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Series & Trilogias Literarias
NOTAS DO ARQUIVO HISTÓRICO
A Força Sigma tem as suas raízes enterradas nos terrenos do Castelo do Smithsonian, um edifício maciço de arenito vermelho erigido em 1849 nos limites do National Mall, que deu origem ao vasto complexo de museus, instalações de pesquisa e laboratórios do Instituto Smithsonian. Porém, antes disso e durante a Guerra Civil, este edifício singular albergou todas as coleções smithsonianas.
Contudo, o que originou este importante património científico?
Estranhamente, a instituição não foi fundada por um americano, mas sim por um excêntrico químico e mineralogista britânico, chamado James Smithson. Smithson ordenou que após a sua morte, em 1829, meio milhão de dólares do seu património seria doado ao governo dos Estados Unidos — cerca de doze milhões em moeda corrente e sensivelmente 1/66 avos do orçamento federal da altura — para fundar «uma instituição destinada ao aprofundamento e disseminação da ciência e conhecimento entre os homens».
Em todo o caso, até aos dias de hoje, este invulgar benfeitor permanece envolto em mistério. Para começar, James Smithson nunca colocou os pés em solo americano e, no entanto, legou a fortuna e uma substancial coleção de minerais a este novo país. Além disso, enquanto viveu, Smithson nunca revelou a intenção de agraciar os Estados Unidos com tamanha generosidade e, após a morte, o seu sobrinho enterrou-o em Génova, na Itália, em vez de em Inglaterra. Uma das razões de conhecermos tão pouco acerca deste homem pode ser atribuída ao terrível incêndio que deflagrou no castelo em 1865, nos finais da Guerra Civil. Os pisos inferiores foram poupados à fúria das chamas, sofrendo apenas alguns danos causados pela água, mas os pisos superiores foram reduzidos a cinzas. A maior parte dos documentos de Smithson, incluindo o diário pessoal e cadernos de apontamentos, arderam. Em suma, o trabalho de uma vida foi consumido nesse inferno.
Mas o mistério ao redor de Smithson não terminou com a sua morte. No inverno de 1903, Alexander Graham Bell, o famoso inventor americano, viajou para Itália contra a vontade dos administradores do Instituto Smithsonian e exumou o corpo de Smithson da sua sepultura em Génova. Reuniu as ossadas numa urna de zinco e regressou aos Estados Unidos a bordo de um navio a vapor. Uma vez em solo americano, Bell depositou os restos mortais de Smithson no castelo, onde permanecem até aos dias de hoje.
Por que razão o inventor do telefone desafiou a vontade dos seus colegas administradores do Instituto Smithsonian e resgatou os restos mortais de Smithson de forma tão pouco convencional? Terá sido apenas (como afirmam muitos) porque a sepultura de Smithson se encontrava ameaçada pela expansão dos terrenos de uma pedreira italiana? Ou será que havia algo mais em relação ao excêntrico James Smithson, outra razão por detrás da sua inesperada doação, do misterioso incêndio que destruiu o seu legado e, por fim, da estranha viagem de Alexander Graham Bell para resgatar os seus restos mortais?
Para conhecer a chocante verdade acerca de um obscuro segredo americano, continue a ler...
NOTAS DO ARQUIVO CIENTÍFICO
Qual é o animal mais mortífero do planeta? Vamos fazer as contas. Os tubarões matam meia dúzia de pessoas por ano, e os leões brancos cerca de vinte e duas. Espantosamente, os ataques de elefantes são responsáveis por cerca de quinhentas fatalidades anuais. As cobras duplicam esse valor, com cerca de mil mortes. E nós, humanos, arrasamos esses números, ao sermos responsáveis pela perda direta de quatrocentas mil vidas todos os anos. No entanto, o verdadeiro assassino em massa do nosso mundo é bem mais pequeno e mortífero. Refiro-me ao mosquito. Enquanto propagadores de uma série de doenças como a malária, a febre-amarela, a febre do Nilo ou a zica, estes parasitas voadores são responsáveis por mais de um milhão de mortes todos os anos. Na verdade, as picadas de mosquitos são a principal causa de morte entre crianças com menos de cinco anos de idade.
Mesmo assim, existem outras pequenas criaturas que competem com os mosquitos por esse título. As moscas tsé-tsé causam dez mil fatalidades anuais, e o apropriadamente chamado «inseto assassino» (da família dos Reduviidae) consegue um pouco melhor que isso, com cerca de doze mil mortes. Em termos globais, os insetos matam anualmente uma em cada sessenta pessoas.
Qual é a lição que retiramos destes números? Servem para nos lembrar que não vivemos na Idade do Homem, mas sim — e tal como tem sido nos últimos quatrocentos milhões de anos — na Idade dos Insetos. Enquanto os humanos surgiram no planeta há uns meros 300 mil anos, os insetos já existiam muito antes dos dinossauros, multiplicando-se e espalhando-se por toda a parte, a fim de ocuparem cada nicho do meio ambiente. Em bom rigor, há quem agora defenda que os insetos contribuíram — ou foram mesmo responsáveis — pela extinção dos dinossauros. Como? Através da análise de fósseis recentemente descobertos, sabemos que estes minúsculos predadores atacaram os dinossauros enfraquecidos pelas alterações climáticas que ocorreram no final do período Cretáceo, contribuindo significativamente para o seu desaparecimento através da predação e transmissão de doenças. Nesse momento oportuno da pré-história, os insetos aproveitaram essa vantagem para se verem livres dos seus competidores principais pela flora do planeta e, de uma assentada, puseram termo à Idade dos Dinossauros.
Tudo isso, claro, levanta uma importante questão em relação ao mais novo rival dos insetos pelos cada vez mais escassos recursos naturais do planeta: Será a humanidade o próximo alvo?
Não consigo conceber que um Deus generoso e omnipotente tenha criado uma criatura como a vespa parasítica, cujo único propósito é alimentar-se dos corpos vivos de lagartas...
Com o tempo a pesar sobre os ombros dos passageiros, a carruagem acelerou imprudentemente e deixou para trás as ruas cobertas de neve de Génova. Cortou pela estrada estreita, sacudindo-se com violência.
Sentado na parte de trás da cabina, Alexander Graham Bell soltou um gemido. Encontrava-se ainda a recuperar de uma febre no seguimento da viagem transatlântica que fizera com a mulher. Para tornar a situação pior, nada parecia correr como o esperado desde que chegara a Itália, duas semanas antes. As autoridades italianas pareciam determinadas em atrapalhar-lhe os planos para resgatar os restos mortais de James Smithson, o fundador do Instituto Smithsonian. Para facilitar a missão de saqueador de sepulturas, Alexander vira-se obrigado a atuar como espião e diplomata, distribuindo subornos e logros em igual medida. Aquela era uma tarefa para um jovem, não para um homem de cinquenta anos, e o stresse começava a pesar-lhe.
A mulher apertou-lhe o pulso.
— Alec, talvez seja melhor pedires ao condutor para abrandar.
— Não, Mabel — disse ele, dando-lhe uma palmadinha na mão. — O tempo está a piorar e os franceses já estão em cima de nós. É agora ou nunca.
Três dias antes, quando conseguira por fim as licenças necessárias para a trasladação, uns parentes franceses de Smithson decidiram intervir no sentido de reclamarem o corpo, ainda que não fizessem ideia do que se encontrava em jogo. Antes que essa pretensão se tornasse incontornável, Alexander apresentara os seus argumentos às autoridades italianas, fazendo-lhes ver que Smithson legara a fortuna aos Estados Unidos e que seria de sua vontade ser sepultado em solo americano. Alexander consolidara essa posição oleando as mãos certas com uns bons punhados de liras, ao mesmo tempo que declarara, categoricamente, embora não fosse verdade, que gozava do apoio do próprio presidente americano, Theodore Roosevelt.
O subterfúgio resultara até ao momento, mas não iria durar muito mais.
É agora ou nunca... disso não tenho dúvidas.
Colocou a mão sobre o bolso do peito do casaco, onde guardava um papel dobrado, com os cantos chamuscados.
Mabel reparou no gesto.
— Acreditas que ainda está aqui, enterrado com o corpo?
— Precisamos de ter a certeza. Alguém esteve muito perto de destruir este segredo há um século. Não podemos permitir que os italianos terminem o serviço.
Em 1829, James Smithson fora enterrado pelo sobrinho num pequeno cemitério no cimo de uma falésia na costa de Génova. Na altura, o cemitério era propriedade dos britânicos, embora os italianos retivessem o direito ao solo abaixo. Com o passar dos anos, uma pedreira próxima alargara lentamente os seus domínios naqueles montes. Agora, pretendia apoderar-se de toda aquela zona, o que incluía a remoção do cemitério.
Depois de serem informados da ameaça iminente aos restos mortais do fundador do Instituto Smithsonian, os administradores do museu debateram se deveriam intervir, a fim de impedirem que as ossadas se perdessem para sempre. Foi nessa altura que uma velha carta acabou na posse de Alexander. Tinha sido escrita pelo primeiro secretário do Instituto, Joseph Henry, o homem que supervisionara a construção do castelo e que haveria de morrer entre as suas muralhas.
— O Henry não era nenhum idiota — murmurou Alexander, entre dentes, afagando a barba hirsuta.
— Sei quanto o admiravas — disse Mabel. — E quanto valorizavas a sua amizade.
Alexander anuiu com a cabeça.
O suficiente para seguir as suas instruções até este cemitério em Itália.
Na carta escrita um ano antes da sua morte, Henry dava conta de uma história que remontava ao tempo da Guerra Civil, quando as forças do Sul começaram a perder terreno perante os exércitos da União. Henry descobrira uma estranha anotação num dos velhos diários de Smithson. Apenas tropeçara nela porque procurava informações adicionais acerca da fabulosa herança, tentando descobrir por que razão aquele homem fora tão generoso para um país que nunca sequer visitara. Durante essa investigação, Henry descobrira um único item que ficara fora do legado entregue aos Estados Unidos. Enquanto toda a coleção de minerais de Smithson — o trabalho de uma vida — se encontrava preservada no castelo, havia um artefacto que ficara para trás. Tratava-se de um objeto que Smithson instruíra ao sobrinho para ser enterrado consigo, quando morresse.
A invulgaridade do pedido despertara a atenção de Henry para vasculhar toda a documentação disponível. Acabou por encontrar uma referência a algo que Smithson apelidava de Coroa do Demónio. Smithson mostrava-se arrependido de a ter descoberto numa viagem a uma mina de sal no mar Báltico, e afirmava que o objeto podia libertar algo horrível.
— As próprias hordas do Inferno sobre a Terra... — sussurrou Alexander, citando a frase de uma das páginas do diário de Smithson.
— Acreditas mesmo nisso? — perguntou Mabel.
— Alguém acreditava o suficiente para tentar destruir o Instituto durante a Guerra Civil.
Pelo menos, era o que Henry pensava.
Depois de descobrir o segredo de Smithson, Henry discutira o assunto com alguns colegas do conselho de administradores, colocando na mesa a hipótese de tal artefacto poder ser usado como uma arma. Então, três dias mais tarde, um misterioso incêndio deflagrara no castelo, revelando indícios de ter visado a documentação e coleção de minerais de Smithson.
Pela forma como as coisas se precipitaram, Henry ficara convencido de que alguém no Instituto partilhara esses receios com a Confederação. Felizmente, Henry guardara o caderno que fazia referência ao artefacto no seu escritório, pelo que fora poupado ao pior das chamas, apesar de a capa ter ficado chamuscada e de se terem perdido algumas partes do texto. Mesmo assim, Henry decidiu manter segredo, dando apenas conhecimento a um círculo restrito de pessoas de confiança. Essas pessoas formaram um grupo secreto na estrutura do museu e, com o passar dos anos, tornaram-se guardiões dos segredos mais obscuros do Instituto, o tipo de informação que era frequentemente sonegada ao presidente dos Estados Unidos.
Um exemplo disso fora um misterioso símbolo tatuado no punho de um homem que Henry associara mais tarde ao incêndio. O homem morrera antes que pudesse ser interrogado, cortando a própria garganta com um punhal. Henry desenhara um esboço do símbolo na carta, a fim de servir de aviso para as gerações futuras.
Parecia uma variação do símbolo maçónico, mas ninguém sabia qual o grupo a que dizia respeito. Décadas mais tarde, quando a sepultura de Smithson ficara ameaçada, o grupo de Henry abordou Alexander e mostrou-lhe a carta a fim de o recrutar para a causa, sabendo que necessitavam de alguém com a craveira de Alexander para levar a bom termo semelhante tarefa em solo italiano.
Ainda que Alexander não estivesse certo do que esperava encontrar na sepultura de Smithson — se é que contava encontrar alguma coisa —, concordara em ajudar, usando o próprio dinheiro para financiar a missão. Fosse qual fosse o resultado, sabia que não podia virar costas ao que lhe era pedido.
Devo-o a Henry.
A carruagem sacudiu-se uma última vez ao alcançar o cimo da colina. A elevação oferecia uma vista privilegiada sobre Génova e o porto da cidade, apinhado de barcaças de carvão; tantas que davam a ideia de que se poderia atravessar a baía de ponta a ponta, saltitando de embarcação em embarcação. Mais perto, o cemitério chamava por eles, cercado de muros brancos encimados com cacos de vidro espetados.
— Será que chegámos demasiado tarde? — perguntou Mabel.
Alexander compreendia a preocupação da mulher. Parte do cemitério havia sido já engolida pela expansão da pedreira. Enquanto saía do conforto da carruagem para o vento cortante, reparou em dois caixões desfeitos no fundo da falésia. Sacudiu um arrepio, que nada tinha que ver com o frio que sentia.
— É melhor despacharmo-nos — disse.
Conduziu a mulher pelos portões do cemitério. Mais à frente, avistou um grupo de homens vestidos com casacões de inverno, um trio de trabalhadores e alguns lacaios do governo. Estavam reunidos frente a um imponente jazigo rodeado por uma cerca de espigões de ferro. Alexander apressou-se na direção deles, curvando-se contra o vento com um braço sobre os ombros da mulher.
Acenou com a cabeça para o cônsul americano presente, William Bishop.
Bishop deu um passo em frente e bateu com o dedo indicador no mostrador do seu relógio.
— Ouvi dizer que vem um advogado francês a caminho num comboio de Paris. Não deve faltar muito para aqui chegar.
— Compreendo. Quanto mais depressa estivermos a bordo do Princess Irene com as ossadas, melhor.
À medida que a neve começava a cair, Alexander aproximou-se da sepultura. A pedra tumular exibia uma inscrição simples:
Bishop dirigiu-se a um dos representantes italianos e trocou meia dúzia de palavras com ele. Logo a seguir, dois dos trabalhadores sacaram de dois pés-de-cabra e meteram mãos à obra. Partiram o selo na tampa de mármore do túmulo e desviaram-na, enquanto o terceiro trabalhador preparava uma urna de zinco. Mal as ossadas fossem transferidas, a urna seria devidamente selada com solda de chumbo, de forma a poder ser despachada para o outro lado do oceano Atlântico.
Enquanto os homens trabalhavam, Alexander voltou a observar a inscrição na pedra tumular.
— Estranho — disse, franzindo o sobrolho.
— O quê? — perguntou Mabel.
— Diz aqui que Smithson morreu com setenta e cinco anos.
— E daí?
Alexander abanou a cabeça.
— Smithson nasceu a cinco de junho de 1765. Pelas minhas contas, significa que morreu com sessenta e quatro anos. A inscrição está errada por onze anos de diferença.
— Isso é importante?
Alexander encolheu os ombros.
— Não faço ideia, mas calculo que o sobrinho soubesse a idade verdadeira do tio. Sobretudo se foi ele que tratou desta inscrição.
Assim que a tampa do caixão foi retirada, Bishop acenou para Alexander se aproximar.
— Gostaria de fazer as honras?
Ainda que apreciasse o gesto de cortesia do outro, Alexander pensou duas vezes acerca de tratar do assunto com as próprias mãos. Porém, estava demasiado envolvido para recuar no último momento.
Perdido por um, perdido por mil.
Juntou-se a Bishop e olhou para o interior da sepultura. O caixão de madeira apodrecera há muito tempo, restando uma camada de pó espessa sobre o que era claramente um conjunto de ossos. Estendeu um braço e, com um gesto reverente, afastou os detritos e pegou no crânio, que se encontrava em perfeitas condições. Alexander receava que se desfizesse em pedaços quando o agarrasse. Dando um passo atrás, fitou as órbitas vazias do fundador do Instituto Smithsonian.
Tal como declarava a inscrição, Smithson fora um notável membro da Real Sociedade Britânica, uma das mais prestigiadas instituições científicas do mundo. Na verdade, fora convidado a juntar-se à sociedade no mesmo ano em que concluíra os estudos universitários. Apesar da pouca idade, os seus talentos científicos eram já bem conhecidos. Mais tarde, enquanto químico e mineralogista, passara a vida a viajar pela Europa, reunindo amostras para o que viria a ser a sua fabulosa coleção.
Porém, havia um lado desconhecido na vida daquele homem. Um bom exemplo era a razão pela qual deixara a fortuna e a coleção aos Estados Unidos da América. Fosse como fosse, um facto era indiscutível.
— Devemos-lhe muito — murmurou Alexander para o crânio. — Foi a sua enorme generosidade que mudou o nosso jovem país. O seu legado que ensinou as grandes mentes da América a colocarem de lado ambições individuais e a trabalharem juntas para o bem comum.
— Belas palavras — anuiu Bishop, estendendo as mãos enluvadas. O tempo piorava a cada minuto e o cônsul queria o assunto resolvido o mais depressa possível.
Alexander não se opôs à ideia. Entregou-lhe o crânio para que pudesse ser transferido para a urna de zinco e devolveu a atenção para a sepultura. Reparara numa forma retangular depositada a um dos cantos. Estendendo o braço, limpou a camada de pó para revelar um pequeno baú de metal.
Seria aquilo a fonte de tanta preocupação?
Necessitou de toda a força para erguer o baú do fundo da sepultura e pousá-lo numa campa vizinha. Era surpreendentemente pesado. Bishop ordenou aos trabalhadores para terminarem de transferir as ossadas e juntou-se a Alexander, assim como Mabel.
— É o que procuravas? — perguntou ela.
Alexander virou-se para Bishop.
— Deixe-me relembrá-lo: não haverá qualquer menção acerca da descoberta deste objeto. Nem sequer em termos oficiosos, compreendido?
Bishop anuiu com a cabeça e olhou para os trabalhadores, ainda atarefados com a transferência das ossadas.
— Pagou bem pelo silêncio destes homens, portanto...
Satisfeito, Alexander abriu o trinco do baú e levantou a tampa. No interior, depositado sobre uma camada de areia, encontrava-se algo da cor e tamanho de uma abóbora. Estudou o objeto, incrédulo.
— O que é? — perguntou Mabel.
— Parece ser um pedaço de âmbar.
— Âmbar? — disse Bishop, o tom de voz denotando uma ponta de avareza. — Isso é valioso?
— Mais ou menos. É basicamente seiva de árvore fossilizada. — Franzindo o sobrolho, Alexander inclinou-se para ver melhor. — Pode pedir uma lanterna a um dos homens?
— Para quê?
— Faça o que lhe digo, raios. Não temos o dia todo.
Bishop apressou-se a ir buscar uma lanterna.
Mabel aproximou-se do marido.
— Em que estás a pensar, Alec?
— Há qualquer coisa no interior do âmbar, mas não consigo perceber o que é.
Bishop regressou com a lanterna.
Alexander pegou nela, aumentou a intensidade da chama e aproximou-a do pedaço translúcido de âmbar, que se iluminou com uma cor de mel, revelando o que se escondia no interior.
Mabel susteve a respiração.
— São ossos?
Ao que parecia, o túmulo de Smithson guardava algo mais do que os seus restos mortais.
— De que são estes ossos? — perguntou Bishop.
— Não sei, mas diria que são de alguma criatura pré-histórica.
Alexander inclinou-se mais um pouco, os olhos semicerrados. No coração do pedaço de âmbar, repousava um pequeno crânio triangular, com um sobrolho proeminente e uma fileira de dentes afiados. Tinha uma aparência distintamente reptiliana, o que sugeria tratar-se de um pequeno dinossauro. Um conjunto de ossos mais pequenos flutuava no interior da pedra iluminada, e Alexander visualizou a seiva milenar de uma árvore a derramar-se sobre os restos daquela criatura, envolvendo e prendendo os ossos naquela posição para todo o sempre. Os fragmentos mais pequenos formavam uma espécie de halo sobre o crânio.
Como uma coroa.
Olhou para Mabel, que respirou fundo à medida que se apercebia também da estranha forma. Aquilo só poderia ser o artefacto relatado nos escritos de Smithson. Dera-lhe o nome de Coroa do Demónio.
— Impossível — murmurou ela.
Alexander acenou com a cabeça. Guardada no bolso do casaco, encontrava-se a página do diário onde Smithson escrevera coisas espantosas acerca daquele objeto.
Tinha de ser impossível, tal como dissera a mulher.
Recordou as palavras de Smithson acerca do artefacto.
Considerem-se avisados, o que a Coroa do Demónio guarda continua bem vivo...
Alexander sacudiu um arrepio na espinha.
... pronto para soltar as hordas do inferno sobre este mundo.
20h34 EDT
3 de novembro, 1944
Washington, D.C.
— Cuidado com os ratos! — avisou James Reardon à entrada do túnel. — São autênticos monstros que se escondem na escuridão. No mês passado, um deles arrancou o polegar de um trabalhador com uma única dentada.
Ao ouvir aquilo, Archibald McLeish suprimiu um arrepio enojado e pendurou o casaco no gancho junto à porta. Não estava exatamente equipado para uma expedição subterrânea, mas atrasara-se a chegar ao local por causa de uma reunião na Biblioteca do Congresso que terminara mais tarde do que previra.
Olhou para os cinco degraus que conduziam ao velho túnel que ligava o Castelo do Smithsonian ao edifício vizinho, no outro lado do parque. O museu mais recente, que albergava a exposição de História Natural, fora construído em 1910, quando dez milhões de objetos foram transferidos do castelo com a ajuda de cavalos e carruagens para essas novas instalações. Durante mais de uma década, o túnel de duzentos metros de comprimento servira de via de comunicação entre os dois edifícios, porém, com as sucessivas modernizações, a passagem caíra em desuso, passando a ser usada exclusivamente pelas equipas de manutenção.
E por alguma bicharada, pelos vistos.
Fosse como fosse, Archibald acreditava que o velho túnel poderia servir um novo propósito. Enquanto presidente da Biblioteca do Congresso e chefe do Comité para a Conservação de Recursos Culturais, estava encarregado de proteger os tesouros nacionais no início da Segunda Guerra Mundial. Receando a ocorrência de ataques aéreos como os que arrasaram Londres durante a Blitz, supervisionara pessoalmente o envio de documentos inestimáveis como a Declaração de Independência, a Constituição ou até mesmo uma cópia da Bíblia de Gutenberg para a segurança das instalações de Fort Knox. Da mesma forma, a Galeria Nacional de Arte transferira as mais notáveis obras-primas para Biltmore House, na Carolina do Norte, enquanto o Instituto Smithsonian enterrara o valioso exemplar da bandeira nacional no Parque Nacional de Shenandoah.
Archibald detestava o carácter improvisado desses esforços para proteger os tesouros nacionais. Em 1940, defendera a construção de um abrigo à prova de bombas no subsolo do National Mall, como uma solução mais permanente. Infelizmente, o Congresso vetara a ideia pelos custos envolvidos.
Apesar do revés, Archibald não desistira da ideia, razão pela qual se encontrava agora nos níveis subterrâneos do Castelo do Smithsonian, onde tinham sido construídos abrigos temporários para os funcionários do museu. Três semanas antes, contratara uma dupla de engenheiros para a realização de um estudo de exequibilidade, a fim de confirmar se tal abrigo poderia ser edificado em segredo, tendo como ponto de partida aquele velho túnel. Então, dois dias antes, durante a avaliação no terreno, os engenheiros descobriram uma porta lateral no túnel, mais ou menos a meio da sua extensão. Encontrava-se escondida por meia dúzia de canos e selada com tijolos.
Archibald informara imediatamente James Reardon, o atual subsecretário do Instituto. Como amigo de longa data, James apoiava os esforços de Archibald. Os dois esperavam que a descoberta pudesse despertar um interesse renovado na ideia do abrigo, sobretudo tendo em conta a identidade do homem responsável, em teoria, pela existência daquela câmara secreta. O seu nome encontrava-se inscrito numa placa afixada na porta de ferro, visível após a remoção dos tijolos.
Alexander Graham Bell.
A inscrição continha também um aviso:
Tratava-se de uma afirmação extraordinária, mas a mensagem encontrava-se assinada por cinco membros do conselho de administração do Instituto Smithsonian. James verificara os nomes. Estavam todos mortos. Além disso, não havia nenhum registo acerca das circunstâncias que levaram Bell e esses cinco homens a esconderem algo no subsolo do National Mall, tão-pouco por que razão teriam escondido esse facto dos restantes membros do conselho da altura.
Respeitando tamanho nível de secretismo, Archibald limitara o conhecimento da descoberta ao seu amigo James. Os dois engenheiros contratados juraram manter o segredo, e aguardavam agora no túnel, prontos para arrombarem a fechadura da porta e verem por eles mesmos o que obrigara a tamanho subterfúgio, quatro décadas antes.
— É melhor despacharmo-nos — disse James, consultando o relógio de bolso.
Archibald acenou com a cabeça. Estavam uma hora atrasados em relação ao previsto.
— Indica o caminho.
James curvou-se e desceu os degraus. Movia-se de forma desembaraçada, ao contrário de Archibald, que mostrava maiores dificuldades em lidar com a escadaria estreita. James era quinze anos mais novo e estava habituado a trabalhar no terreno enquanto geólogo. Archibald era um poeta de cinquenta e quatro anos que fora coagido por Franklin Roosevelt a aceitar um emprego a empurrar papéis — ou, como gostava de dizer, o presidente decidiu que eu queria ser o Bibliotecário do Congresso, por isso...
Entrou no túnel húmido. O caminho encontrava-se iluminado por um fio de lâmpadas penduradas no teto. Algumas encontravam-se fundidas ou desaparecidas, deixando longos intervalos de escuridão.
James ligou a lanterna e avançou à frente.
Archibald seguiu atrás. Apesar de o túnel ser suficientemente alto para caminhar erguido, mantinha a cabeça baixa e afastada dos canos que corriam ao longo do teto. Sobretudo depois de ouvir os sons de unhas a rasparem no metal e dos corpos que se remexiam lá em cima.
Passados uns minutos, James parou de repente.
Archibald quase esbarrou contra ele.
— O que foi?
Uma série de estampidos ecoou à distância.
James olhou para trás, o rosto contraído de preocupação.
— Tiros!
Apagou a lanterna e sacou da Smith & Wesson que trazia num coldre sob o casaco. Archibald não fazia ideia de que o amigo estava armado, porém, tendo em conta o tamanho dos ratos que andavam por ali, a presença da arma fazia sentido.
— Volta para trás — disse James, passando-lhe a lanterna. — Vai pedir ajuda.
— A quem? Não há ninguém no castelo a esta hora. Quando conseguir soar o alarme, será demasiado tarde. — Ergueu a pesada lanterna, como se segurasse numa moca. — Vou contigo.
Uma explosão abafada pôs fim às hesitações.
James cerrou os maxilares e avançou colado a uma das paredes, mantendo-se o mais possível a coberto das sombras. Archibald seguiu-lhe o exemplo.
Metros à frente, uma nuvem de pó rolou em direção a eles, em consequência da explosão. Archibald tentou não tossir, mas a poeira assentou depressa. Infelizmente, o pó não era o único problema. Um conjunto de formas negras avançou pelo chão e pelos canos acima.
Ratos... centenas deles.
Archibald suprimiu um grito e espalmou-se contra a parede. Um dos bichos caiu do teto, aterrou-lhe em cima de um dos ombros e ressaltou aos guinchos. Alguns passaram-lhe por cima dos sapatos, e outros tantos subiram-lhe pelas pernas, como se ele fosse uma árvore em plena inundação.
Mais à frente, James parecia inabalável e continuava a avançar, indiferente à torrente de criaturas guinchantes.
Cerrando os dentes, Archibald esperou que a maioria dos ratos em fuga passasse por ele e, depois, apressou-se ao encontro de James.
Assim que os dois alcançaram um dos longos intervalos sem luz, notaram um brilho adiante. Parecia tratar-se de um par de lanternas caídas no chão. A poça de luz revelou um corpo. O de um dos engenheiros.
Ato contínuo, três figuras negras surgiram à vista, vindas do lado esquerdo.
Três homens, todos eles com os rostos tapados.
James agachou-se e disparou a arma. O estrondo fez Archibald saltar, deixando-o surdo ao mesmo tempo.
Um dos intrusos rodou com o impacto da bala e bateu contra a parede.
James pôs-se de pé e disparou de novo, correndo ao mesmo tempo. Archibald ficou congelado, sem saber o que fazer. Depois, juntou-se à perseguição. Por entre os clarões dos disparos, viu um dos homens mascarados a tentar erguer o companheiro ferido, mas James recusou-se a dar tréguas, premindo consecutivamente o gatilho enquanto corria, as balas ressaltando nos canos metálicos e nas paredes de cimento.
O terceiro intruso fugiu pelo túnel com uma sacola na mão e a disparar tiros de resposta por cima do ombro, ainda que as suas munições voassem sem destino, uma vez que estaria mais preocupado em fugir do que em acertar em alguém. O companheiro seguiu por fim atrás dele, forçado por James a abandonar o elemento do trio caído no chão.
Enquanto James e Archibald encurtavam a distância, uma outra explosão atirou-os ao chão. A bola de fogo irrompeu da porta aberta no lado esquerdo e expandiu-se pelo túnel.
Archibald protegeu o rosto com o braço.
Assim que as chamas se extinguiram, James avançou novamente.
Archibald avaliou a situação mal alcançaram a porta. O engenheiro que se encontrava caído no chão fora abatido com um tiro na nuca. O outro estava morto no interior da câmara, com as roupas em chamas. O interior da pequena divisão ainda ardia da explosão, tornando o espaço numa fornalha alimentada pela estante de livros ali existente. Meio ardidas, algumas páginas flutuavam por entre o fumo denso.
James apressou-se a apagar as chamas nas roupas do atacante abatido e revistou-lhe os bolsos, enquanto Archibald perscrutava o interior da sala. Havia uma espécie de pedestal de mármore no centro, juntamente com um pequeno baú de metal que teria sido derrubado pela explosão. Tirando a pilha de areia que se derramara pelo chão ao cair do pedestal, parecia estar vazio.
Archibald visualizou a sacola nas mãos do atacante que fugira. Com o coração pesado, percebeu que deveria conter aquilo que Bell e os companheiros esconderam. Ainda assim, tapou a boca e o nariz com um braço e investiu contra a muralha de calor, atraído por algo que avistara no meio da areia derramada.
Contornou o cadáver do engenheiro e alcançou o baú. Agachando-se, agarrou no objeto. Parecia ser os restos de um velho caderno de campo ou um diário. A capa de cabedal encontrava-se enegrecida, dando a impressão de que sobrevivera a um incêndio anterior. Uma vista de olhos rápida confirmou que a maioria das páginas estava queimada ou em falta, mas havia algumas intactas.
Archibald calculou que os atacantes não deveriam ter reparado naquele velho caderno semicoberto pela areia e, pressentindo a importância do achado, abandonou prontamente a divisão.
— Olha — disse James, assim que Archibald regressou ao túnel. Tinha retirado a máscara de madeira que cobria o rosto do atacante abatido.
Archibald não queria acreditar nos seus olhos.
— Meu Deus... é uma mulher!
Porém, essa não era a única surpresa. A mulher tinha cabelos negros e um rosto largo e, ainda que tivesse os olhos fechados, o formato rasgado das pálpebras não deixava margem para dúvidas em relação à sua raça.
— É japonesa... — murmurou Archibald.
James anuiu com a cabeça.
— Uma espia japonesa, provavelmente. Mas isto é o que queria que visses. — Levantou o braço da mulher, a fim de revelar a tatuagem que ela exibia no pulso. — O que achas disto?
Archibald inclinou-se para observar melhor.
— Tens alguma ideia acerca do que significa? — perguntou James.
Archibald desviou os olhos para a sala em chamas. A porta fora arrancada das dobradiças e encontrava-se tombada contra uma das paredes. A placa de metal inscrita cintilava iluminada pelas chamas, como que enfatizando o aviso acerca do que ali fora escondido durante décadas.
... um perigo como nenhum outro.
— Não — respondeu Archibald. — Mas, para o bem da nossa nação, e quem sabe do mundo, é melhor descobrirmos.
PRIMEIRA PARTE
COLONIZAÇÃO
1
Presente
8 de março, 15h45 BRT
Ilha da Queimada Grande, Brasil
O corpo do homem encontrava-se estendido no chão, de barriga para baixo, a escassos centímetros da praia.
— Por pouco não conseguiu regressar ao barco — declarou o professor Ken Matsui.
Desviou-se para um dos lados, permitindo que a médica da equipa, uma jovem chamada Ana Luiz Chavos, examinasse o cadáver. Qualquer pessoa que visitasse a Ilha da Queimada Grande, um pedaço de terra selvagem a cerca de trinta quilómetros da costa do Brasil, precisava de se fazer acompanhar de um médico e de um representante da marinha brasileira.
A figura militar presente, o primeiro-tenente Ramon Dias, estudou o pequeno bote motorizado que se encontrava ancorado, escondido nuns rochedos próximos. Aclarou a garganta e cuspiu para as ondas que rebentavam na areia.
— Um caçador furtivo... idiota — afirmou o militar em português.
— Ele diz que o homem devia ser um caçador — explicou Ken ao seu aluno assistente. Os dois tinham viajado juntos da Universidade de Cornell para aquela ilha remota no Brasil.
Oscar Hoff contava vinte e sete anos, usava a cabeça rapada e tinha o braço esquerdo coberto de tatuagens. O visual dava-lhe um ar de rufia endurecido, mas não passava disso. Pela expressão pálida que exibia nesse momento, era evidente que seria a primeira vez que o estudante se deparava com um cadáver. Escusado será dizer que o estado do corpo não ajudava. Os pássaros e os caranguejos tinham deixado as suas marcas, e uma mancha escura de sangue ensopava a areia ao redor.
A doutora Chavos, por outro lado, parecia pouco incomodada. Examinou um dos braços do homem morto, a seguir o outro, e sentou-se por fim sobre os calcanhares. Trocou mais umas palavras em português com Dias e observou o sol que começava a descer no horizonte. Faltavam poucas horas para o dia terminar.
— Está morto há pelo menos três dias — declarou, apontando para o braço esquerdo do homem. Do cotovelo ao pulso, a carne encontrava-se enegrecida e necrótica, sendo visível uma porção de osso branco através dos tecidos liquefeitos. — Foi mordido por uma cobra.
— Bothrops insularis — disse Ken, desviando o olhar para as rochas e para a floresta tropical que cobria os quase cem hectares de terreno da ilha. — Jararaca-ilhoa.
— É por isso que esta ilha é conhecida como Ilha das Cobras — acrescentou Dias. — Esta terra é delas, e nunca devemos esquecer-nos disso.
A profusão daqueles animais na ilha da Queimada Grande, juntamente com o seu estatuto de espécie ameaçada, constituía a principal razão do acesso restrito ao local. As únicas visitas regulares eram feitas pelos homens da marinha brasileira, que se deslocavam até ali de dois em dois meses para tratarem da manutenção do farol. O próprio farol passara a ser automatizado depois de a primeira família de faroleiros — um casal e três crianças — ter sido morta por cobras que entraram em casa por uma janela aberta. A família ainda tentara escapar, mas todos os elementos acabaram por ser mordidos por mais cobras que se encontravam nas árvores ao longo do carreiro que conduzia à praia.
O governo brasileiro declarara desde então a ilha interdita, exceto a cientistas, e qualquer equipa que ali se deslocasse teria de se fazer acompanhar de um médico equipado com soro antiveneno e escolta militar. Como nesse dia.
Com o apoio dos seus financiadores japoneses, Ken conseguira organizar aquela viagem de última hora, que deveria ficar concluída antes da chegada da tempestade anunciada para o dia seguinte. Ele e Oscar tinham sido obrigados a correr do pequeno hotel na aldeia de Itanhaém, onde estavam alojados, para poderem agarrar a oportunidade. Quase não embarcavam a tempo.
Ana Luiz pôs-se de pé.
— É melhor tratarmos de recolher os vossos dois espécimes — disse. — Precisamos de regressar ao continente o quanto antes. — Desviou o olhar para o Zodiac ancorado na praia. — Acreditem em mim, não vão querer ficar aqui presos depois de escurecer.
— Seremos rápidos — prometeu Ken. — Tendo em conta o número de cobras na ilha, não devemos demorar muito a apanhar duas.
Agarrou numa vara de metal comprida, com um gancho na ponta. Virando-se para Oscar, deu-lhe as últimas instruções.
— Existe uma cobra por cada metro quadrado desta ilha. Por isso, mantém-te atrás de mim. E nunca te esqueças de que estaremos sempre a um passo da morte, quer se esconda debaixo de uma rocha ou no tronco de uma árvore.
Oscar estudou o cadáver. Era tudo de que precisava para se lembrar de que tinha de ter todo o cuidado possível.
— Porque é que alguém arriscaria vir aqui sozinho? — perguntou.
Ana Luiz encarregou-se de responder.
— Uma jararaca-ilhoa pode valer vinte mil dólares no mercado negro. Mais até.
— O contrabando de animais selvagens é um grande negócio — explicou Ken. — Já me cruzei com muitos tipos destes, em diferentes partes do mundo.
E não é certamente o primeiro cadáver que encontro em consequência dessa ganância.
Ainda que tivesse apenas mais dez anos do que o seu aluno assistente, Ken passara a maior parte da vida no terreno, viajando por todos os cantos do planeta. Possuía um duplo doutoramento em entomologia e toxicologia, e aplicava os seus conhecimentos na investigação dos compostos tóxicos existentes em animais venenosos.
A combinação das duas disciplinas assentava-lhe como uma luva, tendo em conta o historial familiar. O pai era um japonês de primeira geração, que passara parte da infância num campo de concentração americano na Califórnia, e a mãe uma mulher alemã, que emigrara para os Estados Unidos ainda criança, logo a seguir à guerra. Uma piada que costumava ouvir enquanto crescia era que a sua família conseguira erguer uma minifortaleza das Potências do Eixo no meio dos subúrbios americanos.
O pai e a mãe já não se encontravam vivos. Tinham morrido dois anos antes, ambos no espaço de um mês, deixando a sua herança mista na compleição pálida, cabelos negros e olhos ligeiramente rasgados de Ken.
Essa herança mista — a que os japoneses chamavam hafu — ajudara Ken a obter a atual bolsa de investigação. A viagem a Queimada Grande fora parcialmente financiada pelos laboratórios Tanaka, uma grande empresa farmacêutica japonesa, com o objetivo de descobrirem a próxima droga milagrosa escondida no veneno dos habitantes daquela ilha.
— Bom, vamos a isso — disse Ken.
Oscar engoliu em seco e acenou com a cabeça, segurando a pinça extensível para capturar serpentes. Ainda que o dispositivo fosse o ideal para o efeito, Ken preferia uma simples vara com um gancho, visto que causava menos stresse no animal. Se a pinça fosse manuseada com demasiado vigor, a serpente poderia reagir da pior maneira e atacar.
Enquanto se afastavam da praia, redobraram a atenção no chão que pisavam com as botas de caminhada. A areia depressa deu lugar a um trilho rochoso, cercado de arbustos baixos. Cinquenta metros à frente, encontravam-se já na orla da floresta tropical.
Esperemos que não seja preciso lá entrar para capturar os nossos espécimes.
— Procura debaixo dos arbustos — disse Ken, enfiando o gancho sob os ramos mais rasteiros e erguendo-os para dar o exemplo. — Mas não tentes agarrá-las no imediato. Espera que deslizem para terreno aberto.
Ao tentar replicar a abordagem de Ken num arbusto próximo, a pinça de Oscar tremeu-lhe nas mãos.
— Respira fundo — incentivou Ken. — Tu consegues fazer isto. É exatamente como praticaste no jardim zoológico.
Oscar esboçou um sorriso e verificou o primeiro arbusto.
— Este não tem nada...
— Isso mesmo, continua assim. Um passo de cada vez.
Continuaram a avançar com Ken a liderar o caminho e a tentar acalmar o seu pupilo, falando-lhe num tom de voz suave.
— Reza a lenda que as jararacas foram trazidas para esta ilha por piratas, de maneira a protegerem os tesouros que enterravam aqui.
Ana Luiz riu-se perante tal ideia. Dias apenas franziu o sobrolho.
— Calculo que seja apenas uma lenda — retorquiu Oscar.
— Sim — prosseguiu Ken. — Esta espécie ficou aprisionada nesta ilha há cerca de onze mil anos, quando o nível do mar subiu e engoliu a faixa de terra que a ligava ao continente. Isoladas e sem a presença de predadores naturais, as serpentes ocuparam o topo da cadeia alimentar e reproduziram-se rapidamente. Contudo, a sua única fonte de alimento encontrava-se nas árvores.
— Aves.
— Exato. Esta ilha encontra-se numa das maiores rotas migratórias. Como tal, cada novo ano trazia consigo uma abundância de alimento. No entanto, as aves representavam um desafio maior do que qualquer presa terrestre, e, apesar de subirem árvores, as serpentes não conseguiam persegui-las quando levantavam voo depois de mordidas. Isso fez com que desenvolvessem um veneno extremamente tóxico, cinco vezes mais potente do que o das cobras do continente.
— De forma a matarem as aves mais depressa.
— Isso mesmo. O veneno da jararaca-ilhoa é único. Contém uma panóplia de toxinas que não só derretem a carne como também provocam o colapso dos rins, ataques cardíacos, derrames cerebrais e hemorragias intestinais. Curiosamente, são esses mesmos componentes hemotóxicos que prometem um potencial fantástico para o desenvolvimento de novas drogas contra as doenças do coração.
— E é por isso que estamos aqui — disse Oscar. — Para ver se encontramos o próximo Captopril.
Ken sorriu.
— É o que os nossos patronos esperam, pelo menos.
Em bom rigor, aquela não era uma aposta cega dos laboratórios Tanaka. O Captopril — o mais eficaz medicamento para a hipertensão dos laboratórios farmacêuticos Bristol-Myers Squibb — fora isolado a partir do veneno de uma cobra parente da jararaca-ilhoa, a jararaca-da-mata, outra víbora brasileira.
— Quem sabe o que poderemos encontrar no veneno destas criaturas? — acrescentou Ken. — O Prialt é um potente analgésico que a farmacêutica Elan acabou de lançar no mercado. Foi criado a partir de uma toxina descoberta no Conus magus, um búzio venenoso. Temos ainda o caso da proteína descoberta no veneno do monstro-de-gila, que promete revolucionar o tratamento da doença de Alzheimer. São cada vez mais as empresas que investem verbas consideráveis na investigação de medicamentos baseados no veneno de animais.
Oscar sorriu.
— Ao que parece, esta é a altura certa para se ser um toxicologista especializado em animais venenosos. Se calhar, devíamos abrir o nosso próprio negócio. Que tal Venenos e Companhia?
— Concentra-te em apanharmos o nosso primeiro espécime — disse Ken. — Depois falamos acerca dessa sociedade.
Ainda a sorrir, Oscar aproximou-se do arbusto seguinte. Agachou-se e afastou os ramos mais rasteiros. Algo saiu disparado da folhagem e deslizou pelas rochas. Oscar gritou de susto e recuou aos tropeções. Esbarrou contra Ana e ambos caíram de rabo no chão.
A cobra, de sessenta centímetros de comprimento, avançou direita aos dois corpos quentes.
Ken estendeu a vara e enganchou-a a meio do corpo. Ergueu-a com cuidado, de maneira a não a atirar pelos ares. O corpo da cobra ficou imediatamente flácido em toda a extensão, a pequena cabeça girando, a língua bifurcada agitando-se.
Oscar recuou com o rabo ainda no chão.
— Não te preocupes — disse Ken. — É apenas outro habitante da ilha. Dipsis indica, também conhecida como cobra-dormideira. — Desviou a ponta da vara para um dos lados, com o animal ainda pendurado. — É totalmente inofensiva.
— Pensei que queria atacar-me — disse Oscar, meio envergonhado.
— Por norma, esta pequena cobra é bastante dócil. É estranho que tenha tentado investir contra ti. — Ken olhou por cima dos ombros de Oscar. — A não ser que estivesse apenas a tentar chegar à praia.
Tal como o caçador furtivo...
Confrontado com a ideia, Ken franziu o sobrolho e olhou na direção contrária, para a crista de rocha e para a floresta que se estendia adiante. Baixou a vara, permitiu que o animal seguisse o seu caminho e continuou a subir a encosta.
— Vamos — disse.
Ao alcançarem o cimo da crista rochosa, depararam-se com uma clareira arenosa. Chocado, Ken deteve-se. Quase não acreditava no que via.
Um emaranhado de corpos dourados cobria a maior parte das rochas e areia. Centenas de serpentes, todas elas jararacas-ilhoas, as rainhas da ilha.
— Meu Deus — murmurou Oscar, tremendo dos pés à cabeça.
Ana Luiz benzeu-se, e Dias ergueu a caçadeira, apontando-a para a clareira. Era uma precaução desnecessária.
— Parecem estar mortas... — disse Ken.
Mas o que as terá matado?
Nenhuma das serpentes se mexia, mas havia algo mais. Outro corpo caído na clareira, inerte, com o rosto enfiado na areia.
Dias disse qualquer coisa em português e Ana acenou com a cabeça. Ken percebia o suficiente da língua para concluir que devia tratar-se do companheiro do caçador morto na praia. A indumentária dos dois homens era semelhante, pelo menos.
Apesar da inexistência de perigo imediato, ninguém se mexeu durante um longo momento, cada um ainda a digerir o choque daquela visão.
Oscar foi o primeiro a recuperar a fala.
— É impressão minha ou o tipo ainda está vivo?
Ken semicerrou os olhos.
Não, não é possível que aquele homem esteja vivo.
No entanto, Oscar provou ter a visão mais apurada que os restantes. O peito do homem parecia subir e descer, embora de forma ténue e inconstante.
Ana Luiz praguejou entre dentes e avançou pela clareira, já a preparar o estojo médico, a fim de prestar assistência.
— Espere! — disse Ken. — Deixe-me ir à frente. Algumas das cobras podem estar ainda vivas. Na verdade, podem morder depois de mortas.
Ana deitou-lhe um olhar descrente.
— Existem inúmeras histórias de pessoas que decapitaram cascavéis ou cobras-reais e foram mordidas quando pegaram nas cabeças. Nalguns casos, isso aconteceu horas depois de as cabeças terem sido cortadas. São vários os animais ectotérmicos, ou de sangue frio, que partilham esses reflexos post mortem.
Ken passou por Ana e, usando a ponta da vara, começou a desviar cada uma das serpentes no caminho. Avançou devagar, ainda que todas parecessem estar realmente mortas. Nenhuma mostrava qualquer reação à presença do grupo, o que era significativo, dada a natureza agressiva da espécie.
Enquanto avançava, apercebeu-se de um forte odor no ar. Havia aquele cheiro expectável de carne a apodrecer ao sol, mas também um aroma doce e enjoativo, algo floral.
Por alguma razão desconhecida, aquele cheiro dava-lhe uma sensação de perigo iminente, fazendo com que o coração batesse mais depressa.
Com os sentidos em alerta, Ken percebeu por fim que a floresta se encontrava estranhamente silenciosa. Não se ouvia o canto de pássaros, o zumbido de insetos. Apenas o restolhar das folhas nas árvores. Deteve-se e ergueu um braço.
— O que foi? — perguntou Ana Luiz.
— Volte para trás.
— Mas...
Ken recuou um passo, depois outro, obrigando-a a retroceder. Olhou para o corpo no chão. A posição em que se encontrava permitia-lhe ver melhor o rosto do homem. A primeira coisa que notou foi que não tinha olhos, e que havia uma crosta de sangue negro a cobrir-lhe as narinas.
Aquilo era um cadáver, porém, o peito movia-se. Mas não eram os pulmões que faziam aquilo.
Há qualquer coisa dentro dele... qualquer coisa viva.
Começou a recuar mais depressa, sem desviar os olhos do cadáver. Atrás de si, ouviu Ana a juntar-se aos outros no cimo da crista rochosa. Então, apercebeu-se de um novo som, um zumbido grave que se escapava das sombras da floresta, eriçando-lhe os pelos na nuca. Era acompanhado de um estranho bater oco. Ken gostaria de atribuir a origem do som aos ramos das árvores a baterem uns contras os outros, mas não corria uma única brisa naquele momento.
Em vez disso, sobreveio-lhe ao pensamento a imagem de ossos a chocalharem.
Virou as costas e apressou-se a subir os últimos metros da encosta. À medida que se aproximava do topo, gritou para os outros:
— Temos de sair desta i...
Uma explosão cortou-lhe o pio. Uma bola de fogo iluminou o céu à sua direita, erguendo-se do local onde se encontrava o Zodiac. Um pequeno helicóptero negro rompeu através da coluna de fumo. Uma rajada de tiros eclodiu da metralhadora montada sob a fuselagem e dezenas de balas ricochetearam nas rochas e perfuraram a areia.
Oscar foi o primeiro a tombar. Ficara sem metade do pescoço.
Diaz tentou responder ao ataque, mas o seu corpo voou para trás com o impacto de meia dúzia de balas.
Ana Luiz virou-se para correr e foi atingida nas costas.
Ken atirou-se de volta para a clareira, mas foi demasiado lento. Sentiu uma dor lancinante no ombro e o impacto fê-lo rodopiar. Caiu no chão e rolou às cambalhotas pela areia, enredando-se nos corpos frios de dezenas de serpentes.
Quando parou, deixou-se ficar onde estava, meio enterrado em cobras, sem mover um único músculo. Ouviu o helicóptero a passar por cima e descrever uma curva apertada, como que se preparando para nova investida.
Susteve a respiração. Porém, o aparelho seguiu em direção à praia, provavelmente para confirmar se o Zodiac estaria destruído. Ken ficou quieto, a ouvir o som dos rotores a desvanecer-se. Estaria a ir-se embora?
Receou mover-se, apesar do som que ainda lhe chegava da floresta, agora mais forte. Rodou a cabeça o suficiente para poder observar a orla da clareira. Uma espécie de névoa, mais escura que as sombras, deslocou-se pela floresta, erguendo-se através da copa das árvores. O estranho bater aumentou de volume, soando cada vez mais furioso.
Vem aí qualquer coisa...
Então, o mundo inteiro incendiou-se.
Poderosas explosões ergueram-se da floresta, projetando enormes colunas de fogo vivo, umas a seguir às outras, numa interminável sucessão ao longo das terras altas da ilha. Pedaços de troncos incandescentes caíram por toda a parte. Uma muralha de fumo negro, sufocante e amargo, deslizou pelas encostas rochosas, consumindo o resto da ilha.
Ken começou a rastejar, a tossir engasgado. Sentia um sabor químico na boca.
Napalm... ou qualquer coisa igualmente destrutiva.
Com os pulmões a arderem, arrastou-se para fora da clareira e deixou-se rolar em direção à praia. Precisava de alcançar o pequeno bote escondido entre as rochas pelos dois caçadores. Rezou para que o manto de fumo lhe permitisse a fuga. Meio cego, sentiu as mãos tocarem na água fresca. Deslizou pelo mar adentro e nadou para o barco abandonado.
Atrás de si, o fogo continuava a espalhar-se, consumindo lentamente a ilha até ao leito rochoso.
Alcançou o bote, ergueu-se da água e deixou-se cair de costas, exausto. Iria esperar pelo cair da noite antes de se arriscar em mar aberto. Por essa altura, a cortina de fumo e a escuridão deveriam ajudá-lo a esconder-se de quaisquer olhos no céu. Pelo menos, assim esperava.
Enquanto isso não acontecia, usou a dor no ombro para manter-se focado e alimentar o desejo que ardia no peito com tanta força como a tempestade de fogo que devorava a ilha.
Apertou o saco que trazia contra o peito.
Continha uma das cobras mortas que recolhera antes da fuga.
Hei de descobrir o que aconteceu aqui.
2
4 de maio, 08h38 JST
Tóquio, Japão
O ancião ajoelhou-se nos jardins do templo. Sentou-se formalmente no caminho de pedra, observando a tradicional maneira seiza, com as costas direitas e as pernas fletidas sob o rabo. Ignorou a dor profunda nos joelhos nonagenários. Atrás de si, o antigo pagode de Kan’ei-ji encontrava-se rodeado pelas últimas cerejeiras em flor dessa primavera. O pico de tão celebrada estação ocorrera três semanas antes, altura em que os turistas invadiram os principais parques de Tóquio para admirarem e fotografarem a singular harmonia do desabrochar das flores de cerejeira.
Takashi preferia esses derradeiros dias da estação. Havia uma melancolia no ar que condizia com a tristeza no seu coração. Agarrando num pequeno leque, afastou as pétalas secas caídas no bloco de pedra à sua frente, que se erguia pela cintura.
O gesto revoluteou os fios de fumo emanados pelo pequeno queimador de incenso na base da pedra. A fragrância combinava os aromas de kyara, um tipo de madeira de ágar, e koboku, um extrato de casca de magnólia. Takashi abanou o leque e soprou o fumo na sua direção, procurando a bênção e o mistério que guardava.
Como acontecia frequentemente nesses momentos, sobreveio-lhe ao pensamento um excerto de um poema de Otagaki Rengetsu, uma monja budista do século XIX:
Um único fio de
Fumo aromático
De um pau de incenso
Desvanece-se:
Para onde vai?
O seu olhar seguiu o fio solitário de fumo negro até desaparecer, deixando para trás apenas a sua doce fragrância.
Suspirou.
Tal como tu fizeste há tantos anos, doce Miu.
Fechou os olhos e proferiu uma oração. Todos os anos, Takashi deslocava-se até ali para assinalar o aniversário do seu casamento, esse dia em que Miu amarrara o coração dela ao seu em segredo. Ambos tinham apenas dezoito anos, o peito repleto de esperança pela vida que partilhariam daí em diante, unidos tanto por amor como por um objetivo comum. Durante dez anos, tinham treinado arduamente para colherem as competências que lhes seriam necessárias. Durante esses tempos brutais, celebraram o êxito de cada conquista e trataram as feridas um do outro, consequência dos castigos infligidos pelos seus mestres. Tinham sido emparelhados de forma a complementarem os respetivos talentos individuais. Takashi era sólido como uma rocha; Miu suave como água. Takashi era trovão e força; Miu silêncio e sombras. Julgavam-se invencíveis. Sobretudo juntos.
Contraiu os lábios, recordando essa insensatez tão própria dos corações jovens. Depois, abriu os olhos e inalou uma última vez o fumo do incenso. Os pedaços de kyara haviam-se convertido em montículos de cinza. Aquela madeira era mais valiosa do que ouro puro, e em japonês antigo o seu nome significava «preciosa».
Takashi queimava um pouco de kyara todos os anos, em memória de Miu.
Porém, aquele ano era especial.
Desviou o olhar para os paus de koboku que ainda ardiam no prato de mica. Eram uma adição nova ao ritual. A queima de koboku constituía uma tradição antiga dos Samurai, cujo propósito era o de limpar a mente e o corpo antes de uma batalha. Ao executá-la, Takashi pretendia impregnar o seu amor por Miu com uma velha promessa.
Vingar a sua morte.
Olhou para a pedra diante de si, inscrita com texto antigo. Não era a pedra tumular da mulher, pois o corpo dela perdera-se há muito tempo. Em virtude disso, Takashi escolhera aquele bloco de granito para honrar a sua memória, porque aquelas palavras tinham sido escritas pelo bisavô de Miu, Sessai Matsuyama, em 1821.
Fora o bisavô de Miu que colocara aquele marcador naqueles jardins budistas, a fim de consolar os espíritos daqueles que matara. Em vida, Sessai Matsuyama fora um grande patrono das ciências e o responsável pela elaboração de um sem-número de obras científicas, incluindo o Chuchi-jo, um estudo da anatomia dos insetos que viria a ser considerado um tesouro nacional do Japão pelas ilustrações requintadas de borboletas, grilos, gafanhotos ou até mesmo de moscas, demonstrando que poderia haver beleza na mais pequena das criaturas. A conclusão dessa grandiosa obra obrigara à captura e morte de muitos desses seres em nome da ciência. Enquanto budista, e de modo a aliviar a culpa que sentia, Sessai Matsuyama erguera aquele memorial numa tentativa de minorar o fardo de todas essas mortes, que lhe poderiam pesar em termos de carma.
Miu arrastara Takashi até àquele local muitas vezes, com o rosto a resplandecer de orgulho. Inspirada pela paixão do bisavô, esperava seguir um dia os seus passos. Porém, até um sonho tão singelo quanto esse se esfumara no decorrer de um tiroteio.
Takashi arregaçou a manga da camisola, expondo a parte interior do pulso. A pele tornara-se fina como uma folha de papel, incapaz de aguentar a tinta que o marcara com o mesmo símbolo que em tempos agraciara também a pele suave de Miu. O desenho representava um conjunto de ferramentas disposto ao redor de uma lua crescente e de uma estrela preta. Ostentar tal marca constituía uma grande honra, pois era a prova de que tinham sobrevivido ao treino dos mestres, os elusivos Kage. Lembrava-se de beijar o pulso de Miu quando ela recebera por fim a tatuagem, porventura numa tentativa de que os seus lábios pudessem atenuar o ardor deixado pela agulha. Aquele ato unira-os tão intimamente quanto o casamento secreto.
Porém, até essa ligação a Miu parecia estar a desvanecer-se.
Desceu de novo a manga enquanto o fogo consumia o último pedaço de incenso, o fio de fumo aromático desaparecendo no ar.
Para onde vai?
Não tinha resposta para essa pergunta. Tudo o que sabia era que Miu não se encontrava mais a seu lado. Ela morrera na primeira missão em que trabalharam juntos, enquanto tentavam roubar um tesouro ao inimigo. A vergonha consumiu-o ao recordar esse momento, sobretudo o modo como abandonara o seu corpo num túnel escuro, forçado a fugir debaixo de fogo e pela necessidade de se assegurar de que o sacrifício dela não fora em vão.
No fim de contas, a missão fora bem-sucedida. Mais tarde, ao compreender a verdadeira natureza do que haviam recuperado naquele túnel amaldiçoado, encarou o sucedido como um presságio. Desviou os olhos para as linhas de texto no velho marco de pedra. Miu nunca seguiria as pisadas do bisavô, mas Takashi assumira essa responsabilidade por ela.
Fazendo uma pequena vénia, ergueu-se. Os seus dois criados tentaram ajudá-lo, mas afastou-os prontamente, fazendo questão de se levantar sozinho. Ainda assim, permitiu que lhe entregassem a bengala, e os seus dedos ossudos seguraram no cabo de ouro rosa, esculpido em forma da cabeça de uma fénix.
Takashi necessitara de décadas de estudo e financiamento, mas iria por fim executar a sua vingança e devolver ao Japão a velha glória. Para o conseguir, utilizaria o mesmo tesouro que custara a vida à sua doce Miu.
Satisfeito, virou costas e atravessou o jardim em direção ao pagode, com a ponta da bengala a bater no chão de pedra ao ritmo do batimento do seu coração. O templo de Kan’ei-ji fora erguido no século XVII. Os terrenos em volta costumavam estender-se por toda a área do parque Ueno, onde agora existiam o jardim zoológico de Tóquio e o museu nacional. O início do declínio do templo ocorrera no ano de 1869, quando o imperador japonês atacara o último xógum de Tokugawa, que tentara usurpar o trono e se refugiara em Kan’ei-ji. Algumas secções das paredes de madeira ainda guardavam balas disparadas nessa batalha. Em todo o caso, eram poucos os que visitavam o templo nos dias que corriam, e esse passado sangrento caíra no esquecimento.
Mas eu farei com que esta nação humilhada pela guerra se recorde da antiga glória.
Contornou o pagode e passou por baixo dos ramos de uma enorme cerejeira. A sua passagem soltou algumas das últimas flores, cujas pétalas flutuaram ao sabor da brisa. Como se Miu o abençoasse. Sorriu e continuou a caminhar em direção à limusina que o aguardava. Apoiando-se na bengala, esfregou a tatuagem com o polegar.
Em breve, minha querida.
Não faltaria muito para se juntar por fim a Miu, mas não antes de concluir a sua vingança e devolver o lugar que pertencia aos japoneses por direito, enquanto senhores do universo.
Ao entrar na limusina, os pensamentos vaguearam novamente em direção ao passado, algo que lhe acontecia com mais frequência. Ele e Miu eram ambos filhos ilegítimos de famílias aristocratas. Manchados por pecados que não eram seus, tinham sido abandonados à sorte e acabaram nas mãos da Kage. No caso de Miu, a família vendera-a à elusiva organização. Takashi, por seu turno, juntara-se de livre vontade, incitado pela amargura.
Na altura, eram poucos os que sabiam alguma coisa acerca da organização, cujo nome significava «sombra». Alguns acreditavam que os fundadores eram ninjas caídos em desgraça, outros julgavam-nos fantasmas. Takashi viria a conhecer a verdade, que a origem da organização datava de tempos imemoráveis. Era conhecida por muitos nomes, assumindo diferentes rostos um pouco por todo o mundo. O único objetivo, porém, era o fortalecimento do grupo pela tomada de posições cada vez mais sólidas nas raízes de cada nação, recorrendo a alquimias antigas, bem como mais tarde à ciência, para o cumprimento dos seus objetivos. A Kage era a sombra por trás do poder.
No Japão, a organização tornara-se mais visível no início da Segunda Guerra Sino-Japonesa, descobrindo novas oportunidades de crescimento no meio do caos e demonstrando especial interesse no sangue e na dor resultante do surgimento de uma série de campos de concentração japoneses secretos, onde a moralidade não tinha lugar. O exército imperial construíra instalações de pesquisa secretas no norte da China — primeiro na fortaleza de Zhongma, depois em Pingfang —, especializadas no desenvolvimento de armas químicas e biológicas.
Para alimentar esses projetos, o exército capturara homens e mulheres de aldeias chinesas, bem como soldados russos e das tropas aliadas. A partir daí, três mil cientistas japoneses trataram de executar experiências indescritíveis nessas cobaias humanas. Infetaram prisioneiros com antraz e peste bubónica, para depois operarem os corpos sem anestesia. Congelaram braços e pernas para estudarem os efeitos das queimaduras de gelo. Violaram e infetaram mulheres com sífilis. Testaram lança-chamas em homens amarrados a postes.
A Kage atuava nos bastidores das instalações, ajudando no que podia com o objetivo de retirar vantagem dos conhecimentos retirados dessas experiências.
Foi por essa altura que a notícia da descoberta de um segredo que se julgava perdido chegou aos ouvidos dos mestres da organização. Quase um século antes, a Kage fizera uma primeira tentativa de se apoderar desse segredo, uma arma com um potencial nunca antes visto. Porém, a iniciativa falhara. A nova oportunidade apresentara-se com essa informação que chegara dos Estados Unidos e, em finais do ano de 1944, uma pequena equipa de operacionais fluentes em inglês fora enviada do Japão para concluir a missão.
Apesar de bem-sucedida, custara a vida a Miu.
Infelizmente, pouco tempo depois, duas bombas lançadas pelos Estados Unidos sobre as cidades de Hiroxima e Nagasáqui puseram um fim precoce à guerra. Takashi sempre se interrogara se a razão por trás da tão extrema ação dos americanos teria alguma coisa que ver com o que fora roubado naquele túnel no subsolo de Washington.
Fosse como fosse, não importava.
No fim da guerra, Takashi escondera o objeto roubado: um pedaço de âmbar. Nessa época, o segredo guardado no seu interior era ainda demasiado perigoso para ser devidamente explorado. Demoraria muitas décadas até que a ciência pudesse retirar vantagem daquele prémio; até que a própria Kage pudesse por fim cumprir o seu destino.
Então, anos antes, os americanos desferiram um rude golpe na organização, arrastando-a para a luz do dia, onde as sombras não sobreviviam. Nessa altura, Takashi ascendera o suficiente nas fileiras da Kage para a reconhecer pelos diferentes nomes, incluindo aquele que os americanos usavam.
A Guilda.
Durante a purga que se seguiu, a maioria das fações do grupo fora perseguida e destruída. Porém, houve quem sobrevivesse. Como um certo homem de noventa anos, que poucos pensariam constituir uma ameaça. Outros elementos esconderam-se nos quatro cantos do mundo. Desde então, com a ajuda do neto, Takashi encarregara-se de os resgatar, construindo pacientemente o seu próprio exército de samurais enquanto aguardava a hora de agir.
Agora, após muito estudo — tanto em laboratórios remotos como em testes no terreno em localizações estrangeiras —, conseguira desenvolver uma arma de poder incalculável.
Escolhera um primeiro alvo, que serviria igualmente como uma demonstração de força e um golpe contra a organização que desmembrara a Guilda. Mais especificamente, dois operacionais que se destacaram no processo.
Enquanto a limusina avançava pelo trânsito, Takashi sorriu. O local onde o par de operacionais se encontrava atualmente constituía um bom presságio para o que viria a seguir. Era o mesmo local onde o Japão Imperial desferira o primeiro golpe devastador contra um gigante adormecido, proeza que ele tencionava repetir.
A devastação seria bem maior do que aquela que atingira essas ilhas no passado. Esse primeiro ataque seria o início do fim da atual ordem mundial, e impulsionaria o nascimento de uma nova era, onde o Japão dominaria por toda a eternidade.
Visualizou o par de operacionais a abater.
Dois amantes... como tu e eu, querida Miu.
Ainda que não o soubessem, estavam ambos condenados.
3
6 de maio, 17h08 HST
Hana, ilha de Maui
Isto é que é vida, pensou o comandante Grayson Pierce, enquanto apanhava banhos de sol nas areias vermelhas da baía de Kaihalulu. O dia aproximava-se do fim, e naquela altura do ano não havia muitos turistas, o que permitia ter a praia só para si. Além disso, o difícil acesso àquela pequena enseada tornava-a numa espécie de segredo bem guardado dos habitantes locais. Porém, no que lhe dizia respeito, a privacidade e beleza intocável do local valiam bem o esforço da caminhada.
Atrás de si, um cone vulcânico dominava a paisagem com os flancos cobertos de densas florestas. Ao longo dos séculos, as falésias ricas em ferro haviam-se desmoronado aos poucos, dando lugar àquela praia de areia vermelha que contrastava com as águas azuis da baía. Uma centena de metros à frente, poderosas ondas rebentavam contra as rochas que se erguiam do leito marinho, projetando no ar milhões de gotículas acentuadas pelo brilho do sol poente. Porém, mais perto da praia, o recife fazia com que o mar beijasse docemente o areal.
Recortada pela luz do sol, uma figura nua emergiu das águas, o rosto erguido para os céus, os longos cabelos negros tocando no meio das costas. Enquanto se aproximava da areia, revelando mais do seu corpo, a água do mar corria-lhe pelos seios arrebitados e estômago definido, realçando o tom de pele amendoado. Uma esmeralda decorava-lhe o umbigo. Cintilava tanto quanto os seus olhos verdes, quando olhou para ele.
O olhar não foi acompanhado de um sorriso e a expressão manteve-se neutra, mas Gray notou a ligeira inclinação da cabeça, o arquear subtil da sobrancelha direita. Continuou a caminhar em direção a ele, movendo-se com a graciosidade de uma leoa a cercar a sua presa.
Deitado na areia, Gray apoiou-se nos cotovelos, de forma a apreciar melhor a vista. Os últimos raios de luz ainda lhe banhavam as pernas, mas as sombras cobriam-lhe já o resto do corpo nu, enquanto o sol se afundava nos penhascos atrás de si.
Seichan percorreu os últimos metros do areal. Assim que chegou junto de Gray, afastou uma perna para cada lado e curvou-se sobre ele, deixando-se ficar no limite da sombra para aproveitar os últimos raios de sol.
— Não te atrevas — avisou Gray.
Seichan ignorou-o e sacudiu os cabelos molhados. A pele bronzeada de Gray arrepiou-se de imediato. Ainda a fitá-lo, a sua sobrancelha ergueu-se mais um pouco.
— O que foi? A água está demasiado fria para o menino? — perguntou, sentando-se sobre a sua cintura e atiçando-lhe o desejo. Depois, inclinou-se para a frente, apoiando-se com as mãos na areia, permitindo que os seios roçassem no peito dele. — Vamos lá ver se consigo aquecer-te — sussurrou-lhe.
Gray sorriu-lhe. Deslizou as mãos pelas costas dela e, com um movimento de ancas, rolou para um dos lados, invertendo as posições.
— Estou quente o suficiente, acredita.
Uma hora mais tarde, as sombras dos penhascos cobriam já toda a extensão do areal, mas os últimos raios de luz ainda alimentavam o arco-íris que se formava na zona da rebentação. Abraçados e exaustos, Gray e Seichan continuavam deitados, nus, tapados por uma manta. O calor da paixão tornara difícil de perceber onde terminava o corpo de um e começava o do outro. Gray seria capaz de ficar assim para sempre, mas a noite não tardaria a cair.
Esticou o pescoço e observou os penhascos que rodeavam a baía.
— É melhor irmos embora enquanto conseguimos ver o caminho — disse. Desviou o olhar para os fatos de mergulho que secavam na areia, juntamente com o restante equipamento que tinham usado para explorar o recife ao redor do farol de Ka’uiki. — Sobretudo se tencionamos carregar isto tudo daqui para fora.
Seichan proferiu um resmungo, contrariada com a ideia de sair dali.
Os dois tinham alugado uma cabana alguns quilómetros a sul de Hana, na pitoresca costa leste de Maui, uma região de luxuriantes florestas, cascatas naturais e praias isoladas. Tencionavam desfrutar de umas semanas naquele paraíso, porém, três meses depois, ainda continuavam ali.
Antes disso, Seichan e Gray viajaram pelo mundo inteiro durante meio ano, deslocando-se de um lado para o outro sem nenhum destino particular em mente. Após deixarem Washington, começaram por passar algum tempo numa vila medieval em França, onde tomaram como residência o sótão de um velho mosteiro. Depois tinham voado para as savanas do Quénia, onde passaram duas semanas a saltitarem de acampamento em acampamento, acompanhando de perto o fluir intemporal da vida animal. A seguir, mergulharam nas ruas de Bombaim, Índia, experienciando a humanidade na sua versão mais borbulhante. Procurando novamente o isolamento, rumaram a Perth, Austrália, onde alugaram um jipe e conduziram em direção ao coração do deserto. Para limparem a poeira dessa expedição, seguiram para as nascentes vulcânicas nas montanhas da Nova Zelândia. Carregadas as baterias, avançaram lentamente pelo oceano Pacífico, saltando de ilha em ilha, da Micronésia à Polinésia, até se fixarem naquele lugar paradisíaco.
De tempos a tempos, Gray enviara postais para o seu melhor amigo, Monk Kokkalis, sobretudo para dar sinal de vida aos colegas em Washington e informá-los de que estava bem, de que não fora nem assassinado nem raptado por forças inimigas. Era um gesto necessário, visto que se ausentara sem aviso ou permissão dos seus superiores na Sigma. Gray trabalhava para a organização há mais de uma década, uma força secreta que atuava sobre a égide da DARPA, a agência de projetos de investigação avançada de defesa. Gray e os colegas eram todos ex-militares das forças especiais que haviam abandonado o serviço por variadas razões. Porém, devido ao talento e aptidões extraordinárias que revelavam, tinham sido recuperados pela Sigma e treinados em diversas disciplinas científicas para atuarem como operacionais da DARPA, protegendo os Estados Unidos e o mundo contra todo o tipo de ameaças.
De acordo com o ficheiro pessoal, Gray possuía profundos conhecimentos em biologia e física, mas a sua formação não se reduzia a essas disciplinas, fruto do tempo que passara com um monge nepalês que lhe ensinara a procurar o equilíbrio entre todas as coisas, a filosofia taoista que explorava o conceito yin-yang.
Esses ensinamentos ajudaram-no a lidar com o passado turbulento. Enquanto criança, Gray crescera entre forças opostas. Bióloga de créditos firmados e professora numa escola católica, a mãe sempre lhe instilara uma profunda espiritualidade, ainda que se apresentasse ao mesmo tempo como uma fervorosa defensora da teoria da evolução.
O pai, por seu turno, era um irlandês a viver no Texas, um operário da indústria do petróleo que sofrera um acidente de trabalho e se vira obrigado a assumir o papel de dona de casa, circunstância que o tornara uma pessoa amargurada e propensa a explosões de raiva. Traços de personalidade que, infelizmente, conseguira também passar ao seu filho rebelde.
Com o tempo e a ajuda de Painter Crowe, o diretor da Sigma, Gray descobrira gradualmente um caminho entre esses polos opostos. Era uma estrada longa que se estendia tanto em direção ao passado como ao futuro, e que, passados tantos anos, continuava a constituir um desafio.
Anos antes, a mãe morrera numa explosão em consequência de uma operação da Sigma contra uma organização terrorista conhecida como Guilda, e Gray continuava a culpar-se por isso.
O mesmo não se podia dizer acerca da morte do pai, na qual tivera intervenção direta. Aprisionado numa cama e sofrendo a inevitável decadência física e mental que advinha da doença de Alzheimer, o pai suplicara-lhe a possibilidade de ter uma morte digna. Gray sucumbira por fim a essa última vontade (Promete-me) e administrara-lhe uma dose fatal de morfina.
Não se sentia culpado por ter acedido ao pedido do pai, mas também não era algo que pudesse atirar para trás das costas, como se nada fosse.
Então, quando caminhava já na beira do abismo, Seichan atirara-lhe uma corda de salvação, convencendo-o a largar as suas responsabilidades e a viajar pelo mundo, esquecendo tudo e todos durante um tempo. Gray agarrara a oportunidade com unhas e dentes.
Seichan também tinha razões para desaparecer. Era uma antiga assassina da Guilda, treinada desde criança para servir a misteriosa organização. Várias vezes na mira da Sigma enquanto adversária, Painter Crowe acabara por recrutá-la para a equipa. O seu trabalho na Sigma revelara-se fundamental na operação que conduzira ao desmembramento da Guilda, mas o passado negro nunca mais lhe permitiria viver em paz. Ainda se encontrava nas listas de alvos dos serviços secretos de muitos países, como acontecia com a Mossad, por exemplo, que mantinha sobre ela uma ordem de atirar a matar.
Ainda que a Sigma lhe garantisse alguma proteção, as coisas eram como eram e nunca mudariam. Por isso, tinham fugido juntos, usando esse tempo para curarem as feridas, para se descobrirem a si mesmos e um ao outro. Ninguém na Sigma tentara contactá-los, nem sequer quando Gray não comparecera no funeral do pai. Tinham pura e simplesmente respeitado a necessidade dessa ausência.
Durante nove meses, os dois viajaram com identidades falsas, mas Gray sabia que a Sigma mantinha um olhar atento sobre o paradeiro de ambos, tanto por razões profissionais como pessoais. Sob muitos aspetos, a equipa era como uma família, e Gray encontrava-se agradecido por lhe terem concedido essa breve fuga à realidade.
Não que não a tenha merecido.
Mesmo assim, parte de si sabia que aquela viagem era uma ilusão, um breve interregno antes de o mundo desabar de novo sobre os dois. Nos últimos tempos, começara a sentir uma vaga pressão sobre os ombros, uma tensão cuja origem não conseguia determinar. Não era tanto uma sensação de perigo iminente, mas a certeza de que o fim daquele hiato se encontrava ao virar da esquina.
Gray sabia que Seichan sentia o mesmo. A sua disposição alterara-se, mostrando-se cada vez mais inquieta e menos satisfeita, como uma leoa enjaulada. Gray conhecia Seichan o suficiente para perceber que ela não receava o fim da viagem. Em bom rigor, estava desejosa de que isso acontecesse.
E eu também.
O mundo chamava-os. Porém, para mal dos pecados de ambos, não parecia disposto a esperar que respondessem ao apelo.
Um som de motores quebrou a quietude sobre a baía. Gray endireitou-se de imediato, com o peito a subir e a descer mais depressa, fruto dos anos passados nos Rangers do exército. Ainda que não existisse uma ameaça iminente, as incontáveis missões no terreno haviam tornado Gray numa máquina atenta a cada pormenor à sua volta. Era um instinto que lhe fora incutido em cada fibra do corpo. Os seus músculos retesaram-se e a visão apurou-se, preparando-se para se pôr em movimento a qualquer instante.
Um trio de aviões a hélice — Cessna Caravans, pelo que parecia a Gray — surgiu do lado do mar, dirigindo-se em direção à praia. A presença daquele tipo de aeronave não era invulgar naquelas ilhas, mas Gray notou algo de estranho no modo como os três aparelhos voavam em formação apertada, o que sugeria que os pilotos deviam ter formação militar.
— Algo me diz que não andam a ver as vistas — disse Seichan, apercebendo-se do mesmo e notando a tensão de Gray. — O que achas?
Enquanto o trio se aproximava, os aviões nos flancos romperam a formação, cada um virando para o seu lado. O do meio manteve o rumo direto à praia. Gray apercebeu-se de vários pormenores ao mesmo tempo. Nenhum dos aparelhos era um Cessna Caravan. Aqueles aviões eram um outro modelo mais evoluído, o Cessna TTx, o monomotor de pistão mais rápido do mundo. Cada um trazia uma espécie de barris montados sob a fuselagem.
Antes que Gray pudesse perceber o que estava a acontecer, uma névoa escura escapou-se de cada um desses barris, deixando um rasto negro nos céus. Pouco a pouco, cada um dos rastos aumentou de volume, convertendo-se em nuvens escuras que pairavam agora sobre a água. Logo a seguir, os ventos começaram a empurrar as nuvens em direção à praia.
O avião do meio continuou a voar em direção a Gray e Seichan. Pela altura em que passara sobre a muralha de rochas nas águas da baía, expelira já todo o conteúdo dos barris que transportava. Avançou direito à praia e passou diretamente por cima de Gray e Seichan. Gray esperava que o piloto ganhasse altitude e sobrevoasse as montanhas. Em vez disso, o aparelho esmagou-se contra as encostas cobertas de floresta.
A explosão desfez dezenas de árvores, projetando lascas de madeira e pedaços de rocha pelo ar. Uma bola de fogo ergueu-se no céu, seguida de uma coluna de fumo. Gray encolheu-se com Seichan debaixo da manta, a fim de se protegerem da chuva de detritos incandescentes. Os ecos de mais duas explosões assinalaram a queda das outras aeronaves. Mais perto, um enorme rochedo caiu na água junto à praia.
Gray ignorou o caos ao redor e focou-se na nuvem negra que se aproximava da praia, empurrada pelo vento.
À direita, assustada pelas explosões, uma garça-branca levantou voo da floresta em direção ao mar, fugindo do fumo e das chamas. Como que pressentindo a ameaça contida na nuvem, bateu as asas com mais força, tentando sobrevoá-la.
Pássaro esperto, pensou Gray, ao vê-lo ganhar altitude e sobrevoar a nuvem negra.
Porém, não foi o suficiente.
Como que sentindo a presença da ave, uma espécie de tentáculo negro estendeu-se pelos céus. A garça sacudiu-se com violência, gritando e batendo as asas em pânico, o corpo contorcendo-se em clara agonia. Depois mergulhou numa espiral descontrolada, desaparecendo no meio da densa nuvem.
— Uma nuvem tóxica! — disse Seichan, reconhecendo o perigo da situação em que se encontravam.
Gray não partilhava da mesma conclusão, e recordou o momento em que a nuvem parecia ter procurado a ave. Porém, fosse qual fosse a ameaça, sabia que se encontravam em perigo.
Olhou ao redor. A mancha negra largada pelos aviões estendia-se ao longo da costa leste da ilha, ocupando uma área superior a um quilómetro e meio de comprimento, ou talvez mais.
E nós estamos aqui, bem no meio.
Enquanto a estranha nuvem se aproximava, um zumbido ténue fez-se ouvir por cima do som das ondas a rebentarem no recife. Seichan inclinou a cabeça, procurando identificar a fonte do ruído.
Gray franziu o sobrolho.
Que raio?
Semicerrou os olhos. Foi quando percebeu que a nuvem se movia independente da força e direção do vento, como um organismo vivo.
Aquilo é um enxame, compreendeu por fim, horrorizado.
Face a essa nova informação, considerou rapidamente as opções disponíveis. Mesmo que tentassem escapar pelo trilho ao longo dos penhascos, seriam com toda a certeza engolidos pelo enxame antes de encontrarem um abrigo.
Tal como acontecera com a garça.
Por muito que não quisesse admitir, a verdade era só uma.
Estamos encurralados.
BATEDOR
Com um corpo desenhado para a velocidade, o batedor conduziu o grupo em direção à costa. As pequenas asas batiam freneticamente, mas era o instinto que o fazia avançar. Indiferente a tudo menos ao que lhe fora inscrito milénios antes no código genético, acelerou direito ao odor de folhas verdes e água doce.
A sua silhueta obedecia ao seu propósito. Exibia antenas mais longas que as dos irmãos, com as pontas cobertas de filamentos capazes de detetar as mais ténues vibrações no ar. Os olhos facetados ocupavam a maior parte da cabeça e mantinham-se fixados no objetivo. Apesar de ter as asas mais curtas, o corpo era maior, mais musculado, garantindo-lhe maior manobrabilidade e agilidade no ar. O tórax dava continuidade a um abdómen mais pequeno que o normal, carregado de glândulas de feromonas. Não tinha ferrão, mas também não precisava de um, visto que não era um soldado.
A sua curta existência servia um único objetivo: recolher informação do meio ambiente. Microfilamentos sensoriais cobriam-lhe o corpo, tornando-o altamente sensível a alterações químicas e flutuações de temperatura. Ajudavam-no também a ouvir melhor, embora as largas membranas que se estendiam sobre as cavidades em cada lado da cabeça fossem suficientes para essa função. Sensores adicionais na boca absorviam os odores no ar, detetando fontes de água ou comida, bem como o fluir das feromonas libertadas por aqueles ao redor.
Enquanto voava, registava a presença dos irmãos mais próximos, fixando mentalmente a sua posição.
Absorvia toda essa informação até atingir um limite, altura em que transmitia os dados recolhidos para os irmãos mais próximos através da projeção de feromonas. A seguir, refinava essa informação alterando a cadência do bater das asas ou sacudindo ruidosamente as patas traseiras.
A informação transmitida era então rapidamente absorvida e partilhada pelos outros, disseminando-se por todo o enxame.
Em menos de nada, aquilo que o batedor sabia todos sabiam. Porém, o esforço individual era recompensado quando os outros lhe devolviam a informação, elevando a sua perceção a um nível superior. Assim que isso acontecia, o corpo tornava-se capaz de absorver tanta informação quanto a que transmitia, levando-o a perder qualquer sentido de individualidade.
À medida que avançava, a troca de dados continuou a acelerar, estendendo-se a todo o enxame como uma torrente ininterrupta, unindo-os no seu propósito com total harmonia.
Com a costa cada vez mais perto, o objetivo adiante tornou-se mais nítido, com os pormenores a revelarem-se gradualmente através dos recetores sensoriais do batedor e dos restantes elementos do enxame. Observada por milhares de olhos, a imagem da linha costeira completou-se por fim: uma muralha de rocha, erguendo-se das ondas.
O odor de folhas e terra tornou-se mais intenso, e o enxame começou a descer em direção à nova casa. A presença de outras formas de vida era denunciada pelos movimentos dos corpos, pelos chamamentos, até pela própria respiração. Todavia, não constituíam uma ameaça. Essa certeza encontrava-se tão imbuída no código genético dos elementos do enxame como as asas ou as antenas.
Terminado o seu papel, o batedor abandonou a posição na frente do grupo. Alguns dos irmãos mais fracos deixaram-se cair no mar, esgotados pelo cumprimento dos respetivos deveres. Porém, já não eram necessários.
Com a costa mais próxima, a divisão seguinte de trabalhadores avançou e ocupou a frente do enxame. Essa nova casta tinha o seu próprio propósito genético: avaliar potenciais perigos e abrir o caminho daí em diante.
Um desses elementos assumiu a dianteira. O seu corpo era bem maior, com o abdómen curvado numa posição ameaçadora e exibindo na ponta o ferrão serrilhado e a glândula de veneno.
A partir daí, o sucesso da missão dependeria dessa nova classe de caçadores e assassinos.
Os soldados.
4
6 de maio, 18h34 HST
Hana, ilha de Maui
Seichan percebeu que não havia tempo a perder.
— Esquece os fatos! — disse, acabando de vestir a parte de baixo do biquíni. Mantinha o olhar fixo no enxame, que se encontrava já junto à costa.
Gray largou o fato de mergulho. Tinha vestido os calções de banho. Depois de meses ao sol, a pele exibia um bronzeado profundo, e os cabelos castanhos — que por essa altura quase tocavam nos ombros — apresentavam madeixas douradas que lhe realçavam os olhos azuis. Também não se barbeava há uns quantos dias, pelo que uma densa barba lhe cobria o rosto angular.
Olhou para Seichan e pegou na botija de mergulho, que se encontrava já amarrada ao colete de flutuação. Colocou o equipamento ao ombro, depois estendeu o braço e pegou no conjunto de Seichan.
Seichan correu para ele. Recolheu a máscara caída na areia, enfiando-a na cabeça, e só depois pegou na botija. Colocando-a às costas, correu em direção à água com Gray, sentindo o peso bruto do equipamento a castigar-lhe os ombros nus.
Cada vez mais perto, o enxame sobrevoou as formações rochosas do recife, a enorme mancha negra cobrindo toda a extensão da baía. O zumbido convertera-se num rugido grave, e o vento carregava um repugnante odor adocicado, uma mistura de alfazema e lixo. Era tão intenso que Seichan conseguia saboreá-lo, forçando-a a reprimir o reflexo de vómito.
A seu lado, Gray encolheu-se e agitou as mãos no ar.
Seichan sentiu algo a bater-lhe no braço. A dor foi semelhante a ser atingida por uma tira de elástico. Olhou para baixo: uma espécie de vespa agarrara-se ao seu bíceps, com as asas a tremularem freneticamente. Era enorme... do tamanho do seu polegar, com riscas vermelhas a atravessarem o abdómen preto. Momentaneamente chocada pelo tamanho daquele ser, Seichan não reagiu a tempo.
A vespa picou-a antes que pudesse sacudi-la.
A dor foi imediata, como se alguém lhe tivesse enfiado um fósforo aceso numa ferida aberta.
Mas o pior ainda estava por vir.
Uma agonia furiosa explodiu-lhe no braço, como se lhe arrancassem o músculo do osso. Pelo menos, era o que sentia.
Cerrou os maxilares e caiu de joelhos.
Reagindo depressa, Gray sacudiu-lhe a vespa do braço e pisou-a com o calcanhar. Conseguiu inutilizar-lhe as asas, mas o corpo rijo do inseto apenas se afundou na areia. Sem se dar por vencida, a vespa avançou de novo em direção a Seichan. Antes que conseguisse alcançá-la, Gray pontapeou-a para a água.
Por essa altura, Seichan perdera o uso do braço, que pendia inerte como um pedaço de borracha mole. A dor, porém, aumentava de intensidade. As lágrimas correram-lhe copiosas pelo rosto. Nunca sentira uma agonia assim. Se tivesse um machado, seria capaz de cortar o próprio braço.
— Gr... Gray... — conseguiu dizer, por entre os lábios trementes.
Gray ergueu-a do chão, com botija e tudo.
— Precisamos de chegar à água!
O plano fora sempre esse: usarem o equipamento de mergulho para escaparem àquela ameaça.
Seichan queria fazer isso mesmo, mas as pernas recusavam-se a colaborar. Cada vez mais fraca e desorientada, tentou manter-se de pé. O mundo oscilava à sua volta. Sentiu a primeira convulsão e caiu para a frente.
Gray amparou-lhe a queda e continuou a arrastá-la em direção à água.
Mais vespas caíram dos céus como uma chuva de granizo negro, os corpos compactos atingindo a areia e os arbustos.
Gray apertou os braços ao redor de Seichan e mergulhou.
Porém, mesmo dentro de água, o corpo da companheira continuava a arder.
18h37
Vá lá, aguenta-te...
Gray ajustou a máscara de mergulho e rolou para um dos lados, mantendo Seichan debaixo de si enquanto descia para águas mais profundas. O peso combinado do equipamento de ambos arrastava-os ao longo do leito marinho. Desesperado e temendo o pior, usou a mão livre para também ajustar o equipamento de Seichan. Agarrando no regulador suplente da companheira, levantou-lhe a parte de baixo da máscara e soltou um jato de ar comprimido, a fim de expulsar a água aprisionada que lhe cobria o nariz.
O corpo dela ainda tremia, mas as convulsões mais violentas pareciam ter diminuído. Estudou-lhe o rosto enquanto lhe ajustava o regulador principal entre os lábios. Seichan tinha os olhos abertos, mas o modo como rolavam nas órbitas era um claro indicador da desorientação que ainda sentia.
Agarrou-lhe na mão e, com uma ponta de alívio, sentiu os dedos dela apertarem os seus. Seichan começava a reagir.
Levou a mão dela até ao regulador.
Consegues?, perguntou-lhe com o olhar.
Ela pareceu compreender a pergunta e acenou com a cabeça.
Ótimo, pensou Gray.
Mais tranquilo, alcançou o seu próprio regulador e levou-o aos lábios. Olhou para cima. O sol estava quase a pôr-se, no entanto a água era límpida o suficiente para distinguir os pontos negros que se contorciam à superfície. A maioria era mais pequena do que a vespa que atacara Seichan, mas havia alguns maiores, assinalando a presença desses monstruosos insetos.
Criado na região montanhosa do Texas, Gray tivera a sua quota de encontros indesejados com abelhas e vespas, assim como ouvira todas as histórias de vizinhos que, numa altura ou outra das suas vidas, se viram a braços com enxames de abelhas-africanas, mais conhecidas por «abelhas assassinas». A espécie era notória pela agressividade com que defendia os ninhos. Saltar para dentro de uma piscina ou de um lago, por exemplo, não oferecia proteção a quem as incomodasse. As abelhas pura e simplesmente pairavam sobre a água, aguardando o momento em que a vítima era forçada a emergir para respirar. Depois, atacavam de novo.
Gray observou o enxame.
Aquelas vespas pareciam seguir o mesmo padrão de comportamento.
Felizmente, nós não precisamos de subir para respirar.
Era o que esperava, pelo menos.
Antes de continuar, ajustou o seu nível de flutuabilidade, inflando as bolsas de ar do colete. Depois ajudou Seichan a fazer o mesmo, o que permitiria que ambos pudessem manter uma profundidade de mergulho fixa, cerca de dois metros abaixo da superfície. Satisfeito, continuou a conduzir Seichan para longe da costa, atento a qualquer alteração no seu estado físico. Não sabia se haveria outras surpresas escondidas no veneno daquelas vespas.
Recordou a agonia de Seichan. Aquela era uma mulher que conhecia a sensação de ser alvejada, esfaqueada... até de ser trespassada na barriga por uma lança de ferro. Nenhuma dessas ocasiões a deitara por terra. A maneira como sucumbira na praia significava que o veneno não era para brincadeiras. Gray calculava que o coração de Seichan poderia até ter parado, caso tivesse sofrido mais picadas.
Com isso em mente, continuou a afastar-se da costa, em direção às águas mais claras do recife para lá do farol de Ka’uiki. De quando em quando, espreitava por cima do ombro. Apesar da difração da água, conseguia distinguir a sombra do enxame sobre a baía. Parte avançara para terra, mas o grosso dos insetos mantinha a posição, como que aguardando cautelosamente.
Talvez estivessem à espera de que as vespas maiores limpassem o caminho.
No que tocava a eles os dois, a tática resultara na perfeição.
Continuou a fazer o que podia para escapar à sombra do enxame. Infelizmente, não tinha maneira de travar a descida do sol no horizonte. A luz do ocaso não lhe permitia mais distinguir o que se passava à superfície.
Considerou a hipótese de emergir e usar a lanterna de mergulho para perscrutar os céus; porém, mesmo que tivesse deixado os insetos para trás, receava que a luz da lanterna pudesse denunciá-lo. Sem alternativa, continuou a avançar, guiando-se pela bússola de pulso.
Mais vale jogar pelo seguro.
No entanto, sabia que aquela era uma estratégia a curto prazo. Não aguentariam muito mais tempo sem fatos de mergulho, sobretudo Seichan, que mostrava cada vez mais dificuldade em acompanhá-lo. Precisava de retirá-la da água gelada e de levá-la para qualquer sítio quente. Sabendo disso, virou para sul, rumo à pequena praia que se localizava a cerca de um quilómetro e meio de distância, onde no topo de uma falésia vulcânica se encontrava a cabana que tinham alugado.
A água continuou a escurecer gradualmente, e já mal conseguia ver as próprias mãos, quanto mais Seichan. Contrariado, retirou a lanterna de um dos bolsos do colete e acendeu-a. O feixe brilhante cortou a negritude, cegando-o momentaneamente, e, por instantes, estremeceu com a ideia de que poderia estar a acender um farol para as vespas seguirem.
Não tenho alternativa.
À medida que os olhos se ajustavam à claridade, o mundo escondido sobre as ondas revelou-se a pouco e pouco. As cristas do recife estendiam-se abaixo e a perder de vista, e havia a presença de movimento por toda a parte. Anémonas amarelas e vermelhas ondulavam ao sabor da corrente, enquanto os ouriços do mar deslizavam, vagarosos, com os seus espinhos negros. Mais à frente, um cardume de peixes azuis desviou-se do caminho, contornando a lenta silhueta de uma raia. Ao passar sobre uma parede de coral, um tubarão de pontas brancas surgiu de repente, apenas para se afastar rapidamente, com uma sacudidela vigorosa da barbatana caudal.
Para lá do brilho da lanterna, outras sombras maiores moviam-se na escuridão, indistintas.
Gray calculou que fossem tartarugas-marinhas, abundantes naquelas águas. Mesmo assim, manteve-se atento. Não queria ser surpreendido por algum dos predadores que eram os reis e senhores daquele mundo. Tinha conhecimento de que os tubarões-tigre e os tubarões-touro atacavam ocasionalmente mergulhadores e banhistas por todo o Maui, e não tencionava juntar-se aos números dessa estatística.
Desviou o olhar para Seichan. Estava a ficar para trás. Abrandou o ritmo e aproximou-se dela. Erguendo a mão livre, perguntou-lhe como se sentia fazendo o sinal de okay com os dedos. Seichan devolveu-lhe o sinal, erguendo a custo o braço afetado pela picada. O efeito do veneno parecia estar a passar, mas deixara-a num estado de debilidade evidente, a que se somava agora o esforço do mergulho.
Ela acenou-lhe para continuar, lançando em simultâneo um olhar que tinha mais de irritação do que sofrimento.
O significado era fácil de ler.
Mexe-te! Eu consigo acompanhar-te.
Gray deu meia-volta e continuou a nadar, mantendo-se a seu lado. Seichan era capaz de ser a pessoa mais teimosa que conhecia, porém, naquela situação, isso apenas a ajudaria até certo ponto. Lentamente, cada braçada e bater de pernas continuou a afastá-los da secção de costa ameaçada pelo enxame.
Não deve faltar muito, pensou Gray, consultando a bússola de pulso.
Decorreram mais trinta minutos até se encontrarem por fim nas águas rasas da praia onde se situava a cabana. As botijas de ambos estavam praticamente vazias, com os ponteiros dos manómetros a assinalarem o final da reserva de oxigénio disponível. Gray emergiu primeiro e perscrutou os céus, certificando-se de que não havia perigo. Depois, ajudou Seichan a sair da água.
Mal pisaram a areia, desfizeram-se do equipamento.
Seichan tremia dos pés à cabeça, e o mais provável era que tivesse de carregá-la em braços até ao cimo da falésia, onde a cabana os aguardava, com uma das janelas iluminada.
Seichan libertou-se dos seus braços e deixou-se cair de joelhos na areia.
Ergueu um braço na direção da cabana.
— Vai...
— Não penses que te deixo aqui sozinha. Nem que tenha de te carregar até lá acima!
No entanto, essa era uma promessa que não sabia se conseguiria cumprir. As suas próprias pernas pareciam feitas de borracha.
— Não é isso... — prosseguiu ela, ofegante. Apontou em direção a norte. — O parque desportivo...
Gray abanou a cabeça, sem perceber o que Seichan lhe estava a dizer.
Então, compreendeu.
Oh, não.
Sentiu os músculos enrijecerem, a adrenalina devolvendo-lhe a firmeza às pernas.
Nessa manhã, tinham estacionado o jipe em Uakea Road, entre o Centro Comunitário e o Parque Desportivo de Hana, cujos terrenos incluíam um campo de basebol, um campo de futebol, bem como alguns campos de ténis e de basquete. Um sinal afixado à entrada anunciava uma partida da Liga de Basebol Infantil para essa noite, e Seichan sugerira que fossem assistir ao jogo, acompanhados de uns saborosos cachorros-quentes.
Gray visualizou a localização do parque. Ficava a menos de quatrocentos metros da praia de areia vermelha.
Imaginou o ambiente festivo do jogo.
A música, os cânticos, as luzes...
— Leva uma das motos — disse ela. — Tens de avisar as pessoas.
Gray ergueu o olhar para a cabana. Tinham alugado duas motos de motocrosse, o que lhes permitiria explorarem os recantos da ilha onde os carros não conseguiam chegar. Hesitando, olhou outra vez para Seichan.
— Eu consigo chegar lá acima — disse ela. — Poderei demorar algum tempo, mas avisarei a Sigma para que eles mobilizem meios locais. — Apontou de novo. — Agora, vai, Gray. Vai antes que seja tarde demais.
Gray acenou com a cabeça. Sabia que ela estava certa.
Consultou o relógio: faltavam dez minutos para o início do jogo. Nunca conseguiria chegar ao parque a tempo, mas tinha de tentar. Cerrando os maxilares, correu em direção ao trilho que conduzia à cabana.
Antes de desaparecer na vegetação, olhou para trás uma última vez. Seichan estava já de pé. As pernas tremiam como varas verdes, mas o rosto era uma máscara de determinação. Os olhares cruzaram-se. Ambos tinham consciência do perigo para o qual ele corria.
E também uma certeza.
As férias estavam oficialmente terminadas.
5
7 de maio, 01h55 EDT
Washington, D.C.
Durante meses, Painter Crowe soube que chegaria o dia em que atenderia aquele telefonema. De uma maneira ou de outra, os sarilhos tinham uma maneira especial de se atravessarem no caminho do comandante Gray Pierce. Como diretor da Força Sigma, essa era uma das razões porque mantivera um olhar atento sobre a longa deambulação do operacional ao redor do globo, mantendo-se constantemente a par do seu paradeiro. No entanto, nunca conseguiria imaginar ou prever o tipo de cenário que acabara de lhe ser comunicado.
Vespas?
Exausto, mas também sobressaltado pelo que ouvira, passou os dedos pelos cabelos pretos, que apresentavam uma única madeixa branca sobre uma das orelhas. Dez minutos antes, terminara o telefonema com Seichan e emitira um alerta para os superiores na DARPA e para as autoridades havaianas. Recostou-se na cadeira e refletiu sobre a estranheza da situação, focando-se na seriedade do aviso que ela lhe deixara antes de desligar a chamada.
O que está aqui a acontecer não é um ato da natureza, é um ataque biológico.
Uma batida na porta interrompeu-lhe os pensamentos. Uma figura esguia entrou no gabinete, a capitã Kathryn Bryant, o seu braço-direito na Sigma e a segunda figura na cadeia de comando. Apesar da hora tardia, trazia os cabelos acobreados elegantemente apanhados e entrançados na nuca, conferindo-lhe um visual tão cuidado como a roupa que vestia: um uniforme azul-escuro da marinha, camisa branca e sapatos de salto alto pretos. A única centelha de cor provinha de um pequeno alfinete de ouro na lapela, com a forma de uma rã. Recebera-o como presente de uma equipa de operações especiais anfíbia, da qual fizera parte durante uma missão de reconhecimento dos serviços secretos da marinha. Um dos companheiros morrera durante a operação, e Kat continuava a usar o alfinete em sua memória.
Terminada a carreira de operacional, Painter recrutara-a para exercer funções de analista de dados na Sigma. Porém, a sua capacidade de trabalho depressa se mostrara tão essencial para a organização quanto o homem que a comandava — talvez até mais.
Olhou para Painter e foi direta ao assunto.
— A situação naquelas ilhas poderá ser bem pior do que pensávamos.
— Como assim?
Kat aproximou-se da secretária e ligou o tablet que trazia nas mãos. Depois, apontou para um dos três ecrãs montados na parede do gabinete, onde de imediato surgiu a imagem de um mapa topográfico do arquipélago do Havai. Painter rodou o corpo na cadeira, a fim de estudar melhor o mapa. As três maiores ilhas encontravam-se assinaladas com uma série de pontos vermelhos.
— A ilha de Maui não foi a única a ser atingida — explicou Kat. Aproximou-se do ecrã e apontou para uma zona demarcada a vermelho na costa leste da ilha, o local onde Seichan assinalara o ataque. — Temos informações de mais ocorrências em Oahu e na Ilha Grande do Havai.
Painter levantou-se e juntou-se a ela. Tinha esperança de que se tratasse de um ataque isolado, porventura perpetrado por um qualquer grupo ecoterrorista mais radical.
No mapa, Kat apontou para a capital do estado do Havai, Honolulu.
— Um Cessna despenhou-se perto da cratera de Diamond Head, mais ou menos na mesma altura em que os outros três caíram na ilha de Maui. — Moveu o dedo para a maior das ilhas havaianas. — Em Hilo, um hospital emitiu um pedido de ajuda urgente. Estão a receber centenas de pessoas nos serviços de urgência, todas elas sofrendo de picadas de vespas. Muitas não sobreviveram.
Painter recordou as palavras de Seichan.
Isto não foi um acaso...
Ao que tudo indicava, a sua operacional estava certa. Estavam perante uma ação coordenada.
Kat prosseguiu.
— Não temos informações de ataques em Kauai ou em alguma das outras ilhas mais pequenas, mas calculo que seja apenas uma questão de tempo. Pedi ao Jason que continuasse a monitorizar serviços noticiosos, redes sociais e comunicações das forças de autoridade por todo o Havai.
— Mas porquê este alvo? — interrogou-se Painter. — Porquê o Havai?
— Não temos dados suficientes para responder a essa pergunta — disse Kat, estudando o mapa. Talvez tenha que ver com a localização remota das ilhas. Além da ameaça imediata às populações, a introdução de uma espécie de insetos tão agressiva como esta pode ter potencial para aniquilar todo o ecossistema do Havai.
Aquela era uma ideia preocupante, mas tais consequências a longo prazo teriam de esperar. Havia uma questão mais premente que precisavam de ver respondida.
— Do que estamos a falar, exatamente? — disse Painter. — Que insetos são estes que foram largados sobre estas ilhas?
Kat desviou a atenção do ecrã.
— Já contactei um entomologista do centro de pesquisa e jardim zoológico do Instituto Smithsonian. O doutor Samuel Bennett é um especialista de renome. Pela descrição de Seichan, não existem muitas espécies de vespas com essas dimensões.
— Ótimo. Quanto mais cedo soubermos com o que estamos a lidar, melhor.
Aquela era uma das vantagens de as instalações da Sigma se localizarem no subsolo do Castelo do Smithsonian, visto que permitia acesso imediato ao complexo de laboratórios e centros de pesquisa do Instituto, incluindo o centro de conservação biológica e jardim zoológico nacional.
A proximidade à Casa Branca e ao Capitólio era outra, e Painter tinha a certeza de que por essa altura o seu superior direto na DARPA, o general Gregory Metcalf, encontrava-se já reunido com quem de direito e a preparar uma resposta de emergência federal. No entanto, também sabia que as engrenagens do poder raramente se moviam à velocidade desejada.
Essa era a principal razão por detrás da existência da Força Sigma: uma organização capaz de liderar ataques cirúrgicos quando necessários. Representavam a primeira linha de defesa contra as ameaças de um mundo em constante mudança, sobretudo a nível tecnológico. Com a ciência a avançar tão rápido e em tantas direções diferentes um pouco por todo o mundo, a América precisava de uma equipa de operacionais capaz de reagir com a mesma celeridade. Esse era o lema embebido no sentido de missão da Força Sigma: Chegar sempre primeiro.
O telemóvel de Kat tocou. Olhou para o ecrã, reconhecendo o número que lhe ligava.
— Pelos vistos, o nosso entomologista é uma criatura de hábitos noturnos. É o doutor Bennet.
— Põe em alta voz — disse Painter.
Kat acenou com a cabeça. Tocou com o dedo no ecrã e segurou o telemóvel entre os dois.
— Doutor Bennet, obrigada por devolver a chamada tão rápido.
— O meu assistente ligou-me e disse que era urgente. Isso despertou a minha atenção, claro. Na minha área de trabalho, não é habitual receber chamadas urgentes da DARPA. Muito menos a meio da noite.
— Mesmo assim, agradeço-lhe a prontidão. — Acenou com a cabeça para Painter. — Tenho a chamada em alta voz, para que o meu chefe possa participar na conversa.
— Muito bem. Diga-me então em que posso ajudar?
— Recebeu a descrição que enviei da vespa em questão?
— Sim. É uma das razões porque lhe liguei tão rápido. Há cerca de um mês, recebi um pedido de informações acerca de uma espécie de vespa com estas características: sete centímetros de comprimento; corpo preto com riscas vermelhas no abdómen.
Painter aproximou-se mais do telefone.
— Quem foi a pessoa que o contactou?
— Um investigador no Japão. Se bem me lembro, disse-me que trabalhava para um laboratório farmacêutico. Deixe-me consultar o meu computador e dou-lhe já toda a informação. Trocámos alguns e-mails.
Enquanto aguardavam, Kat deitou um olhar a Painter.
Lá se foi a ideia de que a Sigma é sempre a primeira.
— Em todo o caso, posso adiantar o mesmo que disse a esse investigador — prosseguiu Bennet, enquanto procurava a informação. — Não existe nenhuma espécie de Hymenopteras que coincida com essa descrição. A hipótese mais aproximada seria a vespa-asiática, que pode crescer até esse tamanho, mas as riscas são amarelas. Outra seria a nossa vespa-caçadora, oriunda do Novo México. Cresce até aos cinco centímetros e tem um ferrão que impõe respeito, mas o corpo é azul e preto, com asas cor de laranja.
Painter estremeceu com a ideia de ser mordido por uma dessas criaturas.
— Claro que, se tivesse um espécime, poderia dizer-vos mais qualquer coisa. Talvez estejamos a falar de uma mutação genética de uma destas espécies, onde só mudam as cores.
Kat suspirou.
— Infelizmente, algo me diz que iremos ter muitos espécimes disponíveis para estudo.
— No que me diz respeito, adorava meter as mãos num, claro... Ah! Aqui está o e-mail. — Bennet aclarou a garganta. — O investigador chama-se Ken Matsui. De acordo com a assinatura, é professor na Universidade de Cornell, Departamento de Toxicologia.
Painter franziu o sobrolho.
— Pensei que tinha dito que ele o contactara a partir do Japão.
— Correto. Pelo que percebi, o seu trabalho de investigação é financiado pelos laboratórios Tanaka. Ele enviou-me o e-mail de Quioto, que é onde fica a sede da empresa. Posso enviar-lhe os contactos por mensagem, se quiser.
— Agradeço — disse Kat. Despedindo-se, desligou a chamada e olhou para Painter. — O que pensa de tudo isto?
— Bom, parece-me evidente que alguém descobriu esta espécie muito antes dos ataques de hoje. — Painter sentou-se. — Precisamos de falar com esse professor Matsui quanto antes.
— Vou tratar disso. — Kat virou-se para sair do gabinete, porém, hesitou. — E o que fazemos em relação ao Gray e à Seichan?
— Os serviços de emergência ainda vão demorar um bocado a responder. Por enquanto, terão de ficar por conta deles.
— E o homem que temos lá perto?
Painter suspirou. Nos últimos nove meses, não mantivera apenas um olhar atento sobre o paradeiro de Gray, mas também posicionara uma série de operacionais da Sigma ao longo dos vários sítios por onde ele passara. Começara por destacar o marido de Kat, Monk Kokkalis, na altura em Paris a terminar uma operação conjunta com a Interpol que visava o desmantelamento de uma rede internacional de tráfico de animais exóticos e que, por isso mesmo, se encontrava convenientemente perto da localização de Gray, no sul de França. A seguir, contactara Tucker Wayne, coproprietário de uma reserva de caça na África do Sul, pedindo-lhe que se mantivesse a postos para intervir, caso Gray necessitasse de ajuda durante as suas deambulações pelas selvas do continente negro. E assim sucessivamente. Essa decisão de Painter constituíra muito provavelmente um desperdício de recursos humanos; porém, conhecendo Gray, sabia que os problemas acabariam por encontrá-lo, ou que ele os encontraria por si mesmo.
Era apenas uma questão de tempo.
Para assumir essa última parte da missão, nas ilhas Havaianas, Painter não tivera dificuldade em encontrar voluntários. Embora não houvesse nenhuma razão premente que justificasse a presença de um operacional nessa localização, a ideia de umas semanas a viajar por praias paradisíacas era fácil de vender.
Para mal dos pecados de Gray, o operacional que lhe calhara nesse momento em rifa tinha as suas particularidades.
— O Kowalski encontra-se numa estância em Wailea, no outro lado de Maui — disse Painter. — Já o alertei sobre o que está a acontecer, mas ainda deve demorar uma hora até conseguir um helicóptero e ir ao encontro dos dois.
— Isso quer dizer que estão mesmo por conta deles.
— Receio que sim. No entanto, se bem conheço o Gray, ele não vai ficar quieto e vai fazer o que puder para ajudar toda aquela gente.
— Por outras palavras, não vai pensar duas vezes antes de se colocar em perigo — disse Kat.
Painter esboçou um sorriso irónico.
— É a especialidade dele, Kat.
6
6 de maio, 20h02 HST
Hana, ilha de Maui
Curvado sobre o guiador da moto, Gray acelerou pela autoestrada, em direção a Hana. As regras de trânsito não eram para ali chamadas, e continuou a espremer toda a potência do motor, circulando a mais do dobro da velocidade permitida. O tecido da t-shirt chicoteava-lhe o fundo das costas. Não tivera sequer tempo de se vestir apropriadamente, pelo que continuava a usar os calções de banho e apenas calçara as velhas botas de caminhada que apanhara a correr no alpendre da cabana.
Ao passar pelos armazéns de Hasegawa, travou de repente, surpreendido pela extensa fila de carros parados na estrada. Recusando-se a ser apanhado naquele engarrafamento, meteu pela berma e seguiu em frente.
A origem daquela confusão depressa se tornou evidente.
Cheguei tarde demais?, pensou, ouvindo o som abafado de sirenes através do capacete. Com o coração a bater-lhe na garganta, rodou o punho e continuou.
Atalhou caminho pelo relvado da igreja para chegar a Hauoli Road, a rua paralela a essa. Depois de fazer a curva, acelerou direto à origem da agitação. O parque desportivo de Hana localizava-se centenas de metros à frente, paredes-meias com o centro de saúde comunitário. Um carro de bombeiros ocupava parte do parque de estacionamento, juntamente com meia dúzia de ambulâncias e carros-patrulha. Acima, um helicóptero amarelo sobrevoou a cabeça de Gray.
Apertou os travões, atirou a moto para um dos lados e correu os últimos metros da rua apinhada de gente. As pessoas acotovelavam-se por toda a parte, observando boquiabertas a ação dos veículos de emergência. Pais reuniam as crianças, algumas delas envergando uniformes da Liga Infantil de Basebol. As bancadas do estádio encontravam-se repletas, mas a maioria dos espectadores tinha as costas voltadas para o campo, mantendo a atenção focada no que acontecia no exterior. Não havia dúvidas de que o jogo fora cancelado por algum motivo.
Para lá do estádio, o campo de futebol dera lugar a uma área de merendas improvisada. Mais perto, estacionadas ao longo da estrada, carrinhas de comida vendiam gelados, cachorros-quentes... até carnes de churrasco. As colunas de som do estádio enchiam o ar com música havaiana, competindo com o brado das sirenes.
Gray continuou a avançar pela confusão instalada, em direção ao parque de estacionamento do centro. Precisava de falar com alguém das forças de autoridade. Mantinha um olho atento nos céus, porém, mesmo com o clarão das luzes, não parecia haver sinais da presença do enxame. Além disso, as pessoas em redor não mostravam sinais de pânico, apenas de curiosidade.
Se não houve um ataque, o que estão aqui a fazer todas estas ambulâncias?
Observou o trajeto do helicóptero, à medida que o aparelho descrevia uma curva sobre as florestas para lá do centro comunitário. Parecia dirigir-se para o farol de Ka’uiki. O feixe das luzes permitia distinguir uma ténue coluna de fumo que se erguia mais adiante.
Recordou o momento em que o Cessna TTx mergulhara contra a encosta do cone vulcânico de Ka’uiki, compreendendo por fim o que originara tanta comoção. A queda simultânea de três aeronaves era justificação suficiente para o acionamento de um plano de emergência por parte das autoridades. Isso também explicava o cancelamento do jogo, porém as pessoas presentes no local continuavam sem arredar pé, curiosas com toda aquela agitação.
Infelizmente, constituía um cenário perfeito para uma tragédia.
Gray espremeu-se pelo meio da multidão, contornando uma acesa discussão entre o condutor de um dos carros presos no trânsito e um pedestre que não o deixava avançar. Como último recurso, o condutor premiu furiosamente a buzina, adicionando mais uns quantos decibéis à confusão.
Gray encolheu-se com o som estridente, mas manteve-se atento aos céus.
Será que a agitação iria atrair ou manter o enxame à distância?
Alcançou por fim o parque de estacionamento e dirigiu-se de imediato a um homem negro atarracado, com cabelos grisalhos, que vestia um uniforme azul e branco com um distintivo de metal no peito. Segurava um casacão amarelo debaixo do braço, condizente com o jipe estacionado a seu lado. Gray calculou que fosse o comandante do departamento de bombeiros de Hana. Estava à conversa com um dos seus homens, um havaiano enorme, devidamente equipado.
Gray ouviu parte da conversa, já que os dois homens gritavam um para o outro para se fazerem ouvir.
— O Watanabe está junto dos destroços. Diz que não há corpos.
— O piloto saltou antes de o avião cair?
— Talvez.
Gray sabia que isso não acontecera, o que significava que os aviões estariam a voar sem ninguém aos comandos, como se fossem drones. Os Cessna TTx dispunham de piloto automático, mas isso nunca seria o suficiente para a execução de uma manobra como aquela.
A não ser que os aparelhos tivessem sido alterados.
Tirou o capacete e aproximou-se dos dois homens, a fim de lhes captar a atenção.
— Não havia ninguém aos comandos do avião — disse.
O par olhou para ele de cima a baixo, os sobrolhos franzidos.
Gray não esperava outra reação. Com a barba por fazer, cabelos desgrenhados e vestido apenas com uma t-shirt, calções de banho e botas de caminhada, não se podia dizer que transmitisse a mais confiável das imagens. Além disso, alguns havaianos tinham uma forte costela insular que os levava a desconfiar de quem era haole, um estrangeiro.
Antes que os dois lhe virassem costas, prosseguiu rapidamente.
— Eu estava na praia quando os aviões caíram — disse, estendendo a mão. — Chamo-me Gray Pierce, antigo operacional dos Rangers do exército e agora comandante-adjunto da DARPA.
Não era exatamente verdade, mas andava lá perto.
O comandante ignorou a mão estendida e continuou a fitá-lo, com cara de poucos amigos. O bombeiro, porém, estreitou os olhos, como que reavaliando a primeira impressão causada por aquele haole.
Gray baixou o braço.
— A situação é pior do que pensam. Os aviões despenharam-se de propósito. Antes de o fazerem, libertaram a carga que transportavam... nada menos do que milhões de vespas.
— Vespas? — repetiu o comandante, revirando os olhos.
Qualquer credibilidade que Gray tivesse conquistado junto do bombeiro havaiano esfumou-se rapidamente do seu rosto. Ambos os homens deveriam estar a pensar que ele teria já fumado um ou dois cigarros da potente estirpe da planta canábis que crescia na ilha, e cujo consumo fazia parte da vida de quase toda a gente.
— Estas vespas são grandes — insistiu Gray, procurando a melhor maneira de transmitir a realidade da ameaça que pairava sobre todos. — Nunca vi nada parecido. A minha companheira foi picada e ficou instantaneamente incapacitada. — Apontou para um grupo de crianças que riam e conversavam no outro lado da rua. — Calculo que baste uma picada para matar uma...
— Chega! — disse o comandante, erguendo uma das mãos. — Não tenho tempo para ouvir disparates! — Virou-se para o outro. — Palu, tira-me este idiota da frente!
O havaiano hesitou, erguendo discretamente os olhos para o céu.
— Eu sei que isto parece loucura, mas preciso que acreditem em mim — disse Gray, focando-se no bombeiro. Sabia que o comandante nunca lhe daria ouvidos. Quando era militar, conhecera demasiados oficiais assim, homens cujo orgulho e obstinação os impedia de olharem para lá do próprio umbigo.
O bombeiro, porém, parecia dividido.
— Meu comandante, talvez seja melhor confirmarmos esta história.
— Não tenho tempo nem recursos para desperdiçar em...
O rádio nas mãos de Palu cortou a palavra ao comandante. Os três olharam para baixo, ao mesmo tempo que um grito se escapou do pequeno altifalante do aparelho.
Palu levou o rádio aos lábios.
— Repita a mensagem, Helicóptero Um. — Inclinou a cabeça, aguardando a resposta, mas o rádio manteve-se mudo.
Um som de rotores desviou a atenção dos três para o céu. Um helicóptero amarelo com a palavra BOMBEIROS pintada na fuselagem surgiu da escuridão. Voava descontrolado, oscilando violentamente para a frente e para trás. No segundo seguinte, mergulhou como uma pedra em direção ao solo, despenhando-se na floresta para lá do centro comunitário. O som da explosão sobrepôs-se ao guincho das sirenes e à música, e a multidão silenciou-se de imediato, com todos os pares de olhos cravados na bola de fogo que se erguia no céu noturno.
Por instantes, o clarão iluminou a nuvem escura que pairava sobre a floresta, agigantando-se como uma onda prestes a rebentar sobre a cidade de Hana.
Palu olhou para o haole a seu lado, como que procurando uma explicação para o que via, mas Gray apenas conseguiu constatar o óbvio.
— Tarde demais. Já cá estão.
SOLDADO
Suportada pelo bater poderoso das quatro asas, manteve a posição à cabeça do enxame. Carregado de advertência, o seu zumbido era escutado por todas as irmãs atrás de si, enquanto avaliava os potenciais perigos e as características do terreno abaixo. Ao longo do tórax e abdómen, as filas de espiráculos — minúsculos orifícios pelos quais respirava — vibraram furiosamente, emitindo um silvo agudo para os seus pares.
As restantes apertaram a formação na vanguarda do enxame, comunicando umas com as outras através desses sons e da libertação de feromonas. Todas as antenas apontavam para a frente, girando na base e assimilando os diferentes odores trazidos pela brisa.
Doce...
Carne...
Sal...
Cada uma partilhava o que descobria.
Enquanto aguardava com as outras, dobrou as onze juntas nas pontas das antenas, tecendo gradualmente um mapa mental de todos esses cheiros. Uma forma desenhou-se diante de si, carregada da promessa de sustento para o enxame. A nuvem de odores tornou-se mais nítida.
A mistura de todos esses cheiros avivou-lhe a fome, desencadeando uma descarga de hormonas que potenciavam a agressividade. Os músculos do abdómen contraíram-se, ejetando os filamentos afiados ao longo do ferrão, adicionando eficácia à sua terrível arma. Agitou as antenas uma última vez e focou a atenção na origem daquela nuvem deliciosa.
O instinto exigia-lhe que atacasse.
As irmãs sentiam o mesmo.
Como se fossem uma só, abandonaram a frente do enxame e mergulharam em direção ao solo. Enquanto desciam, juntaram-se mais umas às outras, formando uma seta negra apontada ao alvo.
Os restantes sentidos continuaram a recolher informação, refinando o que já sabia. As membranas que cobriam as cavidades em cada lado da cabeça vibraram com a miríade de sons que se escapava da nuvem de odores. Por sua vez, o zumbido zangado de todo o batalhão era projetado para a frente, apenas para ser devolvido com pormenores adicionais do que se encontrava adiante. A cada bater das asas, aprendia mais e partilhava esse conhecimento com as restantes, tal como elas partilhavam consigo. Estruturas e formas começaram a consolidar-se, construídas a partir de sons e ecos.
Enquanto acelerava para o alvo, tornou-se parte combatente solitária, parte exército, uma e muitas, tudo ao mesmo tempo. Com a nuvem de odores mais próxima e impelida por uma ferocidade territorial milenar, não permitiria que nada se atravessasse no caminho. As memórias ancestrais impregnadas nos genes anulavam qualquer sensação de medo. Os seus antepassados tinham derrubado inimigos bem maiores do que qualquer ser naquela ilha. Ainda assim, apurou todos os sentidos, preparando-se para a batalha.
Os dois olhos negros, cada um fragmentado em centenas de facetas hexagonais, estudaram o que havia adiante. Absorveu as cores e as formas, porém aquele par de olhos fora sobretudo desenhado para um terceiro propósito: detetar movimento.
Fixou a atenção em cada contração e vibração oriundas da nuvem de odores. Havia movimento por toda a parte, contudo o seu cérebro conseguia retirar ordem daquele caos, permitindo-lhe classificar as ameaças no caminho.
Ignorou as formas que procuravam escapar.
Não representavam um perigo imediato.
Em vez disso, concentrou-se naquelas que poderiam contestar a sua supremacia. As asas bateram mais depressa, alimentadas pela fúria, desafiando quem quer que fosse a interpor-se entre si e o objetivo. Porém, os olhos mantiveram-se atentos à ameaça maior.
Um movimento em particular captou-lhe a atenção: uma das formas dirigia-se na sua direção.
Apontou baterias a esse novo oponente, elevando a sua fúria a um ponto de ebulição. A imagem do adversário materializou-se por entre o alvoroço de sentidos, por ora mais sombra do que substância.
Mergulhou para o alvo, ainda sintonizada com as irmãs. As antenas captaram um sinal de aflição, um disparo de feromonas proveniente de uma companheira que fora esmagada à sua esquerda. De imediato, as outras quebraram a formação e seguiram o rasto odoroso, o seu poder e veneno multiplicado pela força dos números, a fim de aniquilarem de uma assentada quem ousara matar uma delas.
Ignorando o impulso de se juntar às outras, manteve-se concentrada na ameaça que se deslocava na sua direção.
A imagem do oponente tornou-se mais nítida.
Avaliou a figura e procurou o melhor ponto para atacar. Conseguia cheirar o sal embebido no suor, até o sangue a correr nas veias, porém o instinto guiou-a em direção ao monóxido de carbono libertado pela respiração. Milhares de anos de evolução ensinaram-lhe a focar o veneno nesse ponto em particular.
Curvando o abdómen, preparou o ferrão.
A figura continuava a avançar ameaçadoramente.
Baixou a cabeça, arqueando as asas bem alto, e mergulhou para desferir o golpe.
7
6 de maio, 20h22 HST
Hana, ilha de Maui
Enquanto corria, Gray baixou a viseira do capacete. Fê-lo mesmo a tempo. Uma enorme vespa acertou-lhe em cheio entre os olhos, a força do impacto suficiente para fazer tremer a superfície de policarbonato. Agarrou-se ao capacete com todas as seis patas a um centímetro do seu nariz, com as asas a bater furiosamente. O forte abdómen desferiu uma série de golpes contra a viseira. Gray conseguia ouvir cada pancada no interior do capacete. Lembravam-lhe um pica-pau a bater com o bico numa árvore.
Fitou a criatura com os olhos meio cruzados, avaliando o inimigo a tão curta distância.
Por instantes, sentiu-se congelado por um profundo horror, como se algo em si reagisse de forma visceral àquela ameaça. E talvez assim fosse. Sabia que as fobias podiam alterar o ADN de uma pessoa através de epigenética, um processo pelo qual um medo em particular era transmitido de geração em geração, estimulando o instinto de sobrevivência contra predadores mortais.
Sentiu o corpo estremecer perante a visão daquele ferrão afiado, que teria pelo menos um centímetro de comprimento, a bater contra a viseira.
Antes que conseguisse mover-se, uma mão enluvada bateu-lhe no capacete, enxotando a vespa.
— Agarre nisto! — ouviu uma voz gritar. Virou-se e deu de caras com Palu, o bombeiro havaiano, que segurava uma manta antifogo prateada. — Tape-se e procure um abrigo! Rápido!
Gray pegou no tecido ultraleve e colocou-o por cima dos ombros, apertando-o ao redor do pescoço com uma das mãos. A manta apenas lhe cobria o corpo até à altura dos joelhos, deixando as canelas expostas, mas era melhor que nada.
Palu não estivera com meias medidas e vestira todo o equipamento de combate a incêndios. Além das calças, casaco e capacete, colocara também um capuz e uma máscara respiratória de circuito aberto sobre o rosto, deixando pouca ou nenhuma área de pele exposta. Carregando uma mangueira branca sobre um dos ombros, apontou com o outro braço para o edifício do centro comunitário.
— Corra!
Gray olhou nessa direção. No parque de estacionamento, o comandante dos bombeiros estava sentado na carrinha, a berrar instruções através do sistema de som do veículo.
— PROCUREM ABRIGO! SEJA ONDE FOR! CARROS, CASAS, O CENTRO COMUNITÁRIO! NÃO FIQUEM NA RUA!
O aviso, escusado será dizer, vinha tarde demais. À volta, as pessoas fugiam em todas as direções. Aquilo era o pandemónio total, uma cena digna de um filme a que não faltava a banda sonora fornecida pelos altifalantes do estádio, que ainda debitavam música havaiana. Gritos e palavrões complementavam a toada.
Um pai passou a correr por Gray com a filha pequena ao ombro e a enxotar as vespas que os perseguiam. A criança chorava, tanto pelo pânico como pelo enorme inchaço vermelho que exibia numa das bochechas. Para sorte de ambos, o homem esbarrou contra um carro conduzido por um bom samaritano, que de imediato arriscou abrir a porta para lhes conceder abrigo.
Situações semelhantes ocorriam um pouco por toda a parte, com casas e lojas a recolherem quem podiam. Mesmo assim, havia toda uma multidão que continuava encurralada nas ruas a céu aberto. As pessoas atropelavam-se e caíam no chão. Pais deitavam-se sobre os filhos, tentando protegê-los, enquanto as vespas mergulhavam para atacar.
Os poucos bombeiros e restante pessoal dos serviços de emergência tentavam ajudar e sofriam as consequências dos seus esforços, mas não conseguiam acudir a todos. Porém, não desistiam.
— Agora! — berrou Palu, apoiando o bocal da mangueira contra a anca. Mais atrás, outro bombeiro ligara a outra ponta ao reservatório do camião, enquanto um terceiro usava uma enorme chave inglesa para libertar o fluxo de água. O potente jato ergueu-se nos céus. Palu moveu o bocal de um lado para o outro, tentando atingir o máximo de vespas que voavam acima, mas era como tentar combater um incêndio com uma pistola de água.
Uma fria certeza apoderou-se de Gray.
Preciso de ganhar tempo para esta gente.
Agarrou no braço de Palu.
— Aquilo é um injetor de espuma de alta pressão? — gritou-lhe, apontando para o autotanque.
Palu acenou com a cabeça.
Tal como Gray esperava, além do reservatório de água, o camião estava também equipado com um injetor de espuma, um eficaz retardante de chamas.
A ver vamos se consigo dar-lhe outro uso.
— Siga-me! — disse.
Quando se virou, sacudiu uma mão-cheia de vespas pousadas na manta. Por enquanto, aquele material metalizado parecia confundir os insetos.
Esperemos que as coisas se mantenham assim.
Correu em direção a Uakea Road, para o local onde abandonara a moto. Rezou para que o plano funcionasse e que a mangueira de Palu fosse suficientemente comprida. Atrás de si, o estoico havaiano tentava a custo acompanhá-lo, arrastando todo o peso da mangueira sozinho.
Gray acelerou o passo, deixando que Palu o seguisse como pudesse. Alcançou a fila de carrinhas de comida estacionadas ao longo da estrada e dirigiu-se à que vendia granizados havaianos. Encontrava-se fechada a sete chaves e com um monte de pessoas acotoveladas no interior, incluindo crianças.
— Não conseguimos meter mais ninguém! — gritou o proprietário pela cortina de metal perfurado que cobria o balcão de atendimento. O painel estava coberto de vespas, que pareciam morder o material para conseguirem entrar.
— Não faz mal — respondeu Gray, desviando-se para a pequena janela de correr onde estava instalada a caixa de pagamento. — Apenas quero os vossos frascos de calda.
— Para quê?
— Faça o que lhe digo!
Gray desviou o olhar para um gelado caído na relva a poucos metros de distância, coberto por um monte de vespas.
A janela de correr abriu-se e alguém lhe entregou um frasco de calda de framboesa. Agarrou no frasco de vidro, virou-se e atirou-o para longe, como se fosse um cocktail Molotov. O frasco voou por cima de uma vedação e caiu no pavimento do campo de ténis mais próximo, partindo-se em pedaços.
Virou-se de novo para a carrinha.
— Mais!
À medida que lhe entregavam mais frascos, Gray atirou-os, um a seguir ao outro, para o mesmo sítio. O engodo depressa recompensou. As vespas começaram a dirigir-se nessa direção, atraídas pelo odor do açúcar. Até as que tentavam furar a cortina de metal desistiram dos seus esforços e voaram para o prémio fácil no campo de ténis.
Gray tinha esperança que resultasse. Lembrava-se bem dos vários piqueniques de família em que ele e os pais tinham sido atormentados pela presença de vespas e abelhas. Uma vez, o pai chegara a engolir uma vespa que caíra na sua lata de cerveja. Nesse aspeto, aquelas criaturas não deveriam ser muito diferentes dos seus parentes mais pequenos.
Afinal, quem não gosta de uma boa sobremesa?
Não fazia ideia de até que ponto aquilo seria eficaz, mas todas as vespas que conseguisse desviar das pessoas na rua era uma boa ajuda, dando-lhes mais tempo para encontrarem abrigo.
— É tudo o que tenho! — gritou o proprietário da carrinha.
Gray acenou com a cabeça e recuou uns passos. Virou-se para Palu.
— Espere até que haja uma boa concentração no campo de ténis. Depois, dê-lhes com força!
— Lolo buggah — disse Palu, na sua língua nativa. Pelo sorriso e maneira como disse aquilo, Gray calculou que fosse uma mistura de insulto e elogio. — Agora, ponha o seu okole em segurança! — acrescentou.
— Ainda não — retorquiu Gray, observando a nuvem densa de vespas que ainda pairava nos céus.
Algumas delas podem não gostar assim tanto de doces.
Encolheu-se sob a manta prateada e correu para a carrinha seguinte, cuja lateral se encontrava decorada com uma ilustração de um cachorro-quente a dançar. Repetiu a mesma manobra, dessa vez atirando pacotes abertos de salsichas para o campo de básquete, que ficava mesmo ao lado.
Assim que atirou o último pacote, um jato de espuma ergueu-se à sua direita, descrevendo um longo arco branco contra o céu noturno. Gray seguiu-o com o olhar até onde Palu se encontrava, com um joelho no chão, o bocal da mangueira apontado na direção do campo de ténis. O bombeiro havaiano varreu a massa de vespas que pairava acima, atingindo-as com a substância espessa e fazendo com que caíssem sobre as centenas de outras que cobriam os frascos de calda partidos.
— Eu trato disto! Procure um abrigo! — gritou-lhe o bombeiro.
Gray pensou no que poderia fazer mais, mas foi imediatamente dissuadido quando uma vespa pousou numa das canelas expostas e picou-o. Deu dois ou três saltos para trás, como se isso lhe servisse para alguma coisa. A consequente vaga de dor obrigou-o a reagir, e usou a ponta da bota para soltar a vespa da perna e pisá-la no chão, o que apenas pareceu enfurecê-la mais. Uma segunda pisadela com o calcanhar resolveu por fim a questão, esmagando o corpo rijo do inseto com um satisfatório estalido.
Por essa altura, a sua outra perna convertera-se num pilar de fogo.
Tentou coxear pela rua abaixo, porém, quer atraídas pela sua aflição quer pelo odor da companheira esmagada, uma absurda quantidade de vespas mergulhou na sua direção. Conseguia ouvir o som dos impactos no capacete, sentir as pancadas contra o tecido ultraleve da manta metalizada.
A dor, excruciante, subiu-lhe pela perna acima, dificultando cada movimento. A respiração falhava-lhe por entre os maxilares cerrados, e as lágrimas turvavam-lhe a visão. Num instante, o mundo inteiro parecia feito de dor. Tudo o que queria era deitar-se no chão e gritar.
Mesmo assim, forçou-se a avançar, com os olhos postos nas portas de vidro do centro comunitário. A distância que faltava, porém, parecia-lhe impossível.
Não vou conseguir.
Cada passo doloroso consolidava essa certeza. Perdera qualquer controlo sobre a perna direita e, uns metros à frente, acabou por cair sobre o capô de um Ford Taurus. As pessoas no interior fitaram-no com expressões aflitas, sabendo que não podiam dar-lhe abrigo. Não cabia mais ninguém naquele automóvel.
Lotação esgotada... tente mais à frente.
Endireitou-se, determinado a alcançar o centro comunitário. Infelizmente, deixara uma das mãos descoberta demasiado tempo. Antes que pudesse escondê-la sob a manta, uma vespa pousou-lhe no pulso. Sacudiu o braço, enxotando-a com sucesso antes que pudesse picá-lo, porém o gesto súbito fez também com que perdesse o equilíbrio.
Caiu desamparado no passeio, a esbracejar, o que apenas atraiu mais vespas.
Preparou-se para se encolher em posição fetal e cobrir-se o mais possível. Foi quando uma força bruta o atingiu pelas costas, arrastando-o aos trambolhões pelo alcatrão durante meia dúzia de segundos assustadores.
Houve um instante de pânico ao aperceber-se de que não conseguia ver, e só então compreendeu que a viseira do capacete se encontrava coberta de espuma branca, assim como a maioria do corpo. Palu deveria ter apontado a mangueira na sua direção, salvando-o no derradeiro instante.
Sentiu um braço apertar-se ao redor da cintura e a puxá-lo para cima. Limpou a viseira com mão.
— Vamos! — disse Palu, ainda a ampará-lo.
Gray não sentiu necessidade de contrariar essa ideia.
O enorme bombeiro havaiano arrastou-o pela rua abaixo, manuseando ao mesmo tempo a mangueira com o outro braço. Ao passarem pelo campo de basquete, expeliu outro jato de espuma para as vespas que se alimentavam na pilha de cachorros-quentes.
Então, a mangueira engasgou-se e o jato esmoreceu. Em menos de nada, do bocal escapava-se apenas um gotejar leitoso.
O reservatório de espuma do camião estava vazio.
Palu largou a mangueira e apertou o braço ao redor de Gray, preparando-se para uma última corrida até ao centro comunitário.
Foi quando um novo ruído os deteve.
Algures ali perto, um cão ladrava insistentemente.
Olharam na direção do campo de basebol e viram um pequeno Terrier que tentava esconder-se junto à posição do batedor. A trela vermelha no pescoço estendia-se até às mãos de um miúdo caído junto à gaiola de proteção. Tinha a cabeça inclinada para trás, com laivos de baba a correrem nos cantos da boca. Os pequenos braços e pernas agitavam-se convulsivamente.
Estava a entrar em choque anafilático.
Gray pôs-se em movimento, mas a gaiola de proteção bloqueava o caminho. O tempo que perderiam a contorná-la era o suficiente para tornar infrutífero qualquer esforço para salvarem o miúdo, mas tinha de tentar.
Palu tentou dissuadi-lo — porventura também reconhecendo a inutilidade do gesto —, depois praguejou e seguiu atrás de Gray, em direção a um portão uns quinze metros mais à frente.
Não vamos chegar a tempo.
Por essa altura o rapaz já não se mexia, e o latido do cão convertera-se num ganido pungente.
Tentou andar mais depressa, mas nem a adrenalina nem o desespero lhe atenuavam a dor. As vespas continuavam a cair dos céus como bombas. Embora a espuma lhe cobrisse a maior parte do corpo, uma delas, mais determinada, conseguiu perfurar a espessa camada branca e cravou-lhe o ferrão na dobra do joelho.
A agonia redobrada fê-lo gritar de desespero.
A seu lado, Palu também gritou e deu uma palmada na própria barriga. Uma das vespas entrara dentro do casaco. Em pânico, Palu abriu o casaco e sacudiu-a, mas a dor fê-lo cair de joelhos.
Encontravam-se agora os dois no chão.
As pernas de Gray tremiam violentamente, incapacitadas pelo efeito do veneno. Olhou na direção do miúdo. Captou o olhar desesperado do cão implorando ajuda.
Desculpa, não há nada que eu possa fazer...
Então, algo lhe chamou a atenção. No centro do campo, bem por cima do monte do lançador, viu o que parecia ser uma corda a cair dos céus.
Piscou os olhos, tentando certificar-se de que não estava a delirar.
É uma corda.
Ergueu os olhos e viu uma enorme sombra a pairar no cimo da corda. Um helicóptero com as luzes desligadas, percebeu, provavelmente para não atrair o enxame.
Uma figura corpulenta deslizou pela corda, as botas levantando uma nuvem de poeira quando tocaram no chão. Vestia um fato de neopreno com capuz, com uma máscara de cobertura total sobre o rosto e uma botija de oxigénio às costas. Por trás do vidro da máscara, um rosto familiar olhou em redor, avaliando a situação.
Gray não compreendia as circunstâncias que teriam levado àquela súbita aparição de alguém que conhecia bem, mas isso também não interessava para nada. Ergueu um braço e apontou para a gaiola de proteção, gritando com todas as forças.
— Kowalski! Vai buscar o miúdo!
21h17
Vinte minutos mais tarde, de pé e atrás da segurança das portas de vidro do centro comunitário, Gray observava as consequências do ataque. Contara uma dúzia de corpos caídos no campo de futebol, mas calculava que houvesse muitos mais para lá do que a vista alcançava.
As equipas de emergência começavam a chegar aos poucos, todas elas envergando equipamentos de proteção. Porém, a situação continuava crítica. Manchas negras de vespas ainda revoluteavam nos terrenos do parque e nas ruas desertas, enquanto o grosso do enxame permanecia numa posição estacionária, pairando sobre a cidade.
Kowalski juntou-se a ele.
— O médico diz que o miúdo vai ficar bom. O cão também.
— Obrigado. Chegaste mesmo a tempo.
Gray visualizou a figura gigante de Kowalski a atirar o miúdo para cima de um ombro e a agarrar no cão pelo cachaço. Depois correra para ele e para Palu, ajudando-os a alcançarem a segurança do centro comunitário, onde uma equipa de enfermeiras e médicos faziam o que podiam para acudir aos feridos com os parcos recursos de que dispunham.
Kowalski explicara-lhe o motivo por detrás da sua súbita aparição. Pelos vistos e tal como suspeitara, Painter mantivera-se a par de cada passo que dera no decurso dos últimos meses. Por norma, não ficaria satisfeito de saber que andara a ser vigiado, no entanto, tendo em conta que aquele miúdo continuava vivo graças a essa decisão do diretor, não tinha razões para se queixar.
— Não consegues manter-te longe de problemas, pois não? — disse Kowalski. O companheiro despira o fato de neopreno e apresentava-se agora com umas botas de caminhada, calções caqui e camisa havaiana. Baixou o queixo e deitou um olhar pesaroso à indumentária. — Ali estava eu, no Four Seasons, prontinho para desfrutar de um belo jantar com a Maria, quando recebi a chamada para vir salvar-te o couro.
Ao que parecia, Kowalski aproveitara a missão de vigilância para gozar de umas férias pagas com a namorada, a doutora Maria Crandall, uma geneticista da Georgia que ajudara a Força Sigma no passado. Os dois formavam um casal invulgar, porém o trabalho de Maria tinha que ver com o estudo dos homens primitivos, o que não tornava tão estranha a circunstância de se ter apaixonado por Kowalski.
— Por outro lado, talvez tenha sido melhor assim — prosseguiu Kowalski. — A Maria queria ir a um daqueles restaurantes que servem comida crua. — Abanou a cabeça. — Qual é o sentido de pagares para ir a um sítio onde nem sequer te cozinham a comida? Se queres que te diga, não consigo lembrar-me de nada mais estúpido.
— Nesse caso, acho que irias sentir-te em casa.
Kowalski franziu as sobrancelhas espessas.
— O queres dizer com isso?
Antes que Gray pudesse responder, duas figuras aproximaram-se: Hani Palu e o seu comandante, Benjamin Renard.
Palu despira o casacão de combate a incêndios, mas continuava a usar as calças amarelas, presas nos ombros com uns suspensórios vermelhos. O havaiano deu uma palmada nas costas de Kowalski. Lado a lado, dir-se-ia que os dois eram irmãos. Ambos mediam à volta de um metro e noventa de altura, com os cabelos escuros cortados rente ao escalpe. A principal diferença residia no rosto de Palu, mais redondo que o de Kowalski... e com muito menos cicatrizes, diga-se de passagem.
As personalidades de ambos também não tinham nada que ver uma com a outra. Palu era um tipo de sorriso fácil, mesmo em circunstâncias difíceis. Kowalski, por seu turno, exibia sempre uma expressão fechada, como se esperasse constantemente o pior.
O comandante Renard estendeu um braço para Gray. Segurava um telemóvel.
— Uma chamada para si. O seu diretor, Painter Crowe.
— Obrigado — disse Gray. Pegou no telemóvel e afastou-se uns metros. Não estava surpreendido pelo facto de o diretor o ter localizado tão facilmente.
Encostou o aparelho ao ouvido.
— Bom, qual é a situação? — disse.
— Isso quero eu saber — retorquiu Painter. — Pelo menos, no que toca ao que se passa aí. Ao que parece, a ilha de Maui não foi a única a ser atacada. Fomos informados de ocorrências em Honolulu, assim como em Hilo.
Gray desviou o olhar para as portas de vidro, tentando imaginar aquele mesmo cenário em centros tão populosos como os dessas duas ilhas.
— A Kat suspeita que as cidades de Lihue e Kauai também poderão ter estado na mira dos atacantes, mas uma súbita corrente de ventos fortes terá afastado os enxames para o mar.
— Nesse caso, não existe certeza de que essas cidades seriam também alvos.
— As autoridades encontraram os destroços de um Cessna na praia. Não tinha piloto.
— Um Cessna TTx?
— Exato.
Painter deixou a implicação suspensa no ar. Aquela era a primeira conversa que tinha com o diretor em nove meses de ausência, e ficou surpreendido com a maneira como parecia em sintonia com ele. Também sabia que o diretor lhe estava a esconder qualquer coisa, porém começava a ter uma ideia do que poderia ser.
— Houve mais ataques em outras cidades de Maui? — perguntou.
— Não, apenas em Hana.
Esse era um pormenor importante. A ilha de Maui tinha cidades bem maiores que Hana, como era o caso de Kahului, onde se localizava o aeroporto internacional. Além disso, a maior concentração de turistas encontrava-se na costa oposta da ilha.
— Qual a razão de terem escolhido Hana? — disse Gray, pensando alto.
— É uma boa pergunta — retorquiu Painter.
Gray recordou o momento em que o trio de Cessnas avançara em direção à costa, com o avião do meio a apontar diretamente para a praia de areia vermelha.
— A não ser que o alvo deles não fosse apenas Hana — percebeu subitamente. — Talvez quisessem atingir-nos também.
Dois coelhos com uma única cajadada.
Olhou para lá das portas de vidro, para os corpos estendidos no chão.
Esta gente morreu por causa de mim?
— Tenho a mesma suspeita — admitiu Painter. — Se for verdade, significa que alguém estaria a par da vossa localização. Alguém que se encontraria bem perto, para saber exatamente onde vocês os dois estavam no momento do ataque.
Gray cerrou os maxilares.
Se souberem que sobrevivemos, isso quer dizer que...
Desviou o olhar para sul, na direção da praia, sabendo quem ainda se encontraria lá, entregue a si mesma.
Seichan...
8
6 de maio, 21h33 HST
Hana, ilha de Maui
Do alpendre da cabana, Seichan observou o invasor a passar pela cerca e atravessar o jardim. Os movimentos eram furtivos, mantendo-se sempre a coberto das sombras mais escuras e avançando em curtas, porém rápidas, corridas. Aquele predador sabia bem o que estava a fazer.
Aguardou junto à ombreira da porta, sem mover um músculo. Contara com aquela visita a noite toda.
Lentamente, baixou-se e apoiou um joelho no chão. Não queria denunciar a sua presença.
O intruso avançou em direção à cabana, desaparecendo momentaneamente de vista.
Vá lá, mexe-te!
Como que ouvindo os seus pensamentos, a figura emergiu de repente da sombra e subiu os degraus do alpendre. Os olhos refletiam a luz ténue que se escapava pela janela da cozinha. Depois, fixaram-se nela.
— Já não era sem tempo — murmurou Seichan, obtendo como resposta um miar queixoso.
Lentamente, pousou o prato com atum picado no chão.
A gata preta olhou para a oferta, depois para o lado. Esticou as patas da frente e espreguiçou-se demoradamente, fingindo-se desinteressada.
— Lamento, mas não levas mais nada — avisou Seichan.
Após outro momento de hesitação, a gata abanou a cauda e foi por fim ao seu encontro. Cheirou o prato, enfiou o nariz no atum e começou a comer, primeiro aos poucos, depois com gosto.
Seichan arriscou estender o braço e passar um único dedo na cabeça do animal. A gata soltou um ronco de protesto, mas continuou a comer. Era claramente selvagem e pouco dada ao contacto humano, porém, ao longo dos últimos três meses, Seichan conseguira conquistar alguma familiaridade junto dela. As glândulas mamárias inchadas denunciavam que teria uma ninhada de gatinhos escondida ali perto. Gray mostrara várias vezes desagrado em relação ao facto de ela insistir em alimentar o pobre animal, lembrando-lhe que a proliferação de gatos vadios na ilha assumira tais proporções que começava a ameaçar algumas espécies de aves nativas.
Fosse como fosse, ela ignorara-o. Lembrava-se demasiado bem do tempo em que se vira obrigada a dormir nas ruas de Laos, depois de ter escapado do orfanato onde fora abandonada. Nessa altura, e embora fosse ainda uma criança, fora tão selvagem como aquela gata, fazendo o que podia para sobreviver. Mais tarde, a Guilda acabaria por encontrá-la nessas mesmas ruas, treinando-a para dar outro uso a esses instintos adquiridos.
Observou o animal esfomeado. Embora estivesse livre da Guilda, parte de si nunca conseguiria escapar ao passado. Não verdadeiramente. Talvez por isso continuasse a alimentar aquela gata, enquanto tentava ignorar as verdadeiras motivações por detrás dos seus atos.
O Gray tem os seus próprios fantasmas, não precisa dos meus.
Depois da morte do pai, Seichan sabia que Gray precisava daquela quebra com a realidade. Ainda que ele tivesse aceitado o seu papel determinante na forma como o pai morrera, poupando aquele homem orgulhoso de um sofrimento e de uma perda de dignidade desnecessárias, parte de si permanecia assombrado pelo que fizera. Por vezes, apanhava-o a fitar o vazio, absorto nos seus pensamentos. Gray nunca falava acerca do pai, mas o fantasma dele pairava ainda sobre os seus ombros. Ao longo dos últimos meses, tinham sido muitas as noites que ele passara a revolver os lençóis, ou em que pura e simplesmente se levantara da cama para se sentar no alpendre.
Ela nunca dissera uma palavra, permitindo a Gray aqueles momentos a sós consigo mesmo.
Suspirando, endireitou-se e aguardou que a gata terminasse de comer. Esfregou a parte superior do braço, tentando aliviar a dormência que ainda sentia da picada. A dor desaparecera, mas dera lugar a uma incómoda enxaqueca, que teria mais que ver com tensão do que com um efeito colateral do veneno.
Olhou em direção a norte, para a razão do seu nervosismo.
Porque estás a demorar tanto?
Gray telefonara-lhe do centro comunitário, a fim de tranquilizá-la e dizer-lhe que se encontrava bem. Porém, não dissera mais nada desde então. Recomendara-lhe também que se mantivesse na cabana, visto que a situação na cidade continuava caótica. Seichan calculava que por essa altura ele deveria estar ocupado a coordenar os passos seguintes com a Sigma, sobretudo tendo em conta a chegada inesperada de Kowalski.
Mesmo assim, continuava ansiosa e desejosa de saber mais notícias.
O eco distante das sirenes em Hana diminuíra momentos antes, porém o silêncio que se sucedera apenas avivara a sensação de que algo não estava bem.
Avançou descalça até ao corrimão do alpendre. A madeira rangeu ao encostar-se. O homem que cuidava do espaço dissera-lhes que a cabana fora construída nos anos cinquenta, mais ou menos na mesma altura em que a última plantação de açúcar na ilha fechara as portas. Ficava localizada a cerca de cem metros da estrada, empoleirada no cimo de um penhasco vulcânico. A estrutura de madeira e o telhado de colmo erguiam-se sobre estacas reforçadas com paus de bambu, provenientes das florestas circundantes. Toda a mobília no interior era feita a partir de madeira de acácia local, e não havia uma única peça que não apresentasse aquele brilho característico resultante da passagem dos anos.
Ao longo das últimas semanas, Gray e Seichan tinham desfrutado sozinhos da tranquilidade dos cem hectares circundantes. Parte da paisagem permanecia intocável pela mão humana, constituindo um último pedaço do verdadeiro Havai e um paraíso onde abundavam as árvores de papaia, bananeiras e gigantescas palmas. Luxuriantes jardins cresciam um pouco por todo o lado, florindo com alpinias vermelhas, plumérias amarelas e hibiscos cor-de-rosa.
Fixou o olhar no baloiço de madeira suspenso numa árvore de manga próxima. Passara muitas horas ali sentada com Gray, perdida nos seus pensamentos enquanto observava o pôr do sol.
Inspirou o perfume da noite, permitindo que lhe enchesse o peito. Tudo aquilo recordava-lhe a pequena aldeia vietnamita onde nascera. As selvas eram diferentes, claro, mas guardavam a mesma sensação de intemporalidade e ligação à natureza que marcara a sua infância. Levou os dedos ao pequeno pendente em forma de dragão que trazia ao pescoço, um presente da mãe antes de morrer. Tempos houve em que fora profundamente amada, e esse amor sempre preenchera o casebre onde viviam, transformando-o num lugar mágico.
Tal como acontecia agora com aquela cabana.
Recordou o toque dos dedos de Gray entrelaçados nos seus enquanto se sentavam naquele baloiço. Ele tornara aquele lugar num lar para os dois.
Começou a andar de um lado para outro, incapaz de sacudir a ansiedade, certa de que o mundo se preparava para desabar à sua volta. Não duvidava do amor de Gray, apenas da sua capacidade para continuar a aceitá-lo. Aqueles meses na estrada tinham sido maravilhosos, mais do que poderia imaginar, porém era como se vivesse um sonho do qual acabaria um dia por acordar.
E depois, como será?
Poderia o amor deles sobreviver à luz dura da realidade? Deveria sequer?
A gata rosnou subitamente, interrompendo-lhe os pensamentos.
— Deixa-te disso, não levas mais...
A gata encontrava-se de costas viradas para o prato, o olhar fixado nas sombras da floresta de palmas. O rosno grave converteu-se num sopro, à medida que o animal se espalmava lentamente contra o chão do alpendre.
Seichan seguiu-lhe imediatamente o exemplo e agachou-se, desviando-se da claridade da janela.
Está aqui alguém.
21h38
Gray digitou o número pela terceira vez. Tentava ligar a Seichan a partir do telefone fixo de um dos gabinetes do centro comunitário. Infelizmente, a localização remota da cabana não era abrangida pela cobertura da rede móvel, o que limitava as opções para comunicarem um com o outro.
Para não variar, ouviu um único sinal de chamada, seguido de silêncio.
Desistindo, pousou o auscultador com força.
Conseguira falar com Seichan antes, mas agora parecia evidente que a capacidade das linhas atingira finalmente o limite por causa do estado de emergência ainda vivido em Hana. Repreendeu-se por ter deixado o telefone de satélite nos Estados Unidos, mas o aparelho era propriedade da Sigma. Além disso, quando partira naquela aventura sem destino, o desejo de privacidade falara mais alto. Se levasse o telefone consigo, os serviços de localização da Sigma não teriam qualquer dificuldade em encontrá-lo em qualquer parte do mundo.
Não se pode dizer que tenha servido de muito, pensou, desviando o olhar para Kowalski, que aguardava no lado de fora do gabinete. A verdade é que o diretor estivera sempre um passo à sua frente.
Sabendo que não conseguiria falar com Seichan tão depressa, dirigiu-se para o átrio. Encostado a uma parede, Kowalski endireitou-se quando o viu aproximar-se. Segurava um charuto apagado entre os dentes. Uma enfermeira sentada a uma secretária deitava-lhe olhares furibundos, como que o desafiando a acender aquela coisa.
— Não consigo falar com ela — disse Gray, interrompendo o duelo entre Kowalski e a enfermeira. — Vou agarrar na moto e tentar chegar à cabana por minha conta e risco.
— Acho que não há razão para isso — disse Kowalski. — E mesmo que haja, tratando-se da Seichan, de certeza que ela dá conta do recado.
Gray sabia que ambas as afirmações não andavam longe da verdade, mas não estava disposto a arriscar. Se aquele ataque tivesse realmente alguma coisa que ver consigo e com Seichan, tencionava enfrentar quaisquer repercussões ao lado dela.
— Deixa-te ficar aqui enquanto eu dou um salto à cabana, okay? — Avistou uma figura familiar junto às portas principais e encaminhou-se para lá. — Palu, tem algum equipamento que possa servir-me? Um casaco, calças?
— Está a pensar em ir a algum lado? — perguntou Palu, percebendo a intenção da pergunta.
— Uma amiga minha pode estar em apuros.
— Compreendo. Vou consigo, nesse caso.
— Agradeço, mas não cabemos os dois na moto.
— Quem disse que íamos na sua moto? — Palu agitou um molho de chaves no ar. — Tenho uma coisa melhor.
Acenou com a cabeça na direção do parque de estacionamento, para um enorme jipe amarelo com a palavra COMANDANTE nas portas laterais. Pertencia ao chefe de Palu, que por essa altura se encontrava ocupado a conceder uma entrevista a uma estação de rádio de Hana.
— Além disso, conheço um atalho. Chegamos lá num instantinho.
Gray anuiu com a cabeça. A oferta era boa demais para recusar.
— Vamos, então.
Uma voz rouca nas costas de Gray sobressaltou-o. Kowalski colara-se a ele e ouvira toda a conversa.
— Se ele for, eu também vou.
Palu encolheu os ombros.
— Por mim...
— Pronto — disse Gray, fazendo um gesto na direção da porta. — Vamos todos.
Kowalski fez um compasso de espera, o suficiente para acender o charuto e lançar um olhar sarcástico à enfermeira. Saíram para o parque e atravessaram a nuvem de fumo que emanava de um grelhador colocado junto às portas do centro. Servia de barreira contra as vespas que ainda voavam por ali.
Por ora, o pior do ataque parecia ter passado, e o céu límpido permitia ver as estrelas acima. O grosso do enxame deslocara-se rumo à densa floresta tropical que cobria o flanco virado a nordeste do monte Haleakala, o vulcão adormecido que ocupava metade do território da ilha de Maui. No entanto, embora a situação tivesse acalmado, Gray calculava que o pior estaria ainda por vir.
Em todo o caso, não valia a pena pensar nisso agora.
Alcançaram o jipe do comandante Renard — um Ford equipado com sirenes e uma barra de faróis no tejadilho — e ocuparam os respetivos lugares. Palu sentou-se ao volante, Gray no lugar do pendura e Kowalski no banco traseiro.
Assim que arrancaram, um zumbido familiar ergueu-se junto à cabeça de Gray. Baixou-se em reflexo e olhou por cima do ombro. Uma vespa conseguira entrar no carro e subia agora pelo interior da janela atrás de si. Kowalski agarrou no charuto aceso e, com toda a calma do mundo, pressionou-o contra o corpo rijo do inseto, que explodiu com um estalido crepitante. Depois continuou a fumar, tranquilamente, como se nada fosse.
Gray virou-se para a frente e recostou-se no assento.
Bom, quem disse que o calmeirão não era útil?
21h44
Agachada, Seichan viu a gata preta voar pelos degraus do alpendre e desaparecer na vegetação. Infelizmente, não podia seguir-lhe o exemplo. Pelo menos, por enquanto. Tinha de partir do princípio de que o oponente controlava o terreno ao redor da cabana.
Considerou as opções disponíveis.
Fogo ou sombras.
A Guilda instilara-lhe essas duas abordagens perante uma ameaça. O método das sombras consistia em manter-se calma e recorrer à dissimulação e subterfúgio para resolver o problema. O método do fogo, escusado será dizer, significava bater de frente com o inimigo, com um assalto direto.
Para mal dos seus pecados, não dispunha de armas de fogo, o que anulava a hipótese de sair dali aos tiros. Viajando como meros civis ao longo de tantos meses, nem ela nem Gray transportavam armas na bagagem, visto que ser-lhes-ia impossível contornarem os dispositivos de segurança aeroportuários dos vários países por onde tinham passado. Além disso, o tempo em cada destino fora sempre tão curto que nunca justificara a opção de adquirirem armas no mercado negro.
No entanto, não se podia dizer que estivesse de mãos a abanar. Continuava a dispor do seu conjunto de punhais, o qual incluía um cutelo. Fora questionada uma única vez, por um guarda de alfândega, acerca daquela invulgar coleção de lâminas acondicionada numa manga de couro. Para justificar a sua posse, fizera-se passar por chefe de cozinha, exibindo como prova um diploma falsificado da famosa escola de artes culinárias Le Cordon Blue.
Infelizmente, os punhais encontravam-se guardados no quarto de dormir, no lado oposto da cabana. Se quisesse ir buscá-los, seria obrigada a expor-se.
Isso não lhe deixava outra opção que não fosse a de seguir o caminho das sombras.
Tomada a decisão, no segundo seguinte encontrava-se já em movimento.
9
6 de maio, 21h45 HST
Hana, ilha de Maui
— Alguém consegue vê-la?
No alto do penhasco, bem acima das ondas que rebentavam nas rochas, Masahiro Ito escutava as comunicações de cada um dos genin estrategicamente dispostos ao redor da cabana. Quinze minutos antes, a equipa de assalto desembarcara na praia num barco insuflável. A fim de não serem detetados, tinham remado a distância até à costa a coberto da noite, para depois escalarem a face rochosa, a uns cinquenta metros do alvo.
Masahiro não percebia o que correra mal no plano, uma vez que ordenara aos homens para apenas se manterem escondidos e aguardarem a chegada do americano. O avô queria que eliminassem a mulher e o companheiro em simultâneo.
Porém, a situação fugira-lhe do controlo. Um dos alvos — a mulher euro-asiática que traíra a Kage — desaparecera de vista no preciso instante em que a equipa ocupara posições. Segundos antes, alimentava despreocupadamente um gato, mas depois esfumara-se do alpendre, assim sem mais nem menos, como num passe de mágica. Anulado o elemento surpresa, não lhe restava alternativa que não fosse mandar avançar os homens. A mulher tinha de ser eliminada antes que conseguisse avisar o companheiro.
— Negativo, Chunin Ito — confirmou o comandante de equipa. — Alvo em parte incerta.
Masahiro cerrou os maxilares, nitidamente insatisfeito.
A equipa de cinco homens era composta por antigos assassinos da Kage recrutados pelo avô após o desmembramento da organização. Durante a queda, poucos dos que ocupavam as altas esferas do grupo escaparam à purga global e, tanto quanto sabia, apenas o avô encontrara forma de passar despercebido aos olhos do inimigo.
Por outro lado, quem suspeitaria de um velho de noventa anos?
Um erro crasso, escusado será dizer.
À medida que a Kage se extinguia, o avô conseguira também protegê-lo. Não o fizera enfiando-o num qualquer buraco no chão, mas empurrando-o para a luz do dia ao torná-lo vice-presidente do departamento de Investigação e Desenvolvimento dos Laboratórios Fenikkusu, uma empresa farmacêutica fundada pelo avô décadas antes. Até lhe conseguira um lugar no conselho de administração.
Mas o avô dera-lhe também outra missão, que nada tinha que ver com funções empresariais: recrutar secretamente os genin — os homens das castas inferiores da Kage ainda espalhados pelos quatros cantos do mundo — e colocá-los a bom uso, criando um pequeno, mas mortífero, exército pessoal.
Guiado pela mão do avô, formara esse novo grupo de homens de acordo com o código dos shinobi, os guerreiros secretos do Japão feudal que mais tarde seriam ostracizados e efabulados sob um outro nome... ninjas. O avô, Takashi, acreditava nos costumes antigos desse Japão glorioso, e os noventa anos de idade nunca seriam um impedimento para assumir-se como jonin, o líder do grupo, concedendo ao neto o título de chunin, a segunda posição na hierarquia de comando.
Todos os genin respondiam diretamente perante Masahiro. Era uma forma eficiente de organização, que servira os shinobi durante séculos. O próprio treino baseava-se nessas tradições ancestrais, de forma a potenciar as capacidades individuais de cada genin sob o seu comando.
Masahiro carregava consigo a tradicional espada japonesa, a poderosa katana, embainhada atrás das costas, bem como uma kusarigama, uma espécie de foice, presa numa corrente enrolada à cintura.
Essas eram as armas de eleição dos shinobi; porém, Masahiro também atualizara o arsenal com tecnologia moderna. Todos envergavam camuflados verdes, com coletes à prova de bala, e carregavam metralhadoras compactas Minebea, de nove milímetros, equipadas com silenciadores e miras telescópicas de visão noturna.
Cada um deles usava ainda o tradicional tenugui, um pedaço de tecido para cobrir o rosto, mas que servia igualmente de cinto ou mesmo de corda para escaladas curtas.
Masahiro ajustou o tecido sobre a ponta do nariz, cobrindo melhor o rosto.
Onde estás, maldita?
Frustrado, sabia que não podia esperar mais.
— Avancem! — ordenou. — Atirem a matar!
21h47
Seichan empoleirou-se num ramo de uma das árvores de manga centenárias. Ao redor, a copa estendia-se dez metros em todas as direções, criando um círculo de sombra densa no chão. O ramo onde se encontrava agachada era tão grosso como as suas coxas.
Momentos antes, mergulhara de cabeça por cima do corrimão, mantendo o cuidado de não tocar na madeira rangente. Antecipando a possibilidade de o inimigo se encontrar munido de equipamentos de visão noturna, esgueirou-se para debaixo de alpendre e rolou para lá dos pilares que suportavam a cabana. Escondida pela estrutura, correu por entre a espessa vegetação, mantendo-se agachada até conseguir trepar a árvore mais próxima, a fim de garantir uma posição elevada em relação ao inimigo. Esperava que os atacantes se focassem na cabana e nos terrenos ao redor, não no que se passava acima.
Manteve-se quieta como uma estátua, respirando silenciosamente pelo nariz. Foi quando um restolhar de folhas secas lhe chamou a atenção. Uma sombra negra deslizou para junto da base da árvore onde se encontrava. Seichan fez um compasso de espera, certificando-se de que não havia mais ninguém por perto.
Não havia.
Usou esse pormenor para calcular as posições e o número de atacantes necessários para cercarem eficazmente a cabana. Teriam de ser cinco ou sete homens, pelo menos. As probabilidades não abonavam a seu favor, mas lidara com circunstâncias piores no passado. Claro que nessas ocasiões estivera armada com algo mais do que uma suculenta manga havaiana.
Vai ter de servir.
Discretamente, ergueu um braço e atirou a peça de fruta para o lado esquerdo.
Lá em baixo, a figura virou-se nessa direção e espreitou pela mira telescópica da arma. Com o atacante de costas voltadas, agarrou na corda amarrada ao tronco debaixo de si, que se estendia até ao velho baloiço onde se sentara tantas horas com Gray. Começou a puxar a corda devagar, inclinando a prancha e fazendo-a subir. Antes que o homem se virasse de novo, saltou do cimo da árvore. Enquanto caía, enrolou a corda ao redor do pescoço dele, aterrando em simultâneo com os dois pés sobre o baloiço. O peso do corpo apertou de imediato a corda no pescoço do atacante. Ainda equilibrada no baloiço, deitou as mãos à cabeça do oponente e terminou o serviço que a corda não concluíra.
Vértebras estalaram, e o homem caiu de joelhos.
Desceu do baloiço e pegou na pequena metralhadora.
Chega de sombras, pensou, colocando a arma ao ombro, está na altura do fogo.
21h52
Uma rajada de tiros desviou a atenção de Masahiro na direção da cabana. O assalto iniciara-se. Os silenciadores faziam com que os estrépitos que se erguiam da floresta não soassem mais alto do que o som de alguém a bater palmas. Sem perder tempo, abandonou a posição no cimo da falésia, confiante de que os seus homens deviam ter escorraçado por fim a mulher do esconderijo.
É apenas uma questão de tempo até terminarem o serviço...
Escutou os disparos durante mais uns segundos, até o silêncio cobrir de novo a floresta, com as ondas sussurrando atrás de si. Então, uma nova troca de tiros ergueu-se de outra direção, dessa vez mais perto.
Franziu o sobrolho. Agachou-se e tocou no microfone do auricular escondido sob as pregas de tecido que lhe cobria o rosto.
— Ponto de situação?
Aguardou a resposta, com o coração a bater mais depressa. Algo não estava bem, sabia, e uma nova rajada de tiros reforçou-lhe essa certeza.
A voz de Jiro, comandante da equipa, irrompeu por fim no auricular.
— Ela apoderou-se de uma das nossas armas! — comunicou, ofegante, o tom quase desesperado. — Matou três dos nossos!
Uma sucessão de mais estampidos interrompeu a conversa, seguida de um grito agudo.
Quatro... pensou Masahiro, a ferver por dentro.
— Chunin Ito, é melhor recuar para o barco — avisou de novo Jiro, a voz convertida num sussurro.
Antes que pudesse recusar tal sugestão, uma outra voz irrompeu pelo auricular.
Falava-lhe com a maior calma do mundo, num japonês perfeito:
— Sempre podes esperar que vá ter contigo.
Apertou os dedos contra o punho da arma. Pelos vistos, a mulher também se apoderara de um dos rádios da equipa.
— Ou será que és demasiado koshinuke? — acrescentou ela, nitidamente a provocá-lo.
O insulto trespassou-lhe o coração como uma lâmina. Não era nenhum cobarde. No entanto, era também esperto o suficiente para perceber que aquilo não passava de uma provocação barata, uma tentativa de o levar a agir impulsivamente. Respirou fundo, procurando acalmar-se. Depois, disse:
— Termine a missão, Genin Jiro. Encontramo-nos no barco.
— Afirmativo. Eu trato dela.
Um riso de escárnio respondeu igualmente ao desafio proposto.
— Ótimo. Brincamos mais um pouco, então.
21h56
Assim que cortou a comunicação, Seichan deixou-se ficar quieta, com as costas encostadas contra uma palmeira e o auricular roubado numa das mãos. Conseguira ouvir as últimas palavras de Jiro a erguerem-se por entre a folhagem, algures à esquerda.
A tentativa de provocação falhara, mas servira para ter uma ideia da posição do último oponente que ainda partilhava a floresta consigo. A confirmação de que o inimigo chegara ali de barco também não constituía uma novidade. Calculava que tivessem desembarcado a norte da cabana. A extensão de costa a sul era demasiado acidentada e batida por ondas fortes.
Avaliou as probabilidades de conseguir chegar à praia antes de o líder se pôr em fuga. Momentos antes, socorrera-se do elemento surpresa e do conhecimento do terreno para abater aqueles quatro homens, mas o oponente que restava — o que se chamava Jiro — estaria agora à sua espera, com todos os sentidos em alerta.
Assim seja.
Aceitou o facto de que nunca alcançaria a praia a tempo, e concentrou-se em capturar Jiro com vida. Tencionava interrogá-lo, claro, e visualizou a coleção de lâminas guardada na cabana.
Vais contar-me tudo o que sabes.
Silenciosamente, rompeu pelo lado esquerdo, através do denso matagal. De vez em quando detinha-se e espreitava pela mira telescópica. A visão noturna iluminava o terreno em tons de cinzento, enquanto os ouvidos tentavam localizar cada restolhar ou estalido.
Como sempre fazia quando chegava a um lugar novo, memorizara toda a área circundante à cabana, um exercício que ao fim de tantos anos lhe era tão natural como respirar. Como tal, conhecia cada arbusto, árvore e rocha ali existente, e quando avistou uma forma estacionária encolhida entre umas árvores de papaia à esquerda, percebeu imediatamente que aquilo não pertencia ali.
Apoiou um joelho no chão atrás de um arbusto, fez pontaria e disparou duas vezes para o centro do alvo, evitando atingir o oponente na cabeça, se possível. Pela mira, viu as duas balas perfurarem o tecido camuflado e derrubarem a forma que era nada mais do que um conjunto de paus entrançados.
Um engodo.
Praguejando entre dentes, mergulhou de cabeça para o lado direito, evitando a chuva de balas que de imediato ceifou o arbusto onde se encontrava escondida. Rolou sobre si mesma e correu dali para fora, sempre a disparar às cegas na direção do oponente. Não contava acertar-lhe, mas talvez o obrigasse a procurar abrigo.
Cerrou os dentes enquanto fugia, sabendo que subestimara o adversário. Porém, não cometeria o mesmo erro duas vezes e abandonou qualquer pretensão de o capturar com vida. As circunstâncias exigiam-lhe agora uma única abordagem.
Matar ou ser morta.
Infelizmente, avaliara mal a verdadeira situação em que se encontrava.
Ao contornar a esquina de uma rocha vulcânica, deu de caras com uma figura à espera, com a arma erguida à altura do peito, apontada diretamente para si.
Uma armadilha.
Fora conduzida até ali de propósito, percebeu, e soube de imediato que aquele homem não era Jiro, mas, sim, o seu líder.
Ao contrário do que fizera crer, o filho da mãe não fugira para o barco.
Visualizou o sorriso de satisfação atrás daquela máscara, no preciso instante em que ele premiu o gatilho.
22h02
Masahiro saboreou o instante da vitória.
Era, contudo, uma celebração prematura.
Ao contornar a esquina, a mulher ainda estava em movimento e usou o embalo para se virar de lado, com os braços bem esticados no ar, diminuindo a largura do seu perfil. A primeira rajada de balas rasou-lhe a barriga e perfurou o tecido da camisa.
Antes que conseguisse ajustar a pontaria, ela baixou os braços e atingiu-o no pulso com a coronha da metralhadora roubada. O impacto arrancou-lhe a arma das mãos. Felizmente para si, também fez com que ela perdesse a sua.
Olharam um para o outro durante uma fração de segundo.
Depois reagiram ao mesmo tempo.
A mulher esticou a perna e desferiu um pontapé rotativo, agachando-se ao mesmo tempo para recolher a metralhadora do chão. Ele saltou para trás, evitando o golpe e agarrando o punho da katana embainhada atrás das costas.
No instante em que ela se ergueu com a metralhadora, desembainhou a espada e desferiu o primeiro golpe. Ela inclinou a cabeça para trás, e a ponta da lâmina passou-lhe rente ao nariz. Embora não lhe tivesse acertado, o mal estava feito.
Seguindo as tradições dos shinobi, Masahiro polvilhara o interior da bainha da espada com um poderoso agente irritante. Os guerreiros do passado usavam pimenta-vermelha, mas a versão atualizada consistia em pimenta-fantasma, bem mais potente, a que juntara também lixívia seca.
O efeito foi instantâneo.
A mulher arquejou quando a nuvem de pó lhe acertou nos olhos, inspirando a mistura irritante bem para o interior da boca, nariz e pulmões. Ripostou com uma rajada de tiros às cegas, tossindo e sufocando, enquanto procurava fugir.
Masahiro abrigou-se atrás da rocha e aguardou que ela esvaziasse o carregador. Assim que os tiros pararam, recolheu a arma do chão e iniciou a perseguição.
Tencionava apanhá-la.
Mesmo incapacitada, a mulher continuava a revelar-se um adversário de valor e, num abrir e fechar de olhos, tinha já desaparecido por entre o denso matagal.
Metros à frente, uma figura irrompeu de repente da floresta.
Jiro.
Masahiro apontou na direção em que ela se escapara, e o outro juntou-se à perseguição, ambos ansiosos pela matança.
Cega e praticamente incapaz de respirar, a mulher não tinha como lhes escapar.
22h04
Com os braços esticados e as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, Seichan correu sem parar. Cada respiração queimava-lhe os pulmões, e os olhos pareciam pedaços de carvão incandescente enfiados nas órbitas. Sentia-se como se estivesse a fugir pelo meio de um incêndio. A única diferença era que aquelas florestas permaneciam húmidas e sombrias.
Bateu com o ombro no tronco de uma árvore, absorvendo o impacto e mantendo o ímpeto, de forma a manter o equilíbrio. A última coisa que lhe podia acontecer seria estatelar-se no chão. Conseguia ouvir os dois perseguidores no seu encalço.
Ignorando a dor e as lágrimas, focou-se no brilho nebuloso que rompia a escuridão adiante, como um farol na noite. A janela da cabana. Precisava de alcançar abrigo e ganhar tempo suficiente para se apoderar das facas, quem sabe até lavar os olhos.
Não havia alternativa.
Forçou-se a avançar, sempre em direção à cabana, guiando-se também quer pela brisa marinha quer pela inclinação do terreno. Os ramos castigavam-lhe as pernas e os braços. As pedras vulcânicas no chão cortavam as solas dos pés descalços. Mesmo assim, tentava correr mais depressa, à medida que os dois homens encurtavam a distância. Esperava sentir a qualquer momento o impacto das balas nas costas.
O espaço abriu-se por fim mais adiante. Os arbustos eram mais rasteiros e não havia ramos de árvores a fustigarem-lhe o corpo. Significava que deixara a floresta para trás e encontrava-se já nos jardins da cabana. O brilho da janela chamou-a, tão brilhante como o sol aos seus olhos inflamados.
Estou tão perto.
Então, foi como se o mundo explodisse à sua volta.
Duas luzes ofuscantes irromperam do lado direito da cabana, direitas a si.
Apanhada de surpresa pela intensidade daquele brilho, ficou congelada, como um veado no meio da estrada.
Faróis...
Uma voz familiar gritou-lhe a plenos pulmões.
— Seichan! Deita-te no chão!
Obedeceu de imediato, confiando a vida ao homem que era dono do seu coração. Cambaleou mais dois passos na direção daquela radiância e deixou-se cair de barriga. Os faróis avançaram e voaram por cima dela. A deslocação do ar provocada pela passagem do enorme veículo quase lhe arrancou a camisa rasgada, deixando para trás um odor a óleo e escape.
Uma troca de tiros explodiu nas suas costas, seguida do baque inconfundível de metal a bater em carne.
Deixou-se ficar deitada, demasiado exausta e em sofrimento para conseguir levantar-se e olhar para trás.
Ouviu o som de portas a abrirem e, no segundo imediato, uma figura ajoelhou-se a seu lado.
— Estás bem? — perguntou Gray.
— Agora, sim — respondeu-lhe. Rolou a custo para um dos lados. Quase não distinguia as feições do rosto dele. — Apa... apanhaste os dois?
— Apenas um. O tipo conseguiu desviar o outro do caminho no último instante.
Seichan visualizou a cena, compreendendo o significado desse gesto.
Jiro sacrificara-se para salvar o líder.
— O Kowalski foi atrás dele, mas o filho da mãe evaporou-se. De qualquer forma, mesmo que não o apanhe, não acredito que regresse.
Seichan desviou os olhos para floresta.
Por enquanto, queres tu dizer...
22h12
Masahiro acelerou o barco para longe da costa e contornou uma pequena península vulcânica, a fim de interpor a formação rochosa entre si e a falésia onde se localizava a cabana. Comunicara já via rádio com o hidroavião que viria recolhê-lo e levá-lo para longe daquelas ilhas.
Enquanto aguardava, olhou para terra e suspirou.
O ataque biológico correra como previsto. A única exceção ocorrera em Kauai, quando uma súbita tempestade dera cabo dos planos. Fora isso, as coisas haviam sido postas em movimento em todas as outras ilhas, e nada conseguiria impedir o que aconteceria a partir daí.
Desviou de novo o olhar na direção do mar aberto.
Apesar desse sucesso, sentia-se a ferver de vergonha.
Não fora capaz de executar a vingança do avô. Os dois principais responsáveis pela queda da Kage continuavam vivos.
E a culpa é minha.
Porém, não tencionava deixar-se abater pelo falhanço, mas aprender com ele. Entretanto, teria de se contentar com a destruição total das ilhas; mais a mais quando seriam os próprios americanos a fazê-lo.
Não teriam outra escolha. Mal a verdade fosse revelada, o resto do mundo nunca aceitaria menos do que isso.
Um sorriso aflorou-lhe os lábios escondidos pelas pregas do tenugui.
Até lá, o sofrimento que atingiria todo aquele arquipélago constituiria um regalo para a vista.
SEGUNDA PARTE
EMERGÊNCIA
10
7 de maio, 15h05 EDT
Washington, D.C.
Doze horas após os ataques no Havai, Kat Bryant caminhava de um lado para o outro no centro de comunicações da Sigma. Um copo alto do Starbucks aquecia-lhe as mãos. Não dormira a noite inteira e tinha o corpo a funcionar à base de cafeína e adrenalina.
Nada a que não esteja habituada.
Deteve-se por fim no centro da divisão circular, banhada de luz ténue, como a sala de comando de um submarino nuclear. Por todo o lado, os técnicos sentavam-se frente a computadores, com os rostos iluminados pelo brilho dos ecrãs. O espaço representava os olhos e os ouvidos digitais da Força Sigma. A informação fluía ininterrupta para dentro e fora daquela sala, fruto do trabalho das várias agências de serviços secretos de todo o mundo, assim como das domésticas.
Kat era senhora daquele domínio, a aranha no centro de uma teia digital.
Um movimento desviou-lhe a atenção para a porta que conduzia ao corredor. Painter entrou na divisão, de semblante carregado. Deveria ter acabado de regressar das instalações da DARPA, onde se reunira com o chefe, o general Metcalf.
— Novidades? — perguntou ele.
— Apenas um relatório atualizado do número de vítimas.
Painter contraiu o rosto, sabendo que não iria gostar de ouvir aquilo.
— É muito mau?
Kat pegou no tablet que estava numa das secretárias.
— Temos cinquenta e quatro mortos confirmados. Mas são mais de mil as pessoas ainda hospitalizadas em todas as ilhas. O que nos diz que o número de fatalidades não vai ficar por aqui.
Painter abanou a cabeça.
— E não sabemos quantos mais serão mortos ou feridos nos próximos dias, à medida que o enxame for ocupando todo o arquipélago.
— Será o caos, disso tenho a certeza. Os serviços de emergência locais não estão preparados para lidar com uma situação destas. Ainda estão a tentar perceber o que devem fazer.
— Alguém reivindicou o ataque?
— Ainda não, mas calculo que os suspeitos do costume se pronunciem mais cedo ou mais tarde, tentando assumir o crédito.
O que só irá complicar a investigação.
— E as análises aos destroços dos aviões?
— Voavam em modo automático, à semelhança de drones. Todos eles, pelo menos aqueles que conseguimos identificar, foram roubados em diferentes pontos do globo, ao longo de um período de dois anos.
— O que nos diz que os ataques começaram a ser planeados há bastante tempo.
— É o que parece.
Kat pousou o copo de café numa das secretárias. Escreveu qualquer coisa no teclado do computador e fez surgir um mapa do oceano Pacífico no monitor. Um círculo vermelho translúcido abrangia o arquipélago do Havai, juntamente com uma boa faixa do mar ao redor.
— Um Cessna TTx tem uma autonomia máxima de mil e trezentas milhas náuticas. — Apontou para o círculo. — O que significa que descolaram de um qualquer ponto dentro desta área.
Painter aproximou-se do ecrã.
— A não ser que se tenham abastecido pelo caminho, o que lhes permitiria um maior alcance.
Kat ergueu uma sobrancelha.
— Uma esquadrilha de Cessnas a voar sozinha? Acho que despertaria atenções indesejadas. — Desviou os olhos para o ecrã. — Não, aposto que partiram de uma qualquer base de operações dentro dos limites desta zona.
— Estamos a falar de uma porção imensa de oceano. Não será fácil.
— Onze milhões de quilómetros quadrados, para ser exata. É o dobro da área de todos os nossos quarenta e oito estados mais pequenos.
Painter franziu o sobrolho.
— Deve haver centenas de ilhas nessa região.
— Milhares, se contarmos todos os atóis, ilhotas ou bancos de areia. No entanto, esse número reduz se contemplarmos apenas os locais suficientemente grandes para alojarem uma pista de aviação. Mesmo assim, ainda sobram uns quantos.
— E os registos dos radares no Havai? Não podem ajudar a estreitar a busca?
— Não. Os sistemas terrestres deles têm um alcance máximo de cem milhas náuticas. Além disso, quando os aviões surgiram no radar, vinham de direções diferentes.
Um dos analistas empurrou a cadeira para trás e olhou para os dois, como que hesitante em interromper a conversa.
— O que foi? — perguntou-lhe Kat.
— Tenho uma chamada numa das nossas linhas seguras.
— Quem é?
— Ken Matsui. Diz que lhe pediram para entrar em contacto consigo.
Kat olhou para Painter.
— É o tal professor e toxicologista de Cornell — lembrou-lhe. — Aquele que pediu informações ao doutor Bennet acerca de uma espécie de vespa.
Painter deitou-lhe um olhar surpreendido.
— O homem não estava desaparecido?
— Parece que não.
Ao longo da noite, Kat prepara um dossiê sobre o cientista. De acordo com um relatório brasileiro, o professor — juntamente com um aluno assistente e dois cidadãos nacionais — fora dado como desaparecido e presumivelmente morto, após ser apanhado por uma tempestade marítima junto à costa do Brasil.
— É melhor atendermos a chamada no meu gabinete — sugeriu Kat.
Pegou no copo com café e conduziu Painter para a sala contígua. O gabinete tinha um aspeto eficiente e espartano, à semelhança de si mesma. Os únicos pertences pessoais eram algumas molduras com fotografias das filhas, Penelope e Harriet. Uma das imagens exibia o marido, Monk, com as duas crianças sentadas nos joelhos. A expressão dele, contraída no momento do disparo, sugeria estar a debater-se com o peso das filhas de cinco e sete anos. No entanto, pelos braços grossos e o peito largo a rebentarem pelas costuras da t-shirt das forças especiais que trazia vestida, dir-se-ia que seria capaz de fazer malabarismo com as duas crianças. Considerando o temperamento delas, até era bem provável que o fizesse de vez em quando.
O olhar de Kat deteve-se na imagem ao atravessar a divisão. Monk levara as miúdas para uns dias de férias nas montanhas Catskills. Kat deveria estar com eles, mas a presente situação dera-lhe cabo dos planos.
No fim de contas, talvez eu não seja a aranha desta teia digital, mas a mosca aprisionada nos seus fios.
Reconfortava-a saber que os três estariam bem e a divertirem-se. Embora lhe custasse admitir, a verdade é que Monk assumia cada vez mais o lugar de pai e mãe. Ele nunca se queixara, mas parte dela não conseguia deixar de sentir uma ponta de inveja de Gray e Seichan, que tinham conseguido aquele ano inteiro só para os dois. Sentia que se encontrava em dívida com Monk e com as filhas, por nunca ter estado disponível para uma experiência semelhante.
Por outro lado, sabia que provavelmente nunca conseguiria abdicar da sua dose regular de adrenalina.
Bebeu mais um pouco de café.
Ou de toda esta cafeína, já agora.
A voz do analista fez-se ouvir pelo intercomunicador.
— Tenho o professor na linha dois. Vou passar.
Pousou o copo de café e colocou o telefone em alta voz.
— Professor Matsui, obrigada por me devolver a chamada.
— Pode ir direta ao assunto? Não tenho muito tempo.
Embora a qualidade da ligação internacional não fosse a melhor, Kat conseguia notar o tom de apreensão na voz do homem. Desviou o olhar para Painter, que lhe acenou para que continuasse.
Fingiu saber que não tinha conhecimento da presumível morte do professor.
— Consegui o seu nome através de um entomologista, aqui em Washington. O professor contactou-o há uns tempos, a fim de obter informações acerca de uma espécie invulgar de vespas.
Houve uma longa pausa no outro lado da linha. Kat conseguia ouvir murmúrios em fundo, sugerindo que ele estaria a consultar alguém antes de responder.
Trocou um olhar com Painter.
Aqui há gato.
— Correto — retorquiu Matsui. — Mas creio que sabemos que é demasiado tarde.
— Como assim?
— A Odokuro foi já libertada.
— A Odokuro?
— É o nome que escolhi para batizar esta espécie de Hymenoptera. Inspirei-me num demónio japonês, gashadokuro. Acredite em mim, o nome assenta como uma luva. Há doze meses que estudo esta vespa. O seu ciclo de vida é uma coisa inimaginável.
— Deixe-me só confirmar se ouvi bem. Está a dizer-me que estuda estes insetos há um ano? Onde? Em Quioto? — Kat lembrava-se de que essa era a morada que constava nos e-mails trocados entre o professor e o entomologista.
— Já não me encontro no Japão — disse ele.
— Onde está?
— A caminho do Havai, a bordo de um jato dos laboratórios Tanaka. Devemos aterrar dentro de uma hora.
— O que vai lá fazer?
— Estudar os efeitos da colonização. É a única forma de ter a certeza.
— Certeza? De quê? — Kat quase teve medo de fazer a pergunta.
— Se vocês vão ter de varrer aquelas ilhas da face da terra.
09h28 HST
Algures sobre o oceano Pacífico
Ken Matsui espreitou pela janela do HondaJet 420, um dos aviões particulares dos laboratórios Tanaka. Fez um compasso de espera, permitindo que a americana absorvesse o impacto do que acabara de lhe dizer. Os dois motores montados sobre as asas aceleravam a aeronave em direção ao destino imediato, Honolulu, a capital do Havai. Embora o avião fosse o mais veloz da sua classe, a distância do voo obrigara a uma breve escala de reabastecimento no atol de Midway. O tempo aí perdido deixara-lhe os nervos em franja, e dera consigo a andar de um lado para o outro ao longo da cabina.
Nunca deveria ter concordado em ficar calado.
Olhou para a figura esguia sentada no outro lado da coxia, Aiko Higashi, a mulher que dizia pertencer à Agência Nacional de Serviços Secretos do Japão. A ANSS monitorizava e investigava todas as ameaças ao território japonês, incluindo as que advinham de grupos radicais domésticos. Contudo, Ken suspeitava que havia algo mais acerca daquela mulher.
O modo como se apresentava e comportava sugeria que tivera treino militar. Usava os cabelos curtos, cortados a direito sobre a testa e pescoço. O fato azul-escuro da marinha encontrava-se tão bem engomado que a rigidez do tecido competia com a inflexibilidade dos lábios finos. Raramente lhe notara qualquer alteração de expressão ao longo dos meses em que andara colada a ele como uma sombra.
A voz de Kathryn Bryant fez-se ouvir finalmente no outro lado da linha. Ken também se interrogara se a mulher ao telefone seria apenas alguém que trabalhava para a DARPA. Sobretudo ao saber que ela tentara contactá-lo. Mostrara-se reticente em devolver-lhe a chamada, mas Aiko insistira para que o fizesse. Nesse momento, aliás, tentava ouvir a conversa com a americana, inclinando-se disfarçadamente no seu lugar.
— O que o leva a sugerir a possibilidade de uma resposta tão drástica da nossa parte? — quis saber Kat.
— Porque já testemunhei a devastação que estes insetos podem trazer.
— Mas onde? E como?
Ken desviou o olhar para Aiko, que lhe acenou com a cabeça. Ela já lhe tinha dito para abrir o jogo e confiar tudo o que sabia à mulher ao telefone.
Ken, por seu turno, continuava pouco certo em quem poderia ou não confiar. Os pais sempre lhe ensinaram a manter uma certa reserva em relação aos poderes instalados. Ambos haviam experienciado na pele a facilidade com que alguém podia ver a vida virada do avesso, ou mesmo destruída, pelo governo. O pai contara-lhe as histórias acercas das condições desumanas que vivera, quando criança, atrás das vedações de arame farpado dos antigos campos de concentração japoneses. O complexo onde estivera detido localizava-se nos vales bucólicos das montanhas de Sierra Nevada, não muito longe da pacata cidade de Independence, um nome que o pai considerava igualmente irónico e desolador. Da mesma forma, a mãe, alemã, também tivera a sua quota de más experiências durante a Segunda Guerra Mundial. Embora pouco falasse acerca desses tempos, ensinara-o a questionar sempre a autoridade e a defender os mais fracos e os oprimidos.
Mesmo assim, apesar da natureza desconfiada que lhe fora instilada nos genes, Ken sabia que aquela história precisava de ser partilhada.
Sobretudo agora.
— Aconteceu há oito semanas... — começou por dizer, aclarando a garganta.
Foi assim há tão pouco tempo?
Parecia-lhe que decorrera uma eternidade.
Visualizou o rosto sorridente do seu aluno de pós-graduação, Oscar Hoff. A recordação do tiroteio no Brasil ainda lhe ecoava na mente. Fechou os olhos, tentando afastar a dor e o terror vividos nessa viagem. Mesmo assim, a culpa apertou-lhe o estômago. Levou a mão à barriga, sentindo essa tensão.
— O que foi que aconteceu? — insistiu Kat.
Engoliu em seco, depois, devagar, contou a história do que acontecera na ilha da Queimada Grande, esse lugar amaldiçoado a que o primeiro-tenente Ramon Dias apelidara de «Ilha das Serpentes». Enquanto prosseguia com o relato, as palavras tornaram-se mais desesperadas, como que ainda alimentadas pelo pânico que sentira nesse dia. Descreveu os cadáveres — tanto os dos caçadores furtivos como os das centenas de serpentes —, assim como o consequente ataque de helicóptero.
— Incendiaram a ilha inteira, queimaram-na até ao leito rochoso, de forma que não sobrasse um único ser vivo. Mas a verdade é que escapei... e não vim de lá de mãos a abanar. Consegui trazer uma das serpentes mortas comigo. A coberto da noite, arranjei forma de alcançar o continente de barco, mais concretamente uma pequena aldeia no meio de nenhures. Uma vez lá, tive medo de que alguém descobrisse que continuava vivo.
— Sim, acho que tentariam terminar o serviço — disse Kat, constatando o óbvio.
De certa forma, a confirmação da americana aliviou-lhe a consciência. Sabia que boa parte da culpa que sentia tinha menos que ver com a morte de Oscar e mais com o silêncio a que se remetera depois disso. A pressão no estômago atenuou-se, e deixou cair o braço sobre as pernas.
Tentou explicar a lógica por detrás das suas ações desde então.
— Sabia que tinha de regressar com o espécime que recolhi na ilha, de forma a compreender o que acontecera. Foi por isso que pedi ajuda a um colega, alguém da minha confiança dentro da estrutura dos laboratórios Tanaka. Precisava do poder financeiro da empresa para sair rapidamente do Brasil e esconder-me em lugar seguro, antes que alguém soubesse que eu estava vivo.
— E a empresa conseguiu fornecer-lhe uma identidade falsa.
Voltou a desviar os olhos para Aiko, que tornou a acenar com a cabeça, provando uma vez mais que as duas mulheres eram algo mais do que diziam ser.
— Exato. Consegui chegar são e salvo a Quioto, onde me escondi durante meses num laboratório a estudar o meu espécime. O corpo da serpente encontrava-se minado de larvas, o estágio inicial do ciclo de vida das vespas. As larvas estavam a devorá-la por dentro.
Ken recordou a visão grotesca com que se deparara ao abrir o corpo da serpente. Uma torrente de larvas derramara-se sobre a mesa de observação do laboratório. No entanto, isso não fora sequer o pior de tudo.
— Permita-me desviar a conversa para o que aconteceu na ilha — interrompeu Kat. — Pelo que está a dizer, calculo que a localização remota constituísse um bom ponto de ensaio para quem está por detrás dos ataques no Havai, correto?
— Diria que sim, mas nunca pensei nisso nesses termos. Parti do princípio de que a ilha poderia albergar uma qualquer instalação governamental secreta, e que o ataque fora uma resposta de emergência a uma experiência que correra terrivelmente mal. Uma tentativa de encobrirem todos os indícios, por exemplo.
— E o professor apenas se encontrava lá por uma mera e infeliz coincidência.
— Foi o que pensei — admitiu Ken. — Na altura, encarei o sucedido como uma simples questão de estar no sítio errado à hora errada.
Pelo menos, tentei convencer-me de que foi assim.
— Mas agora não está assim tão certo.
Ken hesitou. A verdade é que duvidava cada vez mais dessa hipótese, o que o deixara de certa forma paranoico. Sobretudo quando se encontrava em solo estrangeiro. Sentindo-se encurralado, arriscara enviar um e-mail a um colega entomologista do Jardim Zoológico Nacional, no Instituto Smithsonian, que talvez o ajudasse a saber mais alguma coisa acerca daquela espécie de vespa. A iniciativa revelara-se infrutífera, mas tinha de tentar.
Kat prosseguiu.
— Disse que os laboratórios Tanaka financiam a sua investigação. Foram ele que o enviaram para o Brasil, para que pudesse recolher amostras do veneno das serpentes locais?
— Sim, foram — anuiu Ken, hesitante. Desviou o olhar para Aiko. Ela nem sequer pestanejou.
— Isso faz-me pensar se a sua empresa não descobriu um concorrente a trabalhar no local e enviou-o a si para averiguar o que se passava.
Era como se a americana pudesse ler-lhe a mente. Nunca ninguém dera voz aos pensamentos paranoicos que guardara para si, que talvez tivesse ido parar àquela ilha como um peão movido por interesses de espionagem industrial. No Japão, a realidade empresarial era um desporto sangrento, onde muitas jogadas eram executadas à margem da lei. Teriam os responsáveis dos laboratórios Tanaka ouvido rumores do que se passava na ilha da Queimada Grande?
Enviaram-me para a boca do lobo de propósito?
Era um pensamento aterrador.
Kat tinha algo mais a dizer sobre isso.
— Se estiver certa, significa que os espiões da sua empresa poderão tê-lo enviado com base em informações roubadas de um concorrente, provavelmente de uma outra farmacêutica sediada no Japão.
— Porquê no Japão?
— Por causa da escolha do alvo nos ataques de ontem.
Ken compreendeu por fim a lógica por detrás das palavras da americana.
Porque não pensei ni...?
Aiko acenou-lhe para que lhe passasse o telefone.
Hesitou um instante, mas acabou por fazer-lhe a vontade.
— Kon’nichiwa, capitã Bryant — disse a japonesa, inclinando-se sobre o telefone. — Fala Aiko. Aiko Higashi. Peço desculpa de não ter anunciado a minha presença junto do professor Matsui, mas estava a ver se vocês chegavam à mesma conclusão que nós.
— Olá, Aiko — retorquiu a americana, o tom de voz aparentemente imperturbado por saber da presença de um oficial dos serviços secretos japoneses a bordo do avião. — Não foi difícil, sobretudo porque pensei nisso logo no momento dos ataques. — O que disse a seguir deixou Ken de queixo caído. — Podemos estar diante de um novo Pearl Harbor.
Aiko anuiu com a cabeça.
— Um Pearl Harbor biológico.
Ken desviou o olhar para a janela e observou a corrente de ilhas que se erguia adiante no oceano.
Se estiverem certas, isso significa que vou a caminho de uma zona de guerra?
15h55 EDT
Washington, D.C.
Kat conduziu o diretor de volta para o centro de comunicações. Um minuto antes, desligara a chamada via satélite, cujo término fora apressado assim que o avião iniciou a aproximação final às ilhas. Kat aconselhara que o piloto fosse instruído para alterar o plano de voo de Honolulu para o aeroporto de Kahului, na ilha de Maui. A partir daí, Ken e Aiko seriam transportados para Hana, onde se juntariam a Gray, Seichan e Kowalski, para avaliarem a situação no terreno.
A curta duração da chamada não lhe permitira saber mais acerca dos pormenores concretos da ameaça, mas preparara um plano de ação. Virou-se para Painter, a fim de o inteirar dos passos que pretendia seguir.
— A Aiko disse que nos vai enviar as conclusões do professor Matsui assim que aterrarem. Se me permitir, gostaria de consultar o doutor Bennet, o entomologista do Jardim Zoológico Nacional, para saber a sua opinião.
Painter anuiu com a cabeça.
— Calculo que o conhecimento dele possa ajudar. — Tocou no braço dela. — No entanto, até que ponto podemos confiar nessa mulher, Aiko Higashi?
Kat suspirou.
— Bom, além das ocasiões em que lidei com ela profissionalmente, não posso afirmar que a conheça. Ambas ocupámos as nossas atuais posições nos serviços secretos pela mesma altura. Quando eu estava na Marinha, ela trabalhava para o Ministério da Justiça japonês. Depois foi recrutada para a ANSS. Há cerca de dois anos, porém, desapareceu do radar, apenas para ressurgir de novo sob a égide da mesma agência.
— E que ilações podemos retirar disso?
— Meses antes de desaparecer, dois prisioneiros japoneses foram assassinados por militantes islâmicos na Síria, o que conduziu a uma enorme pressão dos militares sobre o primeiro-ministro. A constituição japonesa, escrita depois da Segunda Guerra Mundial, estabelece limites à prática de atos de espionagem em solo estrangeiro. Mas são muitas as vozes no poder que estão a tentar alterar esse estado de coisas, o que permitirá ao Japão centralizar e expandir as suas operações no âmbito dos serviços secretos.
— O que quer dizer que essa mulher pode já fazer parte de um qualquer novo braço dos serviços de inteligência japoneses.
— Tenho as minhas suspeitas. Conhecendo o modo como as agências japonesas são fragmentadas, seriam necessários anos até que conseguissem recrutar e treinar novos responsáveis e operacionais de campo para missões no estrangeiro.
— Portanto, essas suspeitas vão no sentido de que os japoneses podem ter iniciado esse processo em segredo. Seria uma forma de contornarem a inevitável morosidade dos corredores do poder.
Kat abanou os ombros.
— É o que eu faria. Além disso, os japoneses são notoriamente discretos nestas coisas, mais do que os britânicos até, que só reconheceram a existência do MI6 em 1994.
— Nesse caso, e partindo do princípio de que Aiko Higashi faz parte de uma nova agência, o que é que isso nos diz acerca da sua boa-fé?
Kat fez um gesto em direção à porta.
— Nesse aspeto, julgo que não será diferente de mim. Em última instância, colocará sempre os interesses do seu país em primeiro lugar.
Painter acenou com a cabeça.
— Convém que nunca nos esqueçamos disso.
Kat fez um compasso de espera junto à porta; porém, antes que o diretor abandonasse a sala, o técnico de comunicações olhou para ela e ergueu um telefone.
— O que foi agora? — perguntou Kat.
— Outra chamada. Parece ser urgente.
Kat consultou o relógio. Aiko ainda não deveria ter aterrado.
— A chamada é de Simon Wright — informou o técnico.
— O curador do castelo? — disse Painter, surpreendido.
Kat franziu o sobrolho. Aquilo era invulgar. Simon Wright, conhecido como o «Guardião do Castelo», era o único membro do museu que sabia da existência das instalações da Sigma.
— O que é que ele quer? — perguntou Kat.
O técnico desviou o olhar para Painter.
— Pede que o diretor vá ao encontro dele, na sala de reuniões do conselho de administração. Diz que está a ligar a pedido da bibliotecária do Congresso, a doutora Elena Delgado.
Cada vez mais confuso, Painter atravessou a divisão e pegou no telefone.
— O que se passa, Simon?
Kat colou-se ao diretor e ouviu a resposta do curador.
— A doutora Delgado diz que tem informações importantes acerca do que aconteceu no Havai, algo que remonta ao tempo da fundação do castelo.
— Quais informações? — disse Painter, completamente atónito. — De que raio está ela a falar?
— Não faço ideia. Disse-me apenas que tem conhecimento do que foi largado sobre o Havai. E que precisa de vos transmitir um aviso do passado.
— Um aviso? De quem?
— De Alexander Graham Bell.
11
7 de maio, 11h05 HST
Hana, ilha de Maui
Do parque de estacionamento do centro comunitário, Gray observou o pequeno helicóptero a aterrar metros à frente, no campo de futebol. Outro aparelho, esse de evacuação médica, ocupava o centro do diamante do estádio de basebol, onde a totalidade do terreno de jogo fora convertida num hospital de campanha. As lonas das várias tendas ondulavam ao sabor da brisa matinal.
Por toda a parte, os veículos de emergência alinhavam-se ao longo das ruas. A maioria chegara durante a noite, depois de atravessar a complicada autoestrada de Hana que serpenteava ao longo da irregular linha costeira da ilha. Ordens eram berradas continuamente através de megafones, adicionando confusão ao caos instalado.
Os mortos haviam sido removidos por essa altura, mas centenas de feridos continuavam a ser assistidos pelas equipas médicas, que despachavam os casos mais graves para os vários hospitais espalhados pelo Maui, ou mesmo para outras ilhas, quando tal se justificava. Porém, com as cidades de Honolulu e Hilo a viverem situações idênticas, as unidades hospitalares de todo o arquipélago aproximavam-se rapidamente do ponto de rutura.
No campo de futebol, duas figuras saíram do helicóptero. Gray ergueu um braço e acenou-lhes. Os dois avistaram-no, baixaram as cabeças por causa das pás do rotor e dirigiram-se na sua direção.
Gray reconhecera-os pela descrição do diretor. O professor Ken Matsui abraçava uma pasta de couro contra o peito. Aparentava trinta e poucos anos, embora o tom bronzeado e as rugas nos cantos dos olhos sugerissem que contava já com uma larga experiência de trabalho no terreno. Parecia também pronto para meter mãos à obra, apresentando-se com umas calças caqui, botas e um colete multiusos por cima de uma camisola de mangas compridas.
Vinha acompanhado de uma agente dos serviços secretos japoneses, Aiko Higashi, uma mulher esguia, vestida a rigor com um uniforme azul-escuro. Os olhos dela varreram a agitação ao redor, e Gray não duvidava de que ela absorvera todos os pormenores com aquele único olhar.
Gray fora também informado da razão de os dois se encontrarem ali.
Vinham avaliar o nível da ameaça imposta pela colonização do enxame.
O trabalho de Gray era certificar-se de que completavam a tarefa o mais rápido possível, o que implicava retirá-los primeiro daquela confusão e contornar toda a burocracia que pudesse comprometer a celeridade e o êxito da missão.
Assim que o professor chegou junto de si, apertaram as mãos, embora o olhar dele nunca tivesse largado um dos feridos que estava a ser transportado numa maca para o helicóptero de evacuação.
— O que estão a fazer? Toda a cidade devia estar já sob medidas de quarentena.
— É demasiado tarde para isso, professor — disse Aiko, juntando-se aos dois. — Uma quarentena local seria um desperdício de recursos, sobretudo com mais ilhas afetadas. Se o cenário for tão grave como pensa, os serviços de emergência federais vão precisar de todos os meios ao dispor, de mais até.
Gray franziu o sobrolho.
— O que quer dizer com isso?
— Que todo o arquipélago terá de ser isolado. Nessa altura, ninguém poderá abandonar estas ilhas.
Gray refletiu sobre o que acabara de ouvir enquanto conduzia o par para o jipe. Painter informara-o da convicção do professor, de que a única solução para conter aquela ameaça passava pelo uso de armas nucleares.
E se ninguém for autorizado a abandonar estas ilhas...
— De quanto tempo vai precisar até concluir a sua avaliação? — perguntou, virando-se para o professor assim que alcançaram o jipe.
— Menos de um dia. No entanto, confirmando-se os meus piores receios, não teremos mais de três até que sejamos forçados a encarar o inevitável. — O professor deitou-lhe um olhar duro, assegurando-se de que as suas palavras eram escutadas. — Acredite em mim. Se as coisas chegarem a esse ponto, estas pessoas vão rezar para que larguemos uma dessas bombas rapidamente.
Um dos paramédicos que passava perto ouviu o final da conversa e lançou-lhes um olhar inquisitivo. Não querendo criar um episódio de pânico generalizado, Gray apressou-se a enfiar toda a gente no jipe.
Palu encontrava-se sentado ao volante. Gray recrutara o bombeiro havaiano, sabendo que iria necessitar de alguém que conhecesse a ilha como a palma da mão. Após lhe explicar a seriedade da situação, Palu concordara de imediato em juntar-se à equipa. O calmeirão tinha a mulher e dois filhos na cidade.
Com toda a gente a bordo, Palu ligou o motor e arrancou. Conduziu-os por caminhos de terra, evitando assim a autoestrada, em direção à cabana. A dada altura, abandonou o trilho e cortou a direito por uma plantação de cocos, que era propriedade de uma estufa local.
O professor Matsui agarrou-se à pega da porta enquanto saltava no banco traseiro, mas os olhos nunca abandonaram a paisagem verdejante de longos prados e vastas extensões de floresta que se erguiam até ao cimo do monte Haleakala, quase a tocar nas nuvens.
— Meu Deus, espero que esteja errado — murmurou, entre dentes.
Como todos nós.
Chegaram por fim à cabana. Palu estacionou o jipe frente ao alpendre. Kowalski encontrava-se sentado numa cadeira com as pernas estendidas e as botas apoiadas no corrimão. Segurava um telefone satélite contra a orelha. Acenou com a cabeça para Gray, mas não deixou que a chegada do grupo perturbasse a conversa que estava a ter.
— Paguei um bom dinheiro por essa coisa! — disse. — Por isso, explica a esse senhor que a tenda junto à piscina é tua. Se continuar a chatear-te, vou até aí e enfio-lhe um dos chapéus de praia num sítio onde não precisa de se preocupar com o sol. Fui claro?
A namorada de Kowalski, Maria, oferecera-se para permanecer por perto, em Wailea. A formação em genética poderia revelar-se útil no decurso daquela crise. Parecera uma precaução prudente na altura, porém, agora que conhecia a verdadeira dimensão do problema, Gray sentia que podia estar a arriscar a vida da geneticista sem necessidade.
Seichan veio recebê-los à porta. Semicerrou os olhos inchados e estudou o par de estranhos. Focou-se sobretudo em Aiko Higashi, nitidamente a tirar-lhe as medidas como uma adversária potencial. Embora tivesse recuperado do ataque, tinha o corpo coberto de nódoas negras, arranhões e cortes.
Gray subiu os degraus ao encontro dela.
— Temos comida e bebidas lá dentro — disse para os outros. — Podemos conversar enquanto comem qualquer coisa. Quero meter-me à estrada dentro de uma hora.
O professor Matsui anuiu com a cabeça.
— Sim, quanto mais cedo, melhor.
Com toda a gente de acordo, Gray fez as devidas apresentações.
O professor apertou a mão de Seichan.
— Pode chamar-me Ken. Parece-me mais do que apropriado, tendo em conta o que vamos enfrentar juntos.
Olhou em volta e estendeu o mesmo convite aos restantes, mas o olhar deteve-se de novo em Seichan, que costumava ter esse efeito nos homens... e nalgumas mulheres, diga-se de passagem.
De forma a não dar ideias ao professor, Gray colocou o braço ao redor da cintura de Seichan.
Podia dizer-se que era para bem dele.
Ela comia-te vivo.
Conduziu o grupo para a estreita mesa de jantar, feita de madeira de acácia. Uma ventoinha de vime girava vagarosamente no teto, agitando o ar quente. Enquanto os outros se sentavam, Gray permaneceu de pé. Depois, inclinando-se sobre as costas de uma cadeira, fitou o professor e perguntou-lhe:
— Bom, estamos a lidar com o quê, ao certo?
11h28
Ken abriu a pasta de couro e retirou um computador portátil e alguns dossiês. Folheou uns tantos e alinhou-os na mesa, procurando ganhar tempo enquanto ordenava as ideias. Sentia os olhares inquisitivos de todos aqueles estranhos, o peso da responsabilidade sobre os ombros.
Por onde começar?
Decidiu-se por um dossiê com fotografias e leu a etiqueta na lombada.
— Chamei-lhe Odokuro horribilis. Embora não saiba tudo sobre esta espécie de vespa, aquilo que descobri é, garanto-vos, verdadeiramente horrível.
Seichan agitou-se ligeiramente na cadeira.
— Conheço esse nome, Odokuro — disse. A voz soava rouca em consequência do que sofrera na noite anterior. — É um monstro da mitologia japonesa.
O professor anuiu com a cabeça.
— Gashadokuro é um espírito antigo, nascido nos campos de batalha. Um esqueleto gigante, criado a partir dos ossos desarticulados dos que morreram em combate. Quando aparece, a sua presença é anunciada pelo chocalhar dos ossos.
Ken desviou os olhos para o dossiê, recordando contra vontade o que vivera na ilha brasileira. Visualizou aquela névoa negra a erguer-se por entre a floresta tropical. Lembrava-se do bater oco que acompanhara a aparição do enxame, e de pensar que o som se assemelhava ao chocalhar de ossos. Contudo, essa não era a única razão de ter escolhido aquele nome.
— Assim que o gashadokuro nos sente o cheiro, não há nada que o impeça de nos apanhar. Feito de ossos soltos, pode desmembrar-se em formas mais pequenas para atravessar qualquer obstáculo, reassumindo depois a sua conformação.
— Como um enxame — murmurou Gray.
Ken anuiu.
— Quando nos apanha, não há nada que possamos fazer, nenhum modo de o deter. Devora-nos a pele, carne e órgãos, para no final juntar os nossos ossos aos seus.
O calmeirão Kowalski recostou-se na cadeira.
— Algo me diz que não vou gostar do resto da história — disse, com voz grave.
Não, não vai.
Gray interveio.
— Bom, chega de histórias de monstros. Fale-nos das vespas.
— Certo. — Ken aclarou a garganta. — Primeiro que tudo, esta espécie não foi criada em laboratório. Os exames de ADN não revelam indícios de manipulação genética, o que nos sugere que estamos a falar de um predador natural, algo antigo, porventura pré-histórico. Já foram encontradas vespas em fósseis do período Jurássico, por exemplo. Desde então, a espécie diversificou-se e, nos dias de hoje, existem mais de trinta mil vespas diferentes, o que constitui uma boa prova da sua capacidade de adaptação. São capazes de adotar todo o tipo de estratégias de sobrevivência, incorporando até algumas das características de outros insetos no seu arsenal.
— E esta vespa em particular? — insistiu Gray.
— Nunca observei nenhuma tão versátil e engenhosa. Um exemplo: a maioria das espécies pode ser classificada como criaturas sociais ou caçadores solitários. — Ken notou as expressões confusas e tentou explicar-se melhor. — As vespas sociais, como a vespa-comum, constroem ninhos, têm uma rainha que coloca ovos e cada elemento vive para diferentes funções, como a localização de fontes de alimento, a procriação ou a proteção da colónia. O veneno largado pelo ferrão serve sobretudo de mecanismo de defesa, uma forma de induzir dor no adversário, de o avisar para se manter à distância.
O havaiano Palu esfregou a barriga.
— Sim, essa mensagem foi-me transmitida com bastante clareza.
— Exato. E se ignorarmos esse aviso demasiado tempo, o mais certo é sermos presenteados com centenas de ferroadelas adicionais, ao ponto de a quantidade de veneno injetada ser o suficiente para causar a morte.
— Tal como testemunhámos ontem à noite — sublinhou Gray.
— Mesmo assim, as vespas sociais são criaturas relativamente dóceis, quando comparadas com as espécies solitárias. — Ken deu consigo a fitar Seichan, como que pressentindo que ela teria uma boa ideia do que estava a falar. — Estes caçadores solitários desenvolveram uma estratégia de sobrevivência única e mortífera. Não vivem em ninhos nem se juntam em enxames como as vespas sociais. Em vez disso, estes caçadores, todos fêmeas, usam os ferrões para duas funções diferentes; sendo a mais importante aquela para a qual o ferrão foi originalmente concebido.
— E que função é essa? — perguntou Seichan.
Ken recuou um pouco no raciocínio, para que não subsistissem dúvidas.
— O ferrão de todas as Hymenoptera, desde abelhas, vespões ou vespas, servia originalmente como ovipositor, uma seringa biológica para o depósito de ovos através de tecidos orgânicos. Com o passar do tempo, este dispositivo evoluiu e converteu-se numa arma.
— Como? — perguntou Palu, ainda a esfregar a barriga.
— Com as rainhas a assumirem sozinhas a tarefa de gerarem a descendência de cada colónia, as outras fêmeas deixaram de ter utilidade para os sacos de ovos na base dos respetivos ferrões e transformaram-nos para servirem um novo propósito: infligir danos.
Gray anuiu com a cabeça.
— Substituindo os ovos por veneno.
— Precisamente. É por isso que não precisamos de ter receio de abelhas ou de vespas machos. Como não possuem saco de ovos, também não têm ferrões.
Kowalski encolheu os ombros.
— Se uma vespa pousa em mim, não perco tempo a espreitar-lhe entre as pernas para perceber se é macho ou fêmea. Esborracho-a e acabou-se a conversa.
Gray acenou para Ken.
— Voltemos às vespas solitárias, professor. Não tendo rainhas, calculo que as fêmeas continuem a usar os ferrões para depositarem ovos, correto?
— Exato. Como lhes disse, os ferrões servem dois propósitos. Para depositarem os ovos, e também subjugarem os hospedeiros, injetando-lhes uma dose de veneno. A toxina é raras vezes dolorosa. Na verdade, pode mesmo desencadear uma sensação de euforia ou encantamento. Algumas lagartas ficam de tal modo enfeitiçadas que permitem que as vespas as arrastem para um buraco e as enterrem vivas. No entanto, estes efeitos variam consoante a espécie. Há venenos que paralisam o hospedeiro; outros provocam um incompreensível efeito neurológico, onde o hospedeiro assume o papel de guardião das larvas invasoras, chegando até a lutar para as preservar dentro de si. Seja como for, todos os venenos servem um propósito principal.
— Qual? — perguntou Seichan.
— Manter o hospedeiro vivo. — Ken olhou em redor. Todos pareciam compreender as implicações do que acabara de dizer. Mesmo assim, certificou-se de que não restariam dúvidas. — Quando os ovos eclodem, as larvas têm uma refeição pronta à disposição.
Olhares nauseados espalharam-se ao redor da mesa.
É importante que saibam a verdade, pensou, visualizando a massa de larvas brancas a derramar-se do interior da serpente dissecada.
— E as vespas que soltaram nestas ilhas? — perguntou Gray. — O facto de se juntarem em enxames diz-nos que se trata de uma espécie social, certo?
Ken abanou a cabeça.
— Não. Estamos a lidar com uma espécie que é simultaneamente social e solitária.
— Como assim? Isso é possível?
— Como lhes disse, esta é uma espécie antiga, cuja origem porventura nos remete para um tempo em que as vespas ainda não tinham evoluído para essas duas categorias. Em vez disso, estes insetos partilham as características encontradas numas e noutras. — Fez uma pausa, permitindo que a ideia assentasse ao redor da mesa. — Os danos causados nos ataques de ontem são apenas uma amostra do que conseguem fazer. O pior está ainda por vir.
Gray endireitou-se.
— O que quer dizer com isso?
— O facto de se juntarem em enxames serve um único objetivo.
— Que é?
— Procurar um local adequado para o estabelecimento de um lek.
Kowalski franziu o sobrolho.
— Que raio é um lek?
— Um território de acasalamento, e algo que não podemos permitir que aconteça, custe o que custar.
— Porquê? — quis saber Gray.
Ken fitou o grupo.
— Nessa altura, estas ilhas serão transformadas num autêntico inferno na terra.
PROCRIADOR
Mais pequeno, quase cego e surdo, utilizava os dois olhos negros, cada um subdividido em não mais do que uma dúzia de facetas, para procurar pistas visuais. O mundo, porém, permanecia um borrão descolorido de sombras cinzentas. Só quando se encontrava na proximidade de um objeto é que conseguia discernir algum pormenor.
Por conseguinte, a cabeça era dominada por duas antenas mais compridas que o corpo, revestidas nas pontas por filamentos sensoriais. Enquanto voava, socorria-se dessas ferramentas para construir e definir o mundo de sombras e odores ao seu redor.
Focou-se numa pétala, atraído pela promessa do doce néctar. As antenas procuraram a fonte, puxando-lhe a cabeça para o centro. Como não possuía as mandíbulas fortes dos outros, apenas estendeu a língua e lambeu a riqueza guardada no coração da flor.
Consumiu o seu quinhão, satisfeito. Mal conseguia ouvir os zumbidos dos outros, mas sabia que o enxame ocupara já parte da floresta. Esvaziada a flor, recuou até à ponta da pétala e limpou o pólen agarrado às patas e asas.
Tinha de estar pronto para o que vinha a seguir.
Então, sentiu a presença que aguardava — ténue, de início, depois inegável. Um rasto de feromonas que aprendera a detetar com os filamentos sensoriais. Guiado pelas antenas, rodou a cabeça nessa direção e levantou voo, incapaz de resistir ao chamamento. A panóplia de químicos incendiava-lhe os minúsculos gânglios na cabeça, e acelerou pelo ar, com as asas a bater furiosamente. O esforço a que se propunha era o suficiente para consumir toda a reserva de energia proporcionada pelo néctar, mas não importava. Nada era mais importante do que a necessidade de seguir aquele rasto.
O odor dominava-o por completo, preenchendo o seu mundo vago e insípido. Logo a seguir, uma imagem começou a formar-se à distância.
Acelerou com os restantes iguais a si, tentando ser o primeiro a reclamar o prémio. O aroma fornecia-lhe tanta energia quanto o açúcar no estômago. Todos lutavam pelo mesmo, e colidiam e ressaltavam uns nos outros, enquanto avançam. Os músculos no tórax contraíram-se involuntariamente e, mais adiante, o cheiro converteu-se numa silhueta nebulosa.
Então, já mais perto, os pequenos olhos deram por fim forma e substância ao alvo.
Cem vezes maior, a fêmea pairava diante de si, com as asas a baterem freneticamente e ainda a exsudar aquele sinal de recetividade, que era nada mais do que uma exigência evolutiva. Ele e os outros mergulharam através da nuvem de odor, cada qual aproximando-se de direções diferentes e atropelando-se uns aos outros enquanto tentavam agarrar-se ao corpo dela.
Aterrou no meio de toda essa confusão, cravando de imediato as patas traseiras, dois ganchos farpados, no abdómen da fêmea. Alguns dos outros caíram diretamente em cima dele, e uns até lhe partiram as asas. Mesmo assim, manteve-se firme no lugar, enfiando as patas mais fundo nas pregas do abdómen.
A fêmea, por sua vez, tentava livrar-se de todos, sacudindo-se e contorcendo-se, as pernas pontapeando e raspando a superfície rija do corpo. O peso e o volume combinado de todos os procriadores depressa comprometeram a capacidade de a fêmea se manter no ar, que mergulhou numa espiral descontrolada, em direção ao chão macio.
Nenhum se deu por vencido e continuaram a lutar pela melhor posição. As feromonas ainda se escapavam dos flancos dela, erguendo-se como colunas de vapor dos minúsculos buracos que cobriam o abdómen. Intoxicado pelo cheiro, ajustou a posição para alcançar o orifício mais próximo.
Uma vez no sítio certo, a descarga de hormonas forçou-o a contrair o pequeno corpo e estender o órgão reprodutor, que introduziu numa dessas aberturas, a fim de alcançar os incontáveis ovidutos. Firmemente agarrado, esvaziou todo o seu ser no interior dela, até se tornar pouco mais do que uma carapaça oca.
Sem mais nada para oferecer, recolheu as poderosas patas e soltou-se. A violência do gesto fez com que o órgão reprodutor se desprendesse do próprio corpo, deixando-o no orifício, como uma espécie de rolha.
Caiu no chão, quebrado e sem asas.
Os outros fizeram o mesmo, soltando-se, esgotados, do enorme corpo da fêmea.
Ainda assim, apesar de vazio, o procriador tinha mais um dever a cumprir.
Rompendo os limites da sua fraca e nebulosa visão, uma sombra aproximou-se, tornando-se mais clara aos seus olhos.
Reconheceu de imediato a forma diante de si.
Um par de mandíbulas.
Sabia bem o que ainda devia à fêmea.
Ela tinha fome.
12
7 de maio, 11h49 HST
Hana, ilha de Maui
Gray inclinou-se sobre a mesa, enquanto o professor retirava um conjunto de fotografias do dossiê identificado com a palavra ODOKURO e as espalhava sobre o tampo de madeira envelhecida. Cada imagem exibia um tipo de vespa diferente, algumas mais pequenas, outras enormes.
À semelhança dos restantes, Gray esforçava-se por compreender o que estava a ver.
— Pertencem à mesma espécie — explicou Ken. — O nível de diferenciação nestes espécimes adultos é fascinante. As diferentes anatomias ditam a respetiva função, já que cada um desempenha um papel específico no enxame.
Momentos antes, Ken elucidara o grupo acerca de como conseguira estudar aquelas vespas, de como recolhera as larvas encontradas no corpo da serpente brasileira e as criara no seu laboratório em Quioto. O processo permitira-lhe observar os diferentes estágios de crescimento daqueles insetos, até se tornarem os adultos representados naquelas imagens.
Ken empurrou uma das fotografias. Mostrava uma pequena vespa com longas antenas e o corpo coberto de pelos.
— Vejam o exemplo deste batedor. A anatomia parece servir o único propósito de recolher e transmitir dados sensoriais para o enxame. Calculo que sejam os olhos do grupo, enquanto avaliam as potencialidades de um novo território.
Gray estudou a imagem.
— Acho que vi uma série destas mortas na água, enquanto eu e a Seichan fugíamos da praia.
— A sério? — disse Ken, esfregando o queixo. — Se calhar é porque teriam já cumprido a sua missão e pura e simplesmente morreram. Muito interessante.
Para si, talvez.
Fosse como fosse, a verdade é que a surpresa do professor constituía um bom indicador do pouco que sabiam acerca daquele inimigo. Ken conseguira progressos significativos em apenas dois meses de estudo, mas havia ainda muito por descobrir, sobretudo quando toda a investigação fora conduzida em ambiente laboratorial, não no terreno. No entanto, tendo em conta o que acontecera na ilha brasileira, talvez o laboratório tivesse sido a escolha mais inteligente.
Ken apontou para outra fotografia. Mostrava uma vespa maior, espetada com um alfinete num quadro. Para dar uma ideia do tamanho, o professor incluíra uma régua na imagem. O corpo preto e vermelho media mais de sete centímetros de comprimento.
— Sei que conhece bem esta — disse Ken.
Gray contraiu o rosto e acenou com a cabeça.
— O veneno no ferrão desta fêmea estéril contém uma panóplia de toxinas. Infelizmente, não tive tempo de identificar todos os componentes. De qualquer forma, o propósito deste espécime parece-me óbvio.
Gray conseguia adivinhar qual seria.
— Abrir o caminho para o enxame.
— E também defender a colónia, depois de instalada.
Gray franziu o sobrolho.
— Avisou-nos acerca disso, de que o próximo passo do enxame será o estabelecimento de um território de acasalamento.
— Sim, e é bom que entendam o que isso representa — frisou Ken, enquanto procurava por entre as fotografias. — As duas primeiras imagens ilustram o que vos disse antes, de como esta espécie exibe as mesmas características de todas as vespas sociais. Comprovam o típico comportamento observado em enxames, com os vários elementos a desempenharem diferentes funções. Alguns são desenhados para serem batedores, outros para combaterem. Porém, existem ainda aqueles a que chamo coletores e jardineiros. Tudo funções típicas da diferenciação de deveres que esperamos encontrar num enxame.
Ken encontrou finalmente as duas imagens que procurava e empurrou-as na direção de Gray.
— Porém, este par é diferente. Estes dois espécimes revelam que, em vez de uma rainha, a procriação da colónia é assegurada por um coletivo de vespas solitárias. No momento em que o território de acasalamento é estabelecido, o processo de procriação é imediatamente iniciado.
Gray observou as duas imagens. Uma exibia uma ampliação de uma vespa minúscula, pouco maior que uma formiga.
— Esse é o macho — apontou Ken. — A fêmea, bem maior que ele, está na outra fotografia.
Kowalski soltou um assobio por entre os dentes.
— É como olhar para um barco a remos ao lado de um porta-aviões.
Era uma boa comparação. Aquelas fêmeas eram ainda maiores que as vespas dos ataques da noite anterior, medindo uns estonteantes vinte e cinco centímetros.
Felizmente, nenhum de nós foi mordido por uma coisa destas.
As palavras seguintes do professor reforçaram esse sentimento.
— Esta monstruosidade é uma autêntica fábrica de ovos. Nunca vi nada parecido. Consegue acasalar com centenas de machos em simultâneo, de forma a recolher esperma suficiente para fecundar cada um desses ovos. Terminado o ato, come os machos.
— Come-os? — disse Kowalski, claramente impressionado. — Lembrem-me para nunca mais me virar para o outro lado, depois do sexo.
Palu acenou com a cabeça.
— Sim, nunca se sabe o que nos pode acontecer, irmão. Nunca se sabe...
O professor ignorou o par de brincalhões. A expressão no seu rosto era de pura curiosidade científica, não de repulsa.
— Esta espécie não desperdiça recursos à toa — disse. Apontou para a parte posterior da fêmea. — Observem o tamanho do ferrão. Tem quase dois centímetros. Os ovos estão dispostos numa espécie de sistema de tapetes rolantes no interior do abdómen. Assim que encontra um hospedeiro, utiliza esta autêntica agulha para injetar milhares de ovos de uma assentada. Reparem também na grossura das patas traseiras, extremamente poderosas. Ela consegue estalá-las à semelhança do que fazemos com os dedos, provocando um som idêntico. Quando estão em grupo, o som criado lembra um chocalhar sinistro, que se consegue ouvir à distância. A intensidade é semelhante à das cigarras.
— E porque fazem isso? — quis saber Seichan.
— Estou convencido de que é uma espécie de sistema de sonar.
Seichan estreitou os olhos doridos.
— Sonar?
— As vespas modernas também o fazem. Utilizam o sonar para determinar a presença de larvas num potencial hospedeiro. É uma forma de se certificarem se um alvo foi ou não parasitado por outra fêmea.
— Portanto, é como se fossem bater à porta para verem se está alguém em casa — disse Gray.
O olhar do professor pareceu momentaneamente distante.
— É um som perturbador... o anúncio do princípio do fim.
— Como assim? — perguntou Seichan.
— Porque ainda não lhes contei o pior. Nenhum de vocês colocou a pergunta mais óbvia acerca deste organismo pré-histórico.
Seichan franziu o sobrolho.
— Qual pergunta?
Gray conseguia adivinhar e antecipou-se ao professor.
— Se a espécie é tão antiga, de onde surgiu assim de repente? Como é possível que tenha sobrevivido todo este tempo?
Infelizmente, Ken sabia a resposta a essa pergunta.
— Porque estas vespas não morrem.
11h58
E eu quase não dava por isso...
Ken tinha consciência da sorte que tivera em tropeçar nesse pormenor do ciclo de vida dessa espécie. Caso contrário, estariam já condenados. Ninguém saberia da verdadeira ameaça representada pela colonização das vespas. Precisava de passar a mensagem às autoridades locais... para que percebessem a extensão do perigo, e aquele grupo ligado à DARPA era um bom ponto de partida para o fazer.
Deu alguns passos ao longo da extensão da mesa, tentando sacudir a ansiedade.
— Se bem se lembram, já vos falei acerca da espantosa evolução das vespas desde a primeira aparição na terra, ainda no período Jurássico, de como as várias espécies desenvolveram hábeis estratégias de sobrevivência, o que lhes permitiu conquistar um espaço indisputável no meio ambiente. Algumas colocam os ovos num único hospedeiro específico, enquanto outras, mais generalistas, escolhem qualquer organismo que esteja à mão. Muitas vespas modernas conseguem até multiplicar-se sem acasalarem. Na verdade, algumas espécies são inteiramente constituídas de fêmeas.
— Não me parece mal — comentou Seichan.
— E estas? — perguntou Gray.
— A Odokuro tem várias estratégias para se reproduzir. À semelhança das vespas modernas, cada ovo produz várias larvas, todas elas pluripotentes, o que significa que se podem transformar em qualquer um dos insetos adultos que mostrei. — Passou a mão sobre as fotografias espalhadas. — Ainda não descobri quais são os sinais ambientais que levam uma larva a assumir uma forma em vez de outra, mas sei que este é um método eficaz no que toca à multiplicação rápida do número de indivíduos do enxame. A transformação do ovo à fase adulta demora apenas duas semanas, e é provável que se reproduzam continuamente, em vez de se limitarem a uma época específica de acasalamento. Calculo que um enxame consiga crescer exponencialmente, uma vez que se encontra apenas condicionado pela quantidade de comida e pelo número de hospedeiros disponíveis.
Ken tentou enfatizar a importância desse pormenor.
— Por norma, o tamanho de uma colónia é limitado à capacidade reprodutiva da rainha. Quando o ambiente se torna hostil, como durante o inverno, por exemplo, a colónia inteira morre, com exceção da rainha. De forma a escapar ao frio, enterra-se no solo e hiberna, para depois emergir na primavera, recheada de ovos, pronta para estabelecer uma nova colónia.
A expressão de Gray tornou-se sombria.
— Mas não é esse o caso com estas vespas.
Ken anuiu com a cabeça.
— Sem nada que as detenham, continuarão a multiplicar-se.
— Compreendo. Só não sei porque disse que temos três dias para impedir que isso aconteça. Se demoram duas semanas para atingirem a idade adulta, qual a razão desse prazo tão curto?
Kowalski fez uma careta.
— E também disse que estas coisas são imortais. Eu esborrachei uma série delas ontem à noite... pareceram-me bem mortas.
— Posso responder a essas duas perguntas da mesma maneira — disse Ken. — É o outro modo como o enxame assegura a sobrevivência. À semelhança das espécies constituídas exclusivamente por fêmeas, as Odokuro conseguem reproduzir-se de forma assexual. É um processo que mantêm continuamente durante a fase larval, sobretudo quando atingem o terceiro estágio de desenvolvimento.
— O qual ocorre por volta do terceiro dia — disse Gray.
— Sim. Um pequeno grande pormenor que quase me escapou. Deixem-me explicar melhor. Assim que são postos, os ovos eclodem rapidamente, libertando as larvas iniciais. Famintas, essas larvas passam as primeiras horas de vida a comer até atingirem o segundo estágio, o que não demora mais de um dia. O processo repete-se até ao terceiro estágio, e é então que acontece algo singular. Por essa altura, as larvas ainda são suficientemente pequenas para perfurarem os ossos do hospedeiro e alojarem-se na medula óssea.
Kowalski sacudiu um arrepio na espinha.
— Eu sabia que não ia gostar de ouvir esta história.
— Precisamos de ter em conta que todas as vespas são exímias em usar os vários recursos dos hospedeiros para se esconderem. Por vezes, isso permite que um hospedeiro nem sequer se aperceba de que se encontra infestado, até ser tarde demais.
— O que acontece quando as larvas se instalam nos ossos? — perguntou Gray.
— De início, pensei que isso apenas serviria para as larvas se alimentarem da medula óssea, rica em nutrientes. Porém, quando examinei os tecidos infestados ao microscópio, encontrei o que pareciam ser detritos deixados pelas larvas. Convenci-me de que estaria a olhar para os dejetos destes pequenos seres, mas as partículas eram demasiado regulares e abundantes. Tenho aqui uma imagem.
Ken remexeu a pilha de imagens até encontrar uma micrografia de uma das partículas e passou-a ao redor da mesa.
— Parece um ovo, apesar das bolhas estranhas — disse Palu.
— O que é? — perguntou Gray, semicerrando os olhos para a imagem.
— O nosso bombeiro não andou longe da verdade. É um cisto dessecado, com cerca de um décimo do tamanho de um grão de arroz. Está coberto por mais de mil destas bolhas, ou invólucros, cada um contendo um clone genético do terceiro estágio da larva. A única diferença é que estas cópias possuem garras.
Ken mostrou uma outra micrografia que exibia a ínfima criatura.
— Lembram-se de ter dito que, por vezes, as vespas replicavam as estratégias de outros insetos? — Bateu com o dedo na fotografia. — Pois bem, aqui está um bom exemplo.
— Não percebo — disse Gray. — Que estratégia é esta que replicaram?
— Já ouviram falar de tardígrados?
Gray e os restantes abanaram as cabeças.
— São muito parecidos com o que temos aqui. Há quem lhes chame ursos-d’água, devido ao aspeto rechonchudo, mas são basicamente microanimais, cujo tamanho não ultrapassa os 0,05 milímetros.
— Bom, e o que têm que ver com as nossas vespas? — perguntou Gray.
— Os tardígrados são quase duas vezes mais antigos que as vespas. Surgiram no período Câmbrico, porém, hoje em dia, ainda conseguimos encontrá-los em todos os tipos de ambientes. Isso deve-se ao facto de serem extraordinários sobreviventes. Quando confrontados com condições adversas, submetem-se a um processo semelhante à hibernação, a criptobiose, em que suspendem o metabolismo ao transformarem-se numa bola desidratada. Nesse estado latente, conseguem suportar temperaturas desde zero a cento e cinquenta graus centígrados. Mais impressionante, conseguem resistir a pressões de seis mil atmosferas, ou mesmo ao vácuo do espaço, para não falar de doses de radiação mil vezes superiores ao que um ser humano poderia tolerar. São virtualmente indestrutíveis.
Ken apontou para o cisto na imagem.
— Em 1948, cientistas japoneses demonstraram que os tardígrados conseguem despertar de um período criptobiótico de cento e vinte anos, e pesquisas mais recentes sugerem que serão capazes de sobreviver muito mais tempo que isso... quem sabe até para sempre.
Gray pegou na fotografia.
— Acredita que estas vespas conseguiram replicar essa proeza?
Ken encolheu os ombros.
— Porque não? Os tardígrados também aprenderam com outras espécies. Quase dezoito por cento do seu genoma provém de plantas e fungos pré-históricos, incluindo o que hoje em dia classificamos como a matéria negra da vida.
— Matéria negra da vida?
Ken acenou com a cabeça.
— O termo refere-se às bactérias que subsistem na fronteira entre a vida e a morte. Foram identificadas recentemente, e os cientistas apelidaram-nas de micróbios Lázaro. Como as Natronobacterium, que conseguem ressuscitar ao fim de cem milhões de anos incrustadas em cristais, ou como as colónias de Virgibacillus, reavivadas no interior de formações após um período de dormência de duzentos e cinquenta milhões de anos. E estes são apenas alguns exemplos. Haverá ainda muito por descobrir.
— E está convencido de que estas vespas incorporaram algumas destas antigas estratégias de sobrevivência. Porquê? Com que fim?
— Acredito que se trata de uma salvaguarda evolutiva. Elas deixam para trás este rasto genético indestrutível, que permanece escondido e protegido nos ossos dos hospedeiros mortos. Com o passar do tempo, esses restos mortais tornar-se-ão pó, permitindo que os cistos sejam libertados no meio ambiente, onde poderão ser inalados ou ingeridos por um qualquer outro animal. Uma vez no interior de um hospedeiro adequado, os cistos despertam e dão continuidade aos estágios seguintes do ciclo de vida das larvas, que continuarão a alimentar-se e a crescer até que possam romper para o exterior como vespas adultas, permitindo assim o renascimento de todo o enxame.
Aiko interveio pela primeira vez.
— Tal como uma fénix a renascer das cinzas.
Ken apercebeu-se do tom contemplativo nas palavras de Aiko, sugerindo que esse pormenor era relevante aos seus olhos. Ainda assim, a mulher ignorou o seu olhar inquisitivo e ele prosseguiu.
— Ao terceiro dia, os enxames nestas ilhas tornar-se-ão parte integrante do meio ambiente. Estarão de tal forma enraizados que não haverá forma de os erradicar. E isso não é sequer o pior.
— Como assim? — perguntou Gray.
— Lembram-se de ter dito que estas vespas mantêm os hospedeiros vivos? Pois bem, como tal, teremos pássaros infestados de larvas que voarão para outras paragens, roedores que se esconderão nas tocas.
— E o mesmo se passará com as pessoas — acrescentou Gray, pesaroso.
— Se não isolarmos este arquipélago, a ameaça espalhar-se-á rapidamente pelo mundo inteiro — avisou Aiko.
— E aí teremos um problema à escala global. — Ken tentou expressar a gravidade do cenário que se adivinhava. — Durante o pouco tempo que passei a estudar estas vespas, conduzi experiências no sentido de perceber se eram particularmente seletivas em relação a hospedeiros viáveis.
— E são? — perguntou Seichan.
— Nem um pouco. — Ken pegou na fotografia da enorme fêmea. — Este ferrão foi desenhado ainda no período Jurássico. Além do tamanho considerável, é feito de um material quase tão duro como o aço. Foi concebido para perfurar qualquer tipo de pele, até para penetrar nas brechas entra as placas de armadura dos dinossauros. Os animais dos nossos dias, incluindo os humanos, são presas fáceis quando comparados com as criaturas do passado. Pior que isso, não dispomos de defesas naturais contra uma ameaça tão antiga.
— O que quer dizer que somos como peixes num barril — disse Kowalski. — Basta premir o gatilho e vamos desta para melhor.
Gray anuiu com a cabeça, ainda a absorver toda essa informação.
— Não nos faltam exemplos modernos de espécies invasoras e dos problemas que causam — disse. — Pitões nos pântanos dos Everglades, lebres europeias na Austrália, carpas asiáticas nos nossos lagos.
— E isso são apenas exemplos de animais que escaparam dos continentes de origem — assinalou Ken. — Aqui estamos a falar do regresso de seres desaparecidos há milhões de anos! — O professor sentia-se cada vez mais frustrado com a sua incapacidade de transmitir a verdadeira extensão da ameaça. — Eu assisti ao que se passou na ilha da Queimada Grande. Estas vespas aniquilam tudo à sua passagem, sejam animais voadores ou terrestres. Nem sequer se importam que isso destrua todo o meio ambiente ao redor.
— Porque têm um plano de reserva que lhes permite sobreviver — disse Gray, empurrando a micrografia do cisto. — O que significa que precisamos de as impedir antes que façam mais estragos.
Ken suspirou.
Falar é fácil...
Gray levantou-se.
— Diga-nos o que temos de fazer.
Ken olhou na direção da janela, para os jardins banhados pelo sol do meio-dia.
— Primeiro, precisamos de descobrir onde o enxame se instalou.
Gray dirigiu-se a um aparador próximo e regressou com um mapa topográfico das ilhas havaianas.
— Tem alguma ideia de por onde devemos começar?
— Daquilo que aprendi, não me parece que as Odokuro construam ninhos como as vespas sociais. Calculo que nesse aspeto sejam mais como as espécies solitárias, optando por tocas onde possam criar os seus abrigos subterrâneos.
Palu inclinou-se sobre o mapa.
— Os ventos alísios sopram nesta direção — disse, desenhando uma linha direita a partir de Hana que atravessava as florestas e subia pelas encostas do monte Haleakala. Estudou a área durante uns segundos. Por fim, bateu com o indicador num ponto do mapa. Sorrindo, virou-se para os outros e acrescentou: — Acho que sei onde estão.
13
7 de maio, 18h01 EDT
Washington, D.C.
Painter atravessou o átrio octogonal no segundo piso do Castelo do Smithsonian. Ao redor, várias portas conduziam a diferentes salas, mas apontou para a que se abria para a ilustre sala do Conselho de Administração, de onde ecoavam vozes do interior.
— Vamos lá ver o que nos espera — sussurrou para Kat.
O tom de voz, comedido, não tinha que ver com secretismo, mas com o respeito pela história do local. A solenidade do edifício, com as suas salas amplas, capelas privadas e longas galerias, mexia com a noção de tempo de qualquer pessoa. Painter conseguia imaginar o primeiro secretário do Instituto Smithsonian, Joseph Henry — cujo busto de bronze decorava a frente do castelo —, a percorrer aquelas galerias. Havia quem dissesse que o castelo se encontrava assombrado. Na verdade, o próprio Henry organizara certa vez uma sessão espírita na sala do conselho. Fizera-o a pedido do então presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, que desejava convencer a mulher, Mary Todd, de que todos os médiuns eram charlatães.
Painter imaginou a cena e sorriu, consciente do apreço que guardava por aquele lugar. Ele e Kat tinham usado o elevador secreto para subirem das instalações subterrâneas da Sigma e entrarem no castelo. O museu encerrara trinta minutos antes, e o piso inferior encontrava-se ocupado por apenas meia dúzia de docentes e algum pessoal das equipas de manutenção. Sempre apreciara esses momentos de acalmia que lhe permitiam usufruir do espaço só para si. Não eram raras as vezes em que vagueava por aqueles corredores à noite, socorrendo-se do silêncio para aclarar os pensamentos. O ritual permitia-lhe ver melhor os problemas, mas o lugar também lhe servia como um lembrete sólido do respeito pela ciência e pelas lições ensinadas pela história. Sobretudo, recordava-o da importante missão da Sigma.
Kat guardou o telemóvel enquanto se aproximavam da sala do conselho.
— O doutor Bennet confirmou que recebeu as notas do professor Matsui. Vai revê-las imediatamente.
Painter acenou com a cabeça. Trocara meia dúzia de palavras com Gray antes de subir para o castelo e ficara com uma ideia mais concreta da ameaça que pairava sobre as ilhas havaianas. Esperava que o entomologista do jardim zoológico nacional incidisse mais alguma luz para a compreensão do que estava a acontecer. Sobretudo com o prazo estipulado por Gray.
Três dias.
Sem um minuto a perder, não estava particularmente satisfeito de ter sido convocado para aquela reunião. Sentia-se, porém, curioso. O que teria a presidente da Biblioteca do Congresso a dizer sobre o assunto? Como é que os ataques poderiam estar relacionados com a fundação do Castelo do Smithsonian ou, ainda mais improvável, com Alexander Graham Bell, o inventor do telefone?
Só há uma maneira de saber.
Bateu à porta e empurrou-a. Deixou que Kat entrasse primeiro e seguiu-lhe os passos.
A sala do conselho era dominada por uma enorme mesa redonda, cujo tampo era decorado no centro com o símbolo do Instituto Smithsonian. Ao redor, cortinas de veludo enquadravam as janelas com vista privilegiada para o National Mall e resto da cidade de Washington. Era ali que, de três em três meses, se reuniam os dezoito membros do conselho. Naquele momento, encontravam-se apenas duas pessoas presentes.
O curador do castelo, Simon Wright, contornou a mesa para os receber. Contava cinquenta e poucos anos, porém os cabelos grisalhos faziam parte da sua imagem desde que era novo. Usava-os compridos, pela altura dos ombros, penteados para trás como uma estrela de rock envelhecida.
— Diretor Crowe, obrigado por ter vindo. E, capitã Bryant, é sempre um prazer vê-la. Como estão as crianças?
Kat apertou-lhe a mão e sorriu-lhe, agradecendo a calorosa receção. Os três conheciam-se há mais de uma década.
— Foram acampar com o pai.
— Tem a casa só para si? Nesse caso, peço desculpa por interromper o que será certamente um raro momento de descanso.
— Nem por isso, dadas as circunstâncias.
Simon apresentou os dois à segunda figura presente, Elena Delgado, a presidente da Biblioteca do Congresso. A sua postura tornou-se mais formal. Elena fora indicada para o cargo quatro meses antes, e era a primeira mulher hispânica a ocupar aquela prestigiada posição. Nenhum dos três a conhecia bem.
Ainda assim, Painter estava a par de alguma da sua história de vida, a qual lhe merecia respeito. Elena era a mais nova de quatro irmãs, filha de pais emigrantes na Califórnia. As competências académicas e desportivas tinham-lhe garantido uma dupla bolsa na Universidade de Stanford, onde obtivera um doutoramento em História Americana, bem como uma medalha de prata e outra de ouro nos Jogos Olímpicos de Munique como nadadora. Mais tarde, a paixão pela história manteve-a rodeada de livros, o suficiente para que conseguisse um segundo doutoramento na vizinha Universidade de Maryland, dessa vez em Biblioteconomia.
Painter cumprimentou-a com visível agrado. O aperto de mão dela era firme, sugerindo que mantivera a boa forma física apesar dos sessenta e quatro anos. A única concessão à passagem do tempo era um par de óculos de leitura pendurado numa corrente de prata ao pescoço, juntamente com dois pequenos crucifixos.
— Sei que o vosso tempo é precioso — disse ela, indo direta ao assunto e puxando-lhes a atenção para a mesa. — Mas acredito que isto seja importante.
Diante de todos encontravam-se dois livros. Um deles, com uma capa de couro grosso obscurecida e gretada, dava ideia de ter sobrevivido a um incêndio, enquanto o outro, mais bem conservado, apresentava-se envolto por uma banda elástica. O tipo de encadernação, cosida à mão, sugeria que teria também algumas décadas de existência.
Elena pousou a mão num dos livros, quase de forma possessiva.
— Estes volumes pertencem a uma coleção especial ao cuidado dos sucessivos presidentes da Biblioteca do Congresso, e são poucos os que têm conhecimento da sua existência. Ao longo dos séculos, assistimos ao desaparecimento de muitos livros em museus de todo o mundo. Por conseguinte, foi decidida a criação de um lote de textos importantes para a nação, um conjunto de obras que poderão não ser necessariamente valiosas, como é o caso da nossa cópia da Bíblia de Gutenberg, mas cuja importância dos conteúdos nos merece especial cuidado.
Simon anuiu com a cabeça.
— Verdade. Enquanto curador, posso atestar que boa parte da nossa coleção tem uma certa tendência para desaparecer. Ao longo dos anos, diria que já perdemos cerca de dez por cento dos nossos livros e artefactos. E não estou a falar apenas de pequenos objetos, mas de quase três dúzias de peças de classe superior, cada uma de um valor superior a um milhão de dólares.
Kat parecia incapaz de acreditar nos seus ouvidos.
— Essas peças foram roubadas?
Simon encolheu os ombros.
— Algumas. Outras apenas saíram daqui e nunca mais regressaram. Mas calculo que boa parte se encontre perdida nos nossos depósitos em Maryland.
Painter sabia da existência desse local, o centro de apoio ao Museu Smithsonian, em Suitland, Maryland. Os cinco edifícios do complexo, cada um ocupando uma área igual a um campo de futebol, albergavam quarenta por cento das peças da coleção smithsoniana, o equivalente a mais de cinquenta milhões de itens.
— Seja como for — prosseguiu Elena —, como podem imaginar, os meus antecessores foram confrontados com a necessidade de preservar estas obras que de outra forma poderiam ser ignoradas. Livros cujo valor monetário não justificava a aplicação de medidas de segurança apertadas, mas cuja relevância os tornava demasiado importantes para se perderem no tempo. Enfim, digamos que são a nossa versão dos arquivos do Vaticano.
Painter acenou na direção dos dois volumes.
— E estes livros fazem parte desse espólio.
Elena sorriu, algo que parecia fazer com facilidade. Agarrou no volume mais bem conservado.
— Na verdade, foi o autor deste livro, Archibald MacLeish, quem fundou o nosso arquivo. Foi o nono presidente da Biblioteca do Congresso, e exerceu funções durante os anos da Segunda Guerra Mundial, altura em que lhe foi atribuída a tarefa de preservar os nossos tesouros nacionais. Para o efeito, recolheu e dividiu os artefactos mais importantes da nossa história, escondendo-os em seguida em vários locais diferentes do território nacional. Mais tarde, quando cessou funções e assumiu o cargo de assistente do Secretário de Estado, percebeu que havia necessidade de dar continuidade ao projeto e deixou este legado às bibliotecas do Instituto Smithsonian, uma coleção especial secreta.
— Começando por este volume, é de sua autoria? — perguntou Painter.
— Entre muitos outros — esclareceu Elena. — Penso até que uma das intenções era a de esconder estes dois volumes do escrutínio público.
Kat apertou os dedos, como que resistindo à tentação de pegar nos livros e examiná-los.
— Que relação têm estas obras com o que está a acontecer no Havai?
— Tudo... nada. Não sei dizer. Mas, quando contei ao Simon a história destes livros, ele aconselhou-me a partilhá-la convosco. — Elena deitou um olhar demorado, e porventura desconfiado, a Kat e Painter. — Pertencem os dois à DARPA, segundo fui informada.
Simon não dissera uma palavra sobre a Sigma, mas também não era bom a mentir. Elena desconfiava de que havia algo mais acerca do par que tinha à frente.
— Bom, e que história é essa? — perguntou Painter, contornando o assunto.
— Primeiro que tudo, devo explicar-vos que apenas me deparei com estes livros por interesse pessoal. Mais concretamente pela minha tese de doutoramento sobre a Guerra Civil, na qual abordei o papel desempenhado pelo estreito círculo de confidentes de Lincoln, que incluía Joseph Henry, o primeiro secretário do Instituto Smithsonian na altura em que as coleções foram instaladas neste edifício.
Painter sabia da relação próxima entre os dois homens, e recordou de novo o episódio da sessão espírita que ocorrera naquela sala.
Elena sentou-se.
— A história começa com Joseph Henry e um incêndio que quase destruiu o castelo durante a Guerra Civil.
A partir dessa introdução, Elena contou uma narrativa fantástica acerca de James Smithson, o homem que doara toda a fortuna aos Estados Unidos, um legado que se converteria numa instituição em seu nome. A maioria dos acontecimentos encontrava-se relatada no livro de MacLeish em cima da mesa, o modo como Joseph Henry obtivera conhecimento de um artefacto escondido no túmulo de Smithson, em Génova, um objeto denominado Coroa do Demónio. Décadas mais tarde, Alexander Graham Bell seria enviado numa missão secreta para proteger os restos mortais de Smithson e recuperar o misterioso artefacto entendido por alguns como perigoso, ou mesmo como uma arma.
— E de que se tratava? — perguntou Kat.
— De acordo com MacLeish, Bell encontrou um pedaço de âmbar contendo os ossos de um réptil, porventura de um pequeno dinossauro. Tal como Smithson, Bell deixou uma mensagem enigmática acerca do achado, um aviso às gerações futuras de que se tratava de algo perigoso e, quem sabe até, milagroso.
Painter franziu o sobrolho.
— Milagroso?
— Bell acreditava que o artefacto poderia guardar o segredo da vida depois da morte. Contudo, não deixou qualquer explicação que justificasse essa convicção.
Painter deitou um olhar de soslaio a Kat. Ela estava igualmente a par do relato de Gray acerca da verdadeira extensão da ameaça que pairava sobre o Havai, de como as larvas daquelas vespas conseguiam suspender as funções vitais através de um processo chamado criptobiose, em que permaneciam adormecidas no interior dos ossos dos hospedeiros, ressuscitando mais tarde, por vezes passados séculos, para dar origem a um novo enxame.
— Isto diz-lhes alguma coisa? — perguntou Elena, apercebendo-se da troca de olhares silenciosa.
— Talvez — anuiu Painter. — Mas continue. O que aconteceu ao artefacto?
— À semelhança da opção de Smithson, Bell entendeu que seria melhor voltar a enterrar o objeto, mas dessa vez em solo americano.
— Onde? — perguntou Kat.
— Aqui mesmo, numa câmara escondida no velho túnel de manutenção que liga o castelo ao Museu de História Natural, no outro lado do parque.
Apesar da seriedade do assunto, Painter sentia-se estupidificado com o que estava a ouvir.
Isto tudo começou aqui, no nosso próprio quintal?
— Na altura, MacLeish estava a trabalhar num projeto que estudava a viabilidade da construção de um abrigo antibomba que salvaguardasse a preservação dos tesouros nacionais durante a Segunda Guerra Mundial.
— E foi então que encontrou a câmara secreta.
— Infelizmente, essa descoberta não passou despercebida. MacLeish suspeitava que um dos engenheiros envolvidos no projeto teria passado a informação a terceiros. Naturalmente, a notícia acabaria por chegar aos ouvidos dos nossos inimigos na altura, que logo manifestaram interesse no aviso de Bell acerca do invulgar objeto.
Kat inclinou-se para a frente, visivelmente fascinada.
— O que aconteceu?
— Houve um tiroteio no túnel, e o artefacto foi roubado por espiões japoneses. — Elena fitou Kat e Painter, como que lhes perguntando se também já teriam pensado se aqueles ataques não poderiam ser um eco da tragédia de Pearl Harbor. — MacLeish desenhou um esboço de um símbolo tatuado num dos atacantes. Acreditava que esse símbolo estaria de alguma forma ligado a uma organização envolvida no incêndio do castelo, quase um século antes, como se o mesmo tivesse servido para eliminar provas do objeto no passado.
— Que símbolo era? — perguntou Painter.
— Posso mostrar-vos. — Elena ergueu os óculos de leitura e alcançou o livro. — Tem um aspeto vagamente maçónico.
— Maçónico? — Painter engoliu em seco, enquanto Kat endireitava as costas, preocupada. — Por acaso não tem uma lua e uma estrela no centro?
Elena deitou-lhe um olhar por cima das lentes, franzindo o sobrolho.
— Sim. Como é que adivinhou?
Kat fechou os olhos e praguejou entre dentes.
Painter partilhava do mesmo sentimento.
Não admira que o Gray e a Seichan fossem alvos.
Elena alternou o olhar entre os dois.
— Parece-me que está na altura de me contarem o que sabem, não?
18h33
Elena aguardou a explicação que lhe era devida. Não iria tolerar mais respostas evasivas. Fora condescendente em muitos aspetos da sua vida. Com o pai, por exemplo, que sempre insistira para que casasse e tivesse uma casa cheia de niños... com professores que acreditavam que apenas conseguira o seu lugar no mundo académico por questões políticas.
Com a idade que tinha e depois de ter sobrevivido a um cancro na mama, deixara de ter paciência para quem a tomava por tola, e decerto não iria permitir que a mantivessem às escuras sobre o que estava a acontecer.
Que raio se passa aqui, afinal?
Sentira que havia qualquer coisa mal explicada, quando Simon Wright, o curador do museu, insistira para que se reunisse com aqueles dois representantes da DARPA no castelo, em plena sala do Conselho de Administradores do Instituto Smithsonian.
Porquê aqui?
Fitou a mulher, a capitã Kat Bryant, que mais parecia uma cama bem-feita, toda ela composta de linhas rígidas e um cartão postal à formação e postura militar. Sentia que teria ali uma aliada. Sobretudo quando a apanhara a lançar um olhar ao diretor, como que a dizer-lhe: temos de contar a verdade.
O diretor Crowe, pelo contrário, não parecia disposto a ceder com facilidade. Quando Simon o apresentara, sentira-se atraída por aqueles penetrantes olhos azuis e cabelos negros, que exibiam uma invulgar madeixa branca por cima de uma das orelhas, que a deixara intrigada. Calculava que tivesse ascendência nativa americana. Porém, fosse como fosse, não permitiria que aquele homem lhe fizesse frente.
Kat parecia consciente do impasse entre os três e ofereceu uma solução de compromisso.
— Antes de lhe contarmos o que sabemos, talvez queira terminar a sua história. — Acenou na direção dos volumes em cima da mesa. — A avaliar pela grossura do livro, calculo que o relato de MacLeish não se fique pelo roubo do artefacto de Smithson.
Elena hesitou um instante, depois suspirou, aceitando que a sugestão de Kat poderia ser o melhor caminho para a resolução do impasse.
Por enquanto.
— Está certa acerca da história de MacLeish — concedeu. — Archibald descobriu a câmara secreta em 1944. Uma semana depois, apresentou a demissão. Mesmo no meio da guerra. Os ventos estavam a mudar contra os alemães, mas os japoneses continuavam a representar uma ameaça no Pacífico. MacLeish receava o que eles poderiam fazer com o artefacto. Como tal, procurou saber a verdade acerca do objeto.
— Calculo que tenha tentado saber de onde vinha e por que carga de água Smithson teria tido tanto receio dele — disse Kat.
— Exato. MacLeish tencionava recriar os passos de Smithson, mas a tarefa revelou-se mais complicada do que pensava. — Elena apontou para o volume chamuscado. — O diário não continha informações acerca da proveniência do artefacto, e a maioria dos documentos pessoais ardera no incêndio. Mesmo assim, MacLeish não se deu por vencido. Viajou para a Europa, um continente ainda flagelado pela guerra, e procurou alguém que conhecesse Smithson no passado. Amigos, colegas, familiares... enfim, fez o que era possível para saber mais acerca da vida daquele homem.
— E o que foi que descobriu? — perguntou Painter.
— Apenas mais mistérios. Está tudo neste livro, mas posso adiantar que a investigação termina na Estónia, na cidade costeira de Tallinn, junto ao Báltico.
Kat não disfarçou uma expressão derrotada.
— Quer dizer que ele nunca soube qual era a origem do artefacto?
— Não, mas ouviu a história de um geólogo, um homem de idade avançada, que morreria logo a seguir. Décadas antes, ainda no início da carreira, o geólogo cruzara-se com Smithson numa taberna em Tallinn. Smithson tinha já bebido o suficiente para partilhar com ele uma história inverosímil, um relato que o outro encarava como pura fantasia.
Painter franziu o sobrolho.
— Que história era essa?
— Um conto arrepiante de um grupo de mineiros que descobriu um vasto depósito de âmbar. — Elena pousou a mão no volume chamuscado, consciente do significado dessa descoberta. — Enquanto trabalhavam, foram atacados por algo no interior da mina, uma doença terrível transmitida por insetos. Segundo o testemunho dos homens, e passo a citar, «horríveis vespas gigantes, nascidas dos ossos no interior das pedras de âmbar». A única forma de impedir que os insetos escapassem para o exterior foi rebentar a mina com os trabalhadores ainda lá dentro.
Kat olhou para o diretor. No fim de contas, talvez a história não fosse assim tão louca.
Painter recostou-se na cadeira.
— Disse que MacLeish terminou a busca em Tallinn. Calculo que o tenha feito porque descartou o relato como conversa de bêbedos.
— Em parte, mas sobretudo porque a história lhe foi contada a seis de agosto de 1945.
Painter pareceu momentaneamente confuso.
— O dia em que largámos a bomba atómica sobre Hiroxima — explicou Kat.
Elena acenou com a cabeça.
— Depois disso, MacLeish tornou-se menos obcecado com a hipotética ameaça japonesa e convenceu-se de que os esforços já não se justificavam.
Painter abanou a cabeça.
— Fez mal, pelos vistos.
— O que nos traz de volta aos ataques no Havai. A existir alguma ligação com a descoberta de Smithson, talvez esteja na altura de alguém dar continuidade ao trabalho de MacLeish e descobrir, de uma vez por todas, a origem do artefacto.
— Acho que tem razão. — Kat virou-se para Painter. — Se o professor Matsui estiver certo acerca do perigo representado por estas vespas, a descoberta da sua origem pode ser determinante para a resolução do problema.
— Porquê?
— Porque estiveram extintas a dada altura. — Kat percebeu o olhar confuso do diretor e tentou explicar-se melhor. — Por que razão não andam ainda por aí? O que as impediu de dominarem o mundo que conhecemos? De causarem o caos absoluto no passado? Algo as terá empurrado para esse estado de criptobiose. Por outras palavras, algo fez com que desaparecessem do mapa, basicamente.
Elena não percebia o que Kat queria dizer com aquilo, mas sabia quando devia ficar calada.
Painter olhou para os volumes em cima da mesa.
— Portanto, se conseguirmos descobrir o que as deteve antes...
— Talvez possamos fazer o mesmo.
Enquanto o par parecia chegar a um entendimento, Elena soube que estava na altura de jogar a sua cartada.
— Se tencionam assumir essa missão, a de procurarem novas pistas na Estónia, vão precisar de saber tudo acerca da viagem de MacLeish. Porém, ficam desde já a saber que eu vou para onde estes livros forem. E isso não é negociável.
Painter levantou-se, pronto a recusar tal sugestão.
— Creio que não há necessidade de arriscar a integridade destas obras. Apenas precisamos de fazer cópias.
Elena pegou nos livros.
— Se quiserem ter êxito, vão precisar de mais do que isso. — Fitou Painter. — Não creio que estas páginas respondam a todas as vossas perguntas. Precisam de alguém que conheça cada pormenor da vida destes homens, sobretudo de Smithson.
— Por outras palavras, precisamos de si. É isso? — perguntou Painter, lançando a Elena um olhar cético.
Kat tocou-lhe no braço.
— Não se esqueça de que temos apenas três dias.
Elena nada sabia acerca daquele prazo, mas apreciou o apoio de Kat na disputa com o diretor.
A contenda acabaria por ser resolvida por Simon Wright, o curador do museu, que ergueu uma sobrancelha para Painter.
— Meu caro, parece-me que não lhe resta alternativa senão a de convidar a nova presidente da Biblioteca do Congresso para uma visita completa ao castelo.
19h05
Quinze minutos mais tarde, Kat segurou a porta do elevador a Elena, apreciando o inevitável ar de espanto dela quando se deparou com o vasto complexo escondido no subsolo do castelo.
— Nunca imaginaria tal coisa... — murmurou, boquiaberta. — Sinto-me como o Charlie a entrar na fábrica de chocolate.
Painter sorriu, indicando o caminho. Começava a simpatizar com aquela mulher obstinada.
— Calculo que isso faça de mim o Willy Wonka.
— Peço desculpa — disse Elena, meio atrapalhada. — Passo demasiado tempo com as minhas netas. Por esta altura devo conhecer esse filme de trás para a frente.
Kat conhecia bem essa espécie de patamar do inferno. Em casa também era obrigada a suportar ciclos contínuos de um qualquer filme infantil a passar na televisão a toda a hora e instante.
— Vamos até ao meu gabinete — sugeriu Painter —, enquanto a Kat se encarrega dos preparativos para a viagem.
— O Jason tem o jato praticamente pronto — disse Kat. — Deveremos levantar voo em menos de uma hora.
Elena olhou por cima do ombro, ainda a tentar assimilar aquela realidade.
— Tão rápido?
Kat anuiu com a cabeça.
Bem-vinda à Sigma...
Deixou o par assim que chegaram ao centro de comunicações.
— Volto daqui a pouco — disse. — Quero certificar-me de que o Jason fica ao corrente de toda a situação antes de partirmos.
Enquanto Painter e Elena se afastavam, Kat avistou o seu braço-direito, Jason Carter. O jovem, de cabelos louros escorridos como que tivessem sido lambidos por uma vaca, encontrava-se debruçado entre dois técnicos.
— Tudo pronto? — perguntou Kat.
Jason não precisava de mais instruções e respondeu-lhe sem desviar os olhos do ecrã de computador.
— Acabei de falar com o doutor Bennett. Concordou em acompanhar-vos. Diz que precisa de quarenta minutos para recolher as notas do professor Matsui e ir ter ao aeroporto.
— Ótimo.
Se quisessem ser bem-sucedidos, precisavam de deitar mão a toda a ajuda possível, o que incluía a aquisição do entomologista para a equipa. Os seus conhecimentos seriam vitais para descobrirem o que aparentemente detivera as vespas no passado.
— Mais alguma novidade do Gray e dos outros?
— Não. A última comunicação teve lugar quando se encontravam a seguir o rasto do enxame. — Sem se virar, Jason apontou para um copo alto da Starbucks em cima de uma secretária. — Baunilha latte, duplo.
Kat dirigiu-se à secretária e pegou no copo.
— Só duplo? — disse, apertando os dedos contra o calor aconchegante do café quente.
Jason olhou para ela de soslaio.
— Isso é uma piada?
Kat ignorou-o e bebeu um gole para desanuviar a cabeça.
— E o homem que atacou Seichan e fugiu de barco? Nada?
— Evaporou-se. Não temos forma de saber onde se encontra. Seja como for, enviei um alerta para todos os nossos congéneres no Pacífico.
Kat cerrou os maxilares. Tinha um milhar de pensamentos na cabeça, todos ao mesmo tempo. Detestava abandonar o seu posto com tantas questões por resolver, e sabia que deixava uma tarefa hercúlea sobre os ombros de Jason, que não só teria de coordenar as operações em lados opostos do mundo, como também teria de manter o diretor atualizado a todo o instante, de forma que ele pudesse orquestrar as possíveis respostas políticas e, quem sabe até, militares.
Esperemos que as coisas não cheguem a esse ponto.
Jason virou-se para ela, adivinhando-lhe os pensamentos.
— Não há problema, chefe. Eu trato do assunto.
Kat acenou com a cabeça.
Eu sei.
Mesmo assim, discutiu mais alguns pormenores de última hora, certificando-se de que Jason tinha toda a informação necessária. Uma vez satisfeita, deitou um último olhar ao redor da sala.
— Okay, o barco é teu — disse, virando-se de novo para Jason. Apontou-lhe um dedo. — Livra-te de estragares alguma coisa.
— Sim, já sei... entornei uma vez uma caneca de café e continuo a pagar por isso.
— Era o meu café — resmungou Kat, virando-lhe as costas.
Atravessou o corredor, ainda a segurar o copo entre as mãos. Sentia que se esquecera de algo. O som de vozes chamou-lhe a atenção para a porta entreaberta do gabinete do diretor.
Entrou sem bater, e foi quando se lembrou.
Ah, era disto que me estava a esquecer...
Debruçado sobre a secretária de Painter, um homem atarracado ria-se de algo que Elena dissera, ao mesmo tempo que lhe mostrava a mão protésica, o último grito em tecnologia da DARPA. Tinha desarticulado a mão do pulso, cujos dedos mecânicos continuavam a mover-se à sua vontade, como que por magia.
Elena parecia uma criança a olhar para um brinquedo.
— Consegue controlá-la remotamente?
— Sim, e inclui uma câmara no polegar — respondeu o homem, orgulhoso. — Até tem uma pequena carga de explosivos plásticos embutida na palma. Para aquelas ocasiões em que um aperto de mão não é o suficiente, se é que me faço entender.
— Monk? — Kat atravessou o gabinete, estupefacta de encontrar ali o marido. — O que estás aqui a fazer?
Ele endireitou-se e olhou para ela. Vestia um par de calções e uma camisola com capuz, com as palavras CAMPO WOODCHUCK.
— Achei que precisavam de uma mãozinha extra — respondeu, erguendo a prótese no ar. Era suposto ser uma piada, porém, ao ver a expressão séria de Kat, encaixou de novo a mão no suporte de titânio no pulso e acrescentou: — Além disso, pareceu-me a única forma de poder passar uns dias com a minha mulher.
— Onde estão as miúdas?
Monk passou a outra mão sobre a cabeça rapada.
— Devem estar a atormentar os monitores do acampamento, julgo eu. O que significa que devem estar tão felizes como duas lapas hiperativas.
Kat virou-se para Painter. Era óbvio que a presença de Monk deveria ter o dedo do diretor.
Painter não teve qualquer problema em admiti-lo.
— Entendi que não deveria ser a única a acompanhar a doutora Delgado e o doutor Bennett à Estónia.
Monk sorriu.
— Vá, não fiques assim. Pensa nisto como umas férias pagas na Europa.
Kat revirou os olhos.
Até poderia ser, se não estivesse em causa o futuro do mundo.
14
7 de maio, 13h05 HST
Hana, ilha de Maui
No lugar do passageiro, Palu indicou o caminho.
— Vire na próxima à esquerda.
— Qual esquerda? — disse Gray, inclinando-se sobre o volante e semicerrando os olhos para a muralha de vegetação e árvores exóticas, cujos ramos riscavam as laterais do jipe alugado.
Há quase uma hora que se arrastavam e saltitavam ao longo de uma série de trilhos enlameados que formavam a rede de caminhos de uma secção não cartografada da Reserva Florestal de Hana. A autoestrada ficara para trás após um desvio junto ao restaurante Mill Place, perto do supermercado Hasegawa. A partir daí, não tinham feito outra coisa que não fosse evitar atropelar cabeças de gado errantes e contornarem extensos campos de inhame.
A vontade de Gray era a de atalhar caminho e meter por essas plantações adentro, mas Palu abanara a cabeça, dizendo-lhe que isso lhes traria po’ino, ou má sorte: O inhame provém do corpo do Pai Céu, e é o primeiro filho da Mãe Terra. É uma fonte de vida.
Não querendo testar a sorte, Gray seguira pelos caminhos recomendados pelo havaiano.
— Falta muito? — reclamou Kowalski, com o corpanzil espremido no banco traseiro, ao lado do professor Matsui.
Aiko Higashi ficara na cabana, a fim de coordenar com Kat as últimas informações que ligavam a ameaça aos tempos da Segunda Guerra Mundial e, quem sabe, à organização conhecida como Guilda.
Os olhos de Gray fixavam-se de vez em quando no espelho retrovisor. Seichan seguia mais atrás, numa das motos. Era possível que a dada altura precisassem de um veículo mais ágil para superarem a adversidade do terreno adiante. Depois de saber da possível ligação à Guilda, Seichan mantivera-se invulgarmente silenciosa. Por outro lado, há já uns tempos que se mostrava mais distante, como se algo a preocupasse. Gray conhecia-a o suficiente para lhe conceder o espaço de que precisasse para meter a cabeça em ordem.
Depois de consultar a bússola, Palu respondeu por fim à pergunta de Kowalski.
— Mais dois ou três quilómetros. Isto partindo do princípio de que as chuvas da semana passada não deram cabo dos caminhos.
Kowalski soltou um resmungo, vocalizando as próprias preocupações de Gray.
— É aqui que viramos — disse Palu, estendendo um braço à frente da cara de Gray, que apenas viu o desvio no último segundo.
Rodou o volante com força, com as rodas a derrapar, forçando o jipe a descrever uma curva apertada e a romper pela abertura na floresta. Um novo trilho, ainda mais estreito, estendia-se a partir desse ponto.
Olhou pelo retrovisor, certificando-se de que Seichan conseguia repetir a mesma manobra. Ela inclinou-se sobre o guiador e cortou pela abertura sem qualquer problema.
Enquanto acelerava, as janelas do jipe eram cada vez mais fustigadas pelos milhares de ramos de fetos arbóreos, conhecidos como hapu’u. Parecia que atravessavam um túnel de lavagem de carros pré-histórico. O que talvez não andasse longe da verdade. Aquelas florestas pareciam intocáveis, com algumas das árvores aparentando uns bons milhares de anos.
Um dos ramos quase partiu o para-brisas, como se fosse um aviso para manterem a distância.
Palu desviou o olhar para Gray.
— A floresta não gosta de forasteiros. Apenas os filhos da terra sabem deste lugar.
Gray não duvidava de que isso fosse verdade. Apesar de o turismo constituir um dos principais motores da economia local, os havaianos continuavam a guardar alguns locais para si próprios, os quais defendiam com unhas e dentes. Era o caso do projeto multimilionário que visava a construção de um novo telescópio em Mauna Kea, cujos trabalhos se encontravam suspensos pela onda de protestos levantada pela sacralidade do lugar. Apenas um dos vários exemplos das linhas que estavam a ser traçadas por todas as ilhas.
Gray compreendia as preocupações das populações nativas. Os três meses que ali passara tinham sido suficientes para reconhecer a ligação especial daquelas gentes às ilhas onde viviam. A sua história encontrava-se gravada em cada pedra, animal ou planta.
Adivinhando-lhe os pensamentos, Palu observou a floresta e disse:
— Nós usamos os fios dourados, o pulu dos hapu’u, para o enchimento de almofadas e colchões. As folhas e os caules são comestíveis. — Lançou-lhe um olhar de soslaio e sorriu. — Infelizmente, não sabem muito bem.
Gray interrogou-se se os comentários constantes de Palu acerca da vida local não seria mais do que nervoso miudinho, mas, sim, uma tentativa de o levar a compreender o que estava em jogo. Se não pusessem cobro ao mal libertado sobre aquelas ilhas, tudo poderia estar perdido. Não só a terra, entenda-se, mas também a própria História.
Sabendo que não podia permitir tal destino, Gray acelerou pela floresta dentro. O arvoredo agigantava-se à medida que subiam o flanco acidentado do monte Haleakala. Aberturas ocasionais permitiam-lhes vislumbres da linha costeira abaixo. Daquela altitude, era impossível ouvir a confusão em Hana, com o caos abafado tanto pela distância como pela presença imponente da montanha.
Enquanto ganhavam elevação, a névoa aprisionada sob a copa das árvores tornou-se mais densa, húmida o suficiente para obrigar à ocasional utilização das escovas do limpa-para-brisas do jipe. Ao redor, a floresta adquirira uma qualidade fantasmagórica.
A voz do professor Matsui fez-se ouvir do banco traseiro, o tom comedido, porventura esmagado por um certo sentido de reverência.
— São acácias koa?
Apontou para um conjunto de árvores gigantes, com os generosos ramos cobertos de flores amarelas.
Palu sorriu.
— São. Há uns anos, o monte inteiro era coberto de florestas de acácias. Agora restam estes pedaços. — Olhou para os outros. — É por isso que não falamos deste lugar a forasteiros.
Ken inclinou-se para a frente.
— Mesmo assim, o lugar para onde vamos, essa vasta formação de túneis de lava que mencionou, parece-me ser o lar perfeito para as Odokuro. Pelo menos, tem as condições ideais para a criação de um lek. — Olhou pela janela. — As vespas vão querer uma toca central, escondida pela copa das árvores e com abundância de água à disposição. Além disso, olhem para todas estas flores, ricas em néctar.
— Para não falar da vasta oferta de hospedeiros — acrescentou Gray. Aquelas florestas fervilhavam de vida animal: pássaros, mamíferos, insetos.
Ken anuiu sobriamente com a cabeça e recostou-se no assento.
Gray tentou visualizar o lugar para onde se dirigiam. Três semanas antes, estivera com Seichan na famosa gruta de Ka’eleku, a norte de Hana. Frequentemente visitada por turistas, a gruta era um amplo e acessível túnel de lava, pejado de estalactites e outras formações de cor de chocolate. As secções a céu aberto, partes onde o teto colapsara, ajudavam a iluminar o extenso espaço cavernoso. Era uma atração popular, claro, mas era também um lembrete do passado furioso do monte Haleakala, quando as torrentes de lava basáltica, tanto as de superfície, as a’a, como as subterrâneas, as pahoehoe, deram origem à ilha de Maui.
Havia, naturalmente, toda uma coleção de outros túneis de lava ao longo dos flancos do monte Haleakala, mas a maioria encontrava-se escondida pela densa floresta e era apenas conhecida pelos habitantes locais. Palu estava a conduzi-los para um local onde uma intersecção desses túneis colapsara há muito tempo, dando lugar a um labirinto de tubos, pequenas grutas e cavernas. Se o enxame se tivesse deslocado ao longo da rota dos ventos alísios da noite anterior para o interior da ilha, esse local encontrar-se-ia bem no caminho das vespas.
Durante a viagem, Gray mantivera-se atento a qualquer sinal dos insetos, porém não observara nada. Era como se tivessem desaparecido. Com um pouco de sorte, até teriam sido desviados para mar alto.
Sim, claro...
— Fim da linha — anunciou Palu, apontando para mais adiante. — Temos de continuar a pé a partir daqui.
Não passava de uma constatação óbvia, visto que o trilho terminava numa gigantesca árvore. A copa erguia-se a mais de vinte metros de altura e estendia-se por outros cinquenta de largura. Encontrava-se coberta e suportada por centenas de raízes que pendiam dos troncos, formando uma cortina intransponível que tocava no chão.
— Isto não pode ser bom — disse Kowalski.
Gray pensou o mesmo. Junto à árvore, encontrava-se estacionada uma velha carrinha Volkswagen.
— Alguém chegou primeiro que nós — murmurou.
Palu franziu as sobrancelhas.
— Essa é a carrinha do Emmet Lloyd. Ele tem uma empresa de excursões em Makawao. Costuma levar os turistas a acamparem. Esse kanapapiki já deveria saber que não se traz ninguém para aqui.
Gray olhou para lá da árvore, para as florestas cobertas de névoa.
Sobretudo agora.
13h31
— Tenham cuidado! — gritou Emmet para o trio de turistas.
Escorregadia, a encosta vulcânica não era fácil de descer, o que o obrigava a usar as mãos para se segurar aos paus de bambu que cresciam por toda a parte, a fim de manter o equilíbrio. Depois de desmontar o acampamento, centenas de metros mais acima no flanco do monte Haleakala, impusera um ritmo forte na viagem de regresso. Durante a noite, assistira a um vai e vem constante de helicópteros a sobrevoarem a montanha. Sem rede de telemóvel disponível, não tinha maneira de saber o motivo de tanta agitação, mas sabia que algo de errado se passava. Aquilo nunca poderia ser uma simples operação de resgate.
O que nos vale é que não estamos longe do lugar onde deixei a carrinha, pensou. Mais um quilómetro ou dois...
Aquela floresta de bambus servia-lhe de referência ao longo do trilho. Não era tão extensa como as que cresciam no lado sudoeste da montanha, mas essa área era demasiado frequentada por turistas que ali faziam caminhadas, o que nunca faria justiça ao lema da empresa pintado na lateral da carrinha.
Ir mais além... para lá do caminho trilhado.
Continuou pela secção enlameada do percurso, deslizando e equilibrando-se nos dois pés, o que o recordava dos seus tempos de glória, quando fora campeão de surf. Nessa altura era um jovem; porém, com cinquenta e dois anos, recusava-se a abandonar essa paixão, o que o levara a estabelecer-se na ilha de Maui. O seu ganha-pão era levar turistas — aqueles que eram mais aventureiros — em caminhadas de vários dias nas florestas do monte Haleakala.
Passara três noites consecutivas com o trio que liderava naquele momento: um casal e o respetivo filho de onze anos, Benjamin.
— Vai com calma, Benjie! — avisou Paul Simmons, quase sem fôlego, tentando acompanhar o rapaz, cuja destreza faria a inveja de uma cabra de montanha.
Os Simmons eram donos de uma recém-criada empresa tecnológica. Ambos se encontravam em boa forma física. Paul era um fanático de CrossFit, e Rachel praticava diariamente ioga. Na primeira noite, Emmet retirara prazer de a observar enquanto ela executava as diferentes posições na margem de um lago iluminado pelo luar, junto a uma pequena queda de água. O seu corpo era esguio e flexível, e os longos cabelos arruivados, presos com um elástico, balançavam em cada transição de movimentos. Quando ela se dobrava para trás, apoiada nas mãos e nos pés, os bicos dos seios pareciam apontar para a lua...
Emmet sorriu ao recordar essa imagem.
Quem disse que este trabalho não tem as suas vantagens?
Alcançou por fim o casal. O filho seguia mais à frente, alimentado pela inesgotável energia da juventude. Bastou um piscar de olhos para que desaparecesse de vista por entre a floresta de bambu.
Emmet ficou preocupado. Sabia como aquele terreno podia ser traiçoeiro. A área inteira era uma armadilha de buracos e fendas escondidas.
Apontou para diante.
— É melhor não o deixarem afastar-se tanto.
Paul gritou subitamente, dando uma palmada no pescoço.
Rachel virou-se para ele, mais exausta do que preocupada.
— O que foi agora, Paul?
Paul agitou os braços à frente do rosto, depois retesou os ombros à altura do queixo, berrando em agonia. Caiu de joelhos no chão, com as mãos agarradas ao pescoço.
Rachel puxou-o pelo braço.
— Paul!?
Emmet recuou um passo e olhou em redor. Por norma, aquela floresta tinha uma qualidade mágica, com todas aquelas centenas de paus de bambu perfilados e cortinas de folhagem densa, tudo isso rematado com fios serpenteantes de neblina. Porém, a paisagem parecia-lhe agora subitamente sinistra, um cenário desconhecido que o fazia sentir-se como um intruso.
Esse sentimento de pavor foi exacerbado por um murmúrio grave de que ainda não se tinha apercebido enquanto avançava. No entanto, enquanto estava ali parado, a suster a respiração, conseguia ouvi-lo perfeitamente.
Que raio?
Deu uma volta sobre si mesmo, ao mesmo tempo que Rachel ajudava o marido a pôr-se de pé. Por toda a parte, os fios de neblina agitavam-se, como que perturbados por uma força invisível. O murmúrio infernal fez com que todos os pelos do seu corpo se eriçassem. Nunca ouvira nada que se parecesse. Então, distinguiu finalmente os milhares de pontos negros que rompiam o nevoeiro, vindos de todas as direções.
Voavam direitos a eles.
— Fujam! — gritou Emmet.
Não conhecia a natureza da ameaça que se precipitava na direção de todos, mas sabia que estavam em perigo.
Rachel desviou a atenção do marido combalido, que mal se segurava de pé.
— O q-quê?
Emmet passou pelos dois a correr e continuou pelo trilho abaixo. Alguma coisa lhe bateu no braço, aterrando na manga comprida da camisola. Arregalou os olhos perante tal visão. Uma vespa gigante agarrara-se ao tecido, com as asas a bater freneticamente. Chocado, arremessou o braço contra um pau de bambu, sacudindo a criatura para o chão.
Meu Deus...
— Espere! — suplicou Rachel. — Ajude-me!
Paul berrou de novo, um grito horrível, a que se juntou outro da mulher.
Apesar do que parecia, Emmet não estava a abandoná-los. Ambos eram adultos e conheciam o caminho de volta. Tinham apenas de fazer o melhor que podiam para saírem dali.
Em vez disso, corria para acudir à sua outra responsabilidade, uma que lhe parecia bem mais prioritária.
Benjie....
Deslizou por uma curva no caminho, quase arriscando-se a mergulhar do cimo de um penhasco. Recuperou o equilíbrio, recorrendo à memória muscular dos tempos de surfista, e acelerou pela encosta abaixo.
Onde estás, miúdo?
— Benjie! — gritou, a plenos pulmões, com uma das mãos encostada a um dos lados da boca.
Foi quando avistou o rapaz.
Não se encontrava no trilho, mas no meio da floresta à esquerda. Ou o miúdo se perdera, ou alguma coisa o fizera desviar-se do caminho.
Fosse como fosse...
— Volta já para aqui! — gritou-lhe.
Benjie olhou para ele, sem se mexer um centímetro. Provavelmente ouvira os gritos dos pais e estaria a decidir se deveria ou não confiar num homem que lhe era pouco mais que um estranho.
— Vá lá, miúdo! Precisamos de sair desta montanha! — Emmet fazia o que podia para esconder o tom de pânico na voz. — Os teus pais vêm já atrás de mim. Só preciso de que te juntes a nós.
O olhar de Benjie saltitava por toda a parte, sem se fixar em lado nenhum. Por fim, acedeu à vontade do guia e correu na direção do trilho.
Isso mesmo, puto.
Infelizmente, não tinha ainda dado três passos, quando desapareceu pelo chão adentro.
Um grito de surpresa e aflição escapou-se dos lábios de Emmet, apenas para lhe ser devolvido numa oitava acima, pela voz fina do rapaz.
Em pânico, Emmet apressou-se na direção do buraco por onde o miúdo desaparecera, embatendo nos paus de bambu pelo caminho, que estremeceram à sua passagem.
O som oco que produziram lembrava o de milhares de ossos a chocalharem.
PORTADORA DE OVOS
Uma vez devorados os machos, a fêmea deixou-se ficar saciada, no conforto da sombra fresca. Abstinha-se de qualquer movimento depois de acasalar, concentrando toda a atenção no abdómen carregado de ovos. As antenas encontravam-se curvadas no cimo da cabeça, as asas recolhidas ao longo do dorso.
Todos os sentidos estavam adormecidos.
Os olhos enormes fixavam o vazio.
Horas antes, o enxame encontrara finalmente refúgio e conduzira-a até ali através de um rasto de feromonas. Instalara-se de boa vontade nessa escuridão convidativa, acompanhada de todos os que gostavam dela. Enquanto se preparava, molhava as patas na água que pingava das paredes rochosas, sorvendo ocasionalmente a humidade.
Era tudo de que precisava, por ora.
Os gânglios atrás dos olhos tinham respondido à mudança na intensidade da luz, da claridade à escuridão absoluta, desencadeando uma descarga de hormonas que a faziam sentir-se segura. Como resposta, fertilizara os milhares de ovos que carregava através de pequenas contrações dos ovidutos. As células no interior dividiram-se exponencialmente, preparando cada ovo para o momento da expulsão.
Concluído o processo, o abdómen vibrou, indicando-lhe que estava pronta.
Uma gota de veneno formou-se na ponta do ferrão.
Então, um sinal de alarme ergueu-se dos confins do território ocupado pelo enxame.
Uma ameaça, mas também uma possibilidade.
Com o lek instalado, os soldados que guardavam as fronteiras resistiam ao impulso de atacar tudo o que se mexesse. A agressividade natural era agora temperada de acordo com as necessidades do enxame, permitindo que outras criaturas — aquelas que poderiam servir o seu propósito — penetrassem naquele domínio. Os soldados deixavam-nas aproximarem-se, e atacavam apenas o suficiente para as juntarem como um rebanho, guiando-as através da dor.
A fêmea esticou as antenas e continuou a monitorizar a evolução da armadilha através dos sons e cheiros. O abdómen curvou-se e estendeu-se, soltando os ovos e empurrando-os para o ferrão. Em todo o caso, aguardou. Ao longo das paredes, as outras fêmeas faziam o mesmo. Algumas agitavam as asas, expressando o desejo de cumprirem a sua função. Outras sacudiam e estalavam as grossas patas traseiras. Cada estalido que ressoava pelo túnel ajudava a dar forma à passagem cavernosa.
Foi então que um novo sinal a alertou.
Escutou a alteração na cadência do zumbido emitido pelo enxame. Os músculos retesaram-se e agachou-se na parede. Guiada pelo instinto, esticou e sacudiu as patas traseiras, juntando-se ao coro.
Finalmente, as antenas captaram dois odores: as feromonas que assinalavam a vitória dos soldados e o dióxido de carbono libertado pela respiração das presas.
Era o suficiente.
Levantou voo, as asas a bater furiosamente para suportarem a pesada forma do corpo. Avançou em direção às exalações trazidas pela brisa. Por todo o lado, outras como ela também levantavam voo ou sacudiam as patas. Os ecos permitiam-lhe distinguir os obstáculos na escuridão. Os olhos continuavam cegos, mas a membranas esticadas sobre as reentrâncias em ambos os lados da cabeça captavam cada vibração. Seguiu ao longo do rasto de feromonas. Lancetas quitinosas afiaram o ferrão, já lubrificado com veneno.
Os ovos teriam de esperar mais um pouco.
Bateu as patas enquanto voava, emitindo um forte sinal sonoro. O som ressaltou ao seu encontro e encheu-lhe a mente, dando forma à escuridão. No entanto, conseguia distinguir algo mais por entre a nuvem de exalações. Uma vibração, à qual não podia resistir.
Essa vibração chamava-a, impelindo-a a voar mais depressa. Sabia que precisava de chegar primeiro que as outras. Adiante, a luz aumentou de intensidade, porém ignorou a luminosidade e concentrou-se somente no sinal que atravessava o ar, cada vez mais claro, convertendo-se num pulsar ritmado, rápido.
Baixou a cabeça, com ambas as antenas esticadas, e acelerou para o alvo. Cada vez mais iluminado, o túnel encheu-se de novos estalidos, forçando-a a sacudir as patas e a juntar a sua própria cadência ao coro.
Uma forma debatia-se mais à frente.
Os sinais de pânico guiaram-na nessa direção.
A reverberação do enxame era agora suficiente para penetrar na carne, e distinguiu a forma de um pedaço de músculo a bater, descompassadamente, por detrás de uma gaiola de ossos. Seguiu direita à nuvem de carbono emitida pela respiração do alvo e, logo a seguir, mergulhou através dela.
Aterrou numa porção de pele suave, bem mais macia do que aquelas que as memórias ancestrais impregnadas no código genético recordavam. Houve tempos em que procurara presas maiores, cuja carne protegida por espessas armaduras martelara com investidas ensurdecedoras.
Aquela macieza, porém, não ofereceu qualquer resistência ao inserir o ferrão. Os músculos na base do abdómen contraíram-se, injetando o veneno nas profundezas da carne. A presa não reagiu. O veneno não servia para lhe infligir dor, apenas para a controlar.
Concluída a tarefa, levantou voo e manteve-se por perto, pairando sobre o alvo. Soltou uma descarga de feromonas, marcando essa presa como sua. As irmãs, carregadas com os respetivos ovos, seguiram caminho em direção à claridade, a fim de procurarem outros hospedeiros.
Mantendo-se no seu lugar, perscrutou o ar com as antenas, enquanto aguardava.
Continuou a sacudir as patas, avaliando a condição da presa, certificando-se de que a carne não se encontrava corrompida por incursões anteriores. Carregava milhares de ovos no abdómen, cada um capaz de albergar várias larvas, e sabia que precisava de atender à fome de cada uma como se fosse a sua. As larvas iriam necessitar de uma abundância de carne, sangue e osso.
A fim de garantir que assim era, esperou que o veneno fizesse efeito.
Não demorou muito, visto que a toxina fora concebida para derrubar presas maiores que aquela.
Enquanto escutava, o pulsar desesperado diminuiu de intensidade, tornando-se cada vez mais fraco.
O músculo no interior da gaiola de ossos estremeceu por fim numa sucessão de convulsões erráticas.
Estava na altura de passar à fase seguinte.
Mergulhou através da nuvem de carbono e aterrou de novo na pele suave. Arqueou o abdómen, colocando os ovos em posição. Cada ferroadela libertaria centenas da sua prole.
Com a presa à mercê, repetiria o processo vezes sem conta.
Não iria parar até se dar por satisfeita.
As larvas teriam muito para comer.
15
7 de maio, 13h49 HST
Hana, ilha de Maui
Não há dúvida de que estamos no lugar certo.
Cinco minutos antes, Gray estacionara o jipe junto à árvore que assinalava o fim do caminho, para se deparar de imediato com o eco distante de gritos nas florestas acima. Receando o pior, montou-se na moto com Seichan e partiu em auxílio das eventuais vítimas, deixando os restantes companheiros para trás a fim de se organizarem e retirarem o material do jipe.
Curvado sobre o guiador, acelerou a Yamaha pelo trilho íngreme e estreito, que desafiava as capacidades do ágil veículo todo-o-terreno.
Seichan mantinha-se agarrada a cintura dele com um só braço, segurando com o outro um enorme saco por cima do ombro, carregado com mantas antifogo e um estojo médico, que incluía seringas automáticas de epinefrina.
Gray só podia rezar para que conseguissem acudir aos campistas a tempo. Os gritos tinham parado ainda antes de se montar na moto, o que não era nada animador.
Mesmo assim, cerrou os dentes e espremeu toda a potência do motor a quatro tempos, galgando e superando as irregularidades do trilho rochoso, que por vezes o obrigava a equilibrar-se exclusivamente na roda traseira. O motor reclamava do esforço, com os pneus a deixarem para trás uma chuva de detritos e lama.
Manteve-se atento ao terreno circundante, recordando as indicações de Palu para chegar aos túneis de lava.
Siga o trilho até ao ponto onde começa a floresta de bambus.
O havaiano também o avisara acerca da natureza precária da paisagem. Uma parte da montanha colapsara sobre um labirinto de túneis, enchendo a encosta com uma série de fendas e abismos escondidos. A entrada principal para os túneis, um buraco maior a que Palu chamava puka, encontrava-se junto a um pequeno lago alimentado por uma nascente.
Era também o ponto de encontro da equipa.
Muito mais atrás, Palu e Kowalski seguiam a pé, cada um carregando um par de botijas de gás propano equipadas com detonadores e temporizadores, tudo cortesia do departamento de bombeiros.
Fora o professor Matsui quem delineara o curso de ação a seguir. O plano consistia em atirar as botijas de gás pelas várias aberturas ao longo dos túneis. Se o enxame se encontrasse lá em baixo, o objetivo da equipa dividia-se em duas frentes: infligir o máximo de dano aos insetos e dispersar os sobreviventes. Ken contava que isso atrasasse o estabelecimento de um território de acasalamento.
Era um bom plano, por enquanto, que lhes poderia fazer ganhar algum tempo até descobrirem o próximo passo.
Se não for já demasiado tarde, isto é.
Com apenas uma forma de ter a certeza, Gray continuou a abrir caminho pela montanha acima. Um minuto mais tarde, após uma secção de curvas apertadas, a floresta mudou drasticamente de aparência. As árvores de madeira exótica e fetos exuberantes deram lugar a uma extensão interminável de bambus. Os paus gigantes alinhavam-se em todas direções, envoltos por uma neblina espessa.
Gray engoliu em seco pela súbita transformação.
Momentaneamente distraído pela paisagem, não se apercebeu da figura que saiu a cambalear da floresta, à direita. O homem tropeçou no meio do trilho, os ombros bateram com força nos paus de bambu no outro lado e a sua figura desmoronou-se, inerte, no chão.
Gray apertou os travões com força. De forma a não atropelar o homem, guinou e atirou a moto contra a cortina de fetos à direita. Tanto ele como Seichan foram projetados pelo ar. Gray enrolou-se sobre si mesmo e caiu sobre o ombro, momentaneamente atrapalhado pelo capuz do fato de apicultor completo. Os fatos eram uma recomendação do professor, que tinham acatado antes de subirem para a moto.
Pôs-se de pé rapidamente e ajustou o véu do capuz. Seichan surgiu de trás de um arbusto, arrastando o saco de equipamento. Correram para a figura caída no trilho.
Gray chegou primeiro e ajoelhou-se junto do homem. Aparentava uns cinquenta anos, careca e com bigode, tratando-se provavelmente do tal guia turístico, Emmet Lloyd. A cabeça rolou para um dos lados, com laivos de saliva a correrem do canto da boca.
Gray agarrou-lhe nas bochechas.
— Onde estão os outros?
Emmet pareceu ouvi-lo, embora os olhos lutassem por manter o foco com as pupilas dilatadas, como se estivesse drogado ou tivesse sido atingido na cabeça.
Seichan desviou Gray. Tinha o estojo médico aberto e uma seringa de epinefrina na mão, pronta a usar. Espetou a agulha no pescoço do guia, injetando-lhe a substância na corrente sanguínea.
O professor Matsui estudara as toxinas presentes no veneno das vespas. Era a sua especialidade. Avisara-os seriamente acerca do perigo que os ferrões das enormes fêmeas procriadoras carregavam.
Uma potente neurotoxina.
A epinefrina não constituía uma cura, mas Ken dissera-lhes que poderia anular alguns dos efeitos.
— Consegue ouvir-me? — insistiu Gray.
As pupilas pareciam mais reativas, mas o homem continuava fraco e confuso.
— Gray! — exclamou Seichan.
Gray notou a urgência no tom de voz dela. Virou-se e deu com a companheira de pé, a apontar para a floresta. Através da neblina, dezenas de colunas negras erguiam-se dos fetos no chão, preenchendo o ar com um zumbido ameaçador.
O enxame.
As vespas abandonavam o refúgio subterrâneo, provavelmente atraídas pelo barulho da moto. Gray imaginou o intricado labirinto de túneis que existiria debaixo dos seus pés.
Olhou para a direita: mais sombras cortavam os fios brancos de neblina.
Estavam a ficar sem tempo.
Virou-se para Emmet e deu-lhe uma bofetada. Depois mais duas. Por fim, os lábios do homem curvaram-se de irritação.
— Onde estão os outros? — pressionou Gray.
Um braço tremente ergueu-se e acenou na direção do trilho adiante. Palavras arrastadas escaparam dos lábios descaídos.
— Lá em cima...
— Quantos são?
— Dois... — respondeu, com incalculável esforço. — Um casal...
— Não temos tempo para os procurar — disse Seichan.
Gray sabia que ela estava certa, mas como poderiam sequer contemplar a hipótese de abandonar aquelas pessoas?
Então, sentiu uma presença nas costas. Virou-se e deu de caras com Palu, que corria para eles com o seu fato de apicultor completo. Carregava uma botija de gás em cada mão, como se fossem almofadas. O único sinal de esforço era o brilho das gotas de suor no rosto.
Apesar da situação em que se encontravam, exibia um largo sorriso.
— Aqui estão vocês! — disse.
Kowalski vinha a correr logo atrás, com os bofes de fora. Dava ideia de que iria desfalecer a qualquer instante. Pousou as duas botijas que também carregava e curvou-se com as mãos nos joelhos, soltando em seguida uma enxurrada contínua de palavrões.
— Raiospartamestamerdatoda!
Gray acenou na direção das vespas que revoluteavam acima dos buracos e fendas existentes por toda a parte.
— Atirem as botijas! Cinco minutos em cada temporizador! Não podemos deixar que se escapem mais!
Boa parte do plano assentava em apanhar o enxame no subsolo. De acordo com o professor, as vespas eram atraídas pelo odor doce do gás propano, o que as levava por vezes a construírem os ninhos perto de equipamentos que utilizavam chamas-piloto. As companhias de energia adicionavam esse cheiro característico ao gás, por norma inodoro, como uma medida de segurança para alertar os utilizadores domésticos em caso de fugas.
A ideia era atirar as botijas com as válvulas abertas e permitir que o gás se espalhasse pelos túneis, antes de os temporizadores incendiarem tudo. Se conseguissem fazer isso rapidamente, o odor poderia concentrar as vespas no mesmo local, fazendo com que a maioria do enxame fosse apanhada pela explosão.
— Vamos a isto! — disse Kowalski, pegando de novo nas duas botijas.
Palu hesitou.
— Onde estão os campistas?
Gray apontou para o trilho.
— Lá mais acima... um casal.
— Conheço bem o trilho — disse Palu. Acenou para Kowalski. — Atiramos as botijas e vamos procurá-los.
— Têm cinco minutos! — lembrou Gray, visualizando a explosão anunciada. — Quer os encontrem quer não, é bom que estejam de volta antes de os temporizadores dispararem.
Enquanto os dois calmeirões se afastavam, Gray colocou um braço ao redor de Emmet e, dobrando-se, atirou-o para cima de um ombro. Ao endireitar-se, observou Kowalski a sacudir as vespas do caminho enquanto se dirigia para uma das colunas negras. Assim que se aproximou o suficiente, atirou a primeira botija para a fenda ali escondida.
Palu seguiu-lhe o exemplo e os dois subiram a encosta, em busca de mais aberturas para depositarem as restantes botijas.
Gray tinha o seu próprio fardo para carregar e começou a descer o trilho com o guia às costas.
Seichan correu para a moto.
Antes que Gray desse uns três passos, Emmet agitou-se.
— Não...
Gray olhou para trás, com o rosto quase colado ao do homem.
— O que se passa?
— O miúdo... Benjie... — Emmet apontou para o ponto da floresta de onde surgira momentos antes. — Ele caiu num buraco.
Seichan ouviu a conversa e soltou um suspiro exasperado.
— Eu trato disso.
Gray hesitou, mas Seichan deitou-lhe um olhar dos dela.
— Mexe-te — disse, batendo com o dedo no relógio de pulso. — Já sei o que vais dizer.
Gray consultou o seu próprio relógio.
Cinco minutos... e depois acabou-se.
14h07
Seichan avançou, com esforço, pelo denso matagal. Parecia que atravessava um pântano. A folhagem dos fetos prendia-lhe os movimentos, ramos com picos tentavam furar-lhe o fato de apicultor e a lama colava-se às solas das botas.
Frustrada, sentia-se quase tentada a desfazer-se daquela armadura de nylon, mas não se encontrava num pântano nem aquelas criaturas eram mosquitos. Enquanto avançava, enxotava as vespas no véu do capuz e golpeava as maiores que pousavam nos braços e no peito. Confiava na proteção do fato apenas até certo ponto. Com certeza não seria mais resistente do que a pele grossa dos dinossauros do passado. Além disso, bastava-lhe olhar ao redor para sentir a necessidade de ser o mais cautelosa possível. Havia aves caídas por toda parte, algumas ainda a baterem as asas. Mais à direita, atrás de um arbusto, um par de hastes assinalava o local onde um veado sofrera igual sorte, e aquilo que pensara ser um pedregulho era na verdade um javali morto, algo de que apenas se apercebera ao notar as enormes e curvadas presas amarelas.
As vespas não tinham perdido tempo.
Ciente do perigo, tirou a lanterna do bolso da mochila e acendeu-a, enquanto se apressava de coluna negra em coluna negra.
Onde te enfiaste, miúdo?, pensou, mantendo um olho no relógio.
Tinha apenas três minutos para o encontrar.
Não queria estar ali quando as botijas explodissem, mas não conseguia deixar de imaginar a pobre criança aprisionada naqueles túneis. Amaldiçoou os pais do miúdo por o terem colocado nessa situação, todavia, o que estava a acontecer não era coisa que alguém pudesse prever.
Mesmo assim...
Avançou para a fissura seguinte, atravessando a nuvem fremente de zumbidos. Apontou a lanterna para o chão. O feixe revelou um buraco de dimensões consideráveis. Ajeitou o ângulo da luz, a fim de inspecionar a maior porção possível do túnel. Não havia lá nada que não fossem vespas, centenas delas, todas agarradas a cada centímetro de rocha.
Virou costas. Ao fazê-lo, a lanterna iluminou por um instante o rebordo de outro buraco, mais à frente, onde era visível uma pegada na lama, provavelmente de uns ténis. A fissura e a pegada pareciam recentes.
Praguejando entre dentes, deu meia-volta para inspecionar o túnel uma segunda vez. De onde se encontrava, não conseguia observar muito mais do que a área imediatamente abaixo. Assustado, o rapaz poderia ter-se enfiado pelo túnel adentro. Bastariam alguns metros para que não o conseguisse avistar a partir da superfície.
Só há uma maneira de confirmar.
Embora pudesse saltar lá para dentro com facilidade, precisava de uma maneira de voltar a sair. Trazia uma corda na mochila, mas não tinha tempo para a usar. Em vez disso, levou as mãos à cintura. Depois de ter sido apanhada desprevenida na noite anterior, dessa vez certificara-se de que vinha preparada e trouxera consigo a coleção de facas, acondicionando as várias lâminas em bainhas presas na cintura e nos tornozelos. Para a tarefa em mãos, selecionou o cutelo.
Escolheu um pau de bambu tão grosso como o seu pulso e, com a lâmina recentemente afiada, derrubou-o com um só golpe. Apanhou-o enquanto tombava, carregou-o em ombros e enfiou-o pelo buraco no chão.
Dois minutos.
Entrelaçando as mãos e as pernas, deslizou pela extensão do pau de bambu, até lá abaixo. Os pés esmagaram um tapete de vespas ao tocarem no chão, causando o alarme do enxame e provocando uma imediata e vigorosa resposta contra a intrusão, que ignorou. Centenas de vespas explodiram das paredes e lançaram-se contra ela das profundidades do túnel.
Agachou-se contra o assalto inevitável, apontando a lanterna para um dos lados, depois para o outro.
Entre a mancha negra rodopiante, apercebeu-se de um vislumbre de pele branca, assim como da ponta de uns ténis vermelhos.
Benjie...
Estendeu a mão enluvada, agarrou no tornozelo do miúdo e puxou a sua forma inerte para si. Não tinha tempo para confirmar se estaria vivo, e pura e simplesmente atirou o seu corpo franzino para cima de um ombro, de forma a carregá-lo dali para fora.
Virando-se, ergueu-se e agarrou-se com mãos e pés ao pau de bambu. Usou as solas de borracha para se impulsionar para cima. Não era uma manobra difícil de concretizar, mas a ponta recentemente cortada do pau escorregou no chão húmido, perdendo toda a estabilidade.
Tombou para um dos lados, atirando-a com força contra a parede. Conseguiu manter-se agarrada, mas o bambu deslizou novamente durante um segundo aterrador, até se fixar por fim no leito rochoso.
Aguardou um instante, apenas para ter a certeza de que tinha condições para continuar. O relógio na sua mente continuava a contar.
Um minuto.
Começou a subir novamente. Faltava-lhe pouco mais de um metro para alcançar a superfície.
Então, sentiu uma explosão de dor na zona das costelas. Apanhada de surpresa, as mãos soltaram-se do bambu e deslizou pelo pau abaixo. Antes que as botas tocassem no chão, firmou os dedos com força, parando a queda. Enquanto tentava manter o equilíbrio, com o miúdo às costas, olhou para baixo e viu que tinha um corte no fato.
Devo tê-lo rasgado quando bati contra a parede.
Uma vespa enorme — um dos soldados — emergiu do rasgão e levantou voo, com a sua missão cumprida.
Sentiu as lágrimas acumularem-se à medida que a agonia se instalava.
Ergueu o rosto para superfície.
Era como olhar para o cume de uma montanha.
A única esperança de escapar seria desfazer-se de Benjie e trepar o mais rápido que conseguisse.
Conseguia sentir o batimento cardíaco do miúdo contra o pescoço, como que pedindo-lhe para não o abandonar.
Desculpa...
14h11
Sob a copa da enorme árvore que assinalava o fim do trilho, Gray mantinha o olhar fixo na encosta do monte Haleakala. Não precisava de consultar o relógio. O martelar do coração na garganta contava cada segundo que passava.
Mais ao lado, Ken encontrava-se ajoelhado junto a Emmet, ainda aturdido e encostado contra uma árvore. O professor pressionou dois dedos contra o pescoço dele, monitorizando-lhe a pulsação.
Um ruído ergueu-se da floresta adiante.
Gray endireitou-se e viu duas figuras a correrem curvadas por entre a vegetação, ignorando o trilho.
Kowalski e Palu.
Cada um trazia uma pessoa às costas.
— Encontrei-os — disse Kowalski, a resfolegar como um touro bravo, quando se juntou a Gray.
O professor acenou-lhes.
— Tragam-nos para aqui!
Kowalski ignorou-o ou pura e simplesmente perdeu as forças. Pousou a mulher — a esposa desaparecida — no chão e deixou-se cair sentado.
— E se vier cá você, não?
Palu seguiu-lhe o exemplo e deitou o marido ao lado da mulher.
Gray aproximou-se.
— Onde está a Seichan? — perguntou, sem despegar os olhos da floresta.
Kowalski endireitou-se.
— O que queres dizer com isso?
Só então Gray se apercebeu de que Kowalski partira antes de Seichan ter ido à procura do miúdo.
Palu franziu o sobrolho.
— Não vimos ninguém quando descemos a encosta — disse, acompanhando o olhar de Gray na direção da floresta. — Mas estamos a ficar sem tempo... e depressa.
Gray encaminhou-se para a vegetação.
Onde andas?
Foi quando se ouviu a primeira de uma série de explosões.
14h12
Seichan rolou sobre as ramagens húmidas de um conjunto de fetos, ensopando propositadamente o fato para que resistisse ao calor abrasador. Dois metros atrás, uma espiral de chamas azul-alaranjadas ergueu-se nos céus.
Manteve-se agachada, a olhar boquiaberta para o inferno ao redor. Colunas rodopiantes de chamas irrompiam por todo o lado, e imaginou a energia das explosões a percorrer o emaranhado de túneis e a irromper pelas dezenas de buracos e fissuras que conduziam à superfície.
Arrastou-se pelo chão, quase surda e com a visão enevoada. A encosta tremia debaixo de si por força dos ecos das explosões. O leito vulcânico não passava de uma intrincada rede de túneis e cavernas, e a energia libertada teria certamente enfraquecido essa estrutura.
Enquanto fugia, novas fissuras abriam-se por toda a parte, expelindo fumo e chamas residuais. Árvores tombavam umas atrás das outras. Sacudidos pelos tremores, os paus de bambu dançavam ao longo de toda a sua extensão.
Seichan continuou a lutar para fugir dali. Perdera o capuz a dada altura, mas o fumo e o calor pareciam ter afastado o enxame para longe. Alcançou por fim o trilho, fazendo o melhor que podia para continuar a escudar o miúdo com o próprio corpo.
Abandonar a criança nunca fora uma opção.
Sobretudo naquela altura.
Momentos antes, sem saber se sobreviveria às explosões, expressara silenciosamente o seu pesar:
Desculpa...
Essa contrição destinara-se a Gray, por ter escolhido arriscar tudo, incluindo a vida a dois, pela salvação do miúdo.
Apesar disso, sabia que também arriscara muito mais, e sentia uma pontada de culpa.
Não tinha o direito de...
O chão tremeu de novo, recordando-a de que estava ainda longe de se encontrar em segurança. Apertou o braço ao redor do rapaz e continuou a arrastá-lo.
Mais adiante, vislumbrou um brilho metálico e um pneu preto.
A moto.
Deixou o miúdo estendido e levantou a moto do chão, encostando-a contra uma árvore. Depois voltou atrás para recolher a criança. Segundos mais tarde, encontrava-se já sentada com Benjie ao colo, a cabeça apoiada num dos ombros. Esticou os braços para alcançar o guiador.
Aguenta-te, puto... está quase.
Foram necessárias três tentativas para ligar o motor. Quase chorou de alívio quando os quatro cilindros rugiram por fim entre as pernas. Antes que conseguisse arrancar, o chão tremeu uma última vez. A onda de choque quase a derrubou. Olhou para a direita e viu uma enorme secção da encosta a colapsar sobre si mesma, abrindo uma gigantesca cratera fumegante no flanco da montanha.
O buraco expandiu-se rapidamente em todas direções.
Sem um segundo a perder, inclinou-se sobre o miúdo e injetou o motor.
Enquanto tentava escapar ao abismo crescente, o mundo tornou-se um borrão enevoado e brilhante. Abanou a cabeça, o que apenas aumentou a confusão. As cores misturavam-se ao redor, fragmentando o trilho e a floresta num caleidoscópio de imagens que giravam dentro e fora de foco.
Seichan já não conseguia perceber se estaria a subir ou a descer a montanha, ou se estava sequer em movimento, diga-se de passagem. Enquanto o mundo perdia o significado, apertou o miúdo e murmurou.
— Desculpa...
Dessa vez, a assunção de culpa era dirigida a Benjie.
Sabia que falhara com ele.
14h24
O estrondo da explosão ainda ecoava nos ouvidos de Gray, quando correu pela montanha acima com Kowalski e Palu. Enquanto subiam, um manto de fumo denso desceu pela encosta, envolvendo a floresta e dificultando-lhes a visão. O chão continuava a tremer debaixo dos pés, com o leito vulcânico a quebrar-se numa troada contínua e arrepiante, como se a montanha estivesse a rasgar-se ao meio.
O pânico fazia com que sentisse o coração a bater nas orelhas.
Então, um rugido familiar ergueu-se da confusão.
Gray deteve-se no meio do trilho.
Mais acima, uma moto rompeu a cortina de fumo e acelerou em direção a eles. À primeira vista, Gray não estranhou a posição de condução de Seichan, curvada sobre o guiador, como sempre fazia. Só depois notou o seu corpo a inclinar-se perigosamente para um dos lados. Um dos braços amparava uma criança ao colo, enquanto o outro segurava a custo o guiador.
Parecia que mal se encontrava consciente, mantendo a moto equilibrada apenas por instinto e pela ação da velocidade.
À medida que a distância encurtava, Kowalski ergueu um braço e chamou-a; porém, Seichan não deu mostras de sequer se aperceber da presença deles. A moto continuou a aproximar-se, ganhando cada vez mais velocidade.
A sorte e capacidade dela de se manter em cima da moto não iria durar muito mais tempo. Pior que isso, uma dezena de metros atrás, Gray e os outros tinham acabado de subir uma face rochosa, tarefa que os obrigara a ziguezaguear pela encosta acima até ao ponto onde se encontravam.
A moto seguia apontada em direção à beira do precipício.
— Saiam do caminho! — gritou Gray.
Kowalski e Palu desviaram-se para um dos lados.
Gray seguiu-lhes o exemplo, mas manteve-se no limite do trilho. Fletiu as pernas, pronto para entrar em ação.
Só teria uma oportunidade.
Assim que a moto se aproximou, atirou-se em voo contra Seichan, embatendo contra o seu ombro e apertando um braço ao redor dela e do miúdo. Os dois foram lançados para fora da moto, e aterraram os três, uns por cima dos outros, em cima de um conjunto de fetos no outro lado do trilho. A moto seguiu desgovernada pela encosta abaixo, ainda de pé, até se lançar pelo abismo. Descreveu um longo arco no ar, rolando sobre si mesma até por fim cair, com estrondo, na floresta lá em baixo.
Gray apressou-se a verificar o estado de Seichan e do miúdo.
Ambos pareciam estar bem, embora inconscientes.
Kowalski e Palu juntaram-se a ele, ambos com a mesma expressão preocupada.
Gray acenou na direção da base da montanha.
— Ajudem-me a levá-los para o jipe.
Palu pegou no miúdo; Kowalski e Gray em Seichan. Numa questão de minutos, estavam já de volta à enorme árvore.
Ken correu ao encontro deles.
— Graças a Deus que estão bem! — disse, ainda que a exclamação não fosse necessariamente correta.
Gray colocou Seichan no chão.
— O que se passa com eles, professor? — perguntou, fazendo um gesto largo.
Ken olhou para o casal e para o guia, depois para Seichan e para o miúdo.
— Com toda a certeza é o efeito da neurotoxina libertada pelo ferrão das fêmeas. Devem recuperar daqui a pouco.
Gray pressentiu que o professor não lhe estava a contar a história toda.
— Só isso?
— Na verdade, examinei as marcas no corpo do senhor Lloyd, com a ajuda de uma lupa. Foi picado várias vezes, mas a pele não apresenta os edemas típicos causados pelas ferroadelas dolorosas dos soldados.
Gray compreendeu o que o professor lhe estava a dizer. Lembrava-se bem da sua explicação acerca do processo de procriação das vespas, de como as enormes fêmeas picavam repetidamente os hospedeiros, o que lhes permitia implantar o maior número possível de ovos.
— Está convencido de que foi parasitado.
— E talvez os outros também o estejam.
Gray olhou para Seichan.
Ken adivinhou-lhe os pensamentos.
— O guia e os restantes estiveram mais tempo expostos. É nessa altura que as fêmeas colocam os ovos, com as vítimas inconscientes e incapazes de se defenderem.
Nesse caso, há esperança, pensou Gray, ajoelhando-se ao lado de Seichan.
No mesmo instante, porém, uma enorme vespa emergiu através do rasgão no fato dela. Equilibrou-se no rebordo do tecido, com as asas a zumbirem numa mancha desfocada.
Gray reconheceu a criatura das fotografias do professor.
Uma fêmea procriadora.
Kowalski pontapeou-a para um dos lados e pisou-a com força, até não restar mais nada do que uma poça negra de gosma.
Gray desviou o olhar para Ken, cuja expressão lúgubre lhe disse tudo.
Não restava qualquer esperança.
16
7 de maio, 15h38 HST
Hana, ilha de Maui
De volta à segurança da cabana, Ken deteve-se no alpendre, com os braços cruzados de preocupação. A brisa marítima carregava a promessa de chuva para o final da tarde, juntamente com o perfume dos jardins. O cenário bucólico contrastava com o manto sombrio que cobria o flanco do monte Haleakala.
Já sem os tremores e com as chamas extintas graças à floresta húmida, Ken, ainda assim, sabia que a verdadeira ameaça para aquelas ilhas subsistia. Aguardava ansiosamente por descobrir a gravidade da situação, mas havia outros assuntos mais prementes.
Uma ambulância percorreu o acesso de gravilha e seguiu em direção à autoestrada. Transportava a família Simmons e o guia turístico. Palu chamara os paramédicos via rádio, instruindo-os para se dirigirem para a cabana enquanto o grupo acelerava de jipe pela montanha abaixo. Pela altura em que tinham chegado ali, o efeito da neurotoxina começara a passar. Ainda assim, todas as vítimas necessitavam de atenção médica.
Palu também se certificara com o comandante dos bombeiros de que o grupo seria confinado a uma enfermaria de quarentena no centro de saúde local. A extensão da parasitação necessitava de ser avaliada e monitorizada.
Contraiu os músculos dos braços, recordando o rosto assustado do miúdo, as lágrimas dele. Ainda que atordoada, a família mantivera-se junta. Ken abstivera-se de lhes explicar a verdadeira natureza do mal que os afligia.
Isso podia esperar, por enquanto.
Contudo, sabia que tal reserva se devera sobretudo à incapacidade de lhes contar a verdade, em vez de compaixão. Sem falar de uma pontada de culpa.
Se ao menos eu tivesse avisado o mundo a tempo...
A porta de rede abriu-se nas suas costas.
— A Seichan está pronta para responder às suas perguntas — disse Gray.
— Sim... claro.
Ken deu meia-volta e entrou na cabana. Ao passar por Gray, o americano tocou-lhe no braço, como que lhe dizendo: estamos todos juntos nisto. Ken apreciou o gesto, embora soubesse que apenas um deles se encontrava numa situação verdadeiramente difícil.
Seichan estava sentada à mesa de jantar. O rosto exibia um tom pardacento, com os olhos vidrados. As mãos seguravam uma caneca fumegante de café. Momentos antes, enquanto ela ainda se debatia com a toxina, Ken fora brutalmente honesto. Seichan exigira-o, uma vez que suspeitava do pior.
Ken insistira para que ela acompanhasse os outros na ambulância. Fizera-o por preocupação com a sua saúde, claro, mas também pelo perigo que ela própria poderia representar.
Três dias...
Mesmo assim, Seichan recusara.
Gray sentou-se ao lado dela.
— Diz ao professor o que me contaste.
Seichan baixou o olhar para as profundezas fumegantes da caneca.
— Quando fui procurar o rapaz, deparei-me com uma série de animais caídos na floresta... veados, javalis, centenas de aves...
— Mortos ou vivos?
— Não sei dizer. Alguns ainda se mexiam.
— Não são boas notícias, mas também não me surpreende. — Ken sentou-se lentamente, ainda a absorver a informação. — Como lhes expliquei, as Odokuro são generalistas no que toca à seleção de hospedeiros. Pelo que está a dizer, temos de partir do princípio de que boa parte da fauna local se encontra já contaminada.
— O que podemos fazer? — perguntou Gray.
Ken franziu o sobrolho.
— Temos de enviar equipas para a montanha. Todos esses animais precisam de ser incinerados. Só não sei se chegaremos a tempo. O efeito da toxina terá já passado na maioria dos casos, e não teremos forma de saber quais os animais afetados. Como se não bastasse, os sobreviventes do enxame irão procurar um novo local de acasalamento, de forma a reiniciar todo o processo.
— O que está a querer dizer ao certo? — quis saber Gray.
Aiko Higashi respondeu pelo professor. Sentada na outra ponta da mesa, a oficial dos serviços secretos japoneses endireitou as costas, a expressão indecifrável.
— O professor está a dizer que é demasiado tarde. Com as vespas a procriarem, temos de dar início à contagem decrescente. Em três dias, não haverá outra opção que não seja a de destruir estas ilhas. Não podemos permitir que este organismo se propague para lá destas costas.
Ken recordou a tempestade de chamas na ilha brasileira.
A expressão de Gray endureceu. Não estava disposto a desistir tão depressa.
— Professor, existe alguma forma de erradicarmos as larvas? Alguma fraqueza que podemos explorar para ganharmos tempo?
Ken notou a mão de Gray pousada na perna de Seichan. Aquela pergunta traduzia também uma preocupação pessoal.
— Como lhes disse, não tive tempo para concluir o meu estudo da espécie. Experimentei as drogas habituais, como o Ivermectin, um medicamento eficaz contra uma variedade de parasitas. — Abanou a cabeça. — Não produziu quaisquer efeitos. Nada do que experimentei resultou.
Seichan fitou o professor.
— O que vai acontecer?
Ken desviou o olhar. Sentia-se tentado a mentir-lhe, mas sabia que ela exigia saber a verdade. Por mais horrível que fosse.
— Examinei a sua pele enquanto esteve inconsciente — começou por dizer, tentando manter um tom de voz clínico, mas as palavras falharam-lhe. — Encon... encontrei mais de uma centena de picadas. O número de ovos implantados deve situar-se na ordem dos milhares.
Deitou-lhe um olhar pesaroso, como que pedindo desculpa pelas más notícias.
Seichan instou-o para que prosseguisse.
— Continue.
— Os ovos devem ter eclodido em poucos minutos após a implantação, cada um produzindo uma série de larvas no seu estágio inicial. Por essa altura, o tamanho é microscópico, o que lhes permite penetrarem profundamente nos tecidos. Como tal, é provável que não sinta sintomas durante o resto do dia.
— E amanhã?
— Atingirão o segundo estágio de desenvolvimento. Por essa altura, terão o tamanho de um grão de arroz, e será quando começam a infligir os verdadeiros danos. Felizmente, parecem evitar órgãos vitais, mantendo-se longe do sistema nervoso central e do coração. Só não sei como fazem isso. — Olhou ao redor da mesa. — Mas será doloroso, mesmo assim. Porém, não tanto como no terceiro dia...
— Quando se deslocarem para os meus ossos — disse Seichan, estoicamente.
Ken visualizou os ratos que utilizara como cobaias em Quioto. Assim que as larvas atingiam o terceiro estágio, os ratos contorciam-se em agonia, mordendo-se a si próprios. Alguns chegavam a rasgar as barrigas, a fim de chegarem à fonte da dor. As drogas pouco ou nada faziam para atenuar o sofrimento. No final, fora obrigado a anestesiar os animais, mantendo-os a dormir durante as fases seguintes do processo.
— A partir daí só irá piorar — explicou o professor.
— E no final? O que acontece? — perguntou Seichan.
Ken abanou a cabeça. Não conseguia ser franco a esse ponto. Fechou os olhos, tentando evitar a imagens dos ratos quando por fim sucumbiam. No quarto e quinto estágio, as larvas alimentavam-se do hospedeiro até o matarem. O que restava então era apenas uma carapaça oca, destinada a proteger as futuras vespas. Numa questão de dias, os insetos adultos emergiam dos seus casulos e rompiam a pele até ao exterior.
Ken testemunhara vários exemplos do horrível processo de nascimento. Era algo que nunca mais conseguiria esquecer. Os corpos dos ratos remexiam-se a partir do interior, como se estivessem vivos. A recordação do que acontecia a seguir fez com que se arrepiasse.
Gray apercebeu-se do mal-estar do professor.
— Precisamos de encontrar uma solução antes que as coisas cheguem a esse ponto — disse.
Ken engoliu em seco.
— Nada do que tentei resultou. E mesmo que tivesse mais tempo, não tenho a certeza se teria maior sucesso. Uma vez implantadas, as larvas parasíticas são praticamente imunes a qualquer droga que eu conheça. — Para que não subsistissem dúvidas, olhou ao redor da mesa e perguntou: — Alguém conhece o ciclo de vida da mosca varejeira?
Palu franziu o sobrolho.
— As varejeiras depositam os ovos em feridas abertas. A partir daí, as larvas parasíticas penetram na carne e começam a alimentar-se dos tecidos. Sem tratamento, o hospedeiro acaba por morrer.
— E qual é o tratamento? — perguntou Gray.
— Remoção das larvas através de cirurgia. As drogas são inúteis.
Gray desviou o olhar para Seichan.
— Quer dizer que...
Ken destruiu-lhe de imediato qualquer esperança.
— As larvas da varejeira instalam-se à superfície. Estas vespas penetram fundo nos tecidos e espalham-se por todo o organismo, fora do alcance de qualquer bisturi.
Uma sombra de desespero caiu sobre a mesa.
Aiko tomou a palavra, como se estivesse a aguardar por aquele momento.
— O professor Matsui admitiu já que apenas estudou esta espécie durante dois meses — disse, recostando-se na cadeira. — Porém, e tomando como verdadeira a história de Washington acerca do roubo de um artefacto no tempo da Segunda Guerra Mundial, isso significa que alguém esteve na posse deste organismo durante décadas. O que nos coloca uma questão pertinente. Porquê esperar tanto tempo para desencadear esta ameaça?
Ninguém respondeu.
— Porque houve alguma coisa que mudou — prosseguiu Aiko. — Talvez tenham descoberto uma forma de controlar este monstro biológico. — Olhou para Seichan. — Quem sabe até uma cura.
Ken franziu o sobrolho.
— Mesmo que esteja certa, não vejo por onde possamos começar.
Aiko esboçou um leve sorriso.
— Sou capaz de ter uma ideia.
— O quê? — disse Gray.
— Preciso que compreendam que tudo o que vos vou dizer se baseia em teorias que poderão estar erradas.
Kowalski fez uma careta.
— Por outras palavras, estamos a falar de ciência exata.
Aiko ignorou-o e prosseguiu.
— Na vossa ausência, discuti o assunto com a capitã Bryant.
— Falou com a Kat? — perguntou Gray.
Aiko anuiu com a cabeça.
— Debruçámo-nos as duas sobre a questão. Sabemos qual é a autonomia dos aviões Cessna usados para a libertação dos enxames. Como tal, suspeitamos que poderá haver uma ligação japonesa por detrás de tudo isto. Compilei uma base de dados com a identificação de empresas japonesas com filiais ou laços financeiros a territórios localizados dentro da área circunscrita pela autonomia de voo dos Cessna.
— E?
— O número de possibilidades é surpreendente, visto que existe um forte investimento asiático por toda a região da Polinésia, com a China e o Japão a competirem à cabeça. No entanto, encontrámos um dado que nos saltou à vista. A compra de uma pequena ilha, dentro deste limite, por parte de uma empresa farmacêutica japonesa. Um atol, para ser mais exata.
Aiko pegou num mapa e desdobrou-o em cima da mesa. A legenda dizia ILHAS DO NOROESTE HAVAIANO. O mapa mostrava uma cadeia de ilhotas espalhadas por uma extensão de mil e quatrocentos quilómetros ao longo do oceano Pacífico, até ao atol de Midway e para lá deste.
Aiko explicou o que estavam a ver.
— O atol é demasiado pequeno para constar no mapa, mas fica perto da ilha de Laysan — disse, apontando com o dedo.
Palu debruçou-se sobre a mesa.
— Conheço essas ilhas. O meu irmão e eu costumamos velejar até lá. São muito bonitas. E muito privadas. São poucas as pessoas que as visitam.
Aiko concordava com a avaliação de Palu.
— Sim, a maioria encontra-se desabitada.
Gray juntou-se ao havaiano, a fim de estudar melhor o mapa.
— O que tem de suspeito a compra de um atol perto destas ilhas?
— Primeiro que tudo, a empresa em questão é uma concorrente dos laboratórios Tanaka, a farmacêutica que financia o trabalho do professor Matsui.
Aiko olhou para o professor; porém, Ken não precisava de ser recordado de que a sua expedição a Queimada Grande poderia ter servido um objetivo mais sinistro, tornando-o um peão involuntário num jogo de espionagem industrial.
A agente japonesa prosseguiu.
— Segundo, o atol albergou em tempos uma estação LORAN da Guarda Costeira dos Estados dos Unidos. O que resta do complexo são uma pista de aviação e alguns edifícios abandonados.
— Modernizados, poderiam ser um bom palco para organizar uma operação destas — admitiu Gray.
— Qual é a empresa farmacêutica em questão? — perguntou Ken.
— Uma que temos monitorizado desde há alguns anos, embora por razões que nada têm que ver com isto... operações no mercado negro, esquemas financeiros... — Aiko abanou a cabeça. — Nunca conseguimos provas que suportassem uma acusação formal. A maioria das leis japonesas favorece as grandes empresas.
Ken sabia que isso não era mentira nenhuma.
— E como se chama a empresa?
Aiko ergueu uma sobrancelha.
— Laboratórios Fenikkusu.
Ken deixou-se cair sentado na cadeira. Conhecia o nome, mas agora fazia muito mais sentido.
— O que foi? — perguntou Gray.
— O nome... — explicou Ken. — Em japonês significa fénix.
— Onde será que foram buscar tal ideia? — bufou Kowalski.
Aiko encolheu os ombros.
— Seja como for, como vos disse, tudo isto é circunstancial, ou quem sabe até uma mera coincidência. Nunca poderíamos invadir as instalações deles com base nestes pressupostos.
— Precisaríamos de reunir mais provas — admitiu Gray.
Aiko fitou o mapa.
— Provas essas que talvez se encontrem numa pequena ilha no meio do oceano Pacífico.
— Nesse caso, é para lá que vamos! — decidiu Gray. Ken conseguia ver as engrenagens a rodarem a toda a velocidade na cabeça do americano.
— Eu vou com vocês — disse Palu. — Conheço as ilhas. Tenho, aliás, uns primos em Midway, que nos podem emprestar um barco. É uma boa forma de passarmos despercebidos.
Gray anuiu com a cabeça, nitidamente satisfeito com a oferta.
Seichan levantou-se.
— Também vou.
Gray hesitou.
— Talvez seja melhor se...
— Está decidido — rematou ela.
Ken tentou intervir. Sabia bem o que vinha a seguir.
— Por agora, a decisão mais prudente seria a de mantê-la em observação. Aqui mesmo, vá, caso não concorde com a ideia de ser levada para um centro médico.
Seichan deitou-lhe um olhar dos dela.
— Sou contagiosa, por acaso?
Ken colou as costas contra a cadeira.
— Não... claro que não.
— Sendo assim, tenho três dias! — rematou ela, levantando-se de rompante e abandonando a divisão.
Assim que bateu com a porta do alpendre, Kowalski ergueu as mãos no ar.
— Só para que saibam, sou completamente a favor que ela vá.
16h44
Com pezinhos de lã, Gray saiu para o alpendre. Antes de abrir a porta, aguardara quase uma hora até que Seichan terminasse de andar de um lado para o outro e se sentasse nos degraus, a olhar para o vazio. Mesmo assim, à cautela, manteve-se atento às nuvens de tempestade que ainda pairavam sobre os seus ombros.
— Como vai isso? — perguntou.
Seichan ignorou-o, mantendo as costas viradas.
Nada bem, pelos vistos.
Avançou com prudência, receoso de abrir a boca, e estendeu a mão como uma oferta de paz.
— Preparei um prato de atum fresco — disse, fitando o jardim. — Como nos vamos embora daqui por uma hora, pensei que talvez quisesses alimentar o teu gato vadio.
Seichan suspirou e pegou no prato.
Gray sentou-se no degrau, mantendo alguns centímetros de distância entre os dois.
— Pensei que não gostavas de que eu alimentasse o gato — murmurou ela.
— Dadas as circunstâncias, acho que o gato é a menor das ameaças à biosfera destas ilhas.
— Verdade — anuiu Seichan, embora continuasse sem olhar para ele.
— Seichan...
— Não me vais deixar para trás!
— Eu sei, mas...
— Se tiver de morrer, morrerei a lutar.
— Tu não vais morrer. Nós vamos encontrar uma cura. — Gray estendeu-lhe a mão. — Juntos.
Seichan descaiu os ombros, libertando por fim alguma da tensão acumulada. Estendeu a mão e entrelaçou os dedos nos dele. Gray conseguia sentir-lhe a mão a tremer.
— Vais ficar bem, prometo-te.
— Não estou preocupada comigo — disse ela, virando-se finalmente, com o rosto lavado em lágrimas. — Eu deveria ter-te contado...
Gray franziu o sobrolho, preocupado. Sabia que havia qualquer coisa a incomodá-la nos últimos tempos.
Seichan fitou-o. O seu olhar era de puro terror.
— Estou grávida.
TERCEIRA PARTE
A ESTRADA DE ÂMBAR
17
8 de maio, 17h03 JST
Fujikawaguchiko, Japão
Takashi Ito ignorou o visitante silencioso e ajoelhou-se frente à mesa baixa, uma kotatsu tradicional, que consistia de uma armação de madeira sobre uma pequena alcova, coberta com uma colcha de seda antiga. Debaixo da colcha, a secção de chão afundada continha pedras de carvão incandescente sobre uma camada de areia.
Os joelhos magros e artríticos repousavam sob uma das pontas da kotatsu, aquecidos pelo carvão. Embora fosse primavera, o ar mantinha-se frio pela altitude da cidade, nas margens do lago Kawaguchi, situado a oitocentos metros no flanco norte do monte Fuji.
O Kawaguchi era apenas um dos cinco lagos que rodeavam a montanha sagrada. Durante séculos os artistas tinham-se deslocado até ali para tentarem capturar a beleza das neves do cume refletidas nas águas plácidas do lago, famoso pelas vistas magníficas.
Nenhum conseguira.
A magnificência daquele lugar só podia ser apreciada ao vivo e a cores, nunca numa tela.
Takashi desviou o olhar para a parede de vidro panorâmica, que oferecia uma vista deslumbrante para o cume branco. Era um dos motivos por que escolhera aquela localização, a quilómetros de distância do rebuliço dos hotéis e restaurantes da cidade, para construir o mais recente complexo dos laboratórios Fenikkusu.
O cenário era verdadeiramente grandioso. O cume resplandecente do monte Fuji — um cone perfeito — parecia flutuar, serenamente, contra o azul dos céus. Ao longo do dia e à medida que o sol se deslocava, passava de um diamante cristalino para uma sombra púrpura. Segundo a mitologia xintoísta, o monte Fuji era o lar do deus Kuninotokotachi. O próprio nome, Fuji, era sinónimo da palavra imortal.
Takashi também apreciava a dicotomia daquela montanha, que tinha tanto de serena como de turbulenta. O monte era um vulcão compósito, que muitas vezes soltara a sua fúria sobre a região circundante. Durante a última erupção, em 1701, o fluxo piroclástico estendera-se ao longo de quilómetros, arrasando casas, templos e cobrindo a cidade de Tóquio com cinzas, o que conduzira a uma década de fome. Por outro lado, era também a principal fonte de água para a maioria daquela terra, ao irrigar campos de arroz e quintas.
Era essa dualidade de temperamento que tornava o monte Fuji a alma do Japão, uma vez que simbolizava a serenidade e a sabedoria reconhecidas ao povo japonês, assim como a determinação e ferocidade diante de um inimigo.
Os antigos samurai usavam a montanha como terreno de treino. O novo complexo fora erguido no preciso local que outrora albergara os xóguns de Tokugawa, os mesmos guerreiros que tombaram no ataque ao templo de Kan’ei-ji. Takashi visualizou o memorial nos jardins do templo, onde todos os anos queimava incenso em memória da sua amada Miu.
Nunca poderia ter construído estas instalações noutro lugar.
Além disso, havia também razões práticas para ter escolhido aquele local. A cidade de Fujikawaguchiko ficava a cem quilómetros de Tóquio, onde se localizava a sede da empresa, o que garantia em igual medida a proximidade e o isolamento necessários em relação à capital.
Tal como deve ser.
O pessoal que ali trabalhava fora escolhido a dedo pela lealdade, discrição e conhecimentos científicos. Os salários médios anuais rondavam os sessenta milhões de ienes, o que garantia o sigilo em relação ao trabalho que efetuavam. As medidas de segurança que monitorizavam todos os funcionários e cada centímetro do complexo faziam o resto.
Escusado será dizer que tal não impedia os concorrentes, ou quem quer que olhasse por cima daqueles portões e muros, de lançar rumores acerca do que ali se passava.
Teria feito melhor, se tivesse optado por um projeto mais discreto.
Embora o complexo englobasse uma série de estruturas, o edifício principal era inteiramente construído de vidro e aço, replicando a forma de um goju-no-to, um pagode de cinco andares.
Takashi estava a par da alcunha pela qual o edifício era referido, umas vezes por puro escárnio, outras por respeito.
Kori no Shiro.
O castelo de gelo.
O nome agradava-lhe, e era tão apropriado que acabara por adotá-lo. Sobretudo no pico do inverno, quando as neves desciam do monte Fuji para cobrirem as terras em redor. A estrutura de vidro refletia a paisagem gelada, e tornava-se parte dela, como um fantasma desse Japão ancestral.
Para lá da beleza, o desenho das instalações servia também outro propósito. O vidro e o aço não ardiam, caso o monte Fuji se enfurecesse e decidisse cuspir uma chuva de fogo sobre a cidade. Além disso, e poucos o sabiam, aquele edifício era muito mais do que saltava à vista. Contava com cinco pisos subterrâneos, tantos quantos os que brilhavam à superfície, com o último deles capaz de resistir a uma explosão nuclear.
Em breve, todo esse secretismo seria devidamente recompensado.
O objetivo final encontrava-se a um passo de distância. Os horrores anunciados vingariam a morte da sua amada, Miu, infligindo no mundo o mesmo sofrimento que experienciara na pele. Ao mesmo tempo, o Japão imperial renasceria das cinzas, transcendente, a partir daquele templo.
Enquanto aguardava sentado com o convidado na sua suíte privada, localizada no piso superior do pagode de vidro, ocupava a mente e as mãos com um passatempo a que se dedicava desde jovem. Em cima da colcha da kotatsu encontrava-se uma superfície de vidro que servia de secretária, com um portátil aberto, onde aguardava a qualquer momento uma videochamada do neto. Contudo, mantinha a atenção focada num pedaço de papel dobrado.
Com delicadeza, fez mais duas dobras no papel, os vincos perfeitos. Descobrira a arte do origâmi em criança, antes de a família o expulsar de casa, e nunca mais deixara de a praticar. Servia-lhe de ligação ao passado, tanto em termos pessoais como culturais, remetendo-o para os tempos do Japão imperial, quando o origâmi começou a ser praticado. A paixão por aquela arte crescera durante os anos em que estivera com Miu. Costumava fazer-lhe jardins de papel, apenas para lhe arrancar um sorriso. Em boa verdade, acreditava que era uma das razões pelas quais a conquistara.
No presente, o origâmi servia-lhe como uma atividade contemplativa, para exercitar os dedos artríticos, até como um desafio mental, que o ajudava a manter o pensamento tão aguçado como os vincos que deixava no papel. Ao longo de décadas, ajoelhara-se aos pés dos grandes mestres daquela arte, sorvendo toda a perícia de cada um. Akira Yoshizawa fora um desses mentores, antes de morrer algum tempo antes, com noventa e quatro anos.
A idade que terei no final do ano.
Humedeceu os dedos com uma esponja, a fim de empregar a técnica de dobra molhada desenvolvida por Yoshizawa para executar o último vinco na figura que segurava nas mãos. Assim que terminou, colocou-a em cima da superfície de vidro, equilibrando-a nas duas pernas de papel.
Era um louva-a-deus.
Como sempre, não planeara a figura no momento em que deixara o primeiro vinco no papel. Em vez disso, permitira que os dedos ditassem o fluir do trabalho de forma quase inconsciente. Porém, uma vez terminada a peça, conseguia perceber porque acabara com aquela forma em particular.
Fitou a mulher ajoelhada em silêncio na tradicional forma seiza. Usava um quimono branco por baixo de uma hakama vermelha, uma saia larga e comprida, juntamente com umas sandálias de palha e meias tabi, que separavam o dedo grande dos restantes. Os cabelos pretos encontravam-se enrolados no cimo da cabeça com a ajuda de alfinetes decorativos cuidadosamente colocados. Da cabeça aos pés, aquele era o visual típico de uma miko, uma noiva de um santuário xintoísta.
Contudo, Takashi sabia que o sangue e a morte eram a sua principal religião.
Estudou o louva-a-deus de papel, percebendo o que o inspirara a dar corpo a essa figura. A mulher ajoelhada era também uma assassina, treinada pela Kage. Nos últimos anos, Takashi e o neto tinham recrutado secretamente os sobreviventes à queda da organização, a fim de construírem um pequeno exército pessoal, uma versão moderna dos antigos shinobi, os guerreiros fantasma do Japão feudal.
Porém, no caso daquela mulher, fora ela quem o procurara. Ela provara já o seu valor ao fornecer-lhe informações, confirmadas por contactos nos serviços secretos japoneses, de que um grupo de operacionais americanos se dirigia nesse momento para a Estónia. O grupo tencionava encontrar a origem do artefacto de âmbar que custara a vida de Miu. Ciente do que estava em jogo, enviara uma equipa para os intercetar. Queria descobrir a razão por detrás de tão estranha missão, eliminando, ao mesmo tempo, qualquer ameaça que daí adviesse.
O portátil emitiu um alerta de videochamada e o ecrã iluminou-se. Takashi estendeu o braço e premiu o ícone para iniciar a videoconferência com o neto. O rosto de Masahiro preencheu a nova janela que se abriu. Os olhos cintilavam por baixo das sobrancelhas húmidas de suor, mas a expressão era de vergonha. O neto informara-o já do desaire no Maui. A operação decorrera como planeada, porém, uma falha manchara a missão que lhe fora confiada. Os dois operacionais da Sigma, o homem e a mulher responsáveis pela queda da Kage, continuavam vivos.
— Kon’nichiwa, Sofu — disse Masahiro. Contudo, ao aperceber-se da expressão zangada de Takashi, abandonou de imediato esse tratamento informal. Sabia que precisava de reconquistar o respeito do ancião, antes de lhe poder chamar novamente sofu, ou avô, e repetiu a saudação, dessa vez acompanhada de uma pequena vénia por respeito ao título hierárquico de Takashi. — Jonin Ito.
— Qual é a situação na base? — perguntou Takashi.
Depois de escapar do Maui, o neto voara de avião para a ilha de Ikikauo. A base de operações localizava-se num pequeno atol perto de Midway, onde a frota imperial japonesa sofrera uma humilhante derrota durante a Segunda Guerra Mundial. Era natural que aquela nova ofensiva fosse lançada a partir desse mesmo local.
— Hai — respondeu Masahiro, anuindo com a cabeça uma única vez. — A informação foi recolhida e os equipamentos de procriação estão a ser desmantelados. Deveremos estar prontos para incinerar todo o complexo por altura do anoitecer.
Takashi notou o ligeiro abanar de cabeça da mulher sentada à sua frente. Ela exprimira já a sua opinião sobre o assunto.
— Tem a certeza de que o grupo se dirige para lá? — perguntou-lhe.
A mulher anuiu em silêncio. Estava certa de que os americanos, sobretudo os dois operacionais que tinham sobrevivido à tentativa de assassinato, seriam capazes de seguir o rasto de Masahiro até à ilha de Ikikauo. A ideia parecia improvável, mas Takashi aprendera a confiar na avaliação dela.
Masahiro apercebeu-se da troca de impressões entre o avô e a mulher.
— Jonin Ito — apressou-se a dizer —, tudo está a correr de acordo com o estabelecido. Vamos...
Takashi ergueu a mão, ordenando-lhe que se calasse.
— Perdeste o teu comandante de equipa. Genin Jiro era um bom soldado. — Desviou o olhar para a mulher ajoelhada. — Vou enviar-te um substituto.
Masahiro franziu a testa.
— Mas nós não temos tempo para isso...
Takashi respirou fundo.
Sendo tu tão novo, o que sabes acerca do tempo?
— A operação continuará a decorrer como planeada. Contudo, vou dar-te uma nova missão para cumprires aí mesmo, em Ikikauo. Será uma oportunidade para redimires a tua honra.
Takashi partilhou os pormenores com o neto, enquanto a mulher aguardava com os dedos sobre um punhal escondido sob o nó da sua hakama. Chamava-lhe athamé, pois tratava-se de uma lâmina destinada a propósitos místicos e sombrios. Tinha razões pessoais para desejar que os americanos fossem conduzidos para aquela armadilha.
Enquanto instruía o neto, Takashi observou a pequena fotografia no canto do ecrã. Exibia o rosto de uma mulher que nada tinha que ver com a beleza de cabelos e olhos pretos, com uma compleição perfeita, sentada à sua frente.
A mulher na fotografia era um fantasma. Uma figura pálida de olhos azul-claros, quase transparentes, e cabelos brancos como a neve. Como que para compensar a falta de pigmentação na pele, uma tatuagem preta circular ocupava-lhe a metade direita do rosto. Na mulher ajoelhada, o símbolo encontrava-se dissimulado com maquilhagem, o que fazia justiça à sua capacidade para assumir várias faces. As décadas ao serviço da Kage tinham-na tornado mestre na arte do disfarce e engano.
Não admira que tenha escapado à purga.
Conhecia todos os pormenores da vida dela, e os olhos pousaram no nome russo que identificava a fotografia: Valya Mikhailov.
Nenhum nome seria capaz de descrever quem ela era na realidade, e tocou no louva-a-deus de papel, sabendo que os dedos tinham instintivamente dado forma à natureza escondida da sua convidada.
Isto é o que tu és, na realidade.
18
8 de maio, 12h09 EEST
Tallinn, República da Estónia
— Dá ideia de que caímos num livro de História — disse Monk.
Kat partilhava da impressão do marido. Fundada no século XIII, Tallinn era uma das mais antigas capitais europeias. Apesar da sua história turbulenta, que contava com inúmeras invasões de parte dos países vizinhos, conseguira preservar muita da herança medieval.
Sobretudo na parte velha da cidade.
Enquanto Monk conduzia, Kat observou o labirinto de ruas calcetadas e becos enviesados enquadrados por pitorescos edifícios de tijolo, pintados em tons pastel, que remontavam aos tempos da Idade Média. O pináculo da igreja de São Olavo erguia-se acima de todo esse cenário, uma maravilha arquitetónica que ostentara o título do edifício mais alto do mundo durante a maior parte do século XVI.
No entanto, no lado oposto da janela do BMW, erguia-se outra face da cidade, uma metrópole moderna de arranha-céus de vidro e arquitetura angular. Tallinn reinventara-se no novo milénio. O que fora em tempos uma cidade portuária nas costas do mar Báltico, cheia de fábricas de papel e de fósforos, era agora a versão europeia de Silicon Valley. Tallinn albergava mais empresas tecnológicas do que qualquer outra cidade mundial. Como era o caso da Skype, por exemplo, que ali fora fundada.
Ainda assim, as pessoas mantinham o orgulho na história da cidade e celebravam-na, como acontecia com o festival a decorrer nesse momento. O grupo fora avisado no aeroporto acerca do Tallinna Vanalinna Päevad, ou Dias da Cidade Velha de Tallinn, onde as ruas medievais eram ocupadas por homens e mulheres com trajes da época. Alguns calcorreavam os passeios em andas. Um acompanhava o ritmo lento do BMW empatado pelo trânsito, equilibrando-se em duas varas com a altura de dois andares. Por todo o lado, pontos de venda improvisados ajudavam à confusão, oferecendo uma variedade de petiscos e peças de artesanato local.
Um rapaz aproximou-se e bateu na janela. Trazia um cesto com chocolates Kalev e guloseimas variadas, de fabrico estónio. Vestia uma camisa e calças de linho brancas, com coloridos bordados tradicionais.
Sentado ao volante, Monk apontou para o rapaz.
— Podíamos levar umas guloseimas para as miúdas.
Kat ergueu a sobrancelha.
— Achas mesmo que precisam de mais açúcar? — exclamou, calculando que a sugestão fosse motivada por interesse próprio. O marido não resistia a doces — e não era o único, pelos vistos.
— Na verdade, até comia um chocolatezinho — disse o doutor Bennett, sentado no banco traseiro a olhar boquiaberto para as festividades em redor.
— Eu também — acrescentou Elena, com um sorriso.
Kat cedeu à vontade da maioria e abriu a janela. O aroma das várias iguarias à venda aguçou-lhe o apetite. Comprou uma mão-cheia de chocolates ao miúdo, bem como um saco de caramelos, que guardou para si, apenas para confirmar a qualidade de fabrico da doçaria estónia.
À medida que abandonavam a zona histórica, o trânsito finalmente desanuviou. Apesar do tempo perdido, tinham demorado menos de meia hora a percorrerem o trajeto do aeroporto ao centro da cidade. O destino final surgiu mais à frente na forma da Eesti Rahvusraamatukogu, a Biblioteca Nacional da Estónia.
— Impressionante — disse Elena, admirando a imponente estrutura.
O edifício de oito andares ocupava um quarteirão inteiro. Lembrava um túmulo da era de Estaline, com uma massiva fachada cinzenta decorada com uma única janela circular, encimada por um telhado piramidal. O desenho utilitário fazia sentido, visto que a construção se iniciara ainda nos tempos do domínio soviético e fora apenas terminada após a declaração de independência, em 1988.
No presente, erguia-se como um testemunho à resistência estónia.
Para o grupo, era o local de onde pretendiam seguir os passos de Archibald MacLeish.
Durante o voo de nove horas até Tallinn, Kat lera o diário do antigo presidente da Biblioteca do Congresso. MacLeish chegara àquele país numa altura especialmente conturbada, quando os soviéticos ocuparam a capital depois de expulsarem os nazis à força de terríveis bombardeamentos, causando a morte a inúmeros civis, crianças incluídas. MacLeish anotara as palavras que encontrara escrevinhadas por resistentes locais nas ruínas do Teatro Nacional: Varemeist tõuseb kättermark! «A vingança erguer-se-á das ruínas!» Na altura, MacLeish ficara impressionado pelo espírito de luta daquelas pessoas. Mesmo nos dias que corriam, os estónios continuavam a mostrar-se ferozmente nacionalistas e apostados a nunca mais caírem sob o domínio de potências invasoras, sobretudo dos russos.
Era também ali que MacLeish terminara a busca pela origem do artefacto de James Smithson, no preciso dia em que os Estados Unidos largaram a bomba atómica sobre Hiroxima. Com os japoneses subjugados, MacLeish abandonara a missão a que se propusera.
Deixando-nos a nós a responsabilidade de lhe dar seguimento, tantos anos depois.
Enquanto Monk estacionava o BMW, Kat admirou o gigantesco edifício, sentindo-se momentaneamente assoberbada pela enormidade da tarefa que lhes fora incumbida. Como é que podiam alimentar esperanças de descobrirem onde Smithson deitara mãos a esse artefacto? E num prazo de três dias, ainda por cima?
Elena notou a sua expressão preocupada e tentou tranquilizá-la.
— A Biblioteca Nacional tem a maior coleção de livros de todos os estados bálticos. Além do que se vê à superfície, conta com mais dois pisos subterrâneos, onde estão guardadas as obras mais importantes. No total, estamos a falar de mais de cinco milhões de volumes escrupulosamente preservados em instalações de temperatura controlada. Se houver alguma pista deixada por Smithson, iremos encontrá-la aqui, com toda a certeza.
Ao saírem do carro, o doutor Bennett ergueu o rosto para a imponente fachada.
— Só não sei por onde podemos começar... — disse, coçando a barba na ponta do queixo.
O entomologista contava sessenta e poucos anos, embora os cabelos louros, os olhos azuis e a pele rosada lhe dessem um ar mais novo. Kat sabia que ele tinha família em Montana, o que talvez justificasse o visual de cowboy. Para a viagem, apresentara-se com umas calças de ganga, botas de couro e uma camisa de xadrez, que complementara com um casaco clássico.
Kat apercebera-se do modo encantado como Elena olhava para o entomologista. A bibliotecária tocou no cotovelo dele e apontou-o para a entrada.
— O diretor da biblioteca, Gregor Tamm, deve estar à nossa espera. Teve a gentileza de pedir ao pessoal que reunissem todo o material que diga respeito a Smithson, sobretudo em relação ao tempo que aqui passou. Esperemos que isso nos dê uma ideia de onde podemos procurar a seguir.
— Ótimo — disse Sam, satisfeito. — Nada como mexer uns cordelinhos para facilitar as coisas.
Elena encolheu os ombros, com as faces ligeiramente rubescidas.
— Oh, é apenas umas das vantagens de ser a presidente da Biblioteca do Congresso.
Kat apressou o grupo em direção à longa escadaria que conduzia à entrada.
Monk deu-lhe a mão enquanto caminhava a seu lado.
— Ah, o amor... — suspirou, acenando com a cabeça na direção do par que seguia à frente.
— Chiu! — disse Kat, tentando manter uma expressão séria.
Mal atravessaram a porta principal, um homem de meia-idade, impecavelmente vestido com um fato preto, estendeu os braços e avançou, com um sorriso aberto, em direção a Elena. Os cabelos pretos e o bigode fino revirado brilhavam, como que encerados. Parecia o mordomo de uma velha casa aristocrática.
— Tere tulemast, doutora Delgado, bem-vinda! — disse. Tocou com a mão no peito. — Sou o diretor Tamm. Falámos ao telefone.
Elena endireitou as costas e apertou-lhe a mão.
— Sim, obrigada por nos receber. Peço desculpa por lhe ter ligado a meio da noite e por impor toda esta maçada ao seu pessoal.
— Não é maçada nenhuma, garanto-lhe. Tivemos todo o gosto em reunir o material que pediu. — Acenou na direção do lado oposto do átrio. — Acompanhe-me, por favor. Tenho uma sala preparada para si.
Uma vez feitas as restantes apresentações, o diretor conduziu o grupo através de uma exposição de livros raros a caminho do elevador. Acotovelaram-se todos na exígua cabina e, assim que as portas se abriram no sétimo andar, Tamm levou-os por um longo corredor, apinhado de estantes de ambos os lados. Os espaços interiores lembravam um castelo medieval, com galerias cavernosas, arcadas imponentes e abóbadas de tijolo. Estátuas de bestas míticas decoravam pedestais e alcovas.
Kat reparou numa figura em particular, um homem com corpo de rato.
Antes que pudesse manifestar a sua curiosidade, o diretor olhou por cima do ombro e afirmou:
— Pelo que me disse, o Instituto Smithsonian espera descobrir um pouco mais acerca da vida do seu benfeitor para as celebrações do aniversário do museu, correto?
— Isso mesmo — anuiu ato contínuo Elena, nitidamente pouco à vontade com a circunstância de se ver obrigada a mentir a um colega.
Kat intercedeu em sua ajuda.
— Smithson era um ávido colecionador de minerais, que viajou por toda a Europa em busca dos mais invulgares espécimes. Como deverá saber, grande parte da coleção perdeu-se num incêndio no século XIX. Temos esperança de conseguirmos reconstruí-la para a exposição que estamos a preparar em sua homenagem.
Essa era, pelo menos, a justificação oficial para aquela visita.
— Uma iniciativa ambiciosa, sem dúvida — admitiu Tamm. — E que forma gloriosa de honrar a vida de tão grande homem. Daquilo que consegui reunir durante a noite, percebo bem como a sua contribuição para a ciência enquanto químico e mineralogista se perdeu nas páginas da história, soterrada pela extravagância da generosa doação que permitiria criar a vossa instituição.
— É isso mesmo que tencionamos corrigir — disse Elena, dando a impressão de que concordava com esse ponto de vista. — Queremos dar a conhecer ao mundo o cientista por detrás do benfeitor.
Tamm acenou com a cabeça e continuou a conduzi-los em direção a uma porta sob uma arcada de madeira. Coberta de ferragens antigas, a porta parecia saída de um velho castelo.
— Por norma, esta sala de leitura encontra-se reservada aos investigadores das universidades locais. Posso deixá-los a analisar o material que recolhemos, ou, se preferirem, e dado que tomei a liberdade de selecionar pessoalmente uma boa parte destes volumes, posso ficar e ajudá-los.
— Seria sem dúvida uma boa ajuda — disse Kat.
— Seria uma honra, na verdade — disse Tamm.
O diretor abriu a porta e convidou-os a entrarem. O espaço parecia um claustro medieval, onde não faltava uma armadura completa a um dos cantos, como que guardando as altas prateleiras recheadas de volumes empoeirados que cobriam as quatro paredes. Uma única mesa dividia o espaço. Diante de cada cadeira havia um candeeiro de leitura apontado para um suporte inclinado de madeira, destinado a segurar um livro aberto.
Kat esperava deparar-se a qualquer momento com a figura curvada de um monge a compor elaboradas iluminuras num manuscrito. Em vez disso, deu de caras com uma jovem de cabelos louros entrançados num longo rabo de cavalo, sentada a um computador, junto da única janela existente.
Tamm apresentou-a.
— Esta é a Lara, uma das nossas novas investigadoras. — Abriu um sorriso. — E também minha filha.
Monk riu-se.
— Está a seguir as pisadas do pai, portanto.
— E eu não poderia estar mais feliz por isso.
Kat reparou no orgulho exacerbado nos olhos de Tamm, bem como na expressão meio envergonhada da rapariga. Calculou que ela preferisse singrar por mérito próprio, ou talvez fosse apenas a reação típica de uma filha perante um pai demasiado solícito. Interrogou-se se as suas duas filhas acabariam por ter o mesmo comportamento em relação a si mesma.
Monk deveria estar a pensar em algo semelhante, e não resistiu a partilhar com Kat a sua ideia sobre o assunto.
— Espero que as nossas miúdas não se tornem como nós — segredou-lhe. — Se calhar, devíamos começar a sugerir-lhes opções de carreira mais seguras, como o fabrico de almofadas.
— Conhecendo as duas, diria que acabariam por se sufocar uma à outra com o raio das almofadas.
— Acho que tens razão — admitiu Monk. — Talvez contabilidade, nesse caso.
Com o futuro das filhas ainda por decidir, Kat e Monk seguiram o diretor até à mesa, onde se encontravam empilhados e alinhados centenas de livros, revistas e jornais.
Kat olhou para a imensidão de papel e soltou um suspiro discreto.
— Como podem ver, a minha filha e eu estivemos bastante atarefados — disse o diretor. — Se me derem mais informação acerca do que procuram, talvez seja capaz de os apontar na direção certa.
Kat anuiu com a cabeça.
— Estamos a fazer o possível para seguir os passos de Smithson pela Europa. Pretendemos descobrir o motivo que o trouxe até Tallinn, enquanto recolhia os seus espécimes.
— Ah... — disse o diretor, acenando para que a filha se juntasse a ele. — Nesse caso, querem saber mais acerca de merevaigutee, a substância a que vocês chamam âmbar.
Kat sentiu-se aliviada por o diretor se encontrar com as costas viradas. De outra forma, ele teria notado a sua expressão surpreendida. Elena e Sam olharam para ela, igualmente boquiabertos. Monk apenas parecia preocupado, como se esperasse uma qualquer desgraça ao virar da esquina.
Tamm não se apercebeu da troca de olhares silenciosa e, virando-se para o grupo, disse:
— Sabem, conheço a razão que trouxe James Smithson a Tallinn. Foi por causa de um segredo que tentava preservar, acerca de âmbar.
13h03
Como é que este homem sabe isso?
Chocada e confusa, Elena recuou um passo. Deu um pequeno encontrão ao doutor Bennet, que a segurou pelo cotovelo. Os dedos firmes dele deram-lhe confiança para inquirir o diretor.
— O que quer dizer com isso?
Tamm pegou num caderno amarelado, com capa de couro, que se encontrava em cima da mesa.
— Este é um dos vários cadernos científicos do senhor Smithson. O conteúdo é, digamos assim, peculiar. De qualquer forma, preservarmos esta rara cópia porque diz respeito à história da região.
Elena aceitou de bom grado o documento das mãos do diretor e leu o título manuscrito em voz alta.
— Experiências no Domínio do Espírito do Âmbar...
Baixou os braços. Sabia que James Smithson realizara e documentara muitas experiências químicas, mas aquilo excedia os limites da sua compreensão.
— O que tentava ele conseguir com isto? — perguntou.
Lara respondeu-lhe, deitando-lhe um olhar tímido.
— Tomei a liberdade de pesquisar o tópico. «Espírito do Âmbar» era uma expressão usada na época para ácido de âmbar. — Apontou para as páginas amareladas. — O senhor Smithson usa o termo nas notas, onde explica como obteve o seu próprio ácido de âmbar ao aquecer a matéria-prima e destilando-a até se converter num pó acídico. Hoje em dia, conhecemos a substância como ácido sucínico.
Monk aclarou a garganta, o que captou a atenção de Elena. Sabia que os operacionais da Sigma tinham uma extensa formação científica.
— Isto diz-te alguma coisa? — perguntou Kat ao marido.
Monk estendeu a mão prostética e Elena passou-lhe o caderno.
— Vou querer ler estas páginas em pormenor, mas sei o suficiente acerca do ácido sucínico. É produzido na mitocôndria das nossas células como parte do sistema de geração de energia. É o que nos mantém vivos, basicamente.
— Mas qual seria o interesse de Smithson em realizar experiências com este «espírito do âmbar»? — quis saber Elena.
Kat parecia preocupada e virou-se para o diretor Tamm.
— Ele realizou essas experiências aqui?
— Sim. Todavia, se ler as notas, verá que não retirou nenhuma conclusão significativa. Terá sido por isso que deixou este caderno para trás e nunca publicou os resultados. Acredito que queria manter alguma reserva em relação a isto.
Elena sabia que o diretor estava certo. Era o mesmo segredo que Smithson levara, literalmente, para o túmulo. Contudo, interrogou-se se teria deixado pistas nos cadernos destruídos pelo incêndio no castelo.
Se assim foi, será que escondeu outras?
Antes que pudesse refletir sobre a questão, Monk virou-se para Kat.
— Tenho a certeza de que estamos no caminho certo.
Kat baixou o tom de voz.
— O relato de MacLeish diz-nos que Smithson, já meio embriagado, partilhou a história com um geólogo local. O que sugere que estaria na posse do artefacto antes de chegar à cidade.
— Faz sentido — anuiu Monk. — Não nos diz, porém, porque terá realizado as experiências.
— E se estivesse a tentar descobrir como é que um organismo aprisionado em âmbar poderia ressuscitar? Se calhar, estava convencido de que isso se devia a alguma propriedade desconhecida na substância, e queria descobrir qual era.
— Uma teoria que estaria errada desde o início — interveio Sam. — As propriedades do âmbar nada têm que ver com a capacidade dos cistos de se manterem adormecidos nos ossos dos hospedeiros. Esse milagre deve-se às características genéticas destas vespas.
— Mas ele nunca poderia saber isso — disse Elena, sentindo a necessidade de defender o raciocínio de Smithson. — E, apesar dos resultados negativos, foi sagaz o suficiente para perceber que estaria a lidar com algo demasiado perigoso para ser incluído no espólio deixado aos Estados Unidos, mas também demasiado milagroso para ser capaz de o destruir.
— Calculo que tenha agido como um verdadeiro cientista — admitiu Kat. — No fim de contas, preservou esse conhecimento para as gerações futuras, salvaguardando-as ao mesmo tempo do potencial perigo contido nesse artefacto.
Elena acenou com a cabeça.
— O que foi sempre o seu objetivo na ordem maior das coisas, quando decidiu doar a fortuna e coleção.
— Só nunca percebi o que o levou a optar pelo nosso país — disse Sam, franzindo o sobrolho.
Elena encolheu os ombros, consciente de que apenas poderia arriscar um palpite acerca das motivações de Smithson.
— Ele nasceu no seio de uma família aristocrática. Quando os pais se viram confrontados com dificuldades financeiras, sentiu na pele a exclusão por parte dos seus pares, que nunca o aceitaram como um deles. Calculo que isso lhe tenha deixado um amargo de boca em relação à rígida estrutura social europeia, levando-o a acreditar que o Novo Mundo representava a única alternativa para o início de uma nova era de esclarecimento, onde as ideias não seriam condicionadas por questões de estatuto social.
Elena era uma prova viva dos benefícios de crescer numa sociedade livre dessas amarras, onde a filha de um casal de trabalhadores emigrantes podia chegar ao prestigiado cargo de presidente da Biblioteca do Congresso.
Será que Smithson sonhara e invejara um mundo assim?
Monk desviou-lhes a atenção de volta para o assunto em mãos.
— Isso é tudo muito bonito, mas nada nos diz acerca do local onde Smithson terá obtido o artefacto, antes de vir para Tallinn.
Tamm e a filha faziam o possível para respeitarem a privacidade da conversa, mas a pergunta de Monk despertou a atenção do diretor. A expressão no seu rosto sugeria também que começava a desconfiar das verdadeiras intenções do grupo.
— Não quero intrometer-me — disse, da maneira mais educada possível —, mas, como lhes disse, sei qual foi a razão que trouxe o senhor Smithson até aqui. Talvez esse conhecimento possa ser-vos útil na vossa busca.
Elena olhou de soslaio para Kat. Até ao momento, o homem parecia disposto a ajudá-los. Calculava que o cargo de presidente da Biblioteca do Congresso tivesse alguma coisa que ver com isso.
E não queriam eles que eu os acompanhasse nesta viagem.
Kat parecia pensar o mesmo, e acenou com a cabeça para Elena, consentindo que ela usasse da influência do cargo daí em diante.
— Diretor Tamm, vou ser franca consigo — disse Elena. — Estamos a tentar determinar a origem de um dos espécimes minerais da coleção de Smithson. Estou a referir-me a um pedaço de âmbar, com cerca de oito quilos. — Estendeu os braços, para dar uma ideia do tamanho da peça em questão.
Tamm arregalou os olhos.
— Oh, sim, compreendo porque querem uma peça dessas na nova exposição.
— Em circunstâncias ideais — acrescentou Kat —, gostaríamos também de obter uma amostra do mesmo local onde Smithson conseguiu inicialmente a peça... para efeitos de autenticidade, isto é.
— Com certeza. O âmbar do Báltico é o de melhor qualidade! — disse Tamm, com uma ponta de orgulho. — No passado pré-histórico, estas terras, e até mesmo o mar vizinho, encontravam-se cobertos de florestas de pinheiros. Foi a seiva dessas árvores gigantes que formou os ricos depósitos de âmbar locais. Desde essa altura que o mar traz para a costa pedaços que emergem do leito marinho, mas também existem vastos filões subterrâneos, alguns com vários metros de espessura. — Fitou o grupo. — Conseguem imaginar uma coisa dessas?
Elena baixou o olhar para o chão, tentando visualizar esses vastos rios dourados debaixo dos seus pés.
Tamm prosseguiu.
— Não admira que o senhor Smithson tenha vindo até aqui, se pretendesse obter um espécime perfeito. Desde os tempos antigos que as pessoas o fazem... tanto pela qualidade das amostras como pelas suas propriedades mágicas.
Elena franziu o sobrolho.
— Mágicas?
— Sem dúvida. O âmbar sempre foi cobiçado quer pelas hipotéticas qualidades terapêuticas quer como uma ferramenta de proteção contra o mal, um meio para manter bestas e monstros à distância.
Elena olhou para Kat, interrogando-se se Smithson teria ouvido semelhantes histórias. Se assim fosse, suportava a teoria de Kat de que Smithson conduzira tais experiências por uma razão específica, porventura para testar tais convenções com a ajuda da ciência. Talvez não procurasse apenas eventuais propriedades capazes de suportar vida, mas também perceber se o âmbar poderia ser, de facto, usado como uma proteção contra o mal.
Será que procurava uma cura para o mal encerrado nesse pedaço de âmbar?
Tamm prosseguiu, interrompendo-lhe os pensamentos.
— Não posso dizer-vos ao certo onde terá ele descoberto tão magnífico espécime, mas posso apontar-vos o caminho para lá chegarem. — Virou costas. — Eu mostro-vos.
13h27
Kat seguiu o diretor em direção à estação de trabalho da filha.
Vamos lá ver se isto nos leva a algum lado.
Tamm olhou por cima do ombro para o grupo.
— Conhecem a Rota da Seda?
Kat franziu o sobrolho. Não contava com uma tão súbita mudança de assunto.
— Está a falar da antiga rota de comércio, entre a China e a Europa?
— Precisamente. Porém, existe outra rota, bem mais antiga, com mais de cinco mil anos.
De que raio está ele a falar?
Tamm virou-se para a filha e dirigiu-lhe meia dúzia de palavras em Estónio. Lara anuiu com a cabeça e teclou qualquer coisa no computador. No monitor, surgiu a imagem de um mapa da metade oriental do continente europeu.
O grupo reuniu-se frente ao ecrã.
Tamm apontou para a linha pontilhada ao longo do mapa.
— Este caminho é conhecido como a Rota do Âmbar. Ao longo dela, preciosos carregamentos de âmbar viajavam desde São Petersburgo, Rússia, onde existem vastos depósitos do material, até Veneza, Itália. A partir daí, esse tesouro era então transportado de barco pelo mar Mediterrâneo. — Fitou o grupo. — Sabiam que a placa decorativa no peito de Tutankhamon se encontra decorada com pedras de âmbar do Báltico?
O diretor não conseguia esconder o orgulho ao dar conta desses pormenores acerca da ilustre história dessa preciosidade báltica.
— Até os gregos antigos valorizavam o nosso âmbar... sobretudo pelas propriedades místicas. Há cerca de dois mil e quinhentos anos, Tales de Mileto esfregou um pedaço de tecido numa pedra de âmbar e produziu faíscas. Ele chamou a essa nova e estranha força eletricidade, um termo derivado da palavra grega electron, que significava, precisamente, âmbar.
— Sem dúvida de que tudo isso é muito interessante — disse Monk. — Mas que relação tem com James Smithson?
— Tudo — respondeu Tamm, acenando com a cabeça para o mapa. — Ele iniciou a viagem em Veneza e rumou para norte, ao longo da Rota do Âmbar. Tencionava seguir até São Petersburgo, mas acabou por ficar por aqui. Só não sei dizer porquê.
Kat podia adivinhar o motivo. Depois de as experiências não terem produzido resultados, era provável que tivesse abandonado essa intenção.
Tamm deslizou o dedo ao longo da linha pontilhada no ecrã.
— Calculo que ele tenha obtido esse espécime algures na viagem até Tallinn.
Elena olhou para Kat.
— Parece-me um palpite acertado.
Franziu o sobrolho para o mapa, estudando a vasta extensão daquela rota.
Se assim for, quais as hipóteses de descobrirmos a origem exata em menos de três dias?
Lara adiantou uma resposta possível.
— O meu pai está a esquecer-se de um pormenor — disse, deitando um olhar meio comprometido a Tamm. — Smithson viajou de facto ao longo da rota desde Veneza; porém, ao chegar ao mar Báltico, apanhou um barco e navegou pela costa até ao porto de Tallinn.
— Como sabes isso? — perguntou-lhe o pai, surpreendido.
Lara tocou no teclado do computador.
— Esta manhã, lembrei-me de pesquisar cópias digitais das listas de passageiros dos navios que navegavam na época em que Smithson chegou à cidade. Encontrei o nome dele no manifesto de um navio mercante que partiu de Gdansk, na Polónia.
Kat inclinou-se na direção do monitor e estudou o trajeto de volta até à cidade polaca, localizada na costa do mar Báltico.
Monk fez o mesmo.
— Se partiu daí, isso diminui consideravelmente a nossa área de busca.
Kat suspirou.
— Sim, ficamos reduzidos a metade da rota. Coisa pouca, escusado será dizer.
Monk deu-lhe um toque com o ombro.
— Já tivemos cenários piores.
Verdade.
Kat endireitou-se. Virou-se para Lara.
— Conseguiu descobrir mais alguma coisa acerca das viagens dele?
— Não. — Lara cruzou os braços. — Seja como for, Gdansk tem sido o principal polo mundial do comércio de âmbar. É assim desde há séculos. A cidade até inaugurou um museu há poucos anos, onde existem registos que remontam ao ano de 1477, quando foi fundada a primeira associação de artesãos que trabalhavam o âmbar. Talvez tenham qualquer coisa acerca de Smithson.
Monk encolheu os ombros.
— É uma hipótese remota.
Kat anuiu com a cabeça.
— Pois é, mas, tal como disseste, já tivemos cenários piores.
14h01
Enquanto se preparavam para partir, Elena deslocou-se ao longo da mesa da biblioteca e observou a pilha de livros e documentos referentes a James Smithson. Era como se estivesse a olhar para o corpo estendido do homem.
É isto que resta, depois de deixarmos este mundo?
Smithson nunca casara nem tivera filhos, e embora o seu nome se encontrasse espraiado em pedra ao longo do National Mall, poucos o conheciam. Tudo o que alguém poderia fazer era recolher e juntar os pedaços que ele deixara para trás. Elena pegou no caderno amarelado, tentando ela própria compreender aquele homem que sonhara melhorar o mundo através da ciência.
Devolveu o documento à mesa.
Merecias mais do que isto.
Sam aproximou-se.
— Está tudo bem?
Elena virou-se para o companheiro de expedição, que era uns vinte centímetros mais alto do que ela e nesse momento se encontrava demasiado perto do que consideraria apropriado.
— Estou apenas cansada — justificou-se. — E talvez um bocado enervada.
— Compreendo — anuiu Sam, desviando o olhar na direção de Kat e Monk. — Aqueles dois não são de ficar parados no mesmo sítio.
Elena sorriu.
Lá isso é verdade.
Mais ao lado, Monk terminou finalmente a chamada com o piloto do jato e virou-se para a mulher.
— Podemos partir daqui por uma hora, se nos despacharmos.
Kat acenou com a cabeça.
— Nesse caso, é melhor irmos andando. E ver se não somos outra vez apanhados pela confusão do festival.
— Posso indicar-vos um caminho alternativo para o aeroporto — sugeriu o diretor. Dirigiu-se em direção à porta. — Há um mapa da cidade no átrio.
Monk e Kat acompanharam-no, seguidos por Sam e Elena.
Sam ergueu uma sobrancelha.
— Está a ver o que lhe dizia?
Tamm abriu a porta.
— A parada do festival está prevista para...
Um estampido abafado cortou-lhe as palavras.
O pescoço do diretor explodiu, salpicando Kat com sangue, e o corpo dele tombou para o interior da sala.
De repente, era como se tudo acontecesse em câmara lenta.
Lara gritou, com a sua voz a soar como que do fundo de um túnel aos ouvidos de Elena. Kat baixou-se e arrastou o corpo de Tamm para um dos lados, enquanto Monk arremessava um ombro contra a pesada porta, fechando-a.
Uma nova rajada de tiros atingiu a madeira.
Sam agarrou em Elena pela cintura e puxou-a para trás.
Monk manteve-se junto à porta. Virou-se para trás e gritou:
— Lara, há outra maneira de sairmos daqui?
Paralisada pelo choque, a filha do diretor não fez mais do que arregalar os olhos.
Kat pressionou as palmas das mãos contra o pescoço de Tamm, procurando estancar o sangue.
— Lara, não temos muito tempo!
A jovem olhou para a maré vermelha que cobria o chão. A sua resposta não foi mais do que um murmúrio.
— Não...
19
8 de maio, 00h02 SST
Ilhas Havaianas do Noroeste
De pé, Gray ocupava sozinho a casa do leme do catamarã. A lua minguante pendia baixa sobre as águas escuras, emitindo pouca ou nenhuma luz. Consultou o relógio de mergulho, um Rolex Submariner de aço.
Está quase.
Mesmo assim, cerrou o punho. A tensão nos tendões do antebraço refletia a sua impaciência. Demorara-lhes quase sete horas até alcançarem aquele destino. Em Maui, tinham usado o HondaJet dos laboratórios Tanaka para voarem para essas ilhas remotas, mais concretamente para o atol de Midway, onde se encontraram com os primos de Palu e embarcaram no catamarã, um Calcutta 390, equipado com dois motores 550 Cummins, capazes de atingirem os quarenta nós de velocidade. A partir daí, aceleraram rumo a noroeste, até chegarem àquelas águas.
Ergueu o binóculo e estudou o objetivo. A duas milhas náuticas de distância, a ilha de Ikikauo erguia-se das ondas como uma mancha coberta de floresta. Um punhado de luzes cintilava no lado oeste, assinalando os edifícios desativados da antiga base da Guarda Costeira dos Estados Unidos, assim como uma pequena pista de aviação.
Momentos antes, enquanto o barco se aproximava da costa, um avião ligeiro fizera a aproximação à ilha e aterrara na pista.
Sem dúvida de que iremos encontrar alguém.
Sabendo disso, o grupo continuou a assumir o papel de pescadores, mantendo a distância. Palu e os dois primos, duas versões mais pequenas e roliças do bombeiro, agiam como se estivessem apenas de passagem a caminho de uma pescaria noturna.
Os restantes membros do grupo mantinham-se escondidos na cabina. O plano passava por aguardarem até existirem condições para saltarem borda fora com equipamento de mergulho e nadarem para terra. Precisavam de perceber se aquela ilha estaria a funcionar, de facto, como um centro de operações, bem como identificarem quem se encontrava por detrás dos ataques.
Uma tarefa espinhosa... sobretudo em território hostil.
Gray baixou o binóculo e consultou o mapa de satélite da ilha, fixado numa tábua junto ao leme da embarcação. A porção de terra circular, com cerca de mil hectares, era em bom rigor um atol, rodeado de recifes. Contudo, a característica mais singular era o lago oblongo no centro, delimitado por montes cobertos de floresta tropical. De acordo com os registos da Guarda Costeira, tinha uma profundidade máxima de trinta metros e era de água salgada, o que sugeria uma ligação aberta ao oceano.
O som de passos atrás das costas desviou-lhe a atenção.
Palu subiu do convés. O gigante havaiano deveria ter percebido que ele estava a estudar o mapa.
— É por isto que a ilha se chama Ikikauo — disse, apontando com o dedo. — Significa «pequeno ovo». O lago é como se fosse a gema, percebe?
— Estou a ver...
— Também lhe chamamos assim por causa da vida que brota daqui. Tentilhões, patos, andorinhas, albatrozes... para não falar de todo este mar. Uma pessoa atira um balde borda fora e apanha-se um peixe. — Sorriu. — Não é bem assim, mas anda lá próximo.
Gray calculou que Palu estivesse a partilhar aquilo como mais um lembrete do que se encontrava em jogo. A sua expressão tornou-se pensativa, enquanto observava as águas.
— Segundo os nossos mitos — murmurou —, o irmão de Pele, Kane Milohai, é o guardião destas ilhas. — Lançou um olhar a Gray. — Mas até os deuses precisam de ajuda de vez em quando.
— Vamos fazer tudo o que for possível. Prometo.
— Eu sei. — Palu baixou os olhos para o mapa. — Infelizmente, este lugar encontra-se ameaçado há muito tempo. — Fez um gesto largo, de forma a incluir toda a extensão de ilhas ao longo do mapa. Depois apontou para sudoeste. — Estamos nos limites do grande depósito de lixo do Pacífico.
Gray fitou o horizonte. Sabia da existência dessa mancha de lixo flutuante aprisionada pela força das correntes conhecidas como o vórtice do Pacífico. Com uma área duas vezes superior ao estado do Texas, a mancha era composta de pequenas ilhas de detritos plásticos, de borracha, redes de pesca e outros materiais.
Palu abanou a cabeça.
— Todo este lixo está a envenenar as nossas terras. Está a destruir as nossas costas, a matar pássaros e tartarugas marinhas. Ninguém quer saber do que está a acontecer aqui. — Encolheu os ombros. — O Monumento Nacional Marinho de Papahanaumokuakea tem ajudado, mas não é o suficiente.
Gray conhecia o nome dessa reserva ecológica que visava proteger as espécies endémicas ao longo das Ilhas Havaianas do Noroeste.
Palu apontou com a cabeça para o mapa.
— Para mal dos nossos pecados, esta ilha, assim como muitas outras, encontra-se fora dos limites da reserva.
— Talvez seja por isso que compraram este lugar — admitiu Gray. — Fora do alcance do Departamento de Pesca e Vida Selvagem, podem fazer o que quiserem desta terra.
— Talvez, mas a verdade é que continua a ser importante para o meu povo. — Apontou para trás das costas com o polegar. — Os meus primos dizem que existem várias cavernas com petróglifos ao longo da costa leste da ilha. Para não falar das ruínas de um heiau, um antigo templo havaiano.
Gray tinha o maior respeito pela herança cultural de Palu. Contudo, suspeitava que o bombeiro estava a partilhar essa informação por uma razão mais pragmática.
— Esses kanapapikis não precisam de se preocupar com o governo — disse, apontando no mapa para a costa leste do atol —, mas sabem que esta é uma porção de terreno proibido. — Fitou Gray. — O que significa que não estará lá ninguém.
Ah...
Gray acenou com a cabeça.
— Quer dizer que é para aí que devemos ir...
Palu sorriu.
— É uma forma de os apanharmos desprevenidos. — Deu uma palmada nas costas de Gray. — E de lhes darmos uns bons açoites.
Gray massajou o sítio onde a mão pesada do havaiano o atingira. Observou a lua, prestes a desaparecer no horizonte.
Está na hora...
Virou costas e abandonou a casa do leme.
— Vamos avisar os outros.
00h12
Deitada na pequena cama, Seichan fingia que dormia. Kowalski, pelo contrário, ressonava a plenos pulmões no lado mais afastado da cabina, dando a ideia de que alguém o estaria a sufocar. O som era tão intenso que Seichan mal conseguia ouvir a conversa entre Ken e Aiko, que sussurravam sentados à mesa na pequena copa da cabina. Não tentava perceber o que os dois diziam. Em vez disso, mantinha a palma da mão repousada na barriga, o pensamento focado no que se passava dentro de si.
Com os olhos fechados, visualizou as larvas microscópicas a roerem as suas entranhas como lagartas numa maçã. Não sentia nenhum sinal da presença das criaturas, tão-pouco dor. Segundo o professor, isso mudaria em breve.
De qualquer forma, a sua mão não procurava sinais das larvas, mas de uma outra forma de vida que também carregava.
Estás de quanto tempo?
Durante a viagem para as ilhas, Gray tentara saber mais acerca da gravidez, mas ela apenas lhe dera respostas vagas.
Seis semanas, talvez.
Imaginou o bebé com esse tempo de gestação. Daquilo que lera, não seria maior do que uma semente de romã. Teria já batimento cardíaco, embora demasiado ténue para ser captado por um estetoscópio. Ainda assim, uma ultrassonografia seria capaz de revelar as minúsculas vibrações. O cérebro estaria a dividir-se em dois hemisférios, que começariam a lançar os primeiros impulsos elétricos.
Porque não me contaste antes?
Seichan reconhecera o olhar magoado de Gray quando lhe fizera essa pergunta. Ela limitara-se a abanar a cabeça. Não era algo que soubesse dizer, ou talvez receasse a resposta verdadeira e preferisse evitá-la.
Confrontado com o silêncio, Gray tentara outra pergunta.
Tencionas ter...
Ela mordera os lábios e lançara-lhe um olhar fulminante.
Por enquanto, não interessa o que quero.
Era o mais próximo da verdade que estava disposta a admitir. A decisão de ter ou não a criança poderia ser-lhe retirada a qualquer instante; poderia até já ter sido. Depois de tudo o que passara nos últimos dias, quem conseguiria garantir-lhe o contrário?
Mais valia não alimentar esperanças.
Em vez disso, agarrara-se a uma firme convicção. Os dedos fecharam-se sobre a barriga, formando um punho fechado. A esperança não salvaria o seu bebé.
O melhor caminho a adotar era um que conhecia bem.
O da vingança.
Se houvesse alguma possibilidade de cura para o mal que lhe caíra em cima, uma cura que a salvasse a si e à criança, não descansaria até encontrá-la e que os responsáveis pelos ataques fossem capturados ou mortos.
Mortos, de preferência.
Esse pensamento teve o condão de a acalmar. Relaxou os dedos e acariciou a barriga, como que tranquilizando o milagre que crescia dentro de si.
O meu bebé...
A porta da cabina abriu-se. Sem olhar, soube imediatamente quem se curvara para entrar. Reconheceu-lhe o cheiro, a presença, e a mão deteve-se sobre a curva do baixo-ventre, desafiando-a a alimentar uma réstia de esperança.
O nosso bebé...
00h32
Gray lançou-se de costas por cima da amurada de estibordo. Foi o último a mergulhar, e permitiu que o peso da botija de oxigénio o arrastasse para o fundo. De forma a não serem vistos, todos abandonaram o barco do lado contrário ao da ilha.
Assim que o computador no pulso assinalou os seis metros de profundidade, Gray ajustou o nível de flutuabilidade do colete. Com o mergulho estabilizado, baixou o sistema de visão noturna DVS-110 sobre a máscara e preparou-se para nadar para terra. Todo o equipamento fora fornecido por Painter, ainda em Maui. O material de mergulho fora enviado de uma base da Guarda Costeira em Wailuku e entregue no avião, assim como tudo o resto, incluindo armas de fogo e explosivos.
Gray perscrutou as águas. Suspensos no escuro, os cinco companheiros não passavam de silhuetas ténues. Fez-lhes sinal com uma lanterna de luz ultravioleta, apontando na direção da costa. Os outros compreenderam a mensagem e ergueram os polegares.
Teria preferido nadar às escuras, porém, com civis na equipa, o uso da lanterna constituía um risco necessário. Olhando para a esquerda e para a direita, certificou-se de que Ken e Aiko não mostravam sinais de pânico. A presença do entomologista era vital para a missão, e a representante dos serviços secretos japoneses recusara-se a ficar no barco, insistindo que era a pessoa mais bem colocada para reunir provas incriminatórias que satisfizessem as autoridades japonesas.
Embora relutante, Gray concordara. Não havia tempo para demasiadas cautelas, e não lhe restava alternativa que não fosse proteger aquele par o melhor possível com a ajuda de Seichan e Kowalski, deixando a Palu o papel de guia. O havaiano era o único que conhecia pessoalmente a ilha de Ikikauo.
Pronto para avançar, levou a mão ao ScubaJet preso no colete de flutuação. O dispositivo propulsor, em forma de torpedo, era pouco maior que o seu antebraço, embora tivesse potência suficiente para o impulsionar através da água a um bom ritmo.
Assegurou-se de que os outros seguiam o exemplo e ligou o aparelho. Deslizou devagar, de início, até que estivessem todos coordenados e a avançarem alinhados, como uma esquadrilha de aviões de combate. Satisfeito, aumentou as rotações do motor, ajustando a velocidade do grupo para cerca de nove quilómetros por hora. A esse ritmo, chegariam à costa em menos de vinte minutos.
À superfície, e para não levantar suspeitas, os primos de Palu afastariam lentamente o barco para longe, fingindo que se iam embora.
Gray manteve um olhar atento aos companheiros. Não era fácil de fazer devido às inúmeras distrações mais abaixo. Visto através do equipamento de visão noturna, o feixe da lanterna UV transformava os recifes num caleidoscópio eletrizante de cores fluorescentes. Era como se tudo nas profundezas se tornasse instantaneamente bioluminescente. Os corais marinhos resplandeciam em tons azuis e vermelhos. As anémonas ondulavam com madeixas amarelas e esverdeadas. Filamentos escarlates assinalavam os picos negros dos ouriços. Uma lagosta surgiu de repente de um dos lados, tão iluminada como uma lâmpada e, mais à frente, uma manta deslizou no limite da luz, deixando um rasto tremeluzente, até desaparecer na escuridão.
Por muito hipnotizante que tudo aquilo fosse, Gray manteve o ritmo.
De quando em quando, surgiam outras aparições surpreendentes, objetos que não faziam parte daquele mundo: uma âncora meio engolida por corais; um novo recife formado pela carcaça de um avião de combate da Segunda Guerra Mundial; até o cano de um antigo canhão de proa, espetado na areia. Eram todos lembretes da violenta batalha de Midway, que opusera as forças do Japão e dos Estados Unidos após o ataque a Pearl Harbor.
Enquanto progrediam, essas aparições iam sumindo gradualmente na escuridão atrás de si. Os próprios corais tinham dado lugar ao leito arenoso, que logo começou a subir, empurrando-os para a superfície.
Encontravam-se já nos baixios que rodeavam a ilha.
Desligou a lanterna e o ScubaJet. O mundo colapsou ao redor, convertendo-se num aborrecido manto monocromático de tons cinzentos. Enquanto nadava para a superfície, usou a bússola e o GPS para se orientar em direção às coordenadas pretendidas ao longo da costa. Fez sinal aos outros para aguardarem submersos, emergindo de seguida e segurando-se atrás de uma formação rochosa, a fim de observar o pequeno pedaço de praia.
Uma sombra mais densa assinalava a caverna de que Palu falara, onde os seus antepassados se abrigavam enquanto pescavam e caçavam naquelas ilhas remotas.
Sem indícios de alarme por parte do inimigo, fez sinal aos outros e avançou para terra. Saíram todos da água, desfizeram-se das botijas e coletes e carregaram o equipamento para a escuridão da caverna. Mantiveram os fatos de mergulho vestidos, visto que a cor negra ajudava a manterem-se invisíveis.
— Isto foi fantástico! — disse Ken, a recuperar o fôlego e ainda a observar o mar.
— Pois, mas agora vem a parte difícil — avisou Gray, reunindo o grupo à sua volta. — A velha base da Guarda Costeira fica a pouco mais de um quilómetro para oeste. Temos de partir do princípio de que eles têm as imediações e a costa vigiadas. A nossa melhor abordagem será carregarmos o material pelos montes e tentarmos alcançar a margem leste do lago.
— Nós chamamos ao lago Make Luawai — sussurrou Palu, com as costas voltadas para o grupo. — Poço da Morte.
— Não me parece que sejam boas notícias — disse Kowalski.
Palu encolheu os ombros.
— Significa apenas que a água é salgada e imprópria para beber.
O havaiano encontrava-se nesse momento na traseira da caverna. Segundos antes, depois de receber permissão de Gray, acendera um isqueiro, protegendo a pequena chama com a palma da mão. O brilho suave iluminou uma série de petróglifos espalhados ao longo da parede: figuras esguias, com peitos triangulares, gravadas na pedra. Algumas sentavam-se no que parecia serem canoas, enquanto outras dançavam na rocha com arpões de pesca nas mãos, intervalados por alguns círculos concêntricos, bem como por representações de peixes e tartarugas marinhas.
As costas curvadas de Palu denunciavam alguma mágoa.
Ao seu lado, Kowalski estendeu subitamente o braço e apontou para uma das figuras.
— Vejam! Uma baleia! — disse, orgulhoso da sua descoberta.
— Kohola, meu irmão — disse Palu, abrindo um sorriso e sacudindo a melancolia. — É como lhes chamamos. Devemos mostrar respeito. No meu caso as baleias são o nosso aumakua, o nosso deus de família. — Suspirou e levou a mão ao peito. — Deve ser por isso que somos todos tão grandes.
Kowalski virou-se e bateu com a cabeça no teto da caverna. Esfregou a testa.
— Se calhar, é melhor eu começar a rezar também a esse Cola.
— Kohola — corrigiu Palu.
— Isso, Cola.
O havaiano encolheu os ombros.
— É parecido.
Gray fez sinal aos dois e concluiu a explicação do plano.
— Assim que chegarmos ao lago, mergulhamos de novo. Dessa vez, porém, teremos de nadar completamente às escuras.
Lançou um olhar a Ken e Aiko, certificando-se de que os dois se sentiam confortáveis com a ideia. O par acenou com a cabeça, embora o professor parecesse assustado.
Não posso censurá-lo.
Endireitou as costas.
— Bom, espero que isso nos permita chegar suficientemente perto da base para percebermos o que lá se passa.
Seichan endireitou-se ao seu lado, encolhendo-se logo em seguida. Levou uma das mãos às costelas, com uma expressão de dor.
Gray amparou-a pelo cotovelo.
— Estás bem?
Seichan sacudiu-lhe a mão.
— É apenas um espasmo muscular. Não te preocupes.
Alarmado, Gray lançou um olhar de relance a Ken.
O professor parecia nitidamente aterrorizado.
LARVA INICIAL
Cega e de cor leitosa, a pequena larva enterrou-se no músculo. Os dez segmentos do corpo, cobertos de espinhos, permitiam-lhe rodar sobre si mesma e perfurar tendões e gordura como um saca-rolhas. Não tinha pressa de chegar a lado algum, visto que se alimentava do sangue e tecidos. Contrações musculares na faringe projetaram as mandíbulas quitinosas, que trincaram um pedaço de carne e o engoliram, preenchendo o estômago que se encontrava já cheio.
Meia dúzia de horas após ter eclodido do ovo, e apenas uma de muitas, aumentara dez vezes o seu tamanho inicial, passando a medir meio milímetro de comprimento. Redes sensoriais na pele elástica respondiam ao rápido crescimento. As hormonas inundavam-lhe o corpo, e uma nova camada de pele começara a formar-se sob a antiga, preparando a nova transformação em que aumentaria o seu tamanho outras tantas vezes.
Mas, primeiro, precisava de se alimentar, de conseguir açúcar para lhe fornecer energia para perfurar mais fundo, proteínas para continuar a crescer, gordura para estabelecer uma reserva para o que haveria de vir. A sua fome era insaciável, como um poço sem fundo.
À medida que se enterrava, os espinhos romperam um vaso capilar, banhando-a de sangue. Os espiráculos ao longo dos flancos sorveram o oxigénio presente na hemoglobina, incendiando-lhe a determinação. Repleta de energia, seguiu no seu propósito, cega, mas não desprovida de sentidos.
Exsudava pequenas gotículas, deixando um rasto químico pelo caminho. Algumas continham agentes antimicrobianos, destinados a manter o sulco macerado livre de infeções.
A carne tem de continuar viva.
As mesmas gotículas enviavam também mensagens bioquímicas para a corrente sanguínea do hospedeiro, que servia como um canal de comunicação preestabelecido para enviar informação às larvas que se alimentavam noutros pontos, de modo a coordenarem a invasão parasítica. Mais que tudo, porém, essa comunicação entre todas avisava-as sobre pontos específicos a evitarem.
As terminações nervosas na pele captavam as poderosas vibrações sonoras do músculo que mantinha o hospedeiro vivo. Esse som, persistente e regular, reverberava através dos tecidos.
As quatro mil larvas respondiam ao instinto milenar que lhes dizia para se manterem ao largo e não se alimentarem daquele profundo poço sonoro.
A carne tem de continuar viva.
A larva assim fez e rumou em direção oposta ao batimento. Enquanto abria caminho à dentada, uma secção do corpo raspou numa terminação nervosa. O contacto elétrico contraiu os músculos desse lado. A larva contorceu-se, tentando afastar-se dessa descarga. Ao mesmo tempo, o corpo continuou a responder a outro estímulo semelhante, embora bem maior que esse.
Ondas imensas de potencial elétrico percorreram os tecidos do hospedeiro, em sentido descendente.
Uma vez mais, sabia que deveria seguir na direção oposta pela mais simples das razões.
A carne tem de continuar viva.
Com o caminho identificado, continuou a afundar-se.
Então, quando os espinhos rasgaram outro capilar, foi alertada por um novo aviso bioquímico. Outra larva detetara um segundo músculo a bater ritmadamente no hospedeiro. Era um pouco diferente do primeiro, menos grave, menos poderoso. O mesmo ponto também emanava pequenas ondas de atividade neurológica.
Tal como as outras e impelida pelas instruções impressas no código genético, a larva obedeceu à nova mensagem e evitou a região.
O seu único propósito, simples e antigo, assentava em imperativos rudimentares
Come e cresce...
Juntamente com...
A carne tem de continuar viva.
Porém, essa última instrução era apenas temporária.
20
8 de maio, 14h08 EEST
Tallinn, República da Estónia
Kat debruçou-se sobre o corpo do diretor Tamm. O sangue quente escapava-se por entre os dedos, em golfadas, enquanto lhe tentava remediar o ferimento no pescoço. Embora inconsciente por ter batido com a cabeça no chão quando caíra, o homem ainda respirava.
Mas por quanto tempo?
A filha dele, Lara, permanecia paralisada pelo choque.
Sam encontrava-se à frente de Elena, protegendo-a daquela visão sangrenta ao mesmo tempo que tentava pedir ajuda por telefone. Uma nova rajada de tiros atingiu a espessa porta, com algumas das balas a ricochetearem nas ferragens exteriores. Pelo som abafado dos estampidos, era evidente que os atacantes teriam as armas equipadas com silenciadores.
— Não consigo obter rede — disse Sam, erguendo o telefone no ar.
Kat olhou para ele e depois ao redor. As paredes de pedra poderiam estar a dificultar a ligação.
Ou alguém está a usar um dispositivo de interferência.
Desviou o olhar para a porta.
Em todo o caso, estes tipos não são bandidos vulgares.
Os disparos cessaram de repente, o que era tão ou mais enervante do que a chuva de balas contra a porta. Só a levava a pensar que os atacantes teriam vindo preparados com algo mais para conseguirem entrar por ali adentro.
Franzindo o sobrolho, Monk terá pensado o mesmo. Continuava a segurar a porta e até baixara a tranca de ferro, mas a peça parecia mais decorativa do que eficiente, como se tivesse sido desenhada a pensar mais no aspeto do que no lado funcional.
Desviou o olhar na direção da sala.
— Onde está uma passagem secreta quando um tipo precisa?
Kat considerou a hipótese de arrastarem a pesada mesa da sala para barricarem a porta, o que talvez lhes permitisse ganharem algum tempo até conseguirem ajuda, mas descartou a ideia, sabendo que isso certamente condenaria Tamm e ainda faria com que acabassem com mais gente morta.
Tem de haver outra solução...
Tanto ela como Monk traziam pistolas SIG Sauer P226 sob os casacos; porém, o cenário de um tiroteio produziria o mesmo resultado.
Olhou na direção da única janela. Já tinha espreitado por ela anteriormente e sabia que dava para um parque de estacionamento vazio, sete pisos mais abaixo. No entanto, a fachada do edifício era revestida com enormes lajes de calcário, cujos intervalos ofereciam apoios decentes para pés e mãos. Além disso, dois pisos abaixo, havia ainda um parapeito decorativo, que contornava toda a biblioteca.
Calculou as hipóteses de conseguirem escapar dessa forma.
Talvez, com a ajuda do Monk...
O marido percebeu o interesse dela na janela e, quando Kat se virou, percebeu imediatamente qual seria a intenção.
— Deves ser doida — disse —, mas é uma das razões por que casei contigo.
14h10
Elena acotovelou-se com Lara debaixo da mesa. Ao lado das duas, Sam encontrava-se debruçado sobre o diretor. Assumira o lugar de Kat e mantinha um lenço comprimido contra o ferimento do homem. O pedaço de tecido encontrava-se já completamente ensopado de sangue.
Estamos a ficar sem tempo.
Kat ter-se-á apercebido do mesmo, embora por razões diferentes. Endireitou-se e afastou o ouvido da porta.
— Consigo ouvi-los a prepararem qualquer coisa — disse.
— Devem estar a colocar cargas explosivas para rebentarem com as dobradiças — avisou Monk, que se encontrava agachado a um canto, a tentar erguer a pesada armadura completa.
Kat anuiu com a cabeça.
— Nesse caso, está na hora de sairmos daqui! — disse, afastando-se da porta e correndo ao longo da mesa para o lado oposto da divisão.
Monk ergueu finalmente a figura de metal e carregou-a em braços em direção à janela. Assim que lá chegou, soltou um sonoro grunhido, a que se seguiu um estrondo de vidros a estilhaçarem.
Debaixo da mesa, Elena não conseguia ver muito do que se estava a passar, mas imaginou a armadura a atravessar a janela e a voar para o parque de estacionamento vazio, sete pisos mais abaixo.
— Rápido! — disse Kat para o marido, mal se juntou a ele.
Com a janela partida, os sons do festival nas ruas encheram a divisão. A música alegre era um contraponto irónico para o perigo em que se encontravam.
— Vamos! Vamos! — gritou Kat.
Um par de explosões fez Elena saltar. Virou-se na direção da porta e olhou para lá das pernas das cadeiras ao redor da mesa. Uma nuvem de fumo avançou na sua direção, enquanto farpas de madeira caiam um pouco por toda a parte. Um pedaço de metal retorcido saltitou pelo chão, como um seixo sobre a superfície de um lago.
Com as dobradiças rebentadas — tal como Monk antecipara —, a pesada porta inclinou-se e tombou para o interior da divisão. Bateu com força no pavimento, estremecendo uma única vez. Logo de seguida, pares de botas correram por cima da madeira. Quatro homens entraram e espalharam-se pela sala.
Elena deitou-se de barriga para baixo e olhou na direção da janela. Avistou a mão de Monk agarrada ao parapeito do lado de fora, os dedos fazendo o possível para se segurarem.
Não foi a única a notar esse gesto.
Vozes gritaram em japonês e porventura em árabe.
Dois dos atacantes mascarados separaram-se dos outros e correram em direção à janela.
Elena cobriu a cabeça com as mãos, sabendo o que aconteceria a seguir. Imaginou a surpresa deles, quando descobrissem a mão prostética de Monk pendurada no parapeito.
Embora estivesse preparada, a explosão foi maior do que imaginava. Monk avisara-os acerca dessa salvaguarda extrema embutida na palma da prótese, uma carga de explosivos C4. A força da detonação atirou os dois homens pelo ar. A mesa deslocou-se em peso cerca de um metro, e as cadeiras tombaram para o chão. Livros e papéis espalharam-se por toda a divisão.
Sem esperarem que a poeira assentasse, Monk e Kat abriram fogo do cimo de cada uma das prateleiras em ambos os lados da janela, onde se tinham escondido. Contavam que o barulho da janela a partir-se atraísse os atacantes para o interior da sala.
O plano, pelos vistos, resultara.
Apanhados no fogo cruzado, os restantes homens mascarados desmoronaram-se junto à porta tombada.
Monk e Kat saltaram para o chão, aterrando em simultâneo. Como se executassem uma dança coreografada, correram pelo caos em direção à saída, movendo-se em perfeita harmonia. Detiveram-se junto às ombreiras, depois rolaram para o corredor, cada um guardando o respetivo lado.
— Livre! Avancem!
Elena rastejou de debaixo da mesa, enquanto Sam passava relutantemente a sua tarefa à filha de Tamm.
— Lamento muito — murmurou-lhe.
Elena tocou no braço da rapariga.
— Vou pedir ajuda. Uma equipa médica estará aqui em menos de nada.
Era tudo o que podiam fazer. Elena não suportava a ideia de abandonar a rapariga com o pai moribundo nos braços, mas Kat avisara-a de que a opção de permanecerem ali apenas poderia causar mais mortes, caso houvesse mais atacantes nas instalações.
Tinham de partir quanto antes.
Mas não pela porta principal.
Elena pegou no cartão de identificação da rapariga, o que lhes permitiria acederem ao elevador de serviço na outra ponta do corredor. O plano consistia em descerem diretamente para a cave e abandonarem o edifício pelo parque de estacionamento reservado aos funcionários onde, com alguma sorte, não haveria ninguém à espera.
Enquanto escapava com Sam a seu lado, deitou um último olhar às ruínas fumegantes da sala. Ignorou as poças de sangue no chão, os corpos partidos. O seu olhar fixou-se na mão-cheia de páginas incandescentes que ainda revoluteavam no ar.
Era tudo o que restava do legado de Smithson naquele lugar.
Tudo perdido...
Virou-se e correu atrás de Kat, que seguiu à frente do grupo, com Monk a cobrir a retaguarda. Apertou os dedos ao redor dos dois crucifixos pendurados no fio dos óculos, cada um representando cada uma das netas, e rezou para que as próximas etapas da missão não fossem tão sangrentas.
Porém, algo lhe dizia que as suas preces não seriam atendidas.
14h44
De volta à luz do dia, Kat conduziu o grupo pelas ruas congestionadas da cidade velha. Havia música aos berros, vendedores a apregoarem os seus produtos nas bancas improvisadas, crianças a correrem por entre as pernas dos adultos. Os risos eram constantes, uns embriagados, outros de genuína satisfação.
O episódio sangrento na biblioteca parecia agora pouco mais do que um pesadelo. Ninguém no festival parecia ter noção do que acontecera, provavelmente porque as explosões e os tiros tinham ocorrido nas traseiras do gigantesco edifício. O único sinal evidente era o berro das sirenes dos veículos de emergência a caminho do local.
Kat alertara as autoridades assim que chegara à cave e percebera que o telemóvel funcionava. Também informara o punhado de funcionários ali presentes acerca do estado do diretor, pedindo-lhes que o ajudassem. Alguns ficaram de pé atrás com a súbita aparição de um grupo de estranhos numa área reservada da biblioteca, mas a pistola na sua mão desencorajou-os de fazerem perguntas desnecessárias.
Uma vez cá fora, conduzira o grupo em direção ao rebuliço do festival. Sabia que regressarem ao carro não constituía uma opção, uma vez que havia uma forte probabilidade de se encontrar vigiado pelo inimigo. Além disso, o manto de gente naquelas ruas e vielas ajudaria a despistar quem quer que fosse que tentasse persegui-los.
Por enquanto, a prioridade máxima passava por se afastarem o mais possível da biblioteca. Depois disso, encontraria maneira de regressarem ao avião.
Olhou para o mapa no telefone de satélite, de forma a garantir que não se perdiam naquele labirinto. Apontou para a curva seguinte à esquerda.
— Por ali.
Olhou por cima do ombro, certificando-se de que os outros a ouviram. Sam e Elena anuíram com a cabeça, ambos mais pálidos do que seria normal. O ritmo que estava a impor-lhes não era para qualquer um.
Mais atrás, Monk aproveitou e fez-lhe sinal, avisando-a silenciosamente de que os dois investigadores estariam perto do limite de cansaço que poderiam suportar.
Kat acenou-lhe de volta. Estava na altura de saírem dali, encontrarem um táxi e regressarem ao aeroporto.
Distraída e preocupada, ignorou a moto que avançava pelo meio da multidão. Não era uma visão invulgar. Os únicos veículos que circulavam naquelas ruas estreitas eram de duas rodas, nomeadamente Vespas e outras motos europeias de baixa cilindrada.
Ainda assim, algo teve o condão de lhe eriçar os pelos da nuca. Aprendera há muito tempo a confiar nesse aviso, quando o corpo dava sinais da presença de uma ameaça antes da mente. A moto transportava dois passageiros, ambos com o rosto coberto pelos capacetes integrais. A linguagem corporal gritava que não se tratava de festivaleiros, mas sim de militares.
Para mal dos seus pecados, fixou o olhar no par demasiado tempo.
Merda.
O motor gritou e a moto avançou disparada. Kat deitou a mão ao coldre na cintura. Monk apercebeu-se do gesto e rodou o corpo, fazendo exatamente a mesmíssima coisa.
Foram ambos demasiado lentos.
A moto alcançou-os. O condutor esticou uma perna e pontapeou Monk contra uma parede. Kat conseguira sacar da arma, mas os atacantes estavam já em cima deles. Sem desacelerarem, o pendura lançou os braços e enganchou Elena pela cintura, levantando-a do chão e atirando-a para cima do colo. Ato contínuo, espetou-lhe uma seringa no pescoço.
Com os pneus a chiarem nas pedras da calçada, a moto prosseguiu em frente.
Kat ergueu a arma, mas a multidão não permitia uma linha de tiro limpa. Sem se dar por vencida, correu em direção ao beco fechado ao trânsito onde a moto virara.
O condutor ziguezagueou com destreza por entre vendedores, pessoas que comiam nas bancas e músicos de rua. Para tornar as coisas piores, o beco estava repleto de lojas de ambos os lados, todas elas com toldos estendidos, o que criava o efeito de um túnel escuro.
Os sequestradores desapareceram de vista num abrir e fechar de olhos.
Monk correu para ela.
Kat virou-se e apontou para cima.
— Ajuda-me!
Monk não perdeu tempo a questionar qual seria a intenção. Pousou um joelho no chão e ofereceu o outro como degrau. Kat apoiou um dos pés e saltou. A mão de Monk sob as suas nádegas fez o resto, impulsionando-a mais para cima. Kat aterrou de barriga no primeiro toldo e usou a tensão do tecido para se levantar rapidamente.
Depois, começou a correr.
Avançou pela sucessão de toldos, saltando por cima dos espaços ocasionais entre alguns. Ao correr por cima da multidão, conseguia evitar a confusão abaixo. Rezou para que a moto fosse incapaz de avançar tão rápido, o que lhe permitiria alcançar os atacantes.
Manteve-se atenta ao som do motor de dois tempos.
Então, ouviu-o.
Mais à frente, a cerca de vinte metros.
Acelerou o passo, fazendo o possível para encurtar a distância.
Infelizmente, o final do beco surgiu logo adiante, assinalado por uma arcada que se estendia de um lado ao outro. Era um dos portões que atravessavam a muralha medieval da cidade velha. Assim que os atacantes se encontrassem para lá da muralha, encontrariam as ruas desimpedidas e não teriam qualquer dificuldade em escapar.
Correu mais depressa, mas apercebeu-se rapidamente de uma nova contrariedade: um espaço aberto, indicando que a fila de toldos terminava antes da muralha.
Mesmo assim, não desacelerou.
Quando estava já perto do fim dos toldos, conseguiu um vislumbre da moto. O veículo continuava a avançar, dispersando os pedestres pelo caminho. Um dos muitos figurantes sobre andas — um fulano com um traje garrido e equilibrado sobre varas com a altura de dois andares — não conseguiu desviar-se a tempo e a moto arrancou-lhe uma das pernas de madeira.
Kat agradeceu a oportunidade, entalou a pistola no cinto e saltou do último toldo, apanhando a anda em pleno ar e usando o ímpeto para convertê-la numa vara de salto. Com as pernas esticadas, voou por cima da multidão e da moto, que lutava para furar o congestionamento junto ao portão da muralha.
Assustadas, as pessoas desviaram-se em todas as direções, permitindo-lhe rodar o corpo em pleno ar e aterrar com as pernas fletidas, de frente para a moto.
O piloto avançou na sua direção.
Kat sacou da pistola, esticou os braços e disparou.
O projétil desfez a viseira do capacete.
A moto caiu para um dos lados e deslizou pelo chão, quase lhe acertando.
O passageiro saltou no último instante e pôs-se em fuga. Kat apontou novamente a arma, mas o homem espremeu-se por entre a multidão atónita e desapareceu de vista.
Kat correu para Elena, que fora projetada da moto quando o sequestrador saltou. A bibliotecária tentou levantar-se, mas estava nitidamente atordoada, quer pelo acidente quer pela substância injetada pela seringa.
Um sedativo, provavelmente...
— Está bem? — perguntou-lhe, ajudando-a a sentar-se.
Elena desviou o olhar para as pernas, depois para os rostos boquiabertos em redor.
— Sim... acho que sim...
Uma buzina forte desviou a atenção das duas de volta para o beco. Um pequeno Mini Cooper, verde-alface, irrompeu na praça e dispersou o que restava da multidão.
Kat cobriu Elena com o corpo e ergueu a pistola, para a baixar assim que reconheceu a figura de Monk ao volante. O marido devia ter roubado o carro a alguém.
Monk acelerou e travou com força junto das duas.
— Entrem! — gritou-lhes pela janela aberta.
Sam abriu uma das portas de trás.
Kat enfiou-se dentro do carro com Elena. Fechou a porta e gritou:
— Arranca!
Monk injetou o motor e seguiu para o portão. Num instante, o carro atravessou a arcada e deixou para trás a cidade velha.
Kat trepou para o banco da frente, deixando Elena com Sam.
Monk olhou para ela e fez a pergunta que o incomodava desde o ataque na biblioteca:
— Como é que sabiam que estávamos aqui?
Kat chegara já a uma única conclusão. Para além de um punhado de gente na Sigma, as únicas pessoas a par daquela viagem pertenciam aos serviços secretos japoneses.
Entre essas, havia alguém que saltava à vista.
Aiko Higashi.
Alcançou o telefone satélite no bolso do casaco.
— Tenho de falar com o diretor.
— Porquê?
— Para que ele possa alertar o Gray.
— Acerca de quê?
Kat deitou-lhe um olhar apreensivo.
— Acho que ele vai a caminho de uma armadilha.
21
8 de maio, 01h34 SST
Atol de Ikikauo
De novo equipado, Gray avançou pela água do lago salgado.
Tinham sido necessários vinte minutos de caminhada por encostas de floresta densa, até o grupo alcançar a margem leste do lago que ocupava o coração da ilha. Obrigados a moverem-se devagar e munidos de óculos de visão noturna, tinham feito o possível para não perturbarem os bandos de pássaros a dormir nas árvores. Apenas os morcegos os cumprimentaram, revoluteando acima das cabeças de todos por entre as sombras da floresta.
Ao entrar no lago, Gray desejou que os morcegos tivessem sido os únicos seres na ilha a notarem a presença da equipa. À frente dele, o Make Luawai entendia-se por quatrocentos metros de largura e um bom quilómetro de comprimento. O ar cheirava a salmoura, pontilhado por nuvens de moscas e mosquitos que pairavam sobre a negra e fétida superfície da água. Mesmo assim, havia vida lá em baixo, facto indesmentível pelos ocasionais saltos de peixes que tentavam alimentar-se dos insetos.
— Vejam bem onde pisam — avisou. — O fundo é bastante inclinado.
Em apenas dois metros, Gray deu consigo com a água pela altura do pescoço. Mesmo através do fato de mergulho, conseguia perceber que o lago era bem mais quente que o oceano em redor. A sensação não era agradável, dando a ideia de que entrara numa tigela de sopa morna. A estranheza era acentuada pelo elevado índice de salinidade daquelas águas, três vezes superior ao oceano, o que fazia com que o corpo flutuasse de forma pouco habitual.
Antes de mergulhar, lançou um último olhar para a margem oposta. Os óculos de visão noturna permitiam distinguir um brilho ténue por trás dos montes, assinalando as antigas instalações da Guarda Costeira.
Não havia sinais de movimento.
Satisfeito, submergiu. Assim que todos se juntaram a ele, deu início à travessia. Nadaram uns cinquenta metros e só então tornaram a usar os ScubaJets. A única diferença é que manteve uma profundidade de mergulho de não mais de três metros. A essa profundidade os óculos de visão noturna ainda conseguiam captar a luz das estrelas.
Gray não precisava dessa luminosidade. Seria capaz de atravessar o lago nu e apenas com a ajuda da bússola, calculando às cegas a distância percorrida pela contagem dos batimentos de pernas. Porém, precisava de facilitar a vida aos civis na equipa. Um pouco de claridade permitia o contacto visual entre todos, diminuindo a possibilidade de ataques de pânico.
Infelizmente, a precaução não se destinava apenas aos membros mais fracos do grupo.
Enquanto deslizava pela água, olhou por cima do ombro. Durante a caminhada, Seichan tentara disfarçar a dor que sentia, mas Gray notara o brilho do suor no rosto dela, a passada insegura, a respiração pesada. O sofrimento em que se encontrava parecia aumentar a olhos vistos. Ao chegarem ao lago, os músculos nos maxilares sobressaiam devido à força com que cerrava os dentes contra a dor.
Ficou mais preocupado quando deixou de a ver debaixo de água. Sabia que ela seguia na retaguarda do grupo com Palu, mas começava a ficar cada vez mais para trás.
Sentiu uma pontada de arrependimento.
Deveria ter sido mais firme e obrigá-la a ficar em Maui.
Ainda assim, conhecendo-a, sabia que Seichan encontraria maneira de os seguir. O olhar que ela lhe lançara em Hana, de pura obstinação, era um que lhe observara várias vezes no passado. Nesse caso, porém, fora sublimado por um forte sentido de determinação, que talvez se devesse ao simples facto de estar grávida.
Sabendo que ela lutaria até ao último fôlego, voltou a olhar para a frente e quase esbarrou contra uma parede. Desviou-se no último instante, contornando o obstáculo. Era a asa de um avião antigo. Enquanto passava pelos destroços, o ScubaJet raspou no metal da asa, libertando uma camada de algas.
Desligou de imediato o propulsor e virou-se para trás. Os outros aperceberam-se da colisão iminente, mas Ken e Aiko pura e simplesmente passaram por ele de ambos os lados do avião. Gray perdeu-os imediatamente de vista na água turva.
Praguejando entre dentes, fez sinal a Kowalski para seguir atrás de Aiko e nadou para apanhar Ken. Confiava que seria capaz de nadar mais depressa do que o propulsor do professor, mas, como medida de precaução, acendeu a lanterna UV.
Ken surgiu mais à frente. Tivera o bom senso de desligar o propulsor e virar a luz da lanterna. Gray nadou até ele e perguntou-lhe se estava bem, fazendo o sinal de okay com os dedos. O homem ergueu os polegares, embora os olhos parecessem gigantes por trás do vidro da máscara.
Juntos, seguiram na direção em que Aiko e Kowalski desapareceram. Gray avançou com cautela, à medida que o feixe UV revelava um autêntico cemitério ao redor. Encontravam-se ali esquecidos os destroços de quatro ou cinco aviões. Os pedaços espalhavam-se por uma área significativa. Metade de uma hélice espreitava da areia, adquirindo, muito a propósito, os contornos de uma cruz. A maioria das fuselagens encontrava-se partida, com as asas espetadas em todas as direções ou espalmadas na areia e no lodo. Todos os pedaços se encontravam cobertos de algas.
Mesmo assim, Gray reconheceu o desenho dos aviões, sobretudo por causa do círculo visível numa das asas e pelo nariz de um torpedo preto a espreitar por baixo da barriga de uma das aeronaves. Estava a olhar para os destroços de uma esquadrilha de bombardeiros japoneses, da altura da Segunda Guerra Mundial. Os modelos em questão eram Nakajimas B5N, lançados habitualmente de porta-aviões.
Gray visualizou o que teria sido um feroz duelo aéreo nos céus daquela ilha, parte do confronto de quatro dias que ficaria conhecido como a Batalha de Midway. O episódio decisivo deixaria profundas marcas na frota imperial japonesa, impossíveis de recuperar.
Enquanto perscrutava a área, duas silhuetas negras surgiram da escuridão. Uma grande, outra pequena.
Aiko e Kowalski.
O par seguiu em direção à luz da lanterna.
Enquanto se aproximavam, Gray deu uma volta completa sobre si mesmo.
Onde estão a Seichan e o Palu?
No meio da confusão, perdera a localização dos dois. Será que vinham lá atrás? Ou será que não perceberam o que acontecera e seguiram em frente?
Não tinha forma de saber, mas, em caso de se separarem, o plano de contingência ditava que se encontrassem em coordenadas predeterminadas na costa oeste. Verificando-se o pior cenário, a ordem era de regressarem à caverna.
Sem outra escolha, fez sinal aos restantes para que continuassem. Contudo, dessa vez, obrigou-os a nadarem colados uns aos outros. Não tencionava perder mais ninguém pelo caminho.
Enquanto deixavam o cemitério de aviões, o fundo do lago voltou a descer, abrindo-se como um precipício profundo que o feixe da lanterna não iluminava. Era como se estivessem a nadar no vazio.
Sentindo-se exposto, Gray diminuiu a potência da lanterna, mas não sem antes a apontar uma última vez para trás, esperando que pudesse servir de farol para Seichan e Palu, perdidos algures.
Partindo do princípio de que ainda nos seguem.
Por fim, apagou a lanterna.
Assim que o fez, o abismo abaixo explodiu com uma inesperada luminosidade. Apanhado de surpresa, tirou os óculos de visão noturna. Mesmo assim, sentiu-se momentaneamente ofuscado. Teve de esperar uns segundos até conseguir discernir o que causara aquela súbita explosão de luz.
Muito mais abaixo, um enorme complexo iluminava o fundo do lago. Lembrava uma placa de circuitos gigante, que se ligara de repente. Conseguia distinguir os túneis translúcidos que ligavam várias cúpulas de vidro, criando um labirinto de vários níveis. Pontos mais escuros assinalavam a localização de estruturas de aço.
Gray compreendeu o que estava a ver.
Um laboratório subaquático.
Adivinhava o propósito de umas instalações com aquelas características.
Que melhor forma de salvaguardar uma investigação com um organismo perigoso?
Apesar de tudo, a maior fonte de luz não provinha do complexo. Emanava de uma forma pontiaguda que parecia deslocar-se em direção ao grupo.
Percebendo que nunca seriam capazes de nadar mais depressa do que aquele objeto, juntou os companheiros que por essa altura experienciavam diferentes graus de pânico e choque — exceto Kowalski, que apenas parecia resignado.
A primeira coisa que Gray fez foi indicar-lhes que subissem para a superfície.
Todavia, havia também poças de luz a brilharem lá em cima, deslocando-se a partir da margem oeste. O som abafado de motores reverberou através da água.
Barcos...
Encontravam-se encurralados por cima e por baixo.
Assim que emergiu, retirou a máscara de mergulho. Os outros fizeram o mesmo. Um trio de Zodiacs deslocou-se em direção a eles. As silhuetas a bordo carregavam nos braços metralhadoras de assalto.
Gray sentiu uma pontada de consolação ao perceber que os homens não tencionavam abrir fogo. Por outro lado, não era algo que o surpreendesse. Seria perfeitamente natural que os proprietários da ilha quisessem interrogá-los.
Porém, essa necessidade não visava todos os membros da expedição.
Uma enorme explosão ecoou de sudeste.
Todos rodaram as cabeças e viram a enorme bola de fogo que se ergueu nos céus.
Kowalski franziu o sobrolho, sabendo tão bem como Gray o que acontecera.
O catamarã...
Gray agradeceu o facto de Palu não se encontrar presente para ver aquilo, e olhou para a extensão do lago negro, perguntando-se onde estariam o havaiano e Seichan. Se antes as suas ausências o preocupavam, nesse momento eram uma fonte de esperança.
Pelo menos, não foram apanhados.
Metros abaixo, o objeto iluminado mudou de curso, afastando-se do grupo. Tratava-se de um submersível. Em vez de retornar às profundezas, seguiu em direção ao cemitério de aviões, onde permaneceu às voltas, nitidamente à procura de mais alguém.
Gray rezou para que Seichan e Palu estivessem bem escondidos.
Sobretudo com um tubarão mecânico à procura deles.
01h52
Seichan esticou os braços e as pernas contra as paredes da fuselagem, fixando a sua posição no interior do avião partido. O casco do bombardeiro dividira-se em dois na queda. Manteve as costas viradas para o cockpit, onde o esqueleto desmoronado do piloto ainda se mantinha preso pelos cintos de segurança apodrecidos.
O nome do lago, Poço da Morte, revelara-se acertado para o aviador.
Esperemos que não seja o nosso caso.
Observou o intervalo de dois metros que separava a frente e a traseira do avião. Palu enfiara a sua enorme figura na outra metade, cabendo à justa. Devido à escuridão, Seichan podia apenas imaginar a expressão tensa no rosto do havaiano.
Momentos antes, os dois tinham entrado nos limites do cemitério afundado, bastante atrasados em relação aos outros. Em bom rigor, a dificuldade de acompanhar os restantes devia-se exclusivamente a si. Palu apenas se mantivera a seu lado, por certo a seguir as instruções de Gray.
O propulsor estava a dar-lhe problemas ao recusar-se a andar mais depressa, o que a obrigara a nadar com mais vigor. Não seria um problema, por norma, mas a situação que vivia era tudo menos normal.
Continuava a sentir as pontadas de dor aguda através dos músculos, e os braços tremiam-lhe enquanto permanecia assim, com as mãos coladas contra o interior do casco do avião. Ardia-lhe cada fibra nas costas, como se lhe estivessem a espetar um ferro em brasa na espinha.
Concentrou-se no que aprendera nos anos de treino na Guilda. Respirou fundo e esvaziou a mente, mantendo a dor à distância. Fora ensinada que a dor era apenas um sistema de aviso prévio do corpo. Não correspondia necessariamente a um dano irreversível nem a tornava incapaz, o que parecia ser o caso. Apesar de cada centímetro do corpo lhe arder, sentia que mantinha as capacidades e força habituais.
Por enquanto.
E por enquanto era o que bastava.
Gray e os outros estavam em perigo.
Ao atravessar o cemitério com Palu, o mundo adiante explodira como uma nuvem de luz silenciosa. A cobertura de algas nos destroços iluminara-se, recortada pelo brilho súbito. Os óculos de visão noturna tinham amplificado a claridade, deixando-a temporariamente cega.
Mesmo assim, resistira à tentação de retirar os óculos e nadara instintivamente para as sombras. No fim de contas, era onde vivera a maior parte da vida. Depois procurara abrigo, arrastando Palu consigo, até encontrar aquele avião partido ao meio.
Encontrar o avião tão depressa fora um golpe de sorte. Assim que se enfiara lá dentro, um pequeno submarino de dois ocupantes subiu das profundezas. O feixe das luzes permitiu-lhe distinguir as figuras que escapavam para a superfície.
Gray e os outros.
Logo a seguir, viu surgirem barcos, as suas silhuetas deslizando em direção aos companheiros no teto daquele mundo negro. Com o grupo encurralado, o submarino baixou o nariz e desceu em direção ao cemitério, varrendo toda a área com as luzes, uma e outra vez.
Será que sabem que estamos aqui ou é apenas uma medida de precaução?
Em todo o caso, não havia nada que pudesse fazer.
Estudou o adversário assim que entrou no cemitério. O submarino era na verdade um veículo de propulsão subaquática, onde os tripulantes eram obrigados a usar equipamento de mergulho completo. A frente era coberta por um painel acrílico, mas a traseira era completamente aberta. Atrás do painel, o piloto sentava-se aos comandos, com o passageiro encolhido nas costas com as pernas dobradas debaixo de si e as mãos agarradas a duas pegas de cada lado, de forma a não cair. O painel acrílico servia de barreira, protegendo os dois homens contra a deslocação da água.
Aparelhos como aquele costumavam ser usados por forças militares para introduzirem operacionais em territórios inimigos. Parecia ser o caso daquele veículo, sobretudo quando notou a ponta de uma espingarda de arpão pendurada ao ombro do passageiro.
Igualmente frustrante foi ter reparado nos arpões em ambos os lados do nariz do submarino, indicando que o aparelho possuía o próprio sistema de armamento.
A dada altura, o passageiro mergulhou para um dos lados. Começou a nadar em direção ao fundo, com o submarino a pairar acima. Parecia que tencionava vasculhar o cemitério, tanto para eliminar como para obrigar qualquer potencial alvo a abandonar o esconderijo.
O cemitério contava apenas com os destroços de cinco aviões, o que significava que não havia muito por onde escolher. O mergulhador deveria conhecer bem o sítio, pois desceu direito ao primeiro destroço e apontou a lanterna através da janela partida do cockpit. A fuselagem iluminou-se a partir do interior, com os raios de luz a escaparem-se pelas brechas.
Confirmando que não havia ninguém no interior, o mergulhador avançou perpendicular ao avião onde os dois estavam escondidos. Apontou a lanterna em frente, alternando o feixe entre as metades separadas. Tanto ela como Palu recuaram para o fundo das respetivas secções do avião. Graças à claridade, Seichan via agora a cara do havaiano. Baixou os braços e abraçou-se a si mesma, esperando que ele compreendesse a mensagem.
Palu pestanejou atrás do vidro da máscara, nitidamente confuso.
Enquanto o espaço que separava os dois se iluminava cada vez mais, Seichan preparou as duas armas disponíveis, segurando uma em cada mão, com as pernas fletidas. Esperou que a ponta do arpão do mergulhador surgisse no interior do avião, e só então arremessou a primeira arma pela abertura.
A deslocação do mergulhador pela água impeliu-o ao encontro do choque daquilo que ela atirara para o exterior.
Nada mais nada menos do que o crânio do aviador.
A esfera de osso branco atingiu a máscara do inimigo.
Reagindo por instinto, tanto pela natureza inesperada do ataque como do objeto em si, que o fitou com dois olhos vazios, o mergulhador rodou sobre si mesmo para se desviar. Virou a ponta do arpão na direção da metade da fuselagem de Seichan, continuando a cair ao encontro da outra.
Antes que pudesse disparar, dois braços grossos agarraram-no pelas costas e puxaram-no para trás, como uma aranha a saltar da toca para apanhar a presa.
Pelos vistos, Palu compreendera a mensagem.
Seichan cravou os pés no banco do piloto e lançou-se para a frente através da abertura. Arriscou olhar para cima: os faróis do submersível estavam focados no avião mais à esquerda.
Ótimo.
Deslizando ao encontro de Palu, encostou o cano da SIG Sauer contra o peito do mergulhador preso nos braços do havaiano. Inclinou a arma ligeiramente para cima e premiu o gatilho. O disparo soou abafado, mas, ainda assim, forte. Seichan esperava que os propulsores do submarino disfarçassem o estrondo. Disparar uma pistola debaixo de água era problemático. A maioria das pistolas automáticas encravava após o primeiro tiro. Além disso, o alcance mortal ficava limitado a pouco mais de meio metro. Seichan contava que isso mantivesse a bala dentro do corpo do homem.
Debaixo de água, a escolha de uma faca faria mais sentido numa luta corpo a corpo, mas receava que o oponente se debatesse demasiado. O sangue de um golpe profundo seria tão denunciador como um sinal de fumo para o submarino lá em cima.
Com isso em mente, afastou o cano da pistola e enfiou um dedo no buraco no fato do mergulhador. Satisfeita por ver que o homem estava morto, arrancou um pedaço da alga da parede e tapou o ferimento da bala. Tirou também a lanterna agregada ao cano da espingarda de arpão e entregou-a a Palu. Depois acenou na direção do submarino.
Tens de fingir que és o mergulhador, disse em pensamento.
Palu compreendeu a mensagem e abandonou o avião, nadando junto ao fundo do lago com a lanterna acesa. O havaiano tinha mais ou menos o mesmo tamanho do mergulhador morto. Com sorte, conseguiria manter o logro durante algum tempo.
Assim que Palu se afastou o suficiente, Seichan retirou a máscara ao mergulhador, que lhe cobria todo o rosto. O homem trazia um rádio auricular. Colocou o auricular na orelha e substituiu a sua máscara pela dele. Por essa altura, a escuridão descera de novo sobre os destroços à medida que Palu e o submarino se afastavam. Abandonou o esconderijo e deslizou pelas águas negras.
Apesar da dor, sentiu-se mais calma naquele que era o seu ambiente natural, a escuridão.
Uma voz murmurou-lhe ao ouvido em japonês. Era o piloto do submarino.
— Algum sinal dos alvos?
Sabia que não podia ficar em silêncio. O mergulhador morto parecia japonês e respondeu como tal, engrossando um pouco a voz:
— Orukuria.
Tudo livre.
Continuou a subir, colocando-se cada vez mais ao nível do submersível, depois seguiu atrás dele. Cada batimento de pernas desencadeava uma explosão de dor, mas manteve-se focada no alvo, encurtando lentamente a distância.
Mais abaixo, Palu prosseguia com o golpe de teatro, parando de vez em quando para inspecionar os destroços, o que ajudava a empatar o andamento do submarino.
Seichan fitou a silhueta do piloto recortada pelas luzes dos faróis. Nadou com mais vigor, o que atiçou as brasas incandescentes no interior da barriga e das pernas.
Por fim, sussurrou para o auricular no seu melhor japonês, fruto dos anos de juventude no sudeste asiático.
— Movimento a uns cinco metros à frente. Confirmas?
O piloto respondeu.
— Não vejo nada.
Contando que o piloto manteria a atenção no que se passava adiante, deslizou até à traseira aberta do submersível, apontou a espingarda roubada e disparou.
O arpão voou pela água e atravessou o pescoço do homem. Por pouco não lhe arrancava a cabeça. Uma mancha de sangue inundou o interior da cúpula acrílica. Sem ninguém para o controlar, o submarino baixou o nariz e deslizou em direção ao fundo, deixando um rasto vermelho atrás de si.
Sem ninguém por perto, Seichan não estava preocupada que aquilo chamasse as atenções. Mesmo assim, acelerou atrás do aparelho. Assim que o alcançou, usou as pegas na traseira para se impelir para a frente. Retirou o corpo do piloto do lugar e atirou-o borda fora. Com o colete de flutuação vazio, o peso do equipamento depressa arrastou o cadáver para o cemitério de aviões abaixo.
Sentou-se aos comandos. Não era a primeira vez que pilotava uma coisa daquelas, mas estava enferrujada. Apesar disso, após algumas tentativas, lá conseguiu dirigir o aparelho ao encontro de Palu. O havaiano observara a descida sangrenta do piloto e aguardava junto do cadáver.
Provavelmente para se certificar de que não era eu.
Assim que Seichan se aproximou o suficiente, Palu subiu ao encontro dela e ocupou o lugar na parte de trás do submersível.
Apontou para cima, convencido de que Seichan os iria conduzir diretamente para a superfície, mas ela abanou a cabeça e apontou para baixo.
Está na altura de fazer uma visita a estes tipos.
Antes de se pôr a caminho, fez um inventário mental do armamento de que dispunha. Trazia consigo uma série de facas escondidas em várias partes do corpo, e a SIG Sauer poderia ser outra vez posta a bom uso, depois de a secar. Não era grande poder de fogo, mas teria de servir. Para compensar, recorreria a competências que não aprendera com a Guilda, mas com o pai do seu bebé, um homem que era um mestre na arte da improvisação diante do perigo.
Se quero salvar o Gray, tenho de começar a agir como ele.
Mesmo assim, enquanto corrigia a trajetória do submersível e aumentava a potência dos propulsores, um aguilhão de dor subiu-lhe pelas pernas. A visão obscureceu e curvou-se sobre o guiador com uma mão sobre a barriga, tentando abstrair-se daquele sofrimento. Não por si, mas pela vida que carregava dentro de si.
Respirou pesadamente, apercebendo-se do valor mínimo de oxigénio indicado no mostrador da botija.
Estou a ficar sem tempo.
Endireitou as costas, sabendo como isso era verdade para todos.
Sobretudo para um.
Enquanto apontava o submersível para as profundezas, fez uma promessa. Para Gray, para si mesma, mas sobretudo para aquela criança por nascer.
Não falharei.
Contudo, uma questão inevitável crescera gradualmente dentro de si ao longo das últimas horas.
Quanto é que estou disposta a sacrificar, para manter esta promessa?
22
8 de maio, 08h55 EDT
Washington, D.C.
O que foi agora?
Uma vez mais, Painter apanhou o elevador secreto das instalações da Sigma para o primeiro piso do Castelo do Smithsonian. Fora novamente convocado para uma reunião com o curador do museu, Simon Wright. Não tinha um minuto a perder, mas o homem insistira que tinha algo para lhe mostrar, algo que iria querer ver com os próprios olhos.
Na pior das hipóteses, é mais uma oportunidade para esticar as pernas.
Estivera fechado no gabinete a noite inteira, onde dormitara apenas uma hora, por volta das cinco da madrugada. Estivera ocupado a coordenar esforços com várias agências de serviços secretos internacionais. Assim que apagava um fogo, logo surgia outro.
Quando as portas do elevador se abriram para uma pequena área de segurança vigiada por um guarda armado sentado a uma secretária, o telemóvel tocou. Olhou para a mão, reconhecendo o número no ecrã, e depois acenou com a cabeça para o guarda, que endireitou as costas em respeito à presença do diretor da Sigma. Além do guarda, a divisão era também protegida por dispositivos de vigilância eletrónica. A porta de entrada para aquela câmara, por exemplo, obrigava à leitura de um cartão negro de acesso especial, que continha um holograma do símbolo ?.
Painter ergueu o telemóvel e recuou um passo, embora mantendo-se no interior da pequena câmara.
— Kat, como está a doutora Delgado?
— Melhor... o efeito do sedativo está quase a passar.
Painter visualizou a tentativa de sequestro da presidente da Biblioteca do Congresso em plenas ruas de Tallinn. A mulher fora salva, mas a notícia do tiroteio na Biblioteca Nacional da Estónia levantara todo o tipo de preocupações.
Kat prosseguiu.
— Obrigada por ter enviado uma equipa médica ao nosso encontro. O Monk estava preocupado com a pressão arterial dela. Seja como for, o pior já passou, e Elena insiste que está em condições de continuar.
— Não me surpreende. Não fiquei com a impressão de que ela fosse uma flor de estufa.
— Oh, pelo contrário. Isto só a deixou furiosa. Acho que aprendi uma série de novas asneiras em espanhol. — Kat suspirou. — Também soube que o diretor Tamm foi submetido a uma cirurgia. O seu estado permanece reservado, claro. Se não tivesse sido pela ajuda dele e da filha, não sei se...
A culpa impediu Kat de terminar a frase, um sentimento que Painter conhecia bem.
— Nesse caso, temos de nos assegurar que esse sacrifício não foi em vão. Quando partem para Gdansk?
— Devemos estar no ar em cinco minutos, mas queria falar consigo uma última vez, para ver se há alguma pista em relação a quem nos atacou e como sabiam que nos encontrávamos aqui. O Jason descobriu alguma coisa?
Painter notou a frustração na voz de Kat. A sua especialização era a recolha e análise de informação. No terreno, encontrava-se desprovida dos recursos que tão bem dominava, o que apenas a enervava enquanto procurava assegurar o controlo dos acontecimentos.
— O Jason está a analisar algumas hipóteses. O miúdo sabe o que faz e há de conseguir qualquer coisa. Entretanto, sugiro que se concentrem em descobrir o que for possível em Gdansk. Precisamos de respostas, Kat, nomeadamente de sabermos onde o James Smithson obteve o artefacto. A situação no Havai está a piorar a cada minuto que passa.
— Como estão as coisas?
— O número de mortos ascende a duas centenas. Mas os hospitais não param de receber pessoas, algumas em estados semicomatosos.
— Apresentam os mesmos sintomas do grupo que o Gray salvou no monte Haleakala?
— Exatamente. O número de indivíduos parasitados não para de crescer. Os médicos não sabem o que fazer para os tratar. A namorada do Kowalski, Maria, juntou-se às equipas em Hana, a fim de disponibilizar a sua experiência para o estudo do organismo.
— Ela não deveria ter sido já evacuada?
— Recusou. Mesmo sabendo que corre o sério risco de se ver presa na ilha, mal sejam impostas as medidas de quarentena. A única resposta que deu foi que confiava na nossa capacidade para resolvermos esta crise.
— Parece-me que está na altura de o Kowalski lhe meter uma aliança no dedo, antes que ela perceba com quem está a lidar.
Painter sorriu.
— Lá isso é verdade.
— E em que ponto estão as medidas de quarentena?
— Por enquanto, só ajudam ao pânico e ao caos. Tivemos notícia de um motim em Honolulu mal a Guarda Nacional foi mobilizada. Os soldados estão a fazer o possível para circunscrever as áreas de nidificação, mas as colónias das vespas parecem estar a mover-se constantemente de um lado para o outro, ao mesmo tempo que vão criando múltiplos territórios de acasalamento. É como tentar apanhar borboletas com uma rede cheia de buracos.
— Sei que estão a experimentar uma série de inseticidas diferentes para as matar.
— Sim, mas até ao momento isso apenas tem irritado e dispersado os enxames. Pior ainda, temos agora relatórios da presença das vespas em Molokai e Lanai.
— Quer dizer que começaram a saltar de ilha em ilha?
— Parece que sim. Seja como for, a verdade é que não temos forma de saber quantos animais parasitados ter-se-ão já deslocado, o que irá acelerar a disseminação da espécie por todo o arquipélago. — Painter lutou para interiorizar a dimensão do que estava em jogo, tanto para aquelas ilhas como para o mundo. — O espaço aéreo foi fechado, o que apenas incendiou ainda mais a reação das pessoas, e, neste momento, está a ser constituído um bloqueio naval ao redor das ilhas, a fim de impedir quem quer que seja de entrar ou sair dali.
— Não acredito que seja o suficiente. Ninguém consegue isolar uma área tão grande. Há de haver alguém, ou qualquer coisa, que irá furar o cerco e trazer esta praga para o continente.
Painter sabia que Kat estava certa. Recordou o aviso de Ken Matsui acerca da necessidade de eventuais medidas drásticas.
Vamos ter de varrer estas ilhas do planeta.
Painter esperava que as coisas não chegassem a esse ponto. Porém, ouvira já os rumores que se escapavam pelas várias cadeias de comando. Apesar de horrível, esse era um cenário que estava a ser avaliado. Uma das estratégias em cima da mesa consistia em transferir as populações por ar e mar para o atol de Johnson, a cerca de mil e trezentos quilómetros para oeste, onde havia uma base militar abandonada. Depois, as forças militares esterilizariam as ilhas havaianas com ataques nucleares táticos.
A verdade é que um plano como aquele levantava uma montanha de problemas. O atol de Johnson tinha uns meros trezentos hectares. Dificilmente seria suficiente para acolher toda a população do Havai. Além disso, haveria sempre pessoas que se recusariam a abandonar as ilhas. Por fim, havia a questão do que fazer a seguir com toda essa gente deslocada.
Se alguns deles se encontrassem parasitados com cistos adormecidos, o pesadelo começaria de novo mais tarde. Quereria isso dizer que as pessoas nunca mais seriam autorizadas a abandonarem o atol de Johnson? Seria a recolocação das populações uma sentença de prisão perpétua?
— Precisamos de uma solução — murmurou Painter, entre dentes.
Kat conseguiu ouvi-lo.
— Vamos fazer o possível para descobrir qualquer resposta deixada por Smithson — prometeu. — E a equipa do Gray? Novidades?
Painter sabia que Kat receava que a outra equipa fosse a caminho de uma emboscada, porventura engendrada por Aiko Higashi. Depois do que sucedera em Tallinn, parecia certa de que o inimigo fora informado da missão na Estónia através de alguém nos serviços secretos japoneses.
— Continuo à espera de notícias do Gray — suspirou Painter. — Ele cortou todas as comunicações antes de partir para a ilha. O Jason está a monitorizar a situação, à espera de qualquer desenvolvimento.
— Espero que estejam bem... e sobretudo que encontrem algo que nos possa ajudar.
Como todos nós.
Painter consultou o relógio.
— Tenho de desligar, o Simon Wright está à minha espera. Peço-vos apenas que avisem o Jason mal aterrem em Gdansk.
— O que quer o curador, desta vez?
— É uma boa pergunta.
Painter desligou a chamada, guardou o telemóvel e dirigiu-se para a porta da câmara de segurança. O museu abrira uma hora antes e havia já algumas pessoas a circularem pelas várias áreas de exposição. Ninguém olhou duas vezes quando ele surgiu nas galerias por uma porta camuflada.
Dirigiu-se em direção à entrada norte do castelo. Simon pedira-lhe para se encontrarem na capela no lado esquerdo dessa entrada. A pequena alcova guardava o memorial e a cripta de James Smithson. Painter visitara o local inúmeras vezes ao longo dos anos. Algo que fazia com gosto, uma vez que era uma forma de prestar homenagem ao homem que fundara aquela instituição ao serviço da ciência, história e do conhecimento.
Mais à frente, Simon esperava já por ele junto à entrada. Usava um fato elegante, e os cabelos brancos pela altura dos ombros encontravam-se penteados para trás, revelando as rugas de preocupação ao longo da testa. Avistou Painter e acenou-lhe.
— Obrigado por me permitir dispor do seu tempo novamente, mas achei que isto seria importante.
— O que tem para me mostrar, afinal?
Simon convidou-o a entrar na capela e deixou-se ficar de pé junto ao túmulo vertical, a apreciar a peça com as mãos apoiadas na cintura. Painter tinha de admitir que era impressionante. Uma enorme urna de pedra branca repousava sobre um sarcófago de mármore decorado, que guardava por aqueles dias os restos mortais de Smithson.
— Passei por esta cripta um sem-número de vezes — disse Simon. — Mas, agora, interrogo-me se Smithson tentou dizer-nos alguma coisa. Talvez preservando qualquer informação em pedra... algo que não pudesse ser consumido num incêndio, como os seus diários.
— O quê, por exemplo?
Simon olhou por cima do ombro.
— Alguma coisa acerca do que levou para o túmulo.
Painter franziu o sobrolho.
— Não estou a perceber.
— Alexander Graham Bell trouxe consigo as ossadas de Itália, porém, cerca de um ano mais tarde, foi a vez deste túmulo. — Simon tocou com a mão na pedra. — Esta é a peça original que se encontrava no cemitério de San Beningo, ao largo de Génova.
Painter sabia que assim era, mas continuava sem perceber qual a importância disso.
— O sobrinho de Smithson, Henry James Hungerford, mandou fazer este memorial para a campa do tio. O simbolismo da decoração continua a dar azo a especulações. Há quem acredite que foi o próprio Smithson que escolheu estes motivos específicos. Como uma espécie de vénia, digamos assim, ao conhecimento clássico. Veja o exemplo das patas de leão que suportam a urna: é o tipo de característica que podemos ver em todo o mundo antigo, desde a Grécia, Roma, ou mesmo o Egito. As patas simbolizam força.
Simon apontou para outros elementos gravados na pedra.
— O ramo de louro representa a Árvore da Vida. O pássaro a alma a ascender aos céus. A concha, com ligação ao mar, representa a eternidade e o renascimento.
Ergueu uma sobrancelha para Painter.
Painter compreendeu o que o curador pretendia dizer.
— Está a sugerir, por exemplo, que ele colocou a concha como uma indicação de que o túmulo guardava algo capaz de renascer, algo que poderia ser imortal. Parece-me um nadinha rebuscado, não?
— Talvez. No entanto, a pinha no cimo da urna significa regeneração. A meu ver, diria que temos aqui uma temática consistente.
Painter cruzou os braços, pouco convencido.
Simon notou a postura do diretor, sorriu e desviou-lhe a atenção para a fileira de motivos abaixo da tampa da urna.
— Repare nas três figuras à direita da concha. E, mais uma vez, tenha em conta que a concha significa renascimento.
Painter aproximou-se para observar melhor os símbolos. Um arrepio frio percorreu-lhe a espinha.
Como é que nunca reparei nisto?
Os três símbolos à direita da concha eram uma serpente, um pedaço de rocha e um inseto alado.
Ergueu a mão e passou os dedos sobre a pedra no centro.
— Está a sugerir que isto representa o pedaço de âmbar? — Passou para a serpente. — E que o réptil simboliza os ossos de dinossauro aprisionados? E o inseto alado...
— A maioria das pessoas pensa que se trata de uma traça. Nascida de um casulo, é o exemplo da vida depois da morte. Talvez tenha um duplo significado, representando não só o renascer depois da morte, mas também as criaturas que conseguem executar esse milagre.
Painter voltou a deslizar os dedos sobre a pedra, como se estivesse a ler uma mensagem em braille do fundador do Instituto.
— Vespas nascidas do âmbar, a partir dos ossos de um réptil... — murmurou.
Simon recuou um passo. Pousou outra vez as mãos nas ancas.
— Se deixou este aviso no próprio túmulo, isso leva-nos a perguntar...
— Se não existirão mais mensagens escondidas.
Painter estudou as várias decorações que agraciavam o memorial. A resposta que tanto procuravam poderia estar ali? Não a cura em si, talvez, mas uma pista, pelo menos, sobre a origem do artefacto?
Deu uma palmada nas costas do curador.
— Simon, um dia destes ainda o vou recrutar para a Sigma.
— Obrigado, mas gosto muito do meu trabalho. Sobretudo porque não costumo ser alvejado enquanto o faço.
Painter apontou para o túmulo.
Pode pedir a alguém para fotografar isto de cima a baixo e enviar-me as imagens?
— Vou tratar disso pessoalmente.
— Obrigado.
Painter virou costas e afastou-se. Queria mostrar as fotografias a Kat o mais rápido possível e rezou para que isso pudesse ajudá-la de alguma forma. Também queria que Gray as observasse. O homem tinha um talento especial para retirar sentido do que se escondia à vista de todos.
Infelizmente, havia um enorme buraco nesse plano.
Onde raio anda o Gray?
23
8 de maio, 02h22 SST
Atol de Ikikauo
Ken estremeceu enquanto o elevador descia para as profundezas da ilha. Usava apenas os calções de banho, porém, não era a seminudez que o arrepiava. Isso pouco interessava quando se tinha os canos de quatro espingardas de assalto apontadas ao peito. Quatro guardas, todos japoneses, partilhavam consigo o espaço daquela grande gaiola.
Aiko estava a seu lado, vestida apenas com um fato de banho. Também de calções, Gray e Kowalski completavam o grupo.
Depois de serem capturados, tinham sido conduzidos para o lado oeste da ilha, onde o aglomerado de edifícios de cimento da Guarda Costeira se recortava na paisagem. Os blocos com telhados de metal ferrugento erguiam-se nos montes ao longo da pista de aviação que corria paralela à costa. Um pequeno jato e um enorme avião de transporte ocupavam a ponta mais próxima da pista.
À medida que o grupo era encaminhado para o maior dos edifícios, um barco branco surgiu à vista na baía, deslizando velozmente sobre as águas apoiado num par de hidrofólios altos. Quando se aproximou do pontão, desacelerou até a quilha tocar na água.
Ken conseguira adivinhar de onde vinha. A coluna de fumo ainda obscurecia as estrelas a sul, assinalando o que restava do catamarã dos primos de Palu.
Uma vez no interior do edifício, o grupo fora despojado de todo o equipamento, incluindo os fatos de mergulho, e depois conduzido para o poço que fora escavado através das fundações de betão, onde pendia a gaiola de um elevador de carga, mais ou menos do tamanho de uma garagem para um carro. A metade superior da gaiola era aberta, com barras de ferro verticais.
Incapaz de continuar a encarar os canos das metralhadoras, Ken desviou o olhar para as paredes rochosas ao redor, cujo aspeto mudara à medida que o elevador descia. As camadas superiores da ilha eram constituídas de coral comprimido, mas agora estavam a cair através do que seria o núcleo de basalto negro da ilha. A história do local encontrava-se escrita na sua geologia. Nascidas de antigas erupções vulcânicas ao longo da crista média oceânica do Pacífico, todas aquelas ilhas continuavam a ser empurradas lentamente para noroeste por forças tectónicas. Essas mesmas forças também as tinham empurrado para cima, expondo as respetivas formações circundantes de coral ao sol.
Ken tentou acalmar-se e retirar força da pedra dura ao redor, mas o elevador parou de repente. Perdendo o equilíbrio, deu um pequeno encontrão a Gray, que o amparou pelo cotovelo com mão firme.
Talvez seja esta a força com que preciso de contar neste lugar.
O guarda que os esperava lá em baixo abriu a porta do elevador. Ken e os restantes foram conduzidos sob a ameaça das armas pelo túnel no subsolo.
Aiko olhou em volta.
— Devem ter usado a base desativada para construírem isto sem ninguém se aperceber.
O tom de voz da japonesa era tranquilo, quase de admiração. Ken, pelo contrário, sentia o coração a bater na garganta. Limpou o suor da testa, apercebendo-se de como destoava naquele grupo.
O túnel terminava numa porta circular de aço, suficientemente grossa para selar o cofre de um banco. Estava meio aberta. Ken foi o último a passar e, apesar de aterrorizado, ficou boquiaberto com o cenário que se abriu no lado de lá da porta.
Um túnel de vidro estendia-se pelo lago adentro, iluminado por fileiras de luzes LED ao longo do teto arqueado. A luminosidade das estrelas não alcançava aquela profundidade. O complexo que se revelou era um mundo em si mesmo, um labirinto de túneis e galerias entrecruzados ao longo de três pisos. Era como se estivesse a olhar para uma estação espacial perdida no vazio.
Um dos companheiros manifestou uma reação diferente.
— Parece um daqueles conjuntos de tubos que se metem nas gaiolas de hamsters — comentou Kowalski. — A única diferença é que os estúpidos dos ratos somos nós.
Uma voz grunhiu nas costas de ambos.
— Mexam-se!
Enquanto avançavam, Ken foi compreendendo a configuração da estrutura. Nesse momento, encontravam-se no piso intermédio das instalações. Os pisos em cima e em baixo pareciam divididos em secções, cada uma tendo como centro uma galeria circular com uma cúpula de vidro. A disposição sugeria que o trabalho ali desenvolvido seria altamente compartimentado.
O cenário ideal para medidas de isolamento.
A razão de tais precauções tornou-se de imediato óbvia. Passaram ao lado de um túnel que conduzia a uma das galerias circulares nesse piso. A entrada encontrava-se selada, porém, do lado de lá de uma janela de vidro, era possível observar uma massa escura, fervilhante, que cobria cada superfície. Fiadas de pontos negros revoluteavam pelo ar.
Ken semicerrou os olhos e abrandou o passo, mas foi imediatamente forçado a seguir caminho.
Aiko olhou para ele de relance, com uma expressão apreensiva.
— Acho... acho que aquilo era um enxame constituído exclusivamente por soldados... — disse Ken. — As vespas grandes que vos mostrei, pretas e vermelhas. — Olhou através da rede de túneis, para as outras galerias. — Penso que isolaram os diferentes elementos do enxame, para estudarem cada um deles separadamente.
Por toda a parte, técnicos de batas brancas deslocavam-se de um lado para o outro. Mais à frente, homens com macacões azuis empurravam carrinhos carregados de materiais. Ken e os outros encostaram-se contra as paredes do túnel, para lhes permitirem a passagem.
— Devem estar a preparar-se para abandonarem a base — murmurou Gray.
Ken sentiu uma pontada de receio pelo que isso implicava.
E o que tencionam fazer connosco?
Assim que terminou o desfile de carrinhos, o grupo continuou a ser conduzido até ao final do túnel, onde uma estrutura central ligava os três pisos através de uma escadaria em espiral, mas foram encaminhados para uma sala no coração de todo o complexo.
Um dos guardas pressionou um botão junto a um conjunto de portas duplas. Encostou os lábios ao intercomunicador e falou rapidamente em japonês. O tom de voz baixo não permitiu que Ken percebesse o conteúdo da mensagem.
O guarda recuou e as portas abriram-se, revelando uma sala circular com uma ampla secretária de teca polida no centro. Prateleiras feitas da mesma madeira cobriam a parede traseira da sala, enquadrando a secretária ao centro e o homem sentado atrás dela.
O desconhecido levantou-se quando o grupo foi forçado a entrar. Parecia não ter mais de trinta anos e vestia um fato de bom corte, que lhe acentuava o físico tonificado e musculado. Os olhos negros, tão escuros como os cabelos penteados para trás, estreitaram-se para observar cada um deles, nitidamente a avaliá-los da cabeça aos pés.
Apesar da expressão estoica, parecia zangado, algo que era denunciado pelos vincos entre as sobrancelhas e pelos lábios comprimidos.
Surpreendentemente, Aiko foi a primeira a falar.
— Kon’nichiwa, Masahiro Ito — disse, fazendo uma pequena vénia com a cabeça.
O homem não ficou nada satisfeito por ouvir o seu nome mencionado assim às claras, mas depressa se recompôs e devolveu o cumprimento.
— Senhora Higashi.
— Vocês conhecem-se? — perguntou Gray, lançando um olhar de soslaio a Aiko.
— Hai — anuiu a japonesa, curvando a cabeça na direção do homem. Ergueu um braço. — Apresento-vos Masahiro Ito, vice-presidente do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento dos Laboratórios Fenikkusu.
Ken repara já no logótipo dourado que decorava parte da parede atrás da secretária. Representava um círculo de chamas envolvendo uma ave estilizada. Um rubi do tamanho de um polegar assinalava o olho da ave, uma fénix, a criatura mitológica cujo nome servira para batizar a empresa.
Aiko dirigiu-se em japonês a Masahiro.
— Como está o seu avô?
Masahiro sentou-se.
— Está bem.
A resposta era apenas uma forma de devolver a cortesia da pergunta, uma dança de costumes que era praticada por todos os homens de negócios japoneses e que servia para enaltecer as tradições antigas.
— Agrada-me sabê-lo — disse Aiko, anuindo novamente com a cabeça e dando por terminado o breve ritual ao mudar o discurso para inglês. Fitou o homem com um olhar duro. — Agora, talvez me possa explicar a razão por detrás dos ataques perpetrados pela vossa família nas ilhas havaianas.
A assertividade da pergunta apanhou Ken de surpresa.
Masahiro, por sua vez, nem sequer pestanejou.
— Dadas as circunstâncias, não creio que sejam necessárias explicações. — Desviou o olhar para os guardas armados. — Seja como for, está tudo a correr de acordo com o plano do meu avô. Exceto um pormenor.
Estreitou os olhos, fixando a atenção em Gray.
— Onde está a sua companheira?
Gray olhou na direção de Kowalski, fingindo-se surpreendido.
— Como assim? Está aqui mesmo, do meu lado.
Masahiro levantou-se de novo e inclinou-se sobre a secretária.
— A mulher... a sua mulher. A traidora responsável pela queda da Kage.
Kowalski inclinou-se na direção de Gray.
— Acho que ele está a falar da Seichan...
Gray abanou lentamente a cabeça e endireitou as costas, sacudindo qualquer demonstração de subserviência. Fitou o adversário e imprimiu um tom de raiva à voz, tudo para adicionar consistência à mentira que diria a seguir:
— Ficou em Maui... doente e em quarentena, depois de ter sido parasitada pelas malditas criaturas que vocês soltaram nas ilhas.
Masahiro estudou-lhe a expressão, nitidamente a decidir se deveria acreditar nisso.
Embora o grupo não tivesse evitado a captura, o mergulho noturno e a chegada discreta à ilha ajudara a dissimular o número de elementos que compunham a equipa.
Ken sentiu uma réstia de esperança.
No mesmo instante, uma voz fria ergueu-se atrás de si.
— O prisioneiro está a mentir.
O professor virou-se e deu de caras com uma figura que acabara de entrar na sala, acompanhada de um grupo de homens armados. A mulher tinha cabelos brancos como a neve, apenas um pouco mais claros que a pele pálida do rosto. Uma tatuagem preta cobria a totalidade da face direita, representando a metade de um círculo. Os olhos azuis, quase transparentes, percorreram a divisão e fixaram-se em Gray.
Ken notou a tensão imediata no corpo do operacional, que denunciava a vontade de se atirar ao pescoço daquela mulher.
Não havia dúvida de que Gray a conhecia.
02h34
Valya Mikhailov...
Gray cerrou os punhos, contendo a vontade de matar aquela mulher ali mesmo. Sabia que a assassina fantasmagórica continuava viva depois dos acontecimentos decorridos em África no ano anterior. Ela nunca o escondera, e tivera até a ousadia de anunciar o facto ao deixar uma rosa branca, com uma única pétala preta, sobre a campa do irmão gémeo.
Gray fitou a tatuagem no lado direito do rosto, representando um Kolovrat, um símbolo solar pagão dos países eslavos. A assassina ostentava apenas metade desse símbolo; a outra costumava ser usada pelo irmão gémeo, que morrera um ano antes no Ártico, a milhares de quilómetros de distância. Pela expressão ressentida, Gray sabia perfeitamente quem ela culpava pela morte do irmão.
A assassina dirigiu-se novamente a Masahiro, sem nunca desviar o olhar de Gray.
— A mulher não estava no barco. Revirámo-lo de ponta a ponta.
Para lá da porta, duas figuras familiares aguardavam com os ombros descaídos e os rostos suados. Eram os dois primos de Palu, Makaio e Tua.
Gray sentiu-se aliviado. Embora longe de se encontrarem em segurança, os dois havaianos continuavam vivos. Valya deveria ter capturado os homens antes de rebentar com o barco.
Masahiro lançou-lhe um olhar de desdém.
— Nesse caso, poderá ter ficado de facto em Maui.
— Não — respondeu Valya, com firmeza. — Tenho a certeza de que se encontra na ilha.
— Não me parece que possa afirmar dessa...
— Ela está aqui! — interrompeu Valya, lançando um olhar frio ao japonês. Apontou para Gray. — E ele vai dizer-nos onde.
Masahiro parecia irritado e cético ao mesmo tempo. Percebia-se que havia alguma animosidade entre os dois.
— E para que nos interessa isso? Iremos abandonar a ilha daqui a quarenta minutos, e não tencionamos deixar pedra sobre pedra.
— Interessa porque o seu avô, Jonin Ito, vai querer saber se ela está morta. Tenciona falhar-lhe outra vez? — Valya deixou que a provocação surtisse efeito em Masahiro. Virou-se para Gray. — Além disso, quarenta minutos é tempo mais que suficiente para este me contar tudo o que quero saber.
Gray endireitou as costas.
Gostava de ver isso.
Aceitando o desafio silencioso de Gray, a assassina virou-se para os guardas que a acompanhavam e apontou para os primos de Palu.
— Levem-nos para onde vos disse. Em todo o caso, talvez seja preciso mais alguém, para tornar o americano mais cooperante. — Virou-se e fixou o olhar em Aiko. — Talvez uma mulher...
Masahiro levantou-se.
— Não. O meu avô foi muito claro. Ninguém toca na senhora Higashi. Ela já nos foi útil no passado e poderá voltar a sê-lo.
Gray lançou um olhar de relance a Aiko.
O que quis ele dizer com isso?
A expressão da japonesa manteve-se inalterável, tanto em relação à ameaça de Valya como em relação à insinuação de Masahiro.
Valya apontou com a cabeça na direção de Ken.
— Nesse caso, talvez um civil. O sangue de um inocente é capaz de resolver o problema.
— Também não. — Masahiro contornou a secretária, a fim de a confrontar cara a cara. — No breve período em que estudou as vespas, o professor Matsui conseguiu mais progressos do que qualquer outro investigador. O meu avô até considerou o nome que deu às vespas como sendo uma escolha inspirada. Odokuro remete-nos imediatamente para a nossa herança e mitologia. — Olhou para Ken. — Na verdade, com a dose certa de persuasão, Jonin Ito acredita que podemos convencer o bom do professor a juntar-se a nós.
Pela expressão horrorizada de Ken, a hipótese parecia pouco provável.
— Isso deixa-me pouca escolha — disse Valya, virando-se para o único elemento que restava. — Levem-no!
Kowalski soltou um resmungo, mas o cano de uma metralhadora contra as costelas obrigou-o a caminhar em direção à porta.
Gray deu um passo em frente.
— Para onde o levam?
Valya entreabriu os lábios finos, revelando a ponta dos dentes. Era a sua versão de um sorriso.
— Vamos apenas testar a força da sua resolução, comandante Gray. — Virou costas. — E do seu estômago, se quer mesmo saber.
02h58
Com Aiko a seu lado, Ken seguiu atrás de Gray pela escadaria em espiral. Dois guardas seguiam nas costas dos três, com as metralhadoras erguidas. À frente, a assassina pálida indicava o caminho, acompanhada de mais dois homens armados.
Denunciando alguma impaciência, Masahiro Ito seguia também na frente. Consultou o relógio duas vezes enquanto subiam para o nível superior do complexo.
Uma vez lá, o grupo foi encaminhado para uma das quatro secções. Um par de técnicos viu-os aproximarem-se e prosseguiram por um túnel lateral, desviando-se do caminho. Ambos mantiveram as cabeças baixas, mas um espreitou por cima do ombro em direção ao local para onde Kowalski e os primos teriam sido levados.
Quando o técnico voltou a olhar em frente, Ken apercebeu-se da expressão assustada no rosto do homem.
Não pode ser um bom sinal.
Depois de uma nova encruzilhada de túneis, o grupo chegou a uma parede de vidro com vista para uma câmara de aço, com correntes fixadas ao teto. No interior, os guardas estavam a colocar as algemas, nas pontas das correntes, nos pulsos dos três prisioneiros que ali estavam de pé, fixando-lhes os braços estendidos acima da cabeça.
As expressões de Makaio e Tua eram de terror absoluto. Kowalski pura e simplesmente franzia as sobrancelhas espessas, dando a ideia de que gostaria de bater em alguém. Infelizmente, nesse momento olhava diretamente para Gray, como que culpando o colega pela situação em que se encontrava.
Valya também se virou para Gray.
— Vou dar-lhe três oportunidades para revelar o paradeiro da sua companheira. Esta é a primeira, antes de as coisas se complicarem no interior desta sala. Se cooperar, garanto-lhe que os seus amigos receberão uma morte rápida e indolor.
Gray permaneceu em silêncio, mas os olhos brilharam de raiva.
Valya encolheu os ombros.
— Como queira.
Com os três prisioneiros algemados, Valya deu uma pancadinha no vidro. Os guardas abandonaram de imediato a divisão, selando uma porta atrás deles que lembrava uma escotilha entre compartimentos de um submarino.
Ken estudou o chão de aço perfurado sobre os pés de Kowalski e dos camaradas. Visualizou a água do mar a entrar por aqueles orifícios.
Será que vão afogá-los ali dentro?
Em vez disso, a presença de movimento desviou a atenção dele para a parede mais afastada. Junto a uma escotilha baixa e sem janela, várias frentes de gavetas abriram-se em sucessão, formando uma fila de alcovas junto ao chão.
Uma torrente escura derramou-se das gavetas para a câmara selada.
Porém, não se tratava de água.
Ken compreendeu imediatamente que aquele cubículo deveria ter ligação a uma das várias galerias com cúpulas de vidro. No entanto, a galeria mais próxima não albergava as vespas-soldado que vira anteriormente, com os seus temíveis ferrões, mas algo bem pior.
As vespas que invadiram a divisão não possuíam asas, e cada uma não seria maior que uma noz-pecã. Embora pequenas, compensavam o tamanho pela força dos números, juntamente com o poder das robustas mandíbulas.
No laboratório em Quioto, Ken testemunhara a fúria daqueles insetos sobre um rato.
Não consigo ver isto.
Queria afastar-se do vidro, mas o cano de uma metralhadora pressionado contra as costas manteve-o no lugar.
Gray notou a aflição do entomologista e lançou-lhe um olhar inquisitivo.
Ken não conseguia falar, quanto mais explicar-lhe o que se preparava para acontecer àqueles homens. Diante de si, a horda de insetos continuou a escapar-se da galeria para o chão da câmara, para depois se espalhar ao longo das paredes. Conhecia aquele padrão de comportamento pelo que observara no laboratório. As vespas estavam a cercar as presas.
Ao lado de Gray, Valya ergueu dois dedos no ar.
— Esta é a segunda oportunidade para me contar o que quero saber.
Gray ignorou-a, mantendo a atenção focada no professor.
— O que são estes insetos que estou a ver? — perguntou.
Ken engoliu em seco.
— São os ceifeiros.
CEIFEIRO
Sem identidade individual, o ceifeiro era parte de um todo.
Avançou pela confusão com a carapaça a bater nas dos outros e as antenas a emaranharem-se. Era quase impossível distinguir onde terminava o seu corpo e começava a horda.
Fortalecendo esse laço, a carapaça era coberta de pelos minúsculos. Para alguns dos outros elementos do enxame, esses filamentos serviam para a recolha de pólen. No caso do ceifeiro, tinham sido adaptados para servirem de instrumentos de comunicação. Ao esfregar-se nos outros, libertava químicos e feromonas que viajavam através da massa de corpos, ajudando-o a tornar-se uma única entidade com a horda.
Enquanto fluía com os demais para o novo espaço, os sentidos apurados detetaram de imediato a presença das presas. Essa sensação foi ampliada um milhão de vezes pela horda. As hormonas responderam, emitindo sinais para os músculos que controlavam as poderosas mandíbulas afiadas.
No mesmo sentido, uma glândula entre os olhos excretou uma gota de óleo para a boca, contendo heptan-2-ona, um agente paralisante. A toxina de uma gota apenas incapacitava uma lagarta ou qualquer outro inseto pequeno. Contudo, ao trabalharem juntos, combinando a força de todos, os ceifeiros conseguiam derrubar presas muito maiores.
Além disso, a saliva continha uma potente mistura de enzimas digestivas, suficientemente fortes para dissolver o mais duro dos tecidos. Era uma característica que evoluíra desde os tempos em que a maioria das presas se encontrava protegida por armaduras de escamas.
Conduzida por um comportamento impregnado no código genético, a horda dividiu-se em duas secções ao redor das presas, como se fossem tenazes.
Enquanto decorria tudo isso, continuaram a recolher informação acerca da refeição iminente, avaliando potenciais riscos. Ainda assim, a horda tinha pouco ou nada a temer. Os corpos eram protegidos por carapaças rígidas, capazes de suportarem forças tremendas, como o impacto das pisadas dos gigantes do passado. Numa questão de segundos, todas as estimativas de riscos foram partilhadas.
Formado um consenso, os cálculos converteram-se em instruções.
Os alvos foram selecionados, a fim de dividirem o festim entre todos.
Por fim, alguns grupos entre a horda começaram a sacudir as patas traseiras com movimentos fortes e rápidos. Outros juntaram-se ao coro. Era tanto uma indicação para se prepararem como um meio para analisarem a qualidade da carne à disposição.
As várias reverberações ecoaram por toda a parte, devolvendo novas informações.
Primeiro que tudo, apenas a forma e o tamanho das presas.
Contudo, à medida que a cacofonia aumentava de volume amplificada pela força dos números, tornou-se suficientemente forte para penetrar as camadas exteriores das presas, revelando o que se encontrava no interior.
Ao redor de um núcleo de osso, encontravam-se músculos que se fletiam, sangue que circulava, vísceras que se enrolavam. Impulsos elétricos viajavam por todo o lado, concentrando-se sobretudo no interior do crânio.
Perante a visão de tão rica recompensa, a fome disparou por toda a horda, incendiando uma vontade incontrolável de devorarem aquelas presas por inteiro, deixando nada para trás exceto pilhas de ossos. O apetite feroz aumentou até um ponto em que não poderia mais ser negado.
Movendo-se como um, os ceifeiros avançaram para o festim.
Nada iria detê-los.
Nada podia detê-los.
QUARTA PARTE
CONTRA A CORRENTE
24
8 de maio, 16h00 CEST
Gdansk, Polónia
Um homem pendia agrilhoado pelos braços no pátio.
— Bom, não se pode dizer que seja um bom sinal — comentou Monk, enquanto caminhavam em direção ao prisioneiro.
Kat não era mulher de ligar a presságios, mas, tendo em conta o que acontecera em Tallinn, manteve-se atenta ao que se passava em redor.
O prisioneiro riu-se para o amigo, que registou o momento em fotografia. Eram ambos turistas de passagem pelo Muzeum Historycznego Miasta Gdanska, um museu dedicado aos tempos medievais de Gdansk. A instituição localizava-se num complexo de edifícios góticos do século XIV. Nessa época, o local servia de prisão e pelourinho. Uma das torres albergava ainda as celas intactas, onde se encontravam expostos instrumentos de tortura em toda a sua sangrenta glória.
Porém, não era esse o destino do grupo.
Para lá do histórico pátio decorado com grilhões, a maior parte dos cinco pisos do museu eram dedicados ao que a cidade apelidava de «ouro do Báltico». Acima de um arco pontiagudo, podia ler-se, num letreiro, as palavras MUZEUM BURSZTYNU.
— Museu do Âmbar — traduziu Elena, enquanto se encaminhavam para a passagem arqueada. Com o rosto erguido para o letreiro, tropeçou numa das pedras da calçada, mas Sam amparou-a pelo braço.
Embora Elena tivesse recuperado totalmente dos efeitos da droga administrada pelos sequestradores, no segundo em que aterraram em Gdansk o entomologista colara-se à bibliotecária como uma sombra. Sobretudo enquanto percorriam a extensão da rua Dluga, uma pitoresca via pedestre rodeada de edifícios históricos.
Kat também mantivera os olhos bem abertos, não em relação a Elena, mas no que dizia respeito ao ambiente em geral. A rua encontrava-se apinhada de turistas, o que a deixava pouco à vontade. De cada um dos lados, os edifícios antigos albergavam lojas, hotéis de charme e cafés. Contudo, muitas das caves funcionavam como joalharias especializadas naquilo que era o «ouro» da cidade, um testemunho permanente da antiga glória de Gdansk como capital mundial do comércio de âmbar.
Depois de pagarem a entrada junto a um pequeno balcão, Kat conduziu o grupo pela íngreme escadaria que dava acesso ao museu propriamente dito. No primeiro piso, uma série de vitrinas exibiam uma variedade de peças. Não tardou para que a atenção de Kat se dividisse entre a possível presença de ameaças e as maravilhas expostas por toda a parte. Uma árvore com folhas de âmbar erguia-se de uma paisagem de flores com pétalas do mesmo material. Um navio medieval, esculpido em resina ossificada, ostentava mastros com velas douradas. Lâmpadas encastradas em armaduras de latão iluminavam as vitrinas, ajudando ao tom áureo de todo o espaço.
Elena deteve-se junto a um expositor que continha um ovo de âmbar Fabergé num pequeno pedestal rotativo. A delicada metade superior, toda ela trabalhada em ouro, encontrava-se aberta, de forma a mostrar um globo polido da preciosa resina.
— Maravilhoso — murmurou, erguendo os óculos de leitura para observar melhor a peça.
Sam inclinou-se ao lado dela.
— Deve valer um pequeno reino.
Elena deu-lhe um toque com o ombro.
— Essa afirmação é mais verdadeira do que pensa. E aposto que este ovo, um presente dos czares, representa os laços da indústria à Rússia, onde ainda hoje é colhida a maioria do âmbar.
— E que seria o destino final de James Smithson — sublinhou Sam.
Se não ficasse pelo caminho, pensou Kat.
Elena acenou com a cabeça.
— A região mineira na Rússia é conhecida como Kaliningrad Oblast. Mas no passado chamavam-lhe Königsberg, a Montanha do Rei.
Sam endireitou-se e massajou as costas.
— Nesse caso, este ovo tem mesmo um passado real.
— Um passado que se estende muito além da época dos czares. — Elena semicerrou os olhos para o pequeno globo no interior do ovo. — Se olhar com atenção, pode ver uma pequena mosca aprisionada na resina. — Endireitou-se e fitou o grupo. — De certa forma, é como se toda a história da região se encontrasse preservada em âmbar. Tanto em termos culturais, políticos ou mesmo biológicos.
— Infelizmente para o Havai, esta resina terá preservado mais do que seria desejável — disse Monk.
Recordada desse facto, Kat consultou o relógio.
— É melhor irmos andando. — Acenou na direção da escadaria que conduzia ao piso seguinte. — Por ali.
Antes de deixarem Tallinn, Kat contactara o diretor do museu. Socorrera-se do mesmo pretexto usado anteriormente, de que fazia parte de um grupo de investigadores que procurava reconstruir a coleção de minerais de James Smithson, começando por um pedaço de âmbar que fora recolhido naquela região. O diretor prontificara-se a dar-lhes assistência, sobretudo ao saber que a presidente da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos fazia parte da equipa.
Kat esperava que a participação do homem não terminasse de forma tão trágica como a do diretor Tamm. Segundo as últimas notícias que tivera, Tamm sobrevivera à cirurgia, mas as probabilidades de se salvar mantinham-se críticas. A filha, Lara, permanecia à cabeceira da cama de hospital.
A culpa consumiu Kat enquanto subia as escadas. Detestava a ideia de colocar inocentes em risco, mas a situação no Havai piorava a cada hora, onde havia milhões de vidas em jogo. Como tal, não tinha outra alternativa.
Assim que se viram no piso seguinte, dedicado à história do âmbar, depararam-se com um enorme mapa afixado numa parede. Era em tudo semelhante ao mapa que Lara lhes mostrara, uma vez que assinalava a histórica rota comercial ao longo da costa báltica, desde São Petersburgo até Gdansk, seguindo depois para sul, através da Polónia e terminando em Itália.
A Rota do Âmbar.
Smithson obtivera o seu artefacto ao longo desse caminho.
Mas onde?
— Querida — disse Monk a seu lado. — Acho que aquele homem quer a tua atenção.
No lado oposto da galeria, um homem baixo num fato demasiado justo para a barriga proeminente acenou-lhes. Era o diretor do museu. Encontrava-se no lado de lá de um cordão de veludo, que proibia o acesso à sala contígua. Deveria ter reconhecido Elena, o que foi confirmado quando a chamou à distância.
— Doutora Delgado, é uma honra recebê-la!
Os turistas presentes alternaram os olhares entre o homem e o grupo.
Kat revirou os olhos. Pedira especificamente ao diretor para não fazer alarido daquela visita, mas era evidente que essa recomendação caíra em saco roto. Apressou-se a conduzir os companheiros para o outro lado da galeria e, assim que chegaram ao pé do homem, ele estendeu o braço e ergueu o cordão, permitindo-lhes o acesso à divisão seguinte.
— Que prazer — reforçou o diretor, entusiasmado. — É uma verdadeira honra receber a presidente da Biblioteca do Congresso na nossa humilde instituição.
Elena recebeu o cumprimento elogioso sem abrandar o passo. Sorriu e apertou-lhe a mão.
— Obrigada, diretor Bosko. Agradeço muito a sua ajuda... e discrição.
Elena enfatizou a última palavra, lançando ao mesmo tempo um olhar de desculpas a Kat.
O diretor anuiu com a cabeça.
— Oczywiscie... claro. Sigam-me, podemos discutir o assunto em privado.
Kat seguiu Bosko até à galeria seguinte, que se encontrava compartimentada por divisórias e vitrinas vazias, indicando que estaria a ser montada uma nova exposição. O diretor conduziu-os para a parede mais afastada. Embora a área se encontrasse fora da linha de visão da entrada, estava longe de ser apropriada para uma conversa daquelas.
Havia uma série de objetos em cima de uma mesa, todos eles de âmbar.
— Reuni estes exemplos para vos ajudar no que procuram — explicou Bosko. — Espero que não seja um problema.
— Claro que não — disse Elena.
Kat franziu o sobrolho para o material à disposição. Não havia documentos, cadernos ou livros.
— Conseguiu descobrir alguma coisa acerca da visita de James Smithson à vossa cidade?
Bosko abanou a cabeça.
— Não. Procurámos todos os registos referentes à data em que o senhor Smithson embarcou no navio mercante para Tallinn. — Assim que disse isso, a expressão pesarosa depressa deu lugar à sua personalidade efusiva. — Mas talvez descubra qualquer coisa, com mais tempo.
Infelizmente, tempo era um luxo de que não dispunham.
Kat interrogou-se se não teriam feito uma aposta errada ao deslocarem-se até ali.
— Vejam — disse Sam, enquanto observava um dos itens. — Incrível.
O grupo acotovelou-se ao redor do entomologista. Uma lupa fora posicionada sobre um pedaço de âmbar do tamanho de um punho. O pedaço estava iluminado por trás e fora meticulosamente polido para melhor mostrar o que se encontrava aprisionado no interior.
Elena inclinou-se e espreitou pela lupa.
— É um lagarto.
— Esta curiosidade científica faz parte da nossa coleção — disse Bosko, de peito cheio. — É raro encontrar-se uma criatura tão bem preservada em toda a totalidade. Está aqui tudo... desde a ponta da cauda à ponta do nariz.
Kat sentiu-se mais aliviada. A presença daquele espécime sugeria que o objetivo da visita não passara ao lado do diretor.
— Quando me descreveu o artefacto obtido pelo senhor Smithson, um enorme pedaço de âmbar com os ossos de um réptil pré-histórico, lembrei-me imediatamente desta peça. — Ergueu uma sobrancelha. — E porventura de uma maneira de vos ajudar a localizarem a respetiva fonte.
— Como? — perguntou Kat.
Bosko apontou para o lagarto.
— Este bichinho tem trinta e dois milhões de anos, o que é a idade típica do âmbar encontrado nesta região. Os depósitos na Rússia e nas costas do mar Báltico são «recentes». Formaram-se no período Terciário, há cerca de trinta a cinquenta milhões de anos. Na verdade, embora pareça duro como pedra, o nosso âmbar ainda não se encontra totalmente solidificado.
Monk estudou as amostras na mesa.
— Está a dizer que estes espécimes ainda estão em processo de endurecimento?
Bosko sorriu, o que lhe alargou as faces rosadas.
— Verdade. É por isso que sei que a amostra do senhor Smithson não proveio da nossa costa báltica.
Kat sentiu o desespero a descer-lhe novamente sobre os ombros.
Estamos no caminho errado desde o início?
Bosko prosseguiu.
— Se quiserem encontrar âmbar verdadeiramente antigo, terão de procurar noutro sítio. Existem depósitos por todo o mundo, como no vosso país ou em Espanha, onde existe âmbar com duzentos milhões de anos.
— E isso ajuda-nos como, ao certo? — perguntou Kat, com o tom de voz a sair-lhe mais ríspido do que desejaria. A impaciência ameaçava tomar conta de si.
O diretor apercebeu-se disso e moderou a exuberância natural.
— Sim, peço desculpa. Mencionou no telefonema que os ossos no artefacto seriam provavelmente de um pequeno dinossauro.
— Exato.
— Assim sendo, o senhor Smithson obteve seguramente a amostra de um desses depósitos antigos. Se partirmos do princípio de que a criatura proveio de um período tão recente como o Cretáceo, quando os dinossauros se extinguiram, então o âmbar teria de ter à volta de oitenta ou cem milhões de anos. Estamos a falar do dobro da idade do âmbar encontrado no mar Báltico.
Kat visualizou o mapa medieval na entrada do museu.
— Isso quer dizer que a amostra não poderá ter sido obtida ao longo da Rota do Âmbar?
Monk praguejou entre dentes. Tocou no pulso da mão prostética, como que ajustando melhor ao braço. Por experiência própria, trazia sempre uma prótese suplente quando viajava. O que estava a fazer nesse momento era uma espécie de tique, como se estivesse a usar um par de sapatos novo.
— Não foi isso que quis dizer — corrigiu Bosko. — Estava apenas a referir que a amostra não proveio da nossa costa. Contudo, houve tempos em que todo o território sul da Polónia se encontrava coberto por um mar pré-histórico, o mar de Tétis. Nessa época, as florestas ao longo dessa linha costeira produziam uma resina espessa que se converteria em âmbar.
Kat começou finalmente a compreender o raciocínio do homem. Visualizou de novo o mapa.
— Nesse caso, quanto mais viajarmos para sul, mais antigo será o âmbar. É isso?
O rosto do diretor iluminou-se outra vez.
— Antigo o suficiente para ter aprisionado os ossos de um dinossauro.
Mas onde, ao certo?
— Deve estar a interrogar-se onde poderá ter sido — disse Bosko, adivinhando-lhe os pensamentos. O homem era nitidamente mais arguto do que saltava à vista. Deslocou-se ao longo da mesa. — Estas amostras estão dispostas por idades, da mais recente à mais antiga. Reparem como o âmbar escurece com o tempo, até adquirir este rico tom vermelho-acastanhado. A maioria do âmbar antigo é encontrada nas camadas de terra azul.
Monk franziu o sobrolho.
— Terra azul?
— Areia glauconítica. Trata-se basicamente dos sedimentos calcificados que se formam quando o mar recua.
Monk anuiu com a cabeça.
— O que teria acontecido à medida que o mar de Tétis desaparecia.
— Exato. Como tal, os depósitos mais antigos e profundos de terra azul encontram-se todos no sul da Polónia.
— Uma região que é atravessada pela Rota do Âmbar — acrescentou Kat.
Bosko sorriu, a expressão matreira.
— Foi por isso que tomei a liberdade adicional de...
Um estrondo cortou-lhe a palavra, fazendo com que todos se sobressaltassem e se virassem na direção da entrada. Um dos pilaretes de metal que segurava o cordão de veludo tombara no chão.
O som de passos apressados ecoou em direção ao grupo.
Sem pensar duas vezes, Kat sacou da arma.
16h20
Elena recuou contra a mesa, enquanto Kat e Monk sacavam das armas em simultâneo e as apontavam na direção da entrada. Sam acompanhou o movimento da bibliotecária.
Paralisado pelo choque, o diretor ficou a olhar para os canos das armas expostas, mas controlou-se o suficiente para erguer uma das mãos.
— Não disparem! Isto é o que eu vos ia contar a seguir!
Uma figura alta surgiu, apressada, de trás de uma das divisórias. Enquanto avançava, o casaco longo ondulava como uma capa pendurada nos ombros ossudos. Abraçava uma sacola de mensageiro contra o peito. Ainda que não tivesse mais de quarenta e poucos anos, o rosto magro dava-lhe um ar severo e envelhecido. Não pareceu minimamente perturbado ao dar de caras com um par de armas apontadas. Era quase como se estivesse à espera de ser apanhado naquela situação.
Bosko interpôs-se entre o recém-chegado e as armas.
— Este é o meu colega, o doutor Damian Slaski. Dirige o novo museu que abriu em Cracóvia. Ele já cá estava quando ligaram, para levar algumas das nossas peças que irão figurar numa exposição de artefactos de âmbar do século XVIII.
— Mas quantos museus do âmbar existem ao todo? — murmurou Monk.
Bosko ouviu o desabafo e tomou-o como uma pergunta verdadeira.
— Existe um em Copenhaga, outro na República Dominicana e, claro, não nos podemos esquecer do de Kaliningrado, mais a norte.
— E o de Palanga, na Lituânia — corrigiu Slaski, muito sério. Depois encolheu os ombros e acrescentou: — Embora seja apenas uma divisão do Museu de Arte da Lituânia.
Kat lançou um olhar dos dela a Monk, pouco satisfeita de ver a conversa desviada para um assunto de lana-caprina.
— Diretor Bosko, imagino, portanto, que pediu ajuda ao seu colega?
— Sim, exatamente. Se procuram depósitos de âmbar antigo, com centenas de milhões de anos, o meu bom amigo e colega, Damian, é a vossa melhor opção.
Bosko deu uma palmada nas costas de Slaski, que apenas suspirou em resposta. Os dois formavam um par cómico. Um era alto e magro; o outro baixo e gordo. Contudo, as personalidades eram ainda mais diferentes. O efervescente Bosko parecia incapaz de exibir uma expressão sisuda; Slaski, por seu turno, parecia ter os lábios colados, impedindo-o de esboçar o mais pequeno sorriso. Mesmo assim, Elena conseguia sentir a inegável cumplicidade entre os dois homens, que ultrapassava em muito a relação profissional.
— O Damian dirige o laboratório de investigação no museu de Cracóvia — explicou Bosko. — É lá que se encontra o único espetrómetro na cidade para a análise e autentificação de artefactos de âmbar. É um perito nessa área. Em bom rigor, não existe ninguém mais qualificado.
Bosko sorriu para o colega. O outro apenas encolheu os ombros, como que aceitando a veracidade do elogio, mas sem retirar qualquer satisfação disso.
— A cidade de Cracóvia não fica longe da fronteira sul da Polónia — prosseguiu Bosko. — É aí que podem encontrar as camadas antiquíssimas de terra azul deixadas pelo mar de Tétis. E onde, em raros casos, têm sido descobertos espécimes de âmbar antigo.
— Raros até que ponto? — quis saber Kat.
Elena compreendia a relevância da pergunta. Se os depósitos fossem escassos, isso ajudaria a delimitar a área de busca.
O doutor Slaski encarregou-se de responder.
— Tenho esses registos no meu computador. Tanto das descobertas antigas como das mais recentes. Essa informação só existe porque o museu de história ao pé de Cracóvia alberga uma extensa coleção cartográfica da região. Passei muitos meses a estudá-la. Muitos dos mapas, alguns do século XIV, assinalam os locais de depósitos de âmbar antigo.
— Se puder partilhar essa informação connosco, isso ajudaria a localizar a fonte do artefacto de James Smithson — disse Kat.
— Quanto mais não seja, a limitar as nossas opções — acrescentou Elena.
— Não me parece — respondeu Slaski. — Registei mais de trezentos locais só no sul da Polónia.
Kat não gostou nada da resposta, mas recusou-se a desistir.
— Podemos reduzir os parâmetros de busca à época em que James Smithson viajou pela Rota do Âmbar...
Slaski abanou a cabeça.
— Não vale a pena dar-se a esse trabalho. Eu apressei-me a vir até aqui porque julgo saber onde o Smithson obteve a sua amostra.
Kat pestanejou duas vezes.
— O quê?
Bosko deu mais uma palmada nas costas do colega.
— Eu não lhes disse que o doutor Damian era o homem que procuravam?
16h32
— O que estou a ver, ao certo? — perguntou Kat.
Continuava sem perceber o que tinha aquilo que ver com a afirmação espantosa de Slaski, momentos antes. O grupo encontrava-se reunido ao redor de um portátil que o homem retirara da sacola de cabedal. A imagem no ecrã exibia um velho mapa.
— Este mapa pertence à coleção cartográfica do museu. Foi elaborado por Willem Hondius, em 1645, embora haja quem acredite que se baseia no trabalho anterior de Marcin German, um outro cartógrafo.
— Sim — pressionou Kat, ciente de cada minuto perdido. — Mas qual é a relevância disto?
— É um dos mapas que usei para a minha compilação. Assinala os locais de dois depósitos de âmbar. Mas não é o que vos quero mostrar. — Slaski fitou Kat. — Tem de compreender que estes depósitos são raros no sul da Polónia, a maioria pequenos e dispersos por vastas extensões de território. Assim sendo, nunca existiram explorações mineiras, propriamente ditas, dedicadas apenas à recolha do âmbar. Todas as descobertas registadas foram fruto do acaso.
Monk endireitou as costas.
— Está a dizer que os depósitos foram encontrados no decurso de outras operações mineiras.
— O que bate certo com a história de Archibald MacLeish — acrescentou Kat. — De que Smithson partilhara com um geólogo local uma história acerca de um grupo de mineiros que encontrara acidentalmente um filão de âmbar.
Absteve-se de contar o resto do relato, de como algo fora libertado nessa mina, uma doença horrível propagada por insetos.
Insetos nascidos dos ossos aprisionados no âmbar, garantira Smithson ao geólogo, já meio embriagado.
Kat calculava que o que acontecera verdadeiramente era que os mineiros teriam partido ossadas pré-históricas aprisionadas na resina, ossos que estariam repletos de cistos das Odokuro. Uma vez libertos no ar, esses esporos haviam sido inalados pelos trabalhadores, condenando-os a uma morte certa. As larvas que eclodiriam dos cistos iriam alimentar-se e crescer dentro deles até se tornarem vespas adultas, que irromperiam mais tarde dos cadáveres, rumo à liberdade.
Não admira que os responsáveis pela mina tenham detonado os poços com os mineiros ainda lá dentro.
Slaski, claro, não sabia nada disso, mas chegara à própria conclusão sobre o assunto.
— Eu parti do princípio de que tal depósito fora descoberto por acaso numa mina em funcionamento. Na altura do senhor Smithson, existiam explorações ativas por toda a Polónia... cobre, enxofre, prata. Todavia, as operações maiores eram dominadas pela indústria do sal.
Apontou para o mapa no ecrã.
— Como esta mina que Hondius assinalou. Ele até incluiu gravuras no mapa, demonstrando a escala das operações que decorriam no fundo desses poços, na época.
— E que mina é essa? — perguntou Elena, estudando as gravuras com a ajuda dos óculos.
— As Minas de Sal de Wieliczka. Um dos locais mais famosos da Polónia. Iniciou operações no século XIII e manteve-se em funcionamento até aos nossos dias. Em 2007, foi declarada Património Mundial pela UNESCO.
Monk franziu o sobrolho.
— Qual a razão de atribuírem semelhante distinção a uma velha mina de sal?
Bosko interveio, nitidamente excitado.
— Oh, deviam visitá-la. É absolutamente maravilhosa. Ao longo dos séculos, as várias gerações de mineiros decoraram as paredes das galerias subterrâneas com elaboradas gravuras, a maioria de inspiração religiosa. Era uma forma de procurarem as boas graças de Deus, de modo que olhasse por eles.
— As minas foram visitadas por muita gente ao longo dos séculos — prosseguiu Slaski, dessa vez com uma ligeira ponta de orgulho na voz. — Nicolau Copérnico, o famoso astrónomo, esteve no local no século XVI. Assim como Frédéric Chopin, o compositor, no século XIX. Nos tempos mais recentes, as minas já contaram com as visitas de presidentes dos Estados Unidos, bem como do atual papa.
Kat começou a compreender o que motivara a anterior afirmação de Slaski.
— Tal reputação certamente chegaria aos ouvidos de um geólogo a viajar pela Rota do Âmbar...
Os lábios de Slaski formaram uma espécie de sorriso.
— Como é que ele poderia resistir? Foi por isso que liguei para os serviços de administração do local e pedi que verificassem os livros de visitas da altura em que Smithson se encontrava na Polónia.
— E encontrou o nome dele?
Slaski anuiu com a cabeça.
Kat fitou o mapa iluminado no ecrã.
— E de acordo com o que sabemos, já tinham ocorrido descobertas de âmbar nesse local.
— Exato. É nessas camadas de sal que se encontram muitas vezes depósitos de âmbar.
Kat sentiu que se encontravam perto da resolução do mistério.
Sam aclarou a garganta. Como entomologista, não teria muito a dizer sobre o assunto, mas as rugas na testa denunciavam que estaria a pensar em alguma coisa.
— O que foi? — perguntou Kat.
— Estava a lembrar-me de algo que li nos apontamentos do professor Matsui... — Desviou o olhar para os dois homens polacos, pouco à vontade para concluir a frase.
Com o tempo a escassear, Kat estava disposta a abdicar do secretismo em torno da missão. Mesmo assim, puxou-o para um lado e, mantendo a voz baixa, tornou a perguntar:
— O que se passa?
— O professor Matsui atribuiu as características «imortais» das vespas às propriedades genéticas emprestadas de outros insetos, e possivelmente do que descreveu como a «matéria negra da vida», desses micróbios Lázaro capazes de permanecerem adormecidos durante milhões de anos.
Kat lembrava-se vagamente dessa conversa.
— E daí?
— O professor Matsui elaborou uma lista com os nomes de alguns desses micróbios: Natronobacterium, Virgibacillus, Halorubacterium, Oceanobacillus... todos foram descobertos em formações de cristais. Em bom rigor, todos no mesmo de tipo de cristal.
Kat adivinhava onde o entomologista queria chegar.
— Sal.
Sam acenou com a cabeça.
— Talvez a proximidade a estes organismos tenha contagiado as vespas e, com o passar do tempo, algum do código genético dos micróbios foi incorporado por elas, dotando-as da capacidade de criptobiose.
Ou de vida depois da morte.
— Se for verdade, vem confirmar que estamos no caminho certo. — Kat consultou o relógio. — Mas só há uma maneira de termos a certeza.
Enquanto reunia o grupo, Slaski aproximou-se.
— Eu ia regressar hoje a Cracóvia. Talvez possa acompanhá-los.
Kat queria recusar a sugestão. Ainda não esquecera a sensação do sangue do diretor Tamm a correr-lhe por entre os dedos, quando o tentara socorrer.
Slaski insistiu.
— Conheço bem a mina e quem a gere. Acho que consigo convencê-los a colaborarem para o sucesso da vossa missão.
Com o tempo que nos resta, como posso recusar?
Lançou um olhar a Monk. O marido parecia igualmente hesitante, mas acabou por encolher os ombros, ao chegar à mesma conclusão que ela.
— Obrigada, doutor Slaski. A sua ajuda será certamente útil.
Depois de agradecer também ao diretor Bosko, o grupo depressa abandonou o museu. Regressaram pelo mesmo caminho, percorrendo a movimentada rua Dluga, repleta de joalharias e cafés. A quantidade de turistas e habitantes locais obrigava-os a furarem pelo meio da confusão.
Kat chegou a uma outra conclusão, que se apressou a partilhar com o marido.
— Acho que devo um pedido de desculpas a Aiko Higashi.
— Pois deves — reconheceu Monk.
Ao início do dia, antes de deixarem Tallinn, Kat pedira a Painter para lançar um engodo aos serviços secretos japoneses, informando-os de que a equipa ia a caminho de São Petersburgo. A decisão de continuarem até à derradeira etapa da Rota do Âmbar faria sentido aos olhos dos japoneses. Se houvesse uma fuga de informação a partir do Japão, o inimigo deveria procurá-los no norte da Rússia.
Não fora esse o caso.
— Quantos são? — perguntou Kat ao marido.
— Contei cinco, pelo menos.
Estavam a ser seguidos.
Kat continuou a caminhar como se nada fosse, embora preparada para agir a qualquer instante. No entanto, o modo como os homens se comportavam não indicava que fossem atacar. Quem quer que fossem, teriam aprendido com o falhanço da emboscada em Tallinn e, nesse momento, tencionariam apenas perceber o que o grupo descobrira e qual seria o próximo passo.
Considerou a hipótese de os despistar ou de pura e simplesmente deixá-los acreditar que não tinham sido detetados. Cada uma das opções apresentava vantagens e desvantagens.
Fosse como fosse, tinha uma preocupação maior entre mãos.
Como souberam que estávamos aqui?
Só havia uma conclusão a retirar, percebeu.
Em Washington ou ali, tinham um traidor na equipa.
25
8 de maio, 03h33 SST
Atol de Ikikauo
Impotente, Gray observou a mancha negra de insetos a cercar os três companheiros. Cerrou os maxilares a ponto de lhe doerem. Não havia nada que pudesse fazer para impedir o que estava prestes a acontecer.
O nome que o professor Matsui atribuíra àquela variação das vespas, uma criatura carnívora sem asas a que chamava ceifeiro, era o suficiente para adivinhar o que estava reservado aos três homens acorrentados.
No interior da câmara selada, um dos insetos mais afoito separou-se dos restantes e avançou disparado para os pés descalços de Kowalski. Com os braços presos pelas correntes, o companheiro não poderia fazer mais do que tentar espezinhar a pequena criatura. Com uma expressão enojada, Kowalski fez descer o calcanhar sobre o bicho. Os lábios soltaram um ou dois palavrões silenciados pela insonorização da câmara.
Quando levantou o pé para inspecionar o resultado, não havia nada para ver. A carapaça rígida do inseto suportara o golpe. O ceifeiro saltou para a frente e aterrou no peito do pé, deslocando-se em seguida para o calcanhar peludo, ao qual se agarrou como se fosse uma carraça.
Kowalski tentou livrar-se dele com o outro pé, mas a criatura não se moveu.
Logo a seguir, o seu rosto assumiu uma expressão de dor e choque.
Gray imaginou as mandíbulas afiadas do inseto a enterrarem-se na carne.
Uma gota de sangue correu pela pele nua do pé.
À direita de Kowalski, os primos de Palu, Makaio e Tua, repararam no ferimento e tentaram afastar-se o mais que podiam da horda negra que apertava lentamente o cerco. Os três homens ocupavam o centro da divisão.
— Não faça isto! — implorou Ken a Valya.
O professor encontrava-se ao lado de Gray, com o cano de uma metralhadora pressionado contra as costas. Outros três guardas mantinham-se mais atrás, também com as armas em riste.
— Então, diga-me o quero saber. — Valya levou a mão a um botão verde na parede, que provavelmente acionaria um qualquer mecanismo de emergência para subjugar os insetos. — Ainda vai a tempo de eu acabar com isto.
Ken olhou para Gray, que apenas abanou a cabeça, como que lhe dizendo para estar calado.
Valya desviou o olhar frio para Aiko.
— Qualquer um de vocês pode terminar com o sofrimento destes homens.
Aiko mantinha o rosto meio desviado do vidro, dando a ideia de que queria fechar os olhos, mas lutava para não o fazer. Talvez sentisse necessidade de se mostrar solidária com os três homens no interior da câmara, obrigando-se a sofrer com eles.
Como forma de responder a Valya, virou completamente o rosto para o vidro.
A assassina russa baixou o braço.
— Assim seja.
Masahiro encontrava-se do seu lado, com os braços cruzados e uma expressão desdenhosa no rosto — não pela tática repugnante de Valya, mas porque acreditava que aquilo era uma perda de tempo.
— A mulher pode muito bem não estar aqui — resmungou.
— E não está! — rosnou Gray. — Ficou em Maui, como vos disse desde o início. Estão a torturar estes homens para nada!
Masahiro deitou um olhar contundente a Valya, como que dizendo: quem tinha razão? Depois, consultou o relógio.
— Já devíamos estar a abandonar a ilha. — Acenou desinteressadamente na direção do vidro. — O meu avô não precisa desses três para nada. Mas está na hora de pegarmos nos restantes e sairmos daqui.
Valya olhou para ele.
— Não saímos daqui sem a Seichan.
Masahiro franziu o sobrolho e praguejou entre dentes.
— Baka mesu...
Valya ignorou-o, determinada a levar a tortura por diante.
Não demorou muito.
No interior da câmara, a horda avançou por fim para os homens acorrentados, atraída pelo sangue no pé de Kowalski.
Tua ergueu as pontas dos pés, procurando escapar aos milhares de ceifeiros. O irmão, Makaio, ergueu mesmo as duas pernas. Não lhe serviu de muito. Pendurado pelos braços, as algemas cravaram-se nos pulsos, forçando-o a descer uma das pernas. O pé desapareceu de imediato na massa negra fervilhante. A seu lado, Tua agitou-se nas correntes enquanto os ceifeiros também o alcançavam e subiam em fiadas negras pelas pernas acima.
Kowalski usou os pés enormes como um par de vassouras, tentando dispersar os insetos. Infelizmente, eram demasiados e perdeu de imediato a batalha quando a horda convergiu inteira sobre todos.
Numa questão de segundos, os três encontravam-se cobertos da cintura para baixo por um tapete fervilhante de vespas esfomeadas. Todos se contorceram nas correntes, não para sacudir os atacantes, mas em clara agonia.
As bocas abriram-se, soltando gritos silenciosos.
Mais e mais ceifeiros avançaram.
Por ora, os insetos pareciam circunscrever-se à parte inferior dos corpos, e Kowalski continuou a sacudir as pernas, projetando laivos de sangue que atingiram o vidro.
Aiko cedeu finalmente perante tamanho horror. Virou o rosto e fechou os olhos.
Gray reusou-se a fazer o mesmo, sabendo que os companheiros mereciam mais do que isso.
Mas quanto tempo irá isto durar?
Como que ouvindo a pergunta, o professor Matsui adiantou a resposta.
— Os ceifeiros são como as larvas parasitárias. Evitam os órgãos vitais. — O entomologista falava num tom de voz monocórdico, porventura tentando convocar o distanciamento clínico de investigador para se proteger do horror para lá do vidro. — Eles vão tentar manter a fonte de alimento viva o mais tempo possível, comendo de fora para dentro, da periferia para o núcleo.
Gray não desviou o olhar dos companheiros submetidos ao suplício. Em todo o caso, preferia não ter ouvido aquilo.
O professor, porém, ainda não tinha terminado.
— Quando mordem, os ceifeiros injetam um veneno paralisante. Como são muitos, conseguem subjugar a maioria das presas.
Aiko ouvia a conversa com os olhos fechados.
— O veneno anula a dor? — perguntou.
— Não — lamentou Ken. — Embora impedidas de se moverem, as presas continuarão a sentir cada dentada, enquanto são comidas vivas.
Para lá do vidro ensanguentado, os três homens ainda se debatiam.
Se o professor tivesse razão, isso depressa terminaria.
Ao contrário da dor.
Com uma calma arrepiante, Valya virou-se para Gray.
— Avisei-o que lhe daria três oportunidades para me dizer onde está a Seichan. Esta é a terceira.
Voltou a erguer a mão para o botão verde.
Gray não abriu a boca, mas sentia os músculos das costas a tremerem. Por essa altura, e embora ténues por causa da insonorização, os gritos no interior da câmara eram suficientemente fortes para serem ouvidos.
Valya fez um compasso de espera e premiu um segundo botão junto à janela. De imediato, colunas de som escondidas explodiram com os gritos dos três homens, transmitindo a verdadeira dimensão da agonia vivida no outro lado do vidro.
Gray era capaz de jurar que ouvia sangue naqueles gritos.
A horda de insetos cobria os homens pela altura das cinturas e subia em carreiros pelas costelas e pelos braços acorrentados, consumindo a carne da maneira que Ken descrevera.
De fora para dentro.
Gray não podia suportar mais aquilo.
— Ela está aqui! — berrou para a assassina.
Valya inclinou a cabeça, lançando ao mesmo tempo um olhar provocador a Masahiro.
— Importa-se de repetir?
Gray ferveu por dentro, dando-lhe força para confrontar a assassina.
— A Seichan está doente! Parasitada, como vos disse! Mas, sim, está aqui na ilha.
— Onde?
— Não sei... perdi-a de vista no lago. Nem sei se teve forças para completar a travessia.
Valya estreitou os olhos.
— É a verdade — assegurou Ken.
Valya estudou o rosto de ambos, antes de chegar a uma conclusão.
— Acho que está a ser sincero. — Baixou de novo o braço. — Mas não é o suficiente.
Afastou-se do vidro e fez sinal aos guardas.
— Não temos mais nada a fazer aqui. Levem-nos para o avião.
No interior da câmara, os três homens ainda se debatiam nas correntes, como carcaças para abate num matadouro. Os gritos agonizantes seguiram Gray e os restantes pelo túnel, enquanto eram levados sob a ameaça das armas.
Gray fraquejou ao olhar uma última vez para trás, ciente de que nada mais podia fazer pelos companheiros. Porém, um novo propósito incendiou-lhe o espírito.
Fitou as costas de Valya, proferindo uma promessa silenciosa.
Quando te matar, vou obrigar-te a gritar mais alto que eles.
03h55
Demorámos demasiado tempo...
Seichan interrogou-se se tomara as decisões certas, enquanto despejava os tanques de lastro para dirigir o submersível para uma das docas pressurizadas da estação. A cúpula de vidro sustentada numa base de aço localizava-se no piso inferior do complexo, como uma concha iluminada nas profundezas.
Durante a aproximação, reparara noutras duas cúpulas idênticas, juntamente com uma maior, que alojava um submarino de tamanho médio. A forma comprida e arredondada lembrava uma moreia na toca. Para lá do aparelho, o feixe dos faróis do submersível revelou a boca de um túnel, que provavelmente conduzia ao oceano.
Seichan olhou para cima, à medida que o submersível ascendia em direção à abertura circular no centro da doca. O ar pressurizado no interior da cúpula impedia que a água do lago entrasse e inundasse a estação.
Curvou-se sobre os comandos e manteve a cabeça baixa, aguardando que o submersível rompesse a linha de água. No banco de trás, Palu seguiu-lhe o exemplo.
Assim que o aparelho emergiu no interior da doca, a água correu-lhe pelo corpo e pelo painel acrílico sobre o lugar do piloto. Olhou em frente e viu a figura desfocada de um trabalhador da doca a avançar na sua direção.
Franziu o sobrolho. Tinha esperança de encontrar o lugar vazio.
Que se lixe.
O trabalhador acenou-lhes com alguma impaciência.
— Hayakusiro! — gritou, exigindo que se despachassem e acreditando estar na presença dos mergulhadores que regressavam à base.
Ambos usavam as máscaras integrais roubadas aos dois tripulantes do submersível, o que tornava o erro do trabalhador compreensível.
O homem apontou para o auricular na orelha e falou rapidamente em japonês.
— Acabaram de dar ordem de evacuação! Temos quinze minutos para abandonar a estação!
Palu apeou-se da traseira do submersível e deteve-se na beira da piscina, com as costas voltadas para o homem, fingindo que aguardava por Seichan.
O trabalhador agarrou-lhe no braço e tentou encaminhá-lo para a saída.
— Mexam-se!
Infelizmente, Palu não falava japonês.
Seichan saltou do lugar do piloto. Assim que o fez, livrou-se do peso da botija.
O trabalhador ficou a olhar para ela, atónito.
Seichan contava com essa reação. O fato de mergulhador justo nunca lhe permitiria esconder a forma curvilínea do corpo. Antes que o homem reagisse, atirou-se a ele, de faca em punho.
Palu desviou-se para um dos lados.
Seichan atirou o trabalhador ao chão e, num só gesto, cortou-lhe a garganta acima da laringe, para não lhe dar sequer hipótese de gritar para o auricular. Cobriu o gorgolejar da morte com a mão que tinha livre, enquanto observava o rio de sangue a fluir pelo chão de aço e a tingir a água da piscina.
Palu desfez-se também do equipamento e encaminhou-se para a saída. Teve o cuidado de se manter meio desviado da janela no centro da escotilha. Uma luz verde brilhava do lado de lá do vidro, indicando que a antecâmara seguinte se encontrava já pressurizada.
Seichan ergueu-se junto ao cadáver. Antes que conseguisse dar um passo, uma nova explosão de dor percorreu-lhe o corpo. Curvou-se e sentiu-se subitamente fraca. Respirou profundamente, tentando combater a agonia, esperando que a dor diminuísse para um nível suportável.
Palu apressou-se ao seu encontro.
— Vamos.
O havaiano agarrou-lhe no braço e ajudou-a a alcançar a escotilha. A cada passo, parecia-lhe que caminhava sobre brasas. Palu abriu a porta, empurrou-a para o espaço exíguo e seguiu atrás, selando de novo a escotilha a partir do interior. Um temporizador iluminado por cima da porta seguinte iniciou uma contagem decrescente de três minutos. Era o tempo necessário para a pressão na câmara se equiparar à do interior da estação. Seichan praguejou entre dentes por mais aquele atraso, embora soubesse que se tratava de um procedimento necessário. Servia para aclimatizar os mergulhadores, diminuindo o risco da formação de bolhas de nitrogénio na corrente sanguínea.
Impaciente, espreitou o túnel de vidro que se prolongava desde a doca. Encontrava-se vazio.
Antes isso.
O alívio durou pouco.
Uma sirene berrou-lhe subitamente aos ouvidos. O volume era ensurdecedor num espaço tão confinado. Encolheu-se com as mãos nas orelhas, tentando compreender o que significava aquele alarme.
Seria apenas o sinal para a evacuação, ou teriam sido detetados?
Palu respondeu à questão, ao apontar para trás em direção à cúpula de vidro da doca. Suspensa nas alturas, encontrava-se uma câmara de videovigilância.
Concentrada no trabalhador e com dores, Seichan nem sequer se apercebera da existência do dispositivo.
Espreitou outra vez pela janela da escotilha. Três homens equipados com capacetes e armaduras corporais surgiram no final do túnel e correram em direção à câmara de descompressão, todos eles com as armas prontas a disparar.
Consultou o temporizador.
Dois minutos...
Ainda que inadvertidamente, tinham construído a própria cela.
Partilhou um olhar silencioso com o havaiano.
Estás pronto?
Sabendo que não tinha outra opção, Palu limitou-se a encolher os ombros.
04h04
Com a sirene ainda a berrar, Ken deixou-se ficar com as costas encostadas contra a parede do túnel. Os outros perfilaram de ambos os lados, todos eles a olharem para os canos das armas dos guardas.
Ken desviou o olhar para o vidro ensanguentado a pouco mais de cinco metros. O grupo fora obrigado a parar no túnel quando soou o alarme. Àquela distância, os gritos de Palu e dos outros ainda se ouviam por cima da sirene. Por essa altura, os ceifeiros cobriam-lhes os braços, as pernas e a barriga. Pareciam debater-se menos, uma consequência direta do agente paralisante libertado pela mordedura dos insetos.
Gray olhou na mesma direção, com o rosto obscurecido pela raiva.
Aiko limitou-se a observar os dedos dos próprios pés.
Mais à frente, Valya e Masahiro transmitiam instruções via rádio. Ken não conseguia perceber o que diziam por causa do barulho. No entanto, a assassina russa virou o rosto e lançou um olhar gélido a Gray. Os lábios estreitaram-se, com uma das pontas a erguer-se ligeiramente com o que só poderia ser satisfação.
Gray notou a atenção dela sobre si.
A sirene calou-se de repente, deixando um zunido agudo nos ouvidos de Ken.
Valya regressou para junto do grupo.
— Afinal de contas, parece que não havia necessidade do nosso breve interrogatório.
— Porque a Seichan está aqui — disse Gray.
— Isso mesmo, e temo-la prontinha para ser entregue ao avô de Masahiro.
Gray não pareceu preocupado com essa notícia. Limitou-se a endireitar as costas e fitou Valya.
— Eu não contaria muito com isso.
04h07
Através da janela, Seichan observou o trio de guardas a tomar posição no lado de lá da escotilha. Acima da cabeça, o temporizador assinalou os últimos segundos da contagem para o final da descompressão, altura em que o fecho de segurança da escotilha seria recolhido automaticamente.
Palu encostou-se contra a parede, aceitando o inevitável.
O temporizador indicou os algarismos 00:00 e a luz vermelha mudou para verde.
É agora.
O trio de guardas não se moveu. Dois encontravam-se mais atrás, com as armas apontadas. O terceiro gritou através da janela.
— Mãos na cabeça!
Seichan obedeceu, bem como Palu.
— Quando abrir a porta, não se mexam! Saiam apenas quando eu disser. Compreendido?
Seichan acenou com a cabeça pelos dois.
A dor atravessou-lhe os músculos dos braços e das pernas, tornando difícil manter-se quieta. Visualizou as larvas a criarem sulcos na carne, deixando apenas um rasto ardente para trás.
Despachem-se com isto, bufou entre dentes.
O guarda fitou o par encurralado. Desviando-se para um dos lados, abriu a escotilha. Usou o metal para se manter protegido, caso Seichan e Palu tentassem alguma coisa. Os dois colegas encostaram as bochechas contra a coronha das espingardas, os dedos prontos no gatilho.
Satisfeito, o primeiro guarda gritou:
— Podem sair! Se retirarem as mãos da cabeça, morrem!
Seichan saiu primeiro, movendo-se devagar. O ar na estação era mais frio, e conseguia sentir a diferença mínima de pressão. Por essa altura, qualquer movimento parecia atiçar as larvas e uma nova descarga de dor subiu-lhe pelas pernas.
Mesmo assim, manteve a passada firme e cautelosa, os dedos das mãos entrelaçados no cimo da cabeça.
Palu seguiu-lhe o exemplo.
O guarda saiu de trás da porta, com a arma apontada.
— Continuem a andar! Devagar!
Sem escolha, Seichan permitiu que o trio de guardas os conduzisse pelo túnel em direção à estrutura principal do complexo. Na sua mente, um outro temporizador continuava a contar os segundos. O treino na Guilda ensinara-lhe essa disciplina, de compartimentar o processo de raciocínio. Nesse momento, porém, a dor que sentia tornava a coisa mais difícil.
Ao alcançarem o fim do túnel, o suor corria-lhe pela testa. A respiração era cada vez mais esforçada. Deteve-se um instante, ofegante e meio curvada. Embora os braços tremessem, as mãos nunca saíram do cimo da cabeça.
— Continua! — gritou o guarda nas costas.
Palu olhou por cima do ombro.
— Ela está doente. E grávida! Deixe-a recuperar o fôlego.
O guarda franziu o sobrolho, hesitante.
— Dez segundos!
Só preciso de dois.
Assim que o temporizador mental chegou ao fim da contagem, Seichan mergulhou para a frente, sacando da faca escondida num dos pulsos.
Palu mergulhou atrás dela.
Antes que os guardas pudessem reagir, uma explosão abanou toda a estrutura. Os ouvidos de Seichan estalaram com a quebra de pressão. Aterrou em cima do guarda mais próximo, que fora derrubado pela onda de choque, e enfiou-lhe a lâmina pelo pescoço, até atingir osso, sacando-lhe em seguida a espingarda. Ainda no chão, abriu fogo para o guarda que se mantivera mais atrás, acertando-lhe na garganta.
Palu arremessara todo o seu peso contra o terceiro guarda e esmurrara-lhe o nariz três vezes. O homem desmoronara-se no chão, inanimado.
Seichan apertou os dedos contra os punhos da metralhadora de cano curto e apontou-a na direção da estrutura central da estação.
— Vamos!
Momentos antes, durante a aproximação do submersível à doca, fizera um mapa mental do complexo. No entanto, essa não fora a única precaução que tomara. Também preparara um estratagema que não lhe fora ensinado pela Guilda, mas por Gray.
Improvisar com o que se tem à mão; usar recursos antigos de formas novas e inesperadas.
O que Seichan decidira usar era decerto antigo... dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Antes de abandonar o cemitério de bombardeiros japoneses, procurara e encontrara um torpedo intacto na areia, que fixara à barriga do submersível com a ajuda de Palu. A seguir, juntara-lhe um detonador temporizado ligado a uma pequena carga de explosivos C4.
Na altura, escusado será dizer, não fazia ideia se o torpedo ainda se encontraria em condições, após tantos anos submergido naquelas águas hipersalinas.
Em todo o caso, a questão respondera-se a si mesma.
Enquanto corria com Palu, um gorgolejar intenso tornou-se cada vez mais poderoso nas costas de ambos. Contava com essa ameaça, e imaginou as escotilhas das antecâmaras rebentadas pela explosão, quem sabe até a doca inteira. Com a enorme cúpula despressurizada, as águas do lago começavam a invadir o complexo.
Arriscou olhar por cima do ombro. Para lá da figura corpulenta de Palu, uma torrente furiosa cortou a esquina. A força com que embateu na parede foi suficiente para sacudir o túnel. A massa de água gorgolejante seguiu o seu caminho, arrastando os corpos dos guardas mortos consigo.
— Seichan! — gritou Palu, com os olhos esbugalhados.
Seichan voltou a olhar em frente. Dez metros adiante, uma íris de metal começara a fechar-se no final do túnel. A descompressão explosiva devia ter desencadeado o fecho automático de barreiras de contenção, destinadas a selar secções inundadas do complexo.
Correu mais depressa pelo chão de aço perfurado, usando a dor agonizante nos músculos das pernas e na barriga como incentivo.
Alcançou a íris metálica e mergulhou de cabeça pela abertura. Rolou sobre o ombro e levantou-se rapidamente.
Palu...
Mais lento, o gigante havaiano não conseguiu acompanhá-la nesses últimos metros. A massa de água enrolou-se e cresceu atrás dele, arrancando secções do chão de aço. Uma racha estendeu-se ao longo do vidro acrílico do túnel. A abertura na íris continuou a diminuir, a diminuir, a diminuir...
Seichan reconheceu o inevitável.
O terror dessa certeza brilhou igualmente nos olhos assustados de Palu.
Ele não vai conseguir.
26
8 de maio, 04h18 SST
Atol de Ikikauo
O caos representava uma oportunidade.
Gray reagiu de imediato, guiado pelo instinto incutido pelos anos de serviço nos Rangers do exército e na Força Sigma. Quando a explosão abalou as fundações do complexo, apanhando tudo e todos desprevenidos, atirou-se ao guarda mais próximo, agarrou no cano da arma e arremessou a coronha de ferro contra o nariz do homem.
Ossos esmagaram-se, e a arma soltou-se das mãos do guarda. Gray rodou sobre si mesmo, colocou um joelho no chão e disparou um único tiro direto à cabeça de outro dos guardas. A seu lado, Aiko reagiu depressa e derrubou mais um oponente com um pontapé fulminante no queixo. Conseguiu roubar-lhe a metralhadora e abateu o último dos homens armados.
A ação demorou quatro longos segundos.
Para mal dos seus pecados, Gray não foi o único a aproveitar o momento.
Quando se virou para enfrentar a maior ameaça, Valya, a assassina, agarrara em Ken e usava-o como escudo humano, segurando uma pistola contra a cabeça dele. Arrastou o professor para um túnel lateral, mantendo Masahiro atrás de si.
Os olhos de Gray brilharam de raiva, ao ver o trio desaparecer ao redor da esquina.
— Espere aqui — ordenou a Aiko. — Não deixe ninguém passar.
— Hai — disse a japonesa, tomando posição no túnel com a metralhadora apontada na direção da esquina.
Gray virou costas e correu ao encontro de Kowalski e dos outros. Os gritos tinham parado e sentiu o coração a bater mais depressa. Receava que fosse demasiado tarde.
Quando alcançou a parede de vidro, encontrou os três homens suspensos pelas correntes, inanimados. Deu uma palmada no botão verde de emergência. Um alarme soou e centenas de jatos de uma espuma branca, altamente pressurizada, escaparam-se de bocais fixados no teto. Os corpos dos companheiros ficaram de imediato cobertos pela substância. A força daquele chuveiro, bem como o inseticida nele contido, fez com que as centenas de pontos negros se soltassem dos braços, pernas e barriga de cada um. Numa questão de segundos, a espuma branca tornou-se vermelha com o sangue dos ferimentos dos três, que continuavam sem mostrar reação.
O chuveiro extinguiu-se e o alarme silenciou-se.
Gray correu para a porta e rodou a tranca giratória. A respiração pesava-lhe pelo esforço e pela preocupação.
Cheguei demasiado tarde?
04h22
— Rápido! — berrou Seichan, agachando-se junto a um dos lados da íris de metal. A violenta torrente de água estava quase em cima de Palu, que corria os últimos metros que o separavam da barreira de emergência. Enquanto encurtava a distância, as lâminas de metal da íris rangeram contra a metralhadora de Seichan, entalada verticalmente na abertura, de forma a mantê-la aberta mais uns segundos. A força do mecanismo da íris fez estremecer a arma. O cano começou a dobrar-se.
Vá lá...
Palu alcançou a íris e mergulhou de cabeça. As ancas embateram contra o corpo da arma, obrigando-o a rodar o tronco e a libertar-se à força de braços. O havaiano soltou-se finalmente e rolou para o chão, caindo ao lado de Seichan.
Seichan levantou-se e tentou retirar a metralhadora da abertura, mas a pressão das lâminas era demasiada. Se a íris permanecesse aberta, nunca conseguiriam escapar à fúria da torrente.
Palu tentou ajudar, apercebendo-se quer do esforço dela, quer do perigo iminente.
Juntos, tentaram arrancar a arma daquelas mandíbulas de metal.
A metralhadora não se moveu um milímetro... mas era tarde demais.
A parede de água esmagou-se contra a barreira meio aberta, escapando-se pela abertura como o jato de uma mangueira de incêndios. Seichan tentou manter os dedos apertados contra o corpo da metralhadora, mas a força da torrente atirou-a para longe. Mais forte, Palu continuou a resistir à toada, as pernas e os braços grossos suportando a incrível pressão.
Ato contínuo, ouviu-se um estrondo forte e o havaiano foi também arremessado às cambalhotas pelo túnel.
Seichan continuou a lutar contra a corrente. Então, depois de longos segundos a ser enrolada como uma peça de roupa numa máquina de lavar, o turbilhão à sua volta diminuiu de intensidade. Deslizou mais uns metros e acabou por parar. A água ainda avançava, embora já com pouca ou nenhuma força.
Ergueu a cabeça e avistou Palu, que flutuava na sua direção como um tronco de madeira. O havaiano ainda trazia a metralhadora numa das mãos.
— Co... como é que? — Custava-lhe demasiado a falar, e limitou-se a apontar com a cabeça na direção da arma.
Palu olhou para o cano dobrado e desfez-se da metralhadora inutilizada.
— Não fui eu, kaikaina. — Olhou por cima do ombro. — Um dos painéis do chão soltou-se no outro lado e embateu contra a arma. Foi o suficiente.
Seichan anuiu com a cabeça, aliviada.
Porém, não havia razões para celebrar.
A estação gemeu sob o peso da secção inundada. Ao redor da íris de metal, uma série de rachas espalharam-se pelo vidro acrílico do túnel.
Não vai aguentar.
Confirmando essa certeza, Seichan viu a cúpula da doca soltar-se da estação e cair, lentamente, para o fundo do lago.
Pôs-se de pé.
Está na altura de sairmos daqui.
Queixoso, Palu também se levantou.
— E agora, por onde vamos?
Seichan pura e simplesmente virou costas e avançou pelo túnel, evitando tanto a pergunta como a verdade.
Não faço ideia.
04h33
Gray rodou a tranca giratória até ouvir a abertura do mecanismo. Respirou fundo e só então abriu a porta. Alguma da espuma derramou-se do interior da câmara, juntamente com um fedor insuportável, uma doçura enjoativa, misturada com carne podre.
Contraindo o rosto, estudou o trio de corpos inanimados pendurados pelas algemas. Espuma e sangue corriam pelas pernas dos três e pingavam dos dedos das mãos. Àquela distância, era impossível avaliar a extensão dos danos infligidos pela horda de insetos.
Só há uma maneira de saber.
Enfiou uma perna no interior da câmara e entrou. Os pés descalços pisaram as centenas de carapaças das vespas mortas ou adormecidas. Duras como eram, parecia-lhe que caminhava sobre berlindes. Embora não pudessem mordê-lo, as mandíbulas dos insetos eram afiadas como lâminas e rasgavam-lhe as plantas dos pés.
Ao chegar junto de Kowalski, o calmeirão ergueu por um instante uma das manápulas, como que dizendo que dispensava ajuda. Gray sentiu uma onda de alívio. Pelo canto do olho, percebeu também que os peitos dos primos de Palu subiam e desciam de forma ténue.
Estão vivos, mas por quanto tempo?
Apressou-se a retirar as algemas de todos e, em menos de nada, tinha já os três homens estendidos e alinhados no chão por entre a mistura de espuma, sangue e insetos. Olhou para lá do vidro, para Aiko, que guardava o túnel. Sabia que não tardaria muito até que chegassem reforços. Quando isso acontecesse, ela não conseguiria manter o inimigo à distância muito tempo. Constituía um problema, visto que teria de deslocar sozinho três homens inanimados.
Então, também para lá do vidro, vislumbrou o que poderia ser a única esperança.
Apressou-se de volta para a saída, deslizando precariamente sobre a camada escorregadia de espuma e insetos. Numa parede havia uma caixa branca de metal com uma cruz vermelha. Gray rezou para que a existência de um estojo de primeiros socorros tivesse um propósito específico. Tal como acontecia com equipamentos para lavar os olhos, por exemplo, em locais onde se lidava com produtos químicos.
Abriu a tampa da caixa. Metade do conteúdo era constituído por seringas automáticas. Injetores de epinefrina, provavelmente. Em Maui, tinham usado a substância para anular os efeitos da toxina paralisante presente no veneno das fêmeas procriadoras.
Sabendo disso, agarrou numa mão-cheia de injetores e correu de volta para a câmara.
Ajoelhou-se junto de Kowalski, arrancou o invólucro da seringa com os dentes e espetou a agulha no pescoço do companheiro, injetando o conteúdo através da pouca pele intacta que lhe restava.
Ao repetir o procedimento em Makaio e Tua, reparou finalmente na extensão dos ferimentos deixados pelos insetos. Parecia que a pele fora arrancada dos braços e das pernas. O mesmo acontecia em secções distintas nas costas e barriga. Porém, se olhasse com mais atenção, conseguia perceber que a pele se encontrava relativamente intacta, perfurada por milhares de dentadas do tamanho de ervilhas. O sangue fluía das incontáveis feridas, mas nenhuma indicava sinais de uma hemorragia arterial.
O peito, pescoço e cabeça de cada um tinham sido poupados, e recordou a descrição de Ken acerca do modo de atuar dos ceifeiros, de como evitavam pontos vitais para manterem a carne das presas viva e fresca o mais tempo possível.
Mesmo assim, os três necessitavam de cuidados médicos urgentes. A perda de sangue originada por tantos ferimentos continuava a representar uma ameaça séria. Provavelmente, todos iriam necessitar de transfusões urgentes.
Um gemido gutural desviou-lhe a atenção para Kowalski. O companheiro ergueu a custo a cabeça e sentou-se, nitidamente atordoado. As seringas deviam conter algo mais potente do que epinefrina, percebeu Gray. Talvez um antídoto para o veneno paralisante dos ceifeiros.
Segundos depois, Makaio e Tua deram também sinais de vida.
— Tenho a cabeça à roda... — queixou-se Kowalski.
— E tens muitas dores?
Kowalski baixou o olhar para a ruína sangrenta em lugar das pernas.
— Acho... acho que não sinto grande coisa...
A ser verdade, significava que as seringas também deviam conter algum tipo de analgésico, porventura um opiáceo.
— Consegues andar?
— Tenho de o fazer?
Uma rajada de tiros respondeu a essa pergunta.
Gray virou-se na direção do vidro. Aiko recuava pelo túnel, a disparar na direção da esquina. Teria avistado alguém e procurava ganhar tempo.
Na câmara, Kowalski tentou levantar-se, mas parecia um boi a tentar andar de patins. Makaio e Tua ainda mal conseguiam sentar-se. Em bom rigor, nenhum dos três se encontrava em condições de sair dali.
Aiko disparou uma nova rajada de tiros e correu para a porta aberta da câmara.
— Temos de ir! Já!
Gray lançou um olhar aos companheiros atordoados.
Não vou abandoná-los.
04h44
Ken foi arrastado pela escadaria que conduzia ao piso intermédio da estação. Os dedos fortes e pálidos de Valya seguravam-no pelo braço, ao mesmo tempo que o ameaçava com uma pistola na outra mão. Dois guardas armados, equipados com capacetes e armadura corporal, juntaram-se ao cortejo em fuga, protegendo Masahiro.
E por uma boa razão.
Aquela secção do complexo transformara-se num caos. Os técnicos e trabalhadores em fuga tinham convergido para o túnel principal que dava acesso à ilha, o que resultara num congestionamento incontrolável. Não havia ninguém que não tentasse escapar da estação ameaçada.
Valya acenou com a pistola para um dos guardas armados.
— Abram caminho! Disparem, se for preciso!
O guarda obedeceu e abandonou a posição junto de Masahiro.
— Não! — ordenou o japonês. Apontou para as portas abertas do seu gabinete. — Não vou correr riscos. Sigam-me.
Masahiro conduziu o grupo para a divisão revestida com painéis de teca. Ao entrar, Ken reparou uma vez mais na fénix dourada montada na parede atrás da secretária, o símbolo dos laboratórios Fenikkusu. Se sobrevivesse à hora seguinte, sabia que esse era o destino que lhe estava reservado, onde lhe seria oferecida a escolha de colaborar com o inimigo ou ser morto.
Valya franziu o sobrolho para Masahiro.
— Porque está a perder tempo?
— Preparei uma medida de contingência — respondeu Masahiro, contornando a secretária.
— Qual medida?
— Em caso de uma brecha de segurança. — Masahiro pousou a mão num retângulo de vidro abaixo da fénix dourada. O dispositivo iluminou-se ao toque.
— Por que razão não fui informada disto?
Enquanto o dispositivo fazia a leitura da mão, Masahiro lançou-lhe um olhar de desdém.
— Estas instalações são minhas. O meu avô pode confiar em si, mas isso não obriga a que eu esteja disposto a partilhar tudo com uma gaijin.
As feições de Valya endureceram.
Ken calculou que o albinismo da assassina nunca lhe permitiria ser outra coisa, uma estranha, alguém que seria sempre diferente por causa de uma condição genética que não podia controlar. Além disso, não era japonesa. A herança cultural era algo de relevante para os japoneses. Filho de mãe alemã, Ken experienciara o preconceito dos colegas em relação ao sangue misto que lhe corria nas veias, o que sempre o magoara.
Era óbvio que Valya também lidava mal com essa realidade, de os seus empregadores japoneses a verem como inferior. O comentário de Masahiro, lembrando-a disso mesmo, enfurecera-a nitidamente.
Ken sentiu os dedos pálidos a apertarem-se com mais força em torno do braço.
Terminada a leitura da palma de Masahiro, um painel dissimulado na parede abriu-se, expondo um botão vermelho.
— Temos quatro minutos — avisou ele. — E acreditem, vamos querer estar longe daqui quando a contagem terminar.
Deu uma pancada no botão, com cara de poucos amigos.
— O que vai acontecer? — tentou perguntar Valya.
Masahiro limitou-se a apontar para a porta.
— Agora, sim, podemos ir.
O japonês contornou a secretária e ordenou aos guardas para abrirem caminho. A ordem não era necessária, visto que o congestionamento para lá da porta resolvera-se por si mesmo. As figuras que corriam nesse momento pelo túnel contavam-se pelos dedos.
Em todo o caso, não eram as únicas ainda presentes na estação.
Uma rajada de tiros ecoou pelas escadas abaixo. Valya enviara uma equipa ao encontro de Gray e Aiko. Pelos vistos, o tiroteio ainda decorria.
Ken ergueu o olhar para o piso superior e rezou para que os companheiros aguentassem a ofensiva. Porém, bem vistas as coisas, de que lhes serviria isso?
Visualizou o botão vermelho escondido na parede.
Tinham menos de quatro minutos para se salvarem.
Valya também olhou para cima, com a expressão apreensiva de quem pressentia uma ameaça iminente. Fora essa postura prudente que a salvara no passado, e virou-se de repente, arrastando Ken consigo no preciso instante em que se ouviu um disparo nas costas do grupo. O projétil assobiou ao passar rente à cabeça do professor, arrancando-lhe a ponta da orelha. A dor foi imediata, cegando-o momentaneamente.
Quando abriu os olhos, avistou Seichan a correr pelo túnel de pistola em riste, com o cano ainda a fumegar.
05h02
Não é possível...
Assim que se deparou com a visão da assassina tatuada, Seichan reagira por instinto e disparara sem pensar contra aquela aparição impossível, sabendo que era a melhor oportunidade que teria para eliminar tão inesperada ameaça. No entanto, no meio do desespero, comprometera qualquer probabilidade de sucesso ao denunciar-se. Talvez tivesse sido o som dos passos na escadaria de aço, a respiração pesada, ou pura e simplesmente o instinto sobrenatural daquela mulher diante do perigo.
A Guilda ensinara-lhes a ambas a manterem-se sempre vigilantes, a extraírem a cada instante todos e quaisquer pormenores do meio ambiente, permitindo-lhes agir ao mínimo sinal de perigo.
Amaldiçoando o talento natural da assassina, fez pontaria a um dos guardas e premiu o gatilho. A bala atingiu o ombro do homem e arremessou-o para trás, com a metralhadora a voar-lhe das mãos.
O segundo guarda agarrou num homem japonês de fato e empurrou-o por um túnel lateral. O mapa na cabeça de Seichan dizia-lhe que era a passagem que fazia a ligação à ilha.
Ignorou os homens em fuga e concentrou-se em Valya Mikhailov, que continuava a usar Ken como escudo humano.
Disparou mais duas vezes, embora sem intenção de acertar no alvo. Não queria correr o risco de atingir o professor. Em vez disso, desejava apenas afastar a assassina da passagem, impedindo-a de se pôr em fuga com os outros. Ao mesmo tempo, correu para o único abrigo possível: a porta aberta de uma sala.
Naturalmente, a assassina ripostou, mas Seichan também fora tão bem treinada como ela para se antecipar ao perigo, reagindo de uma forma que tinha tanto de instinto como de habilidade. Focando-se nos movimentos e no olhar da oponente, ziguezagueou por entre as balas, que se esmagaram no metal atrás de si.
Isso, cabra, mantém-te focada em mim.
Pelo canto do olho, avistou Palu a emergir do lance inferior da escadaria. Com um cutelo nas mãos, o havaiano cruzou rapidamente o patamar e seguiu para o piso superior, onde ainda se ouviam disparos.
Minutos antes, enquanto se dirigia para a estrutura central da estação, ouvira esses mesmo disparos. Detivera-se o suficiente para limpar o mecanismo encharcado da SIG Sauer, de forma a poder usá-la sem problemas. Por toda a parte, a estação continuara a ranger, cada estrondo recordando-a de que não havia um segundo a perder.
Tal como cada um dos disparos no piso superior.
Só podia haver uma razão por detrás desse tiroteio.
Gray...
Sabendo disso, alcançara finalmente o coração do complexo para se deparar com o professor Matsui a ser arrastado por um fantasma do passado. Dispunha apenas de segundos para o salvar, e enviara Palu para ajudar Gray e os companheiros.
Enquanto evitava ser morta pela assassina, Valya largou finalmente Ken e empurrou-o para o chão. Estar a usá-lo como escudo só lhe arruinava a pontaria e, assim que se viu livre dessa desvantagem, disparou mais duas vezes.
Uma das balas rasou a cabeça de Seichan; a outra raspou-lhe a cintura.
Apesar da dor, continuou a correr.
Só mais uns metros...
Assim que alcançou a segurança da sala, e com Valya ainda exposta no túnel, sabia que seria finalmente capaz de a eliminar ou, no mínimo, de a afugentar dali para fora.
Porém, antes que conseguisse fazer uma coisa ou a outra, sentiu ambas as pernas a partirem.
Pelo menos, foi o que lhe pareceu.
Todo aquele esforço avivara as larvas dentro de si. A dor incendiou-lhe o corpo, cada espasmo convertendo os músculos das pernas em pedra, que logo deixaram de lhe obedecer. Caiu, desamparada, com a agonia a toldar-lhe a visão, desprovida de qualquer controlo sobre si mesma.
O impacto da queda arrancou-lhe a pistola da mão. A arma ressaltou e deslizou pelo chão da sala. Tentou alcançá-la, forçando-se a rastejar, e foi quando sentiu uma presença nas costas.
Olhou para cima, sabendo de quem se tratava.
Valya agarrara de novo em Ken e segurava-o pelos cabelos, com a cabeça puxada para trás. Um fio de sangue corria pelo pescoço do professor.
Impotente, Seichan fitou o cano da pistola empunhada pela assassina.
— Esperei muito por este momento — disse Valya. — Fui obrigada a seguir-te por meio mundo, enquanto passeavas com o teu namoradinho. Quase vos perdi duas vezes.
Então, foi assim que souberam que estávamos no Havai, pensou Seichan, fitando-a com os olhos humedecidos pela dor.
Valya aproximou a pistola da cabeça dela.
— Não... — gemeu Ken.
A súplica do professor não surtiu efeito.
Tentou de novo.
— Ela... ela está grávida...
Valya hesitou. Depois riu-se, soltando uma gargalhada arrepiante.
— Oh, perfeito... pura e simplesmente perfeito. Melhor do que podia esperar.
Ato contínuo, ergueu a pistola e arremessou-a contra a têmpora de Seichan.
O mundo explodiu num clarão de luz, a que se seguiu uma escuridão absoluta.
As últimas palavras de Valya seguiram Seichan até à inconsciência.
— Se sobreviveres o tempo suficiente, talvez fique com a criança para mim.
05h18
Anestesiado pelo choque, Ken arrastou os pés ao longo do túnel que conduzia à saída da estação. O sangue quente ainda corria do ferimento na orelha. Estava a ser escoltado pelo guarda que escapara com Masahiro durante o tiroteio. O homem regressara depois de deixar o chefe em segurança.
Mais à frente, Valya liderava o grupo, acompanhada por dois trabalhadores que arrastavam o corpo inanimado de Seichan. Todos caminhavam demasiado depressa.
Vinte metros adiante, o túnel terminava num conjunto de portas reforçadas.
Masahiro aguardava-os nesse ponto, com os braços cruzados.
— Têm vinte segundos até estas portas se fecharem! — gritou-lhes.
Valya não apressou o passo, fazendo questão de o desafiar até nesse aspeto.
Se não fosse pelo prémio que a assassina trazia atrás de si, Ken calculava que Masahiro teria já selado as ditas portas. O homem fora humilhado por Seichan em Maui e, pela vontade de vingança denunciada no olhar, era evidente que pretendia assegurar-se pessoalmente de que ela saía inteira daquela ilha.
Na sua cabeça, Ken contou os últimos segundos anunciados por Masahiro.
O algarismo zero surgiu no instante em que alcançaram as portas.
À distância, uma série de explosões encadeadas obrigou-o a olhar para trás. Bolas de fogo irrompiam por toda a estação. Mais perto, uma passagem lateral expeliu chamas e fumo para o túnel principal, juntamente com uma porta de metal retorcido.
— Mexam-se! — ordenou Masahiro.
Ken apressou-se a seguir os outros, ainda a olhar para trás.
O verdadeiro propósito das explosões revelou-se de imediato.
O fumo escureceu à medida que um enxame furioso invadiu também o túnel. Eram provavelmente os insetos que avistara antes. Recordava-se de que essa câmara, ali próxima, se encontrava cheia de vespas-soldado. Irritadas e em fuga do fumo e das chamas, as vespas voaram em direção às portas de contenção, à procura de alvos para largarem a sua fúria.
— Agora ou nunca! — avisou Masahiro.
A quantidade de explosões indicava que todas as portas das câmaras de estudo teriam sido destruídas. Após anos em cativeiro, os Odokuro estavam finalmente livres.
Mas as vespas não eram a única ameaça imediata.
A estação inteira abanou com violência, e uma torrente de água avançou pelo túnel, vinda da mesma direção das vespas.
Ken sabia o que isso significava.
Está tudo a desmoronar-se.
27
8 de maio, 05h28 SST
Atol de Ikikauo
Praticamente surdo devido à violência da explosão próxima, Gray agachou-se no lado de fora da câmara de tortura, que se convertera numa ruína espumosa, cheia de fumo. A escotilha que ligava ao recinto dos ceifeiros saltara das dobradiças e atravessara o vidro de observação no lado oposto.
Alguns dos insetos que não se tinham juntado ao festim vagueavam ainda pelo chão, porém, assim que esbarraram na espuma residual, acabaram por ficar por ali, envenenados pelo inseticida.
Fora por sorte que Kowalski e os primos de Palu recuperaram o suficiente para saírem da câmara antes da explosão. Encontravam-se em condições de conseguirem andar pelo próprio pé, socorrendo-se das paredes para se apoiarem.
Todos sangravam ainda, mas as feridas começavam a coagular.
Ao lado de Gray, Aiko encostou-se contra a parede, com a metralhadora abraçada contra o peito. Ao virar da esquina, encontravam-se os corpos de dois homens mortos.
A única saída situava-se nessa direção.
Em todo o caso, Aiko provara a sua competência com uma arma. Na verdade, a japonesa era o único motivo por que ainda respiravam.
Mas por quanto tempo?
Aiko ergueu um dedo no ar, indicando que lhe restava uma única bala.
Gray rezou para que fosse suficiente. Após a explosão, o tiroteio no lado mais afastado do túnel terminara. Não sabia se Valya e os outros teriam fugido ou se estariam à espera para os emboscar mais à frente, confiantes de que a explosão empurraria o grupo nessa direção. Era um cenário bastante provável. Naquele lado, a água começava a entrar pelo teto do recinto dos ceifeiros, caindo como uma chuva forte no chão de aço. A explosão teria comprometido a integridade da estrutura.
À profundidade em que se encontravam, não faltaria muito até que a pressão da água implodisse a cúpula e inundasse aquela secção do complexo.
Aiko lançou-lhe um olhar pelo canto do olho.
A pergunta na sua mente era óbvia.
O que fazer?
O som de vários passos apressados desviou a atenção de ambos para o fundo do túnel. O inimigo iria tentar um último assalto direto. Aiko apoiou um joelho no chão e espreitou ao redor da esquina, com a arma pronta a disparar.
Uma bala contra quantos?
Para descobrir a resposta, Gray espreitou também. Dois homens corriam pelo corredor, em fila única, separados por uns cinco metros. O que seguia na frente tentava sacar uma pistola do coldre à cintura.
A circunstância de não trazer a arma na mão, pronta a disparar, era para lá de estranho. Porventura apercebendo-se do mesmo, Aiko não abriu fogo, poupando a última bala.
O homem conseguiu sacar por fim da pistola, rodou o corpo e fez pontaria ao que seguia atrás de si. Antes que conseguisse premir o gatilho, algo o atingiu na perna e esbarrondou-se contra a parede. Ao cair, rodou o corpo o suficiente para revelar uma lâmina espetada na coxa.
Mesmo assim, mantivera a pistola nivelada com a cabeça do outro.
Antes que disparasse, Aiko abateu-o com um tiro na nuca.
O outro derrapou pelo chão, até se deter com as mãos erguidas no ar, mostrando que não se encontrava armado.
Palu.
Aiko e Gray saíram de trás da esquina. Os braços levantados do havaiano estavam cobertos de sangue. Gray reconheceu o punhal espetado na coxa do outro homem. Fazia parte do arsenal de Seichan. Palu devia ter chegado até ali depois de enfrentar os poucos homens que ainda sobravam nas instalações, socorrendo-se tanto do elemento surpresa como das explosões para os tirar do caminho. Exceto aquele último, claro, que lhe tentara fugir.
Gray foi ao seu encontro.
— Onde está a Seichan?
— Levaram-na — disse Palu, com uma expressão pesada. — Quando vinha para aqui, vi os guardas a arrastarem-na pelo túnel que conduz à ilha. Também levavam o professor.
Gray já estava em movimento.
— Vamos!
Palu estendeu um braço e bloqueou-lhe a passagem.
— Não vale a pena.
Aiko anuiu com a cabeça e ergueu a metralhadora.
— Não tenho mais balas...
— Podemos arranjar mais munições, outras armas. Só não podemos deixar que eles selem a...
Um estrondo violento cortou-lhe as palavras. A água que caía no recinto dos ceifeiros converteu-se numa poderosa torrente, que depressa se alastrou à câmara de tortura.
Não havia tempo para mais conversas.
A inundação empurrou Kowalski e os dois havaianos para o túnel. Palu pestanejou duas vezes ao ver os primos ali — para não falar do estado em que se encontravam. De certeza que não fazia ideia do ataque ao catamarã.
Gray não tinha tempo para o pôr a par dos acontecimentos.
— Não há outra hipótese — disse. — Temos de tentar alcançar a saída.
Palu recusou-se a ceder passagem.
— Não podemos ir por aqui.
— Por onde, então?
O havaiano baixou o braço e apontou para o chão.
— Temos de ir até ao fundo deste sítio maldito.
— Porquê? O que há lá em baixo?
Palu virou-se e indicou o caminho.
— Com sorte, uma maneira de sairmos daqui.
05h30
Masahiro aguardou pacientemente junto às portas de contenção, até que o corpo inconsciente de Seichan fosse por fim conduzido até ao túnel de rocha da ilha. Observou o sangue que corria ao longo da face esquerda.
Alguém a teria agredido.
Cada um tem o que merece.
Desejou que Valya tivesse um destino semelhante. Como que pavoneando os prisioneiros no seu nariz, a assassina russa arrastara a retirada do grupo da estação, gozando cada segundo. Ela até lhe lançara um sorriso de desprezo ao cruzar as portas de contenção.
Masahiro sentiu-se a ferver por dentro, ciente de que aquela maldita gaijin receberia a totalidade dos louros pela captura de Seichan e do professor.
Recuou um passo ao ver uma nuvem de fumo encher o túnel de vidro, acompanhada do zumbido furioso das vespas à solta.
— Fechem as portas! — ordenou, virando finalmente as costas para a estação condenada.
O meu trabalho aqui está feito.
Não podia estar mais errado.
Valya acenou com a cabeça para os dois guardas que faziam parte da sua equipa pessoal. Um deles agarrou Masahiro pelas lapelas do casaco e empurrou-o de volta para o túnel de vidro. O japonês tropeçou e caiu de costas no chão. Indiferente, o outro guarda pura e simplesmente encostou um ombro contra a pesada porta de aço e começou a fechá-la.
Não...
Masahiro tentou levantar-se, mas algo pousou numa das bochechas. Deu uma palmada com a mão, nitidamente aflito. A ferroadela da vespa queimou-lhe a face como um pedaço de carvão incandescente e, ato contínuo, o rosto inteiro incendiou-se com uma dor agonizante. Masahiro cobriu a cara com as mãos, como se estivesse a tentar apagar essas chamas. Acreditava que a qualquer momento a pele começaria a derreter como uma vela de cera.
Com os olhos cobertos de lágrimas, observou as portas a fecharem-se lentamente. Antes que a passagem fosse selada, Valya fitou-o com uma expressão vitoriosa. Depois virou-lhe as costas e desapareceu.
Nesse último momento, Masahiro compreendeu o motivo daquele derradeiro erro que cometera: subestimara a verdadeira dimensão da ambição da assassina.
O zumbido aumentou de intensidade atrás de si. Atraído pela respiração assustada e pelo bater descontrolado do coração, o enxame abateu-se sobre ele. Masahiro fechou os olhos, enquanto as vespas o atacavam de todos os lados. A força das pancadas no corpo lembrava as chuvadas de granizo que tantas vezes se abatiam sobre o monte Fuji.
A única diferença é que a nuvem de vespas libertava fogo, em vez de gelo.
Começou a gritar, o que apenas o deixou mais exposto. As vespas encheram-lhe a boca, rastejando em direção à garganta, os ferrões sempre a picarem.
Imparável, a massa fervilhante sufocou-lhe os gritos, até se converterem em pouco mais que gemidos.
Só então a dor agonizante deu lugar ao vazio.
05h38
Gray acompanhou os outros na corrida desenfreada pela escadaria principal da estação. As poucas vezes que pararam foi para recolherem as armas dos guardas mortos pelo caminho, um presente de Palu e do seu cutelo.
Por essa altura, o complexo inteiro tremia com intensidade.
Cada degrau constituía um desafio em si mesmo, uma vez que a escadaria se convertera numa cascata. As cúpulas no piso superior também deviam ter colapsado, fazendo com que as águas do lago invadissem a estação por múltiplas direções. Gray sentia a pressão a aumentar nos ouvidos, à medida que paredes de água em movimento comprimiam o ar. A respiração tornara-se também mais difícil, já que o fumo se confinava a um espaço cada vez mais reduzido.
E não era apenas o fumo.
Assim que alcançaram o piso intermédio, Gray enxotou uma vespa solitária que pousara nos cabelos. Não foi suficientemente rápido, e sentiu a ferroadela na parte de cima da orelha, que mais parecia um coice de uma mula. Entre o grupo e o lance de escadas seguinte, que conduzia ao piso inferior, uma nuvem negra pairava junto ao início do túnel principal. As vespas revoluteavam furiosas, sem saírem do mesmo sítio. Num espaço tão confinado, o zumbido lembrava uma tempestade elétrica.
Só lhes restava tentarem contornar o enxame.
— Rápido! — avisou Gray. — Não parem!
Espremeram-se contra a parede exterior do gabinete de Masahiro e avançaram. Porém, mal se aproximaram o suficiente, o enxame apercebeu-se imediatamente da presença do grupo. O zumbido intensificou-se, à medida que as vespas encontravam finalmente novos alvos para descarregarem a fúria.
— Mais rápido! — gritou Gray para os outros, embora sabendo que lhes pedia o impossível. Aiko seguia na frente com Palu, que praticamente carregava Makaio nos braços. Um metro atrás, Kowalski tentava fazer o mesmo com Tua.
O enxame encurtou a distância, como uma onda negra que se preparava para se abater sobre todos.
Gray fez o que podia para apressar os companheiros em direção à escadaria. Vestido apenas com calções de banho, não podia sentir-se mais exposto. Era como se conseguisse sentir já as picadas que lhe estavam reservadas.
Kowalski praguejou de repente, caiu com um joelho no chão e deu uma palmada no pescoço.
Gray correu ao seu encontro, agarrou em Tua com uma mão e estendeu a outra a Kowalski.
O companheiro apenas olhou para ele e levantou-se sozinho.
Lado a lado, correram atrás dos outros.
Gray sentiu os primeiros ataques: um na perna direita, o outro no braço esquerdo. A dor explodiu nesses dois pontos. Cerrou os dentes e continuou a correr, esperando que a adrenalina o ajudasse a combater a agonia. As lágrimas correram pelo rosto. As pernas pareciam feitas de borracha.
Kowalski apercebeu-se da sua aflição e, no segundo seguinte, estava a arrastá-lo pelo túnel juntamente com Tua, um debaixo de cada braço. Gray quase não conseguia acreditar na força bruta e resistência do companheiro, sobretudo tendo em conta o número de vespas pousadas nas costas e nos ombros dele. Os músculos de Kowalski vibravam e comprimiam-se com cada uma das múltiplas ferroadelas que recebia.
Talvez fosse o antídoto ou o analgésico opiáceo que mantinha aquele homem em movimento, mas Gray suspeitava que, mais que isso, o que o tornava verdadeiramente imparável era a sua absoluta determinação.
Mais à frente, Aiko e os restantes alcançaram a escadaria e desapareceram pela nuvem de fumo que se escapava do piso inferior.
Como um corredor de longa distância no instante em que avista a linha de meta, Kowalski soltou um grunhido e estugou o passo. Assim que penetraram na espessa nuvem de fumo, o enxame recuou de imediato.
Até as vespas agarradas aos corpos se puseram em fuga.
Gray depressa compreendeu o motivo da súbita desistência. O odor a borracha queimada fê-lo tossir, e sentia um sabor oleoso na língua. Tentou suster a respiração, mas a dor e a exaustão obrigaram-no a engolir sucessivas golfadas de fumo.
O grupo desembocou por fim no patamar inferior, onde o nível da água chegava à altura dos joelhos. Assim que se afastaram da escadaria — que sugava o fumo para cima, como uma chaminé —, o ar tornou-se mais límpido. Ainda se notavam algumas fiadas negras a correrem junto ao teto, mas, se baixassem as cabeças, conseguiam respirar sem dificuldade.
A água fria também ajudava a atenuar o ardor das picadas.
— Por ali — disse Palu, apontando para o túnel à esquerda.
O havaiano seguiu na frente, arrastando os pés submersos.
Gray observou a superfície da água, coberta de detritos, a que se juntava uma camada de vespas mortas de todos os tamanhos e feitios: batedores, fêmeas procriadoras, e muitas outras que não reconhecia.
— Devemos estar quase a chegar — prometeu Palu. — Só espero que ainda lá esteja...
A passagem seguinte era longa, estendendo-se até ao canto mais remoto da estação.
Gray rezou para que o isolamento tivesse mantido toda essa secção intacta.
Enquanto avançavam, o nível da água depressa subiu até à altura das cinturas. Progrediam mais rapidamente se pura e simplesmente se deitassem, como se estivessem a nadar, e usassem os pés para se impelirem para a frente. O método também ajudava a manterem uma maior distância em relação ao resto do fumo junto ao teto.
Finalmente, o túnel terminou numa porta selada.
Uma escotilha.
Tal como Palu prometera.
O havaiano contara-lhes que avistara com Seichan um pequeno submarino na doca existente nesse lado. A embarcação servira provavelmente para a deslocação de mantimentos para a ilha, quem sabe até para o transporte de partes do complexo durante a construção.
Nesse momento, constituía a única hipótese de fuga.
E não apenas para o grupo.
Três trabalhadores tremiam de frio junto à escotilha, lembrando ratos afogados. Pelos vistos, Gray e os companheiros não eram os únicos encurralados na estação condenada.
Aiko apontou-lhes a metralhadora e falou rapidamente em japonês. Depois virou-se para Gray.
— É a tripulação do submarino. Receberam ordens para deslocar a embarcação.
Gray sentiu-se aliviado. Tencionava dar o seu melhor para descortinar como se conduzia uma coisa daquelas, mas essa súbita alteração de planos parecia um presente caído dos céus.
Aiko não parecia tão contente e explicou porquê.
— Estavam a tentar passar, mas o mecanismo da escotilha deve ter avariado. Dizem que não há outra forma de entrar na doca.
Gray acenou para os trabalhadores se desviarem e espreitou pela janela da escotilha. A torre de um pequeno submarino furava a superfície da piscina circular no centro da doca.
Frustrado, encostou a testa contra o vidro.
Tão perto e tão longe...
05h49
Ken segurou-se como podia no porão do avião, enquanto o aparelho levantava voo. Devido à extensão reduzida da pista, a aeronave acelerara com os motores no máximo e depois erguera o nariz num ângulo abrupto, subindo em direção aos céus.
Pelos avisos em cirílico na fuselagem, o aparelho era provavelmente de fabrico russo ou sérvio. O desenho era o mais simplista possível, com a cabina da tripulação isolada atrás de uma porta fechada. O resto não passava de uma carapaça oca. Havia um punhado de assentos minimalistas ao longo das paredes, mas a maioria do porão não passava de um grande espaço vazio.
Não era bem o caso, nesse momento.
À frente de Ken, encontrava-se uma pilha de caixas, caixotes e bidões, tudo devidamente acondicionado sob uma rede esticada.
Era tudo o que fora resgatado da estação lá em baixo.
À medida que o avião se inclinava para um dos lados, descrevendo uma curva, a cabeça de Seichan pendeu na mesma direção. O sangue secara no rosto, mas permanecia inconsciente. Mesmo assim, o inimigo não tencionava correr riscos com ela. Além do cinto que lhe segurava o tronco contra o assento, os pulsos e tornozelos encontravam-se presos com algemas e correntes. A seu lado, um guarda vigiava-a com uma pistola na mão, enquanto, em frente, na parede oposta do porão, um segundo guarda sentado segurava uma metralhadora pousada nos joelhos.
O som de uma porta a bater desviou a atenção do professor.
Valya surgiu no porão e apontou para o terceiro e quarto guardas presentes.
— Venham comigo — disse, em japonês.
Os homens saltaram dos assentos e seguiram atrás dela.
Por essa altura, Ken sabia que aqueles homens eram completamente fiéis à assassina. Nenhum pensara duas vezes quando ela abandonara Masahiro na estação. Valya também tomara medidas adicionais para encobrir o que fizera. A caminho do avião, Ken deparara-se com uma autêntica carnificina que decorrera no velho edifício da Guarda Costeira. Outros membros da equipa tinham emboscado os trabalhadores em fuga da estação, abatendo-os com metralhadoras mal saíam do elevador que conduzia à superfície. Os corpos tinham sido arrastados e empilhados numa poça de sangue.
Valya não lançara mais do que um olhar desinteressado aos cadáveres.
Ken percebera de imediato que assistia a um golpe elaborado.
Confirmando isso mesmo, uma forte explosão sacudiu a aeronave. Rodou a cabeça para uma pequena janela junto ao assento. O telhado de metal do edifício da Guarda Costeira voara pelos ares, empurrado por uma coluna de chamas e fumo.
Estão a desfazer-se das provas...
Uma rajada de vento irrompeu subitamente pelo porão. Ken encolheu-se, receando que o avião tivesse sido atingido por algum estilhaço. Em vez disso, viu a enorme porta traseira começar a abrir-se.
Valya encontrava-se junto à porta e apontou lá para baixo.
Dois guardas empurraram um bidão cor de laranja e, quando ela fez sinal, lançaram o objeto pela traseira do avião.
Ken olhou de novo pela janela e seguiu o trajeto do bidão até ao solo. O objeto atingiu o pontão da ilha, onde se encontrava ancorado o possante barco que emboscara o catamarã dos primos de Palu. Uma bola de fogo engoliu toda a área, consumindo o pontão de madeira e o barco.
Enquanto o avião descrevia um círculo acima da ilha, mais bidões foram lançados, semeando um inferno de chamas por todo o atol. Era como se estivesse a reviver a destruição a que assistira na ilha brasileira de Queimada Grande.
Não vão deixar uma folha intacta.
Porém, faltava ainda um último passo.
Valya apontou de novo, berrando a plenos pulmões para se fazer ouvir por cima do barulho do vento. Ken não percebeu o que ela dissera, exceto uma palavra: mizumi.
Cerrou os maxilares, calculando o que iria acontecer a seguir.
O avião seguiu em direção ao oceano aberto e deu outra meia-volta, preparando-se para uma nova ofensiva. Dessa vez, porém, sabia que os bidões não seriam usados para incendiar nada à superfície.
Em vez disso, seriam utilizados como cargas de profundidade.
Afinal de contas, mizumi significava lago.
05h55
— Isto é de loucos! — disse Kowalski, incapaz de conter um sorriso.
Gray não podia argumentar o contrário. Em todo o caso, se os dois morressem nos segundos seguintes, pelo menos sabia que o companheiro partiria feliz. Enquanto perito de explosivos da Sigma, não havia nada que o calmeirão gostasse mais que rebentar com coisas.
Gray e os restantes encolheram-se atrás de um painel arrancado do chão de metal. Encontravam-se posicionados a uns vinte metros de distância da escotilha avariada. Minutos antes, Kowalski e Palu tinham ligado um temporizador a uma carga de C4. Era o último bloco de explosivos que o havaiano trouxera de Maui.
Ou aquilo funcionava ou morreriam todos.
O plano consistia, nada mais nada menos, em rebentar a escotilha para acederem à doca, mas havia tanta coisa que podia correr mal. Se a carga fosse fraca, continuariam encurralados. Se fosse demasiado forte, arriscavam-se a danificar o submarino ou mesmo a causar o colapso daquela secção do complexo.
Fosse como fosse, tinham de arriscar.
Enquanto os dois companheiros preparavam o explosivo, Gray ouvira as explosões à superfície, cujo brilho ténue indicava que o inimigo estaria a bombardear a ilha.
— Preparem-se! — avisou Kowalski. Consultou o relógio de Palu e esticou os dedos no ar, contando os últimos segundos até à detonação.
O túnel encontrava-se inundado pela altura da cintura, o que era uma coisa boa. Gray sabia que a doca estaria pressurizada para impedir a subida das águas do lago. Quando rebentassem a escotilha, a descompressão rápida poderia «chupar» a água do lago para o complexo. A única esperança residia na hipótese de o ar aprisionado no interior se encontrar suficientemente comprimido para se equiparar à pressurização necessária para conter as águas.
Apenas outro pormenor que pode correr mal.
Kowalski dobrou por fim os dedos, formando um punho fechado.
Gray avisara os companheiros para abrirem a boca e expelirem o ar dos pulmões, o que ajudava a suportar a onda de choque.
Serviu de pouco.
A explosão foi tão forte que lhe estalou os tímpanos e comprimiu as costelas ao ponto de pensar que não voltaria a conseguir respirar.
Soltou um gemido atordoado, como todos os outros.
No fim do túnel, as portas estavam abertas.
Para lá da câmara de descompressão, a água ao redor da torre do submarino subiu até igualar o nível da inundação no túnel.
Gray suspirou.
A pressão disponível parecia ser suficiente.
Por enquanto...
Largaram o painel metálico que servira de escudo e deixaram que a corrente o arrastasse na direção da doca. Enquanto deslizavam, jatos de água começaram a escapar da cúpula de vidro. A explosão rachara o vidro acrílico em vários sítios.
As rachas alastraram-se rapidamente.
Gray apontou para o submarino.
— Entrem todos! Rápido!
Um dos tripulantes subiu as escadas da torre e apressou-se a abrir a escotilha. Os outros subiram atrás. Uma vez aberta a escotilha, o mesmo tripulante ajudou cada um a descer em segurança para o interior do submarino. Gray foi o último a entrar, certificando-se de que ninguém ficava para trás.
O seu olhar cruzou-se com o do homem aterrorizado no cimo da torre.
A partir desse momento, estariam literalmente no mesmo barco, o que fazia com que deixassem de ser inimigos.
Um movimento desviou a atenção de Gray para a cúpula. Um bidão cor de laranja deslizou junto à curvatura do vidro, em direção ao fundo do lago.
Oh, não...
Lançou-se para a frente e empurrou o tripulante de cabeça pela abertura da torre. Alçou a perna e saltou para a escada no interior, fechando a escotilha no preciso instante em que uma forte explosão sacudiu todo o submarino, que embateu com estrondo contra a borda da doca.
Agarrou-se à escada de metal com uma mão e trancou o mecanismo de fecho da escotilha com a outra. Depois deixou-se deslizar até lá abaixo. Sentiu-se aliviado ao perceber que o tripulante que atirara de cabeça aterrara em cima dos outros, amparando-lhe a queda.
— Tirem-nos daq...
O som dos propulsores cortou-lhe as palavras. Os outros dois tripulantes não tinham perdido tempo e encontravam-se já aos comandos do aparelho.
Gray avançou pelo espaço exíguo, baixando a cabeça quando necessário. Reconhecia aquele tipo de embarcação. Era um submarino da Classe Una, fabricado pela marinha jugoslava. Fora desenhado para depositar minas subaquáticas ou para largar unidades das Forças Especiais em águas demasiado superficiais para embarcações maiores. Aquele exemplar fora retirado de serviço e nitidamente adaptado para uso pessoal. O nariz de aço, por exemplo, tinha sido substituído por uma versão em vidro acrílico.
Sentado aos comandos, o piloto dirigiu o aparelho para longe da estação.
Gray juntou-se a ele a tempo de testemunhar os últimos instantes do complexo. A explosão anterior estilhaçara uma das faces da cúpula. Bolhas de ar escapavam-se para cima, enquanto tubos de aço tombavam para o fundo do lago. Como que em câmara lenta, o resto da estação desmoronou-se por completo e, com um último lampejo, as luzes de emergência apagaram-se de vez, devolvendo a escuridão total às profundezas do lago.
Um dos tripulantes premiu um botão e os faróis do submarino acenderam-se, revelando um túnel que fazia a ligação entre o lago e o oceano. O piloto apontou o submarino para a passagem. Apesar do pequeno tamanho, parecia caber à justa.
Gray reparou noutro tripulante — provavelmente o navegador — curvado sobre o ecrã de um sistema de sonar. O dispositivo podia funcionar de modo ativo ou passivo.
Preocupado, inclinou-se para Aiko, que se juntara a ele.
— Diga-lhes que podem usar as luzes no túnel, mas, assim que estivermos em águas abertas, têm de navegar recorrendo ao sonar em modo passivo. Não podemos correr o risco de sermos detetados.
Aiko anuiu com a cabeça e transmitiu as instruções.
Gray desviou o olhar para cima, quando o nariz do submarino penetrou no túnel. Os responsáveis pelo lançamento das cargas de profundidade ainda poderiam andar por ali, a monitorizarem as águas ao redor da ilha.
À medida que o túnel engolia o submarino, voltou-se novamente para a tripulação.
— As baterias estão a cem por cento?
Um dos homens compreendia o suficiente de inglês para erguer os dois polegares no ar.
— Nesse caso, assim que sairmos daqui, marquem o rumo para o atol de Midway. Potência máxima.
O tripulante anuiu com a cabeça.
Mais calmo, Gray observou o feixe dos faróis a perfurar a escuridão adiante. Os lábios proferiram uma promessa muda.
Não vou descansar até te ter novamente nos braços, Seichan...
28
8 de maio, 06h17 SST
Algures sobre o Pacífico
Lentamente, o mundo materializou-se de novo à volta de Seichan, trazendo consigo a dor. A têmpora latejava, os braços e as pernas ardiam e a agonia dilacerava-lhe as entranhas. Queria vomitar, mas receava que isso apenas piorasse as coisas. Pestanejando duas vezes, semicerrou os olhos contra a claridade que parecia trespassar-lhe o crânio.
Tentou proteger-se contra essa imensa radiância, mas tinha os pulsos e os tornozelos presos com algemas e correntes.
Precisou de alguns segundos até perceber que se encontrava no porão de um avião de carga. O timbre dos motores sugeria uma aeronave movida a hélices. Virou a cabeça para um lado e para o outro, o que apenas fez com que o ambiente girasse ao redor.
Mesmo assim, apercebeu-se da presença de Ken, amarrado no assento ao lado.
— Como se sente? — perguntou ele.
Seichan apenas franziu a testa e forçou a língua seca a formar duas ou três palavras.
— Gray... os outros...
Ken baixou o olhar para as mãos algemadas.
— Não sei onde estão. Ainda lá em baixo, talvez. — Lançou-lhe um olhar triste. — Ela mandou bombardear a ilha. A estação foi destruída.
Seichan rodou a cabeça o suficiente para espreitar pela janela. O dia amanhecera e o sol brilhava sobre o oceano tranquilo, revelando a verdadeira extensão do inferno libertado durante a noite. A ilha inteira ardia lá em baixo, envolta num manto de fumo.
Seichan fitou o pedaço de terra em ruínas. Recusou-se a aceitar a ideia de que Gray estaria morto, agarrando-se a essa esperança com unhas e dentes. Talvez pudesse torná-la numa certeza apenas por força de vontade, mas a dor e a exaustão não lho permitiram. As lágrimas correram pelo rosto, o que apenas a enfureceu ainda mais.
Mal virou o rosto para a frente, a dor no estômago explodiu com uma nova ferocidade. Gritou e agarrou-se à barriga com ambas as mãos. Fechou os olhos, a ofegar, como que tentando soprar o fogo que ardia dentro de si. Ficou assim uns bons dez minutos, até a dor diminuir por fim e conseguir endireitar as costas.
À medida que recuperava o foco, deparou-se com um familiar rosto tatuado, cujos olhos a fitavam a escassos centímetros.
Valya encontrava-se agachada à sua frente.
— Já acordaste?
Seichan não se deu ao trabalho de lhe responder.
A assassina desviou o olhar para Ken.
— Você é o especialista, professor. Diga-me, em que estágio da parasitação é que ela se encontra?
Ken hesitou, nitidamente desconfortável com a pergunta.
— Pelos sintomas, diria que as larvas estão no início da segunda fase de desenvolvimento.
— O que quer dizer que só agora vai começar o verdadeiro suplício, correto?
Seichan estremeceu no assento. Parecia-lhe impossível que tivesse de suportar um sofrimento maior que aquele.
Ken lançou-lhe um olhar piedoso. Se não tivesse as mãos algemadas, Seichan ter-lhe-ia dado um murro no nariz. Não precisava da piedade dele. Da piedade de ninguém, diga-se de passagem.
— Em todo o caso, tem mais um dia — prosseguiu o professor —, antes de as larvas atingirem a terceira fase e migrarem para os ossos.
Seichan sabia o que isso significava.
Valya desviou o olhar para a barriga dela.
— E a criança?
Ken abanou a cabeça.
— Não sei...
Os olhos frios da assassina fixaram-se de novo no rosto de Seichan.
— Nesse caso, teremos de avaliar o seu verdadeiro estado quando aterrarmos no Japão. Esta gravidez poderá ser útil para os laboratórios Fenikkusu. Se for o caso, chegarei com três prémios, em vez de dois.
Valya alternou o olhar entre ambos. Depois levantou-se.
Antes que pudesse virar costas, um dos guardas correu ao seu encontro.
— Foi identificada a presença de um submarino a abandonar a ilha. Encontra-se neste momento a atravessar os baixios.
Valya cerrou os punhos.
— Eu sabia que aquele rato encontraria uma forma de abandonar o navio.
Seichan sentiu uma réstia de esperança a iluminar-lhe o coração.
Gray...
— Podem ser alguns dos nossos que ficaram para trás — avisou o guarda.
— Não interessa. — Valya apontou para a traseira do avião. — Temos quantos barris?
— Dez.
A assassina rodopiou um dedo no ar.
— Digam ao piloto para dar meia-volta e abram de novo a rampa. Vamos lançar metade das cargas, só para os deter. Depois fazemos outra passagem e terminamos o serviço.
— Hai! — anuiu guarda, que logo se apressou a ir transmitir as ordens aos restantes.
Valya virou-se de novo para Seichan.
— Os baixios ao redor da ilha estendem-se por quilómetros. Não existe um único sítio onde se possam esconder.
Seichan sentiu a esperança a desvanecer-se.
Esse sentimento não passou despercebido a Valya.
— Podia ser pior, sabes? Pelo menos, vais poder assistir à morte do pai da tua criança.
06h32
Gray amaldiçoou o novo dia.
Preocupado, inclinou-se sobre a cadeira do piloto, enquanto o submarino deslizava nas águas rasas do recife. Cardumes de peixes cintilavam ao desviarem-se do caminho, com as escamas a refletirem o sol da manhã.
Embora a embarcação fosse especialmente concebida para navegar em águas pouco profundas, sentia-se demasiado exposto.
— A que profundidade estamos?
O piloto, um homem chamado Nakamura, falava um pouco de inglês.
— Trinta metros.
Gray sabia que precisavam de descer pelo menos até aos duzentos metros, se quisessem desaparecer na escuridão do oceano. Pela quantidade de vezes que olhava para cima, o piloto adivinhou facilmente qual seria o motivo de tanta preocupação.
— Existe uma fenda profunda que usamos para passar despercebidos, a pouco menos de dez quilómetros.
Perfeito.
— Leve-nos para lá o mais rápido possível.
— Hai.
Junto a Gray, Aiko ainda tinha a metralhadora consigo, embora a carregasse agora pendurada no ombro. Não havia necessidade de ameaçar os tripulantes. Depois de quase terem sido mortos pelos próprios companheiros, aqueles homens não precisavam de motivação adicional para jogarem na equipa contrária.
Palu juntou-se a eles, com as costas curvadas para não bater com cabeça no teto baixo. Passara os últimos vinte minutos a servir-se de um estojo médico para tratar os ferimentos dos três companheiros feridos.
— Como é que eles estão? — perguntou Aiko.
— Perderam muito sangue — respondeu o havaiano, com o semblante carregado. — O Tua está demasiado fraco. Pode entrar em choque a qualquer instante.
Aiko virou-se para Gray.
— Estamos a cerca de oitenta milhas náuticas do atol de Midway. Mesmo à velocidade máxima, demoraremos umas sete ou oito horas para lá chegar.
Desviou o olhar para os homens feridos. A mensagem era clara.
Não vão durar tanto tempo.
Gray tinha consciência disso.
— Assim que estivermos em mar aberto, podemos arriscar erguer a antena e pedir ajuda aérea à base de Midway.
Palu anuiu com a cabeça e observou as águas, estudando a extensão dos recifes.
— É bom que não demoremos muito tempo.
Eu sei.
Sentindo a pressão nos ombros, Gray seguiu o olhar de Palu.
— Tudo isto é lindo — murmurou o havaiano, com o tom de voz triste, como que refletindo sobre tudo o que aquela região perdera já ao longo dos tempos. — Devemos estar quase a entrar nas águas da reserva de Papahanaumokuakea.
Gray estava a par da reserva ecológica que fora estabelecida para proteger aquelas ilhas remotas. Como que em concordância com o estado de espírito de Palu, uma sombra obscureceu as águas límpidas. Meio hipnotizado, Gray demorou uns segundos até se aperceber de um pormenor: a sombra movia-se demasiado depressa, e deslocava-se em direção a eles.
Aiko agarrou-lhe no braço.
— Um avião!
Gray curvou-se sobre o piloto.
— Virar a bombordo! Agora!
O piloto reagiu de imediato. Virou o leme e inclinou os estabilizadores de mergulho em direções opostas — um para cima, o outro para baixo —, a fim de obrigar o submarino a curvar rapidamente. A embarcação pendeu para um dos lados, fazendo com que todos perdessem o equilíbrio.
Lá atrás, Kowalski soltou um resmungo. A violência da manobra indicava que estavam novamente em perigo.
Gray inclinou-se para a frente, espreitando a superfície através do nariz de vidro acrílico do submarino. A silhueta nos céus tinha a forma de uma cruz.
Sem dúvida um avião, percebeu.
Só não tinha forma de saber se seria o inimigo.
A resposta chegou na forma de uma chuva de objetos que caíram no mar, alguns metros a estibordo. Assim que a sombra do avião se desvaneceu, a luz do sol revelou que se tratava de mais bidões cor de laranja.
— Agarrem-se!
A sucessão de explosões sacudiu a embarcação, projetando pedaços de coral contra a carapaça de aço. Por instantes, Gray acreditou que o submarino iria rolar sobre si mesmo com a força da onda de choque. Se isso acontecesse, os tanques de lastro abertos fariam com que se afundasse como um prego.
Felizmente, o submarino voltou a endireitar-se.
Gray suspirou de alívio, mas não havia razões para celebrarem.
O impacto enfraquecera a junção do nariz de vidro ao corpo de aço do submarino, e a água começara a entrar. Pior que isso, havia uma racha considerável ao longo do acrílico. Parecia estar a aguentar a pressão, porém, se houvesse um novo ataque...
Gray perscrutou as águas. A estibordo não se vislumbrava um palmo, visto que a explosão levantara uma nuvem de sedimentos. Virou-se na direção contrária, à espera do regresso da sombra negra, sabendo que o próximo ataque chegaria desse lado. Era apenas uma questão de tempo.
Ali parados, seriam um alvo fácil.
— Falta muito até alcançarmos a fenda? — perguntou ao piloto.
— Mais oito milhas.
Estamos demasiado longe.
Nunca alcançariam a fenda a tempo de evitarem uma nova ofensiva.
Tornou a olhar em redor, não à procura do inimigo, mas de uma solução.
— Se calhar, devíamos regressar à ilha — sugeriu Aiko. — Podemos esconder-nos no túnel.
Gray abanou a cabeça. Mesmo que pudessem dar meia-volta e alcançar esse abrigo a tempo, não gostava da ideia de poderem ficar aprisionados no túnel. Bastava um punhado de cargas bem colocadas para selarem a própria sepultura. No entanto, as palavras de Aiko deram-lhe outra ideia, outro local para se esconderem.
Pousou a mão no ombro do piloto.
— Esqueça a fenda. Vamos para sudoeste. — Apontou nessa direção. — E com toda a potência que temos.
Lançou um olhar agradecido a Palu.
O semblante confuso do havaiano depressa se iluminou com um sorriso, ao adivinhar o pensamento de Gray.
— Agora, sim, estamos a conversar, lolo buggah.
06h49
— Para onde é que eles vão? — perguntou Valya, irritada.
Seichan sentiu um certo prazer, ao poder apreciar a frustração da assassina. A bruxa pálida curvara-se e espreitava pela janela mais próxima, nitidamente com o objetivo de saborear a sua aflição quando o submarino fosse destruído.
O tiro, porém, saíra-lhe pela culatra.
Pouco ágil, o avião de carga demorara demasiado tempo a dar a volta para vasculhar de novo as águas, à procura do alvo. Quando fez a segunda passagem, o primeiro bombardeamento levantara uma nuvem de sedimentos que se espalhara por uma área considerável. Não havia forma de confirmar se o submarino teria sido destruído. Poderia estar em pedaços no fundo do mar, encoberto por essa nuvem. Ou talvez não.
Para ter a certeza, Valya ordenara ao piloto que apontasse o avião na direção de uma fenda oceânica. Quando essa busca se revelou infrutífera, a assassina mostrou-se cada vez mais confiante de que o alvo teria sido destruído. Mesmo assim, obrigou o piloto a voltar atrás, apenas para se certificar de que o submarino não tentara regressar à ilha.
Uma vez mais, não havia sinal da embarcação.
Dando o assunto por resolvido, Valya debruçara-se por fim sobre Seichan, com as mãos na cintura, a expressão vitoriosa.
— Um já está — vangloriara-se, desviando depois o olhar para a barriga da operacional. — Faltam dois.
Ato contínuo, o piloto emitira uma comunicação do cockpit.
— Alvo localizado e em movimento. Direção sudoeste.
Enquanto o avião corrigia a trajetória, a expressão de Valya endurecera. Praguejara duas ou três vezes em russo e, virando-se para a janela, fizera a pergunta inevitável:
— Para onde é que eles vão?
Ignorando a dor, Seichan virou-se igualmente para espreitar pela janela. A irritação da outra era como um bálsamo. Ken lançou-lhe um olhar esperançoso, mas recusou-se a embarcar em euforias precoces. Não havia nada que garantisse que Gray se encontrava sequer naquele submarino.
Com os olhos esbugalhados de fúria, Valya afastou-se subitamente da janela. Agarrou no guarda mais próximo e empurrou-o na direção do cockpit.
— Diz ao piloto para mergulhar. Já! Quero a porcaria deste avião o mais próximo possível da água!
O guarda pareceu confuso, mas anuiu com a cabeça e correu para a dianteira da aeronave.
Valya virou-se na direção contrária e dirigiu-se para a traseira aberta, onde se encontravam os últimos cinco bidões à espera de serem lançados. Antes de se afastar, murmurara qualquer coisa em russo. Um sinal evidente de que começava a perder o controlo da situação.
Seichan fingiu não ouvir ou perceber uma palavra, mas conseguira tanto uma coisa como a outra.
Não posso permitir que lá cheguem, dissera a bruxa pálida.
Curiosa, Seichan dirigiu de novo a atenção para a janela. A luz do sol obrigou-a a semicerrar os olhos, enquanto procurava descobrir o que tanto preocupava Valya.
— Olhe! — disse Ken. — Ali adiante!
Seichan pestanejou contra a claridade ofuscante.
Lá em baixo, a pouco mais de um quilómetro, uma mancha não identificada flutuava ao sabor da maré. Estendia-se até onde a vista alcançava e, à medida que o avião se aproximava, dir-se-ia mesmo que se prolongaria ainda mais, como se fosse capaz de dar a volta ao mundo.
— Que coisa é esta que estou a ver? — perguntou.
06h54
Fora Palu quem fornecera a resposta que Gray tanto procurava, de como poderiam encontrar uma forma de se esconderem em oceano aberto. A bordo do catamarã, o havaiano falara-lhe acerca desse perigo nos limites da reserva ecológica, que ameaçava a vida naquelas ilhas e águas.
Nesse momento, enquanto o submarino se aproximava do objetivo, os sinais encontravam-se por toda a parte: um pneu meio enterrado na areia; sacos de plásticos a rodopiarem como algas pálidas; uma rede de pesca perdida a ondular presa a um ramo de coral.
Contudo, o grosso que constituía o refúgio que procuravam encontrava-se mais à frente.
Era conhecido como o Grande Deposito de Lixo do Pacífico, uma mancha de detritos flutuantes com uma área duas vezes maior que estado do Texas, originada e aprisionada pela convergência de diferentes correntes oceânicas. A parte visível era formada por um conjunto de ilhas de lixo acumulado, desde garrafas de plástico, copos de poliestireno, barris de estações petrolíferas ou caixotes de navios mercantes. Mesmo assim, o verdadeiro atentado ecológico encontrava-se sob a superfície. Fruto da fotodegradação, uma sopa tóxica de microplásticos obscurecia as águas outrora cristalinas.
Embora tamanha fonte de poluição constituísse um desastre ambiental a uma escala sem precedente, para o grupo representava uma esperança contra a tempestade anunciada.
Enquanto o submarino se dirigia para o seu refúgio, Gray sentiu o tempo escassear e agachou-se junto do piloto. Ainda que não tivesse forma de saber, conseguia imaginar a sombra do avião a encurtar a distância atrás de si.
Cravou os dedos nas costas do assento do piloto.
— Estamos quase a chegar — sussurrou Aiko, como que receando que o inimigo a ouvisse nas alturas.
Palu contraiu o rosto, baixando igualmente o tom de voz.
— O quase é que é o problema...
O nariz do submarino apontou para as águas escuras adiante, onde a massa compacta de detritos tapava a luz do sol.
E em breve também nós, com alguma sorte.
Gray susteve a respiração, desejando que o submarino avançasse mais depressa. Por fim, o nariz acrílico deslizou sob a nuvem de sedimentos microplásticos. O mundo ao redor obscureceu de imediato, enquanto retalhos de sombras mais densas assinalavam as várias pilhas de lixo à superfície.
Gray soltou um longo suspiro de alívio.
Conseguimos.
Como que de propósito, uma explosão abafada sacudiu a traseira do submarino, que por instantes levantou o nariz, empurrado pela onde de choque.
Gray foi projetado contra o assento do piloto.
— Tudo a estibordo! — gritou, apontando para uma secção de sombra mais densa. — Potência máxima!
O piloto executou a manobra com destreza, à medida que novas explosões se sucediam umas atrás das outras, iluminando o breu como fogo de artifício num céu noturno. Uma sombra mais densa engoliu-os quando o avião passou sobre o campo de detritos. Ocorreram novos rebentamentos, mas eram cada vez mais dispersos, dando a ideia de que não obedeciam a um padrão concreto.
Estão a lançar as cargas ao acaso, percebeu Gray.
Melhor que isso, as explosões revolveram o leito marinho, tornando as águas ainda mais turvas, e, após uns segundos, o silêncio regressou às profundezas, assinalando o final da ofensiva.
Será que vão tentar de novo?
Sabendo que precisavam de desaparecer de vez, Gray avistou e apontou para uma enorme camada de lixo mais à frente. A respetiva sombra estendia-se a perder de vista.
— Ali! Desligue os propulsores!
O piloto anuiu com a cabeça, reduziu a potência e fez deslizar o submarino até o aparelho se deter debaixo do manto protetor de lixo flutuante. A massa era compacta, com os milhares de objetos agregados por uma teia de redes de pesca enredadas umas nas outras. Algumas pendiam verticalmente, como musgo-espanhol.
O nariz do submarino roçou numa das redes, agitando-a. Ao rodar, a malha de nylon revelou a carcaça aprisionada de uma foca. A maior parte da carne desaparecera, restando apenas os ossos e as barbatanas.
Aiko arregalou os olhos, impressionada.
A reação de Gray não foi muito diferente.
— Chamamos a isto pesca fantasma — explicou Palu, apontando com o queixo para a carcaça. — Centenas de toneladas de redes perdidas convergem para aqui com a força das correntes. Pelo caminho, aprisionam todo o tipo de vida animal que encontram pela frente, como se pescassem sozinhas.
Gray fitou a arrepiante massa entrelaçada de detritos e ossos.
A ver se não nos toca o mesmo destino...
07h12
Seichan não escondeu o contentamento ao notar a fúria de Valya, quando ela regressou da traseira do avião. Lá atrás, a rampa do porão estava já a fechar-se, depois de serem lançados os últimos bidões.
Enquanto a assassina se aproximava, Ken sussurrou no assento ao lado.
— Acha que conseguiram destruir o submarino?
A expressão de Valya respondia por si mesma a essa pergunta. Os olhos brilhavam de raiva no rosto empedernido, o que fazia sobressair o negro da tatuagem.
— Julgo que não — sussurrou de volta Seichan.
Valya deteve-se e berrou em japonês para um dos guardas.
— Diz ao piloto para seguir caminho. Quero estar no Japão antes de amanhecer!
Ken inclinou-se na direção de Seichan.
— Acabou? Estão a desistir?
— Não me parece que tenham escolha.
Valya apercebeu-se da conversa em surdina.
— Mais uma palavra e amordaço-vos aos dois!
Seichan limitou-se a encolher os ombros.
— Acho que te enganaste, pelos vistos.
— Acerca de quê?
— Acerca de um já estar e faltarem dois — respondeu Seichan, atirando-lhe as palavras anteriores à cara. — Pelas minhas contas, estás de volta à estaca zero.
Valya cerrou um punho e afastou-se. Depois, incapaz de se conter, voltou atrás e deu um murro em Seichan.
A cabeça de Seichan foi arremessada contra a fuselagem. Sentiu o gosto a sangue do lábio ferido. A boca doía-lhe, mas em nada se comparava ao fogo que ainda ardia dentro dela. A agressão também nada fez para lhe arrancar a expressão divertida no rosto, a certeza no olhar, e soltou uma gargalhada por entre os lábios ensanguentados.
Valya lançou-lhe um olhar fulminante e dirigiu-se para a frente do avião.
Incapaz de se conter, Seichan continuou a rir com gosto. Só uma pessoa se lembraria de procurar a salvação num monte de lixo.
Não lhe restava dúvida alguma acerca de quem se encontrava naquele submarino.
O pai da sua criança.
08h22
— Consegues ver alguma coisa? — perguntou Kowalski.
Gray não respondeu e continuou a varrer os céus com o periscópio. Aguardara uma hora até se sentir confiante de que o avião abandonara a zona, erguendo em seguida o dispositivo de observação do submarino. Estava certo de que acontecera um de dois cenários possíveis: ou o inimigo esgotara o arsenal disponível, ou tinha ficado sem tempo. Sabia que o avião não poderia continuar a circundar aquelas águas eternamente, sem correr o risco de se expor demasiado. A ilha em chamas acabaria por chamar a atenção das autoridades, nomeadamente das forças militares americanas.
— Céu limpo em todas as direções — anunciou por fim. Endireitou as costas e virou-se para a tripulação — Está na altura de erguermos também a antena.
Desviou o olhar para onde Palu se encontrava sentado com Makaio. Ambos vigiavam Tua com expressões preocupadas. O homem tremia da cabeça aos pés, com os lábios azulados. A exposição ao frio, a perda de sangue e o medo tinham deixado uma marca pesada no havaiano.
Aiko encontrava-se junto de Kowalski. O calmeirão estava sentado com uma manta sobre os ombros.
— Qual é o plano, depois de encaminharmos estes homens para um hospital? — perguntou ela.
Para Gray, havia uma única opção, um único caminho a percorrer a partir dali.
Fitou a japonesa.
— Agora, é nossa vez de levarmos a luta até eles.
29
9 de maio, 05h05 JST
Fujikawaguchiko, Japão
— Lamento, Jonin Ito.
Ajoelhado frente à sua kotatsu tradicional, Takashi deixara de sentir o calor das brasas escondidas sob a armação envolta pela colcha de seda antiga. A chávena de chá matinal, uma infusão de chá verde e arroz integral tostado, arrefecia esquecida entre as mãos.
Mantinha a cabeça baixa, ignorando o rosto pálido da mulher no ecrã do portátil. O coração ainda sangrava das palavras ditas momentos antes, como se tivesse uma faca cravada no peito.
Eles mataram o seu neto.
Antes de responder, permitiu que a notícia se entranhasse nos ossos, que ganhasse consistência. A assassina contara-lhe os pormenores do ataque noturno à ilha, da valentia de Masahiro diante do adversário, do homem astuto que lhe ceifara a vida. Porém, tais pormenores eram irrelevantes, sobrando apenas o resultado.
Interrogou-se uma vez mais, como fizera em tantas ocasiões ao longo da vida.
Terei sido amaldiçoado?
Perdera a amada Miu nuns segundos de tiroteio num túnel escuro. Depois, anos mais tarde, a segunda esposa, uma mulher doce de lábios macios, sucumbira durante o parto do único filho. Takashi chamara ao rapaz Akihiko, o príncipe iluminado, desejando que essa bênção contrariasse a trágica chegada ao mundo. E como amara essa criança que se tornaria um belo jovem, reto como uma vara e dotado de uma inteligência muito superior à dos pais. Akihiko acabaria por lhe dar um neto e, cumprido esse dever, morreria no ano seguinte num acidente de automóvel, juntamente com a mulher.
Takashi tomara a si a responsabilidade de criar Masahiro, cuidando dele como de um filho. Contudo, sempre observara nele uma amargura, umas trevas a correrem nas veias, como se a tragédia familiar tivesse criado raízes no seu coração. Apesar de todos os esforços de Takashi — tanto gentis como firmes —, nunca tinham criado verdadeiramente laços, subsistindo sempre uma espécie de vazio entre os dois.
Todavia, um facto era inegável.
Amava o neto.
Ergueu finalmente a chávena e sorveu um pouco do líquido. Acordava todos os dias às quatro da manhã e reservava essas primeiras horas do dia para meditar com o seu chá nas mãos, enquanto assistia ao sol a erguer-se sobre o monte Fuji.
O ritual preparava-o para enfrentar o dia.
Mesmo um dia como este.
Sussurrou com os lábios encostados ao rebordo da chávena.
— Ichi-go ichi-e...
A frase datava do século XVI, atribuída a um velho mestre do cerimonial do chá, o Sen no Rikyu, que queria dizer um tempo, uma oportunidade. Era um testemunho da transitoriedade da vida, um lembrete para nunca nos esquecermos de apreciar aqueles que cruzavam o nosso caminho, uma vez que poderia não voltar a acontecer.
Uma lição que Takashi conhecia demasiado bem.
À medida que o chá lhe humedecia os lábios e soltava a língua, olhou por cima do rebordo da chávena. As manhãs de início de primavera continuavam frias, cobrindo os flancos do monte Fuji com uma fina camada de gelo. A luz do sol refletia nessa superfície vidrada, incendiando a montanha.
Fogo e gelo.
As duas coisas ressoavam no peito de Takashi, e deixou que o coração permanecesse frio, enquanto a fúria aquecia o sangue.
— O maldito que matou o meu neto — disse, com os lábios ainda colados à chávena. — Onde está?
— Não sei — admitiu a assassina.
Os olhos de Takashi brilharam, permitindo vislumbrar a fúria que ardia dentro de si.
Valya Mikhailov fez uma pequena vénia com a cabeça.
— Não sei onde está, mas sei para onde se dirige. — Ergueu o rosto, fitando igualmente Takashi. — Tenho a sua mulher. E o filho, ainda por nascer.
Takashi pousou a chávena. Recordou o sorriso de Miu, o modo como as mãos dela lhe seguravam o rosto, quando o beijava.
— Ele há de vir pelos dois.
— Hai — anuiu Valya, com os lábios comprimidos. — A mulher está doente, parasitada pelas vespas que Masahiro soltou no Havai.
Takashi endireitou as costas, retirando alguma satisfação dessa pequena medida de vingança exercida pelo neto.
Valya prosseguiu.
— Por isso, sim, virá por ela e pela criança, mas também para procurar uma cura para a doença.
— Nesse caso, irá falhar redondamente.
Takashi fitou as profundezas frias da chávena de chá. Levou a mão ao peito e tocou no gelo que cobria o coração, admitindo um segredo que nunca chegara a partilhar. Nem sequer com o neto.
Apesar das décadas de pesquisa, todos os resultados convergiam para uma certeza clara.
Disse-o alto e bom som.
— Não há cura.
QUINTA PARTE
CRISÁLIDA
30
9 de maio, 00h08 CEST
Wieliczka, Polónia
— Se continuarmos a passar a vida em edifícios medievais, sou capaz de alugar uma armadura de cavaleiro, para ver se me enquadro melhor — disse Monk.
Kat sorriu, tentando disfarçar um bocejo com a mão. Encontravam-se reunidos ao redor de uma mesa de uma pequena biblioteca, localizada na torre norte de um castelo do século XIII. As estantes de livros cercavam-nos de todos os lados, tão próximas que pareciam espreitar por cima dos ombros de todos, a fim de também observarem o conjunto de mapas antigos em cima da mesa.
Kat esfregou os olhos cansados. Passava da meia-noite e dormir era coisa que pouco tinham feito nos últimos dias. Depois de acertarem alguns pormenores em Gdansk, deixaram a costa báltica e voaram para o sul da Polónia, onde aterraram em Cracóvia, quatro horas antes. No decurso da viagem, o mais recente membro da equipa, o doutor Damian Slaski, contactara a administração das Minas de Sal de Wieliczka e conseguira autorização para que pudessem visitar o labirinto subterrâneo fora de horas.
Infelizmente, não tinham sido os únicos a submeter semelhante pedido. Slaski fora informado de que a Capela de Santa Cunegunda — uma capela no fundo da mina — fora requisitada para a realização de uma missa noturna. Não era uma ocorrência rara, já que a capela servia de palco a cerimónias litúrgicas regulares, como acontecia todos os domingos. Além disso, estava também disponível para a realização de casamentos, até de concertos.
Ao saber da missa, Slaski sugerira aos companheiros que não se aventurassem na mina antes do final da cerimónia religiosa. Kat recusara, visto que não havia tempo a perder. Para a convencer, Slaski recomendara uma curta paragem noutro local.
Mais tarde, Kat reconheceria a validade dessa sugestão.
Depois de aterrarem em Cracóvia, fizeram a viagem de vinte minutos até ao complexo da mina; contudo, em vez de se dirigirem diretamente aos serviços administrativos, Slaski conduzira-os para o museu de história natural da cidade, localizado a duas centenas de metros. O Muzeum Zup Krakowskich Wieliczka ocupava um conjunto de velhas fortificações conhecido como Zamek Zupny, «Castelo de Sal». Ao longo de mais de sete séculos, o complexo medieval de edifícios de pedra e madeira servira de residência aos administradores da mina, que não só supervisionavam a exploração em Wieliczka, mas também uma mina congénere em Bochnia.
Em tempos, o sal constituíra um grande negócio. De acordo com Slaski, um terço do rendimento de muitos monarcas polacos provinha da exploração das minas. A própria palavra salário provinha da expressão latina salarium, que representava a quantidade de dinheiro que um soldado recebia para comprar sal.
Esclarecida pelas minuciosas explicações de Slaski, Kat não demorou a compreender a verdadeira dimensão da indústria do sal de outrora, juntamente com a dificuldade do desafio que os aguardava.
Foi por isso que nos trouxe aqui, em primeiro lugar.
Observou os mapas espalhados na mesa, alguns de quando a mina fora fundada. Slaski escolhera-os da extensa coleção cartográfica do museu, que contava mais de quatro mil exemplares. Uma boa porção relacionava-se com a indústria mineira local. Fora ali que Slaski conduzira a investigação para o seu museu, acerca dos depósitos de âmbar encontrados nessa região ao longo dos tempos.
Começando pelo mais antigo dos mapas e continuando até ao mais recente, Slaski ilustrara a história completa da mina, reconstruindo, camada após camada, o labirinto de túneis e galerias no subsolo. A verdadeira dimensão do lugar era avassaladora.
— Permitam que vos mostre isto. Ajuda a terem uma noção do que vos espera — disse Slaski, estendendo um novo mapa sobre a mesa. — Foi desenhado pelo meu bom amigo, Mariusz Szelerewicz. Oferece aos visitantes uma boa vista do que se encontra lá em baixo.
Kat estudou o complexo conjunto de túneis, condutas e galerias. Elena inclinou-se a seu lado, com os óculos de leitura na ponta do nariz. Apesar da hora tardia, a bibliotecária parecia cheia de energia. Os olhos cintilavam de interesse, e de vez em quando estalava a língua, quando um novo mapa era apresentado ao grupo. Não havia dúvida de que se encontrava no seu elemento natural.
Sam, pelo contrário, esforçava-se por se manter acordado no outro lado da mesa. Para um entomologista, a circunstância de estar a olhar para uma série de mapas não constituía um estímulo suficiente para contrariar a exaustão.
Elena deslizou um dedo sobre o trabalho de Mariusz Szelerewicz.
— Percebe-se como é que alguém se pode perder facilmente lá em baixo — constatou, com um tom de voz apreensivo.
— Verdade — admitiu Slaski. — E este mapa representa apenas o percurso aberto aos visitantes. O nível mais profundo aqui exibido não ultrapassa uma centena de metros. A mina tem três vezes essa profundidade.
Elena suspirou.
— À volta de trezentos metros, portanto.
A expressão angustiada sugeria que a ideia de descer a uma profundidade dessas não era inteiramente do seu agrado.
As palavras seguintes de Slaski apenas agravaram esse sentimento.
— Muitos dos níveis inferiores encontram-se vedados devido a colapsos antigos e a inundações.
Kat franziu o sobrolho.
— Inundações?
Slaski anuiu com a cabeça.
— Quando os poços atingiram um lençol de água, isso originou uma série de lagos subterrâneos.
Kat começou a sentir-se solidária com as preocupações de Elena.
Esta história melhora a cada instante.
Slaski, porém, ainda não terminara.
— O percurso turístico tem cerca de quatro quilómetros de extensão, mas existem cerca de quatrocentos quilómetros de túneis lá em baixo. — Pousou a mão no mapa. — Este mapa representa apenas uma fração da mina. Um por cento, para ser exato.
Monk suspirou e recostou-se na cadeira.
— Estou a perceber porque quis que víssemos isto...
Elena abanou a cabeça.
— Como podemos sequer ter esperança de descobrir o local onde Smithson descobriu o artefacto?
— E se estivermos enganados? — murmurou Sam, entre bocejos. — Smithson pode ter descoberto o artefacto na mina vizinha. Ou noutro lugar qualquer, aliás.
Kat não acreditava nessa hipótese.
Slaski explicou porquê.
— No século XVIII, as visitas de turistas eram já frequentes. Os trabalhadores toleravam essas intrusões, mas esse não era o caso em minas menos conhecidas, onde o acesso era absolutamente restrito.
— Mesmo assim, e partindo do princípio de que estamos no lugar certo, por onde podemos sequer começar? — disse Elena. — Quero dizer, quantas galerias e câmaras é que existem lá em baixo?
— Mais de dois mil.
Kat fechou os olhos, esmagada pela magnitude daquela mina de sal. Porém, também sentia que lhe escapava qualquer coisa importante. Em Gdansk, tivera essa mesma impressão.
O que me está a escapar no meio disto tudo?
Frustrada e exausta, não conseguia identificar a origem dessa sensação.
Slaski fez um gesto largo sobre os mapas em cima da mesa.
— Como podem ver, foram atribuídos números e nomes a todos os túneis e galerias. Isso é tão verdade para as secções junto à superfície como para as mais profundas.
Kat reparara nesse pormenor, de como as sucessivas gerações de cartógrafos tinham preservado essa informação ao longo dos séculos, incluindo-a em cada novo mapa. Por algum motivo, aperceber-se disso agitou de novo essa impressão de que lhe escapava qualquer coisa, mas continuou sem perceber porquê.
Slaski encolheu os ombros.
— Se ao menos o vosso James Smithson tivesse deixado alguma pista para seguirmos...
Kat endireitou as costas. Fê-lo tão abruptamente que chamou a atenção de todos.
Será possível?
Monk olhou para ela.
— Querida, estás com aquele ar de quem sabe alguma coisa que nós não sabemos.
Kat alcançou o telefone satélite e fez surgir no ecrã as fotografias que Painter lhe enviara da cripta de Smithson, em Washington. Antes de aterrarem em Gdansk, tivera oportunidade de as observar brevemente. O diretor estava convencido de que o túmulo poderia guardar uma mensagem escondida, e dera como exemplo as gravuras presentes no rebordo da urna, que representavam uma serpente, um pedaço de rocha e um inseto alado. A teoria dele sugeria que Smithson teria usado esses hieróglifos como uma pista para o que se encontrava escondido no caixão.
Durante o voo para Cracóvia, Kat matutara acerca de um quarto símbolo junto a esses três, uma concha do mar. Chegara a aflorar a ideia de que Smithson a incluíra na decoração da urna como uma referência vaga à mina de sal, uma estrutura que fora escavada através das várias camadas de sedimentos deixadas pelo desaparecimento do mar de Tétis.
Uma concha para representar aquele mar antigo.
Acabara por descartar a ideia por a considerar demasiado extravagante. Além disso, mesmo que fosse verdade, pouco acrescentava ao que já sabia. O nome de Smithson no registo de visitas da mina era prova suficiente de que estavam no caminho certo.
No entanto, a menção de Slaski de os dois mil túneis e galerias se encontrarem numerados recordou-a de um outro mistério acerca do túmulo de James Smithson. Um erro na inscrição da pedra tumular, que continuava a divertir e a confundir os historiadores.
Selecionou e ampliou a fotografia dessa inscrição.
— Vejam — disse, estudando o texto. Leu em voz alta as últimas linhas, referentes à data da morte de James Smithson: — ... falecido em Génova a vinte e seis de junho de 1829, aos setenta e cinco anos.
— O que tem isso de especial? — perguntou Sam.
Elena, pelo contrário, percebeu de imediato. Ergueu os óculos de leitura, os olhos arregalados.
— Esta inscrição não está correta. A data da morte está certa, mas Smithson nasceu a seis de junho de 1765.
Monk calculou a diferença.
— Nesse caso, morreu com sessenta e quatro anos, não com setenta e cinco.
Sam franziu o sobrolho.
— Tudo bem, mas que diferença faz?
— Com sorte, toda — respondeu Kat. — Os historiadores nunca perceberam como é que o sobrinho de Smithson poderia ter cometido semelhante erro ao mandar gravar a inscrição. Mas, e se não tivesse sido um acidente? Quem nos diz que o próprio Smithson não mandou colocar a inscrição tal como está, assim como fez com a serpente, a rocha e a vespa?
— Como uma pista... — disse Monk.
Kat virou-se para Slaski.
— Disse que a mina contava com mais de duas mil galerias quando fechou portas. Calculo que na época de Smithson esse número não fosse muito diferente... talvez uma ou duas centenas a menos, não?
— Por aí... — confirmou Slaski.
Monk percebeu onde Kat queria chegar.
— Estás a sugerir que o Smithson pode ter deixado o número da galeria inscrito no túmulo, como se fosse uma morada, indicando o local exato onde descobriu o artefacto.
— Se subtrairmos setenta e cinco anos à data da morte, ficamos com o número 1754. Como todos sabemos, esse não é o ano do seu nascimento.
Cada vez mais espantada, a voz de Elena converteu-se num murmúrio.
— Mas talvez corresponda a uma das galerias ou túneis desta mina.
Todos os rostos se viraram para Slaski.
— Pode indicar-nos no mapa onde fica a galeria 1754?
— Claro. — Virou-se e debruçou-se sobre o portátil. — Tenho essa informação compilada e catalogada no computador. Posso dizer-vos já.
Teclou meia dúzia de instruções e recostou-se na cadeira. Um mapa familiar surgiu no ecrã.
— Já nos mostrou isto em Gdansk — disse Elena.
— Sim, é o mapa desenhado por Wilhelm Hondius. A diferença é que assinalei a secção identificada com o número 1754. Está aqui em baixo, como podem ver.
Slaski debruçou-se de novo para conseguir ler as notas do autor na margem do documento.
— Esta secção da mina também recebeu um nome, por razões óbvias.
— Como se chama? — perguntou Sam.
— Kaplica Muszli... a Capela da Concha.
Kat não foi capaz de conter uma exclamação de espanto, visualizando a concha que adornava o centro do túmulo de Smithson.
Slaski ampliou a secção assinalada.
— Como vos disse, a escolha do nome é fácil de perceber.
Essa secção do mapa mostrava um conjunto de túneis enlaçados que irradiavam de uma galeria central, com o formato óbvio de uma concha.
— O lugar que procuramos só pode ser este — murmurou Kat.
Sam não parecia tão confiante.
— Por que razão abririam os mineiros túneis com esta configuração? Não me parece nada prático.
Slaski encolheu os ombros.
— Vai compreender melhor, quando descermos.
— Nesse caso, vamos a isso — disse Kat, consultando relógio. — Já passa da uma da manhã. De certeza que a missa já terminou.
Slaski ergueu a mão.
— Primeiro, peço-vos que tenham em atenção o seguinte. — Apontou para a imagem no ecrã. — A Capela da Concha pode parecer pequena no mapa, mas cobre uma área de um quilómetro quadrado. É bastante grande, e a maior parte encontra-se em ruínas, desde que foi abandonada.
— Qual a razão de o ter sido? — quis saber Kat, interrogando-se se esse abandono poderia ser mais uma ligação ao que supostamente fora libertado naqueles túneis.
Slaski tinha uma justificação diferente.
— Essa secção encontra-se inundada. — Diminuiu a imagem e desenhou um círculo ao redor de uma parte dos túneis vizinhos. — Toda esta área é agora um lago subterrâneo.
Kat imaginou a vasta extensão de água e a gigante concha na sua margem, como que ali tivesse sido depositada pela maré.
— Acho que não temos alternativa senão descer — disse, olhando em volta para ver se alguém tinha uma opinião contrária.
O rosto de Elena brilhava de ansiedade, mas anuiu com a cabeça.
Com o assunto resolvido, puseram-se a caminho e, em menos de nada, atravessavam já os jardins do castelo em direção à vasta estrutura que brilhava para lá das árvores. As luzes iluminavam um edifício amarelo com telhado vermelho, onde se destacava uma enorme torre industrial. A estrutura de ferro vertical era a cabeça do poço principal, que se prolongava até ao coração da mina.
Enquanto atravessavam o parque, a noite arrefecera repentinamente, obrigando-os a vestirem os blusões e casacos. Kat manteve-se atenta a sinais de visitas inesperadas. O grupo de homens que os tinham seguido em Gdansk evaporara-se assim que chegaram a Cracóvia. Kat apenas informara Painter e Jason da intenção de se deslocarem até ao sul da Polónia, e pedira ao diretor para manter essa informação no segredo dos deuses. Nem os próprios serviços secretos americanos deveriam ter acesso a ela.
Talvez o extremo secretismo tivesse ajudado a despistar o inimigo, mas, pelo sim pelo não, manteve-se alerta.
Durante o telefonema, Painter também fizera uma atualização do cenário vivido no Havai. O caos não parava de aumentar e fora estabelecido um plano de evacuação, cuja logística ainda precisava de afinação. O êxodo forçado deveria iniciar-se nas próximas horas. O plano visava mover as populações por via área e marítima para o atol de Johnston. Era uma tarefa monumental, que obrigava a uma sólida cooperação internacional, mas as autoridades não podiam perder mais tempo. Cada minuto perdido era um minuto a favor da disseminação do problema a uma escala global.
Enquanto caminhavam, Monk apercebeu-se da consternação de Kat.
— Não penses mais nisso. Se houver aqui uma solução, nós vamos encontrá-la.
Espero que sim... e que a encontremos depressa.
31
9 de maio, 08h10 JST
Fujikawaguchiko, Japão
Deve ser este o lugar.
Seichan lutou através de um nevoeiro de dor para estudar o local para onde a levavam. Encontrava-se sentada na parte de trás de um pequeno helicóptero de transporte, um Fuji-Bell 204B. O homónimo para esta variante japonesa da aeronave americana preenchia os céus adiante. O cone coberto de neve do monte Fuji erguia-se contra uma camada de nuvens de tempestade, como se a montanha estivesse a conter a tormenta anunciada.
O lago mais abaixo refletia essa batalha.
Seichan reconheceu esse corpo de água. Tratava-se do lago Kawaguchiko. O helicóptero iniciou a descida em direção à povoação situada ao longo das margens. Tentou lembrar-se do nome da cidade, mas cada pulsar dos rotores martelava-lhe a cabeça, impedindo-a de se concentrar.
Já mais perto de terra, o aparelho apontou para os limites da povoação. Enquanto curvava, a luz da manhã inundou a cabina com uma claridade ofuscante. Atarantada, Seichan recusou-se a desviar o rosto e semicerrou os olhos, a fim de absorver cada pormenor do terreno abaixo.
As linhas de um teleférico subiam desde a cidade até ao cimo de um cume próximo, onde as vistas panorâmicas deveriam ser incríveis. Numa das encostas inferiores do mesmo pico, um pagode de vários pisos erguia-se acima das árvores. A estrutura de aço e vidro refletia a luz matinal, como uma escultura de fogo e gelo.
Pelo ângulo de aproximação do helicóptero, Seichan soube que era para ali que se dirigiam. Estudou o terreno em redor. O pagode situava-se no centro de um quadrado murado com mais de mil hectares. Uma série de edifícios secundários pontilhava o interior da área vedada, nenhum com uma altura superior a dois andares, de forma a não desafiar a imponência do templo cintilante.
O helicóptero continuou a descrever uma curva até à parte de trás do complexo, onde existia um heliporto. Seichan reparou no jardim japonês que adornava as traseiras do pagode, com os típicos cursos de água e cascatas ao redor de um lago com as inevitáveis carpas e flores de lótus. Uma ponte de madeira estendia-se em arco desde uma das margens até ao centro do lago, onde existia uma ilhota com uma pequena casa de chá. O resto do jardim encontrava-se elegantemente decorado com áceres, cerejeiras, ameixeiras e bambus. Num dos cantos, havia ainda um espaço meditativo de pedra e areia, delimitado por árvores de bonsai.
Sabendo o que a esperava, Seichan tentou absorver alguma da paz e serenidade transmitida por aquele jardim. Ainda sentia o sabor a sangue do lábio aberto e inchado, fruto do punho fechado de Valya, que ocupava o lugar ao lado do piloto. A assassina ignorara-a durante as cinco horas de voo até Tóquio, o que lhe permitira dormir um pouco. O curto descanso fizera-lhe bem, e a viagem de helicóptero desde a capital até àquela cidade na margem do lago não demorara mais de vinte minutos.
Daí em diante, Seichan calculava que apenas poderia contar com um mundo de dor à sua espera.
Mesmo nesse instante, sentia o olhar atento de Ken Matsui, sentado a seu lado a avaliar constantemente cada contração do rosto, espasmo ou gemido. Tinham passado vinte e quatro horas desde que fora parasitada. Por essa altura, os milhares de larvas encontravam-se no segundo estágio de desenvolvimento. Daí a vinte e quatro horas, atingiriam finalmente o terceiro estágio e migrariam para os ossos, onde plantariam as temíveis versões císticas de si mesmas.
Vinte e quatro horas...
Uma rajada de vento atingiu o helicóptero ao aterrarem. Os patins bateram com força no chão e o impacto sacudiu-lhe o corpo, o que foi suficiente para a horda de larvas se manifestarem. A explosão de dor na barriga estendeu-se pelos braços e pelas pernas. Tentou suportar o suplício, mas não havia volta a dar. A dor ressaltou dos membros e concentrou-se de novo na barriga, incendiando-lhe as entranhas. Essa espécie de pingue-pongue repetiu-se continuamente.
Mais não... por favor.
Desejar que a dor parasse não lhe servia de nada, claro, e, a dada altura, desmaiou. Acordou com o estalejar de um trovão e gotas de chuva a caírem sobre o rosto. Encontrava-se deitada e amarrada numa maca junto ao heliporto. Acima, metade do céu tingia-se de cinzento e a outra metade de azul. A tempestade deslocava-se depressa, empurrada por ventos frios.
A maca foi empurrada em direção às portas de aço abertas de um edifício de betão. Uma vez lá dentro, foi conduzida por uma rampa que levava a um túnel no subsolo. Luzes fluorescentes estendiam-se ao longo do teto. Pareciam derreter enquanto as fitava à beira da inconsciência. Cada solavanco da maca atiçava a dor. Esforçou-se por circunscrever a tortura a um qualquer canto distante da mente, mas era impossível.
A dor variava por demais. Tão depressa era um tigre a dilacerar-lhe as entranhas como a seguir parava, apenas para ressurgir de novo, noutra qualquer parte do corpo.
As lágrimas correram pelo rosto, a respiração alternando de ritmo e intensidade. Mesmo assim, tentou perceber para onde estaria a ser levada. Suspeitava que o túnel acabaria por desembocar num qualquer piso inferior do pagode de vidro.
A dada altura, deslizou para uma espécie de sonho delirante, apenas para ser resgatada pela voz de Ken.
— Para onde a levam?
Pestanejou e deixou tombar a cabeça ao encontro da voz.
Valya segurava o professor por um braço. A maca foi desviada para uma passagem no lado esquerdo, ao passo que o professor continuou a ser arrastado noutra direção.
Estão a separar-nos...
Mesmo assim, ainda conseguiu ouvir a resposta da assassina.
— Vai para a enfermaria, onde será submetida a um exame físico rigoroso. Incluindo a questão da gravidez. Com sorte, faremos dela a nossa cobaia predileta.
Aquelas palavras preocuparam-na ao ponto de quase anularem a dor por um instante. Não era receio pelo que lhe poderiam fazer, mas pela condição do feto. Apesar do desespero de toda a situação, estava mais do que disposta a submeter-se a qualquer exame. Era uma forma de obter uma resposta à pergunta que tanto a atormentava.
O meu bebé ainda estará vivo?
Até esse momento, com todo o caos e aflição, conseguira empurrar esse receio para os confins da mente, onde subsistia como um pedaço de carvão incandescente. Com o passar de cada hora desde que abandonara a ilha de Maui, a pressão da pergunta por responder aumentara.
Precisava de conhecer a verdade.
Infelizmente, a intensidade desse desejo apenas sustinha a agonia até certo ponto. Ao ser empurrada para o elevador, a maca bateu na parede da cabina. A pancada percorreu-lhe o corpo como um choque elétrico, amplificando a dor até se tornar de novo insuportável.
O mundo desvaneceu-se em tons de cinzento. Depois, seguiu-se a escuridão.
Quando acordou de novo, não fazia ideia de quanto tempo passara. Dera por si numa cama de hospital, com os pulsos e tornozelos algemados à armação de metal. Alguém a despira e vestira-lhe uma bata hospitalar, que se encontrava levantada à altura dos seios.
Um homem e uma mulher, provavelmente um médico e enfermeira, ambos em trajes cirúrgicos, ocupavam cada um dos lados da cama. A mulher acabara de lhe aplicar um gel lubrificante sobre o ventre exposto. O toque da substância fria na pele quente deveria ter sido o suficiente para a despertar. O médico segurava o transdutor de uma máquina de ultrassonografia, enquanto calibrava o aparelho junto à cabeceira da cama.
— Podemos começar — disse ele em japonês, virando-se para a cama e reparando de imediato nos seus olhos abertos. — Ah, e parece que a nossa paciente já acordou. Continuo impressionado com o modo como consegue suportar este nível de dor sem a ajuda de medicação.
Seichan ignorou a espécie de elogio e estudou a figura do médico. Era um homem franzino, com feições delicadas e um bigodinho fino. Não teria dificuldade em partir-lhe o pescoço, mas, mesmo que pudesse, nunca o faria. Naquele momento, o médico era o homem mais importante do mundo, a única pessoa que podia sossegar-lhe o espírito.
— Coloco um penso de fentanil? — quis saber a enfermeira. A mulher era um pouco mais velha, com um rosto redondo dominado por uma expressão austera. — A temperatura está demasiado alta, provavelmente devido à dor intensa.
O médico encolheu os ombros.
— Esperamos mais um pouco. Ela aguentou este tempo todo sem analgésicos, e prefiro evitar os opiáceos por causa da gravidez. Se a criança estiver bem, depois podemos considerar a hipótese de um coma induzido, se necessário.
— Hai, doutor Hamada.
A enfermeira virou-se para o ecrã da máquina de ultrassonografia, enquanto o médico se debruçava sobre a cama com o transdutor na mão. Ao pousar o dispositivo sobre a barriga de Seichan, virou-se para ela e disse:
— Isto vai doer um pouco.
— Não se preocupe comigo.
— Muito bem. — O médico acenou com a cabeça para a enfermeira, que premiu um interruptor.
Seichan preparou-se para o pior, cravando os dedos no lençol. De início, não sentiu mais do que uma ligeira pressão, enquanto o médico deslizava o dispositivo sobre o abdómen. Contudo, no segundo seguinte, foi como se o transdutor se tivesse transformado num bisturi e o homem estivesse a cortá-la ao meio. Começou a gritar, incapaz de guardar para si semelhante suplício. Desviou o olhar para a barriga, como que à espera de ver os intestinos a derramarem-se de uma imensa ferida aberta.
Porém, não havia nada além do brilho do gel lubrificante.
O médico encolheu novamente os ombros.
— As larvas são sensíveis aos impulsos da máquina — explicou. — O que está a sentir resulta de elas tentarem fugir das ondas ultrassónicas.
A explicação do médico, que pretendia ser útil, apenas tornou a experiência cem vezes pior. Seichan visualizou os milhares de larvas a rasgarem músculo e carne, acossadas pelo dispositivo.
— Precisa de uma pausa? — perguntou ele.
Incapaz de falar, Seichan cerrou os dentes e abanou a cabeça para um lado e para o outro, como um cavalo selvagem a tentar livrar-se de um freio.
Acabemos com isto de uma vez por todas...
O médico anuiu e prosseguiu com o exame, retalhando-a aos pedaços com a maldita sonda. O suor e as lágrimas inundaram-lhe o rosto. A dor cegava-a. Era como se os lençóis se tivessem transformado em pregos.
Então, quando pensava que não conseguiria suportar mais aquilo, a agonia desvaneceu-se. Chorou, dessa vez de alívio, demasiado aturdida para se preocupar com demonstrações de fraqueza.
— E aqui está ele — disse o médico, endireitando as costas para que Seichan conseguisse ver o monitor. Com a mão livre, apontou para um amontoado vibrante de píxeis cinzentos. — O coração do bebé.
Ainda está vivo...
Uma alegria inexplicável inundou-lhe o peito.
— Sabemos que as larvas evitam os órgãos vitais dos hospedeiros, como o cérebro e o coração — explicou o médico. — Felizmente, o tempo de gestação foi suficiente para que os minúsculos batimentos do coração e as pequenas ondas cerebrais do feto mantivessem as larvas à distância. Pelo menos, por enquanto.
Seichan franziu o sobrolho ao ouvir aquelas últimas palavras do doutor Hamada.
— No terceiro estágio, as larvas deixam de ser tão clementes — prosseguiu o médico. — Assim que asseguram a continuidade da espécie, algo que acontece quando depositam por fim os clones criptobióticos na medula óssea, a sobrevivência do hospedeiro deixa de ser uma preocupação.
Seichan começou imediatamente a fazer contas de cabeça.
Vinte e quatro horas...
Hamada ergueu a mão que segurava o transdutor e o monitor apagou-se, levando consigo a imagem do coração do bebé. Seichan seria capaz de dar o braço direito em troca de mais uns segundos a olhar para aquele palpitar milagroso.
Perdida essa âncora que a mantinha presa à realidade, deixou-se ir de novo ao encontro do vazio. Enquanto deslizava para a inconsciência, ainda apanhou no ar as últimas palavras do médico para a enfermeira.
— O feto parece saudável e incólume.
Ouvir esse prognóstico reconfortou-a, mas o médico não terminara ainda.
— Estou convencido de que dará um espécime perfeito para a fase seguinte das nossas experiências.
08h32
Se não estivesse tão assustado, de certeza que ficaria impressionado, pensou Ken ao deparar com a dimensão daquele laboratório subterrâneo. Qualquer semelhança com as instalações de Cornell — que lhe levara uma década a pôr de pé com os recursos da universidade e de empresas privadas — era pura coincidência.
O guia de serviço, o doutor Yukio Oshiro, era um pouco mais alto que ele. Os braços e pernas esguios lembravam uma aranha, o que talvez fosse apropriado, uma vez que Ken conhecia bem os estudos publicados do homem acerca do veneno de aracnídeos.
— Estamos já na Fase Um dos nossos ensaios clínicos para o desenvolvimento de um bloqueador de canais iónicos, com vista ao tratamento da distrofia muscular — anunciou Oshiro, com uma certa vaidade. Depois suspirou. — Por aqui.
Enquanto atravessavam o enorme espaço circular, de vez em quando Oshiro acenava com a cabeça para os colegas, que paravam o que faziam e retribuíam o cumprimento, embora de forma mais vincada, porventura uma demonstração de respeito que o outro nitidamente lhes exigia.
— Claro que temos mais equipas a trabalharem noutras drogas — prosseguiu Oshiro. — A equipa Alfa encontra-se a desenvolver um analgésico revolucionário; a Beta, um medicamento contra o cancro; a Gama, um pesticida agrícola. Enfim, podia dar-lhe mais exemplos, mas o que importa reter é que o trabalho por nós desenvolvido tem um potencial incalculável. A margem de progressão é inesgotável, se quer mesmo saber.
— E todas essas drogas foram desenvolvidas com base no veneno destas vespas milenares?
— As Odokuro, como lhes chamou. — Oshiro abanou ligeiramente a cabeça. Na cultura empresarial japonesa, era o equivalente a estender o dedo do meio na cara de Ken. — Recebemos um memorando para passarmos a usar esse nome daqui em diante. Ao que parece, o senhor caiu nas boas graças do nosso fundador, Takashi Ito.
Deve ser por isso que tenho direito a esta visita guiada.
Ken sabia que estava a ser oficialmente convidado para se juntar à equipa. A postura fria de Oshiro sugeria que não via a ideia com bons olhos. Era até bastante provável que se sentisse ameaçado.
Ken continuou a estudar as instalações. Não precisava de fingir que não admirava o que via. Montanhas de equipamentos preenchiam o espaço. Alguns conhecia, outros não. Além de aquele laboratório ser maior que o seu, encontrava-se muito mais bem equipado.
Apercebeu-se rapidamente de uma característica no espaço. Estava dividido em duas metades distintas, cada uma desenvolvendo múltiplas investigações baseadas no veneno recolhido das várias encarnações das vespas. Por experiência própria, sabia que uma típica glândula de veneno continha centenas de químicos e moléculas diferentes.
Um dos lados do laboratório investigava a proteómica — as proteínas e o péptido — do veneno das vespas. Era algo que saltava à vista pela existência dos vários espectrómetros de massa, assim como pelo trio de máquinas de eletroforese em gel, usadas para a separação de proteínas.
Em todo o caso, havia muitos outros equipamentos cuja função permanecia um mistério.
Oshiro deve ter reparado na sua expressão confusa, o que decerto o deixou satisfeito.
— Como poderá ver, a equipa Alfa está a usar um citómetro de fluxo, recorrendo a lasers de impulsos curtos para inspecionarem e separarem as proteínas com maior potencial.
— Impressionante — admitiu Ken, e estava a ser sincero.
— E necessário, como deve saber, quando nos confrontamos com amostras tão pequenas.
Ken anuiu com a cabeça. Uma coisa era retirar veneno de uma serpente, o que resultava sempre numa amostra considerável de líquido, outra era fazer o mesmo com uma aranha, ou com uma vespa, nesse caso.
Observou a outra metade do laboratório, nitidamente dedicada à genómica. Ali, sequenciadores de nucleótidos estavam a ser usados para investigar o ARN e o ADN associado à produção do veneno, juntamente com a recolha de dados transcritos da linhagem celular.
Sabia por experiência como era complicada a análise de um veneno animal. As substâncias que se podiam encontrar podiam variar dependendo do sexo do espécime, da alimentação, até da temperatura ambiente. Por vezes, era mais fácil sequenciar o ADN e aplicar o princípio de engenharia em reverso no péptido tóxico, em vez de ir à procura dele.
Apontou com o queixo para o local onde a equipa Gama estava a trabalhar num sequenciador.
— Todo este equipamento é topo de gama. Calculo que vos permita triagens de alto rendimento.
— Sem dúvida, mas isso não quer dizer que não haja dificuldades. Um exemplo: a equipa Gama descobriu fragmentos de um transcrito de ARN prometedor, incluindo o gene que o produz, mas continuam às voltas para descobrir a proteína que ele deve sintetizar.
— Qualquer coisa como descobrir a sombra de um objeto, mas não o objeto que a projeta.
Oshiro sorriu pela primeira vez.
— Exato.
Ken interrogou-se se estaria a cair nas boas graças dele, como por vezes acontecia entre rivais quando discutiam assuntos de trabalho.
— O gene encontra-se em todas as encarnações da espécie — prosseguiu Oshiro —, mas a proteína que codifica continua a escapar-nos. É por isso que precisamos das melhores mentes a trabalhar connosco.
Ken poderia enumerar várias razões para o mistério da proteína desaparecida, mas manteve-se em silêncio. Oshiro estava nitidamente a preparar-se para o convidar para a equipa, algo que nunca poderia recusar. Como tal, mudou rapidamente de assunto, apontando para a parede mais afastada do laboratório, onde existia um conjunto de portas de aço vermelhas.
— O que há para lá dessas portas?
Oshiro apoiou as mãos nas ancas e franziu o sobrolho.
— Nada que nos diga respeito, ao que parece. Apenas sei que o líder da equipa desse lado, o doutor Hamada, costuma por vezes apropriar-se de todo o laboratório e expulsa-nos daqui como se fôssemos moscas. Não preciso de lhe dizer o quanto isso interfere com o nosso trabalho, claro.
— Ele está a investigar o quê?
Oshiro encolheu os ombros.
— Qualquer coisa que ver com o percurso evolucionário das Odokuro.
— Com que objetivo?
Oshiro limitou-se a encolher de novo os ombros, como que dizendo: não sei nem me interessa, não faz parte do meu trabalho.
Ken não insistiu. No passado, lidara com colegas que manifestavam essa mesma forma de pensar. Era uma armadilha onde se podia cair facilmente e que conduzia a erros e oportunidades perdidas. No que lhe dizia respeito, aprendera que nunca se devia suprimir a curiosidade científica, fossem quais fossem as circunstâncias.
Uma lição que era sobremaneira importante naquele lugar.
Enquanto Oshiro prosseguia com a visita guiada, manteve um olho nas portas vermelhas.
Tenho de descobrir o que se passa ali dentro.
08h35
Ajoelhado frente à mesa do escritório, Takashi bateu com as pontas dos dedos nos lábios enquanto observava as imagens de uma das câmaras de videovigilância no portátil. A câmara em questão emitia a partir de uma enfermaria, com a lente focada numa única cama. A mulher ali deitada e algemada perdia e recuperava a consciência em períodos alternados. Por vezes, sacudia-se de um lado para o outro, embora meio a dormir. A testa brilhava com as gotas de suor, em contraste com os lábios secos e gretados.
A doença não lhe roubara a beleza, notou Takashi. O sangue misto, metade europeu, metade asiático, transformara-a numa montra do melhor das duas heranças. Os lábios ressequidos, uma vez pintados, revelariam uma forma sublime. As maçãs do rosto, altas e proeminentes, convergiam para um queixo perfeito. Os cabelos pretos, lisos e cortados a direito, acentuavam as feições com uma simplicidade que o recordava da sua amada Miu.
Ouviu-se uma batida na porta e alguém entrou.
A secretária pessoal fez uma curta vénia e concedeu a passagem à mulher que Takashi convocara para uma reunião. Valya entrou como uma tempestade, com os olhos azul-claros iluminados pelo clarão de um relâmpago. As nuvens cinzentas sobre o monte Fuji cumprimentaram-na com um trovão que fez estremecer a janela panorâmica.
Dessa vez, a assassina não tivera qualquer pretensão de disfarçar o rosto pálido, e Takashi sentiu-se momentaneamente impactado por aquela visão. A figura de Valya parecia por demais irreal, fantasmagórica. Dava ideia de que a tatuagem negra era a única coisa que a mantinha no mesmo plano de existência que ele.
Valya acenou com a cabeça e, após receber permissão, ajoelhou-se à sua frente.
— Chunin Mikhailov — disse Takashi, usando o novo título para a cumprimentar, o título que antes pertencera a Masahiro.
Valya manteve a cabeça baixa, e fê-la descer ainda mais em sinal de reconhecimento pela promoção de estatuto no seio da organização.
Takashi devolveu a atenção para o ecrã do portátil e para a mulher algemada na cama da enfermaria.
— A gravidez confirma-se?
— Hai. O doutor Hamada fez um exame completo.
— Ótimo.
Estudou a figura de Seichan. Aquela mulher e os outros tinham-lhe roubado o neto. Seria apenas justo que lhes pagasse na mesma moeda.
Visualizou o que aconteceria a seguir.
Nos tempos de guerra, visitara o campo de pesquisa do Exército Imperial, na fortaleza de Zhongma. Também ali, mulheres grávidas, todas elas mães chinesas capturadas de aldeias próximas, eram submetidas a experiências com armas biológicas e químicas. Em seguida, os bebés eram-lhes arrancados dos ventres sem anestesia. Ainda conseguia ouvir os seus gritos, ver aqueles braços débeis a tentarem alcançar as crianças ensanguentadas, antes de a morte as levar.
Na altura, recém-chegado às fileiras da Kage, precisara de esconder a repulsa diante de semelhantes atrocidades.
Agora, vou apreciar cada segundo.
Iria certificar-se de que aquela mãe sofreria tanto como essas outras.
— E o americano? — perguntou.
— Nenhum sinal. Mas, se sobreviveu, por certo virá atrás dela.
Takashi reparou na pequena inflexão de voz no final da frase, como que Valya quisesse dizer mais qualquer coisa, mas tivesse optado por não o fazer.
— O que se passa?
A assassina ergueu o olhar para o ecrã, depois baixou-o de novo.
— Disse-me que não existe cura para o mal causado pelas vespas.
Takashi compreendeu o motivo da pergunta.
— Está a interrogar-se porque é que corri o risco de soltar uma ameaça que não consigo controlar...
— Hai, Jonin Ito.
— Não foi por loucura, garanto-lhe. Sei muito bem o que estou a fazer. O Havai foi só uma pequena amostra. Uma maneira de o mundo compreender a ameaça, antes de avançar para a segunda fase do plano.
Valya ergueu o olhar e franziu a testa.
— Segunda fase?
— O atol de Ikikauo nunca foi a nossa única base de operações.
A assassina não conseguia acreditar no que acabara de ouvir.
— Todas as outras localizações estão prontas para agirem à minha ordem. Para libertarem as Odokuro por toda a Europa, Rússia, China, Austrália. Infelizmente, perdemos o controlo da nossa base na costa do Brasil, o que quase deu cabo dos planos para a América do Sul. Mesmo assim, pelos meus cálculos mais moderados, o mundo inteiro estará de joelhos num prazo máximo de dois anos.
Valya arregalou os olhos.
— Está a dizer que pretende destruir o mundo? — perguntou, tentando disfarçar a raiva na voz.
— Não — disse Takashi, confrontando essa raiva com um tom assertivo. — Como lhe disse, não se trata de loucura, mas de um plano bem urdido.
Takashi conseguia ler a confusão no rosto dela. Como que tranquilizando uma criança, sussurrou-lhe:
— No seu entender, quais são os medicamentos mais rentáveis?
A súbita mudança de assunto apanhou-a de surpresa. Sem saber o que responder, limitou-se a abanar a cabeça.
— Não são certamente os que conseguem curar uma doença. Esses têm uma rentabilidade limitada ao tempo necessário para a recuperação do doente. Não, os medicamentos mais rentáveis são aqueles que aliviam os sintomas de uma doença incurável. É uma lição que aprendi há muito tempo, enquanto fundador desta empresa.
— E pretende aplicar essa lição ao mundo inteiro.
Takashi não se deu ao trabalho de reconhecer o óbvio.
— Como?
— Eu não pretendo destruir o mundo, apenas vergá-lo à minha vontade.
— Mas como, se não existe cura para isto?
Valya fazia o possível para tentar compreender o grande plano na cabeça de Takashi.
— Daqui por um ano, quando o sofrimento for global, a nossa empresa irá fornecer uma solução paliativa para o problema. Embora não tenhamos uma cura para as pessoas parasitadas, a verdade é que conseguimos desenvolver um inseticida capaz de matar as populações de vespas adultas. É extremamente tóxico, praticamente impossível de ser replicado e não está isento de efeitos secundários. No entanto, permitirá que as nações sobrevivam, que se ajustem à nova realidade.
Valya começou por fim a perceber o raciocínio de Takashi.
— Mesmo assim, as nações nunca estarão a salvo. Com o meio ambiente contaminado e parasitado, as Odokuro continuarão a ressurgir indefinidamente.
— Como uma doença incurável, para a qual só nós temos a solução para a controlar.
— Em virtude disso, o mundo inteiro tornar-se-á dependente do Japão, ou da sua empresa, para ser mais exata.
Takashi encolheu os ombros.
— E se alguém tiver um problema com isso, suspendemos a entrega desse inseticida até mudarem de ideias.
— E como fica o Japão no meio disto?
— Não seremos afetados, de início. Temos a vantagem natural de sermos uma ilha, porém, também tenho em marcha um programa secreto que visa dar início à pulverização imediata das nossas costas. Dentro de um ano, seremos o único país do mundo ainda de pé, prontos para ajudar aqueles que se ajoelharem diante de um novo Japão Imperial.
Valya deixou cair todo o peso do corpo sobre os calcanhares, procurando absorver tudo o que ouvira.
— Irá dominar o mundo inteiro sem disparar uma única bala.
— Depois de nove décadas de vida, aprendi que os exércitos tanto se erguem como caem. Desde os xoguns de Tokugawa, que sucumbiram aos imperadores do Japão, a esses mesmos imperadores, que seriam derrotados pelas Forças Aliadas. A verdadeira força não reside na ponta de uma espada ou de uma espingarda, mas na inovação e no engenho.
Com uma expressão indecifrável, Chunin Mikhailov fitou-o, o brilho do olhar dela refletindo as nuvens de tempestade para lá da janela panorâmica. Por fim, ela fechou os olhos e curvou-se até tocar com a testa no chão.
Takashi aceitou a deferência, pousando as mãos no colo, sabendo que em breve...
... o mundo inteiro seria obrigado a curvar-se perante nós.
32
9 de maio, 01h44 CEST
Wieliczka, Polónia
— Vamos lá dar um passeio pelas minas de sal! — disse Monk, num tom bem-disposto.
Elena cerrou os dentes ao ouvir o bater das enormes portas do elevador, quando se fecharam. Concentrou-se na respiração, inspirando pelo nariz e expirando pela boca, uma técnica de relaxamento que aprendera numa emissão antiga do Oprah Winfrey Show. Filha de emigrantes, o famoso programa de televisão era a única forma de «terapia» que alguma vez pudera pagar enquanto crescia.
Desde miúda que nunca conseguira suportar espaços fechados. Os pais acreditavam que se tratava de uma recordação latente de quando a família fora levada de Tijuana para San Diego através de um túnel secreto. O túnel fazia parte de uma das várias rotas usadas para o transporte de drogas pelo cartel de Sinaloa. Pelo preço certo, os traficantes também levavam pessoas que pudessem pagar esse acesso direto aos Estados Unidos.
— Sente-se bem? — perguntou Sam, mantendo-se do seu lado enquanto o elevador descia para as entranhas da terra.
Os dedos de Elena tocaram nos dois crucifixos pendurados na corrente dos óculos, um tique que não conseguia evitar quando se sentia nervosa. Forçou-se a baixar a mão.
— Estou a tentar convencer-me de que vamos apenas a caminho da cave de uma biblioteca.
Sam esboçou um sorriso.
— Esta cave deve ser bem profunda, nesse caso.
Elena lançou-lhe um olhar seco, como que dizendo: não está a ajudar, sabia?
— Peço desculpa — disse Sam. Estendeu a mão. — Talvez isto possa compensar a minha falta de sensibilidade.
Elena queria recusar o gesto do professor. Não queria ser vista como o tipo de mulher que necessitava da ajuda de um homem.
Que se lixe.
Estendeu o braço e deu-lhe a mão. A palma dele era seca e suave. Sam apertou os dedos com uma dose generosa de confiança. Elena recusava-se a fazer má figura. A caminho do elevador, não fizera qualquer esforço para disfarçar o medo. Preferia ser franca com o grupo do que ver-se obrigada a abandonar a mina a qualquer instante, deixando a responsabilidade aos outros.
O plano que delineara na cabeça consistia em ignorar o quadro global, como ver-se enfiada a trezentos metros debaixo da terra, e concentrar-se apenas numa coisa de cada vez. Claro que não podia fazer nada disso fechada num elevador. O espaço confinado atiçava a ansiedade, amplificando o medo.
Ao lado, Kat virou-se para os dois guias de serviço. Quando chegaram à mina, Slaski apresentara a equipa à chefe de relações públicas, uma jovem loura e bonita, chamada Clara Baranska. Os olhares tímidos que o sisudo Slaski lhe lançava eram um claro indicador de que nutria uma paixoneta pela jovem. Elena supeitava, aliás, que as visitas frequentes de Slaski ao museu vizinho não eram apenas motivadas por razões profissionais.
— Doutor Slaski — disse Kat. — Mencionou que o mapa de Hondius assinalava dois depósitos de âmbar. Algum deles se localizava perto da Capela da Concha?
Elena aguardou a resposta dele, focando-se na conversa como uma forma de se abstrair da interminável viagem de elevador.
— Não. Além disso, esses dois depósitos esgotaram-se muito antes da visita de Smithson.
Clara anuiu com a cabeça.
— Nenhuma exploração mineira deixaria uma descoberta dessas desperdiçar-se. O sal podia ser valioso, na época, mas em nada se comparava ao âmbar. Mesmo nos dias de hoje, uma modesta pulseira de âmbar custa tanto como um relógio Rolex.
— Sendo um material tão precioso, muitos dos depósitos eram pilhados por mineiros negros.
Como mulher hispânica, Elena reagiu instintivamente ao comentário, que lhe pareceu racista.
— O que quer dizer com isso, mineiros negros?
Slaski clarificou o mal-entendido.
— Estou a referir-me aos mineiros que roubavam explorações alheias ou mesmo aquelas em que trabalhavam, para venderem o material no mercado negro. Na verdade, duas em cada três peças de âmbar vendidas hoje em dia foram obtidas de forma ilegal.
O solavanco do elevador interrompeu a conversa. Assim que as portas se abriram, uma melodia melancólica invadiu a cabina. Ao ouvir a música, Elena sentiu um arrepio que nada tinha que ver com a temperatura fria do ar ali em baixo. Era como se a melodia fosse, de alguma forma, uma marcha fúnebre para todos.
Clara tinha uma explicação mais mundana para a música.
— Deve ser o final da missa da meia-noite. Informaram-me de que começou mais tarde que o previsto.
Monk sorriu para a mulher.
— Aqui dentro, não me parece que faça grande diferença se a missa é da meia-noite ou do meio-dia.
Kat deu-lhe um empurrão nas costas, enquanto Sam incitava Elena com um toque gentil no cotovelo. Ainda lhe segurava a mão — ou ela continuava a apertar a dele, em abono da verdade.
Enquanto saíam para o túnel, que se estendia para a esquerda e para a direita, Elena apercebeu-se imediatamente do odor salgado e húmido no ar. Dava a sensação de que caminhavam num leito marinho cuja água se evaporara de repente. Mesmo assim, sentiu a respiração mais esforçada, como se estivesse a afogar-se em seco.
Qualquer fantasia de se encontrar numa cave de biblioteca foi de imediato desfeita quando reparou nas escadas de madeira que subiam para a superfície, paralelas ao poço do elevador.
Ainda bem que não tivemos de as descer, como um turista normal.
— Parece muito, mas estamos apenas a noventa metros de profundidade — disse Clara.
Apenas?
Elena fitou os oitocentos degraus e teve vontade de perguntar se a jovem estava a tentar ser engraçada.
A relações públicas apontou para a extensão de túnel do lado esquerdo.
— Neste lado encontra-se a galeria dedicada a Nicolau Copérnico, e também a Capela de Santo António, a mais antiga da mina, com cerca de quatrocentos anos.
Slaski acenou na direção oposta.
— Mas nós vamos por este, que é o caminho mais rápido para a Capela da Concha.
Clara anuiu com a cabeça.
— Enviei três homens à frente, para que possam adiantar os preparativos para a travessia do lago. — Sorriu para o grupo. — São os meus irmãos mais velhos.
— Parece que toda a família tem uma paixão por minas — disse Monk, em tom de brincadeira.
Clara levou o comentário muito a sério.
— Claro que sim. O sal corre-nos nas veias. O meu pai e o meu avô trabalharam aqui, quando a mina estava em funcionamento. — Fez sinal para que a seguissem, como uma professora a conduzir os seus alunos. — Venham, temos muito para andar.
Mal se puseram a caminho, a música aumentou de volume. Não tardou para que ouvissem também as vozes que ecoaram das profundezas, acompanhando a melodia. O túnel passava por uma série de galerias, câmaras e nichos, a maioria exibindo dioramas da indústria mineira, incluindo figuras de trabalhadores em tamanho real, cavalos até.
Slaski apontou com o queixo para um dos trabalhadores de quatro patas.
— Os cavalos passavam uma vida inteira cá em baixo — comentou, com a expressão ainda mais sisuda que o habitual. — Nenhum deles via a luz do dia.
— E o mesmo se podia dizer de alguns mineiros — acrescentou Clara. — As coisas eram diferentes noutros tempos.
Slaski encolheu os ombros, nitidamente mais sensibilizado com os cavalos.
À medida que desciam uma série de escadas de madeira para outras câmaras, algum do equipamento original da mina mostrava encontrar-se ainda a funcionar, o que incluía uma roldana gigante com guinchos, destinada ao transporte de material para cima e para baixo. As forças naturais também eram postas a bom uso, como era o caso de um moinho de água que ainda girava empurrado por um riacho subterrâneo. Devia estar ali a rodar há séculos.
Sam ainda segurava na mão de Elena. A bibliotecária estava a borrifar-se para a ideia que passava. A história da mina podia ser muito interessante, mas não a impedia de pensar constantemente que se encontrava sob toneladas de terra e pedra.
Sam também ergueu os olhos para o teto, mas por outro motivo.
— Não percebo — comentou. — Onde está o sal?
Elena interrogara-se sobre o mesmo. A rocha tinha uma coloração de diferentes tons de cinzento-escuro, com as paredes e o teto suportados por traves de madeira esbranquiçada.
Clara sorriu ao ouvir a pergunta e fez um gesto largo.
— Está por todo o lado. Tudo o que veem à nossa volta é sal na sua forma natural. Experimentem, passem um dedo na parede e provem.
Sam olhou para ela e sorriu.
— Terei de acreditar no que está a dizer. A minha mãe ensinou-me que lamber paredes era má educação.
— Porque estão as madeiras pintadas de branco? — perguntou Monk.
— Para refletir melhor a luz dos candeeiros a óleo dos mineiros. — Clara apontou para o capacete moderno que trazia na cabeça, equipado com uma lanterna. — Os equipamentos deles eram a primeira versão disto, apesar de que não precisavam das luzes até se encontrarem nas áreas mais remotas da mina. — Passou a mão numa das traves, nitidamente emocionada. — Com o tempo, o sal impregnava a madeira, endurecendo-a ao ponto de se assemelhar a pedra. Além da resistência, a madeira era boa porque também falava com os mineiros.
Monk ergueu a sobrancelha.
— Falava?
— As traves rangiam quando a pressão se tornava demasiada, avisando os homens de um colapso iminente. Isso dava-lhes tempo para fugirem. — Clara deu uma última palmadinha na madeira. — Claro que, ao longo dos anos, estas traves tornaram-se mudas.
Elena estudou as várias escoras, desejando que permanecessem em silêncio.
Enquanto mergulhavam cada vez mais nas profundezas da mina, algumas das galerias e nichos começaram a revelar o trabalho artístico dos mineiros. Esculturas talhadas no sal emergiam de todos os lados, desde dragões elaborados aos sete anões da Branca de Neve. Algumas das figuras encontravam-se iluminadas por trás, conferindo-lhes um brilho interior.
Clara deteve-se à entrada de uma das câmaras e acendeu a lanterna do capacete. O feixe de luz atravessou o espaço e revelou o busto de uma figura com uma coroa e uma barba hirsuta.
— Apresento-vos Casimiro, o Grande — anunciou Clara. — Não podíamos deixar de o cumprimentar, uma vez que dá azar não o fazer.
Se fosse o caso, Elena estava mais do que satisfeita em prestar aquela curta homenagem.
— Casimiro foi o último rei polaco da antiga dinastia dos Piast. Um soberano bastante liberal, que encorajou a ciência e a procura do conhecimento. Foi, aliás, o fundador da Universidade de Cracóvia. Além disso, foi também o único rei europeu que encorajou e abriu as fronteiras aos judeus, acolhendo-os em grande número.
Clara deixou que a história ficasse por ali, evitando recordar o destino que esses migrantes sofreriam séculos mais tarde, quando a Alemanha de Hitler invadiu a Polónia.
Num tom mais soturno, acrescentou:
— Vamos prosseguir.
Após uma descida íngreme por um longo túnel, começaram a cruzar-se com pessoas a percorrerem o caminho em sentido inverso. Os homens vestiam fatos escuros, as mulheres vestidos a condizer. A música que ecoava pelas galerias parara a dada altura, assinalando o final da missa. Os paroquianos começavam a abandonar a mina. O som de vozes tornou-se mais forte uns metros à frente, amplificado pela acústica do espaço.
O grupo alcançou por fim a origem da comoção, quando desembocaram num patamar enorme com vista para um espaço cavernoso da altura de três andares.
— A joia da coroa da mina de Wieliczka — anunciou Clara. — A Capela de Santa Cunegunda.
Elena ficou boquiaberta diante de tamanha imponência. Aquilo era mais uma catedral do que uma capela. Candelabros massivos de cristais de sal pendiam do teto arqueado. Na ponta mais distante, um gigantesco crucifixo erguia-se sobre um altar inteiramente esculpido em pedra de sal. Ao longo das paredes, os vários nichos iluminados exibiam as obras-primas de gerações de mineiros. Havia representações de cenas bíblicas: Maria e José a chegarem a Belém, a adoração do menino com a figura de Jesus esculpida de sal. As próprias paredes e o chão tinham sido talhados e polidos para darem a impressão de estarem revestidos com tijolos e lajes octogonais.
A maioria dos paroquianos ainda andava por ali, cerca de duzentas pessoas, embora o espaço tivesse capacidade para receber o dobro desse número. Alguns subiam as duas escadarias de pedra existentes, iniciando a longa viagem de regresso à superfície.
De tão hipnotizada, Elena nem sequer sentiu inveja de os ver partir. Largou a mão de Sam e encaminhou-se até à balaustrada, a fim de conseguir uma vista melhor daquela catedral cristalina, uma Capela Sistina feita de sal.
— Esta galeria foi batizada com o nome de Santa Cunegunda — explicou Clara. — Reza a lenda que Cunegunda, uma princesa húngara, foi prometida em casamento pelo pai ao príncipe da Cracóvia. Antes de deixar a Hungria, lançou o anel de noivado para o poço de uma mina de sal local. Chegada a Cracóvia, ordenou a um grupo de mineiros que escavassem um buraco. Durante a escavação, os trabalhadores acabariam por encontrar um enorme pedaço de sal, no interior do qual se encontrava o anel perdido. A partir desse momento, a princesa tornou-se a santa padroeira dos mineiros.
— Mais valia ter feito um seguro ao anel — murmurou Monk. — Sempre poupava uma carga de trabalhos aos homens.
Clara lançou-lhe um olhar de poucos amigos. Pelos vistos, não era de bom-tom fazer piadas à conta de uma santa, sobretudo na própria casa.
Um pouco irritada, a jovem conduziu o grupo de volta para os túneis que conduziam aos pisos inferiores. Enquanto desciam por um labirinto de cavernas, túneis e salas decoradas, começaram a deparar-se com as primeiras câmaras inundadas. Passadeiras de madeira atravessavam as águas paradas, cor de esmeralda, que refletiam as luzes do teto. No fundo de cada lago, uma camada de moedas brilhava como as escamas de um dragão, fruto das ofertas de incontáveis visitantes ao longo dos séculos que as lançavam para ali como pedidos de desejos ou orações.
— Já atingimos o lençol de água? — perguntou Kat.
— Não, estas acumulações de água são consequência de infiltrações das chuvas. Os lagos maiores encontram-se a uma profundidade duas vezes superior a esta.
Elena suspirou. Não tencionava que os outros a ouvissem, mas a acústica do local amplificou o queixume. Sam deu-lhe outra a vez a mão. Ela não recusou o gesto.
Clara conduziu-os pelos últimos metros do percurso turístico, até se encontrarem diante de uma enorme descida. A passagem seguinte não tinha luzes nem estátuas de sal, apenas uma escuridão que parecia prolongar-se eternamente.
— A partir daqui, vamos precisar das nossas luzes — disse Clara, acendendo a lanterna do capacete.
Todos lhe seguiram o exemplo. Como medida adicional, também tinham trazido lanternas de mão. Elena apertou firmemente os dedos ao redor da sua.
Enquanto Clara indicava o caminho, Monk inclinou-se para Kat e citou uma passagem do Inferno de Dante, nada mais nada menos do que as palavras teoricamente inscritas junto à entrada do inferno.
— Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais...
03h42
Junto à margem, Kat admirou o enorme lago. As lâmpadas dos capacetes projetavam os feixes de luz sobre as águas negras, que refletiam na superfície espelhada e tremulavam no teto de pedra baixo e abobadado. O ar era húmido, com um forte odor a salmoura.
Kat contava que o lago fosse grande, mas não daquele tamanho, a ponto de não se vislumbrar a margem oposta.
Era, de facto, impressionante.
A fim de colocar as coisas em perspetiva, Clara socorreu-se de uma história engraçada.
— Há uns anos, permitimos que alguns turistas praticassem windsurf aqui dentro. A visão das velas a rasgarem a escuridão era qualquer coisa digna de se ver.
— Como é que faziam isso sem vento? — quis saber Monk, esticando um dedo no ar, como se procurasse sinal de uma brisa.
Clara sorriu.
— Eles trouxeram ventoinhas gigantes, alimentadas por geradores.
— Fizeram batota, portanto — disse Monk.
— Por vezes, temos de improvisar para satisfazer os nossos visitantes. Como hoje.
Clara apontou para o local da margem onde os três irmãos aguardavam com um Zodiac e um jet ski. Os três vestiam fatos de neopreno e eram tão louros como a irmã e musculados como lutadores profissionais. Tinham recolhido o barco e o jet ski noutro ponto daquelas galerias inundadas, para se juntarem ali ao grupo. Era evidente que todos aqueles níveis inferiores da mina se tinham convertido num imenso labirinto de canais e lagos subterrâneos interligados.
— Os meus irmãos também trouxeram algum material de escavação, caso tenham a sorte de descobrirem esse antigo depósito de âmbar e queiram recolher uma amostra para a coleção do vosso museu.
Clara olhou para Elena e acenou-lhe respeitosamente com a cabeça.
Kat consultou o relógio, preocupada com cada minuto perdido.
— Bom, vamos lá despachar isto.
Tinham demorado mais de noventa minutos para atravessarem a metade da mina que se estendia para lá do percurso turístico. O caminho ao longo desses níveis inferiores era menos cuidado, coberto de camadas irregulares de sal. Algumas das escadarias por onde tinham descido — e até escadotes — apresentavam-se revestidas de cristais ao ponto de se tornarem brancas, como que cobertas de gelo. Tudo parecia estranhamente intacto, preservado ao longo de décadas, ou mesmo de séculos, pelo alto teor de sódio ali presente.
Tinham encontrado mais exemplos da veia artística dos mineiros, como um pequeno nicho que guardava uma representação de Maria com o menino Jesus, ou algumas passagens bíblicas inscritas nas paredes. Havia também uma série de outras figuras, aqui e ali, cujas feições se encontravam esborratadas pela ação do sal. Erguiam-se da escuridão como sentinelas fantasmagóricas, lembrando-lhes que deviam arrepiar caminho.
Kat sentiu-se mais que satisfeita em subir a bordo do Zodiac para completar a última parte da expedição. De acordo com Slaski, a Capela da Concha situava-se na margem oposta do enorme lago.
Um dos irmãos de Clara, Piotr, soltou as amarras do barco e sentou-se na popa. Anton, o segundo dos irmãos, agarrou no leme e ligou o motor, enquanto o terceiro, Gerik, se sentava aos comandos do jet ski. O rugido dos motores das duas embarcações reverberou no teto baixo, com força suficiente para fazer tremer o peito de Kat.
Com tudo e todos a postos, iniciaram a travessia do lago, guiados pelo projetor montado na proa do Zodiac. Piotr deslocou-se para a dianteira do barco, atento a qualquer obstrução escondida sob a superfície da água.
Slaski virou-se para Sam e quebrou o silêncio tenso.
— No museu, perguntou-me que razão teriam os mineiros para escavarem uma estrutura tão improvável como a Capela da Concha. Talvez agora consiga ter uma ideia, depois do que viu. Uma vida aqui em baixo é mais que suficiente para que tivessem a necessidade de deixarem uma marca, um legado que gritasse quem eram para as gerações seguintes.
Clara anuiu com a cabeça.
— Além das gravuras e esculturas, algumas galerias foram transformadas em autênticas obras de arte de arquitetura.
— Como a Capela de Santa Cunegunda — disse Elena.
— Exato.
De novo, o silêncio sobrepôs-se à conversa, como que esmagada pelo peso do teto. Também não ajudava a circunstância de a altura do mesmo ser cada vez menor, à medida que avançavam. Quando o projetor do barco revelou o contorno da margem oposta, Kat pôde até estender o braço e tocar no teto com as pontas dos dedos.
Ao redor, não havia ninguém que não tivesse as costas curvadas, quanto mais não fosse por instinto.
De início, dava a impressão de que o lago terminava numa parede, porém, quando Piotr apontou o Zodiac para a esquerda, o farol revelou a existência de um canal. Em menos de nada encontravam-se já para lá do lago principal e a navegarem no estreito canal, em forma de S, que terminava numa subida de pedra suave.
A dianteira do Zodiac ressaltou na pedra e o barco deslizou suavemente, até se deter com metade do comprimento fora de água.
A encosta subia em direção a uma galeria de dimensões consideráveis, ainda que não tivesse mais do que um quarto do tamanho da Capela de Santa Cunegunda.
Slaski pôs-se de pé e apontou em frente.
— A entrada para a Kaplica Muszli.
Kat visualizou o mapa que o diretor do museu lhes mostrara e calculou que aquela galeria devia ser a pélvis da concha. Mesmo de onde se encontrava, distinguia com facilidade as passagens negras que se estendiam em leque de um dos lados da galeria, como os veios da concha.
Aliviada por terem chegado até ali em segurança, apressou-se a pôr toda a gente em movimento. Saíram do barco e subiram a encosta até à caverna. Assim que se deparou com o cenário que os aguardava, a sensação de alívio desvaneceu-se de imediato.
As luzes das lanternas revelaram metade das passagens cheias de cascalho dos vários colapsos. Nas que se encontravam intactas, a água escorria de uma série de fissuras nos tetos.
Kat imaginou a água da chuva a infiltrar-se desde a superfície. O sal dissolvido endurecera até formar uma crosta, cobrindo cada um dos túneis com uma camada esbranquiçada, lembrando gelo, que tanto revestia as paredes como pendia dos tetos sob a forma de delicadas estalactites.
A possibilidade de poderem encontrar a origem do artefacto de Smithson pareceu-lhe cada vez mais remota. Tanto quanto sabiam, poderia estar soterrada sob uma pilha de entulho, em qualquer um daqueles túneis.
— Não podemos desistir — disse Monk, lendo-lhe facilmente o pensamento.
Kat anuiu com a cabeça e ligou a lanterna de mão, adicionando luz à iluminação fornecida pelo capacete. Os outros fizeram o mesmo.
Sam franziu o sobrolho para o número de passagens disponível.
— Bom, acho que podemos escolher ao calhas, não?
— É melhor separarmo-nos — sugeriu Monk. — Cobrimos mais terreno.
— Desde quando é que isso é uma boa ideia? — disse Elena.
— É melhor ficarmos juntos, Monk — concordou Kat. — Não temos tempo para procurar alguém que se perca aqui.
Com a questão resolvida, Kat apontou o grupo para o túnel mais à direita. O plano consistia em varrer as passagens ordenadamente de uma ponta para a outra. Anton e Gerik ficariam para trás com um rádio, prontos a todo o momento para lhes levarem quaisquer ferramentas que necessitassem.
Avançaram pela primeira das passagens, larga o suficiente para duas pessoas caminharem lado a lado. Apesar de terem demorado quase meia hora, lá conseguiram chegar ao fim. Kat calculou que tivesse uns bons quatrocentos metros de comprimento, visto que se recordava das palavras de Slaski em relação ao tamanho da Capela da Concha.
Um quilómetro quadrado.
Ainda tinham muito terreno para cobrir.
O túnel desembocava numa fina arcada cavernosa, que se estendia ao longo do que seria a parte mais larga da concha. Todas as restantes passagens que irradiavam lá de trás terminavam no mesmo ponto. O teto da caverna descrevia uma curva até tocar no chão, formando a pontada afiada da concha.
Kat virou-se em direção ao túnel seguinte, pronta para percorrer o caminho de volta para a galeria principal. A ideia era repetir o mesmo processo, para a frente e para trás, até que tivessem explorado o máximo que lhes era possível dos «veios» daquela «concha».
— Vejam — disse Elena.
A bibliotecária encontrava-se apoiada num joelho, a lanterna apontada para o ponto onde o teto curvo mergulhava para o chão. O sal formara uma barreira de estalactites que bloqueava o acesso à parte traseira da longa caverna. Parecia as grades de uma prisão que atravessava a extensão da arcada.
Kat e os outros juntaram-se ao redor.
O feixe da lanterna de Elena varreu o teto baixo, revelando uma série de gravuras talhadas no sal. Kat e os outros concentraram as luzes no mesmo sítio.
Apesar de esborratada pelo sal e desfeita nalguns sítios, a superfície gravada parecia representar uma cena de batalha. Anjos voavam na metade superior, empunhando lanças e arcos de flechas. Mais abaixo, demónios contorcidos tentavam escapar da terra com dentes arreganhados e garras afiadas. A inspiração grotesca dos motivos lembrava um quadro de Hieronymus Bosch, esculpido em sal.
— Sabia da existência disto? — perguntou Kat a Slaski, sem desviar o olhar das gravuras.
— Não...
— Já tinha ouvido rumores acerca da existência de trabalhos destes nas áreas mais restritas da mina — acrescentou Clara —, mas são poucas as pessoas que vêm até aqui. Duvido que alguém tenha visitado esta secção nos últimos anos. Além disso, tendo em conta a quantidade de sal que tivemos de partir para chegar a este lado... — Abanou a cabeça. — Acho que em décadas ninguém aqui pôs os pés, ou até durante mais tempo.
Kat endireitou-se e apontou a lanterna ao longo da curvatura da caverna, que teria de se estender ao longo de uns bons oitocentos metros. Sabia que não tinham outra opção.
— Vamos ter de examinar toda a extensão.
Dada a importância da descoberta, ninguém contrariou a ideia.
— Mantenham-se atentos a qualquer pormenor que pareça relevante ou fora do normal.
Sam contraiu o rosto ao observar a interminável e macabra decoração.
— Como se alguma coisa disto fosse normal.
Partiram em fila indiana, com Clara a liderar o grupo. Os feixes das lanternas varriam a obra-prima gótica na parede, adicionando sombra e substância à cena de batalha representada. Sete pares de olhos focavam-se em cada pormenor.
Kat foi a primeira a aperceber-se da anomalia, quase passando por ela. Retrocedeu uns passos ao encontro de Monk, fixando a luz da lanterna nesse ponto.
Também Monk só então deu por isso.
— Já vimos isto antes, certo? — murmurou.
Os restantes juntaram-se aos dois, adicionando mais luz.
Encontrava-se escondida entre os anjos, apenas mais uma figura alada, a pairar sobre a horda de demónios.
Kat reconheceu o motivo. Era o mesmo que decorava o túmulo de Smithson.
Representava um inseto alado, porventura uma traça, mas Kat sabia a verdade.
Aquilo era uma vespa.
— Precisamos de examinar isto melhor — disse.
Com cuidado, partiram as estalactites para alcançarem o símbolo. Como na maioria das gravuras, os pormenores encontravam-se cobertos por uma camada de sal encrustado.
Kat alcançou a garrafa de água, com a intenção de a usar para dissolver o sal.
Piotr estendeu a mão com um termo.
— Goraca herbata — disse.
Clara traduziu, visto que nenhum dos irmãos falava inglês.
— Ele diz para usar o chá dele. A água quente funciona melhor.
Boa ideia.
Kat ensopou um lenço com o chá fumegante e fez o possível por entornar um bom bocado sobre a figura. Para dar tempo para o sal se dissolver, pressionou o lenço encharcado contra o inseto alado.
Enquanto esperava, virou-se para Monk.
— Esperemos que haja qualquer coisa debaixo da camada de sal, quem sabe uma mensagem de Smithson. Se ao menos pudéssemos...
Ainda com a mão encostada contra o símbolo, sentiu-o mover-se no instante em que a camada de sal cedeu. O alto-relevo da vespa afundou-se inteiramente na pedra, a que se seguiu um estalido forte, quando algo se libertou no lado de lá da parede.
Kat recuou aos tropeções, largando o lenço e empurrando toda a gente para trás. Diante de si, a secção de teto acima soltou-se, esmagando as estalactites por baixo. O som de água a correr escapou-se pela nova abertura, acompanhado do ranger de poderosas engrenagens.
Kat visualizou a roda gigante do moinho de água que vira antes, a girar lá em cima. Pelos vistos, não era a única que se encontrava ainda operacional.
O teto continuou a descer até tocar no chão, dando lugar a uma rampa que subia.
Kat fitou a escuridão à sua frente.
Monk virou-se para ela.
— Agora, sim, arranjaste-a bonita.
33
9 de maio, 11h58 JST
Fujikawaguchiko, Japão
— Dois minutos! — avisou Gray.
Encontrava-se sentado ao volante de uma Yamaha PES2, uma moto de motor elétrico. Como ele, os restantes quatro membros da equipa de assalto usavam capacetes inteligentes, equipados com transmissores de rádio. O grupo permanecia escondido nos bosques que circundavam as traseiras do complexo dos laboratórios Fenikkusu.
Do seu ponto de observação, Gray manteve a atenção focada no alvo que se erguia no centro do terreno murado: um pagode de vidro e aço a que os habitantes locais chamavam Kori no Shiro, o Castelo de Gelo.
Embora fosse meio-dia, os céus estavam escuros. Uma forte tempestade deslocara-se das encostas do monte Fuji e castigava a área circundante com uma chuva de granizo. Os relâmpagos estalejavam acima, com os clarões a ressaltarem na superfície vidrada do Castelo de Gelo.
A tempestade servia bem ao grupo, visto que oferecia alguma camuflagem à missão em marcha. No interior do capacete, Gray recebia um sinal de vídeo da principal força de assalto, que avançava nesse momento pela estrada principal, direta aos portões principais do complexo.
— Um minuto — disse para o grupo.
Aiko desviou a moto dela para um lado, Palu a sua para o outro. A japonesa trouxera consigo dois homens, Hoga e Endo, para completarem a pequena equipa de cinco. Ambos foram escolhidos a dedo de entre os operacionais que compunham a nova divisão de serviços secretos japoneses, à qual Aiko pertencia. Sob os capacetes, tanto ela como os seus dois homens usavam máscaras pretas, que mostravam apenas os olhos, como se fossem ninjas dos tempos modernos. Gray nem sequer sabia como eram os rostos dos homens, apenas que eram ágeis, musculados e se encontravam fortemente armados.
Enquanto contava os últimos segundos, Gray sentia o coração a pulsar nos ouvidos. Estava desejoso de se pôr em movimento. O grupo perdera demasiado tempo a chegar ali. Depois de sobreviverem ao bombardeamento com cargas de profundidade, pedira ajuda aérea à base no atol de Midway, que logo lhe enviara dois helicópteros. Transportados para o atol, Kowalski e os primos de Palu foram transferidos de emergência para um hospital, onde o estado de Tua permanecia crítico.
Sem poder esperar, Gray e os outros tinham seguido viagem num jato privado, espremendo toda a potência dos motores para completarem o resto da travessia do oceano Pacífico, rumo ao Japão. A caminho, Aiko coordenara a operação em andamento, alertando quem de direito para o envolvimento dos laboratórios Fenikkusu nos ataques ao Havai e assinalando aquele complexo de pesquisa como o alvo natural, visto que Takashi Ito se encontrava nas elusivas instalações, cuja natureza levantava questões por si só. Escusado será dizer que limitara a informação a um punhado de pessoas, receando que pudesse chegar aos ouvidos do inimigo. Também expressara a preocupação de que os laboratórios Fenikkusu poderiam ter corrompido ou chantageado alguns elementos da recém-criada divisão de serviços secretos, algo que não seria difícil de fazer durante esse período de transição, em que várias agências de serviços secretos se encontravam a ser remodeladas.
Painter partilhara essa mesma preocupação num telefonema anterior, e também informara Gray acerca da evacuação a decorrer no Havai, cujos contornos podiam ser resumidos a duas palavras: pânico e caos. A situação deteriorava-se a cada segundo.
Reconhecendo essa realidade, Painter vincara bem a prioridade da missão: descobrir que tipo de contramedidas o inimigo preparara para lidar com a própria ameaça. Gray também percebera a mensagem subjacente a essa ordem. Nada era mais importante que esse objetivo. Nem sequer a vida de Seichan ou de Ken.
Havia demasiado em jogo para tornarem a missão numa operação de resgate.
Milhares de vidas estavam em perigo. Não duas.
Através do capacete, Gray observou a chegada da força principal aos portões do complexo. A caravana era liderada por um veículo de assalto blindado, que nem sequer desacelerou. Equipado com um aríete, rompeu pelos portões de aço, abrindo caminho para o resto da brigada composta de motos e jipes do exército com as sirenes aos gritos.
Como que respondendo ao barulho do assalto, a tempestade fez-se ouvir nos céus cinzentos. Os trovões retumbaram com força, rasgando as nuvens com forquilhas de raios. A chuva fria caiu como um manto sólido, abafando a agitação abaixo.
— Vamos! — ordenou Gray.
Aproveitando a cobertura da tempestade e a confusão na frente do complexo, Gray e os restantes desceram das colinas nas traseiras. Aceleraram pela floresta obscurecida, com os faróis desligados. A chuva forte dificultava ainda mais a visão, mas a viseira do capacete exibia o sinal de vídeo de uma câmara de visão noturna, permitindo distinguir os contornos do terreno. Infelizmente, os clarões dos relâmpagos comprometiam a eficácia do equipamento, mas ninguém moderou a velocidade.
Nem mesmo Palu.
O havaiano contara a Gray que costumava praticar motocrosse em Maui, informação que se revelara verdadeira pelo modo impressionante como superava as adversidades do terreno, maioritariamente constituído por lama e pedras.
Sem ter de se preocupar com o facto de Palu conseguir acompanhar ou não o ritmo, Gray imprimiu mais velocidade nos últimos quatrocentos metros de descida. Com as atenções focadas no que se passava na entrada principal, ninguém no complexo se apercebeu quando as cinco motos irromperam da floresta e deslizaram até se deterem junto à vedação traseira.
Hoga saltou da moto ainda em movimento, deixando-a tombar para um dos lados e correndo de imediato para a vedação. Sacou de uma pequena botija que trazia à cintura, cujo bocal cuspiu uma chama azul-brilhante com alguns centímetros. Estendendo o braço, fez um gesto largo ao longo da vedação, abrindo automaticamente um buraco na malha de arame.
A ferramenta não era um vulgar maçarico de acetileno, mas algo especialmente concebido pela nova agência de Aiko, que Gray suspeitava ser uma versão japonesa da Força Sigma, embora ela nunca o admitisse.
Com o caminho aberto, esgueiraram-se através da vedação e correram curvados pelo relvado bem cuidado, até alcançarem um conjunto de árvores. O objetivo imediato era o heliporto. De acordo com as plantas fornecidas por Aiko, havia um túnel que ligava o edifício próximo ao pagode de vidro.
O plano consistia em alcançarem os laboratórios nos pisos inferiores do pagode antes de o assalto frontal originar uma purga das instalações. Não podiam correr o risco de verem provas destruídas.
Com uma última corrida em terreno aberto, chegaram por fim ao edifício de betão junto ao heliporto. Conseguiam ouvir os berros das sirenes no lado mais afastado da torre de vidro, pontuados por ordens gritadas através de megafones.
Ao sinal de Gray, entraram de rompante pela porta aberta do que era um pequeno hangar. Uma dupla de trabalhadores com macacões beges assustou-se com a aparição súbita.
Hoga e Endo correram com as armas erguidas, cada um escolhendo o respetivo alvo. Hoga disparou primeiro. Um punhado de dardos finos atingiu o peito de um dos trabalhadores, soltando uma descarga elétrica que estremeceu o homem da cabeça aos pés, até se desmoronar no chão.
Endo alvejou o segundo, atingindo-o no pescoço com o que parecia um aranhiço de metal. O estranho implante injetou um potente sedativo na corrente sanguínea do homem, que deu dois ou três passos e caiu igualmente redondo no chão.
O ataque não demorou mais do que três segundos.
Ao passar pelos homens caídos, Gray admirou o bom trabalho de Hoga e Endo. Tinha de admitir que aquelas armas eram excecionais, o que sugeria que estava na altura de a Sigma atualizar a sua tecnologia... ou de pelo menos comparar notas com a emergente agência de Aiko.
Continuou a avançar e concentrou-se no objetivo ao alcançar a rampa que descia para o subsolo. Sabia bem o que estava em jogo. Embora a missão não fosse uma operação de resgate, sabia que as duas coisas se encontravam de certa forma interligadas.
Assim que chegaram ao final da rampa e entraram no longo túnel, Gray acelerou o passo, liderando a equipa, alimentado por uma dúvida tenebrosa.
Chegámos tarde demais?
12h08
Acabou-se o tempo.
Ken observou o doutor Oshiro a atravessar a divisão em direção a si. Naquele momento, encontrava-se sentado junto a uma estação de trabalho do espaço reservado à equipa Gama.
Enquanto o diretor do laboratório se aproximava, a postura do cientista era toda ela dominante. A total subserviência era um requisito obrigatório para os que habitavam o seu pequeno feudo. Ken sabia que não podia adiar mais o inevitável, uma certeza bem patente no modo rígido como Oshiro o fitava. Essa certeza tornou-se ainda mais óbvia quando ele fez sinal ao guarda junto à porta, ordenando-lhe que abandonasse o posto e se juntasse aos dois.
Quer a minha resposta.
Colaborar ou morrer.
Mais cedo e de modo a adiar a questão, Ken pedira permissão para dar uma vista de olhos nalgum do trabalho ali realizado até à data, justificando que seria uma forma de o ajudar a decidir-se. Pelo olhar desconfiado que Oshiro lhe lançara, era óbvio que o outro pressentira que ele estava apenas a queimar tempo. Em todo o caso, o diretor acedera ao pedido, mais que satisfeito em continuar a representar o papel de guia turístico.
Contudo, no decurso das duas horas seguintes, Oshiro nunca o perdera de vista desde o outro lado da divisão, avaliando-o a cada segundo, como se aquilo fosse uma entrevista de emprego formal.
E talvez assim fosse.
A confirmar-se essa realidade, era um exame que Ken não ousava falhar.
Ken optara por bisbilhotar o trabalho da equipa Gama, pressentindo que havia algo de importante nessa pesquisa. Encontrava-se nesse momento debruçado sobre um dossiê, cuja lombada estava identificada com os caracteres [[Inserir Gráfico]], ou Norin-suisan-sho, a designação oficial para o Ministério da Agricultura, Floresta e Pescas japonês. O ficheiro continha um pedido para a concessão de uma bolsa de investigação, incluindo um esboço que demonstrava o trabalho promissor da equipa Gama no sentido de desenvolver e trazer para o mercado um novo pesticida, uma toxina baseada num dos muitos péptidos encontrados no veneno das vespas Odokuro.
Oshiro chegou por fim junto dele e, colocando as mãos na cintura, perguntou:
— Bom, diga lá, tem alguma coisa a acrescentar ao trabalho da equipa Gama? Algo que demonstre que merece um lugar nestas instalações?
Ken recostou-se na cadeira.
— A única coisa que lhe posso dizer é que esta investigação está condenada à partida.
As sobrancelhas de Oshiro ergueram-se perante o desplante daquela afirmação. Até os próprios elementos da equipa Gama pararam o que estavam a fazer e lançaram-lhe um olhar consternado. Ken sentiu algum remorso pela franqueza com que respondera à pergunta, mas as conclusões pareciam evidentes.
— O que o leva a dizer isso? — quis saber Oshiro.
— Estive a rever a análise ao ADN do péptido fantasma.
Péptido fantasma era a designação colorida que a equipa Gama usava para se referir à proteína desaparecida, aquela que guardava o potencial na base do suposto pesticida. Embora a equipa tivesse identificado a sequência de genes que poderia produzir esse péptido, não tinham encontrado nenhum vestígio do mesmo nos sacos de veneno das vespas.
— A equipa Gama tem, de facto, perseguido um fantasma — explicou Ken. Acenou para o monitor do computador onde estivera a rever a sequência do código genético, como se de um texto se tratasse. — As conclusões retiradas da análise genética estão corretas. A sequência de genes parece referir-se a uma enzima biolítica que visa artrópodes e insetos. Qualquer presa injetada com esta toxina dissolver-se-ia a partir de dentro.
— Exato — confirmou Oshiro. — Uma substância destas seria o ingrediente ideal para um pesticida agrícola.
Ken manteve-se firme.
— No entanto, não nos podemos esquecer de que as Odokuro aprenderam com o tempo que era preferível manterem as presas vivas. O que a equipa Gama acidentalmente descobriu foi um fragmento de ADN antigo, um pedaço de código que permanece na sequência genética das vespas, embora não tenha hoje em dia qualquer propósito. Nunca se interrogou por que motivo a equipa nunca encontrou a proteína em questão?
Oshiro murmurou meia dúzia de desculpas relacionadas com os desafios que enfrentavam.
Ken cortou-lhe o discurso, sem sequer se preocupar com a possibilidade de estar a ofender Oshiro ou a qualidade do trabalho por ele supervisionado.
— Como na maioria das espécies do planeta, incluindo a humana, o ADN das Odokuro é uma amálgama de genes ativos, inativos e pedaços de código obtido através da exposição a vírus e bactérias. Na verdade, foi assim, em consequência de uma infeção causada por micróbios Lázaro, qua as Odokuro conseguiram a habilidade de hibernarem durante séculos.
Oshiro encolheu os ombros.
— E daí?
— A proteína perdida, esse péptido fantasma, não pode ser encontrada porque não passa de um beco sem saída evolucionário. — Ken apontou para um dos elementos da equipa Gama. — Mostrou-me a metilação do ADN nesses genes, o modo como a sequência genética se encontra trancada por marcadores epigenéticos.
— Hai — disse o investigador.
— Esses marcadores epigenéticos, que decoram o ADN como luzes numa árvore de Natal, determinam se o código se pode ou não manifestar, se esse ADN produzirá uma proteína como essa que tanto procuram. — Ken olhou ao redor do grupo, antes de se fixar em Oshiro. — Por outras palavras, este pedaço de código antigo e inútil encontra-se trancado há muito tempo e a chave foi deitada fora.
Oshiro engoliu em seco.
Ken encolheu os ombros.
— Sem essa chave perfeita, esta sequência nunca mais produzirá qualquer proteína. E falsificar uma chave dessas, que tem o equivalente a milhões de configurações diferentes, é basicamente impossível.
Oshiro fitou os rostos preocupados dos investigadores da equipa. Nenhum deles ousou erguer os olhos.
— Se estiver certo...
— Esta pesquisa não leva a lado nenhum — rematou Ken.
Os músculos nos maxilares de Oshiro contraíram-se. Falou como que cada palavra proferida lhe trouxesse uma dor atroz.
— Talvez Takashi Ito esteja certo acerca de si.
Oshiro fez sinal ao guarda. Pelos vistos, após passar naquele exame, Ken seria presenteado com uma oferta de trabalho permanente, um convite que não podia recusar.
Como poderei alguma vez trabalhar para esta gente?
Endireitou as costas, pronto a aceitar o inevitável.
Ato contínuo, uma sirene explodiu no interior do laboratório, gritando com urgência e alarme.
Apanhados de surpresa, nenhum dos homens presentes se mexeu.
Ken foi o único a suspirar de alívio.
Salvo pelo gongo...
12h28
Enquanto a sirene gritava, Gray agachou-se junto ao patamar de uma escadaria na cave. Acima da cabeça, umas enormes portas de aço vedavam o acesso aos níveis superiores do pagode. Calculou que todas as restantes saídas se encontrassem também fechadas com portas semelhantes.
Estão a vedar todo o complexo.
Podiam ter conseguido meter um pé lá dentro, mas as coisas acabavam de ficar mais complicadas.
Aiko procurava uma solução para o problema. Encontrava-se ajoelhada junto a um técnico caído no chão. Hoga segurava uma lâmina contra o pescoço do homem, nitidamente em pânico, enquanto ela lhe dirigia umas palavras rápidas em japonês. Endo guardava o corredor, para o qual disparara três rajadas de tiros apenas para encorajar quaisquer outros técnicos em fuga a procurarem outra saída.
Ambos os companheiros de Aiko tinham removido os capacetes, embora continuassem a usar as máscaras pretas de ninjas. A equipa deparara-se com pouca resistência até esse ponto. Tal como esperavam, a maior parte dos guardas deslocara-se para a frente do complexo, onde decorria o ataque principal.
De súbito, a sirene silenciou-se.
O resultado era igualmente, ou até mais, enervante.
Aiko levantou-se, enxotou o técnico pelo corredor e virou-se por fim para Gray.
— Ele disse que um homem com as características físicas do professor Matsui foi levado para a subcave Quatro. — Apontou para as escadas. — Para um laboratório de toxicologia, ao que parece.
— E a Seichan?
Aiko abanou a cabeça.
— Disse que não sabia.
Gray não tinha outra escolha senão aceitar isso, sabendo que Aiko teria feito o possível para sacar essa informação. Apenas podia esperar que Ken e Seichan continuassem juntos.
— Vamos.
Desceram mais três lances de escadas para alcançarem a subcave Quatro. Umas portas de aço vermelhas bloqueavam o acesso ao quinto e último piso inferior. Ignoraram esse mistério e continuaram pelo átrio onde se encontravam. Seguindo as curtas indicações que Aiko obtivera do técnico, atravessaram uma série de corredores vazios. Rostos ocasionais espreitavam de algumas salas, apenas para se recolherem assim que vislumbravam as armas do grupo.
— Lá à frente, ao fundo do corredor — disse Aiko, apontando para um conjunto de portas duplas com o símbolo de perigo biológico. — Deve ser o laboratório.
Gray estugou o passo. Abriu as portas e entrou de rompante no gigantesco laboratório biológico, recheado de equipamentos de tecnologia de ponta. Manteve a SIG Sauer em riste, perscrutando a divisão enquanto o resto da equipa se espalhava em volta.
O local fora abandonado à pressa. Havia papéis espalhados nas secretárias, vidros partidos no chão. Um dos computadores fumegava, dando ideia de que alguém tentara queimar o disco rígido.
Gray virou-se para Aiko, com o coração pesado.
Não estão aqui.
12h32
Ken correu ao longo da parede de uma passagem obscurecida.
O que estou eu a fazer?
Quatro minutos antes, tomara uma decisão a quente. Assim que a sirene disparou no laboratório, semeando o pânico entre os vários técnicos, tentara desviar-se do caminho de toda a gente, apenas para se certificar de que não era atropelado. Por esse breve instante, a sua pessoa tornara-se a última das preocupações de todos os presentes. O próprio Oshiro chamara o guarda para junto de si, com o objetivo de gozar de proteção enquanto se punha em fuga.
Ken aproveitara a oportunidade e limitara-se a correr em direção às portas vermelhas no fundo do laboratório. Continuava a querer saber o que se encontrava do outro lado, que pesquisas estariam a ser escondidas de Oshiro.
Mesmo assim, nesse momento, uma outra motivação empurrara-o nessa direção.
Tal como esperava, alguém no lado de lá respondera ao grito da sirene e irrompera por essas portas. Ken calculava que houvesse mais saídas, uma vez que não vira ninguém entrar ou sair de lá nas últimas horas. Porém, para pelo menos um dos técnicos, as portas vermelhas constituíam a saída mais próxima.
Ken aproveitara assim a fuga do homem para se escapulir para essa secção do complexo. Assim que o fez, as portas fecharam-se de novo atrás de si, acompanhadas de um som mecânico de trancas a serem corridas. Sabia que Oshiro não podia segui-lo, pois não tinha acesso ao que se encontrava para lá das portas. Com essa barricada erguida entre si os seus captores, correu para explorar a área.
Ao avançar pelo corredor, ouviu vozes que se escapavam de uma sala com a porta entreaberta, por onde se derramava também uma nesga de luz. Aproximou-se cautelosamente, receando que o pudessem ouvir no silêncio instalado depois da extinção das sirenes.
Assim que alcançou a porta, a fresta revelou uma pequena divisão com uma fila de lavatórios. Prateleiras guardavam conjuntos de batas verdes e caixas de luvas de látex. O ar cheirava a sabão e iodo. Era nitidamente uma sala de desinfeção para cirurgiões.
Na sala para lá de uma janela de observação, um candeeiro largo iluminava um par de figuras de batas e máscaras verdes ao redor de uma mesa de cirurgia. Os gestos apressados sugeriam que o alarme de evacuação os teria apanhado a meio de uma operação qualquer.
Não querendo ser apanhado, Ken preparava-se para seguir em frente quando uma das figuras se desviou o suficiente para revelar o rosto do paciente estendido na mesa.
Seichan...
Receando o pior, recuou para a sala de desinfeção e espreitou pela janela.
— Não temos tempo para induzir o coma e prepará-la para a operação — disse o cirurgião, nitidamente irritado. — Temos de abandonar a ideia de a usar como cobaia.
— Hai, doutor Hamada — respondeu a segunda figura, uma enfermeira. — E o feto?
— Se nos despacharmos, seremos capazes de o recolher. Ela já está inconsciente devido à dor e amarrada. Apenas precisamos de realizar uma simples histerectomia, mesmo sem anestesia. Removeremos o útero com o feto no interior. Não é de todo o cenário ideal, nem sequer o que esperava, mas ainda poderemos tirar bom partido das células estaminais.
— Vou preparar o estojo cirúrgico.
— Mas seja rápida. O abrigo lá em baixo pode ficar comprometido a qualquer momento. Não vão esperar por nós muito mais tempo, antes de abandonarem as instalações.
— Hai.
Assim que a enfermeira se virou para um conjunto de prateleiras, o doutor Hamada curvou-se sobre a sua paciente, nitidamente frustrado.
— Detesto perder esta oportunidade — disse para a enfermeira —, mas talvez não faça diferença. A ressonância magnética revelou indícios de que as larvas estão prestes a entrar no terceiro estágio de desenvolvimento. Algumas poderão ter já iniciado o processo. — Encolheu os ombros. — É uma pena. Ainda que fôssemos certamente obrigados a descobrir o que pudéssemos antes de o embrião ser consumido pelas larvas de terceiro estágio.
Chocado pelo que acabara de ouvir, Ken olhou em volta, à procura de algo que pudesse usar como arma. Manteve um olho na sala de operações. A enfermeira virou-se e regressou para junto da mesa com um conjunto de instrumentos selados, pousou-o sobre uma bandeja de aço e abriu-o.
Não tenho tempo para isto...
Deitou mão ao que conseguiu agarrar, engoliu em seco e irrompeu pela sala de operações. A enfermeira encontrava-se mais perto da porta. Virou-se, sobressaltada, deixando escapar um grito. Ken ergueu o bocal do extintor de incêndios e pulverizou-lhe o rosto com o pó branco. Cega, a enfermeira lançou as mãos ao rosto e recuou aos tropeções.
Ken passou por ela e arremessou o extintor contra a cabeça do cirurgião. Ouviu-se um baque seco de metal contra osso, e o homem caiu primeiro de joelhos, para depois tombar com a cara no chão.
Ken devolveu a atenção para a enfermeira, que por essa altura limpara a vista o suficiente para distinguir a figura estendida do chefe. Ken limitou-se a dar um ameaçador passo em frente, e foi o que bastou. A mulher virou costas e correu para a saída. Ken não tinha tempo para ir atrás dela e apenas podia rezar que o caos da evacuação a impedisse de pedir ajuda rapidamente.
De qualquer forma, apressou-se a retirar as amarras que prendiam Seichan à mesa de operações. Atordoada, a cabeça dela oscilou para um lado e para o outro enquanto lhe libertava os tornozelos, os lábios contorcendo-se num esgar de dor. Por enquanto, permanecia perdida num nevoeiro de agonia e exaustão.
Ken alcançou o tubo que se estendia de um saco de soro até ao cateter enfiado no antebraço. Apertou os dedos à volta do tubo, pronto para o arrancar. O plano inicial consistia em arrastá-la dali para fora e esconderem-se noutro sítio qualquer.
E depois, o que faço?
Percebeu que a ideia apenas levaria a que acabassem de novo capturados, ou mortos. Por isso, virou-se para um carrinho de apoio junto à mesa de operações. Abriu a primeira gaveta, que continha uma série de drogas de emergência. Passou os dedos sobre os diferentes frascos, enquanto lia os rótulos. Escolheu uma ampola de morfina, pesando os efeitos de um opiáceo na saúde do bebé.
É melhor não...
Em vez disso, passou à escolha seguinte, um frasco de epinefrina. Tinha de contar que fosse o suficiente para despertar Seichan daquela espécie de coma. Depois ela teria de suportar a dor por conta própria. Quanto mais não fosse até conseguirem sair dali.
Preparou uma seringa com a substância, virou-se para a mesa e espetou a agulha no alimentador alternativo do tubo de soro. Apertou o êmbolo da seringa. Não sabia que quantidade deveria administrar, e decidiu-se por pequenas doses intervaladas.
A obrigatoriedade de semelhante precaução dava-lhe cabo dos nervos.
Expirou por entre os dentes cerrados.
Vá lá...
No chão, o doutor Hamada gemeu, dando voz ao seu desespero. Lembrava-se do comentário do médico acerca da ameaça pendente sobre a criança de Seichan, de como as larvas estariam prestes a entrar no terceiro estágio de desenvolvimento, altura em que também atacariam o feto.
Fitou a barriga exposta dela.
Meu Deus, faz com que isso não seja verdade.
LARVA SECUNDÁRIA
A larva avançou devagar, pelo músculo macerado. Tinha o estômago totalmente distendido, incapaz de conter mais comida. O tamanho do corpo aumentara dez vezes desde a última transição, medindo agora uns saudáveis cinco milímetros; porém, o exosqueleto não conseguia estender-se mais e começara a escurecer. A pressão sobre a camada inferior da epiderme desencadeara a ação de glândulas atrás do cérebro que visavam a produção de uma hormona, a ecdisona, que lhe permitiria mudar outra vez de pele.
Encontrando-se entre fases de desenvolvimento, movia-se mais devagar e comia menos, tanto porque não conseguia continuar a usar o sustento para crescer, como pelo facto de que as mandíbulas tinham endurecido, dificultando-lhe a mastigação. Um espesso lubrificante acumulava-se entre a epiderme suave e a rígida cutícula exterior. As glândulas na cabeça e no tórax encontravam-se repletas de seda líquida, preparando-se para o momento em que teceria uma cama na qual cravaria as minúsculas garras. Nessa altura, repousaria durante horas, até se sentir pronta para se libertar e emergir como nova da pele antiga.
Ainda assim, o momento não era ainda o ideal. O corpo continuava a sofrer mudanças, como era o caso do surgimento de pequenos segmentos brancos — discos imaginais —, assinalando o local onde mais tarde cresceriam as asas. Tubos prateados estendiam-se internamente por todo o comprimento do corpo, de forma a se converterem em futuras traquéolas.
À medida que avançava sorumbática pelos tecidos, deparou-se com algo rígido. As mandíbulas inspecionaram o obstáculo, dando corpo à forma oblonga.
Identificou o denso maço de seda no caminho. Usando o olfato, conseguia sentir o que se escondia no interior.
Enquanto contornava a obstrução, captou mais pormenores que revelavam a metamorfose que ocorria no interior desse ninho de seda. Uma outra larva permanecia adormecida lá dentro.
Essa passividade era apenas superficial. Dentro da carapaça «morta» da companheira, a vida seguia o seu caminho. Uma camada nova de cutícula continuava a formar-se debaixo desse revestimento, assim como um novo par de mandíbulas, mais resistente, desenhado para perfurar osso.
Assim que contornou a obstrução, a larva progrediu devagar, aguardando o momento em que também teceria o próprio ninho, de forma a iniciar a inevitável transformação que a aguardava.
Sem se deter, uma certeza evolucionária cresceu dentro de si.
Não faltaria muito para que isso acontecesse.
34
9 de maio, 12h39 JST
Fujikawaguchiko, Japão
Seichan acordou com uma dor penetrante entre os olhos, suficientemente ofuscante para a cegar. As décadas de treino brutal com a Guilda tinham-lhe ensinado a controlar os reflexos autónomos e, apesar do latejar intenso e da confusão instalada na cabeça, manteve-se quieta, obrigando-se a respirar devagar, fazendo o possível para não revelar sinais de que acordara.
Entreabriu os olhos, assim que o impacto inicial se desvaneceu.
Um conjunto de luzes brilhantes pendia acima da sua cabeça. Uma mesa dura e fria arrepiava-lhe a pele nua das costas. O odor pungente de antisséticos atingiu-lhe o nariz. O coração batia acelerado, demasiado acelerado, sem razão aparente.
Os ouvidos captaram uma voz desesperada, proferindo uma espécie de mantra à sua esquerda:
— Vá lá... acorda...
Reconheceu o sotaque do professor Matsui, a urgência e o pânico na sua voz. Mesmo assim, permaneceu imóvel, até ter a certeza de onde se encontrava. Socorrendo-se da visão periférica, absorveu todos os pormenores da divisão num único relance.
Estou numa sala de operações.
Ken debruçou-se sobre ela. Segurava uma seringa numa das mãos e um frasco de vidro na outra.
— Não posso arriscar a dar-lhe demasiado — murmurou para si mesmo, enquanto espetava a agulha da seringa no frasco.
Uma vez mais, Seichan tornou a sentir o batimento anormal do coração.
Adrenalina...
Compreendendo por fim que Ken estaria a tentar acordá-la, virou o rosto na direção dele. No preciso instante em que o fez, uma sombra ergueu-se nas costas do professor. A figura tinha o rosto tapado por uma máscara, o corpo coberto por uma bata cirúrgica.
Mesmo assim, percebeu quem era.
O médico...
Mãos avançaram para o pescoço de Ken.
Precisava de fazer alguma coisa.
Com os músculos tensos de toda a agonia, saltou da mesa de operações, deixando cair os panos cirúrgicos que lhe cobriam o corpo seminu. Sem desviar o olhar do médico, lançou a mão a um pacote de instrumentos cirúrgicos aberto, o qual incluía um bisturi. O suporte do soro tombou para o chão, arrancando o cateter do braço. Mergulhou para a frente e desviou Ken do caminho, enganchando um braço à volta do pescoço de Hamada.
Posicionou-se nas costas do médico e pressionou a ponta do bisturi sob o queixo do homem, junto à carótida.
Um fio de sangue desceu desse ponto.
— Precisamos dele? — perguntou, por entre os lábios gretados.
Ken precisou de um segundo para se recompor e compreender a natureza da pergunta. Alternou o olhar entre a lâmina e o rosto do médico. A expressão de Hamada indicava que estava perfeitamente ciente de que sua vida dependeria da resposta.
— Não sei... talvez — disse por fim Ken, lançando um olhar na direção da saída. — Foi acionado um alarme, uma ordem de evacuação. Ouvi-o comentar qualquer coisa acerca de uma rota de fuga, através de um qualquer abrigo subterrâneo.
— Vais dizer-nos onde fica esse abrigo — sibilou Seichan, ao ouvido do médico. Deu-lhe uma joelhada nas pernas, forçando-o a cair de joelhos, depois passou o bisturi a Ken.
— Tome conta dele.
Ken pegou na lâmina com mãos trementes, mas firmou o instrumento entre os dedos.
Seichan correu para uma pilha de batas cirúrgicas descartadas num contentor. Vestiu a primeira que agarrou, sem fazer caso das manchas de sangue no tecido. Apanhou os cabelos sob uma touca e atou uma máscara ao redor do pescoço, deixando-a pendurada sob o queixo. Se precisasse de esconder as feições, bastava-lhe subir a máscara. Contava que a ascendência asiática lhe permitisse ser confundida com uma das enfermeiras japonesas.
Uma vez pronta, pediu a Ken que fizesse o mesmo. O professor correu para a divisão contígua e, em menos de um minuto, regressou com uma bata vestida.
Seichan obrigou Hamada a levantar-se.
— Mostre-nos o caminho, se quiser viver.
O médico acenou vigorosamente com a cabeça.
— Existe um elevador ao fundo do corredor.
Avançaram colados uns aos outros. Seichan manteve a ponta do bisturi discretamente pressionada contra as costas de Hamada. Contava que o bom do médico soubesse que um golpe direto aos rins resultaria num ferimento mortal.
Enquanto avançavam, uma gota de sangue correu pelo braço no sítio onde o cateter fora arrancado. Seichan desviou o olhar para o braço, percebendo que sentia pouca ou nenhuma dor.
— Injetou-me algum analgésico? — perguntou a Ken. — Morfina? Fentanil?
Lembrava-se bem das palavras de Hamada, de como a administração de analgésicos poderosos poderia ser prejudicial para o bebé.
— Não — respondeu Ken. — Apenas epinefrina. Porquê?
— Não interessa. A dor parece menos intensa, daí...
Ken e Hamada trocaram um olhar cúmplice.
— Alguma coisa que deva saber? — perguntou Seichan, notando a expressão do professor.
— Antes de atingirem o terceiro estágio, as larvas adormecem durante um breve período. Calculo que seja por isso que não sente dor. Porém, quando as novas versões eclodirem...
Ken não completou a frase. Não precisava. Seichan percebia perfeitamente o que ele estava a dizer. Aquilo era a calma antes da tempestade.
A conversa extinguiu-se assim que alcançaram o final do corredor. Seichan usou o cartão de acesso pendurado no pescoço de Hamada para chamar o elevador. As portas abriram-se e entraram na cabina.
Seichan reparou que o elevador apenas funcionava num sentido — para baixo, descendo um único piso. Nunca poderia servir para os conduzir até à superfície. Fez sinal para Ken segurar as portas abertas e cravou o bisturi nas costas do médico, até lhe arrancar um gemido.
— Isto é uma armadilha?
— Não... — disse o médico, com uma expressão de dor. — No caso de uma brecha de segurança, os laboratórios são selados automaticamente. Os funcionários de topo são os únicos que têm acesso à subcave Cinco. As instalações reforçadas nesse piso têm um sistema de evacuação próprio, permitindo a sobrevivência dos elementos mais importantes da empresa.
Seichan desviou o olhar para Ken, como que lhe perguntando se ele teria algo a acrescentar.
O professor parecia preocupado e acenou com a cabeça para Hamada.
— Na sala de operações, ele disse que essa passagem poderia não se manter aberta durante muito tempo.
— Verdade — anuiu o médico.
Sem alternativa e com o tempo a contar, Seichan desviou-se para o fundo da cabina e fez sinal a Ken para que fizesse o mesmo. Assim que as portas se fecharam, uma forte explosão ressoou na outra ponta do corredor.
Tarde demais...
12h48
Gray sacudiu o fumo da sua cara. Encontrava-se agachado na ponta mais afastada do laboratório circular, protegido por uma das bancadas, com Aiko e Palu. Os outros dois membros da equipa, Hoga e Endo, estavam mais perto das portas de aço vermelhas, depois de terem aplicado cargas explosivas no sistema de fecho.
Enquanto Gray observava, as portas tombaram para o interior do laboratório, preenchendo a divisão de fumo.
— De pé! — ordenou Palu, dirigindo-se ao homem agachado a seu lado.
Chamava-se Yukio Oshiro, e era o diretor daquela unidade de pesquisa. Minutos antes, depois de se terem deparado com o espaço vazio, o homem regressara ao laboratório, a berrar em japonês que todas as saídas se encontravam bloqueadas. O tom de voz era autoritário, visto que confundira a equipa de Gray com elementos da segurança do complexo.
O erro foi rapidamente esclarecido, quando os canos das armas lhe foram apontados ao peito e Aiko ordenou-lhe que se ajoelhasse no chão, com as mãos em cima da cabeça.
A oficial dos serviços secretos não demorou mais de dois minutos a interrogá-lo. Depressa descobriu qual era a sua função no laboratório e obrigou-o a abrir um cofre escondido na parede, onde foram guardados documentos relativos às pesquisas, assim que soara o alarme para a evacuação. A fechadura do cofre obrigava ao reconhecimento de identificação através de um leitor de retina. O olho direito do homem começava a inchar do modo como Endo lhe arremessara a cabeça contra o dispositivo, quando ele tentara resistir.
Com os documentos recolhidos e guardados nas mochilas, a equipa prosseguiu a busca por Ken e Seichan. Oshiro nada sabia de Seichan, porém, não fora capaz de esconder que estivera na presença do professor Matsui. Ao que parecia, Ken conseguira escapar no meio da confusão, fugindo para lá das portas vermelhas.
Esperto...
Gray acenou nessa direção. Com as portas rebentadas, penetraram por fim na secção mais protegida do complexo. Oshiro não possuía autorização de acesso a partir desse ponto e decerto não lhes serviria de guia, mas Palu arrastou-o à mesma consigo. O cientista saberia com certeza muito mais acerca das pesquisas decorrentes do que aquilo que poderiam descobrir nos ficheiros. Por isso, por enquanto, continuava a ser um ativo importante.
Enquanto avançavam pelo corredor, passaram por uma série de laboratórios médicos e salas de operações. Volta e meia gritavam o nome de Ken, sempre sem resposta.
Gray estava cada vez mais preocupado. Sabia que dispunham de uma curta janela de tempo para executarem um resgate bem-sucedido. Os ficheiros e Oshiro eram demasiado importantes para serem postos em risco, visto que poderiam trazer alguma luz acerca de como eliminar a ameaça das Odokuro.
Aiko reconhecia esse facto e lançou um olhar duro a Gray. A preocupação era fácil de ler. Ainda tinham explosivos suficientes para saírem dali à força, mas cada minuto passado no subsolo era um minuto em que arriscavam deitar tudo a perder, e por uma busca que poderia revelar-se infrutífera.
E se Ken tivesse sido apanhado e já estivesse morto?
Hoga deteve-se uns metros à frente e pousou um joelho no chão. Ergueu dois dedos no ar, as pontas molhadas e escuras.
Sangue.
Apesar do risco para a missão, Aiko apontou em frente, disposta por enquanto a seguir o trilho de sangue. O corredor terminava num elevador de serviço. As portas eram vermelhas, tal como as portas de contenção que tinham rebentado anteriormente.
Endo acenou na direção de uma outra porta mais pequena num dos lados. Uma janela estreita revelou uma escadaria que descia para o piso inferior.
Não para cima.
Se Ken tivesse conseguido chegar até ali, aquela era a única direção que poderia ter tomado.
Infelizmente, a porta encontrava-se trancada.
Enquanto Hoga e Endo preparavam uma nova carga explosiva, Gray confrontou Oshiro.
— O que há lá em baixo?
O cientista abanou a cabeça.
— Não sei...
— De certeza que ouviu rumores. O que sabe acerca disto? — pressionou Gray.
Mesmo em instalações governamentais de topo, havia sempre quem comentasse ou se interrogasse acerca das áreas mais restritas, aquelas a que só um punhado de eleitos tinha acesso.
Oshiro baixou o olhar.
Palu agarrou-o pelos colarinhos.
— Conta o que sabes, maldito! O que se passa lá em baixo?
Quando abriu a boca, o tom de voz do cientista não foi capaz de esconder a vergonha.
— Experiências em seres humanos...
12h50
— Prossigam com a Fase Dois — ordenou Takashi, pelo telefone seguro.
— Hai, Jonin Ito. — A voz no outro lado da linha era do comandante da base localizada no mar da Noruega. — Assim será feito.
Ajoelhado frente à sua secretária rasa, Takashi visualizou uma dúzia de aviões a levantarem voo de pistas de aviação geladas. Numa questão de horas, essa esquadrilha espalhar-se-ia pelos céus da Europa, largando novos enxames de vespas sobre as maiores cidades do velho continente.
Com a ordem transmitida, terminou a chamada.
A última de sete.
Por essa altura haveria aviões a levantarem voo de outras ilhas ao redor do globo, todas elas propriedade ou alugadas pelos laboratórios Fenikkusu. Com exceção da Antártida, nenhum continente seria poupado.
Satisfeito de saber que nada poderia travar a fúria que acabara de libertar, ergueu-se devagar. Precisava da bengala para se apoiar, e estendeu o braço para a alcançar de cima da secretária. Os dedos magros apertaram-se contra o punho de ouro rosa esculpido em forma de fénix. As penas e o bico aguçado da ave castigaram a pele fina das palmas, quando apoiou o peso sobre a bengala.
Um esforço tão pequeno como esse era o suficiente para o deixar exausto.
Assim que recuperou o fôlego, arrastou os pés sobre os vários tapetes de tatâmi que cobriam o chão de teca. Os tapetes eram confecionados com esteira de junco envolta em palha de arroz prensada, ao contrário das versões modernas, feitas de materiais sintéticos.
Alcançou a parede do escritório e fez deslizar um painel shoji, para aceder ao cofre pessoal. Necessitou de passar a palma da mão duas vezes no dispositivo de identificação, antes de o conseguir destrancar, e amaldiçoou em silêncio o novo sistema de segurança que o neto insistira que ele instalasse.
Vê bem onde toda essa precaução te levou, Masahiro.
Sentindo-se subitamente mais velho, abriu a volumosa porta e removeu os objetos menores do interior do cofre. Selado numa caixa de acrílico encontrava-se um pedaço de âmbar que, por sua vez, continha os ossos de um réptil pré-histórico. A criatura fora identificada como tratando-se de um jovem Aristosuchus, um pequeno crocodilo a caminho de dinossauro, do início do período Cretáceo. Os ossos e crânio encontravam-se minados com cistos das vespas.
Mesmo assim, Takashi preferia o original e mais elegante nome dado àquela relíquia.
A Coroa do Demónio.
Encostou a bengala contra a parede, sabendo que precisaria das duas mãos para carregar aquele tesouro até à secretária. Apesar de pesado, constituía uma fração do artefacto original roubado do túnel em Washington. O restante fora consumido pelas décadas de pesquisa acerca da sua natureza mortífera.
Ainda assim, prezava o que sobrara, ciente do sangue derramado e da vida que se perdera para o trazer para o Japão. Finalmente, uma promessa feita anos antes, conservada em âmbar, fora cumprida. A operação lançada nos últimos dias servia tanto de vingança pessoal como de um triunfo nacional há muito devido.
De novo à secretária, desviou o olhar para a bengala abandonada contra a parede. Fitou a fénix, um símbolo da natureza eterna das vespas, da capacidade das Odokuro de renascerem das próprias cinzas, imortais e eternas.
Tal como será este novo Japão Imperial.
Era o seu presente a Miu, pelo sacrifício dela, pelo amor que lhe concedera.
Mesmo a partir das alturas daquela divisão, conseguia ouvir a batalha que se desenrolava lá em baixo contra as forças japonesas que tentavam invadir o Castelo de Gelo. Explosões e tiros ecoavam nos ouvidos, mas pareciam demasiado pequenos, insignificantes.
Desviou a atenção para lá da janela, para o cume do monte Fuji. Os relâmpagos brincavam ao redor do cimo da montanha, iluminando o vasto manto de nuvens negras. A fúria da tempestade em nada se comparava com a pequenez da batalha nos terrenos do complexo.
Em todo o caso, a prudência ditava que não esperasse mais tempo.
Alcançou o telefone e fez um último telefonema, antes de se dirigir para o helicóptero pessoal que o aguardava no cimo do pagode, para o transportar para uma localização segura. O trabalho ali estava feito. Não precisava de mais nada daquele sítio, exceto o que se encontrava em cima da secretária, uma representação do coração partido de Miu.
Pousou a mão no cimo da Coroa do Demónio.
Está feito, minha querida.
Ouviu o clique distinto de quando a chamada foi atendida. O responsável pela segurança do complexo respondeu sem cerimónia. Aguardava aquela chamada, pronto para receber a derradeira ordem de Takashi.
Ele assim fez, instruindo que as cargas incendiárias semeadas por toda a estrutura do pagode fossem por fim ativadas.
Estava na altura de incendiar o Castelo de Gelo.
35
9 de maio, 05h51 CEST
Wieliczka, Polónia
Abandonai toda a esperança...
Elena recordou as palavras proferidas por Monk quando entraram na mina. Não conseguia parar de pensar nesse aviso de Dante enquanto seguia os outros pela rampa acima, rumo ao espaço cavernoso que se abria adiante.
A tensão e um sentimento vago de temor silenciara qualquer tentativa de conversa. Um dos irmãos de Clara, Piotr, permanecera à entrada, caso a porta secreta decidisse fechar-se sozinha.
À medida que o resto do grupo se aventurava no interior do espaço, os feixes das lanternas rasgavam a escuridão em todas as direções. O som de água a correr desviou-lhe a atenção para o lado esquerdo. Uma gigantesca roda de moinho encontrava-se fixada a uma parede próxima, girando pela ação da água que corria do teto e desaparecia por um buraco no chão.
Elena ergueu os olhos para a abertura no teto de onde a água se escapava e imaginou um lago secreto lá em cima. A abertura deveria ter sido acionada quando Kat pressionou o botão em forma de vespa, colocando a roda em movimento, o que por sua vez fizera descer a rampa.
O antigo mecanismo encontrava-se coberto com uma película esbranquiçada, sugerindo que a passagem dos anos petrificara a madeira com sal, tal como acontecera com as escoras apontadas anteriormente por Clara.
A única diferença era que a madeira da roda ainda falava, ou, mais apropriadamente, gemia. As engrenagens rangiam de forma agoirenta, enquanto a roda de madeira se lamentava. O tom pesaroso lançou um arrepio pela espinha de Elena, ou talvez fosse apenas o frio. O ar naquele espaço era bem mais gélido, com o mesmo odor a sal e humidade, a que se juntava algo amargo e acre.
Como uma fogueira apagada com água.
A equipa avançou pela caverna, cujo teto arqueado erguia-se a uma altura de três andares. A dimensão do espaço era equivalente ao da Capela de Santa Cunegunda, mas bastaram alguns passos para perceberem que aquilo não era nenhuma catedral em honra de uma santidade.
O chão escureceu gradualmente, enegrecido pela fuligem de antigas fogueiras.
Havia pilhas de matéria ardida por toda a parte.
Kat examinou a que se encontrava próxima.
— Ossos queimados — concluiu, apontando a lanterna para os restantes montes espalhados pelo chão, uns menores, outros de dimensões consideráveis. — Devem ser os restos mortais dos mineiros que aqui ficaram presos.
Monk debruçara-se sobre uma das pilhas maiores.
— E também dos cavalos — acrescentou, abanando a cabeça.
Elena recordou a conversa acerca dos mineiros e cavalos, de como raramente, ou mesmo nunca, viam a luz do dia. O que estava a ver era uma sala de contenção pronta a usar. Não admirava que os responsáveis pela mina tivessem conseguido conter a ameaça ali libertada.
E manter segredo do que tinham feito.
À medida que progrediam cautelosamente por entre as pilhas funerárias, Clara benzeu-se. Elena seguiu-lhe o exemplo, rezando para que Deus protegesse a equipa.
Kat deteve-se e raspou o chão com a ponta do pé. A rocha parecia coberta por uma camada oleosa.
— Para resolverem o problema, devem ter empilhado lenha e depois espalharam óleo das lanternas pelo chão, antes de lhe pegarem fogo e selarem a caverna.
Elena estudou o padrão das pilhas, tentando imaginar o horror a que aqueles mineiros teriam sido sujeitos. Não conseguia observar indícios de pânico, nenhum sinal de tentativa de fuga em direção à saída. Daquilo que retirara das palavras de Clara, os mineiros constituíam uma família unida. A maioria dos homens que ali morrera estaria provavelmente demasiado doente ou reconhecera a ameaça que representava para os companheiros não afligidos pela doença. Sem alternativa, ter-se-iam sacrificado em nome do bem comum.
Elena benzeu-se de novo, dessa vez em respeito pelos mortos, sabendo que se tinham sacrificado para impedirem que aquele mal se espalhasse pelo mundo.
Observou o que restava dos corpos.
Aqui estão os verdadeiros santos desta mina.
— Venham ver isto! — disse Sam, acenando mais adiante.
Depois de entrarem, Sam e o doutor Slaski tinham contornado as pilhas e seguiram ao longo de uma das paredes. Uma camada de fuligem obscurecia o quarto inferior da parede, sugerindo que as chamas teriam lambido a rocha como ondas do mar contra a praia, enegrecendo-a.
Enquanto o resto do grupo se dirigia ao encontro dos dois, Sam e Slaski concentraram a luz das lanternas mais acima. Os feixes brilhantes pareciam penetrar na parede, incendiando a rocha ao ponto de adquirir um tom avermelhado.
Kat soltou uma exclamação de espanto, Monk limitou-se a assobiar.
Sam e Slaski recuaram uns passos, subindo e alargando o foco das lanternas.
— Âmbar — disse Slaski, olhando por cima do ombro. — É tudo âmbar.
O choque daquela revelação fez com que todos apontassem as luzes para as paredes em volta e para o teto. Para onde quer que se virassem, a rocha absorvia a luz e brilhava com um fogo interior.
— É como se estivéssemos dentro de uma bolha de âmbar... — murmurou Elena.
— E, se calhar, estamos — disse Slaski, passando a mão sobre a parede. — Veja como é suave.
Elena assim fez.
— É como se a resina tivesse derretido e arrefecido.
— Isso mesmo — notou Slaski. — O âmbar torna-se maleável ao atingir uma temperatura de cento e cinquenta graus Celsius. Os artesãos modernos socorrem-se dessa característica para derreterem porções menores de âmbar e depois fundirem os pedaços em peças maiores, com recurso a prensas de alta pressão.
Kat recuou e olhou em redor.
— Acha que foi o que aconteceu aqui?
— Sim, numa grande escala. — O tom de voz de Slaski era de puro espanto. — Se for esta a origem do artefacto de Smithson, significa que este depósito tem centenas de milhões de anos, formado antes de as forças tectónicas empurrarem os continentes para as posições que hoje ocupam, quando esta região não passava de uma grande floresta de pinheiros na costa do antigo mar de Tétis. O calor e a compressão exercidos por essas forças podem ter espremido o âmbar ao longo deste pedaço de costa, até o gás e a pressão o moldar nesta bolha gigante.
— Isso é tudo muito bonito — disse Kat. — Mas se este é o local onde Smithson obteve a amostra, de onde é que a retirou, ao certo?
Clara apontou a lanterna para a parte de trás da caverna. Uma secção de parede nesse lado parecia escavada ou desfeita. Seguiram nessa direção.
Enquanto atravessavam o espaço, foram surgindo rodas de carrinhos de transporte e cabeças de picaretas meio enterradas em cinza. Elena visualizou o material abandonado dos mineiros a ser consumido pelas chamas, sobrando apenas aquelas partes de metal.
A seu lado, Sam e Slaski continuaram a examinar a parede. Ao que parecia, a caverna preservara outros restos do passado, bem mais antigos.
Os passos de Sam abrandaram quando pressionou a lanterna contra o âmbar, iluminando-o. Acabou por se deter subitamente, com a voz convertida num murmúrio de espanto e excitação.
— Meu Deus, acho que é um Cyllonium intacto!
Os restantes juntaram-se ao redor. Flutuando no âmbar, encontrava-se um inseto alado do tamanho de um punho fechado.
— É uma cigarra gigante — explicou Sam. — Do início do período Cretáceo.
Os outros mal tiveram tempo de examinar a criatura e o entomologista corria já para a secção de parede seguinte.
— E aqui, vejam, um enxame de Austroraphidia, uma espécie extinta de moscas-serpente do mesmo período.
Elena observou a extensão de parede, onde as criaturas pareciam voar através do âmbar. Cada um dos insetos tinha uns bons treze centímetros, com asas duas vezes maiores.
Sam continuou a deslocar-se ao longo da parede, parando e apontado a lanterna aqui e ali.
— Kararhynchus, um género de besouro dos finais do período Jurássico... Eolepidopterix, uma traça gigante extinta... Protolepis, uma das primeiras borboletas...
O entomologista assim prosseguiu, guiando o grupo por aquele terrário de âmbar pré-histórico com formigas massivas, uma centopeia tão longa como o braço de Elena e uma aranha que parecia saída de um pesadelo. Por entre essa enciclopédia de insetos extintos havia também pedaços de florestas antigas: ramos e galhos, pinhas primitivas, folhas gigantes. Elena parou junto a uma enorme flor, cujas pétalas brancas pareciam tão frescas como no dia em que tinham desabrochado.
Mas não era tudo.
Kat apontou a lanterna para um crânio reluzente do tamanho de uma bola de bowling, com uma queixada comprida cravejada de dentes semelhantes aos de um tubarão.
— Sem dúvida um sáurio... — murmurou.
Metros à frente, Sam voltou a acenar aos companheiros.
— Aqui! — disse, dessa vez com um tom de voz sombrio.
Assim que chegou junto dele, Elena apercebeu-se da centelha de medo no olhar do entomologista. Sentiu o coração a bater mais depressa.
Sam fixou o foco da lanterna, revelando o horror escondido naquela secção de âmbar. Aprisionado na resina, encontrava-se um enxame de formas familiares, com carapaças pretas e vermelhas.
Vespas-soldado.
— As Odokuro — disse Sam. — Elas estão aqui...
06h04
Definitivamente, estamos no local certo.
Kat sentia-se ao mesmo tempo aliviada e mortificada. Nos últimos três minutos, tinha seguido a curvatura da parede com os outros. A cada passo, deparara-se com mais e mais encarnações daquela espécie infernal, desde os pequenos machos às gigantescas fêmeas. Enquanto o grupo prosseguia, o número de espécies competidoras diminuíra a favor da selvática horda, até restarem apenas as Odokuro.
A razão encontrava-se à vista de todos.
— Que horror! — exclamou Elena, virando o rosto ao ver um pequeno lagarto, cujo estômago aberto derramava uma massa compacta de vespas.
Era evidente que as Odokuro tinham aniquilado tudo e todos à sua passagem, consumindo e utilizando toda a biomassa disponível naquele período pré-histórico.
Dois membros do grupo revelaram pouco ou nenhum interesse naquilo e tinham seguido caminho. O diretor do museu acabara por se deter mais à frente, onde se encontrava nesse momento com um joelho pousado no chão.
Quando Kat se aproximou, falava em polaco com Clara, atirando-lhe à cara palavras irritadas.
— O que se passa? — quis saber Kat.
Slaski interrompeu o discurso com uma última palavra ríspida, que só poderia ser um palavrão. Acalmou-se rapidamente e apontou para a secção seguinte da parede, que fora partida em vários sítios da porção enegrecida, para revelar novos veios de âmbar.
— Isto não foi feito pelos mineiros que aqui morreram, mas por ladrões que vieram depois.
Kat compreendeu o que ele lhe estava a dizer. Alguém estivera ali depois do sacrifício dos mineiros. Oportunistas, certamente, que teriam tido conhecimento daqueles depósitos ricos e tentaram sacar o seu quinhão em segredo.
— Mineiros negros — explicou Clara, o tom de voz tão consternado como o de Slaski. Desviou o olhar para a entrada. — Talvez seja por isso que alguém se deu a tanto trabalho para selar este lugar.
Monk inclinou-se para Kat.
— E também pode explicar como Smithson obteve o artefacto. Se calhar, comprou-o a um desses mineiros negros.
Kat acenou com a cabeça.
Se assim for, Smithson também poderá ter sabido da tragédia pela mesma fonte.
Kat visualizou esse primeiro grupo de mineiros, imaginando o horror que viveram quando partiram sem querer as ossadas pré-históricas no interior do âmbar e soltaram os cistos criptobióticos. As suas mortes terão sido agonizantes, à medida que os cistos eclodiam dentro deles para libertar a horda de larvas que mais tarde irromperia dos corpos como vespas adultas.
Enquanto Kat se deteve para inspecionar os estragos na parede, Sam seguiu em frente, varrendo a área seguinte com a lanterna. Pelo canto do olho, a dada altura Kat observou-o a deter-se em certo ponto, recuar um passo e depois aproximar-se da parede, a fim de inspecionar algumas zonas.
Não demorou muito a acenar ao grupo.
— Venham ver isto... há aqui qualquer coisa de errado.
O que foi agora?
Kat conduziu os restantes até ao entomologista, atraída pelo seu ar preocupado. Assim que se juntaram todos, os feixes combinados das lanternas iluminaram a totalidade dessa secção de âmbar, revelando uma absurda quantidade de vespas em todas as suas encarnações.
Kat franziu o sobrolho, sem compreender bem o que tanto inquietara Sam.
O entomologista aproximou-se mais da parede, fixando o foco da lanterna nalguns espécimes específicos.
— Acho que estas já estavam mortas antes de ficarem aprisionadas no âmbar.
— Porquê?
— Se olhar com atenção, consegue-se perceber que há algo de errado com as configurações. Veja este soldado, por exemplo. O exosqueleto parece ter colapsado. O próprio âmbar encontra-se tingido em redor.
Kat semicerrou os olhos, enquanto Elena ajeitava os óculos na ponta do nariz.
Ele tem razão.
A carapaça da vespa parecia ter sido esmagada. A mancha que enegrecia o âmbar parecia quase uma representação do espírito do inseto a abandonar o corpo.
— Sangue — disse Sam. — Julgo que a vespa sangrou antes de morrer.
Monk inclinou-se para ver melhor.
— Será que foi esmagada pelas forças que moldaram e formaram esta bolha?
— Não. — Sam recuou um passo. — De todas as espécies presentes nesta secção, apenas as vespas apresentam este tipo de lesões. — Virou-se e lançou um olhar convicto ao grupo. — Isso significa que algo as matou, antes de ficarem aprisionadas no âmbar.
Kat anuiu lentamente com a cabeça.
— Se conseguirmos descobrir o que foi...
Fitou os companheiros. Não precisava de constatar o óbvio. O propósito daquela missão encontrava-se ali, diante de todos. A prova cabal de que alguma coisa no passado impedira aquele predador de topo de se disseminar e dominar por completo o mundo antigo.
Mas o quê?
Prosseguiram juntos, como uma equipa. Slaski e Clara seguiram atrás, meio perplexos pela súbita urgência e preocupação.
As lanternas continuaram a iluminar a parede de âmbar, revelando a verdadeira dimensão do massacre das Odokuro enquanto espécie. Não havia uma única encarnação das vespas que tivesse sido poupada. Milhares de minúsculos batedores formavam pilhas de carcaças. Mais soldados surgiam em todo o lado, partidos e despedaçados. Uma série de fêmeas procriadoras flutuava numa mancha do próprio sangue.
Ainda assim, qual seria a origem daquelas lesões?
Metros à frente, uma mancha de cor no chão captou a atenção de Kat. Apontou a lanterna nessa direção. Os outros também se aperceberam e seguiram-lhe o exemplo.
Tratava-se de um corpo, porém, não eram os restos queimados de um mineiro.
As roupas do cadáver estavam intactas, a pele pálida e afundada nos ossos, contrastando com a barba e os cabelos escuros. A expressão, para sempre preservada pelo ambiente rico em sal, era de choque e horror. Não muito longe encontrava-se uma picareta abandonada; no entanto, aquele homem nunca a chegara a brandir, uma vez que os pulsos se apresentavam amarrados com uma corda.
A causa de morte era fácil de identificar, visto que a garganta fora cortada de orelha a orelha.
A razão da execução era igualmente evidente.
Metros ao lado, encontrava-se um enorme cubo de âmbar, mais ou menos da altura da cintura, que fora talhado a partir da parede próxima. Devia valer uma pequena fortuna.
— Um dos mineiros negros — disse Slaski.
Clara abanou a cabeça.
— Estes atos pagavam-se caros, na altura.
Sam abandonou o grupo para examinar essa secção danificada da parede, que parecia descolorada, embora não por causa das chamas. Dirigiu-se então para o cubo no chão, que exibia o mesmo tom escuro. Pousou a lanterna em cima do cubo e ajoelhou-se para também o examinar, o que de imediato o fez soltar um grito e recuar assustado, acabando por cair de rabo no chão.
Iluminado pela lanterna do entomologista, o cubo brilhava como se fosse um candeeiro, revelando o tesouro escondido no interior. Não admirava que o mineiro morto tivesse tentado roubar aquele pedaço de âmbar. Qualquer um faria o mesmo, tendo em conta o que ali se encontrava preservado.
Sam endireitou as costas, sem nunca desviar o olhar daquela incrível visão.
As suas palavras soaram desesperadas, incrédulas.
— O professor Matsui estava enganado... todos estavam enganados...
36
9 de maio, 13h05 JST
Fujikawaguchiko, Japão
— Descemos muito mais do que um piso — disse Ken assim que saiu do elevador na subcave Cinco. Conseguira sentir a pressão nos ouvidos durante a descida de quase um minuto desde a subcave Quatro até às profundezas daquela última secção do complexo. A própria temperatura do ar era mais fresca lá em baixo.
Observou o corredor curto que conduzia a um conjunto de portas de aço deslizantes.
Vazio.
Fez sinal para que Seichan o seguisse. Vestida com uma bata e máscara cirúrgicas, Seichan arrastou o doutor Hamada pelo braço. Mantinha a outra mão pressionada contra as costas do médico, a ponta do bisturi pronta para o apunhalar, se fosse caso disso.
— A que profundidade estamos? — perguntou ao prisioneiro.
— Setenta... setenta metros... — gaguejou Hamada.
Ken engoliu em seco. Era o equivalente a um prédio de vinte andares.
— Qual é o propósito deste piso?
— Serve de abrigo para o nosso trabalho mais sensível. Dizem que este nível é capaz de suportar o impacto de uma explosão nuclear. Em todo o caso, a decisão de se ter construído estas instalações a esta profundidade também se prende com o isolamento natural proporcionado pela geologia singular do local.
— Como assim?
A testa franzida de Seichan brilhava com gotas de suor, um claro indicador da dor que ainda sentia, apesar de as larvas se encontrarem teoricamente adormecidas.
— É melhor verem com os vossos olhos. — Hamada acenou na direção das portas. — Fica a caminho da saída de emergência do complexo.
Assim que percorreram a curta distância, as portas abriram-se automaticamente, revelando um laboratório circular em tudo idêntico ao do piso superior. Fora também evacuado. Uma seta verde iluminada apontava para outra saída no lado mais afastado, provavelmente conduzindo à suposta saída de emergência para uso exclusivo dos funcionários de topo do complexo.
Enquanto se apressavam para essas portas, Ken deu uma vista de olhos em redor.
À direita e à esquerda, uma série de salas contíguas exibiam bancadas com gaiolas de ratos e coelhos. As estações de trabalho no centro continham filas de centrifugadoras, termocicladores e autoclaves. Havia prateleiras apinhadas com todo o tipo de contentores de vidro, pipetas, frascos com enzimas moleculares, reagentes e soluções tampão.
Dois rótulos específicos obrigaram-no a abrandar o passo: Cas9 e tracrRNA plasmídeo.
Virou-se para Hamada.
— Estão a usar ferramentas de edição Crispr/Cas.
Hamada encolheu os ombros.
Seichan lançou um olhar inquisidor a Ken.
— É uma ferramenta de edição de genoma — explicou o professor. — Permite cortar e isolar fragmentos de ADN com precisão e facilidade. Mais ou menos como retirar letras de um livro.
— O que pretendem com estas experiências? — perguntou Seichan, obrigando Hamada a deter-se. O brilho no olhar e o tom urgente sugeriam que tinha esperança de que o trabalho ali desenvolvido tivesse alguma coisa que ver com a procura de uma cura.
— Estamos a efetuar um estudo profundo do código genético das vespas — explicou o médico. — Para descobrirmos o segredo por detrás da sua espantosa longevidade.
Ken sentiu-se gelar.
— Está a dizer que têm feito experiências com a secção de ADN emprestada às vespas pelos micróbios Lázaro?
— Precisamente. Ao longo da última década, tivemos oportunidade de estudar ao pormenor esses fragmentos de ADN emprestado, e descobrimos que as Odokuro os utilizam de uma forma singular. A descoberta abre as portas ao sonho de extensão da vida humana, ou mesmo da ressurreição.
Ken não conseguia acreditar no que estava a ouvir.
— Vocês estão loucos!
— Prefiro pensar que estamos à frente do nosso tempo — contrariou o médico. — Infelizmente, tivemos de esperar pelo desenvolvimento das mais sofisticadas ferramentas genéticas, como é o caso da Crispr/Cas, antes de avançarmos para ensaios clínicos.
Hamada acenou com a cabeça na direção de umas janelas obscurecidas junto das portas de saída.
Seichan empurrou o médico nessa direção. Ken não sabia se queria ver o que se encontrava no lado de lá dessas janelas, mas a curiosidade falava mais alto. Os contornos das janelas exibiam partículas de gelo, sugerindo que a divisão contígua era mantida a uma temperatura baixa.
Lá dentro, luzes ténues revelaram uma longa fila de camas de hospital ocupadas por homens e mulheres de todas idades, desde adolescentes a velhos. Todos permaneciam imoveis, ligados a todo o tipo de equipamentos de monitorização, incluindo máquinas de eletroencefalografia que registavam a atividade dos cérebros, que mesmo àquela distância era nitidamente nula.
Hamada confirmou isso mesmo.
— Todos se encontram em coma induzido. Não somos monstros, sabe? Mantemos padrões rígidos no que toca à gestão da dor e sofrimento dos nossos sujeitos.
Ken queria dizer-lhe das boas, mas nem conseguia falar. Todos os homens e mulheres ali deitados exibiam sinais nítidos de abusos extremos. Um tinha os braços queimados, com a pele enegrecida e gretada; outro, a barriga aberta, cujas vísceras pareciam carne seca; a mulher mais próxima da janela tinha as pernas enfiadas num cubo de gelo. Para onde quer que olhasse, os horrores apenas se acumulavam: mutilações, abcessos, pele arrancada, queimaduras de radiação...
Lembrava-se de ter lido acerca dos notórios campos de concentração japoneses, na China, durante a Segunda Guerra Mundial. Nesses campos, os cientistas tinham realizado experiências biológicas indescritíveis em prisioneiros e camponeses locais. Pelos vistos, alguém trouxera essa realidade para o novo milénio.
Enquanto passavam pelas janelas, Hamada procurou justificar o seu trabalho; porém, a postura pouco confiante não lhe permitia esconder a vergonha.
— Estamos a realizar testes de stresse nos tecidos, nos órgãos... A ideia é estabelecermos patamares, para então analisarmos a eventual capacidade de reparação dos corpos pela ação dos genes Lázaro.
Com o rosto a arder de fúria, Seichan já tinha visto o suficiente. Sabia que aquele era o destino que Hamada planeara para si e para o seu bebé, que ambos servissem de cobaias naquelas experiências horríveis.
O cientista soltou um gemido de dor quando ela lhe espetou o bisturi na carne, para o empurrar os últimos metros em direção à saída. Ken também estava mais que pronto para virar costas àquilo. Já tinham perdido demasiado tempo, e não havia ali nada que pudesse ajudar Seichan.
Para lá das portas, um labirinto de corredores conduzia a uma série de gabinetes e laboratórios mais pequenos. Setas verdes continuavam a indicar o acesso direto à saída de emergência. À medida que avançavam, o ar tornou-se mais frio, e a cada nova curva apressavam um pouco mais o passo, pressentindo que estavam a ficar sem tempo.
Por fim, ao fundo de um derradeiro corredor, um novo conjunto de portas vermelhas abriu-se, recebendo a chegada do trio com uma brisa gelada.
Atravessaram as portas abertas e depararam-se com uma área que passaria por uma estação de metro japonesa. A longa câmara tubular estendia-se diante deles, com uma plataforma estreita ladeada por uma série de veículos encadeados, com forma de cápsulas. As pequenas janelas das cápsulas permitiam distinguir as cabeças das figuras que as ocupavam.
Devem ser os últimos trabalhadores deste nível.
Ken também reparou nos guardas com armas aos ombros, entre esses trabalhadores. Mantendo a cabeça baixa e desviando o olhar das janelas, começou a avançar ao longo das carruagens daquele comboio. Seichan seguiu-lhe o exemplo, mantendo a lâmina do bisturi firme contras as costas de Hamada.
Enquanto atravessavam a plataforma, a primeira cápsula arrancou sem aviso, deslizando silenciosamente pelo túnel escuro até desaparecer de vista. Tratava-se por certo de um veículo elétrico, porém, em vez de se mover alimentado por um sistema carris, possuía pequenas rodas com espigões sob a carroçaria, estabilizada por um par de patins.
Só então Ken percebeu que o túnel era revestido por uma camada de gelo polido. Recordou o comentário de Hamada acerca do isolamento natural oferecido pela geologia singular daquele local, de como isso fora determinante para a edificação do complexo.
Compreendia finalmente o que ele quisera dizer com isso.
Aquele era um dos muitos túneis de lava do monte Fuji. Alguns colegas de Quioto tinham-lhe mostrado em tempos fotografias de visitas às Cavernas de Gelo de Narusawa, uma conhecida atração turística nas encostas do vulcão, com as suas galerias e túneis cobertos de gelo e de estalactites cristalinas. Dizia-se que toda a montanha se encontrava pejada de passagens como essas, perpetuamente congeladas.
Era óbvio que os laboratórios Fenikkusu tinham aproveitado as características naturais da montanha, tanto pela constante refrigeração como pelo sistema de túneis preexistente, perfeito para a elaboração de um sistema de fuga. Ken calculou que aquela primeira cápsula se encontrasse nesse momento a deslizar tranquilamente sob o leito do lago Kawaguchi, rumo a um qualquer porto seguro.
Vamos lá ver se temos a mesma sorte...
Mal se aproximaram do último veículo, as portas abriram-se automaticamente. A lotação encontrava-se por metade, oferecendo espaço mais que suficiente para acolher aquele último trio de colaboradores em fuga.
Para mal dos pecados dos três, essa metade de passageiros presentes encontrava-se fortemente armada. Pior que isso, era liderada por uma figura familiar, que deu um passo em frente para os receber.
Valya Mikhailov.
A assassina vestia uma parca branca com capuz. Juntamente com o rosto pálido e os cabelos brancos, parecia a rainha daquele mundo de gelo. O sorriso matreiro apenas serviu para reforçar essa imagem de soberania.
Reagindo depressa, Seichan apertou o braço ao redor do pescoço de Hamada, usando-o como escudo.
— Para trás! — disse a Ken, incitando-o a esconder-se nas costas dela.
O entomologista deixou-se ficar onde estava.
Atrás de Valya, homens e mulheres com expressões empedernidas, armados até aos dentes, tomaram posições. Ken reconheceu alguns dos rostos. Faziam parte da equipa de assassinos implacáveis e leais, que a acompanhavam desde o atol de Ikikauo.
Havia, porém, outra figura familiar. Valya empunhava uma pistola, mas segurava também pelo braço uma mulher mais velha, a enfermeira que escapara da sala de operações.
Pelos vistos, a mulher sempre conseguira alertar alguém durante a fuga.
Uma sirene abafada ecoou à distância, no instante em que outra das cápsulas se pôs em movimento.
Ken olhou por cima do ombro e viu a última das setas verdes tornar-se vermelha e começar a piscar rapidamente.
Valya notou o interesse dele no alarme.
— Parece que o nosso ilustre líder acaba de dar a ordem para a destruição deste templo dedicado à ciência. — Ergueu a pistola na direção deles. — Mas isso não lhe diz respeito, certo?
Ela apontou e disparou.
13h11
Isto não pode ser bom...
Correndo como se não houvesse amanhã, Gray conduziu os outros por uma escadaria interminável. Depois de Hoga e Endo rebentarem as portas vermelhas na subcave Quatro, depararam-se com umas escadas que pareciam descer até ao centro da terra. Gray contara doze lances de degraus consecutivos, quando as setas verdes que seguiam tornaram-se de repente vermelhas e começaram a piscar furiosamente, ao som de uma sirene.
— Mais depressa! — gritou para os outros, continuando a saltar degraus e embatendo contra as paredes de cada curva da infinita escadaria.
Revelando-se mais ágil do que todos, Aiko ocupava a dianteira do grupo, seguida de Hoga e Endo. Atrás de Gray, Palu ocupava a última posição, atrapalhado pela circunstância de se ver obrigado a arrastar consigo o prisioneiro, o doutor Oshiro. Os pés do investigador quase nunca tocavam nos degraus, pois carregava praticamente o homem debaixo do braço.
Tal como era esperado, ouviu-se uma primeira explosão, seguida de uma série de outras.
As ondas de choque estremeceram toda estrutura, fazendo com que Gray perdesse o pé e se esbarrondasse no patamar seguinte. Olhou por cima do ombro, para se certificar de que os outros estavam bem.
Palu estava estendido de cabeça para baixo nos degraus. Salvara-se de uma concussão ao deitar a mão ao corrimão, mas largara o prisioneiro, que se encontrava sentado, de rabo no chão, no patamar anterior. O ar do homem era de absoluto pânico, porém não deixou de olhar para as próprias mãos, percebendo que se encontrava livre.
Gray adivinhou-lhe o pensamento.
— Quieto! — gritou-lhe.
Oshiro pôs-se de pé e disparou como um coelho pelas escadas acima, desaparecendo de imediato de vista.
Palu começou a levantar-se, pronto para o perseguir.
— Não vale a pena — disse Gray. — Não temos tempo para isso.
Essa afirmação foi confirmada pelo grito horrível de Oshiro, uma dezena de metros acima. Gray sentiu a mudança brusca de pressão nos ouvidos.
— Corram!
Puseram-se de novo em fuga, saltando de patamar em patamar, esbarrando contra as paredes de cada curva. O ar tornou-se mais quente e denso. Cada inspiração parecia queimar-lhe os pulmões, e não tardou para que Gray ouvisse um dragão a rugir nas costas.
Imaginou uma parede de chamas a aproximar-se, pronta a engolfá-los numa assentada, mas as escadas terminaram por fim e o grupo cruzou um novo conjunto de portas, que conduzia a um outro corredor.
— Não parem! — gritou Gray.
Correram em formação apertada. Um par de portas de aço deslizantes abriu-se diante deles, como que a convidá-los para a segurança do laboratório para lá desse ponto. O grupo percorreu esses últimos metros. Um sopro profundo obrigou Gray a olhar por cima do ombro.
O dragão apanhara-os finalmente.
As chamas irromperam pelo espaço circular, queimando o ar nas costas de todos. Então, as portas fecharam-se novamente, estrangulando as chamas, aprisionando o inferno no interior do laboratório. Os aspersores de emergência no teto responderam de imediato à ameaça, soltando uma cortina de água sobre todo e espaço.
Antes tarde que nunca.
Gray apressou-se a reunir os companheiros ao seu redor.
— Temos de...
Uma rajada de tiros obrigou-o a dar meia-volta. Os estrépitos ecoavam de uma saída no lado mais afastado do laboratório. Sentiu o coração falhar uma batida.
Sem precisar de falarem, todos correram nessa direção.
A cada passo que davam, o tiroteio tornava-se mais intenso.
13h15
Luta ou morres.
Seichan não conseguira compreender aquelas palavras de Valya, quando, inesperadamente, a assassina lhe depositara uma SIG Sauer nas mãos. De um momento para o outro, deixara de perceber os contornos da situação que vivia, porém, por enquanto, também não precisava de o fazer.
Segundos antes, Valya disparara na direção do grupo. O primeiro tiro derrubou o doutor Hamada com uma bala no peito. Seichan ainda tentou mantê-lo de pé, procurando usar o seu peso morto como escudo. A assassina disparou de novo, dessa vez arrancando metade do crânio da enfermeira a seu lado.
Atirando o corpo para um dos lados, Valya apontou a arma fumegante na direção da última cápsula do comboio.
— Entra!
Seichan não se moveu, demasiado aturdida para retirar sentido da situação.
As portas das restantes cápsulas abriram-se. Atraídos pelos disparos, duas dúzias de guardas emergiram com as armas em riste. De início, essa força de segurança, que estaria ali para a proteção dos investigadores principais do complexo, não percebeu ao certo o que estava a acontecer.
Valya tirou vantagem disso e abriu fogo, abatendo metade dos guardas com uma única rajada. Depois agarrou em Ken e puxou-o para o interior da cápsula, entregando em simultâneo uma arma a Seichan.
Foi assim que deu consigo agachada ao lado da assassina, ambas abrigadas juntos às portas da cápsula, ambas a dispararem na direção dos guardas que restavam. Valya tinha já perdido quatro dos seus homens, cujos corpos se encontravam caídos na plataforma. Outros tantos encontravam-se feridos na parte traseira da cápsula. Um punhado deles escondia-se atrás dos postes lá fora, tentando flanquear o inimigo.
Valya praguejava sempre que premia o gatilho.
Seichan sentia o cheiro a suor e pólvora que emanava dela. Era óbvio que Valya subestimara a resposta vigorosa da força de segurança ali presente. Essa falha de análise ameaçava ter um custo elevado e colocara a vida de todos em perigo.
Outro dos homens dela irrompeu do esconderijo para conseguir uma melhor linha de tiro, mas um disparo bem colocado derrubou-o antes que conseguisse dar quatro passos.
Valya rugiu de frustração, reconhecendo nitidamente que a batalha se aproximava de um impasse. Constituía um problema, pois não havia um segundo a perder.
Então, as portas de acesso à plataforma abriram-se. Um novo grupo emergiu no meio das duas forças entrincheiradas.
Seichan ficou a olhar, boquiaberta, para aquela visão impossível.
Agachados, Gray e Palu romperam para cada um dos lados, acompanhados de um trio de figuras com os rostos tapados. Abriram de imediato fogo para a fila de cápsulas, apontando primeiro à ameaça óbvia constituída pelos guardas armados.
Retirando proveito da chegada do novo grupo, Valya berrou para os três homens que lhe restavam.
— Retroceder!
Os homens obedeceram e correram para a cápsula. Valya continuou a disparar, oferecendo fogo de cobertura ao assalto de Gray. Abateu mais um dos guardas. Seichan fez o mesmo.
A furiosa batalha não se prolongou mais que uns segundos.
Como se fosse um sinal, a primeira das cápsulas arrancou pelo túnel, seguida pela próxima, ambas deslizando com os patins afiados pelo gelo.
Gray e os outros correram pela plataforma, as armas apontadas para a última cápsula.
Gray avistou de imediato Seichan. Uma expressão de alívio inundou-lhe o rosto, porém o seu olhar nunca largou a figura pálida de Valya. Fez pontaria à assassina, ao mesmo tempo que encurtava a distância.
Seichan pôs-se de pé, retirando-lhe a linha de tiro com o próprio corpo.
— Sai da frente! — avisou Gray.
Seichan respondeu-lhe com a mesma determinação.
— Ainda não.
13h18
Perplexo, Gray franziu o sobrolho. Não esperava aquela reação. Assim que irrompera na plataforma, reparara de imediato em Seichan e Valya, na forma como disparavam juntas, como uma equipa, a partir da última cápsula daquele estranho comboio. Pelos vistos, diante de um inimigo comum, as duas adversárias mortais tinham decidido trabalhar juntas.
Mas isso eram águas passadas.
Os companheiros de Gray mantinham o grupo de homens no interior da cápsula debaixo de mira, alguns feridos, outros desarmados. O inimigo, por sua vez, ameaçava-os da mesma forma.
Que raio se passa aqui?
Valya guardou a pistola no coldre. Com um gesto exagerado, levou a mão ao bolso e retirou um pequeno disco rígido. Atirou-o para Gray, que o agarrou com uma só mão, sem nunca desviar a arma.
Apertou os dedos em torno do disco.
— Isto é suposto ser o quê?
— O meu bilhete de saída daqui para fora. — Acenou com o queixo na direção do dispositivo. — Contém a localização de um armazém com bidões de gás.
— Gás?
— Um inseticida desenvolvido pelos laboratórios Fenikkusu. Eficiente contra as vespas, mas altamente cancerígeno e tóxico para muitas outras espécies animais. Vai causar muita dor, para não falar dos danos ambientais, mas resolverá o problema. — Valya desviou o olhar para Aiko. — Os laboratórios Fenikkusu tencionavam usá-lo para proteger as costas do Japão nos próximos tempos, mas terá o mesmo efeito no Havai.
Gray sentiu-se subitamente aliviado de não ter abatido Valya mal lhe pôs a vista em cima. Ainda mais quando ela disse as palavras seguintes.
— O disco encontra-se encriptado, e destruir-se-á, caso tentem aceder aos ficheiros. — A assassina fitou Gray. — Depois envio-lhe o código de acesso, assim que me encontre em segurança.
— E como é que eu sei que fará isso? Ou que o disco contém o que diz, já agora?
— Nenhum de nós quer ver o mundo destruído. Isso apenas atrapalharia os meus planos para o futuro. Por isso, conto consigo para o salvar por mim.
Gray compreendeu por fim.
A maldita cabra quer usar-nos como ferramentas para a própria ambição.
Estudou a equipa da assassina. Reconheceu-lhes o olhar empedernido, o mesmo que tantas vezes observara em Seichan. Todos eram antigos membros da Guilda. Para terem escapado à purga, teriam de ser alguns dos mais perigosos elementos da organização. E agora encontravam-se sob a liderança daquela assassina calculista, cujo coração era tão gélido como a pele branca.
Como posso permitir que se escapem, que se tornem algo ainda pior?
Suspirou, sabendo a resposta a essa pergunta.
Um problema de cada vez...
Baixou a arma, indicando aos companheiros que fizessem o mesmo.
Os lábios finos de Valya estreitaram-se num esgar de satisfação.
— Como um sinal de boa vontade, acionei um sinal de autodestruição para os aviões que neste momento transportam cargas mortais para as principais cidades do planeta.
Gray anuiu com a cabeça, recordando o instante em que o trio de Cessnas avançara sobre a praia de Maui.
— Como pode ver — prosseguiu Valya —, fui generosa e tratei desse problema, para que possa concentrar-se somente na situação no Havai. — Encolheu os ombros para Seichan. — Infelizmente, o pesticida não tem qualquer efeito nas pessoas parasitadas.
Gray receava que assim fosse. Estendeu o braço e pegou na mão de Seichan. A palma e os dedos ardiam por causa da febre alta.
— Como tal — rematou Valya —, a ameaça entrincheirada naquelas ilhas erguer-se-á novamente, uma e outra vez, obrigando à repetida aplicação do pesticida. Os danos ambientais cumulativos serão severos, e as ilhas terão de ser vedadas para sempre, de forma a proteger o resto do mundo.
Gray desviou o olhar para Palu, cujo rosto empalidecera. Uma maldição desse calibre nunca seria uma boa solução, porém era a única que tinham.
Por essa altura, mais três cápsulas tinham já deixado a plataforma, restando apenas a de Valya. Sabendo que não lhe restava outra alternativa senão seguir o plano delineado pela assassina, Gray fez sinal aos companheiros para entrarem.
Quando as portas se fecharam, Valya ergueu o olhar para o teto.
— Ah, e também lhe deixei mais um presente de despedida.
13h22
De pé, junto à parede de vidro panorâmica do gabinete, Takashi Ito observava a fúria da tempestade sobre o monte Fuji. Clarões de relâmpagos trespassaram as nuvens negras. Ergueu a mão e pressionou a palma contra o vidro. O trovão sequente fez tremer o painel, como um eco da fúria no interior do próprio peito.
Instantes antes, quando se aproximara da parede, o vidro ainda se encontrava frio, varrido por gotas de chuva e granizo. Nesse momento, porém, conseguia sentir o calor que irradiava dos pisos inferiores, à medida que as cargas incendiárias abriam caminho pela infraestrutura de aço do pagode. As chamas revoluteavam lá em baixo, furiosas, e os vidros quebravam-se em estilhaços brilhantes, refletindo as cores daquele inferno.
Atrás de si, uma fiada de fumo deslizou por baixo da porta, vinda do corredor.
Ninguém no complexo viera buscá-lo.
Quando tentara abandonar o gabinete, encontrara essa mesma porta bloqueada.
Imaginou a sua fiel secretária morta no lado de fora, assim como a tripulação do helicóptero pessoal no cimo do pagode, que teria sofrido igual destino. Antes disso, tivera de assistir às inúmeras videochamadas que tinham chegado das várias bases ao redor do planeta, cada uma exibindo imagens dos aviões a explodirem em pleno ar e a caírem, em pedaços, nos diferentes mares.
Sabia que apenas uma mão poderia ter orquestrado uma coisa daquelas.
Uma mão tão branca como a mais fina porcelana.
Chunin Mikhailov.
Suspeitava agora que a mulher não fora inteiramente verdadeira acerca da morte do neto, Mashiro. Mesmo assim, respeitava a ambição da assassina, que pelos vistos não conhecia limites. Pelas ações dela, tornara-se óbvio que recusava a ideia de um mundo em ruínas, onde as suas opções ficariam limitadas, o futuro pessoal confinado e eternamente restringido por mestres japoneses.
Não invalidava, contudo, que tivesse de ser punida.
Tomara já medidas nesse sentido, conhecendo de antemão a provável rota de fuga. As instalações tinham sido concebidas com uma última medida de segurança, que visava o pior dos cenários. Não seria, no entanto, uma purga pelo fogo, mas através de algo igualmente purificante.
Em paz no que tocava a essa matéria, virou costas à janela e encaminhou-se para a secretária. O fumo preenchia já uma boa parte do gabinete, dificultando a respiração.
Ajoelhou-se frente à secretária, tencionando fazê-lo com elegância, mas acabou por bater com os joelhos com força no chão, chocalhando os ossos. Ignorou a dor e deixou-se ficar à secretária. Enquanto lançava um último olhar à tempestade, alcançou um pedaço grosso de papel.
Sem olhar, fez um vinco, depois outro. Os dedos moviam-se sozinhos. Observou a tempestade, mas já não se identificava com a tormenta. Dobra após dobra, trabalhou o papel. Aos poucos, a folha deu lugar a uma forma.
Quando terminou, uma figura branca de origâmi repousava sobre a secretária.
A favorita de Miu.
Ergueu-a com delicadeza e pousou-a em cima desse último fragmento da Coroa do Demónio. Para si, um fragmento do coração da sua amada.
As primeiras chamas lamberam a janela panorâmica.
Não falta muito.
O fumo era agora tão denso que lhe fechava a garganta e os pulmões. O seu corpo arderia em breve, convertendo-se numa última oferenda de incenso para a mulher amada.
Miu...
Recordou as palavras centenárias de Otagaki Rengetsu acerca da maravilha e mistérios do incenso:
«Um único fio de
fumo aromático
de um pau de incenso
desvanece-se.
Para onde vai?»
Rezou, desviando o olhar da ferocidade da tempestade para a flor delicadamente criada a partir de papel, para o que representava.
Deixa-me ir ao teu encontro.
13h43
Ken segurou-se a uma das alças de couro suspensas no teto da cápsula. Enquanto o veículo deslizava pelo túnel de lava congelado, os passageiros dividiram-se em duas fações, ocupando cada grupo a sua respetiva metade do espaço. A equipa de Valya ocupava a dianteira; a de Gray, a traseira. Ninguém dizia uma palavra; ninguém desviava os olhos uns dos outros.
O único som que se ouvia era o chocalhar da cápsula, juntamente com o assobio entediante do motor elétrico. Esse assobio tornou-se áspero passados uns minutos. Ken pensou que mais valia não se ter queixado, ainda que o tivesse feito apenas em pensamento.
As luzes na cabina apagaram-se, e o motor morreu.
A súbita desaceleração projetou a equipa de Gray para a frente, forçando os dois grupos a juntarem-se. Passados uns segundos de confusão, as lanternas montadas nas armas acenderam-se, iluminando o espaço confinado.
— O que aconteceu? — perguntou Palu.
Gray olhou em redor.
— Alguém desligou a cápsula remotamente.
— Quem? — perguntou Seichan.
Valya respondeu com duas palavras.
— Takashi Ito.
A cápsula começou a mover-se de novo, mas dessa vez para trás. Sem energia, o veículo começara a deslizar pelo túnel inclinado, de volta para a plataforma.
Gray encaminhou-se para a porta.
— Se conseguirmos abri-la, podemos saltar e continuar a pé.
— Não podemos fazer isso — disse Valya, inclinando a cabeça. — Ouçam.
Ken esforçou-se por ouvir para lá do pulsar do próprio coração. Ato contínuo, apercebeu-se de uma espécie de murmúrio que tomava conta do túnel.
— O que é isto? — perguntou.
Gray endireitou as costas.
— Água.
— Água do lago — corrigiu Valya.
Anteriormente, Ken calculara que aquele túnel passaria provavelmente por baixo do lago Kawaguchi.
Valya franziu o sobrolho.
— O velho deve ter colocado cargas explosivas no teto do túnel, mesmo por baixo do leito do lago. Calculo que com o objetivo de inundar também as instalações, para lavar quaisquer provas que restassem das atividades no subsolo da torre.
Incluindo nós, pensou Ken.
A cápsula continuou a deslizar em direção a uma morte certa.
Gray virou-se para os homens de Valya.
— Ajudem-me a abrir a porta. — Depois para Hoga e Endo: — Quantas cargas sobraram?
Um deles ergueu um dedo no ar, o outro, dois.
— Vai ter de servir.
Com a ajuda de Palu, Gray e os outros forçaram a porta.
— Todos lá para fora — disse Gray ao grupo. — Precisamos do peso e da força de todos para travar a cápsula.
Ninguém se opôs à ideia.
Ken seguiu atrás de todos. Antes que a cápsula ganhasse mais velocidade, apressaram-se para a traseira e tomaram posições atrás dos patins. Como um só, espremeram-se contra o veículo em andamento, cravando os pés no chão.
As botas deslizavam no gelo. Pareciam formigas a tentar impedir uma morsa de rebolar por uma encosta abaixo. Apesar do material leve da cápsula, constituída na maioria de um compósito de plástico, continuava a ser demasiado pesada para a travarem.
Foi então que Ken teve uma ideia.
Abandonou a posição e deixou-se cair de costas, permitindo que a cápsula passasse por cima dele. As rodas com espigões passaram perigosamente de ambos os lados. Examinou atentamente a carroçaria.
Vá lá...
Então, encontrou o que procurava.
Uma escotilha onde calculava que se localizasse o motor elétrico. Abriu rapidamente a tampa e agarrou-se ao rebordo do buraco revelado, continuando a ser arrastado juntamente com o veículo. Tal como esperava, todo o compartimento se encontrava preenchido por filas de baterias elétricas. Com a mão que tinha livre, começou a retirá-las e a deixá-las cair no gelo, deixando um rasto de retângulos ao longo do túnel.
Cada uma das baterias devia pesar uns bons treze quilos.
Pela altura em que se desfizera de umas quinze baterias, o que diminuíra o peso do veículo em cerca de duzentos quilos, a cápsula começou finalmente a desacelerar, até se imobilizar.
Suspirando de alívio, deslizou de novo para junto dos outros. Palu agarrou nele pelos tornozelos e puxou-o de debaixo da cápsula, dando-lhe em seguida um abraço.
— Bem pensado — admitiu Gray.
Ken encolheu os ombros.
— Conduzo um Prius. Juro que metade do peso do carro se deve às baterias.
Olhou por cima do ombro. Lá atrás, Hoga e Endo estavam a colocar cargas explosivas ao longo de toda a circunferência do túnel. Enquanto o par trabalhava, Gray instruiu os homens de Valya para recolherem as baterias caídas, para a seguir as entalarem contra as rodas da cápsula, de forma a manter-se no lugar.
Com tudo pronto, Gray ergueu um braço no ar.
— Todos lá para dentro!
Tivera de gritar bem alto para se fazer ouvir sobre o barulho da torrente em aproximação. Por essa altura, as águas do lago deviam ter já inundado o nível inferior das instalações e dirigiam-se agora pelo túnel acima, ao encontro deles.
Ofegante e temendo pela vida, Ken seguiu os companheiros para o interior da cápsula.
Assim que as portas se fecharam, Gray deu a ordem aos colegas de Aiko.
— Fogo!
Um dos operacionais japoneses premiu o botão do detonador.
A onda de choque empurrou a cápsula uns trinta centímetros. Apesar do isolamento da cabina, a explosão foi ensurdecedora, martelando os tímpanos e o peito de todos. Pedaços de gelo atingiram a frente do veículo e voaram por ambos os lados.
Assim que a poeira assentou, Ken olhou na direção da derrocada.
— Não percebo... aquilo é o suficiente para deter a água?
Gray abanou a cabeça.
— Nem por sombras.
— Então para que...
— Pense numa rolha de champanhe — disse Gray.
Antes que Ken pudesse compreender a analogia, a massa de água esbarrou, com estrondo, contra a barreira improvisada. A massa de gelo e rochas apenas suportou o impacto uma fração de segundo, antes de ser arrastada na direção da cabina.
Atingiu a cápsula como um aríete, empurrando-a pelo túnel acima. Os dois grupos foram uma vez mais atirados um para cima do outro e para a traseira da cabina.
A força da torrente continuou a empurrar a cápsula, com a água a lamber as janelas, mas o veículo manteve-se estável, deslizando na frente da enxurrada.
Deitados no chão, nenhum dos passageiros tentou levantar-se.
Por fim, e à medida que era atingido um ponto de equilíbrio entre a água libertada pelo lago e a elevação do túnel, a cápsula começou a abrandar, até se deter. Sem a força da água para a empurrar, a turbulenta viagem chegara ao fim. Luzes brilhavam cem metros adiante.
Apressaram-se nessa direção, carregando os feridos.
O próprio Gray amparava Seichan com um braço e um dos homens inimigos com o outro.
O túnel desembocava num extenso armazém de betão. As outras cápsulas aguardavam perfiladas, visto que tinham completado a travessia em segurança. Encontravam-se vazias, abandonadas pelos cientistas em fuga.
O grupo avançou para o exterior do edifício. Ainda chovia, embora menos que anteriormente. A tempestade começava a esmorecer, soltando os últimos queixumes. Metros ao lado, Gray conversava com Valya, ambos com as cabeças curvadas. Estaria provavelmente a certificar-se de que a assassina manteria a promessa de fornecer os códigos de acesso ao disco rígido.
Ao aproximar-se, Ken ainda conseguiu ouvir a resposta dela.
— Nunca quis que as coisas terminassem desta maneira. — Lançou um olhar duro a Seichan, que lhe devolveu outro igual. — Preferia que ela morresse com uma bala, mas, pelo menos, vão poder despedir-se um do outro, certo?
Quando a assassina virou costas, Gray colocou o braço por cima de Seichan, que encostou a cabeça contra o seu ombro. Parecia que os dois percorriam já essa longa e penosa estrada do adeus.
Incapaz de continuar a olhar para o casal, Ken afastou-se. Encontravam-se algures nas encostas do monte Fuji, com uma fantástica vista panorâmica sobre o lago Kawaguchi. As margens encontravam-se barrentas, assinalando a descida da água que se escapara para o subsolo.
Para lá da margem mais afastada, uma luz brilhante subsistia sob o manto baixo de nuvens cinzentas.
Era o que restava do Castelo de Gelo.
Enquanto Ken fitava a estrutura ardente, uma suspeita insidiou-se no pensamento, convertendo-se lentamente numa certeza.
Escapou-nos qualquer coisa.
E agora era demasiado tarde.
37
9 de maio, 06h18 CEST
Wieliczka, Polónia
Elena agachou-se com os outros em torno do enorme bloco de âmbar. A lanterna de Sam ainda se encontrava em cima do quadrado, iluminando o interior da pedra.
— Que coisa é esta? — perguntou.
Sam começou a andar ao redor do grupo e da pedra, como que a procurar fisicamente uma solução para o mistério.
— É uma crisálida — respondeu. — Um casulo.
Elena já tinha chegado a essa conclusão. Preservada na resina encontrava-se uma enorme massa oblonga, densamente tecida, que era sem dúvida uma espécie de pupa. Um halo de âmbar mais escuro cercava-a de todos os lados, como se tentasse esconder o horror lá dentro.
Num dos lados, uma criatura do tamanho de um cão pequeno emergia de uma rutura no casulo. A cabeça descaída exibia longas antenas curvadas, com os enormes olhos negros facetados a fitarem o grupo reunido ao redor. As asas compridas, que pareciam húmidas, permaneciam dobradas sobre o dorso arqueado. Um par de pernas dianteiras articuladas agarrava-se à parte de cima da carapaça de seda.
Elena imaginou a criatura a tentar arrastar-se para fora do casulo, antes de a seiva pré-histórica a aprisionar para sempre.
Uma batalha nitidamente perdida.
Kat apontou com o queixo para a criatura monstruosa.
— Penso que a pergunta de Elena se referia ao animal em si, não ao casulo.
Sam fitou os companheiros, como se a resposta fosse evidente.
— É óbvio que se trata de uma Odokuro. Basta olhar para o padrão do abdómen, preto e vermelho. As mandíbulas também não deixam margem para dúvidas. No mundo dos insetos, são o equivalente a impressões digitais. Uma análise genética poderá confirmar o que estou a dizer, mas não vejo necessidade disso.
Monk coçou o queixo, algo que se fez ouvir pelo raspar do plástico da mão prostética com a barba rija.
— As notas do professor Matsui não mencionavam nada disto.
— É normal. Calculo que nunca tenha observado esta encarnação das Odokuro. Sobretudo em laboratório.
— Mas porquê? — insistiu Elena.
— Porque o que estamos a ver é nada mais nada menos do que uma rainha Odokuro.
Monk franziu o sobrolho.
— Como assim? O professor Matsui disse que estas vespas não tinham rainha.
— Pelo menos, que ele soubesse. Ele já tinha chegado à conclusão que as Odokuro são uma espécie intermédia entre as antigas vespas solitárias e as atuais vespas sociais, aquelas que aprenderam a juntar-se em enxames, onde cada elemento tem a sua função específica.
Monk acenou com a cabeça.
— Sim, mas ele acreditava que a procriação da espécie se baseava no modelo das vespas solitárias, que as Odokuro se reproduziam através de um grupo de fêmeas procriadoras, em vez de uma rainha solitária.
— Parece-me óbvio que se enganou a esse respeito — constatou Kat.
— Talvez não inteiramente — disse Sam, continuando a circundar o bloco de âmbar, estudando a criatura de todos os ângulos. — Ele estava certo em relação ao perfil híbrido das Odokuro, apenas nunca imaginou que pudesse existir uma rainha. Talvez esta criatura só surja em ambiente natural, nunca em laboratório.
— Sim, mas qual o papel da rainha, nesse caso? — insistiu Elena.
— Não sei, mas calculo que seja importante. Talvez até tenha a resposta para todas as nossas perguntas.
Elena também pensava assim. Pôs-se de pé, demasiado ansiosa para estar quieta. Os joelhos queixaram-se, e quase perdeu o equilíbrio.
Como sempre, Sam encontrava-se por perto e amparou-a.
— Obrigado — agradeceu Elena, virando-se para ele.
Sem nada que o fizesse prever, Sam puxou-a com força contra si, firmou-lhe um braço à volta da cintura e pressionou o cano frio de uma pistola contra o pescoço.
— Ninguém se mexe! — gritou para os outros.
Inclinou a cabeça e falou rapidamente em japonês.
Luzes acenderam-se nas costas do grupo. Figuras negras irromperam pela caverna, com as botas de combate a martelarem o chão de pedra, os feixes vermelhos das miras laser montadas nas metralhadoras de assalto a rasgarem a escuridão, dançando por toda a parte, antes de se fixarem em cada elemento do grupo reunido em torno do bloco de âmbar.
— De joelhos! — ordenou Sam. — Mãos na cabeça!
Boquiaberta, Elena alternou o olhar entre a força de assalto e os companheiros. Um por um, todos se ajoelharam no chão e ergueram as mãos vazias, entrelaçando os dedos no cimo da cabeça.
Kat foi a última a cumprir a ordem, lançando um olhar assassino a Sam.
Depois, tal como os companheiros, pousou lentamente os joelhos no chão.
06h22
— Porquê? — perguntou Kat, assim que o inimigo lhe retirou a arma.
Hei de saber pelo menos a razão desta traição.
Já tinha percebido que os setes homens da equipa de assalto deviam ter entrado na mina disfarçados de paroquianos para a missa da meia-noite, enviados pelo traidor enquanto estudavam os velhos mapas no museu de história. Pelo modo como Sam inclinara a cabeça, o desgraçado devia estar a usar um sofisticado transmissor alojado no canal auditivo, um dispositivo que não só lhe permitia comunicar com a equipa, mas também assinalar a sua localização nas profundezas da mina.
— Porquê? — repetiu Sam, focando-se em Kat enquanto caminhava de um lado para o outro entre os seus homens. Com a situação controlada, atirara Elena para um dos lados, permitindo-lhe que se juntasse aos companheiros. — Por vingança, se quiser. Contra um governo que não teve qualquer problema em despojar um americano honesto da sua herança, fruto de trabalho árduo. Entre taxas de sucessão e uma catrefada de impostos, o rancho que foi propriedade da minha família durante quatro gerações, em Montana, acabou nas mãos de um banco; banco esse que, em tempos de crise, foi resgatado com o dinheiro dos contribuintes, incluindo o meu. Portanto, diga-me, que devo eu a um governo desse calibre?
Mais ao lado, dois dos homens pegaram no quadrado de âmbar. Olhando para o tamanho do bloco, parecia um feito impossível, até que Kat se lembrou da baixa densidade daquele material, que o tornava bem mais leve do que parecia. Os homens começaram a deslocar o tesouro pela caverna, com a nítida intenção de o levarem dali para fora.
Kat franziu o sobrolho.
Pelos vistos, o mineiro morto não era o único ladrão ali presente.
Sam prosseguiu.
— Os laboratórios Fenikkusu entraram em contacto comigo, depois de o professor Matsui me ter enviado um e-mail acerca da descoberta no Brasil. Eles já estavam de olho nele. Como deverá calcular, não são muitas as coisas que escapam à atenção de Takashi Ito. Ele ofereceu-se então para pagar todas as minhas dívidas, em troca de o manter informado dos progressos de Matsui. — Encolheu os ombros. — Depois foi a vez de vocês me contactarem e, escusado será dizer, a oferta inicial tornou-se bastante mais lucrativa.
Kat acenou com a cabeça na direção do bloco de âmbar.
— E o que espera ganhar com aquilo?
— Atendendo ao que Takashi está a planear, permanecer nas boas graças dele é mais que suficiente.
— E o que está ele a planear? — insistiu Kat.
Sam riu-se, recuando passo a passo, a fim de seguir os homens que transportavam o bloco de âmbar.
— Acredite em mim, a única coisa que precisa de saber é que ficará contente por ter uma morte rápida.
Virou-se para um dos outros cinco homens e falou rapidamente em japonês. O discurso era fluente, mas Kat também dominava a língua e percebeu cada palavra.
— Assim que sairmos, matem-nos e rebentem a entrada da caverna. Não queremos que os corpos sejam descobertos tão depressa. Não que faça grande diferença, mas mais vale prevenir.
O líder da equipa de assalto anuiu com a cabeça.
— Hai.
Kat amaldiçoou-se por não ter investigado o entomologista com mais rigor, antes de o incluir na missão. Condicionada pela urgência da situação, cometera o erro de confiar às cegas naquele homem, um investigador que aparentemente apenas trabalhava para o centro de pesquisa e jardim zoológico nacional do Instituto Smithsonian.
Observou Sam a abandonar a caverna com os dois homens que carregavam o bloco. As luzes deles iluminaram um corpo caído na rampa.
Piotr...
Kat pensou de imediato nos outros dois irmãos, Gerik e Anton, interrogando-se se teriam sofrido o mesmo destino na margem do lago.
Desviou o olhar para Clara, que também avistara o corpo de Piotr. A jovem tremia da cabeça aos pés, com os olhos pejados de lágrimas. O rosto de Slaski, por norma inexpressivo, estava vermelho de raiva. Elena apenas exibia um ar chocado, tanto pela situação como pela inesperada traição do entomologista, um homem pelo qual desenvolvera um evidente afeto.
Por fim, olhou para o marido, acenando ao de leve com a cabeça.
Sam podia tê-la enganado antes da missão, mas denunciara-se momentos antes, deixando cair sem querer a máscara ao deparar-se com a descoberta da rainha das Odokuro. O professor Matsui estava enganado... todos estavam enganados. A escolha de palavras soara-lhe estranha. Quem eram todos? Em teoria, Sam apenas soubera da existência da espécie através de Ken.
Mesmo assim, não podia ter a certeza e apenas lhe restava aguardar e contar com a experiência dele para descobrir mais qualquer coisa acerca das vespas, antes de o confrontar. Sabia que a questão da rainha teria de ser importante, porém, em perspetiva, teria feito melhor em optar por uma abordagem mais prudente. Mas a verdade é que não contava que ele agarrasse Elena daquela maneira.
Por outro lado, sempre tenho o plano B...
06h34
Ajoelhada no chão, sem forças para se manter direita, Elena deixou cair o peso do corpo sobre os calcanhares. O desespero e o arrependimento tinham-na deixado vazia, e os braços tremeram enquanto lutava para manter as mãos sobre a cabeça. Queria poder tocar no par de crucifixos pendurados na corrente dos óculos, proferir uma última oração para a filha e para as duas netas, desejar-lhes uma longa e feliz vida.
Concentrar-se em lançar semelhante súplica a Deus não era um exercício fácil, sobretudo com cinco metralhadoras apontadas ao grupo. Apercebeu-se do ligeiro aceno da cabeça de Kat para o marido, que interpretou como uma última e silenciosa expressão do amor que ambos tinham demonstrado durante toda a viagem. Sabia que o casal tinha duas filhas e decidiu incluir as crianças na oração.
Depois da troca de olhares silenciosa com a mulher, Monk virara-se de frente para o inimigo, com as mãos atrás da cabeça, posição que ainda mantinha naquele momento.
Elena olhou para ele e pestanejou duas vezes, compreendendo por fim que não poderia estar mais enganada em relação às intenções do casal. Em vez de duas, Monk tinha uma única mão pressionada contra a nuca, cujos dedos remexiam no encaixe de titânio onde por norma se encontraria a prótese.
Quando Sam ordenara aos seus homens para despojarem o grupo de todas as armas, esquecera-se de os alertar para uma ameaça escondida. Elena calculava que Kat contribuíra em boa parte para que isso tivesse acontecido, ao manter Sam distraído com perguntas, enquanto Monk se desfazia da mão prostética, que por essa altura não se avistava em parte alguma.
Foi então que detetou algo a mover-se atrás das pernas dos homens: uma pálida aranha de plástico, com dedos em vez de pernas.
Lembrava-se bem da demonstração de Monk nas instalações da Sigma, quando lhe mostrara a habilidade de poder controlar a prótese remotamente. O modo como operava aquela maravilha tecnológica era algo digno de ser visto; a mão continuou a aproximar-se, sorrateiramente, dos homens.
Elena também se recordava bem do que acontecera no museu em Tallinn.
Monk virou-se para o grupo e murmurou uma única palavra.
— Bum!
Ao ouvir o sinal, Kat mergulhou na direção de Elena, enquanto Monk se lançava para Clara e Slaski. O estrondo e o clarão deixaram-na meio surda e meio cega. Aterrou com força no chão, protegida pelo corpo de Kat. Ainda antes de o eco da explosão se desvanecer, Kat rolou para um dos lados.
Elena deixou-se ficar deitada, a pestanejar. Diante de si, Kat deslizou com a anca no chão e apoderou-se da arma caída de um dos homens, cujas costas esburacadas fumegavam. Ainda no chão, disparou à queima-roupa para outro, que tentava levantar-se. O homem tombou para trás.
O oponente mais afastado, pouco atingido pela explosão, apenas caíra de joelhos. Ergueu a arma na direção de Kat, porém, antes que pudesse premir o gatilho, o seu peito explodiu, expelindo a ponta de uma picareta por entre as costelas. O corpo tombou para a frente, revelando a figura de Monk atrás dele, de pé, a segurar o cabo da ferramenta do mineiro morto.
Os outros dois membros da equipa de assalto, ambos mais próximos da explosão, tinham morrido de imediato.
Monk apressou-se a recolher duas metralhadoras e entregou uma a Slaski.
— Sabe usar uma destas?
Slaski recuou, a abanar a cabeça.
Recomposta, Elena deu um passo em frente e retirou a arma das mãos de Slaski. Efetuou uma verificação rápida dos componentes e acenou com a cabeça.
— Eu trato disto. Cresci nos bairros da zona leste de Los Angeles.
Monk sorriu-lhe.
— A senhora é uma bibliotecária de muitos talentos.
A expressão de Kat permaneceu séria, focada.
— Siga-nos até lá fora, mas deixe-se ficar junto à rampa.
— O que vão fazer? — perguntou Elena.
Kat acenou com a cabeça na direção do marido.
— Trabalhar.
06h39
Enquanto o grupo abandonava a maldita caverna, Kat apressou-se a mudar de tática. A mina inteira gemia lá fora, com o chão a tremer debaixo dos pés. Frágeis estalactites de sal soltavam-se do teto e despedaçavam-se em mil pedaços. A força da explosão desestabilizara toda aquela secção abandonada do complexo, já de si comprometida. Metade da concha colapsara no passado, e agora era a vez da outra metade.
Mesmo assim, Kat deteve-se no fundo da rampa para examinar o irmão de Clara. O homem tinha um punhal cravado na base do pescoço. Monk afastou Clara para um dos lados, evitando que ela tivesse de ver aquilo.
Kat cerrou os dentes ao pôr-se de pé.
— Okay, novo plano: vamos sair daqui todos, mas eu e o Monk vamos à frente. Vocês seguem-nos uns bons metros atrás, compreendido?
Não esperou que ninguém confirmasse as instruções. Apertou os dedos em torno da arma roubada e correu pela passagem que usaram antes. Manteve o ritmo forte, sabendo que Sam e os outros teriam ouvido o estrondo. Estariam convencidos de que tinha sido apenas os companheiros a rebentarem a entrada da caverna, tal como haviam sido instruídos?
Não tinha maneira de saber, mas não podia deixar aquele traidor escapar com o bloco de âmbar. Se houvesse uma resposta escondida nos restos preservados da rainha, precisavam de recuperar a maldita criatura.
À medida que percorriam os quatrocentos metros de túnel, os tremores intensificaram-se. A explosão devia ter originado um efeito de dominó, fazendo com que as várias secções colapsassem umas atrás das outras. O ar enchera-se de minúsculos cristais de sal, que brilhavam como diamantes nos feixes das lanternas.
Sem aviso, o chão sacudiu-se com violência sob os pés de Kat, arremessando-a contra a parede. Os outros foram igualmente projetados, mas pelo menos mantiveram-se de pé. Uma nuvem de fumo e cristais de sal avançou nas costas de todos.
O túnel devia ter colapsado lá atrás.
— Mexam-se! — ordenou Kat.
Correram mais depressa. Kat pressentiu que a saída estaria próxima, mas foi então que a luz da lanterna revelou uma pilha de escombros.
A passagem encontrava-se bloqueada.
Monk deteve-se a seu lado.
— E agora?
Kat abanou a cabeça, a expressão desolada.
— Não sei...
Monk colocou-lhe um braço à volta da cintura.
— Usa o teu cérebro magnífico para nos tirar daqui.
Kat baixou o olhar para os pés; não para admitir a derrota, mas para observar a água que corria no chão. O fluxo era abundante e forte. Em bom rigor, aumentava a olhos vistos.
Olhou por cima do ombro, limpando a poeira de sal do nariz. O abalo anterior abatera o túnel lá atrás; todavia, se a água continuava a correr...
— Temos de voltar atrás!
Obrigou toda a gente a recuar pelo mesmo caminho. Em menos de um minuto, tinham já alcançado a secção colapsada. Em vez de se depararem com um beco sem saída, verificaram que o desabamento abrira uma passagem para o túnel paralelo a esse, de onde provinha a água que corria pelo chão.
— Vamos! — pressionou Kat, e esgueirou-se pela abertura com os outros, agradecendo aos mineiros de outros tempos pela solução engenhosa.
Uma vez do outro lado, apressaram-se de novo em direção à saída. O progresso pelo novo túnel revelou-se mais lento pela presença de formações de sal que atrapalhavam o andamento, mas os tremores tinham desfeito uma boa parte delas, permitindo-lhes não perderem demasiado tempo.
Por fim, encontraram-se de novo no início da concha. Kat prosseguiu com cautela, a arma em riste, receando que Sam tivesse deixado um dos homens a guardar a saída. Porém, em vez de um atirador escondido na penumbra, apenas encontrou uma caverna vazia. Dois corpos caídos marcavam presença junto ao canal que conduzia ao enorme lago.
Gerik e Anton...
Uma vez mais, apertou os dedos em torno da arma.
O jet ski ainda se encontrava junto aos corpos, mas o barco desaparecera, provavelmente roubado por Sam para transportar o bloco de âmbar. Reparou igualmente numa pilha de botijas de mergulho abandonadas, o que explicava como a equipa de assalto conseguira emboscar os irmãos de Clara.
Fez sinal para os outros se juntarem a si.
— Elena, fique aqui com a Clara e o doutor Slaski. — Apontou com o queixo para a arma nas mãos da bibliotecária. — Mantenha-se escondida. Se aparecer alguém além de nós...
Elena ergueu a metralhadora.
— Esse alguém irá arrepender-se...
Ótimo.
Kat virou costas e encaminhou-se para o jet ski. Pediu uma desculpa silenciosa a Gerik, ao retirar-lhe as chaves do veículo amarradas ao colete salva-vidas. Com a ajuda de Monk, empurrou o jet ski para a água e subiu para o lugar do condutor. Monk sentou-se atrás, empunhando a SIG Sauer que recuperara de um dos oponentes abatidos.
Kat inclinou-se para a frente e pousou a metralhadora entre as pernas.
Monk aproveitou e inclinou-se também.
— Querida...
— Eu sei. Não podemos contar com o elemento-surpresa.
Se tivessem de enfrentar o inimigo no lago, isso obrigaria a um ataque direto.
— Não, apenas queria dizer que te amo.
Kat virou o rosto e deu-lhe um beijo na bochecha.
— Também te amo.
Monk recostou-se.
— Posto isto, vamos lá caçar bandidos.
Kat firmou as mãos no guiador.
É por isso que te amo, estamos sempre em sintonia.
Ligou o jet ski, injetou o motor e acelerou pelo canal. Não abrandou em nenhuma secção da passagem em forma de S, ganhando velocidade a cada curva. Pela altura em que alcançou o lago, o jet ski praticamente voava sobre a superfície plácida das águas.
Avistou de imediato o alvo, um pequeno ponto brilhante a rasgar o lago negro. Kat navegava de luzes apagadas e apontou o jet ski nessa direção. O inimigo parecia já muito perto da margem oposta, mas o barco não avançava muito depressa, provavelmente por causa da carga que transportava.
Kat não tinha essa desvantagem e espremeu toda a potência do motor, levando o ponteiro do velocímetro até à marca dos cem quilómetros por hora. O ponto brilhante aumentou rapidamente de tamanho. Apesar de navegar às escuras, Kat não tinha forma de anular o ruído do motor do jet ski.
Quando o inimigo se apercebeu de que o veículo que se aproximava a alta velocidade poderia não estar a ser pilotado por um dos seus, o jet ski encontrava-se já praticamente em cima deles. Os primeiros disparos romperam o rugido do motor, mas Kat manobrou a ágil embarcação para um lado e para o outro, desafiando a pontaria dos homens a bordo do Zodiac.
Monk ripostou por cima do ombro dela. Cada disparo da SIG Sauer martelava-lhe os tímpanos. Felizmente para ambos, o alvo de Monk era bem maior e iluminado. Abateu um dos oponentes e obrigou outro a abrigar-se com apenas um carregador. Inclinou-se para a frente e alcançou a metralhadora entre as pernas de Kat.
Ergueu-a apenas com uma mão, apoiou o cano no outro braço e despejou uma chuva de balas que retalharam um dos flutuadores laterais do Zodiac. O barco começou a inclinar-se rapidamente desse lado.
O segundo atirador tentou mantê-los à distância, mas perdeu o pé quando o flutuador se afundou de vez, sacudindo violentamente o barco. Ao cair na água, Monk ajustou a pontaria e atingiu-o duas vezes no peito em jeito de presente de despedida.
Infelizmente, o atirador não foi o único a perder o equilíbrio.
Kat viu o bloco de âmbar inclinar-se e deslizar pelo chão do barco. Embateu contra o flutuador vazio, rolou sobre si mesmo e caiu borda fora, para desaparecer nas águas profundas do lago negro.
Aflito pela possível perda do pedaço de âmbar, Monk passou a arma a Kat e mergulhou quando o jet ski passou ao lado do barco.
Kat não tinha tempo para lhe dizer que o esforço seria em vão.
Em vez disso, inclinou-se sobre o guiador e seguiu em direção à margem. No início do ataque, reparara num chapinhar suspeito junto à popa do Zodiac. Nada mais nada menos do que um rato a abandonar o barco a afundar-se. Pelo canto do olho, acompanhara o progresso lento de Sam na água, enquanto o homem tentava chegar à segurança da margem.
Por essa altura, ele já pisava terra firme e corria para o túnel que conduzia aos níveis superiores da mina. Kat acelerou nessa direção, mas o desgraçado tivera o bom senso de apagar a luz do capacete. Àquela distância, a sua figura não passava de uma silhueta negra contra a escuridão. Se alcançasse os túneis, nunca mais lhe poria a vista em cima.
O jet ski alcançou a margem inclinada quase à velocidade máxima. Kat apertou as pernas contra o assento e deixou que o veículo deslizasse pela rocha acima, erguendo ao mesmo tempo a metralhadora. Premiu o gatilho, despejando o carregador de uma assentada. Mas não pretendia atingir um alvo tão pequeno, pois seria quase impossível acertar-lhe.
Em vez disso, apontara para o enorme aglomerado de estalactites de sal na entrada do túnel. As formações soltaram-se do teto e caíram como uma chuva de lanças afiadas, a que se seguiu um grito agudo.
À medida que o jet ski perdia o embalo, saltou do assento e correu em direção ao túnel. Sabendo que Sam estava armado, manteve a luz do capacete apagada. Avançou com as costas curvadas, tentando discernir onde ele se encontrava. Os pedaços das estalactites estalavam debaixo das solas das botas.
Foi então que um gemido agonizante se sobrepôs aos estalidos.
Seguiu facilmente o som até se deparar com a silhueta de um corpo a contorcer-se no chão. Acendeu a luz do capacete. Sam debatia-se com um pedaço de estalactite espetado no pescoço, outro no ombro e um terceiro na coxa esquerda. As forças abandonavam-no à medida que o sangue jorrava, em golfadas, do ferimento no pescoço, mas a dor lancinante não lhe dava tréguas.
Os gritos horríveis ecoaram por toda a caverna.
Kat sabia o que o fazia sofrer daquela maneira atroz. Era algo que não tinha nada que ver com a certeza da morte iminente.
Sal nas feridas.
Virou costas e deixou-o entregue àquele suplício. Pela altura em que alcançou de novo a margem, os gritos cessaram.
Diverte-te no inferno, miserável.
Olhou na direção das águas negras. Monk nadava para trás e para a frente, ao longo do barco meio afundado.
O marido apercebeu-se da sua presença na margem.
— Não consigo encontrar o bloco! — gritou-lhe. — Vamos precisar de mergulhadores!
Ela encostou as mãos aos cantos da boca e gritou-lhe de volta.
— Espera!
— Espero? Pelo quê?
Kat perscrutou as águas. Ato contínuo, um enorme objeto rompeu a superfície a poucos metros de Monk, onde ficou a balançar, assustando-o.
— O âmbar flutua! — gritou ela. — Sabias?
A densidade do âmbar era menor do que a da água salgada. Constituía, aliás, uma das razões pela qual o âmbar era frequentemente encontrado nas costas do mar Báltico. As ondas limitavam-se a empurrar os pedaços à deriva para terra, para quem os quisesse apanhar.
— Agora é que dizes isso? — resmungou o marido.
Nadou para o bloco e começou a empurrá-lo para a margem.
Apoiando as mãos nas ancas, Kat suspirou.
Tinham recuperado a rainha, mas será que lhes serviria de muito?
Visualizou a criatura aprisionada na resina.
O que queria aquilo dizer?
38
9 de maio, 16h18 JST
Tóquio, Japão
Duas horas após escapar à destruição do Castelo de Gelo, Gray marcava passo na sala de reuniões da Agência Nacional de Serviços Secretos. O quartel-general localizava-se no centro de Tóquio, no distrito de Chiyoda, o equivalente japonês do National Mall de Washington. As janelas da divisão ofereciam uma vista fantástica do Palácio Imperial. Algures no mesmo distrito localizavam-se também o supremo tribunal e a residência oficial do primeiro-ministro.
Gray aguardava uma chamada de videoconferência de Painter Crowe. Minutos antes, atualizara o diretor acerca dos acontecimentos ocorridos até ao momento, e agora aguardava aquela nova chamada. Receava más notícias, ou mesmo o pior. Antes de ser avisado para aguardar, estivera reunido com Aiko e alguns dos colegas de confiança. Logo após chegarem a Tóquio, Valya entrara em contacto para cumprir a promessa e fornecer o código de acesso ao disco rígido. Aiko enviara uma equipa de operacionais ao hipotético armazém, onde os homens encontraram uma enorme reserva do tal pesticida desenvolvido pelos laboratórios Fenikkusu.
Uma esquadrilha de aviões de carga e aviões-cisterna japoneses encontrava-se já a caminho das ilhas havaianas, para colocar a substância a bom uso. Apesar da promessa de que o químico seria capaz de erradicar as populações adultas das vespas, não oferecia qualquer solução para as vítimas parasitadas, fossem elas humanas, animais ou insetos.
Aiko também mandara traduzir alguns dos estudos de viabilidade e relatórios de toxicologia encontrados entre os documentos científicos recuperados nos laboratórios do Castelo de Gelo. De acordo com o que tinham apurado, o pesticida era altamente carcinogéneo e tóxico para uma vasta franja de outros artrópodes. O uso do químico lançaria o caos sobre o delicado ecossistema das ilhas. Porém, pior que isso, contaminaria para sempre aquele arquipélago, obrigando a uma monitorização constante e reaplicações periódicas da substância, a fim de lidar com os inevitáveis ressurgimentos das vespas.
Talvez a opção das bombas acabasse por ser melhor, pensou Gray, consternado.
Não era o único a pensar assim.
Aiko partilhara algumas comunicações confidenciais entre o exército americano e várias agências de serviços secretos. Embora o pesticida pudesse servir como uma rolha para a ameaça, o perigo de disseminação global continuava a preocupar muita gente. A posição oficial de muitos países apontava esse risco como demasiado elevado.
E agora havia a questão da inesperada videochamada de Painter.
Gray fitou as figuras que também aguardavam consigo. O diretor pedira as presenças do professor Matsui, Seichan e Palu. O havaiano ainda não conseguia acreditar no destino sombrio reservado à sua terra natal. Seichan sentava-se estoicamente à mesa, embora os olhos assombrados e os lábios comprimidos denunciassem que sabia que se encontrava a escassas horas de a dor regressar em força, dez vezes pior que antes, quando as larvas de terceiro estágio despertassem. Ken passava a vida a lançar-lhe olhares de relance, como que tentando captar qualquer sinal de que esse momento chegara por fim.
O enorme ecrã na parede iluminou-se finalmente, captando a atenção de todos ao redor da mesa. Gray endireitou as costas, surpreendido. Esperava encontrar a carantonha do diretor a olhar para si. Em vez disso, a imagem de alta definição revelou uma figura esguia, aparentemente debruçada sobre o que parecia uma bancada de laboratório.
— Kat? — Gray aproximou-se da parede. — Onde estás? O que é isto?
— Estou em Cracóvia, num pequeno museu de âmbar. O Painter providenciou esta conferência entre nós, sabendo da urgência.
— Porquê?
— Encontrámos algo que pode ser importante. Algo que não faz sentido e que cai fora do alcance das minhas competências. O único homem que me poderia ajudar... bom, tive de o matar. Como tal, estava a contar que o professor Matsui pudesse incidir alguma luz sobre isto.
Gray franziu o sobrolho.
— O que encontraste?
Kat fez um resumo breve dos eventos na Polónia, contando-lhes acerca da mina de sal, do vasto depósito de âmbar e do bloco contendo aquela criatura única.
— É melhor mostrar-vos. — Fez sinal ao operador de vídeo. — Monk, traz a câmara até aqui.
A imagem chocalhou para cima e para baixo até estabilizar frente a um enorme cubo de âmbar pousado em cima de uma mesa. O objeto encontrava-se iluminado de todos os ângulos, a fim de revelar o melhor possível o que se encontrava aprisionado na resina.
Uma cadeira tombou nas costas de Gray.
— Meu Deus! — exclamou Ken, que contornou a mesa a correr para se juntar a Gray frente ao ecrã. Inclinou-se para a frente e ergueu a mão, como se quisesse tocar no objeto. — Isto é uma crisálida pré-histórica, capturada no instante da eclosão.
Kat voltou a posicionar-se no enquadramento da imagem.
— Professor Matsui, poderemos estar a olhar para o nascimento de uma rainha das Odokuro?
— O quê? Não. As Odokuro não têm... — Aproximou-se mais um pouco. — Só um momento.
Estudou a imagem durante um longo momento, depois pediu a Monk para mover a câmara e apanhar diferentes ângulos, a fim de mudar a forma como a luz incidia na criatura.
— Ken — pressionou Gray. — Qual é o veredicto? Estamos a olhar para uma rainha?
O professor lambeu os lábios, a voz convertida num murmúrio.
— Sim... só posso acreditar que sim. — Desviou o olhar para o rosto de Kat. — Dê-me mais pormenores acerca do que viu, de qual era o estado das vespas mortas.
Kat repetiu a história, respondendo a algumas perguntas do professor pelo caminho.
— O doutor Bennett ficou convencido de que sangraram até à morte. Ou que pelo menos alguma coisa foi espremida de dentro delas.
— Dissolvidas de dentro para fora... — murmurou Ken, entredentes.
Kat ouviu o que ele disse.
— Parece-me uma boa descrição para o que observei.
Ken recuou e deixou-se cair sentado na cadeira.
— Estava enganado... desde o início.
— Acerca da existência de uma rainha? — perguntou Gray.
— Sem dúvida, mas calculo que nunca o poderia saber. Uma rainha nunca apareceria em ambiente de laboratório. Apenas seria capaz de emergir no seio de um enxame estabelecido em plena natureza.
— Mas porquê? — perguntou Kat. — E o que significa isso?
— Significa que também estava enganado acerca da pesquisa da equipa Gama. Eles sempre tiveram a resposta. A fechadura, mas não a chave.
— Não estou a perceber — interrompeu Gray. — Qual equipa? Qual pesquisa?
— Uma das equipas de investigadores dos laboratórios Fenikkusu, que se encontrava a estudar uma série de genes de uma proteína desaparecida a que chamavam péptido fantasma. Chamavam-lhe assim porque conseguiam identificar os genes, mas nunca a proteína. As análises da sequência sugeriam que se tratava de um poderoso agente biolítico, capaz de dissolver os tecidos das presas.
Kat lançou um olhar ao bloco de âmbar.
— De dentro para fora.
Ken anuiu com a cabeça.
— Fiquei convencido de que se tratava de um pedaço de código antigo, uma réstia do tempo em que as Odokuro matavam os hospedeiros. Na verdade, pensei que a partir do momento em que deixaram para trás este comportamento, as vespas tinham posto de parte este péptido tóxico, fechando-o numa gaveta com uma série de marcadores epigenéticos. Pensei que a equipa Gama estava apenas a perder tempo, que precisariam de milhões de anos para descobrirem a chave para essa fechadura.
— E agora? — perguntou Gray.
Ken encolheu os ombros.
— Acertei num aspeto, pelo menos. A chave tem realmente uns bons duzentos milhões de anos. — Apontou para o ecrã. — Estamos a olhar para ela.
— Como? — Kat olhou para o bloco. — Do que está a falar?
— Eu devia ter percebido, ou no mínimo suspeitado. — Ken abanou a cabeça. — Sentia que me tinha escapado qualquer coisa. O que ignorei foi pura e simplesmente o comportamento básico de qualquer Hymenoptera, sejam abelhas ou vespas.
— Que comportamento? — perguntou Gray.
— Nas vespas sociais, a rainha é o único elemento do enxame que sobrevive ao inverno. Tudo o resto morre com temperaturas gélidas. A rainha hiberna e aguarda que o calor da primavera a desperte. Como acorda já grávida, dá então início a um novo enxame.
Gray recordava-se de o professor ter explicado este comportamento na cabana em Hana, quando revelara o verdadeiro horror associado àquela espécie.
Ken levantou-se e aproximou-se novamente do ecrã.
— É por isso que nenhum de nós se deparou com uma rainha. Ela só surge quando as condições são duras, quando a colónia se encontra ameaçada. Ela é o meio de a colónia se deslocar para uma nova casa. — Virou-se para Gray e para os outros. — Mas só o faz depois de se assegurar de que a colónia foi aniquilada. E se o frio não fizer o serviço, trata do assunto pessoalmente.
— Como? — perguntou Kat.
— Estou apenas a especular, mas calculo que possa libertar uma potente feromona, por exemplo. Disse que o âmbar em redor do local de onde foi retirado o bloco se encontrava mais escuro do que em qualquer outro sítio, certo? Mesmo no bloco, consigo ver a olho nu que a resina em torno da rainha tem uma gradação mais rica.
Gray compreendeu o que ele estava a dizer.
— Está a pensar que esse químico poderia manchar a resina.
— Isso mesmo. Um químico que acredito poder ser a chave para desbloquear os genes do péptido fantasma. Com a chave na fechadura, os genes começariam a produzir a proteína biolítica. Pensei que o péptido se destinava a servir de arma contra outras presas. — Abanou a cabeça. — Em vez disso, é como um comprimido de suicídio para esta espécie. Uma vez expostas a este químico, todas as Odokuro que carregam essa sequência de genes morrerão.
— E todas as vespas carregam esses genes? — perguntou Kat.
Ken ignorou-a e virou-se para Seichan.
— Até as larvas.
Gray sentiu a esperança inundar-lhe o peito, mas refreou esse ímpeto. Não queria animar-se demasiado.
No ecrã, Kat dirigiu-se a alguém que não se via na imagem.
— Doutor Slaski, se bem me lembro, o seu laboratório é uma das duas instalações na Polónia equipadas com um sofisticado espetrómetro de massa para analisar e autenticar artefactos de âmbar.
— Sim. Serve para avaliar a qualidade, detetar impurezas, até datar as amostras.
— Nesse caso, se analisarmos uma amostra da resina tingida, seremos capazes de determinar o químico aprisionado?
— Com o tempo e os recursos certos, não vejo porque não.
— Eu posso fornecer-lhe os recursos de que precisa, mas o tempo... isso já não depende de mim.
A figura mistério pareceu compreender a insinuação.
— Farei o meu melhor.
Gray virou-se e deu de caras com Seichan a seu lado.
Ela deu-lhe a mão.
Que se lixe.
Apertou-lhe os dedos, e, com toda a capacidade disponível no peito, permitiu-se acolher esse sentimento de esperança.
Por Seichan, por si e pelo filho de ambos.
20h37
— É isto! — anunciou Ken.
Abanou a cabeça, enquanto admirava o diagrama molecular no ecrã do portátil.
Claro que sim, é este o químico.
Ainda se encontrava na sala de reuniões. Os outros também, visto que ninguém abandonara a divisão. Todos se acotovelavam em torno do portátil. Na parede, a videochamada a partir da Polónia continuava a decorrer. O laboratório em Cracóvia encontrava-se apinhado de todo o tipo de especialistas que Kat conseguira convocar: biologistas moleculares, geneticistas, químicos. Fora também adicionado algum equipamento ao pequeno laboratório.
Mesmo assim, a figura sepulcral do doutor Slaski conduzia habilmente aquela orquestra com mão de ferro. Quatro horas mais tarde, o grupo espremera por fim a resposta adormecida no âmbar.
— Tem a certeza de que é este o químico? — perguntou Gray. — Não é nenhuma outra impureza?
— Tenho a certeza.
— Como? — insistiu Gray, o tom de voz denunciando a ansiedade.
— Porque reconheço este composto orgânico. É um derivado do ácido 9-keto-2-decenóico.
Apercebendo-se da expressão confusão de Gray, Ken colocou a questão de forma mais simples.
— Também é conhecido por substância da rainha.
Gray desviou o olhar para a criatura no bloco de âmbar.
— Por isso, sim, tenho a certeza de que é este o químico — reforçou Ken, com um sorriso cansado. — O composto é muito parecido com a cetona aromática libertada pelas rainhas das abelhas. Muitas outras espécies de Hymenoptera libertam outras variações desta mesma feromona.
— Para que serve, no caso das abelhas?
— Quando uma nova rainha parte para estabelecer a própria colmeia, lança uma nuvem deste químico sobre a antiga colmeia, a fim de esterilizar todas as operárias deixadas para trás.
— Porquê?
— Para garantir o seu legado genético. — Ken acenou com a cabeça na direção do ecrã. — O que a rainha das Odokuro faz não é muito diferente. Porém, como esta espécie tem múltiplas fêmeas capazes de procriarem e parasitarem, como é o caso da fêmea que atacou Seichan, a rainha emprega uma tática mais agressiva. Uma bomba nuclear, digamos assim. Quando o enxame está ameaçado, ela apaga o quadro genético e parte para outras paragens, a fim de originar uma nova geração baseada nos seus genes. — Encolheu os ombros. — Pode parecer duro ou insensível, mas faz sentido de um ponto de vista evolucionário. Quando um ambiente fica ameaçado, a melhor hipótese de sobrevivência de uma espécie passa por levantar o rabo do chão, apagar todos os traços de existência e partir para verdes pastagens, a fim de começar de novo. Ao longo de milénios, diferentes variações desta estratégia resultaram para um sem número de espécies de vespas, onde os enxames são mortos todos os invernos para ressurgirem de novo na primavera. Ou, no caso das abelhas, são apenas esterilizadas para não comprometerem a herança genética.
— E esta feromona? Irá resultar enquanto tratamento?
— Sem dúvida. O derivado atinge somente as Odokuro, o que o torna seguro para outras espécies. Além disso, a natureza aromática da cetona irá atrair o enxame para a feromona. Como traças para uma chama. — Ken recostou-se. — Melhor ainda, qualquer laboratório será capaz de produzir este composto orgânico em quantidade. E assim que for espalhado sobre água, plantas e terra, qualquer criatura parasitada que beba, coma ou entre em contacto com o químico, absorverá o composto para a corrente sanguínea, onde acabará por destruir as larvas.
— E no caso dos humanos?
Gray estendeu o braço e pegou na mão de Seichan.
Ken reparou nos olhos emocionados de Seichan, à beira das lágrimas. Não se devia à dor, mas à agonia da esperança.
— Não será diferente — assegurou a ambos. — Aposto que uma única injeção intravenosa resolverá a questão. Mas mais vale prevenir e repetir a dose durante vários dias seguidos, só para ter a certeza.
Gray inclinou-se na direção de Seichan.
— Quer dizer que descobrimos mesmo a cura — suspirou.
Palu pousou a mão no ombro de Ken. O sorriso estampado na cara do havaiano indicava que ele compreendia bem o que aquela notícia representava para a sua terra natal.
— Meu caro, isto não é apenas a cura. É a puta da nossa salvação.
Ken riu-se.
Quem sou eu para dizer o contrário?
39
23 de maio, 22h18 CST
Wieliczka, Polónia
Kat encontrava-se sentada com Monk na Capela de Santa Cunegunda. A catedral subterrânea estava apinhada de gente que vinha assistir à missa memorial. Acima do altar, uma cruz de sal resplandecia com um brilho interior. Um coro de crianças cantava um hino que ressoava nas paredes, desafiando as toneladas de rocha para se fazer ouvir nos céus.
Vestida de negro, com a cabeça curvada, Clara ocupava um lugar na primeira fila de bancos. Os caixões dos três irmãos encontravam-se depositados à frente. Cada um fora esculpido em âmbar, preciosidades por direito próprio, mas ainda mais valiosos pelos homens neles deitados, heróis que deram a vida para que o mundo tivesse um futuro. Seriam enterrados na mina, três novos santos para aquele local sagrado.
— Piotr, Gerik, Anton — murmurou Kat para si mesma, tencionando nunca esquecer os nomes dos três irmãos.
Monk apertou-lhe a mão. Tinham voado de Washington para assistirem à missa e regressariam a casa nessa mesma noite.
Apesar de terem passado duas semanas, havia ainda muito trabalho a fazer. As ilhas havaianas estavam a recuperar, pulverizadas diariamente com o composto orgânico. Tal como o professor Matsui previra, a substância da rainha erradicara as Odokuro. A cetona aromática atraíra as vespas de todos os ninhos e colónias. Como precaução, os hospitais espalhados por todo o arquipélago continuavam a tratar as vítimas com injeções intramusculares. Os ecologistas e biólogos monitorizavam a vida selvagem em busca de sinais de ressurgimentos das vespas.
Com a questão havaiana controlada, Kat concentrara-se em descobrir as localizações das outras instalações de pesquisa dos laboratórios Fenikkusu. Trabalhara em conjunto com Aiko, coordenando uma força de resposta internacional. Esse trabalho ajudara Aiko a consolidar a presença da sua nova agência de serviços secretos japonesa, a qual batizara como TaU, ou Tako no Ude, que significava «Tentáculos do Polvo», um nome adequado para uma nova força de espiões. Porém, Kat também sabia que, no alfabeto grego, tau era a letra a seguir ao sigma, o que tornava a escolha uma clara piscadela de olho à congénere americana.
Enquanto o coro cantava, lançou um olhar de relance a Ken Matsui. O professor encontrava-se sentado na mesma fila, ao lado do doutor Slaski. Continuavam a trabalhar juntos no estudo dos mistérios descobertos no depósito de âmbar nas profundezas da mina. Aquele filão revelara-se um verdadeiro tesouro de vida pré-histórica. Além disso, Ken recebera uma oferta de trabalho em Washington, que estava ainda a considerar, um convite para preencher a vaga deixada por um certo entomologista, outrora à frente desse departamento, no centro de pesquisa e jardim zoológico nacional do Instituto Smithsonian.
Kat esperava que ele aceitasse.
Slaski inclinou-se para Ken e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O outro acenou e ambos olharam na direção de Clara. Kat sabia que os dois continuavam a fazer o possível para consolar a jovem, mas só o tempo curaria semelhante ferida. Sentia-se aliviada por saber que outra mulher não estava a passar pelo mesmo. Recebera notícias de Tallinn no dia anterior, o diretor Tamm tivera alta do hospital e encontrava-se de volta a casa com a filha, Lara.
Suspirou.
Graças a Deus.
Kat recostou-se enquanto o coro terminava o hino de forma transcendental. Um rapaz solitário encaminhou-se para a balaustrada junto aos caixões. Tinha os cabelos louros, as faces rosadas, como um pequeno fantasma dos irmãos mortos. Interpretou o tema Ave-Maria em polaco, sem acompanhamento. A sua doce voz deu corpo à dor ali sentida de uma forma que nenhumas palavras poderiam fazer.
Enquanto o rapaz cantava com todo o coração para os céus, Kat baixou o rosto.
Monk puxou-a para junto de si.
As lágrimas caíram-lhe do rosto, salpicando a mão do marido em torno da sua.
Deixou-se ficar encostada a ele.
Nunca me deixes.
08h05 EDT
Washington, D.C.
— Lembrem-se — avisou Elena —, não toquem em nada sem pedir primeiro.
As duas netas acenaram vigorosamente com a cabeça, enquanto ela lhes segurava a porta de entrada do Castelo do Smithsonian.
— Sí, abuela — cantarolaram em uníssono.
Assim que entrou, uma fragrância atingiu o nariz de Elena. Um doce perfume de rosas, lilases e lírios enchia o átrio de mármore, atraindo-a para a cripta ali perto.
Encaminhou as duas crianças em direção aos homens que as aguardavam: Painter Crowe e o curador do museu, Simon Wright. Junto a ambos e espalhados pelo chão encontravam-se arranjos e pés de flores soltos. A pequena câmara que guardava a urna de James Smithson estava apinhada de outras centenas.
— E quem são estas duas jovens mulheres diante de mim? — perguntou Painter, baixando-se quando Elena se juntou a ele com as netas.
As duas crianças esconderam-se atrás das pernas da avó. Uma vez protegidas, a mais velha das irmãs apontou para a mais nova.
— Aquela é a Olívia. Eu sou a Ana.
— São bibliotecárias, como a avó?
Olívia riu-se.
— Não.
Ana bateu com um pé no chão.
— Eu vou ser biblotecária.
— Bibliotecária — corrigiu Elena.
— Não duvido — disse Painter, endireitando-se. Lançou um olhar à cripta. — Mas pergunto-me qual das duas será capaz de recolher o maior número de flores amarelas. Gosto muito de amarelo.
— Eu! Eu! — gritaram as duas meninas, fazendo uma breve pausa para confirmarem se tinham autorização da avó para tocarem em coisas.
Elena encolheu os ombros.
— Vão lá. Mas tenham cuidado com os espinhos. Não estou para ouvir a vossa mãe.
As irmãs correram na direção das pilhas de flores, deixando para trás um rasto de risos.
Elena abanou a cabeça.
— São uma carga de trabalhos.
— Também não duvido disso. — Painter fez um gesto largo na direção da cripta. — É óbvio que o seu comentário aberto no Washington Times teve um certo impacto nas pessoas.
— Ou talvez tenha sido a entrevista no Good Morning America — acrescentou Simon, com um sorriso.
Elena sentiu o rosto vermelho.
— Estou apenas a tentar que o vosso fundador tenha o reconhecimento que merece.
— E tem conseguido — anuiu Simon.
Depois de regressar aos Estados Unidos, Elena partilhara as suas aventuras na Europa com os americanos, de como correra o velho continente atrás de pistas crípticas deixadas por James Smithson para salvar o mundo. Terminara o artigo de jornal sugerindo que o homem devia ser honrado de forma adequada: Ele merece ser coberto de flores.
Pelos vistos, os curiosos que ali se tinham deslocado para observar os símbolos com os próprios olhos não se esqueceram do pedido.
Painter acenou com a cabeça para Simon.
— Pensámos que merece também uma recompensa. Foi por isso que a chamámos aqui, antes de o museu abrir ao público. Só o poderíamos fazer neste local.
— Por favor, não preciso de...
— Por amor de Deus, mulher! — disse Simon, com um suspiro exagerado. — Deixe o homem oferecer-lhe o que tem para si.
Elena revirou os olhos.
— Está bem.
Painter levou a mão ao bolso do casaco e retirou uma pequena caixa, mais ou menos do tamanho de um baralho de cartas. Estendeu o braço.
— Para uma senhora que tem tudo... incluindo duas netas endiabradas.
Curiosa, Elena aceitou a oferta.
— Abra — pressionou Simon, nitidamente empolgado.
Elena levantou a tampa da caixa para revelar um cartão preto metalizado depositado sobre uma almofada de seda vermelha. Ao inclinar a caixa, um símbolo holográfico prateado ergueu-se da superfície do cartão.
Era uma letra do alfabeto grego.
Sigma.
— As chaves do reino — explicou Simon.
— Se alguma vez se cansar da vida de bibliotecária — disse Painter. — E quiser um pouco de aventura.
Elena lançou-lhe um olhar dos dela.
Painter encolheu os ombros.
— Ou se quiser apenas descer lá abaixo para tomar um café. Com essa chave, a minha porta está sempre aberta.
Elena fechou a tampa.
— Diretor Crowe, depois disto, um café é aventura suficiente para mim.
— Não sei. Sou obrigado a avisá-la de que o café preparado pelo Kowalski a fará pensar se teria preferido ser alvejada.
Ela sorriu.
— Estou disposta a correr esse risco.
20h08 EDT
Takoma Park, Maryland
Ao som do cantar dos grilos e com os pirilampos a revolutearem sobre as hortênsias próximas, Gray fitou o sinal com a palavra VENDE-SE afixado no jardim da frente da casa dos pais.
Uma pequena tarja com a palavra VENDIDO! fora acrescentada ao sinal.
Atravessou a extensão do jardim. Recordava-se das inúmeras vezes que aparara aquele relvado, do cheiro da relva fresca, de como empurrara o cortador manual para trás e para a frente até lhe doerem os braços, tudo porque o pai era demasiado forreta para comprar um corta-relvas motorizado. Alcançou o acesso à garagem, a qual se localizava nas traseiras da casa. Encontrava-se fechada e com as luzes apagadas, mas ainda conseguia ouvir o pai a trabalhar no interior, às voltas com o motor do velho Thunderbird, que permanecia ali estacionado. Recordou a figura da mãe a observar o pai a partir da janela da cozinha, enquanto queimava o jantar, porque preferia os seus livros e jornais a aprender a cozinhar como deve ser.
Por onde quer que olhasse, encontrava fantasmas do passado.
Fora por isso que nove meses antes se decidira a fazer aquele período sabático com Seichan. Mais do que uma pausa das responsabilidades na Sigma, precisava de fugir daquele lugar em concreto. Um mês antes, concordara finalmente com o irmão Kenny em pôr a casa à venda.
Para que precisamos nós disto?
Sem motivo para se manter por perto, Kenny regressara à Califórnia, para procurar um novo emprego numa qualquer empresa tecnológica. As únicas pessoas que por ali tinham passado nas últimas semanas eram agentes imobiliários e potenciais compradores.
Gray evitara deslocar-se ali desde que regressara aos Estados Unidos. Nem sequer pusera um pé lá dentro. Porém, com a venda concretizada, precisava de efetuar o inventário dos bens que ainda se encontravam na casa. Não fazia ideia do que faria com aquelas mobílias velhas e com a extensa coleção de bugigangas acumuladas ao longo de uma vida, vá lá saber-se porquê.
Suspirou.
Sabia qual era a razão que se escondia por detrás da hesitação.
Promete-me...
Ainda conseguia sentir a resistência do êmbolo da seringa, quando administrara a dose fatal de morfina ao pai. Lembrava-se do modo como os dedos magros do pai relaxaram na sua mão, de lhe sentir a pele calejada, os ossos frágeis. Por muito que soubesse que tomara a decisão certa, não conseguia libertar-se da culpa.
Os fantasmas subsistiam, mesmo depois de meses a viajar ao redor do mundo.
E tudo para me ver de novo aqui, de volta à estaca zero.
Sem se sentir mais sábio ou menos culpado.
Aceitou que aquilo seria um fardo que carregaria a vida inteira. Incapaz de continuar a adiar o inevitável, encaminhou-se para a porta da frente. Seichan já se encontrava lá dentro, pois precisava de descansar. Os tratamentos tinham terminado e as larvas parasitárias estavam mortas, porém o corpo demoraria um bom tempo a ver-se livre dos restos dos invasores, um desafio para o sistema imunitário de qualquer pessoa. Pelo menos, os exames realizados nessa mesma manhã davam conta de que o bebé continuava saudável e a crescer.
Apesar da disposição taciturna, conseguiu sorrir, recordando o pulsar do minúsculo coração no monitor da máquina de ultrassonografia.
O nosso bebé...
Abanou a cabeça diante da impossibilidade daquilo tudo.
Ambos estavam a salvo. O próprio Kowalski recuperava a olhos vistos, assim como os primos de Palu. Antes, trocara umas palavras com o calmeirão, que ainda se encontrava na ilha de Maui. Vou terminar o raio das minhas férias, dissera Kowalski. Juntara-se de novo a Maria, que continuava a oferecer o seu contributo para os vários desafios que a ilha ainda enfrentava. Ambos estavam alojados na casa de Palu.
Kowalski manifestara uma queixa principal em relação ao tratamento de que fora alvo: Obrigaram-me a usar colãs, dá para acreditar nisto? Maria explicara a realidade dos factos, a fim de o consolar. Pelos vistos, Kowalski fora obrigado a usar meias de compressão durante seis semanas, o que ajudava a sarar as múltiplas dentadas dos ceifeiros. Gray insistira para que Maria lhe enviasse fotografias de Kowalski naqueles preparos, só para o caso de um dia precisar de o chantagear.
Alcançou a porta da casa e empurrou-a.
Não se mexeu.
Estava prestes a bater quando a porta se abriu de repente.
Seichan estava à espera dele. Erguendo uma sobrancelha, ela balançou um par de chaves na ponta de um dedo.
— Mudei as fechaduras.
— Como assim? Porquê?
Seichan recuou e deixou que ele entrasse. Gray recordava-se perfeitamente de como era a casa dos pais, mas, de repente, parecia que entrara na casa de outra pessoa.
Tudo estava diferente. A mobília desaparecera. As carpetes tinham sido arrancadas e substituídas por soalhos de madeira corrida. A enorme lareira fora recuperada. Mesmo de onde se encontrava, conseguia ver que a cozinha exibia novas bancadas de granito e armários a estrear.
— Seichan...
— Cala-te.
Ela agarrou-lhe na mão e conduziu-o para as escadas que subiam para o segundo piso, mas não sem antes acenar com a cabeça na direção do letreiro no relvado.
— Quem é que achas que comprou isto?
Antes que pudesse responder, ela arrastou-o até ao andar de cima.
Também ali tudo estava mudado. A balaustrada de madeira fora substituída por uma de ferro forjado. O papel decorativo fora arrancado e as paredes pintadas de fresco.
— Não te preocupes — disse ela —, o carro do teu pai continua na garagem. Não ia desfazer-me de uma beleza daquelas. Além disso, tenho uma data de caixas com bens pessoais. Podes vê-las mais tarde, mas, primeiro...
Deteve-se junto a uma porta fechada.
— Está na altura de deixares de fugir dos teus fantasmas.
Gray sentiu um arrepio na espinha. Era espantoso como ela conseguia ler o que lhe ia na alma.
Seichan abriu a porta e conduziu-o para o interior da divisão. O pequeno quarto encontrava-se tão vazio como o resto da casa.
Com a exceção de uma única peça de mobília.
Um singelo berço branco.
— Talvez não possas escapar a esses fantasmas — disse ela —, mas podes permitir que façam parte da tua vida, deixá-los partilhar as tuas alegrias e tristezas.
Gray sentiu um nó na garganta e tentou manter a postura. Olhou em volta, respirando profundamente.
— Todo este trabalho... e nunca desconfiei de nada.
Ela encolheu os ombros.
— És mais fácil de enganar do que pensas. Além disso, fazer isto foi melhor do que umas férias à volta do mundo.
Gray abanou a cabeça, agora a sorrir, mas com lágrimas emocionadas a acumularem-se nos cantos dos olhos.
— Nesse caso, é melhor aproveitarmos enquanto podemos. Esta paz não vai durar para sempre.
— Tens razão — anuiu Seichan, a expressão mais carregada. — A Valya continua por aí. E sem dúvida a planear alguma.
Gray virou-se para ela, deixou-se cair de joelhos e levantou-lhe a parte de baixo da camisola. Depois, beijou-lhe a barriga e murmurou:
— Não foi isso que quis dizer.
EPÍLOGO
HALEAKALA, MAUI
RAINHA
A rainha sabe de ciência certa que chegou o momento.
Alimentado por hormonas, o relógio biológico obriga-a a remexer-se no interior do casulo preto. As mandíbulas estendem-se e cravam-se na camada de seda que teceu enquanto foi larva. Abre um primeiro buraco à dentada, amaciando o material com a ajuda da saliva e da substância excretada por glândulas na boca.
Uma das antenas desenrola-se e emerge pelo buraco, sondando o mundo lá fora. Os filamentos sensoriais testam o ar húmido e frio. Satisfeita, arremessa a cabeça triangular contra a abertura e utiliza os ganchos nas patas dianteiras para romper a seda. A delicada crisálida cede sobre o peso do corpo enquanto ela se remexe já no exterior, ainda a estudar o ambiente.
Faz uma pausa para se preparar na escuridão, para completar a transformação antes de se revelar. Limpa os olhos negros e escova as antenas com pentes finos na parte interior das patas dianteira.
Enquanto faz isso, a hemolinfa corre pelas longas veias das asas húmidas e enrugadas que, lentamente, começam a expandir-se. Assim que se tornam rígidas e funcionais, ela abana-as até secarem.
Só então estará pronta.
Rasteja de cima do casulo para a rocha húmida do túnel. Foi ali que teceu o casulo meses antes, protegida pela segurança da escuridão. Avança então pela rocha, em sentido inverso ao que percorrera nessa altura, a fim de procurar uma nova casa noutras paragens.
O abdómen encontra-se já carregado de ovos, cópias pluripotentes de si mesma, capazes de darem corpo a qualquer uma das encarnações do novo enxame.
Carrega o futuro dentro de si, o seu e o da espécie.
Enquanto avança, solta um rasto aromático. O odor atrairá sobreviventes do antigo enxame, uma armadilha que servirá para matar e apagar a linhagem genética depois de si. Incontestado pelo passado, apenas o seu código deverá sobreviver.
Avança resoluta. Nada a impedirá de encontrar uma casa adequada; porém, à medida que progride, a rocha torna-se mais fria. Não se deixa demover e insiste, impelida por um instinto de sobrevivência milenar. Sente o cheiro de ar fresco adiante, prometendo-lhe uma nova abertura para o mundo exterior.
Antes que a consiga alcançar, a rocha dá lugar a uma camada de gelo.
Detém-se novamente, sacudindo as patas traseiras para retirar informação do meio ambiente. Ao mesmo tempo, estuda o ar com as antenas. Uma imagem forma-se na rede de gânglios do seu cérebro.
O túnel adiante está totalmente coberto de gelo, desde espigões, cortinas, ondas. Segue em frente, apesar do perigo, incapaz de recuar, de negar o instinto impregnado no código genético. Encaminha-se na direção do frio, paciente e imutável. Ela nunca mudará. Em vez disso, esperará que o mundo mude por ela.
Se não for agora, mais tarde.
Sabendo disso, marcha direita aos túneis gélidos até as asas e as pernas congelarem. O corpo arrefece inexoravelmente, mas só se detém quando as almofadas nas patas se colam por fim ao gelo, impedindo-a de avançar mais um milímetro.
É ali que fica.
É ali que aquiesce.
À espera da oportunidade... de renascer.
NOTA DO AUTOR AOS LEITORES:
REALIDADE OU FICÇÃO
Uma vez mais, é chegado o momento de separar os factos da ficção. Naturalmente, preferia que os leitores acreditassem em cada palavra que escrevo, pois é esse o objetivo de qualquer escritor. Porém, volta e meia, a verdade nua e crua consegue ser tão fascinante como qualquer história criada. Dito isto, vamos lá separar o trigo do joio.
Pensei em começar pelo passado e avançar até ao presente. Este livro está recheado de personagens interessantes, retiradas da nossa história, incluindo o misterioso fundador do Instituto Smithsonian. Vamos então começar por ele.
James Smithson
Considerando que este químico e geólogo britânico fundou aquela que é a nossa maior instituição dedicada ao conhecimento, é bastante estranho que se saiba tão pouco sobre ele. Espero que este livro contribua para corrigir essa enorme injustiça. Quase tudo o que escrevi sobre o homem é factual. Foi um estimado membro da Real Sociedade Britânica, e viajou por toda a Europa a recolher espécimes para uma vasta coleção de minerais que acabou por doar aos Estados Unidos, juntamente com a fortuna pessoal. E, sim, essa coleção foi destruída num incêndio no Castelo do Smithsonian, perto do fim da Segunda Guerra Mundial.
Após a sua morte, Alexander Graham Bell e a mulher viajaram de facto para o velho continente e regressaram de lá com os restos mortais de Smithson. Quanto ao túmulo, os símbolos gravados na urna, assim como o erro acerca da sua idade, são verdade. Sugiro que visitem o castelo para que possam verificar estes pormenores com os próprios olhos e, caso sintam vontade, depositem uma flor em sua memória.
Se tal viagem for impossível e queiram saber mais acerca do homem e da sua vida, recomendo a seguinte leitura:
The Lost World of James Smithson, de Heather Ewing
Joseph Henry
Enquanto primeiro secretário do Instituto Smithsonian, Joseph Henry dirigiu o museu durante o período da Guerra Civil, encontrando-se inclusive nas instalações quando o infame incêndio deflagrou. A tragédia foi atribuída à instalação defeituosa de um fogão e não ao trabalho sombrio de membros iniciais da Guilda. No entanto, circularam sempre rumores de que este episódio nunca foi devidamente explicado, visto que Joseph Henry, um conhecido abolicionista, era também um aliado secreto de Abraham Lincoln, na altura da guerra.
Archibald MacLeish
O herói investigador desta história presidiu realmente à Biblioteca do Congresso durante a Segunda Guerra Mundial. No seu papel à frente do Comité para a Conservação dos Recursos Culturais, foi responsável pela salvaguarda de muitos tesouros nacionais. Receando a ocorrência de terríveis bombardeamentos em solo americano, enviou a Declaração da Independência, a Constituição e um exemplar da Bíblia de Gutenberg para a segurança de Fort Knox. O próprio Instituto Smithsonian enterrara o precioso exemplar da bandeira americana no Parque Nacional de Shenandoah. Contudo, antes disso, Archibald defendera a construção de um abrigo à prova de bomba no subsolo do National Mall, a fim de proteger esses tesouros em tempos tão perigosos. Infelizmente, o Congresso vetou a ideia devido ao elevado custo financeiro.
Passando do passado para o presente, olhemos então para a ciência na base deste livro. É aqui que a verdade se torna mais estranha que a ficção, sobretudo no que toca a...
Vespas, vespas e mais vespas
Este romance explora parte da intrigante biologia, comportamento e vida de algumas espécies Hymenoptera. Nas secções escritas a partir do ponto de vista das várias encarnações das vespas, todas as fantásticas habilidades, competências, sentidos e horrores são baseados em espécies reais encontradas na natureza. Para um fascinante (e perturbador) vislumbre desse mundo, recomendo os seguintes títulos:
The Wasp That Brainwashed the Caterpillar, de Matt Simon;
Planet of the Bugs: Evolution and the Rise of Insects, de Scott Richard Shaw.
Quanto à ciência em torno dos venenos dos animais e a procura por novas drogas, os seguintes livros constituem um abrir de olhos em relação ao potencial escondido nessas glândulas tóxicas:
The Sting of the Wild, de Justin O. Schmidt;
Venomous: How Earth’s Deadliest Creatures Mastered Biochemistry, de Christie Wilcox.
Por fim, este livro levanta uma importante questão: até que ponto os insetos foram responsáveis pela extinção dos dinossauros? A resposta: bastante! Para uma análise profunda desse papel, recomendo a obra:
What Bugged the Dinosaurs? Insects, Disease, and Death in the Cretaceous, de George Poinar Jr. e Roberta Poinar.
Ao longo deste livro, existem milhares de outros pormenores acerca da vida dos insetos e do papel que desempenham nas nossas vidas, todos verdadeiros, mas permitam que reforce um ponto. Por muito horríveis que as Odokuro pareçam, as vespas desempenham um papel crucial na natureza. Além de valiosos polinizadores, controlam populações inteiras de insetos indesejáveis. Na verdade, um único ninho de vespas faz o mesmo trabalho que cinco toneladas métricas de pesticidas num ano. Por isso, uma ferroadela ou duas talvez seja um preço baixo a pagar para as manter por perto. Evidentemente, certifiquem-se primeiro de que não estão a lidar com as pré-históricas Odokuro.
Micróbios Lázaro e tardígrados
Juntei estes dois organismos no mesmo saco porque ambos tocam no tema central deste romance: as fantásticas capacidades genéticas de algumas espécies para sobreviverem ao impossível. Enquanto terminava a história, a revista National Geographic publicou um artigo acerca de tardígrados com o título «Estes Animais Indestrutíveis Sobreviveriam a um Apocalipse à Escala Global». E é a mais pura das verdades. No mesmo sentido, na edição da revista New Scientist de 20 de maio de 2017, um artigo intitulado «Hora de Acordar», de Colin Barras, dava conta da extraordinária habilidade dos micróbios Lázaro para sobreviverem centenas de milhões de anos adormecidos em cristais de sal, ao manterem as funções vitais suspensas numa espécie de limbo entre a vida e a morte.
Foi também já bem documentado que muitas espécies retiram para si vantagens embebidas no código genético de outras, sobretudo na ressaca de infeções virais e bacterianas. Como tal, tendo em conta as capacidades trancadas no ADN dos micróbios Lázaro e tardígrados, quem nos garante que esses traços milagrosos não foram já aproveitados por alguma espécie mais ambiciosa?
Espécies invasoras
O cerne deste romance é a ameaça ambiental representada por uma espécie invasora. Gray menciona os danos causados pela introdução de pitões nos Everglades, coelhos europeus na Austrália e carpas asiáticas nos lagos dos Estados Unidos. Como estes, existem muitos outros exemplos pelo mundo fora. Em bom rigor, uma das preocupações do Departamento de Segurança Interna é precisamente a possibilidade de um qualquer inimigo poder um dia converter uma espécie invasora em arma e de a usar como um instrumento de guerra. Uma ideia inquietante, dado que estas espécies são extremamente difíceis de controlar.
Uma das minhas alegrias em escrever romances é a possibilidade de explorar os cantos mais intrigantes do mundo, e este não foi exceção. Por isso, pensei que seria interessante partilhar o quão fascinantes estes sítios são na verdade. Aceitem a sugestão e sintam-se à vontade para marcarem o destino das próximas férias.
Tallinn, Estónia
Tive a oportunidade de visitar a cidade há uns anos. Foi como mergulhar no tempo ao encontro da Idade Média. A Cidade Velha, com as suas ruas estreitas e becos calcetados, é uma pequena maravilha. Contudo, e ao mesmo tempo, esta cidade é verdadeiramente o Silicon Valley da Europa, onde existem mais empresas tecnológicas por habitante do que em qualquer outra parte do continente. Da mesma forma, a Biblioteca Nacional é um edifício magnífico de características que têm tanto de modernas como de medievais, constituindo um verdadeiro testemunho da alma da cidade. Em virtude disso, as minhas desculpas por ter rebentado com uma boa parte do edifício.
A Rota do Âmbar
Esta antiga rota comercial estendia-se desde São Petersburgo, na Rússia, a Veneza, Itália. É tão antiga que a placa decorativa no peito da múmia de Tutankhamon contém, de facto, pedaços embutidos de âmbar do Báltico. Os dois museus de âmbar mencionados neste romance, um em Gdansk e o outro em Cracóvia, são locais verdadeiros e abertos ao público. Também aqui, sim, o museu em Cracóvia dispõe de um sofisticado laboratório para a análise do precioso ouro báltico.
Minas de sal de Wieliczka
Apesar de classificada como património mundial pela UNESCO, a mina de sal de Wieliczka merecia fazer parte das grandes maravilhas do mundo. Todas as descrições referentes à beleza e imponência do local são factuais. Tive de deslocar alguns pormenores de um lado para o outro em abono da narrativa, mas pouco. O mapa turístico figurado no romance (de autoria de Mariusz Szelerewicz e utilizado com a permissão da filha, Paulina) oferece um vislumbre do magnífico labirinto. Quando a história mergulha nas profundezas do local, alguma da geografia e geologia é fruto da minha imaginação. No entanto, pormenores acerca da dimensão dos lagos subterrâneos são verdadeiros. Como o episódio dos praticantes de Windsurf que navegaram essas águas auxiliados por geradores de vento.
Japão e Monte Fuji
A pequena cidade turística e o lago descritos no romance são reais. O complexo dos laboratórios Fenikkusu e o seu Castelo de Gelo, obviamente, não o são. Os túneis de lava nas entranhas do monte Fuji existem (e, sim, também podem ser encontrados no Havai). Até o memorial em honra dos insetos caídos em nome da ciência, onde Takashi Ito queimava incenso em memória de Miu, pode ser visto no templo de Kan’ei-ji, em Tóquio.
No que toca à realidade das agências de serviços secretos japonesas, é também verdade que se encontram numa fase de restruturação, consolidando e estendendo o seu alcance internacional. É uma transição que está a ser feita devagar e com prudência, porventura pelas razões apontadas no romance: o receio de fugas de segurança e corrupção. O grupo de intervenção rápida de Aiko (TaU) é pura imaginação do autor. Todavia, algum do armamento usado pelas personagens baseia-se em protótipos teoréticos desenvolvidos pela DARPA. Ou, pelo menos, é assim que os classificam, como teoréticos.
Maui e as Ilhas Havaianas
Procurei ser o mais fiel possível em relação à geografia de Hana, mas tive de adulterar pormenores por imperativos narrativos. Mesmo assim, é um local maravilhoso, caso queiram visitar e confirmar em primeira mão até que ponto é real.
Rumando às terras mais a noroeste do arquipélago havaiano, sou forçado a admitir que criei a minha ilha nessa região (digam lá se um autor não é uma criatura todo-poderosa?). Mas se o atol de Ikikauo é pura ficção, ele baseia-se em pormenores que podem ser encontrados em duas ilhas vizinhas. A ilha de Laysan dá pelo nome havaiano de Kauo, que significa «ovo». Tal como a minha ilha imaginária, Ikikauo (pequeno ovo), Laysan contém um enorme lago interior. Em relação à base abandonada da Guarda Costeira, ela pode ser encontrada no atol vizinho de Kure, não muito longe de Midway. De resto, é também verdade que por toda a região se podem encontrar destroços afundados de aviões e barcos militares da era da Segunda Guerra Mundial.
Por último, a existência da Grande Barreira de Lixo do Pacífico é uma triste realidade, incluindo a vasta dimensão e a ameaça que representa para as Ilhas do Noroeste Havaiano. Até o pormenor mais singelo como a «pesca-fantasma» é uma verdade trágica.
O que nos leva ao momento da despedida. Existe um milhar de outros pormenores na narrativa que são igualmente verdadeiros, mas, como vos disse no início, preferia que acreditassem em cada palavra impressa.
Mesmo assim, antes de vos deixar, quero partilhar outro poema da monja budista japonesa Otagaki Rengetsu. As suas palavras transmitem da melhor maneira o meu mais profundo desejo para todos:
No futuro,
felicidade
e vida longa...
duas folhas a despontarem,
para crescerem durante mil anos.
Assim sendo, que vivam vidas longas e felizes. Quanto aos nossos intrépidos heróis da Força Sigma... bom, só o tempo dirá.
James Rollins
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