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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CORTESÃ / Julia Justiss
A CORTESÃ / Julia Justiss

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Não podia casar-se com ela... mas arriscaria tudo para a levar para a cama!

Depois de anos no campo de batalha, o capitão Jack Carrington regressava a casa para assumir as suas responsabilidades familiares e encontrar uma esposa.

Mas toda a sua vida mudou quando viu aquela extraordinária lição de esgrima. O habilidoso aprendiz não era senão uma bela dama que, para além disso, era a mais lendária cortesã de Londres, lady Belle.

Quem era a misteriosa Belle? Uma mulher aborrecida que procurava um novo protector? Uma boa amiga que ajudava os necessitados? Ou uma amante capaz de levar um homem à loucura? Ansioso por descobrir a mulher que se escondia sob aquela fachada, Jack apostou um beijo em como era capaz de a vencer num combate de esgrima…

 

 

 

 

- Então, Jack! Antigamente estavas sempre disponível para uma brincadeira.

Jack Carrington, capitão do Primeiro Regimento de Cavalaria, olhou por cima do monte de roupa para o jovem dândi que lhe falava da soleira da porta.

- Eu também fico contente por te ver, Aubrey, e embora aprecie o teu entusiasmo pela minha companhia, que te leva a vir procurar-me antes de tomar o pequeno-almoço, não me interessa ir a lado nenhum. Cheguei a Londres muito tarde ontem à noite e, como podes ver, ainda não acabei de me instalar. Esse passeio não pode esperar?

Aubrey Ludlowe atravessou a divisão, sem perder nenhum do seu entusiasmo, e serviu-se de um copo de cerveja que havia em cima da secretária.

- Não pode esperar. Além disso, porque queres desfazer a bagagem? O teu criado pode tratar disso.

- Mandei o que me acompanhava de volta para a minha família assim que desembarcámos e ainda não tive tempo de encontrar um substituto.

Aubrey mexeu a mão no ar.

Então deixa isso para o novo criado que contratarás. Falta pouco tempo para a aula e, se não chegamos cedo, os melhores lugares já estarão ocupados.

Jack, surpreendido, acabou a sua cerveja de um gole.

- Queres que eu saia de casa ao amanhecer para assistir a uma aula? Quando é que desenvolveste tanto entusiasmo pela educação? Não foi quando estávamos em Oxford, de certeza.

Aubrey pousou o copo sobre a mesa com uma expressão de dor.

- Aqui não se trata de aprender tolices nos livros. Não, isto é mais importante. De facto, é o mais importante que agora há em Londres, uma vez que ainda não começou a temporada. Todos os cavalheiros da alta sociedade estarão presentes. Como sou teu amigo, não quero que percas esta oportunidade.

Jack olhou para ele.

- Uma aula é o mais importante que acontece agora em Londres? - perguntou, tentando perceber. Inclinou-se para a frente para sentir a respiração do seu amigo. Estás bêbado, Aubrey?

O seu amigo soltou uma gargalhada, aparentemente muito menos ofendido pela insinuação de que pudesse estar bêbado às sete da manhã do que pela insinuação de se ter afeiçoado ao estudo.

- Não, embora não me importe de começar o dia com um gole de cerveja para animar o espírito. Também não me importaria de comer um bom bife, mas não temos tempo. Podes ir com o uniforme do regimento, visto que já o tens vestido, mas vamos já. O professor de esgrima fecha as portas às sete e meia.

- Estás a apressar-me para ir assistir a uma aula de esgrima? - uma visão repentina ocupou a cabeça de Jack: fumo, gritos, o som dos mosquetes. - Não, obrigado - respondeu com voz sombria. - A minha habilidade com a espada está óptima. Rogo a Deus que nunca mais tenha de voltar a demonstrá-la.

O seu amigo ficou sério.

- Ámen. Ouvi dizer que Waterloo foi um massacre terrível. Mas eu proponho uma luta muito diferente... e

garanto-te que gostarás. Confia em mim. Alguma vez te enganei?

Jack recordou uma lista longa de façanhas duvidosas desde a infância até à universidade e sorriu.

- Com frequência.

- Pois desta vez não - Aubrey sorriu. - Se achares que te enganei, poderás vingar-te da forma que quiseres, mas tenho a certeza de que agradecerás a minha insistência para que venhas. Isto é uma experiência única. Tens de ver com os teus próprios olhos.

- Oh, muito bem! - respondeu Jack, com curiosidade. Arranjou a camisa e vestiu o casaco do uniforme.

- Para compensar o facto de ir tão mal arranjado, terás de me convidar para tomar o pequeno-almoço.

- Imediatamente depois da esgrima - prometeu o seu amigo. - Mas despacha-te. Tenho uma carruagem à nossa espera.

Jack seguiu-o pelo corredor.

- Porque te hospedaste no Albany? - perguntou Aubrey, quando desciam as escadas. Dorrie vai ser apresentada à sociedade este ano, não vai? Porque não te instalas na mansão familiar?

- A mamã e Dorothy só virão para Londres daqui a um mês. Sabes que o velho Quisford não sairá de Carrington Grove enquanto a família não sair nem confiará a um subordinado a abertura da sua casa aqui. Mencionei que ia ficar em casa de Grillon até à chegada da minha família e um companheiro oficial cujo regimento continua ainda em Paris ofereceu-me os seus aposentos no Albany.

- Ficarás em Londres até a tua família chegar? perguntou Aubrey quando subiam para a carruagem.

- Ficarei apenas o tempo suficiente para vender umas coisas, comprar roupa nova e consultar os nossos advogados e depois irei respirar o ar do campo e deixar-me mimar pela minha mãe e por Dorothy.

- Se é que têm tempo para ti - Aubrey fez sinal ao

cocheiro para que iniciasse a marcha. - Quando apresentaram a minha irmã à sociedade, houve tantos preparativos que dava a impressão de que iam formar um exército. Voltarás com elas para a temporada, não é?

- Sim, assim que tratar da sementeira da Primavera com Ericson. Prometi a Dorrie que a levaria a festas, que lhe apresentaria os meus companheiros do exército e que me certificaria de que só conheceria solteiros que valham ouro. O que te exclui - acrescentou Jack com um sorriso.

- De qualquer modo ela não se interessaria por mim. Conhecemo-nos desde pequenos - replicou Aubrey. Além disso, não pretendo comprometer-me já.

Pois eu, como tenho de a acompanhar aos eventos da alta sociedade, penso ter os olhos bem abertos. Talvez encontre uma beleza que me convença a assumir um compromisso.

Aubrey soltou uma gargalhada de incredulidade.

- Estou a falar a sério - continuou Jack. - Quando sais ileso de uma batalha de fogo de mosquetes e de artilharia, começas a pensar na tua própria mortalidade. Talvez tenha chegado o momento de cumprir o meu dever e casar-me.

Aubrey olhou para ele surpreendido.

- Parece-me que estás a falar a sério. Graças a Deus, eu sou o filho mais novo e não tenho o dever de procriar, pelo menos de um modo legítimo.

- E a que actividade ilegítima é que vamos esta manhã? Deve ser importante para te tirar da cama a estas horas. Ou ainda não te deitaste?

- Dormi algumas horas - respondeu Aubrey. - Um homem tem de estar preparado para isto.

- E o que é isto exactamente?

Vais ver com os teus próprios olhos.

Jack teve de se contentar com aquela resposta. Durante o resto do percurso, Aubrey recusou-se a revelar mais pormenores. Jack, curioso e um pouco zangado,

alegrou-se quando a carruagem parou finalmente diante de uma casa modesta na Soho Square.

Seguiram vários cavalheiros pelas escadas até ao andar principal, onde Aubrey, depois de colocar umas moedas numa caixa que estava junto à porta, o conduziu pelo que parecia uma sala de baile remodelada. Junto à entrada havia alguns grupos de cavalheiros. Para além deles havia também uma fila de cadeiras, todas ocupadas.

- Eu sabia que estávamos atrasados! - resmungou Aubrey. - Agora temos de ficar em pé.

Depois de observar a multidão, abriu caminho por entre as pessoas até chegar a um lugar junto à parede.

- Teremos de nos conformar com este lugar. Ah, já começaram! Não é magnífico?

No silêncio repentino que se produziu, Jack ouviu o choque do aço. Concentrou a sua atenção no centro da sala e viu um homem mais velho vestido com umas calças e em mangas de camisa. O seu adversário, que estava de costas para eles, parecia apenas um rapaz. Mas antes que Jack pudesse observá-lo melhor, o jovem passou ao ataque.

Embora o mais velho, que claramente era o seu professor, fosse mais alto e forte, o jovem parecia estar à sua altura. As espadas lançavam faíscas à medida que o jovem atacava e contra-atacava, compensando a vantagem em tamanho e a experiência do professor com uma agilidade e uma audácia superiores e com mudanças arriscadas de direcção, que lhe permitiam fazer o outro recuar a pouco e pouco.

Jack esquecera o seu desgosto pela luta e seguia com muita atenção o jogo das espadas. Então, depois de parar um ataque que pretendia fazê-lo perder o equilíbrio, o jovem contra-atacou com um golpe tão veloz e inesperado que Jack mal viu a espada mexer-se, e ouviram-se os ruídos de aprovação que a galeria lançou quando a espada do professor saiu a voar pelos ares.

- Brilhante! - exclamou para Aubrey, quando o aluno se adiantava para apanhar a espada em queda. - Há quanto tempo...?

O rapaz desapertou a máscara e virou-se para eles e Jack interrompeu-se a meio da frase. O aluno, que caminhava para eles com a espada do professor na mão, não era um rapaz, mas uma rapariga.

Uma mulher, melhor dizendo. Jack olhou com aprovação para as curvas que conseguiam perceber-se sob a camisa e as calças. Como podia ter pensado que era um rapaz com aquelas ancas redondas e aquela deliciosa curva do rabo?

E o seu rosto... Jack conteve literalmente o ar quando os seus olhos pousaram no que devia ser uma das maravilhas da criação de Deus. A sua forma era oval e tinha a luminosidade de uma pérola da China. Uns olhos azuis profundos iluminavam o seu rosto. Embora os seus lábios cor-de-rosa não sorrissem e tivesse o cabelo loiro apanhado, era sem dúvida a mulher mais bonita que alguma vez vira.

O risinho de Aubrey tirou-o da sua contemplação.

- Eu não te disse?

Jack, que compreendeu pelo regozijo do seu amigo que devia ter a boca aberta, fechou-a de repente.

- Quem é?

- Lady Belle. Ou, pelo menos, é assim que a alta sociedade a chama, seguindo o exemplo do seu protector, lorde Bellingham.

- Uma actriz?

- Não, uma cortesã. E desde que Bellingham morreu, no mês passado, é a mulher mais solicitada de Londres. Todos os cavalheiros sem compromisso da cidade lhe pedem para ser seus pretendentes, embora lorde Rupert - Aubrey apontou para um homem alto e magro, vestido de negro e com uma expressão tão sombria como o seu fato - esteja empenhado em superar todos os pretendentes. Segundo os rumores, uma

vez ofereceu a Bellingham duas mil guineias para que deixasse Belle e duplicou a sua oferta à dama em privado, embora ela não tenha deixado Bellingham, por isso talvez sejam boatos. Pensei que talvez quisesses entrar na corrida.

- Com um preço de partida de quatro mil guineias?

- Jack desatou a rir-se. - Eu não tenho tanto dinheiro. Ela é espectacular, sim, mas não posso dar-me a esse luxo.

- Se for verdade que rejeitou Rupert várias vezes, talvez procure algo mais do que dinheiro. Tu és um homem muito atraente e um herói de guerra. Talvez tenhas possibilidades. E se tiveres sucesso, talvez permitas ao teu melhor amigo que se prostre aos seus pés de vez em quando.

Algo no tom de voz de Aubrey fez com que Jack o olhasse nos olhos.

- Entregaste-lhe o teu coração? O seu amigo suspirou.

- Não olharia para mim, sou um filho mais novo de aspecto modesto e de pouca fortuna. Mas espera... ainda não ouviste o mais divertido. Quando Wroxham descobriu que ela fazia aulas de esgrima com calças, a notícia espalhou-se rapidamente por toda a sociedade e os cavalheiros começaram a vir ver. Disse a Armaldi que cobrasse entrada, suponho que com a esperança de os afastar, mas isso só conseguiu aumentar a expectativa.

- Se juntar dinheiro suficiente com isto, talvez não precise de um novo protector.

- Oh, não! O dinheiro não fica para ela, oferece-o a Armaldi para o compensar pelo aborrecimento de ter tanta gente a observar. Mas Ansley, um jovem que a persegue desde a temporada passada, disse-lhe que os seus admiradores mereciam um prémio pela sua devoção e conseguiu que ela aceitasse bater-se com um cavalheiro depois da sua aula. Quem ganhar, ganha um beijo.

Jack reparou então em vários jovens que falavam com o professor de esgrima e começavam a levantar a voz num esforço de tentar convencê-lo a favor deles.

Enquanto a disputa continuava, lady Belle mantinha-se perfeita, com a ponta da sua espada a descansar no chão. Jack voltou a olhar para ela atentamente, o que fez aumentar a sua primeira admiração. Certamente, o seu aspecto tocava a perfeição, como se o mais dotado dos escultores gregos a tivesse esculpido à imagem de uma deusa e lhe tivesse insuflado vida. Embora a roupa escandalosa de homem que usava lhe ficasse larga, a amplitude das suas curvas era inegável.

Deu por si a imaginá-la com uma túnica clássica, com os braços e os dedos dos pés nus e o tecido fino a revelar, mais do que a ocultar, a forma dos seios e das coxas. O desejo deixou o seu corpo tenso e sentiu numa nuvem de calor a oprimir a sua garganta.

Obrigou-se a desviar o olhar. A última coisa de que precisava era cair sob o feitiço daquela cortesã, que certamente tinha exigências tão ilimitadas como a sua beleza e que possuía um coração tão quente como o mármore que os escultores gregos usavam.

- Não parece preocupada disse, com uma voz mais afiada do que era a sua intenção. - Já alguém ganhou alguma vez?

- Ainda não. Mas isso não impede que os homens lutem pela oportunidade de tentar. Vamos, vai começar.

Naquele momento, o professor de esgrima assinalou um dos homens com um polegar imperioso. Os outros murmuraram palavras de desilusão, mas retiraram-se.

Os espadachins ocuparam os seus postos. Lady Belle desarmou e atirou ao chão o seu adversário em poucos minutos, com muita mais facilidade e definitivamente mais desdém do que demonstrara contra o seu professor.

Com o rosto inexpressivo, desviou o olhar do seu oponente derrotado e observou a multidão com os seus olhos azuis. Por acaso, o seu olhar cruzou-se com o de Jack. E manteve-se durante alguns instantes.

A força do encontro visual enviou vibrações através do corpo de Jack e fez com que os seus pêlos se arrepiassem. Os dois olharam-se durante um longo momento, até que ela afastou o olhar bruscamente.

Ignorando as vozes que a chamavam, contornou a figura do seu adversário vencido, cumprimentou com uma reverência o professor de esgrima e saiu.

Belle controlou um calafrio e obrigou-se a caminhar com calma e com passos firmes até à porta. O oficial alto e magro de uniforme escarlate que atraíra o seu olhar era um homem atrevido. Não o conhecia, o que implicava que devia ter chegado a Londres há pouco tempo.

Certamente outro cavalheiro aborrecido que tentava distrair-se assistindo ao último espectáculo. Bolas! Como desejava que aqueles inúteis a deixassem em paz!

Recusara lorde Rupert uma dúzia de vezes e rejeitara um monte de ofertas feitas em termos muito claros. Como podia fazer com que entendessem que não tinha intenção de aceitar nenhuma delas?

Finalmente era livre. Livre! Embora já tivesse passado um mês, aquela palavra ainda a fazia sorrir. Depois de mais de seis longos, dolorosos e humilhantes anos, os anos de vida que lhe restavam pertenciam-lhe. Embora ainda não tivesse decidido o que iria fazer, para além de continuar a treinar para nunca mais voltar a estar à mercê de um homem.

A sua companheira, Mae, uma mulher mais velha, gordinha, de caracóis loiros, olhos azuis vivos e um vestido cujo corte escandaloso proclamava a sua anterior profissão, esperava-a no hall para a ajudar a mudar de roupa.

- Correu bem a aula? - perguntou.

- Sim - respondeu Belle, enquanto despia a roupa de homem. - Armaldi sugeriu-me uma mudança na postura que melhorou muito o meu ataque.

- Acho que acabaste depressa com o teu adversário

- comentou Mae, enquanto lhe estendia o vestido. Quem era hoje?

- Wexley. Luta como uma cabaça. Pulsos de madeira, má forma física, não tem ideia nenhuma do que é estratégia... Por sorte, para a segurança de Inglaterra, nunca esteve no exército.

Aquele comentário lembrou-a do capitão de olhos escuros e sentiu um aperto no peito.

- Oh, quase me esquecia! - Mae tirou um bilhete selado da sua mala. - Um rapaz trouxe isto para ti.

Enquanto Mae lhe apertava os botões das costas do vestido, Belle leu a carta.

- É de Smithers, o meu advogado, para que vá encontrar-me com ele quando puder - franziu o sobrolho.

- Acho que posso passar por lá a caminho de casa.

- O que achas que quer? - perguntou Mae com alguma ansiedade. - É o que trata das tuas finanças, não é? Espero... espero que não seja nada de mal.

- Não estejas preocupada. Revi as minhas contas com ele no mês passado e os investimentos estão a correr bem.

- Que profissional! De certeza que tens razão. Recursos e investimentos! - a mulher abanou a cabeça. Na minha época, comprávamos jóias, vestidos e carruagens. Tens a certeza de que não queres aceitar outra oferta? Tiveste tantas este mês! E alguns dos cavalheiros são encantadores.

Belle, que já tinha respondido àquela pergunta várias vezes, teve de fazer um esforço para não responder com dureza.

- Poupei durante anos até ao último tostão e pedi a Smithers que aplicasse o dinheiro em investimentos seguros. O dinheiro não nos acabará e a casa e os móveis estão escriturados no meu nome. Não preciso de outro protector.

- Bem sei que não foste muito feliz com lorde Bellingham, mas de certeza que consegues encontrar alguém de quem gostes. Não podes viver sem um homem.

Belle começava a perder a paciência.

- Porque é que continuas a insistir para eu arranjar um amante? Tu sabes quão pouco confiáveis são as promessas deles.

- Oh! Na minha juventude, a inconstante era eu, que mudava de amante assim que recebia uma oferta melhor. Mas no fim... - Mae suspirou. - Não deves culpar Darlington pela sua falta de perseverança. Eu estou velha e é natural que os homens prefiram uma mulher mais jovem.

Belle arrependeu-se da sua brusquidão.

- Desculpa - disse. - Foi Darlington quem ficou a perder, porque de certeza que não encontra ninguém que tenha um carácter tão doce como o teu nem um coração tão generoso.

Mae sorriu-lhe com os olhos húmidos.

- És uma menina encantadora e não sei o que me teria acontecido se não me tivesses ajudado quando ele se livrou de mim. Eu não fui tão inteligente como tu e, quando acabasse de vender as minhas jóias todas...

- Tu foste a única mulher que me tratou bem no primeiro ano em que Bellingham me trouxe para a cidade, quando pensei que ia morrer de solidão - e de vergonha, mas isso não disse. - E depois foste uma verdadeira amiga. Além disso, quem me aconselhou que aceitasse todos os presentes que Bellingham me desse e os guardasse para quando precisasse? Devemos a nossa riqueza a esse sábio conselho.

- És muito amável - respondeu Mae. - Mas eu não sei distinguir entre um fundo e um fideicomisso, garanto-te.

- Bom, já chega. Queres fazer-te passar por mim, enquanto vou encontrar-me com o advogado? Far-me-ias um grande favor se levasses a carruagem da porta da frente enquanto eu me escapulo calmamente pela porta de trás. Assim que vi a multidão que havia hoje, pedi a Meadows que chamasse uma carruagem alugada. Não quero que me sigam.

- Não queres que saibam que vais ao advogado?

- Não, porque onde quer que a minha carruagem esteja, atrai as atenções das pessoas mais irritantes. Além disso, da maneira como esse vestido novo te fica bem, de certeza que encontrarás admiradores pelo caminho. Darlington arrepender-se-á da sua decisão.

- O vermelho sempre me ficou bem e, embora pareça falsa modéstia, conservei a minha figura. Antes diziam que eu tinha os seios mais magníficos de Londres - Mae deu umas palmadinhas nos amplos seios, cuja parte superior aparecia no decote do vestido escarlate. - E tendo em conta que Frederic me trocou por aquela rapariga da ópera, a criatura mais fria e soberba que alguma vez conheci, não duvido que se tenha arrependido da sua decisão.

Belle abraçou a sua amiga.

- Eu tenho a certeza. Vamos, vai-te embora e distrai aqueles chatos.

- Tu, minha querida, tens o aspecto que qualquer mulher desejaria - Mae olhou para Belle de cima a baixo. - És linda, mas é um pecado que, com esse aspecto, uses um vestido cinzento, feio e sem decote abanou a cabeça.

Belle encolheu os ombros.

- Agora posso vestir-me para agradar a mim própria.

Mae olhou para ela pensativa.

- E sentes-te agradada assim? Não quero parecer chata e de certeza que me consideras uma velha tola e romântica, mas não entendo como consegues viver sem um homem na tua vida. Não é... não é natural.

Belle aproximou-se da porta com um sorriso.

- Vejo que não ouviste os meus caluniadores. Não ouviste dizer que sou a mulher mais antinatural de Inglaterra?

 

Assim que Mae saiu, Belle dirigiu-se para a escada de serviço. Mae, que se divertia com aquela encenação, trocaria comentários picantes com os cavalheiros que a esperavam, divertir-se-ia com os seus elogios e sem dúvida nenhuma receberia com discrição alguma moeda misturada entre os bilhetes que prometeria entregar à sua companheira. Quando os homens percebessem que Belle não ia sair por ali, ela já estaria muito longe.

Atou o lenço que cobria o seu cabelo dourado, vestiu a capa e encaminhou-se para a porta de trás, onde a carruagem alugada a esperava. Enquanto o veículo a levava de Soho até City, perguntou-se o que podia ser tão importante para que o seu advogado a chamasse daquele modo.

Teria encontrado problemas para mudar os termos do fideicomisso de Kitty? Esperava que não.

Enquanto caminhava para a porta, os homens não repararam nela, coisa que lhe agradou. Embora se vestisse cada vez com mais discrição e tivesse trocado a carruagem de cor azul brilhante de Bellingham por uma de cor preta, dificilmente passava despercebida e não conseguia ter o grande prazer de caminhar por uma rua de Mayfair e chamar tão pouco a atenção como qualquer outro londrino dedicado aos seus assuntos.

Alguns minutos depois de ter chegado, o estagiário do senhor Smithers fê-la entrar no escritório do advogado, onde este lhe agradeceu por ter atendido tão rapidamente ao seu pedido.

Belle sentou-se na cadeira que o advogado lhe indicou.

- Espero que não me vá informar que os meus investimentos correram mal.

O advogado sorriu e abanou a cabeça.

- Pelo contrário. Tenho o prazer de a informar de que é a principal beneficiária do testamento do falecido Richard Maxwell, visconde de Bellingham. É claro que, a casa familiar fica para o primo que herda o título, porém, para além de umas ofertas modestas para a esposa e para a filha, lorde Bellingham deixou-lhe tudo o resto, dinheiro, uma mansão em Suffolk, uma casa de campo em Lincolnshire e outra em Londres.

Belle olhou para ele surpreendida, incapaz de acreditar no que acabava de ouvir.

- Mas tem de haver um erro!

- É anormal, dado que você não tinha laços de sangue nem legais com o falecido, mas é legal. E não é um erro. O advogado do falecido visconde passou ontem a tarde toda comigo a explicar-me os detalhes.

- Mas... porquê? - perguntou Belle, mais para si mesma do que outra coisa. - Sabia que, se lhe acontecesse alguma coisa, eu tinha meios suficientes para me manter - franziu o sobrolho com perplexidade, tentando adivinhar as razões de Bellingham. - Quanto deixou à esposa e à filha dele?

- Duzentas libras a cada uma. E a sua fortuna em dinheiro e em investimentos rondará as vinte mil libras.

- Vinte mil...! - repetiu Belle. - Mas isso é terrível! Belle sentia-se cada vez mais irritada à medida que ouvia a explicação. Levantou-se e começou a passear pela sala, demasiado furiosa para conseguir falar.

- Aparentemente - disse Smithers com calma, - lorde Bellingham queria certificar-se de que você tinha meios suficientes. Agora é uma mulher extremamente rica.

- E, portanto - repôs ela, - é muito menos provável que eu arranje outro protector para ocupar o lugar dele.

O senhor Smithers não respondeu e Belle recordou com clareza uma cena do passado. Ela, zangada e a sentir-se culpada ao pensar numa filha de dezasseis anos abandonada pelo seu pai, a ameaçar deixar Bellingham se ele não cumprisse com as responsabilidades que tinha para com a família dele e se não voltasse a morar com a sua esposa pelo menos aparentemente. E Bellingham a ameaçar que, se ela se fosse embora, abandonaria completamente a sua família para a procurar. Tinham conseguido chegar a um acordo intermédio onde Bellingham se recusava a deixar de viver com ela, mas acedia a visitar com mais regularidade a sua esposa e a sua filha.

Aquela era a última atitude do falecido protector: uma amostra permanente e legal do desprezo pela sua esposa e a sua preferência por ela, feita de tal modo que não podia discutir com ele nem rejeitar.

Mais uma vez tentava controlar a sua vida, transformá-la em propriedade dele e obrigá-la a fazer o que ele queria... inclusive no caixão.

Já conseguia imaginar os mexericos maliciosos que circulariam pela alta sociedade quando se conhecessem os termos do testamento.

A sensação de alívio que sentia desde a morte de Bellingham desapareceu e sentiu um aperto no peito com a mesma força da obrigação que suportara durante quase sete anos.

Então ocorreu-lhe uma solução. Talvez houvesse um modo de evitar aquela atitude.

- A herança é legalmente minha... recursos, propriedades... tudo?

- Sim. Num esforço por proteger a viúva e a filha, os advogados de Bellingham passaram várias semanas à procura de um modo de evitar os termos do testamento, mas sem sucesso. É legal e a herança é sua.

- E posso fazer com ela o que quiser?

- Sim, embora eu recomende que, com um montante tão importante e com tantas propriedades, contrate um agente que a ajude a administrar - Smithers olhou para ela com curiosidade. - Tem alguém em mente?

- As minhas contas estão em ordem, não estão? Não detecta nada que me impeça de continuar a viver bem o resto da minha vida?

O advogado inclinou a cabeça.

- Com as suas contas, pode viver comodamente, mas não com o estilo de vida que esta herança lhe oferece.

- O fideicomisso de Kitty está seguro até se casar?

- As suas finanças estão no mesmo estado que discutimos o mês passado.

- Muito bem. Assim que os meus investimentos valorizarem e me transfiram a herança, quero estabelecer um fideicomisso novo.

O senhor Smithers assentiu.

- Sábia escolha. Pode optar por deixar parte do dinheiro em depósito...

- Um fideicomisso - interrompeu-o ela - a favor de lady Bellingham e da menina Bellingham, com uma parte adicional para o dote da menina Bellingham. Consulte os termos exactos com os advogados da família; sem dúvida eles conhecerão melhor as suas necessidades. E quero vender todas as propriedades aos seus legítimos herdeiros... ao preço de um xelim cada uma.

O advogado abriu muito os olhos surpreendido.

- Tem a certeza, lady Belle? É uma grande fortuna.

- Que devia ter sido para aquela família. Eu não a quero nem é justo que a receba - respondeu ela. - Não quero que aquele homem continue a mandar em mim acrescentou num tom desafiante.

O senhor Smithers sorriu.

- Tratarei de tudo. Os advogados da família ficarão surpreendidos... e também muito aliviados.

- Não se esqueça de lhes apresentar a conta - recomendou-lhe Belle com um sorriso, sentindo já a euforia de ter tirado um peso de cima. Chame-me quando os papéis estiverem prontos. E agora, se não há mais nada...

O sorriso do senhor Smithers aumentou.

- Eu diria que herdar e oferecer uma fortuna deve chegar para um dia.

- Nesse caso, vou-me embora - respondeu Belle, satisfeita por ter evitado a última armadilha de Bellingham. - Quero agradecer-lhe pela sua experiência e pelos seus conselhos ao longo dos anos. Poucos homens teriam aceitado uma... cliente tão pouco recomendável. Estou-lhe muito agradecida.

O senhor Smithers fez uma pequena reverência."

- Eu aprendi consigo, senhora, que as aparências enganam e que se pode encontrar honra em pessoas de todas as condições. O que vai fazer é muito nobre.

- O que vou fazer é apenas justo - replicou Belle. É verdade... Se a família não conhecer ainda os termos do testamento, prefiro que os detalhes fiquem entre os advogados de Bellingham e o senhor. Quero que a família dele pense que o fideicomisso foi feito por lorde Bellingham. Como devia ter sido - acrescentou com brusquidão.

- Dada a... natureza sensível do donativo, tenho a certeza de que os advogados do falecido visconde ficarão contentes de cumprir essa petição - Smithers inclinou-se novamente diante dela. - Bom dia, lady Belle.

Senhor Smithers... Belle fez uma reverência e saiu da sala, sentindo que controlava o seu destino.

Depois de aguardar alguns minutos, a pedido de Aubrey, em casa do professor de esgrima com a esperança de ver novamente a sua deusa, Jack estava esfomeado quando chegaram finalmente ao White's. Assim que a carruagem de lady Belle desapareceu, levando apenas a companheira desta, Jack parou a primeira carruagem de aluguer que apareceu e foi com o seu amigo ao clube, que encontraram quase deserto. Pediram o pequeno-almoço e sentaram-se.

- E então - perguntou Aubrey com um sorriso, - não estás contente por eu ter insistido para que me acompanhasses?

Uma visão de olhos azuis e um olhar intenso invadiu a mente de Jack.

- Sim, acho que sim.

- Achas? - repetiu Aubrey. - Achas que estás feliz por ter descoberto a mulher mais deliciosa de Londres e possivelmente do mundo? Bolas, Jack, transformaste-te num homem muito estranho!

- Desculpa ser tão aborrecido - Jack sorriu. - Concordo que lady Belle é tudo o que tu dizes. Se me sentisse preparado para desfrutar dos prazeres carnais e tivesse guineias suficientes para me permitir isso, talvez me sentisse tentado a entrar na lista. Mas já te disse que quero criar raízes.

Aubrey fez um ruído de desgosto e fechou os olhos. Jack soltou uma gargalhada.

- E, para além disso, tenho de pensar na temporada de Dorothy. Ela não me perdoaria se a envergonhasse no ano mais importante da sua vida ao correr atrás de uma cortesã.

- Isso é verdade - murmurou Aubrey. - Mas poderias ser discreto. Os homens fazem sempre isso. Visitam as damas no Almack e depois passam pelo Green Room para ver as suas actrizes predilectas. Além disso, porque não a visitas para fazer um favor ao teu melhor e mais leal amigo? Não consegues convencer-me de que te é indiferente porque não acredito.

Jack bebeu um gole de cerveja. Era verdade que queria procurar uma esposa e que não podia permitir-se a competir pelos favores de lady Belle. No entanto... o seu forte olhar azul atraía-o contra toda a lógica, prudência e bom-senso.

- Acho que não há mal nenhum em visitá-la - admitiu. Aubrey deixou o seu copo sobre a mesa e soltou um riso vitorioso.

- Eu sabia que nenhum homem conseguiria resistir-lhe.

- A lady Belle? - perguntou um cavalheiro que acabava de entrar na sala com um grupo de homens. - É claro que não. Viu-a com a espada, não viu? Magnífica! Derrotou o pobre Wexley sem problemas.

- Jack, já conheces Montclare - disse Aubrey, enquanto se levantavam para cumprimentar os recém-chegados. - Farnsworth, Higgins e o jovem é Ansley. Andaram em Oxford, porém como estavam noutro curso, acho que não os conheces.

Depois de trocarem saudações, Aubrey disse:

- Vamos, cavalheiros, ajudem-me a brindar pelo regresso do meu amigo são e salvo.

- Será um prazer - repôs Montclare. - Muitos dos nossos companheiros de Oxford não voltaram depois de Waterloo.

Depois de beber, Aubrey dirigiu-se a Montclare.

- Wexley virá cá ou escondeu-se em casa depois da sua actuação triste?

- Oh, acho que deve vir afogar as suas mágoas! O pobre homem pensava mesmo que ia ganhar o beijo Montclare sorriu.

- Teve sorte por não ter acabado como um peru de Natal - observou Farnsworth.

- Nunca a tinha visto antes, Carrington? - perguntou Higgins.

- Não, certamente que não - respondeu Montclare por ele. - Foi para o exército em... 1808, não foi, Jack?

- Sim. Tive uma licença depois da Corunha e outra entre Toulouse e Waterloo, mas passei esse tempo em Carrington Grave, não em Londres - confirmou Jack.

- E se bem me lembro, Bellingham trouxe Belle para a cidade em 1811 - disse Farnsworth.

- Na Primavera de 1811 - declarou Aubrey com reverência. - No baile de Cyprian. Usava um vestido alvo virginal e era a mulher mais bonita que eu alguma vez vi. Continua a ser.

- Bonita, claro que sim, mas "virginal" não - Farnsworth riu-se. - Possui um coração tão duro como as guineias cujo brilho rivaliza com o seu cabelo dourado.

- Dizes isso porque acaba de rejeitar a tua oferta acrescentou Ansley com fervor. - É tão bonita como encantadora. Como sabe que nunca poderia permitir-me possuí-la, quando lhe supliquei que me deixasse lutar com ela com a esperança de ganhar um beijo, acedeu em seguida.

- Certamente porque sabia que não ganharias - respondeu Farnsworth. - E é verdade que não poderias permitir-te a isso. Deves saber a fortuna que Bellingham gastou com ela ao longo dos anos! Vestidos dignos de uma rainha, jóias tão impressionantes como as da Coroa, cavalos, carruagens, uma casa na cidade e outra no campo - abanou a cabeça. - Aquele homem estava louco por ela.

- Qualquer um diria que devia estar muito contente com o dinheiro e com os cuidados que ele lhe dedicava

- observou Montclare. - E no entanto, há dois anos conseguiu convencê-lo a viver abertamente com ela. É verdade que Bellingham não se dava bem com a sua esposa, mas não devia ter humilhado a sua família publicamente.

- Não se pode esperar que uma mulher como Belle queira agir correctamente - respondeu Higgins. - Além disso, todos sentimos a força que manteve Bellingham ao lado dela durante tantos anos. Ouviram falar daquele episódio no Vauxhall, não ouviram? - acrescentou com um olhar lascivo.

Naquele momento chegou o empregado com os pedidos, o que fez com que a conversa parasse e Jack tivesse tempo para reflectir.

Embora soubesse que não devia dar credibilidade aos mexericos das pessoas, sentia uma desilusão irracional ao imaginar Belle tal como Farnsworth a descrevia. Mas antes que pudesse continuar a reflectir sobre isso, o seu olhar parou numa pessoa que se aproximava e levantou-se com um sorriso.

- Edmund! Como fico contente por te ver! Edmund, lorde Darnley, um dos melhores amigos de Jack de Eton e Oxford, estendeu-lhe a mão.

- Jack! Graças a Deus; é um prazer ter-te em casa.

- Ah, Darnley! Que encontro tão magnífico perdeste esta manhã! - exclamou Montclare. - Depois de desarmar Armaldi, coisa nada fácil na verdade, Belle deitou o pobre Wexley ao chão em poucos segundos. Por falar nisso, onde estavas?

- Embora vocês não tenham nada melhor para fazer do que ver Wexley a cair no ridículo, algumas pessoas trabalham - Darnley sorriu e aceitou a cadeira que Aubrey lhe oferecia.

- Trabalho... ora! - Higgins fez um gesto desdenhoso com a mão. - Desde que lorde Riverton o nomeou seu ajudante no Gabinete, acha-se tão importante para o Governo como Wellington.

- A inveja dos indolentes e incompetentes - Edmund riu-se. Piscou um olho a Jack.

Não lhe liguem interveio Farnsworth. Vais contar-nos a história de lady Belle no Vauxhall? Os olhos de Higgins brilharam.

- Ah, sim! Nunca esquecerei, embora tenha sido já há quase quatro anos. Eu e um grupo de amigos fomos aos jardins e vimos Bellingham com Belle e uns amigos, todos bastante bêbados. Belle usava um vestido de uma malha muito fina com um decote tão baixo que quase deixava completamente a descoberto os seios. E de facto, Bellingham disse que preferia saboreá-la a ela, porque os morangos dos seus mamilos eram muito mais doces.

Naquele momento, todas as pessoas que estavam presentes no clube estavam em silêncio e com atenção às palavras de Higgins.

- Bellingham inclinou-se sobre Belle e, com homens e mulheres de toda a condição social a poucos metros de distância, começou a chupar-lhe os seios através do vestido.

Houve um coro de exclamações.

- Quando acabou - continuou Higgins, - o corpete do vestido estava completamente transparente, o que permitia a todos ver aqueles morangos deliciosos e descobrir quão dignos eram de ser chupados. Mas antes que conseguíssemos ver, Belle sugeriu um passeio. Eu tinha a certeza de que Bellingham queria levá-la por um dos caminhos mais escuros e acabar o que tinha começado, mas ele convidou o grupo a acompanhá-lo e nós, que não podíamos imaginar o que aconteceria depois, aceitámos.

Jack estava escandalizado pela ideia de um acto tão íntimo ser feito em público, à vista de homens e mulheres decentes, mas envergonhava-o admitir que se sentia tão atraído como enojado pela história. Um homem de honra afastar-se-ia dali e não quereria ouvir mais. Tentou convencer-se de que devia fazer precisamente isso... mas as suas pernas não pareciam obedecer ao seu cérebro.

- Bellingham dirigiu-se para um dos caminhos mais escuros - prosseguiu Higgins, - e anunciou que sentia necessidade de vomitar parte do vinho que tinha bebido. Quando acabou essa tarefa, em vez de esconder o seu estandarte, que, como podem imaginar, estava mais do que a meia haste, pediu a Belle que fosse com ele. Aconselhou-a a agarrar-se a algo firme, pôs a mão dela em redor do seu pénis e começou a andar... com os dedos dela a acariciá-lo a cada passo.

Higgins fez uma pausa para beber um gole e todo o seu público susteve a respiração. Jack quis levantar-se e sair, mas os seus membros inferiores continuaram a desafiá-lo.

- Quando chegámos à carruagem, Bellingham não era o único que estava com dificuldades para respirar. Assim que o lacaio abriu a porta, Bellingham lançou-a de costas sobre o assento e, connosco, incluído o lacaio, a olhar, levantou-lhe as saias até à cintura e afastou-lhe as pernas. Nunca esquecerei a visão daquelas coxas cremosas e os lábios cor-de-rosa num ninho de caracóis dourados. Bellingham tirou os seios dela para fora do vestido e penetrou-a. O lacaio, demasiado pasmado para conseguir mexer-se, não fechou a porta da carruagem e, por isso, nós vimos tudo. Os olhos frágeis e a boca aberta de Belle quando Bellingham a penetrava... os seus seios nus a saltar... Devo admitir que o lacaio não foi o único mirone que descarregou a sua arma naquela noite - Higgins exalou com força. - Foi a experiência mais erótica da minha vida.

No meio dos gemidos, suspiros e comentários dos cavalheiros reunidos, Jack ouviu Ansley murmurar:

- Não acredito.

Embora com o cinismo da idade, ele compreendesse o fundamental da história, e até todos os detalhes, provavelmente verdadeiros, simpatizou com a recusa do rapaz em aceitar que a bonita mulher que adorava conseguisse participar num episódio tão cru e tão carnal. Antes que Jack pudesse decidir se se sentia mais enojado com Higgins por contar a história ou consigo mesmo por a ouvir, entrou outro homem na sala.

- Ah... lorde Rupert! - exclamou Higgins, fazendo gestos ao recém-chegado. - Ele também foi testemunha do que acabo de descrever. De facto, milorde sentiu-se tão atraído pelo que viu e ouviu naquela noite que ficou louco pela rapariga, não é verdade, Wendell? Lorde Rupert não lhe prestou atenção e aproximou-se com calma. Higgins virou-se novamente para o grupo.

- Depois daquilo, Bellingham afastou-a durante algum tempo da cidade; alguns acham que foi porque receava que Rupert tentasse roubá-la. Embora, dadas as quantias que supostamente lhe ofereceu e ela rejeitou disse Higgins, dirigindo-se ao barão, - não pareça que ela queira ter nada a ver com ele.

- Se Bellingham ainda fosse vivo - disse Rupert, pousando o olhar gelado em Higgins, - não ousarias contar essa história, miserável lombriga. - Tu e todos os outros juraram guardar segredo.

O rosto de Higgins corou.

- Mas isso era só...

- Acho que, em honra da sua memória, devia encarregar-me de ti no lugar dele - interrompeu-o Rupert. Talvez fosse mais... saudável que saísses da cidade.

Higgins empalideceu sob o escrutínio do outro. Depois de um momento de hesitação, levantou-se e saiu da sala.

- Quanto à encantadora lady Belle - prosseguiu Rupert com tanta calma como se não tivesse acontecido nada, - tenho muitas esperanças de que acabará por me aceitar. Não se enganem... mais cedo ou mais tarde será minha.

- Mas ainda não é tua - comentou Ansley. - E todos temos o direito de tentar.

- Todos? - Rupert soltou uma gargalhada. - Eu não acredito que tu consigas ganhar sequer um beijo, jovem. Precisarias de um espadachim muito mais habilidoso do que alguma vez tu conseguirás ser.

- Atrevo-me a dizer que Carrington conseguiria fazê-lo - interveio Aubrey. Foi o melhor espadachim de todos nós desde Eton.

- É verdade - assentiu Montclare. - O que dizes, Jack? Vais tentar?

Jack sabia que devia pôr imediatamente fim à discussão. Afinal de contas, a história sórdida de Higgins devia tê-lo impulsionado a não querer ter nada a ver com uma mulher que se exibira mais do que uma prostituta do Seven Diais.

Mas não conseguia conciliar aquela visão ofensiva com o olhar intenso da mulher que desarmara o seu professor de esgrima, que derrubara o seu adversário seguinte e que saíra da sala ignorando as ofertas lançadas por uma galeria de suplicantes impacientes.

Lasciva. Fria. Uma mulher de bom coração. Qual daquelas descrições reflectia a verdadeira lady Belle?

- Claro que o fará. Não é? - perguntou Aubrey. Sem ter tomado uma decisão consciente, Jack ouviu-se responder:

- Acho que sim.

- Incrível! - exclamou Aubrey. - Aquele beijo está ganho.

Jack desatou a rir-se, mas, antes que pudesse responder, sentiu um arrepio na nuca que com frequência, durante os seus anos como soldado, fora um presságio de perigo. Virou-se e viu o olhar de lorde Rupert fixo nele.

Talvez ganhe um beijo - admitiu este depois de o observar. - Mas jamais conseguirá ir para a cama com Belle.

- Isso é uma ameaça? - quis saber Aubrey.

- Não, ou melhor, é um desafio - pensou Montclare.

- Claro que não, é uma aposta! - gritou outro homem.

- Sim - assentiram os outros.

E antes que Jack pudesse dizer alguma coisa, várias vozes pediram a um empregado que trouxesse o livro das apostas.

Embora Jack não tivesse nenhum interesse em nada que fosse para além de um encontro de esgrima, os outros homens, depois de o informarem que a sua participação era desnecessária, anotaram a aposta.

Feito isso, Rupert afastou-se depois de se despedir de Jack com uma inclinação de cabeça. Os outros começaram a dispersar. Jack declinou o convite de Aubrey para jogar whist e aceitou a oferta de Edmund de o levar aos seus aposentos.

Depois de percorrer várias ruas em silêncio na carruagem de Edmund, este virou-se para Jack.

- É verdade que vais desafiar lady Belle?

- É capaz de ser interessante. É muito hábil. Demasiado para uma mulher - Jack hesitou. - O que pensas dela?

- Achas que ela participou na história de Higgins ou pensas que a história é o exagero de um incidente inocente contado por um bêbado?

Jack encolheu os ombros.

- A narração foi um pouco... crua.

- Receio não saber a verdade. Lady Belle parece possuir demasiada... dignidade para participar numa situação dessas. Mas seja como for, duvido que isso tenha alguma coisa a ver com a sua destreza com a espada.

- Suponho que não.

- Se queres ter uma imagem dela melhor, podes ir esta noite ao Drury Lane. Lady Belle tem um camarote lá. Quando pensas desafiá-la?

- Aubrey comprometeu-me para amanhã. Tinham chegado ao Albany e Edmund puxou as rédeas.

- Nesse caso, só vou para o escritório depois desse encontro. Desejo-te muita sorte.

- Obrigado - Jack apertou a mão do seu amigo. Pela viagem e pela opinião.

Edmund assentiu.

- Drury Lane, parte superior direita. Esta noite tenho de trabalhar, se não acompanhar-te-ia. Em qualquer caso, espero que aquele canalha do Rupert não ganhe.

Afastou-se e Jack observou-o durante algum tempo e em seguida subiu as escadas. Tinha de arrumar as suas coisas no quarto, consultar o seu advogado, contratar um ajudante de câmara, comprar roupa nova e visitar o Regimento de Cavalaria.

E não queria chegar tarde ao teatro.

 

Belle, que questionava já se fora boa ideia deixar-se convencer por Mae para assistir ao teatro, pediu à sua companheira que fosse a primeira a sair da carruagem. Mae, embelezada com um vestido púrpura brilhante muito decotado e com a capa aberta para mostrar os seus famosos atributos, começou a abrir caminho entre a multidão. Por sorte, ela distraía alguns dos mirones e apreciava aquele tipo de cuidados tanto como Belle os desprezava. Mas se queria que a morte de Bellingham fosse uma libertação, não podia esconder-se atrás dos muros da sua casa em Mount Street nem era justo continuar a privar Mae das diversões de Londres de que tanto gostava.

Além disso, Kean interpretava naquela noite um dos seus melhores papéis e, agora que Belle não dependia de ninguém, podia fechar a porta do seu camarote e concentrar-se apenas no que acontecia no palco.

Fechou os ouvidos e a mente aos gritos e assobios que começaram assim que as pessoas reconheceram a sua carruagem e seguiu Mae para o interior do teatro. O seu aspecto de rainha e a sua dignidade fria, reforçadas pela presença de Watson, antigo segurança do bordel onde trabalhara Mae e agora guarda-costas e mordomo de Belle, serviam para evitar que os curiosos se aproximassem demasiado.

Pouco tempo depois, sentava-se ao lado de Mae, com Watson a guardar a porta que estava atrás delas. Mae olhava com avidez em seu redor, abanava o leque e cumprimentava com a cabeça e sorria às pessoas que as cumprimentavam.

Estava tão confortável naquele ambiente que Belle não conseguiu evitar sorrir. Não ia ser fácil ter uma vida mais recatada com Mae ao seu lado, cuja presença anunciava claramente às pessoas a profissão mais antiga do mundo. Embora a sua companheira tivesse conseguido conservar, surpreendentemente, um prazer infantil pelo mundo e uma natureza tão transparente como a água de um lago na Primavera, não se podia - negar que Mae Woods, uma filha de prostituta que seguira os passos da sua mãe aos doze anos, era incrivelmente vulgar.

Mesmo assim, aquela cortesã mais velha fora como uma mãe para Belle nos seus piores momentos e não conseguia imaginar-se sem ela ao seu lado. Para além disso, Mae não tinha outro sítio para onde ir.

Uma diminuição do ruído indicou que a peça ia começar, mas enquanto Belle virava o seu olhar para o palco, os seus olhos sentiram-se atraídos pelo brilho dos botões dourados de um casaco vermelho e olhou para o rosto bronzeado pelo sol do soldado de olhos escuros que a observara naquela manhã.

Também olhava para ela e com tanta intensidade, que sentiu um arrepio na pele e um aperto no estômago. Controlou um salto, surpreendida pela força daquele contacto sem palavras. E como se soubesse o efeito que lhe causava, o soldado sorriu, cumprimentando-a com uma inclinação de cabeça.

Belle, corada, desviou o olhar sem responder à saudação. Mae, sempre atenta, inclinou-se e sussurrou-lhe:

- Quem é aquele?

- Não faço ideia - Belle levou uma mão ao estômago para acalmar a dor que sentia e cravou o olhar no actor que entrava, naquele momento, no palco.

Com Kean numa excelente forma, com o elenco de apoio e uma peça estimulante, não devia ser difícil deixar-se absorver pelo mundo que os actores criavam. Mas descobriu com irritação que o oficial do casaco vermelho estava sentado na periferia da sua visão e não conseguia evitar olhar para ele pelo canto do olho enquanto seguia o que acontecia no palco.

Pior ainda, embora não olhasse para ele directamente para confirmar, sentia o olhar dele cravado nela, o que anulava ainda mais a sua concentração. Durante o intervalo, sentia-se irritada, nervosa e com vontade de se ir embora para casa.

Quando o público começou a levantar-se, virou-se para Watson.

- Lembra-te de que não recebo ninguém. Mae pôs-lhe uma mão no braço.

- Por favor, Belle. Lorde Mannington e Sidmouth acabam de nos cumprimentar. Não podemos deixá-los entrar? - e acrescentou em voz baixa: - Darlington está com uns cavalheiros no camarote em frente e não quero que me veja aqui sozinha.

Belle aceitou com um suspiro.

- Claro que podes receber os teus amigos.

- Obrigada - Mae sorriu.

Mas, enquanto Belle se resignava, sentia-se também mais calma. Tal como suspeitara, quando olhou discretamente para a direita, comprovou que o capitão já não estava no seu lugar.

Os dois cavalheiros amigos de Mae chegaram em seguida e Belle afastou-se para deixar que ocupassem as cadeiras contíguas à da sua amiga. Quando se instalava noutra perto da parte de trás, ouviu uma voz profunda e desconhecida que falava com Watson.

Sentiu-se novamente nervosa e adivinhou que quem falava era o seu capitão. Controlou com decisão o impulso de o observar melhor e manteve o olhar cravado no palco.

A resposta grave de Watson foi seguida de outra troca de palavras, depois da qual o guarda-costas a chamou:

- Lady Belle, deseja receber o capitão Carrington?

A jovem sentiu o impulso inexplicável de sair a correr e um forte desejo de dizer a Watson que o deixasse entrar. Mas respondeu:

- Não conheço nenhum capitão Carrington.

- Mas a mim conheces - interveio uma voz familiar. - Não me permites entrar, mon ange?

- Egremont! - exclamou Belle contente. Virou-se instintivamente ao ouvir a voz dele. - Pensava que continuavas no campo. Entra, por favor.

Quando Watson se encostou a um lado para deixar passar o conde, Belle viu o capitão moreno que estava atrás dele. Nos poucos segundos que demorou a fechar a porta, ficou com a impressão de que ele tinha os ombros largos, um rosto interessante e um olhar ainda mais intenso dada a pouca distância que os afastava naquele momento.

Sentindo um calafrio, dirigiu a sua atenção para o conde mais velho de cabelo cinzento, que se sentou ao seu lado.

- Quando voltaste?

- Esta manhã. Estás linda como sempre - levou a mão dela aos lábios e observou o seu rosto. Como estás? Só soube há duas semanas da morte de Richard. Gostava de ter estado aqui para te ajudar.

- Estou bastante bem, obrigada. E não havia muito para fazer, já que, é claro, eu não tinha de organizar o funeral - Belle respirou fundo. - Tendo em conta que já eras amigo dele antes de me conheceres, talvez me consideres desprezível, mas fico contente por aquilo ter acontecido no clube e não em Mount Street.

Egremont apertou-lhe os dedos.

- Isso não tem nada de desprezível, querida. Tendo em conta como estavam as coisas com a família dele, teria sido muito incómodo e desagradável para ti que tivesse morrido sob o teu tecto. E espero ter sido sempre um bom amigo dos dois.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

- Claro que sim. Não sei o que teria feito se não tivesse conseguido falar de literatura, arte e política contigo, se não me tivesses acompanhado às galerias e aos concertos que tão pouco interessavam a Bellingham. Se não me tivesse divertido contigo - sentiu um aperto no peito. - Tu trataste-me como uma dama desde que nos conhecemos. Não sabes o quanto isso significa para mim.

- Como poderia fazer outra coisa? Tu és a personificação da elegância e da gentileza, querida - fez uma pausa. - Vejo que não estás de luto.

Ela riu-se com amargura.

- Não. Desconfio que muita gente me censurará por não mostrar o devido respeito pela morte do meu protector, mas também me acusariam de ser desavergonhada se me atrevesse a estar de luto.

- Estarias de luto se pudesses fazer o que sentes? perguntou o homem.

- Não - respondeu Belle com franqueza. - A nossa relação, como tu certamente terás observado, era... estranha e com frequência desagradável - levantou o queixo, decidida a dizer a verdade embora isso a rebaixasse diante dos olhos dele. - Embora eu não lhe desejasse a morte, também não lamento estar livre.

Ele assentiu.

- O que vais fazer agora?

- Ainda não tenho a certeza. Tens recursos suficientes?

- Sim, obrigada.

- Ou seja, não queres...

- Não - adiantou-se ela. - Outra vez não. Nunca mais!

O conde acariciou a mão que ainda segurava e pigarreou. Algo na sua hesitação, na pressão dos seus dedos, fez Belle suspeitar que aquele homem, que fora o seu único amigo de todos os que rodeavam Bellingham, o único homem que não a tinha tratado como a prostituta de Bellingham, estava prestes a arruinar a amizade deles oferecendo-se para ser o seu protector.

- A minha esposa e eu temos um acordo há algum tempo - começou a dizer ele com suavidade. - Ela odeia Londres e prefere ficar na nossa propriedade do campo, a tratar da casa e das crianças. E permite-me fazer o que eu quiser desde que acabe por voltar para ela. Para um casamento por conveniência, não correu muito mal e, na maior parte destes anos, eu estive satisfeito... Até que te conheci.

- Por favor, não! suplicou ela, tentando soltar os dedos e receando as suas palavras.

O conde largou-a.

- Não pretendo irritar-te, querida. Não sou imune aos teus atributos apesar de ser mais velho e, se pensasse que podia persuadir-te para que fosses minha amante e fazer-te feliz, suplicar-te-ia que me fizesses essa honra. Mas sei o quanto odiavas a notoriedade a que Richard te expunha.

Sorriu com timidez.

- A minha esposa e eu entendemo-nos bem durante todos estes anos e, mesmo que tivesse motivos para um divórcio, e não os tenho, eu não lhe faria isso. E visto que não posso oferecer-te o que mais desejas... uma relação legítima, suplico-te só que me permitas continuar a ser teu amigo.

Ele entendia-a. Aquela afirmação ajudou-a a mitigar o seu desconforto ao descobrir que até Egremont, que sempre vira como um irmão mais velho, sentia também uma atracção carnal por ela.

Pelo menos ele não pensava tentar satisfazer aquele desejo passando por cima das preferências dela.

- Não tenho assim tantos amigos que esteja disposta a perder um e, sobretudo, um tão querido para mim - respondeu.

- Bem. Então, está combinado. Se puder ajudar-te de alguma maneira, dizes-me? Sem nenhuma obrigação, é claro.

- Fá-lo-ei. E obrigada.

- Então estou perdoado?

- De quê?

Pegou na mão dela novamente e beijou-a.

- Por não te adorar com um afecto meramente platónico. És tão maravilhosa que um homem não consegue evitar desejar-te, sabes? Bom, o que achas da peça?

Umas gargalhadas do grupo de Mae quase abafaram a sua pergunta. Fosse porque queria impressionar o seu antigo amante com a sua alegria ou porque a sentisse realmente, o comportamento de Mae parecia ainda mais escandaloso do que de costume. Rindo perante os elogios extravagantes de Sidmouth, permitiu que este lhe tirasse a luva e lhe beijasse o pulso, enquanto lorde Mannington, que lhe roubara o leque, passava as varinhas de marfim pelo peito dela e brincava com um mamilo. Dado o escandaloso das gargalhadas e a lascívia do gesto de Mannington, Belle tinha a certeza de que o seu camarote atrairia os olhares de todos os presentes no teatro.

Corou ao imaginar o que pensaria o capitão de rosto severo se estivesse a observá-la novamente, mas, naquele momento, os actores voltaram e Belle dirigiu a sua atenção para o palco.

Jack observou com desgosto, durante alguns instantes, as tolices do grupo sentado na parte dianteira do camarote de lady Belle, tentando captar uma olhadela do casal que estava sentado atrás deles. Como não teve sucesso, levantou-se e saiu do teatro.

De qualquer modo, era melhor que se retirasse para os seus aposentos, uma vez que no dia seguinte começaria cedo, embora o mais inteligente fosse abandonar aquele plano ridículo de desafiar lady Belle.

Quando lhe negaram a entrada no camarote dela, sentiu-se decepcionado, mas não surpreendido. Afinal de contas, era um desconhecido. No entanto, quando admitiram o outro homem que ela cumprimentou fervorosamente, ficou surpreendido e não foi agradável descobrir que sentira ciúmes.

Não se sentiu um pouco ciumento, mas furiosamente ciumento em relação a um homem que não conhecia por estar sentado ao lado de uma mulher que também não conhecia. Uma mulher que não podia nem devia possuir.

Bolas! Começava a parecer-se com Aubrey.

Excepto porque ele se conhecia bem e sabia que, ao contrário de Aubrey, quando queria alguma coisa, não se contentava em olhar de longe.

E aquilo não podia acontecer. Apesar da beleza do seu rosto e do seu corpo, lady Belle não era mais do que uma cortesã cara, talvez um pouco mais refinada em maneiras, mas com a mesma moral da amiga dela, cujos vestidos insinuantes e comportamento vulgar no camarote proclamavam às claras a sua profissão.

Só um idiota procuraria uma mulher assim e correria o risco de uma rameira como Belle, que aparentemente fizera demonstrações públicas de lascívia para excitar mirones, cravar ainda mais as suas garras na mente e nos sentidos dele.

Antes de entrar nos seus aposentos, decidiu que de manhã diria a Aubrey que mudara de ideias.

Todavia, depois de beber uma taça de brandy e de se deitar, não conseguia dormir e, quando se cansou de dar voltas, saiu da cama, amaldiçoou-se e começou a limpar a sua espada.

Assim que a peça acabou, Belle deixou Mae com os seus amigos, que a convidaram para assistir a uma festa depois do teatro, e dirigiu-se para as escadas com a esperança de atravessar o hall antes que o resto do público saísse.

Acabava de rejeitar a oferta de Egremont para a acompanhar a casa, quando uma jovem com um vestido elegante de noite correu para eles e parou bruscamente diante de Belle.

Esta parou a tempo de não chocar com ela e, estava prestes a virar-se, quando reparou que Egremont ficava tenso.

- Helena, o que fazes aqui sozinha? - perguntou.

- Queria olhar para ela olhos nos olhos quando falasse com ela - respondeu a rapariga, que lançou a Belle um olhar intenso de ódio. - E o que faz você com ela? perguntou, olhando agora com raiva para o conde. - O meu pai morreu apenas há um mês. Eu achava que era amigo dele.

Belle compreendeu que se tratava da filha de Bellingham e sentiu um aperto de angústia no estômago.

Egremont tomou a rapariga pelo braço.

Estás alterada. Não é de estranhar, depois de uma perda assim. Deixa-me levar-te a casa.

A jovem soltou-se de Egremont e olhou para Belle.

- Será que não há nenhum homem que não tentes seduzir?

- Helena, é muito pouco apropriado que estejas aqui sozinha - disse Egremont com suavidade. - Ou que fales com...

- Com a rameira do meu pai? - gritou a rapariga.

Pelo canto do olho, Belle viu que as pessoas começavam a chegar ao hall, pessoas que olhavam com a boca aberta para eles.

Sentiu náuseas. A sua mente retirou-se para uma fortaleza remota de onde conseguia ver o que acontecia em seu redor sem que o seu espírito fosse afectado pelas indignidades que pudessem dirigir ao seu corpo.

- Dada a minha nova situação, lorde Egremont disse a rapariga, - não é necessário que se preocupe com a minha reputação. Duvido que receba alguma oferta respeitável de casamento por muito impecável que seja a minha conduta.

- Desculpe - murmurou Belle, afastando-se.

- Não acabei de falar contigo! - a rapariga agarrou-a pelo pulso e aproximou-se mais dela.

Belle encolheu-se um pouco, na expectativa de ser agredida. Em vez disso, a menina Bellingham continuou a falar fervorosamente.

- Não te bastava arrancar o meu pai do seu lar e da sua família e envergonhar a minha mãe diante das suas amigas e de toda a sociedade? Não te bastava que mal tivéssemos o necessário para manter a casa, enquanto te enchia de vestidos e jóias? Tão grande é a tua avareza que tinhas de enganar o meu pai para que te deixasse o pão das nossas bocas e o tecto das nossas cabeças?

Belle compreendeu que a rapariga tinha conhecimento do testamento. Soltou-se com calma.

- Menina Bellingham, sei que a tristeza transtorna muito o espírito, mas está enganada.

- Em quê? - quis saber a rapariga. - Na extensão da tua avareza? No facto de tu...?

Aconselho-a a consultar os seus advogados - interrompeu-a Belle. - Lorde Egremont acompanhá-la-á a casa.

Afastou-se da jovem e Watson adiantou-se, ficando ao lado dela com um ar protector.

Belle saiu do teatro, ignorando os olhares acusadores das pessoas, e entrou na sua carruagem. Até a porta se fechar, deixando do lado de fora os murmúrios e os olhares ávidos, não conseguiu relaxar. Enjoada e com o coração a bater com força, deixou-se cair contra as almofadas.

Não culpava a menina Bellingham. De facto, a jovem mostrara grande coragem ao enfrentar publicamente a cortesã do seu pai, sabendo que aquele confronto seria o mexerico de toda a alta sociedade. Talvez esperasse que, ao publicitar os termos do testamento de Bellingham, fosse mais difícil a Belle seduzir um protector novo e quisesse destruir o futuro dela como achava que a avareza de Belle destruíra o seu.

Ou talvez estivesse com tanto ódio pela injustiça da sua situação que já não se importasse que falar com uma cortesã sujasse a sua reputação. E isso Belle conseguia compreender muito bem.

Embora tentasse esquecer aquela cena, não era fácil suprimir as emoções que reprimira enquanto estivera no teatro. Uma sensação familiar de angústia e humilhação ardia-lhe no estômago, aquecia-lhe o rosto e fazia com que os seus olhos se enchessem de lágrimas.

Lutou para controlar os seus sentimentos, que sem dúvida nenhuma se deviam ao inesperado ataque da menina Bellingham.

Estava a conseguir controlar a sua reacção quando a carruagem parou de repente.

 

Belle afastou a cortina para ver a causa da paragem e o ruído de gargalhadas e vozes chegou até aos seus ouvidos.

Da soleira de uma casa que reconheceu como sendo um dos bordéis mais exclusivos da cidade, no bairro dos teatros, saía uma luz forte. Dali saíam várias mulheres provocantemente vestidas que se dirigiam, acompanhadas por homens, para uma carruagem grande, cuja posição a meio da rua impedia que a carruagem de Belle avançasse. Outro homem estava de pé diante da porta a conversar com uma mulher de olhos vivos que Belle assumiu que devia ser a proprietária do bordel.

- Despacha-te, Fen - chamou-o um homem jovem.

- Não queremos que as nossas beldades se constipem.

O cavalheiro da porta agitou uma mão lânguida no ar.

- Instala as nossas meninas enquanto eu acabo as minhas negociações com a sua encantadora chefe.

- Serão cinquenta libras e nem um tostão a menos disse a mulher mais velha. - Levam as melhores raparigas ao princípio da noite.

- Isso é muito dinheiro, senhora respondeu o cavalheiro, tirando umas moedas do bolso. - Mas como protestar quando a companhia é tão encantadora? Vamos, doçura, não sejas tímida.

Tirou da sombra uma rapariga magra que a Belle não pareceu ter mais de doze anos. A menina encolheu-se diante da luz e tentou levantar uma mão para tapar a pele nua do seu decote.

- Por favor, não, senhor - protestou, quando o homem lhe afastou a mão e se inclinou para lhe beijar um mamilo claramente visível sob o tecido fino do vestido.

Belle viu-se imediatamente transportada para outra época e para outro lugar, onde outra menina tentava em vão agarrar-se aos últimos vestígios da sua inocência. Uma onda de calor invadiu-a e intensificou novamente as suas náuseas e por um momento achou que ia desmaiar. Uma necessidade inexorável de ar fresco, que lhe limpasse a cabeça de lembranças e o estômago, pô-la em movimento. Pouco depois estava diante da porta do bordel ao lado da proprietária sem se conseguir recordar de como chegara ali.

Mas estava muito segura do seu propósito.

- Eu também quero uma rapariga esta noite - disse à mulher. - Quero esta - apontou para a menina. - Duplicarei qualquer oferta que o cavalheiro faça.

O homem protestou.

Depois abriu muito os olhos e a sua indignação deu lugar a um sorriso.

- Lady Belle, que prazer! Ficaremos encantados de a convidar para se unir à nossa humilde festa.

- Infelizmente, isso não é possível, senhor. Watson!

- chamou o guarda-costas, que a seguira. - Escolta a rapariga para a minha carruagem.

- Sim, senhora.

O cavalheiro jovem abriu os lábios para protestar, mas, depois de uma olhadela para o tamanho de Watson, pensou melhor e inclinou a cabeça, embora o seu sorriso agora fosse mais forçado.

- Não tenho outro remédio senão ceder aos seus desejos, lady Belle. Mas considero que me deve um favor, que espero que me pague um dia - passou o olhar pelo corpo dela, coberto com uma capa.

Belle fez uma inclinação de cabeça e olhou para a proprietária.

- O meu guarda-costas voltará para lhe pagar. Boa noite, senhora.

Encontrou a rapariga aninhada num canto da carruagem. O candeeiro da carruagem iluminava um rosto pequeno e uns olhos grandes e temerosos.

- O que... quer de mim, senhora? - perguntou.

- Como te chamas, menina?

- Jane Parsons, senhora.

- Não tenhas medo. Eu não quero... serviços pessoais da tua parte nem te levo para nenhuma reunião onde sejas obrigada a entreter alguém. Sabes quem sou?

- Oh, sim, senhora! Toda a gente conhece a bonita lady Belle - a rapariga observou-a com uma expressão de incerteza.

Belle sorriu secamente. O que ia fazer com aquela rapariga? Primeiro iria ocupar-se das suas necessidades, claro.

-Já jantaste, Jane?

A rapariga abriu muito os olhos.

- Não, senhora. A senhora Jarvis não nos dá de comer antes do amanhecer. E só se... agradarmos aos clientes.

A raiva que ardia no interior de Belle veio novamente à tona. Controlou um palavrão e amaldiçoou em silêncio todos os homens e mulheres que de algum modo contribuíam para aquele tipo de vida. Depois de fazer gestos ao cocheiro para que continuasse a marcha, olhou novamente para a rapariga.

- Primeiro tens de comer. Depois podes descansar, se quiseres. A minha amiga, Mae, foi a uma festa, portanto a minha casa estará sossegada.

Embora a incredulidade da rapariga fosse visível no seu rosto, não disse nada e o resto da viagem decorreu em silêncio.

Quando chegaram, Belle pediu comida e subiu com Jane para os seus aposentos. A rapariga cumpriu as indicações de Belle para que se lavasse, se sentasse perto da lareira e se envolvesse num xaile grosso de lã que Belle lhe deu. O seu rosto impassível não mostrou nenhuma emoção até que Watson entrou com uma bandeja cheia de carne, queijos e fruta.

Jane soltou um grito e perguntou a Belle se a comida era para ela. Quando a proprietária da casa confirmou, começou a comer com fervor.

A rapariga olhava de vez em quando para Belle, como se receasse que mudasse de ideias a qualquer momento e lhe tirasse a bandeja.

Quando acabou de comer, o seu nervosismo tinha desaparecido.

- Obrigada, lady Belle - disse com os olhos brilhantes de gratidão. - Não me lembro quando foi a última vez que comi tão bem.

Tirou o xaile e devolveu-lho.

- Obrigada por deixar que me tapasse, mas agora já estou preparada para o que quiser de mim - respirou fundo e endireitou os ombros.

A coragem do seu gesto tocou o coração de Belle.

- Não tenho mais tarefas para ti - respondeu.

A rapariga olhou para ela fixamente durante um longo momento.

- Não há nenhum cavalheiro à espera para se... divertir comigo ou com as duas?

Belle não conseguiu reprimir uma expressão de desgosto.

-É claro que não!

Antes que pudesse adivinhar as intenções da rapariga, Jane começou a chorar e ajoelhou-se aos seus pés.

Belle levantou-a do chão.

- Vamos, querida. Senta-te e acalma-te.

Quando conseguiu acalmá-la, decidiu que nada no mundo a obrigaria a devolver a rapariga ao bordel. Nem naquela noite nem nunca.

- Peço desculpa por ter chorado, senhora, mas é que há muito tempo que ninguém me travava como uma rapariga honrada.

- Como foste parar à casa da senhora Jarvis? - perguntou Belle.

- Eu não queria fazer nada tão vergonhoso, juro. No Outono passado chegou um forasteiro à nossa aldeia, num dia de mercado, e disse que um comerciante de Londres procurava raparigas dispostas a trabalhar na cidade. Eu tenho jeito para a costura e sei fazer bonitos penteados e coisas assim. Na aldeia não havia trabalho, portanto vim com mais duas raparigas. O senhor Harris pagou-nos os bilhetes e enviou-nos na primeira carruagem que havia para a cidade.

E pelo caminho perdeste-te das outras? perguntou Belle, que sabia bem o destino que podia ter uma rapariga sozinha.

Jane abanou a cabeça.

- Não, senhora. O senhor Harris vigiou-nos bem durante todo o caminho até Londres. Aqui entregou-nos a uma senhora que nos ofereceu chá e nos perguntou que trabalho queríamos. Então senti muito sono de repente, mas pensei que fosse pelo cansaço da viagem.

Embora Belle soubesse o que acontecera a seguir, perguntou com gentileza:

- E depois? Jane tremeu.

- Acordei num quarto estranho e, antes que pudesse saber onde estava, chegou a senhora Jarvis e disse-me que me trataria bem, porque havia homens que pagavam muito bem por raparigas tão jovens como eu. Fiquei horrorizada e disse-lhe que nunca faria algo do género. Supliquei-lhe que me deixasse trabalhar noutro lado, mesmo que fosse a esfregar o chão, mas ela abanou a cabeça e chamou o seu criado Waldo, que é um homem muito mau. Ela disse-me que, se não fizesse o que me dizia, Waldo teria de... me convencer. Disse que normalmente não o deixava abusar das suas raparigas porque gostava das jovens e ele era bastante violento. Um arrepio percorreu o corpo de Jane.

- E ele olhava-me de uma maneira, lady Belle! Pensei que não podia haver nada pior do que Waldo E... - baixou o tom de voz e num sussurro acrescentou: fiz o que me diziam.

- Oh, Jane! - murmurou Belle, com o coração dorido. - As outras raparigas sofreram o mesmo destino?

- Não sei, senhora. Não estão em casa da senhora Jarvis, portanto, talvez nem todas as raparigas que trazem para Londres vão para lá.

- Alguém devia investigar isso. É preciso castigar quem faz isso.

Jane abanou a cabeça hesitante.

- A senhora Jarvis disse que, se fosse para a justiça, perderia tempo. Eu vim para Londres porque quis e escolhi ficar na casa dela.

- Porque te ameaçaram! Não acredito que uma coisa dessas seja legal. Queres voltar para a casa da senhora Jarvis?

Jane encolheu os ombros.

- E que casa ou loja respeitáveis me contratariam agora embora eu tenha jeito para a costura?

Belle sorriu.

- Não posso dizer que a minha casa seja "respeitável", mas o trabalho é honrado. Queres trabalhar para mim? Tenho muitos vestidos que gostaria de alterar e eu não sou capaz. Se tu tiveres talento para isso, preciso dos teus serviços.

- Seria uma honra, senhora! exclamou Jane. A sua alegria evaporou-se um segundo depois. - Mas a senhora Jarvis não me deixará. Eu atraio negócio.

Belle arqueou o sobrolho.

- Não te pode obrigar a ficar a menos que queira enfrentar a justiça. Estamos em Inglaterra e aqui não podem reter ninguém contra a sua vontade, nem a mulheres como nós.

- E você acha que... acha que posso ficar?

- Jane Parsons, tu queres trabalhar para mim?

- Oh, sim, senhora!

- Pois considera-te contratada. No entanto, como é provável que a senhora Jarvis não goste da tua decisão de mudar de profissão, deixa-me informá-la, enviando-lhe uma mensagem.

Jane empalideceu.

- De certeza que vai ficar muito zangada.

- Não te preocupes com isso. Vamos comprar-te roupa apropriada e instalar-te aqui.

Mas Jane hesitou mais uma vez.

- Talvez as outras pessoas da casa não gostem de viver com uma rapariga como eu.

Belle desatou a rir-se.

- É improvável que alguém que serve em casa de lady Belle se atreva a julgar-te... nem eu o permitiria. Anda comigo. De manhã poderás começar com aqueles vestidos.

- E se a senhora Jarvis manda buscar-me? - Belle sentiu o medo da rapariga relativamente a Waldo.

- Garanto-te que Watson é perfeitamente capaz de lutar com qualquer pessoa. Uma vez foi campeão de luta de Inglaterra.

Jane ajoelhou-se novamente aos seus pés.

- Oh, senhora, ficar-lhe-ei para sempre agradecida. E verá que não lhe menti sobre o meu jeito com a agulha. Só tem de me mostrar do que gosta numa revista ou numa montra e eu consigo fazer igual.

- Vejo que vamos entender-nos bem - respondeu Belle, sorrindo.

Deixou a rapariga nas mãos da governanta e voltou para o seu quarto para escrever uma carta para informar a senhora Jarvis do abandono da empregada. Quando terminou de escrever, a sua satisfação por libertar Jane tinha acalmado bastante.

Embora soubesse que fizera tudo o que podia, surpreendeu-se a passear pelos seus aposentos, sem que o copo de vinho que tomara enquanto escrevia o bilhete conseguisse acalmar a agitação que sentia desde que fora abordada pela menina Bellingham no teatro.

Nos seus pensamentos imperava o desejo de castigar o mundo pelos ultrajes que permitia que se cometessem... e especialmente os vilãos que enriqueciam à custa dos inocentes.

Passou algum tempo a andar de um lado para o outro até se sentir bastante cansada para procurar a cama. Ainda bem que no dia seguinte tinha outra aula de esgrima.

 

Aubrey devia desconfiar que Jack podia mudar de ideias relativamente a desafiar Belle, já que Jack acabava de se levantar quando o seu amigo batia à porta dos seus aposentos.

- Serve-te de uma cerveja - disse Jack, reprimindo um sorriso.

- Muito obrigado Aubrey sentou-se. Queria chegar cedo e certificar-me de que estás preparado.

- Ou certificares-te de que não desisto?

Isso não me preocupa - respondeu Aubrey, enquanto pegava no copo. - Deste a tua palavra. Só quero acompanhar-te até lá, já que sou uma espécie de padrinho.

- És mais do que isso - acrescentou Jack com secura. - Foste tu quem começou tudo.

- Podias ter recusado. Mas que homem conseguiria resistir à possibilidade de ganhar um beijo de Belle, sobretudo quando tem tantas probabilidades de conseguir?

Jack queria protestar, porém a sinceridade fê-lo ficar em silêncio. Seria gratificante ter sucesso onde os outros tinham fracassado, mas sabia que, no fundo, o que mais o atraía era saborear aquela mulher. Passara quase toda a noite acordado, a imaginar que a tomava nos seus braços e a beijava. Em vez de responder, bebeu um gole de cerveja.

Tenho uma carruagem à nossa espera - disse Aubrey. - Dada a tua reputação como espadachim, a galeria estará a abarrotar. Temos de ir imediatamente para arranjar um bom lugar sentado.

- Prefiro estar numa lateral, onde possa observar a aula discretamente.

- Para procurar os pontos fracos dela assentiu Aubrey. - Embora, e não sendo um espadachim à tua altura, ainda não tenha visto nenhum. Não queres desperdiçar nenhuma vantagem que te permita ganhar a aposta e talvez persuadi-la de que seria agradável ter contigo uma maior intimidade, não é?

Jack desatou a rir-se.

- Há poucas probabilidades de isso acontecer. Não posso pagar o preço dela e duvido que os meus dotes amorosos sejam suficientes para impressionar uma mulher com a grande experiência de Belle.

- Aquelas mulheres francesas e espanholas não te ensinaram nada?

Jack abanou a cabeça.

- Já estás outra vez com as tuas fantasias. Os soldados passam muito mais tempo a andar entre a lama e a chuva e a dormir em antros infestados de pulgas do que com beldades estrangeiras.

Aubrey estendeu-lhe o casaco do uniforme.

- Por favor, não arruines as minhas ilusões infantis. O teu casaco. Se conseguires conquistar Belle, promete-me que não te esquecerás da minha ajuda em tudo isto.

- É improvável que consiga - respondeu Jack com brusquidão, enquanto apertava o casaco e pegava na espada.

Contudo, enquanto entravam para a carruagem, não conseguiu evitar pensar em conseguir mais do que um simples beijo de Belle.

O seu lado racional dizia-lhe que ela não era mais do que uma mulher lasciva que ia para a cama com qualquer um por dinheiro. Mas que mulher! Não mantivera vivo o desejo de Bellingham durante anos? Todo o seu corpo ficou tenso ao pensar nos jogos eróticos que devia conhecer... Não se permitiu imaginar aquelas mãos brancas e aqueles lábios cor-de-rosa no corpo dele.

Controlou bruscamente os seus pensamentos. Se permitisse que a luxúria dominasse a sua mente, não teria nenhuma possibilidade de ganhar nem sequer um beijo por muito bom espadachim que fosse.

Edmund Darnley aproximou-se deles.

- Vim dar-te o meu apoio.

- Anda connosco - disse Aubrey. - Mas se Jack conseguir conquistar Belle, já prometeu apresentar-me primeiro a mim.

- Conquistar Belle? - repetiu Edmund.

- Aubrey está a tirar conclusões precipitadas, como sempre respondeu Jack. - Não haverá mais do que um beijo, que, na verdade, ainda tenho de ganhar.

- Vamos ocupar os nossos lugares para que tenhas mais tempo para definires a estratégia para conseguires ganhar - disse Aubrey.

Os três amigos saíram da carruagem e pouco depois entravam na sala de esgrima, já repleta. Jack cumprimentou Montclare e outros cavalheiros com uma inclinação de cabeça e Rupert lançou-lhe um olhar glaciar, enquanto passava para ocupar um lugar ao longo da parede esquerda.

Pouco tempo depois entrou o professor e a sua aluna. Belle, vestida novamente com calças e camisa e com o cabelo loiro apanhado, ignorou a assembleia e concentrou-se em inspeccionar a sua espada e em testar o seu equilíbrio.

Jack respirou fundo e não soube se devia sentir-se aliviado ou ofendido por, daquela vez, não ter atraído o olhar enganador dela. Embora ela não se dignasse a olhar para ele, ele estava muito consciente de todos os seus movimentos.

Recordou-se de que não devia deixar-se distrair pelo rabo dela, realçado pelas calças, nem pelas curvas que se manifestavam debaixo da camisa quando levantava o braço, se não quisesse perder de um modo tão ignominioso como Wexley.

Porque ele queria aquele beijo.

Aquele beijo e mais.

Assustado com aquela observação insidiosa que surgiu, de repente, na sua mente, Jack virou a sua atenção para o professor de esgrima.

Depois de se cumprimentarem, o professor e a aluna ocuparam os seus postos. Durante a aula, Belle usou da mesma rapidez de movimentos que Jack reparara no seu combate anterior com Armaldi.

Dirigia a espada como se fosse uma extensão do seu braço, com as mãos leves e rápidas, uma postura equilibrada e uma concentração intensa nos contra-ataques rápidos com os quais respondia aos ataques de Armaldi. Embora daquela vez não o tivesse desarmado, o encontro acabou sem que nenhum conseguisse uma vantagem decisiva.

- Buono, bella mia - disse Armaldi. - Nova competição?

- Acho que não - respondeu Belle. - Hoje estou um pouco cansada.

Jack, que se dirigia para o meio da sala, parou de repente, surpreendido pela recusa. Reprimiu uma sensação ridícula de desilusão e teve de apertar os lábios para não acrescentar a sua objecção aos gritos de protesto dos outros.

- Mas tem de aceitar o desafio! - gritou Ansley, que se ajoelhou diante dela. - Deu a sua palavra.

- Além disso, hoje é uma pessoa especial que quer desafiá-la - interveio Aubrey. - Um soldado e veterano de Waterloo. Não irá negar a este heróico defensor de Inglaterra a possibilidade de conseguir uma vitória muito mais doce do que as que conseguiu nos selvagens campos de batalha inimigos.

O olhar de Belle varreu a sala e encontrou Jack. Os seus intensos olhos azuis pousaram nele durante alguns instantes e um calafrio percorreu a pele dele.

- Você - disse ela finalmente. Jack inclinou a cabeça.

- Capitão Jack Carrington, senhora, ao seu serviço. E talvez mais tarde, se lady Belle for suficientemente ágil, à sua mercê.

Ela franziu os lábios para sorrir, mas, naquele momento, um outro homem aproximou-se para lançar o seu próprio desafio.

Jack viu-o aproximar-se e sentiu a forte convicção de que a oportunidade de lutar com ela, de a vencer e de a beijar, lhe pertencia. Teve de reprimir um desejo primitivo de tirar a sua espada e repelir com ela qualquer outro opositor.

O homem olhou para ele com o sobrolho franzido.

- Não é justo para Belle que um militar, um profissional, a desafie - protestou a Armaldi.

- Queres dizer que é impossível que ela possa ganhar, Waterfield? - replicou Aubrey. - Isso é presunçoso e pouco cavalheiresco!

Enquanto Waterfield dizia que não pretendera menosprezar a destreza de Belle, lorde Rupert levantou a voz.

- O senhor Waterfield tem razão, capitão. Você lutou recentemente nos campos de batalha. Desafiar lady Belle, que só luta por desporto, seria uma vantagem injusta. Devo pedir-lhe que se retire.

- Você só deseja que ele se retire porque teme que possa ganhar - interveio Aubrey com ardor.

Rupert não respondeu, mas cravou o olhar em Jack.

- Lady Belle, embora lute com destreza, continua a ser uma mulher. Embora tenha alcançado um alto nível de eficiência, não é possível que alguém do seu sexo tenha a força e a habilidade necessárias para vencer um militar experiente.

Belle estivera calada, com o olhar cravado ao longe, alheia à discussão, mas interveio naquele momento.

- Tão pobre adversário me considera, milorde? Nesse caso, é hora de lutar com alguém de habilidade indiscutível. Capitão, aceito o seu desafio.

Muitos cavalheiros começaram a gritar, uns protestando por Belle lutar com um experiente espadachim, outros pedindo que o duelo começasse. Jack aproximou-se de Aubrey, que lhe tirou o casaco e lhe estendeu a espada.

Lorde Rupert seguiu-o, protestando, até que Armaldi levantou os braços e bateu no chão com os pés para ordenar silêncio.

- A menina decidiu - declarou. - Que assim seja. Lorde Rupert olhou para Armaldi de cima a baixo,

mas acabou por se sentar, contrariado.

- Depois fazemos as contas - murmurou para Jack. Este, excitado e em tensão pela possibilidade da vitória, não respondeu.

Cumprimentou Belle com uma inclinação de cabeça.

Eu também estou desejoso de testar a sua destreza.

Lady Belle lançou-lhe um olhar gelado que o surpreendeu.

- Com certeza que sim. En garde, capitão.

Belle começou a andar lentamente à volta de Jack, procurando a oportunidade de atacar. Vira-o assim que entrara, observando-a, alterando a sua concentração na aula tal como alterara na noite anterior, no teatro.

Estava contente por ele a ter desafiado. No seu actual estado de espírito, agradecia aquela oportunidade de atacar com toda a fúria que a invadia, uma fúria que reprimia sempre que lutava com Armaldi.

Com que então queria "testar a sua destreza"? Ela sabia muito bem que parte da sua destreza desejava testar.

Mostrar-lhe-ia o fio da sua espada, obrigá-lo-ia a recuar... Ou melhor ainda, fingiria ser um amateur e derrotá-lo-ia de uma forma humilhante. Assim ele deixá-la-ia em paz e ela conseguiria esquecer o efeito perturbador que ele lhe provocava.

No entanto, embora tentasse aproveitar o desdém que ele sentia pela sua habilidade, tentando ataques fracos e trôpegos para o impulsionar a lançar um contra-ataque que lhe permitisse fazê-lo perder o equilíbrio, ele recusou-se a seguir essa estratégia.

Belle descartou aquela táctica e voltou a lutar normalmente. E poucos minutos depois começava a perguntar-se se realmente queria um desafio tão difícil.

Diferente dos outros adversários até à data, Carrington era um espadachim que conhecia aquela arte e controlava a espada com mais rigor do que, provavelmente, o próprio Armaldi.

Para ter sobrevivido a Waterloo, devia possuir muita habilidade para além de sorte, mas ela não esperava que um capitão da cavalaria, habituado à luta brutal com um sabre, dominasse daquele modo os movimentos subtis e a estratégia ardilosa.

Num determinado momento, ele fez uma pausa e Belle aproveitou para se lançar a fundo num contra-ataque. As suas costas enredaram-se, o que obrigou Armaldi a intervir e a desenredá-los.

Belle passou imediatamente à ofensiva.

Embora o capitão recuasse, não voltou a dar-lhe outra oportunidade de atacar daquela maneira. Parecia contentar-se a rebater os seus movimentos e algum ataque ocasional, mas não cometia erros que lhe permitissem lançar um golpe decisivo.

Continuavam a lutar. As mãos de Belle suavam e a sua respiração era ofegante. Cansada já da aula, sabia que começava a ficar debilitada. Teria de redobrar os seus esforços para que o capitão não se aproveitasse do seu cansaço.

Afastou-se para respirar fundo e olhou por breves instantes para a galeria. Os homens estavam de pé ao lado das suas cadeiras, a agitar os punhos e a gritar, com os olhos enraivecidos e os rostos distorcidos por uma excitação muito semelhante à luxúria.

O capitão parou também, olhando para ela com os seus ousados olhos escuros e com um leve sorriso no rosto. Além do suor da sua cara, não parecia nada cansado.

Belle sentiu a humilhante desconfiança de que o capitão não lutava com determinação para ganhar. Não estava determinado, simplesmente brincava com ela, rebatendo os seus movimentos para não se deixar espetar, mas sem se empenhar em ganhar.

Mais uma vez, um homem lutava com ela enquanto outros homens olhavam e aplaudiam.

A frustração, a fadiga e a raiva formaram um sentimento de fúria que, intensificado por lembranças de vergonha e de dor, fugiu do seu controlo. Fechou os olhos e sentiu a mente e o corpo leves e o peito cheio de um desejo assassino de vingança.

Do espadachim que agora a desafiava. De todos eles.

Cerrou os dentes e atacou.

Quando lady Belle parou para descansar, Jack avaliou o seu adversário. Era incrivelmente boa e custava-lhe proteger-se sem recorrer a golpes assassinos que podiam feri-la apesar da cortiça protectora posta na ponta das espadas.

Mas como ela não tinha a experiência dos anos que ele tinha na esgrima, cansava-se. Umas voltas mais pela sala e os seus braços debilitar-se-iam e os seus passos tornar-se-iam hesitantes. Então esperaria pelo melhor momento para a desarmar... e ganhar o beijo.

Todo o seu corpo se excitou ao pensar naquilo e sorriu levemente. E então ela lançou-se sobre ele de repente.

Jack levantou a espada para se proteger e viu-se obrigado a concentrar toda a sua energia para se defender, já que ela continuava a atacá-lo com intensidade.

Quando o suor começou a cair da sua cara e a ensopar as suas luvas, perguntou-se o que tinha acontecido. O confronto deixara de ser uma prova de destreza. Jack tivera combates suficientes para reconhecer, na ferocidade do ataque de lady Belle, o desejo de sangue de um adversário empenhado não numa simples vitória, mas em matar.

Parou um golpe furioso. A espada dela trazia tanto ímpeto que caiu para trás e espetou-se no chão. Belle arrancou-a com um gemido, deixando para trás a cortiça protectora.

Lançou-se novamente sobre ele e tentou espetá-lo. Jack sabia que devia acabar com aquilo, porém, antes que pudesse decidir-se a fazê-lo, olhou para ela nos olhos.

E o olhar de ódio que encontrou deixou-o paralisado. Incapaz de imaginar o que podia ter feito para inspirar uma expressão tão terrível, permaneceu um instante parado.

No momento seguinte viu os reflexos da espada e sentiu um golpe no peito seguido de uma dor aguda. Quando desceu o olhar, divertido, viu que começava a deitar sangue por baixo do seu ombro esquerdo.

Olhou durante alguns instantes para o líquido que emanava enquanto as vozes da galeria diminuíam até se transformarem num rumor. Apenas reparou que a espada caía dos seus dedos inertes.

Quando a sala escureceu, compreendeu que afinal não ia ganhar o beijo.

 

Santo Deus, tinha matado o soldado!

Belle, que esquecera a sua fúria ao ver o sangue que corria pelo peito de Carrington, largou a espada e tentou parar a sua queda. Ele revirou os olhos e caiu para trás, arrastando-a para o chão.

Ela saiu de debaixo dele e abriu-lhe a camisa.

- Chamem um médico! - gritou, consciente apenas do caos, dos gritos, das cadeiras viradas.

Com as mãos trémulas, arrancou os punhos da sua camisa e apertou-os sobre o buraco que fizera no peito de Jack Carrington. Combateu as náuseas que a fadiga e o cheiro do sangue lhe provocavam e apoiou todo o seu peso sobre ele.

O suor que caía da sua testa tapou-lhe a visão do rosto de Carrington, agora privado de toda a cor.

- Força, capitão! - pediu-lhe. - Não sobreviveu a Waterloo para morrer agora numa sala de esgrima - uma mão pousou na sua e ela levantou a cabeça assustada.

- Edmund Darnley, lady Belle, amigo de Jack. Permite-me que eu segure? Tenho mais peso do que lady Belle para apertar.

- Mas eu tenho de fazer alguma coisa! - gritou ela, que precisava de se distrair do horror que acabava de acontecer.

Os lábios de Darnley curvaram-se num sorriso sombrio.

- Eu diria que já fez o suficiente. Mas se quiser procurar alguma coisa para lhe pôr debaixo da cabeça, acho que isso o ajudaria a respirar melhor.

Contrariada, Belle cedeu-lhe o seu lugar e foi a correr buscar uma das almofadas das cadeiras. Deixou-se cair de joelhos ao lado de Darnley e pôs a almofada sob a cabeça do capitão.

- Lamento - sussurrou a Darnley. O amigo do capitão assentiu.

Outro cavalheiro, loiro, vestido de uma forma esquisita e um pouco desajeitado, que Belle reconhecia por assistir às suas aulas, ajoelhou-se ao lado deles.

- Aubrey Ludlowe, menina. Como vai, Edmund?

Jack é forte como um touro. O médico já vem a caminho? - apesar da calma das suas palavras, a expressão de Darnley era sombria e o seu olhar não se separava da figura imóvel e pálida cujo peito subia e descia quase imperceptivelmente sob a sua mão.

- Armaldi mandou o seu ajudante ir chamá-lo disse Ludlowe. - Que me condenem se quero ver o meu melhor amigo morrer à minha frente quando acaba de voltar da guerra - Ludlowe respirou com força e abriu muito os olhos. - Além disso, se ele não se recuperar, lady Belle pode ver-se obrigada a fugir do continente.

- A menos que conte com a protecção de alguém muito bem relacionado Darnley franziu o sobrolho. Rupert ainda está cá?

- Ainda ninguém se foi embora.

- Se quer ajudar, senhora - disse Darnley, - acompanhe lorde Rupert até lá fora. Receio que ele seja capaz de matar Jack sem pensar duas vezes, se achar que isso lhe dá alguma vantagem.

A verdade daquelas palavras fez Belle estremecer, mas o insistente barão era a última pessoa com quem desejava ser amável naquele momento.

- Deviam ir-se todos embora - replicou. - O capitão precisa de ar e o médico precisará de espaço para trabalhar. Armaldi! - chamou. - Tira toda a gente da sala, por favor!

O professor italiano assentiu.

- Súbito, Belle. Signore! bateu palmas para chamar a atenção e foi empurrando a multidão para a porta. - O senhor também, lorde Rupert - acrescentou quando viu que o cavalheiro não se mexia.

- Vou esperar pela menina, que devia retirar-se daqui o mais depressa possível - acrescentou Rupert.

Não irei enquanto não tiverem tratado do capitão

- respondeu Belle.

- Ah, vem aí o médico! - gritou Armaldi.

O médico traz um colega com ele, um médico militar, o major Thompson - informou o ajudante do professor de esgrima. - Trouxe-os os dois.

- Oh, sim, doutor Thompson, será um prazer contar com a sua experiência - disse Ludlowe com um tom de alívio.

O médico abriu caminho por entre vários homens.

- Todos lá para fora! - ordenou. Pousou a sua mala no chão, ajoelhou-se ao lado do capitão, enquanto Darnley lhe descrevia a ferida e Armaldi empurrava para fora da sala os últimos espectadores. Até Rupert se dignou a dirigir-se para a porta após lançar um olhar de desdém ao médico.

- Esperarei lá fora para a escoltar até sua casa, lady Belle.

- Talvez demore muito tempo - avisou ela.

- Esperarei de qualquer modo - concluiu ele.

Saiu finalmente da sala e Belle dedicou a sua atenção ao capitão, cuja ferida o médico começara a examinar.

- Porque não vai mudar de roupa, menina? - sugeriu Darnley. - De certeza que quererá... refrescar-se.

Belle seguiu o olhar de Darnley e reparou pela primeira vez no sangue que sujava as suas calças e camisa e ensopava as mangas.

O sangue de Carrington. Sangue que continuava a sair à volta dos dedos do médico, de uma ferida que ela causara por descuido. Uma ferida que podia custar a vida a Carrington.

Apesar da náusea repentina que a fazia desfalecer, abanou a cabeça.

- Não posso ir enquanto não soubermos... - não se atreveu a acabar a frase.

- Fique, se quiser, senhora - disse o médico, - mas nada de desmaios, por favor. Há muito sangue, mas o pulso do capitão está firme. Se tivesse uma artéria cortada, já teria morrido. Dependerá muito de saber se o golpe afectou o pulmão ou não.

O médico continuou a examiná-lo e Belle permaneceu com a roupa suja de sangue e os olhos fixos na cara pálida do capitão, tentando rezar pela sua recuperação e reprimir o redemoinho de pensamentos que a invadia.

Quase matara um homem. O que a levara a atacá-lo daquele modo? A cortiça protectora saltara da espada e ela não se dera conta devido à fúria que a invadia.

Sentiu frio, ao recordar a ferocidade daquela fúria.

Durante anos, fora vítima dos actos insensíveis de outra pessoa e assustava-a descobrir em si mesma um desprezo semelhante para com os outros.

Não queria sequer considerar a possibilidade de que Carrington pudesse morrer. O capitão tinha de recuperar. Era necessário que recuperasse.

Quando o médico acabou de o examinar, deitou uns pós na ferida, tirou um cilindro de tecido de algodão da sua mala e começou a tapar a ferida.

Embora soubesse que o médico não podia prometer nada, Belle não conseguiu evitar perguntar-lhe:

- Irá recuperar?

- Embora os pulmões pareçam estar intactos, terá dificuldades para respirar. Fora isso, parece que a espada não tocou em nenhum órgão vital. Claro que, corre sempre o risco de infecções, mas sobreviverá.

O capitão não ia morrer... ainda. Belle quase caiu ao chão de alívio.

- Graças a Deus - murmurou.

- Liguei o ombro firmemente para o manter imóvel. Suponho que a casa dele seja perto daqui. Têm de o transportar com cuidado. Não se preocupe se demorar algum tempo a recuperar os sentidos. Deixar-lhe-ei um pouco de láudano, mas não lhe ocorra dar-lhe nada até ter a certeza de que está consciente. Atenção à febre, se os pulmões tiverem sido afectados, talvez faça uma pleurisia.

Belle deve ter empalidecido, porque o médico deu-lhe uma palmadinha na mão.

Não se preocupe, querida. O seu marido parece um homem forte e, a julgar pelo aspecto da cicatriz do ombro, superou coisas piores. Mande um criado a Curzon Street para me ir buscar e voltarei para o ver esta tarde.

Belle abriu a boca para negar a relação, mas voltou a fechá-la. Não parecia haver motivo para corrigir o engano do médico e tornar aquele incidente ainda mais embaraçoso para o capitão.

- Muito obrigada, doutor.

Thompson levantou-se e abanou a cabeça com uma gargalhada.

- Ferido num duelo de esgrima! Qualquer pessoa pensaria que já teria sofrido o suficiente na Bélgica. Sem dúvida nenhuma, recuperará brevemente e meter-se-á em alguma outra aventura estúpida que a fará sofrer novamente. Vemo-nos novamente esta tarde, senhora.

Ludlowe, Darnley e Belle agradeceram-lhe e o médico afastou-se.

- Signore Armaldi, tem alguma coisa com a qual se possa improvisar uma maca? - perguntou Belle.

- Sim, bella mia. Vou buscar - o professor de esgrima saiu com o seu ajudante e Belle ficou sozinha com o ferido e os seus amigos.

- Para onde o levaremos? - perguntou. Darnley e Ludlowe olharam um para o outro.

- Receio que isso seja um problema, menina - respondeu Darnley. - Jack acaba de chegar a Inglaterra e está hospedado num local emprestado. A família dele ainda está na casa de campo e neste momento não tem ninguém para cuidar dele.

- Acho que o meu ajudante poderá ocupar-se dele interveio Ludlowe, - embora não tenha experiência com doentes.

- Eu não tenho nada melhor para oferecer - Darnley franziu o sobrolho. - A minha mãe ocupar-se-ia dele, mas também ainda não chegou a Londres. Acho melhor pedir ao médico que nos recomende uma enfermeira competente, mas...

Os dois homens olharam para ela. Belle sentiu o pânico misturado com a preocupação e os remorsos que invadiam o seu peito.

Embora estivesse mais do que disposta a pagar os serviços de uma enfermeira competente, seria uma irresponsabilidade deixar o capitão aos cuidados de uma estranha paga para isso. O melhor seria que a sua família orientasse os seus cuidados. No entanto, na ausência de parentes, os amigos do capitão pareciam esperar que ela se oferecesse para a tarefa.

- Eu... tenho experiência com doentes admitiu. No entanto tenho a certeza de que a família do capitão ficará muito preocupada ao saber do estado dele e ficará ainda mais desgostosa quando souber que esteve a ser tratado por alguém com a minha... reputação.

- Ficarão desgostosos se descobrirem que morreu por falta de cuidados disse Darnley sem rodeios.

Belle pensou desesperada, destroçada pela culpa e pela ansiedade, que aquilo não era justo. Agora que ela podia pelo menos começar a procurar alguma coisa que lhe permitisse descansar das torturas do passado e dar a si própria um pouco de paz, acontecia aquilo. Ela preferia colocar uma víbora em sua casa a abrigar o capitão, que tanto a perturbava, quando estava perto dela.

Naquele momento, no entanto, a habilidade dele para a perturbar estaria muito limitada. Além disso, ela não podia fugir à responsabilidade, tendo sido a causadora do ferimento, por isso devia fazer tudo o que pudesse para o ajudar na sua recuperação. Embora receasse o que devia dizer a seguir, sabia que não tinha alternativa.

- Levem-no para minha casa. Eu cuidarei do capitão até o médico considerar que está suficientemente recuperado para mudar para um alojamento mais... conveniente.

- Obrigado, senhora - agradeceu Darnley em voz baixa. - Sei quão difícil é esta imposição e, se houvesse qualquer outra alternativa viável, eu escolhê-la-ia com gosto. A senhora fará um grande favor ao capitão Carrington.

Duvido sinceramente que as mulheres da família dele estejam de acordo quando descobrirem - replicou Belle.

Para sua surpresa, Darnley sorriu.

- A mãe do capitão, lady Anne, é uma mulher razoável e justa que só sentirá admiração pela amável mulher que acolheu o seu filho.

Inclusive pela infame lady Belle? Esta abanou a cabeça.

- Esperemos que a permanência do capitão sob os meus cuidados seja suficientemente breve para que as pessoas não se apercebam.

Darnley não respondeu, mas Belle sabia, como deviam saber também os seus amigos, que aquela esperança era vã. A notícia de que lady Belle ferira um soldado num duelo de esgrima transformar-se-ia, antes do meio-dia, no mexerico do dia. A informação referente ao paradeiro actual do soldado não permaneceria secreta durante muito tempo.

Suspirou e pensou que o capitão Carrington teria de lidar mais tarde com aquele problema. Só restava esperar que a sua mãe tivesse a força de espírito que lorde Darnley proclamava e que o capitão não tivesse uma noiva aristocrata à espera dele. Enquanto fazia uma expressão de desagrado para os vestígios de sangue nas suas mãos, Belle limpou-as nas calças.

- Cavalheiros, com a vossa permissão, vou mudar de roupa. Digam aos empregados de Armaldi que preparem a minha carruagem. Volto em seguida para os ajudar a transportar o capitão Carrington. Obrigada mais uma vez pela vossa ajuda.

Darnley e Ludlowe fizeram-lhe uma reverência.

- Jack é um dos meus amigos mais antigos. Faria o que fosse preciso por ele - afirmou o primeiro.

Enquanto saía do quarto, Belle pensou se isso incluiria não perdoar alguém que o tivesse ferido.

Entrou no pequeno quarto que Armaldi lhe atribuíra como roupeiro, grata por um recado ter evitado que Mae a acompanhasse naquela manhã. Enquanto chamava uma criada para que a ajudasse, suspirou, ao pensar no que diria a sua companheira quando soubesse o que acontecera naquela manhã.

Minutos depois, convenientemente vestida e aparentemente recuperada, Belle regressava para ajudar Armaldi e os amigos do capitão a mudar cuidadosamente o corpo ainda inconsciente para a carruagem que esperava Belle. Uma vez sentada ao lado dele, ordenou ao cocheiro que os conduzisse para casa devagar.

Apesar de tentar não pensar nas possíveis consequências de ter o capitão sob o seu tecto, quando reparou na palidez da cara de Carrington, compreendeu que as náuseas que sentia se deviam em parte ao choque dos acontecimentos da manhã e ao cheiro a sangue que penetrava no seu nariz.

 

Quando acordou, ainda atordoado, com a sensação de que alguma coisa queimava o seu peito, Jack tentou encontrar palavras para repreender o soldado que fora tão desajeitado ao mexer nas brasas e que dessa forma queimara o seu oficial.

Quando se mexeu, sentiu uma dor tão aguda que percebeu imediatamente que não estava a sonhar. Os seus olhos abriram-se e as palavras transformaram-se num grito ininteligível.

- Finalmente acordado! - exclamou uma voz suave e serena. - Começava a recear que não voltasse a recuperar os sentidos.

Jack tentou esquecer a dor que descia do seu ombro e pousou o olhar numa vela que se destacava na escuridão do quarto. Viu uma cara de uma beleza tão perfeita e clássica que momentaneamente o distraiu da sua dor. Recuperou a memória. Lady Belle, a sua adversária, o florete sem a cortiça protectora...

Lady Belle a tentar matá-lo.

Gerando os dentes por causa da dor, disse para si que quase conseguira.

- Deve estar cheio de sede. Pelo menos o médico disse que teria sede quando recuperasse a consciência.

Estava com sede, sim. A sua língua parecia demasiado grossa para conseguir falar, portanto assentiu com a cabeça. Quando Belle lhe aproximou um copo dos lábios, ele inclinou-se para a frente e bebeu com avidez, ignorando os protestos do seu ombro. Antes que tivesse eliminado minimamente a sua sede, sentiu uma náusea e caiu sobre a almofada, fechando os olhos rapidamente.

Amaldiçoou a sua sorte. Tinha tão pouca força como um gato recém-nascido.

- O doutor Thompson disse-me que podia dar-lhe láudano para as dores assim que recuperasse a consciência... Está consciente?

Jack abriu os olhos o máximo que conseguiu para o provar a si mesmo e para a convencer a ela.

-Sim.

Ela tirou uma colher e uma garrafinha de cor castanha de uma bandeja que estava ao lado da cama.

- Quer? - perguntou.

- Não - respondeu ele, recordando os pesadelos produzidos pelo sono induzido por narcóticos que tivera depois de ser ferido na Corunha. - A dor é suportável. É pior ter a cabeça às voltas.

- Como quiser. O médico também disse que teria dificuldades para respirar, se a ferida tivesse afectado o pulmão.

- É difícil saber - respondeu ele com uma expressão de dor. - Mas consigo respirar.

Apesar de ser bastante difícil inalar ar suficiente para conseguir articular mais do que algumas palavras ao mesmo tempo.

- Deus seja louvado! - ela ia dizer mais alguma coisa, mas hesitou e ficou em silêncio.

Jack estava num estado lamentável, mas não estava tão mal ao ponto de não sentir uma faísca de resposta masculina quando ela lambeu os lábios carnudos com a ponta da língua.

- Lembra-se de... como foi ferido? - perguntou ela. Porque tentara matá-lo? Uma visão da sua cara adorável ruborizada pelo ódio penetrou na sua mente, enquanto respirava com dificuldade e outra rajada de dor percorria o seu peito.

Lutou para recuperar a concentração. Se conseguisse induzi-la a que lhe descrevesse o que acontecera, talvez conseguisse descobrir o que desencadeara a violenta reacção dela.

- É tudo muito... confuso...

- Talvez não seja suficiente, dada a ferida que tem, mas devo-lhe um enorme pedido de desculpas. O capitão desafiou-me para um duelo de esgrima... Lembra-se?

Assentiu para que ela continuasse.

- Durante o duelo disse ela, humedecendo novamente os seus lábios, - o protector do meu florete caiu. Não me apercebi e, quando baixou a guarda, vi a oportunidade de conseguir um ponto e... Nunca pensei... calou-se novamente. Os seus olhos e as suas feições expressavam um claro desgosto. - A culpa é toda minha.

- Magoei-a de alguma maneira para que me atacasse? - perguntou ele, cerrando os dentes para suportar o aumento de dor que lhe produzia cada inspiração.

A jovem corou. Não respondeu imediatamente, por isso Jack compreendeu que a sua reacção fora desproporcionada. Porquê?

- É claro que não me magoou - disse ela depois de uma pausa. - Eu... Eu só queria provar a minha destreza contra alguém que é considerado um espadachim fabuloso.

- A nossa actual situação prova o contrário - comentou ele irónico.

- Não há maneira nenhuma de o compensar por tudo o que sofreu, mas organizei tudo para que receba os cuidados necessários até estar suficientemente restabelecido para ser conduzido às propriedades da sua família, coisa que lorde Darnley me garantiu que o capitão desejará o mais depressa possível. Neste momento, está em minha casa, em Mount Street. Uma solução não muito... respeitável, eu sei, mas parecia não haver alternativa, estando o capitão demasiado mal para o deixar...

- Não, senhora, não se desculpe. É o melhor lugar onde posso estar. Só espero não ter sido um grande transtorno - Jack forçou um sorriso. - Muitos cavalheiros considerariam uma ferida um preço muito pequeno para estar onde estou agora.

- Não se o peito ferido pela espada fosse o deles replicou ela, tentando ignorar a sua tentativa de galanteio. - Em qualquer caso, eu organizarei a sua transferência logo que o médico o permita. Embora receie acrescentou com um suspiro que isso não seja tão em breve para evitar que as notícias da sua actual situação cheguem ao conhecimento da sua família.

- A minha família agradecer-lhe-á - replicou Jack, surpreendido por lady Belle recear tanto o desgosto que a sua mãe teria quando descobrisse que o seu único filho estava aos cuidados da cortesã mais famosa de Londres e portanto do país. Era estranho que uma mulher da reputação de Belle se preocupasse com o que as pessoas respeitáveis pensam.

- Apetece-lhe um pouco de sopa?

A pergunta recordou-lhe que, efectivamente, estava faminto, embora não lhe apetecesse precisamente sopa.

- Preferia um bife... Não acabei o meu pequeno-almoço...

- Um pequeno-almoço seria um pouco ambicioso no seu estado - respondeu ela com um sorriso.

Apesar da dor, Jack reparou como o súbito calor da sua expressão, vista pela primeira vez de tão perto, aumentava a beleza da sua cara. Apesar de ela estar vestida com um vestido de gola alta e de cor cinzenta e de ter o cabelo apanhado num coque, a severidade do seu traje e do seu penteado pareciam enfatizar, mais do que diminuir, a perfeição dos seus traços.

Um anjo sorridente de Botticelli inclinado sobre o seu leito.

Era extraordinário que uma mulher da profissão dela pudesse transmitir aquela aura de inocência. Sentiu que ficaria feliz por passar o resto dos seus dias simplesmente a olhar para ela.

Não precisava de se perguntar porque é que Bellingham estivera tão apaixonado por ela.

"E tu, Carrington, é melhor controlares-te durante o tempo em que estiveres debaixo do tecto dela."

- Além disso, deve ter sido ao pequeno-almoço de ontem - continuou ela, enquanto ele ficava em silêncio e olhava para ela como um idiota. - Agora é de tarde, portanto esteve inconsciente quase um dia e meio. De facto estava a pensar chamar o doutor Thompson para que o examinasse novamente.

- Tanto tempo? - perguntou Jack, surpreendido. Enquanto a observava, uma vez superado o primeiro deslumbramento, reparou nas olheiras sob os seus olhos e, ao lado da cama, viu uma cadeira com um xaile sobre as costas. - Esteve a velar-me o tempo todo?

- A minha amiga, Mae, apesar de possuir o coração mais amável que alguém possa imaginar, ficou enjoada quando o viu, o lacaio era igualmente sensível e receei que o meu mordomo, um antigo pugilista, não fosse suficientemente amável. Mas, agora que já acordou, mandarei Watson vir fazer-lhe companhia e descansarei.

- Por favor, faça-o. Rogo-lhe que me perdoe por ser um estorvo.

- Tendo sido a causadora da sua ferida, é simplesmente correcto que faça todos os possíveis para cuidar de si. Em qualquer caso, não teria sido capaz de dormir enquanto o capitão não recuperasse a consciência, dando-me mais confiança da sua recuperação. Agora o médico diz que o descanso e a tranquilidade são essenciais para se curar e sei que o capitão e a sua família desejarão que esteja fora daqui logo que seja possível.

Ofereceu-lhe outro gole de água, segurando-lhe as costas quando se endireitou para beber. Daquela vez, Jack reparou que a sua força desaparecia ainda mais rapidamente e agora que tinha tempo para distinguir os graus de dor e de pressão no seu peito, descobriu que a respiração se tornava mais difícil também.

Quando ela o apoiou novamente na almofada, não conseguiu conter um gemido. Havia muitas coisas que queria perguntar, mas não encontrava as palavras. Pensou que dormir seria o mais adequado.

- Tem a certeza de que não quer o láudano? De qualquer modo tente dormir.

Um pouco antes de o redemoinho de dor e cansaço o deixar novamente inconsciente, sentiu a carícia dos dedos dela a tocar suavemente na sua cara.

Durante os dois dias seguintes, Jack dormitou e acordou várias vezes, numa rotina apenas interrompida pelas visitas do médico. Os períodos de vigília eram tão insuportáveis que finalmente aceitou um pouco de láudano para acalmar as dores. A pequena dose apagou as dores, permitindo-lhe dormir sem o sofrimento de um sono cheio de pesadelos. Ou talvez a tranquilidade de estar ferido na segurança de Londres, em vez de num acampamento no meio dos bosques, lhe permitisse descansar sem perturbações. Qualquer que fosse a razão, acordou ao quinto dia e descobriu que a sua mente e os seus sentidos tinham escapado ilesos ao esgotamento da dor e do láudano.

Excepto pela comichão da barba, sentia-se razoavelmente confortável. As suas roupas sujas tinham sido trocadas em algum momento por uma simples camisa de dormir e tinham-lhe lavado o corpo. Olhou em seu redor. A luz do dia iluminava completamente o quarto e estava suficientemente lúcido para se dar conta do que o rodeava.

Estava deitado numa elegante cama com dossel. As cortinas do leito e da janela eram de uma cor azul-adamascada e no chão havia um colorido tapete turco. O quarto, com as suas paredes pintadas de um azul-pálido, tinha janelas que possuíam na parte superior umas cortinas de corte clássico e a porta de entrada estava ladeada de pilastras embutidas na parede.

Era o tipo de quarto que alguém encontraria na casa de um aristocrata de bom gosto e de recursos ilimitados. Aparentemente, o último protector de lady Belle possuía alguma daquelas características.

Embora a dor constante tivesse desaparecido, tinha ainda pouca força e inclusive o mais pequeno movimento supunha um enorme esforço, acompanhado de dores.

O seu vão esforço por alcançar o copo de água viu-se interrompido pela entrada de um homem alto e forte, cuja indumentária negra proclamava a sua profissão de mordomo, embora o seu nariz achatado e os seus punhos fortes mostrassem também claramente a sua ocupação prévia. Devia ser o pugilista de pesos pesados transformado em mordomo de Belle.

- A empregada que acendeu a lareira disse que estava acordado comentou o homem. - Lady Belle enviou-me para lhe perguntar se deseja que o barbeie. Ela lavou-o quando chegou, mas não se atreveu a barbeá-lo. Ah, o meu nome é Watson, sou o mordomo de lady Belle!

- Jamie Watson? - perguntou Jack, que se recordava de alguns feitos. - Derrotou Molynieu ao nono assalto, num dos melhores combates de boxe alguma vez visto.

A cara do homem iluminou-se.

- Viu o combate?

- Não. Estava na Península Ibérica nessa altura, mas soldados que o viram comentaram-no durante meses.

- Foi o meu melhor combate - Watson sorriu.

- Não lhe fale de boxe ou nunca mais ficará barbeado - avisou lady Belle, que entrava naquele instante.

A conversa cessou assim que Jack deixou que a beleza dela ocupasse os seus sentidos. Naquele dia, usava um vestido liso, com gola alta, de um azul-pálido que empalidecia ainda mais em contraste com os seus olhos azuis e profundos. Com o cabelo dourado apanhado, as faces e os lábios desprovidos de realces artificiais e a rigidez e superioridade do seu porte, podia passar por uma simples governanta. Mas o verdadeiro encanto da sua beleza desprovida de adornos causou-lhe um doloroso suspiro.

- Bom dia, senhora! Está impressionante - disse Jack, que imediatamente se arrependeu do seu elogio ao ver que ela se assustava.

- O senhor parece estar melhor, capitão - respondeu ela com calma.

Avisado da sua estupidez, Jack corrigiu as suas maneiras e respondeu:

- Muito melhor, obrigado.

- Quer barbear-se antes do pequeno-almoço? Jack nunca se considerara fútil, mas, diante daquela luminosa beleza, sentia-se decididamente desprotegido.

- Seria óptimo - respondeu. - Creio que devo agradecer-lhe por me ter posto apresentável.

- Precisava que lhe tirassem aquelas roupas sujas de sangue e estragadas. Pareceu-me melhor fazê-lo enquanto estava inconsciente.

A imagem dela a despi-lo, a pousar as suas mãos na pele nua dele, mesmo que fosse com o prosaico propósito de o limpar, provocou-lhe uma enorme excitação. Depois de passar vários dias num estado de fraqueza extrema, agradeceu ao seu corpo aquela prova evidente de que voltava a estar em forma.

- Watson, tens os utensílios de barbear preparados?

- perguntou Belle, interrompendo os pensamentos dele.

- Sim, lady Belle.

Enquanto ela ajudava Jack a beber um gole de água, o mordomo punha perto da cama água, sabão e uma navalha de barbear.

Enquanto Watson o barbeava, Belle contava-lhe o diagnóstico do médico e informava-o de que Darnley e Ludlowe tinham ido vê-lo, preocupados com o seu estado, e que regressariam à tarde.

Quando Watson acabou, entrou um rapaz com um prato na mão.

- Bom dia, menina Belle. Bom dia, senhor capitão

- cumprimentou, enquanto fixava um olhar curioso e tranquilo em Jack.

Fraco e obviamente desnutrido, o rapaz tinha um corte de cabelo cheio de falhas, como se tivesse sido feito por um cego. Com a sua cara estreita, o seu nariz afiado e os olhos pequenos fez lembrar a Jack um rato. O rapaz era dos mais feios que alguma vez vira, ao ponto de se perguntar de onde podia ter vindo aquele rato vadio.

- Obrigada por trazeres a bandeja tão depressa, Jem. Podes regressar e ajudar Watson na cozinha.

- Tenho de continuar na cozinha? - protestou o rapaz.

- Durante outra semana, Jem. Mas, menina Belle...

- Nada de lamúrias, Jem - interrompeu-o ela.

Se o rapaz não fosse demasiado velho e demasiado feio para que semelhante relação fosse possível, Jack podia ter pensado que era um filho de Belle mais do que um criado. Pelo que pudera ver, enquanto a casa de lady Belle era parecida com outras da alta sociedade de Londres, a aparência dos seus empregados e a familiaridade da sua conduta não o eram de maneira nenhuma.

Bom proveito, capitão disse o rapaz. Com uma expressão de causar pena, caminhou com passos lentos para a porta.

- Espera, Jem chamou-o Jack num impulso e acrescentou, dirigindo-se a lady Belle: - Se o rapaz não tiver afazeres agora, talvez possa fazer-me companhia enquanto como.

O rapaz virou-se para Belle.

- Posso, menina? Eu sei ser muito bom às vezes. Belle olhou durante um bocado para o rapaz antes de suspirar e responder:

- Eu tenho coisas para fazer. Podes ficar, suponho, se o capitão te permitir que o ajudes com o seu pequeno-almoço.

- Não o magoarei, menina, e vou fazê-lo engolir o pequeno-almoço antes de o diabo esfregar um olho.

- Parece-lhe bem, capitão?

- Se isso não alterar a organização da casa, senhora. Jack teria preferido ser alimentado pelas mãos de Belle, porém, já que conseguira saber muito pouco sobre ela através dela mesma, talvez conseguisse descobrir mais através do rapaz, sobretudo se ela não estivesse presente.

A jovem assentiu e disse ao rapaz:

- Não o canses com demasiada conversa, Jem. Tem de descansar e conversar o menos possível.

Jack observou o andar cheio de graça com que saía do quarto. Enquanto isso, Jem tirou as coisas da bandeja: um jarro que cheirava a café acabado de fazer e uma taça de papa surpreendentemente apetitosa.

- Não faça nada, capitão - disse, quando Jack tentou levantar uma mão para pegar na colher. - Eu trato de tudo.

Jack descansou sobre a almofada. Esperava que, pelo menos, o rapaz não entornasse o pequeno-almoço sobre a sua roupa. Amaldiçoou a sua fraqueza e a dor que o trespassava de cada vez que se mexia e disse:

- Fico muito agradecido pela tua ajuda, Jem.

- Olhe que bem precisa dela depois da estocada que lady Belle lhe deu. Watson diz que a sua roupa estava encharcada em sangue. E agora, vamos comer.

Durante uns minutos, Jack conformou-se, engolindo a papa que Jem lhe dava às colheres tão bem como prometera. Quando satisfez minimamente a sua fome, decidiu tentar arrancar algumas informações ao rapaz.

Antes da sua estadia no exército, onde homens de todos os níveis sociais e com distintas experiências de vida eram obrigados a trabalhar juntos, Jack ter-se-ia sentido mal se tivesse tido de falar com um criado. Mas há muito tempo que superara isso e o criado que estava com ele também não parecia ter qualquer problema nesse sentido.

- Não gostas de trabalhar na cozinha, pois não, Jem? - perguntou.

Não é a tarefa de que mais gosto. Gostaria de voltar para os estábulos, aprender a limpar as cavalariças e a ferrar e a preparar as ferraduras e pregos.

- Preferes trabalhar com cavalos e ferraduras?

- O senhor capitão é inteligente para um ricaço comentou Jem depois de uma breve pausa, que aproveitou para olhar para ele com descaramento.

Jack tinha vontade de se rir, mas pensou no seu peito e controlou-a..

Agradeço-te muito o elogio comentou.

- Watson diz que o senhor capitão esteve num regimento de cavalaria. Tinha um bom cavalo? Matou muitos franceses com o seu sabre?

O sorriso de Jack transformou-se numa expressão solene ao reviver as suas lembranças.

- Sim. Tinha um cavalo grande e lindo. Preferia não falar das facadas e navalhadas, se não te importares. Como disseste...?

- Mas isso é a melhor parte! - interrompeu-o Jem, decepcionado. Embora, de qualquer modo, esta seja a última colher.

Enquanto Jem falava, lady Belle entrou. Embora se mexesse em silêncio, a quase evidente mudança que se produzira no ar, avisou Jack instantaneamente da sua presença, antes até de cheirar o seu cheiro a lavanda.

Se simplesmente estar no mesmo quarto o afectava tão profundamente, como reagiria o seu corpo perante uma intimidade maior?

- Vagabundo! - murmurou ela. - Já chega, Jem. Tenho a certeza de que o capitão está cansado.

- Posso regressar depois, quando descansar, menina Belle? Quase ainda não falámos. Isso de matar franceses no estrangeiro deve ser fabuloso. Senhor capitão, alguma vez tinha ficado ferido, antes de a menina Belle lhe cravar a espada? Mostrar-me-á as suas cicatrizes? Ou melhor o seu sabre?

- Jem! - interrompeu-o Belle. - Watson precisa da tua ajuda na cozinha.

- Está bem, está bem, já vou - disse o rapaz, pegando na bandeja. - Se eu fosse soldado, mostraria as minhas cicatrizes a toda a gente. As raparigas gostam disso acrescentou com um sorriso malicioso.

- Espera, Jem - disse Belle. - Deixa a bandeja e mostra-me as tuas mãos.

- Então, menina Belle! - protestou o rapaz.

- Mostra-mas, Jem.

Contrariado, o rapaz largou a bandeja e abriu as mãos:

- Vê? Estão limpas.

- Vira os bolsos.

Jem olhou para ela um momento com ressentimento.

Depois suspirou e tirou o relógio de Jack da sua manga e voltou a pô-lo sobre a mesinha-de-cabeceira.

- Só queria divertir-me um pouco. Era uma brincadeira - resmungou.

- Devias ter vergonha - repreendeu-o Belle. - Roubar o capitão quando está doente.

- É o melhor momento para o apanhar desprevenido, não é? - o rapaz encolheu os ombros. - Mas eu não ia ficar com isto, era só para treinar os dedos. Eu nunca roubaria um soldado.

- Volta a treinar e ganharás outra semana de castigo na cozinha. Não te quero a roubar todos os que entram em minha casa. Além disso, tenta esses truques na rua novamente e o juiz adorará torcer-te o pescoço, seja um tostão ou um relógio. Agora vai-te embora!

- Obrigado pela tua ajuda, Jem - disse Jack, que não sabia se devia zangar-se ou rir-se.

- De nada, meu capitão. Não se zangou por causa do relógio, pois não?

- Não, se tomares em consideração os conselhos de lady Belle.

O rapaz saiu do quarto para mostrar como obedecia.

- Onde o encontrou? A caminho da prisão? - perguntou Jack assim que a porta se fechou atrás dele.

Belle dedicou-lhe um sorriso ténue, que aqueceu o coração de Jack.

- Jem tem um passado... muito atribulado - respondeu ela.

Jack pensou que ela também.

Estava desejoso de descobrir mais coisas a respeito dos dois.

Descanse agora, capitão. Os seus amigos virão mais tarde.

Incomodou-o que a maldita fraqueza o vencesse novamente, apesar de ter gostado de conversar mais com Belle. O esforço da conversa provocara-lhe uma dor aguda no peito e a falta de ar regressara. Quase foi incapaz de lhe agradecer.

Quando ela saía do quarto, Jack ficou com a visão do cabelo dourado e do vestido azul-claro dela, que espalhava um cheiro suave a lavanda. Fechou os olhos e perguntou-se, desconcertado, como era possível que uma cortesã tivesse ao seu serviço um ladrão ainda por reabilitar e um ex-pugilista de pesos pesados.

Antes de voltar a estar nos braços de Morfeu, prometeu a si mesmo que, durante a sua estadia, descobriria as histórias dos dois empregados... e da senhora deles.

 

A luz das primeiras horas da tarde aquecia o quarto, quando Jack acordou. Quando se mexeu, de repente, deu-se conta de que não estava sozinho.

O seu pulso acelerou, porém acalmou-se, quando reconheceu o seu acompanhante. Não se tratava de lady Belle mas da mulher que partilhara o camarote com ela no teatro. Apesar de ser de dia, estava maquiIhada e usava um vestido longo, com um decote tão evidente que dava a impressão de que os seios iam saltar dele a qualquer momento.

- Boa tarde, capitão. Eu sou Mae, a companheira de Belle, e estou feliz por vê-lo com muito melhor aspecto! Deve estar a morrer de fome. Não comeu quase nada em cinco dias. Trouxe-lhe sopa - disse, enquanto pegava numa bandeja que estava na mesinha-de-cabeceira.

- Obrigado, senhora... - disse ele enquanto tentava endireitar-se.

- Trate-me por Mae, capitão. Agora, coma - a mulher pôs-lhe uma colher nos lábios. - Belle disse-me que tem de comer tudo.

- Lady Belle está a descansar? - perguntou Jack entre duas colheradas.

- Não. Deve estar de volta das contas. E que contas! Meu Deus! Eu, que não sei somar dois números, e ela, que entende aquilo tudo das contas. Eu devia tê-la ajudado a cuidar de si antes, mas o sangue deixa-me doente e quase morri também. Mesmo depois de o limpar, parecia que o capitão podia morrer a qualquer momento. Belle não se afastou do seu lado em toda a noite, Deus a abençoe. Sentia-se culpada. Mas, porquê? Porque haveria de se sentir culpada se foi numa disputa limpa? E eu que lhe perguntava para que ia àquelas aulas de esgrima... que não lhe fazem falta para conquistar os homens, porque todos a perseguem. Mas ela não lhes liga nenhuma. Ai, perdão! Belle disse-me que não falasse e que não o incomodasse...

Comendo a sopa enquanto ouvia o monólogo, Jack sentiu que o seu espírito se animava. Mae era tão vulgar como parecia, no entanto em escassos segundos oferecera-lhe mais informação a respeito de Belle do que ele fora capaz de lhe retirar em vários encontros. Esperava que, incentivando-a um pouco, a companheira dela pudesse relatar a história de todos os moradores da casa.

- Não há problema, senhora. Eu adoro a sua conversa.

- Nem pensar - replicou Mae, enquanto lhe enfiava outra colher na boca. - O médico diz que o capitão não deve esforçar-se a falar. Engula esta sopa que o cozinheiro lhe preparou e cure-se.

Ou estava mais faminto do que supunha ou a sopa estava realmente deliciosa. Deu-se conta de que as suas hipóteses de interrogar Mae eram poucas enquanto ela, com uma expressão séria, que até era divertida, continuava a servi-lo, e acabou tudo sem protestar.

- Excelente - disse. - Mae, estou-lhe muito agradecido pela sua gentileza.

- Foi um prazer servir um cavalheiro tão educado como o senhor, senhor capitão - a mulher pegou na bandeja e levantou-se.

- Fique, por favor - implorou-lhe Jack. – Ficarei em silêncio. Acho a sua companhia encantadora e um homem recupera-se melhor ao desfrutar de tão maravilhosa companhia. A mulher corou.

- É muito galante. Se Belle não fosse a minha melhor amiga e eu não fosse tão velha... oferecer-lhe-ia algo mais do que sopa... Mas Belle diz que o senhor tem de descansar, que depois virão o médico e os seus amigos. Voltarei quando Belle estiver a resolver os negócios dela...

Jack teria gostado de lhe perguntar de que negócios se tratava, mas o simples facto de estar sentado e de comer a sopa acabara com as suas forças. O peito doía-lhe novamente e não tinha forças suficientes para falar. Naquele instante, teria de se conformar com a descoberta de que a loquaz Mae seria uma valiosa fonte de informação, assim que tivesse forças para conversar com ela.

- Muito obrigado - murmurou com muito esforço.

- De nada, não fale - disse Mae. Agora descanse. O sorriso dele era franco como o de uma criança

enquanto ajeitava o lençol sob o queixo.

Jack apoiou-se nas almofadas com um suspiro. Mae podia ser mal-educada e a mãe dele teria um ataque, se soubesse que convidara aquela velha prostituta para o visitar. Todavia, apesar do comportamento que testemunhara no camarote do teatro, Jack achava-a encantadora.

A disposição risonha dela notava-se nos seus olhos azuis-claros e brilhantes e na sua inculta conversa, apesar do apelativo vestido e do peito quase a descoberto. A sua capacidade como oficial para avaliar rapidamente as pessoas fazia-o acreditar que tudo o que lhe dissesse seria verdade. A única coisa artificial nela era a maquilhagem da sua cara.

Aparentemente, a discreta lady Belle dissera à sua volúvel companheira e aos seus criados para que não conversassem com ele e desconfiava que isso se devia a mais do que ao simples desejo de que recuperasse rapidamente. Mas, se sondar os conhecimentos de Mae pudesse aproximá-lo da mulher que cada vez o fascinava mais, estava decidido a aproveitar-se daquela mulher que lhe fizera propostas até no seu leito de dor.

Pouco tempo depois acordou da sesta e viu Watson, acompanhando o médico.

- Está mais desperto do que da última vez que o visitei - disse o médico militar, enquanto Watson o ajudava a tirar as ligaduras do ombro de Jack.

- Ainda não lhe agradeci - comentou Jack, tentando preparar-se para a dor que certamente ia sentir a seguir.

- Agradeça à sua forte constituição tanto como aos meus esforços, e aos cuidados que os seus amigos lhe ofereceram - replicou o médico, enquanto examinava a ferida. - Ainda em carne viva, como era de esperar, mas não há sinais de infecção. Pelo aspecto do ombro, sofreu mais feridas no passado. De sabre?

Apesar dos tratamentos do médico não lhe doerem tanto como nas suas visitas prévias, a dor fez aparecer suor nas sobrancelhas de Jack, por isso teve de recorrer a toda a sua energia para evitar gemer.

- Sim, na Corunha - conseguiu dizer com os dentes apertados.

- Deve ter sido uma época difícil - replicou o doutor Thompson, enquanto aplicava uma compressa limpa sobre a ferida e começava a pôr as ligaduras. - Nessa altura, eu estava na América com o grupo de infantaria. Regressei um pouco antes de Waterloo - riu-se e abanou a cabeça. - Que estranha é a vida! Não é? Um homem sobrevive a feridas das batalhas da Corunha e de Waterloo contra os franceses para depois estar prestes a morrer numa exibição de esgrima em Londres. Bem, vou escutar o seu peito.

Encostou o ouvido ao peito de Jack durante vários minutos.

- Ainda há um pequeno assobio, mas menos do que antes - disse. Olhou para o mordomo. - Obrigado, Watson. Consigo encontrar sozinho a saída.

- Se o doutor o diz... - Watson hesitou um pouco antes de sair.

O doutor esperou até que ele fechasse a porta.

- Capitão, sei que esta não é... a sua casa. O senhor estará, sem dúvida nenhuma, com vontade de regressar ao seu lar logo que seja possível. Se tiver alojamento aqui, na cidade, e alguém que possa tratar de si, acho que já pode mudar-se, devagar e com tranquilidade. Se não, sugiro-lhe que peça à sua anfitriã que lhe permita permanecer aqui mais uns dias. A fraqueza persistirá e a sua ferida e os seus pulmões ainda precisam de estar sob observação. Em qualquer caso, amanhã virei vê-lo novamente.

- Devo-lhe muito, doutor. Permita-me dar-lhe a morada do meu banqueiro para que possa mandar-lhe a conta.

- A... a senhora já tratou de tudo - respondeu o doutor Thompson com um sorriso suave. - Surpreendente, não é? Ao princípio pensei que era a sua esposa, mas... - o médico interrompeu-se e lançou-lhe um olhar interrogante.

Estava claro que esperava uma explicação para uma situação tão estranha, já que nenhum homem vivo podia olhar para lady Belle sem a desejar. Jack sentiu uma pontada de ciúmes. Não podia dizer que houvesse um vínculo entre eles, contudo, se o médico estivesse a tentar avaliar a natureza da relação para ver se podia ele próprio ter alguma coisa com ela, Jack não ia negar que havia alguma coisa entre eles. Decidiu responder apenas com um olhar frio e fixo.

O médico corou e pigarreou.

- Uma dama encantadora. Ninguém nunca suspeitaria que é... Bem, já sabe...

Mais ilogicamente ainda, Jack não gostou das conjecturas que o médico fez, embora não pudesse discordar da sua veracidade.

- Lady Belle foi uma anfitriã dedicada, amável e gentil - replicou com orgulho.

- Sim, claro - acrescentou o médico, corando ainda mais. - Não queria insinuar...

- Pois não o faça - indicou Jack.

- Posso entrar? - perguntou Aubrey, aparecendo junto à porta. - Watson disse que o doutor já tinha acabado.

- Já estava de saída - respondeu o doutor Thompson. - Virei vê-lo amanhã. Onde, capitão?

- Aqui. Até amanhã, doutor.

O médico saiu do quarto ainda com vestígios de rubor nas faces.

- Voltou a torturar-te? - perguntou Aubrey, que observava a rápida saída do médico. - Estavas muito magoado com ele. Faça-te sofrer ou não, devias estar-lhe agradecido. Possivelmente não estarias entre nós, se não tivesse chegado a tempo.

Jack conseguiu desenhar um sorriso lastimoso.

- Tens razão, desculpar-me-ei mais tarde - sem explicar a razão da sua frieza, continuou: - Onde está Edmund?

Aubrey abanou a cabeça.

- Outra interminável reunião, segundo o seu bilhete. Virá depois e ficará contente por ver o bom aspecto que tens. Pregaste-nos um bom susto.

- Estou melhor - disse Jack, reparando que a pressão no seu peito tinha diminuído e que falar já não lhe exigia tanto esforço.

- Deve ser o toque mágico de lady Belle. Ouvi dizer que quase não saiu do teu lado desde que chegaste.

- Foi o que eu também ouvi. Estive quase completamente inconsciente até esta manhã. Sei que tenho uma grande dívida para com ela.

- Se bem que foi ela quem te feriu. Continuo sem entender como, sendo o grande esgrimista que és, te descuidaste. Em qualquer caso, não invejo o mal que passaste, mas agora... a oportunidade é tua! Aqui, na casa de lady Belle e a ser o centro dos seus cuidados, serias um parvo se não aproveitasses a oportunidade para atraíres o interesse dela.

Jack começou a rir-se, mas a gargalhada acabou num grito quando uma pontada de dor o atravessou.

Não devo estar muito atraente neste momento respondeu, quando conseguiu recuperar a respiração.

- Arranja uma desculpa para continuares cá. Ela admitiu a culpa da tua ferida. Joga com isso até que estejas suficientemente recuperado para a deslumbrares com a tua dignidade.

- Jogar com o sentimento de culpa dela quando era eu quem queria ganhar um beijo? Parece-me pouco honrado.

Jack, não sejas assim - recriminou-o Aubrey. - O que tem de mal fazer um pouco de teatro, se puderes ganhar um prémio tão delicioso?

- Quando te transformaste num homem sem honra?

- perguntou Jack, olhando para ele fixamente.

- Chama-me o que quiseres, mas continuarei a dizer que estás mal da cabeça, se deixares que te levem para outro sítio e trocares as doces mãos de lady Belle pelas da tua mãe ou da tua irmã, e não pretendo com isto faltar ao respeito a nenhuma das duas.

Jack franziu os lábios numa expressão de desgosto, mas talvez Aubrey tivesse razão.

- O médico informou-me de que não estou suficientemente curado para atravessar metade de Inglaterra. Se nem tu nem Edmund desejam tratar de mim, devo, forçosamente, permanecer onde estou.

- Esse é o espírito. Sabia que não deixarias escapar a oportunidade - disse Aubrey com um sorriso.

- Acho que és tu quem está mal da cabeça. Sabes que não posso permitir-me a ter Belle, mesmo que recuperasse o suficiente para a deslumbrar com a minha dignidade.

- Ora! Se o dinheiro a preocupasse, não teria rejeitado a oferta de Rupert. Dada a consideração com que trata o idealista Ansley, estou convencido de que a atraem mais os homens de natureza nobre. E aqui estás tu, convenientemente instalado precisamente na casa dela. Apostaria que desta cama para a dela é apenas um salto.

- E eu estou em perfeitas condições para saltar - replicou Jack, embora apesar dos seus protestos o plano que Aubrey lhe oferecia fosse insidiosamente tentador.

Talvez pudesse permitir-se. Ou talvez ela respondesse positivamente à admiração e à atenção de um cavalheiro que a tratasse com o devido respeito. Dada a força da ligação que os unia, talvez ela cedesse.

Mas já bastava de tolices. Não fazia sentido dedicar-se a especular sobre como conquistar lady Belle, quando faltava tão pouco para Dorothy ser apresentada à alta sociedade. Tinha de dirigir os seus pensamentos para galantear uma virgem bem-educada e não se entregar a uma aventura escandalosa com uma cortesã, por muito que o fascinasse.

Além disso, no caso de as teorias de Aubrey se tornarem realidade, seria algo a longo prazo. Sabia instintivamente que algumas semanas ou inclusive meses não seriam suficientes para conseguir penetrar no mistério da linda lady Belle.

Jack levantou o olhar e viu que Aubrey se ria burlescamente.

- Vejo que estás a pensar no assunto. Reflecte bem, amigo. Não vou poder ficar muito tempo nem quero cansar-te, mas regressarei amanhã. Talvez então a tua charmosa anfitriã nos honre com...

Aubrey abriu muito os olhos e os seus lábios pararam a meio da frase. Contudo, antes da reacção do seu

amigo, antes do discreto movimento de ar da porta, aberta silenciosamente, levar até ele a suave essência a lavanda, o seu instinto já tinha avisado Jack da chegada de lady Belle.

Belle parou na soleira da porta e o seu sorriso apagou-se quando viu a expressão na cara de Ludlowe. Apesar do passar dos anos, que deviam tê-la deixado imune, ainda se contraía diante do olhar ávido de um homem com o mesmo desgosto que sentira da primeira vez que Bellingham a mostrara em público.

Alguns, como Ansley, deslumbrados pela sua beleza natural, tinham-lhe outorgado, achando-a depositária de todas as virtudes, o título de anjo na terra, apesar da evidência clara do contrário. Alguns, como o amigo do capitão, que olhava para ela naquele momento, misturavam uma grande dose de lascívia com admiração. E por último, havia os piores, os lorde Rupert, privilegiados desde o berço, ricos, habituados a que o mundo se adaptasse aos seus desejos, que se sentiam com o direito de ter tudo o que lhes apetecesse sem ter em conta os desejos ou sentimentos daqueles que consideravam seres inferiores.

Reprimiu um suspiro e obrigou-se a continuar a conversa que, no momento, consistia em elogios pomposos do senhor Ludlowe sobre a sua hospitalidade.

- É muito amável, senhor Ludlowe - interrompeu-o ela, - mas só fiz o que qualquer pessoa, com a mínima sensibilidade, teria feito. Fiquei contente por ouvir o doutor Thompson dizer que o capitão Carrington está a recuperar-se.

- Como poderia ser de outra maneira com um anjo como a senhora a tratar dele? - perguntou Ludlowe com os olhos fixos nela com um ardor incómodo.

- Venho felicitá-lo pelo diagnóstico do médico, capitão, mas não quero interromper - respondeu Belle, dispondo-se a sair.

Um ruído de passos rápidos distraiu-a da resposta galante de Ludlowe. Um instante depois, Jem apareceu no quarto.

Ofegante, com um olhar de pânico na cara e o cabelo ainda mais despenteado do que de costume, começou a gritar:

- Menina Belle, tem de vir imediatamente. Tentaram raptar Jane.

 

Pedindo aos cavalheiros que a desculpassem, Belle desceu apressadamente as escadas com Jem.

- Jane está bem? O que aconteceu?

- Não sei, menina. Eu estava na cozinha quando a ouvimos gritar e John, o cocheiro, veio a correr dizer que um vagabundo tentou raptar Jane.

Watson encontrou-os na antecâmara e disse-lhes que o acompanhassem à biblioteca. Na biblioteca, Belle encontrou Mae, um criado e a governanta a rodear Jane, que estava sentada num pequeno sofá, a soluçar, com o vestido enlameado e rasgado e com um pedaço de tecido a tapar uma ferida que tinha em cima do olho.

Um sentimento de ultraje invadiu o peito de Belle diante da audácia de alguém que invadira a sua casa e atacara um dos seus. Respirou fundo para se acalmar e sentou-se ao lado de Jane.

- Sim... senhora, lamento - disse a rapariga, ao vê-la, e começou novamente a chorar.

- Jane, estás a salvo - tranquilizou-a Belle. - Acalma-te e bebe um pouco deste vinho - disse, oferecendo-lhe um copo que Mae lhe dera.

Fazendo um visível esforço para controlar os soluços, Jane bebeu um gole. Belle persuadiu-a a beber mais um pouco e a rapariga começou a respirar normalmente, embora continuasse a chorar.

- Lamento, lady Belle - disse.

- Porquê? Não fizeste nada de errado.

- Eu sabia que não devia ter ficado aqui. Mas lady Belle é tão boa que não queria ir-me embora. E agora meti-a neste problema...

- Nada disso. Se houver problemas, será para o homem que tentou raptar-te. Era Waldo?

Jane assentiu.

- Sim, senhora. Pensei que podia passear um pouco pelo jardim da casa, mas, não sei como, ele entrou no jardim e apanhou-me desprevenida. Tinha uma pistola e disse que me daria um tiro na cabeça se não ficasse calada. No entanto, quando guardou a pistola para me meter na carruagem, mordi-lhe a mão e comecei a gritar como uma louca. Jacobs ouviu-me e veio ajudar-me. Deus o abençoe.

- Parabéns! - exclamou Belle. - Parabéns aos dois.

- Mas, senhora, ele disse-me da carruagem que nunca permitirá que abandone a senhora Jarvis - continuou Jane, com os olhos brilhantes. - Disse ainda que, quando me apanhar, se vingará de mim e de todos os que me ajudarem.

- Vai ser Waldo quem vai pagar - respondeu Belle. Esse homem invadiu a minha propriedade e tentou raptar uma empregada minha. Vou informar a polícia.

Jane empalideceu.

- Não, senhora, não deve fazê-lo. Waldo disse que, se a senhora for à polícia, ele tem amigos no Seven Diais que a farão desejar não ter nascido.

A raiva invadiu novamente Belle e pensou na sua espada de esgrima.

- Aquele ignorante atreveu-se a desafiar-me?

- Não suporto saber que podem fazer-lhe mal por minha causa, depois de ter sido tão boa como foi comigo - choramingou Jane, depois de pousar o copo na mesa. - É melhor eu voltar para a senhora Jarvis.

- Tu não farás nada disso - replicou Belle. Jane, que parecia esgotada de repente, apoiou-se nas costas do sofá e sussurrou:

- Não sei o que fazer.

- Neste momento, tens de descansar. Ficará alguém a vigiar a porta. Madame Duchamps, ajude Jane a subir as escadas e prepare-lhe um chá, por favor.

- Vamos, ma petite. Vou tratar-te da ferida para que não fiques com nenhuma cicatriz nessa bonita cara, está bem? - sugeriu a governanta, enquanto ajudava Jane a levantar-se e a sair.

Depois de agradecer ao criado pela sua ajuda e de lhe prometer um pagamento extra pela sua coragem, Belle dirigiu-se para a janela com o sobrolho franzido. Juntamente com o bilhete que enviara à senhora Jarvis, informando-a de que Jane não ia regressar, anexara uma generosa quantia, embora não o tivesse contado a Jane. Belle estava zangada, mas não surpreendida, por a proxeneta não ter aceitado a sua oferta de paz. A senhora Jarvis, obviamente, não ia desistir de Jane facilmente. Nem o repugnante Waldo.

Quando se virou, encontrou Mae e Watson a olhar para ela.

- Daimiel, que dirigia a casa onde eu estava antes de Darlington me tirar de lá, disse-nos que a senhora Jarvis é uma mulher má - comentou Mae. - Trata as suas raparigas com punho de ferro, não as deixa sair de casa e aquele Waldo é um tipo temível. Todas as raparigas lhe têm medo. Nenhum dos dois se esquecerá disto.

- Watson, o que sabes deles? - perguntou Belle.

- A mesma coisa sobre a senhora Jarvis. E de Waldo, que é o pior tipo de rufia que há. Só se mete com os que são mais fracos do que ele - Watson fez uma expressão de desprezo. - Ele nunca se atreveria comigo.

Mae desdobrou um pequeno leque de marfim e começou a abanar-se vigorosamente enquanto exclamava:

- Todas estas situações me deixam com palpitações! Não podemos deixar a rapariga ir-se embora e já está?

O olhar que Belle lhe dirigiu fê-la corar.

- Não me referia a isso - murmurou Mae. - Queria dizer mandá-la para outro sítio. Vamos ter problemas com Jarvis, se tivermos aqui uma das suas raparigas.

- Vou denunciar o caso à polícia declarou Belle. Afinal de contas, isto é a Inglaterra. A rapariga não pode ser retida contra a sua vontade.

Para sua surpresa, Watson abanou a cabeça.

- Eu não faria isso, senhora. Se Waldo tivesse tentado levar alguém importante, seria diferente, mas acha que a lei vai proteger uma rapariga como Jane? E é verdade que ele tem amigos maus, homens que raptam e cortam o pescoço a alguém por menos de um copo de cerveja.

Cortam o pescoço? repetiu Mae, pálida. - Acho que vou desmaiar - sussurrou.

Enquanto Watson reanimava Mae com um copo de vinho, Belle deixou-se cair numa poltrona. Era desconcertante dar-se conta de que os seus criados, depois de viverem toda a sua vida no lugar mais baixo da sociedade, não tivessem uma boa opinião sobre a justiça inglesa para proteger Jane. Embora ela ainda estivesse furiosa por um rufia como Waldo poder invadir a sua casa com toda a impunidade, a descrição de Watson fê-la parar para reflectir.

Ela era boa com o florete, mas os homens daquela índole não eram dos que cumpriam as regras que regem os combates entre cavalheiros.

De qualquer modo, consultaria Egremont antes de desprezar totalmente a ideia de uma solução legal. Mas o que fazer com Jane enquanto isso?

- Seja com a ajuda da lei ou não, Jane deve ser protegida - disse finalmente.

- Leva-a para outro sítio - disse Mae novamente. Aqui é muito fácil para um rufia como Waldo agarrá-la e fazer mal a qualquer um de nós.

- Para onde, Mae? Mesmo que a sua família a acolhesse novamente, coisa que duvido, a senhora Jarvis sabe de onde ela é e mandaria Waldo à procura dela. Inexperiente e necessitada como é, não podemos tirá-la em segredo de Londres e deixá-la sozinha numa cidade qualquer.

- Acabaria numa casa tão má ou pior do que a da senhora Jarvis - apontou Watson.

- Temos de pensar noutra solução - Belle levantou-se e passeou pela sala, tentando encontrar soluções. Finalmente encontrou uma. - Pensava ir para o campo antes de a temporada começar. Simplesmente adiantarei os meus planos.

- Deixar Londres?! - gritou Mae, assustada. - Sei que disseste que ias fazê-lo, mas pensei que fosse uma brincadeira. Pensas mesmo ir viver para o campo?

A julgar pelo tom de Mae, parecia que Belle estava a pensar mudar-se para uma ilha tropical selvagem.

- Sei o quanto amas Londres, mas tenho razões importantes para me ir embora - disse Belle, controlando um sorriso. Sei que é egoísta da minha parte pedir-te que me acompanhes, mas na situação de Jane parece-me o melhor plano. Duvido que Waldo possa contratar valentões que se aventurem fora da cidade e, com Watson para nos proteger, não se atreverá a ir sozinho.

- E o que vais fazer com o capitão? - perguntou Mae. - Não podes deixá-lo na rua.

O capitão. Na agitação do momento, Belle esquecera-se completamente do convidado que descansava no quarto principal.

- Terei de considerar o que fazer com ele. Porém, de uma maneira ou de outra, devemos deixar Londres o mais rápido possível. Watson, diz aos criados que comecem a fazer os preparativos.

- Como queira, lady Belle - o mordomo saiu da biblioteca.

Belle virou-se para a sua amiga, que ainda parecia agitada.

- Mae, querida amiga - pegou na mão dela. - Se não aguentas a ideia de te exilar no campo, dedica os próximos dias a procurar outra amiga com quem possas ficar em Londres.

Mae soltou a mão com um suspiro.

- Não entendo porque tens de fugir. Posso imaginar porquê, mas não me diz respeito. De facto, temos de proteger Jane. Não podemos deixá-la sozinha.

Belle observou a sua amiga a sair da sala com as costas direitas e o seu porte tenso, mostrando claramente o seu desgosto. Estaria Mae com ciúmes da presença de Jane? Ou era simplesmente por Belle lhe ocultar os verdadeiros motivos que a levavam a abandonar Londres durante a temporada?

Qualquer que fosse a razão que a perturbava, Belle esperava que a sua amiga não demorasse muito tempo a recuperar o seu bom humor. Suspirou e dirigiu os seus pensamentos para o problema seguinte: o capitão Jack Carrington.

Tal como o seu amigo lorde Darnley, o capitão não encaixava em nenhuma das três categorias em que normalmente dividia os homens. O seu comportamento com ela não era de adoração nem de admiração misturada com luxúria, nem de desejo. No entanto, ela sentia vibrações especiais entre eles.

Talvez por isso, parecesse estar mais interessada nele do que em admiradores como Ansley, que era como a sua sombra, e do que no perturbador lorde Rupert. Havia alguma coisa na presença de Jack que parecia quebrar a barreira protectora de desinteresse que ela levantara em redor do seu coração e da sua mente e que a forçava a reagir diante dele.

Não entendia porquê, mas tinha consciência da sua presença assim que entrava no quarto. Porque é que ela ficava tão nervosa quando ele estava por perto, inclusive imobilizado numa cama?

Qualquer que fosse a razão, ele alterava a sua paz mental e isso não lhe agradava.

Não lhe tinha medo como tinha de Rupert. Pelo contrário, tinha um sentimento profundo de que nunca lhe faria mal. Um sentimento absurdo, dada a facilidade com que alterava a sua calma, e ainda mais engraçado, dada a sua enorme experiência com os homens.

Embora tirá-lo da sua casa e da sua vida fosse algo que lhe apetecesse muito, sentia-se responsável pela sua recuperação. Dado que as propriedades de Carrington, segundo Darnley lhe dissera, ficavam a vários dias de viagem para norte, descartava a ideia de considerar o capitão capaz de resistir a uma viagem daquelas características.

No entanto, como já não precisava de cuidados permanentes, podia regressar aos seus aposentos no Albany, onde, com os seus amigos a visitá-lo e uma enfermeira contratada para o servir, poderia esperar até que estivesse pronto para realizar a viagem para casa. Na próxima visita do médico, perguntar-lhe-ia se esse plano era adequado. Afinal de contas, o capitão tinha amigos que podiam acompanhar a sua recuperação e Jane estava sozinha no mundo. Se a sua decisão dependesse de quem precisava mais da sua ajuda, a resposta era evidente.

Tendo em conta a situação de Jane, Belle não via alternativa à decisão de deixar a metrópole, embora isso determinasse a saída do capitão da sua casa, dos seus pensamentos e da sua vida.

Uma vez tomada a decisão, Belle decidiu falar primeiro com o médico. Depois iria imediatamente informar o capitão da mudança de circunstâncias e de planos.

Belle parou no corredor, prestes a bater na porta. Desejava informar o capitão a sós, mas lembrou-se de

que o senhor Ludlowe estava a visitá-lo quando Jem os interrompera por causa de Jane.

Talvez fosse melhor contar-lhe também a ele e pedir-lhe ajuda. Disse para si que ambos os homens estariam de acordo com a sua proposta razoável e entrou no quarto.

- Espero que não tenha acontecido nada de grave disse o capitão.

- Digo o mesmo. Se puder ajudar em alguma coisa...

- ofereceu-se Ludlowe.

- Um assunto sem importância que já está resolvido, obrigada, cavalheiros. Mas que altera os meus planos imediatos. Receio que tenha de deixar Londres assim que terminem os preparativos. Lamento não estar na cidade o tempo suficiente para vigiar o seu completo restabelecimento. Capitão, se o médico achar que não afectará negativamente a sua recuperação, proponho que regresse ao Albany nos próximos dias.

- Sair de cá? - perguntou Ludlowe. - Tão cedo? Certamente o capitão Carrington não está suficientemente forte para arriscar a mexer-se. Não consegue tratar de si sozinho.

- Claro que não - assentiu Belle. - Penso contratar as enfermeiras competentes que o doutor Thompson me recomendar até que o restabelecimento do capitão lhe permita fazer a viagem para o seu lar. Senhor Ludlowe, peço a lorde Darnley e a si que se certifiquem de que as enfermeiras cumprem com a obrigação delas.

- Penso que os horários de Edmund não lhe permitem ocupar-se diariamente desses aspectos. Da minha parte, receio não ter a experiência necessária para julgar os cuidados de uma enfermeira. Certamente não pensa deixar o capitão neste estado...

- Cala-te, Aubrey. Não estou assim tão necessitado

- interrompeu-o o capitão.

- Ao fim de algumas horas e sem recursos... E se a enfermeira for uma incompetente? - concluiu Ludlowe.

- Espero que o doutor Thompson não recomende ninguém incompetente - protestou Belle.

- Eu também espero que não, apesar de um médico não passar tempo suficiente junto à cama de um doente para saber isso com certeza, não é? Mas isto é um assunto entre a senhora e Jack. Vou-me embora para que falem mais à vontade, se é que ele consegue aguentar uma conversa... Lady Belle, foi um prazer. Até mais tarde, Jack.

Ludlowe caminhou para a porta e parou na soleira para dirigir um olhar para o capitão.

- Não te esqueças do meu conselho - disse antes de sair.

Uma vez a sós com o seu paciente, que olhava para ela com alguma recriminação, Belle respirou fundo e preparou-se para debitar os seus argumentos e convencer o seu hóspede das vantagens de uma saída rápida da sua casa.

 

Depois do anúncio inesperado de lady Belle, Jack sentiu-se irritado por comprovar que a sua habilidade para raciocinar estava tão afectada como o seu corpo. Procurou controlar o seu sentimento de desilusão e esforçar-se por avaliar correctamente os planos da sua anfitriã para se livrar dele.

Lady Belle permanecia de pé e em silêncio ao seu lado, insegura e com uma expressão de culpa no rosto.

- Lamento sinceramente ter de... de lhe fazer um ultimato tão descortês. Desejaria permanecer na cidade até que estivesse recuperado para poder ir para a casa da sua família, mas infelizmente não me é possível.

Era razoável que ela quisesse livrar-se da inconveniência de tratar dele. Jack não conseguiu evitar dizer:

- Lamento ter sido um estorvo.

- Não foi - respondeu ela rapidamente, enquanto a pele fina da sua cara corava. Depois de o ferir, era o mínimo que podia fazer.

- Por favor, senhora, já disse isso, mas não respondi adequadamente porque não estava completamente consciente. Não deve considerar o acidente, de modo algum, como responsabilidade sua. Vi que o protector caiu. Devia ter parado o combate e não o fiz. As consequências são da minha inteira responsabilidade.

Ela olhou para ele.

- Porque não me deteve?

Jack olhou para os olhos azuis dela.

- Não sei - admitiu.

Durante um longo instante, mantiveram os olhares unidos por um vínculo invisível. De repente, com um leve tremor, ela desviou o olhar.

- Em qualquer caso, devia ter-me dado conta de que a espada estava desprotegida. Foi uma inconsciência.

- Chega de recriminações - interrompeu Jack. Estamos de acordo em partilhar a culpa?

Belle olhou para ele com cautela, como que surpreendida pela oferta.

- Se é assim que quer, sim. Retomando o assunto do seu regresso ao Albany. Sei que não é a melhor solução, eu sei, mas estaria de acordo?

Uma vez que parecia querer livrar-se dele, Jack não tinha outra alternativa senão estar de acordo. Conseguiria tolerar ser tratado por um estranho durante alguns dias até que fosse capaz de fazer a viagem até Carrington Grove. Todavia, apercebia-se de que desejava com um inesperado ardor permanecer na companhia de Belle e descobrir mais coisas sobre ela e sobre os curiosos empregados que a serviam.

A prudência parecia dizer-lhe que quanto mais cedo se fosse embora melhor. Ela era muito atraente e afectava-o profundamente. A sua incapacidade física protegera-o até àquele momento, mas, conforme ia recuperando, o seu fascínio por ela transformar-se-ia noutros afectos mais perigosos, como a sua resistência em ir-se embora começava a demonstrar.

Naquele momento ocorreu-lhe outra possibilidade que avivou o seu espírito.

- A sua casa de campo fica no norte? - perguntou.

- Sim, mais ou menos a um dia de viagem pela Great Nort Road.

- Então, se não a incomodar muito, poderia viajar para o norte na sua companhia. Se me conceder o privilégio

de pernoitar na sua mansão, poderia chegar a minha casa em dois ou três dias.

O olhar de consternação que surgiu na cara dela, antes que conseguisse controlá-lo, excedia muito o pequeno contratempo que a ideia de levar consigo um inválido poderia ter produzido.

- Acha que pode fazer isso? Acho que o doutor disse que não devia percorrer tantos quilómetros ainda.

Parecia que Jack tinha razão quanto ao desinteresse de Belle por permanecer junto dele, um desinteresse que ultrapassava a simples obrigação de cuidar dele. Ela sentia a força que os atraía tanto como ele. Embora, mais inteligentemente, ela tentasse evitá-la.

Um cavalheiro, depois de confirmar o desejo não expresso de uma dama de não reconhecer aquela atracção, devia conformar-se. Um cavalheiro prudente, sabendo quão susceptível era de se render aos seus encantos, aproveitaria a oportunidade para fugir de uma atracção tão pouco apropriada.

Mas, talvez inspirado pelas sugestões de Aubrey, Jack dava-se conta de que não conseguia. De algum modo sabia que, mesmo que explorasse a força que os mantinha unidos, nunca se sentiria livre dela, nunca seria capaz de reatar o curso da sua vida com um espírito livre e sem ressentimentos.

Portanto, como conseguiria persuadi-la para que mudasse de ideias?

Envergonhado por se aperceber de que não tinha mais escrúpulos do que Aubrey, disse:

- Tem razão, claro. Já me aproveitei muito da sua hospitalidade. Peço-lhe desculpa, se parece que estou a tentar continuar na sua companhia quando claramente não o deseja. Vou tratar dos meus próprios preparativos para deixar a cidade.

Os olhos de Belle procuraram os dele.

- Quer dizer imediatamente? Ele assentiu.

Ela franziu o sobrolho.

- Não seria mais prudente para si recuperar em Londres durante mais algumas semanas antes de fazer essa viagem?

- Talvez. Mas estive no estrangeiro mais de um ano e estou desejoso de regressar a casa. A ideia de viajar imediatamente agrada-me muito mais do que a de ficar sozinho num quarto. No entanto, não tem de se preocupar comigo. Tratarei de tudo para fazer a viagem de uma maneira ou de outra. Estou pronto para deixar esta cama quando for necessário.

- Não está pronto para fazer uma coisa dessas!

- Se a ferida me incomodar durante a viagem, será um pequeno problema, eu sei, porém, quando estive na Corunha, viajei num estado muito pior, posso garantir-lhe e não quero importuná-la mais do que já fiz.

Belle mordeu o lábio inferior. Jack sabia que devia envergonhar-se por usar daquela maneira a culpa que Belle sentia. Relativamente à dor física, poder viajar na companhia dela valia a pena, mesmo que tivesse de cerrar os dentes por causa da dor que sentiria a cada quilómetro do percurso.

Ela ficou em silêncio durante um longo momento. Jack considerava que já tinha pressionado o suficiente. A palavra seguinte devia ser dela.

Embora Aubrey o considerasse um idiota por ter sido demasiado brando.

Conteve a respiração e rezou ao anjo da guarda que o acompanhara durante os massacres de Espanha e de Waterloo para que ela acedesse.

- Se não consigo convencê-lo a ficar mais algum tempo na cidade - disse Belle finalmente, - sentir-me-ei melhor se viajar acompanhado. Se o doutor Thompson nos disser que viajar comigo não afectará a sua recuperação, será bem-vindo. E, claro, pode descansar em Bellehaven o tempo que quiser.

Era um convite desinteressado, mas um convite. Só faltava convencer o doutor Thompson para que dissesse que estava pronto para a viagem e poderia ter mais alguns dias com ela. Alívio, alegria e uma onda de antecipação invadiram o seu espírito.

No entanto, apesar da sua alegria, a voz da prudência avisou-o de que continuar por aquele caminho poderia ter consequências inesperadas e importantes. Embora, ao olhar para o rosto angélico dela, fosse fácil ignorar aquela advertência. Jack estava demasiado deslumbrado para se dar conta de que um dia poderia pensar que quem ouvira a sua prece tinham sido os demónios e não os anjos.

Três dias mais tarde, Jack esperava no seu quarto que o grupo de Belle partisse e gozava, depois de uma semana de repouso forçado na cama, da agradável sensação de estar completamente vestido. Felizmente, o seu corpo fizera progressos na recuperação e Jack conseguira convencer o doutor Thompson, apesar das reticências deste, a dar a sua aprovação para ser transportado para fora da cidade.

Tivera poucas oportunidades de ver a sua anfitriã durante aqueles dias, já que Belle se encontrava muito ocupada com os preparativos da viagem. Watson ocupara-se de todas as suas necessidades. Belle comprara-lhe vários livros na Hatchards e o alegre Aubrey visitara-o todas as tardes, mas, depois de vários dias em casa de lady Belle, sem a alegria da sua presença, Jack estava desejoso que a viagem começasse.

O seu único receio era as dores que teria durante a viagem. Lady Belle anunciara a sua intenção de cavalgar, relegando-o à companhia da sua amiga Mae, que, como lhe assegurara, se ocuparia do seu conforto. Quando protestou, declarando-se capaz de cavalgar, para que ambas as senhoras pudessem viajar na carruagem e avisando-as da possibilidade de mau tempo, Belle simplesmente sorriu e garantiu-lhe que preferia o ar livre, fizesse o tempo que fizesse.

Jack tinha de se conformar com a ideia de aproveitar ao máximo as oportunidades de conversar que surgissem quando parassem para comer e para mudar os cavalos. Belle informou-o que, se os caminhos não estivessem muito enlameados, conseguiriam chegar a Bellehaven a tempo para um jantar tardio.

Como Jack não podia fazer outra coisa, tentaria aproveitar a viagem para recolher toda a informação que pudesse da tagarela Mae. Se tivesse sorte, depois da sua chegada a Bellehaven conseguiria conviver com lady Belle tempo suficiente para aproveitar os conhecimentos adquiridos.

Quando a porta se abriu, Jack olhou para ver quem era e a sua pulsação acalmou-se automaticamente quando viu que era Watson quem entrava.

- Já trouxeram todas as suas coisas do Albany, capitão, e temos um rapaz para levar a sua carruagem. Lady Belle pediu-me para o avisar que terá de sair.

- Obrigado, Watson. Estou pronto.

Tendo feito algum exercício nos dias anteriores, Jack foi capaz de vestir o seu casaco, levantar-se sozinho e caminhar para a porta com o mínimo de dignidade, embora estivesse ainda terrivelmente fraco. Todavia estava mais do que preparado, não só para viajar com lady Belle, como também para se desfazer dos últimos vestígios do ferimento e sentir-se novamente ele próprio.

Apesar disso, quando chegou à carruagem, sentiu-se muito enjoado. Watson adiantou-se para lhe abrir a porta. Embora inseguro, conseguiu subir sozinho para o veículo.

- Acomode-se, capitão - disse o mordomo. - Há um saco de água quente para os pés e uma cesta preparada pela cozinheira com provisões para o caminho.

Apesar de se sentir melhor assim que se sentou, os seus esforços para descer as escadas tinham desencadeado uma dor no peito. As almofadas da carruagem eram apetecíveis, tanto como a manta e o saco de água quente para os pés. Recostou-se e fechou os olhos, apreciando novamente o cuidado de Belle em deixar o assento todo para ele.

Um momento depois, Watson ajudou Mae a subir.

A mulher usava um vestido de cetim vermelho, que, surpreendentemente, tapava completamente os seus famosos atributos, e um chapéu engraçado a condizer. Os seus lábios cerrados e a sua expressão séria contrastavam com o animado comportamento que exibira das outras vezes, por isso Jack sentiu a necessidade de se desculpar.

- Imagino que não seja muito agradável viajar com um inválido. Prometo-lhe que não lhe causarei nenhum problema.

Ela sorriu.

- Nada disso, capitão. O senhor será uma companhia maravilhosa e um presente para os meus olhos, mesmo sem falar, pois Belle diz que não deve falar muito. É deixar Londres que me deixa assim. A minha velha amiga Polly, cujo novo protector é muito importante, disse-me que eu podia ficar na casa dela, que tem do bom e do melhor. Embora eu ficasse muito bem instalada lá com ela, sei qual é o meu dever. Não posso deixar que Belle vá para o campo selvagem sozinha, só com Watson para se preocupar com ela e com uma rapariga tão jovem e incapaz de ser útil.

Antes que ele pudesse fazer algum comentário, a mulher suspirou e continuou:

- Mas não sei se conseguirei aguentar. Algumas vacas num parque de Londres consigo suportar, mas viver no campo, sem mais nada à volta para além das árvores e dos campos com animais selvagens...

Jack interveio:

- Vejo que não nasceu no campo, pois não?

- Não, senhor, dêem-me lojas, luzes à noite, carruagens a passar a toda a hora e vizinhos que não vivam a quinze quilómetros de distância, como diz Belle que acontece na sua mansão. Mas vamos embora. Mais depressa me resigno e paro de o aborrecer com as minhas lamúrias. Só espero que cheguemos depressa - concluiu com tristeza.

Estaria Mae preocupada com os salteadores? Parecia que sim.

- Vivi a maior parte da minha vida no campo, a norte da propriedade de lady Belle. Posso garantir-lhe, senhora, que a zona é muito civilizada. Cavalguei desde a minha casa até Londres muitas vezes durante os últimos dez anos sem ter visto um único salteador. De facto - acrescentou com a esperança de a animar, passaremos por várias pousadas de categoria superior, com cozinheiros muito bons.

Mae alegrou-se um pouco.

- Bom, isso é bom. Estou cheia de fome. Apetece-lhe um copo de cerveja e um pouco de pão antes de saírmos?

Naquele momento, a porta da carruagem abriu-se e lady Belle apareceu. Como de costume, ia vestida de um modo simples, com um fato cinzento por baixo de um casaco de lã a condizer. Um chapéu com véu cobria o seu cabelo e deixava só a descoberto a pele pálida do rosto.

Contudo ela não precisava de complicados penteados para atrair a atenção. O corte sóbrio e simples do seu vestido fazia com que a sua pele parecesse mais luminosa ainda e os seus olhos azuis, mais cativantes.

Quando Jack foi capaz de aclarar os seus sentidos do atordoamento que sentia de cada vez que ela se aproximava, já lhe tinha desejado um bom dia e expressado a sua esperança de que tivesse tudo o que fosse necessário para que a viagem fosse confortável.

- Tudo, senhora. Tudo com o que uma amável anfitriã pode contribuir, excepto a sua presença, para tornar agradável a viagem.

- Muito galante da sua parte, capitão, mas tenho a certeza de que os dois estarão mais confortáveis sem uma terceira pessoa.

- Porque não ouves o capitão e te juntas a nós? perguntou Mae. - Estás tão magra que quase não ocupas espaço.

- Obrigada, Mae, mas ultimamente não tive muitas oportunidades de fazer uma cavalgada pela planície e apetece-me muito.

- Não te apetece tomar um chá antes? - perguntou Mae. - O vento vai ser frio. Receio que geles até aos ossos.

Belle dirigiu um olhar cheio de afecto à sua amiga.

- O meu fato é muito mais confortável do que o elegante vestido que escolheste para ti. Estarei bem. Se queremos chegar a Bellehaven antes que anoiteça, temos de partir já. Prometo partilhar uma chávena convosco depois.

- Esperamos desfrutar da sua companhia - disse Jack. Belle fez um gesto de assentimento e, então, para surpresa dele, tirou uma pistola do bolso.

- Sei que estás aborrecida por deixar Londres, Mae. Embora seja pouco provável que tenhamos problemas, penso que te sentirás melhor tendo isto ao teu lado.

- Não disparará sozinha? - perguntou a mulher, empalidecendo.

- Não. Primeiro terás de a desencravar, o que espero que não seja preciso. Se houver algum problema, mostra-a pela janela. Isso será suficiente para deter qualquer criminoso que se aproxime.

Tendo em conta o olhar cheio de pavor que Mae dirigia à pistola, Jack não estava muito certo de que a sua presença a acalmasse muito.

- Eu fico com ela, senhora. Sei como funciona disse.

- Por favor, capitão - aceitou Mae imediatamente.

- Se aparecer um salteador, de certeza que desmaio antes de conseguir assustá-lo.

- Não, capitão, não deve fazer esforços - disse Belle, quando ele se dispunha a pegar na pistola. Os dedos deles tocaram-se por acaso e uma faísca percorreu o corpo todo de Jack até à ponta dos dedos dos pés. O gesto e a rapidez com que ela retirou também a sua mão indicavam que Belle sentira o mesmo.

Evitou o olhar de Jack e pousou a arma num canto.

- A pistola ficará bem aqui. É só para que Mae fique mais calma.

- Então, sentir-se-á completamente calma por saber que eu consigo dispará-la se for preciso. Está carregada?

- Sim, mas não é bom que o senhor...

- Ambos garantimos a esta senhora que não fará falta - interrompeu-a Jack, um pouco exasperado por estar a ser tratado como se o mais pequeno esforço pudesse matá-lo. - Não conseguimos convencê-la para que beba connosco alguma coisa quente antes de sair?

Belle abanou a cabeça.

- Não, é melhor irmo-nos embora. Mas, por favor, sirvam-se.

Dirigiu um sorriso carinhoso a Mae.

- Vai correr tudo bem - disse com suavidade antes de fechar a porta da carruagem atrás dela.

Mae começou a beber chá e cerveja. Pouco depois, ouviu o som do arnês e a carruagem começou a andar.

Para atingir o seu objectivo e tentando acalmar a sua companheira, que ainda parecia nervosa, Jack perguntou-lhe:

- Normalmente fica com outras amigas quando lady Belle vai para o campo?

- Não. Só vivo com ela há um mês, embora sejamos amigas há muito tempo. Quando lorde Bellingham morreu, a dama de companhia e o mordomo de Belle abandonaram-na. Não porque ela não conseguisse pagar-lhes, porque lorde Bellingham a deixou numa boa situação económica, mas porque foram contratados pelos Bellingham e pensaram sempre que eram demasiado bons para servir uma mulher como Belle. Como se ela não se comportasse como uma dama, muito melhor do que muitas daquelas que mudam de passeio quando se cruzam com ela. Enfim. Fui visitá-la quando soube que lorde Bellingham tinha falecido e a casa estava um caos, pois o mordomo, Randas, fora-se embora assim que lorde Bellingham morreu.

- E ficou para a ajudar a pôr a casa em ordem? - perguntou Jack, quando Mae parou para respirar fundo.

- Sim. Randas não quis voltar, como se fizesse alguma coisa de especial. E a empregada, Winset, era igualmente má, apesar de Belle ter conseguido fazer com que voltasse. A criada da cozinha disse-me que Winset pediu imediatamente um aumento de salário a Belle para se habituar à ideia de servir alguém na situação dela. Belle disse-lhe calmamente que era livre de se ir embora, porém, já que era empregada dos Bellingham, não dela, devia ir pedir o aumento a lady Bellingham.

Mae rebentou em sonoras gargalhadas.

- Quem me dera ser uma mosca para ter visto a cara de Winset naquele momento. Sempre vi Belle a ser amável com toda a gente, mas aquela Winset merecia.

Sabendo o que lorde Bellingham fizera com a sua legítima esposa e quão ressentida devia estar com a amante que o seu marido escolhera, Jack não conseguiu evitar sorrir pela forma como Belle despedira a empregada.

- E Belle pediu-lhe que ficasse?

- Ao princípio, apenas por uns dias, até que encontrasse uma dama de companhia nova. Eu sou muito boa a ajudar uma mulher a pôr-se bonita. Depois Belle convidou-me para que ficasse de forma permanente... Eu sempre me relacionei com gente da alta sociedade. O senhor não deve falar muito, Belle já me tinha dito isso, porém conte-me alguma coisa sobre si, capitão. Toda a sua família vive no norte?

Mae, que não foi tão tagarela como Jack esperara, começou a fazer perguntas, dizendo que já tinha falado o suficiente. Jack, que não desejava acabar a conversa com a sua fonte de informação, sabia que não devia pressioná-la muito.

Comprovou com certa surpresa, depois de mudar a conversa para ele, que Mae era uma agradável interlocutora e muito hábil ao questioná-lo sobre a sua família, a sua estadia no exército e sobre os seus planos de futuro relativamente a Carrington Grove.

Quando saíram de Londres e chegaram aos arredores, os saltos e sacudidelas do veículo fizeram com que o peito e o ombro de Jack lhe doessem, obrigando-o a parar a conversa. Mae, imediatamente solícita, aconselhou-o a tentar dormir um pouco, pois não havia nada de interesse para ver, agora que tinham deixado a cidade para trás.

Mae encostou-se no seu canto, pronta para fazer o que aconselhara a Jack. Este sofria de tal modo que compreendeu que não seria capaz de dormir. Disse para si mesmo com ironia que era um felizardo por poder fazer a viagem apesar da dor. Acabava de decidir que tentaria apaziguá-la com um segundo copo de cerveja, quando ouviu um tiro, seguido de um grito, e a carruagem parou de repente.

 

No silêncio que se seguiu ao grito de Mae, Jack ouviu abrir-se, de repente, a porta da carruagem. De forma instintiva, pegou na pistola que estava aos pés de Mae, e disparou contra a mão que agarrava o trinco. Sob o segundo grito de Mae, chegou um grito mais rouco e a mão desapareceu. Esquecendo a dor no peito, Jack conseguiu pôr-se em pé e saiu pela porta, agora aberta.

Ao sair, com dores, viu um homem no chão, agarrado ao braço, Watson a lutar com um rufia com máscara à porta da carruagem das bagagens, situada atrás deles, e Belle a açoitar com a sua vara a cabeça de um homem com máscara que tentava agarrar nas rédeas do seu cavalo, que tentava recuar.

A raiva apoderou-se de Jack e desejou agarrar nos braços do velhaco que se atrevia a pô-la em perigo. Amaldiçoando a pistola descarregada, meteu-a no bolso do seu casaco e procurou avidamente qualquer coisa que pudesse usar como arma.

Os seus olhos cruzaram-se com a ponta do chicote que o cocheiro, que tentava controlar os cavalos nervosos, tinha na mão. Jack agarrou-o e dirigiu-se para onde Belle tentava defender-se do seu atacante. Chegou no momento em que ela conseguiu atiçar um golpe suficientemente forte para fazer com que o seu atacante recuasse. Jack chicoteou-o com o braço bom

e viu com uma satisfação selvagem que a ponta do chicote se enrolava como um laço no peito do homem, prendendo-lhe os braços ao peito. Jack desenrolou o chicote, o que fez com que o homem caísse ao chão como uma pedra. Puxou da pistola sem munições e bateu com ela na cabeça do homem, deixando-o de barriga para baixo e fora de combate.

Virou-se para Belle e o alívio de ela ter fugido ao seu atacante transformou-se em nervosismo quando viu que ela lançava o seu cavalo contra a carruagem onde Watson ainda lutava, com uma pistola na mão.

Antes que pudesse gritar-lhe para a avisar, deu-se conta de que, consciente do perigo de disparar contra o atacante com os dois homens tão próximos, tentava controlar os arreios com uma mão e mantinha a pistola na outra à espera da sua oportunidade para disparar.

Então, com um movimento que lhe teria valido um aplauso estrondoso da multidão nos seus tempos de pugilista, Watson conseguiu libertar-se do seu oponente e aplicar-lhe um murro perfeito. Jack conseguiu ouvir um osso a partir antes de o rufia cair como uma árvore ao chão.

Belle guardou a pistola no bolso do casaco e saltou da sela.

- Watson, Jane! Estão bem? - gritou enquanto corria para a carruagem.

- Estou bem, lady Belle, e Jane também, embora tenha ficado enjoada. Estes animais não conseguiram passar da porta.

- Está bem? - perguntou Jack, parando atrás dela.

- Muito bem - respondeu ela, virando-se, e, como se se desse conta naquele momento de quem perguntara, acrescentou: - O que faz fora da carruagem?

Watson passou o seu olhar desde Jack até ao homem inconsciente no chão e pelo que ferira ao lado da carruagem.

- Fez um trabalho digno de um soldado - Jack assentiu

e logo a seguir sentiu-se como se um fogo atravessasse o seu ombro e o seu peito.

- Não ia ficar escondido lá dentro enquanto nos atacavam.

Com o dissipar do calor da luta, a força dele desapareceu por completo e teve a sensação de que ia cair ao chão.

A expressão preocupada do rosto de Belle dizia-lhe que também não tinha boa cara.

- Capitão, foi muito corajoso, mas não devia ter-se mexido do seu lugar. Watson, que Thomas e John te ajudem a prender esses indivíduos enquanto eu ajudo o capitão Carrington.

Eu ajudo-o, Watson - disse Jack, não muito seguro de conseguir cumprir a sua promessa. - Os homens ainda estão ocupados com os cavalos.

Pelo menos dois deles - Watson assinalou o homem que Jack ferira com a pistola e o que ele próprio derrubara - não vão a lado nenhum e parece que também tratou do outro quando lhe disparou para o braço. Consigo desenvencilhar-me sozinho, capitão. Vá descansar.

Belle entregou a Watson a pistola dele.

- Obrigada, Watson.

Watson pegou na arma e apontou-a ao que ainda estava consciente.

Estavam muito ansiosos por nos apanhar. Vamos ver agora como se sentem a trotar atrás da carruagem até os entregarmos ao juiz. Muito obrigado pela sua ajuda, capitão - acrescentou. - Não sei se conseguiria tratar deles todos ao mesmo tempo. A sua ajuda foi providencial e a tempo.

- Quase não aguenta com a sua alma e quer continuar a ajudar. Por favor, regresse à carruagem de uma vez por todas - acrescentou Belle.

Jack sentia verdadeiramente a imprudência da sua intervenção em todos os membros e partes do seu corpo e em cada inspiração de ar. O seu peito parecia arder de dor, a sua testa estava cheia de suor e sentia náuseas.

- Talvez seja melhor regressar à carruagem - admitiu, pois não queria vomitar diante dela.

À sua contrariedade foi moderada quando, um instante depois, ela lhe pegou na mão e lhe pôs o outro braço em redor da cintura.

- Apoie-se em mim, capitão. Está mais pálido do que Mae quando põe pó na cara e, se cair, não serei capaz de o levantar.

Jack quis dizer alguma coisa galante, mas não conseguiu reunir ar suficiente para falar. Apesar das dores, sentiu o fogo do braço de Belle a tocar no seu corpo através do casaco, a essência a lavanda a subir pelo seu nariz e o cabelo dela a tocar-lhe no queixo. Não sabia se tudo aquilo o ajudava a ficar melhor ou se o fazia sentir-se ainda mais enjoado.

A ideia de a ter quase nos seus braços endureceu algumas partes do seu corpo numa lenta enchente de sensações que, na altura, triunfaram sobre as náuseas e lhe deram a entender que não lhe fazia mal.

Chegaram à carruagem demasiado depressa. Pararam para que descansasse e Watson aproximou-se.

- Deixei o cocheiro a guardar aqueles tipos. Deixe-me ajudá-lo, capitão, não vá a ferida abrir-se.

Consciente de que só conseguiria parecer ainda mais parvo se recusasse a ajuda de Watson e acabasse no chão, Jack permitiu que o homem o levantasse e o deitasse no veículo.

Enquanto se acomodava entre as almofadas, Belle deu-lhe uma dose de amoníaco. Mae, ainda agitada, alternava as suas exclamações, elogiando a coragem de Jack, com as queixas sobre como sofrera. Finalmente, Belle elogiou a coragem de Mae e encarregou-a de cuidar do capitão durante o resto da viagem.

Apoiada no degrau da carruagem Belle disse a Jack:

- Embora ainda continue a desejar que não tivesse saído da carruagem, reconheço que lhe devo um favor pela sua ajuda. Aqueles rufias teriam ferido o meu pessoal, se o capitão não nos tivesse ajudado. Só espero que não tenha agravado a sua ferida ou atrasado a sua recuperação.

Naquele momento a adorável cara dela iluminou-se num sorriso meio triste e meio agradecido, cujo resplendor fez com que Jack sentisse cócegas em todos os nervos do seu corpo.

- Não foi o passeio agradável ao campo que ambos esperávamos - comentou ela.

- Um passeio na sua companhia é um prazer, aconteça o que acontecer - respondeu Jack.

O elogio pareceu sair antes que pudesse impedi-lo, por isso amaldiçoou-se, já que um olhar fechado e grave substituiu logo o calor no rosto dela. Belle devia pensar que as palavras dele eram lisonjas automáticas, embora na verdade brotassem com todo o sentimento que era capaz de sentir.

Talvez fosse bom beber um pouco de cerveja antes de retomarmos o caminho - disse, novamente no seu papel de anfitriã amável, mas fria. - Mae, podes servir-lhe uma caneca enquanto verifico tudo?

Jack observou-a a afastar-se, incomodado consigo mesmo.

- Ai, capitão! Que corajoso é! - exclamou Mae. Quando aquele homem começou a subir para a carruagem, pensei que o meu coração ia saltar do peito. Mas Belle tem razão, não devia ter-se esforçado. Beba um pouco desta cerveja, para os pulmões não inflamarem.

Jack bebeu a cerveja. Embora o enjoo tivesse desaparecido, a dor no seu peito intensificava-se. E, ainda pior, sentia que as compressas e ligaduras da ferida estavam a ficar ensopadas.

Uma carruagem a galgar pelos gélidos campos ingleses não era o melhor lugar para refazer ligaduras.

Acomodou-se sobre as almofadas e disse para si que aguentaria até chegar ao seu destino.

Uns segundos depois, uma baforada de ar fresco levou-lhe o cheiro a lavanda de Belle, quando ela entrou na carruagem, se sentou ao lado de Mae e abriu uma garrafa de brandy.

- Pensei que te apeteceria um bom revigorante disse a Mae.

- Sim, sim - respondeu Mae, que aceitou o copo e esvaziou rapidamente o seu conteúdo.

- Também trouxe isto - Mae segurava numa pequena garrafa de láudano. - Aconselho-o a beber um pouco. Ainda falta muito e alguns caminhos são um pouco difíceis.

Embora não lhe agradasse muito a ideia de o tomar, sabia que o caminho que faltava ia ser muito duro para o seu peito. Aceitou que o mais prudente seria mesmo tomar um pouco daquele medicamento.

Apesar de querer manter a sua mente lúcida.

Agora que podia parar para pensar, concluiu que o ataque não parecia obra de salteadores comuns. Não houvera gritos de "o dinheiro ou a vida" e nenhum salteador fora à carruagem das bagagens tentar roubar os objectos de valor.

A dor aguda que atravessava o seu peito tornava-lhe difícil pensar com clareza. Talvez fosse mais sábio deixar a análise da situação para depois e aceitar uma pequena dose de medicamento.

- Obrigada, senhora - pegou na garrafa.

Ao fim de vários dias a vê-la apenas brevemente, valia a pena sentir-se tão mal só para poder vê-la tão perto novamente. Apesar da dor aguda no seu peito e das náuseas que sentia novamente, deu-se conta de que era capaz de se fixar em cada movimento que ela realizava, nos dedos enfiados nas luvas cinzentas que seguravam a garrafa, no adorável perfil do rosto dela, na cor rosácea que o vento e o exercício tinham pintado nas faces dela, nos olhos de um azul espectacular que olhavam para ele com consideração. Saboreava o sentimento de ligação que havia entre eles, quando, deliberadamente, deixou que a sua mão tocasse no dedo dela ao pegar na garrafa que lhe oferecia.

Embora o toque daquele contacto tivesse ficado registado nos olhos de Belle, daquela vez ela não retirou a mão rapidamente. Quase parecia que ela também esperava por aquela sensação.

Cuida bem do capitão, Mae - disse Belle ao sair da carruagem. - Partiremos de seguida.

Melancólico, Jack viu-a sair, sentindo a perda da sua presença como se um vento frio tivesse atravessado a carruagem quando ela se foi embora.

"Jack, meu rapaz", avisou-se quando se deitou, cheio de dores, sobre as almofadas, "estás a caminho de te perderes".

Apesar de poder jurar que seria impossível, o esgotamento produzido pelos seus inesperados esforços, combinado com o brandy, o láudano e o calor da manta que Mae lhe pôs em cima, conseguiu atordoá-lo e adormecê-lo. Aquele período de relativa calma acabou quando acordou na paragem seguinte. À hora de almoço, desistiu de mascarar a dor que, apesar de mais brandy e outra dose de láudano, se intensificou ao ponto de anular inclusive o prazer da companhia de Belle durante o almoço, que não conseguiu sequer provar.

Quando, já de noite, Watson parou para anunciar com voz de alívio que tinham chegado ao caminho que conduzia à mansão de Belle, Jack desejava ter ficado em Londres. Nem sequer se sentira pior na retirada da Corunha quando, fraco, a sangrar e meio gelado, teve de se prender ao seu cavalo, sabendo que se caísse seria deixado para trás.

Soltou um gemido quando a carruagem deu um solavanco muito forte e pensou que a ideia de morrer começava a parecer-lhe atraente.

Belle sentiu uma desagradável mistura de ansiedade e culpa quando viu que o capitão, pálido e sem protestar, permitia que Watson o levasse em braços da carruagem até casa. O capitão Carrington devia estar verdadeiramente mal, já que nem sequer tentava caminhar sozinho.

Ela seguiu Watson pelas escadas até ao quarto de hóspedes e fez uma expressão de desagrado quando Carrington se queixou assim que Watson o deitou sobre a cama, onde se limitou a ficar imóvel e com os olhos fechados.

Enquanto Watson, com muita delicadeza, tirava o casaco ao capitão, ela pensava que devia ter insistido para que Jack ficasse em Londres. No entanto ela nunca teria imaginado que Waldo seria tão persistente ao ponto de os seguir para fora da cidade. Assumindo que o ataque fora obra da senhora Jarvis e dos seus capatazes, àquela distância da metrópole estavam provavelmente a salvo. Se a mulher tivesse um fornecimento regular de novas camponesas inocentes, provavelmente acabaria por se contentar com o dinheiro que Belle lhe enviara e simplesmente substituiria Jane. A sua principal preocupação agora era por o capitão poder ter uma recaída longe do médico de Londres.

A sua preocupação intensificou-se quando a cara do capitão passou de pálida a cinzenta e lançou um grito de dor. Fora uma infantilidade da parte dele arriscar-se como fizera, mas também fora maravilhoso e corajoso. Não pensara na sua própria segurança quando abandonara a relativa segurança da carruagem para enfrentar os atacantes apesar da sua fraqueza. Ela quase não conseguira acreditar nos seus olhos quando se virara e o vira com o rufia que atirara ao chão, para o lado da carruagem. E também tinha integridade. Na paragem para o almoço, Belle conseguira ler a dor que sofria na linha branca, que os seus lábios apertados formavam, e nas rugas da sua testa, para não dizer que suportara um dia de solavancos e buracos, sem fazer uma única queixa.

Enquanto olhava para a figura tensa dele, de repente, deu-se conta de que, para se recuperar da sua participação nos acontecimentos do dia, o capitão Carrington teria de permanecer em Bellehaven, não apenas uma noite como previra, mas vários dias pelo menos.

O que mais a preocupava era como a presença de Jack a alterava.

Mas as palavras seguintes de Watson apagaram da sua mente qualquer especulação sobre o tipo de domínio que o capitão pudesse exercer sobre ela.

- Lady Belle - disse o mordomo com pesar, olhando para a mancha vermelha no colete do capitão, - a ferida voltou a sangrar.

 

Tentando controlar o pânico, Belle tentou lembrar-se de todos os tratamentos que o médico fizera ao capitão.

- Reynolds! - chamou pela governanta, que a seguia. - Preciso da minha mala dos remédios, brandy e água quente, depressa.

Enquanto a mulher fazia uma reverência e saía a correr, Belle inclinou-se para ajudar Watson.

- Capitão! Consegue ouvir-me? Já estamos em Bellehaven. Vamos tirar-lhe o casaco e vamos mudar as ligaduras. Receio que a sua ferida tenha voltado a abrir-se.

Carrington conseguiu abrir os olhos com um esforço visível.

- Lamento estar a dar tanto trabalho - sussurrou.

- Não diga tolices. Não diga nada. Tem de descansar.

Durante os minutos seguintes, Belle agradeceu a força de Watson, que conseguia segurá-lo completamente no ar para que lhe tirasse a roupa, incomodando-o o menos possível. Reparou que a governanta trouxera o necessário e disse ao seu paciente, que mantinha os lábios apertados enquanto o despiam:

- Vou limpar a ferida e voltar a tapá-la.

O capitão assentiu e Belle deitou mãos à obra.

- Não tem mau aspecto - disse Watson, observando a ferida depois de ela ter limpado o sangue. - A pele não está vermelha nem quente e o sangue só sai por este lado. Com tudo o que fez hoje, capitão, teve sorte.

- Tinha tido mais sorte se tivesse ficado em Londres - apontou Belle, cheia de culpa.

- Sim, talvez - assentiu Watson, - mas teria sido bastante pior sem ele. Esperemos que o Senhor abençoe os que ajudam os precisados e lhe envie uma rápida cura.

- Ámen! - exclamou o capitão com uma voz trémula que surpreendeu Belle. A sua emoção misturou-se com admiração ao dar-se conta de que, em vez de utilizar as suas escassas forças para se queixar, usava-as para rezar.

Com a ajuda de Watson, Belle voltou a tapar a ferida, prendendo o braço para que não o mexesse. Todos respiraram com alívio quando Watson deitou o capitão sobre as almofadas.

Chegou uma empregada com pão e sopa. Belle antecipou-se à fraca tentativa de Carrington para pegar na colher.

- Por favor, capitão, permita-me. Guarde as suas forças para curar essa ferida.

Jack engoliu mecanicamente o guisado de frango, embora rejeitasse, com um gesto, o pão.

- Agora vai descansar - disse Belle.

Watson aproximou-se com uma camisa de dormir que a governanta trouxera.

- Vou vestir-lha, a não ser que tenha trazido a sua.

- Nunca uso - disse Jack. Piscou-lhe rapidamente o olho e olhou para Belle.

Esta controlou uma gargalhada e confiou que o bom humor dele indicava que o capitão recuperava dos esforços que fizera.

- Fica com o capitão enquanto vou mudar de roupa, por favor. Pedi que me trouxessem uma bandeja disse a Watson.

O mordomo assentiu. Belle tocou na testa do capitão e tirou a mão ao comprovar que a pele, como Watson dissera, estava temperada, mas não quente. Naquele momento, Carrington assustou-a ao mexer a sua mão para a pousar sobre a dela.

- Voltará? - perguntou num sussurro.

Algo agudo e doloroso apertou o peito de Belle. Apertou os dedos flácidos de Jack. Sim, claro - respondeu.

- Ainda bem! - exclamou ele com as suas últimas forças antes de fechar os olhos.

Depois de despir o seu fato de montar, Belle voltou para o lado da cama do capitão. Watson passou por lá várias vezes, oferecendo-se para a substituir para que descansasse, mas ela recusou sempre. Continuava com medo que a heróica defesa que o capitão fizera conduzisse a uma deterioração do seu estado de saúde e que inclusive pudesse matá-lo.

De modo que se sentou ao lado dele durante toda a noite, com a cadeira junto à cama e os ouvidos atentos a qualquer mudança na sua respiração. Para seu sossego, conforme as horas iam passando, os seus frequentes toques na testa de Jack revelavam a ausência de febre. Várias vezes não conseguiu reprimir o impulso de deixar que os seus dedos acariciassem o cabelo escuro das sobrancelhas ou que deslizassem pela pele suave das suas têmporas. Uma vez achou ouvir que ele murmurava:

- Que bom.

Mas estava tão cansada que não sabia se tinha sonhado.

Não estava a sonhar quando acordou de manhã com o pescoço dorido de dormir sobre as costas da cadeira e viu que a luz iluminava o quarto e a sua mão estava sobre o ombro do capitão, por baixo da mão dele.

Olhou-o, dividida entre o desejo de a tirar dali e o de a deixar estar. No mais profundo da sua alma, a figura calma e adormecida fazia-a sentir uma sensação estranha, poderosa e alarmante, mais até do que a que sentia quando ele estava acordado.

Disse para si que certamente se devia à preocupação excessiva e à falta de descanso, já que, em lugar nenhum, nem no seu mundo nem no dele, conseguiria desenvolver uma relação aceitável entre eles. Ela devia afastar a mão, libertá-la com cuidado e descansar um pouco. Tentou, mas não foi capaz.

Em vez disso, com a sua mão livre, acariciou suavemente a testa do capitão. Um pouco depois, ele mexeu-se e abriu os olhos.

O seu olhar inspeccionou o quarto, tentando recordar-se de onde se encontrava. Antes que conseguisse lembrar-se, os seus olhos encontraram-se com os dela e olharam-se com uma intensidade que provocou um nó na garganta de Belle.

Algo se alterou novamente nas profundezas do peito de Belle, quando os lábios dele se curvaram num sorriso.

- Ainda está aí? - murmurou num sussurro fraco. Obrigado.

- E eu fico feliz por o informar que não teve febre, o que é muito bom - disse Belle, que se obrigou a olhar para outro lado enquanto falava.

Naquele momento, apercebeu-se de que Jack segurava na sua mão e quis libertá-la. Ele resistiu um instante.

- Esteve acordada durante toda a noite?

- Adormeci um pouco. Como se sente? Jack conseguiu endireitar-se e sentar-se.

- Parece que muito melhor. É preciso mais do que uma emboscada de três homens para pôr fora de combate um velho soldado.

-Graças a Deus!

- Receio que lady Belle tenha sofrido mais do que eu durante a noite - ele apontou para a cadeira e para o xaile que ainda cobria os seus joelhos. - Não deve ter sido muito confortável.

- Era o mínimo que podia fazer, afinal de contas, ontem salvou-nos.

- Quanto ao que aconteceu ontem, embora esteja contente por ter sido útil, eu adoraria saber mais a respeito da emboscada. Não consegui pensar com clareza depois, mas pareceu-me muito estranha a forma como os salteadores agiram.

Belle corou de culpa.

- Receio que tenha razão. Nós ainda não tivemos oportunidade de conversar depois de os deixar nas mãos do juiz, mas desconfio que saberá que a intenção deles não era roubar. Suponho que o capitão merece uma explicação, tal como merece o meu pedido de desculpas por o ter posto novamente em perigo.

- Prefiro a explicação.

- Está na hora de tomar o pequeno-almoço. Tem fome?

- Morto de fome - admitiu ele com um sorriso. Belle sentiu que a pressão do seu peito diminuía.

- Um bom sinal. Vou pedir para que lhe tragam alguma coisa para comer.

Depois de fazer soar uma sineta, regressou para junto dele.

- Agora a sua explicação. Lembra-se daquela tarde em que Jem foi ao quarto a correr chamar-me? Suponho que já terá reparado que os meus empregados são pouco convencionais. Eu acolhi uma menina que era obrigada a trabalhar num dos bordéis do bairro do teatro. Apesar de ter mandado uma boa quantia para pagar à proxeneta, não lhe pareceu suficiente.

Belle sentiu que corava novamente.

- Perdoe-me por dizer isto de uma forma tão crua, mas alguns homens preferem uma menina virginal como Jane e pagariam bastante bem por ela. A proxeneta mandou um dos seus homens para tirar Jane à força de minha casa. Depois daquela tentativa, decidi deixar Londres para pôr Jane fora de perigo.

- Não devia ter deixado o assunto nas mãos das autoridades? - inquiriu o capitão.

- Tanto Mae como Watson me aconselharam a fazer o contrário, por pensarem que a lei não se preocuparia muito com o destino de uma prostituta, embora fosse jovem. Consultei um amigo com ligações ao governo e ele concordou que, sem provas de testemunhas mais... credíveis, provavelmente não fariam nada. Como parecia que a lei não poderia ajudar-nos muito, decidi trazer Jane para Bellehaven. Estava tão certa de que aqueles velhacos deixariam de ser um problema assim que saíssemos de Londres, que não me preocupei em informá-lo do possível perigo. E estou muito arrependida.

- Se fomos atacados por esse tipo de vilãos, só posso estar contente por ter podido ajudar. No entanto receio que tenha de me aproveitar da sua hospitalidade por mais tempo do que a noite que lhe solicitei inicialmente.

- Claro! Percebe quão necessário era proteger Jane? - perguntou ela, que desejava, sem saber por que razão, a sua aprovação.

- Certamente, e é admirável que tenha feito isso, especialmente quando você também fica em perigo.

- Não tão admirável - disse Belle em voz baixa. As pessoas como Jane e eu devemos ajudar-nos mutuamente já que poucos se incomodariam.

- Ainda não posso ajudar muito, mas, enquanto estiver sob o seu tecto, ajudarei como puder. Talvez possa ajudar Watson a estabelecer uma estratégia de defesa para fazer fracassar qualquer tentativa de assalto a Bellehaven no caso de aqueles bandidos a perseguirem até aqui. Isso acalmaria os seus medos?

- Não posso abusar mais de si, mas obrigada - respondeu ela. - Sentir-me-ei melhor sabendo que temos um plano de defesa organizado por alguém com a sua experiência militar. Mas tem de me prometer que apenas irá organizar. Contratarei alguns jovens da zona para que ajudem Watson com o resto.

Um toque na porta foi seguido da entrada do mordomo com uma bandeja.

- Bom dia, menina Belle. Capitão, que bom aspecto tem!

- Obrigado, Watson. Sinto-me muito melhor.

- Podes ajudar o capitão enquanto eu me ponho apresentável? - perguntou Belle.

- Lady Belle está sempre linda - disse o capitão, com um ardor que fez com que ela se sentisse incomodada.

- Deixo-o nas mãos de Watson - disse.

Sentiu que o olhar dele a seguia durante o trajecto até à porta e rezou para que ele se curasse depressa e se fosse embora para que conseguisse resistir à tentação de se apoiar naquele ombro forte que ele não cessava de lhe oferecer.

Jack lutou mentalmente ao ver que Belle se retraía e saía do quarto. Em algum momento seria capaz de controlar os comentários de admiração que lhe escapavam e que ela considerava como galanteios vãos?

Apesar do passo em falso, sentia-se animado, visto que se sentia muito melhor, o peito doía-lhe menos e a dor da sua ferida era mais suportável. Aparentemente, graças a Deus, o seu heroísmo do dia anterior não comprometera drasticamente a sua recuperação.

Não se importava de ter de esperar mais alguns dias do que o previsto em casa de Belle. Oxalá o ritmo da sua recuperação lhe permitisse aproveitar aquele tempo em seu benefício!

Já que Watson ia ficar ao seu lado, tentaria tirar proveito da sua doença. Quando o mordomo acabasse de lhe dar de comer, perguntar-lhe-ia o seu ponto de vista sobre o acontecimento do dia anterior e sobre Jane.

Embora parecesse pouco provável, não descartava a possibilidade de que Belle tivesse sido também uma rapariga inocente que caíra numa armadilha e se vira obrigada a viver como uma qualquer. Teve de reprimir um sorriso, quando imaginou a reacção da sua mãe se descobrisse que ele estava sob um tecto que cobria pelo menos três companhias pouco recomendáveis.

Alguém seguira o grupo de Belle com más intenções. As especulações sobre quem podia tê-lo feito e porquê apagaram o sorriso dos seus lábios.

Perante a insistência de Jack, Watson permitiu que o seu paciente bebesse o café puro, mas, quando se virou para sair, Jack disse-lhe:

- Fique, por favor. Eu gostaria de saber um pouco mais sobre Jane e a sua ligação com os homens que nos atacaram ontem.

Watson franziu o sobrolho.

- Não posso garantir que esteja relacionado, mas parece suspeito. A menina Belle tirou Jane da casa da senhora Jarvis, uma proxeneta velha e malvada. Paga a um rufia, que se chama Waldo, para manter a ordem entre as raparigas e os clientes. Parece que Jane agradava a Waldo. Ainda que, para mim, um homem que toca numa menina daquela idade precise de uma boa dose de murros.

- Waldo tentou raptar Jane da casa de Belle?

- Sim. A menina Belle ia denunciá-lo, mas Jane rogou-lhe para que não o fizesse porque Waldo dissera-lhe que se vingaria de Belle e de qualquer pessoa que a ajudasse.

- Céus! - exclamou Jack, furioso por alguém se ter atrevido a ameaçar Belle, algo que ela não lhe contara.

- Pois sim - confirmou Watson. - Ela falou inclusive com pessoas importantes sobre a possibilidade de os denunciar, mas no fim convencemo-la de que o melhor seria deixar a cidade.

- Portanto os que nos atacaram queriam capturar Jane?

- Acho que sim - disse Watson, ao mesmo tempo que assentia com a cabeça.

- Acha que tentarão aqui?

Watson reflectiu durante algum tempo.

- Não acredito que venham tão longe, mas será melhor estarmos preparados.

Aquilo era decisivo. Embora Jack tivesse mencionado vagamente a Belle a ideia de organizar um sistema de defesa na propriedade, agora que sabia que fora explicitamente ameaçada, dedicar-se-ia a preparar um plano e uma estratégia de defesa e talvez, desse modo, conseguisse prolongar a sua estadia, dando a sua ajuda caso fosse necessário passar à prática.

- Lady Belle mencionou a possibilidade de contratar alguns homens suplementares, o que seria muito inteligente, assim como voltar a visitar o juiz para ver o que descobriu a respeito dos assaltantes. Talvez, com a sua experiência no ringue e a minha no exército, consigamos estabelecer um plano para protecção da casa. Simplesmente para prevenir.

Watson assentiu.

- A minha senhora é uma jovem muito corajosa, mas não me apetece vê-la envolvida com homens como os de ontem. Aqueles homens não lutam como cavalheiros.

Fez uma pausa e olhou para Jack.

- É verdade que ela o venceu com a espada?

- Aqui tem a prova - disse Jack, enquanto fazia um gesto com a mão livre.

Watson ficou surpreendido.

- Como eu gostaria de ter visto esse combate! Ela pediu-me uma vez que a treinasse na arte do boxe. Eu recusei, claro, porém, estive tentado a fazê-lo. Imagine a fortuna que um homem poderia ganhar com todos os que iriam vê-la lutar.

- Ela é muito... insólita. Por falar em coisas insólitas, como se transformou em seu mordomo? - perguntou Jack, vendo a oportunidade de satisfazer aquele ponto da sua curiosidade. Pensou com ironia que os seus pares de patente achariam mais insólito vê-lo a falar assim com um criado do que a mudança de ofício de Watson.

Watson não disse nada durante alguns instantes. Jack estava prestes a pedir desculpa por lhe ter feito uma pergunta tão pessoal quando o mordomo começou a falar.

- Devo admitir que encaixei muitos maus golpes nos meus últimos combates. Lutar era tudo o que eu tinha na vida e tinha-me tornado um profissional, mas, depois do último combate que fiz, em que fiquei uma semana sem ver nem ouvir, percebi que, se não parasse, seria o meu fim. Além disso, quando a guerra acabou não era fácil encontrar emprego, especialmente um homem que não sabia fazer mais nada senão usar os punhos. Portanto arranjei trabalho num bordel para proteger as raparigas e expulsar os clientes que estavam muito bêbados e que criavam problemas. Lá conheci Mae, antes de ela se ter envolvido com Darlington. Mas tive... um ataque. Uma noite, um cliente bateu-me no meu lado magoado e, quando recuperei os sentidos, ele tinha destruído o local. A madame zangou-se muito e despediu-me. Mae sugeriu-me que fosse a casa de lady Belle e ela contratou-me. Depois, quando o mordomo a deixou depois da morte de lorde Bellingham, ofereceu-me o lugar. Eu, mordomo! abanou a cabeça. - Tento desempenhar as minhas funções o melhor possível para não a desiludir.

- Tenho a certeza de que não a desilude - disse Jack.

- Depois do que aconteceu ontem - continuou Watson, - estou contente por ter vindo connosco, capitão, embora lamente muito pela sua ferida. Eu ainda tenho... ataques - admitiu, e Jack conseguiu sentir o que custava a um campeão de boxe confessar as suas fraquezas. - Daria um tiro na cabeça se alguma coisa de mal acontecesse a lady Belle, porque, se eu não a proteger, ela é pouco mais forte do que Jane. Mas tem um enorme coração e ajuda todos os necessitados que dela precisam.

- Como Jem sugeriu Jack.

- Jem! - Watson suspirou. - Lawton ainda pensa transformá-lo em criado se conseguir fazer com que pare de roubar. É muito esperto, mas muito atrevido, o chefe do bando dele usava-o como trepador para fazer os assaltos. Não era maior do que um pedaço de tição quando lady Belle o encontrou preso na lareira no Inverno passado, com as mãos e os pés cheios de queimaduras e demasiado fraco para conseguir sair.

- E claro, a nossa menina Belle não foi capaz de o entregar à polícia, portanto comprou-o ao chefe do bando.

- Também o salvou, como a Jane. Watson assentiu.

- Também ajudou Mae e a mim - o seu sorriso desvaneceu-se e olhou com dureza para Jack. - Qualquer um de nós faria qualquer coisa por ela, e não suportaríamos que ninguém a insultasse.

Jack perguntou-se se aquilo era uma ameaça para o caso de ter intenções pouco honoráveis.

- Tê-lo-ei em conta - disse com seriedade. - Mas não pensará que eu quero fazer-lhe mal.

Watson observou-o.

- Talvez possa fazer-lhe mais mal do que imagina, capitão. Ou bem. Quem sabe?

Depois daquele enigmático comentário, a sua beligerância desapareceu.

- É melhor deixá-lo descansar. Depois falamos dos planos de defesa - após fazer uma reverência, pegou na bandeja e saiu do quarto.

Watson, Mae, o carteirista Jem e agora aquela Jane. Parecia que lady Belle tinha o hábito de ajudar infelizes e abandonados. Tentou examinar as implicações de tudo aquilo. Era curioso. Uma cortesã que dirigia a sua casa como se se tratasse de uma missão de franciscanos.

Mas, mais cansado do que queria admitir, depois do pequeno-almoço, Jack comprovou que o sono o vencia. Acordou horas depois, faminto, com o quarto banhado por uma luz dourada que parecia ser o sol ao fim da tarde.

De um quarto próximo chegava o som suave do que só podia ser um concerto de Mozart, executado com mestria num piano de cauda. Tentava adivinhar que peça era quando Mae entrou no quarto.

- Finalmente, acordado. Deve estar faminto, pois Belle disse à criada que não te acordasse para o almoço.

- Agradeceria algo mais substancial do que sopa desta vez, se não se importar. A quem devo agradecer pela maravilhosa serenata?

- A Belle, claro. Adora música e toca muito bem. Eu seria incapaz. Tenho a certeza de que os meus dedos não conseguiriam tocar três notas seguidas. Toca maravilhosamente, não toca?

- Maravilhosamente, de facto - murmurou ele, encantado pela beleza do concerto e surpreendido pela excelência da interpretação.

Sem dúvida, uma cortesã da reputação de Belle devia estar preparada para se mexer em ambientes elegantes, em salões e talvez em jogos de sorte e de azar. Mas nunca ouvira falar de uma cortesã que tocasse Mozart.

- Watson disse-me que o capitão melhorou muito desde ontem - comentou Mae. - Tem muito melhor aspecto, os seus olhos estão mais claros e a cara está com melhor cor.

- Sim, de facto, estou muito melhor. Esta noite espero conseguir levantar-me para o jantar. Enquanto isso, adoraria ter a sua companhia.

- Deixe-me pedir que lhe tragam a comida. Eu não sei tocar piano nem ler, mas adorarei sentar-me aqui consigo. Belle e lorde Egremont adoram jogar às cartas, mas eu também não tenho cabeça para as cartas.

- Mas pode conversar comigo, espero. Nisso é óptima.

Mae riu-se.

- Claro que podemos falar. Embora pense que seria melhor que o capitão ficasse a descansar no quarto mais um dia, para que a sua ferida cicatrize bem. Não vale a pena começar a andar demasiado cedo e acabar novamente na cama.

Sabendo que tinha pouco tempo disponível para penetrar no mistério de lady Belle, Jack sentia-se demasiado impaciente para ouvir os conselhos de saúde de Mae, todavia, como não desejava discutir, limitou-se a assentir com a cabeça.

- Agradeço a sua preocupação, mas chega de falar de mim. Como está você? Recuperada dos medos e dos sustos de ontem?

- É melhor não pensar nisso. Belle, graças a Deus, pediu ao cocheiro o seu tónico para acalmar os meus nervos.

Era evidente que o tónico do cocheiro era álcool de alta graduação. Jack reprimiu um sorriso.

- E a criada Jane? Watson disse-me que desmaiou depois do ataque.

- Não tenho dúvidas nenhumas com as pistolas e todas aquelas coisas. Ela deve estar muito agradecida pelo seu resgate, mas não sabe como agradecer. Esta manhã trouxe-me chocolate e acendeu a minha lareira pessoalmente e não pára de me agradecer por ser tão amável com ela. Fez-me sentir envergonhada, tenho de admitir, pois eu não era a favor de a ajudar.

Se a gratidão da rapariga a levava a realizar as tarefas geralmente relegadas aos criados mais baixos da casa, talvez fosse a pobre inocente que Belle ajudava.

- Parece que é uma boa rapariga - acrescentou Jack. Mae assentiu com vigor.

- Sabe o que ela fez esta manhã? Trouxe-me um vestido que a minha aia lhe dera porque se tinha rasgado o cetim. Pois Jane arranjou-o e acrescentou um corpete de seda cor-de-rosa que ela mesma desenhou e agora o vestido está melhor do que o original. Aquela rapariga tem muito jeito para a costura. Mae dirigiu um olhar para Jack e riu-se.

- Prepare-se, capitão. Quando Jane descobrir o que fez para a salvar, acho que vai querer fazer-lhe um guarda-roupa novo.

Jack riu-se também e animou-se, ao descobrir que o esforço já só lhe provocava uma pequena dor.

- Já que vou trocar o meu uniforme por roupas de civis, talvez deva aproveitar. Ela quer ser costureira?

Belle disse-me que sempre quis ser empregada de uma dama. Nenhuma dama da sociedade aceitaria os seus serviços agora, mas pode ser uma boa costureira. Não se atreverá a trabalhar em Londres, mas acho que, de qualquer modo, prefere o campo. Nem imagina como estava feliz esta manhã - Mae fez um gesto de estranheza. - A elogiar os pássaros e as árvores e o ar fresco. Quem a ouvisse pensaria que estava no paraíso.

Mae fez uma pausa e franziu o sobrolho ligeiramente, depois olhou para ele com os olhos brilhantes.

- O senhor capitão tem uma grande propriedade no norte, não tem? E o suficientemente longe para que Jane esteja segura. As mulheres da sua casa adorarão ter uma costureira como Jane. Será que pode contratá-la?

Jack imaginou-se a explicar à sua desaprovadora mãe como chegara à porta de casa com uma jovem, certamente adorável, mas definitivamente pouco recomendável. A reacção da dama quando fosse informada da ocupação prévia da menina seria, certamente, a pior. Hesitou, sem saber o que responder, ou se devia explicar a Mae as inúmeras razões pelas quais a sua bem-intencionada sugestão era impossível.

Mas antes que conseguisse pensar numa resposta que recusasse a proposta sem insultar Jane nem Mae, a mulher percebeu e corou.

- Rogo-lhe que me perdoe, capitão. Esqueci-me de que Watson me disse que a senhora sua mãe e a sua irmã vivem lá. Suponho que lhes daria um ataque se o senhor aparecesse à porta com alguém como Jane. O que se passa é que, como o senhor fala com toda a gente normalmente, me esqueci de que é um cavalheiro. Desculpe-me por falar sem pensar, milorde.

Jack olhou para Mae com alguma consternação. Tanto a sua experiência no exército, onde sobrevivera e lutara e, muitas vezes, salvara a vida de soldados de todas as classes sociais, como a especial camaradagem que havia naquela casa, tão diferente da rígida hierarquia que encontrava nas casas da alta sociedade, lhe agradavam mais do que queria admitir.

- Por favor, Mae, a minha mãe é filha de um conde, mas eu sou um simples senhor Carrington e espero que sempre me considere assim.

Mae respondeu-lhe com um ligeiro sorriso.

- Talvez não tenha um título a acompanhar o seu nome, mas o senhor é um cavalheiro e a sua mãe será sempre uma nobre.

- Capitão. Chame-me assim, sem mais nada, ou terei de assumir os ares de grande senhor que diz que tenho e obrigá-la a tratar-me como tal.

Mae olhou para ele com reprovação e abanou a cabeça.

- O senhor é um malandro que vale ouro. Tratá-lo-ei por capitão. Mas é melhor descansar se esta noite quer ir até à mesa.

Levantou-se e fez-lhe uma reverência.

- Até mais logo, milorde - acrescentou com um piscar de olho.

Jack suspirou. Lady Belle presidia uma estranha amálgama de empregados que agiam mais como uma família do que como uma hierarquia ao serviço doméstico. Indivíduos que nutriam uma lealdade feroz por ela e que se mostravam muito protectores com a sua senhora que, em justa correspondência, os tratava mais como familiares do que como empregados.

E o que acontecera a lady Belle? Naquele momento, tinha a certeza de que era muito mais do que uma mulher inteligente que utilizara a sua beleza para chegar à mais alta sociedade. Qualquer que fosse a sua família, parecia ter sido educada convenientemente.

A forma de falar e os gestos podiam copiar-se, a destreza nos jogos e a conversa interessante podiam adquirir-se, mas a mestria na música e os conceitos de honra, lealdade e sensatez que embelezavam todos os seus actos... essas eram qualidades que adquirira durante os seus anos de crescimento e educação numa casa aristocrática.

Além disso, ao contrário da sua amiga, que pavoneava a sua sensualidade, Belle ocultava deliberadamente a sua beleza. Nunca a tinha visto, nem sequer na ópera, vestida com uma roupa que mostrasse mais do que um modesto decote subido. Durante a maior parte do tempo, usava o seu cabelo apanhado e o seu corpo estava sempre escondido por vestidos que lhe recordavam os da tutora da sua irmã.

Num súbito ataque de percepção, perguntou-se se a teriam educado para aquele destino. Uma filha de um nobre empobrecido que fora enviada para ganhar o pão de cada dia e que fora seduzida pelos desejos impuros de um patrono amoral. Encontrara-a Bellingham na sua casa de campo e arruinara-lhe a vida? Ou seria uma dama desesperada que aceitara a sua protecção?

Talvez o facto de aceitar a oferta de Bellingham tivesse sido melhor para Belle do que ter sido atirada indefesa para as ruas.

Se fosse essa a sua história, estava claro que ela tentava, friamente, reunir bens suficientes para se permitir rejeitar aristocratas que competiam para serem o seu próximo protector, embora fossem tão ricos como lorde Rupert.

Talvez por isso ela tivesse tanta simpatia por Jane e pelos outros deserdados, pisados pelos que tinham mais riqueza ou poder.

Jack pensou com ironia que começava a sentir-se um revolucionário.

Apesar de tudo, agora, simplesmente não podia deixá-la. Lady Belle sentia-se atraída por ele, tinha a certeza. De algum modo, devia começar a reforçar a amizade deles, persuadi-la a confiar nele e a contar-lhe a sua verdadeira história.

Se pudesse... O quê? Era demasiado tarde, numa sociedade como aquela, para cavalgar como um príncipe encantado que vai em auxílio da rapariga enganada... se esse fosse o caso.

Concluiu que, independentemente do que fizesse, teria de agir com cautela e não esquecer a advertência de Watson. Apesar de não poder culpar o mordomo, era surpreendente que Watson, que sabia ver as coisas com clareza, considerasse a mulher que servia merecedora de toda a sua lealdade e dos mais honoráveis cuidados. E o que estava disposto Jack Carrington a oferecer àquela mulher que, a pouco e pouco, se apoderara da sua mente, dos seus pensamentos e de todos os seus sentidos?

E como ia fazer com que aquela mulher fizesse parte integrante de todo o seu futuro?

 

A meio da tarde, Watson passou pelo quarto de Belle para a informar de que o capitão Carrington o chamara para lhe pedir que o ajudasse a vestir-se para o jantar.

- Vestir-se para o jantar? - repetiu Belle incrédula.

- De certeza que não vai tentar essa tolice quando na noite passada mal conseguia andar e respirar.

- Agora está muito melhor, embora tenha as minhas dúvidas de que consiga descer e subir as escadas ou aguentar estar sentado durante todo o jantar. De qualquer maneira, queria que a senhora soubesse primeiro.

- Obrigada, Watson. Diz ao cozinheiro que o capitão vai jantar no quarto dele como lhe disse previamente. Eu falarei com ele.

Teria recuperado assim tão depressa apenas num dia? Apesar de duvidar de algo tão milagroso, só restava a Belle esperar que estivesse a progredir com rapidez, já que a recuperação dele significava a possibilidade de se livrar da sua perturbadora presença.

Durante todo o dia, mantivera-se deliberadamente ocupada com a miríade de detalhes que implicava manter a casa, como conversar com os empregados do estábulo e falar com o seu administrador sobre o gado e a colheita da Primavera. Durante o dia todo, resistira à tentação, que a assaltava continuamente, de ir ver o capitão.

Apesar de dizer a si mesma que não desejava incomodar o descanso dele, sabia que a verdadeira razão pela qual se obrigava a não se aproximar era pela atracção demasiado forte que sentia. Ajudava pouco à sua paz espiritual reconhecer que ele era capaz de a distrair dos seus assuntos com tanta facilidade. Era óbvio que tinha de conter aquele impulso ridículo que a levava a falar com ele, a pedir-lhe conselhos... a acreditar nele.

Aquilo significava que devia revogar cordialmente o desejo de ele jantar fora do seu quarto. Não ia permitir que se esforçasse mais do que devia e atrasar ainda mais a sua recuperação.

No entanto, enquanto ia a caminho do quarto do capitão, não conseguiu reprimir a esperança de que talvez tivesse de ficar durante mais algum tempo.

Depois de bater à porta, entrou no quarto.

- Boa tarde, capitão! Watson disse-me que queria descer para jantar?

Embora se tivesse preparado para os sentimentos que a assaltavam quando se aproximava dele, os seus nervos estremeceram quando os olhos dele brilharam e ele sorriu ao vê-la.

- É verdade, senhora. Já é hora de parar de preguiçar.

Uma ambição admirável - respondeu ela, tentando ignorar o grande poder daquele sorriso. - Embora me sinta muito feliz por se sentir capaz de tentar, depois do que aconteceu ontem, não me atrevo a permitir que se arrisque a outra recaída.

- Tendo estado moribundo ao seu lado duas vezes, entendo a sua preocupação. Mas garanto-lhe que melhorei muito. Estive a andar no quarto esta tarde e sinto-me mais forte do que quando deixámos Londres. Não lhe disse que os velhos soldados são difíceis de vencer?

Era verdade que tinha muito melhor semblante. O aspecto debilitado, a expressão de dor da sua boca e a sensação de sofrimento tinham desaparecido. Uma cor saudável tingia as faces dele e os seus olhos escuros faiscavam. Emanava uma aura de força e confiança e uma virilidade que apelava profundamente aos sentidos dela.

Belle respirou fundo para tentar acalmar os seus nervos. Excepto quando se tinham enfrentado na esgrima, momento em que a sua percepção do capitão como homem se viu diminuída pela sua concentração nele como oponente, era a primeira vez que estavam tão juntos sem ele estar ferido ou vulnerável.

O capitão ferido já era muito atraente. O capitão recuperado era demasiadamente irresistível.

- Seria suficientemente amável para não aumentar a minha preocupação e aceitar permanecer pelo menos mais um dia no seu quarto?

- Permite-me fazer desaparecer essa preocupação mostrando que posso jantar sem sofrer terríveis consequências?

Belle hesitou. Mais do que aliviar a sua preocupação, a ideia de enfrentar todo aquele encanto na sala de jantar era quase tão alarmante como o pensamento de que sofresse uma recaída.

Por outro lado, ele era um soldado habituado à acção e também convidado dela. Dificilmente podia ordenar-lhe que ficasse no quarto, como a um menino doente.

- Claro, pode jantar na sala de jantar se assim preferir. Eu acho que vou comer muito pouco devido à minha preocupação - acrescentou.

Afinal de contas, um convidado que se sentia supostamente agradecido à sua anfitriã não podia desejar causar-lhe angústias adicionais.

O capitão dirigiu-lhe um olhar de compreensão e ela não teve outro remédio senão baixar o olhar.

- Devia mostrar-me resistente a estragar a sua digestão - replicou. - Se jantar comigo é tão preocupante, pedirei a Watson que prepare um lugar para mim na cozinha.

Apesar da amável expressão de Carrington não se alterar, Belle deu-se conta de que pensava no que dizia. Depois de o ter tratado como um inválido durante mais de uma semana, achava desconcertante ter de enfrentar a firme resolução e a inteligente resposta de um soldado calejado.

Impressionada pela resposta dele, replicou com secura:

- Consigo reconhecer uma tentativa de troca de favores quando a ouço. O que quer em troca de ficar no seu quarto?

- Permita-me sentar-me numa cadeira junto a uma mesa - respondeu ele imediatamente. - E lady Belle tem de jantar comigo.

Belle conseguiu esconder o seu medo com dificuldade. Se jantar com ele na sala de jantar lhe parecia perturbador e íntimo, partilhar uma refeição no quarto dele era ainda pior. No entanto, ele parecia capaz de seguir em frente com a sua ameaça de descer à cozinha, onde os seus empregados, que pela ajuda que o capitão dera durante o ataque falavam dele com adoração, fariam tudo o que lhes pedisse em vez de o mandarem de volta para a cama.

- Já que não consigo sentir-me bem a vê-lo esforçar-se em excesso, suponho que devo satisfazer os seus desejos - e acrescentou com um toque de aspereza: Enganou-me, como Napoleão fez a Wellington antes de Waterloo.

- Ah, mas no fim Wellington ganhou!

- Só graças a um letárgico Ney e a um leal Blucer. Eu não tenho esses reforços. Postos à prova, receio que os meus empregados me abandonem e se unam sob a sua bandeira como os monárquicos fizeram com Napoleão quando fugiu de Elba.

- É uma estudiosa da guerra? - perguntou Carrington, franzindo o sobrolho.

- Leio os jornais como qualquer outra pessoa - respondeu ela, que não desejava parecer tão entendida para não suscitar a curiosidade dele. - E tenho um amigo no governo que costumava explicar-me. Mas chega de conversa. Por favor, senhor, já que vamos jantar juntos, pode ser dentro de uma hora? perguntou com exagerada cortesia.

- Parece-me perfeito, senhora - respondeu ele com uma vénia.

- Vou preparar tudo, então - com uma reverência tão exagerada que teria sido mais do que suficiente nas salas reais, Belle saiu do quarto.

Uma hora em ponto depois, com o vestido mais simples possível mas que ao mesmo tempo pudesse ser adequado à situação, Watson anunciou-a antes de entrar no quarto do capitão.

Do seu lugar à mesa, junto à lareira, com a louça e a prata a reflectir sobre ela o fulgor das velas, o capitão levantou-se e inclinou-se diante dela.

Ela vira Carrington com o seu uniforme do outro lado do teatro e na sala de Armaldi. Habituara-se a vê-lo de perto enquanto dormia ou se mexia, meio inconsciente e com os olhos cheios de dor. Mas nenhum daqueles encontros a tinham preparado para a imponente presença do capitão quando se levantou, vestido com belo uniforme de gala e com o seu penetrante olhar a exercer uma atracção quase hipnótica. Os joelhos de Belle tremeram e, por um momento, não conseguiu respirar.

- Não vai sentar-se comigo? - perguntou ele.

Belle sentou-se, sentindo-se como uma idiota. Jantara com homens muito atraentes e ainda era perseguida por um bom número de cavalheiros de Londres, mas nenhum a afectara tanto como o capitão Carrington.

- Senhora, tem um aspecto encantador - disse ele. Pegou na mão dela e levou-a aos lábios.

Belle sentiu que a carícia lhe subia por todo o braço, apesar de retirar a mão tão depressa quanto a educação lhe permitia.

- Não, capitão, esta noite o senhor eclipsa-me - replicou, aliviada por comprovar que a sua voz não reflectia a sua agitação interna. - Entendo que as jovens entreguem o seu coração aos soldados. As mães da alta sociedade devem ser avisadas para guardarem as suas filhas quando forem aos bailes.

- Não são as jovens que um homem deseja impressionar.

Tentava seduzi-la? Decidida a ignorar o comentário, Belle indicou a Watson que servisse o primeiro prato. Ao longo dos anos, aprendera uma coisa: os homens adoravam falar de si próprios. Valeria a pena arriscar uma demonstração das suas capacidades intelectuais, pois com isso podia concentrar a conversa nas experiências de Carrington e assim evitar mais comentários galantes.

- Mencionou que foi ferido na Corunha. Pelo que percebi, a retirada foi espantosa, com chuva e neve. Como é que escapou com uma ferida de sabre no ombro?

Ele fez um gesto como se a lembrança não fosse agradável. Mas ela não se importava, desde que, daquela forma, conseguisse manter os seus pensamentos afastados dela.

- Prendi-me ao meu cavalo, uma boa montada, graças a Deus - o capitão abanou a cabeça para dissipar a lembrança. - Assim entende porque sou capaz de me recuperar com muito mais rapidez aqui. Com efeito, sinto-me tão bem esta noite apesar dos meus esforços de ontem, que começo a pensar que a ferida deve ser menos grave do que o médico pensava.

- Essa é uma notícia excelente - disse Belle.

- Sim, já que, se a minha recuperação continuar a este ritmo, serei capaz de ter uma parte mais activa nos preparativos de defesa que mencionámos. Já discuti o assunto com Watson. Com a sua permissão, gostaria de permanecer em Bellehaven o tempo suficiente para garantir que as medidas que são postas em prática permitem que fique segura.

Belle achou as suas palavras tranquilizadoras e perturbadoras ao mesmo tempo. Embora não quisesse depender dele, sentia que o problema desaparecia simplesmente por saber que tentava garantir a sua protecção. Mas também a assustava que adiasse a sua partida.

Sabia que seria muito melhor para os seus sentidos e para a sua saúde mental despedir-se o mais depressa possível.

Mas porque é que aquela perspectiva lhe agradava cada vez menos? Tentou levar a conversa novamente para ele.

- Tomou parte na campanha de Espanha?

- O primeiro regimento esteve envolvido na maior parte da campanha.

- Ah, já sei! Acho que o general Moore vos elogiou por serem praticamente o único regimento que não transformou a retirada da Corunha numa fuga desordenada. Entrou em combate com eles depois?

- Depois de recuperar em casa durante algum tempo, estive em quase todos os combates, desde Barrosa e Baiona até à Bélgica.

Belle esperou que Watson servisse o segundo prato antes de continuar.

- Esteve com Maitland em Waterloo?

- Sim. Ajudámos os Coldstream Guards em Hougoumont ao princípio do dia, mas chamaram-nos de volta ao regimento antes do ataque principal às linhas de Wellington.

- Devo controlar imediatamente as minhas objecções em relação a qualquer actividade que deseje empreender.

Um soldado que sobreviveu não só à Corunha mas também ao avanço da Guarda Imperial de Napoleão deve ser quase invencível.

- Este soldado invencível conseguiu sobreviver à retirada graças à pontual intervenção dos rapazes do Regimento 52 de sir John Colborne.

- Não lhe apeteceu ficar em serviço em Paris durante a ocupação com o duque? Viu o resto da Europa?

- Paris é uma cidade encantadora, como sempre, mas não me apetece muito visitar uma paisagem que foi devastada pela guerra durante quase vinte anos. Vi devastações suficientes causadas por exércitos nos seus avanços. Prefiro ficar nos tranquilos campos verdejantes de Inglaterra.

- Significa que vai estabelecer-se nas suas propriedades?

- Sim, depois de acompanhar a minha irmã durante algum tempo. Embora tenha um bom administrador, tenho vontade de tomar as rédeas dos negócios. Talvez até faça uma visita a Cok, em Holkham, e estude as últimas técnicas de agricultura - riu-se. - Ainda que ache que perderei toda a estima que alcancei aos olhos de Mae, se disser que esse é um objectivo meu.

- Ela vai achá-lo incompreensível ela sorriu.

- Também prefere a cidade?

- Não, Bellehaven é exactamente onde desejo estar. Tirando uma ou outra visita ocasional a Londres para as compras e para o teatro. Quero estabelecer-me aqui.

- Cresceu no campo? -Sim.

Houve um pequeno silêncio, enquanto ele esperava para ver se ela decidia alargar-se na resposta. Em vez disso, Belle pediu a Watson que retirasse a louça e trouxesse o chá.

Aparentemente aceitando a sua reticência, enquanto Watson os servia, ele prosseguiu:

- Devo felicitá-la pelo seu talento musical. Mae disse-me que era lady Belle quem estava há pouco a tocar piano. Uma peça de Mozart, creio.

- Sim - respondeu ela, surpreendida e impressionada pelos conhecimentos musicais dele. - Receio que me falte muita prática.

- O que ouvi soava muito bem. Deve ter começado as lições em muito tenra idade.

Belle pensou que se impunha a cautela. O capitão estava, definitivamente, a procurar informação, como já fizera com Mae e Watson, que lhe confessaram as suas conversas com ele. Era muito invulgar que um homem da categoria dele expressasse interesse por indivíduos que a sociedade considerava inferiores. Belle não tinha qualquer objecção que os seus criados relatassem ao capitão tudo o que quisessem das vidas deles, o que eles queriam contar ou o que o capitão desejasse ouvir.

Felizmente, nem sequer Mae sabia o suficiente do seu passado para constituir uma ameaça. Sem intenção de aumentar o pouco que ele tivesse conseguido recolher, limitou-se a comentar:

- Adoro Mozart! Há tanta ordem e simetria na sua música que a acho tranquilizadora.

- A minha irmã adora harpa, que acompanha com a sua encantadora voz. Está inscrita na Sociedade Filarmónica?

- Sim. As pessoas podem ouvir música lá, o que nem sempre é possível no caso da ópera.

Jack abriu a boca mas voltou a fechá-la.

Provavelmente, pensou Belle, ele ia fazer algum comentário sobre os recitais privados organizados pela alta sociedade e que permitiam ainda uma melhor audição, mas dera-se conta de que ela não podia assistir a esses eventos.

Mesmo assim, gostou muito que ele tivesse iniciado uma conversa tão livre de sedução e de insinuações. Ela temera que, quando recuperasse a saúde, decidisse persegui-la, fosse por desejo ou por aborrecimento.

Excepto Egremont, nenhum dos amigos de Bellingham expressara interesse pelo intelecto dela. As suas conversas consistiam no comentário dos mexericos da moda salpicados com empoladas galanterias e tentativas de a impressionar com a sua riqueza, poder ou habilidade como potenciais amantes.

E por isso devia ficar duplamente alerta perante a insidiosa atracção de um homem que parecia mais interessado em conhecê-la do que em conquistá-la, que solicitava a sua opinião em vez de os seus favores.

O mais adequado era pôr fim à noite antes que acabasse por desejar ainda mais a companhia dele.

- Devo ir-me embora - disse, pondo a chávena sobre o pires. - É o seu primeiro jantar fora da cama e deve estar cansado.

- De maneira nenhuma! Senti-me cada vez mais forte com o passar do dia e estou a gostar da sua companhia. Não pode ficar um pouco mais? Talvez conceder-me um jogo de cartas? Penso que jogará com frequência com Egremont.

Surpreendida, perguntou-se se havia uma pontinha de ciúmes na voz dele. Mas surpreendeu-a ainda mais dar-se conta de que gostava que ele estivesse ciumento. Uma sensação estranha, já que ela normalmente achava ridículas as rivalidades dos homens por ela.

Aquele era outro sinal de que era, definitivamente, o momento adequado para se ir embora.

- Talvez outra noite, capitão. Com todos os detalhes que implica abrir uma casa, estou muito cansada.

Ele levantou uma mão antes de ela se erguer.

- E um cálice de Porto? Para acalmar as minhas dores e ajudar-me a dormir.

Parecia uma tentativa tão evidente de adiar a partida dela que ela teve de sorrir:

- Capitão, que bem sabe usar as suas dores - ele encolheu os ombros e piscou um olho.

- Eu ganhei-as, portanto posso utilizá-las. Só um cálice?

Era tão transparente nas suas tentativas de manipulação, parecia tão claramente esperançado por conseguir que ficasse, que ela não conseguiu evitar achar engraçado.

Porque não havia de ficar? Em poucos dias, ele deixaria Bellehaven e dificilmente voltaria a vê-lo. Que mal podia fazer aproveitar de um pouco da companhia de um homem que a tratava com inteligência e respeito... como se fosse ainda uma dama?

O facto de lhe apetecer tão pouco como a ele que a noite acabasse devia ser razão suficiente para fazer com que saísse a correr do quarto. Em vez disso ouviu-se dizer:

- Só um copo.

- Então, gosta de teatro - perguntou Jack, enquanto ela servia um pequeno copo do delicioso líquido para cada um.

- Muito. Kean, de Drury Lane é maravilhoso. Alguma vez o viu?

- Não. Passei muito pouco tempo da minha vida adulta em Londres.

- Já que vai passar lá algum tempo, tem de levar a sua irmã a ver Kean e Kemble, em Covent Garden.

- Tê-lo-ei em conta. Sou um grande admirador das obras de Shakespeare.

- Eu também adoro.

Talvez possamos assistir juntos a uma peça quando regressar a Londres.

Belle olhou para ele, mas os seus olhos não mostravam brilhos sugestivos nem havia vestígios de insinuações na sua voz. Soava e parecia mais como... como um amigo que falava com outro de algo que interessava a ambos.

Belle quase conseguia sentir o calor da camaradagem a derreter as camadas de gelo atrás das quais se ocultava o seu verdadeiro ser. Confusa, olhou para o outro lado, dividida entre o alívio do comentário dele não ter sido um prelúdio para outro tipo de insinuação e a alegria por ter descoberto aparentemente um espírito amável.

Abanou a cabeça, tentando controlar a sua alegria. Pensar que descobrira alguém com quem podia falar livremente das coisas de que gostava, ou de que gostara antes de a sua vida ter dado uma volta tão drástica, era uma alegria perigosa.

Não devia permitir que uma quimera de amizade destruísse as suas defesas. Naquele momento crítico, com a satisfação quase ao seu alcance, não devia atrever-se a arriscar tudo por que se sacrificara tanto e que lhe custara tanto a obter.

Era o momento de se retirar, antes que permitisse que aquela sensação tola de que havia um vínculo entre eles se tornasse ainda mais profunda. Ao acabar, deixou o copo sobre a mesa e levantou-se.

- Gostei muito da nossa conversa, capitão. Até amanhã. E espero que esta noite não lhe tenha causado nenhum mal.

Ele levantou-se também.

- A noite foi uma delícia e, garanto-lhe, menina, que não sofri nenhum mal físico.

Belle saiu do quarto dele e caminhou lentamente até ao seu, reflectindo sobre a noite que acabavam de partilhar. Decidiu que ele era... sereno. Para além daquele único beijo na mão, não tentara tocar-lhe novamente, nem os seus olhos pousaram sobre ela com uma admiração lasciva, como acontecia com tantos homens.

Para além do tempo passado na companhia de Egremont, não se sentira tão bem com um homem desde os dias em que estudava com o seu pai na biblioteca e conversava com ele sobre Literatura, Arte ou Política. Ou quando ouvia absorta, como ouvira naquela noite o capitão, as histórias do seu pai sobre a índia.

Ele esperara fazer lá fortuna que permitisse à sua jovem família aceder novamente ao lado elegante da sociedade. Que diferente teria sido a sua vida se a saúde da sua mãe tivesse permitido irem todos juntos! Ou se o seu pai não tivesse contraído as febres quase logo a seguir à sua chegada, o que fez com que todos os seus sonhos de futuro acabassem no pó das planícies da índia que receberam os seus restos.

Abanou a cabeça e guardou novamente as perguntas no fundo da sua mente, onde normalmente as tinha trancadas. Deambular pelas lembranças só a fazia chorar. A sua vida transformara-se em algo muito diferente do que o seu pai esperara e não havia nada a fazer a esse respeito.

Pensar na hipótese de uma amizade com o muito atraente Jack Carrington era igualmente estéril. Independentemente do que o futuro reservasse a lady Belle, antiga cortesã de alto gabarito, o respeitável primogénito da filha de um conde, que planeava casar a sua irmã e depois retirar-se para cuidar das suas propriedades, não desempenhava nenhum papel nele.

 

Depois de uma revigorante caneca de cerveja, na manhã seguinte, Jack sentiu-se suficientemente bem para dizer a Watson que tomaria o pequeno-almoço no andar de baixo. O pequeno rasgo na sua ferida parecia ter cicatrizado sem problemas como ele próprio viu quando lhe mudaram as ligaduras e toda a zona estava apenas levemente sensível.

Uma vez terminada a limpeza da sua ferida, Watson ajudou-o a vestir-se e acompanhou a sua descida à sala do pequeno-almoço. Uma manobra que realizou, para seu alívio, sem incorrer em dor nem em náuseas. No entanto a alegria da sua recuperação desapareceu quase logo a seguir, quando Watson o informou que tomaria o pequeno-almoço sozinho, pois Mae já tomara o seu chocolate quente no quarto e lady Belle saíra para visitar os seus vizinhos.

Jack pensou que aquilo era outra prova da sua educação, pois a sua mãe fazia o mesmo quando regressava a Carrington Grove: sair para cavalgar para ver como estavam os campos e o que tinham feito os seus vizinhos na sua ausência.

Depois de Watson ter indicado ao lacaio que lhe servissem uma boa dose de bifes e de cerveja, pois precisava deles para se recuperar, Jack disse:

- Se puder vir ter comigo depois do pequeno-almoço, gostaria de começar a tratar dos planos de defesa de que falámos. Precisarei de uma lista de todos os homens hábeis que vivem na propriedade, dos seus deveres e se algum treinou com o exército ou andou na tropa.

- Sim, isso seria uma boa ideia. Vou fazer uma lista, capitão, e vemo-nos na biblioteca quando acabar de tomar o pequeno-almoço.

Watson saiu, depois de lhe fazer uma reverência, e Jack ficou a comer enquanto revia mentalmente os pormenores que discutiria com Watson. Depois dirigiu-se para a à biblioteca, onde o mordomo o esperava com a lista solicitada e juntos elaboraram um plano geral de defesa. Disse a Watson que reveria as suas instruções quando tivesse oportunidade de inspeccionar pessoalmente a propriedade e recomendou-lhe que se encarregasse de contratar mais homens.

Como, quando acabaram, lady Belle ainda não tinha voltado, Jack decidiu testar as suas forças dando um passeio pelos terrenos. Watson levou-o sem protestar a um escritório que tinha portas de vidro que davam para um terraço situado sobre um jardim com a relva bem cuidada.

Respirou fundo o doce cheiro do ar e sentou-se num banco convidativo. Depois de uma semana de pequenos avanços, o aumento rápido da força e resistência sentida nos dois últimos dias parecia confirmar, como dissera a Belle no dia anterior, que a sua ferida não fora tão grave como tinham receado ao princípio. Animou-se com a ideia de recuperar em breve a sua saúde e vigor.

Com aquela melhoria, chegou uma impaciência crescente por abandonar o seu quarto de doente. A única coisa que o impedia de se lançar totalmente nas suas actividades normais era a prudência que o impulsionava a não se exceder antes de tempo e o desejo de continuar a ser convidado de lady Belle.

Que noite tão mágica fora a anterior! Belle não dominava a música e a política por acaso e ele estava cada vez mais convencido de que era de bom berço, e estava impaciente por descobrir que catástrofe a expulsara da posição na alta sociedade que deveria ter sido sua por direito.

Mas, para além da curiosidade por descobrir as circunstâncias, desfrutara do simples prazer de conversar com uma mulher que demonstrava ser tão inteligente como bonita.

Agora que sabia que isso não poria em risco a sua recuperação, Jack sentia-se agradecido aos rufias que os tinham atacado, tornando necessária a criação de um plano de defesa para a casa e dando-lhe uma desculpa para ficar mais uns dias.

Talvez no dia seguinte conseguisse convencer a jovem a mostrar-lhe a sua propriedade para ver finalmente o imóvel com os seus próprios olhos.

A ideia de estar umas horas a sós com ela entusiasmava-o. Enquanto avaliava os pontos fortes e fracos da propriedade, poderia incentivá-la a falar do lugar que amava e convencê-la talvez a contar-lhe mais coisas do seu passado.

Embora viajar ao lado dela numa carruagem pequena também tivesse os seus problemas. Ultimamente conseguira evitar os cumprimentos que ela entendia como lisonjas ocas. No entanto, a pressa com que afastara os dedos e o passo dado para trás para manter a distância entre eles, ao jantar, indicavam-lhe que continuava pouco à vontade com a atracção física que havia entre eles. E, tal como na noite anterior, ele devia ter cuidado para não a incomodar.

Algo que não seria possível se viajassem de carruagem, num veículo pequeno e aberto, do qual poderia ver bem os terrenos de Bellehaven. Teria de se lembrar de manter as distâncias por muito que lhe apetecesse sentar-se ao lado dela ou manter o contacto quando a ajudasse a subir ou descer do veículo.

A recompensa pela contenção que ele mostrara na noite anterior fora que ela diminuíra a sua reserva, mostrara-se quase animada durante a conversa e até lhe sorrira várias vezes.

Aquilo enchia-o de alegria. Estava mais do que disposto a mostrar um controlo rígido durante mil anos, se com isso conseguisse ver o brilho alegre dos olhos azuis dela e ouvir o som musical da sua gargalhada.

E morria de vontade de voltar a estar com ela.

Pensou que estava prestes a apaixonar-se por aquela mulher, mas afastou rapidamente da sua mente o problema do que fazer com o seu fascínio por lady Belle. Naquele instante, só queria desfrutar da proximidade e da amizade dela o máximo que pudesse.

Passeou lentamente pelo terraço e reparou que a mansão estava no topo de uma colina pequena e ladeada por carvalhos altos que também ladeavam o caminho circular que atravessava um prado desde uma porta de carvalho. As árvores ao lado da casa e do muro de pedra onde estava aberta a porta de carvalho seriam lugares excelentes nos quais colocar vigias sem que fossem vistos por carruagens ou cavaleiros que se aproximassem pelo caminho, e a posição elevada do terreno permitir-lhes-ia ver tudo o que tentasse aproximar-se da mansão quando ainda estivesse a alguma distância.

Quem desenhara Bellehaven, que parecia datar da época Isabelina, conhecia a importância de poder defender os seus terrenos.

O terraço também fora bem planeado, com uma sebe perfumada que bloqueava o vento e acentuava o sol pálido do início da Primavera. Jack voltou para o banco de pedra e levantou o seu rosto para o sol.

Agradecia a bênção de estar ali com lady Belle e não numa sala de baile quente de Paris, num clube de Londres cheio de fumo ou numa tumba fria, quando se abriu a porta e ouviu um ruído.

Levantou o olhar e viu Mae, que se aproximava com um sorriso, seguida por uma donzela magra.

- Quase acusei Watson de mentir quando me disse que estava no terraço - disse quando chegou até ele. Fico muito contente por ser verdade.

- Não se quer sentar? - ele assinalou o banco de pedra.

- Saí sem sombrinha, mas suponho que um minuto de sol não me estragará a pele.

- Eu vou buscar-lhe a sombrinha, senhora - disse a donzela.

- Obrigada, Jane, és muito amável.

Jack olhou um momento para a rapariga. Magra quase até ao ponto de se verem os ossos, com o rosto oval, dominado por uns olhos grandes, e os caracóis que fugiam do seu gorro, parecia uma menina.

Sentiu uma raiva tão intensa que por um momento não foi capaz de falar.

- É uma menina muito boa - dizia Mae, que observava a rapariga a afastar-se. - Ao princípio receava-a, porque pensava que podia tentar aproveitar-se de Belle, mas já me conquistou.

- Esta é que é Jane? - conseguiu finalmente Jack perguntar.

- A Jane que Belle tirou do prostíbulo? Sim.

Jack deixou escapar um impropério e Mae olhou para ele surpreendida.

- Desculpe a minha linguagem, senhora, mas é abominável que alguém obrigue uma inocente como ela a transformar-se em... - não conseguiu pronunciar a palavra.

- Em rameira? - concluiu Mae por ele com os olhos tristes pelas maldades do mundo. - Sim, quase durante um ano.

- Como pôde acontecer algo tão desprezível?

- Alguns prostíbulos têm uma rapariga como ela para agradar aos clientes que querem raparigas de aspecto

virginal. Jane contou-me que a atraíram a Londres com a esperança de trabalhar como aia de uma dama e depois Waldo, um homem brutal, ameaçou-a para que não deixasse a senhora Jarvis. Não é de estranhar que não tentasse fugir. A pobrezinha não teria conseguido nada com Waldo.

- Santo Deus!

- Algumas chegam ao ofício de modo natural... como eu. Nasci numa casa dessas e nunca conheci outra coisa. Outras são repudiadas pelas suas famílias depois de se deixarem enganar por um homem que lhes prometeu casamento.

Jack pensou em Belle e imaginou-a a caminhar sozinha pelo campo depois de ter sido expulsa da única casa que conhecera.

- Aconteceu o mesmo com Belle...? - perguntou. Mae olhou para ele durante um longo momento.

- Não sei como Belle chegou a isso. Nunca lhe perguntei e ela nunca me contou. Embora qualquer um que tenha olhos na cara possa ver que nasceu num lugar melhor.

Jack não soube o que responder, por isso ficou em silêncio.

- Sempre pensei que devia ser parente pobre de um nobre, talvez nascida fora do casamento - continuou Mae, - o que a deixaria numa posição muito fácil para que um homem se aproveitasse dela. Ou filha de um comerciante rico, educada como nobre, obrigada depois a lutar sozinha na vida quando a família perdeu o seu dinheiro. Não há muito que uma rapariga possa fazer e muito menos uma tão bonita como Belle. Lorde Bellingham deve tê-la descoberto quando era pouco mais velha do que Jane. E, pelo que sei, nunca esteve com mais ninguém, embora muitos tentassem comprá-la.

- Acha que... Bellingham a seduziu? - perguntou Jack, com um novo furor.

Mae abanou a cabeça.

- Não sei. Sei que nem sempre se deram bem E que, ela, às vezes, pensou em deixá-lo. Deixar o ofício, embora eu tentasse dizer-lhe que, uma vez lá, não há volta atrás e que devia tirar o melhor partido possível do que tinha. E pelo que sei, ela está agora bem instalada.

- Pensava deixar Bellingham quando estivesse... "bem instalada"? - perguntou Jack, sabendo que não devia fazê-lo, odiando a raiva ciumenta que fervia no seu interior apesar dos seus esforços por permanecer calmo e racional.

Mae já parecia arrependida de ter falado.

- De certeza que não devia ter-lhe contado tudo isto, já que Belle é muito ciosa da sua intimidade. Quase nunca me fala dos seus planos e eu sou a sua amiga mais antiga desde que lorde Bellingham a trouxe para a cidade. Mas, já que falei tanto, creio que posso contar-lhe tudo o que sei.

Hesitou novamente e respirou fundo. Jack apertou os lábios para reprimir a vontade de lhe pedir que continuasse, pois não queria correr o risco de que mudasse de ideias.

- Há uma menina - disse Mae finalmente. E a ameaça de Bellingham de não se encarregar dela se Belle o deixasse foi o que fez com que ficasse tanto tempo com ele, mas, às vezes, discutiam muito.

Uma menina. Belle tinha uma menina que se vira obrigada a esconder. Embora isso não devesse surpreendê-lo. Embora as mulheres da vida lutassem por evitá-lo, conceber filhos era uma consequência natural e às vezes inevitável da profissão.

Uma onda de desgosto misturou-se com a sua raiva. Para ele, era abominável que um homem pudesse usar uma menina como arma, sobretudo se fosse do seu sangue, mesmo que fosse ilegítima.

Se lorde Bellingham não estivesse já morto, Jack teria sentido a tentação de o ajudar a chegar à tumba com a ponta da espada ou com o cano da sua pistola.

Mas, ao conhecer melhor o passado de Belle, compreendeu também melhor a frieza que desencorajava os homens a aproximarem-se demasiado, a cautela e o aparente desdém que mostrava pelos homens. E porque preferia rejeitar pretendentes tão ricos como lorde Rupert a aproveitar a sua popularidade para juntar mais riquezas para o futuro, quando a idade levasse consigo a sua beleza e os seus encantos.

Até explicava, talvez, o ódio com que o trespassara com a espada.

Perguntou-se outra vez como teria chegado ao "ofício", como lhe chamava Mae. Conquistara-a Bellingham com as palavras bonitas que agora ela tanto desprezava?

Por irritante que fosse aquele pensamento, magoava-o menos imaginá-la a participar voluntariamente na sua queda do que imaginá-la como uma inocente indefesa, desonrada por um convidado imoral.

Antes que pudesse aclarar os seus sentimentos, chegou Jane com a sombrinha de Mae.

- Aqui tem, senhora - hesitou, olhando para Mae. E quando esta lhe fez um gesto com o queixo, virou-se para Jack com as faces vermelhas.

- Capitão, queria agradecer-lhe por me ter ajudado. Watson disse-me que me teriam levado com eles, se o senhor não tivesse aparecido. Fico muito contente por o Senhor ter ouvido as minhas preces e por tê-lo curado. Se alguma vez puder fazer alguma coisa por si, ficarei encantada. Sei costurar e remendar muito bem.

- Não tens de me agradecer, Jane. Alegrou-me poder ajudar-te.

- Ficar-lhe-ei eternamente agradecida - respondeu a rapariga. - Menina Mae, se precisar de mais alguma coisa, chame-me Jane fez uma reverência e voltou para casa.

Mae desatou a rir-se.

- Não o avisei? Se ficar tempo suficiente, far-lhe-á um guarda-roupa novo.

Embora Jack passasse outra meia hora no terraço a assentir amavelmente à conversa de Mae, a sua mente fervilhava com a informação que acabava de obter... a infâmia do engano de Jane, o horror de Belle ter sido controlada por ameaças contra a sua filha e a afinidade natural que devia tê-la incentivado a salvar Jane.

Se Belle tinha uma opinião fraca dos homens em geral e dos aristocratas em particular, estava no seu direito. Os clientes a que as senhoras Jarvis deste mundo queriam agradar procediam da aristocracia.

Era quase o suficiente para transformar qualquer homem honrado num revolucionário.

Excepto porque tais homens representavam apenas uma pequena parte, embora visível e ruidosa, da classe em que Jack nascera. Muitos dos nobres seus contemporâneos eram homens honráveis e se alguns não eram sempre fiéis às suas esposas, pelo menos enganavam-nas discretamente e apenas com mulheres experientes e com desejos carnais.

Jack prometeu mostrar ainda mais respeito e deferência por lady Belle durante o tempo que ficasse ali. E talvez pudesse demonstrar-lhe como um cavalheiro a sério tratava uma dama.

 

Três dias mais tarde, pouco depois de tomar o pequeno-almoço, Mae ajudou Belle a vestir-se para sair e inspeccionar a propriedade de Bellehaven com o capitão Carrington.

- Estás muito bonita - disse com aprovação. - Se não deixares de usar vestidos que parecem feitos para uma solteirona empedernida, pelo menos usa mais vezes esse tom azul tão bonito - Mae piscou-lhe um olho. - O capitão sentir-se-á agradado.

Belle sentiu uma irritação irracional.

- Não visto isto para agradar ao capitão - respondeu com rigidez, embora uma vozinha na sua cabeça questionasse a veracidade daquela declaração.

Mae encolheu os ombros.

- E, se o fizesses, seria assim tão mau? O capitão é o cavalheiro mais encantador que conheci da idade dele. Se se apaixonasse por ti e tu por ele, seria assim tão mau?

- O capitão está prestes a escoltar a sua irmã pelos meandros da sociedade e, visto que tem intenção de se instalar nas terras dele, certamente estará à procura de esposa. E esses planos não são compatíveis com começar uma aventura com uma cortesã conhecida. Além disso, eu não tenho intenção de ter outro amante.

- Foi o que me disseste - assentiu Mae, mas com uma expressão no rosto que não agradou a Belle. No entanto, como discutir só serviria para instigar o lado casamenteiro da sua amiga, a jovem optou por deixar passar.

- Não sei quanto tempo o capitão precisa para a sua inspecção, portanto ordenei à cozinheira que nos preparasse comida para levarmos. Suponho que voltaremos esta tarde.

- Não tenhas pressa. Está um dia maravilhoso. Aproveitem!

Belle desceu para se reunir com Carrington, pensando que talvez os restantes membros da casa começassem a reparar no prazer que sentia na companhia do capitão.

Durante o dia, conseguia controlar-se e não ir procurá-lo, porém, à noite, quando Watson recolhia a bandeja do chá, ficavam sempre juntos até mais tarde, depois de Mae se retirar com qualquer desculpa e de os deixar sozinhos a beber vinho e a jogar às cartas. Belle, sabendo que ele lutaria com ousadia em vez de a deixar ganhar, até sucumbira à tentação de o desafiar para jogar xadrez, um jogo que não praticava desde a morte do seu pai, há quase dez anos.

E passavam o tempo a falar de política, de literatura, de Arte, de Agricultura... e o capitão parecia muito bem informado sobre quase todos os assuntos que lhe interessavam.

Numa noite, falaram do que se passava na Europa e, na noite seguinte, debateram os méritos relativos das paisagens de Turner face aos retratos estilizados de Lawrence ou das peças de teatro de Drury Lane.

Não era de estranhar que lhe custasse retirar-se até o lume desaparecer na lareira e as estrelas rodarem no céu fora da janela, O capitão era o homem mais versado em muitos assuntos que conhecera desde que abandonara os joelhos do seu pai.

E como Mae dissera, também era o mais agradável. O que tornava ainda mais perigosa aquela predilecção pela sua companhia. A parede de gelo atrás da qual se escondera durante tanto tempo começava a derreter-se e ela quase se habituara à perigosa atracção física que havia entre eles.

Ao princípio, incomodara-a, porém, como à medida que os dias passavam e, apesar da sua recuperação, o capitão não fazia nada para se aproveitar dela, Belle relaxara ao ponto de agora se sentir mais à vontade com ele do que se sentira com qualquer homem desde há alguns anos.

E, curiosamente, enquanto se dirigia para os estábulos, não conseguia evitar perguntar-se porque é que ele não tentara tocar-lhe.

Pior ainda: à medida que algo perigosamente parecido com confiança se instalara entre eles, Belle começara a sentir o estranho desejo de lhe tocar, de explorar a textura do cabelo dele, de lhe passar os dedos pelo queixo ou pelos músculos dos braços. E isso vindo de uma mulher que há muito tempo via com desgosto qualquer contacto físico com um homem.

Na noite anterior, acordara depois de sonhar que ele a acariciava e, em vez da repulsa de sempre, reparara que sentia cócegas nos mamilos e um calor húmido entre as coxas.

Aquilo era muito perturbador.

E mais perturbadora ainda era a ideia de que ele tinha de se ir embora. Por muito que gostasse da sua propriedade no campo, o pensamento de ficar ali apenas com a companhia de Mae e Watson e perder a presença encantadora e inteligente dele não a seduzia.

Fazia com que se sentisse vazia. Sozinha. E, no entanto, tinha de se preparar para a partida iminente do capitão. Quando acabasse os seus planos de defesa depois de inspeccionar o terreno e, se a viagem de carruagem não tivesse efeitos perturbadores sobre a sua recuperação, não teria desculpas para o reter ali.

Com a temporada prestes a começar, a família dele devia estar à espera do capitão a qualquer momento. E não gostariam nada de saber que ele adiava o seu regresso, sobretudo se descobrissem quem era a mulher que o atrasava.

Embora fosse pouco provável que o capitão lhes tivesse dito para onde fora exactamente depois de deixar Londres.

Parou pouco antes de chegar ao ponto em que se encontraria com ele. Quanto tempo restava para saborear a antecipação deliciosa de voltar a vê-lo?

Uma dor apertou-lhe o peito, uma dor suficientemente aguda para lhe provocar um nó na garganta e fazer com que os seus olhos ardessem.

Secou a humidade das faces e disse para si que devia deixar-se de pensamentos tolos. Ele ir-se-ia embora em breve e não havia nada que ela pudesse fazer. Estava um dia glorioso de Primavera e o percurso da propriedade mantê-los-ia juntos pelo menos várias horas. Aproveitaria dele e do dia.

Ele recebeu-a com um sorriso que a aqueceu por dentro e ajudou-a a subir para a carruagem. Durante a viagem, foram conversando, com ele a fazer perguntas sobre os bosques e os campos por onde passavam e ela a responder, mas Belle permanecia sempre consciente dele, sentado a pouca distância do seu cotovelo.

Embora o capitão parecesse esforçar-se por permanecer ao lado dela na carruagem e manter a distância do mesmo modo que fazia em casa.

Perto do fim do percurso, Belle sucumbiu à tentação de se meter deliberadamente em alguns buracos para ver se isso o atirava contra ela. Mas ele de certeza que conhecera caminhos muito piores na Península Ibérica, já que conseguiu manter a sua posição sem lhe tocar.

Quando acabaram a excursão e Belle parou a carruagem, disse:

- Está um dia tão bom que pedi à cozinheira que nos preparasse comida e pensei que podíamos comê-la no cume. A vista de lá é a melhor e assim poderá examinar o terreno uma última vez e fazer qualquer pergunta que lhe ocorra.

- Parece-me uma sugestão excelente.

Ajudou-a a descer e o contacto suave das suas mãos na cintura dela provocou-lhe arrepios. Juntos subiram uma encosta até onde o terreno se nivelava antes de descerem novamente pelo outro lado. No fim do caminho, havia uma árvore com muitos ramos e debaixo dela um tronco caído que servia de banco e paus redondos de tronco que faziam as vezes de mesas.

Debaixo deles, estendia-se uma vista do campo misturado com pedaços de bosque. A mansão ocupava uma colina situada em frente e o caminho que chegava até ela desaparecia no bosque à distância.

- Que lugar tão encantador! - exclamou o capitão.

- Eu também acho - Belle sorriu, - embora não impressione Mae. Diz que são apenas campos e árvores e que seria muito melhor com uns bares ou lojas que os animassem.

Ele desatou a rir-se e Belle assinalou o banco.

- Por favor, sente-se. Receio que seja muito primitivo.

- Comi em lugares mais primitivos, mas poucos tão bonitos - repôs ele. - Permita-me que lhe sirva vinho.

Enquanto comiam pão, queijo e presunto, Belle respondia às perguntas dele sobre as particularidades do terreno que tinham percorrido.

- Direi a Watson que instale vigias ao longo do caminho, atrás do muro, ali - assinalou ele. - E que encarregue outros homens de patrulharem o terreno alto que rodeia à mansão. Um dos que contratou é um antigo atirador, que recomendei que pusesse à chefia. Dispara bem e entende de táctica. Embora, com sorte, não venha a precisar desta defesa, acho que com a equipa assim disposta pode sentir-se segura de futuros perigos.

- Como posso agradecer-lhe?

- Suponho que sou eu quem tem de deixar de ser um embaraço na sua casa.

Referia-se a ir-se embora e Belle teve de se esforçar para reprimir o grito de protesto que surgia nos seus lábios.

- Não seria prudente que ficasse um pouco mais, depois de pôr os homens nos seus postos para ver se o seu plano funciona como o previsto? Além disso, o capitão disse que a sua casa fica a vários dias mais para norte e, embora tenha recuperado de um modo surpreendente, deve ser arriscado tentar já uma viagem tão longa.

Ele olhou para ela nos olhos e Belle pensou com pânico que estava à procura de uma maneira educada de se recusar a continuar mais tempo ali. Fechou os olhos, à espera da rejeição dele.

- Talvez fosse prudente ficar um pouco mais.

Ao princípio ela pensou que não tinha ouvido bem. Depois invadiu-a uma onda de alívio tal que demorou um bocado até conseguir responder.

- Sim, mais prudente - repetiu.

Embora soubesse que, para ela, aquilo não tinha nada de prudente.

- Outro copo de vinho? - perguntou, porque não queria voltar para casa, onde teria de analisar na solidão do seu quarto o que implicava a necessidade desesperada que parecia ter desenvolvido pela companhia dele.

- Sim. E permita-me felicitá-la. O que vi hoje indica que isto está cuidado com diligência e sabedoria.

- Quando adquiri Bellehaven, tive a sorte de herdar também o administrador. A família dele serviu aqui durante gerações.

- É evidente que conhece o terreno e que o ama.

- E também é evidente que o senhor ama o seu. Fale-me de Carrington Grove.

O capitão descreveu-lhe o terreno e as colheitas, as melhorias que pensava implementar quando pudesse cuidar das suas terras e como esperava convencer os seus vizinhos mais velhos para que usassem as novas sementes e arados que o seu administrador não conseguira que utilizassem.

Embora só falasse de assuntos do campo, ela deu por si a ouvir com tanta atenção como se cada palavra pronunciada por ele fosse uma pista sobre o propósito da sua vida.

Os lábios dele fascinavam-na e sentia a necessidade inexplicável de lhes tocar. E de que tocassem nos dela. Deu-se vagamente conta de que aquele desejo inesperado não provocava o mesmo desgosto automático que a invadia normalmente ao pensar num homem a beijá-la. Em vez disso, tinha consciência da brisa no rosto, do sol a aquecer-lhe o peito, as pernas e a pele debaixo do vestido. Da mão dele no tronco que servia de assento, a poucos centímetros da sua anca. Da boca dele em cima da sua, tão perto que não sabia se o que sentia era o vento ou a respiração suave dele na sua face.

Enfeitiçada com as franjas douradas que dançavam nas pupilas dos olhos castanhos-escuros dele, não se deu conta imediatamente de que o capitão ficara em silêncio. Até que aqueles olhos castanhos escureceram com um calor que ela reconhecia muito bem.

Só que dessa vez não se sentiu enojada. Então, esperou, mal respirando, enquanto os lábios dele desciam mais e mais até que a respiração dele se misturou com a dela.

Fechou os olhos, com todos os nervos a vibrar de antecipação. Como seria o sabor dele?

Mal registara aquele pensamento na sua mente, quando o calor se desvaneceu de repente. Abriu os olhos e descobriu que o capitão Carrington se afastava. Enquanto olhava para ele, sem compreender, ele aproximou-se da beira da colina e ficou a olhar para o céu de costas para ela.

- Estão a formar-se nuvens - disse com uma voz que soava tensa. - Será melhor voltarmos para casa. Não quero que... fique ensopada por minha causa.

Belle sentiu uma enorme desilusão.

- É claro - levantou-se. - O seu pulmão acaba de se recuperar e não lhe faria bem molhar-se.

Porque não a beijara? Devia saber que ela não o teria rejeitado. Ou lera mal o que expressavam os seus olhos?

Antes que pudesse pensar nisso, ele já a ajudava a subir para a carruagem. Mas dessa vez deixou as suas mãos mais um pouco na cintura dela, que também deixou as suas nos ombros dele, embora sentisse um arrepio a percorrer os seus braços. Ele abriu os lábios como se fosse falar e depois abanou a cabeça e voltou a fechá-los.

Embora o capitão ficasse em silêncio, ela olhou para os olhos ardentes dele o tempo suficiente para ter a certeza de que não imaginara o desejo que vira neles. Porque é que, então, ele não fizera nada a respeito disso?

O desejo dela pelo beijo que não tinham partilhado parecia aumentar a necessidade que a invadia quando ele lhe tocava. Mas durante a viagem de regresso, ele manteve-se rigidamente ao lado dela, perto, mas sempre fora do seu alcance.

O ar entre eles vibrava com a tensão e mal falaram durante o trajecto. Belle devia lamentar a perda súbita da camaradagem fácil que surgira entre eles nos últimos dias, mas em vez disso só conseguia pensar no beijo que ele lhe negara.

Quando chegaram aos estábulos, o capitão deixou-a logo, alegando que queria descansar antes de jantar. Belle entregou a carruagem a um rapaz e foi para o quarto dela, onde se sentou com um ar ausente diante do toucador e olhou para o rosto confuso que lhe mostrava o espelho.

Tinha de admitir que não queria que o capitão se fosse embora. Nem daí a uns dias nem daí a muito tempo.

Vira demasiadas vezes aquela expressão para a confundir agora com o desejo que expressavam os olhos dele. Mostrava-se reticente por um sentimento de culpa, por não querer insinuar-se à mulher que cuidara dele e que o albergara em sua casa? Ou porque não queria aproveitar-se dos remorsos dela por tê-lo ferido?

Se era disso que se travava, de certeza que conseguiria convencê-lo a transformar-se em seu amante.

Em breve teria de voltar para a família dele. Mas se lhe agradasse talvez conseguisse fazer com que ele voltasse com a maior frequência possível.

Podia até regressar a Londres e evitar a perseguição de outros homens transformando-se na amante reconhecida do capitão.

A amante dele.

Quando aquela palavra ecoou no seu peito, que ficara oco de repente, a mente de Belle quebrou finalmente o feitiço sensual de Carrington. A vergonha atingiu-a como um murro no estômago.

O que se passava? Não podia verdadeiramente conceber a possibilidade de se transformar na prostituta de outro homem!

O asco seguiu-se à vergonha. Passara anos a dizer para si que fizera o que fizera para sobreviver, que interpretara o papel que a tinham obrigado a representar, que, uma vez livre daquilo, não permitiria que nada nem ninguém voltassem a pô-la na mesma situação.

E ali estava, apenas um mês depois da morte de Bellingham, a considerar a possibilidade de se transformar na rameira que outros pensavam que era. E destruir assim o pouco respeito por si mesma que ainda sentia.

Além disso, embora pudesse desempenhar esse papel, o que seria da amizade que começara a florescer entre o capitão Jack Carrington e ela? Acreditava mesmo que, uma vez que a tivesse na sua cama, continuaria a tratá-la como a uma dama e não como a uma rameira habilidosa que lhe dava prazer entre os lençóis?

Não conseguia aguentar a ideia de estragar assim o que tinham partilhado. Riu-se com amargura. Tinha de admitir que estava meio apaixonada por ele, se ainda acreditasse no amor. Não podia deixar que a atraente presença dele a fizesse esquecer a dura lição de que tais sentimentos de adolescente não eram mais do que ilusões bonitas.

"Mas a nossa amizade é real", protestou o seu coração. "Lembra-te do que aprendeste", repôs a cabeça dela. Qualquer compatibilidade de espíritos e interesses que pensasse que havia entre eles existia só à superfície. Exceptuando o amor paterno, os homens só queriam as mulheres com um propósito.

E para ter herdeiros casavam-se com mulheres da sua classe. A única relação possível entre uma mulher como ela e um homem como Jack Carrington era a troca de favores sexuais por dinheiro.

Além disso, ela não podia fazer nada que pusesse em perigo o futuro de Kitty.

Se se embrenhara tanto na sua fantasia de uma relação com Carrington que chegara a esquecer a rapariga que dependia dela, chegara o momento de se despedir do capitão.

O facto de o coração dela protestar imediatamente só sublinhava a necessidade de se afastar daquela fraqueza pela companhia de Carrington. E, visto que esse mesmo coração tolo não queria acreditar que o que toda a sua experiência de vida lhe dizia era verdade, só havia um modo simples de destruir de uma vez por todas o mito de que Carrington era uma comparação de bondade que se sentia atraído pelos interesses e inteligência dela. Demonstrar que era um homem como qualquer outro. Não um espírito como o dela, cuja alma se identificava com a dela. Não um amigo de que ela precisava como do calor do fogo no Inverno. Mas um homem que não a respeitava mais do que lorde Rupert. Um homem sem o qual podia viver.

Era melhor fazer isso depressa, antes que se embrenhasse ainda mais na fantasia que estivera a tecer. E visto que Carrington estava já suficientemente bom para viajar, era melhor fazê-lo imediatamente, antes que o efeito parecido com o ópio, que parecia ter sobre ela, nublasse a sua mente e os seus sentidos e apagasse aquele objectivo claro.

A alegria que sentira durante o dia desapareceu, deixando um rasto de certeza sombrio. Respirou fundo e tentou proteger-se contra a dor que ia sentir. Nessa noite, faria com que Jack Carrington saísse para sempre da sua vida e do seu coração.

 

Naquele mesmo dia, mais tarde, Belle escolhia um vestido para o jantar íntimo que dissera a Mae que esperava partilhar com o capitão. Aquele comentário bastara para que Mae respondesse que receava ter-se constipado e que jantaria no seu quarto.

Dadas as suas expectativas de como gostaria que Belle acabasse a noite, Mae certamente aplaudiria a escolha do vestido. Feito de cetim azul a condizer com os olhos dela e com um decote muito acentuado, fora o predilecto de Bellingham. Era tão bonito que pensava dizer a Jane que o refizesse com um estilo mais modesto, mas naquele momento usá-lo-ia mais uma vez.

O colar de safiras e diamantes que Bellingham lhe dera para complementar o vestido descansava agora num cofre de um banco de Londres. Sem o colar e os brincos compridos, o vestido deixaria ainda espaço a nu, mas Belle resistiu ao impulso de escolher outras jóias para cobrir o que seria uma exibição escandalosa de pele.

Jane fora ajudá-la a vestir-se e aguardava em silêncio as ordens dela. Belle controlou o seu desgosto e estendeu-lhe o vestido.

O efeito que viu no espelho quando a rapariga acabou de o apertar era tudo o que esperava. O decote fez com que Jane desse um salto.

- Quer o cofre das jóias? - perguntou.

- Não, fica assim. Eu acabo sozinha.

- Como desejar, senhora - Jane lançou-lhe um olhar hesitante e retirou-se com uma reverência.

Depois de pintar as faces e os lábios, acrescentou os pós de Mae na cara e no peito, uma dose dupla de perfume de lavanda e virou-se para o espelho.

Em vez da mulher modesta que vira no espelho durante o último mês, olhava para ela uma estranha elegante, de cabelo dourado, apanhado sobre a cabeça, com um caracol a cair solitário sobre o ombro nu. A sua pele coberta de pó branco realçava o azul dos seus olhos. O carmim fazia com que os seus lábios parecessem mais cheios, mais húmidos, como se acabassem de ser beijados. O "V" profundo do decote atraía qualquer olhar para os seus seios, contidos atrás de um sutiã tão pequeno que dava a impressão de que a sua próxima inspiração podia deixá-los completamente expostos.

Lady Belle, a bela cortesã.

Invadiu-a uma onda de ódio contra si própria.

Apesar de a noite estar fresca, resistiu ao impulso de se esconder atrás de um xaile e dirigiu-se para a sala de jantar.

Estava nervosa e não sabia porquê. Era como se chorasse inconscientemente a morte do sonho de que Jack Carrington podia ser diferente dos outros homens. Sabia muito bem o que aconteceria nos seus aposentos depois do jantar... se chegassem a sair da sala de jantar. O seu falecido protector teria gostado de a possuir nas divisões públicas da casa, onde, a qualquer momento, um criado podia entrar. E às vezes entrava.

Por isso, não era propriamente uma virgem aterrorizada prestes a ter relações sexuais pela primeira vez.

E, no entanto, os seus nervos, a sensibilidade dos seus mamilos a tocarem no cetim, o nó no estômago... eram sensações que nunca sentira.

Tinha de admitir que, por ser Jack o homem que a esperava na sala de jantar, não odiava a iminente invasão do seu corpo tanto como teria odiado de outro modo. Até sentia uma certa curiosidade por ver o corpo dele nu, por acariciar o pénis endurecido dele e por usar os lábios e a língua para lhe dar prazer.

Uma espiral de sensações quentes e embriagadoras subiu-lhe pela barriga, fazendo-lhe cócegas nas coxas e nos seios.

Surpreendida com aquela reacção inesperada, parou à porta da sala de jantar com a mão no estômago.

Mais uma para acrescentar à lista de respostas que Jack Carrington parecia provocar nela. Causava-lhe um efeito tão intenso! Era demasiado consciente da sua presença, valorizava demasiado o seu engenho, agradecia demasiado a sua amabilidade e a gentileza com que a travava e gostava demasiado da ideia de lhe tocar. Todas razões pelas quais devia obrigar-se a seguir em frente com o seu plano e mandá-lo para longe dali.

Mae, que tinha a certeza de que a noite acabaria com Belle a aceitar um amante novo que acalmasse a sua insatisfação, sentir-se-ia muito decepcionada. Mas ela não podia acalmar a sua insatisfação assim tão facilmente.

Uma voz insidiosa disse-lhe que talvez sim. Não seria suficiente ter a companhia de Carrington e, além disso, o corpo dele pelas manhãs na cama, brincar durante o pequeno-almoço, falar do que acontecesse na propriedade, comentar as últimas peças de teatro e o que acontecia na política?

Até que a deixasse para se casar.

E o que faria então lady Belle, a amante dele? Porque até no caso de a mais improvável das suas fantasias se tornar realidade e Jack se mostrar capaz de tratar a mente e o coração dela com respeito depois de ter usado o seu corpo, sabia que a honra impediria um homem como ele de manter uma amante depois de se ter casado. Sobretudo pela comparação de virtudes que ela não desejava.

Lamentaria sempre a vergonha de se ter permitido transformar em amante dele. Sofreria uma dor intensa no coração, já que daquela vez teria de renunciar a um homem que personificava um sonho.

Não, era muito melhor colocar o dedo na ferida já, acalmar os seus sentimentos enquanto ainda estava a tempo de se curar. Destruir o sonho enquanto era apenas um sonho, não uma realidade cuja perda implicaria uma morte emocional lenta e torturante.

Abanou a cabeça com raiva para reprimir as lágrimas. Não era altura para melodramas mas para seguir em frente com o seu plano. Respirou fundo e abriu a porta.

Jack virou-se com um sorriso ao ouvi-la, mas o calor do olhar dele não demorou a dar lugar à surpresa e o sorriso petrificou-se no seu rosto.

- Boa noite, capitão - disse ela com calma, como se o coração não lhe batesse com força no peito e não estivesse prestes a desmaiar.

Obrigou-se a caminhar devagar, a respirar fundo deliberadamente para lhe mostrar o peito até quase aos mamilos.

Quando chegou à mesa, ele abrira e fechara a boca várias vezes sem emitir qualquer som.

- Mae está indisposta e suplica-lhe que a desculpe esta noite. Começamos? - sorriu e fez gestos a Watson para que servisse o primeiro prato, sem ligar à expressão desaprovadora patente no rosto dele.

- Está... encantadora - conseguiu dizer o capitão quase sem ar. - Diferente, mas muito bonita.

Lançou-lhe um olhar sedutor, acompanhado de um pestanejar insinuante.

- Queria que esta noite fosse... especial.

- Todas as noites consigo são especiais.

O peito de Belle contraiu-se, mas ela obrigou-se a continuar.

- Escolhi este vestido para lhe agradar. Agrada-lhe? O olhar ávido dele devorou-a da cabeça até aos seios.

- Tudo em si me agrada - respondeu com voz rouca.

- Espero que isso seja particularmente verdade... esta noite.

Enquanto ele digeria aquele comentário, ela bebeu um gole de vinho. Fora cortesã durante mais de seis anos e sabia como provocar reacções nos homens. Deixou o copo sobre a mesa e permitiu que uma gota de vinho enfeitasse durante alguns instantes os seus lábios pintados antes de a limpar com a língua.

Tal como esperava, os olhos de Carrington seguiram aquele gesto e as mãos dele pararam o copo de vinho a meio caminho da sua boca. Sem desviar os olhos dela, pousou o copo novamente na mesa com hrusquidão.

Belle, que sabia que estaria demasiado nervosa para ter apetite, pedira uma sucessão de pratos leves... faisão frio, legumes com pedaços de vitela e fruta. Um menu que também lhe permitia provar quase toda a comida com os dedos e demorar muito tempo quando na verdade comia muito pouco. Acariciava a comida com os lábios, colocava-a profundamente na boca e lambia os dedos antes de os soltar.

Infelizmente para ela, o capitão parecia tão enfeitiçado com aquela interpretação como o mais fiel dos seus admiradores. Apenas afastava a vista dela o tempo suficiente para comer e respondia com monossílabos à conversa ligeira dela.

Quando retiraram o último prato, já custava a Belle reprimir o tremor dos seus lábios e controlar as lágrimas contidas. Que diferente era aquela farsa da troca íntima de ideias e opiniões que caracterizara os seus outros jantares daquela semana!

Despediu-se de Watson com um gesto e disse:

- Parece que nenhum dos dois tem muito apetite esta noite... de comida. Retiramo-nos?

Caminhou devagar para ele, obrigando-se a respirar para aliviar a pressão do seu peito, fechando os ouvidos aos protestos do seu coração. Tinha de matar um sonho e não fazia sentido prolongar muito a execução.

Quando chegou ao lado dele, Jack limitou-se a olhar para ela por um momento. Depois, como se compreendesse finalmente que toda aquela pele nua estava a pouca distância, levantou-se de um salto e esteve prestes a deixar cair a cadeira.

O coração dela ainda quis pensar que aquele silêncio anormal significava que estava confuso com o vestido dela e com o seu modo de agir e não petrificado de luxúria. Até que baixou o olhar com discrição e essa patética esperança morreu nesse instante.

O vulto que apertava a parte dianteira das calças dele confirmava que a reacção dele à interpretação de prostituta dela não era diferente da de Bellingham, daquele sapo Markham ou do insistente e desagradável lorde Rupert.

Odiando-os a eles e a si mesma, pegou na mão dele e beijou-a. Acariciou os nós dos dedos dele com a língua e com os lábios. Apoiou aquela mão no seu decote de modo a que as pontas dos dedos dele tocassem quase no mamilo, embora não de todo, e murmurou:

- Vamos?

Carrington gemeu, pegou nela ao colo e beijou-a.

Belle afastou os lábios e procurou a língua dele. Deixá-lo-ia devorar a sua boca por um instante e depois interromperia o beijo e levá-lo-ia para o seu quarto, onde ambos se despiriam num frenesim. Deitar-se-ia na cama, afastando de modo convidativo com uma mão os seus lábios íntimos e com a outra cobrindo o peito de modo a que o mamilo o chamasse como um farol na escuridão. E ele agarrá-la-ia pelos ombros e penetrá-la-ia, afundar-se-ia nela para a possuir até que lhe mordesse o pescoço ou gemesse no momento do clímax, o qual, como passara várias semanas sem uma mulher, não demoraria.

Então ela brincaria com ele no ponto em que estivessem unidos, mordiscar-lhe-ia o pescoço, o queixo, passaria a humidade da sua língua pela boca dele e lamber-lhe-ia a garganta até ao peito, onde sugaria e morderia os mamilos até que se endurecesse novamente no seu interior. Dependendo de como se recuperara da sua ferida, não teria problemas em satisfazê-la várias vezes mais naquela noite e de manhã despedir-se-ia satisfeito e com a promessa de voltarem a encontrar-se mais tarde.

Ele continuava a beijá-la, embora agora estivesse já suficientemente imerso na paixão para que ela não tivesse de o beijar também. A boca começou a tremer-lhe e sentiu o quente ardor das lágrimas nas faces.

Finalmente, ele interrompeu o beijo com a respiração ofegante. Contudo, em vez de a abraçar com um ar possessivo e puxá-la para a porta, afastou-se.

- Porquê tudo isto?

A reacção dele era tão inesperada que ela, ao princípio, não teve a certeza de ter ouvido bem.

- Tudo... isto? - perguntou.

- O vestido, a comida, o ataque de sedução. Quer enlouquecer-me e está a conseguir, mas porquê?

Ela esforçava-se por compreender as palavras dele.

- Não é... evidente? Já está recuperado. Pensava que gostaria de uma... recompensa.

- Recompensa? Porquê?

- Por ser tão compreensivo sobre o modo como o feri. Por ir em nossa defesa.

Ele abanou a cabeça com impaciência.

- Belle, não tens de me recompensar por nada disso.

- Mas eu pensava... - ela avançou para ele.

- Não! - exclamou ele. Levantou uma mão para a deter. - Pelo amor de Deus, Belle!

Afastava-se dela.

Nunca vira aquela reacção num homem e sentiu uma onda de vergonha a aquecer-lhe a pele. Afinal não a desejava. Em vez de o atrair com o seu comportamento de rameira, repelira-o.

- Sinto muito. Eu não queria... mas tu... - confusa e humilhada, assinalou a evidente erecção dele.

No passado, só uma vez sentira uma humilhação tão grande, uma vontade tão forte de se enfiar num buraco e esconder-se. Virou-se e começou a correr, desesperada por fugir do desgosto e da censura que os olhos dele expressavam.

Como podia tê-lo interpretado tão mal? O que queria dela? Mas, no meio da sua humilhação, persistia um pequeno laivo de ironia.

Talvez o tivesse repelido, mas o seu instinto estava certo.

Ele era diferente.

Correu pelo corredor, sem saber para onde ia, excepto que tinha de ser um lugar escuro onde estivesse sozinha.

Quando parou para respirar, deu-se conta de que estava no terraço fora do escritório pequeno. Respirou com força e ouviu para ver se ele a seguia.

Mas só conseguiu ouvir os pequenos ruídos da noite, o movimento de um animal qualquer entre os matagais que rodeavam o terraço ou o uivo distante de um mocho.

Estragara tudo, sim, mas não do modo como planeara.

Agora não aguentava estar diante dele. Escrever-lhe-ia um bilhete. Sim, um bilhete cortês que não mencionasse nada sobre aquela noite e onde lhe agradeceria pela ajuda, desejaria uma cura rápida e despedir-se-ia dele.

No dia seguinte sairia para montar, só para evitar que a sua necessidade de estar com ele triunfasse sobre a sua vergonha, e ele já se teria ido embora quando regressasse.

E ela não voltaria a vê-lo.

A tremer de frio com aquele vestido decotado, levou as mãos à cara e chorou.

Perdida na sua angústia, ao princípio nem reparou na mão que pousava no seu ombro.

- Por favor, Belle, não chores.

Parecia a voz de Carrington. Mas aquele tom suave de desculpa não podia proceder do homem que acabava de se afastar dela horrorizado. Quando levantou o olhar e descobriu que se tratava mesmo do capitão, embargou-a uma mistura de vergonha, dor... e desejo.

- Lamento - murmurou.

E, de repente, estava nos braços de Jack Carrington e o calor dele protegia-a do frio da noite. Uma mão acariciava os seus caracóis enquanto a outra a apertava contra o peito dele.

- Não sofras, tudo isto é por minha causa. Fosse o que fosse que tentavas fazer-me ali dentro, não tinha a intenção de te magoar - indicou, tratando-a com mais intimidade.

Belle ainda conseguia sentir a dureza da erecção dele contra a sua barriga. E, no entanto, o contacto dele era tão gentil como se consolasse uma criança. Como se consolasse, e não condenasse. Apesar da evidência do desejo dele, ela não conseguia ler no seu abraço qualquer intenção carnal.

A sua mente recuou uma dúzia de anos, até um dia em que caiu do cavalo e o seu pai a pegou ao colo e a consolou contra o seu peito.

Sim, o capitão Jack Carrington era diferente. E naquele momento parecia ser tudo o que nas suas fantasias de adolescente poderia ter sonhado. Um homem que os últimos anos dolorosos da sua vida a convenceram de que já não existia. Um homem que nunca poderia ter, nem sequer através da luxúria.

O longo dia a planear aquele jantar deixara-a com os nervos esgotados e mesmo que dissesse para si mesma que devia afastar-se dali com a pouca dignidade que ainda lhe restava, sentia as pernas demasiado fracas para se mexer. Apoiou a cabeça no peito dele num gesto de derrota e soluçou livremente.

Quando conseguiu por fim parar as lágrimas, afastou-se fracamente do peito dele.

Jack deixou-a, embora a mantivesse ainda no círculo dos seus braços.

- Belle, não compreendo o que aconteceu esta noite e desejo desesperadamente entendê-lo. Sei que ambos estamos muito... nervosos para falar disso agora. Vai para a cama e falaremos amanhã.

Deu-lhe um empurrãozinho em direcção às portas do terraço.

- Vai-te embora agora, enquanto ainda consigo deixar-te ir.

Ela olhou para ele um instante, porém o rosto dele estava na penumbra e não conseguia ler a sua expressão.

Obrigada sussurrou.

Levantou o vestido e afastou-se.

 

A Jack tremiam as mãos e um frenesim de frustração corria pelas suas veias, mas obrigou-se a permanecer imóvel enquanto lady Belle entrava em casa.

Depois de uma noite inteira prestes a perder o controlo, finalmente podia relaxar. Embora só de certo modo. O protesto ultrajado do seu corpo e a sua erecção quase dolorosa impedi-lo-iam de relaxar completamente durante horas.

Soltou uma gargalhada. Se Aubrey o tivesse visto naquela noite a rejeitar lady Belle, considerá-lo-ia louco.

Mas independentemente do que Belle tentara fazer naquela noite, ela não gostaria que ele tivesse aceitado o convite que tão claramente lhe fizera.

No dia seguinte, procurá-la-ia. Por muito incómodo que fosse esse encontro, não tinha intenção de se ir embora de Bellehaven enquanto ela não lhe explicasse o que acontecera naquela noite.

Porque interpretara o papel de uma mulher tão diferente da que ele aprendera a conhecer? E porque chorara depois nos seus braços como se tivesse o coração desfeito?

Jack entrou no seu quarto com um suspiro e dirigiu-se directamente para a garrafa de brandy. Serviu-se de um bom copo e sentou-se a olhar para os tons dourados que brilhavam no copo à luz da vela. Ao contrário das outras noites, nas quais o líquido ardente dissimulara o seu sofrimento e o ajudara a encontrar a paz, sabia que passariam muitas horas até que os seus sentidos excitados se acalmassem o suficiente para conseguir dormir.

Na manhã seguinte, Jack acordou tendo dormido tão pouco como receava e sentindo-se muito cansado. Apesar disso, sentia alegria diante da possibilidade de ver Belle e receio de que o espectáculo que lhe dedicara na noite anterior fosse o prólogo do acto final da sua relação.

Desceu cedo para sala para tomar o pequeno-almoço e comprovou decepcionado que lady Belle não estava lá, embora Watson se aproximasse de seguida para lhe oferecer café e um bife.

Em seguida surpreendeu Jack ao inclinar-se para ele e murmurar:

- Obrigado por ontem à noite cuidar da senhora. Não era ela.

Jack, divertido, apoiou um cotovelo na lareira e bebeu um gole de café. Já devia saber que os empregados sabiam sempre de tudo.

Perguntou-se se Watson teria alguma ideia do que motivara a senhora para que não "fosse ela mesma". Mas por muito informal que aquela casa fosse, não podia perguntar isso ao mordomo.

- Jane disse que lady Belle descerá dentro de um minuto. No terraço o sol aquece. Sirvo o pequeno-almoço lá?

O terraço onde Jack a abraçara enquanto chorava à luz da lua. Onde a sebe os protegeria de olhos e ouvidos curiosos enquanto tomavam o pequeno-almoço.

Olhou para Watson agradecido.

- Sim, obrigado.

Antes que tivesse tempo de especular sobre qual Belle apareceria ao pequeno-almoço, se a sedutora da noite anterior ou a mulher reservada das duas semanas anteriores, ela entrou na sala.

Trazia o vestido menos atraente que alguma vez vira... uma roupa cinzenta de mangas compridas e a gola alta sem nenhum acessório, que fazia o possível por ocultar os encantos de Belle, embora nenhuma roupa conseguisse fazer isso.

Ao vê-lo ao lado da lareira, ela parou com uma expressão quase de pânico nos olhos.

Jack agradeceu a Deus do fundo do seu coração que o seu instinto tivesse sido afectado e lhe tivesse dado forças para resistir ao desejo por ela. Porque a mulher que acabava de entrar era a mulher que, nas duas últimas semanas, revelara um bocadinho de cada vez sobre si mesma... modesta, sensível, com uma inteligência evidente que ardia como uma chama no seu interior. Uma mulher que começara a apreciar e a valorizar.

Bonita. Desejável. Mas nunca a cortesã fria e calculista que os homens lhe tinham descrito nem a amante experiente que se mostrara na noite anterior.

Ela levantou a vista e olhou para ele nos olhos. Aquele gesto fez com que algo intenso o invadisse, como se os seus sentimentos se purificassem de algum modo. Sim, continuava a desejar respostas para o mistério do passado dela, contudo a mulher que fora e a mulher em que depois se transformara já não pareciam ter tanta importância.

Só sabia que a sua dama tímida estava ali, a tentar ocultar o desconforto que as suas faces ruborizadas proclamavam com eloquência e que isso lhe produzia uma ternura e uma alegria intensas. Queria começar a rir-se, gritar de felicidade, pegar-lhe nas mãos e dançar com ela pela sala até que os dois ficassem cansados.

E nunca a deixar.

Afastou da sua mente a cruel verdade de que isso nunca aconteceria, deixou a sua chávena na lareira e aproximou-se dela devagar, como se se aproximasse de um potro nervoso e selvagem.

- Watson levar-nos-á o pequeno-almoço ao terraço. Queres partilhá-lo comigo?

Viu que ela tremia e outra onda de ternura o invadiu. Queria desesperadamente abraçá-la contra o seu peito como na noite anterior, mas tinha medo de a assustar. Obrigou-se a permanecer afastado dela e ela observou o seu rosto com atenção durante um longo momento e respirou fundo.

Sim. Eu gostaria muito.

Jack ofereceu-lhe o braço. Ela aceitou-o e ele fechou os olhos durante um instante, para saborear o contacto da sua mão, e, conduziu-a para o terraço.

Aliviada por não ver no olhar do capitão vestígios da censura que vira na noite anterior, Belle deixou-se levar para o terraço, muito consciente do braço dele sob os seus dedos.

Apesar da amabilidade dele no terraço, não tinha a certeza de que não se afastasse dela com desgosto. Mas como não fora assim, agora teria de dar uma explicação sobre o seu estranho comportamento. E infelizmente, durante a noite não encontrara nenhuma.

Excepto a verdade.

Não se atrevia a dizer a verdade.

Watson correu atrás deles com uma bandeja e nos minutos seguintes a tarefa de encher chávenas e pratos ajudou a disfarçar o desconforto inicial.

Quando Watson se retirou, Belle respirou fundo. Era melhor falar logo daquele assunto, antes que perdesse a coragem.

- Devo desculpar-me pelo que aconteceu ontem à noite. Não era minha intenção pô-lo numa posição... desconfortável - disse, formalmente. E embora soubesse que não devia, não conseguiu evitar acrescentar:

- Espero que não tenha ficado com nojo de mim.

- Nunca poderia fazer isso! - exclamou ele. Belle conseguiu sorrir.

- Depois de ter deixado claro que não lhe... interesso, prometo não voltar a atirar-me para os seus braços.

- Não me interessa? - repetiu ele. - Nenhum homem vivo conseguiria evitar desejar uma mulher tão atraente como lady Belle. Uma mulher que para mim é muito mais atraente desde- que descobri que a sua mente é tão encantadora como a sua pessoa e os seus conhecimentos tão impressionantes como a beleza do seu rosto.

Ela abanou a cabeça sem compreender.

- Mas se me deseja e eu me ofereci...

- Truques de rameira! Eu achava que significávamos mais um para o outro do que um jogo de sedução. Sobretudo porque parecia que eu era o único que sentia paixão. Eu também tenho o meu orgulho e recuso-me a ser tratado como um brinquedo.

Belle compreendeu com incredulidade que ele achava que ela o usara. Que tinha tentado manipulá-lo, como Bellingham fizera com ela durante tantos anos.

- Eu não pretendia isso! - exclamou horrorizada. Ele passou uma mão pela cara.

- Desculpe! Bem sei que não. Mas não quero que se ofereça por uma questão de gratidão. Por muito que eu gostasse, não quero que me beije com artes aprendidas nem que me faça nenhuma das coisas maravilhosas que certamente poderia fazer para me levar ao êxtase. Eu ter-me-ia considerado um parvo por rejeitar o que me oferecia, apesar de ter sido o momento mais sedutor que alguma vez vivi. Contudo havia outras coisas que pareciam indicar que a sedução não era o que lady Belle desejava.

Desejava-a, no entanto não quisera possuí-la por ter intuído que ela realmente não o desejava? Belle quase conseguia sentir como caíam as últimas barreiras que levantara para lhe resistir. Sentiu um nó na garganta e teve de reprimir as lágrimas.

- Belle - continuou ele com calma e tratando-a novamente por tu. - Se alguma vez te tocar, quero que me desejes tanto como eu a ti. Estou disposto a esperar até que estejas preparada para partilhar comigo essa alegria e essa maravilha.

Alegria? Maravilha? Ela abanou a cabeça. Depois dos últimos seis anos e meio, certamente conseguia compilar um dicionário de termos para descrever a união entre um homem e uma mulher, mas aquelas duas palavras não entravam nele.

E era-lhe ao mesmo tempo terno e triste que ele pudesse achar outra coisa.

Se isso é o que queres, receio que tenhas de esperar eternamente.

- Eternamente? - ele observou-a um longo momento. - Queres dizer que, durante o tempo todo que estiveste com Bellingham, ele nunca te deu prazer?

A velha raiva voltou à sua mente e uma gargalhada amarga escapou dos seus lábios. Quantas traições e mentiras tivera de suportar para satisfazer um homem?

- Prazer? O prazer é algo que um homem tira do corpo de uma mulher e a única coisa que lhe dá em troca é a semente que derrama nos seus lençóis.

Apesar da verdade da descrição, arrependeu-se imediatamente de ter falado em termos tão cruéis.

- Desculpa - murmurou. - Não devia...

Ele abanou a cabeça com uma expressão de surpresa no rosto.

- Minha pobre Belle - murmurou. - Isso explica muitas coisas. Bellingham merecia que o tivessem fuzilado.

Antes que ela pudesse pensar no que queria dizer com aquilo, ele continuou a falar:

- E se querias seduzir-me por gratidão, porque te arrependeste depois? Porque choraste nos meus braços? O que querias realmente?

Era-lhe impossível desviar o olhar dele.

"Queria provar que eras igual a todos os outros homens, para conseguir arrancar-te do meu coração e mandar-te para longe, antes que perdesse a dignidade e te suplicasse para que nunca me deixasses."

Era impossível dizer-lhe aquilo, mas ele adiantou-se:

- Saciar-me completamente para que não tivesses forças para resistir quando me mandasses embora daqui?

Não podia ter adivinhado a verdade toda, mas aquilo impulsionou-a a responder:

-Sim.

E resistiu ao desejo de se explicar, de tentar fazê-lo entender. Continuar a falar só serviria para piorar as coisas. Olharam-se durante um longo momento nos olhos.

- Queres que me vá embora? - perguntou ele. Belle tentou afastar a vista, mas os olhos dele mantinham-na cativa.

- Sim. Não. Não sei.

Jack fechou os olhos e murmurou:

- Eu também devia querer isso. Que nos afastemos agora, antes que seja mais difícil.

Uma sensação de alegria invadiu o peito dela.

- Tu também sentes essa... ligação entre nós? Ele assentiu com um suspiro.

- E não sei o que fazer com ela. Neste momento, gostaria de ficar aqui para sempre, mas ambos sabemos que isso não pode ser. Devia fazer um favor aos dois e partir imediatamente, esta mesma manhã. Mas a menos que tu me ordenes isso... Belle, não creio que consiga fazê-lo. Consegues ser sábia pelos dois? Manda-me embora. Por favor!

Ela tentou que os seus lábios pronunciassem aquelas palavras. Mas a alegria que enchia o seu peito estrangulou a sua voz e não conseguiu dizê-las em voz alta.

Ele também sentia o mesmo por ela! Aquele homem incrível e excepcional, que valorizava a sua inteligência e que a respeitava, podia ser dela e, mesmo que fosse apenas durante alguns dias, isso seria mais do que alguma vez tivera durante a sua vida toda. E a dor da partida dele não poderia ser mais intensa alguns dias depois do que seria já naquele momento.

Em vez da frase que ele esperava, disse:

- Podes ficar apenas mais alguns dias? Eu gostaria que estivesses aqui para fiscalizar os seguranças para o caso de acontecer alguma coisa. E preocupar-me-ia menos que viajasses, se soubesse que estás completamente curado.

Aquelas desculpas eram muito pobres e ambos sabiam.

Jack desviou o olhar e Belle esperou, sem conseguir respirar, consciente de que seria melhor que ele recusasse, mas desesperada que aceitasse.

Ao fim de um longo momento, ele levantou o olhar.

- Está bem, Belle! Isto é uma loucura, mas ficarei mais uma semana. E depois tenho de...

- Ir - interrompeu-o ela com rapidez, com uma mistura de alegria e raiva ao saber que acabava de tomar, possivelmente, a decisão mais perigosa da sua vida. - Eu sei. Dentro de uma semana não tentarei deter-te, prometo!

Ele sorriu com tanta ternura nos olhos que ela sentiu um aperto no peito e os seus olhos encheram-se de lágrimas mais uma vez.

- E eu prometo-te que nunca aceitarei de ti nada que tu não me dês livremente.

Pegou na mão dela e beijou-a.

- É melhor entrarmos. O sol aquece, mas o vento está muito forte.

Caminharam juntos até ao hall, onde a governanta pediu a ajuda de Belle.

O capitão fez uma reverência e deixou-a com os seus afazeres. Belle parou ao vê-lo subir as escadas até aos seus aposentos.

Como conseguira instalar-se tão completamente no seu coração e na sua vida? Como conseguira fazer com que a sua presença ali fosse tão natural? Não queria pensar no vazio que ficaria na sua vida quando ele se fosse embora uma semana depois.

Uma semana em que ele não aceitaria nada que ela não quisesse dar-lhe. Mas, infelizmente, estava tão perto de lhe dar tudo que, quando ele se fosse embora, era possível que já não sobrasse nada da sua alma nem do seu coração.

 

Jack disse para si que podia dar-se ao luxo de ficar tonto mais uma semana e subiu para o seu quarto, para escrever uma mensagem para Carrington Grove. Antes de sair de Londres, enviara uma missiva curta à sua família onde a informava que recuperava de um acidente e que iria para casa dentro de poucos dias. E como certamente estavam há vários dias à espera dele, queria dizer-lhes que estava a recuperar em casa de um amigo e que partiria uma semana depois.

Uma vez entregue à irresponsabilidade, recusava-se a pensar nas especulações ou nas preocupações que aquele atraso adicional podia causar à sua família com o começo da temporada já tão perto.

Também não queria preocupar-se já com como ia resolver o dilema que os seus sentimentos cada vez mais fortes por Belle representavam.

Naquele momento, só queria pensar naqueles dias lindos. Esperava que, antes da sua partida, ela voltasse a oferecer-lhe o paraíso que quase conhecera na noite anterior e daquela vez em termos que ele pudesse aceitar.

A não ser assim, confiava que a sua vontade de ferro e o afecto que lhe professava conseguissem fazer com que resistisse aos impulsos do seu corpo. Sobretudo agora que compreendia melhor o que devia ter sido a vida dela.

Na noite anterior, perguntara-se como é que uma mulher que vivera da sedução era capaz de montar um número tão tentador sem sentir nada. Agora achava que ela devia ter sido obrigada a ter relações carnais desde muito jovem, antes que os impulsos naturais do seu corpo a motivassem a explorar nessa direcção.

Se Bellingham fosse o causador da sua ruína e a tivesse mantido ao seu lado durante todos aqueles anos sem se preocupar absolutamente com o prazer dela, merecia mais alguma coisa do que o fuzilamento. Por sorte o homem já tinha morrido, porque, se estivesse entre os vivos, Jack não sabia se conseguiria conter-se e não o desafiar para um duelo no seu regresso a Londres. Isso teria causado um grande escândalo no começo da temporada de apresentação de Dorothy.

Pensou com horror no que podia ter acontecido à sua irmã, que lhe escrevia com entusiasmo sobre a temporada e as suas expectativas de casamento, se lhe tivessem roubado a inocência. Aquela ideia deixava-o doente, por isso jurou que morreria de desejo insatisfeito antes de tocar em Belle sem que ela o convidasse livremente.

Pensou nos seus vestidos de gola alta e na indiferença fria com que tratava os seus admiradores em Londres. Aparentemente, desenvolvera repulsão pelo físico e um nervosismo compreensível para com os homens. Nessas condições, seria bom para ela conformar-se com o prazer da sua companhia durante o tempo que ficasse ali, pois era improvável que lhe oferecesse outra coisa.

Recordou o beijo que quase tinham partilhado. Tinha a certeza de que ela queria aquele beijo, o que implicava que a atracção, que ele percebia nela, existia realmente. E havia sempre a possibilidade de que, se lhe desse tempo e espaço para responder quando ela quisesse, chegasse a sentir-se bastante confortável ou curiosa para explorar com ele os impulsos que estivera a controlar.

Mas era melhor não alimentar aqueles pensamentos. Não, os dias seguintes seriam apenas para desfrutar da sua companhia. Teria de se conformar com isso, naquele momento. E considerar se seria suficiente para durar o resto da sua vida.

Quando a viu mais tarde durante o almoço, o desconforto entre eles quase desaparecera e os últimos vestígios dissiparam-se durante o passeio que fizeram por Bellehaven depois do almoço. No primeiro passeio, a jovem evitara as zonas povoadas, mas daquela vez pararam em todas as casas e todos os campos onde havia vizinhos, a quem apresentava Jack como o soldado que estava a organizar o esquema de segurança de Bellehaven.

A história da emboscada durante a viagem espalhara-se pelo campo e vários homens agradeceram a Jack por ter ajudado a senhora e suplicaram que a ajudasse na segurança da mansão.

Aqueles camponeses apreciavam e respeitavam Belle de tal modo que era evidente que não deviam saber nada dos seus anos em Londres. Para eles, era a senhora da mansão que cuidava deles e do seu bem-estar.

E por acaso não era isso o que ela era?

Mas o respeito de que desfrutava era frágil. Ele só tinha de fazer uma alusão sobre a sua antiga vida ou um gesto demasiado familiar e a boa reputação que ganhara entre aquelas pessoas ficaria arruinada para sempre. E por isso honrava-o que confiasse nele o suficiente para se arriscar a levá-lo até ali.

Acabaram o passeio tal como no dia anterior, no alto da colina de onde se via a casa.

- É evidente que os teus vizinhos te têm em grande estima - comentou Jack enquanto bebiam um copo de vinho. - Fizeste um trabalho maravilhoso em Bellehaven.

- A terra já estava em muito bom estado quando a comprei. E o meu pai sempre me falou da importância e da coragem da gente que a trabalha.

Jack prestou atenção imediatamente.

- O teu pai tinha propriedades? - perguntou com cautela, desejoso de saber mais, mas sem querer parecer muito curioso.

- Não, era um filho mais novo e viu-se obrigado a procurar fortuna. O seu sonho era ter dinheiro suficiente para comprar uma propriedade como esta, mas não conseguiu realizá-lo - sorriu com carinho. - Acho que ficaria orgulhoso por saber que eu consegui, mesmo que não aprovasse os meios.

- Já não está vivo?

- Não. Morreu quando eu tinha treze anos.

- Sinto muito.

Jack esperou, sem conseguir respirar. Queria que lhe confiasse o resto da história, que confirmasse as suspeitas dele. Todavia, à medida que o silêncio se prolongava e ela olhava para longe com uma expressão de tristeza profunda no rosto, a sua sede de informação começou a desaparecer.

- Deves ter sofrido muito.

Ela olhou para ele com as lágrimas a brilhar nas pestanas.

- Sim. Durante anos, a única coisa que tornava suportável a minha tristeza era saber que nunca descobriria o que eu fazia.

Jack pensou que ficaria orgulhoso dela. Pela coragem com que enfrentava um destino detestável, pela dignidade que conseguira preservar ao longo de tudo aquilo. Orgulhoso por nunca ter perdido a sua verdadeira essência e ter conseguido, finalmente, ganhar a sua liberdade.

Jack estava orgulhoso dela por essas razões e por muitas mais. Mas não tinha a certeza de que Belle acreditasse nele se expressasse a sua admiração.

A jovem sorriu.

- Imagino que te tenhas perguntado como cheguei a ser... o que sou. E embora tenhas feito perguntas discretas aos meus empregados, foste demasiado cavalheiro para me perguntar a mim directamente. Não é uma época que eu goste de recordar. A minha mãe morreu pouco depois do meu pai e não havia dinheiro... nada.

- Não tinhas mais família?

Ela fechou os olhos durante um longo momento, como se a palavra "família" a magoasse.

- Não havia ninguém. Imagino que consigas adivinhar o que aconteceu. E em qualquer caso, a história é demasiado longa e tediosa para a narrar agora.

Nenhum familiar? Jack observou-a com atenção. Não conseguia imaginar que alguém não tivesse nenhum parente por afastado que fosse... a menos que o seu nascimento tivesse sido ilegítimo ou resultado de um escândalo tão extremo que ambas as famílias tivessem cortado todos os laços com os amantes.

Belle estava sentada muito tensa e a sua voz tornou-se mais distante.

Embora não tivesse escolha, odiei-me por isso. Mas acho que essa é a desculpa que todas as mulheres como eu usam.

Jack hesitou, porque queria desesperadamente dizer as palavras certas, algo que a fizesse relaxar.

- Eu acho que és a mulher mais corajosa que alguma vez conheci.

O elogio saiu dos seus lábios de um modo tão natural que ela olhou para ele, tensa, como se receasse que estivesse a gozar com ela.

- É verdade, Belle. Alguma vez te menti?

A jovem observou-o mais uma vez. Depois sorriu.

- Espero que não permitas que a tua mãe te ouça dizer uma coisa dessas, mas... és muito galante e agradeço-te.

O seu sorriso desapareceu e ela tocou na mão de Jack com hesitação. Ao longo dos anos, tinham-lhe tocado de uma forma mais carnal, mas nada lhe tinha parecido tão íntimo como aquela pressão dos dedos dela.

Num impulso, entrelaçou-os com os seus e teve o prazer de ver que ela não retirava a mão.

- Até há pouco tempo desdenhava os... impulsos que dominam aos homens. Agora compreendo-os um pouco. O teu toque não me é... desagradável.

Jack sorriu.

- Fico contente. Devolveu-lhe o sorriso.

- Foste tão bom comigo que eu gostaria de conseguir corresponder às tuas expectativas.

- Oh! Sonho com o dia em que me beijas como ontem à noite, mas com verdadeiro desejo.

- Ainda me desejas, depois do papel ridículo que fiz ontem à noite?

Ele olhou para ela nos olhos.

- Desejo-te com todas as minhas forças, mas o que te disse ontem era a sério. Não te tocarei a menos que tu o desejes tanto como eu.

Ela cravou o olhar na paisagem.

- Não acredito que eu alguma vez sinta esse tipo de desejo.

- Se, como desconfio, foste obrigada a ter intimidade contra a tua vontade, como vais saber quão bonito pode ser fazer amor? Entre duas pessoas que gostam uma da outra, é uma união de corações para além de corpos. Para nós será assim... ou não será.

- Parece bonito.

- Pode ser... com a pessoa adequada.

Ela ficou em silêncio um longo momento, olhando para as suas mãos unidas.

- Eu gostaria de viver isso.

- Eu adoraria mostrar-te isso, quando estiveres preparada.

Belle olhou para ele nos olhos.

- Mas como saberei quando estou preparada? Jack desatou a rir-se.

-Saberás!

Ela inclinou-se para ele com brusquidão, com os olhos fechados e os lábios apertados. Jack, surpreendido, afastou-se.

Belle abriu os olhos e olhou para ele com as faces coradas.

- Quero beijar-te.

- A sério? - perguntou ele, que não se atrevia a acreditar na sua boa sorte. - Porquê?

A jovem olhou para os lábios dele, levantou um dedo e passou-o por eles. Jack sentiu um calafrio e custou-lhe controlar um gemido.

- Nunca quis beijar um homem, mas quero saber o que sinto ao beijar-te. Sei que me deixarás parar quando quiser, portanto, posso beijar-te?

Jack rezou uma prece rápida para ser capaz de se controlar.

-Sim!

Ficou completamente imóvel enquanto ela se inclinava. O primeiro contacto dos seus lábios foi cauteloso, explorador, como o sussurro da brisa da Primavera na sua face, embora sentisse o toque em todos os seus poros.

Era apenas um beijo, algo que antes considerava um preliminar agradável. Nunca imaginara que um contacto tão suave pudesse alterar tanto a sua mente e os seus sentidos.

Belle agarrou-se aos seus ombros e aumentou a pressão, explorando os contornos da sua boca, tocando-lhe com os lábios, com movimentos encantadoramente ingénuos.

Jack pensou que aquilo era o paraíso, um prazer erótico que transcendia a luxúria e que não queria que acabasse. Até que ela o surpreendeu com a ponta da língua nos lábios fechados.

Deu um salto, abriu os lábios e deixou que ela deslizasse a sua língua na boca.

Com o coração a bater apressadamente, ordenou-se a permanecer imóvel, apesar do paroxismo de sensações que o embargavam. Por torturador que fosse sentir o calor do corpo dela na sua pele, a pressão dos seios dela no seu peito e mesmo assim continuar imóvel, não queria devorar os lábios dela como fizera na noite anterior, nem dar-lhe motivos para se assustar e afastar-se.

E por isso manteve os punhos fechados e deixou que ela o beijasse até que, por fim, quando já não conseguia suportar mais, permitiu-se procurar a língua dela com a sua e explorar com gentileza os contornos da sua boca. E então, permitiu a tocar-lhe nos lábios.

A doçura de tudo aquilo impregnava o seu coração.

Ela era uma cortesã que tinha fama de dominar todos os modos possíveis e imagináveis de dar prazer a um homem, uma mulher a quem tinham tocado intimamente e, no entanto, dizia que nunca até então beijara voluntariamente um homem. Algo no interior de Jack sofria pela inocência que lhe tinham roubado, pelo conhecimento brutal e sem amor a que tinham submetido a mente e o corpo de uma jovem indefesa.

Ao mesmo tempo, uma sensação de triunfo masculino invadia-o, porque o que ela fazia com ele naquele momento, o que sentia com ele, não fazia sentido com nenhum outro homem apesar dos seus anos de experiência.

Mostrar-lhe quanto prazer podia haver entre duas pessoas que se apreciavam mutuamente seria para ele um privilégio e um presente, embora estivessem destinados a não passar daquele beijo.

Quando ela se afastou, ele abraçou-a, apoiou-lhe a cabeça no seu ombro e pôs as mãos dela no seu peito. Apertou-lhe os dedos e agradou-lhe sentir que o coração dela batia tão depressa como o seu.

- Sentes? sussurrou. Os nossos corações a baterem como se fossem um só? É assim que deve ser a intimidade, Belle. É assim que sempre será entre nós.

Ela levantou o olhar para ele com uma expressão maravilhada.

- É bonito! Obrigada!

Voltou a acomodar-se no ombro dele e Jack beijou-a no cabelo. Estiveram um longo momento em silêncio. Jack mal se atrevia a respirar com medo de quebrar aquele momento frágil.

Uma rajada de vento fez com que ela estremecesse.

- Temos de voltar - disse contrariado.

Jack queria continuar ali e beijá-la várias vezes. Mas assentiu.

- Sim! Mae perguntar-se-á o que nos aconteceu. Prometi-lhe uma partida de bilhar antes de jantar.

Para alegria dela, foram de mão dada até à carruagem.

- Nunca esquecerei esta tarde - murmurou, quando ele se dispunha a ajudá-la a subir.

- Eu também não! - acrescentou ele, certo de que a lembrança daquela tarde o perseguiria durante anos.

Duas noites depois, Belle cantarolava para si mesma enquanto vestia um vestido muito elegante de cor azul que Jane alterara. Adornado com brilhantes nas mangas curtas e no decote discreto, sabia que realçava os seus olhos e a sua beleza.

Seria outra noite maravilhosa. Rir-se-iam e conversariam durante o jantar e talvez pedissem a Mae que lhes contasse alguma história dos seus amigos do teatro. Depois de tomar chá, Mae retirar-se-ia com discrição e deixá-los-ia a sós a conversar diante do fogo.

Pela primeira vez desde a morte dos seus pais, Belle era feliz, embora aquela palavra não descrevesse o bem que se sentia quando estava na presença de Jack. Uma alegria na qual não se atrevia a acreditar, que só podia saborear no momento e pela qual, sem dúvida nenhuma, teria de pagar um preço muito alto mais tarde. Uma alegria à qual não queria dar outro nome.

Depois de perceber que ele não a forçaria a ter algo mais íntimo, conseguira relaxar completamente com Jack, o que realçava, de modo incomensurável, o seu prazer pelo tempo que passavam juntos. Descobrira que não só gostava de lhe tocar, como também procurava oportunidades para o fazer.

Ou de o beijar. Quase se sentia obrigada a beijá-lo sempre que estavam a sós, para ver se o beijo seguinte seria tão doce como o anterior.

Até ao momento, tinham sido todos maravilhosos.

Apercebia-se de que as sensações que sentira desde que conhecera o capitão e que se tinham fortalecido gradualmente durante o tempo que passavam juntos, a plenitude dos seios, o arrepio nos mamilos, o calor e a humidade entre as coxas... deviam ser algo parecido com o desejo que sentiam os homens e sentir isso empurrava-a para ele, e o que sentia intensificava-se quando o beijava.

A sua primeira consideração sobre como seria ser amante de Jack Carrington transformou-se numa fantasia que a entretinha com frequência. Dado o desejo que o capitão confessara sentir por ela, a única coisa que a impedia de tentar torná-lo realidade era o medo.

Não queria estragar a sua amizade nem sujar a beleza daqueles beijos. Tinha medo de que, se o convidasse a acariciá-la com as mãos e com a boca, a sua repulsa voltasse. De que, para não gritar nem lutar por se afastar, se visse obrigada a afastar a mente do seu corpo e acabar o acto sem sentir nada.

Para além de arruinar para sempre as suas lembranças de uma intimidade doce, corria o risco de que Jack se desse conta do que se passava e, embora não soubesse se ele seria capaz de parar naquele ponto, achava que não podia arrastá-lo para um encontro tão injusto e potencialmente desastroso.

Já se sentia bastante culpada por, enquanto ela saboreava os beijos com ânsia, ele tivesse de combater a erecção e isso acabasse por lhe causar uma enorme frustração. Não estava correcto que ela continuasse a testar o controlo dele. Tinha de parar de o beijar ou permitir que os beijos chegassem à sua conclusão natural.

Já tinham tido um pequeno contratempo a respeito daquilo. Na noite anterior, quando ela o beijava no terraço, os seus dedos desceram pela camisa dele em direcção ao vulto familiar das suas calças. Com a paixão do beijo, desejou acariciar astutamente a parte mais sensível do corpo dele para o sentir estremecer durante o beijo.

Mas ele agarrou-lhe a mão antes que os dedos chegassem ao seu destino.

- Beija-me as vezes que quiseres - disse-lhe com voz rouca, - mas não deves tocar-me.

- Tu não queres? - perguntou ela, acariciando-lhe o peito, frustrada por ele lhe ter agarrado a mão.

- Tu queres enlouquecer-me - respondeu ele com um gemido. - Sou humano, Belle. E recuso-me a quebrar uma promessa.

Ela não tentou tocar-lhe novamente, embora se sentisse tentada. E agora, olhando-se ao espelho, recordou que ele se iria embora dentro de dois dias.

Acabar-se-iam os serões mágicos.

E a oportunidade de descobrir se o paraíso se podia estender para além de um beijo.

E se assim não fosse, importava muito que aproveitasse todos os aspectos da intimidade? Certamente não sentiria repulsa se fosse Jack quem visitasse o interior do seu corpo.

Conhecia técnicas para lhe dar todo o prazer que desejava, e assim pagar-lhe a frustração que os seus beijos lhe tinham causado e recompensar a contenção e o interesse terno que lhe mostrara.

Para além disso, tocar-lhe no corpo todo seria também uma recompensa para ela. Desde o episódio em que ele lhe agarrara a mão, desenvolvera uma impaciência por despi-lo e explorar o seu corpo com as mãos e os lábios. Gostava da ideia de acrescentar aquela imagem às lembranças dos dois juntos.

E já havia tantas! Quando os olhos dele brilhavam. O tom profundo da sua voz. Tudo o que sabia e o modo como a desafiava a defender os seus pontos de vista.

E amava sobretudo o sabor da sua boca e como um movimento da sua língua conseguia provocar-lhe labaredas nos seios e na barriga e torná-la ofegante.

Talvez a intimidade com Jack não fosse tão desagradável como temera.

"Nunca quererei mais do que o que tu queiras dar-me espontaneamente."

Com a decisão já tomada, saiu para a sala de jantar.

Naquela noite oferecer-lhe-ia tudo.

 

À medida que a noite avançava, Belle esperava com impaciência que o ritual do jantar e do chá acabasse. Embora não sentisse a ansiedade que a embargara há uma semana, quando planeava seduzir Jack e mandá-lo para casa dele, a sua mente e o seu corpo estavam tensos.

Daquela vez o nervosismo era mais devido à ansiedade do que ao medo, e estava impaciente por poder usar as técnicas que tão amargamente aprendera para pagar a Jack a alegria que trouxera para a sua vida.

Finalmente Watson e Mae retiraram-se. Apesar da sua agitação interior, Belle achava que tudo corria como de costume... até que reparou, de repente, que a sala estava em silêncio. Olhou para Jack com um rubor de culpa nas faces e encontrou-o sorridente.

Vejo que os meus comentários sobre a poesia de Byron não foram propriamente fascinantes.

- Não é isso, é que... estava ansiosa por poder beijar-te.

O sorriso dele tornou-se mais intenso e algo quente brilhou nos seus olhos.

Então não esperes mais.

Ela aproximou-se e ele sentou-a no colo dele e abriu a boca. A sua língua procurou a dele e aquele primeiro contacto enviou uma onda de excitação através das suas veias.

À medida que a sua língua avançava, a dele recuava. Belle sentia a contenção dele, recorrendo mais uma vez ao seu controlo de aço. Como queria arrancar-lhe uma resposta mais fervorosa, perseguiu a língua dele até que o sentiu estremecer.

Jack pôs-lhe as mãos nos ombros e passou de presa a caçador, aprofundando o beijo. Apanhou-lhe a língua, sugou e provocou com isso uma onda de sensações nos mamilos dela e entre as suas pernas.

Sentia os seus seios inchados e tensos. Queria que ele os acariciasse, mas quando tentou baixar a mão dele para ali, Jack interrompeu o beijo.

- Quero que me toques - protestou ela. Os olhos dele escureceram.

- Onde?

Belle guiou-lhe as mãos até aos seios.

- Aqui!

Embora ele deixasse a mão onde ela a pusera, os seus dedos não se mexeram. Belle lançou um gemido de frustração.

- Acaricia-me, por favor.

Um suspiro escapou dos seus lábios, quando ele começou a mexer a mão à volta dos seus seios. Sem afastar os olhos do rosto dela, Jack mexeu o polegar em círculos pequenos até que por fim tocou no mamilo.

Belle apoiou-se nele gemendo, beijando-o com ferocidade, com a mão dele a acariciá-la várias vezes.

Mas isso não bastava para satisfazer a necessidade que crescia no seu interior e palpitava entre as suas pernas. Sabedora de que os dedos dele na sua pele nua intensificariam as sensações, afastou-se e puxou o decote para baixo antes de levar novamente a mão dele ao mamilo descoberto.

A sensação era agora mais intensa, tanto que ela gemeu, tentou agradecer-lhe com os lábios e a língua. No entanto, sabia que devia haver um modo de tornar ainda mais intensas as sensações.

Uma parte dela escandalizou-se diante da ideia que lhe ocorreu. Nunca antes desejara que um homem lhe chupasse os seios. Normalmente, aquele acto era o que despoletava a ida da sua mente e do seu espírito para o seu refúgio mental, deixando na terra apenas o seu corpo.

Mas naquela noite ansiava a sensação da boca dele nos seus seios. Interrompeu o beijo mais uma vez.

- Por favor, quero os teus lábios aqui - disse com voz rouca, apertando o polegar que continuava a mexer-se preguiçosamente em cima do mamilo.

Jack olhou para ela com os olhos brilhantes e a boca húmida e vermelha pelo ardor dos seus beijos. Mas não baixou a cabeça.

Uma fúria de frustração invadiu-a. Perguntou-se porque hesitava. Dispunha-se a suplicar-lhe novamente quando ele a surpreendeu, levantando-lhe o vestido.

- Este não é o lugar apropriado - disse. - E se vier um criado recolher os copos?

A lembrança desagradável da vergonha do passado limpou parte da névoa de paixão que a envolvia.

- Sim! Sim, tens razão! Não devemos continuar aqui.

Por sorte, a erecção dele, que palpitava contra o seu rabo, garantia-lhe que a preocupação pela intimidade não diminuíra o ardor de Jack. Levantou-se do colo dele e pegou-lhe na mão.

- Vens comigo? Ele soltou-se.

- Para onde?

Belle deu-se conta de que na sua mente não havia hesitações. Tinham ido tão longe que não havia nenhuma continuação possível que fosse justa para o capitão que não fosse acabar o que tinham começado. Mas estaria preparada?

Olhou para Jack, que continuava sentado, com a mandíbula apertada e as mãos sobre o colo sem fazer nada para a convencer, apesar da prova evidente do seu desejo. Se naquele momento ela dissesse que já não queria mais ou lhe desejasse uma boa noite, ele deixá-la-ia ir-se embora.

Uma onda de ternura controlou o seu pânico e arrastou as suas últimas dúvidas.

- Para o meu quarto.

Ele pareceu surpreendido.

- Isso não seria inteligente.

- Porquê? Tu disseste que me tocarias se eu quisesse. E eu quero.

- Mas também te prometi parar e, se seguirmos em frente na intimidade do teu quarto, não sei se conseguirei cumprir essa promessa.

- Não terás de parar.

Jack olhou para ela nos olhos.

- Tens a certeza?

A jovem recordou a doçura do seu polegar a acariciar-lhe o mamilo.

-Sim.

Como era necessário manter uma distância apropriada pelo caminho para o caso de encontrarem algum empregado, quando chegaram ao quarto, Belle perdera algum do entusiasmo e algumas das suas dúvidas tinham regressado. Não queria que o capitão sentisse a sua hesitação, portanto puxou-o rapidamente para dentro do seu quarto e fechou a porta.

Devia tocar-lhe imediatamente, tentar alterar o seu controlo de modo que ele não sentisse a repulsa dela numa fase posterior. Todavia, quando se aproximou dele, Jack afastou-lhe a mão mais uma vez.

Ela olhou para ele surpreendida.

- Porque não? Aqui não há ninguém. Ele abanou a cabeça sorridente.

- Acedi acompanhar-te, não mudar as regras. Tocar-te-ei onde e como tu me pedires, mas para além de me beijares, não podes tocar-me - baixou o olhar para os seios dela. - Sugiro que comeces por me deixares despir-te.

O seu olhar firme era quase tão forte como uma carícia.

- Muito bem! - respondeu Belle, que sentia os mamilos endurecerem. E surpreendeu-se ao ouvir que a sua voz soava ofegante.

Em vez de lhe levantar o vestido como fizera na sala, Jack pôs-se por trás dela e começou a desabotoar-lhe o vestido sem pressa, acariciando-lhe as costas e os ombros com os dedos e tocando com os lábios na nuca e no pescoço.

- A seda tem um toque sensual - sussurrou-lhe, mas não é nada comparado com a sensação da tua pele nua.

Belle tinha a sua atenção fixa no descer lento das suas mãos e na carícia da sua boca e reprimiu um gemido quando ele desapertou os últimos botões e lhe acariciou as nádegas. Desceu em seguida o vestido pela parte de trás das coxas, dos joelhos e dos tornozelos.

- Podes sair daí. Ela obedeceu.

Ele endireitou-se e ficou diante dela, observando-a com avidez. Embora a combinação cobrisse ainda todo o seu corpo, Belle sentia-se nua.

Nua... e atrevida. Baixou o olhar, sedutora, para olhar para a parte da frente das calças dele e adorou ver como o tecido ficava tenso.

Mas ele impediu-a de lhe tocar mais uma vez.

- Ainda tens muita roupa - murmurou.

Pôs-se novamente por trás dela e daquela vez desapertou devagar a roupa interior e continuou com os lábios a carícia dos dedos. Primeiro o pescoço, os ombros, a curva das costas... Quando acabou de lhe tirar a roupa e se ajoelhou diante dela, enfiando os polegares nas cuecas para as tirar juntamente com a combinação, Belle tremia e tinha os nervos todos à flor da pele.

Ele acariciou-lhe as nádegas com os lábios e ela sentiu que as pernas quase se dobravam por causa da sensação deliciosa que a língua húmida dele deixava na parte onde as nádegas se encontravam com as coxas e depois continuava a subir, para descer novamente pelas pernas até aos tornozelos.

Quando tirou a roupa pelos pés, endireitou-se e ela virou-se para ele, vestida apenas com meias e um cinto de ligas.

Mais uma vez, todo o seu corpo vibrou sob o olhar dele, que se inclinou para a beijar castamente nos lábios.

- Quase me parece um sacrilégio tocar em tanta beleza.

- Pois então peca, suplico-te! - exclamou ela, assustada perante a possibilidade de que pudesse parar naquele momento.

Jack atirou-a para a cama com um sorriso. Quando a jovem se agarrou à camisa dele, ansiosa por começar a despi-lo também, afastou-lhe as mãos.

- Ainda não, minha princesa. Primeiro deixa-me agradar-te.

- Já me dás prazer. Eu também quero tocar-te.

- Mais tarde poderás tocar-me onde quiseres, mas, nesta primeira vez, quero ser todo teu, querida. Por favor!

Belle, que não conseguia encontrar palavras coerentes com as quais protestar, deixou-se deitar na cama. Ele pôs almofadas por baixo dela e incitou-a a abrir as pernas, enquanto se sentava na beira da cama e começava a tirar-lhe as meias.

A ideia de mostrar o seu lugar mais íntimo ao olhar penetrante dele, deitada quase nua diante dele enquanto ele continuava completamente vestido, assustou-a e intensificou a tensão que se produzia no seu corpo.

O calor humedecia a sua pele e uma gota de suor caiu entre os seus seios e foi descendo pela pele escorregadia da sua barriga, enquanto lhe tirava as meias e lhe massajava os dedos dos pés. Depois, olhando ainda para o seu rosto e para o seu corpo, levantou o pé e beijou-o.

Uma sensação forte invadiu o centro dela, provocando-lhe uma vibração curiosa, mas intensa. Apertou-se contra o colchão, lutando por encontrar alguma coisa que diminuísse aquela tensão deliciosa e quase insuportável.

Jack mordiscava-lhe agora os dedos do pé e subia uma mão desde o tornozelo até à coxa, deixando-a a pouca distância da concentração palpitante dela, que desejava também a sua carícia.

Largou-lhe os dedos do pé e afastou-lhe as pernas com gentileza, observando-a.

- Sim, meu tesouro, brilha para mim.

Belle nunca antes tinha desejado que lhe tocassem ali. Mas agora pensava que enlouqueceria se ele não o fizesse.

- Por favor! - suplicou. Pegou na mão dele e aproximou-a mais. - Acaricia-me aí.

- Como queiras.

Jack aproximou-se mais e ela gemeu de frustração e de prazer, quando, em vez de cumprir a sua ordem, ele baixou a cabeça para os seus seios, onde, em vez de aliviar a sua tortura colocando um mamilo na boca, parou um instante com a boca a pouca distância e, quando finalmente o tomou entre os seus lábios, Belle gritou de prazer.

Não conseguia pensar, só tinha consciência das sensações que a embargavam, enquanto ele lambia os seus seios e os dedos dele subiam pela parte interior da sua coxa para acariciar os caracóis entre as suas pernas.

Um dedo afundou-se, de repente, na pele húmida dos seus lábios interiores e acariciou o pequeno botão escondido entre eles, o que lhe produziu uma reacção tão intensa que ela arqueou as costas e se encolheu por baixo dele. Jack murmurou qualquer coisa reconfortante e reduziu a carícia a um toque suave como uma pena até que, uns minutos mais tarde, ela se apertou contra a sua mão, ansiando a intensidade de uma carícia mais forte.

A tensão parecia crescer no seu interior, fazendo com que se mexesse com frenesim contra os dedos dele. Então, ele parou e ela teria gritado em protesto, porém um instante depois Jack trocou a carícia dos dedos pela da língua.

Sentiu as pernas fracas e fechou os olhos. Toda ela estava concentrada naquele botão pequeno do seu corpo e na força das sensações que lhe produzia. O suor caía pela sua barriga e humedecia as mãos com as quais se agarrava às almofadas enquanto procurava freneticamente algo... uma libertação...

E então aconteceu... uma explosão que se originou no lugar onde a língua dele acariciava e rebentou num milhão de pontos de luz que transportaram aquelas sensações deliciosas até aos outros pontos do seu corpo.

Uma onda de sensações assaltou-a, anulando o seu pensamento e a sua vontade, até que por fim se foram dispersando. Belle, saciada, continuou com os olhos fechados e durante um longo momento ouviu apenas o som da sua respiração. Jack deitou-se sobre a almofada, ao lado dela, e tomou-a nos seus braços.

Surpresa, alegria e uma gratidão profunda invadiam-na, e passaram muitos minutos até que fosse capaz de falar.

- Nunca imaginei... - disse finalmente.

- É assim que o prazer deve ser. Como será sempre para nós.

- Mas... tu mentiste-me.

Ele ficou tenso imediatamente.

- Menti-te? Como?

- Tu disseste que deveríamos saborear juntos o prazer. Isto... não me parece que seja "juntos".

Jack soltou uma gargalhada.

- Tens razão, mas desejo-te tanto que não podia arriscar-me a que procurássemos o prazer juntos na primeira vez. Não teria durado o suficiente.

- Acho que agora é a tua vez. E se não achares inconveniente, agora farás exactamente o que eu mandar.

- Estou completamente ao seu serviço, minha senhora.

E ela começou a ordenar. Embora, como ele previra, quando acabou de o despir devagar e começou a saborear o seu peito e os seus mamilos, a respiração ofegante lhe tivesse anunciado que faltava pouco para o clímax. E ela fazia tudo para tornar o seu prazer mais intenso... acariciando os seus testículos com as mãos enquanto tinha o pénis na sua boca.

O grito dele, quando chegou ao orgasmo, foi muito gratificante. Mas depois de lhe dar um período curto para se recuperar, disse-lhe que se sentia enganada e pediu-lhe que a deixasse acabar a exploração do seu corpo.

Uma ordem que ele parecia encantado por cumprir. Deitou-se na posição que ela lhe indicou e Belle conseguiu tornar realidade todas as fantasias que criara tocando-lhe. Uma satisfação profunda e feminina embargou-a, por poder usar a sua experiência e o seu instinto para descobrir o que lhe agradaria mais e deixar-se guiar pelos suspiros e pelos gemidos dele.

Ah, sim! A pele por detrás das orelhas, a parte detrás dos joelhos e dos tornozelos respondiam instantaneamente às suas carícias. Quando ela passou a língua pelas costas dele e pela pele debaixo do braço, Jack ficou arrepiado. E quando tocou nos seus mamilos com os dentes, as mãos dele agarraram-se ao cabelo dela, que estava solto.

Surpreendeu-a, no entanto, que quando desceu os lábios pelo abdómen dele, o seu pénis estivesse já em erecção. Uma sensação de triunfo percorreu o seu corpo, os seus mamilos endureceram e aqueceu os lugares que a língua dele tinha humedecido.

Recompensou-o imediatamente, acariciando o seu pénis. A tensão que se foi acumulando no seu corpo, enquanto o acariciava, intensificou-se. Antes que tivesse tempo de pensar se ele voltaria a agradar-lhe como antes, Jack endireitou-a e sentou-a de pernas abertas sobre ele.

- Desta vez vamos fazê-lo juntos, meu amor - murmurou.

Beijou-lhe levemente os lábios e sentou-a de um modo que a sua erecção mal tocava na pele que escondia o centro do prazer de Belle.

- Mexe-te como quiseres e quando quiseres disse-lhe.

Aquele contacto era tão excitante que ela automaticamente se apertou contra ele para aumentar a pressão. O contacto entre as duas superfícies húmidas causou-lhe uma onda de prazer e aumentou ainda mais a tensão que sentia. Apertou-lhe as nádegas, sorrindo, e mexeu-se de um modo que ela sentiu apenas uma parte pequena do pénis no seu interior.

Aquilo era diferente da sensação dos seus lábios ali, mas igualmente excitante. Introduziu-o um pouco mais no seu interior e depois ainda mais. Então, quando ele se inclinou para lhe acariciar um mamilo, ela moveu as ancas, pois desejava tê-lo completamente no seu interior.

Em vez do que nas outras vezes fora uma sensação desagradável que se aproximava da dor, agora a humidade do pénis dele no seu interior parecia prolongar o prazer. À medida que a tensão aumentava no seu interior, movia-se com Jack com mais força e mais rapidez, encaminhando-se para um objectivo que não tinha a certeza de conseguir alcançar daquele modo.

O prazer que continuou demonstrou ser tão intenso e ainda mais satisfatório do que da primeira vez. Porque daquela vez Jack alcançou o clímax com ela e tremeu com ela e Belle deixou-se cair sobre ele, saciada, com os seus corpos unidos tão profundamente quanto conseguiam.

Os dois num só, como ele tinha prometido.

Ficaram imóveis durante um longo momento e depois ele endireitou-se para a beijar.

- Não é bonito?

Os olhos de Belle encheram-se de lágrimas pela beleza de uma união mais profunda do que alguma vez podia ter imaginado.

-Sim!

-Ainda bem... - ela sentiu que os lábios dele sorriam contra a sua face. - E ainda só acabámos de começar.

Enquanto escovava o cabelo na manhã seguinte, Belle sentia-se maravilhada por, apesar dos seus seis anos de experiência, ter conseguido ser tão ignorante relativamente às respostas e ao potencial do seu próprio corpo.

E do de Jack. Tinham dormido brevemente, mas, pouco depois da sua primeira união, ele acordara para lhe demonstrar que tinha intenção de cumprir naquela mesma noite a promessa que ela achava que tinha feito para anos vindouros. Chegaram juntos ao êxtase por mais duas vezes antes de caírem, por fim, num sono satisfeito e profundo.

E a sensação maravilhosa de o amar daquela maneira podia ser sua durante mais alguns dias. Agradeceu a Deus por ter tido a coragem de a procurar.

Depois de lavar com ternura o corpo húmido dela ao amanhecer, Jack insistira em voltar para os seus aposentos. Como se isso pudesse evitar que todos os serventes soubessem que tinham passado a noite juntos.

Não era provável que algum dos habitantes da casa o lamentasse e muito menos mostrasse alguma indignação moral. Mae ficaria contente, certa de que se tinham cumprido as suas esperanças para o futuro de Belle.

E Belle recusava-se a estragar o que planeava como um dia glorioso, pensando em como Mae veria os seus desejos frustrados.

Desejava ver novamente Jack. Depois de decidir que os dias que lhe restavam eram demasiado valiosos para perder um segundo que fosse com actividades supérfluas e disposta a mascarar o seu prazer com ele mantendo o decoro perante os outros, Belle decidiu que levariam o pequeno-almoço para a colina, onde o prazer de tomar o café e a torrada das mãos de Jack compensaria a frescura da manhã.

Apesar da sua bravura, quando chamou Watson, sentiu um rubor de culpa nas faces.

- Diz à cozinheira que prepare um pequeno-almoço para o capitão e para mim, por favor. Sairemos na carruagem assim que estiver pronto.

Quando Watson se endireitou da sua reverência, sorria amplamente.

- Espero que estejam os dois felizes, senhora! - exclamou, antes de sair.

Uma hora mais tarde, Belle estava sentada com Jack num banco por baixo da árvore a olhar para os campos de Bellehaven, com as costas apoiadas no peito dele e os braços dele à volta do seu corpo. Ambos bebiam café da mesma chávena.

Uma satisfação preguiçosa embargava-a.

- Está um dia lindo, não achas?

- Certamente - assentiu ele. - Apesar daquelas nuvens - assinalou o horizonte, - que parecem indicar que brevemente chegará a chuva.

- E o que importa um pouco de chuva num dia tão esplêndido?

Ele apertou-a contra si.

- Nem depois de uma noite tão esplêndida.

Aquilo pedia um beijo, que Belle lhe deu encantada. Um momento depois, ele interrompeu o beijo, rindo-se, e endireitou-se, largando os restos da torrada e presunto e a chávena de café.

- Demasiado esplêndido para ficarmos tranquilamente sentados - murmurou. Pegou nela ao colo e rodou com ela.

- Pára, vou ficar zonza! - protestou Belle.

- Não tanto como me deixas a mim.

- Estás louco - ela tentou soltar-se.

- Se isto é loucura, desejo nunca mais voltar a estar consciente.

- Chega! - Belle soltou-se, rindo-se, e sentou-se no banco com uma mão na cabeça. - Tenho a cabeça às voltas de tal modo que não sei quando vai parar.

- Acho que a minha cabeça nunca parará de girar murmurou ele num tom sério.

Belle sabia que aqueles dias roubados ao tempo certamente lhe custariam anos de tristeza. As palavras dele quereriam dizer que também se sentia condenado a uma vida de solidão?

Não se atrevia a perguntar-lhe nem queria saber. Por sorte, ele interrompeu a seriedade do momento, aproximando-se do bosque, onde estavam os restos de uma cabana velha. Junto àquelas ruínas cresciam uns malmequeres que dançavam com a brisa. Apanhou alguns e levou-lhos.

- Para a minha dama, soberana do meu coração e senhora do meu futuro - disse, pondo um joelho no chão. - Um presente da bondade da natureza.

- É encantador, cavalheiro - respondeu ela. Naquele momento, levantou-se vento e começou a cair uma chuva fria. Jack olhou para as nuvens e ajudou-a a endireitar-se.

- A menos que a minha senhora queira ensopar-se, este cavalheiro sugere que voltemos rapidamente para o castelo.

Decepcionada porque o regresso à mansão implicava que certamente teria de o partilhar com Mae o resto do dia, Belle sentiu-se no entanto obrigada a obedecer.

- Muito bem, cavalheiro! Vamos regressar!

Jack envolveu Belle no seu manto e apertou-a contra si, enquanto se dirigiam para casa no meio de uma chuva cada vez mais intensa.

A mulher que protegia era tão linda e a noite que tinham partilhado, tão maravilhosa, que se recusava a permitir que os seus pensamentos abandonassem o universo que tinham criado ali, longe do olhar crítico do mundo. De qualquer modo, depressa se veria obrigado a regressar àquele mundo.

Embora o seu coração permanecesse ali.

Desde o primeiro momento em que a vira em casa de Armaldi, lady Belle deixara-o fascinado, excitado, surpreendido e cheio de luxúria. No entanto, depois da noite anterior, sabia sem dúvida nenhuma que também se apaixonara por ela tão profundamente que já não podia conceber insultá-la com a oferta de se transformar no protector dela.

Como conciliar isso com o dever que tinha para com a sua família era um enigma a que teria de dedicar muitas horas quando abandonasse aquele paraíso. Todavia, por enquanto, concentrar-se-ia apenas na alegria de ter Belle por perto e desfrutar do prazer do seu corpo contra o dele, do seu desejo e da sua ternura.

Ah, se aqueles dois últimos dias pudessem durar para sempre!

Meia hora mais tarde, entregavam a carruagem a um criado e corriam para casa para fugir à chuva.

Watson apareceu para lhes tirar as capas molhadas.

- A lareira está acesa na sala. Posso servir vinho quente?

- Isso seria óptimo, obrigada - agradeceu Belle.

- E senhora... - Watson baixou o tom de voz. - Tem visitas!

Antes que Jack pudesse perguntar-se quem podia ser, a porta da sala abriu-se e saiu um cavalheiro vestido com elegância.

- Lady Belle! - exclamou a voz profunda de lorde Rupert. - Capitão Carrington. Que interessante!

 

Jack ficou tenso ao reconhecer o barão e devolveu-lhe o olhar pouco amistoso que lhe lançava.

- O capitão aceitou o meu convite para descansar aqui uns dias antes de continuar a sua viagem para norte - disse Belle. O seu tom indicava que considerava que a presença de Jack não era assunto de Rupert.

- O que faz por aqui?

- Minha querida lady Belle, a sua partida de Londres foi tão precipitada que estava preocupado consigo. Como tinha assuntos de negócios aqui perto, senti-me tentado a visitá-la para ver se estava bem.

- Que atencioso! - repôs ela, sem qualquer afectuosidade. Jack quase conseguia vê-la a recuar para o interior da carapaça onde vivia a lady Belle que conhecera antes de Bellehaven.

Uma lady Belle que desconfiava de homens como Rupert. Jack aproximou-se instintivamente e pôs-lhe uma mão no ombro.

Rupert fixou a vista naquela mão e apertou o queixo. Uma expressão de raiva cruzou o rosto dele durante um segundo, porém em seguida a sua habitual expressão fria voltou.

- Ouvi dizer que o capitão ainda podia estar na sua companhia. Suponho que devo felicitá-lo, Carrington. Regressará a Londres para reclamar o seu prémio antes de ir para casa?

- Prémio? - Belle olhou com um ar inquisitivo para Jack.

Este lembrou-se então do pequeno-almoço no clube depois da primeira vez que vira Belle e da aposta que os outros homens tinham proposto e que ele desdenhara, mas que, de qualquer modo, tinham assentado no livro de apostas. Uma aposta que esquecera por completo mas que Rupert sem dúvida nenhuma pretendia usar agora em benefício próprio.

Sentiu náuseas ao dar-se conta de como responderia Belle ao que Rupert estava prestes a comunicar-lhe.

- Suponho que não se terá esquecido da aposta relativa à nossa encantadora lady Belle?

Jack sentiu que Belle ficava tensa e se afastava dele. A voz dela tornou-se mais fria.

- Houve uma aposta?

Rupert soltou uma gargalhada e Jack cerrou os punhos para resistir à tentação de o estrangular.

- Devo desculpar-me, querida - disse o barão com uma total falta de sinceridade. - Os homens são criaturas vulgares. Numa manhã no clube, eu enaltecia a sua pessoa e dizia que era a beleza mais inalcançável da cidade. Os amigos do capitão consideraram que os encantos dele seriam suficientes para destruir as barreiras mais sólidas. Depois de algumas discussões, a maioria dos homens, inclusive eu, apostou que lady Belle não se renderia aos encantos dele - abanou a cabeça e suspirou com um sorriso de malícia. - Entristece-me descobrir que subestimei o capitão.

- Apostaram que conseguiria... seduzir-me? - perguntou Belle, recusando-se a olhar para Jack.

- Envergonha-me ter de me mostrar tão pouco... delicado, mas sim. O interesse pelo assunto, lamento dizê-lo, era muito elevado, portanto suponho que a recompensa será substancial, capitão. Embora, claro, o que é o dinheiro comparado com a pessoa da nossa incomparável lady Belle? Mesmo assim, será uma boa

adição ao dote que levar para o casamento que, segundo os rumores, está a planear.

- Fazem-se rumores de muitas coisas, a maioria deles falsa - repôs Jack, que, nesse momento, odiava Rupert mais do que alguma vez odiara alguém. Queria gritar a Belle que as coisas não tinham sido assim, mas ela evitava o seu olhar implorante.

Odiava Rupert por pô-lo numa posição tão pouco vantajosa sabendo que, se se defendesse, pareceria ainda mais culpado. Era óbvio que não queria tentar explicar aquela confusão diante do barão. Mas não seria pior não dizer nada?

Incapaz de suportar a ideia de que a sua relação com Belle pudesse morrer ali mesmo, adiantou-se para se pôr na linha de visão dela.

- Juro que não participei... - disse em voz baixa.

- É verdade? - interrompeu-o ela, olhando finalmente para ele nos olhos. - Houve uma aposta?

Jack sentiu um aperto no coração.

- Como não me interessava, não prestei muita atenção...

- Houve uma aposta? - interrompeu-o ela novamente.

Jack olhou para ela um segundo, desejando que compreendesse, que confiasse nele, que acreditasse que ele não seria capaz de uma artimanha daquelas. Todavia na expressão fria dela leu o fim das suas esperanças.

- Sim - admitiu.

A jovem virou-se para Rupert.

- Obrigada pelo seu interesse por mim, senhor. Mas lamento ter tarefas urgentes que me impedem de lhe dedicar mais tempo. Tal como o tempo está, de certeza que quer prosseguir a sua viagem antes que a noite caia. O meu mordomo acompanhá-lo-á à porta. Bom dia.

Fez uma reverência e tentou afastar-se, mas lorde Rupert pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios, beijando lentamente os dedos dela antes de finalmente os soltar.

- O fim de uma aventura é sempre muito decepcionante, não é verdade? Mas espero voltar a vê-la em breve na cidade. Adeus, querida.

Ela lançou-lhe um olhar frio.

- Eu não sou a sua querida nem nunca serei, lorde. Saiu da sala e Rupert inclinou-se perante Jack com um sorriso de triunfo.

- Lamento ter acabado com o seu encantador idílio, capitão, mas Belle será minha mais cedo ou mais tarde. Pode contar com isso.

Jack sentiu o impulso de lhe dizer que mais depressa o mataria, no entanto controlou a sua fúria com esforço e, sem se incomodar em mostrar uma cortesia que não sentia, foi atrás de Belle.

Assim que saiu para o hall, Belle começou a correr, pouco consciente de para onde ia. Doía-lhe o peito, como se lhe tivessem cravado uma adaga, e sentia uma agonia que a impulsionava a bater na parede com os punhos e a gritar de angústia.

Traição... traição... traição.

Jack e o tempo passado com ele tinham-lhe parecido demasiado bons para serem verdade. E, claro, não eram verdade. Depois da sua anterior experiência, não devia ter-se lembrado que não podia confiar nas palavras ternas de um homem?

Mas saber que aquele fiasco era apenas culpa sua não diminuía a agonia.

Ouviu passos nas suas costas.

-Belle... espera!

Era a voz de Jack.

Sentiu náuseas e as lágrimas nublaram a sua visão. Pegou nas saias e apressou o passo. Mas ele não demorou a alcançá-la.

- Por favor, Belle - agarrou-a pelo ombro. – Pelo menos dá-me a oportunidade de te explicar sem que Rupert distorça todas as minhas palavras.

Belle deixou-se virar, mas ainda não conseguia olhar para ele. Sabia que se olhasse para o rosto dele só veria um traidor e culpa, ou pior ainda, um protesto de inocência apesar das provas, e perderia o pouco controlo que lhe restava e explodiria.

- Não vejo que mais possas dizer. Por favor, vai-te embora amanhã de manhã.

- Não irei enquanto não me ouvires.

Ela olhou para a mão dele no seu ombro e Jack retirou-a depois de um instante de hesitação.

- Muito bem. Faz o teu discurso e vai-te embora.

- Os factos básicos do que contou Rupert são verdadeiros. Estávamos no clube, os membros comentavam a tua vitória sobre o pobre Wexley. Os meus amigos, orgulhosos da minha habilidade com a espada, propuseram que eu fosse o próximo a desafiar-te. Rupert, suponho que ciumento, declarou que talvez conseguisse ganhar um beijo mas que nunca conseguiria levar-te para a minha cama. Embora eu me negasse a ter fosse o que fosse a ver com o assunto, alguns dos supostos "cavalheiros" presentes anotaram essa afirmação como uma aposta. Não te falei disso porque para mim não significou nada. Juro-te que me tinha esquecido.

- Mas desafiaste-me com a espada.

- Sim. Sentia demasiado fascínio por ti para resistir. Mas não podes acreditar que seria mesmo capaz de deixar que me ferisses para entrar em tua casa e receber o teu afecto só para ganhar uma aposta.

- Pela minha experiência, os homens fazem quase qualquer coisa para ganharem uma aposta. Põem uma grande credibilidade num código ridículo que lhes exige baterem-se até à morte por um insulto que pensam ter ouvido, mas não vêem nada de mal em causar a ruína de uma donzela ou de uma empregada de que gostam.

- Os cavalheiros dignos desse nome não fazem coisas semelhantes replicou ele. - Belle, sei que estás zangada pelo que consideras um engano meu e não te culpo por isso, mas se deixares de parte a tua sensação de ultraje e pensares com calma no tempo que passámos juntos, perceberás que as alegações de Rupert não são verdadeiras. Consegues mesmo acreditar que o que partilhámos e o que sentimos um pelo outro era falso?

Era tão eloquente, tão persuasivo, tão aparentemente sincero! Tal como fora Bellingham depois do episódio de Vauxhall. No entanto quando clamar o seu amor não conseguira comovê-la, o seu falecido protector encontrara logo uma nova forma de satisfazer a sua vontade com ela.

Como podia acreditar que aquele homem que conhecia há menos de um mês era melhor?

- Já te ouvi - disse. - Vai-te embora amanhã, por favor.

Jack olhou para ela um longo momento. Depois assentiu.

- Não te incomodarei mais - murmurou. - Amo-te, Belle. Se não conseguires acreditar nisso, se pensares que a alegria que encontrámos juntos foi apenas um engano, nada do que diga fará qualquer diferença.

Era tão convincente que ela se sentia tentada a ceder. Até que lhe ocorreu outra ideia.

- Mesmo que aceitasse a tua explicação, como pensavas que acabaria este interlúdio encantador? Esperavas convencer-me a transformar-me em tua amante?

Esperou, disposta a responder à proposta por que esperava com uma recusa em voltar a transformar-se na amante de um homem.

- Estava a começar a pensar que queria casar-me contigo.

Belle ficou primeiro sem ar. E depois foi invadida pela fúria.

Como se atrevia a gozar com ela daquela maneira! Soltou um risinho amargo.

- Oh, sim, claro! Pois deixa-me informar-te de que me agrada ainda menos dar a outro homem o controlo da minha pessoa, a minha fortuna e o meu futuro do que transformar-me na amante de alguém.

- Belle, não era isso que...

- Por favor - interrompeu-o ela com lágrimas nos olhos. - Acho que já dissemos o suficiente. Não sujemos mais o fim do que foi um... interlúdio agradável. Como sem dúvida estarei ocupada quando se for embora, desejo-lhe já uma boa viagem.

Jack olhou para ela durante alguns segundos, com o rosto inexpressivo. Belle amaldiçoou-se pela esperança estúpida que o seu coração ainda albergava de que ele caísse aos pés dela, lhe suplicasse perdão e se recusasse a deixá-la.

Em vez disso, o rosto dele tornou-se indecifrável.

- Prometi que nunca te obrigaria a nada que não desejasses. Mas lembra-te de que a minha partida foi um desejo teu, não meu.

Belle viu-o ir-se embora, aparentemente indiferente, mas a sangrar por dentro. Talvez ir-se embora não fosse o desejo dele naquele momento mas, agora que ela sabia a verdade, não teria demorado a ir-se embora de qualquer maneira... assim que descobrisse que as suas falsas desculpas não conquistariam o perdão dela como não tinham conquistado as de Bellingham depois do episódio de Vauxhall.

Era uma ironia que depois de seis anos entre cavalheiros da alta sociedade, se deixasse enganar daquela forma. Engoliu em seco e controlou uma gargalhada histérica. Quem teria imaginado que a famosa lady Belle seria tão ingénua?

A falsa oferta de casamento fora o golpe mais cruel de todos. Um membro respeitado da aristocracia não podia casar-se com uma mulher que era conhecida por

todos como a rameira de outro homem. Só de pensar nisso, sentia-se furiosa.

Não podia pensar nisso naquela altura. Mais adiante, quando conseguisse suportá-lo, reveria o que acontecera e tentaria descobrir como se deixara enganar assim pelo capitão e pelos seus sonhos de infância.

Jack Carrington ir-se-ia embora no dia seguinte. E, como ela pensava ficar indefinidamente em Bellehaven, era improvável que voltasse a vê-lo.

Ali tinha muito trabalho em que ocupar a sua mente.

 

Um mês depois, Belle estava sentada na biblioteca a examinar os seus livros de contas. Harold, o supervisor dos campos, acabava o relatório sobre o progresso da colheita da Primavera.

Da última vez que tinha ido inspeccionar os prados, eles estavam de uma cor verde pálida, com a erva a crescer sem problemas. No entanto percorrer os campos de Bellehaven e olhar para as suas terras desde a colina era algo que agora lhe trazia lembranças de Jack e que evitava sempre que podia.

A sua fúria irracional, alimentada pela dor e por uma profunda sensação de traição, apenas durara até à noite da partida de Jack. Depois de reflectir, não tivera outro remédio senão absolvê-lo de tentar enganá-la. Era uma tolice pensar que estivera às portas da morte só para a enganar.

Começava a acreditar com cautela nas afirmações dele que diziam que gostava dela. Se o seu objectivo tivesse sido ganhar uma aposta, podia ter ganhado na noite em que ela tentara seduzi-lo.

Contudo, em vez de aceitar o que lhe oferecia e reclamar o seu prémio, mantivera a distância e jurara não lhe tocar a menos que ela o desejasse.

Certamente devia-lhe um pedido de desculpas por ter duvidado da sua palavra e da sua honra, embora não fosse muito provável que tivesse essa oportunidade.

Talvez o maior dos seus presentes fosse ter-lhe mostrado a bênção e a proximidade que podia sentir na união física entre um homem e uma mulher. Uma proximidade que ela desejava para o resto da sua vida.

Todavia, embora ele a amasse e a respeitasse com todo o ardor que os britânicos sentiam por lorde Wellington, isso não mudava o facto de um homem como o capitão Carrington não poder casar-se com uma mulher como ela. O facto de que ele tivesse chegado a pensar nisso era uma prova da força do que tinham partilhado, isolados no casulo encantado de Bellehaven. Uma fuga da realidade dura do mundo, tão frágil e efémera como a teia de uma aranha.

Um encantamento que não conseguiria sobreviver ao regresso de Jack para junto da sua família e para a sua posição na vida. E visto que nem sequer o mais sincero dos sentimentos bastaria para criar um futuro legítimo para eles, certamente fora uma sorte que o vil lorde Rupert tivesse quebrado o seu idílio antes que ela chegasse a depender tanto da presença de Jack que abandonasse todos os seus escrúpulos e lhe suplicasse que fosse seu amante. Escondida, à espera dos momentos que ele pudesse roubar à sua vida, acabaria por se odiar a si mesma e a Jack por viverem aquilo.

E embora por algum milagre acontecesse o impossível e Jack quisesse casar-se com ela, Belle não tinha mentido ao dizer que não desejava casar-se. Embora Jack não fizesse parte daquela aposta sórdida, não parecia muito aborrecido com ela. E se até Jack, que era o melhor dos homens, aderia a um código de honra que ela não compreendia nem confiava, não tinha a certeza de querer entregar-lhe o poder de um marido legítimo sobre a sua vida e sobre o seu futuro.

Por sorte, não tivera de tomar uma decisão, mas ficara com lembranças da paixão e da ternura que poderia guardar para sempre.

Durante os anos solitários que tinha pela frente.

Uma chamada à porta tirou-a dos seus pensamentos sombrios. Mae entrou um instante depois.

- Madrugaste! - observou Belle.

- Com o meu chocolate quente chegou uma notícia tão importante que tinha de te vir contar imediatamente. Jane disse-me que o sargento Jackman comentou que hoje há mercado na aldeia, algo que só acontece de tempos a tempos. Estamos as duas fechadas aqui há séculos. Não me digas que não podemos ir.

Belle franziu o sobrolho.

- Não acho que seja uma boa ideia.

- Mas não houve nenhum problema desde que chegámos, há quase sete semanas. O sargento Jackman está de acordo. Olha, trouxe-o comigo para que ele te diga isso pessoalmente.

Mae abriu a porta e fez um gesto com a mão. O soldado entrou a coxear.

- Bom dia, lady Belle!

- Bom dia para si também, sargento. Mae diz que acha que não é perigoso ir ao mercado da vila.

- Não, senhora! Os meus homens não viram forasteiros nas vilas vizinhas e estiveram muito vigilantes. O mercado atrai sobretudo as pessoas do campo E os meus homens conhecem toda a gente. Acho que estarão seguras, mas, de qualquer modo, estaremos por perto. Se aparecerem alguns vilãos de Londres, poderemos com eles.

O sargento podia ter voltado de Waterloo com cicatrizes no rosto e uma claudicação pronunciada, mas era inteligente e ela confiava nele.

- Vês? - replicou Mae triunfante. - Reynolds diz que na vila existem algumas lojas e que a estalagem tem uma boa cozinheira. Se não vir algo que não sejam árvores, campos e vacas, vou enlouquecer. Além disso, tu estás mais resmungona do que um cão ferido, desde que um determinado cavalheiro se foi embora. Seria bom para ti saíres.

Belle sentiu-se culpada. Desde que Jack se fora embora, estava imersa numa névoa privada de pena e deixara que Mae se divertisse sozinha.

- Tens razão, e peço desculpas. Se o sargento aprovar o passeio, iremos - olhou para Jackman. - Mas não me sinto segura para deixar Jane aqui.

- Ela irá connosco - respondeu ele. - Não se preocupe com nada, senhora. Não permitirei que nada aconteça à menina Jane.

Belle sorriu. Apesar de ter estado distraída durante o último mês, tinha reparado que começava a brotar uma amizade entre a tímida Jane e o reticente soldado.

Ela sabia de antemão que os empregados da sua casa não desdenhariam a rapariga pelo passado que tivera, mas não estava tão segura em relação a Jackman.

Embora na história que fizera circular pelo campo dissesse que o ataque que tinham sofrido durante a viagem fora feito por salteadores que queriam roubar-lhes as jóias, Jack achara necessário contar a verdade ao homem que ia deixar responsável pela segurança da propriedade. Belle receava que o jovem soldado olhasse para a rapariga com desprezo, mas ele tratara-a desde o início com o mesmo respeito com que tratava os outros da casa, o que Belle lhe agradecia muito.

- Sargento, quer perguntar a Jane? Se ela quiser ir, iremos todos.

Quando o soldado saiu, Belle olhou para Mae.

- Se Jane não quiser sair daqui, eu ficarei com ela. Watson e outros empregados podem acompanhar-te. De certeza que todos quererão ir.

O sorriso de Mae hesitou.

- Estou tão desesperada por ver uma rua com lojas que estou tentada a aceitar, mas não conheço este lugar nem esta gente e sem ti para que vejas como me comporto, posso dizer ou fazer alguma coisa que faça as pessoas falarem de ti.

Belle olhou para ela surpreendida. Talvez a sua amiga fosse mais consciente da sua roupa e do seu comportamento do que ela achava. Comoveu-a que Mae se preocupasse que os seus actos pudessem manchar a reputação de Belle.

O sargento Jackman voltou em seguida para informar que Jane estava bastante disposta a fazer o passeio.

Uma hora depois, chegavam à vila a carruagem de Belle e uma carruagem com os empregados de Bellehaven. Mae estava tão entusiasmada que mal conseguiu esperar que pusessem os degraus. Até Jane comentou timidamente o quanto a alegrava aquela saída.

- Obrigada por me ter trazido, senhora. Já não me lembro da última vez que passeei por uma rua à luz do dia sem outra coisa na cabeça que não fosse ver as montras e as lojas.

- Aproveita, Jane. O sargento Jackman garantiu-me que te vigiará durante o dia todo.

A rapariga corou.

- O sargento foi muito simpático. Se estiver sempre ao meu lado como se fosse o meu pretendente, não terei medo. Não é que ele vá pensar em mim desse modo, claro. Mas... mas uma rapariga tem direito a sonhar.

Belle pensou que ela também se sentiria invencível se tivesse Jack ao seu lado. Suspirou. Jane tinha razão. Uma rapariga tinha o direito de sonhar. Um momento depois, viu que o sargento entregava a Jane um raminho de flores que acabava de comprar e compreendeu que, no caso da sua empregada, os sonhos podiam tornar-se realidade.

Como não conhecia a maioria das pessoas que enchia as ruas e o mercado, Belle não conseguia relaxar. Além disso, quando saíssem do mercado e fossem passear pelas ruas da vila, encontrar-se-iam com os lojistas que garantiam as provisões de Bellehaven, o que também a deixava nervosa.

No entanto os comerciantes trataram-nos com deferência e sorrisos e Mae divertia-se tanto a regatear tecidos e a experimentar chapéus que Belle ficou contente por ter permitido o passeio.

Depois de almoçarem na estalagem da vila, que para delícia de Mae demonstrou ter uma cozinheira tão boa como a governanta prometera, voltavam já para a carruagem quando Jane parou bruscamente. Escondeu-se atrás de Belle com os olhos assustados e fixos no outro extremo do mercado.

O sargento Jackman pôs-se ao lado dela com a mão no revólver que tinha pendurado ao ombro. Belle e Mae pararam também e Watson pôs-se do outro lado de Jane para que a rapariga ficasse completamente rodeada.

- O que se passa, menina Jane? - perguntou Jackman.

- Ali - sussurrou ela. - Ao lado da tenda da fruta. Aquele homem que está a falar com as raparigas é o senhor Harris, o homem que me convenceu a ir para Londres. Oh, não deixem que me veja!

- Não tenha medo, nós protegemo-la - garantiu-lhe Jackman.

- Tens a certeza, Jane? - perguntou Belle.

Embora sempre tivesse acreditado na história da rapariga, naquele momento a ideia de que alguém pudesse tentar desgraçar a vida das raparigas do campo, enganando-as, parecia-lhe mais próprio de um melodrama do que algo que pudesse acontecer realmente na Inglaterra actual.

- Depois de dois dias e duas noites a viajar com ele, acha que conseguiria esquecê-lo? Olhe, sorri para aquela rapariga tal como sorria para nós. Oh, alguém tem de as avisar!

- Sargento, envie um dos homens para o ouvir e afastar as raparigas dele se for necessário - pediu Belle. - Temos de saber o que o senhor Harris lhes diz.

Antes de sair de Londres, Belle falara com Egremont. Embora tivesse mostrado compaixão por Jane, dissera-lhe que, sem provas que garantissem o que a rapariga contava, era pouco provável que o governo investigasse o assunto. Se Harris oferecia realmente empregos para atrair aquelas raparigas para Londres, as declarações assinadas por elas chegariam para persuadir os amigos de Egremont para que iniciassem uma investigação.

Jackman trocou algumas palavras com o seu ajudante.

- Davie encarregar-se-á disso, senhora. Uma daquelas raparigas é amiga da irmã dele. Se tiverem a ideia maluca de se irem embora, ele intervirá em seguida. Agora, entrem na carruagem!

Depois de as deixar na carruagem com Watson e outros dois homens, o sargento foi reunir-se com o seu ajudante. Belle esperou ansiosa, pensando no que faria se Jackman confirmasse o que suspeitavam. Pouco tempo depois, o sargento regressava e pedia ao cocheiro que iniciasse a marcha.

- O homem chama-se Harris, como a menina Jane disse. Contava às raparigas histórias sobre os empregos maravilhosos que teriam como aias de damas e empregadas se fossem para Londres. Disse-lhes que os seus irmãos ou pais podiam viajar com elas na diligência se tivessem medo de ir sozinhas com ele - o sargento fez uma expressão de desdém. - Como se um camponês tivesse tempo para viajar para Londres nesta época do ano.

- Espero que o seu homem as tenha dissuadido comentou Belle.

O sargento sorriu.

- Oh, sim! O homem não gostou nada que ele interviesse, mas não tentou impedir que as raparigas partissem.

- Só quer levar raparigas que estejam dispostas a ir para que depois não possam dizer que as obrigaram murmurou Jane.

- Mande alguém seguir esse homem, sargento disse Belle. - Semanas inteiras, se for necessário. Tenho de saber para onde leva as raparigas que recruta e a quem as vende.

- Davie está a tratar disso, senhora. Vigiaremos aquele homem a partir de agora até que chegue à sua toca, onde quer que seja. A senhora pagou-nos bem e ainda não fizemos nada, por isso estamos felizes por começarmos a merecer esse dinheiro. Além disso, eu acho que qualquer homem que leve uma rapariga inocente para a teia de Satanás merece a forca.

Bateu na parede da carruagem para que o veículo parasse.

- Já saímos da vila, portanto continuarei a viagem lá fora. E assim que Davie saiba alguma coisa, venho contar-lhe.

Belle sentia alguma satisfação ao pensar que talvez brevemente pudesse ter provas para oferecer a Egremont e vingar Jane.

Se os ajudantes de Jackman conseguissem provar que Harris operava em Londres em conivência com a senhora Jarvis ou com qualquer outra madame, o governo teria de agir. Mas embora as raparigas da vila e os antigos soldados fossem testemunhas credíveis, Jane e ela eram as únicas que conheciam a história toda.

Podia escrever a Egremont a contar os detalhes, mas seria mais eficaz contar-lhe pessoalmente. Além disso, não podia enviar Jane sozinha para prestar declarações. Ela também teria de ir a Londres.

Onde, com a temporada no seu ponto alto, Jack estaria também.

Claro que não iria procurá-lo. De facto, tentaria ser vista pelo menor número de pessoas possível.

Todavia talvez pudesse vê-lo ao longe, a descer alguma rua ou a passear no parque. E sem dúvida nenhuma teria notícias dele, da sua mãe ou da sua irmã, nas páginas de sociedade. Podia sofrer ao ler sobre as mulheres com quem dançara ou visitara ou ao saber que namorada lhe atribuíam os rumores.

Talvez aquela tortura lenta fosse o melhor modo de o arrancar do seu coração e da sua cabeça de uma vez por todas. Porque, de facto, o isolamento no campo não tinha conseguido grande coisa.

Estava decidido. Se os espiões do sargento Jackman conseguissem provas de que Harris estava envolvido na conspiração que escravizara Jane, Belle regressaria a Londres.

Duas semanas mais tarde, Jack estava sentado com um grupo de convidados na mesa da casa da sua mãe em Londres, a sorrir para a jovem bonita, que usava um vestido muito caro, e que era a sua companheira no jantar. A rapariga, uma conhecida de Dorothy e que se apresentara também à sociedade naquele ano, fazia o impossível para atrair a sua atenção.

Infelizmente, não possuía outros atributos para além de um rosto encantador e uns seios grandes que, embora atraentes, não provocavam os seus apetites carnais. Recordou como Belle conseguia excitá-lo com um vestido cinzento abotoado até ao queixo.

A rapariga suspirou e abanou o seu amplo peito. Jack afastou o olhar e reprimiu um suspiro.

A conversa até ao momento consistira em monólogos de cortesia pela sua parte e não tinha a certeza de se sentir com forças para tentar mais alguma coisa.

A sua mente regressou à noite que passara com Belle a discutir os acordos alcançados no Congresso de Viena. Sorriu ao recordá-la com um vestido conservador, os olhos brilhantes e um dedo levantado no ar para reforçar a sua argumentação.

A dor atravessou-o como um sabre e foi suficientemente intensa para fazer com que os seus olhos humedecessem. Como sentia a falta dela!

Embora continuasse a querer trespassar lorde Rupert com a sua espada, o barão, provavelmente, tinha-lhes feito um favor. Os seus sentimentos por Belle tinham alcançado tanta intensidade que ponderara a possibilidade de se casar com ela. Se tivesse conseguido convencê-la, a união teria desencadeado o maior escândalo que se vira na cidade desde que a filha mais velha dos Burney conseguira casar-se com um duque.

Um casamento com Belle não só atrairia o desprezo das pessoas e o isolamento social, como também envergonharia a mãe de Jack, lady Anne, e possivelmente faria com que as melhores damas da sociedade lhe retirassem a amizade delas. E provavelmente diminuiria também as possibilidades de que a sua inocente irmã fizesse um bom casamento. Mesmo que o jovem que a cortejava actualmente tivesse a coragem de se casar com ela, apesar da infâmia daquele parentesco, isso só aumentaria as desgraças, pois a família dele ficaria exposta aos mesmos boatos e críticas.

Não, casar-se com Belle seria um acto de irresponsabilidade tão grande que devia sentir-se agradecido a lorde Rupert por tê-lo ajudado a evitar a tentação.

Salvo o seu pesar por fazer algo do género, agora podia continuar a fazer o que esperavam dele. E a levar uma vida vazia e insatisfeita.

Sabia que a sua mãe estava preocupada com ele. Aceitara a sua versão do acidente, da recuperação e da viagem para casa sem fazer muitas perguntas. Depois de introduzir o assunto várias vezes e receber apenas o silêncio como resposta, deixara de perguntar também pela intenção que expressara nas suas cartas de procurar esposa. E embora continuasse a convidar raparigas solteiras para jantar, viúvas respeitáveis e solteironas, para além das raparigas que se apresentavam à sociedade pela primeira vez, às vezes Jack sentia o seu olhar de recriminação cravado nele do outro extremo da mesa. E dava-se conta com um sobressalto de que voltara a abstrair-se nos seus pensamentos em vez de ajudar a entreter os convidados.

Não queria parecer grosseiro, mas nas mulheres que lhe punham à frente não encontrava nada que atraísse o seu interesse.

Dizia-se que com o tempo acabaria por cumprir com o seu dever. Depois de um ou dois anos, quando a presença de Belle nos seus pensamentos e nos seus sentidos começasse a desaparecer, talvez fosse capaz de suportar procurar alguém que a substituísse no seu coração.

Caso alguém conseguisse fazer isso.

Um pontapé na tíbia devolveu-o à realidade.

- Jack, as damas vão retirar-se - disse-lhe a sua irmã em voz baixa, olhando para ele.

Ele corou e levantou-se. Não tinha de olhar para a sua mãe para saber que ela também olhava para ele com exasperação.

A jovem sentada ao seu lado olhou para ele com uma expressão de dor, antes de se retirar com as outras.

- Fá-lo-ei melhor no futuro - prometeu à sua mãe em silêncio quando ela acompanhava as convidadas à porta.

E agora chegavam o brandy e os charutos. Só tinha de fazer circular o álcool e deixar que os cavalheiros presentes, a maioria amigos do seu falecido pai ou pais das amigas de Dorothy, conversassem sobre cavalos, cães de caça e caça até que se reunissem novamente com as damas.

Bebeu um gole de vinho. Pelo menos assim conseguiria ser um bom anfitrião.

Muito mais tarde, quando regressavam do baile a que tinham ido depois do jantar e depois de se despedir da sua mãe, Dorothy aproximou-se e pegou-lhe na mão.

- Queres sentar-te comigo? - pediu-lhe com olhos implorantes. - Estou muito nervosa para dormir e sei que tu passas metade da noite acordado.

Parecia tão madura e encantadora com o seu vestido de cetim branco que realçava a sua pele branca e o seu cabelo escuro, que a tristeza dele diminuiu um pouco.

- Muito bem, maninha, mas que não te ocorra pedir-me um copo do meu brandy.

- Eu não gosto - respondeu ela com uma careta, enquanto seguia para a biblioteca. - James diz que a bebida apropriada para uma dama é o champanhe.

- Agora já é James, é? - perguntou Jack com uma severidade fingida. - Se esse jovem pronunciar o teu nome tão livremente como tu pronuncias o dele, bem pode vir pedir-me a tua mão. E tu não beberás álcool nenhum, malvada.

A sua irmã aceitou um copo de limonada e esperou que ele se sentasse ao seu lado.

- Acho que o fará. Eu gosto muito dele. Fala com inteligência de coisas importantes, do Parlamento, do cuidado das terras, em vez de falar da sua carruagem ou dos últimos mexericos. Tu aprovarias se ele viesse visitar-te?

- Mandá-lo-ia para o diabo com a cabeça debaixo do braço - respondeu ele. E desatou a rir-se, quando ela lhe deu um murro. - Embora ninguém consiga ser suficientemente bom para a minha maninha, se tu gostas realmente dele, resignar-me-ei. Mas primeiro aproveita a temporada completa, está bem?

- Estou a aproveitar, mas não creio que tu estejas a fazer o mesmo comentou ela. - Estás sempre muito... sério. Às vezes, pergunto-me onde está o meu irmão que brincava comigo e fazia batota quando jogava às cartas.

- Se não tivesse feito batota, nunca te teria ganhado.

- Do meu irmão cujos olhos sorriam sempre continuou ela. - Já não o fazem, Jack. Por favor, não me mandes calar. A mamã disse-me que não devia falar-te disso, que tu nos contarias o que se passa quando estivesses preparado, mas vejo-te tão tenso e triste! Foi a guerra, Jack? Todos dizem que Waterloo foi horrível.

Ele queria dizer-lhe que seguisse o conselho da sua mãe, mas o seu olhar suplicante fez com que se contivesse.

Aquela era Dorothy, não uma bisbilhoteira que procurava rumores, e gostava tanto dele como ele gostava dela.

- Não penso contar-te os horrores de Waterloo disse finalmente, mas não tenho pesadelos por causa da batalha.

- Então é aquela mulher?

- Aquela... - repetiu ele, atónito. Santo Deus! Os comentários deviam ser muitos, se a notícia da sua estadia com Belle chegara aos ouvidos da sua irmã. Sentiu que corava, mas, antes que pudesse responder, Dorothy bateu com o pé no chão.

- Não te ocorra dizer-me aquelas tolices de que uma donzela de bom berço não deve conhecer a existência de uma criatura assim. Embora em público tenha de fingir que não sei nada do que acontece entre os homens e as mulheres, não sou nenhuma parva. No primeiro dia em que chegámos a Londres, Lydia Lampton e lady Ashcroft vieram ver a mamã e fazer perguntas sobre o teu acidente e sobre a "dama" que tinha cuidado de ti durante a recuperação. Procuravam informação, embora a mamã não lhes tenha dado nenhuma. A mim também não me disse nada, portanto não sei se soube mais alguma coisa ou não. Mas, Jack, não quero que me escondas uma coisa que te afecta tanto. E se aquela... aquela Jezebel te partiu o coração, eu gostaria de lhe dar um tiro.

- Que temperamento, maninha! Tem cuidado para não espantares o teu pretendente.

Obviamente tinha de evitar as perguntas dela o melhor que pudesse e mandá-la para a cama, no entanto odiava pensar que ela ficaria com uma imagem distorcida de Belle, que sem dúvida nenhuma a sociedade lhe daria.

- A mamã de certeza que me repreenderia por falar contigo sobre isto e, se repetires a alguém o que vou dizer, afasto-te de Londres antes que o cavalheiro peça a tua mão. Mas não quero que penses mal de lady Belle. É uma mulher bonita e de muitas qualidades, que se mostrou muito amável ao cuidar de mim depois do meu acidente. Tenho-lhe muito apreço, mas nada passará disso, pois sou tão consciente como tu do meu dever de fazer um bom casamento.

Dorothy ficou em silêncio um longo momento, pensando aparentemente nas suas palavras.

- E o teu coração, Jack?

- Os corações curam-se.

- Com a medicina do dever? - perguntou ela, duvidosa. - Meu querido Jack, eu quero que sejas feliz.

- Tenho a certeza de que com o tempo serei. És maravilhosa ao preocupares-te comigo, mas não deves ocupar a tua linda cabecinha com estas coisas. Tudo se resolverá.

Ela observou-o, como se não acreditasse na sua afirmação, o que era compreensível, visto que ele também não acreditava.

- Assim espero. Agora que encontrei James, a ideia de estar presa ao dever toda a minha vida parece-me repugnante. Não mudarás de ideias?

- Talvez tenhas de me apresentar a mais amigas tuas.

Ela sorriu.

- Uma excelente ideia. De facto, queria falar-te sobre isso. Há uma rapariga que chegou recentemente à cidade, mas é tão engenhosa e inteligente que nos tornámos amigas rapidamente. Quero que a conheças. Amanhã de manhã montaremos por Hyde Park. Diz-me que irás.

- Vão madrugar para ir montar a cavalo?

- Ela é do campo, como eu - respondeu Dorothy. O passeio de carruagem à tarde é muito aborrecido. É muito mais interessante madrugar e poder galopar. Embora eu goste de Londres, será um prazer ir-me embora quando a temporada acabar.

- Para ires para Carrington Grove ou com o teu James?

Ela sorriu.

- Isso veremos depois, não é? Queres vir amanhã montar a cavalo connosco?

- Sim, irei conhecer a tua amiga nova.

- Excelente! Então vou deixar-te descansar. Quando ficou sozinho, Jack parou de sorrir. Ao lado da juventude e do entusiasmo de Dorothy, sentia-se velho... e cansado.

Esperava com toda a sua alma que ela nunca tivesse de aprender o que era o dever e o pequeno espaço que os desejos do coração ocupavam nele.

As brasas que restavam na lareira, o tardio da hora, o calor do licor que ia formando um caminho desde os lábios até ao peito... tudo lhe recordava de tal modo o tempo passado com Belle que quase conseguia sentir a sua presença.

Como ia conseguir tirá-la da cabeça se até os pequenos detalhes da vida a recordavam?

 

Na manhã seguinte, Belle estava de pé na sua janela, a olhar para o seu jardim coberto pela névoa de Mount Street. Depois de uma longa viagem, Mae e ela tinham chegado no dia anterior, com Mae a gritar sempre que passava numa rua conhecida.

Umas noites antes tinham estado a conversar com o sargento Jackman na sala de Bellehaven, onde o seu ajudante lhe contara que o senhor Harris, depois de tentar enganar as raparigas no dia do mercado, tinha regressado para uma residencial em Chelsea e passado a noite no estabelecimento da senhora Jarvis. Belle pensava que isso era prova suficiente do vínculo entre o homem e o prostíbulo e decidira ir falar com Egremont.

Pedira a Mae que a acompanhasse, porque sabia como ela sentia falta dos teatros, da agitação e das lojas da capital. Disse-lhe que ela regressaria a Bellehaven assim que acabasse de resolver o assunto que a trouxera a Londres, mas que Mae podia ficar na cidade.

Como não queria as atenções dos cavalheiros que a perseguiriam se soubessem da sua presença, Belle também pedira a Mae que não contasse a ninguém do seu regresso e advertira-a de que não a acompanharia em nenhuma das suas saídas. O único prazer que pensava desfrutar era o da sua habitual cavalgada todas as manhãs.

Àquela hora, a boa sociedade estaria na cama, sobretudo os cavalheiros que costumavam cortejá-la. E tendo em conta o cinzento do dia, mesmo que algum saísse, com o vestido cinzento que usava e com o cabelo escondido sob um chapéu, teria de chocar fisicamente com alguém para que a reconhecessem.

Pouco depois, entrava a cavalo pelas portas do parque. O ar da manhã era refrescante, apesar da névoa, mas a prudência aconselhava-a a não correr muito devido à pouca visibilidade. No entanto, divertia-se com o trote da sua égua quando, ao longe, o ruído de uns cascos chegou aos seus ouvidos.

Decidiu que seria mais inteligente encostar-se a um lado e esperar que a ultrapassassem, em vez de se arriscar, e guiou a sua égua para um atalho lateral.

Quando dois cavalos saíram da névoa, a tensão que não sabia que a embargava relaxou um pouco. E relaxou-se mais ainda quando se aproximaram o suficiente para saber, pela roupa e pelo rapaz que as seguia, que os cavalos eram de duas jovens damas.

Para estarem no parque tão cedo deviam ser jovens na sua primeira temporada, que não sabiam ainda que a moda era dormir até ao meio-dia. Ou talvez elas também tivessem sido criadas no campo e gostassem de um passeio pela manhã.

Algo numa delas chamou a sua atenção. Ficou tensa na sela e o seu coração acelerou. Esperou que se aproximassem para poder ver as caras delas.

Sentiu primeiro calor e depois frio e por um momento achou que ia desmaiar. Apertou as rédeas com força e esforçou-se por permanecer na sela.

O seu instinto estava correcto. A rapariga magra e morena que cavalgava mais perto dela era Kitty.

A irmã que não via há quase sete anos.

A irmã que achava que Belle morrera. Afastou em silêncio o seu cavalo. Embora fosse quase impossível

que Kitty a reconhecesse, não queria correr nenhum risco.

Esforçou-se por ver as duas figuras que se aproximavam do cruzamento de caminhos e bebeu com ânsia a visão do rosto da sua irmã.

Da última vez que Belle a vira, Kitty era uma menina de doze anos que prometia transformar-se numa mulher encantadora. Ao ver agora o seu rosto, Belle compreendeu que aquela promessa se cumprira.

Por sorte, o seu rosto ovalado e os seus traços bem definidos eram bonitos, mas não deslumbrantes: os seus olhos eram de uma cor azul-pálida em vez do tom intenso dos de Belle e o seu cabelo era castanho como o da sua mãe e não loiro como o do seu pai. Armada com o dote que Belle juntara para ela, a sua beleza atrairia ofertas respeitáveis, mas não era tão atraente nem tão espectacular para atrair a atenção e a luxúria dos homens mais aborrecidos e viciosos da sociedade.

Se Kitty conseguisse encontrar um homem bom que se casasse com ela, que a protegesse e cuidasse dela, todos os anos de sacrifício de Belle teriam valido a pena.

Aquela olhadela para a sua irmã foi muito breve.

As raparigas passaram-na e continuaram o seu caminho sem olhar para trás.

Belle quase conseguira acalmar o seu coração quando ouviu que outro cavalo se aproximava e, um segundo depois, uma voz feminina gritou:

- Despacha-te, Jack! Ficaste muito para trás.

Embora Belle, oculta nas sombras e na névoa, tivesse uma visão imperfeita do atalho principal, não teve problemas em reconhecer o perfil nem o porte militar do cavaleiro que se aproximava.

Um perfil que a luz da lua iluminara adormecido sobre a almofada dela. Uma figura de ombros largos que a acolhera nos seus braços quando voltavam para casa debaixo de chuva.

Mas o que fazia o capitão Jack Carrington a montar no parque com a sua irmã?

Ficou um momento imóvel, atordoada, antes que o pânico se apoderasse dela. Enquanto ele não passou por ela, não conseguiu acalmar-se.

Respirou fundo e esperou. Quando finalmente julgou que era seguro, devolveu a égua ao atalho.

Quando deixou o caminho secundário, pôs a égua a trote e, a tremer, afastou-se dali.

Jack ouviu ruídos de cascos e virou-se na sela. Quando viu que o perigo que receava não era mais do que uma dama que montava de lado, sorriu ao pensar que os seus instintos de soldado ainda estavam intactos quase um ano depois da última batalha. Então um raio de sol iluminou brevemente a amazona: uma mulher cuja figura alta e porte cheio de graça lhe eram muito familiares.

Apertou as rédeas com força e sentiu um aperto no peito. No entanto, depois daquela primeira olhadela, a névoa fechou-se novamente ao redor da amazona, que não demorou a perder-se na distância.

Por um instante quase sucumbiu ao impulso de correr atrás dela. Mas era quase impossível que aquela mulher fosse Belle. Tinha de parar de a ver em todas as mulheres que se cruzavam com ele, em todos os cabelos de caracóis dourados que atraíam a sua atenção na rua ou no hall do teatro.

Suspirou e abanou a cabeça. Belle atormentava-o ainda de tal modo que, ao ver naquela manhã Catherine, a amiga de Dorothy, algo nela o lembrou de Belle. E agora tinha a alucinação de a ter visto pessoalmente. Tinha de fazer alguma coisa para acabar com aquela obsessão.

Esporeou o seu cavalo para alcançar a sua irmã, que o recebeu com um sorriso.

- Catherine e eu decidimos que este passeio é maravilhoso e por isso vamos fazer corridas o resto do dia. Podemos pedir uma cesta de piquenique e ir esta tarde visitar Hampton Court?

- Se quiserem, sim - respondeu Jack. - Mas não queres estar em casa quando os teus amigos te forem visitar?

Ela franziu o nariz.

- Se te referes a James, hoje tem de acompanhar o pai dele num assunto de negócios. Não me apetece ficar em casa, sabendo que ele não vai lá. E ainda menos porque lady Ashcroft certamente aproveitará a ausência dele para gozar comigo por ainda não ter "caçado" aquele "pretendente tão bom".

- Não quero parecer impertinente - interveio Catherine, - mas o que acontece é que a filha dela é tão tímida e tão feia que tu lhe fazes sombra.

- Vês, Jack? Tens de me salvar da malícia de lady Ashcroft. Diz-me que nos levarás a Hampton Court, por favor. Além disso, quero que a minha melhor amiga tenha tempo de conhecer melhor o meu irmão preferido.

Na mente de Jack surgiu uma advertência. Aceitara acompanhá-las naquela manhã porque estava inquieto desde o seu regresso a Londres e podia distrair-se com o passeio. Agradecia que a sua irmã tivesse pensado num passeio para a tarde e não estava aborrecido por ter incluído a sua amiga nova nos seus planos. Mas não queria que Dorothy levasse a sério o seu papel de casamenteira e continuasse por aquele caminho.

Franziu o sobrolho e a sua irmã mostrou-lhe a língua. O gesto era tão típico da menina que fora até há pouco tempo que Jack sentiu que o seu mau humor desaparecia.

Muito bem, entreteria a sua irmã e a amiga nova dela com um piquenique em Hampton Court.

Todavia, depois de as deixar novamente em Londres, e só para se certificar, faria uma visita à casa de Belle.

O percurso pelo Tamisa, a alegria das raparigas ao explorar o castelo e o labirinto e a excelente comida que a cozinheira tinha preparado, juntamente com a descoberta de que a menina Catherine Germayne era tão inteligente e divertida como Dorothy tinha dito, deviam tê-lo animado durante a tarde. No entanto Jack começava a perguntar-se se estava a enlouquecer, pois enquanto via as raparigas a falar e a rir, não conseguia evitar encontrar ecos de Belle no perfil da menina Germayne, no tom da sua voz e na sua forma de andar. Disse para si que, se aprendesse a conhecê-la melhor, podia ver apenas a ela mesma e abandonar a ilusão estúpida de que se parecia com a famosa cortesã. Assim, decidiu conversar com ela no caminho de volta.

A camaradagem da tarde aliviara o seu medo de que Dorothy ou a sua amiga estivessem empenhadas em juntá-los, por isso sentia-se mais confortável a aventurar comentários de natureza mais pessoal do que os que fizera até então.

Depois de se instalar no barco, disse:

- Monta muito bem, menina Germayne. Deve ter tido um instrutor muito bom.

- Obrigada, capitão, é verdade. O meu tio Thaddeus. Embora não seja meu tio, mas um primo afastado com quem fui viver quando os meus pais morreram.

Aquele comentário aguçou o interesse de Jack.

- As minhas condolências, menina. Os seus irmãos também foram viver com o seu primo?

A rapariga abanou a cabeça com tristeza.

- Não. A minha única irmã, mais velha do que eu, morreu pouco depois de a mamã morrer.

- Que coisa horrível! - exclamou Dorothy. - Deves sentir-te muito sozinha!

- Muito. E também muito culpada. Quando a mamã adoeceu, viajávamos da nossa antiga casa para a do tio Thaddeus. Constance e a minha mãe empenharam-se para que eu continuasse a viagem com a dama de companhia para não me expor à infecção, enquanto Constance ficava a cuidar da mamã. Mas, depois de irmos, ela também ficou doente. A neve atrasou a nossa viagem vários dias e, quando chegámos a casa do tio Thaddeus e ele conseguiu voltar para a estalagem... tinham morrido as duas.

Dorothy murmurou palavras de condolência, mas a menina Germayne abanou a cabeça.

- Sempre pensei que se calhar teriam conseguido sobreviver, se eu tivesse ficado para ajudar...

- Tu fizeste o que a tua mãe e a tua irmã te disseram

- protestou Dorothy. - É pouco provável que a tua presença tivesse alterado o curso da sua doença.

- Sinto muito. Não devia ter respondido à sua pergunta amável com uma história tão horrível - disse Catherine a Jack.

- Não sejas parva - Dorothy apertou-lhe a mão. Os amigos servem para ajudar, não é, Jack? Lisonjeia-nos que nos tenhas honrado com a tua confiança.

- Obrigada - a menina Germayne sorriu para Jack com timidez. - Embora o meu tio Thaddeus e a minha tia Mary tenham sido muito bons comigo, tenho muitas saudades da minha família. É... bom poder falar deles novamente.

- Quantos anos tinha então? - perguntou Jack.

- Dez quando o meu pai morreu, no Inverno de

  1. Embora só tivéssemos descoberto na Primavera seguinte. Foi para a índia para fazer fortuna, porque era o filho mais novo de um filho mais novo e não tinha herdado terras.

"O seu sonho era ganhar uma fortuna que lhe permitisse comprar uma propriedade como esta". O eco das palavras de Belle na sua mente fez com que Jack ficasse arrepiado...

Tentou manter a voz calma apesar da crescente agitação que sentia.

- E a sua irmã?

- Constance era três anos mais velha, ou seja, tinha treze quando o papá morreu e catorze quando... nos deixou. Era uma irmã doce e carinhosa para além de muito bonita. Foi uma verdadeira tragédia perdê-la.

"Morreu quando eu tinha treze anos". Enquanto Jack lutava por respirar, Dorothy perguntou:

- Mais bonita do que tu!? Custa-me a acreditar.

- Oh, muito mais bonita! Embora eu não me queixe, ela tinha o cabelo da cor do ouro e os olhos de um azul profundo - a menina Germayne soltou uma gargalhada - Como se teria zangado lady Ashcroft, se Constance estivesse a debutar connosco!

Jack sentia-se enjoado e a culpa não era do barco. Cabelo dourado... olhos de um azul profundo... não era possível que tudo aquilo fosse uma coincidência.

No entanto, a menina Germayne afirmava que a sua irmã tinha morrido. E Belle dissera-lhe que não tinha parentes, o que não encaixava com a descrição da menina Germayne dos primos amáveis que a tinham acolhido em sua casa.

Além disso, Belle também lhe dissera que depois da morte do seu pai não tinham dinheiro e ele sabia por Dorothy que Catherine possuía um dote respeitável. Embora, possivelmente, o dote tivesse sido oferecido pelo primo.

Infelizmente, a boa educação proibia-o de fazer uma pergunta daquelas. Desejava desesperadamente saber mais para poder confirmar ou descartar as suas suspeitas sobre uma possível relação entre Belle e a menina Germayne. Mas como descobrir?

Então ocorreu-lhe algo.

- Em que cidade pararam quando a sua mãe adoeceu?

- Eastwold. Quando chegámos, pensei que era uma vila encantadora. Agora ficará para sempre na minha memória como um lugar de dor.

- Recorda-se em que estalagem se hospedou? perguntou Jack, ignorando o olhar de curiosidade que Dorothy lhe lançava.

- Não me lembro. Foi quase há sete anos.

- O que havia no cartaz da porta? - insistiu ele. Os olhos da menina Germayne iluminaram-se.

- Disso lembro-me. Um galo com uma coroa dourada.

- A estalagem O Galo e a Coroa, certamente. São incríveis os detalhes de que nos lembramos muito tempo depois de esquecermos acontecimentos mais importantes, não é? - indicou, com a esperança de acalmar assim a curiosidade da sua irmã. - Ir de Yorkshire a Eastwold é uma viagem muito longa para se fazer no Inverno.

- Sim - assentiu Dorothy. - O teu tio Thaddeus deve ser um homem maravilhoso para ter ido até lá salvá-las.

- Oh, sim, é! A tia Mary e ele não têm filhos e sempre me trataram como a uma filha. No início, sentia-me muito só, mas depois comecei a gostar deles e de estar na casa deles. Embora nunca tenha deixado de sentir saudades da minha família, claro.

- Claro! - exclamou Dorothy. - Os teus tios vieram contigo para Londres esta temporada?

- Infelizmente, a tia Mary não está bem de saúde e receava tanto a viagem a Londres de carruagem que eu não queria pedir-lhe que viesse. Além disso, lady Abrams, uma vizinha e boa amiga, convidou-me para a acompanhar. Há duas temporadas conseguiu um bom marido para a sua filha e disse-me que adoraria fazer o mesmo por mim. Embora desconfie que desta vez lhe vá custar mais.

- Duvido - respondeu Dorothy. - Tu és encantadora e inteligente. Jack, tens de a ouvir tocar piano. É maravilhosa. Estou convencida de que um homem muito interessante se apaixonará por ti.

As notas suaves de um concerto de Mozart ecoaram na mente de Jack, que sentiu um aperto no peito.

- Não, és tu quem está prestes a casar-se bem, futura viscondessa - respondeu a menina Germayne. - Basta ver como lorde Winston olha para ti para saber que conquistaste o seu coração. Oh! - exclamou, abrindo muito os olhos. Se calhar tu és o "negócio" que ele tem hoje com o seu pai.

Embora Dorothy corasse e soltasse uma exclamação de surpresa, Jack pensou que a rapariga podia ter razão. Deixou-as conversar sobre a iminente proposta de James e dedicou-se a examinar o que acabava de descobrir.

Se havia alguma relação entre a menina Germayne e lady Belle, o vínculo que as unia tinha sido quebrado ou alterado de modo irrevogável, na estalagem onde a mãe da menina Germayne morrera. E onde Jack estava bastante convencido de que não tinha morrido a sua irmã. Mas só havia um modo de saber a verdade.

Ir visitar a estalagem O Galo e a Coroa o mais rápido possível.

 

Naquela mesma tarde, Belle passeava nervosa pelos seus aposentos à espera de lorde Egremont. Depois de lhe ter enviado um bilhete quando chegou para lhe pedir que fosse vê-la quando lhe fosse possível, ele respondera com uma mensagem em que prometia passar naquele dia.

Embora a informação que lhe queria dar fosse importante, custava muito a Belle afastar os seus pensamentos do encontro inesperado com a sua irmã... a cavalgar na companhia de Jack Carrington.

A outra jovem devia ser a irmã de Jack, embora Belle tivesse ficado tão atenta a Kitty que agora não conseguisse recordar-se se a rapariga era parecida com Jack. Feliz diante da prova de que a sua irmã se relacionava com o melhor da sociedade, tinha de admitir que, quando lhe passara o pânico de estar prestes a encontrar-se com Jack, a sua reacção seguinte fora de ciúmes.

Uma coisa era desejar que o capitão Carrington encontrasse uma jovem bonita e encantadora para se casar e outra muito diferente era pensar que podia ser a sua irmã a acabar por se casar com o homem que amava.

Seria aquela a última brincadeira do destino?

No entanto, esforçara-se durante todos aqueles anos para oferecer à sua irmã a oportunidade de ocupar o seu lugar na sociedade e garantir o seu futuro. E embora não pudesse confiar plenamente em nenhum homem, Jack Carrington era o mais digno que alguma vez conhecera. Se a sua irmã e ele se apaixonassem um pelo outro, alegrar-se-ia por eles.

Tinha vontade de um dia, quando Kitty estivesse segura e casada, tentar entrar em contacto com ela, embora se arriscasse a que a sua irmã não quisesse reconhecer o vínculo existente entre elas.

Mas seria um risco que valeria a pena correr, já que ainda existia a possibilidade de que Kitty sentisse por ela o mesmo tipo de carinho que ela sentia pela sua irmã.

E Belle talvez voltasse a fazer parte de uma família. Mas tudo isso seria impossível se Kitty se casasse com Jack Carrington.

Embora fosse um consolo saber que as duas pessoas que mais amava no mundo tinham encontrado a felicidade juntas.

Bateram à porta e Jem entrou.

- Watson diz que um cavalheiro pergunta por si.

- Obrigada. Diz-lhe que desço já.

- Não há pressa, não é o capitão, embora o tenha visto hoje perto daqui.

- Quando?

- Muito recentemente. Pensei que viesse para cá. Agora, quem chegou foi um cavalheiro mais velho. Se calhar o capitão vem mais tarde.

- Certamente, confundiste - respondeu ela, tanto para si mesma como para o rapaz. - Agora que se recuperou, sem dúvida nenhuma tem coisas mais interessantes para fazer.

- Aquele homem não devia esquecer os amigos respondeu o rapaz. - Não cuidámos dele de dia e de noite durante um mês?

- O capitão... ocupa um lugar diferente no mundo.

- Talvez tenha nascido nobre, mas quando estava aqui não se comportava como um nobre - acrescentou Jem com teimosia. - Ficarei muito decepcionado se não vier visitar-nos. Vou dizer ao outro cavalheiro que a senhora já desce.

Jack, ali? Belle, assustada com a esperança louca que aquela ideia lhe causava, decidiu que não podia dar-se ao luxo de continuar a pensar nele.

Abanou a cabeça e dispôs-se a descer.

- Meu anjo - disse Egremont, quando ela entrou na sala. - Londres foi um páramo sem ti.

Belle ficou tensa, ao recordar o que descobrira acerca dos sentimentos dele por ela. Mas tomou brevemente a mão dele e soltou-a em seguida, o que não a ajudou a relaxar.

- Com todas as diversões de Londres? - perguntou sorridente.

- As diversões perdem o seu interesse quando não temos uma companhia agradável com quem as partilhar. Mas o teu bilhete surpreendeu-me. Pensava que querias ficar mais tempo no campo.

- E queria - ela apontou para uma poltrona. - Mas aconteceu uma coisa que queria contar-te.

Narrou-lhe tudo o que acontecera desde que se fora embora de Londres. Com excepção de um pormenor quando lhe descreveu o ataque nos subúrbios, ele ouviu sem a interromper.

- Fizeste um excelente trabalho - disse, quando viu as declarações que ela recolhera do sargento Jackman, dos seus companheiros e das várias raparigas que o senhor Harris tinha incomodado. - Devo pedir ao Home Office que te arranje um lugar na sua organização?

- Sentir-me-ei recompensada se alguém achar que a situação é suficientemente séria para a investigar. Embora Jackman quisesse fazê-lo, eu disse-lhe que não devia aproximar-se do senhor Harris, porque acho que é melhor que os teus contactos o façam. Agora já podem agir, não é? Egremont assentiu.

- Podem ignorar o testemunho de uma rapariga de credibilidade limitada. Mas isto - indicou as declarações - não! Haverá uma investigação.

Belle sentiu uma onda de alívio.

- Era isso que esperava... isso e que ajam depressa, antes que magoem mais raparigas.

Egremont continuou com uma expressão pensativa:

- Se esta conspiração for tão grande como parece, deve haver muito capital investido. Depois de te teres ido embora, investiguei um pouco. Alguns dos clientes da senhora Jarvis são bastante ricos... alguns de posição elevada. A investigação terá de acontecer... discretamente.

- Para evitar envergonhar alguns nobres? Egremont arqueou o sobrolho.

- Ofendes-me, querida. Suponho que saibas que tudo será revelado por muito nobre que seja a pessoa que o fez.

- Desculpa - murmurou Belle, que sabia que Egremont não se dedicava aos excessos que alguns dos seus contemporâneos praticavam.

Ele sorriu.

- Tens muitas razões para duvidar das intenções dos homens, mas o que eu queria dizer era que, se este negócio for tão proveitoso como abrangente, os homens que nele investem tomarão medidas para impedir que se descubra. À medida que a investigação prosseguir, pode ser perigoso que alguém siga a relação da investigação até Jane... ou até ti. Teremos de agir com muito cuidado para evitar isso.

Belle assentiu.

- Embora o sargento Jackman ache que certamente já não há muito perigo, eu também não desejo correr riscos. Pedi-lhe que tirasse Jane de Bellehaven. Os meus empregados de lá acham que ela me acompanhou, Mae e Watson acham que ficou lá. Na verdade, Jackman está com ela na casa da sua família perto de Brighton, com um baú cheio de vestidos meus para costurar e que irão mante-la ocupada até que a investigação termine.

- Muito bem! Se por algum motivo tiver de abandonar Brighton, eu terei todo o gosto em instalá-la numa das minhas propriedades.

- Obrigada. És muito generoso. Egremont franziu o sobrolho.

- O ataque que sofreste preocupa-me. Oferecer-me-ia para te acolher também numa das minhas propriedades, mas suponho que não aceitarias.

- Sabes que não posso, embora agradeça a oferta embora Belle confiasse nas intenções honoráveis de Egremont, não desejava entrar em nenhum acordo, por inocente que fosse, que pudesse ser mal interpretado pela esposa dele. - Dois dos ajudantes do sargento estão aqui em Londres. A presença deles em minha casa evitará qualquer problema.

- É um primeiro passo, mas tens de deixar que te acompanhem sempre que andares pela cidade. E nada de passeios solitários de manhã.

- Agora que te contei tudo o que sei, não quero ficar muito tempo em Londres. Envias-me notícias sobre o desenvolvimento da investigação?

- Claro. Embora me sentisse mais confortável se ficasses algum tempo na cidade, onde posso encarregar-me um pouco da tua segurança. Pelo menos até que saiba alguma coisa da investigação. Pensas nisso?

- Pensarei - assentiu ela. Era a gratidão pelo seu interesse ou o desejo de ver novamente Kitty ou Jack o que a fazia assentir tão depressa? - Mas não sairei de casa.

- Ah, sim! Não queres que Rupert nem os outros saibam do teu regresso. Espero que me permitas visitar-te... discretamente, é claro.

- Claro. A tua companhia é sempre um prazer.

- Fico muito contente por ouvir isso - respondeu ele. - O que mais te preocupa, meu anjo?

Belle olhou para ele, surpreendida. Corou.

- O capitão, suponho - Egremont suspirou. - Devo alegrar-me ou entristecer-me por ti?

A jovem não negou.

- As duas coisas - respondeu, depois de pensar na pergunta.

- Sabes que faria qualquer coisa para evitar que sofresses. Se puder ajudar-te de alguma maneira, diz-me.

Belle sentiu que os seus olhos se enchiam de lágrimas.

- És muito generoso, mas não há nada que possas fazer.

- E Mae? Consegue manter a tua presença em segredo? - perguntou Egremont.

Belle sorriu, grata pela mudança de assunto.

- Prometeu-me não dizer que estou aqui, mas duvido que consiga cumprir essa promessa durante muito tempo. Não tem nenhum talento para mentir.

- Não, mas possui um coração tão bom que é difícil criticar as suas indiscrições. Visto que a tua estadia aqui talvez seja mais breve do que eu gostaria, jantarás comigo esta noite?

Ela olhou para ele.

- Não posso acreditar que não tens compromissos para esta noite.

Ele encolheu os ombros.

- Londres continuará aqui o resto da temporada. Se bem me lembro, eu ganhei os dois últimos jogos de whist.

As noites de Belle eram longas e vazias desde a partida de Jack. A conversa inteligente e engenhosa de Egremont era um bálsamo para a sua alma difícil de resistir.

- Muito bem. Mas se os anfitriões com quem tinhas um compromisso para esta noite não voltarem a convidar-te, depois não me culpes.

Dois dias mais tarde, depois de um esforço físico que não fazia desde as marchas forçadas de Wellington, Jack entrava finalmente na vila de Eastwold.

A estalagem O Galo e a Coroa era um edifício de madeira com um telhado inclinado, junto à rua principal. Decidiu pedir um quarto e jantar lá para poder observar o ambiente da estalagem, os seus donos e a clientela.

Enquanto bebia uma caneca de cerveja caseira com os camponeses, descobriu que os estalajadeiros tinham aquele estabelecimento há vinte anos. Mas havia tantos clientes que Jack não conseguiu falar com calma com o dono durante toda a noite. Até à hora de tomar o pequeno-almoço no dia seguinte na sala de jantar, praticamente deserta, não encontrou o momento propício para interrogar o homem.

Deixou umas moedas na mesa e disse:

- Partirei cedo e agradeço desde já a sua hospitalidade. Fico contente por ver que a reputação do seu estabelecimento é bem merecida.

O estalajadeiro endireitou-se um pouco.

- Fico contente por ter gostado, senhor. A minha mulher é a melhor cozinheira do condado.

- Claro que sim - respondeu Jack. Piscou um olho à mulher em questão, que corou enquanto arrumava a mesa.

- Quem o recomendou? - perguntou o estalajadeiro.

- Uma amiga da minha irmã. A história que me contou a mim e à minha irmã era demasiado curiosa para que esquecesse o nome do sítio. Além disso, fez-me jurar que pararia aqui se alguma vez viajasse nesta direcção.

- Fico contente por ter gostado, senhor. E espero que passe a palavra entre os seus amigos.

Jack acrescentou mais algumas moedas às da mesa.

- A minha irmã diz que a mãe da amiga dela ficou doente e tiveram de se refugiar aqui. Mas, apesar de todos os seus esforços, a mãe morreu. Isso foi há sete anos.

O estalajadeiro trocou um olhar inquieto com a sua esposa.

- Sim, milorde. Embora a minha memória não esteja muito clara passado tanto tempo. Lamentamos muito. Mas a culpa não foi nossa.

- Claro que não murmurou Jack e viu que o estalajadeiro relaxava. - A minha irmã diz que a sua amiga comentou o bem que a sua mulher a tratou.

- Fico contente por isso, porque nevava muito e a estalagem estava cheia.

- Acho que a irmã mais velha ficou a cuidar da mãe

- continuou Jack. - Mas não me lembro do resto. Foi assim?

O estalajadeiro olhou para a sua esposa e respirou fundo.

- Sim, senhor. E ela também morreu. Foi uma tragédia, era tão bonita e jovem.

Aquilo foi um golpe para a frágil rede de especulações que Jack construíra com esforço. Mas talvez o homem estivesse enganado. Admitira que a estalagem estava cheia e que as suas lembranças eram vagas.

- Tem a certeza? Eu pensei que um grupo de amigos tinha passado e tinha levado a irmã dela.

- Antes tivesse sido! - murmurou o estalajadeiro. Mas a rapariga morreu uns dias depois de a mãe morrer. Enterraram-nas na igreja nos subúrbios da vila. Se quiser prestar-lhes alguma homenagem...

Jack sentiu uma grande desilusão. A memória de um homem podia mentir, mas uma lápide era mais difícil.

- Talvez o faça.

Embora não quisesse acreditar no estalajadeiro, quando chegou ao cemitério, as provas pareciam muito claras. As campas estavam juntas. Cada uma com uma lápide de pedra. Constance Germayne, que partiu deste mundo com catorze anos de vida...

Portanto, fora tudo uma coincidência. Fora um parvo por tentar acreditar que poderia criar uma identidade para Belle que pudesse permitir-lhe perseguir a mulher que amava sem faltar ao dever para com a sua família.

Quando entrou na taberna da estalagem, agora vazia, a estalajadeira saiu da cozinha. Jack fez um gesto de despedida com a mão e a mulher fez-lhe um gesto para que esperasse.

Aproximou-se dele e olhou por cima do homem para se certificar de que estavam sozinhos.

- O meu marido é um homem bom que não quer problemas com ninguém - disse em voz baixa. Mas a mim nunca me agradou o que aconteceu com aquela pobre rapariga. Algo nos seus olhos me fez acreditar que o senhor se interessa mais por isso do que quer dar a entender.

Jack tirou uma moeda.

- O que sabe?

- Não quero o seu dinheiro, senhor. Veio em nome da família dela?

-Sim.

- Pois deixe-me contar-lhe o que aconteceu realmente.

Duas manhãs mais tarde. Belle tomava o seu chocolate e ponderava se devia sair ou não para montar a cavalo pelo parque. Até ao momento, sucumbira todos os dias à tentação, embora não tivesse voltado a ver nem a sua irmã nem Jack.

Mas, naquela manhã, parecia que o dia seria mais bonito e o tempo ensolarado faria com que tudo fosse mais brilhante e visível no parque.

Embora Kitty, que não esperava encontrar, pudesse passar por perto e não a reconhecer, não podia dizer o mesmo do capitão Carrington. Belle não tinha dúvidas nenhumas de que a reconheceria mesmo à distância, tal como ela a ele. E não sabia se arriscar-se a encontrá-lo seria uma tortura doce ou a pior das loucuras.

Continuava a ponderar a questão quando a porta se abriu e Jem entrou.

- Está aqui! Na sala. Não lhe disse que viria? Vamos, menina. O capitão está à sua espera.

 

Apesar das "boas-vindas" eufóricas de Jem, Jack, ficou a passear, nervoso, pela sala, enquanto o seu entusiasta emissário ia procurar a sua senhora. Recebê-lo-ia ou mandaria Jem com a mensagem de que não tinham nada para conversar?

Mas quando a porta da sala se abriu, sentiu a presença dela atrás da porta.

Imediatamente, a sua beleza o aturdiu com a força de uma onda a rebentar numa praia de Dover. Durante alguns segundos, ficou sem fala, feliz, a respirar o ar que trazia o perfume de lavanda dela.

Belle observava-o com o olhar sereno e o rosto inexpressivo, que não deixava entrever nenhum dos seus sentimentos. Jack recordou os actos de boa educação e fez uma reverência.

- Lady Belle, é um prazer voltar a vê-la.

- Capitão Carrington - estendeu-lhe a mão e permitiu-lhe beijar os dedos. Jack teve de se esforçar para os largar.

Certamente não o odiava completamente, uma vez que acedia a recebê-lo, mas não podia começar a falar sem descobrir exactamente em que ponto estava com ela.

- Não tinha a certeza de que descesses - comentou.

- Isso significa que pensaste em perdoar-me?

Um sorriso entreabriu os lábios dela. Indicou-lhe uma poltrona.

- Seria muito mais fácil achar-te um vilão, mas, depois de examinar os factos com mais calma, descobri que não há nada para perdoar. Lorde Rupert tinha muitos motivos para distorcer a verdade. E tu tinhas razão. Acreditar que me tinhas enganado e que o que partilhámos era uma farsa seria um pecado contra a tua honra e contra o meu coração. Acho que te devo um pedido de desculpas.

Jack ficou aliviado, ao ouvi-la. Aquilo era muito melhor do que o que se atrevera a esperar.

- Basta-me que acredites em mim - disse.

- O que tivemos foi sincero e honesto, mas não altera o facto de o nosso... caso ter de acabar e de não poder repetir-se. Porque vieste?

- Vim contar-te uma história. Sobre duas irmãs e a sua mãe obrigadas, depois da morte do pai, a abandonar a sua casa e a viajar até à casa de uns primos afastados que tinham aceitado acolhê-las.

Embora a expressão serena dela não se alterasse, Jack ouviu-a respirar fundo e viu que as suas mãos mexiam, ansiosas, no vestido.

- Continuo? - perguntou ele.

Ela hesitou e não olhou para ele nos olhos. -Se for preciso...

- A mãe adoeceu gravemente durante a viagem. A irmã mais velha enviou a mais nova para a casa do primo com a dama de companhia e ficou a cuidar da mãe, que morreu uma semana depois, deixando-a sem dinheiro e sozinha... excepto por um cavalheiro que se refugiou na estalagem durante um temporal de neve.

Fez uma pausa, mas Belle não falou. Tinha o olhar cravado na janela e estava imóvel... apenas os seus polegares acariciavam ritmicamente o tecido da saia.

- Esse cavalheiro ajudou-as durante a doença da mãe e insistiu em pagar as despesas da rapariga na estalagem e o enterro da mãe. Depois convenceu-a de

que o melhor que podia fazer era acompanhá-lo a casa e esperar lá que a sua família a procurasse.

Fez outra pausa, mas Belle continuava silenciosa.

- Quanto tempo passou desde que Bellingham te tirou da estalagem até perceberes que não pensava entregar-te à tua família? - perguntou ele com suavidade.

Belle permaneceu imóvel um longo momento. Depois fechou os olhos e uma lágrima solitária caiu pela sua face.

Jack não conseguiu aguentar mais e pegou nela ao colo.

Abraçou-a, enquanto ela soluçava em silêncio, com o coração dividido entre a angústia da sua dor e a fúria pelo miserável engano. Finalmente, ela respirou fundo e afastou-se.

- Eu sei que não devia ter ido com ele. Mas parecia muito sincero e eu não tinha nada. Tinha falado com o estalajadeiro para que me deixasse servir na taberna. Mas o modo como os homens me olhavam depois da morte da minha mãe deixava-me nervosa.

Secou os olhos.

- Bellingham falou com os meus primos. Disse-lhes que, depois de viver várias semanas com ele na sua cabana de caça, a minha reputação estava arruinada. Como tinha desonrado o meu nome, eles não me quiseram. Para eles, tinha morrido e diriam à minha irmã que tinha sucumbido à mesma doença que levara a minha mãe. Continuei com Bellingham porque não tinha outro sítio para onde ir.

Respirou fundo.

- Serves-me um copo de vinho, por favor?

- Claro - Jack aproximou-se da mesa lateral e serviu dois copos com o sobrolho franzido. A dona da estalagem dissera-lhe que um cavalheiro tinha ido mais tarde colocar uma lápide para a mãe de Belle e que lhes oferecera uma boa quantia para depois colocarem outra ao lado com o nome da filha. O homem deixara outro saco de moedas com instruções para que dissessem a todos os que perguntassem que as duas mulheres tinham morrido.

Jack pensou tratar-se de Bellingham, mas e se tivesse sido o primo de Belle? Antes de lhe dizer o que quer que fosse, teria de descobrir.

A jovem bebeu um gole de vinho.

- Suponho que não preciso de te contar o resto. Quando descobri que a mi... a minha família já não me queria, supliquei a Bellingham que me deixasse ir servir para a estalagem. Recusou, dizendo que uma rapariga tão bonita como eu, sem a protecção de familiares nem amigos, não demoraria a ser vítima de um homem lascivo e que a sua consciência não lhe permitiria. Lembrei-me de como os homens na estalagem olharam para mim e acreditei.

- Muito conveniente para ele - comentou Jack.

- Disse-me que depois arranjaria outra solução. Enquanto isso, os seus cuidados eram cada vez mais evidentes, até que um dia declarou que se apaixonara por mim desde que me vira na estalagem. Como já estava casado, não podia oferecer-me o seu nome, mas fazia dele o homem mais feliz do mundo se consentisse em transformar-me na sua... protegida.

Belle bebeu outro gole de vinho, com os olhos perdidos no nada.

- Resisti, claro, e supliquei-lhe que me deixasse servir em casa dele, a fazer alguma tarefa honrada. Mas ele disse que a sua esposa, que o detestava, acabaria por descobrir e que se livraria de mim nas costas dele. Todos os dias me jurava o seu amor e prometia adorar-me e proteger-me até ao final da sua vida, se eu realizasse o desejo dele. À medida que o tempo avançava, começou a dizer que, se não aceitasse a sua protecção, não haveria lugar para mim na sua casa e seria obrigado a mandar-me para a rua. No fim, com o desespero de ter perdido a minha família, pensei que se Bellingham me amava não seria pecaminoso e aceitei.

- E que outra coisa podias fazer? - perguntou Jack. Ela levantou o olhar.

Qualquer coisa. Durante algum tempo tentei convencer-me de que eu também gostava dele, talvez para justificar a obrigatoriedade de aprender tudo o que ele me ensinava para lhe dar prazer. Até que uma noite me usou publicamente de um modo tão ordinário, que não consegui continuar a enganar-me e percebi que ele só se interessava em satisfazer a sua luxúria comigo.

- No Vauxhall - disse Jack.

O olhar dela tornou-se mais frio.

- Tu também sabes? - ele assentiu e ela soltou uma gargalhada amarga. - Naquela noite fugi. Mae encontrou-me no rio, quando tentava suicidar-me e convenceu-me a ir com ela. Bellingham só conseguiu localizar-me vários dias mais tarde. Disse-me que estava muito bêbado para se dar conta do que fazia, suplicou-me que lhe perdoasse e disse-me que apenas os presentes saberiam o que acontecera naquela noite. Prometeu-me que jamais voltaria a fazer nada parecido.

- E tu acreditaste?

- Não. Acho que soube desde o início que só dizia mentiras, mas não conseguia enfrentar a verdade. O episódio do Vauxhall obrigou-me a aceitar que me tinha transformado numa rameira e que não era melhor do que as raparigas da rua que se encontram nas esquinas de Covent Garden. Odiei-me por isso.

- Mas voltaste com ele porque já não tinhas outra opção?

- Isso foi o que Mae me disse. Para além de me aconselhar a aproveitar o seu arrependimento para lhe extrair ouro e jóias. Eu ter-me-ia recusado a voltar para ele, mas ele encontrou outro modo de me obrigar a obedecer. A minha irmã.

- Como podia ele afectar a vida da tua irmã?

- Disse-me que os meus primos a tinham aceitado por caridade para a transformarem em criada deles. Para os impedir, ele enviava-lhes dinheiro para que a tratassem como a uma filha. Ameaçou acabar com aqueles envios de dinheiro se eu não reatasse a minha relação com ele.

Ou seja, Bellingham usara uma menina para a controlar, mas não era a filha de ambos, embora isso não diminuísse a infâmia da sua atitude. Quando a raiva diminuiu, Jack lembrou-se de que aquela descrição sobre a posição da irmã em casa do seu primo não encaixava com o que Catherine Germayne contara sobre o seu tio Thaddeus e a sua tia Mary ou será que o carinho deles era alimentado pelo dinheiro de Bellingham? Afinal de contas, os seus parentes tinham transferido os poucos gastos e os inconvenientes da sua apresentação à sociedade a uma vizinha.

Aquele era outro mistério que teria de resolver antes de falar do assunto com Belle.

- E viste-te obrigada a continuar com ele - resumiu.

- Sim. Embora dessa vez também tenha pedido coisas. Prometi a mim mesma que ficaria até juntar dinheiro suficiente para manter Kitty e a mim mesma e depois deixá-lo-ia.

- Mas Bellingham encarregou-se de que isso nunca acontecesse?

- Não, exactamente. Há um ano, o meu advogado disse-me que as minhas finanças já eram suficientes. Quando Bellingham compreendeu que já não podia usar isso para me controlar, ameaçou dar um tiro na cabeça se o deixasse. E quando me ri na cara dele, pegou na pistola, mas o seu ajudante desviou a pistola e o tiro apenas o feriu no ombro.

- Santo Deus! - exclamou Jack. Aquele homem estava louco ou obcecado de tal maneia por Belle que não conseguia admitir a possibilidade de viver sem ela? Apesar do seu desprezo por Bellingham, não conseguiu evitar sentir uma certa compreensão.

- Nunca soube se se teria matado mesmo prosseguiu Belle. - Mas, se o fizesse, eu estaria implicada e não podia arriscar-me a isso pelo bem de Kitty. Mas desde aquele momento proibi-o de me tocar.

- E ele aceitou?

Belle encolheu os ombros.

- Não tinha opção. Eu esperava que ele se cansasse daquela imposição e me trocasse por outra. Em vez disso, parecia cada vez mais ansioso por me ter sob o seu controlo e poucas vezes me perdia de vista. Que Deus me perdoe esta blasfémia, mas a morte dele foi uma bênção. Depois de quase sete anos, era livre finalmente. E Kitty, que já se transformou numa mulher, está em Londres a ocupar o seu legítimo lugar no mundo. É bonita, não é?

Jack ficou surpreendido.

- Porque me perguntas isso? Belle sorriu.

- Vi-te a montar com ela no parque.

- A mim também me pareceu ter-te visto entre a névoa, mas tinha tantas saudades tuas que pensei que fosse a minha imaginação. E que também era a minha imaginação ao ver-te no rosto de Catherine Germayne.

- Então conheces a minha irmã.

- Ficou muito amiga da minha irmã. À medida que descobria mais coisas sobre ela, os paralelismos entre a história dela e a tua convenceram-me de que tinha de haver uma ligação. Por isso fui à estalagem investigar.

Belle esbugalhou os olhos.

- Mas tu não lhe contarás nada sobre isto. Isso arruinaria...

- Não, não direi nada a menos... que tu o desejes.

- Obrigada. Espero que um dia consiga contar-lhe a verdade, embora provavelmente ela não queira saber nada de mim. Falaste muito com ela?

- Sim, acompanhei-as, a minha irmã Dorothy e a ela, em vários passeios.

- Oh! Fala-me dela. Do que fala? Quais são os interesses dela? Por favor.

Embora interessasse mais a Jack comentar o que tudo aquilo implicava para ambos, não conseguia ignorar o desejo que os olhos dela expressavam. Depois de ter esclarecido finalmente o mistério que a rodeava, podia esperar um pouco mais e falar-lhe da irmã pela qual ela se sacrificara tanto.

- É uma amazona excelente. De voz suave, inteligente e engenhosa... como tu. E segundo a minha irmã, também toca piano muito bem.

- O seu dote é excelente - Belle baixou o olhar. Será uma esposa excelente para um cavalheiro sortudo, não achas?

Jack demorou um instante a captar a insinuação.

- Claro que sim! Mas para outro cavalheiro. Só há uma mulher com quem eu queira casar-me e não é a tua irmã, por muito bonita e interessante que seja.

Ela levantou o queixo e olhou para ele nos olhos.

- Não podes estar a insinuar que...

- Isso é precisamente o que insinuo. Quando te deixei em Bellehaven, resignei-me a cumprir com o meu dever e a minha intenção era procurar uma dama inteligente e de bom berço e transformá-la na minha esposa. Nas últimas semanas, conheci dúzias de mulheres que correspondem a essa descrição, mas nenhuma aquece o meu coração como tu, nem acorda os meus sentidos pelo simples facto de entrar numa sala. Nenhuma outra dama me inspira o desejo de dar voltas com ela nos meus braços ou despir a paisagem de flores silvestres para lhe fazer um ramo. Amo-te, Belle. És a única dama inteligente e de bom berço que desejo para mim - afastou o sofá para fincar um joelho no chão. Queres fazer-me a honra de seres minha esposa?

Ela olhou para ele com os olhos muito abertos.

- Estás a falar a sério.

- Nunca falei tão a sério.

- Mas... mas isso não pode ser. Seria um desastre... Jack pôs-lhe um dedo nos lábios.

- Pensei bem. Estar ao lado da mulher que amo ou um casamento por conveniência com uma mulher a quem nunca conseguirei oferecer-lhe nada para além de respeito. A minha felicidade contra a superficialidade da aceitação social.

- Não desprezes o que sempre foi teu.

- Não desprezo. Mas também não o valorizo acima de tudo o resto. Quando se souber o que te aconteceu, talvez descubram que tu também mereces a tal aceitação social. Mas aconteça isso ou não, nem tu nem eu somos pessoas de Londres. Eu pretendo viver em Carrington Grove e ali seremos felizes. Por favor, diz-me que vamos tentar.

- E estás disposto a arriscar a posição da tua família face à improbabilidade de que a sociedade esqueça o meu passado? O futuro da tua inocente irmã?

Belle tocava no único ponto fraco da argumentação dele.

- Não - admitiu com um suspiro. - Embora pense fazer o impossível para te convencer a que te cases comigo, não quero que nos casemos até Dorothy estar bem casada. Sei como valorizas a tua independência e que a vida te deu poucos motivos para confiares nos homens da minha classe social. Mas nos meses que faltam para que Dorothy se case promete-me que, pelo menos, pensarás na minha proposta.

Ela olhou para ele com exasperação e desejo nos olhos.

- Isto é ridículo. -É?

- Devia recusar imediatamente.

- Talvez sim. Afinal de contas, não sou um homem completo. Agora ocupas tanto de mim que sem ti ao meu lado já não estou completo. Compadece-te e diz que sim.

Sabia que ela começava a hesitar, portanto pegou nela ao colo e beijou-a.

A sua intenção era que o beijo fosse uma carícia gentil e respeitosa. Mas aparentemente ela também tinha saudades dele, uma vez que se agarrou ao pescoço dele, cravou-lhe as unhas nas costas e beijou-o como se não conseguisse esperar mais.

A sua resposta apaixonada acabou em seguida com o controlo rígido que ele mantinha sobre os seus sentidos. Depois de semanas sem ela, teve de recorrer a toda a sua força de vontade para não se deitar com ela no sofá, despir as calças e possuí-la ali mesmo.

Interrompeu o beijo, com os punhos apertados, afastou-se e esperou que a sua voz soasse firme para dizer:

- Promete-me isso.

Agradou-lhe ver que ela demorava também a controlar a respiração.

- Eu... pensarei. Mas só depois de a tua irmã se casar. E só se a tua família aceitar.

Aquilo era suficiente, mais do que se atrevera a esperar.

- Que assim seja - riu-se. - Tendo em conta o quão ansioso estou para que chegue o momento, terei de pressionar o pretendente de Dorothy para que vá directo à questão. E uma vez que estejam comprometidos, rondarei a tua porta até que me aceites, mesmo seja apenas para te libertares da minha presença.

- Pois ainda bem que vou regressar para Bellehaven.

O entusiasmo dele diminuiu.

- Quando? E porque tens de ir?

- A minha intenção era passar esta temporada em Bellehaven. Passei muitos anos a lutar para que Kitty tivesse sucesso e agora não quero correr o risco de alguém nos achar parecidas, como aconteceu contigo.

- Mas eu só reparei porque sentia a tua falta.

- De qualquer modo, é um risco que não estou disposta a correr.

Apesar da sua desilusão, Jack conseguia compreender a sua cautela.

- Vai-te embora, se for preciso. Mas em breve irei a Bellehaven.

Belle olhou para ele com ternura.

- Mas agora tens de ir antes que alguém te veja e compreenda que estou em Londres.

Ele agarrou na mão dela e beijou-a.

- Irei porque tu me pedes e porque agora posso esperar impaciente o dia em que não terei de voltar a deixar-te.

A jovem sorriu.

- Adeus, capitão Carrington - encaminhou-o para a porta. - Meu querido Jack.

O coração dele saltou de prazer. Quando chegava ao hall, não conseguiu evitar uma última pergunta.

- Amas-me, Belle?

A jovem olhou para ele surpreendida e hesitou. Jack amaldiçoou o desejo que o impulsionara a perguntar, pressionando-a a fazer uma declaração para a qual talvez não estivesse preparada.

Tinha de lhe dar tempo, deixar que se habituasse à ideia de se casar com ele. Guardar os seus segredos, provar que era digno da sua confiança. Estava prestes a dizer-lhe que esquecesse a pergunta, quando ela respondeu.

-Sim!

O coração de Jack encheu-se de euforia.

- Então tudo é possível.

Fez uma reverência e foi-se embora.

 

Quando chegou a casa com o coração esperançoso, Jack descobriu que não teria de procurar por todos os clubes para encontrar o James de Dorothy. Assim que entrou, o mordomo informou-o de que lorde Winston o esperava no escritório.

O pretendente da sua irmã não demorou a confirmar-lhe que fora lá com a tarefa que Jack suspeitava. Depois de concordarem que pediriam aos respectivos advogados que trabalhassem nos detalhes do acordo e de beberem um copo para comemorarem, Jack deixou que o jovem fosse ter com Dorothy.

Quando ficou sozinho, Jack aqueceu o copo entre as suas mãos com um sorriso. Primeiro Belle acedera a pensar na sua proposta e depois Winston pedira-lhe a mão da sua irmã. Parecia um dia propício para o casamento e talvez devesse começar já o assédio para conquistar o último bastião que provavelmente se oporia ao seu casamento.

Tinha de ir procurar a sua mãe.

Primeiro debilitar-lhe-ia as defesas com a boa notícia da proposta de lorde Winston e depois lançar-lhe-ia a bomba dos seus próprios planos.

A governanta disse-lhe que lady Anne estava na sala das traseiras a rever as ementas do dia. Quando Jack entrou, a mãe dele levantou o olhar e sorriu-lhe.

- Senti a tua falta ao pequeno-almoço. Foste-te embora muito cedo. Algo relacionado com aquele negócio que te fez sair da cidade tão inesperadamente?

- Sim, mas falaremos disso depois. Tenho de te dizer que acabo de dar a minha aprovação às pretensões de James Winston. Vai declarar-se a Dorothy.

- Maravilhoso! - exclamou a mãe dele. - É um jovem excelente, não te parece? Acho que Dorothy e ele farão um excelente casal.

Jack concordava, por isso deixou a sua mãe falar vários minutos sobre as maravilhas do seu futuro genro e sobre a enorme tarefa de preparar o casamento.

- Penso que serão felizes - disse, quando ela começou a abrandar. - Certamente. Ambos parecem muito apaixonados. E, por acaso, eu também.

Aquela bomba acabou com a conversa da sua mãe sobre os detalhes do casamento.

- Apaixonaste-te por alguma dama debaixo do meu nariz e eu não me apercebi?

- Não aconteceu exactamente debaixo do teu nariz. O sorriso dela diminuiu um pouco.

- Alguém que conheceste fora de Londres? Oh, por favor, não me digas que é uma menina de Paris! Vá. Não me mantenhas na expectativa. Quem é?

- Alguém que talvez tu não aproves ao princípio. Embora espere convencer-te do contrário. Uma mulher maravilhosa e inteligente. A sociedade conhece-a como lady Belle.

A mãe olhou para ele escandalizada.

- Jack, se é uma brincadeira, não a acho nada divertida.

- Não é, mamã. É completamente a sério.

A sua mãe encolheu-se como se fosse desmaiar. Ficou em silêncio um longo momento, certamente à procura de palavras diplomáticas com as quais dizer ao seu filho que estava louco.

- Quando regressaste para junto de nós depois do acidente - começou finalmente lady Anne, - suspeitei que te tinhas... apaixonado por ela. Mas com a paixão que ela inspira, intensificada sem dúvida pela rivalidade entre os homens para ver quem será o próximo a possuí-la...

- Chega, mamã! - interrompeu-a Jack com um tom mais duro do que era sua intenção. - Nunca fales dela nesses termos.

A mulher olhou para ele de cima a baixo.

- Estás mesmo apaixonado por ela. Oh, Jack! Meu querido filho, não pretendo criticá-la, porém, por favor, pelo teu bem, não te metas apressadamente em algo de que possas lamentar-te depois toda a vida.

- Agradeço-te que apontes logo as desvantagens que essa união teria para Dorothy e para ti. E são muitas. Mas antes de me acusares de ter perdido o juízo e esquecido o meu dever para com a família, ouvirás o que tenho para dizer?

- É claro.

Jack contou-lhe tudo o que sabia sobre a morte dos pais de Belle. O engano de Bellingham e a vida deles depois juntos.

- Não é uma rameira de rua que usou a sua inteligência e a sua beleza para subir até um lugar selecto na alta sociedade. É uma dama por nascimento e por educação. E se tivesse sido Dorothy a encontrar-se perdida, assustada e sem dinheiro numa estalagem rural longe de casa?

A mãe dele tremeu.

Nem quero pensar nisso.

- Mas garanto-te que eu pensei - repôs ele, sombrio. - E não consigo condenar Belle pelo que se passou depois. O verdadeiro nome dela é Constance e, apesar da situação terrível em que se encontrou, manteve-se fiel aos valores da sua juventude, aguentou anos de isolamento e vergonha para proteger a sua irmã Catherine, a amiga de Dorothy. Acredita que já foi suficientemente castigada por algo que não foi culpa dela.

Ficou em silêncio um momento para que a sua mãe pensasse no que acabava de ouvir.

- E como Belle tem razão ao pensar que casar-me com ela fará com que a sociedade nos repudie aos dois, não a cortejarei enquanto Dorothy não estiver casada e a salvo. Não quero estragar o casamento dela com um escândalo. Mas depois disso, se conseguir fazer com que Belle se case comigo, fá-lo-ei. Aceitá-la-ias como a mulher que o meu coração escolheu?

Sabia que a sua mãe era honrada e justa, uma mulher que apreciava o berço em que nascera mas não o sobrevalorizava nem era presunçosa. Mesmo assim, pedir-lhe que aprovasse Belle, uma mulher a que os seus amigos e parentes provavelmente associariam ao vício da luxúria, era pedir muito.

- O que lhe aconteceu foi desprezível - disse a sua mãe, depois de pensar um pouco. - Apesar da minha posição privilegiada, sei as maldades de que o mundo e os homens são capazes. As mulheres têm muito pouco poder e controlo sobre as suas vidas. Seria uma traidora em relação às mulheres, se condenasse Belle pelo que lhe aconteceu quando era jovem e indefesa. Se foi mesmo como tu afirmas, e não é uma aventureira vil, aceitá-la-ei.

Jack suspirou de alívio.

- Obrigado, mamã. A tua bênção é a única coisa que me importa. Quando conseguir convencê-la a casar-se comigo, não penses que espero que nos incluas nas tuas reuniões sociais. A única coisa que me causará pena do meu amor por Belle é saber que o nosso casamento envergonhará Dorothy e a ti por muito que nos distanciemos de vocês.

Lady Anne fez uma expressão de desagrado.

- Se as coisas chegarem a esse ponto, a felicidade que vir no meu filho e na mulher que ama será compensação mais do que suficiente para os convites para bailes e festas que possa perder e que, de qualquer modo, me aborrecem. Mas talvez as coisas não cheguem a isso. Dizes que lady Belle é a irmã mais velha de Catherine? -Sim.

- Germayne... - disse a mãe dele. - O apelido não me é familiar. Sabes com quem podem ser aparentadas?

- Tanto Belle como Catherine disseram que o pai delas era um filho mais novo de um filho mais novo. E que os primos que acolheram Catherine são parentes afastados.

- Farei algumas investigações com lady Abrams. Bem sabes como estão ligadas as famílias da alta sociedade. É provável que os Germayne sejam parentes de alguém mais nobre e influente, mesmo que afastados. Talvez eu consiga reunir mais apoio para a tua dama do que pensas.

- A tua bênção é a única coisa que me importa. A mãe dele sorriu.

- Isso sempre terás. Agora podes ir pôr em prática os teus poderes de persuasão. Estou ansiosa por conhecer a mulher que roubou o coração ao meu filho. E em breve, não dentro de meses, quando Dorothy já se tiver casado.

- Farei o que puder, mamã. E obrigado. Beijou-a na face e saiu da sala com a confiança e o entusiasmo redobrados por saber que não teria de sacrificar a sua família para se casar com a mulher que amava.

Já só faltava convencer a mulher em questão a aceitar a sua proposta.

Vários dias mais tarde, Belle olhava pela janela no momento em que a sua carruagem entrava no caminho circular de Bellehaven. Apesar do seu estado de confusão e nervosismo, sentiu-se animada como sempre ao ver a sua casa de campo.

A proposta inesperada de Jack alterara-a tanto que decidira voltar imediatamente para o campo. Só demorara o tempo suficiente para lhe escrever uma carta a informá-lo da sua partida e guardar algumas coisas e pusera-se a caminho na mesma tarde do dia em que ele fora vê-la.

A longa viagem sem a companhia de Mae dera-lhe tempo para pensar, mas não conseguira esclarecer o redemoinho dos seus sentimentos. A alegria por ele a amar e a surpresa pela proposta dele misturavam-se com a velha raiva por ter sido privada da sua posição na sociedade e por não poder ser uma noiva aceitável para ele. O desespero por ter de viver sem ele misturava-se com a ténue esperança de que ele encontrasse uma forma de estarem juntos. E para agravar tudo isso, havia também exasperação pelas suas mudanças de humor, que não a deixavam pensar com clareza.

Deixara Watson em Londres para que cuidasse de Mae e levara consigo dois antigos soldados de Jackman. Embora duvidasse de que precisasse de protecção. A sua presença sossegaria os receios de Egremont pela sua segurança.

Também levara Jem. Controlar o rapaz era uma tarefa cansativa para o pobre Lawton e talvez no campo, um espaço com o qual ele não estava familiarizado, Jem se sentisse menos tentado a praticar a sua destreza como carteirista. Os soldados podiam ganhar o salário a incutir-lhe alguma disciplina e a ajudar os rapazes da cavalariça a treiná-lo com os cavalos.

Para seu alívio, o rapaz achava interessante tudo o que viam durante a viagem. John, o cocheiro, fora muito paciente com ele, respondendo à rápida bateria de perguntas que Jem, sentado ao seu lado, lhe lançava continuamente.

O rapaz, como se tivesse adivinhado que ela pensava nele, apareceu naquele momento à janela pendurado por um braço.

- Aquela mansão grande na colina é a nossa? - perguntou.

- Sim - ela sorriu. - Mas, por favor, volta para o teu lugar. Não quero que acabemos a viagem contigo entre as rodas da carruagem.

O rapaz assobiou e voltou a subir.

- Ena! - ouviu-o exclamar Belle. - Agora, sim, Jem está no topo do mundo.

A jovem soltou uma gargalhada, contente por tê-lo levado consigo. O seu ponto de vista fresco das coisas e as travessuras dele distraíam-na e ajudá-la-iam a não pensar muito nas incertezas que ainda a assaltavam.

Três dias mais tarde, Belle, que ficara presa em casa por causa de uma chuvada intensa, passeava com impaciência de um lado para o outro na sala. As tarefas dela na casa estavam terminadas, os seus livros de contas estavam em dia e nem a novela que começara a ler nem o jogo de bilhar conseguiam captar o seu interesse. Apesar de dizer a si própria que aquilo era ridículo, não conseguia controlar uma sensação de expectativa.

Porque não aceitava de uma vez por todas que, apesar das suas promessas do contrário, Jack nunca iria atrás dela? Ela mesma se encarregara disso, ao exigir-lhe que não a perseguisse a menos que a relação deles contasse com a aprovação da família dele, algo que, por muito bem que a irmã dele se casasse, nunca poderia acontecer.

A mãe dele era filha de um conde e era pouco provável que acolhesse na família uma cortesã famosa, por muito nobres que fossem as suas origens.

Além disso, talvez Jack pensasse agora que preferia a sua companhia à posição que ocupava na sociedade, mas não se arrependeria depois?

Bateram à porta e Jem entrou.

- Um cavalheiro pergunta por si, mas não é o capitão - disse.

Antes que ela conseguisse dizer-lhe que o mandasse entrar, a porta voltou a abrir-se e na soleira surgiu Rupert.

Fez uma reverência.

- Pensei que assim lhe pouparia o aborrecimento, caso quisesse recusar-se a receber-me. Podes ir, rapaz

- acrescentou com um movimento da mão.

Jem endireitou-se tanto quanto o seu corpo esquálido lhe permitia.

- Irei quando a senhora assim disser.

Rupert franziu o sobrolho, claramente zangado.

- Como te atreves a falar-me nesse tom? Avançou para ele e Belle, que receava que batesse no rapaz, apressou-se a dizer:

- Não é preciso esperares. Lorde Rupert não ficará muito tempo.

Jem não se mexeu.

- Está bem, menina Belle. Mas eu não gosto deste homem, por isso esperarei lá fora caso precise de mim

- passou ao lado de Rupert como que a desafiá-lo e dirigiu-se para a porta.

- Deixa-o, Rupert - disse Belle, quando o barão já se virava para o rapaz com uma mão levantada.

Rupert baixou lentamente a mão.

- Como queira... Por agora.

Assim que Jem fechou a porta, o barão fez uma careta.

- Surpreende-me o baixo nível das pessoas que tem ao seu serviço. Uma rameira como Mae como dama de companhia, um ex-pugilista como mordomo e agora este... vadio - abanou a cabeça com desdém. - Quando eu me encarregar da sua casa, os criados serão devidamente treinados e saberão o lugar deles.

Belle optou por não discutir aquele ponto de vista para não prolongar uma visita que pretendia que fosse breve.

- Não sei porque veio. Pensava que deixara bem claros os meus planos para o futuro.

- Teria voltado antes, mas lady Belle é muito atrevida. Primeiro, sai a correr para Londres sem uma palavra e, depois, volta para cá apenas um dia depois de eu saber da sua presença na cidade.

Estendeu a mão para pegar na dela, mas Belle afastou-a. Também não o convidou a sentar-se.

Rupert olhou para ela com raiva, mas o seu tom de voz continuou agradável.

- Como a minha última visita teve a virtude de fazer com que acabasse o seu interlúdio com Carrington, pensei que teria tempo para esquecer o seu aborrecimento comigo. Continuo disposto a mostrar-me generoso apesar da sua... traição temporária com o capitão.

- Lorde Rupert, penso que já rejeitei em termos muito claros a sua generosa oferta. Tenho pena que me obrigue a falar assim, mas não estou interessada numa relação consigo nem nunca estarei. E agora agradecia-lhe que saísse e que não voltasse a visitar-me.

Para sua exasperação, o homem limitou-se a abanar a cabeça.

- Minha querida, não me interessa prolongar este jogo cansativo de avanços e recuos. Já me provocou e enlouqueceu com ciúmes demasiado tempo. Desta vez não aceitarei um "não" como resposta.

- Não aceitará... - murmurou ela. Sabia que ele tinha a arrogância de supor que acabaria por levar a sua avante, mas daquela vez a sua presunção já era insultante. - Agradeço-lhe que se vá embora imediatamente. Bom dia, lorde.

Rupert cruzou os braços com calma.

- Não tenho intenção de me ir embora. Nem agora nem nunca.

Belle aproximou-se do cordão da campainha.

- Lamento que isto tenha de acabar assim, mas, se não se vai embora voluntariamente, não me deixa outra opção senão fazer com que o expulsem à força. O barão soltou uma gargalhada.

- Não duvidava que tentasse. Por isso tomei as precauções necessárias para me certificar de que isso não acontecerá.

A expressão de satisfação dos olhos dele intensificou o nervosismo de Belle, embora mantivesse uma fachada de calma enquanto puxava a campainha.

- Puxa a campainha durante o tempo que quiseres, querida. Ninguém virá. A tua casa está agora sob as minhas ordens. E tu também.

A expressão humorística e educada dele desapareceu e começou a andar para ela. Belle recuou até bater na parede da sala.

Ele pôs-lhe as mãos nos ombros com um sorriso de lobo.

- Ah, meu tesouro! Estou há tanto tempo à tua espera!

- Solte-me imediata... - conseguiu ela dizer, antes de Rupert lhe tapar a boca com a sua.

Resistiu à invasão da língua dele, apertando os lábios com força, e tentou resistir, todavia Rupert era surpreendentemente forte e não conseguiu soltar-se.

Desesperada, mordeu-lhe os lábios.

Sentiu mais do que ouviu o praguejar dele contra a sua boca. Teve um instante de alegria quando ele afastou os lábios, contudo Rupert agarrou-a de seguida pelos ombros e empurrou-a contra a parede.

A força do choque fê-la perder o equilíbrio e quase a deixou sem ar. Rupert cravou-lhe as unhas nos braços e segurou-a antes que caísse ao chão. Prendeu-a no lugar, empurrando-a com os ombros.

O medo e a fúria embargaram-na. Tentou concentrar-se e conceber um plano, enquanto os suspiros dele enchiam os seus ouvidos. Ouviu um ruído de roupa e ele apertou toda a longitude do seu corpo contra ela.

Através do vestido, Belle sentiu a erecção dele a palpitar contra a sua barriga e percebeu que ele abrira a braguilha.

- Gostas de violência? - resmungou ele, ao ouvido.

- Eu sabia que gostarias. Vai ser um grande prazer dominar-te.

Manteve-a imóvel com o peso do seu corpo e obrigou-a a baixar uma mão e a rodear com ela o seu pénis. Depois, sem lhe dar tempo para pensar como escapar, deu-lhe um murro na cara.

A dor explodiu na cabeça de Belle, cegando-a. Resistiu durante alguns segundos, até que uma onda mais forte do que ela a invadiu e caiu numa escuridão completa.

 

Nessa mesma tarde, Jack estava sentado na biblioteca da sua casa com a carta de Belle entre os dedos, inspirando o seu cheiro a lavanda. A conselho da sua mãe, retirara-se para ali para fugir ao tumulto dos preparativos do baile que lady Anne dava naquela noite para comemorar o compromisso de Dorothy com Winston.

Jack ficara decepcionado, mas não surpreendido, ao receber a carta de Belle e descobrir por Watson que ela partira de Londres.

Sorriu. Era típico de Belle agir rapidamente sobre qualquer assunto que considerasse importante.

Ele sentira a tentação de ir atrás dela para lhe dar a notícia do consentimento da sua mãe. No entanto tinha reuniões com advogados para falar do contrato matrimonial de Dorothy, havia numerosas festas às quais se comprometera acompanhá-la e havia também o baile daquela noite, onde entregaria a mão dela a James Winston diante de toda a sociedade. Depois disso, poderia finalmente ir para Bellehaven.

Esperava que aqueles dias separados tivessem feito com que Belle sentisse tanto a falta dele como ele sentia a dela e que tivessem suavizado a resistência dela em aceitar o pedido de casamento. A ser assim, agora que podia dizer-lhe que contava com o apoio da sua família, tinha muitas probabilidades de satisfazer o seu desejo.

Transformar lady Belle em sua esposa.

Sorriu.

Naquele momento bateram à porta.

- Lorde Egremont pergunta por si, senhor anunciou o mordomo.

Jack olhou para ele surpreendido e uma pontada de ciúmes atravessou o seu peito. O que podia querer dele aquele amigo de Belle?

- Diga-lhe para entrar e traga-nos vinho. Por favor. Um instante depois o conde entrava.

- As minhas desculpas por chegar num momento de tanta agitação e parabéns pelo casamento da sua irmã. Winston é um excelente jovem.

- Estamos todos muito contentes com o noivado acrescentou Jack.

Apontou para uma cadeira e esperou que Quisford lhes servisse o vinho e se retirasse.

- Em que posso ajudá-lo?

- Como imagino que suspeitará, vim falar de... uma certa dama de quem ambos gostamos muito. Tenho motivos para pensar que o senhor pode ter intenções sérias para com ela.

A pontada de ciúmes tornou-se mais intensa.

- E que interesse tem o senhor nisso? - perguntou.

- Quer casar-se com ela? perguntou Egremont sem rodeios.

-Sim.

O conde sorriu secamente.

- Nesse caso, embora me fira ver confirmadas as minhas suspeitas, o meu interesse pelo bem-estar de Belle obriga-me a felicitá-lo - levantou o seu copo.

Jack, surpreendido e um pouco mais calmo, também levantou o seu.

- Obrigado por ter sido um amigo para ela quando tanto precisava.

Egremont pousou o seu copo e deixou de sorrir.

- Devia ter sido mais do que um bom amigo. Sei da sua viagem a Eastwold. Também sei que tenta mostrar que as origens de lady Belle são honradas. Eu desconfio disso há anos.

Jack franziu o sobrolho, desconcertado.

- Parece muito bem informado.

- É um dos benefícios de ter uma longa amizade com alguns membros do Home Office. Quando soube da sua missão, decidi que, se as suas intenções para com Belle eram honráveis, oferecer-lhe-ia o que sei... e uma desculpa. Ela fascinou-me desde a primeira noite em que a vi, não só pela sua beleza resplandecente como também pela sua graça e dignidade, para além da sua inteligência. Estava há menos de meia hora a conversar com ela e já me fazia perguntas sobre um assunto que se debatia na Câmara dos Lordes. E antes que acabasse a conversa, tinha-me apaixonado por ela.

Agitou o vinho no copo com uma expressão pensativa.

- Oh! Eu sabia que merecia algo melhor do que o que Bellingham lhe dava, mas eu já estava casado e não podia oferecer-lhe outra coisa senão amizade. Que Bellingham permitiu porque há anos que me conhecia e tenho fama de ser fiel. Sabia que se encontrasse a família dela podia perdê-la e isso não aguentaria, por isso tranquilizei a minha consciência, pensando que, depois de ser de domínio público que era a protegida de Bellingham, já não havia alternativa para ela. Transformei-me numa espécie de guardião para a proteger dos piores excessos - suspirou. - Nem sempre tive sucesso.

- O episódio no Vauxhall - disse Jack. Egremont fez uma expressão de desgosto.

- Sim. Vauxhall! Quero acreditar que a nossa amizade proporcionou a Belle algum conforto e alívio numa vida que desprezava, porém, no fundo, sei que devia ter feito mais. Devia ter feito o que o senhor está a fazer... procurar a família dela e tentar restaurar a vida que perdera. E sei que, por não o fazer, traí a nossa amizade e traí-a a ela.

Levantou o olhar para Jack.

- O senhor é melhor homem do que eu. Se decidir confiar em mim e puder fazer alguma coisa para o ajudar, tenha a certeza de que assim o farei. Saiba também que lhe darei todo o apoio de que precise para restabelecer Belle na sociedade.

Jack não sabia o que dizer. Embora estivesse furioso com o conde por ter deixado que Belle passasse seis anos de servidão, não podia evitar sentir também uma certa simpatia por ele. Afinal de contas, teria tido ele a coragem de prosseguir com as suas investigações, se no fim a perdesse para sempre em vez de a transformar na sua esposa?

O conde levantou novamente o copo para ele.

- Cedo-lhe, pois, o privilégio de cuidar de Belle. Mas esse privilégio vem com uma advertência.

- E qual é?

- Conhece a história de Jane? - esperou que Jack assentisse. - Belle acreditou desde o início que foi vítima do negócio do tráfico de raparigas. Encontrou provas suficientes disso e lorde Riverton decidiu levar mais adiante a investigação. A informação que recolhemos leva-nos a acreditar que aquela rede de tráfico de raparigas conta com recursos de determinados cavalheiros ricos e proeminentes... e lorde Rupert pode ser um deles. Pelo menos, já descobrimos que é um dos clientes mais assíduos da senhora Jarvis.

- Não me custa acreditar nisso - murmurou Jack.

- Dada a participação de Belle neste assunto e os intuitos de Rupert em relação a ela, acho que vale a pena vigiá-lo. Recentemente saiu da cidade e não me surpreenderia que passasse por Bellehaven.

Jack praguejou.

- Exacto - assentiu Egremont. - Eu pretendia ir lá pessoalmente para ver Belle, mas talvez seja melhor ir o senhor.

Jack praguejou novamente.

- Eu não posso ir antes do baile desta noite. Egremont assentiu.

- De certeza que estou a pecar por cautela a mais, mas Rupert deseja-a há muito tempo e não se deixará desalentar facilmente. Penso que ela pode precisar de ajuda.

Jack imaginou a cara do barão ao alcance dos seus punhos.

- Eu teria um enorme prazer em desalentá-lo.

- Acredito que sim. Bom, não lhe roubo mais tempo

- o conde levantou-se e deixou o seu copo na mesa. Boa sorte, capitão.

- Obrigado, Egremont - Jack estendeu-lhe a mão. Por cuidar dela e por me entregar agora essa tarefa.

O conde apertou a mão de Jack com firmeza.

- Se algum homem a merece, penso que é o senhor. Que Deus os abençoe aos dois.

Jack acompanhou-o à porta, pensativo. Apesar de antes não ter feito tudo o que podia, agora admirava a sua força. Não queria sequer imaginar o que devia ser afastar-se e deixar que um homem mais sortudo se casasse com ela.

- Se a sociedade nos fechar as portas, talvez não queira ver-nos em público, mas se desejar visitar-nos em privado, será sempre bem-vindo. Belle aprecia-o muito.

Egremont assentiu com os olhos húmidos.

- O senhor é muito amável, capitão. Boa noite! Jack voltou para a biblioteca. Queria pôr em ordem os seus papéis e arrumar alguma roupa. Assim, logo que entregasse Dorothy a James e abrisse o baile com a sua mãe, partiria para Bellehaven.

Belle tentava acordar de uma névoa espessa. Sentia a cabeça a palpitar e ardia-lhe a garganta. Tentou mexer-se e descobriu que tinha as mãos presas.

O medo fez com que desaparecesse parte da confusão induzida pela dor de cabeça. Tentou endireitar-se e concentrar-se.

Estava numa cama, num quarto escuro. Mas porque tinha as mãos atadas?

Então lembrou-se de tudo.

Rupert.

Rupert beijara-a à força e batera-lhe.

Que mais a obrigara a fazer enquanto estava inconsciente? Sentiu náuseas, todavia tentou controlar a dor e procurar sensações mais subtis. Estava nua, vestida apenas com uma combinação. E havia uma humidade pegajosa entre as suas pernas.

- Ah, finalmente acordada! Toma! - Rupert aproximou-se da cama com uma chávena na mão. Bebe isto. Aliviar-te-á a dor de cabeça.

Belle tinha muita sede, mas hesitou. E se o líquido tivesse alguma droga? Tinha de estar acordada para fugir à primeira oportunidade.

- Não é minha intenção drogar-te - disse ele, como se lhe lesse o pensamento. - Vá, não sejas teimosa. Bebe um gole.

- Porque hei-de confiar em si?

- Tens razão, querida. Mas garanto-te que não tenho qualquer desejo de voltar a deixar-te inconsciente. Lamento a pancada que te dei na cabeça, mas tu alteras-me de tal modo que perco as estribeiras. Nem sequer consegui privar-me de desfrutar de ti, embora prometa que da próxima vez esperarei que estejas acordada.

- Poupe-me a esse prazer - ela cuspiu.

- Oh, não penso poupar nenhum dos dois a isso! Mas este sono foi útil - Rupert tocou-lhe no pescoço com um dedo, mesmo por cima de onde a dor era mais intensa, e ela não conseguiu evitar encolher-se. - Permitiu-me cumprir uma tarefa importante sem te causar mais dor.

Afastou a mão e agitou-a no ar para que a luz das velas iluminasse o selo do seu anel de ouro.

- Vês este "R"? Uma pressão de metal quente debaixo da tua encantadora orelha e carregarás a minha marca para sempre.

Belle sentiu-se horrorizada. Apesar da dor de cabeça, puxou as ligaduras, desesperada por verificar o que ele dizia.

- Não faças isso - aconselhou ele. - Em breve verás. Tens de descansar e recuperar forças.

Os olhos de Belle encheram-se de lágrimas de raiva e desespero.

- Canalha!

- Uma medida drástica, eu sei, mas preocupava-me que Carrington estivesse louco ao ponto de te propor casamento. E embora a sua fortuna não se possa comparar à minha, a ideia do casamento podia convencer-te. Embora ambos saibamos que tu não nasceste para uma união legítima mas para dar prazer a um homem. Tu és uma rameira, porém, agora, és a minha rameira. E agora que toda a gente o pode ver, Carrington não quererá ter nada a ver contigo.

Belle, enojada com uma profunda sensação de violação, revirava os olhos.

- Não tenhas medo, querida, mal alterará a tua beleza. E compensar-te-ei por isso. Os presentes de Bellingham não são nada comparados com os que te darei. Vestidos sumptuosos, as jóias mais brilhantes e perfeitas, cavalos, carruagens, casas magníficas. Mas não sairás deste quarto enquanto não aceitares pertencer-me, a mim e só a mim.

- Então morrerei aqui, já que nunca aceitarei - Rupert franziu o sobrolho.

- Admito que tens motivos para estares furiosa, mas não gosto da tua atitude. Talvez precises de mais... disciplina para a melhorar. Tenho ouvido dizer que as mulheres precisam da mesma mão dura que se usa para os criados e para os animais. Mas, por outro lado... - os olhos dele brilharam - talvez até gostes de um ligeiro... castigo.

- Castigo! - exclamou ela. Com tudo o que ele lhe fizera, tinha a presunção de afirmar que era ela quem devia ser castigada?

- Quer dizer que resistirás? Por favor, fá-lo, meu amor. Ataca-me com dentes, punhos e unhas. Isso fará com que seja muito mais doce entrar novamente em ti.

Belle compreendeu que com aquele duelo verbal não conseguiria nada. Era melhor induzi-lo a que a deixasse sozinha, descansar o seu corpo maltratado... e planear uma maneira de fugir.

E quando conseguisse... pensou na sua espada com desejo. Obrigaria o barão a um duelo de honra e teria a sua vingança ou morreria a tentar. Com Kitty estabelecida na sociedade e Jack perdido para sempre, a possibilidade de ser ferida ou morta não a preocupava de maneira nenhuma.

Endireitou-se mais na cama e deu um salto.

- Oh, como me dói a cabeça! Acho que vou vomitar.

- Então, deita-te - aconselhou Rupert. - Essa sensação passará.

Ela voltou a gemer.

- É cada vez pior. Por favor, pode chamar alguém para me ajudar?

Rupert abanou um dedo diante do rosto dela.

- Nada de truques. Não posso deixar que vejas os teus criados enquanto não aceitares as minhas condições, mas trouxe comigo uma mulher para que te ajude na viagem de regresso. Enviar-ta-ei.

Um medo diferente apoderou-se de Belle.

- Onde estão os meus empregados? Fez-lhes alguma coisa?

- Tomas-me por um bárbaro? Apanhámo-los um a um e levámo-los para os estábulos, onde continuarão até nos irmos embora juntos.

- Envie-me a mulher, por favor. Tenho também... outras necessidades.

- Claro, minha querida. A minha cozinheira preparou uma sopa. Esta noite ou amanhã de manhã o mais tardar, estarás suficientemente restabelecida para te mostrar os prazeres que nos esperam.

A jovem não se incomodou em responder. Quando a porta se fechou atrás dele começou a torcer-se sem ligar à dor de cabeça. Mas as ligaduras não cederam.

A esperança dela de que talvez conseguisse convencer a mulher que Rupert trouxera desapareceu assim que a viu entrar. Disse-lhe que teria de usar o bacio que lhe levara e que o seu senhor era o único autorizado a soltar-lhe as ligaduras. Ficou ao lado dela até que Belle acabou de se aliviar, sem fazer nada para a ajudar. Quando retirou o bacio, deu-lhe a sopa que trouxera com a precisão de um autómato.

Quando a mulher saiu, Belle, que se sentia muito suja no corpo e na mente, deitou-se e tentou pensar num plano que pudesse ter sucesso. À medida que a noite avançava sem que lhe ocorresse nada, sentia-se cada vez mais desesperançada.

Em algum momento deve ter adormecido, já que, quando acordou com um ruído agudo, já entrava uma luz pálida pelo fundo das cortinas.

Voltou a ouvir o barulho, como se houvesse um rato na lareira. Tornou-se mais intenso e, de repente, caiu uma figura enegrecida, que aterrou entre as brasas moribundas do fogo.

- Jem! - exclamou Belle, atónita.

O rapaz saiu da lareira, sacudindo as brasas da roupa. Olhou para ela com atenção.

- Eu soube que aquele tipo era má pessoa assim que lhe pus a vista em cima - sussurrou. Tirou uma navalha pequena da bota e começou a cortar-lhe as ligaduras dos pulsos. - Embora eu gostasse de ficar e dar-lhe a provar a minha navalha, acho que será melhor irmo-nos embora antes que ele volte.

- Como fugiste? - perguntou Belle.

- Gritei tanto que me puseram sozinho e disseram-me que ficaria ali sem comer nem beber até aprender a ter maneiras. Fugi pela clarabóia do telhado assim que se foram embora. Depois entrei pela cozinha e ouvi-os até que descobri onde a tinham. Eu não queria descer pela lareira, mas parecia-me a melhor maneira para que ninguém me visse.

A jovem esfregou os pulsos doridos.

- Como posso agradecer-te? O rosto do rapaz suavizou-se.

- Depois do que fez por mim? Isto não é nada... excepto a lareira. Não quero voltar a ver uma lareira por dentro.

Belle levantou-se com cuidado e sentiu-se aliviada por ver que só se sentia um pouco enjoada e que a dor de cabeça era suportável.

- De certeza que todos os homens de Rupert estão na cozinha? Não há nenhum cá em cima?

- Não. Passei por todos os quartos a caminho do telhado. Na parte oeste há um carvalho muito grande que toca na casa. Sairemos pela janela do desvão, desceremos e meter-nos-emos no bosque.

- Espera até eu vestir umas calças e pegar na minha espada.

Jem olhou para ela de cima a baixo.

- Quer trespassar aquele vilão? É melhor que o deixe para a justiça, senhora. Tem muitos homens com ele que podem cercá-la e tirar-lhe a espada.

Não se tu voltares para os estábulos e soltares os outros. Achas que consegues fazer isso agora, de dia? O rapaz sorriu.

- Com todos os matagais que há daqui até aos estábulos? Serei tão invisível como um fantasma.

- Eu espero por ti no desvão. Rupert deve estar num dos quartos de hóspedes e de certeza que demorará horas a acordar. Liberta os soldados de Jackman e os outros, diz-lhes que imobilizem os homens de Rupert e enviem alguém para ir buscar o juiz. Depois vem procurar-me. Eu encarregar-me-ei de Rupert.

Jem murmurou o seu assentimento e aproximou-se da porta.

- Eu ficarei à escuta enquanto a senhora se veste. Quando ela se reuniu com ele uns minutos depois,

vestida e armada, Jem olhou para ela muito sério.

- Eu nunca fiz mais do que roubar. Mas matarei aquele canalha se a senhora quiser.

- Obrigada, Jem, mas esse é um prazer do qual não penso privar-me.

O rapaz assentiu.

- Suponho que tem razão. Pronta?

- Vamos.

 

Jack abençoava o céu iluminado pela lua cheia que se seguira às tempestades do dia anterior e que lhe permitia viajar de noite e, pouco depois de amanhecer, conduzia o seu cavalo cansado pelo caminho de carruagens que levava até Bellehaven. O mau pressentimento que o embargava da advertência de Egremont impulsionara-o a cavalgar sem paragens, parando apenas para beber uma caneca de cerveja nas estalagens enquanto os rapazes do estábulo lhe preparavam uma mudança de montada. Poucos minutos depois chegaria à mansão e, com um pouco de sorte, rir-se-ia com Belle do seu excesso de cautela e poderia finalmente descansar.

No entanto, quando atravessou a porta de carvalho que dava acesso à propriedade, não foi parado por ninguém. E não viu nenhum vigia nem nas árvores nem escondido perto dos estábulos.

Talvez Belle os tivesse despedido. Mas isso não lhe parecia provável, pois Egremont certamente teria dito a Belle que tivesse cuidado até acabar a investigação.

A sua cautela de soldado, que lhe salvara a vida em mais de uma ocasião, dizia-lhe que evitasse os estábulos e que se aproximasse da casa sem ser visto. Desculpou-se em silêncio com o seu cavalo cansado, que prendeu às árvores, e adiantou-se sozinho.

Quase chegara à cozinha, quando ouviu alguns passos e deslizou para trás de um matagal. Puxou da pistola e esperou.

Espreitou com cautela para ver se quem avançava em silêncio era um dos empregados de Belle e viu aproximar-se uma figura inconfundível.

- Jem! - chamou-o em voz baixa. O rapaz virou-se e viu-o.

- Capitão, pregou-me cá um susto! Mas fico muito contente por vê-lo.

- O que se passa?

- Aquele ordinário do Rupert veio ontem e prendeu lady Belle. Eu ajudei-a a fugir e libertei o nosso pessoal. Agora vão prender os homens de Rupert, enquanto eu vou ao encontro dela. Lady Belle vai ocupar-se de Rupert.

- Leva-me até ela.

- Silêncio - avisou-o Jem quando entraram em casa e começaram a subir a escada de serviço. - Não queremos dar tempo a Rupert para nos preparar as "boas-vindas".

Jack não soube como aumentara o seu medo até chegar ao desvão e vir Belle em camisa e calças, com a espada embainhada e a olhar pela janela, de costas para eles. O alívio, ao vê-la ilesa, quase fez com que desmaiasse e o nó que tinha na garganta impediu-o de pronunciar o nome dela.

Ela virou-se de lado e viu-o.

- Jack! - exclamou. Mas depois do primeiro brilho de alegria nos seus olhos, o rosto dela tornou-se inexpressivo. - O que fazes aqui?

- Egremont disse-me para vir - respondeu ele, decepcionado pela reacção dela, ao ver que se transformava novamente na Belle distante e intocável dos primeiros dias. - Preocupava-o que Rupert viesse para cá. Jem diz que tentou raptar-te. Fez-te algum mal? Diz-me onde está esse vilão e exigir-lhe-ei uma satisfação.

A jovem virou-se completamente e os olhos dele pousaram imediatamente num sítio avermelhado atrás da orelha dela que parecia... uma queimadura?

- Deus seja misericordioso! - exclamou.

- Acho que me cabe a mim exigir uma satisfação respondeu ela. Desembainhou a sua espada e fez um gesto a Jem com o queixo. - O meu pessoal está todo a salvo?

- Sim, senhora. Já foram buscar o juiz e os homens de Rupert em breve estarão encerrados nos estábulos.

- Portaste-te muito bem, Jem. Agora vamos acabar com isto.

Jack pôs-se no caminho dela.

- Pretendes lutar com ele?

Os olhos tranquilos dela olharam para ele sem emoção.

- Isto é uma questão de honra.

Honra. Jack sentiu náuseas, seguidas de uma fúria impotente. Rupert possuíra-a contra a vontade dela. Pensou por um instante em pedir-lhe que lhe cedesse o privilégio do combate, mas um olhar para a dureza implacável do rosto dela convenceu-o de que seria inútil.

- Deixa-me ser teu padrinho.

A jovem ficou pensativa por um momento.

- Muito bem. Mas só se acederes a não intervir, aconteça o que acontecer. Aconteça o que acontecer, ouviste? Juras?

- Juro - disse Jack, embora soubesse que não cumpriria a sua promessa se a lâmina de Rupert se aproximasse de Belle.

Sem fazerem barulho, desceram as escadas até ao segundo andar e Jem assinalou com a cabeça um dos quartos. Belle abriu a porta com um pontapé e entrou, seguida pelos dois.

- Lorde Rupert! - gritou para o homem que estava em mangas de camisa.

O barão levantou o olhar e os seus olhos abriram-se com incredulidade.

- Belle! Carrington? O que se...?

- Mudei de ideias sobre a nossa relação. O senhor será o meu adversário. O capitão Carrington é o meu padrinho. Diga qual dos seus homens deseja que seja o seu e o meu pessoal libertá-lo-á.

Rupert abriu e fechou a boca, atónito com aquela reviravolta dos acontecimentos. Finalmente pareceu assimilar o traje de Belle e a espada desembainhada que trazia na mão.

- Adversário? Que tolice é esta? Carrington, não pode tomar parte de semelhante ultraje.

- O ultraje já foi cometido. Se a dama exige uma satisfação, tenciono encarregar-me de que a consiga.

- Arranja-lhe uma arma - disse Belle a Jem. - É uma sorte que tenha escolhido o quarto mais espaçoso, lorde - disse, quando Jem tirou a espada de Rupert da sua capa e a lançou sobre a cama.

Jack cruzou os braços e pôs-se ao lado da porta, onde bloquearia a fuga de Rupert... ou interviria se necessário.

- Se quiser um padrinho, fale agora - acrescentou Belle.

- Não acreditas que me dignarei a lutar contigo disse Rupert com desdém.

- Suponho que isso seja uma recusa em escolher padrinho. Muito bem. En garde, lorde.

Ao ver que Rupert continuava sem se mexer, Belle pegou na espada dele e lançou-lha. Ele deixou que caísse ao chão aos seus pés e olhou para ela com ar de gozo.

- Muito bem - ela encolheu os ombros. - Se não deseja defender-se, o trabalho será mais rápido - pôs a sua espada em posição e avançou contra ele.

Rupert perdeu parte do seu sangue-frio.

- Tu não atacarias um homem desarmado.

Belle continuou a avançar até que a ponta da espada dela quase tocou no peito dele.

- Deu-me uma oportunidade de lutar antes de me maniatar como um animal?

Jack soltou um gemido e lançou-se para o barão. Belle estendeu uma mão para o impedir.

- Capitão, lembre-se da sua promessa.

Jack praguejou. Recuou e desembainhou também a sua espada.

- Muito bem. Mas se restar alguma coisa dele quando tu acabares, o ataque seguinte é meu.

- Como queiras - murmurou Belle com indiferença e os olhos fixos no barão. - E agora, lorde Rupert, sugiro-lhe que se defenda.

Como ele continuava sem se mexer, aproximou a espada, rasgou-lhe a camisa e deixou um fino rasto de sangue no peito dele. Rupert uivou de raiva e dor e recuou.

- Tenho de continuar a sangrá-lo como um porco até que morra ou dou-lhe um golpe definitivo e acabo consigo de vez? - perguntou ela, como se não soubesse o que fazer. - Ah, julgo que lentamente será melhor - aproximou novamente a espada, cortou-lhe a manga e arranhou-lhe o ombro.

Daquela vez o barão baixou-se e pegou na sua espada.

- Muito bem - resmungou, ao levantar-se. - Lutarei. Mas não pretenda chamar a isto um combate de honra. Uma rameira que abre as pernas para divertir a multidão como tu fizeste no Vauxhall.

- Quieto, capitão! - ordenou Belle, que parecia pressentir que Jack estava prestes a lançar-se contra o barão de espada em riste. - Não me obrigues a lutar contigo também. Está preparado, lorde Rupert?

- Atreves-te a pensar que podes vencer-me? - gozou-a ele.

A jovem atacou e o barão demorou um segundo a reagir à rapidez do ataque e recuou até ao canto.

- Rameira! - gritou, enquanto a empurrava para trás com a sua força superior. - Rameira! É esta a prostituta pela qual quer sujar o seu nome, Carrington?

Ao primeiro insulto, Jack sentiu tanta fúria que cerrou os dentes e teve de fazer um enorme esforço para continuar imóvel. No entanto, ao segundo insulto, compreendeu que o barão tentava espicaçá-lo e obrigar Belle a dividir a sua atenção.

Permaneceu ao lado da porta.

- Esta dama consegue acabar consigo sem a minha ajuda - declarou.

Belle olhou para ele por um segundo com uma ponta de algo que parecia gratidão e, em seguida, voltou a concentrar-se em Rupert. Atacou primeiro, fez uma finta quando ele se lançou sobre ela e atacou com um golpe forte a espada dele.

O barão, que esteve prestes a soltar a espada, gritou de dor e agarrou-se à mão que segurava a arma. Levantou a vista e olhou para Belle com fúria.

A mão de Jack apertou a sua espada, mas Belle parecia imperturbável.

- Agora já está pronto para começar, lorde?

O barão atacou com um gemido. Jack susteve a respiração e seguiu com o olhar o choque das espadas, decidido a intervir para a proteger caso fosse necessário. Todavia, apesar da carga furiosa de Rupert, ela parecia muito calma e corajosa.

Atacaram-se e esquivaram-se durante vários minutos, aproveitando o barão a vantagem da sua estatura e o seu peso para travar a técnica superior de Belle. Até que Jack se deu conta de que ela usava contra Rupert a mesma táctica que ele usara contra ela na sala de Armaldi: obrigar o barão a lutar com todas as suas forças e esperar que se cansasse.

A estratégia dela tinha sucesso, embora o barão, que tinha o rosto encharcado em suor e lutava com os dentes cerrados pela fúria, não parecesse dar-se conta. Uns instantes mais e começou a ficar sem ar e os seus golpes tornaram-se cada vez mais trôpegos.

Finalmente, como se tivesse piedade da deterioração de Rupert, Belle empurrou-o até um canto com uma série de ataques rápidos e fê-lo perder o equilíbrio com um golpe de mestre seguido de outro brutal que atirou o barão ao chão e fez voar a espada da mão dele.

Rupert, deitado de costas, estendeu a mão à procura da arma que já estava fora do seu alcance. Olhou para o rosto implacável de Belle e os seus olhos encheram-se de terror.

A expressão dela mudou de repente e os seus olhos impregnaram-se do ódio cruel que Jack vira precisamente antes de lhe ter cravado a espada em casa de Armaldi. Com um gesto de desprezo, cravou a ponta da espada no peito já ensanguentado de Rupert, que emitiu um som parecido com uma súplica.

Mas, então, em vez de acabar com o barão, ela retirou a espada e afastou-se.

- Ele não merece que suje uma boa lâmina com ele

- disse, quando passava diante de Jack com os olhos cheios de lágrimas. - Tira-o da minha vista antes que mude de ideias. Jem, atira-me a tua navalha, por favor.

Apanhou a navalha em voo e saiu do quarto.

Jack adiantou-se e levantou o barão com a ajuda de Jem. Arrastaram-no escada abaixo.

Quando chegaram à sala, Jack sentou-o numa poltrona e ordenou a Jem que fosse buscar a carruagem e o cocheiro dele. O rapaz abanou a cabeça para expressar o seu desacordo, mas fez o que lhe dizia.

Quando ficaram sozinhos, Jack olhou para Rupert.

- Pelo que sei, tem propriedades nas índias Ocidentais, não é?

O barão assentiu, ainda ofegante.

- Pois sentiu um repentino desejo de as inspeccionar e vai gostar tanto delas que se vai instalar lá permanentemente. Pediria a Belle que o denunciasse por sequestro, mas não quero expô-la à notoriedade de um julgamento. E, de qualquer modo, pode ser-lhe útil mudar-se lá, pois, pelo que percebi, você tem acordos com uma certa senhora Jarvis e esses acordos não vão resistir ao escrutínio legal a que vão ser submetidos em breve.

O barão encolheu os ombros e recuperou parte da sua arrogância.

- E se pagar a uma proxeneta para que me arranje rameiras inexperientes? O que me importa a mim como as recruta desde que sejam jovens e tenham tanto entusiasmo como Belle?

Jack sentiu uma onda de fúria e teve finalmente a satisfação de ver o seu punho entrar em contacto com o queixo do barão.

- Considera isto uma amostra de tudo o que te devemos, miserável. Devias saber que, depois de Waterloo, não tenho qualquer problema em ver morrer um homem e não tenho um sentido de honra tão profundo como Belle. Se voltar a ver-te, não esperes que te ofereça uma espada.

Levantou-o e agradou-lhe ver que o lábio cortado e a nódoa negra que começava a formar-se no queixo tinham apagado a arrogância do rosto do barão.

- Se antes de te ires embora, sentires o impulso de contar a alguém o que se passou aqui, resiste. Porque se eu ouvir alguma coisa relativamente a isto, não haverá buraco na terra suficientemente profundo ou escuro para te esconderes da minha raiva. Está entendido?

Embora Rupert não dissesse nada, baixou o olhar depois de um instante.

Jem entrou com dois lacaios fortes.

- O cocheiro está a preparar os cavalos. Nós metemo-lo na carruagem. Vá ter com a senhora, capitão.

Quando o levavam para a porta, Rupert soltou-se um instante e olhou para Jack.

- Agora ela jamais o aceitará - disse antes de sair a coxear.

Jack rezou para que houvesse uma forma de reparar o mal causado pela visita de Rupert e subiu as escadas.

O quarto de Belle estava deserto. Jack continuou pelo corredor, abrindo todas as portas até que a encontrou no último quarto. Estava sentada diante do tocador e olhava-se ao espelho com a navalha ensanguentada de Jem na mão, suja também com sangue.

O coração dele parou. Aproximou-se dela.

- Belle, o que fizeste?

Ela olhou para ele com os olhos inexpressivos. Saía sangue de três cortes que fizera no pedaço de pele queimada atrás da orelha.

Jack queria abraçá-la, mas ela estendeu uma mão para o impedir de se aproximar mais.

- Deixou-me inconsciente, prendeu-me e violou-me. Depois... pôs-me a marca do seu selo no pescoço.

Conseguia ver o "R" reflectido no espelho e não aguentava. Jack sentiu-se enojado.

- Ainda posso matá-lo. Belle abanou a cabeça.

- Se não fosse tão fraca, tê-lo-ia matado eu. Mas matá-lo não vai desfazer o que fez.

Jack queria gritar de angústia por ela. Mas, sobretudo, queria abraçá-la, entesourar a vida que outros tinham tratado com um desprezo tão cruel.

- Tenho muita pena - murmurou. - Desculpa não ter estado aqui quando precisavas de mim.

A expressão dela suavizou-se pela primeira vez desde que a vira no desvão.

- Tu não podias adivinhar.

Ele aproximou-se mais e ela parou-o novamente.

- Não. Não acredito que consiga aguentar que me toquem.

- Por favor, Belle, preciso de te abraçar - murmurou ele em agonia.

Ela deve ter visto a sinceridade nos olhos dele, já que lhe arranjou lugar no banco com um suspiro. Jack sentou-se e abraçou-a, apertando-a contra si com tanta força quanta se atreveu, com as suas lágrimas a brilhar como diamantes no cabelo dourado dela.

A jovem, que ao princípio estava tensa, foi relaxando e acabou por se agarrar a ele e chorar em silêncio.

Um momento depois endireitou-se e afastou-o.

- Obrigada. Acho que precisava deste consolo mais do que pensava.

- Dá-me o direito de te consolar para sempre. Casa-te comigo.

Ela sorriu com tristeza.

- Talvez no passado tivesse sido possível - disse. Mas isto - apontou para o pescoço - muda tudo.

- Mas, porquê? Disse à minha mãe que pensava casar-me contigo e ela apoia-nos. A minha irmã vai casar-se. Porque não podemos casar-nos também pouco depois?

- Talvez a sociedade aceitasse uma amante de Bellingham que tivesse nascido em bom berço e tivesse o apoio de amigos influentes. Mas desculpar que tenha sido a rameira de Bellingham e a de Rupert? - abanou a cabeça. Não tolerarei que a minha vergonha te destrua.

- Ninguém tem de saber o que aconteceu aqui. Ela fez uma expressão de incredulidade.

- Como ninguém soube do que aconteceu no Vauxhall? Oh, não duvido de que tenhas ameaçado Rupert. Mas ele trouxe uma dúzia de empregados. Não podes silenciá-los a todos. Além disso, esta marca espalharia a notícia mesmo que cortasses a língua a todos os presentes.

- Já não parece uma letra. E quando a queimadura sarar, a pele enrugará. Ninguém saberá.

- Eu saberei - acrescentou ela.

Jack sabia que lhe faltavam os argumentos.

Conseguirias mesmo viver comigo, sabendo que fui possuída por aquele degenerado?

Jack mal conseguia suportar a ideia pela angústia dela, não pela sua.

- Foi uma abominação a que resististe com todas as tuas forças. Consigo superá-lo.

- Eu não estou assim tão certa disso. Quando estiveste cá, mostraste-me que o amor pode ser algo puro e terno. E agora só me lembro das ligaduras a queimarem os meus pulsos e do fedor de Rupert no meu corpo. Não sei se conseguirei permitir que alguém volte a tocar-me. Nem sequer tu.

- Então não te tocarei. A primeira promessa que te fiz ainda se mantém. Nunca te obrigarei a nada. Só aceitarei o que quiseres dar-me.

Belle abanou a cabeça com impaciência.

- Para além de mereceres uma esposa da qual possas estar orgulhoso, deves um herdeiro à tua família. Eu não poderia prometer-te um.

- Tenho primos nos quais confio plenamente.

A jovem levantou-se e afastou-se, esfregando com uma mão as marcas que as ligaduras lhe tinham deixado.

- És um homem teimoso, Jack Carrington.

- Ainda me amas, Belle?

Ela parou e demorou um instante a responder.

- Como poderia não te amar? - perguntou finalmente. - Tu és tudo o que é bom, honrado e nobre neste mundo.

- Então, pelo amor de Deus, casa-te comigo.

- Como posso dizer que te amo se permitir que te cases com uma mulher que te obrigará a levar uma vida exilado da sociedade decente, uma mulher cujo nome é sinónimo de luxúria?

- Importa-te assim tanto o respeito da sociedade?

- Agora estás frustrado e desejas-me. Mas depois, quando o desejo for diminuindo, agradecer-me-ás por te ter salvado de atirares pela borda fora a tua honra e a posição respeitada que ocupas agora. Aqui, no nosso paraíso secreto, partilhámos um sonho bonito. Não o arruines, tentando fazer o que nunca pode ser. Deixa-me pelo menos isso.

- Podemos tornar esse sonho realidade se te casares comigo - insistiu Jack.

De repente as forças pareceram abandoná-la e cambaleou. Jack correu para a segurar, mas ela afastou-o e deitou-se na cama.

- Por favor, já não aguento mais. Se me amas, satisfaz-me um pedido.

- Qual? - perguntou ele, com medo do que ela pudesse pedir-lhe.

- Vai-te embora. Deixa-me agora e não voltes. Jack permaneceu um momento hesitante, mas via que ela estava física e mentalmente esgotada.

- Está bem, irei. Mas não posso prometer que não voltarei.

Belle assentiu, como se por enquanto se conformasse com aquilo.

- Envio-te Mae e Watson? - perguntou ele da soleira.

Tremeram-lhe os lábios e pestanejou para reprimir as lágrimas.

- Agradecia-te - sussurrou. Jack fez-lhe uma reverência.

- Adeus, meu amor.

E saiu do quarto com um ar sombrio.

 

Depois de deixar Bellehaven, Jack parou na primeira estalagem decente que conseguiu encontrar, alugou um quarto e dormiu o resto daquele dia e da noite. Dissera à sua mãe que não sabia quando voltaria, por isso não precisava de se apressar, embora depois de descansar prosseguisse a sua viagem.

Durante as longas horas a cavalo, pensara em modos de resolver o seu dilema com Belle. Embora a dor dela o angustiasse e entendesse o seu raciocínio, não estava disposto a perdê-la, portanto, assim que chegou a casa, foi pedir um conselho à sua mãe.

- Jack! - exclamou lady Anne, ao vê-lo. - Que agradável surpresa! Espero que isto signifique que correu tudo bem em Bellehaven... - observou o rosto dele.

- Não correu, pois não?

Jack contou-lhe o que acontecera. Embora a sua mãe tivesse ficado surpreendida quando soubera que fora Rupert, não interrompeu o relato. Quando acabou, ela permaneceu um longo momento em silêncio, a pensar.

- Ainda queres casar-te com ela? perguntou.

- Se ainda quero? - repetiu ele, zangado. - Como podes perguntar-me isso? A culpa não foi dela.

- Acalma-te. É claro que não a culpo. Mas muitos homens fá-lo-iam, o mundo é assim. Embora concorde que possivelmente seja melhor não o denunciar, revolta-me deixar que Rupert fuja às consequências dos seus actos.

Jack sorriu com amargura.

- Oh, acho que as consequências serão bastante severas! Rupert é um homem de Londres e está proibido de regressar a Inglaterra. Ver-se-á obrigado a viver toda a sua vida entre colonos e nativos. Se não achasse que para ele isso pode ser pior do que a morte, tê-lo-ia matado com as minhas próprias mãos.

- Belle não quer fazer-te mal, casando-se contigo, não é?

- É o que diz. Embora tenha tentado convencê-la de que isso não me importa. Quero passar a minha vida com ela mesmo que para isso tenha de ir viver para o fim do mundo.

- Não acho que seja necessário nada tão drástico. Não posso ajudar-te com... o outro - o rosto da sua mãe endureceu e Jack percebeu que se referia às acções de Rupert, - mas posso fazer muito sobre a posição dela na sociedade.

Jack animou-se um pouco pela primeira vez desde que deixara Belle.

- Diz-me como.

- Descobri que os Germayne têm alguns parentescos influentes.

- Ai, é? E o que pensas fazer com essa informação?

- Posso visitar a senhora da família, contar-lhe os factos em segredo e esperar que ela diga o que quer fazer com eles. Se depois de algum tempo, a família não fizer nada para acolher Belle, talvez tenha de dizer publicamente que me parece mal que lady Belle tenha sofrido o que sofreu tendo em conta que a sua mãe era prima da tia de lorde Cowper.

- Prima da tia de lorde Cowper? - Jack riu-se. - Tens a certeza?

- Querido, este assunto é demasiado importante para brincar com ele.

- E se lady Cowper decidir apoiar Belle, a sua aceitação na sociedade será quase garantida. Achas que o fará?

A sua mãe encolheu os ombros.

- Emily Lamb foi uma rapariga muito inteligente e agora é um dos principais apoios do Almack. Acho que pode abraçar a causa de Belle. E mesmo que não o faça, poucas pessoas em Londres ousariam ofender uma parente dos Cowper.

- Brilhante, mamã! Lady Anne assentiu.

- Obrigada, querido. Eu gosto de pensar que não herdaste a tua habilidade como estratega só do teu pai.

O entusiasmo de Jack diminuiu.

- Se a tua aposta não tiver sucesso, o teu apoio a Belle pode sujar a tua reputação e a de Dorothy.

- É possível. Dorothy e James têm de decidir por eles mesmos o que querem fazer. E para mim, se não posso usá-la para beneficiar os meus filhos, de que me serve ter reputação?

Jack beijou-lhe a mão.

- És uma maravilha.

- Criei dois filhos maravilhosos, não foi? Bateram à porta e Dorothy entrou.

- Jack! Pareceu-me ouvir a tua voz. A mamã contou-me porque te foste embora tão depressa. Espero que a tua missão tenha tido sucesso.

- Ainda não. Mas a mamã e eu estamos a trabalhar nisso.

- Eu também quero oferecer-te o meu apoio.

- É muito generoso da tua parte, mas não é preciso que ponhas em perigo a tua reputação. Não faremos nada enquanto não estiveres casada. Não quero que as minhas decisões alterem a tua vida nem que causem problemas entre ti e o teu marido.

- Não será assim. Contei tudo a James e disse que só me casaria com ele se, de boa vontade, apoiasse a minha família nisto.

- E aceitou? - perguntou Jack, impressionado e comovido pelo apoio da sua irmã.

- Naturalmente.

- Deve gostar muito de ti, tirana. Dorothy sorriu.

- Sim. Só tive de lhe pedir que imaginasse o que seria se estivéssemos afastados sem a possibilidade de nos casarmos e compreendeu o que sentes por Belle. Convenci-o a falar com o pai dele e, embora tenha jurado que se casaria comigo independentemente do que o conde pensasse, ele disse que ficarão do nosso lado. Recordo-te que os Winston são primos dos Ancaster e dos Howard. E, se tivermos em conta o nosso parentesco com os Wentworth, os Sudley e os Beauvale, eu diria que temos muitas probabilidades de conquistar a cidade, não te parece?

Jack abraçou-a.

- Obrigado. Não imaginas o quanto isso significa para mim.

Dorothy devolveu-lhe o abraço.

- Pensavas que ia abandonar o meu mano mais velho? A família para mim é tudo.

- Obrigado às duas pelo vosso apoio. Tenho de vos avisar que, embora consigam ajudar Belle a estabelecer-se na sociedade, talvez ela ainda se recuse a casar-se comigo. Eu sei que valoriza muito a independência que obteve e, depois deste último episódio, tem motivos suficientes para desconfiar dos homens.

A sua mãe olhou para ele, pensativa.

- Queres fazer isto independentemente de te casares com ela?

- Claro.

Lady Anne deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Pois vamos começar. Preocupas-te em convencê-la mais tarde.

Numa manhã, no fim da Primavera, de um mês mais tarde, Belle tinha saído a cavalo para inspeccionar os campos de Bellehaven e desfrutar da cor verde da colheita que começava já a amadurecer.

A presença e o apoio de Mae e Watson e o passar do tempo ajudavam-na a curar o seu espírito ferido. A pele suave de detrás da orelha era a única coisa que não recuperara, todavia, embora fosse impossível ver-se a letra "R" na ferida, achava que estava marcada para sempre na sua alma.

Acabava de parar o cavalo para falar com um dos trabalhadores quando viu que uma carruagem pequena se dirigia para ela. Jem parou o veículo.

- Tem de voltar. Chegaram muitas visitas. O pulso da jovem acelerou.

- Quem é? Não espero visitas.

- Não sei, senhora, mas um deles é aquele cavalheiro mais velho de cabelo prateado que a visitava em Londres.

- Lorde Egremont?

- Acho que sim. Tem de ir vê-lo.

Não era Jack. No entanto ela não esperava Jack. Não tinham nada para dizer que não tivessem dito já. Egremont, pelo contrário, podia ser uma distracção agradável e muito menos perigosa.

- Vou arranjar-me. Por favor, diz a lorde Egremont e ao grupo dele que me reunirei com eles dentro de poucos minutos.

A caminho de casa, perguntava-se quem Egremont teria trazido consigo. Agentes do caso Jarvis, talvez?

Meia hora mais tarde, depois de trocar o seu fato de amazona por um vestido, entrava na sala... e parava de repente ao ver Jack a conversar com Egremont ao lado da lareira.

Ficou imóvel, paralisada por uma mistura de sentimentos... alegria, pena, resignação...

Egremont aproximou-se dela.

- Belle! Fico contente por te ver tão bem. Desculpa não te ter enviado Jack antes.

- A culpa não foi tua.

- És muito amável. Nada pode compensar-te pelo teu sofrimento, mas temos notícias que esperamos que sejam do teu agrado. O capitão descobriu nova informação que nos leva a achar que está na hora de regressares a Londres e recuperares o teu lugar na sociedade.

- O meu lugar na sociedade? - repetiu ela. - Mas como...?

- Não perguntes ainda. Trouxemos alguém que te explicará tudo. Carrington, faz as honras?

Uma mulher alta, que Belle, com a sua agitação, não tinha visto, levantou-se do sofá. Uma mulher cujo cabelo castanho e uns olhos familiares a identificavam como sendo a mãe de Jack.

Belle pensou que estava a ter alucinações.

- Lady Anne! - gaguejou, tentando recuperar-se. Que honra tão inesperada!

- É um prazer conhecê-la, menina Germayne. Jack, lorde Egremont, visto que já fizemos as apresentações, acham que conseguem divertir-se com uma partida de bilhar ou um passeio pelos jardins enquanto nós conversamos?

- Acho que nos despediram - comentou Egremont secamente.

- Como queiras, mãe Jack olhou um instante para Belle. - Até mais tarde - disse com a suavidade de uma carícia.

Quando os homens saíram, lady Anne virou-se para ela.

- Deve ser desconcertante ver a sua casa invadida deste modo, mas espero poder explicar-lhe tudo.

Assinalou o sofá e Belle, ainda confusa, sentou-se obedientemente.

- Quando Jack me contou o que tinha acontecido depois da morte da sua mãe - começou lady Anne, senti-me tão ultrajada como ele e propus-me ajudar a reparar o mal que lhe fizeram. Comecei por tentar decidir a quem podíamos pedir ajuda... e descobri que a sua mãe era prima afastada do conde Cowper, cuja esposa, Emily, é filha de lorde Melbourne.

- A sério? Não fazia ideia desse parentesco, embora não saiba do que possa servir. Não os conheço nem acredito que alguma vez venha a conhecê-los.

- Então, filha, é parente, embora seja afastada. Desculpe, mas tomei a liberdade de contar a sua história a lady Cowper, uma mulher inteligente e compreensiva. Está ansiosa por conhecê-la e ofereceu-nos o seu apoio. Acho que quer apadrinhar a sua introdução na sociedade.

Belle olhou para ela sem se atrever a acreditar que aquilo podia ser possível.

- Mas como pode esperar que me aceitem, se toda a gente sabe que fui amante de lorde Bellingham?

- Menina Germayne, nenhuma mulher, por mais alto que seja o seu berço, pode ignorar que os homens exercem um controlo absoluto sobre a sua vida: nos assuntos legais, no casamento e nas finanças. As mulheres só governam numa área... decidem quem é aceite na sociedade. Se lady Cowper a apoiar, as outras mecenas do Almack também o farão. Acrescente lorde Egremont e os seus contactos, juntamente com os da nossa família, e já ganhou metade da cidade.

- Mas e lorde Rupert? - perguntou Belle, levando instintivamente uma mão à ferida.

Lady Anne ficou tensa.

- Não deve preocupar-se com isso. Aparentemente, estava envolvido numa conspiração escandalosa de tráfico de raparigas e fugiu à detenção para as índias Ocidentais. Quanto à cicatriz, trouxe-lhe isto - lady Anne enfiou a mão na sua mala e tirou um colar curto de pérolas. - Não tinha a certeza do tamanho, mas a sua aia pode ajustá-lo. Experimente-o!

Belle tocou no colar que a mulher acabava de lhe colocar no pescoço e deu-se conta de que cobria a cicatriz completamente.

- Não sei o que dizer.

Lady Anne deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Tudo isto é muito repentino, eu sei. Não precisa de dizer nada ainda. Há mais pessoas que querem vê-la.

Aproximou-se da campainha e, um instante depois, a porta abria-se e entravam duas raparigas jovens.

A primeira era a que tinha visto a montar no parque com Jack e Kitty. A segunda era a jovem que se aproximara dela no hall do teatro: a filha de Bellingham.

Menina Germayne, fico muito contente por conhecê-la finalmente. Sou Dorothy, a irmã de Jack. E a sua irmã é uma das minhas melhores amigas. Eu, o meu noivo, lorde Winston, e toda a sua família ficaremos encantados por lhe dar as boas-vindas à sociedade.

- Eu também - disse a menina Bellingham. Mas antes, por favor, aceite as minhas mais sinceras desculpas. Até insistir para que os advogados me deixassem examinar o testamento do meu pai, não sabia o que tinha feito pela minha mãe e por mim. Foi algo muito generoso e bonito e nunca conseguiremos agradecer-lhe o suficiente.

- Não têm de me agradecer - respondeu Belle, um pouco aflita. - Aquela fortuna era vossa por direito.

- Por direito talvez, mas, legalmente, teria sido sua se não tivesse feito o que fez. E eu sentir-me-ei muito agradecida se me permitir a ajudá-la a rectificar o... mal que o meu pai lhe fez.

Bateram à porta e Watson apareceu para perguntar:

- Mando entrar os outros, milady?

Sim! Por favor - respondeu lady Anne. Olhou para Belle. - Desculpe-me por dar ordens na sua casa!

Belle, que tentava compreender ainda as possibilidades que aquele apoio inesperado lhe oferecia, não conseguiu responder antes de a porta se abrir.

- Kitty?

A sua irmã parou à porta com os olhos muito abertos. Depois correu para a abraçar.

- Oh! Minha querida Constance! És tu! Até este momento não me atrevia a acreditar que fosse verdade.

Belle abraçou-a, a chorar.

Kitty soltou-a e secou as suas próprias lágrimas.

- Quero apresentar-te a tua família - acenou a um casal mais velho que avançava para elas. - Estes são a tia Mary e o tio Thaddeus.

A mulher de cabelo grisalho olhou para ela e apertou o braço do seu marido.

- Santo Deus! Thaddeus! Como se parece com a nossa Kitty!

O homem também parecia atónito.

- Lorde Bellingham foi um vilão ao privar-te de nós - disse Kitty com carinho. - O irmão de Dorothy contou-nos que ele te disse que o tio Thaddeus não te queria, quando na verdade foi ele quem pagou ao hospedeiro para que nos dissesse que tinhas morrido. Até te fez uma lápide!

- Bellingham alguma vez entrou em contacto convosco para vos falar de mim? - perguntou Belle.

- Em contacto? - repetiu Thaddeus. - Não! Até termos conhecido o capitão Carrington há duas semanas, não fazíamos a mínima ideia de que não estavas enterrada debaixo daquela lápide. Se tivesse tido razões para desconfiar que tinhas sobrevivido, ter-te-ia procurado por todo o país.

- Mas agora podemos ser uma família, não é, Constance? - perguntou Kitty com ansiedade. - Sei que estás zangada connosco por teres ficado sozinha, porém, por favor, promete-me que nos darás uma oportunidade para recomeçarmos.

- Nunca estive zangada contigo. E eu adoraria voltar a ter uma família. Mas têm a certeza de que querem associar-se a mim? Talvez vos prejudique a todos.

- Já não - interveio em seguida lady Anne. – Menina Germayne, será recebida pela melhor sociedade de Londres, mas, neste momento, acho que já a emocionámos bastante. Se não se importam vão todos para a biblioteca, acho que Watson vai servir um chá.

Antes de sair, Kitty abraçou-a e a tia Mary apertou-lhe as mãos, como se não acreditasse que Belle era real. Quando saíram, lady Anne sorriu com um ar de desculpa.

- Perdoe-me mais uma vez por usurpar a sua autoridade.

- Tendo em conta que neste momento não sei onde estou, agradeço-lhe a ajuda.

- Há uma última coisa da qual quero falar-lhe. O meu filho Jack. Por favor, ouça-me antes de protestar. Não sei o que se passou entre vocês nem quero saber, porém sei que o meu filho a ama e ele não entrega o seu afecto a qualquer pessoa. Garanto-lhe que se houver um homem que possa ser-lhe fiel durante toda a vida, é o meu Jack.

- Não duvido da sua perseverança - murmurou Belle.

- Quanto a preservar a sua independência, pode fazer com que os seus advogados preparem os documentos que lhe outorguem o controlo sobre os seus bens. Jack não terá nada a dizer.

Belle sorriu.

- Não me preocupa que Jack administre a minha fortuna.

- Menina Germayne, ama o meu filho?

- Sim - respondeu Belle com simplicidade. - Mas não sei se isso será suficiente.

A mãe de Jack observou-a um momento.

- Rupert? - perguntou. Belle assentiu.

- Não vou insultá-la, dizendo que compreendo o que aconteceu - disse lady Anne, - mas nada na sua vida a preparou para imaginar a alegria de desposar um homem que a ama e que a respeita, de partilhar a sua vida e ter os seus filhos. Se permitir que a... barbaridade que Rupert cometeu a impeça de alcançar a felicidade, embora nunca mais volte a ver aquele homem, ele terá conseguido alcançar o seu objectivo.

Olhou-a nos olhos.

Não o deixe ganhar, querida!

Levantou-se.

- Jack espera para falar consigo. Sei que foi uma manhã de surpresas e não posso prometer-lhe que ele não insista na sua proposta, mas, se preferir ter tempo para assimilar tudo isto, dir-lhe-ei que se retire.

- Recebê-lo-ei - disse Belle.

Quando a porta se abriu uns minutos mais tarde, Belle teve de desviar o olhar. Não tivera muito tempo para reflectir, mas já começava a dar-se conta do presente incrível que ele lhe dera, acreditando nela, viajando durante semanas por Inglaterra para descobrir as suas origens, conseguir o apoio da sua família e reconciliá-la com os seus parentes. E em troca só pedia o seu amor livremente. Será que ela não conseguia ter a mesma coragem?

Ouviu-o parar diante dela.

- Se não consegues sequer olhar para mim, quer dizer que a súplica que a minha mãe te fez em meu nome não te convenceu muito.

- A tua mãe é uma mulher muito sábia - indicou ela, levantando finalmente o olhar.

- Se isso significa que te recomendou que te cases comigo imediatamente, concordo.

- Oh, Jack! Como poderei agradecer-te? Mas...

- Belle, eu não quero a tua gratidão. Além disso, qualquer coisa que eu te tenha devolvido já era tua por direito. Nos próximos meses, poderás recuperar o teu lugar na tua família e na sociedade. Por muito que me apeteça ser o teu marido, posso retirar a minha proposta até te estabeleceres na tua nova vida. Só te peço que, entretanto, me deixes continuar a ser teu amigo.

Belle sorriu.

- Alguma vez tomarás mais do que eu te dê livremente?

Jack devolveu-lhe o sorriso.

- Nunca. Aceitarei a parte da tua vida que quiseres dar-me. O acordo mantém-se?

Belle sentiu uma enorme gratidão por ele não a pressionar a tomar uma decisão naquele momento.

- O acordo mantém-se.

Seis meses mais tarde, Belle estava sentada com Jack na carruagem que os levava para a sua casa de Mount Street. Observava o perfil dele e pensava no que acontecera durante aquele tempo.

Tinha sido apresentada num baile oferecido por lady Cowper, ao qual assistiram todos os notáveis da cidade, inclusive Wellington e o príncipe regente. Depois disso, ninguém com aspirações a pertencer à alta sociedade se atreveu a ignorá-la.

De facto, para sua satisfação, entre as influências que lady Anne tinha, o seu dote e o seu próprio encanto, Kitty atraíra a atenção de vários solteiros interessantes e acabara a temporada comprometida com um jovem nobre que possuía uma grande fortuna e um apelido muito respeitável.

O ponto alto do Verão fora ser a dama de honor no casamento de Dorothy e lorde Winston e a posterior visita a Carrington Grove. Jack divertira-se muito, mostrando-lhe as suas propriedades e tratava-a com muito respeito.

De facto, se não soubesse que ele era um homem apaixonado e se não surpreendesse algumas vezes um olhar de fogo nos seus olhos, podia ter pensado que ele já não a desejava.

Cumprira a sua palavra de ser um amigo omnipresente e nada mais. Com a aceitação da sociedade e o afecto firme dele, ela começara a recuperar a pouco e pouco a confiança e o respeito por si própria. E, à medida que recuperava, começava a sentir-se frustrada pela natureza limitada da sua relação.

- Dançaste muito hoje? - perguntou ele, interrompendo os seus pensamentos.

- Sim - ela sorriu. - Às vezes, pergunto-me se foi boa ideia querer entrar para a alta sociedade. Só estamos em casa uma noite em cada dez e dancei tanto que tenho bolhas nos pés. E ainda não estamos em plena temporada.

- Agradeço-te por me teres reservado algumas danças. Sei que não é pouco, tendo em conta a quantidade de admiradores que tens.

Aquela era a oportunidade perfeita... se conseguisse aproveitá-la.

- Jack - disse, com o coração a bater com força no peito, - por falar em admiradores... a tua oferta mantém-se?

Ele demorou algum tempo a responder.

- Claro que, se tiveres mudado de ideias - acrescentou ela, contente por a penumbra da carruagem ocultar o seu rubor, - tens todo o direito...

- Claro que não mudei de ideias - interrompeu-a ele. - Quer dizer que finalmente estás preparada?

- Para me casar contigo e ser a tua esposa em todos os sentidos? Sim!

Jack beijou-lhe as mãos e soltou um grito de alegria.

- Leremos as proclamas este domingo.

- Bom... já esperámos tanto que acho que não quero esperar pela leitura das proclamas - ela sorriu.

O rosto dele iluminou-se.

- Tesouro, embora não queira privar-te da pompa e da cerimónia habitual, se tiveres pressa, eu tenho uma licença especial para estes casos. Queres utilizá-la?

- Sim. Estou há vários meses a lutar para esquecer as lembranças do que Rupert me fez. Uma vez, há muito tempo, mostraste-me como pode ser o amor. Quero que me ajudes a esquecer os pesadelos para sempre e a substituí-los pela alegria e pelas sensações maravilhosas que só tu consegues mostrar-me. Jack apertava-lhe as mãos com ardor.

- Podemos casar-nos amanhã e começar amanhã à noite.

- Eu esperava que pudéssemos começar... agora.

- Tens a certeza disso?

- Não. Mas sei que pararás se eu te pedir. Quero acabar esta noite contigo na minha cama.

- Como queiras, minha querida - Jack tomou o rosto dela entre as suas mãos e beijou-a nos lábios com gentileza. - Esta noite e todas as noites vindouras.

Bateu na parede da carruagem e ordenou ao cocheiro que se apressasse.

 

                                                                                Julia Justiss

 

 

                      

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