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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CORRIDA DO ESCORPIÃO / Maggie Stiefvater
A CORRIDA DO ESCORPIÃO / Maggie Stiefvater

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na pequena ilha de Thisby, poucos cavaleiros são bravos o suficiente para competir na corrida de escorpião que acontece a cada novembro. Pela primeira vez uma mulher, a jovem Puck Connolly, vai competir. Ela tem dois irmãos e ficou órfã depois que os pais foram devorados pelos cavalos assassinos. Por isso, ela está determinada não só a competir como ganhar a corrida. Para isso, Puck terá que enfrentar outro jovem corajoso e encantador. Sean Kendrick também perdeu o pai, atropelado pelas sanguinárias criaturas.
Apesar de terríveis, os cavalos do mar são uma grande atração turística. O turismo é a principal fonte de renda dos habitantes de Thisby. A ilha é um lugar fascinante e, ao mesmo tempo que atrai, também amedronta. A descrição que Maggie faz dos desfiladeiros do local é carregada de poesia. Com a narrativa alternando entre o ponto de vista de Sean e de Puck, a autora criou uma trama envolvente, classificada por críticos do New York Times e do Los Angeles Times como inovadora.
Em A corrida de escorpião, Maggie Stiefvater nos leva até o limite, em que o amor e a vida encontram seus maiores obstáculos e apenas os fortes de coração podem sobreviver. Uma leitura inesquecível.

 

 

 


 

 

 


Hoje é o primeiro dia de novembro, portanto alguém vai morrer.
Mesmo sob o forte brilho do sol, o mar frio de outono tem todas as cores da noite: azul-escuro, preto e marrom. Observo as marcas sempre cambiantes sobre a areia, conforme ela é pisoteada por incontáveis cascos.
Eles cavalgam na praia, por uma trilha pálida que fica entre as águas escuras e os penhascos brancos. Nunca é seguro aqui, mas nunca é tão perigoso como hoje, dia de corrida.
Nesta época do ano, vivo e respiro a praia. Minhas bochechas parecem ásperas com o vento lançando areia contra elas. Minhas coxas ardem por causa do atrito com a sela. Meus braços doem por controlar um cavalo que pesa uma tonelada. Já esqueci como é me sentir aquecido e o que é uma noite inteira de sono, e como é o som do meu nome simplesmente falado, e não gritado ao longo de quilômetros de areia.
Eu me sinto tão, tão vivo.
Conforme desço os penhascos com meu pai, um dos oficiais da corrida me detém. Ele diz:
– Sean Kendrick, você tem dez anos de idade. Ainda não descobriu, mas há formas mais interessantes de morrer do que nesta praia.
Meu pai se irrita e agarra o braço do homem como se ele fosse um cavalo rebelde. Eles trocam algumas breves palavras sobre restrições de idade durante a corrida. Meu pai vence.
– Se seu filho morrer – diz o oficial –, a culpa será toda sua.
Meu pai nem se dá ao trabalho de responder, apenas se afasta,
conduzindo seu garanhão uisce .
No caminho em direção à água, somos empurrados por homens e
cavalos. Eu me esgueiro sob um cavalo quando ele se ergue sobre as patas
traseiras e o cavaleiro é lançado para trás. Ileso, me vejo de frente para o
mar, cercado por todos os lados pelos capaill uisce – os cavalos d’água. Eles
têm as mesmas cores dos cascalhos da praia: preto, vermelho, dourado,
branco, marfim, cinza, azul. Os homens enfeitam as rédeas com fitas
vermelhas e margaridas para reduzir os riscos do mar escuro de novembro,
mas eu não confiaria num punhado de pétalas para salvar minha vida. No
ano passado, um cavalo d’água adornado com flores e sinos arrancou o
braço de um homem.
Esses não são cavalos comuns. Cerque-os de encantos, esconda-os do
mar, mas hoje, na praia, não dê as costas a eles.
Alguns cavalos estão espumando. A baba escorre da boca e desliza
sobre o peito, parecendo espuma do mar, escondendo os dentes que mais
tarde vão dilacerar homens.
Eles são lindos e mortais, nos amam e nos odeiam.
Meu pai me manda buscar a manta para sua sela e a braçadeira com o
outro grupo de oficiais. A cor da manta deve permitir que os espectadores,
lá longe nos penhascos, consigam identificar meu pai, mas nesse caso eles
não precisarão disso, não com o brilhante pelo vermelho do garanhão que
ele monta.
– Ah, Kendrick – dizem os oficiais; este é o nome dele, e também o
meu. – Será uma manta vermelha para ele.
Conforme volto para junto de meu pai, sou abordado por um cavaleiro:
– Ei, Sean Kendrick. – Ele é pequeno e magro, e seu rosto parece
esculpido em pedra. – Hoje é um bom dia para isso.
Sinto-me honrado em ser cumprimentado como adulto. Como se eu
pertencesse a este lugar. Cumprimentamo-nos inclinando a cabeça, antes de

ele se voltar mais uma vez para seu cavalo, para terminar de selar o animal.
Sua pequena sela de corrida é feita à mão e, quando ele ergue a aba para
ajustar a correia, vejo palavras gravadas no couro: “Nossos mortos bebem o
mar”.
Meu coração martela no peito quando entrego a manta a meu pai. Ele
parece perturbado também, e desejo que fosse eu a correr, não ele.
Confio totalmente em mim.
O garanhão uisce vermelho está inquieto, bufando, com as orelhas em
pé e parecendo ansioso. Ele está febril hoje. E será rápido. Rápido e difícil de
controlar.
Meu pai me entrega as rédeas para que possa colocar a manta vermelha
no cavalo d’água. Passo a língua sobre os dentes, e eles têm gosto de sal;
observo meu pai amarrar a braçadeira no braço. Todos os anos eu o tenho
observado, e todos os anos ele a amarra com a mão firme, mas não dessa
vez. Seus dedos estão desajeitados, e eu sei que ele teme o garanhão
vermelho.
Eu já cavalguei esse capall . Em seu dorso, com o vento me açoitando, o
chão me sacudindo e o mar molhando nossas pernas, nunca nos cansamos.
Inclino-me em direção à orelha do animal e desenho um círculo em
sentido anti-horário sobre seus olhos, enquanto sussurro para ele.
– Sean! – grita meu pai, e a cabeça do capall se ergue tão rápido que
seu crânio quase se choca contra o meu. – O que está fazendo com o rosto
tão perto do dele hoje? Ele não lhe parece faminto? Você acha que ficaria
bonito sem metade do rosto?
Mas eu apenas olho para a pupila quadrada do garanhão, e ele retorna o
olhar, com a cabeça levemente virada para longe de mim. Espero que esteja
se lembrando do que eu disse: “Não devore meu pai”.
Meu pai faz um ruído com a garganta e diz:
– Eu acho que você deve ir agora. Venha até aqui e... – Ele me dá um
tapinha nas costas antes de montar.
Ele parece pequenino e sombrio sobre o dorso do garanhão vermelho.

Suas mãos já seguram as rédeas com força, para manter o cavalo no lugar. O
movimento aciona o freio na boca do animal; eu o vejo girar a cabeça de um
lado para o outro. Não é assim que eu teria feito, mas não sou eu quem está
montando.
Quero dizer a meu pai que o garanhão tende para a direita e que acho
que ele enxerga melhor com o olho esquerdo, mas, em vez disso, lhe digo:
– Vejo você quando acabar. – Assentimos um para o outro, como
estranhos, um adeus não ensaiado e desconfortável.
Estou assistindo à corrida dos penhascos quando um cavalo uisce cinza
atinge meu pai no braço e depois no peito. Por um momento, as ondas não
avançam sobre a praia, as gaivotas sobre nós não batem as asas e o ar seco
em meus pulmões não escapa.
E então o cavalo d’água cinzento arranca meu pai de sua incerta
posição sobre o garanhão vermelho.
O cinzento não consegue segurar meu pai pelo peito, e meu pai cai na
areia, já destruído antes que as patas o atinjam. Ele estava em segundo
lugar, e um longo tempo se passa antes que o restante dos cavalos passe por
cima dele e eu possa vê-lo mais uma vez. A essa altura, ele é só uma longa
mancha preta e escarlate, meio submersa na espuma da maré. O garanhão
vermelho anda em círculos, como uma criatura faminta do mar, mas faz o
que pedi: não devora a coisa que fora meu pai. Em vez disso, volta para a
água. Nada é tão vermelho como o mar naquele dia.
Não penso com frequência no corpo de meu pai estendido na beira da
praia, dentro da água vermelha. Lembro dele como ele estava antes da
corrida: amedrontado.
Não cometerei o mesmo erro.

odo mundo diz que meus irmãos estariam perdidos sem mim, mas
na verdade sou eu quem estaria perdida sem eles.
Normalmente, se você perguntar para alguém da ilha de onde ele
é, a resposta será algo como “Das redondezas de Skarmouth”, ou “Do
interior de Thisby”, ou “De pertinho de Tholla”. Mas eu não. Lembro-me
de quando era pequena e, segurando a mão áspera de meu pai, algum velho
fazendeiro que parecia ter sido desenterrado da areia me perguntava:
– De onde você é, garota?
E eu respondia num tom alto demais para meu pequeno corpo sardento:
– Da casa Connolly.
Ele retrucava:
– E onde fica isso?
E eu respondia:
– Onde nós, Connollys, vivemos. Porque eu sou um deles. – E então, e
ainda fico um pouco envergonhada ao me lembrar dessa parte porque revela
um lado negro de minha personalidade, completava: – E você não é.
É simplesmente assim que as coisas são. Há os Connollys e há o
restante do mundo, ainda que o restante do mundo, quando se mora em
Thisby, não seja tão grande assim. Antes do último outono, era sempre
assim: eu, meu irmão mais novo, Finn, meu irmão mais velho, Gabe, e
nossos pais. Éramos uma família bem tranquila no geral. Finn estava sempre

desmontando e montando coisas e guardando as partes que sobravam numa
caixa debaixo da cama. Gabe também não era de muita conversa. Seis anos
mais velho que eu, ele economizava suas energias para crescer: já tinha um
metro e oitenta aos treze anos. Meu pai tocava gaita quando estava em casa,
e minha mãe realizava o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes
todas as noites, ainda que eu não tenha percebido aquele milagre até o dia
em que ela não estava mais ali.
Não é que fôssemos antipáticos com o restante da ilha. Éramos apenas
mais simpáticos uns com os outros. Ser um Connolly vinha em primeiro
lugar. Aquela era a única regra. Você podia ferir os sentimentos de qualquer
pessoa, desde que não magoasse um Connolly.
Estamos na metade de outubro agora. Como em todos os dias do
outono nesta ilha, o dia começa frio, mas esquenta e ganha cor conforme o
sol nasce. Pego um pente e uma escova e tiro a poeira da crina e do dorso de
Dove até meus dedos se cansarem. Quando finalmente a selo, ela está
limpa, e eu, imunda. Ela é minha égua e melhor amiga, e sempre acho que
algo de ruim vai lhe acontecer, porque a amo demais.
Enquanto ajusto as correias, Dove vira o focinho para meu lado, quase
numa espécie de carícia, e desvia mais uma vez a cabeça num movimento
rápido; ela me ama também. Não posso cavalgar por muito tempo. Logo
terei de voltar e ajudar Finn a preparar biscoitos para vender nas lojinhas da
região. Também pinto bules para os turistas e, como a temporada das
corridas está chegando, tenho pedidos mais do que suficientes para atender.
Depois das corridas, não haverá mais visitantes do continente até a
primavera. O oceano é incerto demais quando está frio. Gabe fica fora o dia
todo, trabalhando no Hotel Skarmouth, preparando os quartos para os
espectadores das corridas. Quando se é órfão em Thisby, é preciso trabalhar
duro para pagar as contas.
Na verdade, eu não percebi que não havia nada de especial a respeito
da ilha até alguns anos atrás, quando comecei a ler revistas. Não me parece,
mas Thisby é um lugar minúsculo: quatro mil pessoas numa ilha rochosa no

meio do mar, a horas do continente. Só há penhascos, cavalos, ovelhas e
estradas estreitas que atravessam descampados até Skarmouth, a maior
cidade da ilha. A verdade é que, até que você descubra que existe algo
diferente, a ilha é suficiente.
De fato, sei que há algo diferente. E a ilha ainda assim é o bastante.
Então estou cavalgando, meus dedos estão frios dentro das velhas botas
e Finn está sentado no Morris, no banco do motorista, remendando
cuidadosamente, com fita adesiva preta, um rasgo no assento do passageiro.
O rasgo foi cortesia de Puffin, a gata que vive no estábulo. Pelo menos
agora, Finn aprendeu a nunca deixar os vidros abertos. Ele quer parecer
irritado com os reparos, mas posso ver que, na verdade, está feliz com o
trabalho. É contra o código de conduta de Finn revelar muita felicidade.
Quando Finn me vê montando Dove, lança-me um olhar zombeteiro.
Houve um tempo, antes do ano passado, em que aquele olhar zombeteiro se
transformava num sorriso malicioso, e ele ligava o motor e apostávamos
corrida, eu montando Dove e ele dirigindo o carro, ainda que fosse
tecnicamente jovem demais para dirigir. Muito jovem. Mas não importava.
Quem nos impediria? Então, apostávamos corrida, eu galopando pelos
campos, ele acelerando pela estrada. O primeiro a chegar à praia tinha de
arrumar a cama do outro durante uma semana.
Mas já faz quase um ano que não apostamos corrida. Desde que meus
pais morreram no barco.
Conduzo Dove para o outro lado, fazendo pequenos círculos no jardim
lateral. Ela está ansiosa e agitada demais para se concentrar esta manhã, e
eu estou com muito frio para amansá-la. Ela quer galopar.
Ouço o barulho do motor do Morris. Viro-me a tempo de ver o carro se
afastando pela estrada, acompanhado de uma nuvem de gases nocivos.
Ouço o grito de vitória de Finn um minuto depois. Ele coloca a cabeça para
fora, o rosto pálido sob os cabelos empoeirados, e sorri, mostrando cada um
dos dentes que possui.
– Você está esperando um convite? – ele chama. Então, volta para

dentro do carro e o motor ronca alto quando ele muda de marcha.
– Ah, você vai perder – digo, apesar de ele estar longe, muito longe
para ouvir. As orelhas de Dove se esticam em minha direção e então se
voltam para a estrada, tremendo. A manhã está fria, e ela mal precisa de
comandos. Aperto as coxas contra seus flancos e estalo a língua.
Dove começa a se mover na mesma hora, suas patas deixando rastros
empoeirados para trás, e corremos no encalço de Finn.
A rota de Finn não é mistério: ele tem de seguir pela estrada, e só existe
uma estrada principal, que vai dar em Skarmouth, passando por nossa casa.
Mas esse não é o caminho mais curto. A estrada serpenteia pelos campos,
protegida por muros de pedra e cercas vivas. Não faz sentido seguir esse
trajeto marcado por uma trilha de poeira. Em vez disso, Dove e eu
atravessamos os campos. Dove não é grande; nenhum dos cavalos nativos
da ilha é, porque a grama não é das melhores. Mas é esperta e corajosa.
Assim, ela e eu saltamos as cercas do jeito que quisermos, desde que o
terreno seja sólido.
Contornamos a primeira curva, assustando um grupo de ovelhas.
– Desculpem! – grito para elas por sobre o ombro.
A cerca seguinte surge quando ainda estou observando as ovelhas, e
Dove tem de se virar depressa para poder saltar. Solto as rédeas no que deve
ter sido o movimento mais desajeitado do mundo, mas pelo menos evito
machucar sua boca, e ela ergue alto as pernas, salvando nós duas. Enquanto
ela se afasta da cerca, puxo as rédeas novamente e dou um tapinha em seu
pescoço para demonstrar que percebi que ela nos salvou, e ela estica as
orelhas para trás, demonstrando que gosta que eu me importe.
Então, atravessamos um campo que costumava servir de pasto para
ovelhas, mas que agora está coberto de folhagens, esperando para ser
queimadas. O Morris ainda está um pouco à nossa frente, uma sombra
escura diante de um rastro de poeira. Não estou preocupada com a
vantagem dele; para chegar de carro à praia, ele vai ter de pegar a estrada
por dentro da cidade, com curvas fechadas e pedestres atravessando, ou

fazer um desvio contornando-a, perdendo vários minutos e nos dando uma
boa chance de recuperação.
Ouço o Morris hesitar pouco antes da rotatória e em seguida disparar
para a cidade. Posso pegar a estrada que contorna Skarmouth e evitar mais
saltos, ou posso ir pelos arredores da cidade, atravessando alguns quintais e
correndo o risco de ser vista por Gabe, no hotel.
Já posso me imaginar sendo a primeira a chegar à praia.
Decido correr o risco de ser vista por Gabe. Já faz muito tempo desde
que fizemos isso pela última vez, e as velhotas rabugentas não podem
reclamar muito de um cavalo atravessando seu quintal, desde que não
esmaguemos nada importante.
– Vamos lá, Dove – sussurro. Ela acelera o galope pela estrada e passa
direto por um buraco numa cerca viva. Existem casas aqui que parecem ter
surgido das pedras e quintais estreitos cheios de trecos que não cabiam mais
nas casas; do outro lado, há uma sólida extensão de pedra que cavalo
nenhum poderia atravessar. O único caminho possível é passar por meia
dúzia de quintais e pelo hotel do outro lado.
Espero que todos estejam ocupados, trabalhando nos píeres ou na
cozinha. Passamos a galope pelos quintais, saltando carrinhos de mão no
primeiro, desviando de uma horta no segundo e sendo perseguidos por um
terrier furioso no terceiro. E então, inexplicavelmente, saltamos uma velha
banheira vazia no último quintal e alcançamos a estrada que vai dar no
hotel.
Obviamente, Gabe está lá e me vê no mesmo instante.
Ele está varrendo a calçada diante do hotel com uma vassoura enorme.
O hotel é um edifício meio assustador, com paredes cobertas por
trepadeiras. As folhas são podadas em quadrados perfeitos para permitir que
o sol entre pelas janelas, com parapeitos de um azul brilhante. A altura do
hotel bloqueia a luz da manhã e lança uma profunda sombra azul sobre a
calçada de pedra que Gabe está varrendo. Ele parece alto e maduro, com
sua jaqueta marrom justa sobre os ombros largos. Seus cabelos louro-

avermelhados alcançam-lhe a nuca; estão um pouco compridos, mas ainda
assim ele é bonito. Sinto uma feroz onda de orgulho me invadir, porque ele
é meu irmão. Ele para o que está fazendo para se apoiar no cabo da vassoura
e me observar enquanto me aproximo com Dove.
– Não fique zangado! – grito para ele.
Um sorriso vence um dos lados de seu rosto, mas o outro não. Quase
pareceria que ele está realmente feliz, se você nunca tivesse visto um de seus
verdadeiros sorrisos. O mais triste é que eu me acostumei com seus sorrisos
fingidos. Tenho esperado os sorrisos de verdade voltarem, sem perceber que
deveria estar me esforçando para encontrá-los de novo.
Continuo na corrida, forçando Dove a galopar quando nos afastamos
da calçada e voltamos para o gramado. Ali, o solo é macio e arenoso e tem
início um rápido declive; a trilha se torna mais estreita entre os morros e as
dunas que levam até a praia. Não consigo dizer se Finn está à minha frente
ou atrás de mim. Tenho de controlar Dove e diminuir a marcha para um
trote quando a descida fica íngreme demais. Finalmente, ela dá um salto
desajeitado que nos leva ao nível do mar. Quando contornamos o último
banco de areia, solto uma exclamação irritada; o Morris já está estacionado,
no limite entre a grama e a areia. O cheiro de combustível inunda o ar,
acentuado pela elevação do solo ao nosso redor.
– Você ainda é uma boa menina – sussurro para Dove. Ela está sem
fôlego, mas solta o ar pela boca. Ela acha que a corrida foi boa.
Finn está meio para dentro, meio para fora do carro, a porta do
motorista está aberta e ele apoia um dos pés na beirada. Descansa um braço
no teto e o outro na parte superior da porta. Ele está olhando para o mar,
mas, quando Dove recupera o fôlego, volta o rosto para mim, protegendo os
olhos. Sua expressão é de preocupação, e eu conduzo Dove para perto do
carro. Afrouxo as rédeas para que ela possa pastar enquanto estamos ali,
mas ela não abaixa a cabeça. Em vez disso, também volta os olhos para o
oceano, cerca de cem metros à nossa frente.
– O que foi? – pergunto. Uma sensação estranha me embrulha o

estômago.
Olho para onde os olhos dele estão voltados. Posso ver, a distância,
uma cabeça cinzenta emergindo da água, tão distante e com a cor tão
próxima da do mar revolto que quase posso crer que estou imaginando
coisas. Mas os olhos de Finn não estariam tão arregalados se ele não tivesse
certeza. Como era de esperar, a cabeça emerge mais uma vez, e agora vejo
narinas escuras respirarem com tanta força que consigo vislumbrar uma cor
avermelhada nelas, mesmo daqui. E então o restante da cabeça aparece e
depois o pescoço, com a crina embaraçada colada ao pelo por causa da água
salgada e, em seguida, os ombros poderosos, brilhantes e ensopados. O
cavalo d’água surge do oceano e dá um grande salto, como se os passos
finais sobre a maré alta fossem um enorme obstáculo a superar.
Finn hesita quando o cavalo começa a galopar pela praia em nossa
direção, e eu pouso a mão em seu cotovelo, ainda que meu próprio coração
esteja martelando em meus ouvidos.
– Não se mexa – sussurro. – Não-se-mexa, não-se-mexa, não-se-mexa.
Eu me agarro ao que ouvi dizer inúmeras vezes: que os cavalos d’água
adoram um alvo em movimento, adoram a caçada. Faço uma lista dos
motivos pelos quais ele não vai nos atacar: estamos imóveis, não estamos
perto da água e estamos ao lado do Morris, e os cavalos d’água desprezam o
ferro.
De fato, o cavalo d’água passa por nós, galopando sem parar. Posso ver
Finn engolir em seco, seu pomo de adão sobe e desce no magro pescoço, e é
tudo tão real que é difícil não se encolher até que ele volte para o oceano.
Eles estão aqui mais uma vez.
É o que acontece todo outono. Meus pais não acompanhavam as
corridas, mas sei a história mesmo assim. Quanto mais perto estamos de
novembro, mais cavalos saem do mar. Os nativos da ilha que desejam
participar das futuras Corridas de Escorpião frequentemente saem em
grandes grupos de caçadores para capturar os capaill uisce , o que é sempre
muito perigoso, porque os cavalos estão famintos e ainda enlouquecidos

pelo mar. E, quando os novos cavalos emergem, é um sinal para aqueles que
estão participando das corridas do ano, para começarem a treinar os cavalos
que capturaram nos anos anteriores – cavalos relativamente dóceis até o
cheiro do mar do outono despertar a magia dentro deles.
Durante o mês de outubro, até primeiro de novembro, a ilha se torna
um mapa de áreas seguras e não seguras, porque, a menos que você seja um
dos cavaleiros, não quer estar por perto quando um capall uisce fica louco.
Nossos pais trabalharam duro para nos proteger da realidade sobre os
cavalos uisce , mas era impossível evitá-la. Nossos amigos faltavam às aulas
porque um cavalo uisce matara o cachorro da família durante a noite. Meu
pai tinha de desviar de uma carcaça destruída no caminho para Skarmouth,
uma evidência de onde haviam se enfrentado um cavalo d’água e um cavalo
da terra. Os sinos da são Columba tocavam ao meio-dia, anunciando o
funeral de um pescador pego de surpresa na praia.
Finn e eu não precisamos que ninguém nos diga como os cavalos são
perigosos. Nós sabemos. Sabemos disso todos os dias.
– Vamos – digo. Olhando para o mar, com os braços magros o
mantendo em pé, ele parece muito jovem, meu irmãozinho, ainda que esteja
atravessando aquela estranha fase de transição entre menino e homem.
Sinto uma repentina necessidade de protegê-lo da dor que aquele outubro
trará. Mas não é de fato com a dor deste outubro que devo me preocupar, e
sim com a de um outubro que já se foi.
Finn não responde, apenas entra no Morris e fecha a porta sem olhar
para mim. Já é um dia ruim. E isso antes de Gabe voltar para casa.

eech Gratton, o filho do açougueiro, acabou de matar uma vaca e
está escorrendo o sangue num balde para mim quando ouço a
notícia. Estamos na área atrás do açougue, e o som de nossa total
falta de conversa é amplificado pelo eco de nossos passos nas pedras ao
redor. O dia está lindo e frio, e eu estou inquieto, me apoiando num pé e no
outro. As pedras sob meus pés são irregulares, meio erguidas do chão por
causa das raízes de árvores que não existem mais, e manchadas de marrom e
preto em pontos espalhados.
– Beech, você já soube? Os cavalos deixaram o mar – informou Thomas
Gratton ao filho, entrando pela porta aberta de seu estabelecimento. Ele
havia começado a se dirigir para os fundos, mas se deteve ao me ver. – Sean
Kendrick. Eu não sabia que estava aqui.
Não digo nada, e Beech resmunga:
– Ele veio quando soube que eu estava matando a vaca. – Ele faz um
gesto indicando a carcaça, pendurada, decapitada e sem as patas, num
cavalete de madeira. O chão está repleto de sangue, porque Beech demorou
para colocar o balde debaixo do cadáver. A cabeça do animal está no fundo
do quintal, virada de lado. A boca de Thomas Gratton se move, como se
desejasse dizer algo a respeito daquela cena a Beech, mas ele não diz nada.
Thisby é uma ilha habitada por filhos que decepcionam os pais.
– Então, você já sabia, Kendrick? – pergunta Thomas Gratton. – É por

isso que está aqui, e não montado num cavalo?
Estou aqui porque os novos homens que Malvern contratou para
alimentar os cavalos são, na melhor das hipóteses, medrosos e, na pior,
incompetentes. Além disso, o feno anda ruim e os cortes de carne ainda
piores. Não há sangue para os capaill uisce , é como se os empregados
acreditassem que tratá-los como cavalos comuns os tornaria comuns. Então,
estou aqui porque eu mesmo preciso fazer as coisas, se quiser que sejam
feitas direito. Mas o que digo é:
– Eu não sabia.
Beech dá tapinhas carinhosos no pescoço da vaca morta, balançando o
balde de um lado para o outro. Ele não olha para o pai.
– Quem contou?
Não dou a mínima para a resposta a essa pergunta; não interessa quem
ouviu ou quem disse o quê. O que importa é que os capaill uisce estão
saindo do mar. Posso sentir em meus ossos que é verdade. E é por isso que
estou inquieto. É por isso que Corr anda de um lado para o outro na baia, e
é por isso que eu não consigo dormir.
– Os Connollys viram um – diz Thomas Gratton.
Beech faz um barulho e dá mais um tapinha na vaca, mais para mostrar
que está ouvindo do que por qualquer motivo prático. A história dos
Connollys é uma das mais tristes que Thisby tem a oferecer: três filhos de
pescador órfãos duas vezes pelos capaill uisce . Há muitas mães solteiras
nesta ilha, cujo homem desapareceu no meio da noite, vítima de um cavalo
d’água selvagem ou da tentação do continente. E muitos pais solteiros
também, cuja esposa foi apanhada na praia por dentes que apareciam
subitamente, ou seduzida por algum turista com a carteira recheada. Mas
perder pai e mãe de um único golpe, aquilo não era comum. A minha
história – o corpo frio do pai lançado ao solo, a mãe perdida para o
continente – era suficientemente comum para ter sido esquecida, o que é
bom para mim. Há coisas melhores pelas quais ser conhecido.
Thomas Gratton observa em silêncio, enquanto Beech me entrega o

balde e começa a retalhar agressivamente o cadáver da vaca. Não parece
haver um modo artístico de esquartejar uma vaca, mas há, e com certeza
não é esse. Por um longo momento, observo Beech cortar a carne em linhas
irregulares, grunhindo o tempo todo consigo mesmo, talvez tentando
cantarolar. Estou impressionado com a total inconsciência do processo e
com o prazer infantil que Beech sente com um trabalho malfeito. Thomas
Gratton e eu trocamos um olhar.
– Ele aprendeu isso com a mãe, não comigo – diz Thomas Gratton. Eu
quase não esboço um sorriso, mas ele parece grato pela minha resposta
mesmo assim.
– Se você não gosta do modo como trabalho – responde Beech, sem
desviar os olhos da tarefa –, eu preferiria estar no bar, e esta faca também
cabe na sua mão.
Thomas Gratton emite um som poderoso que vem de algum lugar entre
suas narinas e o céu de sua boca; é um som que, para mim, prova
efetivamente a origem dos grunhidos de Beech. Ele se afasta do filho e olha
para o telhado vermelho de uma das construções que circundam o quintal.
– Então, suponho que vá participar da corrida este ano – diz.
Beech não responde, porque, obviamente, seu pai está falando comigo.
Eu respondo:
– Suponho que sim.
Thomas Gratton não responde no mesmo instante. Ele simplesmente
continua olhando para o sol da tarde, que ilumina as telhas com um tom
brilhante vermelho-alaranjado. Por fim, diz:
– Sim, suponho que seja isso que Malvern exige de você.
Trabalho no Haras Malvern desde os dez anos de idade, e algumas
pessoas dizem que consegui o emprego por piedade, mas elas estão erradas.
O sustento e o nome dos Malverns estão sob o teto daquele estábulo – eles
exportam cavalos de corrida para o continente –, e não admitem nada que
os comprometa, mesmo algo tão humanitário como a piedade. Já estou com
os Malverns há tempo suficiente para saber que os Grattons não dão a

mínima para eles, e sei que Thomas Gratton quer que eu diga qualquer
coisa que o faça desprezar Benjamin Malvern ainda mais. Então, faço uma
longa pausa para dissipar o peso daquela pergunta e digo, balançando o
balde:
– Se o senhor não se importar, acerto as contas no fim da semana.
Thomas Gratton ri baixinho.
– Você é o jovem de dezenove anos mais velho que conheço, Sean
Kendrick.
Não respondo, porque provavelmente ele está certo. Ele me diz para
acertar as contas na sexta-feira, como de costume, e Beech me dirige um
grunhido de despedida quando deixo o quintal carregando o balde de
sangue.
Preciso pensar em como trazer os pôneis do pasto, acertar a
alimentação dos puros-sangues e decidir como manter meu pequeno
apartamento sobre o estábulo aquecido esta noite, mas estou pensando na
notícia que trouxe Thomas Gratton. Estou aqui em terra firme, mas parte
de mim já está na praia, e meu próprio sangue está cantando: “Estou tão,
tão vivo”.

aquela noite, Gabe quebra a nossa única regra.
Não tenho grandes ambições para o jantar, porque não temos
nada além de feijões secos, e eu não aguento mais cozinhar e
comer feijões. Preparo um bolo de maçã e me sinto muito prendada por isso.
Finn está me aborrecendo, a tarde toda no jardim mexendo com uma
motosserra antiga e quebrada, que ele diz que alguém lhe deu, mas que é
bem provável que tenha tirado do lixo de alguém. Estou zangada por estar
dentro de casa sozinha, o que faz com que eu sinta que devo arrumá-la, e
não estou a fim de arrumar nada. Abro e fecho gavetas e armários, evitando
a pia sempre cheia, mas Finn não me ouve, ou finge não me ouvir.
Finalmente, antes que o sol desapareça por completo no oeste, abro a
porta lateral e fico ali, olhando fixamente para Finn, esperando que ele olhe
para mim e diga alguma coisa. Ele está curvado sobre a motosserra
desmontada à sua frente, as peças espalhadas de forma organizada pelo solo
poeirento do jardim. Ele usa um dos suéteres velhos de Gabe, que ainda é
muito grande para ele. Arregaçou as mangas, com dobras largas e perfeitas,
e seus cabelos escuros estão presos num ensebado rabo de cavalo. Ele parece
órfão, e isso também me aborrece.
– Você vai entrar e comer o bolo enquanto ele ainda se lembra de ficar
quente? – Pareço um pouco infantil, mas não me importo.
– Em um minuto – Finn responde, sem erguer os olhos. Ele não vai

levar apenas um minuto, e eu sei disso.
– Vou comer o bolo todo sozinha – ameaço. Ele não responde; está
perdido no misterioso mundo da motosserra. Eu penso, só nesse instante,
que odeio irmãos, porque eles nunca percebem quando algo é importante
para você e só se importam com as próprias coisas.
Estou prestes a dizer algo do qual posso me arrepender depois, quando
vejo Gabe caminhando em nossa direção empurrando sua bicicleta.
Nenhum de nós diz oi enquanto ele abre o portão do jardim, traz a bicicleta
para dentro e o fecha – Finn porque está distraído demais, e eu, porque
estou irritada com Finn.
Gabe guarda a bicicleta sob o pequeno alpendre atrás da casa e se
aproxima de Finn. Tira o boné e o segura sob os braços cruzados,
observando em silêncio o que o irmão está fazendo. Não estou certa se, sob
a luz fraca do entardecer, Gabe sabe dizer o que foi exatamente que Finn
estraçalhou, mas Finn sacode a carcaça da motosserra para conceder ao
irmão uma melhor visão. Isso, aparentemente, revela a Gabe tudo o que ele
precisa saber, porque, quando Finn ergue a cabeça, levantando o queixo
para nosso irmão mais velho, Gabe apenas assente.
Aquela comunicação silenciosa tanto me fascina quanto me deixa
furiosa.
– Fiz bolo de maçã – digo. – Ainda está quente.
Gabe tira o boné de debaixo dos braços e se vira para mim.
– O que teremos para o jantar?
– Bolo de maçã – Finn comenta do jardim.
– E motosserra – respondo. – Finn preparou uma bela motosserra para
acompanhar.
– Bolo de maçã está bom – diz Gabe, parecendo cansado. – Puck, não
deixe a porta aberta. Está frio aqui fora.
Dou um passo para trás para que ele possa entrar em casa, e, quando o
faz, percebo que ele cheira a peixe. Odeio quando os Beringers mandam
Gabe limpar peixe. Ele deixa a casa toda fedendo.

Gabe para na porta. Olho para ele e, então, para sua postura, com a
mão no batente e o rosto voltado para a mão, como se estivesse estudando
seus dedos ou a pintura vermelha descascada sob eles. Sua expressão parece
distante, como a de um estranho, e de repente sinto vontade de abraçá-lo,
como eu costumava fazer quando era criança.
– Finn – ele diz, com a voz baixa –, quando terminar de montar isso, eu
preciso falar com você e Kate.
Finn ergue os olhos, seu rosto tem um ar assustado, mas Gabe já se foi,
passando por mim para desaparecer no quarto que ainda divide com Finn,
apesar de o quarto de nossos pais estar vazio. Ou o pedido de Gabe ou o fato
de ter usado meu nome de verdade chamou a atenção de Finn de um jeito
que meu bolo de maçã não foi capaz de fazer, e ele começa a recolher as
peças da motosserra bem depressa, guardando toda a tralha numa velha
caixa de papelão.
Fico preocupada enquanto espero Gabe sair de seu quarto. A cozinha se
transformou naquele lugar pequeno e amarelo de todas as noites, quando a
escuridão lá fora a faz parecer ainda menor. Lavo apressadamente três
pratos iguais e corto um pedaço grande de bolo de maçã para cada um de
nós, o maior deles para Gabe. Colocá-los sobre a mesa, três pratos solitários
onde um dia houve cinco, me deprime, então tento manter-me ocupada
preparando chá de hortelã para acompanhar. Conforme arrumo, uma, duas
vezes, as xícaras de chá ao lado dos pratos, percebo tarde demais que talvez
chá de hortelã e bolo de maçã não combinem muito bem.
A essa altura, Finn deu início ao processo de lavar as mãos, o que pode
levar séculos. Com paciência e em silêncio, ele ensaboa as mãos com o
sabonete de leite, lavando cuidadosamente entre os dedos e esfregando cada
linha de sua palma. Ele continua até Gabe aparecer, vestindo roupas limpas,
mas ainda cheirando a peixe.
– Parece bom – Gabe me diz ao puxar sua cadeira, e fico aliviada,
porque nada está errado, vai ficar tudo bem. – É bom sentir cheiro de
hortelã depois de hoje.

Tento pensar no que minha mãe ou meu pai teriam dito a ele. E de
repente nossa diferença de idade parece um enorme abismo.
– Pensei que queriam que você arrumasse as coisas no hotel hoje.
– Eles precisavam de mão de obra no píer – responde Gabe. – E
Beringer sabe que sou mais rápido que Joseph.
Joseph é filho de Beringer, preguiçoso demais para ser rápido em
qualquer coisa. Uma vez Gabe me disse que devíamos ser gratos pela
incapacidade de Joseph de pensar em algo além de si mesmo, porque era por
esse motivo que Gabe tinha um emprego. Porém não me sinto grata nesse
momento, pois Gabe está cheirando a peixe porque Joseph é um inútil.
Gabe segura a xícara de chá, mas não bebe. Finn ainda está lavando as
mãos. Acomodo-me em minha cadeira. Gabe espera um pouco mais, e
então diz:
– Finn, já chega , ok?
Finn leva mais um minuto para enxaguar as mãos, mas fecha a torneira
em seguida e vem se sentar à minha frente.
– Precisamos dar graças, mesmo só tendo bolo de maçã?
– E uma motosserra – completo.
– Deus, obrigado por este bolo e pela motosserra de Finn – diz Gabe. –
Está bom assim?
– Para Deus, ou para mim? – pergunto.
– Deus está sempre contente – Finn diz. – É a você que precisamos
agradar.
Aquilo me parece incrivelmente injusto, mas me recuso a morder a
isca. Olho para Gabe, que está olhando para seu prato. Pergunto:
– E então?
Do lado de fora, ouço Dove relinchando onde o pasto se mistura ao
quintal; ela quer sua ração de grãos. Finn olha para Gabe, que ainda está
olhando para o prato, pressionando os dedos sobre o bolo de maçã, como se
estivesse verificando a textura. Subitamente, percebo como o dia de
amanhã, o aniversário da morte de nossos pais, está me perturbando, e

como nunca me ocorreu que a mesma coisa talvez estivesse acontecendo
com o quieto e controlado Gabe.
Ele não ergue os olhos. Simplesmente diz:
– Vou embora da ilha.
Finn mantém os olhos fixos em Gabe.
– O quê?
Não consigo falar; é como se ele tivesse dito aquilo num idioma
estrangeiro e meu cérebro precisasse traduzir suas palavras antes que eu
pudesse entender.
– Vou embora da ilha – diz Gabe, e dessa vez a declaração é mais firme,
mais real, mesmo que ele ainda não olhe para nós.
Finn consegue articular uma frase completa primeiro.
– O que vamos fazer com todas as nossas coisas?
Eu completo:
– E quanto a Dove?
Gabe diz:
– Eu vou embora da ilha.
A expressão no rosto de Finn é como se Gabe o tivesse espancado. Ergo
o queixo e tento fazer com que Gabe olhe nos meus olhos.
– Você vai sem a gente? – E então minha mente me fornece uma
resposta lógica, que lhe dá uma desculpa, e eu lhe dou essa resposta. –
Então você não vai demorar muito tempo. Você só vai para... – Sacudo a
cabeça. Não consigo pensar num motivo para ele partir.
Gabe finalmente ergue os olhos.
– Eu vou me mudar.
Sentado na minha frente, Finn está agarrado à beirada da mesa, e seus
dedos pressionam a madeira com tanta força que estão brancos nas pontas,
mas muito vermelhos nas juntas. Não acho que ele esteja ciente disso.
– Quando? – pergunto.
– Daqui a duas semanas. – Puffin está miando a seus pés, esfregando o
queixo em sua perna, mas Gabe não olha para baixo nem reconhece a

presença dela. – Prometi a Beringer que ficaria mais esse tempo.
– Beringer? – pergunto. – Você prometeu a Beringer que ficaria por
mais um tempo? E quanto a nós ? O que vai acontecer conosco?
Ele não olha para mim. Estou tentando imaginar como poderemos
sobreviver com um Connolly trabalhador a menos e mais uma cama vazia.
– Você não pode ir – digo. – Não pode partir tão cedo. – Meu coração
martela no peito e preciso pressionar os dentes com força para impedir que
batam como uma castanhola.
O rosto de Gabe continua impassível, e sei que vou me arrepender do
que vou dizer, mas é a única coisa em que consigo pensar, então eu digo.
– Vou participar das corridas – falo. Simples assim.
Agora tenho a total atenção de meus irmãos, e minhas faces estão
vermelhas, como se eu tivesse me inclinado sobre um forno quente.
– Qual é, Kate – Gabe diz, mas sua voz não é tão clara quanto deveria.
Ele quase acredita em mim, apesar de tudo. Antes que eu diga qualquer
outra coisa, tenho de pensar a respeito e decidir se eu acredito em mim
mesma. Penso nesta manhã, meus cabelos ao vento, a sensação de Dove se
espichando num galope. Penso no dia depois das corridas, a areia manchada
de vermelho num ponto da praia que o oceano não alcança. Penso nos
últimos barcos partindo antes do inverno e em Gabe num deles.
Eu poderia fazer isso, se precisasse.
– Eu vou. Você não ouviu falar na cidade? Os cavalos estão
aparecendo. O treinamento começa amanhã. – Sinto-me muito orgulhosa
por minhas palavras parecerem firmes.
A boca de Gabe trabalha como se estivesse dizendo todo tipo de coisa
sem abrir os lábios, e sei que ele está remoendo todos os contra-argumentos
em sua cabeça. Parte de mim quer que ele diga “Você não pode”, para que
eu possa perguntar “Por quê?”, e assim ele terá de perceber que não pode
responder “Porque você pode deixar o Finn totalmente sozinho”. E ele não
pode perguntar “Por quê?”, pois teria de responder a mesma pergunta. Eu
devia estar me sentindo muito esperta e satisfeita comigo mesma, porque é

muito difícil deixar Gabe sem palavras, mas na verdade meu coração está
fazendo tum-tum-tum no peito, de maneira muito rápida e superficial, e eu
meio que espero que ele diga que, se eu não competir, ele vai ficar.
Mas finalmente ele diz:
– Tudo bem. Vou ficar até depois das corridas. – Ele parece zangado. –
Mas não mais do que isso, porque os barcos vão parar até a primavera. Você
está fazendo uma coisa muito estúpida, Kate.
Ele está zangado comigo, mas eu não me importo. Tudo o que me
importa é que ele vai ficar por um pouco mais de tempo.
– Bem, parece que vamos precisar do dinheiro, se eu vencer – digo,
tentando soar o mais adulta e indiferente possível, mas pensando que talvez,
se eu realmente ganhar o dinheiro, ele não tenha mais que partir. E então
me levanto da mesa e coloco o prato e a xícara na pia, como se essa fosse
uma noite como outra qualquer. E vou para o meu quarto, fecho a porta e
coloco o travesseiro sobre a cabeça para ninguém ouvir.
– Filho da mãe egoísta – sussurro, e as palavras ficam escondidas sob o
travesseiro.
Então, começo a chorar.

stou sonhando com o mar quando me acordam.
Na verdade, estou sonhando com a noite em que capturei Corr,
mas posso ouvir o mar em meu sonho. Há uma antiga superstição
que diz que os capaill uisce capturados durante a noite são mais rápidos e
fortes, por isso são três da manhã e eu estou agachado atrás de uma pedra
na base dos penhascos, a vários metros da areia da praia. Acima de mim, o
mar cavou um arco na greda; o teto está a uns trinta metros da minha
cabeça, e as paredes brancas me abraçam. Deveria estar escuro, a luz da lua
não chega até mim, mas o oceano reflete as pedras claras, e posso ver
suficientemente bem para não tropeçar no cascalho áspero do solo. As
pedras sob os meus pés têm mais em comum com o fundo do oceano do que
com a praia, e tenho de tomar cuidado para não me desequilibrar na
superfície escorregadia.
Estou ouvindo.
No escuro, no frio, estou ouvindo uma mudança no som do oceano. A
água está subindo, rápida e silenciosamente; a maré está alta, e daqui a uma
hora esta caverna estará cheia de água do mar, numa altura além da minha
cabeça. Estou atento, tentando distinguir o som de um respingo, de patas
rompendo a superfície, qualquer sinal de que um capall uisce está
emergindo. Porque, quando você ouve as patas atingindo as pedras, você já
está morto.

Mas não há nada além do silêncio misterioso do mar por aqui. Não há
pássaros durante a noite, nem gritos de crianças na praia, nem o som
distante do motor de um barco. O vento é cruel quando me encontra no
arco. Desequilibrado por sua força súbita, escorrego, mas me recomponho
ao me apoiar na parede com os dedos esticados. Rapidamente puxo as mãos
de volta: as paredes estão cobertas de águas-vivas vermelhas, que brilham e
piscam para mim sob a luz da lua. Uma vez meu pai me disse que são
completamente inofensivas. Eu não acredito nele. Nada é completamente
inofensivo.
Abaixo de mim, a água invade as pedras conforme a maré sobe. A
palma de minha mão está sangrando.
Ouço um som, é como um gato miando, ou um bebê chorando, e fico
imóvel. Não há gatinhos ou bebês aqui na praia; só estamos eu e os cavalos.
Brian Carroll me disse que quando está no mar, à noite, às vezes pode ouvir
os cavalos chamando uns aos outros sob a água. Disse que o som parece o
canto das baleias, ou o choro de uma viúva, ou alguém dando risada.
Olho para baixo em direção à água, no ponto mais profundo das rochas;
a maré subiu rápido. Quanto tempo fiquei aqui parado? Na minha frente, as
rochas já não são nada além de pedaços brilhantes de pedra logo acima da
água escura. Estou de mãos vazias e não tenho muito tempo; preciso me
mexer e encontrar o caminho de volta por entre as rochas cobertas de algas
enquanto ainda sou capaz.
Olho para a minha mão: um grosso fio de sangue escorre da palma
pelos dois ossos de meu braço. O sangue se acumula, gotejando
silenciosamente na água. Minha mão vai doer mais tarde. Olho para a água
onde meu sangue desaparece. Estou em silêncio. A caverna está em silêncio.
Eu me viro, e ali está um cavalo.
Ele está perto o bastante para que eu possa sentir seu cheiro salino,
perto o bastante para que eu sinta o calor de seu pelo ainda molhado, perto
o bastante para que eu olhe em seus olhos e veja sua pupila quadrada e
dilatada. Sinto cheiro de sangue em seu hálito.

E então eles me acordam.
Vejo Brian e Jonathan Carroll, a expressão no rosto deles é de
preocupação. O rosto de Brian está como de costume: sobrancelhas
franzidas, lábios espremidos. O de Jonathan traz um sorriso de desculpas que
muda de forma a cada segundo. Brian tem minha idade, e o conheço lá do
píer. Nós dois trabalhamos com a água para sobreviver, portanto temos uma
história juntos, embora não sejamos amigos. Jonathan é irmão dele e fica
atrás de Brian em todos os sentidos, inclusive no que diz respeito ao cérebro.
– Kendrick – diz Brian –, você está acordado?
Agora estou. Fico deitado na cama como se estivesse amarrado a ela, e
não digo nada.
Jonathan completa:
– Desculpe por acordar você, parceiro.
– Você é o cara – diz Brian. Ainda que eu não tenha nenhuma simpatia
por ele agora, no meio da noite, também não tenho nada contra. Ele diz o
que pensa. – Não tem jeito; Mutt está bem encrencado. Ele teve a ideia de
esperar um dos capaill uisce sair da água e conseguiu o que queria, mas não
acho que esteja gostando.
– Vai matar todos eles – Jonathan diz. Ele parece satisfeito por ter sido
capaz de dizer algo tão óbvio antes de Brian.
– Eles quem? – pergunto. Está frio, e agora eu acordei de verdade.
– Mutt e os amigos dele – Brian diz. – Estão todos metidos nisso e meio
que conseguiram capturar o capall , mas não conseguem soltá-lo e nem
trazê-lo para a praia.
Agora estou sentado. Não tenho a menor simpatia por Mutt – também
conhecido por Matthew Malvern, o filho bastardo do meu chefe – ou por
qualquer um dos idiotas que correm atrás dele numa amizade submissa, mas
eles não podem deixar um cavalo preso na praia, na armadilha cretina que
inventaram.
– Você é quem entende de cavalos, Kendrick – diz Brian. – Acho que
alguém vai acabar morto, a menos que levemos você de volta para lá.

De volta para lá . Agora eu entendo a expressão de preocupação no
rosto deles; eles fizeram parte daquilo e sabem que por isso perderei um
pouco do respeito por eles.
Não digo mais nada. Simplesmente me levanto da cama, vestindo meu
velho suéter e agarrando meu casaco azul-escuro, com todos os apetrechos
nos bolsos. Estico o queixo na direção da porta, e como esquilos eles correm
na minha frente, Jonathan abrindo a porta para que Brian possa nos
conduzir para fora do estábulo.
Do lado de fora, o vento é uma coisa viva e faminta. O céu sobre
Skarmouth é de um marrom fechado, iluminado pelos postes da rua, mas
todo o resto está escuro. Há um pedaço de lua aparente, então estará mais
claro à beira do oceano, mas não muito. Atravessamos os campos, tomando
o caminho mais direto até a praia. Não tem nada aqui fora a não ser rochas
e ovelhas, mas é bem fácil cair sobre uma delas.
– Lanterna – peço, e Brian a acende e a entrega para mim. Sacudo a
cabeça. Vou precisar das mãos livres. Atrás de nós, Jonathan corre e
tropeça, tentando acompanhar nosso ritmo, fazendo o feixe de luz se mover
freneticamente quando sua lanterna balança. Lembro-me de minha mãe
fingindo escrever na parede com uma lanterna quando a tempestade
cortava a eletricidade.
– A que distância da praia? – pergunto. A maré vai subir em algumas
horas, e, se eles estiverem perto da praia, um capall uisce será o menor de
seus problemas.
– Não muito longe – arfa Brian. Ele não está fora de forma, mas
atividade física extrema normalmente o deixa muito cansado. Se não fossem
as expressões anteriores do rosto deles, eu teria parado para deixá-lo
recuperar o fôlego.
Posso ver onde os morros se dividem numa fenda para o caminho lá
embaixo na areia; o solo é mais escuro que o céu. Então, ouço um grito. O
vento o traz até nós, alto e agudo, e é impossível dizer se é animal ou
humano. Os cabelos em minha nuca se arrepiam num alerta, que ignoro

enquanto começo a correr.
Brian não me segue – acho que não consegue –, e noto que Jonathan
está dividido entre ficar com ele e me acompanhar.
– Preciso da lanterna, Jonathan! – grito por sobre o ombro. O vento
lança minhas palavras para trás, e, ainda que Jonathan responda, não
consigo ouvir o que diz. Tento enxergar com a fraca luz de sua lanterna em
meio à escuridão, tropeçando e escorregando na íngreme descida até a
praia. Por um momento, acho que não vou conseguir continuar porque não
consigo enxergar, mas dou mais alguns passos e vislumbro uma confusão de
luzes, vindas de lanternas que se movem rapidamente na areia. Para além
delas, vejo a água, que recebe a luz fraca da lua.
O vento está afastando os sons de mim; quando me aproximo da cena,
parece até que os homens estão mudos. A luta quase parece uma pintura,
até que você a encare de perto. São quatro homens, e eles agarraram um
cavalo d’água cinzento pelo pescoço e por uma das patas traseiras, pouco
acima do casco. Eles puxam e saltam para trás, enquanto o cavalo luta e
escoiceia, mas estão numa posição ruim e sabem disso. Eles agarraram o
tigre pelo rabo e acabaram de perceber que o rabo é longo o suficiente para
que as garras acabem com eles.
– Kendrick! – ouço alguém gritar. Não sei dizer quem é. – Onde está
Brian?
– Sean Kendrick? – grita outra pessoa, e dessa vez sei que é Mutt, que
segura a corda que prende o pescoço do cavalo. Eu o reconheço pela
silhueta, os ombros largos e o pescoço grosso, que parece continuação do
queixo. – Quem mandou esse filho da mãe vir até aqui? Volte a dormir, seu
imbecil. Está tudo sob controle!
Ele controla o cavalo como um barco de pesca controla o mar. Posso
ver agora que Padgett está segurando a outra corda; ele é um homem mais
velho, que deveria pensar melhor antes de confiar cegamente em Mutt.
Num instante, entre as rajadas de vento, ouço um ruído suave perto de
mim; desvio os olhos e vejo outro dos amigos de Mutt sentado contra a

parede de rocha, onde os penhascos encontram a praia. Ele está curvado
sobre os braços e segura um deles com a mão trêmula. O braço parece
quebrado. O som que eu ouvi foi seu gemido.
– Fique fora disso, Kendrick! – grita Mutt.
Cruzo os braços sobre o peito e espero. O cavalo parou de lutar por um
momento. Contra as paredes brancas dos penhascos, posso ver as cordas
escuras que prendem o capall uisce . O cavalo está cansando, mas os homens
também. Os braços musculosos de Mutt tremem como as cordas. Os outros
se aproximam, colocando laços de corda na praia, esperando que o cavalo
caia numa armadilha. Seria fácil, para alguém que não conhece os cavalos
d’água, pensar que o capall uisce , parado ali, arfando, está derrotado. Mas
vejo sua cabeça se erguer predadora, mais parecida com a de uma ave de
rapina do que com a de um equino, e sei que as coisas vão ficar bem feias.
– Mutt – chamo. Ele nem sequer vira a cabeça, mas pelo menos eu o
chamei.
A corda que prende a pata do cavalo se estica subitamente, quando
o capall cinzento ataca Mutt. Sou pulverizado com uma chuva de areia e
cascalho causada pelas patas enterradas na praia. Gritos cruzam o ar.
Padgett salta e puxa a corda, tentando desequilibrar o cavalo. Mutt está
preocupado demais com sua própria segurança para retribuir o favor. A
corda em torno do pescoço do animal se afrouxa de repente, e ele recua na
direção de Padgett. Seus cascos desenham círculos na areia. E então o
cavalo fica sobre Padgett, com os dentes cravados no ombro dele, as patas
dianteiras erguidas num abraço. Parece impossível Padgett não cair ao solo
com todo aquele peso sobre ele, mas os dentes do cavalo em seu ombro o
mantêm em pé por um breve instante, antes de o animal cair de joelhos,
com Padgett sob seu peito.
Agora Mutt está puxando a corda em torno do pescoço do cavalo, mas
ela é muito pequena e é tarde demais. E o que ele pode fazer contra um
dos capaill uisce ?
Padgett está começando a parecer um caso perdido; está deixando de

parecer um homem e se assemelhando mais a um pedaço de carne. Ouço o
lamento de um dos homens:
– Kendrick .
Dou um passo adiante e, quando me aproximo do cavalo, cuspo nos
dedos da mão esquerda e agarro um punhado da crina pela raiz, bem atrás
das orelhas. Com a mão direita, tiro uma fita vermelha do bolso de meu
casaco e a pressiono contra os ossos do focinho do animal. O cavalo salta,
mas minha mão está firme em seu pescoço. Sussurro em seu ouvido, e ele
vacila, enterrando um casco no corpo de Padgett enquanto tenta recuperar
o equilíbrio. Padgett não é minha preocupação. Estou preocupado com o
fato de ter uma tonelada de cavalo selvagem amarrada por uma corda. O
cavalo já mutilou dois homens, e tenho de afastá-lo dos demais antes que eu
perca meu fraco controle sobre ele.
– Não se atreva a soltar esse bicho – Mutt grunhe para mim. – Não
depois de tudo isso. Leve-o para o estábulo. Não deixe que tudo isso tenha
sido em vão.
Quero dizer a ele que se trata de um cavalo d’água, não de um
cachorro, e levá-lo para a terra, para longe da água salgada do início de
novembro, é algo que eu não me atreveria a fazer neste momento. Mas não
quero gritar e dar ao cavalo mais motivos para se lembrar de que estou bem
ao lado dele.
– Faça o que tem de ser feito, Kendrick! – berra Brian, que finalmente
chegou à praia.
– Não se atreva a soltar esse cavalo – grita Mutt mais uma vez.
Tirar todos dali com vida já seria um grande feito. Levar o cavalo de
volta para o mar e soltá-lo longe o suficiente para escaparmos com
segurança seria impressionante. E eu posso fazer mais do que tirar todos dali
a salvo, e eles sabem disso, sobretudo Mutt Malvern.
Mas eu sussurro como o mar no ouvido do cavalo e dou um passo para
trás, me afastando das lanternas. Um passo para longe deles, um passo para
perto do oceano. Minhas meias absorvem a maré dentro de minhas botas. O

cavalo cinzento treme sob minhas mãos.
Eu me viro para olhar para Mutt, e então deixo o cavalo partir.

u não acho que durmo, mas durmo, porque, pela manhã, meus
olhos estão pesados e parece que uma marmota andou por debaixo
dos meus cobertores. O céu, do lado de fora da janela, está azul, e
decido que não importa que horas são, vou me levantar. Passo um tempão
de pé tremendo com a parte de cima de meu pijama – aquele com fitas de
seda que dão um pouco de coceira, mas que uso mesmo assim porque foi
minha mãe quem fez – e olhando para o que tem no meu armário, numa
tentativa de decidir o que usar para ir até a praia. Não sei se sentirei frio
depois de cavalgar um pouco e não sei se quero ir até lá vestida como uma
garota, já que Joseph Beringer provavelmente estará por perto, me olhando
com aquele sorriso malicioso.
Sobretudo, estou tentando não pensar em coisas grandiosas,
como: Você vai se lembrar deste dia pelo resto de sua vida.
No fim das contas, visto o de sempre: minhas calças marrons, que não
incomodam, e meu suéter verde-escuro, que minha avó tricotou para minha
mãe. Gosto de pensar em minha mãe usando o suéter; dá a impressão de
que ele tem história. Olho para meu espelho manchado e, sob minhas
sardas, faço uma cara malvada; minhas sobrancelhas ficam retas sobre meus
olhos azuis. Pareço confusa e zangada. Puxo algumas mechas de cabelo
sobre a testa, soltando-as do rabo de cavalo, numa tentativa de parecer
diferente da menina que sempre fui. Alguém de quem as pessoas não vão rir
quando virem chegando à praia. Não adianta. Tenho sardas demais. Prendo

novamente os cabelos no rabo de cavalo.
Na cozinha, Finn já está de pé, e está parado perto da pia. Está usando
o mesmo suéter de ontem, e parece um homem que diminuiu de tamanho
durante a noite, enquanto sua roupa permaneceu a mesma ao seu redor.
Alguma coisa cheira queimado. A princípio, o cheiro é quase bom, como de
filé ou torrada, até que percebo que na verdade é ruim, como papel ou
cabelo queimado.
– O Gabe está acordado? – pergunto. Olho insegura para o armário, no
intuito de não olhar para Finn. Não sei se quero conversar. Olhando para o
armário, também não sei se quero comer.
– Ele já foi para o hotel – responde Finn. – Eu... tome isso.
E, com isso, coloca uma caneca com uma colher sobre a mesa. Ela tem
manchas nas laterais do que quer que esteja ali dentro, de um jeito que sei
que deixará marcas na mesa, mas sai fumaça da bebida, e desconfio que seja
chocolate quente.
– Você fez isso?
Finn olha para mim.
– Não, santo Antônio trouxe durante a noite. Ele ficou bem bravo por
eu não ter levado para você na mesma hora.
Ele se vira de novo.
Estou chocada, tanto pela volta do humor de Finn quanto pelo
presente de chocolate. Vejo nesse momento que a pia está uma completa
bagunça, com as panelas que Finn usou para preparar uma única caneca de
chocolate quente, e agora tenho certeza de que o cheiro de queimado no ar
é do leite derramado no fogão. Mas decido não me importar, ele fez de
coração. Isso meio que faz meu lábio inferior perder o controle e começar a
tremer, mas finco os dentes nele por um instante, até que tudo volte ao
normal. Quando Finn se senta do outro lado da mesa, com a sua própria
caneca, já estou recuperada.
– Obrigada – digo, e ele parece desconfortável. Minha mãe costumava
dizer que ele era como uma fada; não gostava de agradecimentos.

Acrescento: – Sinto muito.
– Coloquei sal no chocolate – revela Finn, como se isso eliminasse a
necessidade de me sentir grata.
Experimento. Está bom. Se há mesmo sal nisso aqui, não sinto seu gosto
em meio a pequenos pedaços de chocolate parcialmente derretidos. Eles se
dissolvem na minha boca em pedacinhos de pó nada desagradáveis. Não
consigo lembrar se Finn já preparou chocolate quente antes; acho que ele só
me viu fazendo.
– Não consigo sentir gosto de sal.
– O sal – diz Finn– torna o chocolate mais doce.
Acho que isso é algo bem estúpido de se dizer; como uma coisa que não
é doce pode tornar algo ainda mais doce? Mas deixo passar. Mexo minha
bebida com a colher e esmago alguns pedaços de chocolate no fundo da
caneca.
Finn sabe que não acredito nele e diz:
– Vá perguntar na Palsson’s se não acredita em mim. Eu fiquei olhando
enquanto eles faziam bolinhos de chocolate. Com sal.
– Eu não disse que não acreditava em você! Eu não disse nada.
Ele coloca uma colher em sua própria caneca.
– Sei que você não disse nada.
Ele não me pergunta quanto tempo vou demorar, nem como vou
conseguir um cavalo para montar, nem nada a respeito de Gabe. Não sei
dizer se estou feliz por não tocar no assunto, ou se estou ficando louca por
ele não estar falando disso. Nós apenas terminamos de tomar nossa bebida,
e, quando me levanto para colocar minha caneca na pia, digo:
– Acho que vou passar a maior parte do dia fora.
Finn se levanta e coloca sua caneca ao lado da minha. Ele parece muito
sério, seu pescoço, magro como o de uma tartaruga, escapa do suéter,
grande demais. Ele aponta para o balcão atrás de mim. Entre a bagunça de
panelas e pratos, vejo uma maçã cortada, com alguns farelos do balcão
grudados em um dos lados.

– Isso é para Dove. Quero ir com você hoje.
– Você não pode ir comigo – digo, sem nem ao menos parar para pensar
em como as palavras dele me tocam.
– Não todos os dias – diz Finn. – Só hoje. Só no primeiro dia.
Por um momento, luto com a imagem de mim mesma surgindo na
praia, orgulhosa e sozinha, contra a realidade de chegar com um de meus
irmãos para assistir de longe e ver como a coisa toda acontece.
– Tudo bem. Seria bom.
Finn apanha seu chapéu. Eu pego o meu. Eu mesma tricotei os dois, e o
meu é branco com dois tons diferentes de marrom. O de Finn é vermelho e
branco. Não são perfeitos, mas servem.
Usando nosso chapéu, nos detemos por um instante em meio ao caos
da cozinha. Por um momento, vejo o espaço como qualquer outra pessoa o
veria. Parece que tudo ao redor de Finn saiu do ralo da pia. Está tudo uma
bagunça, nós dois estamos uma bagunça, e não é de admirar que Gabe
queira partir.
– Vamos – eu digo.

o primeiro dia, Gorry me faz ir à praia antes dos outros, para
experimentar uma égua malhada que ele tirou do oceano há
algum tempo. Ele tem tanta certeza de que vou querer o animal
para Malvern que estabeleceu um preço alto o bastante para comprar dois
cavalos. Sob o céu azul-escuro do início da manhã, com a maré começando
a recuar na areia e meus dedos congelados nas pontas, dentro das luvas, eu
o observo fazer a égua trotar de um lado para o outro. As marcas dos cascos
dela são as primeiras na praia; a maré alta limpou a areia, removendo todos
os vestígios dos esforços inúteis de Mutt na noite anterior.
Ela é impressionante. Existem cavalos d’água de todas as cores dos
cavalos normais, mas, como os cavalos terrestres, a maioria é baia ou
castanha. Com menos frequência, são pardos, cinzentos ou negros. É muito
raro encontrar um cavalo d’água malhado preto e branco, como nuvens
brancas sobre um campo negro. Mas cores berrantes não vencem corridas.
A égua malhada não se movimenta mal. Tem bons ombros.
Muitos capaill uisce têm bons ombros. Sem me deixar impressionar, observo
cormorões pretos que giram no céu, sua silhueta parecendo pequenos
dragões.
Gorry traz a égua até mim. Subo em seu dorso e olho para ele.
– Ela é o capall uisce mais rápido que você montará – diz ele, com sua
voz áspera.
Corr é o capall uisce mais rápido que já montei.

Sob mim, a égua malhada cheira a cobre e algas marinhas podres. Seu
olho, voltado para mim, lacrimeja água salgada. Não gosto de como me
sinto sobre ela – ela é arredia e difícil de controlar –, mas estou acostumado
com Corr.
– Vá galopar – diz Gorry –, e me diga se poderá encontrar algo mais
rápido.
Eu a deixo trotar; ela anda pela areia comprimida perto da água, com as
orelhas grudadas na crina. Tiro meus pedaços de ferro da manga e os deslizo
em seu pescoço num movimento em sentido anti-horário, sobre uma
mancha branca em formato de coração. Ela estremece e tenta afastar o
corpo do meu toque. Não gosto da inclinação de sua cabeça, que não parece
a de um cavalo, nem do modo como nunca abaixa as orelhas. Nenhum
cavalo merece confiança, mas confio nela ainda menos do que nos outros.
Gorry me incentiva a galopar. A sentir a velocidade dela por mim
mesmo. Duvido que exista algo que ela possa fazer galopando que me
convença de que seu trote vale a pena. Mas afrouxo as rédeas e pressiono
seus flancos.
Ela corre pela praia como uma águia-pescadora mergulha atrás de um
peixe. Incrivelmente rápida. E sempre, sempre consciente da água, se
dobrando em direção ao mar. E, mais uma vez, há aquele movimento
sinuoso, escorregadio. Ela parece muito menos cavalo que criatura do mar
para mim, mesmo agora, mesmo no fim de outubro, mesmo em terra firme.
Mesmo comigo sussurrando em seu ouvido.
Mas ela é rápida. Suas patas devoram a areia, e passamos pela caverna
que marca o fim da superfície boa em poucos segundos. A adrenalina da
velocidade me invade, como a espuma na superfície da água. Não quero
pensar que ela é mais rápida que Corr, mas deve chegar perto. E, de
qualquer forma, como posso saber sem ele por perto?
O terreno está começando a ficar rochoso. Quando faço um
movimento para diminuir a velocidade, a égua malhada se empina nas patas
traseiras, com os dentes predatórios à mostra.

De repente, ela cheira intensamente a mar. Não o cheiro de praia, que
a maioria das pessoas acha que é o cheiro do mar. Nem de algas, nem de sal,
mas de sua cabeça sob a superfície, respirando a água, com os pulmões
repletos do oceano. O ferro não faz efeito conforme nos aproximamos da
água.
Meus dedos trabalham em sua crina, dando nós em grupos de três e
sete. Eu canto em seu ouvido, e enquanto isso minha mão a conduz em
círculos cada vez menores, cada vez mais distante da água. Nada é certo.
Conforme galopamos pela areia, a magia nela me chama, traiçoeira.
Muito pouco de minha pele nua a toca – talvez meu pulso contra seu
pescoço, já que minhas pernas estão protegidas pelas botas. Ainda assim,
sua pulsação parece me atravessar. Tranquilizando-me de modo a confiar.
Convencendo-me a juntar-me a ela no mar. É somente a experiência de
uma década cavalgando dúzias de cavalos d’água que me permite lembrar de
mim mesmo.
E, ainda assim, vagamente.
Tudo em mim me diz para abandonar a luta. Para voar com ela para a
água.
Três. Sete. O ferro na minha mão.
Sussurro: “Não vai ser você quem vai conseguir me afogar”.
Parece que se passam vários minutos até que eu consiga fazê-la diminuir
a velocidade e levá-la de volta para Gorry, mas provavelmente são apenas
alguns segundos. E, durante todo o tempo, seu pescoço ainda parece sinuoso
como uma cobra, e seus dentes ainda estão à mostra de um modo que
nenhum cavalo terrestre faria. Ela está tremendo sob mim.
É difícil esquecer como ela foi rápida.
– Eu não disse que ela seria a coisa mais rápida que você já montou? –
pergunta Gorry.
Desmonto e entrego-lhe as rédeas. Ele as toma com uma expressão
confusa no rosto já naturalmente confuso.
Eu digo:

– Esta égua vai acabar matando alguém.
– Ora, ora – Gorry protesta. – Todos esses cavalos já mataram alguém.
– Eu não quero esse animal – afirmo, mesmo que parte de mim queira.
– Outra pessoa comprará esta égua – diz Gorry. – E você vai se
arrepender.
– Essa outra pessoa estará morta – respondo. – Leve-a de volta para o
mar.
Eu me viro.
Atrás de mim, ouço Gorry dizer:
– Ela é mais rápida que o seu garanhão vermelho.
– Leve-a de volta – repito, sem me virar.
Eu sei que ele não vai fazer isso.

u não imaginava que fosse tão horrível.
Mas parece que a ilha toda está amontoada aqui na praia. Finn me
convenceu a pegar o Morris, que logo quebrou, e acabamos
chegando praticamente depois de todo mundo. Diante de nós, há dois
oceanos: um, distante, de um azul profundo, e o outro, uma massa furiosa de
cavalos e homens. Todos são homens, não há uma única garota entre eles, a
menos que você considere Tommy Falk, porque os lábios dele são lindos. Os
homens são mil vezes mais barulhentos que o mar. Não entendo como
podem treinar, ou se mover, ou respirar. Estão todos gritando com os
cavalos e uns com os outros. É como uma grande discussão, mas não sei
dizer quem está zangado com quem.
Finn e eu hesitamos no longo caminho em declive até a praia. O solo
sobre o qual caminhamos é irregular, repleto das marcas dos cascos dos
cavalos que já foram levados. Finn franze o cenho ao olhar para a reunião
de homens e animais. Mas, em vez disso, o que chama minha atenção é um
cavalo galopando a distância, à beira da maré que se esvazia. Ele é vermelho
cor de sangue, e há um pequeno e escuro vulto em sua sela. Quando seus
cascos atingem a beira da praia, espalham uma chuva de água salgada.
A visão daquele animal galopando incrivelmente rápido, cada músculo
de seu corpo trabalhando, é tão linda que meus olhos ardem.
– Aquela ali parece dois cavalos presos um ao outro – diz Finn. A
observação dele me faz desviar os olhos do vermelho e prestar atenção nos

E

penhascos.
– É uma égua malhada – respondo. A égua que ele está apontando é
branca como a neve e tem grandes manchas pretas. Na base de seu pescoço,
há uma pequena mancha negra que parece um coração sangrando. Um
homem pequenino como um gnomo, usando chapéu-coco, a conduz para
longe dos outros cavalos.
– É uma égua malhada – zomba Finn. Dou-lhe um tapa e olho para
onde estavam o cavalo vermelho e o cavaleiro há um instante, mas eles
desapareceram.
Sinto-me estranhamente desapontada.
– Acho que devemos descer – digo.
– Estão todos lá embaixo hoje? – pergunta Finn.
– É o que parece.
– Como você vai arranjar um cavalo?
Como eu não tenho uma resposta, a pergunta me irrita. Fico ainda mais
irritada quando percebo que nós dois estamos parados exatamente na
mesma posição, logo, ou eu estou inconscientemente assumindo a postura
do meu irmão, ou ele está assumindo a minha. Tiro as mãos dos bolsos e
explodo.
– Hoje é dia de prova oral? Você vai me fazer perguntas o dia todo?
Finn faz uma careta, e sua boca e sobrancelhas se transformam em
linhas paralelas. Ele é muito bom nisso, embora eu não saiba o que
exatamente significa. Quando ele era pequeno, minha mãe costumava
chamá-lo de sapinho por causa dessa careta. Agora que ele já precisa se
barbear de vez em quando, não se parece tanto com um anfíbio.
De qualquer maneira, ele faz a careta de sapo e desaparece em meio à
confusão. Por um momento, penso em ir atrás dele, mas subitamente me
vejo presa ao solo ao ouvir um grito queixoso.
É a égua malhada. Ela está distante dos outros cavalos, olhando para
trás, na direção deles ou na direção do mar. Sua cabeça está jogada para
trás, mas ela não está relinchando. Está gritando.

O lamento cruza o ar e abafa o som das ondas, interrompendo toda a
atividade frenética. É o grito de um predador antigo. Absurdamente
diferente de qualquer som que um cavalo normal possa fazer.
E é horrível.
Tudo o que consigo pensar é: Essa foi a última coisa que meus pais
ouviram?
Vou perder a coragem se não for para a praia agora mesmo. Sei disso.
Posso sentir. Minhas pernas estão moles como algas. Estou tão hesitante que
quase torço o tornozelo num dos buracos deixados pelos cascos dos cavalos.
Fico aliviada quando a égua malhada para de gritar, mas não posso ignorar o
fato de que os capaill uisce nem sequer cheiram como cavalos normais
quando me aproximo deles. Dove tem um cheiro suave, de palha, grama e
melaço. Os capaill uisce cheiram a sal, carne, fezes e peixe.
Tento respirar pela boca e não pensar nisso. Há cachorros correndo em
volta de minhas pernas, e ninguém está realmente olhando para onde ele
está indo. Os cavalos esperneiam, e há homens vendendo apólices de seguro
e oferecendo proteção aos cavaleiros. Eles estão mais animados que cães
dentro do açougue. Fico feliz por Finn ter ido embora, porque a ideia de
meu irmão me ver totalmente confusa é insuportável.
A verdade é que tenho uma ideia muito vaga de como conseguir um
cavalo para a corrida sem pagar adiantado, mas essa ideia é baseada nas
conversas que costumávamos ter na escola, quando os meninos diziam que
participariam das corridas quando crescessem. Eles nunca fizeram isso. A
maioria se mudou para o continente ou foi trabalhar nas fazendas, mas seus
planos mirabolantes eram uma ótima fonte de informação. Principalmente
porque a minha família era uma das poucas que não acompanhavam as
corridas.
– Garota! – ruge um homem segurando um cavalo que escoiceia e
empina, galopando sem se mover um centímetro. – Tome cuidado com a
droga do seu pé!
Olho para os meus pés e levo um segundo para perceber que há um

círculo desenhado na areia e minhas botas estão desmanchando o desenho.
Salto para fora do círculo.
– Não se incomode – o homem berra para mim quando tento refazer o
desenho. O cavalo empina mais uma vez. Eu recuo e levo mais um grito –
dois homens estão carregando um garoto mais velho. A cabeça dele está
sangrando e ele me xinga. Eu me viro e quase tropeço num cachorro
imundo, com o pelo cheio de areia.
– Maldito! – grito com o cachorro, só porque ele não pode me
responder.
– Puck Connolly! – É Tommy Falk, com seus belos lábios. – O que você
está fazendo aqui? – Pelo menos é isso que acho que ele diz. O barulho é tão
grande que as conversas das outras pessoas abafam a maior parte das
palavras dele, e o vento espalha o resto.
– Estou procurando por chapéus-coco – digo. Chapéus-coco pretos aqui
significam negociantes – no resto da ilha, alguém que use um desses é
chamado de vendedor, e o termo não tem conotação positiva. Às vezes,
quando querem ser vistos como rebeldes, os rapazes usam esse tipo de
chapéu. Na maior parte do tempo, isso quer dizer que são uns idiotas.
Tommy grita:
– Eu não ouvi o que você disse.
Mas eu sei que ele ouviu. Ele simplesmente não acredita no que ouviu.
Papai me disse uma vez que o cérebro das pessoas tem dificuldade de ouvir.
Pouco importa se o de Tommy é completamente surdo, porque de repente
vislumbro um chapéu-coco, na cabeça do pequeno homem-gnomo que
antes estava conduzindo a égua malhada.
– Obrigada – digo a Tommy, ainda que ele não tenha me ajudado.
Deixo-o para trás e corro pela multidão atrás do gnomo. De perto, o homem
não parece tão baixo, mas parece que o rosto dele foi atingido uma ou duas
vezes por um tijolo, para achatá-lo, e uma última vez para completar o
serviço.
Ele está discutindo com alguém.

– Sean Kendrick – cospe o vendedor, um nome que por algum motivo
me parece familiar, especialmente dito naquele tom desdenhoso. O gnomo
de chapéu-coco não tem voz de gnomo. Sua voz é repleta de fumaça de
cigarro, e ele sibila, como se inserisse um sopro arenoso no início das
palavras.
– Ah. A cabeça dele está cheia de água salgada. O que é que ele anda
dizendo sobre os meus cavalos agora?
– Eu não gosto de repetir comentários – responde educadamente a
outra pessoa. É o dr. Halsal, com seus brilhantes cabelos pretos
perfeitamente repartidos de lado. Eu gosto do dr. Halsal. Ele é muito
equilibrado, um homem bastante correto e organizado, que mais me parece
um desenho de uma pessoa do que uma pessoa de verdade. Eu queria me
casar com ele quando tinha seis anos.
– Ele é louco como o oceano – diz o vendedor de chapéu-coco. –
Venha. Veja minha égua. Você vai se interessar, prometo.
– Mesmo assim – o dr. Halsal diz –, acho que vou ter que deixar essa
passar.
– Ela é rápida como o demônio – diz o gnomo, mas o médico já está se
afastando, e suas costas não têm ouvidos.
– Com licença – digo, e minha voz soa alta demais aos meus ouvidos. O
gnomo se vira. Seu rosto assimétrico é assustador, quando combinado com
uma expressão irritada. Tento organizar os pensamentos e formular uma
pergunta respeitável. – Você trabalha com quintos?
Quintos são outra coisa que aprendi com os garotos sonhadores da
escola. É um tipo de aposta. Às vezes, um negociante deixa você competir
com um cavalo sem cobrar nada, com a condição de receber quatro quintos
de qualquer prêmio que você venha a ganhar na corrida. Geralmente isso
não significa nada, a menos que você chegue em primeiro. Então, você
poderia comprar a ilha inteira se quisesse. Bem, pelo menos a maior parte de
Skarmouth, exceto a que pertence a Benjamin Malvern.
O gnomo olha para mim.

– Não – ele responde. Mas sei que o que ele quer dizer é: Não para
você .
Eu me sinto um pouco hesitante por dentro, porque não me ocorreu
que ele fosse dizer não – teria tanta gente assim querendo montar capaill
uisce para os negociantes serem tão exigentes? Ouço a minha própria voz
dizendo:
– Tudo bem. Poderia me indicar alguém que faça isso? – E completo,
apressada: – Senhor. – Porque meu pai me disse certa vez que dizer “senhor”
transforma vigaristas em cavalheiros.
O gnomo responde:
– Os de chapéu-coco. Pergunte a eles.
Alguns vigaristas permanecem vigaristas. Se eu fosse mais nova, teria
cuspido nos sapatos dele, mas minha mãe me fez perder esse costume com a
ajuda de um pequeno banquinho azul e muito sabão.
Então, eu simplesmente me afasto sem agradecer – ele foi mais inútil
que o lindo Tommy Falk – e atravesso a multidão procurando pelo próximo
chapéu-coco, apenas para ouvir a mesma resposta. Todos dizem não para a
menina de cabelos avermelhados. Eles nem ao menos levam a hipótese em
consideração. Um franze a testa, outro ri, e outro nem me deixa terminar a
frase.
Já está na hora do almoço e meu estômago está roncando. Há pessoas
vendendo comida para os cavaleiros, mas é tudo muito caro e tudo cheira a
sangue e peixe. Não tenho nem sinal de Finn. A maré está começando a
subir, e algumas das almas menos corajosas já deixaram a praia. Eu me
afasto um pouco, me encostando no penhasco branco, as mãos espalmadas
sobre a superfície fria. Vários metros acima de minha cabeça, a pedra é mais
branca, marcando o ponto até onde a água vai subir daqui a algumas horas.
Imagino ficar ali até isso acontecer e deixar a água salgada me engolir aos
poucos.
Lágrimas de frustração queimam em meus olhos. O pior de tudo é que
estou um pouco feliz por terem me dito que não. Aqueles monstros

aterrorizantes não se parecem em nada com Dove, e nem posso me imaginar
montando um deles, muito menos levando um para casa e treinando-o para
que coma carne sangrenta e cara, em vez de me devorar. No verão, as
crianças às vezes apanham libélulas e amarram linha nelas, bem atrás dos
olhos, e as levam de um lado para o outro como bichinhos de estimação.
Esses homens crescidos com seus capaill uisce são como aquelas libélulas.
Os cavalos os arrastam como se não tivessem peso algum. O que fariam
comigo?
Olho para o mar. Perto da praia, a água é turquesa nos pontos onde as
rochas brancas rolaram dos penhascos para a praia e negra onde as algas
marrons cobrem as pedras. Em algum lugar, para além de toda aquela água,
estão as cidades para as quais perderemos Gabe. Sei que nunca mais o
veremos de novo. Não importa que ele esteja vivo em algum lugar; vai ser
tão ruim como foi com mamãe e papai.
Minha mãe gostava de dizer que as coisas acontecem por um motivo,
que às vezes os obstáculos estão ali para impedir que façamos algo estúpido.
Ela me dizia muito isso. Mas, quando ela disse isso a Gabe, meu pai disse a
ele que às vezes isso significa apenas que temos de nos esforçar mais.
Respiro fundo e ando na direção do único chapéu-coco que não desvia
o olhar do meu. O gnomo. Ele só tem um cavalo nas mãos agora: a égua
malhada que gritou mais cedo.
– Ei, você! – Ele diz isso como se eu fosse passar direto por ele.
– Acho que precisamos conversar – digo a ele. Estou hostil e confusa.
Qualquer charme que eu pudesse ter quando comecei com isso está lá em
casa, junto com os ingredientes para preparar um sanduíche.
– Eu estava pensando a mesma coisa. Estou indo embora. Prefiro não
ter que voltar amanhã, e você prefere ter um capall . O que você me oferece
por ela?
Minha primeira reação é pensar: Bem, quanto eu tenho? Então,
recupero o bom senso e me lembro de sua má vontade em me ajudar mais
cedo.

– Nada adiantado – digo. Preciso ser firme. Se Gabe realmente nos
deixar e tivermos de nos virar sozinhos, não teremos nada no final. – Estou
apenas procurando por um quinto.
– Esta égua é incrível – diz o gnomo. – A coisa mais rápida da ilha no
momento. – Ele se afasta para que eu possa vê-la, inquieta, presa pela corda;
há uma corrente em torno de seu focinho, presa ao freio. Ela é linda de
morrer e absolutamente enorme. Parece que eu teria de empilhar duas
Doves para poder olhar nos olhos selvagens da égua castanha. Ela fede
como um cadáver desovado pelo mar depois de uma tempestade. Ela olha
para um dos cachorros soltos que correm pela praia. Alguma coisa em seu
olhar é profundamente incômoda.
– Então, você não vai se importar de apostar nela – retruco. Estou
sendo petulante, mas tento agir de modo profissional. Não é a coisa mais
fácil do mundo tentar ser tratada como adulta durante uma negociação,
quando a ideia de conseguir uma barganha faz seu estômago revirar.
– Não estou a fim de voltar para buscar o prêmio – diz o negociante.
Cruzo os braços. Finjo que sou Gabe. Ele tem um jeito de olhar que é
ao mesmo tempo desinteressado e indiferente, quando na verdade está
interessado e impressionado. Tento parecer entediada.
– Ou ela é tudo isso que você está dizendo, ou não é. Se ela for a coisa
mais rápida sobre quatro patas, você não acredita que pode ganhar mais do
que conseguiria se a vendesse?
O gnomo olha para mim.
– Não é nela que não confio.
Lanço um olhar furioso para ele.
– Eu estava pensando a mesma coisa.
Ele sorri de repente.
– Monte-a, então – diz o negociante. – Vamos ver do que você é capaz.
– Ele faz um gesto de cabeça na direção da sela, que descansa na areia.
Respiro fundo e tento não me lembrar dos gritos da égua. Tento não me
lembrar de como meus pais morreram. Preciso me lembrar de Gabe e da

expressão no rosto dele quando disse que ia partir. Sinto como se minhas
mãos estivessem tremendo, mas elas estão firmes ao meu lado.
Posso fazer isso.

negociante leva a égua até uma das pedras cobertas de algas,
para que eu possa usá-la como apoio para montar. O animal se
movimenta de um lado para o outro, nunca perto o suficiente.
Ela não para de olhar para o cachorro que continua nos rodeando,
interessado no café da manhã recusado por alguém, próximo aos cascos
dela. O vento sopra frio em meu pescoço, e meus dedos são pequenas
pedrinhas dormentes dentro de minhas botas.
– Ela não vai ficar mais quieta que isso – diz o negociante. – Vai montar
ou não?
Meus punhos estão cerrados para evitar que minhas mãos me traiam.
Não consigo pensar em nada além daqueles dentes enormes puxando meus
pais para o oceano. Não é nem o medo que está me impedindo de agir
agora. É imaginá-los me observando de onde quer que estejam – será que
conseguem ver esta praia do céu? Talvez os penhascos obstruam a visão – e
pensar no que diriam. Eles sempre zombaram das corridas, e os cavalos os
mataram no barco deles, e agora eu montaria um desses animais para
participar das corridas. Posso imaginar a expressão no rosto de meu pai, o
modo como uma pequena ruga em semicírculo aparecia sobre seu lábio
superior quando ele estava indignado ou decepcionado.
A égua ergue a cabeça; o gnomo quase é suspenso no ar.
Tem de haver outro modo. Tem de haver algo que eu possa fazer para
não ter de montar este cavalo. Mas como posso participar das corridas sem

O

ele?
Percebo, então, que Finn surgiu do nada e está parado ao lado da pedra
onde estou me equilibrando. Ele não diz uma única palavra. Seus dedos
estão beliscando seus próprios braços enquanto olha para mim, mas ele
parece não notar.
– Pare com isso – digo, e ele para. Acho que já me decidi.
– Menininha – diz o negociante –, vamos, agora. – Os músculos da
égua tremem sob sua pele.
Não é isso que eu sou.
– Sinto muito – digo a ele. – Mudei de ideia.
Só tenho tempo de vê-lo revirar os olhos antes de tudo se transformar
numa grande confusão. Vejo uma explosão em preto e branco, e um
empurrão me derruba da pedra. Minha respiração se torna ofegante e dou
duas baforadas quando minhas costas atingem o solo. Parte do meu rosto
fica quente e úmida. Enquanto a égua se empina sobre mim, percebo que
alguém ou alguma coisa está gritando e, ao mesmo tempo, noto que a
umidade em meu rosto é sangue, que vem do alto, não de mim. Escorre de
alguma coisa presa nas mandíbulas da égua malhada.
Rolo para longe dos cascos, tirando areia dos olhos, tentando me
endireitar. Tentando recuperar o fôlego. Tentando enxergar. A égua se
abaixa, sacudindo alguma coisa escura entre os dentes. Ela está trucidando
aquilo, segurando parte com um casco. Há uma poça de sangue na areia.
Grito o nome de Finn.
Agora, a égua lança parte de sua vítima para mim, com as orelhas
esticadas para trás. Eu meio que suspiro, meio que soluço, saltando para
longe da coisa ensanguentada. Tem alguma coisa grudada nela, como
tentáculos de água-viva. Só quero me ajoelhar e parar de pensar.
A coisa à minha frente está coberta de pelos escuros e curtos,
manchados de sangue e areia. É uma carcaça, quase irreconhecível. Estou
prestes a vomitar.
É o cachorro.

As pessoas estão gritando “Sean Kendrick!”, mas eu grito “Finn!”, e ali
está ele. É uma cópia dos estranhos entalhes na porta da igreja em
Skarmouth, velhos pequeninos com grandes olhos arregalados.
Ele diz:
– Eu pensei que...
Eu sei, porque foi o que pensei também.
– Por favor, não monte essa égua – diz Finn, emocionado. Não consigo
me lembrar da última vez em que ele me pediu algo que realmente queria. –
Não monte nenhum desses cavalos.
– Não vou – respondo. – Vou montar Dove.

noite, muito tempo depois de todos serem obrigados a voltar para o
interior da ilha por causa da maré alta, trago Corr para a praia.
Nossas sombras são gigantes à nossa frente. Nesta época do ano,
escurece às cinco da tarde, e a areia já está esfriando. Deixo minha sela e
minhas botas no alto da rampa dos barcos, onde a grama ainda cresce por
entre a areia macia. Os olhos de Corr estão fixos no oceano, enquanto a
maré começa a baixar lentamente.
Nossas marcas ficam na areia compacta que a maré alta deixou para
trás; o solo está frio sob meus pés descalços, especialmente quando as algas
geladas tocam minha pele. As solas cheias de bolhas agradecem.
Fim do primeiro dia, o interminável primeiro dia. A praia já teve sua
cota de acidentes. Um garoto levou um tombo e cortou a testa numa pedra.
Um homem levou uma mordida, um ferimento impressionante, mas nada
que um copo de cerveja e algumas horas de sono não pudessem curar. E
então teve o cachorro. Eu não me surpreendi que ele tenha sido destroçado
pela égua malhada.
No fim das contas, já houve piores começos de treinamento.
Nesta noite, as inscrições terão início na casa dos Gratton. Colocarei
meu nome e o de Corr na lista, ainda que, a essa altura, tudo seja mera
formalidade. Então, teremos uma semana frenética, com nativos e turistas
inseguros experimentando cavalos para ver se têm coragem de competir de
verdade e, se tiverem, se têm coragem de montar o mesmo cavalo no dia da

corrida. Cavalos serão comprados, vendidos, negociados. Homens se
tornarão proprietários, cavaleiros, quinteiros. É uma época frustrante para
mim. Muitas negociações e pouco treinamento. É sempre um alívio quando
a primeira semana do festival termina e os cavaleiros são forçados a declarar
oficialmente suas montarias.
É então que a vida de fato começa.
Corr ergue a cabeça, as orelhas levantadas, o pescoço curvado, como se
estivesse cortejando o mar de Escorpião. Sussurro para ele e puxo-o pela
corda. Quero que ele preste atenção em mim, não na canção daquelas águas
poderosas. Observo seus olhos, suas orelhas, a linha de seu corpo, para ver
que voz será a mais potente esta noite: a minha ou a do oceano.
Ele move a cabeça em minha direção tão rapidamente que tiro um
pedaço de ferro do bolso antes que ele termine de se virar. Mas ele não
estava atacando, estava só se virando para me examinar com seu olho sadio.
Confio em Corr mais do que em qualquer um deles.
Eu não deveria confiar, de jeito nenhum.
Seu pescoço é macio, ainda que a pele ao redor dos olhos seja áspera, e
finalmente vamos em direção à arrebentação. Solto a respiração de uma vez
quando a água fria alcança meus tornozelos. E então ficamos ali, e eu o
observo mais uma vez, examinando o efeito dos redemoinhos mágicos ao
redor de seus tornozelos. Ele estremece, mas não fica tenso; já fizemos isso
antes, e ainda estamos no começo do mês. Apanho um pouco de água
salgada com as mãos e a derramo sobre seus ombros, pressionando os lábios
contra seu pelo, sussurrando. Ainda assim, ele continua firme. Então fico ali
com ele e deixo a água misturada aos pedregulhos acalmar meus pés
cansados.
Corr, vermelho como o entardecer, olha para o oceano. A praia se abre
para o leste, e ele observa a noite, azul-escura e então negra, o céu e a água
como imagens num espelho. Nossas sombras repousam sobre o oceano,
também mudando de cor em meio à espuma. Quando olho para a sombra de
Corr, vejo um gigante elegante. Quando olho para a minha, pela primeira

vez, vejo a sombra de meu pai. Não exatamente. Não tenho os ombros
levemente curvados, como se estivessem se protegendo de um frio eterno. E
os cabelos dele eram mais compridos. Mas ele está ali, na postura rígida, no
queixo sempre erguido, um cavaleiro mesmo no solo.
Sou pego desprevenido, por isso, quando Corr se move, não faço nada.
Antes que eu me dê conta, ele está meio empinado nas patas traseiras, e
então leva os cascos de volta ao solo no lugar exato onde estavam antes,
levantando uma imensa parede de água que espirra em meu rosto. Continuo
ali, com sal na boca, e vejo que as orelhas dele estão levantadas, o pescoço
arqueado.
Pela primeira vez em dias, solto uma gargalhada. Em resposta ao ruído,
Corr sacode a cabeça e o pescoço como um cachorro se secando. Recuo
alguns passos na água e ele me segue, então vou para atrás dele e jogo água
em seu corpo. Ele recua, parecendo profundamente magoado, e agita as
patas para me molhar também. Vamos para frente e para trás – nunca lhe
dou as costas –, e ele me segue, e eu a ele. Ele finge beber água e sacode a
cabeça, simulando aversão. Finjo beber um pouco também, e jogo água nele.
Finalmente, estou sem fôlego, meus pés doem por causa dos
pedregulhos e a água está quase fria demais para suportar. Aproximo-me de
Corr e ele abaixa a cabeça, pressionando-a contra meu peito. Ele está
quente, e o calor atravessa minha camisa ensopada. Desenho uma letra no
pelo atrás de sua orelha para acalmá-lo, e corro os dedos por sua crina para
me acalmar.
Não muito longe dali, ouço um respingo distante. Pode ser um peixe,
apesar de que teria que ser dos grandes para que eu ouvisse o ruído da
arrebentação. Olho para o mar conforme ele se torna negro.
Não acho que seja um peixe, nem Corr, que está mais uma vez olhando
para o horizonte. Agora ele treme e, quando me afasto da água, leva um
longo minuto para me seguir. Ele dá um passo lento e então outro, até que a
água não o toca mais, e então ele se detém, com as pernas rígidas. Ele olha
de volta para o mar, ergue a cabeça e curva os lábios.

Puxo a corda com força e aperto o ferro contra seu peito, antes que ele
possa fazer um chamado. Enquanto estiver em minhas mãos, ele não
cantará a canção deles.
Enquanto caminho de volta pela subida até o píer, vejo silhuetas no
alto da estrada que leva a Skarmouth. Estão paradas no ponto onde o solo
encontra o céu, negro contra púrpura. Ainda que estejam distantes, uma
delas tem a forma inconfundível e sem graça de Mutt Malvern. A postura
deles demonstra inegável interesse em minha chegada, então fico
desconfiado, conforme continuo meu caminho.
Não levo muito tempo para descobrir que Mutt Malvern urinou em
minhas botas.
Eles estão rindo agora lá no alto. Não vou dar a Mutt a satisfação de
minha irritação, então ergo as botas – esta praia é boa demais para a urina
dele – e amarro os cadarços um no outro. Penduro-as nas laterais da sela,
nas costas de Corr, e me ponho outra vez a subir a ladeira. Embora esteja
quase escuro, ainda há muito a ser feito; preciso chegar à casa dos Gratton
antes das dez. O dia se estende à minha frente, invisível na escuridão.
Voltamos para o interior da ilha.
Minhas botas cheiram a urina.

á faz muito tempo que estive em Skarmouth depois do anoitecer, e isso
me faz lembrar da época em que meu pai cortou os cabelos. Durante os
primeiros sete anos de minha vida, meu pai tinha cabelos cacheados
escuros, parecidos com os meus. Todos os dias pela manhã, ele lhes dizia
como queria que se comportassem, e então, como se tivessem vontade
própria, seus cabelos faziam o que bem entendiam. De qualquer forma,
quando eu tinha sete anos, meu pai um dia voltou das docas com os cabelos
muito curtos, e, quando o vi entrar pela porta e beijar minha mãe na boca,
me pus a chorar, porque achei que era um estranho.
E foi isto que Skarmouth fez depois do anoitecer: transformou-se numa
Skarmouth totalmente diferente daquela que conheci minha vida inteira, e
não estou disposta a deixá-la me beijar na boca tão cedo. A noite pintou a
cidade toda de azul-escuro. Todos os prédios parecem se comprimir uns
contra os outros e, agarrados nas pedras, espiam por entre o infinito cais
negro lá embaixo. As luzes dos postes desenham halos brilhantes;
lamparinas de papel estão penduradas nos fios atados aos postes de telefone.
Parecem luzes de Natal ou vaga-lumes, espiralando na direção da sombra
escura da são Columba, no alto da cidade. Há uma legião de bicicletas
encostadas nos muros, e mais carros do que eu imaginava que existiam na
ilha estão estacionados nas ruas, a luz dos postes refletindo nos para-brisas.
Os carros expeliram homens estranhos nas ruas, e as bicicletas trouxeram
garotos que me são pouco familiares. Eu só vi essa quantidade de gente na

rua em dias de festa.
É mágico e aterrorizante ao mesmo tempo. Sinto-me perdida e estou
apenas em Skarmouth. Não consigo imaginar Gabe partindo para o
continente.
– Puck Connolly – grita uma voz que sei ser de Joseph Beringer. – Já
não passou da sua hora de dormir?
Estaciono a bicicleta de Finn o mais perto possível da do açougueiro e
encosto-a na grade de metal, que serve para impedir que você caia do píer, a
menos que seja isso que você queira. A água tem um cheiro estranho, de
peixe, e me inclino para ver se há algum barco de pesca por perto que
justifique o cheiro. Não há nada além de água negra e reflexos, o que faz
com que pareça existir outra Skarmouth submersa na água salgada.
Joseph resmunga alguma coisa, mas não presto atenção. De certo modo,
me sinto grata por ele estar aqui agindo como um idiota, porque ele faz com
que todo o resto pareça mais familiar.
Sinto minha cabeça balançar quando Joseph puxa meu rabo de cavalo.
Eu me viro para encará-lo, com as mãos na cintura. Ele me dá aquele sorriso
grande demais; ele tem espinhas e cabelos louros, e sua boca se abre como
se estivesse impressionado por eu estar olhando para ele.
Tento pensar em algo inteligente para dizer, mas não há nada além de
irritação, porque algo que era engraçado para um garoto de onze anos ainda
tem graça para um de dezessete. Então, apenas digo, em tom cruel:
– Não tenho tempo para você esta noite, Joseph Beringer!
Isso é sempre verdade, mas hoje é ainda mais. Devo me inscrever como
participante da corrida hoje, eu acho. Por causa de minha pressa, Finn
gentilmente se ofereceu para alimentar Dove para mim. Quando saí, ele
estava olhando para o balde como se aquilo fosse a invenção mais
complicada que já vira.
Ao meu lado, Joseph continua falando sobre a minha hora de dormir –
ele gosta de escolher um assunto e esgotá-lo, e, com ele, não há o menor
risco de deixar escapar um detalhe sutil –, e eu simplesmente o ignoro e

continuo meu caminho até a propriedade dos Gratton, o açougue.
Conforme olho para todas aquelas pessoas, algumas delas turistas que já
chegaram para a temporada, penso em como minha mãe costumava dizer
que precisávamos das corridas, que esta seria uma ilha morta sem elas.
Bem, a ilha está viva esta noite.
O açougue dos Gratton é uma confusão de ruídos, com várias pessoas
paradas na calçada. Preciso abrir caminho para passar pela porta. Eu não
diria que as pessoas em Skarmouth são grosseiras no geral, mas a cerveja
torna as pessoas surdas. Do lado de dentro, o lugar está cheio de energia e
barulho. O teto parece baixo demais e um tanto opressivo, com as vigas
expostas tão próximas de nossa cabeça. Nunca vi tanta gente aqui antes.
Mas, de uma forma terrível, faz sentido que o açougue seja o centro não
oficial das corridas, levando em conta que todos os cavaleiros compram
carne aqui.
Menos eu.
Vejo Thomas Gratton imediatamente, gritando no ouvido de alguém,
na parede oposta. Sua esposa, Peg, está atrás do balcão com um pedaço de
giz na mão, sorrindo e conversando. Thomas pode ser dono do lugar, mas
meu pai dizia que era Peg quem comandava. Todos os homens de
Skarmouth são apaixonados por ela. Meu pai disse que era porque eles
sabiam que Peg podia arrancar-lhes o coração com um belo corte e a
amavam por isso. Certamente, não é por sua aparência. Certa vez, eu ouvira
Gabe dizer que Mutt Malvern tinha peitos maiores que os de Peg. O que eu
acho que é verdade, mas me lembro de ter ficado muito chocada ao ouvir
meu irmão dizer algo tão grosseiro e injusto, por que o que tem a ver o valor
de uma garota com o tamanho de seus seios?
Entro na fila que leva ao balcão onde Peg está escrevendo nomes num
quadro. Estou parada atrás de um homem de jaqueta azul-clara e chapéu, e
ele é tão alto que suas costas impedem que eu veja qualquer coisa. Eu me
tornei uma criança numa sala cheia de ganchos para carne. Thomas
Gratton grita para as pessoas pararem de fumar ali, e os homens riem

ruidosamente, dizendo que Thomas não suporta o fogo perto da carne.
Começo a me sentir insegura, e não sei se deveria estar mesmo nesta
fila. Acho que as pessoas estão olhando para mim. Ouço-as junto ao balcão
fazendo apostas. Talvez eu esteja enganada, e tudo isso não tenha nada a
ver com a inscrição para as corridas. Talvez eles nem sequer me deixem
competir com Dove. A única coisa boa é que me livrei de Joseph Beringer.
Dou um passo para o lado, desviando do gigante à minha frente, para
poder ler o quadro mais uma vez. No topo, está escrito JÓQUEIS e, do lado
direito, CAPAILL. Alguém escreveu “carne” em letras pequenas ao lado
de JÓQUEIS. E, abaixo de tudo, há um espaço e começam os nomes. Há
mais nomes abaixo de JÓQUEIS do que de CAPAILL. Penso em perguntar
para a montanha à minha frente se ele sabe por quê. Pergunto a mim
mesma se Joseph sabe. Também me pergunto se Gabe já chegou em casa. E
se, a essa altura, Finn já descobriu como funciona um balde. Não consigo
pensar numa coisa só por muito tempo.
E então eu o vejo. Um garoto de cabelos escuros e todo anguloso. Ele é
o próximo na fila, perto do balcão, calado e imóvel em sua jaqueta azul e
preta, com os braços cruzados sobre o peito. Ele parece deslocado e
selvagem ali: expressão atenta, o colarinho levantado para proteger o
pescoço e cabelos emaranhados por causa do vento da praia. Ele não está
olhando para ninguém nem evitando olhar para ninguém; está
simplesmente parado olhando para o chão, com os pensamentos
obviamente muito, muito longe do açougue. Todos os outros estão sendo
empurrados de um lado para o outro, mas ninguém o empurra, ainda que
também não pareçam evitá-lo. É como se ele não estivesse no mesmo lugar
que o restante de nós.
– Ah, Puck Connolly – diz uma voz atrás de mim. Viro-me e vejo um
velho, fora da fila, observando os que ali aguardam. Acho que o nome dele é
Reilly, ou Thurber, ou alguma coisa assim. Reconheço-o como um velho
amigo de meu pai, um daqueles antigos o bastante para ter um nome, mas
que eu nunca precisei saber qual é. Ele é uma figurinha seca e encurvada,

com rugas tão profundas no rosto que as gaivotas poderiam fazer seus
ninhos ali. – O que você está fazendo aqui esta noite?
– Bisbilhotando – respondo, porque esta é uma resposta difícil de
rebater. Olho mais uma vez para o garoto perto do balcão. Então ele se vira
e fica de perfil, e de repente acho que o conheço da praia. Ele é o cavaleiro
que montava o garanhão vermelho. Algo em sua expressão e em seus
cabelos desalinhados pelo vento faz meu coração acelerar.
– Puck Connolly – diz o velho. – Não olhe para ele assim.
Essa frase é irresistível demais para ignorar.
– Quem é ele?
– Por Deus, aquele é Sean Kendrick – diz o velho, e eu ergo as
sobrancelhas quando me lembro de já ter ouvido esse nome. Como
acontecimentos da história que algumas vezes você ouve na escola, mas dos
quais nunca tem de se lembrar. – Ninguém conhece os cavalos melhor que
ele. Ele compete todos os anos, e acho que é o homem a ser vencido.
Sempre é. Mas ele tem um pé na terra firme e o outro no mar. Fique longe
dele.
– Claro que sim – digo, ainda que neste momento eu não saiba onde
pretendo ficar. Olho outra vez para ele, guardando seu nome. Sean
Kendrick.
Então o garoto se aproxima do balcão, e Peg sorri para ele, radiante –
radiante demais, eu acho, como se tivesse que provar alguma coisa. Não
consigo ouvir o que ela diz, mas não posso deixar de olhar quando ele se
inclina levemente para ela, descruzando os braços e fazendo um pequeno
gesto com os dedos conforme fala. Ele tem dois dedos erguidos e os
pressiona contra a superfície do balcão, dando duas batidinhas, como se
estivesse contando. Posso dizer que ele não está apaixonado por Peg
Gratton. E me pergunto se é porque ele não sabe que ela poderia lhe
arrancar o coração com um belo corte, ou se é porque sabe e não se
impressiona com isso.
Peg se vira com o pedaço de giz na mão e se estica toda, e agora

percebo que o espaço logo abaixo de JÓQUEIS foi deixado em branco
intencionalmente, porque ela não hesita em escrever “Sean Kendrick” no
topo da lista, acima de todos os outros nomes. Ouço alguns assobios vindos
da multidão ao meu redor quando ela termina de escrever o nome dele.
Sean Kendrick não sorri, mas vejo que faz um sinal com a cabeça para ela.
Um dos outros homens o puxa para o lado para conversar, e a fila anda.
Estou um passo mais perto de me inscrever. Meu estômago parece dançar.
Mais um passo. Eu me pergunto se é o nervosismo ou o calor de todos esses
corpos juntos que está me deixando tonta. Mais um passo à frente.
Meu estômago vira de cabeça para baixo quando o homem à minha
frente se inscreve. E então chega a minha vez.
Peg sorri para mim como sorri para todos. Ela não parece nada
assustadora. Na verdade, parece uma mulher simples e simpática.
– Oi, querida, o que você deseja? Escolheu uma noite e tanto para
aparecer.
Percebo que ela está pensando que vim comprar carne. Sinto meu rosto
queimar e tento parecer firme.
– Estou aqui para me inscrever, na verdade.
O sorriso de Peg continua no lugar, mas é como se alguém tivesse
pendurado a foto de um sorriso em seu rosto. Sua expressão está totalmente
imóvel e seu olhar não combina com ela.
– Seu irmão me disse para não deixá-la se inscrever. Ele queria que eu
achasse alguma regra que a impedisse.
Ela está falando de Gabe, obviamente. Meu estômago se revira de um
jeito completamente diferente. Tento não parecer muito nervosa quando
me inclino sobre o balcão manchado de sangue. E é aí que percebo que ela
sabia o tempo todo por que eu estava ali, e mesmo assim me fez aquela
pergunta. E acho que isso significa que preciso mudar minha opinião a seu
respeito, mas não consigo, porque ela ainda parece uma mulher simples e
simpática.
– Mas não há nenhuma regra, certo? Não há nada que me impeça de

competir.
– Não existe nenhuma regra, e eu disse isso a ele. Mas... – O sorriso
dela desaparece, e de repente posso imaginá-la arrancando meu coração
com um golpe seco, sem nem ao menos notar o sangue. – O que seus pais
pensariam? Você pensou bem nisso? Pessoas morrem, querida. Sou
totalmente a favor dos direitos das mulheres, mas isso não é um jogo de
mulheres.
Por algum motivo, isso me irrita mais do que qualquer outra coisa que
ouvi durante o dia. Isso não é nem ao menos relevante . Dirijo-lhe o olhar
feroz que ensaiei no espelho.
– Já pensei bem. E quero me inscrever. Por favor.
Ela olha para mim por mais alguns instantes, mas não deixo minha
expressão mudar. Então suspira, apanha o pedaço de giz e se vira para o
quadro.
Ela começa a escrever a letra P, mas a apaga logo em seguida com a
mão. Olha novamente para mim.
– Não me lembro do seu nome de verdade, querida.
– Kate – respondo, e sinto que todas as pessoas de Skarmouth estão
subitamente olhando para as minhas costas. – Kate Connolly.
Existem momentos dos quais você vai se lembrar pelo resto da vida, e
existem momentos que você pensa que vai se lembrar pelo resto da vida, e
não acontece com muita frequência que sejam os mesmos momentos. Mas,
quando Peg Gratton se vira e inclui meu nome na lista, branco no preto, eu
sei, sem sombra de dúvida, que essa é uma imagem da qual nunca me
esquecerei.
Quando ela se vira outra vez, uma de suas sobrancelhas está erguida.
– E o nome do seu cavalo?
– Dove – respondo. O som sai baixo demais. Preciso repetir.
Ela escreve o nome sem fazer perguntas, mas é claro – por que
duvidaria que Dove fosse um capall uisce ?
Mordo meus lábios. Peg está esperando.

– Cinquenta, Puck – ela diz. – A taxa de inscrição.
Sinto-me um pouco enjoada quando tiro as moedas do bolso. Por um
momento assustador, acho que não tenho o suficiente, mas então encontro
o dinheiro que trouxe para comprar farinha. Eu seguro as moedas, sem
colocá-las na mão ansiosa de Peg.
– Espere – digo. Eu me inclino sobre o balcão e abaixo o tom de voz. –
Existe, bem, alguma regra sobre os cavalos? – Se eu for
desclassificada e perder os cinquenta, vou ficar realmente doente. – Sobre
eles... hum...?
Peg responde:
– Quer uma cópia do regulamento?
Ela precisa procurar. Sinto que todos estão olhando fixamente para
meu nome no quadro enquanto ela faz isso. Quando entrega uma cópia para
mim, um pedaço de papel amassado, examino a frente e o verso. Há apenas
duas linhas sobre os cavalos: “Os jóqueis devem inscrever sua montaria até
o fim da primeira semana, antes do desfile dos cavaleiros no Festival de
Escorpião. Não é permitido trocar de montaria depois dessa data”.
Procuro por alguma outra coisa, mas não há nada. Nada dizendo que
não posso inscrever Dove.
Finalmente, entrego as moedas para Peg.
– Obrigada – digo.
– Quer ficar com isso? – ela pergunta, indicando a cópia do
regulamento. Não me importo, na verdade, mas concordo. – Certo – diz ela.
– Você está oficialmente inscrita.
Estou oficialmente inscrita.
Enquanto volto para a escuridão lá fora, respiro fundo, sorvendo o ar
frio. O cheiro incômodo que sentira antes fora substituído pelo fraco odor
de combustível no ar, mas, em comparação com o cheiro de suor e de carne
crua do açougue, é o paraíso. Minha cabeça gira, e eu me sinto feliz e
aterrorizada ao mesmo tempo e acho que posso ver cada pequena depressão
na rua à minha frente, cada pedaço de ferrugem na grade do cais, cada

movimento da água. Tudo é negro – desde o céu profundo até a água
turbulenta – e amarelo-manteiga – as lâmpadas da rua e as luzes saindo das
janelas das lojas.
Noto uma discussão a alguns metros de distância e reconheço a jaqueta
de Sean Kendrick. Mutt Malvern o encara, parecendo enorme e suado
comparado a Sean. Fica evidente, pelo modo como algumas pessoas
pararam para observar, que as palavras trocadas entre eles não são nada
agradáveis.
É como pássaros atacando um corvo. Já vi isso acontecer nos campos,
quando o corvo chega muito perto do ninho ou insulta os pássaros de outra
forma. Os pássaros mergulham e gritam, e o corvo simplesmente fica ali,
negro, imóvel e impassível.
E é assim mesmo: Sean e Mutt, o herdeiro da fortuna da ilha, e a saliva
de Mutt brilhando nas botas de Sean.
– Belas botas – diz Mutt. Ele está olhando para elas, mas Sean Kendrick
não. Ele observa o rosto de Mutt com a mesma expressão, atenta e
desatenta ao mesmo tempo, que ostentava no açougue. Estou meio
horrorizada, meio fascinada com o que vejo no rosto de Mutt. Não é raiva,
mas algo muito parecido.
Depois de um longo momento, Sean se vira, como se fosse embora.
– Ei! – Mutt diz. Ele tem um sorriso no rosto, mas significa o oposto. –
Você está com tanta pressa assim para voltar para os estábulos? Só faz
algumas horas que você tomou sua última dose. – Ele mexe os quadris
entusiasticamente.
Eu teria me sentido mal com as provocações de Mutt se não tivesse
visto o sorriso de Sean. Mal é um fio de sorriso e desaparece num segundo –
sem nem sequer fazer seus lábios se moverem, apenas seus olhos se estreitam
um pouco –, e é perspicaz e condescendente. E percebo que o que vejo no
rosto dos dois, de formas completamente diferentes, é ódio.
– Diga alguma coisa, encantador de cavalos – rosna Mutt. – Você
gostou do meu presente?

Mas seus punhos estão cerrados, e não acho que seja conversa o que ele
quer com Sean Kendrick. Ainda assim, Sean não diz nada. Ele parece no
máximo cansado e, quando Mutt faz menção de se aproximar, Sean
simplesmente se afasta.
– Não vire as costas para mim – resmunga Mutt. Ele alcança Sean em
três passos largos e, quando agarra o braço dele com sua mão enorme, o
força a se virar como se fosse uma criança. – Você trabalha para mim. Não
vire as costas para mim.
Sean coloca as mãos nos bolsos da jaqueta.
– Realmente, sr. Malvern – diz ele, e seu tom é tão calmo que o dr.
Halsal, que estava assistindo à cena, franze o rosto e volta para dentro do
açougue. – O que posso fazer pelo senhor esta noite?
A frase confunde Mutt Malvern por um momento, e acho que ele
simplesmente vai esmurrar Sean Kendrick agora e pensar numa boa resposta
mais tarde. Mas então algo lhe ocorre e ele diz:
– Vou pedir ao meu pai para demitir você. Por roubo. Não diga que não
é verdade. Eu tinha aquele cavalo nas mãos, Kendrick, e você o soltou. Vai
perder seu emprego por isso.
Dinheiro não é algo que muitas pessoas têm nesta ilha. Ameaçar o
emprego de alguém não é algo que se faça sem mais nem menos. Não é nem
meu emprego e já sinto uma pontada no estômago, a mesma que sinto
quando abro a porta da despensa e vejo as coisas acabando.
– Vai mesmo? – responde Sean, suavemente. Há uma longa pausa,
repleta do som das vozes abafadas dentro do açougue. – Vi que você se
inscreveu para as corridas. Mas não há nome de cavalo ao lado do seu. Por
que, Mutt?
O rosto de Mutt fica roxo.
– Eu acho – diz Sean, e, como antes, sua voz é tão calma que estamos
todos prendendo a respiração para ouvi-lo – que é porque, como todos os
anos, seu pai está esperando que eu escolha um cavalo para você.
– Mentira – diz Mutt. – Você não é melhor que eu. Meu pai deixa que

você me dê os perdedores. Ele permite que você me dê as sobras, e você
escolhe o melhor para si mesmo. Não tenho escolha, ou seria eu a montar
aquele garanhão vermelho. Não vou deixar você me fazer montar um
perdedor este ano.
A porta se abre, e o dr. Halsal volta, trazendo Thomas Gratton. Eles
ficam parados à porta, e Thomas Gratton limpa as mãos no avental de
açougueiro enquanto examina a situação. A voz baixa de Sean Kendrick, de
algum modo, tornou a discussão menos barulhenta e mais impressionante –
o oceano de uma noite silenciosa, cheio de força contida. O espaço que
separa Sean Kendrick de Mutt Malvern parece carregado de eletricidade.
– Rapazes – diz Thomas Gratton, e, ainda que ele soe contente, posso
ver que está cauteloso –, acho que já é hora de irem para casa.
Como se Thomas Gratton não tivesse dito uma única palavra, Sean se
aproxima de Mutt e diz:
– Eu mantive você vivo naquela praia por cinco anos. É isso que seu pai
me pede para fazer e é isso que pretendo continuar fazendo. Você vai
montar o que eu disser a ele que você deve montar.
Ele se vira para Gratton e assente, subitamente envelhecido, antes de se
afastar. Mutt faz um gesto obsceno às suas costas. Quando Mutt vê Gratton
olhando para ele, leva algum tempo para abaixar a mão e enfiá-la no bolso.
– Matthew – diz Gratton –, já está tarde.
O dr. Halsal olha em minha direção. Seus olhos se estreitam, como se
estivesse tentando convencer a si mesmo do que está vendo, e eu me
apresso em ir buscar a bicicleta de Finn antes que ele possa dizer alguma
coisa. Preciso voltar para casa de qualquer forma. Como Thomas Gratton
disse, já está tarde. E amanhã tenho de acordar cedo.
Sean Kendrick não significa nada para mim, e não devo me importar
com seus problemas. Ele é apenas mais um cavaleiro na praia.

noite, sonho com minha mãe me ensinando a cavalgar. Estou
aconchegada junto dela, como se formássemos um único ser, com
seus braços me envolvendo. Seus dedos são miúdos como os meus,
e é fácil compará-los: minhas mãos estão cerradas na crina do pônei e as
dela repousam sobre as rédeas. Não há chuva nem sol, mas alguma coisa
entre os dois, como acontece com frequência em Thisby. Minhas mãos estão
úmidas com o sereno.
– Não fique nervosa – ela diz. O vento chicoteia seus cabelos contra
meu rosto, e os meus, contra o dela. Eles têm a mesma cor da relva
avermelhada da queda do penhasco, que se inclina em direção ao solo e
volta novamente. – Os pôneis de Thisby adoram correr. Mas é mais fácil
arrancar uma craca da rocha que uma Keown de um cavalo. – Acredito,
pois ela parece um centauro, como se fizesse parte do pônei. É impossível
qualquer uma de nós cair.
Desperto de meu sonho. Tenho a lembrança da porta de casa se
fechando e acredito que tenha sido isso que me acordou. Permaneço ali,
olhando para o nada, porque o quarto está escuro demais para enxergar,
esperando que meus olhos se ajustem à escuridão ou o sono voltar. Enxugo
algumas lágrimas do rosto. Depois de alguns minutos, começo a duvidar que
realmente ouvi a porta fechar.
Mas então sinto o cheiro de água salgada, aterrorizante por um
momento, e vejo Gabe na porta de meu quarto, espiando. Posso ver a linha

de seu pescoço enquanto ele observa. Dentro de minha cabeça, digo: Por
favor entre , várias e várias vezes. Quero tanto que ele se sente na beirada de
minha cama, como costumava fazer antes de nossos pais morrerem, e que
me pergunte como foi meu dia. Quero que ele diga que mudou de ideia e
que eu não preciso competir, afinal. Quero que diga onde esteve até tão
tarde.
Mas, acima de tudo, quero apenas que entre e se sente.
Ele não o faz. Silenciosamente, bate o punho contra a soleira da porta,
como se eu tivesse dito algo para desapontá-lo. Depois dá as costas, e eu
termino por cair no sono novamente. Mas não sonho com nossa mãe outra
vez.

Os estábulos dos Malverns são assombrados durante a noite.
Apesar de já estar acordado há dezessete horas e ter de me levantar em
outras cinco se quiser ter a praia só para mim pela manhã, não vou direto
para o meu quarto. Em vez disso, passo um tempo no estábulo frio,
caminhando de um lado para o outro nos corredores mal iluminados, me
assegurando de que os tratadores tenham colocado água e comida para os
puros-sangues e para os animais de tração, como deveriam. Eles limparam a
maioria das baias, mas já é quase novembro, e estão com muito medo para
entrar nas poucas baias ocupadas pelos capaill uisce , mesmo quando levo os
cavalos d’água até a praia. Em parte, é pela reputação deles, imagino eu, e
em parte pela reputação dos estábulos. De qualquer forma, me restam três
baias nas quais não quero que os capaill uisce passem a noite. Como
treinador-chefe, meu tempo deveria ser valioso demais para ser gasto em
retirar o esterco, mas prefiro eu mesmo cuidar disso a ver um serviço
malfeito dos dois novos ratinhos assustados dos Malverns.

Assim, enquanto os cavalos fazem seus lentos e suaves rumores
noturnos e as paredes escuras e conhecidas do lugar me protegem, limpo as
três baias. Varro a superfície do curral de alimentação. Dou aos cavalos
d’água sua carne, ainda que imagine que eles estejam nervosos demais para
comer. E o tempo todo imagino que este enorme estábulo é meu, que esses
cavalos com os quais me importo estão em meu nome, que os compradores
que os experimentarem acenarão em aprovação para mim, em vez de
acenarem para Benjamin Malvern.
Os estábulos dos Malverns não são de fato estábulos dos Malverns, mas
um complexo de galpões de pedra que abrigam cavalos em Thisby muito
antes de o nome Malvern existir na ilha. A única construção que pode se
equiparar a essas em magnitude, especialmente o estábulo principal, é são
Columba, em Skarmouth. Os celeiros foram construídos com o mesmo
fervor espiritual. O teto é sustentado por colunas esculpidas que retratam
homens de olhos arregalados cujas mãos apoiam os pés de homens que
apoiam os pés de outros e assim sucessivamente, e, acima de todos eles, há
homens com cabeça de cavalo. Como a igreja em Skarmouth, o teto
inclinado do celeiro principal é apoiado por vigas de pedra, e entre elas as
superfícies são pintadas com animais complexos cujos membros se
entrelaçam uns aos outros. As paredes também são pintadas com pequenas
figuras retorcidas e rabiscadas nos mais estranhos lugares: no canto de uma
baia, no centro do piso, ao longo do lado esquerdo das janelas. Homens com
patas no lugar das mãos e mulheres tossindo cavalos, garanhões com
tentáculos na crina e no rabo.
E a pintura mais impressionante de todas cobre a parede no fim do
estábulo principal. Nela, há o mar e um homem – um esquecido deus do
oceano, talvez – arrastando um cavalo para dentro dele. A água é da cor do
sangue, e o cavalo é tão vermelho quanto o mar.
É um animal velho este estábulo, o mais velho da ilha.
Por todo lugar, há pistas da vida passada do estábulo. As baias são tão
grandes que em todas, exceto três, Malvern colocou divisórias, de forma que

o lugar pudesse acomodar mais dos cavalos esportivos que ele vende no
continente. Os batentes das portas são de ferro, as maçanetas viram apenas
em sentido anti-horário e há algo escrito em runas vermelhas acima de um
dos umbrais. O piso da baia teind , a mais próxima dos penhascos, está
manchado de sangue, as paredes arqueadas, salpicadas como a espuma do
mar. Malvern a repintou muitas vezes, mas, quando a luz da manhã chega
plena e forte, as manchas ainda são visíveis. Uma delas é uma impressão de
mão humana, com os dedos espalmados perto da maçaneta da porta.
Nem sempre este estábulo foi habitado por elegantes cavalos esportivos.
Termino as baias, o curral de alimentação e todas as outras tarefas que
posso pensar em realizar, então apago as luzes e fico sozinho no escuro e
antigo ventre dos estábulos. Um dos capaill uisce nitre e outro responde.
Mesmo conhecendo os animais, o som instintivamente faz os pelos de meu
braço se eriçarem. Todos os outros cavalos do estábulo estão em silêncio e
atentos ao barulho.
O fato é que na verdade eu não quero os estábulos dos Malverns, em
nenhuma de suas formas. Não quero que seus clientes ricos venham a cada
outubro para assistir às corridas e comprar puros-sangues. Não quero seu
dinheiro, sua fama nem sua habilidade de ir e vir de Thisby como lhes
convém. Não preciso de quarenta cabeças de cavalos para me sentir
completo.
O que eu quero é isto: um teto sobre minha cabeça que seja meu,
contas no Gratton’s e no Hammond’s em meu nome e, acima de tudo,
quero Corr.
Pela primeira vez em nove anos, tranco a porta do meu quarto
pensando no rosto vermelho e nos punhos cerrados de Mutt Malvern.
Deito, mas fico acordado por muito tempo, escutando o oceano violento
batendo contra as rochas da costa noroeste da ilha, e penso na égua
malhada. Finalmente adormeço e sonho com o dia em que poderei dar as
costas a Mutt Malvern e continuar caminhado.

manhã está gelada e úmida quando me dirijo até as pastagens de
Dove. Fria como as tetas de uma bruxa, meu pai costumava dizer,
e minha mãe diria: “É esse tipo de linguagem que você anda
ensinando aos seus filhos?” Aparentemente era, porque Gabe disse
exatamente isso outro dia. Porém não está frio o bastante para congelar a
lama – só em alguns anos fica frio o suficiente para isso –, então deslizo,
sapateio e tremo pelo caminho ao longo do jardim enlameado. Estou
tentando não notar meu nervosismo. Está quase funcionando.
Chamo Dove e bato a lata de café cheia de ração contra um dos postes
que sustentam a cerca. Não é muito, vou alimentá-la mais depois que
trabalharmos, mas é o suficiente para chamar sua atenção. Posso ver seu
traseiro enlameado despontando no barracão. Seu rabo nem se move
quando sacudo a lata outra vez. Dou um pulo quando Finn surge logo atrás
de mim dizendo:
– Ela sabe que você está mal-humorada, é por isso que não quer vir.
Lanço um olhar furioso para ele. Em algum lugar, alguém em
Skarmouth está preparando tortas de carne, porque posso sentir o cheiro
trazido pelo vento, e meu estômago resmunga conforme indica a direção do
aroma.
– Eu não estou mal-humorada. Você não deveria estar limpando a
cozinha ou algo assim?
Finn se encolhe e fica no nível mais baixo da cerca. Parece nem se

importar com o frio.
– Dove! – ele chama, alegremente. Fico satisfeita ao ver que ela não se
move nem um centímetro para ele também.
– Bem – diz ele –, ela é uma mula inútil. O que você vai fazer hoje?
– Vou levar Dove até a praia – digo. Toco meu nariz com o dorso da
mão; está aquele frio que dá a impressão de que o nariz vai escorrer, ainda
que isso não aconteça.
– À praia ? – repete Finn. – Por quê?
A ideia de responder à sua pergunta me irrita tanto quanto a resposta,
então tiro a folha com as regras do bolso de meu casaco de lã e lhe entrego.
Ele desdobra o papel, e eu chacoalho a lata e tento não sentir pena de mim
mesma enquanto ele lê. Demora um pouco até que ele chegue à regra que
responde à sua pergunta. Posso dizer exatamente o momento em que ele
chega ali, porque ele aperta os lábios. Quando tomei a decisão de montar
Dove para as corridas, pensei que seria capaz de exercitá-la longe da praia e
que iria até ali apenas para a corrida. Mas as regras que Peg Gratton me
entregou afirmam que não posso. Todos os inscritos precisam treinar dentro
da faixa da costa. Penalidade: desclassificação, sem reembolso da taxa de
inscrição. Essa regra parece ter sido feita especificamente para me
contrariar, ainda que eu saiba que há uma boa razão para isso. Ninguém
quer os cavalos d’água correndo desembestados pela ilha conforme
novembro se aproxima.
– Talvez você possa pedir que abram uma exceção – diz Finn.
– Eu não quero nem que reparem em mim – digo. Se me dirigisse aos
funcionários e fizesse menção a Dove, eles poderiam acabar me
desclassificando, no fim das contas. Meu plano parece assustadoramente
frágil nesse momento. Tudo por um irmão que saiu pela manhã antes de
qualquer um de nós se levantar.
Finn e eu nos sobressaltamos com o barulho de um carro subindo a
estrada em direção à casa. Carros não são bom sinal. Poucas pessoas na ilha
têm, e menos gente ainda tem motivo para vir até aqui. Normalmente, os

únicos que vêm aqui desse jeito são os homens que não tiram o chapéu
conforme entregam faturas em atraso.
Finn, alma valente que é, desaparece, me deixando a cargo disso. O
dinheiro deve ser entregue de qualquer jeito, mas é menos doloroso se não
for você quem tiver de contá-lo para eles.
Mas não é um cobrador. É um carro muito elegante, do tamanho de
nossa cozinha, com uma grade no radiador tão grande quanto uma lata de
lixo e muito chique. Tem olhos redondos e amistosos com sobrancelhas
cromadas. O escapamento solta baforadas que se arrastam ao redor dos
pneus. E é vermelho – não o vermelho do cavalo que vi ontem na praia, mas
vermelho como só humanos podem imaginar. Vermelho como doce.
Vermelho que dá vontade de provar ou passar nos lábios.
Vermelho, o padre Mooneyham sempre observava com tristeza, como o
pecado.
Conheço o carro. Pertence oficialmente à são Columba, doado ao padre
Mooneyham para suas visitas a residências por um bem-intencionado
paroquiano que viera do continente e passara por uma espécie de conversão
espiritual nas águas próximas a Skarmouth. E é verdade que o padre
Mooneyham viaja por toda a ilha no carro, visitando os habitantes e
ministrando os últimos e os primeiros ritos e aqueles intermediários. Mas ele
nunca sai do assento do passageiro. Se não encontra alguém disposto a
dirigir, usa sua bicicleta, como fazia antes, sem dar a mínima para a idade
que tem.
Sinto-me um pouco mal por Finn ter se escondido na casa, porque ele
teria gostado do enorme carro vermelho do padre. Digo a mim mesma que é
bem feito para ele, por ser covarde.
Antes que eu consiga imaginar devidamente o motivo de o padre
Mooneyham ter vindo até aqui, a porta do motorista se abre e Peg Gratton
sai dali. Seus pés estão protegidos por botas de borracha verde-escuras que
não se impressionam com a nossa lama. Vejo o padre Mooneyham
preocupado com alguma coisa no banco do passageiro, mas ele permanece

no carro. É Peg quem tem assuntos a tratar comigo, e essa é uma ideia
preocupante.
– Puck – diz ela. Seu cabelo curto é cacheado e ruivo, não do mesmo
tom de vermelho do carro ou do cavalo da praia, e atraentemente
bagunçado, de um jeito que me dá alguma esperança para o meu. – Bom
dia. Você tem um minuto?
É inteligente a forma como ela diz isso, não é como uma pergunta. Eu
teria de me opor para ter meu minuto de volta. Faço uma anotação mental
para usar o método no futuro.
– Sim – digo, e então acrescento, embora me seja doloroso acrescentar
isso, porque é como se fadas tivessem usado a cozinha para praticar magia
negra a noite toda: – Aceita um pouco de chá?
– Não quero fazer o padre esperar – Peg diz rapidamente. – Ele já foi
muito gentil me trazendo até aqui.
Isso, é claro, não é verdade, já que era justamente o contrário. Aperto
meus olhos para ela. Ver o carro vermelho me faz lembrar que não me
confesso há muito tempo e que andei fazendo muitas coisas que deveria
confessar. Não é um sentimento agradável.
Agora Peg hesita. Ela olha ao redor do quintal. É uma visão um tanto
patética. De vez em quando, arranco as ervas daninhas maiores das cercas e
da casa, mas ainda há invasores escuros e cheios de folhas por todo canto
onde as coisas se juntam. Não há muita grama nos trechos da passagem,
apenas lama. Devo dizer a Finn para consertar o carrinho de mão tombado
no canto do quintal. Mas não é na bagunça que os olhos de Peg repousam, e
sim na sela que pus sobre a cerca, perto de minhas escovas. E na lata de café
com os grãos na minha mão.
– Meu marido e eu estávamos falando de você ontem à noite, um
pouco antes de irmos dormir – diz ela, e por alguma razão me sinto esquisita
ao pensar nela e no corado Thomas Gratton juntos na cama, e ainda por
cima falando de mim. Imagino sobre o que falam quando não sou eu o
assunto. O clima, talvez, ou o preço do tutano, ou como os turistas parecem

usar sempre sapatos brancos na chuva. Acho que eu conversaria sobre essas
coisas se tivesse um marido açougueiro. Peg continua: – E ele pareceu achar
que você não vai montar um dos capaill uisce . Eu disse que não, que isso é
impossível. Já é ruim o suficiente a decisão de participar das corridas sem
deixar tudo mais complicado.
– E o que ele disse?
– Ele disse que se lembrava – diz Peg, olhando para o rabo lamacento
de Dove – de que os Connollys tinham uma pequena égua parda chamada
Dove, e eu disse que achava que era esse o nome que você havia me feito
anotar na lista ontem à noite.
Seguro firmemente a lata de café com os grãos.
– É verdade – digo. – As duas coisas são verdadeiras.
– Foi o que pensei. Então eu disse a ele que viria aqui convencê-la a
desistir. – Ela não parecia nada satisfeita com a ideia. Pensei que
provavelmente era uma daquelas ideias que soavam melhor quando se
estava deitada na cama com seu marido corado do que quando se estava de
pé numa manhã fria e nublada encarando a realidade.
– Sinto muito que você tenha vindo até aqui – eu digo, ainda que não
sinta, e não costumo mentir antes de tomar o café da manhã –, porque não
existe a menor chance de me convencer a desistir.
Ela coloca uma das mãos no quadril e a outra atrás da cabeça,
esmagando o cabelo encaracolado. É uma postura que demonstra tanta
frustração que me sinto um pouco mal por ser a causadora disso.
– É o dinheiro? – pergunta ela, finalmente.
Não estou certa se me sinto ofendida ou não. Quer dizer, é óbvio que
sim, que precisamos do dinheiro, mas eu teria de ser a maior tola da ilha
para acreditar que tenho alguma chance de vencer aqueles cavalos enormes.
Parte de mim se ressente disso e, culpada, percebo que uma parte
ínfima de mim, pequena o suficiente para se dissolver numa xícara de chá
ou criar uma bolha no calcanhar, deve estar sonhando com essa
possibilidade. Derrotar os cavalos que mataram meus pais num pônei sobre

o qual eu cresci. Devo ser a maior tola da ilha, no fim das contas.
– São motivos pessoais – digo rigidamente. Que é o que minha mãe
sempre me falou para dizer sobre as coisas que têm a ver com brigar com
irmãos, pegar qualquer tipo de doença com implicações intestinais, começar
a menstruar e dinheiro. E essa decisão cobria duas das quatro, então achei
que a declaração era mais que justa.
Peg olha para mim, e posso dizer que ela está tentando ler as
entrelinhas. Finalmente, ela diz:
– Acho que você não sabe no que está se metendo. Aquilo é uma
guerra.
Encolho os ombros, o que faz com que eu me sinta como Finn, o que
me faz desejar não ter feito isso.
– Você pode morrer.
Agora percebo que ela está tentando me abalar. No entanto, essa é a
coisa menos chocante que ela poderia dizer.
– Tenho que competir – digo a ela.
Dove escolhe esse momento para aparecer, e ela está suja de lama,
pequena e ligeiramente decepcionante. Ela se aproxima da cerca e tenta
morder a sela. Lanço-lhe um olhar de bronca. Ela é musculosa e está em boa
forma, mas, em comparação ao capaill uisce que vi ontem, parece um
brinquedo.
Peg suspira e acena com a cabeça, mas não para mim. É um aceno de
“bem, pelo menos eu tentei”. Ela volta hesitante pela lama e bate as botas
na beirada da porta do carro, para evitar levar tanta sujeira para dentro do
belo automóvel vermelho. Esfrego o nariz de Dove e me sinto mal em
desapontar a feroz Peg Gratton.
Depois de um momento, ouço meu nome e vejo que o padre
Mooneyham está me chamando. Não posso acreditar que Peg convenceu o
padre de que minha ida à praia é uma questão espiritual, e meu caminho até
a janela do lado do passageiro é obediente em vez de feliz.
– Kate Connolly – diz o padre Mooneyham. Ele é um homem todo

enorme, com saliências no queixo, nas maçãs do rosto e na ponta do nariz.
Cada saliência é um pouco avermelhada. Também há uma no pomo de
adão, que vi uma vez, quando ele caiu da bicicleta e seu colarinho entortou.
Não era avermelhada.
– Padre – digo.
Ele olha para mim e com o polegar desenha uma pequena cruz em
minha testa, como costumava fazer quando eu era pequena e ainda cuspia
quando estava na igreja.
– Venha à confissão. Faz muito tempo.
Peg e eu esperamos que ele diga mais alguma coisa. Mas ele apenas
fecha a janela e sinaliza a Peg para voltar pelo quintal. Enquanto fazem isso,
vejo o rosto de Finn esmagado contra a janela do quarto, olhando de
relance o carro maravilhoso conforme ele se afasta.

stou num curral circular no Haras Malvern com um americano em
meu encalço, ambos observando Corr trotar ao nosso redor. É uma
pálida manhã azul, que precisa de tempo para se tornar agradável. Eu
planejava passar a manhã toda na praia antes que os outros chegassem por
lá, mas Malvern me pegou e me empurrou o comprador antes que eu
pudesse me livrar. Não achei que levar um estrangeiro até a praia fosse uma
boa ideia, então me dirigi ao curral para treinar até que meu visitante ficasse
entediado. A regra que diz que os capaill devem treinar na praia só vale se
estiverem selados, algo de que sempre quis me aproveitar. Não há muito que
possa ser feito num curral que prepare você para a coisa nas praias.
Corr já está andando em círculos na ponta da corda presa a seu
cabresto há vinte minutos. O americano está empolgado, mas reverente,
acho que mais admirado comigo do que com Corr. Nossos sotaques fazem
com que sejamos cautelosos um com o outro.
– Uma estrutura bastante notável. Isto foi construído apenas para
os capaill uisce ? – ele pergunta. É muito cuidadoso com as últimas palavras,
mas sua pronúncia é boa. Copple ooshka .
Assinto com a cabeça. Do outro lado dos estábulos fica o curral onde
treino os cavalos esportivos, quinze metros de diâmetro com paredes altas
que mais parecem cercas feitas de leves tubos de metal. Corr não toleraria o
metal por muito tempo, e, mesmo que o fizesse, todos morrem de medo de
colocar um capall uisce em algo que aparentemente se desmancha com um

sopro. Então, em vez disso, estamos nesta arena incrivelmente assustadora
que Malvern desenvolveu em algum momento antes de minha chegada,
cavada dois metros e meio na encosta de uma colina, de modo que a terra
cria uma sólida muralha ao seu redor. A única entrada é uma alta trincheira
poeirenta que termina numa porta de carvalho, que serve como parte da
muralha da arena. Gosto bastante dela, menos quando inunda.
– Capaill uisce? Capall uisce? – O americano agora franze o cenho, sem
saber quando usar as palavras.
– Capaill é plural. Capall é singular.
– Entendido. Nunca se sabe se vai chover ou não por aqui, não é? –
pergunta o americano. Ele é muito elegante, perto dos quarenta anos,
vestindo boina azul-marinho, suéter branco com decote em V e calças que
não ficarão tão lisas por muito tempo nesta umidade. O céu cospe sobre
nós, mas não está chovendo de verdade. Vai ter passado antes que eu me
dirija à praia com os outros. – Por quanto tempo você o manterá trotando?
Corr já está irritado com essa marcha. Meu pai uma vez disse que
nenhum cavalo d’água foi feito para trotar. Todo cavalo tem quatro
marchas naturais – caminhada, trote, meio-galope e galope – e não há razão
para uma ser preferível à outra. Mas Corr preferia galopar até que estivesse
espumando como a arrebentação, a trotar pela metade do tempo. Minha
mãe disse certa vez que eu também não havia sido feito para trotar, e isso
também é verdade. É lento demais para ser empolgante, e balança demais
para ser confortável. Estou perfeitamente satisfeito em permitir que Corr
faça sua própria marcha agora, sem que eu esteja em seu dorso.
No momento, porém, ele pode sentir que está sendo vigiado por um
estranho, então levanta as patas e balança a crina um pouco mais que o
habitual. Eu deixo que se exiba. Há falhas mais graves que a vaidade num
cavalo.
O americano ainda está olhando para mim, então digo:
– Apenas explorando os limites. A praia vai estar cheia hoje de novo, e
eu não quero levar três cavalos viçosos para lá.

– Bem, ele é uma beleza – diz o americano. Isso é para me bajular, e
funciona. Ele acrescenta: – Vejo pelo seu sorriso que já sabe disso.
Não pensei que eu estivesse sorrindo, mas já sabia sim.
– A propósito, sou George Holly – diz o americano. – Eu lhe daria um
aperto de mão se você não estivesse ocupado.
– Sean Kendrick.
– Eu sei. Vim por sua causa. Disseram que não há corrida a menos que
você esteja nela.
Minha boca se retorce.
– Malvern disse que você estava de olho em alguns potros.
– Bem, eu vim por causa deles também – Holly desanuvia as
sobrancelhas. – Mas poderia ter enviado meu agente para isso. Quantas
vezes você já venceu?
– Quatro.
– Quatro! Você é o homem a derrotar. Um tesouro nacional. Tesouro
regional, talvez. Thisby tem regras próprias? Por que você não compete no
continente? Ou talvez tenha competido e eu deixei passar. As notícias sobre
você chegam devagar, não é?
George Holly não sabia, mas eu estivera no continente uma vez com
meu pai, para uma das corridas de lá. Eram coletes, boinas e capacetes,
chicotes, cavalos com freios, jóqueis com roupas de seda, uma pista
encerrada por cerca branca e esposas parecidas com bonecas. Colinas
generosas se estendiam suavemente de cada lado das arquibancadas. O sol
brilhara, as apostas haviam sido feitas, o favorito venceu por dois corpos.
Voltamos para casa e eu nunca mais retornei.
– Não sou jóquei – digo. Corr começa a vir em nossa direção, e eu o
empurro de volta para a parede agitando meu bastão. O bastão não é longo
o bastante para tocá-lo, mas tem um pedaço de couro vermelho preso na
ponta e estala para lembrá-lo de seu lugar.
– Nem eu – anuncia Holly em termos gerais, colocando as mãos nos
bolsos como um garoto. Ele gira sobre os calcanhares enquanto me viro,

observando Corr a nos rodear. – Apenas um amante de cavalos.
Agora que ele disse seu nome, sei exatamente quem é. Não o conheci
antes, mas conheço seu agente, que vem todo ano buscar um, dois ou três
potros. Holly é o equivalente americano de Malvern, proprietário de uma
enorme fazenda de criação, é conhecido por exibir saltadores e caçadores,
rico e excêntrico o suficiente para vir a Thisby por uma oportunidade de
aprimorar sua coleção. “Amante de cavalos” é um enorme eufemismo, ainda
que faça crescer minha empatia por ele.
E estou pajeando o homem para Malvern. Eu deveria estar lisonjeado.
Mas ainda assim me pergunto se será difícil me livrar dele para que eu possa
descer até as praias.
– Você acha que Benjamin Malvern se separaria deste animal? –
pergunta Holly. Ele está assistindo ao passo incansável de Corr e
imaginando, penso eu, como ele ficaria em sua terra natal.
Minha respiração é instável. Pela primeira vez, estou aliviado pela
resposta a essa pergunta, embora ela tenha me causado insônia antes.
– Malvern não vende seus cavalos d’água para ninguém.
Além disso, é ilegal transportar os capaill uisce para fora da ilha, mas
isso não parece um empecilho para alguém como Holly. Se ele fosse um
cavalo, acho que teria de fazê-lo trotar em torno deste curral por muito
tempo para amansá-lo.
– Talvez ele não tenha recebido uma oferta justa.
Meus dedos se apertam na corda, o suficiente para que Corr sinta a
tensão e dobre uma orelha em minha direção, sempre sensível ao meu
humor.
– Ele recebeu boas ofertas.
Pelo menos uma oferta muito boa. Tudo o que eu havia economizado
ao longo dos anos, toda a minha parte dos prêmios. Eu poderia comprar dez
dos potros de Malvern, dez de quaisquer de seus outros cavalos. Só não o
que eu quero.
– Eu esperava que você soubesse – diz Holly. – Às vezes não é dinheiro

que estão procurando. – Ele não parece aborrecido; é um homem tão
acostumado às duas coisas, a comprar cavalos e a ser recusado, que
nenhuma das situações o surpreende. – Eu gosto muito da aparência dele.
Cavalos Malvern! Mer-da .
Ele está tão claramente encantado com tudo isso que é difícil culpá-lo.
Eu pergunto:
– Quanto tempo ficará aqui?
– Faço a travessia um dia depois da corrida com o que quer que
Benjamin Malvern tenha me convencido de que não posso viver sem. Quer
vir comigo? Preciso de um garoto como você. Não um jóquei, mas o que
quer que você se intitule.
Deixo escapar um pequeno sorriso, que revela a impossibilidade de uma
coisa dessas.
– Sei como é – responde Holly. Ele aponta o queixo na direção de Corr.
– Posso segurá-lo por um momento? Ele vai permitir?
Ele é tão educado que eu lhe entrego a corda presa ao cabresto e meu
bastão. Holly os toma com delicadeza, seus pés automaticamente se
afastando para lhe dar uma maior base de apoio. O bastão repousa
suavemente em sua mão direita, uma extensão de seu braço. O homem já
deve ter conduzido centenas de cavalos.
Ainda assim, Corr imediatamente o testa. Joga a cabeça para cima e
move-se adiante, e Holly tem de agitar o bastão imediatamente. Corr
continua o forçando para frente.
– Estale – digo. Estou pronto para pegá-lo de volta se preciso. – Precisa
estalar.
Holly agita o bastão de novo, dessa vez com força suficiente para estalar
o couro de forma que o cavalo ouça, e Corr gira a cabeça, mais conciliador
que mal-humorado, antes de trotar de volta à parede. Holly abre um grande
sorriso, satisfeito.
– Quanto tempo levou para que você conseguisse deixá-lo assim?
– Seis anos.

– Você pode fazer o mesmo com as outras duas éguas que vi?
Na verdade, eu já havia tentado usar a corda no cabresto com a égua
baia puro-sangue, e, ainda que não tenha sido um desastre, também não foi
nada bonito. Certamente eu não teria desejado ter Holly ou qualquer outra
pessoa comigo no curral aquele dia. Não estou completamente certo de que
seis anos com qualquer uma das éguas resultariam no mesmo que os seis
anos com Corr. Não estou certo, depois de todo esse tempo, se é porque ele
me entende melhor que elas, ou simplesmente porque eu o entendo melhor
que a elas.
– Quem lhe ensinou? Com certeza não foi Malvern. – Holly me encara.
Naquele breve momento de distração, o simples segundo que leva para
que Holly olhe em minha direção, Corr se afasta da parede e vem em nossa
direção. Ligeiro e silencioso.
Não espero a reação de Holly. Pego o bastão de sua mão e pulo em
direção a Corr, prensando a ponta do bastão contra seu ombro. Corr se
levanta para desviar da pressão, mas eu o acompanho. Enquanto ele se
afasta, apoio o couro vermelho contra seu queixo, desafiando-o a me testar
como testara Holly.
Já jogamos esse jogo antes e ambos sabemos o que acontece.
Corr abaixa-se no chão.
Holly ergue as sobrancelhas. Ele me entrega a corda do cabresto e limpa
as palmas das mãos nas calças.
– Primeira vez na direção. Pelo menos não abracei uma árvore.
Ele não se sente intimidado, no fim das contas.
– Bem-vindo a Thisby – digo.

epois que Peg Gratton partiu, Finn e eu arrumamos as coisas
para ir a Skarmouth. Acho isso muito desagradável, ter negada
mais uma vez a entrada orgulhosa e solitária sobre Dove, mas
precisamos levar todos os bules para a cidade e o Morris não pega. Então, na
mais desanimadora reviravolta até o momento, tenho de engatar Dove em
nossa pequena carroça. Meu futuro constrangimento me irrita, e faço muito
barulho enquanto carrego a cerâmica.
Tenho um pensamento repentino.
– Como você vai trazer a carroça de volta? – pergunto a Finn, que está
organizando cuidadosamente as caixas na carroça para que os cantos se
alinhem perfeitamente. Seu lado do carregamento se parece com tijolos
empilhados, mas leva muito tempo para essa organização. Não me importo
se as caixas maiores ficam embaixo ou em cima, desde que nada se quebre. –
Vou levar Dove até a praia e a carroça não vai.
– Eu mesmo a trago de volta – Finn diz gentilmente. Com dois dedos,
ele alisa a borda de uma caixa para movê-la na distância de um fio de
cabelo.
– Você mesmo?
– Claro – diz Finn. – Ela estará vazia .
Tenho uma visão repentina de meu irmão saindo de Skarmouth com
uma carroça de pônei atrás de si, um troll macilento num suéter gigantesco,
e desejo também poder fugir para o continente, onde ninguém saiba meu

nome. Mas é isso ou chegar à praia depois da maré cheia. A neblina ainda
nos molha, mas está começando a clarear, lembrando-me de que o tempo
está passando.
– Talvez Dory nos deixe estacioná-la atrás da loja – digo. – Eu a pegarei
de volta com Dove quando tiver terminado.
Finn coça a anca de Dove com um dedo, o que faz com que ela bata o
casco traseiro como se ele fosse uma mosca. Ele diz:
– Dove diz que não quer puxar uma carroça depois que você a fizer
correr dos monstros marinhos.
– Dove diz que você vai parecer um idiota puxando uma carroça de
pônei.
Ele sorri vagamente diante de sua pilha de caixas de cerâmica.
– Não me importo.
– Obviamente! – disparo.
Não chegamos a um acordo até o momento em que terminamos de
carregar as coisas, mas não temos mais tempo, então lá vamos nós, eu
conduzindo Dove e Finn seguindo atrás. Puffin, a gata, segue conosco por
um tempo, e Finn a enxota de vez em quando, o que só torna mais intenso
seu desejo de juntar-se a nós.
Numa parte do caminho para a cidade, sinto o cheiro de algo como
carne podre trazido pelo vento, e Finn e eu trocamos olhares. A ilha não é
estranha a cheiros terríveis – tempestades atiram peixes enormes nas praias
para apodrecer, as sobras dos pescadores estragam nos dias quentes, um
vento torto traz cheiro de salmoura e de coisas molhadas durante a noite –,
mas esse não é um cheiro do mar. Algo morreu sem necessidade e foi
abandonado onde não deveria. Não quero parar, mas pode ser uma pessoa,
então faço Finn ficar ao lado da cabeça de Dove enquanto escalo a muralha
de pedra em direção ao cheiro.
O vento está vindo diretamente em mim – ele dá um jeito de cortar a
neblina, em vez de afastá-la do caminho –, e eu me encolho para
permanecer aquecida enquanto desvio das fezes das ovelhas. Durante todo

o tempo, desejo que tivesse mandado Finn investigar o cheiro, mas ele é
enjoado e não suporta ver sangue. Então, sou eu a sortuda a descobrir a
fonte, que é uma pilha despedaçada do que costumava ser uma ovelha. Não
resta muito além dos cascos, um pedaço do curto rabo, um tanto de suas
entranhas, que é o que fede, e o crânio peludo, deformado e esmagado em
torno da órbita ocular. O que resta de lã na parte de trás do pescoço está
pintado com tinta spray azul, para marcá-la como parte do rebanho de
Hammond. De qualquer forma, não resta muito da parte de trás do pescoço
a ser pintando. Minha pele se arrepia automaticamente de medo, ainda que
eu duvide que o capall uisce responsável esteja por perto. Mas estamos
longe demais da costa para que um dos cavalos tivesse vindo até aqui.
Volto para Finn e Dove. Eles estão brincando de um jogo que tem a ver
com ele tocar o focinho dela e ela ficar rabugenta. Finn olha para cima e eu
digo:
– Ovelha.
Ele diz:
– Eu sabia que era uma ovelha.
Respondo:
– Da próxima vez, você pode adivinhar o que há no pasto antes de eu
entrar no meio da lama.
– Você não pediu.
E retomamos o caminho para Skarmouth.
Vamos direto para a loja de Dory Maud, que se chama Fathom & Sons
por alguma razão que não consigo imaginar, já que Dory não tem filhos nem
marido. Ela vive com suas duas irmãs, nenhuma das duas se chama Fathom
ou tem filhos, e ela coleciona coisas antigas para vender aos turistas durante
outubro e novembro. Quando eu era criança, a principal coisa que reparava
em Dory era que ela sempre estava usando um par de sapatos diferente, algo
estranho e extravagante na ilha. Agora o que eu mais reparava mesmo era
no fato de ela e suas irmãs não terem sobrenome, algo estranho e
extravagante em qualquer lugar.

Fathom & Sons fica no fim de uma estreita rua lateral em Skarmouth,
uma trilha de pedras alinhadas ampla o suficiente apenas para Dove e sua
carroça de pônei. Nem a neblina ou o sol conseguem penetrar neste beco, e
trememos de frio enquanto os cascos de Dove batem e ecoam nas laterais
das construções.
Em pé nas sombras da manhã azul, algumas casas adiante, está
Jonathan Carroll, jogando pedaços de biscoito para um collie. Ambos os
irmãos Carroll têm cabelos escuros e encaracolados, mas um deles tem um
pedaço de massa crua no lugar do cérebro e o outro tem um pedaço de
massa crua no lugar dos pulmões. Uma vez, quando vim à cidade com
minha mãe, passamos por Brian, o que tem massa nos pulmões, agachado no
paralelepípedo, tremendo e sofrendo com a falta de ar. Minha mãe lhe
dissera para expelir todo o ar ruim antes de tentar inspirar mais, e então me
deixou vigiando o garoto enquanto ia comprar café preto para ele. Fiquei
muito irritada, porque ela me prometera uma das rosquinhas de canela da
Palsson’s, que esgotaram mais rápido do que pensava. Estou um pouco
envergonhada de lembrar que eu disse a Brian que, se ele morresse e me
impedisse de conseguir minha rosquinha de canela, eu cuspiria em seu
túmulo. Não sei se ele se lembra disso, já que parecia muito concentrado em
respirar na concha formada por suas mãos. Espero que não se lembre,
porque meu caráter melhorou muito desde então. Hoje em dia, eu teria
apenas pensado nessa coisa de cuspir em vez de dizer isso bem na sua cara.
Mas, independentemente disso, não é Brian, e sim Jonathan quem está
jogando os biscoitos. Ele olha para mim, para Dove e Finn e diz apenas “Oi,
pônei”, o que só confirma que ele é o que tem massa no lugar do cérebro.
– Espere aqui – digo a Finn. – Comece a descarregar. Vou perguntar
sobre a carroça.
Fathom & Sons é uma loja num corredor estreito e escuro, estufado
como uma galinha recheada, repleto de miudezas rotuladas com pequenas
etiquetas de preços que brilham como dentes brancos na luz fraca. Sempre
cheira um pouco à manteiga dourando na panela – ou seja, como o céu.

Não estou certa sobre quantos clientes realmente entram propriamente na
loja para comprar; acho que a maior parte dos negócios é feito sob uma
tenda nos fins de semana e durante o fervor das corridas. Assim, tanto as
etiquetas de preço quanto o delicioso cheiro de manteiga provavelmente são
desnecessários na maior parte do ano.
Hoje não é exceção; respiro fundo, uma respiração ligeiramente
faminta, conforme abro a porta. Dentro da loja, as irmãs estão brigando,
como de costume. Mal passei pela porta em direção ao cubículo escuro, e
Dory Maud lança um catálogo em minhas mãos.
– Pronto – diz ela. – Aí está. Você compraria por ele, não compraria,
Puck? – as irmãs me chamam de Puck em vez de Kate, porque as três
concordam que se deve chamar alguém pelo que ela deseja no lugar de
simplesmente recorrer a seu nome de batismo. Eu não me lembro de ter
alguma vez pedido a elas para ser chamada de Puck, e não de Kate – ambos
são meus nomes –, mas ainda assim não me importo.
– Ela nem tem dinheiro – desdenha Elizabeth das escadas na parte de
trás da loja. A escadaria leva ao segundo andar, que as irmãs compartilham.
Nunca estive lá em cima e tenho um desejo secreto de fazer isso. Acho que
deve ser cheio de sapatos e camas. E manteiga.
Elizabeth continua:
– É claro que vai parecer bom para ela.
Dou uma olhada no que Dory Maud lançou em minhas mãos. Para
minha surpresa, trata-se de um catálogo cuidadosamente impresso para a
Fathom & Sons. Quando afasto minhas mãos, ele se abre numa página
aleatória, com estilosas ilustrações em preto e branco de uma mulher num
suéter de tricô, mãos usando luvas de crochê e um pescoço sem o resto do
corpo exibindo um dos colares de cruz feita de pedra que os turistas adoram.
As letras arrumadas descrevem cada item em vagos detalhes, enquanto uma
faixa diz: “Aproveite o que você tem! Faça seu dinheiro render com a moda
que dura!” Parece mesmo um catálogo de verdade, como os que o barco
postal traz, a diferença é que tem todas as coisas da loja nele. Meu mau

humor desaparece.
– Isso é incrível! – digo. Eu me movo ligeiramente para que a antiga
estátua da fertilidade ao lado da porta pare de tocar meu ombro com seus
dedos de pedra. Ela está à venda há muito tempo. – Como vocês fizeram?
Olhem as letras! São tão perfeitas.
– Foi o tipógrafo, sr. Davidge, quem fez – responde Dory Maud,
satisfeita, olhando por cima de meu outro ombro.
– Porque Dory Maud o obrigou – diz Elizabeth das escadas. Ela ainda
está de camisola, e seus falsos cachos são de dois dias atrás.
– Ah, volte para a cama – replica Dory, serena. Não quero pensar
muito a respeito. Dory é o que minha mãe chamava de “mulher de
aparência forte”, o que significava que, de costas, ela parecia um homem, e,
de frente, você preferiria as costas. Elizabeth é a irmã bonita, com longos
cabelos cor de palha e nariz empinado pela linhagem e pelo hábito.
Ninguém nota a aparência da terceira irmã, Annie, porque ela é cega.
Folheio as páginas do catálogo. Sei que estou num impasse, mas
descubro que estou um pouco feliz por estar num impasse.
– Nossos bules estão aqui? Quem vai ver isto?
– Ah, as três pessoas que leem os anúncios no fim do Post – diz
Elizabeth. Ela subiu mais dois degraus, mas está longe de voltar para a cama.
– E quem mais estiver disposto a esperar alguns anos pela travessia.
– O Post ? No continente! – exclamo. Encontrei nossos bules. Há uma
ilustração à pena muito precisa de um dos bules mais robustos com minhas
peças mais utilitários ao lado, e agora posso ver que as ilustrações foram
feitas pela mesma mão que desenha os anúncios na contracapa de nosso
próprio jornalzinho de Skarmouth, que sai toda quarta-feira. O impresso diz
que a figura do bule de chá é um “desenho representativo” e que “o material
é limitado”. Também diz que são assinados e numerados, o que não é
verdade. É estranho pensar em algo meu cruzando o oceano sem mim.
Aponto para o trecho que diz assinado e pergunto:
– O que é isso?

Dory Maud lê a descrição.
– Isso os torna mais valiosos. Não levará mais de um instante para que
você os assine e os numere. Entre e tome um chá. Elizabeth vai parar de
resmungar. Onde está seu irmão?
– Não posso ficar – digo pesarosa. – Preciso levar Dove até a praia.
Você acha que Finn pode deixar a carroça atrás da loja até acabar de
descarregar? – Despejo todas as palavras de uma vez para evitar qualquer
pergunta, mas as irmãs não estão prestando atenção, então eu nem
precisava ter me incomodado. Dory Maud abriu a porta dos fundos e
encontrou Finn segurando Puffin, que nos seguiu por todo o caminho até
Skarmouth.
– Espero que aproveite o gosto da pobreza em sua tigela – Elizabeth está
dizendo. – O preço daquele anúncio já era caro o bastante, mas já pensou
no custo de enviar esses catálogos para as donas de casa no continente?
Dory Maud diz:
– Elas pagarão pelo catálogo. Isso está bem claro no anúncio que lhe
mostrei há uma hora. Se você não tem bolhas nos olhos, deve ter visto. Finn
Connolly, entre aqui. Por que está com essa gata? Ela também está à venda?
Chegou a esse ponto?
Finn diz:
– Não, senhora. – Conforme ele entra na loja, é cutucado diretamente
no peito pela deusa da fertilidade. Dou um passo para trás, para que ele
possa se afastar, porque a última coisa que preciso é Finn subitamente
decidindo se tornar fértil.
– Eu preciso mesmo ir – digo. Não quero parecer rude.
– Aonde você vai mesmo? – me pergunta Dory Maud.
– Talvez eu deva ligar para o sr. Davidge também – Elizabeth diz das
escadas. – Assim eu também poderia não me importar com as contas. Como
se diz, irmã? “Sr. Davidge, o senhor escolheu meu tipo?”
Dory Maud se vira para ela e esbraveja com uma certa agradabilidade
na voz:

– Cale a boca, sua vaca.
Finn arregala os olhos. Puffin também. Dory Maud agarra o braço dele
com grande entusiasmo e começa a empurrá-lo em direção aos fundos da
loja, onde os bules esperam.
– Adeus – sussurro para ele. Sinto-me um pouco mal por abandoná-lo
nas garras daquelas mulheres, mas pelo menos ele vai conseguir tomar um
chá.
Deixo a porta se fechar atrás de mim.
Dove, esperando pacientemente perto da porta, ergue a cabeça
conforme eu saio. Finn a soltou da carroça, mas ela ainda está com a sela.
Ela não se parece muito com um cavalo de corrida.
Puxo o cabelo num novo rabo de cavalo; duas ou três dúzias de fios já
começavam a escapar.
É bem provável que eu também não me pareça muito com um jóquei.

á uma garota na praia.
O vento despedaça a neblina aqui à beira-mar, de modo que, ao
contrário do restante da ilha, os cavalos e seus cavaleiros
parecem estar em evidência. Posso ver a fivela em cada freio, o pendão em
cada rédea, o tremor em cada mão. É o segundo dia de treinamento, e o
primeiro em que não é um jogo. A primeira semana de treinamento é uma
dança elaborada e complicada, na qual os parceiros determinam a força de
seus adversários. É quando os cavaleiros ficam sabendo se os encantos vão
funcionar com sua montaria, quão perto do mar devem se aventurar, como
podem começar a convencer seu cavalo d’água a galopar em linha reta.
Quanto tempo têm entre cair do cavalo e ser atacado. Esse tenso namoro
não se parece em nada com uma corrida.
A princípio, não vejo nada de anormal. Há o irmão Privett
sobrevivente batendo em seu capall cinza com um chicote, e Hale
desperdiçando truques que não vão salvá-lo, e há ainda Tommy Falk,
sacudindo a ponta da rédea enquanto sua égua negra luta para ir até a água
salgada.
E há essa garota. Quando a vi pela primeira vez com sua égua parda do
meu ponto de vista avantajado da estrada no penhasco, fiquei
impressionado não pelo fato de ser uma garota, mas por ela estar no mar. É
o temido segundo dia, aquele no qual as pessoas começam a morrer, e
ninguém chega perto da arrebentação. Mas ali está ela, trotando com a água

até os joelhos. Destemida.
Desço lentamente a estrada do penhasco até a areia. Quaisquer
pensamentos mal-intencionados que Corr pudesse ter tido esta manhã
foram sacudidos por seu trote. Mas as duas éguas não estão nem tão
cansadas nem tão mansas como Corr. Seus cascos ecoam toda vez que
dançam para os lados. Amarrei sinos em torno de suas patas, que me
lembram a todo instante que não posso baixar a guarda. A pior das duas tem
um pano preto sobre as coxas. O pano, herança do meu pai, é feito de uma
trama de centenas de estreitos ilhoses de ferro, parte pano fúnebre, parte
cota de malha. Espero que isso a mantenha no chão. É o tipo de coisa que
eu nunca usaria em Corr – só o deixaria irritado e inseguro, e, de qualquer
forma, nos conhecemos melhor que isso.
Agora, mais próximo à arrebentação, vejo por que a garota é tão
corajosa. Seu cavalo é apenas um pequeno cavalo da ilha, com o lombo da
cor da areia e patas pretas, como que encharcadas de algas. Noto por sua
barriga que a pobre grama de Thisby a tem estufado, mas não a nutrido.
Quero saber por que ela está na minha praia. E quero saber por que
ninguém a confronta. Todos os cavalos estão cientes dela, no entanto.
Orelhas eretas, pescoços arqueados, lábios contraídos em sua direção. E é
claro que a égua malhada está entre eles, lamentando sua fome e seu desejo.
Eu deveria saber que Gorry não a deixaria partir.
Ao ouvir o som da capall malhada, a égua baia da ilha abaixa as orelhas
para trás, com medo. Ela sabe que é uma refeição aqui, que o som que a
malhada solta é um apelo por sua morte. A garota se inclina e dá um
tapinha no pescoço de seu animal, acalmando-o.
Relutantemente, eu me viro para cuidar da minha vida. Minha boca
tem gosto de sal, e o vento me encontra onde quer que eu leve os cavalos.
Hoje é um daqueles dias em que ninguém vai ficar aquecido. Encontro uma
fenda nos penhascos, marca de um machado gigante, e conduzo as éguas e
Corr até ali. O vento dá um grito abafado no pico da fenda, como se alguém
estivesse morrendo sem que ninguém visse. Desenho um círculo na areia e

cuspo dentro dele.
Corr me observa. As éguas observam o oceano. Eu observo a garota.
Meus pensamentos se voltam várias e várias vezes para sua misteriosa
presença, enquanto abro minha bolsa de couro e tiro a pilha de papel
encerado que guardei ali. Jogo pedaços de carne dentro do círculo, mas as
éguas não tocam na comida. Elas estão observando o cavalo e a garota no
mar, uma refeição mais interessante.
Com a bolsa sobre o ombro, volto para a entrada da fenda e cruzo os
braços, esperando uma brecha entre o assassinato de cavalos e homens se
abrir para que eu possa ver a égua e a garota outra vez. Não há nada de
especial na égua, nada mesmo. Uma cabeça boa o bastante, ossos bons o
suficiente. Como cavalo pequeno, é uma beleza. Como capall uisce , não é
nada.
A garota também não é nada especial – frágil, com um rabo de cavalo
ruivo. Ela parece menos assustada que a égua, mas está em maior perigo.
Ouço uma de minhas éguas gritar e viro o suficiente para abrir a bolsa e
jogar um punhado de sal em sua direção. Ela puxa a cabeça para cima
quando um tanto polvilha sua cara. Está ofendida, mas não machucada.
Olho-a nos olhos por tempo o bastante para que ela saiba que há mais de
onde veio isso. Ela é baia, nenhuma marca branca em lugar nenhum, o que
supostamente expressa sua velocidade, mas ainda tenho de conduzi-la por
uma linha reta o suficiente para descobrir.
Volto-me para o oceano, e o vento lança areia em meu rosto, forte o
bastante para ofender, mas não para machucar. Esboço um pequeno sorriso
diante da ironia e levanto minha gola. A garota circula com seu pônei pela
água outra vez. Tenho de reconhecer que ela escolheu o único lugar no qual
pode ter certeza de que ninguém se aproximará hoje. Claro, não é só com
os capaill uisce na praia que ela tem de se preocupar, mas posso ver que já
levou isso em conta. Ela olha na direção da curva da onda que de vez em
quando se aproxima. Não posso imaginar que ela conseguiria ver um capall
uisce à caça – quando eles nadam em paralelo às rebentações, rápidos e

sombrios sob a superfície, são quase impossíveis de se ver –, mas também
não posso imaginá-la não olhando.
Em algum lugar por ali, um homem está gemendo; ele foi pisoteado, ou
arremessado, ou mordido. Parece ressentido ou surpreso. Ninguém lhe
contou que a dor vive nestas areias, cavada e regada com nosso sangue?
Observo as mãos da garota nas rédeas, a certeza em sua pose. Ela é
capaz de montar, mas todos em Thisby são.
– Aposto que você nunca viu isso antes – diz a voz rouca de Gorry. –
As roupas dela não saem com os olhos, Sean Kendrick.
Olho para ele apenas por tempo suficiente para ver que ainda tem a
égua malhada, e depois mais um segundo, para que veja que eu vi que ele
ainda tem a égua malhada, e então olho novamente para o mar. Há um
emaranhado de cavalos lutando à nossa frente, rosnando e batendo as patas
como gatos. Sinos tocam, e o som é agudo. Cada cavalo d’água nesta praia
está faminto pelo mar, faminto pela caçada.
Olho para a égua malhada outra vez. Gorry atou seu cabresto com fios
de cobre, que não têm nenhuma utilidade a não ser impressionar.
– Ela está na corrida – diz Gorry. Ele fuma e gesticula com seu cigarro
na direção da garota. – Naquele pônei. É o que estão dizendo.
O cheiro do cigarro fere mais que o vento. Ela espera competir naquele
pônei? Estará morta em uma semana. A égua malhada pisa na areia. Com o
canto do olho, eu a vejo cavando e a ouço rangendo os dentes. O freio, sua
maldição, a ilha, sua prisão. Ela ainda cheira a algo podre.
– Não consigo vender esta égua, e lhe agradeço por isso – diz Gorry. –
Sua opinião de especialista, hein?
Não sei o que dizer a ele.
É esse o risco que se corre quando se traficam monstros, que você
venha a encontrar um monstruoso demais para suportar.
Os sinos repicam outra vez, e olho para além da praia, tentando
encontrar o som com meus olhos. Não são minhas éguas; não é a malhada.
É apenas um cavalo numa multidão de cavalos, mas há uma urgência aguda

naquele som que me chama. O perigo canta na brisa, lança ecos nos
penhascos brancos. Há gente demais cavalgando hoje e tentando colocar-se
à prova, tentando se preparar, diminuir seu tempo. Eles ainda não
descobriram que não é o mais rápido que vence no dia da corrida.
Você tem apenas de ser o mais rápido entre os que restarem.
De repente, há um grito e um relincho alto e terrível, e me viro a tempo
de ver Jimmy Blackwell se jogando de seu garanhão branco acinzentado,
enquanto o animal salta nas ondas pulsantes. Blackwell rola por pouco para
fora do caminho de outro par de éguas uisce . Ele é mais velho, mais hábil.
Sobreviveu a meia dúzia de Corridas de Escorpião.
– E você achou que esta égua seria problema – diz Gorry. Ele ri.
Estou ouvindo, mas estou assistindo também. Blackwell ainda está se
livrando das éguas rebeldes. Trata-se apenas de um pequeno desacordo
entre dois cavalos selvagens, mas eles estão engalfinhados. Um dos homens
tenta apartá-los, mas ele é arrogante demais. Há um estalo de dentes e num
instante seus dedos se foram. Alguém grita “Ei!” e nada mais, movido pela
necessidade de falar, mas não tendo mais nada a dizer.
Meus olhos se agitam para além de todos eles, em direção à água, onde
o garanhão de Blackwell meio que salta, meio que nada, a água espumando
branca debaixo dele. Seus olhos estão naquele pequeno cavalo baio da ilha
e na garota em seu dorso.
Ouço um lamento e, a princípio, penso ser um grito, mas então ouço
meu nome.
– Onde está Kendrick?
Alguém está prestes a morrer.
Deixo minha bolsa perto dos penhascos, fora do caminho, e começo a
correr, os calcanhares afundando na areia. Só consigo estar em um lugar de
cada vez, e a luta na praia está fora de meu controle. Na arrebentação, o
pônei baio está submerso até o peito, e o garanhão branco segue atrás dele,
cascos cortando em direção à garota. Ela desequilibra a égua baia com seus
solavancos, livrando as duas dos cascos, mas fazendo-a cair na água gelada.

E isso era o que queria aquele capall uisce , um temível e estúpido
Pegasus com asas que se desmancham na espuma do mar. Seus dentes
brilham, da cor de coral morto, e sua enorme cabeça bate contra a garota
assim que a cabeça dela emerge da água. Dentes grampeiam o capuz de sua
blusa; as patas chutam em preparação para o mergulho. Já estou na água,
meus dedos dormem com o frio, e nado até ele através dessas águas
perigosas, meu progresso agonizantemente lento. A garota continua
afundando e lutando para subir.
Eu me arrasto para mais perto dos pelos do rabo dele, que flutuam. Eu
me escarrancho sobre seu dorso e agarro um punhado de sua crina,
enquanto encontro o caminho até seu pescoço. Não há tempo de usar ferros
ou fazê-lo voltar. Ele está além de qualquer coisa que eu possa sussurrar em
seu ouvido. Só tenho tempo de segurar um punhado de frutinhas vermelhas
mortais de azevinho que estão no bolso do meu casaco e pressioná-las em
suas narinas dilatadas.
Suas patas gigantescas golpeiam convulsivamente pela água, e vejo um
de seus joelhos perto da cabeça da garota. Mas não consigo ver se ela fica
acima da água, porque agora o garanhão está bufando, algas e águas-vivas e
pedaços de coral saem por suas narinas ao redor das frutinhas vermelhas, e,
em seu afogamento e na agonia de sua morte, preciso de toda a minha
energia para não afundar com ele.
A mandíbula do garanhão balança aberta em minha direção, e de
repente, num momento congelado no tempo, vejo a aspereza de seus pelos e
a forma como estão pontilhados pela água salgada.
Minha visão explode em mil cores, nenhuma delas igual à do céu.
E então, numa rajada de som, minha visão retorna e, com ela, uma
sensação: a mão da garota puxando minha cabeça para fora da água e o mar
ferindo minhas narinas. O capall branco não é nada além de sua crina
flutuando, a arrebentação chutando seu corpo na direção da praia. O pônei
baio fica na areia e relincha para a garota, um som alto e ansioso. Há sangue
na água e também na areia, onde o homem perdeu seus dedos. Ainda estão

chamando meu nome na praia, porém não sei dizer se é para pedir a minha
ajuda ou pedir ajuda para mim. A garota tosse, mas não expele água. Ela
está tremendo, embora seus olhos estejam firmes.
Matei um dos belos e letais capaill uisce que amo e quase morri, e uma
febre corre pelas minhas veias, mas tudo o que consigo dizer para a garota é:
– Mantenha seu pônei fora desta praia.

inda estou tremendo e tossindo quando entro no jardim. Dove se
assusta com qualquer sombra, cada movimento seu é incerto
como o de um fantoche. Até mesmo o som do portão se fechando
atrás dela faz com que corra mais para dentro do pasto, os quadris dobrados
debaixo de si. Tenho sorte de ela não estar coxa.
Fecho os olhos. Tenho sorte de ela não estar morta .
Só levou alguns instantes para que o garanhão nos dominasse, e em
mais um instante eu estaria debaixo d’água para sempre.
Inclino-me sobre o portão, esperando que Dove se acalme o suficiente
para deitar no feno – o que ela não faz –, até me sentir gelada demais em
minhas roupas molhadas. Dentro de casa, eu me dispo e coloco outras
roupas, mais ainda estou gelada.
Ela poderia ter morrido.
Na cozinha, eu como uma laranja inteira e um pedaço de pão
besuntado com um pouco da nossa manteiga preciosa. O preço de uma
laranja é tão alto que normalmente eu teria lançado mão de uma das
técnicas da minha mãe para tirar o máximo de proveito de cada fruta. Com
algumas laranjas, ela teria feito um bolo de laranja, dado sabor à manteiga
ou feito cobertura para um doce, e ainda teria fervido uma geleia com o
resto. Se comíamos uma laranja apenas como laranja, partilhávamos os
gomos entre nós.
Mas eu comi tudo e, assim que terminei, parei de tremer. Minha cabeça

ainda dói no ponto onde o capall uisce a atingiu.
Chupo o dedo indicador para aproveitar ao máximo o sabor da fruta,
mas tudo que sinto é o sal do oceano, o que me deixa ainda mais irritada.
Meu primeiro dia na praia com Dove e tudo que tenho como resultado é
areia em cada fenda de minha pele e um coice na cabeça.
Não conseguiria sobreviver nem um dia sem ser resgatada.
Fico tentando tirar Sean Kendrick da cabeça, mas minha mente
continua evocando as imagens de seu rosto pontudo e o som de sua voz,
rouca pela água do mar. E toda vez que revivo o momento, meu rosto cora e
se esquenta de vergonha.
Passo a mão na testa, áspera com o sal, e dou um longo e trêmulo
suspiro.
Mantenha seu pônei fora desta praia.
Quero desistir. Estou fazendo isso tudo apenas para ganhar algumas
poucas semanas com Gabriel na ilha. E para quê? Não vi um fio de cabelo
seu desde que anunciei que competiria. Meu plano parece subitamente
bobo. Então vou me fazer de idiota diante da ilha toda e possivelmente
matar a mim e a Dove por um irmão que nem se importa em voltar para
casa.
A ideia de jogar a toalha é ao mesmo tempo desconcertante e um
alívio. Não posso suportar o pensamento de voltar para a praia. Mas não
posso nem me imaginar dizendo a Gabe que mudei de ideia. É difícil
acreditar que ainda tenho orgulho o bastante para causar danos, mas é a
verdade.
Há uma batida na porta. Não tenho tempo de melhorar a aparência do
meu cabelo – na verdade, não acho que exista um jeito de melhorá-lo. Ele
está com aquele aspecto grosso e gorduroso de cabelo banhado na água
salgada. Meu coração pesa como chumbo. Não consigo pensar em ninguém
conveniente que possa estar batendo à porta.
A porta se abre e é Benjamin Malvern. Sei que é Benjamin Malvern
porque há uma fotografia autografada dele na parede atrás do balcão do

Black-Eyed Girl. Uma vez eu perguntei ao meu pai por que ela estava ali, e
ele disse que era porque Benjamin Malvern dera muito dinheiro para que
o pub pudesse abrir. Mas ainda assim não vi por que isso seria uma boa razão
para ter a assinatura de alguém na parede.
– Gabriel Connolly está? – pergunta Malvern conforme entra na
cozinha. Eu fico segurando a porta aberta. O homem mais rico de Thisby
está em nossa casa com os braços cruzados, seu olhar passa da mesa da
bagunçada cozinha para ir ao encontro da pilha desarrumada de madeira e
turfa ao lado da lareira da sala de estar e para a sela no encosto da poltrona
do meu pai. Ele usa um suéter de lã com decote em v e gravata. Tem
cabelos grisalhos e não é bonito. Ele tem um cheiro bom, o que me deixa
ressentida.
Não fecho a porta. Parece que fechá-la seria como dizer que o convidei
a entrar, o que eu não fiz.
– Não no momento – digo.
– Ah – Malvern diz. Ele ainda está olhando ao redor. – E você é a irmã.
– Kate Connolly – esclareço, com o máximo de irritação que consigo.
– Sim. Acho que devemos tomar um chá.
Ele se senta à nossa mesa.
– Sr. Malvern – começo, séria.
– Bom, você sabe quem eu sou. Isso nos poupa alguns problemas.
Agora, não tenho a intenção de lhe dizer como você deve cuidar das coisas,
mas está frio lá fora e uma porta aberta é muito pouco para deter uma
ventania.
Eu a fecho. Fecho a boca também. Começo a preparar chá. Estou
igualmente ofendida e curiosa.
– O que o traz aqui? – pergunto. Fico descontente com o modo como
soei educada.
Seus olhos estão em minha sela, mas recaem sobre mim assim que falo.
Estou um pouco intimidada. O resto do corpo dele parece de um velho
endinheirado, mas seus olhos são espertos.

– Negócios desagradáveis. – Mas ele diz isso de maneira agradável.
– Achei que tivesse gente para fazer os negócios desagradáveis por você
– digo, e me sinto atrevida. – Açúcar ou leite?
– Manteiga, leite e sal, por favor.
Viro-me para Malvern, certa de que verei deboche em seu rosto. Mas
não há. Não tenho certeza, agora que pensei nisso, que se trata de um rosto
no qual eu poderia imaginar humor. Está mais para um rosto que eu poderia
imaginar numa nota de libra. Passo-lhe a xícara de chá, o saleiro e nossa
pequena tigela de manteiga. Pousando a jarra de leite do lado oposto, eu o
observo cortar um pequeno pedaço de manteiga e colocá-lo em seu chá,
adicionar uma generosa porção de sal e cobrir tudo com leite, antes de
mexer. O líquido tem uma espuma na superfície. Parece algo que uma vez
eu vi sair de uma vaca. Não acredito que ele vai beber, mas bebe.
Malvern pressiona os dedos na borda da xícara.
– Aquele pônei lá fora é seu?
– Cavalo – digo. – Ela tem quinze palmos.
– Você conseguiria mais dela se a alimentasse melhor – Malvern diz. –
Troque aquele feno vagabundo e ela terá mais energia. E menos barriga de
feno.
É claro que ela teria mais energia com feno e grãos melhores. Eu
também teria mais energia se comesse alguma coisa além de feijões e bolo de
maçã, mas nós duas vamos ficar sem o melhor pela mesma razão.
Bebemos nosso chá. Imagino Finn chegando em casa bem agora e
encontrando Malvern à nossa mesa na cozinha. Junto algumas migalhas
numa pirâmide, atrás da tigela de manteiga.
– Então seus pais morreram – diz Benjamin Malvern.
Pouso minha xícara sobre a mesa.
– Sr. Malvern.
– Já conheço a história – ele me interrompe. – Não quero falar sobre
isso. Quero saber o que vem depois disso. O que vocês três... são três, não
são?... estão fazendo?

Tento imaginar como meus pais lidariam com essa situação. Eles eram
infalivelmente educados e reservados. Sou boa em uma dessas coisas.
Sentindo-me desconfortável, digo:
– Estamos dando um jeito. Gabe trabalha no hotel. Finn e eu fazemos
bicos. Pintamos coisas para os turistas.
– Ganham o suficiente para o chá – diz Malvern, mas seus olhos estão
na porta da despensa. Sei que ele viu que não há nada ali quando a abri
para pegar a tigela de manteiga.
– Estamos dando um jeito – repito.
Malvern engole o restante de seu chá – como ele consegue beber essa
poção tão rapidamente e sem tapar o nariz está além de meu entendimento
– e descansa os braços cruzados sobre a mesa. Ele se inclina em minha
direção e sinto o cheiro de sua colônia.
– Estou aqui para despejar vocês.
Por um momento, isso não parece significar nada, e então eu me
levanto atrapalhada. Minha cabeça pulsa como a arrebentação, bem onde o
cavalo d’água a atingiu. Continuo reproduzindo essa frase em minha mente.
Ele prossegue:
– Ninguém tem feito os pagamentos desta casa há um ano, e eu queria
ver quem vivia aqui. Queria ver o rosto de vocês quando eu contasse.
Só então penso que, numa ilha habitada por monstros, ele é o mais
monstruoso de todos. Minha língua demora algum tempo para desgrudar.
– Pensei que a casa estava paga. Eu não sabia.
– Gabriel Connolly sabe, e já faz algum tempo – diz Malvern. Sua voz
está calma. Ele está observando cuidadosamente a minha reação. Não
acredito que servi chá para esse cara. Olho para ele e aperto os lábios.
Quero ter certeza de que não direi alguma coisa da qual possa me
arrepender. Estou chocada, acima de tudo, pelo sentimento de traição:
Gabe sabia que estávamos vivendo numa bomba-relógio e não nos disse
nada. Finalmente, consigo dizer:
– E o que você está vendo no meu rosto agora? É o que veio para ver?

Soa como um desafio, mas Malvern parece imperturbável. Ele apenas
dá um leve aceno.
– Sim. Sim, acho que sim. Agora me diga: o que você e seus irmãos
estão dispostos a fazer para salvar esta casa?
Houve um problema com rinhas de cães na ilha há alguns anos.
Entediados, pescadores bêbados criaram cães da ilha para arrebentarem uns
aos outros. Sinto-me como um desses cães agora. Malvern me jogou no poço
e agora está olhando da beirada para ver o que eu vou fazer. Ele quer saber
se vou me encolher ou se vou lutar.
Não lhe dou a satisfação de me ver desistir. Meu futuro se consolida
repentinamente.
– Me dê três semanas – digo.
Malvern não faz rodeios.
– Depois das corridas.
Imagino se ele está pensando que é loucura uma garota como eu
competir nas corridas e que não faz sentido esperar até o fim do mês porque
não haverá dinheiro, pois ficarei em último lugar ou estarei simplesmente
morta.
Mantenha seu pônei fora desta praia.
Apenas assinto com a cabeça.
– Você não tem a menor chance – diz Malvern, mas sem malícia. –
Naquele pônei. Por que ele?
Cavalo , eu penso.
– Os capaill uisce mataram meus pais. Não vou desonrá-los montando
um dos cavalos d’água.
Malvern não sorri, mas seus olhos se desanuviam como se ele estivesse
levando isso em consideração.
– É nobre. Não é porque ninguém lhe daria uma chance num
dos capaill ?
– Tive a chance de ser uma quinta – devolvo. – Recusei.
Malvern leva tudo isso em conta.

– Só haverá dinheiro se você vencer.
– Eu sei – digo.
– E você realmente espera que eu aposte na ideia de que você e esse
pônei da ilha cruzarão aquela linha de chegada antes de todos os outros?
Olho para a sua estúpida xícara de chá, com seu estúpido chá dentro.
Chá normal não era interessante o bastante? Quem bebe chá com manteiga
e sal? Ninguém além de velhos entediados que correm pela ilha como num
jogo de xadrez. Digo:
– Acho que você está interessado em ver o que vai acontecer. E você já
esperou doze meses.
Malvern afasta a cadeira e se levanta. Do bolso, tira um pedaço de
papel, desdobra-o e o coloca sobre a mesa. É um documento oficial.
Reconheço sua assinatura no rodapé. A de meu pai também. Ele diz:
– Não sou uma pessoa generosa, Kate Connolly.
Não respondo. Nós nos olhamos.
Ele empurra o documento sobre a mesa com dois dedos.
– Mostre isso ao seu irmão mais velho. Voltarei para buscá-lo quando
você estiver morta.

stão todos com medo.
Sento-me num barco, meio de lado, observando minha carga. A
embarcação tem as palavras Negro como o Oceano pintadas em
branco no casco negro. Atrás dele, Fundamental nada, um potro baio cheio
de promessas e esperança, um jovem cavalo esportivo pronto para ser
vendido por muito, muito dinheiro no continente. Um dos potros com o
qual, tenho certeza, Malvern quer seduzir George Holly. O pelo de
Fundamental se torna escuro em contato com a água. Ele bufa espirrando
água e ar a cada investida, mas não dá nenhum sinal de cansaço. Barco e
cavalo abrem caminho lentamente através da enseada protegida. Os
penhascos aqui são inclinados, como se uma criança os tivesse empurrado, e
bloqueiam a maior parte do vento e todas as ondas. O som do motor do
barco ressoa de volta para mim.
Normalmente, eu acharia esse treinamento regular uma chatice sem
tamanho durante o mês de corrida. Mas, depois da manhã estranha, sinto-
me aliviado por ter um tempo para me sentar e deixar minha mente passear
pelos eventos. Eu ainda não consigo imaginar o que passava na cabeça
daquela garota.
Dou uma olhada para cima, para a entrada da enseada. Um dos novos
homens, Daly, vigia. Com o barulho do motor e a ondulação da respiração
de Fundamental, sou incapaz de desviar os olhos e caçar capaill uisce . Esta
enseada é fácil de proteger, sua estreita entrada significa que um pode ficar

vigiando enquanto o outro treina. A natação é uma forma de tão baixo
impacto para aumentar a força que vale o risco. Daly tem uma espingarda,
mas também tem um par de pulmões, o que deve me dar tempo suficiente
para tirar Fundamental da água.
Daly é do continente. Ele é jovem e nervoso. Eu prefiro os nervosos aos
arrogantes. Ele tem de ser os meus olhos, e os meus estariam fixos naquela
estreita passagem na enseada.
Fundamental continua nadando. Eu estava presente quando ele
nasceu, apenas um conjunto de articulações salientes e olhos enormes. Ele
não olha para mim enquanto nada. Atrás do barco, nadar é seu único
objetivo. Ele tem bastante sangue capall uisce para lhe dar determinação.
Tenho de vigiá-lo com tanta atenção quanto Daly vigia a entrada da
enseada. Fundamental nadaria até afundar.
Amanhã Malvern vai querer que eu designe um cavalo a Mutt. Todo
ano, no terceiro dia, ele me pede para decidir, e a cada ano temo que ele me
peça para colocar Mutt sobre Corr.
Mal posso suportar a ideia de uma coisa dessas.
Fundamental balança a cabeça, como se quisesse desgrudar a crina
molhada de seu pescoço. Eu me inclino para me certificar que ele não está
se cansando. O exercício na água é de menor impacto do que na terra, mas
não quero que ele fique exausto. Disseram-me que amanhã virão
compradores para dar uma olhada nele.
Estou inquieto. Não tenho certeza por quê. Se é por causa da garota,
que interrompeu a rotina que tenho seguido há anos. Ou se é por causa da
urina de Mutt em minhas botas. Ou se é porque, à medida que voltamos
pela enseada, o nível da água nos penhascos me parece ligeiramente errado.
Talvez alto demais. O céu brilha e está repleto de nuvens macias; se vai
haver uma tempestade, ela está a dias de distância.
Mas não consigo me acalmar.
– Kendrick! Kendrick!
Meu nome, um grito fino por causa do motor do barco.

Tenho segundos para ver a cena:
Daly está em pé na pequena praia em forma de arco atrás do barco,
longe da entrada da enseada. Não tenho tempo para pensar por que ele foi
até ali. O grito é dele.
Há uma silhueta no ponto da enseada onde Daly estivera. Mutt
Malvern. Apenas me observando. Não, observando um ponto na água bem
à minha frente.
Uma ligeira depressão na água a apenas dez metros de nós.
Conheço bem aquela depressão, aquela fenda artificial no mar. Não
parece nada, mas é o que acontece à água salgada quando um corpo pesado
se movimenta rapidamente logo abaixo da superfície.
Não temos tempo para chegar à praia.
Fundamental dá coices com as patas traseiras, a cabeça lançada para
trás.
Então ele afunda.
Mutt Malvern permanece imóvel no ponto da enseada.
Eu mergulho na água.

ão estou nadando em água. Estou nadando em sangue. Ele
ondula em torno de mim em grandes e carregadas nuvens
subaquáticas à medida que uma de minhas mãos encontra a
coluna vertebral de Fundamental. Em minha outra mão, tenho um punhado
de bagas de azevinho. Passei anos sem usá-las para matar cavalos d’água, e
agora as tenho na palma da mão duas vezes no mesmo dia.
A coluna vertebral de Fundamental se contorce. Tenho uma estranha
sensação de sucção logo abaixo de mim quando uma de suas patas corta a
água sob meus pés, a corrente me arrastando. Apalpo à frente, para além de
sua crina. Meus pulmões estão comprimidos no peito.
Não consigo enxergar e de repente consigo.
Os olhos de Fundamental estão arregalados, brancos, mas ele não pode
me ver. Um capall uisce escorregadio, escuro, mantém a rédea de
Fundamental em suas mandíbulas. O sangue flutua como vapor, saindo de
um corte irregular. As patas do uisce cortam a água salgada, de maneira
suave e determinada. Ele não me dá atenção. O capall uisce tem o potro
num controle de aço, e eu, um pequeno, vulnerável estranho nesse mundo,
não sou uma ameaça.
Preciso tomar fôlego. Preciso de mais do que isso. Preciso de uma
respiração profunda e outra e mais outra. Mas, à minha frente, vejo as
narinas do capall , longas e finas. As bagas estão duras e mortais na minha
mão. Eu poderia vê-lo se afogar.

Mas estou ao lado da cabeça dos animais e vejo a borda da ferida de
Fundamental. O imenso e corajoso coração do potro bombeia sua vida no
compasso das marteladas de meu pulso.
Não há como livrá-lo disso.
Eu o vi nascendo. Fundamental, potro raro, tão próximo dos cavalos
d’água que ama o oceano como eu.
Cores sem nome piscam no canto de meu campo de visão.
Tenho de deixá-lo para trás.

inn e eu esperamos por Gabe naquela noite. Fervo feijões – feijões
infernais, parece que é a única coisa que comemos por aqui – e
também fervo por dentro, planejando o que vou lhe dizer quando ele
chegar. Finn se enfia pela janela enquanto cozinho, e, quando lhe pergunto
o que está fazendo, ele diz algo sobre uma tempestade. Lá fora, o céu
escurecendo é evidente, exceto por algumas nuvens altas e frágeis, finas o
bastante para se enxergar através delas, lá longe, o horizonte. Não há sinal
de mau tempo. Quem sabe por que Finn faz quaisquer das coisas que faz. Eu
nem ao menos vou tentar tirá-lo de sua brincadeira.
Esperamos e esperamos por Gabe, meu sentimento de traição fervendo
lentamente e então borbulhando e depois fervendo lentamente de novo. É
impossível ficar brava por tanto tempo. Eu gostaria de poder dizer a Finn o
que está me comendo por dentro, mas não posso lhe contar sobre Malvern.
Isso só vai fazer com que ele comece a beliscar os próprios braços e se torne
ainda mais obcecado por seus rituais matinais que o habitual.
– O que você acha – pergunto casualmente, girando e girando a
pequena tigela até que a coruja pintada na lateral olhe para mim e então
para Finn e de novo para mim – de vendermos o Morris? Por que está rindo?
Ele chacoalha uma das vidraças para testar.
– Ela nem está se mexendo.
– Ela estava se mexendo?
– Posso consertar amanhã. – Finn diz de forma um pouco vaga. Penso

agora que ele está usando as janelas como desculpa para olhar para fora
procurando sinais de Gabe. – Não quero que caia quando a tempestade
piorar.
– Ah, claro, a chuva – digo. – Vender o Morris. O que você acha?
– Bem, eu acho que depende do motivo pelo qual vamos vendê-lo.
– Para comprar uma comida melhor para Dove durante o treinamento.
Há uma dolorosa pausa antes que Finn responda. Durante esse tempo,
ele bate o dedo ao longo de toda a borda de uma vidraça antes de se inclinar
para espiar a junta entre o vidro e a madeira, a uma polegada de distância.
Ele parece bastante satisfeito em terminar de experimentar sua
impermeabilização antes de continuar a conversa.
Finalmente diz:
– Uma comida melhor é tão cara?
– Você vê alfafa crescendo nesta ilha?
– Depende – Finn diz. – Eu não sei com o que alfafa se parece.
– Parece com o lado de dentro da sua cabeça empoeirada. Sim, é caro.
Vem do continente. – Eu me sinto um pouco mal sendo ríspida com ele.
Não é culpa dele se estou mal-humorada, mas de Gabe. Não posso acreditar
que talvez eu não o confronte esta noite sobre a visita de Malvern. Não
posso ficar acordada para esperá-lo. Tenho de estar em pé bem cedo
amanhã se for voltar para a praia mais uma vez.
Finn parece triste. Eu me sinto horrível. Talvez haja outra coisa que
possamos vender, como as inúteis galinhas, que na maioria das vezes
morrem antes que possamos matá-las para o jantar. O lote todo daria para
comprar um fardo de feno e nem um punhado de grão bom.
– Isso fará com que ela fique mais rápida? – Finn pergunta.
– Cavalos de corrida devem comer comida de cavalos de corrida.
Finn dá uma olhada em direção ao nosso jantar, feijões com um pouco
de bacon doado por Dory Maud.
– Bem, se for mesmo preciso.
Ele fala como se eu tivesse pedido para que serrasse sua perna esquerda.

Mas eu sei como ele se sente. Ele ama o Morris como eu amo Dove, e o que
restaria se ele não tivesse mais aquele carro para mexer? Apenas as janelas,
e nós só tínhamos cinco na casa.
– Se eu vencer – digo –, teremos dinheiro suficiente para comprá-lo de
volta. – Ele ainda parece triste, então continuo: – Teremos dinheiro para
comprar dois deles. Um carro para puxar o outro quando o motor do
primeiro parar.
Agora ele tem uma sombra de sorriso. Nós nos sentamos e comemos
nossos feijões com um punhado de bacon. Sem falar nada sobre o que
estamos fazendo, comemos o restante do bolo de maçã sem deixar nada para
Gabe. Duas pessoas numa mesa que era para cinco. Não sei como serei
capaz de dormir com esse nó de raiva dentro de mim. Onde ele está?
Penso naquela ovelha decapitada que Finn e eu encontramos no
caminho para Skarmouth. Como podemos saber se Gabe está trabalhando
até tarde ou se está morto na beira da estrada? Aliás, como ele pode saber
que estamos em casa, em segurança, ou mortos na beira da estrada?
Finn é quem finalmente diz:
– É como se ele já tivesse partido.

noite, em vez de sonhar, fico deitado na cama e encaro o pequeno
quadrado de céu negro que posso ver através da janela do meu
dormitório. Apesar de estar seco agora, sinto frio até em meus
ossos, como se tivesse engolido o mar e ele agora morasse dentro de mim.
Meus braços doem. Estou erguendo os penhascos.
Penso em Fundamental nadando com determinação atrás do barco.
Não, não é nisso que penso. Penso na cabeça de Fundamental jogada para
trás, no branco de seus olhos, no desaparecimento sob as águas agitadas
num nevoeiro à minha volta.
Muitas e muitas vezes, mergulho na água. E muitas e muitas vezes é
escuro demais, frio demais, rápido demais, tarde demais.
Muitas e muitas vezes, vejo Mutt Malvern de pé no ponto da enseada,
observando.
Eu ainda não ouvi nada de Benjamin Malvern, mas sei que vou. É só
questão de tempo.
– Kendrick! – a voz de Daly me avisando, tarde demais.
Não posso mais ficar na cama. Eu me levanto. Minha jaqueta ainda está
molhada e com areia grudada no tecido onde a pendurei sobre a ondulação
de ferro do aquecedor. Sem acender a luz, encontro minhas calças e meu
suéter de lã, e trilho meu caminho descendo as estreitas escadas até os
estábulos.
As três lâmpadas instaladas no corredor principal iluminam círculos

bem abaixo delas. Todo o restante está na sombra; o modo como o som de
minha respiração desaparece faz a escuridão parecer vasta. Conforme os
puros-sangues e os cavalos de carga ouvem meus passos pelo corredor,
relincham baixinho de modo esperançoso. Depois do que aconteceu à tarde,
não consigo olhar para eles. Eu os vi nascer, todos eles, assim como vi
Fundamental nascer.
Mas não posso bloquear os sons que fazem quando passo. Lentamente
mastigam feno e batem seus cascos à medida que uma coceira lhes sobe
pelas patas. Palha sussurra contra palha. Reconfortantes sons de cavalos.
Passo caminhando por eles em direção à baia no fim do corredor, e ali
está Corr. Precisamente fora do alcance da luz, ele é da cor de sangue velho,
seco. Inclino-me na beirada da baia, olhando para dentro. Diferentemente
dos cavalos de terra, Corr não fica ocioso sobre a palha a noite toda ou
suspirando com os lábios. Em vez disso, permanece no centro da baia,
absolutamente imóvel, as orelhas eretas. Tem alguma coisa em seus olhos
que os puros-sangues nunca terão: algo intenso e predatório.
Ele me olha com seu olho esquerdo e, em seguida, olha para além de
mim, ouvindo. Não há nenhum jeito de ele relaxar com o som da maré
subindo, com o cheiro de sangue em minhas mãos, comigo inquieto diante
dele.
Não sei por que Mutt Malvern estava no lugar de Daly, e não sei como
ele pensa que seu pai, aquele velho astuto, não vai perceber que ele estava
no ponto certo de observação quando o capall uisce entrou na enseada.
Penso mais uma vez em Fundamental, em seus grandes e agitados olhos.
Mutt estava disposto a sacrificá-lo pela chance de me ferir. Pela chance de
conseguir o que queria.
O que eu estou disposto a sacrificar pela possibilidade de conseguir o
que quero?
– Corr – sussurro.
Imediatamente as orelhas do garanhão vermelho se voltam para mim.
Seus olhos são negros e misteriosos, pedaços do oceano. Ele está mais

perigoso a cada dia. Nós estamos mais perigosos a cada dia.
Não posso suportar a ideia de que Mutt Malvern o montaria se eu
deixasse.
Mutt pensa que Benjamin Malvern vai me demitir por causa do que
aconteceu hoje. Em vez disso, eu poderia simplesmente ir embora. Penso na
satisfação dessa possibilidade, de pegar o dinheiro que tenho guardado e
deixar os Malverns e tudo o que possuem para trás.
Corr faz um ruído noturno – um lamento quase inaudível, decrescente.
É o som de um grito submerso. Mas, vindo de Corr, é um sinal. Uma
confirmação que aguarda uma resposta.
Estalo a língua uma vez, ele imediatamente se aquieta. Nenhum de nós
se move em direção ao outro, mas nós dois, ao mesmo tempo, relaxamos o
peso do corpo sobre um pé. Eu suspiro, e ele também.
Não posso ir sem Corr.

om base em minha experiência na praia no dia anterior, traço um
novo plano. Enfrentar a maré alta, com a possibilidade de haver
cavalos d’água nadando vindos do oceano, em vez de montar mais
tarde, com a maré baixa, com a certeza dos cavalos d’água me ameaçando
na praia. Então, programo meu despertador para as cinco e selo Dove antes
de ela estar devidamente acordada.
Gabe já saiu. Eu nem tenho certeza se ele veio para casa. Estou um
pouco contente com a traiçoeira inclinação escura, porque ela não deixa
meus pensamentos se prolongarem a respeito do que a ausência dele
significa para nós.
Uma vez na base dos penhascos, tenho de me mover lentamente,
tentando não levar Dove para qualquer uma das rochas espalhadas acima
da linha-d’água. A pouca luz reflete a respiração de Dove, transformando-a
em branca e sólida. Está tão escuro que posso ouvir o mar melhor que vê-
lo. Shhhhh, shhhhhh , ele diz, como se eu fosse uma criança impaciente, e
ele, minha mãe. De qualquer forma, se o mar fosse minha mãe, eu preferiria
ser órfã.
Dove está alerta, com os olhos pinicados pela maré, que ainda está um
pouco alta demais para um treinamento apropriado. Quando finalmente a
boa e velha alvorada surgir, o mar, a contragosto, vai abrir mão de várias
dezenas de metros de areia compacta para os cavaleiros treinarem, dando-
lhes mais espaço para escaparem do oceano. Mas agora a espuma das ondas

ainda está selvagem e fechada, me limitando às paredes do penhasco.
Não me sinto corajosa.
A maré alta, a escuridão completa, sob um céu quase de novembro – o
oceano perto de Thisby conta com muitos capaill uisce agora. Sei que Dove
e eu estamos vulneráveis nesta praia escura. Pode ter um cavalo d’água nas
espumas das ondas agora mesmo.
Meu coração é um baixo palpitar em meus ouvidos. Shhhhhh,
shhhhhh , diz o mar, mas não acredito nele. Ajusto meus estribos. Dove não
tira os ouvidos da arrebentação. Não monto. Volto meus ouvidos para
quaisquer sons de vida. Há apenas o oceano. O mar de repente cintila,
como um sorriso ardiloso. Aquilo poderia ser um reflexo da sinuosa coluna
vertebral de um capall uisce .
Dove saberia. Tenho de confiar nela. Suas orelhas ainda estão eretas.
Ela está atenta, mas não desconfiada. Beijo seu pescoço cheio de pó para
dar sorte e monto. Eu a guio para o mais distante possível da maré. Muito
longe, em direção ao topo, e a areia dá lugar a cascalhos e rochas, impossível
cavalgar sobre eles. Muito longe, para baixo, e shhhhhhhh, shhhhhh.
Aqueço Dove em fáceis trotes circulares. Continuo esperando meu
corpo relaxar, esquecer onde estou, mas não consigo. Cada reflexo na água
me sacode. Meu corpo está gritando para mim a ameaça daquele mar negro.
Lembro-me da história que nos contaram assim que deixamos de ser
crianças, sobre dois jovens amantes que se encontraram ilicitamente na
praia, apenas para serem arrastados para dentro das ondas por um cavalo
d’água à espreita. A história era considerada uma boa fábula moral para
todos os jovens de Skarmouth: aquilo nos ensinaria o que pode acontecer
com quem fica trocando beijos na beira da praia.
Mas essa história nunca pareceu real, fosse contada em sala de aula ou
relatada sobre um balcão. Aqui na praia, ela parece uma promessa. Mas
pensar nisso não ajuda em nada. Preciso usar meu tempo com sabedoria.
Tento fingir que estou lá em cima, no pasto lamacento. Por minutos
intermináveis, Dove e eu nos exercitamos assim, trotando de um modo e

depois de outro, então galopando de um modo e depois de outro. Eu me
detenho entre um e outro e ouço. Para procurar na escuridão por algo mais
misterioso. Dove está se acalmando, mas eu não consigo parar de tremer.
Tanto por causa do frio como por causa do machucado, tão estanque.
Há apenas um pouco mais que um pedaço de amanhecer distante no
horizonte. Os outros logo estarão aqui.
Interrompo Dove e escuto. Nada além de shhhhhh, shhhhhh .
Espero por um longo instante. Apenas o oceano.
E então eu a lanço em um galope.
Alegremente, ela salta para frente, movendo o rabo bem rápido, na
emoção do momento. As ondas se tornam uma longa mancha escura ao
nosso lado, e os penhascos se transformam numa disforme parede cinzenta.
Agora eu não consigo ouvir o sussurro do oceano, apenas os golpes dos
cascos de Dove e sua ofegante respiração.
Meu cabelo escapa do rabo de cavalo e açoita meu rosto, minúsculas
chicotadas de chicotes minúsculos. Dove salta uma, duas vezes, de pura
emoção da corrida, e dou risada dela. Paramos de repente e corremos de
volta pelo caminho pelo qual viemos.
Eu acho que vi alguém de pé em cima dos penhascos nos observando,
mas, quando olho de novo, não vejo nada.
Avalio o trabalho da manhã. Dove está sem fôlego e eu também, e o
mar está recuando. Os outros cavaleiros ainda estão por vir à praia e nós já
fizemos o trabalho do dia.
Isso deve funcionar.
Eu não sei em que velocidade estávamos, mas agora isso não importa.
Uma vitória de cada vez.

ão há ninguém no segundo andar da casa de chá a esta hora do
dia. Somos apenas eu e um bando de pequenas mesas cobertas
de pano, cada uma com uma flor de cardo roxa num vaso. O
salão é comprido e estreito, com o teto baixo; parece um agradável caixão
ou uma igreja sufocante. Tudo brilha em tons de rosa por causa das cortinas
rendadas dessa cor diante das pequenas janelas atrás de mim. Sou a coisa
mais escura da sala.
Evelyn Carrick, a jovem filha do proprietário, permanece em pé ao lado
da mesa na qual estou sentado e me pergunta o que eu gostaria. Ela não
olha para mim, o que está certo, porque eu também não olho para ela. Olho
para o pequeno cartão impresso na toalha de mesa diante de mim.
Há algumas palavras em francês no cardápio. Os itens em inglês são
longos e descritivos. Mesmo que eu quisesse pedir chá, não tenho certeza de
que o reconheceria.
– Vou esperar – digo.
Ela hesita. Seus olhos piscam para mim e se voltam para longe, como
um cavalo incerto sobre um objeto desconhecido.
– Posso guardar seu casaco?
– Vou ficar com ele. – Como ficou a noite toda sobre o aquecedor,
minha jaqueta está enrugada, com água salgada e manchada de lama e
sangue. Cada dia que estive na praia está escrito nela. Eu não consigo
imaginá-la tocando em minha jaqueta suja com suas pequenas mãos
brancas.
Evelyn faz algo complicado e útil com o guardanapo e o pires do outro
lado da mesa, e então desliza, descendo mais uma vez as escadas estreitas.

Ouço o rangido de seus passos; cada passo estala e geme. A alta e estreita
casa de chá é uma das construções mais antigas de Skarmouth, diretamente
prensada entre a mercearia e o correio. Eu me pergunto o que era antes de
vender docinhos.
Malvern está atrasado para o encontro que ele mesmo marcou, um
encontro cuja hora eu estava esperando, ainda que não o local. Viro-me
para olhar a rua ali embaixo através da janela com cortinas cor-de-rosa. Já
há alguns turistas de pescoço alongado lá embaixo, adiantados em relação
ao festival, e posso ouvir o treinamento dos tambores algumas ruas adiante.
Em alguns dias, acredito que as mesas neste andar da casa de chá estarão
cheias, assim como as ruas. No fim do festival, os outros cavaleiros e eu
seremos exibidos no meio da multidão. Se eu ainda tiver emprego.
Puxo um pouco para cima a manga da minha camisa para dar uma
olhada em meu pulso; a jaqueta rígida raspou minha pele durante o treino
da manhã. Houve briga entre os cavalos e tive de intervir. Eu desejo que
Gorry desista de tentar vender a égua malhada; ela não é boa influência
para os outros.
Os degraus da escada estalam e resmungam à medida que alguém mais
pesado que Evelyn sobe por eles. Benjamin Malvern avança pelo salão e
então se detém ao lado de minha mesa até que eu me levanto para saudá-lo.
Malvern, que sempre foi rico, tem aquele ar de feiura bem cuidada, como
um cavalo de corrida caro com uma cabeça horrível. A pelagem sedosa, o
olho brilhante e o focinho avantajado sobre lábios carnudos demais.
– Sean Kendrick – diz. – Como você está?
– Indo – respondo.
– Como está o mar? – É neste momento que ele faz uma piada para
demonstrar empatia, e é aqui que finjo achar graça para mostrar que aprecio
meu salário.
Esboço um fino sorriso.
– Bem como sempre.
– Podemos nos sentar?

Eu espero ele se sentar e depois me acomodo. Ele pega o cardápio, mas
não lê.
– Então, você está pronto para o festival neste fim de semana?
Os degraus da escada rangem outra vez, e é Evelyn. Ela coloca uma
xícara cheia de um líquido espumante diante de Malvern.
– Você gostaria de alguma coisa? – ela me pergunta de novo.
– Estou bem.
– Ele não vai abusar de sua hospitalidade, querida – Malvern diz a ela. –
Traga uma xícara de chá para ele.
Assinto com um gesto de cabeça para Evelyn. Malvern não parece
notar que a garota se afasta.
– Não faz sentido continuar sem chá quando há um negócio
desagradável tornando esta situação mais desagradável – diz Malvern. Ele
bebe seu estranho chá espumante.
Eu estou imóvel e em silêncio.
– Você não é um homem de muitas palavras, Sean Kendrick – diz ele.
Lá fora, os percursionistas de Escorpião praticam sua batida curta e
ascendente, um estranho contraste com o mundo rosa e suave no qual nós
estamos. Ele se inclina para frente, os cotovelos sobre a mesa. – Acho que
nunca lhe contei a história de como entrei no mundo dos cavalos, contei?
Meus olhos encontram os dele.
Ele continua.
– Eu era muito jovem, pobre, um ilhéu, mas não nesta ilha. Eu não
tinha nada em meu nome além de sapatos e ferimentos na pele. Havia um
homem que vendia cavalos mais abaixo na estrada. Cavalos reais e velhos,
cavalos de salto e cavalos d’água. Todo mês havia um leilão, e as pessoas
vinham de localidades mais distantes do que você já esteve na sua vida para
vê-los.
Ele faz uma pausa, apenas para checar se estou triste pelo fato de
minhas pernas terem crescido nesta ilha. Quando não encontra o que
procura, Malvern continua:

– Ele tinha um garanhão dourado, que era como se Midas houvesse
tocado nele. Dezessete, dezoito palmos de altura, crina e rabo de leão. Vê-lo
no cercado era saber como um cavalo deveria ser, mas tinha um problema:
ninguém conseguia montá-lo. Ele lançara de cima de si quatro homens e
matara outro, e comia de quatro a oito fardos de feno por dia. Ninguém
tocaria num cavalo assassino impossível de ser montado naquele leilão.
Então eu disse ao homem que gostaria de domá-lo e que, se o fizesse, ele
teria de me dar um emprego e eu nunca mais seria pobre. O vendedor de
cavalos disse que não poderia prometer que eu nunca mais seria pobre, mas
disse que eu teria um emprego com ele enquanto ele estivesse vivo. Então,
peguei o garanhão dourado e coloquei os arreios nele. Cortei uma venda do
tecido do vestido de uma virgem e cobri seus olhos. E, então, o montei. Nós
galopamos por todo o campo, ele cego e eu, um rei. Quando eu o levei de
volta, ele estava domado e eu tinha um emprego. O que acha disso?
Olho para Malvern. Ele vira seu chá exótico contra os lábios. Posso
sentir o cheiro da manteiga de onde estou.
– Não acredito em você – digo. Quando Malvern ergue uma
sobrancelha, complemento: – Você nunca foi jovem.
– E eu pensava que você não tinha senso de humor, sr. Kendrick. – Ele
faz uma pausa quando Evelyn coloca minha xícara de chá diante de mim.
Ela me oferece leite e açúcar, e eu balanço a cabeça. Malvern espera até que
ela tenha voltado para as escadas antes de falar de novo.
Ele coloca um guardanapo sobre sua xícara de chá, como se ela fosse
um cadáver em vez de uma xícara vazia.
– Meu filho diz que você matou um dos meus cavalos.
A raiva toca o céu da minha boca, meu peito, como a mão quente de
alguém.
– Você não parece surpreso – Malvern acrescenta.
– Não estou surpreso – digo.
Lá fora, os tocadores de tambor de Escorpião batem mais próximos,
mais alto, e há riso entre eles. Um dos risos em especial é baixo, irônico, do

tipo que provoca uma carranca naqueles que não estão na brincadeira. As
sobrancelhas de Malvern se curvam para baixo e sua cabeça está inclinada,
como se ele pudesse imaginar a cena ali fora de maneira mais clara que meu
rosto. Os tambores agora soam quase que intencionalmente como batidas
de casco de cavalo, e eu me pergunto se ele está vendo outra vez o garanhão
dourado do tamanho de um estábulo galopando pelo campo em alguma ilha
exótica.
– Quinn Daly me contou o que viu – diz Malvern. – Ele me disse que
você estava exercitando Fundamental na enseada. Disse que você parecia
distraído, que sua mente estava longe do trabalho e que você nunca teria
visto uma ameaça na água.
Claro que eu estava distraído. Aquela garota ruiva e seu cavalo de
corrida da ilha e as manchas de sangue das éguas selvagens na areia. Não
consigo imaginar que Malvern vai me demitir por isso, não consigo imaginar
que me demitiria por coisa alguma, mas então, mais uma vez, eu consigo. Eu
caminho no fio da navalha.
Meus olhos encontram os de Malvern.
– O que mais Quinn Daly lhe contou?
– Que Matthew disse a ele que o substituiria em seu posto e vigiaria a
enseada. Que a próxima coisa que viu foi Fundamental afundando e você
mergulhando atrás dele – Malvern cruza as mãos sobre a mesa diante dele. –
Mas não é isso que meu filho diz. É a palavra de um contra a do outro. O
que você tem a dizer?
Cerro os dentes. Este é um jogo impossível de vencer. Arrasto as
palavras para fora.
– Não posso falar nada contra seu filho.
– Você não precisa fazer isso – Malvern responde. – Sua jaqueta me diz
qual é a história verdadeira.
Nós dois estamos em silêncio.
Finalmente, Malvern diz:
– Gostaria de saber o que se passa em sua mente. O que quer da vida?

A pergunta me pega desprevenido. Pode haver uma pessoa para quem
eu reviraria os bolsos do meu coração para que ela os visse, mas nunca
houve um momento em que eu acreditasse que Benjamin Malvern era essa
pessoa. Não consigo me imaginar lhe confessando meus desejos mais do que
consigo imaginá-lo me confessando os seus.
Com seu olhar sobre mim, digo:
– Um teto sobre minha cabeça, rédeas em minhas mãos e a areia sob os
meus pés. – Uma verdade fraca e abreviada.
– Ah, então você já tem o que deseja.
Não posso simplesmente me sentar aqui bebendo este chá e dizer que o
que quero é me ver livre dele.
– Faz muito tempo desde que domei aquele primeiro garanhão – diz
Malvern. – Não sei o que o caminho que tomei para chegar a esta ilha
arruinada no meio do oceano parecia ser do lado de fora. Não posso
compará-lo com o caminho de Matthew para saber aonde ele está indo.
Existem muitos caminhos nos quais Mutt Malvern pode estar, mas acho
que nós dois sabemos que nenhum deles termina como o magnata de um
haras de reprodução internacionalmente famoso.
– Hum, bem. Você está nesse ramo tempo o suficiente para saber como
os cavalos se sairão? – Malvern quer dizer qual de seus cavalos d’água é o
mais rápido.
– Eu soube isso no primeiro dia.
Malvern sorri. Não é um sorriso agradável, mas seu desagrado não é
dirigido a mim.
– Então qual é o mais lento deles?
– A égua baia sem branco – digo, sem pausa. Ainda não lhe dei um
nome porque ela ainda tem de ganhar um. Ela é volúvel e selvagem com o
mar; ela não é rápida porque não tem prazer no que o cavaleiro deseja.
Malvern pergunta:
– E qual é o mais rápido?
Faço uma pausa antes de responder. Sei que o que eu disser decidirá

sobre qual deles ele colocará Mutt neste novembro. Não quero responder a
verdade, mas não há razão para mentir, já que no fim das contas ele vai
descobrir.
– Corr. O garanhão vermelho.
Malvern diz:
– E o mais seguro?
– Edana. A baia com a faixa branca.
Malvern então olha para mim. Realmente olha para mim, pela primeira
vez. Ele franze a testa como se estivesse me vendo sob um novo ângulo, o
menino que passou anos crescendo sobre sua estrebaria, cuidando de seus
cavalos. Eu olho para minha xícara de chá. Ele pergunta:
– Por que você pulou no mar atrás de Fundamental?
– Ele estava sob minha responsabilidade.
– Sua responsabilidade, mas um cavalo Malvern. Meu filho era o dono
daquele cavalo. – Benjamin Malvern empurra sua cadeira para trás e
levanta. – Matthew vai montar Edana. Solte a outra baia, a menos que você
ache que ela se adequará para o próximo ano.
Ele olha para mim para verificar minha resposta. Eu balanço a cabeça.
– Solte o animal, então. E você vai... – ele enfia algumas moedas sob a
beirada de sua xícara de chá – ...você vai montar Corr.
Todo ano eu espero que ele diga isso. Todo ano, quando ele toma sua
decisão, ela tranquiliza meu coração.
Mas, este ano, sinto como se ainda estivesse esperando.

a hora do almoço do dia seguinte, estou deprimida. Quando
descubro que Gabe ainda está desaparecido na hora em que me
levanto, decido tomar conta do assunto e ir ao Hotel
Skarmouth para encontrá-lo. Ali, me dizem que ele está no cais, e no cais
me dizem que ele saiu num barco, e, quando pergunto em qual barco, eles
riem e dizem que talvez naquele que tinha bebida no fundo do copo.
Às vezes, eu odeio os homens.
Ao voltar, reclamo com Finn sobre como nunca mais falamos com
Gabe.
– Eu falei com ele esta manhã – Finn me conta. – Antes de ele partir.
Sobre o peixe.
Dou um jeito de conter minha fúria, mas muito mal.
– Da próxima vez que o vir, fale que preciso conversar com ele – digo a
Finn. – Que peixe?
– O quê? – Finn responde. Ele está sorrindo de forma distante para uma
cabeça de cachorro de porcelana.
– Não importa – digo.
Então levo Dove até a praia, para a maré alta da tarde, e ela está
nervosa e preguiçosa, sem vontade de trabalhar. Ela já teve muitos dias
assim, claro, mas nunca foram importantes. Não que isso importe hoje, mas,
se ela estiver assim no dia da corrida, posso muito bem nem sair da cama.
Quando a levo de volta para casa, eu a solto em seu pasto e lanço uma
camada de feno por sobre a cerca. O feno da ilha é nojento, eu sei, embora
eu nunca tenha me incomodado com isso até agora. Olho furiosamente para
a barriga de Dove e abro a porta da casa.

– Finn?
Ele não está. Espero que esteja consertando aquele Morris estúpido.
Alguma coisa nessa ilha precisa funcionar.
– Finn? – chamo outra vez. Sem resposta. Sinto-me culpada, vou até a
lata de biscoitos no balcão e agito as moedas que guardamos ali dentro. Eu
as conto e então as coloco de volta na lata. Imagino o que Dove poderia
fazer com uma alimentação melhor. Eu as tiro da lata mais uma vez. Acho
que isso comprará apenas o suficiente para uma semana de alimentação
melhor para ela, e eu usarei todo o nosso dinheiro.
Vamos perder a casa de qualquer forma, a menos que eu faça algo.
Fecho as mãos e encaro a lata.
Vou conseguir um adiantamento de Dory Maud pelos bules.
Deixando um pouco das moedas na lata, coloco o restante no bolso.
Sem Finn ou o Morris aqui, provavelmente ainda morto, não há chance de
conseguir uma carona para Colborne & Hammond, o fornecedor dos
fazendeiros, então o jeito é ir até o alpendre, empurrando Dove para sair do
meu caminho, para alcançar a bicicleta da minha mãe. Verifico a pressão
nos pneus e oscilo pela estrada, evitando os buracos. Estou contente que a
previsão de tempestade de Finn ainda não se concretizou, porque Colborne
& Hammond é em Hastoway, bem adiante de Skarmouth. Minhas canelas
já vão se ressentir o suficiente deste passeio forçado sem que eu tenha de
encharcá-las com água de chuva também.
Pedalo para fora da estrada de cascalho e entro no asfalto, olhando para
trás para ter certeza de que não vem nenhum carro. Eles raramente passam
por aqui, mas, desde que o padre Mooneyham foi jogado no barranco pela
caminhonete de Martin Bird, tomo o cuidado de olhar.
O vento vem direto das colinas conforme pedalo. Preciso me inclinar
contra ele para evitar que a bicicleta tombe. À minha frente, a estrada
serpenteia para evitar as mais formidáveis escarpas. Meu pai disse que
quando pavimentaram a estrada ela se parecia com uma cicatriz ou um
zíper, preta contra as colinas marrons e verdes emudecidas ao seu redor.

Mas agora o asfalto e as linhas pintadas nele desapareceram, de modo que a
estrada parece apenas mais uma parte torta da paisagem angular. Há
remendos na estrada também, em que crateras se abriram e foram fechadas
com piche mais escuro. É como camuflagem. À noite, é quase impossível
permanecer fiel a ela.
Atrás de mim, ouço o som de um motor se separando do som do vento,
e me dirijo ao acostamento para deixá-lo passar. Mas, em vez de passar, o
veículo para. É Thomas Gratton em sua grande caminhonete de transportar
ovelhas, um Bedford cujos faróis e grade tornam o carro parecido com Finn
quando ele está fazendo sua cara de sapo.
– Puck Connolly – diz Thomas Gratton, o rosto corado como sempre,
através da janela aberta. Ele já está abrindo a porta. – Aonde você vai?
– Hastoway.
Eu nem sei como desci da bicicleta, mas a próxima coisa que vejo é
Gratton erguendo-a sobre a lateral da carroceria da caminhonete e dizendo:
– Eu também estou indo para lá.
Reconheço a sorte quando a vejo, então subo no lado do passageiro,
empurrando uma lata, um jornal e um border collie para o lado antes de me
acomodar.
– Além disso – diz Thomas Gratton, voltando para a caminhonete com
um suspiro, como se fosse difícil fazer aquilo –, pegue alguns biscoitos.
Assim eu não como tudo sozinho.
Conforme descemos a estrada, como um e dou um à cachorra dele. Dou
uma olhada discreta para ver se Thomas Gratton notou – se notou, para ver
se se incomoda –, mas ele está cantarolando e agarrando o volante como se
ele pudesse fugir. Penso nele e em Peg falando sobre mim e imagino se
cometi um erro me prendendo aqui na cabine com ele.
Por um momento, seguimos em silêncio, enquanto a caminhonete
chacoalha como se o motor estivesse saltando para fora do compartimento,
então silencioso não é exatamente sua qualidade. Estou contente em ver
que a cabine está repleta de papéis de pastilhas para tosse, garrafas de leite

vazias e pedaços de jornais sujos de lama, que ficaram quebradiços pelo
tempo. Asseio faz com que eu sinta que deva lançar mão do meu melhor
comportamento. A desordem é meu habitat.
– Como vai aquele seu irmão? – Gratton me pergunta.
– Qual?
– O herói com a carroça.
Suspiro tão profundamente que o collie lambe meu rosto para me
consolar.
– Ah, Finn.
– Ele é dedicado. Você acha que ele está pronto para se tornar
aprendiz?
Ser aprendiz de açougueiro seria uma coisa realmente maravilhosa. E
me dói muito responder:
– Ele não aguenta ver sangue.
Thomas Gratton ri.
– Ele escolheu a ilha errada.
Penso, não de maneira afetuosa, na ovelha morta que encontrei no dia
anterior. E também penso em Finn assombrando a padaria de Palsson. Se
ele pudesse ser aprendiz em algum lugar, tenho certeza de que seria ali.
Onde ele poderia colocar sal em seu chocolate quente. Mas eles teriam de
ter outra pessoa como aprendiz para cuidar da cozinha depois que ele
passasse por lá.
– Ah, o que temos aqui? – diz Thomas Gratton. Levo um momento
para perceber que ele está falando de uma sombria figura solitária
caminhando na beira da estrada. Gratton para a caminhonete e abaixa o
vidro.
– Sean Kendrick! – ele chama, e aí me dou conta. E é Sean Kendrick,
os ombros arqueados contra o frio, a gola escura levantada protegendo-o do
vento. – O que está fazendo que não está montado num cavalo?
Sean não responde imediatamente. A expressão dele não se altera, mas
algo em seu rosto sim, como se estivesse mudando para uma engrenagem

diferente.
– Apenas organizando meus pensamentos.
Gratton diz:
– E aonde você está indo para organizá-los?
– Não sei. Hastoway.
– Bem, você pode organizar seus pensamentos na caminhonete.
Estamos indo para o mesmo lugar.
Por um momento, sinto-me completamente assolada pela injustiça da
situação. Ofereceram-me uma carona e agora tenho de, entre todo mundo,
compartilhá-la com Sean “Mantenha Seu Pônei Fora Desta Praia”
Kendrick. E então vejo que Kendrick também me viu, e não tem certeza
sobre subir na caminhonete, o que me agrada. Eu gostaria de ser
aterrorizante. Olho furiosamente para ele.
Mas a expressão de Gratton deve estar contrariando a minha, porque
Sean Kendrick dá uma olhada para o caminho de onde veio e então começa
a dar a volta, em direção ao outro lado da caminhonete. O meu. Gratton
abre sua porta e diz para a cachorra ir para trás, o que ela faz, nos lançando
um olhar obsceno. Eu me movo no assento em direção ao lado que ela
estava ocupando – agora que estou sentada bem próxima a Gratton,
percebo que ele cheira como os losangos de pastilha para garganta de limão
cujos papéis estão espalhados pelo assoalho. O tempo todo, estou tentando
alucinadamente descobrir algo interessante para dizer quando Sean abre a
porta do lado do passageiro, algo que indique imediatamente que eu me
lembro do que ele disse na praia e também que mostre que não estou
impressionada, ou intimidada e possivelmente que também passe a
mensagem de que sou mais inteligente do que ele pensa.
Sean Kendrick abre a porta.
Ele olha para mim.
Eu olho para ele.
Assim de perto, ele é quase sério demais para ser bonito: maçãs do rosto
muito salientes, nariz com ponta de navalha e sobrancelhas escuras. Suas

mãos estão machucadas por causa do seu tempo com os capaill uisce . Como
os pescadores da ilha, seus olhos estão permanentemente cerrados contra o
sol e o mar. Ele parece um animal selvagem. Não um afável.
Não digo nada.
Ele entra na caminhonete.
Quando ele fecha a porta, estou espremida entre a perna grande de
Thomas Gratton, que imagino ser rosada como o restante dele, e a perna
rígida de Sean Kendrick. Nossos ombros estão colados por causa do
tamanho da cabine, e, se Gratton é feito de farinha e batata, Sean é feito de
pedra e madeira flutuante e possivelmente daquelas anêmonas espinhosas
que às vezes são levadas para a costa.
Eu me inclino para longe dele. Ele olha para fora através da janela.
Gratton cantarola para si mesmo.
Da parte de trás, o border collie lamenta. A vibração da caminhonete
faz do lamento um assobio quebrado, intermitente.
– Eu ouvi dizer que Mutt, Matthew, está um tanto insatisfeito com o
cavalo que você escolheu para ele – Gratton diz de maneira agradável.
Sean Kendrick olha para ele intensamente.
– E quem está dizendo tais coisas?
Eu fico surpresa com a voz dele por alguma razão, a maneira como ela
soa quando ele está falando em vez de gritando sobre o vento. Ela faz com
que ele pareça menos duro. Noto que ele cheira a feno e a cavalos, e aquilo
faz com que eu goste um pouquinho mais dele.
– Ah, ele mesmo – diz Gratton. – Ele teve um ataque de birra bem na
frente da loja hoje cedo. Diz que você quer que ele perca e que você não
aguenta a concorrência.
– Ah, é isso – Sean responde com desdém. Ele olha outra vez pela
janela. Estamos passando por uma das pastagens de Malvern, e há uma
esplendida exibição de éguas reprodutoras pastando pelo verde.
Gratton bate com os dedos no volante.
– E depois, claro, Peg partiu para cima dele.

Sean olha de volta outra vez. Ele não diz nada, apenas espera. E eu vejo
como isso arranca as palavras de Gratton e dá a Sean uma sutil vantagem, e
prometo a mim mesma aprender como usar essa técnica.
– Bem, ele estava dizendo que, se estivesse sobre aquele seu garanhão
vermelho, também ganharia quatro vezes. Então Peg lhe disse que ele não
entendia nada de cavalos se achava que tudo o que bastava numa corrida
era o cavalo sob você. Ela estava com o pavio curto hoje de manhã, porque
é um dia que termina com “feira”, sabe?
Eu rio, o que lembra a Gratton que estou aqui, porque ele diz:
– E, claro, você não precisa de Mutt Malvern como adversário. Você
tem muito com o que se ocupar com a Puck aqui.
Prometo envenenar Thomas Gratton lentamente mais tarde. Quero me
afundar no assento e desaparecer. Mas, em vez disso, encaro Sean,
desafiando-o a dizer alguma coisa.
Mas ele não diz. Apenas olha para o meu rosto, franzindo um pouco a
testa, como se de alguma forma minhas razões para interromper seu treino
se revelarão por si mesmas. Então, olha pela janela.
Não consigo decidir se me sinto ofendida ou não. Não dizer
absolutamente nada parece pior do que dizer algo horrível. Viro-me para
Thomas Gratton, ignorando Sean Kendrick.
– Você disse que estava procurando um aprendiz?
– É verdade.
– E Beech?
Gratton diz:
– Beech vai para o continente depois das corridas.
Eu abro a boca, mas não sai som nenhum.
– Ele, Tommy Falk e seu irmão Gabriel estão indo ao mesmo tempo. Eu
devo lhe agradecer, Puck, por nos dar mais algumas semanas com ele. Eu
ouvi dizer que seu irmão vai ficar até depois da corrida porque você vai
participar, e isso segurou os outros garotos.
Às vezes, sinto como se o restante de Thisby soubesse mais sobre minha

vida que eu mesma.
– Isso é verdade – digo, repetindo o que ele disse. Por alguma razão, me
sinto mais desconsolada agora que sei que Gabe não está indo sozinho. –
Mas Tommy vai correr, não vai?
– Sim, ele decidiu participar, já que estará aqui.
– Você está chateado por causa de Beech? – depois que digo isso,
percebo que não era a coisa mais delicada a se perguntar, mas eu não tinha
como voltar atrás.
– Ah, é assim que as coisas funcionam nesta ilha. Nem todo mundo
pode ficar, ou estaríamos despencando pelas beiradas, não é? – A voz de
Thomas Gratton, no entanto, não combina com suas palavras
despreocupadas. – E nem todo mundo pertence a esta ilha. Posso dizer que
você pertence, não posso?
– Eu nunca iria embora daqui! – digo fervorosamente. – Ela é... é como
o meu coração, ou algo assim.
Sinto-me uma imbecil por ser tão sentimental. Lá fora, do outro lado da
água, posso ver uma das minúsculas ilhas rochosas próximas a nós, uma
pequena silhueta azul, pequena demais para ser habitada. É lindo de um
modo que você nunca se cansa.
Estamos todos em silêncio, e então Sean Kendrick diz:
– Tenho outro cavalo, Kate Connolly, se quiser montar um dos capaill
uisce .

inn me observa enquanto esmigalha lentamente um biscoito com os
dedos.
– Então, Sean Kendrick vai vender um dos cavalos d’água para
você?
Estamos sentados na sala dos fundos da Fathom & Sons. É um cômodo
claustrofóbico. As paredes estão forradas de prateleiras cheias de caixas
marrons e há uma enorme mesa de madeira riscada que mal cabe no
ambiente. Cheira menos ao odor de manteiga do restante do edifício e mais
a papelão mofado e queijo velho. Quando éramos pequenos, minha mãe nos
deixava aqui com alguns biscoitos enquanto conversava com Dory Maud do
lado de fora, na parte da frente do prédio. Finn e eu nos revezávamos
tentando adivinhar o que havia nas caixas marrons. Peças de computador.
Bolachas. Pés de coelho. Partes íntimas dos amantes invisíveis de Dory
Maud.
– Não necessariamente – digo, sem desviar os olhos do meu trabalho.
Estou assinando e numerando bules enquanto tomo uma xícara de chá que
infelizmente está ficando frio. – Estou apenas analisando. Ele não disse que
vai vender , na verdade.
Finn olha para mim.
– Eu também não disse que vou comprar – disparo de volta para ele.
– Pensei que você ia montar Dove.
Assino meu nome no fundo de um bule. Kate Connolly . Parece que
estou assinando um trabalho escolar. O que eu preciso é de mais enfeite.
Acrescento uma onda na parte inferior do y .
– Provavelmente ainda vou – digo. – Só estou pensando no caso!

Meu rosto está ficando vermelho e eu não sei por quê, o que me irrita.
Espero que a luz fraca da lâmpada acima de nós e as janelas estreitas sobre
as prateleiras não revelem. Acrescento:
– Só tenho mais dois dias para trocar de cavalo. Preciso pensar bem no
que fazer.
– Você vai estar no desfile de cavaleiros? – pergunta Finn.
Agora ele não está olhando para mim. Depois de esfarelar
completamente o biscoito, ele começou a juntar e esmagar as migalhas,
moldando tudo numa massa menor.
Todos os anos, o Festival de Escorpião acontece uma semana depois
que os cavalos emergem. Eu só fui uma vez, e mesmo assim não ficamos
tempo suficiente para ver o desfile de cavaleiros, que é o principal evento da
noite, quando eles anunciam suas montarias oficiais e os apostadores
enlouquecem.
Há um buraco em meu estômago, fico nervosa só de pensar nisso.
– É, você vai? – a voz de Dory Maud ecoa pela sala.
Ela para na porta, com uma das sobrancelhas arqueada. Está usando um
vestido que parece roubado. Ele tem mangas de renda, e Dory Maud não
tem braços de mangas de renda.
Franzo a testa para ela, mal-humorada.
– Você não vai tentar me convencer a ficar de fora, vai?
– Do desfile ou da corrida? – Dory Maud puxa a terceira cadeira da
mesa e se senta. – O que eu não entendo – diz ela – é por que uma menina
tão inteligente e habilidosa como você, Puck, perderia tanto tempo
bancando a idiota ou morrendo.
Finn sorri para seu biscoito.
– Tenho minhas razões – digo de um golpe. – E não me diga que meus
pais ficariam muito tristes com isso também. Eu já ouvi isso. Já ouvi de tudo .
– Ela tem sido grosseira assim a semana inteira? – Dory Maud pergunta
a Finn, que concorda com a cabeça. Para mim, ela acrescenta: – Seu pai não
estaria nada contente, mas sua mãe não poderia dizer nada. Ela era um

diabinho, e a única coisa que não fez nesta ilha foi participar das corridas.
– Sério? – pergunto, ansiosa por mais informações.
– Provavelmente – responde Dory Maud. – Finn, por que você está
comendo isso? Parece comida de gato.
– Eu trouxe de casa – ele suspira fundo. – Na Palsson’s, estavam
servindo rosquinhas de canela.
– Ah, sim – Dory Maud começa a rabiscar alguma coisa num pedaço de
papel. Sua letra é tão ilegível que prefiro acreditar que ela está se esforçando
para conseguir escrever. – Até os anjos poderiam sentir o cheiro delas.
A expressão de Finn é melancólica.
Eu me sinto culpada pela carga de feno e grãos que acabei de comprar.
Não tenho certeza se foi um investimento melhor do que teriam sido as
rosquinhas de canela.
– Eu poderia receber um adiantamento por alguns bules, Dory Maud? –
pergunto. Empurro um dos bules assinados e numerados em sua direção
para que ela se convença de minha dedicação. – Comida de cavalo é cara.
– Eu não sou banco. Se me ajudar a arrumar o estande do festival na
sexta à tarde, eu faço isso.
– Obrigada – digo, sem me sentir muito grata.
Depois de um momento, Finn diz:
– Não sei por que você simplesmente não monta Dove.
– Finn.
– Bem, foi isso que você disse .
– Eu gostaria de ter uma chance de ganhar dinheiro – digo. – Pensei
que montar, você sabe, um cavalo d’água numa corrida para, você sabe,
cavalos d’água pudesse realmente ajudar.
– Hum – murmura Dory Maud.
– Exatamente – diz Finn. – Como você sabe que eles são mais rápidos?
– Ah, por favor !
– Bem, foi você quem me disse que nem sempre eles correm em linha
reta. Só não entendo por que você está mudando de ideia agora, só porque

um especialista lhe disse outra coisa.
Sinto meu rosto queimar outra vez.
– Ele não é especialista. E não me disse nada. Só estou analisando.
Finn pressiona o polegar com força em sua pilha de migalhas, até a
ponta do dedo ficar branca.
– Você disse que não montaria um deles por uma questão de princípios.
Por causa da mamãe e do papai.
Sua voz é serena porque Dory Maud está ali e porque é Finn, mas
percebo que ele está agitado.
Eu digo:
– Bem, princípios não vão pagar as contas.
– Não se pode chamar isso de princípio, quando você simplesmente
muda de ideia como... como nesse caso. Da noite para o dia. Como... – Mas
ele não deve ser capaz de pensar no que isso parece, pois se levanta, passa
feito um foguete pela cadeira de Dory Maud e sai da sala.
Eu pisco às suas costas.
– O quê? O quê?
Acho que irmãos são a espécie mais inexplicável do planeta.
Dory Maud varre migalhas invisíveis de seu papel e examina o que
escreveu.
– Meninos – diz ela – simplesmente não são muito bons em lidar com o
medo.

noite, selei uma potra chamada Pequeno Milagre do Malvern,
assim nomeada porque estava tão imóvel e quieta quando nasceu
que todos pensaram que estava morta.
Estou cansado e acabado. Há algo errado com meu braço direito, onde
um dos cavalos o prensou hoje cedo, e só quero me arrastar até a cama para
pensar se minha reunião amanhã com Kate Connolly é ou não uma boa
ideia. Mas há dois compradores aqui, acabaram de sair do barco, e tenho de
lhes mostrar dois potros com três anos de idade enquanto ainda há luz. Por
que não dá para esperar até amanhã, eu não sei.
Quando saio para o quintal dourado de fim de tarde, para atender os
compradores, fico surpreso ao descobrir que a outra potra, uma cinza
chamada Sweeter, já está ali fora, com alguém em suas costas. Levei apenas
um instante para reconhecer a silhueta de Mutt Malvern, e algo em meu
intestino rosna e se revira. Três homens estão parados ao lado dos ombros
dela, com a atenção voltada para Mutt. Ele vira a cabeça em minha direção,
o rosto na sombra, e sei que ele faz questão que eu veja que é ele. Mutt
pensa que exibir Sweeter como parte de seu negócio me ofende
brutalmente, mas, quando o ouço dizer a um dos compradores o quanto ele
ama essa potranca, tudo o que consigo pensar é nele parado no alto da
enseada, esperando Fundamental ser puxado para baixo.
Milagre está agitada. Ela se move para as laterais e, em seguida, dispara
atravessando o quintal até onde Mutt está, tão determinada que faz Sweeter
sair de seu caminho. Nossas sombras azuis permanecem embaixo de nós.
– Sean Kendrick – diz George Holly alegremente. Ao ouvir meu nome,
os outros dois compradores se viram para me observar. Não reconheço
nenhum deles. Sangue novo, talvez.
– Sean montará a outra potra – Mutt diz a eles, com uma expressão

paternal. Ele sorri. – Já que não posso montar duas ao mesmo tempo.
Não tenho certeza se ele é capaz de montar ao menos uma. Não
consigo me lembrar da última vez que o vi galopando.
Um dos compradores murmura meu nome para o outro, e Mutt se
inclina em direção a eles para perguntar:
– O que foi?
– Kendrick. O nome soa familiar.
Mutt olha para mim.
– Acabei de montar os cavalos – digo.
O sorriso de George Holly é luz na escuridão.
– Você vai participar da corrida também? – pergunta um comprador.
Faço que sim com a cabeça.
– Com o garanhão vermelho – Holly diz a ele. – Aquele que você viu
antes.
Eles murmuram seu apreço e perguntam a Mutt quem ele vai montar
nas corridas.
Mutt fica em silêncio. Acho que ele nem se lembra do nome de Edana.
Ele ainda tem de montá-la.
Sei que este é o momento em que esperam que eu, a serviço dos
Malverns, interceda e seja útil e humilde para salvar a pele de Mutt. Foi o
que fiz durante a maior parte da vida, e posso sentir em meus lábios as
palavras que farão Mutt se sair bem da situação. As palavras que farão os
clientes se lembrarem da minha posição no Haras Malvern.
Mas, em vez disso, digo:
– Escolhi a égua baia de focinho branco, Edana, para ele. Acho que vai
ser um bom páreo.
O haras está em silêncio. Há algo de perturbador e repugnante na
postura de Mutt quando ele fixa os olhos em mim. Os compradores trocam
olhares enquanto Holly fica confuso.
Posso ver minhas palavras se embrenhando sob a pele de Mutt. Sinto-
me descontrolado e perigoso.

Milagre recua diante de nada em particular, dançando no lugar. Seus
cascos batem e ecoam nas pedras. Eu me viro para Mutt. Eu o imagino
sendo puxado para as profundezas em vez de Fundamental. Nas garras de
Corr. Debaixo de cascos no lugar do meu pai.
– A luz está acabando. Vamos levar suas potras então?
Mutt vira Sweeter para o lado sem uma palavra.
A raia tem cerca de 1.400 metros e é reta como uma seta. Os cavalos
ficam animados quando pisam nela, cientes do que vem a seguir. Sinto o
olhar de Mutt sobre mim e, quando o encontro, sua boca se retorce. Isto
aqui não era para ser uma corrida entre Milagre e Sweeter, mas agora vejo
que não há nenhuma maneira de fazer com que não seja.
Sweeter dispara. Milagre está apenas alguns segundos atrás quando lhe
dou mais rédea. Corremos ao longo da raia cercada, sua superfície listrada
com sombras azuis. O ar grita em meus ouvidos, frio e doloroso. As sombras
são tão pesadas que as duas potrancas as confundem com coisas reais e
erguem os joelhos, saltando obstáculos invisíveis.
Mutt olha para mim para conferir a distância entre nós, mas ele não
precisa se incomodar. Estamos bem junto dele. Ombro a ombro, as
potrancas surgem na pista. Em relação à velocidade, sei que as potras estão
equilibradas no páreo, mas também sei que apenas metade das corridas
depende da rapidez do cavalo. Estive nesta raia centenas de vezes em
centenas de cavalos, e sei onde a inclinação começa, sei onde o solo é macio
perto do cercado e sei onde os animais diminuem a velocidade e olham para
o trator estacionado perto da estrada. Também sei tudo o que é preciso
saber sobre Milagre, como ela gosta de correr sozinha se você não a
mantiver sob controle, quanto tenho de atiçá-la para manter sua força na
inclinação, como agitar meu chicote para manter sua atenção na corrida, e
não no trator.
Tudo o que Mutt sabe é como bater em sua montaria quando está
perdendo.
Eu sei que deveria manter Milagre para trás. Sei que deveria deixar

Mutt e Sweeter chegarem em primeiro.
Sinto os olhos dos compradores em mim.
Inclino-me para frente e sussurro algo para Milagre. Sua orelha tomba
para trás e bate em mim, e eu solto as rédeas.
Não é nem ao menos uma competição.
Milagre se afasta de Sweeter com um corpo de vantagem, dois, três
corpos, quatro, sem nem ao menos resfolegar. Mutt está encalhado em
algum lugar no chão molhado perto da cerca, conduzindo uma lerda e
desatenta Sweeter.
Eu me viro, em pé nos meus estribos, e saúdo Mutt Malvern com meu
chicote.
Sei que é um jogo muito, muito perigoso.
– Você não é jóquei? – me pergunta Holly enquanto levo Milagre de
volta para o haras.
– Apenas um apaixonado por cavalos – respondo.

ean Kendrick me disse para encontrá-lo no ponto dos penhascos
acima de Fell Cove, mas não há sinal dele quando chego lá.
Os penhascos aqui não são tão altos quanto os que cercam a praia e
nem tão brancos. A costa ao lado da enseada é um lugar esquisito, difícil de
chegar, e, uma vez que Dove e eu tivemos praticamente de nos arrastar pelo
caminho estreito e desigual até a praia, acho que não é o melhor lugar para
se cavalgar. A praia aqui é rochosa e irregular, e o mar a abraça de perto. A
maré está baixa e calma, e há só cinco metros de rochas antes que o mar
rebelde se arrebente contra elas. É o tipo de lugar que sempre fomos
alertados a evitar, porque entre uma onda e outra um cavalo poderia sair
deste oceano e nos levar para o fundo.
De repente, me pergunto se Sean Kendrick me mandou vir até aqui
para me pregar uma peça.
Antes que eu tivesse tempo de avaliar se ele parecia esse tipo de pessoa
e pensasse algo verdadeiramente ruim a seu respeito, ouço o barulho de
cascos. Não sei dizer de imediato de que direção vem, e então percebo que
vem de cima de mim. Ergo a cabeça para olhar.
Vejo um cavalo solitário, esticado ao máximo, galopando ao longo da
beirada do penhasco. Pedaços de relva saltam sob seus cascos. Reconheço-o
um instante antes de reconhecer o cavaleiro. É Sean Kendrick, firmemente
curvado sobre o dorso do garanhão, movendo-se junto com ele. À medida
que o sanguinário capall uisce vermelho passava por cima de minha cabeça,
vejo que Sean está cavalgando sem sela, a forma mais perigosa de todas.
Pele com pele, pulsação com pulsação, nada para proteger além da magia do
cavalo segurando o cavaleiro.
Não quero admirar, admitir que os dois juntos são completamente
diferente de tudo que já vi, mas não consigo evitar. O garanhão vermelho é

tão rápido que rouba minha respiração e faz meu coração acelerar de
emoção. Achei que os cavalos que vira no primeiro dia de treinamento
fossem rápidos, mas eu nunca tinha visto um cavalo se mover assim antes. E
Sean Kendrick sobre ele, sem sela. Ele é um idiota, com certeza, mas o
velho que conheci no açougue está certo: ele tem um dom. Conhece seus
cavalos, mas não é só isso.
Penso em seu rosto em minhas mãos quando o puxei para fora da água.
Imagino também como seria montar um cavalo daquele jeito. Uma
ponta de culpa me apunhala as costelas quando me lembro de Finn e seus
princípios, ou melhor, meus princípios, aqueles que começaram a
desmoronar quando descobri que nossa casa estava em jogo. Eu gostaria que
essa ideia fosse mais fácil para mim.
Voltamos para o topo do penhasco, Dove empinando um pouco.
Mesmo na subida, e depois de ter cavalgado bastante nos últimos dias, ela
ainda está animada para correr. Ouço a voz de Finn sussurrando em meu
ouvido enquanto ela chicoteia o rabo para os lados.
Assim que chegar ao topo da trilha do penhasco, eu sei o que vou pedir
a Sean.

Não há sinal de Kate Connolly quando chego ao topo do penhasco, mesmo
eu tendo esperado muito tempo – tempo que não posso desperdiçar.
Amarro a égua baia, desenho um círculo em volta dela e cuspo nele, e levo
Corr para dar uma volta. Se Kate não aparecer, ao menos terei feito com
que ele se exercite. Hoje ele está entusiasmado e ávido, tão feliz quanto eu
pelo passeio.
Galopar no topo deste penhasco requer coração de gaivota e nervos de
tubarão. Não é tão alto como os penhascos ao longo da praia, com certeza,

mas cair daqui mataria você do mesmo jeito. E para um capall uisce , o apelo
do mar é quase tão poderoso centenas de metros acima de seu nível quanto
a cem metros da praia. Mais de um homem cavalgou por aquele navio
naufragado, sobre a margem e acima das rochas, desconfiado do oceano.
Mas estes penhascos baixos foram o primeiro lugar no qual meu pai me
colocou sobre um dos capaill uisce . Não na praia onde ele aprendeu. Porque
sempre, sempre, meu pai temia mais o mar que as alturas.
Acredito que ambos são mortais, o que não é o mesmo que ter medo.
Quando o puxo para trás, Corr empina sobre a comprida grama do
penhasco, e vejo Kate Connolly em pé, ao lado de seu pequeno pônei baio.
O cabelo de Kate é da cor da grama do penhasco, avermelhada pelo outono,
e ela tem algumas sardas salpicadas pelo rosto, que, à primeira vista, a fazem
parecer muito mais jovem. É uma estranha magia: ela parece criança, mas
também mais velha e selvagem, como algo surgido do áspero solo desta ilha.
Ela está olhando para as minhas coisas – minha sela apoiada no cabeçote,
minha mochila, minha garrafa térmica, meus sinos –, onde eu os deixei, e,
por alguma razão, aquilo faz com que eu me sinta estranho, como quando a
pele é roçada pela areia ao vento.
Quando Kate me vê, franze a testa, ou ao menos estreita os olhos. Eu
não a conheço para poder dizer a diferença. Sinto aquela mesma
inquietação que tive na enseada. Mais uma vez, Fundamental vai para
debaixo da água, e eu com ele. Mas agora eu não estou me afogando; deixo
o ar sair.
Corr está animado com o aparecimento da égua; em vez de desacelerar
para um passeio, ele trota quase no lugar, tremendo em sua excitação. Não
me atrevo a me aproximar dela mais do que pede a polidez, então, a quase
cinco metros de distância, com Corr dançando debaixo de mim, digo,
elevando minha voz para ser ouvido sobre o vento:
– Do que devo chamá-la?
– O quê?
– O seu nome é Kate ou não? – pergunto.

– Poderia repetir?
– Está escrito “Kate” no quadro de Gratton, mas não foi assim que
Thomas Gratton a chamou.
– Puck – diz ela, com a voz azeda. – É um apelido. Algumas pessoas me
chamam assim. – Ela não me convida para ser uma delas. O vento suspira,
longa e lentamente, em torno de nossos pés, achatando a grama e
emaranhando a crina dos cavalos. Aqui em cima, por alguma razão, há
sempre um cheiro mais forte de peixe. Depois de um momento, ela
acrescenta: – Pensei que as regras diziam que você deve treinar na praia.
Eu não a entendo por um momento, então esclareço:
– No espaço de cento e quarenta metros da costa.
Algo desponta em seu rosto, e, por um momento, é como se eu não
estivesse ali. Naquele instante, são apenas ela e seus pensamentos. Olho
para o relógio.
– Onde está o outro cavalo? – pergunta ela. A égua tenta morder seu
cabelo, e Kate lhe dá um tapa, inconscientemente. O pônei joga a cabeça
para trás, fingindo desagrado. É um jogo de familiaridade, o que me deixa
mais interessado nelas.
– Um pouco mais afastado da praia.
Kate nos olha.
– Ele sempre faz isso?
Corr não parou de se mover. Seu pescoço também está arqueado.
Tenho certeza de que ele parece ridículo enquanto se enfeita para elas.
Garanhões uisce geralmente preferem cavalos da ilha como refeição, não
como companheiros, mas às vezes uma égua em especial chama a atenção
de um garanhão e ele banca o idiota.
– A égua baia está pior – digo.
Kate faz uma cara que eu acredito que possa ser de deboche.
– Fale dela.
– Ela é temperamental, arisca e apaixonada pelo oceano – respondo. Eu
a peguei durante uma tempestade, a água salgada estava deixando todas as

rédeas escorregadias demais para segurar, as nuvens transformavam o céu
em mar e vice-versa, e o frio enfraquecia meus dedos. Ela surgiu numa rede
atrás do barco enquanto eu lutava contra as ondas gigantescas ao longo da
costa. A crença local diz que um capall uisce pego na chuva quer ficar
sempre molhado, mas eu não acreditava nisso até ver com meus próprios
olhos.
– Parece algo ruim – diz Kate.
– E é.
– Então por que estou aqui?
Eu a analiso. É uma pergunta que tenho feito a mim mesmo desde o
primeiro momento em que a avistei na praia.
– Porque ela seria uma capall uisce numa corrida de capaill uisce .
Ela olha para além de mim, para a beirada do penhasco, e em seguida
suas sobrancelhas se juntam e sua boca se comprime. Há algo de
intransigente nela, uma fúria que associo à juventude.
– Não quero nem pensar nisso a menos que eu tenha certeza de que ela
pode ser uma aposta melhor que Dove – diz a garota. Não percebo que ela
quer que eu concorde ou discorde até ela ficar calada e olhando para mim
por um longo instante.
Não tenho certeza sobre o que ela espera que eu diga. Ela deve saber de
tudo isso, mas ainda assim digo:
– Não há nada mais veloz que um capall uisce . Ponto final. Não
importa que tipo de treinamento você esteja fazendo, círculos na
arrebentação, ou alguma coisa assim. Eles são mais fortes que sua égua, e
mais altos que ela, e sua égua corre na grama. Os capaill uisce correm no
sangue, Kate Connolly. Você não tem a menor chance.
Isso parece confirmar sua opinião, porque ela concorda com a cabeça,
uma vez, bruscamente.
– Ok. Então, você vai competir comigo agora, não vai?
Ela se expressa de maneira curiosa. O “não vai?” significa que terei de
discordar dela apenas para manter as coisas normais.

– Competir? Eu na égua, e você em Dove?
Kate concorda.
O vento nos envolve de novo, finalmente acalmando Corr quando ele
para de sentir seu cheiro. Posso sentir o cheiro da chuva na brisa, vindo de
muito longe.
– Eu não entendo o propósito.
Ela apenas me olha.
Lá no haras, ainda tenho dois lotes de cavalos para levar para galopar.
Tenho George Holly e pelo menos dois outros compradores bisbilhotando os
celeiros, procurando o cavalo que vai tornar famosos seus criadouros
continentais, ao menos famosos por um ano. Tenho muita coisa para fazer
em pouquíssimas horas, antes que a noite de outubro chegue. Não tenho
tempo para uma corrida tola, um capall uisce contra um pônei que mal
consegue encarar Corr.
– Não levaria mais tempo do que para eu experimentar a nova
montaria – diz Kate. – Então, se disser que não, é simplesmente porque a
ideia o ofende.
E é assim que acabamos competindo.
Monto a égua baia, deixando Corr no lugar dela com um pedaço de
coração de boi que estava em minha mochila, e vejo Kate ajustando seus
estribos na parte de trás de seu pônei, com uma perna cruzada sobre a sela.
É algo que você não pode fazer num cavalo no qual não confie, algo que não
sei se um dia vou conseguir fazer em um dos capaill uisce .
Sob mim, a égua baia se retorce, ansiosa. Ela é tão difícil de segurar
quanto a malhada, mas menos agressiva. Ela afogaria você, em vez de
devorá-lo.
– Você está pronto? – pergunta Kate, apesar de eu achar que essa é
uma pergunta que eu deveria estar fazendo. Acho que não há a menor
chance de ela querer a égua na qual estou. – Até aquele grande afloramento
ali em cima?
Faço que sim com a cabeça.

Penso comigo mesmo: Isto não precisa ser um completo desperdício . Se
eu conseguir fazer a égua baia correr de verdade em linha reta em cinco
minutos, então vou reconsiderar o que disse a Malvern. Odeio abrir mão de
um cavalo depois de ter investido tempo nele, e, no caso dela, dediquei
bastante tempo. Talvez eu esteja errado e ela esteja em forma para o
próximo ano. Corr levou anos para ficar pronto.
– Por acaso estamos esperando um sinal? – diz Kate, movendo-se pelo
campo.
A égua baia está logo atrás dela, rápida como um predador, e eu deixo
que ela tenha uma cabeça de vantagem até emparelharmos. Kate está
agarrada às crinas de Dove, o que a princípio penso que é para manter o
equilíbrio, até perceber que é para evitar que os fios batam em suas mãos e
em seu rosto, devido ao comprimento deles. Não preciso me preocupar com
isso em relação à égua baia; ela arrancou a maior parte de sua crina se
esfregando no batente da porta de sua cocheira, ansiando pelo mar.
Os dois cavalos galopam pela grama no penhasco, ambos velozes sobre
a superfície irregular.
A égua baia não está nem se esforçando de verdade. Eu a atiço na
tentativa de conseguir um pouco mais de velocidade, para me afastar de
Dove e acabar logo com isso. Mas a égua curva o corpo em torno de minha
perna, em vez de se afastar dela. Ela arranca em direção à beirada do
penhasco, se movendo mais para o lado que para frente.
E é claro que aquele pônei da ilha segue direto à nossa frente.
Levo vários longos segundos para decifrar minha égua baia outra vez,
mas, quando ela decide correr, alcança a outra com facilidade. O pônei
pardo de Kate galopa junto, alegremente. Suas orelhas estão eretas com a
alegria da corrida, o rabo balançando de vez em quando conforme salta e
arqueia com entusiasmo. Se minha égua não está focada, a dela também
não está.
Kate olha para mim, e eu atiço a égua baia. Sussurro para que ela
aumente a velocidade, e ela dispara na frente, obedecendo. Dove não tem a

menor chance.
Ouço um estrondo sobre o som do vento em meus ouvidos e me viro a
tempo de ver que Kate está atrás dela, batendo forte, com a palma da mão,
nas ancas de sua égua. Isso despertou a atenção de seu pônei, e Dove
arranca, dando tudo de si.
No entanto, não é o suficiente. Meu capall uisce tem mais velocidade
que qualquer pônei da ilha já sonhou em ter, e estamos nos afastando
rápido. Teremos trinta metros de distância entre nós no momento em que
chegarmos ao afloramento.
A égua baia tropeça, mas não perde o ritmo. Meus braços são
pulverizados por pedaços de lama. Olho por cima do ombro para ver onde
Kate está. Ela e seu pônei estão muito, muito atrás. Não há emoção nesta
corrida. Não há prazer numa vitória tão fácil. Acima de tudo, nenhuma
alegria numa vitória em que o cavalo não tem o menor interesse.
E então o vento nos lança o cheiro do mar. A égua baia fraqueja e, em
seguida, se retorce, jogando a cabeça para cima, com as narinas em brasa.
Sussurro para ela e traço letras em seu ombro, mas ela não para.
Ela quer a beirada do penhasco. O oceano está agitado com o vento, e
ela não tem como se dar conta disso. Tiro do bolso o ferro, que passo ao
longo de suas veias, mas nada adianta. Ela empina, pateando o ar, e, ao ver
que isso não me derruba, decide me levar com ela. Sua pele é quente e
arrepia onde minha perna a toca. Nada do que eu faça vai virar sua cabeça.
Diante de nós, vejo a grama do penhasco, e mais grama do penhasco e,
em seguida, além dela, nada mais que o céu. Puxo uma rédea para cima,
uma forma perigosa de parar um cavalo normal, já que você pode acabar
puxando o animal para cima de você, mas isso não faz diferença para a égua
baia. Ela tem a ponta da rédea presa solidamente entre os dentes e o mar
nos pulmões.
Seis metros até a beirada.
Tenho meio batimento cardíaco para tomar uma decisão.
Eu me jogo de cima dela, batendo forte o ombro no chão e rolando para

distribuir o impacto. Vejo a grama castanha, e em seguida o céu azul, e
então a grama castanha de novo. Apoiando meu peso no cotovelo, avisto a
égua a tempo de vê-la contrair os músculos e saltar.
Eu cambaleio até o mais próximo que ouso chegar da beirada do
penhasco. Não tenho certeza se aguento vê-la se espatifar nas rochas lá
embaixo, mas também posso deixar de olhar.
A égua baia parece não ter medo enquanto desliza pelo ar, como se não
fosse nada além de mais um salto ocasional sobre um obstáculo. E parece
menos equina, com seu corpo totalmente esticado.
Não posso olhar.
Ouço um estrondo terrível. Ela desaparece na arrebentação, e seu rabo
é a última coisa que vejo.
Suspiro e ponho as mãos nos bolsos. Não tenho como dizer se ela
sobreviveu ou não ao mergulho. De qualquer forma, minha sela se foi. Fico
feliz que não tenha sido a do meu pai, que está no celeiro, mas aquela era
uma das minhas favoritas; foi feita para mim há dois anos, um presente
extraordinário. Eu não praguejo, mas é por pouco.
Um hálito quente sopra em meu ombro. É Dove, com Kate em pé do
lado dela, o cabelo ruivo todo desprendido do rabo de cavalo. Dove está
exausta, mas não tanto quanto eu esperava.
Kate olha para o penhasco e franze a testa por um momento e, em
seguida, aponta. Sigo seu olhar até um dorso escuro brilhante nadando em
direção ao mar. Minha boca se retorce.
– Parece que você ganhou, Kate Connolly.
Ela dá um tapinha no lombo de Dove e diz:
– Pode me chamar de Puck.

olto para o haras e o encontro bagunçado. Metade dos cavalos
não saiu para se exercitar no horário. Mettle está na pastagem ao
lado do estábulo, mastigando e chupando repetidamente a parte
de cima da cerca. Edana recusou-se terminantemente a sair, e não havia
nem sinal de Mutt. Se ele está pensando que pode desafiar a mim e a Corr
nas corridas deste ano, ele está muito enganado.
Continuo sentindo que esqueci de fazer alguma coisa, até perceber que
estou desconcertado por ter saído com dois cavalos e retornado apenas com
um. Não tenho animal para desarrear, nem sela para retirar.
George Holly me encontra no momento em que estou caminhando de
volta para o haras, com um balde lambuzado de sangue na mão por
alimentar os capaill uisce . Ele está com uma boina vermelha berrante
prendendo seu cabelo e um sorriso estampado no rosto.
– Olá, sr. Kendrick – ele me cumprimenta calorosamente, caminhando
ao meu lado pelas pedras do pátio. – Você parece de bom humor.
– Eu?
– Bem, seu rosto parece capaz de deixar um sorriso escapar a qualquer
momento – diz Holly. Ele olha para a minha roupa; estou com pedaços da
ilha por todo o meu lado esquerdo.
Chuto a bomba-d’água com o joelho e começo a enxaguar o balde com
seu jato d’água.
– Perdi um cavalo hoje.
– Parece ter sido um descuido. O que aconteceu?
– Ela pulou de um penhasco.
– Um penhasco! Isso é normal?
No celeiro, Edana solta um lamento impaciente e ansioso pelo mar. A
esta hora, no ano passado, Mutt já estava pela praia atiçando a montaria

que lhe havia sido escolhida. Neste momento, o haras parece quieto sem
ele, como o azul do céu antes de uma tempestade. Penso no Festival de
Escorpião amanhã, como será o desfile dos cavaleiros deste ano com Mutt, a
maluca Kate Connolly e eu.
Desligo a bomba-d’água e olho para ele.
– Sr. Holly, nada neste mês vai ser normal.

ntão hoje é a noite do grande Festival de Escorpião.
Só fui ao festival uma vez. Mamãe nos levou num ano em que que
meu pai saíra de barco. Ele não aprovava nem o festival nem as
corridas de maneira geral. Dizia que uma coisa gerava vândalos e a outra
lhes dava duas pernas a mais do que eram capazes de usar. Pensávamos que
minha mãe também não aprovava. Mas naquele ano, quando ficou claro
que meu pai não voltaria aquela noite, minha mãe nos disse para pegarmos
chapéus e casacos e pediu a Gabe para ressuscitar o Morris com um chute (o
carro já era instável naquela época). Com um entusiasmo ilícito, nos
acomodamos: Gabe ocupou o cobiçado assento do passageiro, enquanto
Finn e eu lutávamos no banco traseiro. Minha mãe gritou conosco e
arrancou pela estradinha que levava a Skarmouth, inclinada sobre o volante
como se ele fosse um cavalo arisco.
E então Skarmouth! Por toda parte era possível ver os trajes típicos, os
percursionistas do festival e o lamento dos cantores. Minha mãe comprou
sinos, fitas e bolos de novembro, que deixaram minhas mãos grudentas por
dias. Por todo lado, barulho, barulho, barulho, até que Finn, que na época
era apenas um molequinho, começou a chorar. Dory Maud apareceu sabe-se
lá de onde com uma das apavorantes máscaras e a colocou em Finn.
Escondido atrás da máscara de monstro dentuço, ele ficou tão feroz quanto
minha mãe.
Ao longo dos anos em que convivi com minha mãe, ela estava sempre
limpando a baia de Dove, lavando panelas, pintando cerâmica ou subindo
no teto para martelar uma telha que se desprendera. Mas, por alguma razão,
quando penso nela agora, lembro-me daquela noite no festival, ela
dançando loucamente num círculo conosco, a boca cheia de dentes
reluzentes, o rosto estranho à luz do fogo, cantando as canções de

novembro.
E agora isso já faz anos, e é dia do festival, e podemos ir se quisermos,
porque ninguém está vivo para nos impedir. É um sentimento estranho e
vazio.
– Fiz o Morris pegar – diz Finn, entrando em casa. Ele me observa
lavando a louça com mais interesse do que a atividade merece. – Demorou
um pouco.
Acredito nele. Finn está imundo e preto.
– Você está parecendo o demônio – digo. – O que está fazendo?
Em vez de se dirigir ao banheiro para se limpar, Finn está pegando seu
casaco, que caiu no chão atrás da cadeira do meu pai, perto da lareira.
Ele esfrega a mão na testa, deixando ali um borrão preto.
– Estou com medo de desligar o Morris e ele não pegar mais.
– Você não pode deixá-lo ligado a noite toda.
Meu irmão coloca seu gorro de lã.
– Não posso acreditar que a mamãe dizia que você era a mais
inteligente.
– Não mesmo. Ela dizia isso de Gabe – falei. Quando ele põe a mão na
porta, me dou conta de onde ele pensa que está indo. – Espere aí, você acha
que vai ao festival?
Finn simplesmente vira e me olha.
– Gabe nem está aqui. Por que você acha que vamos? Tenho de
acordar cedo.
– Porque você precisa finalizar sua inscrição – diz Finn. – É o que diz
a sua ficha.
Claro que ele está certo. Sinto-me uma tola por não ter lembrado, e
então sinto como se meu estômago despencasse sobre meus pés. Antes, eu
tinha alguns metros de água do mar entre mim e qualquer um que pudesse
dizer algo sobre minha participação nas corridas. Agora, a única coisa entre
mim e o resto do mundo será alguns litros de cerveja.
Mas não tem outro jeito. E talvez, quem sabe, Gabe esteja lá. O

restante da ilha vai estar.
Sem relutar, abandono a louça e, relutantemente, encontro meu
surrado casaco verde e pego meu chapéu enquanto Finn abre a porta. Agora
que sei do que se trata, vejo que ele mal consegue se conter de tanta
empolgação. Finn nunca pareceu tão empolgado – ele simplesmente fica
mais rápido. Finns geralmente são criaturas lentas.
O Morris está sinistro sob o céu cor-de-rosa que vai escurecendo, as
mãos negras das nuvens se esticando e se espalhando pelo pôr do sol, mas o
rosto de Finn é um farol brilhante enquanto espera por mim no assento do
motorista. Penso nele atrás da temível máscara de Dory Maud e imagino-o
feliz como naquele dia, com seus dedos grudentos por dias.
– Espere – digo, e corro para dentro de novo para pegar algumas
moedinhas da coleção progressivamente menor na lata de biscoitos da
bancada. Vou dar um jeito de ganhar as moedas de volta. Mesmo que
tenhamos de comer apenas bolos de novembro esta semana. Corro de volta
para o carro e me acomodo. O assento consertado por Finn espeta minha
coxa. – Esse troço vai nos deixar na mão? Não quero ficar presa no meio de
um descampado à noite com um cavalo d’água à espreita.
– É só não ligar o aquecedor – diz Finn.
Não quero saber como ele fez o carro pegar. Da última vez, foi preciso
que dois homens o empurrassem enquanto Finn ficava ao volante.
Enquanto sacolejamos pela estrada, ele acrescenta:
– Aposto que Gabe está lá. Aposto que está no festival.
E com isso, eu sinto um arrepio ainda mais forte, porque a ideia de
confrontar Gabe sobre a ameaça de despejo de Malvern vem me
perseguindo. Se ele estiver no festival, não terá como me evitar.
– Ei!
Primeiro acho que foi Finn quem falou isso, apesar de não ser a voz
dele, e acho que Finn nunca disse “Ei!” em toda sua vida. Então vejo que
são os irmãos Carroll. Estão ambos mancando como dois pinguins no
crepúsculo, e Jonathan gritou para chamar nossa atenção.

Finn para o Morris e eu abro a janela.
– Vocês nos dão uma carona até a cidade? – pergunta Jonathan.
Em resposta, Finn puxa o freio de mão. Fico de certa forma surpresa por
sua coragem. Eu teria deixado os irmãos Carroll virem com a gente,
obviamente, mas, na minha cabeça, Finn é mais tímido que isso. Ele
continua crescendo enquanto não estou prestando atenção.
Tenho de sair para deixar os dois entrarem. Jonathan entra primeiro e
chuta o encosto do banco de Finn, que olha de modo afável pelo retrovisor.
Brian me agradece. Não sei se pela carona ou por ter saído para deixá-lo
entrar. O carro parece lotado, como se tivéssemos aumentado nosso número
em cinco em vez de dois.
Quando paramos de novo, Jonathan se inclina para frente e agarra as
laterais do banco do motorista para perguntar:
– Quando a fogueira será acesa, vocês sabem?
– Não sei – responde Finn.
Estremeço quando uma mão agarra o encosto de meu banco. Um
cheiro de peixe a acompanha. Ouço:
– Boa noite, Kate.
Olho para a mão; é bonita e benfeita, mesmo que cheire a peixe.
– Boa noite.
Jonathan sacode o banco de Finn.
– Acho que posso apostar este ano. Você sabe se é dezesseis ou
dezessete? A idade para apostar?
– Não sei – responde Finn.
– Bem – diz Jonathan, animado –, você é um inútil. Vi você arrumando
o estande de Dory Maud ontem de manhã, Puck. O que ela está vendendo
desta vez? Coisas.
Não sei por que ele fez a pergunta se iria respondê-la para si mesmo.
Brian se inclina sobre a janela e sobre mim, e sua voz chega um pouco
mais perto. É bonita e benfeita, como sua mão, um daqueles sotaques
antigos da ilha que soa bem ao falar sobre o tempo ou sobre quantos

albatrozes havia nas rochas outro dia. Quando eu era mais jovem,
costumava ficar na banheira, onde fazia eco, e tentava imitar esse sotaque. É
alguma coisa no r que é bem diferente do jeito que meus pais falavam.
– Ouvi dizer que você vai competir. É verdade?
Finn liga os faróis enquanto Jonathan continua conversando com ele.
A noite está chegando rápido sob a fina gaze de nuvens. Algo cheira a
queimado. Espero que não seja o Morris.
Digo:
– É verdade.
Ele não diz nada, apenas dá um assobio fraco e desafinado para indicar
surpresa ou admiração e em seguida se recosta em seu banco. Enquanto isso,
Jonathan Carroll mantém um diálogo consigo mesmo. Ele só precisa ver a
cabeça de Finn se inclinar levemente para se sentir encorajado a começar
de novo. Não sei nem se Finn está fazendo que sim com a cabeça; acho que
são apenas os buracos na estrada. Quando chegamos à parte alta do
caminho, até Jonathan fica em silêncio. Daqui, se vê o oceano por apenas
alguns instantes. Ele é cinzento e vasto sob um céu igualmente vasto, e,
mesmo a essa distância, vejo como as ondas rasgam umas às outras. Temos
bastante chuva e, frequentemente, tempestades, mas nosso clima não é de
extremos. Ainda assim, alguma coisa no branco se agitando contra as rochas
não é reconfortante.
– Ei! – diz Jonathan de novo. – Olhem! Olhem ali! Uma cabeça!
E, sem poder evitar, todos nós olhamos. A água se mexe, negra e depois
cinza-azulada e depois negra de novo, a espuma como um colarinho de
babados branco, e então, saindo da espuma, todos nós vemos. A cabeça de
um cavalo escuro emerge da água, a mandíbula bem aberta. E então, antes
que o mar o engula, vemos uma crina castanha irromper na superfície, e um
rápido vislumbre de um dorso marrom se curvando na água ao seu lado.
Então, tudo desaparece e sinto arrepios percorrendo meus braços.
– É uma boa noite para estar em terra firme – diz Brian Carroll. Não
levianamente, como seu irmão teria dito. Penso no cheiro de peixe que ele

trouxe e na forma direta como perguntou se eu competiria. Participar da
corrida poderia não parecer tão impossivelmente corajoso para alguém que
pesca no mar de novembro para ganhar a vida.
– Se eu fosse pegar um, pegaria o castanho – diz Jonathan. – Os ruivos
sempre ganham.
Brian diz:
– Você quer dizer que Sean Kendrick sempre ganha.
Jonathan se remexe em seu assento.
– Acho que os castanhos parecem mais rápidos.
– Eu acho – diz Brian – que Sean Kendrick faz com que pareçam mais
rápidos. Você o conhece, Kate?
Finn parece ter considerado o “Kate” divertido, provavelmente porque,
quando Brian o diz, dá impressão de que sou mais responsável do que
realmente sou.
– Sim – resmungo. Eu o encontrei duas vezes depois que competimos,
mas ele não demonstrou que queria falar comigo. Muito pelo contrário. Ele
não é do tipo que diz “Ei!”.
– Um tipo meio fresco – Jonathan diz.
– Só os cavalos d’água entendem mais de capaill uisce do que ele – a
voz de Brian Carroll é repleta de admiração. – Você poderia fazer amigos
piores que ele, Kate, agora mesmo. Mas suspeito que já saiba disso.
Tudo que sei é que Sean Kendrick cavalgou aquela égua baia e esperou
quase até chegar à beira do precipício para se salvar, e também que deve
haver defuntos por aí que falam mais que ele.
– Eu apostaria em você – diz Jonathan generosamente –, se não
estivesse apostando nele.
– Jonathan. – Este é Brian, em tom reprovador. Como se eu me
importasse em quem seu irmão estúpido está apostando.
– Ou em Ian Privett – admite Jonathan. – Ele está com aquele cavalo
cinza perverso do ano passado. – Jonathan faz uma batida, como a dos
tambores do festival, no encosto do assento de Finn e então se inclina para

frente para falar comigo. – Estão apostando em você no bar que nem loucos.
Se você vai aparecer no desfile de hoje. Gerry Old diz que você não vai à
praia há dias e que desistiu. Um fulano diz que você está morta, mas
obviamente isso não é verdade. Então o que você acha, Kate, você é uma
boa aposta?
Brian suspira ruidosamente.
Digo:
– Se fosse meu cavalo contra a sua boca, eu não teria a menor chance.
Brian e Finn riem. Jonathan me diz que sou feita de mijo. Acho que é
um elogio.
Olho pela janela. O céu está escurecendo rápido sob as listras de
nuvens. Há um brilho vermelho ao longe, onde fica Skarmouth, mas o
restante da ilha está negro e misterioso. Na escuridão, não há diferença
entre terra e mar. Lembro-me de cavalgar Dove no topo do penhasco hoje
pela manhã. O modo como o ar mordeu meu rosto e o cheiro do mar fez
meu coração bater mais forte. Sei que deveria estar aterrorizada pela noite
de hoje e de amanhã e do dia seguinte, e eu estou, mas também posso sentir
outra coisa: entusiasmo.

desfile dos cavaleiros será às onze – diz Brian Carroll. –
Suponho que você já saiba disso.
Não sabia, mas agora sei. Às onze parece estar muito, muito
longe, horas preenchidas com o barulho do festival.
– Preciso encontrar meu irmão – digo a Brian. – Meu outro irmão.
Na verdade, o que preciso encontrar é minha base. Estou aqui neste
festival de minha mãe, mas ela não está mais comigo. Finn e Jonathan
Carroll desapareceram na multidão, me deixando com Brian, cujos pulmões
conheço melhor que o restante dele, e um ninho de nervos movendo-se
como cobras em meu estômago.
Pensei que minha declaração fosse um adeus, mas Brian diz:
– Tudo bem. Onde você acha que ele vai estar?
Se eu soubesse a resposta, teria falado com ele três dias atrás. A verdade
é que ultimamente não sei nada sobre meu irmão mais velho. Brian estica o
pescoço para olhar sobre a multidão, rastreando rostos em busca de Gabe.
Estamos no início da rua principal de Skarmouth, e posso enxergar
claramente até o píer. Há pessoas tomando cada centímetro. O único
pedaço vazio é onde os tocadores de tambor do festival abrem caminho lá
longe, perto da água. Algo cheira muito bem, e meu estômago ronca.
Digo:
– Em algum lugar que não vou pensar em procurar, provavelmente.
Você tem outros irmãos?
– Irmãs – diz Brian. – Três.
– Onde elas estão hoje?
– No continente.
Ele diz isso sem esforço, e eu me pergunto se parou de doer ou se nunca
doeu.

– Certo, se elas estivessem aqui esta noite, onde estariam?
– Bem – diz Brian, pensativo e lento, difícil de ouvir com os gritos à
nossa volta –, no cais ou no bar. Vamos dar uma olhada?
De repente, sinto-me estranha tendo esta conversa com Brian Carroll.
Ele está suficientemente perto para ser ouvido, olhando para mim, e parece
enorme, arrumado, adulto com seus cachos e músculos de pescador, e não
estou acostumada com seu olhar fixo em mim. Parte de mim acha que ele
está apenas tirando sarro, eu uma criança, ele quase um homem, mas então
parte de mim vê minhas mãos à minha frente. São as mãos de minha mãe,
não as mãos de uma garotinha, e eu sei que tenho o rosto dela também. Eu
me pergunto quanto tempo vai levar até que eu me sinta uma adulta por
dentro, assim como pareço por fora.
– Tudo bem – concordo.
Saímos pela rua. Os largos ombros de Brian abrem caminho pelo povo.
Turistas, muitos deles, com expressões não familiares. Há algo
sutilmente diferente neles, como se fossem de uma espécie diferente. Seu
nariz é ligeiramente mais reto, os olhos ligeiramente mais próximos uns dos
outros, a boca mais estreita. São nossos parentes assim como Dove é parente
dos cavalos d’água
Nenhum sinal de Gabe. Mas como o encontraríamos no meio de toda
essa gente? Brian, porém, continua abrindo caminho em direção ao píer.
Há barulho, barulho, barulho. Tambores e gritos, risos e canto,
motocicletas e violinos.
Abrimos caminho até o cais, que está um pouco mais silencioso,
limitado por um lado pelo oceano, em vez de pessoas. A água se move
incansavelmente contra o muro, mais perto que o habitual, vindo em nossa
direção. Está quieto o suficiente para que eu ouça uma comoção vinda dos
penhascos logo acima da cidade.
– O que está acontecendo lá em cima? – pergunto. – A fogueira?
Brian estreita os olhos como se pudesse ver alguma coisa além das
construções grudadas na lateral da encosta.

– Isso, e os desejos do mar.
A única coisa que sei sobre os desejos do mar é que o padre
Mooneyham nos disse para não mexer com isso. Fui incapaz de obter mais
informações de minha mãe.
– Você já fez um desejo do mar?
Brian parece chocado.
– Sem dúvida, não.
– O que são?
– É um pedaço de papel no qual você escreve com carvão da fogueira.
Você escreve alguma coisa e o lança do penhasco.
– Não parece ruim.
– Uma maldição, Kate. São maldições. Você as escreve de trás para
frente e as lança ao mar.
Estou encantada e horrorizada. Imediatamente tento imaginar se há
alguma maldição que eu possa me ver lançando do penhasco. Penso numa
figura impressionante marcada pela luz da fogueira, murmurando alguma
coisa má para o oceano.
– Você é maluca, Kate Connolly – diz Brian. – Posso ver em seu rosto.
Não estou certa disso, mas, quando ergo os olhos, ele está me
estudando atentamente. De repente e cheia de terror, acho que ele vai me
beijar, e timidamente dou vários passos para trás até perceber que ele não se
moveu nem um centímetro. Ele ri para mim, um riso gentil e reconfortante.
Talvez no fim das contas eu seja louca.
– Vamos – diz Brian. – Vamos ver se ele está aqui.
Seguimos pelo cais. Aqui há barracas de comida, e evidentemente é
onde Brian achou que Gabe pudesse estar. Os vendedores estão animados,
num comércio intenso, e temos de desviar deles. Brian estica o pescoço para
procurar meu irmão, e mais uma vez me sinto estranha, nessa busca pessoal
com alguém que não é da minha família. O que ele tem a ver com isso, por
que vai passar o festival procurando Gabe em vez de se divertir?
– Você não precisa passar a noite fazendo isso – digo. – Você devia ir se

divertir. Continuo sozinha.
Brian olha para mim de cima. Acho que ele está ficando mais alto ao
longo da noite. Até encontrarmos Gabe, estará tão alto quanto a são
Columba na montanha, e terei de usar uma escada para conversar com ele.
– Eu estou me divertindo. Você quer que eu vá embora?
Não acredito nele. Já vi diversão, e tem a ver com vibrar, andar feliz por
aí e até mesmo ganhar um arranhão no joelho. Isso aqui é interessante, não
divertido.
– Eu me sinto culpada por prendê-lo aqui, só isso.
Brian engole em seco e olha para a multidão como se ainda estivesse
procurando Gabriel.
– A última das minhas irmãs foi para o continente no ano passado.
Normalmente, eu estaria aqui com ela.
– Gabe diz que vai para lá também.
Isso escapou antes que eu pudesse pensar no assunto e, na mesma hora,
não consigo imaginar por que disse aquilo. Por que mencionei a Brian
Carroll algo que nem discuti com Finn? A conversa mais detalhada que tive
com Brian Carroll em toda minha vida envolvia cuspir em sua futura cova, e
agora eu estava lhe contando todos os segredos da família.
– É o que ele diz – responde Brian.
Quero gritar: “Ele não disse nada até a hora em que foi obrigado a
dizer”, mas isso realmente seria um segredo familiar, então apenas fecho a
boca. Gostaria de não ter vindo. Gostaria de estar em casa. Gostaria que
Brian Carroll não estivesse me olhando de sua altura cada vez maior. Cruzo
os braços para esconder minhas mãos. Quando encontrar Gabe, vou dar um
soco no olho dele.
Brian Carroll parece não reparar na minha agonia. Ele acrescenta:
– Acho que ele disse que iria com Tommy Falk e Beech Gratton.
Deixo escapar um pequeno ruído de raiva.
– Claro! Todo mundo sabe! Todo mundo vai embora. Você também
está indo para o continente?

– Não – diz Brian, bem sério. – O meu tataravô ajudou a construir este
píer, e eu não vou deixá-lo.
Ele fala como se fosse casado com o píer, o que subitamente me deixa
exausta e zangada.
– Ei! – diz Brian, como se finalmente tivesse descoberto minha
irritação. – Vamos procurar no bar. É para lá que eu estava indo. Ele pode
estar por ali. É ali que o pessoal se esconde às vezes. Se não conseguirmos
nada, pelo menos saímos do frio por um instante.
Abrimos caminho de volta até o Black-Eyed Girl, uma construção de
fachada verde com as portas abertas. Sempre me pareceu distinto demais
para ser um bar, com madeira envernizada, couro quadriculado e ferragens
douradas. É impecavelmente limpo e, na maior parte do dia, incrivelmente
vazio. Então, à noite, quando os marinheiros se cansam de estar sóbrios, o
bar fica cheio e se torna barulhento a ponto de derramar gente para a rua e
vomitá-la no cais.
Eu nunca tinha entrado nessa segunda versão do bar até hoje. É um
tipo de lotação completamente diferente da lotação da rua. Uma
claustrofobia densa, enfumaçada e quente demais, cheia de gritos e risadas,
e, por incrível que pareça, meu nome está no meio das conversas.
– Ei, esta é a nossa Kate Connolly? – pergunta um homem ao lado da
porta. A menção ao meu nome faz com que algumas outras cabeças se virem
em nossa direção. Parece que todos têm mais de um par de olhos.
– Kate Connolly! – grita outro homem alegremente do bar. Ele afasta
um banco para chegar mais perto. Ruivo e de peito largo, cheira a alho e
cerveja. – A galinha no meio dos galos!
Brian pega meu braço de forma nada gentil e, com a outra mão, aponta
para os fundos do bar. Então, se vira para o homem e diz:
– Com certeza. E então, John, o que você acha da maré que está vindo?
Sinal de tempestade?
Sei reconhecer uma tentativa de resgate quando vejo uma, então vou
adentrando mais e mais no bar, me afastando deles. Procuro nos fundos, e

ali está Gabe, na mesa de canto. Ele está inclinado para frente, com uma
bebida diante de si, longos dedos espalhados como aranha sobre a mesa
enquanto expõe algum argumento. Quando ele ri, mesmo sem ouvi-lo, sua
expressão me parece mais aliviada e dura do que me lembro. A raiva
percorre meu corpo como uma cobra.
Brian ainda está me dando cobertura, então atravesso a fumaça e paro
ao lado da cadeira de Gabe, na altura de seu ombro. Espero até ele me
notar; Tommy Falk – maldito coconspirador – do outro lado da mesa já me
vê e sorri belamente. Mas Gabe continua gesticulando.
– Gabe – digo. Para minha irritação, me sinto como uma criança ao
lado do braço da cadeira do pai, interrompendo a leitura do jornal.
Ele se vira. Não consigo dizer se sua expressão é de culpa. Agora que
olho bem, acho que não, nem um pouco. Ele diz apenas:
– Ah, Puck.
– Sim, ah, Puck.
– Não acredito que você vai participar das corridas – Tommy se
intromete. Tem dois copos vazios à sua frente, então todas as palavras se
tornam uma única palavra dita sem esforço, sem grandes pausas, apenas
sons de s entre elas. – Eu vi você lá naquele primeiro dia. A primeira garota
da história da competição. Um brinde.
– Não a encoraje – diz Gabe, mas de forma alegre. Seu hálito cheira a
álcool.
– Você está bêbado – digo.
Gabe olha de relance para Tommy e depois para mim.
– Não seja boba, Kate. É só uma dose.
– O papai não queria que você bebesse. Você disse a ele que não
beberia!
– Você está sendo histérica.
Mas não me sinto histérica.
– Preciso falar com você.
– Certo – Gabe não se mexe. Pelo modo como está sentado, dá para ver

que está bastante consciente da presença de Tommy e está conduzindo a
conversa de modo que pareça inteligente.
Eu me inclino até ele para dizer:
– Em particular .
O que mais me machuca é a expressão em seu rosto. Uma sobrancelha
erguida, como se ainda achasse que estou exagerando.
Ele levanta a palma da mão em direção ao teto.
– Não há nenhum lugar para conversar em particular aqui. Não dá para
esperar?
Ponho a mão em seu braço e agarro sua camisa.
– Não. Não mais. Preciso conversar agora.
– Acho que estou indo, Tommy. Volto já.
– Mostre a ele, Puck! – diz Tommy, com um soco no ar. Naquele
momento, desprezo Tommy e cada centímetro de sua beleza. Nem ao menos
olho para ele. Em vez disso, conduzo Gabe em direção à porta dos fundos do
bar. É um banheiro minúsculo que cheira um pouco a vômito recente. Bato
a porta quando ele entra. Queria ter tido um instante para organizar meus
pensamentos, para lembrar exatamente como queria confrontá-lo, mas
pareço ter deixado tudo o que queria dizer do lado de fora do banheiro.
– Que aconchegante – diz Gabe. Um espelho do tamanho de um livro
está pendurado sobre a pia, e fico contente por poder me ver nele.
– Onde você tem andado?
Ele me olha como se a pergunta fosse ridícula.
– Trabalhando.
– Trabalhando? O tempo todo? A noite toda?
Gabe se apoia em outro pé e olha para o teto.
– Não estive fora a noite toda. É sobre isso que você quer falar?
Não era só sobre aquilo que eu estava falando, mas não lembro o que
era exatamente que eu iria gritar para ele. Meus pensamentos estão
espalhados e esmigalhados sob os meus pés. Só consigo me lembrar
claramente do meu desejo de dar um soco bem no olho dele, até que

subitamente me lembro da coisa mais importante.
– Benjamin Malvern foi em casa esta semana.
– Hum.
– Hum! Ele disse que vai tomar a casa!
– Ah.
– Ah! Por que você não nos contou isso? – pergunto. Odeio o fato de
ainda estar segurando seu braço. Mas como saber que ele não vai partir se
meus dedos não estiverem nele?
– Como eu poderia? – responde Gabe. Ele está indiferente. – Finn
ficaria louco e se preocuparia até a morte, e você ficaria histérica.
– Não ficaria, não – retruco. Não sei dizer ao certo se estou histérica
agora. Tudo o que eu disse me parece lógico, mas sinto minha voz
ligeiramente descontrolada.
– Dá para ver.
– Nós merecíamos ter sido avisados, Gabriel!
– De que adiantaria? Vocês dois não ganhariam mais dinheiro. O que
você acha que tenho feito todas estas noites? Estou fazendo o melhor que
posso.
– E depois você vai partir.
Meu irmão me olha e seu sorriso desapareceu. O que aparece no lugar
não é infelicidade. Apenas nenhuma expressão, olhos quase fechados contra
um vento que não sinto. Não consigo apelar aos sentimentos deste Gabe,
porque não sei dizer se ele tem algum sentimento.
– A gente faz o que pode. Fiz o meu melhor.
– Não é o bastante – digo.
Ele tira a manga da camisa de meus dedos e abre a porta. O som e o
cheiro do bar adentram o banheiro sem ar.
– Que pena. É tudo que tenho. – Gabe fecha a porta atrás de si. Engulo
minha tristeza com toda a força. Ela só chega até metade da minha
garganta.
Tudo depende de mim. É isso no fim das contas.

Passo longos minutos no banheiro depois que ele se vai, com a testa
apoiada no batente da porta. Não posso sair imediatamente, porque Tommy
Falk vai sorrir para mim e fazer alguma piada estúpida, e vou imediatamente
começar a chorar em público, e eu não vou fazer isso. Sei que Brian Carroll
provavelmente ainda está me esperando na parte da frente do bar, e
lamento por isso, mas não o suficiente para sair.
Depois de um tempo, respiro fundo. Acho que pensei que de alguma
forma eu poderia convencer Gabe a ficar. Que de alguma forma, com tudo
isso, ele mudaria de ideia. Mas agora parece incontestável. A sensação é a
de que ele já pisou no barco.
Saio do banheiro e descubro que há uma porta dos fundos a poucos
metros de distância. Duas grandes decisões lutam dentro de mim por um
momento: ir até a entrada do bar, passando por Gabe e Tommy Falk e os
homens inquisidores até onde Brian Carroll talvez ainda esteja esperando
por mim. Ou sair discretamente pela porta dos fundos que dá na viela para
lamber minhas feridas e esperar até o desfile dos cavaleiros. Na verdade, só
quero ir para casa, entrar debaixo das cobertas e pôr o travesseiro sobre a
cabeça até dezembro ou março.
Poderia devorar minha própria vergonha, de tão espessa que ela é, mas
saio pela porta dos fundos e deixo Brian Carroll para trás.
O vento sopra violentamente pela estreita viela de pedras nos fundos
do bar, e, enquanto volto para a rua, penso irritada em chocolate quente e
na minha casa, que não se parece mais com um lar. Vejo que agora há um
mar ainda mais denso de gente nas ruas, e não me sinto nada motivada a me
unir à multidão neste momento.
Então ouço “Puck!”, e é a voz de Finn.
Ele agarra meu cotovelo, instável, e por um breve e incerto momento
penso: Finn está bêbado , porque agora posso acreditar em qualquer coisa
sobre meus irmãos. Mas então vejo que ele foi apenas empurrado pela
multidão. Finn encontra minha mão esquerda, abre meus dedos, e põe um
bolo de novembro na palma da minha mão. Mel e manteiga escorrem,

riachos da cobertura cremosa unindo-se ao mel na cova da minha mão.
Aquilo implora para ser lambido. Alguém por perto grita como um cavalo
d’água. Meu coração dispara como o de um coelho.
Deixo o bolo pingar e olho nos olhos de Finn. Ele é um estranho, um
demônio negro com um sinistro sorriso branco. Levo um instante para
reconhecê-lo sob o carvão e o giz riscados em sua face. Apenas seus lábios
estão rosados, onde a cobertura do bolo de novembro limpou as marcas. Ele
carrega nas costas uma daquelas lanças falsas feitas de madeira, presa com
uma cinta de couro.
– Como conseguiu isso? – tenho de gritar para me fazer ouvir em meio à
multidão.
Finn agarra minha outra mão e põe alguma coisa nela. Quando vou
abrir o punho para ver o que é, ele empurra meu braço para mais perto de
meu corpo, protegendo-o da vista de todos. Meus olhos piscam ao ver o
maço de dinheiro na palma da minha mão.
Finn se inclina em minha direção. Seu hálito é doce como néctar; ele
comeu mais de um bolo.
– Vendi o Morris.
Rapidamente escondo o dinheiro.
– Quem pagou tanto por ele?
– Uma turista boba que achou o carro uma graça.
Ele sorri para mim, os dentes tortos e brilhantes no rosto coberto de
carvão, os cabelos desgrenhados, e sinto meu rosto amolecer num sorriso.
– Provavelmente achou você uma graça.
O sorriso de Finn desaparece. Uma das regras do código de Finn é que
você não pode dizer nada a respeito de ele ser atraente para o sexo oposto.
Não tenho certeza de qual estatuto rege isso exatamente, mas está
intimamente relacionado àquele que não permite que você agradeça por
algo que ele fizer. Elogios e Finn, por algum motivo, não combinam.
– Deixa para lá – digo. – Bom trabalho.
– A única coisa – diz Finn, lambendo a mão – é que agora não sei como

vamos voltar para casa.
– Se eu sobreviver ao desfile dos cavaleiros – respondo –, voaremos
para casa.

s tambores do festival batem em ritmo descompassado enquanto
abro caminho entre a multidão que lota as ruas de Skarmouth. O
ar gelado fere quando respiro; o vento traz todo tipo de odor
estranho. Comida que só é feita durante a temporada de corridas. Perfumes
que só as mulheres do continente usam. Piche quente, lixo queimado,
cerveja derramada nas pedras. Esta Skarmouth é crua e faminta,
batalhadora e irreconhecível. Tudo o que as corridas me fazem sentir por
dentro está sangrando pelas fendas da rua esta noite.
Na minha frente, pessoas abrem caminho em meio aos turistas, que
estão lentos, devido à quantidade de bebida ingerida, e barulhentos, devido
ao entusiasmo. No entanto, se você se comporta de determinada forma, até
os bêbados lhe darão passagem. Deslizo pela multidão em direção ao
açougue, com os olhos bem abertos. Estou procurando Mutt Malvern. É
melhor ver do que ser visto, até eu saber qual é o plano dele para hoje.
Sean Kendrick . Ouço meu nome, sussurrado, depois gritado, mas
continuo andando. Muitos reconhecerão meu rosto hoje.
Conforme ando, observo as pessoas na cidade que se ergue debaixo
delas. As pedras são douradas e vermelhas sob a luz dos postes, as sombras
estão negras, marrons e de um profundo azul de morte, todas as cores do
oceano em novembro. Bicicletas enfileiram-se contra as paredes como se
uma onda as tivesse lançado ali e recuado. Garotas passam por mim, seus
passos tilintando com os sinos amarrados em seus tornozelos. A luz da
fogueira de uma das ruas laterais cintila, as chamas açoitando de um barril,
garotos reunidos ao seu redor. Olho para Skarmouth e ela me olha de volta,
com os olhos selvagens.
Numa das paredes, há um anúncio do Haras
Malvern. TETRACAMPEÃO DAS CORRIDAS DE ESCORPIÃO, diz o

cartaz. GARANTA UM PEDAÇO DAS CORRIDAS – LEILÃO DE
POTROS, QUINTA-FEIRA, ÀS 7 DA MANHÃ.
Tudo nesse anúncio tem a ver comigo, mas meu nome não aparece ali.
Tenho de parar para os tocadores de tambor à medida que chegam de
uma rua lateral que conduz até a água. Há catorze deles, movidos mais pelo
entusiasmo do que pelo talento. Todos vestem preto. Os tambores do
festival são tão grandes quanto a envergadura de meus braços, a parte de
cima feita de corda e couro salpicados de sangue. Os tambores vibram,
substituindo minha pulsação pela deles. Atrás dos tocadores há uma mulher
que veste cabeça de cavalo e túnica vermelha cor de sangue. Uma cauda se
enrola atrás dela, e é difícil dizer se é corda, pele de animal ou uma cauda de
verdade. Seus pés estão descalços, como manda a tradição. É impossível
dizer quem é ela.
Os tambores são socados, e nos encolhemos contra as paredes para
deixá-los passar. Alguns turistas batem palmas. Os nativos batem os pés no
chão. A deusa égua examina a multidão lentamente, a cabeça de cavalo
empalhado deixando seu corpo pequeno. Vejo alguém fazer o sinal da cruz
diante deles e depois repetir o gesto, agora atrás. No meio da rua, a mulher
com cabeça de cavalo ergue a mão, e mil pedregulhos minúsculos chovem
pela rua. Conforme a tradição, ela lançará uma única concha ao longo da
noite, e quem pegá-la terá seu desejo realizado.
Agora não há nada além de areia em suas mãos.
Uma noite, muitos anos atrás, enquanto eu estava ao lado de meu pai,
ela me olhou e lançou um punhado de areia e pedregulhos, e a concha
rodou no chão à minha frente. Eu disparei para longe do meu pai para pegar
a concha. Meu desejo estava feito antes que meus dedos se enrolassem em
torno dela.
Viro o rosto para o lado, esperando a mulher passar, esperando a
lembrança passar.
Ouço um suspiro, humano e equino ao mesmo tempo, e viro a cabeça.
A deusa égua está bem na minha frente, a poucos centímetros de distância.

A grande e velha cabeça cinzenta está virada de modo que o olho esquerdo
me observa, como Corr teria feito com seu pobre e único olho. Só que o
olho deste cavalo foi substituído por um pedaço brilhante de ardósia, polido
de modo que pisque e chore como a égua malhada. De perto, vejo linhas de
um vermelho mais escuro na túnica da mulher onde o tecido amassou e
pegou mais sangue nas dobras. A vestimenta é feita de um jeito horrível:
mesmo de perto, é difícil dizer onde a mulher termina e a falsa cabeça tem
início, e é impossível determinar como ela consegue enxergar. Imagino
sentir um hálito quente em meu rosto, saindo das narinas. Meu coração
dispara.
Sou menino outra vez e estou observando sua mão aberta, soltando
pedregulhos e areia. A ilha, a praia, a vida se estende diante de mim.
A deusa égua toma meu queixo em sua mão. O olho de xisto me encara
fixamente. Os pelos ao redor dele estão embaraçados de tão velhos, já se
passou muito tempo desde a morte.
– Sean Kendrick – diz ela, e a voz é rouca, quase humana. Ouço o mar
nela. – Realizou seu desejo?
Não consigo desviar o olhar.
– Sim. Muitas e muitas vezes.
O xisto brilha e pisca.
A voz me pega de surpresa de novo.
– Isso lhe trouxe felicidade?
Não é uma pergunta que normalmente eu levaria em conta. Não sou
infeliz. Felicidade não é algo que esta ilha produza facilmente; a terra é
muito rochosa e o sol escasso demais para a felicidade florescer.
– O suficiente.
Seus dedos pressionam forte, forte, forte minha mandíbula. Sinto cheiro
de sangue, e vejo agora que sangue fresco, empapado na camisa, pingou em
suas mãos.
– O oceano sabe seu nome, Sean Kendrick – diz ela. – Faça outro
desejo.

Ela estica o braço e passa o dorso da mão por minhas maçãs do rosto.
Então a deusa égua se vira para seguir os tocadores de tambor, apenas
uma mulher numa cabeça de cavalo morto. Mas há algo oco dentro de mim,
e, pela primeira vez, vencer não me parece o bastante.
Não consigo tirar a deusa égua da cabeça: o timbre de sua voz, a
sensação imaginada de seu hálito em minha pele. Minha garganta queima
como se eu tivesse engolido água do mar. Eu nado agora pela multidão, de
meu encontro com a deusa égua de volta para o mundo real. Prendo-me ao
chão com a lembrança de meu afazer diário no açougue de Gratton. Preciso
pagar a conta e fazer outro pedido para os cavalos d’água. Mas minha mente
continua voltando para a mulher com cabeça de cavalo, tentando decidir a
quem poderiam pertencer aquelas mãos. Se eu conseguir localizá-la,
preencherei o vazio em mim. Então, isso se torna apenas mais uma
brincadeira se eu souber de quem era aquela voz áspera dentro do crânio
morto. Acho que pode ser Peg Gratton, acostumada a ter sangue nas mãos e
não mais alta do que eu, mesmo usando a cabeça de cavalo.
Entro no açougue. Como sempre, é o lugar mais limpo de Skarmouth, e
a iluminação é de um branco claro como a luz do dia. Dois pássaros
conseguiram entrar no prédio, e, conforme eu entro, as luzes parecem
oscilar e escurecer à medida que as asas deles batem na frente das lâmpadas.
Não vejo Peg Gratton atrás do balcão, então pode ter sido ela na
vestimenta de cavalo. Eu me sinto mais leve. Menos intimado .
Apoio-me no balcão, e, mal-humorado, Beech Gratton anota meu
pedido. Não é de mim que ele se ressente, mas do trabalho, que o mantém
ali quando ele deseja estar no festival.
– Seu rosto está destruído – Beech resmunga com admiração, e eu me
lembro da mulher manchando meu rosto de sangue. – Você parece o
demônio.
Não respondo.
– Sairei daqui a vinte minutos – ele diz, mesmo que eu não tenha
perguntado.

– Trinta! – Peg Gratton grita dos fundos.
Sinto gosto de sangue na boca. Um olho feito de xisto pisca para mim.
Beech anota meu pedido, e, enquanto isso, olho para o quadro atrás do
balcão. Há o meu nome e o de Corr, e ao lado deles estão nossas chances
atuais, segundo as apostas: 1-5. Abaixo dos nossos nomes estão também os
de uma série de novos cavaleiros do continente que encontraram montaria
nos primeiros dias de treinamento. Eles vão lotar a praia, inaptos e
desproporcionalmente corajosos. Passo os olhos pela lista para encontrar
Kate Connolly; vejo primeiro o nome de seu pônei, e então o seu. Suas
chances são 45-1. Eu me pergunto quanto disso se deve a seu pônei e
quanto a seu gênero.
Corro os olhos pela lista até encontrar o nome de Mutt. Ali está, e o de
seu cavalo ao lado. Na verdade, o nome ao lado do seu deveria ser Edana, o
cavalo que ele não toca há dois dias, a égua malhada de branco. O cavalo
sobre o qual eu disse para seu pai colocá-lo.
Mas não é o nome de Edana.
A palavra estampada ao lado de Mutt é Skata . Um bom nome para um
cavalo, curto e grosso. Skata é um nome local para corvo. Um pássaro
conhecido pela inteligência, pela afeição por coisas brilhantes, pela
coloração preta e branca. Há apenas uma coisa naquela praia que é preta e
branca.
Skata é a égua malhada.

ncontro com ele perto de uma das fogueiras.
As chamas se esforçam para chegar bem alto no céu negro,
entrelaçadas com a noite. Sinto o gosto da fumaça em minha língua.
– Matthew Malvern – digo, e o som sai de minha boca como um
rosnado, um chamado para a batalha, não mais amigável que um dos gritos
de Corr do outro lado da areia. Mutt é um gigante, uma criatura mítica
delineada em preto diante da fogueira, carvão numa das mãos e um pedaço
de papel na outra: um desejo do mar. Se ele tem um rosto, eu não consigo
enxergar. Grito:
– É um desejo de morte isso que você escreveu aí?
Mutt vira o papel por tempo suficiente apenas para que eu veja meu
nome nele, escrito de trás para frente. Então, o lança no precipício. O papel
desaparece na escuridão.
– Aquela égua vai matar você.
Mutt caminha orgulhoso em minha direção. Sua respiração é escura, o
submundo do mar.
– E desde quando, Sean Kendrick, você se importa com a minha
segurança?
Ele chega mais e mais perto, até que nossa sombra se torne uma só. Eu
não recuo. Se ele quiser brigar hoje, golpearei de volta. A tempestade já está
dentro de mim, e posso ver Fundamental submergir de novo, tão claramente
como quando aconteceu.
– Ela pode matar não só você, Mutt – digo. – E ninguém merece morrer
por sua causa.
O fogo está quente em minha pele.
– Sei por que você não me quer cavalgando nela – Mutt ri. – Você sabe
que ela é mais rápida que ele.

Por tantos anos tomei todas as precauções para manter Mutt vivo para
seu pai: fiz com que montasse o cavalo mais seguro que tinha, treinei
loucamente aquele animal para que se tornasse imune aos chamados do
oceano, observei seu comportamento durante o treinamento para garantir
que ninguém mais o perturbasse. Tenho duas costelas quebradas que
deveriam ser dele.
Agora ele se põe tão longe de minha habilidade de protegê-lo que é
quase um alívio. Na égua malhada, não posso fazer nada por ele.
Levanto as mãos.
– Faça o que quiser. Eu desisto.
Vejo vultos com o canto dos olhos; estão aqui para nos levar para o
desfile dos cavaleiros. A noite está quase no fim, depois o treinamento
começa de verdade. Agora é tão difícil imaginar um dia depois da noite de
hoje, parece que ela poderia continuar eternamente.
– Sim – diz Mutt –, você já era.

desfile dos cavaleiros não é de fato um desfile.
Há um homem gritando para a multidão:
– Cavaleiros? Cavaleiros! Para a rocha!
Evidentemente ele quer que todos nós o sigamos. Fico esperando até a
coisa toda ficar mais organizada, mas nunca fica. O único instante em que
isso fica ligeiramente parecido com um desfile é quando avisto alguns dos
cavaleiros seguindo na mesma direção, até o topo do penhasco. A multidão
se abre para dar passagem, e eu me apresso atrás deles, Finn se arrasta o
melhor que pode. No entanto, ninguém se mexe para me dar passagem, e
então eu fico diante de um bocado de ombros rebeldes e com a caixa
torácica cheia de cotovelos.
Agora está mais sombrio que escuro, e a única luz vem das duas
fogueiras, uma queimando alta e furiosa, a outra menor, cuspindo fogo. Não
tenho certeza de onde devo ficar.
– Kate Connolly – alguém diz de modo nada agradável. Quando viro a
cabeça, não vejo nada além de olhos que se afastam e sobrancelhas bem
juntas. É estranho quando falam de você e não com você.
Uma mão agarra meu braço e eu me viro, arrepiada, até ver que é
Elizabeth, irmã de Dory Maud. Seus cabelos são claros, mesmo nesta luz
fraca, e ela está usando um vestido vermelho da cor do carro do padre
Mooneyham. Está de cara feia. Seus lábios também combinam com o carro
do padre Mooneyham. Estou meio surpresa por vê-la aqui, nunca a vi fora
do estande ou da Fathom & Sons, e pensei que ela provavelmente
derreteria ou se desintegraria se passasse para o mundo real. Cada uma das
irmãs tem seu mundo: o de Dory Maud é o mais amplo, incluindo toda a
ilha, o de Elizabeth é o prédio e a loja, e o de Annie é o menor dos três,
apenas o segundo andar da Fathom & Sons.

– Você está perdida, não está? Dory Maud disse que você não se
perderia, mas eu sabia que sim. – A expressão de Elizabeth é de puro
desdém.
– Perdida quer dizer que sei onde estou indo – respondo rápido. –
Nunca participei do desfile antes.
– Não me diga – diz Elizabeth. – É por aqui. Finn, menino, está
comendo mosquito? Feche a boca e venha.
Seus dedos são garras em meu braço conforme ela me guia para o topo
do penhasco, bem acima da praia onde será a corrida. Finn trota atrás de
nós, inquieto como um cãozinho.
– Onde está Dory? – grito.
– Apostando – rosna Elizabeth. – É claro. Enquanto eu trabalho.
Não sei bem como me guiar até o topo do penhasco vale como
trabalho, mas me sinto grata por isso. Também não posso imaginar Dory
Maud apostando nos cavalos. Com certeza não de modo que justifique o “é
claro” rosnado por Elizabeth. Eu me esforço ao máximo para imaginar Dory
Maud no açougue fazendo uma aposta, mas o melhor que consigo é
imaginá-la no Black-Eyed Girl. Na minha imaginação, ela lida com isso
melhor que eu, andando de maneira desafiadora, como um homem, até o
bar.
Elizabeth estala um dedo para chamar minha atenção e me empurra
confiante pela multidão, em direção ao topo do penhasco. Apenas depois de
vários longos minutos, ela para tentando se situar. Mas agora sei que
estamos no lugar certo, porque vejo um ponto imóvel na multidão
fervilhante: Sean Kendrick. Sua roupa é escura, sua expressão ainda mais
sombria, e ele olha para a noite escura em direção ao mar. Está
inequivocamente esperando.
– Ali – digo.
– Não – diz Elizabeth, seguindo meu olhar. – Não é para lá que você
vai. Acho que a corrida já é bastante perigosa sem aquilo, não acha? Por
aqui.

Sean vira a cabeça bem no momento em que Elizabeth me empurra na
direção oposta, e nossos olhos se encontram. Há algo de impetuoso e
desprotegido em sua expressão, e tenho de baixar o olhar para que Elizabeth
não acabe me arrastando.
Finn passa com pressa ao meu lado, as mãos enfiadas nos bolsos para
protegê-las do frio. Ele lança um olhar triste para Elizabeth. Eu me viro e
sussurro para ele:
– Parece que isto aqui é a corrida, pela velocidade em que ela está indo.
Finn não sorri, mas seus olhos sim. Então, Elizabeth se detém
bruscamente.
– Aqui – diz ela.
Chegamos a uma terceira fogueira, e diante dela há uma rocha grande e
achatada, com respingos e manchas marrons. Levo um instante para
entender o que estou vendo. É sangue velho, muito velho, espalhado pela
rocha toda. O rosto de Finn está estranho. Há uma multidão em torno da
rocha, esperando, como faz Sean, e já reconheço alguns dos cavaleiros a
uma curta distância: dr. Halsal, Tommy Falk, Mutt Malvern. Ian Privett.
Alguns estão conversando e rindo uns com os outros – já fizeram isso antes,
e há um sentimento de familiaridade. De repente eu me sinto mal.
– De onde vem o sangue? – sussurro para Elizabeth.
– Cãezinhos – diz Elizabeth. Ela surpreende Ian Privett a olhando e lhe
mostra os dentes de um jeito que não parece um sorriso. Pegando-me pelos
dois braços, ela me posiciona bem à sua frente, como um escudo. – É sangue
dos cavaleiros. Você vai subir e colocar uma gota do seu ali, para mostrar
que vai competir.
Olho fixamente para a rocha. É sangue demais para ser apenas uma
gota de cada cavaleiro ao longo dos anos.
Agora um homem subiu na rocha. Reconheço-o como Frank Eaton, um
fazendeiro conhecido de meu pai. Está vestindo uma daquelas tradicionais
echarpes esquisitas que os turistas gostam de comprar – está enrolada em
seus ombros e presa ao quadril, totalmente ridícula com suas calças de

veludo cotelê. Associo muito fortemente o cheiro de suor à roupa
tradicional, e não parece que ele vai ser capaz de mudar essa minha
impressão. Com uma pequena tigela nas mãos, Eaton grita para a multidão,
que agora está um pouco mais silenciosa:
– Cabe a mim falar pelo homem que não competirá.
Eaton inclina a tigela, e sangue respinga pela rocha até os seus pés. Ele
não se afasta, e gotas de sangue mancham suas calças. Não acho que ele se
importe.
– Cavaleiro sem nome – diz. – Cavalo sem nome. Pelo seu sangue.
– Sangue de ovelha – diz Elizabeth. – Ou de cavalo, talvez. Não me
lembro.
– Que crueldade! – Estou horrorizada. Parece que Finn vai vomitar.
Elizabeth dá de ombros, mas só com um deles. Ian Privett a observa.
– Cinquenta anos atrás, era um homem que matavam ali, assim como
em todos os anos anteriores. O homem que não competirá.
– Por quê? – exijo saber.
Sua voz está entediada; possivelmente, há uma resposta verdadeira, mas
ela não está interessada em saber.
– Porque os homens gostam de matar as coisas. Que bom que pararam.
Acabaríamos ficando sem homem nenhum.
– Porque – uma voz que reconheço instantaneamente a interrompe–, se
você der sangue à ilha antes da corrida, talvez ela não tome tanto sangue
durante a competição.
Elizabeth se vira para Peg Gratton com um olhar zangado. Pisco
quando vejo Peg – ela está quase irreconhecível usando aquele capacete
elaborado. Parece um pouco com um daqueles papagaios-do-mar estufados
que às vezes encontramos pela ilha: possui uma grande viseira pontuda que
forma o bico e franjas amarelas como cordas que saem de cada orelha, como
longos chifres. Busco sinais do cabelo enrolado de Peg, mas ele está bem
escondido sob o forro do capacete.
– Não espere que sejam simpáticos com você, Puck – diz Peg Gratton,

como se Elizabeth não estivesse ali. – Muitos acham que uma garota na
praia dá azar. Não ficarão felizes ao vê-la.
Pressiono os lábios.
– Não preciso que sejam simpáticos. Só preciso que me deixem fazer o
que tenho de fazer.
– Isso seria uma gentileza – diz Peg. Ela vira a cabeça, e é um
movimento estranho e irregular com a cabeça de pássaro sobre a dela. Se eu
já não estivesse confusa por tudo que vi esta noite, certamente aquele
movimento me confundiria.
Ela diz:
– Preciso ir.
Sobre a rocha, uma mulher com uma cabeça de cavalo de verdade está
no lugar onde o homem derramou o sangue. Sua túnica está encharcada de
sangue; ele escorre por suas mãos. Ela encara a multidão, mas, com aquela
cabeça enorme, não parece que ela está olhando para nós, e sim para algum
ponto no céu. Eu me sinto tonta e ardente com o calor da fogueira, com a
visão do sangue. Estou sonhando, mas não estou.
Há um murmúrio das pessoas ali reunidas. Não consigo distinguir as
palavras, mas Elizabeth diz:
– Estão dizendo que ninguém pegou a concha. Ela não jogou uma
concha este ano.
– A concha?
– Para o desejo – diz Elizabeth, impaciente. – Ela joga uma concha e
você faz um pedido. É bem provável que ela tenha jogado no centro de
Skarmouth e eles foram lentos demais e não conseguiram achar.
– Quem é? – Finn pergunta a Elizabeth, a primeira coisa que diz em
muito tempo. – Com a cabeça de cavalo?
– A mãe de todos os cavalos. Epona. Alma de Thisby e destes
penhascos.
Finn, paciente, esclarece:
– Quero dizer, quem é a mulher?

– Alguém com mais peito que você – responde Elizabeth. Os olhos de
Finn imediatamente recaem sobre os seios da mulher-cavalo, e Elizabeth ri
alto, de maneira escandalosa. Fecho a cara em defesa da honra de Finn, e
ela me dá um belo empurrão. – Estão chamando os cavaleiros.
Estão. A mulher com a cabeça de cavalo se foi, embora eu não a tenha
visto partir, e Peg Gratton subiu na rocha e ocupa seu lugar. Uma dúzia ou
mais de homens está reunida numa ponta da rocha, esperando para subir, e
outros ainda seguem agitadamente em direção ao grupo. Sou um animal
pequeno e imóvel.
Elizabeth estala a língua.
– Você pode esperar se quiser. Eles sobem um por vez.
Minhas mãos não estão muito firmes, então cerro os punhos. Observo
atentamente para ver o que se espera de mim. O primeiro cavaleiro sobe os
degraus naturais na ponta da rocha. É Ian Privett, que parece mais velho
por causa do cabelo, que ficou grisalho quando ele era menino. Ele atravessa
a pedra correndo em direção a Peg Gratton.
– Eu vou competir – diz a ela formalmente, em volume alto o bastante
para ouvirmos claramente. Em seguida, ele estica a mão em direção a ela,
que corta seu dedo com uma lâmina minúscula, num movimento rápido
demais para eu ver direito. Privett ergue a mão sobre a rocha e o sangue
deve mesmo cair, ainda que eu esteja longe demais para ver.
Não parece estar doendo. Ele diz:
– Ian Privett. Penda. Pelo meu sangue.
Peg responde baixo, com uma voz que não é a dela:
– Obrigada.
Então, Ian deixa a rocha e o próximo cavaleiro está subindo os degraus.
É Mutt Malvern, que repete o processo, esticando a mão para fazê-la pingar
depois de cortada. Quando diz:
– Matthew Malvern. Skata. Pelo meu sangue – procura alguém no meio
do público, e sua boca se move numa espécie de não sorriso, e eu fico feliz
por não ser a destinatária daquilo.

Mas uma vez e depois outras, cavaleiros sobem na rocha, esticando as
mãos, dando seu nome e o nome de seu cavalo, e mais uma vez e outra, Peg
Gratton lhes agradece antes de partirem. São tantos! Deve haver uns
quarenta. Já vi os relatórios da corrida no jornal, e nunca houve nem perto
de quarenta cavaleiros na corrida final. O que acontece com todos eles?
Imagino que consigo sentir o cheiro de sangue na rocha de onde estou.
E os cavaleiros ainda sobem ao topo da rocha para ter seu dedo cortado
e anunciar sua intenção de competir.
À medida que se aproxima o momento em que devo subir, estou
tremendo e tão nervosa quanto possível, mas também ciente de que espero
Sean Kendrick subir até ali. Não sei se é porque já apostamos corrida uma
vez, porque eu o vi perder aquela égua, se é porque ele me disse para ficar
longe da praia quando ninguém mais falava comigo, ou simplesmente
porque seu garanhão vermelho é o cavalo mais bonito que já vi, mas tenho
curiosidade a seu respeito de uma forma que surpreende até a mim mesma.
A maior parte do grupo já passou quando Sean sobe na rocha. Mal
consigo reconhecê-lo. Tem sangue espalhado por suas maçãs do rosto, e sua
aparência é marcante e perturbadora ao mesmo tempo, dura e profana,
cuidadosa e predatória. Como alguém que subiria nesta rocha na época em
que se derramava sangue humano sobre ela, e não apenas uma tigela com
sangue de ovelha.
Eu desejo saber o que padre Mooneyham está fazendo esta noite – se
está preso na são Columba rezando para que os membros de sua
congregação tenham juízo, em vez de perdê-lo para deusas éguas pagãs. Mas
eu quero saber que tipo de deusa seria a deusa da nossa ilha, mesmo se
tivesse existido, que se satisfaz com uma tigela de sangue animal em vez de
sangue humano. Já vi sangue de ovelha e já vi uma pessoa morta, e sei a
diferença.
Sean Kendrick estica a mão.
– Eu vou competir – diz ele, e, quando fala, eu me sinto pesada, como
se estivesse sendo puxada para dentro da rocha sob meus pés.

Peg Gratton corta o dedo dele. Ela de fato não se parece em nada com
a Peg Gratton, não quando está ali em cima, à luz da fogueira, a sombra do
bico escondendo seu rosto.
Quase não dá para ouvir a voz dele:
– Sean Kendrick. Corr. Pelo meu sangue.
A multidão solta um grande rugido, inclusive Elizabeth, que eu achava
que era digna demais para essas coisas, mas Sean não levanta o olhar nem
responde às saudações. Acho que vejo seus lábios se moverem de novo, mas
é um movimento tão sutil que não tenho certeza. Então, ele desce da rocha.
– Agora é você – diz Elizabeth. – Suba lá. Não esqueça seu nome.
Por mais gelada que eu estivesse há um segundo, agora estou ardendo.
Ergo o queixo e dou a volta na rocha até o ponto onde posso subir como os
outros. Ela parece grande como o oceano conforme dou a volta até alcançar
Peg Gratton. Embora a rocha seja bastante sólida, a superfície parece se
desintegrar conforme a atravesso. Vejo três cores diferentes de sangue sob
meus pés. Continuo repetindo mentalmente: Eu vou competir. Pelo meu
sangue . Não quero esquecer por causa do nervosismo.
Agora vejo os olhos de Peg Gratton, brilhantes e penetrantes sob o
capacete com o bico. Ela parece feroz e poderosa.
Sinto a atenção de todos de Skarmouth, de todos de Thisby e de todos
os turistas vindos do continente. Mantenho-me mais ereta possível. Serei
tão feroz quanto Peg Gratton, mesmo não tendo seu grande capacete de
pássaro sob o qual me esconder. Tenho meu nome, e isso sempre me bastou.
Estico a mão. Eu me pergunto quanto a pequena faca machucará.
Minha voz é mais alta do que eu esperava.
– Vou competir.
Peg ergue a lâmina. Eu me preparo. Ninguém recuou, e eu me recuso a
ser a primeira.
– Espere! – diz uma voz. Não a de Peg Gratton.
Nós duas nos viramos. Ali está Eaton, em sua tradicional vestimenta
cheia de suor, na base da rocha, a cabeça inclinada para trás para conseguir

nos ver. Um grupo de homens está ao seu redor, com as mãos nos bolsos e
de colete. Alguns são cavaleiros que ainda estão tomando cuidado com as
mãos, para não sangrar mais. Alguns usam echarpes tradicionais como a de
Eaton. Estão franzindo a sobrancelha.
Falei errado. Falei fora de ordem. Fiz algo errado. Não consigo pensar o
que pode ter sido, mas sinto a incerteza mastigando minhas entranhas.
Eaton diz:
– Ela não pode competir.
Meu coração sai pela boca. Dove! Deve ser Dove. Eu deveria ter pego a
égua malhada quando tive chance.
– Nenhuma mulher competiu nas corridas desde que elas começaram –
diz ele. – E este não será o ano em que isso vai mudar.
Encaro Eaton e os homens ao redor dele. Algo sobre a maneira como
ficam juntos é familiar, cheia de camaradagem. Como um rebanho de
pôneis encolhidos contra o vento. Ou ovelhas, encarando temerosamente o
collie prestes a pastoreá-las. Sou a forasteira. A mulher.
De todas as coisas que poderiam se interpor entre as corridas e mim,
não posso acreditar que esse será o problema.
Meu rosto cora. Estou ciente de que centenas de pessoas estão me
observando no topo desta rocha. Mas mesmo assim encontro minha voz.
– As regras não dizem nada a respeito disso. Eu li. Cada uma delas.
Eaton olha para o homem ao seu lado, que lambe os lábios antes de
dizer:
– Há regras escritas e regras grandes demais para serem escritas.
Levo um instante para entender o que isso significa: não existe mesmo
nenhuma regra contrária, mas eles não me deixarão competir mesmo assim.
É como quando Gabe e eu jogávamos quando éramos pequenos; quando eu
estava prestes a vencer, ele mudava as regras do jogo.
E exatamente como naquela época, a injustiça faz meu peito arder.
Digo:
– Então por que ter regras escritas?

– Algumas coisas são muito óbvias para ter de ser escritas – diz o
homem ao lado de Eaton, o que está usando um terno com colete bem
certinho, com uma echarpe no lugar do paletó. Vejo o triângulo perfeito do
colete, cinza escuro contrastando com o branco, mais claramente que seu
rosto.
– Desça agora – diz Eaton.
Há um terceiro homem na base da rocha no ponto em que subi, e ele
estende a mão em minha direção, como se eu simplesmente fosse pegá-la e
descer.
Não me mexo.
– Isso não é óbvio para mim.
Eaton franze a sobrancelha por um breve instante, e então explica,
juntando lentamente as palavras à medida que a explicação lhe ocorre:
– As mulheres são a ilha, e a ilha nos mantém. Isso é importante. Mas
são os homens que levam a ilha ao leito do mar e a impedem de flutuar no
oceano. Não é possível ter uma mulher na praia. Isso inverte a ordem
natural.
– Então você quer me desqualificar por causa de uma superstição –
digo. – Você acha que navios vão encalhar se eu participar das corridas?
– Ah, você está confundindo as coisas.
– Então o problema sou eu. Você acha errado eu participar das corridas.
O rosto de Eaton me lembra o de Gabe no bar, enquanto ele olha para
a multidão com uma expressão incrédula, seguro de que também estão
vendo como estou sendo difícil. Quanto mais o olho, mais encontro motivos
para não gostar dele. Sua esposa não acha o imenso lábio inferior dele
horroroso? Não dava para ele fazer a risca no cabelo de um jeito que não
mostrasse tanto o couro cabeludo? Ele precisa mexer o queixo desse jeito
entre uma palavra e outra?
Eaton me diz:
– Não leve para o lado pessoal. A questão não é essa.
– É pessoal para mim.

Agora eles estão irritados. Achavam que eu simplesmente desceria ao
primeiro sussurro da palavra não , e, agora que não desci, deixo de ser uma
boa história para contar e me torno uma adversária com quem eles têm de
brigar.
Eaton diz:
– Tem outras coisas que você pode fazer no mês de outubro que
agradarão outras pessoas além de você, Kate Connolly. Você não precisa
competir nas corridas.
Penso em Benjamin Malvern sentado em nossa cozinha, perguntando o
que estamos dispostos a fazer para salvar a casa. Penso que, se eu descer
desta rocha agora, Gabe não terá motivo para ficar, e não importa se estou
furiosa, e eu estou, aquela conversa não pode ter sido a nossa última
conversa. Penso na sensação de competir com Sean Kendrick em seu
imprevisível capall uisce .
– Tenho meus próprios motivos para competir – respondo. – Como
cada homem que subiu nesta rocha. Meus motivos não são menores apenas
por eu ser uma garota.
Ian Privett, a alguns passos de distância, diz:
– Kate Connolly, quem você vê ao seu lado? Uma mulher toma nosso
sangue. Uma mulher concede nossos desejos. Mas o sangue nesta rocha é o
sangue de homens, de gerações. Não é uma questão de você querer ou não
estar aí em cima. Você não pertence a este lugar. Agora pare com isso.
Desça e pare de ser criança.
Quem Ian Privett pensa que é para me dizer o que quer que seja? Isso
também me lembra Gabe, me dizendo para parar de ser histérica quando eu
não achava nem um pouco que estava sendo. Penso em minha mãe no
lombo de um cavalo, me ensinando a montar, praticamente parte do
animal. Eles não podem dizer que aqui não é o meu lugar. Podem me tirar
daqui independentemente do que eu disser, mas não podem dizer que não é
o meu lugar.
– Vou seguir as regras que me foram entregues – digo. – Não vou seguir

uma coisa que não está escrita.
– Kate Connolly – diz o homem de colete. – Nunca tivemos uma
mulher nesta praia, e você quer que este seja o primeiro ano? Quem é você
para pedir uma coisa dessas?
Mediante algum sinal não dito, o homem que esticara a mão para eu
descer começa a subir a escada; eles vão me tirar daqui se eu não descer.
Acabou.
Não consigo acreditar que acabou.
– Eu falarei por ela.
Todos os rostos se voltam para Sean Kendrick, que está um pouco
afastado da multidão, com os braços cruzados.
– Esta ilha é movida a coragem, não a sangue – diz ele. Seu rosto está
voltado para mim, mas seus olhos repousam em Eaton e seu grupo. No
silêncio que se segue à sua fala, ouço meu coração ecoando em meus
ouvidos.
Vejo que estão levando em conta suas palavras. A expressão no rosto
deles é clara: desejam poder ignorá-lo, mas estão tentando decidir quanto
peso se deve dar às palavras de alguém que tantas vezes driblou a morte nas
corridas.
Assim como antes, na caminhonete de Thomas Gratton, Sean
Kendrick não diz mais nada. Em vez disso, seu silêncio faz com que os
outros se manifestem e obriga todos a discutir com ele.
– E você acha que devemos deixá-la competir – diz Eaton, enfim –,
apesar de tudo.
– Não há apesar de tudo – responde Sean. – Deixemos o mar decidir o
que é certo e o que é errado.
Há uma pausa agonizantemente longa.
– Então, ela compete – diz Eaton. Ao seu redor, cabeças viram de um
lado para o outro, mas ninguém diz nada. A palavra de Sean prevalece. –
Dê o seu sangue, garota.
Peg Gratton não espera que eu estique a mão nem um centímetro a

mais. Ela se adianta e corta meu dedo, e, em vez de dor, há um calor
escaldante que sobe pelo meu corpo, até os ombros. O sangue acumula e
pinga livremente sobre a rocha.
Tenho o mesmo sentimento de antes, de quando Sean Kendrick estava
aqui, na mesma rocha que estou agora. Meus pés estão enraizados na rocha,
são parte da ilha, e cresci para além dessas raízes. O vento bate em meus
cabelos, soltando os fios do elástico e fazendo-os chicotear meu rosto. O ar
cheira ao mar quebrando na praia.
Ergo o queixo de novo e digo:
– Kate Connolly. Dove. Pelo meu sangue.
Encontro Sean Kendrick na multidão mais uma vez. Ele se virou como
se fosse partir, mas me olha por cima dos ombros. Sustento seu olhar. Sinto
que todos na multidão estão observando este momento, como se capturar o
olhar de Sean Kendrick significasse prometer algo ou me meter em algo que
não sei bem o que é, mas não desvio os olhos.
– Pelo sangue deles, que comecem as corridas – Peg Gratton diz para a
noite e para a multidão, mas ninguém a está observando. – Temos nossos
cavaleiros, que tenham início as corridas.
Sean Kendrick me olha nos olhos mais um segundo e, em seguida, se
afasta da multidão.
Duas semanas para o início das corridas. Tudo começa esta noite. Posso
sentir isso em meu coração.

manhã seguinte encontra a ilha assustadoramente quieta. Ainda
que a agitação da noite anterior sugerisse que o treinamento
começaria para valer hoje, os estábulos estão tranquilos, as
estradas, silenciosas. Estou feliz por isso; tenho muita coisa para fazer nas
próximas vinte e quatro horas. Dou uma olhada para o céu; uma colcha
amarrotada de nuvens esconde o sol e, sob ela, correm nuvens menores,
apressadas para iniciar sua jornada. Saberei melhor quanto tempo tenho até
a tempestade quando vir o oceano.
No silêncio sobrenatural da manhã, levo o mais jovem dos puros-
sangues para se exercitar e comer um pouco antes que o tempo piore, e
depois pego minhas coisas para levar à praia. Dois baldes e meus bolsos
repletos de magia fraca.
Quando estou prestes a sair, ouço uma voz.
– Então você não é do tipo que vai à igreja.
– Bom dia, sr. Holly – respondo.
Ele está vestindo o que, nos Estados Unidos, deve ser considerado sua
melhor roupa de domingo: um suéter branco com gola V e jaqueta clara
sobre as calças cáqui pregueadas. Parece estar pronto para posar para a
coluna social de um dos jornais do continente.
– Bom dia – devolve Holly. Ele espia dentro dos baldes e recua com
uma careta. Estão cheios de esterco de Corr, e até eu tenho dificuldade em
me acostumar com o cheiro. – Meu Deus, que coisa difícil de suportar. –
Vendo que estou me esforçando para abrir o portão sem colocar os baldes
no chão, ele o abre e fecha para mim, me seguindo amigavelmente. – Então
você não é religioso?
– Acredito na mesma coisa em que eles acreditam – digo, com o queixo
apontando para a cidade e para a são Columba. – Só não acho que ela possa
ser encontrada numa construção.

O solo está macio e cheira levemente a esterco de cavalo quando pego
a estrada em direção à praia que margeia a maioria dos pastos de Malvern.
Fica do lado oposto à praia da corrida, e, ainda que existam penhascos ali,
são mais baixos e irregulares, com praias instáveis e mais lugares para o
oceano e as criaturas que vivem ali rastejarem em direção à arrebentação.
Holly trota para me alcançar e passa uma das alças do balde para sua
mão. Resmunga com o peso, mas não diz mais nada.
– O que está fazendo? – pergunto.
– Procurando Deus – diz Holly, acertando o passo com o meu. – Se
você diz que ele está aqui fora, vou dar uma olhada.
Não sei se ele vai encontrar seu tipo de Deus dividindo esse trabalho
comigo, mas não me oponho. É uma boa caminhada até os penhascos e ter
companhia pode não ser tão terrível. À medida que nos afastamos da
proteção das construções do estábulo, o vento fica mais insistente, soprando
fortemente pelos campos desprotegidos. Os únicos sinais de civilização são
os muros de pedra que marcam os pastos de Malvern. Eles antecedem em
muito os rebanhos de Malvern; esta é uma Thisby que muitos esqueceram.
Holly, a seu favor, caminha em silêncio por vários longos minutos antes
de perguntar:
– O que exatamente estamos fazendo?
– Uma tempestade se aproxima – respondo. – Será mais forte no mar, o
que vai levar os cavalos para dentro.
– Quando você diz cavalos, quer dizer – mais uma vez ele faz uma pausa
cuidadosa antes de tentar pronunciar – os capaill uisce .
Concordo com a cabeça.
– E leva os cavalos para onde exatamente? Opa, opa!
Essa última exclamação é porque acabamos de chegar a um ponto alto
onde podemos ver o oceano e a área ao nosso redor. A terra é toda perigosa,
com penhascos baixos com fendas e profundamente embrenhados no verde:
pastos e, subitamente, ar vazio, e então pastos de novo. Abaixo e para além
de nós, o mar são ondas turbulentas, espuma e rochas negras como dentes.

Um mar agitado. Amanhã será um inferno, eu acho. Dou a Holly um longo
instante para absorver a visão antes de responder à sua pergunta.
– Leva-os para dentro da ilha. Se estiverem na água rasa em torno da
ilha, eles vêm para cá, em vez de encarar essas rochas e a correnteza.
E capaill uisce recém-chegados à terra não são o tipo de coisa que você
gostaria de ver.
– Porque estão famintos?
Inclino o balde para derramar um pouco do conteúdo asqueroso pelo
caminho e continuo a traçar minha rota.
– Sim, porque têm fome. Mas, além disso, ficam inconstantes, o que os
torna ainda piores.
– Então você está derramando esterco...
– Para demarcar território. Se vierem para terra firme, quero que
pensem que encontrarão Corr.
– E não as éguas de Benjamin Malvern? – termina Holly. Então,
trabalhamos em silêncio, marcando os lugares de fácil acesso primeiro nas
terras altas, depois descendo. Finalmente, resta apenas a praia rochosa.
– Talvez você queira ficar aí em cima – sugiro. Não posso garantir a
segurança dele perto da água. O mar já está tumultuado e perigoso, e nada
há que possa indicar que não haverá capaill uisce ali. Malvern não ficaria
contente se eu perdesse um de seus compradores dois dias depois de ter
perdido um cavalo do mesmo jeito.
Holly assente com a cabeça como se me entendesse, mas, quando
começo a descer pela trilha, ele vem comigo. É um pequeno ato de coragem
e eu o respeito por isso. Troco meu balde vazio pelo que ele está segurando e
ele massageia a palma de sua mão onde a alça do balde a pressionara.
Aqui na base da trilha, a melhor parte da praia é feita de rochas do
tamanho de meu punho e o restante é composto de pedregulhos e pedaços
do penhasco que caíram antes da água. À minha frente, o oceano se estende
ansioso em direção a meus pés. Cheira a coisas mortas saídas do mar.
– Se eu estivesse tentando capturar outro cavalo – digo –, este seria um

bom momento.
A onda encontrou seu caminho numa piscina rasa aos nossos pés, e
inexplicavelmente George Holly molha os dedos na água. A piscina está
repleta de anêmonas oportunistas que esticam seus tentáculos para fora da
onda, ouriços-do-mar que cortam ao serem pisados e siris pequenos demais
para serem comidos.
– Mais quente do que eu esperava – comenta Holly. – Por que você não
está tentando capturar outro cavalo? Já que perdeu um outro dia?
A verdade é que não há quase nenhum motivo para capturar
outro capall uisce agora que Mutt Malvern vai competir com Skata. A essa
altura, não há sequer grandes razões para mantermos Edana.
– Não preciso de outro cavalo. Tenho Corr.
Holly cutuca um dos ouriços com uma pedra.
– Como sabe que não há um cavalo mais rápido que Corr por aí?
Esperando para ser capturado?
Penso na égua malhada e em sua tremenda velocidade.
– Talvez haja. Não preciso saber. Não estou tentado – digo. Claro, não
se trata apenas de vencer. Não sei como explicar que conheço seu coração
melhor que ninguém, e ele o meu. – Não preciso de outro cavalo. Eu só...
Fecho a boca e pego a trilha até o outro ponto de acesso a esta praia,
que é, exceto por este ponto, inacessível. Tirando um punhado de sal do
bolso, cuspo nele antes de jogar os grãos no começo da outra trilha.
Derramo um pouco do esterco de Corr ali. Então, volto pelo mesmo
caminho sem dizer uma única palavra.
Holly me segue e, apesar de eu não me virar, ouço sua voz claramente.
– Só que ele não é seu.
Não sei se quero ter essa conversa.
– O problema não é não ser meu. Mas ser de Benjamin Malvern.
– Isso não faz sentido.
– Faz todo o sentido do mundo nesta ilha. – Thisby é definida pelas
coisas que são de Malvern e pelas coisas que não são. – Importa da seguinte

forma: eu pertenço a Malvern. Você não.
– Liberdade, então.
Paro o que estou fazendo e olho para ele. Holly está abaixo de mim na
trilha, olhando para cima, parecendo incrivelmente asseado e dócil em seu
suéter limpo e em suas calças bem passadas. Mas sua expressão é tudo
menos insípida. Eu ainda não acho que o exuberante George Holly,
investidor americano, já tenha sido qualquer coisa diferente do exuberante
George Holly, investidor americano, mas pela primeira vez isso não importa.
Acho que ele me entende, independentemente disso.
– Então por que você não compra Corr dele?
Esboço um leve sorriso.
Holly lê minha expressão.
– É o dinheiro? Ah, ele não quer vender. Você não tem poder de
barganha? Certamente ele precisa de você por outros motivos que não
apenas vencer as corridas. Peço desculpas. Estou sendo invasivo. Não é
problema meu. Vamos. Finja que eu não disse nada.
Mas ele disse algo que não pode ser desdito. A verdade é esta: por onze
meses do ano sou valioso para Malvern e, por um mês, sou inestimável. Ele
estaria disposto a desistir desse único mês para manter os outros onze? Eu
estou disposto a arriscar?
Estamos de volta à terra alta; Holly é branco contra o verde, e eu sou
preto. Viro o balde, contente de deixar seu conteúdo para trás, e Holly, sem
emitir uma palavra, me observa enquanto recolho um punhado de terra
limpa e sussurro para ela antes de espalhá-la pelo chão novamente.
– Magia – diz Holly.
– E um bridão pode ser magia? – pergunto.
– Só sei que, quando eu sussurro para um punhado de terra, nada de
tão especial acontece.
Ele me observa enquanto cuido das outras duas trilhas que levam até os
penhascos. Não me pergunta como faço isso, e eu não conto, e então,
quando já estamos voltando e o silêncio lhe parece longo demais, digo:

– Você pode dizer o que está pensando.
– Não, eu não posso – diz George Holly imediatamente, contente por
ter sido convidado a falar. – Porque, mais uma vez, não é problema meu. E,
como já falei muito mais do que deveria uma vez, não quero fazer isso de
novo.
Ergo a sobrancelha.
Holly esfrega as mãos como se estivesse lidando com algo mais sujo que
a água da piscina natural.
– Tudo bem, então. O que está rolando entre você e aquela garota?
Kate Connolly, certo?
Deixo escapar um suspiro, empilho os baldes e volto para a estrada que
leva ao estábulo.
Holly diz:
– Se você acha que, ao não responder, vai me convencer de que não há
nada, não vai funcionar.
– Não é por isso que não estou respondendo – digo, conforme ele me
alcança de novo. – Não vou dizer que não há nada. Só não sei o que é.
Posso vê-la claramente na rocha ao lado de Peg Gratton, sem recuar
diante de Eaton e do restante do comitê da corrida. Não consigo me
lembrar de quando fui tão corajoso, e isso me envergonha. A verdade é que
me sinto fascinado e repelido por ela: Kate é, ao mesmo tempo, um espelho
de mim mesmo e uma porta para uma parte desta ilha que não sou eu. É
como quando a deusa égua olhou em meus olhos; senti que havia uma parte
de mim que eu não conhecia.
– Posso dizer como chamamos isso na minha terra – diz George Holly –,
mas você pode não querer ouvir.
Lanço-lhe um olhar fulminante e ele ri, bem-humorado.
– Isso faz cada dia longe de casa valer a pena – diz. – Devo apostar nela,
então?
– Você deve guardar seu dinheiro para comprar feno – balbucio. – Será
um inverno longo.

– Não – diz Holly –, não na Califórnia – e ri, e pela distância de sua
risada percebo que parou de andar. Eu me viro.
– Acho que tem razão, sr. Kendrick – diz George Holly, de olhos
fechados. Seu rosto está voltado para o vento, inclinando-se levemente para
frente para não ser derrubado. Suas calças não estão mais impecáveis, há
rastros de lama e esterco na frente delas. Seu ridículo chapéu vermelho foi
parar atrás dele, mas George parece não perceber. O vento passa os dedos
por seus cabelos claros e o oceano canta para ele. Se você deixar, esta ilha
pode arrebatar você.
Pergunto:
– Tenho razão no quê?
– Posso sentir Deus aqui fora.
Esfrego as mãos nas calças.
– Diga isso novamente – falo – daqui a duas semanas, depois de ter
visto os cadáveres na praia.
Holly não abre os olhos.
– Que ninguém diga que Sean Kendrick não é otimista. – Depois de
uma pausa, acrescenta: – Sinto que está sorrindo, então não negue.
Ele está certo, então não nego.
– Você vai conversar com Benjamin Malvern sobre aquele cavalo ou o
quê? – pergunta.
Penso em Kate Connolly diante de Eaton, seu rosto corajoso,
parecendo um sacrifício naquela velha rocha assassina. Sinto o hálito da
deusa égua em meu rosto, e ele carrega o cheiro do trovão.
– Vou – digo.

em perco tempo encilhando Dove no domingo depois da igreja.
Todo mundo vai encilhar seus capaill uisce depois da missa, e
acho que pode ser uma boa oportunidade para aprender alguma
coisa a respeito da competição. Talvez eu leve Dove aos penhascos hoje à
noite, depois de ela ter passado o dia comendo seu feno caro e se
acostumando à ideia de ser veloz.
Deixo Finn e Gabe voltarem sozinhos para casa – Gabe veio à missa
conosco, ainda que tenha olhado para o relógio e saído na metade da
cerimônia, o que levou o padre Mooneyham a olhar primeiro para ele e
depois para Finn e para mim. Os sermões do padre Mooneyham não
costumam ser árduos, no entanto devem ser suportados até o fim. Se sua
perna adormece, você não se mexe. Se o chá que bebeu antes da missa faz
você sonhar com privadas a caminho de Damasco, em vez de permitir que
você tenha revelações religiosas, você se contorce todo e aguenta firme. Se
você é Brian Carroll e passou a noite toda pescando, reclina a cabeça para
trás para não ser tão impossível manter os olhos abertos.
Você não se levanta e sai. Mas Gabe saiu. E então Beech Gratton saiu
também. Se Tommy Falk não fosse belo demais para vir à igreja, tenho
certeza de que também teria saído.
E agora eu definitivamente preciso me confessar, porque não só pensei
coisas más sobre meu irmão, mas as pensei durante a missa. É ligeiramente
desconfortável saber que, se eu morrer nas próximas horas, vou para o
inferno, mas tenho de sair antes que a maré suba e todos os cavaleiros
desapareçam.
De qualquer forma, tudo isso parece muito distante quando estou nos
penhascos sobre a praia da corrida. Porque mesmo que eu não queira correr
nos penhascos, onde o vento sopra mais forte, não me importo de ficar

N

sentada ali. Eu me arrasto com um pacote nas costas feito de um cobertor
de lã enrolado numa bolsa, e, quando chego, jogo seu conteúdo no chão e
encontro um ponto alto e seguro próximo à beirada, de onde posso ver o
treinamento ali embaixo. Enrolo o cobertor nos ombros, bebo um gole de
chá da garrafa térmica e começo a devorar um dos bolos de novembro.
Aqueci três deles no forno pela manhã com algumas pedras, e as pedras os
mantiveram quentes e saborosos. Sinto-me bastante virtuosa e útil quando
pego lápis, papel e o cronômetro que Finn me arranjou. Se eu ficar sentada
aqui pelo tempo suficiente, seguramente os cavalos revelarão seus segredos.
Quero saber a velocidade com a qual percorrerão aquele trecho, então
planejo levar Dove ao mesmo lugar e cronometrá-la também. Se eu
conhecer meus obstáculos, talvez possa me preparar melhor.
Estou sentada há cerca de dez minutos quando percebo movimento
com o canto dos olhos. Alguém se senta a poucos passos de mim, com um
dos joelhos dobrado, um braço repousando sobre ele.
– Então você descobriu o segredo da vitória, não descobriu, Kate
Connolly?
Reconheço a voz sem virar o rosto, e meu coração faz tum tum tum , e
pensa em bater de novo, mas não consegue.
– Eu disse que você pode me chamar de Puck.
Sean Kendrick não diz mais nada, mas também não se levanta. Eu me
pergunto no que ele está pensando enquanto estamos sentados aqui,
observando os cavalos lá embaixo. Eles parecem tão diferentes vistos de
cima: o treinamento parece ordenado, silencioso, com propósito, e não o
caos de quando eu estava ali embaixo. Mesmo quando vejo dois cavalos se
erguerem sobre as patas traseiras para lutar, seus tratadores se esforçando
para apartá-los, o som é abafado pela distância e pelo vento, e isso de
alguma forma diminui o impacto. Soldadinhos de chumbo.
Observo Ian Privett em seu cavalo cinza, Penda, enquanto galopam
paralelamente à água. Pressiono meu cronômetro e tomo nota.
– Ele correrá mais rápido que isso – diz Sean Kendrick. – Depois. Não

está forçando o cavalo agora.
Não sei dizer se ele está sendo condescendente pelo fato de eu estar me
dando o trabalho de anotar esse tempo sem nenhum significado, ou se está
me premiando com uma informação que eu não poderia obter de outra
forma. Então simplesmente faço um risco sobre os números de novo,
fazendo com que sumam do papel. Quero perguntar por que ele falou por
mim ontem à noite, mas minha mãe me disse que é falta de educação ir
atrás de elogio, e isso faz parecer que estou querendo ser elogiada. Então eu
não pergunto, mesmo querendo, e muito.
O que significa que ficamos sentados em silêncio por mais um tempo, o
vento da tempestade cortando meu cobertor e meu chapéu e desordenando
minhas anotações. Alcanço meu embrulho e pego um dos preciosos bolos de
novembro, ainda quentes, e o ofereço a Sean.
Ele pega o bolo sem agradecer. Mas, de alguma forma, o obrigado está
implícito. Não sei como ele faz isso, porque eu não estava olhando para ele
quando aceitou.
Depois de um momento, ele diz:
– Está vendo a égua negra? A de Falk? Ela está louca para correr. Se
fosse minha, eu a manteria logo atrás do líder e a pouparia para que
permanecesse motivada. Faria minha jogada depois.
Estreito os olhos em direção à praia, tentando ver o que ele vê. A praia
é uma bagunça de falsas corridas e galopes interrompidos. Vejo Tommy e
sua égua negra e os observo por um momento. Ela tem as pernas finas para
um capall uisce, e, quando pisa, sua cabeça se inclina só um pouco quando
seu casco esquerdo traseiro toca o solo.
– Além disso – digo, pois tenho que dizer alguma coisa –, ela é um
pouco coxa no traseiro esquerdo.
– No direito, eu acho – diz Sean Kendrick, mas logo se corrige. – Não,
no esquerdo, você está certa.
E me sinto satisfeita, mesmo que ele esteja apenas concordando com o
que eu já sabia.

Agora me sinto suficientemente corajosa para perguntar:
– Por que você não está treinando?
Também olho para ele quando pergunto, estudando seu perfil agudo.
Seus olhos se movem de um lado para o outro, seguindo os movimentos lá
embaixo, mesmo que o restante de seu corpo permaneça imóvel.
– Correr é mais que ficar em cima de um cavalo.
– O que você está olhando?
Há mais uma pausa tremendamente longa entre a minha pergunta e a
resposta dele, e eu acho que ele simplesmente não vai responder. E então
penso que talvez eu tenha só pensado na pergunta e não tenha dito nada.
Por fim, resolvo que posso ter dito algo ofensivo, mesmo que a essa altura
não consiga lembrar exatamente o que foi que eu disse para checar minhas
palavras e ter certeza.
E é aí que Sean diz:
– Quero saber quem tem medo da água. Quero saber quem consegue
seguir em linha reta. Quero saber quem vai acabar com Corr assim que
ultrapassá-lo. Quero saber quem não consegue controlar o próprio cavalo.
Quero saber como eles gostam de correr. Quero saber quem é coxo do
traseiro esquerdo. Quero saber o que mudou na praia este ano. Quero saber
como será a competição antes de ela acontecer.
Ali embaixo, a égua malhada grita, alto o bastante para nós dois
ouvirmos, mesmo daqui do penhasco. Não posso acreditar que ontem à
noite eu estava lamentando por não tê-la pego quando tive a chance. Sigo o
olhar de Sean.
– E – digo – você acha que é bom ficar de olho na égua malhada.
– Acho bom nós dois ficarmos de olho nela.
Bem neste momento, a égua malhada se lança para frente, explodindo
ao longo da linha das ondas fortes. Ela se inclina de forma acentuada em
direção ao mar e recua rapidamente para o penhasco. Ela é tão rápida que
chegou ao fim da praia, até onde se pode correr, antes de eu pensar em
olhar para o meu cronômetro.

– Seu irmão vai para o continente – diz Sean.
Prendo o ar na boca por um longo instante, e enfim digo:
– Logo depois das corridas. – Não faz sentido tratar o assunto como
segredo; todo mundo sabe. Ele já me ouviu falando a respeito com Gratton
na caminhonete.
– E você não vai com ele.
Estou prestes a responder “Ele não me convidou”, mas percebo, antes
de fazer isso, que esse não é o motivo. Não o seguirei porque aqui é o meu
lugar, aqui e em nenhuma outra parte.
– Não.
– Por que você não vai?
A pergunta me enfurece. Pergunto:
– Por que é que partir é o padrão? Alguém pergunta por que você fica,
Sean Kendrick?
– Perguntam.
– E por que você fica?
– O céu e a areia, o mar e Corr.
É uma resposta adorável e me pega totalmente de surpresa. Eu não
tinha percebido que estávamos tendo uma conversa séria, senão acho que
teria dado uma resposta melhor quando ele perguntou. Também estou
surpresa por ele ter incluído o garanhão na lista. Eu me pergunto se, quando
falo de Dove, as pessoas conseguem ouvir como eu a amo assim como
percebo o carinho por Corr na voz de Sean. É difícil para mim imaginar
como é amar um monstro, não importa quão lindo ele seja. Lembro-me do
que o velho disse no açougue, sobre Sean Kendrick ter um pé na terra e
outro no mar. Talvez seja preciso ter um pé no mar para ser capaz de
enxergar para além da sede de sangue de seu cavalo.
– Tem a ver com desejo – digo enfim, depois de pensar um pouco. – Os
turistas parecem sempre desejar alguma coisa. Em Thisby, as coisas têm
menos a ver com o que se quer e mais com o que se é. – Eu me pergunto,
depois de fechar a boca, se Sean pensará que sou desmotivada ou sem

ambições. Suponho que, comparada a ele, devo ser assim. Pareço fadada a
dizer precisamente o que estou pensando e, ao mesmo tempo, incapaz de
saber sua reação ao que digo.
Ele não diz absolutamente nada. Observamos os cavalos se agitando lá
embaixo. Finalmente, ele diz, sem olhar para mim:
– Eles ainda vão tentar manter você longe da praia. Não acabou ontem
à noite.
– Não entendo por quê .
– Quando o sentido das corridas é provar algo sobre si próprio para os
outros, as pessoas que você vence são tão importantes quanto o cavalo que
você monta. – Seus olhos não se afastam da malhada.
– Mas esse não é o sentido das corridas para você.
Sean levanta. Olho para suas botas sujas. Agora sim o ofendi , penso.
Ele diz:
– As outras pessoas nunca foram importantes para mim, Kate Connolly.
Puck Connolly.
Viro o rosto para cima para enfim olhar para ele. O cobertor cai de
meus ombros e meu chapéu também, desprendido pelo vento. Não consigo
ler sua expressão; seus olhos estreitos atrapalham.
Digo:
– E agora?
Kendrick vira a gola da jaqueta para cima. Não sorri, mas não está
prestes a franzir a sobrancelha como de costume.
– Obrigado pelo bolo.
Então parte em direção ao gramado, me deixando com o lápis sobre o
papel. Sinto que aprendi algo importante sobre a corrida que vai começar,
mas não tenho ideia de como escrever a respeito.

primeira coisa que faço, ao voltar para o estábulo, é procurar
Benjamin Malvern. Tenho a mesma sensação estranha e aérea de
quando treinei Fundamental, depois de encontrar Puck pela
primeira vez. Eu nunca havia percebido quanto esta ilha, sempre em
transformação, estava paralisada até ela se tornar algo diferente do que eu
jamais conheci.
Encontro Malvern galopando com dois homens ao seu lado. Sua cabeça
está inclinada para frente como ele faz quando está com compradores, como
se pudesse forçá-los a comprar. Os outros dois estão encolhidos; parecem
gelados e úmidos, gatos abandonados na chuva.
A primeira coisa que noto ao me aproximar é o animal que estão
olhando: Malvern Mettle, uma potra com velocidade e espírito promissores.
Ela geralmente está disposta a fazer mais do que é capaz, o que é sempre
melhor que o oposto.
A próxima coisa que noto é que um dos compradores é George Holly.
Quando ele me vê, sua expressão é a de quem se deu conta de algo. Diz
alguma coisa para o outro comprador e então para Malvern, que balança a
cabeça em sinal de aprovação, sorrindo, mas parecendo descontente. Ele
indica o caminho de volta para casa, e George Holly conduz o outro
comprador para lá.
À medida que passamos, Holly me estende a mão e diz:
– Sean Kendrick, certo? Bom dia.
Eu o deixo apertar minha mão como se fôssemos estranhos e ergo uma
sobrancelha em reação à sua fraude. Então ele e o outro comprador partem,
me deixando a sós com Malvern.
Eu me junto a Malvern na grade. Ele franze a sobrancelha em direção a
Mettle. Um dos tratadores a está cavalgando, e ela está brincalhona e

preguiçosa. Mettle tem a cara particularmente feia – feiura e rispidez são
traços que, por algum motivo, parecem acompanhar os puros-sangues mais
velozes –, e agora mesmo ela está retorcendo o beiço superior enquanto
galopa. O tratador não está dando conta dela; não sei se ele simplesmente
não sabe do que normalmente ela é capaz, ou se pouco se importa. Mas, de
qualquer forma, Mettle o está fazendo de gato e sapato.
Malvern fala, finalmente.
– Sr. Kendrick. Essa potra é sempre assim?
Penso em como responder.
– Ela é cria de Malvern Penny e Pound e de Rostraver. – Penny e
Pound é uma das éguas favoritas de Malvern, e dizem que Rostraver ganhou
tantas corridas com obstáculos no continente que ninguém ousa competir
com ele de novo.
– O sangue nem sempre se manifesta – diz Malvern. Ele cospe e olha
outra vez para ela.
– Nesse caso, se manifestou.
– E ela resolveu fazer gracejos diante dos compradores, é isso?
Só consigo pensar naquilo que estou prestes a lhe perguntar, mas não é
o momento certo. Em vez de responder, seguro a cerca e passo por baixo,
atravessando a pista até onde está o tratador; mais um dos novos tratadores
de Malvern, ninguém tolera o alojamento e o pagamento por muito tempo.
Ele conduz Mettle em círculos, a acalmando. Ando até a potra e tomo a
rédea de suas mãos.
– Ei – o tratador me diz, surpreso. Ele é jovem como eu. Acho que seu
nome é Barnes, mas não tenho certeza. Talvez Barnes tenha sido o último. –
Sean Kendrick!
Com a mão livre, pego o cabo do chicote. Nem chego a tocar Mettle
com ele e ela dança em círculo, girando em torno do eixo onde a mantenho
presa.
– Malvern está observando. Você vai sair com ela de novo e vai fazer
com que ela trabalhe. Ela está comandando você.

– Eu estava dando duro nela – insiste Barnes.
Encosto levemente o cabo do chicote na parte posterior das patas de
Mettle e ela dá pinotes, como se eu a tivesse golpeado. Ela conhece minha
voz e sente minha certeza no ponto em que seguro a rédea.
– Talvez estivesse mesmo. Mas ela não acreditou em você, e eu também
não. Tome isso de volta.
Barnes pega o cabo do chicote e retoma as rédeas. Agora Mettle está
trêmula e ansiosa, segura apenas pelo meu toque em sua rédea. Barnes me
olha, e vejo que ele está com medo do potencial, com medo da velocidade.
Acho que é melhor ele aprender a amar isso tudo logo.
Solto a rédea e ergo minha outra mão como se ainda segurasse o cabo
do chicote, e Mettle explode num galope. Observo-a por um momento para
ver como Barnes se comporta. Ele não é de todo mau, apesar do terror. E
para ver se Mettle obedece. Eu poderia ter feito melhor, mas pelo menos ela
está trabalhando agora.
Volto para a cerca e passo por baixo dela. Os olhos de Malvern seguem
Mettle enquanto ele coça o queixo; posso ouvir as unhas roçando sua pele.
Ponho as mãos no bolso. Não preciso de cronômetro para saber que
Mettle melhorou seu tempo. Por um instante, fico em silêncio, procurando
algo que dará algum peso ao que estou prestes a dizer. Mas não há nada a
fazer a não ser falar:
– Eu compraria Corr.
Benjamin Malvern me lança um olhar no mínimo atravessado, e olha
de novo para o galope. Pega um cronômetro, que agora vejo que estava em
sua mão o tempo todo, e pressiona um botão quando Mettle para.
– Sr. Malvern – digo.
– Não gosto de ter a mesma conversa duas vezes. Eu disse a você anos
atrás, e vejo que estou me repetindo, que ele não está à venda para
ninguém. Não leve para o lado pessoal.
Conheço, obviamente, seus motivos para não vender Corr. Vendê-lo
equivale a perder um forte competidor nas Corridas de Escorpião. Vendê-lo

significa perder uma das maiores peças de publicidade que ele tem.
– Entendo por que não quer vendê-lo – digo. – Mas talvez você tenha
se esquecido de como era competir para outra pessoa e não ter um cavalo
para chamar de seu.
Malvern olha para o cronômetro, franzindo a sobrancelha; não porque
Mettle foi lenta, mas porque foi justamente o contrário.
– Eu já disse antes, vendo qualquer um dos puros-sangues para você.
– Não criei nenhum desses puros-sangues. Não os transformei no que
são hoje.
Malvern diz:
– Você transformou todos eles no que são hoje.
Não olho para ele.
– Nenhum deles me transformou em quem eu sou.
Isso soa como uma incrível confissão. Virei meu coração do avesso para
Malvern examinar o que havia dentro. Cresci junto de Corr. Meu pai o
montou e o perdeu, e então o encontrei de novo. Ele é a única família que
tenho.
Benjamin Malvern esfrega o dedão áspero no queixo, e por um
momento penso que ele está realmente considerando a possibilidade. Mas
então diz:
– Escolha outro cavalo.
– Treinarei os outros. É a única coisa que vai mudar.
– Escolha outro cavalo, sr. Kendrick.
– Não quero outro cavalo – digo. – Quero Corr.
Ele ainda não me olha. Se me olhar, penso, eu o convencerei. Meu
sangue canta em meus ouvidos.
Malvern diz:
– Não terei esta conversa mais uma vez. Ele não está à venda.
Enquanto Malvern observa o próximo cavalo subindo na pista, fecho as
mãos nos bolsos, lembrando-me de como Kate Connolly não recuou no
desfile dos cavaleiros. Lembro-me de Holly dizendo que deve haver algo que

Malvern queira mais que Corr. Lembro a estranha voz da deusa égua: “Faça
outro pedido”. Penso até em Mutt Malvern, arriscando tudo pela fama
naquela égua malhada. Sempre pensei que eu passaria a vida toda
apostando, arriscando a vida na praia todos os anos, mas agora sei que
nunca pus em risco a única coisa que realmente tinha medo de perder.
Eu não quero fazer isso.
Digo com muita calma:
– Então, sr. Malvern, eu me demito.
Ele vira a cabeça e uma de suas sobrancelhas se ergue.
– Como é?
– Eu me demito. Hoje. Encontre outro treinador. Encontre outra
pessoa para competir nas corridas.
Um leve esboço de sorriso percorre seus lábios. Reconheço isso:
desdém.
– Está tentando me chantagear?
– Chame do que quiser – digo. – Venda Corr para mim, e eu competirei
para você um último ano e continuarei treinando seus cavalos.
Na pista, um escuro cavalo baio castrado trota, respirando com
dificuldade. Ele ainda não está em condições de competir. Malvern esfrega a
mão sobre os lábios de novo, um gesto que de alguma forma me remete a
Mettle.
– Está superestimando sua importância para este haras, sr. Kendrick.
Não hesito. Estou de pé no oceano, sentindo-o contra as minhas
pernas, mas não vou deixar que ele me tire do lugar.
– Você acha que não consigo encontrar mais ninguém para montar seu
garanhão? – me pergunta Malvern. Ele espera que eu responda, e, quando
não falo nada, diz: – Há uns vinte garotos loucos para montar aquele cavalo.
A imagem parte meu coração, e tenho certeza de que essa é a intenção
dele.
Quando continuo sem falar, ele diz:
– Bem, então é isso. Tire suas coisas até o fim da semana.

Nunca tive de ficar tão firme. Nunca tive de ficar tão imóvel e valente.
Não consigo respirar, mas me obrigo a estender a mão.
– Não faça isso – diz Malvern, sem olhar para mim. – Eu inventei esse
jogo.
O encontro está encerrado.
Pode ser que eu nunca mais monte Corr.
Sem ele, eu não sei quem sou.

a maior parte do tempo, confio mais em Dove que em qualquer
pessoa, mas ela tem seus momentos. Ela não gosta de estar com a
água acima do joelho, o que em Thisby provavelmente é
sabedoria em vez de covardia. Quando era apenas uma potra, teve uma
disputa com uma caminhonete cheia de ovelhas e ainda não fez as pazes
com elas. E no geral ela se assusta com qualquer coisa que tenha a ver
com tempo ruim . Mas posso perdoá-la por essas coisas, pois não é sempre
que tenho de atravessar um rio, apostar corrida com uma caminhonete de
ovelhas ou trotar até Skarmouth em meio a um temporal.
Mas, quando volto para o topo dos penhascos aquela tarde, o tempo
está definitivamente ruim. O vento sopra baixo e reto pelo gramado, que
assumiu um tom verde-escuro por causa das nuvens que pairam logo acima.
Quando as rajadas golpeiam a cara de Dove com força suficiente para
diminuir sua velocidade, ela se assusta e treme. O ar cheira a capaill uisce .
Nenhuma de nós quer estar aqui nesta tarde escura como a noite.
Mas sei que devemos ficar. Se ventar ou chover no dia da corrida,
preciso que Dove fique firme. E não o animal escorregadio e indeciso que é
agora.
– Calma – digo a ela, mas seus ouvidos estão girando para captar tudo,
exceto minha voz.
Uma rajada de vento a empurra perigosamente para perto da beirada do
penhasco. Por um momento, vejo o pico do penhasco recoberto de grama
no ponto em que recai sobre a beirada da rocha, em direção à espuma do
oceano lá embaixo. Tenho a sensação atemporal e flutuante da
oportunidade. Então, sacudo uma das rédeas e faço com que ela siga em
frente.
Dove dispara em direção ao interior da ilha, ainda fora de controle, se

contorcendo e impossível de ser montada.
Uso tudo o que minha mãe me ensinou sobre montaria. Imagino que
uma corda presa à minha cabeça esticada ao longo de minha coluna me
prende à sela. Imagino que sou feita de areia. Imagino que meus pés são
pedras balançando dos dois lados da barriga de Dove, pesados demais para
serem afastados dali.
Mantenho o equilíbrio e consigo diminuir sua velocidade, mas meu
coração está martelando.
Não gosto de sentir medo dela.
É então que Ian Privett chega. Sob esse céu de chumbo, ele está todo
de preto, como alguém que vai a um funeral. Ele monta seu esguio cavalo
cinzento, Penda, que, mais que manchado, é estriado de branco, como o
oceano inquieto lá embaixo. A alguns metros de distância está Ake Palsson,
o filho do padeiro, numa égua uisce castanha, e com ele está um capall
uisce baio montado por Gerald Finney, que é primo de segundo grau ou
alguma coisa assim de Ian Privett. Há um grupo de homens a pé,
barulhentos e atingidos pelo vento.
Não consigo imaginar por que viriam todos até aqui, tão determinados,
até Tommy Falk trota atrás deles em sua égua negra. Quando o olhar dele
me encontra, há um aviso nele.
Ake Palsson conduz o grupo em minha direção. Ele parece seu pai, o
padeiro, o que deve ser péssimo, uma vez que o gigante Nils Palsson tem
tufos de cabelos brancos desgrenhados, profundas cavidades oculares e uma
pança que dá a impressão de que ele está escondendo um saco de farinha
debaixo da camisa. Mas os olhos estreitos de Ake só tornam o choque de
seus olhos azuis ainda mais impressionante, e seu cabelo quase branco de
tão loiro é casual em vez de desgrenhado. Ele é tão alto que chega a
intimidar, e, se em seu futuro haverá sacos de farinha, sua silhueta rígida
não dá nenhuma pista disso. Meu pai sempre gostou de Ake. Dizia que
“Ake é gente que faz”, o que é um elogio, porque nesta ilha muita gente não
faz nada.

Curvado no lombo de seu cavalo castanho, Ake grita, bem-humorado:
– E como vai o terceiro irmão Connolly?
Isso lhe rende uma risada. Só depois que sua risada termina percebo
que ele está se referindo a mim.
O cavalo baio de Finney morde Ake enquanto eles trotam juntos. É só
um barulho, mas o som daqueles dentes batendo faz Dove recuar.
– É uma vergonha o que é considerado piada hoje em dia – respondo.
Tento disfarçar o trabalho que Dove está me dando para mantê-la estável.
O vento já estava ruim o bastante, e agora temos capaill uisce .
– Está na moda – diz Ake. Não consigo ver as partes importantes de seu
rosto com esta luz, então não sei dizer se seu sorriso é do tipo engraçado ou
não. – Lá na praia começaram a chamar você de Kevin.
Antes que eu consiga detê-los, meus dedos se lançam envergonhados
em direção ao meu chapéu para sentir se meu cabelo estava saindo pelas
beiradas. Uma vez, anos atrás, Gabe brincou que Finn e eu éramos parecidos
se olhassem apenas para nosso rosto. Estou um pouco envergonhada de ver
o quanto me perturba a ideia de que posso ser confundida com um garoto.
– Que engraçado – digo. – Vou competir na corrida, então devo ser um
garoto. – Enquanto Ake e Finney se aproximam, deixo Dove trotar num
pequeno círculo para esconder o fato de que não consigo fazê-la parar por
completo.
Ake dá de ombros, como se pudesse ter pensado em coisa melhor.
Atrás dele, o cavalo baio de Finney se agita, batendo no castanho, que
quase colide com Dove. Seu medo sobe pelas rédeas.
Ake ri, enquanto Finney apressadamente retoma o controle de seu
cavalo baio.
– Mijão – diz Finney, baixando seu chapéu-coco para acalmar seu ego.
Ele aponta o queixo em minha direção. – Vamos, Kevin, vamos ver o que
você tem para mostrar.
– Não me chame assim – respondo. Ake e ele me rodeiam; seus cavalos
fazem Dove parecer pequena. Eles devem saber que isso a está deixando

agitada. – E eu já estava terminando.
Finney diz:
– Ora, tenha espírito esportivo. Disseram que você é um talento.
– Não vou apostar corrida com você agora – digo. Disponho meus
dentes num sorriso. – Mas vou ficar de olho em vocês, meninos.
Ake ri. Não se trata de um riso malvado, mas também não é para valer.
Ele diz:
– Tommy disse que você apostaria corrida conosco.
Vejo Tommy logo atrás. Ele balança a cabeça.
– Então Tommy não sabe do que está falando – respondo.
Finney pergunta:
– Onde estão seus colhões?
Preciso ir embora. No fundo, estou achando que isso vai ser um
problema, que Dove terá de lidar com muito mais que isso no dia da corrida.
Mas essa é uma preocupação distante. A mais imediata é que Dove está
tremendo e está prestes a perder o controle.
– Foi você que disse que tenho colhões, não eu. – Olho rapidamente
para trás, tentando ver se há espaço para afastar Dove deles. Algumas gotas
de chuva respingam em meu rosto. O pior de tudo é que não há nada de
mau em Finney e Ake; eles estão apenas se comportando como Joseph
Beringer. Só que Joseph Beringer nunca me provoca de cima de um
imenso capall uisce .
– Os agentes de aposta estão aqui – diz Finney, apontando com o
cotovelo para os observadores. – Você não quer mostrar que pode mais do
que o seu 45-1?
Finney deixa seu cavalo baio empurrar a égua de Ake outra vez, e a
égua castanha dá um forte encontrão em Dove. Ouço seus dentes batendo e
Dove guincha, o vento corta sua crina. Agarro-me a ela enquanto ela recua.
Atrás de sua orelha esquerda, vejo um arranhão superficial onde roçaram os
dentes do capall . O sangue se acumula numa dúzia de gotículas.
– Preciso de espaço! – grito.

Quando ouço minha própria voz, vejo que estou aterrorizada e
humilhada ao mesmo tempo. É a voz de uma garotinha assustada.
Ake e Finney ouvem a mesma coisa, porque a expressão no rosto deles
muda. Ake agarra as rédeas de sua égua castanha de maneira tão firme que
ela quase recua. Finney afasta seu cavalo baio de Dove.
Ambos estão olhando para mim, especialmente Ake, com pedidos de
desculpas no rosto.
Dove ergue a cabeça para o vento e relincha, estridente e aterrorizada.
Ake continua afastando seu cavalo. Estou aliviada por haver uma distância
entre ela e os capaill uisce , mas, ao mesmo tempo, estou envergonhada até
os ossos por esse espaço que subitamente me cerca.
De ponto de vista avantajado ali perto, os agentes de aposta secam a
umidade de seus chapéus e murmuram uns para os outros antes de se
afastarem sem nem ao menos me olhar. Ian Privett, ainda observando
montado em Penda, faz um sinal com a cabeça para Ake antes de também
se virar.
– Até mais, Kate – diz Ake, sem me olhar nos olhos, subitamente
acanhado. Ele coloca a rédea contra o pescoço de sua égua castanha e ela
vira em direção a Skarmouth. Finney toca seu chapéu e também
desaparece.
O topo do penhasco parece calmo agora, apenas o vento e o som de
gotas intermitentes penetrando a grama ao meu redor. Não consigo parar de
ouvir o som de minha própria voz, e, cada vez que ouço, me sinto um pouco
menor.
Tommy está pensativo. Por um momento, parece que ele está vindo em
minha direção, mas, ao perceber o movimento de sua égua uisce , Dove
guincha e ergue as orelhas de novo. Então ele só acena para mim com uma
das mãos próxima à rédea e segue os outros.
Sou deixada sozinha, as rajadas de vento tirando meu fôlego. Estou
furiosa com Dove por ser tão medrosa, mas estou mais furiosa comigo
mesma. Porque não importa se fui corajosa até agora ou se serei corajosa no

futuro. Apenas alguns minutos tolos foram suficientes para convencer todo
mundo aqui de que não pertenço à praia.

noite, Finn e eu fazemos um piquenique na baia de Dove. Ela
ainda está perturbada e agitada, e acho que ela nem vai encostar
no feno se eu não permanecer aqui fora com ela. E Finn diz que de
qualquer forma a tempestade vai nos manter dentro de casa por alguns dias,
então é bom sairmos enquanto podemos. Além disso, minha mãe costumava
dizer para fazermos piquenique ao ar livre quando estávamos fazendo muito
barulho lá dentro, então há uma certa nostalgia reconfortante nisso.
Obviamente, está escurecendo, e há uma garoa irregular, mas ainda
assim a baia está seca, e uma lanterna elétrica ilumina o suficiente para
vermos nossa sopa. Abro um dos pacotes baratos de feno para usar como
cobertor sobre nossas pernas, e nós nos inclinamos contra a parede da baia.
Finn, pressentindo meu humor sombrio, encosta a borda de sua tigela na
minha, como num brinde silencioso. Dove fica metade para fora e metade
para dentro da baia e come seu feno. Daqui tenho uma clara visão do
arranhão em seu pescoço, e mais uma vez ouço o som do meu grito no topo
do penhasco. Não consigo parar de imaginar o que teria acontecido se eu
tivesse simplesmente galopado com eles assim que me pediram. Não consigo
parar de ver o rosto deles conforme afastavam os cavalos de Dove.
Por alguns minutos, permanecemos em silêncio, engolindo batatas e
caldo, ouvindo os dentes de Dove moendo o feno caro e o som da leve
chuva sussurrando através do teto de zinco da baia. Finn empilha mais feno
sobre suas pernas para se proteger. Lá fora, o céu está ficando num tom azul
amarronzado e negro nas bordas.
– Ela já parece mais veloz – diz Finn. Sorve o restinho da sua sopa para
me irritar, então estala os lábios para se certificar de que conseguiu.
Coloco minha tigela vazia no fardo de feno atrás de mim e pego um
pedaço de pão. Meu estômago ainda está vazio.

– Você pode fazer aquele ruído de novo? Acho que não ouvi.
– Você está de mau humor – diz Finn.
Penso em três coisas que poderia oferecer como resposta, e no fim
simplesmente balanço a cabeça. Se eu falar em voz alta, será ainda mais
difícil esquecer.
Finn é uma criatura suficientemente reservada para não tentar me fazer
falar. Ele espalha o feno pelas pernas tentando deixá-lo uniforme. Depois de
uma longa pausa, diz:
– O que você acha que vai acontecer?
– Acontecer quando?
– Na corrida. E com Gabe. O que você acha que vai acontecer
conosco?
Mal-humorada, lanço um maço de feno para Dove.
– Dove vai comer sua comida cara e os capaill uisce comerão bife de
fígado, e as apostas estarão todas contra nós, mas haverá calor e vento no
dia da corrida e Dove seguirá reto, enquanto os outros virarão à direita, e
nós seremos as pessoas mais ricas da ilha. Você dirigirá três carros ao mesmo
tempo e Gabe vai decidir ficar e nós nunca teremos que comer feijão de
novo.
– Não assim – diz Finn, como se tivesse pedido uma história e eu tivesse
escolhido a errada. – O que vai acontecer de verdade.
– Eu não sou vidente.
– E se você não ganhar? Não estou dizendo nada ruim sobre Dove. Mas
e se ela não conseguir dinheiro nenhum?
Olho para ele para ver se já está se beliscando, mas Finn está apenas
cortando um pedaço de feno.
– A gente perde a casa. Benjamin Malvern nos expulsa.
Finn concorda com as mãos, como se tivesse adivinhado isso antes.
Gabe nos subestimara.
– E então, eu acho que... – tento imaginar o que acontecerá se eu falhar
– acho que terei de vender Dove. E teríamos de encontrar algum lugar para

morar. Se conseguíssemos um emprego, poderíamos morar no trabalho, se
fosse algo como... faxina. Ou no moinho. Dá para trabalhar no moinho.
Ninguém quer uma vida no moinho.
Tento pensar em outra coisa real, mas não tão terrível.
– Gratton disse que estava de olho em você como aprendiz. Sei que
você não conseguiria, mas talvez ele pudesse me considerar para o trabalho
em vez de você...
Finn diz:
– Eu conseguiria sim.
– Você não suportaria.
Ele estraçalha o feno nas mãos; é só poeira.
– Você também não suportaria participar da corrida, mas estará lá. Eu
poderia aprender a suportar, se fosse preciso.
Mas não quero que ele aprenda a suportar. Quero que meu doce e
inocente irmão permaneça como é, e quero que minha melhor amiga, Dove,
fique ao meu lado, e não quero trocar a casa onde cresci por um quartinho
minúsculo e um emprego no moinho.
– Mas não é isso que vai acontecer – digo. – A primeira história que
contei é que vai acontecer.
Finn esmigalha outro pedaço de feno. Dove também.
E, bem nesse momento, um estalido estranho ressoa.
O teto de zinco da baia é velho, há muito que estalar ali, e sua única
parede forma parte da cerca, então há mais uma chance de estalo no ponto
onde as tábuas encontram as colunas da baia. E a própria cerca não é a coisa
mais nova da ilha, por isso de fato qualquer lugar em que há uma junção
poderia estalar.
Mas não é esse tipo de estalido.
É mais como um estalido seguido de uma batida. Não bem uma batida.
Mais suave que isso. Um tapinha. Quando penso nisso, não consigo nem
imaginar como ouvi esse ruído, até notar Finn olhando para mim,
completamente imóvel, e percebo que não só ouvi, eu senti.

Finn e eu viramos a cabeça em direção à parede da baia em que
estamos recostados.
Quero dizer: “Talvez tenha sido Puffin”. Mas Dove parou de mastigar e
ergueu as orelhas em direção ao som, mesmo que obviamente não haja nada
para ver. Não acho que ela as ergueria por causa de um gato.
Finn e eu nos sentamos imóveis. A garoa faz sssssss no telhado. Estamos
tentando não olhar um para o outro, porque o olhar tornaria mais difícil
escutar. Não há nada. Nada mesmo. Apenas a chuva no teto. Dove ainda
está na escuta, mas não há nada para ouvir. Era apenas o telhado se
ajeitando. Nossa pequena lanterna elétrica faz um círculo amarelo no teto.
O mundo está silencioso.
Então:
Whuff
E os sons inconfundíveis de passos lentos do outro lado da parede.
Não é o som de pés.
É o som de cascos.
Olhamos um para o outro.
O estalido acontece de novo, e dessa vez nós dois sabemos o que é.
Sinto o empurrão do outro lado da parede e mordo o lábio com força. Com
uma expressão de dúvida, Finn põe um dedo no interruptor de luz elétrica.
Balanço a cabeça furiosamente. A única coisa que pode ser pior que
enfrentar um capall uisce nesta noite chuvosa é fazer isso sem luz.
Em vez disso, começo a me enterrar no cobertor de feno que fiz,
lentamente, para impedir que os pedaços de feno façam barulho. Finn
imediatamente me segue. As orelhas de Dove giram para seguir um sinal
invisível do outro lado da parede. Se eu forçar os ouvidos, consigo ouvir o
som de um casco batendo no chão, e então outro. Outra expiração, não
mais barulhenta que a chuva no teto.
Não sei o que o capall uisce está fazendo. Talvez ele perca o interesse.
Talvez seja desencorajado pela cerca que nos separa dele. Em minha cabeça,
traço os passos que teríamos de dar para voltar para casa: pelo outro lado da

baia, descendo duas partes da cerca, passando por cima do portão de metal
e então cinco metros até a porta.
Talvez um de nós passasse pelo portão a tempo. Isso não basta.
A noite está escura e quieta. Aguço meus ouvidos para notar outro
passo dado pelo casco. A atenção de Dove permanece fixa no último ponto
de onde veio o som. Finn, quase totalmente recoberto de feno, encontra
meus olhos. Sua mandíbula está travada.
A neblina assobia sobre o teto. A água pinga na borda do metal, uma
gota, duas gotas de cada vez, fazendo um barulho suave e praticamente
inaudível quando chega no chão. Em algum lugar muito distante, ouço o
que soa como o motor de um carro, talvez. O vento provoca o feno. Não há
nada do outro lado da parede.
Dove permanece alerta.
Uma cara longa e negra olha pela lateral da baia.
É o demônio.
Eu me esforço com todo o meu ser para não choramingar. A criatura é
negra como carvão à meia-noite, e seus lábios estão repuxados para trás
num sorriso tenebroso. As orelhas são longas e apontam perversamente uma
para a outra, mais como um demônio do que como um cavalo. Elas me
fazem pensar em ovas de tubarão. As narinas são longas e finas para impedir
a entrada do mar. Olhos negros e escorregadios: olhos de peixe.
Ele ainda fede ao oceano. Como a maré baixa e as coisas que ficam
presas às rochas. Mal é um cavalo.
Ele está faminto.
O capall uisce enganchou a cabeça do lado da baia, por cima da cerca.
Tudo o que há entre nós e seu sorriso estranhamente suave são três tábuas
que eu mesma preguei enquanto minha mãe observava. Três pregos, não
dois, em cada uma, porque pôneis, dizia ela, testam tudo.
E agora este cavalo negro como a noite pressiona o peito contra elas.
Sem se esforçar. Com a mesma força com que empurrara a parede da baia.
Os pregos estalam.

Ouço meu coração ou o coração de Finn ou talvez ambos, e está
batendo tão rápido e alto que não consigo respirar. Minhas mãos estão
fechadas sobre o feno, as unhas cravadas nas palmas.
Estamos escondidos, você não pode nos ver, vá embora.
Dove está absolutamente imóvel.
O capall uisce olha para ela, abre a mandíbula e lança um som que
congela meu sangue. É uma exalação assoviada com estalidos baixos de
fundo, vindos das profundezas de sua garganta: kaaaaaaaaaaaaaaaw .
Dove abaixa as orelhas, mas não se mexe.
Quantas vezes já não nos disseram que os capaill uisce querem um alvo
móvel? Que se mexer significa morrer?
Dove é uma estátua.
O capall uisce empurra mais uma vez. As tábuas estalam mais uma vez.
Ouço Finn suspirar. É tão silencioso que sei que apenas eu poderia ter
escutado, e apenas eu porque passei a vida toda ouvindo cada um dos sons
que meus irmãos poderiam produzir. É um barulhinho suave e assustado que
não ouço há muito tempo.
Então, ouço um gemido de dor.
Vem do pasto. Tanto Dove como o capall uisce giram uma orelha em
direção ao ruído.
O barulho ecoa de novo, e meu estômago é um buraco sem fundo. É
outro deles, eu acho, que derrubou a cerca do outro lado, que está no pasto
conosco, nem mesmo três pregos por tábua para nos manter vivos.
O monstro negro gira suas orelhas estranhas e longas outra vez.
O gemido de dor de novo. Soa como um bebê chorando, e então vejo a
boca de Finn se mexendo. É praticamente tudo que consigo ver dele. Finn
sussurra com sílabas exageradas:
– Puffin .
O som de novo e, desta vez, reconheço-o imediatamente. Puffin, a gata
do estábulo, sempre em busca de Finn, voltando de seus passeios e atraída
por nossa luz. Ela geme de novo, seu miado é como um grito de bebê que ela

usa para chamá-lo. Quando ele está generoso, responde com outro miado e
ela usa o som como um farol para chegar em casa.
Agora ela grita de novo, mais perto, e o capall uisce tira o corpo da
cerca.
Sob a luz cinzenta da neblina que a chuva levanta, vejo a silhueta de
Puffin trotando em nossa direção, seu rabo como um ponto de
interrogação. Miau? ,ela pergunta.
O sorriso do capall uisce se fecha.
Puffin vê o animal apenas quando ele se mexe. A cerca se rasga como
papel, as tábuas explodem com um som que é como se o mundo estivesse
sendo destruído.
Ela dá um pulo e o capall uisce dispara atrás dela, ainda mais faminto
pela perseguição. Ambos desaparecem na neblina, e a última coisa que ouço
são cascos arranhando, frenéticos, e Puffin gemendo.
Finn cobre o rosto, o feno caindo de suas mãos, e vejo seus ombros
tremendo.
Mas não consigo pensar naquilo. Penso nisto: o capall uisce voltando e
matando meu irmão.
Agarro seu ombro.
– Vamos.
Ainda não tenho um plano, mas sei que não podemos ficar aqui.
Vindo detrás de mim, ouço um som, e me viro com tanta força que
meus músculos doem. Preciso de um segundo para perceber que é uma voz,
pronunciando meu nome.
– Puck!
É Gabe, pisando o pedaço de cerca destruída que o cavalo acabou de
atravessar. Sua voz é um sussurro quando ele agarra meu braço.
– Depressa. Ele vai voltar.
Estou tão chocada por vê-lo, justo agora, que de início não consigo
falar.
– Dove. E Dove?

– Traga-a – sussurra Gabriel, quase inaudível. – Finn. Acorde. Vamos.
Pego o cabresto de Dove; ela joga a cabeça no ar e faz meu braço se
erguer. Está tremendo como no topo do penhasco.
– Puffin – digo a Gabe.
– É um gato. Sinto muito, mas temos de ir – Gabe puxa Finn. – Há
mais dois. Estão vindo.
Gabe segue na frente passando pela cerca destruída. Quando levo Dove
até a cerca, ela recua, detida pela lembrança da barreira, e por um breve e
terrível instante penso que terei de deixá-la para trás. Estalo a língua
suavemente, e ela enfim pisa sobre as tábuas quebradas. Na frente da casa,
vejo lanternas, e agora Tommy Falk com o rosto parcialmente iluminado.
Ele abre a porta do carro com um empurrão e gesticula para que Finn entre
logo. Gabe surge ao meu lado com uma corda.
– Segure-a pela janela.
– Mas...
– Agora .
E bem no momento em que ele diz isso, ouço o mesmo estalido de
antes, só que agora vindo de algum lugar no estábulo onde estávamos. A
distância, ouço o eco atravessando a neblina, um som em resposta. Prendo a
coleira no cabresto de Dove e subo no carro. Tommy Falk já está no
volante, e Gabe bate a porta atrás de si.
Então partimos pela estrada estreita, os faróis refletidos na neblina e na
chuva conforme pulam de volta do chão. Ao nosso lado, Dove trota e
depois galopa. Fecho o vidro deixando espaço apenas para a corda. Tommy
Falk está totalmente concentrado na direção – checando constantemente
os espelhos, se certificando de que não estamos sendo seguidos, cuidando
para que Dove consiga nos acompanhar –, e a intensidade daquilo
subitamente me faz lembrar que o vi na praia pouco antes.
O carro está silencioso e quente; o aquecedor estava ligado na
intensidade máxima, e ninguém pensou em desligá-lo. O carro todo cheira,
não de forma desagradável, ao interior de um sapato novo. Ao meu lado, no

banco de trás, Finn está infeliz por causa de Puffin.
A única coisa pronunciada é quando Gabe se vira para Tommy e
pergunta:
– Sua casa?
Tommy diz:
– Não com o pônei. Temos que ir para a casa de Beech.
Então Finn me belisca e aponta para frente. Recém-iluminada pelos
faróis, jaz uma ovelha morta. Está mutilada e foi arrastada do acostamento
até o meio da estrada.
Não consigo deixar de olhar para seu corpo despedaçado, mesmo depois
que a deixamos para trás. Poderia ter sido conosco. Tommy e Gabe não
comentam nada sobre aquilo. Eles não dizem nada, na verdade. Estão num
silêncio severo e familiar, Gabe olhando pelas janelas e comunicando a
Tommy que a passagem está livre sem pronunciar uma única palavra.
Tommy não pega a estrada para Skarmouth como eu esperava, em vez
disso toma a estrada que leva a Hastoway. Ele diminui a velocidade no
cruzamento, mas não para, e tanto ele como eu espiamos ansiosamente em
todas as direções até partirmos outra vez. Pressiono o rosto contra o vidro,
para me assegurar de que Dove não está tendo dificuldade em manter o
passo.
– Eu posso montá-la e seguir vocês.
A voz de Gabe não deixa espaço para negociação.
– Você não vai sair deste carro até estarmos em total segurança.
Então, silêncio de novo, nada além da noite, muros de pedra e a chuva.
– Finn – Gabe diz, enfim, em volume alto para ser ouvido por sobre o
som do motor. – Esta tempestade que está vindo, quanto tempo vai durar?
Os olhos de Finn estão brilhantes no banco de trás, e ele fica tão
incrivelmente satisfeito com o fato de a pergunta ter sido dirigida a ele que
isso me dói.
– Só hoje à noite e amanhã.
Gabe olha para Tommy.

– Um dia. Não é muito tempo.
– Tempo suficiente – diz Tommy.

ommy Falk nos leva até a casa dos Grattons, próxima a Hastoway.
Não estou bem certa da distância, porque, sob a chuva torrencial e
as lâmpadas artificiais, tudo fica muito parecido. Beech nos
encontra, os ombros curvados contra o vento. Ele me mostra onde Dove
deve ficar. Com a lanterna, indica uma cocheira de quatro baias, simples e
sem luz elétrica. Uma das baias é ocupada por cabras, a outra, por galinhas,
e a outra, por um cavalo castrado atarracado e cinzento, que estica a cabeça
sobre a porta da baia quando Dove entra. Ela coloca as orelhas para trás,
numa saudação bem ingrata, e eu a instalo na baia ao lado dele. Quero
passar mais um tempo com ela, mas me parece uma grosseria quando Beech
está ali parado com o braço esticado, iluminando a cocheira com sua
lanterna. Por isso, dou apenas um tapinha em seu pescoço e digo “obrigada”
a Beech. Ele resmunga e aponta para a casa com a lanterna.
Dentro da casa, Gabe e Peg Gratton conversam enquanto Tommy Falk
ergue a tampa da panela para xeretar o que tem ali dentro. Não vejo Finn.
A cozinha em si me lembra o açougue, se ele ficasse dentro de uma
casa. Apesar da escuridão lá fora, aqui dentro é claro, as paredes da cozinha
são caiadas de branco e há panelas e facas penduradas nelas. A claridade e a
sensação de limpeza não são diminuídas pelo fato de o chão estar repleto de
pegadas. Há meia dúzia de prateleiras com bugigangas, mas são coisas muito
diferentes das que temos em casa: estátuas de madeira que podem ser tanto
de cavalos quanto de veados, um maço de grama amarrado com fita
vermelha, um pedaço de pedra calcária com o nome PEG gravado.
Nenhuma das estatuetas de vidro pintadas ou das belas paisagens repletas
de ovelhas e mulheres alegres que minha mãe gostava. Enfim, há
quinquilharias, mas não bagunça. No ar, um cheiro forte e delicioso, seja lá
o que estiver sendo preparado naquele fogão.

– Eles ficarão no seu quarto – Peg diz a Beech assim que ele entra. Sob
a luz forte da cozinha, posso ver que ele se transformou num cara grande e
durão, muito parecido com seu pai. Ele quase parece feito de madeira,
inflexível, mudando muito lentamente de expressão. E, quando o faz, não
parece nada contente.
– Nada disso – ele responde.
– E onde você espera que eles fiquem? – pergunta Peg Gratton. É muito
estranho vê-la ali naquela cozinha, e não atrás do balcão do açougue como
alguém que pode retalhar você e arrancar seu coração, ou no nosso quintal,
me dizendo para não participar da corrida, ou com aquele capacete de
pássaro, cortando meu dedo com uma lâmina. De alguma forma, ela parece
menor, mais ajeitadinha, com o cabelo ruivo cacheado bagunçado como
sempre. Estou abismada com a facilidade com que ela, Beech e Gabe
discutem de novo e de novo e de novo sobre onde vamos dormir, e me dou
conta de que parte do tempo em que Gabe esteve fora deve ter sido passado
aqui. Talvez grande parte. Isso me faz perceber que viemos para cá porque é
o lugar onde Gabe se sente seguro. E isso faz com que eu me sinta estranha e
triste, como se tivéssemos sido substituídos por outra família.
– Onde está Finn? – pergunto.
– Lavando as mãos, é claro – diz Gabe. – Ele vai ficar ali por décadas.
Fico desconfortável com o comentário sobre as manias de Finn, porque
esse sempre me pareceu um assunto privado, algo que só os Connollys
soubessem. Gabe não está tirando sarro de Finn, mas quase faz parecer que
está.
– Onde é o banheiro?
Tommy, e não Peg ou Beech, faz um gesto em direção à escada do
outro lado da cozinha. É como se aquela casa fosse de todo mundo, não só
dos Grattons. Deixo a cozinha ressentida. No topo da escada há um
corredor estreito e mal iluminado, com três portas, mas só há luz saindo pela
fresta de uma delas. Eu bato. Não há resposta até eu dizer o nome de Finn, e
então, após uma pausa, a porta se abre. É um cômodo pequeno, com espaço

suficiente apenas para uma banheira, uma privada e uma pia, todos bem
grudados como se fossem melhores amigos e não se importassem em
encostar nos ombros uns dos outros. Finn está sentado na privada com a
tampa abaixada. Há pegadas grandes no chão ladrilhado.
Fecho a porta atrás de mim e me certifico de que a banheira está seca
antes de entrar e me sentar ali.
– Ele vem aqui o tempo todo – me diz Finn.
– Eu sei – respondo. – Também percebi.
– Foi aqui que ele ficou.
O pesado sentimento de traição repousa entre nós. Quero dizer algo
que melhore as coisas para Finn. Ele idolatra Gabe, faria qualquer coisa por
ele. Mas não consigo pensar em nada.
– Você acha que Puffin está morta? – Finn pergunta.
– Não, ela foi embora – respondo.
Ele examina as próprias mãos. Estão um pouco ressecadas nos nós dos
dedos, de tanto que ele as lavou.
– É, também acho.
Desvio o olhar para as alças brilhantes da banheira. Elas lembram o
radiador do carro do padre Mooneyham.
– Então – digo –, um dia?
Finn acena solenemente com a cabeça.
– Um dia. O pior virá amanhã cedo, eu acho.
– Claro, claro. Como você sabe?
Ele parece impaciente.
– Por causa de tudo que vi. Se as pessoas usassem seus olhos, saberiam
também.
A porta se abre sem que ninguém bata antes, e Gabe está de pé sob o
batente. Seu humor está ótimo, de um jeito que há tempos eu não via.
– Vocês estão dando uma festinha particular aqui?
– Sim – respondo. – Começou na banheira e se espalhou até a privada.
Tudo que restou foi a pia, caso você se interesse.

– Bem, todo mundo lá embaixo está perguntando por vocês. Estão
preparando ensopado de carneiro, mas só se vocês saírem do banheiro.
Finn e eu trocamos um olhar. Eu me pergunto se ele está pensando a
mesma coisa que eu: que Gabe não pode simplesmente fingir que não há
nenhum ressentimento entre nós, que ele não nos deixou e que tudo voltará
a ser como antigamente. Antes eu pensava que uma palavra dele bastaria,
mas agora sei que quero que ele peça perdão. Se eu não receber um pedido
de desculpas muito humilde, não quero mais nada.
Enquanto desce as escadas, Gabe diz:
– Você vai dormir no sofá, Finn, sinto muito. Porque você é o menor.
– Quem disse? – pergunto.
Gabe dá de ombros.
– Bem, tecnicamente você é a mais baixa, mas Peg acha que deve
dormir num quarto. Você sabe, com porta e tudo mais. Então, você vai ficar
no quarto de Beech.
– E onde Beech vai dormir?
– Ele e Tommy vão ficar num colchão na sala. Peg disse que vai
funcionar dessa forma.
Na cozinha, os rapazes estão barulhentos e falam um por cima do outro.
Beech e Tommy seguram alguma coisa e um tenta impedir o outro de
alcançá-la, e um cão pastor que apareceu do nada também entra na
brincadeira. Peg segura uma colher numa das mãos e agarra um gato pelo
cangote com a outra. Ela parece nervosa com ambos.
– Coloque o gato para fora – ela diz a Gabe, e ele pega o bicho da mão
dela e o coloca no quintal. Ela faz uma careta para mim. – Eu não consigo
cozinhar assim. Gatos são um inferno.
Antes que eu possa responder, Gabe pergunta:
– Onde está Tom?
Levo um instante para perceber que ele se refere a Thomas Gratton.
Nunca me passou pela cabeça que, em sua casa, Thomas Gratton fosse
chamado de Tom.

– Ele foi ver como estão os Mackies. Beech, se manda. Vocês todos,
fora daqui. Vão para a sala enquanto termino o jantar. Fora .
Beech e Tommy obedecem e deixam a cozinha, levando a algazarra
com eles. Finn vai atrás, encantado com o cão.
Eu me viro para sair, mas me detenho quase na porta e, hesitante, olho
por cima do ombro. Peg Gratton está diante do grande fogão preto,
mexendo nas panelas, e Gabe está parado bem atrás dela, sussurando em
seu ouvido. Acho que consigo ouvi-lo dizendo “forte o suficiente” e…
– Puck, pega! – grita Tommy.
Viro o rosto na direção da sala bem a tempo de ser atingida na boca por
uma meia cheia de feijões.
Beech dá uma gargalhada, mas Tommy parece sem graça e pede
desculpas. A collie brinca ao meu redor querendo ser minha amiga, louca
para pegar a meia, e percebo que era isso que Beech e Tommy disputavam
há pouco na cozinha.
– Você devia mesmo se desculpar – digo a Tommy, que ainda parece
sem jeito, parado ao lado do sofá verde que vai servir de cama para Finn.
Jogo a meia de volta para ele.
Feliz por ter sido perdoado tão facilmente, ele sorri e joga, no mesmo
instante em que a apanha, a meia para Beech, que a perde para a collie.
Tommy não liga em fazer papel de bobo, correndo atrás da cadela e
brincando com ela. Até Finn ri da cena. Fico imaginando o que leva
Tommy a deixar a ilha; ele não é soturno como Gabe nem mal-humorado
como Beech. Parece sempre bem, contente, completamente à vontade com
o estilo de vida da ilha. No chão, Tommy finalmente consegue roubar a
meia da cadela, e lançamos o brinquedo uns para os outros, até mesmo para
ela, que ama a brincadeira, até que Finn pergunta:
– Onde está Gabe?
E nós percebemos que ele não saiu da cozinha.
Começo a caminhar para lá, mas Tommy segura meu braço.
– Eu vou.

Ele enfia a cabeça pela porta e eu não consigo escutar o que diz. Um
instante depois, fala:
– Boa notícia. A comida está pronta.
Gabe surge no batente atrás dele, e eles trocam um olhar que me deixa
louca da vida, porque fica claro que têm segredos.
Finalmente, Peg aparece e se dirige a todos nós:
– Se quiserem comer, terão de se servir. E, se não gostarem da comida,
culpem Tom. Foi ele quem fez.
Não há muita conversa enquanto comemos. Talvez, como eu, as outras
pessoas em volta da mesa estejam pensando em tudo que aconteceu esta
noite. Mas é um silêncio sem exigências. A tempestade não está forte o
suficiente para que seu barulho atrapalhe a refeição e é fácil fingir que tudo
aquilo não passa de uma visita social. A única vez em que Peg Gratton se
dirige a mim é para dizer que, antes que a tempestade piore, posso dar mais
feno a Dove se achar necessário.
E ela tem toda razão sobre a tempestade. Quando vamos nos deitar, o
vento se torna furioso, cheio de força, e faz as vidraças tremerem nas
janelas. Os lençóis da cama estão limpos, mas o quarto ainda tem o cheiro
de Beech, ou seja, presunto salgado. Antes de apagarmos as luzes, noto que
não há objetos pessoais no quarto, nada que indique que Beech é o dono do
quarto. O cômodo tem só uma cama, uma escrivaninha bem simples com
um vaso vazio e algumas moedas sobre ela, além de um armário estreito e
gasto. Eu me pergunto se havia mais de Beech aqui e se ele já havia
embalado para levar para o continente.
Penso nisso enquanto tento pegar no sono. Estou virada para um lado
da cama e Gabe para o outro, mas é uma cama de solteiro e o cotovelo dele
está nas minhas costelas e seu ombro espremido contra o meu. Está mais
quente aqui do que estava em nossa casa, e a presença de Gabe aumenta
ainda mais a temperatura, então não sei bem se conseguirei dormir. A
respiração de Gabe também não indica que ele esteja dormindo.
Por um longo momento ficamos ali deitados no escuro, ouvindo a

chuva no telhado, e eu penso na cerca quebrada lá em casa, no último som
de Puffin que ouvi e naquela cara comprida e negra espiando da lateral da
baia para dentro do estábulo.
Por causa do cansaço, digo exatamente o que estou pensando, sem um
pingo de tato.
– Por que você voltou para nos apanhar? – Apesar de eu estar
sussurrando, minha voz ecoa naquele quartinho.
A resposta de Gabe do outro lado da cama é seca.
– Sinceramente, Puck, por que você acha?
– O que isso importa para você?
Agora ele está indignado.
– Que tipo de pergunta é essa?
– Por que você está respondendo a todas as minhas perguntas com
outras perguntas?
Gabe tenta se mexer para colocar algum espaço entre nós, mas não há
mais colchão para isso. A cama geme e range como um navio no mar, mas o
mar não passa do chão de madeira no quarto de Beech que cheira a
presunto.
– Não sei o que quer que eu diga.
Não quero ser acusada de ser histérica, então meço as palavras com
cuidado e falo bem devagar.
– Quero saber por que você se importa com a gente agora, se no
próximo ano você terá ido embora, e Finn e eu podemos ser devorados em
outubro e você, lá no continente, nunca saberia.
No escuro, ouço Gabe suspirar pesadamente.
– Não é que eu queira deixar vocês para trás.
Eu me odeio pela pequena ponta de esperança que sinto quando ele diz
isso. Mas é verdade que eu o imagino de braços abertos, anunciando que
mudou de ideia, enquanto abraça Finn, Dove e eu de uma vez só.
Digo:
– Então não vá. Fique.

– Eu não posso.
– Por que não?
– Eu simplesmente não posso.
É a conversa mais longa que tivemos em uma semana, e eu me
pergunto se devo apenas deixar para lá. Eu o imagino dando um pulo,
jogando o lençol para o lado e deixando o quarto louco da vida para não ter
mais que falar comigo sobre coisa nenhuma. Bem, se ele quisesse fugir dali,
teria de pular o corpo de Tommy Falk e o de Beech Gratton no chão e
evitar cair sobre o sofá onde Finn está, para depois ir se sentar na cozinha
escura. Não acho que ele vá fazer uma coisa dessas. Por isso, eu digo:
– Esse não é um motivo verdadeiro, Gabe.
Ele não diz nada por um bom tempo, depois suspira e diz com uma
estranha e fraca voz:
– Eu não aguento mais.
Sinto-me tão estranhamente grata por sua honestidade que não sei o
que pensar. Eu me esforço para pensar numa boa pergunta, que faça com
que ele continue falando assim. É como se a verdade fosse um passarinho e
eu tivesse medo de espantá-lo.
– O que você não aguenta mais, Gabe?
– Esta ilha. – Ele respira fundo entre cada palavra. – A casa onde você
e Finn estão. O falatório. Os peixes, os malditos peixes. Vou cheirar a peixe
pelo resto da vida. Os cavalos. Tudo. Não posso mais viver assim.
Ele parece muito infeliz, mas não parecia assim mais cedo, quando
estávamos todos na cozinha ou durante o jantar. Não sei o que dizer. As
coisas das quais ele reclamou são as coisas que amo na ilha, exceto talvez o
cheiro de peixe, que é uma coisa que pode estragar todo o resto. Mas não sei
se essa é razão forte o suficiente para deixar tudo para trás e começar uma
vida nova.
É como se ele tivesse confessado que está morrendo de uma doença que
eu também tenho, mas da qual nunca ouvi falar, com sintomas que não
posso ver. E isso me parece tão errado, não entra na minha cabeça. E penso

nisso de novo e de novo.
A única ideia que consigo realmente entender é que essa coisa, essa
coisa estranha, incompreensível e invisível, é grande e forte o suficiente
para conduzir meu irmão para longe de Thisby. Por mais que Finn e eu
fôssemos importantes na vida dele, isso é maior.
– Puck? – diz Gabe, e eu me assusto.
– Sim?
– Eu gostaria de dormir agora.
Mas ele não dorme. Ele se vira para o lado e sua respiração continua
leve e vigilante. Não sei por quanto tempo ele permanece acordado, mas sei
que adormeço antes dele.

em cedo, quando ainda está escuro, a tempestade me faz despertar.
O vento ruge acima de nós, como um motor, o uivo de uma criatura
do mar. Meus olhos se acostumam com a escuridão e vejo as luzes se
movendo lá fora. Rajadas de chuva atingem o vidro da janela numa onda de
fúria e depois em outra e mais outra.
Agora ouço os cavalos. Eles relincham, chamam e escoiceiam as
paredes. A tempestade os deixou desvairados, e, do lado de fora, alguma
coisa está gritando. Foi esse grito que me acordou, não o vento.
Eu me sento, agindo sem pensar. Depois disso, hesito. São meus cavalos
ali fora, ilhados nas cocheiras, sozinhos nesta madrugada terrível. Mas, ao
mesmo tempo, não são meus, e, ao abandonar tudo, eu os tornei ainda
menos meus do que eram antes. Devo ficar aqui, sem fazer nada, permitindo
que a noite faça o que tem de fazer. Deixe que Malvern faça o
levantamento dos estragos pela manhã e se dê conta de que sou inestimável.
Fecho os olhos, apoio a testa no punho e ouço os lamentos lá fora.
Ainda mais perto, ali embaixo, ouço um cavalo apavorado dando coices na
parede de sua baia, levando as paredes ou a si mesmo à destruição.
“Está superestimando sua importância para este haras, sr. Kendrick.”
Mas eu não fiz isso.
Não posso deixar nem um único cavalo morrer porque estou no meio
de uma disputa com Malvern.
Calço minhas botas e apanho minha jaqueta, e, quando estou prestes a
tocar a maçaneta, há uma batida na madeira.
É Daly. Seu cabelo está molhado e grudado no rosto e há sangue nas
mangas de sua camisa. Ele estremece, impotente.
– Malvern disse para nos virarmos sem você, mas não dá. Ele não
precisa saber. Por favor.
Ergo meu casaco para lhe mostrar que eu já estava indo, e juntos

corremos pelas escadas estreitas e escuras em direção ao estábulo. Tudo
cheira a chuva e ao mar e, mais uma vez, a mais chuva.
Daly me apressa.
– Eles não vão se acalmar. Há um capall uisce em algum lugar lá fora, e
não sabemos se ele está entre os cavalos e quem está machucado por causa
do barulho, como você pode ouvir agora. Eles estão todos se chutando.
Quando conseguimos acalmar um, a gritaria dos demais o enfurece de novo.
– Eles não vão se acalmar com essa gritaria toda – digo.
Todos os cavaleiros, treinadores e cavalariços de Malvern estão aqui
fora tentando acalmar seu cavalo mais precioso. As lâmpadas sobre nossa
cabeça balançam ao vento que encontra seu caminho por aqui, e a luz oscila
sobre mim, e é como se eu estivesse perdendo a consciência. Passo por
Mettle em sua baia. Ela relincha e bate as patas dianteiras no chão quando
para de empinar. Se ela ainda não estiver doente, ficará em breve. Ouço
Corr chamando e fazendo barulho, levando os cavalos perto dele à loucura.
Em algum lugar atrás de mim, outro cavalo está batendo um casco contra a
parede, num gesto rítmico e sem sentido. Lá fora, os gritos continuam.
Daly está logo atrás de mim conforme me dirijo à baia de Corr. Em meu
bolso, minha mão se fecha em torno de uma pedra com um buraco no meio.
Se Corr fosse qualquer outro cavalo d’água, eu teria prendido essa pedra em
seu cabresto esta noite, para que fizesse mais barulho do que faz o mar de
novembro que se aproxima. Mas Corr não é um cavalo d’água qualquer, e
meus truques o deixariam ainda mais ansioso.
Abro a mão e deixo a pedra no bolso.
– Mantenha todos afastados – digo. – Mantenha todos fora do meu
caminho.
Abro a porta da baia de Corr e ele se adianta na direção do corredor.
Pressiono minha mão em seu peito e depois o golpeio, empurrando-o para
trás. Um dos puros-sangues relincha com raiva.
– Mantenha todos afastados – repito para Daly.
Ele se afasta para que eu possa passar, e então permito que Corr deixe

sua baia e me arraste pelo corredor em direção à porta que dá para o pátio.
Ela está fechada para a chuva e para o pior.
– Não saia por aí! – grita Daly atrás de mim. – Malvern está lá fora.
Isso não é nada bom. Malvern vai saber que eu ainda estou entre os
seus cavalos. Mas não posso parar o que está acontecendo aqui sem resolver
o problema lá fora primeiro.
Empurro a porta para abri-la, enquanto Corr se debate e resfolega no
cabresto, dificultando meus movimentos. No mesmo instante, fico ensopado
com a chuva. Há água em meus ouvidos, em meus olhos. Eu estou bebendo
o céu. Tenho de afastar a água que escorre pela minha testa e piscar para
conseguir enxergar. As telhas do estábulo estão espalhadas por todo o
quintal. Todas as lâmpadas do haras estão acesas, e a chuva que cai forma
halos em torno de cada uma delas. Três éguas estão no portão, implorando
desesperadas para entrar. São matrizes e vivem nas pastagens de Malvern no
caminho para Hastoway. O fato de estarem soltas significa que algo ruim
aconteceu com a cocheira delas e vieram por instinto a um lugar conhecido,
onde se sentem seguras. Uma delas manca tanto que meu coração se aperta.
A maior deve ter reconhecido meu caminhar, pois faz uma pausa e para de
se debater e relincha para mim, num chamado longo e implorante.
Confiando em mim para salvá-la do que quer que a tenha espantado.
E ali estão Malvern e David Prince, o tratador principal. Malvern tem
uma espingarda nas mãos, o que é muito otimista de sua parte.
Aqui fora os gritos parecem vir de todos os lados. O ar vibra com cada
pingo que cai, e as nuvens se enfrentam acima de nós. É um uivo que age
como veneno, uma promessa paralisante. Esta tempestade tem levado a ilha
à loucura.
Corr dá um tranco e puxa meu braço. Vejo seus cascos deixarem as
pedras e voltarem, mas não posso ouvir o som deles. Tudo que consigo ouvir
é o lamento interminável, alto como se estivesse dentro da minha cabeça. É
um grito que percorre muitos e muitos quilômetros debaixo d’água.
Puxo Corr pelo cabresto para chamar sua atenção, e então inclino sua

cabeça em minha direção. Os lábios dele estão repuxados de forma
ameaçadora; não é o Corr que conheço. Meu coração disparada, apesar de
todos os anos que passamos juntos. Ele é um monstro. Com uma das mãos,
empurro aqueles dentes para longe de mim e, com a outra, viro a orelha
dele em minha direção.
Franzindo os lábios, lamento para ele. É mais baixo que o grito que
ouvimos agora. O grito que está se aproximando.
Corr está distraído. Os lábios dele estão estendidos para longe, para
muito longe de seus dentes; ele não é cavalo. Torço sua orelha o suficiente
para machucar, e mais uma vez murmuro, um zumbido baixo que vai se
transformando em gemido.
Malvern ergue a espingarda, olhando para algo que não posso ver
através da escuridão e da neblina.
– Corr! – eu grito. Minha boca está cheia de água por causa da chuva, e
eu falo com ele de novo.
Malvern atira, mas o urro do capall uisce que se aproxima não parece
diminuir. Na verdade, não poderia ser mais alto.
E então, finalmente Corr começa a se lamentar conforme o estimulo. É
um som grave, profundo, posso sentir sua vibração percorrendo o arreio que
seguro. E posso senti-lo nas solas dos meus sapatos. Então isso borbulha sob
o grito. O lamento de Corr cresce e se amplia num gemido, num rosnado,
num urro como o do vento quando atinge as construções. O som enche o
pátio e cresce para além da chuva. É um grito de disputa pelo território,
uma ameaça, uma declaração: Este território já é meu. Este é o meu
rebanho .
O outro grito diminui de volume e o de Corr aumenta, se elevando para
preencher o espaço deixado pelo outro. As éguas no portão ficam loucas de
medo, e sei que os cavalos no estábulo estão ainda piores. O grito alto e
assustador de Corr não é diferente daquele que substituiu. Exceto pelo fato
de que posso interrompê-lo.
Ouço tudo que nos cerca para ter certeza de que o lamento de Corr é o

único. Um de meus tímpanos, o mais próximo a Corr, quase não consegue
registrar mais nenhum som. Mas meu ouvido esquerdo não ouve nenhum
outro concorrente.
Agora agarro o arreio de Corr com firmeza e pressiono os dedos nas
veias de seu pescoço, em sentindo anti-horário. O grito de Corr falha.
Pressiono os lábios em seus ombros e sussurro contra sua pele ensopada.
A madrugada se torna silenciosa. Em meu ouvido direito ainda ouço
um zumbido, um rádio fora da estação. Malvern e Prince olham para mim.
As éguas no portão tremem juntas. Dentro do estábulo, os outros cavalos
pararam de escoicear as paredes.
A chuva diminui; não há um único centímetro de terra seca em todo o
mundo. Do outro lado do pátio, Malvern faz um curto gesto em minha
direção.
Conduzo Corr até o poste de luz onde Malvern está. Os olhos dele
chicoteiam de mim para Corr, que é negro molhado na noite.
– Já mudou de ideia? – me pergunta Malvern.
– Não.
Seu tom de voz é de desdém.
– Eu também não. Isso não muda nada.
Não estou certo se acredito nele.

omo Finn previu, a tempestade castigou Thisby por uma noite e
um dia, e, no fim daquele dia chuvoso, pudemos voltar para casa.
Estou aliviada, porque prefiro correr descalça nas Corridas de
Escorpião a tentar dormir com Gabe mais uma vez na cama estreita de
Beech, a qual cheira a presunto. Tommy está louco para voltar para casa,
porque deixou seu capall uisce aos cuidados de sua família, do outro lado da
ilha, e ele não consegue imaginar como estão se virando. Acho que gostaria
de conhecer a família de Tommy, pessoas que não se importam em cuidar
de um cavalo d’água, enquanto Tommy sai para salvar seus vizinhos em
perigo. Afinal, não é a mesma coisa que pedir para sua mãe abrir a lata de
ração e alimentar o gato enquanto você está fora. Sei que devo ter visto os
pais de Tommy em alguma ocasião – já devo ter visto todo mundo que mora
em Thisby em alguma ocasião –, mas não me lembro deles. Na minha
imaginação, o sr. e a sra. Falk têm os mesmos olhos azuis brilhantes de
Tommy e os lábios adoráveis do filho. E inventei alguns irmãos para ele, já
que também tenho. Dois irmãos e uma irmã. A irmã é caseira. Os irmãos
não são.
À noite, estamos prontos para tomar nosso caminho. Os meninos estão
animados porque vão andar no carro de Tommy de novo, mas eu faço um
cabresto para Dove para poder montá-la em pelo e ir para casa cavalgando.
A porta da casa bate, e, um instante depois, percebo que Peg Gratton
saiu de lá de dentro e está ao meu lado. De braços cruzados, ela observa em
silêncio enquanto me preparo para montar.
– Obrigada mais uma vez – digo finalmente, porque preciso dizer
alguma coisa.
Ela não responde, apenas ergue as sobrancelhas, como um aceno de
cabeça sem movimento.

– Ainda tem uma porção de gente que não quer você naquela praia.
Tento não ficar brava com ela.
– Eu disse que não há como você me convencer do contrário.
Então Peg ri, e seu riso parece com o grasnar de uma gralha.
– Não estou falando de mim. Estou falando dos homens que não
querem uma menina na corrida deles.
Minha boca diz “ah”, mas a minha voz não sai.
– Apenas se cuide. Não deixe ninguém mexer nos arreios para você.
Não permita que ninguém alimente sua égua.
Concordo com a cabeça, porém acho fácil imaginar alguém irritado
com a minha participação na corrida, mas difícil imaginar alguém que
estivesse disposto a fazer algo desprezível assim.
Pergunto:
– E Sean Kendrick?
Olho para Peg Gratton, e ela me dá um sorrisinho cheio de mistério, o
mesmo que tinha no rosto enquanto usava a fantasia de pássaro.
– Você certamente não gosta de fazer as coisas do jeito mais simples,
gosta?
– Eu não sabia – respondo com sinceridade – que esse era o caminho
mais difícil quando comecei.
Peg arranca um pedaço de palha da crina de Dove.
– É fácil convencer os homens a amar você, Puck. Tudo o que precisa
fazer é ser uma montanha que eles têm de escalar ou um poema que não
entendem. Algo que os faça se sentir fortes ou inteligentes. É por isso que
amam o oceano.
Eu não tenho certeza de que é por isso que Sean Kendrick ama o
oceano.
Peg continua:
– Quando você fica parecida demais com o que são e com o que fazem,
o mistério desaparece. Não há motivo para procurar o Santo Graal se ele se
parece com sua caneca de café.

– Não estou tentando ser procurada.
Ela aperta os lábios.
– O que estou dizendo é que você está pedindo que eles a tratem como
homem. E não estou certa se é isso mesmo que você quer.
Há algo de desconcertante nas palavras dela, ainda que eu não tenha
certeza se é porque discordo ou concordo com ela. Lembro-me de Ake
Palsson levando seu cavalo para longe de mim e das palavras que ela disse, e
algo em meu peito dói.
– Só quero que me deixem em paz – digo.
– Como eu disse – responde Peg. – Você está pedindo para ser tratada
como homem.
Ela entrelaça os dedos para me oferecer apoio para montar. Depois, dá
um tapa na anca de Dove, que começa a percorrer o mesmo caminho que o
carro de Tommy acabara de seguir. Eu me viro conforme nos afastamos. Ela
fica ali, em pé, olhando, mas não acena.
Começo a me sentir melhor conforme nos distanciamos da casa branca
dos Grattons. Depois de tanto tempo trancada em casa, o ar me parece
limpo e fresco. A ilha se parece um pouco com a nossa cozinha: cheia de
coisas, mas não muito arrumada. Há estacas de cercas lançadas longe das
cercas, telhas e coberturas que voaram com a força do vento espalhadas
pelo campo e galhos caídos para todo lugar que se olha. Ovelhas vagam
livres pela estrada, o que nem é tão incomum, mas localizo éguas soltas
também, pastando para além das cercas destruídas.
Nem sinal dos capaill uisce que emergiram com a tempestade, e me
pergunto se voltaram para o mar. No momento, a ilha parece tão calma, tão
tranquila, sem nenhum sinal dos problemas, dos cavalos e do tempo. Penso
que teríamos um tipo completamente diferente de turistas se esta fosse
sempre a cara de nossa ilha.
Só eu sei que esta não é a Thisby verdadeira. A ilha real voltará
amanhã de manhã. Falta pouco mais de uma semana para as corridas. É
difícil imaginar que nossa história terminará da forma como contei a Finn.

A sorte não parece ser algo que os Connollys têm de sobra.
Mas, quando chego em casa, o rosto de Finn está radiante de felicidade.
Bem atrás dele, no chão da cozinha, está Puffin, a gata do estábulo. Seu
rabo está bem machucado, com marcas de mordida, e ela está revoltada e
triste, mas também está viva.
Esta ilha é astuciosa e cheia de segredos. Não faço a menor ideia de
seus planos para mim.

noite, quando a última luz se apaga, faço como meu pai costumava
fazer e pego um atalho que cruza os campos para chegar à praia que
fica de frente para o oeste. Enquanto o sol brilha baixo e vermelho
no mar, entro na água. A maré ainda está alta, marrom e agitada por causa
da tempestade, então, se houver alguma coisa sob a superfície, eu não vou
saber. Mas não saber faz parte disso. O render-se às possibilidades que estão
debaixo d’água. Não foi o oceano que matou meu pai, no fim das contas.
A água está tão fria que meus pés ficam dormentes quase de uma vez.
Estendo os braços para as laterais e fecho os olhos. Ouço o som da água
batendo. Os gritos estridentes das andorinhas-do-mar e os araus nas rochas,
o canto rouco das gaivotas acima de mim. Sinto o cheiro de alga e de peixe
e o cheiro intenso dos pássaros que fazem seus ninhos na terra. O sal se
acumula em meus lábios, encrosta em meus cílios. Sinto o frio envolvendo
meu corpo. A areia se desloca e enterra meu pé na maré. Estou
perfeitamente imóvel. O sol é vermelho por detrás de minhas pálpebras. O
oceano não me mudará e o frio não me levará. Tudo a meu respeito é
exatamente como era quinhentos anos atrás, quando os padres de Thisby
paravam à beira do oceano escuro e frio e se ofereciam para a ilha.
Tento manter meu interior tão quieto quanto o exterior. Não sou
diferente das gaivotas que circulam sobre mim, pensando apenas em como
sobreviver neste instante e alcançar o próximo.
Sussurro três vezes para o oceano. Na primeira, peço que Corr seja dócil
e gentil, assim eles não terão motivo para usar os sinos e a magia que ele
tanto odeia.
Mas, nas outras duas, peço que seja mau, assim eles terão de implorar
para que eu volte.

ilha está maluca.
Porque levei Dove para um volta por Hastoway ontem à noite,
lhe dou a manhã de folga e digo para comer o feno caro. Dou um
pouco do grão também – não muito, porque ela ficaria enjoada disso – e a
deixo para ir assistir ao treino e fazer algumas anotações. Eu não tinha mais
nenhum bolo de novembro e não ficamos em casa para assar qualquer outra
coisa, então tenho de me contentar com um pacote de biscoitos velhos.
Não demora muito para eu perceber que Thisby está completamente
mudada agora que o festival acabara e a tempestade havia passado. Além
das telhas e galhos, era como se o vento tivesse trazido pessoas e tendas. A
estrada para Skarmouth, clara sob os penhascos, está cheia de barracas e
mesas de todos os tipos. Onde eu ajudei Dory Maud a armar sua barraca, é
agora uma cidade de tendas, todas povoadas e controladas pelo pessoal da
ilha, que tenta seduzir turistas com suas mercadorias. Alguns deles são os
vendedores que Brian Carroll e eu tínhamos visto enquanto andávamos
pelo festival, mas alguns são novos: a barraca vendendo as flâmulas dos
corredores e as apressadas e incríveis pinturas dos favoritos, as esteiras para
sentar e assistir à corrida dos penhascos sem ficar com o traseiro molhado.
Sinto, de repente e de forma alarmante, como se os competidores
estivessem muito próximos. Subitamente, percebo que há poucos dias para
eu cavalgar Dove pela praia, e me sinto completamente despreparada. Eu
não sei nada sobre participar de corridas. Nada de nada.
Sou ressuscitada de minha covardia por Joseph Beringer, que me rodeia
cantando alguma canção com rimas pobres e imundas sobre minhas chances
e sobre minhas saias.
– Eu nem uso saias – grito para ele.
– Especialmente – disse ele – em meus sonhos.

Tinha pensado, por alguma razão, que ser um dos competidores nas
Corridas de Escorpião me faria ser mais respeitada, mas,
surpreendentemente, as coisas não mudaram.
Eu o ignoro, o que ajuda um pouco, só porque soa como algo familiar, e
continuo seguindo as pessoas até a tenda de Dory Maud, evitando poças e
Joseph da melhor maneira possível. Já consigo ouvir a comoção na praia,
mesmo com as pessoas falando alto nas barracas. Há algo no som que parece
estranho à algazarra normal de treino, e não estou certa se é só porque todo
mundo está na praia ao mesmo tempo em que as corridas se aproximam.
– Puck! – Dory Maud me chama antes de eu a chamar. Ela está vestida
para a festa, com um lenço tradicional e botas de borracha, uma
combinação ao mesmo tempo ridícula e, infelizmente, muito representativa
de Thisby. – Puck! – fala mais uma vez, agora balançando uma sequência de
sinos de novembro em minha direção, um ato que chama a atenção de pelo
menos duas pessoas próximas a mim. Cuidadosamente, ela guarda os sinos
debaixo da mesa diante dela, deixando à mostra o preço.
– Oi – digo. Há um barulho enorme vindo da praia, o que eu acho
estranhamente perturbador.
– Onde está seu cavalo? – pergunta Dory Maud. – Ou você acha que
vai poder treinar sem ela?
– Eu a trouxe de Hastoway ontem à noite. Ela está descansando, e eu
vou assistir ao treino ali dos penhascos
Dory Maud me encara.
– É estratégia – acrescento irritada. – Estou desenvolvendo uma
estratégia. Nem tudo da corrida tem a ver com praticar, sabia?
– Eu não sei nada sobre isso – responde Dory. – Exceto que o cavalo de
Ian Privett parece vir com força, correndo por fora e chegando até o fim,
parecido com a forma como correu ano passado.
Eu lembro o que Elizabeth disse sobre Dory Maud apostando nos
cavalos. Minha mãe disse a meu pai que vícios só são vícios quando vistos
pela estrutura da sociedade. Vejo um possível aliado no vício de Dory.

– O que mais você sabe?
Dory Maud se aproxima do balcão da tenda de lona e então diz:
– Sei que direi mais coisas se você voltar depois e tomar conta da
barraca por uma hora enquanto vou almoçar.
Olho feio para ela. Mais uma vez, não é algo que pensei que teria de
fazer como participante das corridas.
– Vou pensar no assunto. De qualquer forma, o que é aquela confusão
toda lá na praia, você sabe?
Dory Maud olha com inveja para a estrada da praia.
– Ah, é Sean Kendrick.
O interesse me aferroa.
– O que há com Sean Kendrick?
– Estão levando o garanhão vermelho dele lá para baixo. Mutt Malvern
e alguns dos outros meninos.
– Com Sean?
Dory Maud parece triste por ter de ficar tomando conta da barraca, em
vez de ir para a praia assistir à bagunça.
– Não o vi. Dizem por aí que ele não vai participar das corridas. Que
ele e Benjamin Malvern brigaram por causa do garanhão e ele deixou o
haras. Kendrick.
– Deixou o haras?
– Você está surda? – Dory Maud toca o sino perto do meu ouvido.
Ela chama a atenção de alguém atrás de mim.
– Sinos de novembro. Melhor preço da ilha!
Algumas vezes, ela me lembra muito sua irmã Elizabeth, e não de
maneira positiva. Então, ela me diz:
– É o que estão falando, não é? Dizem que Kendrick quis comprar o
garanhão e Malvern disse não, então ele se demitiu.
Penso em Sean dobrado sobre o garanhão, montando sem sela no topo
dos penhascos. No jeito tranquilo que tinham um com o outro quando o
conheci, no dia que fui dar uma olhada na égua uisce . Penso até mesmo no

jeito como Sean estava quando se apresentou no festival sangrento e disse
seu nome e depois o de Corr, como se um nome vir depois do outro fosse
apenas um fato qualquer. Penso na forma como disse “O céu e a areia, o
mar e Corr” para mim. E sinto uma ponta de injustiça, porque em tudo,
menos no nome, me pareceu que Sean Kendrick já era dono de Corr.
– Então o que estão fazendo com ele?
– Como eu posso saber? Só vi os rapazes desfilando por aí, e Mutt
Malvern feliz como se fosse seu aniversário.
Agora, meu senso de injustiça está realmente gritando. De repente
mudo meus planos, e, em vez de ir assistir ao treino lá de cima do penhasco,
resolvo ir ali embaixo dar uma olhada no que está acontecendo na praia.
– Estou indo lá para baixo.
– Não fale com o filho de Malvern – avisa Dory Maud.
Já estou a caminho, mas olho para trás, por cima do ombro.
– Por que não?
– Porque ele pode responder.
Corro pelo caminho do penhasco e passo pelo restante das tendas.
Como o caminho fica íngreme, os vendedores não podem mais ter suas
bancas alinhadas ao chão, então tudo vai ficando mais quieto. E lá embaixo
está o garanhão, rodeado por quatro homens. Reconheço a forma quadrada
de Mutt Malvern, e o homem segurando a trela – David Prince, porque ele
costumava trabalhar na fazenda dos Hammond perto de nós –, mas nenhum
dos outros. Há um círculo de pessoas ao redor deles também, vendo, rindo e
gritando. Mutt grita algo de volta para eles. Corr ergue a cabeça, sacode o
braço do homem que o segura e dá um urro alto e claro na direção do mar.
Mutt ri.
– Está tendo dificuldade em segurá-lo, Prince?
– Eu consigo! – grita alguém do círculo, e há mais risada.
Imagino Dove tirada de mim desse jeito, e a raiva se agita em meu
estômago.
Sei que Sean deve estar aqui, em algum lugar. Levo só um instante para

descobrir onde ele está, porque agora sei como: procurar o lugar sem
movimento, a pessoa que está apenas um pouco distante do resto.
Certamente ali está ele, de costas para o penhasco, um braço sobre o
estômago e o outro cotovelo descansando sobre ele. As articulações de seus
dedos pressionam seus lábios, mas seu rosto não tem expressão. Há algo
terrível sobre o modo como ele está parado ali, observando. Parece não
apenas paralisado, mas congelado.
Mais adiante, na praia, Corr lamenta de novo, e Mutt passa uma fita
vermelha com sinos ao redor do tornozelo do animal, logo acima de seu
casco. Ao ouvir o som dos sinos, o garanhão recua como se aquele som fosse
fisicamente doloroso, e eu inesperadamente pisco com os olhos cheios
d’água.
Sean Kendrick vira o rosto.
Há algo tão desprezível nisso tudo que não posso simplesmente deixá-lo
ali sozinho. Abro caminho entre os turistas e nativos que estão assistindo ao
espetáculo. Meu coração acelera no peito. Penso em Sean me
dizendo: Mantenha seu pônei fora desta praia. É possível que eu seja a
última pessoa que ele queira ver.
Paro perto dele com os braços cruzados. Nós não nos falamos. Fico
contente por ele não olhar para mim, porque Mutt colocou uma sela em
Corr e agora eles estão colocando um peitoral com pregos e sinos costurados
no animal. A pele do garanhão se arrepia em todos os pontos nos quais o
ferro toca.
Depois de um instante, Sean diz em voz baixa, ainda olhando para o
chão:
– Onde está o seu cavalo?
– Cavalguei ontem, depois que a chuva parou. Onde está o seu?
Ele engole em seco.
– Como podem fazer isso? – pergunto.
Corr faz um som estranho e frenético, meio parecido com um relincho,
um som cortado antes de começar. Ele ainda está em pé, mas sacode a

cabeça como se quisesse se livrar de uma mosca.
– Eu acho – diz Sean, com a mesma voz baixa – que é melhor para você
montar seu próprio cavalo, Puck, mesmo que seja apenas um pônei da ilha.
Melhor que seu coração seja seu guia.
Mutt Malvern diz:
– Pensei que ele fosse maior.
Ele está montado em Corr, Prince continua segurando a corda. Um dos
outros homens está posicionado entre Corr e o mar, os braços abertos como
se fossem uma cerca. Mutt balança as pernas e olha para o chão como se
fosse uma criança num pônei.
– Esse é o presente de Mutt Malvern para mim – diz Sean, e há
amargura em suas palavras, o suficiente para que eu também sinta o gosto. –
Isso é tudo culpa minha.
Tento pensar no que posso dizer para confortá-lo. Nem ao menos sei se
ele quer isso. Não sei se gostaria de ser confortada se estivesse sendo
honesta. Se estou sendo forçada a comer fuligem, quero saber que em algum
lugar do mundo alguém também tem de comer fuligem. Preciso saber que
fuligem tem um gosto terrível. Não quero que digam que é boa para minha
digestão. E, é claro, por fuligem, quero dizer feijões.
– Provavelmente seja – respondo. – Mas em vinte, trinta minutos ou
uma hora, Mutt Malvern estará cansado disso. E então ele voltará para
aquela criatura preta e branca miserável cujo nome colocou no quadro do
açougueiro ao lado do nome dele. E eu acho que a malhada é castigo
suficiente para qualquer um.
Então Sean olha para mim com os olhos brilhantes, de um modo que
me faz ficar perturbada. Eu o encaro de volta.
– Onde mesmo você disse que seu cavalo estava?
– Em casa. Treinamos ontem à noite. Por que mesmo você disse que
deixou o haras?
Ele olha para o lado e dá um suspiro triste.
– Foi uma aposta. Como você e seu pônei.

– Cavalo.
– Certo – Sean olha novamente para Corr. – Por que mesmo você disse
que participaria da corrida?
Eu não disse, é claro. Vai contra todo o meu ser confessar as
verdadeiras razões por trás de minha decisão. Posso imaginar a onda de
fofoca que tomaria Skarmouth, tão fácil quanto Dory Maud me contou que
Sean Kendrick pedira demissão por causa de Corr. Não contei a Peg
Gratton, mesmo parecendo que ela estava do meu lado, nem a Dory Maud,
e Dory Maud é quase da família. Mas me ouço dizendo:
– Perderemos a casa de meus pais se eu não ganhar.
Percebi então como foi tolo dizer aquilo. Não porque eu acho que Sean
Kendrick vai fazer fofoca. Mas porque agora ele vai saber que espero não só
correr, mas fazer dinheiro com isso. E isso é uma coisa terrivelmente
fantasiosa para ser dita a Sean Kendrick, quatro vezes campeão das Corridas
de Escorpião. Ele fica quieto por um longo instante, seus olhos fixos em
Corr com Mutt montado às suas costas.
– É uma boa razão para se arriscar – diz ele, e eu me sinto
inacreditavelmente bem por ele dizer isso, em vez de dizer que sou uma
boba.
Respiro fundo.
– A sua também era.
– Você acha?
– Ele é seu, não importa o que diga a lei. Eu acho que Benjamin
Malvern tem inveja disso. E – acrescento – acho que ele gosta de jogar com
as pessoas.
Sean me olha daquela maneira intensa dele. Não acho que ele perceba
como isso espeta as pessoas.
– Você sabe um bocado sobre ele.
Sei que Benjamin Malvern gosta de beber seu chá com manteiga e sal e
que seu nariz é grande o bastante para esconder bolotas dentro. Sei que ele
quer ser entretido pelas coisas, mas poucas são capazes disso. Mas eu não sei

se isso significa que o conheço.
– O suficiente – respondo.
– Eu não – diz ele – gosto de joguinhos.
Nós dois voltamos a olhar para Corr, que está, apesar de tudo que eu
poderia imaginar, parado. Ele fica perfeitamente imóvel, olhando por sobre
a multidão, as orelhas erguidas. De vez em quando treme, mas fora isso não
se move.
– Devo ver quanto ele é rápido? – diz Mutt. Ele tira os olhos da sela
para olhar para Sean, que não se mexe. David Prince, ainda segurando a
trela, tem uma expressão estranha quando olha para nós. Meio culpada,
meio como se pedisse desculpas, meio emocionada.
– Ah, Sean Kendrick – diz Prince, como se nós ou ele tivéssemos
acabado de aparecer na praia. – Algum conselho?
– Nunca se esqueça do mar – diz Sean.
Mutt e Prince trocam uma risada em resposta.
– Olha como ele está domado – Mutt diz a Sean. E certamente as
orelhas de Corr estão erguidas e interessadas. Ele fareja a sela e a perna de
Mutt como se estivesse surpreso, como se aquilo não fosse de seu costume,
uma curiosa reviravolta. Os sinos em seu arreio fazem um som quase
inaudível com o movimento. – Nada do que Sean Kendrick falou sobre
feitiçaria foi necessário. Incomoda a você que ele seja tão infiel?
Sean não responde. Mutt me olha com desdém. Não acho que já tenha
visto alguém ter tanto prazer em fazer outra pessoa tão miserável. Eu me
lembro da primeira noite em que vi os dois do lado de fora do bar, o ódio se
escondia nas expressões de ambos. Não havia nada oculto sobre isso agora;
era uma ferida feia. Mutt se dirige à multidão – turistas, na maioria.
– O que acham disso? Estou prestes a levar o cavalo mais rápido da ilha
para um galope. Ele é uma lenda, não é? Um herói? Um tesouro nacional.
Quem não sabe o nome dele?
Eles batem palma e assobiam. Sean está imóvel, um pedaço dos
penhascos.

– Eu sei! – grito, e minha voz é tão alta que me surpreende. O olhar de
Mutt me encontra próxima a Sean. Pergunto: – Mas como é mesmo o seu?
Dou a ele meu mais horrível sorriso, aquele que aprendi por ter dois
irmãos.
Enquanto vejo o rosto de Mutt se acender de raiva e escuto o
murmúrio de diversão dos espectadores, me lembro muito tarde do conselho
de Dory Maud.
– Onde está seu pônei? – pergunta Mutt. – Arando campos?
Estou mais envergonhada por causa da atenção do que por conta do
insulto. Provavelmente porque quando esta discussão terminar, terei de
voltar lá para a barraca de Dory Maud e vender tralhas para esses mesmos
turistas. Ocorre-me que Mutt Malvern não me conhece bem para dizer algo
que me magoe de verdade.
E não é a mim que Mutt quer magoar. Ele comunica:
– Tenho de dizer que estou feliz por você, Kendrick. Ela é melhor
corredora do que você costumava ser? – Ele finge acariciar o traseiro de
Corr. Sinto minhas bochechas esquentarem. O rosto de Sean não muda e
eu me pergunto sobre isso; será prática? Ele ouviu todas essas coisas vezes
demais para elas o incomodarem?
Sob Mutt, Corr se move sem parar. Ele empurra o nariz em direção a
Prince, mirando seu peito. Prince coça a testa dele e o empurra para trás.
– Calma, meu velho – diz. Prince inclina a cabeça para trás para
encarar Mutt. – Você vai tirá-lo daí, não? Antes que a maré suba?
Enquanto ele fala, Corr tenta se soltar de novo, mais insistente. Então
os sinos tocam mais uma vez e Prince o empurra para trás.
– Sim, sem dúvida – responde Mutt. Ele balança uma das rédeas para
chamar a atenção de Corr, que continua fossando e empurrando Prince. Eu
vejo o arrepio na pele do animal sob a couraça de ferro que colocaram em
seu pescoço.
– Certo, agora – diz Prince.
Corr fareja sua clavícula, como Dove faz quando acaricio sua crina e ela

se sente amável. Prince pousa a mão na bochecha de Corr quando o bafo do
animal vai contra seu pescoço.
Sean sai correndo pela areia enquanto grita:
– David!
Prince olha para cima.
Rápido como uma cobra, Corr crava os dentes em seu pescoço.
Mutt Malvern puxa as rédeas e Corr empina. A multidão grita e se
dispersa. Os outros dois homens que estão com Mutt recuam, incertos se
devem se defender ou ajudá-lo. Sean vira o rosto para evitar a chuva de
areia. No chão, Prince se contorce, seus pés raspam o chão. Não posso
desviar o olhar.
Corr empina de novo, e, dessa vez, Mutt não consegue se manter firme.
Ele rola para fora do alcance das patas de Corr e aparece cheio de sangue, o
sangue de Prince, não o dele. Os olhos do garanhão estão brancos e girando
enquanto ele empina. Seu olhar está nas ondas. Todos olham para ele e
para Sean, mas nenhum deles se mexe.
Quando Corr circunda e se afasta, corro pela areia até Prince. Não
posso dizer o quanto está ferido; tem sangue demais para ver sua pele. Temo
que Corr pisoteie o homem, mas não sei se consigo arrastar o corpo dele. O
melhor que posso fazer é ficar entre ele e os cascos e tentar abafar o pavor
dentro de mim.
Corr volta e urra de novo; dessa vez é como um soluço. Há uma teia de
veias saltadas em seu ombro.
– Corr – Sean diz.
Ele não grita. Nem ao menos diz alto o suficiente para ser ouvido acima
do som dos cascos batendo e das ondas, ou do som de Prince engasgando,
mas o garanhão para. Sean estende os braços e se aproxima lentamente. Há
sangue no maxilar inferior de Corr; seus lábios tremem. Suas orelhas estão
planas em sua cabeça.
– Aguente firme – sussurro para Prince. De perto, ele não é tão novo
quanto pensei; posso ver rugas ao redor de seus olhos e da boca. Não sei se

ele pode me ouvir. Ele permanece cheio de areia, e seus olhos em mim são
uma coisa muito, muito terrível. Não quero tocá-lo, mas faço isso mesmo
assim. Quando ele sente meus dedos, aperta minha mão tão forte que ela
chega a doer.
Próximo a Corr, Sean tira o casaco e o larga na areia, depois tira a
camisa pela cabeça. Ele é pálido e cheio de cicatrizes. Nunca pensei muito
sobre costelas quebradas cicatrizando antes. Sean fala com Corr numa voz
baixa, muito baixa. Corr treme, seus olhos estão fixos no oceano.
O sangue de Prince está sobre mim. Nunca tinha visto tanto sangue
antes. Foi assim que meus pais morreram . Digo a mim mesma para não
pensar nisso, mas não importa; não consigo acreditar. Não há meios de fazer
minha mente aceitar essa possibilidade, e sinto muito por isso. Porque, por
mais terrível que fosse imaginar uma coisa dessas, ainda assim é melhor do
que estar aqui com a mão trêmula de Prince segurando a minha.
Sean se aproxima lentamente de Corr, falando com a mesma voz baixa
durante todo o percurso. Ele está a três passos de distância. Dois. Um. Corr
ergue a cabeça, empurrando-a para trás, seus dentes nus e sangrentos; ele
está tremendo tanto quanto Prince. Sean embola sua camisa e então a
pressiona contra a cara de Corr. Ele espera um longo instante até Corr não
sentir nada além de Sean Kendrick, e então Sean limpa o sangue da boca do
garanhão. Como o animal se mantém rígido, Sean dobra a camisa com o
lado coberto de sangue virado para o céu, então enrola o tecido em volta
dos olhos e das narinas de Corr.
– Daly – Sean diz, enquanto as narinas de Corr sugam o tecido de sua
camisa, mostrando através do tecido a linha de seu maxilar, e então a
expele de novo. Um dos homens de Mutt levanta quando ouve seu nome.
Ele parece horrorizado. Os olhos de Sean parecem desapontados com algo
que vê no rosto de Daly e então me encontram.
– Puck.
Não quero deixar Prince enquanto ele estiver segurando minha mão
tão forte, mas de repente percebo que em algum momento isso mudou – sou

eu que seguro a mão dele, e não o contrário. Horrorizada, solto seus dedos e
levanto.
Sean aponta para as rédeas que caem do pescoço de Corr.
– Segure isso. Você vai segurar? Eu preciso...
O garanhão continua tremendo por baixo da máscara que Sean fez. Eu
não pareço estar com medo; é como se o medo tivesse ido parar em algum
lugar bem lá no fundo, dentro de mim. Alguém tem de segurar o cavalo. Eu
posso segurar o cavalo. Limpo a palma da mão cheia de sangue em minhas
calças e dou um passo para frente. Respirando fundo, estendo a mão.
Sean coloca as rédeas e um monte de tecido em meu punho, esteja eu
pronta ou não. Nessa hora, ouço um fraco zumbido metálico, e percebo que
são os sinos ao redor do pescoço e do tornozelo de Corr. O garanhão treme
tão súbita e constantemente que as bolas de metal dentro do sino zunem
como gafanhotos de metal.
Sean verifica meu controle e em seguida, de maneira rápida e certeira,
se agacha e desliza sob o garanhão vermelho. Ele tira uma faca do bolso e
corre a palma de sua mão por baixo da pata dianteira de Corr.
– Estou aqui – diz ele, e as orelhas de Corr tremem e se voltam para a
voz.
Com habilidade, Sean corta as fitas vermelhas, atirando-as furioso para
longe. Percebo que o garanhão começa a se mover. Agora que seus
tornozelos estão livres dos sinos, ele levanta e abaixa as patas, trotando sem
se mover. Sean respira intensamente; ele está tentando desatar a placa do
peito de Corr, que não para de se mexer. Não sei como lidar com um capall
uisce assassino é diferente de lidar com Dove, então apenas reajo da mesma
forma. Abaixo rapidamente as rédeas, e o garanhão joga a cabeça para cima.
Acho que ele está tremendo menos, mas é difícil dizer sem os sinos tocando
para eu saber. Tento não pensar em como o sangue de Prince ainda
encharca a palma de minha mão. Tento lembrar o que vi Sean fazendo com
os cavalos.
– Shhhh, shhhh – digo ao garanhão, como o oceano, e suas orelhas

imediatamente se voltam eretas para mim, seu rabo cai imóvel pela primeira
vez. Não estou completamente certa se gosto de ter sua atenção, mesmo ele
estando vendado.
Sean olha para mim sobre a cernelha de Corr, sua expressão é estranha
– aprovação? – por apenas um instante. Então ele lança a couraça de ferro
para trás, na areia, junto com os sinos.
– Eu assumo agora.
– E o homem? Prince? – pergunto, sem soltar as rédeas até ter certeza
de que Sean as pegara.
– Ele está morto.
Eu olho. Agora que Sean e eu acalmamos Corr, alguém da multidão
levou Prince a um lugar seguro. Mas eles colocaram um casaco sobre o rosto
dele. Eu tremo ao vento.
– Ele morreu! – sei que é estúpido dizer isso, mas não posso deixar de
dizer.
– Ele já estava morto antes. Ele sabia disso, você não viu nos olhos
dele? Meu casaco.
– Seu casaco ? – digo, alto o bastante para que minha voz trêmula
chame a atenção de Corr. – Que tal “meu casaco, por favor ”?
Sean Kendrick olha para mim, perplexo, e posso ver que ele não tem a
menor ideia de por que estou chateada com ele. Por que estou chateada
com tudo. Não consigo parar de tremer, é como se eu tivesse pego toda a
tremedeira de Corr.
– Foi o que eu disse – ele fala depois de uma pausa.
– Não, não foi .
– O que eu disse?
– Você disse meu casaco .
Sean parece um pouco confuso agora.
– Foi isso que eu disse que disse.
Resmungo e vou pegar o casaco dele. Se não houvesse a menor chance
de a maré subir e levar o casaco, eu não pegaria. Tudo o que consigo pensar

é que aquele homem está morto, o homem que simplesmente segurou
minha mão, e quanto mais penso nisso, com mais raiva fico, apesar de não
poder pensar em quem culpar, a não ser esse capall uisce que acabei de
concordar em segurar. E, de alguma forma, isso faz com que eu me sinta
cúmplice, e minha raiva cresce mais ainda.
O casaco de Sean está completamente imundo, cheio de areia e sangue
seco e com água salgada por cima. É como um pedaço de lona de vela. Eu ia
apenas jogá-la sobre o braço nu de Sean, mas, sem a camisa para amaciar, a
jaqueta o machucaria.
– Levo isso para você – digo a ele. – Vou lavar com o cobertor do meu
cavalo. Onde posso entregar?
– No Haras Malvern – diz ele. – Por enquanto.
Olho de volta para Prince. Ali está ele, estendido, e alguém foi buscar o
dr. Halsal para declará-lo morto de fato. Os homens conversam baixo perto
do corpo, como se o tom baixo da voz deles demonstrasse respeito. Mas
posso ouvir trechos da conversa, e estão falando das chances da corrida.
– Obrigado – diz Sean.
– O quê?
Eu já tinha entendido o que ele disse, meu cérebro entendeu na mesma
hora. Ele vê o entendimento em meu rosto e acena, brevemente. Puxando a
cabeça de Corr para baixo, Sean cochicha para ele e então coloca as mãos
na lateral do corpo do garanhão. O cavalo pula, como se a mão de Sean
fosse feita de fogo. Mas ele não ataca, e Sean o guia para longe da praia, de
volta aos penhascos. Ele para uma única vez, bem perto de Mutt. De longe,
Sean parece magro e pálido sem sua camisa, apenas um garoto num cavalo
puro-sangue.
– Sr. Malvern – diz ele –, o senhor gostaria de levar seu cavalo de volta
ao haras?
Mutt apenas o encara.
Conforme Sean conduz Corr para fora da praia, amasso e desamasso seu
casaco com as mãos. Mal posso acreditar nisso. Que dez minutos atrás

segurei a mão de um homem morto. Que daqui a alguns dias estarei na praia
por vontade própria com algumas dúzias de capaill uisce . E que disse a Sean
que lavaria o casaco para ele.
– Um monte de besteira.
Eu me viro. É Daly.
– O quê? – pergunto.
– Besteira – Daly diz de novo, numa afirmação indefesa que vem da
necessidade de ter algo melhor para dizer sem de fato o ter. – A ilha toda.
Eu não respondo. Não tenho nada a dizer. Seguro o casaco de Sean
com força para acalmar minhas mãos ainda trêmulas.
– Quero ir para casa – diz Daly com uma voz miserável. – Nenhum jogo
vale uma coisa dessas.

enjamin Malvern quer me encontrar no hotel em Skarmouth. Isso,
de alguma forma, já é um jogo, porque nestes dias o Hotel
Skarmouth fica cheio de gente, todos os quartos lotados de
turistas para as corridas. Enquanto o açougue é um ponto de encontro local
para apostas e notícias, um lugar conhecido pelos competidores para
conversar, o hotel é onde as pessoas do continente comparam anotações e
conversam sobre o dia de treinamento, coçam a cabeça e se perguntam se
essa égua ou aquele garanhão terão a calma necessária para ser um dos
concorrentes na corrida. Para mim, esperar no saguão do hotel, onde
Malvern combinara nosso encontro, é como ser devorado vivo.
Assim, entro no hotel, fugindo do frio, mas deslizo pelo saguão o mais
rápido que posso e encontro uma escadaria para esperar por ele. Ela parece
levar a apenas alguns dos quartos, de modo que as chances de ser
incomodado são mínimas. Esfrego meus braços – há uma corrente de ar – e
espio pelas escadas. O hotel é o edifício mais majestoso da ilha, tudo nele foi
projetado para fazer os visitantes do continente se sentirem em casa. A
arquitetura interior é feita de colunas pintadas e arcos de madeira
civilizados, molduras e madeira polida. Um tapete persa amortece meus pés.
Na parede junto a mim, há uma pintura de um puro-sangue posando numa
rédea, diante de uma paisagem tranquila. Tudo no hotel revela que aqueles
que se hospedam aqui são cavalheiros e eruditos, cultos e seguros.
Olho de relance para o saguão, procurando por Malvern. Turistas da
corrida estão agrupados em pares e trios, fumando e discutindo o
treinamento. A sala está cheia de estrangeiros com sotaques estranhos.
Numa sala ao lado do saguão, um piano é tocado. Os minutos se arrastam. É
uma estranha Terra do Nunca esta entre o festival e as corridas. Os maiores
entusiastas das corridas chegaram para o Festival de Escorpião, mas

Skarmouth não é ampla o suficiente para entretê-los por muito tempo. Não
há nada que possam fazer até as corridas começarem, além de nos observar
viver e morrer na areia.
Recuo para a escada e cruzo os braços para me proteger da corrente de
ar. Meus pensamentos não aceitam ser controlados e correm de encontro à
memória da imagem de Mutt Malvern sobre Corr. Do som do grito de Corr.
Dos cachos cor de fim de tarde sobre o rosto de Puck Connolly.
Parece um terreno perigoso.
Ouço as escadas acima de mim rangendo. Olho bem a tempo de ver
George Holly trotando alegremente escada abaixo, como um menino.
Quando ele me vê, se detém por um segundo e desvia em direção à parede,
como se aquele fosse seu destino desde o princípio.
– Olá, olá – diz Holly para mim. Parece que ele não tem dormido, como
se a tempestade o tivesse lançado à praia e o deixado escolher entre a terra
e o mar para si. É um pensamento estranho, uma vez que não consigo
imaginar o que George Holly faz quando não está observando os cavalos.
Algo barulhento e empolgado, sem dúvida, qualquer coisa que possa ser
feita vestindo um suéter branco. É estranho ter um sentimento de amizade
por alguém tão diferente de mim.
Concordo com a cabeça.
Holly diz:
– Certo, e sempre o aceno com a cabeça. Então você está esperando
Malvern?
Não estou surpreso que ele saiba. As notícias sobre minha desistência
levaram apenas um instante para se espalhar como tosse pela ilha, e tenho
certeza de que os rumores sobre a manhã violenta de Corr levaram ainda
menos tempo. Aceno com a cabeça mais uma vez.
– E obviamente vai encontrá-lo nesta escada.
Dou uma olhada na sala principal outra vez. Percebo que estou
impaciente pela chegada de Malvern e seu discurso, ao mesmo tempo em
que espero que ele se atrase para que eu não tenha de ouvir o que tem a

dizer. Cruzo os braços e protejo as mãos, mas este frio dentro de mim são
meus nervos, não a temperatura.
– O que você quer é um casaco – diz Holly, observando minha postura.
– Eu tenho um casaco. Azul.
Holly leva isso em conta por um instante.
– Lembro dele agora. Fino como uma folha de papel?
– Esse mesmo – sob custódia de Puck Connolly. Aquela pode ter sido a
última vez que vi aquele casaco.
– Você já se perguntou... – diz Holly, depois de uma pausa. – Não,
talvez não. Talvez você saiba. Se alguém sabe, é você. Estive pensando
enquanto estou aqui, por que é que Thisby tem os capaill uisce e ninguém
mais tem?
– Porque nós os amamos.
– Sean Kendrick, você é um homem velho. Você fuma? Nem eu. Bem
que poderíamos, com o ar que tem por aqui. Alguma vez você já viu tantos
homens sem fazer nada e ainda assim parecendo tão ocupados? Aliás, essa é
a sua resposta final?
Dou de ombros e respondo:
– Esta ilha tem cavalos há tanto tempo quanto tem homens. Do outro
lado de Thisby, há uma caverna no penhasco, com um garanhão vermelho
desenhado na parede. Antigo. Por quanto tempo você precisa estar em um
lugar para que ele se torne seu lar? Este é o lar deles na terra.
Encontrei o desenho uma vez, enquanto tentava alcançar um capall .
Na maré baixa, a caverna conduzia a uma parte tão distante na ilha que era
como se eu fosse sair do outro lado se seguisse mais adiante. Então,
subitamente, a maré entrou rugindo tão rápida e repentinamente que eu
fiquei preso. Passei horas abraçado a uma minúscula saliência escura, cada
onda da arrebentação me afogando uma vez mais. Mais atrás, ouvi lamúrias
e ruídos graves de um cavalo d’água em algum lugar na caverna. Para não
cair, finalmente rolei de costas até a saliência, e ali, acima de mim, onde a
água não podia chegar, eu vi o desenho. Um garanhão mais brilhante que

Corr, pintado num vermelho que desbotara apenas um pouco, o pigmento
fora do alcance do sol. Havia também um homem morto a seus pés no
desenho, uma linha negra representava seu cabelo, uma vermelha para seu
peito.
O mar de Escorpião lançara os capaill uisce em nossa praia muito antes
de meu pai, ou do pai de meu pai, ter nascido.
– Eles sempre foram reverenciados? Nunca devorados?
Minha expressão está murchando.
– Você comeria um tubarão?
– Na Califórnia nós comemos.
– Bem, é por isso que na Califórnia não há capaill uisce . – Faço uma
pausa para que ele termine de rir e acrescento: – Tem batom no seu
colarinho.
– É dos cavalos – diz Holly, mas tenta ver de relance. Ele pega a beirada
do colarinho e esfrega os dedos sobre a marca. – Ela é cega. Estava mirando
minha orelha.
De qualquer modo, isso explica sua aparência amarrotada. Eu me
inclino novamente para olhar para o saguão. Há mais homens que antes,
que se acotovelam enquanto a tarde cai e as sombras esfriam do lado de
fora. Benjamin Malvern ainda não está entre eles.
Holly pergunta:
– Sabe o que ele vai dizer? Você está tão calmo.
Eu digo:
– Estou cansado disso.
– Não parece.
Corr pode conter milhares de coisas em seu coração e revelar apenas
uma delas em seu rosto, como fizera hoje cedo. Ele é tão parecido comigo.
Eu me permito, por um breve momento, pensar a respeito do motivo
para Malvern querer um encontro. O pensamento me fere por dentro, como
uma agulha fria.
– Agora parece – Holly diz.

Descontente, olho uma vez mais, e agora vejo Benjamin Malvern
entrando no saguão, fechando a porta atrás de si. Vem com as mãos nos
bolsos do sobretudo e caminha como se fosse dono do lugar. Talvez ele seja.
Parece um pugilista, a inclinação de seus ombros no casaco, o pescoço se
sobressaindo. Eu nunca havia notado nada de Benjamin Malvern em Mutt
antes, mas finalmente percebo a semelhança.
Holly segue meu olhar.
– É melhor eu ir. Ele não ficará feliz em me ver.
Não consigo imaginar Benjamin Malvern ficando descontente ao ver
um de seus compradores. Ou, pelo menos, não consigo imaginá-lo
revelando que ficou descontente ao ver um deles.
– Nós discutimos – diz Holly. – Esta ilha é menor do que eu imaginava.
Mas não se preocupe, minhas notas de dólar significam que nossa amizade
vai continuar.
Nós nos separamos, Holly se dirigindo ao som do piano e eu
caminhando até o saguão. Sei o momento exato em que sou reconhecido,
pois todos desviam o olhar tão discretamente que é óbvio que um segundo
antes estavam olhando.
Levo um instante para encontrar Malvern na multidão, mas então vejo
que ele está falando com Colin Calvert, um dos oficiais da corrida. Calvert é
mais gentil que Eaton, o valentão antiquado com quem Puck teve de brigar,
mas ele não estava no festival. Sua esposa faz parte de uma igreja cristã que
proíbe reuniões envolvendo jovens moças dançando nas ruas, mas não
corridas onde morrem homens. Calvert me vê e acena com a cabeça, e eu
retribuo, apesar de minha mente já estar na conversa que vai se seguir.
Malvern se aproxima lentamente de mim, como se eu não fosse seu
objetivo.
– Bem, Sean Kendrick – ele diz.
Quero Corr.
Não consigo dizer nada.
Malvern cutuca uma de suas orelhas e olha para uma pintura, sobre a

enorme lareira, de dois comportados corredores de puro-sangue.
– Você é péssimo para conversar e eu sou péssimo perdedor, então
vamos colocar as coisas nestes termos: se você vencer, eu o vendo para
você. Se não vencer, nunca mais quero ouvir falar disso.
E o sol nasceu sobre o oceano.
Percebo agora que não achei que isso fosse acontecer.
Venci quatro vezes. Posso fazê-lo de novo. Podemos fazê-lo de novo.
Vejo a praia diante de mim, os cavalos ao meu redor, as ondas sob os cascos
de Corr, e no fim disso tudo há a liberdade.
– Quanto? – pergunto.
– Trezentos. – Há malícia em seu rosto. Meu salário é cento e
cinquenta por ano, e é ele quem paga, então sabe quanto tenho até o último
centavo. Nos anos em que venço, recebo oito por cento da bolsa de apostas.
Tenho economizado tudo o que posso.
– Sr. Malvern – digo –, o senhor me quer de volta ou ainda estamos
num joguinho?
– Querer e precisar são duas coisas diferentes – diz Malvern. –
Duzentos e noventa.
– O sr. Holly me ofereceu um emprego.
Malvern parece aflito, mas não tenho certeza se é pela ideia de me
perder ou pela menção ao nome de Holly.
– Duzentos e cinquenta.
Cruzo os braços. Duzentos e cinquenta é inacessível.
– Quem mais tocará nele depois de hoje?
– Todos eles já mataram alguém.
– Nem todos mataram alguém com seu filho nas costas.
Sua expressão é afiada com um caco de vidro.
– Diga-me um preço.
– Duzentos. – É caro, mas possível. Apenas o justo. Apenas se eu puder
contar com a porcentagem das apostas da corrida que eu ainda não venci
como parte de minhas economias.

– Aqui é onde eu recuo, sr. Kendrick . – Mas ele não faz isso.
Fico quieto e espero. Percebo que o saguão do hotel ficou em silêncio.
Percebo que esta é a razão de não termos nos encontrado na loja de chá,
nos estábulos ou em seu escritório. Aqui, é a melhor publicidade que
Malvern pode conseguir. Seu nome estará na boca de todos.
Ele expira.
– Duzentos. Aproveitem as corridas, cavalheiros.
Ele põe as mãos nos bolsos e vai embora. Calvert abre a porta para ele,
deixando entrar um raio da vermelha e brilhante luz da tarde.
Tenho de vencer.

ate, você entende que não está em falta?
O padre Mooneyham parece um pouco cansado, mas para
mim ele é sempre desse jeito quando me confesso. Passo as
mãos sobre meu avental. Eu me sinto mal por vir à igreja vestindo calças,
mas eu não podia montar Dove usando vestido. Então coloquei um avental
sobre as calças. Acho que assim a coisa fica um pouco disfarçada.
– Mas eu me sinto culpada. Eu fui a última pessoa a segurar a mão dele.
E, quando soltei, ele estava morto.
– Mas certamente ele morreria de qualquer forma.
– Talvez não. E se eu ficasse segurando sua mão? Eu nunca vou saber.
Sempre vou me perguntar.
Olho para o brilhante vitral na janela sobre o altar. A excentricidade
do confessionário permite que eu veja o restante da construção de meu
ponto estratégico. Porque a são Columba aparentemente antecede a
confissão, sacerdotes ou pecado, o confessionário foi construído muito mais
tarde. Ele é aberto para o restante da igreja, e a cortina fica apenas entre o
confessor e o padre. E a cortina é ridícula, não só porque o padre
Mooneyham pode simplesmente assistir enquanto o penitente caminha dos
bancos até ele, mas também porque o padre conhece a voz de todos na ilha.
Então, mesmo vendado, ele saberia dizer qual pecado é de quem. A única
verdadeira vantagem da cortina é permitir que você cutuque o nariz sem
uma audiência sagrada, algo de que eu já vi Joseph Beringer tirar vantagem
antes.
Agora o padre parece um pouco contrariado.
– Isso soa mais como egoísmo para mim, Kate. Você está atribuindo
muito poder para o que era, afinal, apenas a sua mão.
– É o senhor quem diz que Deus trabalha por meio de nós. Talvez ele

quisesse que eu ficasse ali e continuasse segurando a mão daquele homem.
Por um instante há silêncio do outro lado da cortina. Finalmente, ele
diz:
– Nem todas as mãos podem operar milagres sempre. Nós ficaríamos
com medo de tocar qualquer coisa. Você se sentiu chamada a ficar ao lado
dele? Não? Então abandone essa culpa.
Ele faz com que isso pareça algo que eu possa embrulhar em papel
encerado e deixar na porta para Puffin. Desabo para trás na cadeira e olho
para o teto da igreja.
– Também estou muito brava com meu irmão – acrescento. – A raiva é
um pecado, certo? – Eu me lembro, no entanto, de que Deus algumas vezes
veio com a fúria da justiça e que estava tudo bem. Sinto-me ligeiramente
justa em relação à minha raiva com a decisão de Gabe de abandonar a ilha,
então talvez isso não seja um pecado no fim das contas.
– Por que está brava com ele?
Enxugo uma lágrima no rosto. É uma lágrima muito traiçoeira, pois eu
nem a senti brotando.
– Porque ele está nos deixando para trás, e não é nem mesmo por um
bom motivo. Nada que eu possa mudar.
Padre Mooneyham diz:
– Gabriel. – Porque é claro que ele sabe de qual irmão estou falando
agora.
Ele não diz nada durante alguns minutos, apenas me deixa chorar.
Luzes alaranjadas e azuis vindas da janela de vitral chegam até minhas mãos
e tomam meu rosto. A igreja está muito quieta. Finalmente, enxugo meu
rosto todo na manga de minha camisa.
A cortina treme ligeiramente e vejo a mão do padre Mooneyham me
oferecendo um lenço. Eu o uso para enxugar o rosto, e a mão dele se retira.
– Não posso lhe dizer nada do que ele disse aqui, Kate. E não sei se a
faria se sentir melhor saber que ele se sentou na mesma cadeira em que você
está agora e também chorou.

Tento, sem sucesso, imaginar Gabe chorando. Mesmo no enterro de
nossos pais, ele olhara com os olhos secos para dentro do buraco no chão,
tremendo com o vento, deixando que Finn e eu nos inclinássemos sobre ele
e chorássemos. Apesar disso, a imagem dele nessa cadeira chorando penetra
em minha cabeça, e consigo perceber que meus sentimentos por ele se
tornaram mais serenos. Eu me ressinto por esse Gabriel hipotético exercer
tal magia sobre mim.
Eu digo:
– Mas ele não tem de ir.
– Hum. Vou lhe dizer algo que ele disse, Kate. Ele disse que você não
precisa competir nas corridas.
– É claro que eu preciso! Nós precisamos do dinheiro.
– E as corridas são a sua resposta a esse problema. É como você acha
que pode resolvê-lo. Gabe tem um problema também, e partir é como ele
acha que vai conseguir resolvê-lo.
É um jeito terrivelmente sábio de encarar a situação, e isso me perturba.
– Não há algo sagrado em cuidar de viúvas e órfãos? Ele não deveria
cuidar de nós? – Mas, assim que digo isso, lembro-me dele dizendo: “Eu não
aguento mais”. Ele andara cuidando de nós. Desde o funeral, com os olhos
secos, onde deixou que nos apoiássemos nele em nosso luto, até ir trabalhar
nas docas para tentar nos poupar de Malvern. Subitamente, me sinto muito
egoísta em me opor a sua fuga. Suspiro.
– Mas por que a resposta tem que ser ir embora? Ele não pode arrumar
uma resposta diferente? Não posso fazê-lo mudar de ideia?
O padre Mooneyham reflete sobre isso.
– Ir embora não quer dizer não voltar. Não lhe faria mal refletir sobre a
história do filho pródigo.
Isso é tão reconfortante quanto um tijolo gelado quando se está
solitário. Devolvo o lenço do padre Mooneyham por debaixo da cortina, e,
quando ele o pega, olho com tristeza para a janela de vitral sobre o altar. Há
treze painéis vermelhos no meio dela, e minha mãe ou alguém me disse uma

vez que deveriam representar gotas do sangue de são Columba. Ele foi
martirizado aqui. Foi antes de os nativos saberem que confissões, sacerdotes
e pecados eram bons para eles, então eles apunhalaram Columba e o
lançaram de um dos penhascos do oeste. Depois seu corpo foi encontrado
com os capaill uisce num outubro e porque não estava apodrecido, mesmo
depois de ter permanecido por tanto tempo no oceano, ele foi canonizado.
Acho que o osso de sua mandíbula ainda é mantido ali, atrás do altar.
Isso me faz lembrar de repente de como Gabe decidiu, aos quinze anos,
virar padre. Ele não se divertira com absolutamente nada por cerca de duas
semanas. Foi Gabe quem me contou a história de Columba. Então, eu me
lembro de sentar num dos bancos da igreja com ele. Ele penteara o cabelo
para trás com água, porque achava que isso o deixava com a aparência mais
etérea. Sinto uma súbita pontada de saudade daquele Gabe estupidamente
sério e da confiante e sempre descontente Puck que eu fora.
– O senhor não vai me dar uma penitência, padre? – pergunto.
– Kate, você ainda tem de confessar seus pecados para mim.
Lanço minha mente de volta à semana passada.
– Penso que usei o nome do Senhor em vão na segunda-feira. Bem, não
“Deus”. Pensei em dizer “Jesus Cristo!”. Também comi uma laranja inteira
sem dizer a Finn, porque sabia que ele ficaria chateado.
Padre Mooneyham diz:
– Vá para casa, Kate.
– Eu tenho sido horrível. Só não consigo pensar neles agora. Não quero
que pense o contrário.
– Você vai se sentir melhor se rezar duas ave-marias e um credo de
columba?
– Sim, obrigada. – Ele me absolve. Eu me sinto absolvida. Conforme me
levanto, vejo que alguém está esperando nos bancos do lado oposto da
igreja para se confessar. É Annie, a irmã caçula de Dory Maud. Seu batom
parece um pouco borrado, mas parece cruel dizer isso a uma mulher cega,
então não digo nada. Quase não noto Elizabeth, sentada no fim do mesmo

banco com o cabelo preso no topo da cabeça e os braços cruzados no peito.
Não consigo decidir qual delas vai se confessar. Annie parece sonhadora,
mas ela sempre está assim, porque não consegue enxergar um metro diante
do nariz. Elizabeth parece vagamente irritada, mas ela sempre está assim,
porque pode ver muito mais longe que um metro diante do nariz.
– Puck – diz Elizabeth.
Annie me diz um olá com sua voz suave.
– Aonde está indo? – pergunta Elizabeth.
Sinto-me um pouco mais leve.
– Tenho de devolver um casaco.

esmo antes de descer a pista escurecida pelo crepúsculo até o
Haras Malvern, posso ver evidências dele – os campos e os
pastos de cavalos – e senti-las no ar – bons cavalos fazendo
bom estrume de bom feno. Acho que esterco de cavalo é muito parecido
com vômito de gato. Não há nada muito desagradável em nenhuma das
duas coisas desde que não haja muito delas e que não estejam frescas
demais. E não há nada desagradável no cheiro de estrume de feno do Haras
Malvern. Como foi um dia longo e não há motivo para achar que ele não
vai durar ainda mais, permito-me o pequeno prazer de imaginar que os
campos com colinas e as éguas lustrosas de ambos os lados da pista são meus
e que estou passeando alegremente até meu próprio haras, cheia da
felicidade borbulhante que vem da certeza na segurança das posses e do
conhecimento de que ao menos uma vez haverá bife para o jantar.
Galopando à minha esquerda, há um sujeito magrelo montado num
puro-sangue castrado que trota. Ele tem os estribos curtos e apertados como
os de um jóquei, o que eu acho que ele é, e quando trota, parece pairar
sobre a montaria. Um homem se inclina sobre a cerca para observar, e se eu
fosse o tipo que gosta de apostar, como Dory Maud, apostaria que ele não é
de Thisby. Para começar, ele está usando sapatos brancos, e acho que não
há lugar nenhum em Thisby que venda sapatos brancos. Próximo à
construção principal, outro cavalariço conduz de volta a uma das pastagens
um animal cinza com as costas úmidas. O cavalo parece mais limpo do que
eu me sinto, e consideravelmente mais bem alimentado. Em seguida, através
das portas abertas do estábulo, vislumbro um animal castanho preso em
travessas enquanto um garoto o escova. A luz da tarde os envolve e faz uma
cópia em roxo do cavalo e do cavalariço no chão atrás deles. Um relinchar
ressoa por todo o haras, e outro cavalo responde de dentro do estábulo.

É tudo como eu sempre imaginei que fosse um famoso haras de
competição, e me sinto um pouco estranha a esse respeito. Não sou uma
pessoa ambiciosa, eu acho, e não passo meu tempo sonhando acordada em
ter a minha própria fazenda. E geralmente costumo ter pouca paciência com
pessoas que perdem tempo suspirando, gemendo e se remoendo a respeito
de coisas que não têm nem nunca terão, porque a religião do meu pai
ensinava a distinguir a diferença entre precisar e querer. Mas aqui, olhando
para o coração do Haras Malvern, sinto uma pequena e dolorosa pontada de
tristeza diante do fato de que nunca terei uma fazenda.
Tento decidir se valeria a pena ser Benjamin Malvern, se isso
significasse que eu poderia viver num lugar como este.
– Quem você está procurando?
Franzo o cenho diante de minha sombra antes de localizar a voz. É o
cavalariço com o puro-sangue cinza que acabou de tomar banho – imagine
um mundo onde os cavalos tomam banhos; como é que um cavalo fica sujo
num lugar como este? –, parando do outro lado do haras. O cinzento
empurra suas costas, mas ele o ignora.
– Sean Kendrick.
É estranho dizer isso em voz alta. Seguro o casaco dele, como se aquilo
fosse um convite. Meu coração bate ligeiramente no peito.
– Onde está Kendrick? – pergunta o cavalariço a um homem que acaba
de surgir de uma das construções menores. Eles conversam. Eu fico inquieta.
Não espero ser levada a sério.
– No estábulo – diz o cavalariço. – Provavelmente. No estábulo
principal.
Eles não me perguntam o que quero com ele nem dizem para eu me
afastar, apesar de terem aquele olhar curioso e prestativo como se
estivessem esperando que eu fizesse alguma. Eu apenas agradeço e entro no
haras. Tenho o cuidado de deixar o portão fechado como o encontrei,
porque sei que o pior crime numa fazenda é não fazer isso.
Finjo que não percebo os cavalariços me olhando conforme caminho

em direção ao estábulo. É difícil pensar nisso como um estábulo, mesmo
com a óbvia presença dos cavalos, porque é tão incrível quanto a igreja de
são Columba. E tem o mesmo teto alto, as pedras entalhadas, os sons
ecoando. A única coisa que falta é o confessionário posterior com a cortina
inadequada. O estábulo por alguma razão me lembra da grande rocha onde
todos os corredores derramam seu sangue.
Com esforço, baixo os olhos. Não quero ficar olhando, porque o garoto
ainda está cuidando do castanho no corredor, e não quero ser vista como
Finn, com seus olhos redondos e o rosto curioso. O garoto e o castanho
parecem limpos e decididos, e eu me sinto imunda e descombinada com
minhas calças, bata e suéter com capuz. Aponto para onde a barra de metal
encontra a parede, que é o jeito universal de perguntar: “Posso passar
debaixo disso?”, e o cavalariço concorda. Ele tem a mesma expressão curiosa
e acentuada dos outros. Acho que o interesse é simplesmente porque sou
uma estranha, até passar por ele e ele dizer:
– Acho que você tem tanta coragem quanto fios de cabelo na cabeça
para montar aquela sua égua nas corridas.
A maneira como ele diz isso faz com que pareça um elogio, mas não
tenho certeza.
– Obrigada – digo, caso seja. – Você sabe onde está Sean Kendrick? –
Mais uma vez, ergo seu casaco. Parece muito importante que todos saibam
que tenho um real propósito para procurá-lo. O menino sacode o queixo
para além do corredor, além das belas e intermináveis portas brilhantes das
baias, com arcos de pedra como se cada uma fosse um santuário, e os
cavalos, deuses dentro delas. Passo por elas até ver uma baia no final com
pálidas barras brancas em vez daquelas de ferros e a inconfundível forma da
cabeça do garanhão vermelho atrás delas.
Entro silenciosamente na baia, e de início penso que Sean não está ali.
É uma ideia que, por alguma razão, me deixa muito irritada; então vejo que
ele está ali no meio das sombras escuras, ajoelhado no piso da baia, em
torno das patas de Corr, cobrindo-as abaixo do joelho. Ele se demora na

tarefa: vira a atadura em torno da perna de Corr uma vez e depois cospe nos
próprios dedos e se estica para tocar o corpo do animal. Então, ele faz a
volta mais uma vez antes de cuspir novamente. Durante todo o tempo, o
pescoço de Corr está arqueado, e o garanhão olha por uma pequena janela
em sua baia. Ele tem uma visão da rocha nua apenas com um pouco de
grama presa em suas bordas. É uma visão triste, penso eu, mas ele parece
gostar bastante do que vê. Acho que é melhor que as paredes.
Por um momento, apenas observo Sean cobrir a perna de Corr, observo
como seus ombros se movem quando não estão escondidos sob o casaco,
como ele vira a cabeça quando está envolvido em seu trabalho. Ou ele não
notou minha chegada, ou finge não ter notado, e qualquer uma das opções
me satisfaz. Há algo compensador em observar um trabalho sendo benfeito,
ou pelo menos um trabalho feito da melhor maneira possível. Tento
entender por que Sean Kendrick parece tão diferente das outras pessoas, o
que há nele que o faz parecer tão intenso e quieto ao mesmo tempo, e
penso, finalmente, que tem a ver com hesitação. A maioria das pessoas
hesita entre dois degraus, se detém ou de algum modo fica desequilibrada no
processo. Seja o processo cobrir uma perna, comer um sanduíche ou apenas
viver a vida. Mas, com Sean, nunca há um movimento do qual ele não
esteja certo, mesmo que isso signifique nem se mover, no fim das contas.
Corr vira a cabeça para me olhar apenas com seu olho esquerdo, e o
movimento faz com que Sean olhe para cima. Ele não diz nada, e eu ergo
seu casaco alto o bastante para que ele possa vê-lo.
– Não consegui tirar todo o sangue.
Sean se abaixa novamente, me deixando esperar ali com o casaco.
Pondero se devo deixar o casaco na frente da baia ou esperar que ele diga
alguma coisa, mas, antes que eu possa decidir, Sean termina de cobrir a
perna de Corr e se ergue para me encarar. Seus dedos apertados sobre a
lateral do pescoço de Corr.
– Foi gentileza sua – ele diz.
– Eu sei – respondo. O cobertor de Dove não precisava realmente ser

lavado, mas ficou limpo, uma vez que eu também tinha de lavar o casaco de
Sean. Trabalhei no casaco até meus dedos ficarem enrugados e minha
benevolência se tornar irritação.
– O que está fazendo?
– Cobrindo as pernas dele com algas.
Eu nunca tinha ouvido falar em enrolar a perna de um cavalo com
algas, mas Sean parecia falar com grande confiança, então obviamente
devia haver uma boa razão.
Gesticulo com o casaco.
– Quer que eu deixe isto em algum lugar? – pergunto apenas por
educação. Não quero que ele diga sim. Não sei exatamente o que quero que
ele diga, apenas que seja algo que me dê a desculpa de continuar aqui
olhando para ele por mais alguns minutos. Admitir isso a mim mesma é um
duro golpe em meu orgulho, pois, exceto por meu desejo de me casar com o
dr. Halsal aos seis anos de idade, sempre pensei que estava acima de me
deixar fascinar por qualquer pessoa além de mim.
Do outro lado da porta da baia, Sean olha para cima e para baixo no
corredor, como se estivesse procurando um lugar para eu pendurar o casaco,
mas então franze a testa para mim, como se não fosse isso o que ele estava
procurando no fim das contas.
– Estou quase terminando. Você pode esperar?
Tento não olhar para onde sua mão repousa do pescoço do garanhão
vermelho. É um aviso, a forma como seus dedos se dobram na pele do
animal, dizendo a Corr para manter distância, mas confortando-o também,
a forma como eu tocaria Dove para simplesmente lembrá-la de que eu
estava ali. A diferença, no entanto, é que Corr matou um homem ontem de
manhã.
Eu digo:
– Acho que tenho um minuto ou dois.
Sean faz a varredura com os olhos que costuma fazer, aquela que vai da
minha cabeça até meus pés e volta, e me faz sentir como se ele estivesse

examinando as profundezas de minha alma e trazendo à tona minhas
motivações e pecados. É pior que uma confissão com o padre Mooneyham.
Por fim, diz:
– Se você ajudar, será mais rápido.
Os olhos dele se estreitam nos cantos, de um modo que me faz
compreender que isso é um teste. Para saber se sou corajosa o bastante para
entrar na baia com Corr depois de ontem de manhã, depois de eu ter tido
tempo para refletir sobre o que aconteceu. Diante desse pensamento, minha
pulsação oscila. A questão não é se confio em Corr, mas se confio em Sean.
– Como eu ajudaria? – respondo, e o rosto de Sean se desanuvia como
um belo dia em Skarmouth. Ele cospe em seus dedos mais uma vez e
empurra Corr em direção à parede da baia para me dar espaço para abrir a
porta. Entro na baia.
Ele diz:
– Não confie nele.
Estreito os olhos.
– E em você?
A expressão de Sean não muda.
– Não serei eu a machucá-la. Você sabe enfaixar uma perna?
– Eu nasci enfaixando pernas – digo duramente porque fui insultada.
– Deve ter sido um parto desafiador – observa Sean, e aponta para um
balde perto da parede. Dentro é negro como piche.
– Isso vai embaixo da atadura. Tem de estar uniforme.
Mantendo o olhar atento sobre Corr, pego o balde.
– Certifique-se de que a alga fique plana.
– Certo.
– Deixe três centímetros abaixo do joelho.
– Certo.
– Tem de ficar solta o suficiente para colocar um dedo na parte
superior.
– Sean Kendrick – digo com ênfase suficiente para que as orelhas do

garanhão se voltem para mim. Prefiro quando ele não me nota. Sua atenção
me faz lembrar do capall uisce preto que encontrou Finn e a mim em nosso
estábulo.
Sean não parece pedir desculpas.
– Acho que é melhor você me deixar fazer isso.
– Foi você quem me chamou aqui dentro, para começar – digo. – Agora
acho que é você quem não confia em mim.
– Não é apenas você – ele replica.
Eu o fuzilo com os olhos.
– Bem, vou lhe dizer o que fazer. Eu seguro e você enfaixa. Assim,
quando fizer errado, vai poder culpar apenas você mesmo. E tome seu
casaco. Estou cansada de segurar isto.
O olhar de Sean é de avaliação, como se estivesse tentando decidir se
eu realmente estou falando sério. Ou talvez ele só esteja tentando decidir se
sou capaz.
– Tudo bem – ele diz e firma a mão diante do rosto de Corr como um
aviso. Nós trocamos: com a outra mão ele pega o casaco e eu pego a rédea.
Ele o veste, repentina e magicamente, se tornando o Sean Kendrick que vi
no açougue.
Ele diz:
– Os dentes são o que você tem de observar.
Meu tom de voz sai involuntariamente amargo.
– Eu vi.
– Aquele não era Corr – diz Sean. – Você tem de conhecê-los. Você
usa só o que precisa. Não pode simplesmente pendurar cada sino de Thisby
em cada cavalo no mar. Eles reagem de forma diferente. Não são máquinas.
– Então você está dizendo que David Prince ainda estaria vivo se fosse
você com o Corr? – mas essa é uma pergunta para a qual nós dois já
sabemos a resposta, então pergunto: – Por quê?
Sean se abaixa até a perna de Corr, deslizando a mão por ela para que o
garanhão saiba que ele está ali.

– Você não sabe quando sua égua está ansiosa?
É claro que sei. Cresci em suas costas e a seu lado. Sei quando ela está
triste, assim como ela sabe quando eu estou assim.
Pergunto:
– Voltou atrás e resolveu ficar aqui?
Olho para cima, enquanto as luzes se acendem no estábulo, enchendo a
baia com um brilho amarelo que não chega a atingir o chão. Sean enfaixa
muito mais rápido agora. Ele trabalha de forma constante, sem parar para
cuspir, pois isso deve ser algo para manter Corr quieto quando ele não tem
ninguém para segurá-lo. Não há ninguém nesse estábulo chique para
segurar Corr enquanto Sean trabalha? Por todo esse tempo, Corr tem sido
manso como um carneirinho, mas seus olhos têm se mostrado tão sagazes
quanto os de uma cabra. Sean não olha para cima enquanto responde.
– Malvern disse que posso comprar Corr dele se vencer.
– Isso é voltar atrás?
– Sim.
– E o que acontece se não vencer?
Sean ergue os olhos para mim:
– E se você não vencer?
Não quero responder, então, em vez disso, disparo de volta:
– O que você vai fazer se vencer?
Ele acabou de mexer com as faixas, mas continua agachado ao lado da
perna de Corr.
– Com minhas economias e minha parte na bolsa de apostas, vou
comprar Corr e voltar para a casa do meu pai no lado ocidental da rocha,
para deixar apenas o vento mudar minha direção.
Talvez porque tenha acabado de descobrir a beleza dos estábulos
Malvern, eu não acredito.
– Você deixaria isso tudo?
Agora ele olha para mim, e desse ângulo parece que alguém borrou com
carvão a pele debaixo de seus olhos.

– O que há para deixar? Isso aqui nunca foi meu para ser deixado.
Isso faz com que ele dê um longo suspiro, o que parece a coisa mais
próxima de uma confissão que já ouvi dele, e então se levanta.
– E quanto a você, Kate Connolly? Puck Connolly?
A forma como pronuncia meu nome me deixa certa de que ele esquece
intencionalmente meu apelido, porque gosta do peso das palavras quando
diz meu nome duas vezes. Isso faz com que eu me sinta entusiasmada,
nervosa e agradável.
– Quanto a mim?
Ele troca comigo mais uma vez, o balde pela rédea, e dou um passo para
trás.
– O que você vai fazer se vencer as Corridas de Escorpião?
Olho para o balde.
– Ah, vou comprar catorze vestidos, fazer uma estrada com meu nome
e experimentar tudo na Palsson.
Apesar de eu não estar olhando, ainda sinto seu olhar sobre mim. O
olhar dele é pesado.
Ele diz:
– Qual é a resposta verdadeira?
Mas, quando tento pensar na resposta verdadeira, me lembro do padre
Mooneyham dizendo que Gabe se sentara no confessionário e chorara, e isso
me faz pensar em como, não importa o que aconteça nas corridas, a melhor
opção ainda é Gabe navegando para longe num barco. Então o repreendo:
– Você acha que vou entregar meus segredos para todo mundo?
Ele não se deixa abater.
– Não sabia que era segredo – diz ele. – Se soubesse, não teria
perguntado.
Isso faz com que eu me sinta mesquinha, já que ele foi tão honesto em
sua resposta.
– Sinto muito – digo. – Minha mãe costumava dizer que nasci de uma
garrafa de vinagre, em vez de ter nascido de um ventre, e que ela e meu pai

me banharam no açúcar por três dias para tirar o vinagre. Tento me
comportar, mas acabo sempre voltando ao vinagre. – Quando meu pai
estava em um de seus raros estados de espírito fantasiosos, ele dizia aos
convidados que os duendes me deixaram na porta porque eu mordia os
dedos deles com muita frequência. Minha história favorita sempre foi
quando minha mãe dizia que, antes do meu nascimento, chovera durante
sete dias e sete noites inteiros, e, quando ela saiu para o quintal para
perguntar por que o céu estava chorando, eu caí das nuvens a seus pés, e o
sol apareceu. Sempre gostei da ideia de incomodar tanto a ponto de afetar
até mesmo o clima.
Sean diz:
– Não se desculpe. Eu estava tomando muita liberdade.
E agora eu me sinto ainda pior, porque essa jamais fora minha intenção.
Ao lado de Sean, Corr desloca seu peso abruptamente, e o movimento
de sua cabeça parece mais lupino que equino. Algo em sua expressão faz
Sean cuspir nos próprios dedos e imprensar Corr contra a parede mais uma
vez.
Temo que ele me peça para deixar a baia agora, então pergunto
apressadamente:
– O que é esse cuspe? Vi você fazendo isso antes.
Não tenho de criar interesse. Isso apela para uma parte de mim que tem
sido repreendida por anos pelos adultos em minha vida.
Sean olha para os dedos como se fosse cuspir neles para demonstrar e
depois simplesmente os abre e fecha. Ele estuda Corr conforme pensa, como
se Corr de alguma forma fosse lhe conceder uma forma de elaborar sua
resposta.
– É... cuspe. Sal. Eu. Uma parte de mim, uma forma de estar em outro
lugar. Quando o restante de mim não pode estar.
Eu me lembro de como Corr ficou quieto para Sean quando não ficava
para mais ninguém na praia. Como o cheiro de Sean em sua camisa o
acalmara quando nada mais conseguia.

Eu respondo:
– Algo me diz que meu cuspe não significa tanto para ele quanto o seu.
Há uma longa pausa antes que Sean fale. Ele diz:
– Talvez ainda não.
Ainda! Acho que nunca ouvi uma palavra tão legal antes.
Eu digo:
– E o sussurro. O que você diz a ele?
Sean permanece ao lado do ombro de Corr, e pela primeira vez sorri
para mim. O mais ínfimo dos sorrisos, e não é de diversão ou de humor,
então não sei o que significa. Ele parece mais jovem quando sorri, mais
agradável de olhar, o que talvez seja o motivo pelo qual ele evita fazer isso.
Ele inclina o rosto em direção ao garrote de Corr e diz:
– O que ele precisa ouvir.
Uma das orelhas de Corr treme para ele, a outra permanece virada para
mim. Não quero desviar o olhar de Sean apoiado em Corr. Há algo nisso –
esse imenso gigante vermelho que matou um homem e o ligeiro e sombrio
Sean Kendrick atrás dele, como se fossem amigos –, algo que me fascina e
assusta.
Sean me observa o examinando e então diz:
– Você tem medo dele?
Não quero dizer que sim, porque não estou com medo dele agora,
quando ele parece mais cavalo e menos demônio, mas não quero dizer não,
porque ontem de manhã, na praia, fiquei horrorizada e assustada. Diria
apenas que não de qualquer forma, mas tenho certeza de que Sean
Kendrick, com seu olhar dilacerante, poderia ver através de mim até os
caprichos atrás desse não. Assim, em vez disso, respondo:
– Você disse que não confiava nele.
– Eu também não confio no oceano. Ele me mataria rapidinho. Isso não
significa que tenho medo dele.
Franzo as sobrancelhas para ele. Estou pensando mais uma vez naquela
imagem de Sean encurvado em cima do cavalo vermelho, galopando sem

sela no topo dos penhascos. Em Sean, incapaz de assistir a Mutt Malvern no
dorso de Corr. Pela primeira vez, não desvio os olhos de seu olhar estreito.
– Mas você não é apenas destemido. Você os ama, não é? Você ama
Corr.
Sean Kendrick se encolhe como se eu o tivesse assustado. Ele fica em
silêncio por tanto tempo que noto o som do haras do lado de fora do
estábulo, os gritos e relinchos, água corrente e portas se fechando.
Então ele diz:
– E você ama a ilha. Diga-me, qual é a diferença?
Assim que ele fala, sei que não posso rebater seu argumento. É verdade
que a ilha em breve me veria viva ou morta e também é verdade que a amo
apesar disso. Possivelmente por causa disso.
– Não acho que gostaria de discutir com você – digo. – Acredito que
seria um passatempo inútil.
Ele olha pela janela, como em resposta, e estuda aquela paisagem sem
esperança tão intensamente que olho também, certa de que ele deve ter
visto algo. E é só porque moro com meus irmãos que percebo, depois de um
momento, que ele não está olhando para fora, e sim para dentro, lutando
com algo dentro de si mesmo. E não há nada a fazer a não ser esperar.
Por fim, ele pergunta:
– Quer montá-lo?
Não acredito no que ouvi. Não quero dizer “Como?”, porque,
se ouvi direito, soaria como se eu não quisesse, e, se não tivesse ouvido
direito, soaria como se eu não estivesse prestando atenção.
Ele acrescenta:
– Vou com você.
Minha mente é uma confusão de pensamentos. Eu vi esse cavalo rasgar
a garganta de um homem há apenas um dia. É o cavalo mais rápido da ilha.
Vou desonrar a morte de meus pais. Estou com medo de amar isso. Estou
com medo de ter medo. Quero que Sean Kendrick pense bem de mim.
Desejo ser capaz de lidar comigo mesma à noite, quando deitar na cama e

pensar no que fiz nesse dia.
– Nos penhascos – digo. A maré está alta, então é assim que teria de
ser. Eu imagino o outro capall uisce que ele montou, lançando-se sobre a
beirada.
Ele me observa por muito tempo.
– Você pode dizer não.
Mas ele sabe que não direi.

uanto eu tinha oito anos, o vento de outubro trouxe uma
tempestade que agitou o mar em torno de Thisby. Dias antes de a chuva
chegar, as nuvens abraçavam o horizonte e o oceano escalava as rochas até
o topo, famintas do calor de nossa casa. Minha mãe chorava e cobria os
olhos quando as telhas batiam como dentes. Ouvi suas lágrimas nas janelas
antes mesmo que os céus escurecessem. Isso foi antes da primavera, antes da
chegada de outubro, antes de a maré levá-la ao continente e dar Corr para
meu pai em seu lugar.
Na escuridão, meu pai abriu a porta, me conduzindo para fora do chalé
e para dentro da noite salgada. A lua pairava cheia, redonda e corajosa
sobre nós. A praia para a qual meu pai me levou era plana e vitrificada, a
areia úmida refletindo a lua. O oceano se estendia e se estendia e se
estendia, e meu coração doía ao vê-lo.
Meu pai me levou a uma fenda no penhasco. Tivemos de escalar rochas
cada vez maiores para chegar ao topo, um buraco no penhasco onde um mar
furioso de outrora lançara uma concha adorável e branca como a morte e o
osso da perna de um homem. Estava escuro ali, e a lua não poderia nos ver,
embora nós pudéssemos vê-la. A praia se estendia sob nós.
Não me lembro de meu pai me dizendo para ficar quieto, mas eu estava
quieto. A lua se movia pelo céu enquanto a maré subia lentamente. A
arrebentação estava espumosa e enlouquecida pela tempestade.
Eles chegaram com a maré. A lua iluminava longas linhas de espuma,
enquanto as ondas se juntavam, se juntavam e se juntavam na praia, e,
quando finalmente quebraram na areia, os capaill uisce caíram na praia com
elas. Os cavalos ergueram a cabeça com esforço, tentando se libertar da
água salgada. Enquanto saíam do oceano, meu pai agarrou meu braço com a
mão pálida.

– Fique parado – disse.
Mas eu já estava parado.
Os capaill uisce mergulharam na areia, lutando e brigando, sacudindo a
espuma do mar de sua crina e o Atlântico de seus cascos. Gritaram para os
que ainda estavam na água, gemidos altos que arrepiaram os pelos de meus
braços. Eles eram rápidos e mortais, selvagens e lindos. Eram gigantes,
oceano e ilha ao mesmo tempo, e foi aí que os amei.
Agora, Puck e eu conduzimos meu garanhão até os penhascos sob o céu
de um azul profundo. A expressão dela é firme e inflexível, cheia da
coragem de um pequeno barco num mar incerto. Sobre nossa cabeça, paira
a mesma lua cheia que iluminava o oceano todas aquelas noites atrás.
Lembro-me da mão de meu pai segurando meu braço. Fique parado.
Ela está ao lado de Corr, olhando para ele.
Quero que ela o ame.

qui nos penhascos, o garanhão vermelho se move constantemente.
Suas narinas se dilatam para captar o vento do mar que ergue o
cabelo de minha testa. Quando eu era mais jovem, montava Dove
sem sela e sem arreios, imunda em seu pasto, e usava a cerca ou uma rocha
saliente para subir em seu dorso. Hoje com Corr não é diferente, exceto
pelo fato de que a rocha em que nos apoiamos é mais alta do que eu
precisaria para Dove. Sean o conduz até o lugar certo e diz:
– Ele não vai ficar mais quieto que isso.
Meu coração já está galopando. Não posso acreditar que estou mesmo
prestes a montar um capall uisce . E não é um capall uisce qualquer, mas
aquele cujo nome está no topo da lista de apostas no açougue. Aquele que
ganhou as Corridas de Escorpião quatro vezes. Aquele que, ontem pela
manhã, rasgou a garganta de David Prince. Agarro um punhado de sua
crina e luto para não ser arrastada de cima da rocha enquanto ele dança.
Finalmente, monto em seu dorso, agarrando sua crina com ambas as mãos,
como uma criancinha. Sean diz:
– Agora vou lhe passar as rédeas. Preciso que você o segure enquanto
eu subo, ou estará por sua conta e risco. Posso confiar em você para segurá-
lo?
O modo como ele fala me faz perceber quanto está arriscando, agora
mesmo, ao me colocar em seu cavalo e me passar as rédeas.
– Alguém mais já conseguiu segurá-lo?
Seu rosto permanece inalterado.
– Não há ninguém mais. Você é a única.
Engulo em seco.
– Eu posso segurá-lo.
Sean arrasta o pé num semicírculo diante de Corr e cospe ali. Então,

rapidamente lança as rédeas por cima da cabeça de Corr e as passa para
mim. Se eu nunca tivesse visto ou tocado Corr, seria este o momento em
que eu perceberia como ele é grande, tão diferente de Dove. Pelas rédeas,
posso ter uma ideia do quanto ele é poderoso. São teias de aranha
ancorando um navio. Ele testa minha firmeza, e eu o testo de volta. Não
quero que teste com mais força.
Sean se ajeita rapidamente atrás de mim, e sou pega de surpresa por sua
súbita proximidade, minhas costas subitamente quentes contra seu peito, a
pressão de seus quadris contra os meus.
Eu me viro para fazer uma pergunta, e ele afasta o rosto daquela
proximidade com o meu.
Digo:
– Ah, me desculpe.
– Está tudo bem com as rédeas? – Ele está todo preto e branco nesta
luz, os olhos ocultos na sombra sob as sobrancelhas.
Faço que sim com a cabeça. Mas Corr não vai para frente; ele só recua,
balançando a cabeça. Quando empurrado, ele ergue um pouco as patas
dianteiras do solo. Não está se levantando, mas me alertando. Sean diz algo
que se perde no vento.
– O quê?
– Meu círculo – diz Sean bem em meu ouvido, seu hálito é quente.
Estremeço, muito, apesar de o vento não estar mais frio que antes. – Ele não
vai querer atravessá-lo. Dê a volta.
Assim que nos vemos livres do círculo, Corr parece um pássaro em
meio ao vendaval. Não sei dizer se ele está andando ou trotando, só que
estamos nos movendo, e todas as direções parecem possíveis. Quando Corr
se inclina para o lado, pressiono as pernas em sua barriga para endireitá-lo, e
os braços de Sean me envolvem a fim de agarrar sua crina.
Sei que Sean só fez aquilo para endireitar a si mesmo, não a mim, mas
de repente me sinto mais segura. Viro o rosto e mais uma vez ele vira a
cabeça para me dar espaço. Mas não sei o que eu estava prestes a dizer.

– O quê? – Sua boca forma a palavra, apesar de eu não conseguir ouvi-
la propriamente. – É...?
Ele começa a retirar os braços, e eu balanço a cabeça. Meu cabelo
chicoteia minha testa, e ele recua quando meu cabelo também o golpeia.
Ele diz algo novamente, e, mais uma vez, o vento rouba sua voz.
Quando Sean percebe que eu não o ouvi, ele se inclina para frente em
direção ao meu ouvido de novo. Não consigo me lembrar de quando foi a
última vez que fiquei tão perto de outra pessoa. Posso sentir seu peito
subindo e descendo quando ele respira. Suas palavras são quentes em meu
ouvido:
– Você está com medo?
Não sei o que estou sentindo neste momento, mas não é medo.
Balanço a cabeça.
Sean segura meu rabo de cavalo em sua mão, seus dedos estão tocando
meu pescoço, e enfia meu cabelo dentro da gola de minha blusa, fora de
alcance do vento. Ele evita o meu olhar. Então me enlaça novamente em
seus braços e pressiona a panturrilha na barriga de Corr.
Corr salta no ar.
Quando Dove passa do trote para o galope, às vezes o único jeito de
perceber a diferença é que seus cascos batem em ritmo quaternário em vez
de ternário.
Mas, quando Corr passa a galopar, é como se aquele galope tivesse
acabado de ser inventado, algo tão mais rápido do que todos os outros que
deveria ter outro nome. O vento ruge ferozmente em meus ouvidos. Há
pedras irregulares à espreita no campo, mas não são nada para Corr. Ele mal
ergue os joelhos e elas ficam para trás. Parece que cada passada nos leva um
quilômetro adiante. A ilha vai ficar para trás antes de ele perder velocidade.
Somos gigantes em seu dorso.
Sean diz em meu ouvido:
– Peça mais.
E, quando aperto as pernas em torno dele, Corr se inclina para frente

de novo, como se até então estivéssemos meramente andando à toa. Não
posso acreditar que algum dos cavalos na praia seja mais rápido que isso.
Não posso acreditar que haja algum cavalo no mundo mais rápido que isso.
E isso tudo com duas pessoas sobre ele. Com apenas Sean durante a corrida,
como ele pode perder?
Estamos voando.
A pele de Corr é quente contra as minhas pernas, ligeiramente
pegajosa, como quando a correnteza enterra os dedos do pé mais fundo na
areia. Sinto sua pulsação em mim, sua energia em mim, e sei que esse é o
misterioso e aterrorizante poder dos capaill uisce . Todos nós conhecemos
esse poder, como ele captura e confunde você e, antes que se dê conta, você
está na água. Mas Sean se inclina para frente, com força, contra mim, para
alcançar a crina de Corr e fazer nós nela. Três. Depois sete. Depois três de
novo. Tento me concentrar no que ele está fazendo, em vez de me
concentrar em seu corpo pressionado contra o meu, seu rosto contra os
meus cabelos.
Ponho a rédea no pescoço de Corr e ele galopa para a esquerda, se
afastando da beirada dos penhascos. Sean ainda está firme contra mim, os
dedos de uma das mãos pressionando as veias de Corr, enquanto a outra
agarra sua crina. A magia se torna um ruído monótono que me atravessa.
Meu corpo me alerta do perigo deste capall uisce sob mim, mas ao mesmo
tempo ele grita que está vivo, vivo, vivo.
Damos a volta pelo mesmo caminho de onde viemos. Continuo
esperando que Corr enfraqueça, dê alguns sinais de cansaço, mas não há
nada além do bater de seus cascos contra a grama, o ronco de sua respiração
ofegante, o vento soprando em meus ouvidos.
A ilha se desenrola sob o luar. Galopamos paralelamente à beirada do
penhasco, e mais além vejo uma revoada de pássaros brancos
acompanhando nosso ritmo. Gaivotas, talvez, ascendendo e deslizando por
correntes de ar que as impelem violentamente para cima quando se
aproximam das rochas. Aqui é Thisby , penso. Esta é a ilha que amo .

Subitamente, sinto que sei tudo sobre a ilha e tudo sobre mim ao mesmo
tempo, mas sei que isso vai desaparecer assim que pararmos.
Voltamos ao ponto de partida, e, relutantemente, diminuo a velocidade
de Corr. Meu coração está batendo em meus ouvidos, galopando, apesar de
Corr já ter parado.
Eu escorrego e me ponho a alguns passos de distância, virando para ver
Sean descer também. Ele põe a mão no bolso, pega um punhado de sal ou
areia e então o lança em círculo em torno de Corr, cuspindo nele enquanto
observo. Quando termina, caminha até mim, sombrio e silencioso. Ele está
me olhando do mesmo jeito que fez no festival, e sei que estou retribuindo o
olhar. Algo selvagem e antigo gira dentro de mim, mas não tenho palavras.
Sean diminui a distância entre nós e pega meu punho. Pressiona o
dedão em meu pulso. Meu coração fica descompassado e acelerado contra
sua pele. Estou presa pelo seu toque, uma espécie de magia atemorizante.
Ficamos ali por um tempo, e espero que meus batimentos desacelerem
em seu dedo, mas isso não acontece.
Finalmente, ele solta meu pulso e diz:
– Vejo você nos penhascos amanhã.

uando chego em casa, está tudo um brinco. A casa não fica
arrumada assim desde que nossos pais morreram. Fico na porta
por um instante, perdida em assombro e perplexidade, e então
Finn irrompe no corredor. Ele está parecendo um homem que entrou em
combustão e apagou o próprio incêndio; está em frangalhos, ainda mais que
de costume. Saio de meus pensamentos para tentar decifrar o que
aconteceu.
– O que houve? – pergunto.
Finn tenta dizer algo várias vezes, mas apenas suas mãos são bem-
sucedidas. Enfim, consegue falar:
– Pensei no seguinte: como eu saberia se algo tivesse acontecido com
você?
– Por que algo teria acontecido comigo?
– Puck, é noite . Onde você esteve? Eu pensei...
Lentamente me dou conta. Ele me vira antes de eu sair para me
confessar e deve ter esperado que eu voltasse não muito tempo depois.
– Desculpe – digo a ele.
Finn dispara loucamente pela sala, e percebo que fez toda essa faxina
porque estava desesperado de preocupação comigo.
– A casa está maravilhosa – digo.
Ele retruca:
– Claro que está! Limpei a droga da casa toda! Eu não sabia nem
quanto tempo levaria, se você morresse, até eu saber. Quem me contaria?
– Desculpe, eu esqueci. O tempo voou.
Isso deixa Finn ainda mais furioso. Eu nunca o vi em tal estado. Ele está
como meu pai quando descobriu que minha mãe comprara um capão
cinzento de um fazendeiro. Ele ficou louco, uma tempestade furiosa e
silenciosa contida pelas paredes, agarrando os encostos das cadeiras e

Q

olhando para o teto, até mamãe concordar em vender o capão.
– O tempo voou – diz Finn, finalmente.
– Posso pedir desculpas mais uma vez, mas acho que não vai adiantar.
– Não vai adiantar nada!
– Então, o que é que você quer de mim? – A verdade é que de fato me
senti mal antes, mas agora minha paciência está por um fio. – Não posso
simplesmente voltar atrás e desfazer o passado.
Finn se reclina na poltrona de meu pai, com os punhos firmemente
cerrados.
– Eu não aguento – diz, e subitamente vejo Gabe nele. – Não aguento
não saber o que vai acontecer.
Lentamente, me aproximo da poltrona e me agacho diante dele. Dobro
os braços no assento e ergo os olhos em sua direção. Não sei por que ele
parece tão jovem, se é a preocupação que está roubando sua idade, ou se é
porque tenho olhado para o rosto de Sean Kendrick. Digo:
– Está quase terminando. Vamos ficar bem. Não vai acontecer nada
comigo. Mesmo se eu não ganhar, vamos ficar bem, certo?
O rosto de Finn está desolado e terrível, e acho que ele não acredita.
Acrescento:
– Puffin voltou, não voltou?
– Sem metade do rabo. Você não tem um rabo sobrando.
– Dove tem. E aquela comida cara significa que o dela vai crescer bem
rápido de novo.
Não sei se ele se sente consolado, mas não reclama mais. Depois, ele
arrasta seu colchão até meu quarto e empurra-o na direção da parede
oposta. Aquilo lembra demais minha infância, quando dividíamos o quarto
com Gabe, antes de meu pai construir outro quarto na lateral da casa para
mamãe e ele.
Depois que apagamos a luz, ficamos em silêncio por vários longos
instantes. Então, Finn diz:
– O que o padre Mooneyham lhe deu?

– Duas ave-marias e um credo de columba.
– Jesus amado – diz Finn no escuro. – Você foi pior que isso.
– Tentei explicar isso a ele.
– Vou falar com ele de novo, quando eu for amanhã. Você já rezou?
– Claro. Foram apenas duas ave-marias e um credo de columba.
Finn se agita na escuridão.
– Você ainda fala enquanto dorme? – pergunto.
– Como posso saber?
– Vou bater em você se falar.
Finn se vira de novo, socando o travesseiro.
– Isto não será para sempre. Só por um tempo.
– Certo – digo. Pela janela, vejo o contorno da lua, que me remete ao
dedo de Sean pressionado em meu punho. Retenho cuidadosamente o
pensamento em minha cabeça, pois quero refletir sobre ele um pouco mais
quando Finn parar de falar. Mas, em vez disso, enquanto espero para
dormir, me pego pensando no que Finn disse sobre minha morte. Sobre
como ele não sabia quanto tempo levaria até ficar sabendo, ou quem lhe
contaria. Percebo então que não consigo lembrar como foi que descobrimos
que nossos pais estavam mortos. Lembro-me apenas deles tomando o barco
juntos, um acontecimento realmente muito raro, e então me lembro de
descobrir que estavam mortos. Não apenas não consigo ver o rosto de quem
nos contou, não consigo lembrar o que foi dito. Deito-me ali com os olhos
firmemente cerrados, tentando retomar aquele momento, mas tudo o que
consigo evocar é o rosto de Sean e a sensação do solo se movendo
rapidamente sob Corr.
Acho que esta é a verdadeira bênção desta ilha: ela não nos deixa com
nossas lembranças terríveis por muito tempo, mas nos deixa ficar com as
boas pelo tempo que quisermos.

dia do leilão de potros de Malvern amanhece excepcionalmente
belo, calmo demais para outubro. Perdi o sono depois de deixar
Puck para trás ontem à noite, então reservo mais meia hora para
me preparar para o que está por vir, em seguida me visto e me encaminho
para o haras. Não vou montar Corr esta manhã nem vou fazer o trabalho de
sempre no estábulo. O tempo quente, que tornaria a praia suportável, está
perdido para o leilão.
O haras está fervilhando, cheio de homens do continente segurando
taças de champanhe às nove da manhã e ignorando a esposa, que veste
peles quentes demais para este clima. De vez em quando, o som do relincho
de um cavalo ressoa acima das vozes. Esses turistas são de um tipo mais
organizado que aqueles que chegaram para as Corridas de Escorpião, mais
parecidos com os cavalheiros que eu vira hospedados no hotel que com
qualquer nativo. Todos os empregados de Malvern estão trabalhando hoje;
este leilão financia o haras pelo resto do ano.
Meus pés pisaram o terreno há apenas um minuto quando George Holly
pega meu cotovelo.
– Sean Kendrick. Pensei que estaria lá fora com as feras.
– Hoje não. – A verdade é que eu preferiria estar lá fora com os
estribeiros, levando os cavalos para o ringue para os compradores verem. Em
vez disso, tenho de ficar ao alcance da voz de Benjamin Malvern, para que,
caso ele faça um sinal com os olhos ou aponte uma taça de champanhe em
minha direção, eu esteja disponível para elogiar qualquer cavalo prestes a
ser leiloado. – Hoje estou aqui para me vender, e não a eles. Eu sou a
novidade.
– Ah, por isso as roupas estilosas. Quase não o reconheci neste paletó.
– Eu o comprei para ser enterrado nele.

O

George Holly bate em meus ombros.
– Então planeja manter a forma ou morrer jovem. Uma cabeça tão
sábia em ombros tão jovens. Se sua Kate Connolly ainda não o viu neste
paletó, ela deveria.
Duvido muito que Puck seria afetada ao me ver com cara de quem
precisa só de um relógio de bolso para compor o visual. Se ela preferisse esta
minha versão, seria triste de qualquer maneira. Estendo uma mão sobre o
colete e aliso os botões.
– É tão legal vê-lo desconfortável, sr. Kendrick – diz Holly. – Ela mexeu
com você! Agora me diga quais cavalos comprar.
Mexer não é a palavra. Não consigo me concentrar. Preciso estar no
dorso de Corr, em vez de ficar cozinhando neste terno. Digo:
– Mettle e Finndebar.
– Finn-de-bar? Não consigo nem ao menos pronunciar isso, quanto
mais me lembrar. Malvern a mostrou para mim?
Digo:
– Provavelmente não. É uma égua reprodutora. Está ficando um pouco
velha, por isso está sendo vendida.
Olho a tempo de ver Malvern chegando com uma carreata de
compradores em potencial atrás de si. Eles parecem encantados com o clima
da ilha, com os competidores e com seu dono engraçado. Malvern me vê e
eu o vejo marcando minha localização para futura referência.
Holly troca um olhar com Malvern, que não é completamente cordial.
– Ah, não estou no mercado de parideiras.
– Ela só pare vencedores. O que foi esse olhar?
Holly franze a sobrancelha enquanto um estribeiro guia um cavalo
quase adulto.
– É o meu olhar para éguas reprodutoras.
– Não, você e Malvern. Sobre o que vocês discutiram?
Ele esfrega a nuca e recusa a champanhe que lhe oferecem.
– Enquanto eu estava perambulando por aí, descobri uma das antigas

paixões dele, coisa que só vim a saber depois. Acho que agora ele me
considera um mulherengo. – Ele parece magoado.
Não digo a Holly que eu partilhara da mesma impressão.
– Eu achei que estivesse tudo bem agora que você está aqui no leilão.
– Tudo vai estar maravilhoso assim que eu comprar alguma coisa –
observa Holly, olhando por sobre os ombros. – Mettle e a parideira. Não
tenho intenção de comprar uma égua reprodutora, sabe. Temos inúmeras
delas. Você não pode simplesmente cruzá-la com seu garanhão vermelho e
me vender o produto dessa feliz união no ano que vem?
– Reproduzir um capall uisce em cativeiro não é assim tão fácil –
respondo. – Às vezes, éguas são éguas para eles, e às vezes são refeições. –
Se há um motivo para um garanhão uisce escolher uma égua da terra ou
uma égua uisce escolher um garanhão da terra, eu ainda não descobri.
Alguns cavalos de Malvern têm sangue de capall uisce , mas diluído e antigo,
se manifestando de formas estranhas. Cavalos que amam nadar, como
Fundamental; potras com relinchos estridentes; potros com orelhas longas e
finas.
– É exatamente assim – diz Holly com amargura – que acontece com os
humanos.
Reflito se isso significa que sua amante cega o rejeitou ou o contrário,
mas sou distraído por um vislumbre de Mutt Malvern entre os compradores.
Ele está falando e apontando para uma potra no curral como se soubesse
algo a respeito dela, e os emplumados e encouraçados homens do
continente ouvem e balançam a cabeça, porque ele é o filho do dono, então
é claro que sabe alguma coisa. Holly segue meu olhar, e por um instante
ficamos ali, ombro a ombro.
– Ei, bom dia! – diz Holly abertamente, e, quando vejo a quem se
dirige, fico contente por não ter falado mal de Mutt. Benjamin Malvern está
bem atrás de nós.
– Sr. Holly. Sr. Kendrick – responde Malvern. – Sr. Holly, certamente o
senhor achou algo de seu interesse, não?

Ele me olha.
O sorriso de Holly é amplo e abusivamente americano, fileiras e fileiras
de dentes brancos e brilhantes.
– Benjamin, tantas coisas em Thisby me interessam.
– Alguma coisa da variedade quadrúpede?
– Estou dando uma olhada em Mettle e em Finndebar – diz Holly.
Apesar de seus protestos anteriores, ele pronuncia Finndebar sem hesitação.
Malvern diz:
– Finndebar só pare vencedores.
Minha boca brinca com o som de minhas próprias palavras vindas dos
lábios de outra pessoa.
Holly balança a cabeça em minha direção.
– Ouvi dizer. Por que está sendo vendida, então?
– Está ficando um pouco velha, só isso.
– A idade e a astúcia têm suas vantagens – comenta Holly. – Quero
dizer, você deve saber, hein? Ah, este é um excelente país, cheio de
excelentes pessoas. Ah, vejo que todos os Malverns estão aqui agora. E eis
ali Matthew, a cara do pai.
Essa última frase é porque Mutt Malvern se posicionou de modo que
ouvimos sua voz, e ele permanece ali com um homem, entretido numa
conversa sobre uma potra. Acho que está tentando parecer útil para mim ou
para seu pai. Posso ouvir o que está dizendo e é ridículo, mas o homem está
assentindo.
O olhar de Malvern está em Mutt, sua expressão difícil de discernir,
mas certamente nada que possa ser chamado de orgulho.
– Então, vou confessar – diz Holly – que estou bastante encantado com
Sean Kendrick aqui. Você tem um belo braço direito.
Malvern desvia o olhar para mim e depois volta a enfocar Holly, uma
sobrancelha erguida.
– Ouvi dizer que você estava fazendo um esforço razoável para exportá-
lo.

– Ah, mas a lealdade dele foi forte demais – diz Holly. O sorriso que ele
me dirige é feroz em sua sinceridade. – O que é simplesmente
decepcionante. Você o trata bem demais, eu suponho.
Ali perto, Mutt olha em minha direção, os olhos estreitos, e vejo que se
inteirou do assunto.
– O sr. Kendrick está conosco há quase uma década – diz Malvern. –
Desde que sei pai morreu e eu o tomei sob minha responsabilidade.
Com apenas uma frase, ele pinta um retrato de um menino órfão
sentado na mesa da cozinha, criado lado a lado com Mutt, se deleitando nos
prazeres de ser um Malvern.
– Então ele é praticamente um filho – diz Holly. – Isso explica a ligação.
Todos esses cavalos têm a marca dele, não têm? Parece-me que ele é o
herdeiro natural do Haras Malvern, é o que eu diria se me perguntassem.
Benjamin Malvern estivera olhando para o filho, que lhe devolvia o
olhar, mas, quando Holly termina, os olhos de Malvern me avaliam em meu
paletó e ele aperta os lábios.
– Em muitos sentidos, sr. Holly, acho que isso é bem verdadeiro. – Ele
olha para Mutt mais uma vez e acrescenta: – Na maioria dos sentidos.
Não posso acreditar que ele esteja falando sério. A única coisa que
consigo pensar é que está falando isso porque está jogando com Holly. Ou
porque quer que Mutt ouça, o que sem dúvida acontece.
Holly troca um olhar comigo, e posso ver que está tão abismado quanto
eu.
– Infelizmente – diz Malvern, dando as costas para Mutt –, o sangue
nem sempre se manifesta. – Ele me olha, e subitamente me dou conta de
que nunca soube o que ele está de fato pensando atrás daqueles olhos
fundos e inteligentes. Não sei nada a seu respeito, além de seus cavalos e do
pequeno apartamento frio acima do estábulo. Sei que é dono da maior parte
de Thisby, mas não sei quais partes. Sei que já cavalgou, mas agora não
cavalga mais, e sei que seu filho é bastardo, mas não sei se a mãe ainda mora
na ilha. Sei que ganho as corridas para ele e todo ano ele fica com noventa

por cento do prêmio, como faria com qualquer homem sob seu comando.
Malvern diz:
– O sr. Kendrick nasceu num cavalo e vai morrer num cavalo, e talvez
isso não seja algo que se possa criar artificialmente. Ele é um desses poucos
homens que conseguem fazer um cavalo trabalhar para ele, mas nunca pede
mais do que eles têm. Se ele lhe disse para investir seu dinheiro em Mettle e
Finndebar, seria tolice sua não fazer isso. Tenha um bom dia, sr. Holly.
Malvern dá um aceno de cabeça para Holly e parte. Quando ele sai,
Holly me diz algo que não ouço, pois estou olhando para Mutt. Em sua
expressão estão inscritos o espanto e uma furiosa rejeição. Naquele
momento, pouco importa o fato de que tanto ele quanto eu fizemos nossa
parte para merecer as palavras de Malvern. Só o que importa é que elas
foram brutais.
Observo seu olhar se tornar temível enquanto ele me encara. Algo
exigente e intransigente agarra Mutt Malvern por dentro. Ele abre caminho
de volta para casa.
– Sean Kendrick – diz Holly. – No que está pensando?
– Que isso não me soa nada bem – respondo.
Holly olha para o espaço que Mutt deixou para atrás e aconselha:
– Eu trancaria a porta do quarto esta noite.

e manhã, antes de ir até os penhascos para treinar e
possivelmente encontrar Sean, Finn e eu vamos até a casa de
Dory Maud – ele de bicicleta, eu em Dove. A verdade é que
Finn planeja fazer uns bicos para elas, se puder, e eu estou esperando,
contra as expectativas, que Dory tenha vendido mais alguns bules, pois
temos um pouco de manteiga, mas não temos pão no qual passá-la nem
farinha para fazê-lo.
Nós nos arrastamos para Skarmouth. Agora conduzo Dove para
assegurar que ela não torça uma pata num trecho irregular da calçada. Finn
empurra a bicicleta para poder olhar para a Palsson’s sem cair de um veículo
em movimento.
Ambos olhamos melancolicamente a vitrine da padaria enquanto
passamos, apesar de ter jurado a mim mesma que não faria isso. Nada diz
tão “órfãos” como duas crianças quebrando o pescoço para ver bandejas de
bolos de novembro, pratos de biscoitos de diferentes formatos e pães
adoráveis que ainda embaçam a vitrine a que estão próximos. Finn e eu
suspiramos ao mesmo tempo e continuamos nosso caminho até a Fathom &
Sons. Amarro Dove na frente da loja, e Finn ordena que sua bicicleta fique
ali. Não sei se a loja estará aberta ou não; Elizabeth e Dory Maud podem
estar na barraca no caminho do penhasco.
Mas a porta abre, e, quando a empurramos para entrar, fico surpresa ao
encontrar tanto Dory Maud quanto Elizabeth ali, assim como um belo
homem louro que está falando animadamente sobre um pedaço de pedra de
lápide encontrada por Martin Devlin em sua fazenda no ano passado,
quando escavava a terra em busca de batatas.
– Ah, deve ter sido emocionante! – diz ele.
Finn me lança um olhar. Olho para o desconhecido. Ele é estrangeiro e

tem por volta de trinta anos, talvez. Está em sua melhor forma. Acho que o
termo para isso é arrojado ou elegante ou alguma coisa assim. Está
segurando uma boina vermelha nas mãos.
– Ah, Puck – diz Dory Maud. – Puck Connolly .
Finn e eu trocamos outro olhar.
– Prazer em conhecê-lo – digo ao estranho.
– Ah, mas vocês não foram apresentados – diz Dory Maud. – Sr. Holly,
esta é Puck Connolly . Puck, este é o sr. George Holly.
– Agora tenho prazer em conhecê-lo – digo de mau humor. – Só vim
deixar Finn aqui e... – Elizabeth se aproxima e finca as garras em minha
pele.
– Só um momento! Preciso roubá-la – gorjeia Elizabeth. Ela
rapidamente me leva para o quarto dos fundos e bate a porta atrás de nós.
Então, somos apenas eu, ela, quatro cadeiras, uma mesa maior que o espaço
disponível e uma plateia de caixas preenchidas com as cartas de amor de
Dory Maud para os marinheiros. Estamos cara a cara, e Elizabeth cheira a
uma tonelada de rosas inglesas.
– Puck Connolly, trate aquele homem com toda a boa educação que
você tem.
– Eu estava sendo simpática.
– Não estava, não. Vi seu rosto. Não sou boba! Nós precisamos
encorajá-lo. Aquele americano é mais rico que a rainha, e achamos que ele
está pretendendo levar um pedaço de Thisby com ele.
Espero que leve a estátua da fertilidade.
– O que é que você está tentando empurrar para ele?
Elizabeth recosta o corpo na porta para garantir que ninguém vai
interromper.
– Annie.
– Annie!
– Se for repetir tudo o que digo, darei sua língua para ele também.
– Annie sabe o que está acontecendo?

– Ah, se você fosse tão inteligente quanto é bonita. – Elizabeth percebe
que ainda está segurando meu braço e me solta. – Agora vá e seja
encantadora. O quanto puder.
Faço cara feia e a sigo até o salão principal. Todos os olhos se voltam
para mim. Sabe-se lá como, Finn está segurando a lápide.
– Prontas, senhoras? – pergunta Dory Maud. Não consigo lembrar
quando foi a última vez em que ela usou a palavra “senhoras” para se referir
a qualquer coisa que não fossem nossas galinhas. – O sr. Holly estava
mostrando interesse em você, Puck.
Talvez o choque esteja estampado em meu rosto, pois ele rapidamente
acrescenta:
– Sean Kendrick falou de você.
– Você não mencionou isso antes – diz Dory Maud, olhando para mim.
– Puck, seria maravilhoso se você levasse o sr. Holly para tomar café da
manhã.
– Ah... – Holly e eu protestamos ao mesmo tempo.
– Dove está ali fora – digo.
Holly me olha e diz significativamente:
– E eu estava indo assistir ao treino. – Decido que gosto dele. Sua
elegância ajuda, mas é sua inteligência que faz toda a diferença.
– Então você deveria levá-lo à Palsson’s para lhe dar um dos bolos de
novembro. É claro que Annie também sabe fazê-los, até melhor que a
Palsson’s – diz Dory Maud. – Ela estava dizendo agora mesmo que gostaria
de prepará-los para o sr. Holly, mas obviamente não houve tempo. Se o
senhor comprar alguns na Palsson’s, pode carregar seu café da manhã.
O sorriso de Holly ilumina a sala; Dory Maud e Elizabeth quase caem
para trás.
– Posso comprar um negócio desse para você, srta. Connolly? –
pergunta Holly. – E para o seu irmão também?
Acho que eu poderia morrer por causa do poder penetrante do olhar
lançado por Elizabeth. É um olhar que diz: “Eu disse que ele era um

americano rico com dinheiro para gastar”. Olho fixamente para ela e Dory
Maud.
– Com certeza. E Dory, se você me der um trocado, comprarei alguns a
mais... para Annie.
Momentaneamente travamos uma batalha de olhares, e então Dory
Maud cede e me dá algumas moedas. E assim dois membros triunfantes da
família Connolly acompanham George Holly até a saída da Fathom & Sons,
Finn de um lado e eu de outro. Com grande interesse, Holly me observa
soltando Dove, e eu o vejo me observando com um interesse ainda maior. A
forma como seus olhos percorrem Dove, do tendão ao joelho, do dorso ao
peito, me diz que ele não é só mais um turista tolo. Eu me pergunto quão
bem ele conhece Sean.
– Você sabe – diz Finn no caminho para a Palsson’s, animado agora que
vai ganhar comida – que Annie é cega, certo?
– Não totalmente – Holly o corrige. – Não totalmente cega, quero
dizer.
– Foi o que disseram?! – exclama Finn. Eu encaro os dois. Quem é essa
pessoa capaz de deixar Finn tão animado em tão pouco tempo?
– Sim – diz Holly afavelmente. Ele inclina a cabeça na direção de Finn
e pergunta: – Agora, o que exatamente é um bolo de novembro?
Ele pergunta com uma curiosidade tão genuína que é claro que Finn
precisa falar ainda mais, descrevendo a crosta úmida, o néctar que escorre
de sua base, a cobertura que penetra no bolo antes que você possa lambê-la.
Provavelmente é a coisa mais doce que já vi na vida, George Holly
interrogando meu irmão sobre bolos. Quando Holly me olha, devolvo-lhe
um olhar duro, que percebo que talvez não se encaixe na recomendação de
ser tão charmosa quanto possível. Mas não sei se George Holly, que é
inteligente e gentil, pode ser tão facilmente enganado quanto Dory Maud e
Elizabeth pensam.
Juntos, entramos na Palsson’s. Tento manter um ar de dignidade, mas é
difícil não ser tomada pelo odor que paira no ar. Tudo é canela, mel e

fermento. A Palsson’s fica numa esquina e é feita de vitrines e luz. As
paredes estão forradas de prateleiras de madeira rústica sem fundo, de modo
que a luz do sol entra desimpedida pelas folhas de vidro e traça grandes
quadrados de ouro pelo chão. Cada prateleira tem pilhas de pães e biscoitos,
rosquinhas de canela e bolos de novembro, bolinhos e bolachas. A única
parede não tão abençoada é a dos fundos, atrás do balcão, forrada com sacos
de farinha que aguardam para virar pão. Posso até sentir o cheiro da farinha,
de tanta farinha que há, e ela é doce e saborosa por si só. Tudo é dourado e
branco, mel e néctar por aqui, e penso que provavelmente eu poderia morar
neste prédio e dormir entre os sacos de farinha.
A Palsson’s está lotada hoje, como sempre, tanto de clientes quanto de
donas de casa, que têm conversas mais agradáveis perto de outra pessoa no
comando dos doces. George Holly coleciona olhares e sussurros, enquanto
Finn e ele passam pelas prateleiras e alcançam a longa fila. Ele se encaixa
perfeitamente, tão louro quanto um bolo de novembro.
– Sua tia é uma mulher forte – diz George Holly.
– Dory Maud?
– A própria.
Se Dory Maud lhe disse que somos parentes, posso voltar a cuspir.
– Ela não é minha tia.
Ele graciosamente pede desculpas.
– Ah, me desculpe. Você pareceu tão próxima dela. Não quis me
exceder.
– Todo mundo em Thisby é próximo – respondo. – Fique aqui por um
mês e ela será sua tia também.
Isso faz Finn sorrir para o chão.
– Uau – diz George Holly. – Que promessa pesada.
Avançamos na fila. A cabeça de Finn está se movendo para frente e
para trás como a de uma coruja, passando de uma bandeja a outra enquanto
ele considera os méritos das diferentes possibilidades.
– O sr. Kendrick me disse que seu pônei tem pernas muito boas – diz

Holly, puxando conversa. Ouço alguém atrás do balcão dizer “boina
vermelha brilhante”.
– Cavalo.
– Hum?
– Ela tem quinze palmos. É um cavalo. Ele disse isso?
– Ah, me perdoe, senhora – diz Holly. Ele diz isso porque Mary Finch
acaba de se espremer entre uma prateleira e ele para chegar até a vitrine, e a
mão dela foi parar em algum lugar indesejado de Holly, um acidente
bastante feliz para ela. Holly avança em direção ao balcão e se recompõe
antes de se virar para mim.
– Estão dizendo na praia que ele disse que se seu pônei, cavalo, seguir
em frente enquanto os capaill uisce viram à direita, você pode ter chance.
Eu me pergunto se Sean realmente acredita nisso. Eu me pergunto se
realmente acredito nisso. Devo acreditar, senão por que continuaria nisso?
– Reconheço que esse é o plano. Se estamos nos tornando íntimos,
pergunto se você realmente conhece Sean Kendrick.
Mary Finch passa novamente raspando em George Holly e seus olhos se
arregalam por um instante, enquanto ele recebe mais uma dose da
hospitalidade de Skarmouth. Tento não rir.
– Ah – diz ele. – Ah, bem, eu estava aqui para ver os cavalos de
Malvern e a gente se conheceu. Ele é um cara estranho, o que quer dizer
que gosto bastante dele.
Finn bate no balcão para chamar a atenção de Holly para os bolos que
acabaram de ser colocados sob o vidro. Por um breve instante, seus rostos
compartilham da mesma expressão infantil de desejo melancólico, desejo
que não é atenuado pelo fato de saber que a fila até chegarem aos bolos tem
apenas dois metros.
– Falando em intimidade – diz Holly –, você o conhece bem?
Minhas bochechas ficam coradas, o que me deixa furiosa. Amaldiçoo
estes cabelos avermelhados e tudo o que vem com eles. Meu pai disse uma
vez que, se eu não tivesse os cabelos ruivos da minha mãe, eu não

enrubesceria ou xingaria tão facilmente. O que eu achava injusto.
Dificilmente xingo ou enrubesço, apesar de ter tido vários dias que pediram
as duas coisas. Sou uma pessoa bem equilibrada, eu acho, dadas as
circunstâncias.
Finn está me fitando, curioso demais para saber a resposta à pergunta
de Holly.
Digo:
– Um pouco. Somos amigos.
– Como você e sua tia? – pergunta Holly. Quando faço uma careta, ele
sugere: – Como primos? Como irmãos?
– Não o conheço tão bem quanto Mary Finch conhece você – digo.
Quando ele parece perplexo, faço um gesto sugerindo um beliscão e ele
recua, como se suas partes baixas estivessem recebendo atenções dela mais
uma vez.
– É justo – diz Holly.
Chegamos ao balcão, e Bev Palsson recolhe o dinheiro dos bolos. Finn
compra um número obsceno de rosquinhas de canela com o dinheiro de
Dory Maud. Quando os pegamos e saímos, parando perto da porta onde
Dove está amarrada, Finn faz George Holly desembrulhar um dos bolos para
que possa observar sua reação. Holly dá uma mordida, mel escorre por seus
lábios, e fecha os olhos com um prazer tão pronunciado que é difícil dizer se
está exagerando para agradar Finn.
– Ouvi dizer – diz Holly – que a comida fica mais saborosa ao ser
rememorada. Não vejo como isso pode melhorar ao se tornar lembrança.
Finn fica satisfeito. É como se ele mesmo tivesse preparado os bolos.
Porém, vejo algo agridoce na expressão de Holly; acho que é bem possível
que esta ilha já tenha começado a fincar suas garras nele, o que me faz
gostar de Holly ainda mais. Qualquer pessoa que Thisby decida seduzir não
pode ser de todo má.
Holly pergunta:
– Finn, você poderia fazer o favor de pedir outra sacola para eles, para

separarmos os doces em duas porções? E, se eu lhe der isto, você me
compraria outra rosquinha para eu levar para o meu quarto? Compre mais
uma para você também, assim a sua outra mão não fica vazia.
Quando Finn é despachado, Holly diz:
– Puck, estou ultrapassando todos os limites aqui, a ponto de talvez não
conseguir voltar atrás. Mas há uma série de pessoas que não querem você na
praia. Não sei se você ouviu dizer.
Lembro-me de Peg Gratton me dizendo para eu não deixar ninguém me
assustar. Perco o apetite pelo meu café da manhã açucarado.
– Faço uma vaga ideia.
Há uma preocupação genuína no rosto de George Holly.
– Você é a primeira, não é? A primeira mulher?
É estranho ser chamada de mulher, mas concordo com a cabeça.
– A coisa parece estar bem feia lá embaixo – diz ele. – Eu não diria
nada se não achasse que parece perigoso.
George Holly se tornou um de nós bem rápido. Vou participar de uma
corrida com algumas dúzias de capaill uisce e ele acha que é com os homens
que eu devo me preocupar.
– Sei que não devo confiar em ninguém – digo. – Exceto...
Holly estuda meu rosto.
– Você gosta dele, não? Que coisa estranha, maravilhosa e reprimida é
este lugar.
Olho fixamente para ele, aliviada por não parecer mais ruborizada, ou
talvez eu ainda esteja vermelha e não tenha como corar ainda mais.
– Não sou eu que estou me deixando levar por três irmãs com quatro
olhos e meio.
Holly ri com prazer.
– Isso é bem verdade.
Dove tenta pegar meu bolo de novembro, e eu a afasto com o cotovelo.
– Annie é legal – digo. – Você a acha bonita?
– Sim.

– Eu acho que ela também o considera agradável – digo. Olho para ele
de lado com um sorriso travesso. – Já que ela não consegue ver além do
próprio braço. Mas eu não contaria com ela para assar esses bolos. Existe um
motivo pelo qual a Palsson’s está cheia de mulheres. As mulheres de Thisby
são preguiçosas.
– Preguiçosas como você?
– Por aí.
– Acho que eu poderia suportar isso. – Ele ergue o olhar; Finn acaba de
irromper pela porta da Palsson’s trazendo duas sacolas, e se aproxima de nós
com a expressão animada. Holly me diz:
– Certamente lhe desejo muita sorte, srta. Connolly. E espero que você
não aguarde Sean Kendrick perceber que está solitário.
Quero perguntar, “Aguardar o quê?”, mas Finn chegou e essa não é
uma pergunta que eu queira fazer na frente de um dos meus irmãos.
Então, nós simplesmente trocamos amabilidades, e Holly toma seu
rumo para assistir ao treino na praia, eu tomo o meu para levar Dove ao
topo do penhasco, e Finn se apronta para voltar para a casa de Dory Maud,
para fazer uns bicos.
– Você notou o sotaque dele? – pergunta Finn.
– Não nasci surda.
– Se eu fosse Gabe, iria para os Estados Unidos em vez de ir para o
continente.
Esta declaração acaba com qualquer rastro de bom humor que estivesse
germinando em minha alma.
– Se você fosse Gabe, eu lhe daria um tapa.
Finn não se deixa atingir. Dá um tapinha amigável na anca de Dove
antes de partir.
– Ei . – Eu o detenho e tiro outros dois bolos da sacola. – Agora vá.
Finn trota alegremente, ele que se deixa agradar assim tão fácil com
comida. Equilibro meus bolos em uma das mãos e pego as rédeas de Dove
com a outra, conduzindo-a até os penhascos. Penso no comentário de

George Holly sobre a comida ser melhor na memória. Parece uma
declaração estranha e exuberante. Presume que você terá não só aquele
momento em que dá a primeira mordida, como também momentos futuros
suficientes para que aquela bocada se torne uma lembrança . Meu futuro não
é tão certo a ponto de eu poder imaginar no que aquele sabor vai se
transformar. E, de qualquer forma, os bolos de novembro me parecem bem
doces agora.

á estou esperando quando Puck chega ao topo dos penhascos. Não sou
o único; cerca de duas dúzias de turistas das corridas transformaram as
rochas em bancos, observando Corr e eu tão de perto quanto
conseguiram se atrever. Puck os encara, um olhar tão lancinante que alguns
se esquivam de surpresa. Não sei bem o que esperar dela depois da noite de
ontem. Não sei como me dirigir a ela. Não sei o que ela espera de mim ou o
que eu espero de mim.
O que ganho é um olá silencioso e um bolo de novembro em minha
mão. Ambos comemos em silêncio, sob o olhar atento da plateia de turistas,
e depois esfregamos as palmas pegajosas de nossa mão na grama.
Puck faz uma careta para os espectadores.
– Dove fica tímida perto dos cavalos d’água.
– E deveria mesmo.
Ela dirige sua expressão feroz para mim.
– Bem, isso não vai funcionar durante as corridas, vai?
Volto minha atenção para sua égua parda. Ela está bem ciente da
presença de Corr, mas não parece estar com medo.
– Ela não precisa gostar deles – digo. – Um pouco de respeito vai lhe
dar velocidade. Desde que você não tenha medo de que ela esteja com
medo.
Observo Puck tentando assimilar isso, pondo a cabeça no lugar. Seus
olhos estão estreitos conforme estuda Corr, e eu me pergunto se está se
lembrando de nossa corrida no topo dos penhascos.
– Em mim, eu confio – diz. Ela me olha como se isso fosse uma
pergunta, mas, se for, só ela pode responder.
– Pronta para o trabalho? – pergunto.
Nós trabalhamos.

Corr não está totalmente cansado do galope da noite anterior, e o
cavalo de Puck está vigoroso e quente ao vento. Cavalgamos em círculo e a
uma distância bem curta, galopamos e nos confrontamos. Tomo a frente até
que Corr se distrai e, de repente, Puck está ao nosso lado, as orelhas de sua
égua parda eretas e espertas. Acertamos o passo, sem apostar corrida,
apenas correndo por correr.
Esqueço que estou trabalhando, esqueço que a corrida é daqui a apenas
alguns dias, esqueço que ela está num pônei da ilha e que eu estou
num capall uisce . Há apenas o ar que passa por minhas orelhas, a lua esguia
de seu sorriso fugaz em minha direção e o peso familiar de Corr em minhas
mãos.
Então, uma hora se passa sem eu perceber e tenho de frear Corr. Não
quero cansá-lo. Puck também freia Dove. Por um momento, vejo que ela
está a ponto de dizer algo; sua língua estala contra os dentes. Mas, no fim,
tudo o que ela faz é devolver minhas próprias palavras.
– Vejo você nos penhascos amanhã?

Sean está lá no dia seguinte, e no próximo, e no próximo. Acho que não o
verei no domingo, porque nunca o vi na igreja de são Columba e não sei
aonde ele iria se não for para lá. Mas, depois da missa, ando até o topo do
penhasco e ali está Sean, os olhos já focados na praia.
Observamos o treinamento lá embaixo, trocando apenas algumas
palavras, e, no dia seguinte, voltamos a montar. Às vezes escaramuçamos
juntos, já em outras cavalgamos bem separados, apenas ao alcance da vista
um do outro. De vez em quando, penso no dedo de Sean pressionado contra
meu punho e fantasio com ele me tocando de novo. Mas, sobretudo, penso
no modo como ele me olha, com respeito, e acho que isso provavelmente
vale mais do que tudo.

A única coisa é que, quanto mais vejo Corr e ele juntos, mais penso em
como seria insuportável para Sean perdê-lo.
Mas não podemos ambos vencer.

Por uma semana, cavalgamos juntos a ponto de se tornar difícil lembrar
minha rotina diária de idas à praia. Sinto falta das manhãs solitárias na
areia, mas não o suficiente para trocar a companhia de Puck por elas. Em
alguns dias nós mal nos falamos, então não sei bem por que faz diferença
para mim. Mas, até aí, Corr e eu também nunca precisamos de palavras.
Então, passo horas cavalgando Corr lentamente, aperfeiçoando o que já
está ali, e vendo Puck inventar novos jogos para manter Dove interessada
na tarefa. A barriga de feno de Dove já desapareceu, por causa do treino
regular ou da melhor alimentação. Puck também está mudando, agora ela
fica imóvel quando cavalga. Mais certeza e menos petulância
constrangedora. A transformação do cavalo e da competidora que vi na
arrebentação pela primeira vez semanas atrás é impressionante. Não
questiono mais por que estou treinando ao seu lado.
Não sei exatamente em que momento percebo que Corr está de fato se
esforçando, não muito, mas se esforçando, e Dove mantém o ritmo ao nosso
lado. Mesmo depois de uma hora de treino. Mesmo ao lado de um capall
uisce .
Freio Corr. Ele tropeça com uma falta de jeito intencional, se exibindo
para a égua, e eu sacudo suas rédeas para lembrá-lo de que estou aqui. Puck
precisa de um momento para perceber que eu parei. Ela se afasta. A barriga
de Dove arfa e suas narinas dilatam, mas suas orelhas ainda estão eretas e
alertas.
Digo:
– Você pode conseguir.

O rosto de Puck está meio franzido, meio sorrindo. Ela não me ouviu.
Repito o que disse. Vejo o momento em que ela me entende, e seu sorriso
desaparece.
– Não sei se você está falando sério – diz.
– Estou. Amanhã você deveria levá-la para a praia para ter certeza de
que pode dominá-la na presença de todos os outros. Para se acostumar.
Agora o franzimento se apoderou de fato de seu rosto.
– Dois dias não é muito tempo para ela se acostumar com aquilo.
– Não é para ela. É para você. E é um dia, não dois – lembro. Corr
dança, e eu o imobilizo com minhas pernas. – No último dia, a praia é
proibida para cavalos. Amanhã é o último dia na areia.
Dove coça a barriga com uma das patas traseiras, como um cão. Ela não
parece exatamente uma vencedora quando faz isso, e Puck deve ter
consciência disso, pois dá um toque com a bota na barriga de Dove para
fazê-la parar.
– Você não está dizendo isso só porque eu lhe dei um bolo, está?
– Não, está nas regras desde que comecei a competir.
Ela estuda minha expressão para ver se estou falando sério e faz uma
careta.
– Estava me referindo ao que você disse sobre termos alguma chance.
Corr se curva sobre a minha perna, agitado e perdendo interesse na
ideia de ficar quieto. Isso me lembra de que tenho de trocar sua baia com a
de Edana. Como não foi treinada na praia, Edana está ficando mais e mais
inquieta em sua baia sem abertura nas últimas sete baias do estábulo. A
visão de Corr não é grande coisa, mas pode tranquilizá-la até o fim das
corridas, quando eu terei tempo para ela novamente.
– Eu não diria se não acreditasse.
– Quero dizer, ter uma chance de verdade. – Então ela desvia o olhar,
como se pensasse que a ideia de estarmos ambos competindo pelo primeiro
lugar pudesse me ofender.
– Há algum dinheiro para o segundo e para o terceiro lugares – digo.

Ela passa os dedos por um nó na crina de Dove. – Seria suficiente?
A voz de Puck é um fio.
– Ajudaria. – Então seu tom muda abruptamente. – Você deveria vir
jantar conosco. Teremos feijões ou qualquer outra coisa absolutamente
adorável.
Hesito. Normalmente janto em meu quarto, de pé, com a porta aberta,
o estábulo aguardando meu retorno para fazer o restante do trabalho. Não
com as pernas enfiadas debaixo de uma mesa, tentando encontrar palavras e
respostas para perguntas educadas. Jantar com Puck e seus irmãos? Faltam
poucos dias para a corrida. Tenho de limpar minha sela e minhas botas.
Preciso lavar minhas calças e encontrar minhas luvas caso chova ou o vento
esteja forte. Preciso trocar Corr e Edana e limpar suas baias. Seria bom ir ao
açougue de novo para ver se eles têm alguma coisa que ajudaria Corr.
– Tudo bem – diz Puck. Ela é rápida ao esconder sua decepção. Se você
não estiver procurando, ela esconde o sentimento antes mesmo que você
perceba que ele estava ali. – Você está ocupado.
– Não – digo. – Não, eu... vou pensar. Não sei se vou conseguir escapar.
– Não sei o que estou pensando. Não vou encontrar tempo para escapar.
Não sou boa companhia para um jantar. Mas é difícil pensar nisso. Em vez
disso, desejo ter dito antes, antes de ver a decepção dela.
Puck recupera seu bom ânimo:
– Se não for, vejo você na praia amanhã?
Disso eu tenho certeza. No lombo do cavalo, é fácil estar seguro.
– Sim.

abe traz um frango e Tommy Falk para jantar. Verdade seja dita,
não estou descontente em ver nenhum deles: Gabe, porque faz
muito tempo que não jantamos com ele; o frango, porque não é feijão; e
Tommy Falk, porque a presença dele deixa Gabe animado e bobo. Eles
ficam jogando o frango depenado de um lado para o outro por cima da
minha cabeça até que a embalagem se desfaz e eu grito com eles, enquanto
recolho o frango do chão.
– Se todos morrermos de peste ou do que quer que haja neste chão,
quero que saibam que a culpa não é minha – digo. Há um pouco de lama
grudada na pele enrugada do dorso do frango.
– Dê uma esfregada. Uma sujeirinha nunca matou ninguém – diz
Tommy Falk. – Gabe diz que você faz um frango irado.
Finn, que está diante da lareira fazendo fumaça, comenta pela primeira
vez.
– Bem, ela com certeza não faz um frango bonzinho.
– Você pode calar a boca ou preparar o frango. – Acontece que a
sujeira na ave é a menor de minhas preocupações. Minhas mãos estão
imundas. Levo um bom tempo para limpá-las e, mesmo quando estão quase
inteiramente brancas de novo, ainda cheiram suspeitamente tanto a Dove
como a Corr.
Gabe se inclina sobre o rádio, tentando fazer com que capte uma das
estações do continente. Ele só funciona quando o tempo está perfeito e os
sacrifícios apropriados foram feitos aos deuses. Na ausência de
entretenimento via rádio, Tommy Falk canta um trecho de uma música que
ouviu no rádio antes da tempestade. A casa está cheia pela primeira vez em
meses.
– Bandas, Gabe – diz Tommy. Ele está acomodado ao lado de Finn,

ajudando-o a transformar a fumaça em fogo. Estica o braço para pegar a
concertina de meu pai, que estivera abandonada ao lado da poltrona. Ele
toca a mesma música que acabou de cantar; ela soa mais melancólica na
concertina. – Você pode imaginar? Shows.
Ele está falando do continente, é claro. Porque não é só a corrida que
está a poucos dias de começar.
– E os carros – acrescenta Gabe. – E laranjas todo dia.
– E também – diz Tommy – bandas.
Finn estuda o fogo.
Eu estudo o frango.
– Não fique deprimida – diz Tommy, erguendo-se de um salto quando
vê minha expressão. – Não quer dizer que não vamos voltar. Enviaremos
dinheiro também. Você não viu as roupas de Esther Quinn, Puck? O irmão
dela está no continente vendendo alguma coisa para alguém e envia
dinheiro para casa, é por isso que parece que ela foi comprada de um
catálogo. Quando é uma boa época para visitas, Gabe? A Páscoa, talvez? A
Páscoa é um bom momento para voltar. Jogaremos mais frangos.
Gabe pega a concertina de Tommy e toca uma canção. Eu havia me
esquecido de como ele toca bem. Tommy pega em minha cintura e me gira
em círculo. Arrasto os pés porque sou contra as pessoas me tocarem quando
não estou esperando. E também porque vou precisar de mais do que dança
para me animar. Tommy diz:
– Vamos, você consegue se mexer mais rápido que isso! Todo mundo
diz que você foi um foguete nos penhascos hoje de manhã.
Deixo que ele me gire ao ouvir aquilo.
– Ah, é?
– Estão dizendo por aí que você e Sean Kendrick estavam em brasa lá
nos penhascos. – Tommy me gira mais uma vez e sorri para mim. – E
quando digo você e Sean Kendrick, quero dizer você e Sean Kendrick . E
quando digo brasa, quero dizer brasa .
Paro de girar e faço com que ele gire. Finjo que ele está falando de

corrida.
– Você está preocupado?
– É Gabe que deveria estar preocupado – diz Tommy. Ele pega minhas
mãos e me balança a ponto de eu me preocupar com os objetos sobre o
balcão. – Porque sua irmãzinha está crescendo e ficando bonita.
Minha mãe dizia que eu não deveria me sentir impelida a fazer qualquer
coisa para alguém que me dissesse palavras doces, mas Tommy Falk não
parece estar tentando me persuadir a nada, então deixo seu elogio passar. É
um elogio bem agradável e eu ficaria contente em receber outro.
Gabe para de tocar no meio do compasso, as mãos ao redor da
concertina distendida como se estivesse segurando um livro aberto.
– Não me faça dar um soco em sua boca, Tommy. Quando este frango
vai ficar pronto, Kate?
Tommy murmura “Aaaah, Kate” para mim, mas Gabe se recusa a
morder a isca.
– Vinte minutos – digo. – Talvez trinta. Talvez dez.
Então, há uma batida na porta. Todos trocamos olhares, Tommy Falk
tão incerto quanto o restante de nós. Ninguém se mexe, então finalmente
seco as mãos nas calças, me dirijo até a porta e a abro com um estalido.
Sean está do outro lado, com uma das mãos no bolso da calça e a outra
segurando um pão.
Eu não estava preparada para encontrar Sean ali, então meu estômago
faz um pequeno truque que parece fome ou fuga. Há alguma coisa de muito
chocante em vê-lo escuro e imóvel na soleira de nossa porta.
Dou um passo para fora. A noite está esfriando.
– Você escapou do haras.
– Ainda dá tempo?
– Está tudo bem. Somos eu, Gabe, Finn e Tommy Falk.
– Trouxe isto. – Ele mostra o pão, que é claramente um pão da
Palsson’s, e ainda está tão fresco que consigo sentir seu calor. Ele deve ter
vindo direto de lá. – É assim que se faz?

– Bem, você fez, então deve ser.
Gabe pergunta:
– Puck, quem é?
Abro bem a porta para revelar a resposta. Eles veem Sean ali com a
mão no bolso e a outra segurando um pão, e subitamente me ocorre,
enquanto o observam, que Sean parece, só um pouquinho, estar me
cortejando. Não tenho tempo de explicar a verdade antes de Tommy rir e
dar um pulo.
– Sean Kendrick, o demônio. Como vai?
Conduzimos Sean para dentro de casa e Gabe fecha a porta, pois em
meu súbito contentamento eu me esqueci disso. Gabe tenta separar Sean de
seu casaco, enquanto Tommy diz alguma coisa sobre o tempo, em volume
bem alto e sem o menor motivo para isso, porque somos apenas Gabe e
Tommy e às vezes Finn falando. Sean, como sempre, consegue se virar com
uma palavra enquanto todo mundo precisa de cinco ou seis. No meio disso
tudo, enquanto Sean tira o casaco, ele me olha por sobre o ombro e sorri,
apenas um leve olhar de relance antes de se voltar para Tommy.
Fico bem feliz com o sorriso, porque meu pai uma vez me disse que
devemos ser gratos pelos presentes mais raros.
Depois de alguns minutos, Tommy e Gabe começam a jogar cartas
diante da lareira porque não há ninguém para impedi-los. Finn apenas os
observa, porque ele ainda não decidiu se aquilo é um pecado ou não. Sean
fica ao meu lado no balcão, tão perto que consigo sentir o cheiro de feno,
água salgada e poeira nele.
– Me dê alguma coisa para fazer – diz.
Ponho uma faca em sua mão.
– Corte alguma coisa. Seu pão.
Ele começa a cortá-lo com uma devoção concentrada. Em voz baixa,
diz:
– Vi Ian Privett depois que você partiu. Ele levou Penda para correr
depois que todos haviam partido e correu em ritmo forte. Ele era rápido

antes e está rápido de novo. É bom ficar de olho.
– Ouvi dizer que ele gosta de vir rápido por fora no final.
Sean me olha, uma sobrancelha erguida.
– É verdade. Privett perdeu quatro anos atrás quando caiu nas corridas.
Ele ganhou de mim duas vezes antes disso.
– Ele não vai ganhar de você este ano – digo.
Sean não diz nada. Não precisa; sei que está pensando sobre perder
Corr. Mexo o frango. Está pronto, mas ainda não quero ter de sentar à
mesa.
Depois de uma pausa, ele diz:
– Estava pensando. Ninguém vai querer a parte de dentro, já que o mar
estará ruim no começo do mês.
– Então eu deveria abraçar o mar, pois Dove não vai se importar.
Sean também já terminou de fatiar o pão, mas reordena os pedaços
como se ainda estivesse trabalhando naquilo.
Digo:
– Eu estava pensando também que deveria me segurar. Poupar Dove
para o final.
– E talvez o grupo tenha diminuído? – considera Sean. – Eu não
esperaria demais nem ficaria muito para trás. Ela não é suficientemente
forte para vir lá de trás.
– Quero distância da égua malhada, e ela estará na frente – digo. – Vi o
modo como Mutt a cavalga.
Sean estreita os olhos; dá para ver que ele está satisfeito por eu ter
percebido, e eu estou satisfeita por ele estar satisfeito.
– Blackwell é o outro – diz Sean. – Ele é aquele cujo garanhão tentou
derrubar você, mas ele arranjou um cavalo substituto. Este novo é um filho
da mãe de tão veloz – ele diz sem malícia.
Claro, há um cavalo que eu sei que vai ser um competidor. Mas nunca
o vi numa corrida de verdade e nunca vi seu cavaleiro me dar a menor pista
de como gosta de dosar o ritmo.

– Onde você e Corr vão estar? – pergunto.
Sean pressiona dois dedos na beirada do balcão, juntando migalhas
numa pilha. Percebo que seus dedos estão permanentemente manchados de
sujeira, como os meus. Ele diz:
– Bem ao lado de você e Dove.
Olho para ele.
– Você não pode arriscar não vencer. Não por minha causa.
Sean não ergue os olhos do balcão.
– Faremos nossa jogada quando você fizer a sua. Você por dentro, eu
por fora. Corr pode se destacar do meio do grupo; ele já fez isso antes. Com
esse lado você não terá de se preocupar.
Digo:
– Não serei seu ponto fraco, Sean Kendrick.
Agora ele me olha. Diz, muito suavemente:
– É tarde para isso, Puck.
Ele me deixa no balcão olhando para a pia, tentando me lembrar da
próxima coisa que eu deveria fazer.
– Puck – diz Gabe. – Sua sopa!
Os bolinhos estão fervendo, e por um momento parece que teremos
chamas para o jantar, mas consigo pegar a panela e apagar o fogo.
Os meninos pairam em torno da mesa agora que a presença de comida
parece iminente. Tommy diz:
– Você está certo, Gabe, ela faz mesmo um frango irado. Ele tentou
mordê-la.
– Ah, mas Puck morde de volta.
Finn começa a distribuir os bolinhos em tigelas enquanto limpo o que
derramou. Tommy tagarela sobre como sua égua uisce se deixa empurrar
por outros cavalos, mas fica toda contente quando vê o traseiro deles. Gabe
serve um copo-d’água para todos, mesmo que não tenham pedido. E o
tempo todo tento bravamente impedir meus olhos de correrem para Sean,
pois estou bem certa de que ninguém na mesa deixará de notar como olho

para ele e como ele me olha de volta.

cordo com o som de gritos. Voltei tarde demais e o sono demorou
para chegar. Por um momento, apenas fico deitado. A exaustão me
tira a vontade de despertar completamente e, ainda assim, os
gritos.
O som se transforma num lamento agonizante e então desperto. Estou
acordado, com meu casaco e minhas botas, e já na escada com a lanterna.
O estábulo está escuro, mas ouço sons de movimento vindos não dos
corredores, mas das baias. Os cavalos estão despertos. Ou o som os
despertou, ou alguém esteve ali. Mantenho a lanterna desligada e abro
caminho no escuro.
O gemido cresce conforme desço pé ante pé até o térreo. Vem da
antiga baia de Corr, aquela em que acabei de colocar Edana.
Percorro o corredor tão rapidamente quanto o silêncio permite. O grito
silenciou, mas agora tenho certeza de que é Edana. Na escuridão, mal
consigo ver dentro da baia. A noite lá fora lança um pouco de luz azul-
escuro, apenas o suficiente para que eu me esgueire nas barras e olhe para
dentro.
Quando ela geme de novo, recuo. Ela está bem na minha cara. Sua
cabeça está apoiada nas barras, o pescoço pressionado contra a parede, o
focinho apontado em direção ao teto, a mandíbula bem aberta.
Sussurro seu nome e ela me responde com um gemido suave. Meus
olhos percorrem toda a linha de seu pescoço, e a linha inclinada que seus
quadris formam até chegar ao chão. Nunca vi um cavalo ficar em pé dessa
forma. Há um nó de angústia dentro de mim conforme abro a porta e entro
na baia. Agora, com seu corpo desenhado contra a luz da janela, vejo que
está apoiada na parede com sua cabeça e pescoço, afundada em suas ancas
como um cão. Suas patas traseiras estão abertas como se o chão estivesse
escorregadio.

Toco seu ombro; está tremendo. Uma sensação terrível cresce dentro
de mim. Passo a palma da mão na base de seu pescoço, seguindo a linha de
sua coluna, e me agacho para continuar procurando ao redor da curva de
suas ancas, que sofrem espasmos, até os tendões traseiros das patas. Edana
choraminga.
Minha mão volta empapada. Ergo-a à altura de meus olhos, mas não
preciso aproximá-la mais para sentir o cheiro de sangue. Saco a lanterna do
bolso e acendo.
Os dois tendões da parte posterior de suas patas foram cortados.
A parte superior da ferida faz uma curva para cima como um sorriso
macabro, e o sangue se acumula em torno de seus jarretes.
Eu me aproximo de sua cabeça e ela se esforça, tentando pôr as patas
debaixo do corpo. Acaricio sua crina e sussurro em seu ouvido.
– Fique quieta. Não tenha medo.
Espero que sua respiração se acalme, espero que ela acredite em mim.
Ela nunca mais vai andar.
Não consigo entender. Não entendo quem mutilaria Edana, um animal
que não estava nas corridas, que não era ameaça para ninguém. E desse
jeito, com essa crueldade selvagem, quem fez isso quis que eu a encontrasse
e me enojasse. Só consigo pensar numa pessoa que desejaria me machucar
dessa forma.
Acho que ouço um farfalhar em algum lugar nas profundezas do
estábulo.
Desligo a lanterna.
No escuro, em sua baia, a pelagem da égua baia é bem parecida com a
pelagem vermelho-sangue de Corr. Seria muito fácil confundir os dois se
você estivesse esperando Corr e estivesse concentrado em entrar na baia
sem se machucar.
Há movimento de novo, mais ao longe no estábulo.
Saio da baia e entro no corredor. Paro e espero, ouvindo. Meu coração
já disparou na minha frente. Tudo o que quero é que o som venha de

qualquer parte que não sejam as sete baias dos fundos. Tudo o que quero é
que Mutt Malvern tenha se equivocado quando foi procurar Corr. Há cinco
outras baias equipadas para os capaill uisce . Ele pode ter ido procurar em
qualquer uma delas depois de descobrir que Edana era o cavalo errado.
Ouço o tumulto de novo.
Vem das sete baias dos fundos.
Agora eu corro.
Acendo as luzes enquanto dobro o canto ao lado da porta. Se ele
souber que estou aqui, certamente abandonará isso.
– Mutt! – grito. Agora, sob a luz, vejo sangue no chão, a borda de uma
marca de sapato imprimindo a cor escarlate a cada passo. Sigo os passos, em
estado de alerta.
– Você foi longe demais! Mutt!
Minha voz ecoa nos arcos elevados do estábulo; não há resposta. Talvez
ele tenha partido.
Corr grita.
Agora corro como nunca. Posso ver Edana em minha mente, sua
cabeça estranhamente esticada em direção ao teto enquanto se apoia na
parede, arruinada em sua própria pele e ainda sem saber disso.
Se ele tocou em Corr, vou matá-lo.
Dou a volta no canto. A porta da baia de Corr está aberta. Mutt
Malvern está com uma lâmina terrível numa das mãos e, na outra, um
tridente usado para capturar peixes ou aves. A ponta de ferro da lança
pressiona o ombro de Corr, forçando-o contra a parede. Sua pele treme e
ondula sob o metal. Mutt Malvern pensou bastante nesse seu plano.
– Fique longe dele – digo. – Cada gota do sangue dele será dez do seu
sangue.
– Sean Kendrick – responde Mutt. – Foi jogo sujo de sua parte trocar as
baias assim.
Corr emite um rugido baixo com a garganta, um som que sentimos em
nossos pés em vez de ouvir. Mas ele está preso pelo tridente, não uma, mas

três pontas de ferro.
– Se você soubesse alguma coisa sobre os cavalos sob este teto, saberia a
diferença entre eles mesmo no escuro.
Mutt me olha por tempo suficiente para ver que diminuí a distância
entre nós. Ele aponta o queixo em direção à lança.
– Fique fora desta baia, exterminador de cavalos.
Lentamente, seco a mão ensanguentada no casaco e tiro meu canivete
do bolso. Mostro para ele.
Mutt observa com desprezo.
– Como é que você acha que vai me impedir com essa coisinha?
A lâmina sai do canivete com um barulho. Mutt não seria a maior das
coisas a morrer em seu estreito fio.
– Não acho que vou impedi-lo – digo. – Acho que você vai cortar meu
cavalo, e então, quando você sair desta baia, usarei isto para arrancar seu
coração e entregá-lo a você.
Estou enojado até os ossos. Não posso olhar nos olhos de Corr, ou
perderei o equilíbrio.
Mutt diz:
– Você acha mesmo que eu acredito que você possa fazer alguma coisa
comigo enquanto tenho este tridente nas mãos? – Mas ele acredita. Posso
ver em seus olhos.
Digo:
– O que você espera provar com isso? Que é o melhor cavaleiro? Que
os cavalos o amam mais? Você quer extrair a aprovação de seu pai da carne
de cada capall uisce desta ilha?
– Não – diz Mutt. – Apenas deste.
– Será suficiente? – pergunto. – O que acontecerá depois?
– Não haverá depois – diz Mutt. – Esta fera é a única coisa com a qual
você se importa.
Mas ele me olha no rosto e não tem tanta certeza. Talvez porque não
fosse para acontecer enquanto eu estivesse olhando. Era para eu descer de

manhã e encontrar Corr, assim como acabei de encontrar Edana. Talvez
porque ele está me olhando e sonhando com um jeito melhor de me
machucar.
Com certeza devo saber alguma coisa que iria satisfazer Mutt mais do
que aleijar Corr. Deve haver alguma coisa. Penso em seu rosto contorcido
no leilão e digo:
– Se você realmente quer provar alguma coisa para seu pai, você tem de
nos vencer. Vencer na areia.
Seu rosto muda. Aquela malhada demoníaca o fascina. Mutt me olha
novamente, depois outra vez para as pontas da lança no ombro de Corr.
Sei o que está passando na cabeça dele, porque também está passando
na minha. Benjamin Malvern dizendo a George Holly que sou o herdeiro
natural do haras. O nome Skata gravado no quadro do açougue. A
velocidade ofegante da malhada.
É o canto da sereia, e ele é vencido.
Mutt deixa a baia. Corr recupera o espaço que ele deixa para trás. Seus
olhos estão selvagens. Vejo as picadas de sangue que a lança deixou em seu
ombro, e, quando Mutt fecha a porta, pulo para cima dele e pressiono meu
pequeno canivete em seu grande e saliente pescoço. Posso ver sua pele
subindo e descendo, seguindo sua pulsação. Minha faca está bem ao lado.
– Pensei que você disse para ganhar de você na areia – diz Mutt.
Corr bate na parede da baia com os cascos.
Minha voz sussurra através da gaiola formada por meus dentes:
– Também disse dez gotas do seu sangue para cada gota do dele. –
Quero uma poça de sangue ao seu redor como a que jaz sob Edana. Quero
que ele se apoie nesta parede e choramingue como ela. Quero que saiba que
nunca levantará de novo. Quero que se lembre da máscara mortuária de
David Prince, enquanto ele mesmo a usa.
– Sean Kendrick.
A voz vem de trás de mim. Inclino a cabeça ao mesmo tempo em que o
olhar de Mutt encontra o meu.

– Está tarde para esse tipo de diversão, não está?
Com grande relutância, retiro a lâmina e dou um passo para trás. As
mãos de Mutt permanecem junto ao corpo, com a lança e sua terrível faca
de entalhar ainda escuras de sangue. Ambos encaramos seu pai, que está
com Daly na entrada do corredor. Ele veste uma camisa abotoada com a
qual devia estar dormindo, mas não parece menos poderoso nela. Daly,
envergonhado, não me olha.
– Matthew, sua cama está solitária. – A voz dele é cordial, ainda que
sua postura não seja. Malvern encontra o olhar de Mutt e, por um instante,
nada acontece. Então, a expressão de Malvern endurece, e Mutt passa por
ele sem uma única palavra ou olhar em minha direção.
Malvern volta os olhos para mim. Ainda estou tremendo, atingido pelo
que Mutt quase fez com Corr e com o que eu estava prestes a fazer com ele.
– Sr. Daly – diz Malvern sem virar a cabeça. – Obrigado por sua ajuda.
Pode retornar para sua cama.
Daly assente e desaparece.
Benjamin está a um braço de distância, seus olhos fixos em mim. Ele
diz:
– Você tem algo a dizer?
– Eu não teria... – fecho os olhos por um instante. Preciso me
recompor. Preciso encontrar a calma dentro de mim. Não consigo
encontrar; estou destruído. Permaneço no oceano, minhas mãos erguidas
em direção ao céu. Imóvel em meio à corrente. Abro os olhos – me
arrependido.
Malvern balança a cabeça. Por um longo instante, ele me olha, olha
para o canivete em minha mão, para o meu rosto. Então, cruza os braços
atrás das costas.
– Sr. Kendrick, acabe com o sofrimento daquela égua.
Ele se vira e deixa o estábulo.

dia seguinte é amargo e implacável. O vento corre em torno das
patas dos cavalos e os enlouquece. Acima de minha cabeça,
nuvens como sopros irregulares fogem na frente do frio. Há um
oceano cinza acima e abaixo de nós.
Encontro Puck no início da estrada do penhasco. Ela franze a
sobrancelha quando me vê; sei que meu rosto deve estar devastado de
fadiga depois da noite de ontem. Seus cabelos estão presos sob um gorro de
tricô, mas alguns fios estão soltos em seu rosto. Os vendedores estão se
esforçando para impedir as barracas de voarem. Os cavaleiros seguindo em
direção ao penhasco tentam impedir que as montarias façam o mesmo.
Com uma mão, Puck puxa a borda de seu gorro para baixo. Alguma
coisa próxima range e grunhe ao vento. Dove mexe a cabeça. Vejo terror
em seus olhos arregalados.
– Leve Dove para casa – digo. – Não é um dia para ficar na praia.
– Não temos mais tempo – responde ela. – Achei que você tivesse dito
que eu devia me acostumar com a praia. Não há mais tempo.
Tenho de gritar para me fazer ouvir em meio ao vento. Ergo as palmas
da mão para o céu.
– Você está vendo Corr comigo? Esta não é uma praia com a qual você
queira se acostumar. – “Areias assassinas”, era assim que meu pai chamava
um dia como o de hoje. Em dias assim, os cavaleiros morreriam porque não
sabiam, ou porque estavam desesperados, ou porque eram tolamente
corajosos.
Puck franze o rosto em direção à estrada do penhasco. Vejo a dúvida na
ruga entre suas sobrancelhas.
– Se você confia um pouco em mim, não arrisque hoje. Você está tão
pronta como nunca – digo. – Todos os demais também foram roubados do

dia de hoje.
Ela morde o lábio numa sombria frustração, olha para o chão por um
momento e então, sem mais nem menos, está pronta.
– Não há o que fazer, reconheço. Tommy Falk está lá embaixo?
Não sei. Não estou interessado em Tommy Falk.
– Segure Dove – diz ela, quando não consigo responder para sua
satisfação. – Vou buscá-lo se ele estiver lá.
Não a quero na praia com ou sem cavalo.
– Eu vou procurar por ele. Leve-a para casa.
– Nós dois vamos juntos – diz Puck. – Espere um momento. Vou pedir
a Elizabeth para amarrá-la atrás da barraca. Não saia daí.
Observo Puck se encaminhar até a barraca da Fathom & Sons e entrar
numa discussão animada com uma das irmãs que está cuidando do negócio.
– Não é uma boa combinação, Sean Kendrick – diz uma voz em meu
cotovelo. É a outra irmã da Fathom & Sons, e ela segue meu olhar em
direção a Puck. – Nenhum de vocês é dona de casa.
Não desvio o olhar de Puck.
– Acho que você está supondo muitas coisas, Dory Maud.
– Você não deixa nada para supor – diz Dory Maud. – Você a engole
com os olhos. Fico surpresa que ainda sobre alguma coisa dela para o
restante de nós olharmos.
Desvio o olhar para ela. Dory Maud é uma mulher de aparência dura,
inteligente e trabalhadora, e até eu sei, ali do meu canto no Haras Malvern,
que ela seria capaz de lutar com o homem mais forte da ilha pelo último
centavo em seu bolso.
– E o que ela é para você, então?
A expressão de Dory Maud é sagaz.
– O que você é para Benjamin Malvern, só que com menos salário e
mais afeição.
Ambos olhamos novamente para Puck, que ganhou a batalha com
Elizabeth e amarra Dove atrás da barraca. Este vento maldito joga tanto as

pontas de seus cabelos quanto a crina de Dove de um lado para o outro.
Lembro da sensação do rabo de cavalo de Puck em minha mão, o calor de
sua pele quando enfiei seus cabelos dentro de sua gola.
– Ela não sabe de nada – diz Dory Maud. – O que uma garota como ela
precisa é de um homem com ambas as pernas em terra firme. Um homem
que a mantenha presa ao chão para que não saia voando. Ela ainda não sabe
que é melhor ter alguém como você voando do que na mão.
Posso ouvir em sua voz que ela não tem a intenção de ser cruel. Mas eu
digo:
– Alguém para prendê-la assim como você está presa?
– Eu mesma me prendo – retruca Dory Maud. – Eu e você sabemos o
que você ama, e essas corridas são uma amante ciumenta.
E agora ouço em sua voz que ela sabe disso por experiência própria.
Mas ela me entendeu mal, porque não são as corridas que eu amo.
Puck se aproxima de nós bem neste momento, ainda com o sorriso
perverso de quem ganhou a batalha com Elizabeth.
– Dory!
– Tenha cuidado naquela praia – diz Dory Maud, e nos deixa para trás
com um pequeno grunhido. Puck murmura alguma coisa sobre mau humor.
– Mudou de ideia? – pergunto a ela.
– Nunca mudo – diz.
A praia está tão ruim quanto imaginei. O céu está bem próximo da
areia, e rajadas de chuva golpeiam nosso rosto como jatos vindos do mar.
Do nosso ponto na estrada para o penhasco, vejo o oceano revolto,
os capaill uisce disparando pela areia úmida e negra, as brigas entre cavalos e
as manchas vermelhas na praia. Um capall escuro, morto, jaz na
arrebentação, cada onda recobrindo suas patas, mas sem movê-las. Não é só
para humanos que isso é perigoso.
Puck diz:
– Está vendo Tommy?
Não, mas só porque há coisas demais para ver nessa cena que não para

de se mexer. A chuva sussurra em meu ouvido.
Ela vai na frente e não tenho escolha a não ser segui-la. Junto aos
penhascos, na praia, há algumas centenas de espectadores e um oficial da
corrida. Alguém da família Carroll, acho, um tio de Brian e Jonathan. Paro
para conversar com ele, minha cabeça enfiada dentro da gola.
– O que está acontecendo aqui? – Minha voz é fina ao vento; meus
olhos repousam no cavalo d’água morto.
– Lutas. Os cavalos estão lutando. O mar está deixando todos malucos.
– Tommy Falk está aqui? – pergunto.
– Falk?
– Égua negra!
Ele diz:
– Todos são negros quando molhados.
– Tommy Falk? – ecoa um dos espectadores ao seu lado, um homem do
continente, a julgar pelo paletó azul-marinho e pela gravata, até mesmo
aqui na areia. – Um garoto bonito?
Não faço nem ideia se é bonito ou não.
– Talvez sim.
Ele aponta na direção da curva do penhasco. O oficial da corrida,
depois de pensar um pouco, acrescenta:
– Alguém estava procurando por você, sr. Kendrick. – Espero ele dizer
quem, mas ele não diz, então me afasto. Em meio a isso tudo, perdi Puck.
Todo mundo fica parecido neste tempo horrível. Se todos os capaill
uisce ficam negros quando molhados, o mesmo acontece com todos os
humanos. A praia está povoada de feras escuras e insensíveis e de criaturas
escuras menores em seus lombos. Não adianta chamá-la; a um metro e meio
de distância, todos os sons se tornam o chiado selvagem do vento.
Com meus olhos, finalmente encontro não Puck nem Tommy Falk, mas
sua égua. Ela está mais negra que um espelho e inconfundível em sua bela
estrutura óssea. Ela está a cerca de dez metros de distância no abrigo dos
penhascos, amarrada perto de outro capall uisce , a cabeça baixa no chão. A

égua ainda está presa, mas não há nem sinal de Tommy Falk. Acho que
talvez Puck também a tenha visto, então sigo em direção à égua,
atravessando as pedras soltas da praia alta.
Mas, antes de percorrer metade da distância, encontro Puck. Enfiados
atrás da curva da estrada do penhasco, ligeiramente protegidos do tempo
ruim, há quatro corpos estendidos paralelamente um ao outro, esboços
escuros na praia pálida, baixas da manhã. Puck se agacha ao lado de um
deles, sem tocar e nem ao menos olhar para ele. Apenas debruçada contra o
vento, estudando o chão sob seus pés.
Ando em sua direção até chegar ao lado dela e, olhando para baixo,
vejo o rosto gravemente ferido de Tommy Falk.

dia seguinte é tanto o último antes das corridas como o dia do
funeral de Tommy Falk. Eu me disperso pela ideia da corrida
amanhã, o que parece uma ofensa a Tommy. Mas, quando
tento dizer a mim mesma que Tommy Falk está morto , tudo que consigo
pensar é nele e em Gabe arremessando aquele frango pela nossa casa.
Quando parto com Dove, Gabe ainda está deitado tranquilamente em
sua cama, sua porta entreaberta, então posso ver que ele encara o teto.
Quando cheguei em casa, ele havia removido os escombros que eu havia
colocado na parte da frente da cerca que o capall uisce destruíra e
martelava pregos nas tábuas. Não posso ficar em casa, porque continuo
pensando que amanhã é a corrida, e o amanhã está a apenas uma noite de
sono, então Finn e eu nos dirigimos até Dory Maud para ajudá-la a
organizar um novo lote de catálogos para enviar pelo correio. Quando
voltamos, Gabe havia transformado o quintal, arrancado cada erva daninha
e empilhado cada pedaço de sucata numa pilha magra inclinada, mas posso
ver que isso não o fez esquecer que Tommy Falk está morto. Quando
entramos no quintal, ele nos olha por meio minuto antes de seu rosto mudar
para algo como reconhecimento. Suas mãos estão trêmulas, e eu o faço
comer alguma coisa. Acho que ele não parou de trabalhar o dia todo.
Quando a tarde vira noite, Beech Gratton chega, e ele e Gabe trocam um
cumprimento amargo como saudação. Então, estamos prontos e em direção
aos penhascos do oeste.
Gabe não nos fala muito a respeito do funeral de Tommy, apenas que
os Falks são “da velha Thisby”, e isso significa que o funeral não envolve
nem são Columba nem o padre Mooneyham. Em vez disso, vai ocorrer nas
rochas à beira-mar. Finn parece nervoso com isso, como qualquer coisa que
envolva sua alma imortal tende a deixá-lo, mas Gabe lhe diz para se manter

tranquilo e que essa é uma religião tão boa como a de nossos pais e que os
Falks são o melhor tipo de pessoa que alguém pode querer conhecer. Ele diz
isso tudo com uma voz muito distante, como se estivesse pegando as
palavras num compartimento de armazenamento. Sinto que ele está se
afogando, mas não tenho a menor ideia de como colocar minha mão na
água para salvá-lo.
Seguimos pelos penhascos para a praia do oeste, um caminho mais
rochoso e mais incerto do que contornar a praia. O oceano parece dourado
sob a luz noturna, e há uma fogueira próxima à água. Encontramos uma
cerimônia pequena; eu reconheço muitos dos amigos pescadores do meu pai
entre eles.
– Obrigada por vir, Gabe – diz a mãe de Tommy Falk.
Agora eu vejo que a única coisa que Tommy puxou dela foram os
lábios, mas, se o restante dela é bonito, eu não posso dizer, porque seus
olhos estão vermelhos e pequenos por causa da perda.
Ela pega as mãos de Gabe. Ele diz, tão sério que de repente sinto um
orgulho feroz dele, apesar de tudo:
– Tommy era meu melhor amigo nesta ilha. Eu teria feito qualquer
coisa por ele.
Ela diz algo em resposta, mas eu não consigo ouvir o que é, porque
estou muito surpresa de ver que Gabe está chorando. Ele continua falando
francamente com ela, mas, enquanto fala, as lágrimas escorrem por suas
bochechas a cada piscada. Estranhamente percebo que não consigo ver
Gabe nesse estado, então deixo ele e Finn com ela e me encaminho para
perto da fogueira.
Leva apenas um instante para eu perceber que não se trata apenas de
uma fogueira, mas de uma pira. Ela solta fumaça e estala, a coisa mais
barulhenta da praia. As chamas são laranja e branca contra o azul-escuro
profundo do céu da noite, e a areia molhada as reflete como um espelho.
Cada onda leva embora esse reflexo e então o devolve. Está queimando por
um bom tempo, com um monte de brasas brilhantes e cinzentas embaixo

dela, e fico chocada quando vejo um pedaço do casaco de Tommy Falk
preso entre as madeiras.
Eu penso: Ele estava sentado à nossa mesa com esse casaco .
– Puck, não é?
Olho para meu lado esquerdo e vejo um homem parado ali, os braços
cuidadosamente dobrados à sua frente, como se ele estivesse na igreja. Claro
que eu sei que é Norman Falk, agora que olho para ele, porque me lembro
dele parado em nossa cozinha do mesmo jeito que está agora, conversando
com a minha mãe. Eu sempre pensei nele apenas como pescador , não
como pai de Tommy Falk . Ao lado dele há um garoto, provavelmente um
dos irmãos de Tommy. Norman Falk não se parece nem um pouco com
Tommy. Ele tem o mesmo cheiro de Gabe, ou seja, cheira a peixe.
– Eu sinto muito – digo, porque é o que as pessoas disseram quando
meus pais morreram.
Os olhos de Norman Falk estão secos conforme ele olha para a pira. O
garoto descansa recostado em sua perna, e Norman Falk coloca uma mão
no ombro dele.
– Nós o teríamos perdido de qualquer forma.
Isso parece algum tipo estranho de conforto. Não consigo me imaginar
pensando o mesmo sobre Gabe. Há o fato de Gabe estar morto, o que é para
sempre. E há o fato de Gabe estar sendo feliz em algum lugar no qual eu não
o veja nunca mais. Talvez desse no mesmo para mim, mas estou quase certa
de que não seria o mesmo para Gabe.
– Ele foi muito corajoso – digo, porque na minha cabeça isso parece
educado. Meu rosto está ficando quente por causa das chamas; eu quero ir
para trás, mas não vejo como deixar a conversa.
– Isso ele foi. Todo mundo vai se lembrar dele nessa égua.
Há um orgulho puro e simples na voz de Normal Falk.
– Perguntamos a Sean Kendrick se podíamos devolvê-la ao mar, e ele
disse sim. Estamos fazendo isso por Tommy.
Pergunto, ainda muito educadamente, fingindo que o nome de Sean

Kendrick não me interessa:
– Devolver a égua ao mar, senhor?
Norman Falk cospe para trás, duro, para não cuspir no garoto ao seu
lado, então se volta novamente para a pira.
– Sim, libertá-la da maneira correta. Respeitar o morto, como
costumamos fazer. Respeitar os capaill . Isso não tem a ver com turistas
vindo e esvaziando os bolsos. Tem a ver com os capaill uisce e nós, e
qualquer coisa menos que isso faz desse um esporte sujo. – Então ele
pareceu se lembrar com quem estava falando, porque disse: – Não há lugar
para você na praia agora, Puck Connolly. Você e sua égua. Não deve haver.
Eu conheci seu pai e gostava dele, mas acho que o que está fazendo é
errado, se me permite um conselho.
Eu me senti envergonhada sem motivo conhecido para isso, e então me
senti mal por me deixar ser humilhada.
– Não quero ser desrespeitosa.
A voz de Norman Falk é gentil o bastante.
– Claro que não quer. Você só não tem mãe e pai para guiá-la. Aquele
seu cavalo é apenas um cavalo, e isso é um problema. Se as Corridas de
Escorpião fossem apenas uma corrida de cavalos, então tudo isso – Norman
Falk empurra o queixo em direção às chamas – seria apenas uma vergonha
sangrenta e nada mais.
Duas semanas atrás, eu teria pensado que ele era maluco, que é claro
que tinha a ver apenas com a corrida, com o dinheiro, com a aventura. E se
eu estivesse apenas assistindo ao treino na praia, provavelmente ainda diria
o mesmo. Mas agora que eu havia passado um tempo com Sean Kendrick,
agora que estive montada em Corr, sinto algo escorregando dentro de mim.
Eu ainda não tenho certeza se valeu a pena Tommy morrer por isso. Mas
posso ver o fascínio de ter um pé na terra e outro no mar. Nunca conheci
Thisby tão bem como nessas últimas semanas.
O garoto diz algo a Norman Falk e ele responde:
– Ele a está trazendo agora. Olhe ali.

Nós dois viramos a cabeça e ali está Sean, a meio caminho da praia. Ele
segura a égua preta de Tommy, que, em comparação com Corr, parece frágil
em suas mãos. Sean não veste nada especial, apenas seu casaco azul-escuro
de sempre aberto na frente. Sinto um estranho e feroz aperto no coração
quando o vejo, como orgulho, apesar de não ter nada em relação a Sean
sobre o qual eu possa levar o crédito. Ele conduz a égua preta pela areia até
nós, parando somente quando ela meio que empina e guincha suave como o
choro de um pássaro.
As pessoas presentes no funeral se reúnem em volta da pira para
observá-lo levar a égua até a beira da praia. Só aí vejo que Sean está
descalço. As ondas batem em seus tornozelos, molhando um pedaço de suas
calças. A égua ergue alto os cascos no momento em que a água bate em suas
patas, e então chora em direção ao mar. Há algo diferente em seus olhos,
como se não pertencessem a um cavalo. Quando ela se vira para Sean, ele
simplesmente desvia e, com os dedos, toca a crina dela, puxando a cabeça
da égua para baixo. Vejo sua boca se movendo, mas é impossível ouvir o que
ele fala.
Ao meu lado, o pai de Tommy diz:
– Do mar, para o mar. – E eu percebo que aquelas palavras combinam
com o movimento dos lábios de Sean.
Então eu me pergunto quantas vezes esse momento aconteceu. Não
com Sean pronunciando as palavras, mas com outra pessoa.
É como o momento na pedra sangrenta, quando declarei Dove como
minha montaria.
Sinto o puxão das minhas pernas para Thisby, as presenças invisíveis de
uma centena de rituais pesando em meus tornozelos.
Sean olha para o grupo e pede:
– As cinzas.
Outro garoto, outro irmão talvez – esse parecia um pouco com Tommy
–, corre pela areia até Sean. A luz está se apagando rápido, então não
consigo ver no que ele está carregando as cinzas. Eles devem simplesmente

ter pego da pira. Sean coloca uma das mãos sobre o pote como se estivesse
testando a temperatura, depois a enfia lá dentro com cuidado. A égua ergue
a cabeça e guincha alto de novo, e Sean atira um monte de cinzas ao ar
sobre ela. A voz dele é como um vento rasgando de leve a areia, mas
Norman Falk pronuncia as palavras junto com ele.
– Que o oceano possa manter nossa coragem.
De costas para nós, Sean retira o arreio da cabeça da égua. Ela chuta,
mas ele desvia como se nada tivesse acontecido. Com um movimento de
crina, ela salta poderosamente para a água. Por um momento, luta sobre as
ondas e então nada. Apenas um cavalo preto selvagem no profundo azul do
mar cheio de cinzas de outros garotos mortos.
Então, tão de repente e rápido que perco o momento em que ela
desaparece, ela se vai, e há apenas o balanço da superfície do oceano.
Sean está na beirada da arrebentação olhando o mar, e há algo curioso
e saudoso em sua expressão, como se ele também desejasse entrar no oceano
e partir. Acho que foi por isso que Norman Falk pediu para Sean estar ali.
Não porque ele era o único que poderia fazer o ritual. Mas porque, com
Sean Kendrick assim, ficaria parecendo uma corrida, mesmo que nenhuma
tivesse acontecido. Um lembrete do que os cavalos significam para a ilha,
uma ponte entre o que somos e aquilo sobre Thisby que todos nós
queremos, mas parecemos não conseguir tocar. Quando Sean está parado
ali, o rosto fixo no mar, ele não é mais civilizado que qualquer um
dos capaill uisce , e isso me perturba.
Meu coração se sente cheio e vazio com todos esses começos e finais.
Amanhã são as corridas com todas as suas estratégias e perigo,
esperança e medo. E do outro lado disso tudo está Gabe pegando um barco
e nos deixando. Eu me sinto como Sean olhando para o oceano. Estou tão
cheia de um desejo sem nome que não posso suportá-lo.

epois que liberto a égua de Tommy Falk, me adianto até o
funeral. Iluminado pela luz do fogo, o rosto de todo mundo é um
segredo até você estar entre eles. Busco um, depois o outro; vejo
Gabriel Connolly e Finn Connolly, mas não Puck.
Pergunto a Finn, com sua postura de espantalho, se Puck veio com eles
e ele diz:
– É claro – mas nada mais. Eu me movo pelo grupo, tocando cotovelos
e perguntando por ela, pensando o tempo todo que fazer isso é gritar meus
sentimentos por ela. Ninguém a viu.
A corrida é amanhã, e fiz minha parte em relação a Tommy Falk. Devo
voltar para o haras, mas eu me sinto oco, sabendo que Puck está aqui em
algum lugar e não consigo encontrá-la. Tenho de encontrá-la, e essa
necessidade me inquieta.
Por um bom tempo, permaneço nas rochas, imaginando onde ela
estaria, então subo de volta pelo caminho do penhasco. O chão está escuro,
mas ali, perto do céu, a noite ainda é escura e vermelha. Em qualquer outro
lugar de Thisby deve ser noite, mas aqui ainda temos um suspiro do sol da
tarde, distante do mar no oeste. Eu a encontro ali no topo do penhasco,
encarando o horizonte. Seus joelhos estão encostados no queixo e os braços
os envolvem. Ela parece ter crescido das rochas e da terra ao redor dela.
Apesar de ouvir meus passos, seus olhos continuam buscando o mar.
Eu me dirijo para perto dela e olho seu perfil, não fazendo qualquer
esforço para disfarçar minha atenção, aqui, onde só Puck pode me ver. O sol
da tarde banha sua garganta e suas bochechas. Seu cabelo cor da grama que
cobre o penhasco sobe e desce por seu rosto por causa da brisa. Sua
expressão é menos feroz que o habitual, menos vigilante.
Digo:

– Você está com medo?
Seus olhos se distanciam da linha do horizonte e vão para o oeste, onde
o sol se pôs, mas o brilho continua. Em algum lugar ali fora estão
meus capaill uisce , a América de George Holly, cada centímetro de água
que cada navio percorreu.
Puck não tira os olhos do brilho laranja no fim do mundo.
– Conte-me como é. A corrida.
É como uma batalha. Uma confusão de cavalos, homens e sangue. Os
mais rápidos e mais fortes dos que restaram depois de duas semanas de
preparação na areia. É a onda em seu rosto, a mágica mortal de novembro
em sua pele, os tambores de Escorpião no lugar do coração. É rápido, se
você tiver sorte. É vida e é morte, ou os dois, e não há nada parecido com
isso. Certa vez, esse momento, essa última luz da tarde antes da corrida, já
foi o melhor instante do ano para mim. A antecipação do jogo por vir. Mas
isso quando tudo o que eu tinha a perder era minha vida.
– Não há ninguém mais corajosa que você nesta praia.
Sua voz é indiferente.
– Não importa.
– Importa. O que eu disse no festival era sério. Essa ilha não se importa
nada com o amor, mas favorece o destemido.
Agora ela me olha. Ela está feroz e vermelha, indestrutível e mutável,
tudo que faz Thisby ser o que é.
– Você se sente corajoso?
A deusa égua me dissera para fazer outro pedido. Isso me parece fino
como um fio d’água agora, o dom de um pedido. Eu me lembro dos anos
quando isso era como uma promessa.
– Não sei o que sinto, Puck.
Ela descruza os braços o bastante para manter o equilíbrio conforme se
inclina em minha direção, e, quando nos beijamos, ela fecha os olhos.
Ela recua e olha no meu rosto. Eu não me mexo, e ela muito menos,
mas o mundo sob mim me parece estranho.

– Me diga o que desejar – falo. – Me diga o que pedir ao mar.
– Para ser feliz. Felicidade.
Eu fecho os olhos. Minha mente está cheia de Corr, do oceano, dos
lábios de Puck Connolly nos meus.
– Não sei se há esse tipo de coisa em Thisby, e, se tiver, eu não sei
como você pode mantê-la.
A brisa explode contra os meus olhos fechados, cheirando a salmoura,
chuva e inverno. Posso ouvir o oceano batendo na ilha, uma constante
canção de ninar.
A voz de Puck está em meu ouvido; seu hálito esquenta meu pescoço
perto do meu casaco.
– Você sussurra para ele. O que ele precisa ouvir. Não foi isso que você
disse?
Inclino a cabeça, então os lábios dela tocam minha pele. O beijo é frio
onde o vento bate em minha bochecha. A testa dela descansa em meu
cabelo.
Abro os olhos, o sol se foi. Sinto como se houvesse um oceano dentro
de mim, selvagem e incerto.
– Isso foi o que eu disse. O que eu preciso ouvir?
Puck sussurra:
– Que amanhã nós vamos comandar as Corridas de Escorpião, como rei
e rainha de Skarmouth, e eu vou salvar a casa e você terá seu garanhão.
Dove comerá aveia de ouro pelo resto da vida, e você vai aterrorizar as
corridas a cada ano, e as pessoas virão de cada ilha do mundo para descobrir
como seu cavalo ouve você. A malhada vai levar Mutt Malvern para o mar
e Gabriel vai decidir ficar na ilha. Eu terei uma fazenda e você me trará pão
para o jantar.
– É isso que eu precisava ouvir.
– Você sabe o que precisa desejar agora?
Não tenho nenhuma concha para jogar ao mar quando digo isso, mas
sei que o oceano me ouve de qualquer modo.

– Conseguir o que preciso.

ouve um tempo em que, antes de meu pai sair no barco, a casa
parecia viva com tanto movimento. Mesmo que ele saísse bem
cedo ou tarde da noite para seguir os cardumes e as marés,
mamãe estaria preparando comida para ele levar, Gabe estaria no quarto se
certificando de que ele colocara o barbeador na mala, e Finn e eu
estaríamos agarrados a suas pernas ou subindo em sua sacola, ou fuçando no
saco de farinha da mamãe. No dia em que os dois saíram juntos, era eu
quem preparava a comida para levarem e Gabe verificava o que mamãe
punha na mala. Finn estava emburrado, descontente porque estavam
partindo.
Agora, na manhã das Corridas de Escorpião, sinto-me como se fosse eu
quem estivesse saindo de barco. Finn está ansioso, checando minhas coisas,
Gabe está engraxando minhas botas, e eu estou prendendo o cabelo num
rabo de cavalo e pensando: Isso é mesmo verdade ? Mas podemos nos dar ao
luxo de não sermos tão eficientes; a manhã é tomada pelas corridas mais
curtas e menos importantes. Por isso, Dove e eu não precisamos estar ali até
o início da tarde. Em certo instante, enfio a mão na lata de biscoitos,
pensando em pegar um pouco de dinheiro, só para o caso de ter de comprar
alguma coisa para Dove. Meus dedos tocam o fundo frio e nu da lata. Nós
acabamos usando tudo.
Como se eu precisasse ser lembrada do motivo pelo qual vou correr.
Minha nuca fica tensa.
Quando finalmente saio de casa, Finn diz que vai me levar o almoço –
não que eu possa ao menos pensar em comer, já que minhas tripas estão
feito um ninho de cobras, o que não ajuda muito a digestão –, e Gabe me
segue até o lado de fora.
– Puck – ele diz –, não faça isso.

Ele se debruça sobre a cerca e fica me olhando jogar a cilha de Dove
por cima da parte posterior da sela. Ele se parece muito com o papai agora,
sob esta luz, já não tem dormido e está com rugas debaixo dos olhos. Gabe
está começando a se parecer um pouco com os outros pescadores, com
aqueles cantos dos olhos cheios de ruguinhas.
– Acho que é meio tarde para isso. – Olho para ele por cima do dorso
de Dove. – Me diga de que outra forma consigo salvar a casa e eu fico.
– Seria tão ruim assim deixar esta casa?
– Eu gosto dela. Ela me faz lembrar da mamãe e do papai. E nem é pela
casa. Você sabe qual é a primeira coisa que perdemos se não tivermos a
casa? Dove. Não posso... – Paro de falar e me ponho a limpar uma
manchinha da sela.
– É só um cavalo – Gabe diz. – Não me olhe assim. Sei que você ama
Dove. Mas você pode viver sem ela. Vocês podem arrumar uma emprego
aqui e eu mando dinheiro. E vai ficar tudo bem.
Enfio os dedos na crina de Dove.
– Não, não vai ficar tudo bem. Eu não quero apenas arrumar um
emprego e trabalhar e ficar bem. Quero a Dove, quero ter espaço para
respirar e não quero que Finn vá trabalhar na fábrica. Não quero ter de
viver num armário em Skarmouth, com Finn em outro armário em
Skarmouth, nós dois envelhecendo.
– Então, no próximo ano, eu terei ganhado o suficiente para que vocês
também possam vir para o continente. Ali há empregos melhores.
– Eu não quero ir para o continente. Não quero um emprego melhor.
Você não entende? Sou feliz aqui. Nem todo mundo quer ir embora, Gabe!
É aqui que eu quero ficar. Se eu pudesse ficar com Dove, com o meu espaço
e um saco de feijão, para mim seria o bastante.
Gabriel olha para os próprios pés e move a boca, do jeito que
costumava fazer quando ele e papai discutiam e ele não gostava de se sentir
colocado contra a parede.
– E vale a pena morrer por isso?

– Vale. Eu acho que vale.
Ele mexe numa farpa solta em cima de uma das tábuas.
– Você nem pensou sobre isso.
– Não preciso. E que tal essa? Eu não participo da corrida, e você fica
conosco. – Mas, enquanto estou dizendo, já sei que ele diria não e que eu
correria de qualquer forma.
– Puck – Gabe diz –, eu não posso.
– Bem – respondo, empurrando o portão e passando por ele,
conduzindo Dove –, é isso aí.
Mas não fico zangada com isso. Sinto aquela velha pontada, mas
nenhuma surpresa. Parece que eu sempre soube, desde pequena, que um dia
ele iria embora, e só preferira ignorar. Acho que Gabe também sabia,
quando deu início a essa conversa, que não havia um jeito de nos manter
longe da praia. Eram apenas coisas que tínhamos de dizer. Quando passo
por ele, Gabe segura meu braço. Dove se detém docilmente quando ele me
puxa e me abraça. Ele não diz nada. É como qualquer um dos muitos
abraços que me dera enquanto crescíamos, quando os seis anos de diferença
entre nós eram um abismo profundo, eu uma criança de um lado, ele um
adulto.
– Vou sentir sua falta – digo, com a boca encostada em seu suéter. Ao
menos uma vez na vida, ele não está cheirando a peixe; cheira ao feno que
juntou para mim na noite anterior e à fumaça da pira funerária.
– Sinto muito ter feito essa bagunça toda – diz ele. – Eu devia ter
confiado mais em vocês dois.
Eu gostaria que ele tivesse dito isso antes, antes de estar triste e
assustado. Mas vou aceitar agora também.
Gabe me solta.
– Vou descobrir onde eles estão distribuindo as cores da corrida. – Ele
me olha. – Você está igualzinha à mamãe agora.

oje é o primeiro dia de novembro, portanto alguém vai morrer.
Ouço uma batida em minha porta rachada e ela se abre.
– Como se sente o herói premiado de Skarmouth na manhã das
corridas?
Abro os olhos e viro a cabeça em direção à porta, onde George Holly
está parado. Ele olha em volta, para a mobília do meu pequeno quarto. Não
há nada além de uma cama, uma pia e um fogão minúsculo sob o teto
inclinado, tudo tingido num tom de lilás pela luz fraca da manhã.
Aceno com a cabeça, gesto que é ao mesmo tempo um cumprimento e
um convite para que entre.
– Este lugar é deprimente – diz ele. – Você também parece deprimido. –
Depois de uma pausa, puxa um engradado de latas de perto da pia e se senta
nele, com as pernas dobradas, os joelhos para cima. Ele descansa seu chapéu
vermelho e achatado no colo, e o acaricia como se fosse um animal.
– Eu não consigo me acalmar – digo. Fecho os olhos. Não posso entrar
na baia do Corr assim, ou ele vai sentir isso, e aí será melhor nem botar o pé
na praia.
– É por causa das corridas? – Holly pergunta. – Você está com medo?
– Nunca tive medo – respondo, sem abrir os olhos.
– É porque desta vez você vai correr por Corr? O que você quer de
verdade, Sean?
Pressiono o rosto com a mão, procurando em algum lugar dentro de
mim a calma que deveria estar ali. A certeza que tenho todo ano antes de
cada corrida. E a cada manhã, antes de montar qualquer cavalo.
– É a liberdade? Não se preocupe com a corrida. Venha comigo para os
Estados Unidos, e eu faço você sócio no meu haras. Não é para ser tratador
chefe nem treinador principal. Sócio. Para ir e vir quando bem entender. –

Quando vê que não vou dizer nada, Holly acrescenta: – Então, olha só.
Você estava mentindo para mim quando disse que era a liberdade que
queria. Nós acabamos de descobrir que não tem nada a ver com a liberdade.
Acho que já é um progresso.
Viro o rosto para o outro lado. Ali embaixo, ouço a agitação do dia das
corridas e minha ausência ali.
– Então é o garanhão vermelho, você acha? Você vai perder a corrida e
o cavalo num único e rápido golpe de justiça de Malvern? Mas você venceu
quatro vezes em seis anos, não foi? Não é um bom prognóstico? Então acho
que também não é isso.
Abro os olhos. Holly fica inquieto sob meu olhar. O engradado range
sob seu peso.
– Eu perdi duas vezes para Ian Privett e Penda. No terceiro ano, ele
caiu e perdeu Penda, mas este ano está com ele de novo. Blackwell tem
Margot...
– Ela é uma filha da mãe veloz – lembra Holly, tirando as palavras de
minha boca.
– E também tem aquela égua malhada. Eu não a conheço. Acho que
devíamos todos ter medo dela. Eu acho que poderia perder tudo.
Holly coça o pescoço e olha as sombras embaixo de minha cama
estreita.
– Esse “tudo” para mim é o X da questão. Quando você diz “tudo”, por
acaso quer dizer Kate Connolly? Ah, vejo que sim.
Digo:
– Só posso ter certeza quanto a mim.
– Hum – diz ele.
– Não venha me dizer “hum”, sr. Holly. O senhor não pode entrar aqui
com seu chapéu vermelho e esses sapatos aí e ficar bancando o sábio.
– Sim, isso é o que diz o homem que não está usando sapato nenhum –
diz Holly. Ele se põe de pé, dá um passo e alcança o fogão. – Como é que
consegue viver aqui, Sean? Como é que prepara uma xícara de chá sem

queimar a virilha? Se rolar na cama, acaba na pia. Todo dia você tem café
na cama, porque praticamente não tem chão aqui.
– É tolerável.
– Hum – diz Holly de novo. – Tolerável é um conceito muito amplo. Se
vencer, é para isso aqui que vai voltar?
– A casa do meu pai fica a uma hora de caminhada daqui, nos
penhascos a noroeste. Se eu pudesse viver onde quisesse, viveria ali.
Eu não consigo me lembrar de como era exatamente morar na casa de
meu pai, apesar de já ter passado por ali a cavalo. Minhas lembranças do
interior da casa são fragmentadas: eu na cama, na janela, minha mãe
sentada numa cadeira. A casa está bem maltratada agora. Ainda está no
meu nome, mas fica longe demais para me servir enquanto trabalho para
Malvern.
– É ali que você manteria a matriz que acabei de comprar até ela ter um
lindo potrinho vermelho com seu garanhão?
Apanho minhas meias no radiador e as botas abaixo delas.
– Eu não disse que ia começar uma criação.
– Nem precisa. Eu volto no ano que vem e você vai ter um ninho de
cavalos no quintal e Puck Connolly instalada na sua cama. E eu vou fazer
negócio com você, e não com Malvern. É esse o seu futuro.
– O futuro parece bem mais doce com o seu sotaque – eu suspiro e pego
minha jaqueta.
– Aonde vai? Eu ainda estou longe de terminar minhas previsões.
Jogo a jaqueta no ombro.
– Para a praia. Você nunca vai conseguir esse seu potro se eu não
ganhar Corr.

urante a noite, eu encolhi e todas as outras pessoas da ilha
cresceram. Todos viraram homens de três metros de altura, e
eu agora tenho pouco mais de um metro e sou uma criança.
Dove também é um brinquedo, ou talvez um cachorro, enquanto a conduzo
pela multidão. A estrada do penhasco já está fervendo com tanta gente. As
primeiras corridas começaram há horas e os quintos estão correndo as
primeiras disputas na praia. Ouço grunhidos e risadas dos espectadores no
penhasco. O vento castiga a todos nós.
Olho para as nuvens, mas são nuvens sem brilho, do tipo que dura
apenas alguns instantes, não um dia inteiro. Fico aliviada; temi que o tempo
estivesse tão ruim quanto no dia em que encontrei Tommy morto na praia.
Faz frio, mas afinal é novembro. Frio é o que se espera.
Todo mundo está me olhando e fico ouvindo meu nome ser chamado,
ou pelo menos fico imaginando que estou ouvindo. Alguém cospe nos
cascos de Dove, ou talvez nos meus pés. Eu ouço exclamações no sotaque
aberto do continente e comentários sobre meus modos no jeito de falar
picotado de Thisby. É esquisito, eu me sinto como se eu fosse a estranha e a
turista visitando uma ilha sem amigo. Todo mundo toca em Dove, e ela está
distraída e insegura. Num momento, ela ergue a cabeça e solta um relincho
agudo, apesar de não haver ninguém neste lado da ilha para responder. Lá
embaixo, na praia, um capall uisce urra de volta. Dove treme e me arrasta
pela ponta das rédeas; levo vários metros para conseguir recuperar o
controle sobre ela.
Ouço risadas e alguém pergunta, sem gentileza, se preciso de ajuda.
Eu rosno:
– Eu precisava é que sua mãe tivesse pensado melhor nove meses antes
de você nascer.

– Ela morde! – diz alguém.
Fecho a boca de vez e continuo seguindo em frente. Em algum lugar no
meio dessa confusão está Gabe, talvez, com minhas cores, e Finn, talvez,
com meu almoço.
– Kate Connolly, você pretende mudar a sociedade?
Pisco e dou um passo para trás. Quem falou foi um homem, bem na
minha frente, com um terno marrom que parece ter custado mais que a
nossa casa. Ele segura um bloco de papel. Atrás dele está um fotógrafo com
um flash enorme. Há uma muralha de gente atrás de mim e de Dove. Eu me
sinto cercada, sem saída.
– Não estou tentando mudar nada além da minha própria situação.
– Então você não diria que foi inspirada pelo movimento sufragista
feminino?
Estico o pescoço e olho em volta, procurando meus irmãos, ou Dory
Maud, ou qualquer outra pessoa que eu conheça. Nunca vi tantos chapéus-
coco na vida.
– Sou apenas uma pessoa com um cavalo, como qualquer outra nesta
ilha. Poderia me dar licença? Está deixando minha égua nervosa.
O repórter pergunta:
– O que você diria para as pessoas em Thisby que acham que seu lugar
não é nas Corridas de Escorpião?
– Não tenho uma resposta inteligente para você – digo irritada.
– Só mais uma coisa, srta. Connolly. Até onde a senhorita acha que
vai? Acha que tem alguma chance de chegar ao final?
Eles se apressam para acompanhar meus passos, enquanto viro o flanco
de Dove na direção deles. Sou estranhamente afetada pelo repórter e pelo
fotógrafo, mais do que por qualquer outra coisa que aconteceu até agora.
Não tinha pensado que haveria tanta gente me olhando, e muito menos
gente de um jornal do continente.
Olho feio para ele.
– Vá perguntar no açougue dos Grattons. Eles sabem de tudo.

Tento virar Dove novamente, para afastá-los de mim.
– Puck!
Eu me viro na direção do grito, meu interior machucado, e ali está
Sean. Ao contrário de mim, que tive de empurrar as pessoas para atravessar
a multidão, ele passa facilmente por elas. Elas abrem caminho para ele como
se nem percebessem o que fazem. Ele está apenas com uma camisa branca e
sem fôlego, por isso demoro a crer que é ele. Ele chega mais perto, virando
as costas para o repórter, e inclina a cabeça em minha direção. Sinto os
olhos de todos sobre nós dois, mas ele não parece notar.
– Onde estão as suas cores?
– Gabe foi atrás delas.
– Estão sendo distribuídas na praia – ele diz. – Você tem de ir buscá-las.
– Você já está com as suas?
– Estou. Posso segurar Dove enquanto você vai pegar as suas.
Dove estremece quando alguém toca seu traseiro. Aqui há barulho e
gente demais para ela. Eu me preocupo se ela vai acabar gastando toda a sua
coragem aqui no penhasco, muito antes de descermos para a praia. Lembro-
me de Peg Gratton me dizendo para não deixar ninguém apertar a cilha do
meu cavalo no dia da corrida. Mas Sean, eu decido, não é “ninguém”.
– Você consegue fazer esse povo deixá-la em paz? – Ele faz que sim com
a cabeça.
Em voz baixa, tão baixa que tem de inclinar a cabeça para me ouvir,
digo:
– Obrigada.
Sean pega minha mão e põe no meu braço uma fina pulseira de fitas
vermelhas. Depois pressiona os lábios contra meu pulso. Fico imóvel; sinto o
ritmo de minha pulsação várias vezes contra a sua boca, e então ele solta
minha mão.
– Para dar sorte – diz. Ele toma as rédeas de Dove da minha mão.
– Sean – digo, e ele se vira novamente para me encarar. Seguro seu
queixo e lhe dou um beijo na boca, com força. Isso me lembra, de repente,

daquele primeiro dia na praia, quando puxei sua cabeça para fora da água.
– Para dar sorte – digo, olhando a cara de surpresa dele.
Um flash espoca e ouço assovios de aprovação.
– Certo – diz Sean, como se tivéssemos acabado de fechar um negócio e
estivesse tudo certo para ele. Ele se vira para a multidão e diz:
– Se querem ver uma corrida, tratem de dar espaço para este cavalo.
Agora.
Eles se espalham, obedecendo, e eu encontro meu caminho entre eles,
em direção à trilha do penhasco. Antes de descer para a praia, olho para
trás para ver onde Sean está, e ali estão ele e Dove, com uma clareira em
torno dos dois, ele ainda me olhando. Sinto a ilha sob meus pés, a boca de
Sean em meus lábios, e me pergunto se a sorte estará do nosso lado hoje.

praia não está tão lotada quanto eu esperava. É intervalo entre
duas das provas menores, e só os capaill uisce inscritos nas
próximas corridas estão na praia. Todos os espectadores que antes
estavam na areia estão agora amontoados nos penhascos, tão perto da
beirada quanto a coragem lhes permite. O céu acima deles está limpo e de
um azul muito, muito profundo, como só se vê em novembro, e à minha
direita, escuro como a noite, está o oceano.
Não posso pensar que logo vou correr ao lado dele ou não conseguirei
me mover.
Rapidamente encontro a mesa dos oficiais no abrigo sob o penhasco –
dois homens de chapéu-coco sentados atrás de uma mesa com cores
incrivelmente variadas dobradas à frente deles. Eu me apresso e chego bem
perto deles, para não ter de gritar.
– Preciso pegar minhas cores. – Reconheço o homem à direita. Ele se
senta perto de nós na são Columba.
– Não sobrou nenhuma para você – diz o outro fiscal, com os braços
cruzados sobre uma pilha delas.
– Perdão? – digo, educadamente.
– Não sobrou nenhuma. Adeus. – Ele se vira para o outro fiscal e diz: –
O que você acha do tempo? Calor, não?
– Senhor – digo.
– Não estou reclamando do calor obviamente, mas ele atrairá os
mosquitos – diz o outro fiscal.
– Os senhores não podem simplesmente fingir que não estou aqui.
Mas eles podem. Fazem questão de manter essa conversa fiada,
ignorando minha presença, até que eu engula minha raiva e humilhação e
desista. Digo a eles que são uns filhos da mãe, porque sei que não vão me
responder de qualquer forma, e volto pelo caminho por onde vim. Encontro

Gabe descendo a estrada do penhasco. O vento bagunçou o cabelo dele.
– Onde estão suas cores? – pergunta.
Não quero muito falar a verdade para ele, mas acabo dizendo.
– Não querem me dar.
– Não querem?!
Cruzo os braços.
– Não importa. Eu corro sem elas.
Mas importa sim, um pouco.
– Vou até lá falar com eles – diz Gabe. Sua ira justa é boa de se ver,
ainda que eu não acredite que vá ajudar muito. Às vezes, só poder
compartilhar o sentimento com alguém já ajuda. – Isso é uma idiotice.
Fico olhando ele descer e andar pela areia, mas posso adivinhar, pela
cara dos fiscais quando o veem se aproximar, que Gabe não obterá uma
resposta diferente da que me deram. Tento me convencer de que não faz
mal. Eu não preciso me parecer com eles. Não preciso ser aceita.
– Danem-se eles – diz Gabe, quando volta. – Velhinhas corocas de
Thisby.
Perto de nós, alguém grita que todo mundo, menos os competidores
desta última rodada, tem de desocupar a praia, porque está quase na hora da
última corrida.
Isso quer dizer nós.

gora à tarde o sol é forte, mas está frio na praia. O vento quebra a
superfície do mar azul petróleo em milhares de pequenas ondas
brancas. No alto dos penhascos, está a silhueta da multidão,
olhando a pálida estrada de areia que a separa do oceano.
De vez em quando, posso ver a cabeça de um capall uisce na água,
longe da costa, empurrada em direção à areia pela corrente de novembro.
Aqueles que capturamos lutam contra nós em arreios cheios de sinos e fitas
vermelhas, folhas de ferro e de azevinho, margaridas e orações. Os cavalos
d’água são famintos e maus, violentos e belos, e amam e odeiam cada um de
nós.
É hora das Corridas de Escorpião.
Eu me sinto tão, tão vivo.
Sob mim está Corr, inquieto e poderoso. O mar canta para ele de um
jeito que não cantava ontem, e quando outro capall uisce passa por nós, ele
dá uma dentada. Antes de Puck, eu nunca havia de fato notado que éramos
tantos ali na praia para essa corrida. Capaill uisce de todas as cores
espremidos uns contra os outros, esmagando, mordendo, fungando,
chutando. A ponta norte da praia nunca parecera tão distante.
Dentro de três mil e seiscentos metros e cinco minutos, tudo terá
acabado.
Encontro Puck no meio da multidão. Ao contrário dos outros, ela não
está pendurando enfeites e bugigangas de último minuto na crina do cavalo.
Está curvada sobre o pescoço de Dove, o rosto apertado contra a crina dela.
– Sean Kendrick.
Reconheço a voz de Mutt antes de olhar em sua direção.
Ele está perto, montado na malhada. Quando ela agita a crina, os sinos
trançados ali tocam um acorde dissonante. Não sei como ele pode querer

que ela seja rápida debaixo de todo o ferro que pendurou no peitoral e no
dorso da pobre égua.
– Não fale comigo – digo.
– Esta corrida vai ser um inferno para você – responde ele.
Corr achata as orelhas para trás e a égua malhada faz o mesmo.
Eu digo:
– Você não consegue me intimidar nesta praia.
Mutt Malvern recua com a égua malhada. Ela tilinta e rosna.
Ele segue meu olhar até Puck.
– Eu sei com o que você se importa, Sean Kendrick.

Estou tentando, sem sucesso, fazer de conta que essa vai ser só mais uma
corrida. Tentando não olhar até onde temos de ir. E tentando me lembrar
de que tenho não só de sobreviver, mas me sair bem. Eu preciso vencer. Por
um momento, sinto uma pontada de culpa, já que, se eu alcançar meu
objetivo, Sean não alcançará o dele, mas talvez não tenha de ser assim. Se
eu vencer, certamente vai haver o suficiente para salvar a casa e comprar
Corr, não?
– Puck, desça aqui um instante. – Sou pega de surpresa pela voz de Peg
Gratton.
Ela está ao lado de Dove, olhando para cima, para mim.
Seu cabelo está despenteado pelo vento; seu rosto, sério. Eu obedeço.
Ela está carregando a fantasia de pássaro que usou no Festival de Escorpião,
não entendo por quê.
– Como está indo?
– Tudo bem – digo.
– Então, que horrível – diz ela. – Gabe me contou que não quiseram lhe
dar nenhuma cor.

Eu faço que não com a cabeça. Não vou deixar meu rosto demonstrar
nada.
Peg diz:
– Certo, então. Tire essa sela daí.
Estranhando muito, mas confiando nela, tiro a sela de Dove e fico
olhando Peg cuidadosamente desdobrar a fantasia que traz nos braços.
Agora posso ver que a enorme e apavorante cabeça do pássaro não está
mais ali, somente as costas da capa coberta de penas. Peg coloca a capa no
dorso de Dove, onde as cores deveriam estar, depois pega a sela e se certifica
de que não vai irritar a pele de minha égua.
– Agora você está com as cores de Thisby – diz ela.
– Obrigada.
– Não me agradeça – diz Peg, já indo embora –, mostre a eles quem
você é.
Engulo em seco. Quem eu sou está encolhidinha num canto dentro
desta garota chamada Puck Connolly, rezando para que ela consiga
sobreviver aos próximos minutos.
– Cavaleiros, alinhar !
Como assim já está na hora de nos alinharmos? Acabamos de chegar
aqui embaixo, e eu ainda não vi Sean antes da corrida. Eu monto em Dove
e olho para os capaill uisce , procurando por ele. Se pelo menos puder ver...
Do outro lado da raia, eu o vejo erguendo o queixo e olhando de volta
para mim. Corr, de azul-escuro, já está molhado de suor. Sean continua
olhando para mim, então ergo o pulso para que ele veja a fita que me deu.
– Cavaleiros, alinhar !
Eu queria ter ficado ao lado de Sean e Corr, mas não dá mais tempo.
Três oficias nos empurram para alinhar os competidores atrás de longas
varas de madeira. As linhas tilintam, estridentes, com centenas de sinos em
dúzias de cascos. Os capaill uisce mordem e rosnam, pateiam e estremecem.
Mantenho Dove o mais longe que posso de seus vizinhos. As orelhas dela
estão achatadas para trás, coladas na cabeça. Ela está cercada de

predadores.
Ao meu lado, o capall uisce balança a cabeça, e espuma cai em cascata
por seu pescoço e peito.
Começa a contagem regressiva.
O oceano sussurra shhhhhh , shhhhhh .
As varas de madeira são erguidas.

ós explodimos em movimento. Não há rima ou razão; a única
coisa que me lembro é de puxar Dove para dentro. Ninguém
quer ficar perto daquele mar de novembro, a menos que seja
absolutamente necessário. Os cascos de Dove tocam a beira da
arrebentação, e a água salgada espirra em meu rosto. Sabe-se lá como, há sal
entre os meus dedos e as rédeas, e os grãos queimam e arranham minhas
mãos.
Algo atinge minha perna com força, a fivela de meu estribo parece
esmagar meu osso, e eu me viro a tempo de ver um enorme capall uisce baio
espremido contra mim. Conduzo Dove mais para perto da água, enquanto o
baio vira a cabeça e a ameaça. As orelhas dela parecem achatar-se contra a
crina, e vejo que o cavaleiro é Gerald Finney. As mãos dele agarram as
rédeas com tanta força que os ossos de seus dedos estão brancos, e ele nem
olha para mim. Posso perceber, pelo arrepio que percorre a sela, que Dove
reconhece aquele capall . Aperto as pernas em seus flancos. Não fique com
medo ainda, Dove. Temos um longo caminho pela frente .
Eu lembro, tarde demais, que devo conservar as forças de Dove e
verifico sua velocidade. Cavalos passam por nós; o verde das cores de Ian
Privett, o azul-claro de Blackwell, o dourado da égua malhada. Mas nenhum
garanhão vermelho sob o azul-escuro. Não faço ideia se ele está tão à minha
frente que não posso vê-lo, ou se está atrás de mim.

Procuro Puck ou Dove, mas não consigo ver nada em meio a essa confusão
de corpos. Corr está forte em minhas mãos; meus ombros exaustos já doem
por causa de seu peso. Minhas panturrilhas queimam com a fricção dos

estribos de couro. Não estou certo de por quanto tempo devo segurar Corr
atrás do grupo para procurá-la. O fim do pelotão é o pior lugar para ficar;
os capaill que ficam para trás não ficam ali porque são lentos, mas porque
estão lutando uns com os outros ou com o mar. Os cascos à minha frente
lançam areia em meu rosto. Meus olhos ardem, mas não posso usar a mão
para esfregá-los.
À minha esquerda, um cavalo cinza e um castanho se estraçalham e
tentam atrair Corr para a briga. Eu o seguro com força, empurrando-o para
frente – não para muito longe, porque, se Puck estiver atrás de mim, não
quero deixá-la ali. Minhas mãos estão enterradas na crina suada de Corr, e
sinto seus músculos tremerem com o toque do mar de novembro. Sussurro
para ele para que se mantenha firme.
Olho para a direita por sob meu braço à procura de Puck; não vejo
nada além do cavalo cinzento, quase todo dentro da água. Ele já é
praticamente uma criatura do mar. Seus olhos são pequenas fendas na
enorme cabeça. O cinzento empina e protesta, mais irritado com o cavaleiro
que com a corrida à sua frente. A água salgada espirra de algum lugar e
atinge meu rosto como garras geladas.
Outro capall me empurra pelo lado esquerdo; ele ataca e atinge minha
perna antes que seu cavaleiro consiga controlá-lo. Não posso ficar aqui
atrás. Vou para a praia aberta encontrar Puck. Se a esta altura ela não
estiver longe deste caos, talvez já esteja morta.
Inclino-me sobre o pescoço de Corr para sussurrar para ele, mas desta
vez não consigo pensar no que dizer.
Mas não importa. Corr sabe o que quero sem que eu tenha de lhe dizer,
e acelera o galope, se afastando do grupo de capaill no fundo do pelotão.
Há um corredor estreito aberto até a frente, onde os três primeiros
colocados estão brigando pela liderança. No ano passado, eu teria
atravessado aquele corredor com Corr num instante, e eles estariam
contando os metros que os separavam de nós pelo restante da prova.
Mas não faço isso.

Eu espero.

Leva apenas um minuto para Dove ser mordida e alguns segundos para
minha pele ser cortada por algo muito afiado que não acho que sejam
dentes de cavalo. Não tenho tempo de olhar para o ferimento nem de tentar
descobrir o que me cortou. Estamos presas num caos de corpos. Mesmo com
o barulho do vento em meus ouvidos, ouço os relinchos e gritos, os
grunhidos e gemidos enquanto lutam.
Por causa do corte em minha coxa, sinto o calor desconcertante do
sangue escorrendo pela minha perna, mas ainda não sinto dor. O que quer
que tenha me atingido era afiado o bastante para deixar um corte limpo.
Dove está começando a entrar em pânico. Um movimento à sua direita
a faz erguer a cabeça de repente, e a rédea faz uma das dolorosas bolhas na
palma de minha mão. Vejo tudo branco por um momento.
Preciso sair daqui. A areia atinge minha bochecha e o canto dos meus
olhos, mas não posso soltar a rédea para aliviar o desconforto. Não vejo
como podemos nos lançar mais para frente, até que o capall uisce à minha
direita entra no oceano, tropeçando nas ondas, empinando no ar antes de
derrubar seu cavaleiro.
É Finney. Os olhos dele encontram os meus por um mero segundo, suas
mãos tentam encontrar apoio dentro da água, e então os dentes afiados de
seu capall baio se fecham sobre seu rosto.
Então já estou longe e não os vejo mais, só existe a água furiosa que
espirra nos ombros de Dove, deixando ali uma mancha escura. Eu me sinto
enjoada, enjoada, enjoada.
De repente, vejo um estreito caminho onde antes existia um capall
uisce . Se eu for pela direita, usando a energia preciosa da força de Dove,
podemos sair daqui.

Não vai adiantar nada economizar em velocidade se morrermos nesta
luta. Aperto as panturrilhas contra seus flancos quentes, e de repente tudo
dá certo. Dove encontra o caminho e nos livramos do pequeno pelotão
turbulento no qual estávamos presas. E, logo à frente, entre os líderes, vejo
um garanhão vermelho sob um manto azul e Sean Kendrick avançando em
segurança sobre ele.
Limpo o sangue da mordida no ombro de Dove. Não é um ferimento
profundo, mas de qualquer forma a culpa me incomoda. Peço desculpas, e
ela estende uma orelha para mim. Afrouxo um pouco a rédea. Ela ainda está
apavorada, mas, por um instante, tenho sua atenção.
Concentre-se . Penso em galopar pelos penhascos, a mantendo firme,
equilibrada. Lembro-me da égua uisce saltando da beirada do penhasco. O
segredo é se lembrar da corrida, enquanto os outros se esquecem de tudo,
menos do mar.
Eu posso me manter firme.

Há um recém-chegado à nossa direita, e Corr, enlouquecido com o contato
com o mar, vira a cabeça para tentar mordê-lo. Eu o controlo, e o cavalo ao
nosso lado empina, mas se mantém firme. Orelhas pretas. Menor que Corr.
Menor que qualquer um dos cavalos nesta praia. Músculos comuns
movendo-se sob a pele dela.
É Dove, nos acompanhando passo a passo, as penas esvoaçando na sela
acolchoada. Dou uma olhada, uma vez e então mais uma, para Puck e para
Dove. Dove foi mordida, mas sem gravidade. Puck também está sangrando.
Mas, ao contrário do ferimento feio de Dove, o de Puck é limpo, longo; o
material de suas perneiras foi cortado. Foi uma faca que fez aquilo, não um
cavalo. Uma faca empunhada por alguém furioso por ela estar na praia
conosco. Mas pensar nisso por muito tempo significa ficar furioso, e ficar

furioso significa perder o foco, o que não posso fazer.
Porque à nossa frente há o caos. O pior de tudo é o barulho – o arfar
dos capaill já sem fôlego, seus grunhidos enquanto lutam, a contínua
trovoada dos cascos, o sibilar do oceano. Os gemidos e gritos, e, por trás de
tudo, o ruído da multidão. Aquele barulho deixaria um cavalo louco, se o
mar de novembro já não fizesse isso.
Um capall à nossa frente gira e se vira para dentro do pelotão, seu
cavaleiro tenta evitar o oceano a qualquer custo. Outros dois brigam, se
empurrando, diminuindo o bastante a velocidade para que os ultrapassemos.
Há uma parede de joelhos, cascos e sangue sobre ossos, dentes contra
dentes. Eles tentam nos atrair para a briga, mas Corr os bloqueia, agindo
como um muro trêmulo entre eles e Dove, que age como um muro entre ele
e o mar.
Estamos na metade do caminho. Isso significa que percorremos pouco
mais de um quilômetro e meio. A primeira metade da corrida elimina
aqueles que não estavam prontos, os que não tinham o treinamento
necessário. É um rito de passagem. Olho para Puck e ela olha para mim,
com uma expressão feroz.
A areia parece um borrão sob nós, e o oceano fica silencioso em
comparação ao som de nossos pulmões na luta para conseguir ar. Somos
apenas nós dois na areia.
Os cavalos de Blackwell e Privett se engalfinham ali na frente. Eles se
atacam, mostrando os dentes, esfregando pescoços e ombros. Um pouco
atrás deles, Mutt Malvern espanca impiedosamente Skata, a égua malhada.
E, ainda assim, Puck avança no encalço deles, firme e equilibrada.
Emparelho Corr com Dove, passo a passo, e a cada passo ganhamos terreno.
Corr não tem mais nada além de pura força. Há um caminho aberto à
nossa frente; eu poderia ultrapassar Blackwell e depois Privett. Mutt não
representa perigo; ele perde espaço na liderança e está mais perto de nós. Eu
poderia tomar a frente e conquistar facilmente essa vitória, como no ano
passado. Em três minutos, Corr pode ser meu.

Tudo o que eu sempre quis. Um teto sobre a cabeça, rédeas nas mãos e
um cavalo sob mim. Corr.
Sinto o hálito da deusa égua em meu rosto.
Eu disse a Puck que ficaria até ela tomar uma decisão. Talvez ela não
tenha a velocidade necessária para ultrapassar os líderes. Talvez eu esteja
desistindo de tudo ao esperar. Digo a mim mesmo que ainda tenho tempo.
Há tempo para Corr avançar.
Dove começa a tomar a frente.
E então percebo que Mutt Malvern refreou Skata intencionalmente.
Ele nunca pretendeu vencer.

O ataque da égua malhada me pega de surpresa.
Entre o mar e mim, ela se empina como se quisesse lançar-se para
frente, mas ataca Dove. Seus dentes se fecham sobre o pescoço dela, bem
atrás das orelhas.
Dove tropeça.
Viro a cabeça e vejo o sorriso pavoroso de Mutt Malvern.
Ouço Sean gritar, com uma raiva incontida na voz:
– Isto é entre nós dois, Mutt!
Tentando me manter firme nos estribos, inclino-me sobre o pescoço
suado de Dove, para agarrar a orelha da égua malhada. A pele dela é
escorregadia, diferente de qualquer cavalo que eu já tenha tocado. A
espinha de Dove parece esmagar meu estômago, e minhas mãos cheias de
bolhas doem, mas ignoro tudo isso e torço a orelha da malhada com toda a
força. Ela relincha e solta Dove.
Eu mal entendo o grito de Sean.
– Saia da frente, Puck!
Mas Dove compreende. Quando Corr se aproxima, ela passa como uma

flecha entre ele e a malhada. Mal tenho tempo de me equilibrar na sela; o
couro está escorregadio, por causa do sangue ou da água.
Skata se empina e salta sob Mutt, mas estamos livres dela. Olho para
trás e só tenho tempo de ver o ombro de Corr colidindo com o da égua
malhada. O olhar de Sean encontra o meu por um segundo. Ele está
observando para se certificar de que estou avançando.
Eu quero esperar por ele. Sei que ele ganhou esta corrida quatro vezes
sem mim, mas não quero abandoná-lo.
Ouço a voz de Sean Kendrick:
– Vá!
Solto as rédeas de Dove.

Não conseguimos nos livrar.
Corr poderia se desvencilhar de Skata se conseguíssemos avançar, mas
Mutt Malvern agarrou minha rédea. Ele puxa o focinho de Corr em sua
direção, ao alcance dos dentes da égua malhada. Esse é o lado cego de Corr,
e ele fica louco de medo, sem saber o que está enfrentando. Ele revira os
olhos, e seu nariz dá um solavanco no ar. Skata o ataca, seus dentes
resvalam na cara de Corr. Enquanto luto com Mutt para recuperar a rédea,
meu joelho colide com o dele, osso contra osso, e sinto uma dor aguda.
Skata e Corr galopam, ombro com ombro, e cada passada nos leva mais
para dentro do oceano. Sinto o gosto de água salgada; minha sela está
escorregadia. Cada músculo no corpo de Corr lateja e estremece. Olhando
para Mutt, vejo que ele tem dificuldades para se manter na sela.
É tarde demais quando vejo sua faca.
Ergo o braço. Não posso proteger a mim mesmo nem a Corr.
Mas não sou eu quem ele ataca. Ele desliza a faca pelo pescoço da
malhada, deixando uma linha escarlate. Ela fica furiosa com a dor.

– Lide com isso, Kendrick – diz Mutt.
Ele solta as rédeas.
Skata vem para cima de nós.

Alcançamos Blackwell e Margot primeiro. Ela é uma égua baia, grande e
esbelta, longa como um vagão de trem, e luta bravamente. Vejo que sua
boca está aberta, como se estivesse sorrindo, como o capall uisce preto que
nos encontrou no estábulo. Ela era incrivelmente rápida antes, mas agora
Blackwell a controla com o pulso firme. Quando ele tenta soltar um pouco a
rédea, ela corre na direção do oceano.
Mas Dove não se importa com o mar. Eu me inclino sobre sua crina –
seu pescoço está suado, minhas mãos estão suadas, e é difícil manter o
controle – e exijo ainda mais dela. Ela ultrapassa Blackwell.
Apenas Privett e Penda estão à nossa frente agora. Ele mantém uma
boa distância da água, e eu poderia passar pelo meio. Mas, se eu puder
forçar Penda a se aproximar mais do mar de novembro, talvez consiga
distraí-lo por tempo suficiente para manter a liderança. Isso significaria ter
de me aproximar demais de um capall uisce sem plano de fuga, e Dove já
está muito assustada, quase no limite.
Não falta muito. Mais uns seiscentos metros, eu acho. Não quero ter
esperança, mas posso senti-la me invadindo.
Só que... Corr deveria estar aqui, agora. Eu não deveria estar
competindo com Penda aqui sozinha. Quando olho para trás, não consigo
vê-lo. Vejo Margot se aproximando rapidamente de nós. E as penas do
manto improvisado de Dove farfalhando loucamente ao vento.
Ouço a voz de Sean dizendo que isso é possível. E a de Peg Gratton me
dizendo para mostrar quem somos. Sei que, no fim das contas, não se trata
de Dove ser corajosa. Mas de mim. Tenho de ser corajosa por ela. Inclino-

me sobre o pescoço de Dove – Dove, minha melhor amiga – e lhe peço um
último galope.

Estou segurando Corr, mas não estou segurando nada. Em algum lugar,
ouço um grito alto e claro, e então estou caindo.
No instante entre as costas de Corr e a água, penso primeiro nas
dezenas de cavalos atrás de nós e depois na morte de meu pai.
Minha única chance é me livrar deles. Esperar que, quando eu cair no
chão, eu seja capaz de rolar e me desviar da maioria dos cascos que se
aproximam. Se eu ficar consciente, posso sobreviver.
Por um momento, vejo tudo com perfeita clareza: Corr e a máscara
vermelha em sua cara, uma de suas narinas arrebentada; o horizonte se
estendendo a distância, longe demais de meu alcance; o céu azul, muito
azul, de novembro acima de nós.
O joelho da malhada se ergue para atingir minha cabeça.
Quando bato na areia, minha visão se quebra como uma onda. Tenho
água na boca, e a areia sob mim vibra com o som dos cascos, e então só há
vermelho, vermelho e vermelho acima de mim.

o momento em que ultrapassamos Ian Privett e Penda, os olhos de
Ian encontram os meus, e vejo que ele não está acreditando.
E então a corrida termina.
Mesmo quando vejo que cruzamos a linha primeiro, mesmo quando
ainda se passa meio segundo antes de Margot passar como um raio, e mais
um segundo antes de Ake Palsson e o dr. Halsal chegarem nariz a nariz, não
posso acreditar.
Diminuo a velocidade de Dove e dou tapinhas em seu pescoço, rindo e
enxugando as lágrimas com o dorso de minha mão ensanguentada. Toda a
minha dor desapareceu; tudo o que resta são os tremores que não posso
controlar. Permaneço trêmula sobre os estribos, desviando Dove dos
outros capaill uisce conforme cruzam a linha de chegada. Cinzentos, baios,
castanhos e pretos.
Não vejo Sean.
Meus ouvidos não param de zumbir. Levo um longo instante para
perceber que é o som da multidão aplaudindo ali em cima. Estão gritando
meu nome e o de Dove. Acho que ouço a voz de Finn, mas talvez só esteja
imaginando. E ainda há cavalos d’água no fim da corrida, galopando,
empinando, girando.
Mas não vejo Sean.
Um oficial da corrida vem em minha direção, estendendo o braço para
o freio de Dove. Minhas mãos não param de tremer; uma sensação horrível
me domina.
– Parabéns! – diz o oficial.
Olho para ele, esperando que o que acabou de dizer faça sentido, e
então pergunto:
– Onde está Sean Kendrick? – Quando ele não me responde, viro Dove

N

e voltamos por onde viemos. A praia, no fim da corrida, é um caos de capaill
uisce suados e cavaleiros exaustos. Não se parece nada com a visão que eu
tinha galopando na direção contrária. Não passa de uma grande extensão de
areia, quando sigo trotando. O oceano é simplesmente uma sucessão de
ondas, não algo escuro e faminto. Direciono Dove de volta por onde
viemos, examinando a areia molhada. Há manchas de sangue nos pontos
onde aconteceram as lutas, e um capall castanho jaz sem vida perto da água.
Há algumas pessoas estendendo um lençol sobre um corpo ao longe, o que
faz meu estômago revirar, mas o corpo é grande demais para ser o de Sean.
E então vejo Corr parado na beira da água, e seu reflexo vermelho na
areia molhada sob ele. Uma de suas pernas traseiras está dobrada, apoiada
na ponta do casco. Sua cabeça está abaixada, e, quando me aproximo, vejo
que está tremendo. Sua sela se deslocou e está quase virada ao contrário.
Há uma forma esbelta e morena sob ele, enrolada nas rédeas. Mesmo
com toda a sujeira, reconheço a jaqueta azul-escura. E o vermelho que
pensei que fosse o reflexo de Corr é simplesmente sangue, lavado da areia
com cada onda.
Penso subitamente em como Gabe disse que não aguentava mais aquela
vida e eu não acreditei nele, porque obviamente você pode suportar
qualquer coisa, se optar por isso.
Mas agora eu o entendo perfeitamente, porque não poderei suportar se
Sean Kendrick estiver morto. Não depois de tudo isso. Não depois de todos
os outros. Já é ruim o suficiente ver Corr parado ali, com a perna
aparentemente quebrada. Mas Sean não pode estar morto.
Desço de Dove. Há outro oficial da corrida por perto, e entrego as
rédeas dela nas mãos dele. Corro pela areia na direção de Corr. Detenho-me
por um instante, quando uma gaivota voa baixo à minha frente. Elas já
estão se aglomerando em torno da carnificina na praia... por que ninguém as
espanta?
– Sean.
Quando me aproximo, recuo assustada ao ver um movimento súbito. É

Sean; ele estende um braço, desorientado. Encontrando o estribo, o usa
para se erguer. Ele está instável como um potrinho recém-nascido.
Atiro os braços em volta de seu pescoço, e não sei dizer qual de nós dois
está tremendo.
A voz de Sean é rouca.
– Você conseguiu?
Não quero contar a ele, porque foi só metade do que deveria acontecer.
Ele se afasta um pouco e olha para o meu rosto. Não sei o que ele vê, mas
diz:
– Sim.
– Penda chegou em segundo. Onde você estava? O que aconteceu?
– Mutt – responde Sean. Ele olha para o oceano, estreitando os olhos. –
Você o viu? Não, achei mesmo que não. Ela o levou. A malhada o levou.
Meus ferimentos estão começando a doer, e meu estômago se revira.
– Ele nunca desejou vencer. Ele só queria que você...
– Corr me protegeu – disse Sean, assombrado. – Eu teria morrido. Ele
não precisava ficar. – Por um momento, vejo que não importa para Sean
não ter vencido. A lealdade de Corr é algo maior que o ter como sua
propriedade.
E então vejo os olhos dele examinarem Corr, percebendo sua cabeça
baixa, o sangue em suas narinas, o estado de sua pata traseira. Daqui, já
parece ruim o suficiente para fazer minhas entranhas se revirarem. Sean dá
um passo à frente e toca cuidadosamente a pata traseira de Corr, deslizando
a mão por ela. Vejo o momento preciso em que a mão de Sean fica imóvel,
seus ombros estremecem, e sei que está quebrada.
Lembro do que Sean desejou: conseguir o que precisava.
E, naquele momento, não vejo como posso acreditar em qualquer deus,
deusa ou ilha, e, mesmo que consiga, não poderia acreditar que eles sejam
algo além de muito cruéis.
Sean se afasta de mim e afrouxa as correias, e a sela cai ao chão,
deixando Corr nu e vermelho, seu pelo emaranhado e úmido no lugar onde

estivera a sela. Ele corre carinhosamente a mão sobre o pelo coberto de
suor.
E então segura uma mecha da crina de Corr e encosta a testa no ombro
do cavalo. Não preciso que ele me diga que Corr jamais correrá novamente.

resto do dia passa depressa. Há cerimônias de premiação e
dinheiro, jornalistas e turistas. Há tantas congratulações e
apertos de mão e tantas vozes que não consigo ouvir nenhuma
delas. Há curativos para os meus ferimentos: “Nossa, isto está bem feio,
Puck Connolly, como foi que um cavalo conseguiu fazer isso? Você tem
sorte de não ter sido mais profundo”, e Dove é paparicada. Isso continua por
horas e horas, e eu não consigo escapar para ir fazer o que é de fato
importante.
Depois que o sol desaparece, descubro que Corr foi levado para um
abrigo improvisado numa das cavernas da praia, porque não pode andar até
o Haras Malvern. Consigo escapar da multidão e ir até a trilha do penhasco.
Ali, no crepúsculo, vejo Sean Kendrick sentado contra as rochas, de olhos
fechados. Eu teria ido até ele, mas George Holly chegou primeiro e já o está
acordando, fazendo-o se levantar. Mesmo daquela distância, posso ver a
expressão desolada de Sean, por tudo o que perdeu. Holly faz um gesto de
cabeça para que eu me afaste, mas espero Sean olhar nos meus olhos antes
de levar Dove de volta para casa.
Finn me alcança no caminho de casa, correndo um pouco até acertar o
passo com o meu. Suas mãos estão enfiadas nos bolsos da jaqueta. Por
alguns instantes, caminhamos em silêncio, e os únicos sons são os de nossos
pés sobre o solo e dos cascos de Dove ocasionalmente chutando pedras
enquanto trota. O anoitecer torna tudo menor ao nosso redor.
– Você está franzindo a testa – diz ele, finalmente.
Sei que está certo; posso sentir a ruga entre minhas sobrancelhas.
– Estou fazendo contas, só isso. – Mas não há muita alegria nessa
atividade. Os números são sempre iguais: há o suficiente para que salvemos
a casa, mas não o bastante para Sean comprar Corr, ainda que Malvern

permita.
Finn exclama:
– Você deveria estar comemorando! Gabe disse que vai fazer um
banquete para nós em casa! – Mesmo depois deste dia tão longo, ele não
consegue controlar a empolgação. Parece um potrinho num dia de ventania.
Faço o possível para não soar agressiva, porque nada disso é culpa de
Finn, mas não consigo disfarçar a amargura.
– Não posso comemorar enquanto Sean Kendrick está lá embaixo com
um cavalo ferido que não pode comprar por minha causa!
– E como você sabe que Sean Kendrick ainda o quer?
Não preciso que me digam isso. Sei que Sean ainda quer Corr. Nunca
foi pela corrida. Finn olha para mim e encontra a resposta em minha
expressão.
– Tudo bem, então – diz ele. – Por que ele não pode comprar o cavalo?
Dizer as palavras em voz alta torna tudo pior.
– Sean tinha de vencer para conseguir o restante do dinheiro. Ele não
tinha o bastante.
Por um longo momento, ouço apenas o som de nossos passos outra vez,
o barulho dos cascos de Dove e o vento soprando em nossos ouvidos.
Pergunto a mim mesma se Holly conseguiu arrancar Sean da praia, ou se ele
decidiu dormir ali. Normalmente ele é tão pragmático, mas não quando se
trata de Corr.
– Por que não damos um dinheiro para ele? – pergunta Finn.
– Não ganhei o suficiente para pagar a casa e comprar Corr.
Finn revira os bolsos.
– Podemos usar isto.
Quando vejo o monte de notas em sua mão, paro tão depressa que
Dove bate a cabeça em meu ombro.
– Finn... Finn Connolly, onde conseguiu isto?
Posso ver que Finn está fazendo força para não sorrir. O esforço que ele
faz traz de volta a cara de sapo. Não consigo parar de olhar para o monte de

dinheiro em sua mão, quase tanto quanto ganhei pela corrida.
– Quarenta e cinco para um.
Levo um longo instante para me lembrar de onde reconheço o número.
Do quadro no açougue dos Gratton. De repente, percebo para onde foi o
restante do dinheiro na lata de biscoitos.
– Você apostou em... – não consigo nem terminar a frase.
Finn começa a caminhar de novo, e agora há certa segurança em seu
andar.
– Dory Maud disse que você era uma boa aposta.

inha mãe sempre disse que devemos usar nossas melhores
roupas quando estamos zangadas, porque isso assusta as
pessoas. Não estou furiosa, mas estou num estado de espírito
que me torna quase assustadora. Por isso, tomo muito cuidado na manhã
depois da corrida. Passo uma hora na frente do espelho oval de minha mãe
no quarto dela, escovando meus cabelos vermelhos e arrumando os cachos
com os dedos. Tenho uma imagem do cabelo de Peg Gratton em minha
mente, enquanto me arrumo. Há muito menos para arrumar quando meus
cabelos estão todos apontando para a mesma direção, e, quando os prendo,
vejo o rosto de minha mãe no espelho.
Vou até o armário dela e dou uma olhada em seus vestidos, mas
nenhum parece capaz de assustar alguém.
Então, escolho uma camisa e visto um par de calças e minhas botas,
depois de limpar toda a areia grudada nelas.
Tomo emprestado seu bracelete de coral e o colar combinando. E
então saio para o corredor.
– Kate – diz Gabe, espantado. Ele está sentado à mesa da cozinha e
olha fixamente para mim. Eu o ouvi arrumando as malas na noite anterior.
– Aonde você vai?
– Estou indo até o Haras Malvern.
– Bem, você está linda.
Abro a porta. Do lado de fora, a manhã é tranquila, de cor pastel, e tem
cheiro de madeira, tão suave como foi duro o dia ontem.
– Eu sei.
Penduro a mochila nas costas e pego a bicicleta, porque Dove merece
mais do que tudo um dia de folga. Pedalo pelo dia benevolente até chegar
ao Haras Malvern.

Como antes, quando chego ali, o lugar está repleto de atividade. Os
cavalariços conduzem os cavalos para os pastos, os cavaleiros levam os
puros-sangues para galopes, os garotos do estábulo limpam as baias.
– Kate Connolly – diz um dos cavalariços. – Sean não está aqui.
Não achei que estaria, mas não gosto de ouvir isso.
– Na verdade, estou procurando Benjamin Malvern.
– Ele deve estar em casa. Ele está esperando você?
– Sim – digo, porque, se ele não estava me esperando antes, vai estar
quando eu chegar.
– Bem, então, me permita – diz o cavalariço. Ele abre o portão para
mim e minha bicicleta.
Eu lhe agradeço e caminho até a casa dos Malverns. A casa fica atrás
do estábulo, e é uma coisa grande e velha. Como o próprio Malvern, ela é
impressionante e tem uma aura de poder, mas não é particularmente bonita.
Encosto a bicicleta na parede, caminho até a porta da frente e bato. Por um
longo instante, não há resposta, e então Benjamin Malvern abre a porta.
– Bom dia – digo, e passo por ele, entrando no salão principal. É uma
coisa nua; trata-se apenas de uma sala com um teto muito alto e uma
pequena mesa encostada na parede. Vejo que há uma sala de estar
adjacente, e uma única xícara sobre uma toalha de mesa branca.
– Eu estava tomando chá – diz ele.
– Cheguei em boa hora, então – respondo. Não espero que ele me
convide e vou direto para a sala de estar. Como o salão principal, está quase
vazia. Há apenas a mesa redonda sob o teto alto, e nada nas paredes além de
candelabros de bronze. Parece um lugar bem solitário. Eu me pergunto se
ele estava ali sentado, pensando se o mar algum dia devolveria a égua
malhada ou Mutt Malvern. Sento numa cadeira na frente da outra, já
afastada da mesa.
Os lábios de Malvern se movem.
– Leite e açúcar?
Cruzo os braços sobre a mesa e olho para ele.

– Vou beber o que o senhor estiver bebendo.
Ele ergue uma sobrancelha, antes de preparar uma xícara daquele
estranho chá para mim. Ele empurra a xícara em minha direção e se senta
na cadeira à minha frente, cruzando as pernas e se encostando.
– O que a traz até a minha casa como um furacão, Kate Connolly? Isso
não é muito educado.
– Eu não esperava que fosse. Vim até aqui por três motivos, na verdade
– digo. Encosto a xícara nos lábios, e ele me observa. Beber este chá é como
lamber o carpete. – Eu gostaria de três coisas.
– Isso é muita coisa para querer.
Apanho minha mochila e coloco um pequeno maço de notas sobre a
toalha.
– A primeira coisa de que eu gostaria é pagar tudo o que devemos pela
casa.
Malvern olha para o dinheiro, mas não o toca.
– E a segunda?
Tomo outro gole grande de chá para dar maior ênfase. Isso requer um
tanto de heroísmo de minha parte, mas eu consigo.
– Gostaria que o senhor me desse um emprego.
Ele coloca a xícara na mesa.
– E o que você acha que pode fazer?
– Acho que no começo vou limpar as baias, montar os cavalos e
empurrar carrinhos de mão, mas posso dar conta.
Malvern me examina.
– Empregos não são a coisa mais fácil de encontrar nesta ilha, você
sabe.
– Já ouvi falar – respondo.
Benjamin Malvern esfrega os dedos na boca e olha para o teto vazio, lá
no alto, bem acima de nós. Há algumas rachaduras no reboco, e ele franze a
testa ao vê-las.
– Acho que posso resolver isso. E qual é a terceira coisa?

Coloco minha xícara sobre a mesa e olho duramente para ele. Se devo
parecer assustadora, este é o momento.
– Eu gostaria que vendesse Corr para Sean Kendrick, ainda que Sean
não tenha vencido a corrida.
Malvern faz uma careta.
– Nós tínhamos um acordo, ele e eu, e ele sabia disso.
– Aquele cavalo é inútil para o senhor, e vocês dois sabem disso. O que
o senhor pensa em fazer com ele?
Ele aponta as palmas abertas para o céu.
– Então, pode muito bem vendê-lo. A menos que simplesmente se
divirta em torturar Sean Kendrick.
Penso em completar com “como o seu falecido filho gostava de fazer”,
mas acho que isso pode ser um pouco mais cruel do que a situação exige.
– Ele lhe disse para me pedir isso?
Sacudo a cabeça.
– Ele não sabe que estou aqui. E pode se sentir um pouco constrangido
se descobrir que estive.
Malvern olha para o chá.
– Vocês dois são um casal estranho. São um casal, não são?
– Estamos em treinamento.
Ele sacode a cabeça.
– Tudo bem, vou vender Corr para ele. Mas não vou abaixar o preço só
porque o cavalo agora fica em pé sobre três patas em vez de quatro. Isso é
tudo o que quer?
– Eu disse três coisas, e foi isso que pedi.
– De fato. Bem, deixe eu terminar meu chá. Volte na segunda-feira e
podemos conversar sobre aquele carrinho de mão.
Eu me levanto, deixando o dinheiro intocado sobre a mesa, e saio para
o jardim. A brisa sopra baixa sobre a terra, trazendo o cheiro do mar, da
grama da ilha, do feno e dos cavalos. E eu acho que este é o melhor cheiro
do mundo.

mar de novembro é uma joia na noite, escuro e brilhante além
das pedras ásperas. Corr e eu deixamos os penhascos brancos
para trás, enquanto o conduzo para a água. Como quando o
retirei do mar pela primeira vez, ele está preso apenas por uma corda. Já faz
algum tempo que retirei a bandagem de sua perna traseira; isso não vai
curá-lo. Holly me disse que eles sabem como consertar o osso na Califórnia,
mas que ainda assim ele jamais correrá de novo. Ele disse que não há nada
mais estúpido do que eu comprar Corr apenas para devolvê-lo ao mar.
Mas Corr pode ir até a Califórnia tanto quanto pode voar, e de
qualquer forma não tenho certeza de que tipo de vida isso poderia ser para
um capall uisce . Ele ama o mar e ama correr, e, enquanto eu podia lhe dar
uma dessas coisas, éramos felizes.
E agora eu o conduzo lentamente para o mar. No oceano, sua
insegurança vai desaparecer, seu peso será aliviado pela água salgada, e ele
não vai notar tanto que sua pata traseira não é o que costumava ser.
Eu não quero dizer adeus.
Nos penhascos, Puck Connolly e George Holly esperam por mim,
ambos com os braços cruzados sobre o peito, as posturas idênticas. Eles dão
este momento apenas para mim, e sou grato por isso.
Apesar de seu progresso doloroso, Corr aponta as orelhas na direção do
mar. O oceano de novembro canta suavemente para ele, tentando-o e
acariciando-o, fazendo seu sangue correr mais rápido pelas veias. Juntos,
entramos na água gelada. Sob esta luz, ele é vermelho como o sol antes do
anoitecer, um gigante, um deus. Sua orelha aponta para trás quando a água
do oceano atinge a perna ferida, e então se vira novamente para o
horizonte. O mar ali é negro e profundo e talvez esconda mais maravilhas
que as águas de Thisby.

Não faz tanto tempo assim que Corr e eu brincávamos nesta praia, aqui
na base dos penhascos. Agora, nem sequer podemos dar um passo sem
calcular.
Corro as mãos por seu pescoço de cima para baixo, seus ombros. Isso é
algo que costumava dar como certo, sua simples presença. Descanso o rosto
em seu ombro, fecho os olhos por um segundo e sussurro para ele.
– Encontre a felicidade.
Então, não posso continuar de pé porque minhas pernas não me
sustentam mais. Pisco para clarear a visão e estendo a mão, tirando a corda
de seu pescoço.
Recuo pela praia, observando-o. As orelhas dele ainda estão apontadas
para o horizonte, não para mim. O oceano é o amor dele, e agora,
finalmente, ele o terá.
Ergo o colarinho da jaqueta e viro as costas para ele, caminhando na
direção da base do penhasco. Não acho que sou capaz de vê-lo desaparecer
na água. Isso partirá meu coração.
Puck está esfregando os olhos com força, como se algo tivesse caído
dentro deles. George Holly morde o lábio. Os penhascos se erguem sobre
mim e tento me consolar. Vou encontrar outro capall uisce, vou montar de
novo, vou me mudar para a casa de meu pai e ser livre . Mas não encontro
conforto em meus pensamentos.
Atrás de mim, o oceano diz shhhhh, shhhhh .
Ouço um lamento alto, agudo. Continuo a andar, e meus pés descalços
percorrem lentamente as pedras irregulares.
Ouço o lamento de novo, desta vez baixo e prolongado. Puck e Holly
estão olhando para longe, e eu me viro. Ainda na beira da praia, Corr notou
a minha partida e fica parado onde o deixei, olhando para mim. Ele ergue a
cabeça outra vez e relincha para mim.
O oceano irresistível envolve seus cascos. Mas, ainda assim, ele se vira
para me olhar e emite um lamento e mais outro. Os pelos dos meus braços
se arrepiam com o chamado. Sei que ele quer que eu vá até ele, mas não
posso acompanhá-lo para onde ele precisa ir.
Corr fica em silêncio quando não volto. Ele olha novamente para o
horizonte infinito. Vejo-o erguer um casco e abaixá-lo de novo. Ele testa o
próprio peso mais uma vez.
E então, Corr se vira e sai do oceano. Ele ergue a cabeça quando sua
perna ferida toca o solo, mas dá outro passo calculado, antes de me chamar
outra vez. Corr dá mais um passo, se afastando do mar de novembro. E
então, outro.
Ele é lento, e o mar canta para nós dois, mas ele volta para mim.

 

 

                                                                  Maggie Stiefvater

 

 

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