios para brincar. Muitos tinham começado a frequentar o centro paroquial,
que dispunha de um
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campo de jogos, outros iam para uma viela, não muito longe do prédio, onde havia ruínas de algumas casas bombardeadas durante a guerra e um grande terreno parcialmente
ocupado por um acampamento de ciganos. Ali as crianças podiam fazer barulho sem incomodar ninguém.
Agora, enquanto desciam as escadas, Pucci disse a Rosellina:
- Vamos à viela ver os coelhos.
Pucci tinha catorze anos e não gostava da escola. Contentava-se em ter uma positiva esticada em todas as disciplinas, só mesmo para satisfazer os pais. Mas era inteligente,
tinha muitos interesses e uma inclinação natural para o comércio.
Ao sábado trabalhava no café e tabacaria que ficava por baixo de casa, onde lavava chávenas e copos, e recebia do patrão uma pequena gratificação que metia numa
lata. À noite, antes de se deitar, controlava o seu capital, que atingira já as cinco mil liras. Aquele dinheiro permitir-lhe-ia realizar o seu projecto.
Tudo começara durante o Verão, na viela, ao encontrar um coelho, a tremer numa das casas em ruínas. Apanhou-o e levou-o para casa, para grande alegria de Ernestina,
que o preparou estufado com legumes.
No dia seguinte, Pucci pensou que, onde havia um coelho, podia haver mais. Iniciou uma pesquisa sistemática mas discreta, porque não queria que os amigos descobrissem,
e foi premiado. Por entre os escombros de uma casa arruinada descobriu uma família de coelhos que ali vivia tranquilamente. Começou de imediato a construir uma gaiola
com tábuas de madeira e uma rede metálica que ali encontrou. Emtretanto ia apanhando ervas no campo e levava-as aos animais que, embora um pouco assustados, aceitavam
de boa vontade aquela comida suplementar.
Quando terminou a gaiola, e antes de lá fechar os coelhos, pensou que tinha de encontrar um lugar seguro para a colocar e percebeu que precisava de um sócio de confiança.
Lembrou-se do velho Anacleto, um dos inquilinos do prédio, que cultivava hortaliça para uso doméstico num canto do campo, dando assim um sentido aos seus dias de
reformado.
Um dia, Pucci abordou-o.
- Precisamos de ter uma conversa de homem para homem - disse-lhe.
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O velho, que já ultrapassara os oitenta anos e conhecia Pucci desde que ele tinha nascido, fez um esforço para não se rir. Assumiu um ar grave e respondeu: - Sou
todo ouvidos.
Estava uma bela manhã de Verão e Anacleto, de camisola sem mangas e calções, tinha acabado de sachar a sua pequena horta e estava a acender um cigarro.
- Tenho uma família de coelhos com duas fêmeas grávidas. Construí uma gaiola grande para os meter e agora precisava de um lugar seguro para a guardar - explicou
o rapaz.
- Claro - anuiu Anacleto, curioso com aquela conversa.
- Tu tens uma cabana na horta e a minha gaiola ficava mesmo bem lá dentro - disse Pucci, de um fôlego.
Anacleto já se tinha apercebido há uns dias que Pucci andava a tramar alguma coisa porque, enquanto tratava da horta, o via apanhar erva com um ar circunspecto.
Sem contar com o facto de Ernestina lhe ter falado do coelho com que se tinham banqueteado. Agora anuía, divertido, e esperava a continuação daquela conversa.
- É claro que tu também vais receber a tua parte - disse Pucci.
- Não gosto da carne de coelho - disse o velho, pausadamente. - Nos tempos de guerra o homem do aviário vendia coelhos sem cabeça e eu sempre suspeitei de que fossem
gatos. Agora, se tivesse de comer um coelho, ia achar que estava a comer um gato. E eu adoro gatos - declarou.
- Mas não és obrigado a comê-los. Só precisas de os guardar dentro da tua cabana - insistiu Pucci.
- Mas na cabana eu tenho as minhas ferramentas. Não há espaço para uma gaiola - afirmou.
- Querendo, arranja-se espaço.
- Pois, é preciso querer. - Estava divertido a ver o rapazinho cozinhar em banho-maria.
- Então? - Pucci tinha na manga um ás de trunfo para convencer Anacleto a aceitar, mas só o ia jogar se fosse indispensável.
- vou pensar nisso - disse o velho, em tom lacónico, enquanto aspirava com evidente satisfação o fumo do cigarro.
Pucci tossiu e espalhou uma baforada de fumo com a mão. O velho era um osso duro de roer e ele tinha mesmo de jogar a última cartada.
- Podíamos ficar sócios - propôs com uma voz dolente, como
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quem arranca um pedaço de coração. - A gaiola e os coelhos são meus. Eu arranjo a comida e faço a limpeza. Tu pões à disposição a cabana e, quando chegar o momento,
matas e limpas os animais. Podemos vendê-los a um preço inferior ao do talho e tu metias ao bolso vinte por cento dos lucros. É uma proposta honesta.
Anacleto sorriu. Não tinha pensado nem por um instante em pedir dinheiro a Pucci para o ajudar a realizar o seu projecto. Mas divertia-se a conduzir aquelas negociações.
- Na tua opinião, quem é que te ia comprar os coelhos? perguntou.
- Todas as mulheres do nosso prédio e também as das casas vizinhas. Já apalpei o terreno. Se tudo correr bem, como eu espero, no princípio do Inverno já não vai
chegar só uma gaiola. E no Natal, em vez do capão, no corso Lodi vai-se comer coelho - explicou Pucci, com entusiasmo.
- Mas tu não sabes que todas as carnes têm de ter o selo da inspecção de higiene municipal? Tu ias ter um negócio ilegal? - declarou.
- O meu pai diz que por detrás de todas as grandes fortunas se esconde um crime. Eu vou tornar-me o maior criador e comerciante de coelhos e a ilegalidade deste
período inicial será o meu crime. Paciência! vou correr o risco, porque a sorte ajuda os audazes.
- Eu também tinha de arriscar, se me tornasse teu sócio - objectou Anacleto.
A discussão entre o velho e o rapaz continuou durante um bom pedaço. Anacleto referiu até uma ordem recente da câmara, proprietária daquele campo, que obrigava os
seus ocupantes a deixá-lo livre dentro de dois anos, porque era uma área destinada à construção.
- Quando me tirarem a cabana, onde é que vamos meter os teus coelhos?
- Daqui a dois anos já eu arranjei outra solução. Entretanto vou ter de parte dinheiro suficiente para construir gaiolas novas - afirmou Pucci.
Anacleto, rico em anos e sabedoria, estava convencido de que o grandioso projecto do pequeno Corti não teria sucesso nenhum. Mas não queria privá-lo de um sonho
e por isso assumiu seriamente
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o papel de sócio minoritário e decidiu negociar da melhor maneira a sua percentagem.
- Vinte por cento é muito pouco. Já sei que, quando fores para as aulas, eu é que vou ter de tratar dos teus animais. Por isso proponho quarenta.
Pucci deitou as mãos à cabeça, afirmando que aquilo era um pedido excessivo. Chegaram a um acordo de trinta por cento. A criação de coelhos começou e Pucci conseguiu
até fazer um acordo com o dono do pomar, que se dispôs a oferecer cenouras e hortaliça estragada para engordar os animais.
Nos meses seguintes as coelhas tiveram filhos, algumas crias morreram mas outras cresceram muito bem, e agora havia já perto de vinte animais quase prontos para
serem vendidos. Assim, enquanto se dirigia à viela com a irmã, Pucci disse-lhe: - Quero ver como é que estão os meus bichos.
- Mas temos de nos despachar, porque daqui a pouco fica escuro e quando a mãe chegar do trabalho tem de nos encontrar em casa, com os deveres prontos - declarou
Rosellina.
Porém, quando chegaram a casa a mãe já tinha regressado, de péssimo humor. Estava a ralhar com Liliana e com Giuseppe porque não tinham posto a mesa nem sabiam onde
estavam os irmãos mais novos.
Assim que os viu, deu uma bofetada a cada um, gritando: - Já tenho problemas que me cheguem, só me faltava também ter de me preocupar com a vossa irresponsabilidade.
Nenhum dos filhos ousou perguntar-lhe o que sucedera.
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A botija de gás já está mesmo no fim. Vai à cave buscar a nova - ordenou Ernestina a Giuseppe.
- Tem mesmo de ser agora? - protestou o filho. Estava exausto, depois da conversa com Liliana.
- Vamos ver se consegues cozer as batatas com o bafo. Era uma boa poupança - retorquiu. Passou uma mão pela testa e acrescentou a meia-voz: - Hoje cheguei ao fundo
da minha paciência.
- Foi para o quarto e fechou a porta atrás de si.
Rosellina e Pucci acabaram os trabalhos de casa em silêncio, enquanto Liliana começou a descascar batatas. Estava bastante preocupada com Giuseppe e não queria ficar
ainda mais angustiada por causa dos problemas da mãe.
Na fábrica de malhas, Ernestina tinha passado das máquinas à secção de projectos e havia já um ano que estudava e desenhava novos modelos. No entanto, continuava
a ter um contrato como aprendiza e o salário não era efectivamente adequado ao trabalho que fazia. Quando conversava com Liliana, a filha dizia-lhe: - Tens de te
despedir.
- E tu achas que é fácil arranjar outro emprego? Olha à volta e vais ver quantos desempregados há por aí. O salário do teu pai é bom, mas nós somos muitos e precisamos
do meu ordenado - replicava a mãe.
Liliana sentia-se sempre culpada, porque gostaria de poder ajudar
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a família mas tinha ainda pela frente quatro anos de universidade antes de se formar e arranjar um emprego.
Entretanto, enquanto Liliana lavava as batatas, a mãe regressou à cozinha.
- Hoje apareceram de surpresa na fábrica os da Inspecção do Trabalho - disse. - Foi uma rica pancada para aqueles dois trapaceiros.
Referia-se a Leo e a Marta Scanni, pai e filha, proprietários da empresa.
- O porteiro avisou-os imediatamente. A patroa começou a correr por todos os lados como uma louca e a dar ordens. Eu estava a ver umas amostras de lã e ela berrou-me:
"O que é que está aí a fazer? Vá já para baixo e sente-se a uma máquina!" Não sei se estás a perceber, eles não podiam descobrir que eu desenho modelos tendo um
contrato de operária aprendiza. A Marta Scanni até obrigou duas empregadas que não estão em situação regular a fecharem-se na casa de banho e escondeu outras duas
nos caixotes da lã. Que humilhação! De qualquer maneira, os da Inspecção não são burros e fizeram uma acta de dez páginas. - E acrescentou: - Não digas nada ao teu
pai, que até lhe dá um ataque, coitado do homem.
Giuseppe entrou na cozinha com a botija de gás nova.
- Vocês estão os dois com uma cara que não me agrada nada
- observou a mãe, olhando para os dois filhos mais velhos. Tinha regressado a casa mais cedo do que o previsto e encontrou Giuseppe e Liliana numa conversa cerrada,
sentados à mesa, um em frente ao outro. Estava demasiado irritada com aquilo que tinha acontecido na fábrica para fazer perguntas. Mas agora queria saber. - O que
foi que vos aconteceu? - perguntou.
Nenhum dos dois respondeu. Ela não insistiu e começou a cozinhar. Naquela noite iam comer esparguete com molho e bolinhos de batata.
Às sete e meia chegou também Renato e sentaram-se todos à mesa.
- Fui eleito delegado sindical - anunciou, com pouco entusiasmo.
- Então passaste a ser ainda mais importante - comentou Pucci, cheio de orgulho.
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- Isso quer dizer que, se agora te vemos pouco, daqui em diante vamos ver-te ainda menos - resmungou Ernestina, que sabia o quanto os filhos sentiam a necessidade
de uma maior presença do pai.
Renato fora promovido a chefe de secção alguns meses antes. Tinha havido uma mudança estratégica por parte dos directores, pois sabiam que um contestatário bem remunerado
é mais conciliador. Mas Renato gozava da estima dos colegas de trabalho e assim o sindicato promoveu uma mudança noutro sentido, propondo-o como delegado. Fora eleito
naquela tarde por unanimidade. Por isso, a partir daquele momento deveria conciliar as exigências dos trabalhadores com as da entidade patronal, seguindo as directivas
do sindicato e confrontando-se de uma forma responsável com a direcção da empresa. Uma tarefa difícil e delicada. Para além disso, Ernestina acabava de o censurar
pela sua ausência junto da família. Deveria portanto conciliar as exigências do trabalho, as sindicais e as familiares.
- Mas eu não sou um equilibrista - protestou Renato.
A mulher, enternecida, dedicou-lhe um sorriso de encorajamento.
- Não te preocupes, vai correr tudo bem. Sempre foste um cavalheiro e vais continuar a sê-lo. E esse é o melhor exemplo que podes dar aos teus filhos - afirmou.
Liliana, Pucci e Rosellina estavam muito excitados com aquela novidade.
Giuseppe, porém, mantinha o olhar fixo no prato e não participava da euforia dos irmãos.
- Posso contar à minha professora que agora és delegado sindical? - perguntou Rosellina.
- Claro. Apesar de não haver nenhuma razão para te gabares. Acredita em mim, pequenina - respondeu Renato com ternura.
Quando se levantaram, Liliana e Giuseppe tiraram a mesa, Pucci e Rosellina trataram de lavar a louça, Ernestina começou a remendar meias e Renato foi para o quarto
ler a acta de uma reunião sindical.
Alguém bateu à porta e logo a seguir apareceu o velho Anacleto.
Vinha com a respiração pesada e um ar grave.
- Desculpem o incómodo. Preciso de falar com o Pucci - disse.
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- O que tiveres para lhe dizer a ele, podemos ouvir nós todos - declarou Ernestina, enquanto pousava a agulha e o fio.
- Roubaram os coelhos - anunciou o velho, com um fio de
voz.
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A notícia espalhou-se em poucos minutos e o furto dos coelhos transformou-se imediatamente num drama, não só para a família Corti e para Anacleto mas também para
todo o prédio. Renato foi o promotor de uma caça ao ladrão à qual aderiram todas as crianças.
No pátio realizou-se uma espécie de conselho de guerra. Pucci, Rosellina e Anacleto expuseram os factos.
Os dois pequenos Corti tinham mudado a palha das gaiolas entre as quatro e as cinco da tarde. Pouco antes das seis, quando já estava escuro, Anacleto foi fazer a
sua habitual visita de controlo aos coelhos e encontrou as gaiolas vazias. Acendeu a lanterna e inspeccionou o terreno em volta da cabana, observando diversas pegadas.
Tinham desaparecido também os sacos de juta que cobriam as gaiolas durante a noite, para proteger os animais do frio. Era evidente que os ladrões os usaram para
meter os coelhos e para os transportar. - Tudo isso aconteceu entre as cinco e as seis da tarde - concluiu Anacleto.
Naquele momento Rosellina lembrou-se de ter visto, depois de sair da cabana com Pucci, duas ciganas com quatro crianças a pouca distância deles.
Renato deu um beijo na testa da filha.
- És um anjo, pequenina - sussurrou com um sorriso radiante - - Agora sabemos onde havemos de ir procurar os coelhos.
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- Se me tivesses dito isso, eu ficava lá a tomar conta - censurou Pucci.
Renato e Anacleto puseram um boné na cabeça e avançaram todos juntos em direcção ao acampamento dos ciganos. As crianças estavam todas muito excitadas com aquela
aventura, à excepção de Pucci. Ferido de morte no seu espírito empresarial, sentia-se aniquilado pela frustração.
Chegaram perto do acampamento dos ciganos, iluminado por algumas fogueiras. Avançaram em silêncio, enterrando os pés na erva húmida, até que descobriram os nómadas
reunidos em volta de uma grande fogueira, num espaço que ficava em frente a três carroças em muito mau estado. Ouviram as suas vozes alegres e, quando se aproximaram,
viram aquilo que restava do grande sonho de Pucci: os coelhos alimentados e criados com tanto empenho estavam enfiados nos espetos e o fogo ia-os tostando. Pararam,
petrificados. Renato apertou com força a mão do filho.
- Lamento muito - sussurrou-lhe.
- Patifes malvados! - praguejou Anacleto.
- São porcos, gatunos e maus - disse um rapazinho.
- Patifes malvados - repetiu Anacleto, e acrescentou: - Era mesmo preciso dar-lhes uma boa lição.
Renato estava furibundo, mas impôs a calma a todo o grupo.
- Para já vamos abordá-los e logo vemos como reagem - decidiu, avançando em direcção aos ciganos. Os outros seguiram-nos. Dois cães, que estavam junto da fogueira,
começaram a ladrar. A alegria ruidosa extinguiu-se e os ciganos observaram espantados aqueles homens e aqueles rapazes que se aproximavam.
Renato fez sinal à sua gente para parar.
- Os coelhos que estão a assar são do meu filho e algum de vocês os roubou - declarou, com uma voz firme.
Um dos ciganos, que tinha a mesma compleição maciça de Renato, uns olhos escuros como a noite e uns bigodes negros, afrontou-o: - Como é que podes ter a certeza
de que fomos nós que os roubámos?
- Os meus filhos viram duas das vossas mulheres com umas crianças à volta da cabana - explicou Renato.
O cigano desatou a rir.
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Quem rouba um coelho é um ladrão, quem rouba um reino é um príncipe. Uns acabam na cadeia e outros num trono. O que podemos nós fazer? - perguntou.
- Não estamos aqui para discutir filosofia - explicou Renato.
Uma mulher idosa destacou-se do grupo dos ciganos, aproximou-se de Rosellina e observou-a durante muito tempo. Depois disse:
- Também tu, um dia, vais ser ladra, mas vão-te aplaudir como uma princesa.
- Não lhe ligues - interveio o cigano. - Ela lia o futuro, mas agora está velha... Sentem-se connosco e partilhamos a refeição.
- Nós não queremos dividir convosco aquilo que é nosso. Têm de pedir desculpa ao meu filho. Estes animais eram dele e criou-os com cuidado e com esforço. E vocês
privaram-no de um sonho.
Pronunciou estas palavras com firmeza e Pucci sussurrou: Obrigado, pai. Já está bem assim. Agora vamos para casa.
O cigano baixou a cabeça em frente ao pequeno Corti e disse num sussurro: - Eu e a minha família lamentamos o que aconteceu. Não te queríamos fazer mal, só tínhamos
fome.
Os homens e os rapazes olharam para aquela gente que vivia de expedientes, num estado de precariedade absoluta. A raiva transformou-se em compaixão.
Pucci estendeu a mão ao cigano, que a apertou entre as suas.
- Dividam connosco aquilo que era vosso - propôs o homem.
Pucci olhou para o pai e declarou:
- No fundo, eu criei-os para eles acabarem no fogo.
Foi assim que se juntaram todos para partilhar pedaços de coelho estaladiços. Só faltava o velho Anacleto, que dissera:
- Eu vou-me embora. Só o cheiro do coelho já me dá volta ao estômago.
Rosellina estava ao lado do pai e, a certa altura, sussurrou-lhe:
- Pergunta à velha o que queria ela dizer com aquilo de eu vir a ser ladra e me chamarem princesa.
- Também ouviste explicar que ela está um bocado tola da cabeça - respondeu Renato.
A velha, como se tivesse ouvido a pergunta da rapariga, aproximou-se deles e disse a Renato:
- Dá-me a tua mão direita.
Renato estava a comer uma coxa de coelho e respondeu:
- Não me agrada a ideia de conhecer o futuro antes de tempo.
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- Anda lá, pai, dá-lhe a mão - pediu Rosellina.
Renato, para não desgostar a filha, estendeu a mão, que a velha observou.
- Tens uma mulher bonita que te ama e quatro diamantes que são os teus filhos. A morte já tentou apanhar-te, mas depois fugiu, deixando-te só umas arranhadelas...
- Não acabou a frase. Largou a mão de Renato, deu meia-volta e foi embora.
Quando o grupo do corso Lodi regressou a casa, já era noite.
Pucci, estendido na sua cama, sussurrou ao irmão Giuseppe:
- A partir de amanhã vou começar a estudar com todo o meu empenho. Ser comerciante é demasiado arriscado.
Rosellina, da sua cama, perguntou a Liliana:
- O que é que tu achas que a cigana viu no meu futuro?
- Não viu nada. Aquela gente vive de superstições e de conversa. Dorme, que é melhor - rematou a irmã.
Na grande cama conjugal, Renato beijou a testa de Ernestina e sussurrou-lhe: - És muito bonita. E os nossos filhos são diamantes puros, como disse uma velha.
- E tu és uma eterna criança - respondeu a mulher, enternecida, enquanto lhe afagava o rosto.
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Ernestina levou para a mesa o típico prato dos domingos de Inverno, polenta e salsichas, recebido com alegria por Renato e pelas crianças.
Sentou-se e olhou para eles enquanto se serviam. Eram saudáveis, fortes e honestos e tinham bem enraizado o sentido do dever. Era realmente uma rica família, pensou.
No entanto, não estava tranquila.
Renato preocupava-a por causa do seu cargo sindical, que se tornava cada vez mais trabalhoso e difícil. Naqueles meses, o governo tinha proposto um programa de reformas
sociais que agradaram aos trabalhadores mas que foram hostilizadas pelos empresários. As correntes políticas de direita, para além do mais, tinham admitido a criação
de prémios "antigreve", o que despoletara a fúria dos trabalhadores mais intransigentes. Surgiram, então, conflitos no interior das fábricas e os sindicalistas,
como Renato, encontravam-se entre a espada e a parede, devendo sugerir calma aos espíritos mais acesos e chamar à reflexão os mais acomodados.
Ernestina estava sempre a repetir ao marido: - Tem cuidado, expões-te demasiado. Um dia ainda te crucificam.
- Tu já nasceste pessimista - respondia Renato.
Ernestina também estava preocupada com os filhos, a começar Por Liliana, que tinha deixado de passar as tardes de domingo com as senhoras Pergolesi. Agora saía com
Danilo, de quem Ernestina não gostava. Nunca o vira, mas através das poucas palavras da filha
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tinha traçado um quadro negativo. - Uma pessoa que aos vinte e quatro anos vive à custa da avó e ainda não se formou não me inspira confiança nenhuma - dizia-lhe.
- É um filósofo. Não liga a certas coisas - defendia-o Liliana.
Ele anda a gozar com ela, pensava Ernestina, sem ter a coragem de lho dizer. Não sabia em que ponto estavam as relações entre eles e isso também era uma fonte de
preocupações. Liliana não se abria com a mãe e ela temia o pior. Dizia ao marido:
- Se ela fica grávida, o que é que nós fazemos? Adeus estudos! Tem de casar e todos os sacrifícios que fizemos vão ao ar. - Renato respondia-lhe com um sorriso:
- Tu também te casaste porque estavas grávida e afinal as coisas não te correram assim tão mal.
Giuseppe era outra grande fonte de preocupações. Estudava com empenho e com óptimos resultados. No entanto era um solitário e a mãe lia nos seus olhos uma tristeza
que a fazia sofrer. Já há algum tempo que havia percebido que aquele filho nunca seria um homem como os outros e pensava com dor no seu futuro. Mais cedo ou mais
tarde as suas diferenças acabariam por se tornar do domínio público e temia o escárnio de que ele então seria vítima. Vencendo todas as reticências, acabou por falar
com o médico de família.
- Não há uma cura para os casos como este? - perguntou -lhe.
O médico abanou a cabeça e abriu os braços. - Conforme-se, minha senhora - disse-lhe. - Não se fica homossexual por doença. Não o considere uma vergonha, nem se
culpabilize por isso. A única coisa que pode fazer é querer bem ao seu filho, assim como ele é.
- Se ao menos fosse feliz! - sussurrou Ernestina.
Também Pucci estava a mudar. Já não era o estróina de outros
tempos. Depois do roubo dos coelhos tinha sossegado e até começado a estudar com empenho, mas os resultados eram muito fracos. Só brilhava em Matemática; quanto
ao resto, era um desastre. Os professores diziam-lhe que tinha muito pouca capacidade de concentração, apesar de a natureza o ter dotado de uma inteligência viva.
- Deve ser por estar naquela idade difícil - desculpava-o Ernestina junto aos professores, mas entretanto torturava-se com a preocupação.
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Não se sentia satisfeita nem sequer com Rosellina, que estava a ficar cada vez mais vaidosa. Quando entrava alguma novidade em casa - o telefone, a televisão, o
carro que Renato tinha comprado
- Rosellina ia gabar-se de casa em casa. Não havia maneira de a levar a ser mais modesta e comedida. Talvez lhe tivessem dado demasiado mimo em casa. Aquela rapariga
de onze anos, linda como uma estatueta de porcelana, corria o risco de se quebrar no primeiro impacto com os problemas da vida. Falava, ria e gesticulava como se
estivesse sempre num palco. Ernestina receava que ela nunca viesse a ser uma mulher sólida e resistente.
As salsichas, grelhadas com salva e cozidas em molho de tomate, espalhavam pela cozinha um perfume intenso. Enquanto todos saboreavam aquela comida apetitosa, Ernestina
não se decidia a comer.
- Não estás bem? - perguntou Renato, que a mantinha debaixo de olho desde que se sentara à mesa e reparara no seu olhar ausente.
Para além das preocupações relativas à família, Ernestina tinha também um problema pessoal que deveria partilhar com o marido, mas ainda não se decidira a fazê-lo.
- Estou óptima - mentiu, e sorriu-lhe.
- Devias sorrir mais vezes porque, sempre que o fazes, até a casa sorri - disse o marido. - Digo bem, meninos? - continuou, solicitando o consenso dos filhos, que
responderam distraidamente com uma rosnadela vaga.
- Hoje há salada de fruta - anunciou Ernestina. E continuou:
- Graças ao Pucci. Ontem, enquanto vocês andavam não sei onde a divertir-se, ele esteve a trabalhar no pomar e o dono recompensou-o com um rico cesto de fruta -
explicou a mãe.
Desta vez, quase como se tivessem combinado antes, os irmãos disseram em coro: - Obrigado, Pucci! Obrigado, mãe! - Depois riram-se todos ao mesmo tempo.
Mas Ernestina não conseguiu deixar-se contagiar pela alegria geral.
A seguir ao almoço, Liliana escapuliu-se de casa com um ar furtivo. A mãe despediu-se dela, dizendo: - Pensa bem antes de fazeres algum disparate.
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Também Giuseppe se preparou para sair, depois de se ter assegurado que o nó da gravata estava perfeito e os cabelos bem penteados.
- E tu, onde vais? - indagou Ernestina, apesar de já saber que se ia encontrar com aquele colega de liceu que tinha os mesmos problemas que ele.
- vou ver a Torre Velasca com um amigo meu - disse o rapaz. E explicou ao pai: - É uma construção absolutamente revolucionária em relação à arquitectura tradicional.
Renato virou-se para a mulher: - Quiseste que ele estudasse? Aqui está o resultado: vai visitar casas para ricos, enquanto que seria bem melhor que na escola lhe
ensinassem a ver como são as casas dos trabalhadores.
Do pátio chegaram vozes de crianças que chamavam Pucci e Rosellina. Os dois deram um beijo aos pais. Iam para o centro paroquial.
Agora marido e mulher estavam sós. Renato abriu um maço de cigarros e estendeu-o à mulher, que recusou.
- Vamos fazer um café? - propôs.
- Estou cansada. Vou-me estender na cama. Mas se fizeres para ti, também tomo um bocadinho - disse, enfiando-se no quarto.
Não tinha tocado na comida. Havia já alguns dias que exibia um rosto cansado e o seu nervosismo contagiava toda a gente. Renato, que a conhecia bem, tinha a certeza
de que andava a esconder alguma coisa.
Preparou o café para ele e para ela e serviu-lho no quarto. Sentou-se na cama ao lado dela e disse-lhe com ternura: - Então, contas-me o que se passa contigo?
- Inscrevi-me no sindicato.
- Só isso? Era inevitável que o fizesses - disse o marido.
- Não cantes vitória, porque não escolhi o teu sindicato. Escolhi o dos padres.
- Não tem importância, minha querida.
- Tive de o fazer para convencer as outras operárias a inscreverem-se também. São quase todas jovens, como sabes, vêm do Veneto e vivem nas freiras. Consideram o
sindicato um instrumento do diabo, mesmo que não seja o dos comunistas. Rezaram muitos rosários com as freiras para pedir perdão ao Senhor por aquela
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decisão que, como felizmente perceberam, era inevitável. O copo estava cheio, até para elas. Não sei onde arranjei forças para as convencer a todas, mas consegui.
- E contou-lhe dos intervalos do almoço no pátio da fábrica, todas juntas, sentadas no chão, com as costas encostadas ao muro da fábrica a tirar as sanduíches do
saco. Quanto ímpeto naqueles pensamentos sussurrados, quanta esperança para conseguirem fazer valer os seus direitos!
- Tive um grande professor durante vinte anos e, graças a ti, encontrei as palavras certas para as acordar. Nenhuma delas se queixou, nunca. No sindicato nem queriam
acreditar que eu levava tantos novos pedidos de inscrição. Pedimos e obtivemos contratos normais para todas elas e uma qualificação justa para cada uma. Ao fim de
oito anos consegui a passagem de aprendiza a empregada. Não te parece uma rica vitória?
- É extraordinário! - exclamou Renato, abraçando-a.
- Agora espera para saberes o resto - disse a mulher, deixando-o gelado. E prosseguiu: - Ontem foi-nos entregue uma comunicação a todas: fomos despedidas em massa,
porque a empresa vai fechar. Daqui por um mês, sessenta mulheres vão ficar sem trabalho. E sabes de quem é a culpa? É minha, Renato - desabafou, e desatou num pranto.
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Naquele domingo, Liliana saiu a correr para ir a casa das senhoras Pergolesi e não para se encontrar com Danilo, como gostaria.
Na noite anterior tinha recebido um telefonema de Miss Angelina, que não via há três semanas.
- Amanhã vens-me visitar? - Mais do que uma pergunta, era uma súplica.
- Claro - respondeu Liliana, sentindo-se culpada por aquelas inúmeras ausências. Um mês antes tinha ido a correr a casa dela para lhe contar a sua história de amor
com Danilo. Angelina partilhou daquela excitação, mas fez-lhe também algumas recomendações. - Põe-te em guarda, querida. Os homens às vezes são um bocado malandros
e tu ainda és muito ingénua - disse-lhe.
Depois Liliana desapareceu, limitando-se a alguns telefonemas de circunstância. Danilo ocupava-lhe os pensamentos e o tempo livre. Angelina Pergolesi tinha percebido,
mas não estava zangada. Naquela noite, ao telefone, disse-lhe: - Não tragas o caderno. Não vai haver aula.
- Ainda bem, porque não tive tempo para traduzir o Chaucer
- respondeu.
Uma vez que o seu inglês era quase perfeito, a signorina Pergolesi decidiu que Liliana devia abordar seriamente a literatura anglo-saxónica e começar pelo poeta
Geoffrey Chaucer.
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Liliana aceitou como um desafio aquela difícil tradução de versos escritos no século XIV num inglês arcaico. Mas desde que Danilo tinha aparecido na sua vida até
aquele exercício estimulante abandonara.
Assim, naquele domingo percorreu o corso di Porta Romana. Iria encontrar-se com o namorado depois da visita à casa das senhoras Pergolesi.
Angelina estava de sentinela na varanda e, quando a viu em frente ao portão, disse-lhe: - Não toques. Eu já vou abrir.
- Têm a campainha avariada? - perguntou a rapariga, assim que chegou ao pé da signorina Pergolesi.
A professora levou o indicador aos lábios, convidando-a a baixar a voz. Tinha perdido o olhar alegre e parecia mais velha. Em bicos de pés, chegaram as duas à sala
de estar. Sentaram-se no sofá e Liliana pressentiu o gelo de uma má notícia que estava prestes a ser comunicada.
- A sua mãe... - sussurrou.
A signorina Pergolesi tirou do bolso um lencinho de batista branca, delicadamente bordado, secou uma lágrima e sussurrou:
- Está a morrer. - Foi um pranto ligeiro, pudicamente silencioso.
- Sinto muito - sussurrou a rapariga, sinceramente abalada com aquela notícia. - O que aconteceu? - perguntou.
Angelina limpou os olhos, dobrou o lenço e apertou-o na mão.
- A mãe vai partir e deixa-me sozinha. E eu não sei como vou enfrentar os dias que me restam sem ela. Nunca tinha pensado que este momento pudesse chegar, porque
a considerava imortal. Desde há algum tempo estava a ficar um pouco estranha: já não implicava comigo. Um dia até me fez uma festa. Começou a andar de um lado para
o outro pela casa, em silêncio, arrumava as gavetas e não comia. Por mais que a Luisella e eu a questionássemos, ela apenas sorria e dizia: "Está tudo bem." Mas
afinal estava tudo mal. Quando chamei o nosso velho médico de família para a ver, ele declarou: "Não encontro nenhuma patologia. A senhora está bem, apesar de a
pressão estar um pouco baixa e o coração um pouco cansado. Vou-lhe receitar um medicamento para o coração e, se realmente não quer comer, obrigue-a a beber. Dê-lhe
um bom sumo de laranja, com bastante açúcar." A mãe estendeu-se na cama para ser vista pelo médico e a partir daí nunca mais se quis levantar. Ontem à
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tarde caiu num sono profundo e nem eu nem a Luisella conseguimos acordá-la. Chamámos o médico: disse que está em coma. E é tudo, querida.
- Por que não me telefonou logo? - perguntou Liliana.
- Tens a universidade, as explicações, a tua primeira história de amor. Que direito tinha eu de perturbar tudo isso? No entanto, ontem à noite achei que tinhas de
saber e liguei-te. Só disse a ti. Os nossos parentes americanos ainda não sabem. vou informá-los quando chegar o momento, mas não vão ficar muito perturbados com
a notícia. Alguns deles nem sequer a conheceram. Esta velha senhora, que durante tantos anos viveu na Europa distante, não representa nada para eles. Para mim, no
entanto, é o único ponto firme de toda a minha vida.
Liliana afagou-lhe um ombro.
- Obrigada, querida - sussurrou Angelina.
- Posso vê-la? - perguntou a rapariga.
- Mas é claro, se quiseres. Só te peço que não faças barulho. O médico, que saiu daqui há pouco, diz que já não sente nada e que é só uma questão de horas. Mas eu
acho que a mãe ainda tem o ouvido apurado e os ruídos podem incomodá-la. Escolheu não continuar a viver. Sabe-se lá porquê! Estávamos tão bem juntas, ela e eu -
sussurrou, ao mesmo tempo que avançava à frente dela em direcção ao quarto, onde a velha empregada estava sentada ao lado da doente.
A mãe Pergolesi dormia um sono profundo. Os cabelos brancos e ondulados eram uma auréola de seda em volta do rosto pálido que exprimia uma espantosa serenidade.
- Gostava de lhe fazer alguma companhia - sussurrou Liliana, que tinha esquecido completamente o encontro com Danilo.
Luisella e Angelina trocaram um olhar e deixaram-na só. Liliana inclinou-se sobre a doente e acariciou-lhe a testa. Tal como Angelina, também ela pensou que talvez
a velha senhora estivesse consciente daquilo que a rodeava, mas não queria saber de nada, porque se preparava para enfrentar uma grande viagem em direcção a um mundo
misterioso. Liliana recordou as histórias coloridas da velha signora Pergolesi, que falava das luzes de Nova Iorque, das multidões ao longo das grandes avenidas,
das filas de automóveis a
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buzinar, do subway que corria nos subterrâneos da cidade transportando milhões de passageiros, dos homens "Sandwich" que percorriam os passeios a fazer publicidade
às marcas de muitos produtos, Aos rios de cerveja que corriam nos bares para alegria "daqueles selvagens" que não conheciam a refinada elegância de um bom copo de
vinho. Narrara-lhe um mundo resplandecente, caótico, moderníssimo e exuberante e fizera-a sonhar. Por isso lhe estava profundamente grata. A velha senhora tinha-lhe
dado muito e apenas lhe pedira em troca a sua capacidade de ouvir.
- Obrigada por tudo, querida signora Pergolesi - sussurrou Liliana, afagando-lhe uma mão.
A senhora suspirou e a sua respiração apagou-se.
- Foi-se embora - disse Liliana, por entre lágrimas, assomando à porta da cozinha onde Angelina e a empregada estavam a preparar o chocolate.
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Estavam todos a dormir, em casa, excepto Liliana que, sentada na cama, andava ainda às voltas com os livros. Estudava para os seus primeiros exames. Não era tarefa
fácil para uma matrícula em Direito. Mas ela estava absolutamente determinada a queimar etapas, empurrada pelo orgulho da primogénita que deve servir de exemplo
aos outros irmãos.
Passava já das onze horas quando a mãe entrou em casa em bicos de pés, regressando de uma extenuante reunião com os patrões da fábrica de malhas. À notícia do fecho
da empresa Ernestina reagira com a sublevação de um verdadeiro pandemónio que tinha sido noticiado pelos jornais e até pela televisão. Organizou manifestações e
comícios em frente à fábrica, com a intervenção de delegações de operários de outras unidades fabris. Era evidente que, na realidade, os Scanni não tencionavam fechar
a fábrica, que era uma empresa florescente, com um volume de negócios considerável. Pretendiam apenas substituir o pessoal sindicalizado por novos operários que
não criassem problemas. Mas não tinham previsto que aquela estratégia pudesse desencadear uma reacção tão imponente. Havia já muitos dias, portanto, que Ernestina
dividia o seu tempo entre o trabalho e as reuniões com o sindicato e os Scanni. Durante anos tinha criticado o envolvimento do marido e agora encontrava-se na mesma
situação.
- Devias descansar - sussurrou a Liliana, assomando à porta
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do quarto.
Rosellina dormia profundamente e não acordaria nem mesmo se levantassem a voz.
- Tu também, mãe - respondeu Liliana, fechando o livro.
- Pois, eu também - suspirou Ernestina, ao mesmo tempo que se sentava na beira da cama.
- Como é que correu? - perguntou a filha.
- Vamos ver. Agora temos as festas e até depois dos Reis não vai acontecer mais nada - rematou.
- Eu gostava de passar o fim de ano fora da cidade - disse Liliana.
- com aquele Danilo, suponho - precisou a mãe.
- Supões bem.
Ernestina fez uma careta de desapontamento.
- Depois falamos - disse, enquanto se levantava.
- É melhor falarmos agora, porque amanhã é o último dia do ano e eu queria sair de tarde - insistiu a filha.
- Se eu te disser que não, tu ficas zangada. Se te disser que sim, vou ficar preocupada até tu voltares. Não podias arranjar um namorado mais de confiança?
- Mãe, eu estou apaixonada pelo Danilo e aborrece-me que tu o julgues mal - lamentou-se.
- Tens umas palas nos olhos, como todos os apaixonados. Mas eu estou demasiado cansada para entrar em discussões. Faz o que entenderes, mas exige respeito e não
te esqueças de que os homens, à excepção do teu pai, são um bando de patifes.
No dia seguinte Liliana apanhou o comboio para Varese, na plena convicção de que a mãe não era capaz de compreender Danilo, o homem com quem havia de partilhar a
vida, porque era o único capaz de fazer vibrar as cordas da sua feminilidade, de lhe dedicar pequenas e maravilhosas atenções e de lhe sussurrar: "Liliana, és tão
bonita", e que quando a beijava a fazia sentir-se exactamente como se estivesse no paraíso. Danilo esperava-a na estação de Varese. Foi ao encontro dela quando desceu
do comboio e ofereceu-lhe uma rosa. Liliana montou com ele na Lambretta, atravessaram a cidade e chegaram a casa da avó. Era uma graciosa vivenda Liberty, na rua
que ia até ao Sacro Monte, com um grande jardim à volta.
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A avó, uma velha senhora curvada pela artrose, tinha sido funcionária municipal. Estava reformada há anos e agradecia a sorte de ter visto o neto ser poupado no
acidente de automóvel em que tinham morrido o filho e a nora. Recebeu Liliana com o sorriso e os modos altivos das senhoras de outros tempos.
- Esteja à vontade, menina - disse-lhe, enquanto a fazia entrar numa salinha de estar minúscula e triste com as paredes revestidas por uma tapeçaria vermelha escura
salpicada de pequenas flores amarelas, um sofá e duas poltronas antigas, uma estante cheia de pequenos objectos de porcelana e fotografias emolduradas dos parentes
mais queridos penduradas nas paredes.
- Chame-me Liliana, por favor - disse a rapariga. - E trate-me por tu - acrescentou, aceitando o convite para se sentar.
Na pequena mesa em frente ao sofá estava uma garrafa de vermute, três cálices e um prato de biscoitos.
- Nasci no século XIX e era uma espécie de revolucionária naquela altura, porque fui trabalhar numa época em que todas as mulheres de origem pequeno-burguesa ficavam
em casa a tricotar. Sabe que tive alguma dificuldade em arranjar marido por causa do meu trabalho? Tome um calicezinho de vermute, tenho muito gosto nisso. Portanto,
queria explicar-lhe que não é fácil para mim tratar com muita confiança uma rapariga que acabo de conhecer. O meu pai era secretário dos condes Bettola, que tinham
grandes propriedades para estes lados. De vez em quando, raramente, levava-me a visitar a villa. Eu era ainda uma criança e o luxo daquela casa ofuscava-me. Imagine
que o conde e a condessa, já idosos, se tratavam por você, exactamente como fazia Giacomo Leopardi com o pai e com a mãe. Sempre li muito, ainda agora continuo a
ler, mas ao fim de algum tempo começo a misturar as palavras e o cansaço impede-me de continuar. Por isso, signorina Liliana, vai desculpar-me se continuo a tratá-la
por você. Mas isso não significa que não seja bem-vinda. Molhe o biscoito no vermute, se gostar. Como o meu Danilo já lhe disse, levo uma vida muito retirada. Só
saio para fazer as compras de casa e assim encontro alguns velhos conhecidos. Cumprimentamo-nos, falamos um pouco dos nossos achaques e fico a saber de alguém que
morreu. Felizmente tenho o meu neto e isso mantém-me viva. À noite jantamos juntos, de manhã acordo-o e preparo-lhe o pequeno-almoço. Depois ele vai para Milão e
eu
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trato da casa e da roupa dele. Não tenho tempo para me aborrecer. Quando ele acabar aquele bendito curso e arranjar uma rapariga às direitas para casar, então eu
descanso - concluiu a senhora.
Liliana escutou, pálida, aquele rio de palavras. De vez em quando observava Danilo de soslaio. Ele tinha fechado os olhos, como se estivesse a dormir, e parecia
feliz. Perguntou a si própria como havia de responder, mas a avó libertou-a daquele embaraço porque, depois de ter esvaziado gulosamente o seu cálice de licor, recomeçou
a falar.
- Nunca permiti ao meu Danilo que trouxesse amigos aqui para casa, e muito menos raparigas. No entanto, o meu neto falou-me muito bem de si, e uma vez que um bom
dia se vê logo de manhã devo dizer-lhe que o seu aspecto me tranquiliza. Reparei que não se pinta e isso já é um bom sinal, nos tempos que correm. Sei que estuda
com bom aproveitamento e isso é mais um sinal positivo. O Danilo é socialista, como o meu defunto marido, de quem tem o nome. Também o nosso Senhor era socialista.
Sabia? Os comunistas não me agradam: são gente sem Deus e não têm nenhum respeito pela moral. O meu Danilo e eu respeitamos muito a moral. Signorina Liliana, também
respeita a moral, não é verdade? Portanto, seria embaraçoso uma menina dormir debaixo do mesmo tecto que um jovem. Sei que esta noite vão à festa de passagem de
ano dos Conforti, que são uma família muito estimada. Para mim o fim de ano é um dia como os outros e por isso vou dormir. Se a signorina Liliana quiser descansar
umas horas, antes de ir para a festa, poderá fazê-lo neste sofá. Agora vou deixá-los sozinhos, enquanto preparo o jantar. Uma coisa ligeira, porque vão ter oportunidade
de jantar condignamente em casa dos Conforti.
Juntou no tabuleiro biscoitos e cálices, fechou à chave o vermute no armarinho das bebidas e saltitou em direcção à cozinha, deixando Liliana perplexa.
Danilo abriu os olhos e sorriu-lhe.
- Esta é a minha avó - disse.
- E não precisas de dizer mais nada - respondeu ela.
Danilo foi até ao sofá, pôs-se atrás dela e enfiou as mãos grandes e tépidas no decote da camisola da rapariga. Acariciou-lhe os seios e sussurrou: - As minhas mãos
amam-te.
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- Por que é que não podemos ficar sozinhos? - perguntou Liliana.
- Vamos ficar, daqui a poucas horas. Os Conforti não dão festa nenhuma. Estão todos na montanha, mas o filho, que é meu amigo, deixou-me as chaves de casa. Por isso
contenta-te em comer uma sopinha de massa, um pedaço de frango cozido com puré de batata e pudim de baunilha. Dá os parabéns à avó pelo jantar, ela fica feliz -
aconselhou-a.
Os Conforti tinham um grande apartamento no último andar de um palácio senhorial no centro de Varese. Desafiando o frio, foram até lá de Lambretta. Liliana ficou
encantada com o luxo e a elegância daquela casa. Danilo conduziu-a com um passo seguro através de um labirinto de corredores até uma sala de estar. Havia estantes
de livros ao longo das paredes, amplos divãs forrados de veludo verde-escuro, flores frescas nas jarras e candeeiros com enormes abat-jours de seda branca.
- Esta sala é toda para nós, até amanhã de manhã - anunciou Danilo.
Liliana abriu uma porta que já estava entreaberta. Viu uma casa de banho revestida de mármores e espelhos.
- Quem são estes Conforti? - perguntou a rapariga.
- Industriais, há várias gerações.
- Já aqui estiveste mais vezes?
- Todas as semanas, à sexta-feira à noite, quando venho dar explicações de Grego e Latim ao filho mais novo, o Francesco. O irmão mais velho é o meu melhor amigo.
Falei-lhe de ti e, antes de partir com a família para Crans-sur-Sierre, deu-me as chaves de casa. Queria que a nossa primeira noite fosse memorável - explicou, enquanto
tirava a camisola.
- Como é que tinhas assim tanto a certeza de que eu ia aceitar passar a noite contigo? - O seu batimento cardíaco tinha assumido uma repentina aceleração e sentiu
uma onda de calor no rosto.
- Porquê? Se calhar não é assim? - afirmou Danilo, com um sorriso.
Tinha tirado os sapatos e as meias e, descalço, saiu da sala para voltar a aparecer pouco depois com uma garrafa de champanhe e duas taças de cristal.
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- Nunca estive com ninguém até hoje. Por que razão havia de fazer amor precisamente contigo? - perguntou-lhe Liliana, que tinha recuperado o seu controlo.
- Porque és a minha namorada - respondeu ele.
Foi até junto dela e começou a desapertar a blusa de malha cinza-pérola. O toque suave daquelas mãos fê-la arrepiar.
Liliana estava apaixonada e só desejava abandonar-se nos braços dele, como fantasiava havia já várias semanas, mas a segurança descarada de Danilo era uma nota fora
do tom que não fazia parte dos seus sonhos.
- Quero tomar um banho. Nunca vi uma banheira que parece uma piscina - decidiu.
Afastou Danilo, entrou na casa de banho e abriu as torneiras. Num nicho comprido, escavado no mármore, viu uma série de frascos de vidro que continham sais de banho
de várias cores. Escolheu os de alfazema e deitou um punhado na água.
Despiu-se e, quando ia a entrar na banheira, sentiu a presença de Danilo atrás dela. Sabia que tinha um corpo bonito e não lhe desagradava a ideia de que ele a visse
nua.
- Meu Deus, és tão bonita - sussurrou o rapaz.
Liliana estendeu-se dentro de água e olhou para o namorado. Tinha nas mãos duas taças de champanhe. Ela sorriu e estendeu um braço cheio de espuma.
- O meu néctar, por favor - ordenou, com uma voz lânguida. Depois explodiu numa gargalhada e disse: - Estamos a representar uma cena de filme medíocre.
Danilo estendeu-lhe o copo e ela despejou-o na banheira.
- Nunca me vais apanhar por embriaguez - afirmou. - Mas dou-te autorização para te despires e para entrares nesta piscina. Achas que a tua avó me ia condenar? -
provocou.
- Qual avó? - brincou ele.
Deslizou para dentro da banheira, em frente a ela. Acariciaram-se então, olhando-se nos olhos e desejando-se como se não existisse mais nada no mundo para além da
necessidade que sentiam de pertencerem um ao outro.
Danilo beijou-a, sussurrando: - A minha boca ama-te, as minhas mãos amam-te, o meu corpo ama-te.
- E tu, amas-me? - perguntou ela.
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- Eu quero-te, Liliana.
Aquela foi a sua primeira, extraordinária e irrepetível noite de amor, com a qual saudaram o ano velho e baptizaram o ano de 1959.
Pela cidade rebentavam fogos-de-artifício, brilhavam fogueiras nas colinas e a alegria explodiu no coração de Liliana.
Na manhã seguinte, Danilo foi levá-la à estação. Não quis ir despedir-se da avó. Achou que se aquela velhota terrível a olhasse nos olhos ia logo perceber tudo e
acabaria por a pôr na rua. Apanhou o comboio que partia para Milão, sozinha. A euforia daquela noite diluiu-se em melancolia e teve alguma dificuldade em conter
as lágrimas.
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SITO DELLA GUASTALLA
Poderia parecer uma primeira vez quase perfeita - comentou o professor De Vito. E continuou: - Tinha a idade certa para uma relação sexual e teve-a com um homem
que amava, deixando bem claro que não seria uma vítima sacrificial.
- Está a ver a maçã da Branca de Neve? Era bonita, luzidia e à primeira dentada parecia deliciosa. Mas estava envenenada. Foi assim com o Danilo, que usou a forma
mais matreira para me transformar numa vítima.
- Por hoje, a sessão acaba aqui - interrompeu Nelson, olhando para o relógio que trazia no pulso.
Liliana levantou-se, apertou-lhe a mão e foi-se embora.
Nelson limpou cuidadosamente o cachimbo, arrumou a secretária e saiu do consultório. Era Março e o ar cheirava a Primavera.
Quando entrou em casa, a signora De Vito e Sir Pitt, o cão, receberam-no alegremente, como sempre. Sentou-se na sala de estar e a mulher preparou-lhe o habitual
sumo de tomate.
Por que casaste comigo? - perguntou Nelson de repente.
Porque te amava, querido - respondeu tranquilamente.
- Não tivemos filhos - constatou Nelson.
- Tu não querias. Eu já te tinha a ti e ao teu cão.
- E não tens pena? - perguntou Nelson.
- Por mim correu bem assim, querido. Queres que te descasque um pistacho?
Nelson recordou a rapariga radiosa que frequentava um curso
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de Literatura Românica, que cantava com uma voz extremamente doce canções italianas, acompanhando-as à guitarra, e que uma noite o convidou para comer uma massa
em sua casa. "Não sou grande cozinheira", disse-lhe então. A massa estava péssima, mas pediu uma segunda dose, não para lhe agradar, mas porque adorava qualquer
coisa que fosse feita por ela.
Descascou alguns pistachos, enquanto acabava de beber o sumo de tomate. A empregada anunciou que o jantar estava na mesa. O médico levantou-se e beijou com ternura
a testa da mulher.
- Amo-te - sussurrou-lhe.
Naquele momento pensou em Danilo, o namorado de Liliana Corti, que não tinha conseguido dizer-lhe aquela palavra tão simples. Ela devia ter fugido imediatamente.
Se o tivesse feito, talvez a sua vida tivesse sido diferente.
Quando Liliana voltou a apresentar-se no consultório de Nelson, iniciou a sessão dizendo: - Gostava de lhe falar daquele fruto bichado e do veneno que me deixou
no coração.
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CORSO LODI
Liliana recebeu uma carta de Beth Pergolesi, de Nova Iorque. A correspondência entre ela e a sobrinha de Miss Angelina durava já há alguns anos e era-lhe muito útil
para manter vivo o seu inglês. Beth tinha-lhe muitas vezes referido o desejo de ir a Itália para conhecer a tia.
Agora, porém, escrevia: "Sabes bem como a Angelina se sente só depois que a mãe a deixou. Por isso decidiu vir viver connosco, na cidade onde nasceu. Por que não
vens com ela? Seria uma ocasião única para nos conhecermos, finalmente. Podias cá ficar muito tempo, porque a casa é grande, há espaço que chegue..."
Liliana tinha aberto o envelope fino de correio aéreo enquanto subia as escadas de casa e começou a ler. Parou a meio da subida. Não sabia nada sobre aquela decisão
de Miss Angelina. De facto, não tinha notícias dela havia mais de um mês, porque estivera muito empenhada em preparar a tese de licenciatura e em decifrar o comportamento
infantil de Danilo. Agora ficara a saber que a signorina Pergolesi ia mudar a sua vida. Em vez de continuar a subir, deu meia-volta, desceu as escadas a correr e
dirigiu-se apressadamente a casa da sua professora.
- São três horas. A signorina Angelina ainda está a descansar - disse Luisella, que lhe abriu a porta.
- É verdade - disse Liliana, que já sabia que, depois da morte da mãe, Angelina fazia uma pequena sesta a seguir ao almoço. Aquela
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pausa de uma ou duas horas servia-lhe para abreviar os seus dias de mulher só.
- Entre. Vou-lhe fazer um café - sugeriu a velha empregada.
A rapariga sentou-se à mesa da cozinha, tamborilando os dedos sobre o mármore.
- O que se passa? Parece-me um bocadinho nervosa - constatou Luisella, enquanto punha a cafeteira ao lume.
A signorina Pergolesi apareceu à porta.
- Que bom ver-te! - exclamou, feliz.
Liliana levantou-se de um salto e abraçou-a.
- Recebi uma notícia que me chegou do outro lado do oceano, enquanto eu, que estou a poucos metros daqui, devia ter sabido mais cedo - disse, com ar de censura,
mostrando a carta de Beth.
A velha senhora sorriu.
- A Luisella vai-nos levar o café à sala. Anda, querida, vamos para lá - disse, avançando à frente dela em direcção à sala de estar, que ficava ao fundo do corredor.
- Então, conte-me lá quando foi que decidiu ir embora de Itália - pediu a rapariga, enquanto se sentava ao lado dela no sofá.
- Sabes, há já um tempo que eu tencionava regressar ao sítio onde nasci - começou Angelina.
- Sim, mas dos pensamentos aos actos... - observou Liliana.
- Tive pelo meio o tempo da reflexão - concluiu a senhora. E continuou: - Confesso-te que, quando a mãe me faltou, pensei que finalmente ia poder viver como uma
adulta consciente, em vez de ser a velha criança submetida à orientação materna. Estou satisfeita comigo própria porque me tenho desenrascado bastante bem. Mas os
anos também passam para mim e a Luisella está cada vez mais cansada.
- E tenho o direito de me reformar - afirmou a mulher, que acabava de entrar na sala para servir o café.
- Por isso decidi reunir-me com o que resta da minha família materna - afirmou Angelina. E prosseguiu: - Ia falar-te sobre isso quando nos encontrássemos, até porque
tenho uma proposta para te fazer.
- Ir consigo aos Estados Unidos? É a coisa que mais desejo, mas nem pensar. vou defender a tese daqui a duas semanas e logo a seguir vou-me pôr à caça de um emprego
- explicou a rapariga.
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- Não é disso que se trata. Gostaria de vender este apartamento e pergunto a mim mesma se a família Corti não estaria interessada em comprá-lo - disse Angelina.
Os Corti, como todos os outros inquilinos do prédio do corso Lodi, receberam uma ordem de despejo e deviam deixar a casa até fim do ano. Tentaram protestar contra
aquela decisão, mas os proprietários foram irredutíveis. Algumas famílias tinham já encontrado uma nova casa, e outras, como os Corti, inscreveram-se numa cooperativa
que estava a construir naquela altura uma série de prédios ao fundo da via Ripamonti.
- Vamos ter de aguentar um empréstimo de trinta e cinco anos - lamentou-se Ernestina.
- Já hei-de estar morto antes de o conseguir pagar por inteiro - disse Renato.
Ninguém estava contente por ir viver num grande prédio anónimo, numa zona periférica. Mas era inevitável, porque as rendas dentro da cidade eram demasiado elevadas.
A proposta da signorina Pergolesi suscitou o entusiasmo de Liliana, mas era inaceitável.
- É a coisa mais bonita que me podia dizer - exclamou a rapariga. - Mas a senhora conhece as nossas condições. Não nos podemos dar ao luxo de ter um apartamento
como este. Muito obrigada, de qualquer maneira, por ter pensado em nós.
- Não ponhas esse ar resignado, não é nada teu, e ouve-me. Como sabes, não preciso de dinheiro. Por isso, podiam pagar-me a mim a prestação que iam pagar à cooperativa.
Todos os meses eu recebia uma espécie de pensão vitalícia para as minhas pequenas despesas. Não te parece uma proposta a considerar?
Naquela noite Liliana conversou com a família sobre o assunto, quando estavam todos reunidos à volta da mesa para jantar.
- Tem mais ar de oferta do que de compra - observou Renato.
- Se aceitássemos, alguém podia pensar que demos o golpe do baú a uma senhora sozinha. E depois eu não me vejo naquele edifício tão elegante - observou Ernestina.
- Pois eu vejo-me lá perfeitamente - afirmou Rosellina.
Se os meus companheiros soubessem que comprei uma casa no corso di Porta Romana, iam pensar que roubei. Não pode ser,
Liliana. E depois, a cooperativa já nos atribuiu o apartamento - rematou Renato.
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- As casas na periferia nascem como cogumelos e, como há muita procura, os preços sobem todos os dias. Se revendêssemos a nossa quota, de acordo com os valores de
hoje, fazíamos negócio. E os teus companheiros, pai, nunca iam pensar que roubaste, porque te conhecem bem - observou Liliana.
- Quando parte a signorina Pergolesi? - perguntou Ernestina.
- Em Setembro. Também nos deixa a mobília, excepto alguns quadros que vai mandar para a América - explicou Liliana.
- Há sempre tempo para dizer que não. Vamos pensar, Renato - decidiu Ernestina.
Naquela noite, antes de adormecer, Rosellina disse à irmã:
- Esperemos que a mãe e o pai aceitem a proposta da tua professora. Imaginas como seria bom viver num prédio de gente fina? Não vejo a hora de contar isto às minhas
amigas.
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Todos os domingos Liliana fazia aquilo que, durante a semana, fazem os estudantes que vivem fora da cidade. Apanhava o comboio das nove no piazzale Cadorna, em Milão,
e uma hora depois descia na estação de Varese, onde Danilo a esperava. Iam juntos para casa da avó, que falecera dois anos antes. Para Danilo, aquele luto foi uma
tragédia. Durante muitas semanas manteve-se afastado de toda a gente, recusando-se a estar com quem quer que fosse. Foi precisa toda a paciência de Liliana para
o convencer a sair do isolamento em que se refugiara. Telefonava-lhe todas as noites e escutava os seus silêncios, enquanto Ernestina comentava: - Ele é doido. Se
tivesses um mínimo de bom senso, deixava-lo ficar.
A avó morreu depois de Danilo ter acabado o curso e começado a dar aulas de História e Filosofia numa escola particular de Varese. Nessa altura, como se tivesse
acabado de cumprir a sua tarefa, foi-se embora deste mundo depois de ter prevenido o neto: - Tens de encontrar uma mulher serena que saiba tratar de ti e que te
dê filhos.
Quando Danilo lhe repetiu aquelas palavras, Liliana perguntou: - Por que foi que a tua avó nunca me aceitou?
O namorado fez os possíveis e os impossíveis para lhe demonstrar que não era assim, que a avó a estimava muito, mas não conseguiu convencê-la. A velha senhora tratara-a
sempre como uma estranha e, uma vez que não perdia nenhuma oportunidade para lhe repetir que uma rapariga às direitas nunca se entrega antes do casamento, Liliana
nunca esteve sozinha com Danilo na villa, Liberty. Quando
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queriam estar sós, encontravam-se na casa de algum amigo complacente.
Naqueles quartos, sempre diferentes, Liliana sentia-se pouco à vontade. Depois de fazerem amor, ele adormecia e ela ficava acordada a interrogar-se sobre o futuro
dos dois. Nos momentos de intimidade, Danilo sussurrava-lhe palavras muito ternas, mas sempre que ela se referia a qualquer projecto para uma vida em comum ele calava-se
ou mudava de assunto. Nesses momentos, Liliana dizia para si própria: Manda-o para o diabo. Mas não suportava a ideia de o perder.
- Sinto-me uma pecadora - lamentou-se uma vez, depois de terem feito amor.
- Mas tu és uma pecadora - replicou Danilo, em ar de brincadeira.
- Se eu peco, tu pecas também.
- O homem nunca peca, nestas coisas - respondeu, seguro de si.
- Tu por acaso és socialista? Por acaso és uma pessoa que defende que o homem e a mulher têm direitos iguais? És um conservador vesgo, um machista que considera
as mulheres como vítimas sacrificiais - respondeu, irritada.
- E tu, serás tu por acaso uma rapariga moderna, dona de ti e das tuas escolhas, como me quiseste convencer desde que nos conhecemos?
Discutiram, mas no domingo seguinte Liliana aceitou encontrar-se outra vez com ele numa casa desconhecida. Amava-o e não conseguia imaginar a sua vida sem ele. Bastava
que Danilo lhe desse a mão, a levasse a passear nos bosques e a atordoasse com palavras para que os seus medos se desvanecessem.
A seguir à morte da avó, Liliana estava convencida de que Danilo ia mudar, ia crescer, ia finalmente tornar-se um homem. O primeiro passo foi a entrada de Liliana
na villa Liberty, nas encostas do Sacro Monte. Mas essa foi a única novidade: Danilo não tinha mudado.
Naquele domingo, Liliana levou consigo uma cópia da sua tese de licenciatura para mostrar a Danilo. Sentia-se orgulhosa do seu trabalho, que lhe tinha custado meses
de estudo e de cansaço. Esperava que Danilo quisesse folheá-la, se não mesmo lê-la por inteiro. Precisava da sua aprovação, até porque o tema tinha a ver com
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o direito do trabalho e, ao abordá-lo, Liliana fizera referência a algumas ideias base do socialismo.
Quando o comboio parou na estação de Varese, Danilo não estava lá à espera dela. Telefonou-lhe e ele atendeu com uma voz ensonada:
- Que horas são?
- São dez, como todos os domingos - respondeu ela, irritada.
- Espera aí. Enfio o sobretudo e vou ter contigo a correr - respondeu-lhe, para a sossegar.
Liliana saiu da estação e olhou em volta. A pequena praça começava a animar-se, o sol estava já alto nos montes em volta da cidade e o frio fazia-a lacrimejar. Viu
o FIAT 600 de Danilo surgir de uma rua lateral, dar a curva para contornar a praça e estacar numa estridência de travões ao lado do passeio onde ela esperava.
Danilo estava despenteado, tinha o rosto ensombrado pela barba do dia anterior e, por baixo do sobretudo, trazia ainda o pijama de flanela às riscas azuis e brancas.
Sentou-se ao lado dele e sorriu-lhe.
- Desculpa - começou ele, enquanto lhe dava um beijo apressado na face. E continuou: - Esta noite tomei um comprimido porque não conseguia dormir. Ainda estou atordoado.
- Não dormias porque estavas impaciente por me ver? - brincou Liliana. E acrescentou: - Ou talvez estivesses preocupado porque perguntavas a ti mesmo: "Será que
a rapariga do meu coração vem ou não vem?"
Ele emitiu uma rosnadela incompreensível e arrancou a grande velocidade. Quando chegaram a casa, Liliana, como todos os domingos, lavou os pratos e as panelas empilhados
no lava-loiça, apanhou a roupa espalhada por todo o lado, esvaziou o cinzeiro e arejou os quartos, enquanto Danilo tomava banho. Depois preparou o pequeno-almoço
e chamou-o. Ele foi ter com ela à cozinha. Trazia umas pantufas e um roupão de felpo. Liliana deitou-lhe o café com leite na chávena, barrou as torradas com manteiga
e mel, depois sentou-se do outro lado da mesa e acendeu um cigarro.
- Tu não comes? - perguntou ele.
- Só vou tomar uma chávena de café. Já tomei o pequeno-almoço em Milão e estou de dieta - respondeu.
- Porquê? Não tens uma ponta de gordura a mais.
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- Mais vale prevenir. E agora diz-me o que é que não te deixava dormir.
- Pensamentos - respondeu ele, ao mesmo tempo que trincava uma fatia de pão estaladiço.
- Sou todo ouvidos - insistiu ela.
- Tu és demasiado bonita, demasiado perfeita, demasiado inteligente para uma pessoa como eu - explicou Danilo.
O rádio, a tocar baixinho, transmitia um prelúdio de Chopin.
- Gostava que te ouvissem os teus alunos, aterrorizados com o professor de Filosofia - brincou.
- Perguntaste-me em que é que eu estava a pensar e eu disse-te. Não te mereço, Liliana - rebateu.
- Sabes, uma destas noites fui ao cinema. Vi um filme em que o protagonista, um traidor infame, dizia à namorada, que estava apaixonadíssima por ele: "Não te mereço."
A pobre não percebia que, com aquelas palavras, ele a estava a despachar. Mas tu, meu querido, não me queres deixar. Portanto, acaba com esses disparates.
Danilo não respondeu e continuou a comer.
Liliana nunca se sentia completamente à vontade naquela casa. Tinha sempre a impressão de que a avó a observava com o seu olhar inquiridor. Uma vez mostrou-lhe a
caderneta da faculdade. A avó examinou a avaliação, uma série ininterrupta de excelentes notas, e comentou, desapontada: - Que sentido faz uma rapariga querer ser
advogada? Coitado do homem que casar com ela, porque nunca será uma boa esposa nem uma boa mãe. Uma mulher deve saber estar no seu lugar: um degrau abaixo do homem.
Recordou aquele episódio enquanto Danilo acabava o pequeno-almoço. A seguir, ele foi para a sala e ela foi atrás.
- Na quarta-feira vou defender a minha tese. Vão lá estar os meus pais, a signorina Pergolesi e os meus irmãos. Ficava contente se tu também fosses - disse-lhe,
ao mesmo tempo que lhe estendia um grande livro encadernado. - Queres dar uma vista de olhos? - perguntou.
Ele pegou na tese, pousou-a em cima da mesinha e não respondeu.
- Então? - perguntou a rapariga.
- Já sabes que à quarta-feira estou todo o dia na escola - disse Danilo.
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Estava enterrado na poltrona da avó, com a cabeça apoiada no encosto, sobre um delicado pano de renda branca que lhe fazia de auréola. Liliana achou-o cómico e sorriu,
sufocando a desilusão. Estava preparada para a sua ausência porque, tal como a avó, o namorado não lhe perdoava o dinamismo, a sua capacidade extraordinária de aprender
e, sobretudo, o facto de ter concluído a universidade tão depressa e com notas tão altas.
- Depois vamos ao Alemagna, na piazza Duomo. A minha mãe reservou uma salinha só para nós. Podia ser uma oportunidade para conheceres a minha família que, finalmente,
vai ver como é bonito o meu namorado - disse, com entusiasmo.
- Também lá vai estar a costureirinha? - perguntou Danilo, enquanto acendia um cigarro.
Liliana estremeceu. O namorado referia-se a Giuseppe que, depois de acabar o liceu na área das artes, tinha sido contratado como estilista pela fábrica de malhas
onde trabalhava Ernestina. Desenhara uma nova linha de malhas para senhora, que se vendera muito bem, incrementando a facturação da empresa.
Liliana tinha contado a Danilo tudo sobre a sua família, sem esconder a homossexualidade de Giuseppe. Falou dele com delicadeza e afecto, descrevendo os longos anos
de sofrimento escondido e, finalmente, a aceitação da sua diferença. Pensava que Danilo, pessoa culta e inteligente, tivesse percebido melhor do que os outros as
dificuldades daquele irmão que ela amava tanto. Porém, ele acabava agora de o insultar inutilmente, sem motivo.
- Estás a ser ordinário - observou, com amargura.
- Desculpa lá se não empreguei palavras mais delicadas para te perguntar pelo teu irmãozinho adorado - respondeu ele.
Levantou-se da poltrona e saiu da sala. Liliana estava sem pinta de sangue. Ouviu-o subir as escadas, ao mesmo tempo que dizia: - vou outra vez para a cama. Se te
apetecer, já sabes onde me encontras.
Ela ficou petrificada. Acendeu um cigarro e fumou-o até ao fim. Depois enfiou o casaco comprido e o gorro de lã, e pegou na carteira e na tese. Saiu para a rua,
fechando atrás de si uma porta que nunca mais voltaria a abrir.
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Liliana conseguiu apanhar o comboio do meio-dia, que estava já em movimento, porque um dos passageiros manteve a porta aberta e lhe estendeu a mão, agarrando-a pelo
pulso com firmeza.
- Muito obrigada - disse ela, ofegante devido àquela corrida desenfreada. - Não ia conseguir sem a sua ajuda - acrescentou, enquanto recuperava o fôlego.
- Conseguiu tudo sozinha - respondeu o seu salvador. - Tem uma passada de corredor profissional - continuou, admirado.
Liliana observou-o. O homem tinha um rosto sereno, que inspirava confiança. Vestia um sobretudo cor de caramelo, de bom corte, e o colarinho da camisa era de uma
brancura ofuscante. Liliana avançou com ele pelo corredor, à procura de um assento livre, e apercebeu-se de que tinha entrado numa carruagem de primeira classe.
- Obrigada, mais uma vez - disse, voltando-se para o desconhecido. E continuou: - vou ter de o deixar, porque tenho um bilhete de segunda classe.
- Está cansada - observou o homem. - Instale-se, que ninguém a vai incomodar.
Sentaram-se num compartimento vazio, um em frente ao outro, e Liliana sentiu o perfume delicado de uma colónia masculina que o pai também usava. O homem tirou do
bolso do sobretudo um jornal, abriu-o e, antes de começar a ler, perguntou-lhe: - Está tudo bem?
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- Hoje está a ser um dia péssimo para mim - respondeu com sinceridade.
O homem sorriu e ofereceu-lhe o jornal.
- Obrigada - recusou a rapariga. - Prefiro não acrescentar aos meus problemas os problemas dos outros.
Ele começou a folhear o jornal. Passou o revisor e Liliana pagou a diferença para a primeira classe.
A certa altura o homem levantou os olhos da página que estava a ler e comentou:
- Tem razão, o mundo está realmente cheio de desgraças. Aqui vem a dramática reportagem sobre os danos causados por um maremoto apocalíptico no Mar do Norte. Seiscentas
vítimas entre Bremen e Hamburgo, sem contar com as fábricas, as casas e os edifícios destruídos. Quantas crianças terão morrido nesta tragédia? - comentou.
Liliana não fez qualquer observação. Percebia que o homem tentava distraía-la dos seus pensamentos sombrios, mas ela estava oprimida pela amargura, pela desilusão,
pela raiva daqueles anos perdidos com Danilo.
Quando chegaram a Milão e saíram do comboio, o homem dirigiu-lhe um sorriso de encorajamento e disse:
- Desejo-lhe, de todo o coração, um bom domingo. - Afastou-se com um passo rápido e ela chegou à conclusão que não queria regressar a casa. Por isso, dirigiu-se
ao centro da cidade. Havia um pequeno restaurante vegetariano, na via Dante. Entrou, pediu um ovo estrelado, mas não conseguiu comer tudo. Voltou para a rua, varrida
por um vento gelado, e continuou até à catedral. O corso Vittorio Emanuele estava repleto de grupos de rapazes e raparigas, mulheres elegantes cuidadosamente maquilhadas
e famílias com crianças alegres ou chorosas. Um chinês oferecia gravatas aos transeuntes, um vendedor ambulante anunciava brinquedos e um cego, sentado num banco,
tocava acordeão e esperava que alguém lhe comprasse um bilhete de lotaria.
Liliana olhou em volta e invejou todas aquelas pessoas que gozavam o domingo. Sentia em cima dos ombros um fardo que a esmagava. Concluiu que Danilo tinha pegado
nela como quem colhe uma flor num caminho do monte e que, depois de a ter tido nas mãos durante quatro longos anos, a deitara fora como quem se liberta de qualquer
coisa que já não serve para nada. Naquele momento, pela
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primeira vez, percebeu que no coração de Danilo apenas havia lugar para a arrogância e para uma auto-estima transbordante que o impedia de amar e de ser feliz.
- Olá, Liliana.
O cumprimento partira de um homem imponente, com o rosto gorducho como o de um menino. Vinha em direcção a ela na companhia de mais duas pessoas. Era Bruno D'Azaro.
Os outros dois eram Giovanni Santi e Marina Serpieri. Conhecia-os desde o tempo em que tinha começado a frequentar a Casa da Cultura. Bruno era o líder dos jovens
socialistas de Milão, Giovanni era um dirigente do partido e Marina a sua companheira.
- Onde deixaste o Danilo? - perguntou Bruno.
Andava perto dos quarenta anos e tinha casado com uma excelente rapariga da sua terra, a Sicília.
- Está em Varese - respondeu.
- Então, hoje estás por minha conta - decidiu Bruno, enquanto lhe dava o braço. A mulher estava sempre em casa, com as crianças, enquanto ele coleccionava breves
e apaixonados "namoros", mas só com mulheres de formas opulentas. Liliana não era o seu tipo.
- Almoçámos na Galeria e vamos ao Zucca tomar café - disse Marina.
Liliana deixou-se levar por aquele trio de amigos brilhantes, orgulhosos por serem figuras emergentes na cena política italiana daqueles anos, dominada por Fanfani,
que recentemente formara o primeiro governo com o apoio externo dos socialistas.
Sentaram-se numa salinha, no andar de cima do café, e trocaram comentários jocosos numa conversa muito viva. Liliana seguia-os com alguma dificuldade e, de vez em
quando, Bruno afagava-lhe uma mão, com um ar paternal.
A certa altura, Gianni e Marina despediram-se e foram embora. Ela ficou sozinha com Bruno.
- Então, o que se passa contigo? - perguntou, olhando-a nos olhos.
Usava uns vistosos óculos de míope de armações negras e os seus olhos azuis, penetrantes e meigos, pareciam escavar-lhe a alma-
- A minha história com o Danilo acabou - admitiu, contrariada. E precisou: - Um falhanço doloroso.
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- O Danilo julga-se aparentado com Deus, mas não passa de um cretino. Será possível que uma rapariga inteligente como tu só tenha percebido isso agora? - E continuou:
- Eu conheço-o bem. É uma pessoa sem espinha dorsal, que anda sempre à procura de alguém que o ampare. Nunca sairá da mediocridade e é fraco até nesse papel, porque
tem muita presunção. Enquanto que tu, Liliana, nasceste vencedora.
- Os vencedores não sofrem derrotas - confessou Liliana, com amargura.
- Isso é o que tu pensas. Olha para o nosso mundo político. Há uns poucos de homens extraordinários que foram derrubados uma série de vezes mas que voltaram sempre
a levantar-se e regressaram à ribalta mais fortes do que antes. A convicção das nossas próprias ideias e a honestidade moral vencem sempre. Não te esqueças disso.
- Obrigada, Bruno - disse, ao mesmo tempo que se levantava da mesa.
Chegou ao corso Lodi e, enquanto subia as escadas de casa, desejou que a mãe a abraçasse e lhe dissesse: "Finalmente esta maldita história acabou. Já era altura
de deixares de perder tempo com uma pessoa que não sabe apreciar-te."
E apercebeu-se de que Danilo já pertencia ao passado.
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Desde que acabou a história com o Danilo, a tua filha está intratável - lamentou-se Ernestina.
- Reage conforme pode à primeira desilusão da vida dela - disse Renato.
- É uma casmurra. Se me tivesse ouvido logo, agora não estava a sofrer tanto - observou a mulher.
- Ela seguiu os seus sentimentos, que eram muito mais fortes do que os teus conselhos.
O casal Corti tinha ido ao cinema Corvetto ver um filme interpretado por Sophia Loren, actriz de quem Ernestina gostava muito. Agora, enquanto regressavam a casa,
devagar, ela esquecera já a descontracção daquela tarde dominical para se deixar novamente afogar nas inquietações habituais, nas quais tentava envolver o marido.
Mas era quase impossível arranhar o optimismo de Renato-
Naquele período, com efeito, pela primeira vez ao fim de muitos anos, todas as forças sindicais tinham chegado a um acordo para atingir alguns objectivos importantes:
o salário, o emprego, a redução do horário de trabalho e o respeito pelas qualificações profissionais.
Renato sentia-se feliz com aquela aliança e a ansiedade da mulher não conseguia estragar o seu bom humor. Por isso disse-lhe:
- Tu também já tiveste a idade dela, lembras-te?
- E foi desde aí que perdi a minha paz, para me meter com um malandro como tu.
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- Então devias estar satisfeita com a Liliana, que despachou aquele Danilo, acabou o curso com uma nota fantástica e arranjou um emprego - respondeu ele.
- Num escritório de advogados que não me convence nem um bocadinho - lamentou-se a mulher.
Ernestina recordava as palavras do reitor que, após a discussão da tese, lhe dissera: "É pena que a sua filha seja uma mulher. Se fosse um homem, com a sua inteligência
e a sua preparação podia ter um futuro muito brilhante." Aquela declaração, pronunciada por um homem de cultura, irritara-a.
De qualquer modo, Liliana encheu-se de brios e arranjou um emprego remunerado, ao contrário de muitos jovens licenciados, que entravam nos escritórios de advogados
como estagiários sem ordenado.
- Será que houve algum momento da tua vida em que te sentisses satisfeita com alguma coisa? Nunca nada está bem para ti!
Renato perdeu a paciência e levantou a voz.
- Por favor, não vamos fazer uma cena no meio da rua - suplicou-lhe. E continuou: - É verdade, nunca estou satisfeita, mas não é por minha causa que as coisas não
correm como eu gostaria. Olha para o Pucci: depois de ter o diploma de contabilista, o que é que ele vai fazer? Achas que vai arranjar trabalho, com este desemprego
todo que por aí anda?
- O Pucci é um vulcão de ideias e, se não tiver trabalho, há-de saber inventá-lo - sossegou-a.
- E a Rosellina? Não tem a inteligência da Liliana e anda sempre com a cabeça no ar. Só pensa nos vestidos, nos bailes e nos rapazes. Sabe de cor uma quantidade
de canções estúpidas e só quer saber do twist.
- E o que é isso? - perguntou Renato, curioso.
- É uma dança que está agora na moda. Havias de ver como se maneia, sempre parada no mesmo ladrilho do chão. Dança e canta,
desaustinada: "Guarda come dondolo, con le gambe ad angolo." Tem à volta não sei quantos apaixonados, com quem passa horas ao telefone para se esquecer deles ao
fim de alguns dias. Diz que vai tirar um curso de professora para ficarmos contentes, mas o que ela quer é ser cantora. Achas isto normal?
- Já acabaste? - perguntou o marido.
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- Digamos que sim - respondeu Ernestina.
- Mas eu acho que não, porque ainda não me falaste do Giuseppe.
A mulher calou-se. Se os outros filhos a faziam irritar, Giuseppe fazia-a sofrer pela sua diferença, que lhe criava muitos problemas. Contudo, nos últimos tempos
parecia mais tranquilo. Ernestina tinha conseguido segurá-lo debaixo da sua asa protectora e trabalhavam juntos na fábrica de malhas, mas apercebia-se de que aquele
emprego não era o ideal para ele. Giuseppe tinha inclinação para a pintura e, segundo ela, podia vir a tornar-se um grande cenógrafo. A pergunta do marido, no entanto,
não se referia ao trabalho.
Havia algum tempo, de facto, que o filho tinha deixado a casa dos pais, depois de ter explicado à mãe: - Tenho um companheiro com quem me sinto bem, apesar de ter
o dobro da minha idade. É um conceituado decorador de interiores e mora numa casa lindíssima, no corso Magenta. Estamos felizes juntos. Por isso vou viver com ele,
mas sem fazer muito alarido.
Ernestina ajudou-o. Limitou-se a informar a família de que Giuseppe ficaria em casa de um colega durante a mudança para o corso di Porta Romana.
Renato sabia perfeitamente que a verdade não era aquela e agora pedia à mulher mais explicações. Não tinha sido fácil, também para ele, aceitar a diferença daquele
filho tão reservado e tão pacato. Tinha-o observado durante anos, enquanto crescia, e percebera quais eram os problemas de Giuseppe. Quando acabou o liceu, na área
das artes, o pai convidou-o para jantar fora. Pediu conselho a um dirigente do sindicato que lhe sugeriu um restaurante muito bom no centro de Milão.
Quando o maître os acompanhou à mesa, Giuseppe sussurrou:
- Pai, este jantar vai-te custar uma fortuna.
- Há momentos na vida em que vale a pena gastar - respondeu Renato.
Pai e filho, porém, escolheram os pratos e os vinhos menos dispendiosos. Depois Renato pousou na mesa um embrulho atado com uma grande fita de seda.
- É para ti - disse.
Era um relógio de marca com caixa de ouro. Quando o pôs, Giuseppe ficou com os olhos brilhantes de comoção.
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- Por que é que estás a fazer tudo isto, pai? - perguntou.
- Gostava muito que o meu pai o tivesse feito por mim - respondeu simplesmente.
NO restaurante, dividido em pequenas salas, com poucas mesas bem distanciadas umas das outras, os clientes dialogavam em voz baixa.
- E agora vamos falar verdade - disse Renato, depois de um empregado lhes ter servido dois gelados afogados em café.
Giuseppe corou e, após uma pausa silenciosa, sussurrou:
- Peço-te perdão por uma culpa de que não sou responsável.
Renato sorriu-lhe.
- Não há nada para perdoar. Tu és um rapaz maravilhoso. Segue o teu caminho, sem teres medo da tua diferença. Não a vivas como um problema e não penses que o seja
para mim, para a tua família, para todo o resto do mundo. Comporta-te honestamente, como fizeste até hoje, e, por favor, sorri mais vezes.
- Obrigado, pai. Dá-me tempo e hei-de conseguir. Mas agora só tenho vontade de chorar. Se não estivéssemos neste restaurante, abraçava-te - respondeu o filho, comovido.
Agora Renato pedia notícias dele à mulher, porque não o via há algum tempo.
- Parece que o Giuseppe está feliz com a companhia que arranjou. Aliás, queria que o fôssemos visitar mas, francamente, não tenho a certeza de querer fazer isso
- disse Ernestina.
- O que é que não te convence? - perguntou Renato.
- Aquele desgraçado trabalha todo o dia e à noite ainda frequenta os salões com o companheiro. Esta vida, quanto a mim, pode afastá-lo dos seus objectivos. Ou seja,
o Giuseppe tem qualidades Para fazer mais e melhor do que desenhar roupa - lamentou.
Renato parou, pôs-se à frente dela e pousou-lhe as mãos nos ombros, dizendo: - Olha bem para mim. Esses objectivos são os teus ou são os dele?
- São os nossos, meus e do Giuseppe.
- Mentira.
- São aqueles que eu tenho em mente - sussurrou Ernestina.
O marido sorriu e abraçou-a.
- Temos uma rica família. Será que ainda vai chegar o dia em que eu te vou ver satisfeita, finalmente?
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O escritório do advogado Romolo Asetti ficava no terceiro andar de um edifício do século XIX na via Leopardi. Liliana tinha sido admitida no Outono, quando a família
Corti estava já instalada no apartamento das senhoras Pergolesi. Todos os meses escrevia uma carta a Angelina, contando-lhe as novidades da sua vida, e anexava a
quantia acordada. A sua ex-professora de Inglês respondia-lhe na volta do correio, agradecendo e anunciando o envio de qualquer pequena oferta: discos, livros, roupas
extravagantes e bolsinhas que a velha senhora continuava a confeccionar. Sentia-se feliz pelo facto de os Corti apreciarem as comodidades da nova habitação, para
onde tinham levado quase exclusivamente os objectos pessoais, porque Angelina deixara a casa completamente mobilada, limitando-se a enviar para a América algumas
telas importantes de pintores da Lombardia do século XIX e as porcelanas francesas que eram um património da família.
Ernestina não tinha ousado falar com Fermo e com os outros vizinhos do corso Lodi sobre a mudança para o apartamento da Porta Romana. Rosellina tratou desse assunto,
andando de casa em casa a enaltecer a nova morada.
Poucos dias antes da mudança, Fermo, o enfermeiro, apresentou-se uma noite em casa dos Corti e, a sorrir, disse: - Quando alguém ganha alguma coisa, oferece de beber
a toda a gente.
Ernestina, o marido e os quatro filhos, sentados à mesa, trocaram entre eles um olhar interrogativo. Toda a gente sabia que Renato
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jogava semanalmente no totobola, aconselhando-se com Rosellina, que era apaixonada por futebol, na esperança de que a sorte o favorecesse com um treze, mas nunca
tinha ganho nada.
permo continuava a sorrir, à espera que os amigos falassem, mas como permaneciam calados prosseguiu: - A Rosellina contou-nos que adquiriram um grande apartamento
no corso di Porta Romana. Descreveu os lustres da Boémia, os espelhos de molduras douradas, as tapeçarias de seda e o chão de mármore de Carrara coberto com tapetes
persas - explicou. E acrescentou: - Diz que foi um golpe de sorte.
A culpada anuía, feliz e inchada de orgulho.
Ernestina apontou um dedo à filha e sibilou: - Tu, sempre tu! Mas será que não consegues ficar um bocadinho mais séria e responsável?
Depois a expressão ameaçadora transformou-se numa gargalhada que contagiou toda a gente, enquanto Rosellina protestava:
- Eu só dourei a pílula, se não qual era o gozo de falar daquilo?
Assim se desfez a ideia da vitória no jogo e Ernestina explicou a sua reticência em contar a novidade aos vizinhos.
- Tu e os outros vão ter de ir morar para a periferia, enquanto nós tivemos uma oportunidade tão boa e ao mesmo preço da cooperativa. Não gostaria que ninguém pensasse
que isto subiu à cabeça da família Corti. Tu conheces-nos bem e sabes que, se excluirmos esta parva da Rosellina, não gostamos de nos armar, até porque não temos
motivos para isso.
- Mas é uma novidade que deve ser festejada. Senta-te aqui connosco, Fermo. Vamos abrir uma garrafa de vinho - propôs Renato.
- Espera. vou buscar a minha guitarra e assim ainda cantamos um bocadinho - decidiu o enfermeiro, que tinha o instrumento Pousado no patamar, do lado de fora da
porta.
Juntaram-se outros vizinhos e foi uma noite de alegria. Quando foram viver para o apartamento das senhoras Pergolesi, Liliana teve um quarto só para ela: aquele
que pertencera a Angelina. com a mudança e mais algumas coisas, os Corti esgotaram todas as poupanças.
Por isso Liliana resignou-se a ter de trabalhar para o advogado Asetti, aceitando funções que não requeriam uma licenciatura, só
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para ter um salário, ainda que mínimo. Nem sequer gostava do patrão, que a tratava por "cara colega" e, em vez de a olhar de frente, fixava os olhos nos seus seios
e não perdia uma ocasião para lhe tocar num ombro ou num braço. Era um escritório sombrio, decorado com móveis escuros, excessivos, enormes, em estilo renascença.
Nas paredes havia quadros que o advogado definia como tendo um tema mitológico, mas que de facto eram telas sem qualidade, que representavam bacanais com os atributos
sexuais de damas e cavalheiros bem evidenciados. Asetti tinha colocado no seu escritório um busto em bronze de Mussolini e uma série de fotografias com autógrafos
do Duce e dos seus mais fiéis seguidores.
Liliana achava o patrão asqueroso, ordinário e fascista, mas tinha evitado cuidadosamente descrever esses pormenores à família, apesar de a mãe ter já intuído o
mal-estar da rapariga.
O advogado tinha-lhe atribuído uma tarefa aviltante: andar de casa em casa, de escritório em escritório, a recuperar créditos para várias sociedades financeiras.
Mesmo assim, Liliana considerava-se com sorte por ter um trabalho e um ordenado, depois de várias entrevistas para tentar entrar ao serviço de escritórios de advogados
importantes. Tinha sido uma experiência humilhante. A sua licenciatura, com uma nota excelente, parecia não ter nenhum interesse, assim como o facto de saber perfeitamente
duas línguas: inglês e francês. As entrevistas tinham-se desenrolado segundo um esquema bem preciso. A primeira pergunta era: - Diga-me, doutora, está inscrita em
algum partido?
Tinha estado. Inscrevera-se no Partido Socialista quatro anos antes, não por convicção, mas para agradar a Danilo. Depois de se separarem, não voltou a renovar a
inscrição e conservava o cartão, juntamente com algumas fotografias, como recordação de um tempo em que achava que era feliz.
- Não - respondia, dizendo a verdade.
- Tem alguma simpatia política? - insistiam os seus examinadores.
- Como toda a gente - replicava, sem especificar mais nada.
- No seu caso, qual seria essa simpatia?
Ela não conseguia mentir e confessava candidamente: - Simpatizo com os comunistas.
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Os entrevistadores ostentavam um rosto impassível e prosseguiam o interrogatório.
- Tem um namorado?
Ela respondia com um lacónico: - Já não tenho. - Mas eles insistiam.
- Bonita como é, vai voltar a ter outro rapidamente.
- Espero bem - dizia.
- Portanto, deseja casar-se e ter filhos.
- com certeza - respondia.
- Muito bem. A entrevista acabou. Depois dizemos-lhe alguma coisa.
A história repetiu-se, sempre idêntica, por várias vezes. À noite, quando a mãe regressava do trabalho, encontrava a casa arrumada, o jantar feito, a roupa passada
e as camas abertas. Mãe e filha olhavam-se nos olhos e Ernestina perguntava: - Como é que correu?
- Depois dizem-me alguma coisa - respondia Liliana, com cara de enterro.
Um dia encontrou Bruno D'Azaro na Galeria. Ele convidou-a para o aperitivo do costume no café Zucca e Liliana contou-lhe os seus insucessos na procura de emprego.
- Querem saber tudo dos candidatos. Falta pouco para me perguntarem a marca do sabonete que uso para tomar banho. Eu respondo com sinceridade e eles liquidam-me
- desabafou.
Bruno tinha-se tornado subsecretário do partido. Era muito influente e podia arranjar-lhe um emprego adequado com um simples telefonema.
- Deixa-me ajudar-te - disse-lhe.
- Não quero recomendações. Desculpa, mas é mais forte do que eu.
Bruno sorriu, pegou-lhe na mão e tocou-a com os lábios.
- Se eu não te conhecesse, pensava que eras uma falsa. Deixas-me pelo menos dar-te um conselho: quando tiveres uma entrevista
de trabalho, mente despudoradamente. Tu não sabes o que é a política, não tens um namorado e não te interessa ter nenhum. Certamente nunca te vais casar. Mas se
acontecesse, nada de filhos, porque pensaste que não os podes ter e, em qualquer caso, também não os querias. É um bom conselho que vais pagar com a renovação da
tua Inscrição no partido.
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- Obrigada pela ajuda. Já percebi a ideia: tenho de contar uma data de mentiras. Mas tu não precisas da minha inscrição para nada. Vais de vento em popa e não te
faz falta mais uma pessoa.
- Quando se trata de gente jovem, como tu, é de grande utilidade. Em qualquer caso, já sabes que a minha porta está sempre aberta - garantiu-lhe.
Quando se despediram, ele apertou a mão de Liliana entre as suas e olhou-a nos olhos com carinho. De repente, aproximou o rosto do de Liliana e beijou-a ternamente
nos lábios. Foi agradável aquele beijo quase inexistente.
- O que é que estás a fazer, Bruno? - perguntou Liliana, muito embaraçada. Estavam na piazza della Scala e os transeuntes olhavam para eles com curiosidade, até
porque Bruno era uma figura conhecida.
- Estou a tentar, já me conheces - respondeu ele.
- Nunca fui o teu género - disse Liliana.
- Isso é o que tu pensas.
- Poupa-me, tu também me conheces.
- És uma pedra de gelo, já sei. Mas uma vez derreteste - objectou, referindo-se a Danilo. Entretanto afagava-lhe o rosto com uma delicadeza que a fez vacilar.
- O papel de amante não se adapta muito bem a mim - reagiu, afastando-se das suas carícias.
- És uma milanesa casmurra, já sei. Nunca desperdices a tua inteligência. Eu sinto na pele quando uma pessoa está num degrau acima.
Naquele mesmo dia, Liliana leu um anúncio no jornal: "Escritório de advogados conceituado procura jovem licenciada para uma estimulante actividade profissional.
Oferece-se ordenado base mais incentivos."
Telefonou, apresentou-se ao advogado Asetti, mentiu como Bruno lhe tinha aconselhado e foi admitida imediatamente. Só era pena que aquele escritório fosse de baixo
nível. No entanto, estava determinada a segurar com força aquele trabalho enquanto não arranjasse um emprego melhor.
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VIA LEOPARDI
Liliana desceu do eléctrico no corso Garibaldi e procurou o número indicado pelo advogado Asetti. Amaldiçoou aquele Outubro chuvoso que desde há muitos dias a encharcava
enquanto atravessava a cidade, de manhã à noite, na tentativa muitas vezes infrutífera de recuperar dinheiro dos credores de algumas empresas financeiras. O impermeável
Pirelli ainda desempenhava bem as suas funções, assim como os sapatos de camurça pretos com sola de borracha, que lhe mantinham os pés enxutos. As pernas, porém,
ficavam cobertas de água suja.
Encontrou o prédio, muito parecido com aquele onde tinha vivido durante anos, enfiou-se no átrio e bateu ao vidro do porteiro. Apareceu à porta uma mulher que lhe
perguntou, num tom POUCO simpático: - O que quer?
- Procuro o signor Gino Comolli - disse Liliana.
- Ao fundo do pátio, última porta à esquerda. Se a oficina estiver fechada, escadas à direita, segundo andar.
Pela porta entreaberta saía um delicioso aroma de sopa de legumes. Liliana não almoçara, contentando-se com uma maçã que trazia na carteira, porque a pausa de almoço
era muito curta e não tinha tempo de ir a casa. Sentiu a fome apertar. Engoliu em seco, deu graças e atravessou o pátio deserto. Numa porta pintada de cinzento,
uma velha tabuleta esmaltada dizia MÁRIO COMOLLI E FiLHO - MARCENEIROS. Tocou. Ninguém atendeu. Rodou a maçaneta e a porta abriu-se, deixando ver uma oficina iluminada
por
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duas grandes janelas com grades de ferro. O aposento cheirava a madeira, gesso, cola, solventes e outras essências. Frascos de verniz, pincéis e utensílios de marcenaria
estavam alinhados em cima de um balcão. Havia cadeiras antigas, um móvel antigo para restaurar e um enorme lustre dourado. Num canto, sobre o tampo de uma escrivaninha,
estavam pousados um candeeiro e um telefone. Parecia um sítio abandonado.
O guarda-chuva escorria água para o chão de cimento. Saiu, voltou a fechar a porta e, abrigando-se por baixo das varandas, dirigiu-se ao vão da escada, subiu dois
andares e bateu à porta. Do interior chegaram-lhe vozes de crianças. Pouco depois, uma pequenita de ar muito vivo apareceu à porta e olhou para ela com curiosidade.
- É aqui que mora o signor Comolli? - perguntou Liliana.
A menina virou-se para dentro de casa e anunciou: - Pai, está aqui uma senhora à tua procura. - Depois olhou de novo para Liliana e acrescentou: - O pai está a dar
a papa ao Giuseppe.
- Eu também tenho um irmão que se chama Giuseppe - disse Liliana.
- Eu sou a Maddalena - apresentou-se a menina, enquanto abria a porta para a deixar passar.
Liliana encostou o guarda-chuva, limpou os sapatos no tapete e entrou numa grande cozinha.
Um homem magro, de rosto encovado, estava sentado em frente a uma cadeira de bebé. Muito concentrado dava de comer a uma criança. Duas meninas, de idades entre os
cinco e os sete anos, estavam sentadas à mesa a fazer desenhos com lápis de cor.
- Bom-dia - começou Liliana. - Venho a mando do escritório do advogado Asetti. Tentámos telefonar-lhe, mas ninguém atendia. Eu estou aqui por causa daquele financiamento
que o senhor tinha pedido há dois anos à Progefin - explicou, evitando acrescentar: "Ainda não liquidado." De qualquer maneira, o signor Comolli sabia isso perfeitamente.
- Faça favor de entrar. Assim que o meu Peppino tiver esvaziado a tigela, eu dou-lhe atenção - disse o homem. E acrescentou, voltando-se para o menino: - É boa,
a papa, não é?
O menino riu-se, feliz.
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Quando acabou de dar de comer ao filho, o homem tirou-o da cadeirinha, pegou nele ao colo e sentou-se à mesa com as meninas.
- Esta é a Maddalena, a mais velha, depois é a Cristina e a Francesca e, finalmente, chegou o rapaz, destinado a aprender a profissão que me ensinou o meu pai. Quando
ele chegou, partiu a mãe, com uma doença que não perdoa. O pequenito só tinha dois meses. O que pode fazer um homem sozinho com quatro filhos para criar? Vieram
cá as senhoras da caridade. É uma coisa que lhe recomendo. Queriam levar-mos embora, os meus raios de sol, para os meterem num orfanato. Mandei-as embora da minha
casa. Depois vieram as assistentes sociais da Câmara. O mesmo discurso. A minha Rosa até havia de dar voltas no túmulo se soubesse que lhe fechavam os meninos num
sítio medonho como aquele. Mas entretanto havia os pratos para lavar, as papas para preparar, as noites em que o pequenino e mesmo a Francesca acordavam e era prgciso
adormecê-los, e depois as febres, os dentes e tudo o resto. Comecei a descuidar-me com a oficina. As crianças eram mais importantes - contou, de um fôlego.
- Não tem parentes que o possam ajudar? - perguntou Liliana, enquanto pensava na sua família e se questionava sobre o que teria sido deles se Ernestina tivesse morrido
quando Rosellina andava ainda de fraldas.
- Ainda tenho a minha mãe, que está num lar há oito anos, desde que foi atacada por uma paralisia. A minha mulher era órfã e cresceu num orfanato. Por isso recomendava-me
sempre: "Se me acontecer alguma coisa, nunca mandes os nossos filhos para esses sítios. Antes quero que arranjes outra mulher." Era a brincar, até porque nem ela
nem eu podíamos imaginar que nos ia acontecer aquela desgraça. E depois, como a signorina acaba de me dizer, as desgraças nunca vêm sozinhas. A minha Rosa tinha
morrido há dois meses quando os ladrões me esvaziaram a oficina. Não eram coisas minhas, percebe? Nem sequer tinha um seguro. Mas os Comolli são pessoas honestas.
Paguei até ao último cêntimo aos proprietários dos móveis que tinha para restaurar. E fiquei sem uma lira. Por isso pedi um empréstimo a essa Progefin. Pensava eu:
em dois anos saldo tudo, porque a filha mais velha vai para a escola, as duas mais pequenas para a creche, a vizinha toma conta do Peppino e eu começo a trabalhar.
No entanto, enquanto que antes da minha
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mulher morrer eu tive de mandar embora clientes, porque tinha de mais, de repente ninguém mais me deu trabalho. As pessoas têm medo das desgraças dos outros. O que
posso eu fazer? A signorina veio pedir-me dinheiro, mas eu não tenho nem uma lira - concluiu.
Aquele homem tinha realmente um ar de pessoa honesta e de confiança. Liliana recordou-se de quando tinha tomado consciência das injustiças sociais e decidira defender
os fracos da prepotência dos ricos e dos poderosos. A Progefin prosperava através da rapina legalizada, o advogado Asetti era um malfeitor que levava para casa as
migalhas daquela rapina e ela não era melhor, a partir do momento em que trabalhava para ele. Antes de chegar a casa de Gino Comolli, tinha feito mais três visitas
daquele género, ainda que menos dramáticas. Era humilhante ter de ganhar um salário indo buscar dinheiro a quem o não tinha.
Olhou em volta. A casa estava arrumada e limpa, como limpos e bem tratados estavam as três meninas e o pequenito que tinha adormecido ao colo do pai.
- Não pode sequer antecipar uma pequena soma, só para ganhar tempo? - perguntou Liliana, num sussurro.
- Só tenho o dinheiro suficiente para pagar o aluguer e as outras despesas. Conservo religiosamente o ouro da minha mulher e não o hei-de vender, porque é das meninas
- afirmou. E prosseguiu: - Se eu conseguisse arranjar algum trabalho... Olhe, vou-lhe mostrar uma coisa interessante - disse, enquanto pousava delicadamente o menino
na alcofa, ao lado do fogão.
Abriu uma porta do armário e pegou numa pasta pesada, colocou-a em cima da mesa e tirou de lá uma série de fotografias que reproduziam extraordinários móveis antigos
antes e depois do restauro.
- Está a ver? Fotografava todos os meus trabalhos, não só para os clientes, mas também para mim, porque amo a minha profissão.
- Não me arranja algumas fotografias? - perguntou Liliana, hesitante.
- Para quê? - perguntou Gino Comolli.
- Pode ficar sossegado que eu volto a trazer-lhas - disse Liliana, sem responder.
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Acabava de ter uma ideia. Nunca pediria a ninguém um favor para si, mas estava determinada a ajudar aquela família em dificuldades.
O homem meteu-lhe na mão uma dúzia de fotografias que ela guardou na carteira.
- Não sei porquê, mas confio em si - disse o signor Comolli
- Garante-me que consegue retomar o seu trabalho, apesar das crianças e da casa?
- com certeza - afirmou ele.
- Então atenda o telefone quando tocar - disse Liliana.
Continuava a chover e tinha-se levantado vento. Liliana regressou ao escritório completamente encharcada.
- Ainda bem que chegou, doutora - disse a jovem empregada do escritório.
- O que foi que aconteceu?
- Eu vou-me embora daqui. Já não aguento aquele porco. Hoje tentou pôr-me as mãos por duas vezes: enquanto estava no escadote à procura do processo Boschi e quando
se aproximou de mim para ver o que eu estava a escrever à máquina - desabafou.
- Tens outro emprego? - perguntou Liliana.
- Ai se tivesse! Já me tinha posto a milhas.
- vou dar-te um conselho. Se ele voltar a incomodar-te, dá-lhe uma bofetada com força. Se depois te despedir, vamos ao Tribunal de Trabalho e arranjamos-lhe um sarilho.
Isto é uma promessa.
- Pois, a menina é advogada - considerou a rapariga, com uma sensação de alívio.
- Acabei de passar no exame para estagiária, mas conheço o código. E agora, onde está o cavalheiro?
- Está no escritório, com outro advogado.
Liliana foi para o seu gabinete. Pegou no telefone e ligou a Giuseppe.
- Preciso da tua ajuda - começou.
- Então espero por ti para jantar. Já sabes a morada - rematou Giuseppe.
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Liliana parou em frente a um portão de madeira antiga, bem encerado, e leu a tabuleta: PORTARIA. Tocou à campainha e esperou que alguém abrisse. Pouco depois apareceu
um homem que vestia uma farda cinzenta.
- Quem procura? - perguntou com gentileza.
- O arquitecto Fioretti - respondeu Liliana.
- Está à sua espera. Fique à vontade - disse ele, enquanto abria a porta para a deixar passar.
Liliana deu por si num átrio com uma passadeira de veludo verde, o tecto decorado a estuque e, nas paredes, apliques de cristal lapidado que difundiam uma luz suave.
O porteiro acompanhou-a ao elevador e abriu a porta de ferro forjado. Liliana entrou na cabina, que continha um pequeno divã de veludo verde.
- Último andar - anunciou o porteiro, enquanto voltava a fechar a porta.
O irmão esperava-a à porta de casa e recebeu-a com um abraço. Entraram num vestíbulo onde se respirava um perfume de flores muito frescas.
- Que luxo - sussurrou Liliana.
- Que desastre - respondeu Giuseppe, observando-a da cabeça aos pés.
- Ando na rua desde manhã, à chuva. Um dia tremendo - explicou ela, ao mesmo tempo que lhe entregava o guarda-chuva.
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O vestíbulo era imenso e tinha, ao centro, uma bonita mesa Liberty de madeira clara sobre a qual estava pousada uma jarra de cristal com campainhas, lilases e lírios
imaculados.
- Parece o cenário de um filme - observou Liliana, admirada. E acrescentou: - E tu és bonito como um actor de cinema.
- Pois tu a mim fazes-me lembrar uma pobre órfã - exclamou Giuseppe, divertido, observando os cabelos de Liliana, achatados pela humidade, e as pernas enlameadas.
- Anda comigo, vou tentar pôr-te apresentável. Quero que o Filippo veja como é bonita a minha irmã mais velha. - Deu-lhe o braço e conduziu-a ao longo de um corredor,
coberto por uma passadeira cor de nata, até uma porta que abriu.
- Esta é a minha casa de banho - anunciou.
- Parece uma praça de armas - observou Liliana, e lembrou-se do apartamento luxuoso, em Varese, onde tinha passado a sua primeira noite com Danilo. Tinha então dezanove
anos e estava convencida de que aquele namorado era o homem da sua vida.
- Tira as meias e os sapatos, enquanto me explicas qual é o tipo de ajuda de que precisas - disse Giuseppe, ao mesmo tempo que a ajudava a despir o impermeável.
- É uma longa história - começou ela.
- Então conversamos depois. Enquanto mando limpar estes sapatos, lava as pernas e a cara. Deixa lá ver. Sim, o vestido passa, e arranjo-te o cabelo com o secador.
Escolhe o perfume que preferires - concluiu, indicando-lhe uma prateleira onde estavam alinhadas uma infinidade de essências douradas. Depois saiu da casa de banho.
Liliana lavou-se superficialmente, apreciando o calor da água e a macieza das esponjas imaculadas. Depois observou os frasquinhos e escolheu um perfume de muguet.
Chamava-se Lily of tbe Moor.
Giuseppe voltou pouco depois. Trazia-lhe um par de meias de nylon de um bonito bege dourado e, enquanto lhe entregava os sapatos perfeitamente limpos, observou:
- Não estão muito bem para um jantar, mas o Filippo vai fechar os olhos. Agora vou-te pôr bonita. Escolheste um perfume muito bom. Não te esqueças de que uma mulher
de classe usa sempre o mesmo perfume.
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- Quem foi que limpou os meus sapatos? - perguntou, enquanto ele lhe arranjava o cabelo com a escova e o secador.
- Foi a empregada. Chega de manhã e vai-se embora depois de ter feito o jantar. Hoje vamos comer risotto de marisco, robalo grelhado com legumes e uma tarte de noz.
- Parece um menu de hotel de luxo.
- Mas isto é um grande hotel: gente que chega e gente que sai. Ao jantar vai estar também a Mariuccia Cuneo.
- Quem é?
- É uma jornalista que só escreve sobre fofocas e boas maneiras. Já tem uns anitos e o Filippo considera-a uma segunda mãe.
- Sabes que nunca te tinha visto de tão bom humor? - observou, satisfeita.
Continuaram a conversar até que Giuseppe achou que a irmã estava pronta para ser apresentada ao amigo. Saíram então da casa de banho e foram para a sala de estar.
A jornalista Mariuccia Cuneo fez a sua entrada, agarrada ao braço de um quarentão fascinante. Era tão alto como Giuseppe, muito bronzeado, trazia umas calças de
flanela cinzenta, uma camisa azul-clara e um casaco de malha azul-escuro. Era, pois, aquele o companheiro do irmão. Por um instante, Liliana imaginou-os sentados
na beira da cama, a beijarem-se. Era essa a cena com que se deparou anos antes, quando Giuseppe era praticamente um adolescente, no quarto dos pais. Corou, enquanto
o irmão fazia as apresentações.
- A minha irmã mais velha, a Liliana - anunciou.
O arquitecto Filippo Fioretti olhou para ela, com um ar satisfeito, enquanto a jornalista, demasiado maquilhada, lhe sorriu, dizendo: - É realmente uma rapariga
muito graciosa.
A sala de estar estava separada da de jantar por uma parede de vidro, ao longo da qual se alinhavam viçosas plantas de interior. Ao fundo, a aparelhagem estereofónica
tocava a Simple Simphony de Britten, que Liliana tinha ouvido num concerto na companhia de Angelina Pergolesi. Associou aquela doce composição musical à vida do
irmão naquela casa elegante, com um companheiro refinado que representava para ele um guia fiável e seguro. Percebeu também a renitência dos pais, que tinham declinado
os sucessivos convites do filho. Naquele ambiente requintado iriam sentir-se pouco à vontade.
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No domingo anterior, quando Giuseppe tinha ido almoçar a casa dos pais, Renato fora muito explícito: - Se tu e o teu amigo quiserem vir a nossa casa, a porta está
sempre aberta e ficamos muito contentes por vos receber. Mas não me peças para entrar num mundo que não é o meu. Cada qual deve saber estar no seu lugar.
- Qual é o teu lugar? - perguntou o filho.
- Eu trabalho com o ferro e tu com a seda. Fiz-me entender?
- Tu trabalhas com a cabeça e com a força das tuas ideias, que são também as minhas, pai - respondeu Giuseppe, agastado.
Renato deu-lhe uma pancadinha afectuosa no braço.
- Percebeste perfeitamente que o que eu estou a dizer é verdade. Agora, naquela atmosfera confortável, sentada àquela mesa cheia de rendas e de pratas, Liliana sentia-se
pouco à vontade.
- Então, Liliana, ainda não me disseste sobre o que querias conversar comigo - disse o irmão, enquanto lhe estendia o prato do doce.
- É um assunto de trabalho. Não sei se posso - declarou, hesitante.
O arquitecto Fioretti dirigiu-lhe um sorriso de encorajamento:
- Força, queremos ouvir.
Ela contou a história de Gino Comolli e concluiu: - Precisa de arranjar clientes que lhe dêem trabalho e eu pensei...
Filippo não a deixou acabar.
- Pensaste bem. Tenho muitos móveis de finais do século XVIII que preciso de mandar restaurar. Posso entregar-lhe um deles, para ver como trabalha - propôs.
Liliana abriu a carteira e mostrou as fotografias que Gino Comolli lhe tinha dado.
A jornalista pegou no seu pince-nez e examinou as fotografias com gritinhos de admiração. Depois voltou-se para Filippo: Olha-me para esta peça, querido. Estás a
ver o estado em que estava? Olha como ele a restaurou, devolvendo-lhe todo o seu esplendor. E o que dizer deste Luís XIV! Absolutamente fantástico. Oh, quero escrever
já um artigo sobre este homem. Filha, tens de me dar a direcção dele, porque vou ter de o entrevistar. Vai ser uma descoberta para as minhas leitoras. - Estava toda
entusiasmada e contagiou também Filippo.
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- Eu também o quero conhecer quando lhe entregar o trabalho - declarou.
Giuseppe olhou para Liliana e disse: - Está feito, maninha!
- Não completamente, porque ele precisa de um adiantamento. Sem isso, fica sem a oficina.
- Um adiantamento? Mas isso não se faz, habitualmente observou Filippo.
Liliana não se deixou intimidar e prosseguiu: - Também precisa de dinheiro para fazer um seguro contra roubo. - Estava agora certa de que ia obter aquilo que pretendia,
porque Filippo queria ajudar a irmã do companheiro e ela apercebera-se perfeitamente disso.
- Mas é claro, coitado do homem! - interveio Mariuccia, que tinha imediatamente assumido o papel de mecenas.
- De acordo - declarou Filippo, enquanto segurava uma mão da jornalista e a beijava.
- E agora, estás satisfeita? - perguntou o irmão. Liliana anuiu, feliz.
Ao fim do jantar, Giuseppe foi levá-la a casa de carro.
- Sobes? - perguntou Liliana, quando pararam em frente ao portão no corso di Porta Romana.
- É tarde e ainda tenho algum trabalho atrasado. Dá saudades a todos e, se te apetecer, diz bem do Filippo.
- Podes ter a certeza - sossegou-o.
Enquanto abria o portão, Giuseppe saiu do carro e foi ter com ela.
- Esqueceste-te disto - disse-lhe, ao mesmo tempo que lhe metia na mão o frasco de perfume que Liliana deixara no assento.
Ela deu-lhe um beijo na face.
- Obrigada por me teres ajudado - sussurrou-lhe.
- Fizeste tudo sozinha. Defendeste muito bem a tua causa afirmou Giuseppe.
- Achas que posso vir a ser uma boa advogada? - perguntou-lhe.
- Ou uma boa sindicalista! - exclamou o irmão, abraçando-a.
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Liliana bateu à porta do escritório do advogado Asetti e, não tendo obtido resposta, rodou a maçaneta e entrou. O homem estava sentado à secretária, concentrado
na leitura da sua publicação preferida: uma revista pornográfica. Liliana tossiu ligeiramente e o homem ergueu para ela um olhar ausente.
- Já redigi a petição para o caso Ferrari-Lovati. Tem de a assinar.
Toda a gente no escritório sabia que o patrão coleccionava revistas pornográficas. O advogado não se apressou a fechar a revista, como fazia habitualmente, e Liliana,
com um gesto resoluto, deixou cair as folhas do processo em cima da secretária.
- A sua assinatura, se faz favor - pediu.
Estava enojada com a tacanhez daquele homem, que era o símbolo da vulgaridade.
Num instante, o advogado levantou-se e pôs-se à frente dela, mais próximo, enquanto lhe fixava lascivamente os seios. Liliana reagiu com a mesma prontidão, recuando
um passo. Agarrou na faca de abrir a correspondência e apontou-a contra o homem.
- Se se aproxima, espeto-lha - sibilou.
Ele ergueu os braços em sinal de rendição. Depois sorriu. Realmente, consigo não se pode mesmo brincar - disse.
- Não tenho sentido de humor - respondeu ela. Tinha a voz firme, mas estava assustada, porque sabia que se encontrava sozinha no escritório. A secretária saíra para
fazer umas compras.
O homem assinou as folhas e estendeu-lhas, dizendo:
- É uma tonta, por se incomodar com tão pouco.
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Liliana não respondeu. Saiu e fechou-se à chave no seu gabinete. Pousou o processo na secretária e tentou controlar a repulsa e as lágrimas. Aguentava aquele escritório
havia já um ano e não iria embora enquanto não arranjasse outro emprego. Precisava daquele ordenado e sabia que era difícil para os jovens licenciados arranjar trabalho.
Tocou o telefone e, uma vez que a secretária ainda não tinha chegado, foi ela quem atendeu.
- Fala do escritório do contabilista - disse uma voz de mulher. - Estou a ligar por causa da declaração de rendimentos do Dr. Asetti. Falta uma série de facturas
- explicou.
- vou deixar recado à secretária do Dr. Asetti para lhe ligar - rematou Liliana.
Cátia, a nova empregada, chegou pouco depois e Liliana abriu a porta.
- Por que foi que se fechou à chave, doutora? - perguntou a rapariga.
- Adivinha - respondeu, laconicamente.
- Até consigo! Mas ele é mesmo estúpido - disse a rapariga.
- Deixa lá - disse Liliana. E continuou: - Ligaram do contabilista porque faltam facturas.
- Oh, valha-me Deus! Tenho um monte de correspondência para despachar - respondeu desesperada.
- Então dá-mas, eu vou lá entregá-las. Preciso de sair e de apanhar um bocado de ar puro - decidiu Liliana.
- Se o doutor perguntar por si, o que é que lhe digo? - perguntou Cátia.
- Não vai perguntar, está sossegada - disse, furibunda.
O escritório do contabilista ficava na via San Vittore e Liliana decidiu dar uma volta maior, passando pela piazzale Cadorna. O sol de Junho iluminava as fachadas
dos edifícios oitocentistas. Entrou num café da via Carducci e pediu um cappuccino com um brioche. Apreciou a espuma evanescente do leite misturado com o café e
deleitou-se com a macieza da massa, que sabia a baunilha, tentando esquecer o comportamento do patrão. Alguns clientes saboreavam o lanche enquanto olhavam as imagens
da Cidade do Vaticano transmitidas pela televisão, que noticiava a agonia de João XXIII.
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Liliana saiu do estabelecimento e começou a andar, detendo-se de vez em quando para ver as montras das lojas. Chegou à via San
Vittore e parou em frente do edifício onde ficava o escritório do contabilista. Uma tabuleta de latão, no átrio, indicava o andar do escritório Brioschi. Subiu e
tocou à campainha.
- Venho do escritório Asetti - disse à rapariga que lhe abriu a porta.
- Oh, as facturas - disse a rapariga a sorrir. - Faça o favor de entrar. O Dr. Brioschi está ao telefone. É só um minuto, ele já vem ter consigo - explicou, deixando-a
sozinha.
Liliana olhou em volta. Estava num vestíbulo típico de muitos escritórios: paredes claras, cabides, reproduções de Milão antigo nas paredes, pequenas poltronas e
umas mesinhas com revistas e jornais.
Sentou-se, pegou no Corriere della Sera e começou a folheá-lo. Ouviu uma porta que se abria e um ruído de passos que se aproximavam. Levantou os olhos e viu um homem
de rosto sereno que vinha ao encontro dela. Tinha os cabelos grisalhos e vestia um fato cinzento-escuro com uma camisa imaculada.
- Bom-dia - disse-lhe, sorridente.
- Bom-dia - respondeu Liliana, ao mesmo tempo que se levantava.
- Já nos conhecemos? - perguntou ele, olhando-a com atenção.
Liliana sentiu o perfume do after-shave que o pai usava e, após um instante de hesitação, reconheceu-o.
- Ajudou-me a apanhar um comboio a correr, na estação de Varese - explicou.
- Agora recordo a sua passada de corredora - brincou, enquanto apertava a mão que a jovem lhe estendia. E acrescentou: Como está?
- Muito melhor do que nesse dia - afirmou Liliana.
- Não sabia que era nossa cliente - acrescentou.
- Eu não sou. É o escritório Asetti, para o qual trabalho - explicou ela.
- Então venha comigo. Sou o Sandro Brioschi.
Liliana seguiu-o até ao gabinete, um aposento amplo com grandes Janelas que davam para a rua arborizada. O chão estava coberto
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com uma alcatifa macia, de um azul-pálido, e nas paredes, nos espaços deixados livres pelas estantes, viam-se cartazes de exposições dedicadas a Klimt, Chagall,
Poliakoff, Tancredi e Fontana.
- Chamo-me Liliana Corti. Quando nos encontrámos estava a acabar o curso de Direito. Agora já fiz o exame para estagiária - explicou-lhe.
Ele convidou-a a sentar-se e instalou-se à secretária.
- Parabéns - disse.
Depois pegou na capa que continha os papéis. - Está aqui tudo? - perguntou.
- Julgo que sim. Eu vim em vez da secretária porque me apetecia dar uma volta - explicou.
- Como é que se dá com o Asetti?
- Quer mesmo saber? - perguntou, um pouco hesitante.
O contabilista sorriu.
- Pessimamente - declarou a rapariga.
Ele assentiu.
- Para mim, os clientes têm todos o mesmo valor, mas o instinto diz-me que merecia trabalhar num escritório melhor.
- Isso também eu queria - confessou Liliana, enquanto observava uma fotografia, pousada na mesa, que retratava dois jovens sorridentes: o contabilista e uma rapariga
de longos cabelos loiros.
- Era a minha mulher - disse ele, que tinha reparado no olhar de Liliana. E continuou: - Andámos a estudar juntos e, quando nos casámos, já ela estava doente, com
uma leucemia. Faleceu dois anos depois do nosso casamento. Passaram doze anos desde essa altura. Não voltei a casar.
- Percebo - sussurrou Liliana, subitamente triste com aquela história.
- A vida oferece sempre uma segunda possibilidade - observou ele, para a sossegar.
- Mas ainda não a teve - disse Liliana.
- Se calhar também não a procurei - admitiu Sandro Brioschi.
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Numa grande tabuleta de metal azul sobressaíam, escritas a dourado, as palavras TANZ SCHULE. Não era preciso saber alemão para as traduzir, até porque, através das
janelas abertas, chegavam à rua os acordes de uma valsa vienense.
- Uma escola de dança! - exclamou Rosellina, com os olhos brilhantes de alegria.
Tinha ido a um passeio da escola ao Alto Adige. A professora de História, Armida Scarpa, uma mulher madura e severa, anunciou no final de uma aula: - Este ano, no
nosso passeio, em vez de vos levar a Roma, como é costume, resolvi levar-vos a visitar Trento e Bolzano, que há quase cinquenta anos são um território italiano conquistado
com o sangue dos nossos valorosos soldados. É difícil definir se é justo ter massacrado milhões de jovens para alargar as nossas fronteiras. Os jogos dos governos,
desde sempre, são feitos por cima da cabeça do povo. De qualquer maneira, aquelas terras são nossas desde o fim de 1918 e vale a pena conhecê-las.
As alunas do penúltimo ano do magistério tinham protestado, não por amor à Roma antiga mas porque, depois da capital, se seguiam dois dias de praia, em Ostia. Rosellina
comentou com a mãe: Pode ser verdade que os governos façam os seus jogos por cima da cabeça do povo, mas a Scarpa também faz as escolhas dela por cima da cabeça
das alunas.
Assim, vinte e duas alunas, conduzidas pela indomável professora, aguentaram longas lições sobre os valores da pátria, sobre
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a grandeza do império dos Habsburgo e sobre a Primeira Guerra Mundial, assim chamada não por ter envolvido todos os países mas porque tinha assinalado o fim de um
mundo que se alimentara de altos ideais.
Finalmente, ao fim de dois dias de massacrantes explicações Rosellina viu alguma coisa de interessante: o letreiro da Tanz Schule. Não pensou duas vezes antes de
se enfiar no átrio de um palácio do tempo dos Habsburgo, de subir a correr as escadas de mármore cor-de-rosa e de escancarar a porta da escola de dança. Viu pares
de jovens que dançavam com uma elegância que a fascinou, enquanto uma senhora madura passava pelo meio deles e batia com uma varinha nos ombros, nas mãos e nas pernas
dos bailarinos, ao mesmo tempo que dava ordens em alemão. Os jovens corrigiam imediatamente as posturas e os movimentos. Os seus corpos pareciam flutuar sem peso
sobre as notas da música vienense. Rosellina ficou colada à porta a olhar para eles numa espécie de mágico arrebatamento. A música acabou, a professora fez os seus
comentários e depois apercebeu-se da sua presença. Sorriu-lhe e fez-lhe uma pergunta em alemão, que ela não entendeu.
- Desculpe. Sou italiana - disse a rapariga.
- Nós também somos - sublinhou a professora.
Algumas colegas de Rosellina, que tinham ido ter com ela, faziam-lhe agora sinais desesperados para que se despachasse.
- Gostava tanto de dançar - confessou Rosellina, ignorando-as.
- De onde vens? - perguntou a professora, enquanto os bailarinos falavam entre si em voz baixa e faziam exercícios de alongamento dos braços e das pernas.
- De Milão - respondeu.
- Na tua cidade há uma óptima escola de dança: valsa, tango, polca e danças latino-americanas. Se quiseres, escrevo-te a direcção.
Rosellina anuiu, a professora atravessou o salão, caminhando com ligeireza sobre a madeira luzidia, inclinou-se sobre uma mesa, folheou um caderno, escreveu qualquer
coisa num papel e levou-lho.
- Aqui está. Se realmente queres aprender a dançar, inscreve-te nesta escola. Felicidades.
Rosellina desceu as escadas a correr com as colegas, apertando com força aquele precioso papel.
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- És completamente louca. A Scarpa anda à nossa procura. E agora, o que é que lhe dizemos? - perguntaram as amigas, zangadas.
- Que a história também se faz de música e de dança - respondeu ela, imperturbável.
Ao fim e ao cabo, aquele passeio contra vontade tivera um sentido: a descoberta da Tanz Schule revelara-lhe o seu destino de bailarina. Ia imediatamente inscrever-se
na escola de dança que ficava na via delPOrso, na zona de Brera.
Avançou com o seu pedido quando a família estava reunida à mesa para jantar. Pucci e o pai riram-se, Liliana não disse nada e Ernestina zangou-se.
- Estás a repetir o ano e sabe Deus se vais conseguir passar - lamentou.
- vou sim, porque de agora em diante vou estudar imenso, se me deixarem inscrever na escola de dança - garantiu.
- Como é que eu posso acreditar em ti? - perguntou Ernestina, desesperada.
- Porque só assim posso finalmente fazer aquilo que me apetece.
- Quando souberes dançar, ensinas-me? - perguntou Pucci.
- Também te queres meter na conversa? - retorquiu a mãe, fulminando-o.
- Os meus amigos vão dançar e eu não posso ir com eles porque não sei como é - explicou.
Ernestina olhou para o marido, esperando que interviesse em sua ajuda. E Renato voltou-se para Rosellina: - Desejo apenas que tu encontres o teu caminho e, se for
a dança, que seja para bem. Vamos oferecer-te a inscrição nessa escola mas vais ter de te empenhar mais nos estudos.
- E que Deus nos ajude - concluiu Ernestina.
Rosellina levantou-se da mesa e abraçou a mãe e o pai com gritinhos de alegria.
- Consegui, fantástico! Estava convencida de que me iam dizer que não.
- E nesse caso, o que fazias? - perguntou Liliana.
- Ia lavar escadas e ganhar dinheiro para a inscrição - declarou, com determinação.
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Foi para a escola de dança.
Uma noite regressou da aula e disse: - Preciso de um partner.
- Um quê? - perguntou a mãe.
- Um parceiro - traduziu. - Já experimentei três, mas não consigo combinar. É muito importante estabelecer algum entendimento com a pessoa com quem se dança - explicou.
Ernestina abanou a cabeça, resignada.
- Já percebi. E qual dos teus cem namorados escolheste? - perguntou-lhe.
- O melhor: o meu irmão Pucci.
- Só me faltava esta - respondeu a mãe, zangada. - O teu irmão tem a cabeça no lugar e, ficas já avisada, ai de ti se o estragas.
- Quando muito, endireito-o. Está todo o dia com as costas curvadas em cima dos números naquele banco horroroso onde trabalha. E, como se isso não bastasse, à noite
tem aquelas contabilidades extra que lhe dão muito dinheiro, mas que não o fazem feliz - argumentou a rapariga.
- O teu irmão nunca vai aceitar, para sorte dele - afirmou a mãe.
Pucci voltou do banco onde estava empregado havia já alguns meses. Ernestina não sabia como agradecer a sorte, que tinha contemplado o seu rapaz com aquele trabalho
seguro e bem remunerado. Para além disso, à noite fazia a contabilidade de algumas pequenas empresas. Para ele, os números não tinham segredos e divertiam-no como
se fosse um jogo. Também gostava de dançar, desde que a irmã lhe tinha ensinado os passos mais básicos.
Rosellina foi logo directa ao assunto.
- Preciso de um partner. Apetece-te ir comigo frequentar aquele curso? Só temos dois meses para nos prepararmos para um concurso que vai haver em Cesenatico, em
Agosto. O prémio é uma taça enorme. Diz-me que aceitas e vamos ganhar.
Pucci ouviu-a com atenção.
- Só um trofeu, nada de dinheiro? - perguntou-lhe.
- Isso temos nós de desembolsar, para a roupa. Mas vai valer a pena, porque nos vamos divertir imenso.
- Aperta aqui a tua mão, maninha. Não se pode pensar sempre no dinheiro, como tu estás sempre a dizer - respondeu Pucci.
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Liliana ligou para a faculdade de Direito. Atendeu uma voz que ela conhecia bem, a da signorina Grisafulli.
- Que bom ouvi-la. Como está, minha querida? - perguntou logo a eficiente secretária.
- Muito bem - mentiu Liliana. E continuou: - Precisava de uma entrevista com o professor Romani. Acha que consegue arrancar-lhe um tempinho para mim?
- Para uma aluna como a Liliana, o professor tem sempre tempo. Neste momento está num congresso em Urbino. Na próxima semana ligo-lhe para lhe dizer a hora e o dia
- prometeu a secretária.
Depois daquele breve encontro com o Dr. Brioschi, Liliana tinha regressado ao escritório de péssimo humor. Pôs de lado o seu orgulho e decidiu ir ter com aquele
professor, com quem terminara o curso, para lhe pedir uma recomendação. Depois de ter falado com a signorina Grisafulli, trabalhou afincadamente durante toda a tarde.
Às sete horas arrumou os papéis que tinha em cima da secretária e preparou-se para sair do escritório.
Bateu à porta do advogado, abriu-a ligeiramente e anunciou: Vou-me embora.
O homem estava ao telefone e, com uma mão, fez-lhe sinal para esperar. Terminou a chamada, levantou-se da secretária e disse: Lamento muito pelo meu gesto irreflectido
desta manhã. Peço-lhe que me desculpe, doutora.
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Liliana olhou para ele, incrédula, e teve a certeza de que aquelas desculpas eram ditadas pelo receio de que ela se despedisse.
- Está desculpado. Boa-tarde - replicou secamente.
Saiu do escritório com uma sensação de libertação. Tinha ainda dado poucos passos fora do edifício quando um homem se pôs ao lado dela, tratando-a pelo nome. Era
Sandro Brioschi.
- Estava em frente à porta à sua espera. Mas saiu como um raio - disse-lhe.
Liliana sorriu-lhe.
- Está com pressa ou ainda tem tempo para um aperitivo? - perguntou o contabilista.
- Para um aperitivo ainda dá - respondeu.
- Pensei muito em si - começou, quando se sentaram na mesinha de um bar na via Boccaccio.
- Devo sentir-me lisonjeada? - perguntou Liliana.
- Gostaria que se sentisse, mas eu já tenho uma certa idade e não sou propriamente uma estrela de cinema. No entanto, estive a pensar em si e achei que, se mo permitir,
obviamente, eu podia fazer alguns telefonemas. Tenho uma série de escritórios de advogados realmente óptimos entre os meus clientes e podia saber se alguém precisa
de uma jovem estagiária. Acha que estou a ser muito atrevido? - perguntou, quase corando. E continuou: - Ajudava-a de boa vontade a arranjar um trabalho melhor.
- Parece que estou destinada a encontrá-lo nos meus piores momentos. Quando subi a correr para aquele comboio, em Varese, tinha acabado de encerrar a minha primeira
e única história de amor. Hoje de manhã, antes de ir ao seu escritório, o Dr. Asetti tentou deitar-me a mão.
- Então, marco-lhe umas entrevistas?
Liliana observou com atenção o homem que estava sentado à sua frente. Tinha uns olhos castanhos, grandes e meigos, o rosto quadrado, o queixo forte, o nariz levemente
aquilino e uns lábios que se abriam muitas vezes num sorriso. Sandro Brioschi transmitia-lhe uma sensação de segurança e de serenidade. Parecia realmente uma pessoa
em quem podia confiar.
Em vez de lhe responder, perguntou: - Dr. Brioschi, é sempre assim tão disponível para com o seu próximo?
Ele deu uma gargalhada.
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- Dei-lhe essa impressão? Pois bem, está redondamente enganada. Se soubesse a quantidade de gente a quem mando dar uma volta! Sobretudo os arrogantes, os avarentos
e os mentirosos. E se soubesse quanta gente dessa anda por aí! Sabe, o meu escritório é pequeno e eu nunca quis crescer; portanto, sempre que um cliente
me faz irritar, sugiro-lhe delicadamente que se dirija a outra pessoa.
- O que é que o faz irritar, Dr. Brioschi? - perguntou Liliana.
- A fuga ao fisco, por exemplo. Para além disso, não gosto dos envelopezinhos que se passam por baixo da mesa, assim como muitas outras espertezas tipicamente italianas.
O empregado serviu um aperitivo que estava muito na moda: espumante seco com um toque de gin e umas gotas de licor de menta. Saborearam-no a conversar como se fossem
velhos amigos.
- Na próxima semana vou falar com o professor com quem me formei. Espero bem que me possa ajudar. A verdade é que nos meus sonhos de rapariga não imaginava que o
mundo do trabalho fosse tão difícil e, sobretudo, tão hostil às mulheres - desabafou. E prosseguiu: - Se não ficar ofendido, aceito a sua ajuda como segunda possibilidade,
se a primeira não correr bem.
- Decida como bem entender. De qualquer maneira, desejo-lhe que resolva o seu problema o mais depressa possível. Quanto à hostilidade em relação às mulheres, tem
razão, sempre existiu. É uma maneira de levantar um muro para defesa do sistema machista que impera em todo o lado - explicou o contabilista.
- Será que os homens fazem voz grossa por terem medo das mulheres? - perguntou ela.
- As mulheres, quando têm valor, podem ser verdadeiramente extraordinárias. Como a signorina, Dra. Corti - disse, olhando-a com ternura.
Aquele cumprimento fê-la corar e, de repente, Liliana percebeu que Sandro Brioschi lhe estava a fazer a corte.
- Esta noite, como todas as quintas-feiras, tenho um encontro com os meus irmãos numa pizaria. Tenho de ir - disse de repente, ao mesmo tempo que se levantava.
- Posso acompanhá-la? - perguntou o Dr. Brioschi, levantando-se também rapidamente.
Liliana tinha mudado de atitude, parecia confusa e pouco à vontade.
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- Não é preciso. A pizaria é já aqui, ao dobrar da esquina - respondeu estendendo-lhe a mão para se despedir. - Obrigada por tudo - acrescentou.
O homem segurou a mão de Liliana na sua durante uns instantes.
- Eu é que agradeço. Desculpe se fui muito tagarela. Normalmente falo pouco. Desculpe, doutora. - Apercebera-se de que o comportamento de Liliana tinha mudado de
repente e perguntava a si mesmo o que teria feito para provocar aquela reacção.
- Depois digo-lhe o que deu a conversa com o meu professor
- disse ela, e foi-se embora.
Sandro Brioschi ficou a olhar para a silhueta elegante daquela bonita rapariga que se afastava rapidamente, enquanto se interrogava mais uma vez sobre o que poderia
ter dito de tão grave que a fizesse fugir.
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Os irmãos Corti reuniam-se numa pizaria uma noite por semana pelo prazer de conversarem à vontade, sem a presença dos pais. Giuseppe e Liliana eram sempre os primeiros
a chegar.
Naquela noite, enquanto esperavam Pucci e Rosellina, Liliana disse-lhe: - O pai anda preocupado. As reformas propostas pelos sindicatos estão num impasse e há o
perigo de uma grave recessão, apesar de ainda ninguém falar disso.
- Vai haver uma nova onda de greves que não vai servir para nada, como sempre - comentou o irmão.
- Que rica filosofia! Sem luta viveríamos ainda num sistema repressivo e não teríamos sequer a possibilidade de respirar - protestou ela com veemência.
O irmão sorriu. Gostava de espicaçar Liliana relativamente aos assuntos sindicais.
Saboreou uma flor de abóbora frita e sussurrou: - Amanhã vou para Londres com o Filippo.
- A mãe já me disse. Estou com alguma inveja, sabias?
- Não vou de férias. Há um leilão na Sotheby's e um cliente do Filippo está interessado em paisagens inglesas do século XVIII. Quer que eu vá com ele porque acha
que devo dar uma vista de olhos à moda masculina inglesa. Sabes, ele tem a estrutura mental de um professor.
- Julgava que só trabalhavas em moda feminina. Pois olha, eu vou passar o fim-de-semana a fazer limpezas em casa, como sempre
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- lamentou-se. E acrescentou: - Mas consola-me saber que estás feliz com o teu companheiro.
- Às vezes discutimos furiosamente - confessou Giuseppe. E prosseguiu: - Ele tem a mania do luxo, da ostentação, do convívio com pessoas importantes...
- E da Mariuccia - acrescentou Liliana, com um ar malicioso.
- Está sempre lá em casa e interfere como uma sogra. O Filippo adora-a, eu não. Tudo o que sai daquela boca é ouro, porque é amiga da Margarida de Inglaterra. A
propósito, adivinha quem vai connosco a Londres?
- A Mariuccia! - exclamou Liliana.
- Exactamente, assim vamos parecer um casal de homossexuais com a mãe atrás.
- Tens ciúmes!
- Um bocadinho. Mas deixa lá isso, quero é saber de ti.
Liliana juntou toda a sua coragem e, em voz baixa, revelou-lhe:
- Tenho um pretendente.
Desde que a história com Danilo tinha acabado, fechara-se sobre si mesma como um ouriço, pronta para picar quem quer que tentasse aproximar-se. A ideia de um novo
amor assustava-a, porque tinha medo de sofrer. Entre os ex-colegas de faculdade e os irmãos das amigas, havia sempre alguém que tentava marcar um encontro com ela.
Repelia toda a gente com uma espécie de altivez que não lhe era natural, de tal maneira que os amigos tinham passado a referir-se a ela como "a advogada". A princípio
sofrera um pouco com aquele epíteto, mas depois habituou-se.
No bar da via Boccaccio, quando se apercebeu de que Sandro lhe estava a fazer a corte, pela primeira vez não pôs os espinhos de fora. Fugiu porque percebeu que o
contabilista lhe agradava. Sandro Brioschi parecia-lhe um homem de confiança como o seu pai e, como ele, tinha um olhar sorridente e muita vontade de viver.
Enquanto percorria a distância que separava o bar da pizaria pensou na mãe. Como reagiria Ernestina quando lhe falasse do Dr. Brioschi? As críticas da mãe irritavam-na,
mas a experiência tinha-lhe ensinado que devia dar-lhe importância.
- Como é ele? - perguntou Giuseppe, cheio de curiosidade.
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- Podia ser... - não acabou a frase porque nesse momento entraram Pucci e Rosellina. - Digo-te para a próxima. Muito cuidado com as duas serpentes - sussurrou.
Não era preciso acrescentar mais nada. Desde o tempo em que eram adolescentes, Liliana e Giuseppe trocavam os seus pequenos segredos, sabendo que ficariam bem guardados.
Rosellina, porém, não sabia ficar calada, e Pucci não resistia à tentação de espicaçar os irmãos.
- Desculpem o atraso - começou Rosellina, enquanto pousava no chão o saco onde trazia os sapatos e o fato que usava na escola de dança.
- Hoje ensaiámos uns passos de rumba catalã e a professora nunca ficava satisfeita - disse Pucci, deixando-se cair numa cadeira.
- Pois é, parece fácil, mas é todo um jogo de agilidade entre braços, ombros e cintura. O Pucci é espectacular. Quem me dera que os colegas do banco o vissem - exclamou
Rosellina.
- Imagina o que eles se iam rir - disse Pucci.
- Só por inveja - precisou Rosellina. - Porque nenhum deles é tão bonito como tu. Eu digo a toda a gente: nós, os irmãos Corti, somos lindíssimos - chilreou Rosellina.
Depois sorriu para o empregado que se tinha aproximado com a lista: - O senhor não acha que nós somos lindíssimos? - perguntou-lhe.
Liliana e Giuseppe abanaram a cabeça, resignados com a intemperança da irmã mais nova. O empregado sorriu, porque já os conhecia.
Enquanto comiam, Rosellina falou do concurso de dança em que se tinham inscrito.
- É em Cesenatico, em Agosto. Vocês estão mesmo a ver? Vai lá estar a televisão para filmar os bailarinos, os jornalistas para os entrevistar e centenas de espectadores.
Toda a gente nos vai ver e vamos ficar submersos em aplausos, porque somos os melhores. Eu vou estar um espanto, sobretudo se o Giuseppe me fizer um vestido fabuloso,
como eu imagino.
Havia já algumas semanas que Giuseppe andava a fazer um vestido de organza branca, de linha muito solta, que ia decorar com lantejoulas prateadas. Os vestidos para
os concursos de dança, normalmente, eram confeccionados por casas especializadas e eram
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caríssimos. Rosellina, que não trabalhava nem tinha dinheiro, entregava-se sem pudor à generosidade dos irmãos, que se sentiam felizes por poderem satisfazê-la.
- No domingo, quando for almoçar, levo-te o vestido para tu provares - disse Giuseppe.
Pucci, porém, tinha decidido alugar um fato adequado à situação. Andava sempre muito atento às despesas e administrava o seu dinheiro com prudência.
Os irmãos Corti ficaram ali até tarde, alternando conversas com gargalhadas e provocações. Como sempre, dividiram a conta por três, porque todos se quotizavam para
a irmã mais nova, que continuavam a proteger e a mimar.
Enquanto se despediam, Giuseppe conseguiu apanhar Liliana.
- Não me contaste do teu pretendente - sussurrou-lhe. Estou a arder de curiosidade. Disseste que podia ser... O quê?
- Já tem uns anitos, deve andar pelos quarenta, não sei se me entendes - sussurrou ela.
- Como o Filippo. Os quarentões, podes crer, são fantásticos.
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À noite, antes de adormecer, Liliana recordou todo aquele dia, que tinha começado pessimamente e terminara com uma novidade inesperada. O rosto sincero do Dr. Brioschi
surgia no seu espírito e voltava a ouvir as suas palavras: "As mulheres, quando têm valor, podem ser verdadeiramente extraordinárias. Como a signorina, Dra. Corti."
Fez uma comparação com Danilo e concluiu que Sandro Brioschi não tinha nada em comum com ele, felizmente.
- Um viúvo - sussurrou, às voltas na cama. Recordou a fotografia da mulher, uma bela rapariga de cabelos loiros. Como teriam sido aqueles dois anos de casamento
do Dr. Brioschi ao lado de uma mulher que se ia apagando de dia para dia? Devia tê-la amado muitíssimo, se tinha decidido casar com ela mesmo sabendo que estava
condenada. E, em doze anos de viuvez, não procurara uma nova oportunidade. Porquê? Para não trair a mulher? Por medo de voltar a sofrer? No entanto, pensava Liliana,
que continuava às voltas na cama, devia ter havido alguma outra história, porque um homem não pode ficar sem uma mulher. Teriam sido histórias ocasionais? Não lhe
parecia o tipo de homem que recorre a prostitutas, portanto, com quem teria estado em todos aqueles anos? Quantas outras mulheres teria tido? Por que teria decidido
fazer-lhe a corte precisamente a ela? Mas estaria mesmo a fazer-lhe a corte, ou era só imPressão dela? Elaborou um último pensamento assustador: talvez o contabilista
tivesse casado com uma mulher doente porque
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não queria um casamento duradouro e depois não voltara a casar porque gostava da vida de solteiro.
Finalmente adormeceu, extenuada com tantas interrogações. De manhã, no entanto, estava tranquila e cantarolava enquanto tomava banho. Quando entrou na cozinha para
tomar o pequeno-almoço, a mãe olhou para ela com curiosidade.
- Por que é que estás tão contente esta manhã? - quis saber.
- Quantos anos tens, mãe? - perguntou, em vez de responder.
- Muitos, demasiados. E depois nunca se pergunta a idade a uma senhora.
- Eu diria que são quarenta e um - disse Liliana.
- Quarenta e dois - corrigiu Ernestina.
Liliana pensou que o Dr. Brioschi era quase da idade dos pais.
- Quarenta anos são realmente muitos - sussurrou, enquanto saboreava o seu café.
- O que é que te está a passar pela cabeça? - perguntou a mãe.
Não a ouviu e continuou a seguir o fio dos seus pensamentos.
- Um homem de quarenta anos já não deve reservar surpresas desagradáveis. Não achas?
- Mas de que é que estás a falar? O que se passa contigo hoje? Estás a esconder-me alguma coisa. Por que é que eu nunca posso estar sossegada? Vá lá, desembucha
e não me mintas - ordenou.
- Mãe, acaba com isso. Quando te pões assim não te suporto. Tu resmungas, ameaças, censuras e nunca estás satisfeita, como diz o pai. Queres os meus pensamentos?
Não os vais ter! - respondeu Liliana, irritada.
- Quero saber quem é esse quarentão que te põe a cantar logo que acordas - disse Ernestina, firme.
- Estás a dar tiros no escuro - retorquiu a filha, enfadada.
- Tenho olhos de gato - afirmou a mãe.
- Um gato cego - berrou Liliana, ao mesmo tempo que agarrava na bolsa e saía a correr para o escritório.
Não ouviu a mãe dizer: - Já não posso mais com estes filhos. Há uma vida que me ando a consumir por eles e, como única recompensa, sou tratada como um zero à esquerda.
Naquele dia, Liliana enfrentou o calvário habitual do Escritório Asetti. Reuniu com alguns colegas do advogado para organizar
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uma série de processos e passou o resto do dia a tratar de recuperação de créditos. Reconfortou-a a ideia de um fim-de-semana caseiro e esperou ardentemente falar
o mais depressa possível com o professor Romani.
A secretária ligou-lhe para casa na segunda-feira de manhã, quando se preparava para sair para o escritório.
- Venha às dez horas. O professor está à sua espera - disse-lhe.
- Obrigada, signorina Grisafulli - respondeu Liliana, perguntando a si mesma como poderia justificar a falta ao trabalho naquela manhã. Telefonou para o escritório
e atendeu o advogado.
- vou agora ao hospital fazer uns exames. Não me tenho sentido muito bem nestes últimos dias - mentiu.
Saiu de casa e dirigiu-se a pé à via Festa del Perdono.
Entrou pelo portão antigo da Universidade de Milão e sentiu um aperto no coração ao recordar aqueles anos fantásticos que tinha passado dentro daqueles muros, quando
acreditava que bastaria uma licenciatura para conquistar o mundo e sonhava casar com Danilo, por quem estava apaixonada.
Agora atravessava o pátio da universidade esperando apenas que o professor Romani a ajudasse a arranjar um trabalho digno.
O professor estava à espera dela no seu gabinete cheio de fumo, segurando entre o dedo indicador e o médio o charuto cubano do qual nunca se separava. Era um homem
com uma cpmpleição monumental e um vozeirão fortíssimo. E, no entanto, quando se mexia, tinha a leveza de uma libélula e um olhar límpido e inocente.
Apertou-lhe vigorosamente a mão, convidou-a a sentar-se e ofereceu-lhe uma chávena de café que a signorina Grisafulli acabara de fazer.
Liliana despejou toda a amargura que sentia. O professor ouviu-a com atenção, ao mesmo tempo que dos seus lábios, escondidos por baixo de uma farta barba cinzenta,
saíam pequenas nuvens de um fumo pestilento. O homem estimava Liliana e tinha depositado muitas esperanças naquela aluna brilhante e determinada.
- Despeça-se imediatamente daquele ninho de ratos - disse. E continuou: - Gente como o Asetti desonra a profissão mas, acredite, ainda há indivíduos que fazem pior.
Quanto mais se sobe mais aumenta a podridão, até chegar aos grandes embusteiros que servem
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os lados obscuros do poder e usam a lei para cometer crimes. Despeça-se - repetiu.
- Não me posso dar ao luxo de renunciar a um salário - murmurou Liliana.
O homem levantou uma mão, fazendo-lhe sinal para ter calma. Consultou a sua agenda, levantou o auscultador e marcou um número.
- Fala Romani. Passe-me o Eleuteri. - Ao fim de alguns instantes de espera, disse: - Olá, meu caro, arranjei o licenciado de que andavas à procura. Como se chama?
Liliana Corti. É verdade, é uma mulher, e até é bem engraçada - comentou, sorrindo. - Não vai criar complicações se for tratada com o respeito que merece. Por ela
garanto eu. É advogada estagiária. Quando queres encontrar-te com ela? Ao meio-dia está aí. Como paga, convidas-me para jantar.
Desligou o telefone e olhou para ela com um ar satisfeito.
- O que é que ainda está aqui a fazer? O Dr. Eleuteri está à sua espera. Despache-se - disse-lhe.
Liliana levantou-se lentamente da cadeira, porque temia não conseguir equilibrar-se nas pernas.
- Eu não sei... é tudo tão... Professor, o senhor é... Eu estou. .. - balbuciava como uma aluna demasiado tímida.
- Vá-se embora, Liliana - disse ele, que detestava agradecimentos.
- Onde, professor? Qual é a direcção?
Do peito imenso do homem soltou-se uma gargalhada sonora.
- Tem razão! - exclamou.
Escreveu o endereço num papel e entregou-lho. Liliana agarrou nele e foi-se embora a correr.
Saiu da universidade excitada e cheia de esperança. Leu mais uma vez o endereço que o professor Romani lhe tinha dado e pareceu-lhe estar a sonhar. Tinha uma entrevista
com o director da Collevolta, uma empresa gigantesca, como a FIAT em Itália ou a General Motors na América. A sede de Milão era na via Paleocapa. Foi pontualíssima
e, ao porteiro cheio de galões, anunciou que tinha uma entrevista com o Dr. Eleuteri.
O homem pediu-lhe um documento de identificação e depois convidou-a a esperar numa pequena sala, ao lado da portaria"
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dizendo: - Faça o favor de esperar. - Voltou a fechar a porta e deixou-a sozinha.
Liliana sentou-se numa pequena poltrona vermelha, por baixo de um quadro antigo que reproduzia o Castello Sforzesco. O coração saltava-lhe no peito com a emoção
e perguntou a si mesma se estaria apresentável. Giuseppe cortara-lhe o cabelo que, agora, tinha um estilo um pouco arrapazado, com uma pequena franja que lhe cobria
a testa. Trazia uma saia de linho azul-celeste e um casaquinho curto em malha de algodão da mesma cor. Lamentou não ter vestido uma roupa mais adequada à situação.
A única coisa que lhe dava confiança era a essência do seu perfume.
A porta abriu-se e entrou uma mulher de aspecto severo. Era toda cinzenta: o tailleur, o cabelo e os sapatos. Parecia uma professora de uma escola religiosa. Liliana
levantou-se de um salto.
- Dra. Corti? - perguntou a mulher, com um sorriso. - Chamo-me Carla Dotti e vim dizer-lhe para ter um pouco de paciência, porque o Dr. Eleuteri ainda está em reunião.
vou devolver-lhe o seu bilhete de identidade.
Desapareceu com a velocidade de um relâmpago e Liliana deixou-se cair na mesma poltrona. Pensou: isto não está a correr bem. Olhou para o relógio: era meio-dia e
vinte. Entreteve-se a mexer na pulseira de ouro, presente dos pais pela licenciatura. E esperou.
À uma hora sentiu-se tentada a ir embora. Estava deprimida e pareceu-lhe que a pressa com que tinha sido convocada não passava, efectivamente, de uma brincadeira
com ela e com o professor.
Levantou-se da poltrona, pensando que a Collevolta era um lugar de gigantes onde não se liga à dignidade dos fracos. Tinha a mão na maçaneta da porta quando o porteiro
dos galões a abriu e ficou com a cara quase colada à dela.
- Siga-me - disse o homem.
Regressaram à entrada, atravessaram um imenso pátio interior atravancado de carros de alta cilindrada, entraram noutro edifício e, no átrio, o homem acompanhou-a
ao elevador.
- Quarto andar - disse o porteiro.
Quando o elevador se abriu, encontrou a signorina Dotti, que estava à espera dela. Encontravam-se num amplo vestíbulo, meio galeria de arte e meio jardim botânico:
quadros abstractos nas paredes e grandes plantas viçosas.
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- vou acompanhá-la ao Sr. Director - anunciou, com ar solene.
Introduziu-a num aposento com paredes revestidas de madeira clara. Três homens, tranquilamente sentados em dois sofás de pele colocados um em frente ao outro e separados
por uma mesa baixa conversavam em voz baixa. Liliana observou-os, perguntando a si mesma quem seria o interlocutor do professor Romani. Eram elegantes, vestiam fatos
impecáveis e tinham um ar desenvolto.
- A Dra. Corti - anunciou a secretária com um ar muito importante.
Dois dos presentes levantaram-se para a cumprimentar, enquanto o terceiro veio ao encontro dela, apresentando-se.
- Sou o Eleuteri - disse, e apertou-lhe a mão. Depois explicou: - Desculpe se a fizemos esperar. Houve uma pequena reunião imprevista. - Era alto, magro, tinha um
rosto de traços delicados e uma voz levemente rouca. Liliana teve a sensação de já o ter visto em algum sítio.
- O Dr. Conforti, chefe do pessoal, e o engenheiro Passeri, director da segurança das instalações. Já conhece a signorina Dotti, a minha secretária - anunciou, enquanto
os homens lhe apertavam a mão. A secretária tinha-se colocado num sítio mais afastado, tentando confundir-se com a mobília.
Eleuteri convidou Liliana a sentar-se no sofá.
- Sente-se, doutora - disse.
Liliana sentou-se e olhou para os três homens, a sorrir. Não seria capaz de articular uma palavra e consolou-se com a ideia de que, afinal, não era ela que tinha
de falar.
- O Dr. Romani foi seu professor na Faculdade de Direito, não é verdade? - perguntou o director.
- Discuti com ele a minha tese sobre direito do trabalho - explicou ela.
Preparou-se para suportar a habitual rajada de perguntas, que já conhecia muito bem. Mas Eleuteri apenas disse: - O Romani falou-me muito bem de si e, uma vez que
o estimo, acredito nele. Na semana passada estivemos juntos num congresso e eu pedi-lhe para me indicar alguém para o sector dos acidentes de trabalho. Portanto,
parece que a doutora é a pessoa certa para isso. Está bem, muito bem - afirmou o director. E juntou as mãos, como se o assunto estivesse encerrado.
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Passeri e Conforti, entretanto, observavam-na.
- Tem consigo um curriculum, Dra. Corti? - perguntou o director de pessoal. Era um homem relativamente jovem, com um ar cansado.
- Lamento muito, mas receio não ter curriculum nenhum. Acabei o curso há um ano e desde então tenho trabalhado no escritório do advogado Asetti. É tudo, até agora
- declarou Liliana.
Os homens sorriram-lhe com simpatia.
- Qual é a sua remuneração actual? - perguntou Conforti.
- Vergonhosa - respondeu Liliana, com uma franqueza que desconcertou os directores. E prosseguiu: - Por favor, preferia que me dissesse quanto está disposto a oferecer-me.
A signorina Dotti olhou de soslaio para o seu director e deixou escapar um sorriso.
- A Collevolta poderia contratá-la na categoria dos recém-licenciados, com a função de tratar dos aspectos jurídicos relativos à segurança das instalações. São noventa
mil liras por mês em catorze mensalidades, mais uma série infinita de benefícios que a seu tempo lhe serão indicados - propôs Conforti.
Liliana decidiu fazer valer a recomendação do professor Romani.
- Defendi a tese com distinção e louvor. Acho que entendi que vou ter de justificar o meu salário até ao último cêntimo, e para mim está óptimo assim, porque adoro
o meu trabalho. Por isso acho que cento e quarenta mil poderia ser uma retribuição razoável.
Dera um grande tiro no escuro e sentia o coração na garganta, mas estava a jogar uma partida importante e tinha excelentes cartas na mão.
- Cento e trinta - concluiu Eleuteri, retirando ao director de pessoal qualquer outra possibilidade de negociação.
Liliana dirigiu aos três homens um sorriso encantador, enquanto se esforçava por conter a sua felicidade.
- Parabéns, doutora. Sabe muito bem fazer-se valer - afirmou o engenheiro Passeri, fazendo finalmente ouvir a sua voz. Seria ele o superior directo de Liliana e
não tinha ar de ser um homem brando. Quanto a Conforti, o chefe do pessoal, parecia não ter apreciado a intervenção de Eleuteri e não escondeu o desapontamento por
ter sido ultrapassado. Era evidente que não havia grande
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empatia entre os dois homens. Liliana percebeu imediatamente a situação e evitou que Conforti pudesse dizer alguma coisa de desagradável.
- Sinto-me muito feliz por passar a fazer parte da Collevolta
- afirmou, dirigindo-se a ele e não a Eleuteri.
Aquela rapariga bonita, de sorriso luminoso, era dotada de uma desenvoltura excepcional. Os três homens sem dúvida que apreciaram.
A conversa tinha durado vinte minutos. Liliana deveria apresentar-se na segunda-feira seguinte.
Saiu para a via Paleocapa e enfiou-se num café. Pediu um café e empalideceu. Apercebeu-se de uma sensação de vazio entre o estômago e o cérebro, deixou de sentir
o corpo e agarrou-se ao balcão porque tinha a cabeça a andar à roda. Dera-se conta de ter feito frente a três dirigentes da Collevolta com uma desenvoltura alarmante.
- Não se sente bem? - perguntou-lhe o empregado, que a tinha visto vacilar.
- Nunca me senti tão bem - respondeu. Tomou o café e saiu para a rua cheia de árvores. Estava feliz.
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Eram quase duas horas da tarde quando entrou no escritório da via Leopardi. Estava segura de que não ia encontrar o advogado Asetti, que tinha o hábito de almoçar
em casa e dormir uma pequena sesta. Nunca regressava ao escritório antes das quatro horas. A jovem secretária, apanhada de surpresa com um cigarro na mão, corou
e apressou-se a apagá-lo.
- Sou só eu. Está sossegada - disse Liliana.
O advogado não admitia que se fumasse no escritório.
- Já estava a ficar aflita! - confessou a rapariga, com uma sensação de alívio. Depois perguntou-lhe: - Como é que está? O doutor disse que foi ao hospital hoje
de manhã.
- Estou óptima, obrigada. Aliás, até propunha mandar vir alguma coisa fresca do bar antes de começarmos a trabalhar - disse Liliana, sentando-se em frente à secretária.
- Eu preciso de qualquer coisa que me alimente, porque não almocei. O que dizes a um batido de morango? Pago eu.
Precisava de se acalmar, de voltar a pôr os pés na terra sem se deixar perturbar pelo entusiasmo.
Enquanto saboreavam a espuma densa e gelada do batido, a seCretária disse: - Ao meio-dia telefonou o contabilista, porque ainda lhe faltam dois documentos para a
declaração dos impostos.
Passei-lhe o doutor, mas primeiro perguntou por si. Quando lhe
disse que não estava muito bem, ficou preocupado.
É uma pessoa muito simpática - afirmou Liliana.
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- Quando vou ao escritório dele, parece que entro no paraíso Mas quando chego aqui, parece que estou a entrar na cadeia. Se não fosse por si, doutora, não aguentava
nem um minuto neste lugar - desabafou a rapariga.
- Então procura depressa outro emprego porque, daqui a nada vou entrar pela última vez naquilo que foi o meu gabinete para escrever uma bela carta de demissão -
anunciou.
- Dra. Corti, não posso crer! - exclamou a secretária.
- Hoje de manhã estive numa entrevista, não no hospital. vou-me embora, querida. Lamento muito por ti, mas fico contente por virar as costas a este escritório -
afirmou Liliana.
- Oh, meu Deus, ele vai fazer o diabo a quatro! - disse a empregada, alarmada.
- Mas eu não vou cá estar.
- E eu? - perguntou, desesperada.
- Tu vais sobreviver e vais arranjar um emprego melhor. De certeza. Já sabes o meu número de telefone. Liga-me para nos encontrarmos, mas fora daqui.
Pouco depois abraçou a rapariga e deu-lhe a carta que ela deveria entregar ao advogado. Depois regressou a casa.
O apartamento do primeiro andar no corso di Porta Romana estava deserto. Nunca, como naquele momento, Liliana apreciou a luz, a harmonia e a ordem discreta daqueles
aposentos. Entrou na sala de estar, sentou-se no sofá rococó que a acolhia desde que ela era uma rapariguinha e ligou para a companhia dos telefones. Pediu para
entrar em comunicação com o número de Miss Angelina, em Nova Iorque. Lá eram nove horas da manhã e Liliana tinha a certeza de que a encontrava em casa. De facto,
foi a própria signorina Pergolesi quem atendeu, pouco depois.
- Tenho uma notícia fantástica - começou Liliana. E precisou: - A senhora é a primeira pessoa a saber.
Contou-lhe do seu ingresso na Collevolta e a velha senhora, que desde sempre vivia das alegrias dos outros, participou comovida na sua felicidade.
- A senhora tinha antecipado horizontes mais vastos para o meu futuro e agora parece-me que começo a vê-los. E não é só isso, Miss Angelina. Conheci um homem que
é muito boa pessoa. Já não é muito novo, mas é de confiança.
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- Diz-me como é ele - pediu Angelina. - Tem o fascínio de um homem maduro? Descreve-mo.
- Está a ver o Cary Grant? Pois bem, não se parece nem um bocadinho com ele. É pouco mais alto do que eu, tem o cabelo grisalho, o aspecto de um bom pai de família
e usa o mesmo after-shave do meu pai.
- E tu estás apaixonada por ele - concluiu a senhora.
Houve um instante de silêncio. Liliana recordou as sensações que tinha experimentado no seu primeiro encontro com Danilo. Não tinha acontecido nada daquilo com o
Dr. Brioschi. Por isso respondeu: - Gosto muito dele. Dá-me uma forte sensação de segurança.
- Quando me escreveres, manda-me uma fotografia dele. E, se te casares, fico à tua espera em Nova Iorque. Desta vez tens mesmo de vir à América. Daqui podes atravessar
os Estados Unidos e ir a Los Angeles, onde a Beth trabalha como argumentista de cinema. Fico muito feliz por ainda poder participar na tua vida. O mundo é teu, Liliana.
Lembra-te disso.
Desligou a chamada e decidiu telefonar ao professor Romani. Sabia que, àquela hora, o encontrava no seu gabinete na universidade. Quando ouviu o seu "Estou", pronunciado
com uma voz forte, Liliana anunciou: - Professor, consegui.
- Já sei tudo. O Eleuteri ligou-me para me agradecer o facto de a ter mandado ter com ele. Parece que causou muito boa impressão, doutora. Mas não se deixe ir na
crista da onda deste sucesso e mantenha-se sempre em guarda. Na Collevolta impera o machismo mais absoluto e quando se aperceberem de que tem pernas para andar vão-lhe
tornar a vida difícil - avisou o professor.
- vou guardar o seu conselho religiosamente. Muito obrigada por tudo, professor.
Saiu da sala e foi à cozinha. Tinha fome. O frigorífico estava praticamente vazio. Talvez a mãe fosse às compras antes de regressar a casa. Encontrou uma maçã, lavou-a
e trincou-a. Naquele momento tocou o telefone.
Atendeu no hall. Sentiu um arrepio quando ouviu a voz do advogado Asetti, que lhe perguntava: - Mas que história é esta? Desde quando é que você se permite deixar
um emprego sem o pré-aviso regulamentar?
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- Desde que o meu patrão se permite liberdades intoleráveis - respondeu Liliana, com calma.
- Já lhe pedi desculpa. Não chega? - perguntou ele, aborrecido. Liliana não replicou e o advogado continuou: - Não seja tonta. Quer um aumento de ordenado? De acordo!
E agora volte para aqui a correr, porque há muito trabalho para despachar - ordenou.
- Nem pense - rematou Liliana.
- É a sua última palavra? - perguntou, furibundo.
- Exactamente, doutor - respondeu ela, segura.
- Você é uma cretina presunçosa, uma incompetente, e nunca há-de fazer carreira.
Liliana desligou o telefone. Apesar de não ter nenhuma estima por aquela personagem abjecta, sentiu-se profundamente ferida com o insulto.
Refugiou-se no seu quarto, estendeu-se na cama e chorou. A mãe tinha-lhe dito, mais do que uma vez: "Os homens são uma raça malvada: quando uma mulher dá troco,
é uma galdéria, quando não dá é uma cretina." Os minutos iam passando e, no entanto, não conseguia deixar de soluçar.
Foi então que o telefone voltou a tocar. Não tinha vontade nenhuma de atender. O aparelho retinia sem parar. Limpou as lágrimas, regressou à sala e, finalmente,
levantou o auscultador, dizendo:
- Quem é?
- Fala Sandro Brioschi, desejava falar com a Dra. Corti - disse o contabilista, que não a tinha reconhecido.
- Sou eu. Boa-tarde, doutor - respondeu Liliana.
- Consegui o seu número através da secretária do Dr. Asetti. Como está? Liguei-lhe num momento inoportuno?
- O senhor é uma das poucas pessoas com quem me apetece falar - respondeu-lhe.
- Já sei que se despediu. Fico contente por si.
- O Dr. Asetti ligou-me há pouco e encheu-me de insultos.
- Era de prever, conhecendo a personagem. Por que não me conta tudo em frente a um bom prato de massa? Ou seja, isto é um convite para jantar, se estiver de acordo.
- Muito obrigada. Aceito o convite - respondeu Liliana.
- vou buscá-la às sete e meia. Está bem?
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- Está óptimo, doutor. Mais uma vez, obrigada - sussurrou.
Pousou lentamente o auscultador, virou-se e viu a mãe, parada
à porta da sala. Trazia dois grandes sacos de compras e olhava para ela com curiosidade.
- Muito obrigada, aceito o convite, óptimo, mais uma vez obrigada - repetiu Ernestina, imitando-a.
- Então? - perguntou.
Liliana decidiu não falar, incomodada pela intromissão da mãe. Abriu os braços, como que a dizer que não tinha nada de especial para contar, e foi para o quarto.
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Sandro Brioschi estava à espera dela em frente ao portão. Parecia muito mais jovem do que era na realidade. Trazia um casaco de linho cor de tabaco claro e umas
calças azul-escuras, uma camisa azul-pálido e uma gravata regimental de riscas azuis e cor de tabaco. Ela reparou no brilho dos sapatos, tipicamente ingleses, muito
elegantes. Quando a viu, abriu os lábios num sorriso. Cumprimentaram-se com um aperto de mão.
À frente deles estava estacionado um Alfa cinzento metalizado e o contabilista abriu a porta para ela entrar. Meia hora depois estavam num restaurante sobre a Darsena
dei Navigli, por baixo de uma pérgola que suportava uma viçosa videira canadiana. Sandro Brioschi afastou a cadeira para que Liliana pudesse sentar-se no seu lugar
na mesa que tinha reservado.
- Está muito elegante, doutora - constatou Sandro, observando o vestido liso de seda azul-escuro debruado a branco que Liliana vestia.
- O meu irmão desenha os modelos e a minha mãe corta e confecciona - explicou ela.
O dono do restaurante propôs uma entrada de camarões, tagliolini com lavagante e dourada grelhada. Tudo acompanhado por um Pinot fresquíssimo.
Liliana começou por lhe contar a entrada para a Collevolta e nunca mais parou de falar. Quando o empregado serviu a salada de frutas com o gelado, tinha já traçado
um quadro completo da sua
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vida: os pais operários, o pai sindicalista, a casa do corso Lodi, a amizade com as senhoras Pergolesi, a mudança para o apartamento de Porta Romana, a história
com Danilo, a homossexualidade de Giuseppe, o mau feitio da mãe, o temperamento optimista do pai e a sua determinação para enfrentar o mundo do trabalho.
- Agora que sabe tudo de mim, acho que podemos tratar-nos por tu - concluiu.
- Obrigado. Gosto do teu nome, é muito doce. Li-li-a-na, parecem quatro notas musicais. Peço-te que aprecies este voo poético da parte de um contabilista - brincou.
- É um cumprimento lindíssimo - disse Liliana, divertida.
- Estou-te a fazer a corte, não sei se já deste conta - comunicou Sandro.
- Achas então que a vida te está a oferecer uma segunda possibilidade? - perguntou-lhe, recordando o encontro na via San Vittore.
- Talvez, se mo permitires.
- Gostava que aprendêssemos a conhecer-nos devagarinho, dia após dia. Não sou uma pessoa de temperamento fácil, mas sei aquilo que quero: uma bela família e um trabalho
empolgante. Achas que vou conseguir ter tudo isso? - perguntou-lhe.
- Não sei, mas gostava de te ajudar a realizar os teus sonhos - disse ele, olhando-a com adoração.
Sandro levou-a a casa.
- És tão jovem e tens tanto entusiasmo. Se não o perderes pelo caminho, vais chegar ao topo do mundo - sussurrou-lhe, enquanto Liliana abria o portão do prédio.
Liliana estendeu-lhe a mão e Sandro aproximou o rosto do dela. Deu-lhe um beijo na testa. Depois afastou-se.
- Fui demasiado ousado? - perguntou, a sorrir.
- Espero que faças melhor da próxima vez - respondeu ela.
- Estou um bocado atrapalhado. Podia quase ser teu pai.
- Mas, felizmente, não és - disse Liliana, com um ar malicioso. Entrou em casa, fechou o portão, apoiou nele os ombros e suspirou profundamente. Quase tinha medo
de admitir que era feliz.
Quando entrou em casa, Rosellina foi ter com ela e anunciou em voz baixa: - A mãe estava na varanda e viu tudo.
- Tudo, o quê? - perguntou Liliana.
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- Um homem a beijar-te.
- Não te metas também na minha vida, por favor. Isto não é uma casa, é um ninho de víboras - replicou, indignada.
Fechou-se na casa de banho, saiu de lá ao fim de um quarto de hora e refugiou-se no seu quarto. Rosellina estava estendida em cima da cama, à espera dela.
- Fora daqui! - ordenou a irmã.
- Por favor, não me mandes embora. Estou morta por saber tudo - suplicou Rosellina.
- Para depois espalhares aos quatro ventos o fruto das tuas fantasias. Vá, rua - insistiu.
Liliana não estava tão irritada como parecia. Já contava com a intromissão da mãe e com a curiosidade da irmã. Ia deixá-las cozinhar em fogo lento. Enfiou-se na
cama e adormeceu.
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VIA PALEOCAPA
- Está a ver, Dr. Crucillà, a empresa preocupa-se acima de tudo com a segurança dos seus operários que, como facilmente se entende, são o nosso património - começou
Liliana, no papel de assessora para as questões jurídicas da segurança nas instalações.
- Dra. Corti, aviso-a já que não nasci ontem. O património da Collevolta é outro. Os operários vão e vêm - advertiu o funcionário da Inspecção do Trabalho, um siciliano
que já tinha combatido em mil e uma batalhas e conhecia perfeitamente a sua área.
- Os nossos operários são o nosso património, repito-lhe. Gastamos uma fortuna em formação, porque basta que um, só um de entre eles, erre na ligação de um cabo
e a rede vai toda pelo ar. Portanto, o profissionalismo e a segurança dos nossos operários são a nossa garantia. Parto desta premissa porque, se estiver de acordo
relativamente a esta questão, podemos entender-nos quanto a tudo o resto - precisou ela, nada intimidada com o ar severo do seu interlocutor.
Era o fim de Julho e o calor do Verão começava a fazer-se sentir até dentro das paredes espessas do Centro de Inspecção do Trabalho. O Dr. Crucillà, de compleição
robusta, passava de vez em quando um lencinho pelo rosto para secar o suor. Liliana, imperturbável, estava sentada em frente a ele e recorria a todo o seu sangue-frio
para não mostrar a tensão daquela primeira entrevista, de cujo êxito dependia o seu prestígio na Collevolta.
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Tinha passado quase um mês a estudar e a analisar os complexos mecanismos que regulavam todo o funcionamento da empresa com uma particular atenção ao sector da sua
competência. Todas as noites preparava uma lista de perguntas e na manhã seguinte apresentava-se no gabinete do engenheiro Passeri para obter respostas precisas
e pormenorizadas. Às vezes o chefe dava sinais de impaciência pelo detalhe com que a Dra. Corti analisava as suas respostas e pretendia novos esclarecimentos.
- Já chega, doutora. Você tem o dom de me cansar - sussurrava, no limite da tolerância.
- Peço desculpa, mas também tenho de ter em conta as novas normas que vão surgindo todos os dias e a linguagem destes legisladores é tão retorcida e tão desmesuradamente
ambígua que se presta a interpretações contraditórias. Passei a noite a estudar as normas e a tentar traduzi-las em conceitos claros. Por isso lhe peço para me dedicar
mais alguns minutos do seu tempo - explicava-lhe, ostentando um sorriso desarmante.
- Mas você nunca descansa? - perguntava-lhe o engenheiro.
- É um luxo que não me posso permitir. Tenho ainda demasiadas coisas para aprender - justificava-se.
Era a primeira a chegar ao escritório e a última a sair. Tinha aprendido a vestir-se de uma maneira discreta, um pouco no estilo da signorina Dotti: tailleur e blusa,
sem maquilhagem, sem saltos altos, só com algumas gotas do seu perfume.
Apesar disso, os empregados da Collevolta paravam a olhar para ela, quando passava pelos corredores com o seu passo decidido. Os comentários, sussurrados em dialecto
milanês, eram inúteis. Liliana nem os ouvia, mas adivinhava-os e ignorava-os, enquanto avançava de cabeça erguida.
Às cinco e meia da tarde, os escritórios encerravam. No silêncio que subitamente caía no edifício, Liliana estudava os processos do arquivo.
Uma manhã apresentou-se ao engenheiro Passeri a pedir-lhe informações sobre um fornecimento de capacetes de protecção.
- No ano passado foram encomendados cinco mil e foram pagos a um valor vinte por cento inferior relativamente aos oito mil adquiridos há dois anos. Como é possível?
O fornecedor é sempre o mesmo e até o modelo é idêntico, mas desta vez falta a documentação
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sobre os testes de resistência. Parece-me estranho que o custo tenha diminuído, em vez de aumentar - observou.
- Para mais esclarecimentos, dirija-se ao departamento de compras - rematou.
Liliana não se rendeu.
- Já fiz isso. O director sabe tanto como eu, porque só cá está há três meses. Procurei o anterior: está de férias. Para este fornecimento, vendido abaixo do custo,
faltam os testes de controlo. E se tivesse defeito? Pensando no pior nunca nos enganamos e eu gostava muito de desvendar este pequeno mistério, para depois poder
ficar com o coração em paz - disse.
- Doutora, o controlo já tinha sido feito para a aquisição anterior, por isso não era preciso para nada - explicou o engenheiro. E acrescentou: - Está tudo esclarecido?
- Parece que sim, mas por que será que não fico sossegada? - perguntou ela.
O chefe não respondeu.
Poucos dias depois, um operário teve um acidente grave enquanto instalava uns cabos de alta tensão. Foi atingido por uma descarga eléctrica que o fez cair de uma
altura de dez metros. O capacete de protecção não resistiu ao impacto com o solo e o homem acabou por sofrer um traumatismo craniano.
- Bem me parecia - sussurrou Liliana.
Tratou de organizar as acusações legais. Entretanto o estado de saúde do operário era bastante crítico e o seguro levantou a questão do capacete de protecção. Naquela
fase interveio a Inspecção do Trabalho. Desencadeou-se um mecanismo de contenciosos burocráticos que ia durar um tempo infinito. Liliana não gostava de questões
que se arrastassem no tempo e decidiu enfrentar imediatamente o problema. Para proteger a Collevolta, promoveu uma denúncia contra o fornecedor de capacetes.
Depois marcou um encontro com o inspector Crucillà, que na empresa ganhara fama de perseguidor impiedoso e tinha sido apelidado de Javert, como o implacável comissário
de Os Miseráveis.
Agora Liliana estava sentada em frente a ele, determinada a resolver aquele contencioso.
- A Collevolta não é aquele recanto do paraíso que está a tentar desenhar. Conheço perfeitamente os expedientes que utiliza
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para contornar as normas de segurança, que têm os seus custos enquanto que a empresa tem como objectivo o máximo lucro com o mínimo esforço. Faço-me entender? -
disse-lhe.
- Acabei o meu curso com uma tese sobre direito de trabalho. Como é que pode pensar que eu estou aqui a defender as nossas razões sem ter a certeza de que estamos
legais?
- Não só penso, como estou perfeitamente convencido - afirmou o homem.
- No seu lugar, provavelmente, até eu estaria. Por isso lhe peço que dê uma vista de olhos, a título confidencial, a este relatório que a minha empresa não conhece
e que nunca vai chegar às mãos do seguro para não prejudicar o trabalhador sinistrado - disse, ao mesmo tempo que lhe estendia um breve relatório do acidente, o
qual referia que o operário caíra porque não teve o cuidado de apertar o fecho que o devia segurar ao poste de electricidade.
Liliana estava convencida de que a empresa tinha a sua parte de responsabilidade por não ter pedido o controlo dos capacetes, mas o acidente teria sido evitado se
o operário não tivesse sido negligente.
- Parabéns, doutora, tirou o coelho da cartola, como um hábil ilusionista - disse o inspector a sorrir.
- Então, o que fazemos? - perguntou Liliana, que estava decidida a não revelar a negligência do operário com a condição, porém, de que a Inspecção do Trabalho ignorasse
o incidente.
Crucillà abriu os braços e suspirou, resignado.
- Tudo bem, Dra. Corti. Por esta vez encerramos o incidente sem consequências e esperemos que o seu operário sobreviva.
Liliana saiu do edifício e telefonou imediatamente ao engenheiro Passeri.
- Não há sanções, por esta vez - comunicou-lhe.
- Como é que fez? - perguntou o chefe.
- Disse-lhe a verdade - respondeu ela. Aquela verdade que conheciam os três: o colega do operário sinistrado que tinha feito o relatório, ela e o Dr. Crucillà. Nenhum
dos três ia falar.
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O Dr. Eleuteri juntou as mãos e, enquanto as esfregava uma na outra, disse a Liliana: - Muito bem, muito bem. Conseguiu sair-se admiravelmente.
Os acidentes de trabalho imputáveis à negligência do empregador comportavam sanções muito pesadas da parte da Inspecção do Trabalho e não era fácil encontrar escapatórias,
sobretudo desde que Crucillà se ocupava dos sinistros mais graves, como no caso, precisamente, do operário que tinha caído de um poste de electricidade. Ninguém
estaria à espera de um resultado positivo saído daquela primeira conversa de Liliana com Crucillà.
Agora ela olhava de esguelha para o director, perguntando-se mais uma vez por que razão aquele rosto lhe seria familiar. E naquele momento percebeu que o homem se
parecia com o seu actor preferido: Charlton Heston.
- Duas gotas de água - deixou escapar.
- Como disse, doutora?
Ela voltou imediatamente à realidade e retomou o fio do discurso.
- Digo que deviam ser eliminadas certas superficialidades desastrosas da nossa parte e não tenho assim tanto a certeza de que o comissário Javert tenha feito bem
em não abrir um contencioso.
O director, o engenheiro Passeri e o chefe do departamento de compras, sentados com ela nos sofás de couro, olharam-na, perplexos.
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- É evidente que a doutora lhe apresentou argumentos irrefutáveis - comentou o chefe do departamento de compras com um sorriso brincalhão.
Eleuteri ficou com um ar sombrio. O comportamento do seu colaborador era inoportuno e de mau gosto. Mas Liliana não precisava de um advogado de defesa.
- Foi exactamente isso. Levei elementos jurídicos irrefutáveis obviamente sem a ajuda de quem tinha o dever de levar a sério as minhas suspeitas - disse com um tom
provocatório, olhando bem nos olhos o chefe do departamento de compras.
O homem corou e encolheu a cabeça nos ombros, como uma tartaruga assustada.
Tocou o telefone e a signorina Dotti, testemunha muda de todas as reuniões, apressou-se a responder. Depois tapou o auscultador e sussurrou, na direcção de Eleuteri:
- O Sr. Presidente.
com duas passadas, o homem chegou junto da mesa, tirou o auscultador das mãos da secretária e, batendo os tacões como se estivesse na presença de um general, disse:
- Bom-dia, Sr. Presidente.
No gabinete todos eles ouviram o eco da voz estridente do grande chefe. Eleuteri, sempre atento, ouvia e de vez em quando dizia: - Claro, Sr. Presidente. Obrigado,
Sr. Presidente.
Os presentes ouviram o clic que pôs fim à comunicação.
Era sabido, na Collevolta, que o Dr. Eleuteri devia a sua carreira ao facto de pertencer a uma família importante, que contava entre os seus membros com um bispo,
um parlamentar e um general do exército. Sabia-se, também, que tinha frequentado a academia militar de Cuneo e que, em obséquio à vontade paterna, abandonara a farda
para assumir aquele prestigioso cargo na Collevolta. O respeito hierárquico, no entanto, ficara-lhe agarrado como uma segunda pele e, quando o presidente lhe telefonava,
prevalecia sobre as suas faculdades racionais.
A signorina Dotti, nesse momento, tirou-lhe o auscultador da mão e pousou-o no sítio. Então Eleuteri juntou as mãos, esfregou lentamente as palmas uma na outra e
repetiu: - Muito bem, muito bem. - Depois dirigiu aos presentes um olhar confuso e balbuciou: - O presidente disse...
- Para se atribuir à Dra. Corti uma secretária pessoal e para a propor, no Outono, para uma promoção - esclareceu a signorina
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Dotti que, uma vez que se encontrava ao lado dele, tinha ouvido as instruções do presidente.
- Muito bem, muito bem - repetiu Eleuteri, que tinha recuperado o seu autocontrole. Depois acrescentou: - Como vê, Dra. Corti, na nossa grande família os méritos
são sempre reconhecidos. Acho, então, que podemos retomar o nosso trabalho.
Liliana parou para tomar um café no rés-do-chão antes de regressar ao gabinete, um compartimento minúsculo que continha uma escrivaninha, duas cadeiras e os arquivos
metálicos. Encontrou um homem à espera dela. Era Bonfanti, o chefe da comissão interna.
Liliana conhecia-o de vista, mas nunca tinha falado com ele.
- Então, vai ser promovida - começou o homem.
As notícias, dentro da Collevolta, voavam a uma velocidade superior à da luz.
- Bom-dia, Bonfanti - disse ela, enquanto se sentava atrás da escrivaninha.
O homem fumava um cigarro e esticava um braço em direcção à janela aberta para deixar cair a cinza no peitoril. Ela pegou no prato onde estava pousado um vaso pequeno
com uma hera, que herdara do seu antecessor, e estendeu-lho.
- Aqui pode-se fumar sem ser às escondidas? - perguntou, espantada.
- Por que é que não havia de poder?
Ela nunca tinha ousado fazê-lo, mas naquele momento apressou-se a tirar um cigarro da carteira. Bonfanti acendeu-lho. Liliana continuou: - Toda a gente aspira a
subir de posição. O moço de recados espera vir a trabalhar no armazém, o operário quer ser chefe de secção, um funcionário como eu aspira a um patamar superior.
Eu sei que é uma maneira um bocado disparatada de interpretar a vida. Até você tem algumas ambições no sindicato. Quem trabalha numa grande cidade tem de ser competitivo,
se quiser sobreviver. Perdemos o conceito de um mundo feito à medida do homem. E agora diga-me a que devo o prazer da sua visita - perguntou, aspirando o fumo do
cigarro.
- Força do dever - respondeu Bonfanti. - Para além do mais, é a filha do Renato Corti. Todos nós conhecemos o seu pai. Os meus cumprimentos, doutora. - Sorriu-lhe
e desapareceu de repente, tal como tinha chegado.
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Naquela noite Liliana conversou com o pai a propósito do comportamento de Bonfanti.
- O teu cargo deveria ser puramente técnico, mas, no interior de uma grande empresa, assume também conotações políticas. É normal que o sindicato te tenha debaixo
de olho - comentou Renato.
- Eles sabem que eu dialoguei com a Inspecção do Trabalho Ponto final - precisou Liliana.
- Eles sabem muito mais do que tu imaginas. Por exemplo sabem que encobriste a negligência de um companheiro. Estão-te gratos e quiseram que soubesses disso.
- Achas mesmo que estão assim tão bem informados? - perguntou ela, espantada.
Renato anuiu.
- Eu acho que tu és a pessoa certa no sítio errado. A Collevolta devia colocar-te no departamento de pessoal. Aí podias fazer alguma coisa de mais interessante -
afirmou.
Ernestina entrou na sala para levar o café ao marido e à filha. Sentiu ciúmes daquela intimidade e reagiu como sempre: a resmungar.
- O que é que vocês os dois têm tanto para conversar? - perguntou. Depois voltou-se para o marido, dizendo: - Tinhas prometido que me levavas ao cinema, hoje à noite.
- Depois disse à filha: - E tu, por que é que não vais dar uma volta com o teu apaixonado velho?
Renato e Liliana trocaram um olhar de entendimento e sorriram. Ernestina não mudava. Arranjava sempre uma oportunidade para exprimir o seu descontentamento. com
efeito, prosseguiu:
- O Giuseppe só me aparece na fábrica. Já para não falar do Pucci e da Rosellina, sempre de um lado para o outro a dar à perna. Vocês os dois falam de trabalho,
mas entretanto estão aí de papo para o ar à espera que vos sirvam. Quem é que tem de lavar, de limpar, de passar a ferro, de fazer as compras? Eu, sempre e só eu!
Mas se eu voltar a nascer... - Não concluiu a ameaça e saiu da sala.
Pai e filha ficaram outra vez sozinhos. Gostavam muito um do outro e sentiam orgulho mútuo.
- Um destes dias vou-te apresentar o Sandro - disse Liliana.
- Não é uma grande paixão, pois não? - perguntou Renato.
- Ainda não, mas há-de ser. Gosto muito dele, é um homem à moda antiga, boa pessoa, de confiança.
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Renato pensou que nunca tinha transmitido nenhuma confiança à mulher, mas Ernestina sempre o amara.
- É pena - sussurrou.
- Porquê? - perguntou a filha.
- Porque é bom estar loucamente apaixonado - disse o pai.
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O restaurante sobre a Darsena tornara-se o ponto de encontro clássico para o jantar de segunda-feira. Liliana e Sandro viviam a sua história serenamente, habituando-se
um ao outro dia após dia.
Era o fim de Julho e o contabilista estava prestes a encerrar o escritório para férias. Tinha programado havia algum tempo as habituais férias no Norte da Europa,
na companhia de alguns velhos amigos e das suas mulheres. Sandro sempre tivera uma companheira para estas viagens de carro. Chamava-se Denise Gattoni, era de nacionalidade
suíça e vivia em Lugano, onde dirigia a filial de uma cadeia de grandes armazéns. Denise tinha vivido em Milão durante vários anos, onde casou com um italiano, funcionário
de um banco, de quem teve dois filhos. Um dia o marido desapareceu, levando consigo o conteúdo do cofre, e ela ficou sozinha com os filhos. Nunca mais teve notícias
do marido e foi outra vez viver para a Suíça com os dois filhos, em casa dos pais. Mas teve de voltar a Milão por diversas vezes para tratar de alguns assuntos de
carácter económico e o seu advogado aconselhou-a a dirigir-se a um contabilista, Sandro Brioschi.
Assim nasceu a tranquila relação entre o viúvo e Denise Gattoni. Para além das férias de Verão, passavam os sábados juntos, numa pequena casa que Denise tinha em
Gaggiolo, junto da fronteira suíça. Ao domingo de manhã ela levava Sandro à estação de Varese, onde ele apanhava o comboio para regressar a casa, e depois voltava
para Lugano.
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O primeiro encontro entre Liliana e o contabilista tinha ocorrido, precisamente, no comboio para Milão.
A relação entre Denise e Sandro durava já há vários anos, sem promessas nem projectos de uma vida em comum.
Após o início da história com Liliana, Sandro não voltou a estar com Denise. Regressou a Gaggiolo uma única vez.
Denise e ele passaram o dia num barco, a pescar no lago. Trocaram poucas palavras, apanharam alguns lúcios e depois regressaram a casa. Ela começou a cozinhar o
peixe enquanto ele, na varanda, bebia um copo de vinho e contemplava o pôr-do-sol. Quando Denise foi ter com ele, perguntou-lhe abertamente: - Há alguma coisa que
eu deva saber?
Sandro anuiu: - É muito simples: apaixonei-me - confessou. E continuou: - Lamento muito, Denise. Foste uma boa amiga e estou-te grato por isso. Fizemos companhia
um ao outro durante muitos anos, mas nunca fizemos projectos para o futuro. Por favor, deixa-me seguir o meu caminho. - Estava comovido e não conseguiu dizer mais
nada.
Ela sussurrou: - Só te desejo que nunca sejas posto de lado, como estás a fazer comigo.
Agora, enquanto jantavam e Sandro afagava pensativo a mão de Liliana, ela disse-lhe: - Há alguma coisa que te preocupe?
- Quero que tu saibas que, nos últimos anos, tive uma... uma... história com uma mulher.
- Já imaginava. Acabou? - perguntou a rapariga.
- Sim, aliás, não chegou a começar, no sentido em que nunca pensámos em viver juntos - respondeu Sandro, e acrescentou:
- No entanto, não é fácil para ela ficar sozinha, depois de termos andado juntos durante tanto tempo. E isso aborrece-me, porque é uma boa amiga.
- Por que me contas isso?
- Não gosto de segredos e queria salvar a minha amizade com ela.
- É justo. Então não deixes de a ajudar.
Naquela noite, ao regressar a casa, Sandro voltou a pensar nas palavras de Liliana e decidiu seguir o seu conselho. Ia ajudar Denise, pelo menos enquanto ela tivesse
necessidade disso.
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Pucci e Giuseppe, estendidos nas cadeiras, à sombra do guarda-sol, liam o jornal, ignorando o barulho que reinava naquela praia. De vez em quando trocavam algumas
palavras. Para Pucci, aquelas eram as primeiras verdadeiras férias na praia e estava a gozá-las ao máximo. Em criança era despachado para a colónia de férias de
Cesenatico com o irmão e, daqueles tempos, conservavam ambos uma recordação dilacerante. Os irmãos Corti sofriam como um exílio aquele afastamento da família e,
agarrados um ao outro, contavam os dias que os separavam do regresso a casa. As vigilantes chamavam-lhes "os dois órfãos" e era mesmo assim que se sentiam, longe
de casa.
Passada a idade de irem para a colónia de férias, ficaram felizes por poderem passar o Verão na cidade. Depois cresceram. Naquele ano, Giuseppe tinha ido para a
praia com Filippo, para a Côte d'Azur. Mas alguns dias depois telefonou a Pucci e disse-lhe: - Daqui a pouco vais para Cesenatico com a Rosellina, para o concurso
de dança. Por que não vamos já e fazemos umas feriazinhas? A nossa querida irmã pode ir ter connosco mais tarde, de comboio.
Agora Pucci contemplava aquela extensão de areia como se aquilo fosse a praia de Miami e a pensão familiar em que estavam hospedados parecia-lhe um grande hotel.
De vez em quando comentava, satisfeito: - Isto é que é vida!
Disse-o também naquele momento. E Giuseppe, que estava a folhear uma revista de moda, observou: - Se quisermos falar a
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verdade, o nosso hotel não é dos melhores da costa. Para mim está bem assim, até porque tu e a Rosellina já tinham marcado os quartos e, para além disso, sei que
ias ficar desesperado com a ideia de gastares umas liras a mais.
- Tu, pelo contrário, és o Rockefeller - disparou Pucci, que amuava quando alguém fazia referência à sua parcimónia.
Giuseppe lembrou-se da villa de Cannes onde tinha sido hóspede, com Filippo, de um industrial de Milão. Parecia realmente a residência dos Rockefeller. No entanto,
não se sentiu à vontade naquele ambiente que não lhe pertencia. Preferia a pensão modesta de Cesenatico.
- Sabes que eu não gostava de ser milionário - disse ao irmão.
- Eu gostava - replicou Pucci.
- Se tu conhecesses aquele ambiente, fugias a sete pés. É um carrossel de maneiras afectadas que se manifestam por hábito ou conveniência, mas sem nenhum envolvimento
emotivo, uma procura aflitiva dos "sítios certos", da "gente certa", da "roupa certa", e os dias naufragam numa série de banalidades sem fim - confessou Giuseppe,
enquanto se questionava sobre a sua relação com Filippo que, depois dos primeiros meses de uma euforia arrebatadora, estava a deslizar para o tédio. Talvez por causa
das pessoas de quem ele gostava de se rodear, que precisavam de inventar extravagâncias contínuas para sobreviver.
- Quer isso dizer que todos os ricos são enfadonhos - comentou Pucci com ironia.
- Os que eu conheci são. Estou farto de grandes hotéis, de casas que parecem museus, de maricas a abanar o rabo, de cabeças vazias e de gente arrogante.
Pucci deixou escorregar os óculos de sol para a ponta do nariz e dirigiu ao irmão um olhar perplexo.
- Devo ter deixado escapar algum detalhe. A que ponto da tua vida chegaste? - perguntou.
- Nem eu entendo muito bem. Acho que não me desagradava voltar a viver em casa - sussurrou.
- Ah, não! O meu quarto é só meu e não tenciono dividi-lo contigo - disse Pucci, alarmado. Mas logo a seguir perguntou:
- Tens problemas com o teu namorado?
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- Discutimos muitas vezes, desde há algum tempo, e não é por culpa dele. O facto é que ele gostava que eu fosse diferente daquilo que sou.
- Porquê? Como é que tu és?
- Sou um Corti, como a mãe está sempre a dizer, e gosto de chamar as coisas pelos nomes. Mas acabo por estar sempre no meio de gente que insinua, pisca o olho, representa.
Gosto muito do Filippo, mas não fomos feitos para viver juntos. A princípio deixei-me ofuscar pelo luxo, pelas boas maneiras, por aquele mundo. Depois comecei a
tirar as medidas a toda aquela gente.
- Pois, é a tua especialidade. Desde pequenino que andavas pela casa fora com a fita métrica ao pescoço - brincou Pucci.
- E percebi que vou ter de recuar. Tenho vinte e dois anos. Se não corrijo agora a minha rota, quando é que a vou poder corrigir? - perguntou ao irmão.
- Estás mesmo à espera de uma resposta? Pois eu sinto ar de borrasca, e não só no sentido metafórico. Olha para aquelas nuvens enormes lá ao fundo. vou tomar um
banho, antes que venha o temporal - anunciou Pucci, e começou a correr sobre a areia escaldante, ziguezagueando por entre bandos de crianças, mães e avós que se
amontoavam em cima das toalhas. Giuseppe seguiu-o e os dois irmãos nadaram lado a lado, com braçadas enérgicas, dirigindo-se ao largo, onde a água era límpida.
Quando regressaram, a praia estava vazia, os banheiros acabavam de fechar os guarda-sóis e no céu disparavam os relâmpagos de um forte temporal de Verão. Cobriram-se
com as toalhas e sentaram-se debaixo do coberto do bar.
- Lembras-te dos nossos verões nesta praia? - perguntou Giuseppe.
- Lá diante, do outro lado daquela rede - disse Pucci, que estava a pensar na mesma coisa, enquanto observava a zona reservada à colónia de férias.
- Tinha morrido de dor sem ti - disse Giuseppe. - Mas por que é que nos mandavam para a colónia?
- Por sadismo. A Liliana e a Rosellina nunca tiveram de aguentar aquele calvário - comentou Giuseppe.
- Mas aprendemos a gostar muito um do outro e a perceber como a família é importante.
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- Lembras-te daquela menina de tranças loiras que nos dava rebuçados? - perguntou Giuseppe.
- Chamava-se Sabrina. Estava apaixonada por ti - disse Pucci.
- A mim dava rebuçados de limão e a ti de framboesa, porque sabia que não gostavas de limão. Nem eu gostava. Mas gostava dela.
- Quando a mãe e o pai nos vinham buscar à piazza Castello, à paragem das camionetas, eu odiava-os - disse Giuseppe.
- Também eu.
- Mas ficávamos felizes por regressar finalmente a casa. Lembras-te quando a Liliana dizia: "Cá estão eles, os meninos, todos bronzeados!"? Dava-me vontade de a
esgadanhar.
- Foram anos fantásticos, vistos com os olhos de hoje.
Os dois meninos solitários e melancólicos que tinham vestido as fardas tristes da colónia de férias eram agora homens lindíssimos e havia muitas raparigas, na praia
e na pensão onde estavam hospedados, que lhes lançavam olhares meigos.
A Giuseppe não interessavam e Pucci fingia ignorá-las porque gostava de Ariella, uma rapariga de Forli, com dezoito anos, que ali estava de férias com a mãe.
O temporal afastou-se. No azul-claro do céu apareceu um arco-íris fantástico e os dois irmãos regressaram à pensão.
Os hóspedes já estavam à mesa e a dona censurou-os pelo atraso. Serviu um risotto de amêijoas e comentou: - Isto aqui não é a companhia dos telefones e eu não posso
passar a manhã inteira a atender toda a gente que os procura.
Assim ficaram a saber que a mãe, Liliana, Rosellina e o "signor Filippo do costume" os tinham procurado.
- O signor Filippo ligou três vezes. Os outros disseram que não era nada de urgente - esclareceu a mulher, enquanto se afastava para servir os restantes clientes
e ralhava com o filho por ser demasiado lento, com a filha por ter partido um copo e com o marido porque, da cozinha, não se decidia a passar o segundo prato.
- Isto não me agrada nada - disse Giuseppe baixinho.
- Mas olha que está muito bom! - rebateu Pucci.
- Não estou a falar do risotto, mas do Filippo. Passa a vida a telefonar e isso aborrece-me - afirmou, e prosseguiu: - E o que quererão as nossas mulheres?
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- Devem querer dizer-nos que a Rosellina está por aí a chegar e que o Filippo também anda atrás delas. Não ligues.
Pucci estava completamente concentrado em Ariella e quando os olhares dos dois se cruzavam sorria-lhe timidamente.
- Às tantas, esta noite ainda a convido para dançar - confiou a Giuseppe.
- Eu é que faço o convite, porque tenho uns modos mais convincentes - respondeu o irmão.
Ao fim do jantar, os clientes da pensão passaram para o jardim e sentaram-se por baixo do toldo, onde tomaram o café por entre um emaranhado de conversas e gritos
das crianças que corriam umas atrás das outras à volta das mesas.
Giuseppe aproximou-se da mesa onde estavam sentadas Ariella e a mãe.
- Hoje à noite, no Dancing Florida, há um baile. Eu e o meu irmão gostaríamos de acompanhar as senhoras, se quiserem ter a gentileza de aceitar o nosso convite -
disse.
Ariella corou, enquanto a mãe, uma robusta doméstica de ar sincero, respondeu: - Isso é mesmo boa ideia. Obrigada, signor Giuseppe. A minha filha e eu aceitamos
de boa vontade.
Logo a seguir Giuseppe sossegou o irmão: - Da mãe, trato eu.
Nessa noite, no Dancing Florida, enquanto Pucci demonstrava toda a sua habilidade de bailarino numa valsa, segurando nos braços aquela deliciosa Ariella, Giuseppe
rodopiava com a mãe, que elogiou, comparando-a a uma libélula.
Foi então que, na beira da pista, surgiram Rosellina e o arquitecto Filippo Fioretti.
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Liliana teve uma semana de férias em meados de Agosto e aproveitou aqueles poucos dias para descansar. De manhã acordava tarde e depois saía para passear pelas ruas
e praças do centro, inundadas de sol e semidesertas.
Milão, sem os milaneses, era uma cidade muito bonita.
Quando encontrava um café aberto, fazia uma pausa para tomar um cappuccino e um brioche. Os empregados eram simpáticos com os raros clientes e Liliana apreciava
a qualidade do serviço, o primeiro cigarro do dia e a leitura do jornal, que comprava pelo caminho.
Naquela manhã, quando regressou a casa, a mãe estava a falar ao telefone com o marido.
- Deixa-me falar com ele - disse-lhe. Assim que ouviu a voz do pai, perguntou-lhe: - Em que ponto estás do teu percurso?
- Cheguei a Cortina d'Ampezzo - respondeu Renato. - Esta noite vou dormir num refúgio da montanha.
Renato Corti passava sempre uma parte das férias sozinho, a andar de bicicleta nas montanhas. Era um afastamento regenerador em relação aos problemas do trabalho
e da família e ninguém, nem sequer Ernestina, alguma vez o contestara. Alguns dias antes da Partida começava a preparar a mochila, onde levava tudo aquilo de que
podia precisar para sobreviver.
Ao longo dos anos tinha definido diferentes itinerários, com Paragens para a noite em pequenas pensões.
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Pedalava durante todo o dia e parava nas povoações apenas para mandar postais e ligar para casa. À noite tomava apontamentos num caderninho, normalmente reflexões
sobre o mundo que tinha deixado atrás de si. O último pensamento, antes de adormecer era para Ernestina e para os filhos. Esperava que algum deles, um dia, entendesse
que o único remédio para retemperar o espírito era pedalar no silêncio dos bosques.
Disse à filha: - Só queria que visses o espectáculo destas montanhas. É indescritível!
Depois de ter falado com o pai, Liliana foi para a sala, estendeu-se no sofá rococó e mergulhou na leitura de Fratelli d'Italia, de Alberto Arbasino.
Não tinha passado meia hora quando a mãe assomou à porta da sala.
- Um café? - perguntou-lhe. Liliana sorriu, fechou o livro e sentou-se.
- Vá, entra. Pareces uma alma penada - disse.
- Está a tornar-se um privilégio conseguir trocar meia dúzia de palavras contigo - lamentou-se Ernestina, enquanto pousava em cima da mesa o tabuleiro com as chávenas.
- Nestes dias sinto saudades dos tempos em que morávamos no corso Lodi. Havia sempre alguém com quem conversar. Aqui dou por mim a falar com as paredes. Já sabes
que, se não falo, rebento.
- Não, tu rebentas se não perguntas - corrigiu Liliana, enquanto mexia o açúcar no café. - Queres sempre saber da vida dos outros.
- Não é verdade. Só me interessa a dos meus filhos. Mas és tu quem me aflige mais. Sempre tão misteriosa! A Rosellina, apesar de só dizer disparates, fala até não
poder mais. O Pucci foi sempre um livro aberto. O Giuseppe não tem segredos, nem sequer quando está calado. Tu és um mistério. Não te pareces nem comigo nem com
o teu pai. Não sei a quem foste buscar esse temperamento tão estranho - lamentou-se.
- Então, mãe, diz-me o que queres saber e eu respondo-te - propôs.
- Por que estás tu aqui comigo, sozinha, em pleno Agosto, em vez de estares com o teu namorado velho?
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- Porque ele está para fora com os amigos e a ex-companheira. Podia ter-lhe dito que isso não me agradava e ele não o tinha feito. Mas não é assim. Ele devia-lhe
estes dias de férias, depois de ter destroçado a vida daquela pobre mulher - explicou Liliana.
- Oh, meu Deus do céu! Esta agora... mas a que mundo é que eu viria parar? Mas que cabeça têm os jovens? Tu... tu fazes projectos para o futuro com um homem que
vai de férias com a ex-namorada? - disse Ernestina, escandalizada.
- Ora aí está o resultado de ter falado contigo. Assim não te admires se normalmente estou calada, porque afinal tu não percebes nada - respondeu Liliana.
Sandro Brioschi tinha dito a Liliana: - Espero sinceramente que a Denise encontre um homem com quem possa viver. Mas entretanto ela tinha planeado as férias comigo
e com os amigos. O que achas de eu lhe propor que vá sozinha? Eu ficava em Milão, contigo.
- Agradeço-te muito, mas não gostaria que renunciasses às tuas férias - respondeu Liliana. - Não tenho ciúmes da tua ex-namorada - acrescentou, mentindo.
- Eu não percebo nada, mas tu estás com uma cara que não me agrada - voltou Ernestina à carga, enquanto saía da sala e batia a porta.
Liliana bufou, resignada. Mais uma vez a mãe tinha razão: ela sofria de ciúmes e esperava com impaciência que Sandro regressasse.
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Os dois irmãos Corti esperavam Rosellina em Cesenatico para o concurso de dança. Não sabiam que ela ia chegar na véspera do dia estabelecido e na companhia do arquitecto
Filippo Fioretti. Giuseppe encontrou-os à sua frente no momento em que acompanhava à mesa a mãe de Ariella e olhou para eles como se tivesse visto dois fantasmas.
Pucci interveio para salvar toda a gente do embaraço, apresentando a irmã mais nova e atribuindo a Filippo o papel de professor de dança.
- Mas se eu nem distingo uma polca de uma mazurca - protestou Filippo em voz baixa.
- Agora vais distinguir - sibilou Giuseppe, com um olhar duro. - E como castigo vais fazer a corte à mãe da Ariella.
- Tudo bem, até porque as mulheres maduras são a minha especialidade. Quanto ao resto, precisava de estar contigo, porque estava a ficar maluco sem ti - sussurrou-lhe
o companheiro. Aos poucos, quando regressaram à pensão, acabou por surgir a explicação toda. Filippo confessou que tinha atormentado Liliana com telefonemas constantes
e que, quando soube que Rosellina ia ter com os irmãos a Cesenatico, partira imediatamente de Monte Cario. Foi a Milão buscar a rapariga, meteu-a no seu carro desportivo
e avançaram para a Romagna.
- Tenho um quarto com duas camas no Hotel Maré e Pineta - anunciou Filippo.
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Era meia-noite e os três irmãos Corti, com Filippo, passeavam no Porto Canale.
- Eu vim de férias com o meu irmão e estou muito bem na minha pensão - declarou Giuseppe.
- Não posso ir eu dormir ao Maré e Pineta? É um sítio fantástico! Há empregados de casaco e gravata, tapetes persas nas salas e gente muito chique. Por favor, Giuseppe,
deixa-me ir com o Filippo - suplicou Rosellina. Depois voltou-se para o outro irmão: - Pucci, diz-lhe tu também que eu preciso mesmo de ficar num bom hotel.
Pucci estava a pensar em Ariella e não respondeu.
- O Filippo não te quer lá, nem eu quero que tu vás dormir com o Filippo - rematou Giuseppe.
- Mas nós não fazemos sexo! - garantiu.
- Rosellina, já chega - respondeu Filippo irritado, até porque só suportava aquela rapariga demasiado extrovertida por amor a Giuseppe.
- Não levantes a voz com a minha irmã - interveio Giuseppe.
- Desculpa, Rosellina, mas tu fazes perder a paciência a um santo - defendeu-se Filippo.
Ela sorriu, satisfeita.
- Eu sei, a minha especialidade é fazer perder as estribeiras a toda a gente. Por isso agora deixo-vos sozinhos, mas fiquem a saber que estão a ser muito maus comigo,
porque aquele hotel lindíssimo é a minha aspiração máxima - disse, afastando-se com Pucci.
Assim que ficou sozinha com o irmão, começou a meter-se com ele também. - Estás completamente apanhado pela Ariella. Por acaso ela até é gira. Mas eu tenho um bocadinho
de ciúmes. Só um bocadinho - confessou, enquanto regressavam à pensão, de braço dado. E pediu-lhe: - Conta-me tudo.
- Olha, acabou o liceu este ano e passou com umas notas fantásticas. Tem uma irmã casada que vive em Bolonha. A Ariella vai viver para casa dela, no Outono, porque
se inscreveu na Faculdade de Letras. De Milão a Bolonha são só duas horas de comboio. Posso lá ir aos fins-de-semana - explicou Pucci.
Mais tarde, Rosellina encontrou no átrio a dona da pensão, estafada com mais um dia de trabalho. A mulher ouviu, divertida, a tagarelice daquela rapariga de Milão
que andava a tirar um curso
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para ser professora primária, sonhava tornar-se uma estrela de espectáculo e ia participar, no dia seguinte, num concurso de dança no Dancing Florida.
Rosellina soube desviar a conversa quando a mulher quis fazer perguntas sobre aquele homem tão bonito, de ar aristocrático, que tinha chegado com ela de Milão.
- É o meu professor de dança - rematou, confirmando a versão de Pucci.
Na noite seguinte, na pista do dancing, perante um júri de especialistas munidos de tabuletas para indicar os pontos atribuídos aos participantes, apagaram-se as
luzes, a orquestra tocou os primeiros acordes de uma valsa vienense, fez-se silêncio entre os espectadores e um projector iluminou o centro da pista onde Rosellina
e Pucci estavam muito direitos, um em frente ao outro, de braços dados, preparados para executar os primeiros passos de dança.
Pucci vestia uma camisa branca com colarinho à russa e calças negras que faziam realçar a cintura estreita e a musculatura perfeita das pernas.
Da plateia, Ariella olhou para ele e disse à mãe: - Que bonito que ele é!
- Não parece nada um guarda-livros - comentou a mãe que, para a filha, preferiria um jovem licenciado.
Rosellina vestia o fato de organza branca, enriquecido no peito com arabescos de lantejoulas prateadas, que Giuseppe tinha desenhado para ela. O cabelo, apanhado
na nuca, deixava a descoberto um rosto de porcelana, de linhas delicadas.
Entre os espectadores, até os menos entendidos se aperceberam da classe e da elegância dos dois jovens, e nasceu espontaneamente um longo aplauso quando deram os
primeiros passos.
Rodopiavam com segurança pela pista, enquanto o público continuava extasiado, conquistado pela qualidade dos dançarinos. À valsa seguiu-se um boogie-woogie. Foi
então um jogo rítmico de pernas saltitantes e de passagens quase acrobáticas que revelou a habilidade dos dois jovens. O público não parava de aplaudir, ao mesmo
tempo que os juízes se abandonavam a um claro consenso, muito sorridentes. Depois foi a vez do tango argentino e finalmente um fox-trot enérgico. E aconteceu o imprevisto:
Rosellina errou
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um passo, perdeu o equilíbrio e caiu. No meio do público ergueu-se um coro de desapontamento. Pucci sussurrou à irmã, enquanto a ajudava a levantar-se: - Coragem,
não é o fim do mundo.
Rosellina foi sacudida por um soluço e abandonou a pista, lavada em lágrimas. No entanto, enquanto atravessava o estrado nasceu um espontâneo aplauso de encorajamento.
Pucci seguiu a irmã até ao balneário para tentar animá-la.
Os espectadores continuaram a bater palmas para chamar o par novamente à pista, enquanto um elemento da organização foi ao encontro dos irmãos Corti.
- Querem-vos lá outra vez. O júri penalizou-vos, mas o público reclama-vos - anunciou. E acrescentou: - Chegou também uma jornalista do Carlino. Despachem-se a regressar
à sala.
- Uma jornalista! - Para Rosellina era uma palavra mágica. Limpou as lágrimas, abriu os lábios num sorriso e, pelo braço do irmão, regressou à pista com um passo
leve. Curvaram-se os dois perante o público, que gritava: - Bravo! Bravo! Bis!
- Onde é que está a imprensa? - perguntou num sussurro a Pucci.
- Não te excites. É só a crónica local - avisou o irmão, que nunca perdia o contacto com a realidade.
O presidente do júri anunciou ao microfone: - Extra concurso, para nossa satisfação, e também para acabar com esta algazarra, pedimos aos irmãos Corti que repitam
a última prova: o fox-trot.
Desta vez correu tudo na perfeição e demorou algum tempo até que os espectadores se resignassem a deixá-los ir embora.
Enquanto despiam os fatos de dança, o mesmo elemento da organização chegou perto deles e sussurrou: - Está ali um sujeito que diz que é coreógrafo, quer falar convosco.
- Quem é? Como se chama?
- Já não me lembro. Mas está ali fora à vossa espera.
Era Max Garcia, o coreógrafo que realizava os espectáculos de variedades para os programas da RAI.
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Sandro regressou de férias mais cedo. Liliana encontrou-o um fim de tarde, ao sair do portão da Collevolta. Estava bronzeado e achou-o fascinante. Ela tinha trabalhado
durante doze horas consecutivas, sem ter sequer parado para almoçar. Estava exausta. Tinha o cabelo despenteado, a saia de linho azul-escura, apertada na cinta por
uma faixa de tecido verde, estava completamente amarrotada e a blusa de piqué branco também não estava em muito bom estado. Sentia-se desfeita.
- Há quanto tempo estás à minha espera? - perguntou-lhe, como se tivessem acabado de se separar. Eram nove horas da noite.
- Há um bocado - respondeu ele, olhando-a com ternura. Era o dia 20 de Agosto, a noite caía sobre a cidade e o calor persistia.
Ela tinha nos braços uma pilha de folhas que ia ler em casa, como sempre.
- Estás em grande forma - disse a Sandro, e sorriu-lhe.
- Esperava uma recepção mais calorosa, mas está bem assim - disse ele, enquanto lhe abria a porta do Alfa para ela entrar. Depois sentou-se ao volante, virou-se
para ela e afagou-lhe o rosto.
- Tive saudades tuas - disse Sandro. Liliana refugiou-se no seu peito.
- Bem-vindo - sussurrou.
Sandro abraçou-a com força.
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- És tão frágil, assim, nos meus braços. Pensei em ti a toda a hora, escrevi-te uma carta todos os dias.
- Não recebi nenhuma - protestou Liliana.
- Estão ali, no porta-luvas. Abre-o - disse Sandro, com um sorriso.
Eleuteri, o director, saiu do edifício da Collevolta e, enquanto se dirigia ao automóvel azul que o esperava, viu Liliana com um senhor de ar distinto, dentro de
um belo carro. Desejou com todas as forças que a sua preciosa colaboradora não se casasse nem decidisse ter um filho.
Liliana abriu o porta-luvas. Encontrou um montinho de cartas atadas com uma fita azul e um estojo de pele cor de marfim.
- As cartas podes lê-las depois, quando estiveres sozinha. Mas esta caixinha, gostava que a abrisses já. Contém uma coisa que eu comprei em Paris, para ti - anunciou
Sandro. Era um anel de platina com uma grande safira no centro e dois brilhantes dos lados.
Liliana observou aquela jóia maravilhosa, incapaz de reagir à surpresa. Leu o nome do joalheiro gravado na seda, no interior da caixa: uma marca de prestígio, conhecida
em todo o mundo.
- Deves ter gasto uma fortuna e eu não mereço - balbuciou Liliana, sem despregar os olhos da jóia.
- Estás enganada, vales muito mais - disse Sandro ternamente, ao mesmo tempo que lhe enfiava o anel no anelar da mão esquerda. Um raio de luz fez cintilar as pedras
preciosas.
- Fazes-me sentir a princesa de uma fábula - sussurrou Liliana. Depois disse: - Vamos embora. Não quero que alguém da empresa, ao sair, nos veja aqui.
Sandro ligou o carro e afastaram-se.
Instalaram-se na mesa do costume, no restaurante sobre a Darsena.
- Qual é a tua ideia, em relação a nós os dois? - perguntou Liliana, enquanto o empregado servia uma salada de lagostins de rio, aromatizada com pequenas folhas
de erva cidreira.
- O casamento, se não te parecer uma proposta demasiado ousada - respondeu o homem.
Liliana ficou com o garfo no ar e, finalmente, formulou a fastidiosa pergunta que a perturbava há muitos dias.
- Como é que está a Denise?
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- As coisas com ela correram melhor do que eu pensei. - E contou-lhe que, depois de ter saído de Milão, com os dois casais amigos do costume, a pequena caravana
de três carros chegara a Gaggiolo, onde Denise estava à espera deles. Almoçaram na casa do lago e depois partiram. Denise estava muito silenciosa e, por mais do
que uma vez, sussurrou: - Não me parece correcto fazermos esta viagem juntos.
Sandro e os amigos não tinham querido que ela ficasse sozinha, e aquela delicadeza deixava-a pouco à vontade. Pararam em Lyon para passar a noite e Sandro marcou
para os dois uma pequena suíte num hotel antigo avec beaucoup de tradition. Ela dormiu no quarto, ele na sala.
No dia seguinte, depois de passarem por Paris, enquanto percorriam o vale do Orne, Denise tomou a sua decisão: - Leva-me outra vez a Paris, por favor.
Ele levou-a até ao aeroporto de Orly, onde ela apanhou um avião para Barcelona. - Tenho uns colegas de trabalho a quem telefonei. Estão à minha espera. vou passar
as férias com eles, na Costa Brava - disse-lhe, para o deixar sossegado.
De regresso a Paris, Sandro comprou o anel para Liliana e foi ter com os amigos que o esperavam em Bayeux. Andaram a visitar antigas igrejas e castelos, ruínas romanas
e bosques.
- Mas o que é que tu estás aqui a fazer? Vai ter com a Liliana
- insistiram os amigos, uns dias depois.
Naquele momento Liliana pousou em cima da mesa o montinho de cartas que Sandro lhe tinha escrito.
- vou lê-las esta noite - anunciou.
- Tentei contar-te como sou e o que sinto por ti. Não te vais arrepender de me teres ao teu lado - disse ele.
- Eu não vou ser uma companheira fácil. Tu sabes disso, não sabes?
- Estou pronto para tudo - respondeu em tom de brincadeira, enquanto lhe afagava a mão.
Liliana admirou à luz da vela, pousada na mesa, o brilho suave das pedras que tinha no dedo. Depois, de repente, começou a rir.
A Sandro, que olhava para ela espantado, explicou: - Estava a pensar na minha irmã mais nova, quando vir este anel, e nas coisas
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que vai andar por aí a dizer. É bem capaz de contar que pertenceu à Callas, ou à princesa Soraya. Tem uma imaginação incontrolável!
Naquela noite, à porta de casa, retribuiu o beijo de Sandro com um calor especial. Liliana tinha a certeza de que ele seria o companheiro certo para a sua vida.
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Era o primeiro domingo de Setembro e ia uma grande agitação na casa dos Corti.
Depois de um longo e aceso conselho de família, Ernestina acabou por aceitar convidar o Dr. Sandro Brioschi e Ariella Spada para almoçar. Estaria também presente
o arquitecto Filippo Fioretti. Para esclarecer tudo com toda a gente - decidiu. O marido, como sempre, não colocou qualquer objecção.
Ernestina começou a andar à volta do fogão logo na véspera, ignorando a sugestão do marido, que lhe dizia: - Ernestina, minha querida, somos onze. Por que razão
queres tu aguentar esse trabalho todo? Mandamos vir o almoço de um bom restaurante, que assim jogamos pelo seguro. Vai custar mais um bocado, mas também se trata
de uma ocasião especial.
- Só se eu fosse maluca! Não vou dar dinheiro a ganhar a nenhum taberneiro ganancioso. E vai ser uma refeição tradicional, como eu gosto - declarou.
- Porquê onze? Somos só nove - observou Rosellina.
- Também vem o Fermo com a mulher. Não se devem esquecer os amigos mais chegados em ocasiões tão importantes - anunciou o pai. Fermo, o enfermeiro do corso Lodi,
tinha finalmente voltado a casar. - E, depois do almoço, como era costume antigamente, vamos ter música - acrescentou.
O menu previa uma entrada de carnes frias com pickles, um
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risotto com ossobuco, uma salada "só para lavar a boca" e uma Zuppa inglese feita com pão doce mergulhado em licor.
As mulheres da casa tinham lavado e passado as cortinas, limpo os espelhos e batido os tapetes. Liliana pôs a brilhar o grande lustre de vidro, herdado de Miss Angelina,
e preparou na sala de estar o carrinho com as chávenas do café e a chocolateira de prata. Queria renovar a tradição das senhoras Pergolesi, que assinalavam um dia
de festa com uma boa chávena de chocolate.
- Não é justo que toda a gente tenha namorado menos eu - lamentou-se Rosellina, enquanto ajudava a irmã a dobrar os guardanapos de linho de Flandres.
- És muito nova. Eu na tua idade só pensava em estudar - observou Liliana.
- Tu és tu e eu sou eu. Preciso de vida, de ar, de liberdade, e a mãe sufoca-me. Eu já não a aguento. O grande Max Garcia convidou-me para ir a Roma fazer um pequeno
ensaio e ela por pouco não me deu uma estalada. "Tens de pensar em tirar o curso de professora" - disse, imitando Ernestina. - É a única coisa que ela sabe dizer.
O pai, para viver sossegado, finge que não ouve. Eu nunca vou fazer uso de um diploma de professora primária. Estou a perder o meu tempo, enquanto que as luzes do
espectáculo me esperam. Liliana, por favor, vê se consegues falar com a mãe - suplicou.
- Nem penses. Tu não conheces o mundo do espectáculo. É muito perigoso para uma rapariga tão inconsciente como tu.
- Mas o que é que tu sabes disso? Passas a vida entre a casa e o escritório! Já te apercebeste de que eu ainda sou virgem? Todas as minhas amigas deram já o grande
salto. Eu não, porque de cada vez que estou quase a ceder vejo a cara da nossa mãe e fujo. Achas isto normal? Estamos em 1963, o Yuri Gagarin e o Alan Shepard viajaram
no espaço, daqui a pouco os homens aterram na Lua e eu sou obrigada a viver como uma castelã da Idade Média. O Pucci não tem tempo para dançar comigo porque todos
os sábados vai para Bolonha ter com a namorada e eu nunca vou ser uma estrela por vossa culpa.
- Hoje é suposto ser um dia um bocadinho especial, provavelmente alegre. Não estragues tudo, por favor - disse Liliana.
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E acrescentou: - Puseste mal as facas, a lâmina é virada para o prato, não para fora.
- Oh, desculpa lá a minha ignorância. Agora que trazes no dedo um anel que vale uns milhões não te podes descuidar com a etiqueta - troçou Rosellina.
Liliana sorriu. A irmã tinha conseguido distraí-la das suas preocupações relativamente àquela reunião de família. Com efeito, receava que Sandro não agradasse a
Ernestina, que Filippo censurasse a Giuseppe o seu afastamento, uma vez que tinha voltado a viver em casa, que Ariella se escandalizasse com a homossexualidade de
Giuseppe e que Rosellina se gabasse mais do que devia.
No entanto, tudo correu o melhor possível. O almoço preparado por Ernestina estava óptimo. Sandro simpatizou imediatamente com Renato e com Fermo. Ariella deixou-se
capturar pelo fascínio de Filippo e Ernestina conseguiu, com algumas olhadelas furtivas, manter a língua de Rosellina sob rédea curta.
Naquela noite, enquanto arrumavam a casa, Ernestina disse à filha: - Este Dr. Brioschi parece mesmo boa pessoa. Despacha-te a casar com ele, porque já está na altura
de construíres uma família. Não te esqueças de que as faíscas duram pouco. O que conta é a cooperação entre um homem e uma mulher. Ele parece ser a pessoa certa
para uma rapariga como tu, que decidiu fazer carreira.
Liliana não fez comentários.
Na segunda-feira, quando chegou ao escritório, encontrou uma mensagem da signorina Dotti: "O Sr. Director está à sua espera às dez horas para uma comunicação pessoal."
Oh, meu Deus, o que quererá ele, pensou, preocupada. Mentalmente, passou em revista os processos em curso e ficou tranquila: tinha cumprido o seu dever até ao fim.
O Dr. Eleuteri veio ao encontro dela com um sorriso radiante.
- Fique à vontade, doutora - disse, convidando-a a instalar-se no sofá. Depois dirigiu-se à secretária. - Por favor, traga-nos um café.
- A seguir sentou-se em frente a ela, ofereceu-lhe um cigarro e continuou: - Há uma série de coisas sobre as quais temos de falar. Vamos fazê-lo sozinhos, depois
do café. Trata-se de informações muito reservadas, pelo menos para já, mas quero que tome conhecimento delas.
Entretanto observava-a como se a visse pela primeira vez.
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- É muito jovem, doutora. Demasiado jovem para aquilo que a presidência tem em mente. E, no entanto, assim que entrou na Collevolta rapidamente deu provas de grande
profissionalismo. Isso, como é evidente, fez subir a sua cotação. Tem consciência disso, não tem?
A signorina Dotti bateu à porta e entrou com o tabuleiro do café, que pousou em cima da mesa à frente do sofá.
- Bem. Muito bem - disse o director, enquanto mandava embora a secretária com um gesto de cabeça. - Açúcar? - perguntou a Liliana.
- Se me permite, ponho eu - propôs, pegando no açucareiro.
- Para mim não, doutora. Sabe, os meus triglicerídios... depois quem é que atura a minha mulher? Sempre que faço análises e não estão normais, olha para mim de lado,
como se a culpa fosse minha - explicou, enquanto tirava do bolso do casaco uma pequena embalagem de sacarina.
Saborearam o café num silêncio religioso, enquanto Liliana perguntava a si mesma que direcção iria tomar aquela conversa.
- Muito bem, muito bem - repetiu o director, pousando a chávena. - Vamos ao nosso assunto, então - começou. E acrescentou: - A Collevolta está em vias de se fundir
com a Zenit e, já está decidido, vai passar do sector privado para o público. Vai haver uma remodelação dos vários departamentos e esperam-nos meses de grande trabalho.
A notícia andava a ser murmurada havia já algum tempo e Liliana estava ao corrente desse facto desde que fora admitida na empresa. Por isso não lhe pareceu que fosse
uma comunicação assim tão reservada.
- Agora os colaboradores mais eficientes vão ter a possibilidade de melhorar a sua posição. A doutora vai ser promovida. Nunca tinha acontecido até aqui que um recém-licenciado
admitido há poucos meses subisse de categoria tão rapidamente. Desde que aceite, que não tenha outros objectivos - disse o homem.
Liliana olhou para ele, perplexa, porque não compreendia o ar hesitante do director, que prosseguiu: - Por exemplo, se estivesse a pensar em casamento, em ter filhos,
como é normalmente aspiração das jovens... Porque, está a ver, doutora, as mulheres lamentam-se
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de que não conseguem fazer carreira, mas quando há uma família para orientar... Compreende, não é verdade?
- Perfeitamente - respondeu. E perguntou: - O senhor tem filhos?
- Dois. E são fantásticos - afirmou, com ar de pai feliz.
- Isso nunca o impediu de se ocupar do seu trabalho - comentou.
- Eu estava a falar do papel da mulher. É ela quem trata da família, enquanto o homem, que não é sobrecarregado com esse peso, pode fazer carreira.
- Eu acredito que há homens capazes de colaborar com a mulher, talvez assumindo algumas incumbências tradicionalmente femininas - rebateu Liliana.
Eleuteri acendeu um cigarro sem lhe oferecer nenhum e baixou os olhos como um menino ofendido. Por fim, perguntou: - Aquilo que eu queria saber é se tenciona casar-se.
- Acho que sim - respondeu.
- E também deve querer ter filhos, suponho - acrescentou ele.
- Não suponha nada, doutor. Enquanto eu desempenhar correctamente as minhas funções, ninguém está autorizado a fazer suposições sobre a minha vida particular - disse
Liliana, suavemente. Levantou-se e acrescentou: - Muito obrigada pelo café e pela promoção. - Depois dirigiu-lhe um sorriso irresistível.
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Liliana fechou a porta atrás de si. Eleuteri ficou só e começou a esfregar as mãos, sussurrando: - Muito bem, muito bem. Naquele momento apercebeu-se de que tinha
sido posto de joelhos por uma rapariguinha com todo o ar de não temer nem o diabo e, nesse instante, bufou: - Mal, muito mal! - O presidente tinha-lhe dito, havia
já algum tempo, para a promover. Ele, naquele momento, tê-la-ia despedido. Mas era também um funcionário inteligente e, apesar das suas indecisões, sabia avaliar
as capacidades dos colaboradores.
Liliana era muito competente. Eleuteri encaixou o golpe e convenceu-se de que nada nem ninguém, nem sequer uma família, conseguiria desviar a Dra. Corti do seu trabalho.
Ela, entretanto, dirigiu-se ao seu gabinete com um passo marcado. Estava furibunda. Detestava o machismo dominante que relegava a mulher para o papel de humilde
criada do homem.
- Bom-dia, advogada - cumprimentou Bonfanti. O chefe da comissão interna estava outra vez sentado no gabinete dela, com o eterno cigarro na boca.
Liliana sentou-se no seu lugar e deu um suspiro de resignação. Chamo-me Corti e sou apenas estagiária - precisou Liliana. Vai ter de se conformar. Aqui dentro toda
a gente tem uma cunha - disse ele. E perguntou-lhe: - É bom, o café da direcção? As notícias corriam a uma velocidade surpreendente.
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- É assim tão difícil meterem-se nos vossos assuntos! - perguntou, irritada.
- Eu diria que é impossível, a partir do momento em que os nossos assuntos estão estreitamente ligados aos vossos - afirmou ele, e apagou o cigarro no cinzeiro de
louça que Liliana tinha em cima da secretária.
- O que é que se diz desta fusão com a Zenit? - perguntou ela.
- Que o sector público vai ser melhor do que o privado - respondeu ele, encolhendo os ombros.
- E você, o que pensa? - indagou, cautelosamente.
- Que os não alinhados, ou seja, aqueles que não agradam aos chefes, tanto ao nível da mão-de-obra como ao nível dos colarinhos brancos, vão ser ceifados. Não concorda
comigo?
- Está a ensinar o padre-nosso ao vigário - sussurrou Liliana.
- Para além do mais, penso que os operários, especialmente os de turno, vão semear a discórdia se não tentarmos obter um contrato melhor e salvar o maior número
possível de cabeças.
- Por que é que me está a contar isso tudo?
- Há muitos porquês. Porque neste gabinete você é um talento desperdiçado. Gostava de a ter como antagonista nas negociações sindicais. Mas tudo isto é apenas um
desejo, portanto a resposta certa é que simpatizo consigo.
- Eu também gosto de si. Mas não se esqueça de que apenas estou ligada à segurança.
- Então vamos meter a viola no saco e diga-me lá se aceitou.
- O quê?
- A promoção, com tudo aquilo que se segue: gabinete maior" plantas ornamentais, salário dobrado, etc.
Liliana sorriu.
- Mais ou menos - disse.
- O Eleuteri sabe o que faz. Agarre a promoção, aponte para cima, advogada. Nós merecemos interlocutores fiáveis. - Apertou-lhe a mão e foi-se embora.
Liliana ficou a olhar para a parede em frente à secretária, perguntando a si própria por que razão Bonfanti procurava manter um contacto com ela, que estava por
fora de qualquer estratégia da empresa.
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Como sempre, foi Renato quem a esclareceu, à noite, quando regressou a casa.
- O Bonfanti é um político de raça - disse-lhe. - Vai ter contigo, como vai ter com outros, no cheiro da promoção. Prepara o terreno tendo em vista futuros acertos.
Como ele mesmo te disse, precisa de interlocutores de confiança.
- Em breve haverá reviravoltas na empresa e eu não quero entrar nelas. Enquanto continuar invisível, não arrisco nada. Quero ficar longe das facadas que vão andar
pelo ar no momento da fusão - afirmou Liliana.
- Sabes qual devia ser a tua estratégia? O casamento. Eu gosto do Sandro. Sabias?
Ela anuiu e disse: - Quero casar com ele desde que o conheci, mas não tenho pressa.
Tinha começado havia já algum tempo um vaivém, entre Roma e Milão, de directores e especialistas de contabilidade, porque a Zenit queria verificar a situação da
Collevolta antes da fusão, no respeito por um antigo princípio segundo o qual confiar é bom, mas não confiar é melhor.
No dia a seguir ao encontro com Eleuteri, Liliana foi convocada pelo Dr. Conforti, o director de pessoal.
- Temos de formalizar a sua promoção - disse-lhe.
Conforti não estava só. Estava também o engenheiro Passeri.
- E depois? - perguntou ela, olhando para os dois homens com suspeição e com a garra dos seus melhores momentos. Tinha a impressão de que acabavam de escavar um
buraco para a fazer cair numa armadilha.
- Tem de ir a Roma imediatamente. Eles querem observar melhor o nosso departamento de segurança e acham que mantivemos escondidas algumas estruturas caducas - explicou
Passeri, com uma voz persuasiva.
- Porquê logo eu? Fui a última a chegar - protestou.
- Porque tem graduação para isso dentro da empresa e estará à altura dos seus interlocutores - disse o chefe, enquanto lhe metia na mão dois maços de documentos.
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A secretária entregou-lhe os bilhetes de comboio, a reserva do hotel e um fundo de maneio para a viagem, enquanto lhe sussurrava: - Sabe, doutora, nunca tinha acontecido
antes que uma mulher fosse encarregada de uma tarefa tão delicada.
- Está enganada - corrigiu Liliana. - É a nós, mulheres, que tocam sempre as tarefas mais ingratas. Promoveram-me à pressa para me passarem a batata quente.
Chegou a Roma naquela mesma tarde, no Settehello, o comboio mais rápido entre Roma e Milão.
Tinha estado em Roma duas vezes, no tempo do liceu e da universidade, em passeios culturais, passados entre igrejas e museus.
Quando o táxi a deixou à porta do Hotel Fórum, que ficava em frente ao Fórum Imperial, Liliana esqueceu o cansaço da viagem e sentiu-se uma princesa, hóspede de
um palácio sumptuoso.
Discutiu com o recepcionista por causa do quarto individual que dava para um pátio interior malcheiroso e conseguiu um duplo com vista para as ruínas antigas, esvaziou
a mala e arrumou a roupa no armário e nas gavetas, telefonou à mãe e a Sandro, tomou um duche e enfiou-se na cama. Mas não conseguia conciliar o sono, porque na
sua cabeça ia passando em revista a documentação que recebera do chefe e avaliava relatórios, sentenças, resumos de inquéritos e peritagens assinadas por especialistas,
à procura de possíveis contestações. Por isso voltou a acender a luz, sentou-se na cama, pegou outra vez nos documentos, armou-se de papel e caneta e começou a tomar
apontamentos. O sono venceu-a quando despontava a alvorada.
O recepcionista despertou-a às sete. Tinha dormido duas horas.
Foi um dia frenético. Os funcionários da Zenit revelaram um espírito aguçado para os inquéritos ardilosos e Liliana apercebeu-se de que a sua permanência em Roma
não ia terminar tão depressa. À noite, quando regressou ao hotel, estava tão cansada que decidiu nem jantar. Pediu que lhe levassem ao quarto alguma fruta. Desta
vez deu-se ao luxo de um banho relaxante e depois vestiu um roupão muito bonito, de piqué branco, que Giuseppe lhe tinha oferecido nos anos.
Estendeu-se na cama e ouviu bater à porta.
- Está aberta - disse.
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A porta abriu-se e surgiu a silhueta de um homem que se escondia por trás de um ramo de rosas brancas.
- Sandro! - sussurrou Liliana, que se levantou da cama para
ir ao encontro dele.
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Posso entrar? - perguntou Sandro Brioschi. Atrás dele, um empregado segurava um tabuleiro com uma taça de porcelana cheia de fruta fresca.
- E se eu não estivesse sozinha? - perguntou, em ar de desafio.
- Foi uma hipótese que nem me ocorreu. Mas ainda não respondeste à minha pergunta - disse Sandro.
- vou pensar no assunto - brincou ela, enquanto punha a mão no queixo com ar de querer reflectir. Depois acrescentou:
- Está bem, podem entrar os dois.
O empregado pousou a fruta numa mesinha em frente a dois sofás minúsculos forrados a veludo azul. Olhou para aquela rapariga bonita, envolta num roupão comprido,
e para o homem que parecia arrebatado com aquela visão.
- Está à espera da gorjeta - sussurrou Liliana.
Sandro tirou uma nota do bolso das calças e meteu-lha na mão, dizendo: - Traga-nos uma garrafa de champanhe, por favor.
- Sim, senhor. Trago já - prometeu, satisfeito com aquela gorjeta generosa. - vou trazer também uma jarra para estas rosas, que são tão bonitas - acrescentou.
- Eu nunca tinha feito tantas loucuras como agora - admitiu Sandro.
- Acho que vais ter de trabalhar muito mais, se continuares a tratar-me como uma duquesa - disse Liliana. Sentou-se no sofá e estendeu uma mão para tirar um morango.
Sandro imitou-a.
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- Tenho algumas liras de parte. E depois tu já trabalhas mais do que devias - constatou.
- Nota-se muito? - perguntou Liliana.
- Estás com uns olhos cansados - observou Sandro.
- Tu também - rebateu ela.
- Vim de carro pelos Apeninos e foi o fim do mundo: primeiro o nevoeiro, depois uma chuva torrencial e, finalmente, granizo - contou-lhe.
Ouviram bater outra vez à porta. Sandro levantou-se, mandou entrar o empregado e disse: - Leve tudo para a suíte quarenta e seis, no último andar. Depois voltou-se
para Liliana: - A Collevolta não te ofereceu o alojamento que mereces, anda, eu ajudo-te a fazer a mudança. - A suíte tinha dois quartos, duas casas de banho, uma
sala e estava decorada em estilo barroco. Era aquilo que o hotel podia oferecer de melhor. Liliana sentiu que estava a entrar num pequeno apartamento com um ar um
pouco pretensioso, mas muito agradável. Veio uma empregada preparar as camas para a noite e colocou em cima das almofadas um Bacio Perugina. A jarra com as rosas
fora colocada em cima de uma cómoda.
- Por que não me falaste logo desta suíte maravilhosa? - perguntou Liliana.
- Não sabia como ias reagir. Reservei-a, mas não tinha a certeza de que a quisesses partilhar comigo - confessou Sandro.
- Sabes uma coisa? Eu não tenho a certeza de te merecer - afirmou, comovida com aquele homem que a amava com o arrebatamento de um rapaz na sua primeira experiência
amorosa.
- vou tomar um duche - anunciou Sandro, dirigindo-se ao quarto.
Liliana deu uma volta à garrafa de champanhe dentro do balde de gelo. Depois entrou no outro quarto, estendeu-se na cama e ligou o rádio. O terceiro canal estava
a transmitir um concerto de música clássica. Deixou-se embalar pelos acordes de Mozart.
Pouco depois Sandro foi ter com ela. Vestia um roupão de felpo e trazia nas mãos duas taças cheias de champanhe.
Liliana dormia profundamente.
Sandro pousou os dois copos em cima da cómoda, desligou o rádio e acariciou levemente os cabelos escuros daquela rapariga fantástica que amava apaixonadamente. Saiu
em bicos de pés e foi
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para o seu quarto. Deitou-se e adormeceu, vencido pelo cansaço. Quando acordou, acendeu a luz da mesa-de-cabeceira e viu as horas. Eram nove da manhã. Mexeu-se para
se levantar e sentiu uma mão que lhe afagava as costas.
- Liliana - sussurrou.
- Tu não ias ter comigo e por isso vim eu para aqui - disse ela, com uma voz empastada de sono.
Sandro afastou a roupa e acariciou-a. Era macia e tépida como a água do mar no Verão.
- Sabes que horas são? - sussurrou Sandro.
- Não, nem quero saber.
Naquela manhã perderam-se nos braços um do outro e sentiram-se mais felizes do que alguma vez se tinham sentido.
Saíram da suíte depois de terem tomado o pequeno-almoço. No hall, o porteiro entregou a Liliana uma lista de telefonemas. Tinham-lhe ligado do escritório de Roma
e do de Milão.
- Se por acaso voltarem a telefonar, diga que a Dra. Corti tirou um dia de férias - disse Liliana, feliz, enquanto dava o braço a Sandro.
Estava um bonito dia de Outono. A brisa que chegava das colinas refrescava o ar e acariciava as folhas das árvores.
Os dois namorados passearam por entre os palácios opulentos e as igrejas, por entre fontes que lançavam jactos de água cintilantes no ar luminoso e pelas vielas,
onde a luz e a sombra se perseguiam numa sucessão de tabernas e lojas que vendiam flores e bebidas frescas, misturados com os turistas.
- Sinto-me numa nuvem, longe do mundo - afirmou Liliana, feliz.
- Eu estou no paraíso - respondeu Sandro, que tinha o braço à volta dos ombros dela e a apertava contra si.
Num restaurante do Trastevere comeram flor de abóbora com mozarella e anchovas, alcachofras recheadas, rúcula e camarão tigre.
Sandro fez questão de a levar ao Rosati, na piazza del Popolo, a tomar café. Havia escritores, poetas, jornalistas, artistas, produtores cinematográficos e pequenas
estrelas em busca da sua sorte.
- Não te deixes encantar por aquilo que vês. No meio desta gente, as pessoas inteligentes podes contá-las com os dedos de uma mão. O resto é nada - avisou Sandro.
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- Eu sou uma milanesa, insensível a qualquer tipo de ostentação. Mas este folclore é fascinante e a Rosellina, se estivesse aqui,
desmaiava. Vou-te confessar outra coisa: hoje não trabalhei e não me sinto culpada por isso.
- É terrível! - Sandro soltou uma gargalhada saudável.
- É simplesmente maravilhoso. E devo-o a ti.
Regressaram ao hotel. A lista de telefonemas para Liliana tinha
aumentado. Ela enfiou o papel na carteira. Subiram até à suíte e fizeram amor.
Depois, Sandro segurou entre as mãos o rosto de Liliana e sussurrou-lhe: - Estou apaixonado por ti como...
- Como... - repetiu Liliana.
- Como um colegial na sua primeira história de amor. Achas que consegues aguentar tudo isto para o resto da tua vida?
- Tenho de responder já? - perguntou Liliana, a sorrir. Escondeu o rosto debaixo da almofada e Sandro percebeu um
"Sim" abafado.
- Sim? - perguntou, tirando rapidamente a almofada de cima dela.
Ela ria-se.
- Sim, caso contigo - sussurrou.
Separaram-se na manhã seguinte. Sandro partiu para Milão e ela voltou para o quarto por conta da empresa.
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11
Liliana trabalhou sem poupar esforços. Enfrentou com rigor e competência os inquéritos minuciosos da Zenit, ganhando com isso o respeito dos seus interlocutores.
Recebia regularmente telefonemas ansiosos do seu chefe, que se informava sobre a forma como estavam a decorrer os encontros.
- Regresso a Milão amanhã - anunciou-lhe um dia.
- Como é que se saiu? - perguntou-lhe.
- Pelo buraco da agulha - respondeu, com uma voz contrariada.
- Alguma coisa corre mal? - perguntou Passeri.
- Tudo corre mal, como aliás sabe perfeitamente. Estamos a vender um barco cheio de brechas. Eu cumpri a minha tarefa. Agora os outros que tratem de tapar as brechas
- rematou.
Sandro foi buscá-la à estação.
Abraçaram-se e ele ajudou-a a transportar um grande saco a abarrotar de documentos.
- Mas o que é que tu trazes aqui dentro? - perguntou-lhe.
- Papelada, lixo. Mandaram-me lá para baixo para salvar as aparências. De qualquer maneira, a fusão já está decidida e eu não sou suficientemente cínica para digerir
certos jogos de poder - respondeu.
- Então não é a noite certa para uma surpresa - lamentou ele-
- É sim, se isso me levantar o moral - disse Liliana, enquanto entrava no carro. Ele arrancou em direcção à Porta Venezia.
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- Preciso de silêncio - disse ela, a certa altura, pousando a cabeça no ombro do namorado.
- Assim já está melhor - sussurrou ele.
O carro entrou no corso Venezia, na piazza San Babila virou à esquerda, percorreu o corso Monforte e finalmente parou em frente a um edifício moderno.
- O que é que estamos aqui a fazer? - perguntou Liliana.
- É a surpresa de que te falava - disse Sandro. - Não me faças perguntas - pediu-lhe.
Saíram do carro e subiram os poucos degraus que conduziam a um portão de madeira clara. Sandro tirou do bolso um molho de chaves e demorou alguns segundos a encontrar
a certa. Finalmente abriu a porta e acharam-se num átrio imenso, revestido de mármore rosado com estrias cinzentas.
Um elevador levou-os ao quarto andar. As portas de correr abriram-se. Sandro fez rodar mais uma fechadura e finalmente abriu uma porta sobre uma entrada despida,
iluminada por uma pequena lâmpada pendurada no centro do tecto.
- Onde me trouxeste? - perguntou Liliana.
Através de uma abertura em arco via-se o início de um grande corredor com estantes, armários de parede lacados a branco e portas que davam acesso a aposentos espaçosos
e vazios.
- Agora vais-me dizer por que é que estamos aqui? - perguntou Liliana.
- Aluguei esta casa. Ainda está por arranjar e mobilar. Vai ser a nossa casa - anunciou Sandro.
- Mas é enorme! - constatou Liliana.
- É sossegada. O jardim do condomínio é uma maravilha, vais ver. Os cinemas e os teatros são a dois passos daqui. Queria uma casa à tua medida. Gostas? - perguntou
Sandro.
Liliana abriu os braços e começou a dar voltas sobre si mesma, como uma miúda.
- É tudo tão bonito - exclamou, feliz. Ainda estava incrédula. - Quando me lembro da casa no corso Lodi, onde cresci... Mas esta parece-me realmente de mais. Obrigada,
obrigada, obrigada!
- Deu-lhe um beijo repenicado na face.
- Ainda não viste tudo.
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Sandro conduziu-a até um quarto com paredes cor de âmbar que tinha no meio uma grande cama de casal, ainda embrulhada em plástico. Havia um candeeiro com abat-jour
pousado no chão e, ao lado, um balde cheio de gelo que continha uma garrafa de champanhe.
- Vamos inaugurar a nossa casa? - propôs Sandro, abraçando-a.
As paredes e os rodapés tinham sido pintados e pairava no quarto um cheiro a tinta.
Libertaram a cama dos plásticos de embalagem e atiraram-nos para um canto. Deixaram cair a roupa ao chão e amaram-se, felizes. Depois adormeceram e quando acordaram
era um novo dia.
- Oh, meu Deus, a minha mãe estava à minha espera ontem à noite - disse Liliana, aflita. E acrescentou: - E tenho de ir a correr para o escritório.
- Tem calma, pequenina. Eu levo-te ao escritório e aí já podes ligar para casa. Está tudo em ordem, Liliana - sossegou-a.
Mas foi Ernestina quem telefonou, no momento em que Liliana se sentava à secretária.
- Finalmente encontro-te. Custava assim tanto avisar-me de que não voltavas para casa? - protestou a mãe, que tinha estado preocupada toda a noite.
Tinha telefonado até tarde para casa de Sandro, mas ninguém atendeu. Depois esperou que Liliana e Sandro estivessem juntos em qualquer lugar.
- Tens razão, mãe. Peço desculpa, mas tinha-te dito que não era certo eu regressar ontem à noite, já estavas avisada - disse a filha.
- Posso saber ao menos onde estiveste? - insistiu Ernestina.
- O Sandro e eu resolvemos casar. Fomos ver a casa onde vamos viver e depois... adormecemos - confessou a filha.
Ernestina não fez comentários.
- Mãe, ouviste o que eu disse?
- Ouvi perfeitamente. É que eu estou em baixo de forma e estava à espera de falar contigo - sussurrou, e acrescentou: - A que horas chegas a casa?
- Cedo, se correr tudo bem - disse Liliana.
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- Então encontramo-nos às oito horas naquele restaurantezinho da via dell'Orso - propôs Ernestina.
Liliana conhecia bem a mãe e a sua capacidade de fazer uma tenipestade num copo de água. As suas preocupações tinham sempre a ver com os filhos ou com o marido.
Pensou que estivesse preocupada com Giuseppe: talvez ele tivesse acabado com Filippo. Ou então tratava-se da namorada de Pucci, que insistia para ele pedir transferência
para Bolonha. Ou então Rosellina tinha armado outra das suas. Naquele dia, porém, tinha muitas coisas para discutir com o chefe. Esqueceu os problemas familiares.
Abriu a grande pasta que trouxera de Roma, pegou nos papéis mais importantes e entrou no gabinete de Passeri.
- Seja bem-vinda - começou o director, convidando-a a sentar-se.
Mas Liliana continuou em pé.
- O que é que eu devia ter feito em Roma, na sua opinião? - perguntou, com um ar severo.
- Explique-se - disse o homem, imperturbável.
- Não, explique-me o senhor. Sabe muito bem que estamos a vender uma caixa meia vazia. Em Roma perceberam perfeitamente que a Collevolta, em parte, os está a aldrabar,
mas fazem de conta que não se passa nada. Os proprietários estão a vender à Zenit o seu património como se este estivesse completo, mas não é assim. Durante estes
anos obtiveram lucros enormes, mas não gastaram uma lira em novos investimentos. Os armazéns estão quase vazios, os meios de prevenção de acidentes estão uma desgraça
e eu tenho de fazer um relatório sobre tudo isso. - Dava voz ao desânimo que a atormentava há dias. Poderia ter-se calado, preparado um relatório em que seguisse
a hipocrisia dominante na empresa e reCebido cumprimentos pela óptima execução da sua tarefa. No entanto, depois de ter desabafado com Passeri compreendeu que a
estatura de um empresário se mede também pela sua capacidade de autocontrolo, enquanto que ela tinha perdido as estribeiras.
Pensou também que, em vez de criticar os seus chefes, poderia ter pedido a demissão. Mas não era tão ingénua que acreditasse que as estratégias da Collevolta fossem
uma excepção. Sabia que todo o sistema económico se orientava por meias verdades. Porém, incrivelmente, criava postos de trabalho.
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- Compreendo a sua amargura - disse o engenheiro Passeri.
- Quando aqui cheguei, tinha mais ou menos a sua idade e estava verdadeiramente revoltado, porque me parecia que muitas coisas não andavam como deviam. Passaram
muitos anos e eu transformei-me em cortiça: aprendi a flutuar e a ter cuidado com as pessoas que dependem de mim. Também tenho cuidado consigo, doutora. Ultrapasse
tranquilamente a sua desilusão e prepare, seja como for um relatório, talvez usando uma linguagem um pouco mais suave.
Liliana sentou-se, abatida.
- Tenho um péssimo feitio - sussurrou.
- Está bem assim - respondeu o chefe, a sorrir.
- Sinto-me como uma figurante num jogo maior do que eu. Não sei o que hei-de escrever no meu relatório - admitiu.
- Aquilo que vai escrever não é importante. Arranje maneira de poder demonstrar como foi eficiente o nosso departamento nesta fase da passagem do privado para o
público.
Liliana passou o dia a tomar apontamentos e, ao fim da tarde, foi ter com a mãe à Trattoria del'Orso...
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12
Poucos dias antes de Liliana partir para Roma, Ernestina tinha-se deitado com dores de dentes. Durante a noite, o mal agravou-se e ela acabou por acordar. Levantou-se
e bochechou com tintura de iodo diluída, para acalmar a dor. Mas a situação não melhorou e, na manhã seguinte, foi à urgência. O médico de serviço explicou-lhe que
não se tratava de uma cárie, mas sim de uma periodontose.
- Um problema muito aborrecido - anunciou o dentista. Quando começa, nunca mais acaba. - E acrescentou: - É aquilo a que habitualmente se chama piorreia: o osso
retrai, a gengiva segue-o, a raiz do dente fica a descoberto, inflama e formam-se umas cavidades nas gengivas com as complicações que daí resultam. Vai ter de tomar
um antibiótico e depois vamos extrair dois molares inflamados.
- Oh, meu Deus! vou acabar como a pobre da minha mãe, que aos cinquenta anos não tinha dentes - afligiu-se Ernestina.
- Vamos tentar evitar isso. Tratamos as gengivas e talvez chegue à dentadura mais tarde do que aconteceu à sua mãe - disse o médico.
- Espero bem. Não sou assim tão jovem, mas também ainda não sou muito velha - comentou.
- Pela sua ficha, vejo que tem quatro filhos. O cálcio dos ossos ressente-se das muitas gravidezes. Vá ao médico e peça para lhe receitar Um tratamento para travar
a descalcificação - concluiu o dentista.
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Passou uma receita e disse-lhe para voltar ao fim de uma semana para extrair os molares que estavam na origem da infecção.
Ernestina foi dali para o clínico geral, que conhecia há muitos anos e que tratava a família toda.
- As palavras do dentista foram quase uma condenação - lamentou-se Ernestina.
- Os dentistas, às vezes, são um bocado rudes. Não se aflija com a idade. Homens e mulheres perdem todos algum cálcio. Vamos tentar remediar isso.
O médico observou-a cuidadosamente e, por fim, disse: - Está muito bem, signora Corti. Tem algum problema, para além dos dentes?
- Nos últimos dois meses não tive menstruação. Se calhar, estou na menopausa - disse ela.
- Parece-me um bocado cedo. Vamos fazer uma análise à urina - decidiu o médico.
Poucos dias depois chegou o resultado. Ernestina estava grávida.
Considerou que, na idade dela, com os filhos já crescidos, um bebé seria um absurdo.
"As coisas querem-se no seu devido tempo", pensou e durante alguns dias guardou para si aquele tormento.
Às vezes olhava para Renato e pensava que, se lhe revelasse o seu estado, ele havia de responder com uma boa gargalhada e dizer:
- Que maravilha! A minha Ernestina faz-me ser pai pela quinta vez. - Seria até capaz de organizar uma festa.
Por isso decidiu calar-se e voltou ao médico.
- Na minha idade, com uns filhos que em breve me vão dar netos, acho que era um absurdo ter outro filho.
- Falou com o seu marido? - perguntou o médico.
- Não e não vou falar. Isto é um assunto que só a mim diz respeito.
Ernestina estava dividida e angustiada. O médico, conhecendo-a como a conhecia, não fez comentários. Mas decidiu repetir a análise à urina. - Quando eu tiver o resultado,
voltamos a falar - concluiu.
Ernestina regressou a casa, teve uma hemorragia e perdeu a criança. Chamou um táxi, que a levou à urgência. Fizeram-lhe imediatamente uma raspagem e prescreveram-lhe
alguns dias de repouso.
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Ficou dois dias de cama e, na solidão do seu quarto, chorou e entrou em desespero.
Primeiro parecera-lhe que não podia levar avante uma nova gravidez e agora sentia-se culpada como se, não a desejando, tivesse ela própria provocado aquele aborto
espontâneo.
Depois, com alguma dificuldade, retomou os seus ritmos habituais, transportando dentro de si uma pedra que a oprimia.
Podia ter falado com Renato e não o fez, sabendo que ele a iria abraçar, mimar, consolar, mas que não entenderia o seu estado de alma. Ernestina precisava de falar
com uma mulher. Procurou então Liliana e quis encontrar-se com ela longe de casa, para falar mais à vontade.
Quando a viu entrar no restaurante, fez-lhe um sinal para ir ter com ela à mesa.
- Sabes que nunca na vida estivemos as duas num restaurante, sozinhas? - começou a filha, sentando-se.
Ernestina apagou o cigarro e serviu um clarete gaseificado nos dois copos.
- Pedi uma sopa de lentilhas e carne cozida com molho verde - disse a mãe.
- Óptimo. Hoje estou com fome - afirmou Liliana.
- Onde deixaste o teu namorado? - perguntou a mãe.
- Deve estar em casa, imagino.
Um empregado apareceu de repente atrás delas.
- Vão desejar uma entrada? - perguntou.
Recusaram as duas. Liliana pôs um cigarro na boca e o empregado acendeu-lho. Depois desapareceu.
- Vou-te fazer uma pergunta um bocado indiscreta, mas gostaria que a tua resposta fosse sincera. Alguma vez tiveste um... acidente de percurso com algum dos teus
namorados? - sussurrou.
- Queres saber se fiquei grávida?
Ernestina anuiu.
- Por amor de Deus, mãe! Se assim fosse, tu tinhas sabido.
- Não tenho assim tanto a certeza.
- Sempre temi uma gravidez com o Danilo, porque sabia que não ia querer um filho. com o Sandro, porém, estou tranquila, Porque sei que ele ia ficar muito feliz.
E, para além do mais, vamos casar.
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- Tive um aborto espontâneo, enquanto estavas em Roma -, confessou Ernestina.
Liliana baixou os olhos, sem conseguir responder.
Para ela, os pais eram indivíduos assexuados. Tinha visto nascer os irmãos, um atrás do outro, e tinha visto a mãe com umas grandes barrigas, mas sempre se recusara
a associar aquelas gravidezes a uma relação íntima com o pai.
- Não dizes nada? - perguntou Ernestina.
- Fiquei sem palavras - sussurrou Liliana. - Por que me contaste? - perguntou.
- Eu não desejava outro filho, mas desde que o perdi sinto-me culpada e estou desesperada.
Liliana comoveu-se. Apertou com ternura a mão de Ernestina, pousada na toalha.
- Quatro filhos são um belo contributo para a perpetuação da espécie. Tiveste sorte em não teres de enfrentar o problema de uma nova gravidez que, na tua idade,
podia ser perigosa até para a criança.
- Achas mesmo? - perguntou a mãe, olhando-a nos olhos.
- Tenho a certeza - afirmou Liliana, com um sorriso. Ernestina assoou o nariz várias vezes para conter as lágrimas. Naquela noite, quando se deitou, teve a esperança
de adormecer tranquilamente.
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13
Enquanto esteve em Londres com Filippo e Mariuccia, Giuseppe pôde observar atentamente a maneira de vestir dos jovens, que já não tinha nada a ver com os cânones
tradicionais da moda. Também foi a um concerto dos Rolling Stones, que naquela altura recebiam aplausos delirantes do público mais jovem.
Mariuccia ficou entusiasmada. - Esta barulheira complexa exprime alguma coisa que valia a pena aprofundar.
- Estou de acordo contigo - afirmou Giuseppe.
- Por amor de Deus! É isto que nos reserva o futuro?
Filippo estava horrorizado. Amava a música clássica e tolerava com alguma dificuldade certas canções mais ligeiras.
Em Londres, Giuseppe traçou as linhas essenciais do vestuário daqueles jovens. Quando regressou a Itália, conseguiu atenuar os contrastes demasiado estridentes e
criou uma série de modelos novos. Estavam agora a ser examinados por Marta Scanni, a dona da fábrica de malhas, que se mostrava muito admirada com uma inovação tão
radical.
- Nós sempre produzimos uma linha clássica. Agora tu abandonaste quase completamente esse critério. Achas que os nossos clientes se vão deixar convencer? - perguntou,
perplexa.
- Não vão ter outro remédio, se quiserem continuar a fornecer as lojas. Nós estamos entre o consumidor tradicional e a moda mais radical. Estas peças vão agradar
às adolescentes e às mães. Vamos vender em grande - prognosticou Giuseppe.
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A patroa tinha aprendido a confiar nele e deu-lhe luz verde para a produção.
Naquele dia, no atelier, Giuseppe recebeu um telefonema de Lorenzi, um industrial que assinava uma linha de vestuário masculino.
- Acho que devíamos marcar um encontro - disse o homem.
Giuseppe tinha-o visto de passagem numa exposição internacional de moda. Lorenzi visitara o stand dos Scanni e a dona da fábrica disse a Giuseppe: - É um abelhudo.
O melhor é ter cuidado com ele. Manda os espiões por aí, para roubar as ideias dos outros. É um bandido.
Lorenzi era dono de uma marca consagrada, vendia o seu produto industrial em todo o mundo e, havia já algum tempo, tinha também lançado no mercado uma linha feminina
que, no entanto, estava a arrancar com alguma dificuldade.
Agora Giuseppe disse-lhe: - Estou a trabalhar imenso e o meu tempo é limitado.
- Lá por isso, o meu também é. Então vamos directamente ao assunto. Venha a minha casa. Diga-me a hora e o dia e eu fico à sua espera.
- Está bem na segunda-feira, às seis e meia da manhã? - propôs Giuseppe, convencido de que o ia deixar desconcertado.
O homem não se descompôs. - Óptimo. O meu motorista vai buscá-lo a sua casa às seis horas. Eu tenho a direcção - disse.
Naquela noite, enquanto ajudava a mãe a arrumar a louça, Giuseppe falou-lhe daquele encontro.
Ernestina sorriu.
- Começas a dar nas vistas. Fazes bem em ir ter com ele, mas tem cuidado para não te deixares apanhar. No mundo da moda é tudo gente sem escrúpulos, mas ele ainda
é pior do que os outros. Sobre ele dizem-se mais coisas más do que boas.
- Tanta maledicência só pode nascer da inveja - comentou o filho.
- Também, mas não só. O nosso meio é pequeno e acaba por se saber tudo sobre toda a gente. E toda a gente sabe que o Lorenzi agarra os compradores com meios nem
sempre lícitos. É um indivíduo que esfola as pessoas que trabalham para ele - avisou Ernestina.
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- Enquanto que os Scanni não nos espremem, não é isso? Só nos fazem festinhas - respondeu o filho, irónico.
- Conhecemo-los e conseguimos mantê-los de rédea curta. Mas o que se diz do Lorenzi é que é indomável. Os estilistas que vão trabalhar com ele fogem ao fim de poucos
meses, desesperados.
- Então, o que me aconselhas? - perguntou Giuseppe.
O tom de voz e a expressão do rosto eram os mesmos de quando era pequeno e pedia a sua ajuda para resolver um problema.
Ernestina sentiu uma grande ternura. Fechou a torneira sob a qual passava os pratos por água e encostou-se ao lava-louça.
- Deixa-me pensar - disse.
Continuava a achar que Giuseppe estava a desperdiçar o seu talento ao serviço da moda. Estava firmemente convencida de que os melhores costureiros, como Chanel,
Cassini ou Dior, eram apenas bons artesãos dotados de um nítido sentido estético, suficientemente espertos para arranjarem a postura certa e insuperáveis a fazer
dinheiro. Giuseppe não tinha esse tipo de esperteza e era um verdadeiro artista. Mas amava a moda e o melhor era deixá-lo fazer o que queria.
- Quando fores ter com o Lorenzi, devias levar o teu irmão Pucci contigo - propôs.
- O que é que o Pucci tem a ver com isto? É um contabilista.
- Precisamente! Sabe fazer dançar os números como um ilusionista. Os contratos, as cláusulas e as adendas são o pão nosso de cada dia para o teu irmão. É muito pragmático
e pode ser-te útil junto de uma pessoa como o Lorenzi.
A mãe acabava de ter uma ideia genial, como sempre. Giuseppe agarrou-a pelos ombros e beijou-a na testa, enquanto ela tentava libertar-se, batendo-lhe nos braços
com as mãos protegidas pelas luvas de borracha.
- Larga-me! Que maneiras são essas? - protestava, a rir. És o meu anjo da guarda, sempre foste - afirmou Giuseppe.
Na segunda-feira de manhã, ao alvorecer, os dois irmãos estavam prontos para iniciar uma nova aventura.
Às seis horas da manhã, o automóvel de Lorenzi, um Jaguar escuro com tapetes em pele de carneiro, estava à porta de casa. O motorista conduziu-os até à zona de San
Siro. Passaram um portão eléctrico, que se abriu para um parque arranjado como se fosse
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o cenário de um filme, e chegaram a uma enorme villa moderna pintada de branco.
Lorenzi recebeu Giuseppe com um sorriso radioso e dirigiu um olhar perplexo a Pucci.
- É o meu irmão Palmiro. Acompanha sempre o meu trabalho - explicou Giuseppe.
- Então vamos tomar o pequeno-almoço juntos - decidiu Lorenzi.
Na sala de jantar, com amplas janelas de onde se podia admirar o parque em volta, um empregado com ar presunçoso esperava para servir os convidados.
Os jovens Corti saborearam o pequeno-almoço e ouviram as propostas do anfitrião, que declarou a sua intenção de investir em Giuseppe toda a sua credibilidade.
Lorenzi apresentou o seu repertório de perspectivas aliciantes, que incluíam viagens e estadias no estrangeiro, assim como lançamentos publicitários das linhas idealizadas
por Giuseppe em jornais, revistas e anúncios televisivos. Garantiu que poria em evidência a assinatura de Giuseppe Corti se, como esperava, a nova linha tivesse
sucesso.
- Traduzido em dinheiro, quanto ganharia o meu irmão? - perguntou Pucci, até para pôr fim àquele rosário de tantas promessas.
Lorenzi disparou uma cifra que era exactamente o dobro do que Giuseppe ganhava na fábrica de malhas, onde tinha um contrato como empregado.
- Nem pensar - afirmou Pucci, com calma.
- Então diga você um número - retorquiu o industrial.
Pucci propôs uma retribuição que deixou Lorenzi sem fôlego.
- O Giuseppe está a avaliar uma outra proposta, que inclui também três por cento de comissão em cada peça vendida - declarou, mentindo despudoradamente.
- Lamento, mas não posso chegar a tanto - afirmou Lorenzi.
Pucci não se descompôs. Levantou-se e disse: - Muito obrigado pelo pequeno-almoço. Eu tenho de ir para o escritório e o meu irmão também tem o trabalho à espera.
Foi um prazer conhecê-lo, signor Lorenzi.
Foram levados de volta ao centro da cidade. Assim que ficaram sozinhos, Giuseppe atirou-se ao irmão.
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- Tu és completamente doido! O que foi que te deu para fazeres uma proposta daquelas? Eu tinha uma perspectiva para melhorar e tu atiraste tudo ao ar. Apetece-me
agarrar-te o pescoço e desfazer-te - desabafou.
Giuseppe estava aos gritos no meio da piazza Medaglie d'Oro, no meio de uma selva de automóveis a buzinar e eléctricos apinhados de gente que se dirigia aos empregos.
- Por que não pensas antes que te salvei das garras de um negreiro? Não gostei daquele Lorenzi e aquela conversa toda de viagens e de sucesso era só uma maneira
de te conseguir a um preço baixo. Tu vales muito mais. Foi por isso que fiz aquela proposta disparatada. Salvei-te a vida e tu nem sequer te apercebeste disso -
declarou Pucci. Depois dirigiu-se ao corso di Porta Romana, para entrar no banco onde trabalhava.
A meio da manhã recebeu um telefonema de Giuseppe: - O Lorenzi ligou e aceita a tua proposta.
- Vamos com cuidado. Temos que fazer um contrato e analisar bem todas as cláusulas antes de assinar.
- És um dragão, mano - disse Giuseppe. Estava feliz.
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14
Da fusão da Collevolta com a Zenit nasceu a Collenit, que se tornou uma empresa pública. A nível interno, a organização do pessoal sofreu algumas alterações.
Liliana foi mais uma vez promovida e tornou-se directora, apesar de não ter ainda estatuto para assinar as actas, o que competia ao seu chefe. As novas responsabilidades
mantinham-na pregada à secretária durante o dia inteiro e quando regressava a casa dava atenção a Ernestina, que de vez em quando tinha acessos de melancolia.
Uma tarde, ao sair do escritório, Liliana encontrou o pai à espera dela.
- Vim buscar-te para tomarmos um aperitivo juntos - disse Renato. Sentaram-se num bar na via Carducci. Ele fez de conta que queria saber algumas coisas sobre o andamento
da Collenit, mas era evidente que queria falar de outros assuntos e ela esperou pacientemente.
- A tua mãe tem outro homem? - perguntou por fim, à queima-roupa. E continuou: - Mantém-me à distância como se não quisesse falar comigo.
- A mãe não anda bem - respondeu Liliana.
- Está doente? - perguntou o pai, preocupado.
- Está só cansada - disse.
- Tu não me estás a contar tudo. De repente, de um dia para o outro, sem uma razão, virou-me as costas. Achas isto normal? já não a entendo. Se calhar, sem querer,
fiz alguma coisa que ela não
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gostou. Mas ela não é de ficar calada. Se sabes alguma coisa, por favor, diz-me.
E então Liliana contou a história da gravidez malsucedida.
Renato trincou uma batata frita, mastigou-a cuidadosamente, bebeu um gole e por fim disse: - Sou um estúpido. Lamento muito ter-te arrancado uma notícia tão... tão
íntima. Desculpa, Liliana. Depois acrescentou: - Agora tudo se explica. Eu vou resolver o assunto com a tua mãe. Fica sossegada, porque ela nunca vai saber desta
conversa.
Liliana sentiu o coração mais leve e, uns dias mais tarde, a mãe ligou-lhe para o escritório: - Por que não vens hoje cá jantar com o teu namorado? Fiz aquela lasanha
de que o Sandro gosta tanto.
- Como é que estás? - perguntou a filha.
- Muito bem, como nos velhos tempos - sossegou-a.
O dia tinha começado tranquilamente.
Liliana desceu até ao bar para tomar um café e encontrou o engenheiro Passeri.
- Fui chamado ao Centro de Formação para dar uns cursos sobre acidentes de trabalho. Alinhavei num papel uma série de apontamentos. Não se importa de pôr aquilo
direito, doutora?
Foi a segunda boa notícia do dia.
Liliana divertia-se a escrever e tinha um estilo desenvolto e fluente; na empresa, toda a gente lia de boa vontade os relatórios que fazia. O seu chefe, pelo contrário,
para além de não ter inclinação para a escrita, não estava tão actualizado como ela sobre as novas regras que tutelavam os funcionários das instalações. Liliana
preparou um texto brilhante.
No dia a seguir ao curso, Passeri foi ter com ela ao gabinete.
Fiz um figurão e agradeço-lhe por isso - começou. - Se estiVer de acordo, vou-lhe dar os apontamentos para o curso seguinte.
Liliana sabia que os textos desses cursos iam ser compilados e
Publicados num livro e esperava que Passeri lhe propusesse assiná-lo com os nomes de um e de outro. Mas apenas lhe disse: - O Eleuteri resolveu continuar com a velha
guarda. É uma daquelas pessoas que consideram a militância na Collevolta como um cravo na lapela. - O que tenciona fazer?
Uma parte do património da Collevolta tinha ficado nas mãos do sector privado e continuar a colaborar nessa área era considerado
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um traço de distinção. Os directores mais jovens, porém, tinham feito os possíveis por entrar no organigrama da Collenit. Liliana não sabia de que lado ficar. Sandro
tinha-lhe dito:
- Um patrão público é menos asfixiante do que um privado. Acho que te convém mais passar para a Collenit, até porque espero que consigas trabalhar menos e ter um
pouco mais de tempo para nós dois.
Acabou por responder a Passeri: - Não vou fazer nada, porque ninguém me perguntou nada.
- Eu vou passar para o outro lado. vou pedir para ficar comigo, e olhe que não se vai arrepender.
Liliana acompanhou-o. Um dia, ao fim da tarde, quando estava pronta para sair do escritório, tocou o telefone interno.
- Fala Torquati - anunciou uma voz imperiosa.
Anselmo Torquati era o novo chefe do pessoal da Collenit. Liliana ainda não tinha falado com ele.
- Venha ao meu gabinete. Preciso de falar consigo - disse ainda.
- Quando? - perguntou ela.
Estava com pressa de sair, porque Sandro a esperava.
- Agora, doutora - respondeu o homem.
Torquati estava na empresa há pouco tempo, mas já se falava muito a seu respeito. Dizia-se que tinha sido um jovem militante fascista, embarcado depois no navio
socialista para aproveitar os ventos favoráveis. Murmurava-se que tinha um fraco por mulheres bonitas que, quando eram complacentes, somavam óptimas probabilidades
de fazer carreira. Em suma, as conversas de corredor tinham-no definido como uma personagem pouco recomendável.
Liliana, que já tinha construído uma couraça contra indivíduos semelhantes no tempo em que trabalhava com Asetti, armou-se da sua experiência de lutadora e foi ter
com o Dr. Torquati.
O homem estava sozinho no gabinete que fora de Eleuteri. Liliana reparou que tinha eliminado as plantas ornamentais, as fotografias emolduradas da velha Collevolta,
os galhardetes do Rotary Club e as cortinas de musselina engomada.
O que mais a impressionou nele foram os olhos azuis, muito vivos, inteligentes, o rosto corado de quem apanhou demasiado sol de uma só vez e o crânio redondo e brilhante
como uma bola de bilhar.
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O Dr. Torquati estava em mangas de camisa, sem gravata.
- Sente-se, por favor - disse-lhe, enquanto ia ao encontro dela. Apertou-lhe a mão e acrescentou: - Finalmente, conhecemo-nos.
Sentaram-se à secretária, um em frente ao outro, e ele olhou para ela durante alguns intermináveis segundos antes de lhe dizer: - Tem um perfume óptimo.
Liliana tinha apertado as mãos uma na outra e mantinha-as pousadas no colo, quase sem respirar.
- As suas notas são excelentes. Muito apreciável o trabalho que desenvolveu em Roma. É um desperdício absoluto como subordinada do engenheiro Passeri. Tem alguma
objecção? - perguntou.
Liliana ficou calada e pensou que o novo chefe do pessoal não correspondia à personagem definida pelas conversas de corredor.
- É advogada estagiária e eu sem dúvida preciso de uma cabeça pensante que dirija o sector legal nos escritórios da Città Studi. Está de acordo?
Houve uns instantes de silêncio. Enquanto tentava ultrapassar a perplexidade provocada por aquela proposta, Liliana perguntou a si mesma se o bâton não estaria um
bocadinho esbatido. Tinha demorado meses a encontrar a tonalidade adequada ao seu rosto.
- Está bem - disse por fim.
O homem levantou-se, apertou-lhe a mão e sorriu: - Bem-vinda a bordo.
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15
Liliana e Sandro, como todos os namorados em vésperas de casar, passavam os fins-de-semana a fazer compras para a casa nova. O arquitecto Filippo Fioretti tinha-se
oferecido para a ajudar a decorá-la.
- Agora, que já te conheço, não me vou deixar tentar pelas tuas artes de sedutor. O Sandro é contabilista, mas as contas sou eu que as controlo, e se nos entregássemos
nas tuas mãos não sei quanto ias conseguir fazer-nos gastar. Por isso agradeço-te, mas vamos fazer tudo sozinhos - declarou ela.
Liliana tinha definido limites e não tencionava ultrapassá-los.
Para além do mais, Sandro era um companheiro delicioso para as compras. Acompanhava-a nas escolhas, entusiasmava-se tanto como ela em relação a um objecto original,
aconselhava-a revelando gosto e conhecimento. As incursões nas lojas e nas oficinas de artesãos, para apreciar cortinas, tapeçarias e móveis, marcaram agradavelmente
aquele longo Outono. Liliana aprendia a conhecer os lados mais escondidos do temperamento de Sandro, que a faziam gostar cada vez mais dele. Por vezes, sussurrava-lhe:
- Mas o que foi que eu fiz para merecer um homem como tu? - Ele sorria, baixava o olhar e respondia: - Eu ainda não me refiz da maravilha de te ter toda para mim.
Uma noite, em frente a um perfumadíssimo prato de risotto com cogumelos porcini, no restaurante habitual sobre a Darsena, Liliana disse: - Temos de marcar passagem
para a nossa viagem de núpcias.
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Tinham decidido que casariam em meados de Dezembro e que passariam o Natal em Nova Iorque, hóspedes de Miss Angelina, que não via a hora de abraçar de novo a sua
tão querida Liliana.
- Já está - declarou Sandro, ao mesmo tempo que pousava em cima da mesa dois bilhetes de primeira classe.
- Tu és completamente louco - declarou Liliana, perplexa.
- Estava mais à espera de um grito de alegria.
- Gastaste um monte de dinheiro inutilmente - protestou ela, vigorosamente.
- Então o que é que vamos fazer com isto? - perguntou, mostrando-lhe a reserva de uma suíte no Hotel Pierre.
- Já não caso contigo - afirmou, olhando-o nos olhos como se lhe quisesse pegar fogo.
- É pena. Estás a perder uma grande oportunidade - disse Sandro.
- De onde é que te saiu este dinheiro todo? - quis saber, fingindo desconfiar.
- Da minha reserva de ouro - respondeu ele, tranquilamente. Por baixo do casaco cinzento-escuro vestia uma camisola de malha de gola alta, segundo a moda lançada
pelo filme La Dolce Vita.
- Não sabia que o meu futuro marido era um milionário - brincou ela.
- De facto não sou, mas ao longo do tempo fui pondo de lado algum dinheiro, que usarei para te fazer algumas surpresas - disse-lhe ternamente, enquanto lhe acariciava
a mão sobre a qual brilhava o lindíssimo anel de noivado.
- Tenho pena de que não tenhas sido o meu primeiro amor - sussurrou Liliana, comovida.
Passaram a noite na nova casa, fizeram amor e depois Liliana disse, baixinho: - Amo-te, Sandro.
Ele apertou-a nos braços e embalou-a até ela adormecer.
No dia seguinte o mundo soube do assassínio do presidente dos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy. Ao fim de uma semana, Liliana recebeu uma carta de Miss Angelina
que, entre outras coisas, dizia: "Já não me reconheço nesta nação que tinha considerado como a minha pátria. Este era um país de homens livres, nascido para acolher
povos que fugiam da tirania e da miséria. O nosso
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beloved President foi morto porque acreditava nestes ideais. A partir de hoje, a história americana vai mudar o seu curso e caminhar para o desastre. Minha querida
Liliana, se quisermos abraçar-nos mais uma vez, despacha-te a vir ter comigo, porque estou a escrever-te de uma cama de hospital. Fui internada ontem por causa de
um problema cardíaco."
Liliana pediu imediatamente notícias mais precisas à sua amiga Beth, que respondeu dizendo-lhe que a tia Angelina tinha tido um enfarte e que não foi possível salvá-la.
- Não esperou por mim - sussurrou Liliana, com os olhos inchados de chorar. E a Sandro disse: - A nossa viagem a Nova Iorque já não faz sentido nenhum.
- Se calhar estava escrito que tu não devias conhecer a América. A que outro lugar queres ir? - perguntou.
- O que dizes da nossa casa lindíssima? Eu acordo-te com o pequeno-almoço e uma rosa. E nem sequer temos de sair para fazer compras. A porteira trata dessa parte.
Casaram-se numa tarde de Dezembro, na igreja de San Gottardo. Foi uma cerimónia íntima, só com os familiares de Liliana e poucos amigos de Sandro.
Ela levava um casaco de vison claro, presente do marido, ele um sobretudo de caxemira azul, presente da mulher. Ernestina preparou o copo-d'água em casa e, quando
os noivos saíram, respirou fundo: - Espero que tenha uma vida menos atribulada do que a minha - disse a Renato.
- Correu-te assim tão mal? - perguntou o marido. Ela fez-lhe uma caricia na testa.
- Eu tive-te a ti e isso é mais do que poderia desejar - respondeu e sorriu-lhe. - Mas só me pergunto por que não terão ido de lua-de-mel.
- Porque não lhes apeteceu.
- Eu gostava de ter feito uma viagem quando nos casámos, há tantos anos. Mas só tínhamos dinheiro para comer.
- Podíamos fazê-la agora. Por que não vamos a Veneza? Todos os apaixonados lá vão - propôs ele, abraçando-a.
Tinham ficado sozinhos, na sala, no meio de pratos e copos sujos, os restos do almoço e o cinzeiro cheio de pontas de cigarros.
- Estás a falar a sério? - perguntou ela, hesitante.
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- Veste lá o casaco. Vou-te levar de lua-de-mel, mulher - afirmou Renato.
- E deixo tudo assim, nesta confusão... a cozinha por arrumar... os nossos filhos...
- Exactamente, eles tratam disso.
Renato e a mulher fizeram as malas e saíram de casa quase à socapa, deixando bem à vista, em cima da mesa da cozinha, um bilhete com poucas palavras: "Partimos para
Veneza e não sabemos quando voltamos. Mãe e pai."
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CITTÀ STUDI
Os escritórios da Collenit, na Città Studi, ficavam numa rua sem saída, ampla, com grandes edifícios oitocentistas que faziam parecer ainda mais feio o prédio sombrio,
todo de vidro e cimento, que albergava os empregados e os operários da empresa.
Liliana tinha tentado demover Sandro, que insistia em querer levá-la de carro, pelo menos naquele primeiro dia de trabalho na nova sede.
- Prefiro usar os transportes públicos, como toda a gente insistiu ela.
Quando trabalhava na via Paleocapa, bastava-lhe um único meio de transporte para chegar à Collenit. Agora teria de apanhar um eléctrico e depois um autocarro para
chegar aos novos escritórios.
- Não me agrada nada saber-te no meio daquela confusão de gente - disse o marido.
- Se preferires, posso ir de bicicleta - propôs ela.
- Está bem, teimosa, faz o que quiseres - respondeu, resignado. Então Liliana sorriu-lhe.
- Tu queres ir ver para onde me mandaram e não vou ser eu a tirar-te esse prazer. Vais comigo, mas só por esta vez. De qualquer maneira, já sei que me vais buscar
todos os dias e esse é um privilégio de que poucas mulheres se podem gabar.
Sandro levou-a até à entrada da Collenit. Despediram-se com um beijo e ele sussurrou-lhe: - Coragem, pequenina, mostra o que
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vales. Sei que estás a arder de vontade de te lançares nesta nova empresa. - Sandro lia os seus pensamentos, mesmo aqueles que ela não conseguia decifrar.
Liliana passou uma imensa portaria envidraçada no momento em que começavam a afluir empregados e directores, enquanto que os operários entravam por uma porta secundária
lateral.
Agora conhecia as regras e apresentou-se tranquilamente ao director da nova sede, o signor Massaroni.
- Então é você a Corti. Um pouco jovem de mais, ao que me parece - começou o homem, sem sequer a convidar a sentar-se. Era um indivíduo pequeno, de cabelos encaracolados
e olhos encovados, que falava um italiano misturado com dialecto milanês e tinha todo o ar de não precisar de aprovações.
- Dra. Corti, se não se importa - precisou Liliana, decidida a retribuir aquela antipatia.
- Claro. Quando não há uma cabeça, há uma licenciatura - desafiou o chefe.
- Eu por acaso tenho as duas - retorquiu ela, nada intimidada.
- Está bem, está bem, já percebi que tem o seu feitio. Eu só fiz a escola técnica, mas trato de qualquer um aqui dentro. Agora que já esgotámos as formalidades,
como dizem vocês, que sabem falar, vá lá para fora e espere pela Ester, a minha secretária, que a vai levar ao seu gabinete - rematou, abanando a mão para a convidar
a sair.
- Foi um prazer ser recebida por si, signor Massaroni - disse Liliana, a sorrir.
Ele não se deu ao trabalho de responder.
Ester era a cópia exacta, no feminino, do seu chefe e escoltou-a em silêncio até uma espécie de cubo de cimento escassamente mobilado, com uma parede de vidro através
da qual se via um prado por cultivar e cheio de papéis.
- Daquele lado estão os seus colaboradores. Agora vou-lhos apresentar - anunciou a secretária, abrindo a porta que dava para outro cubo e onde Liliana viu dois homens,
um jovem e um de meia-idade, sentados às suas secretárias.
- O Dr. Valeri e o Dr. Munafò - disse rapidamente a secretária. Depois deu meia-volta e foi-se embora.
Os dois homens levantaram-se, fechando o jornal que estavam a
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ler, claramente contrariados por terem sido interrompidos. Apertaram-lhe a mão sem dizer uma única palavra.
Liliana apercebeu-se da sua hostilidade, mas armou-se de paciência e disse: - Agradecia que me levassem os processos de que estão a tratar neste momento. Obrigada.
- Fechou-se no gabinete e deitou as mãos à cabeça, sussurrando: - Meu Deus, onde foi que eu vim parar?
Logo a seguir ligou para a sede da via Paleocapa e pediu para falar com o Dr. Torquati.
- O senhor sabe para onde me mandou? - começou.
Ouviu uma gargalhada.
- São nove horas da manhã. Está aí há meia hora e já vem pedir ajuda? -respondeu, em ar de provocação.
- Só lhe queria agradecer infinitamente pela gracinha que me fez. Em qualquer caso, vou aproveitar esta oportunidade ao máximo - disse, e desligou o telefone.
O Dr. Valeri entrou no gabinete pouco depois e pousou em cima da secretária uma série de pastas cheias de papéis. - Sabe, doutora, a actividade jurídica desta secção
é quase inexistente. Na prática, é um trabalho de rotina. Enfim, nós aqui fazemos pela vida, como se costuma dizer. - Era um homem de uns trinta anos, com um ar
frustrado, que falava evitando olhá-la nos olhos.
- Sente-se, por favor - respondeu Liliana, indicando a cadeira à sua frente -, e explique-me o que entende por trabalho de rotina.
Ele explicou-lhe. Era realmente uma situação desoladora.
- É tudo? - interrompeu-o Liliana, contrariada.
- Bem, há alguns problemas legais sobre a serventia de alguns terrenos... O território a gerir é vasto e às vezes surgem certas complicações. O Munafò despacha esses
processos sozinho. À noite enfia-os na pasta e leva-os para casa. Acho que não está com grande vontade de colaborar consigo - confessou.
- E o senhor, Dr. Valeri?
Ele encolheu os ombros.
- Estes são os processos que eu sigo pessoalmente. Se quiser, Podemos vê-los juntos.
- Obrigada, prefiro estudá-los sozinha. Se precisar de algum esclarecimento, peço-lho - disse Liliana, para o mandar embora,
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pois sentia uma grande necessidade de recuperar da frieza daquele acolhimento.
Examinou a documentação e deu-se conta de que a qualidade do trabalho desenvolvido por aqueles dois colaboradores era perfeitamente medíocre. Demasiadas negligências,
demasiado desleixo e nenhuma atenção à parte jurídica, que deveria ser de primordial importância.
Liliana tirou o casaco do tailleur, desapertou os punhos da blusa e arregaçou as mangas. Tinha pela frente um monte de trabalho e não podia contar com a ajuda dos
seus colaboradores.
Naquela noite Sandro foi buscá-la e perguntou: - Então, como é que correu?
- É preciso revolucionar o departamento inteiro e não tenho grandes esperanças de que alguém me dê uma mão - respondeu, preocupada.
- O máximo das tuas aspirações é conseguires fazer tudo sozinha. Então, por que não estás feliz?
- Porque gostava de estar ao mesmo tempo contigo e com o meu trabalho.
- Mas estás, pequenina. Tens o dom da ubiquidade. Não sabias?
- Pois, eu sei, tu pensas em mim, eu penso em ti, portanto estamos juntos.
- Resposta correcta. Como prémio levo-te a jantar fora - disse Sandro ao arrancar.
Liliana deixou cair a cabeça no ombro do marido e sussurrou:
- Queria tanto ter um filho.
Sandro fez de conta que não ouviu. Investiu contra o tráfico que obstruía as ruas e só mais tarde, quando já estavam juntos na grande cama matrimonial, lhe perguntou:
- Não achas que eu sou velho de mais para fazer de pai?
Liliana chegou-se mais a ele: - Davas um pai maravilhoso.
- E podia continuar a jogar ténis, a jantar à quarta-feira com os meus amigos e a ir à pesca ao domingo?
- Eu acho que sim. Tenho tanta vontade de pegar num Brioschi pequenino ao colo - sussurrou Liliana.
- Então, porquê negar-te essa alegria? - concluiu Sandro, abraçando-a.
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Ernestina chegou a casa mais tarde do que o costume com dois sacos a abarrotar de compras que tinha feito depois de ter saído do trabalho. Quando a viu chegar, a
porteira foi ao encontro dela e entregou-lhe um grande ramo de rosas.
- Trouxeram-nas para si, signora Corti - disse. E explicou:
- Não estava ninguém em casa. - Depois viu que ela tinha as mãos ocupadas e prosseguiu: - Eu levo-lhas lá acima. - E foi atrás dela pelas escadas.
- Tem a certeza de que são para mim? - perguntou Ernestina, olhando de lado para aquele ramo de jarros brancos e rosas amarelas.
- Traz um bilhete com o seu nome - precisou a porteira. Ernestina abriu a porta de casa e entrou, seguida pela mulher, que foi com ela até à cozinha. Pousaram os
sacos das compras e as flores em cima da mesa.
- Posso oferecer-lhe alguma coisa para beber? - perguntou Ernestina.
- Muito obrigada. Tenho de voltar para baixo a correr, porque o meu marido saiu e a portaria está sem ninguém. Fica para outra vez - respondeu a porteira e foi-se
embora.
Ernestina estava cheia de curiosidade em descobrir quem lhe teria mandado aquelas flores tão bonitas. Abriu rapidamente o envelope e leu o bilhete: "Apesar de não
nos vermos tantas vezes como eu gostaria, lembro-me sempre de si com afecto. Filippo."
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Pousou a mensagem na mesa, perguntando a si própria o qUe quereria dela o amigo do filho.
Meteu aquele enorme ramo de flores perfumadas na maior jarra que tinha em casa e pousou-a na consola do hall.
Depois decidiu enfrentar a situação. Foi à sala de estar e telefonou ao arquitecto. Depois de lhe ter agradecido, perguntou-lhe: O que posso fazer por si?
- Preciso muito de falar consigo - respondeu Filippo.
- Não sobre o Giuseppe, por favor. Sempre evitei interferir na vossa vida.
- Eu sei e aprecio a sua discrição. Mas... - não conseguiu continuar e Ernestina sentiu muita pena dele.
- Se tem problemas com o Giuseppe, fale abertamente com ele. - Acrescentou mais umas palavras afectuosas e desligou o telefone.
Regressou à cozinha para preparar o jantar, de péssimo humor. Filippo era realmente uma excelente pessoa e lamentava que sofresse por causa de Giuseppe, que naquele
momento dedicava todo o seu tempo a preparar a primeira passagem de modelos desenhados por ele. Trabalhava para Lorenzi e ganhava muito bem, a ponto de ter comprado
uma villa em ruínas na via Mário Pagano.
Estava agora a reconstruí-la e, entretanto, continuava a viver em casa dos pais, apesar de ter horários complicados e de Ernestina quase nunca conseguir estar com
ele.
Naquela noite, Giuseppe regressou a casa à meia-noite e encontrou a mãe, sentada na sala, à espera dele. - O que é que estás a fazer a pé, a esta hora? - perguntou-lhe.
- Nunca te vejo - respondeu Ernestina.
Levantou-se do sofá, desligou a televisão e foi com ele à cozinha. O jantar de Giuseppe estava em cima da mesa.
- Fiz uma tarte de beringelas e caldeirada de robalo. Senta-te
- disse-lhe, enquanto tirava do frigorífico uma garrafa de vinho branco seco Duca di Salaparuta. Pôs dois copos em cima da mesa, um para ela e outro para o filho.
- Abre e serve - pediu, metendo-lhe um saca-rolhas na mão. Giuseppe obedeceu.
- Vi umas flores lindíssimas no hall - comentou ele, enquanto apreciava a frescura encorpada daquele branco siciliano.
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- Foi o Filippo que mas mandou, para poder chorar no meu ombro - explicou Ernestina. E uma vez que o filho continuava calado, acrescentou: - Tens alguma coisa a
dizer?
- O Filippo sufoca-me - confessou Giuseppe, e continuou:
- Foi um erro ter ido viver com ele, mas estava fascinado por um ambiente que não conhecia. Depois dei-me conta de que naquele mundo toda a gente tem de falar de
uma determinada maneira, vestir de uma determinada maneira, frequentar os mesmos sítios e as mesmas pessoas e, espremendo tudo, não há nada. É uma espécie de confraria
entre uns poucos que se autoproclamaram eleitos, que desesperam para ter uma fotografia nos jornais, que se pavoneiam quando conseguem chamar a atenção do intelectual
de turno ou de um jornalista de topo. É uma vida massacrante que não produz mais do que o tédio. E eu entediei-me imenso, mãe. O Filippo tem qualquer coisa mais,
mas não consegue estar longe daquela gente, e assim eu não posso estar junto dele. Por isso, acho que cada um de nós deve seguir o seu próprio caminho - concluiu
o jovem.
- E o teu caminho qual é? - perguntou-lhe Ernestina.
- Ainda não o encontrei.
- Giuseppe, não te armes em esperto comigo. com quem andas agora? - perguntou à queima-roupa.
A porta da cozinha abriu-se e apareceu Renato. Estava de pijama e tinha os olhos inchados de sono.
- Olha aqui os ladrões a combinar assaltos - começou, vendo a mulher e o filho a bebericar um copo de vinho. E acrescentou:
- Incomodo se beber um copo de água?
- Por que é que não estás a dormir? - perguntou Ernestina.
- Porque estiquei um braço na cama e encontrei o vazio. Não é uma sensação muito agradável.
- Estou a falar com o meu filho. É proibido? - perguntou a mulher.
- É tudo culpa da tua tarte de beringelas. Ainda a tenho no estômago. Não comas, Giuseppe.
- Realmente, ia agora explicar à mãe que já jantei. Passei a noite a controlar as obras na via Pagano. Domingo, se quiserem, mostro-vos a minha casa. Preciso de
alguns conselhos.
- Pede esses conselhos ao Filippo, que sabe mais do que nós
- resmungou Renato, saindo da cozinha.
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Giuseppe levantou-se da mesa, deu um beijo na testa da mãe e disse: - Obrigada por teres esperado por mim. E, a propósito da tua pergunta, não ando com ninguém.
Ernestina não tinha a certeza de que Giuseppe estivesse a dizer a verdade, mas não insistiu.
- Boa-noite - sussurrou-lhe, a sorrir.
Renato estava acordado quando Ernestina entrou no quarto.
- Estou cansada - disse ela, enquanto se despia.
- Mas não o suficiente para te meteres na tua vida - censurou Renato.
- Para aquilo que consegui saber... O teu filho é mais misterioso do que um túmulo - lamentou-se. Depois enfiou-se na cama ao lado do marido, que estendeu um braço
para a chegar a ele.
- Quando quiseres saber alguma coisa, pergunta-me a mim, minha querida Ernestina.
- Os nossos filhos abrem-se contigo?
- Sou mais despreocupado e conheço-os melhor do que tu. O Giuseppe, como todos os homossexuais, é irrequieto, mas tem os seus princípios. Anda com problemas com
o Filippo porque se deu conta de que não pode viver com um homem que tem o dobro da idade dele. Atirou-se ao trabalho e, entretanto, vai crescendo e reflectindo.
É um menino de ouro. Deixa-o sossegado. E agora dedica-te um bocadinho a mim, já que me acordaste - disse, tocando-lhe ternamente no seio.
Ela acariciou as costas do marido e sussurrou: - Até quando é que eu vou estar assim tão estupidamente apaixonada por ti?
- Para sempre. Nunca mais vamos deixar de nos desejar - respondeu Renato.
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Rosellina revia as matérias para o exame final do liceu juntamente com Roberta, uma colega de escola que era também vizinha deles. Interrogavam-se uma à outra e,
de vez em quando, uma das duas dizia: - Pausa Coca-Cola. - Então iam até à cozinha beber para depois retomarem o estudo.
- O que sabes tu dizer-me sobre Frederico II da Suábia? - perguntou Roberta.
- Que era um engatatão e que eu me sentiria muito feliz em ser engatada por ele - respondeu Rosellina, com um ar sonhador.
Roberta deu uma gargalhada.
- És completamente doida - disse.
- Eu sei. Mas realmente gostava de ter sido a mulher do seu coração. Era capaz de lhe servir de tapete e havia de o adorar como a uma divindade. Odeio aquela anormal
da Constança de Aragão, que nunca percebeu como ele era grande, genial, belo, inteligente. Sabes que ele falava correctamente grego, latim, árabe, alemão, italiano,
espanhol e francês? Ávido de prazeres espirituais e materiais, caçador de mulheres e de feras...
- Está bem, está bem! Mas aconselho-te a não responder assim ao júri de exame. Agora é a tua vez de me fazeres uma pergunta.
- Fala-me de Napoleão e da campanha de Itália - disse RoSellina.
Tocou o telefone e a rapariga correu até ao hall para atender.
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- Desejava falar com a signorina Corti - disse uma voz que tinha um nítido sotaque americano.
Rosellina, que ainda não se habituara à ideia de que Liliana se tinha casado, respondeu: - A minha irmã não está. Se me quiser dar o recado, eu sou a Rosellina.
- E eu sou o Max Garcia e queria precisamente falar consigo
- explicou o seu interlocutor.
Era o coreógrafo americano que Rosellina tinha conhecido aquando da exibição no Dancing Florida com Pucci.
- Pode falar - disse, enquanto agitava um braço para indicar a Roberta, que tinha ido ter com ela, a importância daquele telefonema.
- Estou em Milão, na RAI, e lembrei-me de si, que dançava com o seu irmão, se não me engano - continuou o coreógrafo.
- Eu é que me enganei, dessa vez - disse, recordando aquela quedadesastrosa na pista do Florida.
- Acontece aos melhores. Mas tinha muita classe.
- Obrigada pelo elogio - replicou, à espera do que se ia seguir.
- Não quer fazer um pequeno ensaio? Eu tenho muito interesse nisso, signorina Corti.
A rapariga teve alguma dificuldade em reter um grito de alegria, e disse apenas: - É para um espectáculo?
- Uma série de espectáculos, os de sábado à noite, para o próximo Inverno - informou Max Garcia. E continuou: - Não imagina a dificuldade que eu tive em conseguir
o seu número de telefone. Fiquei à espera que me ligasse, uma vez que lhe deixei o meu cartão.
Então decidiu fazer-se cara.
- Estou a estudar para os exames finais e ando realmente sob pressão - explicou.
- Não lhe roubamos mais do que meia hora - insistiu o coreógrafo.
- E também não sei se o meu irmão vai poder ir.
- Nós só precisamos de bailarinas. Pode vir sozinha.
- Dê-me tempo para reflectir. Podemos falar amanhã?
- Eu ligo-lhe outra vez logo à noite, signorina Corti. Amanhã espero vê-la na RAI - afirmou ele.
Durante todo o telefonema, Roberta tentou entender através dos gestos e das palavras da amiga com quem ela estaria a falar.
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Quando Rosellina voltou a pousar o auscultador, disse: - Quero saber tudo.
- Tu não sabes, não podes imaginar o que está a acontecer. No fundo, nem eu sei muito bem se realmente recebi um telefonema, se falei mesmo com o Max Garcia e se
é verdade aquilo que ele me disse. Não te posso dizer nada, porque eu própria não sei nada. Rosellina estava excitada e muito feliz.
- Não faças o número do costume. De que espectáculo estavas a falar? Quem é esse Max Garcia?
- Vamos beber uma Coca-Cola e eu conto-te tudo. Assim tento organizar as ideias.
Naquela noite, durante o jantar, os Corti realizaram uma espécie de conselho de família, no qual participaram também Liliana e o marido.
Ernestina estava fora de si com a raiva que sentia em relação ao ensaio na televisão, que considerava um atentado à virtude da filha.
- Mas será possível que estas coisas só me aconteçam a mim? De todos os meus filhos, és aquela que me põe mais maluca.
- Sempre soubeste que eu queria ser bailarina!
- E por que não uma boa professora? Por que não uma boa mãe de família?
- E por que é que o mundo é redondo e não é quadrado? - berrou Rosellina.
Ernestina levantou uma mão para lhe dar uma bofetada mas Sandro segurou-lhe no braço.
- Vamos tentar raciocinar. Os gritos não levam a nada - disse o genro em tom conciliatório.
- Como é que se pode raciocinar com uma pessoa que não ouve? - perguntou ela.
- Ao fim e ao cabo, não me parece uma proposta indecente. Trata-se apenas de um pequeno ensaio. A RAI é uma coisa séria e nem sequer temos a certeza de que ela vai
ser contratada - interveio Pucci.
- Se a contratassem, era pior do que andar por aí de noite. Vocês também lêem os jornais, portanto sabem muito bem o que acontece naqueles ambientes.
- Não achas que estás a exagerar? O mundo do espectáculo não é Sodoma e Gomorra - sentenciou Giuseppe.
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- Tu, está calado! - ordenou a mãe.
Depois atirou-se ao marido que, enterrado no seu sofá, folheava um jornal, aparentemente desinteressado daquela discussão.
- E tu? Tu que és o pai, por que não intervéns? A nossa filha tem de acabar o liceu e tirar o diploma. Diz alguma coisa de bom senso, por favor - insistiu.
Enquanto a mulher e a filha discutiam, Renato tinha observado de soslaio a sua pequenina, que era de uma beleza de cortar a respiração.
Pensava que o mundo do espectáculo não era exactamente aquilo que desejava para ela, mas era certamente aquilo a que ela aspirava.
Tinha ainda pensado sobre os filhos. A partir do momento em que tinham nascido, nunca ele tentara obrigá-los a imitá-lo. A vida, os sonhos, as aspirações dos filhos
pertenciam-lhe a eles, não a ele.
Por isso, limitou-se a dizer: - O que é que tu queres fazer, Rosellina?
- Quero ir à RAI fazer o ensaio. Se não me contratarem, paciência. Se me contratarem, fico feliz - respondeu a filha.
- E eu também fico feliz. Os fantasmas da perdição não me metem medo, porque sei que és uma rapariga sólida, apesar da tua aparência frívola. Vive a tua vida e ficas
a saber que terás sempre o nosso amor - afirmou. Depois virou-se para a mulher: - A discussão está encerrada.
Rosellina fez o seu ensaio com muitas outras raparigas. A algumas disseram: "Depois comunicamos o resultado." A ela, que se afastava a correr porque tinha de ir
para casa estudar, o coreógrafo americano disse: - Já és das nossas. Depois mandamos-te o contrato para assinar. - E apresentou-a ao director da orquestra, Cristiano
Montenero, que segurou entre as suas a mão que ela lhe tinha estendido e, olhando-a intensamente nos olhos, sussurrou: - A signorina é fantástica!
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Rosellina fez os exames e ficou aprovada. Tendo cumprido o seu dever em relação à família, sentia-se finalmente dona e senhora da sua vida.
Tinha na mão um contrato que a ligava à RAI durante todo o tempo da apresentação dos espectáculos de sábado à noite, de Outubro a Janeiro. O contrato previa dois
meses de ensaios em Roma. As bailarinas ficariam hospedadas a partir de Agosto num pequeno hotel perto da via Teulada, onde ficavam os estúdios de televisão, e deveriam
exercitar-se no ginásio todos os dias.
Ernestina não achava conveniente deixar a filha sozinha naquela grande cidade cheia de tentações e não podia sequer aceitar a oferta que lhe tinha sido feita de
a acompanhar. Por isso debatia-se entre o desejo de a seguir e a resignação de a abandonar ao seu destino e era absolutamente inútil tentar falar da sua ansiedade
com o marido e com os outros filhos.
Liliana foi de um cinismo aflitivo, quando Ernestina desabafou com ela: - O pior que lhe pode acontecer é perder a virgindade, podes ficar satisfeita por a Rosellina
ainda ser virgem. Como diz o Pai, não podes governar a vida dela. Põe o coração ao largo - disse-lhe.
- Falas assim porque não tens filhos. Espera até os teres e vais Perceber o que são as preocupações de uma mãe - reagiu Ernestina.
Liliana sentia-se pouco à vontade sempre que alguém se referia a sua maternidade. Desejava um filho que não chegava.
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Tinha-se submetido a uma série de exames para descobrir por que razão não conseguia engravidar.
- Está tudo em ordem - garantiu o especialista. - Mas a senhora está demasiado ansiosa. Tente estar tranquila e não tenha pressa.
- Não vou com certeza ser uma mãe tão possessiva como tu - replicou com irritação à mãe que, sem o saber, tinha tocado no seu ponto fraco.
Por fim, foi Pucci que acompanhou a irmã mais nova a Roma para ver como estava instalada, para a manter uns dias debaixo de olho, enquanto durassem os ensaios, e
para observar as outras bailarinas e tentar perceber se eram raparigas demasiado emancipadas e levianas.
Foi ele quem se apercebeu de que, de vez em quando, aparecia no ginásio o maestro Cristiano Montenero, que concentrava toda a sua atenção naquela irmã inconsciente.
Montenero era um director de orquestra famoso na televisão. Era um morenaço fascinante, com cerca de trinta anos, uns olhos cor de flor-de-lis e um corpo atlético.
As bailarinas adoravam-no e até Max Garcia, o coreógrafo, não perdia uma oportunidade para lhe dizer: - Gostava tanto de ser uma das minhas raparigas! Assim saberia
fazer-te feliz.
Por isso, antes de ir embora, Pucci preveniu a irmã: - Olha que aquele fulano está filado em ti. Acho que só vem aos ensaios para te apanhar. Aguenta-te, antes de
arranjares alguma complicação.
- Não faças como a mãe, que vê sombras em todo o lado. Aquele não me agarra nem por nada. Antes agarrasse! - balbuciou ela.
- Ai sim? Então levo-te já embora para Milão - ameaçou Pucci. E não estava com ar de brincadeira.
- Era só uma provocação - desculpou-se Rosellina. - Fica sossegado, por favor. Tenciono ocupar-me só do meu trabalho. Tu bem sabes como eu gosto de dançar.
- Tens de me fazer uma promessa. Se te aperceberes que estás à beira de fazer algum disparate, ou de dar um passo em falso, liga-me. Venho imediatamente e resolvemos
o problema juntos - disse Pucci, abraçando-a, quando já estava para ir embora.
Rosellina desatou a chorar e agarrou-se a ele.
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- Tenho medo - sussurrou.
- Mudaste de ideias? - perguntou-lhe.
- Não, de maneira nenhuma. Mas também preciso muito de ti e do resto da família. vou ter muitas saudades - soluçou.
- Rosellina, decide-te: ou ficas e não te pões com fitas, ou vens embora comigo.
- Fico - sussurrou ela.
Meteu a mão no bolso do casaco de Pucci, pegou no lenço, fungou vigorosamente, voltou a dobrá-lo e meteu-o outra vez no sítio.
- Tens a certeza? - perguntou o irmão.
- Diz à mãe que me estou a sacrificar muito para construir o meu futuro - afirmou, com um ar melodramático.
Pucci deu uma gargalhada e ela acabou por se rir também.
No dia seguinte, chegou pontualíssima ao ensaio da manhã.
Max Garcia era um profissional muito exigente e severo. Sabia quando aprovar e quando fazer voz grossa. As raparigas gostavam dele, mas temiam-no ao mesmo tempo.
Na sua linguagem cómica, que era um misto de americano e dialecto romano, dizia: - A dança é um divertimento. Se se quiserem divertir ao máximo, têm de fazer as
coisas bem feitas, e aí o público também se diverte. Mas se fizerem tudo mal, mando-vos embora.
Enquanto as raparigas repetiam os mesmos passos até à exaustão, ele comentava, incitava, criticava. Nada passava despercebido ao seu olhar atento. Gostava das suas
girls e tratava delas como um pai.
- Esta manhã vens com os olhos vermelhos. Estiveste a chorar?
- O meu irmão voltou para casa - respondeu ela.
- Então logo à noite vais jantar comigo. Levo-te a comer bacalhau frito e vou-te apresentar à minha irmã Manola. Não contes nada às outras galinhas, se não ficam
cheias de ciúmes - sussurrou, enquanto ostentava todo o seu repertório de gestos amaneirados.
Rosellina, que naqueles dias se tinha conformado com a comida insípida do hotel em que estava hospedada, achou-se naquela noite no pequeno jardim de um restaurante,
no meio de uma mistura de aromas e perfumes que lhe puseram a cabeça às voltas.
Descobriu que aquele local era frequentado quase exclusivamente por gente do espectáculo. Conheciam-se todos uns aos outros e tratavam-se por tu.
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Rosellina viu ao perto algumas das personagens mais populares da televisão e pensou em como se ia gabar daquela situação junto das amigas, quando lhes contasse.
Manola, a irmã de Max, era uma mulher gorducha e sossegada que toda a gente cumprimentava com simpatia. Era modista na RAI e trabalhava até para os actores mais
famosos.
- Eu vejo-os todos os dias em cuecas - disse ela a Rosellina.
- Aquele anda de corpete para esconder a barriga, aquela ali está cheia de celulite e se não fosse graças à meia-calça já tinha deixado de dar à perna há uns tempos.
Oh, olha para aquela ali ao fundo: tenho de lhe encher o soutien, porque é uma tábua rasa. Repara na loirinha: é cleptomaníaca, uma verdadeira ladra.
Rosellina ouvia, divertia-se e pensava, satisfeita: "É este o meu mundo!" De repente, tinha esquecido as saudades da família distante e sentia-se no centro de um
palco.
- Posso sentar-me convosco? - perguntou o maestro Montenero, que tinha aparecido atrás de Rosellina.
- Na verdade, estávamos muito bem os três sozinhos - brincou o coreógrafo.
- O que quer dizer que agora vão ficar muito melhor - disse ele.
Deu uma palmadinha na face de Manola, piscou o olho a Max e foi sentar-se em frente a Rosellina.
Pousou os cotovelos na mesa, apoiou aquele rosto lindíssimo nas mãos apertadas e perguntou-lhe: - Como te sentes em Roma, bambolina? (1)
- Chamo-me Rosellina - precisou ela, corando.
- Eu sei muito bem. Esculpi o teu nome no meu coração - disse ele.
- Daqui a nada vai-te dizer que tens o rosto de uma santa e o olhar de uma pantera - interveio Max. E acrescentou: - É a sua táctica de aproximação à presa. Não
lhe dês ouvidos - sugeriu.
- E funciona? - perguntou a rapariga.
- Normalmente tem sucesso - interveio Manola.
- É preciso ver que nós, mulheres, somos muito palermas.
- Mas tu não és. Tu és fina como um rato e ainda está para
1. Bonequinha. (N. da T.)
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nascer o homem que te vai dar a volta - afirmou Montenero, enquanto trincava uma garfada de peixe frito.
Rosellina olhou para as mãos dele. Nunca tinha visto um homem com umas mãos tão bonitas e perguntou a si mesma que efeito lhe provocariam se ele a acariciasse. Só
tinha tido namorados e pretendentes desajeitados. Nunca ninguém tinha olhado para ela como o fazia naquele momento o director da orquestra. Corou outra vez e voltou-se
para Max.
- É tarde, comi mais do que devia e queria regressar ao hotel
- disse.
- Podes dar-me a honra de te acompanhar? - disparou o maestro, levantando-se ao mesmo tempo.
- Honra negada. A Rosellina veio comigo e sou eu que a levo de volta. Tu podes fazer companhia à Manola, se quiseres.
- Este ainda usa polainas e detesta quando as meias fazem pregas - sussurrou Manola a Rosellina.
Montenero não se desmanchou, esboçou uma vénia e beijou a mão que Rosellina lhe estendia.
- Até à próxima, bambolina - disse.
- Rosellina - insistiu ela, percorrida por um arrepio ao contacto daqueles lábios, tão macios, com a sua mão.
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Era sábado. As raparigas do corpo de baile estavam livres até segunda-feira. Rosellina tinha feito amizade com duas delas, Stefania e Francesca. Tal como ela, eram
de origem operária, sofriam com o afastamento da família e tinham pouco dinheiro. Resolveram dar uma volta sem destino pela cidade para ver montras. Tinham feito
uma "caixa comum" e entregaram a Stefania o dinheiro suficiente para uma sanduíche num café. Pareciam três colegiais em férias. Sofriam constantemente de dores nas
costas, nos pés e nas pernas por causa daqueles ensaios massacrantes. Apesar disso, passearam durante horas, ignorando os piropos, às vezes de mau gosto, dos jovens
romanos que se cruzavam com elas.
Comeram umas sanduíches num café e depois decidiram que podiam dar-se ao luxo de uma Coca-Cola no Rosati. Quando chegou a altura de pagar, Stefania deu conta de
que lhe tinham roubado o porta-moedas. Corou violentamente e ficou à beira de um ataque de choro.
- E agora, como é que vamos pagar a conta? - perguntou às amigas.
- Que figura! - comentou Rosellina, desesperada.
- Eu não tenho coragem para dizer ao empregado que ficámos sem uma lira - declarou Francesca.
- Vocês as duas vão já ao hotel buscar dinheiro. Eu fico aqui e faço de conta que não se passa nada. Entretanto, até peço outra
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Coca-Cola - decidiu Rosellina que, nos momentos difíceis, conseguia não perder o ânimo.
As duas amigas partiram como duas setas e Rosellina ficou sentada à mesa, fingindo indiferença. Se ao menos tivesse um livro ou um cigarro, podia ocupar as mãos.
Mas não fumava e lia pouquíssimo. Nem sequer tinha óculos de sol. Estava ali, bem à vista, e tremendamente embaraçada. Baixou os olhos para o colo, onde repousavam
inertes as suas mãos. Trazia um vestido de piqué de algodão rosa velho com pintinhas pretas. Começou a contar as bolinhas, mas não conseguiu concentrar-se. Levantou
a cabeça, bebeu um gole de Coca-Cola e sentiu o estômago aos saltos. O café confinava com o restaurante Il Bolognese. Eram três horas da tarde e havia ainda clientes
que entravam para comer, enquanto outros saíam com um passo pesado por causa da comida. Achava que os romanos passavam o tempo entre cafés e restaurantes onde se
empanturravam e, sobretudo, faziam sala.
Viu sair do restaurante Cristiano Montenero, na companhia de dois homens e de uma mulher de certa idade que trazia umas jóias maravilhosas. Discutiam animadamente
e a mulher destacava-se do grupo, com uns gestos muito vivos que lhe faziam tilintar as pulseiras.
Rosellina encolheu-se na cadeira de vime para passar despercebida.
Os três homens acompanharam a mulher até um táxi que estava parado em frente ao restaurante. Depois viraram-se e foi nesse momento que o director da orquestra a
viu. Despediu-se dos amigos e foi ter com ela.
- O que é que estás aqui a fazer, sozinha? - perguntou-lhe.
- Estou a gozar o panorama - respondeu, sem convicção. Ele sentou-se à mesa.
- Estás com um ar triste - observou ele.
Então Rosellina contou-lhe o que tinha acontecido.
- Ficámos com vergonha de dizer que tínhamos sido roubadas e que não podíamos pagar. Eu continuo a beber Coca-Cola e daqui a bocado estouro. Só espero que não seja
antes de a Stefania e a Francesca voltarem.
O músico chamou um empregado e pediu um prato de bolos.
- Servem para neutralizar essa porcaria que estiveste a beber - disse.
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Ela olhou para ele com um ar desconfiado.
- Confia em mim - prosseguiu. - É possível que me consideres um palerma. Já ouviste dizer muitas coisas a meu respeito e naquela noite, quando te chamei bambolina,
mostrei o pior de mim. Por outro lado, no nosso meio toda a gente espera que eu desempenhe o papel de Gigione e eu não os posso desiludir.
- Quem é o Gigione? - perguntou ela.
- É uma personagem inventada por Ferravilla, um grande actor do passado. Chamava-se Gigi e era conhecido por Gigione porque era cheio de prosápia e de bazófia. A
palavra, imediatamente adoptada pelos actores milaneses, entrou primeiro na gíria teatral e depois na linguagem comum. Um Gigione é também um homem que chama bambolina
a uma rapariga que tem um nome lindíssimo, como tu.
- Uma explicação exaustiva - observou ela. Trincou um folhadinho recheado com creme que lhe desenhou um pequeno bigode no canto do lábio. O músico esticou a mão
e limpou-o com o indicador, depois levou o dedo aos lábios e lambeu-o. Rosellina ficou hirta, não tanto por aquele gesto de excessiva confiança como pelo facto de
o toque de Cristiano a ter perturbado. Se não tivesse de ficar à espera das amigas, tinha-se levantado e fugido a correr.
- Não há problema em relação à conta do café. Se tens de ir embora, vai - disse ele.
- Não sei - respondeu Rosellina, embaraçada.
Ele chamou o empregado e pagou a conta. Depois estendeu uma mão para a ajudar a levantar-se.
- vou levar-te a dar uma volta - propôs, com um tom decidido, e continuou: - Quero que conheças as ruazinhas tortuosas, trespassadas por uma lâmina de sol, com o
pavimento incerto e as casas tortas, que são a parte mais bonita de Roma.
- A Stefania e a Francesca... - balbuciou Rosellina.
- O empregado avisa-as de que foste embora com um amigo - sossegou-a. Deu-lhe o braço e levou-a pela via del Babuino.
- Conta-me alguma coisa de ti - pediu-lhe a meia-voz, enquanto percorriam uma ruazinha silenciosa ladeada por imponentes palácios e muros altos, por cima dos quais
despontavam as copas floridas dos jardins.
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- Acabei o liceu, fiz os exames finais e tive umas notas excelentes, mas isso já sabe - começou a contar e, uma vez que a proximidade daquele homem maduro, fascinante
e rico de experiência a fazia de alguma forma sentir-se mais próxima do sucesso, prosseguiu, dando livre espaço à fantasia. - Sou a última de quatro irmãos. A Liliana,
a mais velha, é advogada, o Giuseppe é estilista, viaja entre Londres e Nova Iorque e mora num palacete antigo no coração de Milão, o Pucci é um dos directores mais
importantes de um grande banco, o pai é um dos chefes do sindicato, a mãe tem uma indústria de malhas muito conhecida, vivemos num apartamento enorme que herdámos
de uma tia americana e temos um casal de empregados ao nosso serviço. Neste momento o pai está em Cortina d'Ampezzo, com alguns companheiros de partido, e a mãe
na Côte d'Azur, num barco de uns velhos amigos. E pronto, que mais lhe posso eu dizer, maestro?
- Chamo-me Cristiano e peço-te que me trates por tu - disse ele, com um ar divertido.
- Que mais queres saber, Cristiano? - repetiu Rosellina.
- Elimina todas as lantejoulas, que são o espelho da tua imaginação, e conta-me a tua história verdadeira - disse ele, a sorrir.
Passaram ao lado de uma loja de tapeçarias. Estava fechada, mas o artesão tinha deixado em exposição no passeio uma passadeira, umas cadeiras forradas de tecido,
uma mesa pequena e uns bancos.
- Vamos parar aqui - propôs.
Sentou-se ao lado dela, passou uma mão leve pelo contorno do seu rosto e olhou-a nos olhos.
- Então, Rosellina, fala-me de ti a sério - pediu com delicadeza.
Ela baixou os olhos, intimidada por aquela espécie de carícia.
- Eu acho que contei uma história credível. É pena que não tenhas acreditado, porque eu gostei muito dela - sussurrou.
- Tenho a certeza de que a verdadeira é muito mais interessante - afirmou ele.
- Eu sou a mais nova da família. Os meus pais são operários. Cresci num bairro popular mas desde há alguns anos vivemos num apartamento muito elegante no centro
de Milão. Foi um golpe de sorte, mas essa é uma longa história. A minha mãe telefona-me todas as noites e ameaça-me com castigos se eu me meter em alguma
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confusão. Tenho saudades da minha família. Não me acho uma grande bailarina, apesar de o Max ter simpatizado comigo e me querer ajudar. Ao olhar para as raparigas
que dançam comigo, apercebi-me de que têm uma ligeireza que eu nunca vou alcançar - observou. E acrescentou: - O meu instinto diz-me que devia fazer as malas e regressar
a Milão - confessou com sinceridade.
Ele segurou uma mão de Rosellina, acariciou-a e disse: - És tão bonita que eu fico sem fôlego.
Ela tirou a mão de repente e replicou: - Eu sou só uma estúpida e se a minha mãe aqui estivesse já me tinha dado um par de estalos. E nem sequer te tinha poupado
a ti, podes ter a certeza - disse, levantando-se.
- Mas a tua mãe não está aqui - rebateu ele, que estava com ar de quem se diverte.
- Nem a tua mulher - sublinhou ela.
- A minha ex-mulher não dá bofetadas, dá murros. Uma vez estendeu-me com um uppercut nos queixos. Até desmaiei - confessou.
- Não sabia que a loira, a evanescente Nadia Brumberg, era pugilista - respondeu a rapariga, espantada, referindo-se à mulher do director da orquestra, que era uma
estrela do Casino de Paris. Tinha interpretado muitos filmes musicais e Rosellina considerava-a uma divindade a todos os títulos.
- É experimentar para crer - disse ele, a rir. - Agora, que já não é minha mulher, é uma delícia, mas enquanto estivemos casados, viver com ela era como conviver
com um terramoto.
- Bem, está a ficar tarde e eu tenho de ir embora - decidiu Rosellina.
- Eu levo-te - disse ele, dando-lhe o braço.
Tinha um carro desportivo estacionado na piazza del Popolo. Levou-a ao hotel. Saiu do carro e abriu-lhe a porta.
- Se eu não nasci para bailarina, o que hei-de ser? - perguntou-lhe ao despedir-se.
- Actriz - respondeu ele, calmamente.
- Mas eu não sei representar.
- Tu representas desde que nasceste - afirmou o músico. Pegou-lhe delicadamente na mão e deu-lhe um beijo, levíssimo.
- Até um dia destes, Rosellina - prometeu.
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Ela deu alguns passos em direcção à entrada do hotel e depois voltou atrás.
- O que queres de mim? - perguntou, decidida.
- Ainda não sei. Não fiques melancólica, esta noite. Pensa no dia em que te vais tornar uma grande actriz - disse-lhe, e foi-se embora.
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No dia 21 de Agosto morreu, em Yalta, Palmiro Togliatti. A Roma, à via delle Boteghe Oscure, onde ficava a sede do Partido Comunista, confluíram políticos e jornalistas,
intelectuais e gente do povo provenientes de toda a Itália. Chegou também Renato Corti, que telefonou à filha.
- Amanhã é o funeral e depois os meus companheiros regressam a Milão. Eu vou ficar mais um dia para estar contigo - disse o pai a Rosellina.
No dia seguinte abraçaram-se no hall do pequeno hotel que, no fundo da sala, tinha um bar com alguns sofás gastos e mesinhas desconchavadas. Pai e filha sentaram-se
no canto mais afastado.
- Pai, ele era mesmo o Melhor, como toda a gente lhe chamava? - perguntou Rosellina, referindo-se ao político falecido.
- Para mim foi. Aquilo que eu sou devo-o a ele e a outros como ele, que me incutiram valores, me deram pontos de referência e me ensinaram a estudar a nossa história
- afirmou, comovido.
Rosellina acariciou-lhe um braço.
- Papá querido, gosto tanto de ti - disse a filha de repente.
- Não tanto quanto eu gosto de ti - replicou Renato, sorrindo-lhe, e prosseguiu: - Como é que tu estás?
- Acho que estou apaixonada - confiou-lhe, num sussurro.
- E alguma vez não estiveste? Tiveste namorados desde o tempo em que andavas no infantário. Nem eras a minha Rosellina se
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não passasses de uns amores para os outros, sempre a encher os teus lenços de lágrimas.
- Desta vez é diferente.
- Eu sei. É sempre diferente. Quantas vezes eu te ouvi dizer a mesma coisa. Se tivesses vivido há cinquenta anos, agarravas-te às cortinas como a Francesca Bertini,
(1) levavas a palma da mão à testa e fazias vibrar o teu corpo com os soluços. Gostas de desempenhar o papel da mulher que sofre de amor - brincou Renato e, no entanto,
uma vez que Rosellina não reagia, perguntou a si mesmo se não teria chegado o momento de a levar a sério.
- Ele é um homem, pai. E até já foi casado - sussurrou Rosellina.
Renato calou-se, esforçou-se por parecer calmo e disse: - Vamos por partes, minha menina. O teu pai é um homem evoluído, que conhece a vida e que não se perde com
facilidade. Certo?
Rosellina anuiu.
- Acontece que um pintainho, ao dar os primeiros passos longe da galinha, encontra um predador que o quer comer. Certo?
A rapariga anuiu novamente.
- E então, o que faz o pintainho?
- Foge - disse a filha.
- E tu fugiste, não foi, minha menina? - Renato falava lentamente, pronunciando bem as palavras.
- Eu estou apaixonada, pai.
- Mas é uma coisa passageira. Ou não?
- Pai, é lindo de morrer e quando olha para mim com aqueles olhos tão... tão magnéticos... eu estremeço, bate-me o coração e sinto-me derreter - explicou Rosellina,
levando as mãos ao peito. Nos seus lábios pairava um sorriso e olhava para o pai com uns olhos extáticos.
Perante aquela mímica, a tranquilidade a que Renato se tinha proposto até àquele momento transformou-se em raiva. Levantou-se de repente e, apontando um dedo ameaçador
contra a filha, perguntou: - Quem é esse desgraçado?
Ela, que não esperava tal agressividade por parte do pai, começou a chorar silenciosamente.
1. Diva do cinema mudo italiano (1892-1985). (N. da T.)
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- Metes-me medo - balbuciou entre lágrimas.
- Quem é esse desgraçado? - repetiu Renato, num sussurro.
Rosellina levantou-se por sua vez, limpou as lágrimas e fez-lhe frente. - Não fiz nada de mal, pai.
- Antes assim. Mas agora vais-me dizer quem é esse desgraçado que assedia uma rapariguinha, que é para eu poder torcer-lhe o pescoço. Porque é precisamente isso
que tenciono fazer.
- Se pões a questão assim, nunca te vou dizer o nome dele - respondeu, decidida.
Renato tinha já esquecido a comoção pelo funeral de Togliatti. Só pensava na responsabilidade que tinha assumido ao decidir mandar a filha para Roma.
- Não há problema - disse ele, recuperando a calma. Deu-lhe o braço e, os dois juntos, foram ter com o porteiro: - Dê-me por favor a chave do quarto da minha filha
- pediu.
Subiram até ao quarto, Renato pegou na mala que estava em cima do armário, pousou-a em cima da cama, abriu-a e começou a enchê-la com a roupa de Rosellina.
- Vais-me obrigar a voltar para casa? - perguntou ela.
- Que mais posso eu fazer? - perguntou Renato.
- Era suposto ser um segredo nosso. Agora a mãe vai descobrir tudo - comentou a filha. - Já para não falar do contrato que assinaste para mim. Foste precisamente
tu quem o assinou, pai. E agora vais ter de pagar uma multa. Enfim, quero que fiques a saber que me cortaste as asas. Podia ter voado até muito longe, mas... vou
ser uma pobre infeliz, toda a vida.
Renato fechou a mala, sentou-se na beira da cama e olhou a filha nos olhos. Rosellina parecia serena, resignada, e sorria.
Os propósitos belicosos do pai desvaneceram-se perante a candura desarmante daquele rosto tão alegre e tão límpido.
- Não quero saber da multa para nada. Tu és mais importante do que tudo isso, minha pequenina - sussurrou. E acrescentou:
- Eu tenho de te proteger. Percebes?
- Até quando? - perguntou ela.
- Até quando for preciso.
- Pai, quero contar-te uma coisa que tu não sabes. Quando morávamos no corso Lodi, um dia encontrei nos campos um passarinho caído do ninho. Levei-o para casa, escondi-o
no quarto onde
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dormia com a Liliana e alimentei-o com paciência. Dava-lhe sementes e migalhas de pão. Estava desesperada a tentar salvá-lo. Entretanto, cresceu. Quando tentava
voar, eu assustava-me e apertava-o nas minhas mãos, com medo que fosse bater contra as paredes. Chegou a Primavera e no velho pátio começaram a esvoaçar os passarinhos.
Então saí para a varanda e disse-lhe: "Agora podes ir com eles." E atirei-o ao ar. As asas não estavam suficientemente robustas. Caiu como um seixo no empedrado
e morreu. Por excesso de amor, não o deixei aprender a voar.
Ao fim de uns instantes de silêncio, Renato disse: - Quer dizer que eu vou ter de te deixar nos braços de um homem casado? - murmurou.
- Eu ainda não lhe caí nos braços. Só te disse que estou apaixonada. Não me parece que ele saiba destes meus sentimentos.
Renato levantou-se, rodeou-lhe os ombros com um braço e disse: - Anda comigo até à estação. Eu volto para Milão.
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No Outono, desfilou pela primeira vez nas passerelles a marca Lorenzi by Giuseppe Corti.
O novíssimo estilista, que tinha aprendido aquela profissão na fábrica de malhas onde a mãe trabalhava havia já tantos anos, fez um grande sucesso, revelando um
gosto muito próprio, baseado na cor e na simplicidade dos modelos. Tinha criado vestidos que podiam ser usados por qualquer mulher, de qualquer idade e qualquer
estrato social. Para os apresentar ao público escolheu as manequins entre as empregadas da empresa Lorenzi e entre as alunas das escolas superiores. O último vestido,
um branco, de noiva, que coroava o desfile, foi usado por Rosellina, que se apresentou na passerelle acompanhada por Pucci, em fato de cerimónia, sobre as notas
de uma suavíssima valsa vienense.
Choveram aplausos para aquela estreia que deixou excitadíssimos os jornalistas, sempre à caça de novidades. Até os cameramen que ali estavam para gravar o desfile
quiseram aplaudir. Giuseppe foi arrastado até à passerelle, enquanto o público gritava o seu nome ao ritmo das palmas. Acabava de se tornar famoso. Ele agradeceu
com uma vénia e depois refugiou-se nos bastidores invadidos por compradores que queriam tocar com as próprias mãos os vestidos da nova colecção e ansiavam por falar
com Lorenzi e com ele.
Lorenzi abraçou-o e disse-lhe: - Lembra-te que me deves tudo a mim. Se eu não te tivesse arrancado aos Scanni, ainda lá estavas a desenhar pólos.
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- Também é verdade que eu acreditei em si, signor Lorenzi, quando outros estilistas lhe viraram as costas - respondeu.
- Agora temos de atender os compradores - disse o patrão, que nunca tinha visto tanto entusiasmo entre os seus clientes.
- Isso é tarefa sua. A minha parte acaba aqui - esclareceu Giuseppe.
- Ainda não. Vais ser a estrela da festa - explicou, por sua vez. O hábil industrial tinha organizado uma recepção soberba, nos salões do Grand Hotel, para todos
os seus funcionários.
- Eu não vou à festa. Estou cansado. Amanhã falamos - rematou.
Para preparar aquele desfile, tinha passado várias noites sem dormir, durante as quais controlara os vestidos um por um, em todos os pontos e em todos os pormenores.
- Não me podes fazer isso - disse Lorenzi, indignado.
- Posso sim, até porque estou a fazê-lo - afirmou Giuseppe, ao mesmo tempo que se afastava.
Encontrou o carro no meio da selva de automóveis estacionados, entrou e arrancou a toda a velocidade. Precisava desesperadamente de estar sozinho.
Quando chegou à villa da via Pagano, o portão estava fechado, as persianas descidas e os andaimes desertos. Os operários, que trabalhavam naquele restauro há meses,
já tinham ido embora.
Entrou em casa, impregnada do cheiro das tintas, do estuque fresco e da cal.
Acendeu todas as luzes e vagueou pelos aposentos vazios, que lhe devolviam o eco dos seus passos. Levantou os olhos para os tectos ornamentados de frisos florais
miraculosamente intactos e observou o corrimão de ferro forjado que avançava pela escadaria ampla. Subiu até ao primeiro andar e sentou-se no chão do patamar, protegido
por um plástico, encostou os ombros à parede e ficou ali a admirar de cima aquela casa concebida como um exemplo de arquitectura e decoração Liberty. Olhou para
os frescos no tecto e nas paredes, que representavam libélulas em voo, rosas desfolhadas, ramos entrelaçados, andorinhas elegantes e mulheres em pose de estátua.
Giuseppe tinha todos os motivos para se sentir feliz, naquela noite. Mas baixou a cabeça e apoiou-a nos joelhos, tomado por uma
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dor que o acompanhava desde sempre. Gostaria de ser extrovertido como os irmãos, como os pais. Às vezes conseguia sê-lo, mas eram só uns fogachos no pântano da sua
melancolia. Agora recordava quando, em pequeno, pedia ao pai a lua e Renato se ria e lhe dizia "Isso não te posso dar. Tens de te contentar em olhar paraela." Não
se conformava com aquela negação e esticava os braços para a agarrar sozinho. Mas a lua era realmente impossível de alcançar. Nesses momentos sentia uma dor que
o atormentava entre o peito e a garganta e chorava desesperado. Renato abraçava-o e prometia-lhe: "Amanhã vou-te comprar uma bolinha de prata." Mas ele queria a
lua e não a podia ter.
- vou ter de me contentar com uma bolinha de prata - disse agora, em voz alta. E prosseguiu: - Não sou nada, não sou ninguém.
Levantou a cabeça e viu Pucci à sua frente.
- Pode ser que não sejas ninguém, mas entretanto toda a gente te quer lá em casa: eu, a Rosellina, a Liliana, o Sandro, o pai e a mãe.
- Aqui está o Pucci, o socorro, o eixo sólido em volta do qual roda toda a família - disse tristemente Giuseppe, enquanto se levantava.
- Vamos para casa - repetiu o irmão, e acrescentou: - Sabes, dei uma volta pelo rés-do-chão e pela cave. Há muito espaço e eu tive uma ideia. Podíamos abrir um estúdio
com colaboradores teus e idealizar uma linha de moda só tua. És um desperdício, com o Lorenzi. Ele está a ganhar um monte de dinheiro com a tua criatividade. Percebes
isso?
Giuseppe olhou para ele, perplexo.
- Continua - disse, enquanto desciam juntos as escadas.
- Vamos fazer uma sociedade, os dois. Eu deixo o banco e trato da parte administrativa e comercial, tu és o criativo e, bonito e forte como és, vais ter aos teus
pés a gente que interessa. O instinto diz-me que podemos montar uma empresa mais rentável do que uma mina de ouro.
Enquanto davam uma volta pelos vários aposentos, Pucci delineou uma aventura emocionante.
- Eu tenho um contrato com o Lorenzi - observou Giuseppe.
- Acaba daqui a dois anos e é precisamente o tempo de que precisamos para arranjar capital e projectar o nosso futuro.
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Da cave saíram para um pequeno jardim murado, atulhado de escadotes, latas de tinta, sacos de cimento e ferramentas. Sentaram-se num banquinho de pedra, no meio
da papelada que os trolhas lá tinham deixado.
- Podia-se fazer - disse Giuseppe.
- Pode-se fazer - afirmou Pucci.
- Desculpa a maneira como te recebi.
- Acumulaste muita tensão e muito cansaço durante estes meses.
- Eu não sou um artista, Pucci. Sou um costureirinho.
- Vais começar outra vez?
- Pensa em Utrillo, Degas, Renoir, Matisse, Van Gogh, Picasso, pensa em Telemaco, Signorini, Modigliani, Miro. São esses os artistas que eu amo, que me comovem até
às lágrimas, que falam uma linguagem universal. Em criança bastava-me um papel, um lápis ou um pincel, e fazia desenhos, sonhando tornar-me um grande pintor. Mas
afinal só sei desenhar vestidos, botões, aplicações...
- Mas sabes fazer essas coisas como um mestre. É isso que conta - afirmou Pucci, seguro.
- Anda, vamos para casa. O que é que a mãe nos preparou?
- A terrina do costume, cheia de massa.
- O ideal para festejar - afirmou Giuseppe, e finalmente sorriu.
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Os pais de Ariella, o casal Spada, tinham partido de Forli de manhã cedo e às nove horas estavam em Bolonha. Foram tocar à porta de Giuliana, a irmã mais velha,
que morava na via D'Azeglio com o marido, o Dr. Raffaele Ercoli, num apartamento que ocupava todo o segundo andar de um palacete antigo. Foi Ariella quem veio abrir,
já pronta para sair com eles. Iam juntos a Milão, a casa dos Corti. - Já vos preparei o café e também há brioches quentes - disse, depois de os ter abraçado. Ajudou-os
a tirar os casacos e avançou à frente deles até à cozinha, que era imensa e conservava o mobiliário dos anos vinte. A mãe sentou-se à mesa e deixou vaguear o olhar
pelos cobres luzidios pendurados numa prateleira, pelo frigorífico monumental, os dois aparadores gémeos e uma grande máquina de cortar fiambre pousada numa mesinha
própria para o efeito. Aquela cozinha reflectia o gosto bolonhês pela boa mesa.
- A Giuliana e o Raffaele ainda estão a dormir - disse Ariella, enquanto deitava o café nas chávenas. Numa taça de pé, ao centro da mesa, sobressaíam os brioches
dourados.
A signora Spada esticou uma mão sapuda e pegou no maior.
- Em Forli não os temos assim tão bons - comentou, enquanto comia.
- Pai, tira um também - sugeriu Ariella.
- Pode ser - aceitou Tommaso Spada, e acrescentou: - Depois do que tive de engolir por tua causa.
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- Tommaso, sossega, por favor - pediu a mulher.
Tinham sido uns dias de tempestade em casa dos Spada e em casa dos Ercoli, depois de Ariella ter confessado que estava grávida. O pai tinha ficado furioso e o genro
ainda ajudou.
- com tanto bom partido que há em Bolonha, tinhas de arranjar uma complicação com um guarda-livros que frequenta a pensão Miami de Cesenatico! Tu, uma estudante
universitária, com um cunhado como o Raffaele, deixaste-te comer por um morto de fome - reforçou a irmã, cheia de orgulho por ter casado com o descendente de uma
das mais ilustres famílias burguesas da cidade.
- E afinal quem é esse Pucci Corti? - perguntou Raffaele Ercoli, um homem de cinquenta anos, médico dentista, rico proprietário de terrenos. A signora Spada, que
o definia como sendo tão feio quanto antipático, dizia dele: "O meu genro tem uma profissão muito nojenta: mete sempre as mãos na boca das pessoas." Tommaso Spada,
pelo contrário, gabava-se daquele parentesco que o fazia brilhar também a ele, simples ferroviário, apesar de o genro o tratar com altivez. Quando o Dr. Ercoli falava,
dissesse o que dissesse, o sogro rebaixava-se e anuía, mesmo que não entendesse o que ele estava a dizer.
- O Pucci trabalha num banco, a irmã mais nova está em Roma e é bailarina, o irmão trabalha na moda e é um bocadinho... assim... A irmã mais velha trabalha na Collenit
e casou com um viúvo que é contabilista. Os pais são operários e parece que têm uma bela casa, sabe-se lá como foi que a arranjaram. A minha mulher, que tem mentalidade
de criança, está tão apaixonada por esse Pucci como a filha. O que é que eu posso fazer? - perguntou Tommaso ao genro.
- Lamento muito pela vossa Ariella, que estragou a vida - concluiu dramaticamente o dentista rico.
Valeu de pouco que Ariella tivesse tentado sossegar a família ao dizer que Pucci tencionava assumir as suas responsabilidades. Quando o signor Spada telefonou aos
pais do rapaz, pedindo para falar com Renato, Ernestina disse-lhe: - O meu marido não está, mas se aqui estivesse não lhe dizia nada mais do que aquilo que eu lhe
POSSO dizer. Sabemos de tudo e vamos enfrentar a situação segundo as nossas possibilidades.
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- Talvez fosse melhor encontrarmo-nos, uma vez que não nos conhecemos - propôs então o signor Spada.
- Quando quiserem - rematou Ernestina, que estava furibunda mas tentava conter a raiva.
Combinaram então um almoço em casa dos Corti, em Milão no domingo seguinte.
O ferroviário, uns dias antes, ousou pedir ao genro que os acompanhasse, para fazer frente à família de Pucci. Mas o Dr. Ercoli encolheu-se, horrorizado: - Eu não
sujo as mãos com certa gente.
Assim, naquela manhã de Novembro, o casal Spada preparava-se para partir rumo a Milão com aquela filha insensata.
Durante a viagem de comboio, Tommaso Spada consultou a mulher a propósito do significado das palavras de Ernestina: - O que terá ela querido dizer com aquela frase?
- Qual frase?
- Disse que iam enfrentar a situação segundo as suas possibilidades. Podia querer dizer muita coisa. Até podia querer dizer que lavam dali as mãos.
- Por que não deixam de se atormentar? - resmungou Ariella.
- Porque tu és uma irresponsável, é por isso! Aquele Pucci, da mesma maneira que te tramou a ti, pode ter tramado outras tontas
como tu.
Enquanto os Spada se martirizavam no comboio para Milão, Renato Corti tinha ido a uma pastelaria, a mando da mulher.
- Não tenho tempo de fazer também a sobremesa. Escolhe qualquer coisa bonita e colorida. Pede também bombons de ginja e violetas caramelizadas. Não gosto nada daquilo,
mas com aqueles provincianos vão fazer um grande efeito - mandou Ernestina.
Durante a noite tinha-se levantado um vento húmido que anunciava chuva, arrancava das árvores as folhas amarelecidas e erguia remoinhos de pó. Renato foi à via Orefici,
onde comprou os doces e, na piazza Duomo, comprou o Unità. Depois enfiou-se no Campari e pediu um café. Sentou-se a uma mesa e começou a ler o jornal.
Naqueles dias, nas fábricas, a hostilidade entre os sindicatos de esquerda e os de direita tinha aumentado. Renato esforçava-se por entender o que se estava a passar,
para além das informações muito
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formais da direcção no sentido de tranquilizar as pessoas. Naquele dia havia um encontro, em Pavia, entre os representantes sindicais dos metalomecânicos. Ele não
podia participar com os outros companheiros porque tinha de tratar de Pucci. Na realidade, Renato não considerava um problema a gravidez daquela bonita rapariga
por quem o filho se tinha apaixonado. Mas pelas conversas de Ernestina percebeu que era a família dela quem estava a fazer daquilo um drama e, tendo de escolher
entre os compromissos sindicais e os familiares, decidiu ficar em casa, porque em qualquer caso o destino do mundo não ia mudar em nada.
Quando ia a chegar a casa, viu Pucci passar de carro. Ia à estação buscar a família Spada. Ele subiu lentamente as escadas, sentindo-se ridículo com um tabuleiro
de doces numa mão e o Unità na outra.
Pensou que talvez devesse ter ido a Pavia com os companheiros, apesar de começar já a sentir-se cansado de travar aquela guerra contra os moinhos de vento. O socialismo
soviético já não encantava ninguém. O próprio Kruchev fora derrubado com a desculpa de ter o culto da personalidade e agora havia Brejnev, que tinha um olhar mais
feroz do que o de Estaline. O próprio Togliatti, no Memoriale di Yalta, que tinha sido um pouco o seu testamento, sugerira uma maior autonomia do Partido Comunista
Italiano nas suas relações com a Rússia. Renato, e muitos outros como ele, sentia que entre os dirigentes do partido se insinuava uma inquietação que não augurava
nada de bom.
Agora, como conclusão daqueles pensamentos, achou que de qualquer maneira tinha um ponto firme na vida: a sua família. E concluiu que tinha feito muito bem em ficar
em casa. Desejou que os pais de Ariella não fossem assim tão insuportáveis como Ernestína dizia.
Quando estavam já todos reunidos na sala a saborear um aperitivo acompanhado de pão rústico e fatias de salame Negronetto e a Segnora Spada admirava a elegância
do apartamento dos Corti, Tomaso Spada voltou-se para Renato.
- Tínhamos outras aspirações para a nossa Ariella - começou.
- Quais? - perguntou candidamente Renato.
- Queríamos que acabasse o curso, mas...
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- Mas os nossos filhos vão-se casar, uma vez que vem aí um netinho. Só que a Ariella vai poder continuar os estudos. É verdade que o meu filho não passa de um guarda-livros,
mas tem excelentes qualidades: antes de mais, a vontade de trabalhar - replicou Renato.
- E depois, se gostam um do outro... - disse a signora Spada que comparava a fealdade do genro dentista com o jovem Pucci lindo como o sol.
- Mas esta gravidez... - insistiu o ferroviário.
Dá Deus as nozes a quem não tem dentes, pensou Ernestina. Tinha em mente Liliana, que se consumia no desejo de um filho. Um dia tinha-lhe confessado que não sabia
como sugerir ao marido que também ele fizesse uns testes. - O médico diz que pode depender dele o facto de eu não engravidar.
Ernestina ficou escandalizada. - Não podes pedir uma coisa dessas a um homem. Se te mandasse dar uma volta, tinha muita razão - exclamou, porque lhe parecia uma
blasfémia suspeitar que um homem fosse estéril. Depois animou-a: - Deixa lá os testes e dá tempo ao tempo.
Por isso foi ela quem respondeu ao comentário infeliz do ferroviário: - Um filho é sempre uma bênção. O Pucci e a Ariella, para já, podem ficar a viver connosco.
Felizmente temos uma casa grande e confortável.
Tommaso Spada não respondeu, mas no fim do almoço, a abanar a cabeça, disse: - Temos de nos conformar.
- Chega, pai! Já não posso mais - protestou Ariella, que estava a levantar a mesa com a ajuda de Pucci.
Caiu o silêncio sobre os presentes e os dois jovens refugiaram-se na cozinha a preparar o café. - Meteste-o na ordem - disse Pucci. E acrescentou: - Por que não
tentas compreendê-lo? Estava à espera de um genro tão rico como o de Bolonha e vê-se obrigado a digerir um bancário de Milão.
- Tu és o homem dos meus sonhos - sussurrou Ariella, enquanto lhe afagava o peito. Amava-o apaixonadamente e, ao conversar com as amigas, comparava-o a Rock Hudson.
"Mas o Pucci é mais bonito", garantia.
Mas se tinha sido conquistada pela sua beleza, a seguir soubera apreciar a inteligência e a determinação daquele rapaz. Não era
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assim tão ingénua e tão inconsciente como a sua família julgava e tinha a certeza de que Pucci nunca havia de a desiludir.
Agora, ele disse-lhe: - Eu não vou trabalhar no banco durante toda a vida. Tenho um grande projecto, apesar de demorar ainda uns anos a concretizá-lo, mas um dia
o teu cunhado dentista vai sentir inveja de mim.
- De que se trata? - perguntou a rapariga, enquanto dispunha as chávenas no tabuleiro.
- Ainda não chegou o momento. Agora vamos levar o café - respondeu ele.
Ariella sabia que o namorado nunca falava por falar e abençoou a gravidez que lhe permitiria casar-se imediatamente e viver ao lado dele.
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Ariella estava no sétimo mês de gravidez e, desde o dia do casamento, vivia alegremente em Milão, na casa dos sogros.
Os pais Corti tratavam-na como uma filha e Rosellina elegera-a sua confidente: - Um privilégio que até agora reservava só para o Pucci - disse-lhe.
Rosellina regressara de Roma em Janeiro. Uma agência de manequins propôs-lhe um contrato para a publicidade de um cosmético. Pucci foi o seu agente e recebeu uma
comissão. O rapaz tinha descoberto um mundo em que o dinheiro corria como um rio e era preciso ler e interpretar com atenção os contratos para os aproveitar ao máximo.
Pucci começava a apaixonar-se por aquela matéria nova e interessante da qual Rosellina continuava a querer fugir, porque ficava para além das suas capacidades de
compreensão, confiando cegamente no irmão.
Agora ele tinha-lhe arranjado uma empresa que produzia cerveja e andava à procura de uma imagem de rapariga não só para a publicidade nos cartazes das ruas e na
imprensa, mas também para a televisão. Entre muitas caras bonitas, foi ela a escolhida, e Pucci tinha conseguido uma boa remuneração. Rosellina, feliz por aparecer,
nem queria saber quanto ganhava. Bastava-lhe ter dinheiro para gastar em futilidades. Acabava de comprar um pequeno enxoval para o bebé que ia nascer.
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Era uma tarde de feriado e os noivos tinham-se refugiado no quarto porque Ariella estava com os tornozelos inchados e precisava de descansar. Rosellina entrou no
quarto com uma grande caixa cinza-pérola atada com uma fita branca.
- Arranjem-me espaço - disse, ao mesmo tempo que se sentava na cama e pousava a caixa em cima da coberta. - Fiz umas compras para o meu futuro sobrinho - acrescentou,
cheia de entusiasmo.
- Vamos lá ver - disse a cunhada, curiosa, enquanto desfazia o laço. Saíram dali camisinhas de seda branca acabadas à mão e debruadas a renda, touquinhas cheias
de fitas, mantas e lençoizinhos bordados que eram uma alegria para os olhos.
- Mas que maravilha! - exclamou Ariella. - Pucci, olha que ternura! Rosellina, deves ter gasto uma fortuna.
- Daqui a pouco o teu marido vai dizer que eu sou completamente louca - disse a rapariga.
- És completamente louca - confirmou o irmão. - Como é que tu podes pensar que um recém-nascido, que tem de ser lavado e mudado de cinco em cinco minutos, pode ser
vestido com estas coisas?
- Ouviste isto? Os homens são todos iguais. Em vez de nos agradecerem, dizem estas coisas - comentou Rosellina.
- Deixa-o falar. Eu agradeço-te imenso esta prenda - respondeu Ariella. E, com a ajuda da cunhada, arrumou o enxoval dentro da caixa. Depois acrescentou: - Conta-me
alguma coisa agradável. Vejo-te tão pouco!
Pucci eclipsou-se, a resmungar.
- Não faças caso. Foi lá para fora fumar um cigarro - disse Rosellina. E continuou: - Então, o que é que queres saber?
- Do teu morenaço, por exemplo - respondeu Ariella.
- Fala baixo. O Cristiano Montenero é tabu nesta casa - sussurrou a rapariga.
- Continuas apaixonada?
- Cega de paixão. Já olhaste bem para mim? Estou a apagar-me como uma chama pequenina. Vou-me consumir de desgosto, como as raparigas do século XIX - murmurou, com
um tom dramático.
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Ariella sorriu ao recordar a quantidade de tagliatelle com molho de carne que a cunhada tinha devorado ao almoço.
- Travei uma batalha feroz contra todos os medos que esta família de carrascos me atirou para cima. E contra o Cristiano que de cada vez que estávamos em vias de
fazer amor, fugia como uma lebre, dizendo que não queria arruinar a minha vida. Finalmente venci as resistências dele e os meus medos - suspirou, ao recordar a sua
primeira noite de amor. O músico tinha-lhe dito, segurando-a nos braços como se fosse uma relíquia: - Um dia vou casar contigo. - Ela respondeu: - Não tenho a mínima
intenção de casar contigo, nem de ter filhos. Já tenho a minha família. Não preciso de outra.
Agora acrescentou, para satisfação da cunhada: - É tudo tão romântico!
Ariella esclareceu: - Sim, mas vais casar com ele, não vais?
- Porquê estragar com um casamento uma relação que se alimenta do temor do abandono? Amamo-nos apaixonadamente, mas se nos casássemos íamos amar-nos menos.
- O que é que estás para aí a dizer? Ias senti-lo mais teu - afirmou Ariella.
- Já é completamente meu neste momento. Onde é que ele vai arranjar outra bonequinha de quem goste tanto como gosta de mim?
- Pois, essa é a tua sorte. Toda a gente gosta de ti.
- Estás a falar a sério?
- É isso mesmo, Rosellina - disse Ariella, abraçando-a.
- Gosto que os outros me apreciem. Tenho sede de aceitação - afirmou, e acrescentou: - Para quê casar-me? De qualquer maneira, vou ter filhos: os teus e os da Liliana,
que eu espero que consiga fazer algum, coitadinha.
Naquela noite, Pucci e Ariella foram ao cinema com Liliana e com o marido ver Mary Poppins.
As duas cunhadas, sentadas uma ao lado da outra, divertiam-se com aquela história engraçada. De vez em quando, Ariella sorria, pousava uma mão na barriga e sentia
o bebé a dar pontapés. Quando saíram do cinema, Sandro convidou-os para irem a um café, por baixo da galeria, acabar a noite com uma chávena de chocolate quente.
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As duas raparigas foram à casa de banho e, enquanto lavava as mãos, Liliana sussurrou para a cunhada: - Estou grávida.
- E só agora é que me dizes? - perguntou Ariella, com as mãos a pingar suspensas no ar.
- Por enquanto nem sequer o meu marido sabe, mas estou tão feliz que preciso de dizer isto a alguém - explicou.
- Por que não falaste com o Sandro?
- Quero arranjar um momento absolutamente perfeito para esta grande notícia - confessou Liliana.
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BARROW - CORNUALHA
Maria De Vito e a sogra, Evelyn, sentadas no relvado em frente à antiga cottage, conversavam tranquilamente enquanto Nelson tinha ido jogar ténis com Peter Burton,
o pastor. Sir Pitt, o cão do casal De Vito, dormia esticado em frente à porta de casa.
- Não me lembro de um Agosto tão generoso de sol como este ano - disse Evelyn.
- Refrescado por esta brisa subtil e discreta - observou Maria.
- Li no Morning Post que em Itália chove torrencialmente.
- Depois volta aquele calor abafado que tolhe as pernas a todos aqueles que ficaram na cidade.
Sogra e nora falavam de banalidades, naqueles dias de férias em Barrow, na Cornualha.
Através da janela da cozinha, aberta sobre o jardim, chegou um delicioso perfume a canela.
Maria De Vito levantou-se da cadeira.
- vou desligar o forno. Acho que a tarte de maçã está pronta. Evelyn olhou para ela enquanto atravessava o relvado. Trazia uma camisola de alças azul-turquesa, que
lhe cingia os seios pequenos e o ventre plano, e sentiu-se feliz com aquela nora que tinha quase sessenta anos e conservava o corpo de uma rapariga. Sir Pitt levantou-se
com um bocejo e afastou-se da porta para deixar passar a dona. Também ele parecia feliz com aquelas férias. Maria pousou a tarte no peitoril da janela, para arrefecer,
tirou do frigorífico uma
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taça que continha rodelas de ananás fresco, colocou-as em dois pratos pequenos e saiu outra vez para dividir a merenda com a sogra.
Enquanto comiam aquele fruto doce e suculento, o cão esticou as orelhas e partiu de repente como uma seta em direcção à cancela do jardim, a abanar a cauda freneticamente.
- O Nelson está a chegar - disseram as duas mulheres ao mesmo tempo.
Da curva da estrada, ladeada por sebes de buganvília, apareceu Nelson a pedalar a sua bicicleta.
Vestia uns calções de ténis azuis e uma camisola branca. Trazia a raquete metida no saco.
- Dei cabo daquele presunçoso do Burton - anunciou com orgulho quando chegou ao pé das duas mulheres, enquanto Sir Pitt se abandonava a uma louca dança de boas-vindas.
Estava cheio de calor e feliz. Desceu da bicicleta, mandou o cão parar com aquilo e deu um beijo na face da mulher e da mãe.
- Tens de lhe dar a desforra - disse a mulher.
- Ganhava eu outra vez e ele ia odiar-me por isso - disse Nelson.
- Podias deixá-lo ganhar - propôs-lhe, com um sorriso malicioso.
- Mas assim não me divertia - afirmou ele. Estava feliz. Dirigiu-se a uma pequena construção de madeira, onde arrumou a bicicleta. Depois anunciou: - vou tomar um
duche.
Pouco depois juntaram-se os três no jardim para tomar chá e comer a tarte de maçã. O gato Artu aterrou no colo de Evelyn para receber a sua parte de doce e Sir Pitt
ganiu piedosamente, com o focinho pousado nos joelhos de Nelson, para obter uma fatia.
Depois o médico acendeu o cachimbo, enquanto a mãe e a mulher fumaram um cigarro.
- O padre Burton disse-me que puseram à venda o palacete dos White. Lembras-te daquela casa bonita, de tijolo, com um portão vermelho e um jardim junto ao lago?
- perguntou à mulher. E continuou: - Os White mudaram-se para o Connecticut, para ficarem perto dos filhos. O Kevin anda um bocado em baixo e a pobre da Leonor não
está melhor. Com os filhos vão sentir-se mais seguros. O que dizes de a comprarmos? - propôs a Maria, que respondeu com um sorriso. Tinha percebido há muito tempo
que
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o marido sentia necessidade de regressar às suas raízes. Ela, mais uma vez, far-lhe-ia a vontade.
- Há mais de vinte anos que os White não fazem obras nenhumas. Está numas condições miseráveis, aquela casa - observou Evelyn.
- Mas era bonita, antigamente. Lembro-me bem de como era quando eu tinha quinze anos. Mergulhava no lago com os filhos dos White e depois a mãe servia-nos chá na
varanda, no meio das flores que tratava com um amor obsessivo. Era a propriedade mais bonita de Barrow - continuou Nelson, entusiasmado.
- Querido, estás a pensar reformar-te? - perguntou Maria De Vito.
- Ainda não. Não podia abandonar os meus pacientes. Mas daqui por uns anos... - No seu olhar azul brilhava a alegria de uma criança perante uma perspectiva muito
entusiasmante.
A mãe observava-o, calada. Não duvidava que a nora acompanhasse Nelson, mas perguntava a si mesma se ela seria feliz numa pequena aldeia da Cornualha.
- Acho que se comprássemos aquele palacete fazíamos uma óptima escolha - disse Maria. - Sempre vivi em grandes cidades e agora acho que chegou o momento de respirar
um pouco deste ar do campo - concluiu para sossegar o marido.
O casal De Vito regressou a Milão para a reabertura do consultório. Nelson retomou as sessões com os pacientes, que se foram apresentando pontualmente depois daquelas
longas férias de Verão.
Só Liliana Corti brilhou pela sua ausência.
- O que é que eu faço, Sr. Professor? Ligo-lhe? - perguntou a secretária, depois de Liliana ter faltado à primeira consulta.
- Vamos esperar - disse o psiquiatra.
Liliana regressou na semana seguinte.
Ele apenas lhe disse: - Como está, signora Corti?
Entretanto olhava para ela com curiosidade. Liliana vestia um tailleur de um tom carmim que se esfumava no violeta e trazia meias e sapatos azuis. O rosto, sem pintura,
parecia mais sereno.
- Sabe, eu não queria cá voltar. Achava que me podia arranjar sozinha. Mas estou outra vez muito angustiada.
- Em que ponto tínhamos ficado? - perguntou o médico.
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- Na minha gravidez, tão desejada quanto sofrida, com seis meses de imobilidade na cama. Não me podia levantar nem para comer. Mas sentia-me feliz, apesar de o meu
trabalho ter sofrido um compasso de espera.
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CITTÀ STUDI
Quiseste a bicicleta? Agora pedala! - disse Ernestina.
- É isso que eu estou a fazer, mãe - respondeu Liliana, enquanto agitava o biberão com leite e bolachas para o pequeno Stefano, que acabava de fazer três meses.
- Mas também tenho de voltar ao trabalho, porque de outra forma posso dizer adeus à minha carreira.
Mãe e filha estavam na cozinha da casa do corso di Porta Romana. Stefano e a priminha Tina, que tinha agora dez meses, estavam a dormir no quarto dos avós. Era uma
tarde de Abril e, como todos os domingos, a família Corti tinha-se reunido para o almoço. Depois os homens foram ao futebol, Ariella fechou-se no quarto a estudar
porque tinha um exame e Rosellina escapuliu-se à socapa, embora toda a gente soubesse que se ia encontrar com Cristiano Montenero.
- É mais importante o Stefano ou a carreira? - perguntou Ernestina.
- Mas que pergunta é essa?
- Responde! - pediu Ernestina.
- Tu só me queres provocar. Queres-me fazer admitir que Ponho o trabalho à frente do meu filho. Mas não é assim. Tiveste quatro filhos e, em parte, fui eu que tratei
deles, enquanto tu trabalhavas na fábrica - reagiu.
- Parabéns, Sra. Doutora. Estiveste estes anos todos à espera
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para me atirares isso à cara. - Ernestina saiu para o pequeno terraço e pousou os braços no parapeito, a olhar para baixo, para o pátio.
Liliana pousou o biberão em cima da mesa. Reparou que as costas da mãe estavam a ficar curvadas e lembrou-se dela, no corso Lodi, naquela mesma posição. Era uma
noite fria de Inverno, Liliana tinha protestado por causa do arroz branco, o mesmo de sempre, e Ernestina tinha-lhe dado uma estalada. Depois saiu para a varanda
a digerir o desapontamento e a preocupação por causa do marido que não tinha ainda regressado de uma manifestação de rua.
Agora, como nessa altura, Liliana foi até junto dela e passou-lhe uma mão carinhosa nos ombros.
- Desculpa, mãe - sussurrou. - Eu sei quanto te devo, a ti e ao pai. O problema é que estou preocupada, porque, depois de ter desejado tanto o meu Stefano, agora
apercebo-me, com tristeza, de que o papel de mãe me fica apertado. Sinto-me realmente infeliz perante esta minha atitude em relação ao desempenho materno. Eu mudo
fraldas, preparo papas, canto cantiguinhas, mas também tenho vontade de fazer muitas outras coisas. Tu tinhas de trabalhar para nos sustentar. Eu, pelo contrário,
quero trabalhar para me afirmar profissionalmente. Eu amo o sucesso, mãe. Lembras-te daquilo que eu dizia quando era pequena? - perguntou-lhe.
- Querias ir até ao topo do mundo - sussurrou Ernestina.
- Ainda quero e a presença de um filho não me pode impedir de o fazer.
- Tens a certeza?
- Tenho.
- Então, qual é o problema?
- O problema, como sempre, és tu. Se arranjar uma baby-sitter para o Stefano tu vais dizer que eu não lhe ligo por causa da minha ambição.
- Importa-te assim tanto a minha opinião?
- Eu sempre precisei da tua aprovação, mãe.
- Fazes-me sentir como uma ditadora.
- Mas tu és. Sempre foste.
- Rico atributo para uma mãe.
- Fantástico, diria eu, vistos os resultados. Eu sei que nunca estás contente, que tens sempre que dizer sobre tudo e sobre todos, mas conseguiste ter uma família
extraordinária e a tua palavra, para
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nós, é lei. Foste tu que deste aos teus filhos a força para encontrar Um caminho na vida. O pai ensinou-nos a alegria e a honestidade, tu ensinaste-nos a persistência
e deste-nos imenso amor. Por isso eu estou aqui, agora, a pedir-te que me ajudes a resolver o problema do Stefano. Quero voltar a trabalhar. Arranja-me uma mulher
de confiança a quem deixar o meu filho quando for para o escritório.
Ernestina puxou para trás uma madeixa de cabelo que lhe caía na testa. Entrou de novo na cozinha, sentou-se à mesa e acendeu um cigarro.
- Temos a mulher do Fermo - disse, por fim. - Tratou da sogra até ao mês passado, quando morreu.
- A mãe do Fermo morreu? Não sabia - observou Liliana, com alguma tristeza.
- Eu e o teu pai fomos ao funeral. Vocês têm sempre muito que fazer. Portanto, agora a Maddalena está disponível. É uma mulher que tem a cabeça no lugar. Por que
não lhe telefonas?
Uma semana depois, Maddalena fazia a sua entrada na casa Brioschi. Era uma mulher cheia de energia, que cheirava a pó de talco e transmitia segurança.
Segurou nos seus braços macios o pequeno Stefano e declarou:
- Regressa à confusão, Liliana. Eu e este pedaço de gente vamo-nos entender como Deus com os anjos.
Eram as palavras que Liliana queria ouvir. Ficou com ela durante uns dias e, depois de um ano de ausência, regressou ao escritório.
O clima tinha mudado e ela apercebeu-se imediatamente de um sentimento de inquietação que pairava entre o pessoal. Mas não ligou. Estava feliz por poder sentar-se
novamente à sua secretária, analisar atentamente os processos para se actualizar, e ao fim do dia, quando Sandro a foi buscar, correu ao encontro dele e abraçou-o
como se não o visse há séculos.
- Sossega, pequenina - disse o marido que, no entanto, estava feliz por a ver tão contente.
Quando entraram no carro, Liliana deixou cair a cabeça no ombro dele e sussurrou-lhe: - Perdoa-me por todo este tempo em que fui uma companheira intratável. Tu foste
muito paciente e só
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agora me apercebo de que me descuidei em relação a ti durante muitos meses.
- Estavas empenhada em tratar do nosso menino - respondeu ele.
- Como é que ele está? Viste-o? - perguntou, e na sua voz havia já uma sombra de ansiedade.
- Vi sim. A Maddalena disse-me que, se continuas a telefonar-lhe, nos deixa ficar - avisou-a.
- Só liguei seis vezes - justificou-se.
- Também me disse que, uma vez que o Fermo está de urgência esta noite, pode ficar lá em casa até mais tarde. Por isso reservei uma mesa no nosso restaurante.
- A sério? Há quantos meses não saímos os dois para jantar?
- Há muitos, demasiados. Mas agora estou com sérias intenções de te fazer a corte como ou melhor do que antes.
Sandro tinha virado na via de cintura externa que ia ter à Darsena.
- Olha aí no porta-luvas - pediu-lhe.
Liliana encontrou uma caixa de veludo que lhe revelou o brilho de um espantoso colar de pérolas.
- És completamente louco - sussurrou Liliana, conquistada pela beleza daquela jóia.
- Era o mínimo que eu podia fazer para retribuir o teu presente. Deste-me um pequeno Brioschi, fizeste-me ser pai, e isso é uma emoção que, na minha idade, nem toda
a gente pode sentir.
Quando regressaram a casa, depois de um jantar à luz das velas, o menino dormia no berço e Maddalena estava sentada ao lado dele a fazer renda.
Sandro teve de insistir para a levar a casa. Ao fim de tanto tempo, aquela noite foi a primeira de uma longa série que Liliana e o marido passaram juntos como se
fossem ainda dois namorados.
Uma noite, antes de adormecer, ela disse-lhe: - Mais uma vez tenho de agradecer à minha mãe. Só ela era capaz de arranjar um anjo como a Maddalena para o Stefano.
- Depois, num sussurro, acrescentou: - Parece-me tudo demasiado bom para ser verdadeiro.
Na realidade, Liliana começava a sentir um ar de tempestade na Collenit. Mas decidiu guardar para si os seus receios.
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Tinham passado alguns anos e a tensão de que Liliana se apercebera na empresa sentia-se agora por todo o lado, na cidade: nos transportes públicos, nas ruas, nas
lojas, nos teatros, nas escolas e transparecia também nos jornais.
Depressa chegou o tempo em que não era prudente ir ao centro, sobretudo ao sábado, por causa das contínuas manifestações de rua que degeneravam em actos de vandalismo
e confrontos com a polícia. Liliana recordava as manifestações da sua adolescência, nas quais o pai participava, e constatava que agora, ao contrário dessa altura,
o que dominava era a violência, a vontade de desfazer o mundo, o desejo de bater, ferir e destruir.
Uma manhã, ao chegar à Collenit, viu vedado o acesso aos escritórios por um grupo de operários que não conhecia.
- A senhora hoje não entra na empresa - disse um deles, com o rosto tapado por um gorro.
- Ouça, não me faça perder tempo - tentou reagir, apesar de o comportamento ameaçador daquele homem a ter assustado.
- Preciso de passar. Tenho uma reunião daqui a uns minutos - exPlicou, esperando amansá-lo.
- Não vai haver reuniões porque temos piquetes em todas as entradas do edifício. Dou-lhe um conselho: vá-se embora - mandou o da cara tapada.
Liliana percebeu que não valia a pena insistir. Deu meia-volta e dirigiu-se ao fundo da rua, onde havia um café que ela conhecia
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bem. Era o sítio onde Sandro a esperava ao fim do dia, quando se demorava a sair do escritório.
Meteu-se na cabina telefónica e marcou o número pessoal de Massaroni, o director do pessoal.
- Estou aqui desde as sete horas da manhã - disse o homem com uma voz exausta. - Estou prisioneiro no meu gabinete. Sabe que fizeram piquetes em todas as entradas
do edifício? - questionou.
- Acabo de falar com um homem medonho que não me deixou entrar - disse Liliana.
- Treparam à grade e tiraram de lá a bandeira. Por aquela bandeira arrisquei eu a vida na guerra, percebe? Vi-os da minha janela e não pude fazer nada para evitar
aquela afronta - contou-lhe, com
um tom nervoso.
- Não cometa o erro de chamar a polícia, porque sabemos muito bem como eles podem reagir - recomendou-lhe.
- Tem mais alguma estratégia em mente, doutora? - perguntou ele.
Um rapaz, que acabava de entrar no café, enfiou uma moeda na jukebox e seleccionou uma canção de Modugno. O volume estava altíssimo e a música, que contava uma história
de solidão aristocrática, de fazer chorar as pedras da calçada, contrastava com aquilo que estava a acontecer a pouca distância dali.
- Eu não vou fazer nada. Mais cedo ou mais tarde vão-se cansar dos piquetes e acabam por ir embora - disse.
- Acha mesmo isso? Aquela gente é capaz de entrar por aqui dentro e eu não queria morrer nas mãos desses desgraçados.
- Se houver problemas mais graves, não se esqueça de que eu o desaconselhei a mandar intervir as forças da ordem - avisou, e desligou o telefone.
Saiu da cabina e quase chocou com Munafò que, tal como ela, tinha procurado refúgio no café. Estava pálido e assustado.
- Nem a si o deixaram passar? - perguntou Liliana.
- Atiraram-me para o lado e eu caí. Julguei que me queriam matar à bastonada. Mas quem são eles? O que querem? Têm a cara tapada com carapuços. Os funcionários chegam
a cinquenta metros do edifício e depois vão-se embora, fogem.
- Dos que me mandaram parar a mim, só um é que tinha a cara
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tapada. Os outros, nunca os tinha visto - observou Liliana. Pediu dois cafés e disse a Munafò: - Tem aqui o açúcar. A mão do homem tremia quando pegou na colher.
- Ouvi dizer que esta gente vem da Righetti-Magnani, por isso não correm o risco de serem reconhecidos, enquanto os mais duros da Collenit foram para a fábrica deles
- explicou-lhe.
- Oh, valha-me Deus, o meu pai - sussurrou Liliana, e sentiu o coração bater com muita força.
Voltou à cabina telefónica e marcou o número da secção em que Renato trabalhava.
Atendeu um colega que a tranquilizou.
- O teu pai está a conversar com um grupo de gente muito agitada - disse-lhe.
- Quero falar com ele - insistiu Liliana.
- Está do lado de fora do portão, não o posso chamar. Nós estamos a assistir à cena pelos janelões do primeiro andar. Está sossegada, porque o Renato sabe lidar
com estas coisas e é capaz de fazer com que o ouçam. Trata mas é de ti, porque na Collenit está um grupo dos nossos, os mais violentos.
Da rua chegou até ao café o uivo das sirenes da Polícia. Liliana desligou a chamada e foi até à porta, juntamente com outros clientes e alguns colegas.
- Idiota! - praguejou Liliana, referindo-se ao director, que tinha chamado as forças da ordem.
Assistiram impotentes à destruição dos vidros do edifício, atingidos por cubos de basalto atirados em chuva pelos manifestantes, enquanto a polícia tentava travá-los
com jactos de água e gás lacrimogéneo.
- Estamos cheios de sorte se não morrer ninguém - sussurrou Munafò, aterrado. No ar ecoavam gritos, insultos, slogans belicosos pronunciados contra os dirigentes
da Collenit, acusados de serem servos dos patrões.
Liliana saiu do café a correr, meteu por uma rua lateral, conseguiu apanhar um táxi e deu a direcção da Righetti-Magnani.
- Só se eu fosse doido - disse o taxista. - Acabaram de me avisar que está a haver uma manifestação.
Convenceu-o, com uma boa gorjeta, a levá-la até à zona e depois continuou a pé até à empresa onde trabalhava o pai.
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Os portões estavam fechados, não andava por ali ninguém, parecia uma fábrica abandonada.
Um dos homens que estavam de guarda à portaria reconheceu-a e deixou-a entrar.
- O seu pai está no pavilhão dois, com os do comité da fábrica - disse-lhe, e explicou que Renato saíra para a rua para conversar com os manifestantes e que, perante
a incredulidade de todos, tinha conseguido fazer com que se fossem embora. - Agora vou avisá-lo de que está aqui.
Liliana esperou pelo pai numa pequena sala medonha, empestada de fumo de cigarros.
Quando Renato chegou, ela abraçou-o, a tremer.
- Já passou tudo - disse ele, para a sossegar, acariciando-lhe os cabelos.
- Até à próxima.
- Pois é - admitiu ele.
- Mas o que é que está a acontecer? De onde vem esta agressividade toda? Achas justo pactuar com a violência? - perguntou, desanimada.
- Vamos dar uma volta - propôs o pai, dando-lhe o braço.
Saíram da fábrica e caminharam devagar ao longo da rua que
ficava ao lado dos pavilhões.
- Estas cabeças quentes não querem um confronto democrático e deixam-se instrumentalizar por quem está interessado em desestabilizar um sistema que não é perfeito,
mas que funciona porque tem regras. O que me assusta é que por detrás da violência de hoje não há regras. Esta gente prejudica o movimento operário, que tem uma
tradição digna de respeito - explicou Renato.
- Eu vou para casa, pai. E tu? - perguntou-lhe.
- Volto para a reunião. Os chefes do sindicato, nestas situações difíceis, brilham pela ausência. É preciso fazer os possíveis por transmitir às pessoas alguma calma.
- Ainda bem que está a chegar o Verão e vão todos de férias. Mas depois? Como é que vai ser no Outono?
- Vamos agarrar a parte justa do protesto. É isso que temos de fazer, Liliana.
- E eu o que faço no meio desta confusão? Estou tão deprimida que me dá vontade de largar tudo. Detesto a violência, pai.
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- Serias a primeira Corti a renunciar à luta - afirmou Renato.
- Não é verdade. Até a mãe pediu a reforma antecipada - sublinhou Liliana.
- A tua mãe combateu durante toda a vida. Tu ainda nem sequer começaste a aquecer os músculos.
- Olha que estás a falar com uma antagonista, com uma pessoa que está do outro lado da barricada.
- Nunca cometas o erro de pensar que os bons estão só de um lado e os maus do outro. As coisas boas nascem quando se derrubam as barricadas, quando as pessoas se
olham nos olhos e começam a negociar.
- Não me vou esquecer - disse Liliana.
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Era uma tarde de sexta-feira em meados de Dezembro. Renato tinha regressado às três horas do seu turno de trabalho.
- O apartamento do último andar está pronto para ser habitado. Não queres vê-lo? - perguntou a mulher.
Pucci tinha pedido um empréstimo e, fazendo um excelente negócio, comprara todo o sexto andar do edifício da via di Porta Romana. A sua família estava a crescer.
À pequena Tina juntara-se Roberto, que tinha dois anos. Pucci e Ariella precisavam de espaço, até porque Ariella, que apesar de ter acabado o curso não tinha a mínima
intenção de se dedicar ao ensino, estava outra vez grávida.
- Está muito jeitoso, vais ver - disse ainda Ernestina. Renato inspeccionou os vários quartos, as casas de banho, a sala com lareira, a cozinha bem apetrechada e
o grande terraço que dava para a rua.
- É mesmo uma casa de ricos - concordou Renato. - Tornámo-nos uns burgueses - constatou.
- É pecado? - perguntou a mulher.
- Quando uma pessoa tem os pés bem quentes, deixa de se preocupar com os outros.
- Tu sempre lutaste por uma vida mais digna - comentou.
- Mais digna, precisamente. Mas eu aqui vejo frivolidade, ostentação, vontade de pertencer a uma classe privilegiada. É uma questão de moralidade.
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- Não faças um comício. Até porque só estou aqui eu para te ouvir - replicou Ernestina que, ao contrário do marido, estava muito orgulhosa daquele sucesso dos filhos.
E acrescentou: - Anda, vamos inaugurar a cozinha. Fazemos um café com a máquina expresso.
Sentaram-se um em frente ao outro a saborear o café. Renato estava estranhamente silencioso.
- Tu estás preocupado com as desordens na cidade, com aquilo que pode acontecer à Liliana, com a situação na fábrica, que te está a escapar das mãos - disse ela,
acariciando-lhe um braço.
- Noutros tempos eu sabia como corriam as coisas. Agora sinto que fui apanhado desprevenido - confessou ele. - É verdade, estou preocupado, porque não sei onde nos
vai levar esta violência.
- Não fiques assim deprimido. Tu já deste para este peditório, como se costuma dizer. Meu Deus, tenho mesmo de ser eu a dizer-te estas coisas?
- Aprendeste a lição comigo.
- E tu esqueceste-a - comentou.
- Estou cansado, minha querida Ernestina. Cansado e desencantado - confessou, enquanto pousava na banca as chávenas vazias.
Ela levantou-se para as lavar e arrumar no sítio. Renato pôs-se atrás dela e abraçou-a.
- Só não sei quando é que aqueles dois se vão decidir a mudar-se para aqui - disse Ernestina.
- Se calhar querem manter esta casa assim bonita. Estão bem no primeiro andar, contigo a servir-lhes tudo numa bandeja - sussurrou o marido, tocando-lhe a orelha
com os lábios.
- Não me faças isso - implorou ela, enquanto secava as mãos.
- Diz-me que ainda te faço arrepiar - provocou ele.
- Que Deus me perdoe, mas é assim mesmo - admitiu.
- Então somos nós que temos de inaugurar este apartamento - disse. Pegou na mulher ao colo, como fazia quando eram novos, levou-a para o quarto do filho e da nora,
instalou-a na cama e desabotoou-lhe a blusa, enquanto lhe sussurrava palavras ternas. Ernestina sorria, abençoando a menopausa que a tinha libertado do medo de uma
gravidez. Sentia-se feliz por amar e ser amada pelo seu Renato,
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porque ele tinha um coração grande, um espírito luminoso e pensamentos bons, porque tinha a força de um furacão e a doçura da brisa da Primavera, porque era o único
homem que conhecera e nunca desejara outros, porque era o pai dos seus filhos e, finalmente, porque era um amigo sincero que, até nos piores momentos sempre conseguira
fazê-la sorrir.
- Minha querida Ernestina, quase tenho vergonha de ser tão feliz contigo - sussurrou ele, deixando-se cair em cima dela com todo o seu peso.
- Eu sei, porque é isso que eu sinto também - respondeu ela, num sopro.
Quando se levantaram da cama, olharam-se nos olhos com o embaraço de dois apaixonados que acabavam de fazer uma malandrice.
- Na cama nova dos nossos filhos - lamentou Ernestina.
- Se calhar exagerámos um bocadinho - concordou o marido.
- Vamos pôr outra vez tudo direito. Seria terrível se eles soubessem aquilo que nós fizemos - disse ela.
Fizeram a cama com cuidado e depois Ernestina disse: - Não vão dar conta de nada.
- Se a cama não resolver contar-lhes tudo - replicou Renato.
- As camas não falam - garantiu Ernestina.
- Mas falo eu - disse uma voz cristalina atrás deles. Viraram-se, alarmados. Rosellina estava à porta do quarto, com um ombro encostado ao caixilho da porta, de
braços cruzados e um sorriso malicioso. Ernestina corou. Renato franziu o sobrolho.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou.
- Deixaram a porta da nossa casa aberta e a deste apartamento também. Não vos encontrei lá em baixo, por isso subi. Não se aflijam, acabei de chegar - sossegou-os,
com uma candura só aparente.
- Costuma-se pedir licença antes de entrar na casa dos outros
- resmungou Ernestina, ao mesmo tempo que, com uns dedos nervosos, tentava compor o cabelo.
Renato quebrou o embaraço com uma gargalhada.
- Anda cá, Rosellina - disse, abrindo os braços para a abraçar. - A tua mãe queria que eu visse a casa do Pucci. É fantástica. Posso-te garantir, porque já experimentámos
a cama. Uma cama acolhedora é o eixo em torno do qual gira uma família.
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Ernestina já tinha escapado e descido de elevador até ao primeiro andar. Pai e filha foram pelas escadas, abraçados.
- Pai, aconteceu uma coisa terrível - disse Rosellina.
- A sério? - perguntou ele, olhando-a com uma cara alegre.
- Na piazza Fontana, no Banco da Agricultura, uma bomba provocou um massacre. Toda a gente fala nisso, na rua, na televisão e no rádio - anunciou a filha.
Renato empalideceu. Foi a correr para casa e telefonou a Liliana.
- Não te mexas. Não saias da empresa, não venhas para o centro. Rebentou uma bomba na piazza Fontana. Eu vou agora lá ver o que aconteceu. Espera que eu te ligue
outra vez, antes de saíres do escritório. E avisa o teu marido para não te ir buscar.
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Rosellina abriu de par em par as portas que davam para um quarto setecentista e ficou parada, a olhar em volta, observando os frescos das paredes e dos arcos do
tecto, as tapeçarias preciosas em tons pastel e a grande cama com umas cortinas de tule levantadas. Um homem jovem, de físico bem modelado e rosto viril, estava
estendido na cama. Um lençol imaculado escondia a sua nudez. Rosellina tinha os cabelos longos e ondulados presos por uma fita colorida. Vestia um camisolão de lã
comprido, já gasto, confeccionado com fios de muitas cores, uma saia florida que lhe descia sem forma até aos tornozelos e uns tamancos de camponesa.
- Meu Deus, pareces uma maltrapilha! - disse o jovem, em ar de brincadeira. Ela contou-lhe que tinha fugido de uma manifestação feminista em que participara e durante
a qual, horas e horas, se tinha esganiçado a gritar slogans contra o abuso de poder do macho, exaltando o amor livre. Atirou os tamancos para longe, desapertou a
saia, que caiu ao chão, tirou a camisola e soltou a fita que lhe prendia o cabelo. Ficou com uma combinação de seda curta que revelava a perfeição do corpo e das
pernas. com um movimento ligeiro saltou para cima da cama e enfiou-se debaixo do lençol.
- Vieste cedo - disse o rapaz, abraçando-a.
- Acabou, Filippo. Já não aguento mais assembleias, debates, manifestações de protesto, cachorros-quentes, roupas esfarrapadas, amor livre, canções feministas, guitarras
e charros, misturada com gente que não se lava, grandes palestras sobre os direitos das mulheres
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que, por amor de Deus, são sagrados, mas que se podem defender de outras maneiras. Acabou, Filippo.
- A sério? - perguntou ele.
- Apetece-me um banho quente e perfumado, saltos altos, vestidos de seda cheios de lantejoulas. Gosto de me sentir bonita, elegante, desejável. Gosto de canções
e romances de amor e quero poder dizer isto sem ser rotulada como uma burguesa nojenta.
- Que anda com o jovem duque Filippo Adalberto Maria degli Altieri, que ama perdidamente esta burguesa nojenta - afirmou ele, a rir.
Rosellina afastou-se do rapaz e olhou-o nos olhos.
- Em que é que estás a pensar? - perguntou ele, e continuou:
- Sabes, adivinhar os pensamentos da namorada é o grande tormento de todos os apaixonados.
Ela sorriu-lhe.
- Queres mesmo saber em que é que estou a pensar? - perguntou, observando os frescos pintados no tecto.
- São muito bonitos, não são? - disse ele. - Este era o quarto dos meus tetravôs, que viveram numa época em que as pessoas se dedicavam com paixão aos jogos amorosos.
Tenho a certeza de que os meus antepassados se divertiram muitíssimo neste quarto. Mas não é nisso que tu estás a pensar.
- É verdade. Mas se te dissesse, eras capaz de ficar desiludido
- confessou ela.
- Tenta - pediu-lhe.
- Estava a pensar que, por muito que tivesse tentado, não consigo ser uma filha das flores, uma discípula de Timothy Leary, alguém que acredita no uso benéfico dos
alucinogénios. Eu acredito neste momento fantástico que estou a viver contigo, acho que é um privilégio viver numa villa como esta, acredito na tranquilidade daquele
lago que se vê para além da varanda, no perfume dos oleandros que entra neste quarto, nestes lençóis de seda tão impalpáveis que me fazem sentir numa nuvem.
- Estás a dizer a verdade? - perguntou ele, pouco convencido.
- Não exactamente. Não te disse até ao fim aquilo em que estava a pensar - corrigiu Rosellina.
- Então continua, sou todo ouvidos - pediu-lhe.
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- Eu quero um homem que case comigo, para o amar e lhe ser fiel para toda a vida. Quero ser uma esposa e uma mãe. Quero ter muitos filhos, porque gosto muito de
crianças, e um guarda-roupa que exalte a minha feminilidade, jóias, festas, alegria e, quando for mesmo preciso, algumas lágrimas, que não fazem mal nenhum. Era
nisto que eu estava a pensar.
- Era isso que eu queria ouvir-te dizer há tanto tempo! - exclamou ele, feliz.
- Então, casa comigo, por favor! - exclamou Rosellina, abraçando-o.
A cortina fechou-se com um rumor de veludo, ao mesmo tempo que estalavam os aplausos do público.
Ao fim de alguns instantes a cortina voltou a abrir-se e os holofotes iluminaram Rosellina, que sorria no meio do palco, com o lençol de seda enrolado à volta do
corpo. O público, entusiasmado, continuava a aplaudir. Casa Comigo, Por Favor era o título da comédia musical escrita por dois famosos autores de peças teatrais
e musicada por Cristiano Montenero, o compositor e maestro que era há muito tempo o companheiro da actriz debutante.
Rosellina tinha-se estreado com sucesso no prestigiado palco do teatro Manzoni ao fim de apenas uma semana de ensaios. Foi capaz de se aguentar em cena durante duas
horas, com o autodomínio e a desenvoltura de uma grande estrela, e ninguém, nem sequer os produtores, lamentaram a ausência da grande Elvira Valli, para quem a comédia
tinha sido escrita.
Tudo acontecera por acaso. Rosellina frequentava a escola de artes dramáticas do Piccolo Teatro. Durante o Verão começaram os ensaios de Casa Comigo, Por Favor e
Cristiano quis que ela estivesse ao seu lado. Elvira Valli, a actriz principal, era uma quarentona loira, muito sedutora e sensual, que se impunha no palco pela
sua elegância e forte personalidade. Era a clássica primadonna, caprichosa e tirana, com um vício secreto: o álcool.
Dia após dia, durante os ensaios, foi reparando em Rosellina, que andava pelos bastidores, e certa vez disse-lhe: - Por que não tentas fazer alguma coisa de útil,
cara linda?
Era o que a rapariga queria ouvir e Elvira usava-a para lhe fazer recados, inclusivamente para a compra das garrafas de whisky.
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Rosellina massajava-lhe os ombros doridos e ajudava-a a decorar as falas da comédia.
A estreia foi em princípios de Setembro, numa cidade de província, só para testar as reacções do público. Os autores receavam a mensagem reaccionária do texto, naqueles
anos de contestação acesa. Aos aplausos dos espectadores seguiram-se os insultos de um grupo de estudantes que protestavam contra aquela comédia "ferozmente burguesa".
O encenador e os produtores, no entanto, aperceberam-se de que o espectáculo seria em qualquer caso um fiasco pela decepcionante interpretação da actriz principal,
que não conseguia encaixar no papel de uma protagonista tão jovem. A crítica da província não se tinha comprometido demasiado, limitando-se a definir a comédia como
um agradável intervalo em tempos de grande empenhamento civil e deixando entender nas entrelinhas que a aristocrática Elvira Valli ficava pouco credível nas vestes
de uma jovem feminista primeiro furiosa e depois submissa. O único momento de verdade, na sua interpretação, tinha sido aquele em que, ao despojar-se das suas roupas
de hippy, se apresentava com um espantoso modelo de Valentino.
Indignada com os aplausos tépidos e com os insultos, aprimadonna não compareceu no habitual jantar com a companhia.
- Eu volto para o hotel - anunciou.
Na realidade, foi embebedar-se num bar e ao regressar de carro ao hotel calculou mal uma curva. O carro enfaixou-se numa árvore e ela foi internada de urgência no
hospital.
De madrugada, o encenador entrou de rompante no quarto de Cristiano. O músico e Rosellina ainda dormiam.
- Acorda! Vamos desmontar tudo, fazer as malas e voltar para casa - anunciou.
Rosellina sentou-se na cama. Vestia uma camisa de noite de seda com um grande decote que cobriu imediatamente com a beira do lençol.
- O que foi que aconteceu? - perguntou.
- A Elvira teve um acidente de carro e partiu uma perna e um braço. Se correr tudo bem, vai ter para três meses.
- É uma pena ter de renunciar ao espectáculo - observou Rosellina. A sua voz parecia o trinado de um passarinho.
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- Pior do que isso, é um verdadeiro desastre - disse o encenador, abatido.
- Eu sei cantar, dançar, e sei o guião todo de cor. Mas mesmo todo, até as falas dos outros actores - declarou a rapariga.
Cristiano e o realizador olharam um para o outro sem falar.
- Oh, não interessa. Foi uma coisa tola de que me lembrei para tentar ajudar-vos - disse ela.
Foi assim que nasceu o sucesso de Rosellina.
Os autores fizeram as necessárias correcções ao texto. Houve algumas representações em pequenas cidades de província e o consenso foi absoluto. No fim de Setembro,
a companhia estreou em Milão.
Enquanto Elvira Valli continuava desterrada numa cama de hospital, no teatro Manzoni rebentavam os aplausos.
Rosellina, no meio do palco, sorria enquanto fazia uma vénia para agradecer.
Cristiano esperava-a nos bastidores.
- Esta noite nasceu uma estrela - sussurrou-lhe.
Ela refugiou-se nos seus braços, desfeita em lágrimas, e disse:
- Nunca me senti tão feliz na minha vida!
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- Achas que este é um bom momento para abrir uma empresa? - perguntou Ernestina a Giuseppe, e continuou: - Há manifestações e desordens todos os dias. As pessoas
estão preocupadas e não pensam em comprar roupa.
- Sabes quando foi inventado o verniz das unhas? Na América, nos anos trinta, durante a grande recessão. Nos momentos piores, as pessoas precisam de coisas gratificantes.
Como aliás demonstra a comédia da Rosellina. Já registei a marca Corti Collection e tenciono produzir vestidos tão bonitos como caros. O Pucci estudou um plano económico.
Podemos avançar, mãe - disse Giuseppe.
Era uma noite de Outono, húmida e melancólica. Na villa Liberty onde Giuseppe vivia e trabalhava, Ernestina estava reunida com os filhos e os respectivos companheiros.
Renato tinha ficado em casa a tomar conta dos netos. As quintas-feiras à noite na pizaria eram agora uma recordação distante, mas acontecia muitas vezes a família
encontrar-se para jantar em casa de um ou de outro irmão. Ernestina agradecia a sua sorte por aqueles filhos que se amavam e se solidarizavam entre si, apesar de
cada um deles ter seguido um caminho diferente. Só Rosellina continuava a ser uma preocupação, porque vivia com Cristiano mas não queria ouvir falar de casamento.
Na véspera, aproveitando uma visita da filha à casa de Porta Romana, tinha-lhe dito: - Se tu e o Cristiano gostam tanto um do outro, por que não se casam?
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- Porque não precisamos de ninguém para certificar a nossa união. E depois, eu não me vejo no papel de esposa. Mãe, eu sou uma actriz, não uma mulher virada para
a casa e para os filhos.
- Isso quer dizer que não me vais dar a alegria de ver mais netos pela casa?
- Acho que já há que cheguem. O Pucci tem três e ainda podem aumentar, a Liliana tem um mas, tanto quanto sei, gostava de ter mais outro. Eu já tenho os meus sobrinhos
para dar mimo. Não desejo ter filhos meus.
- Tu és uma rebelde, essa é que é a verdade, e nem sequer estás apaixonada pelo pobre do Cristiano, que anda atrás de ti com a língua de fora como um cachorrinho.
- Mãezinha, por que não sossegas um bocado? Eu sou feliz assim e o meu companheiro também é. Olha, eu estou apaixonada pelo amor. Hoje é o Cristiano, amanhã pode
ser o Andrea - desafiou, com aquele eterno sorriso malicioso.
- Oh, valha-me Deus! E quem é esse Andrea? Será possível que eu seja sempre a última a saber das coisas? - Ernestina passou uma mão pela testa, como se quisesse
afugentar o fantasma de uma nova transgressão de Rosellina, que não se parecia com nenhum dos irmãos.
- Tem calma, mãe. Não há Andrea nenhum. Podia ter dito Mário ou Luigi. Em suma, não podes pensar que uma mulher deva por força ficar ligada ao mesmo homem para toda
a vida.
- Tu és uma tonta. Devia ter-te dado umas bofetadas quando eras pequena, em vez dos rebuçados que te dava sempre que armavas uma das tuas. Mas eras tão engraçadinha...
- Tu tiveste a sorte de encontrar o pai. Mas só há um Renato Corti neste mundo. Se existisse um segundo, podes ter a certeza, de que seria meu para sempre.
- Tu não percebes nada da vida de um casal. Não sabes que um homem e uma mulher, para viverem juntos toda a vida, devem saber ir um ao encontro do outro. O mundo
está cheio de homens bonitos, honestos e cheios de vitalidade como o teu pai. Mas faltam as mulheres capazes de lhes dar valor. Tu és uma abóbora vazia e não digo
mais nada, porque estou zangada que chegue e ia acabar por dizer coisas desagradáveis - protestou.
Rosellina afagou-lhe uma mão e sorriu-lhe.
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- Mãe, vamos fazer as pazes. Sabes que não aguento ver-te zangada. Aceita-me como sou, se gostas de mim. Eu sempre te aceitei como tu és, e és fantástica, mamã.
Ernestina acabou por abraçar a filha.
- És uma malandra e, apesar disso, eu nunca deixei de gostar de ti. Quando nasceste, as fadas foram generosas contigo. A alguns dão a beleza, a outros a inteligência,
a outros a força para aguentar as dores da vida. A ti deram-te a capacidade de agradar. É uma qualidade que não te dá mérito nenhum. E, no entanto...
- No entanto, é assim, mamã querida. Esqueceste-te de dizer que eu também gosto dos outros - concluiu Rosellina, com uma leveza cheia de alegria.
A Ernestina restava submeter-se às escolhas dos filhos. Aceitou que Liliana escolhesse um homem muito mais velho do que ela, que Pucci se casasse quando ainda não
estava em condições de manter uma casa para a sua família e que Giuseppe tivesse um novo companheiro.
Chamava-se Maurizio Zangheri, mas os amigos tratavam-no por Rizio. Era um galerista. Tinha também a seu cargo uma rubrica de arte numa importante revista da especialidade.
Tinha sido casado e tinha dois filhos, que o baniram pela sua homossexualidade, e essa era a grande dor da sua vida. Era dez anos mais velho do que Giuseppe e era
um companheiro muito paternal. Decidiram não viver juntos, por isso Rizio continuava a morar no seu apartamento e Giuseppe na villa Liberty. Ao contrário de Filippo,
o galerista não gostava da vida mundana. Nascera numa sólida família burguesa, licenciara-se em História de Arte e aprendera a profissão do pai. Ernestina estava
convencida de que aquele era o companheiro ideal para o filho e começava a afeiçoar-se a ele.
Agora, na salinha contígua ao escritório de Giuseppe, Ernestina discutia com o filho na presença de Rizio, que ouvia e calava. Os outros estavam no rés-do-chão.
Os homens disputavam uma Partida de bilhar, as mulheres conversavam sobre frivolidades e o empregado filipino, Oscar, estava na cozinha a preparar o jantar. O rádio,
com o volume baixo, transmitia música sinfónica. Lá fora começava a chover.
- Imagina que alguma coisa corre mal. Ficas sem trabalho e com uma montanha de dívidas. Pensaste nisso? - insistiu Ernestina.
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- Não, não quis mesmo pensar nisso, porque vai correr tudo da melhor maneira - disse Giuseppe.
- E tu, não dizes nada? - perguntou a Rizio, que os ouvia enquanto folheava distraidamente um livro sobre arte barroca.
- Eu sei gerir uma galeria e fazer contratos com os artistas mas não percebo nada de moda nem de vestidos. No entanto, acredito firmemente no talento do Giuseppe
e, pelo pouco que sei tenho a certeza de que o Pucci nunca se teria despedido do banco se não tivesse a certeza de que a Corti Collection vai levantar voo como um
Jumbo e que vai ultrapassar a barreira do som. O Pucci e o Giuseppe são uma parelha destinada a vencer - afirmou.
Ernestina sabia que Rosellina ia ser a cabeça de cartaz da nova empresa e que tinha a beleza, a popularidade e a credibilidade para agarrar o público.
- Tudo isso são palavras, sonhos. Eu trabalhei durante vinte e cinco anos numa indústria de vestuário e conheço a complexidade e os riscos de uma empresa. Agora
pergunto: qual é a necessidade de embarcar numa aventura que apresenta um monte de dificuldades e que não me vai deixar dormir de noite? Não te chegava o teu ordenado?
Não te chegavam as percentagens nas vendas que ganhavas com o Lorenzi? Olha que quem tudo quer, tudo perde - profetizou.
- Mãe, eu não quero ser rico. O dinheiro vai chegar de qualquer maneira, às mãos-cheias. Mas não é só para fazer dinheiro que eu e o Pucci cultivamos este projecto.
É para realizar o nosso sonho, que há-de brilhar na história da moda italiana. Dorme tranquila, por favor. O Pucci e eu vamos conseguir - afirmou Giuseppe.
Do rés-do-chão chegou um coro de vozes: - O jantar está pronto! - Confluíram todos na ampla sala de jantar e sentaram-se em volta da grande mesa oval de jacarandá.
Oscar entrou na sala com a terrina da sopa de legumes. Ernestina foi servida em primeiro lugar e, enquanto levava a colher aos lábios, observou a sua família. Sentia
orgulho dos filhos, que tinham encontrado o seu lugar no mundo, ajudados pela inteligência e pelo desejo de se afirmarem. Mas quantos milhões de jovens tinham lutado
como aqueles sem chegar a lado nenhum? E, sobretudo, até quando iria a fortuna abençoar aquela família tão grande e tão bonita?
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Os anos passavam depressa. Na Primavera de 1977, Pucci e Sandro fizeram uma expedição a Forte dei Marmi à procura de uma casa para o Verão. Alugaram uma villa para
os meses de Julho e Agosto, confortável e suficientemente grande para poder hospedar a tribo dos Corti. Ao fundo do jardim havia um pequeno portão que dava para
a praia. A escolha daquela zona surgiu de um desejo que Ariella confessara ao marido: - Sempre fui para a praia na Romagna. Ao menos uma vez, gostava de experimentar
a Toscana.
Assim, no primeiro fim-de-semana de Julho toda a família Corti foi tomar posse da villa, tendo ficado estabelecido que apenas Ernestina e Ariella estivessem presentes
a tempo inteiro com as crianças. Os outros, Liliana e o marido incluídos, iriam lá passar os sábados e domingos e as férias de Agosto.
Para a Collenit desenhava-se um Verão escaldante. A polícia estacionava em permanência em frente aos portões para evitar possíveis ataques terroristas.
Na segunda-feira de manhã, quando regressaram da praia Sandro levou a mulher ao emprego.
- Vamos estar sozinhos até sexta-feira, tu e eu, como nos velhos tempos - disse-lhe, enquanto parava o carro em frente ao escritório.
- Em que é que estás a pensar? - perguntou Liliana.
- Em jantares à luz de vela e passeios ao luar - propôs ele.
- Parece-me um óptimo programa - concordou ela.
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- E vai ser, se te lembrares que também és mulher, para além de seres uma directora da Collenit.
- Não ponhas as coisas nesses termos, ou eu vou ter de te lembrar as tuas promessas falhadas, desde que nasceu o nosso filho. Desinteressaste-te dos teus jantares
à quarta-feira com os teus amigos, dos jogos de ténis e da pesca - replicou. Sentia-se sempre culpada por causa de todos os compromissos de trabalho que a roubavam
à família e, precisamente por isso, não suportava as críticas do marido.
- Vamos discutir às oito e meia da manhã? - perguntou ele.
- Desculpa. Às vezes consigo ser muito irracional - respondeu com doçura.
- E eu tenho muitos ciúmes da minha mulher, que é muito bonita e passa o tempo todo com homens que eu não conheço e que são com certeza mais novos do que eu - admitiu
Sandro.
- Não há um único com quem eu quisesse ter um instante de intimidade. Se os conhecesses, acreditavas em mim. - Era sincera. Amava aquele marido que lhe perdoava
tantas falhas e que a substituía ao lado do pequeno Stefano sempre que tinha de se ausentar por questões de trabalho.
Sandro era realmente um companheiro fantástico.
- Um bom dia, pequenina - disse ele, enquanto lhe dava um beijo na face.
- Para ti também, meu querido - sussurrou ela, abraçando-o.
- O teu perfume põe-me doido. Sabias? - murmurou ele, segurando-a nos braços.
- Encontramo-nos à noite. Vem buscar-me às sete - disse ela à despedida, enquanto saía do carro.
Sandro arrancou rapidamente e ela passou o portão sob o olhar vigilante dos polícias de serviço.
Estava a chegar ao seu gabinete quando viu o director que, do fundo do corredor, vinha ao encontro dela.
Esperou por ele e entraram juntos no gabinete de Liliana. Ela pousou a carteira, carregou no botão do intercomunicador e disse à secretária: - Dois cafés, Maria,
por favor. - Depois virou-se para o chefe: - Também quer, não é verdade?
Ele fez um sinal de assentimento e pousou na mesa uma pasta de documentos que trazia, na mão.
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- Não se importa se, antes de enfrentar mais um dia, eu tomar o meu café? - perguntou Liliana, com uma entoação que queria dizer: "Deixa-me em paz mais uns instantes,
antes de me atormentares com mais um problema."
O homem não pestanejou e instalou-se na poltrona em frente a ela. Maria entrou trazendo na mão o tabuleiro com as chávenas fumegantes e o açucareiro.
- Precisa de mais alguma coisa, doutora? - perguntou. Liliana mandou-a embora com um gesto.
Depois do café, ambos acenderam um cigarro e, finalmente, Liliana disse: - Sou toda ouvidos.
O director, que anos antes a recebera com arrogância, já tinha aprendido há muito tempo a apreciá-la. Liliana distinguia-se dos outros directores pela sua total
falta de subserviência em relação aos superiores, que tratava como se fossem colegas, e sobretudo pelo alto nível de profissionalismo com o qual tinha ganho a estima
de toda a gente, mesmo dos operários.
- Vai ter de conduzir a negociação com os trabalhadores - começou Massaroni.
- Isso não devia ser consigo? - objectou Liliana.
- Já não é. A doutora é a minha assistente há algum tempo. com aquele bando de delinquentes, que devia ser tratado à chicotada, eu não discuto. Na sexta-feira à
tarde foi aqui um pandemónio e eu não posso perder a face - explicou.
Liliana calculou que já a devia ter perdido, uma vez que se fazia agora substituir por ela. Sabia que os operários andavam agitados por causa da renovação de contrato
e, como era evidente, a empresa contava com as suas capacidades para resolver o problema.
- Pedi à sede de Roma que mandasse alguém para estar ao seu lado, mas não vai chegar senão daqui por uns dias. Entretanto temos aqui quinhentos destrambelhados que
só a doutora consegue enfrentar - explicou Massaroni.
- Está a brincar comigo?
- A sério que não. A presidência está de acordo. Não queremos greves nem desordens na empresa.
E assim, durante o fim-de-semana, enquanto ela estava em Forte dei Marmi com a família, a Collenit tinha-lhe destinado aquele Papel sem sequer a consultar.
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- Não arranje dificuldades, até porque toda a gente sabe que leva muito a peito os interesses dos trabalhadores.
- Passe-me os papéis e não fique à espera de resultados extraordinários - precisou Liliana. Apagou o cigarro e ficou a aguardar mais informações.
- Já conhece as exigências inaceitáveis com que avançaram. Actue como entender. O importante é que diga que não a tudo sem criar conflitos, entenda-se.
Liliana lembrou-se de Bonfanti, o sindicalista que, na via Paleocapa, lhe tinha dito: "Gostávamos de a ter como antagonista." Agora tinha a certeza de que por detrás
daquela manobra estava exactamente o dedo de Bonfanti, porque a Massaroni nunca teria ocorrido avançar com o seu nome.
- Não se iluda. Eu vou aceitar as exigências que considerar justas - respondeu, decidida, e acrescentou: - De outro modo, fico aqui, no meu gabinete. - O director
foi obrigado a anuir e depois foi-se embora.
Liliana telefonou ao marido.
- Lamento muito pelo nosso programa de logo à noite. Mandaram-me negociar com os operários. vou descer agora e não sei quando é que me vou conseguir libertar. Por
favor, telefona à minha mãe e pergunta como estão a correr as coisas com o Stefano. Ligo-te assim que puder - disse-lhe.
Ouviu um longo suspiro de resignação.
- O programa fica só adiado, não fica cancelado. Depois explico-te tudo. - Tentava com isto amansar o marido.
- Não quero saber de nada - replicou Sandro com uma voz dura e desligou o telefone.
Liliana levantou-se da secretária, pegou na pasta com os documentos e saiu do gabinete.
Desceu ao rés-do-chão e com um gesto decidido abriu as portas do salão onde estavam reunidos os representantes de todas as secções, tanto internas como externas.
Massaroni tinha-lhe dito que eram quinhentos. Pareceram-lhe muitos mais. Aquela multidão de gente pousou os olhos nela, enquanto Liliana avançava em direcção à mesa
que estava encostada à parede do fundo. O ar estava irrespirável por causa do calor e do fumo dos cigarros. Pousou os documentos em cima da mesa, ao lado do bloco
de apontamentos. Ficou
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em pé, a olhar para eles em silêncio. Conhecia muitos deles pessoalmente. Outros, os das secções externas, estava a vê-los pela primeira vez. Sentia-se em pânico.
Pousou com força as mãos na mesa para
travar as tremuras e disse: - Bom-dia.
Os operários continuavam a olhar para ela em silêncio.
Pensou no pai. Tinha sido e continuava a ser um deles, mas sabia exprimir os seus argumentos e ouvir os dos antagonistas. Ela, naquele momento, era a antagonista
e perguntou a si mesma se, no meio daqueles homens, haveria algum que se parecesse com Renato Corti.
- Quem toma a palavra? - perguntou, com uma voz firme.
- Quando é que chega o chefe? - questionou um homem do fundo da sala.
- O chefe perdeu a paciência. Por isso temos de nos entender entre nós - respondeu.
Houve um instante de silêncio e depois um estalar de gargalhadas.
- Não querem com certeza pôr-nos a negociar com uma mulher? - disse um dos operários, dando voz ao pensamento de todos eles.
- Estão aqui para avançar com propostas ou para defender o conceito fascista de que uma mulher tem o cérebro mais pequeno do que o do homem?
Aquelas palavras atingiram alguns deles, que baixaram os olhos e esconderam as mãos nos bolsos dos fatos de trabalho. Outros, porém, entoaram um coro de "Buuuh",
ao mesmo tempo que um deles lhe sugeriu que fosse embora para casa.
- Vá fazer malha, que é melhor. Se o chefe do pessoal, sendo o cobarde que é, não aparece, que venha o director-geral. O que é que uma mulher pode entender das nossas
questões!
- Percebo tanto como vocês - afirmou Liliana, com uma voz firme. - Cresci numa família em que se comia massa temperada com problemas sindicais. Enquanto vocês ainda
estavam na creche, eu já sabia de cor a história dos movimentos operários, das ligas de agricultores, das derrotas e das vitórias que custaram muitas lágrimas e
muito sangue aos trabalhadores. Por isso vamos acabar com essa indignação mesquinha e abordar as questões sérias.
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Alguns deles conheciam-na e respeitavam-na, mas outros, sentindo-se atacados, recusavam-se a levá-la a sério. - com aquela boca até pode dizer aquilo que quiser
- comentou uma voz rude repetindo o slogan do anúncio de um dentífrico.
Aquele comentário infeliz provinha de alguém do meio do grupo de jovens que se amontoavam ao fundo da sala. Liliana teve de recorrer a toda a sua presença de espírito
para não abandonar a reunião, batendo com a porta atrás de si. Era a única mulher num plenário de homens irritados e, para agravar a situação, era jovem, bonita
e elegante. Tinha a certeza de que muitos deles tencionavam continuar a humilhá-la para conseguirem que ela se fosse embora.
Recordou a voz áspera de Ernestina, que lhe dizia: "Quiseste a bicicleta? Agora pedala!"
E ela pedalou, assumindo a perseguição.
- O imbecil que pronunciou essa vulgaridade não ajuda nada os companheiros. Eu estou aqui para trabalhar. Quem não quiser fazer a mesma coisa, pode ir embora - disse,
pronunciando as palavras uma a uma. Não houve comentários e Liliana prosseguiu:
- Portanto, tenho o mandato para avançar com estas negociações. Vocês apresentam as vossas exigências. Juntos vamos ver quais são as necessidades mais urgentes,
que me empenharei em satisfazer, em nome da empresa.
Um dos operários, na primeira fila, disse: - Então começo eu em nome dos companheiros da minha secção. Mas fique a saber que, se não chegarmos a um acordo, vamos
todos embora e amanhã tomamos conta do edifício.
- Não aceito chantagens, mas apenas uma discussão saudável - afirmou Liliana. Sentou-se finalmente à mesa e disse: - Estou a
ouvir.
No princípio da tarde, o calor, o fumo dos cigarros e o fedor do suor tornaram-se insuportáveis. Mas a discussão tinha começado e ia avançando sem desordens. Os
operários alternavam-se à mesa das negociações, fazendo turnos para irem comer e esticar as pernas. Liliana continuava colada à cadeira e agradeceu àqueles que lhe
trouxeram, de fora, água fresca e café. Chegaram as oito horas da noite, depois as dez e passou a meia-noite. De madrugada, Liliana tinha concedido algumas passagens
de categoria, recebidas com
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um aplauso. Considerava-as sagradas e, ainda que a direcção não estivesse de acordo, ia ter de as digerir.
- Estou um bocado cansada - disse a certa altura. Viu as horas no seu relógio de pulso e acrescentou: - Não sei como vocês estão. Eu estou à beira do colapso.
Houve um coro de gargalhadas.
- A doutora é uma leoa! Deixe-nos dizer isto, porque de interlocutores percebemos nós - comentou um operário mais velho.
- Obrigada. Eu acho que podemos agora marcar as datas para os próximos encontros.
Enquanto tomava nota das datas, ia perguntando como poderia expor à direcção as concessões que tinha feito.
Da via Paleocapa tinha chegado Torquati, que estava agora à espera dela, com Massaroni, na sala de reuniões. Ostentavam, os dois, um rosto marcado pelo cansaço.
Já tinham sido informados de tudo e olhavam para ela com respeito.
- Fez um bom trabalho - disse Massaroni em voz baixa.
- Parabéns! Conseguiu evitar complicações piores - exclamou Torquati, informando-a de que Sandro estava à espera dela no átrio.
- Amanhã, aliás, hoje, tire o dia de descanso. Vemo-nos na quarta-feira - disse o chefe.
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A nova reunião fora marcada para a sexta-feira seguinte. Liliana estava de péssimo humor, até porque se apercebia da irritação do marido, que se tinha fechado num
mutismo impenetrável.
Uma noite, decidiu enfrentá-lo. Estavam sentados à mesa da cozinha, a comer uma salada de arroz, com pouca vontade. Ela empurrou o prato para o lado e disse: - Vamos
discutir as coisas? Eu não consigo continuar com esta tensão.
- Tudo bem - respondeu Sandro.
- Quem começa? - perguntou ela.
- Tu, como sempre - disse Sandro.
- Muito bem - concordou ela, acendendo um cigarro.
O marido imitou-a e Liliana continuou: - Não me falas há três dias. O que foi que eu te fiz?
- Pergunta antes o que andas a fazer a ti própria. Deixas-te levar pelos teus chefes, que te soltam às feras para ires tu deitar água na fervura. Porquê? Para quê?
Pela carreira? Para demonstrares que és a melhor deles todos? Para contares ao nosso filho que tem uma mãe que é um guerreiro? Sabes o que isso lhe importa, ao menino?
Em suma, porquê? - perguntou.
- Eu nunca te menti. Quando nos conhecemos, disse-te logo que tinha projectos ambiciosos para o meu trabalho e tu concordaste, tanto que até te ofereceste para me
ajudar - esclareceu ela, apagando nervosamente o cigarro.
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- O que foi que eu fiz, até agora, senão encorajar-te, apoiar-te, dar-te uma mão? Mas agora estás a ultrapassar os limites. Consegues imaginar o que eu passei na
segunda-feira? Saíste daquela reunião às quatro horas da manhã!
- E tu, será que fazes alguma ideia daquilo que eu passei naquelas dezoito horas terríveis?
- A pergunta mantém-se. Porquê?
- Porque eu quero uma promoção - explicou Liliana.
- Não te chega aquilo que tens? És uma alta dirigente da Collenit, tens uma casa, um marido e um filho. Para que queres uma promoção?
- Gosto de dialogar com os operários. É a coisa que eu sei fazer melhor. Herdei do meu pai a capacidade de estabelecer relações equilibradas e, se conseguir o acesso
à torre de controlo, poderei gerir com maior liberdade os interesses dos trabalhadores, sem descurar os do patronato. Porque se os patrões são gananciosos e exploradores,
os sindicatos não são uns anjinhos. Sei muito bem que o meu contributo é uma gota no oceano, mas quinze mil trabalhadores são uma boa fatia de humanidade para gerir
com coração e cabeça. Por que não havia de fazer isto?
- Porque amanhã à noite temos um encontro marcado com o nosso filho, por exemplo. Já te esqueceste? Lembras-te do Stefano, aquele menino que está na praia com a
avó e com os primos?
- Não me gozes. Tenho bem presente o meu filho, uma vez que o desejei com todas as minhas forças e que para o ter abandonei o trabalho. Amanhã à noite estamos no
Forte, com ele.
- Eu estou. Tu vais entrar numa reunião amanhã de manhã às nove e sabe-se lá a que horas vais sair. Mas desta vez não vou lá estar à tua espera.
Liliana afastou a cadeira, levantou-se e deitou os restos do jantar no balde do lixo. Depois sussurrou: - Avisei-os no outro dia de que não ia à reunião de sexta-feira.
Ontem à noite chegou um funcionário de Roma. Vai ser ele a prosseguir com as negociações. Eu saio do escritório às cinco horas, como todas as sextas-feiras.
A fúria de Sandro acalmou.
- Não me podias ter dito logo? - perguntou-lhe.
- Como é que eu fazia? Tu já nem falavas comigo - lamentou-se ela.
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- Olha que tivemos uma rica discussão - comentou.
- Uma rica discussão? Nunca assististe às que havia entre minha mãe e o meu pai. A Ernestina atirava os pratos pelo ar.
- E às vezes dava-lhe uma estalada. O teu pai contou-me.
- Mas amam-se. Sempre se amaram, aqueles dois - sublinhou Liliana.
- E nós?
- Ainda temos de afinar as nossas estratégias - brincou Liliana
- No nosso quarto? - perguntou Sandro, indo ao encontro dela e fazendo-lhe uma carícia no rosto.
Na manhã seguinte, Liliana entrou na empresa às oito horas. Saboreou o café habitual, acendeu um cigarro e sentiu uma grande agitação nos corredores, ao mesmo tempo
que o som dos telefones se tornava ensurdecedor. Maria, a secretária, assomou à porta do seu gabinete.
- O director ao telefone - anunciou.
Liliana levantou o auscultador.
- Doutora, há muita tensão na sala das negociações - começou.
- Não está lá em baixo o funcionário de Roma?
- Precisamente. Parece que a querem a si. Atiraram-lhe um pisa-papéis e feriram-no na testa.
- Vai ser preciso substituir os pisa-papéis por umas pastas de plástico. Magoam menos - rematou. Estava absolutamente decidida a não se deixar envolver naquela reunião.
Tinha feito uma promessa ao marido e tencionava mantê-la.
- Eu não me estou a sentir bem - disse à secretária. - Chame-me um táxi, porque quero ir já para casa. - Tinha percebido que a empresa precisava dela, mas daquela
vez não podia deixar-se envolver.
Pouco depois entrava no escritório de Sandro.
- Vamos embora, já - anunciou.
Sandro não queria ouvir outra coisa. Ainda tinha uma montanha de papéis para examinar, mas o trabalho podia esperar, a mulher não.
Foram dois dias caóticos e alegres. A família inteira estava no Forte, à excepção de Giuseppe, que tinha ficado na cidade a preparar
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o primeiro desfile da Corti Collection, que ia apresentar em Setembro. Liliana e o filho foram inseparáveis. Stefano quis partilhar a cama com os pais, durante a
noite, e o pedido foi satisfeito. Imitando-o, também os quatro primos quiseram dormir com Pucci e com Ariella, que acabaram num catre, aos pés da cama invadida por
aquela ninhada de filhos.
Passaram as manhãs na praia e as tardes no jardim a brincar com as crianças, no meio de plantas, birras, discussões e gargalhadas.
Renato isolou-se com Liliana.
- Já soube que te saíste muito bem na tua primeira reunião - disse-lhe.
- Foi o Sandro que te disse? - perguntou-lhe.
- Foram os meus companheiros que me informaram.
- Foi uma experiência terrível. Como é que tu podes ter passado a tua vida com personagens tão arrogantes? - lamentou.
- O exemplo vem dos patrões, que são muito mais prepotentes e mal-educados do que eles. E igualmente machistas. Achas que te vão promover?
- Vão ser obrigados a fazê-lo. Na sexta-feira mandaram para a arena um dirigente de Roma a quem atiraram um pisa-papéis e feriram na cabeça. Queriam-me a mim para
continuar as negociações - disse Liliana, orgulhosa.
- Não te iludas - avisou o pai. - No meio daqueles homens, por cada cem cabeças que pensam há outras tantas que só pretendem desmantelar o movimento operário. Aparentemente,
parecem os mais integralistas, mas são manobrados por quem não tem nada a ver com as nossas regras. E para que entendas aquilo que penso, vou-te dizer: tem cuidado
contigo, Liliana. Ao teu colega atiraram um pisa-papéis, a ti podem atirar uma coisa muito mais pesada. Renato falava com um ar sério e estava preocupado.
- As coisas também funcionam assim na tua fábrica? - perguntou-lhe.
- Exactamente. O sindicato não é feito de santos e de mártires. Os nossos chefes defendem que levam a peito os interesses dos seus membros, e isso é verdade. Mas,
antes disso, levam a peito os interesses deles próprios, que são os do poder. As estratégias são idênticas às da classe dominante. No final, os chefes de uma e de
outra facção conseguem sempre chegar a um acordo. Quando um
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sindicalista incomoda demasiado o patronato, afastam-no com uma promoção. Dão-lhe um cargo político no governo e ele deixa de dar problemas. Não vale a pena dar-te
nomes, porque os conheces. Estão todos a fazer jogo sujo e eu tremo com a ideia de te expores demasiado, porque te podem deitar ao lixo.
- O que é que eu devo fazer, pai? - perguntou Liliana, preocupada.
- Deves fazer aquilo em que acreditas. Já não é uma questão de direita ou de esquerda. O bom e o mau estão de um e de outro lado. Houve bastantes vítimas e nem todas
eram inocentes. Quando estes anos terríveis acabarem, então é que se vai fazer a conta macabra dos mortos. A nossa sociedade precisa de mudanças, mas quem foi que
decidiu que elas têm de se fazer com a marca da violência? Eu não, nem milhões de outros operários como eu. Olhei com horror para aqueles anos em que prevaleceu
a estratégia do bastão para resolver os problemas da sociedade. Eu pensava: está bem a revolução cultural, está bem a ocupação das fábricas e das escolas, os direitos
das mulheres são sagrados, é forçoso que haja um confronto social e construtivo. Mas a violência, que sentido tinha, que sentido tem? Do sangue e da devastação só
pode nascer a raiva e mais violência. Desencadeou-se, na nossa sociedade, uma espiral perversa da qual não vejo o fim. E tu estás no meio dela.
- Mas tudo isto está a ajudar as mulheres a crescer, não achas?
- Eu acho que as mulheres tinham crescido melhor com a ajuda de uma dialéctica mais calma.
- Mas como é que consegues lidar com a ignorância, com a ordinarice? Já não há respeito pela cultura, pelo carácter sagrado das instituições. Pensa o que é que representa
no mundo o nosso Scala de Milão. É o templo da cultura civil, social, política. E temos de assistir ao espectáculo daqueles desgraçados que atiram para cima do público
pazadas de lixo. Isto não é confronto dialéctico, e ignorância, é desprezo pelas nossas tradições. Mas eu acho que as pessoas têm mais bom senso do que as massas.
A violência vai acabar. Talvez a sociedade não volte a ser a mesma de antes, mas alguma coisa de bom há-de ficar.
- Eu também acho. Mas entretanto temos de lidar com as dificuldades actuais. Não gostaria que tivesses de ser tu a fazer as despesas.
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- Pai, eu lembro-me bem de quando a polícia te batia. Tu nunca largaste a presa. Eu também não vou largar.
- És mais casmurra do que a tua mãe - resmungou Renato.
- Sempre a cochichar, vocês os dois - interveio Rosellina, que andava à procura do pai e o tinha finalmente encontrado com Liliana, sentado no caramanchão escondido
pelos jacarandás.
- Podes juntar-te a nós - propôs a irmã. E continuou: - Apesar de eu duvidar que os nossos assuntos te interessem.
- Fazes mal em duvidar. Devias ter a certeza - afirmou Rosellina.
- Eu vou ajudar a mãe a fazer o jantar - decidiu Liliana. E acrescentou: - E não fazia mal se alguém se preocupasse em dar-nos uma mão.
- Não contes comigo. Eu tenho de ir ao cabeleireiro - anunciou Rosellina.
Liliana dirigiu-se a casa, a resmungar contra as divas que desprezam os trabalhos domésticos, e Rosellina sentou-se na poltrona ao lado do pai.
- Dá-me mimo - disse-lhe.
- O teu público não te gratifica o suficiente? - perguntou Renato.
- O mimo do meu pai é uma coisa completamente diferente e gratifica-me muito mais - chilreou ela.
Renato sorriu, enfiou uma mão por entre os fartos cabelos da filha e despenteou-os.
- Passam os anos e tu continuas sempre uma menina - comentou, a abanar a cabeça. Depois acrescentou: - Como é que tu estás, Rosellina?
- Estou muito em baixo, pai. Sabes que a Elvira Valli deixou de me cumprimentar? Anda a dizer que eu lhe roubei o papel, que sou uma ladra.
- E não é assim?
- Só um bocadinho. Não fui eu quem se foi espetar contra uma árvore, com uma bebedeira. Estava escrito que havia de ser assim. Lembras-te daquela noite, no acampamento
dos ciganos, quando fomos reclamar os coelhos do Pucci?
- Foi uma rica aventura para vocês todos, os mais pequenos.
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- Lembras-te daquela cigana velha que disse que também eu havia de ser uma ladra e que ia ser aplaudida como se fosse uma princesa?
Renato anuiu.
- Disse-te também qualquer coisa a ti, que a morte tinha tentado agarrar-te, mas que depois tinha fugido. Estiveste quase a morrer com um traumatismo craniano. Ela
viu mesmo bem, não achas?
- Só lá em cima é que conhecem a nossa sorte - respondeu Renato.
Aquelas curtas férias de Liliana acabaram. Regressou a Milão, no domingo à noite, com Sandro e com o pai. Na segunda-feira de manhã, em cima da secretária do seu
gabinete, encontrou a mensagem de ameaça das Brigadas Vermelhas que, alguns dias depois, tentaram matá-la.
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Ao quarto do hospital, depois da intervenção cirúrgica realizada para reconstruir o músculo e os tendões da perna trespassada pelas balas, chegavam todos os dias
ramos e cestos de flores, acompanhados de bilhetes que exprimiam dor, lamento e solidariedade. Fora do quarto havia, em permanência, agentes da brigada antiterrorismo.
Liliana tinha caído numa depressão grave e, incapaz de chorar, recusava-se também a falar. À cabeceira da cama revezavam-se todos os membros da família. Um dia,
com os olhos brilhantes de lágrimas, Ernestina disse-lhe: - Se te matavam... já pensaste, o teu filho?
Liliana falou pela primeira vez.
- Mantém o meu filho longe desta história - disse.
- É o que estamos a tentar fazer. No Forte, a imprensa andou em cima de nós. Tivemos de fazer as malas e escondemo-nos num Pequeno hotel em Valseriana. - E, abraçando-a,
acrescentou: - Despacha-te a sair deste hospital. Há remédio para tudo nesta vida e tu tens de recomeçar rapidamente a viver.
- Só penso no polícia que morreu por minha causa - murmurou Liliana. - Tinha dois filhos pequenos - explicou.
- Fui ter com a mulher e com as crianças.
- Não tive culpa, mãe. Eu só fiz o meu trabalho.
- Bem, trata de ficar boa e de reorganizar os teus objectivos, vivemos num mundo cão, que não tem respeito por ninguém. Trata de ter algum, por ti própria e pela
tua família - disse Ernestina.
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- Como é que está o Stefano? - perguntou Liliana.
- Brinca com os primos e está a leste disto tudo. À noite falei ao telefone com o Sandro, que já lhe contou que tu estás fora, em trabalho. Ele acreditou. Mas até
quando?
- Até eu deixar este quarto. Só estou à espera que me tirem os pontos da ferida. Quanto ao gesso vou ter de andar com ele durante quarenta dias. Diz ao meu filho
que a mãe vai ter com ele a pé-coxinho - disse Liliana. Depois abriu os braços, abraçou a mãe com muita força e chorou todas as lágrimas que tinha segurado até àquele
momento.
Quando Ernestina saiu do quarto, Renato estava à espera dela no corredor.
- Então? - perguntou-lhe.
- Falou e chorou. Vai ficar boa depressa - respondeu a mulher.
Liliana recebeu a visita dos grandes directores da Collenit, dos
representantes dos operários e de alguns sindicalistas.
- Queremo-la connosco, doutora. Fizeram-lhe uma coisa muito feia e se há alguém que não merecia é mesmo a senhora - disse-lhe um operário, que falava também em nome
dos colegas. Liliana conhecia-o bem. Era aquele que, no início da sua primeira reunião, lhe sugerira que fosse para casa fazer malha.
Contou-lhe que na empresa, quando se tinha sabido a notícia, os operários fizeram dois minutos de silêncio.
- Parece que não é nada, doutora. Mas dois minutos de silêncio é muito tempo. Não se ouvia voar uma mosca. Alguns choraram. Depois não quisemos voltar a reunir e
adiámos a continuação das negociações para Setembro, quando lá estiver a doutora para ouvir os nossos argumentos. Porque em Setembro vai voltar, não
vai?
Liliana voltou. Em fins de Agosto foi ao hospital tirar o gesso e o ortopedista fez-lhe uma consulta minuciosa. - com a ginástica e com a fisioterapia vai retomar
o uso normal da perna. Talvez fique com um ligeiríssimo defeito ao andar, porque há uma diferença de alguns milímetros em relação à outra perna. Pode ser corrigida
com um apoio no interior do sapato - explicou o médico. E concluiu-
- Vai continuar a ter duas pernas lindíssimas.
- O mais bonito par de pernas da Lombardia - disse uma voz de timbre inconfundível.
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Liliana e o médico olharam para a porta do quarto, onde se perfilava a figura imponente de Bruno D'Azaro.
- Vejo que tem visitas, doutora. Espero por si daqui a um mês para a consulta de controlo - disse o ortopedista, enquanto se afastava.
O médico tinha reconhecido o parlamentar socialista, que Liliana não via há anos. Bruno tinha emagrecido muito, o que se notava sobretudo no colarinho da camisa,
que lhe ficava largo. A tua mulher devia arranjar-te um guarda-roupa novo - disse ela, depois de o ter abraçado.
- Eu volto a ganhar os meus quilos quando esta balbúrdia terminar.
- A que devo a honra desta visita? - perguntou Liliana.
- Soube pelos meus informadores que estavas aqui e pensei em oferecer-te o pequeno-almoço - explicou.
Bateram à porta e uma enfermeira entrou no quarto a empurrar um carrinho de chá preparado como se estivessem num grande hotel. O pequeno-almoço vinha da pastelaria
Taveggia, que ficava muito perto do hospital.
- Consegues andar? - perguntou Bruno, atencioso.
- Consigo, obrigada. Só preciso que ponhas uma cadeira ao pé do carrinho.
A enfermeira saiu, deixando-os sós.
- Como é que tu andas? - perguntou Liliana, ao mesmo tempo que trincava um croissant bem cheiroso e macio.
Ele mostrou quatro dedos de uma mão e disse: - Não um, mas quatro guarda-costas. Imaginavas uma coisa destas? Vivo blindado. E adianta muito...
- Claro, se te quiserem atingir, conseguem de qualquer maneira - replicou ela.
- E quando prendem os poucos que se deixam apanhar, eles declaram-se prisioneiros políticos.
- Há demasiadas conivências e complacências, a todos os níveis - afirmou Liliana.
- É isso - concordou Bruno, enquanto levava aos lábios a chávena do cappucino. E continuou: - Por que não me falas de ti?
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- Queres saber se estou bem? Não, estou mal. De noite tenho pesadelos, basta uma coisa de nada para me assustar, ando a tomar um monte de calmantes.
- Deixa a Collenit e sobe para a minha carroça.
Liliana sorriu.
- Uma vez, por amor, inscrevi-me no teu partido. Já sabes.
- Mas nunca renovaste a inscrição.
- Tremia com a ideia de o meu pai vir a descobrir.
- Não é vergonha nenhuma ser socialista.
- É que eu não gosto de soluções de compromisso.
- Devo dizer-te que os italianos, substancialmente, são moderados.
- E também um pouco conservadores. Repara nisto: Democracia Cristã.
- Queres contar-me a história da nossa política?
- Quero dizer-te que me sinto muito lisonjeada com a tua proposta, mas que não posso aceitá-la. Se quisesse um cartão de partido, escolhia o comunista. Após o que,
na empresa, me iam fazer a vida negra. Aliás, até me perseguiam se eu tivesse o cartão do teu partido.
- Mas promoviam-te se tivesses um santo padroeiro na DC.
- Eu quero ser promovida pelo meu profissionalismo.
Bruno olhou para o relógio.
- Tenho de ir - disse-lhe.
Tinha percebido que não valia a pena insistir.
- Muito obrigada pela visita - replicou Liliana. - E pelo pequeno-almoço também. Gostava que me tivesses encontrado um bocadinho mais atraente.
- Mas tu estás. Tu sempre foste, Liliana. Já não tenho tempo nem vontade para andar atrás de saias, mas tu continuas a dar-me a volta à cabeça - sussurrou.
Inclinou-se sobre ela e pousou-lhe um beijo leve nos lábios. Liliana corou, como quando tinha acabado de se formar e ele a beijara da mesma maneira.
No momento em que ia a sair, Liliana chamou-o.
- Nunca mais soubeste nada do Danilo?
- Ainda pensas nele?
- Pura curiosidade.
324
- Não saiu da cepa torta. Deixou o ensino e começou a trabalhar como psicólogo. Faz testes psicotécnicos ou outra extravagância do género para algumas empresas da
zona.
Liliana regressou à Collenit ao fim de uma semana. No gabinete encontrou uma grande planta ornamental e um ramo de rosas brancas em cima da secretária. Eram as boas-vindas
da direcção e das várias chefias. Depois, de Roma, ligou-lhe o director-geral.
- Está em condições de se mexer, doutora? - perguntou-lhe.
- Se assim não fosse, não estaria aqui - respondeu ela.
- Então apanhe o primeiro comboio para Roma. Tenho uma proposta para lhe fazer - comunicou-lhe.
325
VARESE
A direcção central da Collenit ficava na piazza Venezia. Liliana não ia a Roma desde os tempos da fusão da Collevolta com a Zenit, com a passagem do sector privado
para o público. A nova sede era sumptuosa e o gabinete do director-geral parecia o cenário de um filme americano. Havia tapetes, plantas, flores, quadros e móveis
antigos. O director-geral era um homem ao estilo de Laurence Olivier.
Enquanto lhe apertava a mão, disse: - Os jornais não lhe fizeram justiça. É muito mais bonita do que nas fotografias.
- Muito obrigada. Em qualquer caso, tinha preferido não aparecer de maneira nenhuma - respondeu com um tom decidido, sabendo por experiência própria que por detrás
de qualquer cumprimento se esconde um logro.
- Eu entendo-a. Andámos todos muito aflitos por sua causa. Pelo que vejo, não ficaram marcas daquele acidente terrível.
- Não é para o contrariar, mas ficaram marcas, e de que maneira! O aspecto mais terrível do atentado é sentirmos em cima o ódio feroz de alguém. Todos nós gostaríamos
de ser aprovados, se não amados. O ódio fere mais do que uma bala.
- É verdade - disse o director-geral, convidando-a a sentar-se.
Liliana pensou que aquele homem, tão fascinante, ocupava provavelmente a poltrona mais alta da direcção porque tinha um santo protector. Limitou-se a sorrir, esperando
que ele lançasse a estocada que, finalmente, chegou.
329
- Dra. Corti, a senhora fez um estágio de muito respeito - continuou o assistente do chefe do pessoal. A empresa está-lhe muito grata pelo papel que desempenhou
mas, como a senhora concorda, a gratidão para ser isso mesmo, deve traduzir-se em alguma coisa de palpável - começou, utilizando a linguagem de uma circular da empresa.
Liliana continuou calada e esperou que ele continuasse.
- Urge a nomeação de um novo chefe do pessoal no destacamento onde a doutora opera neste momento, porque o Massaroni se vai embora - acrescentou o director-geral.
Tinha a certeza de que se lhe perguntasse o nome do destacamento, ele não saberia responder-lhe. Manteve-se pacientemente à espera que prosseguisse.
- Foram avançados dois nomes para este cargo, o seu e o do Dr. Maraschi, o qual, porém, tem mais dois pontos de mérito em relação a si. Primeiro, é um homem. As
mulheres, como vejo por si, são mais emotivas, mais propensas ao envolvimento pessoal. Segundo, é democrata cristão, como eu. Corrija-me se estiver errado.
- Os directores-gerais, mesmo quando estão errados, não devem ser corrigidos - disse Liliana, com uma voz falsamente melodiosa.
O homem deu uma gargalhada.
- Noto que é profundamente milanesa até no sentido de humor. Se me permite, vou repetir a sua piada.
Liliana sentia-se atormentada por uma raiva feroz que teve dificuldade em conter. Teria arranjado alguns argumentos para contrapor à vergonhosa vileza daquele homem.
Preferiu continuar calada, sabendo que um ataque de fúria não ia servir para nada, e esperou para saber de que forma a empresa tencionava saldar o débito com ela.
- Muito milanesa e muito britânica - repetiu o homem com uma cintilação de dentes de cartaz publicitário.
- O senhor é uma pessoa fascinante, mas não precisa que lho digam. Por isso, estou pronta para o ouvir - disse.
O homem não pareceu aperceber-se nem da ironia, porque se considerava verdadeiramente irresistível, nem da solicitação para concluir.
- Gostaria de a ter aqui, na casa-mãe - declarou.
- Mas... - disse Liliana, sem paciência.
330
- Mas... Mas nunca se sabe... De uma coisa nasce outra. Para já tenho o prazer de lhe comunicar que foi nomeada chefe do pessoal da sede de Varese. Dizem-me que
é uma área muito importante, que compreende todo o território a oeste da Lombardia. Foi promovida, Dra. Corti - anunciou com solenidade.
O bom senso sugeria-lhe que demonstrasse um mínimo de entusiasmo relativamente àquela promoção, embora o facto de andar de um lado para o outro todos os dias entre
Milão e Varese lhe fosse tirar horas preciosas que poderia dedicar ao marido e ao filho, enquanto que o seu colega Maraschi ia ficar a trabalhar ao lado de casa.
Decididamente, a grande Collenit, pela qual tinha arriscado a vida, não estava a ser muito mãos-largas. Ela aspirava à direcção do pessoal na via Paleocapa, onde
sabia que poderia ter um raio de acção muito mais vasto e que lhe permitiria maiores possibilidades de inovação.
- Devo aceitar? - perguntou, sem se descompor.
- E pergunta-me a mim?
- Pergunto-lhe, porque gostava de saber em que se traduz a minha promoção.
O homem dedicou-lhe mais um sorriso.
- Ordenado dobrado, uma bonificação sobre os dividendos ao fim do ano, todos os privilégios concedidos aos directores principais, viagens aéreas em primeira classe,
e por aí adiante - enumerou o director, que naquele momento se sentia ligeiramente intranquilo perante a impassibilidade de Liliana.
- com certeza que nas informações que lhe foram fornecidas sobre mim não está escrito que, graças às minhas capacidades, a Collenit poupou muitos milhões. Nem sequer
está escrito que a produtividade aumentou porque conheço os meus homens um a um e sei entendê-los e fazer-me entender. Portanto, uma oferta adequada seria exactamente
o dobro daquilo que me propôs. Para além do mais, uma vez que conheço o director de Varese e sei como gosta de convocar reuniões para depois do horário do escritório,
quero um carro com motorista que me vá buscar a casa e me leve de volta todos os dias. Sabe, eu tenho uma família que amo de todo o coração e gosto de estar na companhia
do meu marido e do meu filho ao fim de um dia de trabalho - disparou com calma.
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O director-geral fechou a boca sobre aquela dentadura resplandecente, baixou os olhos e começou a torturar os botões de punho em ouro que trazia na camisa.
- É realmente uma mulher muito prática e sabe aquilo que quer - disse, quase num sussurro.
- Quero gerir os meus empregados, contratá-los, transferi-los, promovê-los, removê-los, não em função do cartão do partido mas segundo critérios de justiça.
- Vai ter aquilo que pede - concluiu o director-geral.
Liliana levantou-se, seguida por ele, e estendeu-lhe a mão.
- Agradeço-lhe - disse. E acrescentou: - Agora tenho de ir. O meu comboio parte daqui a uma hora e vou chegar a Milão demasiado tarde para dar um beijo de boas-noites
ao meu filho.
Enquanto a acompanhava até à porta, o homem pareceu fazer-se muito pequeno. Liliana Corti tinha-o metido na ordem.
- Desculpe-me por a ter demorado com a minha conversa - disse.
- Foi um encontro muito interessante - respondeu ela, à porta. Depois acrescentou: - A propósito, eu nunca gravitei na área socialista. Voto nos comunistas, mas
tenho amigos em todo o lado, até entre os democratas cristãos.
O homem encaixou o golpe e voltou a sorrir, enquanto a via afastar-se com o seu passo ligeiramente claudicante.
Liliana apanhou imediatamente um táxi para a levar à estação e dali, pouco antes de apanhar o comboio, telefonou ao marido.
- Chego a Milão à meia-noite. Vais-me buscar? Tenho um monte de coisas para te contar. Dá um beijo por mim ao Stefano - disse, de um só fôlego.
Sandro não respondeu.
- Querido, estás a ouvir? - perguntou Liliana.
- Estou a ouvir e vou estar na estação à tua espera - disse o marido, com uma voz que ela não lhe conhecia.
- Sandro, estás bem? - insistiu.
- Estou, pequenina, eu e o Stefano estamos bem. Faz boa viagem.
Liliana pousou o auscultador e avançou pela longa plataforma onde o seu comboio estava quase a partir.
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Quando chegou a Milão, para além de Sandro estavam também pucci e Giuseppe à espera dela. Olhou para eles, desorientada.
- O que foi que aconteceu? - perguntou, com um fio de voz.
- Mataram o pai - disse Giuseppe.
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Renato deixara há muito tempo de acreditar num mundo melhor. As tensões no interior da fábrica e no sindicato aumentavam constantemente e ele sentia-se cada vez
mais sozinho. Tinham acabado os anos em que os companheiros o olhavam como um exemplo a seguir para alcançar a justiça social.
Nunca tentou impor as suas ideias e confrontou-se mais do que uma vez com os extremistas que foram aparecendo no meio dos companheiros alegando que os problemas
só se resolviam com o recurso à força.
Dizia: - O terrorismo não tem nada a ver com o movimento operário. A quem fomenta a política do terrorismo, devemos responder com a razoabilidade das nossas convicções.
E à mulher, de vez em quando, sussurrava: - Acabou uma época, minha querida Ernestina. Fiz uma boa viagem, mas chegou o momento de descer do comboio.
Na fábrica, escondido atrás da máquina do café, encontrou um dia um panfleto das Brigadas Vermelhas. Conduziu um inquérito pessoal e por fim descobriu o autor. Era
um companheiro, um militante comunista. Renato hesitou em denunciá-lo. Depois percebeu que não se podia calar. Naquele dia assinou a sua condenação à morte.
Foi deixado só, no tribunal, a acusar o companheiro. O homem das Brigadas foi condenado por um juiz bastante céptico, que comentou: - Feitas as contas, trata-se
de uma briga entre operários.
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- O sindicato optou por não tomar posição. Renato temia pela sua vida, mas guardou os seus receios para si. Quando regressou à fábrica, os amigos perceberam que
tinham de se organizar sozinhos para o defender. De manhã e à noite, havia quatro companheiros que o escoltavam de casa até ao trabalho e vice-versa. O resto do
tempo, vivia blindado.
Ernestina ainda não tinha superado o pavor relativamente à história de Liliana e agora andava aterrada com ele.
- Eu conheço-te, Renato, e sei que nunca te vi assim. Tu receias o pior - disse-lhe.
- Acaba com essas obsessões - respondeu. Depois falou com os companheiros. - A minha mulher anda aterrada. Já chega. Se mostrarmos medo, é como admitirmos que os
terroristas atingiram o seu objectivo. Logo à noite volto para casa sozinho.
Saiu da fábrica no fim do turno, atravessou o parque de estacionamento, aproximou-se do carro e, no momento em que se sentava ao volante, foi atingido por cinco
tiros de pistola. Um deles trespassou-lhe o coração.
O seu corpo estava agora na mesa da morgue, no hospital. Liliana e o resto da família só o puderam ver no dia seguinte, quando foi metido num caixão.
Naquela noite, a casa de Porta Romana foi invadida por uma grande quantidade de amigos. O telefone não parava de tocar, chegaram telegramas de condolências de políticos
de todas as facções. Os Corti estavam atónitos relativamente àquilo que tinha acontecido. Ernestina estava petrificada pela dor. Os companheiros de Renato, de acordo
com a direcção da empresa, decidiram instalar a câmara ardente no átrio monumental da fábrica onde Renato tinha trabalhado uma vida inteira. Organizaram-se piquetes
para velar o corpo, num silêncio gelado, enquanto os operários, os dirigentes e os políticos desfilaram durante horas para prestar homenagem ao homem que tinha travado
tantas batalhas com fé e humildade. As pessoas mobilizaram-se espontaneamente. Todas as famílias operárias se sentiram atingidas pela morte. No funeral, pago pelo
Estado, Participou até o Presidente da República. Eram cerca de trezentas mil pessoas as que participaram no cortejo que acompanhou Renato da fábrica até ao cemitério.
E, no fundo, ele obteve aquilo que sempre tinha desejado: o fim das lutas no interior da fábrica.
335
Passaram dias, semanas, meses. Por fim, os Corti acabaram por encontrar alguma serenidade. Ernestina, no entanto, não tinha paz. Fechada na sua dor, parecia não
ter mais nenhum interesse pela vida. Isolou-se no grande apartamento do corso di Porta Romana, onde tinha vivido durante tantos anos com o marido. Sentia-se afogar
na solidão da grande cama de casal, que desde sempre dividira com Renato. Os filhos iam visitá-la e ela recebia-os de má vontade. Eles falavam e ela não respondia.
Era como se não os visse nem os ouvisse. Ariella deixava-lhe ficar os filhos durante algumas horas e ela tratava deles sem alegria. Nem sequer ia ao cemitério. Dizia:
- Ele não está lá em baixo. Ficou aqui, no meu coração.
Giuseppe era o único com quem, às vezes, conseguia falar.
- O que estou eu a fazer neste mundo? - perguntou-lhe um dia.
- Tu não podes continuar a morar neste apartamento. Anda viver comigo - propôs-lhe.
- Não percebes. Não é um problema de casa. Sinto a falta dele, daquele sorriso. Faltam-me as discussões e as pazes. Já não fala comigo, já não me toca. Já não tenho
as coisas dele para lavar e passar. Sento-me na cozinha a tomar café e a fumar um cigarro e ele não está lá para me dizer: "Minha querida Ernestina, gosto muito
de ti." O meu homem, agora, está no silêncio e eu sei que se sente só, muito só sem mim - sussurrou.
- Mãezinha, eu não tenho palavras para te consolar, mas gostava muito que sentisses o amor que nós temos por ti. Eu quero de volta a minha mãe activa e cheia de
energia. Agora que o pai já cá não está, os teus filhos precisam de ti - disse Giuseppe, com convicção.
Ernestina lançou um olhar terno àquele filho tão diferente e, no entanto, tão parecido com o seu Renato. Tinha-se tornado um costureiro famoso. A sua marca, a Corti
Collection, conquistara o sucesso em todo o mundo. A casa da via Mário Pagano era agora a sede da empresa, enquanto que ele morava num andar na via Borgospesso.
Ernestina não sabia bem se havia de se sentir feliz ou contrariada com aquele sucesso. Continuava a ter a sensação de que Giuseppe estava a edificar um império sobre
o efémero. Pensava: É uma coisa que não vai durar, porque por baixo não há nada. E ainda: Esta
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loucura dos vestidos, que está a contagiar toda a gente, tem em si qualquer coisa de inquietante. Não é com a roupa que as pessoas podem dar um sentido à sua própria
vida.
Naquele dia, sorriu-lhe e disse: - Pareces-te tanto com ele! Referia-se a Renato.
- Todos nós nos parecemos com ele, até a Liliana e a Rosellina. E também nos parecemos contigo, mãe.
Ela abanou a cabeça.
- A Liliana é uma neurótica, nunca está satisfeita com nada.
- Exactamente como tu, mãe.
- A Rosellina é uma borboleta. De vez em quando lá pousa numa flor, mas anda quase sempre a esvoaçar sem uma meta.
- A Rosellina é uma artista.
- Gostava muito que ela se arrumasse. Tem quase trinta anos e já era tempo de arranjar um marido - suspirou.
Giuseppe, por fim, conseguiu tirá-la do seu silêncio, arrancar-lhe um sorriso.
Antes de se ir embora, abraçou-a.
- Sossega, mãe. Hão-de vir dias melhores - disse-lhe.
- Quem sabe... - sussurrou ela.
Também Pucci se foi despedir dela naquela tarde, com Ariella e os filhos. No dia seguinte iam partir para umas breves férias na montanha. Ela abraçou-os.
À noite arranjou qualquer coisa para comer e depois foi logo para a cama. Sentia-se cansada, fatigada. Quando estava quase a adormecer, pensou com um suspiro: Preciso
tanto de estar ao pé de ti, Renato. E nunca mais acordou.
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Liliana estava sentada aos pés da cama de Stefano, que lutava com todas as suas forças contra o sono porque gostava de ouvir a mãe que, com uma voz expressiva, lhe
lia Alice no País das Maravilhas.
Passara quase um ano desde o dia em que Liliana sofrera o atentado, que lhe tinha sido escondido, e oito meses desde a morte do avô. Agora, de repente, Stefano perguntou-lhe:
- Mãe, diz-me a verdade. As balas magoam?
- Por que é que me fazes essa pergunta? - respondeu Liliana.
- Na escola, o meu colega Redaelli contou-me que tu coxeias um bocadinho, só um bocadinho, porque te entrou uma bala na perna. E também me disse que o avô não morreu
por ter tido um problema no coração, mas porque dispararam contra ele. Foi o pai dele que lhe disse.
Era inútil negar. Se Stefano punha questões tão importantes, era porque já estava capaz de aceitar a verdade, pensou Liliana.
- O teu colega tem razão. Dispararam contra mim e contra o avô. Eu safei-me, o avô morreu - disse.
- As balas magoam? - perguntou outra vez.
- Depende do sítio onde te atingem. O avô não sofreu, porque foi atingido no coração e morreu imediatamente. Mas eu senti dor durante um bocado e depois desmaiei
e não senti mais nada.
- Por que foi que toda a gente me contou que tinhas caído das escadas e que tinhas partido a perna?
338
- Porque era desagradável contar-te que alguém me queria tão
mal, ao ponto de desejar matar-me - explicou.
- Foram as Brigadas Vermelhas, não foram?
- Foram.
- O avô era comunista e tu também és um bocadinho. As Brigadas Vermelhas são comunistas. Por que é que vos odeiam?
- Porque acham que não estamos suficientemente zangados com aqueles que exploram o trabalho dos outros.
- Como quando os professores nos dão uma má nota porque dizem que não fizemos o trabalho tão bem como devíamos?
- Mais ou menos.
- Então as balas são como as notas más.
- As notas más não matam.
- Mas magoam.
- É verdade, magoam. Mas tu não tens esse problema. És muito bom aluno.
- Mas tu e o avô também foram muito bons.
- Eu talvez não tenha sido, mas o teu avô merecia distinção e louvor, garanto-te.
- Então isso quer dizer que as Brigadas Vermelhas não sabem quando uma pessoa faz bem e quando faz mal - observou Stefano.
- É isso mesmo, querido. Eles não sabem, mas pensam que sabem, e isso é terrível. Era como se os teus professores te ensinassem uma coisa errada e depois te dessem
uma nota má no momento em que tu lhes demonstrasses que eles se tinham enganado.
- Está bem - disse Stefano, enterrando a cabeça na almofada.
- O que é que está bem? - perguntou Liliana.
- Já percebi. As Brigadas Vermelhas são ignorantes e a ignorância, como diz o pai, anda de braço dado com a maldade. Os que dispararam contra ti e contra o avô são
ignorantes e malvados. Tanto é verdade que até estão na cadeia, assim já não fazem mal a ninguém - afirmou, e suspirou profundamente. Bocejou, fechou os olhos e
sussurrou: - Boa-noite, mãe.
Liliana beijou-o levemente na testa e ficou ali a olhar para ele, com o coração dilatado de comoção. Stefano adormeceu e ela saiu do quarto em bicos de pés.
339
Sandro estava na sala, enterrado na sua poltrona, a ver televisão. Ouviu-a chegar e esticou um braço para a agarrar e a fazer sentar nos seus joelhos.
- Está a dormir? - perguntou, aludindo ao filho.
- Como um anjo - confirmou Liliana.
O marido abraçou-a.
- Foi uma boa-noite mais longa do que o costume - disse ele, desligando a televisão.
- O Stefano fez-me umas perguntas.
- As exigências dele são sempre mais importantes do que as minhas - protestou, insinuando uma mão no decote da blusa da mulher.
- Também tens ciúmes do nosso filho? - perguntou, a sorrir.
- E não devia ter? Nunca estás em casa e quando estás passas mais tempo com o Stefano do que comigo.
- Para ti tenho a noite toda - disse Liliana.
Estava muito cansada, mas também o marido tinha direito à sua dose de ternura.
- Então vamos já para a cama - decidiu Sandro.
- vou tomar um duche rápido - disse Liliana.
Tinha tido um dia difícil, porque fora obrigada a suspender do trabalho dois operários apanhados em flagrante a roubar material do armazém. Recusou-se a denunciá-los
e por isso entrou em conflito com o director e com o chefe do aprovisionamento. Interrogou os dois homens, que admitiram a culpa e declararam que aquele não era
o primeiro furto. Liliana já sabia. Já tinham desaparecido por várias vezes cabos e ferramentas do armazém.
- Por que é que fazem isso? - perguntou-lhes.
- Diga-nos a doutora. Sabe melhor do que nós - respondeu o mais jovem dos dois, e acrescentou: - É uma maneira de arredondar o salário.
Não pareciam preocupados com o facto de terem sido apanhados com a mão na massa. Aquele comportamento surpreendeu-a.
- Se todos fizessem como vocês o armazém ficava vazio numa hora - sussurrou. - Eu acho que cada um de nós deve ser um bom exemplo para quem estiver ao lado. Vocês
não deram um bom exemplo aos vossos companheiros.
- O bom exemplo, doutora, vem de cima. Nesta empresa, se olharmos para cima, o que é que vemos? - perguntou o homem.
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- Diga-me você.
- Isto aqui é só sacar. Os chefes enchem os bolsos, e o pessoal miúdo contenta-se com as migalhas.
Foi como se alguém lhe desse um murro no estômago.
- Se sabem alguma coisa, este é o momento ideal para falarem - disse-lhes.
- Olhe que nós não nascemos ontem. Quem fala está tramado, para sempre.
- Isso é um raciocínio mafioso que não me agrada nada.
- A doutora é filha do Renato Corti e nós devemos-lhe respeito, mas há outros que são uns ricos filhos da mãe. Investigue e vai descobrir das boas.
Liliana acreditou neles. Suspendeu-os por três dias, mas recusou-se a denunciá-los. Aqueles dois homens serviram-lhe um prato envenenado e ela precisava de descobrir
quem tinha posto o veneno. A primeira pista a investigar era precisamente a do chefe do aprovisionamento e depois ia ter de espiolhar os processos do gabinete de
compras. Não gostava de fazer de polícia e nem sequer lhe competia a tarefa de investigar os colegas. Mas, tendo chegado àquele ponto, tinha alguns deveres relativamente
ao pessoal. Estava firmemente convencida de que os chefes deviam dar um bom exemplo. Podia ter passado a batata quente para o director, mas, sabe-se lá porquê, o
instinto dizia-lhe que ia criar inimizades. Desde que chegara a Varese não tinha uma vida fácil. Era a única mulher na direcção e era olhada com alguma desconfiança
até pelas secretárias, que estavam dispostas a servir um homem, mas não uma mulher. Tinha de apurar a verdade com muita discrição e ia fazê-lo num fim de tarde,
quando se esvaziassem os escritórios.
- Mas hoje não - sussurrou para si própria. Sentia vontade de estar com o filho e com o marido. Saiu do gabinete e, no corredor, chocou com um homem alto, magro,
de rosto encovado e cabelos encaracolados e negros que lhe caíam sobre as orelhas. Numa mão trazia uma pasta de pele e na outra tinha um cigarro enfiado entre o
indicador e o médio. Havia nele alguma coisa de familiar. Ele sorriu-lhe.
- Olá, Liliana - começou, parado à frente dela. Foi um segundo murro no estômago.
- Danilo! - exclamou, num sussurro.
341
- Fizeste carreira - disse ele.
- O cigarro do costume para manter as mãos ocupadas? - replicou, enquanto observava as rugas que lhe marcavam o rosto. Lembrou-se daquilo que lhe tinha contado Bruno
D'Azaro: Danilo tinha deixado de dar aulas e fazia testes psicotécnicos.
- Pois, para manter as mãos ocupadas - respondeu.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou-lhe.
- Não sabes? Faço testes ao pessoal que tu contratas depois. Não leste as minhas fichas? - retorquiu, com uma sombra de arrogância que ela conhecia bem.
- Não sabia que aquelas informações eram tuas - disse, quase como que a desculpar-se. E continuou: - Sabes, nunca dei muita importância a essas extravagâncias americanas.
Contrato as pessoas ao perto, a olhá-las nos olhos. - Os lábios bonitos de Danilo desenharam um sorriso ligeiramente desdenhoso. Não tinha mudado. Ia dizer alguma
coisa, mas ela antecipou-se: - É um método empírico, eu sei, mas infalível. Olho nos olhos o meu interlocutor e percebo logo com quem estou a lidar. Só me enganei
uma vez, quando te encontrei a ti, mas era muito nova e muito ingénua.
Deixou-o sem sequer lhe estender a mão. Quando o motorista lhe abriu a porta do carro que a levaria de volta a Milão, Liliana já tinha esquecido aquele encontro.
Agora, enquanto estava a tomar um duche, pareceu-lhe ouvir o toque do telefone. Quem poderia ser, àquela hora? De qualquer maneira, Sandro ia atender. Saiu da banheira
e o marido abriu a porta da casa de banho. Estendeu-lhe a toalha, olhando para ela com uma expressão dolorosa.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Liliana, subitamente alarmada.
- Seca-te e vem à cozinha. Pus a máquina de café ao lume - disse, sem ouvir a resposta dela.
Liliana enfiou rapidamente o roupão e foi atrás do marido até à cozinha.
- Sandro, o que foi? - repetiu, preocupada.
Ele abraçou-a e sussurrou: - Tens de ser forte, pequenina, porque a tua mãe já cá não está. Partiu durante o sono, sem dar conta.
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A grande villa Liberty da via Mário Pagano albergava a direcção e os escritórios da Corti Collection.
Liliana tocou à campainha do portão, que se abriu com um som metálico. Percorreu a curta alameda de basalto e entrou no átrio, iluminado pelas grandes vidraças multicolores
que, ao filtrar o sol, criavam jogos de luz sobre as paredes cobertas de frescos e sobre a madeira clara do chão. Era uma manhã de sábado, já era tarde, e a villa
estava mergulhada no silêncio. Giuseppe debruçou-se da balaustrada do primeiro andar e olhou para baixo.
- Não posso acreditar! - exclamou. - És mesmo tu - acrescentou, enquanto descia rapidamente as escadas.
Liliana esperava no centro do átrio e observava o irmão com um ar interrogativo. Trazia um tailleur cinzento-pérola. Por baixo do casaco tinha uma blusa de seda
azul-pálido.
Giuseppe parou no último degrau e observava-a com um olho profissional.
- Então? - perguntou ela.
- És outra Liliana - concluiu ele.
- Outra para melhor ou para pior? - insistiu.
- Dá-me tempo para me habituar ao teu novo aspecto - disse Giuseppe. Foi ao encontro dela, deu-lhe o braço e saíram para o jardim, onde floriam as rosas, as íris
e o muguet.
- Então? - repetiu ela.
343
- O cabelo loiro fica-te bem - disse ele, com um sorriso de aprovação.
Liliana acabava de sair do cabeleireiro, onde se tinha decidido por um corte drástico e uma mudança radical do seu aspecto.
- Mas ainda não estás convencido. A tua opinião é importante e, se esta Liliana platinada não te convence, posso voltar ao cabeleireiro antes de me apresentar ao
meu marido. Quero que sejas impiedoso, por favor - disse-lhe.
- A mãe ia gostar - afirmou Giuseppe. E acrescentou: - Porquê esta mudança?
Sentaram-se num cadeirão de vime, enterrados nas almofadas forradas de tecido florido.
- Senti a necessidade de deitar para trás das costas um passado demasiado penoso e achei que, mudando de aspecto, talvez pudesse mudar ainda alguma coisa dentro
de mim.
- Porquê?
- Quando era pequena, sentia uma pedrinha incomodativa no estômago. Ao crescer, a pedrinha tornou-se um calhau. Queria pegar nele e atirá-lo para longe. Preciso
de leveza, Giuseppe. O loiro é uma cor mais leve do que o castanho - explicou.
- Não és a única a ter um calhau no estômago. A sorte não nos deu muitos rebuçados nestes últimos anos, mas a vida compensou-nos por tantas contrariedades.
- Não há um dia em que eu não pense na mãe e no pai. Era capaz de fazer qualquer coisa para voltar a tê-los aqui, ao pé de nós - sussurrou Liliana.
- Eles não se foram embora. Eu trago-os dentro de mim e falo com eles porque sei que me ouvem - disse Giuseppe. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, abraçou a irmã
e disse: - Lembras-te das bofetadas da mãe? E das gargalhadas do pai? E das canções dos anarquistas, e das terrinas de massa, e dos suspiros que vinham do quarto
deles? Como se amaram, aqueles dois, e como trabalharam para nos dar o melhor! Foram magníficos. E a Rosellina tornou-se a vestal das lembranças deles. Ontem à noite
fui jantar a casa dela. Mantém a casa de Porta Romana tal como a mãe a deixou. Os vestidos dela ainda estão no armário. Na mesa-de-cabeceira do pai está o último
número do Unità com algumas frases de um discurso do Berlinguer que ele tinha sublinhado e o último volume da Storia
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del Partito Comunista Italiano de Paolo Spriano. Na da mãe ficaram os cigarros, o Ronson de prata que o pai lhe deu e o romance de Gavino Ledda, Padre Padrone. A
Rosellina disse-me que o pai e a mãe haviam de ficar contentes se nós retomássemos o ritual do almoço de domingo no corso di Porta Romana.
- Achas que devíamos fazer isso? - perguntou Liliana.
- Acho que já é tempo de sacudir o pó aos bons velhos hábitos.
- Então, vamos almoçar à Rosellina, amanhã?
- Assim toda a gente pode admirar a tua transformação radical. Estás mesmo bem. Pareces uma menina.
Passaram um excelente domingo. Ariella fez o almoço para todos. Liliana pôs a mesa com a toalha de renda de Flandres que tinha sido o orgulho de Ernestina. Rosellina
enfeitou-a com flores brancas. Giuseppe tratou do vinho e da sobremesa e Pucci seleccionou a música de fundo, escolhendo o género que agradava aos pais: valsas de
Strauss e tangos de Gardel e Piazzolla. As crianças, muito encostadas ao fundo da mesa, comiam, riam e brincavam. Ariella, de vez em quando, nos momentos em que
a barulheira superava os limites da tolerância, levantava-se e distribuía sapatadas, como fazia Ernestina. Irmãos e cunhados conversavam sem parar. Rosellina falava
da etapa seguinte do seu trabalho. Ia fazer cinema, na América. Um produtor de Los Angeles tinha-a admitido para o papel de protagonista num filme brilhante extraído
de uma comédia do italo-americano Mike Brenner, anteriormente conhecido por Michele Brentano.
- vou ser a mulher de um gangster na época da lei seca e vou morrer a escudar, com o meu corpo, a uma criança órfã que se encontra por acaso no meio de um tiroteio
entre bandos rivais. É claro que com este final vou redimir a minha vida libertina e a do Frank, o meu homem, que acaba por construir um orfanato para crianças abandonadas.
Mas, antes de morrer, vou ser uma rapariga exuberante, vou dançar e cantar vestida de lantejoulas, vou contar uma série de piadas hilariantes e, com aquele fim,
vou despedaçar o coração do público todo. Não vos parece uma aventura fantástica?
- O filme ou a tua viagem à América? - perguntou Sandro, que ao fim de tantos anos ainda não tinha conseguido pôr-se em sintonia com a jovem cunhada.
- Tu és mesmo um contabilista! - resmungou Rosellina.
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- Realmente - sussurrou Pucci. E acrescentou: - Meu caro Sandro, tu ainda não percebeste que cada instante da vida da Rosellina é uma aventura fantástica. Ela consegue
cobrir de pétalas de flores o caminho que vai daqui ao quiosque onde compra o jornal.
- E sou a tia predilecta dos meus sobrinhos - afirmou ela, para reforçar a dose.
- Claro. Fazes-lhes as vontades todas - interveio Liliana.
- Olha quem fala! O facto de teres posto o cabelo loiro platinado não te adoçou o temperamento - agrediu-a a irmã.
- Eu tenho a cabeça em cima dos ombros. A tua, pelo contrário, está sempre nas nuvens - replicou Liliana.
- Tens inveja dos meus sucessos artísticos? - insinuou Rosellina.
- Apenas nutro a esperança de que tu consigas vir a ser uma pessoa adulta.
- Isso nunca vai acontecer. Eu não quero ficar como tu. Casa, trabalho, trabalho e casa. Nós, os Corti, somos pessoas criativas e tu és uma manager muito pedante.
Não basta pôr o cabelo mais claro para enfrentar a vida com uma ponta de leveza. O problema é que tu saíste em tudo à mãe, que não se ria nem quando lhe contavam
uma anedota.
- Não toques na mãe! Sempre foste a cruz que ela carregou.
- Lá por isso, teve outras cruzes. Ou não? - disse Rosellina, passando em revista os elementos da família.
As crianças tinham-se calado e seguiam o confronto das duas irmãs com muito interesse.
- Meninos, vão brincar - ordenou Pucci, mas nenhum lhe obedeceu.
- Que é para estas duas tontas se poderem pegar mais à vontade - precisou Giuseppe, acompanhando o comentário com uma gargalhada.
Ariella aumentou o volume da aparelhagem. As notas de um tango argentino flutuaram na luz clara da sala de jantar.
- Vamos dançar! - exclamou Pucci, agarrando Rosellina pela cintura.
Cristiano Montenero pegou em Ariella e obrigou-a a fazer uma pirueta antes de a conduzir num tango escaldante. Sandro olhou para a mulher.
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- Vamos dançar? - propôs-lhe.
Encostaram a mesa a uma parede para terem mais espaço.
- E nós? - perguntou Giuseppe olhando para o companheiro.
- Arranja-te - disse ele, e agarrou na pequena Tina, que ficou felicíssima por poder dançar com o tio Rizio.
No fim, entre empurrões e gargalhadas, dançaram todos, grandes e pequenos. Aquele foi o primeiro domingo descontraído depois de tanta dor e foi a melhor maneira
de recordar Ernestina e Renato.
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Liliana retomou o fio das suas investigações no interior da Collenit para averiguar a acusação dos dois operários surpreendidos a roubar: "Isto aqui é só sacar.
Os chefes enchem os bolsos, e o pessoal miúdo contenta-se com as migalhas."
Tinha espiolhado os arquivos do aprovisionamento e os do gabinete de compras e fotocopiado muitos processos para os poder estudar em casa, com tranquilidade.
- Será possível que tu tenhas de trabalhar também à noite? - protestou Sandro.
Acabou por lhe contar tudo.
- Mas por que é que não te metes na tua vida? - protestou o marido. - Os anos passam e tu continuas a ser a rapariguinha que queria mudar o mundo. Corres o risco
de te meteres num mar de problemas. E depois, quem te disse que aqueles dois homens não estavam a mentir?
- Foram sinceros. Tenho a certeza. E eu tenho o dever de descobrir a verdade - disse.
- E depois? Quero dizer, se descobrires que os chefes metem ao bolso, o que vais fazer? Vais ter com eles e dizes-lhes que são feios e maus? Vais denunciá-los?
- Não sei - respondeu, com um ar pensativo.
- Olha que te arriscas a mexer num ninho de vespas. Depois, repito, vais fazer o quê?
- Eu não nasci ontem e sei muito bem que estes desvios fazem
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parte do nosso sistema. Mas perante uma acusação, eu tenho o dever de investigar.
- Não és juiz, nem sequer polícia. E depois, encontraste de facto alguma coisa de errado no meio desta papelada que trazes para casa e que te tira tempo e atenção
à tua família?
- Não encontrei nada, por enquanto. Meu Deus, tens razão, Sandro. Não vou ser eu a mudar certos jogos sujos que fazem parte, desde sempre, de um determinado sistema
- sussurrou, e pensou que, se o pai ainda fosse vivo, lhe contava tudo e ele lhe indicava o caminho a seguir. - E não voltes a dizer-me que eu me descuido em relação
à minha família, porque isso é uma censura que me ofende - concluiu.
O marido afagou-lhe os cabelos e sorriu.
- Não volto a dizer, até porque sei que fazes milagres para tratares de mim e do Stefano.
Liliana esperou que o marido se fosse deitar e depois telefonou para Roma, para o director da Collenit. Eram dez horas da noite e encontrou-o em casa. A única maneira
de passar uma noite tranquila era descarregar para cima do grande chefe as suas suspeitas.
O homem ouviu-a e depois disse: - Fique sossegada, doutora. Eu vou tratar pessoalmente desta história e, se alguém tiver errado, vai ter de pagar.
Os directores de Varese nunca tinham sido calorosos com ela. Não se conformavam com a ideia de trabalhar ao mesmo nível com uma mulher. Mas agora a falta de calor
passou a hostilidade. Não voltaram a conversar com ela, cumprimentavam-na por favor e, se pudessem, evitavam encontrá-la. Poucos dias depois, no momento em que ia
a entrar no gabinete, tocou o telefone directo.
- Parabéns! - disse uma voz que reconheceu imediatamente. Era Bruno D'Azaro.
- Porquê? - perguntou, pondo-se na defensiva.
- Ainda não te comunicaram? - perguntou o amigo.
- Não me ponhas em pulgas e, sobretudo, não te armes em esperto.
- Deves ter feito uma coisa muito especial, porque és a primeira mulher a ter a direcção do pessoal na via Paleocapa. Um grande feito!
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Liliana estava sem fôlego e levou alguns segundos a assimilar a notícia.
- Tens a certeza? - perguntou.
- A informação chegou-me há dez minutos. Será possível que não te tenha cheirado nada? - perguntou o político, espantado.
- Promoveatur ut amoveatur - sussurrou ela.
- Como dizes?
- Digo que já não me queriam aqui. Tornei-me incómoda - revelou. Era evidente que a direcção central tinha decidido afastá-la de Varese e, para evitar que viesse
a criar problemas, tinha-a promovido, entregando-lhe numa bandeja de prata um cargo de grande prestígio. Em vez de ficar feliz com a notícia, sentiu que tinha uma
arma apontada contra ela.
Depois de ter falado com Bruno, o telefone tocou outra vez. O director-geral estava a ligar-lhe de Roma para lhe comunicar a promoção.
- Absolutamente merecida, Dra. Corti - sublinhou. - Ganhou experiência em Varese e agora está pronta para dar o grande salto.
O telefone continuou a tocar durante toda a manhã. Toda a gente lhe ligava, inclusivamente os conselheiros municipais, os assessores e os políticos de várias facções.
A notícia do seu novo cargo espalhara-se como uma mancha de óleo e toda a gente queria agora felicitar a mulher a quem tinha sido atribuído um papel empresarial
e político. Liliana sabia que a Collenit lhe tinha mandado uma mensagem precisa: "Promovemos-te. Agora porta-te bem e aproveita essa honra. Nós tratamos do resto."
Voltou para casa e encontrou o filho às voltas com um problema de matemática que não conseguia resolver.
Maddalena, que continuava a tratar de Stefano como se fosse uma avó, disse-lhe: - Uma vez que estás aqui, eu vou-me embora para casa. O teu marido ligou a dizer
que hoje vai chegar tarde. O problema do teu filho é superior às minhas capacidades. Desculpa a minha ignorância. Vemo-nos amanhã. - Quando ia a sair, observou:
- Não me pareces muito bem. O que tens?
- Nada de especial - respondeu, tentando sorrir.
- Tal e qual a tua mãe: nunca estás satisfeita - resmungou, e foi-se embora.
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Liliana ajudou o filho a fazer os deveres, jantaram juntos e ela perguntou-lhe como tinha corrido o dia.
- És sempre tu que fazes perguntas. Por que é que eu não te posso interrogar também?
- Senta-te aqui. O que queres saber?
- Por que é que estás tão nervosa?
- Nota-se?
- Esmigalhaste os grissinos todos em cima da toalha e não comeste nem um bocadinho - observou Stefano.
- Tudo bem, estou nervosa. Queres saber porquê? Porque me promoveram e vou trabalhar outra vez em Milão - explicou, acendendo um cigarro.
- Eu acho isso fantástico, mamã. Assim, a partir de agora, és tu que vais falar com os professores, em vez de ir a Maddalena. Alguns deles acham que tu és um fantasma
- contou o rapaz.
Stefano não perdia uma ocasião de a fazer sentir-se culpada. Ela decidiu não reagir à provocação.
- Mas finalmente vão-me conhecer. Agora vemos o telejornal e depois vamos a correr para a cama - disse.
Em frente ao televisor, Stefano encostou-se muito a ela, que saboreou o prazer de o ter tão próximo.
Sandro chegou a casa e encontrou-os abraçados. Sorriu.
- A mãe foi promovida e vai voltar para Milão. Mas está nervosa, já a conheces - disse Stefano.
- Conheço-a e quero saber mais - comentou o marido, enquanto observava a expressão tensa da mulher.
- Depois eu conto-te - disse ela, levantando-se para acompanhar o filho ao quarto. - Entretanto come. O jantar está na mesa.
Depois de ter metido Stefano na cama, Liliana encontrou o marido na sala de estar. Saboreava um whisky enquanto via televisão.
- Estava a lembrar-me de quando te conheci. Andavas atrás de um trabalho digno. E eu queria ajudar-te. Fizeste tudo sozinha e chegaste ao topo da carreira, só com
a ajuda da tua inteligência. Percorreste um longo caminho, pequenina.
- Mas não estou satisfeita - replicou Liliana.
- Isso faz parte do guião.
- Não me tinham oferecido a direcção do pessoal na via Paleocapa se não me temessem. Mas eu preferia ser amada - explicou.
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- Podes sempre recusar a promoção.
- Só se fosse doida! É aquilo que eu sempre quis. Mas não me chega.
Sandro apagou a televisão, levantou-se do sofá e explicou: - O teu pai tinha razão. És insuportável. O que mais querias?
Liliana fez uma careta, que exprimia um acto de contrição.
- Não te zangues, Sandro. Já sabes que eu a ti conto tudo. Quero realizar um projecto que estou a elaborar há meses e que é muito importante para mim. Quero renovar
a Collenit e aligeirar aquela imagem demasiado pesada. Quero tratar das mulheres, dos direitos que lhes são negados demasiadas vezes. Escolheram uma mulher para
um lugar importante e eu vou revelar às mulheres as grandes potencialidades que elas têm, para que acreditem mais nelas mesmas. Passam a vida nos bastidores e, no
entanto, podem transformar-se em protagonistas fantásticas.
Sandro pegou-lhe nas mãos e, olhando-a com ternura, perguntou: - O que é que te aflige, pequenina?
Liliana retirou as mãos e escondeu-as atrás das costas.
- Por que é que me fazes essa pergunta? - disse, hesitante.
- Se não tivesses alguma coisa a afligir-te, estavas mais tranquila. Acabas de ser promovida e já tens um novo projecto em mente. O que tens não te chega. Por isso
te pergunto o que mais queres, porque é evidente que te falta alguma coisa - disse ele, falando-lhe com doçura.
Liliana sentou-se no sofá e olhou para o marido com um ar preocupado.
- Achas mesmo? - perguntou.
- Durante muito tempo pensei que quisesses um segundo filho, que não veio. A seguir convenci-me de que te falta alguma coisa diferente, alguma coisa que nunca vais
encontrar fora de ti. Construíste a tua vida como um belo mosaico: família, trabalho, afectos e sucesso. Mas ficaram alguns vazios entre o coração e a mente. Faltam
algumas peças para fazer de ti uma mulher completa. Encontra-as, Liliana.
- Não estou a perceber - sussurrou.
- Não faz mal. Hás-de perceber.
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- Eu tenho tudo aquilo que uma mulher pode desejar. Se elaboro projectos, é porque aprendi que, na vida, nunca devemos pensar que já fizemos tudo.
- Então vive, Liliana e completa o teu mosaico. Agora estou cansado e vou dormir.
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ROMA
Liliana subiu até ao último andar de um edifício renascentista, em Roma, que dava para a piazza di Spagna. Atravessou um vasto patamar, delimitado por uma balaustrada
de mármore, e parou à entrada do apartamento. A porta estava aberta de par em par e ela observou a sucessão de salas de onde provinha um rumor de vozes, pelo meio
do tilintar dos copos. Estava muito tensa, porque as festas mundanas a punham pouco à vontade.
O director-geral da Collenit e a mulher, a condessa Doralice Marescotti, tinham-na convidado para aquela festa porque a queriam apresentar aos expoentes da finança,
da política e do mundo empresarial. Para a ocasião, Giuseppe ofereceu-lhe um vestido em georgette de seda vermelho coral. Disse-lhe: - Tens os cabelos platinados
e uma pele de alabastro. Esta cor vai exaltar a tua beleza. Ela não se considerava bonita e agora sentia-se assustada, porque sabia que ia estar no centro das atenções
de muitas personagens que a adulavam ostensivamente, mas na realidade a consideravam apenas uma provinciana de origem proletária. Quando trabalhava sentia-se muito
segura de si e foi assim que ganhou coragem, pensando que, no fundo, se tratava apenas de um encontro de trabalho. E entrou.
Foi imediatamente notada por um pequeno grupo de mulheres cheias de jóias que emanavam eflúvios de perfumes caros. Alguém sussurrou: - Chegou a vermelha - aludindo
às suas simpatias políticas.
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Os donos da casa aproximaram-se rapidamente para a receber.
- Dra. Corti, estávamos à sua espera - disseram em coro o director-geral e a sua nobre consorte.
Dois empregados, com fardas de general da marinha, ofereceram-lhe champanhe e canapés coloridos enquanto a condessa, que insistia em que ela a tratasse simplesmente
por Doralice, a apresentava a convidados que lhe apertavam a mão e a cumprimentavam efusivamente.
Doralice repetia a cada um deles: - A advogada Liliana Corti, presidente da comissão feminina da Collenit. - Liliana, com efeito, conseguira obter fundos e permissão
para realizar o seu projecto sob a égide da empresa. Dera entrevistas aos jornais e à televisão e tornara-se uma personagem de referência para as mulheres. Os altos
quadros da Collenit tinham percebido a importância da sua iniciativa e quiseram apoiá-la.
Assim, naquele momento, os convidados estavam em volta dela, prontos para oferecer e pedir favores, por trás do florilégio de muitas palavras banais.
- A Dra. Corti nega-o, mas todos nós sabemos que goza da consideração de D'Azaro - comentou Doralice, para satisfação dos convidados. D'Azaro estava muito na moda,
não só no parlamento mas também nos salões de Milão e de Roma, e associá-la àquele político brilhante era uma credencial. - Para além disso, é a irmã de Giuseppe
Corti, o criador da Corti Collection, e de Rosellina Corti, a actriz.
A condessa insistia nas apresentações e Liliana olhava em volta à procura de uma escapatória.
- Vimo-la na televisão. Parabéns, doutora - diziam as mulheres, carregadas de adereços, como se aparecer na televisão fosse um mérito.
- Jovem, determinada, lindíssima. Representa o sonho de qualquer mulher - disse, lisonjeira, uma mulher que se obstinava há séculos a parecer jovem. À medida que
ia entrando naquele amplo apartamento, Liliana ia apanhando excertos reais e inventados da sua biografia.
Parecia-lhe estar no meio de um pesadelo. Sorria, agradecia, voltava a sorrir, e ia perguntando a si mesma quando acabaria aquela espécie de exame que a fazia sentir-se
um animal em exposição.
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O director-geral ia atrás dela, contando-lhe a história daquele palácio, referindo os prelados que ali tinham morado e os artistas que tinham pintado tectos e paredes.
Ela anuía e aborrecia-se. Por fim, conduziu-a até um grande terraço de onde se via toda a cidade. Soprava uma brisa leve e Liliana aproveitou um momento em que ficou
só para se sentar numa cadeira estofada, no meio de dois viçosos oleandros floridos. Olhou para baixo, para as pernas enfiadas numas meias muito finas. A ferida
era uma risca pálida que mal se notava.
- Posso oferecer-lhe champanhe? É o único vinho que não engorda - disse uma voz masculina de sotaque tipicamente lombardo. Ela levantou os olhos devagar e viu em
primeiro lugar os sapatos ingleses e as calças escuras sem dobra, depois o casaco que parecia desenhado sobre um tórax amplo e forte e, finalmente, o rosto jovem
e franco de Sérgio Branduani, o ministro do Trabalho.
- Obrigada - respondeu Liliana.
Levantou-se e pegou no copo que ele lhe estendia.
- Estou a observá-la há algum tempo. Conheço a sua história e fico contente por estar aqui - disse ele.
- Obrigada - respondeu Liliana, fitando-o nos olhos escuros e profundos. Depois encostou-se ao parapeito da varanda e observou a extensão avermelhada dos telhados,
enquanto se esforçava por controlar o batimento apressado do coração. O que lhe estava a acontecer? Procurou uma explicação para aquela perturbação no cansaço e
na tensão que tinha acumulado durante o serão.
Também ele pousou os braços no parapeito, ao lado dela. Por um brevíssimo instante desapareceram os telhados, a varanda e as conversas dos convidados e Liliana sentiu-se
sozinha com ele, isolada do resto do mundo, suspensa entre o céu e a terra.
- Não me parece muito à vontade nesta casa - disse Sérgio Branduani. - Venha comigo, vou levá-la embora daqui - acrescentou.
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Liliana sentiu no braço a tepidez da mão de Sérgio, que a conduzia por uma escada de pedra que descia da varanda até um pequeno terraço mais em baixo.
Era evidente que ele conhecia bem o percurso.
- Este é o apartamento privado dos donos da casa - explicou, enquanto atravessavam rapidamente uma série de salas onde alguns empregados preparavam tabuleiros de
canapés e bebidas.
Um deles acompanhou-os ao elevador. Desceram até ao átrio do rés-do-chão e dali saíram para a praça.
- Livres! - exclamou ele.
Liliana, que até àquele momento não tinha ousado falar, disse-lhe: - Ajude-me a perceber. Estou um bocado baralhada.
- O que é que quer perceber?
- Não sei por que razão me tirou daquela espécie de festa. O que é que vão pensar da nossa fuga?
- Não se preocupe, Liliana. Está tão na moda neste momento que vão interpretar a sua fuga como uma estratégia para se fazer notar - garantiu ele.
Avançaram pela via Condotti.
- Não me respondeu - sublinhou Liliana, que tinha recuperado o seu autodomínio.
- Tirei-a de lá porque não se sentia bem no meio daquela gente. Para além do mais, gostava de a convidar para jantar, nós os dois, sozinhos, longe daquela confusão
- confessou, candidamente.
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Eram aquelas as palavras que ela queria ouvir. No entanto, ainda perguntou: - Porquê?
- Quer uma resposta de circunstância ou devo ser sincero?
- As duas coisas - respondeu ela, a sorrir.
As lojas estavam a fechar e a rua era um rio de carros e motorizadas. Tinha-se esquecido do casaco em casa do director e agora sentia frio. Sérgio apercebeu-se.
Tirou o blazer e pousou-lho nos ombros.
- A resposta de circunstância é que li o programa da sua comissão e fiquei desconcertado com a ideia de atribuir um ordenado às donas de casa. A verdadeira é que
depois de a ter ouvido na televisão e de ter lido algumas das suas declarações aos jornais decidi que ia conhecê-la.
Entraram num restaurante. Sérgio disse qualquer coisa ao empregado, que os conduziu a uma pequena sala à parte, com uma única mesa. Liliana restituiu-lhe o blazer,
sentou-se em frente a ele e observou-o, pensativa. Desde que ele lhe aparecera pela frente sentia-se numa nuvem e era uma sensação que nunca tinha experimentado.
- Meu Deus, és tão jovem - sussurrou Liliana, tratando-o por tu, enquanto observava a cara daquele homem, sem uma ruga. Estava habituada aos sulcos que marcavam
o rosto do marido.
- Nem por isso. Só tenho menos dois anos do que tu - disse ele.
O empregado serviu umas entradas pequenas, que eles mal provaram, enquanto bebiam um vinho branco, fresco.
- Onde é que estás hospedada? - perguntou-lhe.
- No Hotel d'Inghilterra. É um hotel confortável e sossegado. Mas vou ter de arranjar uma solução mais económica para a empresa, uma vez que, por causa da comissão,
vou estar em Roma três dias por semana - explicou.
Sérgio contou-lhe que morava num edifício que era propriedade da sua família, na via Frattina. Também ele se dividia entre Roma e Milão, onde ensinava Direito do
Trabalho na universidade.
- O que é que fazes à noite? - perguntou Liliana.
- Trabalho, é a única coisa que sei fazer. Às vezes vou a casa do teu director-geral para uma partida de bridge. E às vezes vou ao teatro. A propósito, vi a tua
irmã no Sistina. Ela é fantástica. Li
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num sítio qualquer que tens uma família grande e bonita - disse-lhe.
- E eu li num sítio qualquer que estás separado da tua mulher - respondeu ela.
Acabaram de jantar e, quando saíram do restaurante, caminharam lentamente pelas ruas estreitas do centro. Deram um longo passeio a falar sobre tudo, como se se conhecessem
desde sempre.
Quando chegaram em frente à porta do Hotel d'Inghilterra, Liliana disse: - Temos de nos despedir.
- Tenho pena de te deixar - sussurrou ele.
Estavam um em frente ao outro. Se naquele momento Sérgio a tivesse beijado, Liliana teria retribuído. Mas disse apenas: - Boa-noite - e afastou-se.
Ela entrou no hotel e o porteiro deu-lhe a chave do quarto e uma série de mensagens. Subiu ao primeiro andar, entrou no quarto, tirou os sapatos e sentou-se na beira
da cama. Sentiu-se envolvida por uma emoção de adolescente que não conseguia controlar. Onde andaria a mulher inquebrável com a qual sempre tinha convivido? Sentiu-se
frágil, indefesa e, facto ainda mais espantoso, não queria reagir. Pelo contrário, desejava abandonar-se totalmente às suas emoções. Deitou-se na cama, apagou a
luz e deixou-se embalar docemente na recordação de Sérgio. Depois adormeceu. Sonhou que estavam a fazer amor e que aquela relação era perfeita.
Foi bruscamente acordada pelo som do telefone.
Levantou o auscultador e ouviu a voz do marido.
- Esta noite não me telefonaste. Como estás? - perguntou-lhe.
- Que horas são?
- É meia-noite. Tens a voz empastada de sono.
- Estava a dormir - sussurrou. E o seu pensamento correu para Stefano. - Como é que está o meu filho?
- Quis ficar em casa do Pucci, com os primos. Eu jantei fora, com uns amigos, mas vim para casa cedo. Como correu a festa?
- Acho que correu bem - respondeu Liliana.
- Não tens a certeza?
- Pus-me a andar, ao fim de algum tempo.
Calaram-se os dois por uns instantes. Depois Liliana continuou: - Não é o nosso mundo. Não sei se farei bem em passar
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tanto tempo em Roma. - Esperou que Sandro lhe dissesse para regressar a Milão e não teria hesitado em partir.
Mas Sandro replicou: - Não me perguntes isso a mim. Houve outro silêncio. Depois ela sussurrou: - Boa-noite. - E desligou o telefone.
Levantou-se da cama, despiu-se e entrou na casa de banho. Tomou um duche, vestiu a camisa de noite e voltou ao quarto. Tinha perdido o sono e começou a ver as mensagens
que o porteiro lhe entregara. Eram telefonemas de trabalho. No dia seguinte pensaria naquilo. Abriu a janela e ficou ali a olhar para o céu, a fumar um cigarro.
Depois voltou para a cama. Ligou para a recepção, pediu o despertador para as sete e adormeceu finalmente.
Na manhã seguinte, às oito horas, quando ia a sair do quarto, tocou o telefone.
- Liliana Corti - disse, quando atendeu.
- Sérgio Branduani - anunciou uma voz com um tom de brincadeira. - Procurei mais do que um pretexto para te ligar a esta hora, mas não arranjei um único. O porteiro
disse-me que pediste o despertador para as sete. Vais trabalhar?
- Daqui a meia hora tenho de estar no escritório - respondeu Liliana.
- Daqui a uma hora estou no ministério - disse ele, e acrescentou: - Vemo-nos logo à noite?
- vou apanhar o avião das sete para Milão.
Despediram-se com a promessa de se falarem na semana seguinte.
Liliana chegou ao aeroporto à última hora, a correr, como sempre. Tinham-lhe marcado o lugar do costume, junto à janela, na primeira fila.
O lugar ao lado do dela já estava ocupado.
- Desculpe - disse ao homem, que estava a ler o jornal.
- Ia fazer uma viagem para nada, se perdesses este avião - disse Sérgio, baixando o jornal.
- Uma viagem para nada? - repetiu Liliana, nas nuvens.
- Apanhei este voo só para ir contigo. Vamos estar juntos durante cinquenta minutos. Volto para Roma no avião das dez.
Liliana apertou o cinto e ele pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios, murmurando: - Apaixonei-me por ti.
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Sandro estava à espera dela no aeroporto. Viu-o imediatamente, do outro lado da grade. Sorria-lhe, com aquela expressão habitual que lhe dava segurança. Liliana
abraçou-o com força, como se não o visse há semanas, apesar de ter estado fora apenas dois dias.
- E o Stefano? - perguntou-lhe. O filho apareceu atrás do pai.
- Surpresa - anunciou o menino.
Liliana apertou-o nos braços, enquanto os olhos se enchiam de lágrimas.
- Está tudo bem? - perguntou o marido, quando se deitaram. Liliana anuiu.
- Não te queixaste do cansaço, deixaste o telefone tocar sem atenderes, foste de uma ternura não habitual comigo e com o Stefano e, para acabar, estás quase a chorar.
Isso não é nada teu, Liliana - observou Sandro, que olhava para ela com ternura.
- Estou bem, a sério - replicou ela. E, após um instante, acrescentou: - Sinto-me um pouco estranha, é só isso. - Não conseguia deixar de pensar em Sérgio e, no
entanto, dizia a si própria que tinha a situação sob controlo e que nunca ninguém a poderia afastar dos seus afectos familiares.
Ia esperar para ver o que ia acontecer a seguir, porque ao abrigo da família sentia-se dentro de um barril de ferro. Os colegas da Collenit contavam-lhe que ela
estava sempre à cabeça na classificação das mulheres mais desejáveis na empresa. Lisonjeava-a o facto
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de se sentir admirada, mas bastava-lhe o amor do marido, apesar de agora, de repente, o mecanismo da indiferença parecer não funcionar.
- Estou bem, a sério - repetiu a Sandro, e a si própria. Apagou a luz. Ele tocou-lhe na anca e ela esticou um braço por cima do peito dele. Fizeram amor e depois
o marido abraçou-a para a adormecer.
No dia seguinte foi para o escritório e mergulhou no trabalho, resolvida a não pensar em mais nada. Tinha-se sentado à secretária há pouco tempo quando chegou o
telefonema do director-geral.
- Tenho uma boa notícia para si. O Ministério do Trabalho vai financiar uma parte do seu projecto.
- E a outra parte? - perguntou Liliana, enquanto pensava que Sérgio não tinha perdido tempo para lhe fazer um favor.
- A empresa vai ao seu encontro, mas só dentro de certos limites. O seu plano está a ter um óptimo resultado para a imagem da Collenit, mas do ponto de vista económico
é completamente improdutivo - disse, com frontalidade.
- Eu cá me hei-de arranjar, como sempre - replicou ela. Sabia perfeitamente que não ia arranjar defensores para uma estratégia que se propunha ajudar as mulheres
a fazer carreira.
- Obrigada pelo convite do outro dia e desculpe-me mais uma vez por me ter vindo embora tão depressa, mas estava terrivelmente cansada - explicou, esperando que
o director não associasse à sua fuga a do ministro do Trabalho. Não o fez.
- A minha mulher e eu agradecemos-lhe o seu presente - disse ele. E acrescentou: - Gostámos imenso. - Antes de partir para Milão, descobriu num alfarrabista um belo
livro sobre a história do golfe e um outro, do século XVIII, sobre a história de Roma. Mandou-os com um bilhete de desculpas por se ter eclipsado sem se despedir.
Liliana estava convencida de que o director-geral a considerava como uma espécie de inimigo em casa. Não só por causa da investigação que tinha realizado no interior
da Collenit, mas também porque a considerava como uma protegida de Bruno D'Azaro, que se estava a tornar cada vez mais poderoso na esfera do governo. Liliana não
se preocupava em desmentir aquele equívoco, sabendo
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que as pessoas raramente acreditam na verdade. Despediu-se do director e telefonou para a secretaria do Ministério do Trabalho.
- Fala Liliana Corti, da Collenit. A direcção acaba de me comunicar a notícia de um financiamento para a minha comissão feminina.
- vou passar o Sr. Ministro - disse um funcionário muito prestável.
- Não vale a pena incomodá-lo. Basta-me que lhe agradeça do coração em meu nome. - Apressou-se a desligar, porque temia ouvir a voz de Sérgio. Agora estava em Milão,
em segurança entre as paredes do gabinete e as da sua casa. Reuniu com os colaboradores e recebeu um delegado do comité da fábrica. Depois chegou a notícia do sequestro
de Aldo Moro, o presidente da Democracia Cristã. O trabalho na Collenit parou. Liliana falou rapidamente com os representantes dos sindicatos, que já tinham recebido
as directrizes das várias sedes. Era greve geral. Liliana regressou a casa. Sandro estava à espera dela e Stefano chegou pouco depois. Também a escola tinha fechado
as portas.
Passaram o dia colados ao televisor e o serão em casa de Giuseppe, na via Borgospesso, com o resto da família. Rosellina telefonou de Los Angeles. A notícia chegara
imediatamente ao outro lado do Atlântico e ela queria saber mais coisas.
- O que é que essa gente das Brigadas quer? - perguntou. Estava a chorar, porque aquele atentado ao coração da democracia renovava a dor pela perda do pai e pelo
ferimento de Liliana. Seguiram-se dias e depois semanas frenéticos. Liliana cancelou todos os encontros em Roma. Podia igualmente trabalhar em Milão no programa
da sua comissão, mas sobretudo havia agora problemas mais graves, porque mais uma vez a violência se opunha à legalidade.
Depois Moro foi assassinado e o clima de terror agudizou-se.
Chegou o Verão e Liliana foi a Roma. Rosellina tinha regressado exultante da sua experiência californiana. O filme que protagonizara ia ser apresentado no Festival
de Cinema de Veneza. Tinha-se tornado uma diva também do outro lado do oceano. Durante a rodagem do filme, teve uma história sentimental com o protagonista masculino.
A aventura foi conhecida e Cristiano Montenero ficou furioso. Rosellina estava em Roma para tentar acalmar o companheiro e telefonou a Liliana.
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- Vamos almoçar, só nós as duas? - propôs.
Combinaram encontrar-se num restaurante perto da Basílica de Massenzio, que Rosellina conhecia bem. O maître acompanhou-as à mesa. Na mesa ao lado estava Sérgio
Branduani. Estava com um político de uma certa idade, estimado por toda a gente pela sua honestidade. Liliana viu-o e o seu coração deu um salto. Quando Sérgio olhou
para ela, os olhos escuros dirigiram-lhe um lampejo de alegria. Depois recomeçou a falar em voz baixa com o colega, ignorando-a.
Nunca mais se tinham encontrado. Ele ligara-lhe duas vezes para Milão, mas ela recusara-se a falar com ele, com receio daquilo que poderia acontecer se conversassem.
Tinha decidido que preferia sentir-se um mosaico com algumas peças a menos do que complicar a vida. Ele nunca mais a procurou depois disso.
- O que foi? - perguntou Rosellina.
- Porquê?
- Estás mais vermelha que um pimento.
- Foi uma onda de calor - respondeu, tentando não dar importância.
A irmã começou imediatamente a descrever a sua "imensa dor" pelo desentendimento com "o único amor" da sua vida.
- A questão é que o Cristiano é um homem à moda antiga e não me quer compreender. É verdade que o traí, mas só um bocadinho. Aquele Jim Qualquercoisa foi só uma
distracção para o tédio de Hollywood. Se a coisa não se tivesse sabido, se as pessoas se metessem na vida delas, eu agora estava perfeitamente com o Cristiano. Sabes
que ele ameaçou deixar-me? Sem ele, eu ia envelhecer no deserto da minha solidão e não ia deixar nenhum vestígio de mim. Estás a ouvir?
Liliana não ousava levantar os olhos do prato de salada de polvo com rúcula, porque temia não conseguir controlar a sua emoção se cruzasse outra vez os seus olhos
com os de Sérgio.
- Claro que estou a ouvir - respondeu à irmã. E depois perguntou-lhe: - Era mesmo preciso vencer o tédio com uma traição? Não é justo fazer sofrer o companheiro.
- Pensava nela própria e no marido.
- A culpa é toda deste ambiente de fofoca. Ele não devia ter sabido. Quem não sabe, não sofre. Não achas?
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- O que eu acho é que tu continuas a ser a menina de sempre. Em qualquer caso, o Cristiano vai-te desculpar, porque te ama de verdade.
- Tu achas? Esperemos. Se ao menos ele entendesse que, de vez em quando, eu tenho necessidade de uma pequena transgressão...
- Comportas-te como uma criatura fútil e vazia - lamentou.
- Não te fica bem dizeres-me essas coisas. Tu nunca tiveste uma aventura pequenina? - perguntou.
Depois mediu o absurdo daquela pergunta e apressou-se a dizer: - É uma pergunta idiota, tratando-se de ti. Esquece. Tu tens umas palas como os cavalos e não vês
nada para além do teu marido e do teu trabalho.
Liliana absteve-se de a corrigir, ainda que Rosellina a estivesse a provocar, sem o saber.
- O facto é que tu nunca sonhaste com uma grande paixão, daquelas que fazem perder a noção da realidade e se alimentam de desejo e nos fazem sentir vivos. Eu vivi
essa paixão com o Cristiano. Às vezes ainda a vivo com ele. Nos intervalos, porque preciso de fogo, acendo uma chama noutro lugar. A paixão é como um rio, vive enquanto
dura a nascente que a alimenta. O Cristiano é o rio, eu sou a nascente. Nunca poderá passar sem mim, ainda que, de vez em quando, eu tenha de o trair. Só um bocadinho,
só para enganar a espera do regresso da chama - explicou.
Um empregado aproximou-se da mesa e sussurrou a Rosellina que a tinham chamado ao telefone.
- Prefere falar no escritório ou quer que lhe traga o telefone à mesa? - perguntou-lhe.
- À mesa, muito obrigada. - Depois dirigiu a Liliana um olhar malicioso.
- Já sei quem é que anda à minha procura. É o Marco Taddei. Era o mais importante produtor cinematográfico do momento. O empregado levou o telefone para a mesa e
Rosellina sussurrou algumas palavras, após o que desligou. O seu rosto era a imagem da felicidade. - Sabes, vou ter de ir embora a correr. Já me esquecia de te dizer
que andamos juntos há algum tempo, com muita discrição, porque não queremos mexericos. É absolutamente adorável e também está loucamente apaixonado por mim. Está
no carro, mesmo aqui em frente ao restaurante. Disse-lhe que tinha absolutamente
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de almoçar contigo. Agora vou-te deixar, mana - concluiu, enquanto se inclinava sobre ela para lhe dar um beijo na face.
Liliana agarrou-a por um braço. - Há pouco estavas morta de consumição - murmurou com um ar irritado.
- Mas será que tu acreditas sempre em tudo o que eu conto? - brincou Rosellina, enquanto se preparava para sair. Por pouco não chocou com o político que estava na
mesa de Sérgio. Também o velho deputado se ia embora. Liliana e Sérgio ficaram nas suas mesas.
Ele levantou-se, deu dois passos e sentou-se à frente dela.
- E agora? - perguntou Sérgio, que a olhava com ternura.
- Agora estamos sozinhos - respondeu Liliana, e sorriu-lhe.
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Saíram juntos do restaurante. Sérgio deu-lhe o braço e disse: - Vês como é? Estava escrito que não podíamos escapar. - E acrescentou: - Nestas últimas semanas pensei
muito em ti.
- Não te quero ouvir - reagiu ela.
- Não ando à procura de aventuras. Apaixonei-me por ti.
- Cala-te, por favor - sussurrou Liliana. - Tenho de ir para o escritório a correr. vou ter um encontro com o deputado Qualquercoisa para discutir já não sei o quê.
Oh, meu Deus, Sérgio, estou muito confusa.
Olhou para ele, desesperada. Ele calou-se. Depois pousou as mãos nos ombros dela e disse baixinho: - Só te peço que penses nisso. Tu és importante para mim e vais
continuar a ser, aconteça o que acontecer entre nós.
Despediram-se com a intenção de se falarem ao fim da tarde para jantarem juntos.
Liliana chegou à sede da Collenit e a secretária informou-a de que o seu encontro tinha sido adiado.
Aproveitou para ligar a Sandro, que já não ouvia desde a véspera.
- O Stefano está com bastante febre, tem a garganta inflamada e não consegue engolir - disse o marido.
- Chamaste o médico?
- Estava à espera de ouvir a tua opinião. Se calhar devia dar-lhe o antibiótico do costume.
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- Eu vou chamar o médico agora mesmo. Depois apanho o primeiro avião para Milão - decidiu ela.
- Talvez não valha a pena - observou Sandro.
- Vale a pena, sim - replicou Liliana, que se sentia culpada a pensar no marido, sozinho em casa, com o filho doente.
No aeroporto telefonou a Sérgio para o avisar de que não se iam encontrar naquela noite.
- Fica sossegada. O teu filho vai ficar bom num instante - respondeu. E não acrescentou mais nada.
O avião levantou num céu transparente como uma placa de cristal e aterrou em Milão dentro do horário.
Quando chegou a casa, o médico estava a acabar de ver o filho e diagnosticou uma simples amigdalite.
- Talvez fosse de tirar estas amígdalas. Estão em mau estado e inflamam por uma coisa de nada - concluiu, antes de ir embora.
Liliana abraçou o seu menino febril, Maddalena foi a correr à farmácia comprar o antibiótico do costume e Sandro saiu de casa, dizendo que voltaria à hora de jantar.
Mãe e filho ficaram sozinhos.
- Como é que te sentes? - perguntou Liliana, sentada na beira da cama.
- Péssimo. - Custava-lhe falar por causa das dores de garganta. - Hoje havia teste de matemática e eu corro o risco de não ter nota na pauta porque também faltei
ao do mês passado - disse-lhe.
- Por que é que faltaste? - perguntou Liliana.
- Mãe, não te lembras? Houve uma missa por alma do avô - respondeu ele, com um ar complacente.
Tinha-se esquecido completamente, mas reagiu de imediato: - Não me lembrava de que havia teste nesse dia.
- Estás cada vez mais esquisita, mãe. Aliás, regressar precipitadamente de Roma por causa de uma amigdalite não é nada teu.
- Mentira. Sempre que ficas doente eu estou ao pé de ti. Lembras-te daquelas otites terríveis, quando eras pequeno? Eu embalava-te durante horas. E quando deitavas
sangue pelo nariz? Eu vinha a correr para casa para estar junto de ti. Portanto, hoje não fiz nada mais do que aquilo que habitualmente faço. E não me digas que
estou esquisita - ralhou.
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Maddalena voltou com os remédios. Liliana foi à cozinha preparar um creme de baunilha para o filho. Ao fim da tarde estava quase sem febre. Quando Sandro chegou,
jantaram os três na cozinha.
Liliana tinha preparado papas de milho, tarte de batatas e fruta passada.
- O que vem a ser esta papinha toda? - perguntou Sandro. Tinha um ar contrariado e não o escondia.
- O Stefano tem dificuldade em engolir - explicou Liliana.
- Mas eu não! - protestou.
Levantou-se da mesa e foi para a sala. Depois de comer, Stefano voltou para a cama e Liliana foi ter com o marido. Ele estava sentado no sofá a assistir a uma partida
de ténis na televisão. Ela agarrou no comando, desligou a televisão e disse-lhe: - Vamos conversar.
- Por onde começamos? - perguntou Sandro, olhando-a com severidade.
- Pelos teus ataques de fúria - afirmou ela.
- E por que não pelo facto de eu não saber nada sobre a maneira como vives quando estás em Roma?
- Pelo contrário, sabes tudo. Trabalho, trabalho e volto a trabalhar. Em qualquer caso, diz-me o que queres saber. Tu fazes as perguntas e eu respondo. - Falou com
tranquilidade e com firmeza.
Sandro abanou a cabeça, baixou os olhos e sussurrou: - Tenho ciúmes desta minha mulher lindíssima.
Ela ficou comovida. Olhou para aquele homem que sempre a tinha amado, ajudado, respeitado, que sempre se tinha mantido de lado para que ela pudesse emergir e fazer
carreira, que sempre a enchera de atenções e que estava sempre pronto para a ouvir e para a orientar.
Sentou-se ao lado dele, abraçou-o e disse: - Não aguento que tu sofras por minha causa. És o meu marido, o pai do meu filho, és o homem mais importante da minha
vida.
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Stefano melhorou rapidamente e Liliana tinha de voltar para Roma. Mas queria clarificar as suas emoções. Naqueles dias sentia-se vulnerável, porque gostava muito
de Sérgio e receava abandonar-se a uma história que lhe iria transtornar a vida. Por isso decidiu ficar em Milão também na semana seguinte, esperando, com o decorrer
dos dias, reencontrar o seu autodomínio.
No domingo, a família reuniu-se toda em casa de Rosellina, na Porta Romana.
Ela andava continuamente entre Roma e Milão e estava outra vez feliz ao lado de Cristiano.
Giuseppe, ajudado pela clarividência de Pucci, tinha edificado um império empresarial, e a Corti Collection tornara-se um dos colossos italianos da moda.
Pucci e Ariella tinham uma vida muito equilibrada. Ela ia pondo filhos cá fora, porque aquele papel a satisfazia plenamente. Apreciava também aquilo que definia
como "uma vergonhosa riqueza", que suscitava a inveja do cunhado de Bolonha e que se tornara o orgulho do pai ferroviário que, de vez em quando, repetia: Quem havia
de dizer que aquele meu genro, para além de ser bonito, também era um génio?
- Toda a gente, menos um estúpido como tu e aquele arrogante de Bolonha que agora se gaba de um parentesco que queria evitar - respondia-lhe a signora Spada.
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Agora a família Corti estava reunida à volta da mesa. Só faltavam Ernestina e Renato. Nos seus lugares sentava-se a ninhada de netos, aos quais os tios contavam
uma história que começava sempre assim: - Os vossos avós criaram-nos a batatas, massa e sapatadas.
As crianças mais velhas corrigiam: - Na verdade, só a avó é que tinha a mão ligeira. O avô brincava connosco, estava sempre a sorrir e cantava-nos as canções dos
anarquistas.
Estavam à mesa, com um grande tabuleiro de lasanha com molho de carne na frente. Liliana observava Sandro, Stefano e aquela grande família que tinha enfrentado e
superado tantas dificuldades e dores. Pensou que nunca poderia renunciar a eles porque eram a parte mais concreta, mais sólida e mais feliz da sua vida.
No fim do almoço, Rosellina disse-lhe: - Anda ao meu quarto num instante. Quero mostrar-te um vestido da mãe.
Era apenas um pretexto. De facto, assim que ficaram sozinhas, contou-lhe: - Ouvi uns rumores, em Roma. Já sabes como naquela cidade gostam de mexericos. Consta que
tu fugiste de uma festa com o ministro Branduani que, por acaso, é um belo homem.
Liliana deitou-se na cama, cruzou as mãos atrás da cabeça e perguntou despreocupadamente: - Quem foi que te disse?
- Fica sossegada, é uma pessoa pouco credível, e por isso ninguém agarrou o comentário. Até porque o Branduani passa por ser um sujeito solitário e tu uma mulher
de carreira pouco dada a frivolidades - explicou Rosellina. E continuou: - Então, é verdade?
Liliana sorriu: - Sabes que é muito estranho ser submetida por ti a um interrogatório deste género?
- Pois é, os papéis inverteram-se e agora estás tu sob inquérito - disse a irmã, divertida. - Então? - incitou-a.
- É verdade, mas fugimos de uma festa aborrecidíssima só para irmos jantar os dois. Mais nada.
- Que pena! - exclamou Rosellina, desiludida. - Esperava que tivesses deixado de representar o papel da mulher forte para te deixares arrastar por uma paixão louca.
E então a tua irmãzinha tonta podia-te ajudar.
- Serias mesmo capaz de me dar um bom conselho? - perguntou Liliana, incrédula.
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Evidentemente. Dizia-te: ouve o teu coração - afirmou,
com um tom melodramático.
- Eu sabia. Não podias dizer nada de diferente - exclamou Liliana, ao mesmo tempo que se levantava da cama e dava uma gargalhada que acabou por contagiar também
Rosellina. No entanto, enquanto ria, deixou escapar um soluço. Continuava a combater contra o desejo de se deixar envolver numa história exaltante com o fantástico
professor Branduani.
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Mais do que uma vez, durante a manhã, a secretária apareceu à porta do gabinete para lhe lembrar o encontro com um jornalista que escrevia sobre economia para um
jornal importante. Liliana estava sem vontade de dar entrevistas.
- Pede-lhe desculpa por mim e pergunta se podemos adiar o encontro - disse.
- Eu conheço a personagem. É mais susceptível do que uma gata a tomar conta da ninhada. Não vale a pena criar inimizades com a imprensa. Foste tu que me ensinaste
isso - recordou a mulher.
- Então convidamo-lo para almoçar - decidiu Liliana.
- Onde marco?
- Não tenho tempo para sair. Almoçamos aqui, no meu gabinete. Sanduíches, gelado, água mineral e um café, aquele especial que só tu sabes fazer - pediu à secretária.
- A propósito de sanduíches, não te esqueças que amanhã, às nove da manhã, tens um encontro com o deputado Tardini. Marquei-te lugar no avião das sete - comunicou-lhe.
O deputado Tardini tinha a alcunha de sanduíche porque andava desde sempre encaixado entre dois partidos rivais que o empurravam de um lado para o outro, conforme
as necessidades.
- Desmarca esse encontro, por favor. Não posso ir a Roma, neste momento - disse Liliana, que remetia para o tempo e para o silêncio a resposta que Sérgio esperava
dela.
- A desculpa do costume? A Dra. Corti tem um problema
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pessoal e não pode ausentar-se de Milão? - perguntou a secretária. Liliana anuiu e sorriu, pensando que nunca uma desculpa tinha sido tão verdadeira.
Depois recebeu o jornalista. A entrevista era sobre os diferentes métodos de contratação de licenciados nas empresas do Norte e nas do Sul de Itália.
- No Norte privilegiamos as conversas, no Sul fazem anúncios de concurso. Aqui, o mercado do trabalho absorve uma grande parte dos licenciados. De Roma para baixo,
para um lugar de engenheiro há mil pretendentes, por isso o concurso é inevitável - declarou Liliana, dissertando também sobre o sistema crónico das recomendações
e do proteccionismo.
- As suas declarações, doutora, não são declarações políticas - observou o jornalista, que entretanto apreciava a deliciosa macieza de uma sanduíche de salmão.
- Sou uma empresária e só tenho dois interesses: o lucro da empresa e o bem-estar dos trabalhadores.
- Dois interesses que podem estar em conflito - afirmou o homem.
- São convergentes, se ao conduzir uma empresa se tiver semIpre presente o interesse de cada funcionário, desde o estafeta ao director-geral.
- Mas as Brigadas Vermelhas deram-lhe um tiro e mataram o seu pai. O que lhe ensinaram estas experiências dramáticas?
- Que as regras se mudam com o confronto dialéctico, não com a violência. Já alguma vez perguntou a si próprio por que razão a nossa economia está estagnada? O clima
de terror e de intimidação não a ajudou a crescer.
- Mas a senhora, Dra. Corti, de que lado está?
- com os trabalhadores, enquanto as suas reivindicações não prejudicarem a empresa. Se uma empresa é obrigada a fechar por falta de lucros, o proprietário pode contar
com os ganhos acumulados, enquanto que os operários ficam sem trabalho e sem dinheiro.
- É como juntar o diabo e a água benta.
- O diabo nunca é tão mau como se pensa e a água benta às vezes está um pouco suja. Posso juntá-los, sim. Juntos poderiam até chegar ao paraíso.
- Não acha que está a exagerar?
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- Claro que sim. Cada um tem os seus sonhos. Este é o meu - concluiu.
- Como é a sua relação com os funcionários da Collenit?
- Pergunte-lhes a eles. Fale com quem quiser, quando quiser. A Collenit tem a máxima transparência no que diz respeito à gestão do pessoal.
A entrevista foi publicada no dia seguinte e desencadeou uma grande confusão. Um conhecido jornalista da televisão partiu ao ataque a Liliana numa estação nacional,
acusando-a de racismo. "A senhora de Milão seria capaz de requerer também uma análise de sangue aos licenciados do Sul, enquanto que para os do Norte lhe basta um
olhar para perceber se sabem da sua profissão. É uma vergonha! Até porque toda a gente sabe que a dita senhora tende há muito tempo a privilegiar as mulheres em
detrimento dos pais de família." Alguns jornais atiraram-se à Collenit, que permitia a uma mulher feita homem exercer o seu poder no interior de uma empresa na qual,
contrariamente àquilo que ela defendia, o conflito entre empregados e classe dirigente estava largamente documentado. A presidência da Collenit, submersa em cartas
insultuosas, manteve-se a alguma distância dela. O director-geral, quando Liliana lhe telefonou, negou-se a atendê-la. Foi abandonada por toda a gente.
- Hoje, quando desci à cantina, ninguém se sentou na minha mesa - confessou ao marido, amargurada. - Até os operários se mantêm longe de mim.
- O que é que tu querias? A economia está em crise, há muitos despedimentos e muita gente no fundo de desemprego. Entretanto, a balança de pagamentos com o estrangeiro
é fortemente passiva, cresce a dívida pública e tu declaras um idílio entre a direcção e os operários, quando toda a gente sabe que o que prospera é uma economia
subterrânea e o mercado negro. Mas onde é que tu tens a cabeça, Liliana?
Depois, inesperadamente, no mais importante jornal diário de economia saiu um artigo na primeira página, assinado pelo Prof. Sérgio Branduani. Era uma defesa implacável
das palavras de Liliana. O professor de Direito do Trabalho defendia com franqueza que a directora do pessoal da Collenit funcionava precisamente com base nas exigências
do mercado e que tivera a honestidade de o admitir, que era tempo de acabar com as mentiras, as confusões e os
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proteccionismos, que para fazer avançar as empresas e incrementar a produtividade era preciso gente de grande profissionalismo, que cada empresa tinha o direito
de escolher os candidatos mais idóneos e que a idoneidade se estabelecia melhor nas conversas do que através de concursos, muitas vezes manipulados. Com a autoridade
da sua voz, respeitada pelas correntes de todos os partidos, o ministro aplaudia a coragem de uma directora que até tinha a força de acreditar num sonho.
Liliana telefonou a Sérgio e emocionou-se ao ouvir a sua voz.
- Obrigada - disse-lhe.
- Escrevo aquilo que penso - respondeu ele. Houve um instante de silêncio.
- Sugeriram-me que fizesse umas férias, até para deixar passar esta confusão toda - disse ela, por fim.
- Óptima decisão. Umas férias vão ajudar-te a reencontrar a serenidade. Nunca mais nos vimos nem falámos mas, como vês, podes sempre contar comigo.
- Eu sei, obrigada - respondeu, comovida.
Tinha os olhos cheios de lágrimas quando pousou o auscultador. Estava certa de que, se estivesse à frente dele, lhe tinha caído nos braços.
Liliana foi para a Suíça, para o lago de Lugano, com Sandro, Stefano e os filhos mais velhos de Pucci. Escolheram um hotel muito confortável, com um campo de golfe
privado. As crianças iam ter lições de golfe, Sandro ia encontrar-se com alguns colegas suíços com os quais mantinha relações de trabalho, enquanto que ela queria
apenas dormir e reflectir serenamente.
O artigo de Sérgio Branduani invertera a situação. O director-geral telefonou-lhe para lhe desejar boas férias. Bruno D'Azaro mandou-lhe um ramo de flores com um
bilhete: "Preciso de pessoas como tu no meu partido. Anda ter comigo." A secretária informava-a diariamente sobre as mensagens de solidariedade que continuavam a
chegar ao gabinete dela.
- vou à cidade - disse-lhe um dia o marido, quando acabaram de almoçar. Sabia que Liliana ia para o jardim ler um livro, enquanto que as crianças passariam a tarde
na piscina.
- Vemo-nos mais tarde - disse Liliana.
Com um romance e um monte de revistas, foi sentar-se numa espreguiçadeira, por baixo da sombra generosa de um velho plátano.
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O sol, fendendo os espaços exíguos entre as folhas, criava jogos de luz e sombra. De longe, chegavam as vozes das crianças que mergulhavam da prancha para a piscina.
O zumbido estival dos insectos conciliava-lhe o sono e Liliana adormeceu. Foi acordada pelas crianças. A sua sobrinha Tina estava com um corte profundo no antebraço.
Tinha-se magoado enquanto andava a brincar com Stefano, ao bater contra o arame farpado da vedação.
O porteiro do hotel prestou-lhe os primeiros socorros, mas Liliana decidiu que era melhor descer à cidade e consultar um médico.
Foi de táxi até à urgência do hospital. Não era realmente nada de grave, disse o médico, que voltou a limpar a ferida e lhe deu uma injecção antitetânica. Mas Tina
pediu para telefonar imediatamente à mãe, para lhe contar o acidente.
Liliana não queria que a cunhada se afligisse e por isso disse-lhe: - Tina, não gostavas de ir ao cinema ver Os Salteadores da Arca Perdida e telefonar à tua mãe
logo à noite, como fazes normalmente?
O filme de Spielberg era decididamente aliciante.
Levou Stefano e os primos ao cinema, comprou os bilhetes para eles e disse: - Eu vou aproveitar para dar uma volta pelas lojas. Venho buscar-vos no fim do filme.
- Tia, deixas-nos dinheiro para as pipocas? - perguntou Tina, que já se tinha esquecido da ferida.
Ela foi passear por baixo do pórtico da praça que dava para o lago, admirando o florescimento dos gerânios nas janelas dos edifícios onde ficavam os bancos e os
escritórios das multinacionais. Não resistiu ao desejo de comprar uma carteira desenhada pelo irmão, na loja Corti Collection. Custava uma fortuna, como todas as
roupas e acessórios assinados por Giuseppe.
Preparava-se para atravessar a praça invadida pelas mesinhas dos bares repletos de turistas quando viu Sandro. Estava sentado a uma mesa na companhia de uma mulher
muito bonita, já não muito jovem, elegantíssima.
A sua primeira reacção foi de espanto. "Mas o que é que o meu marido anda a tramar?", pensou. Depois reconheceu a mulher, de quem tinha visto, no passado, algumas
fotografias.
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Aquela mulher bonita era Denise, que Sandro deixara muitos anos antes, depois de ter começado a andar com ela. Liliana sabia que, entre os dois, permanecera uma
amizade importante da qual não sentia ciúmes, mas tinha preferido que o marido lhe dissesse que aproveitava aquelas férias para se encontrar com ela. Depois considerou
que não tinha nenhum direito de interferir na vida de Sandro, nem de exprimir juízos.
No entanto, quando à noite se sentaram à mesa na sala de jantar do hotel, ela anunciou: - Na próxima semana recomeço a trabalhar. Vou imediatamente para Roma.
- Acho boa ideia - disse Sandro. E acrescentou: - Hoje estive a tomar um chá com a Denise.
- Quem é a Denise? - perguntou Stefano.
- Uma velha amiga - respondeu Sandro.
Liliana encaixou a lição e não fez comentários. Mas mais tarde, deitados nas grandes camas do quarto, perguntou-lhe: - Como é que está a Denise?
- Anda permanentemente aflita com um mar de problemas e para ela é importante desabafar comigo.
- A Denise sofreu quando a vossa história acabou - observou.
- Também eu sofri um pouco, não por mim, por ela. Mas tu entraste como um ciclone no meu coração e na minha vida - respondeu Sandro.
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- E se me acontecesse a mim a mesma coisa? - perguntou-lhe. Sandro tirou os óculos, dobrou o jornal que estava a ler e virou-se a olhar para ela.
- Que coisa?
- Se de repente perdesse a cabeça por outro homem? - disse. Sandro acariciou-lhe o rosto e olhou para ela com ternura.
- Talvez eu não seja exactamente o homem dos teus sonhos, mas amo-te como no primeiro dia em que te conheci.
Como sempre, Sandro deixava-a livre para escolher, sem recorrer a chantagens emocionais ou familiares. Liliana sorriu-lhe e abraçou-o.
Os anos passaram depressa. Uma manhã Liliana foi acordada pelo telefone.
Eram oito horas e, àquela hora, só podia ser alguém da família.
- Atende tu, por favor - pediu, com uma voz ensonada. Sandro levantou o auscultador, atendeu e depois disse-lhe: - É uma chamada do Palazzo Chigi. Parece que o Rosário
Armati quer falar contigo - disse, passando-lhe o telefone.
Liliana cumprimentou, ouviu e depois respondeu: - Ora essa, não incomoda nada. Sim, estou de férias com a minha família, mas amanhã de manhã às dez horas estou aí.
Apesar de recear não ser a pessoa ideal para esse cargo.
Desligou a chamada e voltou-se para o marido, que a observava com um ar interrogativo.
- Diz-te alguma coisa a Comissão para a Igualdade de Oportunidades da Presidência do Conselho de Ministros? - perguntou. E prosseguiu: - Propuseram-me fazer parte
dela.
- Tem cuidado. Tu não tens grande familiaridade com as instituições do Estado nem com os seus rituais - observou Sandro.
- vou ver se percebo alguma coisa.
- Isso quer dizer que amanhã de manhã partimos de madrugada - suspirou Sandro.
No dia seguinte, Liliana estava em Roma, no gabinete de Rosário Armati.
- Em questões de igualdade de oportunidades, é uma especialista, Dra. Corti. Para além disso, tem um forte ascendente sobre as
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mulheres. Por isso não se faça de esquisita e aceite - disse Armati, com o tom despachado que o caracterizava.
- Essa esquisitice é uma componente do fascínio feminino. Tome nota desta no seu caderno, porque pode vir a ser-lhe útil - replicou Liliana.
Ele respondeu-lhe com uma gargalhada franca e depois disse:
- Pobres de nós se, no futuro, tivermos de lidar com um exército de mulheres como você.
- Ao nosso fascínio, os homens contrapõem a arte subtil da intriga e semeiam armadilhas no nosso caminho. Durma um sono tranquilo, senhor deputado, porque no nosso
país as mulheres vão continuar a contentar-se com pouco, e ainda por muito tempo.
Liliana acabou por aceitar e ficou a saber por Armati que tinham sido algumas mulheres empresárias a propô-la para a comissão.
- Antes assim - disse. E explicou: - Não gostaria nada de saber que havia pelo meio um membro de algum partido.
Depois daquele encontro no Palazzo Chigi foi para o escritório. Ali soube que os operários das centrais eléctricas ligados aos turnos da noite ameaçavam fazer greve
se não fossem satisfeitas as suas reivindicações para a renovação do contrato e nesse caso iam bloquear não só a Collenit mas todas as indústrias do país.
Liliana telefonou para a sua secretária em Milão e disse: Chego à via Paleocapa antes da noite, para participar na assembleia dos funcionários de turno.
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Antes de partir para Milão, Liliana pediu um encontro com o director-geral da Collenit.
- Eu vou dialogar com os operários do turno da noite, mas preciso de saber quanto é que a empresa está disposta a oferecer pela renovação do contrato - começou,
sem demasiados preâmbulos.
- Dez por cento - respondeu ele. Ela abanou a cabeça.
- Pedem quinze. Dez é muito pouco.
- Não podemos oferecer mais. Isto é mesmo o máximo - retorquiu o director.
- A Collenit pode oferecer mais. Não me diga que não é assim, porque conheço os números até ao centésimo. E não me venha falar no capital necessário para a reestruturação,
que está programada há anos e que ainda não foi feita. Mas isso não me diz respeito - afirmou ela, com um ar decidido.
- Exactamente, não lhe diz respeito - sublinhou o director.
- Ainda que a reestruturação das velhas instalações se traduzisse numa melhor prevenção dos acidentes de trabalho. De qualquer maneira, eu não vou dialogar com os
sindicatos para conceder apenas dez por cento. Sei que quinze é realmente de mais, para nós. Doze parece-me aceitável para toda a gente - declarou.
- Nem pensar. Onze é o máximo - interveio o director.
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- Então prepare-se para uma greve que lhe vai custar muito mais - avisou-o.
- Dra. Corti, posso lembrar-lhe que se concedermos doze por cento aos operários do turno da noite vamos ter em cima de nós os outros operários, que vão avançar com
propostas análogas? Não percebe que isso seria como dar um sinal de fraqueza? - respondeu o director-geral, veemente.
- É esse o erro dos patrões e dos operários. Mostrar os punhos para ver quem os tem mais robustos. Se eu propusesse os seus dez por cento, a questão não se resolvia.
- Conto com o seu fascínio, doutora. Sabe muito bem como lidar com aquela gente!
- Aquela gente é a nossa gente. Trabalham para nós, aleijam-se por nós, às vezes morre algum por nós. Não estou a fazer um comício comunista, estou apenas a dizer
que, se não demonstrarmos a nossa vontade de perceber, vamos ter de fazer contas às consequências de uma greve incontrolável e, nesse momento, teremos a intervenção
do governo que, por autoridade, pode impor um aumento mais alto do que quinze por cento.
Depois prosseguiu: - As negociações com os operários são um passeio no parque, se as compararmos com as discussões que sistematicamente sou obrigada a ter consigo.
- De acordo quanto aos doze por cento - condescendeu o director-geral, intimamente convencido de que os operários não iam aceitar.
Regressou a Milão e foi a correr a casa abraçar o filho, que se preparava para partir para Oxford. Ia frequentar um colégio interno durante dois meses. Liliana e
Sandro tinham decidido ir levá-lo e projectaram uma breve estadia em Inglaterra, os dois sozinhos.
Deveriam partir do aeroporto de Malpensa às oito horas da manhã seguinte. Ela suplicou ao marido que tratasse das malas.
- vou imediatamente à empresa tratar de uma negociação com os sindicatos. Espero terminá-la antes da noite. Se, pelo contrário, as coisas se arrastarem, partam sem
mim. vou ter convosco depois
- disse.
Na sala de reuniões da Collenit a discussão estava a marcar passo. Os dirigentes começaram a dar sinais de cansaço, enquanto
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os operários, habituados a trabalhar de noite, estavam bem acordados e determinados a não ceder.
- Em que ponto estamos? - perguntou Liliana a um colega, antes de entrar na sala.
- Parámos nos dez por cento e eles não querem aceitar - respondeu o homem. Ela entrou na sala com um sorriso radioso e foi recebida por um coro de aplausos.
- Falei com a direcção, em Roma, e já lhes digo que não vos vão dar o aumento que pediram, porque é demasiado elevado - começou.
- Buuuh! - entoou a sala. E choveram contestações e comentários para demonstrar até que ponto os operários estavam informados sobre a consistência real do património
da empresa, o que se desperdiçava, quantas e quais as operações erradas. Por fim, um dos sindicalistas levantou-se e disse: - Dra. Corti, quando chegou aqui dentro
já sabia quanto é que a empresa está disposta a conceder. Portanto, tire lá o aumento da cartola.
- Doze - respondeu Liliana.
Fez-se silêncio. Ela continuou: - Este aumento, traduzido em dinheiro, representa quatro pares de sapatos novos para a família, a prestação da casa, cinco dias de
férias na praia e ainda mais alguma coisa - explicou Liliana.
Àquela hora, os directores de Milão esperavam sonolentos nos seus gabinetes e os de Roma compilavam uma lista de possíveis candidatos para substituir Liliana Corti
que, tinham a certeza, desta vez ia ser um fiasco, porque os operários não iam ficar satisfeitos com aquele aumento.
Liliana ligou ao director-geral às duas horas da manhã.
- Já está - disse-lhe.
- Não há greve? - perguntou ele. Parecia quase desiludido, porque tinha muita vontade de se livrar daquela directora "vermelha".
- Assinaram - respondeu ela. Depois desligou o telefone.
Quando voltou a entrar na sala, os operários tinham feito aparecer em cima da mesa garrafas de vinho gasoso. Liliana brindou com eles.
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Instalaram-se num pequeno hotel que tinha como insígnia uma bandeirinha de ferro esmaltado com as palavras FOX INN e o perfil de uma raposa com uma cauda soberba.
Rosellina tinha aparecido de surpresa no embarque para Londres com uma bagagem considerável e uma roupa de adolescente: jeans muito apertados, T-shirt justa e uns
grandes óculos de sol para esconder a ausência de maquilhagem.
- Também sou dos vossos - anunciou, com o seu trinado cristalino.
Stefano deu-lhe um abraço que quase a derrubou.
- A minha tia predilecta - exclamou.
- Cheira-me a esturro - sussurrou Sandro ao ouvido de Liliana.
Quando entraram no avião, as duas irmãs sentaram-se uma ao lado da outra. Liliana estava a morrer de sono, mas a irmã tinha muita vontade de conversar.
- Está bem, mas conta-me tudo em voz baixa, que é para eu adormecer melhor - disse Liliana.
- O Cristiano está a ficar cada vez mais chato. Está a envelhecer, diz que tem problemas de colesterol e que não consegue andar sempre atrás de mim. Eu andava a
precisar de uma lufada de ar fresco. Tenho uns guiões para ler e preciso de escolher uma comédia para a próxima temporada. Decidi regressar ao teatro. Sabes, o cinema
paga melhor, mas falta-me o contacto com o público. Não
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vês como estou em baixo? Um mês em Londres vai-me levantar o moral - sussurrou.
- Mas pensas que estás a contar essa história a quem? - disse Liliana, enquanto o avião levantava.
- És muito maliciosa. Não há nada entre mim e o tom Hagen, pelo menos ainda. Sabes, é um actor do London Theatre. Um estrondo de um escocês, juro-te. Foi o Taddei
que mo apresentou, em Roma. Vamos dar uma volta pela Escócia. Nunca lá estive, mas parece que é uma terra lindíssima. Só que antes vou convosco a Oxford. Aquele
querido do Cristiano marcou-me um quarto no Fox Inn, onde vocês vão estar. Diz que já lá esteve e que nós vamos gostar imenso. Portanto, como te estava a dizer,
estou decidida a passar algum tempo com o tom. Não que eu queira trair o Cristiano. Ele é o homem da minha vida. Sim, se calhar vou acabar por o trair, mas só um
bocadinho, e ele nem sequer vai dar conta. Liliana, estás a ouvir? - perguntou.
A irmã já tinha adormecido e dormiu até ao momento em que o avião aterrou em Heathrow.
Alugaram um carro para ir até Oxford. Sandro conduzia, Stefano tirava fotografias pela janela, Liliana voltara a adormecer e Rosellina falava em roda livre, apesar
de ninguém a ouvir.
Foram umas belas férias. Stefano telefonava à noite para informar os pais sobre as actividades do college. Liliana e o marido davam uns passeios pelo campo inglês,
metiam-se pelas ruelas das cidades pequenas onde adquiriam objectos de pouco valor, escolhiam os restaurantes mais característicos e caminhavam de mãos dadas.
Quando regressaram a Itália, Liliana foi convocada a Roma pelo director-geral da Collenit. Não voltara a falar com ele desde a noite em que tinha sido assinado o
novo contrato com os operários do turno da noite.
Encontrou-se com ele à mesa de um restaurante.
- A Collenit tenciona mandar a Bruxelas, à Comunidade Europeia, alguém que a represente condignamente - anunciou-lhe.
- Por que é que me está a dizer isso a mim? - perguntou Liliana, que já temia a sequência do discurso.
- Porque pensei em si, Dra. Corti. Conhece bem os problemas da empresa, fala correctamente inglês e francês e já deu provas,
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mais do que uma vez, de saber fazer frente até ao diabo - explicou ele.
Era evidente que queriam mantê-la afastada dos problemas operativos da Collenit.
- Por que razão deveria aceitar a sua proposta? - perguntou-lhe.
- Porque lhe convém, quer profissionalmente quer economicamente - respondeu ele, enquanto trincava um grissino.
- Alguém me quer tirar a direcção do pessoal? - perguntou, sem perder a calma.
- Doutora, não tire ilações inúteis. É verdade que é conhecida pela sua franqueza, mas a minha paciência tem limites - respondeu ele, aborrecido.
- Muito bem. Então aceito o novo encargo, que vou acumular com a direcção do pessoal e com os trabalhos da comissão de que me ocupo - concluiu, seráfica.
Na pequena sala do restaurante, frequentado por políticos e empresários, toda a gente reparara em Liliana. Os mais próximos daquela mesa tinham inutilmente tentado
interceptar o diálogo cerrado entre ela e o director-geral da Collenit. Uma mão veio tocar-lhe no ombro. Liliana virou-se de repente e viu ao seu lado Bruno D'Azaro,
que perguntou, com um ar divertido: - Prepara-se algum complot!
- Como sempre, quando alguém se encontra a estas mesas - replicou Liliana.
O director levantou-se para apertar a mão ao parlamentar que, de seguida, se inclinou sobre ela para lhe dar um beijo no cabelo.
- Portem-se bem com esta rapariga. Vale quanto pesa, em ouro - disse Bruno. Depois afastou-se. Um instante depois voltou atrás e sussurrou: - Vou-me retirar da política.
Amanhã vais ler a notícia nos jornais.
O director da Collenit não tinha ouvido aquele sussurro, mas pouco depois disse: - Então sempre é verdade que é amiga dos socialistas.
- Só do Bruno e a nossa amizade não tem nada a ver com a política - explicou Liliana. Era verdade, apesar de nunca ninguém ter acreditado nisso.
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Quando se encontrou com Sandro, estava preparada para enfrentar outra tempestade. Mas ele desconcertou-a.
- É uma óptima notícia. vou contigo para Bruxelas. Não te deixo sozinha naquela cidade que não conheces. O Stefano já é grande e eu posso dedicar-me um pouco menos
a ele e um pouco mais a ti, pequenina - disse-lhe.
Foram anos de grande trabalho e relativa serenidade. Sandro tinha já passado o seu escritório, um pouco pela idade e um pouco porque chegara à conclusão de que já
havia na família uma mulher que "trabalhava por quatro", e preparava-se agora para aliviar o seu cansaço.
Depois chegou o dia em que prenderam o presidente de uma instituição de beneficência em Milão. Era um socialista que ia metendo algum dinheiro ao bolso.
Liliana telefonou a Bruno. Queria saber mais.
Bruno D'Azaro, depois de se ter demitido da sua carreira de subsecretário e de ter saído do partido, tinha voltado a ocupar-se do seu escritório de advocacia, que
era agora um dos mais importantes da cidade.
Uma vez tinha-lhe dito: - Liliana, fizeste bem em ficar longe da política.
Agora disse-lhe: - Aguenta-te bem, porque a prisão deste homem marca o início de um escândalo que vai mexer em todo o nosso sistema político e económico. Aproximam-se
tempos duríssimos.
E assim foi. Milão foi considerada a pátria da corrupção. Quando Liliana ia a Roma, os amigos sorriam-lhe, davam-lhe uma pancadinha no ombro e diziam: - Vocês, os
de Milão, com toda essa mania de que são gente de bem, estão a receber uma lição memorável. Afinal não é Roma que rouba!
Com efeito, as prisões estavam na ordem do dia. Jornais e televisão não falavam de outra coisa. Era como se, de repente, se tivesse destapado um poço do qual saía
um cheiro insuportável. Na Collenit rolaram muitas cabeças, ao mesmo tempo que as de muitos políticos de quase todos os quadrantes. Ela nunca foi envolvida e, no
entanto, quando terminou o seu mandato na comissão feminina não lho renovaram.
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- Antes assim - sentenciou Sandro. - Os anos também passam para ti. A Comissão Europeia e a direcção do pessoal são mais do que suficientes.
Mas Liliana aceitou mal essa situação. Tinha trabalhado muito no projecto a favor das mulheres e agora receava que alguém menos experiente do que ela pudesse estragar
todo o seu esforço.
Depois os acontecimentos precipitaram-se. À Collenit chegou um novo presidente e um administrador delegado que gozava da fama de cortar cabeças. Nos corredores da
sede da via Paleocapa corria o rumor de que todos os chefes, dos cinquenta e cinco anos para cima, iam ser despedidos. Também Liliana pertencia à velha guarda.
Um dia encontrou na via Veneto, em Roma, o ex-director-geral. Estava a ser alvo de um inquérito, como outros do seu poderoso partido. Convidou-a para tomar um aperitivo
no bar do Excelsior.
- Cara Dra. Corti, os bons tempos acabaram - lamentou-se.
- Até a sua cadeira está a vacilar - revelou-lhe, e parecia lamentar o facto de lhe transmitir aquela informação.
- Sr. Director, na Collenit as mudanças no topo nunca assustaram ninguém. Eu estou um degrau mais abaixo e sinto-me protegida.
- Não tenha ilusões, doutora. Estas novas personagens cortam os ramos velhos sem sequer saberem quem são, nem o que fizeram. Também a vão ceifar a si - disse brutalmente
e, pela primeira vez em tantos anos, olhou-a com simpatia. - Agora já não tenho nada a perder e posso dizer-lhe que uma chata como você incomodou toda a gente dentro
da empresa. Mas eu admirava-a pela sua rectidão moral. Foi um prazer discutir consigo. Venha fazer-nos uma visita, quando passar a tempestade. A minha mulher também
vai ficar feliz por estar outra vez consigo - acrescentou.
Acabou algemado no dia seguinte.
No fim do ano, Liliana foi convocada pelo novo director-geral.
Era um homem magro, de rosto seco e sorriso desagradável. Recebeu-a em mangas de camisa. O casaco e a gravata tinham passado de moda. Nem sequer a convidou a sentar-se.
- Então, doutora, quando pensa despedir-se de nós? - começou.
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Liliana observou o panorama, para lá das grandes janelas que se abriam sobre a piazza Venezia. As luzes de Natal e o som de uma gaita-de-foles chegavam até ao gabinete.
Por mais do que uma vez, durante aqueles meses, tinha pensado em demitir-se, solicitada também por Sandro, que lhe dizia: - Temos com que viver desafogadamente até
ao fim dos nossos dias. Sai dessa confusão.
- Não estou a pensar nisso - respondia ela.
- Seria um bonito gesto relativamente aos novos patrões.
- Nem sequer iam entender. São arrogantes e sequiosos de poder. Não vêem a hora de eu me pôr a mexer. Mas a minha gente, os meus operários, as minhas empregadas,
iam ficar muito mal.
- Tu é que vais ficar muito mal - avisava-a. E naquele momento sentiu-se mal, de facto.
- Por que havia de os deixar? - perguntou ao novo director-geral. E acrescentou: - Estou a realizar um bom trabalho para a empresa quer em Bruxelas quer a nível
da direcção de pessoal - explicou. Já sabia que tinha perdido a partida, mas queria uma explicação plausível.
- Aqui já deu o máximo. Agora precisamos de gente jovem. E depois dizem-me que a doutora esteve muito próxima dos socialistas. Agora, por azar, os socialistas foram
parar atrás das grades - disse-lhe, com um sorriso odioso.
- Forneceram-lhe informações incorrectas. Avancei apesar dos meus amigos socialistas que, aqui dentro, nunca tiveram nenhum peso. E, com todo o respeito, também
o senhor deve ter algum santo no paraíso - replicou, com um tom acutilante.
O homem levantou-se de um salto. O sorriso odioso tinha desaparecido e olhou para ela como se quisesse pegar-lhe fogo.
- Se não for a senhora a fazer as malas, vai-me obrigar a despedi-la - vociferou.
Liliana já tinha encaixado o golpe e reencontrou o seu habitual autodomínio. Sorriu e disse: - Não me pode despedir, porque o meu contrato acaba daqui a cinco anos.
Mas sou eu que me vou embora, porque uma pessoa deve entender quando chegou o momento de se render. No entanto, não precisa de ser tão rude, Sr. Director. É um conselho
para o futuro: aprenda a ter um mínimo de classe, ainda que o resultado seja o mesmo. Este conselho é grátis.
- Dirigiu-se à porta com um passo altivo. Depois virou-se e voltou
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para trás. Disse: - É uma pena separarmo-nos assim, porque você é uma pessoa inteligente. Se nos tivéssemos conhecido em circunstâncias diferentes, talvez até pudéssemos
ter sido amigos.
Deu-se então uma espécie de milagre. O homem sorriu, deu a volta à secretária e estendeu-lhe a mão.
- Também você é uma mulher inteligente. Sabe o que lhe digo? Não a despeço, pelo menos não completamente. Deixo-lhe o cargo de Bruxelas. Veja lá o que consegue trazer
para casa. Por que não deixamos o "você"?
- Porque eu sou uma senhora de idade, ancorada aos valores do passado. Agradeço-lhe por me ter oferecido a possibilidade de continuar a trabalhar para a Comissão
Europeia. Apreciei muitíssimo, acredite. No entanto, a minha resposta é não. Quero o despedimento e uma indemnização substancial, porque dei muito dinheiro a ganhar
à Collenit e agora tenho a certeza de que a empresa me vai agradecer convenientemente.
Liliana regressou ao gabinete, encheu um caixote com todas as suas coisas, apanhou o avião e regressou a casa. Refugiou-se nos braços do marido e, lavada em lágrimas,
disse-lhe: - Acabou.
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SITO DELLA GUASTALLA
Estava uma bela tarde de Maio, em Milão, com um céu transparente, um sol quente e um ar que cheirava a tília. Tinha explodido a Primavera depois de muitos dias de
chuva.
No consultório do professor De Vito as janelas estavam abertas e as persianas parcialmente descidas para evitar a entrada do sol. Liliana estava sentada na poltrona
do costume, em frente ao psiquiatra.
- Sempre vivi a correr e, de um dia para o outro, achei-me sem mais nada que fazer. Foi terrível, professor - disse.
- Mas já passou algum tempo e agora parece que rejuvenesceu - observou Nelson.
- Está a falar a sério? - perguntou, a sorrir.
- Nunca a vi tão jovem e tão bonita - confirmou o médico, observando-a com atenção.
- É verdade, sinto-me realmente bem. Acha que é para durar?
- Eu sou optimista e a senhora também deve ser.
- Pois. Acabo de fazer sessenta e dois anos. Tinha de chegar a esta idade para deixar de viver àquele ritmo e conseguir olhar em volta, apreciando as pequenas alegrias
de todos os dias. Fez um bom trabalho.
- A senhora é que fez. Eu limitei-me a ouvi-la.
- Talvez. De qualquer maneira, já me esqueci do estado em que estava quando me apresentei aqui, da primeira vez. Reviver os dramas, as emoções e os acontecimentos
da minha vida foi um
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caminho difícil e cansativo, mas fez-me muito bem. Ajudou-me a melhorar da minha ansiedade, a encontrar uma serenidade que eu não conhecia - afirmou, e acrescentou:
- Não sei se lhe disse que as minhas duas netas, as filhas do Stefano, quando eram mais pequenas me olhavam com desconfiança e me chamavam "a avó nova", porque quase
nunca me viam? Agora quero passar a ser "a avó predilecta". Tenho de recuperar com elas todo o tempo perdido.
- Parece-me um bom projecto. E o seu marido, que género de avô é ele?
- As meninas chamam-lhe "avô resmungão" e não digo mais nada - brincou. Depois acendeu um cigarro, enquanto Nelson limpava o seu cachimbo.
- E o Sérgio Branduani? Não se voltaram a encontrar?
- Cruzámo-nos uma vez, em Bruxelas. Foi no aeroporto. Ainda era um homem espantoso, de cortar a respiração. Tomámos um café juntos. Confessou-me que, de vez em quando,
lhe acontecia marcar o meu número de telefone, mas que parava antes do último algarismo. Queríamos parecer os dois muito desenvoltos, a falar do nosso encontro como
se de uma paixão juvenil se tratasse. Depois, antes de nos despedirmos, ele disse: "Foste muito sensata, Liliana. Nunca teríamos sido felizes os dois juntos." Tinha
os olhos brilhantes e eu também estava comovida.
- Foi realmente muito sensata, tomou a decisão certa.
- Devo-o ao meu marido, à sua cena de ciúmes - admitiu Liliana, com um sorriso. E acrescentou: - Devo dizer-lhe também que o meu trabalho na Collenit e na Comissão
para a Igualdade de Oportunidades, a estes anos de distância, ainda dá muitos frutos. As minhas mulheres ainda me telefonam a pedir conselhos. Não semeei ao vento.
É uma grande satisfação. Também os meus operários se lembram de mim no Natal. Mandam-me cartões de boas-festas. Sabem que estive sempre do lado deles.
- Projectos para o futuro? - perguntou Nelson.
- Uma viagem pelo Danúbio, com a família toda. A Rosellina e o Cristiano, o Giuseppe e o Rizio, o Pucci e a Ariella e, obviamente, eu e o meu marido. Os filhos ficam
em casa. E o senhor, professor De Vito?
- Comprei uma casa em Barrows, na Cornualha. A minha mulher já lá está há um mês para acompanhar as obras de restauro.
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A minha mãe, que ainda está como uma rocha, dá-lhe uma mão. Deixo a Itália e vou-me reformar no único lugar em que sempre desejei viver - disse.
- E os nossos encontros? - perguntou Liliana, aflita.
- A Dra. Corti já não precisa de mim - constatou.
Era verdade. Já não precisava dele. Os tempos em que se sentia um barco à deriva no meio da tempestade tinham passado.
Liliana saiu para a rua cheia de sol. Decidiu regressar a casa a pé, porque gostava de andar e queria saborear aquele belo dia de Maio. Na rua olhou para a sua imagem
reflectida numa montra. Era ainda uma mulher bonita e o tailleur cinza-pérola da Corti Collection adaptava-se fantasticamente ao seu corpo. Telefonou à nora e disse:
- Eu vou buscar as meninas à ginástica. vou levá-las ao Sant'Ambroeus a lanchar uma grande chávena de chocolate.
Sveva Casati Modignani
O melhor da literatura para todos os gostos e idades