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Series & Trilogias Literarias
As brumas evolavam-se do Sena, a névoa fantasmagórica a pairar sobre as artérias de Paris, obscurecendo as ruas, que, por si só, já constituíam um labirinto à luz do dia que começava a escurecer. Mas a mulher que se embrenhava pelo nevoeiro parecia alheada tanto do perigo de se vir a perder, como da frialdade daquele princípio de uma noite de outono.
Envolta num manto cinzento com capuz que lhe dava pelos tornozelos, ocultava o rosto por detrás de uma máscara de veludo preto, do género da que as mais belas da corte usavam para esconder a sua fisionomia. Também velava completamente a sua identidade, mostrando apenas os olhos cintilantes, assim como uns quantos fios de cabelo louro. Calçava uns tamancos de madeira para proteger os sapatos de brocado da lama das ruas, enquanto caminhava firme e determinadamente, sem se aperceber de que era seguida por um homem.
O capitão Nicolas Remy mantinha uma distância tão atrás possível sem que corresse o risco de perder de vista a senhora no nevoeiro daquele fim de tarde. Vestia um gibão escuro e bragas negras de lã que se confundiam com a escuridão da noite que não tardaria. O vestuário, já com bastante uso, dava a impressão de ter visto melhores dias, tal como o próprio capitão. O cabelo despenteado de um louro-escuro caía-lhe para os olhos castanhos, as feições magras ocultas pela barba cerrada que ele deixara crescer sem a aparar. com a espada e a adaga presas ao cinto, tinha a aparência de um homem perigoso, até mesmo pelos padrões de Paris.
As pessoas com que se cruzava mantinham-se afastadas dele, o que tornava difícil que passasse despercebido entre a multidão enquanto seguia obstinadamente a senhora de cinzento. As ruas começavam a ficar desertas rapidamente. Os artesãos e vendedores ambulantes apressavam-se a caminho de casa. Os taipais das lojas fechavam-se ruidosamente; todos os membros respeitáveis da população de Paris já se recolhiam por detrás de portas trancadas.
Não tardaria que o capitão Remy começasse a dar nas vistas, qual soldado solitário que sobrevivera no campo de batalha, contudo não podia arriscar-se a aumentar a distância entre si e a senhora. Ela tinha uma grande vantagem a seu favor. Sabia para onde é que se dirigia.
Tinha feito o seu melhor para esquecer qualquer conhecimento que tivesse das ruas daquela cidade maldita. Não só não estava familiarizado com as ruas, como também nem sequer tinha a certeza de estar a seguir a senhora certa. Olhou de lado para o seu companheiro, um jovem esguio e de pernas altas, teria uns dezoito anos, que dava pela alcunha de Martin, o Lobo.
Um nome apropriado, pensava Remy. O mancebo possuía muitas das características de um lobo, com a sua gadelha negra, feições angulosas e olhos verdes. Embora o Lobo
se classificasse como um "aventureiro, um cavalheiro de fortuna", lamentavelmente tinha mais o aspeto daquilo que era de facto, um malandro e um carteirista. Não
obstante, Remy não hesitaria em confiar a sua vida ao rapaz. O que já acontecera em várias ocasiões.
No entanto, desta feita, perguntava-se se o seu esperto Lobo teria cometido um grande erro. À medida que a senhora o levava para ruas cada vez mais estreitas, Remy
sentia-se tenso e apreensivo, receando estar a ser levado para uma qualquer armadilha como as que eram armadas a muitos viandantes incautos que chegavam a Paris,
atraídos por uma mulher muito bela para depois serem atacados e roubados.
Remy levou a mão ao punho da espada enquanto resmungava para o seu jovem guia:
- Tens a certeza de que esta é a senhora que te mandei procurar? Porque, se por acaso cometeste algum erro...
- Nada de erros, capitão! - protestou o Lobo, mostrando-se magoado por Remy ter duvidado da sua competência. - Juro sobre a campa do meu pai... pelo menos era o
que faria se soubesse quem ele é. É realmente a senhora que me haveis incumbido de procurar, a vossa Gabrielle Cheney.
Remy permitiu-se uns momentos de pesar. Não, ela nunca havia sido a sua Gabrielle e era muito improvável que alguma vez viesse a ser.
- Diz-se que ela é a mulher mais deslumbrante de toda a Paris - acrescentou o Lobo, beijando as pontas dos dedos num gesto de admiração.
- Não reconheceis nada na postura dela?
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Os olhos de Remy semicerraram-se, examinando a figura da mulher envolta num manto que via à distância. Esforçou-se por discernir algum gesto ou movimento que lhe
fosse familiar na jovem sedutora que conhecera em tempos. Mas já tinham decorrido mais de três anos desde a última vez que vira Gabrielle, não desde aquele verão
de há tanto tempo naquele misterioso lugar conhecido por ilha Encantada.
Ouvira dizer que Gabrielle estava muito mudada, a jovem terna e apaixonada transformara-se numa mulher adulta, sedutora e perigosa. Também se dizia que a sua fria
ambição não conhecia limites. Dizia-se que era mais versada nas intrigas da corte do que a própria Rainha das Trevas, Catarina de Médicis. Dizia-se...
A boca de Remy cerrou-se numa expressão austera. Muito simplesmente, recusava-se a acreditar em tudo o que era dito a respeito de Gabrielle. Era-lhe demasiado doloroso.
Todavia, era-lhe impossível ignorar o facto de que as pessoas que se aventuravam a sair de casa àquela hora ou davam muito pouco valor à sua vida ou, então, preparavam-se
para fazer algo que não podia ser feito à luz do dia.
Qual destas hipóteses é que se aplicaria a Gabrielle?
Para o saber, Remy só precisava de a alcançar e perguntar-lhe. Mas sentia relutância em fazer isso. Após uma ausência tão prolongada, não queria que o encontro entre
os dois tivesse lugar ali, na rua. Ela acreditava que ele tinha morrido e quem sabe se não teria sido preferível que ele continuasse assim.
"Deixa-a ir em paz, dizia qualquer coisa dentro de si com premência. "Não a enredes nesta demanda desesperada que passou a ser a tua vida."
A voz era um eco muito ténue do homem que havia sido no passado, honrado e cavalheiresco. Mas qualquer resquício de nobreza que lhe tivesse restado fora destruído
naquele dia abrasador de agosto ali em Paris, havia três anos, numa noite sangrenta de traição e loucura. O mero pensamento da véspera do dia de São Bartolomeu era
o suficiente para sentir um enorme aperto no estômago, sentindo a fronte perlada de suor frio.
Remy baniu aquelas recordações de pesadelo da sua mente, continuando a seguir Gabrielle persistentemente. A despeito dos riscos, precisava da ajuda de Gabrielle
Cheney para poder levar a cabo aquele perigoso empreendimento que o fizera regressar à cidade. Mas, em primeiro lugar, tinha de se certificar de que era ela quem
realmente caminhava à sua frente.
À medida que Gabrielle continuava a andar, as casas que se elevavam em redor deles eram cada vez mais decrépitas, as ruas mais imundas. Por muito
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pouco que Remy conhecesse de Paris, até para ele era por demais evidente que estavam a entrar numa zona da cidade muito pouco recomendável. Ao seu lado, Lobo disse
numa voz rosnada e num tom baixo:
- A Rua da Morte? Tende cuidado, monsieur. Até os maiores patifes temem percorrer estas ruas à noite. A vossa senhora deve ser bastante louca para se atrever a vir
aqui sozinha, sem sequer estar acompanhada da sua criada. Ela sempre foi tão imprudente?
- Sempre - murmurou Remy com um sorriso carrancudo. Pelo menos, essa faceta de Gabrielle não mudara. - Houve uma ocasião em que me roubou a espada e preparou-se
para dar luta a todo um grupo de...
- Um grupo de quê? - perguntou Lobo muito interessado.
Remy já se arrependia das suas palavras impulsivas. O que se tinha passado na ilha Encantada nesse verão, na sua perspetiva, era deveras estranho. Se contasse alguns
desses acontecimentos, até mesmo o despreocupado Lobo ficaria alarmado.
Remy foi poupado à necessidade de lhe responder quando perderam Gabrielle de vista, que desaparecera na bruma cerrada. Tanto ele como Lobo estacaram de súbito, pondo-se
à escuta. Na rua não se ouviam os habituais barulhos das atividades diurnas, o tráfego de carroças, cavalos e mulas. Remy conseguia ouvir o eco cavo dos tamancos
de Ariane à distância.
- Ali! - disse Lobo apontando para o lado oposto da rua.
A Lua que se elevava no firmamento brilhou por entre as nuvens durante o tempo suficiente para Remy conseguir ver a silhueta obscurecida de Gabrielle, que se aproximava
de uns portões de ferro do que em tempos havia sido uma imponente mansão de traça gótica, circundada por altos muros de pedra, a guarita do guarda-portão ladeada
por altos torreões encimados por cúpulas cónicas. A casa de pedra bastante deteriorada tinha um aspeto espectral envolta em neblina e à luz do luar; muitas das janelas
haviam sido entaipadas, enquanto o muro do jardim estava parcialmente desmoronado.
Viam-se vários lotes de terreno abandonados nas proximidades, apesar da atual vaga de construções que se apoderara de toda a Paris. A mansão erigia-se isolada, como
se o resto da cidade tivesse recuado para não se aproximar demasiado.
- Nom de Dieu! - Remy ouviu esta expressão que Lobo disse arquejante.
- O que é que se passa? - perguntou-lhe Remy.
- A... a Maison dEsprit - sussurrou Lobo, apontando com um dedo trémulo na direção da imponente mansão.
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- O quê? Sabias da existência desta casa?
Lobo acenou com a cabeça, mostrando uns olhos que pareciam meias-luas no rosto oval de feições angulosas.
- Esta casa... tem... tem uma reputação terrível, monsieur. Em tempos, pertenceu a um poderoso bispo que foi possuído por um conjuro lançado por uma bruxa. Ela enfeitiçou-o,
fazendo com que ele se apaixonasse desesperadamente por ela, esquecendo-se de todos os seus votos sagrados. Esse bispo fez dela sua amante, mantendo-a escondida
nesta casa durante muitos anos. Ela até teve filhos dele e filhas como ela própria, bruxas demoníacas. Por fim - continuou Lobo com um estremecimento -, um dos servos
do bispo conseguiu arranjar coragem para informar as autoridades. Os caçadores de bruxas fizeram uma rusga à mansão, prendendo a feiticeira e as filhas, arrastando-as
para que fossem executadas. Toda a gente pensou que essa medida neutralizaria o conjuro que subjugara o bispo, mas o desgraçado do homem enforcou-se nas águas-furtadas,
enlouquecido pela bruxa.
Lobo revirou os olhos na direção do firmamento persignando-se. O rapaz tinha propensão para os grandes dramas, adorando aterrorizar-se a si próprio com qualquer
lenda que lhe chegasse aos ouvidos e quanto mais escabrosas fossem melhor ainda.
Se Gabrielle estava familiarizada com aquela história, aparentemente não a atemorizava. Remy vislumbrou a figura envolta num manto que se encaminhava determinadamente
para os portões. Após uns momentos de hesitação, Remy atreveu-se a abeirar-se dela um pouco mais. Deslocou-se furtivamente pela rua que atravessou, colocando-se
atrás do tronco de um vetusto carvalho de grande porte no outro lado da rua, num dos lotes de terrenos abandonados.
Lobo apressou-se a correr atrás dele, mas não tão silenciosamente. Remy olhou para o rapaz com uma expressão de reprimenda. A mansão às escuras aguardava à distância,
uma sombra silenciosa que não mostrava quaisquer sinais de vida. O que é que Gabrielle poderia querer daquele lugar de aspeto tão sinistro?
- Quem é que vive agora naquela casa? - perguntou Remy ao seu companheiro em voz baixa.
- Ninguém - respondeu Lobo num sussurro enrouquecido. - Esta casa foi amaldiçoada e está assombrada. Antes de morrer, a bruxa declarou que quem pisasse o solo desta
propriedade enlouqueceria da mesma maneira que o seu amante enlouquecera.
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Remy não acreditava em maldições, mas era inegável que existia algo de inquietante naquela mansão abandonada que fez com que ficasse com os pelos da nuca eriçados.
Sentiu uma estranha sensação de alivio quando Gabrielle passou pelos portões de ferro.
Mas Remy devia ter sabido que portões fechados à chave não impediriam que Gabrielle Cheney entrasse. Percorreu o muro de pedra até encontrar uma brecha larga. com
um olhar furtivo por cima do ombro, apanhou as saias e entrou pela brecha. Quando ela desapareceu da sua vista, Remy saiu de trás do tronco e seguiu o exemplo dela.
Possuído de um grande frenesim, Lobo agarrou-o por um braço.
- Não, capitão! Não podeis ir atrás dela, não podeis entrar ali. Estou a dizer-vos que aquela casa está amaldiçoada.
- Não sejas absurdo, rapaz - ripostou Remy tentando soltar-se da mão dele, receando perder Gabrielle de vista, não devido a qualquer conjuro, mas sim por causa do
nevoeiro e da escuridão.
- Ah, por favor, capitão! Não estais a ver que é tarde de mais? A vossa senhora já deve estar possuída de loucura porque, a não ser isso, o que é que a levaria a
entrar num lugar tão terrível?
Na verdade, porquê? Remy não fazia a mais pequena ideia da razão que teria levado Gabrielle àquela casa abandonada e num tal estado de deterioração, mas tencionava
apurar esse motivo. No entanto, era manifesto que teria de entrar sozinho. Lobo não se entregava ao seu fraquinho habitual por situações melodramáticas. O terror
que o rapaz mostrava era genuíno, estava pálido e os dedos das mãos tremiam-lhe. Era possível que Lobo nem sequer hesitasse em se misturar com os salteadores mais
ferozes, mas a realidade era que sentia um medo de morte do que quer que fosse minimamente sobrenatural.
Quando Remy abria os dedos do rapaz para que o largasse, ordenando-lhe que ficasse à sua espera, a sua consciência aguilhoou-o por não ter sido tão sincero com o
jovem como deveria ter sido. Quando, inicialmente, o incumbira de descobrir o paradeiro de Gabrielle Cheney, havia um facto bastante significativo que lhe ocultara.
A própria senhora tinha qualquer coisa de bruxa.
Gabrielle Cheney espreitou através das fendas da sua máscara, caminhando cuidadosamente ao longo do carreiro coberto de ervas daninhas. O silêncio que reinava no
pátio da Maison dEsprit era o mesmo que pairaria num cemitério e com o dobro do ambiente de fantasmagoria. A Lua lançava uma luminosidade mortiça sobre as fontes
escurecidas pelo musgo e as peças quebradas de estatuária. Havia um santo qualquer sem cabeça que presidia ao que restava de um roseiral murcho. Há muito que as
flores tinham desaparecido, mas os espinhos perduravam, o que se constatava por um ramo que se prendeu na bainha do manto de Gabrielle.
Quando se inclinou para se desprender, sentiu-se invadida por uma sensação perturbadora que a afligia desde o crepúsculo. A sensação de que era seguida. Endireitou-se
e fechou os dedos no punho da espada que trazia por baixo do manto e deu meia-volta rodopiante. Os portões de ferro e o muro de pedra não passavam de meros contornos
que mal se vislumbravam por entre a neblina cerrada da noite. Mas enquanto ela olhava, outra figura começava a tomar forma, a de um guerreiro alto e orgulhoso.
A mão dela afastou-se da espada ao mesmo tempo que soltava um grito abafado. Não de medo, mas mais de desespero por ter visto a silhueta daquele homem vezes de mais
durante os seus sonhos. Deu um passo em frente, mas apenas para se deter, sabendo de antemão que não lhe serviria de nada. Não seria saudada com um sorriso, nem
tão-pouco por braços fortes que a acolhessem, porque ele não existia, aquele homem fantasma. Deparar-se-ia apenas com espaço vazio e silêncio.
Os fantasmas não deixavam pegadas e as recordações não projetavam sombras, exceto, talvez, no coração humano. Viu a figura do homem a sumir-se na neblina, como ele
fazia sempre. Gabrielle nunca vira o seu rosto,
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nem uma única vez que fosse, mas sabia com a certeza mais absoluta quem ele era.
Nicolas Remy, o capitão vindo de Navarra. Quer fosse o seu fantasma que via constantemente ou apenas o fruto da sua própria imaginação tão atormentada, o efeito
era sempre o mesmo. O coração de Gabrielle apertava-se de mágoa e sentimentos de culpa.
- Oh, Remy - murmurou. - Pedi-vos perdão mil vezes. Que mais é que quereis de mim? Porque não podeis deixar-me em paz?
Sabia que esta sua pergunta nunca teria resposta, pelo menos não naquele pátio cheio de humidade e coberto de névoa. com um último olhar para trás de si, Gabrielle
virou-se e, num passo apressado, dirigiu-se para a casa.
A mansão de pedra agigantava-se diante de si. No lugar onde a porta da frente devia estar, só se via madeira escaqueirada e um buraco enorme, qual bocarra de uma
qualquer besta feroz pronta para a devorar. Mas Gabrielle receava muito mais os fantasmas das suas próprias recordações do que temia o aspeto sinistro daquela casa.
Além disso, tinha conhecimento da verdade subjacente às lendas da Maison dEsprit muito melhor do que os supersticiosos parisienses que se benziam sempre que passavam
por aqueles portões enferrujados.
Esgueirando-se por entre o que restava da porta partida, entrou na casa, sendo imediatamente tragada pela escuridão. As janelas entaipadas não permitiam a entrada
da luz do luar, nem sequer um resquício de luz. Gabrielle retirou a máscara do rosto e meteu a mão por dentro do manto, pegando numa bolsa grande que trazia presa
ao cinto. Apalpou até encontrar a vela e um pequeno castiçal de latão, juntamente com a caixa de acendalhas com que se precavera. Após alguma dificuldade para conseguir
acender a mecha, conseguiu chegar lume ao pavio.
A pequeníssima chama adquiriu vida com algumas crepitações, proporcionando um pequeno círculo de luz. Gabrielle avançou mais por aquele espaço que se abria à sua
frente, ouvindo o ranger debaixo dos seus pés. Erguendo a vela ao alto, observou o que restava destruído do em tempos magnificente vestíbulo. O bispo não se poupara
a luxos para a sua amante até à chegada dos caçadores de bruxas.
Havia uma mesa lindíssima de carvalho entalhado que tinha sido derrubada do estrado e virada de pernas para o ar, o que restava de cadeiras e bancos espalhado por
perto. As tapeçarias haviam sido arrancadas das paredes e rasgadas em tiras, o cheiro a bafio de lã a apodrecer impregnava o ar. Até
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mesmo o lustre de ferro forjado tinha sido arrancado do teto e deixado no chão com a corrente de que estava suspenso enrolada em volta. Tudo estava coberto de espessas
teias de aranha, como se o tempo se tivesse encarregado de tecer uma mortalha com que amortalhara toda a casa.
Os caçadores de bruxas tinham feito bem o seu trabalho. Gabrielle estremeceu assolada por um misto de piedade e horror, recordando-se da noite em que aqueles canalhas
tinham invadido a sua própria casa na ilha Encantada. Ela e as irmãs, Ariane e Miri, só se salvaram graças à intervenção do conde de Renard, o homem que acabou por
vir a ser o marido de Ariane.
Mas esse socorro não chegara à pobre Giselle Lascelles e às filhas. Como aquelas mulheres deviam ter ficado aterradas, arrastadas para fora da sua própria casa,
a gritar e a chorar, para irem ao encontro da pior espécie de torturas e morte que poderia estar destinada a uma Filha da Terra. Todas perdidas, exceto uma...
O aspeto do em tempos grandioso vestíbulo era calculado para que qualquer intruso que por acaso aparecesse por ali acreditasse que a Maison dEsprit estava desabitada,
caso não se contasse com os fantasmas. Gabrielle era uma das poucas pessoas que sabiam que as coisas não eram bem assim. Levantando as saias, encaminhou-se para
a escadaria que se estendia até ao piso de cima. O pequeno clarão da vela não chegava para iluminar o patamar do primeiro andar, o que a impedia de ver quem quer
ou o que quer que fosse que pudesse andar a rondar por ali.
- Olá - chamou tentativamente.
A sua voz ecoou, perdendo-se no enorme silêncio que reinava por toda a casa.
- Cassandra Lascelles? - chamou Gabrielle em voz mais alta.
A resposta foi mais silêncio enervante, mas então pensou ter ouvido o ranger de uma tábua do soalho. Gabrielle humedeceu os lábios e voltou a tentar:
- Cass, estás aí? Sou eu... a Gabrielle Cheney. Preciso de falar com... Calou-se subitamente ao ouvir um som ribombante ensurdecido. Ergueu o olhar até ao patamar
e viu uma sombra em movimento. Sentiu o coração na garganta quando uns olhos amarelos de expressão maligna e feroz lhe retribuíram o olhar, o som ribombante a dar
lugar a um rosnar temível. A criatura saltou em frente, um enorme mastim de pelagem de um preto-acastanhado com um corpo pesado e muito musculado.
- Merde! - gritou Gabrielle.
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Enquanto o animal corria em direção às escadas, Gabrielle apressou-se a recuar e foi por pouco que não deixou cair a vela. A cera quente salpicou para o castiçal
de latão, queimando-lhe a mão. Estremeceu de dor, mas não largou a vela afunilada.
Recuou através do vestíbulo e foi embater num armário, as prateleiras de madeira a magoarem-lhe as costas. O seu perseguidor escorregou e estacou a escassos centímetros
dela, encurralando-a contra o armário. Arreganhou a boca, mostrando os incisivos pontiagudos de aspeto cruel enquanto rosnava.
- C... Cérbero. Cãozinho bonito. - A voz de Gabrielle tremia. - Não te lembras de mim?
Aparentemente, não. O mastim começou a ladrar ferozmente. A sua irmã mais nova poderia ter proferido algumas palavras meigas, amansando o cão de imediato. Mas Gabrielle
nunca possuíra a estranha afinidade com os animais de quatro patas que Miri possuía.
Felizmente, havia muito que Gabrielle se inteirara do fraquinho daquela besta em particular. com um olho de desconfiança no cão, deslocou-se de lado muito lentamente
para pousar a vela numa prateleira do armário. Levou a mão à bolsa debaixo do manto. Amaldiçoou os cordões que se recusavam a cooperar, ou talvez os dedos fossem
demasiado atabalhoados por causa do nervosismo. Por fim, lá conseguiu abrir a bolsa, de cujo interior tirou um cacho de uvas pretas ligeiramente esmagadas.
Engolindo o medo, disse numa voz um pouco enrouquecida:
- Bonito Cérbero. Bestinha d... doce. Olha o que eu tenho aqui para ti. Cautelosamente, estendeu o braço, a mão cheia de uvas pretas a luzirem na palma da sua mão.
O cão soltou um sonoro latido. Gabrielle deu um pulo, arremessando com as uvas atemorizada. O cacho caiu no chão com um barulho abafado, fazendo com que o cão retrocedesse
receoso.
Cérbero voltou a avançar um pouco a medo, cheirando a oferta dela. Soltou um ganido de deleite, começando a devorar as uvas avidamente. Gabrielle aventurou-se a
dar alguns passos, afastando-se da parede. Cérbero não levantaria qualquer objeção aos seus movimentos. Pelo menos, até acabar de
comer as uvas.
- O que é que fizeste ao meu cão? - perguntou uma voz imperiosa.
Gabrielle virou-se na direção da voz e soltou um suspiro de alívio quando a dona do mastim decidiu, finalmente, aparecer. Cassandra Lascelles encontrava-se no cimo
das escadas, uma figura alta e magra. Gabrielle não fazia
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ideia de há quanto tempo é que ela estaria ali. Dava a impressão de se ter materializado vinda do nada.
- Não fiz absolutamente nada ao teu precioso Cérbero - ripostou Gabrielle. - Limitei-me a suborná-lo com algumas uvas para o impedir de me devorar em lugar das uvas.
- Gabrielle? És tu? - perguntou Cass com rispidez.
- Sim.
Agarrando-se ao corrimão, Cass começou a descer a escadaria com extremo cuidado. Era cega desde quase o momento em que nascera. Era uma jovem mulher, não muito mais
velha do que Gabrielle com os seus vinte e um anos, embora existisse algo de uma fragilidade anacronicamente férrea em Cass que fazia com que, frequentemente, parecesse
muito mais velha.
Usava um vestido vermelho andrajoso que lhe pendia parcialmente do corpo magro, desnudando-lhe um ombro. O peso da farta cabeleira de um negro asa de corvo parecia
demasiado pesado para o pescoço esguio. Tinha um rosto de feições exóticas, com uns malares altos e uma tez de um branco translúcido de gelo que só muito raramente
é que era exposta à luz solar. Os olhos escuros que não viam mantinham-se fixos e inexpressivos, com todas as emoções concentradas na boca, que, de momento, estava
cerrada numa expressão de desagrado.
Para alguém privado da visão, ela deslocava-se com uma extraordinária graciosidade e sub-repticiamente. Só quando desceu o último degrau e largou o corrimão é que
vacilou, estendendo um braço cautelosamente para o espaço vazio diante de si.
- Cérbero Vem cá - ordenou.
O cão espetou as orelhas, mas hesitou por continuar à procura de mais uvas.
- Cérbero Vem cá!
A formidável besta ganiu e baixou a cabeça, aproximando-se da dona furtiva e culposamente. Cassandra inclinou-se às apalpadelas até pegar na coleira de couro do
cão.
- Cão mau! Senta-te!
Cérbero baixou-se ainda mais. Enquanto ela repreendia o cão, o animal colocava-se ao lado dela.
- Grande idiota - resmungou Cass. - Exatamente como qualquer outro idiota. Dominado pelos ditames do estômago.
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Suavizou a repreensão coçando-lhe a região atrás das orelhas. A besta de aspeto feroz transformou-se, os olhos adquiriram limpidez e começou a abanar a cauda, o
corpo maciço a fremir de adoração.
Agora era a dona que parecia a mais formidável dos dois. com uma mão pousada num gesto protetor na cabeça do cão, Cass endireitou-se e mostrou uma expressão carregada.
- Danação, Gabrielle Cheney! Já te avisei para que não viesses cá sem que primeiro me tenhas informado através da minha serva. Não gosto de ser apanhada desprevenida.
com suborno ou sem suborno, tens muita sorte por o Cérbero não te ter rasgado a garganta.
- Peço desculpa - retorquiu Gabrielle, avançando um passo cauteloso. - Mas estava ansiosa por falar contigo e não tive tempo para te contactar através da Finette.
Já estive aqui tantas vezes que pensei que o Cérbero talvez me reconhecesse.
- Ele está amestrado para não reconhecer ninguém. Caso contrário, não valeria grande coisa como meu protetor.
- Mas com certeza que não precisarás de te proteger tanto de outra Filha da Terra.
- Não se pode confiar em todas as Filhas da Terra. Tu, melhor do que qualquer outra pessoa, devias saber isso. - Cass olhou-a com uma expressão escarnecedora. -
Detesto esses termos rebuscados, como "mulheres sábias" e Filhas da Terra. Digamos apenas bruxas e fiquemos por aí.
- Sim, mas não devemos dizê-lo muito alto - replicou Gabrielle com um sorriso forçado.
A rigidez das feições de Cass desfez-se num sorriso relutante. Inclinou-se e murmurou uma ordem ao cão. com a mão continuando a segurar a coleira de Cérbero, caminhou
em frente num passo seguro, atitude que Gabrielle achava sempre espantosa.
Gabrielle tinha visto a irmã Miri a conseguir alguns feitos assombrosos no trato com animais, mas o grau de comunicação entre Cassandra e o seu cão, a maneira como
ela tinha ensinado Cérbero a ser os seus olhos, quase podia ser classificado de magia.
Cérbero levou Cassandra sem hesitação até junto de Gabrielle. Outra ordem dada em voz baixa e o cão assumiu a sua posição, sentado ao lado dela, os olhos centrados
em Cass à espera da ordem seguinte. Ela estendeu a mão desassombradamente até conseguir estabelecer contacto físico com Gabrielle. Puxou-a para a frente e envolveu-a
num abraço cheio de vigor.
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- Não foi minha intenção fazer com que sentisses que não eras bem-vinda, minha amiga - murmurou Cassandra. - Mas, a próxima vez que vieres, informa-me de que vens
visitar-me.
- Assim farei - prometeu Gabrielle. Retribuindo-lhe o abraço, apercebeu-se constrangida de como Cassandra estava magra por baixo do vestido com tanto uso. Desejava
poder persuadi-la a deixar aquela existência de reclusão naquela casa abandonada de ambiente tão deprimente. Ou, no mínimo dos mínimos, que permitisse que Gabrielle
lhe proporcionasse alguns confortos, como comida mais substancial e roupa para se vestir convenientemente. Contudo, estava bem ciente do muito orgulho de Cassandra
e sentido de independência.
Cass soltou-a e recuou alguns passos, os lábios a esboçarem um trejeito vagamente sarcástico que formava um sorriso.
- Pois bem, a que é que devo a honra desta visita inesperada? com certeza que ainda não usaste todo o frasco de perfume que te preparei. Dei-te perfume suficiente
para fazeres com que todos os homens da corte se ajoelhassem rendidos à tua beleza.
Cassandra Lascelles tinha competência para preparar alguns dos perfumes mais sedutores, bem como unguentos para a pele, de que Gabrielle tinha conhecimento. Começou
a abanar a cabeça, mas deteve-se. Eram inúmeras as vezes em que tinha dificuldade em lembrar-se de que Cass era cega.
- Não, não preciso de mais perfume.
- Então, deve ser creme para a tua compleição. Ou talvez outra loção?
- N... não - retorquiu Gabrielle, dando graças por a outra mulher não poder ver o seu semblante. Gostava de sentir distanciamento e controlo de todas as situações,
mas era o desespero na sua mais pura expressão que a levara a casa de Cass.
E agora que se encontrava ali constatou que era mais difícil dizer o que queria do que imaginara que seria. Gabrielle tinha muita dificuldade em expor as suas vulnerabilidades
fosse a quem fosse, mas se não fosse capaz de pôr o seu orgulho de lado, não faria sentido nenhum ter corrido o risco de ir àquela casa.
Como se tivesse pressentido a relutância de Gabrielle, Cass disse num tom de voz mais afetuoso:
- Deita tudo cá para fora, minha amiga. O que é que queres de mim? Tossindo para aclarar a garganta, Gabrielle confessou numa voz hesitante:
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- Preciso da tua ajuda, Cass. Para... para encontrar alguém que para mim está perdido. - "Remy", segredou-lhe o coração com uma mágoa que lhe era tão familiar.
As sobrancelhas finas de Cassandra arquearam-se numa expressão de surpresa.
- Teria todo o prazer em ajudar-te no que quer que fosse que esteja ao meu alcance, minha querida - disse Cass com secura. - Mas como talvez tenhas observado, a
minha visão não é lá muito boa. Não farias melhor se contratasses os serviços de um batedor ou de um mercenário, pessoas mais habilitadas para esse género de tarefa?
- Eu... não posso fazer isso. A pessoa que procuro já... não se encontra entre nós. Ouvi dizer, isto é, a Finette disse-me que possuis faculdades extraordinárias
na arte da necromancia.
- Raios partam a Finette! - ripostou Cassandra com o rosto ensombrado pela irritação. - Essa bruxinha magricelas não tem tento na língua, fala de mais.
- Então, sempre é verdade?
Cassandra não lhe deu réplica. Houve algo na sua fisionomia que pareceu fechar-se. Existia uma magia, que vinha da Antiguidade, que a maior parte das mulheres sábias
aprendiam na sua meninice, a arte de ler os olhos, esses espelhos da alma. As que adquiriam grande mestria nessa arte eram capazes de adivinhar os pensamentos das
pessoas que liam, mas, infelizmente, Gabrielle nunca tinha conseguido aprender a fazer isso.
Em qualquer dos casos, essa arte não lhe teria servido de nada com Cass. Os seus olhos eram como duas lanternas iguais em que as chamas se haviam apagado, não permitindo
que se adivinhasse qualquer dos seus pensamentos.
- Necromancia - repetiu lentamente. - A ressurreição dos mortos. Talvez possua algumas apetências nessa área. Mas tu és uma bruxa, tal como eu. Por que razão é que
tu própria não fazes esse conjuro? Eu sou apenas a filha bastarda de uma cigana desregrada e de um homem louco que se esqueceu dos seus votos religiosos. Certamente
que a tua linhagem é mais impressionante do que a minha, Gabrielle Cheney. O teu pai era um cavaleiro de nomeada e a tua mãe, a incomparável Evangeline, uma grande
rainha entre feiticeiras, era conhecida como a Senhora da Ilha Encantada. A nobre descendente de uma longa linhagem de bruxas fortes e inteligentes.
- Lamentavelmente, e ao que tudo indica, não herdei a minha quota-parte dos dotes da família. - Gabrielle esforçava-se por falar com indiferença,
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mas sentia um aperto na garganta. - Qualquer magia que tenha possuído, perdi-a há muito tempo.
- Nesse caso, pede ajuda à tua irmã Ariane - sugeriu Cassandra. - Ela é a atual Senhora da Ilha Encantada e diz-se que tem tanta sabedoria e inteligência como a
vossa falecida mãe.
- Sabes muito bem que não posso fazer isso. A Ariane e eu não contactámos uma com a outra durante os últimos dois anos - disse Ariane, sentindo a habitual sensação
de mágoa e remorso ao pensar na irmã mais velha.
- Ela nunca aprovou a minha decisão de vir para Paris.
- Porque te transformaste numa cortesã? São muito poucas as mulheres respeitáveis que aprovariam essa tua decisão.
- Sim, mas para a Ariane é muito fácil fazer juízos de valor a meu respeito - retorquiu Gabrielle. - Está casada com o seu conde de Renard e é muito feliz. Para
ela, tudo é muito simples e perfeito, o que torna impossível que ela compreenda que existem outras mulheres que talvez considerem que a vida é um pouco mais... complicada.
Gabrielle tentava mostrar indiferença, como se a reprovação de Ariane não tivesse importância. Mas a verdade é que a perda do amor e respeito da irmã causava-lhe
um grande desgosto.
- Mas isso não importa - continuou com brusquidão. - Em qualquer dos casos, a Ariane não me teria ajudado. Ela dedica todas as suas faculdades a curar doentes. Jamais
recorreria às artes mais negras.
- O que mostra bom senso da parte dela e infelizmente para ti - disse Cass. - Porque eu também não me entrego a essa arte de ânimo leve. Não partilho o meu peculiar
talento para a necromancia com ninguém. Nem sequer contigo. Portanto, aconselho-te a que esqueças todos esses disparates e que venhas beber um copo de vinho comigo.
Deu uma pequena palmada em Cérbero e o cão pôs-se de pé. As duas mulheres e o cão viraram-se simultaneamente e encaminharam-se para as escadas.
Gabrielle deteve-se por breves momentos, consternada com a recusa de Cassandra. Mas ela não desistia facilmente do que quer que desejasse intensamente e eram muito
poucas as coisas que fossem mais importantes para si do que aquilo. A esperança de poder ver Nicolas Remy e falar com ele uma última vez. Apressou-se a ir atrás
de Cassandra, agarrando-a pelo cotovelo.
- Cass, espera, por favor...
Cérbero eriçou os pelos e soltou um rosnar de advertência. Gabrielle apressou-se a afastar a mão.
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- Cass, tens de me ajudar ou... ou não sei o que farei. Existe alguém que passou para o outro lado que me sinto desesperada por contactar. O que é mais importante
para mim do que poderás imaginar. Eu... eu pagar-te-ei o que quiseres.
- O dinheiro não tem o mínimo interesse para mim. Se me interessasse, tenho maneiras de o conseguir pelos meus próprios meios.
- E se eu te pagar em jóias? Ou vestidos feitos pela melhor costureira de Paris? Cassandra corou e puxou a manga do vestido andrajoso para cima do ombro, um gesto
que denotava algum constrangimento devido à sua aparência. Espetou o queixo numa atitude de obstinação.
- Essas futilidades também não me interessam.
- Nesse caso, diz-me qual é o teu preço - suplicou-lhe Gabrielle. - Dar-te-ei tudo o que quiseres, farei tudo o que me pedires.
Cass soltou uma gargalhada seca.
- Qualquer coisa? És muito precipitada, Gabrielle Cheney. A tua mãe nunca te contou as antigas lendas de fadas, sobre as coisas terríveis que acontecem às senhoras
que fazem essas promessas?
- Bem, o que é que, possivelmente, me exigirias? O primeiro filho que me nascesse?
- Não, detesto crianças - respondeu Cassandra numa voz arrastada. - Até duvido muito que fossem saborosas num guisado. - Ficou em silêncio por uns momentos, após
o que disse astutamente: - Existe apenas uma maneira de eu poder considerar o teu pedido. Deixa-me ler a palma da tua mão.
Gabrielle ficou tensa. Aquela não era a primeira vez que Cass lhe pedia aquilo, mas Gabrielle sempre se mostrara desconfiada, não lhe permitindo. Numa atitude de
nervosismo, pôs as mãos atrás das costas.
- Porquê? Porque precisas de fazer isso?
- Porque sou a única que resta de uma família de mulheres que foram torturadas e morreram na fogueira por terem praticado bruxaria. Aprendi que todos os cuidados
são poucos em relação às pessoas em que confiamos. Se eu decidir fazer o que me pedes, preciso de sondar as profundezas do teu coração. Outras mulheres sábias são
competentes na leitura de olhos. Obviamente, essa aptidão está-me interdita, no entanto tenho grande apetência para ler a palma das mãos. Deixa-me examinar a tua.
Cassandra estendeu a mão num gesto autoritário. Gabrielle continuou a hesitar. Sondar as profundezas do seu coração? Aquilo era uma coisa que
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Gabrielle nunca permitira a ninguém, nem sequer às suas próprias irmãs, além do mais, só conhecia Cassandra há três meses. Sentia inquietude ao pensar que ela talvez
conseguisse, fosse-se lá saber como, expor segredos da sua alma através do toque na sua palma da mão. Seria isso possível? Aquela ideia não agradava nada a Gabrielle,
mas se queria a ajuda de Cassandra, não lhe restava outra alternativa que não fosse cooperar.
- Está... bem - concordou, começando a estender a mão. Cérbero, suspeitando do gesto, rosnou ferozmente.
- Para baixo! - ordenou Cassandra. Quando o cão se baixou aos pés dela, Gabrielle, apesar do mal-estar que sentia, estendeu a mão na direção dela.
A mulher virou-lhe a mão, com a palma para cima, e começou a percorrer a superfície com o dedo. Gabrielle estremeceu, achando o toque da mão dela perturbadoramente
frio. Era como se a palma da sua mão estivesse a ser percorrida por uma agulha de gelo.
- Esta é uma mão bem formada - murmurou Cassandra. - Elegante e com uma pele tão macia como seda. Mas nem sempre foi assim. Em tempos, houve calos aqui - disse Cass
tocando nas partes salientes entre a palma e os dedos. - E também aqui - acrescentou tocando nas pontas dos dedos de Gabrielle.
"Calos que se devem... que se devem a teres trabalhado mármore com um cinzel? E estas unhas agora tão bem arranjadas já estiveram lascadas e sujas de tinta.
Gabrielle ficou ligeiramente surpreendida com o que ela lhe dizia, mas retorquiu com indiferença:
- Costumava entreter-me a esculpir um pouco e coisas assim. Uma rapariga tem de se entreter de alguma maneira. Achei que era mais divertido do que os trabalhos de
agulha e lã.
- Foi mais do que um mero entretenimento. Em tempos, esta mão conseguia executar uma grande magia. Imprimia vida a pedra. Pegava numa tela em branco e enchia-a de
luz e cor, conjurando imagens que mesmerizavam os olhos e emocionavam o coração. A mão de uma artista de artes plásticas extraordinária.
- Talvez eu antigamente tenha possuído essas apetências, mas já te disse - replicou Gabrielle com alguma aspereza - que qualquer magia que possa ter tido há muito
que a perdi.
- E, exatamente, como é que uma mulher sábia trata de perder a sua magia? - perguntou Cass numa voz muito suave.
- E como é que eu hei de saber? - ripostou Gabrielle com rispidez, embora soubesse muito bem como e quando é que perdera a sua magia. Muito simplesmente não queria
abordar esse assunto.
"Isso não interessa - replicou Gabrielle. - É impossível que uma mulher seja capaz de obter fama e fortuna como artista. Isso foi um sonho de antigamente e bastante
disparatado.
- Não costumavas preocupar-te tanto com a fama e a fortuna. Pelo menos, nesses tempos.
Gabrielle retraiu-se e tentou fechar a mão, mas Cass forçou-a a voltar a abrir os dedos.
- Sim, uma mão encantadora, mas que está vazia - murmurou Cassandra.
- Eu disse-te que podia, muito facilmente, enchê-la de jóias e dobrões.
- Não estou a falar dessa espécie de vazio, mas sim da espécie que não seria aparente para a maior parte das pessoas. És uma mulher lindíssima. Muito procurada e
desejada. Mas, não obstante, a tua vida está vazia. Abandonaste tudo o que te era familiar quando vieste para Paris, as tuas duas irmãs, a tua casa e amigos que
tinhas na ilha Encantada, e agora estás muito sozinha.
- Não digas tolices. Tenho uma casa cheia de servos e vou à corte com muita frequência. Sou convidada para banquetes, bailes de máscaras e outras ocasiões festivas.
Estou sempre rodeada de pessoas que procuram os meus favores.
- Mulheres em quem não confias e homens que desprezas. Imbecis que não vêem nada além da fachada deslumbrante que apresentas e que nunca se encontram perto de tocar
na verdadeira Gabrielle. Esta mão fala-me de escuridão, isolamento e de uma imensa solidão.
Gabrielle estava a constatar que a sua mão dizia demasiado a Cassandra.
- Existe alguma finalidade em tudo isto? - perguntou, tentando afastar a mão. - Não vim a tua casa para que me lesses a palma da mão.
Mas aquela atitude só serviu para que Cass lhe agarrasse a mão com mais firmeza, os seus dedos magros e compridos a continuarem a sua sondagem.
- Ah!
- Ah, o quê? - perguntou Gabrielle ansiosamente. Cass delineou as linhas na palma da mão de Gabrielle.
- Aqui, sinto uma veia que pulsa que assinala muita ambição... um forte desejo de poder, fama... invulnerabilidade. Mas paralela a ela estende-se a linha
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do coração, a ânsia de paixão e romance, um desejo fervoroso de amar e ser amada.
- Essa linha deve ser muito curta - disse Gabrielle com uma expressão de amargura.
- Não, as linhas têm o mesmo comprimento e convergem uma para a outra, chegando a um ponto em que será necessário fazer uma escolha. Amor ou ambição.
- Já fiz essa escolha. Cassandra sorriu e abanou a cabeça.
- Não, não fizeste. Mas a tua escolha será deveras difícil. Existe uma cicatriz antiga que se atravessa no caminho.
Gabrielle endireitou-se com uma postura altiva.
- Não tenho cicatriz nenhuma. A minha mão é perfeita.
- A cicatriz é no teu coração, Gabrielle Cheney. Uma ferida antiga que nunca sarou como devia ser e que te foi deixada por um homem que não te merecia.
- Estou em crer que já ouvi quanto chegue e de sobra...
- Entregaste-te de todo o coração a um homem que te atraiçoou continuou Cass numa voz suave mas inexorável. - com a injúria mais inqualificável que um homem pode
infligir a uma mulher. Numa tarde soalheira de verão, no sótão de um palheiro...
- Meu Deus. És uma maldita bruxa! - vociferou Gabrielle, afastando a mão bruscamente. Cambaleou para trás e agarrou a palma da mão, com a sensação de que Cass a
tinha cortado, abrindo-a e deixando-a a sangrar, dando saída a recordações antigas e amargas. Daquele mês de junho com Étienne Danton, a tarde brutal que ela se
esforçara ao máximo por esquecer.
Não, ela tinha esquecido.
Gabrielle respirava tremulamente enquanto procurava a máscara na bolsa.
- Isto... isto é um consumado disparate. Não tenho tempo para mais tolices como esta. Se não quiseres ajudar-me, muito bem. É por demais evidente que cometi um erro
ao vir aqui. Desejo-te uma boa noite.
Cérbero emitiu um pequeno latido quando Gabrielle já se afastava, mas ainda nem sequer tinha chegado à porta quando Cassandra a chamou.
- Gabrielle, espera.
Esta deteve-se, virou-se para trás e olhou para Cassandra, que se mantinha imóvel, como se petrificada no clarão de luz da chama da vela de que Gabrielle se esquecera
na pressa de sair dali.
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- Farei o que me pediste - disse Cassandra decorrida uma pausa -, mas estou a avisar-te. Existe uma razão para que conjurar os mortos seja considerado magia negra
e estar proibido. Uma sessão espírita é um procedimento perigoso que pode, facilmente, falhar. Por vezes, a alma que se deseja contactar não quer ser perturbada,
enquanto existem outras, mais demoníacas, que poderão acolher um portal de bom grado por que poderão entrar no nosso mundo.
Gabrielle franziu as sobrancelhas, perguntando-se se o que Cassandra disse se destinava a atemorizá-la.
- Estás a dizer-me que, se conjurasses a pessoa errada, podias... podias o quê? Libertar alguma espécie de fantasma ou demónio?
- Qualquer coisa é possível quando se tenta o destino ao mexermos nas artes negras.
- Se é assim tão perigoso, então porque fazes isso? - perguntou Gabrielle num tom que exigia resposta.
- Porque os meus dias são passados na escuridão - replicou Cass em voz baixa. - Mas quando conjuro os mortos, sou capaz de ver realmente. É a única maneira de poder
olhar para outro rosto, pelo que, para mim, vale a pena correr o risco. Mas a questão é saber se para ti vale esse risco.
Valeria? Gabrielle era forçada a admitir que as palavras de Cassandra a intimidavam. Mas, então, pensou em Remy, na maneira como se tinha separado dele no dia em
que ele partira a cavalo ao encontro da sua morte; houve tanta coisa que ficou por dizer entre os dois.
- Sim - replicou Gabrielle por fim, enchendo-se de coragem. - Vale a pena correr o risco.
- Nesse caso, estou pronta para te ajudar.
com alguma desconfiança, Gabrielle voltou para junto de Cassandra, o seu contentamento empanado pela suspeita perante aquela súbita capitulação.
- A sério que me ajudas? O que é que te levou a mudar de ideias?
- Talvez um dia me venha a ser útil que tenhas uma dívida para comigo - respondeu Cass com um encolher de ombros. - Por conseguinte, faremos uma sessão espírita
em que conjurarei o falecido a troco de um futuro favor.
- E que favor seria esse?
- Como é que posso decidir neste preciso momento? - protestou Cassandra. - Mas concordarás em prestar-me um serviço que eu te peça, sem me fazeres quaisquer perguntas,
e não recusarás. Temos acordo?
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- Queres um juramento feito com sangue? - perguntou Gabrielle secamente.
- Não, um simples aperto de mão e a tua promessa serão suficientes respondeu Cassandra estendendo a mão a Gabrielle.
Gabrielle hesitou. Não tinha conseguido sobreviver durante tanto tempo em Paris sem aprender a ser cautelosa e, inquestionavelmente, não havia nada mais imprudente
do que assumir um compromisso sem se saber do que é que se tratava.
- Vamos lá, Gabrielle - incentivou Cass. - Não sou uma dessas intriguistas que apunhalam pelas costas com que lidas na corte. Admiti que nos conhecemos há pouco
tempo, mas podes confiar em mim em relação a este assunto. Nunca te pediria mais do que aquilo que podes dar.
Um tanto ou quanto mais tranquila, Gabrielle apertou a mão de Cassandra.
- Muito bem, eu... eu estou de acordo. Faz isto que te peço e ficarei em dívida para contigo. Tens a palavra de Gabrielle Cheney.
Um estranho sorriso arreganhou a comissura dos lábios de Cassandra quando selaram o acordo, o que fez com que o corpo de Gabrielle fosse percorrido por um arrepio.
Mas a expressão perturbadora desapareceu tão rapidamente que pensou que a tinha imaginado.
Cass virou-se para o armário, começando a apalpar a prateleira do fundo. A mão bateu na vela que Gabrielle deixara a arder. Cassandra praguejou quando esteve quase
a tombá-la, a cera quente a salpicar-lhe a mão.
- Tira esta vela do meu caminho - disse - e depois recua. Embora surpreendida com aquela ordem tão abrupta, Gabrielle fez como ela lhe dizia. Afastou-se do armário,
erguendo a vela ao alto. com uma expressão de intensa concentração no rosto, Cass continuou a apalpar ao longo de toda a prateleira.
Gabrielle não conseguia ver o que ela estava a fazer, mas, subitamente, todo o armário rangeu e foi sacudido. Cass apressou-se a recuar e Gabrielle ficou arquejante
de tão perplexa que se sentiu; o armário girou para fora, revelando um buraco de grande diâmetro no chão. Aproximou-se mais, a chama da vela a tremeluzir mostrava
umas escadas de pedra que desciam em espiral, dando acesso a uma escuridão que era fria e pouco convidativa.
Uma cave oculta que explicava como Cassandra devia ter conseguido escapar aos caçadores de bruxas havia tantos anos. Gabrielle perguntou-se por que razão é que as
outras mulheres Lascelles não puderam salvar-se da mesma
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maneira, mas Cass recusava-se terminantemente a falar sobre a trágica perda da sua família. Dado que era alguém extremamente ciosa das suas próprias mágoas, Gabrielle
compreendia e respeitava a relutância de Cass.
- Permitiste que eu lesse a palma da tua mão e eu agora estou a confiar em ti, revelando-te o segredo da minha câmara sagrada. Bem-vinda ao meu verdadeiro lar -
acrescentou Cassandra com um floreado sarcástico da mão. Quando Cérbero tentou passar por ela e descer à frente, Cassandra agarrou-o pela coleira.
- Não! - Inclinou-se para baixo e sussurrou uma ordem que a Gabrielle pareceu: - Vai. Fica de guarda.
De cabeça ereta, o cão afastou-se, parecendo um soldado que recebera ordem para ficar de sentinela. Cassandra avançou cuidadosamente e começou a descer as escadas,
detendo-se para chamar Gabrielle.
- Segura bem a tua vela e segue-me de perto. O caminho para baixo é sempre muito escuro e traiçoeiro - acrescentou com um dos seus estranhos sorrisos irónicos, deixando
em Gabrielle uma sensação de mal-estar que lhe dava a entender que Cassandra se referia a mais além das escadas.
Gabrielle engoliu com força, mas a verdade era que já tinha ido longe de mais para agora poder voltar atrás. Agarrando bem a vela, foi atrás de Cass, mergulhando
na escuridão.
Gabrielle teria preferido que a sua visita a Cassandra tivesse tido lugar na pequena copa, nas traseiras da casa, onde habitualmente conversavam. Mas, aparentemente,
a conjuração dos mortos requeria um cenário mais sombrio e secreto do que a destilação de perfumes.
Gabrielle nunca gostara de câmaras subterrâneas, detestando o frio, a humidade, a possível existência de ratazanas e, pior ainda na sua mente, aranhas. Em sua casa,
Belle Haven, tinham uma antiga masmorra com uma câmara como aquela. A câmara de trabalho secreta estava repleta de poções, ervas de infusão e textos antigos que
continham conhecimentos proibidos que as mulheres sábias da ilha Encantada haviam mantido escondidos prudentemente ao longo de várias gerações. Regra geral, Gabrielle
ia buscar o que precisava à despensa, apressando-se a voltar para a luz do Sol.
A câmara subterrânea na Maison dEsprit parecia mais o aposento onde se estava e dormia do que um local de trabalho. Havia alguém, talvez a criada, Finette, que se
dera a muito trabalho para a tornar o mais confortável possível para Cassandra.
Estava mobilada com um divã, e muitas almofadas de penas, encostado a uma parede da estreita câmara, o espesso colchão coberto de inúmeros cobertores de lã. Via-se
uma carpete entrançada que cobria as pedras em bruto do chão. Via-se um xaile de um vermelho-vivo, assim como vários vestidos de tecidos finos, já desbotados, semelhantes
ao que Cassandra vestia, pendurados em cabides de madeira fixos na parede, emprestando alguns toques de cor às paredes de pedra cinzenta.
As outras peças de mobiliário reduziam-se a uma versão mais pequena do armário no andar de cima, uma mesa despretensiosa e duas cadeiras colocadas diante de uma
lareira que devia ter comunicação com uma das chaminés
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no piso térreo. Era evidente que só muito raramente é que era usada. O fumo a sair dos telhados da Maison dEsprit poderia desmentir a crença de que a mansão era
habitada somente por fantasmas.
Cass permitiu que Gabrielle acendesse alguns dos archotes fixados nas paredes, pelo que esta se sentiu agradecida. Mas a despeito da luz adicional, considerava a
pequena câmara, com o seu teto baixo, demasiado sombria e exígua. A perspetiva da sessão espírita, por si só, já era suficientemente intimidante sem precisar de
ter lugar numa câmara que tinha a atmosfera de um túmulo. Gabrielle ansiava concluir o que a levara ali para poder sair.
- Queres tomar alguma coisa? - perguntou-lhe Cass, aproximando-se de um guarda-louça.
- Não, obrigada - replicou Gabrielle, mal conseguindo conter-se para não acrescentar: "E quem me dera que tu também te abstivesses."
Ainda conhecia Cass havia pouco tempo quando se apercebeu de que ela tinha uma fraqueza, o gosto por bebidas fortes. Mas até mesmo dar-lhe apenas a entender que
seria mais sensato ter alguma moderação era quanto bastava para desencadear a ira da mulher.
A Gabrielle só restava observar, extremamente desagradada, Cass a encher um copo largo de metal com um líquido de uma garrafa cor de âmbar. Os seus dedos envolveram
o bordo, a maneira de ela medir a quantidade, impedindo assim que a bebida se derramasse.
Às narinas de Gabrielle chegou o cheiro intenso a uma bebida alcoólica muito forte, muito provavelmente uma qualquer espécie de conhaque ordinário. O lábio inferior
de Gabrielle denotava mortificação enquanto Cassandra esvaziava o copo enorme, como se não fosse nada mais forte do que um copo de água.
- Ah - soltou Cass satisfeita. - Estava a precisar disto. - Limpou os lábios às costas da mão. - Muito bem. E que tal se começasses por me falares acerca desse homem
que queres erguer dos mortos?
- Homem!? - retrucou Gabrielle sobressaltada. - Como é que sabes que se trata de um homem? Eu nunca te disse isso.
Cass soltou uma risada enrouquecida. Levou a garrafa e o copo para a mesa e sentou-se na cadeira mais próxima.
- És uma mulher lindíssima e inteligente que se encontra à beira do desespero. É claro que o teu problema só pode dever-se a um homem. Portanto, quem é ele? Um amante
há muito perdido?
- Não! - ripostou Gabrielle estremecendo, receando que o seu desmentido parecesse demasiado apressado. Mas nunca existira nada semelhante
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a isso entre ela e Remy. Pelo menos, não da parte dela. Gabrielle nunca dera ao homem um único beijo que fosse.
Percorreu o espaço exíguo da pequena câmara, ansiosa por organizar a confusão em que as suas próprias emoções estavam em relação a Remy, para poder definir com exatidão
o que a relação entre os dois havia sido.
- Ele era um amigo - disse Gabrielle por fim. - Apenas um amigo. As sobrancelhas de Cass arquearam-se numa expressão cética, mas não fez qualquer comentário enquanto
voltava a encher o copo.
- E como é que esse amigo se chamava?
Gabrielle teve de humedecer os lábios antes de conseguir proferir o nome que mal se atrevera a pronunciar ao longo dos últimos três anos.
- Remy. O capitão Nicolas Remy.
Cassandra imobilizou-se quando se preparava para voltar a pousar a garrafa em cima da mesa.
- Nicolas Remy. O grande herói huguenote? Aquele que chamam de Flagelo?
- Sim, mas como é que sabes quem ele é?
- Não vivo numa reclusão total. Tenho a Finette que me traz notícias do mundo - respondeu Cassandra, bebendo um gole generoso do seu conhaque, levando mais algum
tempo para poder saborear a segunda bebida.
- Tu intrigas-me - disse a Gabrielle. - O teu pai, o Chevalier Cheney, também foi um grande herói muito aclamado. Mas o que é que a filha de um famoso cavaleiro
católico quer de um militar protestante?
- Na ilha Encantada, tendemos a ignorar as guerras de cariz religioso. Houve um verão em que o Remy chegou à ilha na situação de fugitivo e gravemente ferido. A
Ariane levou-o para nossa casa e tratou dele até o curar. Mantivemo-lo em segurança, escondido da...
A Rainha das Trevas.
Gabrielle fez uma pausa, sentindo relutância em relatar como e porquê Nicolas Remy tinha arranjado uma inimiga tão poderosa, Catarina de Médicis, a Rainha Viúva
de França, mas mais conhecida por outros nomes. A Mulher Italiana, a Bruxa, a Rainha das Trevas. Ela própria uma Filha da Terra, Catarina era a praticante de magia
negra mais competente de toda a França, talvez mesmo do mundo.
A maior parte das mulheres sábias furtava-se a desafiar o poder de Catarina e mantinha-se afastada de qualquer bruxa que fosse louca ao ponto de o fazer. Gabrielle
não queria atemorizar Cassandra ao revelar-lhe a inimizade
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que existia entre as mulheres da família Cheney e a Rainha das Trevas, uma história sombria que tivera início muito antes de terem arrancado Remy das garras de Catarina.
Gabrielle hesitou durante tanto tempo que Cassandra perguntou impacientemente num tom autoritário:
- Esconderam o Remy de quem?
Gabrielle despiu o manto, pendurando-o num dos cabides de madeira na parede perto da lareira apagada, o que lhe permitiu algum tempo para poder pensar.
- Dos... dos soldados católicos que o perseguiam.
Cassandra ficou em silêncio durante tanto tempo que Gabrielle se perguntou se ela teria acreditado na sua resposta evasiva. Para seu alívio, Cass não insistiu com
ela para que a pusesse a par de mais pormenores relativos à fuga desesperada de Remy para a ilha Encantada.
Cass bebeu outro gole da sua bebida antes de murmurar:
- Portanto, esse Remy apresentou-se na soleira da tua porta, um herói ferido e atormentado. Não me ocorre nada de mais romântico. Apesar disso, negas que ele tenha
conquistado o teu coração?
- Sim, nego - ripostou Gabrielle. Por que motivo é que Cass persistia em acreditar que Gabrielle devia ter estado apaixonada pelo homem? - Se eu tivesse um coração,
coisa que não tenho - prosseguiu Gabrielle -, nunca o teria dado a Nicolas Remy. O capitão era demasiado austero e zeloso para o meu gosto, um desses nobres idiotas
que só pensam na sua honra e dever. Era um soldado na sua expressão mais pura, sem nenhumas maneiras palacianas e... e muito pouca experiência no trato com senhoras.
- Nesse caso, ele deve ter ficado completamente enfeitiçado por ti.
- Talvez tenha ficado um tudo-nada rendido. O que eu não desejava. - Gabrielle sentiu a garganta embargada ao recordar-se daquilo. - Eu nem sequer procedia de modo
particularmente simpático para com ele.
Não fora particularmente simpática. Uma afirmação que estava gritantemente aquém da realidade. Gabrielle sentiu um aperto no coração ao lembrar-se da maneira como
devolvera a espada a Remy, a que lhe roubara para se bater contra os caçadores de bruxas.
- Na manhã em que ele partiu de Belle Haven, eu... eu nem sequer me despedi dele - continuou Gabrielle, mas a voz vacilou-lhe. - Nunca mais voltei a vê-lo. Ele estava
aqui, em Paris, na véspera do dia de São Bartolomeu no verão de 1572.
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Cass baixou o copo, o rosto magro a adquirir uma expressão solene ao ouvir as palavras de Gabrielle.
- A noite em que os católicos deram início à violência, assassinando os protestantes? Não se pode dizer que tenha sido o melhor lugar para um militar huguenote.
- Não, não era - concordou Gabrielle, os olhos a ficarem marejados de lágrimas apesar dos seus esforços para as conter. Esfregou os nós dos dedos vigorosamente à
largura das pálpebras. - O Remy foi morto durante o massacre, mas quando eu... isto é, nós, e as minhas irmãs soubemos da morte dele, já não era possível fazer-lhe
um funeral como devia ser. Ele já tinha sido atirado para uma das valas comuns.
A mágoa e a cólera que sentia ainda eram bastante intensas. Gabrielle continuou a percorrer a câmara, envolvendo-se apertadamente nos seus próprios braços. Remy
havia sido um militar cheio de valentia, o homem mais honrado que tinha conhecido. Merecera um fim muito mais adequado, um funeral condigno de um cavaleiro de antigamente,
sepultado na sua armadura reluzente e com a espada nas mãos. E não atirado como detrito para um fosso, sem que mãos suaves lhe lavassem o sangue do rosto, sem ninguém
que lhe rezasse uma oração.
Maldita Rainha das Trevas por ter originado de maneira tão desapiedada a morte dele. Malditos os chacais que haviam abatido Remy e depois profanado o seu corpo.
Malditos fossem todos e que ardessem no Inferno para toda a eternidade.
E acima de tudo, pensou Gabrielle desditosamente, maldita fosse ela por nunca ter sido capaz de amar Remy como ele tinha merecido.
Concentrou-se de novo em Cassandra, perturbada ao ver que a mulher se servia de outra bebida. Já perdera o conto à quantidade de conhaque que Cass tinha bebido num
espaço de tempo tão curto, certamente que o suficiente para pôr uma mulher normal debaixo da mesa.
Contudo, a mão de Cassandra continuava a parecer extraordinariamente firme, mas o nariz e as bochechas já começavam a corar. Balouçava-se contra as costas da cadeira,
perguntando:
- Sem dúvida que o que aconteceu ao galante capitão é muito triste, mas o massacre teve lugar há três anos. Dizes que não amavas Remy. Sendo assim, porque é que,
muito simplesmente, não esqueces o homem, deixando que repouse em paz?
- Porque paz é coisa que ele não me dá! É absolutamente absurdo. - Gabrielle tentou rir, mas o seu riso era tenso e pouco convincente. - Não
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consigo tirar Remy do meu pensamento, não sou capaz de evitar recordá-lo. Até sonho com ele. Anda a assombrar-me, situação que ultimamente se agravou. - Gabrielle
passou as mãos pelo cabelo. - Aqui há uns dias, julguei tê-lo visto entre a multidão, fazendo figura de parva ao ir atrás de um estranho. E há pouco, esta noite,
imaginei que o vi no pátio, junto do portão da tua casa.
- Portanto, queres conjurar o espírito dele para fazeres o quê? - perguntou Cassandra numa voz autoritária. - Para lhe pedires que te deixe em paz e sossego?
- Não sei - respondeu Gabrielle muito triste. - Para lhe dizer que tentei encontrá-lo para lhe fazer um funeral condigno. E para lhe implorar que me perdoe. Eu podia
tê-lo salvado, Cass. Sabia como... o quanto eu era importante para ele. Podia tê-lo seduzido de modo a que permanecesse na ilha Encantada, em segurança nos meus
braços. Mas não o fiz - acrescentou num murmúrio entrecortado. - Limitei-me a deixar que ele... partisse.
- Nunca resulta, Gabrielle - disse Cass abanando a cabeça.
- O quê?
- Tentar obter o perdão dos mortos. - Cass falava num tom tão desalentado que Gabrielle se perguntou se a mulher falaria por experiência própria, uma experiência
amarga. - Os fantasmas não são assim tão fáceis de esconjurar.
- Mas preciso de tentar. Tenho de fazer as pazes com Remy. De uma maneira qualquer, não me parece que seja capaz de dar continuidade ao resto da minha vida até fazer
isso.
- Muito bem, mas para mim é difícil conjurar o espírito de uma pessoa que não conheci. Vais ter de me descrever o Nicolas Remy, de modo a eu poder fixar uma imagem
dele na minha mente.
Aquele pedido, simples como era, atormentava Gabrielle. Em tempos idos, havia sido tão capaz de capturar a essência de qualquer pessoa, lugar ou coisa com a magia
das suas mãos. Os seus dedos tão hábeis no manejo de um pincel conseguiam reproduzir tudo o que via numa tela em branco ou numa folha de papel. Mas nunca tinha tido
tanta aptidão para pintar com palavras.
- O Remy é... ele era... - Gabrielle fez uma pausa para se corrigir com um sentimento de dor. - Era um homem de estatura mediana, mas tinha um corpo de forte constituição,
com um peito largo. Era bem musculado, especialmente o braço com que empunhava a espada, e... e ele tinha uma cicatriz
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onde foi trespassado por uma seta disparada por uma besta. Quanto às suas coxas, eram fortes como ferro.
- Uma descrição excelente - retorquiu Cass num tom imbuído de sarcasmo. - Mas diz-me uma coisa. Alguma vez reparaste na fisionomia dele?
- Claro que sim. Ele... ele... - Gabrielle vacilou, talvez por lhe ser mais fácil concentrar-se no corpo de Remy e, sem saber explicar porquê, muito menos doloroso
do que se se concentrasse no rosto dele.
A recordação que tinha da fisionomia dele era perturbadoramente vaga. As impressões que reteve eram de um semblante composto por uma paciência e generosidade infinitas,
uma delicadeza que não conhecia limites, mas todos aqueles termos lhe pareciam estranhos para aplicar a um homem que havia sido um militar muito condecorado.
- Ele... ele tinha cabelo de um louro-escuro - começou a dizer com hesitação - e uma barba que mantinha sempre bastante aparada.
- Podias estar a descrever um milhão de homens. E quanto aos olhos dele?
- Eram de um castanho-escuro.
- Não estou a referir-me à cor - retorquiu Cass com impaciência. - Qual era a expressão nos olhos dele, o que espelhavam sobre os seus pensamentos?
- Eu... eu não sei dizer - confessou Gabrielle entrelaçando os dedos num gesto de impotência. - Nunca fui muito boa a ler olhos. Mas a minha irmã mais nova, a Miri,
dizia que os de Remy eram demasiado velhos para o seu rosto.
- Os olhos de um cavaleiro cansado que lutava contra os males do mundo - murmurou Cass, concentrando toda a sua atenção no copo de conhaque. - Até mesmo quando a
causa está perdida à partida, nunca se rendia, nunca pousava a sua espada até ao fim por muito amargo que fosse.
Do tom de voz de Cass transparecia alguma troça, mas Gabrielle não podia impedir-se de pensar que Cassandra tinha acertado em cheio na descrição que fizera de Remy.
Cass voltou a esvaziar o copo.
- O que disseste continua a não ser suficiente. Por acaso não tens nada que lhe tenha pertencido, pois não?
- Tenho - respondeu Gabrielle levando a mão ao punho da espada que trazia à cintura, desembainhando-a lentamente. Era a arma de um soldado, o punho singelo, sem
qualquer adorno, a lâmina feita de um belo aço temperado. Tão simples, sólida e genuína como o homem a que havia pertencido.
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Gabrielle levou a espada para a mesa, guiando a mão de Cass para que os dedos compridos e afuselados pudessem fechar-se no punho. Os lábios dela entreabriram-se
de surpresa quando apalpou o punho, deduzindo o que era.
- É a espada do capitão Remy? Mas como é que foi parar à tua posse?
- É uma história muito comprida - replicou Gabrielle suspirando. - O meu cunhado, o Renard, esteve com Remy em Paris na noite em que ele morreu. Ele próprio mal
conseguiu escapar à turba com vida, embora tenha conseguido apoderar-se da espada de Remy. O R... Remy queria que eu ficasse com ela.
- E desde então que a tens estimado - retorquiu Cassandra com um sorriso dissimulado.
- E porque não? - ripostou Gabrielle encrespada. -Já te disse! O Remy era meu amigo, o único amigo que tive em toda a minha vida, à exceção das minhas irmãs.
Cassandra apalpou o punho, afagando o botão do punho e os copos da espada, após o que, cautelosamente, avaliou o gume da lâmina. Inspirou o ar com um sonoro som
sibilante.
- Esta espada fala comigo a respeito de... de uma faceta mais sombria do teu delicado cavaleiro. Um homem que podia ser um inimigo implacável quando possuído da
fúria de matar. Feroz, violento e até mesmo selvático.
- É óbvio que és mais competente a ler a palma da mão do que espadas - disse Gabrielle, ressentindo-se daquelas palavras que qualificavam Remy. - O Remy não era
nada como acabas de dizer.
- Apelidavam-no de Flagelo, Gabrielle. Duvido muito que o homem tenha merecido esse epíteto devido à sua natureza dócil e bondosa.
- O Remy odiava essa alcunha! - ripostou Gabrielle furibunda. - Era um militar. Limitava-se a cumprir o seu dever, mais nada.
- Está bem. Está bem - disse Cass estendendo uma mão num gesto com que tentava apaziguá-la. Uma expressão imperscrutável suavizou a sua fisionomia macilenta. Continuou
a afagar a espada em movimentos vagarosos, o que despertou um impulso de ciúmes em Gabrielle, sentindo uma vontade quase irresistível de lhe tirar a espada das mãos.
Sentiu-se estranhamente aliviada quando Cassandra, finalmente, empurrou a espada na sua direção.
- Toma. Guarda-a.
Gabrielle pegou na espada, os dedos a fecharem-se no punho possessivamente enquanto voltava a embainhá-la. Ficou consternada ao ver que Cass se
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concentrava imediatamente na sua garrafa, receando que ela bebesse até ficar num estado de estupor. Quando Cass começou a encher o copo outra vez, Gabrielle estendeu
a mão repentinamente para a impedir.
- Não achas que já bebeste o suficiente? - perguntou-lhe em voz baixa.
Cassandra ficou com uma expressão carrancuda, tentando afastar a mão de Gabrielle, mas esta agarrou a garrafa com mais força.
- Por favor, Cass. Tu própria disseste como conjurar os mortos podia ser perigoso. Não seria melhor que procedesses sem que os teus sentidos estejam embotados?
- Eu sou capaz de conjurar o próprio Diabo, bêbada ou sóbria.
- É precisamente isso o que me preocupa.
Os lábios de Cass cerraram-se numa expressão de rebeldia. Ela e Gabrielle embrenharam-se numa espécie de luta pela posse da garrafa, até Cass acabar por ceder, ainda
que de má vontade.
- Suponho que tenhas razão - resmungou. - Pega no raio da garrafa e vai guardá-la. Por agora.
Gabrielle sentiu alívio, muito embora aquela fosse uma vitória um tanto ou quanto enganadora. Apercebeu-se de que a garrafa estava quase vazia. Guardou a garrafa
de conhaque e o copo meio cheio numa prateleira do guarda-louça, mantendo sempre um olhar ansioso em Cassandra.
A mulher levou as mãos à cara, esfregando-a, como se estivesse a tentar desanuviar os sentidos. Perturbada, Gabrielle perguntava-se se ela estaria suficientemente
sóbria para proceder ao que a tinha levado a sua casa. Cass esforçava-se por manter uma postura direita, atirando para trás a basta cabeleira preta que era indomável.
A sua voz soava assombrosamente firme quando começou a dar ordens.
- Vai ao guarda-louça e procura uma bacia grande de cobre e uma vela negra. Enche a bacia de água. Acende a vela e põe as duas coisas em cima da mesa. Apaga os archotes
e senta-te em frente de mim.
Gabrielle apressou-se a obedecer, executando as ordens de Cass e sentindo as veias a latejarem com um empolgamento nervoso. Não tardou que as chamas dos archotes
fossem extintas e os objetos que Cassandra pedira colocados à sua frente. A vela de cera negra encontrava-se no centro da mesa, a arder com uma intensidade que era
quase sobrenatural. A chama pequena mas brilhante refletia-se tremeluzente na superfície da água na bacia de cobre, com um estranho clarão esbranquiçado que iluminava
as feições pálidas de Cassandra Lascelles.
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Gabrielle mantínha-se sentada na beira da cadeira, consciente do silêncio sepulcral que se abatera sobre a câmara. A única coisa que ouvia era a sua respiração acelerada,
assim como o bater do seu coração. Era difícil recordar que havia uma cidade a fervilhar de vida fora das paredes daquela casa. Paris, com todos os seus barulhos
e movimento de pessoas, parecia muito distante enquanto Gabrielle se couraçava para seguir Cass até ao outro mundo, uma terra de sombras.
- Dá-me a tua mão - disse Cass num tom autoritário.
Depois de ela ter sido capaz de lhe esquadrinhar os seus segredos mais íntimos, Gabrielle sentia-se relutante. Mas quando Cassandra lhe estendeu a mão com um gesto
de impaciência, um pouco a medo, Gabrielle pegou-lhe. Não conseguia impedir-se de tremer ligeiramente. Os dedos de Cass estavam demasiado frios e secos para uma
mulher tão jovem.
- E agora, o que é que acontece? - perguntou Gabrielle num sussurro.
- Nada. Deixa-te estar sentada e quietinha. E o que quer que aconteça, não desfaças o contacto das nossas mãos durante a conjuração.
Gabrielle olhou duvidosamente para a bacia de cobre cheia de água e para a vela acesa. Pareciam-lhe objetos demasiado simples para tal façanha tão portentosa como
conjurar os mortos. Ainda que o círio fosse negro.
- Não é preciso mais nada além da bacia e da vela? - perguntou. - Não é necessária uma poção ou... ou qualquer coisa assim?
- Uma poção - repetiu Cass com uma expressão escarnecedora.
- É possível que outras bruxas talvez precisem de tais ajudas tão patéticas, mas eu possuo uma afinidade natural com o mundo dos mortos.
Que maneira tão arrepiante de encarar a questão, pensou Gabrielle. Sentia-se assediada por uma recordação muito desagradável relativa a rumores perturbadores que
ouvira a respeito de Cassandra Lascelles. Referiam-se a Cass quando era garota, dizendo-se que a mãe cigana tinha estabelecido um acordo demoníaco com o Diabo, a
visão de Cassandra a troco de ele conceder à filha grandes poderes sobrenaturais.
Uma história obviamente ridícula, assegurou Gabrielle a si própria. O mais plausível era Cass ter cegado devido à escarlatina ou a qualquer outra doença infantil.
Não havia nada de sinistro ou de todo-poderoso na mulher que se sentava à sua frente, a qual tinha um aspeto quase acriançado naquele vestido demasiado largo para
o seu corpo, com uma mão tão magra que dava impressão de que se fosse apertada com mais força corria-se o risco de lhe esmagar os ossos, reduzindo-os a pó.
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Mas, apesar disso, havia uma voz dentro de Gabrielle que a advertia: "Não te deixes enganar pelas aparências. A mãe disse-nos sempre que nos mantivéssemos afastadas
de quem praticava magia negra. Ainda estás a tempo de parar, Gabrielle. Agora, Antes que seja tarde de mais.-"
A voz assemelhava-se extraordinariamente com a da sua irmã mais velha, Ariane, cujas mãos estavam sempre prontas para se estenderem, protegendo até mesmo quando
uma pessoa não desejava ser protegida, para acalmar e confortar até mesmo quando uma pessoa estava demasiado dorida para ser tocada.
Uma imagem da irmã forçou o seu caminho até à mente de Gabrielle, os olhos de um cinzento-claro e tão límpidos de Ariane, o cabelo castanho tão sedoso, o sorriso
solene tão parecido com o da mãe. Tinha passado tanto tempo desde a última vez em que Gabrielle vira a irmã. Tempo de mais, pensou com um aperto no coração.
Mas, resolutamente, baniu a irmã do seu pensamento e concentrou-se em Remy. Se aquela magia negra de Cass resultasse verdadeiramente, dentro de pouco tempo, seria
o rosto dele que Gabrielle veria.
Quando Cassandra atirou a cabeça para trás e fechou os olhos, Gabrielle susteve a respiração, à espera que ela murmurasse um qualquer feitiço, as palavras mágicas
que lhe trariam Remy de volta.
Mas decorreram uns momentos que ameaçavam eternizar-se enquanto a mulher se limitava a continuar sentada sem fazer nada, sem se mexer, sem articular um único som.
A paciência nunca havia sido uma das virtudes de Gabrielle. Observava a cera a pingar pela superfície da vela negra, sentindo uma inquietude crescente.
- Danação!
Gabrielle ficou sobressaltada quando Cass praguejou e sentiu que ela lhe apertava os dedos com mais força. Os olhos de Cassandra abriram-se, contraindo os lábios
numa expressão de irritação.
- Queres fazer o favor de estares quieta? Não estou a conseguir ir a lado nenhum.
- Desculpa. - Gabrielle esforçou-se por se manter sossegada, mas Cass continuou a queixar-se.
- Isto não está a resultar. Vais ter de me dar mais alguma coisa com que possa trabalhar.
- Mas não tenho mais nada que tenha pertencido ao Remy.
- Nesse caso, dá-me uma recordação que tenhas dele.
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- E como é que, por pressuposto, eu devo fazer isso? - protestou Gabrielle. - Não compreendo o que queres dizer.
- Fecha os olhos e concentra-te - ripostou Cass enfurecida. - Pensa numa ocasião em que tenhas estado com o Remy. Mas não de momentos em que tenha havido perigo
ou de grande empolgamento. Apenas um momento tranquilo.
Foi por pouco que Gabrielle não desatou a rir histericamente. Um momento tranquilo num verão que lhe parecia ter estado repleto com nada, além de ameaças de morte
e tragédia. Remy fugido da Rainha das Trevas. Ela enviara as suas tropas para arrasarem a ilha Encantada até o encontrarem. Quando isso fracassou, Catarina recorreu
a táticas mais drásticas, açulando os caçadores de bruxas contra as irmãs, chefiados pelo temido Vachel Le Vis, um homem meio louco e fanático.
O bandalho do Le Vis tinha prendido a irmã mais nova de Gabrielle, Miri, ameaçando torturar a garota se Remy não lhe fosse entregue. Esta ameaça só não se concretizara
graças à intervenção do conde de Renard, o qual rechaçou os caçadores de bruxas, correndo com eles de volta ao continente. Mas não tinha tardado que Le Vis e os
seus lacaios regressassem a coberto da escuridão e, desta feita, atacaram a própria Belle Haven, tendo sido por um triz que não incendiaram a casa com as irmãs no
interior.
Gabrielle abriu a boca para informar Cassandra de que não tinha tido um único momento tranquilo com Nicolas Remy durante o tempo em que ele esteve escondido na ilha
Encantada. Mas vacilou, forçada a admitir perante si própria que isso não era verdade à medida que lhe ocorriam outras recordações.
Gabrielle tinha andado tão inquieta e aborrecida nesse verão em que se esforçara por tentar coexistir com uma mágoa do seu passado, continuando incapaz de delinear
os mistérios de um futuro em que a ilha Encantada não estava incluída, enquanto o presente parecia estar num impasse permanente de discussões com a irmã Ariane.
Mas ao cuidar de Remy, ajudando-o a recuperar, Gabrielle tinha encontrado uma certa medida de paz. Recordava-se dos dias em que se esquecera de si inteiramente,
quando envidava esforços para que Remy não pensasse nas dores que o ferimento lhe causava. Fazendo tudo para o entreter, ao ponto de ter desencaixotado o que restava
da sua meninice que pusera de lado, os seus livros de poesia e romances.
As mãos de Remy, tão grandes e calosas, eram mais adequadas a brandir uma espada. Ele mostrara-se pouco à vontade e desajeitado ao virar as páginas
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dos livros dela, preferindo, de longe, que ela lhos lesse. Todavia, Gabrielle perguntava-se qual o sentido que ele tirava das palavras. Quando desviava os olhos
das páginas, deparava com ele a olhá-la com fixidez, mostrando uma expressão de intensa adoração. Uma atitude que tinha sido quase suficiente para que se sentisse
jovem e sem mácula outra vez. Quase.
Gabrielle ficou rígida na cadeira, banindo aquela recordação da sua mente. Apercebeu-se de que Cassandra lhe afagava a mão suavemente, encorajando-a.
- Vá lá, Gabrielle. Recorda.
Contra a sua vontade, o pensamento de Gabrielle centrou-se numa tarde em que Remy, finalmente, já suficientemente recuperado para se levantar da cama, fora persuadido
por ela a afastar-se da segurança que a casa lhe proporcionava, levando-o para a floresta que se estendia atrás de Belle Haven.
As ervas que os pés descalços de Gabrielle pisavam deram-lhe uma sensação de frescura, o sol cálido a banhar-lhe o rosto, mas não tão quente como a mão de Remy na
sua. Gabrielle ficou com a respiração embargada na garganta, a cabeça a encher-se com uma imagem mais nítida de Remy do que conseguira trazer à sua mente em muito
tempo. Olhos de alma cansada de um castanho que se liquefazia, velados por umas espessas pestanas enquanto ele lhe sorria, a boca sensível tão em contraste com as
rugas vincadas que as adversidades e a passagem do tempo haviam deixado na sua cara.
Remy esboçara um sorriso tão invulgarmente terno para um homem, um pouco solene, um pouco tímido, aspetos que inspiravam ainda mais ternura pelo facto de ele...
Não. Os olhos de Gabrielle abriram-se de repente, sentindo um aperto na garganta com aquela mágoa que lhe era tão familiar.
- Não sou capaz de fazer isto - disse numa voz enrouquecida.
- Sim, és capaz - retorquiu Cassandra num tom de voz com que pretendia serená-la, continuando a afagar a mão de Gabrielle num gesto rítmico.
- Tens de o fazer se queres voltar a ver o Remy. Só tens de ouvir o que te digo e eu levo-te em segurança até superares a mágoa que sentes.
Gabrielle suspirou, sem qualquer vontade de tornar a esse dia de agosto, o último que partilhara com Remy antes de ele ter deixado a ilha Encantada a cavalo para
ir ao encontro da sua morte. Mas enquanto se rendia ao enfeitiçamento da voz de timbre hipnótico de Cassandra, Gabrielle fechou os olhos e fez todos os esforços
para se lembrar dessa tarde passada na margem do rio.
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Tinha estado a arreliar Remy na brincadeira, apesar de Ariane já a ter repreendido por fazer isso. A atormentar o homem, nas palavras da irmã mais velha. Mas a verdade
era que Nicolas Remy precisava que o fizessem perder aquela sua maneira de ser tão austera. Precisara de alguém que fizesse com que aquela expressão tão solene deixasse
os seus olhos, que fizesse com que ele se risse, para que se esquecesse, ainda que apenas momentaneamente, do pesado fardo que carregava.
Gabrielle tinha conseguido fazer com que ele pusesse de lado a sua maneira de ser austera, juntando-se a ela numa das fantasias preferidas da sua meninice, brincar
aos cavaleiros e dragões.
Caso se concentrasse intensamente, ainda conseguia ouvir o timbre áspero da voz dele.
- E esta brincadeira também inclui aparte em que a bela donzela recompensa o seu destemido cavaleiro com um beijo? - Tentou imprimir um tom de brincadeira à pergunta,
mas os seus profundos olhos castanhos estavam demasiado sérios para o gosto de Gabrielle. Afastou-se dele, pegando nas saias com um gesto majestoso.
- Um beijo? Mas que despudor, Sir Nicolas! É evidente que não compreendeis nada acerca de donzelas. Somos uma espécie muito fria e cruel, exigindo que os nossos
defensores e protetores nos adorem à distância. O máximo que permitimos é que os nossos cavaleiros se ajoelhem aos nossos pés, jurando-nos eterna dedicação e serviço.
Gabrielle expressava-se num tom forçado de brincadeira, sem que lhe passasse pela cabeça que Remy obedecesse ao seu pedido. Mas para sua grande consternação, ele
colocou-se diante de si e começou a baixar-se lentamente.
- Oh, Remy, eu só estava a brincar - começou ela a dizer, mas ele ajoelhou-se sobre um joelho, o esforço a provocar-lhe algumas dores, o que era evidente por se
ter retraído.
- Remy, parai com isso! - ralhara-lhe ela. - A brincadeira acabou. Levantai-vos.
- Não, milady. Fostes vós quem sugeriu isto. Agora vamos levar a brincadeira até ao fim.
- Deixai-vos de idiotices, levantai-vos antes que vos magoeis - insistiu Gabrielle, puxando-o pela manga da camisa e tentando obrigá-lo a pôr-se de pé. Mas ele agarrou-lhe
a mão, prendendo-lhe os dedos na força cálida dos seus.
Gabrielle tentou desprender a mão da dele, mas quando Remy inclinou a cabeça para poder olhá-la atentamente, ela imobilizou-se, como se enfeitiçada. O sol dava ao
cabelo dele um mati de um louro brunido, acentuando todos os vincos, fruto do sofrimento e dificuldades, da sua fisionomia sombreada por uma barba espessa e áspera.
Mas os seus olhos pareciam brilhar com uma luz muito própria, com uma expressão forte, firme e sincera.
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- Milady, a minha espada estará sempre ao vosso serviço - disse Remy, levando a mão dela ao seu coração. -Juro-vos pelo sangue da minha vida servir-vos e proteger-vos
para todo o sempre.
Era como se a concretização do sonho de todas as donzelas tivesse adquirido vida aos seus pés. O cavaleiro magoado que, depois de ter passado por muitas adversidades,
abre caminho à força da espada para ir ter com a sua amada, erguendo-a do chão e colocando-a na sua montada, protegida e em segurança nos seus braços.
Um homem de uma honra inabalável, de toda a integridade e coragem, facetas de caráter que Gabrielle, em tempos, supusera, erradamente, serem apanágio do Chevalier
Étienne Danton. Mas Danton de nobre só tinha o titulo. Era tanto um cavaleiro como Gabrielle uma donzela.
Mas Nicolas Remy era um homem genuíno em toda a aceção da palavra. Infelizmente, chegara à ilha dela tarde de mais.
- Remy... - murmurou uma voz enrouquecida com uma mágoa que poderia ter saído do próprio coração de Gabrielle. Mas o nome fora pronunciado por Cassandra. Gabrielle
abriu os olhos e fitou a outra mulher com uma sensação de mal-estar.
"Remy - murmurou Cass outra vez. Tinha a cabeça inclinada para trás, a sua fisionomia pálida a revelar toda uma sucessão de fortes emoções. Num dado momento, os
lábios dela entreabriram-se numa expressão de sensualidade sonhadora, para no seguinte se cerrarem mostrando desespero.
Era quase como se... como se Cassandra estivesse a roubar a Gabrielle as suas recordações de Remy, apoderando-se delas através das pontas dos dedos. Instintivamente,
Gabrielle tentou afastar a mão da dela, mas os dedos de Cass fecharam-se com força no pulso de Gabrielle, como um par de algemas de gelo. A cabeça dela inclinou-se
repentinamente para a frente e Gabrielle parou de se debater, demasiado paralisada para se poder mexer ao ver como Cassandra se transformava perante os seus olhos.
Qualquer traço da mulher inebriada ou da reclusa macilenta tinha desaparecido. Cass atirou os ombros para trás e arqueou o pescoço, dando a impressão de crescer
em estatura até se assemelhar a uma qualquer feiticeira lendária, uma Circe ou uma Morgan le Fay.
Brilhando à luz esbranquiçada e intensa da vela, a sua pele estava translúcida, um forte contraste com o vestido de um vermelho de sangue, com os cabelos desgrenhados
da cor de ébano. A chama do círio refletia pontos de luz nos olhos escuros, acerados e frios como uma estrela longínqua.
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- Nicolas Remy - disse Cass numa voz roufenha. - Chamo-te para que voltes do reino dos mortos. Segue o som da minha voz e vem até junto de nós. A Gabrielle está
à tua espera.
com a mão livre, procurou a bacia às apalpadelas, passando os dedos pela parte de cima. A água na bacia começou a ondular, o vapor a evolar-se da superfície até
se transformar num recipiente de névoa. Cass inclinou-se para a frente ansiosamente, os lábios entreabertos. Quanto mais a água ficava turva, mais límpidos os olhos
dela se tornavam, mais acerados e concentrados. Enquanto Cassandra olhava fixamente para a água, Gabrielle apercebeu-se assombrada de que a mulher conseguia ver.
- Nicolas Remy - voltou a chamar Cass. - A Gabrielle veio de muito longe para te encontrar. Tem o coração fatigado e magoado. Não a desiludas. Aparta o véu dos mortos
e permite que ela veja o teu rosto, permite-lhe que ouça a tua voz uma última vez.
Às palavras de Cassandra, a névoa começou a remoinhar e uma forma começou a aparecer, uma silhueta quase impercetível, como a face de um homem perdido num manto
de nevoeiro.
- Mostra-te, capitão - ordenou Cass. - Não nos mantenhas à espera de ti.
O vapor alterou-se e a respiração de Gabrielle ficou presa na sua garganta quando vislumbrou o contorno muito ténue de um semblante com barba, mas logo depois voltou
a sumir-se na névoa. Inclinou-se por cima da bacia, sentindo o coração a bater fortemente com um misto doloroso de medo e esperança.
Cass entoou mais invocações num tom intenso, mas o homem permaneceu como um fantasma, perdido na água e na névoa.
- Ele não virá a meu pedido - murmurou Cassandra a Gabrielle.
- Tens de ser tu a chamá-lo.
Gabrielle perscrutou a forma espectral à superfície da água, a pulsação a latejar-lhe nos ouvidos.
- R... Remy? - chamou numa voz vacilante.
- Chama-o com sentimento. Põe o coração nesse chamamento, rapariga.
Gabrielle humedeceu os lábios secos e voltou a tentar.
- Remy, por favor. Volta para mim, só mais uma vez. Eu... eu preciso de ti.
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A névoa redemoinhou e apartou-se e a imagem oculta abaixo da superfície tornou-se gradualmente mais nítida. A respiração de Gabrielle saiu-lhe da boca como um meio
soluço enquanto a água tremeluzia, mostrando os contornos do rosto magro de um homem escondido por uma barba curta.
Mas não era o rosto de Nicolas Remy.
Gabrielle recuou chocada com aquela aparição. A barba do homem de idade era comprida e hirsuta, as faces tão encovadas que formavam concavidades abaixo dos olhos,
que tinham uma expressão de uma dignidade austera. Fitavam Gabrielle acusadoramente.
- Bruxa imbecil! Porque perturbaste a minha paz? - A voz do espírito era profunda, como o ressoar de um trovão à distância.
- Eu... eu não... - Gabrielle retraiu-se toda na cadeira. Puxou a mão freneticamente para quebrar o contacto.
- Cass, temos de pôr fim a isto imediatamente. Mas Cassandra não lhe largou a mão.
- Não tenhas receio. Está tudo bem, Gabrielle.
Para grande perplexidade de Gabrielle, Cassandra inclinou-se mais por cima da bacia, baixando o tom de voz e falando com um timbre de reverência.
- Boas noites, mestre.
A água na bacia ondulou, o vapor a evolar-se mais alto com um suave sibilar. Gabrielle sentiu um aperto de medo no coração. Não obstante, o idoso que pairava na
névoa não parecia ameaçador, pelo contrário, mostrava-se desgostoso, vergado por uma centena de existências de mágoas. Quando os olhos envelhecidos se fixaram em
Cass, Gabrielle pensou tê-lo visto a estremecer.
- Cassandra Lasceles. Continuas a proceder a esta maldita magia negra, apesar das inúmeras vezes em que te implorei que pusesses cobro a isso. Por que razão é que
me chamaste outra vez?
- Desta vez, não vos chamei, mestre - replicou Cass. - Viestes de moto próprio.
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- Porque não pude evitá-lo. O mero som da tua voz a invadir o reino dos mortos é um tormento para mim. Além disso, havia esse nome... Gabrielle.
Ouvir o seu nome articulado numa voz tão sepulcral fez com que Gabrielle se sentisse tensa, invadida por um novo receio.
- Sabeis alguma coisa a respeito da Gabrielle? - persistiu Cass. - O nome dela tem algum significado para vós, mestre?
- Cassandra, por favor - interrompeu Gabrielle. - O que é que se está a passar? Quem é este homem tão estranho?
- Nostradamus - ripostou Cass numa voz sibilada.
- Nostradamus!? - Gabrielle ficou de boca aberta, absolutamente atónita.
- Sim, o famoso médico da Provença e antigo astrólogo da corte. Um homem famoso por ser capaz de prever o futuro. com certeza que já ouviste falar dele.
- Sim, que mulher sábia é que não ouviu? - sussurrou Gabrielle. - Mas o que eu não compreendo é o que ele está a fazer aqui quando procurávamos o Remy.
- Talvez, se te mantiveres calada, eu tenha a oportunidade de me inteirar disso - resmungou Cass. Num tom de voz mais elevado e respeitoso, dirigiu-se à face antiga
que pairava diante delas. - Mestre, haveis dito qualquer coisa a respeito da Gabrielle. Será possível que a tenhais visto numa das vossas visões? Sabeis qual é o
futuro dela? Dizei-nos.
- Não vim aqui para que me dissessem o que o futuro me reserva disse Gabrielle num outro aparte lapidar.
Cass ignorou-a. Erguendo-se na sua cadeira, ficou com uma postura extremamente imperiosa.
- Dizei-nos agora, mestre, e porei fim à sessão espírita e depois podeis partir em paz.
- Não, não farás nada disso - protestou Gabrielle. - E quanto ao Remy? Cass apertou-lhe a mão com mais força para a silenciar. O velho cerrou os olhos, como se tentasse
regressar às brumas do seu mundo por sua própria vontade. Aparentemente, apercebeu-se da futilidade dos seus esforços porque a sua boca descaiu num trejeito de derrota.
Nostradamus abriu os olhos e começou a entoar num tom de resignação e cansaço:
- Gabrielle tem um grandioso destino à sua frente. Tornar-se-á numa mulher de grande influência, riqueza e poder, como jamais poderia imaginar.
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- Eu não quero ouvir isto - atalhou Gabrielle. - Falai-me do Nicolas Remy.
- A Gabrielle dominará o coração de um rei.
- Rei!? Mas que rei? - perguntou Cassandra avidamente.
- O rei de frança. Gabrielle reinará no país através de Henrique. Começará por ser amante dele...
- O Henrique Valois? - ecoou Gabrielle repugnada. - O filho da Catarina de Médicis? Esse peralvilho todo perfumado? Ele é o homem mais cruel e perverso que alguma
vez me foi dado conhecer.
- Não estou a referir-me ao Henrique Valois - replicou Nostradamus. - Mas sim a Henrique, o atual rei de Navarra. E a adoração dele que conseguirás conquistar e
um dia ele herdará o trono de toda a frança.
- Isso é impossível - disse Gabrielle com impaciência. - O Valois é um homem jovem e tem um irmão que é ainda mais novo. A mãe deles, Catarina de Médicis, defenderia
aguerridamente o direito de ambos ao trono. E agora passemos ao Nicolas Remy. Ele era um militar huguenote. É ele que eu quero...
- A Casa de Valois cairá, o poder da Italiana chegará ao fim.
- Parai com isso! - Para perplexidade de Gabrielle, Cass retrocedeu, a sua voz ríspida e denotando alarme. - Não deveis falar mais sobre a Rainha das Trevas.
Nostradamus não prestou mais atenção à tentativa de Cassandra de o interromper do que prestara a Gabrielle.
- Acautelai-vos com a Rainha das Trevas. Ela lutará para manter o que é seu e destruirá todos os que constituírem uma ameaça ao seu poder. Mas ela perecerá juntamente
com os filhos que lhe restarem. A sua linhagem chegará ao fim. O rei de Navarra passará a ser o rei de França e a Gabrielle virá a ser...
- Não quero ouvir mais nada disso! - gritou Cassandra. - Silenciai-vos. - A sua mão esforçou-se por quebrar o contacto com Gabrielle e, desta feita, foi esta que
a agarrou com força para a impedir de levar o seu intento avante.
- A Gabrielle virá a ser o quê? - perguntou ao idoso, intrigada a despeito de si própria.
- O reinado da Rainha das Trevas acabará e a Gabrielle virá a ser...
- Não! - gritou Cass, levantando-se de repente e desprendendo a mão da de Gabrielle. Antes que esta pudesse impedi-la, Cassandra estendeu o outro braço e derrubou
a bacia de cobre e a vela negra, que caíram no chão de pedra com um barulho assustador.
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Gabrielle levantou-se da mesa com um salto, na esperança de conseguir fazer alguma coisa, mas já era tarde de mais. A água entornou-se e a chama da vela extinguiu-se.
A névoa, o semblante espectral, as previsões de Nostradamus, tudo desapareceu. E, pior ainda, a sua esperança de voltar a ver Nicolas Remy também se desvaneceu.
Um pesado silêncio abateu-se sobre a câmara. Gabrielle tropeçou na escuridão enquanto procurava a acendalha atabalhoadamente para voltar a acender um dos archotes.
A bacia virada ficou no chão. A água derramada a formar uma poça em volta da bacia e da vela negra. O pavio estava enegrecido. O círio, que até há poucos momentos
ardera com uma chama tão intensa, parecia absurdamente inofensivo.
- Porquê, Cass? - perguntou Gabrielle, virando-se encolerizada para a outra mulher, a sua voz carregada de frustração e desânimo. - Porque fizeste isso?
- Porquê? - ripostou Cassandra numa voz esganiçada. - Que raio, Gabrielle! - Envolveu o torso apertadamente nos braços. - Porque o Nostradamus estava a falar à toa
sobre a Rainha das Trevas, prevendo a sua morte e o fim da sua linhagem. Sabes o que é que ela nos faria se viesse a saber que estivemos a conjurar tais previsões?
- Ora, não sejas tola, Cassandra - ripostou Gabrielle. - Estamos escondidas numa casa abandonada, a levar a cabo uma sessão espírita aqui em baixo, numa câmara que
parece o raio de um túmulo. Como diabo é que a Catarina haveria de se inteirar?
- Porque ela é demoníaca. Ela possui mais poderes maléficos do que alguma vez serias capaz de imaginar. Se a Rainha das Trevas suspeitasse sequer de que esperavas
vir a suplantá-la, assim como aos fedelhos dela, com o rei de Navarra, ela não hesitaria em eliminar-te, bem como a ele. E depois viria atrás de mim por ter conjurado
o astrólogo morto, que serviu na sua corte, para encher a tua cabeça com essas ambições.
- Eu não precisava que o Nostradamus me imbuísse da ambição de pôr fim ao poder da Rainha das Trevas. É um desejo ardente que me consome, poder vergar Catarina,
desde que... - Mas Gabrielle refreou a sua cólera ao perceber como Cass estava genuinamente perturbada.
Tinha ficado de uma palidez cadavérica, até mesmo para ela, oscilando ligeiramente como se estivesse prestes a desfalecer. A ira desapareceu de Gabrielle, que se
apressou a ir para junto de Cassandra.
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- Estás a sentir-te mal? Estás com um aspeto horrível. - Gabrielle passou o braço por cima dos ombros magros de Cass. - Vem daí. Está-me a parecer que precisas de
te deitar.
- Aquilo de que eu preciso é de uma bebida - resmungou Cassandra, mas deixou que Gabrielle a levasse para a estreita cama. Mas recusou-se a deitar-se, apesar de
se ter deixado cair na beira, baixando a cabeça entre os joelhos até alguma da cor ter voltado às suas faces.
Sentou-se com um suspiro de queixume, afastando para trás as pontas do cabelo desgrenhado. Cassandra Lascelles esmorecia a olhos vistos diante de Gabrielle, todos
os vestígios da formidável feiticeira a desvanecerem-se juntamente com a névoa. A alteração mais acentuada era nos seus olhos, o brilho extinguido como o pavio da
vela caída no chão. Cass voltara a perder-se na sua escuridão. Humedeceu os lábios, passando uma mão tremente pela fronte.
- É-me sempre extremamente difícil quando ponho fim a uma das minhas sessões de conjuração tão abruptamente. Eu... eu lamento ter feito isso, Gabrielle. Sei que
pensas que eu sou uma grande idiota. Mas quando o mestre começou a falar sem parar a respeito da Rainha das Trevas... - interrompeu-se estremecendo. - Não existem
muitas coisas neste mundo que me atemorizem. Mas se há coisa que não quero é encolerizá-la. Pelo menos, não enquanto ela continuar a ser a bruxa mais poderosa de
França.
Gabrielle ajoelhou-se diante de Cass, começando a massajar-lhe os pulsos suavemente.
- Não há necessidade de ficares assim tão atemorizada. São muitas as da nossa classe que atribuem a Catarina toda a magia negra do Inferno. Mas eu já tive de tratar
com a mulher e posso garantir-te... que ela é tão-somente outra Filha da Terra, com as mesmas fraquezas que todas temos.
- Mas... mas ela é tão poderosa.
- Também tu és - retorquiu Gabrielle, tentando aquecer as mãos de Cassandra, esfregando-as. - Nunca conheci outra bruxa tão talentosa como tu a conjurar os mortos.
- Aparentemente, não sou assim tão talentosa - disse Cass esboçando um sorriso de desalento. - Não fui capaz de te proporcionar o que desejavas, o teu capitão Remy.
- Bem, isso não era assim tão importante - mentiu Gabrielle, engolindo a sua deceção. - Até foi interessante conhecer o grande Nostradamus. O meu pai costumava trazer-nos
de Paris os almanaques das suas previsões,
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se bem que a minha mãe nunca tenha aprovado isso. Tinha muito pouca fé na arte da astrologia. Dizia sempre que as previsões de Nostradamus não passavam de poesia
disparatada e irritantemente vaga.
- Algumas das suas previsões eram-no de facto, mas outras eram surpreendentemente exatas. Há uma coisa que te posso dizer, Gabrielle Cheney - disse Cass emotivamente.
-Já conjurei o Nostradamus inúmeras vezes desde que ele faleceu para o consultar a respeito do futuro. As suas faculdades aperfeiçoaram-se extraordinariamente desde
que morreu.
- Isso quer dizer que todas as coisas que ele disse a meu respeito são verdadeiras?
- Sem dúvida. Inquestionavelmente, tens um grande futuro à tua frente. Só lamento não ter tido coragem para continuar para que ele pudesse ter-te dito mais.
- Não te importes com isso - retorquiu Gabrielle suspirando. Na verdade, havia apenas mais uma coisa que quisera saber acerca da sessão espírita. Mas hesitou, receando
que a resposta não lhe agradasse. - Cass... porque veio o Nostradamus ter comigo esta noite em vez do Remy?
Cass encolheu os ombros.
- O mestre e eu estamos ligados para sempre de uma determinada maneira, quer ele queira, quer não. Bem vês, quando eu era pequena, o meu pai, o bispo, levou-me ao
doutor Nostradamus na esperança de ele conseguir curar a minha cegueira...
- Não era a isso que eu me estava a referir - interrompeu Gabrielle. - Compreendo como é que conseguiste chamar Nostradamus. O que eu não compreendo é por que razão
o Remy não veio quando o chamei.
Cassandra levou muito tempo a dar-lhe resposta, a cabeça baixa coberta por uma cortina de cabelo.
- Não tenho a certeza - disse por fim. - O mais provável é o capitão não ter desejado aparecer. Tentei avisar-te de que os mortos podem ser muito rancorosos.
- Portanto, pensas que, por eu o ter rejeitado em vida, agora é ele que me rejeita na... morte?
- É o que tudo indica - respondeu Cass erguendo a cabeça, o seu rosto com uma expressão de compreensão. - Lamento muito, Gabrielle.
- Não faz mal. Eu própria desconfiei que era isso mesmo - disse Gabrielle. Mas, então, porque a magoava tanto ouvir Cass a confirmar aquilo?
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- Suponho que, se quiseres, posso tentar outra vez num outro dia, quando me sentir melhor.
- Não, de que é que serviria? - retorquiu Gabrielle desanimada. - Atrevo-me a dizer que o resultado seria o mesmo. Para começar, foi ridículo da minha parte tentar
chamá-lo.
- Devias esquecer o Remy - sugeriu Cass, apertando-lhe a mão num gesto de consolo. - Foi apenas um militar que passou fugazmente pela tua existência e que não tem
lugar na tua vida de futuro. Se o Nostradamus acertou no que disse, vais ter um rei rendido aos teus encantos, serás a senhora de toda a França.
- Sim, França - murmurou Gabrielle, perguntando-se por que razão não se sentia mais extasiada. Mas, de momento, ela teria trocado todo o reino, todas as suas ambições
e perspetivas deslumbrantes, por apenas mais um dos sorrisos de Nicolas Remy.
Um pensamento que era uma tolice, ralhou a si própria. Sentia-se cansada, mais nada. Tinha sido uma noite recheada de acontecimentos e exaustiva. Soltando as mãos
de Cassandra, pôs-se de pé vagarosamente.
- Está a fazer-se tarde. Tenho de ir andando. E tu devias repousar um pouco.
Cass levou a mão à boca, ocultando um enorme bocejo.
- Estou a sentir-me extremamente cansada. Estas sessões deixam-me sempre exaurida.
Gabrielle atravessou a câmara para ir buscar o seu manto. Quando acabou de o apertar em volta dos ombros, olhou para trás e viu que Cassandra já se tinha estendido
na cama, tapando-se com os cobertores.
Havia qualquer coisa de curiosamente infantil na maneira como se agarrava à almofada debaixo da cabeça. Ao observá-la, sentiu-se bastante mortificada. Parecia-lhe
tão insensível que se fosse embora, deixando Cass naquelas circunstâncias tão melancólicas, sozinha numa casa que era como um mausoléu e que devia estar tão cheia
de recordações trágicas para ela.
- Cass, eu... eu detesto deixar-te sozinha desta maneira. Quem me dera que me permitisses...
Mas Cass interrompeu-a de imediato como fazia sempre.
- Não te preocupes comigo, Gabrielle - disse com um sorriso sonolento. - Há já muito tempo que cuido de mim própria. Só quero que não te esqueças de que prometeste
fazer-me um favor quando eu to pedir.
- Claro que não me esquecerei - murmurou Gabrielle.
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Parecia que não havia mais nada a dizer enquanto Cassandra se aconchegava debaixo dos cobertores e fechava os olhos. Pegando na vela que levara consigo, Gabrielle
acendeu-a para que a luz da chama a ajudasse a subir as escadas. Assim que abriu a porta de acesso à câmara secreta, foi por pouco que não tropeçou em Cérbero, que
estava estendido à largura da soleira. O cão tinha a cabeça pousada nas patas, mostrando-se de monco caído. Espevitou-se de imediato e, sem sequer se dar ao trabalho
de olhar para Gabrielle, desatou a correr pelas escadas abaixo à procura da sua dona.
Olhando para trás, o último vislumbre que teve da reclusa cega da Maison dEsprit foi o de Cassandra a afagar o cão ao seu lado.
Cass aninhou-se debaixo dos cobertores, escutando atentamente, o seu sentido auditivo quase tão apurado como o do cão. Assim que deixou de ouvir os últimos passos
de Gabrielle no soalho acima de si, assim como o barulho ensurdecido da porta quando se fechou, arremessou os cobertores para trás e foi procurar a sua garrafa.
Ouviu as patas de Cérbero a escorregarem no chão de pedra quando o mastim começou a segui-la ansiosamente. Cassandra ignorou o animal, apalpando as prateleiras do
guarda-louça. Gabrielle tinha sido a última a guardar a garrafa de conhaque, que não se encontrava no seu lugar habitual. A praguejar em voz baixa, Cass tentou refrear
a sua impaciência, continuando a apalpar cuidadosamente, aterrorizada ao pensar que poderia derrubar a garrafa, entornando aquelas últimas gotas que para si eram
preciosas. A tensão que sentia era crescente, até que os seus dedos se fecharam em volta da garrafa para sua muita satisfação.
com a garrafa de conhaque encostada ao peito, qual sovina a guardar a sua última moeda, dirigiu-se para a mesa e deixou-se cair na cadeira. Tirou a rolha da garrafa
e, desta vez, nem sequer se deu ao requinte de um copo, bebendo o conhaque diretamente da garrafa.
O ardor da bebida alcoólica estendeu-se da língua à garganta. Só quando o conhaque começou a percorrer as suas veias é que a ânsia pela bebida que lhe aquecia o
sangue se apaziguou.
Cassandra baixou a garrafa, pousando-a na mesa com um prolongado suspiro, sentindo-se envergonhada pelo frenesim com que desejara beber. Cérbero fez menção de querer
pôr a cabeça no colo dela, o nariz frio na mão de Cass, enquanto soltava um latido gemido.
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O pobre animal já a tinha visto embriagada inúmeras vezes, refletiu Cassandra pesarosa. Tinha testemunhado a sua falta de controlo, os ataques de raiva, o soltar
dos seus impulsos desenfreados, o que podia fazer dela um perigo para os outros, mas ainda mais para si própria.
Afagou o cão e coçou-o atrás das orelhas.
- Não te preocupes, velho amigo - murmurou. - Não resta o suficiente na garrafa para que me embebede esta noite. Não vou beber mais até essa rapariga idiota, a Finette,
decidir voltar a aparecer aqui.
com os dedos fechados em volta da garrafa, Cass refletiu, concluindo que teria de dizer à criada algumas palavras ríspidas por ter traído o seu segredo, a sua aptidão
para a prática da necromancia, partilhando-o com Gabrielle Cheney.
Cass quase confiava em Gabrielle como uma amiga, tanto quanto Cassandra conseguia confiar em alguém. Não obstante, Finette precisava de aprender uma lição. Cassandra
ergueu a garrafa, bebendo outro trago generoso, apesar de se detestar pelo que estava a fazer.
Tinha noção de que a bebida era uma fraqueza, além de ter poucos meios pecuniários para a sustentar. Mas, por vezes, parecia ser a única magia que conseguia manter
os seus fantasmas ao largo. As suas irmãs tinham surgido da água da bacia de cobre, sem terem sido chamadas, em mais de uma ocasião para fitarem Cassandra com olhos
de acusação.
Os mortos não perdoavam. Isso, pelo menos, era uma verdade que dissera a Gabrielle. Eram inúmeras as vezes em que Cass se tinha mantido deitada sem conseguir conciliar
o sono, atormentada pelas recordações em que via os caçadores de bruxas a atacarem a sua casa, os gritos de terror das irmãs enquanto eram arrastadas para serem
torturadas e mortas.
Mas não esta noite, pensava Cass, sentindo o calor do conhaque a envolvê-la. Esta noite entregar-se-ia a recordações muito mais agradáveis. Recordações que havia
roubado de um soldado cansado da guerra com cabelo de um louro-acinzentado e olhos castanhos comovedores. De um corpo endurecido pelas agruras da batalha e mãos
fortes. Dedos compridos tão capazes de desapertarem ternamente o corpete de uma mulher, como de matarem sem resquício de piedade, enterrando a espada até ao punho,
trespassando o coração de um inimigo. Essa espada de Remy tinha pulsado com uma força tremenda, sinistra e impiedosamente, uma recordação que continuava a fazer
com que o corpo de Cass fosse percorrido por um arrepio.
Ainda que a contragosto, Cassandra admirava Gabrielle. A sua nova amiga era inteligente, além de conhecedora do mundo. Mas, sob outros aspetos,
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ela era um pouco ignorante, porque havia tanta coisa que desconhecia a respeito de Nicolas Remy, incluindo o facto mais assombroso.
O grande Flagelo estava vivo.
Cass riu-se de mansinho enquanto bebia o conhaque que restava na garrafa.
"Nunca conheci outra bruxa tão talentosa como tu a conjurar os mortos", dissera-lhe Gabrielle.
Talentosa? Realmente era, pensava Cassandra. Tanto que nunca nenhum espírito tinha faltado ao seu chamamento, de boa vontade ou contrariado. Só podia existir uma
razão para Remy ter recusado o seu chamamento para que viesse do mundo dos mortos. O valente capitão de Navarra não se encontrava aí. Continuava a percorrer o mundo
dos vivos, esse homem que talvez viesse a provar ser de grande valor para Cassandra.
Possivelmente, ele seria o tal, embora Cass ainda não estivesse bem certa disso. Tão-pouco sabia como é que procederia para encontrar Remy. Apesar disso, Cassandra
sabia que o faria, a partir do momento em que concluísse que o Flagelo era, verdadeiramente, o homem que procurava. Lambeu a última gota de conhaque dos lábios e
sorriu.
A sua querida amiga ficaria perplexa se descobrisse que Cassandra Lascelles, a pobre ceguinha, também tinha alguns sonhos e ambições.
O nevoeiro que tinha suavizado as arestas agrestes da cidade dissipara-se, deixando apenas ruas escuras que davam a impressão de serem mais frias, mais desaconselháveis
e mais perigosas do que quando Gabrielle as tinha percorrido horas antes. Quando já se aproximava dos portões de acesso ao pátio de sua casa, resistiu ao forte impulso
de correr para a segurança que lhe proporcionaria. Uma atitude muito diferente do espírito determinado que a levara a atravessar Paris para ir secretamente à mansão
de Cassandra Lascelles.
Mas, agora, Gabrielle só conseguia sentir-se estupefacta com a sua temeridade, aventurando-se a sair sem ser escoltada. Conhecia a cidade bastante bem para compreender
como podia ser perigosa para uma mulher sozinha durante o dia, quanto mais à noite. O que é que a levara a pensar que era assim tão invulnerável?
Infelizmente, sabia qual era a resposta para essa pergunta. A sua mão estendeu-se para o punho da espada presa à cintura. A espada de Remy. Sempre que a trazia consigo,
sentia-se segura, intocável, como se a espada fosse uma espécie de talismã mágico imbuído da força e coragem do seu antigo dono.
Agora, quando fechou os dedos no punho, só sentiu a frialdade desconfortável do aço. Era como se toda a magia a tivesse abandonado no momento em que a sessão espírita
fracassou, quando fora forçada a aceitar o facto de Nicolas Remy estar realmente morto para si. Jamais voltaria a falar com ele para lhe pedir que a perdoasse ou
para ver o seu sorriso uma última vez. Ele nunca mais regressaria para junto dela, não por meio de qualquer espécie de conjuração, quem sabe se também nunca mais
nos seus sonhos.
Devia sentir alívio por, finalmente, estar livre das suas recordações. Em vez disso, tudo o que sentia resumia-se a uma sensação de solidão, além de
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se sentir estranhamente receosa, e numa fase da sua vida em que mais precisava de proteção.
Estava a ser seguida.
Gabrielle apercebera-se disso desde que tinha saído da Maison dEsprit. Era perseguida e desta feita não era por um fantasma da sua imaginação. O homem de aspeto
sombrio e sinistro que viera no seu encalço não era nenhum fantasma. Sempre que se atrevia a olhar para trás, via de relance um estranho ameaçador que se esgueirava
furtivamente por travessas e vielas, desaparecendo entre os grupos de bêbados que saíam de tabernas, ocultando-se nas ombreiras de portas, mas não com a rapidez
que a impedisse de o ver. Já não havia nevoeiro nenhum que pudesse ocultar aquela perseguição tão persistente.
Gabrielle pressentia-o a rondar atrás de si na rua escura, uma sombra fortuita que a observava e aguardava. Mas aguardava pelo quê? Se ele fosse um bandido comum
ou um salteador, já tinha podido atacá-la. Tivera dezenas de oportunidades, o que se devia à imprudência de Gabrielle naquela noite. E se ele, afinal de contas,
não estivesse a persegui-la, mas sim a espiá-la? Esquecera-se de pôr a máscara quando saiu de casa de Cass. Agora, sentia uma necessidade premente de a pôr na cara,
como se, fosse-se lá saber como, pudesse protegê-la.
Se ele era um espião, a ameaça à sua pessoa não era assim tão imediata. E, contudo, o perigo persistia, perigo de uma natureza muito mais insidiosa e subtil, mas
que a encolerizava mais do que a atemorizava. Gabrielle demorou-se junto do portão, fingindo que se inclinava para tirar uma pedra do sapato sem nunca parar de pensar
freneticamente.
Quem é que conhecia que tivesse a ousadia de pôr um espião a persegui-la? Tinha bastantes inimigos na corte francesa, a mais acérrima a própria Rainha das Trevas.
Catarina mantinha-se sempre de olho em Gabrielle quando esta visitava o Louvre. Teria a Rainha das Trevas começado a incumbir alguém de a espiar também fora das
paredes do palácio?
Gabrielle troçara da pobre Cassandra por ter ficado tão nervosa por causa da Rainha das Trevas, mas talvez ela tivesse tido razão. Gabrielle franziu a testa quando
voltou a pensar no homem que tinha visto há poucas horas por entre o nevoeiro, aquele que considerara ser mero fruto da sua imaginação. E se o mesmo homem que a
seguia agora fosse o mesmo que a havia perseguido até à Maison dEsprit?
Não, certamente que Cérbero teria afugentado qualquer intruso que se aproximasse demasiado da casa. Era absolutamente impossível que alguém
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soubesse o que ela e Cassandra tinham estado a fazer na câmara subterrânea secreta. Mas caso se soubesse que Gabrielle visitara a casa abandonada, isso talvez fosse
suficiente para despertar a curiosidade de Catarina, impelindo-a a investigar a Maison dEsprit mais aprofundadamente. Era possível que Gabrielle tivesse atraído
o perigo que Cassandra tanto receava até à sua porta.
Também era muito possível que Gabrielle estivesse, simplesmente, a dar largas à sua imaginação. Só havia uma maneira de saber ao certo. Endireitando-se com lentidão,
resistiu à tentação de olhar para trás outra vez. Levantou o trinco e abriu o portão todo para trás. Não fora fechado à chave, em conformidade com as suas instruções.
Gabrielle não queria que olhos curiosos registassem as suas idas e vindas naquela noite, nem sequer os seus próprios servos. Agora sentia-se duplamente satisfeita
por não ter postado ninguém de guarda, porque isso lhe permitia armar uma cilada.
Entrou no pátio com uma aparente despreocupação. Só depois de se ter certificado de que não seria vista por alguém que estivesse na rua é que a sua postura se alterou.
Correu para as sombras, espalmando-se contra o muro alto de pedra que circundava a sua propriedade, posicionando-se a escassos metros do portão. O mais silenciosamente
possível, começou a desembainhar a espada, retraindo-se ao ouvir o barulho que a lâmina fez ao roçar pela bainha, que lhe soou tão estrondoso aos ouvidos como uma
bala de canhão. Sentiu a pulsação mais forte e acelerada enquanto aguardava durante um tempo que lhe pareceu eternizar-se.
Talvez o seu perseguidor não se atrevesse a segui-la até ao interior da sua propriedade. Ou, quem sabe, depois de ter visto que Gabrielle voltava para casa, concluiria
que não havia mais nada de que precisasse de se inteirar quanto aos seus movimentos esta noite, limitando-se a desaparecer.
Esteve quase a sair do seu esconderijo quando ouviu um ruído. O estalido do trinco e o ranger do portão que era aberto lentamente. Apressou-se a voltar a agachar-se.
Gabrielle susteve a respiração quando a silhueta magra de um homem entrou furtivamente pelo portão aberto.
A luz do luar revelou as suas feições, permitindo-lhe que visse que se tratava de um escudeiro mal-encarado com cabelo comprido e desgrenhado e uma barba cerrada,
que usava um justilho preto e bragas já com muito uso e rasgadas. Deteve-se e com o olhar percorreu o carreiro deserto até ao contorno da casa à distância. Gabrielie
deduziu que ele estaria intrigado por ela ter desaparecido tão repentinamente. Era melhor que passasse à ação antes que ele tivesse tempo para se aperceber do que
tinha acontecido. Sentiu o coração
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a bater fortemente contra a caixa torácica, o que se devia mais ao empolgamento do que ao medo, além de uma cólera que tinha toda a razão de ser perante aquele intruso.
Gabrielle saiu cautelosamente do lugar onde se mantivera agachada, junto do muro, e aproximou-se pelas costas do homem. Os seus passos roçagavam pelas ervas enquanto
empunhava a espada, encostando a ponta da lâmina no meio das costas dele.
- Não mexas um músculo que seja - disse Gabrielle numa voz ríspida - ou trespasso-te com a espada de imediato e aqui. - Viu que ele ficava tenso e flexionava os
ombros. Durante uma fração de segundo, ficou assustada ao constatar que o homem era mais alto e mais musculado do que presumira inicialmente. Também reparou, tarde
de mais, que ele tinha uma arma presa ao flanco.
Tinha alguma perícia no manejo da espada, mas não fazia ideia de como é que se sairia contra um assassino desconhecido na escuridão. Ocorreu-lhe que talvez tivesse
agido com alguma impulsividade ao tentar capturar o espião sozinha. Mas agora que o tinha sob a sua espada, precisava de fazer alguma coisa com respeito ao homem.
- Levanta as mãos - disse ferozmente. - Desafivela o cinto da espada e deixa-o cair no chão.
- É-me difícil fazer as duas coisas ao mesmo tempo, Gabrielle - murmurou ele. Havia algo de familiar na voz dele que fez com que o seu coração parasse momentaneamente.
O homem optou por obedecer à primeira ordem que ela lhe dera, levantando as mãos no ar.
Gabrielle recompôs-se do choque ao ouvi-lo a tratá-la com tanta familiaridade. Imprimiu à voz um tom de sobranceria.
- Estou a ver que sabeis quem sou, não é verdade? Também gostaria de saber quem diabo sois e porque tivestes a impertinência de me espiar. Virai-vos, mas muito cuidadosamente.
Qualquer movimento em direção à espada e garanto-vos que vos deceparei a mão.
- Acredito sinceramente que o faríeis, mademoiselle. - Desta vez, Gabrielle ouviu a voz dele mais nitidamente, profunda e um pouco enrouquecida, como uma voz que
se tornara rouca para sempre devido a ter de dar ordens constantemente num tom elevado no campo de batalha... a voz de Nicolas Remy.
Gabrielle teve a sensação de que o seu coração vacilava e depois parava de bater completamente enquanto o seu cativo se virava de frente para si.
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A luz do luar emprestava relevo às feições magras quase ocultas por uma cabeleira indomável e pela barba. A única coisa suave naquela fisionomia de expressão severa
eram os olhos de um castanho intenso e que espelhavam ternura. Os olhos de Remy fitavam-na. Mas que loucura era aquela? Quando ele baixou as mãos, Gabrielle sentiu-se
demasiado estupefacta para tentar impedi-lo.
- Se estáveis determinada a capturar um intruso, porque é que não haveis chamado os vossos servos? Fazeis alguma ideia de como seria fácil desarmar-vos? Só vós é
que agiríeis de maneira tão imprudente, Gabrielle Cheney. - Ele estava a repreendê-la, mas os dentes brilhavam num sorriso de uma rara e inesperada doçura. O sorriso
de Remy.
Deus lhe valesse, Gabrielle estava a enlouquecer. Só podia ser isso. As mãos dela tremiam. A espada vacilou-lhe na mão e tentou aproximar-se mais dele. Apressou-se
a recuar com um grito de terror, voltando a empunhar a espada com firmeza.
Remy estacou. Quando a sua voz se ouviu outra vez, era suave e serena.
- Por favor, Gabrielle. Não tendes de ter medo. Não me reconheceis? Sou eu, o Remy.
- N... não - retorquiu ela numa voz estrangulada. - M... mentis. Não podeis ser o Nicolas Remy. Ele... ele está...
- Morto? Juro-vos que não estou morto. Por favor, parai de olhar para mim como se eu fosse um fantasma.
Gabrielle retrocedeu; toda ela tremia. Era exatamente isso que tinha diante de si, um fantasma. Um fantasma com a voz de Remy, com os olhos de Remy, com o sorriso
de Remy. Mas era impossível que fosse Remy. Aquele homem de expressão agreste, com um cabelo desgrenhado e faces encovadas. A menos que ele tivesse marchado através
das planícies do Inferno ou regressado das profundezas do mundo dos mortos para ir ter com ela. Um pensamento destrambelhado apoderou-se dela, que a sessão espírita,
ao fim e ao cabo, acabara por resultar, arrastando o espírito atormentado de Remy dos confins da sua campa.
Gabrielle tremia tão descontroladamente que nem sequer conseguia pegar na espada, que caiu no chão com um barulho ensurdecido. O estranho com os olhos de Remy deu
um passo hesitante em direção a ela.
- Peço desculpa se vos alarmei. Nunca foi minha intenção revelar-vos a minha presença desta maneira, mas haveis-me forçado a isso. Tinha esperança em fazê-lo em
circunstâncias mais propícias.
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- Circunstâncias mais propícias? - Gabrielle ficou a olhar para Remy, continuando incapaz de dar crédito ao que os seus próprios olhos viam. - Foi por essa razão
que não aparecestes quando vos chamei há algumas horas?
- Chamastes-me? Não vos ouvi.
Gabrielle mordeu com força o lábio inferior para que parasse de tremer.
- Gritei por vós na névoa, mas não viestes. Pensei que me havíeis rejeitado, tendo voltado para o mundo dos mortos.
Remy mostrou-se bastante desconcertado, mas sorriu-lhe afetuosamente.
- Gabrielle, nunca vos rejeitaria, ainda que não passasse de um fantasma, mas asseguro-vos que não sou. Se fosse um fantasma, a vossa espada ter-me-ia atravessado.
Por favor, permiti que me aproxime o suficiente para que possais tocar-me, para poderdes certificar-vos de que sou um ser de carne e osso.
Gabrielle queria implorar-lhe que se mantivesse afastado, mas estava sem fala. Não queria tocar-lhe. Sentia um terror irracional que a levava a pensar que se lhe
tocasse ele evaporar-se-ia à semelhança de Nostradamus, que se sumira num sibilar de vapor.
Remy continuava a aproximar-se. Quando os dedos dele se fecharam no seu pulso, Gabrielle não conseguiu ter força de vontade para lhe resistir. Remy ergueu-lhe a
mão, encostando a palma ao seu peito, por cima da região do coração. Não era um homem feito de nevoeiro, mas sim sólido como pedra. O peito plano era todo constituído
por músculos duros e, por baixo do justilho muito coçado, Gabrielle sentia o bater regular do coração.
A mão que pegava na sua era forte e estava cheia de calos, além de ser quente. Tal como a outra com que Remy lhe acariciou a face. Gabrielle estendeu a sua, segurando
essa mão, mantendo-a na sua face. Fechou os olhos, desfrutando da textura áspera da palma da mão de Remy na sua pele. Quase conseguia sentir o sangue a pulsar através
das veias dele. A verdade atingiu Gabrielle com toda a força da terra que se soerguesse debaixo dos seus pés.
Nicolas Remy estava vivo.
Os olhos de Gabrielle abriram-se, as pálpebras trementes. Remy olhava-a fixamente.
- Aí tendes. Estais a ver?
Gabrielle acenou que sim, a respiração a sair-lhe da boca num meio soluço estrangulado. Continuando a ter muita dificuldade em acreditar, as suas mãos começaram
a percorrer o corpo dele com frenesim, o peito, os tendões
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dos braços e os ombros largos. Em seguida, os dedos começaram a subir, acariciando-lhe febrilmente o cabelo e a barba, a fronte e as faces.
Ouviu a respiração de Remy a acelerar-se e deleitou-se sempre que o peito dele se soerguia. Quando os dedos trémulos dela delinearam o contorno dos lábios dele,
sentindo a respiração cálida, Gabrielle soltou uma gargalhada entrecortada que raiava a histeria.
- Não haveis morrido realmente - sussurrou.
- Não - replicou ele numa voz enrouquecida. Prendendo a mão dela, Remy comprimiu os lábios ardentemente contra a palma. - E pela primeira vez em três anos, sinto-me
francamente contente por continuar vivo.
Gabrielle ergueu o rosto, olhando diretamente para os olhos escuros e de expressão ardente de Remy. Os seus ficaram marejados de lágrimas. Por um qualquer milagre,
que ela não conseguia explicar, o destino trouxera-o até junto de si. Não como um fantasma, mas maravilhosa e gloriosamente vivo.
com um grito de alegria, Gabrielle estendeu os braços e enlaçou-o pelo pescoço, fazendo algo que percebeu que devia ter feito há anos. Embrenhou os dedos no cabelo
de Remy e beijou-o com toda a sua fogosidade.
Sentiu que Remy ficava rígido de tão perplexo que se sentia, mas apenas por momentos, após o que começou a beijá-la ardentemente, com uma ânsia e paixão que a deixaram
entontecida. Gabrielle agarrava-se aos ombros dele, retribuindo-lhe o beijo avidamente e procurando a boca dele insaciavelmente, sem ser capaz de o largar.
- Remy... meu muito querido Remy - murmurou ela. Os seus lábios entreabriram-se, permitindo-lhe que a beijasse mais profundamente. Gabrielle gemeu num tom enrouquecido
ao sentir a calidez da língua dele na sua, saboreando a vitalidade que fluía através do corpo dele. Parecia-lhe que a sua pulsação lhe ribombava nos ouvidos ao ouvir
notícias prodigiosas. Remy está vivo... vivo.
O coração de Gabrielle encheu-se de tanta alegria que chegava a ser dolorosa. Quando os lábios dos dois se separaram, ambos estavam com a respiração arquejante.
Ele sorriu-lhe com a expressão insegura de um homem que mal conseguia acreditar na sua boa sorte.
Gabrielle tentou retribuir o sorriso dele, mas o choque que o regresso de Remy vindo do mundo dos mortos lhe causara apoderou-se de si finalmente. As feições dele
turvaram-se diante dos seus olhos e sentiu que os joelhos lhe fraquejavam, começando a ceder.
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Mas, então, Gabrielle Cheney fez algo que nunca fizera em toda a sua vida. com a cabeça a tombar para trás, desfaleceu nos braços de um homem, completamente inconsciente.
Nicolas Remy tinha percorrido a senda de pesadelos desde o massacre da véspera do dia de São Bartolomeu, mas esta noite sentia-se como se estivesse a sonhar. As
botas grossas afundavam-se na requintada carpete turca de uma alcova adequada a uma princesa, com um alto teto abobadado, janelas altas e gradeadas e quadros magnificentes
que adornavam as paredes.
O leito imponente de mogno entalhado, com um dossel de onde pendiam panos de seda de um bege-claro, predominava na alcova. Gabrielle parecia perdida no meio daquela
ampla cama, o cabelo louro espalhado em cima de uma espessa almofada de penas. As pestanas de um louro-dourado roçavam-lhe pelas faces, o rosto tão sereno e de pele
branca fazia com que o coração de Remy se apertasse com um receio como nunca sentira no campo de batalha.
- Deus do céu, eu... eu matei-a - murmurou num sussurro enrouquecido.
- Nem pensar - retorquiu a voz ríspida da criada de Gabrielle. Bette era uma jovem rechonchuda com um aspeto competente, um rosto inteiramente calmo abaixo da touca
orlada de renda. Acotovelou Remy para que se afastasse para o lado, inclinando-se para baixo a fim de friccionar os pulsos de Gabrielle.
Ele próprio devia ter pensado naquilo, refletiu Remy, mas tanto a sua mente como os seus membros pareciam ter ficado entorpecidos. Os reflexos rápidos que lhe haviam
permitido correr para a beira de tantos camaradas feridos, a fim de os socorrer, davam a impressão de o terem abandonado por completo. Sentia-se inteiramente impotente
perante a figura indefesa daquela mulher estendida no leito.
Remy só despertou daquele torpor depois de Bette o mandar ir buscar água. Levou-lhe um jarro de água do lavatório de pé, entornando metade da água na carpete devido
à muita pressa.
Bette molhou um pano, que aplicou na testa de Gabrielle. Quando começou a desapertar o corpete dela, disse:
-( Vai ter de sair agora, capitão Remy. Espere no corredor.
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- Não! - protestou ele. - Não posso...
- Pode e fará o que lhe disse - ripostou Bette. - Quando a minha senhora recuperar a consciência, não me parece que me agradeceria por lhe ter mostrado as suas mamas.
- Meu Deus, madame, eu jamais seria capaz... - disse Remy, corando ao ouvir as palavras desbragadas da criada...
- Fora! - Bette abriu as mãos e espalmou-as no peito de Remy, empurrando-o firmemente em direção à porta. Remy permitiu-lhe que corresse com ele, mas apenas porque
tinha sido a boa vontade dela que o autorizara a permanecer junto de Gabrielle.
Alarmara todo o pessoal doméstico da casa de Gabrielle quando chegou subitamente à soleira da porta e Remy não podia censurá-los por isso. Devia ter o aspeto de
um vagabundo desesperado que gritava, pedindo que o ajudassem, com a ama deles nos seus braços.
Era um milagre que não o tivessem manietado e tirado Gabrielle dos seus braços, após o que poderia ter sido arrastado até às autoridades mais próximas. Tinha de
agradecer a Bette por naquele momento não estar agrilhoado.
Ela tinha sido uma das criadas em Belle Haven. Entretanto, Bette crescera e engordara consideravelmente, tendo adquirido as maneiras e postura de criada de uma senhora
requintada, ao ponto de Remy mal a ter reconhecido. Teve a sorte de a memória que Bette guardava de si ser muito mais vívida, bem como pelo facto de não se ter sentido
tão assombrada pelo seu regresso do mundo dos mortos como Gabrielle se sentira.
Remy esticou o pescoço para um último olhar a Gabrielle antes de Bette lhe fechar a porta da alcova na cara. Gabrielle continuava sem se mexer e Remy tentava não
deixar que os seus pensamentos se centrassem em coisas tão terríveis como um ataque do coração e uma apoplexia. Gabrielle era jovem e saudável. Apesar de ter a aparência
da donzela indefesa tradicional, havia muito que Remy se apercebera de que ela era forte e resiliente.
Ela recuperar-se-ia sem dificuldade. Só teria de esperar, o que não era a coisa mais fácil para um homem acostumado a agir quaisquer que fossem as circunstâncias.
Obrigou-se a encostar-se a uma parede, cruzando os braços diante do peito, quando o que queria realmente era andar pelo corredor de uma ponta à outra cheio de inquietação.
Mas reconsiderou, concluindo que seria mais acertado da sua parte não chamar mais a atenção para a sua pessoa. Tinha perceção de que estava a ser observado do patamar
de baixo pelo
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lacaio de Gabrielle, enquanto os demais servos o olhavam com desconfiança, como se ele se preparasse para roubar as pratas. Os olhares desdenhosos faziam com que
Remy estivesse ainda mais consciente da sua aparência tão mal-ajambrada.
Supunha que, em circunstâncias normais, a alguém com o aspeto de vagabundo dele nem sequer seria permitida a entrada pela porta da cozinha de uma grandiosa mansão
como aquela. Àquela hora, a maior parte da casa era deixada às escuras, mas quando levou Gabrielle nos seus braços até à alcova no piso de cima, Remy conseguiu ver
de relance o suficiente para saber que se encontrava no interior de uma casa na cidade de uma imponência opulenta.
Perguntou-se como é que Gabrielle passara a viver sozinha em Paris, tão longe das irmãs e da ilha Encantada. Quando o pai, o Chevalier Louis Cheney, tinha desaparecido
no mar, dizia-se que o cavaleiro afundara a maior parte da fortuna da família juntamente consigo. Portanto, como é que Gabrielle tinha posses para manter uma mansão
como aquela?
Remy tinha noção do que ouvira murmurado nas ruas a respeito dela, mentiras que até mesmo agora faziam com que rangesse os dentes e se sentisse ansioso por cortar
a língua imunda dos maldizentes. A cortesã mais deslumbrante que aparecera em Paris em muito tempo", dissera a velha na taberna numa voz de cana rachada, referindo-se
a Gabrielle.
Cortesã... um nome requintado para se designar uma prostituta. Se essa velha jarreta tivesse sido um homem, Remy tê-lo-ia trespassado com a sua espada. Sempre odiara
Paris e aquela era uma de muitas razões. Era um antro perverso de más-línguas, desde o palácio até aos becos da cidade, todos a deleitarem-se com escândalos e falsidades.
Não admirava, pois, que uma mulher tão encantadora como Gabrielle fosse alvo desse cinismo e inveja característicos de mentes tacanhas.
Se tivessem conhecido Gabrielle como ele conhecera naquele verão, ninguém se atreveria a conspurcar a sua honra. Uma mulher-criança que tanto se esforçara por ser
sofisticada e que, não obstante, era tão comovedoramente inocente, ignorante das maneiras do mundo. Terna e fria, generosa e cruel, conforme os seus estados de espírito,
que vogavam ao sabor do vento. Os olhos azuis podiam cintilar de riso ou mostrarem-se ensombrados pela melancolia, mas somente quando ela pensava que não era vista
por ninguém. Tinham sido muitas as vezes em que se apercebera de uma expressão de tristeza no rosto dela, o que lhe tocara bem fundo no coração, mais ainda por nunca
ter sido capaz de descobrir a origem da sua tristeza.
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Só esperava que Gabrielle se sentisse feliz agora. Desde sempre que ela sonhara viajar para grandes cidades, viver numa bela casa e ir a faustosas festas e bailes.
A única coisa que Remy sabia com que ela nunca sonhara era com ele.
Quando tinha cometido o erro de dar a entender a natureza dos seus sentimentos para com Gabrielle, nesse verão que passara na ilha Encantada, ela deixara bem claro
que não queria ter nada a ver com ele e que, quanto mais depressa se fosse embora, melhor seria. Nunca imaginara, nem nos seus sonhos mais extravagantes, que Gabrielle
saudasse o seu regresso com braços tão acolhedores e com tal ardor nos lábios. O abraço que ela lhe dera tinha despertado desejos nele, fantasias a respeito dela
que sempre tivera a sensatez de não acalentar. Mas agora não conseguia impedir-se que a sua mente sonhasse, dando largas a todos os seus devaneios.
Existiria alguma mulher que fosse capaz de beijar um homem como Gabrielle o tinha beijado sem sentir nada? Poderia ela desfalecer de felicidade pelo seu regresso
se ele lhe fosse indiferente como em tempos afirmara? Seria possível que, ao fim e ao cabo, ela gostasse realmente dele, talvez mesmo amá-lo?
E, se amasse, o que é que isso tinha de mais? Perguntou uma voz lúgubre dentro de si num tom autoritário. "Não tens mais para lhe oferecer agora do que tinhas há
três anos, talvez até mesmo menos." Aquele pensamento pôs um fim abrupto àquela esperança ardente condenada à nascença que nascera dentro de si, tão efetivamente
como se tivesse levado um banho de água fria.
- Capitão Remy?
Tinha estado tão absorto nos seus pensamentos que não se apercebera do barulho do trinco da porta da alcova, dando saída a Bette. Endireitou-se e afastou-se da parede
de imediato, olhando para a criada com uma expressão de ansiedade.
- A Gabrielle? Como é que ela está? Já recuperou os sentidos? Quero dizer... ela já...
- A senhora está bem - respondeu Bette, interrompendo aquela catadupa de perguntas num tom tranquilizante. - De facto, já perguntou pelo capitão.
- Graças a Deus. - Remy respirou de alívio, os seus ombros a descontraírem-se, livrando-se de alguma da tensão que se apoderara de si. Apertou a mão de Bette. -
E também lhe agradeço, mademoiselle.
- Cuidar de Dona Gabrielle, monsieur, é tanto a minha obrigação como um privilégio - replicou Bette com uma fungadela cheia de dignidade.
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- Sei que sim. O que eu quis foi agradecer-lhe por ter intercedido a meu favor há pouco, impedindo que eu fosse preso.
- É ao lacaio que deveis agradecer. Mostrastes-vos muito frenético face à perspetiva de terdes de vos separar de milady, e eu ainda me recordo da vossa destreza
com a espada na noite em que os caçadores de bruxas atacaram Belle Haven. E nessa altura ainda estáveis a recuperar do vosso ferimento. - Bette sorriu acanhadamente,
mostrando covinhas nas faces ao fitá-lo apreciativamente. - E permiti que vos diga, capitão, apesar de estardes a precisar de um bom corte de cabelo e de vos barbeardes,
estais com uma forma física extraordinária para um homem que está morto.
- Não me pareceis muito surpreendida por verdes que estou vivo, mademoiselle - retrucou Remy com um pequeno sorriso de alguma amargura.
- Quando uma mulher serviu uma família de mulheres sábias durante tanto tempo como eu - retorquiu Bette com um encolher de ombros -, não há muito que nos possa surpreender.
E agora ide ter com a minha senhora, que está à vossa espera.
Remy aproximou-se da porta da alcova e abriu-a. Tinha esperado que Bette entrasse logo atrás de si, sem abdicar do seu papel de pau de cabeleira junto da sua senhora.
Ficou surpreendido quando a criada se afastou, deixando que ele entrasse sozinho no quarto. Remy entrou com um passo hesitante, fechando a porta silenciosamente
atrás de si.
O candelabro havia sido deslocado de maneira a que a luz incidisse sobre a cama. Os panos que pendiam do dossel estavam corridos, permitindo apenas que se vislumbrasse
a figura aconchegada debaixo de uma dispendiosa coberta de brocado. Remy avançou vagarosamente, sentindo o coração a bater acelerado. Sentia-se tão inseguro como
um camponês grosseiro que invadisse os aposentos de uma princesa.
- Gabrielle? - chamou em voz baixa. Estendeu a mão para arredar os panos para trás.
Gabrielle estava recostada em almofadas e Remy começou a respirar mais regularmente depois de a ter visto. Tinha o cabelo caído sobre os ombros, como um halo dourado
que lhe emoldurava a face muito pálida, não fossem as rosetas muito vermelhas nos malares. Remy sempre se sentira enfeitiçado pela beleza de Gabrielle, mais ainda
porque parecia emanar de uma qualquer luz intensa que ardia dentro dela, expressando-se no brilho dos olhos azuis que pareciam pedras preciosas.
Gabrielle estava quase despida, com pouco mais além da camisa de dormir, e olhava para ele agarrando as cobertas que estavam puxadas até ao pescoço
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de maneira a cobrir os seios, de uma maneira que tinha tanto de recatada como de infantil, uma atitude que deixava Remy curiosamente comovido. Sentiu uma estranha
vontade quase irresistível de se deixar cair de joelhos diante dela, como fizera naquele dia na ilha Encantada, renovando a sua promessa.
"Juro-vos pelo sangue da minha vida servir-vos e proteger-vos para sempre." Em vez disso, limitou-se a manter-se de pé, ficando a olhar para Gabrielle até ela lhe
estender a mão. Os dedos esguios e macios fecharam-se nos seus, puxando-o para que se sentasse ao seu lado na beira do leito.
- Estais... estais a sentir-vos bem? Estais recuperada do choque?
- Recuperada? Não sei bem - respondeu ela com uma risada embargada, continuando a devorá-lo com os olhos. - Portanto, não sonhei convosco. Estais realmente aqui?
Se alguém estava a sonhar, pensou Remy, seria ele próprio.
- Sim, meu am... - começou a responder, a palavra quase a escapar-lhe da boca antes de poder contê-la, uma palavra que nunca se atrevera a proferir, até mesmo quando
a sós consigo próprio.
Gabrielle pareceu não ter ouvido. Inclinou a cabeça de lado, aparecendo-lhe uma pequena ruga na fronte enquanto se entregava aos seus próprios pensamentos.
- Portanto, tendes estado vivo durante todo este tempo.
- Se quiserdes chamar-lhe viver - retorquiu ele pegando-lhe na mão, mas Gabrielle tirou-a, afastando-a dele e sentando-se mais a direito.
- Pensei que tínheis morrido.
- Ah... sim... - começou Remy.
Mas Gabrielle interrompeu-o, o seu timbre de voz exacerbado.
- Haveis permitido que acreditássemos que estáveis morto! - O rosto adquiriu uma expressão franzida, como a cara de uma garota que se esforçasse por não chorar.
Baixou a cabeça, desaparecendo por detrás de uma cortina de cabelo sedoso.
Remy olhava-a extremamente conturbado. Nunca vira a orgulhosa Gabrielle a chorar, nem sequer quando os caçadores de bruxas se apoderaram da irmã mais nova, ocasião
em que ficou aterrorizada, temendo pela vida de Miri.
- Peço desculpa, Gabrielle. Por favor... por favor, não deveis chorar - murmurou Remy, tentando afastar-lhe o cabelo para trás.
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A cabeça de Gabrielle inclinou-se para trás de repente. Os seus olhos coruscavam, sem lágrimas, mas com uma fúria e um ardor suficientes para reduzir um homem a
cinzas onde se encontrasse.
- Não vou chorar. vou matar-vos!
Gabrielle fechou o punho e socou o maxilar de Remy. O ataque apanhou-o completamente desprevenido e foi desferido com tanta força que o derrubou da beira da cama
e caiu de costas, ficando estatelado no chão. Ficou a pestanejar, tanto devido à muita perplexidade, como pela força do soco. Atabalhoadamente, tal a pressa, Gabrielle
atirou as cobertas para trás, levantou-se da cama de um salto e colocou-se ao lado dele, olhando-o do alto, qual deusa irada.
- Sacana! Maldito sacana! - invetivou aos gritos. Afastou-se dele intempestivamente, descalça e com a camisa de dormir a adejar.
Remy passou a língua pelos dentes de baixo e sentiu um fio de sangue que corria do lábio fendido, sentindo-se absolutamente atónito. Enquanto se levantava do chão
com alguma dificuldade, Gabrielle andava de um lado para o outro pela alcova, massajando os nós dos dedos magoados e praguejando, usando toda a espécie de invetivas,
chocando Remy, que nem sequer imaginava que ela as soubesse.
Todo o pudor tinha sido esquecido na fúria que se apoderara dela, parecendo que nem sequer se apercebera de que a camisa de dormir de cambraia muito fina era quase
transparente, revelando a Remy a curvatura suave dos seios, bem como todas as formas curvilíneas do corpo de uma mulher. Se estivesse toda nua, o resultado teria
sido quase o mesmo.
Aquela visão era um golpe muito mais formidável desferido contra os seus sentidos do que o murro que ela lhe dera. Olhando em volta freneticamente, à procura de
qualquer coisa com que pudesse cobri-la, agarrou a coberta e desprendeu-a dos lençóis. Aproximou-se dela por detrás e envolveu-a na colcha.
- Gabrielle, acalmai-vos e permiti-me que veja se a vossa mão está muito magoada. Dai-me a oportunidade de poder explicar-me.
Gabrielle atirou a coberta para o chão e deu uma palmada nos dedos dele, afastando a mão.
- Mas o que é que há para explicar? Haveis fingido que estáveis morto durante três anos. Três malditos anos! - O peito dela soerguia-se com uma tal indignação que
os seus seios corriam o risco de saírem completamente pelo decote bastante rasgado da camisa de dormir. Galantemente, Remy tentava
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desviar os olhos, uma luta consigo próprio que corria o perigo de vir a perder.
- Mas por onde diabo é que tendes andado durante todo este tempo? Remy teria sentido dificuldade em responder a essa pergunta, até mesmo se Gabrielle não estivesse
quase nua à sua frente, com a atitude de querer rasgar-lhe a garganta. Desde a véspera do dia de São Bartolomeu que a vida dele tinha sido uma luta constante pela
sobrevivência, para conseguir controlar os horrores que lhe preenchiam a mente e, acima de tudo, permitir a si próprio a esperança por nada, a esperança de não sentir
nada. Numa questão de meros minutos, Gabrielle Cheney conseguira que o coração dele ficasse ferido de morte.
- Eu... eu tenho estado fora do país - respondeu ele por fim. - Durante a maior parte do tempo, estive na Irlanda e em Inglaterra.
- Oh? E, por acaso, eles estavam com falta de pergaminho e tinta, foi isso?
- Gabrielle, eu era outra vez um fugitivo, que continuava vivo apenas graças ao facto de os meus inimigos terem pensado que eu estava morto. Consequentemente, não
me pareceu prudente estar a enviar missivas.
- E não havia nenhum mensageiro em quem pudésseis confiar para que me trouxesse notícias vossas? - perguntou ela com uma fúria feita de frieza. - Ou também haveis
ficado momentaneamente mudo? Talvez tenha acontecido alguma coisa à vossa língua, foi isso? Mas a julgar pela maneira como a enfiastes na minha boca há pouco, pareceu-me
que estava em boas condições de funcionamento.
- Gabrielle! - exclamou Remy num tom de repreensão, considerando que ela falar de maneira tão grosseira acerca do beijo que haviam partilhado era quase profano.
- Lamento muito que vos tenhais sentido tão perturbada com a notícia da minha morte, mas deixai que vos saliente uma coisa, milady. A julgar pela maneira como nos
separámos, haveis-me dado muito poucas razões para acreditar que vos importásseis comigo.
Embora ela tivesse estremecido ao ouvir as palavras dele, continuou no mesmo tom aguerrido.
- Muito bem. Suponhamos que não me importei com o que vos pudesse ter acontecido. Mas e com respeito às minhas irmãs? Decerto que sabeis que a Ariane tinha muita
estima por vós. E... e a Miri. Ela considerava-vos o irmão que nunca tivemos. Sabeis quantas foram as noites em que a reconfortei enquanto ela chorava por nós, cheia
de desgosto por terdes morrido? Quantas foram as noites em que eu...
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Gabrielle interrompeu-se abruptamente e afastou-se dele com brusquidão. Apesar de ter recuado para as sombras, junto das janelas, ele via o que ela se esforçava
tanto por ocultar, apercebendo-se de que a cólera que ela mostrava não passava de uma máscara para a dor por que passara. Ela vivera o luto por ele durante todo
aquele tempo. Ele não lhe era indiferente. Mas qualquer satisfação que Remy pudesse sentir foi eliminada ao ter noção do muito sofrimento que lhe infligira.
As lágrimas corriam pelas faces dela. Gabrielle chorava de uma maneira que Remy duvidava que a orgulhosa e obstinada Gabrielle alguma vez tivesse permitido que a
vissem a chorar. E aquelas lágrimas eram uma censura pior do que quaisquer palavras duras que ela pudesse atirar-lhe à cara. Abeirou-se dela com tanto cuidado como
teria feito em relação a qualquer criatura da floresta prestes a atacar ou a pôr-se em fuga.
- Gabrielle. Peço desculpa por vos ter causado e às vossas irmãs qualquer mágoa. Preferia cortar o meu braço direito antes de alguma vez...
Ela afastou-se dele, virando-lhe as costas e adotando uma postura rígida. Aquela camisa de dormir traiçoeira descaiu, expondo um ombro de pele macia e branca. Remy
compôs o tecido, os seus dedos a roçarem pela pele macia e cálida. Fez todos os esforços para ignorar o efeito que o toque no corpo dela teve no seu corpo.
- Há uma coisa que deveis compreender a meu respeito, minha querida - disse Remy, pousando as mãos na parte de cima dos braços dela. Gabrielle ficou com o corpo
rígido quando ele a forçou suavemente a virar-se para si. - Tenho tido uma existência dura, sem estar acostumado a nenhuma das influências que a ternura exerce.
Gabrielle mantinha as pestanas humedecidas baixas, recusando-se a olhar para ele.
- Nunca tive uma mãe e irmãs que se preocupassem e chorassem por mim. Até mesmo o meu pai há muito que faleceu e não tenho outros familiares vivos. Quaisquer amigos
que tenha tido eram militares como eu próprio, que compreendiam bem as realidades do nosso modo de vida, que a morte está sempre um passo atrás de nós. Peço desculpa
pela minha falta de consideração, mas, muito simples e francamente, não estou habituado a pensar que a minha vida tenha alguma importância para quem quer que seja.
- Isso... isso é porque sois um homem muito estúpido - retorquiu Gabrielle fungando, mas cedeu o suficiente para encostar a fronte ao peito dele.
Remy roçou com os lábios pela parte de cima dos cabelos dela.
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- Perdoais-me?
Gabrielle não lhe deu resposta, mas encostou-se ternamente a ele de um modo que era muito mais eloquente do que quaisquer palavras, aninhando o rosto no ombro dele.
Os braços de Remy enlaçaram-na, apertando-a a si, abraçando-a de uma maneira com que sempre sonhara poder fazer.
Sentia-se como se se contentasse em tê-la nos seus braços para sempre, mas Gabrielle soltou-se do abraço, limpando as últimas lágrimas com as costas da mão. Já não
parecia estar encolerizada, mas o seu tom de voz continuava a ser de melindre quando perguntou autoritariamente:
- Portanto, exatamente, quando é que estáveis a pensar informar-nos da vossa presença? Por que razão é que me haveis seguido furtivamente durante toda a noite?
- Não estava a seguir-vos furtivamente - começou Remy a protestar, mas depois fez uma careta. - Muito bem. Talvez tenha feito isso. Tinha estado à espera de um momento
oportuno para vos abordar e, quando vos vi sair de casa esta noite com um qualquer objetivo imprudente, senti que não me restava outra alternativa que não fosse
seguir-vos.
- Para vos inteirardes do que eu ia fazer? - perguntou Gabrielle num tom de censura.
- Sim - admitiu Remy, recusando-se a ser intimidado pela reprovação na cara dela. - Foi uma imprudência da vossa parte, Gabrielle, sair sozinha e à noite nesta cidade
amaldiçoada para visitar uma casa abandonada e muito deteriorada. Mas o que é que fostes fazer lá?
Gabrielle mostrou uma expressão de rebeldia no rosto, levando-o a pensar que ela se recusaria a responder-lhe. Mas, então, ela encolheu os ombros.
- Se quereis saber, Nicolas Remy. Fui lá para tentar chamar-vos do mundo dos mortos.
- O quê!?
- Conheço uma bruxa que vive escondida nessa casa velha, a qual é muito competente nas artes da necromancia. Realizámos uma sessão espírita para contactarmos o vosso
caro espírito no outro mundo.
Remy ficou a olhar para ela de boca aberta. Ao longo da maior parte da sua vida, sempre fora um homem simples e prático, cético de qualquer coisa que lhe cheirasse
a magia ou superstição. Mas a sua convivência com a Rainha das Trevas e com as irmãs Cheney havia alterado para sempre as perspetivas simples que tivera do mundo.
Em particular, vira e aprendera quanto
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bastasse junto de Ariane nesse verão que passara na ilha Encantada para que reagisse com horror às palavras muito calmas de Gabrielle.
- Necromancia! - exclamou escandalizado. - Isso é do pior que existe na magia negra. Em que é que estáveis a pensar?
- Sentia-me desesperada. Tinha de vos ver uma última vez, falar convosco. - O lábio inferior de Gabrielle tremia, obrigando-a a mordê-lo para o aquietar. - Para
vos suplicar que me perdoásseis.
- Gabrielle, o que é que, possivelmente, poderíeis ter feito para que eu tivesse de vos perdoar?
- Pensei que tinha feito com que vos matassem.
- Feito com que me matassem!? - ecoou Remy perplexo. - O massacre na véspera do dia de São Bartolomeu não aconteceu por vossa culpa. Ainda que eu tivesse morrido,
como é que isso poderia ter sido por vossa culpa?
- Porque vos devolvi a vossa espada e fiz com que partísseis para Paris, ao encontro... ao encontro da vossa morte.
- Não fizestes com que eu partisse, era imperativo que eu partisse. O meu rei corria perigo.
Gabrielle abanou a cabeça.
- Mesmo assim, eu devia ter-vos impedido de deixar a nossa ilha. Eu sabia como vos sentíeis atraído por mim. Devia ter sido mais simpática para convosco. Devia ter-vos
mantido em segurança na ilha Encantada, ainda que para isso fosse forçada a manter-vos em cativeiro. Até mesmo se eu... se tivesse de vos seduzir para poder fazer
isso.
- Meu Deus, Gabrielle! - Remy emoldurou-lhe a face com as suas mãos e ralhou com ela. - Mas alguma vez vos passou pela cabeça que eu permitiria que fizésseis uma
coisa dessas? Que sou a espécie de homem que, de ânimo leve, poria de parte a minha honra e, pior ainda, que seria capaz de me aproveitar da vossa virtude? Não,
minha querida, e mais ainda, jamais teríeis sido capaz de vos comportardes dessa maneira. O vosso próprio sentido de honra nunca o teria permitido.
- A minha honra - repetiu Gabrielle em voz baixa.
- Sim, éreis uma menina inocente, embora a mais bela que os meus olhos viram. - Remy acariciou-lhe as faces com a parte carnuda dos polegares. - Devo admitir que
me sentia bastante enfeitiçado por vós. Mas o meu dever para com o reino de Navarra estava em primeiro lugar. Por muito que fôsseis importante para mim, nada poderia
ter sido diferente.
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Gabrielle tinha ficado imóvel quando ele lhe tocou. Fechando os dedos nos pulsos de Remy, vagarosamente afastou as mãos dele do seu rosto.
- Sim, tendes razão - disse ela como que entorpecida. - Nada poderia ter sido diferente. Agradeço-vos por me terdes lembrado disso. - Gabrielle afastou-se dele abruptamente,
deixando Remy com a desoladora sensação de que acabara de dizer algo de terrivelmente errado. Desde sempre que fora um palerma atabalhoado no que dizia respeito
a lidar com mulheres e, muito em especial, no tocante a Gabrielle. Ao invés de encher a boca com o seu dever, talvez devesse ter-lhe dado a saber o quanto a adorava,
que deixar a ilha Encantada, com a convicção de que nunca mais a veria, tinha sido a coisa mais difícil que fizera em toda a sua vida.
Mas a expressão que se instalara no rosto de Gabrielle não era nada encorajadora. Havia qualquer coisa que se fechara nos olhos dela quando se encaminhou para o
guarda-roupa e começou a passar revista aos vestidos e anáguas. Remy devia ter sentido alívio ao ver que ela procurava alguma coisa com que se cobrir, mas era como
se estivesse a vê-la a couraçar-se contra si. Escolheu um robe de brocado dourado que parecia ter custado mais dinheiro do que o que ele poderia ganhar como militar
num ano.
- Portanto, decorrido tanto tempo, o que é que vos trouxe finalmente de volta para me verdes? - perguntou Gabrielle num tom autoritário.
- Preciso da vossa ajuda numa coisa - admitiu Remy com relutância.
- Oh!?
- E... e também queria voltar a ver-vos - apressou-se a acrescentar. O que estava muito aquém da verdade. Ela nunca estivera muito longe dos seus pensamentos e do
seu coração durante os últimos anos, mas pareceu-lhe uma futilidade estar a dizer-lhe isso agora. Não quando a expressão com que Gabrielle o olhava era tão fria,
o sorriso com a radiância de uma estrela longínqua.
- Muito bem. Sugiro que vos senteis enquanto me ponho um pouco mais apresentável. Em seguida, podeis regalar-me com as vossas aventuras durante os últimos três anos
e dizer-me como é que vos posso ser útil, capitão Remy.
Capitão Remy? Mas que diabo...? Remy franziu os sobrolhos, perguntando-se o que é que teria dito ou feito para provocar tal mudança na mulher que lhe parecera perdidamente
apaixonada nos seus braços apenas alguns momentos antes. Mas antes de ele poder perguntar-lhe, Gabrielle já tinha desaparecido
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atrás de um biombo de madeira no extremo mais afastado da alcova. Não lhe assistia o direito de esperar que os seus sentimentos para com Gabrielle tivessem algum
efeito. Nunca esperara. Mas sentiu-se como se tivesse tido um vislumbre do Paraíso naquela noite e, sem saber como, o tivesse deixado escapar-se por entre os seus
dedos.
Gabrielle enfiou os braços nas mangas, ajeitando o robe nos ombros. O biombo de madeira intrincadamente entalhada mantinha-a oculta dos olhos de Remy, contudo não
se retirara atrás do biombo devido a qualquer sentido de pudor.
Já era muito tarde para isso depois da maneira como andara pela alcova, vestida apenas com uma camisa de dormir que mal cobria a sua nudez. Além disso, já fizera
muito pior do que revelar os segredos do seu corpo. Também lhe revelara o seu coração, a par de todos os sentimentos que durante tanto tempo se recusara a reconhecer
até mesmo perante si própria.
Nicolas Remy não lhe era indiferente, interessava-se por ele muito mais do que era da sua vontade. É claro que não estava apaixonada pelo homem. Era incapaz de sentir
amor por alguém, mas quando pensava na mágoa que sentira durante os últimos três anos por pensar que ele morrera, só lhe apetecia bater-lhe com os punhos no peito,
de tão furiosa que estava com ele.
- Porquê? Por que diabo é que não me destes a saber que estáveis vivo? Se eu não pensasse que tínheis morrido, eu teria... teria...
"Teria feito o quê?", perguntou-lhe uma vozinha trocista dentro de si. "Não terias enveredado por uma carreira de cortesã? Terias poupado a tua virgindade para ele?"
Desde sempre que isso teria sido impossível. Graças a Étienne Danton, quando conheceu Remy já era tarde de mais para isso. A alegria que sentira ao ver que Remy
continuava vivo fizera com que se esquecesse momentaneamente de quem era, aquilo que estava destinada a vir a ser, que, sem dúvida alguma, não era a noiva enrubescida
de nenhum homem.
Enquanto abotoava os botões de marfim do robe com alguma dificuldade, a voz de Remy ecoava-lhe na mente, causando-lhe tristeza. Nada poderia
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ter sido diferente. As palavras dele haviam-na despertado para a realidade com um baque doloroso, contudo sentia-se agradecida por Remy lhe ter recordado isso. Antes
de fazer mais figuras tristes perante ele do que já fizera. Beijá-lo e ter desfalecido nos braços dele, quase esquecendo todas as suas ambições, as quais lhe haviam
permitido sobreviver ao longo dos últimos anos.
Gabrielle ergueu o olhar, vendo-se ao espelho fixado na parede, que refletia a cabeleira de um louro-dourado, a compleição macia e as feições delicadas que eram
a inveja de tantas senhoras. Mas tudo o que via era uma mulher atormentada por saber que a sua beleza era apenas à superfície, um disfarce pouco eficaz para todas
as máculas negras na sua alma. Enfeitiçar um homem ao ponto de ele perder toda a noção da realidade, mantê-lo subjugado aos seus encantos, era uma coisa. Sem dúvida
que era muito apta a fazer isso. Mas inspirar um amor que fosse verdadeiro era uma magia que ela não possuía.
Remy considerava que ela era tão maravilhosa. Muito possivelmente, até acreditava que a amava. Mas como é que ele poderia amá-la quando nem sequer a conhecia por
dentro? Se conhecesse, nunca a teria associado a termos como honra e inocência.
Mas o que diabo é que lhe interessava o que Remy pudesse sentir por ela? Há muito que se havia apercebido de que era melhor ser a amante rica de um lorde do que
a mulher de um soldado pobre. Sedução... era aí que residia o verdadeiro poder de uma mulher. Um poder que se traduzia na capacidade de proteger a sua família e
a si própria das maquinações malévolas da Rainha das Trevas. Ser forte e invulnerável à espécie de dor que poderia ser infligida a uma pessoa por homens predatórios
como Danton. Ou até mesmo, inadvertidamente, por um homem galante como Remy.
De acordo com o que Nostradamus dissera, o seu futuro já havia sido traçado. Estava destinada a tornar-se a mulher mais poderosa em toda a França, a amante do rei
do próprio Remy, Henrique de Navarra. Perguntou-se como é que Remy reagiria se soubesse isso. Ficaria aturdido? Magoado? Encolerizado? Virar-lhe-ia costas enojado
ou faria tudo o que estivesse ao seu alcance para a persuadir a abandonar os seus planos de vida, deixando Paris?
Gabrielle jamais faria isso. Era a Paris que pertencia. Se alguém devia deixar a cidade, essa pessoa era Remy. A cidade era tão perigosa para ele atualmente como
havia sido três anos atrás. Gabrielle sorriu com amargura perante a ironia daquela situação. Tinha albergado a esperança - tinha rezado e até se tinha arriscado
a entrar pelo mundo dos mortos - de poder ver Remy uma última vez. Mas, agora que ele regressara, seria forçada a fazer todos os possíveis e impossíveis para o afastar
de si outra vez. Fechou os olhos, sentindo um desespero momentâneo, após o que se esforçou por se recompor. Acabou de abotoar o robe até ao pescoço, onde a gola
alta lhe envolvia o pescoço esguio com um folho. Movimentando-se com a destreza de muita experiência, apanhou o cabelo ao alto, prendendo-o numa rede adornada com
pérolas de tamanho ínfimo. O espelho mostrou-lhe a imagem de uma mulher altaneira e reservada.
com um último olhar à sua imagem fria, saiu de detrás do biombo. Tinha levado tanto tempo a arranjar-se que esperava ver Remy a andar impaciente de um lado para
o outro. Mas deparou com ele junto da imponente lareira da alcova, mostrando-se tão pouco à vontade como qualquer homem se sentiria quando deixado sozinho num ambiente
tão exclusivamente feminino.
A lareira havia sido limpa com a aproximação do verão, os suportes de latão da chaminé areados e a brilhar. O mármore entre a lareira e a carpete fora extravagantemente
cinzelado com golfinhos e sereias. A prateleira que encimava a lareira era ladeada por luxuosos candelabros de prata e entre estes viam-se alguns dos leques de Gabrielle,
um livro de poemas encadernado a couro, uma ampulheta e algumas fitas de cabelo.
Um objeto em particular atraiu a atenção de Remy. Parte da tensão no seu rosto abandonou-o quando pegou numa miniatura que também estava em cima da prateleira. Era
o retrato da irmã mais nova, Miri, uma das poucas coisas que Gabrielle levara consigo de casa da família.
Enquanto Remy examinava o retrato, os lábios cerrados numa linha tensa suavizaram-se com um sorriso. Aquela distração permitiu a Gabrielle fazer o que não conseguira
antes... observá-lo demoradamente, e ficou assombrada com o que viu.
Remy tinha mudado de maneiras que iam muito para além da sua aparência desleixada. Estava mais magro e mais endurecido do que ela se recordava, dando a impressão
de ser um homem que se preocupasse pouco com a comida ou com as horas de sono de que carecia para conseguir sobreviver.
Gabrielle sentiu uma vontade quase irresistível de lhe pedir encarecidamente que dormisse por umas horas, ordenando que lhe servissem uma boa refeição e preparassem
um banho bem quente para lhe confortar os ossos cansados. Dizer-lhe que despisse aquelas roupas sujas pelas suas viagens, que
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aparasse a barba, ralhar-lhe e apaparicá-lo, brincar com ele até que se risse como ela costumava fazer. Aconchegá-lo na sua cama e acariciar as rugas de preocupação
que ele tinha na fronte, enquanto ele mergulhava num sono reparador de que, obviamente, estava a precisar e muito. E depois...
Gabrielle tratou de refrear os seus caprichosos devaneios. Aqueles eram pensamentos estúpidos que envolviam um homem que resolvera momentos antes afastar da sua
vida. Em especial, o pensamento que levaria Remy perto do seu leito.
com muita dificuldade, Gabrielle esforçou-se por manter uma atitude de distanciamento quando se aproximou dele. Remy ergueu o olhar ao ouvir o roçagar das saias
dela. Mas o sorriso que a visão do retrato da irmã mais nova lhe pusera nos lábios desapareceu ao ver Gabrielle. O sorriso esmoreceu com um misto de desilusão e
confusão, apercebendo-se claramente das alterações na postura dela e sem gostar do que via.
Gabrielle couraçou-se por detrás de um sorriso radiante.
- Peço desculpa por ter levado tanto tempo a arranjar-me. O que é que estareis a pensar acerca das minhas maneiras, capitão Remy? Espero não vos ter feito esperar
durante demasiado tempo.
- Não - respondeu ele entredentes. Concentrou o olhar na miniatura que tinha na mão. - Estava a admirar este retrato da Miri. Tem umas parecenças extraordinárias,
tal e qual como eu me recordo dela.
- Oh? Parece-vos que sim? - A atitude de frieza de Gabrielle vacilou ligeiramente quando tirou o pequeno retrato da mão de Remy. Ele tinha razão. As parecenças de
Miri eram muito fiéis ao que ela era de facto. Gabrielle recordou-se do dia de primavera de há muito tempo no jardim quando a tinha pintado, o ar impregnado da doce
fragrância das ervas medicinais de Ariane, o zumbido das abelhas entre as flores, um dia em que a magia de Gabrielle estava no seu melhor.
Olhou para a moldura oval de marfim, recordando-se de que tinha pintado com o pincel mais fino e cores mais suaves, tendo conseguido reproduzir a imagem da irmã
na perfeição, o que não era tarefa fácil com Miri, uma garota de feições tão delicadas. Dela emanava uma qualidade etérea naquele retrato, tão elusiva como um raio
de luar. Miri inclinara-se para a frente, o cabelo comprido de um louro-acinzentado por cima de um ombro, os olhos cheios de vivacidade que pareciam bailar com impaciência,
como se pudesse desaparecer-se a qualquer momento para se entregar a folguedos com os duendes dos bosques ou para ir à procura de unicórnios.
Era impossível que agora pudesse dizer até que ponto é que Miri estava parecida com aquele retrato. Já havia mais de dois anos que Gabrielle não via Miri e só Deus
sabia quando é que voltaria a vê-la, se é que alguma vez a veria. Aquele pensamento encheu Gabrielle de uma tristeza incomensurável, sentindo tantas saudades da
irmã mais nova, que estava tão perdida para si como a magia que deixara de possuir havia tanto tempo.
Gabrielle apercebeu-se de que Remy a observava com uma intensidade que lhe causava algum mal-estar.
- Esse é um dos retratos que haveis pintado, Gabrielle? - perguntou-lhe.
- Sim, pintei-o quando tinha tempo para esses disparates. - Voltou a entregar-lhe a miniatura, aparentando uma grande indiferença. - E claro que a Miri cresceu muito
desde que pintei esse retrato. Duvido muito que conseguísseis reconhecê-la se a vísseis agora.
- Atrevo-me a dizer que não - concordou Remy com um sorriso de tristeza.
"Tal como eu não a reconheceria", pensou Gabrielle para consigo própria, suprimindo a mágoa que sentia.
- E quanto à Ariane? Como é que a Senhora da Ilha Encantada tem passado? - perguntou Remy, repondo a miniatura em cima da prateleira da lareira. com o olhar, percorreu
a prateleira como se esperasse ver também um retrato de Ariane, mostrando-se intrigado quando isso não aconteceu.
Porque Gabrielle já não conseguia olhar para a imagem da irmã que a despregava. Porque o retrato dela era demasiado doloroso, uma recordação cheia de amargura da
maneira como ela e Ariane se tinham separado.
Gabrielle conseguiu responder com desenvoltura.
- Ora, a Ariane casou com o Renard e agora vive feliz para todo o sempre com o seu grande ogre no château dele.
Embora Remy tivesse sorrido, replicou num vago tom de censura.
- Porque falais sempre tão depreciativamente de Renard? Ele é um bom homem e salvou as nossas vidas na noite em que os caçadores de bruxas atacaram Belle Haven.
- Estou bem ciente disso e tenho muita estima pelo grande pesadão que é o meu cunhado. Mas acontece que o conde e eu sempre nos deleitámos peculiarmente em nos vexarmos
mutuamente. Costumávamos dar com a pobre Ariane em doida. Houve uma ocasião em que ela chegou ao ponto de nos ameaçar de que nos fecharia nos respetivos quartos
até começarmos a comportar-nos
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como devia ser. - Gabrielle esboçou um sorriso de pesar ao lembrar-se daquilo. - As nossas discussões nunca foram sérias até...
- Até...? - incentivou Remy quando ela se remeteu ao silêncio. Gabrielle mordeu o lábio inferior, vexada consigo própria por ter abordado aquele assunto. Retomou
a conversa relutantemente.
- Até o Renard ter metido na cabeça a maldita noção de que devia encontrar-me um marido. Afirmando que eu nunca seria feliz nem estaria satisfeita até me casar.
- E parece-vos que essa noção é assim tão disparatada? - perguntou Remy calmamente.
Para ela, era. Renard a fazer de casamenteiro para ela poderia ter sido risível se não tivesse sido também insuportável, a perspetiva de que um nobre qualquer, ávido
por receber o generoso dote que Renard lhe ofereceria, pudesse estar disposto a ignorar o facto de estar a receber uma mercadoria estragada. Ou, pior ainda, ficasse
deslumbrado com a beleza dela, acreditando que estava apaixonado por ela, um amor que Gabrielle jamais seria capaz de retribuir. E quando esse noivo em perspetiva
descobrisse a verdade acerca dela? O que é que aconteceria?
Gabrielle sabia bem que existiam maneiras de uma mulher esperta poder enganar o marido, fazendo com que ele acreditasse que tinha desposado uma noiva virgem. Mas
pensar sequer nessa falsidade era algo que a repugnava. Não, seria preferível dar a saber de imediato a um homem o que ela era exatamente, ficando advertido logo
de princípio.
Seguindo essa linha de raciocínio, porque é que continuava a evitar revelar a Remy a verdade a seu respeito? Sentindo o peso dos olhos escuros de expressão austera
dele, Gabrielle respondeu-lhe por fim.
- Era uma tolice que o Renard procurasse um marido para mim por muitas razões, mas, principalmente, porque eu não estava interessada em casar com um provinciano
idiota, ficando enterrada no campo durante o resto da minha vida.
Procurando mudar de assunto, Gabrielle dirigiu-se para a mesa de cabeceira, onde havia sempre uma garrafa de vidro cheia de vinho e um copo de cristal para poder
matar a sede, caso acordasse a meio da noite.
- Posso oferecer-vos um pouco de vinho do Reno, capitão Remy? perguntou-lhe, falando-lhe por cima do ombro. - Também posso acordar a minha cozinheira para que vos
prepare uma ceia no salão.
- Estais a referir-vos à mesa enorme que vi de relance lá em baixo, a que tem o comprimento de um campo de batalha? - perguntou Remy fazendo
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uma careta. - Não, não me parece que seja suficientemente importante para cear em toda essa imponência.
- Porque, manifestamente, não tendes cuidado de vós próprio como devíeis ter feito. Precisamente como a maior parte dos homens quando são deixados entregues a si
próprios. - Gabrielle serviu o vinho e aproximou-se dele. - Estais tão pálido como o fantasma por que eu vos tomei. Talvez um pouco de vinho consiga trazer um pouco
de cor à vossa face. - Ela obrigou-o a pegar no copo, dizendo-lhe determinadamente: - Aqui tendes, bebei este vinho.
- Sim, milady - replicou Remy, a humildade que mostrava a ser desmentida pelo brilho de um sorriso nos seus olhos. Quando bebeu o primeiro gole, estremeceu e, pela
primeira vez, Gabrielle reparou no lábio fendido onde o tinha esmurrado. Esqueceu-se da atitude de frieza, que deu lugar ao remorso.
- Oh, meu Deus, Remy. Fui eu que vos fez isso? - Passou um dedo ao de leve pelo lábio inferior ferido, perturbada ao sentir que também estava ligeiramente inchado.
- Oh, eu... eu lamento tanto o que vos fiz.
Embora ele tivesse voltado a estremecer quando ela lhe tocou, pegando-lhe na mão, Remy disse:
- Não tem importância nenhuma, minha querida. Já me deram murros muito piores, mas provavelmente nenhum que eu tanto tenha merecido. Depois de tudo o que vós e as
vossas irmãs fizeram por mim, eu tinha obrigação de ter encontrado maneira de vos informar de que estava vivo. - Deu-lhe um beijo ao de leve nos dedos. - É muito
natural que estivésseis zangada comigo.
Gabrielle sentiu um formigueiro na pele com a pressão, ainda que muito ténue, dos lábios dele. Apressou-se a tirar a mão da dele.
- Natural, talvez sim - concedeu ela -, mas não se pode dizer que a minha atitude tenha sido a mais correta, capitão.
- É isso que estamos a fazer, Gabrielle, a procedermos com correção? - perguntou Remy com uma expressão inquisitiva.
Gabrielle ergueu o queixo e sorriu com firmeza.
- Claro que sim. E porque é que não haveríamos de nos tratar com cordialidade? Já não nos víamos há muito tempo, mas continuamos a ser amigos, ou não será assim?
- Sim, amigos - concordou Remy, mas a expressão intensa nos seus olhos desmentia a palavra. Estendeu a mão para meter uns cabelos soltos
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dentro da rede, os seus dedos a demorarem-se na face dela. Gabrielle sempre se sentira maravilhada com as mãos de Remy, como é que podiam ser tão suaves, apesar
de tão ásperas e calosas. O toque da mão dele era quase a expressão mais pura de sedução.
Sentiu um frémito ardente que lhe percorreu o corpo. Era tudo culpa do abraço cheio de ardor que tinham partilhado horas antes. Desde sempre que Gabrielle soubera
que seria um erro beijar Nicolas Remy. Que um momento de loucura abriria uma brecha na parede de distanciamento que erigira em volta do seu coração anos atrás.
Gabrielle furtou-se ao toque da mão dele, dizendo nervosamente:
- Infelizmente, eu... eu deixei de ter o tempo que gostaria de ter para as pessoas que conhecia antigamente. A minha vida em Paris é muito diferente da que tinha
na ilha Encantada.
- Assim ouvi dizer - retrucou Remy. O brilho de ternura abandonou os olhos dele. Bebeu um trago generoso do vinho, os sobrolhos a unirem-se numa expressão carregada.
- O que é que estais a fazer aqui, Gabrielle, em Paris? Tão longe da vossa família e do vosso lar?
Era a pergunta que ela tanto temera. O seu coração parou momentaneamente enquanto se perguntava o que é que exatamente Remy teria ouvido a seu respeito. Havia-lhe
chegado aos ouvidos que em algumas tabernas se faziam apostas relativas a quem seria o seu próximo amante.
Mas, quaisquer que fossem os boatos que ele tivesse ouvido, não foi difícil a Gabrielle ver que Remy não queria acreditar neles. O olhar dele procurava o dela como
se tentasse assegurar-se de que, a despeito de todas as provas em contrário, para ele continuava a ser a jovem inocente que ele sempre acreditara que fosse.
Portanto, porque é que não lhe dizia a verdade nua e crua, pondo fim ao assunto de uma vez por todas? Os lábios de Gabrielle entreabriram-se, mas não deram saída
a palavra nenhuma. Muito simplesmente, não era capaz de se obrigar a proferir as palavras que desiludiriam Remy, acabando para sempre com quaisquer sentimentos que
ele pudesse nutrir por si. Amaldiçoando-se por ser tão cobarde, Gabrielle evitou o olhar perscrutador dele. Dirigiu-se para um toucador muito trabalhado colocado
junto à parede oposta à sua cama. A superfície muito bem polida estava repleta de uma grande diversidade de frascos de loções, boiões de creme e aqueles frasquinhos
de perfume de fragrância tão sedutora que Cassandra lhe preparava. Tirou a tampa dourada de um dos boiões de creme, tirando uma porção generosa para manter as mãos
tão macias e brancas quanto era possível.
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- Desde sempre que soubestes que eu ansiava deixar a ilha Encantada, capitão Remy - replicou finalmente, espalhando o creme pela pele. - Para viajar e para experimentar
todo o empolgamento e diversão de uma grande cidade.
Encostando os ombros largos à parede, Remy posicionou-se ao lado da mesa, impedindo que ela evitasse os seus olhos.
- Sim, mas como é que haveis adquirido esta luxuosa casa? Perdoai-me, mas sempre pensei que a fortuna da vossa família se perdeu quando o vosso pai não regressou
da sua viagem de exploração.
- E assim foi, de facto - confirmou Gabrielle, espalhando o creme pelas pontas dos dedos, esperando que o ligeiro tremor não revelasse a tensão que se apoderara
dela. - Esta casa pertence a ou... eu devia dizer que pertencia a uma mulher de nome Marguerite Maitland. A amante do meu pai acrescentou Gabrielle num tom desprovido
de qualquer emoção.
- A amante dele?
- São muitos os homens que as têm, capitão Remy - ripostou Gabrielle concisa.
- Estou ciente disso. Mas eu tinha ouvido dizer... sempre pensei... Remy hesitou e bebeu outro gole de vinho.
- Haveis ouvido toda a espécie de histórias sobre o grande romance entre o galante Chevalier Louis Cheney e Evangeline, a bela Senhora da Ilha Encantada. - Gabrielle
acreditava que há muito que se recompusera da mágoa que sentira quando soube da traição do pai. Mas a antiga amargura voltou a insinuar-se na sua voz. - Infelizmente,
não passavam disso mesmo... apenas histórias bonitas. Enquanto professava a dedicação que tinha a minha mãe, o meu pai mantinha esta outra mulher aqui, em Paris,
não se poupando a despesas com Madame de Maitland, oferecendo-lhe vestidos, jóias e esta casa.
Remy interiorizou aquela informação num silêncio de reflexão, franzindo o sobrolho enquanto olhava para o copo.
- Mas continuo sem compreender o que estais a fazer aqui, a viver na casa de uma... uma... - Remy não completou a frase, mas não foi preciso. com base no seu tom
de censura, não foi difícil a Gabrielle deduzir o que ele quisera dizer. De uma prostituta, uma devassa, uma galdéria. Apesar de manter uma expressão impassível,
parte dela estremeceu, perguntando-se o que é que Remy lhe chamaria quando se apercebesse de que ela era pouco diferente de Marguerite.
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Gabrielle pegou numa pequena escova de cerdas rijas e começou a puxar o brilho às unhas.
- Depois de o meu pai ter sido dado como morto, Mademoiselle de Maitland teve uma crise de arrependimento. Decidiu passar a viver em clausura num convento. Antes
de o fazer, ofereceu esta casa e as jóias a mim e às minhas irmãs.
- E aceitastes, Gabrielle? - perguntou Remy com uma expressão severa. - E não vos pareceu que isso seria uma espécie de traição para com a memória da vossa mãe?
- Pareceis a Ariane a falar - ripostou Gabrielle corando -, sentimental e nada prático. Foi o dinheiro do meu pai que pagou tudo isto. Porque não haveria eu de aceitar
a oferta?
- Vejo a justiça nisso - admitiu Remy. - Mas... - Gabrielle constatou que ele queria fazer-lhe mais perguntas, mas que hesitava, provavelmente por recear as respostas.
Gabrielle voltou a atirar a escova para cima da mesa, de que se afastou com movimentos bruscos.
- Mas já chega de falarmos a meu respeito. Gostaria muito mais de saber o que tendes andado a fazer durante os últimos três anos.
- Não acharíeis a narrativa muito interessante, Gabrielle - retorquiu Remy, girando o vinho dentro do copo.
- Que disparate, insisto, tendes de me contar. - Dirigiu-se para o assento abaixo da janela e sentou-se na almofada bordada. Noutros tempos, teria dado umas palmadinhas
no lugar ao seu lado, convidando-o a sentar-se num gesto de amizade. Mas agora indicou-lhe uma cadeira de costas altas que se encontrava a uma distância segura.
"Sentai-vos, capitão, e contai-me tudo o que se passou convosco.
O olhar de Remy desviou-se para a cadeira, mas não fez menção de se ir sentar. Colocou-se junto da lareira, mantendo o copo na mão. Havia qualquer coisa que se fechara
nos seus olhos quando ela fez questão de que a informasse do seu passado recente.
- Contar-vos tudo? Mal sei por onde começar.
- E que tal se começásseis pelo que vos aconteceu na véspera do dia de São Bartolomeu?
- Isso seria uma história de embalar antes de se adormecer ainda menos agradável. - Os dedos de Remy fecharam-se com tanta força no pé alto do copo que Gabrielle
ficou surpreendida por não se ter partido. Sem dúvida
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que Remy tinha muita dificuldade em recordar ou falar sobre essa noite terrível e Gabrielle detestava acrescer o sofrimento que já o atormentava.
Mas ela também considerava o sucedido extremamente doloroso, imaginando os horrores quando pensava na maneira como Remy teria sido brutalmente chacinado. Sentia
uma ansiedade que raiava o desespero em saber o que tinha acontecido realmente.
- Por favor, Remy - encorajou num tom mais suave. - Pelo menos, descrevei-me como é que conseguistes sobreviver a essa noite. O Renard disse que tínheis sido trespassado
e caído por terra mortalmente ferido. Pensou que estáveis morto, porque, a não ser isso, nunca vos teria deixado para trás.
- Estou ciente disso. O conde é um homem honrado e corajoso; é com satisfação que sei que ele conseguiu escapar com vida.
- Sim, mas e vós, como é que haveis escapado?
Remy bebeu um bom gole do vinho, quase esvaziando o copo de um só trago.
- Fui salvo por um lobo.
- O quê!? - gritou Gabrielle incrédula. Se Remy não tivesse tido uma expressão tão sombria, se tivesse sido outra pessoa que não ele, ela teria imaginado que estariam
a brincar consigo.
- Um lobo? Aqui, em Paris? - perguntou perplexa.
Parte da tensão que Remy sentia nos ombros desapareceu. Os lábios contorceram-se-lhe como se estivesse a lembrar-se de algo que o divertia, ainda que não tivesse
nenhuma vontade de se rir.
- Martin, o Lobo, um jovem carteirista e gatuno. Ele viu o meu corpo esparramado na rua e gostou das minhas botas. O rapaz achou por bem, hum... aliviar-me delas.
Gabrielle mostrou-se horrorizada, imaginando a situação com toda a nitidez, Remy, mortalmente ferido e indefeso, enquanto um patife tentava roubá-lo antes mesmo
de o corpo ter arrefecido. Não compreendia como é que Remy conseguia sorrir ao recordar uma ação tão reprovável. Cerrou o punho no colo.
- Mas que patife tão... tão torpe! Ele devia ter sido enforcado, arrastado pelas ruas e esquartejado.
- Se eu estivesse realmente morto, as botas não me teriam servido para nada - redarguiu Remy com um encolher de ombros. - Mas soltei um gemido tão aflitivo quando
o Martin me tocou que quase fiz com que o rapaz sofresse uma apoplexia. Ele podia muito bem ter acabado de me descalçar as botas e fugido. Eu não estava em condições
de o impedir.
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"Em vez disso, ele conseguiu arrastar-me para um lugar seguro, onde me manteve escondido da turba sedenta de sangue enquanto foi buscar alguém que pudesse tratar
os meus ferimentos. Um padre idoso extremamente competente nas artes de curar. - Remy franziu as sobrancelhas numa expressão confusa. - Nunca soube o nome dele nem
a razão que o levou a socorrer-me. Foi uma coisa perigosa de se fazer. A véspera do dia de São Bartolomeu não era a ocasião mais propícia para um padre católico
ser apanhado a salvar um soldado protestante.
"Quanto ao Martin, também nunca consegui compreendê-lo. De uma maneira geral, é um mancebo muito prático, muito apto a salvar a sua própria pele. Até hoje, contínuo
sem saber qual o motivo por que arriscou a vida para me ajudar.
Era possível que Remy não soubesse, mas Gabrielle sabia. Havia algo de abnegado que emanava de um homem como Nicolas Remy, honesto, corajoso e honrado até à medula,
um caráter que conseguia suscitar o que de melhor havia nos outros, fazendo com que quisessem ser-lhe prestáveis, ainda que isso fosse contra os seus próprios interesses
e bom senso.
- Portanto, fostes socorrido por esse Lobo e por um padre idoso disse ela, incentivando-o a prosseguir quando Remy se calou. - E o que é que aconteceu a seguir?
- O Martin é um rapaz muito expedito. Quando eu melhorei bastante, conseguiu levar-me oculto para fora de Paris. Feito isso, fomos para o estrangeiro.
- Para onde?
- Primeiro rumo à Irlanda e depois para Inglaterra.
- E o que é que fizeram durante esse tempo?
- Trabalhámos. Viajámos. Existimos.
O olhar de Gabrielle percorreu o corpo alto de Remy, mostrando-se extremamente frustrada. Remy nunca fora muito conversador, mas ela começava a pensar que lhe seria
mais fácil extrair os dentes do homem do que qualquer informação.
- Por conseguinte, haveis passado três anos a viandar pela região rural de Inglaterra; e depois? Uma bela manhã acordastes e decidistes que estava na altura de regressar,
foi isso? - perguntou Gabrielle impaciente.
- Foi mais ou menos isso - respondeu Remy manifestamente agitado, o que se via pela maneira como os seus dedos não paravam no pé alto do copo de vinho. Ele não só
estava a comportar-se em consonância com a sua maneira de ser, como também estava a ser deliberadamente evasivo.
- Porquê? - insistiu Gabrielle. - Por que razão é que haveis regressado?
- Começo a pensar que não devia ter voltado.
- Estais a referir-vos a regressar a Paris?
- Não, nunca devia ter voltado para junto de vós.
As palavras de Remy afetavam Gabrielle dolorosamente, o que não foi capaz de ocultar. Quando estremeceu, ele apressou-se a retomar a conversa.
- Não quis dizer que não quisesse voltar a ver-vos. Queria. E demasiado. Só quis dizer que a minha vida sofreu uma viragem bastante desesperada e tenho estado a
pensar se devo ou não envolver-vos.
- Não seria a primeira vez que eu estaria envolvida na vossa vida - recordou-lhe Gabrielle.
- Não por minha opção. Fui um maldito idiota nesse verão quando decidi ir à ilha Encantada, tão obcecado com a minha demanda por justiça que nem sequer me detive
a pensar no perigo que deixava na minha esteira.
- Remy acabou de beber o vinho e pousou o copo vazio em cima da prateleira da lareira. - Nunca haveis compreendido inteiramente a natureza do malefício que pus a
descoberto, a razão por que passei a ser um fugitivo.
- Oh, por amor de Deus! - ripostou Gabrielle revirando os olhos. A maneira como Remy tinha confiado os seus segredos mais perigosos a Ariane era algo que continuava
a irritá-la. Por outro lado, ele persistira em tratar Gabrielle como se ela fosse uma garota inocente da idade de Miri.
Foi com grande satisfação que o esclareceu.
- Eu tinha conhecimento de tudo acerca de como Catarina de Médicis assassinou a vossa rainha, Joana de Navarra.
- Vós... vós sabíeis?
- Claro que sabia! Suspeitáveis de que a vossa rainha tivesse sido envenenada e encontrastes, por mero acaso, a única prova disso, um par de luvas brancas lindíssimas.
Quando fugistes de Paris, furtastes essas luvas, que entregastes a Ariane, na esperança de ela poder ajudar-vos a provar que as luvas estavam envenenadas. Estou
certa até agora?
- Sim - confirmou Remy, continuando a franzir os sobrolhos numa expressão de surpresa. - Isso quer dizer que, finalmente, a Ariane decidiu pôr-vos ao corrente de
tudo, certo?
- Não, eu própria deduzi a maior parte do que aconteceu. Quando encontrei as luvas que ela tinha escondido na câmara onde trabalhava, decidi experimentá-las.
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- Fizestes o quê? - Remy mostrava-se atónito e confuso. - Isso quer dizer que eu estava enganado, não é verdade? As luvas não tinham sido envenenadas de todo.
- Oh, sem dúvida que foram envenenadas - confirmou Gabrielle amargamente. - Foi por pouco que não morri.
- Gabrielle! - Remy empalideceu de tão horrorizado que ficou, ao ponto de ela se arrepender de lhe ter contado esse incidente. Ele aproximou-se dela e deixou-se
cair ao seu lado, pegando-lhe nas mãos e apertando-as com força.
A preocupação que se espelhava claramente na sua fisionomia era associada a uma ternura capaz de derreter o coração de qualquer mulher e Gabrielle sentiu muita dificuldade
em resistir-lhe. Involuntariamente, os seus dedos entrelaçaram-se nos dele com a mesma força.
- Meu Deus! Não tenho palavras para vos dizer o quanto lamento disse Remy numa voz enrouquecida. - Eu devia ter-vos dito a verdade a respeito de Catarina e das luvas.
Se vos tivesse acontecido alguma coisa de mal, eu nunca mais seria capaz... capaz de... - interrompeu-se sem fala de tão culpado que se sentia e Gabrielle mal conseguiu
resistir ao impulso de o abraçar. A única maneira de resistir foi afastar as mãos das dele e levantar-se do assento abaixo da janela.
- Ora, são escusadas expressões de tanto dramatismo. - A voz dela não era tão firme quanto teria sido de sua vontade. - É óbvio que não morri. O Renard veio em minha
salvação. Conseguiu preparar um antídoto. Veio a revelar-se que o conde sabe um pouco mais sobre a prática da magia negra do que qualquer homem devia saber. Se tivéssemos
tido conhecimento disso mais cedo, podíeis ter-lhe levado as luvas sem passar por mais ninguém. Infelizmente, já não temos essas luvas. Depois de termos pensado
que havíeis morrido, fomos forçadas a fazer as pazes com a Rainha das Trevas da melhor maneira que nos foi possível.
Os lábios de Gabrielle cerraram-se ao recordar o quanto isso a tinha mortificado, o quanto tinha consumido a sua alma, estabelecer a paz com a mulher que ameaçara
a sua família, a bruxa pérfida que culpara tão amargamente da morte de Remy. Haveria de chegar o dia em que faria com que ela pagasse bem caro, jurara Gabrielle
a si própria.
Mas era um juramento que fora incapaz de cumprir e, olhando para Remy, Gabrielle sentiu-se invadida pela sensação de incumprimento para com ele.
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- Eu... eu lamento muito, Remy - disse ela. - Concluímos que não nos restava outra alternativa. A Rainha das Trevas tinha capturado o Renard. Vimo-nos obrigadas
a trocar as luvas para podermos salvar-lhe a vida.
- Malditas luvas! Como se eu alguma vez tivesse tido a oportunidade de levar essa mulher demoníaca perante a justiça. Era uma demanda de idiotas. Tudo o que consegui
foi fazer com que estivésseis prestes a morrer.
- Remy inclinou-se para a frente com as mãos a penderem entre os joelhos numa atitude de amarga derrota.
Os dedos de Gabrielle agitavam-se com a ânsia de suavizar aqueles vincos de preocupação, para o libertar daquelas sombras que o atormentavam. Foi forçada a meter
as mãos nas dobras do robe para conter o impulso.
- Deixai-vos de tolices. Se eu tivesse morrido, isso dever-se-ia apenas à minha curiosidade e impulsividade e não a qualquer culpa da vossa parte. Talvez já tenhais
reparado - acrescentou Gabrielle com um sorriso irrequieto. - Por vezes, posso pecar pela imprudência.
As suas palavras não deram lugar à retribuição do sorriso de Remy que esperara. Os lábios dele continuavam contraídos num trejeito de autocensura.
- Nunca teríeis corrido qualquer perigo se eu não as tivesse levado para vossa casa. E aqui estou eu de regresso outra vez para... - Remy respirou fundo, uma respiração
entrecortada pelo extremo desagrado consigo próprio.
- Eu nunca devia ter voltado. Peço-vos perdão por isso.
Levantou-se desalentado. Como se não confiasse em si se olhasse outra vez para ela, Remy encaminhou-se para a porta da alcova. Durante breves momentos, Gabrielle
ficou demasiado aturdida para reagir. Mas quando se apercebeu do que ele se preparava para fazer, correu para ele. Remy já entreabrira a porta, mas Gabrielle empurrou-o.
Agarrou-se à ombreira para o impedir de abrir mais a porta.
- O que é que pensais que estais a fazer?
- A ir-me embora.
- Assim, sem mais nem menos? Sem me dizerdes mais nada?
Remy não lhe deu réplica, mas a resposta espelhava-se claramente nos seus olhos. Ia voltar a sair furtivamente a coberto da noite, desaparecendo da vida dela como
se nunca tivesse voltado. E, desta vez, ela jamais voltaria a vê-lo.
Gabrielle devia desejar isso mesmo. O retorno de Remy à sua vida só servira para a confundir, para agitar vulnerabilidades e emoções de ternura que não podia dar-se
ao luxo de sentir. Mas pensar que poderia voltar a perdê-lo enchia-a de algo muito semelhante a pânico.
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- Como é que vos atreveis! - gritou-lhe Gabrielle. - Permitistes que eu acreditasse que havíeis morrido há três anos e depois apareceis na minha vida numa bela noite,
como se não fosse nada convosco. Pregastes-me um susto de morte, causando-me um choque quase mortal. E depois dais a entender uma qualquer razão misteriosa para
o vosso regresso, para o que precisais que eu vos faça um favor. Mas agora haveis mudado de ideias e estais a pensar em desaparecer outra vez; é isso?
- Será melhor para vós que eu proceda dessa maneira.
- Raios vos parta, Nicolas Remy! - ripostou Gabrielle, tentando afastá-lo da porta, mas era como se tentasse deslocar uma parede de pedra. Ela olhou para ele com
uma expressão de fúria. - Parai de me tratar como se eu fosse uma donzela inocente que precisa de ser protegida. Sou muito capaz de olhar pelos meus próprios interesses.
Dizei-me de uma vez por todas o que quereis para eu poder decidir se o preço é muito elevado.
Remy abanou a cabeça, o seu semblante a mostrar inflexibilidade. De um momento para o outro, trataria de a empurrar para o lado, saindo porta fora. Esforçando-se
por ocultar o desespero crescente que se apoderara dela, tentou incentivá-lo a dizer o que queria.
- O que é que precisais de mim? Um lugar onde possais esconder-vos? Dinheiro?
As faces de Remy ficaram de um corado carregado.
- com todos os diabos, Gabrielle! Pensais realmente que eu seja a espécie de homem que vos pediria dinheiro? - Endireitou-se em toda a sua estatura, uma rara centelha
de cólera a chispar-lhe nos olhos. O melindre levou-o a afastar-se da porta. Gabrielle apressou-se a fechá-la. Pegou na mão de Remy e puxou-o mais para o interior
da alcova.
- Por favor, deixai-vos de teimosias asininas e dizei-me o motivo por que haveis regressado a Paris. Conheceis-me suficientemente bem para saberdes que não vos deixarei
em paz até que me digais.
- Sim, como eu sei isso tão bem. - Resistiu por mais uns momentos, mas acabou por ceder com um suspiro de cansaço. - Muito bem. Voltei por causa do meu rei. A Rainha
das Trevas tem-no mantido prisioneiro desde a véspera do dia de São Bartolomeu e tenho a obrigação de o resgatar.
- Oh... - Gabrielle soltou a mão de Remy como se os dedos dele a tivessem queimado. com dificuldade, conseguiu mostrar um semblante impassível para disfarçar o facto
de ter ficado com a boca seca de tão conturbada que se sentiu. Dirigiu-se à mesa de cabeceira, enchendo um copo de vinho para se fortificar.
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Portanto, Remy voltara para Paris com o objetivo de fazer uma tentativa desesperada para libertar o seu rei. Precisamente a mesma causa por que arriscara a vida
havia três anos. Gabrielle refletiu com amargura que devia ter adivinhado isso. O louco. O louco inconcebivelmente nobre e imprudente.
- A minha informação está correta, não é verdade? - perguntou Remy inseguro, indo atrás dela. - A Rainha das Trevas continua a mantê-lo prisioneiro.
- O rei de Navarra não está a definhar na Bastilha, se é a isso que vos estais a referir. É preciso não esquecer que ele é cunhado de Catarina. Ele tem os seus próprios
aposentos no Louvre, embora seja mantido sob guarda constante. Guarda muito apertada.
- Não obstante, é meu dever tirá-lo de lá para fora.
Gabrielle praguejou entredentes. Maldito Nicolas Remy e o seu infernal sentido de dever. Levou o copo de vinho aos lábios, para voltar a pousá-lo de imediato sem
o provar. Deu meia-volta e olhou furiosa para ele.
- Estou a ver. Não haveis conseguido fazer com que alguém vos chacinasse na véspera do dia de São Bartolomeu, por isso agora estais determinado a fazer outra tentativa
com vista a isso.
- Estou confiante em que a situação não chegue a esse ponto... com a vossa ajuda.
- E o que é que pensais que eu possa fazer?
- Ouvi dizer que sois recebida na corte, pelo que decidi perguntar-vos se estáveis disposta a levar uma mensagem ao rei de Navarra, para que ele saiba que estou
vivo e que regressei a Paris para o salvar. Mas também preciso de saber qual a localização dos seus aposentos, o número de guardas que o vigiam... - Remy interrompeu-se,
passando a mão pelo cabelo comprido e desalinhado. Era por demais evidente que ele não quisera fazer-lhe aquele pedido. Mas era igualmente evidente que estava desesperado
pela sua ajuda e também que parte de si tinha a esperança de que ela estaria de acordo.
- Por conseguinte, quereis que eu sirva de intermediária nesta conspiração de fuga? - perguntou Gabrielle sem estar com meias-palavras.
- Sim - admitiu Remy com olhos que a fitavam intensamente. Gabrielle teve de se virar de costas para que ele não visse a muita consternação que se refletia no seu
rosto. Dirigiu-se para uma das janelas altas perto do leito. Mas por que diabo é que o homem não queria qualquer coisa tão simples como dinheiro ou um lugar onde
se esconder? com a exceção das irmãs, Nicolas Remy era uma das muito poucas pessoas por quem Gabrielle faria o que quer que fosse. Isto é, quase tudo, corrigiu-se
em pensamento.
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Haviam existido outros que tentaram libertar o cativo rei de Navarra, levando-o para fora de Paris. Os conspiradores tinham sido descobertos e condenados à morte.
Não só Gabrielle não estava disposta a ajudar Remy a arriscar a sua vida num empreendimento tão perigoso, como também existia outro problema em relação ao que ele
queria que ela fizesse.
Era possível que o senhor de Navarra fosse o rei dele, mas também era o homem que Gabrielle estava destinada a seduzir para que fosse seu amante, o homem que estava
destinado a fazer dela a mulher mais poderosa em toda a França. Gabrielle não estava a ver como é que isso poderia concretizar-se se Remy fosse bem-sucedido e conseguisse
libertar o rei de Navarra, o que lhe permitiria pôr-se em fuga para o seu reino tão pouco importante na fronteira de Espanha.
Remy mantinha-se atrás dela, mas via o reflexo dele nos vidros que a noite escurecia, qual fantasma que tivesse surgido do seu passado. O espectro de um corajoso
soldado que em tempos fingira ser o seu cavaleiro e ela a bela donzela loura. Infelizmente, tudo não passara disso mesmo, um fazer de conta, mas acontecia que ela
era demasiado conhecedora do mundo para se deixar seduzir pelo faz de conta. Preparando-se para se virar de frente para Remy, Gabrielle sentia o coração pesado.
- Lamento muito, capitão Remy. Mas não posso fazer o que me estais a pedir.
A desilusão ensombrou os olhos dele, mas também espelhavam algum alívio.
- Não, Gabrielle. Eu é que devia lamentar ter-vos feito esse pedido, o que nunca devia ser feito. O risco é demasiado grande. Tendes toda a razão em temer as consequências.
Se fôsseis apanhada a entregar mensagens às escondidas...
- Isso não me mete medo. Sou muito competente no jogo das intrigas.
- Nesse caso, não compreendo a vossa atitude - retorquiu Remy, um vinco fundo a aparecer-lhe entre as sobrancelhas. - Se acreditais que não correríeis risco nenhum,
porque vos recusais a fazer o que vos peço?
Gabrielle cerrou os lábios, desejando que Remy se tivesse ido embora quando quis partir. Não teria tido de passar por aquela situação, não seria forçada a dizer-lhe
a verdade. Contudo, receava que, até mesmo sem a sua ajuda, Remy daria continuidade ao seu perigoso plano. Só existia uma coisa que talvez o desencorajasse. Se ela
o pusesse ao corrente da profecia, a respeito do destino do rei de Navarra... e do seu. Teve de engolir em seco com força para conseguir reunir coragem para falar.
Começou com hesitação.
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- Eu... eu não posso ajudar-vos porque o rei de Navarra precisa de continuar na corte francesa. As circunstâncias não permitem que desapareça no insignificante reino
de Navarra, tão longe de mim. Porque... porque eu o desejo para mim.
Remy ficou a olhar para ela durante bastante tempo, mas, então, o seu semblante endureceu.
- Mas o que diabo é que quereis dizer com isso, Gabrielle? Estais a tentar dizer-me que vos haveis apaixonado por um... por um rei?
- Os reis são bastante semelhantes a qualquer homem, mas, neste caso, o amor não tem nada a ver com o assunto. Admiro e respeito Henrique de Navarra - replicou Gabrielle,
hesitando antes de acrescentar: - Ele é o meu destino.
- Mas que espécie de destino é que imaginais que podíeis ter com ele? - perguntou Remy com mostras de impaciência. - Ele já é casado.
- Talvez devêsseis perguntar à bruxa que consultei esta noite. Entre outras coisas, ela conjurou alguém que previu o meu futuro. O senhor de Navarra vai ser rei
de França um dia e eu... - Gabrielle tinha dificuldade em olhar de frente para Remy, mas obrigou-se a fitá-lo enquanto continuava.
- Virei a ser a amante dele.
Remy pareceu ter ficado atordoado por uns momentos, mas depois deu alguns passos agitados enquanto praguejava.
- Danação, Gabrielle! Não devíeis ter tocado sequer nessa magia negra. Sabeis bem de mais que não. Mas, seja como for, isso não passa de um grande disparate. Nunca
poderíeis ser a amante de quem quer que fosse. Sois uma senhora nobre. Fostes criada e educada como deve ser para alguém do vosso estatuto social...
- Talvez isso se tenha aplicado em tempos...
- Não, continua a aplicar-se! - Remy deteve-se para a fitar com uma expressão de fúria. Mas por baixo da cólera crescente tinha o ar de um homem encurralado, esforçando-se
ao máximo por se agarrar às ilusões que tecera acerca dela, sem dúvida que com tanto empenho como se batera contra todas as improbabilidades no campo de batalha.
Remy não era um homem estúpido, muito longe disso. Mas estava a provar que era mais cego do que Gabrielle considerara que fosse possível. Aproximou-se dela com brusquidão
e prendeu as mãos dela nas suas, apertando-as com força. Quando falou era óbvio que lhe custava tremendamente manter um tom de voz que não traísse qualquer emoção.
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- Gabrielle, é evidente que o comportamento do vosso pai vos confundiu e magoou. Mas não deveis permitir que isso vos amargure ou que possa tornar-vos cínica. Não
fazeis a mais pequena ideia do que poderia acontecer se vendêsseis a vossa virtude - acrescentou Remy veementemente. - Não poderíeis fazer uma coisa dessas.
- Estou em crer que já sabeis qual a resposta a isso - retorquiu Gabrielle.
- Não! Recuso-me a aceitar isso. Não até ouvir a verdade da vossa boca. Tendes de ser vós a dizer-me.
Gabrielle teve de fechar os olhos por uns momentos para não ver o rosto atormentado daquele homem que queria acreditar nela com tamanho desespero, de uma maneira
como nunca ninguém fizera antes. Não, não nela, viu-se Gabrielle forçada a lembrar a si própria. Apenas em algum sonho a respeito dela, acreditar numa Gabrielle
que nunca existira.
Remy apertava-lhe as mãos com tanta força, sem lhe deixar outra alternativa. Portanto, ele insistia em saber todos os pormenores, por muito dolorosos que fossem?
Muito bem, se era assim que ele queria. Ela dar-lhos-ia. Gabrielle libertou as mãos, afastando-se de Remy, fortificando-se ao respirar fundo. Colocou-se atrás das
costas da cadeira e de frente para ele, afivelando uma fachada cheia de frieza, assumindo a atitude que não a deixara mal durante os momentos mais dolorosos da sua
vida.
- É claro que sei como negociar com um homem. - Fechou as mãos na parte de cima das costas da cadeira para se apoiar. - Como é que pensais que cheguei aqui, a Paris,
para reivindicar esta casa? com Ariane a opor-se determinadamente e com Renard a manter-me praticamente prisioneira, não tive outra alternativa que não fosse fugir
de casa. Por fim, consegui escapar com a ajuda de um comerciante de vinhos que estava de visita ao château.
Gabrielle baixou o olhar e, com uma postura rígida, fixou o olhar na parte de cima da cadeira guarnecida a dourado.
- Monsieur Duclous era um homem muito generoso e bem-humorado. Mostrou-se mais do que disposto a trazer-me para Paris a troco de... dos meus favores. - Gabrielle
ouviu a respiração de Remy quando inspirou demoradamente, mas não se arriscou a olhar para ele. - Depois de ter chegado a Paris, Monsieur Duclous não podia ajudar-me
a conseguir aquilo que eu desejava realmente. Acesso à corte e aos círculos mais elevados da sociedade parisiense. Para isso, precisei do duque de Penthieve.
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- Não quero ouvir mais nada disso - atalhou Remy rangendo os dentes. Num passo brusco, aproximou-se das janelas, virando costas a Gabrielle, como se pudesse pôr
fora o som da voz dela.
- Não, raios vos partam! Pedistes isto e ides ouvir tudo até ao fim! gritou Gabrielle. Mordeu o lábio inferior com força para que deixasse de tremer e depois prosseguiu
implacavelmente. - Monsieur lê Duc era um homem muito cortês, espirituoso e encantador. Aprendi muito com ele. Infelizmente, o duque sofreu algumas perdas financeiras
e sentiu-se obrigado a retirar-se para a sua propriedade no campo. Eu não tinha vontade nenhuma de sair de Paris, por isso, eu...
- Parai, Gabrielle! - interrompeu Remy exasperado. Encostou um braço ao caixilho da janela, as costas tão rígidas que pareciam poder quebrar-se.
- Foi então que conheci o marquês de Lanfort. Um rapaz muito simpático, mas com propensão para escrever um género de poesia horroroso. Provavelmente, ainda terei
um dos seus...
- Eu disse que parásseis! - atalhou Remy numa voz troante, tão alta que Gabrielle estremeceu e se remeteu ao silêncio. Remy agarrou-se à caixilharia de madeira com
tanta força que todo o seu braço tremeu. Quando se virou bruscamente para trás, Gabrielle ficou com a respiração suspensa na garganta, receando ter ido longe de
mais. Nunca tinha visto aquela expressão no rosto dele, os lábios contraídos e sem pinga de sangue e as narinas a fremirem, a respiração acelerada e irregular, enquanto
avançava para ela. Gabrielle cambaleou para trás, recuando até ao outro lado do toucador, sentindo o coração a bater-lhe fortemente.
Remy bateu com o punho cerrado no tampo do toucador, soltando uma violenta imprecação. Os frascos e boiões de vidro foram arremessados para o chão, estilhaçando-se.
Gabrielle encolheu-se toda, levantando as mãos diante da cara para se proteger dos estilhaços de vidro. Soltou um grito que denotava um misto de protesto e alarme.
Antes mesmo de ter tempo para recomeçar a respirar, Remy colocou-se junto dela. Agarrou-a com brusquidão pelos ombros e puxou-a para junto de si. Gabrielle sentiu
a respiração quente dele na sua face antes de cerrar os lábios numa linha tensa. Subitamente, ela recordou-se do que Cass lhe dissera quando tocou na espada de Remy.
"Esta espada fala comigo sobre a faceta sombria do teu galante cavaleiro. Eles chamavam-no de flagelo, Gabrielle. Duvido muito que um homem granjeie esse epíteto
por ter uma natureza gentil e simpática.-"
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- O que é que vos aconteceu, Gabrielle? - perguntou Remy numa voz enrouquecida, os olhos ensombrados com a angústia e raiva que sentia. Como é que pudestes mudar
tanto?
Embora sentisse a pulsação acelerada, Gabrielle ergueu o queixo, fazendo frente à cólera dele numa atitude de desafio.
- Eu não mudei. Desde sempre que fui uma mulher ambiciosa.
- Não, não éreis! - ripostou Remy num tom rosnado. - Nunca fostes tão fria e calculista, disposta a fazer tudo e mais alguma coisa por dinheiro e poder. Éreis uma
jovem apaixonada e inquieta, sim, mas sempre honrada e inocente...
- Não, não era. Antes de vos conhecer, já tinha tido o meu primeiro amante. - Gabrielle atirou as palavras amargas à cara de Remy. Era possível que a enojasse descrever
Danton daquela maneira, mas teria preferido morrer a admitir a vergonha que sentira por causa do que tinha acontecido naquela tarde quente de verão.
Remy praguejou violentamente. Agarrava os ombros de Gabrielle com tanta força que a magoava, fazendo com que ela ficasse com a respiração arfante, certa de que ele
a sacudiria até cair desfalecida no chão. Mas ele soltou-a repentinamente e pouco faltou para a arremessar para longe de si. Enquanto Gabrielle cambaleava até readquirir
o equilíbrio, Remy dirigiu-se para o extremo mais afastado da alcova.
Um silêncio terrível abateu-se sobre os dois, quebrado apenas pela respiração trémula de Gabrielle enquanto se esforçava por se recompor. Tremia e friccionava os
ombros doridos, olhando para o que restava dos boiões das suas loções e frascos de perfume partidos que Cassandra preparara tão cuidadosamente.
- Portanto... portanto, como vedes, não me conhecíeis de todo - concluiu Gabrielle em voz baixa.
- É evidente que não.
A confissão dela da relação com Danton pareceu ter dado o golpe final em Remy. A raiva que sentira desapareceu tão rapidamente como tinha surgido. Passou a mão pela
face num gesto de cansaço e Gabrielle pensou que conseguia ver todos os sonhos que ele alguma vez tinha acalentado em relação a ela a morrerem nos seus olhos. Remy
levou as mãos aos quadris e fixou o olhar no teto, soltando uma gargalhada de amargura.
- Meu Deus! Só posso ser o maior idiota de todos os tempos - disse entredentes.
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Não, pensou Gabrielle com tristeza. Tão-somente um homem honrado que esperava que o resto do mundo procedesse da mesma maneira. com cuidado, passou pelos estilhaços
de vidro e loções derramadas que manchavam a carpete e aproximou-se de Remy um pouco a medo.
- Lamento ter-vos magoado - disse. - Digo-vos com toda a sinceridade que essa era a última coisa que eu queria fazer. - Estendeu a mão para lhe tocar na manga, mas
ele sacudiu-a com um olhar de tanto desprezo que ela se retraiu. A rejeição dele magoou-a tanto que só teve vontade para se envolver nos seus próprios braços, como
que para se proteger de uma agressão. Mas se havia alguma coisa que sempre soubera fazer bem de mais, era pegar nas suas feridas e enterrá-las fundo onde ninguém
pudesse vê-las.
Manteve os braços imóveis ao longo do corpo, optando por o encarar com uma atitude régia.
- Do mal o menos, agora compreendeis a razão por que não vos ajudarei a concretizar qualquer dos vossos esquemas. Andaríeis melhor se esquecêsseis o rei de Navarra.
Já foram tentadas várias fugas para o rei e fracassaram. A única coisa que conseguireis é fazer com que vos matem.
- A vossa preocupação com o meu bem-estar é comovente, madame ripostou Remy escarnecedor.
As palavras dele magoaram-na. Ela preocupava-se realmente com ele. Quem lhe dera poder fazer com que o idiota teimoso visse isso. Gabrielle fez uma última tentativa
desesperada para que ele se mostrasse razoável.
- É minha intenção certificar-me de que o senhor de Navarra consiga ocupar o lugar a que terá direito, exercendo o seu poder em França. Prestaríeis um grande serviço
ao vosso rei se o deixásseis ao meu cuidado.
- Preferia levá-lo para o Inferno.
Gabrielle ficou tensa quando Remy se aproximou mais de si, pegando-lhe no ombro. Desta vez não a agarrou com brusquidão, embora a forçasse a levantar a cabeça com
a mesma firmeza, de maneira a ter de olhar diretamente para os olhos dele. Eram como pontos de aço, frios e duros, o que, de certo modo, era pior do que a cólera
que mostrara.
- Estou firmemente determinado a afastar o meu rei das garras da Rainha das Trevas, assim como das vossas. Portanto, considerai-vos avisada, Gabrielle, e nem sequer
deveis pensar em interpor-vos no meu caminho. A verdade é que também nunca me conhecestes verdadeiramente. Posso ser diabolicamente impiedoso para com os meus inimigos.
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Gabrielle já tivera prova disso mesmo, pensou. Sentiu-se percorrida por um arrepio de medo, mas recusou-se a ser intimidada por Nicolas Remy ou por qualquer outro
homem. Afastou a mão dele, dizendo com a mesma frieza.
- Vós é que deveis ter cuidado. Parece que vos haveis esquecido de que, ao fim e ao cabo, eu sou uma bruxa.
- Como é que eu poderia ter-me esquecido desse facto? - Remy encaminhou-se para a porta da alcova dela, abrindo-a bruscamente e saindo sem sequer olhar para trás,
batendo a porta atrás de si.
Gabrielle deixou-se ficar aonde estava durante muito tempo. Sentindo-se avassalada pelos acontecimentos daquela noite tão atribulada, começou a tremer descontroladamente
e teve de se deixar cair na cadeira. Envolveu o tronco nos braços com força numa tentativa para deixar de tremer. Tinha ficado bem patente que Remy passara a odiá-la.
"De que é que estavas à espera, grande imbecil", repreendeu-se a si mesma. Que Remy, fosse-se lá saber como, seria capaz de compreender, que lhe perdoasse por ser
o que era? Nem mesmo Remy conseguia ser tão nobre. A exemplo da maior parte dos homens, os seus pontos de vista no que se referia às mulheres eram assombrosamente
simplistas. O sexo fraco só se apresentava sob duas formas, madonas ou prostitutas. Não restavam quaisquer dúvidas quanto ao que ele agora a considerava.
"Pois bem, e o que é que isso importava?", perguntava Gabrielle a si própria, recusando-se determinadamente a chorar. Não se podia dizer que ela e Remy alguma vez
tivessem tido qualquer espécie de futuro a dois. Ela devia sentir-se aliviada. Decorrido tanto tempo, ela enterrara o seu fantasma de uma vez por todas. Finalmente,
era livre de dar continuidade à sua vida. Gabrielle cerrou os olhos quando sentiu o ardor de lágrimas, negando-lhes que fossem vertidas.
Nicolas Remy nunca mais a assombraria.
Havia uma única vela na mesa de madeira em tosco, projetando a sua luz sobre as restantes, e eram muito poucas, peças de mobiliário, uma cama estreita que não passava
de uma armação de madeira e um lavatório de pé com um jarro de água rachado num espaço exíguo. O alojamento que Nicolas Remy partilhava com o seu jovem companheiro
era barato e os confortos eram escassos. Todavia, a atmosfera lúgubre daquele aposento parecia adequar-se ao estado de espírito do capitão naquela noite. De expressão
carrancuda e em silêncio, preparou-se para se deitar, tirando a capa dos ombros e a adaga que trazia presa ao cinto.
Enquanto Martin, o Lobo, desenrolava o colchão no chão perto da cama, a sua habitual atitude emproada primava pela ausência. De vez em quando, lançava olhares de
esguelha ao capitão, mostrando-se preocupado, sentia-se mais envergonhado de si próprio do que alguma vez se sentira em toda a sua vida. Naquela noite, faltara ao
seu capitão. Lobo soltou um prolongado suspiro. O melhor que tinha a fazer era atirar-se às águas turvas do Sena. Era o único castigo que um celerado como ele merecia.
Martin sempre tivera orgulho em ser tão ousado e feroz como a criatura cujo nome adotara como alcunha. Mas esta noite mostrara ser mais um chacal do que um lobo.
Quando o capitão lhe ordenara que se fosse embora quando chegaram aos portões da Maison dEsprit, Lobo devia ter recusado obedecer-lhe. Devia ter seguido Remy até
àquele covil do Diabo. Em vez de ter procedido assim, permitira que o seu muito medo de bruxas e de maldições lhe levasse a melhor. Lobo fora-se embora com o rabo
entre as pernas, como um cachorro açoitado, abandonando o homem que para si passara a ser tudo no mundo.
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Apesar de todas as adversidades com que se deparara durante os últimos anos, Remy conseguira arranjar tempo para lhe ensinar as artes de combate. Não com bastões
e facas, como um qualquer sarnento gatuno de rua, mas com a adaga e o florete, como um autêntico cavalheiro. Mas Remy tinha dado a Lobo uma dádiva muito mais importante
do que isso. O capitão ensinara-o a ler e a escrever o seu nome.
E como é que Lobo tinha escolhido pagar a magnanimidade de um homem como ele? Faltara ao seu capitão quando ele mais tinha precisado do seu Lobo e agora acontecera
alguma coisa de terrível a Remy. O capitão que saíra de casa determinado a seguir a sua lindíssima senhora não era o mesmo homem que regressara ao alojamento dos
dois. Remy apresentava sempre uma postura ereta, muito militar. Contudo, havia nele uma aura de derrota que o envolvia quando desafívelou o cinto da espada, deixando-a
cair no chão descuidadamente de uma maneira que nem parecia sua. Um bom soldado tratava sempre a sua arma com todo o cuidado e o capitão era um grande soldado.
Pelo menos, havia sido até ter seguido a encantadora Gabrielle até à mansão do Diabo, a Maison dEsprit. Lobo estremeceu de pavor ao pensar que o capitão teria sido
vítima de uma maldição da bruxa, não obstante o que Remy lhe dissera, que nada disso tinha acontecido.
Quando Remy despiu a camisa, Lobo examinou atentamente as costas largas, procurando as marcas de bruxaria ansiosamente. Esticou o pescoço para tentar ver o outro
lado de Remy. Todo esticado para a frente, perdeu o equilíbrio e tombou para cima da pequena mesa. Foi por um triz que a vela não voou pelo ar, mas conseguiu agarrá-la
a tempo, a cera quente a salpicar-Ihe as mãos.
- Merde - resmungou Lobo, retraindo-se de dor. O barulho despertou o capitão do estado de espírito sombrio que se apoderara dele.
- Mas o que diabo é que pensas que estás a fazer? - resmungou Remy com cara de poucos amigos, olhando irritadamente por cima do ombro.
- Nada, monsieur - respondeu Lobo, que se apressou a pousar a vela a direito. Esfregou as mãos para remover a cera e depois lambeu o sítio em que se tinha queimado.
Remy era, habitualmente, extremamente paciente, mas desde que voltara para casa que se irritava com tudo e mais alguma coisa.
Um outro sinal aziago de que o capitão não estava em si. Lobo sabia que Remy estava mais do que farto daquilo que o capitão classificava de "disparates
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supersticiosos de Lobo". Mas este estava demasiado preocupado para guardar os seus receios para si próprio.
- Hum... capitão. Eu... eu não gosto de estar sempre a bater na mesma tecla - começou o rapaz a dizer um pouco a medo -, a minha tante Pauline, o mais próxima do
que alguma vez tive de uma mãe, sempre me disse que, quando um homem é atacado por um súcubo ou é amaldiçoado por uma bruxa, é frequente que fique com uma terceira
teta. E eu só estava com medo que...
- Oh, por amor de... - Remy proferiu uma forte invetiva e virou-se para trás. A superfície do peito bem musculado do capitão estava cheia de cicatrizes deixadas
por mais ferimentos do que qualquer mortal devia ter sofrido e sobrevivido. Mas o capitão continuava a ter apenas dois mamilos como qualquer homem normal. O peito
de Lobo soergueu-se num suspiro de profundo alívio. - E agora, já estás satisfeito? - perguntou Remy irritado, abrindo os braços para os lados. - Nada de terceira
teta. Não fui chupado por nenhum demónio, nem amaldiçoado por uma bruxa. Nunca entrei na Maison dEsprit. Limitei-me a esperar no pátio até Gabrielle ter saído. E
agora deixa-te de tantas idiotices e deita-te. - Lobo endireitou-se, ferido na sua dignidade.
- Temer por um amigo é uma idiotice? Nesse caso, que a peste me leve por ser tão estúpido, mas preferia perecer cem vezes, ter um milhar de espigões espetados no
meu traseiro, do que...
- Ah, Martin, por favor - interrompeu Remy agastado. - Não quero nenhuma das tuas teatralidades esta noite. Sinto-me demasiado cansado para isso. Já te disse que
estou bem. Contenta-te com isso.
- Sim, monsieur - resmungou Lobo. Mas, enquanto despia o seu próprio gibão, tinha os lábios contraídos numa expressão de teimosia. Não estava absolutamente nada
contente. Era possível que o capitão não tivesse sido chupado por uma bruxa, mas era indesmentível que havia qualquer coisa com o capitão que não estava bem.
Quando Remy se sentou na beira da cama para descalçar as botas, os seus olhos estavam tão sombrios como naquelas noites em que acordava sobressaltado de um dos seus
pesadelos. Lobo estendeu a manta em cima do colchão, esforçando-se por compreender o estado de espírito do capitão. Respirou fundo quando a realidade o atingiu como
um golpe.
Ficou verdadeiramente atordoado, o grande palerma. O capitão nunca tinha entrado na amaldiçoada Maison dEsprit, mas a senhora dele tinha entrado.
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Lobo olhou para Remy com uma expressão que era de compaixão e censura ao mesmo tempo.
- Ah, monsieur. Devíeis ter-me dito.
- Dizer-te o quê? - perguntou Remy mal-humorado, descalçando a primeira bota.
- Acerca da vossa senhora. A maravilhosa e imprudente Gabrielle. Ela entrou nessa casa amaldiçoada e agora aconteceu-lhe qualquer coisa de medonho, não é verdade?
O capitão confirmou a suspeita de Lobo quando ficou petrificado à menção de Gabrielle Cheney. Mas, então, deu um brusco puxão à bota e atirou-a para um canto.
- Ela não é a minha senhora e não tens nada que te preocupares com ela. Ela está muito bem. Se há alguma coisa em que a maravilhosa e imprudente Gabrielle é boa,
é a cuidar de si própria. - Havia uma nota cáustica no tom de voz de Remy ao referir-se à senhora em questão que Martin nunca lhe ouvira.
- Peço desculpa, capitão, mas não estou a compreender. Remy levantou o pé e pegou no tacão da segunda bota.
- Eu é que devia pedir-te desculpa. Quando te encarreguei de encontrar a mulher, eu devia ter-te advertido. A Gabrielle Cheney também é uma bruxa.
Gabrielle Cheney, a mais encantadora das senhoras? Era uma bruxa. Lobo ficou a olhar de boca aberta para o capitão.
- Nossa Senhora nos valha! - exclamou o rapaz. - Mas, monsieur, como é que sabeis isso?
- Porque ela me manteve enfeitiçado durante anos - respondeu Remy, a boca a contorcer-se numa expressão de amargura. - Mas esta noite o feitiço foi quebrado. Finalmente,
estou livre dela.
- Graças a Deus! - gritou Lobo. O aposento era pequeno e estava atravancado, ainda mais com o colchão estendido no soalho. Apesar disso, Lobo conseguiu dar alguns
passos, com que tentava dar escape à agitação que sentia depois de ouvir aquela notícia.
Pensar em como ele seguira tão jovialmente aquela mulher tão falsa, admirando-a à distância, sem saber como ela era uma criatura tão demoníaca. E ele, sem ter um
único amuleto ou talismã que o protegesse!
- Oh, capitão - disse Lobo, e foi por pouco que não caiu no colchão em que tropeçou enquanto continuava a andar pelo espaço exíguo do aposento.
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- Deus devia fazer com que todas as feiticeiras envelhecessem e ficassem feias, o que serviria de aviso aos homens para que se mantivessem afastados delas. Não é
justo que Gabrielle Cheney seja tão bonita.
- Não, não é - resmungou o capitão.
- Contai-me o que aconteceu. Será que a magia dela, por fim, enfraqueceu, o que vos permitiu aperceber-vos da mulher malvada por detrás da máscara da sua muita beleza?
(
- Qualquer coisa assim.
- Tudo o que sou capaz de dizer outra vez é, graças a Deus - continuou Lobo, atirando as mãos em direção ao céu num gesto cheio de dramatismo. - Haveis escapado
por uma unha negra, monsieur. Devíamos beber uma caneca de vinho para celebrar.
- Suponho que devíamos fazer isso. - Mas o capitão não parecia estar com disposição para celebrações. Aparentava estar exaurido. Descalçou a segunda bota, que deixou
cair no chão. Lobo examinava-o com uma ansiedade bem patente. Não era nada bom quando o capitão se mostrava excessivamente exausto. Quando Remy estava num estado
de grande desgaste físico, era então que recomeçava a ter pesadelos.
Era muito raro que o capitão falasse das suas glórias passadas, mas o rapaz tinha ouvido um grande número de histórias sobre os feitos do grande Flagelo. Ficava
todo empolgado ao imaginar Remy a brandir a espada, enchendo de terror o coração dos seus inimigos, enquanto destemidamente encabeçava as cargas em inúmeras batalhas.
Mas Lobo também sabia, com base no que Remy resmungava durante o sono, que eram essas mesmas batalhas que atormentavam o capitão nos seus sonhos. Isso e o que tinha
acontecido na véspera do dia de São Bartolomeu. O próprio Lobo vira cenas medonhas na noite do massacre, mas possuía a capacidade de banir dos seus pensamentos tudo
o que fosse demasiado macabro. Mas não era esse o caso com o capitão. Sentia as coisas muito profundamente. Era o que acontecia muitas vezes com homens assim tão
calados.
Já era bastante mau que Remy fosse atormentado pelas suas recordações, mas agora a demoníaca Gabrielle tinha forçosamente de aparecer para devastar o capitão no
que mais profundo havia na sua alma de tanta nobreza. Remy afirmava que estava curado, mas Lobo não acreditava inteiramente nisso. De facto, desconfiava que a natureza
do enfeitiçamento do capitão talvez fosse o pior feitiço que qualquer mulher podia lançar a um homem.
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Amor.
Remy era um homem orgulhoso e reservado e Lobo inteirara-se havia muito tempo de que não devia importuná-lo com perguntas. Mas Lobo era um observador sagaz e receava
muito que o capitão acreditasse que estava apaixonado pela bruxa Cheney. Por conseguinte, o que é que teria acontecido esta noite para, finalmente, quebrar o feitiço?
Lobo também tinha as suas suspeitas em relação a isso. Ambos tinham ouvido as histórias que circulavam pela cidade a respeito da encantadora Gabrielle, a cortesã
mais sedutora que havia em Paris. Esses rumores haviam feito com que o capitão ficasse enfurecido, recusando-se a acreditar no que se dizia. Quanto a Lobo, aceitara
os boatos com um filosófico encolher de ombros. Essas histórias, em sua opinião, não haviam prejudicado a senhora em questão.
Lobo talvez reconhecesse que a encantadora Gabrielle era uma bruxa, mas uma cortesã? As mulheres tinham necessidade de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance
para conseguirem sobreviver, tal como os homens. Talvez até mesmo mais, uma vez que lhes estavam vedadas tantas maneiras mais respeitáveis para poderem ter os seus
próprios meios de subsistência.
Sob muitos aspetos, Lobo pensava que era muito mais conhecedor do mundo do que o seu capitão. Crescera nas ruas de Paris e os parisienses tendiam a ter uma perspetiva
mais liberal em relação às ligações sexuais do que as pessoas da província. Não só Remy era das regiões ermas de Navarra, como também era um huguenote. O capitão
não o assediava com as sagradas escrituras da Bíblia como muitos protestantes costumavam fazer. Mas como espécie, os huguenotes tinham opiniões muito mais inflexíveis
sobre o pecado. Além disso, o capitão era um homem extremamente honrado.
Ter descoberto que a senhora que adorava era uma cortesã tê-lo-ia deixado absolutamente arrasado, muito mais do que se ter inteirado de que ela era uma bruxa. Ah,
o amor. Lobo abanou a cabeça com uma expressão sombria. Do mal o menos, essa era uma desgraça a que ele fora poupado durante os seus dezoito anos de vida arriscada.
Talvez se tivesse tido alguma experiência desse perigoso encantamento, era possível que lhe ocorressem algumas palavras sensatas com que pudesse reconfortar o amigo.
Remy permanecia imóvel sentado na beira da cama, os olhos toldados como se continuasse perdido na lúgubre perturbação mental que era obra daquela bruxa. Lobo abeirou-se
dele, dizendo-lhe desajeitadamente:
- As coisas hão de melhorar, capitão. Ouvi dizer que às vezes leva algum tempo para um homem conseguir libertar-se dos efeitos de ter sido embruxado.
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Mas, pelo menos, estais livre dessa mulher horrível. com certeza que isso é motivo para vos rejubilardes.
Remy olhou para ele de lado, o esgar sorridente um pobre substituto do habitual sorriso sereno.
- Atrevo-me a dizer que me rejubilarei amanhã. Esta noite sinto-me demasiado cansado. - Como se tivesse de fazer um esforço enorme, o capitão pôs-se lentamente de
pé. - E agora trata de ir para a cama, meu rapaz.
- Oh, não, monsieur... - começou Lobo a protestar.
- Eu disse-te que fosses para a cama. Seja como for, eu nunca durmo bem, pelo que um de nós precisa de ter uma boa noite de sono, porque amanhã daremos início à
nossa missão.
Lobo já estava de boca aberta para continuar a argumentar, mas apressou-se a fechá-la. A missão deles. Em todo aquele tumulto de casas amaldiçoadas e de sedutoras
traiçoeiras, Lobo quase se esquecera do motivo que o levara e a Remy a regressarem a Paris.
A demanda para salvar o rei de Navarra, um huguenote, libertando-o do cativeiro na corte católica de França. O próprio Lobo não tinha qualquer filiação religiosa.
No que lhe dizia respeito, cada homem podia ir para o diabo à sua própria maneira. Todavia, resgatar o rei de Navarra era importante para Remy. Consequentemente,
também era importante para Lobo. Subitamente, apercebeu-se de que o capitão, de cenho franzido, o observava como quem estava a avaliá-lo.
- Martin, ainda te lembras da minha razão inicial para procurar Gabrielle Cheney?
- Para que ela entregasse uma mensagem ao rei de Navarra?
- Sim, mas ela recusou-se. Disse-me que não nos ajudaria - adiantou Remy contraindo o maxilar. - De facto, ela envidará todos os esforços para que o resgate seja
gorado. Tenciona embruxar o rei para que ele fique com ela.
- Mon Dieu! - exclamou Lobo. Não admirava que o capitão se mostrasse tão desalentado.
- Achais... achais que ela poderá usar a sua bruxaria contra nós? - perguntou o rapaz, receoso.
- É possível que ela recorra a quaisquer meios ao seu dispor, mas não me parece que Gabrielle Cheney possa ser considerada a nossa pior inimiga. Teremos pela frente
uma feiticeira muito mais formidável e de poderes demoníacos.
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Lobo estremeceu. Compreendendo muito bem a quem é que Remy se referia. A Catarina de Médicis, a Rainha das Trevas. Era impossível que se vivesse em Paris, ainda
que durante pouco tempo, sem que se ouvissem histórias horríveis sobre a Rainha-Mãe de França, uma mulher cruel, dura e impiedosa. Mas era preciso não esquecer que
ela era uma italiana, uma estrangeira, e toda a gente sabia que daí não podia vir nada de bom. Dizia-se que a Rainha Viúva era especialmente apta na arte negra de
preparar poções e venenos.
Remy colocou as mãos nos ombros de Lobo, perscrutando-lhe o rosto com toda a intensidade.
- Se estás a reconsiderar, se decidires que já não queres envolver-te neste perigoso empreendimento, compreenderei a tua atitude.
Lobo compreendeu onde é que o capitão queria chegar com aquela conversa tão séria. Sentiu-se a corar que nem um tomate. Depois do seu patético comportamento no lado
de fora da Maison d'Esprit, o capitão duvidava da sua fibra. Sentiu-se tão humilhado que só teve vontade de se atirar pela janela fora, espalhando os miolos inúteis
pelo pavimento da rua.
Olhou para Remy com uma expressão que era um misto de mágoa e vergonha.
- Oh, monsieur, peço desculpa por vos ter faltado antes. Mas juro-vos sobre as campas de todos os homens que podiam ter sido o meu pai que nunca mais voltarei a
fazer isso. Enfrentarei as piores maldições e lutarei contra as bruxas mais temíveis. Irei atrás de vós até mesmo até ao Inferno...
- Está bem. Está bem, meu rapaz. Acredito em ti - interrompeu-o Remy, apertando-lhe os ombros num gesto de cordialidade. - Fico satisfeito por saber que continuas
disposto a ajudar-me, porque conheces muito melhor as ruas de Paris do que eu, o que para mim é importante. Estou a confiar em ti, meu astuto Lobo, para me ajudares
a encontrar maneira de conseguir entrar no palácio para poder chegar junto do meu rei.
- Assim farei, capitão. Assim farei. Rondarei os portões do palácio para farejar qualquer informação útil. Se for preciso, meter-me-ei por debaixo do Louvre como
uma toupeira ou... posso trepar por um escadote até às torres mais altas.
- Pois bem, só quero que não partas esse pescoço de tolo - disse Remy. O semblante do capitão desanuviou-se pela primeira vez desde que tinha chegado a casa.
Lobo fez-lhe uma careta sorridente. Mas quando Remy passou por ele para extinguir o pavio da vela, Lobo teve de baixar a cabeça para ocultar
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o quanto se sentia comovido. Nunca ninguém tinha confiado nem dependido dele para nada até ao momento. Mas Nicolas Remy, o grande Flagelo em pessoa, dissera que
dependia e confiava nele. Nele, Martin, o Lobo, um humilde gatuno e carteirista, um rato das ruas de Paris. As lágrimas ardiam-lhe nos olhos, enquanto o peito se
enchia de tanto orgulho que pensou que o coração lhe rebentaria.
Enquanto Remy extinguia a chama da vela, Lobo acabou de se despir rapidamente e deitou-se com um coração muito mais leve. Aninhou a cabeça na almofada e fechou os
olhos, a cabeça cheia de visões de glória, de todos os feitos heróicos em que se empenharia lutando ao lado do capitão, as histórias que se contariam enquanto se
bebia uma caneca de vinho em todas as estalagens de França. Histórias sobre as façanhas do grande Flagelo... e do seu Lobo.
Muito depois de Martin já ter adormecido, Nicolas Remy continuava estendido na sua cama, as mãos cruzadas debaixo da cabeça, a olhar fixamente para os desenhos que
a luz do luar fazia no estuque rachado do teto. Quando o ressonar de mansinho de Lobo encheu o aposento, Remy invejou muito a capacidade que o rapaz tinha de mergulhar
num sono tão beatífico. Martin dormia o sono dos justos e dos que não tinham pesos na consciência. Mas porque não haveria de ser assim? Os pecados e os defeitos
de Martin eram de somenos importância. O rapaz não tinha as mãos manchadas de sangue, não tinha arrependimento nenhum pela morte de ninguém. Pelo menos, até ao momento.
Uma das pernas altas e magras de Martin pendia da beira do colchão, o cabelo escuro espalhado pela almofada. Num momento em que estava tão indefeso, perdera a atitude
emproada, a do aventureiro, que ele tanto se esforçava por aparentar, mostrando-se mais aquilo que era efetivamente, um rapaz que, de uma maneira qualquer, conseguira
sobreviver às adversidades inerentes a quem crescera nas ruas de Paris. Não só tinha conseguido sobreviver, como também conseguira sair ileso dessa situação e com
uma alma surpreendentemente romântica e otimista.
Martin tinha passado por inúmeras agruras e perigos ao longo da sua curta vida. Libertar o rei de Navarra não era uma causa que o tocasse, não era o seu rei. Remy
devia fazer o seu melhor para que Martin não se envolvesse no assunto. A boca estreitou-se num trejeito lúgubre porque sabia que não faria isso. Servir-se-ia de
Martin da maneira desapiedada como se aproveitara de muitos outros rapazes no passado, conduzindo-os para a boca de canhões
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para ficarem esfacelados, deixando-os morrer durante uma qualquer carga frenética contra as colunas de inimigos e tudo para poder reivindicar outra vitória à custa
de tantas vidas.
Remy só precisava de fechar os olhos, perder-se no sono, e sabia de antemão que veria os seus rostos, as feridas, ensanguentadas; os rostos imberbes de alguns deles,
em que a barba mal começara a crescer. Haviam sido muitas as vezes em que conseguira manter afastados os seus terríveis sonhos ao pensar em Gabrielle, mas agora...
Os lábios de Remy cerraram-se, esforçando-se por bani-la do seu pensamento. Mas suave como a luz do luar que entrava pela estreita janela, a imagem dela preenchia
a sua mente. Exatamente como estava naquele dia na floresta, o cabelo a que a luz do Sol emprestava cintilações a cair-lhe pelas costas, os pés de pele branca e
graciosos a roçarem suavemente pelas ervas. A olhar para ele com os seus olhos de um azul de pedras preciosas, que num momento eram capazes de brilhar com riso,
para no seguinte se velarem de melancolia.
A sua senhora loura, a melhor e a mais radiante das suas recordações. Agora, lembrar-se dela era apenas uma fonte de tormento porque Remy não era capaz de se impedir
de imaginar os outros homens que lhe faziam o que ele fora demasiado honrado para lhe ter feito. A apalparem-lhe os seios generosos, a deitarem de costas o corpo
todo nu nos lençóis, a abrirem as pernas dela.
Os olhos de Gabrielle brilhariam ardentes? Soltaria ela pequenos gritos de prazer? Olharia ela para esses homens da mesma maneira febril como olhara para Remy depois
de o ter beijado com tanta paixão naquela noite? Levou um braço aos olhos, como se ao cobri-los pudesse bloquear as imagens de Gabrielle nos braços de outro homem,
o que tanto o atormentava. Mas os nomes não lhe saíam da cabeça... Duclous, Penthieve, Lanfort. com que frieza Gabrielle desfiara a lista dos seus amantes, enchendo
Remy com a fúria negra de matar a que só dava largas no campo de batalha. Tinha uma vontade quase irresistível de encontrar cada um daqueles bandalhos, empunhar
a espada e esquartejá-los até se esvaírem em sangue.
Quanto a Gabrielle... Remy nunca pusera as mãos com brutalidade numa mulher, mas estivera tão perto de a sacudir até que os dentes lhe começassem a bater uns nos
outros, enquanto rugiria de raiva.
"Maldita sejas, Gabrielle! Como é que pudeste fazer uma coisa destas?"
Compreendia bem a pobreza, o desespero e a ignorância que poderiam levar uma mulher a vender o seu corpo a troco de algumas moedas, mas Gabrielle
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nem sequer tinha essa desculpa. Vinha de uma boa família que a amava. Era possível que a fortuna do pai se tivesse perdido, mas tinha um cunhado abastado e generoso,
o conde de Renard, que podia proporcionar-lhe tudo o que ela quisesse. Que razão é que Gabrielle poderia ter para ter enveredado por uma existência de cortesã, a
não ser por ganância e ambição?
Mas era absolutamente impossível que isso se coadunasse com as recordações que guardava da jovem que conhecera nesse verão na ilha Encantada. Gabrielle parecera
uma feiticeira de cabelos louros, uma rainha de conto de fadas demasiado orgulhosa para render o seu coração ou o seu corpo a qualquer homem. E contudo, tendo sido
ela própria a admiti-lo, até já nessa altura tinha tido o seu primeiro amante.
Como é que a mesma jovem que tinha pintado com tanto carinho o retrato da irmã mais nova, que era capaz de mostrar tanta compaixão e generosidade para com um soldado
ferido, poderia ser a mesma mulher que Remy encontrara esta noite? Fria, impiedosa e a maquinar para vir a ser amante de um rei.
Remy jamais teria acreditado naquilo se não tivesse ouvido da boca da própria Gabrielle. Mas que idiota obstinado e cego que ele fora. Ansiava por poder desprezá-la,
simplesmente, aprender a esquecê-la. Mas isso era a parte mais condenável de toda aquela situação.
A despeito de tudo, ele continuava a desejá-la, desejava-a ardentemente de uma maneira que era quase insuportável, uma dor que se refletia tanto no seu coração como
nos seus genitais. Remy rangeu os dentes e começou a virar-se de um lado para outro num grande desassossego. Tentou dar outro rumo aos seus pensamentos, pensando
no que faria amanhã, os primeiros passos que daria com vista à libertação do seu rei.
Remy sentou-se na cama e estendeu a mão, apalpando até encontrar a pilha de roupas, debaixo das quais tinha a sua preciosa bolsa que nunca deixava muito longe de
si. Colocou a pequena bolsa de couro nas mãos, sentindo o peso que o tranquilizava, o peso de ouro. Os fundos que Remy ganhara durante os últimos anos com o suor
do seu corpo e o aço da sua espada.
Soltou os cordões e abanou a bolsa até caírem várias moedas na sua mão, o seu coração cheio de uma enorme satisfação. Não era uma fortuna, mas seria dinheiro suficiente
para comprar armas e cavalos, para contratar mercenários ou subornar guardas. Mais do que suficiente para planear o resgate de um rei.
Ou para comprar uma mulher.
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Remy ficou com a respiração suspensa ao ter aquele caprichoso pensamento, esforçando-se por o suprimir. Mas as moedas brilhavam à luz do luar tão tentadoramente
como as madeixas de um louro-dourado de Gabrielle Cheney. Nos tempos que corriam, qual era o preço de uma cortesã parisiense? Quanto é que lhe custaria possuir Gabrielle,
mantê-la só para si próprio?
Remy ficou a olhar fixamente por mais uns momentos para as moedas que brilhavam na palma da sua mão, após o que se apressou a guardá-las na bolsa. O sangue subiu-lhe
à face e sentiu-se repugnado pelas suas próprias especulações. Não só se sentia revoltado com o pensamento de comprar Gabrielle, como também era impossível. Por
muito dinheiro que Remy conseguisse amealhar, estava certo de que nenhum capitão conseguiria satisfazê-la.
Não, Gabrielle desejava um rei... mais precisamente, o rei de Remy. Pois bem, maldito fosse se alguma vez permitisse que Gabrielle deitasse as garras ao rei de Navarra.
Remy voltou a pôr a bolsa cheia de moedas debaixo do gibão que despira e voltou a deitar-se de costas na cama. Apesar da sua determinação, os sobrolhos de Remy franziram-se,
mortificado pelas suas dúvidas. Seria Gabrielle capaz de seduzir o rei de Navarra, mesmo que Remy conseguisse encontrar maneira de o rei poder escapar de Paris;
e se Henrique não quisesse partir? Remy temia muito que ela fosse capaz disso mesmo.
Ao fim e ao cabo, Gabrielle tinha seduzido Remy ao ponto de se ter esquecido do seu dever durante todo um verão e ela nem sequer tinha tido a intenção de fazer isso.
Quanto ao rei de Navarra, bem... Remy recordava-se de um jovem príncipe que podia ser valente no campo de batalha, que até mostrara sinais de vir a ser um monarca
astuto para o povo huguenote, com a exceção de uma fraqueza que lhe era fatal.
Mulheres. Desde a tenra idade de catorze anos, o príncipe de Navarra descobriu que os encantos das senhoras eram tão irresistíveis como elas, aparentemente, o achavam.
O seu fascínio pelo sexo fraco, muito frequentemente, fizera com que descurasse as suas obrigações mais importantes, tal como empenhar-se nos seus estudos e prestar
atenção aos assuntos do reino.
Teria o jovem e indolente príncipe mudado alguma coisa desde que ascendera ao trono? Remy só poderia esperar que sim, caso contrário o rei de Navarra nunca seria
capaz de resistir aos encantos de Gabrielle. Ela derrotá-lo-ia com um único dos seus sorrisos deslumbrantes.
Remy aninhou mais a cabeça no travesseiro, refletindo que, quanto mais depressa conseguisse tirar o seu soberano de Paris, melhor seria. Precisava de
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toda a sua capacidade de discernimento, de dormir algumas horas. Mas apesar do cansaço que sentia, foi avassalado pelo velho temor, sabendo de antemão que, assim
que fechasse os olhos, eles começariam a atormentá-lo, os fantasmas do seu passado, que regressavam para ficarem a olhar para ele com olhos de amargura e censura.
Logo atrás deles, estariam aquelas outras pobres almas que haviam perecido no massacre na véspera do dia de São Bartolomeu, com mãos espectrais estendidas para o
puxarem, soltando os seus gritos de desespero. Os seus compatriotas, os homens, mulheres e crianças que ele jurara proteger, tendo fracassado. E se a noite fosse
realmente má, ele também viria, o homem demónio, a sua pesada espada de batalha cheia de sangue, os dentes arreganhados num esgar de morte, mostrando uma satisfação
selvática perante a matança.
Remy agitou-se inquieto na cama, a fronte perlada de suor frio, os seus pensamentos a concentrarem-se instintivamente em Gabrielle. Mas ela tinha desaparecido, a
sua donzela da ilha Encantada, a sua feiticeira, o seu anjo da guarda. Era um sonho que deixara de existir. E isso era tudo o que ela sempre havia sido e agora ele
perdera-a para sempre. Remy fechou os olhos, rendendo-se ao inevitável.
Os demónios apoderar-se-iam de si durante toda a noite.
Gabrielle gemeu e agitou-se no seu leito, tentando lutar contra o pesadelo, envidando esforços para despertar. Mas em vão. Os lençóis de seda que lhe envolviam o
corpo desapareceram, transformados em palha seca que lhe picava a pele. Ela retornou ao sótão do palheiro, onde o ar era abafado, quase esmagada debaixo do peso
do corpo de Etienne Danton.
- N... não, Etienne -protestava, contorcendo-se, numa tentativa para se afastar da boca ávida dele que fazia pressão no seu pescoço. Ela tremia de repugnância ao
sentir a língua viscosa na pele. - P... por favor, parai. Eu... eu não quero...
- Oh, sim, queres - dizia Danton arfante, a respiração quente na cara dela. -Queres e bastante, minha ardente bruxinha. Por que outra razão é que tens andado a tentar-me?
- Não. Eu não quis... não foi minha intenção... - Gabrielle ficou com a voz embargada num grito de protesto, enquanto Etienne lhe apalpava o seio, os dedos a apertarem-no
com força. - Parai! Estais a magoar-me.
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Mas Danton ignorou os protestos dela, os dedos aprenderem-se no decote do carpete, o som de tecido a ser rasgado a ecoar-lhe nos ouvidos.
- Eu disse-vos que parásseis!- disse Gabrielle numa voz aguda de desespero. Cerrando os punhos, começou a bater desvairadamente na cara dele, sentindo o coração
a bater-lhe fortemente com um misto de cólera e medo crescentes. Mas Danton agarrou-lhe os pulsos, imobilizando-os bruscamente por cima da cabeça dela. Aquele homem
que ela acreditara amar, o seu cavaleiro, o seu protetor que recorria a uma força bruta para a dominar.
Etienne olhava-a com uma expressão lúbrica, as feições magras e bonitas contorcidas numa máscara medonha de luxúria, transformando-se perante os seus olhos num demónio,
num monstro. Gabrielle sentiu que o vestido era puxado para cima e que ele lhe abria as pernas à força.
- Não! - gritou, debatendo-se para sair de debaixo dele, mas era inútil.
O peso do corpo pesado de Danton mantinha-a presa. Tinha a respiração arfante. Gabrielle mal conseguia respirar. Sentiu qualquer coisa dura a penetrar a sua região
genital, seguida de uma dor que parecia de um ferro em brasa.
- Não! - Mas desta vez o grito era muito mais ténue, as lágrimas a caírem-lhe pelo canto dos olhos. O corpo de Danton investia sobre Gabrielle impiedosamente na
palha áspera, contra as tábuas duras do soalho do sótão do palheiro.
Aquele martírio deu-lhe a impressão de estar a prolongar-se indefinidamente, como se nunca mais acabasse. Gabrielle permanecia debaixo de Danton, feita num frangalho,
a rezar para que tudo aquilo acabasse rapidamente.
- Meu Menino Jesus, ajuda-me - murmurou. - Alguém que me ajude.
Mas então, ao olhar por cima dos ombros de Danton, vislumbrou algo que lhe deslumbrou os olhos. A luz do Sol refletia-se numa armadura cintilante. Gabrielle pestanejou,
para aclarar a visão, e apouco e pouco começou a ver a figura pouco nítida de um homem, um militar alto e orgulhoso, com um cabelo de um louro-escuro, barba bem
aparada e olhos do mati terno da noite.
- R... Remy - sussurrou Gabrielle, o seu coração a animar-se com uma vaga de esperança desesperada. - Oh, Remy. Ajuda-me, por favor.
Para seu grande horror, Remy limitou-se a baixar o olhar, fitando-a desapaixonadamente, mas depois os lábios esboçaram um esgar de escárnio, os seus olhos a adquirirem
uma expressão fria e dura. Virou-lhe costas, enojado, desaparecendo por entre a luz do Sol.
- Não, Remy. volta. Por favor, volta...
Os soluços entrecortados de choro acordaram-na por fim. Abriu os olhos de repente e olhou em volta da alcova, tentando organizar as ideias,
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convencer-se de que estava realmente em segurança na sua alcova, em Paris, e não encurralada no chão de um palheiro.
com o coração a bater com força, respirava em haustos rápidos, tentando banir aquele pesadelo de volta às sombras do seu subconsciente, de onde viera. Mas o sonho
mau agarrava-se a ela como uma camada de lodo viscoso.
Gabrielle sentou-se, apercebendo-se de que tanto a camisa de dormir como os lençóis estavam empapados em suor. A sensação da sua própria pele pegajosa repugnava-a,
apressando-se a atirar as cobertas para trás e tropeçando na pressa de sair da cama.
Puxou a fina camisa de dormir de cambraia e quase rasgou o tecido húmido que se lhe agarrava ao corpo enquanto a despia pela cabeça com brusquidão. A cambalear,
encaminhou-se para o lavatório de pé, enchendo a bacia com a água de um jarro de esmalte de bordo azul. Pegou num sabonete perfumado e numa esponja e começou a esfregar-se
tão vigorosamente como naquele dia depois de Danton se ter saciado com o seu corpo.
Os dedos tremiam-lhe tanto que o sabonete lhe escorregou dos dedos, caindo na bacia. Igualmente, mal conseguia agarrar a esponja, que levou o mesmo caminho, agarrando-se
ao bordo do lavatório enquanto respirava fundo várias vezes, num esforço para se recompor.
Havia tanto tempo que não tinha aquele sonho medonho que tinha esperado que nunca mais a afligisse. Era um pesadelo que sempre havia sido extremamente vívido, fazendo
com que revivesse todos os momentos de tormento que vivera nesse dia no palheiro. Mas, desta vez, não era o que Danton lhe fizera que deixou Gabrielle tão abalada.
Não, era a intromissão de Remy no sonho, Remy a recusar-se a ajudá-la, Remy a virar-lhe as costas de tão enojado.
- Oh, meu Deus! - gemeu, mordendo o lábio inferior com força para impedir que continuasse a tremer; dos olhos corriam-lhe lágrimas ardentes para as faces. Fungou
com força e respirou fundo, a respiração entrecortada.
- Vê se te controlas, menina - ralhou consigo própria. - Foi só um sonho, apenas um maldito sonho.
Mas não tinha sido assim, segredou-lhe o coração. Remy olhara-a de facto com uma expressão de repugnância. Ele passara a desprezá-la e o mais certo seria nunca mais
levantar um dedo para a ajudar. Gabrielle engoliu esforçadamente para conter um soluço que lhe sacudiria o corpo. Toda a mágoa que não se permitira sentir devido
à rejeição de Remy acumulou-se tão dolorosamente dentro de si que ameaçava fazer com que caísse de joelhos.
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Sentia uma frialdade que se lhe entranhava nos ossos, tremendo tão violentamente que os dentes batiam uns nos outros. A cambalear, percorreu a alcova até conseguir
encontrar o robe. Sem saber como, envolveu o corpo desnudado nas dobras de seda chegadas ao pescoço, mas nem por isso deixou de tremer.
O seu olhar prendeu-se num objeto deixado no assento da janela, a luz do luar a entrar pelos vidros das janelas, refletindo-se na lâmina de aço da espada, a mesma
que Gabrielle deixara cair no pátio horas antes... a espada de Remy.
Quando Bette subira para varrer os estilhaços de vidro dos frascos devia ter deixado a espada. Num passo hesitante, atravessou o quarto e pegou na espada possessivamente,
os dedos a fecharem-se no punho, como se fosse a última coisa de algum valor que lhe restasse.
Agarrou-a com desespero, na esperança de poder sentir alguma da antiga força protetora que a espada de Remy sempre lhe proporcionara. Remy que agora a odiava e que
a fitara com tanto desprezo. Atitude que se devia ao facto de, finalmente, ter visto a terrível mácula nela, pensou Gabrielle, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
Consciente do desdouro vergonhoso na sua alma por causa da degradação que sofrera às mãos de Danton.
Mas a culpa de isso ter acontecido era toda dela. Recordava-se de estar sentada no chão de madeira tosca, agarrada ao corpete rasgado por cima da pele pisada. Confrontara
Danton com um olhar ferido e atordoado.
"Como... como é que pudestes fazer-me isto, Étienne? Pensei que éreis um homem de honra."
"E sou um homem de honra", resmungara ele, evitando os olhos dela enquanto puxava para cima os calções tufados pelo meio das coxas. "Tudo o que eu fiz foi porque
fizestes com que eu agisse deste modo. Enfeitiçastes-me de uma maneira quase insuportável."
Foi então que Gabrielle se apercebeu da dura verdade acerca de si própria. Além da veia artística dos seus hábeis dedos, da sua mestria com tintas e pincel, ela
possuía uma magia bastante mais negra, a capacidade de fazer com que um homem ficasse completamente fora de si de tanto desejo, até mesmo ao ponto de cometer ações
inqualificáveis.
E foi nesse momento que a parte de si que era capaz de encontrar beleza em todas as folhas, em qualquer lâmina de relva, a parte que conseguia insuflar vida em unicórnios
ou pôr um brilho de magia nos olhos de uma garota... essa parte de si havia definhado e morrido.
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com lágrimas ardentes a turvarem-lhe a visão. Gabrielle pestanejou com força e levantou a cabeça, olhando para o seu próprio reflexo no vidro da janela. Viu uma
mulher de olhar desvairado agarrada a uma espada, o cabelo húmido e baço a pender-lhe para os ombros, a sua boca com uma expressão de azedume e velhice.
Que Deus lhe valesse, pensou Gabrielle suspirando. Estava verdadeiramente feia. Perguntou-se porque Remy não tinha visto isso antes. Esfregando os olhos para se
livrar das lágrimas, prendeu o olhar na espada que agarrava ao longo do corpo, sem saber muito bem o que devia fazer com aquela coisa.
Devia descobrir onde é que Remy estava alojado, mandando alguém para lha devolver, mas havia algo dentro dela que se rebelava contra essa ideia. Não, por que diabo
é que haveria de lhe devolver a espada? Era óbvio que Remy não perdera tempo a adquirir outra, além disso, era muito possível que Gabrielle viesse a precisar daquela
espada. Levando em linha de conta a maneira como Remy a ameaçara...
Ergueu a lâmina da espada diante de si e riu-se ao pensar na hipótese de cruzar espadas com o poderoso Flagelo. Mas o seu riso era um pouco esganiçado, não chegando
para aligeirar a pesada mágoa no seu coração.
Tinha constatado que ela e Remy não poderiam continuar a ser amigos, mas nunca, nos seus piores pesadelos, tinha pensado que podiam vir a ser inimigos acérrimos.
Mas que outra coisa é que poderia ter esperado, perguntou-se admoestando-se. Depois de ter anunciado tão imbecilmente as suas intenções de seduzir o rei de Navarra
e de o manter em Paris. O rei que ele considerava ser seu dever libertar do cativeiro. E Deus sabia que nada poderia interpor-se entre Nicolas Remy e o seu dever.
Gabrielle pousou a espada, colocando-a ao alto num canto. Por outro lado, nada poderia interpor-se entre Gabrielle Cheney e as suas ambições, pensou, endireitando
os ombros. Por muito que Remy se esforçasse por o impedir, estava determinada a ter o rei de Navarra rendido aos seus encantos. Não teria o grande Nostradamus previsto
que isso aconteceria?
Gabrielle sentou-se no assento da janela, dobrou os joelhos, encostando-os ao queixo e envolvendo-os com os braços, e olhou pelos vidros das janelas. O firmamento
que estivera tão nublado antes, ao cair da noite, agora estava límpido, com as próprias estrelas a parecerem que cartografavam o caminho do futuro de Gabrielle.
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Oh, ela sabia muito bem o que é que a mãe diria face a uma noção daquelas. Evangeline Cheney sempre mostrara ceticismo em relação às previsões de Nostradamus. A
mãe ainda tivera menos fé na astrologia.
"O teu destino não está escrito em quaisquer estrelas distantes, meu amor." Dissera-lhe a mãe numa ocasião. "Depende inteiramente das escolhas de vida que fizeres.."
Gabrielle fizera a sua escolha há muito tempo, no dia em que deixara Remy sozinho na margem do rio. Até mesmo antes disso, refletiu com tristeza, quando permitira
que Étienne Danton lhe pegasse na mão, levando-a para aquele palheiro.
A partir do momento em que aceitara a magia negra que existia dentro de si, Gabrielle aprendera a usar os seus encantos e beleza exterior, servindo-se do seu próprio
corpo como uma arma capaz de apanhar qualquer homem, até mesmo um rei. Nunca mais voltaria a sentir-se tão vulnerável e indefesa como se sentira no dia em que tinha
perdido a sua inocência.
Seria poderosa e forte, tão formidável como a Rainha das Trevas. Pelo menos, seria amanhã. Mas enquanto olhava para o firmamento frio daquela noite, Gabrielle só
se sentia muito pequena e sozinha.
Ansiava desesperadamente por alguém com braços fortes que a envolvessem, que a reconfortassem e que a abraçassem. Mas esses nunca seriam os braços de Remy. Ele nunca
mais quereria tocar-lhe outra vez.
Em vez disso, Gabrielle deu consigo a sentir a falta de Ariane. A sua irmã mais velha, com muita frequência, era capaz de dar consigo em doida quando tentava desempenhar
o papel de mãe, ensinar e proteger. Mas agora Gabrielle não queria mais nada além de poder estar de volta à ilha Encantada, esconder o rosto no colo de Ariane, desabafando
todas as suas atribulações enquanto a irmã lhe afagava o cabelo.
Mas a sua irmã mais velha desprezava-a tanto como Remy, pensou Gabrielle desalentada. Na qualidade de Senhora da Ilha Encantada, possuidora de uma capacidade extraordinária
para curar, sensata, generosa e afável, Ariane era a espécie de mulher que inspirava amor nos homens e não luxúria. Merecia todo o respeito por parte dos habitantes
da ilha Encantada e não só, contava com a admiração de todas as outras Filhas da Terra, bem como a adoração do seu conde de Renard.
Invadida por um grande desânimo, Gabrielle apoiou o queixo nos joelhos. Não havia maneira de a sua irmã mais velha conseguir compreendê-la. Tal como acontecia com
a vida que levava, Ariane era perfeita.
O Château Tremazan situava-se no cimo de uma colina, qual senhor da guerra de rosto empedernido a observar o vale abaixo de si. Os torreões e as ameias fortificadas
apresentavam o aspeto ameaçador de uma fortaleza inexpugnável. Mas a alcova situada no nível mais elevado do castelo assemelhava-se mais ao aposento de uma casa
de quinta de uma família próspera. As paredes caiadas de branco eram tão despretensiosas como os soalhos encerados, cobertos por várias carpetes entrançadas.
O mobiliário era igualmente simples, apenas algumas cadeiras sólidas, umas quantas mesas, uma arca de madeira maciça colocada aos pés de uma cama de quatro postes,
com dossel de onde pendiam panos de seda de um azul igual ao do firmamento de um verão sem nuvens. Soprava uma brisa que entrava pelas janelas abertas, agitando
os panos do leito e trazendo consigo as fragrâncias do mundo muito abaixo do castelo, o cheiro a erva acabada de cortar nas pastagens, o perfume ténue de pétalas
de rosa e um cheiro mais forte que vinha do estábulo.
A brisa era suave e amena, soprando por cima dos corpos cheios de ardor dos dois apaixonados enredados nos lençóis. Ariane Deauville, a condessa de Renard, estava
nua por baixo do seu marido, o cabelo de uma cor acastanhada espalhado pela almofada e os olhos cinzentos semicerrados. A sua respiração fazia-se em suspiros arfantes
enquanto Justice Deauville, com as mãos firmadas no leito, estava por cima dela, a sua boca a dar-lhe sucessivos beijos ardentes ao longo da linha curvilínea do
pescoço.
O conde era uma figura formidável sob todos os aspetos, com uma altura bastante acima do metro e oitenta e muito musculado. O rosto, com os seus olhos verdes de
expressão velada, o maxilar proeminente e o nariz quebrado várias vezes, características suficientes para atemorizar muitos homens
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cheios de valentia, em especial quando o conde se encolerizava. Mas enquanto Renard se mantinha por cima da sua mulher, tendo muito cuidado para não a esmagar debaixo
do seu robusto corpo, as suas feições duras suavizavam-se por um fluxo de paixão e ternura.
- Ma chère - disse ele numa voz enrouquecida, o cabelo de um castanho-claro alourado pelo sol a cair-lhe para a frente enquanto lhe beijava os lábios, excitando-a
com o ardor da sua língua.
Enquanto Renard se ajeitava entre as pernas dela, Ariane fechou os olhos e envolveu-lhe o pescoço com os braços, puxando-o mais para junto de si. Mas o estimulo
sexual de Ariane estava arredio, a sua mente consumida por um único pensamento, um desejo, uma oração.
"O", por favor, meu Deus, permiti que este seja o momento. Permiti que o Renard me fecunde com uma criança."
Sentia o membro endurecido de Renard a roçar-lhe pelo ninho de pelos encaracolados entre as suas pernas, prolongando a união entre os dois com uma lentidão que era
torturante. Ariane meteu a mão entre os dois, mostrando-se impaciente, guiando-o com um impulso ascendente das ancas. com a boca fechada numa linha que denotava
determinação, começou a balouçar-se contra ele em movimentos rítmicos.
- Chérie. - A palavra soltada com um suspiro tinha uma parte de ternura e outra de protesto perante a pressa de Ariane. Ficou com o corpo rígido numa atitude de
resistência, murmurando-lhe beijos a toda a largura da fronte. - Chérie, não... há... necessidade... de tanta pressa. Temos... a... tarde toda.
Mas Ariane limitou-se a impulsionar-se mais vigorosamente, obrigando-o a penetrá-la com mais força, a arfar devido ao esforço. Forçou-o cada vez com mais premência,
retribuindo-lhe os beijos de uma maneira semelhante a desespero, enquanto, em pensamento, o urgia a finalizar a cópula.
Renard continuava a beijá-la ininterruptamente, a sua língua ardente a acasalar com a dela enquanto lhe respirava palavras de amor nos lábios. Ariane apercebia-se
de que ele tentava ao máximo abrandar o ritmo, para levá-la à beira da excitação. Mas ela recusava-se a permitir isso, pressionando-o com um único objetivo em mente.
"Uma criança... uma menina. Concedei-me uma menina."
Ariane fechou as pernas com mais força em volta do corpo de Renard, fazendo pressão com os calcanhares contra as nádegas macias e bem musculadas, servindo-se deles
como se fossem esporas para o pressionar. com uma
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determinação inflexível até quebrar a resistência de Renard. com um gemido, ele começou a investir, penetrando-a com mais energia, até que, finalmente, ela sentiu-o
a estremecer quando ejaculou. Apesar de ter tido cuidado para não se deixar cair em cima dela, Renard respirava tão aceleradamente como um fogoso corcel de batalha
depois do combate.
- Doce Jesus, mulher! - exclamou arquejante, descansando a testa no ombro dela. com o seu próprio coração a bater com força, Ariane acariciou-lhe os fios de cabelo
humedecido. Soltou um suspiro entrecortado dividido entre o triunfo e a dúvida. Teria tido êxito desta vez? Ter-se-ia o milagre da conceção consumado?
- Mon Dieu! Isto foi... certamente... vigoroso.
Ariane só sorriu, adotando uma posição cuidadosa, compondo os joelhos dobrados, a região pélvica inclinada, não fosse deixar escapar uma preciosa gota da semente
de Renard. Ele deitou-se de lado, estendendo a mão para a puxar de volta aos seus braços, para que ela se aninhasse junto do seu coração.
Mas Ariane resistiu, afastando as mãos dele.
- Não, deixa-me estar assim durante mais algum tempo. Pode ser que seja benéfico se der à tua semente todas as oportunidades de penetrar mais fundo no meu útero.
- Renard voltou a deixar-se cair de costas.
- Peço perdão, ma chère. Tinha-me esquecido. Não estivemos a fazer amor. Estivemos a fazer um bebé - retorquiu ele num tom de voz seco e de desilusão.
Ariane ficou perturbada ao ver que Renard ficava com as sobrancelhas franzidas.
- Mas sabes que eu tenho andado a apontar, muito cuidadosamente, as datas dos meus ciclos menstruais e quando o momento é o mais propício...
- Sim, sim - resmungou Renard. - Mas acontece que estou a começar a sentir-me um pouco como um garanhão de cobrição.
Ariane riu-se à socapa, numa tentativa para o pôr bem-humorado.
- E tenho de dizer que és um garanhão verdadeiramente magnificente - retorquiu Ariane, passando os nós dos dedos pelo peito plano todo suado. - Proporcionei-te prazer,
não é verdade? - perguntou ela num tom que exigia resposta.
Renard pegou-lhe na mão e levou as pontas dos dedos aos lábios ao de leve.
- Claro que sim, chérie. E quando é que isso não aconteceu? - respondeu Renard, largando-lhe a mão e virando-se de lado, após o que se soergueu
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apoiado sobre um cotovelo de maneira a poder observá-la atentamente. Mas a verdadeira questão é saber se te proporcionei prazer.
- Mas... mas evidentemente que sim - mentiu Ariane, tentando evitar os olhos dele. Renard pegou-lhe no queixo, obrigando-a a olhar para si. O sobrolho carregado
acentuou-se ainda mais.
- Não. Foi o que pensei. - Deixou-se cair em cima da almofada, cobrindo a fronte com o braço, mostrando-se irritado e frustrado.
Ariane, em pensamento, amaldiçoou a bruxa velha que tinha sido a avó de Justice por lhe ter ensinado a arte de ler olhos, algo que somente as Filhas da Terra, por
pressuposto, deviam saber. Renard era demasiado bom a fazê-lo, o que era irritantemente infernal.
- Muito bem - disse Ariane. - É possível que eu não tenha chegado a atingir o meu... o meu habitual pico. Estava à procura de uma realização de outra natureza. O
meu prazer era secundário...
- Era secundário! - exclamou Renard com cara de poucos amigos, sentando-se a direito repentinamente. - Talvez isso fosse verdade se fosses uma qualquer meretriz
que só estivesse interessada com o volume da minha bolsa. Mas gostaria de poder pensar que a minha mulher sentia mais prazer nos meus braços do que isso.
- Oh, Justice... - retorquiu Ariane desalentada, mas Renard levantou-se do leito e num passo brusco encaminhou-se para o lavatório de pé, virando-lhe as costas largas
e as nádegas firmes. Depois de ter deitado a água do jarro na bacia, chapinhou água na cara com as duas mãos.
Ariane suspirou, dividida entre a necessidade de permanecer na mesma posição e o seu desejo de ir ter com Renard para amansar o seu orgulho ferido de macho. Apesar
das suas afirmações de que tinha a pele de um elefante, o seu poderoso marido era tão vulnerável como qualquer homem quando se tratava da sua mestria entre lençóis.
Ficou a olhar para Renard enquanto ele se lavava, mantendo-se em silêncio, decerto a preparar-se para se vestir a fim de retomar as tarefas da tarde. Ariane levantou-se
cautelosamente do leito. Aproximou-se por detrás dele cuidadosamente e afastou para o lado os cabelos castanhos do pescoço.
Renard ficou ligeiramente rígido ao sentir a mão dela, mas foi a sua única reação, continuando a esfregar o braço comprido e com tendões salientes com a esponja.
Ariane continuava a ter de se esticar um pouco para lhe dar um beijo na base da nuca, apesar de ser uma mulher alta.
- Justice, sabes bem que eu te amo - murmurou Ariane. - Sinto muita satisfação sempre que me tocas, até mesmo com a mais pequena carícia.
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- Se assim o dizeis, milady.
Ariane contornou-o e colocou-se entre ele e o lavatório.
- Deixa-me fazer isso - disse ela, estendendo a mão para a esponja, tentando aliciá-lo. Renard resistiu por breves momentos, mas depois entregou-lhe a esponja.
Deixou-se ficar com as pernas ligeiramente abertas e as mãos nos quadris, a olhar fixamente para um ponto qualquer acima da cabeça de Ariane, enquanto ela ensaboava
a esponja e lha passava pelo peito largo. Lavava-o vagarosamente e com ternura, esforçando-se ao máximo para o compensar pela sua falta de reação de há pouco. O
olhar dela de admiração percorria o corpo bem constituído e viril do marido.
Se bem que Ariane o considerasse quase excruciantemente bem-parecido, Renard não se considerava um homem atraente. Não era um homem bonito
segundo os padrões clássicos, a sua pele não era macia nem branca como a de muitos sofisticados nobres que pareciam ter sido talhados de um pano de seda por um competente
alfaiate.
com metade dos seus ascendentes da classe campesina, Renard era mais como um homem que tivesse sido feito da própria terra, todo carne, osso e tendões. Enquanto
Ariane levava a esponja mais abaixo, sentiu a reação sob a forma de um frémito na região genital dele. O órgão masculino agitou-se debaixo da mão dela e Renard susteve
a respiração arquejante.
- Nada de mais disso, milady - disse ele, agarrando-lhe o pulso para a impedir de continuar. - Já fiz a minha obrigação para convosco e agora tenho outros assuntos
que requerem a minha atenção.
Ariane endireitou-se, sentindo as faces a arder de mágoa e embaraço.
- Porquê... porque falais como se eu fosse uma mulher rapace disposta a usar-vos com vista aos meus próprios objetivos?
Renard limitou-se a arquear uma sobrancelha numa expressão que dizia muito, após o que se afastou dela num passo alargado e pegou numa toalha de linho para se secar.
Ariane deixou cair a esponja no lavatório, vexada pelo baque de culpa. Que diabo! Ela não estava a agir de modo a satisfazer uma qualquer luxúria desenfreada, mas
sim com vista a vir a ter uma criança, a criança deles, que seria uma bênção para os dois.
Ariane envolveu os seios nus nos braços, sentindo-se exposta e com frio. Depois de Renard ter saído, trataria de se lavar e vestir, mas para já foi buscar a combinação,
que deixara na pilha de roupas que despira atabalhoadamente na ânsia de levar Renard para a cama. Enquanto vestia a camisa de um
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tecido de linho fino pela cabeça, tinha consciência da presença de Renard, que se vestia no outro extremo da alcova, à distância de algumas tábuas do soalho e carpetes
espalhadas pelo aposento, que parecia alargar-se como um abismo entre os dois.
Ficou a olhar para o marido enquanto ele vestia os calções que apertavam abaixo dos joelhos, apressando-se a abotoar os botões, como se estivesse ansioso por se
ir embora.
- Lamento muito que consideres a tua obrigação tão penosa - disse ela. - Mas pensei que querias uma criança tanto como eu.
- Quero o que quer que seja que te faça feliz, ma chère - resmungou Renard depois de uma breve pausa, procurando uma camisa lavada no camiseiro.
- Essa é uma resposta irritantemente evasiva - ripostou Ariane. Renard tirou a camisa e bateu com a porta do camiseiro, fechando-a.
- Nada me daria mais prazer do que ter um filho contigo, mas que diabo, estás a esforçar-te com demasiado afinco, Ariane. Vais fazer com que ambos fiquemos exaustos,
mulher!
- Antigamente nunca te queixavas dessas coisas. Tinhas muito mais estâmina do que isso.
Renard deteve-se a meio de desdobrar a camisa para a fitar com uma expressão de fúria.
- É verdade que sim. Era capaz de fazer amor contigo durante todo o dia. Mas não é isso que ultimamente temos andado a fazer. Temo-nos limitado a unir os nossos
corpos para fazermos um filho. Por vezes pareces tão distante de mim que não posso evitar perguntar-me se tens consciência da minha presença ou se qualquer outro
homem serviria para o que tens em mente.
- Isso não é verdade! - insurgiu-se Ariane, acalorada. - Que coisa horrível de se dizer.
Renard comprimiu os lábios, após o que disse, contrito:
- Tens razão. Peço desculpa. - Tentou vestir a camisa pela cabeça, mas ainda tinha a pele demasiado húmida. O algodão fino ficou arrepanhado em volta dos ombros,
onde não conseguia chegar para a puxar para baixo.
"Raios! - exclamou Renard exasperado. Não tardaria a rasgar a camisa ao tentar puxá-la com tanta impaciência. Dizendo-lhe que estivesse quieto num tom autoritário,
Ariane começou a desembaraçar o tecido até conseguir fazê-lo passar pelos ombros de Renard e pelas costas.
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"Mera, madame - resmungou. Quando baixou o olhar até ela, o semblante ríspido suavizou-se. Tanto os olhos como a voz adquiriram uma expressão mais suave e mais paciente
quando ela lhe acariciou a face. - Peço desculpa por me ter comportado como uma besta ferida, ma chère. Mas a verdade é que temos muito tempo para termos filhos.
Só estamos casados há três anos.
O afago e o sorriso de ternura aliviaram parte da tensão que Ariane sentia, mas teve de suprimir um tremor na voz quando disse:
- A maior parte das mulheres da minha idade já foram mães várias vezes. vou fazer vinte e quatro anos no próximo dia de São Miguel, em 29 de setembro.
- Ainda és uma garotinha - disse Renard, dando-lhe um beijo na ponta do nariz. - A semana passada não ajudaste a mulher do moleiro a dar à luz? E ela já deve ter
quarenta e dois anos.
- Sim, mas a Hortense já tem dez crianças - retorquiu Ariane, sentindo a garganta embargada. Teve de engolir com força para poder acabar o que queria dizer. - E
eu já fracassei duas vezes.
Renard emoldurou-lhe o rosto com as suas mãos que eram enormes e olhou-a com uma expressão cheia de intensidade.
- Não fales dessa maneira, Ariane. O que aconteceu não foi por tua culpa. És uma mulher sábia. Devias ter a sensatez de não dizeres coisas dessas. Muitas vezes,
sem que se saiba porquê, a natureza dita que as mulheres sofram abortos espontâneos.
- Abortos espontâneos - ecoou Ariane com amargura, afastando as mãos dele. - Como eu odeio essa expressão. Soa como se eu não tivesse perdido nada mais precioso
do que um balde de água que deixei cair quando vinha do poço. A primeira vez, senti-me dececionada, mas ainda mal me tinha apercebido de que engravidei quando abortei.
Mas quando isso aconteceu a última vez...
Ariane fechou os olhos e levou a mão ao ventre, fazendo pressão.
- Oh, a última vez, Justice, já conseguia sentir o primeiro tremor de vida do nosso bebé, como um passarinho muito pequeno a bater as asas. Eu não sofri um aborto
espontâneo - acrescentou Ariane numa voz tensa de tanta angústia. - Perdi a nossa criança.
- E eu quase te perdi! - replicou Renard concisamente.
- Não exageres, Justice. Admito que senti muitas dores e que perdi um pouco de sangue...
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- Estiveste às portas da morte, Ariane - atalhou Renard, agarrando-a pelos ombros e fitando-a com uma expressão severa, como se quisesse obriga-la a reconhecer a
verdade das suas palavras.
- Isso não é verdade! - ripostou Ariane, espetando o queixo numa atitude de obstinação. - Mas ainda que tivesse estado à beira da morte, dar à luz envolve sempre
alguns riscos. Mas poder vir a ter um prémio tão precioso, o nosso próprio bebé, não valerá esse risco?
- Não! Para mim, não vale. - O maxilar de Renard contraiu-se numa expressão tão determinada que lhe crispou um músculo da face.
- Mas tu és o conde de Renard. Decerto que queres um herdeiro, ou não?
Renard expeliu o ar, manifestamente impaciente.
- Ariane, sabes bem que eu nunca me interessei particularmente em vir a herdar tudo isto. - com um gesto da cabeça que denotava exasperação, indicou uma janela do
castelo, indicando a enorme propriedade que se abarcava daí. - E importo-me ainda menos com quem venha a herdar tudo isto depois de eu ter desaparecido. Tudo o que
me interessa és tu.
Os olhos de Renard chispavam com um misto de amor e frustração. Flexionou os dedos das mãos, tentando massajar parte da tensão que se lhe acumulara nas omoplatas.
- Por amor de Deus, mulher! A minha própria mãe morreu ao dar-me à luz. É isso que queres para ti? Deixar-me com uma criança que nunca terá oportunidade de ver a
cara da mãe?
- Não! Tenho a certeza de que tudo correrá melhor da próxima vez. Isto é... isto é... - O receio que atormentara Ariane tão implacavelmente nos últimos tempos fez
com que os seus lábios tremessem. - Se houver uma próxima vez - acrescentou num sussurro.
- Ah, chérie - gemeu Renard. Puxou-a para os seus braços, abraçando-a e pousando o rosto no cabelo dela. - Um dia haverás de ter o teu bebé. Mas deves ser paciente
e esperar que isso aconteça, O teu corpo ainda nem sequer teve tempo para se recuperar.
Ariane aninhou-se junto do peito dele, sentindo algum consolo nos braços fortes e ternos e no bater rítmico do coração de Renard. Mas tinha a voz trémula quando
falou.
-Já passou mais de um ano, Justice, desde que perdi o nosso bebé.
- Não, só passaram nove meses - corrigiu Renard suavemente. "Só?", pensou Ariane entristecida. Tinha a sensação de que já decorrera
toda uma vida de esperanças sempre que a menstruação se atrasava um pouco
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ao que se seguia uma desilusão que a devastava quando as regras mensais começavam a fluir. O seu desespero intensificava-se ainda mais quando se apercebia de que
a sua mágoa não era partilhada por ninguém. Sempre que não conseguia conceber, desconfiava que Renard se sentia mais do que um pouco aliviado.
Mas acusar o marido disso mesmo só serviria para dar origem a outra discussão e receava ter de admitir que os desaguisados de ultimamente tinham sido demasiados.
Por isso, tratou de se mostrar animada, levantou a cabeça e brindou Renard com um sorriso pouco convincente.
- Não importa. Tenho a certeza de que pensarás de outra maneira acerca deste assunto quando eu colocar o nosso filho ou a nossa filha nos teus braços. E isso talvez
venha a acontecer mais cedo do que qualquer de nós pensa. - Ariane olhou para a cama com uma expressão esperançada.
- Talvez tenhamos tido sorte esta tarde.
- Talvez - concordou Renard, mas o seu próprio sorriso era forçado. Depositou-lhe um beijo ao de leve na fronte e depois desprendeu-a dos seus braços.
Renard pegou nas botas e nos calções e sentou-se num dos escabelos junto da lareira para acabar de se vestir. Sem ter os braços dele em volta de si, Ariane sentiu-se
estranhamente carenciada. Abraçou-se com força e perscrutou a fisionomia dele, vendo o olhar que ele desviava de si com uma pequena pontada no coração. Era muito
raro que Renard mencionasse a maneira como a mãe morreu, mas Ariane sabia que ele se sentia atormentado pelo medo de que a mulher talvez viesse a ter o mesmo destino.
Compreendia a apreensão do marido, que receava vir a perdê-la. Muito sinceramente. Mas só desejava que ele se esforçasse um pouco mais por compreender a mágoa que
ela sentia na ânsia de vir a ter uma criança. De uma maneira geral, ele nem sequer se mostrava disposto a falar a respeito do seu desejo de conceber que raiava o
desespero, atitude que a deixava abandonada num lugar muito solitário. Desejo e dor, mágoa e sonho, o que sentia sozinha.
Enquanto puxava as botas, Renard, abruptamente, mudou de assunto.
- Quando é que partes para a ilha Encantada?
Ariane suspirou e começou a apanhar o resto da roupa que tinha deixado no chão. Verdade fosse dita, dedicara muito pouca atenção à jornada que faria muito brevemente,
assim como ao Conselho das Filhas da Terra, que aguardava a sua chegada para ter lugar.
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- Amanhã de manhã, bastante cedo, suponho eu... - começou a dizer, mas então deteve-se, ao aperceber-se de todo o significado da pergunta de Renard. Olhou para ele
com um ligeiro franzir de sobrancelhas. - Não tencionas acompanhar-me?
- Não, não desta vez. Tenho assuntos importantes a tratar - respondeu Renard, pondo-se de pé para fazer pressão no calcanhar para que entrasse bem na segunda bota.
- Oh... - Ariane não acrescentou mais nada, disfarçando o quanto se sentia dececionada. Levou o vestido sujo para a cesta de vime da roupa suja.
- Mas tenciono mandar uma escolta dos meus homens para te acompanhar.
- A ilha Encantada não fica a muitas léguas daqui - protestou Ariane.
- Viajarei através de terras que são nossas até à minha própria casa. Por isso, não preciso de ser escoltada por um exército.
- Seis dos meus melhores homens - adiantou Renard num tom que não permitia que ela argumentasse contra a sua decisão. Colocou-se atrás de Ariane e pegou-lhe pelo
ombro, obrigando-a a dar meia-volta para que ficasse de frente para si. Afagou-lhe uma madeixa de cabelo, afastando-a para trás da orelha.
"Farei tudo e mais alguma coisa para te proteger, para te manter em segurança. Seja o que for. Estás bem ciente disso, não é verdade, Ariane?
- Sim... sim, sem dúvida - respondeu ela gaguejando, sentindo-se um tanto surpreendida pela nota de intensidade na voz dele, o brilho feroz nos olhos verdes.
- Otimo! - Renard beijou-a ardentemente nos lábios antes de se afastar dela. No segundo seguinte já tinha saído, a porta da alcova a fechar-se com força atrás dele.
Ariane passou os dedos pela boca, que sentia um pouco dorida devido ao ardor do beijo de despedida do marido. Quando conheceu Renard, foram muitas as vezes em que
ele lhe pareceu intimidante, um estranho que escondia muitos segredos por detrás do sorriso frio.
Desde sempre que Ariane se orgulhara da sua própria capacidade na leitura de olhos, mas havia sido frustrantemente incapaz de penetrar nos pensamentos que Renard
ocultava por baixo das pálpebras que lhe velavam os olhos. Quando se apaixonou perdidamente por ele, finalmente conseguiu ler o que lhe ia na mente, com a mesma
facilidade com que ele lia os seus próprios pensamentos. Não obstante, continuavam a existir ocasiões em que os
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pensamentos de Renard se furtavam a ela, ocasiões essas que eram perturbadoramente cada vez mais frequentes.
Ariane passou a mão pelo cabelo, afastando-o para trás, enquanto olhava desalentada em volta de si para a alcova onde se encontrava sozinha. Devia tomar banho, vestir-se
e começar a preparar-se para a sua jornada. Mas a partida tão abrupta de Renard e a discórdia persistente acerca de um possível filho deixaram-na a sentir-se inquieta
e abalada.
com uma expressão alheada, aproximou-se de uma das janelas abertas. A altura a que aquele aposento se situava permitia-lhe ter uma vista excelente da propriedade
para lá das muralhas do castelo. Distinguia as misteriosas sombras da floresta nas proximidades, o campo de trigo que estava a ser lentamente ceifado por um grande
número de trabalhadores que manejavam as suas foices. À esquerda via-se um prado pontilhado de malmequeres, onde os potros de pernas altas e finas da égua puro-sangue
de Renard cabriolavam.
Eram inúmeras as vezes em que Ariane se tinha imaginado a passear por aquele mesmo prado, com dedos pequeninos e gorduchos agarrados à sua mão. Inclinar-se-ia para
apontar uma flor ou uma planta qualquer, ensinando à filha todos os conhecimentos que a sua própria mãe lhe transmitira. A sua criança acenaria avidamente, absorvendo
tudo o que Ariane lhe dissesse, uma garotinha que teria os olhos verdes e argutos de Renard e o cabelo que o sol alourava. Ou talvez num tom mais dourado como o
pai tinha tido.
Ou um cabelo como o de Gabrielle.
Pensar na irmã só fez com que Ariane se sentisse ainda mais esmorecida. Gabrielle nunca se encontrava muito longe dos seus pensamentos, os receios pela irmã que
tão obstinada era e que lhe haviam custado muitas noites de insónias. Se não tivesse conseguido introduzir Bette entre o pessoal doméstico de Gabrielle para que
esta a pusesse ao corrente com frequência do que se passava com a irmã, Ariane acreditava que teria enlouquecido de tanta preocupação.
Depois de Gabrielle se ter posto em fuga, Renard oferecera-se para ir a Paris para a trazer de volta a casa, pela força se fosse necessário. Embora se tivesse sentido
tentada a aceitar essa hipótese, havia recusado. Ser-lhe-ia impossível manter a irmã prisioneira e temia já ter cometido erros mais do que suficientes no trato com
a irmã.
A luminosidade do dia já se atenuava quando Ariane começou a sentir-se invadida por recordações que guardava da última vez que falou com a irmã, a discussão que
se pontuara por tanto azedume. Desde sempre que Ariane
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tinha compreendido a injúria que fora infligida a Gabrielle por Étienne Danton, assim como o muito que a irmã sofrera com a morte de Nicolas Remy, se bem que ela
jamais admitiria tanto uma coisa como a outra.
Como curandeira por natureza, Ariane sentia mágoa e frustração por não ser capaz de aliviar a dor da irmã. Naquela última tarde, a sua paciência esgotara-se. Embora
ainda não tivesse confiado aquele facto a ninguém, Ariane tinha desconfiado de que estava grávida do seu primeiro filho ou filha, uma gravidez que não estava a correr
bem. Tinha visto sangue nessa mesma manhã e ter visto Gabrielle a guardar as suas coisas no baú obstinadamente fizera com que alguma coisa desse de si dentro de
Ariane.
- Não vais para Paris, Gabrielle - dissera-lhe Ariane, tirando os vestidos e a roupa interior do baú tão depressa como a irmã os emalava, atirando a roupa para cima
da cama. - E isso é o fim do assunto.
Gabrielle tinha-a fitado com uma expressão feroz.
- Não, não é. É possível que te seja indiferente que uma casa absolutamente perfeita seja abandonada, uma casa que o nosso pai pagou, mas...
- Uma casa que ele comprou para a amante! Estás disposta a insultar a nossa mãe ao aceitares essa oferta da mulher perversa que lhe destroçou o coração?
Embora a irmã tivesse engolido com dificuldade, replicou: - A mãezinha já não se encontra entre nós para se importar com isso.
-, pensas que não se importaria por afilha se estar a preparar para enveredar por uma vida de... de prostituta?
- E isso que eu já sou - respondeu Gabrielle enquanto voltava a dobrar um vestido teimosamente. Ariane agarrou-a por um pulso para a impedir de continuar.
- Não, não és. O que aconteceu com o Danton não foi por tua culpa. -As faces de Gabrielle estavam a arder de fúria quando se libertou da mão da irmã.
- Não sabes nada sobre o que aconteceu e é um assunto que eu não quero discutir.
- Não, nunca queres falar sobre isso, pois não? Do mesmo modo que não queres falar do desgosto que ainda sentes pela morte do Remy. - A menção do nome de Remy, Gabrielle
enclavinhou as mãos no vestido que estava a dobrar, mantendo-o diante de si quase à guisa de proteção, a boca contraída naquela expressão tão familiar a Ariane,
um misto de dor contida e pura obstinação.
Sentindo-se frustrada por não ser capaz de fazer com que a irmã visse a razão, Ariane começara a andar pela alcova.
- Pensas que eu não sei o que tens em mente? Acreditas que, se seduzires um número suficiente de homens importantes, passarás a ser rica e poderosa quanto baste
para ocupares o teu lugar na corte. E que, vá-se lá saber como, serás capaz de encontrar maneira de
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te vingares da Rainha das Trevas pelo que ela fez ao Remy. Mas essa tua estratégia não resultará, Gabrielle. Nunca estarás à altura de confrontar Catarina. E ainda
que fosses bem-sucedida, conseguindo destruí-la, também te destruirias a ti mesma. O teu coração e até mesmo a tua alma tornar-se-iam tão negros como os dela e nada
disso trará o Reffy para junto de ti.
- Eu não tenho coração - ripostara Gabrielle, metendo o vestido dentro do baú.
- Além do mais, nada disto tem alguma coisa a ver com o Remy, mas sim e apenas com as minhas próprias ambições. - Deu um salto para trás quando Ariane bateu com
aparte de cima do baú com toda a força para a impedir de continuar a emalar mais alguma coisa.
- Podes esquecer as tuas malditas ambições - disse Ariane perdendo toda a paciência. - Não vais a lado nenhum. Proíbo-te terminantemente de saíres daqui.
- Proíbes-me? -gritou Gabrielle. - Mas quem é que pensas que és?
- Sou a tua irmã mais velha e sou a Senhora da Ilha Encantada.
- Oh, sim, a grande curandeira que pensa que pode resolver tudo e mais alguma coisa. Pois bem, não podes resolver o meu problema, Ariane. Quando é que tencionas
compreender isso? Não sou perfeita como tu e a mãe. E talvez se a mãe não tivesse sido tão abnegada, muito provavelmente não teria perdido o pai, que se apaixonou
por essa rameira...
A mão de Ariane estendeu-se disparada antes de conseguir conter-se, assentando-a com toda a força na face da irmã. Ela e Gabrielle ficaram a olhar-se num silêncio
feito de aturdimento por breves momentos, com Gabrielle a levar a mão à face. Ariane nunca batera em nenhuma das irmãs até então. Ficou revoltada consigo mesma ao
ver as lágrimas que já marejavam os olhos de Gabrielle.
- Gabrielle, peço-te desculpa, eu... -Mas esta pestanejou furiosa e virou-lhe costas... Psicologicamente exausta, Ariane encostou a cabeça ao caixilho da janela.
Gabrielle tinha desaparecido do castelo logo no dia seguinte e desde então que não se tinham visto nem falado uma com a outra ao longo dos últimos dois anos. Era
tão culpada dessa situação como Gabrielle. Mas sentia-se magoada por a irmã ter fugido daquela maneira, encolerizada por a irmã estar a viver na casa daquela maldita
mulher. Avassalada pelos seus próprios problemas, Ariane não fizera o mínimo esforço para sanar esse rompimento.
Se tivesse informado Gabrielle quando sofreu os dois abortos espontâneos, Ariane sabia que a irmã teria regressado a casa imediatamente para estar junto dela. Mas
Ariane era demasiado orgulhosa para agir dessa maneira.
Era aclamada até nas paragens mais longínquas como sendo a mulher sábia com mais conhecimentos. Tinha ajudado inúmeras mães a ultrapassarem situações difíceis, com
dificuldades em conceberem e a darem à luz, ajudando ao nascimento de um sem-número de crianças. Mas em vez de ter uma criança em gestação no seu ventre, tudo o
que crescia dentro de si eram medos.
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Receando que, a despeito de toda a sua inteligência, todos os seus conhecimentos e magia, talvez viesse a constatar que era estéril.
Se ao menos conseguisse fazer com que Renard compreendesse o quanto se sentia vazia e como a atitude dele a desolava. Mas talvez isso fosse pedir de mais a qualquer
homem. Talvez ela pedisse de mais ao seu marido. Fazer uma criança, em princípio, devia ser um momento de grande júbilo, quase como se fosse uma ação sagrada que
unia um homem e uma mulher ainda mais, refletia Ariane com um grande desalento. Em vez disso, o seu muito anseio de vir a ser mãe estava a fazer com que ela e Renard
se distanciassem cada vez mais.
Uma bruma pouco cerrada estendia-se a toda a pastagem, as ervas orvalhadas e com um Sol que mal se via no horizonte. A quietude que reinava às primeiras horas da
manhã só era quebrada pelo chilrear de alguns pardais e o martelar regular de Renard, que tentava reparar uma brecha na vedação da pastagem.
Ele agachou-se, com um prego firmemente preso entre os dentes, enquanto martelava na tábua que substituía a estragada com marteladas firmes e fortes. Não se podia
dizer que reparar cercas fosse uma tarefa adequada ao conde de Renard.
Mas ele receava ter de admitir que o sangue de camponês em si sempre falara mais alto do que qualquer ascendência que lhe tivesse sido transmitida através dos poderosos
Deauville. Gostava de sentir nas mãos o peso de um machado ou de uma foice, preferindo de longe um dia de trabalho honesto do que passado a caçar, na prática de
falcoaria ou a beber vinho com um qualquer enfatuado nobre que fedesse ao perfume de uma prostituta parisiense.
Renard sempre se sentira mais chegado a Toussaint, um primo afastado da mãe, que havia sido uma camponesa. O temível e velho guerreiro fora ao encontro do seu Criador
havia duas primaveras. Tinha tido uma morte santa, digna do que foi uma longa existência vivida em pleno. Renard ainda sentia a falta do idoso, que para si tinha
sido como um pai, além de ter sido a sua consciência. Especialmente agora que estava a passar por aquele problema com Ariane.
Renard tirou o segundo prego da boca, martelando-o no seu lugar. Ao ouvir o toque de uma trompa à distância, Renard endireitou-se e levou a mão aos olhos em forma
de pala para os proteger do sol, semicerrando-os e
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olhando na direção da estrada de acesso e saída do castelo. Conseguia distinguir um grupo montado de uma meia dúzia dos seus lacaios, trajados com a libré preta
e dourada da Casa de Deauville. Montada na sela de lado num palafrém ricamente ajaezado no meio deles, seguia a sua Ariane. Tinha um manto de lã escarlate sobre
os ombros, o cabelo de um castanho-claro caía-lhe pelas costas preso numa trança grossa.
A Senhora da Ilha Encantada. A boca de Renard curvou-se num sorriso
que em parte era de tristeza e em parte de orgulho. Tinha-se despedido com um beijo ainda o dia não raiara, num abraço tenso, apesar dos esforços de ambos para fingirem
o contrário.
Renard ficou a olhar para o grupo de cavaleiros que se afastava. Quando chegaram à parte da estrada que meandrava passando pelo prado, Ariane esticou o pescoço e
virou a cabeça para trás para conseguir ver na direção dele. Ela sorriu e ergueu uma mão num gesto de despedida. Até mesmo àquela distância, Renard via a aura de
tristeza que a envolvia.
Mas ele retribuiu, afivelando um sorriso determinadamente, e estendeu o braço para acenar até o grupo de cavaleiros e a sua mulher se perderem de vista, deixando
na sua esteira uma esparsa nuvem de poeira.
Renard baixou a mão, o seu sorriso a desaparecer, dando lugar a uma expressão de preocupação.
- Ah, chérie - murmurou. - Continuas a parecer-me demasiado cansada e pálida. - Apesar de todos os protestos de Ariane, afirmando o contrário, Renard receava que
ela nunca tivesse conseguido recuperar as forças completamente desde a adversidade do aborto espontâneo.
Embora desse consigo a sentir já a falta dela, reconhecia que talvez não fosse mau que estivesse afastada de si durante algum tempo. Talvez a visita à sua antiga
casa lhe fizesse bem, afastando o seu pensamento da obsessão que estava a consumi-la. Além de também dar a oportunidade a ele próprio de desanuviar as ideias para
decidir o que diabo é que faria para resolver o problema que os afligia.
Renard sempre tinha sido hábil a mascarar as suas emoções, pelo menos até Ariane ter entrado na sua vida e no seu coração. E agora vivia no temor a todas as horas
de que a mulher sábia, que ela era, lesse os seus olhos e descobrisse o segredo que tantos sentimentos de culpa lhe causava, como tinha andado a traí-la ao longo
dos últimos nove meses. Não com outra mulher. A mulher que conseguisse atraí-lo para fora da cama de Ariane ainda não tinha nascido. Mas era muito possível que ela
considerasse que essa infidelidade
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seria mais fácil de perdoar do que aquilo que ele andava a fazer, algo que, muito provavelmente, seria pior aos olhos dela.
Renard andava a impedi-la de conceber uma criança.
Martelando outro prego que tirou de uma bolsa que trazia presa à cintura, retomou a tarefa de reparar a vedação. Mas todas as pancadas do martelo pareciam carregadas
com o sentimento de culpa que tanto o atormentava.
Ariane era a filha de uma lendária mulher sábia, a virtuosa Evangeline, a anterior Senhora da Ilha Encantada. Mas a avó camponesa de Renard... bem, pensou com um
trejeito de alguma amargura nos lábios. Não havia como desmentir o facto. A velha Lucy tinha sido uma bruxa e, com bastante frequência, da espécie mais malévola.
Repudiando as artes mais benéficas de curar, Lucy adquirira grande mestria na arte negra da preparação de poções venenosas que se destinavam a entravar a criação
da vida, não a encorajá-la.
Lucy transmitira a Renard muitos dos seus conhecimentos, incluindo uma determinada infusão que tornava a semente de um homem temporariamente infértil. Renard tinha
andado a destilar essa poção e a toma-la em segredo havia vários meses.
Não lhe era difícil imaginar o que Toussaint lhe teria dito se soubesse. Não obstante o muito que o idoso tinha amado Lucy, desde sempre que deplorara a sua prática
de magia negra e tudo o que ensinara a Renard. Mas que diabo de outra coisa é que ele poderia fazer?, pensou Renard. Martelou o prego com tanta força que o entortou,
sendo forçado a parar para o despregar. Teria adorado ter uma dúzia de crianças com Ariane, mas nunca à custa da sua saúde, talvez mesmo da sua vida. Renard tinha
tentado evitar ter relações sexuais com ela depois do último aborto espontâneo. Mas apesar do pudor e recato da sua mulher, ela era capaz de ser diabolicamente sedutora
e com muita determinação e, refletiu Renard com um fundo suspiro, a sua carne era muito fraca no que dizia respeito à mulher que amava.
Ariane não lhe deixara outra alternativa que não fosse recorrer à maldita poção. Até certo ponto, ela estava a matar-se com aquela ânsia de vir a ter uma criança.
Apesar disso, Renard sentia-se a coisa mais vil todos os meses, aquando da menstruação de Ariane, que fazia com que ela se sentisse desesperada, o coração a dilacerar-se
um pouco mais todos os meses. O sentimento de culpa de Renard só se intensificava ainda mais quando ela se aninhava nos seus braços para que ele a reconfortasse,
inocentemente ignorante de que ele era o Judas responsável pelas suas desilusões.
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Não podiam continuar naquela situação por muito mais tempo, pensava Renard desesperado. Era forçoso que encontrasse uma solução, ainda que essa se traduzisse em
explorar métodos que Ariane não aprovaria. Renard endireitou-se, interrompendo a tarefa e apoiando os braços em cima do poste da cerca, mostrando-se desanimado.
Achava que, ao fim e ao cabo, corria-lhe nas veias demasiado sangue da velha Lucy com as suas bruxarias.
Mas tinha decidido e estava determinado a encontrar maneira de Ariane ter a criança por que tanto ansiava, ao mesmo tempo que trataria de a proteger, de a manter
em segurança... para sempre. Renard tencionava consultar todos os textos da Antiguidade de conhecimentos e encantamentos a que pudesse ter acesso. Até mesmo, refletiu
com um trejeito sinistro nos lábios...
Até mesmo se para isso tivesse de recorrer à magia da espécie mais negra.
A luz do luar banhava o Louvre, o desagradável cheiro a humidade que vinha do Sena a misturar-se com a fragrância a rosas que emanava dos jardins do palácio. O palácio
recortava-se contra o firmamento noturno, como um castelo de conto de fadas, e das janelas do grande salão filtrava-se a luz e ouvia-se a música do baile de máscaras.
Mas a beleza suave da noite amena de verão passava ao lado de Remy, que se mantinha imobilizado a coberto das sombras. Os seus pensamentos arremessaram-no através
dos anos até à última vez em que saíra do Louvre, acompanhando o velho almirante Coligny e dois dos seus irmãos oficiais de volta aos seus alojamentos. A recordação
da sua própria voz ecoou nos ouvidos de Remy.
- ... não podemos deixar o nosso rei ali dentro, rodeado pelos nossos inimigos - dissera ansioso. - Temos de o tirar de lá para fora.
- Tirá-lo de lá para fora? - tinha exclamado o jovem Tavers. - Sua majestade casou há apenas um dia. Ainda mal teve tempo para poder desfrutar dos prazeres do leito
conjugal.
- O leito conjugal! O mais provável é vir a ser o seu leito de morte, destino que, muito possivelmente, também nos estará reservado - retorquira Remy acaloradamente.
- Oh, por favor, meu rapaz. - O almirante olhara para Remy com uma expressão de alguém cuja paciência se estava a esgotar. - Não quero ouvir mais nada desses disparates
acerca de a rainha Catarina ser uma bruxa a conspirar para nos matar a todos.
- Não são disparates, senhor almirante. Se tivésseis visto e soubésseis o que fiquei a saber durante este verão na ilha Encantada...
- Nunca devias ter posto os pés nessa ilha - tinha dito o amigo de Remy, o capitão Devereaux, interrompendo-o, o homem corpulento abanando a cabeça de cabelo comprido
e emaranhado. - Di-se que é um lugar estranhamente extraordinário, a ilha Encantada.
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- com certeza que o nosso amigo Remy tem andado a dormir com as fadas - disse Tavers, intrometendo-se na conversa.
- Ou então foi enfeitiçado por uma Circe de olhos azuis - tinha dito o velho almirante na brincadeira.
Remy ficara irritado consigo próprio por sentir que corava ao ouvir as palavras do almirante, que correspondiam perigosamente à verdade do que havia acontecido com
Gabríelle.
- Acho que vamos ter de domesticar o Flagelo. Precisamos de lhe encontrar uma esposa - afirmara o almirante.
- Uma esposa. E exatamente disso que ele está a precisar. - Haviam concordado os outros dois e não tardaram a adiantar jocosamente nomes de possíveis noivas. Somente
Devereaux é que pareceu ter-se apercebido da profundidade do temor e frustração de Remy. Dissera-lhe num tom apaziguador:
- Só estás a precisar de uma caneca de vinho e de uma boa refeição. Vem comigo até ao meu alojamento. Há séculos que a Claire não te põe a vista em cima e ainda
nem sequer viste o rebento que nos nasceu recentemente, a que demos o teu nome. O rapaz tem um par de pulmões que mantém toda a rua acordada. Começámos a chamar-lhe
de pequeno flagelo.
Remy tinha tentado sorrir, mas o seu coração estava demasiado pesado de apreensão para isso. Deixou que os amigos o arrastassem para mais longe do palácio onde abandonara
o seu jovem rei, esforçando-se por abafar os seus medos e a acalentar a esperança de que talves o almirante tivesse ratção, que tudo, de uma maneira ou de outra,
correria pelo melhor.
- Remy! Capitão? - A voz baixa murmurou junto do ouvido de Remy e sentiu que alguém lhe puxava o braço impacientemente.
Perdido nas suas recordações, Remy virou-se, quase à espera de deparar com Devereaux, o rosto de expressão jovial a abrir-se num sorriso que mostrava o espaço entre
os dentes superiores da frente. Mas há muito que Dev tinha desaparecido, tal como a mulher e o filho pequeno. À semelhança do jovem Tavers e do almirante. Mortos
como tantos outros devido à brutalidade e loucura que grassara na véspera do dia de São Bartolomeu.
Era Lobo que o perscrutava, esforçando-se por descortinar-lhe o rosto na escuridão.
- Capitão? Vamos, monsieur. Temos de nos apressar, caso contrário não chegaremos a tempo ao rendevous.
Remy acenou com a cabeça. Sacudindo os fantasmas do seu passado, permitiu que o rapaz o afastasse das portas principais do Louvre, onde os guardas inspecionavam
todos os que chegavam. Era a entrada para os convidados do baile e não se podia dizer que Remy pudesse passar por um deles.
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Mantinha-se nas sombras, seguindo Lobo em direção à parte mais antiga do palácio. com recurso a uma artimanha ou outra, Lobo passara os últimos dias a memorizar
o exterior e o interior do palácio. O rapaz corria de uma árvore até um arbusto com uma celeridade e destreza que Remy tinha dificuldade em acompanhar, o que o seu
novo vestuário atrapalhava.
Vestia um par de calções apertados abaixo dos joelhos de uma seda tesa, sentindo os movimentos ainda mais tolhidos pelo gibão condizente, cujas mangas tufadas afunilavam
até ficarem justas aos pulsos. Sentia os pés apertados num par de sapatos de couro que lhe davam pelos tornozelos, muito diferentes das botas amaciadas pelo uso
que costumava calçar.
Diante deles abria-se uma vala larga, o remanescente seco de um fosso que em tempos circundara o palácio. Enquanto Remy descia pela inclinação com dificuldade atrás
de Lobo, a capa curta de seda de um azul muito escuro, que usava por cima de um ombro, enredava-se-lhe no braço. Num gesto de impaciência, Remy afastou-a bruscamente
do braço.
Foi por pouco que não escorregou, os sapatos rijos a deslocarem uma grande quantidade de seixos, provocando um barulho que deu a impressão de ressoar através da
noite como fogo de artilharia. Remy e Lobo espalmaram-se contra a parede de pedra áspera do palácio, tensos e pondo-se à escuta. Instintivamente, Remy levou a mão
ao punho da espada. Mas em vez de tocar na sua própria espada em que tanto confiava, os seus dedos fecharam-se no frágil punho de uma espada leve que servia apenas
de acessório. Quanto a Lobo, estava armado apenas com uma adaga. Se algum contingente de guardas fosse investigar a origem do barulho, ele e o rapaz ficariam em
maus lençóis.
À medida que o tempo ia passando sem que aparecesse alguém para dar o alarme, Remy tirou a mão da espada e Lobo soltou um profundo suspiro de alívio.
Inclinou-se mais para Remy, murmurando-lhe:
- Esperai aqui, capitão. vou fazer um reconhecimento.
Antes de Remy poder protestar, o rapaz afastou-se outra vez, caminhando furtivamente ao longo do fundo fosso. A boca de Remy cerrou-se apertadamente num trejeito
de frustração, sentindo dificuldade em delegar o controlo daquela missão a um rapaz que só tinha dezoito anos. Havia sido forçado a depositar muita confiança em
Lobo e naquela misteriosa criada que concordara em ajudá-lo a entrar às escondidas no palácio. Mas não se podia dizer que Remy tivesse outras alternativas.
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Gabrielle não lhe deixara nenhuma ao recusar-se a ajudá-lo. Encostou a cabeça à parede, cerrando os maxilares, enquanto se perguntava se, naquele momento, ela estaria
no salão de baile, os seus sorrisos ternos e olhos brilhantes a enfeitiçarem o seu rei.
Muito plausivelmente, era o que estaria a fazer. De facto, Remy estava a contar com isso. Aquele baile de máscaras que lhe permitiria entrar no palácio sem ser visto
também representava um problema para si. com todos aqueles rostos disfarçados, conseguiria reconhecer o rei que não via há tanto tempo?
Remy não tinha a certeza de ser capaz. Mas, mascarado ou não, Remy sentia-se bastante seguro de que reconheceria a mulher que havia preenchido os seus sonhos ao
longo dos últimos três anos. E aonde Gabrielle se encontrasse, provavelmente também estaria o rei de Navarra. A parte mais perigosa daquele empreendimento seria
encontrar uma maneira de falar em particular com o seu rei sem que Gabrielle ficasse desconfiada, ou atrair a atenção da Rainha das Trevas.
com vista a esse objetivo, Remy tomara todas as medidas preventivas ao seu alcance. Tinha uma boina por dentro do cinto para ocultar o cabelo e, quando pusesse a
máscara na cara, o cabedal negro esconderia completamente a parte superior do seu rosto, e quanto ao maxilar...
Remy levou a mão ao queixo, incomodado ao sentir a pele nua e macia. Desde que era mais novo do que Lobo que usava barba. Sem a barba, sentia-se estranhamente nu
e vulnerável. Gabrielle nunca o tinha visto de cara rapada. A ausência da barba talvez ajudasse a enganá-la.
E se isso não se verificasse? Se ela adivinhasse quem ele era, trataria de o atraiçoar? O seu coração ansiava por gritar "não", que tal coisa era absolutamente impossível.
Mas a sua mente lembrou-lhe cruelmente todos os outros factos nus e crus que se esforçara por negar acerca de Gabrielle. A amarga verdade era que ele não a conhecia
minimamente, tal como não seria capaz de prever o que ela poderia fazer.
- Monsieur? Capitão - sibilou a voz de Lobo vinda da escuridão e despertando Remy dos seus sombrios pensamentos.
com um gesto, o rapaz indicou-lhe que o seguisse. Conduziu Remy mais adiante ao longo da vala do antigo fosso, detendo-se para lhe apontar uma janela perto da esquina
da ala mais velha.
- Ali, capitão - sussurrou-lhe. - Às vinte e uma horas, Mademoiselle Lysette far-nos-á sinal com a chama de uma vela naquela janela e depois baixar-nos-á
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uma corda. Em seguida, levar-vos-á até à escadaria principal, por onde descereis até ao salão de baile.
Remy acenou com uma expressão lúgubre. Agora era tarde de mais para estar a repensar na imprudência das suas ações, mas perguntou a Lobo num murmúrio:
- Tens a certeza de que se pode confiar nessa criada?
- Sem dúvida, capitão. A Lysette é muito leal e boa rapariga.
- Não pode ser assim tão leal, uma vez que está disposta a trair o seu amo, ao ajudar um estranho qualquer a entrar no palácio a troco de um punhado de moedas.
- Ah, mas não foi necessário pagar-lhe pelo que quer que fosse. Ela está a fazer isto por mim - retrucou Lobo com um sorriso rasgado que mostrou os dentes brancos.
- Quando me decido a isso, sei como cair nas boas graças das senhoras, e a Lysette, ficai sabendo, é uma rapariga que tem uma natureza muito romântica. - Inclinando-se
mais para Remy, o rapaz confiou-lhe em voz baixa: - Eu disse-lhe que sois um cavaleiro pobre, mas honesto, que está perdidamente apaixonado por uma herdeira cujo
pai cruel anda a fazer tudo e mais alguma coisa para vos manter afastados. A Lysette acredita que vos está a ajudar a ter um rende-vous com a vossa apaixonada, portanto
é preferível que não digais nada a respeito do verdadeiro objetivo da vossa presença aqui.
- Ainda bem que estás a avisar-me. Enquanto essa rapariga estiver a levar-me às escondidas pelo palácio, pensei que aproveitaria para a pôr ao corrente dos meus
planos de ajudar o rei de Navarra a escapar e que, na verdade, não me importaria nada de cortar umas quantas gargantas enquanto estiver a fazer isso - acrescentou
Remy num tom de poucos amigos.
- Não sou um rematado idiota, rapaz.
- Eu sei isso, monsieur. Sois um homem valoroso e honesto, mas... mas... por favor, não vos zangueis comigo quando vos digo que não sois exatamente hábil em intrigas
como esta. Sem vos querer ofender, monsieur.
- Não me sinto ofendido, meu rapaz - assegurou-lhe Remy com uma leve palmada no ombro. - Tens toda a razão. Prefiro de longe a vida militar.
Remy inclinou a cabeça para poder espreitar para as paredes do Louvre, que a noite obscurecia, mostrando-se pesaroso.
- Daria a minha alma de boa vontade para poder preparar uma invasão como deve ser contra este maldito lugar, para salvar o meu rei à força de canhão e espada.
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- Às vezes, até o mais destemido dos soldados é obrigado a recorrer ao engano, como essa história que me haveis contado sobre esses gregos da Antiguidade que usaram
uma artimanha para conseguirem entrar em Tróia. Mas em vez de um cavalo de madeira, tendes uma mascarilha e uma capa - concluiu Lobo, ajeitando a capa de Remy até
as dobras ficarem como devia ser, a penderem do ombro direito. - Ah, monsieur, sei que detestais a capa, mas tendes de vos lembrar de que é necessário usá-la assim,
por cima de um ombro, como todos os galantes que andam sempre na moda fazem. Faz com que pareçais mais arrebatador.
- Como o raio de um presunçoso, é o que queres dizer.
- Não, pareceis um duque, um magnífico cavalheiro. Se eu tivesse uma capa tão elegante com que me exibir, todas as demoiselles de Paris cairiam aos meus pés.
- Quando este maldito assunto estiver resolvido, podes ficar com o raio da capa.
- A sério, monsieur? - exclamou Lobo. Antes de o rapaz poder expressar a sua gratidão com demasiada exuberância, Remy fechou-lhe a boca firmemente com a mão.
Nesse momento, ouviram-se os sinos de Saint-Germain l'Auxerrois à distância, que batiam as vinte e uma horas. Remy sentiu-se percorrido por um arrepio gélido. Tinham
sido os sinos da torre daquela mesma igreja que haviam dado o sinal do início do massacre na véspera do dia de São Bartolomeu.
Remy deixou cair a mão com que cobrira a boca de Lobo, engolindo com força, perguntando-se se alguma vez chegaria o dia em que algo tão inocente como as badaladas
dos sinos de uma igreja não fariam com que se sentisse violentamente nauseado. O forte aperto no estômago não se atenuou quando o sino deixou de se ouvir. Viu o
clarão da chama de uma vela que apareceu na janela que Lobo lhe tinha indicado. Remy distinguiu a silhueta de uma rapariga e sentiu que o coração lhe caía aos pés.
Se não estivesse enganado, a sua guia durante o resto daquela perigosa aventura parecia-lhe ainda mais nova do que Lobo.
Este levou a mão em forma de concha aos lábios e emitiu alguns latidos baixos, numa imitação espectralmente acurada de um qualquer rafeiro. A rapariga esticou o
pescoço ainda mais para fora da janela. Apercebendo-se de que eles a aguardavam abaixo da janela a coberto da escuridão, retrocedeu e momentos depois Remy viu uma
corda grossa que começou a cair lentamente pela parede abaixo.
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Portanto, tinha chegado a hora da verdade, pensou Remy, sentindo a boca seca. Momentos depois, ele voltaria ao interior do palácio, confinado entre inimigos crentes
de que tinha morrido e estaria a apodrecer na sua campa, os quais teriam todo o prazer em corrigir o engano. Estaria na presença do jovem rei a que faltara uma vez
e que, por isso, não podia dar-se ao luxo de lhe faltar de novo.
Também estaria perto, uma vez mais, da mulher de cabelos dourados que em tempos havia parecido ser a melhor parte da sua vida, mas que agora não passava de uma estranha
de coração frio no que lhe dizia respeito.
Enquanto tirava a mascarilha que guardara por dentro do cinto da espada, Remy ficou irritado ao constatar que tinha as palmas das mãos húmidas de suor. Limpou-as
aos lados dos calções antes de tirar a boina da cabeça para poder colocar a mascarilha. O couro rígido que ocultaria a sua identidade também lhe dificultava a visão,
o que era propício a que tivesse surpresas desagradáveis.
Tinha apenas uma vaga perceção da presença de Lobo ao seu lado enquanto estendia a mão para verificar a solidez da corda. Sentiu-se aliviado ao constatar que a pequena
Mademoiselle Lysette tinha tido a sensatez de a prender firmemente de maneira a suportar o seu peso sem ceder.
Antes de Remy poder iniciar a subida, Lobo agarrou-o pelo braço.
- Monsieur, esperai!
Remy virou a cabeça para poder ver Lobo através das fendas na mascarilha. Pouco tempo antes, o rapaz fervilhara de empolgamento, mas agora adquirira uma postura
sóbria, o rosto magro e de feições angulosas estava pálido sob a luz do luar.
- Aqui tendes, monsieur - sussurrou-lhe com premência. - Precisais de levar isto convosco... para vossa proteção. - Dito isto, meteu qualquer coisa na mão de Remy.
Remy ergueu o objeto para poder examiná-lo mais de perto. Aquilo era uma pequena bolsa de lona que continha qualquer coisa seca que pendia de um cordão de couro.
Quando Remy encostou a bolsa às narinas, fez uma careta, retraindo-se perante o cheiro muito cáustico.
- Maldição! O que diabo é isto, Martin?
- É um poderoso talismã, capitão, uma mistura especial de ervas, excremento seco de cabra e alho, que eu aprendi a preparar com a minha tante Pauline. Deveis usá-lo
suspenso do pescoço e junto do coração; manter-vos-á
em segurança.
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Remy conteve um gemido de impaciência.
- Oh, por amor de Deus, meu rapaz...
- Não! Não, resulta verdadeiramente. Manterá as bruxas afastadas, monsieur.
- E todos os outros. Preciso de passar despercebido, ou já te esqueceste disso? - Remy voltou a pôr-lhe a bolsa nas mãos. - Agradeço-te a intenção, Martin, mas...
- Oh, por favor, monsieur. Tendes de usar isto. - Lobo tentou fechar os dedos de Remy na pequena bolsa. - Para vos manter a salvo dela.
- Posso garantir-te que tenciono manter-me bem afastado da Rainha das Trevas.
- Não, não me refiro a ela. A salvo da outra, a feiticeira que vos enfeitiçou tanto antes, a lindíssima Gabrielle.
Remy ficou tenso à menção do nome de Gabrielle, mas ignorou os receios de Martin. Era possível que Gabrielle Cheney representasse um perigo para a sua vida, atraiçoando-o
para que ele morresse ou fosse preso, mas havia uma coisa de que tinha a certeza absoluta. Ela nunca mais enfeitiçaria o seu coração outra vez.
- Não, meu rapaz. Não preciso disso. Sou inteiramente insensível aos encantos dela. - Uma vez mais, Remy devolveu a bolsa a Lobo com firmeza e, desta feita, obrigou-o
a pegar-lhe. - Agora que já cumpriste o que consideraste ser a tua obrigação, vai-te embora e espera por mim na estalagem.
- Mas, monsieur...
- Nada de argumentos, rapaz. Combinámos tudo isto previamente e um bom soldado obedece sempre ao seu capitão. - Remy apertou o ombro de Lobo com força e depois deu-lhe
um pequeno empurrão para que ele se fosse embora.
Lobo cambaleou e recuou um passo, ficando a ver Remy com uma expressão descorçoada enquanto este começava a trepar pela corda, tarefa difícil para o capitão no seu
elegante traje novo, mas conseguiu levar a tarefa a cabo com a sua habitual destreza e força. Quando conseguiu entrar pela janela, deteve-se durante o tempo suficiente
para um pequeno e último acenar na direção de Lobo.
- Vai! - ordenou o capitão com brusquidão.
Lobo recuou ainda mais para as sombras, ficando à espera até Remy desaparecer de vista e deixar de ver luz na janela. Ignorando as ordens do capitão,
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deixou-se ficar, passando a pequena bolsa de uma mão para a outra com mostras de inquietação.
O sabor da aventura deleitara Lobo até ao momento, mas agora não lhe restava nada, além do temor pela segurança do amigo. Ter-se-ia sentido muito melhor se tivesse
conseguido persuadir Remy a levar aquele amuleto. Era insensível aos encantos dela, afirmara o capitão. Mas, a ser esse o caso, por que razão é que Remy tinha passado
tantas das últimas noites a murmurar o nome da bruxa durante os seus sonhos?
com um suspiro, Lobo voltou a guardar o talismã de proteção na bolsa, que prendeu no cinto da adaga. Sabia o que o capitão esperava que ele fizesse. Regressar à
estalagem e esperar. Se Remy não tivesse regressado pela manhã, ele devia pegar no dinheiro que lhes restava e fugir para onde estivesse
em segurança.
- E desejo-te uma boa vida, rapaz - resmungou Lobo para consigo próprio. Remy não dissera tanto, mas sabia que era exatamente isso que o capitão tivera em mente.
Lobo deu graças por Remy não estar ali, pelo que não podia ver a expressão de rebeldia que se instalara no semblante do rapaz. Era possível que um bom soldado obedecesse
sempre ao seu capitão, mas um lobo não tinha tais obrigações. Não tencionava ir a parte nenhuma até ver que o seu capitão regressava do palácio são e salvo.
O salão de baile estava deslumbrante num caleidoscópio entontecedor de cores, as cortesãs e os cortesãos trajados com toda a variedade de sedas, que complementavam
com jóias cintilantes. Flautas, alaúdes e tambores tocavam uma sucessão de músicas muito animadas. com as caras seguramente ocultas sob uma diversidade de máscaras,
os dançarinos rodopiavam por todo o salão, sorrindo e namoriscando e entregando-se a folguedos desenfreados.
Talvez porque a Rainha das Trevas ainda não os agraciara com a sua presença durante as festividades da noite. Catarina conseguia dar origem a uma atmosfera de acentuada
tensão durante os eventos de maior descontração. Até mesmo o filho se mostrava mais descontraído na sua ausência. O rei de
França sentava-se ociosamente no seu trono, o estrado rodeado por um grande número de homens jovens muito perfumados e mascarados, o seu círculo mais íntimo de amigos,
todos a competirem pela atenção de sua majestade.
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Mas os olhos da maior parte dos outros homens eram atraídos na direção da jovem mulher que rodopiava entre os dançarinos. Gabrielle Cheney nunca se mostrara tão
radiante, com o cabelo apanhado ao alto numa coroa dourada, as feições ainda mais encantadoras e sedutoras quando parcialmente ocultas por uma mascarilha prateada.
O vestido de seda cor de marfim era a inveja de todas as outras senhoras presentes. Orlado com um requintado bordado, alargava-se por cima das anquinhas, que davam
realce à cintura extremamente fina de Gabrielle, o decote ousadamente baixo permitindo que se vislumbrasse parte dos seios generosos e firmes. Uma gola alta de renda
com virola contornava-lhe o pescoço esguio como as asas de uma fada.
Tinha uma postura régia e graciosa enquanto dançava, a mão delicada que se perdia na de um rei. Henrique de Navarra movimentava-se ao seu lado, facilmente identificável
por detrás da sua máscara pelos cabelos negros, fartos e encaracolados, e por uma barba semelhante à de um sátiro.
Enquanto se deslocavam para a frente e para trás, executando os passos de dança, os olhos escuros do rei de Navarra brilhavam através das fendas da mascarilha ao
olhar para Gabrielle, a admiração e o êxtase evidentes para quem quisesse ver. Gabrielle devia ter-se sentido absolutamente triunfante. Mas, em vez disso, tinha
dificuldade em manter os sorrisos radiantes, sabendo bem de mais quem era o culpado dessa falta de alegria. Nicolas Remy. Maldito homem! A despeito de todos os seus
melhores esforços, ele continuava a atormentá-la ao longo de todas as horas em que estava acordada. Esforçava-se tanto para banir a imagem dele dos seus pensamentos,
mas a verdade é que se sentia extremamente preocupada, temendo pela vida dele, perguntando-se aonde é que ele estaria, que ação destemida é que ele estaria a considerar.
Por vezes, Gabrielle chegava a pensar que tinha tido mais paz de espírito durante o tempo em que acreditou que ele havia morrido. Até mesmo o desgosto que isso lhe
causara tinha sido mais fácil de suportar do que saber que ele estava algures em Paris, desprezando-a e a arquitetar planos que poderiam vir a ser a sua morte. Havia
decorrido quase uma quinzena sem qualquer sinal do homem, e Gabrielle esperava fervorosamente que ele tivesse abandonado a sua louca demanda para resgatar o seu
rei. Infelizmente, conhecendo o infernal sentido de dever de Remy tão bem como ela conhecia, Gabrielle duvidava disso seriamente.
A súbita pressão da mão do rei de Navarra sobressaltou-a e, ao tomar consciência de onde se encontrava, apercebeu-se de que se desviara da sua
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posição na dança. O braço forte e firme do rei conduziu-a de volta à linha da dança.
Henrique olhava-a com uma expressão inquisitiva, murmurando:
- Sois muito cruel, milady.
- Eu... eu peço-vos perdão, majestade - retorquiu Gabrielle, profundamente mortificada, enquanto se esforçava por entrar no ritmo da dança.
- Não vos pisei, pois não?
- O mais certo seria ser eu a pisar-vos os pés, ma mie. Sou um grande pateta.
Gabrielle olhou-o com um sorriso de esguelha. Era possível que o rei de Navarra fosse descuidado com a sua aparência, mas era um bom dançarino, as pernas bem musculadas
a movimentarem-se agilmente durante as mesuras, com a graciosidade de um adeta nato.
com as mãos unidas, deslizaram, dando dois passos em frente, elevando-se em bicos de pés numa sintonia perfeita, após o que voltaram a dar dois passos atrás.
- Não, minha rainha de conto de fadas - continuou o rei. - Quando eu disse que éreis cruel, estava a queixar-me da maneira como os vossos pensamentos vos afastaram
de mim. Espero que não a pensar num outro homem.
Gabrielle deu graças por a máscara ter ocultado o rubor nas faces que teria dito tudo.
- Certamente que não.
- Sinto alívio ao ouvir isso. Ficaria devastado se soubesse que tinha um rival.
- Quem é que poderia rivalizar com vossa majestade? - replicou Gabrielle diplomaticamente.
Os passos intrincados da dança separaram-nos, pelo que Gabrielle se viu a emparceirar momentaneamente com o Chevalier D'Alisard, cuja máscara de falcão pouco fazia
para disfarçar as feições gorduchas. Os seus galanteios eram tão untuosos como a palma da sua mão, o que fez com que Gabrielle sentisse alívio quando os passos da
dança a levaram de novo para junto do seu parceiro.
- Portanto, haveis descoberto a minha identidade - disse o rei de Navarra, retomando a conversa anterior enquanto descreviam círculos em volta um do outro. O rei
fingiu-se desgostoso, mas tudo aquilo fazia parte do jogo.
Na opinião de Gabrielle, aqueles bailes de máscaras na corte eram um pouco como uma farsa. Muitos dos cortesãos que se encontravam presentes
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estavam absolutamente cientes da identidade uns dos outros, embora fingissem o contrário com todo o vigor.
Caracoleando para a frente e acompanhando o andamento dos passos do rei, Gabrielle brindou-o com o seu sorriso mais deslumbrante.
- É claro que sim, majestade. Como é que seria possível que eu não vos descortinasse por detrás da máscara? Só existe um Henrique.
- Estais enganada, mademoiselle. Existem vários além de mim. Henrique, o muito bem-parecido duque de Guise, e, como é evidente, temos Henrique Valois, o nosso nobre
rei de França.
O passo de dança juntou-os mais e Gabrielle murmurou:
- Talvez o que eu devesse ter dito é que só existe um Henrique de Navarra.
A boca sensual de Henrique esboçou um sorriso de alguma amargura.
- Só um rei de Navarra, não? Poderia aceitar isso como um cumprimento, não fosse o facto de saber como sou descrito aqui, nesta corte. O reizinho cujo nariz é maior
do que o seu reino.
Gabrielle lançou-lhe um olhar travesso.
- Quanto a isso, não saberia o que dizer, majestade.
- Porque não considerais que o meu nariz é chocantemente grande?
- Não, porque nunca vi o vosso reino para poder estabelecer essa comparação.
Outro homem qualquer talvez se tivesse sentido ofendido, mas o rei de Navarra possuía um sentido de humor autodepreciativo. Atirou a cabeça para trás, soltando uma
sonora gargalhada que fez com que mais de uma cabeça se virasse na direção dos dois, as pessoas a perguntarem-se o que é que Gabrielle teria dito que tanto divertira
o rei.
- Ventre Saint-Gris! Mas que atrevida que me haveis saído, a brincar dessa maneira com o vosso pobre rei de Navarra - disse ele num tom de queixume na brincadeira.
Quando o rei praguejava e punha de parte as maneiras que adotava na corte, era quando se tornava mais cativante. O seu sotaque bearnês passava a ser mais carregado,
lembrando Remy a Gabrielle. Foi forçada a baixar a cabeça para ocultar a angústia que sentiu.
Os passos de dança, uma vez mais, obrigaram-nos a mudar de parceiro. Gabrielle ficou arrepiada quando a mão suada de DAHsard pousou na sua cintura. O passo seguinte
requeria que o homem erguesse a sua parceira do chão e que a girasse. A arfar e com falta de ar, DAlisard mal conseguiu levantar Gabrielle, tendo sido por pouco
que não a deixou cair no chão. Mas,
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do mal o menos, aquele intervalo, que o duque preenchera tão desajeitadamente, deu-lhe tempo para se recompor antes de ser devolvida ao rei.
A mão do rei de Navarra fechou-se possessivamente na dela enquanto a conduzia no passo seguinte da dança.
- Classifiquei-me de "o vosso pobre rei de Navarra". Não tendes nada a dizer a esse respeito, milady?
- Eu diria que nenhum rei pode ser descrito como sendo pobre - replicou Gabrielle com alguma frivolidade. - Também me perguntaria se sois realmente meu.
- Sou e demonstrar-vos-ia até que ponto se alguma vez viesse a ter a oportunidade de estar a sós convosco. - Enquanto circulavam em volta um do outro, Henrique levou
a mão dela aos seus lábios ao de leve. Inclinou-se mais para Gabrielle, segredando-lhe ao ouvido.
- Vinde à minha alcova esta noite, Gabrielle, e permiti que eu vos prove toda a medida da minha paixão e dedicação.
Gabrielle afastou-se dele, sentindo o pavor nauseante e arrepiante que se apoderava de si sempre que considerava ir para a cama com um homem. Mas haveria de conseguir
ultrapassar essa sensação de vazio. Era o que sempre acontecia, mas desejava poder prolongar a conquista durante mais algum tempo. Sem saber explicar porquê, não
se sentia preparada para se render ao rei de Navarra.
Mas era por demais evidente que Henrique estava a ficar impaciente e Gabrielle não sabia durante quanto mais tempo é que poderia continuar a manter o rei à distância.
Foi poupada à necessidade de lhe responder de imediato pelos passos de dança que voltaram a separá-los.
Perturbada pelos seus pensamentos, mal reparou no seu novo parceiro, couraçando-se inconscientemente para ser massacrada por DAlisard outra vez. Mas, para sua grande
perplexidade, sentiu que a sua cintura era enlaçada por um braço forte. Foi levantada do chão e girada com tal impetuosidade que ficou entontecida. O seu parceiro
voltou a pousá-la no chão, o impacto a desequilibrá-la.
Depois de se ter equilibrado, Gabrielle queixou-se.
- com a breca, monsieur, não tendes noção da vossa própria força. O passo de dança pede que se levante a parceira do chão e não que seja arremessada como se fosse
uma lança.
- Peço perdão, milady - disse ele entredentes.
- Devíeis... - O resto das palavras de Gabrielle morreram-lhe na garganta quando olhou atentamente para o seu parceiro de dança, um homem
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alto que usava uma capa curta que lhe pendia de um ombro, os tons escuros de todo o seu vestuário a encapelar a preto e a azul como uma tempestade no mar. Sem sombra
de dúvida que não era DAlisard nem tão-pouco qualquer dos outros cortesãos que Gabrielle não tinha dificuldade em identificar.
Inclinou a cabeça para trás, examinando atentamente as feições do estranho, a linha firme do maxilar magro e o contorno tenso da boca que a mascarilha de couro permitia
que se visse. Ele fitou-a com a mesma intensidade, os olhos de um castanho profundo a perscrutarem-na através das fendas da mascarilha, a sua expressão um estranho
misto de amargura e cólera.
Remy.
Gabrielle ficou petrificada, esquecendo-se de se mexer. Os outros dançarinos que rodopiavam em torno de si transformaram-se numa mancha de cor esbatida, como tintas
deixadas numa paleta à chuva. A música começou a sumir-se, dando lugar a um rufar ressonante que lhe ecoava nos ouvidos. Pela segunda vez na sua vida, Gabrielle
receou estar prestes a desfalecer devido ao choque. Mas a progressão da dança separou-os e o seu parceiro desapareceu no círculo de dançarinos.
De uma maneira qualquer, conseguiu recompor-se o suficiente para ocupar o seu lugar ao lado do rei de Navarra. Enquanto a mão forte do rei a conduzia com firmeza
na execução dos passos seguintes, ele olhou para ek com um franzir de sobrolhos.
- Estais a sentir-vos bem, milady?
- E... estou ótima, majestade - mentiu Gabrielle com o arremedo de um sorriso.
- Estais tão pálida que até parece que haveis visto um fantasma. - As palavras do rei de Navarra causaram-lhe um estremecimento que lhe percorreu todo o corpo, fazendo
o seu melhor para o ocultar. "Não se tratou de um fantasma", pensou ela, resistindo ao forte impulso de olhar receosamente por cima do ombro. Somente um fantasma
da sua imaginação. "Sim, foi isso mesmo", disse para consigo, esforçando-se por se convencer.
O homem com quem acabara de dançar não podia ser Nicolas Remy, de maneira nenhuma. O que aconteceu foi que tinha passado tantos dos últimos dias dividida entre a
esperança e o temor de voltar a vê-lo, que começava a imaginar que o via realmente.
Enquanto continuava a dançar com o rei de Navarra, Gabrielle rodopiava e virava-se, esticando o pescoço para olhar outra vez para o homem trajado de azul muito escuro.
Via-o de relance, mas a coreografia da dança frustrava
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os seus intentos, impedindo-a de esclarecer as suas dúvidas para poder ter paz de espírito.
com certeza que Remy era mais alto do que o estranho que usava a mascarilha de cabedal preto. Ou seria ele mais baixo? A boina com aba de tecido mole do estranho
quase lhe cobria o cabelo completamente. Gabrielle sentiu um forte aperto no coração quando imaginou ter visto um vislumbre de louro-escuro.
Mas não, aquilo devera-se apenas a uma ilusão criada pela luz das velas. O mais provável era o homem ter cabelo preto, além disso, tinha a cara rapada. Remy nunca
rapava a barba. Não que Gabrielle fosse tola ao ponto de supor que Remy não tocava numa navalha de barbear, mas rapar a barba toda era uma coisa diferente, argumentava
consigo própria. Apenas algumas semanas antes, Remy parecera-lhe estar à beira de uma grande pobreza. Aonde diabo é que um militar foragido arranjara os fundos para
se trajar com roupas tão dispendiosas? Além disso, como é que conseguira ser admitido na corte? E com certeza que nem o grande Flagelo teria a temeridade de se aventurar
a ir ao palácio, sem qualquer proteção e rodeado de tantos inimigos.
Atormentada pelas suas dúvidas, Gabrielle mal respondia às palavras que o rei lhe segredava ao ouvido, continuando a insistir para que fosse ter com ele nos seus
aposentos à meia-noite. Gabrielle fez-lhe uma vaga promessa enquanto aguardava com um temor e impaciência crescentes que os passos da dança voltassem a levá-la de
novo à presença do desconhecido.
Quando, finalmente, ficou cara a cara com o homem de azul-escuro, Gabrielle conseguiu reagir com mais calma desta feita, se bem que o seu coração batesse com mais
força do que o rufar dos tambores. Colocou a palma da mão encostada à dele enquanto descreviam círculos lentamente em volta um do outro, inteiramente fora do andamento
da música.
Era como se ambos dançassem a um ritmo que apenas eles conseguiam ouvir, pensava Gabrielle. Sentia a pele cálida dele encostada à sua, a palma da mão áspera e calosa.
Nada como a mão de uma macieza de seda de um cortesão, mas mais como a de um soldado... mais como a mão de Remy.
Gabrielle sentiu um tremor por todo o corpo e teve receio de o olhar frente a frente, mas obrigou-se a isso. Os olhos dele, aparentemente, não tinham a expressão
dura e irada que mostrara a última vez em que o viu, mas continuava a fitá-la com uma intensidade que fez com que a sua pulsação se acelerasse, aqueles olhos escuros
e aveludados tão semelhantes aos de Remy.
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Uma máscara fazia algo aos olhos de uma pessoa, tornando a expressão mais misteriosa e perigosa. Seria aquele homem Nicolas Remy ou não? Ela ficaria a saber de imediato
se conseguisse levá-lo a falar. Enquanto Gabrielle continuava a rodar em volta dele desconfiadamente, executando os passos da dança, murmurou:
- Monsieur é um excelente dançarino.
Ele agradeceu o cumprimento com um rígido acenar da cabeça. Humedecendo os lábios, Gabrielle voltou a tentar.
- Parece-me que a vossa cara não me é estranha, monsieur. Será possível que vos conheça?
A única réplica dele foi um ligeiro encolher de ombros, causando a Gabrielle um sentimento de frustração crescente. A coreografia da dança não tardaria a separá-los
e ela não conseguia suportar aquela incerteza por mais tempo.
Mandou a precaução pela janela fora e inclinou-se mais para ele, pedindo-lhe:
- Por amor de Deus, monsieur, quem sois vós? Oh, por favor, Remy, não me digais que sois vós.
- Muito bem. Não digo - replicou ele ao ouvido dela numa voz que era, indubitavelmente, a de Remy.
- Oh, meu Deus! - exclamou Gabrielle tropeçando, a sua mão a apertar-se convulsivamente na dele. Olhou em volta de si desnorteada, sentindo-se aterrorizada ao pensar
que alguém pudesse ter ouvido ou aperceber-se do que ela acabara de ouvir. Que o Flagelo tinha regressado e se encontrava no meio dos cortesãos.
- Tende cuidado, Gabrielle - sussurrou Remy. - Foi por pouco que não pisastes o meu pé.
- Pisar o vosso pé - retorquiu Gabrielle numa voz sibilada. - Gostaria muito de... de poder pisar a vossa cabeça dura. Haveis perdido o juízo completamente para
vos apresentardes aqui?
- Sem a mínima dúvida - respondeu ele com frieza.
Gabrielle fitou-o com uma expressão de cólera, sem saber ao certo o que mais lhe apetecia fazer. Dar-lhe um soco nas orelhas ou arrastá-lo para a porta mais próxima
para o pôr a salvo. Mas antes que pudesse pensar no que dizer ou fazer a seguir, a música parou. Não por a dança ter chegado à sua conclusão normal, mas sim abruptamente,
o som melodioso dos violinos substituído por um súbito burburinho de vozes.
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Agarrando a mão de Remy, Gabrielle estava demasiado embrenhada na teia labiríntica das suas emoções para se aperceber, inicialmente, do que se passava. Mas ao ver
que todos os presentes no salão de baile se inclinavam em rasgadas vénias ou mesuras, virou-se e o sangue gelou-se-lhe nas veias.
com o seu habitual e impecável sentido de oportunidade, a Rainha das Trevas tinha chegado finalmente.
O coração de Gabrielle apertou-se de receio quando Catarina de Médicis fez a sua entrada no salão. A Rainha-Mãe aproximava-se dos cortesãos mascarados como se uma
sombra se abatesse sobre eles, o vestido preto a marcar um acentuado contraste com toda aquela diversidade de sedas de cores vivas e jóias cintilantes. Tinha adotado
o preto do luto depois da morte do marido havia vários anos, sem que nunca lhe parecesse apropriado deixar de vestir de negro. Tinha uma aparência maternal, nas
suas vestes sombrias, que era enganadora, o cabelo grisalho preso num toucado pontiagudo na testa e um modesto folho branco em volta da garganta anafada. O único
adorno que usava era uma cruz de pedras preciosas que oscilava sobre os volumosos seios.
Não se dera ao incómodo de usar uma máscara apropriada às festividades da noite, mas também não precisava de nenhuma. O seu próprio rosto era como uma máscara branca
e suave que só muito raramente é que traía as emoções da Rainha das Trevas, sendo muito mais provável que os olhos escuros dos Médicis penetrassem nos segredos dos
outros do que ela revelasse
os seus.
Gabrielle sempre tivera êxito a bloquear os seus pensamentos quando na presença de Catarina. Depois de ter acreditado que Remy tinha morrido, o ódio que Gabrielle
passara a nutrir pela Rainha das Trevas fervilhara dentro de si como aço derretido, mas com o passar do tempo, antes mesmo de se ter aventurado a apresentar-se na
corte, Gabriele aprendera a temperar a sua cólera com algo mais frio, com mais paciência e com um calculismo tão impenetrável como uma armadura.
Infelizmente, Nicolas Remy não possuía essa espécie de couraça. À semelhança de todos os presentes no salão, a atenção dele prendera-se em Catarina,
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os maxilares cerrados numa expressão de tanta dureza que Gabrielle ficou atónita ao ver que os ossos não se partiam, a sua aversão tão palpável que nem sequer teria
passado despercebida a uma criança. Bastaria um olhar aos olhos dele e Catarina com a sua arguta perceção adivinharia de imediato a identidade dele.
Os cortesãos recuaram respeitosamente, abrindo alas à passagem da Rainha das Trevas em direção ao estrado onde o seu filho a aguardava, uma expressão mal-humorada
no rosto do rei. Gabrielle agarrou Remy por um braço, arrastando-o até ficarem atrás de uma das altas e largas colunas do salão.
- Remy, tendes de sair daqui. Imediatamente! - urgiu em voz baixa. Remy soltou o braço da mão dela com brusquidão.
- Tenho a certeza de que nada vos agradaria mais do que eu pôr-me em fuga para que possais continuar a seduzir o meu rei. Lamentavelmente, não me é possível fazer-vos
a vontade. Não tenciono ir a parte nenhuma até ter concretizado o que me trouxe aqui.
- E o que é isso? Fazerdes com que vos matem?
- Sabeis perfeitamente qual a razão por que estou aqui. Para falar com o rei de Navarra.
- Não tereis muito a dizer quanto a isso se estiverdes morto.
- Isso é uma ameaça? - Os olhos de Remy coruscavam através da mascarilha, frios e duros de desconfiança... os olhos do Flagelo. Não era difícil a Gabrielle dizer
o que ele pensava, ou seja, que tudo o que ela queria era mantê-lo afastado do rei de Navarra.
- Não, considerai as minhas palavras como um aviso - ripostou Gabrielle, aproximando-se mais dele. - Estou a tentar salvar-vos a vida.
Os lábios de Remy estreitaram-se numa expressão que deixava bem claro que não acreditava no que ela dizia. Os olhos de Gabrielle, que espelhavam ansiedade, desviaram-se
para a Rainha das Trevas, que se aproximava cada vez mais de onde discutia com Remy.
Movida por um grande desespero, Gabrielle tirou a máscara, como se, de uma maneira qualquer, ver o seu rosto o convencesse da sua sinceridade.
- Por favor, Remy... - começou Gabrielle a dizer, mas interrompeu-se, baixando o tom de voz com receio de que alguém a ouvisse. - Tendes de desaparecer antes que
Catarina repare em vós. Ela lê olhos com tanta facilidade como a maior parte das pessoas abre um livro. É uma antiga artimanha de feitiçaria em que ela é diabolicamente
competente. Esquecestes-te de quem ela é?
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- Não me esqueci de nada que diga respeito a essa maldita bruxa. Mas esta noite talvez tenha a única oportunidade de conseguir falar com o meu rei. A Rainha das
Trevas acredita que eu morri e estou mascarado como todos estes presunçosos. O mais provável é ela nem sequer reparar em mim, a menos que deddais atraiçoar-me.
Remy fitou-a com uma expressão de extrema dureza. Acreditaria ele verdadeiramente que ela seria capaz de fazer uma coisa dessas? A opinião que ele tinha dela seria
assim tão baixa? Aparentemente, sim. Sentimentos de mágoa e cólera ao mesmo tempo ruborizaram as faces de Gabrielle.
- Eu!? Sois um... um... idiota de cabeça dura. Sois vós quem vos atraiçoais com cada palavra que proferis, com cada gesto...
- Gabrielle Cheney.
Gabrielle interrompeu-se quando ouviu o seu nome articulado em tons que lhe eram demasiado familiares. Sentiu que o coração lhe caía aos pés quando se apercebeu
de que os cortesãos que se encontravam perto dela e de Remy haviam começado a afastar-se. Agora era tarde de mais para que ele tentasse passar despercebido ou para
que saísse por uma das portas do salão.
A Rainha das Trevas estava a escassos metros de distância, submetendo-os a um olhar penetrante. Gabrielle ficou como que paralisada, momentaneamente possuída por
uma sensação de pânico. Mas esforçou-se por o mitigar. Lançando um último olhar de advertência a Remy, Gabrielle apressou-se a intercetar Catarina antes que a rainha
pudesse aproximar-se mais.
Fez-lhe uma rasgada vénia, alargando as saias para os lados, como se tivessem o condão de servir de escudo ao homem que se encontrava atrás de si. O coração batia-lhe
com tanta força que receava que a rainha o ouvisse. Possuída de um grande desespero, Gabrielle esforçou-se por se acalmar. Quando se tratava de farejar o medo, Catarina
tinha todos os instintos de um chacal. Tocou ao de leve no ombro de Gabrielle.
- Por favor, erguei-vos, mademoiselle.
Gabrielle endireitou-se, mantendo os olhos presos no chão. Mas concluiu que essa atitude só serviria para despertar as desconfianças de Catarina. Levantou a cabeça,
obrigando-se a olhar para a Rainha das Trevas bem de frente, com a sua habitual ousadia.
Catarina pegou no queixo de Gabrielle, os olhos escuros a perscrutarem-na implacavelmente. Gabrielle não baixou os olhos, mal se atrevendo a respirar, chamando a
si toda a sua força de vontade para tornar os seus pensamentos impenetráveis.
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Por fim, Catarina largou-lhe o queixo com um sorriso glacial.
- Que coisa, minha querida Gabrielle, ainda estamos muito longe da hora de tirar as máscaras, apesar disso, já haveis tirado a vossa.
- Estava a arranhar-me, majestade - retorquiu Gabrielle, sorrindo-lhe com a mesma falsidade. - Uma queixa que parece ser partilhada por vossa majestade. Também não
estais a usar a vossa máscara.
- Como estou certa de que sabeis muito bem, minha menina, considero-me demasiado velha para tais folguedos, como os bailes de máscaras.
- O que é uma pena, porque tenho a certeza de que vossa majestade usaria uma máscara como ninguém.
- Nunca melhor do que vós, minha querida - ripostou Catarina.
A maior parte das vezes, Gabrielle desfrutava imensamente dos seus duelos de inteligência com a Rainha das Trevas, mas nunca antes tivera tanto a ocultar. Ansiava
por poder olhar para trás a fim de ver qual a atitude de Remy perante aquela situação, mas não se atrevia. Esforçando-se por esconder o seu nervosismo, Gabrielle
abriu o leque, abanando-se languidamente.
- Dizei-me, mademoiselle. Estais a divertir-vos esta noite? - perguntou Catarina numa voz ronronante.
- Oh, imensamente, majestade.
- De verdade? Pareceu-me que estáveis um tudo-nada conturbada. Estais tão pálida.
- É... é apenas por causa do calor - retrucou Gabrielle, abanando-se ainda com mais vigor. - Faz um calor diabólico aqui, no salão.
- Oh, sim, diabólico. Tendes de ter muito cuidado - disse Catarina. Os olhos a semicerrarem-se dissimuladamente. - Todas essas danças cheias de energia em que participastes
há pouco não podem ser benéficas para a vossa saúde.
Gabrielle foi apanhada de surpresa. Aquilo significava que Catarina a tinha espiado ao longo de toda a noite, o que a rainha lhe dava a entender sem lugar para quaisquer
dúvidas, decerto que com a intenção de a abalar. O que Catarina estava a conseguir fazer extraordinariamente bem, pensou Gabrielle sombriamente. Queria dar-lhe uma
resposta inteligente, mas sentia a boca seca.
com uma expressão de preocupação trocista, Catarina deu umas palmadinhas na face de Gabrielle.
- É evidente que vos haveis fatigado exageradamente. Mas eu compreendo as tentações. Tantos homens encantadores... O meu genro, o rei de
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Navarra, o Chevalier DAlisard e, além deles, o galante e fogoso jovem trajado com uma capa de um azul muito escuro.
Gabrielle receou que o seu coração deixasse de bater para sempre quando a rainha se referiu a Remy. Os seus dedos tremeram e foi por pouco que não deixou cair o
leque.
- Mas aonde é que ele se meteu? - perguntou Catarina, fazendo de conta que percorria todo o salão de baile com o olhar. - Ah, sim, ali está ele.
Quando Catarina se fixou num ponto atrás de Gabrielle, ficou com a sensação de que os cordões do espartilho se apertavam a ponto de mal conseguir respirar. Só desejava
que Remy tivesse aproveitado o tempo em que estivera a conversar com Catarina para escapar dali para fora. Mas é claro que ele não teria feito nada disso.
Ele estava como que enraizado à coluna, qual general obstinado determinado a não abandonar a sua posição no campo de batalha, custasse o que custasse. Quando Catarina
esticou o pescoço na direção dele, pelo menos Remy teve o bom senso de engolir o ódio que ela lhe suscitava, fazendo-lhe uma vénia rígida. Catarina franziu as sobrancelhas
ligeiramente, levando uma mão ao queixo.
- Que estranho. Estava capaz de jurar que reconhecia toda a gente presente na corte, mascarados ou não. Mas tenho de confessar que acho este cavalheiro extremamente
misterioso.
- Não! - gritou Gabrielle.
Quando Catarina a fitou com os sobrolhos arqueados de surpresa, Gabrielle apressou-se a recompor-se.
- Eu... eu quis dizer que não - disse num tom de voz mais moderado - existe nada de misterioso acerca dele. com certeza que vossa majestade o reconhece.
- Não, não reconheço. Quem é ele?
Gabrielle sentiu uma gota de suor a escorrer-lhe pelo pescoço abaixo. Abanando-se com o leque, ensaiou um sorriso. - Não... não reconhece o marquês de Lanfort, majestade?
Aquele era o risco mais irrefletido que Gabrielle alguma vez correra. Nem sequer sabia se Lanfort se encontrava presente na corte naquela noite. Visto à distância,
Remy podia passar bem pelo jovem marquês, mas se Catarina lhe indicasse que se aproximasse mais...
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Gabrielle susteve a respiração enquanto Catarina observava Remy atentamente pelo que lhe pareceu um período de tempo que ameaçava eternizar-se. Por fim, Catarina
murmurou:
- Sim, sim. É claro que é o marquês de Lanfort.
com um acenar de cabeça com que dispensava Gabrielle, a Rainha das Trevas continuou a avançar através do extenso salão. Gabrielle inclinou-se profundamente noutra
respeitosa cortesia quando Catarina começou a afastar-se, mas desta vez sentia os joelhos a tremerem.
Teria conseguido ludibriar Catarina? Gabrielle acreditava que sim, mas com a Rainha das Trevas quem é que poderia dizer? Só tinha a certeza de uma coisa. Não teria
um momento de paz de espírito até conseguir que Nicolas Remy saísse do palácio naquela noite. Ainda que tivesse de bater com um pau na cabeça do idiota obstinado.
A música tinha recomeçado a ouvir-se enquanto os bailarinos cabriolavam por todo o salão. O rei balouçava-se no seu trono, rindo-se a bandeiras despregadas ao ouvir
alguma coisa que um dos seus mignons de cara pintada lhe dizia. Mantendo-se por perto do trono do filho, Catarina reprimia a irritação que sentia. À sua maneira,
tinha afeto a Henrique, mais do que gostara de qualquer dos seus outros filhos. Os seus maneirismos efeminados e os imbecis dos seus amigos faziam com que se sentisse
muitas vezes vexada, mas tinha assuntos mais prementes que naquela noite requeriam a sua atenção.
Para lá do rodopiar dos dançarinos, no extremo mais afastado do salão, Catarina viu de relance uma jovem mulher de cabelos de um louro-dourado a desaparecer por
uma porta com um homem que envergava uma capa azul-escura.
Catarina soltou um longo suspiro de enfado. Gabrielle Cheney. Raios partissem a rapariga! Sem dúvida que ela tinha um objetivo em mente e, ao contrário do costume,
isso não tinha nada a ver com a determinada atitude de Gabrielle em conquistar o rei de Navarra.
Talvez pela centésima vez, Catarina questionava a sua própria capacidade de discernimento por ter permitido a presença de Gabrielle na corte. As mulheres sábias
da ilha Encantada nunca haviam sido aliadas da Rainha das Trevas e ainda menos desde o episódio das luvas. Catarina conseguira estabelecer um pacto de tréguas com
as irmãs Cheney, mas não era muito fácil de manter.
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Catarina acreditava que os inimigos deviam ser mantidos por perto. No entanto, essa não era a única razão por que tolerava a presença de Gabrielle. A rapariga não
era como a sua falecida mãe, a virtuosa Evangeline, nem tão-pouco como a atual Senhora da Ilha Encantada, a gentil e íntegra Ariane. Pelo contrário, Gabrielle era
calculista, implacável e ambiciosa... mais como a própria Catarina. Era frequente que a rainha desejasse que a sua filha Margot fosse como Gabrielle em vez de ser
a fedelha romântica que era, toda paixão e impulsividade. Gabrielle Cheney jamais perderia a cabeça por causa de um homem. A jovem mulher intrigava-a com as suas
maquinações. Mas as intrigas podiam ser desmesuradas, pensou Catarina com secura. Até mesmo para alguém que tanto gostava da intriga como ela própria.
Descendo do estrado, Catarina estalou os dedos, chamando um homem idoso muito magro, com um cabelo ralo e barba hirsuta. A única pessoa no baile de máscaras, além
de ela própria, que não estava mascarada. Era muito raro que Bartolomy Verducci se encontrasse longe de Catarina.
Quando alguém lhe pedia que definisse a posição dele em sua casa, Catarina falava vagamente de Verducci como sendo o seu secretário, muito embora se apercebesse
de que ninguém se deixava enganar com essa resposta. Os cortesãos referiam-se a ele em termos menos lisonjeiros, classificando-o de espião, informador e lacaio.
Gabrielle tinha mesmo sido ouvida a troçar dele, chamando-o de "cachorro da Rainha das Trevas".
Uma descrição muito apropriada, pensou Catarina enquanto Bartolomy se aproximava dela, inclinando-se servilmente por cima da mão da rainha. Ela pôs fim às atitudes
servis agarrando-o pelo tufo da gola e puxando-o para junto de si para que mais ninguém ouvisse as suas palavras.
- Pensei que te tinha dado instruções para que não perdesses Mademoiselle Gabrielle Cheney de vista esta noite, signore.
- E... e é o que fiz, majestade.
- Nesse caso, porque acabaste de lhe permitir que saísse porta fora sem ser observada? Por que motivo é que não a seguiste?
- Bem, eu... eu... - Bartolomy lambeu os lábios numa manifestação de nervosismo. - Acontece que eu pensei...
- Eu não te peço que penses. Mas apenas que cumpras as minhas ordens. O que já deixei bem claro em várias ocasiões.
O homenzinho ficou branco como a cal da parede.
- S... sim, majestade. Mas vossa majestade ordenou-me que observasse o comportamento dela com o rei de Navarra. Uma vez que Mademoiselle
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Gabrielle Cheney saiu do salão acompanhada de outra pessoa, não pensei que faria mal deixar que ela saísse. Ao fim e ao cabo, ela só deixou o salão para um encontro
amoroso com o seu jovem amante, o marquês de Lanfort.
- Foi isso que aconteceu realmente? - com um olhar fulminante, Catarina largou Bartolomy. - Mas isso é deveras estranho, considerando que esta manhã vi com os meus
próprios olhos o marquês a cair do cavalo, tendo sofrido uma entorse no tornozelo. A menos que o marquês tenha conseguido recuperar-se milagrosamente, esse homem
que acompanhou Mademoiselle Gabrielle Cheney não era o marquês de Lanfort.
Signore Verducci ficou de boca aberta, os olhos a ameaçarem saltar-lhe das órbitas.
- Não fiques para aí a olhar para mim boquiaberto como uma truta acabada de pescar - disse Catarina escarnecedora, apoiando a palma da mão no peito escanzelado dele
e dando-lhe um brusco empurrão. - Trata de ir atrás de Mademoiselle Gabrielle Cheney, meu idiota, e descobre o que é que ela anda a tramar.
A música e os risos que vinham do salão de baile atenuavam-se à distância enquanto Gabrielle puxava Remy pelo braço, forçando-o a atravessar os jardins do palácio
num passo apressado. Sentindo-se desesperada, arriscou olhar para trás em direção à escadaria do Louvre, um pouco à espera de ver Catarina aí, como a bruxa que era,
o seu olhar sinistro a segui-los enquanto se embrenhavam pela noite dentro.
Mas não avistou ninguém nas escadas e o baile de máscaras prosseguia, as silhuetas dos dançarinos a rodopiarem pelas janelas. Nada de gritos repentinos de alarme
que chamassem os guardas, nada que perturbasse o silêncio noturno, à exceção do roçagar da folhagem das árvores, o suave ruído da água de uma fonte e o bater acelerado
do coração de Gabrielle.
Pouco faltava para ela desatar a correr através do relvado de tão ansiosa por afastar Remy do palácio. A passada alargada dele acompanhava facilmente os passos mais
apressados dela, as suas feições imperscrutáveis por detrás da mascarilha de couro preto. Remy fizera-lhe a vontade quando ela lhe exigiu que a acompanhasse, deixando
o salão, o que fora fácil de mais dado o orgulho obstinado e a coragem que raiava a imprudência do homem.
Gabrielle agarrava-lhe a mão com força, receando que a qualquer momento ele pudesse mudar de ideias, decidindo voltar para o palácio. O Palácio das Tulherias agigantava-se
à distância, um contorno que se recortava contra
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o firmamento noturno, a luz do luar a emprestar-lhe um aspeto espectral. Era o novo palácio de Catarina, cuja traça arquitetónica seguira a arquitetura florentina,
que ainda não estava acabado, à exceção do labirinto, os jardins e a gruta artificial, envolto em silêncio e deserto àquela hora da noite.
Se conseguisse levar Remy até lá, persuadi-lo a continuar, a partir do Palácio das Tulherias poderia seguir para a cidade. E só então é que ela respiraria mais sossegada.
Então saberia que ele se encontrava em segurança pelo menos, de momento. Mas, para sua grande consternação, Remy deteve-se, apertando-lhe a mão com mais força, obrigando-a
a parar abruptamente.
- Não! Não deveis deter-vos...
Remy tapou-lhe a boca com a mão, abafando-lhe o protesto.
- Cuidado - disse-lhe ele ao ouvido numa voz resmungada. - Olhai. Gabrielle virou-se na direção que ele lhe apontava e o seu coração deixou
de bater momentaneamente. A luz do luar refletia-se nos capacetes de duas das sentinelas do palácio que faziam as suas rondas. Era possível que as roupas de Remy
passassem despercebidas na escuridão da noite, mas, com o seu vestido cor de marfim, ela destacava-se como uma fada a esvoaçar ao vento através dos jardins.
Era óbvio que eles já tinham sido avistados, porque um dos guardas gesticulava enquanto falava com o outro. Os dois homens desviaram-se do percurso da ronda, avançando
na direção deles. Gabrielle seria reconhecida de imediato, mas se eles interpelassem Remy, obrigando-o a tirar a mascarilha e que se identificasse, tudo estaria
acabado para ele.
Gabrielle ficou petrificada e possuída de um pânico momentâneo, perguntou-se se deveriam fugir de volta ao palácio ou tentarem esconder-se entre a vegetação. Antes
de poder decidir, Remy tomou-a nos braços, puxando-a para junto de um carvalho de grande porte, os lábios dele a baixarem até aos dela num beijo cheio de ardor.
Os olhos de Gabrielle arregalaram-se de perplexidade até compreender o que ele estava a fazer, fingindo que eram amantes que só se encontravam ali para terem um
encontro amoroso à luz do luar. com relutância, ela enlaçou-o nos seus braços.
Não obstante o facto de se ter tornado numa cortesã de grandes talentos, a verdade é que nunca gostara de beijar. A união de lábios, a mistura de hálitos e línguas,
era algo demasiado íntimo, exigindo que ela oferecesse mais de si própria, além do prazer vazio do seu corpo.
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O beijo de Remy sem dúvida que pedia mais. Os lábios dele não lhe davam tréguas, o muito ardor a tocar demasiado perto nos seus próprios desejos reprimidos. Gabrielle
tentou manter-se indiferente, lembrando a si própria que aquela cena era apenas a fingir e que devia ficar de olho nos guardas.
Mas os seus olhos cerraram-se contra a sua vontade, entregando-se com mais abandono ao abraço de Remy. A língua dele não parava, tentando entreabrir os lábios dela,
e Gabrielle, com um suspiro suave e entrecortado, abriu-os para ele, permitindo-lhe o acesso aos recônditos mais sensíveis da sua boca, invadindo-a com investidas
ardentes que lhe derretiam os ossos e faziam com que o seu sangue se transformasse em fogo.
Aquilo era muito diferente da alegria frenética do beijo na noite em que ela soube que Remy estava vivo. Aquele era um abraço nascido do ardor, da paixão e do perigo,
mas talvez o maior perigo fosse a maneira como o seu corpo reagia ao dele. Dos lábios de Gabrielle escapou um pequeno gemido. Indiferente aos possíveis estragos
no seu vestido e anquinhas, esmagou-se contra o corpo de Remy, possuída de um grande frenesim para conseguir estar o mais junto dele que lhe fosse possível.
As mãos de Remy afastaram-se da cintura de Gabrielle, passando a afagar-lhe as costas e depois ao comprido do flanco, tentadoramente próximo da curva do seio. Ela
sentia o calor das mãos dele até mesmo através do vestido e os mamilos contraíram-se numa reação que era quase dolorosa. Meteu os dedos pelo cabelo sedoso na nuca
de Remy, esquecendo-se de todo o sentido de perigo, esquecendo-se de tudo o que não fosse ele, a sensação, o toque, o sabor dele.
Gabrielle sentiu-se corar, estonteada e temerariamente inebriada com o beijo dele, perguntando-se como é que aquilo era possível. Sentir-se como se estivesse prestes
a entrar em erupção, ficando em chamas, mas, não obstante, sentindo-se tão em segurança nos braços de um homem. Quando ele afastou os lábios dos seus, Gabrielle
soltou um suspiro de protesto. Sentiu o corpo percorrido por um frémito, esforçando-se por organizar as ideias, apercebendo-se vagamente de que os guardas haviam
passado por eles, o riso à socapa a ecoar no silêncio enquanto desapareciam.
Gabrielle duvidava de que Remy tivesse reparado que os homens haviam desaparecido. Os olhos escuros como que a liquefazerem-se por detrás da mascarilha. Deixara
de haver razão para que ele continuasse a mantê-la tão
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chegada a si. Apesar disso, não fez menção de a largar e Gabrielle também não tentou afastar-se dele. Era como se estivessem unidos por um estranho feitiço, por
um qualquer encantamento negro criado pela noite e pela Lua, o coração de ambos a bater em uníssono.
Gabrielle foi a primeira a recompor-se, afastando-se dele. Remy largou-a com alguma relutância, pensou ela, mas como é que poderia saber ao certo com a maior parte
do rosto dele atrás daquela maldita mascarilha? Gabrielle lamentava ter tirado a sua máscara. Sem isso, sentia-se demasiadamente vulnerável, como se estivesse nua
sob o olhar impenetrável de Remy.
Constrangida por estar ruborizada, levou as mãos às faces numa tentativa para as arrefecer. Deus lhe valesse, porque, por pressuposto, era uma mulher sofisticada
e não o género de rapariguinha tonta que corasse e tremesse nos braços de um homem, meramente por ele a ter beijado.
Gabrielle ajeitou o cabelo para trás, endireitou a gola e esforçou-se por readquirir o seu habitual ela.
- Muito bem! - disse assim que pôde confiar em si para falar. - Isso... foi um desempenho extraordinário da vossa parte, capitão Remy. A vossa aptidão na arte de
representar melhorou muito.
- Estou a aprender - replicou ele. Encostou-se ao tronco da árvore, cruzando os braços enquanto a observava, mostrando-se tão irritantemente calmo que a enfureceu.
Como se para ele não tivesse a mínima importância correr o risco de ser apanhado pela Rainha das Trevas, ter escapado aos guardas por um triz... beijar uma mulher,
que considerava como sua inimiga, com tanto ardor ao ponto de ela ter ficado quase a desfalecer.
De súbito, Gabrielle teve consciência de como aquela parte dos jardins era silenciosa e deserta, tão distante do palácio e em que a luz do luar mal iluminava onde
estavam por baixo da copa do carvalho. Nunca passara pela cabeça de Gabrielle imaginar que enrubesceria por dar consigo a sós com Remy na escuridão. Levou a mão
à garganta.
- Parece que o perigo de vos descobrirem aqui já passou, mas continua a ser perigoso para vós se continuardes por aqui. Devíeis ir andando e... eu tenho de voltar
para o salão de baile antes que dêem pela minha falta.
Mas quando apanhou as saias, preparando-se para passar por ele, Remy desencostou-se do tronco da árvore. Estendeu a mão de repente, agarrando-a por um pulso.
- Ainda não. Primeiro quero falar convosco.
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Falar com ela? Gabrielle ficou a olhar para ele com incredulidade. O homem era verdadeiramente louco.
- Peço-vos perdão, capitão - começou a dizer com alguma aspereza -, mas não me parece que este seja o melhor momento para uma conversa. Estou em crer que já dissemos
tudo o que tínhamos a dizer um ao outro.
- O que vos quero dizer não vos roubará muito tempo - retorquiu Remy, puxando-a para junto de si, a sua capa a pender entre os dois como uma sombra. O hábito que
a moda ditava de usar a capa a pender por cima de um ombro emprestava a muitos cortesãos uma aparência ajanotada. Mas no tocante a Remy, o caso era diferente, chamando
a atenção para os seus ombros largos, uma aparência de força mal refreada na sua constituição robusta e viril. Os seus olhos não passavam de centelhas de luz perigosas
através das fendas da mascarilha, mas o arrepio que percorreu o corpo de Gabrielle não tinha nada a ver com apreensão. - Apenas uma pergunta, milady
- disse Remy. - Por que razão haveis feito isso?
- Feito o quê? - perguntou ela vacilante, perguntando-se de que é que ele a acusaria agora.
- Porque mentistes à Rainha das Trevas ao dizer-lhe que eu era o vosso amante, esse tal... de Lanfort?
- Antigo amante - corrigiu Gabrielle com um soerguer altaneiro das sobrancelhas, muito embora não soubesse bem qual a razão por que achara importante corrigi-lo.
- O quê, teríeis preferido que eu lhe dissesse quem éreis? "Oh, é apenas o Nicolas Remy, majestade. Estais lembrada dele? Aquele que em tempos idos apelidáveis com
tanto afeto de Flagelo."
- Pois eu teria preferido que vos tivésseis mantido à margem do assunto, deixando que eu arriscasse fazer o que queria fazer - ripostou Remy. Pela primeira vez,
Gabrielle constatou que, muito longe de se mostrar agradecido pela sua intervenção, Remy estava irritado com ela, até mesmo um pouco encolerizado. - Sem dúvida que
o vosso envolvimento não vos trouxe nenhum benefício.
- Não preciso que me digais isso - ripostou Gabrielle com uma expressão de desagrado. O mais certo era o rei de Navarra já ter voltado para o salão de baile e estaria
à sua procura. Se o rei tivesse visto que ela tinha saído furtivamente com outro homem, teria de arranjar uma explicação credível para lhe apresentar.
Como se ele tivesse conseguido ler os seus pensamentos, o maxilar de Remy contraiu-se.
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- Portanto, por que diabo é que haveis procedido dessa maneira? Porque me protegestes?
- E que importância é que isso tem agora? - retorquiu Gabrielle, tentando fazer com que ele lhe largasse o pulso, mas Remy apertou-o ainda com mais firmeza.
- É importante para mim. - Quando ela tentou evitar os olhos dele, Remy pegou-lhe no queixo, obrigando-a a olhá-lo nos olhos. - Haveis afirmado que estais determinada
a seduzir o meu rei. Decerto que teria servido melhor os vossos interesses ter-me fora do vosso caminho. Portanto, o que é que vos levou a dar-vos ao incómodo de
me salvar?
com um forte puxão, Gabrielle libertou a mão. Retrocedeu e começou a massajar o pulso magoado, fitando-o com uma expressão de fúria.
- Levando em consideração que sou a única pessoa que sabe quem sois, também serviria os vossos interesses se tivésseis feito com que eu desaparecesse. Talvez tenha
sido precisamente por isso que me haveis acompanhado até aqui. Para me estrangulardes, atirando-me para os arbustos.
- Não sejais ridícula a esse ponto. Por muito que me sinta enfurecido convosco, sabeis bem de mais que jamais vos faria qualquer mal.
- Sendo assim, devíeis saber igualmente bem que eu jamais vos atraiçoaria!
Mas, claramente, ele não sabia nada disso ou não teria sentido necessidade de lhe fazer aquelas perguntas.
- Oh, estou a ver como as coisas são - disse Gabrielle com amargura.
- Sois o grande herói, praticamente atulhado de honrarias. Enquanto eu sou apenas uma rameira inferior, capaz de proceder da maneira mais baixa.
- Nunca vos chamei isso.
- Nem foi preciso que o fizésseis. O desprezo que vos inspiro está bem patente. - Gabrielle ficou horrorizada ao sentir um nó na garganta. Antes que ele se apercebesse
do quanto se sentia magoada com as dúvidas dele, tentou passar por ele. Mas Remy foi mais rápido do que ela, interpondo-se no seu caminho, a sua robusta constituição
física a erguer uma barreira intransponível.
- Não vos menosprezo de maneira nenhuma - retorquiu ele. - Mas exijo uma resposta à minha pergunta.
Era por demais evidente que ele não permitiria que ela se afastasse até lhe responder. As mãos de Remy fecharam-se nos ombros dela, não com força bruta, mas, mesmo
assim, impedindo-a de sair dali. Não havia maneira
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de lhe escapar, a menos que se debatesse fisicamente de uma maneira pouco digna e, provavelmente, fútil.
- Porque me haveis protegido, Gabrielle? - insistiu Remy. - Porquê?
- Porque... - começou ela a responder.
Porque ela continuava a interessar-se excessivamente por ele, uma emoção inconveniente para uma mulher que estava determinada a não sentir nada além de uma ambição
calculista. Gabrielle engoliu com dificuldade, olhando para ele com uma expressão de impotência e fúria.
- Raios vos partam, Nicolas Remy! Nunca me importunastes com perguntas dessas quando estávamos na ilha Encantada. Nunca vos preocupastes em saber a razão por que
eu vos protegia da Rainha das Trevas nessa altura.
- Tenho plena consciência do que haveis feito por mím nesse verão, mas entretanto houve muita coisa que mudou. Vós haveis mudado.
- Não, não mudei nada - resmungou Gabrielle. - Obviamente, continuo a ser tão idiota como antes no que diz respeito à vossa pessoa.
A força com que Remy a prendia abrandou e o tom de voz suavizou-se quando disse:
- Peço desculpa, Gabrielle. Mas não podeis censurar-me por me sentir confuso. Encontro-vos tão mudada, tão diferente da jovem de que guardo recordação. Para mim,
sois uma pessoa que me é estranha.
- Não haja dúvida de que sois a pessoa mais indicada para falar de estranhos - ripostou Gabrielle. - O Nicolas Remy que eu conhecia nunca se teria mostrado tão agressivo.
Mantendo-me prisioneira, interrogando-me, escondendo-vos por detrás dessa maldita mascarilha, qual carrasco público.
Remy respondeu-lhe tirando a mascarilha com penas da cara. Quando os dedos dele pegaram nos cordões que a apertavam, Gabrielle sentiu-se horrorizada com o que o
levara a fazer. Olhou freneticamente em volta de ambos, para as sombras projetadas pelas árvores, os arbustos a adquirirem um aspeto sinistro, como se tivessem olhos
ansiosos por ver, para irem relatar à Rainha das Trevas o que tinham visto.
- Não, não façais isso! - gritou Gabrielle, mas Remy já tinha tirado a mascarilha do rosto.
Um feixe de luz do luar deu realce aos tons dourados do cabelo escuro, fazendo um jogo de luz e sombra no perfil dele. Os ossos finamente cinzelados dos malares
salientavam-se vincadamente, a curvatura sensível dos lábios distintamente definida. O queixo esculpido em linhas duras e largas que, em
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certa medida, eram suavizadas pelo ligeiro entalhe no maxilar inferior. Agora que não estavam escondidas pela barba, as feições dele mostravam-se simultaneamente
fortes e, de uma maneira estranha, mais vulneráveis.
Gabrielle esqueceu-se do quanto se sentia magoada, esqueceu-se da cólera. Mal se lembrava de respirar. Aproximou-se mais dele, sentindo um formigueiro nos dedos
com a antiga ânsia de captar numa tela aquela indescritível beleza masculina, o coração desesperado por causa da magia que tinha perdido. Acariciou o rosto de Remy,
os deus dedos a delinearem aquela quase perfeita estrutura óssea, a textura macia e a calidez da pele dele, a vaga aspereza da barba, entretanto banida, a ameaçar
que reafirmaria o seu domínio.
Os olhos de Remy abriram-se muito ao toque da mão dela. Não fez qualquer movimento para deter a exploração de Gabrielle, mas mostrava-se constrangido perante o olhar
ávido dela.
- Meu Deus... - murmurou Gabrielle.
- O que é que se passa? - perguntou Remy ansiosamente.
- Sois tão formoso. É o que se passa.
Gabrielle não podia ter a certeza naquela escuridão parcial, mas pareceu-lhe que o homem tinha corado. Remy agarrou-lhe a mão, afastando-a da sua cara, mas não fez
qualquer movimento para a largar, os dedos a fecharem-se nos dela.
Os lábios de Remy esboçaram um sorriso, ainda que relutante. O seu sorriso particularmente doce, aquele que Gabrielle nunca esperara que ele lhe concedesse outra
vez. Retribuiu-lhe com um sorriso trémulo, sentindo o coração magoado ao compreender que aquela atitude poderia não passar de umas tréguas temporárias entre os dois,
o que fazia com que o sorriso dele fosse mais precioso por causa disso mesmo.
Remy levou a mão dela aos lábios, roçando-os ao de leve.
- Eu... agradeço-vos os vossos elogios, milady. Mas formoso não era exatamente o aspeto que tentei ter esta noite.
- E o que é que tentastes, grande idiota? - perguntou-lhe Gabrielle na brincadeira para disfarçar o sentimento de ternura que se apoderara de si.
- Limitei-me a tentar passar por um nobre, um daqueles presunçosos da corte. Mas tenho de admitir que nunca fui muito bom na arte de representar. - A boca de Remy
mostrou um trejeito de pesar. - Exatamente, o que é que vos revelou a minha identidade?
Os olhos dele. O som da sua voz. O toque da sua mão.
- Oh, nada em especial - mentiu Gabrielle. - Conhecemo-nos todos uns aos outros aqui, na corte, até mesmo quando estamos mascarados. Era
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impossível que não vos destacásseis. Um baile de máscaras na corte é apenas outro faz de conta, uma intriga, um jogo.
E gostais de toda essa intriga? Sois verdadeiramente feliz nesta vossa vida?
Gabrielle ficou surpreendida com a pergunta dele. Remy adquirira o mau hábito de fazer as perguntas mais inconvenientes. Seria ela feliz? Isso era algo que ela nunca
perdera tempo a pensar na sua constante procura de poder. Não queria pensar nisso. Encolheu os ombros num gesto de indiferença.
- É claro que sou feliz. Paris, a corte, agora o meu mundo é este. Remy abanou a cabeça como se não fosse capaz de aceitar o que ela lhe
dizia.
- É um mundo muito traiçoeiro, Gabrielle, além de perigoso. Quando vos vi a falar com a Rainha das Trevas, senti a pele toda arrepiada. A minha vontade foi agarrar-vos
para vos afastar dela.
- Não é necessário que vos preocupeis por causa de mim. Sei bem como lidar com Catarina.
- Mas por que motivo é que haveríeis de querer lidar com ela? Como é que podeis suportar a proximidade dessa mulher demoníaca dia após dia, forçada a fazer-lhe vénias,
a trocar sorrisos falsos com ela?
Gabrielle já fizera a si própria essas mesmas perguntas várias vezes. Replicou com hesitação:
- Talvez porque... comecei a compreendê-la melhor, quer o tenha desejado ou não.
- Compreendê-la? Numa ocasião ela açulou os caçadores de bruxas contra vós, tentou destruir toda a vossa família.
- Nenhuma mulher nasce fria e impiedosa, nem sequer Catarina de Médicis. Sem dúvida alguma que foi jovem e inocente, como qualquer rapariga o foi em tempos. Talvez
até tenha acreditado em contos de fadas, até ter descoberto que existiam mais dragões do que cavaleiros andantes no mundo. Monstros ferozes que reduzem os nossos
sonhos a cinzas, que nos queimam com traições até que definhemos e morramos ou até permitirmos que o nosso coração seja forjado de aço. Imagino que Catarina também
saiba o que é ser magoada e humilhada por alguém que amou, pessoa essa que terá feito com que ela se sentisse fraca e impotente.
- Também? - disse Remy franzindo o sobrolho, fitando-a demoradamente como que a perscrutá-la.
Gabrielle retraiu-se. Não sabia dizer o que é que a impelira a sair em defesa de Catarina. Talvez porque, ao fazê-lo, também estava a defender-se.
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Estava a correr o risco de revelar as feridas na sua alma que mantivera escondidas durante tanto tempo.
- Sim, também... como... como muitas outras mulheres suficientemente tolas para confiarem o seu coração a um homem.
- Uma coisa que nunca haveis feito? - perguntou Remy em voz baixa.
- Não! Nunca - negou Gabrielle. De facto, com uma veemência excessiva. Desprendeu a mão da de Remy e recuou mais para as sombras abaixo das árvores.
Gabrielle ficou perturbada ao ver que Remy a seguia, as mãos dele a acariciarem-lhe os ombros ligeiramente.
- Gabrielle? - A ternura que transparecia da sua voz fez com que ela receasse que ele tivesse visto de mais no seu semblante durante aqueles momentos em que baixara
as suas defesas.
Contraiu-se quando ele lhe tocou, mostrando uma animação que era forçada.
- Que imprudentes que ambos estamos a ser. Não se pode dizer que seja sensato da vossa parte que vos mantenhais por aqui e tão-pouco eu devia estar aqui. O rei de
Navarra já deve estar a perguntar-se o que será feito de mim. Praticamente, tive de lhe prometer todas as danças para esta noite. Ele está a ficar muito possessivo
com respeito a mim, mas a verdade é que sua majestade não permitiria o contrário.
As mãos de Remy imobilizaram-se. Por breves momentos, ela sentiu a respiração quente a agitar-lhe o cabelo. Mas depois as mãos dele afastaram-se.
- Sim, o rei de Navarra - repetiu ele, a sua voz um estranho misto de pesar e lúgubre determinação.
A menção ao rei voltara a pôr distanciamento entre os dois. Gabrielle ficou desolada quando Remy voltou a afastar-se, mas tratou de se recompor energicamente.
- Tenho mesmo de regressar ao salão de baile.
- Tal como eu.
- O quê!? - exclamou Gabrielle, rezando para que não o tivesse compreendido bem, mas ele já estava a pegar na mascarilha que tinha guardado por dentro do cinto.
-( Não me haveis atraiçoado. A verdade é que me proporcionastes outra identidade, por isso tenho de correr o risco de voltar ao palácio.
- Remy! Não!
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Para horror de Gabrielle, Remy começou a atar a mascarilha em volta da cabeça.
- Sois absolutamente louco. - Arrancou-lhe a mascarilha das mãos.
- Nunca vi um homem tão determinado a que o matem como vós.
- Gabrielle - disse Remy num tom de voz que era, em parte, uma súplica e, em parte, um aviso. - Dai-me isso.
- Não! - gritou ela, escondendo a mascarilha atrás das costas e afastando-se dele num passo vacilante. - De que é que serviu eu ter-vos protegido se estais determinado
a voltar para o covil da bruxa?
Remy aproximou-se dela.
- Não que eu não vos esteja agradecido pelo que haveis feito...
- Não quero a vossa gratidão. Só quero que vos afasteis daqui o mais depressa possível.
Remy encostou-a ao tronco da árvore, os seus braços a contornarem-na para conseguir chegar à mascarilha que ela lhe tinha tirado. Gabrielle apertou-a entre os dedos
num gesto de desespero.
- Oh, Remy, por favor. Não podeis...
- Tenho de voltar para lá. Agora que vi o meu rei naquele maldito palácio, estou mais determinado do que nunca a levá-lo daqui para fora.
- Não se pode dizer que ele esteja a ser torturado por alguém.
- Não, estão a fazer-lhe algo muito pior do que isso. Estão a roubar-lhe a sua alma. O pouco que vi dele esta noite permitiu-me ver como ele está a ser seduzido
por esta corte, por...
"Por vós." Remy não o disse em voz alta, mas ela via a acusação nos olhos dele enquanto ele tentava tirar-lhe a mascarilha das mãos, o corpo robusto a fazer pressão
contra o seu.
- O rei de Navarra está a perder toda a consciência da pessoa que é, está a tornar-se um desses idiotas que frequentam a corte, uma marioneta emproada que dança
ao som da música da Rainha das Trevas. Bem vi como troçam dele, todos sem exceção.
- Mas esta situação dele não se manterá assim para sempre - retorquiu Gabrielle num tom de súplica, desesperando ao sentir os dedos de Remy, que lhe abria os dedos
para lhe tirar a mascarilha. - Sei que não acreditais em augúrios, mas o soberano de Navarra está destinado a vir a ser o rei de França um dia. Juro-vos que é verdade.
- Convosco como sua amante? - Os lábios de Remy estreitaram-se.
- Lamento ter de vos dizer, Gabrielle, mas ele já é um rei. O rei de Navarra.
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O seu povo já teve de suportar perseguições e adversidades de sobra. Há três anos que não têm o seu monarca. Ele precisa de regressar à sua própria pátria e eu tenciono
certificar-me de que ele faz precisamente isso.
com um último puxão, Remy arrancou a mascarilha das mãos dela e afastou-se. Gabrielle reconheceu bem de mais a obstinação que se refletia no maxilar. Bateu o pé
numa atitude de pura frustração, ao mesmo tempo que sentia um aperto no coração temendo por ele. Remy tencionava realmente voltar para dentro do palácio. A menos
que Gabrielle o ameaçasse de revelar a sua identidade ou conseguisse que ele perdesse a consciência, não havia maneira de o impedir de levar os seus intentos avante.
Mas havia uma terceira opção.
Gabrielle mordeu o lábio inferior enquanto analisava a ideia que não era isenta de alguns riscos, tanto para Remy como para o rei de Navarra, para já não mencionar
ela própria. Mas diabos levassem o homem! Já estava a atar a mascarilha atrás da cabeça. Ele não lhe deixava outra alternativa.
- Está bem. Está bem - gritou ela. - Eu ajudo-vos.
- O quê!? - Remy já tinha a mascarilha parcialmente apertada, mas empurrou-a para a testa, para poder mostrar-lhe o cenho carregado.
- Já que sois tão diabolicamente obstinado, tão insistente em prosseguir com as vossas ações irrefletidas, seria preferível que aguardásseis aqui até o baile acabar
- disse Gabrielle com um longo suspiro. - Eu própria falarei com o rei de Navarra e arranjarei maneira de poderdes encontrar-vos com ele com privacidade nos seus
aposentos.
Remy parecia ter ficado atordoado com a proposta dela. com lentidão, tirou a máscara do rosto como se estivesse a avaliar aquela hipótese seriamente, mas depois
abanou a cabeça.
- Não, isso seria excessivamente perigoso, em especial para vós.
- Perigoso! - exclamou Gabrielle, olhando para ele com uma expressão exasperada. - Não, perigoso foi aquela pequena dança de nós dois no salão de baile com a Rainha
das Trevas. Comparado com isso, levar-vos às escondidas até aos aposentos do rei de Navarra será uma brincadeira de crianças. Além disso, não há muito tempo queríeis
que eu lhe entregasse uma mensagem.
- Uma mensagem é uma coisa. Mas aquilo que estais a sugerir que façamos... - Remy interrompeu-se, passando a mão pelo cabelo. - Como é que poderíeis levar isso a
cabo? E, ainda mais importante, porque haveríeis de o fazer? Não se pode dizer que fosse...
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- Sim, eu sei - interrompeu-o Gabrielle com um esgar de desagrado.
- Não se pode dizer que isso servisse os meus interesses. Digamos apenas que faria isso porque continuaríeis a aparecer-me nos momentos mais inconvenientes, pregando-me
sustos de morte. Além disso, tenho fé na capacidade de discernimento do rei de Navarra. Estou em crer que ele é sensato de mais para concordar com os irresponsáveis
esquemas que podeis apresentar-lhe. Decerto que ele preferirá continuar em Paris, onde se sente em segurança.
- Junto de vós? - Os olhos de Remy espelharam consternação. - Estais assim tão segura de poderdes conquistá-lo?
Gabrielle não tinha a certeza de nada, exceto que já tivera de fazer o luto pela morte de Remy uma vez. Não estava certa de poder voltar a sobreviver a isso.
- Estou disposta a arriscar-me - disse ela. - Mas se eu concordar em ajudar-vos, imponho-vos duas condições.
- Que são...? - perguntou-lhe Remy com um arquear de sobrancelha de desconfiança.
- Apresentareis a vossa proposta ao rei de Navarra. Escapar convosco ou permanecer em Paris comigo. Mas o que quer que sua majestade desejar, fareis como ele quiser.
Nada de mais tentativas para o persuadirdes, nada de mais tentativas temerárias para falar com ele. Estais de acordo?
Remy franziu a testa enquanto fazia uma pausa para refletir nos termos.
- De acordo - aquiesceu por fim. - E qual é a vossa outra condição?
- Que deixeis de me atormentar com tantas perguntas tão irritantes.
Remy deixou escapar uma risada de ironia, mas concordou com um acenar de cabeça, estendendo-lhe a mão para selar o acordo. Mas quando os seus dedos se fecharam nos
dela, o seu semblante adquiriu uma expressão estranha. Olhava fixamente para um ponto atrás dela. A mão apertou a de Gabrielle. Embora as suas feições permanecessem
impassíveis, ela sentiu a tensão no corpo dele quando se inclinou para si.
- Tende cuidado - sussurrou-lhe, a boca quente encostada à orelha dela, fazendo com que ficasse toda arrepiada. - Estamos a ser observados. Há alguém escondido nos
arbustos atrás de vós.
A pulsação de Gabrielle acelerou-se. Esforçou-se por não reagir, para se impedir de olhar receosa por cima do ombro. Antes sequer de ter tempo para pensar no que
fazer, Remy colocou uma mão entre os dois. Afastou a capa para o lado e, vagarosamente, os seus dedos dirigiram-se para o punho ornamentado de um punhal que trazia
preso no cinto.
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A expressão que se refletiu nos olhos dele só muito raramente é que Gabrielle tinha visto. Fria, dura e, até certo ponto, ainda mais assustadora do que a presença
de um espião oculto nos arbustos. Era o Flagelo e não Nicolas Remy que desembainhou o punhal, preparando-se, com toda a frieza. para cortar as goelas de um homem.
Recuou, afastando-se de Gabrielle e mostrando uma calma ameaçadora quando lhe fez uma pequena vénia, dizendo em voz alta e com toda a clareza:
- Dou-vos as boas-noites, mademoiselle. - E depois girou sobre si próprio com tanta rapidez que Gabrielle mal teve tempo de respirar. Dirigindo-se velozmente para
os arbustos, atacou quem quer que estava ali. Ouviu-se um grito de alarme quando Remy brandiu o punhal.
Gabrielle levou as mãos à boca, sem querer ver o que se estava a passar, mas incapaz de desviar o olhar. No último momento possível, Remy imobilizou-se, a luz do
luar a refletir-se na lâmina do punhal. Em seguida, praguejou sonoramente, voltando a embainhar o punhal.
Inclinou-se para baixo e agarrou o intruso pela gola, arrastando-o para fora dos arbustos. com o coração a bater fortemente devido ao susto, Gabrielle pestanejou
de surpresa. A pessoa que Remy agarrara pela gola da túnica não se parecia absolutamente nada com alguém que a Rainha das Trevas empregasse para espiar.
Era um mero rapaz com uma basta cabeleira escura desgrenhada e feições muito afiladas. Qualquer outra pessoa ter-se-ia sentido atemorizada pelo olhar assassino que
Remy lhe lançou. Se bem que o rapaz parecesse vexado por ter sido descoberto, teve a impudência de olhar para Remy com um pequeno sorriso.
- Boa noite, Monsieur lê Capitaine.
Gabrielle desviou o olhar que mantivera no rapaz e fitou Remy com uma expressão inquisitiva.
- Conheceis esta pessoa?
- Sim, tenho de admitir que o conheço. - Remy lançou outro olhar sinistro ao rapaz antes de o empurrar na direção de Gabrielle. - Mademoiselle Gabrielle Cheney,
permiti que vos apresente o meu Lobo.
Sentiu-se bastante divertida ao ver que o rapaz parecia muito mais aterrorizado na presença dela do que de Remy. Benzeu-se com uma mão trémula, agarrando com força
qualquer coisa que tinha por baixo da túnica, algo que tinha um fedor insuportável. Gabrielle franziu o nariz repugnada.
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Remy deu um pequeno soco na parte de trás da cabeça de Lobo, obrigando-o a fazer uma vénia a Gabrielle. Nenhum dos três reparou na figura que saía de detrás do tronco
de uma árvore. Um homem que mais parecia um fantasma pardacento que se dirigia furtivamente para o palácio para apresentar o seu relatório à Rainha das Trevas.
Remy seguiu Gabrielle ao longo de um corredor nas traseiras do palácio, com um carrancudo Lobo atrás dele. Fora impossível livrarem-se do rapaz, por muito que Remy
se tivesse irado com ele por não ter obedecido às suas ordens. Para sua grande perplexidade e irritação, o rapaz ripostara-lhe no mesmo tom. Enquanto Gabrielle regressava
ao salão de baile para combinar o encontro com o rei de Navarra, Remy passara esse tempo a andar pelos jardins, embrenhado numa azeda discussão com o seu jovem companheiro.
"Monsieur, não deveis confiar nessa malvada feiticeira. Ela vai levar-vos a uma armadilha qualquer. Eu sabia que vos devia ter forçado a aceitar o amuleto. Estais
a permitir que ela vos enfeitice outra vez."
Remy tê-lo-ia repreendido severamente pelo seu atrevimento, não fosse o facto de recear que o rapaz pudesse ter razão. Pelo menos, com respeito ao feitiço. Quando
voltou sorrateiramente ao salão, ao ver que Gabrielle estava a romancear o rei de Navarra, sentira-se assolado por uma espécie de loucura. Ciúme. Um ciúme na sua
expressão mais pura sempre que Gabrielle sorriu para o seu jovem rei.
Remy esquecera-se da sua missão, esquecera o perigo que a sua vida corria quando se meteu na dança. Tinha tentado dizer a si mesmo que era a única maneira de poder
chegar ao rei, mas era de Gabrielle que ele precisava de se aproximar. Parte de si quisera que ela o reconhecesse, que soubesse que ele estava ali. Que Deus lhe
valesse. Era, inquestionavelmente, um rematado idiota.
O olhar de Remy nunca se desprendera dela enquanto ela tomava a dianteira pela passagem, as suas saias a roçarem pelo chão empedrado. A luz dos archotes, fixados
em reentrâncias na parede, permitia-lhe ver a figura graciosa. A gola de renda que se elevava do vestido como um par de asas, dando
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realce ao pescoço de linhas esbeltas, emoldurando o halo dourado que era o cabelo dela.
Em tempos, Remy acreditara que tudo nela era bom e inocente. Mas, desiludido, pensara que, finalmente, sabia o que ela era, a mulher mais calculista e ambiciosa
que lhe fora dado conhecer. Mas as ações dela esta noite, protegendo-o, tinham feito com que ela subisse na sua consideração, até começar a desesperar de alguma
vez conseguir compreender Gabrielle Cheney.
E ele queria compreendê-la... tão ansiosamente quanto queria voltar a puxá-la para os seus braços. Aquele beijo ardente que haviam partilhado nos jardins, e que
fizera com que o sangue lhe corresse nas veias como uma maré, deixara o corpo dele duro e a desejá-la.
O corredor acabava abruptamente, dando lugar a umas escadas íngremes que davam acesso ao piso de cima. Detendo-se no degrau do fundo, Gabrielle chegou-se mais a
ele, murmurando-lhe:
- Esta é a escada das traseiras que dá acesso aos aposentos do rei de Navarra e que é utilizada pelos servos e pelos... hum... convidados do rei.
E, exatamente, como é que Gabrielle estava tão familiarizada com aquela discreta escada particular?, queria Remy perguntar-lhe. Receava saber a resposta a essa pergunta,
o que lhe deixou uma sensação de frialdade na boca do estômago.
- Ficai à espera aqui enquanto eu vou ver se podeis subir em segurança.
- Gabrielle levou um dedo aos lábios, num gesto que lhe dizia para ter cautela. - Não façais nada até eu vos fazer sinal de que o caminho está livre.
Antes que Remy pudesse objetar, ela pegou na orla das saias e começou a subir pela escada, desaparecendo na escuridão do patamar. Lobo abeirou-se de Remy pelas costas,
puxando-lhe a manga com premência.
- Monsieur, ainda temos tempo. Podíamos...
- Está calado - resmungou Remy. Fez uma careta ao sentir o fedor que emanava do amuleto que o rapaz não largava. - E se continuares a insistir em acenar com o raio
dessa coisa, afasta-te um pouco de mim.
com um suspiro de mau humor, Lobo fez o que ele lhe dizia, retrocedendo alguns passos, mas sem se afastar muito, mostrando-se tão desconfiado como se estivessem
prestes a ficar com as cabeças cortadas por uma qualquer armadilha de aço. Talvez isso viesse a acontecer, mas Remy duvidava. Gabrielle já tinha tido amplas oportunidades
de o denunciar se quisesse. Em vez disso, fizera tudo para o manter a salvo, até mesmo ao ponto de pôr a sua própria segurança em perigo. Mas porquê? A verdade é
que ela nunca lhe dera resposta a essa pergunta.
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Remy queria acreditar desesperadamente que ela acalentava sentimentos de ternura por ele. Mas como é que isso seria possível numa mulher que confessara que a sua
maior ambição era vir a ser amante de um rei?
No patamar acima de si, Remy apercebeu-se do ligeiro som de Gabrielle a bater a uma porta, o ranger quando foi aberta. Trocaram-se algumas palavras em vozes sussurradas,
mas, por muito que ele se esforçasse, Remy não percebeu o que estavam a dizer.
Gabrielle tinha aptidão para todas aquelas intrigas. De facto, era apta de mais, conseguindo mentir com a maior facilidade, até mesmo à Rainha das Trevas, além de
conhecer todos os cantos e recantos daquele labiríntico palácio. Remy não fazia a mais pequena ideia de qual a combinação de encanto, suborno e artimanha a que ela
recorrera para conseguir mantê-lo fora da vista de todos até ao momento.
"Este é o meu mundo. Pertenço aqui", dissera ela.
Por muita dor que as palavras dela lhe causassem, essa era a realidade. Deslumbrante nas suas jóias e vestidos dispendiosos, tão sedutora e maravilhosa como Helena
de Tróia, capaz de levar homens a baterem-se e a morrerem por ela. Todavia, tinham existido alguns momentos fugazes nos jardins em que ela não parecera ter a postura
de uma mulher conhecedora do mundo. Quando ela saiu, de maneira tão estranha, em defesa da Rainha das Trevas, aquela antiga tristeza insinuara-se nos olhos de Gabrielle.
"Existem mais dragões do que cavaleiros andantes no mundo. Monstros ferozes que reduzem os nossos sonhos a cinzas, que nos queimam com traições até que definhemos
e morramos ou até permitirmos que o nosso coração seja forjado de aço."
Aquelas palavras pareciam ter sido arrancadas do seu coração e ela deixara de ser a cortesã e sedutora ousada. Tinha ficado com uma aparência tão jovem e perdida
que Remy sentira um impulso quase irresistível de a tomar nos seus braços, perguntando-lhe: "Quem ou o que é que atormenta os vossos sonhos, Gabrielle? Que fogo
de dragão é que forjou o vosso coração?"
Mas ele duvidava que ela alguma vez lhe respondesse. Desde sempre que Gabrielle soubera guardar os seus segredos muito ciosamente e agora era tarde de mais para
lhe fazer qualquer pergunta. Porque ele lhe prometera... nada de mais perguntas.
Remy apercebeu-se de um vago movimento no cimo das escadas, após o que Gabrielle reapareceu. Desceu alguns degraus e fez-lhe sinal para que subisse. Remy correu
para ela, parando no patamar logo abaixo daquele em que ela se encontrava.
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- Agora já é seguro para poderdes subir. O rei de Navarra deu uma desculpa para dispensar os seus lacaios; muitos deles não são minimamente de fiar. A Rainha das
Trevas tem espiões por toda a parte. Portanto, tende cuidado, Remy, e tentai ser o mais breve possível. Depois de acabardes de falar com ele, o rei ajudar-vos-á
a sair do palácio em segurança.
- Isso quer dizer que não tencionais estar presente? - perguntou-lhe Remy surpreendido.
- Não, concordei em propiciar-vos a oportunidade de persuadirdes o rei a deixar Paris. - Gabrielle sorriu-lhe ironicamente. - Se eu ficasse, estou em crer que poderia
ser um motivo de distração.
Remy viu-se forçado a concordar, embora não soubesse muito bem quem é que correria maior risco de se distrair com a presença dela, o rei de Navarra ou ele próprio.
Quando Gabrielle passou por ele nas escadas, sentiu a agradável fragrância do seu perfume. Até mesmo quando o seu corpo teve a reação de enrijecer, sentiu que o
coração lhe caía aos pés ao compreender algo subitamente.
Se conseguisse convencer o rei de Navarra a fugir consigo, Remy não tardaria a deixar Paris. Mas ainda que isso não fosse possível, partiria igualmente. Deixaria
de existir qualquer motivo para ele permanecer naquela maldita cidade. De qualquer das maneiras, seria altamente improvável que voltasse a ver Gabrielle.
Antes que ela pudesse continuar a descer as escadas, Remy agarrou-a pela mão.
- Gabrielle, eu... eu só queria dizer-vos... - Remy comprimiu os lábios. Não sabia exatamente o que queria dizer, tantas as emoções em conflito que fervilhavam dentro
de si para com aquela mulher encantadora que erguera o rosto para poder olhá-lo. Por fim, Remy disse-lhe entredentes: - Agradeço-vos por terdes feito isto por mim,
apesar de eu continuar sem saber porquê...
- Ah, não - atalhou Gabrielle num tom de repreensão e abanando a cabeça. - Nada de mais perguntas ou já vos esquecestes disso? - Levou a mão livre à face dele, acariciando-o,
os dedos dela tão macios e cálidos que ele teve de suprimir a muita vontade de levar os lábios à palma da mão dela. - Tenho de admitir que, de facto, pareceis mais
bem-parecido sem a barba - murmurou Gabrielle. - Se voltardes a deixá-la crescer, juro que eu própria irei atrás de vós com uma navalha de barbear.
- Para a barba ou para a minha garganta? - replicou Remy, tentando falar num tom de brincadeira, embora sentisse um grande vazio no coração.
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- Ainda não sei. Tudo depende do grau de irritação que me suscitardes na altura. - Sorrindo-lhe com a expressão endiabrada que ele conhecia tão bem e que lhe dava
um ar com poucas semelhanças com Mademoiselle Gabrielle Cheney, a infame cortesã, parecendo-se mais com a Gabrielle que ele conhecera em tempos. Remy fechou os dedos
nos dela com firmeza, como se pudesse impedi-la de desaparecer.
Mas, com suavidade, ela já tinha soltado a mão. Depois de descer as escadas com as saias a arrastarem pelo chão, encontrou Lobo ao fundo dos degraus. O rapaz espalmou-se
contra a parede como se o mais pequeno contacto com Gabrielle o aterrorizasse por ele poder transformá-lo em pedra.
O medo que ela lhe inspirava causava obviamente algum divertimento a Gabrielle. Tocou-lhe na ponta do nariz na brincadeira.
- E tu és Martin, o Lobo, o jovem que numa ocasião salvou a vida do capitão Remy?
- Ow, m... mademoiselle. - Embora Lobo se encolhesse ainda mais para se afastar dela, espetou o queixo para a frente numa atitude de desafio.
Gabrielle ficou a olhar para ele demoradamente, o seu semblante a suavizar-se. Inclinou-se para ele e roçou-lhe a face com um pequeno beijo. Endireitou-se e afastou-se
do rapaz, olhou para cima, para Remy, e esboçou um sorriso trémulo que foi direito ao fundo do coração dele. Em seguida, virou-se e estugou o passo, percorrendo
o corredor sem voltar a olhar para trás.
Assim que ela desapareceu de vista, Lobo afastou-se da parede a tremer. Puxou o decote da túnica e olhou ansiosamente para dentro. Apesar da sensação de um grande
peso nos seus ombros, os lábios de Remy esboçaram um meio sorriso.
- O que é que se passa, rapaz? Ficaste com um terceiro mamilo?
- N... não - respondeu o jovem, endireitando a túnica. - Apesar de continuar a acreditar que aquela senhora é uma bruxa poderosa. Mas juro por todos os santos que
ela é do mais desconcertante que conheço.
- Não precisas de me dizer isso - retorquiu Remy com secura. Esforçara-se ao máximo para poupar o que ganhara, tendo arquitetado planos ao longo dos últimos três
anos a fim de conseguir voltar para junto do seu rei. O encontro há muito esperado estava prestes a ter lugar. O rei de Navarra encontrava-se à sua espera.
Mas em vez de se apressar a ir ao encontro do rei, deixou-se ficar a olhar para Gabrielle, que se afastava, ansiando por chamá-la. Devia ter experimentado os poderes
do amuleto de Lobo. Era evidente que necessitava de alguma
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espécie de proteção contra o feitiço com que Gabrielle o enredara, para conseguir expulsá-la do seu coração. com a diferença de Remy recear que não existia magia
nenhuma no mundo suficientemente poderosa para fazer isso.
Os passos de Gabrielle ecoavam pelos corredores mergulhados em sombras do Louvre, com o silêncio a abater-se sobre o grandioso palácio. O baile de máscaras tinha
acabado há muito, com o rei e os cortesãos a retirarem-se para os respetivos aposentos, e até mesmo a maior parte dos servos também já se retirara, dando aquela
noite por finda. Aqui e ali, Gabrielle ouvia o ranger de uma porta, o som de um murmúrio, uma risada abafada, o que lhe dava a saber que as intrigas não tinham parado,
agora de uma natureza mais amorosa do que aquela que ela acabara de maquinar.
Gabrielle não era capaz de se impedir de se congratular pela maneira como conseguira proporcionar o encontro secreto entre o rei de Navarra e Remy. Embora fosse
uma coisa estranha de considerar com satisfação, levando em linha de conta que talvez tivesse arriscado o seu próprio futuro.
- Devo estar completamente louca para o ter ajudado - disse Gabrielle a si própria com alguma tristeza. Mas como é que poderia ter agido de outro modo? Teria posto
em risco as suas próprias ambições um sem-número de vezes para impedir que Remy corresse perigo. Além disso, duvidava muito que a sua missão fosse bem-sucedida,
o que não aconteceria a fazer fé nas profecias de Nostradamus.
Contudo, era impossível que Gabrielle não se recordasse do pouco que a sua mãe acreditara em profecias. E se Remy conseguisse fazer com que o rei de Navarra escapasse
do palácio, com o resultado de ambos desaparecerem nas montanhas do seu país fronteiriço a que retornariam? Gabrielle sentiu-se desconcertada ao aperceber-se de
que não era a falta do rei que mais lamentaria, mas sim a ausência de Remy.
- Raios partam o homem! - murmurou. Sempre que Remy surgia no seu caminho de vida, enredava as suas emoções numa trama indiscernível, anseio, desconfiança, alegria
e desespero. Ele fazia com que se sentisse vulnerável outra vez, a última coisa a que podia dar-se ao luxo naquela corte que estava repleta de chacais, prontos para
atacar ao menor sinal de fraqueza.
Infelizmente, um deles estava à sua espera junto da porta por onde pretendia efetuar a sua própria fuga para os jardins. O Signore Verducci surgiu inesperadamente
das sombras.
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- Boas noites, Signorina Gabrielle Cheney.
Gabrielle estacou de súbito ao deparar com o espião preferido de Catarina. A luz do archote permitia um jogo de claro-escuro nas feições sinistras que se perdiam
atrás da barba grisalha hirsuta que lhe dava uma aparência mais cadavérica do que nunca.
O homem fez-lhe o arremedo de uma vénia rígida.
- Andais por fora até muito tarde, minha senhora. Talvez por causa de uma nova conquista entre os cavalheiros do rei, não?
Depois de se recompor do alarme inicial, Gabrielle lançou-lhe um olhar glacial.
- Não me parece que esse seja assunto que vos diga respeito.
- Talvez não, mas receio ter de vos dizer que é algo que diz respeito à rainha.
Gabrielle tinha-se preparado para passar por Verducci, arvorando uma atitude altaneira, mas ficou como que petrificada, o coração a deixar de bater por uma fração
de segundo.
- A... a rainha?
- Si. - Era extremamente raro que o homem, sempre de expressão austera, sorrisse, mas os seus olhos brilharam com uma certa satisfação maliciosa. - É realmente muito
afortunado que ainda não tenhais regressado à vossa própria casa. Acontece que sua majestade deseja dar-vos uma palavrinha.
Remy deteve-se diante da correnteza de janelas na alcova do rei de Navarra, tão tenso como qualquer soldado se sentiria na parada, as mãos entrelaçadas atrás das
costas. Nunca se sentira à vontade na grandiosidade do Louvre e ainda menos nos aposentos do seu rei. Remy passara tanto tempo a arquitetar planos e a trabalhar
com vista a voltar para junto do seu rei, que nunca planeara com exatidão a maneira como conseguiria persuadi-lo a pôr-se em fuga de Paris. Gabrielle proporcionara-lhe
aquela oportunidade preciosa e dava consigo inexplicavelmente emudecido.
Até mesmo a meio de explicar ao rei de Navarra como tinha conseguido sobreviver ao massacre, Remy como que tropeçou no silêncio, o seu olhar, uma vez mais, atraído
para a noite iluminada pela luz do luar que descortinava além dos vidros das janelas, como se estivesse um pouco à espera de ver
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uma criatura de conto de fadas que atravessasse os jardins com uma postura régia. Perguntava-se se Gabrielle já teria saído do palácio, esperando que já o tivesse
feito e estivesse em segurança na sua casa na cidade.
Remy desejava ter podido acompanhá-la. Sabia que era um desejo disparatado. Gabrielle não teria desejado ser acompanhada, nem tão-pouco precisava que ele o fizesse.
Obviamente, era muito capaz de olhar por si própria, mas recordar-se de como ela lhe parecera pequena e frágil, quando desapareceu pelo corredor escuro do Louvre,
era mais forte do que ele.
- Capitão Remy? - A voz do rei de Navarra despertou-o dos seus pensamentos.
Quando Remy desviou o olhar das janelas, viu que uma das sobrancelhas espessas do monarca estava arqueada numa expressão inquisitiva.
- Estáveis a contar-me como conseguistes, com esse extraordinário jovem que vos salvou a vida, chegar às costas da Irlanda - disse o rei para o incentivar a prosseguir.
- E depois, o que é que aconteceu?
- Nada digno de nota, majestade. Verdade seja dita, não há muito mais a dizer.
- Sempre haveis sido um homem de poucas palavras, capitão - retrucou o rei de Navarra com um trejeito de sarcasmo.
Um homem que o soberano sempre considerara bastante enfadonho, do que Remy estava ciente. Henrique tinha preferido a companhia de jovens imprudentes e com sangue
na guelra como ele próprio era, que gostassem de pândega e de caçar, quer fossem veados, javalis ou mulheres. Remy reconhecia que sempre tivera tendência para recordar
discretamente ao rei de Navarra que tinha assuntos mais prementes que careciam da sua atenção.
À fraca luz das velas, Remy examinava o monarca, na esperança de vislumbrar nele qualquer indício de uma nova maturidade. Ao fim e ao cabo, quantos anos teria Henrique
de Navarra agora? Vinte e três anos e já passara por situações extremamente adversas mais do que suficientes para amadurecerem qualquer homem, o assassínio da mãe,
o massacre dos seus súbditos, o perigo constante que a sua vida corria.
Não obstante, e à primeira vista, o rei de Navarra aparentava ser como sempre fora, um jovem magro e de constituição atlética, a barba preta e cerrada numa fisionomia
em que o nariz predominava e lábios carnudos e sensuais. Continuava a apresentar a mesma atitude despreocupada que sempre havia sido o desespero e preocupação da
mãe, se bem que não lhe fosse difícil adotar o porte régio quando queria. Quando ordenou aos seus pajens e a
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Lobo que se retirassem da sua antecâmara, até mesmo o impudente Martin não escondera o temor respeitoso, obedecendo sem qualquer hesitação.
Depois de os servos se terem retirado, o rei de Navarra aproximou-se de uma mesa para encher um copo de vinho para si e outro para Remy. Atravessou a antecâmara
e entregou o copo a Remy com um sorriso cordial. Qualquer pouco à-vontade que existisse entre eles, percebeu Remy, devia-se inteiramente a si próprio e não ao seu
soberano.
Talvez isso se devesse ao sentimento de culpa que continuava a assolá-lo por ter sobrevivido ao massacre, quando tantos homens bons e corajosos tinham perecido.
Quem sabe se não seria a sua consciência por não ter sido capaz de proteger o seu rei, tendo-o levado são e salvo para fora de Paris nessa noite de má memória. Mas
quando aceitou o copo de vinho das mãos do rei de Navarra tinha noção da existência de uma causa mais básica para a tensão que sentia. Entre Remy e o seu monarca
interpunha-se a sombra de uma mulher.
Remy perguntava-se, se não tivesse aparecido naquela noite, se Gabrielle não se encontraria entre os lençóis do amplo leito que era a peça central do mobiliário
daquela alcova. A imagem de ela toda nua nos braços do soberano mortificava-lhe a alma e Remy teve de fazer um grande esforço para a banir do seu pensamento.
Situação que era pior ainda por o rei de Navarra não fazer a mínima ideia do conflito que não dava descanso a Remy. Não havia o mínimo constrangimento na fisionomia
franca do rei de Navarra ao sorrir a Remy.
- Capitão, não tendes noção do quanto os meus olhos se alegram ao ver o meu valoroso Flagelo, que regressa do mundo dos mortos. São tantos os amigos leais e de confiança
que perdi nessa trágica noite. O meu poeta Rochefoucauld, o meu bom e velho almirante Coligny...
O sorriso esmoreceu-lhe nos lábios quando bebeu um gole de vinho. Mas levantou a cabeça quase de imediato, o seu rosto iluminado por uma repentina expressão de esperança.
- Mas vós haveis sobrevivido; é possível que outros também tenham conseguido? E quanto àqueles oficiais que vos acompanhavam com tanta frequência? O Tavers e...
e... - O rei estalou os dedos a tentar reavivar a memória. - Como é que ele se chamava? Aquele sujeito muito alto e robusto que era muito espirituoso e sempre com
uma gargalhada na boca?
- O Devereaux - adiantou Remy em voz baixa. Depois de uns momentos de dor, acrescentou: - Não, o Dev... o capitão morreu a tentar proteger a família.
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- A jovem mulher do capitão e o garoto a que ele deu o vosso nome. Eles também foram chacinados?
Remy acenou que sim, não confiando em si para poder falar sem trair a emoção que sentia.
A boca do rei de Navarra cerrou-se numa expressão de dureza. Subitamente, mostrou lassitude e pareceu ter envelhecido para lá dos seus vinte e três anos. Ergueu
o copo na direção de Remy e disse:
- Bebamos então a... à memória de amigos ausentes.
- Aos amigos ausentes - repetiu Remy. Foi a bebida mais amarga que alguma vez engoliu. Bebeu pouco mais de um gole antes de pousar o copo.
O rei de Navarra quase esvaziou o seu copo. Durante um prolongado momento, ficou a olhar pensativamente para as borras deixadas pelo vinho. Mas ele nunca fora homem
para se entregar à melancolia durante muito tempo. Recompôs-se e deu uma calorosa palmada no ombro de Remy.
- Por muito satisfeito que me sinta por vos ver de novo, capitão, não é aconselhável que nos detenhamos a rememorar o passado. Portanto, dizei-me como é que vos
posso ser útil.
- Ser-me útil? - perguntou Remy pestanejando.
O rei de Navarra atravessou o aposento para voltar a encher o copo de vinho, o seu sorriso a adquirir um trejeito de cinismo.
- com certeza. Quando alguém solicita uma audiência particular com um rei, habitualmente é porque essa pessoa quer pedir-lhe alguma coisa. Sois o soldado mais corajoso
que o nosso país alguma vez teve, por isso estou em dívida para convosco. Será com todo o prazer que vos recompensarei com o que estiver ao meu alcance conceder-vos.
- Receio ter de dizer que estais há demasiado tempo em Paris, majestade - retorquiu Remy, assumindo uma postura orgulhosa. - Estais a confundir-me com um desses
cortesãos aduladores que lambem as botas de vossa majestade por favores.
O rei de Navarra acenou com a mão num gesto apaziguador.
- Ora, não há razão para encrespações, capitão. Trata-se meramente da maneira como o mundo é, mais nada.
- Mas não é a minha maneira de ser, majestade - ripostou Remy.
- Não procuro recompensas. Nunca o fiz. Tudo o que quero é estar ao vosso serviço e ao serviço do meu país.
Continuando com o copo de vinho na mão, o monarca deixou-se cair em cima da cama, encostando as costas a várias almofadas de penas. Imprimiu aos lábios uma expressão
trocista dirigida a si próprio.
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- Talvez não tenhais reparado, capitão, mas eu já não tenho um exército às minhas ordens em que poderíeis prestar serviço militar. Se quereis um posto militar, andaríeis
melhor regressando a Navarra para falardes com o duque de Montmorency. Ele assumiu a chefia da causa dos huguenotes.
Remy não conseguiu reprimir um ligeiro franzir do sobrolho com que olhou para o jovem refastelado no leito.
- Tenho a certeza de que o duque de Montmorency é um homem muito competente, majestade. Mas é a vossa presença que tanto os huguenotes como o vosso reino requerem.
Tendes de regressar à nossa pátria, majestade.
O rei de Navarra baixou os olhos enquanto bebia o seu vinho, mostrando um semblante mais reservado.
- Mencionar sequer o meu regresso a Navarra é perigoso, capitão. A minha sogra deseja com a maior firmeza que eu permaneça na corte francesa.
Remy não foi capaz de abafar a sua indignação.
- Desde quando é que o rei de Navarra cede aos desejos de uma infernal bruxa italiana?
- Desde que essa bruxa exibiu o seu poder de uma maneira que nenhum de nós poderá esquecer - ripostou o monarca, fortificando-se com outro gole de vinho. - Além
disso, o meu cativeiro não é tão mau como se
possa pensar.
- Não é tão mau! - exclamou Remy.
- Tenho de dizer que não faltam diversões na corte. Passar a noite nos braços de uma mulher lindíssima até pode fazer com que o facto de se ter de ir à missa pela
manhã seja mais suportável - disse o soberano, passando um dedo pelo bordo do copo de vinho e evitando o olhar de Remy. - Suponho que já ouvistes que agora sou católico.
- Sim, ouvi - replicou Remy com uma expressão sombria, recordando-se de como se tinha sentido indignado quando lhe chegou aos ouvidos a notícia de que o seu rei
fora obrigado pela bruxa da Médicis a abandonar a sua fé religiosa, pois, se recusasse, iria juntar-se aos seus súbditos na sepultura.
A expressão que se espelhou no rosto do rei de Navarra era em parte vergonha e em parte uma atitude de desafio pontuada por irritação.
- Muito francamente, nunca consegui ver qual a diferença que existe entre uma pessoa que opta por venerar Deus desfiando as contas de um rosário e outra que prefere
ler o livro oficial de orações da Igreja Anglicana. com
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certeza, que não será uma diferença suficiente para se desejar matar ou morrer em nome disso.
Em certa medida, Remy não podia evitar estar de acordo com o que ele dizia. Mas, por outro lado, também não podia esquecer todos aqueles homens e mulheres para quem
fazia diferença, os quais não haviam hesitado em sacrificar as suas vidas pela causa dos huguenotes que morreram pelo direito de venerar Deus como preferiam. O massacre
que tivera lugar em Paris tinha sido extremamente cruel para as gentes de Navarra. E agora ver o seu rei a abandonar a sua causa fora o derradeiro golpe para muitos.
Remy esforçou-se por manter uma fisionomia imperscrutável, mas parte do que estava a sentir devia ter transparecido do seu semblante porque o rei de Navarra disse:
- Apesar de saberdes que o vosso rei é um cobarde, um vira-casaca desprezível, surpreende-me que continueis a desejar servir-me.
- Não vos foi dada outra alternativa, majestade.
- Vós não o teríeis feito. Jamais teríeis abdicado da vossa honra e princípios para salvar a cabeça.
Numa manifestação de mal-estar, Remy agitou-se.
- O que eu teria feito não faz a mínima diferença. Não sou nenhum rei. O rei de Navarra passou as pernas pela beira da cama e sentou-se, olhando com uma expressão
de desalento para dentro do copo.
- Há alguns que também pensam que como rei não sou grande coisa. E existem muitos, até mesmo em Navarra, que agora só sentem desprezo por mim. Comparam-me com o
meu pai e dizem que tenho tão pouco caráter como ele, em vez de ser forte e sensato como a minha mãe era.
- Nesse caso, só tendes de lhes provar que estão enganados, majestade - urgiu Remy. - Precisais de fugir daqui e ocupar o lugar que é vosso por direito como chefe
da causa huguenote.
- Mas... e se essas pessoas tiverem razão? Quando optei por me converter, não pensei que tivesse grandes obrigações para com os meus súbditos no sentido de me manter
vivo. Só pensava em que era jovem e que não estava preparado para morrer. Considerei que a vida era inacreditavelmente maravilhosa.
Parte da taciturnidade abandonou o rosto do monarca, acrescentando:
- Continuo a pensar assim e nunca mais do que neste momento. Bem vedes, capitão... apaixonei-me.
186 ,
Remy ouviu do rei as palavras que mais temia. Não era necessário perguntar-lhe por quem é que se apaixonara. Tentou não dar grande importância à confissão do rei
de Navarra, obrigando-se a exibir um sorriso forçado.
- Pela cruz de Cristo, majestade, mal sou capaz de me lembrar de algum período em que não tenhais estado apaixonado por alguém.
- O que é bem verdade - admitiu o soberano com uma risada de alguma tristeza, pondo-se de pé. - Ao contrário de vós, meu destemido Flagelo, que nunca vos haveis
apaixonado por ninguém. Posso jurar que nunca conheci nenhum homem tão imune aos encantos do sexo fraco.
Imune a todas, menos a uma, refletiu Remy desgostoso.
- Ai de mim, receio ter de reconhecer que sou demasiado fraco em questões do coração - admitiu o rei de Navarra com um suspiro de troça.
- Desde os meus catorze anos que tenho uma aguda perceção de que as mulheres são as criaturas mais magnificentes que Deus pôs à face da Terra. E Mademoiselle Gabrielle
Cheney é, sem sombra de dúvida, a mais encantadora de todas.
Remy teve muita dificuldade em manter um semblante impassível depois de os lábios do monarca terem articulado o nome de Gabrielle. O rei de Navarra passou por ele
e dirigiu-se para as janelas, pondo-se a olhar para a noite, uma expressão sonhadora de sensualidade a transparecer-lhe das feições.
- Ela tem um cabelo tão dourado que seria capaz de envergonhar o Sol; uns olhos que me lembram aqueles riachos de um azul cristalino nas montanhas da nossa pátria.
Os lábios vermelhos e macios prometem a um homem todos os prazeres inimagináveis. A pele é tão branca como o leite e mais macia do que a nata, enquanto os seios
são firmes e generosos e, positivamente, pedem que sejam acariciados.
Remy susteve a respiração. Se tivesse sido outro homem a tecer elogios a Gabrielle daquela maneira tão descritiva, ele ter-lhe-ia gritado que fechasse a boca se
não quisesse que ele próprio lha fechasse. Mas não podia ordenar ao seu rei que se calasse. Tudo o que podia fazer era cerrar os punhos com tanta força que sentiu
dores nos músculos, continuando a ouvir em silêncio.
A sua falta de resposta deve ter irritado o rei de Navarra. Interrompeu a sua fiada de encantos que Gabrielle possuía para fitar Remy com impaciência.
- Já vistes a senhora em questão com os vossos próprios olhos, capitão. com certeza que até mesmo vós deveis ter reparado na grande beleza dela.
Remy rangeu os dentes. Sim, já tinha reparado e que Deus o ajudasse.
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- De facto, ela é bastante encantadora, reconheço isso - concordou a contragosto. - Mas estou certo de que existirão muitas mulheres igualmente belas na corte. Tal
como no reino de Navarra.
- Sim, de facto, assim é, e durante muito tempo acreditei que a Gabrielle não se distinguia das demais. Por vezes, mostra uma sobranceria reservada que coloca os
homens à distância. Mas ultimamente ela tem-me permitido ver para além dessa atitude e vejo constantemente vislumbres de uma mulher afetuosa e vulnerável. Olho para
os olhos dela e vejo vestígios de um qualquer desgosto secreto que me assombra até muito depois de ela me ter deixado.
O rei de Navarra interrompeu-se com um sorriso.
- Mas é evidente que não faríeis a mínima ideia sobre o que estou a falar, capitão.
Era precisamente aí que residia o problema. Remy sabia e até bem de mais para seu sossego.
- O homem que, por fim, conseguir conquistar o coração de Gabrielle passará a possuir um verdadeiro tesouro - murmurou o rei de Navarra.
- Mas a senhora pode ser diabolicamente esquiva. No entanto, por debaixo daquele exterior frio que ela aparenta arde um fogo interior, uma paixão que um homem anseia
por experimentar. O que eu já teria feito se não fôsseis vós, capitão.
O monarca olhou de esguelha para Remy com uma expressão que tinha tanto de faceira quanto de frustração.
- O vosso inesperado regresso do mundo dos mortos foi um pouco inconveniente. Pensei que, finalmente, tinha conseguido persuadi-la a partilhar o meu leito esta noite.
Por conseguinte, Gabrielle ainda não se deitara com o rei de Navarra. Era algo que não devia ter tido grande importância para Remy, uma vez que não se podia dizer
que ela não se tivesse entregado a outros amantes. Mas o facto de ainda não o ter feito com o rei de Navarra suscitou em Remy um sentimento selvático de exultação
que teve grande dificuldade em ocultar. Baixou a cabeça.
Interpretando erroneamente aquela atitude, o rei de Navarra aproximou-se dele e deu um soco amigável no braço de Remy com o punho fechado.
- Não há motivo para ficardes tão desanimado, homem. Podeis contar com todo o meu perdão por terdes perturbado os meus amours - disse o monarca na brincadeira. -
Teremos muitas outras noites.
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Sim, de facto teriam. O sentimento de exultação de Remy desvaneceu-se. Cerrou os maxilares com tanta força que ficou atónito por o rei de Navarra não ter ouvido
os dentes a ranger.
- Por muito que Mademoiselle Gabrielle Cheney vos possa fascinar, não podeis permanecer nesta corte apenas para conquistardes o afeto de uma mulher - argumentou
Remy. - Não enquanto a vossa pátria grita pela vossa presença. Deveis pôr-vos em fuga à primeira oportunidade e regressar a Navarra. Tanto a vossa honra como as
vossas obrigações assim o exigem.
- E se a principal obrigação de um homem for para com a mulher que ele adora? - perguntou o rei de Navarra com um trejeito de obstinação nos lábios. - Os reinos
caem, capitão. As guerras são esquecidas, as causas nobres perdem-se na poeira do tempo. E se, feitas as contas, tudo o que realmente interessa na vida de uma pessoa
for a maneira como se ama?
Remy olhou para o seu rei com inquietação. Já o tinha visto nestes estados de espírito amorosos, mas nunca tão profundamente apaixonado. Sem dúvida que Gabrielle
tinha o monarca rendido aos seus pés. Não admirava, pois, que não tivesse hesitado em proporcionar o encontro de Remy com ele. Sentiu-se extremamente encolerizado
contra Gabrielle por ter enfeitiçado o seu rei e contra este por se ter deixado seduzir a tal ponto. E, acima de tudo, contra si próprio por sentir uns ciúmes que
não era capaz de banir.
- Existe uma coisa que estais a esquecer, majestade. Sois um homem casado. O que é que a vossa esposa tem a dizer quanto a isso? - Até mesmo enquanto falava, Remy
compreendia como estava a ser pedante e desesperadamente ingénuo. Não ficou surpreendido quando o soberano se riu na
sua cara.
- A Margot? Posso garantir-vos, capitão, que a minha rainha não se importa rigorosamente nada em saber qual a cama em que me deito, desde que não seja a dela.
- E com respeito à família de Mademoiselle Gabrielle Cheney?
- O quê, a respeito disso? Será que ela tem família?
- Sim! Ela é filha de um chevalier francês e de uma herdeira conhecida
por Senhora da Ilha Encantada. A irmã mais velha, Ariane, é a condessa de Renard, uma mulher de uma reputação sem mácula. Ela nunca aprovaria os vossos planos de
fazerdes de Gabrielle a vossa amante.
- Seria um pouco tarde de mais para ela dar voz às suas preocupações no tocante à virtude da irmã, não vos parece? - ripostou o rei de Navarra com secura. - Há já
algum tempo que a Gabrielle é uma cortesã.
189
- Tenho a certeza de que Ariane se sente profundamente perturbada por a irmã ter decidido vir para Paris. Decerto que desejaria muito que ela abandonasse esta maneira
de viver, que assentasse e passasse a ser uma senhora respeitável.
- Dizei à senhora que não há razão para estar preocupada - retorquiu o rei de Navarra com um encolher de ombros. - Certificar-me-ei de que o futuro de Gabrielle
está assegurado. Tenciono arranjar-lhe um marido. Talvez um nobre com um título nobiliárquico menor, alguém que lhe dê o seu nome e título. Um homem em quem eu possa
confiar que compreenderá a natureza singular do nosso acordo. Ou seja, que Gabrielle será a sua mulher apenas em nome, uma vez que partilhará a minha cama. Existem
muitos homens que estarão dispostos a um acordo desta natureza a troco da minha gratidão e da riqueza que lhes posso proporcionar.
Os olhos do rei de Navarra fitaram Remy com uma expressão dissimulada.
- Ou homens que afirmam serem-me dedicados de maneira tão incondicional que estariam prontos a prestar-me qualquer serviço que eu requeira deles.
Remy desviou a cabeça para ocultar o seu desdém. A mãe do seu rei, Joana, receara sempre que o filho pudesse ser corrompido pelo que classificava de chocante falta
de moral na corte francesa. Remy continuava a sentir tristeza pela morte da falecida rainha, uma senhora de bem. A conduta do homem indolente e sem sentimentos em
que o filho dela se transformara também o entristecia profundamente.
Mas, acima de tudo, a sua maior tristeza era por Gabrielle, imaginando o futuro frio e vazio que o rei de Navarra planeava para ela. Ser a sua amante até quando?
Até ele se fartar dela, até ela envelhecer? Nessa altura, seria deixada inteiramente à mercê de um marido tão carenciado de princípios morais que usara a mulher
como moeda de troca dos favores de um rei, o homem sem honra, sem cará ter... e que não a amaria.
Remy viu-se forçado a refrear a sua indignação, recordando a si próprio que aquele era o futuro que Gabrielle desejava. Não se encontrava ali esta noite para tentar
salvá-la desse futuro, mas sim para salvar o seu rei. Forçando-se a bani-la dos seus pensamentos, Remy começou a andar de um lado para o outro na alcova, tentando
distrair a atenção do rei de Navarra, levando-o a não pensar nela e a concentrar-se nas possibilidades de fuga.
Embora o monarca tivesse unido as pontas dos dedos em forma de pirâmide debaixo do queixo e olhasse para Remy com uma expressão pensativa,
190
este não tinha a certeza de que ele estivesse sequer a prestar atenção ao que lhe dizia.
- Escapar de Paris talvez seja impossível, mas a corte desloca-se com frequência, não é verdade? Durante uma dessas deslocações, decerto que surgirá algum momento
oportuno - argumentou Remy. - Garanto-vos que me certificarei de que não existam quaisquer riscos para vós.
Ao ver que o rei de Navarra não lhe dava réplica, Remy perguntou-lhe num tom que exigia resposta:
- Quereis regressar à vossa pátria, não é verdade, majestade?
- Claro que sim. Existem ocasiões em que olho para estas ruas apinhadas de gente e anseio pelo ar puro das minhas montanhas. Anseio por não ter de ocultar todos
os meus pensamentos, todas as minhas emoções. Por ser um rei na verdadeira aceção da palavra.
O rei de Navarra encostou-se a um poste da cama, observando Remy atentamente por entre olhos semicerrados.
- Daria muita coisa para voltar a ver a minha pátria, para poder escapar ao olhar vigilante da Rainha das Trevas. vou permitir que elaboreis os planos para a minha
fuga, desde que trateis de me conseguir uma coisa.
- Que coisa?
- Tendes de vos certificar de que a Gabrielle venha connosco.
Remy conteve uma imprecação mordaz. O rei de Navarra sempre se mostrara firmemente determinado quando se tratava de conquistar uma mulher. Só muito raramente é que
era possível dissuadi-lo.
- E como é que eu, por pressuposto, poderei conseguir isso, majestade? - perguntou-lhe Remy exasperado. - Conheço pouco Mademoiselle Gabrielle Cheney, mas, tanto
quanto me é dado compreender, ela não deseja sair de Paris. Portanto, o que é que quereis que eu faça? Que a rapte?
- Não, meu bom Flagelo. - Os lábios do rei de Navarra esboçaram um sorriso demorado. -Quero que trateis de a desposar.
A antecâmara da Rainha das Trevas era magnificente, decorada com ricas tapeçarias que adornavam as paredes. A lareira era esculpida com cenas de Diana a caçar, a
brincar com faunos, veados e sátiros, a prateleira trabalhada com o elaborado monograma da letra H entrelaçada com o C.
Gabrielle sentia-se como uma infeliz mosca que tivesse ido parar à encantadora teia de fios de seda de uma aranha, se bem que a maneira como a rainha a recebeu não
pudesse ter sido mais cordial. Mandou que as suas damas de honor se retirassem e, dispensando a vénia de Gabrielle, indicou-lhe com um gesto que se sentasse.
- Nada de cerimónias, minha filha - murmurou. Já preparada para se deitar, vestida com uma camisa de dormir escura e uma touca branca a emoldurar-lhe o cabelo grisalho,
poderia passar muito bem pela tia solteirona de alguém. Pelo menos, se essa tia fosse uma bruxa com olhos escuros e vigilantes.
Gabrielle supunha que em outros países ter uma conversa em particular com a rainha seria considerado uma honra. Todavia, a maior parte dos franceses não via uma
audiência com Catarina de Médicis a essa luz. Dizia-se que até os seus próprios filhos tremiam com medo dela quando lhes ordenava que se apresentassem perante si.
Gabrielle era uma das poucas pessoas que conseguiam estar com aprumo na presença da Rainha das Trevas quando esta as chamava... até esta noite. Acalmou-se dizendo
a si própria que, se Catarina a tinha chamado por se ter inteirado da presença de Nicolas Remy e do encontro secreto dele com o rei de Navarra, certamente que estaria
furiosa. Nesse caso, Gabrielle e Remy já teriam sido presos, não seria verdade?
192
Dado este raciocínio, por que razão é que teria sido chamada à presença da rainha para um tête-à-tête à meia-noite? Que novo jogo é que este seria? Gabrielle sentiu
um aperto no estômago quando Catarina se aproximou de si com uma expressão tão suave como o vinho que lhe oferecia. O vinho tinto de uma tonalidade escura espumava
no copo lapidado de fino cristal veneziano.
- Aqui tendes, minha querida. Parece-me que estais a precisar disto. Nunca se devia aceitar o que quer que fosse de comer e. beber das mãos
da Rainha das Trevas. O que era quase uma lei não escrita entre as outras Filhas da Terra, mas de que Gabrielle troçava. Se Catarina de Médicis tivesse envenenado
toda a gente de que a acusavam, nesta altura já a França teria perdido metade da sua população. Não obstante, não pôde impedir-se de olhar para o vinho com alguma
desconfiança.
Os olhos escuros de Catarina mostravam o quanto se sentia divertida.
- Minha querida Gabrielle, garanto-vos que não está envenenado. Gostaríeis que eu o provasse?
- Claro que não. Se tivésseis decidido matar-me, duvido muito que o fizésseis aqui, nos vossos aposentos. - Levando o copo aos lábios, numa demonstração de bravata
imprudente, Gabrielle bebeu um gole, após o que acrescentou: - Mais a mais, seria um tudo-nada complicado desfazer-se do corpo.
- Não tão complicado como podeis pensar - retrucou Catarina secamente.
Gabrielle, que tinha acabado de beber outro gole generoso do vinho, engasgou-se.
Catarina deu-lhe algumas palmadinhas nas costas.
- Calma, minha filha. Eu só estava a brincar.
Procurando recompor-se, Gabrielle pousou o copo com um sonoro tilintar. Catarina observava-a através de olhos velados.
- Mas por que razão é que haveríeis de imaginar que eu vos faria mal? Sois filha de uma das minhas melhores e mais antigas amigas.
Irritada consigo própria por ter permitido que a rainha a perturbasse, Gabrielle ripostou:
- Vossa majestade tem uma noção bastante estranha de amizade. Fostes vós quem decidiu destruir a felicidade da minha mãe.
Marguerite de Maitland, a cortesã que tinha seduzido Louís Cheney, fora uma das criaturas de Catarina, parte daquele grupo de senhoras conhecido
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por Esquadrão Volante da Rainha das Trevas, selecionadas pela sua beleza, espírito e talentos na alcova. Eram muito poucos os homens que possuíam a força de vontade
suficiente para resistir a estas sereias, até mesmo quando sabiam quem é que as enviara. Era do conhecimento geral que Catarina se servia destas jovens mulheres
para espiarem às suas ordens, o que lhe permitia exercer domínio sobre os seus inimigos do sexo masculino. Mas, no caso de Evangeline Cheney, Catarina de Médicis
agira simplesmente motivada por despeito e ciúmes.
A rainha não fez qualquer tentativa de negar a acusação de Gabrielle, afivelando uma expressão de pesar que em si era de escárnio.
- Tenho de reconhecer que incumbi a Marguerite, hum... de entreter o vosso pai. Mas ainda que não tivesse feito isso, mais cedo ou mais tarde ele acabaria por se
afastar do leito da vossa mãe. Todos os homens acabam por ser infiéis. A vossa mãe devia ter adotado uma atitude mais filosófica com respeito ao assunto, sem permitir
que esse pecadilho lhe dilacerasse o coração.
"Mas tudo isso pertence ao passado e há muito que está esquecido concluiu a rainha, que com um acenar da mão fazia tábua rasa da devastação que causara no seio da
família Cheney. - Decerto que haveis feito isso mesmo, porque, a não ser assim, não teríeis aceitado a herança de Marguerite. Vós e eu somos muito parecidas, Gabrielle.
Somos mulheres práticas que nunca permitimos que qualquer coisa tão disparatada como os sentimentos interfiram nos nossos interesses pessoais.
- Sim - concordou Gabrielle, mas com amargura.
Existiam ocasiões em que teria dado a sua alma para ser mais honrada e sem mácula. Apressou-se a desviar o rosto para que Catarina não lhe lesse nos olhos o que
estava a pensar. Mostrar algum sinal de fraqueza ou de sensibilidade diante da rainha era o mesmo que apresentar-lhe a garganta nua. Ou, pior ainda, deixar que ela
perscrutasse os olhos de quem se encontrasse diante de si. Se Gabrielle não tivesse cuidado, a Rainha das Trevas entraria na sua mente, descobrindo a verdade sobre
Remy e todos os outros segredos que quisesse esconder.
Fazendo todos os possíveis para readquirir a sua habitual compostura, Gabrielle dirigiu-se para a cadeira que Catarina lhe indicara, sentando-se graciosamente.
- Embora muito lisonjeada por este encontro em particular, majestade, tenho de confessar que sinto curiosidade em saber o motivo. Em especial, por já ser bastante
tarde.
194
- Não tenho a intenção de vos reter por muito tempo, minha filha disse Catarina, sentando-se defronte de Gabrielle à pequena mesa entre as duas, onde se via uma
única vela afunilada. A rainha empurrou o castiçal de prata para mais perto dela de modo a que o clarão da chama revelasse o semblante de Gabrielle, deixando Catarina
mais na sombra. Gabrielle contraiu-se ao ver aquela manobra, mas não traiu a tensão que sentia, nem sequer com um pestanejar.
"Só queria uns momentos a conversar convosco porque mal vos vi durante toda a noite - replicou Catarina. - Fiquei com a impressão de que desaparecíeis constantemente.
- Havia muita gente no salão de baile, majestade. Era fácil que uma pessoa passasse despercebida entre tantas pessoas.
- No caso de uma senhora menos bela, talvez, mas nunca vós, minha querida. A vossa presença ou a vossa ausência são sempre notadas. Nem sequer tive oportunidade
de vos cumprimentar, para vos dizer que estáveis encantadora. Exatamente, de que é que estáveis mascarada?
- De rainha das fadas.
- Ah... portanto, dizei-me, Gabrielle. Ireis provar que sois uma fada má?
- Não, estou em crer que esse é um papel muito mais apropriado a vossa majestade.
Catarina soltou uma risada enrouquecida e deu um beliscão na mão de Gabrielle. O gesto, aparentemente jovial, foi com força suficiente para Gabrielle abafar um arquejo.
O sorriso de Catarina alargou-se.
- Criatura atrevida, pergunto a mim mesma por que razão é que tolero a vossa insolência. Só pode ser por gostar bastante de vós.
Gabrielle massajou a mão magoada.
- A sério? Sempre pensei que me toleráveis por receardes os poderes da minha irmã.
- Não sejais ridícula! - ripostou Catarina; o sorriso já lhe tinha desaparecido dos lábios. - Admito que a Ariane e eu tivemos as nossas diferenças no passado, ao
ponto de nos ameaçarmos mutuamente, contudo, conseguimos chegar a um entendimento. Só sinto respeito e admiração por ela. Peço-vos que me digais como é. que a querida
Senhora da Ilha Encantada está.
- A boca de Catarina ficou com um trejeito de crueldade quando acrescentou: - Mas não saberíeis dizer-me, pois não. Porque a Ariane, por assim dizer, lavou as mãos
do que vos possa acontecer.
195
Gabrielle esforçou-se por ocultar como as palavras da rainha a tinham magoado. Aquele era o perigo de trocar alfinetadas sarcásticas com Catarina. Ela sabia bem
como ferir uma pessoa.
- Sim, a Ariane e eu não nos falamos - admitiu Gabrielle em voz baixa. - Tenho a certeza de que os vossos espiões vos têm mantido bem informada acerca de nós duas.
- De uma maneira geral, é isso que acontece. Infelizmente, os habitantes da ilha Encantada e da propriedade do vosso estimado cunhado são extremamente leais à senhora,
além de serem aflitivamente desconfiados de estranhos. Na verdade, é uma situação deveras irritante. - Catarina começou a mexer no pé do castiçal de prata enquanto
acrescentava com suavidade:
- Os meus espiões aqui, em Paris, servem-me muito melhor. - As implicações subjacentes àquele comentário fizeram com que Gabrielle ficasse petrificada.
Catarina fitou-a com uma expressão dissimulada antes de prosseguir.
- Por exemplo, temos o Signore Verducci. Uma criatura útil, mas que, por vezes, é um pouco idiota. Relatou-me histórias tão mirabolantes a respeito das vossas atividades
que foi por pouco que não lhe puxei as orelhas. Mas se, por acaso, ele falou com verdade, tenho de vos congratular. Não fazia a mínima ideia de que havíeis aperfeiçoado
os vossos poderes a esse ponto.
Apesar de o seu coração ter começado a bater mais depressa a cada palavra que Catarina proferia, Gabrielle replicou:
- Não faço a mínima ideia do que estais a falar, majestade.
- E eu convencida de que era muito competente nas artes negras murmurou Catarina. - Mas até mesmo eu nunca consegui conjurar um homem do mundo dos mortos.
Gabrielle sentiu que o sangue se lhe esvaía das faces. O olhar arguto da Rainha das Trevas fixou-se em Gabrielle como o de um espadachim que se preparasse para a
estocada mortal.
- Pergunto-me... parece-vos que o Flagelo gostou da sua terna reunião com o seu rei?
"Remj! A Rainha das Trevas tinha sabido da presença de Remy..."
Gabrielle foi incapaz de controlar o pânico que se apoderara de si. Pôs-se
de pé repentinamente e bateu com as palmas das mãos no tampo da mesa
e foi por um triz que não tombou o castiçal.
- Meu Deus! O que diabo é que lhe haveis feito?
Catarina encostou-se toda para trás na cadeira, claramente atónita com a intensidade da reação que suscitara em Gabrielle.
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- Que coisa... nada, ainda.
- Não acredito em vós. Ordenastes que o prendessem ou... ou... ele está... - A garganta de Gabrielle fechou-se, impossibilitando-a de dar voz ao seu maior temor.
- Acalmai-vos, minha filha. O capitão está são e salvo e, tanto quanto sei, ainda está a desfrutar da hospitalidade do rei de Navarra.
Gabrielle perscrutou o rosto de Catarina. Ao contrário do que era costume, a Rainha das Trevas parecia estar a dizer a verdade. Deixou-se cair na cadeira, alquebrada
de alívio, embora mortificada ao compreender como se tinha atraiçoado a si própria. O regresso de Remy privara-a da vantagem que sempre tivera nos seus duelos de
palavras com Catarina, mostrando a indiferença de uma mulher que não tinha tido nada a perder além da sua própria cabeça.
Catarina deu um estalido com a língua.
- Quem diria! E eu a pensar que teria pela frente outra noite enfadonha, apenas outro dos absurdos bailes de máscaras do meu filho. Mas veio a revelar-se ser muito
interessante. Não só tenho o Flagelo de volta do mundo dos mortos, como também tenho Gabrielle Cheney, a donzela de gelo, a comportar-se de um modo nada condizente
com a sua maneira de ser. com um excesso de emoção tão acentuado. Até estais a tremer.
Gabrielle enclavinhou as mãos no colo. "Não permitas que a Rainha das Trevas pense que a tua reação tem alguma coisa a ver com Remy. Não lhe dês es se poder sobre
ti." Humedeceu os lábios.
- É... é claro que estou a tremer. Quem é que não ficaria quando se é apanhado a fazer alguma coisa que se sabe de antemão desagradar a vossa alteza?
- Sim - disse Catarina, fitando-a por entre olhos semicerrados.
- O que me leva a perguntar por que razão é que procedestes dessa maneira. Habitualmente, tendes muito mais cuidado a zelar pelos vossos interesses.
Gabrielle deixou que os ombros lhe descaíssem.
- Partilho da mesma apreensão de poder sentir-me enfadada como vossa majestade. Não há nada como uma pequena intriga para animar as coisas. Quando o pobre capitão
Remy me abordou, implorando-me que lhe facultasse um encontro com o seu rei, não vi qualquer mal nisso.
- Não vistes qualquer mal? - As sobrancelhas de Catarina arquearam-se numa expressão sobranceira. - Considerais que fazer entrar furtivamente no meu palácio um dos
meus piores inimigos não tem mal nenhum?
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- Nicolas Remy já não constitui perigo para vossa majestade. Não tem um exército que o apoie. Também não tem conhecidos poderosos. Só pretendia ver o seu rei uma
última vez, podeis estar certa de que o rei de Navarra está... está bem.
- Ou sois uma idiota, Gabrielle, ou tomais-me por tola - retorquiu a rainha acerbamente. - O capitão quer o que muitos desses huguenotes desejam, ver o seu rei fora
das minhas garras de papista. O Remy não é, simplesmente, um homem qualquer. O homem é uma maldita lenda, capaz de persuadir pessoas que habitualmente são prudentes
e não correm riscos disparatados. Só é preciso ver o efeito que parece ter tido em vós.
Gabrielle enrubesceu, mas tentou ocultar esse rubor fingindo um bocejo.
- Oh, posso dizer-vos que o capitão é um homem bastante bem-parecido, mas sempre o achei um pouco monótono. O que acontece com os homens que são tão honestos e incorruptíveis.
- E, não obstante, vós e as vossas irmãs em tempos arriscaram tudo para o proteger. E aqui estais, continuando a fazer o mesmo. Pergunto-me porque será?
- Não faço a mínima ideia - respondeu Gabrielle numa voz arrastada.
- Pela força do hábito?
- Um hábito muito pouco sensato, minha querida Gabrielle.
- Talvez seja. Mas, em certa medida, eu e as minhas irmãs estamos em dívida para com o capitão Remy. Ele ajudou a proteger-nos na noite em que enviastes os caçadores
de bruxas com a ordem de incendiarem a nossa casa.
- Caçadores de bruxas que mandei com o único objetivo de encontrarem o capitão Remy e recuperarem as minhas luvas. Se não lhe tivésseis dado abrigo... Mas esqueçamos
isso. - Catarina ergueu uma mão num gesto majestoso. - Não vale a pena estarmos a remexer outra vez nessa antiga querela. Tudo não passou de um mero mal-entendido.
Um mal-entendido? Se era assim que Catarina se comportava quando havia um mal-entendido com uma pessoa, como é que agiria quando considerasse alguém como um verdadeiro
inimigo? Gabrielle sabia bem de mais qual era a resposta a essa pergunta. A Rainha das Trevas oferecia um par de luvas envenenadas à pessoa em questão. Enviava exércitos
tenebrosos para chacinar quem lhe fizesse frente, fazendo o mesmo aos seus concidadãos nas ruas de Paris. Gabrielle esfregou a nuca, subitamente cansada daquele
jogo de palavras com Catarina.
- Chega desta esgrima de palavras, majestade - disse sem estar com meias-palavras. - E evidente que podíeis ter impedido Remy de chegar à
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fala com o rei de Navarra com toda a facilidade. Portanto, porque não o fizestes? Por que razão é que não haveis ordenado que nós os dois fôssemos presos?
- Eu própria tenho andado a perguntar a mesma coisa a mim mesma - replicou Catarina de sobrolho franzido. - Talvez por de momento existirem umas tréguas difíceis
entre os meus católicos e os súbditos protestantes, além disso, estou mais do que farta de todos estes tumultos sociais. Esses devotos huguenotes choraram a morte
do seu grande herói há vários anos. Se eu agora fizesse um mártir do capitão Remy pela segunda vez, arriscaria o eclodir das hostilidades de novo.
"A guerra pode ser uma coisa útil em determinadas ocasiões. Ajuda a manter os meus grandes nobres ocupados quando, a não ser isso, poderiam ter atitudes desagradáveis
na corte. Mas também é muito dispendiosa. Prefiro guardar o meu dinheiro para concluir o meu lindíssimo palácio novo e, muito francamente, Gabrielle, o capitão Remy
não me inspira tanta preocupação como vós suscitais em mim.
- Eu!?
- De facto. Tenho vindo a observar a vossa existência na corte com
muito interesse. Não sois, nem por sombras, como as outras cortesãs sem juízo que se contentam com algumas jóias, vestidos elegantes, uma bela casa e uns momentos
divertidos. Não, vós ansiais por muito mais do que isso. Quereis poder, o género de poder que se obtém quando se conquista o coração de um rei.
Quando Gabrielle abriu a boca para protestar, Catarina impediu-a.
- Não vale a pena que vos incomodeis a negar. Sabeis bem como ocultar os vossos pensamentos, miladj. Mas até mesmo a bruxa mais inexperiente seria capaz de adivinhar
as vossas ambições. Há já algum tempo que me apercebi das vossas esperanças com respeito ao meu querido genro, o rei de Navarra.
- Nesse caso, porque não me haveis enviado para longe da corte? perguntou Gabrielle encrespada.
Catarina não lhe deu resposta. Levantou-se da cadeira e aproximou-se da lareira, indicando a Gabrielle com um gesto imperioso que se lhe juntasse. Esta encaminhou-se
para ela com passos lentos e desconfiança. Catarina agarrou-a por um pulso e puxou-a para mais perto de si. A rainha apontou para o magnífico baixo-relevo cinzelado
na pedra da prateleira, as duas iniciais intrincadamente entrelaçadas.
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- Alguma vez havíeis reparado neste monograma cinzelado na minha lareira?
- Seria difícil não ter reparado. Está espalhado por todo o palácio.
- E sabeis a que é que estas iniciais correspondem?
Gabrielle soltou um suspiro de impaciência, perguntando a si mesma que novo jogo seria aquele.
- com certeza. O H corresponde ao nome do vosso falecido marido. O rei Henrique II. Enquanto o C, como é evidente, corresponde a Catarina. Uma lembrança constante
da presença de vossa majestade.
- Não da minha presença. Aquilo que pensais ser um C é, na realidade, a fase da lua crescente. O símbolo da deusa Diana, o nome da amante do meu marido.
Gabrielle ficou de olhos arregalados. O reinado do marido de Catarina havia sido bastante antes do seu tempo. Não teria mais de oito anos quando Henrique II de França
falecera prematuramente durante um acidente aquando de uma justa. Apesar disso, Gabrielle ouvira rumores do grande romance do rei com Diana de Poitiers. Um nome
que ninguém se atrevia a mencionar em voz alta na presença de Catarina.
Soltando a mão de Gabrielle, Catarina abeirou-se mais da lareira. com a ponta do dedo, descreveu o traçado da letra H com uma muito rara expressão de doçura que
transparecia da sua fisionomia.
- Eu tinha apenas catorze anos quando cheguei a França para desposar um homem que nunca tinha visto. Arrancada de minha casa, em Itália, atemorizada com a viagem
para outro país que desconhecia, aterrorizada ao pensar que o meu noivo poderia ser hediondo e repulsivo. - Catarina soltou uma risada sem alegria. - Teria sido
melhor para mim se esse tivesse sido o caso. Ao invés, o meu Henrique era jovem, vigoroso e tão cheio de vida, não muito diferente do vosso capitão Remy. Tive a
infelicidade de me apaixonar por ele à primeira vista.
- Infelicidade!? - ecoou Gabrielle.
- Sim, porque o coração dele já pertencia a outra, a Diana de Poitiers.
- A boca de Catarina contorceu-se numa expressão de azedume. - Henrique desposou-me e eu dei-lhe herdeiros. Apesar disso, ele fez dela a rainha não coroada de França.
Era a voz dela que determinava todas as nomeações reais e que se ouvia nos conselhos da coroa. Ela chegava ao ponto de mandar nos aposentos das crianças, decidindo
como é que os meus filhos deviam ser criados e educados. Era lisonjeada e respeitada por todos os membros da corte, enquanto escarneciam de mim e se esqueciam da
minha presença.
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Um raro frémito de emoção insinuou-se na voz de Catarina enquanto continuava a acariciar a inicial do nome do marido.
- Henrique limitou-se a cumprir para comigo as mais estritas obrigações e até mesmo isso com relutância. Assim que se levantava do meu leito, ia imediatamente para
o dela. Mandei furar um buraco no soalho por cima da alcova de Diana, de maneira a poder observá-los enquanto faziam amor.
Gabrielle ficou revoltada ao imaginar Catarina a espiar o marido na cama com a amante. Todavia, também se condoeu com a infelicidade da mulher mais velha, ainda
que a contragosto.
- Como é que vos foi possível suportar uma situação dessas? - retorquiu escandalizada. - No vosso lugar, eu já teria eliminado todos esses símbolos da lua crescente,
ainda que tivesse de arrasar todo o Louvre.
- Teríeis feito isso? - A mão de Catarina afastou-se da prateleira da lareira. - Isso teria sido um trabalho que exigiria outra decoração muito dispendiosa e para
quê? Quando Henrique morreu, isso deixou de ter importância. Porque ela deixou de ter qualquer relevância. E é exatamente isso que quero que compreendais. As amantes
dos reis são passageiras e rapidamente esquecidas.
"Embora tenha de admitir que a predominância de Diana se prolongou por mais tempo do que é habitual, mas duvido que venhais a desfrutar de igual êxito com o rei
de Navarra. Decerto que já haveis reparado que o meu querido genro tem um olhar bastante inconstante. - A rainha posicionou-se de frente para Gabrielle e a habitual
máscara voltou a instalar-se no seu semblante. - Não, minha querida Gabrielle. Aconselho-vos a nunca dependerdes inteiramente de um rei ou de qualquer outro homem.
Agiríeis muito mais acertadamente ao serviço de uma rainha, uma da vossa própria espécie, uma Filha da Terra.
Gabrielle susteve a respiração e qualquer resquício de compaixão por Catarina desapareceu. Os sentimentos de compaixão pela Rainha das Trevas eram mais perigosos
do que o temor que ela pudesse inspirar. Tendiam a fazer com que uma pessoa se esquecesse do quanto Catarina poderia ser matreira. Gabrielle sabia muito bem aonde
é que a rainha queria chegar. Aquela não era a primeira vez que Catarina tentava aliciá-la para as fileiras do seu Esquadrão Volante.
Afastou-se da rainha, dizendo escarnecedora:
- Servir vossa majestade? Como? Passando a fazer parte do bordel real? Dar-se-á o caso de vossa majestade se propor ser a minha proxeneta?
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- Deixai-vos de grosserias, menina - repreendeu Catarina, contraindo os lábios. - Eu teria muito mais consideração por vós do que pelas outras senhoras que se encontram
ao meu serviço. Podia oferecer-vos tudo o que um rei vos ofereceria e muito mais. Riqueza, terras, títulos... poder.
- Poder? - repetiu Gabrielle com uma gargalhada de incredulidade.
- Estais a oferecer partilhar o vosso poder comigo?
- Ai de mim, estou a ficar mais velha, minha querida. Seria de bom grado que usaria a perspicácia e energia da vossa juventude. Pensai no que nós duas em conjunto
poderíamos vir a alcançar, Gabrielle, pela glória de França e, em especial, pelas suas mulheres. Passaríeis a ser o meu braço-direito, mais acarinhada do que qualquer
das minhas filhas alguma vez seria. Ensinar-vos-ia tudo o que sei, incluindo as minhas artes mais secretas e poderosas. Tudo o que vos pediria é...
- A minha alma? - interrompeu Gabrielle com ironia.
- A vossa amizade, a vossa lealdade e dedicação incondicionais. Não deveis encarar a minha oferta de ânimo leve. Poderia vir a consolidar o vosso
futuro. Caso contrário, ver-me-ei obrigada a reavaliar o vosso pequeno papel na intriga relativa ao capitão Remy esta noite e... - Catarina interrompeu-se.
A despeito do sorriso radiante, a ameaça estava bem patente. Desta feita não pedia a Gabrielle que passasse a ser uma das suas damas de honor. Estava a apresentar-lhe
um ultimato, o mesmo que em tempos apresentara a Henrique de Navarra. "Juntai-vos a mim ou morrereis."
O desejo de Catarina em que Gabrielle passasse a ser uma das suas criaturas poderia ser o único trunfo ao seu dispor para poder salvar a vida de Remy. Mas iria ter
de jogar as suas cartas com muito cuidado. Esforçando-se por manter um tom de frieza e indiferença, perguntou:
- E quanto a Nicolas Remy, o que é que tencionais fazer acerca dele? Catarina franziu as sobrancelhas, inspecionando uma falha numa das unhas
da mão.
- Monsieur lê Scourge tem sido uma espécie de espinho do passado. Não tenho a mínima intenção de permitir que ele volte a incomodar-me da mesma maneira. Um julgamento
e enforcamento públicos seriam um grande embaraço. No entanto, até mesmo homens mais robustos como o Flagelo não estão isentos de... acidentes, doenças misteriosas
que, de um momento para o outro, ceifam as suas vidas.
Especialmente se tais acidentes fossem cuidadosamente premeditados pela Rainha das Trevas e eram muitas as maneiras como Catarina poderia
202
chegar a Remy. Um veneno deitado furtivamente na sua bebida numa taberna, um incêndio que deflagrasse no seu alojamento, um assassino que degolasse Remy num qualquer
beco escuro. A mente de Gabrielle fervilhava com todas aquelas terríveis possibilidades. Virou a cabeça para que a rainha não visse a agitação que se apoderara de
si. Começando a pensar cheia de frenesim, sugeriu:
- Tenho uma ideia muito melhor. Porque não permitis que eu me encarregue dele?
- Vós?
- Sim, eu poderia levá-lo para a minha cama, seduzi-lo. Conseguis imaginar como isso afetaria todos aqueles huguenotes austeros quando a notícia lhes chegasse aos
ouvidos? Ficariam a saber que não só havíeis sido bem-sucedida a converter o seu rei ao catolicismo, como também, agora, o seu grande herói, o Flagelo, estaria rendido
a uma das mais notórias cortesãs da corte da Rainha das Trevas. - Gabrielle ficou a olhar para Catarina, conseguindo exibir o seu sorriso mais radiante e convincente.
- Seria muito mais eficaz do que se vos limitásseis a matar o homem, deste modo destruiríeis a figura lendária que ele é.
Catarina uniu as pontas dos dedos por baixo do queixo, a testa a franzir-se de tão concentrada que estava. Gabrielle ficou com a respiração suspensa, perguntando-se
o que é que faria se a rainha rejeitasse a sua sugestão. Deixar-se cair de joelhos aos pés de Catarina, suplicando-lhe que poupasse a vida de Remy, ou agarrá-la-ia
pela garganta para a estrangular antes que ela pudesse fazer mal a Remy.
Gabrielle até sentia os dedos a fletirem-se quando começou a ver um sorriso que se esboçava nos lábios de Catarina.
- Desde sempre que admirei a maneira como a vossa mente raciocina, Gabrielle. Implacável e tortuosa, tão parecida com a minha. Mas acreditais realmente que os vossos
encantos seriam suficientes para tentarem o nosso honrado Flagelo, desviando-o do caminho da retidão?
Os encantos dela não haviam chegado para isso no passado, refletiu Gabrielle, mas, verdade fosse dita, nunca tentara realmente. Mordeu o lábio com força ao lembrar-se
do beijo de Remy, a maneira como despertara desejos em si que acreditara estarem mortos há muito, o ardor da paixão que vira nos olhos dele. Mas seduzir Remy ao
ponto de ele se esquecer da sua honra, moldando-o de modo a atingir os objetivos de Catarina, seria a derradeira traição, a corrupção de tudo o que de bom e são
existira entre os dois. Este
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pensamento encheu-a de desespero, mas, se não tivesse êxito, seria o mesmo que assinar a sentença de morte de Remy.
Para que Catarina não se apercebesse, Gabrielle reprimiu o sentimento de repulsa que se instalara no seu coração, começando a passar sedutoramente a mão pelas linhas
curvilíneas da sua figura.
- Serei eu capaz de seduzir o Flagelo ou qualquer outro homem? perguntou numa voz ronronada. - O que é que vos parece?
Catarina soltou uma risada roufenha e tirou um pequeno anel com sinete em ouro de um dedo.
- Estou em crer que vós e eu, finalmente, conseguimos chegar a um consenso, Gabrielle. Aceitai este anel como símbolo da minha lealdade. E agora jurai-me a vossa.
- Catarina estendeu a jóia cintilante a Gabrielle, que se afastou ligeiramente do anel como se fosse uma serpente. Mas, então, obrigou-se a sorrir. Avançou alguns
passos e fez uma rasgada vénia cheia de graciosidade, levando a mão da rainha aos lábios e sentindo-se estranhamente vazia por dentro. Sentia-se como se estivesse
a negociar os últimos resquícios da sua honra. Ao estabelecer aquele pacto com Catarina, atraiçoava não só Remy como também a irmã, Ariane, a qual em tempos desafiara
aguerridamente e com tanta coragem a Rainha das Trevas.
"Não sejas tão melodramática, Gabriele, ralhou a si própria. Aquilo era apenas outra parte do jogo, outra pequena intriga, sem esquecer que os pactos existiam para
serem quebrados. Além disso, que outra opção é que lhe restava.
- Juro que me dedicarei de corpo e alma ao serviço de vossa majestade - começou a dizer.
- Oh, não, minha querida - retorquiu Catarina, pegando-lhe no queixo e inclinando a cabeça de Gabrielle para trás. - Esquecei as palavras. Quero apenas que a vossa
jura de lealdade seja feita através dos olhos. - A voz da rainha era suave e acariciadora, mas os olhos escuros pareciam querer trespassar Gabrielle, cujo coração
começou a bater rapidamente quando Catarina tentou invadir a sua mente. Teve de chamar a si toda a sua força de vontade para não se afastar com brusquidão, para
conseguir manter a calma, fitá-la com firmeza e não revelar nada a Catarina, além do gelo nas suas veias, as sombras gélidas do seu coração. Mas, acima de tudo,
não pensar em Remy, a devastação que sentiria se...
Os dedos de Catarina apertaram-se no seu queixo, o olhar dela a investir fortemente contra as barreiras que Gabrielle erguera, e durante um momento
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terrível esta vacilou. Não tardou a recompor-se, batendo com força a porta de acesso à sua mente. Mas agira com rapidez suficiente? Quanto das suas vulnerabilidades,
dos segredos do seu passado, teria Catarina sido capaz de ler?
Perscrutou o semblante da rainha ansiosamente à procura de alguma manifestação de triunfo. Mas, para seu grande alívio, a Rainha das Trevas pareceu ter ficado apenas
amargamente dececionada. Enfiou o anel no dedo de Gabrielle, os ombros descaídos como se, subitamente, tivesse ficado exausta.
- Muito bem - disse a rainha. - vou considerar o nosso pacto como selado. De um momento para o outro, comecei a sentir-me extremamente cansada, minha filha. E agora
podeis retirar-vos.
Gabrielle sentiu-se muito grata por poder fazer isso mesmo. Inclinou-se numa cortesia, em que Catarina nem sequer pareceu reparar. Mas quando já se preparava para
transpor a porta, a Rainha das Trevas chamou-a, falando-lhe suavemente.
- Não vos esqueçais do que vos vou dizer. Se não conseguirdes lidar a contento com Nicolas Remy, eu própria tratarei disso.
A noite arrastava-se em direção às horas mais sombrias que precediam o raiar da manhã, mas Catarina continuava sem conseguir conciliar o sono, um problema que ultimamente
se repetia com mais frequência. Uma consciência pesada, diriam os seus inimigos. Catarina limitava-se a rir de tal noção.
Não, o sono leve habitual em si era somente mais uma coisa a atribuir aos caprichos da idade que não perdoava, um fardo que, apesar de todas as suas feitiçarias,
não encontrava maneira de derrotar. Podia ter chamado uma das suas damas de honor para que lhe trouxesse uma cerveja que a ajudasse a adormecer, mas isso teria sido
uma concessão à fraqueza, algo que não estava preparada para admitir.
Os seus poderes estavam a enfraquecer. A Rainha das Trevas estava a ficar velha.
Catarina preferia confrontar os demónios da sua inquietude andando na alcova de um lado para o outro. Andando ininterruptamente até ficar exausta, por fim. Enquanto
dava outra volta em frente das janelas, Catarina apalpava o dedo nu em que o anel de sinete devia estar. O mesmo anel que agora adornava a mão graciosa de Gabrielle
Cheney. É claro que o anel era demasiado grande para ela.
205
- Tal como as tuas grandes ambições, minha menina - murmurou Catarina.
Os seus lábios mostraram um pequeno sorriso ao pensar em como tinha conquistado Gabrielle, mas o triunfo não lhe proporcionou a satisfação que esperara vir a sentir.
Era com prazer que antecipava os seus duelos de sagacidade com a rapariga, as suas tentativas para ler os olhos da jovem, que conseguia velá-los sempre com êxito.
Esse confronto de vontades ajudava a rainha a manter as suas faculdades mentais, os seus poderes bem afinados. Gabrielle parecera tão inteligente, destemida e implacável,
uma adversária digna de todo o mérito. Pelo menos, até àquela noite, quando Catarina havia conseguido, finalmente, entrar nos seus pensamentos, tendo descoberto
todos os segredos e fraquezas de Gabrielle. Aquelas recordações patéticas do seu encontro com Etienne Danton.
Catarina recordava-se bastante bem do jovem chevalier. Tinha sido um oportunista que frequentara a corte até há vários anos, tendo sido banido ignominiosamente por
fazer batota às cartas, por ter infringido a lei que proibia os duelos e, pior do que tudo isso, por ter violado uma das damas de honor de Catarina.
Nenhum dos encantos das lindíssimas cortesãs da Rainha das Trevas devia ser desperdiçado num insignificante cavaleiro rural. E Gabrielle Cheney tinha acreditado
estar apaixonada por um homem desses. Quem diria!
A rainha podia ter-lhe perdoado isso. Havia que levar em consideração que, na altura, Gabrielle tinha apenas dezasseis anos. A própria Catarina fora suficientemente
tola para entregar o seu coração a um marido que a humilhara e que a traíra em todas as circunstâncias. Mas tinha aprendido a sua lição de que o amor só servia para
enfraquecer uma mulher. Obviamente, Gabrielle não aprendera essa lição e isso era o que Catarina considerava verdadeiramente imperdoável. A jovem caíra no mesmo
erro e era estúpida ao ponto de nem sequer se ter apercebido disso.
A rapariga estava perdidamente apaixonada por Nicolas Remy.
Quando Catarina se inteirou de que Gabrielle introduzira o Flagelo no palácio sem conhecimento de ninguém naquela noite, acreditou que ela só queria cometer uma
diabrura para agradar ao rei de Navarra, promovendo as suas ambições de vir a ser amante dele. A rainha poderia ter sentido admiração por ela por causa disso, pela
artimanha com que punha os seus planos em prática, pelo seu sangue-frio. Mas ter descoberto que a rapariga estava estupidamente apaixonada pelo obstinado militar
huguenote - era absolutamente nauseante.
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Catarina continuava a andar de um lado para o outro na alcova, abanando a cabeça de tão revoltada que se sentia. Estava desiludida com Gabrielle, cruelmente desiludida.
Agora era forçada a encontrar maneira de se livrar de uma jovem tão prometedora que lhe poderia ter sido de grande utilidade. Uma pessoa não podia confiar na lealdade,
nem tão-pouco nos interesses, de uma mulher idiotamente apaixonada. O acordo estabelecido com Gabrielle, no sentido de esta seduzir Remy de modo a que ele renunciasse
à sua missão, era algo em que não podia confiar. Não que isso fosse importante. Catarina duvidava de que até uma mulher arrasadoramente deslumbrante como Gabrielle
Cheney fosse capaz de desviar o Flagelo das suas noções de honra e dever. Nada conseguiria levá-lo a isso... a não ser a morte.
Havia muito tempo que Catarina chegara a essa conclusão acerca do jovem militar tão cioso do seu dever. Fizera várias tentativas para se livrar dele, tentativas
essas que haviam fracassado. Na próxima vez, teria de agir com mais cuidado e ardilosamente. Em especial, com respeito a quaisquer ações contra Gabrielle. Catarina
não falara com toda a sinceridade havia pouco, quando afirmou não recear o poder e a influência da Senhora da Ilha Encantada.
Catarina lembrava-se bem de mais daquele dia após o massacre na véspera do dia de São Bartolomeu, quando ela e Ariane Cheney se tinham confrontado naquele mesmo
palácio.
Como a jovem mulher se mostrara imperiosa e orgulhosa, os olhos castanhos extremamente expressivos, tão parecidos com os da falecida mãe, repletos de uma acutilante
honestidade e força indómita.
"Estou a advertir-vos, Catarina", dissera Ariane com toda a firmeza. " É minha intenção retomar o Conselho das Filhas da Terra, as guardiãs contra o mau uso das
maneiras antigas como haveis feito. Até mesmo vós não podeis lutar contra todas nós, um exército silencioso de mulheres sábias."
Um exército silencioso de mulheres... Em tempos idos, uma ameaça daquela natureza não teria perturbado Catarina. Mas atualmente não se sentia tão invencível como
nessa altura. Deteve-se junto das janelas, apoiando a mão no peitoril de uma delas. Olhou para lá do vidro, fixando-se num ponto onde a luz do luar iluminava o caminho
até ao Palácio das Tulherias, o palácio de traça florentina que Catarina tencionava que fosse o seu legado. O palácio que estava destinado a permanecer por acabar
e não apenas devido à necessidade de desviar fundos para o custo da guerra.
A verdadeira razão que interrompera a construção era muito menos racional e muito mais humilhante. Ela passara a ser presa de um sonho profético:
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a crença de que, quando a última pedra fosse assentada, esse também seria o dia em que Catarina soltaria o seu último suspiro.
Como os seus inimigos se teriam rido se tivessem conhecimento daquele medo supersticioso, que Catarina de Médicis, a feiticeira mais poderosa que a França alguma
vez tinha tido, a temível Rainha das Trevas, tinha medo... de morrer.
A morte - a derradeira e inevitável perda de todos os poderes. Levou a mão ao pescoço como se sentisse os dedos frios da morte a fecharem-se em volta da sua garganta.
Encheu os pulmões de ar, sentindo-se reconfortada com a sua própria respiração, com o bater forte e regular do seu coração. Não, a morte ainda não a levaria. Mas
precisava de ter muito cuidado. Antes de levantar a mão contra Gabrielle ou contra o seu Flagelo, era imprescindível que se inteirasse do quanto a Senhora da Ilha
Encantada passara a ser poderosa, tinha de saber o que é que se passava exatamente naquelas pequenas reuniões de conselho que tinham lugar na ilha.
Felizmente, Catarina conseguira, finalmente, arranjar um espião fiável. Era uma das últimas pessoas de quem a Senhora da Ilha Encantada suspeitaria...
A fogueira ardia com chamas altas no cimo do penhasco, projetando sombras que pareciam lamber o círculo de dólmenes, o misterioso anel de pedras cretas que pareciam
ser tão antigas como a própria ilha Encantada. As maciças pedras seculares erigiam-se como se quisessem tocar no firmamento noturno pontilhado de estrelas entre
algumas nuvens esparsas que passavam pela face da Lua.
Para lá do círculo de pedras e da linha de árvores dispersas, a escuridão estendia-se à distância. Muito abaixo, no sopé dos penhascos, as ondas quebravam-se contra
os rochedos naquele lado da ilha mais ermo e desabitado. Mas, no interior do círculo, a fogueira emprestava uma atmosfera animada, ao que se juntava a luz dos archotes
fixados no solo espalhados por todo o interior do círculo. O clarão refletia-se nas mulheres que se haviam reunido na clareira, algumas sentadas em bancos corridos
improvisados feitos de troncos caídos e outras no chão, os pés recolhidos por baixo das saias recatadamente.
Conversavam umas com as outras enquanto esperavam o início do conselho, muitas a olharem de relance na direção da pedra plana do altar, onde a Senhora da Ilha Encantada
se sentava num trono. Ariane desejava que tivessem tido aqueles conselhos num ambiente menos dramático, em Belle Haven, todas comodamente sentadas em cadeiras e
bebendo vinho quente adoçado e com especiarias.
Mas, muito provavelmente, isso teria dececionado muitas daquelas mulheres sábias que haviam viajado de muito longe e que se encontravam com a Senhora da Ilha Encantada
pela primeira vez. Examinava aquele mar de faces que a rodeava. Reconhecia muitas que residiam na ilha, mulheres que sempre conhecera desde criança... a irreverente
viúva do apotecário, a velha Madame Jehan, com o seu cabelo grisalho sempre desgrenhado, a majestosa
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Marie Claire, a abadessa do Convento de Santa Ana situado na ilha, a serva leiga de Marie Claire, a robusta Charbonne, com o seu cabelo todo branco cortado muito
curto e que lhe dava um ar arrapazado. Outras, como a empertigada Hermoine Pechard e a roliça e alegre Louise Lavalle, eram exiladas vindas de Paris por terem entrado
em rota de colisão com a Rainha das Trevas.
Mas a notícia que dava conta daqueles conselhos tinha-se espalhado, atraindo Filhas da Terra que Ariane desconhecia por completo. A maior parte tinha vindo de França,
mas havia uma mão-cheia proveniente de tão longe como Portugal, Espanha e Itália. Até estavam presentes duas irmãs de Inglaterra, Prudence e Elizabeth Waters, assim
como uma jovem irlandesa. Encapuzada com um manto negro, apertado com um intrincado broche céltico, batia o pé com impaciência, desejosa de que o conselho tivesse
início.
Mas apesar de tantas Filhas da Terra, havia duas que primavam pela ausência. As que eram do seu próprio sangue. Os olhos de Ariane percorriam as sombras para lá
do círculo de pedras, à procura de uma jovem mulher alta que tinha um cabelo de um louro-esbranquiçado, que seria seguida de perto por um gato negro.
Mas não havia sinais de Miri nem do seu gato de estimação, Necromante. Ao que parecia, a irmã mais nova não tencionava assistir ao conselho. Mas desde sempre que
Miri preferia os trilhos desertos da floresta, e a companhia das suas criaturas, ao mundo dos homens. Ultimamente, mostrava-se mais reservada do que nunca. A jovem
vivia com o desgosto da perda de todas as pessoas que haviam desaparecido da sua vida, a mãe, o pai e, agora, também Gabrielle...
Ariane respirou fundo, recusando-se a pensar na sua outra irmã. O facto de não ter notícias de Gabrielle através de Bette há já algum tempo era motivo de bastante
ansiedade. Mas esta noite não podia dar-se ao luxo de estar preocupada com Gabrielle, nem tão-pouco pensar na tensão que pontuara a despedida entre ela e Renard,
tal como não podia desesperar por continuar sem engravidar.
Ariane tinha de manter todas as suas preocupações fora dos seus pensamentos. Aquelas mulheres tinham arriscado muito para estarem ali, na ilha Encantada, com muitas
a desafiarem os pais e maridos. Não só haviam corrido os perigos inerentes a uma viagem, também fizeram face aos perigos de participarem numa reunião daquela natureza
que poderia ser mal interpretada. Não seria preciso muito para serem acusadas de estarem a participar
210 .
numa assembleia de bruxas, em vez de se reconhecer o que eram, mulheres sábias que procuravam preservar e partilhar conhecimentos antigos há muito esquecidos ou
proibidos por um mundo ignorante e supersticioso. Aquelas corajosas mulheres mereciam todo o respeito e atenção de Ariane.
A abadessa do Convento de Santa Ana aproximou-se para pousar uma mão no ombro de Ariane. Tinha o rosto emoldurado por uma touca de freira passada a ferro com goma,
rosto esse que um exasperado arcebispo tinha descrito como sendo demasiado voluntarioso para uma freira. A amiga e confidente da mãe de Ariane, Marie Claire, rinha
sido uma figura materna para Ariane ao longo de vários anos.
Embora o seu rosto mostrasse todas as rugas dos seus sessenta e tal anos, os olhos de Marie Claire continuavam a reter a centelha da juventude quando sorriu a Ariane.
- Aquelas mulheres são capazes de falar até enrouquecerem antes mesmo de o conselho ter inicio. Não achas que devíamos começar?
Foi com pesar que Ariane concluiu que não podia continuar a esperar por Miri durante mais tempo. Assentiu com um acenar de cabeça, olhando para Marie Claire. A abadessa
fez sinal a Charbonne, após o que se colocou à direita de Ariane, sobrepondo as mãos dentro das mangas largas das suas vestes brancas.
Alta e esgalgada como qualquer rapaz camponês, Charbonne vestia-se como eles na sua camisa larga de musselina, calções de um tecido grosseiro apertados abaixo dos
joelhos e botas pesadas. Dirigiu-se para o centro do círculo, batendo com um grosso bordão de vidoeiro branco no solo pedregoso.
- Que todas as línguas se calem à exceção da minha! - gritou na sua voz atroadora. Quando o seu primeiro pedido foi parcialmente ignorado, gritou num tom de voz
mais alto: - Silêncio!!!
O olhar feroz de Charbonne percorreu as muitas mulheres até o último murmúrio deixar de se ouvir. Em seguida, prosseguiu:
- Aqui, no chão sagrado destas pedras cretas e na presença da nossa Senhora da Ilha Encantada, damos início à terceira assembleia na memória recente das Filhas da
Terra.
"Estes conselhos destinam-se a promover a paz e harmonia entre todas as mulheres sábias onde quer que se encontrem, para partilhar e preservar os nossos conhecimentos,
transmitidos desde a Antiguidade, para sanar discórdias, para resolver problemas e para procurar os conselhos da nossa erudita Senhora da Ilha Encantada.
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Charbonne estendeu o bordão de vidoeiro diante de si.
Ainda as palavras mal tinham saído da boca de Charbonne quando Hermoine Pechard se levantou de um salto para agarrar o bordão. Ariane trocou um olhar de consternação
com Marie Claire. Madame Pechard era uma mulher magra com uma eterna expressão de azedume. Apanhada a espiar a Rainha das Trevas havia alguns anos, Hermoine perdera
tudo, a sua casa confortável e o marido, que se dissociara dela.
Hermoine nunca perdia uma oportunidade de se queixar do declínio das morais e da depravação de outras mulheres sábias. Instalou-se outro coro de conversas sussurradas
enquanto ela batia sonoramente com o bordão numa pedra, trémula e com uma atitude cheia de presunção.
- Milady - começou a dizer com uma vénia rígida perante Ariane e estimados membros deste conselho. - Hermoine abarcou o resto das participantes com um olhar de lince.
- Desejo abordar um problema crescente que tenho vindo a observar entre muitas das nossas irmãs. O mau uso dado aos nossos conhecimentos com vista a um comportamento
licencioso e dissoluto.
As palavras de abertura de Hermoine suscitaram uns quantos resmungos da parte de algumas das mulheres mais jovens que estavam presentes. Adotou uma postura ainda
mais a direito e rígida.
- Nós, as Filhas da Terra, estamos destinadas a dedicarmo-nos às artes de curar e manter os registos da História e dos conhecimentos para as gerações vindouras.
Ao invés disso, algumas de nós desperdiçam o seu tempo em assuntos frívolos, preparando perfumes e loções com o objetivo de seduzir e dominar os sentidos dos homens.
As palavras da mulher provocaram em Ariane uma dor aguda e súbita ao recordar-se de Gabrielle. No entanto, Madame Pechard fixou o olhar em Louise Lavalle. A cortesã
limitou-se a rir, as sardas que se lhe espalhavam pelo nariz a acentuarem a sua expressão endiabrada.
- Eu não diria que é um desperdício de tempo - retorquiu Louise numa voz arrastada. - E tu, Hermoine, também não considerarias que o fosse se tivesses passado a
noite que eu passei com aquele robusto e jovem moço de estrebaria que trabalha na taberna Viandante de Passagem.
A velha Madame Jehan deu uma palmada no joelho e disse numa voz cacarejada:
- Sei quem é o mancebo a que te estás a referir, aquele que tem umas belas pernas, como um par de troncos de carvalhos novos. Como é que ele se portou, queridinha?
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- Foi um garanhão como deve ser, Madame Jehan. Cavalguei-o até ao Paraíso e de regresso. - Louise pôs-se de pé e demonstrou o que dizia com movimentos sucessivos
e provocadores das ancas para a frente e para trás.
A demonstração dela produziu um coro de gargalhadas, até mesmo de Marie Claire. Mas como Madame Pechard parecia estar prestes a explodir de indignação, Ariane reprimiu
o seu próprio sorriso.
- Minhas senhoras, peço-vos um pouco de cortesia e decoro, por favor - interveio Ariane com uma suave reprovação. Depois de Louise se ter acalmado, Ariane voltou-se
para Madame Pechard, mostrando uma expressão de cortesia forçada.
- Portanto, estavas a dizer, Hermoine...?
A face de Pechard ficou de um vermelho feio. Fez um gesto furioso na direção de Louise, continuando:
- Aquilo... aquilo é precisamente a espécie de licenciosidade a que me referi, milady. Os homens não conseguem resistir a tais encantos perversos como os que são
postos em prática por meretrizes da igualha de Mademoiselle Lavalle.
- E preferível ser uma meretriz do que uma velha jarreta! - gritou Louise.
Os lábios de Hermoine estreitaram-se, mas esforçou-se para ignorar a interrupção.
- Meretrizes que recorrem às suas artes negras para tentarem os pobres homens que são fracos, levando-os à desonra e a comportamentos pecaminosos. Isso não está
certo. Decerto que concordais comigo, milady. A vossa própria família tem sofrido por causa disso mesmo, o vosso pai foi tentado e levado a trair a vossa boa mãe
por essa rameira, a Maitland.
Ariane ficou hirta. A infidelidade do pai era motivo de muito sofrimento pessoal, pelo que lhe desagradava profundamente que o assunto fosse mencionado em público
daquela maneira. Sentiu a mão reconfortante de Marie Claire no ombro. A abadessa respirou fundo, preparando-se para admoestar Madame Pechard, mas a intervenção veio
de outro lado bastante inesperadamente. A jovem irlandesa pôs-se de pé subitamente.
- Pelo abençoado São Miguel, sois vós que fazeis com que estejamos a desperdiçar o nosso tempo com assuntos tão mesquinhos! - disse com rispidez a Hermoine. - E
o que é que tem de mais se algumas das nossas irmãs decidem usar a sua magia para seduzir? É aos homens que cabe cuidar de si próprios, o que são muito capazes de
fazer.
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Ouviu-se um coro de vozes que concordavam, em especial a da velha Madame Jehan.
- Mas como... como é que te atreves a... - ripostou Hermoine, olhando para a jovem irlandesa com uma expressão de fúria.
- Ora, sentai-vos, solteirona ridícula. Tenho um assunto que quero apresentar a este conselho de uma natureza muito mais perturbadora e aterradora. - A rapariga
conseguiu tirar-lhe o bordão das mãos e atirou o capuz do manto para trás, mostrando uma farta cabeleira de um ruivo chamejante, tez pálida e uns olhos azuis de
expressão aguerrida.
A jovem não podia ter mais de dezasseis anos e não era muito alta. Mas havia qualquer coisa na sua atitude de desafio que fazia lembrar as donzelas célticas guerreiras
de antigamente. Hermoine protestou e fez menção de querer reaver o bordão, mas o olhar de fúria da irlandesa fez com que pensasse duas vezes. Em vez de reagir, optou
por apelar a Ariane.
- Milady, eu ainda não tinha acabado de falar.
- Acabastes, sim. - A jovem empurrou Hermoine, afastando-a do seu caminho. Num passo determinado, aproximou-se de Ariane.
- Peço-vos perdão, milady. O meu nome é Catriona OHanlon e venho do condado de Meath. Não sou muito fluente na língua francesa, mas é importante que compreendais
o que quero dizer. O que tenho a dizer-vos diz respeito a assuntos de vida ou de morte.
Ariane talvez se tivesse sentido tentada a sorrir perante aquelas palavras de tanto dramatismo, não fosse o brilho de tanto ardor nos olhos da jovem OHanlon.
- Compreendo-vos muito bem, Mademoiselle OHanlon - retorquiu Ariane, circunspecta. - E se tendes informações assim tão vitais, é melhor que nos digais o que aqui
vos traz.
- Milady! - vociferou Hermoine, mas Ariane ergueu uma mão para a calar. Sentia-se mal consigo própria por se ter apressado a calar a quezilenta mulher, todavia,
lera o suficiente nos olhos de Catriona OHanlon para ter ficado apreensiva. Tranquilizou Hermoine com a promessa de que poderia falar mais tarde e a mulher voltou
a sentar-se, embora ressentida.
- Agradeço-vos, milady - prosseguiu Catriona, após o que se virou de frente para todas aquelas mulheres. A sua expressão que não augurava nada de bom deu azo a um
murmurar de algum mal-estar que se instalou na clareira. A voz de Catriona tinha a cadência melodiosa do sotaque irlandês misturado com a língua francesa mais suave.
Contudo, as suas palavras faziam-se ouvir com clareza e determinação.
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- Como eu já disse, o meu nome é Catriona OHanlon. Mais conhecida por Cat entre a minha gente. À semelhança de todas vós, descendo de uma longa linha de mulheres
sábias que remonta e precede os dias do poderoso Cuchulainn. Muitas das minhas amigas são Filhas da Terra e entre estas Neve ODonal.
Catriona apertou o bordão com mais força, a sua voz a deixar transparecer uma forte emoção.
- Neve era uma boa mulher, cujo coração era reto e generoso, apesar de os seus pensamentos se terem desviado por caminhos sombrios. Mas tinha motivos suficientes
para a sua cólera, a exemplo de muitos de nós, os irlandeses. - Catriona fez uma pausa, comprimindo os lábios fortemente.
- Tenho a certeza de que todas vós tendes conhecimento de como a minha gente tem sofrido em resultado da invasão do maldito Sassenach.
Ouviu-se um sibilar acutilante da parte das duas inglesas. Marie Claire também franziu as sobrancelhas.
- Tende cuidado, Mademoiselle OHanlon - disse a abadessa. - Muitos dos antepassados da nossa Senhora da Ilha Encantada eram ingleses, incluindo a sua mãe, a nossa
muito venerada Evangeline.
Catriona olhou para Ariane com uma expressão que era de cólera e apologética ao mesmo tempo.
- Não foi minha intenção ofender-vos, milady. Estou certa de que nenhum dos vossos antepassados era como os assassinos e canalhas ingleses que saquearam a nossa
terra, que mataram as nossas crianças, que violaram as nossas mulheres, que destruíram o nosso património...
- Por favor, mademoiselle - atalhou Ariane, interrompendo Catriona ao ver que as irmãs Waters estavam a ficar exacerbadas. - Ninguém duvida de que a vossa gente
tem sofrido, mas seria preferível que voltásseis ao que estáveis a dizer acerca de Neve...
- Sim, pobre Neve. Ela tinha mais razões do que a maior parte das pessoas para sentir azedume contra o inglês que a privou da sua terra e que chacinou todos os homens
da sua família. Neve jurou que haveria de expulsar Sassenach da Irlanda, por muito negros que fossem os métodos a que teria de recorrer.
Os protestos em surdina das irmãs Waters começaram a ouvir-se com mais clareza. Prudence, a mais velha das duas, fez menção de se levantar, mas Catriona, com um
gesto de desprezo, indicou-lhe que continuasse sentada.
- Não vale a pena estardes para aí tão furibundas, meninas. A ameaça de Neve não tinha substância. Pelo menos, até... Não sei dizer como... Não
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sei onde, mas... - Catriona hesitou, mas depois acrescentou com uma entoação incisiva: - A Neve conseguiu ficar de posse do Livro das Sombras.
As palavras dramáticas de Catriona produziram arquejos de medo, choque e algumas risadas das presentes, bem como um apupo cético de Madame Jehan. Muitas das Filhas
da Terra possuíam manuscritos antigos que continham excertos das artes proibidas. No entanto, dizia-se que existia uma obra-prima, o Livro das Sombras, que continha
todos os segredos da magia mais negra de que se tinha conhecimento. Evangeline Cheney sempre mostrou ceticismo quanto à existência de tal livro e Ariane tendia a
concordar com a falecida mãe.
Entre as presentes, começaram a ouvir-se sussurros de mal-estar e Ariane viu-se obrigada a bater palmas para que se silenciassem. Em seguida dirigiu a palavra à
jovem irlandesa.
- Mademoiselle OHanlon, estou ciente de que todas nós já ouvimos rumores acerca da existência desse Livro das Sombras. Mas isso não passa de um mito, não é mais
verdadeiro do que as histórias de assembleias à meia-noite de demónios e bruxas que voavam em cabos de vassoura.
- O Livro das Sombras existe, miladj - afirmou Cat veementemente, batendo com a extremidade do bordão no solo para dar mais ênfase às suas palavras. - Eu vi-o com
os meus próprios olhos.
- Era hediondo, encadernado com a pele de bebés mortos? - perguntou Madame Jehan trocista.
- Não, minha senhora - ripostou Catriona, virando-se de repente para ela com uma expressão feroz. - O livro estava encadernado em couro e tinha um aspeto tão inofensivo
como a Bíblia. Era o conteúdo que fazia com que o sangue nos gelasse nas veias, feitiços da natureza mais aterradora.
Catriona percorreu a correnteza de mulheres sentadas à frente, aproximando tanto o rosto de expressão selvática que muitas delas se retraíram.
- Feitiços que fazem com que uma pessoa passe a ser imortal quando bebe o sangue de outra criatura viva. Ou para preservar a vida de alguém quando se arranca o coração
a bater do peito de outra pessoa. Poções que nos mantêm jovens depois de se devorar o fígado de crianças muito pequeninas.
- Madre de Dios! - gritou uma das espanholas, persignando-se. Marie Claire inclinou-se para segredar ao ouvido de Ariane.
- Está-me a parecer que Mademoiselle Catriona está a divertir-se um tudo-nada de mais.
Ariane receou que a abadessa tivesse razão. Catriona dava a impressão de estar a desfrutar macabramente do temor que estava a suscitar, em particular
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nas duas inglesas. Cat deteve-se diante das irmãs Waters, erguendo o bordão, qual sacerdotisa druida que se preparasse para oferecer um sacrifício.
- O livro continha poções que ensinava como destruir os nossos inimigos com venenos amargos, fazer com que se afoguem no seu próprio sangue. Ou como fazer com que
os inimigos de uma pessoa adoeçam, de modo a ficarem com a pele enegrecida e a supurar em carne viva...
- Mademoiselle OHanlon, por favor - interveio Ariane, tentando animar aquela atmosfera sombria com um sorriso. - Estais a fazer com que todas tenhamos pesadelos
esta noite.
com relutância, Cat baixou os braços e voltou a encaminhar-se para Ariane.
- Peço perdão, milady, mas esse livro provoca pesadelos aterradores. E ainda não vos disse o pior. Existiam instruções no "Livro das Sombras para que se possa fazer
a guerra numa dimensão tão catastrófica como nunca se viu no nosso mundo. Poções que permitem que se dissemine uma pestilência no ar que fará com que milhares de
pessoas adoeçam ao mesmo tempo e morram. Ou indicações sobre como causar uma horrível explosão capaz de arrasar uma cidade, até mesmo uma da dimensão de Paris.
- Ou talvez mesmo Londres? - perguntou Prudence Waters numa voz esganiçada, enquanto a irmã mais nova se agarrava ao seu braço a tremer. Mas Prudence libertou-se
da mão de Elizabeth e pôs-se de pé de um salto, a cara gorducha de uma palidez cadavérica. - Milady, é tão claro como a água aonde tudo isto nos levará. Essa irlandesa,
essa... essa pessoa de nome Neve, tenciona utilizar as artes demoníacas contidas nesse Livro das Sombras contra
a minha própria pátria.
Catriona olhou para a inglesa com olhos tristes e irados.
- Tencionava, que Deus tenha a sua alma em descanso. Mas agora a Neve não pode tencionar absolutamente nada porque está morta. Foi chacinada impiedosamente por um
homem demoníaco que queria obter esse maldito livro.
Aquela notícia tão sinistra fez com que todas se remetessem ao silêncio, até mesmo Prudence.
- Portanto, quem é que agora tem esse livro? - perguntou Ariane com
um temor crescente.
- Um assassino que é parente de Neve, Padraig ODonal, um homenzinho malévolo que pensa que é um feiticeiro. O Padraig mal sabe como coçar o seu próprio traseiro,
quanto mais pôr em prática qualquer magia. Não tem
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capacidade para decifrar uma única palavra da antiga língua rúnica. Mas acredita que o livro das Sombras talvez valha um pote cheio de ouro para alguém que se interesse
por esses assuntos. Por isso, matou a pobre Neve e apoderou-se do livro, esperando ganhar uma fortuna com a sua venda.
- E onde é que esse tal Padraig está atualmente? - perguntou Ariane num tom autoritário.
- Bem, não se pode dizer que ele possa vender o livro na Irlanda, milady, não com os amigos e parentes de Neve que lhe eram fiéis em sua perseguição. Mas o Padraig
é um demónio ardiloso. Conseguiu enganar-nos a todos e fugir num pequeno barco de pesca - retorquiu Catriona, afastando a basta cabeleira para trás com um gesto
de frustração. - Consegui encontrar o rasto desse traste até à costa da Bretanha, mas depois disso nunca mais soube dele.
- Que maravilha - resmungou Marie Claire com ironia. - Exatamente aquilo de que estávamos a precisar. Já temos de lidar com a praga que é a Rainha das Trevas e os
seus venenos. Mas agora temos um irlandês desenfreado que anda à solta entre nós a tentar vender os segredos do Diabo.
- Mas o que ainda tenho a dizer é pior do que isso - acrescentou Catriona.
- E não será sempre o caso? - resmungou a abadessa.
- Marie, por favor - interveio Ariane suavemente para que a sua amiga se calasse. - Continuai, mademoiselle.
Cat colocou o bordão diante de si para poder apoiar as duas mãos, como se estivesse a preparar-se para desferir o último golpe.
- Não sou a única a andar atrás de Padraig para recuperar o livro. Sei de um caçador de bruxas que também o persegue.
A mera menção de um caçador de bruxas era suficiente para que todas as mulheres fossem percorridas por uma sensação de pânico. Ariane forçou-se a perguntar com calma:
- Um caçador de bruxas? E quem é ele?
- Não sei dizer ao certo, milady - respondeu Cat com um abanar de cabeça e expressão de pesar -, mas durante os últimos seis meses tem andado a percorrer a Irlanda,
a praticar as suas atividades demoníacas. É um homem alto e de feições macilentas, com um olhar coruscante e uma cara feia e com uma cicatriz, todo careca como o
próprio Diabo.
- Sempre imaginei Satanás com uma basta cabeleira - adiantou Madame Jehan. O comentário dela provocou algumas risadas. Cat arqueou uma sobrancelha, fitando-a com
profundo desagrado antes de prosseguir.
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- E muito possível que este caçador de bruxas seja o próprio Diabo. Aparentemente, ninguém sabe de onde é que ele surgiu. Não é de pôr de parte a hipótese de ele
ser um dos vossos concidadãos, milady, uma vez que ele se chama a si próprio de Lê Balafre.
- O que tem uma cicatriz - murmurou Ariane.
Uma jovem francesa sentada perto de Madame Jehan estremeceu e começou a chorar. Madame Jehan deu um abraço apertado à jovem.
- Vamos lá, queridinha, já tivemos de lidar com os nossos próprios demónios e sobrevivemos. Estás recordada de Lê Vis, que a sua alma apodreça no Inferno. Está a
arder nos confins do Inferno e nós continuamos aqui.
Ouviu-se um coro de assentimento da parte de muitas das outras mulheres, mas Catriona disse escarnecedora:
- Já ouvi falar do vosso Lê Vis. Ele não passava de um monge louco, com as suas vestes negras, quando comparado com este homem. Lê Balafre luta contra as da nossa
espécie mais como se fosse um guerreiro pagão. Ele passa a fio da espada todas as mulheres que acredita serem bruxas. - As palavras de Catriona suscitaram mais gemidos
de consternação, mas Ariane levantou uma mão a pedir silêncio, procurando reconfortar-se, assim como àquele grupo de mulheres assustadas.
- Pelo menos, se esse Lê Balafre conseguir apoderar-se desse Livro das Sombras, com certeza que o destruirá - disse com sensatez. - Ao contrário do que é costume,
é possível que um caçador de bruxas nos faça algo de bom.
- Quem me dera que a situação fosse assim tão simples, milady, mas o pior ainda está para vir.
Marie Claire resmungou sonoramente e Ariane agitou-se no seu desconfortável assento, olhando para Catriona com algumas mostras de impaciência.
- O que é que poderia ser pior? - perguntou acerbamente.
Cat arrastou os pés e pela primeira vez pareceu sentir relutância em falar.
- A minha boa amiga Neve nem sempre foi uma mulher muito discreta. Mantinha um registo de todas as Filhas da Terra vivas de que tinha conhecimento. - Ao ver que
Ariane sustinha a respiração, apressou-se a acrescentar:
- A Neve elaborou esse registo com a melhor das intenções. Tinha esperança de vir a poder escrever a história das Filhas da Terra quando houvesse dias mais moderados
e tolerantes.
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- E, exatamente, aonde é que esses registos se encontram atualmente? perguntou Ariane com aspereza e um coração pesado por já saber a resposta. Lia a verdade nos
olhos desgostosos de Catriona.
- A capa de couro do Livro das Sombras tinha um pequeno golpe na encadernação. Foi aí que ela escondeu esses registos. E não... não estão nada bem escondidos, por
isso, se o Lê Balafre conseguiu apoderar-se do livro...
- A voz de Catriona esmoreceu, mas não era preciso que concluísse a frase. Dissera o suficiente. Os gritos de medo e perturbação, vindos de todas as direções, começaram
a ecoar pela clareira. Prudence Waters levantou-se repentinamente, acenando com um punho gordo na direção de Cat.
- Vocês, os irlandeses, são todos uma raça de idiotas! Não admira que tenham precisado dos ingleses para porem ordem no vosso país. Malditos sejam todos os celtas
estúpidos, digo eu!
As faces de Catriona ficaram tão vermelhas como os seus cabelos chamejantes. Soltou uma invetiva em gaélico e avançou para Prudence com o bordão em riste. Mas esta
agarrou-o pela ponta, fechando-o na palma da mão grande e aparando o ataque. As duas mulheres atiraram-se uma à outra numa grande confusão de saias, gritando e dando
pontapés, ambas a lutarem pela posse do bordão.
Ariane também se levantou de um salto, pedindo ordem entre as mulheres, mas a reunião descambou num caos absoluto. Charbonne avançou para pôr fim à bulha. Tirou
o bordão do alcance de ambas, atirando-o para o lado. Em seguida, bateu com as cabeças de Prudence e Catriona uma na outra. Infelizmente, esta intervenção fez com
que as duas se virassem contra Charbonne, dando lugar a outra confusão de mordidelas, arranhões e tentativas de arrancar olhos. Apanhadas em todo aquele tumulto,
Hermoine e Louise Lavalle retomaram a altercação à força de bofetadas e beliscões.
As outras mulheres juntaram-se em volta, algumas a gritarem encorajamentos às que brigavam, enquanto outras gritavam: "Mas que vergonha, que vergonha!" Também havia
as que se deixavam cair no chão a chorarem histericamente.
Ariane ia apressadamente de um grupo ao outro, esforçando-se por restabelecer a ordem, gritando tanto que ficou rouca. Acabou por recuar num passo vacilante, possuída
de uma enorme frustração.
Marie Claire, que se mantivera bastante afastada de todo aquele tumulto, limitou-se a revirar os olhos.
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- Pois bem, lá se vai a compreensão e harmonia entre as Filhas da Terra. E pensar que, minha querida Ariane, até ao momento apenas duas delas é que tiveram oportunidade
de fazer uso da palavra.
Horas mais tarde, o silêncio abatera-se sobre o círculo de pedras, apenas quebrado pelo crepitar das chamas que se extinguiam na fogueira e o rugir à distância das
ondas que se quebravam contra os rochedos mais abaixo. Ariane deixara-se cair desalentada na pedra plana do altar, com a cabeça apoiada nas mãos. As outras mulheres
tinham-se sumido ou, mais precisamente, haviam coxeado à procura de abrigo durante a noite antes de partirem pela manhã, cada uma de regresso à sua própria casa.
Depois das notícias aterradoras de Catriona OHanlon, o resto do conselho decorrera, afortunadamente, sem percalços. Ariane tinha acabado por conseguir restabelecer
a ordem quando perdeu as estribeiras, agarrando o bordão, com que ameaçou partir algumas cabeças. A cena raríssima da Senhora da Ilha Encantada possuída de uma tal
fúria persuadiu até mesmo Catriona OHanlon e Prudence Waters a retomarem os seus lugares. Se Renard tivesse visto Ariane a brandir o bordão ter-se-ia sentido muito
orgulhoso da sua mulher, pensou com um sorriso de cansaço.
Rodou a aliança que tinha no dedo, o estranho aro metálico com as inscrições rúnicas, que garantia que Renard nunca se encontrava à distância de mais de um pensamento
dela. com a preocupação a pesar-lhe como um fardo devido ao desaparecimento daquele Livro das Sombras, Ariane ansiava por utilizar a magia da aliança para chamar
Renard. "Meu amor. Vem ter comigo. Preciso de ti."
E ele selaria o seu cavalo mais veloz, cavalgando pela noite dentro até chegar junto dela. Mas Ariane receava ter perturbado de mais a paz de espírito do marido
nos últimos tempos, entre as suas crises de melancolia e as suas exigências insistentes para que ele lhe desse uma criança. Havia muito pouco que Renard ou qualquer
outra pessoa poderia fazer naquela noite com vista a recuperar o Livro das Sombras. Era preferível deixar que ele descansasse enquanto podia. Nenhum deles teria
grande descanso nos tempos mais próximos até aquele maldito livro ser encontrado.
Mas Ariane teria acolhido de muito bom grado os braços fortes de Renard a abraçarem-na naquele momento. Lançou um último olhar de melancolia à aliança e depois suspirou,
resistindo a mais tentações ao ocultar as mãos no colo.
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O roçagar suave de saias deu-lhe a saber que Marie Claire voltava para o seu lado. A abadessa e a sua serva tinham andado a fazer uma última inspeção à clareira,
procurando quaisquer objetos que pudessem ter ficado esquecidos e certificando-se de que as chamas dos archotes estavam extintas.
- A Charbonne foi buscar os nossos cavalos à cabana do pescador. Quando os tiver selado, assobiará para que nos juntemos a ela no caminho - informou Marie Claire.
Ariane assentiu com um acenar de cabeça e uma expressão de lassidão, chegando-se para o lado de modo a que a abadessa se pudesse sentar ao seu lado na pedra. Marie
Claire deixou-se cair ao lado dela e estendeu-lhe um pequeno odre de couro.
- Aqui tens, minha querida - disse a Ariane, que o aceitou agradecida. Sentia a garganta seca por ter falado tanto, gritado e discutido. Levou o odre aos lábios,
mas, em vez da água fresca que esperava, sentiu na boca o ardor de um conhaque extremamente forte.
Ariane inclinou-se para a frente a cuspinhar e a arfar.
- M... Marie Claire! - A abadessa limitou-se a sorrir, incentivando-a a beber outro trago.
- Vá lá. Depois de tudo por que passámos esta noite, tu e eu estamos a precisar de uma bebida forte.
Ariane estremeceu, mas obedeceu, bebendo um gole mais cauteloso. Quando sentiu a calidez reconfortante do conhaque começar a percorrer as suas veias, devolveu o
pequeno odre à abadessa.
- Obrigada - murmurou Ariane.
Marie Claire bebeu um gole generoso, após o que voltou a rolhar o odre, limpando a boca delicadamente às costas da mão. Examinou a fisionomia de Ariane com uma expressão
de aprovação.
- Assim é muito melhor. Estavas com uma aparência muito desalentada. A Catriona OHanlon e as suas histórias de horror seriam o suficiente para fazer com que uma
pessoa ficasse sem pinga de sangue nas veias. A menos que tenhas outra razão para estares assim tão pálida.
- Não, não existe nenhuma razão que eu saiba para já - respondeu com tristeza, e num gesto instintivo a mão de Ariane pousou-se na região do útero vazio.
Marie Claire deu uma pequena palmadinha de encorajamento na mão de Ariane, que baixou a cabeça. Tinha muita dificuldade em falar do seu estado de esterilidade até
mesmo com uma amiga de longa data como Marie Claire, mas confessou com tristeza:
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- Ultimamente, tenho começado a perguntar-me se o facto de não engravidar é castigo de Deus porque... porque não me contentei em desejar apenas uma criança. Ansiava
tanto vir a ter uma filha.
- Não digas isso, menina. Não me parece que Deus castigue as pessoas pelos seus desejos - disse Marie Claire, apertando os dedos de Ariane ao de leve antes de lhe
pegar na mão e a pousar nas suas próprias vestes. - Mas ele tem tendência para responder às orações à Sua própria maneira e quando pensa que chegou a altura de o
fazer.
- Resumindo e concluindo, eu devia ser mais paciente. Até pareces o Renard a falar.
- E como é que o teu poderoso e grande marido tem passado? - perguntou Marie Claire afetuosamente.
- Bastante bem, espero eu. Senti-me tentada a chamá-lo imediatamente após as notícias que a Catriona nos trouxe. Mas o Renard estafar-se-ia de morte para chegar
o mais depressa possível, desnecessariamente, porque não há nada que ele pudesse fazer.
- Não, mas, num futuro próximo, o conde e os seus homens poderão vir a provar serem muito úteis na procura de Padraig ODonal.
- Quais é que pensas que serão as nossas hipóteses, Marie? - perguntou Ariane descorçoada. - De encontrar o ODonal antes que ele consiga vender o livro ou o caçador
de bruxas o encontrar? Nesta altura, já o irlandês pode estar em qualquer parte. Será como tentar encontrar uma agulha num palheiro.
- Decerto que as coisas não serão assim tão más - protestou Marie Claire. - Ao fim e ao cabo, as pessoas ricas não são assim tantas, nem sequer as loucas ao ponto
de quererem comprar este Livro das Sombras. Infelizmente, a interessada mais provável é...
- Catarina - adiantou Ariane com um estremecimento involuntário.
- Tenho andado a tentar não pensar na possibilidade de a Rainha das Trevas adquirir esse livro.
Catarina de Médicis já tinha conseguido disseminar perversidades de sobra com os seus venenos e o miasma que preparara de infusão para fomentar a loucura na véspera
do dia de São Bartolomeu. Que outros malefícios é que a Rainha das Trevas poderia pôr em prática com as bruxarias que Catriona descrevera?
- Mas a Catarina já é muito versada na prática das artes negras e... e talvez ela nem sequer se interesse pelo Livro das Sombras - disse Ariane, prócurando
223
convencer-se a si própria tanto como a Marie Claire. - Desde que estabelecemos tréguas com ela depois da véspera do dia de São Bartolomeu que não empregou a sua
magia negra em ninguém.
- Que nós saibamos - retorquiu Marie Claire com secura. - Infelizmente, desde que a Louise Lavalle e Madame Pechard foram expostas, a nossa rede de espias já não
é o que era. Visto que a Gabrielle é presença tão assídua na corte, é uma pena que não tenhamos sido capazes de persuadi-la a ficar de olho em Catarina para nos
fornecer informações.
Ariane abanou a cabeça veementemente.
- Ainda que a Gabrielle estivesse de acordo, eu jamais permitiria isso. A minha imprudente irmã já me causa preocupações que cheguem por conviver tão de perto com
essa mulher malévola e os perigos que ela já poderá estar a correr. Parece-me que já foi há uma eternidade que recebemos notícias da Bette.
- Pois bem, quanto a isso há algo que não tive ainda oportunidade de te dizer. O meu pequeno falcão regressou finalmente de Paris.
Entre os seus dons como Filha da Terra, Marie Claire possuía a capacidade de amestrar aves de modo a serem portadoras de mensagens, percorrendo longas distâncias.
Um dote que Ariane considerara uma dádiva anteriormente e mais ainda agora que Gabrielle fugira para Paris. Sem as informações que Bette enviava com regularidade,
Ariane acreditava que teria enlouquecido por causa de tanta preocupação pela irmã. Se bem que existissem ocasiões em que pensava que estaria melhor se não soubesse
o que Gabrielle andava a fazer.
Olhou para Marie Claire com um misto de ansiedade e apreensão.
- E então, o que é que a Bette tinha a dizer? Como é que está a Gabrielle? Ela... ela está bem?
- Bastante bem, mas é melhor que te prepares para uma notícia que considero extraordinária.
- Deus me valha! O que... o que é que se passa? Diz-me, Marie. - Para sua grande perplexidade, começou a aparecer um sorriso nos lábios da abadessa.
- O Nicolas Remy está vivo.
- O quê!?
Quando Marie Claire a pôs a par da extraordinária ressurreição, do regresso dele a Paris, Ariane não conseguiu conter-se. Levantou-se de repente e começou a andar
de um lado para o outro extremamente empolgada, as lágrimas
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de alegria a causarem-lhe ardor nos olhos. Não só devido ao afeto que sentia pelo austero capitão, como também pelo significado que aquilo poderia ter para Gabrielle.
Pela primeira vez em alguns anos, Ariane teve um vislumbre de esperança para a sua caprichosa irmã.
- Graças a Deus! - gritou unindo as mãos. - Oh, Marie, isto é maravilhoso. Nunca me apercebi disso na altura, mas acredito que o Remy foi o homem que podia ter sarado
a Gabrielle de modo a que ela recuperasse a sua magia. Quando ela soube que ele tinha morrido, a última parte boa dela pareceu ter morrido com ele. Mas agora...
- Ariane não concluiu a frase ao ver que Marie Claire não partilhava do seu entusiasmo.
A mulher mais velha tinha os olhos presos nos carvões da fogueira, evitando os olhos de Ariane.
- O regresso do Remy é uma coisa boa ou não? - perguntou com alguma hesitação. - com certeza que poderá significar a salvação da Gabrielle.
Marie Claire suspirou.
- Poderia ter sido, não fosse o facto de as notícias de Bette darem conta de que a Gabrielle fez todos os possíveis para... para pôr fim à amizade entre os dois,
para que ele se afastasse de si. (
A esperança que nascera dentro de Ariane morreu com uma dolorosa rapidez.
- É claro que a Gabrielle faria isso - disse num gemido. - O que não devia ser surpresa para mim. Alguma vez terá existido alguém mais capaz do que a minha irmã
a afastar as pessoas que poderiam amá-la ou cuidar dela?
A abadessa levou a mão ao pequeno crucifixo de madeira que trazia suspenso do pescoço. Fitando os olhos de Marie Claire, Ariane leu quanto lhe bastou para perceber
que ela lhe ocultava qualquer coisa.
- O que é que se passa? - perguntou. - Que mais é que a Bette disse a respeito da Gabrielle? O que é que não estás a dizer-me?
- Perdoa-me, minha querida. Mas já estás tão sobrecarregada - retorquiu a abadessa com um gesto da mão que denotava impotência. - Já tens preocupações de sobra.
- Temo ter de admitir que sim, mas é melhor que me ponhas a par do que se passa, apesar disso.
Ao ver que Marie Claire se mantinha relutante, Ariane voltou a sentar-se ao lado dela, apertando-lhe as mãos.
- Diz-me, Marie.
- Provavelmente, não existirão motivos para apreensões, mas, aparentemente, a Gabrielle estabeleceu uma amizade com outra mulher sábia que reside em Paris... uma
tal Cassandra Lascelles. - Quando Ariane a olhou com uma expressão intrigada, a abadessa perguntou-lhe: - Nunca ouviste falar desta mulher?
- Vagamente. - Ariane franziu a testa, passando a sua memória a pente fino. - Parece que essa Cassandra vive em reclusão, não é verdade? Uma pobre mulher cega, cuja
família foi toda dizimada pelos caçadores de bruxas há muitos anos.
- É possível que a Cassandra seja cega. Mas indefesa? - retrucou Marie Claire com uma careta. - Se os rumores que ouvi sobre Mademoiselle Cassandra Lascelles forem
verdade, a mulher dedica-se a muitas artes negras. Por pressuposto, ela é especialmente competente na prática de necromancia.
Ariane agitou-se pouco à vontade, evitando os olhos de Marie Claire, porque, a dada altura, ela própria tinha posto em prática essa perigosa arte, invocando o espírito
da mãe do mundo dos mortos. Existiam ocasiões em que Ariane continuava a sentir a falta dos conselhos cheios de sabedoria de Evangeline Cheney, contudo prometera
solenemente à mãe que nunca mais voltaria a tocar na magia negra.
- Sobre esta jovem mulher paira uma nuvem de suspeição - acrescentou a abadessa gravemente. - São muitas as Filhas da Terra que se perguntam por que razão, de todas
as mulheres da família Lascelles, foi Cassandra a única a sobreviver ao ataque dos caçadores de bruxas? Algumas até se questionam se a própria Cassandra não teria
tido alguma coisa a ver com o ataque. - Marie Claire encolheu os ombros. - É claro que estas histórias a respeito da Cass podem muito bem não passar de mexericos
e insinuações. Mesmo assim, a Gabrielle devia ser advertida.
- Sabes bem que a Gabrielle nunca fará caso do que quer que eu lhe diga - retorquiu Ariane suspirando.
- Não és a única irmã de Gabrielle. A Miri também se tem sentido bastante preocupada por causa dela. De facto... - Marie Claire hesitou e respirou fundo antes de
continuar. - De facto, a Miri decidiu que vai fazer a viagem até Paris para falar pessoalmente com a Gabrielle.
Ariane ficou a olhar para a abadessa, atordoada por a sua tímida irmã mais nova poder pensar sequer em fazer tal coisa. Mas a sua surpresa inicial não tardou a dar
lugar ao temor.
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- A Miri não fará nada disso! Já chega que a Gabrielle tenha fugido sozinha. Recuso-me a ter duas irmãs na voracidade de Paris, tão perto das garras da Rainha das
Trevas. - Ariane levantou-se subitamente, afastando-se de Marie Claire, perguntando-lhe encrespada: - Onde é que está a Charbonne com esses cavalos? vou procurar
a Miri imediatamente para lhe dizer que a proíbo de pôr pé fora da ilha Encantada.
Marie Claire levantou-se e pegou-lhe por um braço.
- Minha querida filha, não podes proibir a Miri do que quer que seja. É isto que tenho temido dizer-te. Já é tarde de mais. A Miri já partiu para Paris.
Gabrielle apanhou as saias para não as sujar de lama, excrementos de cavalo e outras imundícies espalhadas pela rua. A passagem estendia-se por entre prédios encavalitados
uns nos outros, construções de madeira com três e quatro pisos de habitação e comércio. Algumas das estruturas eram tão antigas que já haviam começado a descair
para cima da contígua.
A aba larga do chapéu de palha protegia o rosto de Gabrielle do sol do fim da manhã enquanto procurava o número 14 da Rue dês Cartelles. E ali estava. A última casa
antes de se chegar à esquina. Um prédio mais recente de pedra caiada, onde um próspero ferrageiro e ferreiro ocupava o piso térreo, tinha a portada horizontal baixada
para servir de balcão onde os artigos da loja estavam expostos. O segundo piso era reservado há habitação, enquanto o terceiro se destinava aos aprendizes e servos.
O sótão servia de alojamento a viandantes.
Gabrielle semicerrou as pálpebras enquanto olhava para as pequenas janelas das águas-furtadas com as portadas sinistramente fechadas. Era ali, segundo os espiões
de Catarina, que o capitão Nicolas Remy se alojara sob o nome de Jacques Ravelle.
A maioria das pessoas que passavam por Gabrielle na rua eram trabalhadores, aprendizes, comerciantes, artesãos, donas de casa e alguns pedintes. Trajada com o seu
vestido mais velho e com o cabelo caído pelos ombros, apercebeu-se de que ela própria poderia ter passado pela filha de um humilde comerciante.
Sentindo-se exausta devido aos acontecimentos da noite anterior, Gabrielle passara a noite em claro. Por isso, naquela manhã sentira-se demasiado cansada para usar
o espartilho, as anquinhas e os saiotes que qualquer dos seus elegantes e dispendiosos vestidos teria exigido. Nunca se parecera menos
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com a infame cortesã que, por suposto, era, uma mulher capaz de levar a cabo a promessa que fizera à Rainha das Trevas, atraiçoar Remy, seduzindo-o de maneira a
desviá-lo do que ele considerava ser o seu dever.
O anel que fora obrigada a aceitar de Catarina já se encontrava fechado à chave numa gaveta. Gabrielle passara horas a fio acordada, a tentar pensar numa maneira
que lhe permitisse sair daquele pacto com o Diabo sem que pusesse a vida de Remy em perigo. Não era de ânimo leve que se quebrava uma promessa feita à Rainha das
Trevas e, em pensamento, Gabrielle amaldiçoou Remy por ter posto ambos naquela situação tão difícil.
Apesar de tudo, sentia-se ansiosa por ver o homem, quanto mais não fosse para saber como é que o encontro dele com o rei de Navarra na noite anterior tinha corrido.
Aguardou impacientemente que uma carroça carregada de centeio, puxada por uma mula, passasse lentamente. Atravessou a rua a correr, apressando-se em direção ao alojamento
de Remy, perturbada ao sentir que o coração começava a bater-lhe mais depressa no peito. Quem é que tentava enganar?, perguntou-se.
Muito simplesmente... estava ansiosa por voltar a vê-lo.
Quando entrou na oficina, ficou envolvida no barulho de marteladas que davam forma ao ferro quente. Viu as chamas altas na forja, de onde saía calor e labaredas
como se expelidas pela boca de um dragão, fazendo com que as camisas dos jovens aprendizes ficassem empapadas de suor. Não teve qualquer dificuldade, recorrendo
aos seus encantos, em convencer um dos rapazes esgalgados a mostrar-lhe o acesso até ao alojamento de Remy.
Sentia um tremor de nervosismo inexplicável. Bateu à porta com mais timidez do que fora sua intenção. Cerrou os punhos e bateu com os nós dos dedos com mais força.
Ninguém lhe respondeu. Gabrielle franziu as sobrancelhas. O aprendiz dissera-lhe que Lobo tinha saído, mas estava certo de que Monsieur Ravelle se encontrava em
casa. Gabrielle voltou a bater e depois tentou o puxador da porta. Para sua perplexidade e consternação, rodou facilmente.
Teria Remy enlouquecido por não ter tido o cuidado de fechar a porta à chave? Para não mencionar o perigo que a Rainha das Trevas representava, estavam em Paris,
por amor de Deus, e não numa qualquer vila rural de Navarra. A cidade estava cheia de ladrões, carteiristas e assassinos.
Gabrielle empurrou a porta e espreitou cautelosamente para o interior.
- Remy? - O aposento estava mergulhado em penumbra, pelo que precisou de um certo tempo para conseguir discernir alguma coisa. Não
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que houvesse grande coisa para se ver no aposento mobilado apenas com algumas peças de mobília. Havia alguém estendido no divã, tapado com um cobertor fino. Viu
um pouco do cabelo de um louro-escuro caído na almofada. Remy ainda estava na cama àquela hora? Aquilo não parecia nada dele. Gabrielle sentiu um aperto no estômago
de apreensão. Aproximou-se da cama em bicos de pés.
- Remy? Estais... estais... - Interrompeu-se ao ouvir um grito gutural que saiu dos lábios dele. Um grito tão horrível que Gabrielle estremeceu e recuou alarmada.
Remy contorceu-se em cima do colchão, afastando o cobertor até à cintura e revelando os contornos do seu peito, a pele a brilhar de transpiração. com um gemido abafado,
agitou a cabeça de um lado para o outro na almofada, como se estivesse a delirar num estado febril.
Gabrielle ficou abalada, temendo que Catarina já tivesse faltado à sua palavra, tendo encontrado maneira de chegar a Remy para lhe administrar um dos seus venenos
letais. Gabrielle deixou-se cair de joelhos à beira do leito, apalpando o pulso de Remy, cheia de frenesim. Conseguiu sentir a pulsação durante alguns segundos antes
de ele se soltar bruscamente da mão dela, mas foi o suficiente para a assegurar de que a pulsação dele era forte, embora fosse acelerada.
Ele voltou a gemer, murmurando:
- Espada... raios vos partam! Dai-me a... espada. Preciso de lutar... preciso de salvar... - Estremeceu com um choro soluçado que dilacerou o coração de Gabrielle.
Não era a febre que assolava Remy. Estava mergulhado num pesadelo horrível...
Os sinos da igreja badalavam num tamanho dangor incessante que Remy pensava que daria consigo em doido. Tapou os ouvidos com as mãos enquanto cambaleava pelas mas
de traçado tortuoso. A loucura reinava em volta dele, o bater dos sinos pontuado pelos gritos excruciantes de mulheres e o pranto de crianças, os gritos guturais
dos homens. Paris como que estava pintada de um cinzento de cinzas, as casas, as pedras da calçada, as faces dos mortos e dos moribundos. A única cor que restava
era o vermelho da maré de sangue que espirrara para as paredes e formava poças debaixo dos corpos espalhados pelo pavimento.
A sua espada... Remy precisava de recuperar a espada antes que fosse tarde de mais. Mas a cada passo que dava deparava-se com outra parede intransponível que se
erguia à sua frente. Corria por um beco atrás de outro, sentindo um desespero crescente. O chão
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estava tão apinhado de corpos que mal conseguia mexer-se sem tropeçar num deles. Desequilibrou-se e caiu desamparado de joelhos junto do cadáver de um homem de constituição
robusta, a barba salpicada de sangue.
"Dev, disse numa voz embargada.
Os olhos do homem morto abriram-se de repente, fitando Remy com uma expressão acusadora.
"Porque não nos salvaste? Devias ter-nos salvado. Es o nosso Flagelo."
"Dev, eu... eu lamento muito. Perdi a minha espada. Eu..." Remy agarrou a mão de Devereaux. Mas a carne do homem desfese até que Remy só ficou com os ossos dos dedos
na mão,
Remy recuou, a respiração arfante ao ouvir o barulho de passos pesados, as botas a ecoarem contra o empedrado da rua. Agora vinham por ele, o exército demoníaco
que assassinara a sua gente. E não tinha armadura nem espada. Preparou-se para o que lhe estava reservado.
Mas viu apenas um homem que emergia das sombras pardacentas ao fundo da rua. Alto e robusto, as feições parcialmente ocultas pelo visor do capacete de aço, a túnica
e as mãos empapadas de sangue. O demónio investiu contra Remy, com um sorriso frio a arrepanhar-lhe os lábios. Ergueu uma mão manchada de sangue que levou ao visor,
preparando-se para o empurrar para trás, revelando o resto das suas feições hediondas.
"Não!", gritou Remy, tentando escapar por não querer ver. Mas foi imobilizado por mãos suaves e cálidas, enquanto a voz de um anjo o chamava vinda de um lugar muito
distante.
- Remy! Remy!
Gabrielle inclinava-se por cima dele, não querendo agravar a situação sacudindo-o violentamente para o despertar. Abanou-lhe o ombro suavemente, chamando-o pelo
nome sem elevar muito o tom de voz, mas sem qualquer resultado. Remy continuava a rebolar a cabeça na almofada, continuando a falar sem nexo acerca de demónios e
de espadas perdidas. Gabrielle pegou-lhe na cabeça com firmeza, esforçando-se por imobilizá-lo.
- Remy! Tendes de acordar.
Soltando um sonoro rugido, Remy abriu os olhos. Soergueu-se repentinamente e atirou-se a Gabrielle, o chapéu de palha dela a voar-lhe da cabeça. Antes de ter tempo
para voltar a respirar, ele prendeu-a na cama debaixo de si, o corpo musculado a fazer pressão sobre ela.
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Alguns fios humedecidos de cabelo caíam-lhe para os olhos, o semblante com uma expressão desvairada. Gabrielle ficou com um nó de medo na garganta. Remy rosnou,
cerrou o punho e levou o braço atrás.
- Não! Remy - gritou Gabrielle. - P... parai. Sou eu. - Retraiu-se, preparando-se para a agressão. Remy imobilizou a mão a escassos centímetros da cara dela. Pestanejando
confuso, o olhar dele desviou-se dela para a lúgubre atmosfera da alcova.
- Gabrielle? O... o quê...
- Estáveis a ter um pesadelo - explicou ela, contorcendo-se até conseguir libertar um braço. com dedos que tremiam, ela afastou o cabelo para trás, tirando-o da
fronte dele. - Apenas um pesadelo.
com a respiração arquejante, Remy voltou a fixar o olhar nela. Ela acreditara estar familiarizada com todas as expressões fisionómicas dele, de orgulho, austeras,
ternas e até as mais sombrias do seu temperamento. Mas nunca tinha visto aquele homem forte e calado com uma expressão tão devastada e de vulnerabilidade. Gabrielle
enlaçou-o nos seus braços, encostando-lhe a cabeça ao seu ombro. Ele escondeu o rosto no pescoço dela, a respiração ainda arquejante.
- Está tudo bem - disse ela numa voz tranquilizante, numa tentativa para o reconfortar, como teria feito com a irmã mais nova, Miri, que com muita frequência era
vítima de sonhos aterradores. Gabrielle acariciou-lhe a nuca, escondendo os lábios no cabelo dele.
"O pesadelo já acabou e eu estou aqui - murmurou ela. - Agarrai-vos a mim.
Os braços dele fecharam-se com tanta força em Gabrielle que pensou que ele lhe esmagaria os ossos. Mas ela abraçou-o com a mesma intensidade, até sentir que o bater
extremamente acelerado do coração dele começava a abrandar. Gabrielle passou os dedos a toda a altura da coluna vertebral de Remy, sentindo o calor da pele nua,
esforçando-se por aliviar a tensão que sentia nos músculos contraídos das costas. Quando a mão desceu mais um pouco, ficou surpreendida por um facto de que não se
apercebera até então.
Remy estava completamente nu.
Resmungando qualquer coisa incoerente, ele saiu de cima dela. Levantou-se da cama e começou a apalpar o soalho até encontrar um par de calções. Gabrielle endireitou-se
mais lentamente, tentando agir da maneira mais recatada, ou seja, desviar o olhar. Já tinha tido muitos amantes, mas nunca sentira qualquer desejo de olhar para
qualquer deles quando estavam nus.
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Mas os corpos deles eram débeis e moles quando comparados com a constituição física de um homem que passara toda a sua existência na vida militar. Remy estava de
costas para ela enquanto puxava os calções por cima das coxas fortes e vigorosas e pela curva firme das nádegas. Gabrielle não resistiu a olhar.
Remy olhou furtivamente para ela por cima do ombro. Acabou de apertar os calções abaixo dos joelhos, após o que se dirigiu para o lavatório de pé, chapinhando tanta
água na cara que era como se o homem estivesse a tentar afogar-se. Alisou o cabelo para trás e abriu a portada da janela, deixando que a brisa matinal soprasse para
a sua cara e peito.
A entrada da luz solar na alcova fez com que Gabrielle pestanejasse. Improvisou uma pala com a mão, fazendo sombra para os olhos e olhando para Remy. Ele apoiou
um braço na caixilharia da janela, com o rosto parcialmente desviado dela, mas ela reparou na mancha de um vermelho-escuro que começava no pescoço e se estendia
até às bochechas.
Seguiu-se um silêncio feito de mal-estar e Gabrielle tentou pensar em alguma coisa que pudesse dizer. Supostamente, não devia ter dificuldade em dizer alguma coisa
espirituosa que cobrisse todas as situações. E não deixar-se ficar sentada a corar como uma virgem tola. Torcendo nervosamente alguns fios de cabelo, disse:
- V... valha-nos Deus, Remy, não existe razão nenhuma para constrangimentos. Não se pode dizer que eu nunca tenha visto um homem nu.
- Estremeceu assim que as palavras lhe saíram da boca, compreendendo que aquilo não era a melhor coisa que podia ter dito, fazer com que ele se lembrasse disso.
- Sei que não - replicou ele. - E também não se pode dizer que eu seja muito acanhado. Não foi o facto de me terdes visto nu que me incomodou. Foi... a outra coisa.
- Que outra... - começou Gabrielle a perguntar, para se interromper ao perceber ao que ele se referia. Foi o facto de ela ter testemunhado a sua vulnerabilidade
em resultado do pesadelo. Era isso que envergonhava Nicolas Remy, afetando-lhe profundamente a alma de militar orgulhoso.
Ela compreendia bem de mais o que se sentia na pele quando uma pessoa expunha demasiado do coração a um estranho. Mas ela não era uma estranha. Não obstante tudo
o que os dividia, Gabrielle não deixara de ser muito amiga dele. Gabrielle seguiu-o até à janela. Remy ficou tenso ao sentir que ela se aproximava, o que ela percebeu
ao ver as costas contraídas.
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Pousou uma mão no ombro dele com uma ternura que era muito rara nela.
- Remy, não há ninguém que não tenha sonhos maus.
- Mas não os soldados - ripostou ele com uma entoação de desprezo por si próprio. - E, se os tiverem, pelo menos não devem gemer como um rapaz choramingas.
- Ninguém se enganaria tomando-vos por um rapaz - disse Gabrielle, puxando-o por um braço para que se virasse para si. Remy começou a voltar-se com relutância e
Gabrielle ficou com a respiração embargada quando a luz do Sol revelou o que não tinha visto antes.
O peito de Remy era uma teia de cicatrizes, algumas pouco visíveis e outras muito irregulares e esbranquiçadas que desfiguravam a superfície macia da pele dele.
Gabrielle levou as mãos à boca para abafar um grito de horror.
Os lábios de Remy contraíram-se, mas tentou levar o assunto para a brincadeira.
- Não é muito bonito de se ver, pois não? Só espero que tenha muito mais bom aspeto quando visto de trás. Podeis passar-me a camisa, por favor?
Gabrielle mal ouviu o pedido dele. Remy era um homem que combatera em muitas batalhas e saía sempre delas com algumas cicatrizes que o provavam. Mas nada como aquilo.
com o dedo, ela percorreu uma das cicatrizes mais feias. Uma que se estendia do ombro e acabava perigosamente perto da região do coração. Conseguia imaginar com
demasiada clareza a espada que deixara nele aquela cruel marca e que teria rasgado pele e músculo. Quase sentia o aço frio e aguçado da lâmina a golpear-lhe o seu
próprio ombro.
- Oh, Remy - murmurou Gabrielle, abrindo os dedos no peito dele, precisando de sentir o bater forte e tranquilizante do coração dele.
- Não é motivo para perturbações, minha querida - disse Remy com brusquidão. - São apenas marcas de alguns ferimentos antigos.
- As cicatrizes são dessa noite, não são? A véspera do dia de São Bartolomeu. E o pesadelo era acerca desse massacre.
- Talvez sim. Não me lembro dos meus sonhos depois de acordar.
Ele estava a mentir. A recordação desse pesadelo continuava gravada nas comissuras da sua boca, nas sombras que lhe assolavam os olhos.
- Murmuráveis constantemente qualquer coisa acerca de um demónio. Um homem cujo rosto ele vos escondia. Um homem que não queríeis ver. Quem era ele?
- Não faço a mínima ideia. Foi apenas um pesadelo, um sonho disparatado.
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- Mas...
- Esquecei o assunto.
Gabrielle reconheceu a nota de finalidade na voz dele, como uma porta que se fechava com força na sua cara, porque ela própria tinha feito precisamente o mesmo com
tanta frequência, guardando ciosamente as feridas no seu coração. A diferença era nunca ter sentido na pele o quanto era duro ser aquela a quem era vedada a entrada.
Acariciou o peito dele com as duas mãos, como se, de uma maneira qualquer, pudesse eliminar as cicatrizes, como se também pudesse banir as recordações dolorosas.
A pele de Remy foi percorrida por um frémito enquanto ela prosseguia com a sua exploração tão imprudente, começando a ter menos perceção das cicatrizes e mais perceção
da presença do homem, dos firmes contornos do peito e dos braços, os músculos fortemente esculpidos, os pelos finos de um louro-dourado que desapareciam abaixo do
cós dos calções.
Ouviu a respiração de Remy a fazer-se mais rapidamente e apercebeu-se de que o calor que lhe afogueava as faces já não tinha nada a ver com embaraço.
"Eu podia levá-lo para o meu leito, seduzi-lo", dissera a Catarina.
Gabrielle ficou perturbada ao compreender que não fora apenas uma fanfarronada sem conteúdo. Como lhe seria fácil passar das palavras à prática, mais ainda por desejar
Nicolas Remy de uma maneira como não desejara nenhum homem em muito tempo. Talvez mesmo nunca. O pensamento encheu-a com uma sensação de pânico que lhe era familiar,
receando fitá-lo olhos nos olhos.
Obrigou-se a fazê-lo e constatou que ele a olhava com fixidez, o ligeiro sombreado da barba que começava a crescer imprimindo aspereza ao queixo e fazendo com que
ele parecesse perigoso. Mas era a expressão sombria e melancólica que a surpreendeu. A excitação sexual era evidente, mas moderada pela circunspeção.
Remy agarrou-a pelos pulsos e pegou-lhe nas mãos para as afastar do seu peito, perguntando-lhe:
- O que é que viestes fazer aqui esta manhã, Gabrielle? E como é que conseguistes entrar?
Não se podia dizer que aquela fosse a saudação que ela tinha esperado depois de ter ajudado Remy a falar com o rei de Navarra na noite anterior. Não contara com
que ele se mostrasse agradecido, mas pensara que haviam
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conseguido uma espécie de tréguas, acreditando que Remy talvez começasse a confiar um pouco em si. Se bem que - estremeceu ao recordar-se do pacto que estabelecera
com Catarina - não existisse a mínima razão para ele o fazer.
Gabrielle libertou as mãos das dele e esfregou-as atrás das costas, com um certo sentimento de culpa.
- Entrei como se faz habitualmente, pela porta. A mesma porta que, por descuido, não fechastes à chave.
- Eu fechei a maldita porta, mas a fechadura está partida, nem sempre se consegue fechá-la.
- Nesse caso, sugiro que trateis de a reparar. Porque não me passou despercebido que ainda não haveis feito a pergunta mais importante.
- E isso seria...
- Como é que eu sabia onde encontrar-vos.
- E como é que soubestes?
- A Catarina teve a muita gentileza de me fornecer o vosso endereço, incluindo o nome falso que usastes para arrendar este alojamento. Ela mandou alguém para vos
seguir quando deixastes o palácio ontem à noite.
Remy reagiu à informação de Gabrielle com um aprumo surpreendente, a agitação que sentia apenas traída pelo músculo que se contraía no maxilar. Pegou numa camisa
de linho branco, que já usara antes, e vestiu-a pela cabeça.
- Portanto, a Rainha das Trevas sabe...
- Mais ou menos tudo - atalhou Gabrielle lapidarmente. Ela tem quem nos espie e tem conhecimento da pequena reunião que vos proporcionei com o rei de Navarra.
Remy enfiou os braços nas mangas e encolheu os ombros. Depois da noite infernal que Gabrielle passara a preocupar-se por causa dele, temendo pela sua vida, a calma
do homem era exasperante. Irritada, colocou-se em frente dele, firmando as mãos nas ancas.
- Remy! Ouvistes o que eu vos disse? A Catarina sabe. Não podeis arriscar-vos a continuar em Paris por mais um dia que seja. Seria melhor que pusésseis muitos quilómetros
de distância entre vós e Paris.
- Melhor para quem? - ripostou Remy. - Se a Rainha das Trevas está ao corrente de tudo, então porque não estou morto? Ou, no mínimo, preso. E vós também.
"Porque prometi a minha alma à mulher, assim como a vossa."
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- Eu... eu, a verdade é que não sei dizer - respondeu Gabrielle hesitante. - Estou em crer que consegui convencê-la de que já não sois uma ameaça aos interesses
dela.
- Isso deve ter requerido muito convencimento inteligente - retorquiu Remy, olhando-a com desconfiança. - Gostaria de saber exatamente como é que conseguistes fazer
isso.
- Sou uma boa mentirosa. Além disso, se ela fizesse de vós um mártir pela segunda vez, isso só serviria para alimentar as tensões entre católicos e huguenotes. Além
de que Catarina está a chegar à conclusão de que a guerra custa muito dinheiro. O mais provável é ela querer ver-vos de regresso à corte para poder ficar de olho
em vós. A vossa segurança está garantida, mas apenas de momento.
Desde que Gabrielle conseguisse convencer a Rainha das Trevas de que tinha Remy rendido aos seus encantos, sob o seu controlo e na sua cama. Mas não lhe era difícil
imaginar qual seria a reação de Remy se ela lhe dissesse isso. Ao invés, estendeu-lhe uma mão num gesto de súplica.
- Oh, Remy, por favor. Até mesmo vós deveis concluir que é demasiado perigoso se continuardes aqui. Tendes de partir. Agora.
- Dou muito apreço ao vosso cuidado - disse Remy concisamente.
- Mas tenciono ficar e arriscar a minha sorte. - Ignorando a mão que ela lhe estendia, contornou-a e continuou a vestir-se, apertando os cordões da camisa. Gabrielle
baixou a mão sentindo-se pouco à vontade. Quando se despediu de Remy nas escadas nas traseiras do palácio, tinha existido algo que se aproximava da antiga cordialidade
entre os dois.
Mas esta manhã apercebera-se de alguma irritação na atitude de Remy, até mesmo uma certa hostilidade, e Gabrielle acreditava que sabia qual a razão para isso. Ele
devia ter fracassado nos seus esforços de convencer o rei de Navarra a tentar a fuga. O que não a surpreendia. Apesar da sua maneira de ser indolente, Henrique era
um homem arguto, um pragmático que só conseguira sobreviver durante tanto tempo por nunca correr riscos desnecessariamente.
com vista a concretizar as suas próprias ambições, a permanência de Henrique de Navarra em França era precisamente o que Gabrielle desejava. Mas estava a constatar
que não se sentia satisfeita com o fracasso de Remy. Desconfiava que ele pretendia que o rei de Navarra fosse um segundo rei Artur, possuidor de toda a coragem e
ideais do lendário monarca, um homem que Remy poderia servir e seguir até à morte. Tal como ele, em tempos, a imaginara perfeita, sem mácula e casta.
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Era assombroso que um soldado como ele, que tinha visto tanto do que era sinistro no mundo, a brutalidade da guerra, ainda pudesse manter os seus padrões de honra
que eram impossivelmente elevados, esperando que os outros se pautassem pelos mesmos padrões. Era a sua faceta mais exasperante, mas também a que lhe inspirava mais
ternura por ele, fazendo com que Gabrielle ansiasse por o enlaçar nos seus braços, protegendo-o das desilusões que lhe estavam reservadas.
Muito embora ela duvidasse de que ele acolhesse de bom grado qualquer manifestação de comiseração da parte dela sobre o assunto, disse com suavidade:
- Estou a deduzir, com base no vosso mau humor, que a conversa com o rei de Navarra não correu bem. Não conseguistes persuadi-lo a tentar a fuga.
Remy inspecionou o queixo por barbear num pequeno espelho rachado, colocado acima do lavatório
- Pelo contrário, ele concordou.
- O quê!? - exclamou Gabrielle arfante.
- O rei de Navarra consentiu que eu preparasse a fuga, mas somente sob determinadas condições. Todas, como é evidente, referentes a vós. - Virou costas ao espelho
durante o tempo suficiente para poder olhá-la com uma expressão de amargura. - Parabéns. Conseguistes enfeitiçar o homem completamente. Ele recusa-se a regressar
a Béarn, a menos que eu encontre maneira de vos convencer a acompanhar-nos.
Recompondo-se do choque inicial, Gabrielle disse acrimoniosamente:
- Isso nunca virá a acontecer. Eu disse-vos antes que o meu futuro está aqui, em Paris, bem como o de Henrique.
- Parece-me que o Henrique tem os seus próprios planos em relação ao vosso futuro. Tenciona arranjar-vos um marido.
- Um marido!?
- Sim, ele tem a noção estrambólica de que isso tornaria a vossa ligação com ele mais respeitável, se conseguir convencer um pobre mentecapto a desposar-vos. Um
fidalgo e senhor legítimo para vos dominar de modo a garantir que fazeis exatamente o que o rei deseja. O soberano de Navarra acredita que um marido poderia ordenar-vos
que deixásseis Paris na companhia dele.
Gabrielle praguejou grosseiramente e, agitada, começou a andar de um lado para o outro na alcova. Como se a sua vida já não tivesse complicações que lhe bastassem,
entre tentar impedir que Remy desse azo a que o matassem
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e tentear o seu caminho, evitando as víboras traiçoeiras da corte, ao que se juntavam as artimanhas da Rainha das Trevas. E agora, para cúmulo, Henrique tinha metido
na cabeça aquela ideia tão disparatada.
Não era invulgar que um qualquer fidalgo aceitasse desposar a amante de um rei, para o que era bem remunerado sob a forma de terras, riqueza e títulos. Mas Gabrielle
não desejava ter de arcar com o fardo de um qualquer cortesão idiota e afetado como seu marido.
- Que maravilha - resmungou. - E, por acaso, o Henrique indicou qual seria o pobre mentecapto que tem em mente para mim?
Remy pegou na navalha de barbear que estava no lavatório, se bem que, a julgar pela maneira como olhava para a lâmina, Gabrielle não podia dizer ao certo se ele
estaria a contemplar barbear-se ou cortar a garganta.
- Eu. O rei quer que eu case convosco.
Gabrielle ouviu aquilo num silêncio de atordoamento, certa de que Remy não podia estar a falar a sério. Mas, obviamente, não estava a brincar. Teve de refrear a
vontade quase irresistível de desatar a rir histericamente perante a extrema ironia daquela situação. Mais ou menos ao mesmo tempo que Gabrielle tinha prometido
à Rainha das Trevas seduzi-lo, o rei de Navarra ordenara a Remy que a desposasse.
Mas um olhar ao semblante carregado de Remy tirou-lhe toda a vontade de rir. Não admirava que ele se mostrasse tão tenso na presença dela, dando a impressão de que
alguém atirara lama ao brasão da família. Consideraria que a possibilidade de vir a casar com uma mulher de má reputação como ela era um insulto intolerável. Mas
o facto de aquilo a magoar tanto era algo que Gabrielle não queria admitir. Mas atirou a cabeça para trás orgulhosamente.
- Vós, desposar-me? Mas que inacreditavelmente ridículo. Sem dúvida que haveis recusado com a indignação que a vossa moral ofendida terá exigido.
Remy não lhe deu réplica, o olhar a desviar-se dela.
- Haveis recusado, certo? - Ao ver que ele continuava em silêncio, chamou pelo seu nome. - Remy?
Ele atirou a navalha de barbear para dentro da bacia do lavatório e ripostou:
- Não. Respondi que o faria. Prometi desposar-vos.
Gabrielle ficou de boca aberta. Por breves momentos, ficou sem fala, mas depois gritou:
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- Dar-se-á o caso de terdes enlouquecido? com certeza que compreendeis a natureza do acordo que o rei de Navarra vos propôs?
- Sem dúvida, compreendo isso muitíssimo bem.
- Sendo assim, por que diabo é que haveis consentido?
Remy olhou para ela com um misto de frustração e uma outra emoção que ela não conseguiu interpretar.
- Por que diabo é que pensais que eu concordaria?
- Não faço ideia nenhuma.
- Porque... - Remy afastou-se dela, examinando-se ao espelho, o maxilar rígido. - Porque o meu rei me ordenou. Foi por isso e mais nada.
Gabrielle engoliu em seco. Talvez, no passado, Remy tivesse uma razão bastante diferente para desejar desposá-la, antes de se ter inteirado da verdade a respeito
dela, passando a saber o que ela era. Mas agora... Que outra coisa é que ela tinha esperado que ele dissesse? Mesmo assim, pensar que ele teria aceitado aquela proposta
motivado por um infernal sentido do dever magoava e irritava Gabrielle, mais do que se ele a tivesse rejeitado taxativamente.
- Ora bem, mas que súbdito tão leal que sois, capitão - disse com frieza. - Pronto para morrer pelo vosso rei ou casar com a sua amante. Para vós é tudo a mesma
coisa, não é verdade?
Remy estremeceu perante o sarcasmo dela, mas replicou-lhe.
- Fostes vós, Gabrielle, quem insistiu em que eu devia obedecer com o que quer que fosse que ele me ordenasse.
- Sim, mas eu estava a referir-me à decisão dele em relação aos planos de fuga. E não a um absurdo acordo matrimonial.
- Não há necessidade nenhuma de ficardes tão perturbada. Afinal de contas, são necessárias duas pessoas para consentirem num noivado.
Gabrielle fitou-o com uma expressão acerba. Portanto era naquilo que Remy depositava as suas esperanças, que ela se recusasse, libertando-o de uma obrigação que,
obviamente, só lhe causava aversão. Mas raios a partissem se lhe facilitasse as coisas.
- Muito bem; e porque não? - perguntou, esboçando o arremedo de um sorriso. - Parece-me uma boa ideia.
Ficou à espera da reação de Remy à sua aquiescência, contando com choque e consternação. Mas ele manteve uma postura de estóica resignação, a coluna vertebral tão
rígida que poderia ter sido feita de ferro em vez de osso. Sem dúvida que seria aquela a atitude de um homem momentos antes
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da batalha, quando olhava para a boca dos canhões dos seus inimigos. Determinada a provocar uma resposta da parte dele, Gabrielle continuou.
- É sempre bom poder contar com um pouco de segurança adicional, não vá dar-se o caso de o rei se fartar de mim. Não que eu alguma vez consinta que isso aconteça.
- Sentiu uma satisfação selvática ao ver como os lábios de Remy se contraíam. - O casamento também será benéfico para vós porque certamente o rei de Navarra vos
recompensará generosamente. O casamento comigo deve valer, pelo menos, uma propriedade e um título nobiliárquico. Ficaríeis satisfeito com serdes armado cavaleiro
ou teríeis esperança num baronato?
- Gabrielle... - A nota ameaçadora no tom de voz de Remy devia tê-la silenciado, mas só serviu para que se comportasse ainda com mais imprudência.
- Só tendes de pensar em todos esses anos de serviço dedicado, arriscando a vossa vida no campo de batalha, e tudo o que haveis conseguido foi uma promoção a capitão.
Mas tudo o que precisais de fazer realmente é dar a honra do vosso nome à meretriz do vosso rei.
- Gabrielle, parai com isso! - vociferou Remy e ela soube que, se tivesse alguma sensatez, acataria a advertência dele. Já tinha tido oportunidade de assistir à
fúria do Flagelo.
Mas sentia-se demasiado magoada e irada para se importar com isso. Aproximou-se mais dele.
- Como é que gostaríeis de selar o nosso noivado, capitão? com um apertar de mão, como dois comerciantes que assinassem um contrato? Ou preferíeis um beijo?
Gabrielle enlaçou-lhe o pescoço, olhando-o com uma expressão desafiadora. O olhar dele ensombrou-se e soltou uma imprecação em voz baixa. Ela estava à espera que
ele a empurrasse, afastando-a de si, mas a boca de Remy esmagou-se contra a dela com uma fúria que a deixou sem respiração. Ficou tensa perante aquele assalto antes
de responder ferozmente na mesma moeda. Mas o que estavam a fazer não era beijarem-se, mas sim terem entrado em guerra um contra o outro numa feroz batalha de lábios,
um acalorado duelo de línguas.
Remy não lhe dava quartel, o seu corpo duro e implacável. Obrigou-a a retroceder em direção à cama. Gabrielle não sabia dizer se ele a tinha atirado para cima dos
cobertores da cama desfeita ou se teria sido ela a puxá-lo para cima de si. Caíram na cama num frenesim de beijos sucessivos e mãos
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que não tinham descanso. Remy puxava-lhe freneticamente os cordões do vestido, descaindo o tecido por um ombro e pondo à mostra um dos seios, que apalpou com a mão
cheia de calos. Por seu lado, Gabrielle metia as mãos por dentro da camisa, arranhando-lhe a pele macia das costas com as unhas.
com um ronco abafado, Remy começou a beijar-lhe ardentemente o pescoço e desceu até aos seios generosos, o queixo por barbear a abrasar-lhe a pele aveludada. A boca
dele fechou-se num dos mamilos dela, chupando-o e puxando-o ao de leve com os dentes, até Gabrielle deixar escapar um pequeno gemido, a cólera que sentira antes
a perder-se nas correntes mais sombrias do desejo. Aquela era a espécie de paixão que vinha receando há muito, forte, ansiosa, fora do seu domínio.
Remy forçou-se entre as coxas dela. Até mesmo através das dobras de tecido, Gabrielle sentia a prova dura da excitação sexual dele a fazer pressão sobre a sua região
genital e a sensação de pânico habitual apoderou-se dela. Ficou rígida.
- Remy, por favor. Par... - As suas palavras foram abafadas debaixo do ardor dos lábios dele, que a beijava outra vez, a sua boca a incentivar e a exigir que ela
se rendesse. Soergueu o corpo e começou a levantar-lhe a saia. O pânico de Gabrielle transformou-se num absoluto terror.
De súbito, já não eram as feições austeras de Remy por cima do seu rosto, mas sim a fisionomia de expressão lúbrica de Danton.
- Não! - gritou numa voz aguda, debatendo-se freneticamente para sair de debaixo dele. - Parai! - Sem lhe dar a possibilidade de responder, Gabrielle começou a arranhá-lo
cheia de frenesim. O seu coração batia acelerado enquanto se preparava para sentir os braços impiedosamente imobilizados acima da cabeça, ao que se seguiria a dor
aguda da conquista dele. Mas o homem que se encontrava em cima dela ficou petrificado por uma fração de segundo, após o que se tirou de cima dela. As feições turvas
começaram a definir-se, dando lugar às linhas duras e nítidas do rosto de Remy, os olhos a mostrarem irritação devido ao desejo frustrado e à confusão. Afastou-se
dela, o peito a soerguer-se rapidamente enquanto tentava acalmar a paixão.
Gabrielle sentou-se lentamente, as faces a arderem de vergonha por causa daquela crise de quase histeria. Remy não era Danton. No fundo do seu coração sabia que
Remy jamais possuiria uma mulher à força, o que tornava a sua reação ainda mais irracional.
com os dedos a tremer, puxava o vestido para os ombros. Não era capaz de se forçar a olhar para Remy, tendo perceção de que ele devia considerar
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que era a rameira mais desprezível e provocadora à face da Terra, tentando um homem ao ponto de o pôr louco de paixão, para depois o rejeitar. O que é que Danton
lhe tinha chamado naquele fatídico dia? Uma pequena galdéria desonesta.
Remy devia estar furioso com ela e tinha todo o direito de estar. Mas o tom da voz dele denotava mais desespero do que cólera.
- Não vos compreendo de todo, Gabrielle. Serei eu assim tão repulsivo? Aparentemente, estais disposta a fazer amor com qualquer outro homem de Paris. Porquê não
comigo?
- Fazer amor? É isso que pensais que eu faço? - perguntou ela, soltando uma gargalhada que soava a falso. - Eu sobrevivo. Eu suporto. A única maneira de ser capaz
de tolerar ir para a cama com um homem é fazendo os movimentos automaticamente, enquanto finjo que estou num outro lugar qualquer.
E sabia que nunca seria capaz de proceder dessa maneira com Remy. Ele não era o género de homem com quem uma mulher pudesse fingir. Ele faria com que ela o desejasse
com ardor, mas no fim acabaria por se sentir dilacerada ao lembrar-se de Danton.
Remy observava-a com uma intensidade que se espelhava nos sobrolhos franzidos, como se estivesse à espera que ela lhe desse mais explicações. Mas Gabrielle receava
já ter dito de mais. Tentava apertar os cordões do vestido, mas só conseguiu emaranhá-los. Quando Remy se aproximou de si, ficou tensa.
- Eu só queria ajudar-vos a apertar o vestido - disse ele retrocedendo.
- Não preciso de ajuda. Ambos estamos a correr o risco de nos esquecermos de que o nosso noivado o é só de nome. Pertencerei ao vosso rei, pelo que será muito melhor
se nunca mais me tocardes.
- Muito bem. Eu... eu prometo. Não voltarei a tocar-vos. - Em vez de a sossegar, a promessa de Remy suscitou-lhe uma vontade quase irreprimível e irracional de desatar
a chorar. Quanto mais depressa saísse dali, melhor seria para si. Acabando de apertar os cordões atabalhoadamente, procurou o chapéu de palha, que lhe tinha caído
da cabeça. Encontrou-o entre os pés do leito e a parede, juntamente com algumas peças de vestuário que Remy despira na noite anterior. Pegou na capa forrada a vermelho,
alisou as dobras de tecido azul-escuro e entregou-lha.
- Devíeis cuidar melhor disto. O cetim é difícil de limpar e essa capa deve ter-vos custado bom dinheiro. Aonde é que... - Gabrielle calou-se
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horrorizada com o pensamento que lhe ocorreu à mente. - Meu Deus, Remy. Vós e esse vosso amigo Lobo, o ladrão... vós... vós não tendes andado... andado...
- A roubar carteiras e a emboscar viajantes incautos? Não. - O olhar de Remy continuava preso no rosto dela taciturnamente. Atirou a capa para cima da cama como
se lhe fosse absolutamente indiferente que tivesse sido dispendiosa.
- Então, aonde é que arranjastes o dinheiro para a comprar? - perguntou Gabrielle, insistindo com ele apesar do constrangimento que sentia.
- Eu e a minha espada estivemos ao serviço de alguns barões ingleses.
- Éreis um mercenário. A soldo dos ingleses.
Remy sempre afirmara que odiava a guerra e que combatia para defender os seus concidadãos. Ter descoberto aquela quebra dos ideais dele perturbou Gabrielle mais
do que a perda da sua própria inocência.
- Estou a ver. Portanto, não sou a única que tem andado a vender-se.
- Nunca considerei as minhas atividades a essa luz - retorquiu Remy corando. - Precisei de fundos para ajudar o meu rei e, infelizmente, a vida militar é a única
em que sou competente.
- Tal como para mim seduzir homens é a única coisa em que...
- Não digais isso. Nunca deveis dizer uma coisa dessas. - Remy fez menção de a agarrar pelos ombros, mas deteve-se, dando a impressão de se ter lembrado da sua promessa.
com olhos ensombrados pela frustração, cerrou os punhos e manteve-os rigidamente ao longo do corpo. - Danação, Gabrielle! Não podeis esquecer todo esse maldito disparate
de virdes a ser amante do rei de Navarra? Partamos de Paris. De imediato. Permiti que vos leve de volta à ilha Encantada.
Aquela inesperada oferta deixou-a mais perplexa do que qualquer outra coisa. Era impossível que ele estivesse a falar a sério, no entanto, Remy nunca lhe parecera
mais veemente.
- Mas porquê... porque haveria eu de querer voltar para a ilha Encantada? - perguntou Gabrielle numa voz vacilante.
- Porque é lá que pertenceis. É onde fica a vossa casa.
Voltar para casa... Remy não fazia ideia das imagens que invocara ao mencionar aquela simples palavra, da mansão tão acolhedora aninhada no vale, o fumo a evolar-se
em espirais preguiçosas da chaminé. Recordava-se da brisa que entrava pela janela da sua alcova, agitando os panos que pendiam do dossel do leito e trazendo consigo
o distante cheiro salino do mar,
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bem como as doces fragrâncias do canteiro das ervas medicinais de Ariane. Dos seus folguedos com Miri nas sombras frescas e misteriosas da floresta. Ou de quando
se sentava diante do lume da lareira enquanto Ariane, com toda a paciência, lhe desemaranhava o cabelo.
Aquelas imagens eram tão vívidas, tão reais, que era como se Gabrielle as tivesse pintado na sua memória quando a sua magia estava no seu ponto mais forte. Gravadas
nas folhas do seu caderno de esboços, um caderno que fechara de uma vez por todas.
- Não posso voltar para casa - disse Gabrielle numa voz enrouquecida. - A Ariane... ela... não haveria de me querer lá. Ela jamais me perdoará por ter vindo para
Paris, as coisas que eu fiz.
- É claro que perdoará. E vossa irmã. Perdoar-vos-á tudo e mais alguma coisa.
- E quanto a vós? Podeis perdoar-me? - perguntou-lhe Gabrielle, perscrutando-lhe o rosto. - Se me levásseis para a ilha Encantada, ficaríeis lá comigo?
Remy não lhe respondeu de imediato, hesitando, mas não precisava de lhe responder. A tristeza que velava os seus olhos escuros disse a Gabrielle tudo o que ela precisava
de saber. Virou-lhe costas e, por assim dizer, apanhou os cacos do seu orgulho.
- Não importa. Agradeço-vos a vossa generosa oferta, capitão, mas eu devo recusar. Não estou à procura de absolvição nem de uma maneira de voltar para casa. Sinto-me
bastante feliz onde estou.
- Gabrielle...
Ela ignorou-o, receando que mais uma palavra poderia desfazer o controlo com que refreava as suas emoções. com brusquidão, pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se num
passo largo para a porta.
- Tenho de ir andando - disse e conseguiu esboçar um sorriso cheio de frieza com que se despediu de Remy. - E não deveis esquecer-vos de procurar um bom serralheiro
que vos conserte a fechadura.
Remy inclinou-se fora da janela, esticando o pescoço para um último olhar a Gabrielle, que percorria a rua apinhada de gente abaixo de si. Até mesmo trajada com
aquele vestido velho e chapéu de palha, tinha uma postura de duquesa e, instintivamente, as outras mulheres afastavam-se para o
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lado, dando-lhe passagem, enquanto os homens - praticamente - torciam o pescoço, olhando para ela com uma admiração bem patente e olhares plenos de luxúria.
Muito embora aqueles olhares lúbricos fizessem com que Remy quisesse partir umas quantas cabeças, a verdade é que não podia censurá-los pela reação perante a sensual
beleza dela. Não quando o seu próprio corpo continuava a fremir com uma necessidade que era quase dor, só lhe apetecendo bater com os punhos fechados na parede de
pura frustração. Ou, melhor ainda, bater com a cabeça. Porque se tinha deixado ficar como um idiota, permitindo que ela se fosse embora daquela maneira?
Porque não respondera com mais prontidão às perguntas dela? Poderia ele perdoá-la? Teria estado disposto a levá-la de regresso à ilha Encantada? Poderia ele esquecer
a demanda que o levara a Paris e permanecer lá com ela?
Ah, mas aí é que residia o problema. A parte em que tropeçara e que continuava bem presente. Desde a véspera do dia de São Bartolomeu que a única coisa que lhe servira
de arrimo, que o mantivera de mente sã, era a sua missão de resgatar o rei de Navarra. Fora um soldado durante toda a sua vida, sem casa e sem família. O seu dever
e honra tinham sido tudo o que poderia chamar de seu e temia ter comprometido a segunda.
Sentira-se magoado quando Gabrielle o acusou de se vender, mas ela tinha tido razão. Havia trocado a sua honra por ouro inglês e agora estava a abdicar do resto
a pouco e pouco ao obedecer à nefasta ordem que o rei de Navarra lhe dera. Vir a ser o marido de Gabrielle, mas sem ser um marido em toda a aceção da palavra. Ser
cornudo antes mesmo de a desposar.
Enquanto via Gabrielle a desaparecer entre a multidão, continuava a poder ouvir os ecos da pergunta que ela lhe fizera tão veementemente. "Por que diabo é que haveis
consentido uma coisa dessas?"
Remy encostou-se ao peitoril da janela numa atitude de desalento. O seu dever. Foi isso que disse a Gabrielle, tendo mesmo conseguido convencer-se a si próprio de
que essa era a razão antes de ter acordado esta manhã, deparando com ela na sua alcova.
Remy rangeu os dentes. Se Gabrielle tinha de lhe aparecer inesperadamente, porque não podia ter vindo trajada com um dos seus elegantes vestidos, adotando uma postura
régia e sobranceira? Porque tinha mostrado uma maneira de ser terna e branda, acalmando-o depois do pesadelo e mitigando o seu orgulho dilacerado? Quando ela lhe
acariciara as cicatrizes
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tão feias sem sequer um único estremecimento, os olhos azuis tão doces e tristes, lembrando-lhe a jovem que preenchera os seus sonhos durante tanto tempo, aquela
Gabrielle dos dias de ambos na ilha, aquela que ela insistia em dizer que não existia.
Ele soubera naquele preciso momento que não tinha sido o seu sentido do dever que o levara a prometer que casaria com ela. Havia concordado porque desejava Gabrielle
como nunca desejara outra mulher em toda a sua vida. Se não tivesse consentido, temia que o seu rei a entregasse em matrimónio a outro homem. E não seria capaz de
suportar isso - pensar que Gabrielle seria a esposa de outro, um qualquer canalha sem escrúpulos que a desposaria com o único objetivo de servir os seus próprios
interesses. O qual se apresentaria com ela perante Deus, jurando-lhe amor, respeito e cuidar dela sem a mínima sinceridade.
"E tu falarias com sinceridade?", perguntou-lhe uma voz trocista dentro de si. "Da maneira como tentaste cuidar dela há pouco?" O olhar de Remy desviou-se para o
leito em desalinho e estremeceu de vergonha ao lembrar-se de como tinha atirado Gabrielle para cima do colchão, tendo faltado pouco para lhe ter rasgado o vestido.
Como amante, nunca primara pela finura. As suas relações sexuais sempre tinham sido com mulheres que andavam pelos acampamentos, pontuando-se pela luxúria, dureza
e rapidez, a satisfação de luxúria mútua em que o romance era inexistente.
Imaginara que ele agiria de maneira diferente se alguma vez a sorte o bafejasse e viesse a ter Gabrielle na sua cama, procederia com lentidão, ternura e paciência,
ultrapassando cuidadosamente o pudor de donzela dela.
Pudor? Os lábios de Remy contorceram-se ironicamente ao recordar-se do ardor com que ela o beijara, enterrando as unhas nas suas costas, com a mesma paixão que ele
próprio sentira. Pelo menos, no início, até aquela súbita expressão de medo se ter espelhado no seu semblante. Não, mais de terror, quando lhe gritara que parasse
e tinha começado a bater-lhe como se receasse que ele não lhe obedecesse. Como se, na realidade, pensasse que ele talvez tentasse possuí-la à força.
Remy franziu os sobrolhos, relembrando a maneira como as mãos dela tinham tremido quando puxou o vestido para cobrir os ombros, o tremor na
sua voz.
"Fazer amor? É isso que pensais que eu faço? A única maneira de eu poder sequer tolerar ir para a cama com um homem é proceder automaticamente e fingir que estou
num outro lugar qualquer."
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Não tinha tido quaisquer semelhanças com uma experiente cortesã naquele momento. A expressão sem vida nos olhos dela despoletou-lhe a recordação da devastação que
vira nos semblantes de outras mulheres no rescaldo de uma batalha ou cerco que lhes poupara a vida, mas levado as suas almas. Mulheres brutalmente violadas por soldados
embriagados com lascívia por sangue.
Seria possível que Gabrielle tivesse sido... o mero pensamento de tal coisa era suficiente para o enfurecer de raiva. Porque se alguma vez pusesse as mãos no canalha,
retalhar-lhe-ia todo o corpo até o celerado lhe suplicar que
o matasse.
Os dedos de Remy enclavinharam-se como se já tivesse as mãos em volta da garganta do vilão. Teve de fazer um esforço para se descontrair. Tanto quanto era do seu
conhecimento, esse homem não existia e nunca tinha acontecido nada dessa natureza a Gabrielle. Era muito possível que a sua imaginação lhe tivesse levado a melhor.
Mas de uma coisa ele tinha a certeza de não ter imaginado. Independentemente do que Gabrielle pudesse afirmar, era profundamente infeliz na sua vida de cortesã e
com aquele alegado glorioso futuro como amante real que planeara para si própria. A mulher estava a precisar que a salvassem, ainda mais do que o rei de Navarra.
Contudo, existiria sempre um grande impedimento a ajudar Gabrielle e esse era a própria Gabrielle. Como diabo é que um homem começaria a desempenhar o papel de cavaleiro
andante de uma mulher que jurava a pés juntos que não queria que a salvassem?
Gabrielle percorria a rua muito movimentada, continuando a sentir-se abalada por causa do seu encontro com Remy. O orgulho feito de obstinação que lhe permitira
sair porta fora com o queixo bem erguido já a abandonara. Quando chocou de frente com uma robusta matrona, a mulher empurrou-a com o cesto das compras.
- O que é que se passa contigo, rapariga? - perguntou mal-humorada, contornando Gabrielle. - Deixa de andar com a cabeça no ar e vê por onde andas.
- Desculpe - murmurou Gabrielle. Ver por onde andava? Já era um pouco tarde de mais para isso. Acabara de aceitar desposar Nicolas Remy numa atitude de puro desafio.
Mas isso jamais iria para a frente, assegurou a si própria. Na próxima vez em que o visse, dir-lhe-ia que não tinha qualquer intenção de continuar com aquela farsa,
que ele e o seu rei podiam ir para o diabo que os carregasse. Não fosse uma parte de si anelante que se perguntava como é que seria ser noiva de Remy se as circunstâncias
tivessem sido diferentes. Se nunca tivesse existido um Danton, um rei de Navarra e uma Rainha das Trevas. Se ela ainda fosse uma jovem inocente...
Ter-se-ia casado na ilha Encantada num vestido simples, feito de um tecido azul-claro que teria saído das mãos das tecedeiras da ilha. Ariane teria feito uma pequena
coroa de flores que lhe colocaria na cabeça com toda a ternura, enquanto Miri dançaria em torno das duas, incapaz de conter o seu entusiasmo. Apesar de Gabrielle
ser filha de um cavaleiro católico e Remy um huguenote, as diferenças religiosas não teriam tido importância na ilha Encantada. Teriam trocado os votos matrimoniais
na clareira atrás de Belle
Haven, selando-os com um terno beijo.
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Ela teria oferecido a Remy uma prenda de casamento, a bainha de uma espada em que teria gravado dragões a expelirem fogo pela boca para que ele se recordasse do
dia em que fingira ser o seu cavaleiro na floresta. E nessa noite em que ela teria rendido a sua virgindade, Remy mostrar-se-ia tão paciente e delicado...
"Vê se acordas, Gabrielle, e põe fim a esses sonhos idiotas", disse a si própria irritadamente. Maldito Nicolas Remy! Antes de ele ter voltado a aparecer intempestivamente
na sua vida, pelo menos ela tinha tido a certeza das suas ambições e do seu destino. Mas ele confundira-a, fazendo com que ansiasse por coisas que estavam perdidas
para si: a sua casa, a sua inocência, a sua magia... o seu amor.
O seu amor? Remy?
Gabrielle estacou no meio da rua. Um comerciante que se aproximava a cavalo praguejou e gritou-lhe um aviso. Gabrielle saltou para o lado para não ser espezinhada,
espalmando-se contra a parede de uma das lojas. O coração batia-lhe descontroladamente, mas não tanto por ter escapado por pouco, mas mais devido a um pensamento
que já não conseguia reprimir.
Ela estava apaixonada por Remy.
Não, gostava dele. Considerava-o um amigo e mais nada.
"Mas que grande mentirosa que tu és", disse-lhe uma voz dentro de si num tom de troça. "Estás apaixonada pelo homem desde o dia em que ele se ajoelhou aos teus pés
e jurou proteger-te para todo o sempre."
Gabrielle sacudiu a cabeça, continuando a querer negar o que era evidente. Como é que poderia estar apaixonada por um homem que... que era tão-somente o sonho de
coragem e galanteria de qualquer mulher? Que se sentia tão confiante na sua própria força, que não receava ser gentil. Cuja honestidade cintilava tanto como uma
armadura reluzente entre a corrupção com que ela deparara na corte. Um homem que fazia tudo o que estava ao seu alcance para cumprir as promessas que fazia, um homem
que, ao contrário do seu pai, estaria sempre presente para a mulher e os filhos.
A menos que, é claro, isso entrasse em conflito com o dever moral que Remy tinha para com o seu rei. Era bom que ela não se esquecesse disso, porque, a não ser o
caso, seria esmagada por mágoas pelo que nunca poderia vir a ter. Não era uma noiva merecedora de Remy, não era a senhora doce, paciente e generosa que ele merecia.
Tinha a língua afiada e mau génio, era cínica e dissimulada, a sua virtude estava manchada e sem qualquer esperança de redenção.
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Mas, apesar de estar ciente disso, tal não fora suficiente para a impedir de se apaixonar por ele. Gabrielle fechou os olhos, entregando-se ao desespero antes de
se recompor com um enérgico abanão. Havia apenas uma coisa que poderia fazer por Remy e isso era zelar pela sua segurança, o que significava fazer com que ele partisse
para o mais longe possível.
Entretanto, teria de convencer Catarina de que fora bem-sucedida a seduzi-lo. Deus lhe valesse se a Rainha das Trevas alguma vez viesse a sonhar que Gabrielle, a
famosa cortesã, tinha ficado absolutamente rendida ao toque da mão de Remy. Além disso, também teria de dar a volta ao rei de Navarra. Embora de uma maneira geral
ele fosse um homem de trato fácil, ocasionalmente Henrique lembrava-se de que era um rei, pelo que podia mostrar-se diabolicamente obstinado quando metia uma ideia
na cabeça.
Gabrielle teria de recorrer aos seus encantos para que ele abandonasse a ideia de a casar com Remy, para impedi-lo de participar no perigoso plano de fuga do capitão
e persuadi-lo a que ordenasse a Remy que abandonasse Paris. É claro que, feito isso, este passaria a odiá-la verdadeiramente.
"Oh, meu Deus, Ariane", pensou Gabrielle desalentada. "Como é que a minha vida se tornou num desastre tão enredado?"
Mais do que nunca, Gabrielle ansiava por poder ir ter com Ariane para lhe contar tudo o que se passava consigo. A irmã tinha uma maneira tão calma e esclarecida
de ver as coisas, com uma capacidade de discernimento a que Gabrielle nunca dera o devido apreço até agora. Mas não lhe servia de nada ansiar pelo que era impossível,
quer fosse o amor e perdão da irmã ou de Remy.
Gabrielle suspirou fundo, sentindo-se mais sozinha do que nunca em toda a sua vida. Precisava desesperadamente de falar com alguém, de preferência com outra mulher
sábia. E só existia uma pessoa que mais se aproximava do que poderia classificar de amiga ali, em Paris.
A Maison dEsprit era uma casa diferente quando vista à luz do dia, não sendo tão escura e sinistra, mas sim tristonha e negligenciada. Desta feita não foi o cão,
Cérbero, que saudou Gabrielle com um rosnado, mas sim Finette.
A criada aproximou-se dela assim que pôs um pé no vestíbulo em tão mau estado. com os braços cruzados diante do peito magro, barrou-lhe o caminho, mostrando uma
fisionomia de intensa reprovação.
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- O que é que estais a fazer aqui? A senhora não gosta de visitas inesperadas.
Gabrielle esforçou-se por conter a antipatia que a criada de Cassandra lhe inspirava. Finette era uma mulher de feições afiladas e expressão severa, com olhos dissimulados.
O cabelo louro escorrido dava a impressão de não ser lavado há doze meses, tal como a pele. As rugas nos pulsos e no pescoço tinham sempre sujidade entranhada e
o vestido castanho cheio de nódoas cheirava a azedo e a suor, a pele que não era lavada.
- Sei bem que a Cass não gosta de surpresas - disse Gabrielle, mas quero que lhe vás dizer que estou aqui.
- Não! Já tive muitos problemas por ter dado à língua, falando-vos acerca da necromancia. Não quero arriscar-me a que ela se encolerize comigo outra vez. Além disso,
a minha senhora não está em condições de receber quem quer que seja.
Gabrielle ouviu um som que vinha da câmara subterrânea, um gemido inequívoco.
- O que é que se passa com ela? Está doente? - perguntou Gabrielle com rispidez.
Finette encolheu os ombros e coçou o pescoço por baixo do cabelo escorrido, mas a expressão escarnecedora disse a Gabrielle tudo o que precisava de saber. Cassandra
tinha voltado a abusar da bebida.
"Oh, Cass", disse Gabrielle em pensamento, dividida entre um sentimento de piedade e de frustração por causa do vício destrutivo da mulher. Ouviu outro gemido, desta
vez mais alto, seguido de um latido de Cérbero. Empurrando a criada ossuda para que saísse do seu caminho, Gabrielle dirigiu-se para o armário, que ocultava uma
porta. Finette agarrou-a pelo cotovelo.
- Queira fazer o favor de parar. A minha senhora vai dar cabo de mim se eu vos deixar... - Finette calou-se com um grito de dor quando Gabrielle lhe bateu na mão,
afastando-a.
Começou a apalpar até encontrar o fecho que abria a porta. Quando o armário se deslocou para o lado com um rangido, Gabrielle não hesitou. Começou a descer pelas
escadas estreitas e escuras com Finette logo atrás, a ralhar-lhe furiosamente. Quando entrou na câmara subterrânea, a luz da chama de um único archote mostrou-lhe
Cassandra caída no chão à beira do leito. Tinha as pernas completamente dobradas, a cabeça a rolar de um lado para o outro contra o colchão, as feições escondidas
pelo cabelo preto todo desgrenhado
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Cérbero mantinha-se fielmente ao lado dela, com uma pata na saia e a tentar chegar o focinho à cara da dona.
Quando o cão viu Gabrielle, avançou para ela a ladrar, mas não ameaçadoramente. Começou a latir enquanto andava entre Cass e Gabrielle. Não poderia ter solicitado
ajuda para a sua dona com mais clareza do que se tivesse falado. Foi por um triz que Gabrielle não tropeçou na garrafa vazia quando se apressou a dirigir-se para
Cass, ajoelhando-se ao lado dela.
- Cass? - chamou suavemente. Teve de empurrar Cérbero ligeiramente enquanto tentava levantar a cabeça da mulher e afastava para trás a basta cabeleira cor de ébano.
O hálito de Cassandra fedia a bebidas fortes. Estava de
uma palidez cadavérica, os olhos cegos com umas olheiras fundas e escuras.
Antes que Gabrielle pudesse contê-lo, Cérbero atirou-se para a frente e começou a lamber o rosto da dona. Cass praguejou, contorcendo a cabeça para o lado.
- Para baixo! - A ordem foi dada numa voz entaramelada, mas o cão obedeceu, sentando-se sobre os quartos traseiros com outro latido baixo. Apesar de parecer que
lhe exigia um esforço enorme, Cass gesticulou atabalhoadamente na direção de Gabrielle, esforçando-se por lhe discernir as feições.
- Hélène? És tu?
Finette mantinha-se amuada atrás de Gabrielle. Mas, ao ouvir a pergunta de Cass, soltou uma risada esganiçada.
- Oh, meu Deus, ela pensa que sois uma das irmãs mortas.
- Não, Cass - disse Gabrielle, pegando-lhe nos dedos. - Sou eu, a Gabrielle.
- Gab... Gabrielle? - Cassandra encostou-se ao ombro de Gabrielle
numa atitude de abandono, um peso morto.
Tentando evitar que ela caísse de cara no chão, Gabrielle olhou para Finette com uma expressão de fúria.
- Como é que pudeste permitir que ela ficasse neste estado? A expressão de escárnio da criada deu lugar a uma de amuo.
- Ninguém deixa Cassandra Lascelles fazer seja o que for e, se sois amiga dela como afirmais ser, saberíeis isso mesmo.
- Ajuda-me a deitá-la na cama! - ripostou Gabrielle desabrida.
- Quando a minha senhora fica a cair de bêbada, ela não se importa de ficar onde quer que seja. - Mas, depois de outro olhar feroz de Gabrielle, Finette aproximou-se
num passo arrastado para obedecer.
253
Até uma mulher tão franzina como Cass era difícil de levantar do chão. Tarefa que foi ainda mais dificultada pelo cão, que renovava os seus esforços para despertar
a sua dona. Mas, com a ajuda de Finette, Gabrielle lá conseguiu deitar Cass no leito. A criada soltou outra das suas irritantes risadas à socapa.
- Aqui há uns dias, a minha senhora conseguiu caminhar até à taberna e pensou que tinha encontrado um belo homem, um verdadeiro príncipe encantado, mas estava tão
perdida de bêbada que, quando foi para a cama com ele, não se apercebeu de que estava a fornicar com um ajudante magricelas da cozinha da taberna a que faltava metade
dos dentes.
Gabrielle conseguia imaginar com toda a clareza a solidão que teria motivado Cassandra a sair da sua reclusão, procurando consolo tanto na garrafa como num par de
braços fortes, para ser abusada por um qualquer homem lúbrico. O escárnio que denotava tanta falta de compaixão de Finette para com a sua ama fazia com que Gabrielle
tivesse muita vontade de lhe dar uma bofetada. A aversão que sentia devia ter penetrado até na cabeça dura da criada porque a expressão de riso desapareceu-lhe da
cara.
- Não há necessidade de me olhardes dessa maneira - disse a rapariga, endireitando os ombros numa atitude defensiva. - Até mesmo a minha senhora achou que era divertido
quando se apercebeu do seu engano. Ambas nos rimos a bom rir por causa do seu príncipe dos tachos e panelas.
- Vai buscar uma bacia cheia de água e uns panos - ordenou-lhe Gabrielle, fitando-a com frieza. - Panos limpos.
Finette encrespou-se com a ordem, mas saiu da câmara para obedecer. Cérbero levantou-se para se colocar junto de Cass, à beira do leito, e Gabrielle receou que o
cão se mostrasse protetor, rosnando-lhe para que se afastasse da dona, mas, com um pequeno latido, o mastim aninhou-se aos pés de Cass. Gabrielle sentou-se cautelosamente
na cama ao lado de Cassandra e começou a desapertar-lhe o vestido.
Cass mexeu-se ao sentir as mãos dela e abriu os olhos. Quando Gabrielle se debruçou por cima dela, apalpou-lhe a face, mas parecia que ainda não a tinha reconhecido.
- Hélène? - disse num murmúrio entrecortado. - Perdoa-me.
Gabrielle não sabia dizer quanto tempo é que tinha passado na câmara subterrânea. Deduziu que a tarde já teria dado lugar ao crepúsculo, mas só então é que Cass
ficou suficientemente bem para poder levantar-se do leito.
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Apesar disso, Gabrielle ficou perplexa perante o poder de recuperação de Cassandra. Se tivesse sido ela a embriagar-se àquele ponto, receava ter de dizer que ficaria
de cama a gemer durante uma semana.
Às apalpadelas, Cass encaminhou-se para a mesa de madeira tosca. Quando encontrou a cadeira, arrastou-a para trás, retraindo-se ao ouvir o raspar das pernas no chão
de pedra não polida. Parecia sensível ao mais pequeno ruído. Talvez tivesse sido por isso que mandara sair a criada com o cão, com instruções para que o animal fosse
para cima a fim de guardar a casa, dizendo a Finette que lhe fosse fazer um recado. Gabrielle esperava que ela não a tivesse mandado comprar mais uísque.
Cassandra deixou-se cair na cadeira, indicando a Gabrielle que se lhe juntasse à mesa, o que esta fez com relutância, pensando que devia ir-se embora. Apesar da
insistência dela para que ficasse, Cass tinha o aspeto de quem devia voltar para a cama. Estava macilenta e tinha os olhos inchados e raiados de vermelho.
Apoiou um cotovelo na mesa, mantendo a compressa fria, que Gabrielle lhe improvisara, na testa. Sentia-se visivelmente constrangida por ela a ter encontrado num
estado tão lamentável, dizendo numa voz roufenha:
- Obrigada. Há muito tempo que ninguém cuidava de mim tão... tão generosamente. Não desde...
- Desde que perdeste a tua mãe? - concluiu Gabrielle suavemente por ela.
- Não - respondeu Cass com uma careta -, a minha mãe não era exatamente uma mulher acalentadora. Estava a pensar mais numa... numa das minhas irmãs, a Hélène.
Hélène, uma das mulheres sábias da família Lascelles que foram torturadas e queimadas na fogueira pelos caçadores de bruxas. A irmã por que, erroneamente, tomara
Gabrielle. Aquela a quem pedira perdão. Mas por que motivo?
Mas Cass não parecia inclinada a dar continuidade ao assunto. Tirando a compressa da fronte, esfregou os olhos e recostou-se na cadeira.
- Há mais de quinze dias que não me visitavas. Até pensei que te tinhas esquecido da existência da tua pobre e velha amiga.
- Não, claro que não - retorquiu Gabrielle, sentindo um baque de culpa. - Ultimamente, tenho andado um pouco preocupada, mais nada. Por causa de uma coisa... uma
coisa verdadeiramente inesperada que aconteceu. Mas não me parece que esta seja a melhor altura para te sobrecarregar com os meus problemas.
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- Não digas disparates - retorquiu Cassandra. -Já estou perfeitamente sóbria. Conta-me o que se passa. - Estremeceu e massajou uma têmpora. - Só te peço que fales
em voz baixa.
Gabrielle continuava a sentir relutância, mas viu uma muito rara suavidade nas feições emaciadas de Cassandra. Gabrielle começou a falar vagarosamente, mas depois
deu consigo a deitar da boca para fora toda a história relativa ao regresso de Remy, a discussão, os acontecimentos durante o baile de máscaras, o pacto com o diabo
que fora forçada a fazer com Catarina, a exigência que o rei de Navarra fizera a Remy. A situação absolutamente impossível em que Gabrielle se encontrava.
Cass ouvia-a sem tecer qualquer comentário. Nem sequer se mostrou surpreendida quando se inteirou da razão por que a sessão espírita das duas tinha fracassado, ou
seja, porque Remy estava vivo e bem vivo.
Quando Gabrielle, finalmente, ficou em silêncio, tratou de a incentivar a prosseguir.
- E...?
- E... e mais nada. Não há mais nada a acrescentar.
Cassandra estendeu um braço por cima da mesa, apalpando até encontrar a mão de Gabrielle. com as pontas dos dedos, sondou-lhe a palma da mão.
- Há mais qualquer coisa - insistiu. - O que é que está a preocupar-te realmente?
Gabrielle tentou afastar a mão, mas Cass agarrou-a firmemente pelo pulso.
- Conta-me.
Gabrielle suspirou, mas depois acabou por admitir em voz baixa:
- Eu... eu talvez esteja apaixonada pelo Remy. Não... não quero estar, mas é mais forte do que eu.
Da boca de Cassandra escapou um som abafado. Soltou a mão de Gabrielle, apressando-se a levar as mãos à fronte como se receasse que a parte de cima da cabeça se
soltasse do resto.
- Oh, por favor - gemeu. - O que quer que possas fazer, peço-te que não me faças rir.
- Acabei de te pôr a nu o meu coração e achas que isso é divertido?
- Muito - respondeu Cass, começando a rir-se à socapa, mas parou com um gemido. - Meu bom Deus, Gabrielle. Até mesmo uma pessoa cega conseguia ver os sentimentos
que nutres pelo homem.
256
- Mas eu não quero estar apaixonada pelo Remy. É... é um amor impossível - retorquiu Gabrielle, ocultando o rosto nas mãos. - Mas que grande desastre.
- Será? Não sou capaz de ver a natureza do teu problema. Estás destinada a ser a amante do rei de França, com a vantagem de vires a desposar o valente capitão que
adoras. Eu diria que o sol brilha radiante no teu pequeno e bonito traseiro, Gabrielle Cheney.
Gabrielle pensou ter detetado alguns laivos de inveja e rancor na voz de Cassandra. Mas, quando olhou para a outra mulher, Cass sorriu-lhe tão beatificamente que
pensou que estava a imaginar coisas.
- Mas, Cass, eu não posso casar com o Remy ao mesmo tempo que partilho a cama do rei - protestou.
- E porque não? Os homens fazem isso constantemente, têm a mulher legítima e uma amante. Porque devia ser diferente para uma mulher? - perguntou Cassandra arqueando
as sobrancelhas, mas depois retraiu-se, como se aquele pequeno movimento lhe agravasse a dor de cabeça. - com certeza que não estás a pensar que o teu amor pelo
capitão Remy altere alguma coisa? Estás destinada a grandeza. Foi o próprio Nostradamus quem to disse.
- Não há a possibilidade de ele se ter enganado?
- Não, o velho mestre nunca se engana. Em especial, desde que foi para o outro mundo. Se ele diz que o rei de Navarra virá a ser rei de França e tu serás a sua rainha
sem coroa, é precisamente isso que acontecerá. Não existe maneira possível de se alterar o destino de uma pessoa. Além disso, porque haverias de querer furtar-te
a um futuro tão glorioso?
De facto, porquê? Gabrielle recostou-se toda para trás na sua cadeira, a sua mente a encher-se não com imagens de palácios, reis e poder, mas sim com um soldado
com um cabelo alourado pelo sol e olhos que espelhavam uma alma cansada. O destino que a dada altura lhe causara tanto entusiasmo agora só lhe trazia lassitude e
desespero. Não deu resposta à pergunta de Cassandra, mas esta dava a impressão de ser capaz de ler o seu silêncio com demasiada clareza para o seu gosto.
- Gabrielle Cheney! Considerarias, por um momento que fosse, sacrificar o teu futuro por um homem que nunca te amará tanto quanto o seu dever moral? Um homem que
jamais mancharia a sua honra ao desposar uma mulher como tu se o seu rei não lhe tivesse ordenado que o fizesse?
Gabrielle estremeceu, as palavras incisivas de Cass magoavam-na ainda mais profundamente por ela saber que correspondiam à verdade.
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- Sabes bem o que é a loucura do amor - continuou Cass num tom insistente. - Na melhor das hipóteses, é uma emoção fugaz. Nada comparado com riqueza, posição e poder.
Estas são as coisas que importam, as coisas que perduram. Se não casares com o capitão, o rei não hesitará em emparelhar-te com outro homem qualquer. Deves servir-te
do Remy como te servirias de outro homem qualquer. Mantém-te forte e implacável, Gabrielle. É a única maneira de uma mulher conseguir sobreviver. Além do mais, vê
a situação desta perspetiva: o teu Flagelo dá-me a impressão de ser bastante impetuoso. Quanto mais poderosa vieres a ser, melhor serás capaz de o proteger.
Cass não poderia ter apresentado um argumento mais convincentemente. Voltar a perder Remy, se lhe acontecesse alguma coisa de terrível, era o maior temor de Gabrielle.
Mas disse:
- Não estou a ver como é que proceder no sentido de concretizar as minhas ambições na pessoa do rei de Navarra poderá proteger Remy, particularmente de Catarina
de Médicis. Será mais provável que eu a provoque. Não obstante o acordo a que chegámos, não confio nela.
- E não devias confiar. Mas é possível que eu seja capaz de te ajudar com respeito a esse assunto.
- O que é que queres dizer com isso?
- Conjurar os mortos não é toda a dimensão da minha magia. Também tenho talentos consideráveis noutras áreas - replicou Cassandra com um sorriso ardiloso. Apoiou
as palmas das mãos na mesa e pôs-se de pé. com um pouco de rapidez a mais. Estremeceu e cambaleou, agarrando-se às costas da cadeira. Quando Gabrielle se apressou
a ajudá-la, repeliu-a com impaciência.
Dirigiu-se para o armário às apalpadelas, passando os dedos por cima da prateleira de madeira até encontrar uma pequena caixa. De costas para Gabrielle, inclinou-se
quase com uma atitude protetora por cima do conteúdo da caixa. Gabrielle ouvia o tilintar dos objetos em que ela mexia, procurando o que queria. Cassandra virou-se
e estendeu qualquer coisa mais ou menos na direção dela.
- Toma. Pega nisto.
Intrigada, Gabrielle aceitou o objeto, examinando-o. Era um medalhão com cinco lados suspenso de uma corrente de um metal baço.
- Cass, mas que diabo...
- É um amuleto de proteção. Dá-o ao teu Flagelo. Obriga-o a usá-lo sempre. Ajudá-lo-á a manter-se em segurança.
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Gabrielle tentou pensar numa maneira de poder recusar sem insultar Cass, nem magoar os seus sentimentos.
- Hum... obrigada. Dou muito apreço ao teu gesto, mas a minha mãe ensinou-me e às minhas irmãs que não devíamos depositar grande fé em coisas como talismãs e amuletos.
- E também te ensinou a não tocares na magia negra, mas viste com os teus próprios olhos o quão poderosa e útil a necromancia pode ser nas minhas mãos. Isso não
é nenhuma bugiganga de ciganos que eu tenha feito. Examina-o mais de perto e diz-me se já tinhas visto coisa semelhante.
Gabrielle levou o medalhão para junto do archote, examinando o amuleto à luz da chama tremeluzente. A verdade é que já tinha visto algo similar àquilo. Era muito
semelhante ao metal e inscrições na estranha aliança que o seu cunhado, Renard, tinha oferecido à irmã, que unia o pensamento dos dois, independentemente da distância
que os separasse. Gabrielle também nunca teria acreditado que isso fosse possível se não tivesse visto a prova com os seus próprios olhos.
Balouçou o medalhão diante dos olhos, continuando a sentir algum ceticismo.
- Exatamente, o que é que este teu amuleto faz? Afirmas que pode proteger o Remy?
- Não precisamente. Mas, se ele o usar, conseguirá aperceber-se de qualquer pessoa que lhe queira fazer mal, de perigos iminentes. Homem prevenido vale por dois.
- Incrível - murmurou Gabrielle.
- Acredita no poder do talismã ou não, como preferires. Mas que mal é que poderia fazer se o teu capitão experimentasse usá-lo?
- Nenhum, suponho eu. Mas o que é que quererias por uma coisa como esta? - perguntou Gabrielle com algum mal-estar, recordando-se do último acordo que fizera com
Cassandra.
Esta avançou apalpando o seu caminho até que os seus dedos se fecharam em volta do braço de Gabrielle.
- Considera que é uma oferta, um símbolo da nossa amizade. Tu lembras-me uma parte de mim mesma que perdi. As minhas irmãs... - Cassandra calou-se, o rosto com uma
expressão pensativa e de tristeza.
Por vezes, Cass podia ser uma mulher estranha e muito intensa, mas Gabrielle sentia uma certa afinidade com ela. Talvez porque também sabia o que era perder as irmãs.
Mas, pelo menos, restava-lhe a esperança, por muito vaga, de um dia voltar a ver Ariane e Miri.
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Cassandra percorreu o braço de Gabrielle até ao ombro com a mão até os dedos lhe chegarem à face.
- Talvez agora queiras ser minha irmã. Já temos um pacto entre nós duas que é inquebrantável. Prometeste fazer-me um favor. Estás lembrada disso, não estás?
Gabrielle pegou na mão de Cassandra e apertou-a suavemente.
- Permite-me que cumpra a minha promessa agora, tirando-te desta casa tão desoladora e sombria. Não admira que fiques possuída dessas crises de melancolia, vivendo
sozinha, apenas com o teu cão e essa desgraçada criada por companhia. Não há necessidade nenhuma de continuares a viver em reclusão nesta casa horrenda. Há muito
que o bando de caçadores de bruxas que chacinou a tua família foi destruído.
- Existirão sempre mais caçadores de bruxas, minha querida Gabrielle. São tão certos como a morte e os impostos. - Cass afastou a mão. - Não vivo na Maison dEsprit
em reclusão por ter medo, mas sim por opção pessoal. Estou à espera.
- À espera!? Do quê?
- Estou à espera que o meu destino assuma forma. Saberei quando chegar a altura de sair daqui e de dar a minha presença a conhecer ao mundo adiantou Cassandra em
voz baixa, a boca a mostrar um estranho sorriso que fez com que o corpo de Gabrielle fosse percorrido por um arrepio inexplicável.
Perguntou a si mesma se todos aqueles anos de reclusão ou as muitas bebidas alcoólicas que Cass ingeria estavam a começar a afetar o juízo da mulher. Mas a perturbação
de Gabrielle foi esquecida aquando de uma perturbação no piso de cima, um ladrar desenfreado de Cérbero.
- Um intruso - sussurrou Cass tensa. - Gabrielle, tiveste cuidado, certificando-te de que não eras seguida quando vieste para cá?
- Claro que sim - respondeu Gabrielle. Depois do incidente com o espião de Catarina, passara a ter cuidados redobrados aonde quer que fosse. Mas, apesar da sua afirmação,
sentiu um nó no estômago de temor quando a comoção no piso de cima se intensificou. O ladrar de Cérbero era cada vez mais alto, intercalado pelo som de passos.
- Não importa - disse Cassandra concisamente. - Ninguém conseguirá encontrar a entrada de acesso à minha câmara secreta, além disso, o Cérbero não tardará a fazer
com que quem quer se seja se arrependa de...
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As palavras corajosas interromperam-se de repente quando o cão se calou. Não se ouvia um único latido e nem sequer um rosnado de mansinho. O silêncio era muito mais
assustador do que a comoção havia sido. O rosto de Cassandra empalideceu.
- O meu cão. Aconteceu alguma coisa ao meu cão! - Caminhou em frente, batendo na mesa com a pressa de chegar às escadas. Gabrielle meteu-se à frente dela, agarrando-a
pelos ombros.
- Não. Deixa-te ficar aqui. Eu vou ver o que se passa. - Se Gabrielle tinha trazido algum perigo àquela casa, estava determinada a proteger Cass custasse o que custasse.
Mas esta estava tão ansiosa pela segurança do cão que Gabrielle teve muita dificuldade em persuadi-la a ficar onde estava. Olhou em volta à procura de alguma coisa
que lhe pudesse servir de arma. Baixou a mão para o amuleto que continuava na sua mão. Lá se ia a teoria do amuleto protetor, pensou com ironia. Não sentira nem
sequer um pequeno formigueiro que lhe indicasse a aproximação de perigo.
Meteu o talismã na algibeira do vestido e pegou no sólido bordão de Cassandra. Agarrou com força a madeira cheia de nós e começou a subir as estreitas escadas furtivamente.
Cass permanecia ao fundo dos degraus, murmurando-lhe ansiosamente.
- Tem cuidado.
Gabrielle não lhe deu resposta, todo o seu poder de concentração centrado em conseguir subir as escadas mergulhadas em escuridão, até encontrar o puxador que abria
a porta de acesso à câmara secreta. Seguindo as instruções de Cass, girou o puxador alguns graus para a esquerda, apenas o suficiente para deslocar o armário.
O ranger do mecanismo soou infernalmente alto aos ouvidos de Gabrielle, o suficiente para alertar qualquer intruso. Ficou na expectativa durante uns segundos antes
de, cautelosamente, meter a cabeça pela abertura para espreitar. O amplo vestíbulo estava envolto na obscuridade do fim de tarde, a poeira que cobria o soalho, aparentemente,
não fora pisada. Mas o som de um feroz sibilar fez com que ficasse com os pelos da nuca eriçados.
Abafou um grito de espanto e caminhou na direção de onde viera o som. Deparou com um gato preto, que tinha umas patas de um branco de neve, que se refugiara no cimo
de uma mesa alta. com o dorso arqueado, silvava furiosamente. Gabrielle soltou a respiração trémula. Seria possível que o temível intruso fosse apenas aquele gato?
Mas o que era feito de Cérbero? Porquê que não estava a ladrar freneticamente, ameaçando o felino de que seria a sua próxima refeição?
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Quando o gato silvou outra vez, Gabrielle apercebeu-se de que a virulência não lhe era dirigida. Os olhos amarelos do felino coruscavam concentrados em algo que
se encontrava fora do raio de visão de Gabrielle. Agarrando o bordão com mais força, a pouco e pouco, começou a sair de detrás do armário até ver Cérbero. O cão
de Cassandra caíra pesadamente de costas, mas não por ter sofrido um ferimento.
O mastim do Inferno de Cass rojava-se servilmente aos pés de um jovem magro envolto num comprido manto cinzento, o capuz puxado para a cara. Tudo o que Gabrielle
conseguia ver do rapaz eram as botas empoeiradas e as pernas bem torneadas num par de bragas escuras. Tinha-se abaixado para fazer festas no estômago de Cérbero,
dominando o feroz animal com apenas o toque da sua mão e algumas palavras ditas suavemente. Gabrielle só conhecera uma pessoa, em toda a sua vida, que tinha uma
maneira tão mágica de lidar com animais. Mas não. Era impossível que fosse quem ela estava a pensar.
Avançou e o soalho rangeu debaixo dos seus pés. O rapaz levantou a cabeça, olhou para ela e depois, calmamente, endireitou-se, ficando de frente para Gabrielle.
Atirou o capuz para trás, revelando - não um rapaz, mas sim uma jovem mulher alta com uns cabelos lisos de um louro-esbranquiçado e olhos de um azul com centelhas
prateadas.
- Olá, Gabby - saudou com um sorriso endiabrado.
- Miri?
Do mal o menos, Gabrielle agora sabia por que motivo é que o amuleto de Cass não indicara qualquer sinal de perigo. Recompondo-se do choque, soltou um grito de alegria
e abraçou a irmã.
Gabrielle esquadrinhava e voltava a esquadrinhar o seu guarda-roupa, inspecionando todos os seus vestidos para os descartar logo de seguida. A cadeira na alcova
já tinha desaparecido debaixo de uma montanha de sedas de todas as cores do arco-íris. Enquanto examinava cada peça de roupa, de vez em quando o seu olhar dirigia-se
para a figura aninhada no seu leito, como se receasse que Miri desaparecesse como a criança dos seus contos de fadas que sempre havia sido.
Talvez só tivesse imaginado a jovem que se soerguia sobre um cotovelo, atentando o seu gato com uma fita, como se a tivesse conjurado, fruto das muitas saudades
que tinha da família e do seu lar. Mas havia uma diferença: aquela não era a Miri que guardava na memória. Aquela era uma menina
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à beira da idade adulta, a sua figura a desabrochar com as curvas suaves que o vestuário de rapaz não conseguia ocultar completamente. Os malares altos e as sobrancelhas
ligeiramente arqueadas, combinados com o cabelo de um louro de luar e olhos de um azul-prateado tão invulgar, dando-lhe uma aparência etérea de sonho.
Quando é que aquilo tinha acontecido? Em que altura, durante os últimos dois anos, é que a sua arrapazada irmã mais nova se tinha transformado naquela jovem de uma
beleza serena? As mudanças em Miri causavam uma mágoa agridoce no coração de Gabrielle, marejando-lhe os olhos de lágrimas. Quando Miri ergueu a cabeça e a fitou
com uma expressão muito séria, Gabrielle apressou-se a desviar o olhar. Pestanejou com força e voltou a embrenhar-se no guarda-roupa, de onde tirou um dos seus vestidos
mais simples, com um recatado decote junto ao pescoço e mangas tufadas em camadas.
- Este deve servir - disse Gabrielle, erguendo o vestido de seda verde.
- Vem cá. Deixa-me ver.
Entretanto, o gato tinha-se enrolado no colo de Miri. Quando ela o afastou, Necromante soltou um miado de protesto. Miri aproximou-se de Gabrielle com relutância.
- Não há necessidade nenhuma de estares com tanto trabalho, Gabby.
- Não há necessidade? Já é bastante mau que tenhas andado por todo o país vestida como um rapaz. É impossível que possas continuar trajada dessa maneira em Paris.
E agora está quieta.
Miri soltou um fundo suspiro, mas obedeceu ao que a irmã lhe dizia. Gabrielle reprimiu um sorriso. Pelo menos, havia uma coisa na irmã mais nova que não tinha mudado.
Miri continuava a preferir a liberdade que um gibão e bragas lhe permitiam, em vez das rendas e folhos femininos. Mas quando Gabrielle lhe colocou o vestido à frente,
encostando-lho aos ombros, fez outra descoberta que muito a surpreendeu.
- com a breca! Tu... tu estás mais alta do que eu.
- Assim é - confirmou Miri, erguendo o queixo muito orgulhosa.
- E também sou um pouco mais alta do que a Ariane.
A menção à outra irmã fez com que Gabrielle ficasse rígida. Era como se uma sombra se tivesse interposto entre as duas. O que Miri também devia ter sentido, porque
disse em voz baixa:
- A Ariane tem imensas saudades tuas.
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- De verdade? - O coração de Gabrielle ficou mais leve com uma esperança renovada. - É por isso que vieste a Paris? Foi a Ariane que te mandou como mediadora das
pazes?
- Não, ela nem sequer soube que eu tinha decidido vir.
- Oh... - Gabrielle escondeu a enorme deceção, censurando-se por ser uma idiota. Devia saber que a irmã mais velha nunca faria isso. Se Ariane tivesse o mínimo interesse
em sanar a querela entre as duas, ela própria teria vindo a Paris.
Gabrielle levantou a parte de cima do baú que tinha aos pés da cama e começou à procura de anáguas e combinações que condissessem com o vestido.
- E então, como diabo é que conseguiste fazer uma viagem tão grande até Paris? - perguntou à irmã mais nova.
- Bem... pedi "emprestado" um dos cavalos do Renard e ajustei uma cesta à sela para poder trazer o Necromante. Nem Brindei, o cavalo, nem o próprio Necromante ficaram
muito satisfeitos com a viagem. Mas conseguimos fazê-la por etapas não muito duras.
A meio de pegar numa combinação, Gabrielle deteve-se e olhou para a irmã com uma cara de muita consternação.
- Miribelle Cheney! Tu... tu viajaste de tão longe sozinha?
- Não estava sozinha. Acabei de te dizer isso mesmo. Vim acompanhada do Brinde e do Necromante.
- Um cavalo e um gato estúpido?
Necromante, que se encontrava aos pés do leito de Gabrielle a lamber as patas de um branco de neve, adotou uma postura altaneira. Como se a compreendesse, deteve-se
para a fitar com um olhar sinistro.
Gabrielle fechou o baú com força, endireitou-se e ralhou.
- Que diabo, Miri! E eu a julgar que já tivesses mais juízo. Fizeste uma viagem que a maior parte dos homens teria receado fazer sozinho.
- Ah, mas acontece que eu não sou um homem. Tal como não sou nenhuma mulher comum. - O ar de uma grande serenidade, como se nada perturbasse Miri, só serviu para
alimentar a indignação de Gabrielle.
- Apercebes-te sequer do que te poderia ter acontecido? Podias ter sido emboscada por salteadores, roubada, atacada e até mesmo pior do que isso.
- O sangue gelou nas veias de Gabrielle ao imaginar os horrores com que a sua inocente irmã mais nova se poderia ter deparado, abusos que, em comparação, poderiam
ter feito com que a morte fosse preferível. Mas Miri replicou-lhe com uma calma enfurecedora.
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- Não há nada que me pudesse ter feito mal. O Necromante ter-me-ia avisado se eu corresse algum perigo, para não mencionar o meu próprio sexto sentido que me teria
advertido do perigo. Além disso, não se pode dizer que eu tenha pernoitado em estabelecimentos públicos, como estalagens. Graças aos conselhos de mulheres sábias
convocados por Ariane, sei aonde é que outras mulheres sábias residem. Portanto, limitei-me a viajar de uma casa segura até à seguinte.
- Isso não me interessa! - ripostou Gabrielle furibunda. - Nem por isso deixa de ser uma coisa imprudente e irresponsável de fazer. A Ariane deve estar raladíssima.
com certeza que estarás ciente de que ela me culpará por teres saído de casa, assim, sem mais nem menos, e odiar-me-á mais do
que nunca.
- A Ariane não te odeia. Além disso, ela sabe muito bem que eu sou senhora das minhas próprias decisões. Compreende que eu já não sou nenhuma criança.
- Nesse caso, deve estar muito diferente da Ariane de que me lembro. Nunca pensei que ela permitiria, de boa vontade, que qualquer de nós crescesse.
- A Ariane mudou muito. - Os extraordinários olhos de Miri escureceram, adquirindo um matiz acinzentado. - Não é a mesma desde que o bebé...
- Bebé? Ariane tem uma criança? - A cólera de Gabrielle desvaneceu-se perante aquela nova informação tão extraordinária. - Sou... sou a tia de alguém. Diz-me, o
que é que é? - perguntou ansiosa. - Um menino ou uma menina?
- A Ariane perdeu a criança antes que se pudesse saber. E também teve outros abortos espontâneos, pelo que parece incapaz de vir a conceber outra vez. O que lhe
causa um profundo desgosto. Estou em crer que isso está a dilacerá-la por dentro.
Ariane, dilacerada por dentro? Gabrielle nem sequer era capaz de começar a imaginar isso. Desde que se conhecia que a sua irmã mais velha sempre fora uma força da
natureza. A Senhora da Ilha Encantada, a de grande sabedoria, a grande curandeira. De certa maneira, era assustador pensar nela atormentada pelas adversidades que
afligiam as outras pessoas, meros mortais. Durante todo este tempo, Gabrielle imaginara a existência de Ariane como sendo perfeita. Todavia, a irmã sofrera a provação
mais excruciante por que uma mulher podia passar.
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- Eu devia ter estado lá com ela - disse Gabrielle, censurando-se a si própria. - Porque é que ela não me deu notícia disso? Ela devia ter sabido que nada me manteria
afastada se eu pensasse que ela estava a sofrer. Não sei o que eu poderia ter feito, mas, pelo menos, podia tê-la reconfortado numa hora tão má.
- Conheces a Ariane tão bem como eu, Gabby. Ela sempre considerou que tinha de ser forte e sem nunca sobrecarregar os outros com as suas tristezas. Infernalmente
independente, nada como outra pessoa qualquer que eu conheça. - Miri deu um beijo na fronte de Gabrielle, que abraçou a irmã mais nova, um abraço que as uniu por
uns momentos. O cheiro do cabelo da irmã, alourado pelo sol, trouxe vividamente à memória de Gabrielle as doces fragrâncias das ervas aromáticas de Ariane, transportando-a
de volta àqueles dias na ilha Encantada em que eram apenas as três, ela própria, Ariane e Miri. As irmãs Cheney. A despeito das diferenças e desacordos, tinha existido
uma forte união entre elas, laços de união entre irmãs que Gabrielle quebrara quando fugiu para Paris.
Por muito que lhe custasse, tinha de admitir que causara sofrimento a Ariane. Não podia permitir que Miri lhe fizesse o mesmo. Por muito que o desejasse, Gabrielle
não poderia consentir que a irmã mais nova permanecesse em Paris. Não com todos os perigos e intrigas que atualmente envolviam Gabrielle, ameaçando enredá-la profundamente
a qualquer momento. Nunca quando havia tanta coisa a seu respeito de que a sua inocente irmã não tinha conhecimento e queria que Miri nunca viesse a saber.
Mas de momento só queria abraçar a irmã mais nova apertadamente, vivendo momentos preciosos de calor humano com a presença dela. Miri encostou a cabeça ao ombro
de Gabrielle com um fundo escuro.
- Tenho sentido muito a tua falta, Gabby. Quando partiste, nem sequer te despediste de mim. - A voz de Miri deixava transparecer mais mágoa do
que censura.
Gabrielle sabia muito bem por que razão agira com cobardia, evitando dizer adeus à irmã. Miri ter-se-ia agarrado a si a chorar, fazendo-lhe demasiadas perguntas
que lhe causariam embaraço. Como é que poderia ter dito a Miri que fugia para Paris para fazer fortuna ao seduzir homens poderosos, que iria viver na casa que o
pai comprara para a sua amante? Miri fora mais chegada ao pai do que qualquer das outras duas irmãs. Se Miri alguma vez viesse a inteirar-se de toda a dimensão da
infidelidade do pai...
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O olhar de Gabrielle percorreu, com algum constrangimento, a luxuosa decoração da alcova que em tempos havia sido da amante de Louis Cheney.
- Peço-te desculpa, Miri, nunca foi minha intenção magoar-te, mas quando saí de casa havia tanta coisa que eras nova de mais para poderes compreender.
Miri desencostou a cabeça do ombro de Gabrielle.
- Por exemplo, a tua determinação em vires a ser uma cortesã, tal como a mulher a quem esta casa pertenceu. A mulher que seduziu o nosso pai.
- Gabrielle ficou a olhar para ela em estado de choque.
- Isso quer dizer que tu... tu sabias o que se passava com o pai...
- Há muito tempo que tenho conhecimento disso. Na noite em que discutiste com a Ariane por causa de teres decidido vir para Paris e aceitares esta casa, eu ouvi-vos.
- Oh, Miri - disse Gabrielle num gemido. Tentou voltar a abraçar a irmã, mas Miri furtou-se ao abraço, dirigindo-se para junto da cama. Conseguiu afivelar um sorriso,
mas a expressão nos seus olhos era de demasiada tristeza e desalento para a sua idade.
- Acredita que já não sou nenhuma criança. Sei muito bem que os unicórnios e os duendes escondidos na floresta não existem. Que o meu paizinho não era perfeito,
tal como a minha irmã também não é.
Gabrielle recordou-se das inúmeras vezes em que se zangara com Miri por causa da sua extravagante imaginação, com muita vontade de a abanar até conseguir pôr algum
juízo na cabeça da irmã. Mas ouvi-la a renunciar a essas crenças de criança era quase suficiente para lhe destroçar o coração. Nunca se permitira sentir-se envergonhada
com o rumo de vida que optara por trilhar, mas Gabrielle sentiu as faces a arderem. Baixou a cabeça, incapaz de olhar de frente para Miri.
- Oh, Miri. Como tu deves desprezar-me.
- Não sejas disparatada, Gabby. - A irmã agarrou-a pelo pescoço, forçando-a a olhá-la. - São muitas as vezes em que me sinto desiludida e infeliz devido às escolhas
que as pessoas de que gosto fazem, mas isso não se repercute em nada na maneira como as amo.
Gabrielle sentiu um nó na garganta. Incapaz de falar, só foi capaz de apertar a mão da irmã.
- Até consegui perdoar ao Simon - acrescentou Miri.
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Simon Aristide, o jovem caçador de bruxas que em tempos participara no ataque a Belle Haven? Miri persistira em acreditar que Simon era seu amigo até ele ter atraiçoado
a sua confiança com toda a crueldade.
Gabrielle olhou para a irmã com um franzir de sobrancelhas de apreensão.
- Continuas a pensar nesse rapaz? Esperava que nesta altura já te tivesses esquecido dele.
Miri desviou o olhar, fixando-o na janela da alcova e vendo que o crepúsculo já dera lugar à noite, como um manto pesado e quente que se tivesse estendido sobre
Paris.
- Não sinto tristeza pelo Simon como antigamente, mas de tempos a tempos ainda penso nele - admitiu Miri. - Espero que aonde quer que ele se encontre tenha conseguido
deixar para trás as suas mágoas e azedume, que, de uma maneira ou de outra, tenha sido capaz de sarar.
Entretanto, Necromante aproximou-se da janela, batendo ao de leve com a pata na saia de Miri, como se se tivesse apercebido da tristeza da sua dona. Ela pegou no
gato, escondendo a cara na pelagem do felino.
- Independentemente do que o Simon fez, eu amei-o, Gabby.
- Miri, isso aconteceu há três anos. Pouco mais eras do que uma criança - protestou Gabrielle timidamente. - Isso não passou da tua primeira paixoneta.
- Não, eu amei-o verdadeiramente. E quando eu amo alguém, é para sempre.
Gabrielle ficou assombrada e desconcertada ao mesmo tempo, face à firmeza com que Miri falava. Não podia evitar invejar na irmã a sua capacidade de amar com tanta
singeleza e convicção. Em especial, quando os seus próprios sentimentos por Remy eram tão complicados. Ainda não dissera nada a Miri acerca dele, o seu miraculoso
regresso, nem tão-pouco sobre a peculiar natureza do noivado dos dois. Estremeceu, perguntando-se se Miri seria capaz de aceitar isso de boa mente. Mas amanhã teriam
muito tempo para Gabrielle abordar esse assunto.
Miri baixou a cabeça, começando a dar sinais de fadiga. Gabrielle apressou-se a abeirar-se da irmã, apertando-lhe os ombros ligeiramente.
- Temos muito acerca de que falar e pôr em dia. Mas é forçoso que estejas exausta. vou chamar a Bette para te preparar um banho e uma ceia leve. E depois vais direitinha
para a cama, minha menina. Por muito feliz que eu esteja por te ver, decerto que compreendes que tenho de arranjar maneira de te recambiar de volta para casa.
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Miri aninhou a bochecha no pelo do gato, mas os seus lábios estreitaram-se numa linha de teimosia que Gabrielle conhecia bem de mais.
- Não tenho a mais pequena intenção de ir a lado nenhum até ter a certeza de que és feliz e estás em segurança.
- Tencionas permanecer em Paris durante o resto da tua vida? - perguntou Gabrielle com ironia.
- Não vejo aonde é que está a graça, Gabby. Não foi um capricho que me levou a fazer uma viagem tão longa para te encontrar. Voltei a ter os meus sonhos maus. E
desta vez são a teu respeito.
O sorriso de Gabrielle esmoreceu. Sem dúvida que os sonhos da irmã não eram nada de que uma pessoa se risse. Desde o tempo em que era muito novinha que Miri era
atormentada por pesadelos recorrentes de uma natureza profética. Sonhara tanto com a morte da mãe como com o massacre que teve lugar na véspera do dia de São Bartolomeu
muito antes de qualquer desses acontecimentos ter tido lugar.
- Que género de sonhos é que tens tido? - perguntou Gabrielle.
- Sabes bem como são os meus pesadelos, nunca são claros até ser tarde de mais para se poder fazer alguma coisa acerca deles. - Miri estremeceu e aconchegou mais
o gato a si. - Vejo constantemente um grande palácio com galerias e corredores intermináveis. O ar está cheio de vozes que murmuram a respeito de ti. Ouço o teu
nome, que é mencionado incessantemente. Gabrielle... Gabrielle...
"E depois vejo uma mulher de cabelo louro que usa um bonito vestido e que percorre os corredores. Nunca consigo ver o teu rosto, mas tenho a certeza de que és tu
que te aproximas cada vez mais dessas portas. De uma maneira qualquer, sei a que é que dão acesso. À alcova do rei. Não paro de te chamar, a tentar deter-te, fazer
com que voltes atrás. Mas tu não me ouves. Sempre que tenho esse sonho, cada vez estás mais perto dessas portas.
Gabrielle sentiu-se a enrubescer. Como é que poderia explicar a Miri que o que ela considerava um pesadelo era precisamente o objetivo que Gabrielle tentava levar
a cabo nos últimos meses? Os sonhos de Miri só confirmaram o que Nostradamus profetizara. Gabrielle viria a ser a amante do rei. Era esse o seu destino, o seu deslumbrante
futuro... e sentia-se como se alguém tivesse pregado o último prego no seu caixão. Mas obrigou-se a recompor-se com o assomo de um sorriso.
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- O teu sonho não me parece assim tão alarmante. Há quem considera que partilhar a cama de um rei é uma honra, uma grande oportunidade.
- Sei que sim. Mas continuo a ter uma sensação sufocante de perigo iminente. A mesma sensação que tive quando consegui encontrar-te hoje naquela casa onde essa mulher
tão estranha se esconde - disse Miri olhando para Gabrielle apreensiva. - Há qualquer coisa de muito preocupante nessa tua nova amiga, Gabby. Algo de sombrio e perturbador.
- A Cassandra? Admito que ela, por vezes, possa parecer um pouco... desconcertante. Mas teve uma vida muito difícil e trágica. Só trocaste algumas palavras com ela.
Não estarás a precipitar-te no teu juízo de valores?
- Não se trata do meu juízo de valores, mas sim do Necromante - replicou Miri, erguendo mais alto, e solenemente, o gato que tinha nos braços como se esperasse que
o felino confirmasse as suas palavras. - Ele pensa que a Cassandra é muito perigosa.
Gabrielle fez o seu melhor para não revirar os olhos. Nunca partilhara a crença obsessiva de Miri na sabedoria do animal.
- Não... não te parece que o Necromante está a ser um pouco duro de mais? É por demais evidente que o cão dela a adora. Isso deve pesar alguma coisa.
- O Necromante também não tem grande opinião acerca de cães. Considera que são notoriamente carenciados de discernimento.
- Talvez por ser um gato ele seja um tudo-nada preconceituoso nesse aspeto.
- Talvez sim - admitiu Miri com uma risada pesarosa. - Só penso que deves ter algum cuidado na presença de Cassandra Lascelles, de acordo?
- Eu tenho sempre cuidado, maninha - retorquiu Gabrielle, dando outro abraço à irmã antes de chamar Bette.
Enquanto Miri e a antiga criada de Belle Haven se saudavam efusivamente, Gabrielle tratou de dar instruções a outra serva, indicando-lhe qual a alcova que devia
preparar para a irmã. Em seguida, antes de Bette levar Miri para lhe preparar o banho e a ceia, Gabrielle achou que devia mencionar o regresso do Remy do mundo dos
mortos. Não queria que a irmã desfalecesse de choque como lhe acontecera.
Mas quando informou Miri com tanto tato quanto lhe foi possível, os lábios da irmã soergueram-se num daqueles estranhos sorrisos de visionária tão habituais nela.
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- Essa notícia é excelente, Gabby, se bem que... até mesmo quando chorei por Remy, isso se deveu mais ao facto de ter saudades dele. Não sei explicar como, mas sempre
soube que ele não tinha morrido. - Acariciando o gato, Miri saiu da alcova com Bette, deixando Gabrielle de boca aberta. Havia ocasiões, pensou, em que a sua irmã
mais nova podia ser um tudo-nada enervante.
O rumor espalhou-se desde os corredores do Louvre até às mais humildes tabernas da cidade. Não tinha havido notícia tão surpreendente e de natureza tão escandalosa
desde que a muito amada princesa de França, Margot, desposara aquele imbecil protestante, o príncipe de Navarra.
Durante as semanas seguintes, não se falava de outra coisa que não fosse o miraculoso regresso de Nicolas Remy. O homem que era conhecido por Flagelo, inimigo de
todos os franceses leais e católicos devotos em toda a parte, tinha, fosse-se lá saber como, sobrevivido ao massacre que teve lugar na véspera do dia de São Bartolomeu.
Contudo, por muito extraordinário que esse regresso fosse, foi completamente eclipsado pelo facto, ainda mais surpreendente, de o Flagelo não ter sido preso assim
que pisou solo francês. Ser-lhe-iam dadas as boas-vindas na corte com a bênção da, nada mais, nada menos, própria rainha Catarina. O assunto era o tema de todas
as conversas nos estabelecimentos, na rua e nos mercados. Os parisienses mais ponderados abanavam a cabeça, resmungando que os desígnios da Rainha das Trevas eram
muito tortuosos. O consenso geral era que Monsieur lê Scourge faria melhor se andasse sempre de pé atrás.
Sombriamente trajada de preto como era habitual, Catarina estava já há algum tempo à janela da antecâmara do rei. Tinha uma vista excelente da muita atividade que
tinha lugar no pátio mais abaixo, o raspar de serras, o bater de martelos enquanto os carpinteiros trabalhavam sem parar para construírem as liças e bancadas a tempo
das festividades que teriam lugar no dia seguinte. As flâmulas já adejavam ao sabor da brisa, agitando em Catarina recordações aziagas de outro torneio que se realizara
havia muito tempo em honra dos esponsais da sua filha Isabel com Filipe de Espanha. Três dias de
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dispendiosas celebrações que tinham culminado com aquela fatídica justa no último dia.
Apesar de o seu cabelo ter ficado grisalho, o marido de Catarina continuara a ter uma figura garbosa na sua armadura, ostentando as cores da sua dama. Claro que
não haviam sido as suas cores, pensou Catarina acabrunhada, mas sim as da muito amada amante de Henrique, Diana. Portentoso e forte como sempre, Henrique derrotara
todos os seus adversários, um a um, até se defrontar com o jovem conde de Montgomery.
Se Catarina fechasse os olhos, continuava a ver aquele terrível último embate, os dois cavalos a galoparem um contra o outro, as duas figuras de armadura a embaterem
atroadoramente uma na outra, as lanças a quebrarem-se nos escudos, a madeira a partir-se. Henrique cambaleou, escorregando por cima do arção da sua sela e tombando
para o chão, com o sangue a jorrar da viseira, onde a lasca da lança lhe tinha perfurado o cérebro.
Um acidente aberrante que não fora por culpa de ninguém, mas que causara a morte do rei de França. Catarina lembrava-se de ter chorado até ficar com os olhos vermelhos.
Foi a última vez, de que tinha memória, que tinha chorado por alguém. As suas lágrimas haviam sido motivadas tanto pelo desgosto como pelo sentimento de culpa. Nostradamus
advertira-a. O grande vidente previra a morte de Henrique muito tempo antes do torneio e a própria Catarina tinha tido uma lúgubre premonição nessa mesma manhã.
Por conseguinte, porque não se tinha esforçado mais para impedir que Henrique entrasse nas liças? Teria uma qualquer parte de si acolhido de bom grado, em segredo,
a morte do marido, a oportunidade de, finalmente, se apoderar do poder que há tanto tempo lhe era negado? Catarina continuava sem saber ao certo, mas supunha que,
agora, isso não tinha a mínima importância. Há muito que Henrique e a sua amante tinham morrido.
Catarina deixara de ser uma rainha mantida na sombra, mas existia um aspeto odioso subjacente à obtenção de poder, pensou com um suspiro de cansaço. Uma pessoa era
obrigada a esforçar-se por o manter e, ultimamente, Catarina começara a constatar que a luta era esgotante.
O seu espião ainda não tinha voltado da ilha Encantada. Não fazia a mínima ideia sobre o que estaria a acontecer durante aqueles conselhos secretos convocados por
Ariane Cheney. Quanto a Gabrielle, a rapariga não fizera o mínimo esforço para cumprir a sua promessa de seduzir Nicolas Remy. Tanto quanto Catarina podia constatar,
Gabrielle nem sequer estivera perto do homem desde a noite do baile de máscaras. Não que Catarina tivesse esperado
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realmente alguma coisa de diferente. Teria de ser ela própria a lidar com o Flagelo e já estabelecera os seus planos com vista a isso.
A concentração de Catarina foi interrompida por uma comoção no outro extremo do corredor, levando-a a afastar-se da janela. As portas duplas foram completamente
abertas com grandes floreados para anunciarem a chegada do filho. Sua alteza real, o rei de França. Apesar de ter dado ao rapaz o nome do falecido marido, Henrique,
indubitavelmente ele não era nada como o vigoroso pai, pensou Catarina com um trejeito ligeiramente escarnecedor nos lábios.
A sua comitiva de favoritos muito pintados vinha atrás. O filho trazia um daqueles seus cãezinhos irritantes. Catarina não tinha nada contra os cães, pelo menos
em relação aos de tamanho normal, que executavam funções úteis, como ficar de guarda e caçar. Mas os cães minorcas de Henrique lembravam-lhe ratazanas esfaimadas,
além de não fazerem nada para enfatizar a masculinidade do filho.
Uma faceta da sua maneira de ser que beneficiaria com algum acréscimo. O gibão com trancelins de um tom de vagem rosada dava realce à sua cintura fina, favorecendo
esse aspeto da sua aparência, embora lhe emprestasse um ar ligeiramente efeminado. Tal como os brincos de pérolas em forma de pêra que oscilavam das orelhas e o
cabelo preto comprido penteado para trás. Apesar disso, Catarina não era capaz de evitar sentir um certo orgulho nele. A tez morena e as feições tipicamente italianas,
a par da total falta de escrúpulos, faziam com que ele parecesse ser mais do seu sangue do que qualquer dos seus outros filhos.
Henrique entregou a sua amostra de cão a um dos seus lacaios e com um gesto dispensou o resto da sua comitiva, aproximando-se de Catarina, que o aguardava junto
das janelas. Ela curvou-se numa cortesia, após o que inclinou a cabeça, oferecendo-lhe a face para que ele a beijasse. Um convite que Henrique ignorou ostensivamente.
Pôs-se a olhar pela janela, mostrando-se mal-humorado enquanto observava o progresso dos trabalhos para o torneio. Catarina abeirou-se do filho, chegando-se bastante
a ele de modo a poder falar-lhe sem que os cortesãos no outro lado da antecâmara a ouvissem.
- Continuais amuado, majestade?
Henrique olhou para a mãe com uma expressão irritada.
- Se estiver, tenho todas as razões para isso, madame. Parece que toda a gente na corte, até o mais insignificante pajem, soube do regresso do Flagelo antes de eu
saber. E tudo porque a senhora minha mãe, a primeira pessoa a inteirar-se disso, não achou por bem informar-me.
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- Não vi motivo nenhum para vos perturbar com essa informação.
- Perturbar-me? Eu sou o rei. Eu devia ter sido informado de que um dos meus maiores inimigos andava à solta por Paris. Por amor de Deus, madame! É possível que
já vos haveis esquecido da ocasião em que Nicolas Remy e a sua tropa de miseráveis rebeldes huguenotes derrotaram as minhas forças militares no campo de batalha.
Mas eu ainda não me esqueci.
- Toda a gente perde de vez em quando, querido Henrique. Tentai pôr isso para trás das costas.
O músculo na face do filho contraiu-se. Um infeliz tique que se acentuava ainda mais na mesma proporção da irritação. Catarina pousou uma mão nos dedos cheios de
jóias que ele apoiara no peitoril para o acalmar.
- Não vos informei de imediato sobre o regresso do capitão Remy porque receei que pudésseis cometer alguma imprudência.
- Como acabar o que começámos na véspera do dia de São Bartolomeu?
- Sim, precisamente. À exceção de alguns atritos de menor importância, conseguimos alcançar um delicado equilíbrio de paz com os huguenotes que tenciono manter.
Já haveis criado mais do que a vossa quota-parte de mártires nessa noite.
- com o vosso incitamento, minha mãe - retorquiu Henrique exacerbado. - Há ocasiões em que penso que nunca teria participado na matança se não tivesse respirado
aquele estranho incenso que queimastes.
- Estais a iludir-vos a vós próprios, meu filho. Todos os homens são violentos por natureza. Não precisam de nenhum feitiço que os leve a matar. Além disso, não
havia absolutamente nada de mágico no meu incenso. Até se poderia pensar que começastes a dar crédito a esses rumores absurdos, segundo os quais a vossa mãe é uma
bruxa.
Henrique não lhe deu resposta, limitando-se a arquear as sobrancelhas depiladas, olhando-a com uma expressão estranha. Tirando a mão de debaixo da dela, começou
a tamborilar com os dedos afuselados no peitoril, a luz do Sol a refletir-se nos anéis, dando origem a um padrão caleidoscópico.
- Muito bem. Admito que não seria muito diplomático matar o Flagelo. Mas peço-vos que me expliqueis por que razão achastes necessário honrar o biltre, convidando-o
a participar no meu torneio. - Henrique tinha uma atitude tão petulante como uma criança que fosse obrigada a partilhar os brinquedos e Catarina teve de resistir
à muita vontade de lhe dar uma forte palmada. O filho era, aparentemente, o rei de França. Um facto inconveniente,
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mas que Catarina não podia esquecer. Refreando a sua impaciência, explicou no tom muito cuidado de alguém que estivesse a fazer com que uma criança atrasada mental
visse a razão.
- Desde a morte do vosso querido pai, as justas passaram a ser eventos muito mais controlados e moderados. Todavia, os torneios, muitas vezes, estão cheios de surpresas,
majestade. Continua a ser possível que ocorra um trágico acidente.
Henrique fitou-a por entre olhos semicerrados.
- Ah, portanto, esse é o vosso plano. Não será tão gratificante como se fosse eu próprio a decapitar a cabeça ao canalha, mas suponho que qualquer que seja o acidente
que haveis preparado para o Flagelo terá de servir.
Henrique afastou-se da janela. Os olhos escuros dos Médicis, tão parecidos com os da mãe, fitaram-na.
- No entanto, quero deixar muita coisa bem clara, madame. Tivestes três filhos que foram reis. O meu irmão Francisco era fraco e doente. O Carlos era absolutamente
louco. Não sou uma coisa nem outra. Tenciono reinar
sem que a minha mãe esteja constantemente a tecer intrigas nas minhas costas. Quanto ao torneio, é possível que eu apresente a minha própria surpresa.
- com um sorriso tolo e pretensioso, fez uma vénia trocista antes de voltar a juntar-se à sua comitiva.
Catarina observava-o com o cenho carregado. Sempre fora capaz de ler facilmente os olhos de todos os filhos. Aquela era a primeira vez que um deles a impedia de
o fazer, o que a deixou bastante inquieta.
Uma surpresa? Durante o torneio? Ele tencionava reinar sem as intrigas da mãe? Exatamente, o que é que Henrique queria dizer com tudo aquilo? Se Catarina não soubesse
que tal era impossível, talvez ficasse a pensar que o filho tinha acabado de ter a impudência de a ameaçar.
Os jardins do Louvre tinham sido transformados num tema que parecia tirado dos contos de Camelot, com pavilhões muito coloridos e flâmulas desfraldadas ao vento.
Os cavaleiros substituíam as flores, jovens vigorosos, em várias fases de colocarem as suas armaduras, cumprimentavam-se e escarneciam uns dos outros, enquanto os
seus escudeiros andavam numa grande azáfama a puxarem o brilho às armas.
O sol a incidir sobre a lona dos pavilhões prometia que o dia seria quente. Remy fez uma pausa para limpar uma gota de suor da testa. Inclinado sobre o seu rei,
afivelava as correias que prendiam o escudo no braço do rei de Navarra. O que não era tarefa fácil, porque o monarca não estava quieto, ao que se juntava o facto
de o próprio Remy se sentir ligeiramente irritado.
A multidão continuava a franquear os portões do palácio, homens a cavalo que se misturavam com as inúmeras pessoas que vinham pelo seu próprio pé. As carruagens
iam chegando, largando nobres e as suas damas, todos trajados de seda. Ao avistar cada vestido por cima de anquinhas, cada toucado com véu, o rei de Navarra inclinava-se
para a frente, para logo voltar a recostar-se dececionado.
Remy temia reconhecer que não procedia de maneira muito diferente. A tensão que sentia não era minimamente aliviada ao admitir para consigo mesmo que ele e o rei
aguardavam a chegada da mesma mulher. Remy deu um forte puxão às correias que fixavam o escudo, provocando um arquejo no rei de Navarra.
- Danação, capitão! O que é que estais a tentar fazer, a moer-me antes mesmo de entrar nas liças?
- Peço desculpa, majestade - resmungou Remy.
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- E porquê essa cara tão acabrunhada, homem? - perguntou o rei num tom autoritário. - A vossa expressão até seria capaz de azedar leite. Isto é um torneio a que
vamos assistir e não um funeral.
- Esperemos que não, majestade. - Remy rangia os dentes enquanto se concentrava a ajustar a parte da armadura de um ombro. - Confesso que não me agrada nada pensar
que ireis arriscar a vossa integridade física numa justa.
- Mas que risco? - ripostou o rei de Navarra, soltando uma gargalhada. - O combat à florete há muito que foi banido em França. O maior risco que corro serão umas
quantas nódoas negras nas costelas. Os dias de violência em que um torneio era um verdadeiro divertimento há muito tempo que desapareceram, o que é uma pena. Agora
não passa de uma mera brincadeira de cabriolas em que nos exibimos para as senhoras. - com os olhos escuros a brilharem, o rei de Navarra acrescentou na brincadeira:
- Tenho a certeza de que existem muitas senhoras aqui, na corte, que desfaleceriam se vissem o vosso robusto físico em ação, capitão. E que tal se fôssemos tentar
arranjar-vos uma armadura para poderdes participar numa ou duas justas?
- Agradeço-vos, majestade, mas não.
- Esqueci-me - retorquiu o soberano, rindo-se à socapa. - Nunca fostes homem para liças. Até mesmo durante a nossa juventude, quando me ajudastes a treinar, sempre
procedestes de maneira tão desmesuradamente empenhada.
- Isso porque a guerra é um assunto muito sério - retrucou Remy, mudando de posição para poder ajustar e prender a armadura no outro ombro. - Seja como for, eu não
poderia participar no torneio. Não sou um nobre nem tão-pouco um cavaleiro.
- Ora, eu posso tratar disso com toda a rapidez. Só tendes de ajoelhar diante de mim. Armar-vos cavaleiro é o mínimo que vos poderia conferir pelos serviços que
me haveis prestado.
- Ainda não vos ajudei a fugir do jugo da corte francesa - disse Remy em voz baixa.
O rei de Navarra sorriu, replicando igualmente em voz baixa.
- Estava a referir-me ao outro serviço em relação a Gabrielle.
Os lábios de Remy contraíram-se. Concentrou-se nas correias da armadura para evitar o contacto visual com o monarca, que se mostrara extremamente satisfeito quando
ele lhe disse que tinha conseguido que Gabrielle lhe prometesse que o desposaria. Sua alteza real continuava sem saber o tumulto
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que ia dentro do seu leal capitão, que Remy andava consumido a tentar encontrar uma maneira de manter Gabrielle longe da cama do soberano.
Vários dos gentis-homens do rei de Navarra aproximaram-se, apresentando-lhe uma grande diversidade de lanças e espadas para que ele escolhesse. Remy deu graças pela
interrupção que lhe permitia pôr alguma distância entre si e o seu rei. Cada vez lhe era mais difícil desempenhar o seu papel naquela farsa e manter os seus sentimentos
para com Gabrielle firmemente refreados.
Saiu do pavilhão a passos largos, procurando refúgio à sombra de um imponente carvalho. À sua volta a atmosfera era festiva, mas toda aquela animação lhe passava
ao lado. Encostou-se ao tronco da árvore e cruzou os braços diante do peito, observando toda aquela azáfama com uma expressão desdenhosa.
O rei de Navarra tinha razão. Há muito tempo que os torneios não tinham a mínima função útil, como treinar para combate ou servir de válvula de escape para as energias
dos militares entre batalhas. Agora pouco mais era além de um espetáculo. Os dias dos cavaleiros nos seus destemidos corcéis há muito que pertenciam ao passado.
Remy pôs-se a observar dois jovens pajens que tinham dificuldade em lidar com uma montada recalcitrante. Um cavalo castrado com uma pelagem castanha luzidia, que,
obviamente, não fora amestrado para aquela espécie de disparate, puxava a brida para trás. com as orelhas achatadas, empinava-se vigorosamente, objetando a que o
drapejassem com metros de elaborados jaezes de veludo dourado e púrpura.
Remy não culpava a pobre besta. Levou a mão à modesta gola de tufos engomados, alargando-a no pescoço. Envergava outro conjunto de belas roupas novas, o gibão e
calções tufados pelo meio das coxas de um verde-escuro. Mas, do mal o menos, desta feita tinha o conforto de uma espada a sério presa à cintura.
Precisava de se apresentar bem trajado para estar ao serviço do seu rei, mas continuava a chorar o dinheiro que teve de pagar por aquelas roupas finas. Pelo menos,
no tocante às suas. Não se tinha importado por ter de comprar o vestuário de Lobo, que servia de seu lacaio. Apesar da tensão que sentia, não pôde reprimir um sorriso
quando o rapaz se aproximou todo emproado na sua nova libré. Não tinha qualquer semelhança com o carteirista andrajoso que fora em socorro de Remy na véspera do
dia de São Bartolomeu.
Lobo comia uma maçã, os olhos escuros sem perderem nada do que se passava à sua volta, admirando todo aquele colorido dos homens a prepararem-se
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para brincarem às guerras. O jovem, muito empertigado, caminhava com a cabeça bem erguida, como se estivesse a imaginar-se um cavaleiro nobre. Um efeito que arruinou
quando limpou a boca às costas da mão.
- Ah, monsieur, estive a ver o campo do torneio. Devíeis ver a liça e o trono dourado construído para o rei. Até fizeram uma torre que pintaram de maneira a parecer
que é feita de pedra, mas que é de madeira. E tantas senhoras maravilhosas - acrescentou Lobo, beijando as pontas dos dedos.
- Uma exibição de tanta riqueza. Bolsas tão cheias e tão descuidadamente à vista que só seria preciso um pequeno corte com uma faca para cortar os cordões...
- Martin! - disse Remy num tom de repreensão, interrompendo a empolgada verborreia do rapaz.
- Eu só estava a brincar, monsieur. Se bem que a tentação seja muito grande. Como a minha tante Pauline costumava dizer, é muito difícil largar os hábitos antigos.
- Por pressuposto, és o meu respeitável pajem.
- Oui, monsieur - retorquiu Lobo com um suspiro fundo. - Mas a respeitabilidade pode ser infernalmente entediante.
Num gesto afetuoso, Remy deu um pequeno soco na orelha do jovem.
- Acho melhor que vás ver se o escudeiro do rei precisa de ajuda com os cavalos. Isso manter-te-á afastado de malfeitorias.
- Ah, monsieur, sabeis que nunca tive muito jeito para lidar com cavalos - retorquiu Lobo gemendo.
- Vai! - ordenou Remy inflexível. O rapaz praguejou entredentes, mas tratou de obedecer. Quando desapareceu atrás do pavilhão, chegou uma bela carruagem puxada por
uma parelha de cavalos de pelagem negra luzidia. As cortinas das janelas estavam corridas para trás, revelando o encantador perfil de Gabrielle.
O cocheiro puxou as rédeas e um lacaio apressou-se a avançar para abrir a porta. Gabrielle deteve-se por uns momentos antes de descer, o cabelo louro encaracolado
debaixo do toucado rígido em forma de coração a emoldurar a perfeição do seu rosto de pele cor de marfim. Os elegantes sapatos de brocado espreitavam por baixo da
orla dourada do vestido de um azul-celeste, da mesma cor dos seus olhos. O decote era mais recatado do que Gabrielle usava habitualmente, mas a seda suave era suficientemente
justa ao peito para despertar os anseios fantasiosos de qualquer homem.
Remy aproximou-se com a intenção de lhe estender a mão para a ajudar a descer da carruagem, mas o rei de Navarra adiantou-se-lhe. Apesar do impedimento
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da armadura, o soberano saiu disparado do pavilhão. Sorrindo a Gabrielle, as mãos do monarca envolveram-lhe a cintura, erguendo-a e pousando-a no chão. A cabeça
de cabelo escuro inclinou-se para ela, travando com ela uma conversa íntima, talvez a combinarem um encontro amoroso para depois do torneio. Só de pensar nisso,
Remy sentiu-se como se tivesse engolido carvões em brasa. Foi com muita dificuldade que se refreou para não correr em frente para afastar Gabrielle do seu rei, o
seu dever para com o rei de Navarra que se danasse.
A atenção de Remy estava tão concentrada em Gabrielle e no soberano que precisou de um momento para se aperceber da presença de outras duas mulheres que desciam
da carruagem. Uma era Bette. A outra era uma jovem que usava um vestido verde muito simples, mas que atraiu muitos olhares de admiração, a beleza da jovem, como
a Lua prateada, a contrastar com a de Gabrielle, que seria o Sol dourado.
Estava bastante mais alta, a sua figura arrapazada quase sem seios de outros tempos arredondara-se com as linhas curvilíneas de uma mulher. Mas o cabelo comprido
e liso de um louro-esbranquiçado e os olhos com uma expressão invulgarmente etérea eram exatamente como Remy se recordava.
- Miri! - exclamou Remy incrédulo.
Miri deu meia-volta ao ouvir o seu nome. Gabrielle preparava-se para apresentar a sua irmã mais nova ao monarca, mas o rosto de Miri iluminou-se ao avistar Remy.
Ignorando a mão estendida do rei de Navarra, Miri soltou um grito de alegria. Correu para Remy e atirou-se para os braços dele com um ímpeto que fez com que ele
cambaleasse um passo para trás. Comovido ao ver a alegria irreprimível com que ela o saudava, Remy abraçou-a com o mesmo afeto, como se ela fosse a sua própria irmã
mais nova.
Longe de se mostrar afrontado pela falta de atenção da parte de Miri, o rei de Navarra soltou uma sonora gargalhada.
- Ora bem, parece que o nosso destemido Flagelo fez uma conquista.
Miri Cheney fora uma criança constrangedoramente tímida e continuava a mostrar traços desse acanhamento quando o rei de Navarra começou a conversar com ela perto
do pavilhão. Mas o monarca tinha o condão de encantar as mulheres, conseguindo pô-las à vontade. Não tardou a cair nas boas graças de Miri, que lhe sorria. Remy
mantinha-se a uma distância discreta, mas sempre de olho no seu rei. Sentiu-se aliviado ao ver que a maneira como o soberano tratava Miri raiava o avuncular.
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Não obstante a sua alegria inicial ao rever Miri, Remy desejava fervorosamente que a jovem regressasse à ilha Encantada. Ela constituía uma complicação adicional
na sua vida que já parecia estar tão sobrecarregada, mais outro motivo de preocupação. Naquele momento, Remy ouviu o suave roçagar de uma saia de seda e, pelo canto
do olho, viu que Gabrielle se aproximava. Sua senhoria dignava-se a reparar nele por fim, refletiu com amargura.
- Bons dias, capitão Remy. - A frieza da saudação de Gabrielle contrastava quase dolorosamente com o calor humano com que Miri o tinha saudado. O distanciamento
de Gabrielle magoou-o ao ponto de a ter interpelado com rispidez.
- Danação, Gabrielle! Mas o que raio é que vos passou pela cabeça ao permitir que a Miri viesse ter convosco a Paris? A corte francesa não é lugar para uma jovem
inocente.
Gabrielle ergueu o pescoço numa atitude altaneira, mas mostrava um muito ligeiro rubor nas faces que se devia à reprimenda de Remy.
- Eu não permiti que a Miri fizesse o que quer que fosse e, tal como decerto não vos passou despercebido, ela já não é nenhuma criança. Cresceu e agora é uma jovem
mulher bastante determinada. Mas não precisais de vos preocupar. Estou a contar com que a Ariane apareça em Paris como um furacão dentro de pouco tempo, apressando-se
a levar Miri para longe da minha maléfica influência. Receastes que eu mantivesse a Miri comigo, encorajando-a a tornar-se uma cortesã? Que lhe ensinasse os truques
do meu mister?
- Não - ripostou Remy. - Sabeis muito bem que nunca pensei nada disso. Sei como sempre haveis protegido a vossa irmã mais nova.
Gabrielle tentou manter a postura de frieza e fracassou. Subitamente, os ombros descaíram-lhe numa atitude de desalento.
- Remy, por favor, não quero que discutamos hoje. Já discuti de sobra com a Miri.
Por detrás da fachada encantadora que ela apresentava, Remy detetou sinais de tensão, vestígios de sombras abaixo dos olhos como se ela não andasse a dormir bem.
Ansiava poder pegar-lhe na mão, mas prometera nunca mais voltar a tocar-lhe. Uma promessa de que se arrependia de todo o coração. Manteve a mão fechada ao longo
da perna.
- Porque discutistes com a Miri?
- Por causa de tudo e mais alguma coisa. Acerca de ela me acompanhar ao torneio hoje. Acerca da permanência dela em Paris. Até a ameacei de
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a mandar amarrar e recambiá-la para a ilha Encantada. Ela limita-se a dizer que fugiria e que voltaria a Paris. Está tão determinada em proteger-me. Conseguis imaginar
uma coisa dessas? A minha irmã mais nova. - Gabrielle olhou para Remy com uma expressão esperançada. - Podeis falar com ela? Fazer com que ela veja a razão?
- Posso tentar - respondeu Remy com hesitação. - Mas a verdade é que nenhuma de vós, as irmãs Cheney, pode ser considerada o que um homem classificaria de mulher
cordata.
- Não suponho que sejamos - concordou ela com uma risada relutante.
- Meu Deus, só ficarei satisfeito quando conseguir pôr-nos a todos em segurança, fora desta maldita cidade.
- Sim - murmurou Gabrielle, mas com muito pouco entusiasmo na voz. O plano dele em resgatar o rei de Navarra, levando-os a todos para fora de França, continuava
a não lhe agradar nada, mas dado que ele havia persuadido o monarca, a Gabrielle só restava aquiescer.
Seguiu-se um silêncio de constrangimento entre os dois. Remy começou a aperceber-se dos olhares de curiosidade que ambos estavam a atrair, os murmúrios atrás de
mãos levadas à boca. Adotou a postura mais ereta possível, olhando rigidamente em frente. Contudo, Gabrielle comportou-se com a nobreza exigida a uma princesa, acenando
com a cabeça e murmurando saudações às outras senhoras e desejando aos vários cavaleiros, já com as suas armaduras, boa sorte no torneio que não tardaria a começar.
Houve um cavaleiro em particular que se deteve para lhe fazer uma vénia quando ela passou. Tinha uma aparência muito jovem com o seu cabelo louro ondulado e o rosto
sardento, mas mostrava uma atitude tão solene como se estivesse prestes a partir para aniquilar um dragão ou dar início a uma demanda. A sua expressão suavizou-se
ao ver Gabrielle, erguendo uma luva de couro numa tímida saudação. Mas foi a doçura do sorriso dela e o acenar da mão com que ela lhe retribuiu a saudação que irritaram
Remy.
- Mais um dos vossos admiradores? - perguntou encrespado. Gabrielle não lhe respondeu de imediato. Quando baixou a mão com
lentidão, disse por fim:
- Aquele jovem é... é Stephen Villiers, o marquês de Lanfort. Lanfort. O nome provocou um choque que percorreu o corpo de Remy
ao reconhecer o nome como um pontapé no estômago. Virou a cabeça e esticou o pescoço para outro olhar ao jovem que desaparecia entre a multidão.
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- Aquele era o Lanfort, o vosso antigo amante? Aquele por quem quisestes que eu me fizesse passar aquando do baile de máscaras? Aquele menininho? com a breca, Gabrielle!
Ele já tem barba?
- O Stephen é mais velho do que aparenta, apesar de ter uma cara de imberbe e com uma fisionomia tão jovem e doce. Os outros cortesãos, em especial os seus próprios
irmãos, troçam dele cruelmente. Consequentemente, sempre foi muito tímido e desajeitado, em particular quando na presença de senhoras. Ele estava a precisar desesperadamente
que uma mulher com experiência reparasse nele, que lhe instilasse um pouco de confiança em si próprio.
- Portanto, haveis resolvido fazer dele vosso amante apenas movida por um ato de generosidade para com ele? - perguntou-lhe Remy com uma expressão de incredulidade.
- Não! Mas depois de Georges... o meu duque decidiu deixar Paris e regressar à sua propriedade no campo, eu... eu senti-me muito sozinha. Além disso, o Stephen era
tão amável e gentil.
Remy ficou de cenho carregado.
- Implicitamente, haveis dito que não gostastes de nenhum dos vossos amantes. Também dissestes que tínheis de fingir que nem sequer estáveis com eles.
- Só na cama. Durante o resto do tempo... - Gabrielle olhou-o bem de frente. - Sei que pensais que sou a meretriz mais calculista à face da Terra, mas nunca me entreguei
a nenhum homem por quem não tivesse estima. Gostei de todos os meus amantes à minha própria maneira.
- Mas não haveis amado nenhum deles? Nunca estivestes apaixonada? - perguntou-lhe Remy, detestando-se pelo muito desespero subjacente à sua pergunta.
- Não - respondeu Gabrielle calmamente.
- Nem sequer a primeira vez?
- A primeira vez? Eu... eu não estou a compreender o que quereis dizer.
- Destes-me a entender que tínheis tido um amante antes de me terdes conhecido. Acreditastes que estáveis apaixonada por ele?
- Eu... eu, não, claro que não - respondeu Gabrielle com um riso forçado. - Ele era tão insignificante que nem sequer me lembro do seu nome.
- Apressou-se a desviar o olhar, mas não antes de Remy ter visto a expressão atormentada que se espelhou nos seus olhos. Recordava-se até bem de mais. Portanto,
quem diabo era esse homem, o canalha que havia sido o primeiro
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a apoderar-se da sua inocência? Remy estava convencido de que ele tinha magoado Gabrielle. Até que ponto é que ele fora cruel, era coisa que Remy só podia tentar
adivinhar. Mas o suficiente para a devastar e à fé que depositara no amor. O suficiente para embotar o seu desejo sexual e amedrontar o seu coração, de maneira a
que, quando Remy entrou na vida de Gabrielle, nunca teve a mínima hipótese com ela.
Remy deu consigo a odiar um inimigo cujo rosto nunca vira. Em brasa para matar um homem cujo nome desconhecia. Quando cerrou o punho, os folhos no punho da manga
descaíram para o pulso. Tinha-se sentido incomodado com as malditas rendas durante toda a manhã. com uma imprecação entredentes, Remy empurrou os folhos para trás.
- Não deveis fazer isso - ralhou Gabrielle.
- Maldita coisa! - resmungou Remy. - Faz com que eu pareça o raio de um pavão!
- Existe uma razão para que os pavões exibam as suas penas. Para atraírem uma pavoa. Existe qualquer coisa de bastante sedutor no contraste entre rendas e os contornos
másculos das mãos de um homem. Especialmente, mãos tão fortes como as vossas.
Gabrielle pegou-lhe no braço, alisando as rendas do punho, as pontas dos dedos a roçarem-lhe pelas costas da mão. O toque, apesar de muito leve, enviou uma poderosa
corrente que lhe percorreu as veias. Remy ansiava por se apoderar da mão dela e premir os lábios na calidez aveludada da palma da mão de Gabrielle. Precisou de toda
a sua força de vontade para resistir a esse impulso.
- E vós, achais que é sedutor? - perguntou ele num murmúrio.
Gabrielle ergueu a cabeça relutantemente e os olhos dos dois encontraram-se. Remy sentiu o chamamento do desejo, como se estivessem unidos por uma corda que se apertasse
cada vez mais. Mais ainda, Remy estava convencido de que Gabrielle também sentia o mesmo.
Só existia uma diferença entre os dois. Ela não queria sentir aquilo. Até parecia assustada por isso. Afastou a mão da dele repentinamente, como se os folhos de
renda da camisa dele tivessem pegado fogo de súbito.
- Gabrielle, não precisais de ter medo de mim - disse ele suavemente.
- Prometi-vos que não voltaria a tocar-vos. E falei muito a sério.
- Sei que sim e que cumpris sempre as vossas promessas. - Porque é que aquilo fazia com que do tom da sua voz transparecesse tanta tristeza?
- Desejo que me prometais outra coisa - pediu Gabrielle.
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- Que é o quê?
- Que não vos deixeis persuadir a participar neste torneio. Em princípio, estas justas são apenas a fazer de conta, mas um evento desta natureza seria propício a...
a que aconteçam acidentes.
- Estais a pensar que a Rainha das Trevas talvez tenha planeado um acidente para mim?
- Quem é que poderá dizer o que vai na cabeça de Catarina? - retorquiu Gabrielle com um encolher de ombros.
Ou na dela. Olhou para Remy tão constrangida que ele não foi capaz de se impedir de perguntar a si mesmo qual a natureza da conversa entre ela e a rainha aquando
do encontro que tiveram à meia-noite, se fora dito alguma coisa que ela não lhe estava a dizer. Catarina era extremamente hábil a tecer intrigas, mas também Gabrielle.
Remy detestava ter de lembrar isso a si mesmo. Queria poder confiar nela. Queria que tudo fosse frontal e sincero entre ambos.
- Só quero que me prometais que vos mantereis à margem do torneio - insistiu Gabrielle.
- Mas é possível que a oportunidade de, acidentalmente, quebrar algumas cabeças me agrade.
- Remy! - Gabrielle olhou-o com uma expressão de fúria, mas ele também se apercebeu da preocupação que lhe ensombrava o olhar. Ela temia por ele. O que estava muito
longe da profundidade de emoção que Remy desejava inspirar-lhe, mas, do mal o menos, já era alguma coisa.
- Não há razão para preocupações, minha querida. Hoje não tenho a intenção de dar a quem quer que seja uma desculpa para me trespassar as costelas com uma espada.
Sabeis o que penso acerca de jogos, do que este torneio não passa. É tudo ostentação e rematadas tolices.
- Tolices perigosas - murmurou Gabrielle flexionando os dedos numa manifestação de nervosismo. - Remy, há... há uma coisa que tenho andado a pensar oferecer-vos.
Para surpresa dele, ela puxou-lhe a manga, levando-o para um lugar relativamente isolado atrás de um dos pavilhões. com um olhar furtivo para se certificar de que
não eram vistos por ninguém, ela abriu uma pequena bolsa de veludo que pendia da faixa dourada na cintura. Do interior tirou um objeto de metal e colocou-o na palma
da mão dele.
Remy franziu a testa ao examinar o medalhão suspenso de uma corrente de prata baça. Tinha uma superfície lisa e cinco lados, além de uns símbolos estranhos.
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- O que é isto?
Gabrielle puxou os cordões da bolsa, fechando-a e mostrando-se um pouco acanhada.
- E um amuleto que vos protegerá e manterá em segurança. Não sei exatamente como é que exerce o seu efeito, nem mesmo se resulta. Por pressuposto, permitir-vos-á
pressentir a presença do mal, advertindo-vos se alguém estiver a pensar em fazer-vos mal.
- Não se pode dizer que eu precise de um amuleto para isso. Ver uma espada enorme e de lâmina aguçada na mão de outro sujeito habitualmente é aviso suficiente.
Mas Gabrielle não sorriu. Mostrava-se tão surpreendentemente ansiosa que Remy parou de falar em tom de brincadeira. Virou e revirou o amuleto nas mãos, examinando-o
mais de perto. Não obstante todas as coisas estranhas a que assistira na ilha Encantada naquele verão, Remy sabia que existiam determinados elementos de alegada
magia que não passavam de charlatanice, tolices supersticiosas, como muitas das coisas em que o seu jovem amigo Lobo acreditava.
Aquele medalhão, com os seus estranhos símbolos, era muito diferente dos talismãs toscos e aromáticos que o próprio Martin fazia para si próprio. Enquanto pegava
naquele invulgar objeto de metal, sentia um mal-estar inexplicável. Das três irmãs Cheney, Gabrielle era a que menos acreditava nos poderes da magia. Pelo menos,
até ter ido para Paris. Esperava que ela não tivesse feito mais visitas àquela fantasmagórica casa abandonada com a sua perturbadora história, para ir falar com
a mulher que vivia em reclusão e que afirmava poder conjurar os mortos. Remy ergueu o medalhão.
- Gabrielle, exatamente aonde é que arranjastes isto? - Era imaginação sua ou ela hesitou por uma fração de segundo antes de responder.
- Foi a Ariane. Deu-mo há já muito tempo. Deixai que vos ajude a pô-lo. - Gabrielle estendeu as mãos para lhe passar o fio pela cabeça. Estava tão próxima dele que
conseguia sentir a respiração dela na bochecha, a calidez dos dedos na sua pele enquanto ela metia o medalhão por dentro da camisa. Pendeu-lhe como um peso frio
por cima do coração, mas Remy mal se apercebeu disso. As mãos dela demoraram-se nos seus ombros, os olhos a pestanejarem como duas jóias cintilantes. Gabrielle deixou-o
perplexo ao encostar-se ainda mais até os seus lábios tocarem nos dele num beijo doce, cálido e cheio de promessas, mas que acabou cedo de mais. A boca dele continuava
a agarrar-se à dela quando Gabrielle já se afastava.
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- Eu... eu peço desculpa - disse ela numa voz vacilante. - Eu devia ter...
- E porque não? - perguntou Remy num tom que exigia resposta, esforçando-se por reprimir tanto o desejo como a frustração. - Estamos noivos para nos casarmos. com
certeza que isso justifica alguma demonstração de afeto entre nós.
- Não, seríamos ridicularizados por isso. Os matrimónios são combinados com vista a riqueza, título nobiliárquico ou aliança política. Só os idiotas é que casam
por amor, Nicolas Remy. - Ela sorriu-lhe com uma expressão nostálgica. Antes que Remy pudesse responder-lhe, Gabrielle virou-lhe as costas. Enquanto a seguia, saindo
de detrás do pavilhão, as palavras dela ecoavam na cabeça de Remy.
"Só os idiotas é que casam por amor."
A ser isso, ele só podia ser o maior idiota em toda a cristandade.
O rei de Navarra pegou no lenço de seda que Gabrielle lhe tinha oferecido e levou o tecido ligeiramente perfumado aos lábios.
- vou usar este lenço na manga e entrarei na justa, batendo-me em vossa honra, milady. Sinto-me profundamente honrado por me terdes concedido o vosso favor e não
a outro destemido campeão.
A ironia no tom de voz do monarca não passou despercebida a Gabrielle. Afivelou um sorriso forçado.
- Por que razão vossa majestade haveria de acreditar que eu favoreceria outra pessoa?
O rei de Navarra arqueou as sobrancelhas numa expressão de chacota.
- Ultimamente, tendes andado diabolicamente evasiva, Gabrielle. Pergunto-me se fiz alguma coisa que vos ofendesse.
- Claro que não, majestade. - Mas o rubor que subiu à face de Gabrielle denunciou-a. Teve de fazer um grande esforço para que o seu olhar não se desviasse constantemente
na direção onde Remy se encontrava, mas era uma batalha perdida à partida. Olhou furtivamente para onde Remy se mantinha ferozmente de guarda à sua irmã mais nova.
Se algum dos homens presentes se sentisse tentado a fazer de Miri o alvo das suas galanterias dúbias, o olhar feroz de Remy faria com que pensasse duas vezes. Não
tinha armadura, mas tinha mais a postura de um cavaleiro do que qualquer daqueles tolos pomposos.
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Gabrielle estava bem consciente da sensação que a presença de Remy no torneio causava entre os cortesãos. As senhoras fitavam-no demoradamente com olhares de apreciação,
enquanto a maior parte dos homens mostrava uma expressão carrancuda. Outros limitavam-se a olhar fixamente. Remy tocava no fio que Gabrielle lhe pusera ao pescoço,
mexendo no medalhão escondido debaixo do gibão. Ela perguntava-se se o amuleto surtiria efeito, se ele pressentiria a iminência de perigo.
Se fosse o caso, não precisava de ir mais longe do que olhar na direção dela, pensou Gabrielle infelicíssima. Mentira-lhe a respeito do medalhão, mas, se lhe tivesse
dito a verdade, duvidava que ele tivesse aceitado o amuleto.
Remy teria manifestado o quanto deplorava a amizade dela com Cassandra Lascelles, inteiramente de acordo com a opinião de Ariane sobre alguém que praticasse magia
negra, pessoa que devia ser evitada. Era possível que a capacidade de Cass de conjurar os mortos fosse enervante. Mas como é que se poderia pensar que uma mulher
era malévola quando ela sentia um desgosto tão grande pela morte das irmãs, a qual amava tanto o seu cão que estava pronta a arriscar a vida para ir em seu socorro?
Cassandra era meramente outro exemplo de uma mulher que fora brutalizada pelas tragédias que ocorreram na sua vida, que se esforçava por ultrapassar as suas fraquezas
e sobreviver o melhor que lhe era possível. E essa situação era algo que Gabrielle compreendia bem de mais.
A mentira que dissera a Remy sobre o amuleto era o menor dos seus pecados. Andava a enganá-lo muito mais do que isso. Remy presumia que, por ela ter consentido em
desposá-lo, estava conformada com o seu plano.
Mas, mais tarde, após o torneio, quando o rei de Navarra estivesse mais bem-humorado, depois de ter bebido o seu vinho, Gabrielle tencionava aplicar todos os seus
encantos nele para o dissuadir de regressar ao seu país. O destino dele era em França, tal como o dela. Por muito que Gabrielle pudesse desesperar por causa do destino
que em tempos estivera ansiosa por abraçar, não havia como evitá-lo.
Era-lhe impossível salvar-se. Mas podia salvar Remy. Faria com que o rei de Navarra o forçasse a deixar Paris, regressando ao pequeníssimo país fronteiriço na vastidão
das montanhas, aonde ele estaria muito longe do alcance de Catarina de Médicis, bem como de quaisquer outros inimigos que tivesse na corte. Como Remy a desprezaria
quando descobrisse toda a dimensão da sua falsidade, mas talvez o ódio que ela lhe suscitaria ajudasse a pôr fim aos seus próprios desesperados anseios pelo que
não podia ter. A ausência dele
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permitir-lhe-ia voltar a fechar o seu coração em gelo, retornando àquele abençoado torpor que lhe permitira tolerar aquela vida havia tanto tempo.
- Gabrielle?
Virou-se para o rei de Navarra, apercebendo-se de que ele lhe pegara na mão. Os olhos escuros fitavam-na com ternura.
- Pareceis-me tão tristonha. Dizei-me o que vos perturba. Gabrielle sentiu um nó na garganta que a impedia de falar. Fosse como
fosse, não podia ter respondido à pergunta dele. Como é que poderia dizer ao monarca que o destino lhe pregara uma cruel partida? Que estava destinada a ser sua
amante, embora o seu coração pertencesse ao homem que o soberano, sem ter consciência disso, selecionara para fazer de seu marido?
Felizmente, a atenção do rei de Navarra foi desviada pelos floreados da trombeta de um arauto. O rei de França tinha chegado, seguido da sua comitiva, qual cauda
de um cometa. Ao contrário do rei de Navarra, era evidente que Henrique Valois não tinha a intenção de participar no torneio. Caminhava muito emproado no seu gibão
de um veludo púrpura orlado de arminho, precedido por um dos seus execráveis cães preso pela trela. O animal ladrava e rosnava a todos nas proximidades, um facto
que, manifestamente, divertia muito o rei.
Mas quando Henrique Valois se aproximou do pavilhão do rei de Navarra, o cão soltou-se. O cãozinho correu direito a Miri e começou a saltar numa tentativa para que
ela lhe pegasse. com um riso de deleite, Miri baixou-se e pegou no animal. Quando começou a sussurrar-lhe suavemente à orelha, o pequeno cão contorceu-se, mostrando
uma adoração canina, com a cauda a abanar de um lado para o outro. A sua língua lambeu todas as partes do rosto de Miri a que conseguia chegar.
A boca de Valois estreitou-se numa expressão de ultraje. Quando o rei de França se aproximou de Miri com cara de poucos amigos, Gabrielle apressou-se a intervir,
mas Remy antecipou-se-lhe. com um sorriso forçado, tirou o cãozinho dos braços de Miri, entregando-o ao monarca. Quando o animal começou a ganir, esforçando-se por
voltar para os braços de Miri, o rei com impaciência entregou-o a um dos membros da sua comitiva, com uma irritação que era palpável.
Miri curvou-se numa vénia. Remy limitou-se a uma rígida inclinação de cabeça, a coluna vertebral parecia tão rígida que Gabrielle se admirou por não se ter partido
em duas. O soberano atirou para trás a basta cabeleira escura, retribuindo-lhes com um acenar de cabeça de amuo, após o que os ignorou ostensivamente.
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- Ah, capitão Remy! - exclamou outra voz. - Bem-vindo sejais do reino dos mortos. Agraciais-nos, por fim, com a vossa presença.
As dobras do vestido negro de Catarina roçavam pela relva quando ela se aproximou. Remy não lhe deu resposta e não fez a mínima menção de lhe fazer uma vénia, por
muito curta que fosse. O seu maxilar parecia esculpido em pedra.
- Aproximai-vos, meu caro capitão. Deixemos que os mal-entendidos entre nós sejam esquecidos. É com imenso prazer que recebo um herói tão famoso nos nossos festejos
de hoje. Estendo-vos a minha mão num gesto de amizade. Deixai que eu veja algum sinal de boa vontade e cordialidade.
- A rainha estendeu-lhe a mão com um sorriso que não podia ter sido mais afável, mas a expressão ardilosa nos olhos dela disse a Gabrielle que a Rainha das Trevas
estava bem ciente do quanto custaria a Remy prestar homenagem a uma mulher responsável pela chacina dos seus concidadãos. Um músculo na mandíbula de Remy contraiu-se,
os olhos de um castanho-escuro incapazes de disfarçarem a aversão que tinha à Rainha das Trevas. "Ele jamais o fará", pensou Gabrielle, "ainda que isso lhe custe
a vida." O seu coração apertou-se de temor, perguntando-se como é que Catarina reagiria ao insulto.
A Rainha das Trevas estendeu a mão com uma atitude ainda mais imperiosa. Pareceu que sobre todos os que se encontravam nas proximidades do pavilhão se abatia uma
atmosfera de expectativa. O rei de França observava, sorrindo com uma expressão sanguinária.
Catarina aproximou-se ainda mais dele, murmurando-lhe:
- O que é que se passa, capitão? Se não aceitais a minha amizade para vosso próprio bem, então fazei-o pela vossa querida amiga, a Mademoiselle Gabrielle Cheney.
- Catarina sorriu com um gesto de cabeça na direção de Gabrielle. Falava num tom de voz muito suave, mesmo acariciante, mas a ameaça implícita nas suas palavras
e atitude era mais do que evidente. Se Remy não se dobrasse perante Catarina, arriscava-se a que o seu descontentamento recaísse em Gabrielle.
Remy hesitou por mais um momento, mas depois inclinou-se lentamente até ficar ajoelhado diante da Rainha das Trevas. Gabrielle mordeu o lábio com força para se impedir
de lhe pedir que não sacrificasse o seu orgulho, pelo menos não por ela. Remy pegou na mão da rainha. com a face extremamente pálida, encostou os lábios às pontas
dos dedos da Rainha das Trevas. Um suspiro fundo de satisfação ecoou por todos os presentes, que não perdiam pitada do que se passava. O rei de França até se riu
ao ver o orgulhoso
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Flagelo, que só muito raramente é que fora derrotado no campo de batalha, a ser obrigado a humilhar-se em frente dos seus inimigos.
Remy suportou aquilo estoicamente e só os seus olhos é que revelavam toda a dimensão da vergonha que sentia e o tormento por que estava a passar. Gabrielle sentiu
o ardor de lágrimas de fúria nos seus próprios olhos. E, naquele momento, odiou Catarina mais do que nunca. A Rainha das Trevas manteve Remy de joelhos até Gabrielle
não conseguir suportar aquela situação por mais tempo.
- Já chega! - gritou. Afastou a mão da rainha da de Remy e puxou-o pelo ombro para que se levantasse. Catarina arqueou as sobrancelhas e olhou para Gabrielle com
uma expressão inquisitiva. A atitude da jovem deixou muitos dos presentes perplexos e não menos o rei de Navarra. Gabrielle rangeu os dentes e procurou recompor-se
por detrás de um sorriso de frieza.
- Perdoai-me, majestade. Mas o capitão prometeu-me que hoje me acompanharia. Sinto-me vexada ao ver que ele presta homenagem a outra senhora, até mesmo a uma rainha.
- Olhou bem de frente para Catarina. - E nunca se sabe o que uma mulher ciumenta pode ser levada a fazer.
- Ohhh, isso soa-me a um desafio, majestade - disse o rei de França.
- Ide buscar espadas para estas senhoras. Aposto dez dinheiros na minha mãe. - As palavras trocistas provocaram o riso nos cortesãos, aliviando a tensão em todos,
menos em Remy. Até mesmo Catarina esboçou um sorriso.
- Gabrielle Cheney e eu preferimos uma forma mais subtil de justa. Deixaremos o uso de armas mais grosseiras e violentas para os cavalheiros. Tal como aqui o nosso
destemido capitão, deveis estar ansiosos por entrar no campo da liça. - A rainha desviou o olhar para se dirigir ao seu genro.
- Meu querido Henrique, porque não haveis dado uma armadura ao destemido Flagelo?
- O meu destemido Flagelo é um homem muito sério, majestade - retorquiu o soberano com um encolher de ombros. - Este género de divertimento não é do seu agrado.
- E tão-pouco reivindico o título de cavaleiro - acrescentou Remy.
- Nesse caso, tratemos de vos armar cavaleiro, pelo menos durante um dia - disse Catarina num tom ronronante. - Sereis o meu campeão muito especial. Eu própria proporcionar-vos-ei
uma armadura e cavalo.
- Não! - atalhou Gabrielle, agarrando o braço de Remy. Humedeceu os lábios e obrigou-se a emprestar um tom mais jovial à sua voz. - Majestade,
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Privar-me-íeis do meu galante acompanhante? Estou determinada. Estou decidida a que o capitão assista às justas ao meu lado.
- Agarrado às anáguas de Gabrielle Cheney, monsieur? - perguntou o rei. A entoação de motejo fez com que Remy corasse intensamente.
Gabrielle apertou-lhe o braço afetuosamente. Sentia-se aterrorizada face à possibilidade de ele esquecer toda a prudência, deixando-se tentar a participar nas liças.
O longo olhar de soslaio que Catarina trocou com o filho fez com que Gabrielle ficasse mais apreensiva do que nunca pela segurança de Remy.
- Mas que dececionante - disse o rei de França numa voz arrastada.
- Estávamos esperançados em ver uma amostra da famosa valentia e mestria no manejo de armas do Flagelo.
- Eu teria pensado que vossa majestade já teria tido provas mais do que suficientes disso no campo de batalha - disse Gabrielle com uma doçura excessiva.
Quando Henrique Valois corou e olhou para ela com uma expressão de fúria, pensou que tinha sido muito pouco sensato lembrar ao rei a sua derrota às mãos de Remy.
Aquela situação já estava suficientemente tensa.
Para seu alívio e muito orgulho nele, Remy manteve a calma. Dirigiu a palavra a Catarina e ao rei de França com uma serena dignidade.
- Por muito que eu deteste dececionar alguém, esta brincadeira com armas nunca me despertou o mínimo interesse. Eu não costumo brincar às guerras.
O rei mostrou-se vexado, mas Catarina continuou a tentar persuadi-lo.
- com certeza que nos fareis a vontade apenas desta vez. A reputação que vos deu o nome de Flagelo é conhecida por toda a França. São inúmeros os nossos jovens nobres
que anseiam desafiar as vossas capacidades marciais, uma muito em particular.
A rainha interrompeu-se e protegeu os olhos do sol com a mão em forma de pala, abarcando com o olhar todos aqueles pavilhões.
- Mas para onde é que ele terá ido? Ah, sim, ali está.
Sorrindo de uma maneira que provocou um arrepio de apreensão em Gabrielle, Catarina afastou-se do pavilhão do rei de Navarra. Ergueu um braço, indicando a alguém
à distância, que parecia ter estado à espera desse sinal, que se aproximasse. Já tinha posto a armadura para a justa, faltando-lhe apenas as luvas e o capacete,
mas o sol que se refletia no escudo tornava impossível que se distinguisse as suas feições.
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Gabrielle apertou a mão de Remy, olhando-o com uma expressão que era um misto de súplica e advertência. Mas Remy nem sequer estava a olhar para ela. À semelhança
de toda a gente, toda a sua atenção estava concentrada na figura que se aproximava, um vinco fundo entre os sobrolhos.
Se aquele homem revelasse ser o duque de Guise ou qualquer outro dos grandes senhores católicos que haviam tido parte ativa no massacre, Gabrielle receava que não
houvesse nada que impedisse Remy de aceitar o desafio. Sentindo a pulsação a bater ansiosamente na sua garganta, observava a figura de armadura que se aproximava
cada vez mais, as suas feições indiscerníveis até ter inclinado a cabeça rigidamente diante de Catarina, após o que, lentamente, voltou a erguê-la. Gabrielle ficou
sem respiração. Sentiu que o sangue lhe abandonava as faces ao olhar para o semblante magro e saturnino de Étienne Danton.
Só podia estar a sonhar, disse a si própria, embrenhada na angústia de um dos seus pesadelos. Se pestanejasse e se sacudisse a si própria, decerto que despertaria
e o rosto odioso de Danton desapareceria.
Mas não foi isso que aconteceu. O chevalier chamou o seu escudeiro e ofereceu à rainha uma única rosa de um vermelho de sangue. Todos os gestos de Danton estavam
impregnados de uma arrogância feita de despreocupação, o pobre arremedo do verdadeiro cavaleiro que ela em tempos acreditara que ele fosse.
Gabrielle recuou um passo, cambaleando ligeiramente; a única coisa sólida e firme era a mão de Remy, que a agarrou pelo cotovelo, servindo-lhe de apoio.
- Gabrielle? Estais a sentir-vos mal?
Gabrielle ergueu o olhar e viu que os olhos de Remy estavam ensombrados de preocupação. Tentou responder-lhe, mas os seus lábios tinham ficado demasiado entorpecidos
para conseguirem formar palavras. Virou a cabeça, evitando olhar para o homem numa armadura tão reluzente.
Danton ali, em Paris. Como é que isso era possível? Desde aquele dia horrível no palheiro que temera voltar a encontrá-lo, contudo sentira que estaria protegida
disso na corte francesa. Ouvira rumores de que Danton tinha feito qualquer coisa que o levara a que caísse em desonra, tendo sido banido e voltado para as suas propriedades
na Normandia.
Levando isso em consideração, como é que fora autorizado a regressar e - e o que é que isso importava sequer? Nada importava para além do facto de ele estar ali
e que com mais alguns passos ficaria suficientemente perto... para que ele pudesse tocar-lhe de novo.
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- Gabrielle? - repetiu Remy acintosamente, mas ela afastou a mão da dele, consumida por um único pensamento, uma ânsia. Fugir. Desatar a correr tão depressa quanto
lhe fosse possível. Correr durante todo o caminho até à ilha Encantada.
Chegou ao ponto de dar alguns passos atrás quando o seu olhar colidiu com o de Catarina. A fisionomia da rainha era tão impassível como sempre, mas os seus olhos
estavam sombrios de calculismo de algum triunfo. A perceção atingiu Gabrielle como um poderoso punho fechado. Se não tivesse estado cega pelo choque e pânico ao
ver Danton, teria chegado à verdade de imediato. Tinha sido Catarina a propiciar o regresso de Danton à corte. A rainha, como sempre, a tecer uma qualquer teia sinistra
dos seus desígnios.
O olhar firme da rainha troçava de Gabrielle, com um vago sorriso que lhe dava a entender que a Rainha das Trevas estava inteiramente ciente da sua antiga relação
com Danton. Era como Gabrielle receara naquela noite em que se tinha encontrado com Catarina depois do baile de máscaras. A Rainha das Trevas havia conseguido, finalmente,
ler os seus olhos, pelo que agora tinha conhecimento de todas as vulnerabilidades de Gabrielle, dos seus medos, das suas recordações daquele encontro com Danton
de que tanto se envergonhava.
Aquele pensamento causou um grande mal-estar a Gabrielle, mas compreendeu que, se não se dominasse, talvez Catarina deixasse de ser a única pessoa com conhecimento
do seu humilhante segredo. Era possível que outros o adivinhassem, provavelmente até mesmo Remy. Gabrielle não era capaz de suportar isso.
O olhar insolente de Danton prendeu-se nela. A bílis subiu-lhe à garganta e engoliu com dificuldade. Embora o seu coração batesse desordenadamente, Gabrielle chamou
a si toda a sua coragem e avançou para confrontar o seu pior pesadelo.
Os olhos de Nicolas Remy semicerraram-se enquanto examinava Gabrielle e o cavaleiro que usava uma dispendiosa armadura. O recém-chegado tinha-a afastado do pavilhão
e os dois estavam embrenhados numa intensa conversa travada em voz baixa. Apesar das muitas pessoas que iam passando por ela, Gabrielle estava alheada da presença
de todos, totalmente concentrada no desconhecido. Não fosse o facto de Remy duvidar de que Gabrielle não conhecesse aquele homem. Ela tinha ficado tensa ao vê-lo
e com uma expressão que Remy nunca lhe vira no semblante, nem sequer no dia em que a sua casa havia sido atacada pelos caçadores de bruxas.
Medo. Um terror tão grande que Remy tinha esperado vê-la a fugir, como se os cães de caça do Inferno a estivessem a perseguir. Mas conseguira recompor-se e avançara
para cumprimentar o homem. Embora pálida, aparentava uma postura tão composta que Remy se perguntou se não teria imaginado o medo.
Não discerniu nada no homem que pudesse aterrorizar qualquer mulher. O cavaleiro desconhecido era um sujeito bastante bem-parecido, reconheceu Remy, ainda que de
má vontade. O cabelo escuro e ondulado estava penteado para trás, mostrando um rosto definido por malares altos e um nariz aquilino. Todavia, as suas feições espelhavam
aquela expressão que Remy sempre desprezara. Uma expressão arrogante de "o mundo é meu e farei o que muito bem me der na real gana".
Portanto, quem diabo era o homem? E, ainda mais importante, o que é que ele representava para Gabrielle?
Como se tivesse feito a pergunta em voz alta, ouviu uma voz muito suave.
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- Mademoiselle Gabrielle Cheney parece estar muito empenhada em renovar a sua relação com Danton.
Remy baixou o olhar e deparou com a Rainha das Trevas muito perto de si. O seu sorriso parecia estar a escarnecer dele, dando-lhe a entender que tinha conhecimento
de um segredo.
- Eu nem sequer sabia que a nossa querida Gabrielle o conhecia. Mas aparentam ser bastante íntimos. Achais que talvez seja uma das conquistas dela?
Remy sabia muito bem aonde é que ela queria chegar, que aquele Danton havia sido um dos amantes de Gabrielle. O olhar de Remy voltou a concentrar-se nela. O sujeito
estava a segredar-lhe qualquer coisa ao ouvido. Sentiu a cruel aguilhoada do ciúme, mas procurou reprimi-lo.
Não seria nada sensato mostrar um excesso de interesse perante a Rainha das Trevas, quanto mais a mínima indicação dos seus sentimentos por Gabrielle. Era imprescindível
não revelar qualquer sinal de fraqueza na presença de Catarina. Nunca estabelecer contacto visual direto com ela. Fora a própria Gabrielle a adverti-lo disso mesmo.
Mas Remy deu consigo a fitar os olhos da Rainha das Trevas como se estivesse mesmerizado. Aqueles olhos escuros de expressão velada que prometiam resposta às suas
perguntas, respostas que pressentia que lhe desagradariam profundamente. Mas tinha a impressão de que não conseguia desviar o olhar.
- Portanto, quem diabo é ele? Este Danton? - perguntou Remy.
- O Chevalier Étienne Danton é um descendente de uma das nossas famílias mais nobres e antigas da Normandia. Há muitos anos que não era bem-vindo à nossa corte devido
a... hum... uma indiscrição que cometeu no passado.
- Nesse caso, como é que ele poderia ser uma das conquistas de Gabrielle? Ela só chegou a Paris há dois anos.
- É verdade. Também fiz essa pergunta a mim mesma. Portanto, ela deve tê-lo conhecido durante a sua juventude na ilha Encantada - adiantou Catarina, dando um pequeno
estalido com a língua. - Não sou capaz de imaginar em que é que a mãe teria estado a pensar. Mas ai de mim, esqueci-me. A Evangeline já tinha morrido. A não ser
isso, duvido que ela tivesse permitido sequer um homem como Danton perto da sua inocente filha.
- Um homem como Danton? O que é que quereis dizer com isso? perguntou Remy num tom que exigia resposta.
- O chevalier tem uma reputação que não abona nada a seu favor no que diz respeito às senhoras. Dizem os rumores que nenhuma mulher consegue
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resistir-lhe. - Catarina inclinou-se mais para ele, baixando o tom de voz para um timbre mais íntimo. - Mas talvez isso de deva ao facto de Danton não lhes permitir
que se recusem. Aquilo que não se lhe rende de boa vontade, ele possui à força.
Remy pestanejou, percorrido por uma estranha sensação. Cambaleou, sentindo-se como se estivesse a cair nos lagos escuros que eram os olhos de Catarina. Como explosões
de luz, passaram-lhe pela mente imagens sucessivas de Gabrielle. Saias puxadas acima das ancas, presas debaixo de um homem que a possuía brutalmente. As lágrimas
a correrem-lhe pelas faces enquanto mordia os lábios para conter o pranto soluçado. Atordoada e magoada, agarrada ao corpete rasgado do vestido, tentando cobrir
os seios.
Respirando fundo, Remy desviou o olhar de Catarina bruscamente, esfregando os olhos com a ponta dos dedos para banir aquelas imagens tão lancinantes. Sentia um estranho
formigueiro em todos os poros do seu corpo, alertando-o para a proximidade de perigo. Talvez fosse o amuleto a surtir efeito ou apenas um qualquer instinto que estivesse
a adverti-lo. A Rainha das Trevas estava a exercer as suas bruxarias em si. Esforçou-se por aclarar as ideias, mas os seus pensamentos pareciam colidir e tropeçar
uns nos outros, fragmentos da conversa com Gabrielle.
"Nunca estivestes apaixonada? Nem sequer aquando da primeira vez?
"Claro que não. Nem sequer me lembro do nome dele."
A recordação do rosto atormentado de Gabrielle passou pela mente de Remy e não importava o que a Rainha das Trevas pudesse estar a engendrar, o que lhe estava a
fazer. Nada interessava, exceto o ódio que percorreu as suas veias, tão gelado que queimava.
O seu inimigo até então na sombra tinha agora tanto um rosto como um nome... Danton.
- Gabrielle, estais tão maravilhosa e enfeitiçante como sempre.
Se bem que o seu coração batesse desenfreadamente, Gabrielle obrigou-se a olhar para Danton. Os vincos da devassidão estavam um pouco mais acentuados nas comissuras
da boca e dos olhos, mas nem por isso Étienne deixava de parecer bem-parecido. O cabelo escuro e ondulado penteado para trás, afastado da fronte, as feições magras
e bem definidas, desde os malares aristocráticos até à linha aquilina do nariz. Ele tinha deslumbrado a jovem ingénua de dezasseis anos que ela fora, com o seu encanto
e bela aparência.
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Mas ela já não era ingénua nem tinha dezasseis anos, lembrou Gabrielle a si mesma, mas teve de fazer um grande esforço para não vacilar quando ele se aproximou mais
dela.
- Já passou tempo de mais desde que tive o prazer da vossa companhia.
- Ainda não passou tempo suficiente! - ripostou Gabrielle com rispidez. Danton atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. O maneirismo
que em tempos ela considerara tão encantador achava agora, inesperadamente, que era uma atitude afetada. Quando ele tentou pegar-lhe na mão, afastou-a do alcance
dele. Se ele lhe tocasse sequer, receava vomitar. Danton fingiu uma expressão de profunda mágoa.
- Gabrielle. Não haveis sentido a minha falta?
- Não. Nem sequer pensei em vós uma única vez durante todos estes anos.
- Mentis - ripostou ele com um sorriso pretensioso. - Não há mulher nenhuma que se esqueça do seu primeiro amor, se bem que... - O olhar de Danton percorreu-a insolentemente.
- com base no que ouvi dizer, haveis dispensado os vossos favores muito liberalmente desde o nosso pequeno
caso amoroso.
Gabrielle fechou as mãos em punhos cerrados para resistir à vontade quase irreprimível de lhe arranhar a cara trocista. Apercebeu-se de que ambos eram alvo de demasiados
olhos curiosos. Mantendo um tom de voz baixo, Gabrielle perguntou-lhe autoritariamente:
- O que é que estais a fazer aqui, Danton? Foi-me dado a perceber que havíeis sido banido da corte.
- Está tudo perdoado. Fui acolhido de braços abertos por não menos do que a Rainha-Mãe, portanto deveis ser simpática para comigo, Gabrielle. com o patrocínio da
rainha, é muito provável que venha a ser um homem muito importante.
- O mais certo é virdes a ser um grande tolo se confiardes nas promessas de Catarina. Mas há que reconhecer que nunca fostes muito inteligente.
Houve qualquer coisa de muito repulsivo que passou momentaneamente pelos olhos de Danton, para ser rapidamente apagada por detrás de um sorriso. Pegou nas duas mãos
de Gabrielle com uma força que a magoou, puxando-a para mais junto de si. Gabrielle conteve a respiração arfante. Sem dar origem a uma cena, não conseguiria libertar-se
dele. Continuando a sorrir, Danton inclinou-se para o ouvido dela, começando a segredar-lhe.
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- Não fazeis a mais pequena ideia dos planos que a rainha tem para mim, especialmente se for declarado como o campeão deste torneio. Ela dar-me-á tudo o que eu quiser...
incluindo vós.
Gabrielle olhou-o furiosa, mas até mesmo só a ameaça de uma coisa daquelas era o suficiente para que ela se sentisse enfraquecida e a tremer. Quando Danton levou
uma das suas mãos aos lábios e depois a outra, sentiu um fluxo de náuseas ao lembrar-se da sensação de impotência por que passara naquele dia no palheiro. O roçar
da boca dele na sua pele trouxe-lhe tudo isso à mente, todas as recordações dolorosas das coisas que Danton lhe fizera.
- Largai-a!
A voz era baixa, mas fria e acerada como uma lâmina de aço. Remy aproximara-se tão furtiva e silenciosamente que tanto ela como Danton ficaram sobressaltados. Danton
aliviou o aperto, o suficiente para ela poder soltar as mãos das dele, afastando-se.
Remy passou o braço pela cintura de Gabrielle, puxando-a para o seu lado num gesto protetor. Ela resistiu a um impulso quase irresistível de se colar a ele, sentir
a sua força. Mas a situação estava demasiado carregada, com um grande potencial para o desastre, para agora se entregar às suas fraquezas.
Remy e Danton olharam-se de alto a baixo, cada um dos homens a avaliar o outro. Danton franziu o sobrolho, enquanto Remy adotou uma atitude altaneira, dizendo:
- A mademoiselle e eu estávamos a travar uma conversa particular, monsieur. Quem sois vós para nos terdes interrompido?
- Sou o homem que vos vai matar - respondeu Remy suavemente. Os olhos de Danton arregalaram-se. Soltou uma gargalhada de incredulidade.
- Dizei-me, monsieur, o que é que eu fiz para vos ter ofendido?
- Continuais a respirar.
Gabrielle ficou a olhar para Remy atónita e alarmada. Durante a breve pausa em que ela o deixara junto do pavilhão, Remy parecia ter enlouquecido. Os olhos de um
castanho quente estavam cheios de uma frieza tão gélida que a assustou. Começou a puxá-lo insistentemente pelo braço.
- Remy, por favor. Voltemos para junto dos outros.
Remy pareceu que nem sequer a tinha ouvido, os olhos de expressão carregada concentrados em Danton.
- Ah, capitão Remj. - Os olhos de Danton percorreram-no com um semblante desdenhoso. - Portanto, sois o famoso Flagelo. Temos muito
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em comum. Está-me a parecer que deveis ser o mais recente amante da nossa doce Gabrielle. Eu tive o privilégio de ser o primeiro.
Um músculo no maxilar de Remy contraiu-se perigosamente. O coração de Gabrielle começou a bater mais depressa. Agarrou-lhe o braço com mais força.
- Remy...
Ele sacudiu-a e deu mais um passo, aproximando-se de Danton.
- Tomei conhecimento através da Rainha das Trevas de que tendes a intenção de me desafiar para um confronto nas liças.
- Remy. Não! - suplicou Gabrielle. Antes que ela pudesse impedi-lo, Remy retirou uma das luvas de cabedal de dentro do cinto. Deu uma violenta bofetada a Danton
com a luva.
- Considerai o vosso desafio como aceite - disse concisamente.
Danton levou a mão ao vergão avermelhado com que ficou na face. Furioso, fechou a mão no punho da espada e Gabrielle temeu que ele atacasse Remy ali mesmo. Mas pareceu
ter reconsiderado. com um rígido inclinar da cabeça, deu meia-volta e afastou-se.
Gabrielle soltou a respiração trémula, sentindo a cabeça a andar à volta, tal a rapidez com que a situação tinha ficado tão fora do seu controlo. Apercebeu-se da
sensação que a cena entre Remy e Danton tinha causado. Ouviam-se respirações arfantes, murmúrios e sussurros bastante audíveis da parte da multidão que se havia
juntado fora do pavilhão do rei de Navarra. Ouvia-se o rei de França a queixar-se à mãe.
- Maldito huguenote. Uma pessoa desafia um homem para uma justa batendo-lhe no escudo e não na face. O capitão Remy não conhece as regras que regem um confronto
entre gentis-homens.
- Precisamente - retorquiu Catarina.
Gabrielle olhou para ambos bruscamente. A indignação do rei não a preocupava tanto como o assomo de um sorriso nos lábios da Rainha das Trevas.
Gabrielle andava de um lado para o outro diante do pavilhão. As outras senhoras já se tinham afastado para ocuparem os seus lugares na tribuna e a maior parte dos
cavaleiros para montarem os seus cavalos, incluindo o rei de Navarra. Gabrielle suplicara ao monarca que proibisse Remy de defrontar Danton numa justa. Mas ele limitara-se
a um encolher de ombros, esboçando o seu encantador sorriso. Alegou que desconhecia o motivo da discussão de
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Remy com Danton, mas que ninguém devia interferir. Tratava-se de uma questão de honra.
Honra, pensou Gabrielle furiosa enquanto dava outra volta ao pavilhão. A maldita desculpa a que os homens recorriam para porem as suas vidas em perigo e para se
baterem uns com os outros. Aquilo deixava-a de tal maneira enfurecida que só lhe apetecia puxar as orelhas a todos os homens que lhe aparecessem pela frente, começando
pelo obstinado que já estava em mangas de camisa a preparar-se para a liça.
Surdo a todos os seus argumentos e súplicas, Remy já punha a coura acolchoada, ajustando-a aos ombros, enquanto Lobo aguardava para o ajudar a pôr a armadura. O
coração de Gabrielle caiu-lhe aos pés de tão consternada que estava. Até mesmo ela conseguia ver que não era da melhor qualidade e, inequivocamente, não fora concebida
para se ajustar a Remy com a precisão com que a de Danton se ajustava ao seu corpo. O capacete parecia ter acabado de ser martelado, grosseiramente acabado e sem
ter sido polido.
Mas Remy dava a impressão de ser completamente indiferente a esse facto. Olhou para Lobo e estalou os dedos.
- Vai buscar a couraça e despacha-te. - Quando Lobo ficou a olhar para ele sem compreender o que ele queria, explicou com impaciência:
- A parte da frente e a de trás da armadura. E vê se te despachas!
- Deixa estar isso onde está, Martin - ordenou Gabrielle. Lobo já tinha pegado no peito de armas, mas hesitou.
- Traz isso para aqui. Agora!- disse Remy com rispidez.
Lobo deu um passo em frente, mas ficou como que paralisado quando Gabrielle interveio.
- Não! Não te mexas.
Remy olhou para ele com o cenho carregado.
- Raios, rapaz! A que ordens é que tens de obedecer? Às minhas ou às dela?
Lobo olhou para os dois manifestamente pouco à vontade.
- Às dela. Porque é capaz de me transformar num sapo com três olhos se eu lhe desagradar. E, em qualquer dos casos, eu concordo com milady. Penso que...
- Estou-me a lixar para o que possas pensar. - com brusquidão, Remy tirou o peito de armas das mãos do rapaz. - Não importa. Seja como for, nem sequer sabes como
me ajudar a apertar as correias. Na verdade, és bastante inútil aqui. Vai chamar um dos escudeiros do rei de Navarra para me ajudar e depois certifica-te de que
o meu cavalo já está selado.
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As feições afiladas de Lobo mostraram o muito que se sentiu magoado. Endireitou-se com uma atitude digna e fez uma curta vénia a Remy.
- Como queira, monsieur. - Saiu do pavilhão num passo largo, os ombros curvados quando desapareceu de vista. Gabrielle aproximou-se de Remy encrespada.
- Isso foi muito bem feito, não haja dúvida. O rapaz adora-vos como se fôsseis Hércules que tivesse descido do Olimpo. Sente muito orgulho em servir-vos, mas considera-vos
um irmão de armas e não como o vosso lacaio.
- Tenciono pedir-lhe desculpa mais tarde.
- É possível que já não estejais entre nós mais tarde.
Quando Remy a ignorou, Gabrielle colocou-se diretamente à frente dele.
- Dar-se-á o caso de não terdes ouvido uma única palavra do que tenho estado a dizer-vos? Sois tão teimoso ou tão cego que estais incapaz de ver a verdade? O confronto
entre vós e Danton foi engendrado por Catarina. É uma artimanha para que ela se livre de vós.
- Isso não interessa.
- Não interessa!
Remy apertou os atilhos da coura.
- Parece que depositais muito pouca confiança na minha capacidade de defender a vossa honra.
- Mas que honra? Eu não tenho honra nenhuma. Sou uma cortesã.
Remy fez um esgar de dor ao ser lembrado daquilo, mas não interrompeu a tarefa de apertar os atilhos. Gabrielle cobriu as mãos dele com as suas para o impedir de
continuar.
- Não estais a compreender? Este é um combate que não podereis vencer. Os duelos e os combates até à morte estão proibidos em França. Se o Danton vos matar, o mais
certo é fingirem que se tratou de um acidente. Se fordes vós a matá-lo, terão uma desculpa para vos prender e executar. Nem sequer o rei de Navarra poderia reclamar
da injustiça. Estais disposto a renunciar à vossa vida por causa de um comentário escarninho que o Danton fez?
- Não, não por causa do que ele disse hoje, mas sim pelo que vos fez há vários anos.
- Eu... eu não percebo o que quereis dizer...
- O Danton violou-vos, não é verdade? - perguntou Remy com ferocidade.
Gabrielle estremeceu tanto por ele não ter estado com meias-palavras, como pelo seu olhar acutilante e perscrutador. Afastou as mãos das dele, sem
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ser capaz de o olhar de frente. Remy sabia. Estava ao corrente do vergonhoso e patético segredo que ela se esforçara por negar durante tanto tempo, até mesmo perante
si própria. Afastou-se dele, abraçando-se a si própria apertadamente.
- Essa... essa é, obviamente, uma história ridícula que Catarina engendrou para fazer com que vós...
- Não, não é isso. Pensais que não fui capaz de tirar as minhas próprias conclusões a respeito de determinadas coisas, a começar pela vossa reação no dia em que
tentei fazer amor convosco? com base no que haveis dito acerca do Danton, a maneira como olhastes para ele? Nunca vos tinha visto tão receosa de alguém, nem sequer
dos caçadores de bruxas.
Gabrielle estremeceu. Já era bastante mau que tivesse permitido que Danton fizesse de si uma prostituta, mas também lhe permitira que ele fizesse de si uma cobarde.
Ficou rígida quando Remy pousou as mãos nos seus ombros.
- Porque nunca me contastes o que se passou? - perguntou num tom mais delicado.
- Acerca do Danton? Como é que isso poderia ter alterado alguma coisa?
- Eu poderia ter-vos vingado muito mais cedo.
Gabrielle abanou a cabeça, apercebendo-se de que Remy ainda não tinha compreendido o que se passara no palheiro nesse dia em toda a sua dimensão. Danton forçara-a
a ter relações sexuais, mas a culpa era sua porque...
Quando Remy tentou virá-la para que ficasse de frente para si, Gabrielle resistiu, sem ter a certeza de alguma vez conseguir voltar a fitar aqueles olhos castanhos
de expressão tão honesta. Face à relutância dela, optou por lhe enlaçar a cintura com os dois braços, encostando as costas de Gabrielle ao seu peito. Pousou a face
num dos lados da cabeça dela, que sentia a respiração cálida na orelha.
- Gabrielle, em tempos fiz-vos um juramento, estais recordada? Naquele dia em que me ensinastes a brincar aos dragões e cavaleiros, ajoelhei-me aos vossos pés e
jurei... - Remy fez uma pausa, mas depois prosseguiu numa voz enrouquecida. - Milady, a minha espada estará ao vosso serviço para sempre. Juro pelo meu sangue servir-vos
e proteger-vos para todo o sempre.
- Isso foi uma brincadeira, Remy. Apenas uma brincadeira.
- Para mim não foi. Fiz-vos um juramento solene, mas depois permiti-me esquecê-lo. Hoje tenciono redimir a minha promessa.
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Gabrielle afastou-se dele e falou numa voz estrangulada.
- Meu Deus, Remy, sois absolutamente inacreditável. Depois de tudo o que sabeis a meu respeito, continuais a recusar ver o que eu sou realmente. Falais de vingar
a minha honra, mas continuais a não compreender. - Finalmente, ela olhou-o bem de frente, com lágrimas ardentes que lhe corriam pelas faces. - Eu não sou merecedora
dessa lealdade. Nunca fui. Remy, não estais a compreender? Muito simplesmente, não sou merecedora disso.
com um soluço abafado, Gabrielle deu meia-volta e fugiu do pavilhão. Remy ficou a vê-la a afastar-se, dividido entre a vontade de ir atrás dela e a necessidade de
acabar de pôr a armadura. As lágrimas dela só serviram para alimentar o seu ódio, a sua determinação em arrancar o coração negro do peito de Danton, dando-lho a
comer antes do pôr do Sol daquele dia. Aproximou-se para examinar os vários componentes da armadura que fora posta à sua disposição, perguntando-se aonde diabo é
que estava o escudeiro que encarregara Lobo de ir chamar.
- Remy? - chamou pelo seu nome uma vozinha tímida.
Virou-se e deparou com Miri, a sua silhueta recortada na entrada do pavilhão. Quase se esquecera por completo da sua presença no torneio. A jovem sempre possuíra
uma certa aparência etérea, a capacidade de ir e vir como o sussurrar das brumas.
Miri olhava para Remy com uns olhos muito abertos que fizeram com que ele se lembrasse da garota que havia sido em tempos. Praguejou em voz baixa e passou a mão
pelo cabelo, afastando-o para trás. Ter de lidar com outra das irmãs Cheney naquele momento era a última coisa de que estava a precisar. Antes de Miri poder dizer
mais alguma coisa, disse-lhe num tom autoritário:
- Miri, já devíeis estar na tribuna junto dos outros espectadores ou a procurar Bette para que vos acompanhe de volta à casa na cidade. Isto nunca foi lugar para
vós...
- Eu vi a Gabrielle - atalhou Miri interrompendo-o. - Ela estava a chorar.
- Nesse caso, devíeis ir para junto dela para a reconfortardes.
- Não, vós é que devíeis fazer isso.
- Existe outra coisa que preciso de fazer. Não estais a compreender o que se está a passar.
- Oh, sim, compreendo e muito bem. Presenciei o vosso encontro com Etienne Danton. - As sobrancelhas de Miri velaram-lhe aqueles olhos extraordinários.
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- Inicialmente não o reconheci. Eu pouco mais era do que uma criança nesse verão em que ele chegou à ilha Encantada. Ainda estávamos enlutadas por causa da morte
da minha mãe, enquanto o nosso pai tinha desaparecido na sua viagem de exploração ao Brasil. Miri teve de engolir em seco antes de prosseguir.
- O Danton era... era como um cavaleiro que tivesse saído de uma das histórias que o nosso pai costumava contar-nos. Ele parecia ter-se apaixonado pela Gabrielle
à primeira vista. E quem é que conseguiria não se apaixonar por ela? Ela é determinada, radiante e tão bonita. Pensámos que ele lhe faria a corte para que fosse
sua noiva, mas em vez disso... em vez disso...
Quando ela vacilou, Remy concluiu a frase com rispidez.
- Em vez disso, o canalha violou-a, um acontecimento que a Gabrielle aparenta estar determinada a negar terminantemente.
- O que sempre fez. A Gabrielle recusou-se a falar sobre o sucedido, até mesmo com a Ariane. Mas eu sabia que a minha irmã estava mudada. Nunca mais foi a mesma
depois de esse homem ter ido à nossa ilha. Ela e eu costumávamos percorrer a floresta juntas em aventuras maravilhosas, conjurando fadas, unicórnios e dragões de
dentro das árvores. Mas era como se a Gabrielle me tivesse deixado para trás nesse verão, enquanto ela se mudava para um qualquer lugar sombrio até onde eu não queria
segui-la.
Miri mordeu o lábio inferior.
- A Gabrielle tinha uma grande magia. Haveis visto com os vossos próprios olhos alguns dos maravilhosos quadros que ela pintou. Mas depois de o Danton ter entrado
na vida dela, pôs de lado a paleta e o caderno de esboços, que ficaram a encher-se de pó. Cada vez passava mais tempo diante do espelho a escovar o cabelo e a aplicar
cataplasmas no rosto, mas era como se fizesse ela o que fizesse não conseguia ficar tão bela como pretendia. E depois havia os pesadelos. A Gabrielle chorava durante
o sono e acordava a chorar convulsivamente. Quando eu tentava consolá-la, virava-se para o lado e dizia-me de mau modo que a deixasse em paz. O que magoava muito
os meus sentimentos e começámos a distanciarmo-nos uma da outra ainda mais.
Miri ficou com a voz trémula.
- Eu era muito novinha. Precisei de muito tempo para compreender o que... o que havia de errado... - Os olhos de Miri estavam rasos de lágrimas e uma delas escapou-se,
caindo-lhe pela face. Remy limpou-a com as costas da mão.
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- O Danton vai pagar com o seu próprio sangue as lágrimas de Gabrielle... e as vossas.
- Eu não vos contei tudo isto para que fôsseis ainda mais vingativo. Contei-vos para que pudésseis compreender melhor a Gabrielle.
- Compreendo bastante bem o que devo fazer - retorquiu Remy, o queixo com uma expressão endurecida.
- Tendes a intenção de matar o Danton? Isso não mudará o que aconteceu à Gabrielle.
- Não, mas ela nunca mais terá de ver a cara dele, de suportar a sua presença... - Remy rangeu os dentes e cerrou os punhos. - Pelo sangue de Cristo, esse canalha
está a pensar em tê-la de novo. O que não me foi difícil ver nos olhos dele, na maneira lúbrica como a olhava...
- Nesse caso, levai a Gabrielle para fora daqui. Regressemos todos à ilha Encantada.
Miri apoiou as palmas das mãos nas bochechas de Remy, um gesto que usava muitas vezes para acalmar um corcel inquieto. Mas sentiu os músculos tensos na face de Remy,
que não se relaxavam ao toque das suas mãos.
- Remy, tendes de me ouvir - implorou Miri. - A vossa espada não beneficiará Gabrielle em nada. Somente o vosso amor é que poderá sarar a ferida.
Remy abanou a cabeça, os olhos de expressão sombria com um misto de cólera e angústia.
- Ela não quer o meu amor, Miri. A minha espada é a única coisa que tenho para lhe oferecer. - Remy ergueu a espada, o brilho do aço a refletir-se nos seus olhos.
Miri estremeceu ao ver a espada, bem como a expressão sinistra na fisionomia de Remy. Nunca tinha conseguido compreender a necessidade dos homens que os levava a
recorrer à violência, o impulso de ceifar vidas e derramar sangue, por muito nobre que a causa fosse. No entanto, tinha ficado a saber, para sua grande tristeza,
que, quando um homem estava disposto a empunhar a sua espada, não havia nada que o dissuadisse, nem sequer no caso de um homem tão bom como Nicolas Remy. Pouco mais
havia que ela pudesse fazer, além de lhe dar um beijo de resignação na face.
- Que Deus vos acompanhe, Nicolas Remy - murmurou Miri. - E que todos os espíritos da Mãe-Terra vos protejam.
O som de flautas e tambores ouvia-se numa marcha marcial que se misturava com os aplausos da multidão. Apressando-se a ir para a parte de trás
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do pavilhão, Miri fazia sombra para os olhos com a mão enquanto, por entre olhos semicerrados, observava a cavalgada de cavaleiros em parada diante da tribuna. O
sol refletia-se nas armaduras, fazendo com que reluzissem, os cavalos, ajaezados com a mesma magnificência dos seus cavaleiros, estavam drapejados com panos de seda
e ricos jaezes.
Havia apenas um único cavalo na área aberta atrás dos pavilhões, resistindo a todos os esforços para o selarem. O castrado de pelagem castanha, drapejado com veludo
púrpura orlado a dourado, empinava-se para impedir que o escudeiro lhe colocasse a pesada sela alta na parte de trás. Dois pajens que preguiçavam à sombra das árvores
troçavam e apupavam os esforços do escudeiro. Os risos roufenhos e os assobios não contribuíam em nada para acalmar a situação, exacerbando ainda mais o nervosismo
do cavalo e o estado de espírito do escudeiro.
Corado de frustração, o cabelo escuro e comprido a cair-lhe para os olhos, o rapaz praguejava irritado.
- Maldita besta estúpida. Amaldiçoado filho de Satanás. - O escudeiro puxou as rédeas, como se pensasse que as imprecações proferidas em voz alta, a par de força
suficiente, pudessem obrigar o castrado a ficar quieto. Mas o cavalo não perdeu tempo a mostrar-lhe que não era bem assim. com as orelhas achatadas, resfolegava
e dava coices, atirando a cabeça para trás.
O estado de espírito de Miri abateu-se ainda mais. Se aquela era a montada de Remy e aquele o seu escudeiro, então o capitão tinha ainda mais problemas do que ela
imaginara. O desmiolado rapaz estava agora empenhado numa fútil luta de tração com o corpulento animal e na mente de Miri existiam muito poucas dúvidas sobre quem
é que venceria. O cavalo castrado empinou-se, levantando o jovem do solo. Por entre os apupos dos pajens, que não perdiam pitada, o escudeiro soltou as rédeas e
caiu de cara chapada no chão, aterrando num monte de excrementos de cavalo. com um sonoro resfolegar, o animal começou a cavalgar em direção à passagem entre os
pavilhões.
Miri estava pronta para ele. Abrindo os braços completamente para os lados, posicionou-se de frente para o cavalo assustadiço. Ouviram-se gritos horrorizados dos
dois pajens, que, claramente, esperavam que ela fosse espezinhada. O castrado desviou-se no último momento possível. Miri apressou-se a correr para o animal, mas
o cavalo afastou-se dela nervosamente.
com as mãos estendidas numa atitude de súplica, começou a entoar uma melopeia a meia-voz, tecendo a sua própria espécie de magia até que o corpulento animal se aquietou
tremente, a resfolegar assustado.
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- Calma, calma, meu bonito amigo - disse Miri para o serenar. - Sou uma Filha da Terra. Nunca te faria mal. - Cautelosamente, estendeu a mão para as rédeas. Quando
já tinha o cavalo bem seguro, acariciou-lhe o focinho, sussurrando-lhe mais palavras de conforto. Quando o cavalo atirou a cabeça para trás e começou a afastar-se
de novo, Miri apercebeu-se de que o escudeiro se aproximava com brusquidão.
Coberto de ervas, terra e excrementos de cavalo, o cabelo preto a cair-lhe todo desgrenhado para a cara, disse encrespado:
- Danação, mademoiselle. O que é que estáveis a pensar para vos terdes posto perigosamente no caminho desta besta estúpida dessa maneira? Podíeis ter sido...
- Chiuuu! - Miri levou o dedo indicador aos lábios, olhando para o escudeiro num grande desalinho com uma expressão carrancuda. Do mal o menos, o rapaz teve bom
senso suficiente para estacar abruptamente antes de assustar o cavalo castrado outra vez. Miri pousou as mãos calmantes no animal, acariciando-o e dando-lhe pequenas
palmadinhas. Falou com o escudeiro numa voz suave. - O nome da criatura não é besta estúpida nem filho de Satanás. O nome dele é Eqyonne.
- Ele devia ser chamado de demónio - resmungou o escudeiro. - Ele vai fazer com que o meu capitão seja morto por causa do seu mau temperamento e manhas cobardes.
O cavalo arrebitou as orelhas como se compreendesse os insultos do escudeiro. Os olhos magoados do equino olhavam para Miri através das aberturas na máscara de veludo
presa em volta da cabeça. O grau de comunicação dela com outras criaturas não igualava o que tinha com Necromante. A afinidade entre ela e o gato era extraordinária.
Mas compreendia os pensamentos do cavalo bastante bem para poder discernir o que o incomodava.
- Este cavalo não carece de coração, monsieur. Tão-pouco é estúpido.
- Miri fez um gesto de indignação com que indicou a máscara e a requintada manta igualmente de veludo. - São estes jaezes idiotas que lhe haveis posto. Ofendestes
a sua dignidade.
- E como diabo é que sabeis isso?
Miri fitou o rapaz com um olhar escarnecedor.
- Porque o Bajonne me disse.
O rapaz ficou de boca tão aberta que Miri receou que lhe entrassem moscas. Por fim, ele conseguiu perguntar:
- E quem sois vós, mademoiselle
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- O meu nome é Miribelle Cheney.
- Cheney? Sois... sois irmã de Mademoiselle Gabrielle?
- Sim, mas agora não temos tempo para conversas fúteis. Ajudai-me a tirar esta coisa estúpida de cima do Bayonne e depois tenho a certeza de que serei capaz de o
persuadir a permitir que o capitão Remy o monte durante a justa, comportando-se com valentia e lealdade.
O escudeiro não fez qualquer menção de obedecer à ordem dela. Ficou a olhar para Miri por entre as madeixas desgrenhadas, uma expressão aturdida na cara suja. Talvez
o pobre rapaz não tivesse o juízo todo.
Sem esperar pela ajuda do escudeiro, começou a tirar os jaezes de Bayonne. Quando removeu a ultrajante máscara, o cavalo tremeu, batendo com os cascos nervosamente,
mas Miri envolveu-lhe o focinho nas suas mãos e começou a cantar-lhe, tecendo a sua muita magia em palavras de uma língua da Antiguidade que remontava às primeiras
mulheres sábias, muito antes de existirem cavaleiros a calcorrear pelo mundo.
Martin, o Lobo, pestanejou, sabendo que devia recuperar o cavalo do capitão, tirando-o das mãos daquela rapariga que parecia ter-se apoderado dele. Mas Lobo mostrava-se
incapaz de se mexer. Parecia perdido numa qualquer perturbação mental enquanto olhava fixamente para Miri Cheney. De onde é que ela tinha aparecido tão subitamente?
Era como se tivesse caído do céu, caída da própria Lua, a cascata de cabelo da cor do luar e com uma pele igualmente translúcida. Os olhos eram tão azuis como...
Não, eram cinzentos. Não, eram tão argentinos como a sua melopeia.
Uma cantilena que tinha tanto de estranha como de maravilhosa, entoada numa língua que ele desconhecia, mas as notas vibravam através do corpo do rapaz, como se
dedilhasse o seu coração. A melodia dela não só estava a acalmar aquele cavalo bruto, como também, em certa medida, estava a domá-lo.
Se Miri era irmã de Gabrielle, então também era uma bruxa. Lobo pensava que devia tapar os ouvidos para não a ouvir, mas a encantadora melodia entranhava-se nele,
fazendo com que sentisse vontade de chorar e gritar de alegria, tudo ao mesmo tempo.
Lobo sentia uma nova empáfia pelo capitão por estar perdido de amores por Gabrielle. Enquanto olhava enfeitiçado para Miri, finalmente compreendeu qual era a sensação
quando se estava enfeitiçado, encantado. E não tinha o mínimo desejo de que o salvassem.
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- René de Chinon... Pierre de Foix. - O arauto anunciava os nomes dos cavaleiros, que se posicionavam em extremos opostos da liça. O rei de França encaminhou-se
para a frente da tribuna, um semblante radiante, enquanto dois dos seus favoritos se preparavam para entrar na justa, com as viseiras para baixo, os escudos erguidos
e as lanças em riste. O rei ergueu um lenço no ar e depois deixou-o cair, a seda vermelha a esvoaçar até chegar ao chão.
Entre aplausos da multidão, os dois cavaleiros investiram um contra o outro, os cavalos a galoparem a toda a brida, as lanças em posição de ataque... e falharam,
passando incólumes um pelo outro com um barulho ensurdecedor. O público na galeria gemeu de desilusão. Os cavaleiros deram meia-volta para uma segunda investida.
Desta feita, a lança de René de Chinon embateu ao de leve no escudo do seu oponente.
- Oh, bom desempenho, René. - O rei aplaudiu com tanto entusiasmo como se o seu favorito tivesse executado um brilhante feito de armas.
Ouviram-se aplausos pouco veementes entre a multidão, mas tudo o que via e ouvia era uma espécie de mancha turva para Gabrielle.
Sentava-se na beira do seu pequeno banco com um desespero crescente, temendo ver Remy a ocupar o seu lugar num dos extremos da liça a qualquer momento. Continuava
a ter os olhos congestionados devido à recente crise de choro, pela qual se desprezava por se ter entregado às suas fraquezas tão idiotas. Como se as suas lágrimas
pudessem beneficiar Remy. Nada o poderia ajudar.
Gabrielle lançou um olhar malévolo à mulher que considerava responsável pelo perigo que ele correria. Catarina encontrava-se atrás do trono do rei, a assistir ao
torneio tão serenamente que Gabrielle sentia uma vontade quase irreprimível de a estrangular. À medida que os dois adversários seguintes travavam a sua justa, Gabrielle
sentia-se incapaz de suportar aquela incerteza por mais tempo. Aproximou-se de Catarina, colocando-se ao seu lado.
- Tendes de pôr cobro a isto - disse ao ouvido da rainha num tom sibilado. O olhar de Catarina não se desviava da justa por um segundo que fosse.
- Ao torneio? O meu filho deu-se a muito trabalho e não se poupou a despesas para organizar esta pequena diversão, pelo que duvido muito que ele...
- Sabeis perfeitamente bem aquilo a que estou a referir-me - interrompeu-a furiosa. - A justa entre Remy e Danton.
- Ah, isso. Foi o Remy quem aceitou o repto. Um homem tão impetuoso. Sempre acreditei, erradamente, que o nosso bom capitão era bastante
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fleumático. Quem é que poderia ter suspeitado sequer que ele tivesse tal têmpera?
- Mas fostes vós quem o engodou. Haveis vertido veneno nos seus ouvidos.
- Para dizer a verdade, foi mais nos olhos dele - retorquiu Catarina com um sorriso matreiro e depois encolheu os ombros. - O capitão perguntou-me quem era o Danton.
Limitei-me a responder à pergunta dele.
- Porque queríeis que este combate tivesse lugar. O vosso objetivo é destruir o Remy. - Gabrielle fitava a implacável mulher mais velha com um sentimento de cólera
associada ao desespero. - Mas porquê? Pensei que tínhamos chegado a um acordo. Concordastes em deixar Remy em paz se eu o seduzisse e o impedisse de fazer alguma
coisa com o rei de Navarra que vos desagradasse.
- Uma promessa que, estou certa, tínheis a intenção de cumprir - replicou Catarina com secura. - Mas, muito francamente, duvido da vossa capacidade para conseguirdes
cumpri-la.
- Não se pode dizer que me haveis dado a oportunidade de a cumprir. Eu podia controlar o Remy se vós...
- Controlá-lo? - Catarina olhou-a com uma expressão de escárnio. (- Minha querida Gabrielle, receio ter de vos dizer que os vossos encantos estão a definhar. Nem
sequer possuís influência suficiente para fazer com que o homem não participe no torneio.
Gabrielle estremeceu ao sentir a aguilhoada de Catarina. O que a rainha dizia era verdade. Não havia nada que ela pudesse ter dito ou feito que tivesse dissuadido
Remy de enveredar por aquela senda destruidora. Ele estava determinado a lutar, a arriscar a sua vida, e para quê? Por ela. Uma mulher desonrada, uma meretriz, uma
prostituta. Antes de Gabrielle ter tido tempo de pensar numa resposta a dar a Catarina, o arauto anunciou os nomes que ela tanto temera ouvir.
- O Chevalier Étienne Danton... O capitão Nicolas Remy.
- Aconselho-vos a retomar o vosso lugar, minha querida. - Os olhos escuros de Catarina troçavam dela. - Estais a correr o risco de perder a melhor justa do dia.
As emoções de Gabrielle estavam num turbilhão, sentindo o coração dilacerado ao ver as duas figuras a cavalo que ocupavam as suas posições em extremos opostos da
liça. Danton cintilava numa dispendiosa armadura com inscrições da cabeça aos pés, as plumas a abanarem no capacete, penas escarlate
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a condizerem com o manto que drapejava o seu garanhão branco. Em contraste, o cavalo castrado de pelagem castanha de Remy primava pela simplicidade, ajaezado apenas
com as rédeas e a sela de costas altas própria para justas. Remy não se dera ao trabalho de usar uma armadura completa. Tinha muito pouca proteção, além do peito
de armas e de um capacete de ferro bastante tosco. Parecia mais um soldado comum preparado para a batalha do que um cavaleiro, pelo que a sua aparência deu azo a
alguns apupos e assobios vindos do público.
Mas, em grande parte, o que imperava era um silêncio de antecipação que se abatera sobre o público, até mesmo o mais tolo dos cortesãos se apercebia da diferença
daquela justa, as intenções letais ocultas pelas viseiras dos dois adversários. com um sorriso presunçoso, o rei inclinou-se para a frente da galeria e levantou
o lenço. Gabrielle sentiu-se possuída de um louco impulso de correr para ele, tirando-lhe o lenço. Mas já era tarde de mais. A seda vermelha esvoaçou em direção
ao solo. Remy e Danton investiram um contra o outro.
Gabrielle cambaleou até à beira da tribuna, agarrando-se ao gradeamento. O seu coração batia em compasso com os cascos dos cavalos, que levantavam a terra do solo.
Danton tinha-se gabado muitas vezes do seu bom desempenho em justas. Não precisava de muito esforço para controlar as rédeas e o escudo, mantendo a lança apoiada
no suporte colocado na dianteira da sua sela.
Mas era evidente que Remy não estava acostumado àquela espécie de confronto. Aquela não era a sua espécie de luta. Embora dominasse bastante bem a sua montada, tinha
a lança na mão, sem qualquer suporte para além da sua própria força. Quando os dois homens se cruzaram, Gabrielle quase não conseguiu manter os olhos abertos. A
lança de Remy tocou no escudo de Danton, enquanto a deste roçou no capacete de Remy e falhou. Quando os dois cavalos passaram ruidosamente um pelo outro, as palmas
das mãos de Gabrielle estavam escorregadias de tanto suor.
Agarrava-se ao gradeamento com tanta força que tinha os nós dos dedos esbranquiçados, mas não existiam tréguas à sua ansiedade, nenhum alívio para aquele temor sufocante.
Remy e Danton galoparam para os extremos da liça. Danton deu meia-volta com a montada a caracolear. Quanto a Remy, rodopiou deliberadamente, ele e o cavalo castrado
a movimentarem-se como se fossem um só. com as lanças ao mesmo nível, os dois homens voltaram a carregar um em direção ao outro. A ponta da lança de Remy bateu no
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escudo de Danton. Para grande horror de Gabrielle, Remy não conseguiu continuar a empunhar a lança, que caiu no chão. Mal conseguiu esquivar-se à estocada de Danton,
aparando-a com o seu próprio escudo. A lança de Danton partiu-se ao meio.
A multidão aclamava entusiasticamente. Gabrielle levou a mão à boca para abafar um gemido. "Oh, por favor, começou a rezar. "Permiti que isto seja o fim." Mas o
coração caiu-lhe aos pés quando os dois homens galoparam para os extremos da liça, os escudeiros de ambos a apressarem-se a ir buscar outras lanças. O cavalo de
Danton aparentava desassossego. Talvez se recusasse a prosseguir. A esperança de Gabrielle morreu de imediato quando Danton conseguiu voltar a dominar a sua montada.
Já a empunhar uma nova lança, Remy dirigiu o cavalo para o seu lugar.
Uma vez mais, o silêncio abateu-se sobre a multidão enquanto os dois homens galopavam um em direção ao outro, acelerando o galope, como se toda a raiva, toda a hostilidade
de ambos, comandasse aquela carga final. Encontraram-se numa violenta colisão de lanças e escudos. O cavalo de Danton recuou. O cavaleiro foi atirado da sela, caindo
no chão com tanta força que o capacete lhe voou da cabeça. Remy refreou a sua montada, enquanto o garanhão de Danton galopava para o extremo da liça sem o seu cavaleiro.
Qualquer alegria que Gabrielle pudesse sentir por Remy não ter sido ferido desvaneceu-se de imediato ao ver Danton caído de lado sem se mexer. Ouviu-se
um arquejo coletivo que percorreu toda a multidão; muitos dos cortesãos puseram-se de pé.
"Oh, meu Deus", pensou Gabrielle. "Por favor, para bem de Remy, não permitas que o canalha esteja morto. Não permitas que Remy o tenha matado." O tempo pareceu arrastar-se
indefinidamente, com os segundos a ameaçarem eternizar-se, até que Danton soltou um gemido, após o que, com dificuldade, se sentou. Ouviram-se alguns aplausos da
multidão. Gabrielle tremeu, sentindo um alívio tão grande que quase se deixou cair de joelhos.
Fechou os olhos. "Graças a Deus." O seu suplício tinha chegado ao fim e Remy estava são e salvo. A maquinação ardilosa da Rainha das Trevas saíra gorada. Gabrielle
sentiu-se tentada a olhar para Catarina com uma expressão de puro desafio e triunfo. Mas quando voltou a abrir os olhos, sentiu que o coração lhe parava de bater
ao ver que Danton começava a levantar-se do chão, berrando para que lhe levassem a espada.
Remy desmontou. Tirou a armadura e, da mesma maneira, pediu a sua espada. Mostrando-se infelicíssimo, Lobo correu para o capitão, entregando-lhe
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uma espada de lâmina larga, enquanto outro pajem levava o cavalo castrado. O escudeiro de Danton também se apressou a armar o seu senhor. Remy e Danton dirigiram-se
um para o outro. As lâminas entrecruzaram-se num horrível entrechocar de aço.
- Não! - O grito de Gabrielle perdeu-se abafado pelos gritos excitados do público.
Aquele duelo tinha lugar em flagrante violação dos estatutos contra o combat à outrance. com certeza que o rei poria fim àquela infração. Até mesmo Henrique Valois
não podia ficar indiferente ao ver as suas próprias leis ignoradas. Mas quando Gabrielle, desesperada, olhou para o monarca, viu que Henrique estava agachado a dar
pequenos nacos de comida ao seu cãozinho, fingindo não reparar no feroz duelo que se travava diante de si. com as mãos sobrepostas afetadamente no colo, a Rainha
das Trevas observava o que se estava a passar com uma expressão de enfado e indiferença, como se tivesse poucas dúvidas quanto ao desfecho.
Gabrielle foi empurrada quando outros cortesãos deixaram os seus lugares, aproximando-se do gradeamento que separava a galeria para poderem ver melhor. Ficou revoltada
ao ver a expressão nos seus rostos, que lhe lembravam chacais que farejassem sangue. Não havia ninguém que interviesse, ninguém que pusesse cobro àquele combate
de morte... ninguém, a não ser ela própria. Empurrou quem se encontrava à sua frente e desceu os degraus da galeria.
Remy cruzou a espada com a de Danton violentamente, com estocadas que reverberam pelo seu braço acima. Mas não se apercebia disso, tal como não se apercebia dos
gritos da multidão, que lhe soavam muito à distância. Sentia o sangue a latejar-lhe nos ouvidos, possuído do mesmo ímpeto que trazia à sua mente tantos campos de
batalha a percorrer-lhe as veias.
Arreganhou os lábios num esgar que sempre havia inspirado terror no coração dos seus inimigos. Investiu contra Danton, desferindo estocada após estocada, obrigando-o
a recuar. Tinha os lábios contraídos de tão concentrado que estava. Danton aparava-lhe os golpes. Fintando para a esquerda, este conseguiu apanhar Remy desprevenido.
A ponta da sua espada perfurou a manga acolchoada do capitão. Sentiu ardor no braço quando a carne foi trespassada pelo aço. com os dentes arreganhados, carregou
sobre Danton com mais ímpeto, desferindo estocada após estocada.
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Danton cambaleou para trás e foi por pouco que não caiu. A falta de armadura podia tornar Remy mais vulnerável, mas a de Danton estava a pesar-Ihe. Os movimentos
do homem eram cada vez mais esforçados, com o suor a escorrer-lhe pela bela fisionomia. O braço de Remy não mostrava o mínimo cansaço, os seus músculos mais acostumados
a longas horas de combate e como era exigido a um soldado, a carne como que transformada em aço ao ponto de quase passar a ser uma extensão da sua espada.
Enquanto Danton se esquivava aos seus golpes, Remy viu que a arrogância do homem começava a desaparecer. Os olhos dele mostraram os primeiros indícios de que poderia
perder, que talvez estivesse prestes a morrer. com a respiração arfante, batia-se cada vez com mais desespero. Remy cheirava o medo dele, saboreando-o. Desferiu
a espada num golpe circular cheio de veneno que quase seccionou a orelha de Danton. Este soltou um grito esganiçado, com o sangue a espirrar-lhe da bochecha.
- Est... está bem. Já chega - disse Danton arfante, recuando para se afastar de Remy.
- Oh, não, não chega, nem de longe, nem de perto - retorquiu este. Desferiu outra estocada. Danton mal conseguiu reagir a tempo de bloquear o ataque.
- Maldito sejas! Eu disse que já chegava. - Os olhos de Danton abriram-se tanto de dor quanto de medo. Em movimentos atabalhoados, afastou-se ainda mais. - Rendo-me.
Imploro-vos que pareis.
- Tal como a Gabrielle vos suplicou que parásseis?
- Sim. Não... quero dizer, ela não me implorou. Ela queria que eu... Remy voltou a atacá-lo e foi por um triz que a lâmina da sua espada não
abriu a face de Danton.
- Queria que a violásseis, canalha? vou esquartejar-vos, bocado a bocado. com a respiração extremamente esforçada, Danton, possuído de um
grande frenesim, aparou a estocada de Remy. As lâminas entrechocaram-se e Remy, com uma expressão de ferocidade, fitou os olhos do outro homem. com o rosto sujo
de sangue e suor, Danton até ensaiou um sorriso de quem queria granjear simpatia.
- Por... por amor de Deus, homem. Para que é tudo isto? Ela... ela é apenas uma prostituta.
O rio de águas turvas e frias que corria nas veias de Remy deu lugar a uma erupção de fogo em liquefação e uma nuvem vermelha passou-lhe pelos
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olhos. Empurrou Danton para trás e baixou a espada brutalmente, atingindo-o na mão e desarmando-o. Danton cambaleou e tombou de costas. Mas Remy deixou de ver o
homem acobardado aos seus pés que lhe implorava misericórdia. Tinha a mente turva com imagens dos olhos ensombrados de Gabrielle, a memória do seu pranto entrecortado.
Olhando Danton do alto da sua estatura, Remy ergueu a espada...
- Remy! Não!
Teve uma vaga perceção de alguém a correr para si, agarrando-lhe firmemente o braço com que empunhava a espada. Foi por pouco que não a atirou para o lado, mas então
apercebeu-se de quem era. Mesmo assim, debateu-se para se desprender dela, dizendo-lhe numa voz rosnada:
- Gabrielle, tratai de sair imediatamente do meu caminho!
Mas ela agarrava-se a ele com a força que o desespero lhe dava e com uma palidez que tinha origem no medo.
- Não, não podeis matá-lo, Remy, por favor. Não façais isso.
- Estais a tentar proteger aquele canalha? Depois de tudo o que ele vos fez?
- Não, grande idiota. Sois vós que estou a tentar proteger.
Remy mal conseguia ouvi-la, a sua expressão facial sinistra e assustadora, as pupilas meras cabeças de alfinete onde só se via sangue e vingança. Os olhos do Flagelo...
Gabrielle envolveu-lhe o rosto nas suas mãos.
- Não compreendeis nada? Sois a única pessoa que me interessa. É a vós que quero que não aconteça mal nenhum. - Estava à beira das lágrimas.
- Amo-vos, grandessíssimo idiota.
As palavras soavam-lhe tão fúteis, não eram suficientes para controlar uma fúria de matar tão intensa. Gabrielle estava à espera que ele a arremessasse para fora
do seu caminho. Mas ele ficou petrificado, pestanejou e ficou a olhar para ela.
- O quê? O que é que dissestes?
- Eu d... disse que vos amo - respondeu Gabrielle num sussurro. Remy olhou-a com fixidez pelo que pareceu ser uma eternidade, aquela expressão aterradora a desvanecer-se.
Os olhos do Flagelo desapareceram para serem substituídos pelos olhos castanhos de expressão quente de Remy, muito abertos de perplexidade. O braço da espada ficou
frouxo e a arma escorregou-lhe dos dedos.
Entretanto, com a ajuda do seu escudeiro, Danton conseguira pôr-se de pé. com a mão agarrada à orelha, o cavaleiro saiu do campo a cambalear.
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Remy mal se apercebeu disso e tão-pouco lhe interessava. De momento, nada lhe interessava a não ser o facto de Gabrielle ter proferido palavras que ele nunca esperara
ouvir, palavras miraculosas em que ainda não conseguia acreditar.
Descalçou as luvas de cabedal e pegou-lhe nas mãos.
- Dizei isso outra vez.
Ela levantou a cabeça, o maxilar erguido numa expressão de desafio, mas os olhos eram suaves e brilhantes de lágrimas.
- Amo-vos. Sempre vos amei.
Ele agarrou-lhe as mãos com força. O sentimento que lhe percorria todo o corpo não era nada como o ribombar atroador de emoção que em tempos talvez tivesse antecipado.
A alegria começou a invadi-lo com mais serenidade, como o calor e a luz do Sol a percorrerem-lhe as veias, expulsando os últimos vestígios da frialdade, da escuridão
que tão recentemente se tinham apoderado do seu coração.
O mundo inteiro começou a desaparecer e o tempo parou para lhes proporcionar aquele momento precioso. Um momento que acabou cedo de mais. Gabrielle foi a primeira
a ter consciência do lugar onde se encontravam, soltando as mãos das de Remy. Começou a ouvir os gritos e as vozes que vinham da galeria do público, apercebendo-se
de que toda aquela algazarra se devia ao facto de ter interferido no duelo, mas isso era-lhe indiferente. Tinha avaliado a sensatez ou loucura de confessar o seu
amor a Remy numa data posterior, mas agora nada lhe parecia que tivesse importância, além de Remy estar são e salvo.
Gabrielle virou-se desafiadora, preparada para fazer face ao desagrado da Rainha das Trevas, bem como todos os olhares de curiosidade e dedos que apontavam. Para
sua surpresa, constatou que nem os olhares nem os gestos eram dirigidos a si e a Remy. Todas as cabeças estavam viradas para um grupo de homens a cavalo que se aproximava
vindo do pátio do Louvre.
Gabrielle ficou tensa, receando não ter conseguido salvar Remy. Impedira-o de matar Danton, mas o rei devia ter mandado chamar a sua guarda para que prendessem Remy.
Olhou para ele e viu que tinha ficado de cenho carregado à aproximação da guarda. Se acreditasse que serviria de alguma coisa, Gabrielle ter-lhe-ia dado um forte
safanão, implorando-lhe que se pusesse em fuga. Só lhe restava colocar-se protetoramente diante dele, um movimento que Remy impediu, colocando-a atrás de si.
Apressou-se a pegar na espada, o homem ternamente apaixonado de momentos antes substituído pelo capitão implacável.
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- Gabrielle, ide procurar Miri e Martin. E depois, vós três...
- Não vou a parte nenhuma - atalhou Gabrielle determinada.
Remy olhou-a furioso, mas a rápida aproximação dos homens a cavalo tornou fútil qualquer argumento adicional. Praguejou em voz baixa e depois empurrou-a, colocando-a
atrás de si e preparando-se para o pior. Gabrielle inclinou-se de lado para poder ver os homens da guarda, que continuavam a aproximar-se.
Mas aqueles homens não pertenciam à guarda do palácio que ela conhecia. Usavam capacetes toscos e cotas de malha por baixo de túnicas pretas onde se viam grandes
cruzes brancas. Pareciam um grupo de cavaleiros de tempos idos, prontos para partirem numa cruzada.
Quando já se aproximavam da liça, o comandante ergueu uma mão e todos os membros do grupo se detiveram, dando meia-volta e ocupando posições defronte da galeria
do público. Gabrielle mal conseguia divisar as feições dos homens por baixo das viseiras levantadas, mas pensou que constituíam o grupo de mais má catadura que lhe
fora dado ver. Assemelhavam-se a um bando de implacáveis mercenários.
- Mas o que diabo vem a ser isto? - As feições de Remy vincaram-se numa expressão que era um misto de confusão e apreensão.
- Não sei. Talvez eles façam parte do torneio. - Gabrielle aventurou-se a sair de detrás de Remy, que de imediato lhe passou o braço pela cintura com firmeza, puxando-a
para o seu lado, como se receasse que um daqueles homens se sentisse tentado a fugir, levando-a consigo. Sem dúvida que a maior parte deles parecia muito capaz disso
mesmo.
A estupefação refletia-se no rosto dos demais presentes. Apenas o rei de França não se mostrava atónito, avançando até à frente da tribuna e fazendo sinal para que
se fizesse silêncio.
- Bons amigos. Senhoras e cavalheiros da corte - começou a dizer numa voz atroadora, muito diferente do tom impertinente que lhe era habitual. - Tinha planeado fazer-vos
uma surpresa aquando do banquete desta noite, mas chegou um pouco mais cedo do que eu esperava.
Uma surpresa? Gabrielle e Remy trocaram um olhar desconcertado. Ela chegou-se mais a Remy, sentindo-se como se já tivesse a sua quota-parte de surpresas naquele
dia, suficientes para lhe durarem durante o resto da vida.
O rei afastou para trás a basta cabeleira, os anéis a cintilarem, enquanto tentava adotar uma expressão solene.
- Existe uma ameaça crescente à paz do nosso reino e que há muito requer a nossa atenção. Forças do mal de uma dimensão que faz com que os
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nossos tribunais eclesiásticos ou civis sejam incapazes de resolver. Cheguei ao ponto de quase desesperar de alguma vez conseguir combater tais males demoníacos,
até ouvir falar do trabalho destes homens que estais a ver diante de vós. Soldados que dedicaram toda a sua vida a uma única causa, a destruição de uma praga que
se disseminou por toda a Europa.
O rei fez uma pausa para um efeito mais dramático, após o que acrescentou numa voz sibilada:
- A perversa prática de bruxaria.
Caçadores de bruxas. Aquele sinistro bando de homens eram caçadores de bruxas.
Aquilo só podia ser obra da Rainha das Trevas, a sua perfídia em ação, concluiu Gabrielle irada. Não seria a primeira vez que Catarina recorria ao uso de caçadores
de bruxas para lidar com os seus inimigos. Essa prática era considerada a maior espécie de traição que uma mulher sábia poderia fazer a outra Filha da Terra. Os
lábios de Gabrielle contraíram-se quando procurou o rosto de Catarina na tribuna. Ficou desconcertada ao ver que a rainha tinha ficado muito pálida, o semblante
impassível a mostrar rigidez devido ao choque e outra expressão que Gabrielle nunca pensara vir a ver no rosto da Rainha das Trevas... medo.
Claramente, Catarina não tinha nada a ver com aquilo. Qualquer que fosse a intriga que estava a desenrolar-se, não era da sua lavra, mas sim uma situação que se
encontrava fora do seu controlo. Ao aperceber-se daquela realidade, Gabrielle sentiu-se percorrida por um arrepio que fez com que, estranhamente, ficasse ainda mais
receosa.
Entretanto, o filho de Catarina percorria a frente da galeria todo emproado, o assomo de um trejeito de presunção nos lábios, obviamente a desfrutar da sensação
que criara.
- Há tempo de mais que o meu povo é forçado a subjugar-se ao terror e à intimidação dessas mulheres ímpias que praticam as artes negras - prosseguiu o rei piamente.
- Permiti que vos apresente o homem que expulsará o mal e livrará a França das suas bruxas de uma vez por todas.
O rei ergueu a mão num gesto cheio de dramatismo.
- Monsieur lê Balafre.
Foi o único homem a cavalo que saiu do alinhamento, dirigindo a sua montada para mais perto da tribuna até se posicionar exatamente abaixo do rei. Tirou o capacete
da cabeça e ao verem a fisionomia dele os presentes arquejaram.
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Gabrielle conseguia ver porquê. Tinha uma fisionomia feia e abrutalhada, o cabelo quase à escovinha e uma cicatriz perversa a dividir a bochecha direita em duas
partes iguais. Quando se inclinou para a frente na sela, fazendo uma curta e rígida vénia ao rei, Gabrielle também ficou perplexa ao ver como ele era jovem. Demasiado
jovem para ser o comandante daquele grupo de homens de expressões endurecidas.
De facto... Ficou com a respiração embargada na garganta. Contorceu-se para se libertar do braço de Remy, os seus olhos a estreitarem-se num esforço para examinar
o caçador de bruxas mais de perto. Para conseguir ver por baixo da cicatriz, os vestígios de feições que a surpreenderam por lhe serem perturbadoramente familiares.
- Oh, meu bom Deus - gemeu.
Remy aproximou-se dela apressadamente, puxando-a para trás.
- Gabrielle, o que é que se passa? Estais a reconhecer aquele homem? Quem é ele?
- É o Simon - adiantou Miri em voz baixa.
Gabrielle girou sobre si própria, deparando com a irmã mais nova, que se aproximara por detrás deles. Miri estava pálida e com uma expressão de grande tristeza,
os olhos plenos de angústia.
- O Simon Aristide - murmurou.
O Sol punha-se por cima dos telhados de Paris, a luminosidade a desvanecer-se num dia que Gabrielle via com satisfação que estava a chegar ao fim. Demorava-se à
janela da alcova que designara para a irmã mais nova, a observar as sombras que se abatiam sobre a cidade que se estendia para lá dos muros da sua casa na cidade,
a aproximação da escuridão a trazer consigo uma nova ameaça.
Simon Aristide. O perverso rapaz cuja traição tempos antes quase causara a morte do muito amado de Ariane, Renard, e cuja traição devastara o coração confiante de
Miri. Gabrielle perguntava-se que perversidade do destino conjurara tantos fantasmas do passado no mesmo dia. Primeiro Étienne e depois Simon.
Afastando-se da janela, Gabrielle olhou de relance e com preocupação para a irmã. O vestido verde fora despido e deixado em cima de uma cadeira. Já de camisa de
dormir, Miri sentava-se no meio da cama com as pernas fletidas, o queixo apoiado nos joelhos, o cabelo luzidio a cair-lhe em cascata diante da cara. Miri parecia
ter ficado reduzida a uma criança de novo, uma que se sentia muito magoada. Mal proferira duas palavras desde que Remy as apressara para que se afastassem do torneio,
regressando à segurança que a casa de Gabrielle lhes proporcionava. Pelo menos, tinha parecido segura a Gabrielle até então. Mas agora aquelas paredes pareciam oferecer
pouca proteção contra quaisquer que fossem as forças negras que lhes quisessem fazer mal. Abeirou-se do leito e deixou-se cair ao lado de Miri. O gato, Netromante,
esfregou a cabeça nas pernas da dona, ronronando suavemente, mas Miri ignorou-o, algo muito pouco habitual nela. Gabrielle passou os dedos pelo cabelo sedoso da
irmã, afastando-o para trás dos ombros.
- Miri?
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A irmã levantou a cabeça e conseguiu esboçar o assomo de um sorriso.
- Não estejas tão preocupada, Gabby, estou bem.
- Não me pareces nada bem, minha querida. Estás muito pálida. Na verdade, as patas do Necromante têm mais cor do que as tuas faces - disse na brincadeira numa voz
afetuosa.
Necromante soergueu-se sobre as pernas traseiras e fez uma festa na bochecha de Miri com as patas de um branco de neve, como se quisesse acentuar o que Gabrielle
dissera. Miri suspirou e pegou no gato ao colo.
- Senti um pequeno choque, mais nada. Não sou capaz de esquecer a primeira vez em que vi o Simon, naquela noite no círculo dos gigantes de pedra, aonde aquelas raparigas
malvadas planeavam oferecer o Necromante como sacrifício. Fugiram quando os caçadores de bruxas chegaram e o Vachel Lê Vis... - Miri estremeceu ao recordar-se do
demoníaco grão-mestre da Ordem de Malleus Maleficarum. - Ele pensou que eu era a responsável, mas o Simon sabia que não. Tentou defender-me e eu pensei que era o
rapaz mais belo que alguma vez tinha visto. Tinha o cabelo tão preto e lustroso, uma compleição tão branca como leite, os olhos escuros com uma expressão de tanta
bondade.
- Mas agora a sua aparência física finalmente iguala-se à repelência do seu coração - retorquiu Gabrielle com rispidez.
- Se ao menos tivesses deixado que eu o abordasse, que falasse com ele... Gabrielle abanou a cabeça vigorosamente. Tinha muitas razões para se
sentir agradecida a Remy, mas nenhuma mais forte que as suas prontas ações de hoje. Conseguira levá-la e a Miri para fora do local do torneio antes que o traiçoeiro
Aristide tivesse oportunidade de reparar na sua irmã.
- Quando é que serviu de alguma coisa tentar falar com um caçador de bruxas? - perguntou Gabrielle num tom que exigia resposta.
- Mas o Simon era diferente. Havia muita coisa boa nele. Ou, pelo menos, foi o que pensei em tempos. - Miri chegou a bochecha ao cocuruto da cabeça de Necromante.
- Talvez esta conspiração de livrar a França de todas as bruxas seja mais obra do rei do que de Simon.
- Não importa quem possa estar por detrás disso, porque não nos vamos manter por perto para descobrir isso.
"Pelo menos, tu não estarás, maninha", pensou Gabrielle. Quando Miri ergueu a cabeça, mostrando um brilho de rebelião nos olhos, Gabrielle disse:
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- com certeza que até tu não podes deixar de ver a necessidade de regressares à ilha Encantada. A menos que queiras arriscar-te a dar contigo num julgamento acusada
de bruxaria outra vez? - Gabrielle sentia-se como uma víbora por ter lembrado à irmã uma situação tão dolorosa. Mas estava disposta a usar todos os argumentos ao
seu dispor para conseguir que Miri deixasse Paris.
Esta suspirou, os ombros descaídos numa atitude de desânimo.
- Talvez tenhas razão. Fiquei tão abalada por ter voltado a ver o Simon, constatar aquilo em que ele se transformou. Neste momento, não estou capaz de pensar com
clareza.
- Claro que não podes - concordou Gabrielle num tom tranquilizante.
- Foi um dia muito comprido e exaustivo para todos nós. Amanhã de manhã veremos tudo com mais clareza. vou dizer à Bette que vá buscar qualquer coisa de comer e
depois aconselho-te a que te deites cedo.
- Não te preocupes com a ceia. Não tenho grande apetite.
Gabrielle começou a protestar, mas Miri já estava a abrir a cama. Ao ver o semblante de desalento da irmã, Gabrielle calou-se. Talvez um bom sono fosse o melhor
remédio para o coração dilacerado de Miri. Aconchegando a coberta em volta da irmã mais nova, Gabrielle depositou-lhe um beijo ao de leve na fronte. Miri já tinha
os olhos fechados quando Gabrielle saiu da alcova em bicos de pés.
Assim que ela saiu, os olhos de Miri abriram-se de repente. Fez uma careta ao dar consigo a olhar diretamente para os olhos cor de âmbar de Necromante. com as patas
da frente presas à extremidade da almofada, o gato como que se agigantava para ela, o olhar cheio de reprovação.
"Sei em que é que estás apensar, Filha da Terra. Esquece isso."
- Não faço a mais pequena ideia do que estás para aí a falar - resmungou Miri.
"Essa aquiescência tão humilde pode ter enganado a tua irmã, mas a mim não engana. Continuas a querer ver esse desgraçado do Aristide. Tens de te manter longe dele.
O homem é um predador"
- Olha quem fala. Por muito bem alimentado que estejas, persistes em dar caça aos pobres ratinhos indefesos.
Necromante deixou-se cair sobre as patas traseiras, lambendo as patas com satisfação.
"Caçar faz parte da minha natureza, exatamente como na dele."
- E também aparenta fazer parte da tua natureza perturbar constantemente o meu sono - resmungou Miri. - Boa noite. - Enfiou-se mais debaixo
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das cobertas, aonde Necromante não poderia ler a expressão do seu rosto. Era muito possível que Gabrielle e o gato estivessem corretos no juízo de valores que faziam
de Simon. Talvez o que Miri tencionava fazer fosse imprudente e uma loucura. Mas não estava na sua natureza desistir tão facilmente dos que amava.
As velas já tinham sido acesas na alcova de Gabrielle quando chegou. Ficou imobilizada de surpresa na ombreira da porta ao deparar com Remy inclinado sobre o lavatório,
estava de tronco nu e apenas com os calções tufados pelo meio das coxas. A luz das chamas tremeluzentes das velas mostrava os músculos das costas e os ombros largos.
O pequeno arquejo que Gabrielle soltou alertou-o para a sua presença. Endireitou-se e deu meia-volta, ficando de costas para o lavatório.
- Peço desculpa, não quis sobressaltar-vos. A Bette disse que não vos importaríeis que eu lavasse alguma da sujidade do dia e tratasse disto. - Virou o cotovelo
direito, mostrando um corte fundo no antebraço.
- N... não, claro que não - gaguejou Gabrielle. Devido à entrada em cena dos caçadores de bruxas e a sua preocupação com Miri, tinha-se esquecido do ferimento de
Remy. Cheia de remorsos, apressou-se a tirar o pano húmido da mão dele. - Deixai-me cuidar disso. - Pegou-lhe no pulso para lhe imobilizar o braço, começando a limpar
o corte suavemente. Ficou aliviada ao ver que o sangue já havia coagulado. Embora tivesse cerca de quinze centímetros de comprimento, o ferimento não parecia suficientemente
fundo para que fosse preciso suturá-lo. Mesmo assim, mordeu o lábio inferior com força enquanto limpava o ferimento. Mas a angústia dela não passou despercebida
a Remy. Pegou suavemente nuns fios de cabelo que lhe tinham caído para a cara, afastando-os para trás.
- É só um arranhão, Gabrielle.
Ela sabia isso. Era o pensamento daquilo que poderia ter acontecido a Remy que fazia com que só quisesse encostar-se ao peito dele, como se fossem um único ser,
e desatar a chorar. Em vez disso, concentrou-se no golpe. Apesar dos protestos de Remy, que dizia que aquilo não era necessário, ela insistiu em aplicar a infusão
de hamamélis que Bette lhe trouxera. Remy susteve a respiração ao sentir o ardor, mas, tirando isso, não reagiu quando ela lhe enfaixou o braço, aguardando pacientemente
que ela acabasse.
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As mãos de Gabrielle não estavam tão firmes como teria desejado e tinha dificuldade em olhá-lo de frente. Nunca dissera a nenhum homem tão francamente que o amava.
Era uma confissão que a deixava constrangida e vulnerável. O facto de Remy estar quase nu não contribuía em nada para aliviar o seu pouco à-vontade. O seu olhar
desviou-se para os robustos contornos do peito cheio de cicatrizes, o medalhão de Cassandra sobre os pelos de um louro-escuro que lhe cobriam o peito. O talismã
provara ser inteiramente inútil. De que é que servia um amuleto que advertia da iminência de perigo, se o homem que o usava fosse demasiado obstinado para ter em
conta essa mesma advertência?
Gabrielle sentiu-se tentada a tirar-lhe o fio pela cabeça, atirando fora o talismã sem mais nem menos, mas o contraste do metal a reluzir sobre a pele desnudada
de Remy era, de uma qualquer maneira estranha, muito masculino e estranhamente sedutor. Aqueles pensamentos não faziam nada para lhe firmar as mãos. Enrolou-lhe
a ligadura no antebraço de uma maneira atabalhoada. Mas Remy não se queixou, embora se tivesse contraído quando ela apertou a ligadura de mais.
- Peço desculpa - murmurou Gabrielle. - Nunca fui tão eficiente como a Ariane a fazer isto.
- Está muito bem.
Arriscou-se a levantar a cabeça e viu que ele a olhava afetuosamente, a expressão nos seus olhos era suficientemente terna e apaixonada para que os joelhos de qualquer
mulher fraquejassem. Quando ela lhe confessou o seu amor durante o torneio, por um breve momento tudo lhes pareceu possível, a felicidade ao alcance de ambos. Todavia,
entretanto, Gabrielle tomara consciência da realidade.
Amava Remy. Finalmente, confessara-lhe o que sentia por ele, mas isso não alterava nada, nenhum dos perigos que a Rainha das Trevas e os caçadores de bruxas representavam
para ambos, ao que se acrescia a situação tão estranha em relação ao rei de Navarra. Em especial, não alterava a espécie de mulher que Gabrielle era, o que não fazia
com que fosse mais merecedora do amor de Remy.
Gabrielle acabou de atar a ligadura. Em seguida, retirou a água ensanguentada do lavatório e chamou uma das criadas para que fosse buscar um jarro de água limpa
para que Remy pudesse acabar de se lavar. Quando voltou a encher a bacia, apercebeu-se de que ele observava atentamente todos os seus movimentos. O ardor que via
no olhar dele acelerou-lhe as batidas
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do coração e fez com que sentisse um formigueiro na pele. Nunca tinha tido noção de que era possível que um homem fizesse com que uma mulher o desejasse, simplesmente,
com a tranquilidade do seu olhar.
O silêncio que se alongou entre os dois não era de serenidade. Estava demasiado carregado de desejos por verbalizar. Quando Gabrielle colocou uma toalha de linho
junto do lavatório para Remy, tentou aliviar a tensão, perguntando-lhe com uma falsa vivacidade:
- Não suponho que queirais que vos empreste um dos meus sabonetes perfumados?
- Para ficar a cheirar como alguns dos petits amis do rei francês? - replicou Remy secamente. - Não, obrigado. É preferível guardar o sabonete para Miri. Talvez
ela gostasse de o experimentar. - Após uma breve pausa, ele perguntou-lhe: - E como é que está a vossa irmã?
- Está mais ou menos. Tenho a certeza de que ficará muito bem depois de se recompor do choque. Mas sentir-me-ei muito melhor quando ela estiver em segurança de regresso
à ilha Encantada.
- Quando ambas estiverem de volta à ilha - retorquiu Remy com firmeza.
Gabrielle dobrou e voltou a dobrar a toalha. Tinha chegado o momento que não podia continuar a evitar. Mas evitou olhar para Remy quando disse:
- Existe apenas um lugar para onde vou... e esse é o palácio para onde tenciono voltar esta noite.
- O quê!? Haveis enlouquecido? - perguntou Remy furioso. Gabrielle agarrou a toalha que acabara de dobrar com tanto cuidado com
tanta força que a amarrotou.
- Tenho de falar com o rei de Navarra para lhe explicar o que aconteceu. Decerto que haveis reparado nele montado no seu cavalo perto do extremo da liça quando saímos
de lá apressadamente. A expressão de aturdimento no rosto dele.
- Sim, vi. Mas é minha obrigação explicar-lhe a situação entre nós dois... e não vossa.
- Remy, nós não existe. Não quero que o rei de Navarra interprete erroneamente as minhas ações de hoje, tal como não quero que ele fique encolerizado convosco. Felizmente,
ele não se encontrava a uma distância de poder ouvir o que eu vos disse. Portanto, ainda me será possível acalmar a situação com ele e emendar as coisas.
- Que espécie de emendas?
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Gabrielle não conseguia obrigar-se a responder-lhe. Voltou a dobrar a toalha, mas Remy tirou-lha das mãos, atirando-a para o chão. Agarrou-a com força pelos ombros
e forçou-a a virar-se para ficar de frente para ele.
- Continuais a planear vir a ser amante dele, não é verdade? - gritou-lhe ele. - Partilhar a cama dele até mesmo depois do que me dissestes hoje? Maldição, Gabrielle!
Haveis dito que me amavas. Não falastes com sinceridade?
Teria sido melhor se ela lhe pudesse mentir, fingir que só tinha dito aquilo a fim de pôr fim ao duelo. Mas os olhos de Remy toldaram-se com uma expressão de tanta
mágoa e incerteza que ela não foi capaz de suportar.
- Sim, falei com sinceridade - replicou Gabrielle. - Amo-vos de facto, mas nunca mais devo dizer-vos isso outra vez.
- Em nome de Deus, porquê?
- Porque... Mas não estais a ver? Porque não faz diferença nenhuma.
- Para mim faz toda a diferença do mundo. - Remy puxou-a mais para si, inclinando-se para a beijar. Gabrielle desviou a cara, de modo que a boca dele só lhe roçou
pela face.
- Remy, independentemente do que eu possa sentir por vós...
- O que sentimos um pelo outro - insistiu ele, roçando os lábios pelo cabelo dela, que sentiu a respiração cálida dele na orelha. - Amo-vos, Gabrielle, o que, creio
eu, não será preciso dizer-vos. Tenho a certeza de que sempre soubestes isso.
Remy beijou a concavidade sensível atrás da orelha dela, a sua boca a descer por toda a altura da nuca. O roçar cálido da boca dele provocou um arrepio que percorreu
o corpo de Gabrielle, os beijos ternos intercalados com outros ardentes, afetuosos e apaixonados. Gabrielle teve de chamar a si toda a sua força de vontade para
conseguir resistir-lhe.
- Remy, por favor, não - suplicou-lhe. Afastou-se dele. - Não sois capaz de ver que qualquer sentimento de amor entre nós é tão impossível como sempre foi?
O semblante de Remy ensombrou-se com um misto de desejo e frustração.
- Porquê? Por causa da visão que um maldito bruxo vos conjurou? Uma maldita previsão idiota, segundo a qual o rei de Navarra virá a ascender ao trono de França,
que viríeis a ser a sua amante e que reinaríeis ao seu lado. É isso que desejais realmente? Isso é assim tão importante para vós?
Gabrielle afastou-se ainda mais dele, levando a mão ao pescoço e continuando a sentir o ardor dos beijos dele.
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- Jurei a mim mesma há muito tempo que não seria uma mulher indefesa como outras mulheres que não detêm qualquer poder num mundo que pertence aos homens.
- E o que diabo é que fareis com todo esse poder depois de o obterdes? Duvido muito que o poder tenha aquecido alguém à noite, que tivesse feito com que uma pessoa
se sinta menos sozinha ou mais feliz.
- O calor humano ou a felicidade nunca foram os meus objetivos replicou Gabrielle numa voz que mal se ouvia. - Mas se eu fosse senhora de toda a França, posso prometer-vos
uma coisa. Nenhum caçador de bruxas voltaria a atravessar as nossas fronteiras. E poria fim a todas as lutas acrescentou mais acalorada. - Nenhuma mulher voltaria
a chorar a morte
de um marido ou de um filho numa qualquer batalha estúpida e sem significado.
- Acreditais realmente que isso seria assim tão fácil de conseguir, Gabrielle? Banir todos os males através de decreto real? Que uma mera ordem fará com que as espadas
dêem lugar a relhas de arado? Se for esse o caso, sabeis muito pouco sobre a natureza sinistra dos homens, minha querida. Mas eu não acredito que as vossas tentativas
para que me mantenha afastado de vós tenham alguma coisa a ver com uma sede de poder. Também não têm nada a ver com o desejo de virdes a ser amante de um rei. Tudo
isto se deve a esse canalha do Danton. Desde que fiquei ciente do que ele vos fez, mal tendes sido capaz de me olhar de frente.
Gabrielle tentou negar a afirmação dele, fitando-o claramente olhos nos olhos, mas concluiu que lhe era impossível. Remy encurtou a distância que os separava. Envolveu-lhe
o queixo com os dedos, obrigando-a a olhar para si.
- Gabrielle, quando um homem se comporta como uma besta, a vergonha é dele e não da mulher.
Gabrielle só estava capaz de olhar para ele com uma expressão de incredulidade. Desde sempre que os atos de violação eram considerados a ruína de uma mulher, a sua
vergonha. O seu valor diminui, passa a ser uma mercadoria estragada. Apesar disso, Remy continuava a olhar para ela com tanta ternura, com tanta compreensão, tanto...
tanto amor, que Gabrielle achava quase intolerável. Afastou-se dele.
- Se ao menos soubésseis - disse ela com a voz embargada. - Nunca haveis visto o que sou realmente. Estais a tentar fazer de mim uma espécie de anjo a quem fizeram
mal. O que aconteceu no palheiro nessa noite foi por minha culpa.
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A garganta de Gabrielle apertou-se com tanta força que lhe doeu. Só momentos depois é que foi capaz de continuar.
- Eu acreditava estar apaixonada por Danton. Quando ele me levou para o palheiro, nem sequer tentei resistir-lhe. Nunca tinha sido beijada por um homem e estava
ansiosa por ter essa experiência. Quando ele me tomou nos braços, foi excitante ao... ao princípio.
"Eu nunca tinha sentido um ardor tão estranho. Nem sequer protestei até ele... até ele querer mais do que beijar-me. - Gabrielle baixou a cabeça, sentindo as bochechas
a arder. - Tentei soltar-me dos braços dele, mas ele tornou-se mais bruto e mais agressivo. Comecei a ficar assustada e implorei-lhe que parasse, mas era tarde de
mais. Eu tinha-o provocado ao ponto de ele não conseguir parar. Ele... ele... magoou-me. - Gabrielle respirou fundo.
- Fui tola ao pensar que ele me amava, que quereria casar comigo. Mas depois de ele ter feito o que queria de mim, disse-me que eu só servia para ser uma prostituta.
- O grande canalha! - disse Remy numa voz rosnada. - Devíeis ter permitido que eu o matasse.
Gabrielle abanou a cabeça, mostrando uma expressão de tristeza.
- Por muito que eu odiasse Danton pelo que ele me fez, odiava-me ainda mais. Porque compreendi que ele tinha razão.
- Oh, Gabrielle - gemeu Remy. Antes que ela pudesse resistir-lhe, enlaçou-a nos seus braços, aninhando a cabeça dela por baixo do seu queixo.
- É claro que era forçoso que ficásseis excitada com o vosso primeiro beijo. Éreis uma jovem apaixonada, mas continuáveis a ser uma donzela. Qualquer homem com um
mínimo de decência teria sido o primeiro a pôr fim ao interlúdio amoroso. Mas, em vez de respeitar a vossa inocência, Danton aproveitou-se disso para satisfazer
a sua própria luxúria egoísta.
- É possível que isso seja verdade - retorquiu ela com tristeza. - Mas fui eu quem optou por continuar a trilhar a senda que ele me vaticinou, transformar-me naquilo
que ele me acusou de ser.
- Porque ele vos tinha roubado todo o amor-próprio que tínheis.
- Ele disse-me que não foi capaz de se conter. Que eu o tinha enfeitiçado. A imprecação de Remy mostrou exatamente o que ele pensava daquela
convicção.
- Minha querida, há muitos anos que me enfeitiçastes. Nenhum homem poderia sentir-se mais excitado do que eu me senti naquela tarde na minha alcova. Mas quando me
pedistes que parasse, consegui fazê-lo.
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- Mas vós sois extraordinário. Nunca, em toda a minha vida, conheci um homem tão honrado, tão cavalheiresco e tão delicado.
- Sim, sim. - A amargura no riso de Remy surpreendeu Gabrielle. Recuou, perturbada ao ver os olhos dele tão cheios de escárnio por si próprio e tristeza.
"Afirmais que nunca vos vi como sois realmente. Posso dizer o mesmo a vosso respeito. Haveis formado esta imagem absolutamente impossível de mim. O grande herói.
O Flagelo. - Remy pronunciou a alcunha com uma profunda aversão. - O que é que pensastes de mim hoje quando eu me preparava para cortar a cabeça de Danton?
- Bem, eu... - Gabrielle gaguejou, perturbada ao recordar-se da expressão tão assustadora no rosto de Remy. - Estáveis a defender a minha honra. Estáveis encolerizado...
- Estava mais do que encolerizado. Existe em mim uma faceta sombria que é como veneno que irrompe pelo meu sangue. Não foi a primeira vez que tive essa sensação.
É o que acontece sempre que me encontro no campo de batalha. Quando olho pela primeira vez para o outro lado do campo de batalha e vejo um mar de rostos corajosos,
muitos deles meros rapazes que ainda nem sequer têm barba, pensar na chacina e perda de vida que não voltará a ter lugar revolta-me.
"Mas assim que o combate tem início sou uma besta como os outros. Sedento de sangue, possuído da ânsia sinistra de destruir o meu inimigo. E sou muito eficaz a matar,
Gabrielle. Na verdade, demasiado eficaz. Porque pensais que tenho pesadelos tão atrozes?
- Por causa da... da véspera do dia de São Bartolomeu. Todos os amigos que perdestes...
- É verdade que esses rostos me atormentam, as pessoas que não fui capaz de salvar. Mas também existem outros fantasmas, as imagens espectrais dos homens que chacinei,
as vidas que ceifei com a lâmina da minha espada.
Remy afastou-se abruptamente dela, agarrando-se ao lavatório.
- Contastes-me o vosso segredo mais sombrio. Agora vou contar-vos o meu. Perguntastes-me quem era o homem que aparecia nos meus pesadelos, o demónio cuja face está
escondida por detrás da viseira. Se eu tiver sorte, acordo antes de ter de o ver. Mas nas noites em que não sou tão afortunado, levanto a viseira e vejo que esse
demónio hediondo sou eu. É a brutalidade da minha própria cara que eu vejo, as minhas mãos e a minha espada cheias de sangue. A minha alma está muito mais maculada
do que
a vossa.
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Remy remeteu-se ao silêncio. Gabrielle apercebeu-se de que aquela confissão tinha sido tão difícil para ele como a sua a respeito de Danton. Ansiava por envolvê-lo
nos seus braços para o reconfortar, mas os despojos do passado contiveram-na, medos antigos que a atormentavam havia tanto tempo.
Os riscos inerentes à entrega do amor e do desejo eram inúmeros, tornando uma pessoa suscetível à dor, à desilusão e a ficar com o coração dilacerado. Era muito
mais fácil não sentir nada, depositar a nossa fé na profecia de um astrólogo há muito morto. Permitir que fossem as estrelas a ditar o nosso destino e deixariam
de existir decisões difíceis de tomar, nada de erros a serem cometidos. Gabrielle olhou pela janela da alcova para a Lua que estava quase cheia, circundada por uma
miríade daqueles pequenos e misteriosos satélites. Uma vez mais, as palavras da mãe ocorreram-lhe ao pensamento.
"O teu destino não está escrito numa qualquer estrela distante, filha do meu coração, reside inteiramente nas tuas próprias escolhas de vida."
Olhando para trás, para as escolhas que fizera nos últimos anos, eram muito poucas as que Gabrielle considerava sem arrependimentos. Tinha consciência da presença
de Remy, que a olhava com ansiedade, como se tentasse adivinhar os seus pensamentos. Quando se virou para ele, viu que lhe sorria com uma expressão de desalento.
- Talvez estejais certo e não haja esperança para nada. Talvez os demónios de cada um de nós sejam demasiado poderosos para poderem ser conquistados.
"Mas, Sir Nicolas, sempre fostes muito competente a lutar contra dragões. - Embora o seu coração batesse desenfreadamente, chamou a si toda a sua coragem para se
abeirar dele. - Ambos somos pessoas com falhas, marcados pelas nossas mágoas do passado. Mas talvez seja possível... lavarmos a alma um do outro.
Pegando numa toalha limpa, Gabrielle mergulhou-a na água e depois torceu-a. Os seus dedos tremiam quando se virou para Remy e começou a passar-lhe a toalha pelo
corpo, começando nos ombros e depois passando ao peito largo. Remy fremiu ao sentir as mãos dela, a respiração a acelerar-se. Mas conseguiu manter-se quieto, como
se ela fosse uma criatura selvagem, pelo que o mais ligeiro movimento seria quanto bastava para ela fugir assustada.
O que poderia muito bem acontecer. Naquele momento, não havia nela nada da ousada cortesã. Parecia tão tímida como uma noiva na noite de núpcias.
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Afastando o medalhão para o lado, ela passou a toalha cariciosamente pelos pelos louros, passando a toalha com mais suavidade quando deparava com uma cicatriz, como
se aquelas marcas cruéis ainda pudessem causar-lhe dores.
Era com tristeza que olhava para elas, aquelas recordações tão penosas de tudo o que ele sofrera. Nicolas Remy era um soldado valoroso que combatera como fora treinado
para fazer e batia-se com competência. Era possível que outros homens fossem capazes de deixar os horrores da guerra para trás, mas Remy carregava essas recordações
na lassitude que os seus olhos espelhavam e nos seus sonhos. Era demasiado sensível, aquele homem que tão erradamente fora apelidado de Flagelo. Gabrielle demorava-se
nas cicatrizes mais feias, como a que se encontrava abaixo do ombro dele. Limpou-a com a toalha e depois curvou-se para encostar os lábios à pele húmida.
Remy soltou um som sibilado entredentes, agarrando-a pelos ombros para a afastar suavemente.
- Ah, por favor. Não façais isso, Gabrielle. Os meus ferimentos são demasiado feios para essa ternura.
- As minhas cicatrizes são tão desagradáveis como as vossas, com a diferença de não serem tão visíveis - contrapôs ela. - E apesar disso não mostrais repulsa.
- Amo-vos. Como é que eu poderia... Gabrielle silenciou-o com um beijo.
- Nesse caso, deveis permitir que eu também vos ame. De corpo e alma, da cabeça aos pés.
Lentamente, ela recomeçou a beijar-lhe as cicatrizes, uma a uma, a sua boca a demorar-se como se pudesse eliminar todas as recordações dolorosas que ele tinha na
memória, transferindo-as para si própria. Como desejava poder fazer isso. Tinha os olhos turvados, o sal das suas lágrimas a misturar-se com o travo do sabor da
pele de Remy. A cada beijo, o peito dele soerguia-se rápida e sucessivamente. Afagava o cabelo dela, inclinando-se para depositar-lhe um beijo no cimo da cabeça.
Começou a tirar-lhe os ganchos do cabelo até o cabelo lhe cair solto em volta dos ombros. Os dedos dele passaram às fitas do vestido, com mãos que não eram mais
firmes do que as dela.
Sem saber bem como, conseguiu desapertar as várias peças de roupa, baixando-lhe o vestido pelos ombros, desnudando-a até à cintura. Tirou-lhe a toalha da mão e voltou
a molhá-la. Começou a lavá-la, começando pela face, limpando-lhe as lágrimas, e depois desceu pelo pescoço de uma maneira
tão sensual que toda ela ficou a tremer. Continuou para baixo até ao vale entre os seios dela, com a toalha a descrever círculos lentos em volta de cada seio.
Os círculos eram cada vez mais pequenos, mais apertados, até que Gabrielle sentiu o corpo a reagir às carícias, os mamilos a endurecerem ao ligeiro roçar da toalha.
Do pano escorreu um pouco de água que Remy se apressou a apanhar com os lábios. A sua boca e língua acariciavam a pele nua, deslocando-se até um dos seios de linhas
arredondadas. A boca dele fechou-se num mamilo, lavando-o com o calor da sua língua. Gabrielle ficou arquejante, agarrando-se aos ombros largos e robustos. Como
alguém que tivesse andado perdida durante muito tempo numa paisagem frígida de inverno, Gabrielle sentia-se como se a carne entorpecida formigasse dolorosamente
enquanto a circulação se reativava.
Suspirou, metendo os dedos por entre o cabelo de Remy, enquanto ele lhe chupava o seio. Os dedos dela começaram a percorrer-lhe as costas com uma premência crescente.
A toalha caiu das mãos de Remy. Endireitou-se para a abraçar, os seios tão sensíveis a comprimirem-se contra a parede dura que era o peito dele. O medalhão de Cassandra
ficou entre os dois, a frialdade do metal a causar um arrepio a Gabrielle que lhe percorreu todo o corpo.
Remy puxou o fio pela cabeça, tirando o amuleto do pescoço antes de voltar a puxá-la de novo para si, pele contra pele, pulsação do coração contra pulsação do coração.
A boca dele apoderou-se da dela num beijo que tinha tanto de ardor como de ternura, a língua dele a aliciar a dela com movimentos repetidos num ardente acasalamento.
Gabrielle agarrava-se a ele, beijando-o com a mesma intensidade. Sem que ela soubesse como, Remy acabou por lhe despir o resto da roupa.
Ficou toda nua e vulnerável nos braços que a abraçavam. Os lábios dele a provocarem os dela, os dedos de Remy passando pelas costas de Gabrielle, as mãos grandes
e calosas a agarrarem-lhe as nádegas. Aninhou-a toda em si. Apesar da barreira que os calções pelo meio das coxas constituíam, ele não lhe deixou qualquer dúvida
quanto à dimensão da sua excitação sexual, o ardor com que desejava possuí-la. Se bem que se esforçasse por o abafar, ela sentiu o familiar tremor de pânico.
Era nesta altura que ela batia sempre em retirada, a sua mente a desprender-se indo para um lugar seguro e distanciado. Mas ficou presa por Remy, pelos seus beijos,
as carícias das suas mãos, os olhos que a fitavam com adoração, tudo a envolvê-la numa teia suave e inquebrável que não lhe permitia
que escapasse.
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Gabrielle afastou os lábios dos dele e virou-se a tremer, afastando-se dele. Pelo menos, podia extinguir as chamas das velas, o que lhe permitia, até certo ponto,
sentir-se segura na escuridão. Pegou no apagador de velas e foi extinguir o pavio das que ardiam na prateleira da lareira.
Remy apressou-se a segui-la, a mão a fechar-se na dela.
- Não, Gabrielle, não façais isso. Há muito tempo que espero por este momento. Preciso de vos ver.
Ainda que relutantemente, ela cedeu, pousando o apagador. De frente outra vez para Remy, expor-se a ele da cabeça aos pés foi uma das piores coisas que teve de fazer.
Instintivamente, ergueu os braços para cobrir os seios, mas Remy segurou-lhe as mãos, afastando-lhe as mãos do corpo suavemente enquanto os seus olhos a percorriam.
Nunca os olhos de nenhum homem combinaram tanta ternura com desejo.
- Sois maravilhosa - disse ele numa voz enrouquecida.
Fora-lhe dito tantas vezes que era encantadora. Tinha plena consciência das perfeições do seu corpo de uma maneira distanciada, catalogando-as como um soldado faria
um inventário das suas armas. Mas até àquele momento, nunca se sentira verdadeiramente bela, não até Remy a ter adorado com os seus olhos. Enrubesceu, tremeu e,
subitamente, foi consumida pela necessidade de também o ver dos pés à cabeça.
Os dedos movimentavam-se atabalhoadamente, como se fossem de madeira, enquanto ela se esforçava por desapertar os calções tufados. com a ajuda dele, Gabrielle conseguiu
despi-lo. O seu olhar demorava-se timidamente no corpo dele, nos contornos robustos do peito, na cintura estreita, nos quadris esguios, nos músculos duros das coxas.
Olhou de relance para a ereção, incapaz de conter um pequeno tremor.
Remy devia ter reparado na reação dela. Emoldurou-lhe o rosto com as mãos, roçando-lhe os lábios num beijo.
- Vai correr bem, Gabrielle. Eu jamais vos magoaria.
- Eu... eu sei isso - retorquiu ela, mas, não obstante, tremia. A apreensão que sentia não tinha a mínima razão de ser, mas, apesar de reconhecer isso, continuava
a subsistir. O legado de Danton.
- Vamos fazer isto muito lentamente. Podeis parar-me sempre que quiserdes - prometeu Remy, voltando a beijá-la. Levou-a para o leito com tanta ternura como qualquer
noivo teria tratado a sua noiva virgem. Atirando as cobertas para trás, Remy estendeu-se nos lençóis, pegando-lhe para que ela se deitasse ao seu lado.
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Ficaram deitados lado a lado, a fronte dela aninhada no ombro dele, enquanto Remy lhe beijava o cabelo. Sempre fora um homem de poucas palavras. Não era o género
de amante que murmurasse bonitas frases de ternura. Era a intensidade dos seus olhos que falava, o calor do seu toque, o ardor dos seus beijos.
Inclinou o rosto de Gabrielle de frente para si, beijando-lhe a fronte, as pálpebras, a ponta do nariz, a boca a deter-se na dela num beijo que foi longo, intenso
e lento. A despeito da pulsação nervosa, Gabrielle não podia fazer outra coisa que não fosse reagir, entreabrindo os lábios para as ousadas investidas da língua
dele, o calor a espalhar-se pelas suas veias.
Paciência... ele era tão paciente. Ela só podia maravilhar-se perante a contenção quando a sua própria necessidade era tão evidente. Sentia a ereção dura dele a
roçar-lhe pela coxa, uma sensação que tanto lhe despertava o desejo como a alarmava em partes iguais.
Beijando-a repetidamente, as mãos de Remy percorriam-lhe o corpo, acariciando-lhe os seios, provocando os mamilos até doerem, enviando espirais de calor pelo corpo
dela. Mas quando os dedos de Remy se concentraram no estômago plano de Gabrielle, aproximando-se a pouco e pouco do ninho de pelos encaracolados que ela tinha entre
as pernas, voltou a ficar tensa.
Fechou os joelhos com força, afastando a mão dele com suavidade. com os lábios colados aos dele, começou a acariciá-lo quase febrilmente. Tinha aprendido as maneiras
de dar prazer a um homem, como satisfazê-lo sem lhe render nada de si. Até era possível fazer com que um homem atingisse o clímax sem que ele chegasse a penetrá-la.
Quase desesperadamente, ela começou a pôr em prática essas artimanhas em Remy, roçando as pontas dos dedos pelo peito dele, fazendo o mesmo com a boca. A mão dela
fechou-se no pénis, provocando-o com as pontas dos dedos. Remy soltou um intenso arquejo, os seus dedos a apertarem-lhe o pulso.
- Não, Gabrielle. Não... não tão depressa. Não até eu vos ter dado prazer.
Ela virou-se e ficou de costas, pondo-se a olhar para o dossel do seu leito por não querer que ele se apercebesse da dúvida que a assolava, temendo que, por muito
que amasse Remy, jamais lhe seria possível sentir o prazer máximo através do toque de qualquer homem. Ele respirou fundo várias vezes, como se estivesse a fazer
um esforço para conter a sua própria excitação. Colocou-se por cima dela, firmando as palmas das mãos no colchão e renovando
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o terno assalto aos sentidos dela para lhe despertar a paixão. O corpo de Gabrielle ansiava por responder ao beijo dele, às suas carícias, desabrochar num desejo
incontrolável, mas os medos de antigamente apoderaram-se de si, impedindo-a de se entregar à paixão. A recordação sombria de Danton parecia ter-se entranhado debaixo
da sua pele.
A barba de Remy, que começava a crescer, abrasava-lhe a pele delicada do ventre enquanto ele a beijava, a boca a baixar perigosamente. A mão dele tentou apartar
as coxas dela. Gabrielle ficou com a respiração embargada na garganta. Apesar de toda a sua determinação, sentia que a sua mente se esforçava desesperadamente por
a abandonar, algo que nunca lhe acontecera
com os outros amantes.
Mas, com a respiração ardente na coxa dela, Remy, subitamente, ficou quieto. O leito rangeu quando mudou de posição. Pousando a mão ao longo da face de Gabrielle,
disse numa voz enrouquecida:
- Ah, Gabrielle, não. Por favor, parai de fingir.
- Eu... eu, peço desculpa - murmurou ela. - Nesta primeira vez, podeis possuir-me rapidamente e... e...
- Mas eu não tenciono possuir-vos. - Remy afastou-lhe o cabelo da fronte, o seu sorriso terno e misterioso ao mesmo tempo. - Sereis vós a possuir-me.
Antes que ela pudesse perguntar-lhe o que é que ele queria dizer com aquilo, ele estendeu-se de costas e puxou-a até a posicionar por cima de si, o corpo robusto
imobilizado debaixo dela. Os olhos de Gabrielle arregalaram-se quando compreendeu o que ele queria que fizesse. Como cortesã que era, devia ter estado habituada
a todas as maneiras de fazer amor. Todavia, nunca tinha tido um amante que não preferisse a posição dominante com a mulher por baixo submissamente.
- Remy. Eu nunca... Não tenho a certeza de ser capaz de vos satisfazer desta maneira... - confessou Gabrielle constrangida.
- Mas isto não diz respeito apenas ao meu prazer, mas também ao vosso. Não confiais em mim, Gabrielle?
- Confiar-vos-ia a minha vida.
- Nesse caso, confiai-me também o vosso coração - retorquiu Remy beijando-a, posicionando as pernas dela de modo a ficar escarranchada em cima do seu corpo robusto.
Ela sentia o calor que irradiava da carne dele, o que a excitava apesar de todos os seus medos.
As mãos dele percorreram-lhe os braços, os seios e a curva da cintura, como se fosse um escultor, moldando apaixonadamente cada centímetro do
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corpo de Gabrielle. Quando os dedos dele se meteram entre as suas pernas, acariciando-lhe a região mais íntima, ela contorceu-se de puro prazer, sentindo-se a ficar
húmida e quente. O desejo como uma maré de águas escuras que ameaçavam engoli-la. Remy afagou-lhe os cabelos caídos nos ombros, afastando-os do rosto, que precisava
de ver com clareza.
- Não deveis lutar contra o que estais a sentir, Gabrielle. Não há razão para receios. O vosso desejo está seguro comigo.
A respiração dela acelerou-se e intensificou-se, o corpo a tremer de carência, mas ele não fez qualquer movimento para a penetrar. Os seus dedos prosseguiam com
a sua suave exploração, aliciando-a e acariciando-a até que o desejo que ele lhe inspirava pesasse mais do que os seus medos.
- Remy, por favor - disse Gabrielle arfante. - Eu... eu quero-vos dentro de mim.
- Sendo assim, tendes de me guiar até lá - redarguiu ele numa voz enrouquecida.
Gabrielle mudou de posição até poder fechar os dedos no pénis endurecido. Posicionou-se, baixando-se até o corpo se ajustar em volta dele como uma bainha. Susteve
a respiração de súbito quando sentiu Remy dentro de si, maravilhada com a força do corpo dele, um homem tão seguro da sua própria força que se permitia ceder a ela
todo o controlo da situação.
Ele abriu as mãos nas nádegas dela, ajudando-a a embalar-se contra si, mas permitindo que fosse ela a imprimir o ritmo. À medida que o desejo dela se intensificava,
investia contra Remy com mais força e rapidez. Quando o cabelo lhe caiu para os olhos, atirou a cabeça para trás, querendo ver sem obstruções. Deliciada ao ver o
homem debaixo de si, os músculos duros a reluzirem com uma fina camada de suor, as feições austeras repletas de paixão. Sentiu-se puxada para a escuridão quente
e aveludada dos olhos dele, a respiração ofegante dos dois a fazer-se simultaneamente.
A tensão acumulou-se dentro de si até não poder suportá-la por mais tempo. Soltou um grito abafado quando o seu corpo fremiu numa explosão de prazer, mais forte,
ardente e doce do que alguma coisa que tivesse imaginado. Finalmente, a contenção que Remy exercera sobre si até então deixou de ser possível. Arqueou o corpo, soltando
um pequeno gemido, as mãos a agarrarem as ancas dela quando expeliu a sua semente, depositando-a bem fundo dentro dela.
A força da libertação deixou Gabrielle a tremer e sem forças. Inclinou-se para a frente, grata pelo apoio das mãos fortes de Remy presas nos seus braços,
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relutante em quebrar a união dos dois corpos. Os seus seios soerguiam-se ao ritmo da pulsação enquanto se regularizava num ritmo mais lento. Fechou os olhos por
breves momentos, suspirando lenta e profundamente.
Quando os abriu, viu que Remy a observava atentamente, os lábios a esboçarem aquele meio sorriso arrapazado de esguelha que ela sempre amara. A expressão era de
ternura, mas também continha um elemento de puro triunfo masculino. Sabia que lhe tinha proporcionado muito prazer, mas o facto de ele ter consciência disso não
a embaraçava. com um riso trémulo, atirou o cabelo para trás e retribuiu-lhe o sorriso. Saindo de cima dele, Gabrielle procurou as palavras que descrevessem o que
ele fizera com que sentisse. Não como uma conquista que se tivesse feito, um corpo para ser usado ou possuído, mas sim da maneira como uma Filha da Terra estava
predestinada a sentir. Forte e maravilhosa, alguém que dá vida e amor. Os seus lábios entreabriram-se impotentes quando tentou dar-lhe a saber tudo o que ele fizera
com que revivesse nela.
Mas, por fim, tudo o que conseguiu fazer foi deixar-se cair nos braços de Remy, murmurando-lhe:
- Obrigada.
As velas derreteram-se, uma a uma, restando apenas a chama da vela no castiçal de latão junto ao leito. A luz tremeluzia sobre Remy e Gabrielle aninhados um no outro,
banhando-os no seu clarão suave que parecia manter a escuridão ao longe. Remy estava deitado de costas, mal se mexendo por não querer perturbar o sono da mulher
que dormia ao seu lado. A exaustão acabara por vencer Gabrielle. Tinha a cabeça encostada ao ombro dele, o cabelo louro espalhado pelo peito de Remy. Sentia o peso
suave e quente dos seios dela, o ligeiro movimento da respiração de Gabrielle, a pele ainda húmida do acasalamento.
O corpo dele continuava com fome dela. Podia ter-se enterrado dentro dela vezes sem conta, mas era possível que isso fosse mais do que Gabrielle estava pronta a
aceitar. Ela chegara ao ponto de lhe agradecer pela maneira cheia de ternura como ele fizera amor. O que falava eloquentemente sobre a brutalidade que ela tinha
sofrido às mãos de Danton e o vazio da sua vida como cortesã, as cedências que tivera de fazer, as coisas que fora forçada a fazer para conseguir sobreviver. A batalha
da sobrevivência - algo que ele compreendia até bem de mais, porque ele próprio já tinha a sua quota-parte de cedências ao longo dos últimos anos em que vendera
o uso da sua espada a quem pagasse mais.
Roçou-lhe os cabelos com um beijo ao de leve. Agora era o futuro que o preocupava mais, um futuro que lhe parecia carregado com o perigo que os caçadores de bruxas
representavam, a maldade da Rainha das Trevas e talvez mesmo a cólera do seu próprio rei. Remy perguntava-se como é que o rei de Navarra reagiria ao saber que Remy
tencionava desposar Gabrielle, mas que não tinha a menor intenção de partilhar a sua mulher com outro homem, nem sequer com um rei. O monarca podia ser uma das pessoas
de trato
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mais fácil e afável que Remy conhecia, mas os reis eram conhecidos por não estarem habituados a que lhes contrariassem os seus desejos.
com certeza que não existiriam recompensas reais, nada de propriedades, nem títulos, no futuro de Remy. Nunca dera grande importância a tais coisas para si próprio,
mas Gabrielle tinha-se acostumado a trajes ricos, belas jóias e à elegância da sua casa na cidade. O seu orgulho sentia-se melindrado ao pensar que nunca seria capaz
de lhe proporcionar essa existência opulenta.
Até mesmo antes de ela ter vindo para Paris, sempre tivera uma vida muito confortável na mansão da família na ilha Encantada e depois no cháteau do cunhado. Remy
tinha grande dificuldade em imaginar aquela mulher maravilhosa a partilhar consigo um modesto chalé ou uma casa de quinta. Tão-pouco a suportar as privações de uma
existência no campo de batalha, a lama, o frio, as escassas rações, a acompanhá-lo numa qualquer campanha militar.
A verdade amarga era que ele não tinha mais a oferecer-lhe do que tinha tido antes, mas, levando em linha de conta os outros perigos que os ameaçavam, proporcionar
um lar a Gabrielle devia ser a mais pequena das suas preocupações. Chegando-a mais a si, apoiou o queixo em cima da cabeça dela, pensando em como era um cão mal-agradecido.
Devia, muito simplesmente, dar graças por aqueles momentos, sentindo-se feliz por ter conseguido o que há muito tempo desejara.
Gabrielle, ali, com ele, segura e confortável nos seus braços. Remy não queria render-se ao sono, receando que ao acordar constatasse que tudo aquilo não passara
de um sonho. Mas malgrado todos os seus esforços, os acontecimentos do dia levaram-lhe a melhor. As pálpebras começaram a pesar-lhe e a cerrarem-se, mas os pensamentos
perturbadores davam origem a sonhos perturbadores. Não aquele que lhe era tão familiar, em que se via a cambalear pelas ruas envoltas em escuridão de Paris na véspera
do dia de São Bartolomeu, à procura da espada que perdera. Desta vez, calcorreava cheio de desespero os corredores do Louvre e era Gabrielle que não conseguia encontrar,
por muitas portas que abrisse.
A resmungar, virou-se e revirou-se até se obrigar a despertar. O seu primeiro impulso foi estender as mãos para Gabrielle, chegando-a mais a si. Mas constatou que
o lugar ao lado do seu estava vazio. com o coração a bater descompassadamente e num estado de pânico irracional, sentou-se a direito de repente.
- Gabrielle?
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- Estou aqui - respondeu-lhe ela.
Para seu grande alívio, viu a sua silhueta recortada contra a janela, o narÍz quase encostado ao vidro. Gabrielle já envergava um outro dos seus dispendiosos robes,
mas este envolvia-a como uma nuvem de seda azul, emprestando-lhe uma aparência suave e acessível.
Remy atirou as cobertas para o lado, passou as pernas pela beira da cama e vestiu os calções que tinham ficado caídos no chão.
- O que é que se passa? Alguma coisa de mal? - perguntou-lhe ansiosamente.
- Não, acordei e não consegui voltar a adormecer, mas não quis perturbar-te. Chega aqui e olha para ali. - Estendeu a mão e puxou-o em direção à janela. Remy semicerrou
os olhos para os habituar à escuridão lá fora. Viu um súbito clarão à distância que lhe recordou com mal-estar o clarão de munições disparadas à distância no campo
de batalha.
- Mas o que diabo é aquilo? - perguntou, sentindo uma vontade quase irreprimível de pegar na espada.
- Uma estrela-cadente? Talvez seja o que acontece quando se desafia o destino. As estrelas caem do céu.
Quando viu que ele ficava surpreendido ao ouvir as suas palavras tão estranhas, Gabrielle riu-se e apertou-lhe a mão.
- Eu só estava a brincar. É apenas um espetáculo de fogo de artifício que, sem dúvida, tem lugar nos jardins do palácio.
Inclinando-se mais para a janela, Remy constatou que ela tinha razão. Viu uma grande explosão de luz no firmamento noturno, aquela a desfazer-se numa cascata de
centelhas vermelhas e amarelas que tombavam, desaparecendo atrás dos telhados das casas nas proximidades.
- Que é que te parece que estejam a celebrar, a chegada dos caçadores de bruxas?
Gabrielle sorriu ao humor negro de Remy.
- É frequente que lancem fogo de artifício no Louvre. O mais certo é fazer parte da festa que se seguiu ao torneio.
Uma festa dispendiosa, na opinião de Remy, um desperdício fútil de pólvora, mas Gabrielle espalmou as mãos no vidro da janela, desfrutando do espetáculo. Remy não
pôde impedir-se de pensar que, se não fosse o seu regresso a Paris, Gabrielle teria estado naquela festa, radiante num dos seus vestidos mais bonitos, de braço dado
com o rei de Navarra a assistir ao fogo de artifício com ele. Se fosse possível a Henrique desposá-la, que magnífica
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rainha Gabrielle teria sido. Uma situação que se ajustava muito melhor a ela do que ser mulher de um soldado.
Aquele pensamento desmoralizou bastante o estado de espírito de Remy.
- Gabrielle, não.. não te arrependes do que se passou entre nós esta noite?
Ela olhou para ele, as sobrancelhas finas a arquearem-se numa expressão de surpresa.
- Não, claro que não, Remy. Como é que podes fazer uma pergunta dessas?
- Deve-se apenas ao facto de eu querer casar contigo...
- Espero que sim. Foste para a cama comigo. Seria absolutamente chocante se agora me repudiasses. - Enlaçou-lhe o pescoço, sorrindo-lhe ternamente, com uns lábios
que continuavam tentadoramente vermelhos e. cheios dos beijos que haviam partilhado antes.
Ele colocou as mãos na cintura dela.
- É precisamente isso que quis dizer. Quero casar-me efetivamente contigo, ser um marido para ti na verdadeira aceção da palavra.
- E tiveste um início excelente - retorquiu Gabrielle, encostando-se a ele sedutoramente, fazendo com que Remy se apercebesse de que só estava separado por um fino
tecido de seda das curvas voluptuosas dela. Quando ela roçou os lábios pelo queixo dele, o corpo de Remy endureceu, uma reação que era inevitável. Contudo, as dúvidas
que o assolavam eram demasiado preocupantes para poder pô-las de parte.
- Não sou nenhum rei, Gabrielle - disse depois de a ter colocado a uma distância segura. - Que diabo! Nem sequer sou um cavaleiro.
- Não quero um rei - replicou ela veemente, tentando voltar a pôr-se nos braços dele.
Mas a verdade é que ela tinha desejado um rei, o que acontecera apenas algumas horas antes. Gabrielle devia ter lido os pensamentos de Remy nos seus olhos porque
recuou, as mãos a afastarem-se dele.
- Está bem. Eu... eu admito isso. Tenho andado a pensar no rei de Navarra.
Remy fez uma careta de desagrado. Não era aquilo que quisera ouvir. Ela apressou-se a continuar.
- Mas tenho pensado nele pela única razão de me sentir um pouco culpada. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para o encantar, para que ele se apaixonasse por mim.
Por baixo da maneira de ser despreocupada dele, é um bom homem. Não quero magoá-lo de maneira nenhuma. ;(
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- Tão-pouco eu. - com algum mal-estar, Remy recordou-se de como semblante do rei de Navarra se tinha iluminado ao falar do amor que sentia por Gabrielle. É claro
que ele já vira o seu jovem rei apaixonado inúmeras vezes, pelo que deduzia que o soberano não tardaria a esquecê-la, encontrando consolo noutra mulher qualquer.
E todavia... se existia alguma mulher capaz de inspirar uma dedicação duradoura num homem, até mesmo um homem tão inconstante como o rei de Navarra, era Gabrielle.
Até mesmo ao levar em consideração essa possibilidade, Remy abanava a cabeça.
- O rei de Navarra não podia estar assim tão apaixonado por ti, porque, se estivesse, nunca teria sugerido uma situação tão indigna como casar-te comigo para poderes
ficar em segurança depois de ele se ter fartado de ti.
- Os reis têm padrões de conduta diferentes daqueles dos meros mortais como nós.
Remy espetou o queixo numa atitude obstinada.
- Um rei devia ter um código de nobreza ainda mais elevado do que os vassalos sobre os quais reina.
Gabrielle acariciou-lhe a bochecha, sorrindo-lhe ternamente.
- Pedes de mais às pessoas e mais ainda a ti próprio. Mas atrevo-me a dizer que é precisamente por esse motivo que te amo tanto.
As palavras dela fizeram com que Remy ficasse radiante, banindo algumas das preocupações e dúvidas que o atormentavam. Ela amava-o. Não achava que pudesse vir a
fartar-se de a ouvir dizer aquilo. Tomou-a nos seus braços e os lábios dos dois encontraram-se num beijo ardente e demorado.
Ficaram abraçados um ao outro durante muito tempo. Remy encostava a fronte à dela. Sentiu um pequeníssimo tremor que percorreu o corpo esguio dela.
- É quase assustador ser-se tão feliz - murmurou Gabrielle.
Os braços de Remy enlaçaram-na mais apertadamente, compreendendo exatamente o que ela queria dizer. Receava que a qualquer momento alguns deuses ciumentos encontrassem
maneira de lhe tirar Gabrielle. Ou talvez um
rei ciumento...
- Nem sequer quero pensar no que o dia de amanhã poderá trazer, mas suponho que é isso mesmo que teremos de fazer - disse ela, suspirando e levantando a cabeça para
poder olhar para ele. - O que é que vamos fazer, Remy?
- Bem, para começar, devo pôr em prática o meu plano de resgatar o rei de Navarra, porque...
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- Porque é o teu dever - acabou Gabrielle, fazendo uma careta de desagrado.
Remy começou a pedir-lhe desculpa, mas ela deteve-o com um abanar de cabeça.
- Não, não há necessidade de desculpas. Eu compreendo. E já estabeleceste um plano para conseguires desincumbir-te desse teu dever?
- Creio que sim, mas a minha primeira prioridade é tratar de arranjar um grupo de homens armados que possa escoltar-te e à Miri de regresso à ilha Encantada, colocando-vos
tão longe quanto for possível destes caçadores de bruxas.
- O que acho muito bem em relação à Miri. Mas eu não vou a lado nenhum.
- Gabrielle... - começou ele a dizer. Ela cobriu-lhe a boca com a mão.
- Não. E escusas de me fitar com um desses olhares austeros de comandante de tropas, Nicolas Remy, como se estivesses à espera que eu me pusesse em sentido. Não
existe maneira nenhuma de eu me pôr em fuga para a ilha Encantada, deixando-te aqui em perigo.
Remy beijou-lhe a palma da mão e depois afastou-a da sua boca.
- Correrei muito mais perigo se não puder concentrar-me na minha missão, sem ter de me preocupar com a tua segurança.
Gabrielle afastou-se dele, revirando os olhos.
- Deus nos valha, esse é um argumento tão caracteristicamente masculino. Nunca serás capaz de resgatar o rei de Navarra sem a minha ajuda. Ou já te esqueceste? Ele
só concordou em deixar Paris depois de pensar que poderia ter-me.
- Pois bem, ele não poderá ter-te e não há mais nada a dizer quanto a esse assunto - ripostou Remy.
Gabrielle afastou-se ainda mais, como se nem sequer tivesse ouvido o que ele disse. Uniu os dedos em pirâmide debaixo do queixo com uma expressão pensativa.
- Foi egoísta da minha parte tentar manter o rei de Navarra comigo em Paris. O que agora vejo. Talvez um dia ele ainda venha a ser rei de França, mas, por agora,
seria melhor para ele regressar ao seu próprio reino. Infelizmente, é possível que ele não veja o que é melhor para si, especialmente se se encolerizar contigo e
comigo por o termos atraiçoado.
- Atraiçoá-lo!? - replicou Remy exaltado.
- Vamos ter de fingir que eu continuo a querer vir a ser amante dele.
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- Não! De maneira nenhuma.
- Será apenas durante algum tempo. Depois de o termos posto a salvo fora de França e no outro lado da fronteira, então poderemos dizer-lhe...
- Que diabo, Gabrielle! Não estás a ouvir o que te digo? - atalhou Remy, agarrando-a pelo cotovelo para a virar de frente para si. - Eu disse que não. Estou mais
do que farto de todas estas falsidades e fingimentos. Não quero que voltes a aproximar-te do rei de Navarra.
- E porquê? De que é que tens medo? Que eu acabe por ir para a cama dele?
- Francamente, sim.
- Tenho conseguido manter-me longe do leito dele durante todo este tempo. Dar-se-á o caso de não teres fé nenhuma no meu amor por ti? Não confias em mim?
- É no meu rei que não confio - reconheceu Remy de má catadura.
- E também não confio em mim. Na minha capacidade em prender o teu coração.
- Oh, Remy. - Gabrielle aproximou-se dele com uma expressão de ternura. - O meu coração, tal como agora, pertence-te e pertencerá para sempre. Detesto tanto ter
de recorrer a este fingimento quanto tu, talvez até mesmo mais. Mas a Catarina já fez uma tentativa para te destruir. É manifesto que ela suspeita dos teus planos
de tirares o rei de Navarra do seu alcance. É possível que a chegada destes caçadores de bruxas lhe desvie as atenções durante algum tempo. Não me parece que ela
tenha estado à espera deles mais do que nós próprios. Mas o teu tempo está a esgotar-se. Não podes dar-te ao luxo de teres um desentendimento com o rei de Navarra
por minha causa. Se quiseres resgatar o teu rei realmente, esta é a única maneira.
Remy compreendia a linha de raciocínio dela, embora não lhe agradasse. Mas conseguia resistir tão firmemente aos argumentos dela como ao beijo que ela lhe deu nos
lábios.
- Muito bem - cedeu com um suspiro de azedume. - Mas assim que conseguirmos levar o rei de Navarra para fora de Paris, tens de me prometer uma coisa. Que isto será
o fim de todos os fingimentos e intrigas. A relação entre nós passará a pontuar-se pela sinceridade e franqueza, em especial entre nós dois.
- Se também me prometeres uma coisa. Diz que nunca mais me assustarás como fizeste hoje. Morri de mil mortes quando te vi a arriscares a vida na liça do torneio.
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- Eu sou um soldado, Gabrielle. Não posso prometer-te que nunca mais lutarei. Particularmente quando tenho de resgatar um rei e existe uma nova ameaça dos caçadores
de bruxas.
- Pelo menos, promete-me que não porás a tua vida em perigo por uma qualquer causa idiota como fizeste hoje quando te bateste com o Danton.
Remy ficou tenso à menção do nome do homem.
- Não considerei que isso fosse uma tolice. De facto, quem me dera ter podido acabar com o canalha.
Ela agarrou-lhe a face, obrigando-o a olhar para si.
- Mas não estás a ver, Remy? Tu acabaste com ele. A morte dele não me teria libertado do seu poder. O que fizemos aqui esta noite, a maneira cheia de ternura como
fizeste amor comigo, foi o que o derrotou.
Se aquilo fosse verdade, Remy não caberia em si de contente, embora a cólera que Danton lhe inspirava só tivesse abrandado muito ligeiramente.
- Este não é o género de conquista a que estou acostumado. Por conseguinte, e por outras palavras, estás a dizer-me que esta tarde desferi a espécie errada de espada.
- Nicolas Remy!
O arquejo de indignação dela fez com que ele se risse, ainda que a contragosto. Quando ela lhe espetou um dedo no ombro por brincadeira, ele retaliou fazendo-lhe
cócegas. Gabrielle respondeu-lhe na mesma moeda. Danton ficou tão esquecido como se não existisse quando Remy se deixou cair na cama, puxando Gabrielle consigo.
Ambos começaram a lutar entre os lençóis numa espécie de luta corpo a corpo até que os dois ficaram sem fôlego de tanto rirem. Remy pôs-se em cima dela, firmando
as mãos no leito para não a esmagar com o peso do corpo, sentindo o coração tão leve como havia muito tempo não sentia. O cabelo louro dela espalhou-se no lençol,
as faces coradas por se ter rido tanto, mas com os olhos a brilharem com uma suavidade muito rara nela.
- É tão bom ouvir-te rir, Remy. Carregas demasiado peso do mundo nos ombros. Quando ris, pareces vários anos mais novo.
- Isso quer dizer que fiquei feito um velho?
Gabrielle meteu os dedos pelo cabelo nas têmporas dele, olhando-o com uma expressão endiabrada.
- Está-me a parecer que estou a ver uns cabelos brancos, monsieur.
- Se eu tiver cabelos brancos, será por vossa causa, milady - retorquiu Remy sorrindo-lhe. - Não haja dúvida de que és a pessoa mais indicada para me dizer que sou
temerário e que corro riscos. Ainda que eu viva cem anos,
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jamais esquecerei o dia em que me roubaste a espada para lutares contra os caçadores de bruxas. Aviso-te desde já que quando fores minha mulher não tolerarei...
Remy foi interrompido por uma exclamação de Gabrielle.
- Oh, meu Deus! Quase me esquecia. - Empurrando-o pelo peito, contorceu-se para sair de debaixo dele, dando um pontapé às cobertas para poder levantar-se do leito.
Remy envolveu-lhe a cintura com os braços para a impedir.
- O que quer que tenhas esquecido não pode esperar até amanhã de manhã?
- Não, tenho uma coisa que quero oferecer-te.
Ele começou a assegurar-lhe que só havia uma coisa que desejava, mas quando ela continuou a tentar libertar-se dos seus braços, soltou-a, embora com relutância.
Gabrielle atirou a cascata de cabelo louro para trás e foi para o fundo da cama. Inclinou-se para baixo e abriu um baú que estava aos pés da cama. Começou a remexer
no que estava lá dentro, afastando para o lado roupa interior, anáguas e outras peças de vestuário.
- Mas do que diabo é que estás à procura? - perguntou-lhe Remy, a curiosidade espicaçada.
- Já vais ver. - Tirou um objeto comprido embrulhado num pano de veludo que estava no fundo do baú. Colocou-se à beira do leito, retirou o pano de veludo e mostrou-lhe
uma espada. Remy ficou com a respiração embargada na garganta, mas mais por causa de Gabrielle do que pela espada. A luz da chama da vela realçava o dourado dos
cabelos dela e fazia com que a pele muito branca parecesse luminescente, enquanto lhe emprestava um fulgor de pedras preciosas aos olhos.
com o punho da espada nas suas mãos, a lâmina apontada para baixo, Gabrielle parecia uma figura lendária, a feiticeira que se erguera das profundezas místicas do
lago para apresentar a espada ao rei Artur. com a diferença de aquilo não ser nenhuma Excalibur que ela lhe oferecia, o punho daquela espada era tão simples, sem
qualquer adorno, como a extensão do aço nu. Era a sua antiga espada, aquela que ele acreditara ter perdido durante o massacre na véspera do dia de São Bartolomeu,
o objeto de uma procura desesperada em tantos dos seus pesadelos desde então.
Gabrielle pousou a pesada espada atravessada no seu braço, apresentando-lhe o punho. Remy hesitou em pegar-lhe, receando que estivesse demasiado repleta de más recordações
da última vez em que a empunhara, na noite
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do massacre. Mas quando os seus dedos começaram a fechar-se no punho desgastado da espada que lhe era tão familiar, desde a mais pequena mossa no copos da espada,
sentiu-se possuído por uma recordação muito diferente, do dia em que adquirira aquela espada.
Não podia ter tido muito mais de dez anos. Embora Remy tivesse sido bastante alto para a sua idade, o pai agigantara-se acima dele. Tinha dificuldade em chamar à
memória uma imagem nítida das feições austeras e barba grisalha de Jean Remy. Mas lembrava-se muito bem das mãos do pai, grandes e cheias de calos, como couro, os
nós dos dedos ligeiramente enodados devido às muitas vezes em que se tinham partido.
"Pensas que tens força suficiente para empunhares uma espada como esta, meu rapaz?"
"Oh, sim, senhor, meu pai", replicara Remy, apesar de sentir o esforço nos músculos do ombro quando levantou a espada.
"Cuida bem dela. Trata essa espada com respeito, aprende a usá-la bem e servir-te-á bem. com a graça de Deus que mantenha sempre os teus inimigos a uma distância
segura para ti." Os lábios de Jean Remy fizeram um trejeito num dos seus raros sorrisos quando despenteou a cabeça da filha.
O pai havia sido um homem soturno e de poucas palavras, não era o género de homem que proferisse palavras de elogio e de afeto à toa. Mas no dia em que o pai lhe
deu aquela espada, Remy tinha sentido toda a força do amor do pai e do orgulho no filho único.
- A minha antiga espada. Guardaste-a durante todo este tempo? - perguntou Remy admirado. Mudou de posição no leito, aproximando a espada mais perto da chama da vela
para poder examiná-la melhor. Era evidente que Gabrielle cuidara da espada, mantendo a lâmina bem afiada e polida.
- O que é que pensaste que eu faria com a tua espada? - perguntou, instalando-a ao lado dele no leito. - Que a atirasse ao Sena?
- Levando em linha de conta a maneira como te tratei quando regressei a Paris, depois de todas as coisas duras que te disse, não poderia censurar-te.
- Eu própria também disse muitas coisas desagradáveis de que agora me arrependo. - Gabrielle pousou a mão em cima da dele que estava sobre o punho da espada. - Durante
muito tempo, esta espada era tudo o que me restava de ti, Remy. Sem dúvida que te rirás quando te disser que me senti como se a tua força e coragem estivessem imbuídas
nesta espada com uma espécie de magia. Quando sentia solidão e medo, pôr a tua espada à cintura fazia com que me sentisse protegida e em segurança.
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Remy não tinha a mínima vontade de se rir. Baixou a espada, colocando-a no chão ao seu lado, e voltou a abraçar Gabrielle.
- Quem me dera possuir esse género de magia, para poder manter-te em segurança - disse numa voz enrouquecida. - Mas a véspera do dia de São Bartolomeu mostrou-me
a futilidade de prometer proteger alguém para sempre.
- Ninguém pode fazer um juramento desses. Será mais do que suficiente se prometeres amar-me.
- Isso posso jurar. Agora e até morrer. - Remy selou a jura com um beijo.
Os lábios de Gabrielle entreabriram-se sob os dele, a ternura a dar lugar a algo mais urgente e necessário. Remy desabotoou os botões do robe, abrindo-o. As mãos
dele meteram-se por dentro do tecido apartado, explorando as curvas tentadoras, a pele macia e cálida que se lhe apresentava desnudada. Quando a beijou avidamente,
deleitou-se com o som dos suspiros dela, os pequenos gemidos de prazer. Gabrielle mexia atrapalhadamente na dobra dos calções e ambos puxavam e baixavam as peças
de roupa até ficarem, uma vez mais, todos nus e nos braços um do outro.
Remy tentou ser tão delicado e paciente quanto antes, mas Gabrielle não lhe permitiu. Colocou os braços em volta do pescoço dele, puxando-o para cima de si, beijando-o
e acariciando-o. Remy estava jubilante ao vê-la cada vez mais ousada, desejando-o tão ardentemente como ele a desejava. Ela abriu-se para ele, convidando-o a entrar,
com um sorriso mormacento e olhos velados de desejo, a mulher tão apaixonada e desassombrada que a natureza sempre ditara que ela fosse. Perdendo-se no amor dela,
Remy deixou que Gabrielle o transportasse para um lugar onde nada mais importava. Não as mágoas do passado, nem os perigos que amanhã traria.
A chama da vela junto da cama extinguiu-se, deixando-os numa escuridão que só era quebrada de vez em quando pelos clarões do fogo de artifício que se viam através
da janela, iluminando o firmamento noturno.
O último foguete sibilou quando lançado em direção ao céu, explodindo numa miríade de centelhas que suscitou aplausos e admiração da parte dos cortesãos sentados
às mesas do banquete colocadas por baixo das árvores. Muitos dos que participaram no torneio já mostravam a bonomia que se devia ao vinho que era servido. Ouviam-se
sonoras gargalhadas, a que se associavam sons de deleite perante o espetáculo de fogo de artifício.
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Como que tragada pela escuridão nos seus aposentos, Catarina mantinha-se perto das janelas a observar carrancuda o que se passava à distância. As chamas dos archotes,
o grito ocasional de vozes roufenhas, traziam-lhe à memória uma recordação desagradável. Da noite em que tinha pouco mais de doze anos, uma herdeira órfã, a jovem
duquesa de Florença, uma cidade em rebelião contra os seus governantes, os Médicis. A turba tinha cercado o convento onde ela se refugiara, gritando junto dos portões.
"Entregai-nos a rapariga. Dai-nos a jovem bruxa. Não queremos mais governantes Médicis. Vamos enforcá-la nas muralhas da cidade."
"Não! Entregai-a primeiro aos soldados para eles poderem divertir-se e depois trataremos de a executar."
Até mesmo depois de decorridos tantos anos, Catarina estremecia ao lembrar-se daquelas ameaças tão obscenas, o ódio incontrolável de que ela fora alvo. Por um milagre
qualquer, tinha sobrevivido incólume e a rebelião acabou por ser derrotada. Mas essa noite ensinara-lhe que nem sequer os nascidos em berços de ouro, ou com títulos
nobiliárquicos, e nem sequer as paredes sagradas de um convento podiam garantir proteção. Uma pessoa tinha de depender apenas do seu engenho e magia negra.
Mas o seu engenho parecia inesperadamente embotado naquela noite. A sua mente continuava atordoada, tendo dificuldade em interiorizar que o filho, aquele a quem
sempre dedicara mais afeto do que aos outros, se tinha virado contra ela, orquestrando o que era equivalente a uma rebelião. Henrique tinha tido a impudência de
lhe sorrir depois do burburinho inicial que a chegada dos caçadores de bruxas causara.
"Não achais que foi uma surpresa excelente, minha mãe? Não vos sentis orgulhosa de mim por ter tomado esta iniciativa? Lê Baafre e os seus homens certamente que
farão com que todas as bruxas, por muito poderosas que possam ser, pensem duas vezes antes de se imiscuírem nos assuntos do meu reino."
Catarina sentira-se demasiado encolerizada e alarmada para lhe dar a resposta exacerbada que ele merecia. Em vez disso, fez-lhe uma rígida vénia e retirou-se para
o interior do palácio. Dispensando as suas damas de honor, deixou-se ficar às escuras nos seus aposentos, como um coelho assustado que se tivesse escondido na sua
toca, pensou numa atitude autodepreciativa.
E porquê? Por causa da chegada daquele Lê Balafre. Ela reconhecera-o quase de imediato. Aquele aterrador Monsieur Cara de Cicatriz era, nem mais, nem menos, o jovem
que tinha servido o grão-mestre dos caçadores de bruxas, Vachel Lê Vis. Chamava-se Simon qualquer coisa. Nessa altura, parecera
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ser apenas um rapaz como tantos outros. Mas até mesmo então Catarina tinha visto qualquer coisa nos olhos do jovem que lhe causou um certo mal-estar. Lê Vis fora
um louco e um idiota que ela tinha conseguido convencer a servir os seus próprios interesses, sem nunca se ter apercebido de que servia uma bruxa muito mais perigosa
do que aquelas que ela lhe ordenara que perseguisse. Por outro lado, Simon havia olhado fixamente para a Rainha das Trevas, como se conseguisse ver através dela,
reconhecendo o que ela era. O rapaz parecia possuir uma intuição que ia muito para além da sua idade.
Depois de Lê Vis ter deixado de lhe ser útil, Catarina dispusera dele. Devia ter feito o mesmo com o rapaz, mas permitira que ele saísse em liberdade, um erro pelo
qual agora poderia vir a pagar bem caro... talvez mesmo com a sua própria vida.
- Para de pensar como uma grande idiota - ralhou a si própria bastante descontente. Resumindo e concluindo, aquele Lê Balafre continuava a não ser mais do que um
rapaz insignificante como o seu próprio filho.
Esmagá-lo-ia com a maior das facilidades. Catarina estalou os dedos com uma expressão escarninha. Mas Simon não era tolo como o seu antigo mestre havia sido. Recusara
a oferta de Henrique para que se aquartelasse com o seu grupo de caçadores de bruxas no palácio. Ela já tomara conhecimento de que Lê Balafre se tinha apoderado
de uma estalagem que transformara numa pequena fortaleza. O que tornava mais difícil chegar-lhe, contudo, tal não seria impossível.
Tudo o que precisava de fazer era esperar e ser paciente, muito embora não estivesse certa de se poder dar a esse luxo. Tentou convencer-se a si própria de que Henrique
estava a servir-se daqueles caçadores de bruxas para lhe atirar poeira para os olhos, numa tentativa para a intimidar com o objetivo de a forçar a abdicar da posição
de poder por detrás do trono.
O filho não se atreveria a permitir que aquelas criaturas acusassem a sua própria mãe de bruxaria, pois não? Mas, ainda que isso acontecesse, que provas contra si
é que poderiam existir? Exceto o assunto das luvas envenenadas, Catarina sempre fora extremamente cautelosa. Nunca partilhara com ninguém os segredos da sua magia,
nem sequer com as suas próprias filhas e tão-pouco com outras mulheres sábias.
Eram muito poucas as pessoas que tinham conhecimento da câmara secreta atrás da capela, onde ela guardava os seus segredos mais sinistros. Sentiu urgência em tirar
tudo dessa câmara, destruir todas as suas poções e pergaminhos antigos, mas conteve-se, recusando-se a ceder ao pânico. Já não
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era uma garota aterrorizada de doze anos, lembrou a si mesma veementemente. Era a rainha viúva de França. Todavia, não pôde impedir-se de se recordar que esse augusto
título não bastara para salvar outra rainha ainda não havia assim tanto tempo.
A rainha inglesa, Ana Bolena, fora levada a julgamento pelo marido, Henrique VIII. Entre as acusações de adultério e traição, também se incluía uma de prática de
bruxaria. E Ana Bolena, apesar de ter sido a rainha de Inglaterra, tinha ficado sem a cabeça.
Involuntariamente, levou a mão à garganta e tremeu, entregando-se momentaneamente ao seu medo secreto. A morte...
- Majestade?
A voz sobressaltou-a, sentindo que o coração lhe caía aos pés. Catarina deu meia-volta subitamente para confrontar o homem que se atrevera a ir à sua presença sem
ter sido anunciado. Pelas janelas entrava luz do luar suficiente para poder ver a figura esquelética de Bartolomy Verducci.
- Verducci! - Catarina agarrou o crucifixo suspenso por cima do peito. O susto deu lugar à fúria. - Senhorrr! Qual é a vossa intenção ao virdes à minha presença
sem que eu vos tivesse chamado? Não terei eu deixado ordens no sentido de não querer ser incomodada?
O homenzinho fez uma profunda vénia e afastou-se dela às arrecuas, qual cachorro açoitado.
- P... peço perdão, majestade. Não vos teria incomodado se não acreditasse que o que tenho a dizer-vos é importante. Existe alguém ansioso por uma audiência particular...
- Se for esse idiota do Danton, recuso-me a recebê-lo. O que já lhe dei a saber. Não tenho paciência para os que me falham. Além disso, o que Mademoiselle Gabrielle
Cheney e o seu Flagelo possam andar a fazer é a menor das minhas preocupações neste momento.
com um movimento brusco imprimido às saias, Catarina voltou a abeirar-se da janela. Verducci não fez qualquer tentativa para voltar a aproximar-se dela, mas a voz
tímida fez-se ouvir atrás da rainha.
- Não... não é o Chevalier Danton que deseja ser admitido à vossa presença, minha soberana...
- Não quero saber quem possa ser. Recuso-me a receber quem quer que seja.
- Mas é o vosso enviado, majestade, que chegou da ilha Encantada. Catarina fizera menção de o admoestar outra vez, mas fechou a boca.
O seu emissário? Como era tão característico de Verducci pôr o assunto de
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modo tão discreto. O seu espião chegara, finalmente, para apresentar o seu relatório sobre a Senhora da Ilha Encantada e o Conselho das Filhas da Terra. Era possível
que aquela fosse a melhor notícia que poderia receber naquele dia.
- Muito bem. Ide buscar a mulher, mas primeiro tratai de acender algumas velas.
Enquanto Bartolomy se apressava a cumprir a ordem da rainha, esta tamborilava com as pontas dos dedos no vidro de uma das janelas. Assim que tomou consciência do
que estava a fazer, parou imediatamente. Nunca fora seu hábito ceder a nervosismos que revelassem qualquer fraqueza. Quando Bartolomy voltou acompanhado da visita,
Catarina já se tinha recomposto.
Verducci avançou para proceder às apresentações, Catarina interrompeu-o sem estar com cerimónias.
- Deixai-nos - ordenou.
O homenzinho esgalgado fez uma vénia e recuou até à porta, deixando Catarina com a pessoa que espiava a seu mando. Bartolomy tinha acendido várias velas, deixando-as
em cima da escrivaninha da rainha. Fez um gesto à mulher com que lhe indicou que se chegasse para a luz das velas. Apesar de a noite estar amena, a mulher envolvia-se
num comprido manto castanho, o capuz puxado para a frente para lhe ocultar o rosto. Catarina estendeu os dedos para que a mulher os beijasse quando se ajoelhou diante
de si. Mas quando ela não fez qualquer gesto para atirar o capuz para trás, a Rainha das Trevas retirou a mão.
- Não é meu hábito receber quem esconde os olhos de mim, minha senhora - disse a rainha com frieza.
com relutância, a mulher atirou o capuz para trás, mostrando o semblante pálido de feições franzidas de Hermoine Pechard. Catarina dignou-se estender-lhe a mão outra
vez, que Madame Pechard beijou. O toque da mão da mulher era desagradável, pegajoso e frio.
Catarina afastou a mão, repugnada.
- Muito bem, Madame Pechard. Portanto, chegastes a Paris finalmente. Eu quase já tinha desistido de vós por terdes levado tanto tempo.
- Isso... isso não foi por minha culpa, majestade - retorquiu Hermoine num tom de lamúria, mas a rainha silenciou-a com um gesto imperioso.
Não conseguia suportar mulheres que se lamuriavam ou que guinchassem como bichos atemorizados. Essas criaturas abjetas deviam ser metidas em sacas cosidas e afogadas,
um destino que, em tempos, Catarina planeara para
Madame Pechard quando a apanhou com a cortesã Louise Lavalle a espiá-la para a Senhora da Ilha Encantada.
Catarina tinha muito pouca tolerância para com os espiões dos outros, mas se agora Hermoine provasse ser-lhe útil, sentir-se-ia satisfeita por a ter poupado. Caso
contrário... continuavam a existir muitas sacas. Apercebendo-se de que talvez conseguisse obter mais informações se não a aterrorizasse ao ponto de não dizer coisa
com coisa. com uma atitude graciosa, disse-lhe que se levantasse, reprimindo a irritação quando Madame Pechard recomeçou a apresentar desculpas pelo seu atraso naquele
tom de voz irritantemente lamuriento.
- É uma longa viagem desde a ilha Encantada. Foi por pouco que não dei meia-volta, regressando de imediato à ilha. Ele está aqui. - Hermoine meteu os braços por
dentro do manto e estremeceu. - Oh, meu bom Deus, ele está aqui, em Paris. Esse homem demoníaco.
- Pensei que estáveis ansiosa por voltardes para junto do vosso marido - disse Catarina com secura.
- Não estou a falar do meu Maurice - replicou Madame Pechard com um guincho de indignação. - Mas sim desse... desse demónio. - Olhou nervosamente em volta de si
e depois baixou o tom de voz num sussurro.
- Lê Balafre.
- Conheceis esse caçador de bruxas?
- Ele foi muito discutido aquando do conselho.
- Contai-me o que se passou.
Para grande aborrecimento de Catarina, Hermoine recuou e começou a morder os lábios finos e descolorados. A Rainha das Trevas teria gostado de a agarrar pelos ombros
escanzelados e encostá-la à parede, sondando-lhe os olhos implacavelmente. Os olhos de Hermoine pareciam setas lançadas em todas as direções, como um rato amedrontado
à procura de um lugar onde pudesse esconder-se. Refreando a impaciência, Catarina tratou de acalmar Hermoine, oferecendo-se para mandar que lhe trouxessem um copo
de vinho e convidando-a a sentar-se. Mas Madame Pechard recusou o vinho
e olhou para a cadeira que lhe era oferecida como se fosse um instrumento de tortura em que Catarina tencionasse torturá-la.
- Antes de vos dizer mais alguma coisa, tendes de compreender que eu não desejo atraiçoar a Senhora da Ilha Encantada. Ela foi boa para mim quando... quando vossa
majestade mandou que me prendessem e depois quando fui forçada a fugir de Paris. - Extraordinariamente, Hermoine conseguiu
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mostrar um pouco de dignidade ao dizer isto, o timbre de voz a deixar transparecer um ténue traço de censura.
Catarina sentiu um resquício de admiração, ainda que muito a contragosto. Não por Hermoine, mas sim por Ariane, por ela ser capaz de inspirar tanta lealdade e coragem
até mesmo naquela deplorável amostra de mulher.
- O facto de eu ter ordenado que vos prendessem deveu-se a um infeliz mal-entendido, tal como vos expliquei na minha carta quando vos abordei para que passásseis
a trabalhar para mim. A culpada de tudo isso foi a Louise Lavalle, devido ao seu comportamento inqualificável, que implicou uma mulher virtuosa como vós nas suas
ações tão condenáveis.
Catarina apercebeu-se de que não podia ter apresentado um argumento mais eficaz. Hermoine aquiesceu com um acenar de cabeça, os lábios a contraírem-se na atitude
de indignação de alguém injustiçado.
- De facto, Mademoiselle Lavalle é uma pessoa malévola, uma criatura licenciosa, a exemplo de tantas dessas jovens mulheres sábias dos nossos tempos. Mas a Senhora
da Ilha Encantada possui muita sabedoria e virtude.
- É claro que Ariane é assim mesmo e também desejo ser sua amiga retorquiu Catarina numa voz tranquilizante. - Mas até conseguir que ela confie em mim, tenho de
depender das vossas informações, minha cara Madame Pechard. Garanto-vos que posso ser muito generosa para com os que
me servem.
A absurda criatura enclavinhou os dedos, os olhos cheios de lágrimas.
- Tudo o que anseio é voltar para a minha pequena casa confortável e recuperar o meu bom nome como a esposa respeitável de um médico da universidade. Quero a minha
vida como era antes de me ter envolvido com essa desprezível Lavalle e as suas maquinações para espiar vossa majestade.
E que vidinha tão patética que ela levara, sem valor nenhum para quem quer que fosse. Catarina não era capaz de imaginar mulher nenhuma que quisesse recuperar uma
existência como a dela, mas deu uma palmadinha amigável na mão de Hermoine.
- Assegurar-me-ei de que recuperareis tudo isso, minha querida. Mas agora contai-me o que se passou durante o conselho e o que foi dito desse homem, Lê Balafre.
- Bem, havia uma mulher sábia de cabelos vermelhos, vinda da Irlanda, que parecia louca, Catriona OHanlon. Ela interrompeu-me, quando era a minha vez de dirigir
a palavra ao conselho, para nos relatar que esse Lê Balafre regressou a França por causa de um livro há muito perdido...
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Catarina compreendeu rapidamente que assim que a mulher começava a falar era praticamente impossível calá-la. Mas Hermoine concentrava-se mais eloquentemente nas
ofensas que sofrera em resultado do comportamento das outras mulheres presentes no conselho do que em Lê Balafre. Decorridos os primeiros dez minutos, Catarina mal
lhe prestava atenção. Já tinha ouvido tudo o que precisava de ouvir.
Um livro perdido. O livro das Sombras, um tema de lendas e das fantasias mais sinistras de qualquer Filha da Terra. Catarina andava de um lado para o outro diante
da janela, mal conseguindo conter o empolgamento que sentia. Se possuísse aquele livro, não voltaria a haver nada que lhe suscitasse medo. Não da parte do Flagelo
ou dos rebeldes huguenotes, tão-pouco da parte dos caçadores de bruxas e nem sequer da própria morte. Ela tornar-se-ia, efetívamente, uma Rainha das Trevas e nada
nem ninguém conseguiria fazer-lhe frente.
Precisava de deitar as mãos a esse livro.
A aurora mal se elevara acima dos telhados, a escuridão da noite a render-se à luminosidade acinzentada do raiar da manhã. Miri puxou o capuz do manto para a frente
para ocultar as suas feições enquanto atravessava o pátio, coberto por um manto de neblina, num passo apressado. A humidade entranhava-se através das solas dos sapatos,
o que fazia com que ela tremesse de frio. De vez em quando, olhava por cima do ombro com algum receio.
A casa na cidade estava envolta em silêncio, não se vendo sinal de vivalma. Não viu ninguém que espreitasse ansiosamente por uma das janelas, tal como ninguém irrompeu
pela porta, procurando-a freneticamente. Conseguira iludir todos, Gabrielle, Remy, Bette, e até mesmo a vigilância do Necromante.
com um pouco de sorte, Miri conseguiria fazer o que tinha em mente e voltar para casa antes que alguém desse pela sua falta. Se não... soltou um pequeno suspiro.
Não era sua intenção, de maneira nenhuma, preocupar ou afligir as pessoas que tanto se preocupavam com o seu bem-estar, mas não seriam capazes de compreender. Tinha
plena consciência do perigo que corria no que estava prestes a fazer. Já tinha arriscado tudo numa ocasião anterior para salvar Simon Aristide da sinistra influência
do terrível caçador de bruxas, Lê Vis, e fracassara. O maravilhoso rapaz havia sido transformado em Lê Balafre, o homem com a fisionomia desfigurada por uma cicatriz
e uns olhos desprovidos de alma. Apesar disso, Miri não conseguia desistir dele.
Atravessou os jardins furtivamente num passo tão estugado e silenciosamente quanto lhe era possível. Só mais alguns passos e Miri estaria fora dos portões de ferro
forjado e a caminho. Mas, e depois? Paris era uma cidade avassaladora, com o seu infindável dédalo de ruas e mar de telhados. Na ausência dos sentidos extremamente
apurados de Necromante para a guiar, Miri
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não fazia ideia de como é que iria localizar a estalagem onde Simon se aquartelara.
Seria forçada a pedir indicações a alguém, mas a cidade fora dos muros da casa parecia profundamente adormecida. Pouco ouvia, além do ranger à distância das rodas
de uma carroça e o bater no empedrado dos cascos de cavalos e... e o estalar de um galho.
O forte estalido chegou-lhe dos recantos do jardim atrás de si. Miri ficou petrificada e tensa, pondo-se à escuta. Viu um par de cotovias que chilrearam na ramagem
de um ulmeiro, mas, além do animado trinado, Miri apercebeu-se do som de um ténue passo, um restolhar quase impercetível de ervas. Era possível que o vago som passasse
despercebido a outros, mas os sentidos de Miri eram tão apurados como os de uma raposa ou de um texugo.
Sentiu os pelos na nuca a eriçarem-se ao perceber que não se encontrava sozinha no jardim. Estava a ser seguida e pensava saber por quem. Virou-se rapidamente e
tentou ver por entre as espirais de bruma que obscureciam os carreiros.
- Necromante? - chamou num sussurro imperioso.
- Não, mademoiselle. Sou eu. - Avistou uma silhueta envolta em sombras que saía dos arbustos.
O coração de Miri deu uma cambalhota repentina. Cambaleou para trás e levou a mão à boca para abafar um grito de sobressalto. Deparou com um jovem que tinha uma
basta cabeleira negra que estava solta e penteada para trás, mostrando as feições angulares de expressão arguta. As pestanas eram de um castanho-escuro e espessas,
nuns olhos verdes que a olhavam com fixidez e intensamente.
- Não há razão para vos inquietardes, mademoiselle. Não quis sobressaltar-vos. Devo dizer-vos que passei a maior parte da noite a olhar para a janela da vossa alcova.
Miri não ficou mais tranquila com aquela informação. Perguntou-se qual seria a melhor atitude a adotar. Desatar a correr de volta a casa, que se encontrava mais
longe do que os portões, ou transpô-los na esperança de encontrar algum refúgio na rua. Ele pareceu adivinhar os seus pensamentos porque se aproximou mais.
- Por favor, não há motivo para fugirdes, tenho estado à vossa espera.
- À minha... espera? - Miri recuou alguns passos hesitantes.
- Toda a minha vida.
Miri duvidava que a vida dele pudesse ser assim tão longa. Era difícil adivinhar-lhe a idade. A pele macia da cara indicava que ele não seria muito mais
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velho do que ela própria, apesar disso, o semblante de feições angulosas e duras indicava o acréscimo de toda uma existência de experiência. O vestuário era de boa
qualidade, usava um justilho sem mangas de brocado apertado por cima de uma camisa de um branco reluzente. Os calções bem apertados abaixo dos joelhos eram do género
que o servo de uma família abastada usaria. Mas a capa curta azul-escura, atirada por cima do ombro direito com desenvoltura, condizia mais com o traje de um nobre.
Apesar das roupas elegantes, dele emanava um excesso de malandrice, o sorriso rasgado de tratante demasiado íntimo. Quando ele tentou aproximar-se mais de novo,
Miri estendeu uma mão para o manter afastado.
- Parai. Se vos aproximardes mais, não hesitarei em gritar.
Era uma ameaça vazia. Alertar os que se encontravam dentro de casa, que teriam ficado a saber que saíra sorrateiramente, era a última coisa que Miri desejava fazer,
mas o seu interlocutor não estava a par disso.
- Se sois um gatuno - prosseguiu ela -, haveis escolhido o jardim errado. Não tenho um único vintém comigo.
As palavras dela detiveram-no abruptamente. Mostrou-se aturdido e depois profundamente ofendido, atirando as mãos ao ar como se estivesse a apelar aos céus.
- Mon Dieu! Ela pensa que sou um ladrão, quando foi ela quem me roubou.
- Nunca fiz nada disso.
- Sim, fizestes, mademoiselk. - Entrelaçou as mãos e levou-as ao peito num gesto cheio de dramatismo. - Haveis roubado o meu coração sem apelo nem agravo.
"Oh, meu Deus", pensou Miri. Ele era pior do que um gatuno. Era um lunático que tinha fugido do hospício. Colocou-se atrás do tronco de um carvalho de grande porte,
tentando pôr a portentosa árvore entre os dois. Ele espreitou em torno do tronco com os olhos muito abertos e de expressão magoada.
- Como é que ontem pudestes ser tão corajosa, fazendo frente a um cavalo que é uma besta enorme, e agora estardes tão receosa de mim? Não vos lembrais de mim, nem
um bocadinho?
Lembrar-se dele? Como é que ela poderia lembrar-se de alguém que nunca tinha visto? E, contudo, havia algo de familiar nele. Muito embora Miri fosse capaz de identificar
todos os pássaros sem a menor hesitação, cada criatura com pelo, que existiam na ilha Encantada, nunca fora muito capaz a distinguir as feições de um homem de outro.
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Foi a referência dele à maneira dela de lidar com "o cavalo que é uma besta enorme" que espevitou a sua memória. Enquanto perscrutava as feições do desconhecido,
pensou que merecia perdão por não o ter reconhecido. A última vez em que o vira estava coberto de poeira e excrementos de cavalo, a cara toda suja.
Miri saiu detrás do tronco da árvore, embora continuasse desconfiada.
- Oh, já sei quem sois. O escudeiro que ontem tanto se esforçou por selar o Bayonne.
- Isso quer... quer dizer que haveis reparado em mim? Lembrais-vos de mim?
Miri acenou que sim, mas, para sua consternação, ele atirou o punho cerrado ao ar e soltou uma exclamação de vitória.
- A encantadora deusa da Lua lembra-se de mim. Ela reparou em mim. Tenho de acordar toda a gente de Paris para que partilhem da minha alegria.
Acordar toda a gente de Paris? Mas Miri estava mais apreensiva por ele poder acordar toda a gente que dormia na casa atrás de si. Ele correu para os portões e saltou
para a primeira travessa, sustendo a respiração. Miri correu atrás dele, agarrando-lhe a orla da capa. Puxou com força e os cordões que a prendiam em volta do pescoço
sufocaram o grito, que não passou de um gorgolejar. Perdeu o equilíbrio e tombou para trás, caindo de traseiro no chão. Miri lançou um olhar de preocupação à casa.
- Peço desculpa - disse numa voz sibilada. - Mas, por favor, nada de gritos. Tendes de manter-vos calado.
Ele soergueu-se apoiado nos cotovelos e olhou para ela com uma expressão radiante.
- Por vós, mademoiselle, ficarei tão calado como um morto.
Miri duvidava de que ele fosse capaz de se manter de boca fechada por mais de um segundo de cada vez.
- Estais ao serviço do capitão Remy, não é verdade? Sois o escudeiro dele?
- O seu escudeiro, o seu lugar-tenente, o seu irmão de armas e seu amigo. Ah, mas para vós, mademoiselle, serei o vosso escravo.
- Agradeço, mas não ando à procura de um escravo.
- Mesmo assim, tendes um escravo para a vida. - Pôs-se de pé, fez um floreado com a capa e fez-lhe uma vénia rasgada, tudo isto num espantoso movimento cheio de
fluidez. - Martin, o Lobo, mademoiselle. Para sempre ao vosso serviço.
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- Martin, o Lobo? Sim, o nome ajusta-se a vós.
- De facto, é verdade. Tenho a coragem, a inteligência, a argúcia e... - E a modéstia - interrompeu Miri com secura.
Ele olhou-a com uma expressão de alguma reprovação, - Eu ia dizer o coração de um lobo. Sabeis que os lobos acasalam para toda a vida a partir do momento em que
encontram a fêmea certa.
- Nesse caso, desejo-vos uma boa caçada, monsieur.
- Não preciso de continuar a caçar. Já encontrei a minha fêmea. - Ele aproximou-se mais. - O que eu soube ontem assim que vos vi. Os vossos olhos são mais cintilantes
do que a lua cheia, o vosso cabelo mais suave do que a sua luz...
- E a minha cara é tão redonda como a Lua, inquestionavelmente. Uma vez que sois um lobo, não admira que vos sentis atraído por mim.
Ele ficou imobilizado, mostrando-se profundamente magoado.
- Estais a troçar de mim, mademoiselle.
- Perdoai-me, monsieur. Mas eu sou uma rapariga muito simples e nada sofisticada que vem de uma ilha muito pequena. Não sou pretensiosa quando me elogiam e não namorisco
como as senhoras que tendes em Paris.
- Namoriscar! - exclamou ele. - Talvez eu me tenha expressado um tudo-nada demasiado... exuberante, mas a minha adoração por vós é verdadeira. Amo-vos tanto que
aquilo que sois é-me indiferente.
- Aquilo que sou? - Miri franziu as sobrancelhas, intrigada.
Martin inclinou-se mais para ela, baixando o tom de voz e adotando um timbre de conspiração.
- Sois uma bruxa, não é verdade? Não que eu me importe com isso. Eu também tenho os meus defeitos.
Miri soltou um som estrangulado de indignação.
- Não sou nenhuma bruxa. Tenho aversão a esse termo. Sou uma Filha
da Terra.
Ele mostrou-se imediatamente contrito.
- Perdoai-me, mademoiselle. Não foi minha intenção ofender-vos. Claro que sois uma Filha da Terra e também dos céus. - Pegou na mão de Miri e cobriu-lhe as pontas
dos dedos de beijos ardentes.
Miri arquejou e apressou-se a afastar a mão.
- Parai imediatamente com isso.
- Sou demasiado ousado. Peço desculpa, mas é mais forte do que eu. Eu... eu fui encantado por vós. Estou deslumbrado. Estou enfeitiçado.
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- Também estais absolutamente insano. E não tenho tempo para estar aqui a falar à toa convosco. Sugiro que volteis para onde quer que seja que chamais de casa e
que vos deiteis durante algum tempo com um pano húmido na testa.
- E de que é que isso me serviria quando é o meu coração que está em chamas?
- Nesse caso, sugiro que também ponhais um pano molhado aí.
- Ainda que contra a sua vontade, Miri esboçou o assomo de um sorriso divertido. Baixou a cabeça para o ocultar, mas Martin foi mais rápido do que ela. Inclinou-se
todo para um lado num esforço para poder ver a expressão no rosto dela.
- Ahhh! - exclamou. - Ela não me leva a sério, mas, pelo menos, fiz com que ela, finalmente, sorrisse. Já é um princípio.
Miri tentou afivelar outra vez uma cara de pau.
- Monsieur...
- Tratai-me apenas por Lobo. O vosso próprio lobo, agora e para sempre. Miri suspirou, apercebendo-se de que o dia já começava a clarear. As
pessoas dentro de casa não tardariam a despertar.
- Pois seja, Lobo. Por muito interessante que possa ter sido voltar a ver-vos, preciso de ir andando. - Olhou-o com um acenar de despedida, após o que se apressou
em direção aos portões. Mas Lobo não se demorou a ir atrás dela, colocando-se ao seu lado.
- E aonde é que estais a pensar ir a uma hora tão matutina, minha amada? Muito sozinha e de uma maneira tão furtiva. Paris pode ser uma cidade muito perigosa. Acho
melhor que me concedais autorização para vos acompanhar nesta vossa surtida secreta.
A passada de Miri vacilou. Apesar dos maneirismos flamantes e da maneira de falar cheia de floreados, Lobo era mais perspicaz do que podia parecer. Era óbvio que
ele adivinhara que ela tinha uma missão que não queria revelar. Miri observava-o atentamente por entre as pálpebras semicerradas. Era verdade que precisava de um
guia, mas teria preferido alguém menos volúvel.
- Lobo, posso confiar em vós?
- Se podeis confiar em mim? Juro até à minha última gota de sangue...
- Não, por favor. - Miri colocou a mão rapidamente na boca dele para o silenciar. - Só quero que me respondeis sim ou não.
- Sim - murmurou numa voz abafada debaixo dos dedos dela, após ? o que se aproveitou da situação para levar os lábios à palma da mão de Miri.;
363
- Conheceis bem Paris?
Lobo tirou os dedos dela da sua boca e deu-lhe um beijo ao de leve no pulso.
- Como a palma da minha mão. Levar-vos-ei até onde quiserdes ir; posso mostrar-vos as melhores lojas e onde podeis encontrar as melhores pechinchas. E que tal a
Catedral de Notre-Dame. Ninguém devia visitar Paris sem ver a nossa majestosa catedral.
- Bem, eu... - Miri distraiu-se quando Lobo começou a beijar-lhe cada dedo da mão. A sensação não inteiramente desagradável. - Gostaria de ir à Estalagem Régia.
Lobo parou a meio de um beijo de olhos arregalados.
- O quê?
- A Estalagem Régia - repetiu Miri com mais firmeza. - Ouvi dizer que é aí que Lê Balafre e os seus homens estão aquartelados.
Lobo largou a mão dela e proferiu uma única palavra ríspida.
- Não!
- Não? - ecoou Miri.
Lobo barrou-lhe o caminho, abanando a cabeça. Miri ficou a olhar para ele com uma indignação crescente.
- O que é que aconteceu a... "Oh, mademoiselle, sou o vosso lobo. O vosso escravo. Levar-vos-ei até onde quiserdes ir"?
Lobo encostou-se de costas ao portão e cruzou os braços com um profundo suspiro.
- Está-me a parecer que vamos ter a nossa primeira questiúncula de namorados.
- Não somos namorados! Só vos conheci ontem.
- Sendo assim, gostaria muito de vos manter com vida para podermos prolongar o nosso conhecimento. - Martin pegou-lhe nas mãos, apertando-as. - Miri, estamos a falar
de Lê Balafre, esse demónio com uma cicatriz na cara que é um caçador de bruxas, mas mesmo assim estais disposta a ir despreocupadamente à estalagem onde ele está
alojado? O que é que quereis fazer? Facilitar-lhe o trabalho?
- Não acredito que ele me fizesse mal. Conheci-o antes de ele ser um demónio com uma cicatriz na cara, como o classificais. Ele não se chama Lê Balafre. O seu verdadeiro
nome é Simon Aristide.
Lobo perscrutou-lhe a fisionomia por entre olhos semicerrados.
- Portanto, já o conhecíeis. Até que ponto?
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Miri sentiu as bochechas afogueadas e coradas.
- Muito bem, pelo menos era o que eu pensava. Foi apenas há três anos que ele esteve na ilha Encantada, mas parece-me que foi há muito mais tempo do que isso. Eu
era muito mais nova nessa altura, mas também ele. Nós... nós éramos amigos.
- Mas que espécie de amigo é que vos faz corar tanto? Não me digais que estais apaixonada por esse homem. - Lobo soltou um gemido de angústia. Atirou a capa para
trás e levou a mão à adaga que trazia à cintura.
- O melhor é eu tratar já de espetar isto no meu coração, acabando com isto de uma vez por todas.
- Não fareis nada disso. - Miri pousou a mão em cima da dele, apertando-a para o impedir de desembainhar a adaga. - Lobo, por favor, tentai ser racional e ouvi-me
com atenção durante, pelo menos, dois minutos. Eu só tinha treze anos, pouco mais era do que uma criança, quando conheci o Simon.
"Não éramos namorados e duvido muito que alguma vez venhamos a ser
- acrescentou Miri com tristeza. - Mas eu tive ocasião de ver pessoalmente a devastação que os caçadores de bruxas podem causar. Se eu ainda possuir alguma influência
sobre Simon, devo tentar exercê-la antes que muitas mulheres inocentes venham a sofrer. Estais disposto a ajudar-me?
- Não estais a compreender - replicou Martin, abanando a cabeça.
- Se eu vos acompanhasse para que fôsseis falar com esse caçador de bruxas e vos acontecesse alguma coisa de mal, não seria preciso que eu cortasse a minha própria
garganta. O meu capitão encarregar-se-ia de me fazer isso mesmo.
- Não vai acontecer nada. Se formos agora e andarmos depressa, podemos voltar antes de o Remy ou qualquer outra pessoa se aperceberem de que saímos. Juro. É claro
que, se tiverdes receio de me acompanhar, com certeza que compreenderei...
- Receio? - Lobo volteou a capa atrás de si, levou as mãos aos quadris e adotou uma pose agressivamente masculina. - Apenas por um dos vossos sorrisos, eu lutaria
contra cem tigres, bater-me-ia com uma horda de salteadores ou lutaria contra o próprio Lúcifer.
- Eu só vos peço uma pequena coisa, falar com o Simon. Estais dispôsto a levar-me à estalagem ou não? -"
Martin olhou para ela de cenho carregado e resmungou:
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- Um homem teria de ser um rematado mentecapto para acompanhar a mulher que ama até junto de um rival. Ainda por cima, porque ele é um homem perigoso.
Miri pousou a mão suavemente na manga da camisa dele. Suplicou-lhe com toda a intensidade dos seus olhos.
- Oh, Lobo, por favor. Não fazeis ideia de como isto é importante para mim.
Martin ficou a olhar para ela durante bastante tempo, após o que soltou um som que se situava entre um suspiro e um gemido.
- Ai de mim, qualquer pessoa diria que sou um idiota no que vos diz respeito.
Alisou a capa, ajeitando-a por cima do ombro, e depois, galantemente, ofereceu-lhe o braço.
A Estalagem Régia situava-se no interior das muralhas da cidade, uma espaçosa hospedaria que era composta por três alas que circundavam um pátio. Lê Balafre e os
seus homens tinham ocupado toda a estalagem, transformando-a num aquartelamento militar. Nem sequer era possível chegar perto de Simon Aristide sem a permissão de
uma sentinela.
Por muito apreço que Miri tivesse pela companhia de Lobo, ficou aliviada quando lhe negaram a entrada, uma vez que apenas ela é que tinha autorização para entrar.
A feroz determinação de Lobo em protegê-la e a sua natureza flamante só poderiam causar problemas. Aquele encontro com Simon podia revelar-se como sendo bastante
difícil. Miri deixou Martin a praguejar e a andar de um lado para o outro no pátio, jurando que, se ela não voltasse dentro de uma hora, iria à sua procura.
Miri seguiu um guarda idoso de cabelos grisalhos até ao interior da estalagem, pestanejando para ajustar os olhos à obscuridade depois da muita luminosidade que
banhava o pátio. A sala principal da estalagem estava apinhada com os homens de Simon, alguns a jogarem às cartas e outros aos dados. Um deles até balouçava uma
criada no joelho.
Aquela era, claramente, uma espécie diferente de caçadores de bruxas, os quais não tinham nada a ver com o grupo de monges encapuzados de Vachel Lê Vis. Não se via
um único rosário nem Bíblia. Era um facto bem conhecido que aqueles que conseguissem com êxito a condenação de uma bruxa tinham direito a uma quota-parte dos bens
terrenos da condenada. Os homens de Simon eram aventureiros endurecidos motivados pelo lucro, ao invés de
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crenças fanáticas que os levassem a acreditar que agiam em conformidade com ordens divinas, vindas diretamente de Deus. Miri estremeceu, incapaz de decidir qual
o motivo que era pior para destruírem mulheres inocentes.
Foi alvo de muitos olhares duros de avaliação enquanto atravessava a sala acompanhada do guarda idoso que a levava até às escadas de acesso ao primeiro andar da
estalagem. Miri mantinha a cabeça bem erguida, a sua postura serena a contrastar com a maneira como o seu coração tinha começado a bater. Depois de todos aqueles
anos, apenas um corredor e a espessura de uma porta a separavam de Simon.
com treze anos, atrasara-se mais do que a maior parte das jovens da sua idade a prestar atenção ao sexo oposto. Mas uma rapariga teria de estar cega para não reparar
em Simon. Ele era bonito de cortar a respiração, com uns olhos escuros aveludados e uns cabelos encaracolados da cor do ébano. Tinha tido um sorriso demasiado generoso
para um caçador de bruxas, os olhos com muita propensão para brilharem de bom humor e em que se adivinhavam as diabruras próprias de rapazes. E as mãos dele... Miri
recordava-se especialmente dos dedos compridos e afuselados, enquanto coçava o Necromante atrás das orelhas, pondo-o a ronronar de prazer. Nos tempos em que o gato
ainda confiava em Simon tanto quanto ela própria.
Entretanto, o guarda idoso deteve-se diante de uma porta ao fundo do corredor, o caminho barrado por mais duas sentinelas. Após algumas palavras trocadas em voz
baixa com os dois, o velho guarda fez um gesto para que Miri se aproximasse. Manteve a porta aberta para ela entrar e com um movimento brusco da cabeça indicou-lhe
que passasse à sua frente.
Estar perto de Simon sempre lhe causara um estranho frémito na boca do estômago. Miri acreditava que entretanto adquirira demasiada sensatez para tais tolices, mas
quando transpôs a ombreira da porta sentiu que a ansiedade daria consigo em doida.
O guarda não entrou, fechando a porta silenciosamente atrás dela. Miri encontrava-se num dos aposentos mais modestos da estalagem, mobilado com pouco mais além do
leito estreito e um lavatório de pé. Mas tinham acrescentado uma ampla mesa cujo tampo estava apinhado de documentos, calamos e tinteiros.
Miri entrelaçou as mãos apertadamente para as impedir de continuarem a tremer. Percorreu a alcova com o olhar à procura de Simon, na esperança de encontrar alguns
vestígios do rapaz que ela em tempos conhecera e cujos lábios ternos lhe tinham dado o seu primeiro beijo. Mas a pessoa cuja silhueta
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viu recortada contra a claridade da janela era um estranho. Simon Aristide, mais do que crescer até atingir a idade adulta, endurecera ao longo da adolescência.
Sempre havia sido alto e magro. Mas entretanto os ombros tinham-se enchido e o peito alargado. Vestia com simplicidade, uns calções escuros apertados abaixo dos
joelhos e uma camisa de linho, as mangas arregaçadas acima dos pulsos e aberta no pescoço, revelando um colete de aço que ele usava por baixo da camisa para sua
proteção.
Os cabelos pretos encaracolados tinham desaparecido, cortados quase à escovinha, uma mera sombra em todo o crânio. A face estava dividida por uma feia cicatriz,
mas desaparecia por baixo da pala que ele usava por cima de um olho. O outro olho, que se fixava em Miri, era escuro e mostrava uma expressão de frieza. Era difícil
acreditar que pouco mais de três anos os separavam em termos de idade. Simon não podia ter mais de vinte anos, apesar de parecer muito mais velho.
O silêncio que se instalou entre os dois era tão profundo que Miri tinha perceção do bater do seu coração, bem como do som suave da sua respiração, para seu muito
constrangimento. Encostou-se à porta para se apoiar, incapaz de proferir uma única palavra. Simon fez-lhe um gesto para que se aproximasse. Havia uma coisa nele
que não tinha mudado, a graciosidade das suas mãos.
- Mademoiselle. Receio ter de vos dizer que não posso conceder-vos mais do que alguns momentos do meu tempo, portanto dizei-me qual o assunto que vos trouxe aqui.
- Ah... mademoiselle? - retorquiu Miri numa voz vacilante. - Simon, estais a fingir que não me conheceis?
- É claro que me lembro de vós, Mademoiselle Miribelle Cheney.
- Miri - disse ela num tom insistente.
- Miri. - Ela ficou esperançada ao ver uma centelha de suavidade nos olhos dele, muito embora a expressão tivesse sido obliterada de imediato por baixo da fachada
de dureza. Quando ela se acercou mais, o olhar dele percorreu-a de alto a baixo. - Haveis mudado muito.
- Tal como vós - retorquiu Miri com tristeza.
- Como decerto estais recordada, tive um pouco de ajuda. - Simon passou a parte de trás dos dedos pela cicatriz, a voz ensombrada por um timbre de acusação.
Uma acusação que era desnecessária para que Miri se sentisse assolada por um sentimento de culpa. Mas replicou-lhe com tranquilidade.
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- Lamento, mas tenho de dizer que atacastes o Renard. Quando vos agarrei pelo braço foi para vos impedir de lutar com ele. Não queria que nenhum de vós ficasse ferido.
Ele tão-pouco quis fazer-vos mal. A espada deslizou-lhe da mão.
Miri tocou-lhe suavemente na face.
- Fiquei devastada quando fugistes e desaparecestes nas ruas de Paris depois de ferido com tanta gravidade. Devíeis ter ficado connosco, Simon. A Ariane é uma excelente
curandeira. Ela podia ter-vos ajudado.
- Mas eu não quis ajuda nenhuma de uma bruxa. Quanto ao vosso cunhado, ataquei-o porque, na minha opinião, ele era pouco melhor do que um demónio.
- E eu, Simon? O que é que pensastes de mim?
- Tudo isso aconteceu há muito tempo - respondeu ele, um músculo a contrair-se-lhe no maxilar. - O que eu pensei é tão inconsequente como a minha cicatriz.
Miri continuou a avaliar as reações dele, levando os dedos à cabeça dele. Surpreendentemente, Simon não fez menção de a impedir. Miri passou as pontas dos dedos
pelo couro cabeludo dele, perturbada ao sentir uma espécie de cerdas onde em tempos existira uma farta cabeleira ondulada e sedosa.
- O vosso maravilhoso cabelo - murmurou ela. - Porque o rapastes?
- Só servia para me incomodar - respondeu Simon, encolhendo os ombros. - Sempre a cair-me para a cara. Quando um homem só vê de um olho, deve proteger a visão que
lhe resta.
- Ou talvez tivésseis tentado ficar com uma fisionomia tão sinistra quanto vos foi possível?
A sugestão dela talvez tivesse acertado um pouco bem de mais. Simon afastou a mão dela.
- O meu cabelo encorajava a minha presunção. O mestre Lê Vis dizia constantemente que eu era demasiado vaidoso.
- Eu não vos teria classificado de vaidoso. Mas diria que tínheis noção de como éreis bem-parecido, de como éreis capaz de agradar a qualquer senhora.
- Mas isso não é coisa com que agora precise de me preocupar, pois não? - Simon afastou a pala que lhe cobria o olho para a testa. A cicatriz irregular estendia-se
até à sobrancelha, a pálpebra fechada por baixo da pele arrepanhada. Miri via que a intenção dele era causar-lhe repulsa.
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Manifestamente, ele não tinha esperado o que Miri fez a seguir. Pôs-se em bicos de pés e passou os lábios ao de leve pela pálpebra desfigurada. Simon retrocedeu,
com uma expressão de desvario no olho bom, mostrando uma espécie de anelo e desespero. Apressou-se a afastar-se dela, voltando a cobrir o olho com a pala. Mas Miri
vira o suficiente naqueles breves momentos para continuar a acalentar a esperança de que o verdadeiro Simon Aristide continuava a existir, aprisionado sob o exterior
endurecido de Lê Balafre. Até mesmo quando ele se lhe dirigiu com brusquidão.
- Como vos disse quando chegastes, não tenho muito tempo que vos possa dispensar. Por isso, agradeço que me digais ao que viestes depois de vos sentardes.
Antes de Miri poder responder-lhe, foram interrompidos por um ligeiro bater na porta.
- Entrai - disse Simon.
A porta abriu-se, dando entrada ao guarda de cabelos grisalhos que a acompanhara até ali, o qual trazia um tabuleiro com um pequeno pão e uma tigela de papas de
aveia, além de um copo de vinho.
- O vosso pequeno-almoço, monsieur, e podeis comer à vontade porque me certifiquei de que tudo foi provado previamente.
- Obrigado, Braxton. Deixa o tabuleiro ali em cima - indicou Simon, fazendo um gesto na direção de uma pequena mesa junto do leito.
O homem, que Simon chamara de Braxton, fez como ele lhe ordenara. Assim que a porta se fechou depois de ele ter saído, Miri virou-se para Simon e exclamou:
- A vossa... a vossa comida é provada antes de vos ser servida?
- Uma precaução bastante sensata, não vos parece? Para um homem que chegou para dar caça às bruxas numa cidade controlada pela Rainha das Trevas, a qual tem uma
aptidão muito especial para preparar venenos. - Simon olhou-a com frieza. - Além disso, como bem sabeis, tenho outros inimigos.
- Não sou um deles, Simon - ripostou Miri com alguma irritação, erguendo o queixo num gesto de desafio.
- Nunca disse que éreis. - Simon puxou uma cadeira para perto da mesa que lhe servia de secretária e, uma vez mais, com um gesto indicou-lhe que se sentasse, desta
feita com um pouco mais de impaciência.
Miri deixou-se cair, abanando a cabeça com tristeza.
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- Ser forçado a tomar a medida de mandar provar a comida, usar armadura por baixo da roupa e guardas à porta. Que maneira tão horrível de viver.
- Não por minha opção. - As mãos dele demoraram-se nas costas da cadeira, a sua voz, uma vez mais, num tom de acusação.
Mas Miri não reagiu tão acanhadamente desta feita. Virou-se para trás e fitou-o com as sobrancelhas franzidas.
- Foi por vossa opção, sim. Pelo menos, em parte. Houve uma ocasião em que vos dei a oportunidade de algo muito diferente. Ofereci-vos a minha amizade, a minha confiança,
mas haveis optado por ajudar o vosso mestre Lê Vis a capturar o meu cunhado.
- O conde de Renard é um dos feiticeiros mais demoníacos que tive a infelicidade de conhecer. Eu alberguei a esperança de poder libertar-vos, bem como as vossas
irmãs, da sua maléfica influência. Se traí a vossa confiança, se vos magoei, foi porque... porque foi necessário. Não peço desculpa por isso.
Apesar daquela asserção tão determinada, Miri apercebeu-se de algo mais no seu olhar, vergonha e remorso. O que mitigou parte da mágoa que há muito sentia devido
à traição dele.
- Não faz mal, Simon. Podeis contar com o meu perdão. - Sorriu-lhe suavemente, mas ele retraiu-se como se ela o tivesse esbofeteado.
- Não quero o vosso perdão. Foi por essa razão que viestes falar comigo? - perguntou com sarcasmo. - Para recordardes outros tempos?
- Não - respondeu Miri com um fundo suspiro. - Foi ontem, durante o torneio, que o rei anunciou a vossa cruzada com vista a livrar Paris de bruxas. Compreendo que
possa ser uma atitude fútil da minha parte, mas tive esperança de poder dissuadir-vos antes de um certo número de mulheres inocentes virem a sofrer. A menos que
haveis passado a ser realmente como o vosso falecido mestre, convicto de que não existe nenhuma mulher inocente.
- Monsieur Lê Vis foi bom para mim. Acolheu-me depois de a minha aldeia ter sido destruída, proporcionando-me um lar. Mas admito que ele tinha alguns traços de loucura.
Não odeio todas as mulheres sem exceção e não considero que sejam todas demoníacas. De facto, não sou inteiramente imune aos encantos do vosso sexo... - Simon fez
uma pausa, o seu olhar a demorar-se nela de uma maneira despudorada, muito diferente dos olhares ternos que em tempos lhe dedicara. Tinha sido frequente que ele
lhe acelerasse
371
as batidas do coração, naqueles dias em que ela teve uma inocente paixoneta por Simon. Mas a maneira como ele a olhava agora exercia sobre ela algo mais elementar
e primitivo. Um fluxo de ardor que a excitava e alarmava.
Corou e cruzou os braços diante dos seios numa atitude de proteção. O gesto pareceu ter feito com que Simon tomasse consciência da maneira como a olhava.
- Mas vós, as senhoras, podeis constituir uma distração quando um homem tem assuntos mais importantes no pensamento.
- Como acusar mulheres inocentes de bruxaria?
- E bruxos como o conde de Renard. Não faço discriminação no respeitante aos sexos quando persigo pessoas por bruxaria e posso garantir-vos que nunca levei a tribunal
ninguém que estivesse inocente.
Miri tentou descontrair-se. Ou, pelo menos, talvez tivesse sido capaz de o fazer se ele não tivesse começado a andar pela alcova de uma maneira que lhe trouxe Lobo
à mente. O que é que se passava com os homens, perguntou-se Miri exasperada, que davam a impressão de nunca serem capazes de se manterem sossegados?
- Qualquer pessoa pode ser levada a confessar-se culpada depois de ter sido torturada, Simon - disse Miri. - Naquela ocasião em que o vosso mestre me ameaçou com
a prova da água, senti-me tão atemorizada que quase confessei coisas que não tinha feito.
- Eu não recorro à tortura. Prefiro oferecer recompensas a troco de informações.
- Quereis dizer subornar cidadãos para que se apresentem com acusações. Isso é mais fiável do que a tortura para aferir a inocência de uma pessoa?
Simon parou com o seu inquieto andar de um lado para o outro para a olhar com uma expressão carrancuda.
- É frequente que as pessoas se sintam tão aterrorizadas com medo de bruxas que precisam de algum incentivo para se apresentarem. Mas eu não aceito a palavra de
ninguém sem mais nem menos. Investigo todas as acusações com o maior cuidado.
- Como é que alguém pode investigar declarações como: "Oh, aquela mulher lançou-me um mau-olhado e agora as minhas galinhas já não põem ovos e a minha velha vaca
deixou de dar leite"?
- Nem todas as declarações são assim tão absurdas. Por exemplo, vejamos um assunto de que tomei conhecimento esta manhã mesmo - retorquiu
372
Simon, encaminhando-se para a mesa e pegando num documento.
- Temos o caso de um tal Anton Deleon, um ajudante de cozinha numa estalagem que cometeu o erro de ir para a cama com uma bruxa de cabelo negro. Subsequentemente,
ela rogou-lhe uma praga. - Simon estendeu-lhe o documento, convidando-a a ler os seus apontamentos. Miri abanou a cabeça, recusando-se a olhar para aquilo.
- Isso é absolutamente ridículo.
- Não pensaríeis assim se tivésseis visto esse rapaz, o Deleon. Sofre de uma doença horrível como eu nunca vi. A carne do corpo dele está a comer-se.
- Se isso for verdade, tenho muita pena do pobre rapaz, mas os ataques de doenças devastadoras desafiam muitas vezes qualquer explicação racional. Monsieur Deleon
faria melhor se procurasse os serviços de uma mulher sábia que seja curandeira, em vez de fazer acusações infundadas de bruxaria.
Simon atirou o documento para cima da mesa com um olhar de exasperação.
- Haveis adquirido todas as graças de uma mulher, Miri Cheney, mas continuais a ser tão ingénua como uma criança. Nunca fostes capaz de ver que o mal existe no mundo.
- Estais muito enganado - replicou Miri com tristeza. - Já vi mais do que a minha quota-parte do mal que os homens fazem, a violência. Muito simplesmente, nunca
fui capaz de compreender tanta maldade.
- Isso é porque o vosso coração ainda não foi tocado pelo negrume do mal. Nunca haveis aprendido a sentir cólera, a odiar.
Ao olhar para as feições endurecidas de Simon, Miri estremeceu.
- Espero que isso nunca me aconteça.
- Também espero que isso nunca vos aconteça - disse ele, surpreendendo-a por ter falado num tom mais suave. - Tenho visto coisas ao longo destes últimos anos que
destruiriam as perceções das cores do arco-íris que tendes do universo. Homens e mulheres que venderam as suas almas ao diabo um milhar de vezes. Muitas dessas pessoas
por causa de um mero livro.
- Um livro?
- Dar caça às bruxas não é o único motivo que me trouxe a Paris, também ando à procura de um livro demoníaco que chegou por mar ao nosso país... o Livro das Sombras.
Miri tentou não sorrir, mas foi mais forte do que ela.
- Achais que isso é divertido? - perguntou Simon irritado.
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- Sim, receio ter de vos dizer que sim. Contam-se lendas de uma qualquer obra-prima demoníaca desde que existem Filhas da Terra. O Livro das Sombras é um mito e,
se tendes andado a perder o vosso tempo a tentar encontrá-lo, então vós é que sois ingénuo.
- Não sou o único a procurar esse livro.
( - Nesse caso, essas pessoas estão a ser tão tolas como... - Miri conteve-se. Fora ali para tentar fazer com que Simon visse a razão e não para discutir com ele.
I Ficou tensa quando ele contornou a mesa. Sentou-se na extremidade, dando a impressão de se agigantar acima dela, tão perto que Miri teve de se encostar para trás
para impedir que as saias roçassem por ele. Balouçando um pé calçado com bota, Simon inclinou-se ligeiramente para a frente, apoiando um braço à largura do joelho,
numa posição em que ela tinha uma perceção vívida da força e flexibilidade dos seus dedos, o músculo sólido do pulso e antebraço. A posição de Simon era perturbadoramente
masculina e intimidante em simultâneo. Mais ainda, ela tinha a certeza de que era uma atitude deliberada da parte dele.
- Infelizmente, Miri, estou em crer que, possivelmente, sabeis mais acerca desses assuntos do que dais a entender. Recentemente, realizou-se um determinado conselho
de bruxas na vossa ilha.
Miri ficou surpreendida quando ele mencionou o conselho que Ariane convocara, mas não disse nada, entrelaçando as mãos dentro das dobras da saia.
- Capturei uma das bruxas que estiveram presentes, uma rapariga portuguesa muito nervosa que foi facilmente persuadida a narrar-me o que se passou nesse conselho.
- Persuadida ou aterrorizada?
Ignorando a interrupção e as palavras proferidas num tom de censura, Simon prosseguiu.
- Esse livro que afirmais não existir foi o tema principal a ser discutido e desde essa noite do conselho que a vossa irmã organizou uma procura em larga escala
com vista a encontrá-lo.
- A minha irmã não organizou...
- E diz-se que a pessoa mais empenhada nessa procura é o demoníaco conde de Renard - interrompeu Simon, inclinando-se mais para Miri, que se viu forçada a encolher-se
ainda mais na cadeira. - Pois bem, o que é que vos parece que o vosso cunhado pretende com um livro tão malévolo?
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- Não sei. Nada... quero eu dizer, esse livro não existe. - Enervada com a maneira como Simon a interrogava, assim como com o que ele lhe dizia, Miri levantou-se
da cadeira. Tinha fugido da ilha Encantada antes do conselho de Ariane. Devido à muita preocupação que Gabrielle lhe suscitava, Miri ainda não fizera qualquer esforço
para contactar a irmã mais velha e nem sequer lhe tinha enviado uma curta missiva para lhe dizer que tinha chegado bem a Paris, sossegando-a. Nunca lhe tinha passado
pela cabeça que pudessem vir a existir problemas em casa.
Mesmo assim, Miri não dava crédito às asserções de Simon. Em poder do seu bando de impiedosos caçadores de bruxas, quem sabe o que a pobre rapariguinha portuguesa
teria dito depois de a terem aterrorizado. Pensar em Simon, noutros tempos tão compassivo, a aterrorizar alguém era algo que repugnava Miri. Colocou-se atrás da
cadeira, agarrando-se às costas. Estava determinada a não admitir a existência das reuniões do conselho convocadas por Ariane, mas disse:
- Se a Ariane e o Renard ouviram rumores acerca desse livro, decerto que investigariam o assunto apenas para tranquilizar as pessoas. Mas nenhum deles, o que posso
garantir-vos, teria o mínimo interesse em adquirir esse tal Livro das Sombras.
- A sério? - Simon levantou-se lentamente da beira da mesa, pondo-se de pé com a leveza felina de Necromante. - Os meus homens e eu encontrámos a pessoa que trouxe
o livro da Irlanda. Infelizmente, Monsieur ODonal ficou fatalmente ferido quando tentou escapar-nos. Rogou uma praga em gaélico antes de morrer e não fiquei a saber
mais nada que ele me pudesse ter dito. Tinha poucas coisas além de um alforge cheio de moedas de ouro e jóias muito valiosas. E onde é que vos parece que um vagabundo
imundo teria adquirido um tesouro desses?
- Não faço a mínima ideia. Talvez fosse um ladrão.
- Ou talvez fosse um feiticeiro, à semelhança do vosso cunhado, e ambos tenham chegado a um acordo satisfatório entre os dois.
- Isso é um rematado disparate.
Simon tirou-lhe a cadeira das mãos, empurrando-a para o lado. Miri cambaleou para trás quando ele se aproximou, os seus movimentos lentos e com uma atitude predatória.
Miri recordou-se do que o seu gato dissera tantas vezes a respeito de Simon.
"Tem cuidado com ele, filha da Terra. Ele é um caçador."
Miri retrocedeu até a parede a ter impedido de continuar. Simon encurralou-a, firmando as mãos na parede, colocando Miri no meio dos seus braços
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e inclinando-se tanto para ela que o peito dele roçava muito ao de leve no corpete de Miri. A expressão nos seus olhos era suave, ensombrada e implacável simultaneamente.
- Se souberdes quem adquiriu esse livro, Miri, andaríeis bem se me dissésseis.
Miri sentia o coração a bater-lhe como se quisesse saltar-lhe do peito. Mas levantou o queixo numa atitude de desafio, recusando-se a permitir que Le Balafre a intimidasse.
Independentemente do nome que ele adotara para si próprio, para ela ele continuava a ser o Simon que conhecera.
- Como é que posso dizer-vos quem adquiriu uma determinada coisa de cuja existência nem sequer tenho a certeza?
- Desde sempre que acreditastes em tudo e mais alguma coisa. Se acreditais em unicórnios, também tendes de acreditar em dragões.
- Não há nada de errado com os dragões. Eles só expelem fogo quando se sentem encurralados e são forçados a defenderem-se de cavaleiros... ou de caçadores idiotas.
Simon mostrou os dentes num sorriso muito fugaz, mas não foi um sorriso agradável. Pegou numa pequena madeixa do cabelo de um louro-esbranquiçado dela e enrolou-a
no dedo.
- Porque viestes aqui realmente, Miri?
- Porque supus, tolamente, que poderia fazer algum bem e... e Deus me ajude, queria voltar a ver-vos.
- Dizeis bem, que Deus vos ajude. Tendes a infelicidade de pertencer a uma família que tresanda a bruxaria, através da vossa própria mãe e agora devido ao desgraçado
casamento da vossa irmã com o diabo, o Renard. Tenho de vos avisar que estou determinado a encontrar esse livro e arrancar o mal pela raiz em toda a França de uma
vez por todas. Para vosso bem, deveis manter-vos afastada de mim.
- Ou o quê? Tencionais acusar-me de bruxaria? Condenar-me a morrer na fogueira?
- Eu não condeno bruxas a morrerem na fogueira, Miri, passo-as de imediato a fio de espada. É mais rápido e muito mais eficaz. - Simon continuava a ter o cabelo
dela enrolado no dedo quando tirou um punhal do cinto.
Miri ficou com a respiração presa na garganta. Quando ele ergueu o punhal, durante um momento aterrador pensou que lhe iria cortar a garganta. Em vez disso, sentiu
um forte puxão quando Simon lhe cortou um anel de cabelo, dizendo com uma suavidade arrepiante:
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- E agora... acho bem que deveis partir. Voltai para casa, Miri. Regressai à ilha Encantada.
Levou os dedos trementes aos cabelos cortados e olhou fixamente para ele. O olho escuro que a fitava tinha uma expressão tão vazia e fria que a forçou a aceitar
a realidade. Se, de facto, restasse alguma coisa do Simon Aristide que ela conhecera, estava enterrada tão fundo que Miri jamais conseguiria chegar-lhe.
Sem dizer mais nada, afastou-se dele e encaminhou-se para a porta, abrindo-a com brusquidão e saindo rapidamente num passo apressado. As sentinelas, as escadas e
os homens que se encontravam na taberna no piso térreo não passavam de uma mancha turva. Não se deteve até chegar ao pátio num passo cambaleante.
Só então é que se apercebeu de que tremia que nem varas verdes.
Envolveu o corpo nos seus próprios braços num esforço para readquirir o controlo sobre si própria. Tinha-se preocupado com Simon durante tanto tempo, perguntando-se
o que seria feito dele. Teria sido preferível que nunca tivesse sabido. Gabrielle e o Necromante tinham tido razão. Nunca devia ter
ido ali.
Só queria voltar para a sua alcova em casa da irmã e aninhar-se na cama como uma criatura da floresta que se tivesse refugiado na sua toca a lamber as feridas. Mas
avistou Lobo no outro lado do pátio, prestes a ter uma altercação com um dos guardas e preparando-se para ir à sua procura.
Miri sentiu que o coração lhe caía aos pés. Por muito prestável que Lobo tivesse sido ao acompanhá-la até ali, desejava ter podido evitá-lo. Não estava capaz de
responder às inúmeras perguntas que decerto ele lhe faria, nem tão-pouco estava capaz de ouvir as suas dramáticas declarações de amor.
Quando já se dirigia para ele, o rapaz pôs fim à acalorada discussão com o guarda. com um olhar radiante, correu para Miri.
- Até que enfim, meu amor. Eu já me preparava para...
Interrompeu-se, fitando-a com uma expressão perspicaz. Viu alguma coisa no semblante dela que devia tê-lo silenciado. Os olhos verdes suavizaram-se com uma compaixão
tão inesperada e intensa que Miri esteve quase a ir-se abaixo. Lobo não lhe fez quaisquer perguntas. Também não acrescentou mais nada. Antes que ela se embaraçasse
a si própria, desatando a chorar desabaladamente em frente de todos aqueles homens grosseiros, o rapaz pegou-lhe na mão e gentilmente levou-a dali para fora.
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Simon mantinha-se junto da janela, mas bastante afastado para o lado de modo a não poder ser visto por quem estivesse no pátio mais abaixo. Viu Miri a dar a mão
a um rapaz de cabelo escuro, tão confiantemente como, em tempos, dera a mão ao próprio Simon. Ver aquilo produziu um estranho efeito nele, enchendo-o de um enorme
anseio e inveja.
Esforçou-se por abafar essa sensação, como era costume fazer com qualquer emoção que não contribuísse para a sua impiedosa eficiência. Baixou o olhar até ao punho
cerrado e vagarosamente abriu os dedos para examinar o anel de cabelo de Miri. Estava na palma da sua mão como um caracol sedoso de luz do luar. Ele devia forçar
o fecho e atirá-lo pela janela fora para se livrar daquele anel de cabelo, juntamente com a recordação que guardava dela.
Ao invés disso, levou o anel de cabelo às narinas, constatando que continuava a ter uma ténue fragrância que era indescritível, como a essência doce e impetuosa
do espírito de Miri, que o levava de regresso aos poucos dias que haviam passado juntos na ilha Encantada. Apesar da relação dela com outras bruxas, ele sentira
que tinha de a proteger, plenamente convencido da sua inocência. Tinha tido afeto por ela, quase como o de um irmão por uma irmã. Ela lembrava-lhe pungentemente
a sua irmã mais nova. Marie, que, à semelhança do resto da sua família e da maior parte dos habitantes da aldeia, fora chacinada pela bruxa velha que envenenara
a água do poço.
Todavia, Miri Cheney já não lhe recordava minimamente uma irmã mais nova. Crescera, tinha ficado com formas de mulher feita, mas, apesar das linhas curvilíneas,
não perdera a sua aura de inocência. E aqueles olhos tão peculiares, de um azul-prateado, também não tinham mudado, aquela expressão radiante que parecia capaz de
iluminar os recantos da alma de um homem que seria preferível que permanecessem na escuridão, sondando veredas no seu coração que ele já não queria que fossem exploradas.
Por que diabo é que ela tinha de estar em Paris precisamente agora? O que é que a levara a ir falar com ele? Miri sempre fizera com que se sentisse demasiado brando
e sentimental, além de terno, quando não podia dar-se ao luxo de nenhuma dessas emoções. Depois do seu duelo com o feiticeiro Renard, Simon procurara refúgio como
uma besta ferida. O seu mestre morto, todo o seu mundo num estado caótico, sentira-se, uma vez mais, perdido e abandonado. Mas, graças ao dinheiro que Lê Vis tinha
escondido em sua casa, e que ele tratou de ir buscar, conseguira sobreviver.
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Mais do que sobreviver... Ele endurecera e tinha ficado mais forte. Em tempos cheio de dúvidas quanto à sua capacidade como caçador de bruxas, descobrira em si um
talento extraordinário para encontrar o mal, bem como para chefiar homens. Quando Simon abraçou de corpo e alma a sua sinistra atividade, resignara-se a viver com
os perigos da sua opção, a uma existência solitária a que essa escolha de vida o forçava. Nunca se permitira albergar quaisquer arrependimentos... até agora.
Mas ao ver Miri e o seu companheiro a desaparecerem entre a multidão na rua fora da estalagem, não foi capaz de evitar refletir na ironia daquela situação. Encontrava-se
ali, em Paris, uma das cidades mais populosas da Europa.
Contudo, nunca se sentira tão sozinho.
A brisa matinal agitava alguns cabelos de Gabrielle, que estava aninhada no assento da janela. Tinha muito a fazer, os preparativos para fechar a casa, indemnizar
os seus servos, saldar quaisquer dívidas antes de deixar Paris com Remy. Apesar de tudo o que ainda tinha de fazer, parecia incapaz de se mexer. Bocejou e espreguiçou-se
com toda a languidez de contentamento de uma gata, o seu corpo ainda radiante e repleto da última vez que fizera amor com Remy. Durante os últimos dois dias, Gabrielle
tinha tido uma sensação de paz muito rara na sua natureza inquieta, não obstante a ameaça que os caçadores de bruxas e a Rainha das Trevas representavam estar sempre
presente.
Encostou-se à caixilharia da janela, olhando sonhadoramente para um mundo que como que renascera, desde a vegetação verdejante do seu jardim até ao firmamento de
um azul tão intenso que a impelia a olhá-lo. Sentia-se como se, durante os últimos anos, tivesse estado a ver a vida através de um véu que subitamente fora rasgado.
Podia ver outra vez as cores em todo o seu fulgor, todos os intrincados pormenores, até mesmo o orvalho nas pétalas da rosa mais pequena.
Sentia um formigueiro nos dedos com a familiar vontade de pegar num pincel para pintar. Pensar que a magia perdida poderia estar a retornar enchia-a tanto de esperança
como de medo porque talvez isso não fosse verdade. Quem sabe se não se veria diante de uma tela em branco para voltar a fracassar, acabando por se sentir esmagada
pela deceção.
Mas agora não era a melhor altura para tentar, não quando ela e Remy tinham tantas dificuldades a superar, principalmente o resgate do rei de Navarra. Remy andava
muito atarefado a procurar huguenotes leais, recrutando
homens de armas em que pudesse confiar. Coubera a Gabrielle o papel de intermediária, levando mensagens de Remy ao rei de Navarra.
Tinha precisado de toda a sua capacidade de persuasão, mas conseguira convencer Remy a não voltar ao Louvre. Seria demasiado arriscado e não só devido ao perigo
que a sua vida correria, mas também porque ele tinha tão pouca capacidade de dissimulação que Gabrielle receava que uma expressão no seu semblante levasse o rei
de Navarra a adivinhar qual a situação entre ela e Remy.
Gabrielle já tinha tido bastante dificuldade em não deixar adivinhar na sua fisionomia o que se passava quando ontem encontrou o rei de Navarra na corte. Conseguira
encontrar uma desculpa por ter abandonado o torneio tão abruptamente, o que atribuiu ao facto de a irmã se ter sentido mal. Mas a sua intervenção no duelo de Remy
fora muito mais difícil de explicar.
Gabrielle franziu as sobrancelhas ao recordar a conversa, ainda sem saber ao certo se o rei de Navarra teria acreditado...
"... e vi com clareza como o duelo era uma cilada armada ao capitão, razão por que me apressei a por-lhe cobro. Eu... eu sei o quanto o capitão é importante para
vós."
"Para mim?", perguntara-lhe o rei suavemente. Não obstante a sua postura de apatia, os seus olhos espelhavam demasiada argúcia para o gosto de Gabrielle, que se
esforçou por não enrubescer.
"Ao fim e ao cabo, ele é o vosso Flagelo, o vosso apoiante mais leal, a vossa maior esperança de conseguirdes recuperar a liberdade."
"Talvez sim", murmurara o rei de Navarra. "Na verdade, o capitão é um bom homem e em quem se pode confiar, mas é muito possível que ele me venha a prejudicar sem
que tenha a intenção de o fazer."
"O quê... o que é que quereis dizer com isso?"
"Apenas que acreditei que o regresso de Nicolas Remy fosse uma grande bênção. Mas agora não tenho assim tanta certeza disso. Tenho-me esforçado ao máximo para apresentar
a fachada de bobo nesta corte, com o objetivo de convencer a rainha Catarina de que o meu cativeiro não me incomoda minimamente. Mas receio que a presença de Remy
aqui só serviu para que voltassem a desconfiar de mim. Sou vigiado mais apertadamente do que nunca."
A mão do rei de Navarra fechou-se na de Gabrielle, mostrando uma expressão sombria muito invulgar nele.
"Não seria capaz de suportar que outra tentativa de fuga fracassasse, Gabrielle. Na minha opinião, seria preferível que afastássemos o nosso Flagelo, dizendo-lhe,
talvez, que fosse cuidar dos meus interesses em Béarn, enquanto vós e eu permaneceríamos em Paris,
381
continuando a observar e a aguardar, a atirar areia para os olhos da bainha das Trevas. O que é que vos parece, ma mie?
Gabríelle tinha tido grandes dificuldades em ocultar o quanto se sentira perturbada, enquanto Henrique levava a sua mão aos lábios, o olhar firme dele preso no seu
rosto...
Gabrielle estremeceu ao recordar-se desse momento tão constrangedor. Em que medida é que o desejo do rei em recambiar Remy de volta a Béarn se devia ao seu mal-estar
com o plano de fuga, e em que medida é que se devia ao facto de querer livrar-se de um rival? Era coisa que ela não sabia ao certo. Tivera de recorrer a todo o seu
encanto e inteligência para convencer o rei de Navarra de que devia continuar a confiar em Remy, para o persuadir a concordar com os planos do capitão. Sendo os
mexericos o que eram entre os parisienses, Gabrielle só rezava para que o monarca não viesse a inteirar-se de que Remy agora partilhava o seu leito.
Gostava e respeitava o rei de Navarra genuinamente. Era-lhe difícil ludibriá-lo, quase tão difícil como ocultar a Remy que o seu rei tinha dúvidas a seu respeito.
Mas ele já tinha muito com que se preocupar por ter de se ocupar dos aspetos práticos da fuga.
Ao olhar pela janela da alcova, viu-o chegar ao jardim. Tinha ido logo de manhã ao seu alojamento para ir buscar os seus pertences. Conseguira persuadir Remy a mudar-se
para a sua casa. Argumentara que fazia todo o sentido, mas o aspeto prático da mudança não tinha nada a ver com o assunto. com todos os perigos que os ameaçavam,
Gabrielle não se atrevia a deixar o homem fora da sua vista.
Quando Remy já se dirigia para o portão, foi distraído pelos dois filhos, que tinham um cabelo de um louro muito claro, de Phillipe, o chefe dos jardineiros. Recentemente,
tinha tratado de pôr o filho e a filha em casa de uma tia que vivia no campo. Jacques e Elise eram duas crianças que pareciam andar perdidas, as pernas pequenas
a balouçarem do banco corrido de pedra e de olhos baixos. Outro homem qualquer não as teria olhado uma segunda vez. Mas Remy agachou-se diante das crianças, começando
a conversar com elas e mostrando-se muito interessado.
Elise, muito tímida, escondeu a cara no ombro do irmão. Para perplexidade de Gabrielle, Remy endireitou-se, levantou as mãos num gesto ameaçador e soltou um sonoro
rugido. A guinchar, as crianças saltaram do banco e Remy começou a correr atrás delas em volta dos roseirais, continuando a rugir. Gabrielle ficou de boca aberta,
inclinando-se tanto para fora da janela que corria o perigo de cair do peitoril abaixo.
382
Remy apanhou as crianças junto de um pilriteiro. Deixou-se cair de joelhos, os dedos dobrados como se fossem garras. Jacques gritou e brandiu um pau para o manter
à distância. Elise acocorou-se atrás do irmão, os olhos muito abertos e a tremer de entusiasmo. Remy atirou a cabeça para trás e soltou um rugido digno de um dragão.
Olhou de relance para cima e viu Gabrielle à janela acima de si. Acenou-lhe com um sorriso arrapazado que lhe emprestava tanta ternura. Viu que não era a única que
mudara devido a tudo o que ambos haviam partilhado na noite anterior. Era como se ele tivesse rejuvenescido vários anos, o que lhe dava uma aparência muito mais
jovem. A luz do Sol refletia-se no cabelo despenteado, o fio bem visível por baixo do gibão parcialmente aberto no peito.
Continuava a insistir em usar o medalhão de Cassandra, para grande perturbação de Gabrielle. Mas Remy só o usava por ter sido ela a oferecer-lho. Acarinhava o amuleto
como sinal do amor que ela lhe dedicava e do desejo de o proteger. Mas se Remy soubesse como ela ficara na posse daquele medalhão, o que sentiria em relação ao amuleto
seria muito diferente.
Nada de mais segredos, prometera-lhe ela. Devia contar-lhe a verdade, mas não conseguia reunir coragem para isso. O amor que desabrochara entre os dois parecia-lhe
ser demasiado recente para se arriscar a espezinhá-lo aquando de uma discussão. A sua intenção era, numa noite daquelas, enquanto ele estivesse a dormir, tratar
de fazer com que o medalhão desaparecesse, após o que arranjaria um símbolo do amor que lhe dedicava, de sua autoria, para substituir aquele amuleto. Mas, por agora,
não tencionava fazer nada que pudesse pôr em risco a harmonia que existia entre os dois. Sorriu-Ihe com ternura, ao seu dragão, e acenou-lhe quando Jacques lhe espetou
o pau nas costelas.
O ataque apanhou Remy de surpresa, o que se viu por ter soltado uma exclamação de sobressalto. Gabrielle levou a mão aos lábios para conter o riso. Remy cambaleou,
representando o seu papel com uma veracidade que teria sido o orgulho de um ator ambulante. Deixou-se cair de costas, a rugir e a espernear como se fosse um dragão
nas vascas da morte. Abrindo os braços completamente para os lados, Remy imobilizou-se. Sorrateiramente, Jacques e Elise aproximaram-se para o espreitar. Quando
já estavam ao alcance dele, o dragão voltou à vida de repente com outro rugido, agarrando-os e fingindo que lutava com eles em cima de si. No entanto, o seu Flagelo
era um dragão tão terno, suficientemente ameaçador para deliciar o turbulento
383
Jacques, mas tendo o cuidado de não se exceder na brincadeira com a pequena Elise.
Remy daria um bom pai. Aquele pensamento apanhou Gabrielle de surpresa e involuntariamente a sua mão pousou no ventre. Tinha recorrido a todos os truques ao dispor
das mulheres sábias de que tinha conhecimento para não engravidar de qualquer dos seus outros amantes. Mas ontem à noite não tomara qualquer precaução. Não seria
de surpreender que tivesse concebido.
Ao invés de a alarmar, a probabilidade de ter um filho de Remy deixava-a maravilhada, fazendo com que se sentisse a derreter por dentro. Talvez pudesse dar um filho
a Remy, um garotinho indomável com pernas robustas e cabelo louro, assim como com os olhos castanhos dele...
Naquele momento, bateram à porta da alcova, despertando-a dos seus devaneios. com relutância, Gabrielle desviou o olhar de Remy.
- Entre.
Bette abriu a porta e entrou. A criada, habitualmente espevitada, mostrava-se um tanto vexada.
- Peço perdão, minha senhora, mas chegou alguém que exige falar convosco.
Gabrielle bocejou e espreguiçou-se.
- Diz a quem quer que seja que se vá embora e que volte mais tarde. Isto não são horas de receber visitas.
- Mas é aquela mulher, a Lascelles.
Gabrielle ficou a olhar para a criada muito surpreendida.
- A Cassandra? Ela... ela está aqui?
- Sim e insiste em ver-vos. Está lá em baixo com a criada e um cão que é uma besta; parece estar preparado para rasgar a garganta de quem quer que se abeire dele.
Os lacaios estão com medo de se aproximarem do cão. Mas estou em crer que ouvi o capitão Remy no jardim. Tenho a certeza de que ele poderia livrar-nos...
- Não! - atalhou Gabrielle, levantando-se apressadamente do assento da janela. - Prefiro que o capitão Remy não saiba da visita de Mademoiselle Lascelles. Ele não
veria a nossa amizade com bons olhos.
- Sem dúvida que não, milady. Ela é uma criatura perigosa, pelo que ouvi dizer a respeito dela. Obviamente, ela veio cá determinada a não fazer bem nenhum.
384 ( ( (
- E, obviamente, passaste tempo de mais na má-língua com o gato da Miri - ripostou Gabrielle. - Leva Mademoiselle Lascelles para a saleta nas traseiras da casa.
Não tardo a descer.
- Muito bem, milady. - Mas a fungadela de reprovação de Bette mostrava que não achava que aquela situação estivesse bem.
Quando Bette saiu para cumprir as suas ordens, Gabrielle arranjou-se à pressa, vestindo um dos seus vestidos mais simples e prendendo o cabelo numa rede fina. Antes
de sair da alcova, olhou ansiosamente para o jardim. Remy continuava entretido com as crianças. com um pouco de sorte, ele acabaria por sair para ir ao seu alojamento,
o que lhe permitiria inteirar-se do que Cassandra pretendia antes que ele voltasse.
Aquela não era a melhor altura para ela ter decidido sair do seu isolamento. Não com Aristide e os seus caçadores de bruxas à caça por Paris. Se a história da família
de Cassandra e a sua ligação à Maison dEsprit fossem descobertas... Gabrielle estremeceu ao pensar no que poderia acontecer à sua amiga.
Gabrielle apressou-se a descer as escadas e encaminhou-se para a saleta. Para sua irritação, deparou com Finette encostada à porta com as mãos na cintura, como se
estivesse de guarda à entrada. Gabrielle retraiu-se ao sentir o cheiro a azedo da desmazelada mulher a chegar-lhe às narinas.
- A senhora está à sua espera lá dentro - informou como se a casa pertencesse a Cassandra e não a Gabrielle.
- Sei que ela está lá dentro - retorquiu com frieza.
Finette pegou nas dobras do vestido sujo quando lhe fez uma vénia. Olhava para ela com aquela expressão matreira que tinha o condão de fazer com que a Gabrielle
só apetecesse esbofeteá-la. Passou pela criada, esforçando-se por não lhe tocar e por ocultar a repugnância que ela lhe inspirava.
Entrou na saleta e fechou a porta firmemente na cara de Finette. Aquela pequena sala era usada, principalmente, como casa de costura. Estava mobilada com simplicidade,
mas confortavelmente, com uma mesa, alguns bancos e um banco corrido com braços e costas altas cheio de almofadas bordadas. As janelas estavam viradas a ocidente,
o que permitia uma luz excelente para os trabalhos de agulha ao final da tarde.
Cass aguardava-a perto de uma dessas janelas, com o cão sentado no chão ao seu lado. O mastim tentou levantar-se quando Gabrielle entrou, mas ela refreou-o firmemente,
puxando a resistente trela de couro. Gabrielle estacou e pestanejou surpreendida ao ver a transformação em Cassandra Lascelles. Não mostrava o mínimo vestígio da
mulher macilenta, e de aspeto doentio, que vivia em reclusão, com os habituais olhos raiados de vermelho
Com a cabeleira emaranhada. O cabelo escuro de Cassandra caía-lhe em ondas
suaves pelos ombros, com um diadema em ouro muito simples à largura da
fronte. Em vez de um dos seus vestidos desbotados, que de costume lhe
pendiam desenxabidos dos ombros magros, envergava um vestido novo.
O corte era simples, sem saias rodadas nem anquinhas, e a seda cor de vinho
coadunava-se na perfeição com a pele branca e o cabelo de um tom de ébano.
Não usava nenhum folho em volta da garganta esguia, mas sim uma pesada
corrente de prata que lhe pendia do pescoço por dentro do corpete bordado
do vestido.
Cassandra tinha uma postura ereta e com a cabeça bem erguida, mostrando um estranho brilho nos olhos habitualmente baços. Lembrava-lhe o aprumo majestoso dela durante
a sessão de espiritismo, ocasião em que Cassandra se mostrara, inesperadamente, forte e poderosa. Apesar do seu sentido auditivo sempre tão apurado, Cass não pareceu
dar pela chegada de Gabrielle à saleta. Tinha a cabeça inclinada de lado, toda a sua atenção concentrada nos sons que se ouviam pela janela aberta. O riso de Remy
associado aos gritos de contentamento das crianças.
Gabrielle tivera tanto cuidado em falar com ela numa das partes mais reconditas da casa que se esquecera de que as janelas da saleta davam para os jardins. Apercebendo-se
disso, sentiu algum mal-estar ao ver a expressão de
êxtase na fisionomia dela.
- Cass? - chamou, aproximando-se mais dela e fazendo com que Cérbero ladrasse, mas o cão batia com a cauda no chão de uma maneira amigável.
Cassandra esboçou um sorriso caloroso, estendendo a mão na direção da voz de Gabrielle. Assim que esta se colocou ao seu alcance, agarrou-a e passou um braço em
volta dela, abraçando-a fortemente. Até mesmo Cérbero lhe lambeu a mão como se satisfeito por a ver. Retribuiu o abraço murmurando:
- Mas que grande surpresa.
- Espero que não seja uma surpresa desagradável.
- N... não - replicou Gabrielle, olhando por cima do ombro de Cassandra para os jardins, onde Remy pusera a pequena Elise às cavalitas nos seus fortes ombros. Sentiu
alívio ao ver que ele se afastava mais da casa, encaminhando-se para o portão do jardim. Pegou no cotovelo de Cass, afastando-a
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das janelas. - Vem sentar-te. vou chamar a minha governanta para que nos traga um pouco de vinho.
- Não! - ripostou Cassandra com brusquidão. Humedeceu os lábios e suavizou a expressão do rosto. - Quero dizer... não, obrigada. Tenho andado a tentar vencer o meu
velho demónio, evitando todas as bebidas alcoólicas. Preciso de manter as ideias claras, mas a batalha não tem sido nada fácil.
Ergueu uma mão que tremia acentuadamente. Gabrielle agarrou-lhe os dedos para pôr fim ao tremor.
- Mas isso é maravilhoso! - exclamou. - É evidente que estás a conseguir. Nunca te tinha visto com tão boa aparência. Tão forte e bonita.
- vou ter de acreditar no que me dizes - retorquiu Cassandra com secura, enquanto Gabrielle a levava para o banco de costas altas. Cass sentou-se, com Cérbero a
sentar-se sobre os quartos traseiros aos seus pés. Quando Gabrielle tentou afastar-se dela, Cassandra apertou-lhe a mão com força.
"Não preciso de te perguntar como é que tens passado porque me apercebo disso. Estás absolutamente radiante. Tu e o capitão Remy devem estar a dar-se muito bem.
De facto, muitíssimo bem.
Desconcertada com a maneira como Cassandra era capaz de a ler apenas com o toque dos seus dedos, Gabrielle fez pressão para libertar a mão. Sentiu um intenso rubor
nas faces.
- Sim, as coisas estão a correr muito bem entre nós. - Sentou-se num dos banquinhos, colocando-se perto das janelas, de onde poderia ficar de olho em Remy. Tão sucintamente
quanto lhe foi possível, contou a Cass o que tinha acontecido durante o torneio, pondo-a ao corrente das decisões
que tomara.
Cassandra ouvia-a sem a interromper, a cabeça maciça de Cérbero pousada no colo da dona. Recostou-se nas costas do banco corrido, coçando as orelhas do cão com uma
expressão de alheamento. Quando Gabrielle concluiu o que estava a dizer-lhe, Cassandra abanou a cabeça, uma nota divertida, embora calorosa, no seu tom de voz.
- Portanto, tencionas fugir ao teu grandioso destino, estás disposta a perder tudo em nome do amor? Ah, minha tola Gabrielle.
- Talvez sim. Mas, por outro lado, talvez esteja a agir com sensatez pela primeira vez na minha vida.
- E tencionavas deixar Paris sem sequer te despedires de mim?
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- Claro que não. Se não tivesses vindo a minha casa, tinha a intenção de te visitar na Maison dEsprit, quanto mais não fosse para te avisar da presença na cidade
dos caçadores de bruxas, certificando-me de que estavas bem.
- Pergunto a mim mesma se te terias lembrado de fazer isso - retorquiu Cass, imobilizando a mão na cabeça do cão.
- com certeza que teria feito isso - reiterou Gabrielle, surpreendida com a expressão de melancolia que ensombrava a fisionomia dela. - Somos amigas, não é verdade?
- Sim... como irmãs. És capaz de ter adivinhado a razão que me trouxe
a tua casa.
- Não, tenho de confessar que não faço a mínima ideia. E muito raro que saias da Maison dEsprit, e para te arriscares a isso nesta altura, quando os caçadores de
bruxas invadiram Paris...
- E o que é que isso importa - atalhou Cassandra com um gesto de indiferença. - Já te tinha dito que os caçadores de bruxas não me causam preocupação. Não seria
a primeira vez que os encontro.
Essa experiência havia sido bastante horrenda, o suficiente para traumatizar qualquer mulher para o resto da sua vida. Ela perdera toda a sua família. Gabrielle
não era capaz de compreender como é que Cass conseguia falar com tanta displicência de um acontecimento tão trágico, mas talvez essa fosse a maneira de ela conseguir
aceitar o sofrimento que isso lhe causara. Cassandra recomeçou a fazer festas no cão.
- Só vim a tua casa hoje para que cumpras a promessa que me fizeste, ou seja, fazeres-me um favor por te teres servido da minha capacidade de conjurar os mortos.
Estás recordada disso, não estás?
- com certeza que sim. Há muito que tenho ansiado poder pagar-te, em especial se o que queres estiver relacionado com saíres daquela deplorável câmara da antiga
masmorra onde te tens mantido escondida. Só tens de me dizer o que queres.
- Só quero uma pequena coisa. Nicolas Remy.
- O... o quê!?
- Antes de ficares demasiado perturbada, deixa-me que te explique. Só quero que mo emprestes por uma noite.
Gabrielle estava demasiado atordoada para dizer o que quer que fosse de imediato. Soltou uma risada de incerteza.
- Em nome dos céus, Cass. Por que razão é que queres que eu te empreste o Remy?
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- Minha querida Gabrielle - respondeu Cassandra numa voz arrastada.
- Por que razão é que uma mulher haveria de querer um espécime tão perfeito de homem como o teu capitão por uma noite?
- Para... para ires para a cama com ele?
- Não fiques assim tão chocada. Não se pode dizer que sejas uma criatura muito recatada e com rígidos princípios morais. Tiveste vários amantes. Portanto, podes
ceder-me, sem dificuldades de maior, o uso temporário deste.
Gabrielle levantou-se de um salto, o movimento repentino a fazer com que Cérbero levantasse a cabeça, olhando-a com desconfiança. Mas Gabrielle não conseguiu conter-se.
Não estava meramente chocada. Estava absolutamente aturdida com o pedido de Cassandra feito com tanta displicência.
- Não estamos a falar somente de um amante, mas sim do homem que eu amo - disse indignada. - E estás a pedir-me que to empreste como... como se ele fosse um cavalo.
- Mas ele virá a provar que é um garanhão de primeira água, espero eu.
- Os lábios de Cassandra esboçaram um trejeito lascivo. Quando Gabrielle ficou com a respiração suspensa, acrescentou com impaciência: - Mas que coisa! Eu só o quero
por uma noite.
Gabrielle começou a andar diante das janelas, mas deteve-se quase de imediato quando viu que estava a enervar o cão de Cassandra, o que não era muito sensato quando
se tratava de Cérbero. Estava absolutamente atordoada com a extraordinária natureza do pedido de Cass. Nunca nos seus sonhos mais estrambólicos poderia ter imaginado
que ela lhe exigisse algo semelhante.
- Não estou a compreender - disse. - Se o teu intuito é encontrar um amante, eu própria posso encontrar-te inúmeros. Porque tem de ser o Remy? Um homem com quem
nunca privaste, que nem nunca viste?
- Eu nunca vi nenhum homem - recordou-lhe Cassandra com rispidez. - Mas pressenti qualquer coisa em Remy na noite em que puseste o punho da espada dele nas minhas
mãos. Já nessa altura comecei a pensar que ele era o homem que serviria para os objetivos que tenho em mente.
- Mas que objetivos?
- Para me engravidar. Gabrielle fitou-a com incredulidade.
- Queres que o Remy te engravide? Mas houve uma ocasião em que me disseste que não tinhas o mínimo interesse em crianças, que nem sequer gostas de crianças.
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- Mas esta seria a minha criança, a minha filha. Tu não és a única que tem um grandioso destino à sua frente. É possível que decidas abdicar do teu, mas eu não abdico
do meu destino.
- Mas que destino é esse?
- O Nostradamus previu que eu seria a mãe de uma mulher que mudará o curso da História. Uma rainha entre rainhas. Tu pensaste que passarias a ter poder ao passares
a ser amante de um rei. Isso não seria nada quando comparado com o poder que a minha filha terá. - Cassandra sentou-se mais a direito, uma expressão exaltada espelhada
no seu rosto. - Não será um poder que lhe seja proporcionado por um homem, mas sim de que ela se apoderará por meio de uma revolução.
- Uma revolução!?
- Uma revolução de mulheres sábias. Conheces as lendas tão bem como eu, Gabrielle. Nos tempos em que as Filhas da Terra não eram escravas nem objetos dos homens,
quando podiam pôr em prática a sua magia e eram respeitadas, e não queimadas por bruxaria. O Nostradamus viu um futuro em que as mulheres ocuparão o lugar a que
têm direito como iguais dos homens. Não tenho a intenção de esperar uma eternidade, quando há muito que estarei a apodrecer debaixo da terra. Essas mudanças terão
lugar enquanto eu for viva, e, mais ainda, as Filhas da Terra destronarão monarcas e privarão os homens dos seus direitos. Eles passarão a ser nossos escravos. Temos
andado todas sem rumo na escuridão, mas a minha filha conduzir-nos-á em direção à luz. Ela será o nosso messias. Só te peço que penses nisso.
O único pensamento de Gabrielle era que Cassandra tinha vivido sozinha no seu subterrâneo durante tempo de mais. A mulher tinha enlouquecido. Teve de se conter para
não lhe dizer isso mesmo, levando em consideração que a intensidade da exaltação no semblante de Cassandra era bastante perturbadora.
- Ainda que o que tu me disseste venha a concretizar-se - começou a dizer -, por que motivo é que pretendes que o Remy seja o pai da filha que vieres a ter? Porque
tem de ser ele?
- Porque, quando toquei na espada dele, apercebi-me de qualidades nele que são inestimáveis, raiva, crueldade, a capacidade de destruir sem piedade.
- Essas são as facetas de Remy que ele mais deplora.
- Nesse caso, poderá transmitir essas facetas à nossa filha e ficar em paz e sossego.
- Não!
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- Não? - ecoou Cass, o início de uma ruga a formar-se entre as suas sobrancelhas.
Gabrielle humedeceu os lábios e disse num tom apaziguador, mas tão firme quanto lhe era possível:
- Lamento muito, Cass, mas estás a pedir-me a única coisa que não posso conceder-te. Pede-me outra coisa qualquer e terei todo o prazer em cumprir a promessa que
te fiz, mas o que me pedes... - Gabrielle não acrescentou mais nada, preparando-se para a explosão de cólera. Mas Cassandra ouviu a sua recusa com uma calma surpreendente,
limitando-se a um ténue suspiro. Firmando uma mão no braço do banco corrido, pôs-se de pé, com o cão a levantar-se ao mesmo tempo.
- Estás tão tolamente apaixonada pelo homem que receei que talvez não estivesses disposta a proceder com sensatez. Mas, ao contrário de ti, a vida ensinou-me a não
deixar o meu destino aos caprichos do acaso. Diz-me uma coisa. Onde é que o bom do capitão se encontra neste momento?
- O Remy saiu - respondeu Gabrielle, esperando ansiosamente que isso fosse verdade e que ele já tivesse saído para tratar da sua mudança.
- Ele... ele acabou de sair e não voltará tão depressa.
Cassandra levou a mão ao fio que trazia por baixo do corpete, inclinando a cabeça de lado com uma fisionomia de extrema concentração.
- Mas acontece que me parece que o capitão ainda se encontra aqui. Olha pela janela. Tenho a certeza de que o verás no extremo mais afastado do jardim.
com o coração a bater-lhe descompassadamente e sentindo-se enervada, Gabrielle olhou pela janela e constatou que ela tinha razão. Remy continuava nos jardins, embora
já bastante afastado para poder ouvi-las. Encontrava-se à sombra de um carvalho, inclinado para baixo, permitindo que o pequeno Jacques, maravilhado, examinasse
a sua espada, mas tomando todas as precauções.
- Tenho razão? - perguntou Cassandra. - Ele ainda não saiu?
- E verdade - respondeu Gabrielle, virando a cabeça para a fitar com um misto de confusão e desconfiança. - Mas como é que soubeste isso?
- Porque ele está a usar o amuleto que eu fiz. Aquele que é exatamente como o meu. - Cassandra puxou a corrente que trazia em volta do pescoço, tirando-a para fora
do peito e mostrando o medalhão que parecia semelhante ao de Remy até ao mais pequeno pormenor. Gabrielle sentiu um calafrio de apreensão que lhe percorreu todo
o corpo.
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"Os amuletos foram feitos do mesmo molde, do mesmo metal, são o mesmo talismã. Estão ligados precisamente como eu estou ligada ao teu capitão quando ele usa o amuleto.
Estás lembrada do que eu te disse com respeito ao que o amuleto pode fazer?
- Disseste que ajudaria o Remy a aperceber-se de qualquer perigo, Mas, obviamente, não resulta.
- Não foram essas as palavras exatas que eu disse - retorquiu Cassandra com uma risada enrouquecida. - Eu disse que faria com que o capitão se apercebesse da presença
de quem lhe quisesse fazer mal. Observa o que estou prestes a fazer, mas fica de olho no teu Flagelo.
Cass colocou o medalhão na palma da mão e fez pressão com o amuleto no ombro, os olhos como que vidrados enquanto articulava entredentes algumas palavras guturais.
Gabrielle virou-se outra vez para a janela com uma sensação de mal-estar. Apesar da distância que os separava, viu que Remy empalidecia e deixava cair a espada.
A cambalear, encostou-se ao tronco da árvore, com uma mão agarrada ao ombro, dobrando-se sobre si próprio de dor. Os filhos do jardineiro ficaram assustados e afastaram-se
dele.
Gabrielle ficou petrificada por breves momentos, incapaz de acreditar que Cassandra pudesse... Virou-se para ela indignada e gritou-lhe numa voz esganiçada:
- O que é que estás a fazer-lhe? Para imediatamente! Aproximou-se de Cass com brusquidão para lhe tirar o amuleto da mão.
Cérbero rosnou, mostrando-se agressivo e mantendo-a afastada da dona. Quando Gabrielle olhou em volta à procura de algo que pudesse usar como arma, Cass deixou que
o medalhão pendesse do fio. Gabrielle voltou a encostar o rosto ao vidro da janela, olhando para Remy ansiosamente. Para seu grande alívio, ele endireitou-se e as
feições desanuviaram-se-lhe. Mostrando-se intrigado, esfregou o ombro e depois baixou-se para apanhar a espada do chão.
- Dá-me essa coisa. Imediatamente! - Gabrielle avançou para Cassandra, estendendo-lhe a mão num gesto autoritário, ignorando o ladrar feroz que o seu tom de voz
provocava em Cérbero.
- Vê se te acalmas, Gabrielle. E tu também, meu menino. - Cassandra baixou a mão e pousou-a na cabeça do cão, aquietando-o com uma ordem dada em voz baixa. O mastim
voltou a sentar-se ao lado dela, embora mantivesse o olhar ameaçador em Gabrielle. - O que acabaste de ver não passou de uma pequena demonstração do meu poder, Gabrielle.
Só levei o medalhão ao meu ombro. O que é que te parece que aconteceria ao Remy se eu
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colocasse o amuleto junto do meu coração? Eu digo-te o que é que aconteceria. Podia fazer com que o coração de Remy deixasse de bater antes mesmo de respirares fundo
para o avisares.
- Não, por favor. Por amor de Deus, Cass. Não faças isso!
- Não tenho a mínima intenção de fazer mal ao teu Flagelo. Não, desde que tu sejas razoável e cooperes com os meus planos. Mas que nem sequer te passe pela cabeça
que poderás neutralizar os meus poderes ao pensares que sou cega e estou indefesa. Posso agir com muito mais rapidez do que tu. Só é preciso um toque, uma palavra.
Tenta tirar-me este medalhão e estarás a ditar a sentença de morte dele. E, a partir deste momento, se ele tentar tirar o seu medalhão, ele morre. E agora mantém-te
afastada de mim.
Cérbero reforçou a ordem de Cassandra rosnando outra vez. Relutantemente, Gabrielle obedeceu. O cão, que lhe lambera a mão apenas alguns minutos antes, parecia agora
estar pronto para lhe arrancar o coração do peito, e a mulher que ingenuamente considerara sua amiga parecia muito capaz de lhe fazer a mesma coisa.
Dividida entre sentimentos de mágoa e cólera, perguntou angustiada a Cassandra:
- Porque estás a fazer isto? Disseste que eu tinha passado a ser como uma irmã para ti.
- Uma irmã egoísta - ripostou Cass com azedume. - Tu tens tudo. Beleza, inteligência, uma família que te acarinha e não perdeste a visão. Além de tudo isso, tens
um homem magnífico que te ama e que continuará a amar-te depois de eu fazer o que tenho de fazer com ele. Sem dúvida alguma que podes ser generosa, permitindo-me
que eu o tenha por uma noite.
- Mesmo que eu concordasse com o teu plano absolutamente louco, o Remy não é meu escravo para fazer o que eu quero. Ele nunca irá para a cama contigo, ainda que
ameaces a sua vida. Ele não é o género de homem que vá para a cama com uma mulher levianamente e a engravide.
- Estou bem ciente do preocupante sentido de honra do capitão. Tudo o que tens de fazer é arranjar maneira de ele me visitar. A partir do momento em que ele estiver
comigo, eu tratarei do resto - acrescentou Cassandra com uma expressão escarnecedora. - Sou capaz de preparar perfumes e afrodisíacos suficientemente potentes até
mesmo para dominar os seus nobres escrúpulos. Faz-se com que um homem fique excitado e são muito raros os que continuam a obedecer aos seus escrúpulos. Eu até podia
seduzir o próprio papa se quisesse.
393
- Nesse caso, porque não vais seduzir o Remy? - perguntou Gabrielle autoritariamente. - Porquê dares-te ao trabalho de me envolver?
- Porque tenho de ter a certeza de que ele estará disponível exatamente na noite em que preciso dos seus serviços, que não esteja ocupado com outra coisa qualquer.
Além disso, terá mais significado se ele vier ter comigo como uma oferta da tua parte. Isso servirá para fortalecer os laços da nossa amizade.
- Se essa é a ideia que fazes de uma amizade, eu sentir-me-ia aterrorizada se fosse tua inimiga.
- Sim, sem dúvida - replicou Cassandra com um sorriso arrepiante.
- Tu... tu és pior do que a Rainha das Trevas.
- Aceito isso como um elogio - retorquiu Cassandra com um encolher de ombros. - Lamento que a nossa transação tenha descambado de maneira tão desagradável. Depois
de ter passado a minha noite com o teu capitão, prometo-te que podes ficar com o meu medalhão. Acredita em mim. Nenhuma mulher poderia ter um método mais eficaz
de manter o amante sob controlo.
- O gato da Miri tinha razão a teu respeito. Tu... tu és o demónio.
- Não, sou uma mulher prática que procura concretizar o seu destino da melhor maneira que lhe é possível. Exatamente como tu costumavas fazer até teres sucumbido
ao amor. Mas sofreste um choque enorme. vou dar-te uns momentos para refletires na minha proposta. A Lua estará cheia daqui a duas noites. De acordo com as minhas
contas, o mesmo acontecerá ao meu útero. Informa-me da tua decisão antes do pôr do Sol de hoje. É claro que ambas já sabemos qual deve ser a tua resposta à minha
proposta.
Muito depois de Cass a ter deixado, Gabrielle continuava na pequena sala. O sol entrava a jorros pelas janelas e os pássaros chilreavam nos jardins, os seus trinados
igualmente radiantes, as folhas roçagavam suavemente quando a brisa agitava as ramagens das árvores. Mas Gabrielle estava alheada de tudo aquilo. Sentava-se no banco
corrido com as mãos a ocultarem-lhe o rosto. A recente visita de Cassandra Lascelles estava a adquirir as proporções de um pesadelo. E ela própria era responsável
por esse pesadelo. Se não tivesse mentido a Remy quanto à proveniência do medalhão, se lhe tivesse dito a verdade, ele tê-lo-ia deitado fora de imediato e agora
não correria perigo.
Mas mais tarde teria tempo de sobra para se castigar pela sua imprudência. Por agora, por muito que se censurasse, isso não ajudaria Remy em nada.
394
Precisava de organizar as ideias para poder pensar numa maneira de gorar os intentos de Cassandra. Se ao menos pudesse tê-la impedido de sair de sua casa continuando
na posse do seu maldito medalhão. Ter-se obrigado a não reagir, permitindo que ela se fosse embora com o poder de vida ou de morte sobre Remy, tinha sido uma das
coisas mais difíceis que Gabrielle fizera.
Mas que outra alternativa é que lhe restara? Cassandra mantivera o medalhão bem seguro na sua mão, pronta para levar a cabo a sua ameaça caso Gabrielle fizesse algum
movimento para a impedir de sair. Os extraordinários sentidos dela tinham sido reforçados pelos olhos sagazes de Finette, a par da vigilância do seu cão. Qualquer
tentativa de recurso à força para lhe tirar o medalhão seria um risco demasiado elevado para Remy.
Gabrielle precisava de encontrar maneira de poder ludibriar Cassandra de modo a que ela lhe entregasse o medalhão. Mas como? O prazo que ela lhe dera e as horríveis
imagens de Remy agarrado ao coração encheram Gabrielle de pânico, o que a impedia de raciocinar com clareza. Sentia o começo de uma dor de cabeça. Massajava as têmporas
quando a porta da saleta se abriu bruscamente. Lobo entrou de rompante, mas estacou de imediato, parecendo extremamente desconcertado ao deparar com ela.
- Peço perdão, milady. Não sabia que estáveis aqui. Eu só andava à procura do gato de Mademoiselle Miri. O diabo do bicho escondeu-se. Mademoiselle Miri pensa que
o Necromante está zangado com ela por ela... por ela... Bem, mas isso não interessa. Não é importante. Peço desculpa por vos ter perturbado.
Lobo fez uma vénia e recuou vacilante, pronto para bater em retirada sem mais demoras. Gabrielle tinha-se limitado a um pequeno e sombrio acenar de cabeça perante
aquela intrusão. Não fazia a mais pequena ideia de qual seria a sua aparência aos olhos do jovem. Mas os argutos olhos verdes prenderam-se no semblante dela, tendo
visto alguma coisa que o deteve já muito próximo da porta.
- Mon Dieu! - exclamou em voz baixa. - Estais a sentir-vos mal, milady? Até parece que vistes o Diabo em pessoa.
- Ela própria - sussurrou Gabrielle.
- Perdão? - Lobo estava perplexo.
- Na verdade, o Diabo é uma mulher - retorquiu Gabrielle, fazendo um esforço pouco convincente para sorrir, sentindo-se horrorizada ao sentir um nó na garganta.
Eram muito poucas as pessoas em quem confiara em Paris, tendo considerado uma única como amiga e essa pessoa era Cassandra.
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Sentia-se tão conturbada pela sua falta de discernimento como pela traição de Cass.
com timidez, o rapaz deu um passo que o aproximou mais dela.
- Parece que estais muito alterada, milady. Posso ser-vos útil em alguma coisa?
- Não, eu... agradeço-te, Martin. Mas não há nada que alguém possa fazer. Por favor, só quero que... - Gabrielle fez um gesto de impotência com que lhe indicou que
devia sair. Mas Lobo agachou-se diante dela, pegou-lhe na mão e deu-lhe uma palmadinha desajeitada.
- Não existe nada que seja assim tão irremediável. Acreditai em mim, milady. Eu próprio já estive em muitas situações terríveis ao longo dos anos e ficaríeis atónita
com a minha habilidade em conseguir sair das piores situações imagináveis. Desde os três anos que vivi entregue a mim próprio. Sou espantosamente inteligente. Só
tendes de me dizer o que vos está a correr mal e eu tratarei do assunto.
A expressão no rosto do rapaz era divertida, mas Gabrielle abanou a cabeça.
- É a ameaça dos caçadores de bruxas que vos preocupa? - insistiu Lobo. - Ou é Mademoiselle Miri que corre algum perigo?
- Não - respondeu Gabrielle. - Porque perguntas isso? Uma expressão de culpa atravessou o semblante do rapaz.
- Por nenhuma razão em especial. Se o que vos aflige não é por causa da vossa irmã, então quem é que vos preocupa? O capitão?
A expressão de sobressalto no rosto de Gabrielle respondeu-lhe melhor do que quaisquer palavras o teriam feito.
- Seja o que for que ameace o capitão, diz respeito a Martin, o Lobo disse Lobo veementemente. - Dizei-me o que se passa.
Gabrielle tentou afastar a mão, mas ele apertou-a com mais força. Motivada pelo desespero, sentia a necessidade de partilhar a sua aflição com alguém, contudo, nunca
lhe teria passado pela cabeça fazer de Martin o seu confidente. Aos olhos dela, ele pouco mais era do que um rapaz que ficava aterrorizado com alguma coisa relacionada
com o sobrenatural ou com bruxaria. Gabrielle não via minimamente que ele pudesse ajudá-la. Não obstante, havia qualquer coisa em Martin, uma sabedoria que o mundo
lhe dera que estava muito para além da sua idade, ao que se acrescia o facto de ser a única pessoa no mundo que amava tanto Remy quanto ela própria.
- Dizei-me o que se passa - voltou a insistir Lobo num tom mais suave.
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Gabrielle engoliu com dificuldade antes de, relutantemente, fazer o que ele lhe pedia. Enquanto a ouvia atentamente, o jovem afastou-se dela, empalidecendo apavorado.
Benzeu-se uma vez, duas vezes, três vezes, enquanto murmurava:
- Peço a todos os santos e à sagrada mãe de Deus que nos protejam. Pensei que sabia tudo o que havia a saber acerca das perversidades da bruxaria, mas até eu nunca...
nunca sonhei que fosse possível... - faltou-lhe a voz.
- Nem eu - disse Gabrielle. - Talvez agora já lamentes eu ter-te posto a par do que se passa.
- N... não, mademoiselle. Fizestes bem em confiar em mim. - Começou a andar pela saleta, remetendo-se a um mutismo muito pouco característico da sua maneira de ser.
Gabrielle tinha esperado ouvir mais exclamações de horror e invetivas furiosas dirigidas a si própria por causa da sua estupidez. Desejava que Lobo a censurasse
e a amaldiçoasse pelo que fizera. Sem dúvida que era isso mesmo que merecia. Chegou ao ponto de não conseguir suportar o silêncio dele por mais tempo, acabando por
quebrá-lo.
- E então, não tens mais nada a dizer? Nada de censuras, de palavras de cólera? Não me dizes como fui uma idiota por ter feito com que o capitão Remy corresse um
perigo tão grande? - As palavras exacerbadas de Gabrielle despertaram-no dos seus devaneios.
- Nunca sou a primeira pessoa a atirar pedras, mademoiselle. Eu próprio cometo muitos erros. - A generosa reação do rapaz à sua estupidez quase reduziu Gabrielle
a uma crise de choro. Conseguiu esboçar o arremedo de um sorriso.
- Só espero que o capitão Remy possa ser tão clemente como tu. É claro que não me resta alternativa nenhuma a não ser contar-lhe o que se passa.
- Não! - gritou Lobo, parando abruptamente de andar de um lado para o outro e abanando as mãos num gesto de advertência. - Isso é exatamente o que não deveis fazer.
O capitão não é um homem de grandes subtilezas. Ele iria direito a casa dessa bruxa para a confrontar. Acabaria morto ou...
- Ou na cama da Cass - concluiu Gabrielle amargurada. - Outro homem qualquer não se importaria muito se fosse seduzido e usado dessa maneira, mas...
- O capitão é orgulhoso e preza muito a sua honra e...
- E ele já sofreu de mais. Não precisa de mais...
- Pesadelos - acabaram por dizer em uníssono, entreolhando-se num silêncio que dizia como compreendiam o homem que ambos amavam tanto.
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Para Gabrielle, permitir que Cassandra subornasse a capacidade de raciocínio de Remy, fazendo com ele o que muito bem lhe aprouvesse, seria tão mau como o que Danton
fizera a si própria.
- Mas o que é que eu posso fazer para o salvar?
- A solução é muito óbvia, milady. Deveis recorrer à vossa própria magia para contra-atacar a perversidade dessa maléfica bruxa.
- Contra-atacar a perversidade dela?
- Qui. Deveis conjurar um bruxedo qualquer ou... preparar a infusão de um veneno que faça com que ela sofra convulsões excruciantes, ficando a revirar os olhos e
a espumar da boca, a berrar e a arranhar-se numa grande agonia até cair morta.
- Martin! - gritou Gabrielle, perplexa com a ferocidade nas palavras dele. O rapaz inclinou o queixo numa expressão belicosa.
- E porque não? Essa feiticeira maléfica é uma ameaça ao nosso capitão. Ela merece morrer.
- Talvez sim, mas eu não sei como preparar venenos e... e ainda que soubesse... - A voz de Gabrielle faltou-lhe, procurando uma maneira de poder explicar ao jovem
o emaranhado dos seus sentimentos para com Cassandra, um misto de cólera, horror e compaixão. - A Cass é uma mulher perigosa, mas também há qualquer coisa de verdadeiramente
patético nela. De uma maneira aberrante, estou em crer que ela me considerava sua amiga, mas ela própria foi tão mal-amada que nem sequer é capaz de compreender
a razão por que a exigência que me fez é censurável.
Lobo revirou os olhos numa expressão de ceticismo, mas cedeu.
- Muito bem. Sendo assim, não a mateis. Mas preparai uma cerveja que a ponha a dormir como se estivesse morta.
- Também não sei como fazer isso.
- Ma foi!- exclamou o rapaz, olhando-a com um ar de censura. - Mas que espécie de bruxa é que sois?
- Ao que tudo indica, uma muito inepta - respondeu Gabrielle acabrunhada.
Lobo soltou um suspiro de frustração, mas aproximou-se de Gabrielle, pousando-lhe uma mão no ombro.
- Não há motivo para que isso vos preocupe, mademoiselle. Sois uma das mulheres mais inteligentes da corte francesa e eu possuo toda a matreirice de um lobo. Se
conjugarmos esforços, haveremos de encontrar maneira de derrotar essa mulher malévola até mesmo sem bruxarias.
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Gabrielle pousou a sua mão na de Martin, sentindo-se tão sensibilizada com o apoio dele que só conseguiu um pequeno acenar de cabeça. Ele apertou-lhe o ombro ao
de leve, após o que se afastou, dizendo com brusquidão:
- Mas agora tendes de pensar, milady. O que é que sabeis a respeito dessa criatura? Até mesmo uma feiticeira horrorosa deve ter uma fraqueza qualquer. Para começar,
ela é cega, o que nos dá alguma vantagem.
- Muito pouca. Os outros sentidos da Cass são extremamente apurados, além de ter aquele cão que é uma autêntica besta, além de uma criada desprezível, que são os
olhos dela. De facto, ela tem uma grande fraqueza, mas...
- Sim, e que fraqueza é essa? - atalhou Lobo ansiosamente quando Gabrielle hesitou.
- A Cassandra gostava muito de bebidas alcoólicas, ao ponto de ficar perigosamente irracional. - Gabrielle franziu as sobrancelhas ao recordar a história que Finette
lhe relatara escarnecedora. - Segundo diz a criada dela, quando a Cass fica demasiado embriagada, é incapaz de distinguir um homem de outro.
- Portanto, é isso mesmo. Temos de a embebedar até ela ficar num estado de estupor. E é nessa altura que poderemos roubar-lhe o amuleto...
- Não estás a ouvir o que te digo. Eu disse que ela gostava. Recentemente, a Cassandra deixou de ingerir bebidas alcoólicas.
- Ora! - exclamou ele com uma fungadela de desdém. - Já conheci muitos homens e mulheres que gostam muito de beber. Não é um demónio que se vença assim com tanta
facilidade. Só precisamos de acenar com um copo de uísque debaixo do nariz dessa bruxa e veremos com que rapidez é que ela sucumbe.
- Talvez isso acontecesse, mas se eu aparecesse em casa dela, tentando apaziguá-la com uma garrafa de uísque, está-me a parecer que ela ficaria um tudo-nada desconfiada
- retorquiu Gabrielle com pesar.
- É por isso que temos de a atrair para fora do seu covil, levando-a a ir a... a ir a uma estalagem, e eu tenho de... - Lobo interrompeu-se e engoliu em seco. -
Tenho de ser eu quem ludibriará a bruxa de modo a poder rou- bar-lhe o medalhão.
- Não! Agradeço muito que te tenhas oferecido, Martin, mas não permitirei, de maneira nenhuma, que corras esse risco.
- Não tendes outra opção. Vós própria o dissestes. Ela ficaria desconfiada se fôsseis vós a tomar a iniciativa. Mas se for eu... ela nem sequer me conhece.
399
Gabrielle abanou a cabeça vigorosamente, mas ele continuou obstinadamente:
- Mandareis alguém dizer à feiticeira que o capitão está de acordo com o encontro amoroso, mas ele não quer ir à amaldiçoada Maison dEsprit. Essa pessoa dir-lhe-á
que ele reservou um quarto na Estalagem Cheval Noir, na Rue de Morte. Conheço pessoas que trabalham nessa estalagem, pelo que será fácil para mim...
- Não, de maneira nenhuma - cortou Gabrielle irritada. - Não fazes a mínima ideia de como isso poderia ser perigoso, tanto para ti como para o capitão Remy. Não
sou capaz de prever o que é que a Cass faria à pessoa que tentasse cercear as suas loucas ambições, mas posso garantir-te que não seria nada agradável.
- Isso não me importa. Ela que conjure a sua maldição mais sinistra. Não sou nenhum cobarde.
- Tão-pouco eu. Sou a única responsável por esta situação desastrosa. Não permitirei que um mero rapaz...
- Não sou nenhum rapaz! - atalhou Lobo de cenho carregado.
- E também não és nenhuma mulher sábia.
- Aparentemente, também vós não sois - ripostou ele, atirando a cabeleira indomável para trás. - Quem é que teve esperteza suficiente para fazer entrar o capitão
às escondidas no Louvre? Quem é que salvou a vida dele na véspera do dia de São Bartolomeu? E, de nós dois, quem é o gatuno mais hábil? Ah! E agora respondei-me
a isto.
Os dois estavam prestes a começar a gritar um com o outro. Gabrielle foi a primeira a procurar dominar o seu temperamento, cruzando os braços diante do peito e deslocando-se
para o lado oposto da saleta. A aguilhoada de Martin, acerca da sua falta de faculdades como mulher sábia, ferira-a bem fundo e mais ainda por Gabrielle reconhecer
que ele tinha razão. Mas já se sentia envergonhada de sobra por causa do que a sua falta de sinceridade e tolice tinham dado origem. Não estava disposta a pôr-se
de lado humildemente, permitindo que Martin se encarregasse de resolver o problema que era Cass em seu lugar. Após uma longa pausa de um silêncio tenso, Lobo voltou
a aproximar-se dela. A sua habitual fanfarronice primava pela ausência, enquanto, um pouco a medo, lhe tocava na manga do vestido.
- Peço desculpa se vos ofendi, mademoiselle. Mas como é que posso fazer com que compreendais? Antes de conhecer o capitão, eu não era ninguém. Não era nada. Um gatuno,
um carteirista, a escumalha mais baixa das ruas.
400 :
Mas, se não fosse ele, o mais certo era eu já ter esticado o pernil enforcado há muito tempo.
- Martin, compreendo muito bem a dedicação que tens ao capitão Remy...
- Não só a ele, mas também a vós e... e à Miri. - O rapaz ficou corado que nem um tomate e baixou a cabeça. - com certeza que estais a pensar que sou um arrivista
atrevido, um desgraçado sem nome, a não ser o que dei a mim próprio. - Lobo arrastou os pés numa atitude de nervosismo.
- Mas... mas todos vós haveis passado a ser a minha família, a família que eu nunca tive.
- Oh, Martin. - Gabrielle deu-lhe um forte abraço, que o rapaz retribuiu com a mesma intensidade antes de a afastar de si.
- É por isso que tendes de permitir que seja eu a lidar com essa bruxa. Suplico-vos, mademoiselle. - Os olhos escuros dele tinham uma expressão de tanta ansiedade
que Gabrielle deu consigo a ceder, embora o seu bom senso lhe dissesse que não era o mais acertado.
- Mas tu não... não tens um pouco de medo de bruxas? - perguntou-lhe ela.
- Estais a esquecer-vos de quem sou, milady - retorquiu o rapaz, enchendo o peito. - Martin, o Lobo, não tem medo de ninguém. Eu lutaria contra uma dúzia delas,
não, uma centena, não, um milhar...
- Está bem, está bem. Acredito em ti - interrompeu Gabrielle com uma pequena gargalhada antes que ele continuasse até chegar a um milhão. Insistiu, continuando a
tentar dissuadi-lo, mas ele rebatia todos os seus argumentos, até a esgotar, simplesmente, por não lhe ocorrer mais nenhum plano, além do dele, que tivesse alguma
hipótese de ser bem-sucedido. Foi com muita relutância que o deixou para ir redigir a mensagem que atrairia Cassandra à cilada. Gabrielle rezava fervorosamente para
que fosse a bruxa a ser apanhada nela e não o rapaz.
A chuva açoitava a tabuleta da Cheval Noir, que rangia abanada pelo vento. Os relâmpagos iluminavam o cavalo negro empinado sobre os quartos traseiros que lhe dava
o nome, qual demónio preparado para levar o seu cavaleiro para o Inferno. A maior parte dos clientes que frequentavam a Cheval Noir parecia já ter estado lá. A estalagem
era o valhacouto de gente dura, desertores da marinha, contrabandistas, ladrões, carteiristas e prostitutas.
E esta noite contaria com a presença de uma bruxa, pensou Lobo sombriamente enquanto se encaminhava para a taberna. A estalagem estava mais à cunha do que era habitual
devido ao temporal. O ar tresandava ao fedor de corpos sujos, roupa húmida e o cheiro cediço a bebidas derramadas. O barulho de vozes roufenhas e o riso dos bêbados
rivalizavam com o açoitar do vento e da chuva contra os vidros imundos das janelas.
De mangas de camisa e um avental atado em volta da cintura, Lobo misturava-se com os outros criados da estalagem. Mas ignorava deliberadamente os punhos cerrados
que batiam nos tampos das mesas, exigindo mais vinho. Equilibrando uma bandeja, caminhava determinadamente em direção às escadas que davam acesso às alcovas no andar
de cima, esforçando-se por ignorar o bater descompassado do seu coração. Quando pisou o primeiro degrau, um estrondoso trovão pareceu abanar a estalagem até às suas
fundações. O rapaz ficou tão atordoado que foi por pouco que não deixou cair a bandeja. Uma das garrafas do conhaque mais forte que a estalagem vendia esteve quase
a tombar, partindo-se nas escadas. Lobo conseguiu agarrá-la a tempo.
Equilibrou a bandeja e praguejou entredentes, ciente de que não era só a violência do temporal que fazia com que tivesse os nervos à flor da pele. Era a perspetiva
de estar à frente da mulher que aguardava no piso de cima.
402
Apesar da atitude de fanfarrão que adotara na presença de Gabrielle, Martin não podia continuar a negar a realidade, pelo menos a si próprio. Cassandra Lascelles
aterrorizava-o. Gabrielle não tinha precisado de o avisar dos perigos que correria se encolerizasse a bruxa, da vingança que Cassandra poderia exercer sobre si.
A sua própria imaginação, muito vívida, providenciava os pormenores, os quais eram suplementados por todas as histórias escabrosas que ouvira durante a sua meninice.
De maldições capazes de mirrar as partes pudibundas de um homem, de apodrecer a carne de uma pessoa ou de levar a uma irremediável loucura. A única coisa que mantinha
a determinação de Lobo era a imagem das pessoas que haviam passado a merecer-lhe uma dedicação tão profunda. O seu valente capitão, Gabrielle, que levara paz ao
coração tão perturbado de Nicolas Remy, mas, acima de todos, Miri, com o seu cabelo sedoso de um louro de luar e olhos inesquecíveis.
Ao agir como uma ave de rapina na pessoa do capitão, aquela perversa bruxa ameaçava a felicidade de todas essas pessoas, e Miri já lhe parecia bastante triste. Lobo
não fazia ideia do que se teria passado entre ela e aquele maldito Aristide, mas a verdade é que Miri parecia ter ficado com o coração destroçado depois de falar
com ele, a aura dourada que a envolvia definhada. Martin tinha esperança de que, depois de a ter levado para longe de Paris, a dedicação do seu humilde Lobo talvez
fosse suficiente para que ela se esquecesse daquele canalha que era um caçador de bruxas.
Mas, antes que isso pudesse acontecer, tinha de tratar daquela bruxa. O rapaz endireitou os ombros e pegou na bandeja com mais firmeza, subindo as escadas com determinação.
Daria a sua vida de boa vontade pelo capitão Remy e pela sua senhora. Ah, mas por Miri, a sua maravilhosa senhora da Lua, Lobo estava disposto a arriscar a sua própria
alma.
Quando chegou ao patamar de cima, a sua atenção foi despertada por duas figuras, um homem e uma mulher unidos num abraço tão ardente que corriam o risco de tombar
por cima do corrimão. Apesar da tensão que sentia, Lobo sorriu ao perceber que Pierre Tournelles já trabalhava afincadamente. Um camarada dos tempos em que haviam
sido dois garotos andrajosos que viviam na rua, roubando pão aos padeiros, que ficavam furiosos. Pierre crescera, transformando-se num rapaz alto, forte e bem constituído.
((
Pierre estava a descair o vestido sujo pelo ombro de Finette, fazendo " com que ela soltasse gritinhos de prazer enquanto ele lhe apalpava a teta magra. As mãos
da rapariga não largavam Pierre, quase a trepar por ele acima,
403
qual gata escanzelada cheia de cio. Perdida no seu êxtase, a rapariga não via como Pierre se retraía de repulsa, tal como não viu o olhar de profundo desagrado que
lançou a Martin por cima do ombro. Sem dúvida que Pierre lhe exigiria o dobro pelos seus serviços, mas ele valeria todo o dinheiro que lhe pagasse.
Passando por Finette sem que ela reparasse nele, Lobo encaminhou-se para o fundo do corredor, onde a luz de um relâmpago lhe permitiu ver a última porta. Respirou
fundo para se fortalecer e bateu ao de leve na porta de madeira. A resposta foi um ladrar ameaçador e uma voz mormacenta que perguntou:
- Quem é?
Lobo lançou um olhar rápido ao corredor, receando que os sons alertassem a criada, mas Pierre, na brincadeira, tinha atirado a rapariga para cima do ombro, levando-a
com risinhos tolos para o piso térreo para tomarem uma bebida. Girou a maçaneta. Equilibrando a bandeja cuidadosamente numa mão, entrou no quarto, fechando a porta
de mansinho depois de ter entrado.
Os seus movimentos deram azo a um ladrar feroz do cão. Pelo menos, esperava que fosse o cão. Ficou encostado à porta como que petrificado, a garrafa e o copo que
trazia na bandeja a chocalharem nas mãos trementes. O interior da alcova era um misto de luz e sombras; a única fonte de luz vinha das labaredas dos madeiros que
ardiam na lareira. Distinguiu a silhueta da besta infernal agachada a poucos metros, parecendo preparada para se atirar à sua garganta. Não viu qualquer sinal da
bruxa, mas a sua voz chegou-lhe das sombras cerradas que envolviam o leito de quatro postes.
- Quem está aí? - perguntou numa voz alterada. - O que é que quer?
- Eu... eu... não sou ninguém, milady. Sou só... o Guillaume, o vosso humilde servo, que vos traz a melhor bebida que a Cheval Noir tem para oferecer.
- Não mandei vir nada.
- Pois não, mas a vossa criada pensou...
- Raios partam a rapariga, que é uma idiota - resmungou a bruxa e depois chamou numa voz aguda: - Finette!
- Ela foi lá para baixo, onde está a aguardar a chegada do vosso cavalheiro.
Esta informação originou um som sibilante de fúria.
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- Que rapariga tão estúpida. Eu disse-lhe que ficasse à porta do quarto e que mantivesse os olhos bem abertos. Diz-lhe que ordeno que venha imediatamente para cima
e leva o que quer que tenhas trazido!
Esta ordem tão ríspida foi secundada por outro ladrar selvático do enorme cão preto. Lobo ficou com a sensação de que o êxito de toda a sua missão estava preso por
um fio. Empregou o seu tom de voz mais adulador.
- Mas eu trouxe-vos queijo e pão, minha senhora, e um conhaque tão especial que quando o beberdes pensareis que estais a tomar o néctar dos deuses. Numa noite tão
agreste, decerto que vós...
- Desaparece! - A voz ladrada da mulher era pior do que a do cão. O mastim aproximou-se mais dele. Lobo conseguia ver o brilho maligno nos olhos do cão, o branco
dos dentes incisivos, mas apesar daquilo, e teimosamente, manteve-se firme.
- Pensai no vosso cavalheiro, minha senhora. É verdade que está uma noite horrível lá fora. com certeza que ele agradecerá uma bebida reconfortante. Não é nada de
bom gosto não oferecer uma bebida a um amante.
- O silêncio com que as suas palavras foram recebidas era tão gélido que receou ter ido longe de mais.
- Muito bem - disse ela por fim com impaciência. - Pousa o diabo da bandeja e depois põe-te a andar.
O rapaz deu um passo a medo, mas viu o seu caminho barrado pelo mastim, que rosnava.
- Hum... o vosso cão, mílady. Sem dúvida que é uma besta magnificente, mas eu sou tão rijo e tenho tantos nervos e tendões que, se ele me abocanhar, eu não quereria
que ele magoasse os dentes.
Um resfolegar que pretendia passar por riso escapou da bruxa.
- Cérbero. Vem aqui!
Depois de um último rosnado abafado, o cão retrocedeu e dirigiu-se para junto da sua dona. Lobo respirou fundo de alívio, após o que pousou a bandeja em cima de
uma pequena mesa perto das janelas. O temporal continuava sem mostras de abrandar, o vento a uivar e a chuva a açoitar os vidros como as unhas de uma fada má que
tentasse entrar à força. Apesar do temporal, Lobo ansiava por poder abrir uma janela. Sentia nas narinas o cheiro de um estranho perfume enjoativo que tinha o efeito
de o deixar ligeiramente entontecido. Sentia as gotas de suor que começavam a perlar-lhe a testa, limpando-as com as costas da mão.
Quanto mais depressa concluísse a sua missão e se pusesse a andar dali para fora, melhor seria para si. Enquanto pousava a bandeja, a bruxa emergiu
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das sombras com a mão na coleira do cão. A besta guiou-a até à lareira. Os movimentos dela eram graciosos, vendo-se apenas alguma cautela nos seus passos, que traía
o facto de ela ser cega.
Pelo canto do olho, Martin viu Cassandra Lascelles pela primeira vez com olhos de ver. Era mais nova e mais encantadora do que tinha esperado. Mas ainda existiria
no mundo alguma coisa que se assemelhasse a uma bruxa velha e feia? O vestido de seda cor de cornalina revelava a figura esbelta, favorecendo-a, e o decote baixo
permitia que se visse uma clavícula tão delicada que seria preciso pouco esforço para a partir. Mas quaisquer ilusões da sua fragilidade desapareceram quando ela
atirou a basta cabeleira cor de ébano para trás, mostrando um rosto de expressão forte e ameaçadora na sua sedutora beleza. Os dedos afuselados mexiam no fio que
trazia ao pescoço, virando o medalhão de um lado para o outro, e onde a luz das chamas da lareira se refletia.
Ver como ela brincava com aquele maléfico amuleto fez com que Lobo sentisse um aperto no estômago de apreensão. Ansiava por poder atirar-se a ela, arrancando-lhe
o maldito talismã do pescoço, mas o risco que o capitão correria era demasiado perigoso.
".Calma, Lobo. Paciência", repreendeu-se a si próprio. Mexia-se lentamente, levando o seu tempo a dispor os pratos e as garrafas em cima da mesa.
A bruxa tamborilou com as unhas no medalhão, com um pé a bater ritmadamente no soalho.
- Mas por que diabo é que estás a levar tanto tempo?
- Por nada. Estou quase a acabar, milady. - O arranhar das unhas contra o amuleto de metal quase fazia com que rangesse os dentes, mas foi então que se fez luz na
sua cabeça. A bruxa estava tão nervosa como ele próprio, e porque não haveria de estar? Todas as suas loucas ambições dependiam daquela noite. A tensão que se apoderara
dela tornava-a mais propensa a sucumbir à tentação.
E também podia torná-la mais perigosa. Era muito mais provável que os tigres fêmeas mostrassem as garras quando estavam nervosos. Tinha de lidar com Cassandra com
toda a cautela, mas primeiro precisava de se livrar do maldito cão. O mastim sentara-se sobre os quartos traseiros junto das saias da dona, mas aqueles olhos caninos
de desconfiança nunca se desviavam de Lobo. Limpando as palmas das mãos suadas ao avental, o rapaz tirou o guardanapo que cobria um dos pratos, cujo conteúdo ainda
não mencionara à bruxa.
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Era um luzidio cacho de uvas pretas. Lobo olhou para elas com uma expressão de dúvida. Parecia-lhe uma oferta bastante patética para tentar um grande bruto preto
como aquele. Teria pensado que a besta infernal teria preferido um bom naco de carne crua. Martin só podia rezar para que Gabrielle estivesse certa quando lhe disse
que se precavesse com um cacho de uvas.
Lobo tirou do cacho uma mão-cheia de bagos, deixando-os cair sub-repticiamente no chão numa correnteza até ao leito. Para sua muita perplexidade, o mastim espevitou-se
imediatamente. com a língua a abanar fora da boca, farejou até ao bago mais próximo, abocanhando-o, e depois o seguinte, afastando-se cada vez mais da bruxa.
Lobo receava que os barulhos que fazia a tragar as uvas alertassem Cassandra, mas esta nem sequer pareceu ter-se apercebido disso. Foi o barulho que ele fez a tirar
a rolha da garrafa de conhaque, vertendo algum para dentro de um copo, que fez com que ela ficasse rígida.
- Que barulho é esse? O que é que se passa? - perguntou autoritariamente.
- Não é nada, milady. Apenas a noite que está tempestuosa...
- Para de dizer sempre a mesma coisa! - atalhou ela numa voz esganiçada.
- E não pude deixar de reparar como estais nervosa - apressou-se Lobo a acrescentar. - É uma pena que uma senhora tão bonita como vós seja mantida à espera. Nenhum
homem no seu perfeito juízo seria capaz de manter-se afastado de vós durante tanto tempo. O mais certo é este horrível temporal ter atrasado o vosso amante. Mas,
enquanto esperais, posso persuadir-vos a provar este excelente conhaque. Apenas um golinho para vos ajudar a descontrair.
- Não! Eu já te disse que não quero beber nada. - Fechou o amuleto na mão com tanta força que ficou com os nós dos dedos esbranquiçados.
Entretanto, o cão tinha ido atrás de um bago de uva que resvalara para o outro lado do leito. A mão de Lobo tremia quando pegou no copo em que deitara o conhaque.
O estranho cheiro do perfume que ela usava era muito mais forte perto dela, quase avassalador. Inebriante e enjoativamente doce, fazendo com que as narinas fremissem
e tecendo teias de aranha na sua mente. Deu consigo a olhar estupidamente para os seios dela, o contorno dos mamilos a adivinhar-se por baixo da seda esticada de
um vermelho de rubi.
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Martin sacudiu a cabeça para dispersar aquela imagem.
- Se quiserdes fazer o favor, milady - disse depois de ter pigarreado -, um golinho não vos faria mal nenhum, além de que este conhaque é bom de mais para se recusar.
É tão macio na língua que escorrega pela garganta como ouro ardente. - O rapaz passou o copo por baixo do nariz dela, forçando-a a cheirar o conhaque. Cass inspirou
fundo, uma expressão de puro anseio a espelhar-se nas suas feições.
- Não! Tira isso daqui. - Estendeu a mão com brusquidão, que foi bater no copo, derramando o conhaque na manga do vestido. - Maldito idiota desajeitado! - Manteve
o braço estendido e o conhaque começou a gotejar da renda e das pontas dos dedos. - Vai-me buscar um guardanapo. Despacha-te!
- Sim, milady - resmungou ele. Recuou até à mesa; estava capaz de se amaldiçoar. Agora é que estragara tudo, tinha-a enfurecido e o tom colérico da voz dela levou
o cão a colocar-se ao seu lado numa atitude protetora.
Lobo apoiou as palmas das mãos na mesa, sentindo-se avassalado pelo desespero. Todas aquelas fanfarronadas, gabando-se a Gabrielle de como era esperto, convencendo-a
de que podia confiar nele, que podia deixar a vida do capitão nas suas mãos. O seu ardiloso plano de embebedar a bruxa nunca resultaria. Mais lhe teria servido se
tivesse trazido uma pistola para a matar, sem se importar com o risco de vir a ser apanhado e enforcado. Mas a despeito de tudo o que dissera a Gabrielle, que Cassandra
merecia morrer, Lobo sabia de antemão que jamais seria capaz de assassinar uma mulher a sangue-frio, nem sequer uma bruxa. Além disso, o mais certo seria ser forçado
a matar também o cão e duvidava muito que Miri alguma vez o perdoasse por isso.
Portanto, que diabo é que ele poderia fazer? Era melhor levar-lhe o guardanapo antes que o cão o despedaçasse por ter estragado o vestido da dona. Pegou no guardanapo,
virou-se e estacou. Cassandra tremia da cabeça aos pés, mas não, apercebeu-se ele, de fúria. Respirando fundo, levou os dedos molhados de conhaque à cara e cheirou-os.
A bruxa colocou-os mais perto da boca. Hesitou por um momento, mas depois deitou a língua de fora e começou a lamber as costas da mão, provando e chupando, saboreando
as gotículas de conhaque. O corpo estremeceu com um fundo suspiro. Lobo susteve a respiração, aguardando, apercebendo-se de que a batalha que a feiticeira travava
dentro de si era tão titânica como o furor dos elementos que se entrechocavam fora da estalagem.
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A resmungar os seus pedidos de desculpa por ter entornado a bebida, Lobo aproximou-se o suficiente para lhe pôr o guardanapo na mão. Cassandra humedeceu os lábios.
- Não te preocupes com isso - disse ela numa voz roufenha. - Tal como disseste, está uma noite muito tempestuosa. Talvez fosse melhor se me servisses outra bebida.
Apenas uma...
Gabrielle andava de uma ponta à outra da correnteza de janelas, o robe a roçar-lhe pelos tornozelos. Durante a maior parte daquele fim de dia e princípio de noite,
tinha andado de um lado para o outro na sua alcova, possuída de um grande frenesim, e, qual traça presa num boião de vidro, esforçava-se por encontrar uma maneira
de sair daquela situação de apuro. Por entre olhos semicerrados, olhava para a cavalariça nas traseiras da casa, na esperança de ver a centelha de uma lanterna que
assinalasse o regresso triunfante de Lobo. Apesar dos clarões intermitentes dos relâmpagos que iluminavam o solo mais abaixo, era praticamente impossível ver alguma
coisa através das vidraças escurecidas pela noite e pelo autêntico dilúvio da chuva.
A tempestade parecia-lhe de mau agouro, um mau presságio de desastre iminente. Gabrielle tentou banir aquelas ideias tão supersticiosas, mas o temporal lá fora não
era nada quando comparado com o violento tumulto na sua alma. Como é que tinha permitido que Lobo fosse sozinho para enfrentar Cassandra? Como é que fora capaz de
concordar com o plano dele? Só podia ter estado louca.
Mas, tal como o rapaz salientara, não lhe tinha restado outra alternativa. Qualquer tentativa da parte de Gabrielle de interferir seria o suficiente para acarretar
graves consequências para Remy. Além disso, se Lobo fracassasse, talvez Gabrielle ainda conseguisse tirar o medalhão a Remy atempadamente. Mas nem sequer queria
pensar naquilo.
Lobo não fracassaria. Ele era um rapaz muito arguto e cheio de expediente. Tinha salvado a vida de Remy em circunstâncias muito mais gravosas na véspera do dia de
São Bartolomeu. Comparada com isso, a tarefa dele naquela noite era muito mais simples. Distrair a criada, subornar o cão, embebedar Cassandra e roubar o amuleto.
O que é que, possivelmente, poderia correr mal? Demasiadas coisas.
Gabrielle deu um pulo devido ao violento ribombar de um trovão. Fez pressão com uma mão no coração que batia desenfreado e olhou para Remy para ver se ele teria
reparado. Estava estendido na cama, deitado de lado,
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soerguido sobre um cotovelo, enquanto examinava um mapa. Tinha sido apanhado pelo aguaceiro e ficado encharcado, pelo que agora as roupas estavam a secar junto da
lareira. Vestido apenas com a roupa interior, Remy estava absorvido a engendrar a rota de fuga para o seu rei, tão alheado do temporal como do perigo que o ameaçava
naquela noite. E o perigo apresentava-se sob a forma de um inofensivo medalhão que trazia suspenso do pescoço.
Sem ter consciência do que fazia, mexia na corrente enquanto concentrava toda a sua atenção no mapa. A luz que vinha das chamas na lareira dava realce aos músculos
que moldavam os seus ombros e braços, além de mostrar o robusto peito coberto de cicatrizes. Tinham-lhe caído alguns fios de cabelo para a fronte, que ele se apressou
a afastar para trás com um gesto de impaciência. Quando Remy se concentrava aprofundadamente em alguma coisa, os olhos castanho-escuros pareciam adquirir uma nova
intensidade, as pestanas compridas a sombrearem as faces angulosas.
Gabrielle pôs-se a olhar para ele, ansiando por abraçá-lo apertadamente, para reviver os momentos em que haviam feito amor gloriosamente e com todo o abandono, aquando
da primeira vez em que ele despertou a sua sensualidade há tanto reprimida. Mas ultimamente, quando se entregava a Remy, era incapaz de se descontrair, de se entregar
inteiramente ao amor que ele fazia consigo, por causa daquele odioso medalhão que se interpunha entre os dois, juntamente com a sombra das suas mentiras. Quantas
foram as vezes em que ansiara por lhe confessar tudo o que fizera, contar-lhe a verdade? Nada de mais intrigas, prometera a Remy, mas já quebrara essa promessa.
Parecia-lhe que tinha a obrigação de o advertir do perigo. Ela e Lobo tinham debatido essa questão exaustivamente.
"Sei que o Remy ficará furioso quando souber da intenção da Cass", dissera Gabrielle. "Mas este assunto tem a ver com a sua vida. Ee deve ser consultado antes de
pormos em prática o teu plano e, quando tudo estiver explicado, com certeza que ele verá a prudência em..."
"O capitão? Prudente?", interrompera Lobo sarcástico. Milady, estamos a falar do mesmo homem que insistiu em se bater com Danton numa justa, até mesmo quando sabia
que se tratava de uma conspiração para o matarem?"
"O capitão fez isso por mim. Estava a defender a minha honra."
Claro, é por isso mesmo que o nosso capitão se pauta, até mesmo quando isso o prejudica. Pensaria que era ignóbil embebedar uma mulher cega, levá-la a cair na sua
própria fraqueza, ainda que ela seja uma bruxa. Ele iria querer encontrar uma maneira de lidar com ela de modo honroso e justo, mas vós e eu sabemos que isso é impossível.
O capitão
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é um herói e é assim que os heróis se comportam. É por essa razão que não podemos contar-lhe nada. Esta não é tarefa para um herói, mas sim para alguém que é um
gatuno e tem um pouco de malandro." Os dentes do rapa tinham brilhado num dos seus sorrisos endiabrados. "Uma missão apropriada apenas para um lobo."
Gabrielle vira-se forçada a concordar com ele, mas tinha a honestidade de admitir perante si própria que não era apenas o receio das heroicidades de Remy que a manteve
em silêncio. Era uma cobardia muito mais vergonhosa. Não lhe era difícil imaginar a raiva de Remy se viesse a saber que fora atraiçoado, caso se inteirasse não só
da verdade acerca do medalhão, mas também que ela permitira que Lobo corresse tanto perigo em lugar dele. Se acontecesse algum mal ao rapaz, ninguém recriminaria
Gabrielle com mais dureza do que ela se recriminaria a si própria. Desde sempre que fora excelente a guardar segredos, mas nunca nenhum lhe pesara tanto no seu coração.
Ficou sobressaltada e com um sentimento de culpa quando se apercebeu de que Remy tinha os olhos presos em si, mostrando uma expressão inquisitiva no rosto, a despeito
daquele sorriso doce e demorado com que a brindou. Gabrielle não foi capaz de lhe retribuir o sorriso. Desviando a cara, dirigiu-se para a lareira a fim de ver se
as roupas molhadas que estendera nas costas de uma cadeira já estariam secas. Pegou na camisa ainda húmida e voltou a pô-la na cadeira.
O leito rangeu quando ele se sentou.
- Meu amor, já foste ver se as minhas roupas estavam secas, pelo menos, uma dúzia de vezes. Não me parece que, se as dispuseres de outra maneira, sequem mais depressa.
- Mas... mas pode ser que sim - replicou ela, endireitando uma manga da camisa.
- Gabrielle. - O tom de voz de Remy era baixo, embora com uma insistência que a impedia de continuar a furtar-se ao olhar dele. A apreensão que se espelhava no semblante
dele, combinada com o ardor nos seus olhos, quase fez com que ela se fosse abaixo. Ao ponto de sentir os joelhos a enfraquecerem quando ele lhe disse autoritariamente:
- Vem cá.
Nunca se tinha apercebido de que era possível ser regida pelo mero som da voz de um homem. A de Remy como que se entranhava nela, como o ardor de uísque, suficiente
para lhe derreter os ossos. Tinha a sensação de querer voar pela alcova até junto dele, atirar-se para os seus braços. Somente
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a culpabilidade que a invadia é que fazia com que se abeirasse dele em passos relutantes. Assim que Gabrielle se encontrou ao alcance dele, Remy estendeu o braço
bem musculado, a mão cálida a envolver a dela.
Puxou-a para o seu lado na cama, deitando-a de costas antes que ela pudesse protestar. Verdade fosse dita, não que quisesse fazê-lo. Quando Remy se pôs em cima dela,
firmando as mãos no colchão, sentiu o calor que parecia irradiar do peito sólido desnudado. Remy roçou os lábios pelos dela num beijo extremamente terno com que
lhe entreabriu os lábios. A língua dele deslizou pela dela, ao princípio provocadora e depois com intensidade, num beijo que ameaçava fazê-la perder a noção de tudo,
banindo da sua mente todos os pensamentos que não se prendessem com ele.
Mas o medalhão interpunha-se entre os dois, como a ponta gélida da lâmina de uma adaga suspensa acima do coração de Remy. Gabrielle precisou de toda a sua força
de vontade para não agarrar aquele maligno talismã. Mas e se Cassandra se tivesse limitado a atirar-lhe areia para os olhos? E se ela não fosse capaz de pressentir
se Remy estava a usar o amuleto ou não? E se o elo invisível de ligação entre os dois medalhões não fosse tão forte àquela distância? Mas Gabrielle receava correr
esse risco, recordando-se da maneira dolorosa como Cass tinha demonstrado o poder do amuleto, o que estava terrivelmente gravado na sua memória.
A boca de Remy apoderou-se avidamente da dela, mas, por muito que ela desejasse abandonar-se ao ardor das carícias dele, não conseguia. Sentia-se muito como Judas.
com a respiração arfante, afastou os lábios dos dele, virando a cabeça de lado. Remy continuava por cima dela. Gabrielle sentia o peso do olhar dele.
- O que é que se passa, minha amada? - perguntou ele suavemente. Que Deus lhe valesse. Teve de morder o lábio inferior para conter um
gemido. Felizmente, Nicolas Remy nunca enveredara por uma atividade de caçador de bruxas. O homem nunca teria precisado de recorrer à tortura. O seu beijo, aquele
terno timbre de voz e aqueles olhos castanhos de expressão tão constante seriam suficientes para que qualquer mulher confessasse tudo e mais alguma coisa.
Continuar a mentir-lhe era a coisa mais difícil que fizera em toda a sua vida.
- N... nada - respondeu numa voz vacilante.
- Nada? - Remy riu com secura. - Nunca foste o que eu classificaria de uma mulher plácida, mas isto é um novo grau de inquietude até mesmo
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para ti. Tenho visto potras prestes a serem montadas em combate muito menos tensas do que tu.
- É... é por causa do temporal. Os temporais enervam-me sempre.
- A sério? - Passou os nós dos dedos pela bochecha dela. - Receei que a culpa talvez fosse minha.
- Por tua culpa?
- Apercebi-me de que não tenho sido o amante mais atento nos últimos dias. Tenho andado demasiado absorvido com os meus planos de fuga, por isso sem dúvida que te
sentes extremamente entediada.
Gabrielle olhou-o com uma expressão de angústia. Remy culpava-se pela tensão que sentia, pela sua inquietude? Levou a mão à face dele, sentindo o arranhar da barba
que começava a crescer.
- Oh, Remy - disse numa voz embargada. - Como é que podes pensar uma coisa dessas? Claro que estou muitíssimo interessada no teu plano para resgatares o rei de Navarra.
- De verdade? Apercebeste-te há pouco de que eu te disse que tinha contratado um grupo de duendes para me ajudarem e nem sequer pestanejaste?
Gabrielle sentiu que um rubor revelador lhe subia às faces.
- Bem, os duendes podem... podem ser criaturas úteis... desde que se consiga encontrá-los.
Remy riu-se, mas continuou a perscrutá-la atentamente, os olhos escuros repletos de perguntas por fazer e ensombrados por uma expressão de mágoa. Gabrielle não conseguiu
suportar aquela situação. Contorceu-se até conseguir sair de debaixo dele, levantando-se da cama repentinamente. Retomou a vigília junto da janela. Mas o que seria
feito de Lobo? Um súbito relâmpago iluminou-lhe as feições de inquietude, os dedos esguios encostados ao vidro da janela. O que é que ela continuaria a procurar
no meio daquele temporal? Obviamente, algo que ela não estava a encontrar nele.
Por pressuposto, os homens eram conhecidos por fazerem as suas conquistas, após o que, saciada a sua luxúria, ficavam prontos para seguirem em frente. Seria possível
que uma mulher se fartasse de um homem depois de uma única noite? Gabrielle já tinha tido outros amantes, pelo menos dois deles eram muito mais ricos e nobres do
que ele. Dar-se-ia o caso de ela já estar arrependida, duvidando da decisão que a levara a abandonar as ambições que acalentara anteriormente? Seria por isso que
mostrava tão pouco interesse pelos seus planos em levar furtivamente o rei de Navarra para fora de Paris, uma coisa que nunca merecera o seu agrado?
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PPara com isso", disse Remy desagradado consigo próprio. Aquelas dúvidas que o assolavam eram patéticas. Ao fim e ao cabo, ela dissera-lhe que nunca tinha amado
nenhum homem como o amava. O que Gabrielle provara na noite em que fizeram amor pela primeira vez. Amargurada como se sentira pelo tratamento brutal que sofrera
às mãos de Danton, Gabrielle abrira-se a ele, confiando inteiramente nele. Tão-pouco Remy podia queixar-se do número de vezes que ela tinha feito amor consigo desde
então. Nenhuma mulher poderia ter sido mais generosa, nem de uma maior entrega das delícias do seu corpo, do que Gabrielle. Perante esses factos, porque se sentia
atormentado com o pressentimento de que ela lhe escondia alguma coisa?
Estaria a ser irracional ao não querer apenas a posse do corpo dela, mas também todos os recantos do seu coração, da sua mente e da sua alma? Sentir-se-ia sempre
atormentado ao pensar que havia alguma parte de Gabrielle que nunca seria capaz de tocar? Remy levantou-se da cama e aproximou-se dela. Quando a envolveu nos seus
braços, ela resistiu, mas apenas por uma fração de segundo.
Gabrielle encostou-se a ele numa atitude de abandono e Remy roçou-lhe os lábios pela têmpora, os cabelos sedosos de um louro-dourado a roçagarem pelo queixo dele.
Era agradável o luxuriante calor do corpo dela, macio e convidativo por baixo da seda do robe. E, não obstante, ele continuava com a sensação do distanciamento dela,
o que quase dava consigo em doido.
Mas Remy não devia continuar a insistir com ela fastidiosamente, qual procurador da coroa a assediar uma testemunha relutante, mas parecia incapaz de se impedir
de continuar a bater na mesma tecla. Beijou-a ao de leve na orelha.
- Gabrielle, tens a certeza absoluta de que não há nada a preocupar-te?
- Não, acontece apenas que... que...
- Que o quê? - encorajou ele.
- Estou... estou preocupada por causa do Martin. Ele ainda não voltou e estou apreensiva por ele andar lá por fora sozinho com... com um temporal tão horrível como
este.
- O Lobo? - Os olhos de Remy abriram-se muito de surpresa. De todas as coisas que poderiam estar a afligir Gabrielle, nunca teria esperado aquilo. - Ele é um rapaz
com muito expediente e conhece a cidade melhor do que qualquer um de nós. Tenho a certeza de que está abrigado numa estalagem qualquer, a beber vinho com alguns
dos seus antigos camaradas, enquanto namorisca uma rapariga bonita. Senti bastante alívio quando ele me
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perguntou se podia sair esta noite. Ultimamente, o rapaz tem andado mais agarrado a mim do que a minha própria sombra. Mal posso ir à retrete sem que ele vá atrás
de mim.
Gabrielle baixou a cabeça, o rosto a desaparecer atrás da cortina de cabelo.
- Ambos temos temido pela tua segurança, Remy. Tens mais inimigos do que possas imaginar.
- Sem dúvida que sim. Mas posso assegurar-te de que tenho tido muito cuidado comigo. - Virou-a para ficar de frente para si e afastou-lhe o cabelo para trás. - É
isso realmente que tem estado a preocupar-te? Tens andado a afligir-te por causa da minha segurança?
Gabrielle respondeu-lhe com um acenar de cabeça pouco convincente. Remy apertou-lhe o queixo na brincadeira, ordenando-lhe trocista numa voz imperiosa:
- Pois bem, para com isso. Sei muito bem como cuidar de mim próprio. Além disso, tenho o amuleto que me deste para me proteger. E não voltei a tirá-lo, tal como
me obrigaste a prometer com tanta determinação aqui há dias. Nem sequer para me lavar, - Remy ergueu o medalhão diante dos olhos dela, na esperança de conseguir
fazer com que ela sorrisse. Em vez disso, Gabrielle empalideceu.
- Sim, e tu nunca faltas às tuas promessas.
Dizendo implicitamente o quê? Que ela não cumpria as suas promessas? Remy emoldurou-lhe a cara com as mãos.
- Gabrielle, tenho consciência de que continuamos rodeados de intrigas e perigos. Desde a Rainha das Trevas, passando pelos caçadores de bruxas, até todos os nobres
católicos que me odeiam. Todavia, chama-me louco, mas não sou capaz de evitar sentir que, desde que tu e eu sejamos verdadeiros um para o outro, não pode acontecer-nos
nada de mal.
"Tens a certeza de que não há nada que queiras dizer-me? - perguntou Remy, perscrutando o rosto dela ansiosamente. Teria imaginado apenas a expressão de angústia
nos olhos dela, a maneira como os lábios se entreabriram, como se vergados pelo peso de algum segredo que lhe espreitava na ponta da língua?
Remy susteve a respiração e ficou à espera.
- Não. Nada - respondeu Gabrielle, escondendo a cara no ombro dele. Até mesmo quando a puxava para mais junto de si, Remy sentia-se arrasado ao pensar que ela estaria
a mentir-lhe. Mas afastou esse pensamento da
sua mente.
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Ela dera-lhe a sua palavra, o que devia ser suficiente para ele. Uma vez que amava a mulher, tinha de confiar nela, tal como ela própria confiava em si. Pegou-lhe
na nuca e inclinou-lhe o rosto para cima; os lábios de ambos encontraram-se num beijo ardente. Remy desapertou-lhe o robe e as suas mãos começaram a procurar todas
as curvas sensuais do corpo dela, enquanto as mãos dela lhe percorriam o corpo febrilmente. O ardor era crescente entre os dois, o corpo dele a endurecer carenciado.
Se existia uma nota de desespero nos beijos de Gabrielle, no toque das mãos dela, Remy optou por a ignorar.
Ela agarrava-se a ele, articulando uma súplica por entre a respiração entrecortada, murmurando-lhe ao ouvido:
- Oh, Remy, por favor, faz amor comigo. Faz amor comigo como se o mundo acabasse amanhã.
Cassandra Lascelles já tinha descalçado os sapatos, estendendo-se na cama, o vestido subido revelava umas barrigas da perna e uns tornozelos brancos bem torneados.
Lobo esforçava-se por manter os olhos desviados das pernas dela enquanto lhe enchia o copo. Se alguma vez tivesse tido algumas dúvidas quanto ao facto de ela ser
uma feiticeira, nesta altura já acreditava firmemente nisso. Nenhuma mulher normal seria capaz de ingerir uma quantidade tão grande de conhaque como a que ela já
bebera sem perder a consciência. Cassandra estava quase a acabar a segunda garrafa e, embora a fala já fosse um pouco entaramelada, não mostrava sinais nenhuns de
estar prestes a apagar-se.
Dos dois, era ele quem se sentia pior. Tinha manchas enormes de suor nos sovacos, o que se devia à muita tensão e ao calor sufocante no quarto. O cabelo despenteado
caía-lhe para a cara suada, os lábios contraídos numa expressão hostil.
Entretanto, o temporal amainara e agora era apenas uma chuva constante. Inclinando a garrafa, Lobo verteu as últimas gotas de conhaque para dentro do copo. O cão
da bruxa estava todo enroscado diante da lareira, observando-o, os olhos do mastim cheios de uma reprovação lúgubre, quase como se percebesse o que ele estava a
fazer à sua dona.
- A culpa não é minha, meu amigo - resmungou o rapaz. - A tua senhora não me deixou outra escolha.
- com quem é que estás a falar? - perguntou-lhe Cass numa voz entaramelada. - É com o Flagelo? Ele chegou finalmente?
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- Não, milady. Eu só estava a conversar com... com o Cérbero. - Ouviu-se um ataque de riso vindo da cama.
- Grande idiota. O meu cão não sabe falar.
Lobo levou o copo de conhaque para a cama. Cass conseguiu sentar-se ao cabo de alguns esforços e começou a balançar os pés fora da beira do leito, apoiando-se sobre
os cotovelos. Era evidente que tinha tido alguma dificuldade em pôr-se naquela posição. O rapaz observava-a através de olhos semicerrados, perguntando-se se se atreveria
a obrigá-la a voltar a deitar-se, pondo-lhe uma almofada na cara e fazendo pressão apenas durante o tempo suficiente para ela perder os sentidos e...
Mas não, ao primeiro indício de que ela não estava bem, o maldito cão não hesitaria em abocanhar-lhe a cabeça. Lobo rangeu os dentes de frustração antes de dizer
com vivacidade:
- O vosso conhaque, milady.
Em vez de se apressar a pegar-lhe avidamente, como fizera durante os primeiros oito ou nove copos cheios, ela deixou-se ficar sem se mexer, o cabelo preto comprido
a cair-lhe para o rosto, que mostrava uma expressão acabrunhada.
- Mas onde é que está o meu Flagelo? Porque é que ele ainda não chegou? Não me parece que venha.
- Oh, não, milady, tenho a certeza de que ele só se atrasou.
- Não - retorquiu Cassandra, que conseguiu sentar-se um pouco a direito, abanando a cabeça lentamente de um lado para o outro, como se tivesse passado a ser demasiado
pesada para ela. - O homem não vem. Atrai... atraiçoou-me. E a Gabrielle também. Não deviam ter feito isso. Eu sou uma bru... uma bruxa, sabes? Avisei-a do que aconteceria
se não fosse uma boa amiga e partilhasse. Agora o capitão dela... vai pagar.
O coração de Lobo apertou-se, sentindo-se alarmado quando Cassandra pegou no medalhão que lhe balouçava do pescoço. Ele agarrou-a pelo pulso e meteu-lhe o copo de
conhaque na mão.
- Aqui tendes. Tomai outra bebida para esquecerdes o capitão Remy. Se o homem não aparecer, é porque não é merecedor de que se pense nele. Negligenciar uma senhora
encantadora como vós sois. O grande biltre!
A boca de Cass contorceu-se como se vacilasse entre a vingança e a bebida que tinha na mão. O conhaque ganhou. Bebeu um gole e perguntou:
- Achas... achas que eu sou encantadora?
- Indubitavelmente. Sois tão formosa como... como uma noite de verão iluminada por estrelas cintilantes.
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- Está a chover - retorquiu Cassandra taciturnamente.
- Mas nunca onde estiverdes. - Lobo instalou-se ao lado dela em cima da cama. Dava graças por o estranho perfume que ela usava já ter perdido parte da sua intensidade.
Conseguia manter as ideias desanuviadas, o olhar concentrado no medalhão, que balouçava tentadoramente perto. Obrigou-se a esperar por uma melhor oportunidade.
com ousadia, passou um braço pela cintura dela, incentivando-a a beber e dizendo-lhe:
- Outros homens estariam à cunha nas ruas apenas pelo privilégio de beijarem a fímbria do vosso vestido. Não deveis dedicar a esse homem mais um único pensamento
que seja.
Cassandra bebeu o resto do conhaque de um só trago.
- Tens razão. O sacana que se f... Oh, esqueci-me. Era isso mesmo que eu queria fazer. - Uma vez mais, desatou a rir a bandeiras despregadas e Lobo forçou-se a fazer
coro com ela. O seu olhar fixou-se no amuleto. Sentia um formigueiro nos dedos. com uma daquelas alterações repentinas de estado de espírito, que ele via muito frequentemente
nos bêbados, Cassandra parou de rir e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. - Eu não queria f... com ele. Precisava de o fazer. Para poder ter o meu bebé. Uma menina.
O rapaz começou a dar-lhe palmadinhas na mão, mas deteve-se de repente. Gabrielle tinha-o avisado.
"Tens de ter muito cuidado. Não permitas que ela te toque na palma da mão. A Cass sabe ler as mãos como outras mulheres sábias sabem ler os olhos. Ela apoderar-se-â
de todos os teus segredos, todos os teus pensamentos."
Ao invés, Lobo optou por lhe afagar a manga do vestido.
- O capitão não é o único homem no mundo. Sois uma jovem. Tendes muito tempo para encontrar alguém que possa ser o pai da vossa criança.
- Não - retorquiu Cass fungando. - O tempo está a esgotar-se. Tem de ser esta noite.
Martin mal ouviu o que ela disse. com o coração a bater cheio de trepidação, cuidadosamente fechou os dedos em volta do fio de onde o medalhão pendia. Um puxão forte
e não seria preciso mais nada. Cassandra estava embriagada, mas não a cair de bêbada. Devia ter sentido o pequeno puxão no fio porque levantou a mão de imediato,
batendo na dele. Pegou-lhe no pulso com força, como uma algema que se fechasse. Momentos antes, as suas feições pareciam relaxadas pela bebida, mas agora o seu rosto
foi atravessado por uma estranha expressão de matreirice.
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- E quanto a ti?
- O quê quanto a mim? - perguntou Lobo, tentando libertar o pulso da mão dela.
- Qual é a tua aparência? Es jovem? És vi... viril?
A bruxa começou a apalpar até a mão ter encontrado o peito dele, que percorreu de cima a baixo e de lado a lado. Quando o rapaz se apercebeu de qual era o rumo dos
pensamentos dela, sentiu os pelos todos eriçados na nuca.
- És fé... feroz? Implacável? Bem-parecido? Disseste qualquer coisa antes acerca de seres duro e vigoroso?
Lobo engoliu em seco, afastando-se dela a pouco e pouco.
- Tenho a tendência de ser demasiado fanfarrão.
Cassandra encostou-se mais a ele, os dedos a apalparem-lhe a região do estômago.
- A mim pareces-me suficientemente duro... para seres o pai de um aguerrido bebé.
- Eu sou mais como um lobo solitário. A verdade é que não sou da espécie paternal.
- Mas quem é que quer saber disso? Desde que sejas da espécie que f... Antes que ele pudesse impedi-la, a mão dela agarrou-o entre as pernas.
O rapaz soltou um arquejo, perguntando-se se aquela bruxa era tão boa a ler testículos como na leitura da palma da mão. Não que existisse um grande mistério aí.
O órgão genital dele reagiu da maneira que era inevitável. Lobo tratou de repelir a mão dela e saltou para fora do leito.
- Milady, a... a garrafa está vazia. Tenho de ir buscar-vos mais conhaque.
- Não preciso de mais. Já bebi que chegue. - com um pequeno gemido, ela voltou a deixar-se cair na cama, virou-se e arrastou-se até à almofada.
"Por favor, ela que desfaleça agora", rezou Martin fervorosamente, "para eu poder apoderar-me do maldito amuleto e pôr-me a andar daqui para fora." Cassandra estendeu-se
de costas, os joelhos dobrados e as pernas a abrirem-se de uma maneira lasciva.
- Anda cá - disse ela, batendo no colchão ao seu lado.
Lobo teria preferido atirar-se da janela, mas receava que, se não fizesse o que ela queria, os pensamentos dela, apesar de confusos, voltariam a concentrar-se em
Remy, querendo vingar-se. Coragem, Lobo, admoestou-se. Não se podia dizer que a mulher o atacaria, qual ave de rapina, violentando-o. Bruxa ou não bruxa, a verdade
é que a mulher estava embriagada, além de
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ter uma figura frágil. Fazendo uma careta, deitou-se ao lado dela na cama, mas tendo o cuidado de manter os joelhos unidos, não fossem os dedos dela voltarem a vaguear
pelo seu corpo.
Cass tinha qualquer coisa fechada na mão, mas não era o amuleto. Era um frasquinho que ela tirara de debaixo da almofada. Quando o desarrolhou, a essência daquele
perfume capitoso evolou-se como Aladino a sair da lâmpada mágica.
A potente fragrância assaltou as narinas do rapaz. Inalou profundamente antes de poder evitá-lo, o perfume a turvar-lhe o cérebro. Cassandra espargiu o pescoço,
praticamente a lavar-se com aquilo. Até friccionou os lábios com um pouco do perfume. com um suspiro sensual, derramou o resto entre os seios, esfregando-o com os
dedos por baixo do corpete do vestido. Lobo observava a massagem rítmica como se estivesse mesmerizado.
Deviam ser seios maravilhosos, leitosos e com mamilos espetados. O corpo de Martin foi percorrido por uma avidez selvática. Sentia uma vontade quase irreprimível
de lhe rasgar o vestido, para poder ver sem quaisquer obstáculos e - mas em que raio é que ele estava a pensar? Já tinha começado a erguer-se para se pôr por cima
dela, mas deteve-se. Era aquele maldito perfume dela. Havia qualquer coisa de muito estranho naquela fragrância, era uma infusão de sereia que estava a pôr-lhe a
cabeça em tumulto. Não, pior do que isso. Causava frenesim em outras partes da sua anatomia.
Tentou suster a respiração e concentrar-se no medalhão e não naqueles seios generosos, nem nos lábios humedecidos e entreabertos de Cass, que atirou o frasquinho
vazio para o chão.
- Estás aí, meu lobo solitário? - perguntou numa voz enrouquecida e sensual. - Estás pronto? - Começou a apalpar até conseguir encontrá-lo, pousando-lhe a mão na
coxa. Ela estava tão pálida, aquela bruxa, que o toque da sua mão devia ser como gelo. Mas ele sentia os dedos dela através do tecido dos calções pelo joelho, quentes
e a latejar. Ou seria o sangue que lhe corria nas veias, fazendo com que o seu órgão sexual se alongasse, endurecido, ao ponto de ser doloroso?
A respiração de Lobo acelerou-se. Aliciado por aqueles dedos provocadores, pelo perfume dela, voltou a colocar-se por cima dela. Doce Jesus. A mulher estava a seduzi-lo,
aquela bruxa, a excitação que se apoderara dele era absolutamente insuportável. Mas havia um recanto sombrio na sua mente que se esforçava por resistir.
"Não, lembra-te da razão por que vieste aqui. O medalhão. Pensa em banhos de água fria da chuva, pensa em freiras. Pensa... pensa no capitão. Pensa na Miri."
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Mas esta última admoestação foi um grande erro. As feições de Cassandra ficaram turvas diante dos seus olhos e, subitamente, era Miri que ele via deitada por baixo
de si, o cabelo de um dourado de Lua espalhado em leque na almofada, os olhos de um azul-prateado a chamá-lo como luzes mágicas. Lobo inclinou-se para baixo e, febrilmente,
premiu os lábios contra os dela. Assim que os lábios se tocaram, a imagem de Miri desvaneceu-se e compreendeu que era a bruxa que estava a beijar, a língua dela
sinuosa como uma serpente dentro da boca dele. Mas isso que se lixasse. O veneno de mel dos lábios dela destruiu o que lhe restava de raciocínio, não deixando nada
além de um desejo animal na sua forma mais pura.
com um rosnar feroz, deixou-se cair em cima dela, rasgando-lhe o corpete do vestido...
Gabrielle mantinha-se imobilizada para não perturbar o sono do homem que dormia ao seu lado. A pele dele ainda estava humedecida da ardente paixão com que tinham
feito amor. Remy dormia com um braço possessivamente em cima da cintura dela, um sono profundo e beatífico que Gabrielle lhe invejava.
Apesar de extremamente exausta, não se atrevia a entregar-se ao cansaço. Sentia os olhos congestionados por tanto se ter esforçado para se manter acordada, mantendo-se
de vigília a Remy, fazendo a única coisa ao seu alcance para o proteger. Tinha o medalhão nos dedos como se a mão fosse um escudo, rezando para que, se Cass fizesse
o pior, o poder maléfico do amuleto seria, não sabia como, absorvido por ela e não por Remy.
O temporal já tinha passado, até mesmo a chuva, mas Gabrielle achava que o silêncio era ainda mais opressivo. Que horas seriam? Não conseguia distinguir os ponteiros
do relógio em cima da prateleira da lareira sem despertar Remy. Mas decerto que já passaria da meia-noite. Se estivesse alguma coisa para acontecer, isso já teria
sucedido. Lobo devia ter tido êxito na sua missão.
Gabrielle apertou o amuleto com mais força. com certeza que poderia tirar aquela coisa odiosa do pescoço dele, mas hesitava, continuando sem se atrever a correr
esse risco. Tinha concordado em esperar pelo regresso do rapaz. Mas porque é que ele ainda não voltara? Certamente que já teria regressado se tudo lhe tivesse corrido
bem, se não lhe tivesse acontecido nada de mal. O medo fez com que ficasse sobressaltada quando bateram ao de leve à porta da alcova.
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Era mais um arranhar do que bater à porta, a que se seguiu um sussurrar premente.
- Mademoiselle?
O coração de Gabrielle deu um pulo tão grande que foi quase doloroso. Remy mexeu-se ainda a dormir quando ela saiu da cama. com cuidado para não o acordar, levantou-se
do leito. Ele franziu o sobrolho e resmungou qualquer coisa, mas depois voltou a sossegar. Gabrielle apressou-se a vestir o robe e dirigiu-se para a porta em bicos
de pés, entreabrindo-a cautelosamente. Lobo esperava, as feições sombreadas pelo cabelo escuro todo despenteado.
Não dizia nada, limitando-se a estender o medalhão de Cassandra, que pendia do fio entre os dedos dele. Gabrielle levou a mão à boca para abafar um soluço chorado
de alívio. O seu primeiro impulso foi tirar o maldito talismã das mãos de Lobo, mas desconhecia a dimensão da natureza do poder daquela coisa demoníaca. Pegou-lhe
um pouco a medo.
- Oh, Martin... conseguiste - disse num sussurro. - És maravilhoso.
- Oui, mademoiselle - retorquiu o jovem.
Gabrielle estava à espera de ver o sorriso despreocupado e a sua habitual postura emproada, mas ele parecia estranhamente acabrunhado. Receando despertar Remy, Gabrielle
saiu para o corredor.
- Correu tudo bem? A Cass? Ela está...
- Inconsciente, milady. O mais certo é decorrer algum tempo antes de acordar amanhã e se aperceber de que o amuleto desapareceu.
- E ela não desconfiou de nada? Não fez ideia de quem tu eras?
- Não - respondeu ele numa voz roufenha.
Gabrielle encostou-se à porta, sentindo-se debilitada pelo alívio. Sem dúvida que Cassandra ficaria mais do que furiosa quando acordasse do estupor da bebedeira
e descobrisse que tinha sido enganada. Mas como não fazia ideia da identidade de Martin, não poderia vingar-se do que ele lhe tinha feito. Também deixara de ter
com que ameaçar a vida de Remy ou de Gabrielle. Quando se recompusesse e estivesse em condições de maquinar outro malefício, há muito que todos teriam partido.
O perigo tinha acabado. Os olhos de Gabrielle ficaram enevoados de lágrimas de gratidão.
- Oh, Martin, como é que poderei agradecer-te? Devo-te tudo. - Aproximou-se dele impulsivamente, querendo dar-lhe um abraço apertado.
- Não, mademoiselle. - Lobo afastou-a, recuando mais para as sombras.
- Não... os agradecimentos não são necessários. Deveis voltar para junto
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do capitão e tendes de vos livrar desses talismãs demoníacos. Preciso de ir para a cama. Estou... estou muito cansado.
- Claro que sim. Foi uma noite muito comprida para nós dois. - Gabrielle esboçou um sorriso trémulo. Por muito que ansiasse dar voz à sua muita gratidão, ainda tinha
mais vontade de voltar para junto de Remy. Não se sentiria inteiramente em segurança até lhe tirar do pescoço aquele amuleto maléfico. Quando já se preparava para
voltar a transpor a porta da alcova, disse:
- Falamos amanhã. Tens de me contar tudo o que se passou.
Lobo limitou-se a um acenar de cabeça, mostrando-se deprimido. Antes de Gabrielle voltar a entrar na alcova, Martin pensou ter ouvido um "Abençoado sejas" murmurado.
Seria possível?, perguntou-se taciturno. Abençoar um homem que estava amaldiçoado. Era muito provável que ele e Gabrielle tivessem essa conversa amanhã, mas ele
nunca lhe contaria tudo o que se passara realmente. Existiam alguns segredos acerca daquela noite que Martin tencionava levar consigo para a campa.
Desceu as escadas num passo cambaleante, saindo da ampla casa mergulhada em silêncio por uma porta lateral de acesso aos jardins. Desde que o capitão começara a
partilhar o leito da sua senhora, Lobo instalara-se no alojamento do moço de estrebaria por cima do estábulo.
Percorreu um carreiro cheio de lama sem ver onde punha os pés, roçando pelas folhas das árvores ainda molhadas pela água da chuva. O firmamento desanuviara-se, as
nuvens a levantarem-se como o véu da face maravilhosa da noite. Mas o jovem tremia, desviando-se da luz do luar. Esfregou o ombro, sentindo a pele a latejar onde
a bruxa lhe mordera no calor da paixão, as costas em carne viva por ela a ter lacerado com as unhas.
Mas pior do que isso era o cheiro dela, o odor carnudo da pele dela, o aroma enjoativo e cediço do perfume dela. Por muitas vezes que ele tomasse banho, receava
que nunca mais se livraria do fedor da mulher. Aquele perfume que o levara à loucura só o enchia agora de uma vontade insuportável de vomitar. Era como se o seu
estômago se elevasse e lhe caísse até aos joelhos antes de vomitar nos arbustos. Os espasmos do vómito não pararam até se sentir exaurido e só desejar enrolar-se
sobre si próprio e morrer ali mesmo, no caminho todo enlameado.
Esfregou os lábios com a mão. Ainda sentia o sabor da bruxa, o que era suficiente para voltar a querer vomitar. Respirou fundo e desta vez conseguiu
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controlar as náuseas. Lobo tentou pôr-se de pé, mas não tinha forças para se levantar.
Deus lhe valesse, o que é que ele tinha feito? Teriam passado apenas alguns dias desde que declarara o seu amor a Miri e já a tinha atraiçoado? E não apenas com
uma mulher qualquer, mas sim com uma bruxa. Quaisquer desculpas em que alegasse que Cassandra o seduzira não justificariam as suas ações. Ele devia ter resistido.
Devia ter sido mais forte. Até mesmo se fosse afortunado e conseguisse conquistar o coração de Miri, deixara de ser merecedor do amor dela.
Tinha feito amor com uma bruxa. Até era possível que lhe tivesse gerado um filho. Sentia-se contente e orgulhoso por ter salvado o capitão, mas sabia que jamais
se livraria das consequências daquela noite. A marca da bruxa ficara gravada nele, manchando-o para o resto da sua vida. Como é que poderia presumir poder tocar
sequer na mão de uma pessoa tão pura e inocente como Miri?
Martin levantou a cabeça, mal se atrevendo a olhar para o globo cintilante suspenso do firmamento, tão longe do seu alcance, tão inatingível. As lágrimas corriam
pelas faces de Lobo e soltou um uivo de angústia.
Ela estava perdida para si, a sua encantadora senhora da Lua. Perdida para sempre.
Como um animal que se tivesse refugiado na sua toca, Cassandra Lascelles refugiou-se na sua câmara subterrânea. Não fazia ideia se era dia ou noite, tal como não
sabia quanto tempo tinha decorrido desde aquela fatídica noite na Estalagem Cheval Noir. As têmporas ainda lhe latejavam enquanto repousava dos efeitos persistentes
da pior ressaca da sua vida. Mas o ódio que acalentava no seu coração era muito pior do que isso.
Cérbero chegou-se a ela, tentando pôr a cabeça no colo, talvez pela centésima vez. Cassandra já perdera o conto. Batia com a pata nas suas saias e gania, manifestamente
incapaz de compreender a frieza da sua dona para consigo.
Cassandra deu-lhe um forte soco no peito, banindo-o de perto de si.
- Vai-te deitar.
O animal afastou-se a ganir. Era o cúmulo da idiotice descarregar a sua insatisfação na pobre criatura, que não fazia a mínima ideia do que lhe teria feito para
lhe desagradar. Mas ela já se tinha esgotado, descarregando a sua raiva no único outro objeto disponível. Ouvia onde Finette se tinha acocorado,
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no canto mais afastado da câmara, a fungar baixinho como se aterrorizada por poder lembrar Cass da sua existência. E tinha toda a razão para isso. Ela quase arrancara
os cabelos da rapariga pela raiz, além de lhe ter batido com o atiçador de ferro da lareira.
O milagre era Cassandra não ter matado a estúpida rapariga, espancando-a até à morte. Não sabia porque não fizera isso mesmo, talvez por um ínfimo resquício de raciocínio
lhe ter recordado que ainda precisava de Finette. Apesar de a idiota, que não era de fiar, lhe ter sido de pouca utilidade até agora. Tinha faltado a Cass quando
esta mais precisara dela. Do mesmo modo que Cérbero lhe havia faltado. Mas isso não a enfurecia tanto quanto aperceber-se de que se atraiçoara a si própria.
Era esse pensamento que fazia com que só lhe apetecesse arrancar os seus próprios olhos inúteis. Já era bastante mau que fosse cega, mas o que é que poderia fazer,
além de afogar as mágoas na garrafa, sucumbindo ao velho demónio. E na noite mais importante da sua vida, quando, finalmente, dera o primeiro passo com vista a cumprir
o seu grandioso destino, a conceção de uma criança com que sonhava havia tanto tempo.
Como é que tinha podido ser tão estupidamente fraca? Como é que teria podido render-se à tentação? É claro que não se podia dizer que não tivesse tido ajuda, refletiu
amargamente. Aquele criado com a sua voz persuasiva, tão solícito nas suas atenções, com os seus elogios tão certeiros, sempre a tentá-la com o conhaque debaixo
do nariz, só lhe tendo faltado levar-lhe o copo aos lábios. Cassandra não fazia ideia da identidade do rapaz, mas tinha a certeza de que não era nenhum criado da
Estalagem Cheval Noir.
Não lhe fora muito difícil adivinhar quem é que ele servia. Gabrielle Cheney. Essa vaca egoísta, matreira e traiçoeira. Sem dúvida que ela e aquele maldito homem
estariam a rir-se a bom rir, congratulando-se por terem levado a melhor à pobre cega que tinha tão pouca força de vontade. Cass mordeu o lábio inferior com tanta
força que sentiu o sabor de sangue. Pois bem, haveria de lhes mostrar quem é que era fraco e indefeso. Mas, até certo ponto, a fúria que sentia era amortecida por
um desespero que a levava a querer lamuriar-se como Finette e a ganir como o seu cão.
"Gabrielle, como é que pudeste fazer-me uma coisa destas? Cassandra não tivera a mínima intenção de fazer mal a Nicolas Remy. Não teria faltado à sua palavra. Teria
entregado o medalhão a Gabrielle. Só tinha precisado de Remy durante uma noite. Uma miserável noite.
Mas agora, em vez de a sua criança ter sido gerada por um homem tão magnificente como o Flagelo, a criança fora concebida por um insignificante
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zé-ninguém. Cassandra levou a mão à região do útero e fez pressão, o seu arguto sexto sentido a não deixar-lhe qualquer dúvida de que a conceção tivera lugar. Era
aí que a criança estava a desenvolver-se e ela iria tomar medidas no sentido de se livrar do feto. Mas não podia fazer isso. A profecia de Nostradamus fora bastante
clara. A noite anterior havia sido a sua única oportunidade. Portanto, só lhe restava incutir a sua própria vontade férrea e sinistra na filha, de modo a que o pai
não tivesse a mínima importância.
Oh, mas ele iria pagar pelo que tinha feito. Aquele biltre matreiro, aquele lobo solitário. Cass haveria de descobrir quem ele era, iria encontrá-lo ainda que isso
lhe levasse toda a sua vida. E, quando ela o encontrasse, ele implorar-lhe-ia que o matasse. A morte seria uma bênção quando comparada com o que o esperava. Mas
entretanto havia uma coisa muito mais merecedora da sua vingança, algo que ela não teria de procurar, aquela que antigamente fora sua amiga, a mulher a quem oferecera
tudo, o recurso à sua magia negra e uma dedicação de irmã.
Gabrielle merecia um castigo adequado à sua traição e, felizmente, Cass não tinha de dar voltas ao cérebro para pensar num castigo apropriado.
As janelas da casa na cidade estavam todas trancadas e muitos dos servos já haviam sido dispensados, a dispendiosa mobília protegida por lençóis que lhe davam um
aspeto espectral. Era como se a casa tivesse sido posta num sono profundo, como que sob um encantamento de conto de fadas, enquanto aguardava a chegada da próxima
princesa que fosse à procura dos seus sonhos. Os passos de Gabrielle ecoavam lugubremente enquanto passava uma última vista de olhos pelo interior da casa que fora
o seu lar durante os últimos anos. Não, nunca tinha sido um lar, corrigiu-se. Apenas uma concha cintilante que albergara as suas ambições igualmente vazias.
Sabia que Remy continuava a temer que uma parte dela viesse a sentir a falta de tudo aquilo, dos vestidos, das jóias, da requintada casa, do empolgamento da corte
francesa. Mas Gabrielle não lamentava nada do que iria deixar para trás. Nada daquilo lhe parecia tão genuíno como o homem forte e calado que conquistara o seu coração.
Agora era-lhe difícil recordar como se esforçara tanto para vir a possuir aquela propriedade, ao ponto de ter quebrado todos os laços de união com Ariane. Aquela
casa que tanto lhe exigira já não tinha o mínimo significado para si. Supunha que a coroa a confiscaria. Era o que acontecia habitualmente aos bens de quem desagradava
aos membros da família real, e não tinha a mínima dúvida de que a Rainha das Trevas iria sentir-se extremamente desagradada.
Os planos de fuga de Remy para o rei de Navarra estavam finalmente ajustados. O rei francês, depois do entusiasmo do torneio, parecia ter ficado inquieto e enfadado.
Tencionava deslocar toda a corte para Blois. A comitiva real, composta por cortesãos, servos, cavalos, bagagens e as carroças necessárias para o transporte, seria
imensa, pelo que o percurso até à nova corte seria lento e desconfortável. Eram muitos os lugares ao longo do trajeto onde se poderiam arranjar divertimentos, o
que permitiria ao rei de Navarra alterar a direção do seu cavalo, furtando-se à guarda real e galopando até se perder na região rural de França.
A Rainha das Trevas ultimamente não era a mesma, o seu olhar, normalmente tão vigilante, agora era vago e alheado. Talvez devido à presença dos caçadores de bruxas
em Paris, embora Simon Aristide ainda não tivesse prendido ninguém. Segundo todas as informações, o homem limitava-se a recolher provas e a ouvir depoimentos.
Os cidadãos de Paris, que tinham estado na expectativa, aguardando a sensação dos julgamentos das bruxas que seriam queimadas na fogueira, sentiam-se muito dececionados.
O temido Lê Balafre comportava-se mais como um amanuense do procurador da coroa do que como um verdadeiro caçador de bruxas, resmungavam descontentes. No entanto,
Gabrielle tinha a desagradável impressão de que ele agia como um gato que tivesse estado à coca durante várias horas junto do buraco de um rato, esperando pacientemente
até estar seguro da sua presa. A inatividade de Simon causava-lhe nervosismo e sem dúvida que Lê Balafre estaria a ter o mesmo efeito em Catarina, fazendo com que
a Rainha das Trevas estivesse muito menos vigilante no que dizia respeito ao rei de Navarra.
Remy nunca mais teria uma ocasião tão propícia para o resgate do seu rei. Tinha saído para efetuar a compra de outros dois cavalos, o que lhe permitiria e ao rei
uma rápida mudança de montadas. Gabrielle e Miri deixariam Paris por outro caminho, encontrando-se com Remy, Lobo e o rei de Navarra num local previamente combinado.
Gabrielle detestava esta parte do plano, o facto de estar separada de Remy enquanto ele corria tanto perigo. Mas ele mostrara-se irredutível. O resgate correria
mais facilmente se ele soubesse que Gabrielle e Miri estavam em segurança e fora de perigo. Ao contrário do costume, Gabrielle aquiesceu docilmente.
Talvez por continuar a sentir-se culpada por lhe ter mentido no assunto do medalhão. Remy mostrara-se intrigado quando, depois de o ter obrigado a prometer que nunca
tiraria o amuleto do pescoço, Gabrielle lhe disse com a mesma ansiedade que se livrasse daquilo. Mas ele entregara-lhe o medalhão rindo-se e com um beijo, resmungando:
"Mulheres."
Gabrielle ainda não conseguira reunir coragem para lhe contar a verdade. Tinha vergonha de admitir para consigo que uma parte cobarde de si esperava que isso nunca
viesse a ser necessário. Não sabia nada de Cassandra desde
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aquela horrível noite. Talvez ela tivesse visto a razão, abandonando as suas loucas ambições, ou tivesse aceitado a derrota. Mas Gabrielle não acreditava nisso por
um momento que fosse. Ainda bem que deixariam Paris hoje mesmo.
com um último olhar à sua alcova, pegou no último objeto que tencionava levar consigo, a caixa de madeira forrada a seda e fechada à chave onde guardava os segredos
que mais sentimentos de culpa lhe suscitavam. O anel de sinete que a Rainha das Trevas lhe oferecera e os dois medalhões. Colocando-a debaixo do braço, Gabrielle
desceu as escadas. O seu cúmplice de conspiração aguardava-a no vestíbulo do piso térreo. Era-lhe impossível não se aperceber da mudança na atitude de Lobo desde
a noite em que tinha roubado o medalhão a Cassandra.
Parecia mais velho e muito mais submisso, como se os acontecimentos dessa noite tivessem deixado uma marca indelével nele. Pensar naquilo perturbava Gabrielle e
tentava dizer a si mesma que estava a imaginar coisas. Andariam todos enervados até a fuga do rei de Navarra ser levada a cabo. Depois de todos os perigos terem
passado, quando já estivessem muito longe de Paris, estava certa de que Lobo voltaria a ser o mesmo rapaz desenvolto e bem-disposto.
- A carruagem está pronta, mademoiselle - informou o rapaz quando ela já descia as escadas. Franziu o sobrolho ao ver a caixa de madeira que ela trazia debaixo do
braço. - Estais a pensar em levar isso?
- Não me parece que fosse seguro deixá-la ficar - retorquiu Gabrielle. Martin viu-se forçado a concordar com ela, muito embora se mostrasse profundamente perturbado.
Dispor dos medalhões provara ser um problema inesperado. O primeiro impulso de Gabrielle fora deitá-los no lixo, mas eram demasiado perigosos para serem descartados
dessa maneira. O misterioso poder que possuíam fazia com que se sentisse enervada perante a perspetiva de tentar derretê-los.
- Talvez pudéssemos enrolar correntes à volta da caixa de madeira, atirando-a para o fundo do Sena - sugeriu Lobo.
- Também já pensei nisso, mas penso que será melhor fazê-lo ao largo da ilha Encantada.
Apesar de ter franzido a testa, o rapaz assentiu com um acenar de cabeça.
- Mademoiselle, não achais estranho que não tenhamos voltado a ter notícias dela? Que tenha voltado para a sua casa amaldiçoada, deixando-nos em paz e sossego?
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Gabrielle não precisava de lhe perguntar a quem é que ele se referia. Desde essa noite, Gabrielle e Martin não tinham voltado a mencionar o nome de Cassandra em
voz alta, nem sequer entre os dois.
- Sim, receio ter de reconhecer que é estranho - replicou com um suspiro. - Se bem que suponho que não seja mais estranho do que os caçadores de bruxas à espera
da melhor oportunidade ou a Rainha das Trevas abandonar a vida pública. - Esboçou um sorriso pouco convincente. - Está-me a parecer que tu e eu somos uma espécie
de pessoas sempre inquietas, Martin. Quando nos é permitido desfrutar de um período de bonança, parece que não sabemos apreciar o quanto somos afortunados.
Martin sorriu, uma semelhança muito esmorecida do seu antigo sorriso rasgado.
- Eu não confio na bonança, milady. Prefiro os temporais. Pelo menos, quando se ouve o ribombar dos trovões e se vê os clarões dos relâmpagos, é um aviso que nos
dá tempo para procurarmos abrigo. O mais acertado é sairmos daqui e quanto mais depressa melhor. - Lobo seguiu à frente dela para lhe abrir a porta e Gabrielle saiu
de casa sem olhar para trás. Seguiu-o até ao pátio dos estábulos, onde a carruagem a aguardava, a parelha de cavalos já estava presa aos tirantes. Bette e Miri já
se tinham instalado no interior.
Além da criada, os únicos servos que Gabrielle não dispensara eram o cocheiro e dois lacaios que acompanhavam a carruagem a cavalo. Os robustos jovens puseram-se
em sentido, após o que um deles se apressou a avançar para pegar na caixa de madeira que Gabrielle trazia.
com um gesto, Lobo indicou ao homem que se afastasse, pegando na caixa de madeira tão cuidadosamente como pegaria numa pistola com um gatilho de pouca pressão. Colocou
a caixa dentro da carruagem, após o que estendeu a mão para ajudar Gabrielle a subir.
Um dos lacaios já se apressara a abrir os portões que davam para a rua, quando lhe afastaram as mãos de um dos portões. Gabrielle ficou a olhar atordoada para os
cavaleiros que barravam o caminho da carruagem, homens de rostos duros que tinham capacetes e vestiam túnicas onde se viam cruzes brancas. À semelhança da antiga
lenda grega do exército mortal que nascera dos dentes de um dragão, davam a impressão de terem surgido de nenhures.
- Nom de Dieu, mademoiselle - murmurou-lhe Lobo ao ouvido. - Está-me a parecer que o estado do nosso tempo se agravou de repente. - Começou a desembainhar o punhal,
mas Gabrielle agarrou-lhe o pulso para
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o impedir, imobilizando-lhe o gesto com um abanar de cabeça de advertência. Encontravam-se perante seis dos brutamontes dos caçadores de bruxas de Aristide, que
lhes barravam o caminho. Eram de mais para que se lhes pudesse dar luta, em especial porque nem Lobo nem os seus lacaios possuíam a destreza de Remy em combate.
O rosto pálido de Miri apareceu à janela da carruagem quando o chefe do grupo avançou. Para paz de espírito da irmã, Gabrielle ficou aliviada ao ver que não era
o maldito Aristide. com uma fachada de serenidade que o bater acelerado do seu coração contradizia, deu alguns passos em frente. Inclinou a cabeça para trás e olhou
para o chefe do grupo, dizendo num timbre de uma cortesia gélida:
- com vossa licença, monsieur, estávamos prestes a partir e parece que estais a impedir-nos o caminho.
O caçador de bruxas sujeitou-a a um olhar cheio de dureza. Era um homem já com alguma idade de feições muito vincadas, a basta cabeleira grisalha fazia pouco para
disfarçar o facto de lhe faltar uma orelha.
- Mademoiselle Gabrielle Cheney?
- E se for? - ripostou a interpelada com um arquear de sobrancelhas de sobranceria.
- Monsieur lê Balafre gostaria de vos dar uma palavra, mademoiselle.
- Em qualquer outra altura, teria o maior prazer, mas hoje é extremamente inconveniente. Dizei a monsieur que será com toda a satisfação que o visitarei assim que
regressar a Paris.
O caçador de bruxas fez uma careta sorridente e cuspiu; os seus homens desembainharam as espadas.
- Monsieur lê Balafre gostaria de falar convosco. Agora!
Lobo praguejou, fazendo outra tentativa para investir contra o homem. Gabrielle mal conseguiu contê-lo a tempo.
- Não, não faças isso.
- Mas, mademoiselle, não consentirei, de maneira nenhuma, que sejais levada para onde quer que seja por estes... estes demónios.
- Não me acontecerá nada de mal - insistiu Gabrielle, rezando para que as suas palavras correspondessem à verdade. - Por favor, Martin. Há apenas uma coisa que podes
fazer por mim. Vai procurar o Remy.
As sombras alongavam-se através da taberna. Sem dúvida que a Estalagem Régia havia sido em tempos um estabelecimento muito animado e com
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uma numerosa clientela, antes de os caçadores de bruxas a terem ocupado. Mas, agora, a luz do dia que esmorecia emprestava-lhe uma atmosfera sombria que se abatia
sobre as mesas vazias, à exceção daquela em que Gabrielle se sentava enquanto esperava. Dois dos caçadores de bruxas mantinham-se de guarda na porta, enquanto os
restantes andavam pelo pátio. Pareciam ser tão numerosos que Gabrielle se arrependeu da sua decisão de incumbir Lobo de ir buscar Remy. Mas ele tinha de ser informado
do atraso na partida. Só rezava para que o seu Flagelo não se sentisse impelido a cometer uma imprudência.
Ela não corria qualquer perigo imediato, a menos que fosse de vir a perecer de um misto de tensão e tédio. Recostou-se na cadeira, resistindo à tentação de tamborilar
com as unhas no tampo da mesa. Para alguém que tinha estado com tanta pressa em que ela fosse detida, Lê Balafre estava a levar uma eternidade para aparecer.
Gabrielle não tinha noção do tempo que fora deixada sozinha para arrefecer as ideias naquela lúgubre taberna. É claro que compreendia as táticas dele. Aquela demora
era uma patética tentativa de lhe mostrar a sua importância e poder. Para aumentar o receio dela, mantendo-a na incerteza. Resultara durante algum tempo. Mas, agora,
Aristide só estava a conseguir irritá-la. Mas que diabo é que ele pensava que era? Nada mais, além de um arrivista que em tempos não havia sido mais do que um dos
bajuladores de Vachel Lê Vis, o canalha pérfido que dilacerara o coração de Miri.
Gabrielle poderia ter suportado aquela provação muito melhor se tivesse conseguido convencer Miri a ficar com Bette e o seu gato. Mas duvidava que todos os caçadores
de bruxas do grupo tivessem sido capazes de arrastar Miri para longe de si. O chefe deles nem sequer tinha tentado, limitando-se a encolher os ombros bem fornidos,
comentando que não tinha nada a ver com o assunto se a rapariga quisesse ir a reboque.
Miri sentava-se defronte de Gabrielle, mostrando muita compostura, embora se mantivesse muito calada e reservada. Gabrielle só conseguia imaginar as dolorosas recordações
que deviam correr à desfilada pela mente da irmã, da ocasião em que a própria Miri fora acusada de bruxaria, da maneira como Simon Aristide atraiçoara a confiança
que ela tinha depositado nele. Gabrielle estendeu a mão para a irmã mais nova, querendo confortá-la. Mas foi Miri quem lhe apertou a mão, dizendo-lhe encoraj adora:
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- Não te preocupes, Gabby. Vai tudo correr bem. A sério. O Simon não é como o antigo mestre, o Lê Vis. Ele não recorre aos métodos de tortura que ele usava. Ele...
ele tenta ser justo e razoável. ,
Gabrielle sentia-se mortificada ao ver como Miri continuava a esforçar-se por acreditar naquele homem tão desprezível, tentando encontrar algum vestígio de bondade
nele.
- Miri...
Mas como se tivesse adivinhado o que Gabrielle se preparava para dizer, afastou a mão.
- O Simon não te fará mal nenhum. Não lhe permitirei que o faça acrescentou Miri veementemente.
Gabrielle não fazia ideia nenhuma do motivo por que Aristide quisera falar com ela, o que é que quereria saber, quais as acusações que talvez se preparasse para
lhe apresentar. Mas o homem era um caçador de bruxas e ela sabia que o bom senso não teria nada a ver com o assunto. A última coisa que desejava era que Miri tentasse
sair em sua defesa.
Antes que pudesse acrescentar mais alguma coisa, foi distraída pelos passos de um dos criados da estalagem que descia as escadas. Não se teria apercebido disso se
ele não tivesse tropeçado no último degrau. A mão dele agarrou-se ao corrimão para não cair, os dedos magros excessivamente brancos e as unhas muito bem arranjadas
para alguém que passara a sua vida a servir os outros.
Quando passou pela mesa a que elas se sentavam, baixou a cabeça, o rosto oculto pela cabeleira branca desgrenhada. Gabrielle observou-o atentamente e, surpreendida,
reconheceu-o.
Bartolomy Verducci.
Esforçando-se ao máximo para evitar o olhar de Gabrielle, o homem seguiu apressado para a cozinha. Apesar da peruca e do andar encurvado, tinha ( a certeza absoluta,
era o sabujo favorito de Catarina. Mas o que diabo é que Verducci estaria a fazer ali? A resposta era óbvia. A espiar a mando da Rainha das Trevas. Fazia todo o
sentido que ela se mantivesse ao corrente do que o seu inimigo andava a maquinar. Catarina tinha sido muito mais sagaz do que Gabrielle, que se deixara apanhar desprevenida.
Era possível que a rainha até estivesse a conspirar para que deitassem alguma coisa no vinho de Simon.
Por muito que deplorasse os métodos da Rainha das Trevas, não se podia dizer que isso causasse grande tristeza a Gabrielle, mas sabia quem é que
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ficaria com o coração destroçado. Embrenhada nos seus pensamentos tão infelizes, Miri nem sequer tinha reparado no homem de idade, mas tão-pouco se teria apercebido
do potencial de perigo para Simon se tivesse reparado nele.
Gabrielle mexeu-se agitada, perguntando-se se devia dizer alguma coisa. Antes de poder decidir, os guardas postados à porta puseram-se em sentido, os olhares dirigidos
para o patamar acima deles. Há quanto tempo é que Aristide estaria ali, ocultando-se a coberto das sombras enquanto a observava em silêncio, era coisa que Gabrielle
não poderia dizer. Começou a descer as escadas num passo medido e vagaroso. Gabrielle pôs-se de pé, se bem que não soubesse porquê. Talvez porque, se ficasse sentada
submissamente, isso daria vantagem de mais àquele homem. Era inegável que Aristide sabia como impor a sua presença. Tinha de conceder isso ao Diabo.
Trajava todo de negro, desde as botas ao gibão. O cabelo rapado acrescentava-lhe uma aura ameaçadora. A pala no olho cego, felizmente, ocultava grande parte da face
desfigurada por uma cicatriz. Quando chegou ao fundo das escadas, o olhar acerado pousou fugazmente em Miri.
- O que é que ela está a fazer aqui? Eu disse que só queria falar com Mademoiselle Gabrielle Cheney. Porque trouxeram a outra?
Gabrielle quase sufocou de indignação. A irmã tinha ficado de coração destroçado por causa daquele homem desprezível e ele atrevia-se a referir-se a ela com tamanha
falta de sensibilidade como "a outra". Os homens de Simon articulavam as suas desculpas numa voz gaguejada quando Miri se levantou da cadeira.
Gabrielle passou um braço pela cintura da irmã, tentando retê-la. Mas Miri libertou-se do braço dela, colocando-se em frente de Simon de maneira a obrigá-lo a olhar
para si.
- Não há razão para vos irritardes com os vossos homens, Simon. Fui eu que insisti em vir. Devíeis saber que era o que faria.
- Este assunto não vos diz respeito.
- Diz-me respeito e muito. A Gabrielle é minha irmã.
- Não tenho nada contra vós, Miri. Avisei-vos para que vos mantivésseis afastada do meu caminho.
- Se o vosso caminho constituir uma ameaça à minha família, decerto que não estais à espera que eu proceda dessa maneira.
Miri inclinou o queixo para cima e ficaram a olhar um para o outro irados. Embora estivessem separados por mais de um metro, tal não impedia
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que existisse uma estranha sugestão de intimidade entre os dois. Uma familiaridade em contradição com duas pessoas que não se viam havia três anos.
Gabrielle não sabia quando ou como, mas deduziu que a sua irmã mais nova teria saído de casa às escondidas. Apesar de todas as suas advertências, ela arriscara-se
a ir falar com aquele perigoso estupor. Mas mais tarde teria tempo suficiente para a admoestar por aquela loucura. Pelo menos, Gabrielle esperava vir a ter oportunidade
para isso.
Miri e Simon continuavam a confrontar-se, ambos de braços cruzados. Gabrielle receava que o homem estivesse prestes a ordenar aos seus guardas que expulsassem Miri
quando, para sua surpresa, ele cedeu.
- Podeis ficar desde que me prometais que vos sentareis ali, mantendo-vos em silêncio.
Miri não lhe prometeu nada, mas encaminhou-se para o banco que ele lhe indicava num passo gracioso e postura digna. Gabrielle inchou de um imenso orgulho na irmã
mais nova. Atirando para trás o cabelo sedoso de um louro-claro, Miri sentou-se graciosamente, juntando as mãos calmamente no regaço. Simon olhava para ela e, por
breves momentos, a sua expressão mostrou um sentimento semelhante a ternura. Mas essa expressão já tinha abandonado o seu rosto quando se virou para Gabrielle.
Mas, durante os últimos dois anos, ela mantivera-se firme entre as víboras da corte e contra todas as artimanhas e malefícios da Rainha das Trevas.
Não seria um caçador de bruxas que a intimidaria, ainda que ele possuísse o olho do próprio Diabo.
Antes que Aristide pudesse dizer uma única palavra, Gabrielle assumiu uma postura altaneira.
- Em primeiro lugar, permiti que eu deixe uma coisa bastante clara, monsieur. Isto não se parece com nenhuma igreja nem sala de tribunal que eu tenha visto. - com
um gesto amplo, abarcou tudo o que a rodeava, mostrando uma expressão desdenhosa. - Isto não passa da taberna de uma estalagem.
- Estou bem ciente disso. Também tenho olhos para ver - acrescentou ele com secura. - Pelo menos, um olho.
- Tão-pouco vi quaisquer juizes ou prelados da Igreja. com que autoridade é que me haveis prendido?
- A minha autoridade advém de uma nomeação especial do rei, como bem sabeis. Além disso, não estais sob prisão. Ainda - acrescentou.
- Nesse caso, porque estou aqui?
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- Meramente para responderdes a algumas perguntas.
- De verdade? - replicou Gabrielle com um arquear de ceticismo das sobrancelhas. - Isso soa-me um pouco como o Diabo a dizer que só quer que lhe emprestemos a nossa
alma durante algum tempo.
Os lábios de Simon esboçaram um inesperado trejeito de bom humor.
- Aliviais a minha mente, mademoiselle. Receava que talvez já lhe houvésseis entregado a vossa inteiramente.
Quando Gabrielle abriu a boca para ripostar, ele levantou uma mão para a calar.
- Só pretendo fazer-vos algumas perguntas. Vejo-me perante um assunto lamentável que foi trazido à minha atenção. Estou esperançado em que sejais capaz de mo esclarecer.
- Arrastou uma cadeira para ela. - Por favor, sentai-vos.
Gabrielle não confiava na cortesia dele, nem nas palavras com que tentara tranquilizá-la, mas não se podia dizer que tivesse muitas opções. Sentou-se na cadeira.
Antes que Aristide pudesse sentar-se na cadeira em frente de si, um dos seus homens entrou intempestivamente. Chamou Aristide à parte e segredou-lhe qualquer coisa
que parecia urgente. O guarda mostrava-se bastante agitado, mas, qualquer que fosse a natureza do que lhe tivesse dito, Aristide manteve-se imperturbável.
- com certeza - replicou. - Ele que entre.
O guarda nem sequer teve oportunidade de obedecer à ordem dele. Após alguma agitação na soleira da porta, Gabrielle ouviu uma voz engrossada no campo de batalha
que lhe era tão familiar.
- Sai do meu caminho, a não ser que queiras ficar sem a outra orelha! Remy.
O coração de Gabrielle deu um salto. Virou-se na cadeira quando ele entrou de rompante, seguido de muito perto por Lobo. Vários dos caçadores de bruxas seguiam-nos
apressadamente de espadas desembainhadas, mas uma rápida ordem de Simon imobilizou-os. Remy não prestava mais atenção a qualquer deles do que teria prestado a moscas
irritantes. Era evidente que viera a todo o galope durante o percurso até ali, tinha o rosto todo suado e o cabelo de um louro-escuro a agarrar-se-lhe à testa. O
seu olhar percorreu o interior da taberna até ver Gabrielle, um muito vago indício de alívio a suavizar-lhe a dureza da fisionomia.
- Mas o que diabo é que se passa aqui? - perguntou autoritariamente, dirigindo-se para ela. - Gabrielle, estás bem?
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Ela teve de fazer um esforço tremendo para não saltar da cadeira, atirando-se para o conforto dos braços fortes de Remy. Mas era demasiado orgulhosa para se entregar
a uma tal manifestação de fraqueza diante dos caçadores de bruxas. Em vez disso, estendeu uma mão.
- Sim, estou... estou bem.
Remy pegou-lhe nos dedos com força, o seu olhar a percorrê-la, como se precisasse de se certificar com os seus próprios olhos do que ela dizia. Entretanto, Lobo
correra para Miri, parecendo que queria fazer exatamente o mesmo. Mas conteve-se e não lhe tocou, dando meia-volta e olhando para Simon; com uma expressão feroz.
- Grande estupor demoníaco! Mantém essas mãos imundas bem afastadas dela! Estamos entendidos?
- Ainda não me tinha apercebido de alguma vez ter posto as mãos nela ripostou Simon com um ar desdenhoso. Ele e Martin fitaram-se com uma hostilidade inexplicável
que parecia irradiar dos dois jovens.
Simon foi o primeiro a desviar o olhar, virando-se para Remy.
- Posso afirmar-vos que não há a mínima necessidade para todas estas atitudes de heroicidade, capitão.
- Não haverá? - retorquiu Remy, aproximando-se mais dele com uma atitude beligerante. - Sabeis quem sou?
- com base no que haveis dito ao meu guarda, quando exigistes que vos deixassem entrar, só posso deduzir que sois o noivo de Mademoiselle Gabrielle Cheney. Os meus
parabéns. Mas, além disso, sois Nicolas Remy, também conhecido por Flagelo. Os nossos caminhos cruzaram-se uma vez na ilha Encantada, se bem que nunca nos tenhamos
conhecido oficialmente.
- Talvez por eu ter estado no subterrâneo da casa que haveis tentado incendiar, enquanto estáveis a salvo no exterior.
Surgiu um ligeiro rubor na face de Simon, uma expressão nos seus olhos que poderia ser de vergonha, mas apressou-se a tentar apaziguar a situação.
- Um incidente lamentável que é preferível que deixemos no passado. Estou mais preocupado com o presente.
- Também eu. Gostaria de saber por que razão é que haveis prendido a minha noiva.
Simon soltou um suspiro de lassitude.
- Não está presa. Como eu estava a explicar a Mademoiselle Gabrielle Cheney, só preciso de lhe fazer algumas perguntas.
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- Nesse caso, tratai de as fazer - ripostou Remy -, para podermos sair daqui.
- Claro que sim. Desde que Mademoiselle Gabrielle Cheney me responda satisfatoriamente.
Perguntas a respeito de quê?, perguntava-se Gabrielle inquieta. Mas o que diabo é que ele pretendia? Se Aristide não tencionasse proferir acusações contra ela, o
que é que queria? Um depoimento contra outra Filha da Terra? Jamais conseguiria saber nada através dela, em particular se estivesse a tentar reunir provas contra
Catarina de Médicis. Se o homem era suficientemente louco para se defrontar com a Rainha das Trevas, estaria inteiramente por
sua conta.
Entretanto, Aristide ordenou a um dos seus mercenários que lhe fosse buscar uma pasta de couro, convidando Remy e Martin a sentarem-se. Este acomodou-se ao lado
de Miri no banco corrido, numa atitude protetora, mas Remy recusou o convite com brusquidão. Em vez de se sentar, colocou-se atrás de Gabrielle, pousando-lhe uma
mão no ombro. Ela estendeu a mão, fechando os dedos nos dele, grata por poder contar com a forte presença dele atrás de si. Aristide sentou-se de frente para os
dois, desapertando a fita que fechava a pasta. Abriu-a e começou a folhear os documentos que continha. Deteve-se num demoradamente, se bem que Gabrielle tivesse
a certeza de que o caçador de bruxas conhecia de cor e salteado todas as linhas aí escritas.
Aquilo era, muito simplesmente, outra tática para atrasar o que tinha a dizer, outra tentativa para aumentar a tensão. Era possível que Simon não recorresse a ferros
em brasa, mas era mestre em formas mais subtis de tortura. Sentia-se à beira de começar a gritar-lhe para que se despachasse quando, finalmente, ele ergueu o olhar.
Quando, por fim, fez a primeira pergunta, era muito mais grave do que ela tinha antecipado.
- Mademoiselle Gabrielle Cheney, estou em crer que o nome de Cassandra Lascelles vos é familiar, estou certo?
A mão de Gabrielle apertou os dedos de Remy ansiosamente. Lobo ficou sobressaltado, mas ela nem sequer se atreveu a olhar para o jovem. Fitou Aristide, tentando
avaliar o que é que o caçador de bruxas saberia. O olhar trocista dele não lhe revelou nada. Decidiu que negar taxativamente talvez não fosse a opção mais sensata.
- Dissestes Cassandra Lascelles? O nome não me é desconhecido. Eu... eu. talvez já tenha ouvido falar dela.
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- É inquestionável que ela ouviu falar de vós. Todas as informações que me chegaram indicam-me que é uma mulher jovem e cega que leva uma vida de reclusão, mas enviou
a criada... - Aristide interrompeu-se para voltar a consultar os seus apontamentos -, uma tal Finette Duprés, para formular acusações bastante perturbadoras contra
vós.
Portanto, aquilo era a vingança de Cass. Gabrielle mal conseguia acreditar no que ouvia, não depois da maneira como a mulher perdera a mãe e as irmãs. Era possível
que ela se sentisse furiosa com Gabrielle, mas a verdade é que ela própria tinha muito mais motivos para odiar os caçadores de bruxas.
Remy apertou o ombro de Gabrielle para lhe dar coragem, perguntando num tom autoritário:
- Quem diabo é essa mulher? O que é que ela diz que a Gabrielle fez?
- Mademoiselle Cassandra Lascelles diz que Mademoiselle Gabrielle tem andado a praticar magia demoníaca para atrair homens, mantendo-os sob o seu domínio - respondeu
Simon, sorrindo a Remy com uma expressão insolente. - Vós em particular, capitão.
- Admito que há muito que me sinto encantado com Mademoiselle Gabrielle Cheney, mas ela nunca precisou de recorrer a magia negra. Garanto-vos que o meu amor por
ela foi-lhe oferecido de minha livre vontade.
- A ternura que transparecia da voz de Remy, a total confiança que depositava nela, fez com que ela quisesse encolher-se toda na cadeira, assolada por sentimentos
de culpa.
- Mas que romântico - retorquiu Aristide escarnecedor. - Sendo assim, sem dúvida que mademoiselle terá uma explicação inocente para determinados objetos que foram
encontrados na vossa posse.
- Mas que objetos? - perguntou Gabrielle numa voz enrouquecida, muito embora já soubesse ao que ele se referia, antes mesmo de Simon estalar os dedos para chamar
um dos seus guardas. O homem avançou, colocando a caixa de madeira dela diante de Aristide; a fechadura estava rebentada.
Gabrielle sentiu um aperto nauseante na boca do estômago. Agora compreendia a razão por que ele a mantivera à espera durante tanto tempo. O bandalho mandara que
lhe revistassem a casa fechada e a carruagem à procura de provas que pudessem incriminá-la. Não que tivessem precisado de muito tempo para encontrarem aquilo. Não
quando ela lhes facilitara o trabalho ao deixar a caixa à vista de quem a quisesse ver no assento da carruagem.
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Lobo susteve a respiração, sentando-se na beira do banco. Gabrielle trocou um olhar apreensivo com ele. Sentia-se tão grata por Remy estar ali consigo, a dar-lhe
o seu forte apoio. Mas agora desejava que ele se encontrasse a milhas de distância, aonde quer que fosse que não ali. Tirou os dedos da mão dele, enclavinhando as
mãos no colo, enquanto Aristide abria a tampa da caixa de madeira.
Pegou nos medalhões e colocou-os em cima da mesa lado a lado.
- Mademoiselle Gabrielle Cheney, estes medalhões pertencem-vos? perguntou Aristide tranquilamente.
- Bem, eu... eu... - gaguejou ela.
- Foram encontrados nesta caixa de madeira, na vossa carruagem acrescentou Simon, tornando fúteis quaisquer tentativas de negar.
Remy afastou-se das costas da cadeira de Gabrielle. Pegou num dos amuletos para o examinar e comparou os dois. Pareceu confundido ao constatar que eram semelhantes,
mas encolheu os ombros e atirou-os para cima da mesa.
- E o que é que tem de mais se Mademoiselle Gabrielle Cheney possuir esses medalhões? São bugigangas inofensivas, mais nada.
- Não segundo o que Mademoiselle Cassandra Lascelles diz - respondeu Aristide. - Ela afirma que estes amuletos estão impregnados da espécie mais demoníaca de feitiçaria.
A bruxa que usar um deles poderá controlar a pessoa que usar o outro.
- Isso é ridículo... - começou Remy a dizer.
- Ao infligir dores excruciantes, sem aviso prévio, em qualquer parte do corpo dessa pessoa, num braço, numa perna, num ombro. Aparentemente, até têm o poder de
matar.
Remy ficou em silêncio. A mão dirigiu-se-lhe involuntariamente para o ombro, a primeira expressão de dúvida a toldar-lhe os olhos.
Incapaz de se conter por mais tempo, Lobo levantou-se repentinamente.
- Mademoiselle Cassandra Lascelles parece ser uma perita a respeito desses medalhões! - gritou acalorado. - E porque não haveria de ser? Ela é que é uma bruxa demoníaca.
Foi ela quem fez esses malditos amuletos, tendo dado um a Mademoiselle Gabrielle para o cap... - Lobo calou-se abruptamente. Quer fosse o sorriso de triunfo de Simon
Aristide ou a expressão de horror de Miri, Martin compreendeu que só estava a agravar a situação. Fechou a boca e com uma expressão acabrunhada voltou a sentar-se
no banco.
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Seguiu-se um sinistro silêncio. Gabrielle estava incapaz de olhar para Remy. Tinha perceção de como ele ficara rígido. Quando ele falou foi em voz baixa, quase com
ferocidade.
- Nada disso é verdade. O medalhão que eu usei foi feito pela irmã de Gabrielle, Ariane. A Senhora da Ilha Encantada, uma mulher sábia e de grande virtude. Uma curandeira
que nunca teria nada a ver com as artes negras. Diz-lhe, Gabrielle.
Mas a garganta dela tinha ficado tão apertada que não conseguiu falar.
- Gabrielle, diz-lhe!
Ela tremeu quando Remy lhe pegou no queixo, forçando-a a olhá-lo de frente. A expressão nos olhos dele era mais do que conseguia suportar, a esperança em contradição
com o desespero, a necessidade de acreditar nela em luta com uma persistente perceção de traição.
- Remy, eu... eu... - disse Gabrielle, mas foi-se abaixo. Teria sido muito mais fácil fazer com que Remy compreendesse, confessar o que tinha feito, se estivessem
sozinhos. Se Simon Aristide não estivesse a observá-los tão desapaixonadamente, como se eles fossem atores de pantominas num qualquer quadro alegórico, as emoções
mais pessoais de ambos em exibição para divertimento dele.
Remy perscrutou a fisionomia dela. O que quer que tenha visto fez com que a largasse. Recuou um passo como se tivesse sido violentamente agredido. Mas o canalha
do Aristide ainda não tinha acabado. Levou a mão ao interior da caixa e tirou o objeto que ainda restava, colocando-o cuidadosamente ao lado dos medalhões.
- E quanto a isto, Mademoiselle Gabrielle Cheney, o que é que tendes a dizer-me? Parece-me que se trata de um anel de sinete gravado com a letra C. Dar-se-á o caso
de Cassandra Lascelles também ter feito isto?
Gabrielle engoliu em seco.
- Não, isso... isso foi-me oferecido por outra pessoa.
- Tem tanto de dispendioso quanto de requintado, uma prenda verdadeiramente régia, poder-se-ia dizer. - A boca de Simon curvou-se num sorriso provocador. O mais
certo era o caçador de bruxas saber muito bem quem é que lhe dera aquele anel e receava que Remy também soubesse. Há pouco parecia que tinha levado um forte pontapé
no estômago, mas agora parecia que lhe haviam desferido um golpe mortal.
Simon juntou os seus apontamentos, colocando o pergaminho dentro da pasta de couro.
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- Lamentavelmente, vou ter de vos continuar a deter, Mademoiselle Gabrielle Cheney. Receio ter de vos dizer que tenho aqui provas suficientes para vos levar a tribunal
sob a acusação de bruxaria.
- Simon, não! - gritou Miri.
Ele ignorou-a, dirigindo as suas palavras apenas a Gabrielle.
- O vosso julgamento terá lugar dentro de, digamos... uma quinzena. O que vos dará tempo mais do que suficiente para preparardes a vossa defesa.
Gabrielle mal ouvia o que ele lhe dizia, o seu olhar suplicante em Remy. Mas agora era ele que não era capaz de olhar para ela. Estava pálido e em silêncio, o olhar
preso com fixidez, e com uma expressão entorpecida, no anel da Rainha, das Trevas e nos amaldiçoados medalhões.
Mas os amuletos demoníacos de Cassandra já não tinham poder para fazerem mal a Remy, refletia Gabrielle. Era ela quem tinha feito isso, com as suas insensatas mentiras.
Aristide mostrara-se mais misericordioso do que Gabrielle teria esperado. Não tratara de a arrastar à força de imediato, nem a mandara para a prisão até à data do
julgamento. O caçador de bruxas até tivera a bondade de lhe permitir alguns momentos a sós com Remy numa sala privada da estalagem, embora tivesse deixado bem claro
que qualquer tentativa de fuga teria represálias.
Foram postados guardas no lado de fora da porta e das janelas. Gabrielle receara que Remy talvez fizesse uma tentativa imprudente de a libertar sem mais perdas de
tempo, apesar de as hipóteses de êxito serem muito remotas. Mas o espírito combativo do Flagelo parecia tê-lo abandonado por completo. Era como um homem que tivesse
dado uma grave queda, estando incapaz de recuperar o fôlego. Nem sequer protestara quando Simon exigiu que entregasse a espada, uma condição para lhe permitir aqueles
momentos a sós com Gabrielle.
Esta andava de um lado para o outro diante das janelas da sala, esfregando os braços enquanto tentava controlar o desespero que sentia, sabendo que dispunha de muito
pouco tempo para se explicar a Remy, para tentar reparar o mal que as suas mentiras haviam causado. Mas enquanto lhe revelava toda a história da sua relação com
Cassandra, as suas desculpas eram hesitantes e soavam pouco convincentes, até mesmo aos seus ouvidos.
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Remy ouvia-a num silêncio taciturno, os braços firmemente cruzados diante do peito. Qualquer que fosse a mágoa que ela lhe infligira, agora encontrava-se posta de
parte por detrás de uma expressão empedernida, um semblante tão ameaçador que Gabrielle sentiu um enorme desânimo. Mal conseguiu acabar a sua narrativa.
- ... e... e estas acusações formuladas contra mim só podem ser a vingança de Cass. Eu devia ter esperado que ela fizesse alguma coisa como retaliação. Mas, quando
o Martin e eu nunca mais soubemos nada acerca dela, suponho que ficámos com a esperança de que... de que...
- Que tinhas conseguido sair-te airosamente de tudo o que fizeste? perguntou-lhe Remy com frieza.
- Sim. Eu... eu quis dizer não.
Conhecendo o temperamento de Remy, preparou-se para a explosão de cólera. Mas, em vez de se enfurecer com ela, abanou a cabeça com uma expressão de censura.
- Se tencionavas imiscuir-te nas artes negras, pelo menos devias ter tido a sensatez de te livrares das provas ou de as guardares num lugar mais seguro.
- Não tive tempo suficiente para poder decidir o que fazer com os medalhões. Pensei que, depois de estarmos longe de Paris, poderia aconselhar-me com o Renard...
- Calou-se quando percebeu todo o significado das palavras de Remy. - E eu não me imiscuí nas, artes negras. Já te expliquei que não sabia o que o medalhão era realmente.
com certeza que não acreditas que...
- Não sei em que diabo é que devo acreditar! - ripostou Remy agitado, dando uma volta pela sala e passando a mão pelos cabelos. - Fico a saber que a minha noiva
foi levada por caçadores de bruxas e foi por pouco que não parti o pescoço de tanto me esfalfar para chegar aqui, a fim de defender a sua inocência. E para quê?
Apenas para fazer figura de parvo por ser óbvio que não fazia a mais pequena ideia do que se estava a passar. Em seguida, contas-me uma história inacreditável de
que devias um favor a uma bruxa e que o que ela queria era a minha pessoa por uma noite. Para que eu fosse o pai da sua criança, uma pequena bruxa demoníaca que
um dia virá a dominar o mundo. E, se eu não estivesse pelos ajustes, ela não hesitaria em matar-me, servir-se-ia do medalhão para me aniquilar.
- Eu sei que parece uma loucura... - retorquiu Gabrielle titubeante.
- Mas para ti seria mais fácil acreditar que era eu quem queria fazer-te mal?
O olhar de Remy pareceu trespassá-la.
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- Foste tu quem me pôs esse medalhão ao pescoço sem sequer uma única palavra de aviso quanto à sua origem. Ao invés, mentiste-me, disseste-me que foi a Ariane que
o fez.
- Porque sabia de antemão que não o usarias se soubesses de onde veio. Pensei que estava a proteger-te.
- Não preciso desse género de proteção! - ripostou Remy exacerbado.
- Quantas foram as vezes em que a Ariane te advertiu, dizendo-te que não devias tocar na magia negra? Quantas vezes eu próprio te disse a mesma coisa? Mas tu segues
sempre os ditames da tua teimosia. Nunca dás ouvidos a ninguém.
Remy dirigiu-se para ela numa atitude belicosa e por um momento Gabrielle pensou que ele iria agarrá-la e sacudi-la. Quase teria acolhido a fúria dele de bom agrado.
Qualquer coisa, menos aquela expressão de desilusão que via nos olhos dele, a maneira como recuara, como se tivesse aversão em tocar-lhe. Num passo brusco, Remy
aproximou-se das janelas e ficou a olhar para fora, a luz do Sol a banhar-lhe o rosto de feições duras que pareciam ter sido esculpidas a cinzel, as quais, subitamente,
mostravam o desânimo de alguém que se sentia derrotado.
- Eu acreditava que, finalmente, tínhamos conseguido estabelecer um certo grau de confiança entre nós, que se tinham acabado as mentiras e os segredos. Mas é evidente
que eu esperava de mais. A falsidade é-te tão natural como o respirar.
Gabrielle tinha consciência de que era merecedora da censura dele, apesar disso, as palavras dele magoavam-na.
- Remy, isso... isso não é inteiramente justo.
- Não é? A mim parece-me que, uma vez mais, estás enterrada até ao pescoço em intriga. E, o que é pior, envolveste Lobo em tudo isso, fazendo com que ele possa vir
a ser vítima do espírito vingativo dessa mulher, a Lascelles. Até admira que ela não o tenha incluído nas acusações que formulou contra ti, fazendo com que ele também
fosse preso.
- A Cass nem sequer sabe quem ele é e tentei dissuadi-lo para que não se envolvesse no assunto, mas ele pode ser tão obstinado como tu. Ele insistiu em correr o
risco de ajudar porque te dedica muito afeto. Tanto como eu te dedico.
- Muito bem. Isso esclarece o pequeno mistério dos medalhões, suponho eu. Mas o que é que tens a dizer a respeito da outra pequena bugiganga que estava na caixa?
Esse anel. Sei bem a quem é que pertence. Recordo-me
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de o ter visto no dedo da Rainha das Trevas na noite do baile de máscaras.
Portanto, não vale a pena dares-te ao trabalho de negares.
- Não tencionava fazê-lo - replicou Gabrielle com tristeza.
- Nesse caso, porque está na tua posse? Porque to deu ela?
- Foi um símbolo que selou um acordo entre nós duas. Um pacto a que ela me forçou. Eu... eu sempre tive a intenção de te contar isso, mas eu... eu...
- Esqueceste-te!? Passou-te da ideia? - perguntou Remy tão causticamente que ela estremeceu.
A verdade, ainda que inacreditável, era que tinha acontecido tanta coisa nos últimos dias que Gabrielle quase se esquecera do que estava relacionado com o anel de
Catarina. A começar nos caçadores de bruxas, passando por Cassandra e, acima de tudo, o milagre que havia sido redescobrir-se nos braços de Remy, Gabrielle tivera
muito pouco tempo para pensar na Rainha das Trevas. No entanto, tinha noção de que lhe seria bastante difícil convencer Remy disso.
- Que espécie de pacto? - perguntou-lhe autoritário.
Gabrielle levantou-se e colocou-se atrás dele. Remy tinha uma postura rígida e inflexível, atitude que não convidava a que ela lhe tocasse. Mas ela ansiava por isso,
por poder restabelecer alguma intimidade, algum elo de ligação entre eles antes que se quebrasse para sempre.
Um pouco a medo, pousou a mão no ombro dele. Remy não a sacudiu, mas tão-pouco sentiu o mínimo frémito de resposta.
- Eu receava que a Catarina te fizesse mal - disse Gabrielle em voz baixa. - Prometeu-me que não o faria se eu... se eu te seduzisse e te impedisse de resgatares
o rei de Navarra.
- Parabéns. Eu diria que foste admiravelmente bem-sucedida.
- Remy, nunca tencionei manter a minha parte do acordo.
- Também lhe mentiste, foi isso? Mas eu diria que a Rainha das Trevas compreende as regras de todas essas maquinações muito melhor do que eu.
Gabrielle colocou-se em frente dele.
- Remy, tenho noção de que cometi erros, erros horríveis, e farei tudo ao meu alcance para sanar a situação entre nós dois. Mas não podes imaginar por um único segundo
que seja que só fiz amor contigo por ordem de Catarina, que só estivesse a tentar interpor-me entre ti e o rei de Navarra.
Remy pegou-lhe nos pulsos e afastou-a de si.
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- A verdade é que não importa o que eu possa pensar, pois não? O resultado é o mesmo. Interpuseste-te entre mim e o meu rei.
- Eu... eu não percebo o que queres dizer com isso. Remy lançou-lhe um olhar prenhe de frustração e cólera.
- Não percebes? Fiz um juramento à minha rainha quando ela estava no seu leito de morte. Que protegeria o seu filho. Faltei-lhe na véspera do dia de São Bartolomeu.
Há três anos que espero pelo dia em que pudesse redimir a minha honra, ajudando o meu rei a escapar aos seus inimigos. Finalmente, surgiu-me uma oportunidade e agora
não posso aproveitá-la porque, em vez de lhe proporcionar a fuga, tenho de te salvar.
Gabrielle cambaleou para trás abalada; a realidade atingiu-a com tanta força como se Remy lhe tivesse dado um murro, fazendo com que caísse por terra.
- Meu Deus! Portanto é por isso que estás realmente irado, não é verdade? Não por eu te ter mentido, mas sim porque estou a impedir-te de cumprires o teu... o teu
precioso dever.
- Não estás a compreender. Nunca compreendeste. Perdi quase tudo na véspera do dia de São Bartolomeu. O meu sentido de honra, o meu dever é tudo o que me resta.
Foi com grande dificuldade que Gabrielle conseguiu controlar o tremor
na sua voz.
- Pensei que me tinhas - disse.
- Também eu. Mas, aparentemente, estava enganado. É possível que tenha possuído o teu corpo, Gabrielle, mas não me parece que tenha estado sequer perto de tocar
o teu coração. Desconfiei de que havia qualquer coisa que não batia certo na noite do temporal, que estavas a ocultar-me alguma coisa. Dei-te todas as oportunidades
para me contares a verdade, ao ponto de me ter sentido mal por te estar a pressionar. - A boca de Remy contorceu-se num trejeito de amargura. - Não, disse a mim
próprio. Quando se ama uma mulher, deve-se confiar nela. O que é o amor sem confiança? E durante todo esse tempo olhavas para mim frontalmente enquanto continuavas
a mentir-me. Até permitiste que eu fizesse amor contigo, fingindo que não se passava nada de anormal.
Gabrielle supunha que poderia tentar explicar-lhe a esperança que tinha de que, se o tivesse nos seus braços e se Cassandra fizesse o pior, o mal passasse para ela,
sem atingir Remy. Mas de que é que isso serviria agora? Era manifesto que ele não estava minimamente interessado em ouvir o que quer
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que ela tivesse a dizer-lhe. Além disso, não era o medalhão e nem sequer o anel de Catarina que estava a afastá-los. Era por ela se ter interposto entre Remy e a
sua honra, e para ele nada era mais importante, nem sequer ela.
Chamando a si o orgulho que há tanto tempo lhe servia de escudo protetor, Gabrielle disse:
- Se estás preocupado por causa do rei de Navarra, não precisas de estar. Podes ir ajudá-lo a fugir com a minha bênção. Não tens qualquer obrigação para comigo.
Sei como cuidar de mim própria. Há muito tempo que faço isso mesmo.
- Estamos noivos, Gabrielle. Ou isso é outra das coisas que te passou de ideia? Estou em crer que sei qual é a minha principal obrigação.
- Recuso-me a ser a obrigação de um homem, Nicolas Remy. Quanto ao nosso noivado, liberto-te de qualquer obrigação. Desde sempre que a nossa relação não se coadunava.
A cortesã sem honra e o soldado que tem de mais. - Gabrielle afastou-se de Remy e, mantendo a cabeça bem erguida, afastou-se para o extremo oposto da sala, a postura
de altivez a ocultar a mágoa dentro de si, a esperança suscitada por ele ter acorrido em seu socorro, que a tomasse nos seus braços e lhe ordenasse perentoriamente
que parasse de ser tão disparatada.
Mas ele não agia dessa maneira. Remy não disse mais nada até um dos guardas ter aberto a porta de rompante, informando-os de que não dispunham de mais tempo. Remy
saiu atrás do homem, detendo-se junto de Gabrielle para lhe sussurrar apenas:
- Voltarei por ti. Ao menos uma vez na vida, mostra alguma prudência e não faças nada que possa provocar aquele caçador de bruxas. Ficarás bem até eu conseguir tirar-te
daqui.
- Não ouviste nada do que eu te disse? - ripostou Gabrielle. - Não preciso da tua ajuda. Não quero a tua ajuda.
- Ouvi-te perfeitamente, mas, de uma maneira ou de outra, vou tirar-te daqui para fora para poder levar-te e à Miri de regresso à ilha Encantada, sãs ( e salvas,
tal como prometi que faria.
- E depois?
Ele não lhe deu resposta, mas ela ouviu um ranger de dentes quando ele seguiu o guarda que lhe disse tudo. Uma vez mais, Remy deixaria a ilha Encantada para cumprir
o seu dever para com o seu rei. E, desta feita, ele não voltaria para junto dela.
Simon pegou na sua pasta e na caixa de madeira que lhe serviria de prova, voltando a subir as escadas para o seu aposento particular, com Miri quase a pisar-lhe
os calcanhares. Não sabia dizer por que razão é que não ordenara a um dos guardas que a detivesse, e lhe permitira estar presente aquando da inquirição. O seu antigo
mestre, Lê Vis, gostara muito de se flagelar com um sólido chicote para purificar a carne que era fraca, uma ação que Simon sempre considerara uma loucura. Mas agora
perguntava-se se ele próprio não estaria a sujeitar-se a uma tortura muito mais subtil. Não havia razão nenhuma para ter de suportar a presença de Miri, ter de ver
aqueles olhos com uma expressão de censura. Mas a verdade é que não protestou quando ela o seguiu até ao interior do seu aposento, batendo a porta com força depois
de ela ter entrado.
Ignorando a rapariga, encaminhou-se para o enorme baú de madeira aos pés da cama e agachou-se. Levou o seu tempo a guardar os seus documentos e as provas, tempo
que aproveitou para arranjar fortitude para a cena com Miri que se seguiria. Sabia que não seria agradável. Só esperava que ela não chorasse. Mas quando se arriscou
a olhar para ela, ficou surpreendido por não deparar com uma donzela suplicante, mas sim uma deusa irada. Miri aproximou-se dele, olhando-o de alto, as mãos nas
ancas suavemente arredondadas, os olhos habitualmente serenos escurecidos com o matiz de uma tempestade de verão, o queixo delicado erguido numa atitude belicosa.
- Simon, como... como é que haveis podido fazer uma coisa dessas? Dissestes a Gabrielle que só queríeis fazer-lhe algumas perguntas e que depois deixaríeis que ela
se fosse embora.
Simon acabou de fechar o baú à chave. Pôs-se de pé e sacudiu o pó das mãos.
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- Eu disse, se as respostas fossem satisfatórias. O que, até mesmo vós, tendes de admitir que não foram.
Uma fugaz incerteza espelhou-se no semblante de Miri. Simon vira com clareza que ela tinha ficado perplexa perante o conteúdo da caixa de madeira, tal como teve
a certeza de que ela não tinha conhecimento do que a irmã tinha andado a fazer. Contudo, Miri não queria reconhecer que Gabrielle pudesse ter feito algo de errado.
- Nem sequer lhe destes a oportunidade de se explicar adequadamente - disse a jovem.
- Ela terá ampla oportunidade de se defender aquando do julgamento. Levando tudo em consideração, parece-me que fui mais do que justo. Eu também podia ter prendido
aquele amigo dela.
- O Martin?
- Sim, ele. - Simon ficou irritado consigo próprio ao aperceber-se de alguma irritação no seu tom de voz. Não sabia o que é que havia no amigo de Miri que o encrespava.
Talvez fosse a maneira possessiva com que se mantivera ao lado dela. Por outro lado, talvez fosse apenas o rosto bem-parecido do rapaz, sem qualquer cicatriz. Mas
o ciúme era uma emoção improdutiva, um sentimento a que Simon não podia dar-se ao luxo.
"Monsieur lê Loup parece ter estado profundamente envolvido nas atividades da vossa irmã - prosseguiu Simon. - O rapaz parece-me ser mais carne para a forca do que
qualquer outra pessoa de que eu saiba.
- Que estranho - ripostou Miri. - O Martin diz precisamente a mesma coisa a vosso respeito.
Simon reagiu à réplica dela com um sorriso tenso. Dirigiu-se para a lareira e fechou as mãos atrás das costas, adotando uma postura rígida que indicava com clareza
que seria absolutamente inútil continuar a falar sobre aquele assunto.
- Lamento que a detenção da vossa irmã vos tenha perturbado. Posso garantir-vos que ela será tratada com toda a decência enquanto estiver a aguardar o julgamento.
Até posso arranjar as coisas de modo a que possais visitá-la se quiserdes. Mas é tudo o que vos posso dizer. Mas agora, com vossa licença, tenho outros assuntos
a tratar que requerem a minha atenção.
Miri ignorou a sugestão de que devia ir-se embora. Começou a roer as unhas, um hábito que tinha quando estava a pensar.
- E se eu vos dissesse que os medalhões e o anel me pertencem e não !;(. a Gabrielle?
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- Diria que éreis uma mentirosa. Uma mentirosa lindíssima, mas nem por isso menos mentirosa.
Miri olhou para ele com uma expressão de censura.
- Sois um caçador de bruxas deveras estranho, Simon Aristide. É prática habitual dos da vossa igualha prenderem tantas mulheres quantas vos for possível, especialmente
as da mesma família. Todos os que consideram manchados de sangue por associação. - Miri dirigiu-se para ele, aproximando-se tanto que Simon sentiu o cheiro dela,
uma fragrância tão doce e silvestre como as flores que só medravam nos prados varridos pelo vento. - Portanto, porque não me prendeis?
Porque, independentemente do tipo de bruxaria que Miri pudesse pôr em prática, Simon não acreditava que alguma vez fosse capaz de levantar um dedo contra ela. Desviou
o olhar da face tão encantadoramente erguida, resmungando:
- Já procedi a todas as detenções que tencionava fazer por hoje.
- E quanto à Cassandra Lascelles? - perguntou-lhe Miri num tom que exigia resposta. - Não é do meu agrado falar mal de outra Filha da Terra. Mas ela é que é uma
verdadeira bruxa. Porque não a acusais disso mesmo?
- Não perde pela demora. Lidarei com Mademoiselle Cassandra Lascelles mais cedo ou mais tarde. A vossa irmã é a minha primeira detenção. com certeza que não será
a última.
- E a que é que isso se deve? Há vários dias que haveis começado a reunir provas. Acho muito estranho que a primeira mulher que decidistes acusar seja a minha irmã.
- Miri era muito mais percetiva do que fora em tempos.
- Mas o que é isto? Suspeitas da parte de Miri Cheney? - perguntou Simon trocista. - Sempre haveis sido tão confiante.
- Estou a aprender - replicou Miri de maneira concisa. - Porque agistes com tanta rapidez a arranjar um pretexto para prender Gabrielle? O que é que pretendeis realmente?
Simon aproximou-se da mesa, começando a mexer em alguns papéis para ganhar tempo. Não existia razão nenhuma para confiar a Miri o seu verdadeiro objetivo, exceto
uma. Era possível que viesse a aproveitar-se dela, embora não o quisesse fazer. Parte de si vacilava ao pensar em ferir o coração dela, sempre tão confiante, uma
segunda vez. Mas tinha plena noção do que estava em jogo, a supressão de um mal maior do que ela poderia imaginar.
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Lutou contra a sua fraqueza por aquela estranha rapariga de olhos sonhadores antes de lhe responder.
- Muito bem. Admito que prender Gabrielle não foi o meu objetivo principal, que tenho esperança em que ela não venha a ser apenas um meio para aniquilar uma ameaça
muito maior.
- Uma ameaça? Mas que ameaça? - perguntou-lhe Miri boquiaberta.
- Deus do céu, Simon. Se estais a pensar em usar a Gabrielle para tentar armar uma cilada à Rainha das Trevas, sois absolutamente louco.
- Não se trata da Rainha das Trevas. Muito embora eu admita que sou suficientemente ambicioso para esperar que talvez um dia possa pôr fim ao reinado do mal da italiana.
Mas existe uma pessoa que há muito considero ser igualmente maléfico. O vosso cunhado, o conde de Renard.
- O Renard. Mas... mas Simon...
- Se a vossa intenção é tentar convencer-me de que estou enganado a respeito dele, não vale a pena. O conde é um demónio que devia ter prestado contas à justiça
há muito tempo.
- Justiça ou vingança? - perguntou Miri. Os olhos de um azul-acinzentado deram a impressão de trespassar Simon. A sua mão, instintivamente, quis tocar na cicatriz,
mas impediu-se a tempo, contendo o gesto.
- Tento manter os meus inimigos e os meus ressentimentos fora do meu trabalho. O conde é culpado de ações muito mais graves do que ter aberto a minha face. Bem vejo
a extensão da sua maléfica influência na vossa família, ao que se acresce o facto de eu o ter visto chacinar os irmãos da minha antiga ordem.
- Ele estava a proteger-me e às minhas irmãs do vosso lunático mestre Lê Vis - protestou Miri. - Ou já esquecestes esse acontecimento inteiramente? O Renard é um
homem bom e honrado...
- Quem é bom e honrado não paga o equivalente a um resgate real para adquirir algo tão demoníaco como o Livro das Sombras.
Miri soltou um gemido de cansaço.
- Sim, já falámos acerca desse assunto...
- O Livro existe, Miri. E está na posse do vosso cunhado. Estou tão convencido disso que estou preparado para enviar um emissário que falará com ele. Para lhe propor
a liberdade de Gabrielle a troco de ele se apresentar sozinho, entregando-me esse livro. Poderíeis ajudar a facilitar esta troca.
- Eu!? - Miri ficou a olhar para Simon como se ele tivesse perdido o juízo.
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- É provável que o conde mate qualquer dos meus homens assim que o vir, antes mesmo de ele ter oportunidade de lhe apresentar a minha proposta. Mas sei que vós tendes
meios extraordinários de vos manterdes em contacto. Houve uma ocasião em que matei uma dessas aves que as da vossa espécie enfeitiçam para levarem mensagens.
- Não as enfeitiçam. Limitam-se a amestrá-las - ripostou Miri indignada. - As aves possuem um elevado grau de inteligência, muito mais do que certos homens que conheço.
A alfinetada certeira não se perdeu em Simon, mas optou por ignorá-la.
- Enviai uma mensagem ao conde a informá-lo da minha proposta. Mas Miri já tinha começado a abanar a cabeça.
- Queríeis fazer alguma coisa para ajudardes a vossa irmã ou estou enganado?
Miri fitou-o com uma expressão de extrema censura.
- Estais à espera que eu salve uma irmã à custa de dilacerar o coração de outra? O Renard é o marido da Ariane. Ela adora-o.
Simon acreditava que Lady Ariane ficaria muito melhor sem um homem tão demoníaco. Seria como partir-lhe o coração para lhe salvar a alma, mas sabia de antemão que
jamais conseguiria convencer Miri disso. Começou a mexer nos papéis, empilhando-os organizadamente. Detestava falsidades e enganos, mas Simon aprendera havia muito
tempo que, a fim de derrotar o demónio, por vezes era necessário recorrer a esses métodos. Teve o cuidado de não olhar de frente para Miri quando disse:
- O meu principal interesse não é destruir Gabrielle nem o conde, mas sim obter esse livro para me certificar de que será queimado.
- Estais à espera que eu acredite nisso?
- Tendes muito poucas alternativas. Isto é, se quiserdes salvar a vossa irmã. Duvido muito que a Gabrielle seja capaz de apresentar uma defesa sólida aquando do
seu julgamento.
- Porque não tendes qualquer intenção de lhe permitir que faça isso. Simon evitou o olhar de reprovação ao dirigir-se para a janela. Tinha uma
boa vista do pátio da estalagem abaixo de si, onde o amigo de Miri, Martin, o Lobo, andava de um lado para o outro. Um lobo domado, pensou Simon escarnecedor. À
espera como ela lhe ordenara que fizesse. Simon não podia permitir que a rapariga viesse a ter essa espécie de poder sobre si. Miri seguiu-o até à janela. A cólera
que sentira já lhe tinha abandonado os olhos, deixando-lhe um semblante cheio de tristeza.
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- Avisaram-me de que não devia confiar em vós, Simon. Repetidas vezes, pela minha família, por Martin e até mesmo pelo meu gato. A minha cabeça diz-me que andaria
bem se não depositasse confiança nenhuma em vós. Mas, não obstante, o meu coração continua a procurar algo que há muito tempo vislumbrei em vós. Alguém mais generoso,
gentil e compassivo do que o homem que hoje tenho perante mim.
Miri respirou fundo.
- Não acredito por um momento que seja que o meu cunhado esteja na posse desse maléfico livro que procurais, mesmo assim entrarei em contacto com ele para lhe dar
conta da vossa proposta. Mas ficai ciente de uma coisa, Simon Aristide. Se fizerdes mal a Gabrielle ou ao Renard, jamais serei capaz de vos perdoar. Houve uma ocasião
em que me dissestes que eu nunca tinha aprendido a odiar. Por favor, que a minha primeira lição não venha de vós.
Simon pôs-se a olhar para o que se encontrava fora da janela. Quando se virou para responder ao que ela lhe tinha dito, constatou que Miri já saíra, a doçura da
sua fragrância a pairar na alcova. Até mesmo decorrido tanto tempo, Miri Cheney continuava a deixá-lo perplexo. Sem dúvida que ela era tola porque, apesar de rodeada
por um mundo impregnado de perfídia e mal, continuava a procurar ver apenas o bem, esforçando-se por acreditar no melhor em todos, até mesmo nele.
"Nunca aprendi a odiar, Por favor, que a minha primeira lição não venha de vós."
Simon baixou a cabeça, sentindo-se desesperado, sabendo que lhe era impossível fazer o que ela lhe pedia. Era um caçador de bruxas. E Miri vinha de uma família de
bruxas.
Estava condenado a vir a ser o professor dela.
Remy transpôs os portões da cidade a galope, rumo ao campo, incapaz de suportar o barulho, a sujidade e o muito movimento de Paris. Tanto o seu coração como a sua
cabeça estavam em tumulto, precisava de se afastar da cidade para poder respirar, para pensar, para planear o que fazer a seguir. O pensamento lógico e a sua calma
característica, que tão bem lhe haviam servido de arrimo na véspera de tantas batalhas, tinham-no abandonado. Galopava por um caminho poeirento, sem saber muito
bem para onde é que se dirigia. Era banhado por um sol tão ardente que ele e o seu cavalo ficaram a transpirar profusamente. Foi forçado a moderar o galope para
poupar a montada, se não ele próprio.
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Mais adiante havia um lugarejo onde se viam umas quantas casinhas, todas com jardins muito bem cuidados, um pequeno lago e um bosquete. Remy desmontou e passeou
o cavalo até ele ter arrefecido para poder prendê-lo ao tronco de uma árvore na margem do lago. Chapinhou a cara com água antes de se deixar cair à sombra de um
frondoso ulmeiro, esforçando-se por se agarrar à cólera que sentia.
A sua fúria estava quase esgotada, o que lamentava por saber que quando a cólera desaparecesse só lhe restaria o desespero e a amargura. Não se recordava de sentir
uma sensação tão avassaladora de derrota desde a véspera do dia de São Bartolomeu. Era difícil acreditar que apenas algumas horas antes estivesse cheio de entusiasmo
e confiança, sentindo-se tão forte e confiante em relação a tudo, prestes a conseguir tudo o que desejara. Resgatar o seu rei, redimir a sua honra e dar início a
uma nova vida ao lado da mulher que amava, longe de todos os perigos e intrigas de Paris. Mas agora o futuro que tinha sonhado estava reduzido a cinzas. Perdera
a oportunidade de ajudar o rei de Navarra a pôr-se em fuga e Gabrielle encontrava-se nas mãos dos caçadores de bruxas.
Por muito furioso que tivesse estado com ela, deixá-la prisioneira havia sido como morrer. Não que Gabrielle tivesse ficado lavada em lágrimas ou tivesse mostrado
qualquer indício de medo, como teria sido a reação de qualquer mulher normal. Oh, não, nunca Gabrielle Cheney. Até mesmo perante um julgamento por bruxaria, a mulher
continuava orgulhosa, obstinada e desafiadora. Remy quase não sabia o que almejara mais, amaldiçoá-la ou beijá-la até ela pedir misericórdia.
Teve de lembrar a si mesmo que Gabrielle já não lhe pertencia para que pudesse fazer quer uma coisa, quer a outra. Ela pusera fim ao noivado. Sentia-se atormentado
por dúvidas, pelo pensamento de que ela talvez nunca tivesse tido a intenção de o desposar. Talvez ela tivesse, de facto, continuado a tecer intrigas com a Rainha
das Trevas com vista a...
Não, Remy não podia acreditar que ela tivesse feito isso. Ao pensar naqueles momentos que Gabrielle passara nos seus braços, a intimidade que haviam partilhado,
considerava impossível que ela tivesse fingido isso. "E porque não?", segredou-lhe uma voz malévola ao ouvido. Afinal de contas, ela era uma cortesã. Remy passou
a mão pelo maxilar. Já não sabia o que pensar. Já não tinha a certeza de nada.
- Raios te partam, Gabrielle - praguejou para consigo. - Porque não pudeste ser sincera comigo? Porque tiveste de continuar com essas falsidades?
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Talvez ela tivesse agido acettadamente ao acabar tudo entre os dois. Talvez isso fosse o melhor para ambos. Mas, a ser assim, por que razão é que só tinha vontade
de mergulhar de cabeça naquele lago para se afogar? Quando sacudiu a cabeça para banir aqueles pensamentos, apercebeu-se da aproximação de um cavaleiro. Semicerrando
as pálpebras por causa da intensidade da luminosidade, reconheceu as feições familiares de Lobo.
A última coisa de que precisava naquele momento era ter de suportar mais dos grandes dramas de Martin. O rapaz tinha-se mostrado ansioso por uma luta, disposto a
fazer frente a todo o bando de caçadores de bruxas. Ele parecera ter uma aversão muito especial a Aristide. Remy mal tinha conseguido arrastar o rapaz para fora
da Estalagem Régia antes que ele causasse a morte de todos. Quando seguiu a cavalo para fora da cidade, ordenara a Lobo que ficasse, confiando-lhe uma tarefa muito
simples. Olhar por Miri, certificando-se de que ela entraria na carruagem e que partiria com destino à ilha Encantada.
Entretanto, Lobo já tinha puxado as rédeas da sua montada, desmontando. O rapaz nunca aprendera a lidar com cavalos, mas o seu era uma égua bastante mansa que seguia
a furta-passo ao lado dele enquanto a levava pela rédea até junto de Remy. com uma expressão carrancuda, o capitão pôs-se de pé. A basta cabeleira de Martin caía-lhe
para a cara, mais indomável do que nunca. Olhou para Remy com um misto de censura e confusão.
- Capitão...
- Mas o que diabo é que estás a fazer aqui? Eu disse-te que olhasses por Miri e não que viesses atrás de mim. Ela já vai a caminho da ilha Encantada?
- Ela recusa-se a ir, exatamente como eu vos poderia ter dito se me tivésseis dado metade de uma oportunidade. Diz que não sairá de Paris sem a irmã.
- Raios partam essas mulheres da família Cheney. Será que nenhuma delas faz o que lhe mandam fazer? - Olhou para Lobo furioso. - E, já agora, tal como tu. O mínimo
que podias ter feito era ter ficado com ela. A segurança dela teria sido uma coisa a menos a causar-me preocupação.
Lobo ficou a ferver de indignação.
- A Miri voltou para casa da irmã em Paris. De momento, está em segurança; a não ser isso, eu nunca a teria deixado. Não como haveis feito à vossa senhora.
- Do que é que estavas à espera que eu fizesse? Abrir caminho à força e sozinho por entre um bando de homens armados? Arriscar que a Gabrielle
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e a Miri fossem mortas por eu ter procedido dessa maneira? - acrescentou Remy com azedume. - Além disso, a Gabrielle já não é a minha senhora.
- O quê!? - Dando a impressão de se ter esquecido da égua, Martin largou as rédeas para poder agarrar Remy pela manga. Enquanto a égua seguia para o lago, o rapaz
olhava para Remy sem querer acreditar no que ouvia. - Mon Dieu, capitão. Sei que estais irritado com mademoiselle e... e tendes alguma razão para isso. Mas estais
disposto a rejeitar a mulher que amais, simplesmente por ela ter cometido um pequeno erro?
- Eu não a rejeitei. Foi ela quem pôs fim ao nosso noivado.
- E haveis permitido que ela fizesse isso assim, sem mais nem menos?
- Tu não compreendes absolutamente nada, rapaz. Ela... - Remy sacudiu a mão de Lobo com impaciência. - Não interessa. Este assunto não te diz respeito.
- Tem de passar a dizer-me respeito se tencionais abandonar Mademoiselle Gabrielle Cheney.
- Mas que diabo, Martin. Não estou a abandoná-la. Já me devias conhecer melhor, sabendo que eu nunca faria isso. - Remy sentiu que estava a ficar exaltado, mas conteve-se,
apesar de ter sobejas razões para estar encolerizado com o rapaz. Sabia que aquele desastre era mais por culpa de Gabrielle, mas o papel de Lobo naquela situação
em que o havia enganado magoava-o quase tão profundamente.
"Olha uma coisa, importas-te de voltar a montar e ires para junto da Miri? Juntar-me-ei a ti dentro em pouco. Não quero discutir também contigo. A verdade é que
não te censuro por nada do que aconteceu.
Lobo ficou a olhar para ele, manifestamente estupefacto.
- Não me culpais por vos ter salvado da maldição de uma bruxa. Caramba, isso é que é nobreza da vossa parte!
- Não é que eu não dê valor ao que fizeste - replicou Remy circunspecto. - Mas nunca devias ter corrido um risco desses. Devias ter vindo falar comigo para me avisares
do que se estava a passar, o que Gabrielle também devia ter feito em vez de te envolver no assunto. Ela prometeu-me que não haveria mais segredos, nada de mais intrigas.
O pescoço de Martin adquiriu um vermelho de fúria que se estendeu às bochechas.
- Mademoiselle Gabrielle não fez nada de errado. E tão-pouco eu. De acordo, sentimo-nos forçados a dizer-vos umas quantas pequenas mentiras. Isso não é um grande
crime. Fizemos isso para vosso próprio bem.
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- Nunca soube de bem nenhum que adviesse de mentiras. Não teria ficado satisfeito quando soubesse a verdade acerca do medalhão, mas, se me tivessem avisado, eu podia...
- Pensais que teríeis lidado com essa bruxa melhor do que nós? Não era tarefa para um soldado, para o grande Flagelo, mas sim para um gatuno, um malandro, para alguém
que compreende a necessidade de contornar a verdade de vez em quando. Alguém como Martin, o Lobo. - O rapaz bateu no peito para um efeito mais dramático. - Pensais
que sois o único que pode ser um herói? É possível que eu não tenha o vosso sentido de honra, mas possuo tanta coragem e coração como vós. Talvez mesmo mais. Certamente
que eu nunca abdiquei de uma mulher como Mademoiselle Gabrielle com tanta facilidade como vós. Ela ama-vos e...
- Mas, aparentemente, não o suficiente.
- Não o suficiente? - Lobo cresceu para Remy com os punhos cerrados. - Mon Dieu! Se voltardes a dizer uma coisa dessas, eu... eu dou-vos um enxerto de pancada. Oh,
sem dúvida que me deixareis feito em picadinho, mas, pelo menos, terei a satisfação de tentar pôr algum juízo na vossa cabeça.
Remy recuou um passo, mas proferiu uma advertência numa voz rosnada:
- Martin...
- Não! Calai-vos... e prestai atenção ao que tenho para vos dizer.
- Lobo abanou um dedo furiosamente diante da cara de Remy. - Quereis saber por que motivo Mademoiselle Gabrielle teve receio de falar convosco para vos confessar
a origem do medalhão? Eu digo-vos porquê. E porque para vós tudo tem de ser muito bem definido, certo e errado, preto e branco. Pois bem, o resto de nós, os pobres
mortais, tem tendência a tropeçar ao longo dos vários matizes de cinzento. Nem sempre podemos viver de acordo com os vossos elevados princípios.
Remy abriu a boca para refutar as palavras de Lobo acaloradamente, mas conteve-se de imediato ao lembrar-se de algo que Gabrielle lhe dissera numa ocasião, palavras
perturbadoramente semelhantes. "Tu exiges demasiado das pessoas, Remy." Os olhos azuis tinham-no fitado cheios de tristeza. "Incluindo de ti próprio"
Aquela recordação era inquietante. Tentou bani-la obstinadamente do seu pensamento, enquanto Lobo continuava a dirigir-se-lhe furioso.
- Dizíeis-me o muito que amais Gabrielle Cheney, como ela é maravilhosa e encantadora, tão perfeita, tão inalcançável. Mas depois viemos para
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Paris e descobristes que ela não é assim tão perfeita, que se transformou numa cortesã. Ficastes com o coração dilacerado.
- Consegui ultrapassar isso... - atalhou Remy numa tentativa para o interromper.
- Não, isso não é verdade. Continuais a almejar que ela seja perfeita para vós.
- Tudo o que quero é que ela tenha confiança em mim. Que me ame.
- E pensais que ela não vos ama? - perguntou Lobo, revirando os olhos exasperado. - Desde que regressastes a Paris que ela não tem feito mais nada, além de vos amar.
Estais recordado da noite do baile de máscaras, quando Mademoiselle Gabrielle arriscou tudo, os seus próprios interesses, as suas ambições, até mesmo a própria vida,
para que conseguísseis entrar no palácio para falardes com o vosso rei? Aquele momento no corredor quando ela me segredou ao ouvido?
- Sim, lembro-me disso - admitiu Remy.
- Quereis saber o que ela me disse, monsieur? Disse-me: "Olha por ele, leal Lobo. Trata de cuidar do nosso capitão." E é precisamente isso que ela tentou fazer.
Porque é que ela adquiriu esse medalhão tão demoníaco, tendo-vos enganado para que o usásseis? Porque não sabia que era demoníaco. Acreditou que estava a proteger-vos.
"Por que razão é que ela aceitou o anel da Rainha das Trevas, o que a levou a estabelecer um pacto com a mulher cujo poder lhe inspira tanto temor? Uma vez mais,
estava a tentar proteger-vos! Mademoiselle Gabrielle faria tudo, arriscaria tudo, para vos manter em segurança, até mesmo a sua própria vida.
- E eu não pensaria duas vezes para arriscar a minha vida por ela, mas...
- Ah, mas estaríeis disposto a sacrificar a vossa honra por ela? - Os olhos verdes e argutos de Lobo fixaram-se nele com uma intensidade que lhe causou algum desconforto.
- Porque ela não hesitaria em fazer isso por vós. A não ser que acreditaeis que ela não tem honra?
- Não, claro que não penso isso.
- Ainda bem, porque, caso contrário, teria inevitavelmente de vos bater.
- Parte da beligerância abandonou a voz de Lobo. Prosseguiu com mais calma. - Sei que ireis salvar Mademoiselle Gabrielle porque sois um herói e é assim que os heróis
procedem. Mas e depois? Saireis da vida dela porque vos desiludiu, porque ela frustrou os vossos planos de resgatar o vosso rei. Dareis continuidade à vossa demanda
com vista a cumprirdes o vosso dever.
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"Mas, no que me diz respeito, penso que os reis, as causas nobres e até mesmo os reinos acabam por se desfazer em nada. Só o amor é que perdura e foi-vos oferecida
a oportunidade de terdes um amor como poucos homens conseguem ter. Um amor que eu nunca... - Martin interrompeu-se, uma sombra a toldar-lhe os olhos. Engoliu com
força antes de continuar. - Se deixardes que esse amor vos escorra por entre os dedos como areia, então não me restará a mínima dúvida de que andei a perder o meu
tempo durante estes últimos três anos. E isto porque andei a seguir um rematado idiota.
Lobo girou sobre os calcanhares e afastou-se de Remy, que quase esperava que ele montasse o seu cavalo e se pusesse a caminho. Mas o rapaz deteve-se quando chegou
à margem do lago, ficando a olhar para a água com uma expressão taciturna. O silêncio que se abateu sobre os dois parecia tão pesado a Remy que até achou que imobilizava
a brisa que soprava por entre a vegetação, tendo posto fim ao relinchar dos cavalos. Sentia as faces a arder e desta vez não era de cólera, mas sim de vergonha.
Uma vergonha tão forte que ameaçava avassalá-lo. Era como se Martin tivesse posto um espelho diante da sua cara e Remy não gostou do homem que viu refletido aí.
Um homem que passara a ser tão consumido pelas suas noções de honra e dever que ficara cego para tudo o que o rodeava, transformado numa pessoa dura e inflexível.
Tinha-se sentido ultrajado quando Gabrielle o acusou de ter ficado mais irado por ela ter frustrado os seus planos de fuga do rei de Navarra do que se preocupara
por ela o ter enganado. Remy sentiu-se mortificado ao compreender que ela tinha razão.
Desde a véspera do dia de São Bartolomeu que era acompanhado da sensação de fracasso, de uma necessidade premente de se redimir. Era como se tivesse começado a acreditar
na sua própria lenda, o grande Flagelo. Como se, de certa maneira, sozinho ele devesse ter sido capaz de alterar o rumo da História nessa noite. Gabrielle dissera
que ele pecava por um excesso de honra, mas esse não era o seu verdadeiro pecado. Aquilo de que ele sofria era de um orgulho incomensurável.
Remy torturava-se ao recordar aqueles preciosos momentos que Aristide lhe concedera para ficar a sós com Gabrielle, como os desperdiçara em recriminações ditadas
pela cólera, quando devia tê-la tomado nos seus braços, tranquilizando-a ao instilar-lhe confiança. Ela mostrara-se tão desafiadora que o enfurecera, mas ele devia
ter visto o comportamento dela pelo que era,
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uma fachada. Tinha obrigação de, pelo menos, conhecer Gabrielle o suficiente para se ter apercebido disso. Quantas vezes a tinha visto a arvorar aquela obstinada
atitude de bravata para esconder a mágoa e o temor que a atormentavam?
Tinha andado demasiado ocupado a acalentar uma melancolia que tinha origem nos seus próprios erros para se aperceber do quanto ela precisava que lhe dissesse que
lhe perdoava, que tudo acabaria por se resolver a contento. Se aqueles momentos viessem a revelar-se como sendo os últimos que partilhavam...
Não, não se permitiria pensar nisso, nem sequer por um momento. Ele salvá-la-ia ou morreria a tentar e talvez conseguisse encontrar uma maneira qualquer de remediar
a situação entre os dois. Mas havia mais alguém junto de quem teria de se penitenciar. Martin esperava na beira do lago, de cenho franzido, enquanto tentava fazer
com que pequenas pedras saltitassem ao longo da superfície da água. Mas tudo o que conseguia era um grande chapinhar que ameaçava assustar os cavalos.
O rapaz ficou tenso à aproximação de Remy. Lançou-lhe um olhar furtivo e o capitão apercebeu-se de que ele próprio estava um pouco amedrontado por causa da sua recente
explosão de fúria. Mas endireitou os ombros e anunciou numa voz roufenha:
- Apercebo-me de que me dirigi a vós com extrema impudência, capitão. Mais ainda, é inegável que vos menti e vos enganei gravosamente no assunto do medalhão. Portanto,
se quiserdes dispensar-me do vosso serviço ou... ou ainda se quiserdes desafiar-me para um duelo, pedir-me satisfações, eu... eu compreendo inteiramente.
Depois de uma manhã tão lúgubre, Remy ficou surpreendido ao constatar que ainda era capaz de esboçar um sorriso. Para poupar a dignidade de Lobo, esforçou-se por
manter uma postura circunspecta.
- Na verdade, não desejo uma coisa nem outra - retorquiu, estendendo a mão ao jovem. - Só quero pedir-te perdão por ter agido... como é que me descreveste... como
um rematado idiota.
Lobo coçou o nariz, mostrando algum atrapalhamento, mas apertou a mão de Remy com todo o vigor.
- Obrigado, capitão, mas não me parece que seja apenas o meu perdão que deveis pedir.
- Estou ciente disso. Receio ter de dizer que sempre me comportei como um idiota no que diz respeito à Gabrielle. Mas a verdade é que ela é a
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mulher mais diabolicamente exasperante que me foi dado conhecer. Mas também é a mais extraordinária. O que é parte do meu problema. Vivo assombrado pelo medo de
vir a perdê-la, de não ser capaz de a segurar para sempre. Talvez tenha sido por isso que, quando ela pôs fim ao noivado, pareceu-me mais fácil permitir que ela
me deixasse.
- Mas nunca fostes homem para optar pelo caminho mais fácil, capitão. Estou certo de que havereis de encontrar maneira de voltardes a ter a vossa senhora nos braços.
- Sim, mas primeiro preciso de a tirar das mãos daqueles caçadores de bruxas - disse Remy. Soltou um suspiro de desânimo. - Também preciso de enviar uma mensagem
ao rei de Navarra para o informar do que aconteceu. É uma pena que ele não seja mais do que um rei de nome apenas. Se não fosse isso, talvez pudesse pedir-lhe que
usasse a sua influência para obter a libertação de Gabrielle.
Martin agitou-se com alguma impaciência à menção do rei de Navarra, mas a expressão nos olhos do rapaz não era inteiramente desprovida de compaixão quando disse:
- Capitão, compreendo como o cativeiro do vosso rei vos atormenta, que vos sentis amargamente desiludido por não terdes sido capaz de cumprir o compromisso que haveis
assumido, conseguindo a sua libertação. Mas com base no que tenho observado neste Henrique de Navarra, penso que, quando ele quiser, verdadeiramente, escapar da
corte francesa, poderá fazê-lo, com ou sem a vossa ajuda. Ele finge ser tão indolente, tão indiferente, mas estamos a falar de um homem que sabe muito bem como sobreviver.
Um sujeito genuinamente inteligente e astuto.
- Um sujeito muito parecido contigo, meu fiel Lobo.
Este encolheu os ombros, esforçando-se por mostrar modéstia, mas falhando em toda a linha.
Remy deu-lhe um soco amigável no ombro.
- E a propósito da tua astúcia, ainda não te agradeci por teres salvado a minha vida outra vez. Embora nunca tenha sabido ao certo a razão por que o fizeste aquando
da primeira vez.
Os dentes de Lobo brilharam, revelados pelo seu habitual sorriso rasgado.
- Foi por causa das botas.
- Mas podias ter-te apoderado delas, para o que só precisavas de me deixar morrer.
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O rapaz inclinou a cabeça de lado, perscrutando Remy curiosamente.
- Não vos lembrais realmente, pois não? Eu estava escondido na viela enquanto vos batíeis tão valorosamente contra os vossos inimigos, até que, finalmente, eles
conseguiram vencer. Só depois de os soldados se terem ido embora, quando pensei que estáveis morto, é que saí das sombras sorrateiramente, como a ratazana dos esgotos
que era, para vos roubar.
"Mas enquanto tratava de vos descalçar as botas, abristes os olhos. Em vez de me amaldiçoardes como devíeis ter feito, só ficastes a olhar para mim. Estáveis cheio
de dores, a vida a abandonar-vos, mas, apesar disso, haveis reparado que eu não tinha sapatos e dissestes... não, sussurrastes... "Leva as botas, rapaz. Ser-te-ão
mais úteis do que a mim." E também me dissestes onde tínheis escondido o vosso dinheiro, no cinto.
Os olhos de Lobo brilharam radiantes.
- Em toda a minha vida, nunca ninguém me tinha dado nada. Foi então que disse a mim próprio: "Martin, o Lobo, portanto, um herói é assim mesmo. Não se trata apenas
de coragem, mas também de uma grandeza de coração."
- Martin encolheu os ombros. - Foi por isso que procurei salvar-vos e é por isso que quis acompanhar-vos desde então. Seguir-vos-ia até às profundezas do Inferno.
- As palavras do rapaz comoveram Remy mais do que queria mostrar. Apertou-lhe o ombro com força.
- Obrigado, meu rapaz. Infelizmente, é mesmo ao Inferno que tenho de ir.
- Monsieur? - Martin olhou para ele com uma expressão intrigada.
- Acredites ou não, não cavalguei até aqui com o objetivo de olhar para as nuvens. Tenho estado a pensar que disponho de duas semanas até ao julgamento da Gabrielle.
É muito possível que tenha de recorrer à força para a libertar, mas gostaria de, pelo menos, tentar provar a sua inocência.
- E como é que poderíeis fazer isso?
- Encontrando a verdadeira culpada. Arranjando maneira de fazer com que a Cassandra Lascelles e a sua criada saiam de onde estão escondidas. Obrigando-as a confessarem
a verdade. - Lobo empalideceu ao ouvir aquilo.
- Isso nunca resultaria, capitão. Não fazeis a mais pequena ideia de como essa mulher é perigosa e, além disso, pensais que esse sacana, o Aristide, reconheceria
a verdade ainda que lhe fosse dita, que ele estaria disposto a dar-vos ouvidos?
Remy supunha que o rapaz teria razão, apesar disso não sabia muito bem como explicar-lhe o que se passava. Que havia algo em Simon Aristide que,
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inesperadamente, encontrara eco em Remy. O homem não parecia agir por malícia nem por uma superstição irracional. Era motivado por acreditar firmemente na sua causa,
levado por um sentido do dever que Remy compreendia bem de mais.
- O Aristide não me parece alguém que esteja a proceder para além dos limites considerados razoáveis - disse Remy. - Acho que está um pouco acima dos caçadores de
bruxas comuns.
- Não, ele não é nada disso - ripostou Lobo desdenhoso. - Sugiro que o matemos. Eu próprio me encarregarei disso - acrescentou animadamente.
- Não antes de eu tentar convencê-lo a libertar Gabrielle.
Quando o jovem fez menção de protestar com veemência, Remy cortou-lhe a palavra.
- Tenho de tentar, Martin. Tenho vivido como um fugitivo, um exilado fora do meu país. Sei o que isso é. Tenho muito pouco a oferecer a Gabrielle, mas posso, pelo
menos, tentar poupá-la a esse destino. Viver o resto dos seus dias sob a sombra de uma acusação de bruxaria, a olhar constantemente por cima do ombro, à procura
de caçadores de bruxas.
- Muito bem, monsieur- anuiu Lobo com um suspiro, mas mostrava-se profundamente perturbado.
Remy tinha uma ideia sobre o que estava a causar-lhe mal-estar, pelo que lhe disse tão delicadamente quanto lhe era possível:
- Martin... sei como te sentes em relação à Maison dEsprit e acerca das bruxas em geral. Tão-pouco quero expor-te à possível ira dessa criatura, a Lascelles. Portanto,
não precisas de me acompanhar. - Remy preparou-se para os veementes protestos de Lobo, a forte indignação contra qualquer coisa que pudesse ser entendida como um
ataque à sua coragem. Mas, para sua muita surpresa, Lobo limitou-se a ensaiar uma pequena risada forçada.
- Não, capitão, irei convosco. Não tenho medo dessa mulher.
Pelo menos, já não a temia, refletiu com azedume. Já tinha experimentado o pior de Cassandra Lascelles. Ela tinha-o maculado, furtara-lhe os seus sonhos de amar
Miri para sempre. Consequentemente, Martin não via que mais é que a bruxa lhe poderia fazer.
Gabrielle virou-se no seu leito estreito, observando a Lua, que projetava padrões de luz por todo o teto. Havia várias horas que desistira de tentar conciliar o
sono, muito embora se sentisse extremamente exausta. Quantas noites haviam passado desde a última em que dormira tranquilamente na sua própria cama, aninhada nos
braços de Remy? Seis? Sete?
Começava a perder a noção das horas vazias que lhe permitiam tempo de mais para poder pensar, para se preocupar e para arrependimentos. Não fosse isso, era forçada
a admitir que tinha poucas razões de queixa pelo seu cativeiro. Até ao momento, Aristide não faltara à sua palavra. Estava a ser tratada com civilidade, era bem
alimentada e davam-lhe água mais do que suficiente para tratar da sua higiene pessoal.
Não fora transferida para a Bastilha, nem para outra qualquer prisão sinistra, como receara que viesse a acontecer. Estava confinada a um dos quartos mais modestos
da Estalagem Régia. A alcova no sótão fora desprovida da maior parte da sua mobília, tendo ficado reduzida a um leito, uma mesa e uma vela. Nada que pudesse servir
adequadamente de arma de fuga, a menos que ela tivesse a imprudência de atacar o guarda com o bacio.
É claro que compreendia a razão por que estava presa na estalagem. Podia ser considerada mais como uma refém de Aristide do que como uma prisioneira. Durante a breve
visita que Aristide permitira à sua irmã mais nova, Miri explicara-lhe o que o caçador de bruxas queria obter.
Gabrielle não foi tão rápida a negar a possível existência do Livro das Sombras como Miri fizera. Mas duvidava que estivesse na posse de Renard, embora receasse
que, mesmo assim, ele não hesitasse em ir ao encontro de Aristide para tentar salvar-lhe a vida num ato irrefletido. Apesar das constantes questiúnculas entre os
dois, ela amava o enorme ogre que era o seu
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cunhado, detestando a hipótese de estar a ser usada para o atraírem a uma cilada. Era possível que Miri quisesse acreditar desesperadamente que Aristide só pretendia
destruir o livro, que não faria mal a Renard. Mas Gabrielle não confiava minimamente no canalha.
Mas se o plano do caçador de bruxas era matar Renard, era preciso impedi-lo. A pergunta que atormentava Gabrielle a todos os momentos do dia em que estava acordada
voltou para a afligir ainda mais. Onde é que Remy estaria? O que é que andava a fazer? Miri não fora capaz de lhe dar nenhuma resposta satisfatória, limitando-se
a dizer-lhe que Remy e Lobo estavam a arquitetar um plano para a libertarem. Mas Remy nem sequer se aproximara da Estalagem Régia desde a horrível discussão entre
os dois.
Continuaria encolerizado com ela, ainda estaria incapaz de lhe perdoar? E se ele tivesse levado as palavras de Gabrielle a sério, quando ela lhe dissera orgulhosamente
e com toda a firmeza que não precisava da ajuda dele? E se ele tivesse deixado Paris para levar a cabo o seu plano de proporcionar a fuga ao rei de Navarra? Não.
Remy jamais faria isso. O homem cuja obstinação era enfurecedora considerava que era seu dever salvá-la. Mas depois disso, depois de a ter levado sã e salva de regresso
à ilha Encantada...
Gabrielle nem sequer era capaz de suportar esse pensamento, como é que seria passar o resto da sua vida sem ele. Tinha de levar as coisas com calma, um momento de
cada vez, concentrar-se nas dificuldades daquela sua situação, caso contrário daria em doida. Agitou-se debaixo das cobertas, procurando uma posição mais confortável,
acabando por se deitar de costas com um suspiro tormentoso. Verdade fosse dita, o que mais detestava era a sua própria impotência. Tinha sido pelas suas ações que
se pusera naquela situação. Devia ser capaz de encontrar uma maneira de sair daquele apuro sem pôr Remy nem Renard em perigo.
Os caçadores de bruxas prendiam e acusavam mulheres de bruxaria constantemente, exortando-as a que se arrependessem. Gabrielle perguntava-se com amargura quantas
dessas prisioneiras indefesas seriam como ela própria, passando todo o seu cativeiro a desejarem ter aprendido um pouco de magia negra a fim de se poderem salvar.
Tinha as pontas do lençol entre os dedos, aferindo a sua resistência e apercebendo-se de como o tecido era fino, como seria fácil rasgá-lo em tiras. Tinha considerado
a possibilidade de formar uma corda de pano, forçando uma das janelas estreitas da alcova até conseguir abri-la. Mas encontrava-se no sótão da estalagem, portanto,
muito longe do solo. Ainda que não acabasse com o pescoço partido, teria os homens de Simon pela frente.
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Ainda pensou em convencer Bartolomy Verducci a ajudá-la, subornando-o ou ameaçando-o de que o denunciaria. Quando lhe serviram uma das refeições, Gabrielle tinha
reparado no espião de Catarina, que rondava furtivamente pelo corredor da estalagem. Portanto, por que razão o sabujo de Catarina continuava por ali? Se a rainha
tivesse ordenado a Verducci para aniquilar Simon Aristide, o homem já tinha tido sobejas oportunidades até agora para se desincumbir da ordem dela. Obviamente, Catarina
teria outro objetivo em vista.
Aquilo era de enlouquecer, aperceber-se de todas as maquinações em volta de si sem saber nada, incapaz de fazer o que quer que fosse. Gabrielle receava que Remy
tivesse razão quando a acusou de ter propensão para intrigas. Há muito acostumada a ser parte ativa nesta espécie de jogo de xadrez, era insuportável estar reduzida
ao papel de um insignificante peão. Teria sido assim que ela fizera com que Remy se sentisse quando lhe ocultou a verdade a respeito do medalhão e do anel da Rainha
das Trevas? Quando saísse dali, ainda não sabia bem como, faria tudo para que ele compreendesse o quanto estava arrependida, o quanto o amava. Haveria de encontrar
maneira de voltar a conquistá-lo. Se ela viesse a conseguir sair dali...
Um brusco bater à porta da alcova sobressaltou Gabrielle, que se sentou a direito de repente.
- Mademoiselle?
Gabrielle reconheceu a voz roufenha do seu carcereiro principal, Braxton, o homem idoso que tinha um semblante pouco simpático e a quem faltava uma orelha. Seguindo
as instruções de Simon, o homem, ainda que contrafeito, tinha a cortesia de bater à porta antes de a abrir. Não que esperasse sempre que ela lhe respondesse. Gabrielle
ouviu o barulho da chave na fechadura. Embora estivesse completamente vestida, puxou a coberta até ao pescoço.
Empurrando a porta toda para trás, Braxton entrou trazendo uma vela cuja chama tremeluzia, iluminando o quarto sombrio e as feições carrancudas do homem.
- Tem de se vestir, minha senhora. Monsieur lê Balafre quer dar-vos uma palavrinha lá em baixo e...
- E ele quer que eu desça já - concluiu Gabrielle pelo homem, imitando o seu tom de voz, o que fez com que ele a olhasse de cenho carregado. Mas a troça não passava
de uma fachada, uma maneira de ocultar como o seu coração começara a bater aceleradamente. Não lhe ocorria nenhuma
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boa razão para uma prisioneira ser levantada da cama a meio da noite por um caçador de bruxas. Talvez Simon Aristide estivesse, por fim, a deixar cair a máscara
da cortesia.
Portanto, o que é que aconteceria a seguir? Torturá-la-ia para que ela confessasse ou dar-se-ia o caso de o homem ter intenções de uma natureza mais alarmante? Não,
se Aristide fosse capaz de sentir alguma coisa tão humana como o desejo, não seria Gabrielle quem suscitaria tal coisa nele. Ela bem vira a maneira como o canalha
olhava para a sua irmã mais nova, o que só fazia com que tivesse uma vontade quase irreprimível de lhe arrancar o único olho bom com as unhas.
Gabrielle procurou ganhar tempo enquanto calçava os sapatos e fazia uma tentativa desesperada de pentear o cabelo emaranhado com os dedos. A postura elegante há
muito tempo que era a sua armadura e tinha a sensação de que a sua havia ficado deploravelmente sem brilho. Fez uma careta ao pensar em qual seria a sua aparência
no vestido todo amarrotado e com os olhos congestionados devido à falta de sono.
Mas esforçou-se por apresentar uma postura bem direita e com a cabeça ao alto enquanto Braxton a acompanhava para fora da alcova. Iluminou-lhe o caminho pelas escadas
abaixo até à antiga taberna. A estalagem vazia tinha uma atmosfera espectral, com apenas alguns candelabros a manterem a escuridão afastada. Aristide aguardava-a
às escuras junto das janelas. O homem tinha o hábito irritante de fazer aquilo, mantendo-se bastante afastado da luz, enquanto a sua vítima se sentia impiedosamente
exposta. O vestuário negro confundia-se com as sombras, a elevada estatura, a cabeça rapada e a pala no olho a darem-lhe uma aparência sinistra, uma figura de pesadelo.
O que é que Miri conseguia ver de bom naquele homem era coisa que Gabrielle não era capaz de compreender. Mas havia que levar em consideração que Miri, das três
irmãs, era a que tinha acreditado em fadas e unicórnios até mais tarde. Braxton deu um empurrão a Gabrielle até ao centro da sala. Fazendo uma vénia a Aristide,
o homem deixou-a sozinha com o seu mestre.
- Boas noites, Mademoiselle Gabrielle Cheney. - A voz do caçador de bruxas era serena e de uma cortesia aveludada. O homem começava a bulir-lhe com os nervos. -
Posso oferecer-vos alguma coisa?
- Como o quê? - ripostou ela. - Ferros em brasa, azeite a ferver, parafusos para apertar os polegares?
- Eu estava a pensar mais numa garrafa de vinho. - Quando Aristide se aproximou da luz, os lábios esboçaram o arremedo de um sorriso. Aquele
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resquício de humor suavizou a fisionomia sinistra, tornando-o, surpreendentemente, mais atraente. O que só serviu para irritar Gabrielle. Uma vez que o homem era
um caçador de bruxas, devia comportar-se como tal, mostrando-se inteiramente detestável.
- Não, obrigada. Prefiro que me digais o que quereis de mim. - Gabrielle ignorou a cadeira que Aristide lhe indicava, contendo um bocejo fingido atrás da mão. -
Estamos a meio da noite, para o caso de ainda não vos terdes apercebido disso. Ou será que perturbar o meu sono é o vosso método de tortura preferido?
- Oh, estáveis a dormir? - O olho escuro pareceu trespassá-la, como se ele soubesse muito bem a espécie de noites que ela tinha tido desde que estava ali, atormentada
pelos seus medos, pelas suas incertezas, pela falta desesperada que Remy lhe fazia.
Gabrielle desviou o rosto. Maldito Aristide. Ela era uma mulher sábia. Se havia alguém que, em princípio, sabia ler olhos, era ela. Mas a fisionomia desfigurada
do caçador de bruxas era imperscrutável quando se aproximou mais dela, as mãos entrelaçadas atrás das costas.
- Lamento os inconvenientes do vosso cativeiro, mademoiselle. Mas a vossa provação não tardará a acabar. - Gabrielle esforçou-se ao máximo para não lhe dar a satisfação
de mostrar receio.
- Mas haveis dito que eu disporia de uma quinzena até ao meu julgamento, tenho, pelo menos, ainda mais uma semana para preparar a minha defesa.
- E possível que o vosso julgamento não venha a ser necessário. Se eu vos perdoar, espero que retomeis a vossa existência como uma mulher mais circunspecta e mais
sensata, que evitará a companhia de bruxas como Cassandra Lascelles.
Gabrielle olhou para ele com uma expressão de fúria.
- Isso quer dizer que sabíeis desde o princípio que a Cassandra era a responsável pelos medalhões.
- Não desde o princípio, não - retorquiu Aristide com frieza. - Mas tenho de admitir que, quando ela se apresentou tão prestavelmente para nos dar informações a
vosso respeito, o nome dela disse-me qualquer coisa. Continuo a guardar os diários do meu antigo mestre, Vachel Lê Vis. Revi-os de novo e cheguei à conclusão de
que não me tinha enganado. Já tinha ouvido falar de Mademoiselle Cassandra Lascelles.
"Eu era apenas um rapaz nessa altura, tendo entrado ao serviço do meu mestre havia pouco tempo, quando ele começou a examinar o caso de uma
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rapariga que praticava a pior espécie de bruxaria, necromancia e maldições. Porque ela era jovem, além de cega, isso comoveu o meu mestre, que decidiu poupá-la.
Em especial, quando Cassandra acusou a mãe e as irmãs a troco da sua vida, revelando o esconderijo delas, a Maison dEsprit.
- Meu Deus! - exclamou Gabrielle, que havia pouco decidira não mostrar qualquer emoção perante o caçador de bruxas, mas sentiu-se empalidecer horrorizada. Aquela
era uma versão muito diferente da que Cassandra lhe contara relativamente à destruição da família. O seu desgosto e tormento pela morte da mãe e das irmãs sempre
lhe haviam parecido bastante genuínos e, talvez fosse esse o caso, o tormento da culpa. Gabrielle gostaria de poder acreditar que Cassandra possuía, pelo menos,
alguma consciência.
- Portanto, estais a ver - concluiu Aristide. - Não sois a primeira das aliadas que Mademoiselle Cassandra Lascelles atraiçoa.
- Nunca fui nenhuma aliada dela. Mas durante algum tempo acreditei que ela fosse uma amiga.
- Devíeis escolher as vossas amigas mais criteriosamente.
- O que a minha irmã também devia fazer - ripostou-lhe na mesma moeda.
Um músculo na bochecha de Aristide contraiu-se e o olho bom ensombrou-se com algo que talvez fosse mágoa. Mas a emoção não tardou a ser banida quando continuou.
- No entanto, Mademoiselle Cassandra e a sua criada parecem ter desaparecido da face da Terra. Mas, mais cedo ou mais tarde, acabarei por as encontrar e a bruxa
Lascelles responderá pelos seus crimes.
Portanto, Cass tinha fugido da Maison dEsprit. Gabrielle ouviu aquela notícia com uma dualidade de sentimentos. Era aterrador que Cassandra andasse à solta, sem
se fazer a mais pequena ideia de onde é que poderia aparecer a seguir. Por outro lado, o seu desaparecimento dava uma vantagem a Gabrielle. Olhou para Aristide com
um sorriso triunfante.
- Se a Cassandra e a sua criada desapareceram, já não tendes testemunha nenhuma que possa depor contra mim.
- E não preciso de nenhuma. Continuo a ter as provas, os medalhões.
- Fez um gesto na direção da caixa que se encontrava em cima de uma das mesas.
O sorriso de Gabrielle esmoreceu.
- Mas, tal como eu vos disse há pouco - prosseguiu ele -, tenho esperança de que não venha a ser necessário levar-vos a julgamento.
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- Sei em que é que reside a vossa esperança - retorquiu Gabrielle desdenhosa. - A Miri contou-me o que haveis proposto a Renard. Sabíeis que, na véspera de todos
os solstícios de verão, a minha irmã mais nova assiste a uma cerimónia que tem lugar no círculo de pedras no extremo mais afastado da ilha Encantada?
- Sim, sei. - Pelo rosto de Aristide passou uma expressão de amargura. - Foi aí que eu a vi pela primeira vez.
- A Miri acreditava realmente que os dólmenes eram gigantes petrificados que talvez readquirissem vida durante essa noite mágica. Pois bem, existem tantas probabilidades
de isso vir a acontecer como o conde de Renard alguma vez... - Gabrielle interrompeu-se repentinamente quando viu que a porta da estalagem se abria, dando entrada
a uma lufada do ar frio da noite, juntamente com a figura de um homem de constituição portentosa.
- Sim? O Renard alguma vez o quê? - perguntou-lhe o cunhado afavelmente.
Gabrielle ficou boquiaberta. Sabia que devia parecer-se com uma idiota de boca aberta, mas parecia não ser mais capaz de a fechar do que parar de olhar fixamente
para o homem gigantesco que enchia a ombreira da porta. Era como se ela tivesse conjurado Renard à mera menção do seu nome. Mas desde sempre que o conde tinha tido
uma desconcertante maneira de fazer isso, aparecendo inesperadamente como se tivesse caído do céu.
Não admirava, pois, que Simon Aristide suspeitasse de que o homem era um demónio. Se bem que o caçador de bruxas tivesse estado, claramente, à espera de Renard naquela
noite, empalideceu quando ele apareceu. Os dedos de Aristide agitaram-se como se quisessem fechar-se num crucifixo para escorraçar Renard. Mostrando-se imperturbável
perante a sensação que a sua presença causara, flanqueado por dois robustos caçadores de bruxas, Renard entrou na sala, as tábuas do soalho a rangerem sob as botas
sólidas. com todo o vagar, descalçou as luvas de montar, os olhos verdes velados a percorrerem o interior da taberna com a expressão lacónica que mascarava uma inteligência
associada a muita argúcia.
- Monsieur lê Balafre, o conde chegou - anunciou um dos homens que escoltavam Renard.
- Estou a ver isso! - ripostou Simon desabrido. Dispensou os dois homens, restando apenas Braxton, que ficou de guarda à porta. O conde ignorou Aristide, optando
por se virar para Gabrielle, que ergueu o queixo, couraçando-se para a cólera e o desprezo do cunhado. O conde tinha muito pouca
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tolerância para quem apoquentasse a mulher que ele tanto amava e desde sempre que ela só causara preocupações a Ariane. Ficou completamente desarmada quando ele
lhe pegou na mão, levando-a aos lábios.
- Minha querida cunhada. Como sempre, estou encantado por vos ver.
- Apesar do tom vagamente trocista, Gabrielle viu algo assombroso por entre as pálpebras entreabertas. Ternura, simpatia e apreensão quando os olhos dele perscrutaram
o seu rosto. - Espero que estejais bem.
Gabrielle sentiu um nó na garganta, o ogre de Ariane parecia tão reconfortante, grande e sólido. Teve de fazer um enorme esforço para não se encostar com abandono
ao peito dele, dando largas às lágrimas.
- T... toleravelmente bem - conseguiu responder com um sorriso trémulo.
Renard afagou-lhe a face num gesto para a tranquilizar antes de concentrar a sua atenção em Aristide. O conde era senhor de uma presença portentosa. Até mesmo alguém
tão formidável como o caçador de bruxas, Lê Balafre, parecia mais pequeno diante de Renard. De um momento para o outro, Simon ficou com uma aparência muito mais
nova e vulnerável quando o olhar escarnecedor de Renard o percorreu.
- Ah, e este deve ser o nosso jovem senhor Aristide. Cresceste tanto que mal consegui reconhecer-te.
Simon corou e, involuntariamente, levou a mão à cicatriz na face.
- Sim, suponho que tenha mudado.
- Lamento a lesão no teu bonito rosto, meu rapaz - disse Renard num timbre de voz mais suave. - Nunca foi minha intenção bater-me contigo naquele dia. Não tinha
qualquer desejo de ser teu inimigo.
- Nasceste para seres meu inimigo. - O ódio que transpirava de Aristide era tão forte que Gabrielle sentiu um arrepio. Ele inspirou profundamente como se estivesse
a fazer um esforço tremendo para conter uma emoção virulenta. - Estou em crer que vieste falar comigo para negociar a liberdade de Mademoiselle Gabrielle e não para
rememorar tempos antigos. Trouxeste o objeto que eu quero?
Após alguma hesitação, Renard fez um acenar de cabeça e estendeu a mão para uma sacola que trazia ao ombro. Gabrielle observava-o quase sem respirar de tanta expectativa,
enquanto Renard desafivelava as correias que fechavam a sacola. Vagarosamente, pegou num volume encadernado em couro preto muito simples. Não era grande nem demasiado
volumoso, não parecendo mais ameaçador do que um manuscrito de poemas.
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O coração de Gabrielle caiu-lhe aos pés. Aristide não era estúpido. Seria possível que Renard tivesse pensado que poderia enganar o caçador de bruxas com um tomo
de aspeto tão inofensivo como aquele? Quando o conde lhe estendeu o livro, a expressão desdenhosa de Simon mostrava o seu ceticismo.
- Isto é que é o infame Livro das Sombras?
- Espero bem que sim. Paguei muito caro para o adquirir.
- É o que vamos ver - resmungou Simon. Tirando o livro com brusquidão das mãos de Renard, levou-o para junto do candelabro com várias velas, abrindo a capa.
Gabrielle pôs-se em bicos de pés e esticou o pescoço. Pelo que conseguia ver de onde se encontrava, as páginas pareciam-lhe estar amareladas e quebradiças ao ponto
de poderem desfazer-se em pó. No entanto, quando Simon começou a folheá-lo, as páginas pareciam surpreendentemente resistentes. Estavam cheias de umas marcas bastante
estranhas, a escrita antiga de uma língua quase esquecida, uns símbolos a negro de aspeto ameaçador. Gabrielle jamais teria acreditado que fosse possível que um
simples manuscrito pudesse transmitir uma aura de tanto mistério, poder... e mal.
Na sua mente não existiam quase dúvidas nenhumas de que fosse, de facto, o Livro das Sombras. Mas o que é que teria passado pela cabeça de Renard para ter adquirido
aquele amaldiçoado livro e, pior ainda, guardá-lo? Se o conde tivesse tido a intenção de o destruir, com certeza que nesta altura já o teria feito.
Gabrielle olhou para o cunhado com uma expressão de inquietude. Por muito que Ariane amasse o marido, desde sempre que receara aquela faceta de Renard, que mostrava
bastante interesse pelas artes negras, um fascínio que ele herdara da malévola avó, a Melusina. com Aristide embrenhado no livro, Gabrielle aproximou-se sorrateiramente
de Renard, dizendo-lhe em voz baixa:
- És um grande idiota. Estás ciente disso, não é verdade? - Renard inclinou-se para lhe segredar ao ouvido:
- Agradecido. Desde sempre que também gostei muito de ti, querida irmã.
- A Ariane vai matar-te - murmurou Gabrielle furiosa. - Sabes bem o que ela pensa acerca da magia negra. O que é que te deu para teres adquirido aquele livro?
- Amor - foi a resposta dele com uma tristeza inesperada. - A tua irmã anda tão desesperada por ter um filho que está disposta a morrer por
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isso. Mas eu não posso perdê-la. Ser-me-ia mais fácil abdicar da minha alma. Pensei que poderia encontrar resposta naquele livro, uma maneira que lhe permitisse
ter um filho, mas sem que ela corresse risco de vida quando desse à luz. Para isso, arriscar-me-ia a empregar até mesmo a magia mais negra.
Gabrielle compreendia plenamente o desespero do cunhado. Não teriam sido os mesmos sentimentos de amor, de medo e a necessidade de proteger o ser amado que a levara
a colocar aquele perigoso medalhão ao pescoço de Remy? Se Renard procedera como um idiota, o mesmo se aplicava a ela própria. Pegou nos dedos enormes e cheios de
calos dele, apertando-os num gesto de solidariedade. Renard também lhe apertou a mão com um sorriso de pesar.
Os minutos arrastavam-se enquanto Simon continuava a examinar o livro. Teria o homem inteligência suficiente para ver que era genuíno? Parecia estar a tentar desmanchá-lo,
passando os dedos por toda a capa, comprimindo a unha do polegar na lombada. Para perplexidade de Gabrielle, parte do couro destacou-se, revelando uma espécie de
bolso oculto. Aristide virou o manuscrito ao contrário, sacudindo-o vigorosamente, como se estivesse à espera de que caísse alguma coisa da lombada. Quando isso
não aconteceu, olhou furioso para Renard.
- Onde é que está?
- Onde é que está o quê? - perguntou o conde suavemente.
- Sabes muito bem o quê. A lista que devia estar escondida por baixo da capa. Os nomes de todas as bruxas e feiticeiras de que se tem conhecimento em ambos os lados
do canal da Mancha.
Gabrielle arquejou de indignação.
- com que então, é isso que procuravas? Grande canalha! Disseste a Miri que só querias o Livro das Sombras para o destruíres, quando o que querias realmente é...
é...
- A destruição do mal e de todos os homens ou mulheres que o pratiquem - atalhou Simon, dirigindo-se para Renard. - Onde é que está essa lista, monsieur?
- Deus me valha. Suponho que a tenha perdido. Um descuido da minha parte.
O semblante de Simon ensombrou-se com uma fúria e frustração tão desmedidas que Gabrielle se colocou diante do cunhado, como se quisesse protegê-lo. Mas Aristide
girou sobre si mesmo. Dirigiu-se para a caixa de madeira que continha os medalhões e o anel da Rainha das Trevas. Abriu a tampa e atirou o Livro das Sombras para
o interior. Ficou a olhar para a caixa durante uns momentos. Quando voltou a virar-se para eles, o olho bom de Simon tinha uma expressão fria como o aço.
- Lamento informar-vos de que o nosso acordo deixou de existir, Monsieur lê Comte. Mademoiselle Gabrielle continuará aqui até ao dia do seu julgamento e vós também
estais sob prisão.
Renard cruzou os braços diante do peito, mostrando uma expressão absolutamente imperturbável.
- Eu receava que dissesses alguma coisa nesses moldes. Mas, se estivesse no teu lugar, pensaria duas vezes sobre o assunto, meu rapaz.
- Porquê? Porque estás à espera que os homens armados que manténs escondidos a coberto da escuridão venham em teu auxílio?
Renard ficou sobressaltado, embora se esforçasse por ocultá-lo. A boca de Simon contorceu-se num sinistro sorriso.
- Estou bem recordado dos vossos truques, monsieur, de como tendes o costume de atacar sempre seguido de um pequeno exército dos vossos homens, de como haveis chacinado
impiedosamente os membros da ordem do mestre Lê Vis. Mas os meus caçadores de bruxas não são monges, são mercenários, e preparei-me melhor para o confronto com os
meus inimigos do que o meu mestre. Os vossos homens, em grande parte, estão mortos ou foram capturados. Os únicos homens que entrarão por aquela porta são os meus.
Braxton!
Como se tivesse estado à espera daquele sinal, Braxton abriu a porta toda para trás, dando entrada a outros três caçadores de bruxas, que irromperam pela sala adentro,
rodeando-os de espadas desembainhadas. Renard passou um braço pelos ombros de Gabrielle, chegando-a para junto de si numa atitude protetora. Continuava extraordinariamente
calmo, embora ela duvidasse que ele tivesse estado à espera daquela reviravolta da situação. Reparou que ele mexia na aliança que usava na mão esquerda, a curiosa
aliança de metal que ligava os seus pensamentos a Ariane. Estaria ele a comunicar com ela em pensamento, advertindo-a do que se estava a passar, talvez a dizer-lhe
o quanto a amava e pedindo-lhe que o perdoasse?
Gabrielle só desejava poder ter a mesma oportunidade com Remy. Sentiu um aperto no estômago quando se apercebeu de que Renard nem sequer estava armado. O mais provável
era ter sido forçado a entregar a espada antes de lhe permitirem que entrasse na estalagem.
- Leva Mademoiselle Gabrielle de volta ao seu quarto - ordenou Aristide. - Quanto ao conde, não vale a pena perder tempo com um julgamento.
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A culpa dele sempre esteve mais do que evidente. Leva-o lá para fora. Será executado de imediato.
- Não! - gritou Gabrielle. Agarrava-se desesperadamente a Renard, mas as mãos de Braxton imobilizaram-lhe os braços atrás das costas com brutalidade. Debateu-se
para se libertar, esforçando-se por encontrar uma maneira de poder ajudar Renard, mas foi em vão. Desesperada, soltou um soluço chorado quando o cunhado foi levado
à força em direção à porta, com a ponta da lâmina de uma espada encostada à sua garganta.
- Parai! - ouviu-se uma voz subitamente. Uma voz tão cristalina como
as águas puras de um riacho na floresta. Todos se imobilizaram, todos os olhos se viraram para a figura envolta num manto que surgiu da passagem escura de acesso
às cozinhas. Atirando o capuz para trás, Miri Cheney avançou até à luz.
Como é que a irmã conseguira entrar na estalagem rodeada pelos guardas de Simon, era coisa de que Gabrielle não fazia a mínima ideia. A resposta talvez residisse
na familiar forma negra agachada junto das saias de Miri. Necromante. O gato de Miri sempre tivera uma habilidade muito matreira de se introduzir em locais que lhe
estavam proibidos. Sem dúvida que teria encontrado uma entrada para Miri. Gabrielle desejava que o gato não tivesse sido tão diabolicamente prestável.
Aquele era o último lugar onde queria a sua irmã mais nova naquele momento. Pela expressão no rosto de Aristide, viu que o caçador de bruxas partilhava o seu desejo.
Avançou para Miri e perguntou-lhe de má catadura:
- Mas o que diabo é que estais a fazer aqui...
- Mentistes-me, Simon. Não mantivestes a vossa palavra - interrompeu-o Miri e olhou para ele com um olhar tão direto e franco que Gabrielle não sabia como é que
Aristide teria coragem de a fitar sem vacilar. Mas ele não apresentou quaisquer desculpas, tal como não fez o mínimo esforço para se justificar.
- Sou um caçador de bruxas, Miri. Devíeis compreender isso. Só faço o que tenho de fazer.
- Nesse caso, e lamentavelmente, também devo proceder da mesma maneira. - Miri afastou o manto para trás e empunhou uma pistola apontada a Aristide. - Dizei aos
vossos homens que recuem, Simon. Libertai a minha irmã e o meu cunhado.
- Ou o quê? Disparais contra mim?
- Se tiver de o fazer. - A fisionomia de Miri endureceu, os olhos a mostrarem uma expressão tão fria como as estrelas mais distantes. - Libertai-os,
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Imediatamente!- acrescentou Miri, ajustando a pontaria diretamente ao coração de Simon.
Ele limitou-se a olhar para ela com fixidez, um tumulto de emoções a espelharem-se na face desfigurada. Descrença, amargura e desespero. O homem que maniatava Gabrielle
apertou-lhe os braços com mais força, mas ela sentiu o mal-estar de Braxton. Os homens que imobilizavam Renard detiveram-se perto da porta, mostrando insegurança.
O conde poderia ter aproveitado esse momento para tentar libertar-se, mas, à semelhança de todos os presentes, tinha os olhos presos em Miri, como se estivesse mesmerizado.
- Não. Larga a pistola, criança. Isto não é necessário. - Das palavras de Renard transparecia uma tensão muito incaracterística nele, como se tentasse transmitir-lhe
uma mensagem implícita nelas.
- Monsieur lê Balafre? - disse Braxton à guisa de pergunta, mostrando nervosismo.
Nem Simon nem Miri lhe deram resposta, o par continuava a travar o seu confronto, como se todos e tudo tivessem cessado de existir.
- Muito bem - disse-lhe Simon com um estranho sorriso de resignação. - Não há que hesitar, ide em frente. Matai-me. - Quando Simon se aproximou mais, a pistola tremeu
nos dedos de Miri. Firmou a mão e cerrou os dentes. Gabrielle susteve a respiração, perguntando-se se Miri teria realmente coragem para...
Mas, entretanto, ouviu-se um estrondo ensurdecedor que ecoou por toda a sala, como se um poderoso dragão tivesse tomado a estalagem de assalto. Os vidros das janelas
foram sacudidos, as traves do teto abanaram e o soalho debaixo dos pés de Gabrielle elevou-se. Viu-se uma explosão de luz que a cegou. Foi violentamente atirada
para o chão e sentiu que todo o ar lhe saía dos pulmões. Teias de escuridão oscilavam diante de si e os seus olhos cerraram-se.
Devia ter perdido a consciência, durante quanto tempo, não fazia ideia. Quando voltou a abrir os olhos, sentiu-se entontecida e desorientada, como se a sua cabeça
estivesse envolvida em algodão. Sentiu que havia qualquer coisa morna que lhe escorria pela face. Levou a mão aí e ficou a olhar para a substância vermelha e pegajosa
nos dedos sem compreender. Sangue.
Gabrielle sacudiu a cabeça num esforço para aclarar as ideias, mas imobilizou-se de imediato ao sentir uma dor lancinante na têmpora. A confusão começou a desanuviar-se
com o retorno da memória. A Estalagem Régia, os caçadores de bruxas, Aristide a ordenar a execução de Renard, Miri a apontar a pistola...
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Mas aquele grau de destruição não poderia dever-se à pistola de Miri. Enquanto Gabrielle se esforçava por se sentar, viu-se rodeada por um mundo de caos, luz ofuscante,
um calor sufocante e uma neblina cerrada. Não, não era nenhuma neblina, mas sim uma nuvem densa de fumo que já começava a fazer com que os olhos lhe ardessem e a
causar-lhe tosse. A estalagem estava em chamas, as labaredas a lamberem as paredes. Tinha de encontrar Miri e Renard... sair dali para fora.
Gabrielle firmou-se numa mão, mas retraiu-se imediatamente ao tocar no braço de um homem. O caçador de Bruxas, Braxton, estava esparramado ao seu lado. Se estava
apenas inconsciente ou morto, ela não saberia dizer. A sua atenção foi desviada para a ombreira da porta, onde ouvia qualquer coisa acima do crepitar das chamas.
O entrechocar de aço. Através do fumo cerrado, viu que Renard se tinha apoderado da espada de um dos seus captores. Viu um homem morto aos pés dele, enquanto se
batia ferozmente com outro.
E ombro a ombro com Renard, a lâmina da sua espada a brilhar enquanto rechaçava outro caçador de bruxas, estava... Remy. O coração de Gabrielle subiu-lhe à garganta
com um doloroso misto de incredulidade, alegria e medo por ele. Tentou gritar-lhe, mas sufocou devido ao fumo. Mas Remy já a tinha visto. Derrubou o adversário com
uma estocada rápida e selvática. Antes de o caçador de bruxas cair por terra, Remy correu para ela.
Agachou-se ao lado dela, a cara profusamente suada e cheia de fuligem. O cabelo desgrenhado de um louro-escuro caía-lhe para a testa, todavia, nunca nenhum outro
homem lhe parecera tão bem-parecido. Atirou os braços ao pescoço dele, com um profundo soluço chorado.
- Oh, tu... tu vieste por mim.
- Claro que vim, minha tolinha - disse-lhe Remy ao ouvido numa voz enrouquecida. Apertou-a tanto a si que Gabrielle pensou que ele lhe partiria as costelas. - Temos
de sair daqui. Estás muito ferida? Consegues pôr-te de pé?
Gabrielle acenou que sim. Mas quando Remy a levantou do chão, estremeceu ao sentir o tornozelo a latejar. Mas esqueceu as dores quando lhe ocorreu repentinamente...
Miri. Onde é que ela estava? com os olhos cheios de lágrimas por causa do fumo cerrado, Gabrielle olhou freneticamente em seu redor, rezando para que a irmã já tivesse
conseguido sair da estalagem.
Ficou horrorizada ao ver a irmã mais nova agachada junto da forma caída de Simon. com uma das faces coberta de sangue, Aristide não se mexia.
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Miri tentava acordá-lo, sem prestar atenção a Necromante, que lhe batia com a pata nas saias, como se o gato a urgisse a fugir dali enquanto ainda havia tempo.
- M... Miri - chamou Gabrielle sem fôlego. Puxou o braço de Remy, chamando-lhe a atenção para a irmã. Antes de ele poder responder-lhe, Renard já estava a passar
por eles. com um braço levantado à altura do rosto para o proteger do fumo, gritou a Remy:
- Eu levo-a. Vai buscar a Gabrielle. Despacha-te, vai.
Gabrielle tentou protestar, esforçando-se para ir para junto da irmã. Mas o braço de Remy fechou-se na sua cintura inexoravelmente. com a espada na outra mão, arrastou-a
para a porta, obrigando-a a agachar-se para evitar o fumo mais espesso. Gabrielle tinha a sensação de que os seus pulmões ardiam. Além de estar meio cega devido
às lágrimas. Não podia fazer outra coisa que não fosse agarrar-se a Remy, cambaleando ao seu lado enquanto saíam para a escuridão da noite.
Remy arrastava-a e carregava-a ao mesmo tempo, levando-a para onde ficasse em segurança, longe da estalagem, que era pasto das chamas. Gabrielle tossia e respirava
em grandes haustos o ar puro da noite. Remy também estava meio sufocado, o seu próprio peito a soerguer-se no esforço que fazia para respirar. Abrandou a força com
que agarrava Gabrielle, o suficiente para ela se soltar. Esfregando os olhos que lhe ardiam, olhou para a estalagem. Soltou um soluço de alívio quando viu Renard
a sair da estalagem, trazendo Miri nos braços e com Necromante adiante deles. Encaminhou-se para onde Gabrielle e Remy os esperavam, deixando cair Miri suavemente
num banco corrido de pedra por baixo de um carvalho com ramagens retorcidas.
Continuando a esforçar-se por recuperar o fôlego, Gabrielle encostou-se a Remy, observando o frenesim que explodia em volta deles. Metade da estalagem era tragada
pelas chamas, as labaredas a iluminarem a noite com um clarão infernal, alargando-se até ao telhado dos estábulos. O relinchar dos cavalos aterrorizados juntava-se
aos gritos dos homens de Simon. As figuras enegrecidas recortavam-se contra o clarão avermelhado do incêndio. Caçadores de bruxas, moços de estrebaria e os criados
da estalagem que corriam freneticamente em todas as direções, alguns a tentarem salvar os cavalos, outros a fugirem do fogo, das fagulhas incendiárias que eram projetadas
da estalagem.
A confusão era acrescida pelos residentes das casas vizinhas, que convergiam para o pátio da estalagem, muitos em camisa de dormir. Alguns vinham
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para ajudar e outros apenas para ficarem a olhar embasbacados, o clarão das chamas a refletir-se nos rostos dessas pessoas. No meio de todo aquele caos, Gabrielle
pensou ter avistado Bartolomy Verducci, as pernas escanzeladas do homem a correrem para fugir àquele inferno.
Mas ela não tinha muito tempo para pensar no espião de Catarina. Ouviram-se berros de raiva vindos da estalagem e, para seu horror, Gabrielle percebeu que, finalmente,
tinham dado pela fuga deles. Vários dos corpulentos caçadores de bruxas de Simon correram para eles de espadas em riste. Sentiu o corpo de Remy a contrair-se de
tão tenso. Murmurou-lhe algumas instruções concisas ao ouvido.
- Cuida da tua irmã. Leva-a para fora do pátio. A Ariane estará à espera ao fundo da rua com cavalos. vou ter convosco mais tarde.
Gabrielle tinha a certeza de que o barulho das explosões devia ter danificado o seu sentido auditivo. Tinha Remy mencionado o nome de Ariane? Não teve oportunidade
de lhe perguntar. Ele deu-lhe um beijo impetuoso nos lábios antes de a deixar. Correu em direção aos caçadores de bruxas, ao encontro da fúria deles, com Renard
logo atrás de si. Receberam o reforço de um terceiro homem, um jovem de pernas altas e com uns cabelos pretos indomáveis. Lobo. Mas de onde é que ele tinha aparecido?
Gabrielle ficou imobilizada por uns momentos, a observar a confusão que se seguiu, um emaranhado confuso de figuras masculinas em movimento e espadas em cujas lâminas
se refletia o clarão do incêndio.
Incapaz de ajudar os seus homens, Gabrielle fez a única coisa ao seu alcance, concentrando a sua atenção na irmã. Miri continuava sentada no banco de pedra, mostrando-se
atordoada, mas sem grandes lesões físicas. Tinha alguns cortes no rosto e nas mãos que se deviam aos estilhaços dos vidros projetados das janelas pela força da explosão.
Necromante lambia-lhe a palma de uma mão, como se quisesse sará-la, mas Miri não lhe prestava atenção.
O seu olhar estava preso na estalagem em chamas, com uma expressão de horror nos olhos.
- S... Simon - murmurou.
Mesmo depois de tudo o que tinha acontecido, Gabrielle não conseguia acreditar que a irmã continuasse a preocupar-se com aquele caçador de bruxas, receando pela
vida dele. Agarrou os ombros de Miri e, com suavidade, obrigou-a a pôr-se de pé.
- Vamos, minha querida. Temos de ir - urgiu Gabrielle. Mas Miri tentou libertar-se das mãos da irmã.
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- Simon - repetiu. Gabrielle agarrou-a com mais força, receando que a irmã desatasse a correr para a estalagem para o procurar. Mas então apercebeu-se da expressão
nos olhos de Miri. Não era receio por Simon Aristide, mas sim medo dele. Tanto Aristide como Braxton tinham conseguido sair da estalagem, onde o fogo continuava
a lavrar, as figuras ameaçadoras a recortarem-se contra o fundo das chamas.
Simon nunca tivera tanto o aspeto de um aprendiz do Diabo. Tinha perdido a pala do olho, ficando com a cara desfigurada totalmente exposta, o rosto enegrecido pelas
cinzas, sangue e raiva. A cambalear, Aristide como que ladrou uma ordem a Braxton, fazendo um gesto na direção de Renard.
O conde estava concentrado num desesperado embate de espadas, inteiramente alheado do perigo atrás de si. Gabrielle ficou com a respiração embargada na garganta
ao ver a arma na mão de Braxton. O caçador de bruxas ajustou uma flecha de ferro curta na corda tensa de uma besta. Gabrielle soltou um grito de aviso que se perdeu
no tumulto da batalha e do incêndio. Antes de compreender o que estava a acontecer, Miri libertou-se das suas mãos. A jovem desatou a correr em frente.
com o coração a bater desenfreado, Gabrielle correu atrás dela, a mancar devido às dores no tornozelo. Aquela situação era como estar encurralada num medonho pesadelo,
a correr para nunca se aproximar, sabendo que nunca conseguiria chegar a tempo. Miri atirou-se, colocando-se entre Braxton e Renard precisamente quando o caçador
de bruxas já fazia pontaria. O grito de Gabrielle ficou-lhe preso na garganta, preparando-se para o pior.
Mas, no último momento possível, Aristide praguejou e bateu em Braxton, atirando-o para o lado. A seta da besta silvou, desviando-se muito do alvo, sem acertar em
Miri ou em Renard. Entretanto, uma segunda explosão abalou a noite quando o telhado da estalagem ruiu com um barulho atroador, afugentando a multidão no pátio, que
desatou a fugir em pânico. As centelhas e as brasas projetaram-se em todas as direções. O mundo descambou numa total loucura de calor, fumo e fogo. A única coisa
certa foi Remy aparecer subitamente ao lado de Gabrielle.
O resto da fuga deles era uma sucessão de imagens turvas na memória dela, com o braço forte de Remy a enlaçá-la pela cintura, servindo-lhe de apoio, o corpo robusto
a protegê-la da debandada das pessoas em pânico, impedindo-a de tropeçar nos corpos chacinados pelos caçadores de bruxas. Gabrielle seguia-o sem ver através do pátio
até chegarem à rua. Miraculosamente, todos conseguiram chegar incólumes, Remy, Gabrielle, Renard, Miri,
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Lobo e até mesmo Necromante. O gato seguia à frente em direção às sombras que se acumulavam junto do beco onde Ariane e Bette aguardavam com os cavalos.
com o tornozelo a latejar, Gabrielle tropeçou, mas agarrou-se ao braço de Remy. Quando afastou a mão, sentiu que estava pegajosa de sangue.
- Remy, estás... estás ferido.
Horrorizada, apontou para a haste de uma flecha na parte superior do braço. Remy ficou a olhar para aquilo estupefacto. O homem enfurecedor chegou ao ponto de sorrir
e de se rir dela.
- Oh, maldição infernal! - exclamou. - Outra vez, não.
Simon deixou-se cair no banco corrido, agarrando-se à caixa de madeira que encostava ao peito, enquanto olhava para a estalagem e para as cavalariças que eram pasto
das chamas. Era como se a terra se tivesse aberto, expelindo o próprio inferno. Até mesmo à distância, Simon sentia o calor das labaredas, o rosto coberto de fuligem
e suor. Tossiu, os lábios ressequidos e os pulmões a fazerem um grande esforço para receberem uma lufada do ar puro que receara nunca mais vir a respirar. Em volta
de si, os homens gritavam, formando uma correnteza e passando os baldes cheios de água do poço de uns para os outros. Um esforço fútil e patético. Como é que se
extinguia as chamas do Inferno?
Os corpos dos caçadores de bruxas estavam espalhados pelo pavimento do pátio, a maior parte deles não mais do que formas escuras imobilizadas, mas havia outros que
se mexiam, soltando gemidos que mal se ouviam. Simon tinha noção de que devia auxiliá-los. Mas parecia incapaz de se levantar do banco. Perto dele, Braxton tratava
da mão queimada, o homem de idade a olhar para ele aturdido, como se estivesse à espera de instruções.
Ordens que Simon não podia dar. Parecia que não conseguia pensar nem mexer-se, incapaz de fazer fosse o que fosse, além de matutar no momento em que Miri lhe apontou
a pistola ao peito, a expressão de tanta frieza nos seus olhos. Teria ela aprendido a odiar Simon àquele ponto? Dar-se-ia o caso de ele a ter ensinado tão bem? Teria
ela, efetivamente, puxado o gatilho?
Isso era algo que ele jamais viria a saber. Não podia perguntar-lhe, porque lhe permitira que deixasse a estalagem. Miri, o capitão Remy, Gabrielle e o conde. Muito
simplesmente, permitira-lhes que se fossem embora, sem fazer o mínimo esforço para os impedir, organizar uma perseguição. Simon tinha a sensação de que na explosão
daquela noite tinha ficado sem algo mais
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do que o fôlego. Perdera a determinação em atingir o seu objetivo e a confiança que tinha em si, aspetos que o levavam a acreditar que conseguiria combater o mal
e derrotá-lo. E sabia a quem é que essa sua derrota pessoal se devia.
Àquele demoníaco Renard. A exemplo do seu antigo mestre, Simon Aristide havia subestimado o demónio que o conde era. Somente Renard, com a sua magia negra, poderia
ter originado um cataclismo daquela perversa natureza. Mas, mesmo assim, Simon poderia ter abatido o conde, contudo, uma vez mais, Miri interpusera-se no seu caminho.
Por causa de uma rapariga que agora o desprezava, Simon deixara que ele desaparecesse do seu alcance.
com uma expressão de lassitude, passou a mão pela cabeça rapada. Do mal o menos, conseguira concretizar uma coisa. Tinha privado aquele feiticeiro do manual do Diabo.
A tampa da caixa de madeira estava chamuscada e enegrecida por causa do fogo, mas, tirando isso, estava intacta.
Simon atirou a tampa para trás e pestanejou sem querer acreditar no que via. Teve de esfregar os olhos que sentia a arder, apalpando o forro de seda freneticamente
para se convencer de que não estava enganado. Não estava. A caixa de madeira estava completamente vazia. Nada de medalhões. Nada de anel.
Mas, pior do que isso, o Livro das Sombras também tinha desaparecido.
O palácio encontrava-se num estado caótico, os preparativos que antecediam a mudança da corte para Blois tinham sido interrompidos. Os baús continuavam cheios, as
carroças meio carregadas, os lacaios, as criadas e os cortesãos como que suspensos no tempo, todos à espera das ordens do rei. Henrique Valois ficou furioso quando
o informaram do ataque aos seus caçadores de bruxas. Acompanhado apenas de alguns dos seus favoritos, retirara-se para os seus aposentos e aí permanecera durante
os dois últimos dias.
Como um rapazinho petulante amuado porque alguns dos seus soldadinhos de chumbo estavam partidos, pensava Catarina desdenhosamente. O mínimo excesso de emoção parecia
derrear o seu filho, ao ponto de ficar de cama. Todavia, o mau humor de Henrique era a mais pequena das suas preocupações naquele momento, não obstante pouco lhe
ter faltado para a acusar de ser responsável pelo ataque aos caçadores de bruxas.
A Rainha das Trevas sentira-se tentada a informá-lo com secura de que suspeitava da bruxa errada. Catarina conseguira obter informações suficientes acerca da estranha
explosão e do incêndio subsequente para deduzir quem
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seria o culpado. O diabolicamente astuto marido de Ariane, Renard. Era uma pena que, em vez de reduzir a cinzas a Estalagem Régia, o conde não tivesse conseguido
aniquilar todos os caçadores de bruxas, em especial Monsieur lê Balafre. Mas esse perverso jovem, de uma maneira qualquer, tinha conseguido sobreviver. O que, segundo
todas as informações, também se aplicava a Gabrielle e a Nicolas Remy. Haviam fugido de Paris juntamente com a irmã mais nova das Cheney, o conde de Renard e Ariane.
O caçador de bruxas continuava vivo e o Flagelo andava à solta pela região rural. Mas Catarina parecia não dedicar mais do que um fugaz pensamento a qualquer daquelas
duas perturbadoras notícias. Enquanto andava de um lado para o outro nos seus aposentos particulares, todas as suas energias e todo o seu poder de concentração estavam
centrados numa única coisa.
Onde diabo é que estaria Bartolomy Verducci? Não sabia nada do maldito homem desde a noite do incêndio. Havia dois dias que não tinha notícias dele. Só rezava para
que o grande idiota não tivesse ficado feito em picadinho durante a missão mais importante de que ela o incumbira - a aquisição do Livro das Sombras.
O seu espião informava-a regularmente, o que lhe permitira inteirar-se da proposta que trocava o livro pela vida de Gabrielle. Dera as suas instruções a Verducci.
Se o manuscrito fosse encontrado, ele devia obtê-lo custasse o que custasse. Mas ela devia ter sabido que não podia confiar a Verducci, nem sequer a qualquer outro
dos seus servos, uma tarefa tão vital. Apesar de todos os riscos de vir a ser descoberta, devia, de uma maneira qualquer, ter arranjado um disfarce, tratando ela
própria do assunto.
O desaparecimento de Bartolomy Verducci deixava Catarina num grande dilema. Não podia procurar o homem abertamente sem levantar suspeitas que levariam a que se perguntasse
o que é que o seu servo teria estado a fazer no alojamento dos caçadores de bruxas, onde se introduzira secretamente. Estava a considerar qual seria a melhor maneira
de proceder a uma discreta investigação quando uma das suas damas de honor lhe deu a agradável notícia de que o signore tinha voltado ao palácio.
com o coração a bater aceleradamente na expectativa, Catarina apressou-se a dispensar todos os que se encontravam por perto. Quando Verducci entrou na antecâmara
a cambalear, até mesmo ela ficou chocada com a aparência do homem. Parecia que tinha escapado das profundezas do Inferno. Continuava vestido com a mesma roupa que
usava na noite do incêndio, os calções apertados abaixo dos joelhos e o justilho cheios de fuligem. Tinha as
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sobrancelhas todas chamuscadas, tal como a ponta da barba, e na bochecha encovada tinha uma bolha muito feia. A cabeça estava enfaixada com uma espessa ligadura
empapada em sangue que o impedia de usar o barrete.
Verducci aproximou-se de Catarina a coxear, mal conseguindo fazer uma vénia sem perder o equilíbrio.
- M... majestade - disse numa voz enrouquecida.
Em qualquer outra ocasião, a rainha tê-lo-ia repreendido por se ter demorado tanto a dar-lhe notícias, mas não perdeu tempo com preliminares inúteis e nem sequer
lhe perguntou aonde é que tinha estado durante todo aquele tempo. Só queria saber uma coisa.
- Bem, senhor? O conde tinha o livro das Sombras? - perguntou num tom autoritário. - A tua missão foi bem-sucedida? Conseguiste adquirir o manuscrito?
Verducci trazia uma sacola que tentou entregar-lhe, mas o homenzinho escanzelado oscilou e caiu redondo aos pés dela. Ignorando o homem inconsciente, foi por pouco
que Catarina não o pisou na pressa de se apoderar da sacola.
O coração de Catarina batia desenfreado e as mãos tremiam-lhe de ansiedade enquanto tentava desapertar os cordões. Foi por pouco que não reprimiu um grito de triunfo
quando tirou de dentro da bolsa o livro encadernado a couro bastante maltratado...
Muitos dos cortesãos mantinham-se calados e acabrunhados, a misteriosa ocorrência na Estalagem Régia só era discutida em tons sussurrados por recearem que qualquer
menção ao assunto pudesse chegar aos ouvidos do rei, o que só lhe aumentaria a fúria.
com as pernas estendidas indolentemente diante de si, o rei de Navarra sentava-se num banco dos jardins das Tulherias, fingindo ler um livro e comportando-se como
se os acontecimentos mais recentes não tivessem a mínima importância para si.
Mas era-lhe difícil manter a sua postura de indiferença habitual. Gabrielle encontrava-se em segurança. O alívio do rei de Navarra ao inteirar-se disso era minorado
por alguma cólera e mágoa contra ela e Remy por o terem ludibriado daquela maneira. Refletiu que já devia estar acostumado a não poder confiar em ninguém, mas Gabrielle,
a mulher que ele tanto tinha adorado...
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O facto de ela o ter desertado havia sido sobejamente doloroso, mas se havia um homem em que o rei de Navarra acreditara poder confiar incondicionalmente, tinha
sido no seu Flagelo.
Estava tão mistificado como o resto da corte no que dizia respeito ao que acontecera na estalagem dois dias antes. Duvidava de que alguma vez viesse a compreender
inteiramente o que Gabrielle teria andado a fazer para ser acusada de bruxaria. Muito mais claro na compreensão do rei de Navarra era o que se tinha passado entre
Gabrielle e Remy. Haviam-se tornado amantes, do que ele suspeitara desde o dia do torneio, muito embora tivesse permitido que Gabrielle tentasse dissipar as suas
dúvidas.
Tinha sido Remy a deixar bem claro aquele estado de coisas na última mensagem que enviara ao rei de Navarra. Escrito na letra simples do capitão, ele expressara
o quanto lamentava não ter podido levar a cabo o plano de fuga do rei de Navarra, mas Gabrielle tinha precisado mais dele do que o monarca. Perdoava Remy por isso
sem quaisquer reservas. Mas era com amargura que desejava ter sido ele próprio a desempenhar o papel de herói, salvando-a, mas, como de costume, fora completamente
inútil, o rei que só o era de nome.
Não, não era o facto de Remy ter abortado o plano de fuga que o rei de Navarra considerava imperdoável. Verdade fosse dita, nunca depositara grande confiança no
êxito desse plano. Era a outra questão que lhe causava engulhos, o facto de Nicolas Remy nem sequer lhe ter pedido desculpa por ter fugido com a mulher que ele desejara
mais do que qualquer outra. Remy limitara-se a escrever com a contundência que lhe era habitual:
"Amo Gabrielle de alma e coração, de uma maneira como jamais seríeis capaz de igualar. Depois de a ter libertado, tenciono levá-la para bastante longe de Paris,
fazendo dela a minha noiva. Haverei de encontrar maneira de vos resgatar do vosso cativeiro. O meu dever, a minha vida, os meus serviços estarão sempre às vossas
ordens, meu soberano. Existe apenas uma coisa que nunca serei capaz de vos oferecer e isso é a minha mulher."
Remy amava Gabrielle de alma e coração? Uma afirmação bastante apaixonada vinda de um homem de espírito tão sombrio. Os lábios do rei de Navarra esboçaram o assomo
de um sorriso que não conseguiu evitar. Teria sido divertido ver finalmente o grande Flagelo a cair vítima dos encantos de uma senhora. Divertido, possivelmente,
se fosse outra mulher qualquer que não Gabrielle.
Mas as palavras de Remy suscitavam-lhe ressentimento, talvez porque o rei de Navarra era forçado a reconhecer a verdade que expressavam. "Amo
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Gabrielle... de uma maneira como jamais seríeis capaz de igualar." O solene Flagelo era, de facto, a espécie de homem que só amaria uma mulher, sendo-lhe fiel para
sempre. Quanto ao rei de Navarra, receava ter de reconhecer que herdara a inconstância do libertino que havia sido o seu avô. Teria sido diferente com Gabrielle?
O monarca gostaria de acreditar que sim, mas nem sequer ele próprio tinha a certeza. E agora jamais viria a saber.
O rei de Navarra suspirou e virou uma página do livro, o texto uma mancha turva. Só conseguia ver a imagem do cabelo louro de Gabrielle, os olhos azuis de expressão
radiante e exuberante, os lábios que eram uma tentação. Era possível que, com o passar do tempo, conseguisse perdoá-la, assim como a Remy. O rei de Navarra não era
um homem vingativo.
Mas, de momento, era consumido pela inveja que tinha de Remy e não só por causa de Gabrielle. Invejava ao Flagelo algo ainda mais precioso, a sua liberdade. Nunca
permitira que alguém visse o quanto o seu cativeiro o atormentava, aquela postura degradante e vergonhosa que havia sido forçado a adotar; o rei de Navarra, um bobo
rústico, um vira-casaca cobarde, o rei fantoche. Aquela situação estava a desmoralizá-lo até ao fundo da sua alma.
Mais do que o desejo de possuir Gabrielle, fora o desespero crescente do rei de Navarra que o levara a concordar com os planos de fuga que Remy arquitetara para
si. Ansiava poder voltar para as montanhas alcantiladas da sua terra natal, sentia uma enorme necessidade de se afastar de todas as intrigas e traições da corte
francesa, almejando passar a ser o género de rei que queria ser, forte, sensato e corajoso.
No entanto, constatava que se sentia mais aliviado do que desiludido por o plano de Remy ter sido abandonado. Já tinha visto muitas das maquinações com o objetivo
de o resgatarem redundarem em fiasco, muitos dos seus seguidores executados. Acabara por se convencer de que o motivo por que todos esses planos haviam fracassado
se devia ao facto de as tentativas serem demasiado elaboradas, envolvendo um número excessivo de pessoas. Todavia, agora estava mais determinado do que nunca a escapar,
mas só quando a ocasião fosse a mais propícia; o seu plano seria o mais simples possível, dependendo, em grande parte, de uma única pessoa em que o rei de Navarra
confiasse inteiramente. Ele próprio.
Mas por agora precisava de embalar os dragões que o vigiavam para que voltassem a adormecer, dissipar quaisquer suspeitas que o regresso de Remy pudesse ter levantado.
Por muito que lhe custasse, teria de continuar a desempenhar
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o papel do jovem tolo e indolente, preocupado apenas com a gratificação dos seus sentidos. Felizmente, esse papel não era completamente desprovido de compensações.
Ao ouvir uma tosse discreta, o rei de Navarra desviou o olhar do livro e deu consigo a ser observado por uma roliça morena com uns olhos risonhos e um sorriso atrevido.
Reconheceu-a como sendo uma das damas de
honor de Catarina, a oferta mais recente da Rainha das Trevas, que se destinava a mantê-lo seduzido e amansado. Mas que diabo... pensou o rei de Navarra com um encolher
de ombros e atitude cínica. Era possível que os seus calções se baixassem com facilidade, mas aprendera a guardar os seus projetos para si próprio.
A jovem abanava-se com o leque, mostrando uma expressão provocadora, desaparecendo por entre os arbustos. O rei de Navarra esboçou um sorriso rasgado, fechou o livro
e foi atrás dela.
A singela casa de quinta estava como que aninhada num vale a várias léguas de Paris. Não tão distante como Gabrielle teria gostado, mas Remy não tinha sido capaz
de ir mais longe. Durante o último quilómetro, só o robusto braço de Renard é que a impedira de cair da sela. Gabrielle sentia-se grata pelo paraíso temporário que
a quinta lhe proporcionava, com a sua casinha de pedra, pequena vacaria e capoeiras.
A propriedade pertencia à viúva Perrot, famosa pelas suas geleias de maçã, natas doces e queijo amanteigado. Também era conhecida por, ocasionalmente, preparar uma
poção que aliviava as dores do parto ou as cãibras das regras mensais, além de preparar unguentos que podiam curar qualquer coisa, desde verrugas ao reumatismo.
Eram poucos os estranhos que teriam adivinhado que por detrás da figura anafada de matrona, e queixo com uma covinha, se encontrava uma mulher sábia que, recentemente,
participara no conselho que Ariane convocara na ilha Encantada e que o seu nome, muito provavelmente, estaria incluído naquela lista que escapara das mãos de Simon
Aristide.
Foi esta viúva que cuidou de Gabrielle e Miri enquanto Ariane tratava Remy. Cuidava delas qual mãe-galinha, aplicando o seu unguento nos cortes que elas haviam sofrido
devido aos estilhaços de vidros projetados das janelas. Até aplicou uma cataplasma no tornozelo de Gabrielle, que enfaixou com uma ligadura apertada.
- É o unguento com que trato o potro quando tem um topete - disse a viúva com um piscar de olho. - O raio desta coisa é geniosa! Se dá bons resultados no potro,
também deve resultar em ti, minha menina.
Gabrielle murmurou um agradecimento, mas preocupava-se pouco com as suas próprias dores e exaustão. Todos os seus pensamentos, todas as suas
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energias, estavam concentrados em Remy. Por fim, ele acabara por perder a consciência enquanto Ariane lhe tratava o ferimento. Depois de ter acabado, aconchegou-o
na cama que a viúva lhe cedera. Dormiu durante a maior parte desse dia e depois teve uma noite desassossegada, sem parar de se mexer.
Gabrielle mantinha-se atenta à sua beira, aplicando-lhe um pano humedecido na fronte, receando que ele ficasse num estado febril ou que fosse atormentado pelos seus
pesadelos habituais. Se bem que Ariane tivesse insistido com ela para que descansasse um pouco, dizendo-lhe que cuidaria do capitão, Gabrielle recusara.
Estava sentada numa cadeira de madeira à beira da cama, dando-lhe pequenos goles de água a beber quando ele acordava momentaneamente. A infusão de ervas medicinais
que Ariane lhe administrara para lhe mitigar as dores deixava-o entontecido. Gabrielle duvidava de que ele tivesse consciência da sua presença, um pensamento que
lhe magoava o coração. Apesar de todos os seus esforços, acabou por dormitar, sendo despertada somente quando o alegre chilrear dos pardais se fez ouvir na macieira
junto da janela. Sentou-se a direito e espreguiçou-se, sentindo o corpo dorido e massajando a região lombar. Os músculos do pescoço protestaram quando se virou para
poder ver o homem deitado na cama.
A luz da manhã inundava a pequena alcova, incindindo suavemente no rosto de Remy, no maxilar onde a barba já começara a despontar. Ele parecia estar alarmantemente
quieto e a sua respiração mal se ouvia. Gabrielle apoiou a mão na testa dele e constatou que estava fresca ao toque. Não tinha febre. com certeza que isso era um
bom sinal, mas parecia tão pálido e exaurido, como um valente guerreiro que sofrera um golpe mais grave do que os outros, tirando-lhe as forças para poder levantar-se.
Não podia evitar estabelecer o contraste entre o seu estado atual com o de uma semana antes, tão forte, cheio de vitalidade e entusiasmo, enquanto acrescentava os
últimos pormenores do resgate do seu rei. Gabrielle ansiava por passar os dedos pelo cabelo revolto de um louro-escuro, acariciando a sua face com ternura, mas receava
perturbar as poucas horas de sono reparador em que ele mergulhara por fim.
Gabrielle recuou, tendo o cuidado de não tocar no braço enfaixado, que estava pousado em cima da coberta. Os ombros robustos e a parte de cima do peito também não
estavam tapados, revelando as cicatrizes que lhe desfiguravam a pele, parecendo ainda mais cruéis à luz suave da manhã. Tantos ferimentos, tanta dor para um único
homem, que agora sofrera outro.
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Mas desta feita esse ferimento era por culpa dela. Uma lesão tão estúpida e sem sentido que ele nunca devia ter sofrido. Se não fosse a irresponsabilidade dela,
a sua falsidade, nenhum dos terríveis acontecimentos da noite anterior teria tido lugar. O ranger da porta atrás de Gabrielle pôs fim aos seus pensamentos eivados
de sentimentos de culpa. Virou-se para trás quando Ariane entrou no quarto silenciosamente. Os olhos da sua irmã mais velha espelhavam exaustão, o cabelo de um castanho-claro
a cair-lhe em volta dos ombros, mas continuava a ser a mesma Ariane muito calma.
- Como é que ele está? - perguntou num sussurro, aproximando-se do leito em bicos de pés.
- Não sei dizer - confessou Gabrielle com um esmorecido esforço para sorrir. - O meu Flagelo parece-me bastante... bastante enfraquecido e indefeso, deitado como
está.
Afastou-se do caminho de Ariane para que a irmã pudesse examinar Remy. As mãos dela pareciam muito mais capazes e seguras do que faziam do que as suas enquanto lhe
apalpava a fronte e verificava a pulsação. Sentindo-se inteiramente inútil, GabrieUe dirigiu-se para a janela, enquanto Ariane, com todo o cuidado, tirava a ligadura
para poder inspecionar o ferimento de Remy, que mal se mexeu.
Gabrielle, desanimada, encostou a cabeça ao caixilho da janela, desfrutando da brisa que soprava suavemente, inspirando os cheiros da natureza que vinham do celeiro
mais abaixo. Avistou Necromante, que estava à coca de um indefeso rato-do-campo. Se Miri tivesse visto aquilo, teria impedido o gato de continuar. Mas a irmã mais
nova estava ocupada a escovar as crinas de um robusto potro de pelagem cinzenta, enquanto Lobo a observava encostado ao portão do cercado.
Aquela tranquilidade das primeiras horas da manhã era perturbada pelo barulho ensurdecido de um machado. com as mangas arregaçadas, o conde de Renard estava ocupado
a cortar madeira para o lume, não dando quaisquer mostras de ter sido afetado pela batalha da noite anterior na estalagem, nem tão-pouco devido à fadiga da fuga
de Paris. O homem sempre possuíra uma estâmina que parecia inesgotável. O prazer que sentia em tarefas tão simples como rachar madeira fizera com que Gabrielle em
tempos o classificasse de camponês. Mas a verdade é que ver o cunhado a empunhar o machado, enquanto se mantinha de olho no caminho de acesso à quinta, atento a
qualquer perigo que pudesse surgir, lhe dava a sensação de algo de sólido e tranquilizador.
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Era bom ter um ogre de guarda ao castelo, em particular quando o Flagelo se encontrava num estado tão vulnerável. Enquanto Ariane acabava de ligar o ferimento, Gabrielle
sentiu-se reconfortada ao ver que a irmã acenava com a cabeça num gesto de satisfação ao afastar-se da cama. Ariane juntou-se a ela na janela, falando em voz baixa
para não perturbar Remy.
- O teu capitão vai ficar bom. É um homem muito forte que já sobreviveu a ferimentos muito mais graves. Perdeu muito sangue, mas não há vestígios de infeção, nem
de febre. Agora só precisa de tempo para poder repousar e sarar. Queira Deus que ele possa dispor desse tempo.
Ariane olhou ansiosamente pela janela. Mas ver o seu vigoroso marido devia ter-lhe instilado tranquilidade. Parte da tensão saiu-lhe dos ombros. Era muito raro ver
Ariane sem ter o cabelo preso. De uma maneira geral, vestia-se com simplicidade, mas com cuidado, prendia o cabelo de um castanho sedoso num carrapito ou apanhava-o
por baixo de um toucado com véu. O cabelo caído em volta dos ombros dava-lhe uma aparência muito mais jovem, mas também via nos olhos habitualmente serenos da irmã
uma expressão velada de tristeza que Gabrielle não se recordava de ter visto antes, nem sequer depois da morte da mãe.
Tinham estado pouco tempo sozinhas desde que se haviam encontrado em circunstâncias tão perigosas e aflitivas, ambas apreensivas devido à iminência de perigo e com
outras preocupações que as impediam de conversar a sós. Aqueles eram os primeiros momentos de tranquilidade que passavam juntas e o silêncio que as envolvia era
de tensão, o que se devia à recordação de querelas antigas a pairar entre as duas, as diferenças de opinião prenhes de azedume que haviam feito com que os seus caminhos
de vida divergissem.
Havia tanta coisa que Gabrielle queria dizer à irmã, mas mal sabia por onde começar. Sentia-se surpreendida por Ariane ainda não ter abordado esse assunto entre
ambas até agora. A sua irmã mais velha nunca fora pessoa para deixar os assuntos mais desagradáveis por abordar, querendo sempre resolver tudo, sarar o que, por
vezes, ainda não estava de feição a sarar. Era muito frequente que Gabrielle ficasse ressentida com a insistência de Ariane, que queria aprofundar sempre tudo e
mais alguma coisa, aqueles seus olhos perspicazes que eram capazes de pôr a descoberto tão facilmente o coração de uma pessoa, expondo a nu mágoas que se queria
guardar em segredo.
Mas, desta feita, Ariane não esquadrinhou nem insistiu. Limitava-se a aguardar, olhos de expressão abatida e as mãos entrelaçadas diante de si. De súbito, Gabrielle
compreendeu que aquela situação era igualmente difícil
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para a irmã, encontrar uma maneira de transpor o fosso que existia entre as duas. Gabrielle aclarou a garganta.
- Foi por minha culpa.
- Desculpa, mas... mas não compreendo o que queres dizer - retorquiu Ariane numa voz vacilante.
- A nossa discussão. A maneira como nos distanciámos uma da outra e o que aconteceu ao Remy. - Extremamente deprimida, fez um gesto na direção do leito. - Sou a
única culpada de tudo o que sucedeu.
- Oh, portanto foste tu quem disparou a flecha contra o capitão? Bem, tenho a certeza de que isso é compreensível. Têm sido inúmeras as vezes em que tive vontade
de fazer o mesmo ao Renard, especialmente quando descobri que ele tinha realmente esse maldito livro.
O tom de brincadeira da irmã deixou Gabrielle atordoada e estupefacta. Ariane sempre havia sido tão circunspecta, quase insuportavelmente. Percebeu o que a irmã
tentava fazer, brincava para aliviar aquela atmosfera de tanta tensão. Mas o seu bom humor teve o efeito inesperado de eliminar a reserva de Gabrielle. Os seus olhos
ficaram marejados de lágrimas.
- Oh, Ariane. Eu... eu fiz uma trapalhada horrível de tudo. - O pranto impediu-a de continuar.
Ariane não disse nada, limitando-se a abraçar a irmã. Tinham sido tantas as vezes em que Gabrielle resistira à irmã mais velha quando ela tentava consolá-la. Mas
agora entregou-se à ternura dela, encostando-se ao seu ombro amigo, chorando todas as suas mágoas, medos e tensão que se vinham a acumular dentro de si desde a discussão
com Remy.
Ariane embalava-a, afagando-lhe o cabelo com aquelas mãos afetuosas que tinham o poder de curar, tão parecidas com as da falecida mãe.
- Acalma-te, minha querida. Não aconteceu nada que não possa ser remediado.
- Tu... tu não sabes isso. N... não fazes ideia de algumas das coisas que eu fiz. - Gabrielle calou-se. Um forte soluço fez com que estremecesse. Limpou os olhos
furiosamente com as mãos até Ariane puxar de um lenço. Ariane trazia sempre um lenço consigo.
Pegou no queixo de Gabrielle e secou-lhe as bochechas.
- Receio ter de te dizer que faço ideia do que tens andado a fazer. Não foi por acaso que a Bette te seguiu quando foste para Paris e procurou emprego em tua casa.
Fui eu que a enviei.
Quando os olhos de Gabrielle se abriram desmesuradamente, Ariane apressou-se a prosseguir.
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- Não era capaz de suportar não saber o que se passava contigo. Não com todos os perigos que existem na cidade, na corte, a própria Rainha das Trevas. Mandei a Bette
com instruções para me enviar notícias de ti com regularidade. Aqueles pombos que ela criava no pombal atrás dos estábulos não eram para a tua mesa.
- Eu devia ter desconfiado disso mesmo. Eu detesto tarte de pombo, o que a Bette sabe.
- Por favor, não te zangues com ela. A ideia foi minha. Obriguei-a a fazer isso.
- Não estou zangada com ela nem contigo - retorquiu Gabrielle.
- Talvez a dada altura tivesse sido suficientemente idiota para ter ficado furiosa. Mas tenho andado tão receosa de que tu já não te importasses em saber de mim
ou que não quisesses voltar a ver-me. Por... por te ter envergonhado e desiludido tanto quando decidi passar a ser uma cortesã, por ter ido viver para a casa que
pertencia à amante do pai. Acreditei que devias odiar-me.
- Oh, Gabrielle, como é que pudeste pensar uma coisa dessas? Desde sempre que tu e eu tivemos as nossas diferenças...
- Isso é dizer muito pouco - disse Gabrielle com um sorriso. Ariane também lhe sorriu, mas tremulamente.
- Foram muitas as vezes em que me preocupei com as tuas escolhas de vida, com receio do que te pudesse suceder, sentindo a tua falta. Mas és minha irmã. Aconteça
o que acontecer, amar-te-ei sempre. - Os olhos de Ariane encheram-se de lágrimas. - E tenho tido tantas saudades de ti.
- Também eu tenho sentido muito a tua falta. - Gabrielle puxou a irmã para si. As duas abraçaram-se, riram-se e choraram para cima uma da outra. Quando se separaram,
ambas olharam na direção de Remy com um sentimento de culpa, mas ele continuava mergulhado num sono profundo. Partilharam o lenço entre as duas, secando olhos lacrimosos.
Gabrielle sempre tinha detestado o que considerara a fraqueza feminina das lágrimas, detestando, muito em especial, ir-se abaixo diante da irmã mais velha, sempre
tão senhora de si. Mas, sem saber explicar porquê, era diferente partilhar uma boa crise de choro com Ariane. Sentia-se curiosamente melhor depois disso.
Ariane recompôs-se com uma última fungadela.
- Mas agora vamos lá a saber uma coisa. Que história é essa que ouvi de estares noiva do Remy?
Gabrielle abanou a cabeça com tristeza.
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- Infelizmente, tudo isso acabou. Atrevo-me a dizer que não ouviste o resto da história porque a Bette não sabia.
- Não foi da boca de Bette que soube essa notícia, minha muito querida. Foi o Remy que me contou.
- O Remy!? - ecoou Gabrielle incrédula.
- Quando a Miri enviou uma mensagem para o château, informando-nos da exigência do Simon Aristide, o Renard e eu partimos para Paris de imediato. O nosso primeiro
pensamento foi contactar o Remy, mas foi por mero acaso que o encontrámos. O teu Flagelo andava a calcorrear a cidade de uma ponta à outra à procura dessa mulher,
a Lascelles.
- À procura da Cassandra? Mas porquê?
- O Remy tinha a intenção de a obrigar a apresentar-se para dizer a verdade, de maneira a ilibar-te de qualquer culpa. Não queria que passasses a ser uma fugitiva,
que tivesses de fugir dos caçadores de bruxas durante o resto da tua vida.
com que então era isso que Remy tinha andado a fazer quando Gabrielle já receara que ele a tivesse abandonado. Ficou comovida por ele ter tentado uma coisa tão desesperada
por ela, bem como consternada.
- Ainda bem que o Remy não chegou a encontrá-la - disse. - A Cass é a pessoa mais perigosa que conheci em toda a minha vida, o que inclui a Rainha das Trevas. Tu
sempre me advertiste para que me mantivesse afastada de quem praticava magia negra, mas, como seria de esperar, não te dei ouvidos. Tu nunca te terias sentido tão
tentada.
As suaves feições de Ariane mostraram uma expressão de pesar.
- Não sou nenhuma santa, Gabrielle. Muito embora tenhas dito implicitamente que eu pensava que era uma santa.
- Peço desculpa, Ariane. Nunca foi minha intenção...
- Não, tinhas muita razão. Eu esforçava-me ao máximo por desempenhar o papel de Senhora da Ilha Encantada, a detentora de toda a verdade e sabedoria. Em grande parte,
para que ninguém viesse a descobrir que eu sou uma fraude. Devo ter sido bastante insofrível. - Soltou um fundo suspiro. - A verdade é que não sou sábia. Muito longe
disso. Para mim, foi uma fase particularmente difícil logo a seguir à morte da mãe. com o nosso pai perdido no mar, cabia-me a mim cuidar de ti e da Miri, ter de
pagar todas as dívidas que o pai deixou, e toda a gente da ilha a virar-se para mim à espera que eu fosse tão sábia como a mãezinha.
Ariane engoliu com força antes de se confessar.
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- Senti-me tão desesperada que eu própria recorri à magia negra para... para conjurar o espírito da mãezinha.
- Tu praticaste necromancia? Eu nem sequer tinha conhecimento de que sabias fazer isso.
- Não sou tão naturalmente dotada como, aparentemente, a Cassandra é. Mas consegui contactar a nossa mãe várias vezes, se bem que lhe tenha prometido que nunca mais
voltaria a fazê-lo, o que não impede que continue a sentir-me tentada. Em especial, durante este último ano, quando... quando... - Ariane não conseguiu continuar,
os olhos ensombrados por uma grande tristeza.
- A Miri falou-me acerca das tuas... das tuas dificuldades, sobre teres perdido o bebé. - Gabrielle apertou a mão da irmã. - Tenho tanta pena por ti, Ariane. - Esta
esboçou um sorriso tristonho.
- Agradeço-te, mas já chega de falar das minhas tristezas. Fiquei furiosa com o Justice quando soube que ele tinha adquirido o Livro das Sombras sem me dizer nada,
por ele chegar ao ponto de tentar lê-lo. Mas, pior do que isso, finalmente admitiu que tem andado a tomar uma mezinha de infusão qualquer que a avó o ensinou a preparar.
Para ficar temporariamente estéril. Fiquei tão encolerizada, tão devastada. Mas ele só queria proteger-me até conseguir encontrar uma maneira de eu poder dar à luz
uma criança saudável sem que me acontecesse algo de mau.
Ariane envolveu-se nos seus próprios braços, encostando-se descorçoada à parede.
- Eu andava tão consumida pelo que desejava que não prestei atenção aos sentimentos do meu marido. O Justice perdeu a mãe durante o parto e sei que isso sempre foi
o seu maior temor, que me pudesse acontecer o mesmo, mas eu optei por ignorar isso. No meu anseio de vir a ser mãe, estava-me a esquecer de ser esposa. Eu... eu
espero que ele seja capaz de me perdoar isso.
- Tenho a certeza de que o teu ogre te dirá que não há nada a perdoar. O homem adora-te em absoluto e incondicionalmente, Ariane.
Ariane sorriu, as sobrancelhas arqueadas.
- Tal como o teu Flagelo te ama, e, apesar de seres tola ao ponto de pores fim ao noivado, não me parece que o homem tencione deixar que lhe escapes com tanta facilidade.
Gabrielle desejou poder ter tanta certeza daquilo. Lançou um olhar anelante na direção do homem que dormia no leito.
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- E agora, o que é que acontece, Ariane? O que é que vamos fazer? Parece-te que o Aristide e os seus caçadores de bruxas venham em nossa perseguição até à ilha Encantada?
- Temo que sim.
- Quem me dera que o Renard tivesse conseguido fazer com que o maldito homem rebentasse, mandando-o para o Inferno - disse Gabrielle com azedume.
- Hum... isso não foi o Justice. Fui eu.
- O quê!? - Gabrielle desviou o olhar preso em Remy, fitando a irmã. Ariane mostrava-se constrangida e com uma expressão de tanta culpa
como Gabrielle nunca lhe vira.
- Foi por causa daquele maldito livro - confessou. - Até mesmo eu não fui capaz de resistir à tentação de lhe dar uma espreitadela. O Renard e o Remy arquitetaram
os planos para te salvarem, mas havia tanta coisa que podia correr mal. Só um pequeno encantamento, pensei eu. Para o que desse e viesse.
"Encontrei as instruções para fazer um engenho explosivo tão pequeno que podia ser disparado como uma flecha de um arco. Decidi fazer um desses engenhos para o ter
de reserva. Quando tudo começou a correr mal e os homens do Renard foram emboscados, decidi utilizá-lo. Sempre fui muito competente a decifrar a língua da Antiguidade,
o que me levou a pensar que tinha seguido as instruções com todo o cuidado, acreditando que o engenho explodiria no ar como um enorme foguete, servindo de manobra
de diversão. Em vez disso, foi um autêntico milagre eu não nos ter destruído a todos e incendiar metade de Paris.
Ariane baixou a cabeça, mostrando-se tão horrorizada pelo que tinha feito que Gabrielle só queria apaziguar-lhe os remorsos, mas, em vez disso, foi-lhe extremamente
difícil reprimir um sorriso. Ao reparar no esforço que a irmã fazia, Ariane fitou-a com uma expressão de repreensão.
- O que se passou não teve graça absolutamente nenhuma, Gabrielle. Eu podia ter causado a morte a muitas pessoas inocentes.
- Mas não foi isso que aconteceu - apontou Gabrielle, vendo a situação pelo lado mais prático.
- Mas isso podia ter acontecido. Portanto, estás a ver como eu sou realmente uma pessoa horrível. Atrevo-me a dizer que nunca mais terás o mínimo respeito por mim.
Gabrielle limitou-se a sorrir e a dar um abraço à irmã.
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- Tenho mais admiração por ti do que nunca. De facto, a Senhora da Ilha Encantada é uma senhora que não é para brincadeiras. Mas há uma coisa boa na consequência
do fogo que ateaste involuntariamente. Esse livro demoníaco só pode ter ficado destruído, pelo que nenhum de nós terá de voltar a preocupar-se por causa disso. -
Quando viu que Ariane continuava a sentir bastante mal-estar, Gabrielle acrescentou: - O teu engenho explosivo acabou por salvar o dia. Não podia ter surgido num
momento mais oportuno.
Adotou um semblante mais circunspecto quando pôs Ariane ao corrente do que tinha acontecido com Miri.
- Sabes bem como a nossa irmã mais nova sempre foi, com um coração que se compadece de tudo e de todos, incapaz de compreender os atos de violência. Juro que ela
desviaria uma serpente venenosa do caminho para impedir que fosse esmagada por uma carroça. Mas quando ela apontou aquela pistola ao Aristide, tinha um semblante
tão duro como nunca lhe tinha visto. Estou em crer que ela estava verdadeiramente preparada para o matar para me salvar e ao Renard.
Gabrielle mordeu o lábio inferior.
- Eu própria teria adorado disparar contra o canalha pelo que ele fez à Miri, a alminha mais inocente e confiante à face da Terra. Ele atraiçoou-a uma vez mais,
mas depois, num volte-face, decide poupá-la, apesar de isso ter significado que teve de deixar que o Renard escapasse à sua vingança. Não admira que a Miri tenha
ficado tão confusa. Porque é que o estupor do homem não se decide a comportar-se como um verdadeiro vilão de uma vez por todas?
- Porque ninguém é um vilão em absoluto. Todos somos uma mistura de luz e escuridão. Alguns corações são muito mais escuros do que outros - admitiu Ariane com um
sorriso pesaroso. - Também eu sinto mágoa pelo que sucedeu a Miri. Mas o mundo está cheio de perversidade e traição. A Miri não podia agarrar-se à sua inocência
e aos seus sonhos para sempre. Tinha de crescer, mais cedo ou mais tarde, por muito que detestemos ver isso.
- E detesto realmente - disse Gabrielle. - Ninguém se sentia mais frustrada do que eu por ela acreditar em coisas como fadas e unicórnios e no pérfido Aristide.
Mas magoa-me vê-la tão desiludida, o seu coração a ser obrigado a endurecer. Porque, verdade seja dita, eu nunca quis realmente que ela mudasse.
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- Se te servir de alguma consolação, continua a haver muita coisa na nossa irmã mais nova que não mudou. - Ariane fez um gesto à irmã com que lhe indicou que assomasse
à janela, apontando para onde Miri e Lobo se encontravam no cercado com o potro, a cabeça de cabelo escuro de Martin perto da de Miri de cabelo louro, enquanto ambos
conversavam numa atitude que Gabrielle só podia descrever como sendo, inegavelmente, conspiratória.
"A Miri continua a ter uma convicção inabalável sobre os direitos dos animais, bem como a crença na sua capacidade de comunicar com eles disse Ariane. - Aparentemente,
o potro tem estado a contar-lhe a sua triste história de como se sente tão sozinho, de como gostaria de estar numa quinta onde houvesse mais cavalos e talvez mesmo
algumas crianças que pudessem brincar com ele.
- Oh, não - retorquiu Gabrielle num gemido, adivinhando o que se seguiria. Miri era conhecida por, como é que a sua irmã mais nova classificava isso, libertar animais
infelizes dos seus legítimos donos.
- Seria uma recompensa muito infeliz pela hospitalidade de Madame Perrot se a Miri soltasse o seu potro - disse Ariane.
-( E Martin, o Lobo, seria exatamente o rapaz indicado para a ajudar a fazer isso - concordou Gabrielle. - É melhor ficarmos de olho naqueles dois.
Ariane começou a acenar com a cabeça, mas depois imobilizou-se com uma expressão de expectativa no rosto. Inclinou a cabeça como se tivesse ouvido alguém a chamar
pelo seu nome. Gabrielle não ouviu nada, mas reparou que Renard olhava fixamente para a janela. Tocou na aliança que tinha aqueles estranhos símbolos rúnicos e viu
que Ariane fazia o mesmo com a aliança que tinha no dedo.
Qualquer que fosse a comunicação silenciosa transmitida entre os dois, fez com que os olhos de Ariane se suavizassem mais e um ligeiro rubor lhe subisse às faces.
- Acho... acho que estou a precisar de apanhar um pouco de ar fresco.
- Oh, sim, claro que precisas - retorquiu Gabrielle numa voz indolente.
Ariane corou ainda mais ao ver o olhar da irmã cheio de subentendidos. Sorria acanhadamente quando se dirigiu para a porta. Antes de sair do quarto, disse à irmã:
- Cuida bem do teu Flagelo. Tenho a certeza de que o Remy não tardará a despertar e vai querer que estejas por perto.
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Depois de Ariane ter saído, Gabrielle deixou-se ficar à janela até ver a irmã aparecer à entrada do celeiro mais abaixo. Quando se aproximou do marido, ele pôs o
machado de lado. Os dois trocaram um prolongado olhar e depois, com um único movimento, Ariane passou a estar nos braços dele. Renard ergueu-a do chão e os lábios
dos dois encontraram-se num beijo apaixonado.
Gabrielle observava-os com uma sensação de nostalgia, invejando à irmã aquele intenso amor que partilhava com o marido, o qual ia muito para além da necessidade
de palavras, que era capaz de sarar todos os desentendimentos e mágoas, permitindo que eles recomeçassem de novo. Conseguiria ela e Remy vir a ter um entendimento
daquela natureza entre ambos? Gabrielle voltou a abeirar-se do leito onde ele continuava a dormir sossegadamente, olhos cerrados e tão alheado da sua presença.
"O Remy não tardará a despertar e vai querer que estejas por perto.."
Gabrielle deixou-se cair de joelhos à beira da cama, afundando a cara na coberta e rezando para que Ariane não estivesse enganada.
Gabrielle não fazia ideia do tempo que tinha estado ajoelhada. Talvez a exaustão se tivesse apoderado dela, acabando por adormecer. Foi acordada por algo a roçar-lhe
pelo cabelo. O seu coração saltou algumas batidas quando percebeu o que era, o toque dos dedos de Remy. Endireitou-se de repente e deparou com ele a olhar para si
com fixidez e um pequeno sorriso. Continuava a ter uma aparência de muito cansaço, mas a sua face já tinha um pouco de cor e os olhos espelhavam uma limpidez extraordinária.
- Remy! - exclamou, pondo-se de pé. - Estás... estás acordado. Como é que te sentes? Tens dores? Queres que te vá buscar alguma coisa? Talvez um pouco de água ou
de conhaque? Ou... ou precisas de mais da poção da Ariane? - Na sua ansiedade, teria desatado a correr para fora do quarto se Remy não se tivesse sentado para a
impedir. Contraiu-se, obviamente a pagar pelo movimento tão súbito. Gabrielle apressou-se a voltar para a beira dele. - O que é que estás a fazer? - ralhou, voltando
a pousar-lhe a cabeça na almofada. - Deixa-te estar quieto.
- Está bem. Desde... desde que não te vás embora - disse Remy entredentes. - Não estou a precisar de nada, exceto...
- Sim...?
Ele respirou fundo e depois respondeu-lhe batendo no colchão ao seu lado. Cuidadosamente, Gabrielle deitou-se junto dele, sentindo o intenso desejo
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de lhe cobrir o rosto de beijos enquanto chorava de alegria e alívio. Mas a mulher que em tempos se considerara uma sedutora tão hábil sentia-se acanhada e desajeitada,
receando agravar o ferimento dele, com medo de lhe causar mais mal do que já lhe tinha causado.
Remy pegou-lhe na mão, apertando-a com uma força surpreendente, como se receasse que, se a largasse, ela desvanecer-se-ia diante dos seus olhos. Começou a observá-la
através de pálpebras semicerradas, até ela começar a sentir-se constrangida por causa do vestido bastante amarrotado e o cabelo despenteado. Talvez fosse tolice
da sua parte estar a preocupar-se com a sua aparência numa ocasião daquelas, mas havia tanto tempo que acreditava que a sua beleza era a única coisa que tinha para
oferecer. Ensaiou um riso trémulo.
- Devo estar um absoluto horror.
- Não, apenas muito cansada - murmurou Remy. - Devias ter-me deixado para poderes ter descansado ontem à noite. Mas, como sou um cretino egoísta, digo que ainda
bem que ficaste.
- Apercebeste-te de que era eu? Pensei que talvez me tivesses tomado pela Ariane.
- Conheço bem o toque das tuas mãos, Gabrielle.
Foi com uma satisfação indescritível que ela ouviu aquelas palavras que tanto a tranquilizaram.
- Oh, eu... eu não tinha a certeza. Parecias estar prestes a delirar. Receei que voltasses a ter um dos teus pesadelos.
- É possível que isso tivesse acontecido, mas tu estavas aqui. Vi o teu rosto, aureolado pela luz. Sempre conseguiste fazer com que os meus pesadelos se mantenham
afastados.
- Pois eu pensava que tinha passado a ser a origem deles - retorquiu Gabrielle. - Oh, Remy, por favor, acredita em mim. Estou tão arrependida de tudo...
- Não digas mais nada - ordenou-lhe ele, interrompendo-a e apertando-lhe a mão suavemente. - Não quero ouvir mais nada disso. Sou tão culpado pela maneira acrimoniosa
com que nos separámos como tu. Desde sempre que eu soube que tinha um temperamento dos diabos quando provocado. Mas nunca me tinha apercebido do quanto podia ser
um idiota irascível e intolerante, até Lobo, muito simpaticamente, me ter feito ver.
- Oh, mas que grande impertinente - retorquiu Gabrielle indignada.
- O Martin saiu da linha ao dizer-te uma coisa dessas.
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- Não, ele disse a verdade. O rapaz provou ser muito meu amigo. De facto, o maior amigo que tive depois de ti.
Gabrielle tinha recebido muitos cumprimentos ao longo da sua vida, mas nunca nenhum que a comovesse tão profundamente como aquele. Remy fechou a mão dela nas suas
mais apertadamente.
- Mesmo assim, não compreendi inteiramente como fui um autêntico estupor para ti até ter entrado na estalagem e vi que desataste a chorar de incredulidade quando
me viste.
- Isso foi por causa do fumo, Remy. Fazia com que os olhos me ardessem.
- Não, não era, não inteiramente. Jamais me esquecerei da maneira como gritaste "vieste por mim, como se tivesses pensado que eu não iria socorrer-te. Que te abandonaria
realmente por causa do rei de Navarra.
- Oh, não, Remy - replicou Gabrielle, inclinando-se para a frente e atrevendo-se a tocar-lhe por fim. Procurou suavizar a ruga vincada que ele tinha na fronte. -
Nunca duvidei de que virias. Não realmente. Tinhas jurado que o farias e tu nunca faltas às tuas promessas, embora... - confessou acanhada. - À medida que os dias
iam passando sem eu saber do teu paradeiro, comecei a ficar um pouco preocupada.
- Eu andava a tentar encontrar aquela mulher perversa.
- Sei que sim. A Ariane contou-me.
Os olhos de Remy ensombraram-se de pesar.
- Eu queria fazer mais do que limitar-me a salvar-te. Queria encontrar maneira de te ilibar dessas acusações, para não teres de passar o resto dos teus dias com
os caçadores de bruxas a perseguirem-te.
- Levando em consideração a espécie de mulher que eu sou e os antecedentes da minha família, isso parecia quase inevitável - retorquiu Gabrielle com um riso de cansaço.
- Não me importo tanto por mim, mas detesto ter-te envolvido nos nossos assuntos. - Respirou fundo e acrescentou corajosamente: - E se houver alguma probabilidade
de te afastares de mim, quero que a aproveites.
Quando Remy franziu o sobrolho e fez menção de protestar, ela calou-o com um dedo na boca.
- Não, Remy, ouve o que te quero dizer. Compreendo o quanto te sentiste frustrado por teres tido de abortar o plano de fuga do rei de Navarra. Tenho de confessar
que sempre me senti estupidamente ciumenta da dedicação que tinhas à tua causa. Mas o teu sentido do dever e da honra é parte do
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que faz de ti o homem que és, a razão por que te amo tanto. Nunca quero vir a mudar-te, nunca.
Remy afastou a mão dela da sua boca e beijou-lhe a ponta dos dedos.
- Estou em crer que o rei de Navarra seria o primeiro a compreender. Ele tem vislumbres de sensatez que me fazem depositar esperança no meu jovem rei tão imoral
Houve uma ocasião em que ele me disse que a primeira obrigação de um homem era para com a mulher que ama. - Remy olhou para ela com a expressão profundamente sincera
que a conquistara havia tanto tempo. - Mas tu não és a minha obrigação, Gabrielle. És o meu amor, a minha vida, a minha alma.
O coração de Gabrielle inchou de tanta emoção, com os olhos rasos de lágrimas que ameaçavam transbordar. Tentou aproximar-se mais para poder roçar os lábios pelos
dele, mas Remy interrompeu-lhe o gesto, dizendo:
- Não, espera. Há uma coisa que tenho de fazer primeiro. - Fez uma careta risonha, mexendo-se como se conseguisse sair da cama, como se pensasse seriamente que ela
lhe permitiria fazer isso. Quando ela lhe ordenou autoritariamente que estivesse sossegado, ele cedeu com um suspiro e expressão taciturna. - Muito bem, mas então
vais ter de me ajudar. Sabes o que é feito das minhas coisas? Do meu alforge?
- Está tudo arrumado ali ao canto.
- Otimo - retorquiu, suspirando. - Importas-te de abrir o meu alforge? Procura uma pequena bolsa de couro.
Gabrielle fez o que ele lhe pedia, voltando para junto da cama com o que ele lhe pedira, uma bolsa tão leve que dava a impressão de não conter absolutamente nada.
Remy tinha dores de mais para poder mexer o braço ferido e não conseguia abrir os cordões só com uma mão. Entregou a pequena bolsa a Gabrielle, que deitou o conteúdo
na palma da mão, um anel de ouro.
- É um anel de noivado - disse ele numa voz roufenha. - Sei que não é grande coisa. No meio de toda esta loucura, não tive tempo para procurar como devia ser e...
e isto foi o melhor que consegui com as minhas posses.
Foi então que as lágrimas começaram a correr dos olhos de Gabrielle.
- Oh, Remy - foi tudo o que conseguiu dizer com a voz embargada.
- Acusaste-me de só querer casar contigo por o rei de Navarra me ter ordenado que o fizesse. Pois bem, não podia ter-te a pensar durante o resto das nossas vidas
que esse era o caso, por isso decidi pedir-te em casamento como deve ser. Em boa verdade, eu devia ajoelhar-me.
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- Não te atrevas a pensar sequer nisso! - gritou Gabrielle furiosa.
- De acordo - disse Remy com um sorriso de pesar quando lhe pegou na mão. - Suponho que terá de ser assim. Gabrielle Cheney, concedes-me a honra de...
- Sim!
- Ao menos deixa-me acabar - resmungou Remy. - Concedes-me a honra de vires a ser minha mulher, permitindo-me que te ame, acarinhe e te proteja até ao fim dos nossos
dias?
- Oh, sim - murmurou Gabrielle. - Tal como eu te amarei e acarinharei. - Os dedos dela tremiam quando Remy lhe tirou o anel da palma da mão e o enfiou no seu dedo.
O cabelo dela tombou para cima de Remy numa cortina dourada quando se inclinou mais para ele, tencionando depositar um beijo nos lábios dele muito ao de leve. Mas
o Flagelo não se contentaria com isso. Alheado do ferimento, agarrou-a pela nuca e chegou a boca dela à sua, selando o noivado com um beijo ardente.
O sol entrava pelas copas frondosas das árvores adentro, espalhando diamantes de luz sobre a superfície da água do ribeiro, que meandrava indolentemente pelas margens.
Tinha-se a sensação de que o silêncio se abatera sobre a floresta atrás de Belle Haven, quebrado apenas pelo murmurar da água, a brisa ocasional que roçagava a folhagem,
como se as próprias árvores vetustas soltassem suspiros de contentamento pelo regresso da filha pródiga.
Gabrielle interrompeu o seu trabalho para desfrutar do aroma vivificante dos pinheiros, que se juntava à fragrância das flores silvestres e ao cheiro mais pesado
da própria terra. Nunca antes, pensou, tinha apreciado tanto a serena beleza do seu lar na ilha Encantada.
Talvez a sua apreciação se tivesse aprofundado por se ter apercebido, tristemente, de que a paz era muito fugaz. Simon Aristide e os seus caçadores de bruxas, mais
cedo ou mais tarde, haveriam de chegar à ilha Encantada, sem dúvida que apoiados pelas tropas do rei. com certeza que Henrique Valois estaria furioso devido ao ataque
ao homem que incumbira de livrar a França de todas as suas bruxas. Era muito possível que a ilha Encantada deixasse de ser um paraíso para as mulheres, que não tinham
feito nada além de ensinarem, curar e preservar o que havia de melhor das maneiras e conhecimentos da Antiguidade.
Gabrielle baniu os medos da sua mente, recusando-se a pensar em quaisquer probabilidades aziagas num dia tão bonito. Atirou o cabelo para trás, sentindo a frescura
das ervas nos pés, deleitando-se com a magia da ilha Encantada, até ter ficado com a sensação de que se entranhava em si através das plantas dos pés, percorrendo-lhe
todo o corpo com um formigueiro que se estendia às pontas dos dedos das mãos.
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As suas mãos pulsavam com a sua singular magia, parecendo-lhe que os dedos se mexiam de moto próprio enquanto empunhava o pincel com que fazia traços hábeis na tela
colocada no cavalete que tinha diante de si. O motivo que estava quase concluído era em parte um produto da visão que tinha na cabeça e em parte inspirado no homem
que se encontrava deitado por baixo da árvore.
Remy recuperara-se bem do ferimento. Talvez se devesse mais à indolência daquele dia de verão, ou ao muito que Gabrielle estava concentrada na pintura, que fizera
com que ele estivesse a dormitar. Estava encostado ao tronco, como se aninhado nos braços do vetusto sicómoro, naquela tarde mormacenta de verão.
Remy não se mexeu até Gabrielle ter dado os últimos retoques na tela. Foi acordado pelo estalar de ramos provocado por dois esquilos que embirravam um com o outro
mais acima. Tagarelavam e ralhavam pela posse de um ramo em especial da árvore. Ou quem sabe se não se trataria apenas de um prelúdio para o acasalamento. Miri teria
sabido dizer.
Remy sentou-se a direito, estendendo os braços acima da cabeça com um tremendo bocejo. Sorriu a Gabrielle com uma expressão apologética.
- Passei pelas brasas? Desculpa. Suponho que não tenha sido a companhia mais brilhante. Ou nem sequer reparaste nisso?
- Claro que reparei. Mas depois da noite de ontem... - Sentiu um formigueiro no corpo ao recordar-se dos esforços de Remy no seu leito.
- Pensei que o descanso te faria bem.
- Não acredito! O mais provável foi teres acolhido de bom grado a oportunidade de poderes trabalhar sem que te perturbassem.
Apercebendo-se da entoação ligeiramente mal-humorada na voz de Remy, Gabrielle pousou o pincel. Aproximou-se dele para lhe estender a mão, ajudando-o a levantar-se.
Desagradou-lhe ver a mão toda manchada de tintas secas, as unhas cortadas muito curtas.
Mas Remy levou a mão aos lábios como se continuasse a ser suave e muito bem tratada, como nos dias dela na corte.
- Receio que a seu tempo possa começar a sentir-me muito ciumento dessa tua magia que te absorve ao ponto de tudo o mais ficar excluído da tua atenção. - Apesar
daquela queixa feita na brincadeira, ela viu uma centelha de orgulho nos olhos dele, o que a acalentou mais do que o sol. - E então, já tenho autorização para ver
essa tua obra-prima, finalmente? - perguntou insistente.
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- Bem, eu... eu... - Gabrielle vacilou. O retorno da sua magia ainda lhe parecia tão recente, tão experimental. Aquele era o primeiro quadro que pintava em vários
anos, pelo que o guardara ciosamente da vista de todos, em especial dos olhos de Remy. Mas quando ele passou por si na brincadeira, não fez nenhuma tentativa para
o deter. Quando ele se pôs diante da tela, Gabrielle susteve a respiração, esperando ansiosamente enquanto ele examinava o seu trabalho. O coração caiu-lhe aos pés
de tão consternada que ficou quando Remy ficou boquiaberto e com uma expressão de horror.
- Gabrielle! - exclamou arquejante.
- Não... não gostas do quadro! - gritou ela. - Achas que é horroroso.
- Não, não - apressou-se ele a sossegá-la. - É... é verdadeiramente mágico. Tenho a sensação de que poderia entrar na tela, mas... mas... - Fez um gesto de impotência
em direção ao cavalete de pintor. - Tens andado a pintar o meu retrato.
- Por pressuposto, não és tu. Só me servi do teu rosto como meu modelo.
- Usaste muito mais além do meu rosto, mulher - ripostou Remy acusador. - Pelo fogo do Inferno, Gabrielle! Pintaste-me completamente nu.
Gabrielle colocou-se ao lado de Remy, observando o seu trabalho com um olho crítico. A beleza da floresta que os rodeava parecia ter adquirido vida na pintura. Via-se
um cavalo a tasquinhar perto do riacho, a sela e as coisas do cavaleiro - a sua espada, a armadura e as roupas - espalhadas por perto. Mas em primeiro plano do quadro,
o tema central da pintura, era o cavaleiro a dormir por baixo das árvores, parcialmente virado de lado, com a cabeça apoiada no braço estendido; o cabelo despenteado
era uma combinação extraordinária de luz e sombra. Até mesmo em repouso, a força e o vigor do homem estavam bem patentes, delineados nos ombros largos e membros
bem musculados, com realce para os tendões, os músculos do peito bem acentuados, a curvatura firme das nádegas. Toda a sua vulnerabilidade estava exposta, assim
como as cicatrizes que lhe desfiguravam a pele suave, nas rugas de fadiga no rosto enquanto ele dormia tão profundamente. Todos os centímetros do corpo de Remy captados
pela memória de Gabrielle do homem que amava.
Se bem que a reação dele não tivesse sido como ela tinha esperado, ergueu o queixo numa atitude desafiadora.
- Considero que é o meu melhor trabalho até agora.
- Sim, é... está muito bem pintado, mas... - Remy mostrava-se extremamente constrangido. - Por que razão é que o cavaleiro está todo nu? Eu
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jamais... o que quero dizer é que ele nunca se despiria completamente, adormecendo dessa maneira. Isso colocá-lo-ia numa situação demasiado vulnerável aos seus inimigos.
- O cavaleiro estava com calor e cansado devido às suas muitas demandas e batalhas - explicou Gabrielle pacientemente. - Refrescou-se na água do riacho nas proximidades
e adormeceu por baixo da árvore. Trata-se de uma floresta encantada, pelo que ele se sente em segurança aí.
- Se ele estava assim tão exausto, então como é que está tão... tão...
- Remy apontou com grande constrangimento para o bastante impressionante apêndice entre as pernas do cavaleiro.
- Obviamente, ele está a ter sonhos agradáveis em que figura a senhora que ele ama.
- Mas não podias, pelo menos, pintar uma ramagem discreta ou umas quantas ervas...
- Não, não podia! E tenho muita pena se te sentes ofendido, mas acontece que eu não encontro nada de vergonhoso na magnificência do corpo masculino, em especial
o teu.
Remy passou-lhe um braço pelos ombros, dizendo com mais suavidade:
- Não me sinto ofendido, amor. Para te dizer a verdade, até me sinto bastante lisonjeado ao perceber como os teus olhos me vêem. Eu pareço realmente tão... tão...
- Tão bom? Oh, sim, pareces - replicou Gabrielle com um frémito e um suspiro.
A boca de Remy esboçou um sorriso de esguelha adoravelmente tímido.
- A questão é eu não saber se alguma vez serei capaz de voltar a olhar para qualquer das tuas irmãs de frente depois de elas terem visto este quadro. O seu portentoso
Flagelo corou até às pontas dos cabelos. Acrescentou num gemido: - Para já não mencionar o tormento por que o Renard e o Martin me farão passar.
Gabrielle passou os braços em volta do pescoço dele, dizendo-lhe para o tranquilizar:
- Nunca foi minha intenção embaraçar-te. Pintei este quadro para mim própria, uma celebração do meu amor por ti e pelo retorno da minha magia. Pensei que me tinha
abandonado para sempre depois do que o Danton me fez. Mas tu devolveste-ma.
Remy ficou a olhar para ela, os olhos de um castanho-escuro com uma expressão de ternura e anelo.
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- A tua magia nunca foi algo de que um homem se pudesse apoderar, Gabrielle. Tal como não é minha para ta devolver. Desde sempre que esteve dentro de ti, apenas
à espera do dia em que terias coragem de voltares a chamá-la.
- Uma coragem que eu talvez nunca tivesse conseguido chamar a mim se não tivesses surgido na minha vida - retorquiu Gabrielle, acariciando-lhe a face ternamente.
- E não te preocupes. Nunca ninguém verá esta pintura a não ser eu e tu.
Remy respondeu-lhe com os seus lábios nos dela, a boca cálida e provocadora. Até mesmo quando Gabrielle se encostou toda a ele, retribuindo-lhe o abraço com ardor,
continuava a sentir uma pequena aguilhoada de mal-estar. Jurara a Remy que seria inteiramente sincera para com ele a partir de agora, e tencionava cumprir a sua
palavra. Por isso, devia falar-lhe acerca do último sonho de Miri?
A irmã deixara de ter aqueles pesadelos tão preocupantes, em que Gabrielle se tornava amante do rei de Navarra. O seu sonho passara a ser mais nítido, revelando
o rosto da senhora que se esgueirava furtivamente para a alcova do rei, outra beldade de cabelos louros, uma outra mulher de nome Gabrielle.
O sonho profético mais recente de Miri mostrou-lhe Paris num futuro distante, quando se tinha transformado numa cidade de luzes misteriosas que nunca se extinguiam.
Uma Paris que já não era governada por um rei ou uma rainha e em que o vasto Palácio do Louvre estava transformado num repositório de arte coligida dos cantos mais
distantes do mundo. Em exibição numa das galerias principais encontrava-se uma coleção das obras de Gabrielle, para serem vistas por milhões de pessoas, incluindo
o seu trabalho mais famoso.
O Cavaleiro Fatigado.
Mas Gabrielle considerava que essa visão da irmã era demasiado extravagante, até mesmo para Miri. Não considerava que valesse a pena estar a perturbar Remy contando-lhe
isso. Tinha perdido todo o interesse em profecias, do mesmo modo que não estava interessada em procurar o seu destino nos sonhos ou nas estrelas longínquas. O destino
que olhasse por si próprio, pensou Gabrielle, sentindo que se derretia no beijo de Remy, os seus lábios a entreabrirem-se para acolherem a paixão e a ternura dele.
Tudo o que lhe importava era Remy, o seu amor.
E o tempo deles era agora e ali.
Nota da autora
Embora o regimento de mercenários que eram os caçadores de bruxas seja um produto da minha imaginação, durante o século xvi em França abundavam os julgamentos por bruxaria e mortes na fogueira. As populações de algumas aldeias ficaram sem as suas mulheres que foram aniquiladas. De facto, existiu um Le Balafre, o carismático e ambicioso duque de Guise. Achei a sua alcunha, "Cara de Cicatriz", muito mais apropriada para o meu atormentado caçador de bruxas, Simon Aristide, pelo que tão ousadamente me apoderei dessa alcunha.
Muitos franceses suspeitavam de que a própria Catarina de Médicis era uma envenenadora e uma bruxa. Sabia-se que ela consultava com muita frequência o físico francês e astrólogo Michel de Nostre-Dame, mais conhecido por Nostradamus, durante a vida dele. DizÍa-se que ele profetizou tanto a morte do marido dela como o fim da linhagem da própria Catarina de Médicis. As profecias contidas nas quadras das suas Centuries astrologiqus continuam a ser estudadas até ao presente.
Até que ponto é que Catarina de Médicis acreditava nas profecias de Nostradamus é coisa que não se sabe, mas sem dúvida que ela se mantinha muito atenta a todos os que poderiam reivindicar o direito ao trono de França, muito em especial Henrique de Navarra, que foi mantido como prisioneiro na corte francesa. Conseguiu sobreviver a todas as intrigas e hostilidades, recorrendo unicamente à sua coragem, adotando uma maneira de ser indolente que servia de fachada a uma grande inteligência.
Ao cabo de várias e elaboradas maquinações que fracassaram, finalmente conseguiu iludir os seus captores de uma maneira extremamente simples. Durante uma caçada em Senlis, Henrique de Navarra e vários dos seus súbditos em quem mais confiava abandonaram a galope o grupo que andava à caça, desaparecendo na floresta. Assim que atravessou o rio Loire, já muito distante de quaisquer franceses que pudessem ter ido em sua perseguição, diz-se que Henrique de Navarra disse: "Deus seja louvado por me ter libertado... Nunca mais regressarei, a menos que seja arrastado."
Os acontecimentos vieram a provar o contrário, já que Henrique de Navarra estava destinado a vir a ser um dos monarcas de França mais amados, tendo merecido o cognome de o Grande.
Susan Carroll
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