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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A COSTA DE MOSQUITO - P.2 / Paul Theroux
A COSTA DE MOSQUITO - P.2 / Paul Theroux

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A COSTA DE MOSQUITO

Segunda Parte

 

A aldeia - se era uma aldeia - estava deserta. Com a ausência das pessoas parecia-se com um acampamento improvisado, onde uns quantos viajantes - demasiado preguiçosos ou doentes para construírem abrigos decentes - haviam amontoado uns arbustos, acendido um fogo perto de uma rocha e passado uma noite desconfortável antes de partir outra vez para irem morrer a qualquer lado. O único sinal de vida era um cachorro doente que ladrava para nós por detrás de um monte de lixo, cascas de frutos e restos de canas mastigadas, nem sequer se dando ao trabalho de se levantar. Dei àquele bicho esfomeado a sandes que metera no bolso à hora do almoço. Primeiro tentou morder-me e depois comeu a sandes. No centro das cinco cabanas, todas feitas de tufos de ervas, encontrava-se uma fogueira fumarenta e algumas cabaças partidas.     Não se via um único ser humano.

      No entanto, tínhamos visto rostos quando desembarcávamos.

      - Não os censuro por terem fugido deste lugar - disse o Sr. Haddy. - Lungley, o que nos disseste era verdade. Este lugar é miserável. ­Olhava em volta e humedecia os dentes enquanto falava. – Podemos ir para casa, pai. Ao menos matamos os nossos próprios mosquitos.

      O pai abanava-se com o boné de basebol.

      - Não podem estar longe - declarou. - Provavelmente no drive-in dos hamburgers. - Olhou para cima e viu o Sr. Haddy a afastar-se em direcção às pranchas de madeira. - Há aqui alguém que queira uma bebida?

      Isto fez parar o Sr. Haddy, como se lhe tivessem cravado uma seta no meio das costas. Virou-se para nós soltando gargalhadas que se pareciam com espirros.

      - Ou então - prosseguiu o pai, dobrando-se para apanhar qualquer coisa do chão - foram a qualquer lado mandar reparar as lanternas eléctricas. Olhem só para este bem de consumo durável, como lhes chamam.

      Era uma pilha de uma lanterna eléctrica, com a caixa carcomida e rebentada, a tinta estalada. Estava tão esmagada que era difícil de reconhecer. Parecia uma velha salsicha.

      - Se eles utilizam estas porcarias, então se calhar são mesmo selvagens. Sentámo-nos, aguardámos e ficámos a olhar para as formigas.

      - Talvez estejam na bomba da gasolina, numa grande fila, à espera de encher o tanque de super.

      - Não vi aqui nenhuma bomba de gasolina - disse Francis.

      - Não me irias enganar, pois não?

      Havia provas de que alguém vivia ali... camas de palha nas cabanas, moscas a voar em volta do lixo, um tripé de madeira com um bebé queimado, ou a coisa mais parecida com isso que era possível, um macaco assado com os dedos dos pés e das mãos todos dobrados.

      - Como é que falaste com eles quando aqui estiveste? – perguntou o pai.

      Francis abriu a boca e agitou a língua azul.

      - Em que língua?

      Francis não sabia o que o pai queria dizer. Respondeu que falara com eles e lhe tinham respondido.

      - Eles percebem - concluiu.

      Era uma explicação à maneira de Jerónimo. As pessoas falavam inglês, espanhol e crioulo, mas não sabiam quando estavam a passar de uma língua para a outra. Parecia que lhes bastava olhar para a cara de uma pessoa para saberem qual a linguagem a usar, e, por vezes, misturavam-nas a todas e o resultado tinha o som de uma nova língua. Eu próprio ganhara esse hábito. Conseguia falar com toda a gente e às vezes nem me apercebia de que não estava a falar inglês. No entanto, na costa de Mosquito toda a gente dizia ser inglesa, independentemente do aspecto ou da língua falada.

      Andando de um lado para o outro na clareira, com Clover, o pai parecia um homem a mostrar um jardim zoológico à filha, impaciente, orgulhoso, falando durante todo o tempo, mas sempre com um ar de quem quer tapar o nariz. Então, do outro lado da fogueira, chegou-nos a sua voz.

      - Muito bem, a brincadeira acabou... estamos a vê-los! Saiam dos esconderijos, estão a fazer-nos perder tempo! Saiam daí, ninguém vos vai fazer mal! Saiam de trás dessas árvores!

      A sua voz soou de encontro às árvores da selva e às copas altas. Continuou assim durante vários minutos, gritando para os arbustos, enquanto nós observávamos. Clover espreitou para os fetos onde o pai batia com um pau. Ficava parecido com o «Pequeno» Polski, quando este enxotava codornizes em Hatfield.

      O mais espantoso foi que deu resultado. Verificámos que estávamos rodeados de gente, mais de vinte pessoas. Isso aconteceu enquanto olhávamos e as pessoas apareceram da mesma maneira como antes tinham desaparecido, sem um movimento nem um som. Num segundo o pai gritava «Apareçam!» para a clareira vazia e no segundo seguinte as pessoas estavam lá e ele gritava-lhes exactamente o mesmo, mas nas suas caras. Não sabíamos se o pai na verdade os tinha visto ou se estava apenas a fingir.

 

      As mulheres usavam vestidos esfarrapados e os homens andavam de calções, mas essas roupas não serviam para lhes cobrir a nudez, eram mais uma representação de roupas do que uma cobertura. Víamos as suas partes íntimas através dos rasgões e dos buracos. As crianças, da idade de Clover e da minha, estavam nuas, o que era embaraçador.

      - Um bando de miseráveis - disse o Sr. Haddy.

      - Não me parecem assim tão mal - respondeu o pai. - Tens a certeza de que é este o lugar?

      Francis afirmou que sim.

      Ficámos à espera que o pai lhes dissesse «Olá», mas não o fez.

      Virou as costas àquela gente como se os conhecesse há muito tempo, e disse por cima do ombro:

      - Muito bem, vamos, temos trabalho para fazer. Sigam-me.

      Três dos homens - que se pareciam um pouco com Francis, excepto estarem mais nus e terem cabeleiras mais espessas - seguiram o pai para as pranchas.

      - Vocês fiquem aí - ordenou-nos. - Descansem, falem com eles, conheçam-se uns aos outros.

      Afastou-se impaciente, enxotando as moscas com o boné e a seguir ouvimo-lo a bater nas tábuas para afastar as cobras. Os três homens seguiram-no sem uma palavra.

      - Sente-se em casa em qualquer lado - disse Clover, e quando o fez pareceu-se com a mãe.

      As pessoas fitavam Clover através da neblina que era o fumo da fogueira. Tinham caras cinzentas e mascarradas e usavam trapos esfar­rapados. Bocados de lama agarravam-se-lhes às pernas.

      - Seville, hein? - murmurou o Sr. Haddy. - Que sarilho!

      - Quase morri aqui, Haddy. Duas vezes - acrescentou Francis. Agora as pessoas olhavam para nós.

      - Que fizeste a esta gente, Lungley?

      - Não fiz nada.

      - Então como é? - perguntou o Sr. Haddy, dirigindo-se às pessoas, espetando os dentes para fora e abrindo a boca para escutar. Ninguém lhe respondeu.

      - Devem estar doentes - sussurrou o Sr. Haddy.

      As crianças nuas escondiam-se atrás dos pais. Olhávamos uns para os outros através da clareira e era como se estivéssemos a olhar através do mundo.

      Viraram as cabeças. Um velho surgiu a coxear na clareira, vindo das árvores da floresta. Usava um par de calças às riscas com as pernas cortadas, óculos de arame e meias, mas não tinha sapatos... os dedos dos pés estavam à vista, amarelos, saindo dos buracos. Tinha um farrapo amarrado em volta do pescoço e palhas partidas no cabelo. Em cada pulso usava clips como se fossem pulseiras.

      - Aquele é o Gowdy - disse Francis.

      - Tem ar de quem lhe apetece uma bebida - comentou o Sr. Haddy.

      - Bah!

      As palavras que ouvimos a seguir disse-as o pai, oculto das nossas vistas e a gritar:

      - Cuidado! Aguentem-no! Não o deixem cair!

      O gelo estava tão cuidadosamente envolvido em folhas de banana que os blocos eram como embrulhos, amarrados com trepadeiras. Cada um dos homens silenciosos carregava com dois embrulhos. O pai conduziu­-os até ao meio da clareira e indicou-lhes que deviam pousar os embrulhos no chão.

      - Quem é que manda aqui? - perguntou.

      - O homem dos óculos - explicou Francis. - É o Gowdy.

      Fez um aceno para o homem, que se encontrava um pouco à frente do grupo de pessoas que nos observavam. Vendo os nossos olhos pousarem nele, o homem retirou algumas das palhas do cabelo.

      - Você é o Gowdy? - perguntou o pai, apertando-lhe a mão.

      - Gowdy - respondeu o homem, soltando um risinho.

      - Tenho uma pequena surpresa para ti - continuou o pai com os seus modos amigáveis. - Por que não dizes a essa gente que se chegue para aqui? - Tirou a navalha do bolso e piscou-nos o olho. - Quero mostrar-lhes uma coisa.

      Quando as pessoas se aproximaram, o pai cortou as trepadeiras e empurrou as folhas para o lado, pondo um bloco de gelo a descoberto. Serviu-se da lâmina da faca como se fosse um picador de gelo e arrancou um canto do bloco. Entregou o bocado de gelo ao Gowdy.

      O velho fê-lo saltar nas mãos tal como o «Pequeno» Polski fizera em Hatfield, sem perceber se aquilo estava quente ou frio. As pessoas amontoaram-se à sua volta para lhe tocar. Riam-se e empurravam-se para se aproximarem, e pisavam as crianças. Os que tocavam no gelo cheiravam os dedos, ou afastavam-se um pouco para os lamberem.

      O pai ainda nos piscava o olho quando falou para o velho, o Gowdy. - Então, qual o veredicto?

      - Bom dia, senhor. Estou bem, muito obrigado. Onde é que vai. Vou para o mato. - Os óculos de arame de Gowdy estavam todos tortos por causa dos empurrões das pessoas. - Hoje é segunda, terça, quarta. Obrigado, foi uma boa lição.

      Fazia saltar o gelo nas mãos enquanto falava.

      - Não faz a menor ideia - disse-nos o pai.

      O gelo derretia-se na mão do velho. A água escorria-lhe ao longo do braço, deixando-lhes riscas de sujidade na pele e pingava para o chão quando lhe atingia a ponta do cotovelo.

      - Está completamente às escuras - continuou o pai pondo o braço em volta dos ombros do velho e fazendo-lhe um grande sorriso.

      O Gowdy estremeceu.

      - O que é isso? - perguntou o pai, apontando.

      - Gelo - disse o Gowdy.

      - Jesus Cristo Todo Poderoso! - rugiu o pai dando um empurrão ao Gowdy que quase o atirou para o chão.

      Porém, ainda mal ele acabara de falar e já todas aquelas pessoas, incluindo o Gowdy, se deixaram cair de joelhos. O súbito movimento espantou os pássaros. Uma enorme agitação entre eles, grandes e peque­nos, abalou os ramos por cima das nossas cabeças, e esses pássaros alertaram os que estavam nos ninhos, que voaram como os perus do alto das árvores.

      - Ah, Padre, tás nos céus olá mau nome...

      - Acabem com isso! - gritou o pai. - Levantem-se... ponham-se de pé! - Tentou forçá-los a levantarem-se mas depois virou-se para Francis e gritou: - Traidor, que me indicaste estes vadios! Muito obrigado!

      O Sr. Haddy ria-se baixinho, aliviado por ver que os homens eram cristãos. Talvez estivesse também secretamente satisfeito por ver que o pai, que só por acaso cometia erros, se enganara ao levar o gelo para ali, enquanto ele próprio o poderia ter levado com toda a facilidade para a costa, onde produziria uma maior sensação.   Avançou para acalmar aquelas confusas pessoas, ainda a ofegar e a rezar, e declarou:

      - Vocês são boa gente, mas isto é mesmo o mato.

      O pai ficou tão zangado que desapareceu tal como tinham desaparecido as pessoas de Seville junto do barco. Desapareceu numa nuvem de fumo, deixando atrás de si o cheiro que libertava quando se zangava. Retirámos o resto dos embrulhos do barco e falámos com os aldeões. Disseram-nos que já tinham visto gelo quatro ou cinco vezes. Afirmaram que era uma coisa maravilhosa que descreviam como pedras frias que se transformavam em água. Os missionários tinham-nas levado até eles e pensavam que nós éramos missionários e que o pai era o pregador. Quiseram saber onde vivíamos e se tínhamos alguma comida ou sal para lhes dar. O Gowdy gabou-se de que toda a gente da aldeia já fora baptizada.

      Disseram-nos que estavam à espera... à espera de ir para o céu e de verem Jesus. O Sr. Haddy comentou que se tratava de uma porcaria de lugar para ficar à espera, cheia de caca de macaco, mas que compreendia muito bem que se quisessem ir embora, para o céu ou para qualquer outro lado. O pai reapareceu, demasiado tarde para ouvir aquilo, o que calhou muito bem.

      - Fui dar uma volta ao quarteirão - disse-nos.

      Não quis falar com ninguém em Seville. Só era capaz de dizer que Francis o traíra. Quando o Gowdy tentou que a sua gente começasse a cantar um hino, o pai gritou como se lhe tivessem batido no polegar com um martelo e declarou que esperava por nós no barco.

      Deixámos Seville, as pessoas já começavam a discutir por causa do gelo. O mau humor do pai fez com que a viagem de regresso a Jerónimo fosse silenciosa durante quase todo o tempo. De qualquer modo foi uma viagem mais rápida, os contornos do rio já não nos eram estranhos e a corrente ajudava-nos. O pai fez alguns melhoramentos no mapa e não metemos por nenhum caminho errado. Eu pedalei. O pai sentou-se à proa com Clover no colo, debruçado sobre o mapa, zangado porque as pessoas de Seville já conheciam o gelo e rezavam.

      - Podiam muito bem estar em Hatfield, cortando espargos - foi tudo o que disse, agarrando-se a Clover, como um rapaz grande agarrado a um urso de pelúcia.

      Francis e o Sr. Haddy sabiam que estavam a ser ignorados. Agacharam­-se a meio do barco na caixa de armazenamento do gelo, sem nada para fazer.

      Passado um bocado Francis disse que vira pirogas. Alguém nos seguia, afirmou. O pai não respondeu nem virou a cabeça.

      - Pequeno - disse o Sr. Haddy, olhando para trás de mim -, canoas. Olhei em volta mas não vi nada. Tinha de cuidar do leme.

      - Ouço-as - murmurou Francis, que começava a falar como um zambu da selva. Disse que ouvia seis remadores... três canoas.

      - Nunca viram um barco como este - afirmou o Sr. Haddy.

      A escuridão chegou, pareceu envolver-nos vinda das margens. As árvores diminuíram de dimensões, engolidas pelo escuro. O céu deixou de parecer encurvado. Surgiram as cabeças de alfinetes que eram estrelas e que começaram a brilhar.

      - Ainda estão atrás de nós, no meio das pedras.

      A noite engolia-nos. À nossa frente a água ainda apresentava um brilho escorregadio, e por trás de nós a roda de pás libertava espuma que se espalhava na corrente.

      Em breve avistávamos as luzes de Jerónimo e as fagulhas que saltavam da chaminé do «Menino Gordo». As luzes estavam paradas e eram muito pequenas, mas depois agitaram-se na margem e lançaram lagos amarelos sobre o rio. Ouvi alguém dizer:

      - Aí vêm eles.

      Nessa noite, já no quarto, Jerry disse:

      - Eu podia ter ido com o pai, mas não quis. Estivemos n' «O Acre» todo o dia. A mãe deixou-nos.

      - Vi duas cobras - contei-lhe. - Uma quase me mordeu.

      - Construímos outra armadilha. Não sabes onde é. Vais cair lá dentro e morrer, Charlie.

      - Vai dormir, parvo.

      Bastante mais tarde, através da parede de bambu, ouvi a mãe a consolar o pai. Ao princípio pensei que falava com April ou Clover, por causa da sua voz tão meiga. Mas não, falava do gelo, do barco e de ele trabalhar tanto. Era tudo excelente, afirmava, tinha orgulho nele e nada mais importava.

      O pai não levantou objecções, limitou-se a responder:

      - Não foi o que eu esperava, não queria aquilo. Rezaram para mim, mãe.

      - Um dia gostava de subir o rio - disse a mãe.

      - Subiremos. Não é como tu pensas. É mau, mas da maneira mais aborrecida possível. Oh, suponho que está tudo bem, usarão o gelo para qualquer coisa. Mas que podemos nós fazer com gente que já foi corrompida? Fico como louco!

 

      Passaram-se duas semanas antes de voltarmos a Seville e nessas duas semanas nós, garotos, passámos mais tempo n'«O Acre», o nosso pequeno acampamento junto da lagoa. Agradava-me pensar que o nosso campo era melhor do que tudo o que existia em Seville. Tínhamos redes de dormir feitas de vinhas selvagens. Comíamos cebolas bravas. As redes esfolavam-nos a pele, as cebolas davam-nos cabo da barriga. Um dia um cão-d'água saiu do lago, perseguimo-lo até o fazermos cair numa armadilha e matámo-lo à paulada. A seguir cortámo-lo aos pedaços e secámos as tiras de carne à maneira zambu. No dia seguinte a carne desaparecera. A «Pequerrucha» disse que um monstro aparecera e a comera, mas calculei que fosse um animal, porque a carne não ficara suficientemente alta.

      Apanhávamos bagas, umas eram para comer, outras mantinham os mosquitos afastados se as esfregássemos na pele e deixássemos secar o sumo. Alice Maywit mostrou-nos um cacho de umas bagas purpúreas e disse:

      - Estas são venenosas.

      - Não acredito - declarou Clover. - Tu tens medo de tudo. Aposto que são amoras ou qualquer coisa do género.

      - Queres comer uma, rapariga? - perguntou Drainy, mostrando os dentes de dobrar arames.

      Clover tomou ares de quem estava disposta atentar, apenas para se exibir e provar que tinha razão, mas dei-lhe uma pancada com força e disse-lhe para se manter afastado das bagas.

      - Nada de bater! - gritou. - É a regra... Foi o pai que o disse!

      - Isto aqui não é Jerónimo - respondi. - Aqui é o nosso acampamento e temos regras próprias.

      N'«O Acre» isto era o que nos dava maior prazer... Podíamos fazer o que nos apetecesse. Tínhamos dinheiro, escola e religião, armadilhas e venenos. Nenhuma invenção e nenhuma máquina. Tínhamos segredos... ah, até conhecíamos o verdadeiro nome dos Maywit. Podíamos fingir que éramos meninos da escola, ou podíamos viver como zambus. Aquele dia foi um bom exemplo. Drainy sugeriu que todos nos despíssemos e deitou os calções abaixo para mostrar que falava a sério. A seguir a «Pequerrucha» fez o mesmo, tal como Clover e os outros. Alice puxou o vestido por cima da cabeça e despiu as cuecas, enquanto eu tirava os calções. Ficámos assim os oito, nus e aos risinhos, mas senti-me tão envergonhado que saltei para a lagoa a fingir que me apetecia nadar, enquanto os outros comparavam os corpos e dançavam por ali.

      Alice estava de pé à beira do lago.

      - Alguma vez viste uma racha?

      Prostrou-se com os joelhos muito afastados, apertou as pregas negras entre os dedos e por momentos pensei que me ia afogar.

      - Que é aquilo? - perguntou fechando as coxas e pondo-se à escuta.

      Não ouvi nada excepto os ruídos habituais. Alice disse que ouvia moscões. Viu um a voar directamente para ela e ficou muito preocupada. Declarou que tal facto queria dizer que andavam por ali estranhos.

      Vestimo-nos a toda a pressa e saímos do acampamento pelo trilho que dava para o rio. Minutos depois vimos as canoas. Eram índios, disse Alice. Soubera-o por" causa dos moscões. As canoas eram velhos troncos escavados e cheios de água e os remadores pareciam-se com a gente de Seville, com os braços magros a saírem de farrapos e palhas na cabeça.

      - Estão a tentar espiar-nos - disse Jerry.

      Não podiam ver que estávamos a observá-los. Desta vez havíamos sido mais espertos do que eles e rimo-nos baixinho - até a própria April, sempre cheia de medo, o fez -, e vimo-los a lutarem contra a corrente nas suas velhas canoas.

      - Vêm de Jerónimo - afirmou Clover.

      - Ainda bem que não nos viram nus! - exclamou Drainy.

      - Nunca encontrariam o nosso acampamento - retorquiu. - Ninguém consegue descobrir «O Acre».

      Senti-me satisfeito por termos aquele lugar seguro na selva. Agora, por ter visto Seville, sabia que o nosso acampamento era um lugar bem organizado, melhor do que as aldeias construídas pelas verdadeiras gentes da selva.

      Em Jerónimo, mencionámos as canoas. Ninguém as tinha visto.

      - Talvez fosse mascadores! - disse o pai. - Ou espíritos malignos! - continuou, tentando assustar os Maywit.

      Na manhã em que o pai disse que iríamos regressar a Seville, o Sr. Peaselee, que estava de serviço à fornalha, deixou que se apagasse o fogo do «Menino Gordo». O gelo derreteu-se. O pai declarou:

      - Podemos ter de cancelar a viagem. Todos para a galeria!

      Deu-nos um sermão a respeito do sentido de responsabilidade, dos bons costumes. Pensávamos que o «Menino Gordo» podia viver sem cuidados e atenções? O «Menino Gordo» era amável para connosco porque éramos cuidadosos, mas se nos descuidássemos podia ser muito perigoso. Se negligenciássemos os nossos deveres podia rebentar e vingar­-se de nós, mantando-nos a todos.

      - Está cheio de veneno! - exclamou.

      Depois da fornalha novamente acesa e de haver novo gelo, já em­brulhado, ouvi o pai dizer:

      - Não se pode tirar os olhos desta gente nem por um minuto.

      - Isso era o que o «Pequeno» Polski costumava dizer – comentou a mãe.

      - Não me compares com esse peru!

      - Não precisas de gritar, Allie.

      - Veneno - disse o pai. - Hidrogénio e amoníaco enriquecido...

      Trinta metros cúbicos de cada um deles. Também gritarias se tivesses consciência do perigo.

      - Vou buscar a comida - retorquiu a mãe, afastando-se. O pai viu que eu estava à escuta.

      - Sou sempre eu quem tem de se ocupar de tudo. És capaz de me explicar porquê, Charlie? Diz-me!

      É verdade, parece mesmo o Polski, pensei.

      Partimos para Seville, a família Fox e mais ninguém. O pai pedalou e falou durante todo o tempo.

      - Não pensem que isto me agrada - afirmou. - O que menos desejo é ter de voltar a Seville. Preferia ter de voltar a Hatfield. Mas... temos essa obrigação. Não os podemos abandonar após um único carregamento. Pensei que os podíamos inspirar, que os podíamos ajudar. Podiam congelar o peixe e ter tempo para cultivarem coisas... para fazerem tudo o que o gelo nos permite fazer. É essa a finalidade, não é? Dar-lhes os benefícios da nossa experiência? Ah, mas eu sei o que irão fazer com o gelo... cortam-no em cubos e atiram-nos para dentro dos copos de Coca-Cola, e ficam malucos como toda a gente.

      - Não me tinhas dito nada a respeito da Coca-Cola - disse a mãe. - Dá-lhes tempo!

      Chegámos a Seville em menos de três horas, com o pai a pedalar como um doido e gritar sobre como dinamitaria um canal através da selva e arrancaria os jacintos-d'água. Quando estava irritado imaginava planos grandiosos. Junto das árvores de mogno encontrámos cinco pessoas de Seville... surgiram de repente do meio dos espinafres e das ervas e assustaram-nos. Que nos tinham visto no rio, disseram. Nós não os havíamos avistado. Dançaram em volta da mãe, dizendo-lhe para ter cuidado.

      - Da última vez não tivemos uma recepção assim - disse o pai. - Penso que querem que os sigamos - respondeu a mãe.

      Tal como da primeira vez, corri à frente, batendo com os pés nas tábuas para afugentar as serpentes. Jerry ia atrás de mim, olhando preocupado para um lado e para o outro.

      - Que é aquilo? - perguntou-me.

      - Não estava aqui da outra vez - respondeu Clover.

      Era uma caixa de madeira na clareira de Seville, tão alta como eu, e à distância parecia-se com o «Menino Gordo». Era mais pequena, algo parecida com a «Banheira das Minhocas». Tinha um tubo de chaminé e uma fornalha. Havia várias mulheres agachadas à sua volta, ocupando-se do fogo.

      - Afinal se calhar até os inspirámos - disse o pai, satisfeito com o que via. Gritou para o Gowdy, que nos esperava para nos cumprimentar: - Que diabo tens tu ali? Aquilo parece-me familiar.

      Caminhou direito à caixa enquanto as pessoas de Seville se amontoavam em volta.

      - Gelo! - disse o Gowdy.

      O pai abriu a porta mas as dobradiças de fibras eram tão fracas que a porta caiu e começou a arder numa ponta quando tocou no lume. O pai apagou a chama com um pontapé. Espreitámos lá para dentro. Estava vazia.

      - Mas que diabo vem a ser isto? - perguntou o pai.

      Haviam feito uma cópia do «Menino Gordo». Mas, perguntou o pai, para que servia? Claro que não funcionava. Só servia para cozinhar ovos ou para queimar alguém.

      - Quem vos meteu esta estúpida ideia na cabeça?

      Sorriram. Tratavam a caixa com uma espécie de reverência e pediram ao pai para que cantasse hinos com eles, em frente dela. O pai ficou enraivecido e começou a deitar mau cheiro. O Gowdy tentou dar-lhe de presente o cachorro coxo, mas o pai retorquiu que já tinha os seus próprios animais doentes, e pessoas também. Portanto, descarregámos o gelo e regressámos ao gelocípede sem sequer o desembrulhar.

      - Espero que estejas satisfeita - declarou, virando-se para a mãe. A seguir afirmou que nunca mais voltaria a Seville. - Não vim aqui para dar a esta gente falsos ídolos para adorarem. - No entanto, o ídolo estava lá para todos verem, feito de tábuas empenadas e lianas. - Esse é o verdadeiro problema - prosseguiu. - Qualquer tecnologia suficientemente avançada não se distingue da magia.

 

      - Para que serve o gelo? - perguntara o pequeno Leon Maywit, mas o pai não se importava com as perguntas parvas de garotos pequenos e continuou: - Principalmente para conservar, mantém a comida fresca, portanto, evita-te a fome e as doenças. Mata os germes, suprime a dor e faz desaparecer os inchaços. Torna mais saboroso tudo aquilo em que toca, sem produzir alterações químicas. Torna os vegetais mais rijos e a carne dura para sempre. Escutem, é um anestésico. Era capaz de te remover o apêndice com um canivete se tivesse um bloco de gelo para te arrefecer os nervos e para te fazer esquecer o sangue a correr. Não ocorre naturalmente na costa de Mosquito, portanto é o começo da perfeição num mundo imperfeito. Faz com que o trabalho tenha sentido. É gratuito e até é bonito. É a civilização. Dantes era transportado das latitudes nórdicas em navios, tal como se transportava o ouro e as especiarias...

      Encontrávamo-nos na galeria, todos juntos, os Fox, os Maywit e os zambus, a Sra. Flora Kennywick e os outros, numa das reuniões que o pai promovia à hora do jantar. O pai apontou com o coto do dedo para as montanhas que se erguiam por detrás do «Menino Gordo». - Aqueles estão a seguir. Território índio. Vou levar-lhes uma tonelada.

      As pessoas que ali estavam há menos tempo olhavam para o dedo e não para as montanhas, e no momento em que pronunciou a palavra «tonelada» houve um tremor de terra e os seus olhos esbugalharam-se.

      Foi uma oscilação sem ruído, um suave rolar que fez estremecer a galeria. Foram vinte segundos de rotação, tal como a súbita descida do convés de um navio. Nada caiu, apesar de se ter ouvido um grito humano na floresta e um ofegante som de preocupação vindo do rio. Tive a sensação de que tudo se movera, menos nós. A pele do mundo enrugara-se e deslizara um pouco. Esse foi o primeiro abanão violento, mas os restantes choques e abalos duraram um minuto inteirinho.

      O pai contraiu os lábios para a frente e disse: - Ena!

      - Oh, Deus, Roper, que fazemos? - perguntou o Sr. Maywit e ela e a Sr. a Kennywik começaram a rezar.

      Quando ouvi «Roper» olhei para o Sr. Maywit. Cobriu o rosto e soluçou: «Não faz mal!» O momento passou. Creio que fui o único que OUVIU o nome.

      - Rezem, se acham que o devem fazer, mas preferia que me escu­tassem.

Todos pareciam preocupados excepto nós, talvez com medo de que o pai apontasse de novo para as montanhas e provocasse outro tremor de terra.

      - Estou apenas a pensar em voz alta... - disse o pai - ... mas se tivesse o equipamento, sabem o que fazia?

      Ao ouvir isto, a mãe sorriu. Calculei que estaria a pensar: «Para quê fazer fosse o que fosse?»

      Era bem visível, do local onde estávamos sentados, que Jerónimo era um êxito. Havíamos derrotado os mosquitos, domado o rio, secado o pântano e irrigado as hortas. Tínhamos passado pela parte pior do clima das Honduras, as inundações de Junho e o calor de Setembro, e sobrevivido às duas coisas. Naquele mesmo momento havíamos sofrido um tremor de terra... e nada saíra do seu sítio! Estávamos organizados, declarou o pai. A nossa água de beber era purificada por um destilador que funcionava na fornalha do «Menino Gordo». Possuíamos a única fábrica de gelo da costa de Mosquito, a única do seu género em todo o mundo, e com capacidade, afirmava o pai, para fazer um icebergue.

      Ali em baixo estava o milho, com mais de dois metros e meio de altura e espigas com quase trinta centímetros. «Tão grandes que bastam onze para fazer uma dúzia.» Tínhamos frutas frescas, vegetais e uma incubadora (que utilizava o excesso de calor do «Menino Gordo») para chocar ovos. «Domínio... é essa a prova da civilização. Qualquer pessoa pode fazer uma coisa uma vez, mas repeti-la e mantê-la... esse é o verdadeiro teste.» Cultivávamos arroz, a cultura mais difícil de todas. Tínhamos um sistema de esgotos de qualidade superior e chuveiros. «Estamos limpos!» Uma bomba eficiente que funcionava através de um moinho de vento, ultrapassava em muito a roda de pás dos primeiros dias de fabrico de gelo. A maior parte das invenções havia sido concretizada com materiais locais e três novas construções tinham fachadas feitas com as «telhas» de bambu do pai. Possuíamos um galinheiro, dois barcos no atracadouro e a melhor retrete com autoclismo das Honduras. Jerónimo era uma obra-prima de organização - «tecnologia apropriada», como o pai lhe chamava.

      Produzíamos mais do que necessitávamos. Os peixes que apanhávamos a mais nadavam num tanque a que o pai chamava «Quinta dos Peixes», pois os nomes que punha às coisas eram sempre um pouco mais grandiosos do que as próprias coisas. Colhíamos mais do que podíamos comer, mas o excesso não era vendido. Parte dele era entregue às pessoas em troca de trabalho, mas nunca dava comida a pedintes. Preferia abrir os produtos, melões, por exemplo, ou pepinos, ou milho, retirar-lhes as sementes e secá-las, que depois dava a quem quer que fosse que o ajudasse. Havia sempre trabalho para fazer, estava decidido a endireitar o rio e a livrá-lo dos jacintos-d'água.

      - Pode demorar uma vida - disse -, mas tenho a vida toda à minha frente... não vou para lado nenhum! - Os que trabalhavam no rio eram recompensados com blocos de gelo e sementes. - Híbridos! Milho gigante! Feijões miraculosos! Tomates de sessenta dias!

      Estávamos felizes e ocultos. A partir do rio, tudo o que se podia avistar de Jerónimo era a cabeça quadrada do «Menino Gordo» com o seu chapéu de lata e a chaminé fumegante.

      - Pouca visibilidade - disse o pai. - Não quero ser chateado pelos patetas dos missionários em barcos a motor, que queiram vir até aqui para nos encherem de Escrituras!

      Estávamos em Novembro e o tempo era como o de Hatfield em Julho, e Jerónimo era a nossa casa. E para termos tudo aquilo, continuou, ninguém dissera uma oração, ou hipotecara a alma, ou jurara obediência, ou decorara uma Bíblia, ou içara uma bandeira. Não tínhamos poluído o rio. Havíamos preservado a ecologia da costa de Mosquito. Tudo por havermos depositado a nossa confiança num «ianque com jeito para concretizar as coisas»... ele. Dizia frequentemente que se não fosse por causa dos crimes dos «colarinhos brancos», da estupidez e dos dólares de vinte cêntimos, e das nuvens de guerra, seria capaz e fazer o mesmo em Hatfield, no Massachusetts.

      Tudo aquilo era visível da galeria que acabara de se agitar com um tremor de terra e onde o pai dizia:

      - Se tivesse o equipamento, sabem o que faria?

      - O que é que fazias, Allie? - perguntou a mãe. Os outros ainda estavam cinzentos do medo e não responderam.

      - Abria um poço.

      Dirigia-se em especial para os Maywit e para a Sra. Kennywick, porque eram os que mais oravam e porque, de certo modo, ainda tremiam.

      - O tipo de poços que fazem no canal de Santa Bárbara ou no mar do Norte. Brocas de diamante, plataforma gigante, todo o equipamento de perfuração. Abria um furo até... quanto?... quatro ou cinco mil metros e retirava de lá toda a energia necessária. Aqui mesmo. - Bateu com os pés no sobrado da galeria. - Tal e qual como vocês tiram a borracha das sapodilhas. O princípio é o mesmo.

      - Faça-me uma boa capa para a chuva, pai - pediu a Sra. Kennywick numa voz onde se notava que ainda pensava no tremor de terra.

      - O terramoto fez-me lembrar disso. Por que é que não há ninguém que some dois e dois? Sabem, o erro que eles cometem quando perfuram em busca de petróleo é o de estarem a perder uma oportunidade única. Têm todo o equipamento, mas logo que o petróleo começa a correr, esgotam-no e vão abrir um buraco para outro lado. Uma estupidez e uma falta de visão!

      - Mas o pai não faz uma estupidez dessas - disse o Sr. Maywit para a mãe, como se soubesse o que dali sairia. Parecia receoso, ou talvez fosse eu que o via com medo, porque sabia que o seu verdadeiro nome era Roper.

      - Pois eu deixava o petróleo escorrer - prosseguiu o pai - e continuava a furar. Ultrapassava as argilas, furava mais um pouco, ultrapassava os granitos, furava mais um pouco, e penetrava nas tripas da Terra.

      - Schiu! - fez o Sr. Haddy. - Cheira-me a sarilhos.

      - Aquele tremor de terra por que passámos agora mesmo foi uma crepitação geológica, um arroto subterrâneo vindo das tripas da Terra. Há gás lá em baixo! Água superaquecida, vapor sob pressão... todo o calor de que necessitamos!

      - Não temos já calor suficiente, pai? - perguntou o Sr. Peaselee e o Sr. Harkins disse que fazia tanto calor que fazia aparecer os... e ali disse uma palavra que não percebi o que era.

      - O paizinho não está a falar do tempo - explicou Clover.

      - Ora escutem o que diz a rapariguinha - comentou o pai.

      Toda a gente olhou para Clover que durante algum tempo se banhou naqueles olhares líquidos.

      - Energia geotérmica! Não se riam. Há apenas alguns lugares no mundo onde ela é prática e vocês têm a sorte de estar a viver num deles. Toda a América Central é um repositório de alta energia. Estão sobre uma falha - crosta fina, placas soltas -, escutem os vulcões. Estão a gritar e a dizer: «Geotérmica! Geotérmica!», mas ninguém faz nada quanto a isso. Ninguém parece compreender como o mundo moderno seguiu por este caminho, ninguém excepto eu, e compreendo-o porque ajudei a fazê-lo. Os outros continuam todos a fugir, ou em perseguição de tecnologias sujas e cheias de desperdícios, ou dizendo orações.

      - Já não estamos a rezar - disse a Sra. Kennywick.

      - A Terra Prometida está no vosso próprio quintal! Tudo o que têm de fazer é furar o canteiro das flores, atravessar a crosta e canalizar o calor. Já chegámos à Lua mas ainda não conseguimos chegar à caldeira que temos na cave. Escutem, lá em baixo há energia suficiente para continuarmos a cozinhar até ao fim dos tempos!

      Tive de sorrir. Só o pai pensaria em cozinhar fazendo um furo até ao centro da Terra.

      - Não custará um tostão - esta era uma das suas gabarolices preferidas - e pensem nos benefícios... uma grande invenção é uma anuidade perpétua!

      O pai excitara-se com o tremor de terra e com a sua ideia, e contagiou todos os outros que se encontravam na galeria com a sua excitação e optimismo, mas apenas com esses sentimentos. Estava certo de que ninguém compreendera uma palavra daquilo que ele dissera.

      - Estou a ver uma espécie de conduta, um tubo - disse. - Descem as perfuradoras, sobe o calor-energia. Já provei que sou capaz de fazer gelo de coisa nenhuma excepto uns quantos tubos e produtos químicos, e um pouco de madeira para queimar. Para isso foram precisos miolos. Mas, escutem, qualquer estúpido é capaz de abrir um buraco. Por que é que não o fazemos? Há uma boa razão, não temos o equipamento... por enquanto. Neste mundo há certas coisas que não podem ser feitas com bambus e arame de capoeiras. Mas vou dizer-lhes outra coisa... Extraindo essa energia geotérmica em grandes quantidades, podemos acabar com os tremores de terra ou, pelo menos, reduzir-lhes a força. Vejam, estou a falar nada mais nada menos do que na domesticação de um vulcão!

      Fizera-os retorcerem-se durante o seu discurso e agora pareciam suficientemente ansiosos para pegar nas pás e começar a cavar onde ele dissesse. Todos excepto o Sr. Haddy. Levantou-se, limpou a garganta e disse:

      - É um grande sarilho, que precisa de muitos miolos. Entretanto, Lungley e eu queremos levar algum gelo rio abaixo, até Balde-de-Peixe e Bonito.

      - Ainda ansioso por impressionar os amigos, hein?

      - Não tenho amigos lá para baixo - respondeu o Sr. Haddy - mas posso servir-me do meu barco tal como nos velhos tempos, carregando e transportando coisas. É a minha ocupação, pai.

      - Estou a ver que não está interessado em energia geotérmica.

      - Interessado, claro que estou. Mas esse sarilho, homem, é bem grande. Não temos todos aqueles buracos e tubos!

      - Ainda não - respondeu o pai.

      O Sr. Haddy meteu os dentes para fora e pestanejou como um coelho. - Que quantidade de gelo quer levar?

      - Aí uns cem quilos. Dois ou três sacos.

      - Nem merece a pena o trabalho - disse o pai. - Por que não uma tonelada?

      O Sr. Haddy soltou uma alta gargalhada, surpreendido e aliviado. - Porque me afundava aquele velho barco!

      - O gelo flutua, Figgy. - O Sr. Haddy sorriu ante aquele nome. ­

      Podes levá-lo a reboque.

      - Como é que faço isso?

      - Leva um icebergue.

      - Icebergues e canoas a pedal - disse o Sr. Maywit para mim, mas num tom suficientemente alto para o pai ouvir. - O pai é na verdade o homem dos milagres! - O Sr. Maywit tinha um aspecto muito assustado. - Podemos fazer um icebergue antes do pequeno-almoço – insistiu o pai.

            Era o tipo de desafio que o pai mais apreciava, algo grandioso e visível, uma tarefa que era também uma exibição. Levantara objecções à ideia do Sr. Haddy de transportar uns sacos de gelo até à costa... mas rebocar o icebergue... isso já era outra coisa.

 

      Eu imaginara uma pirâmide com os lados submersos e a ponta no ar, rebocada pelo Little Haddy, mas o icebergue do pai era da altura dele e tinha a forma de um ovo, para concentrar o frio e limitar o derretimento. Calculou que um único bloco feito de muitos blocos mais pequenos só se reduziria de um terço se o rebocassem até Bonito Oriental, e que ainda teria o aspecto de um icebergue em Balde-de-Peixe. Não conseguiria chegar até à costa.

      - Queremos apenas provar a possibilidade... não queremos modificar a vida de ninguém. Veremos como correm as coisas.

      Virou-se para a mãe e declarou que o seu papel era principalmente o de incentivar a força de vontade dos outros.

      - Fico satisfeito quando se tem uma ideia e ninguém se ri. Merecem esse icebergue.

      O Sr. Haddy estava muito orgulhoso. Poderia gabar-se do icebergue e capitanearia os crioulos quando o levasse rio abaixo.

      - Estou apenas a obedecer às ordens - disse o pai. - Se o Figgy quer um icebergue, pois então irá tê-lo.

      Todos os trabalhos foram postos de parte por causa daquilo. A fornalha do «Menino Gordo» foi atiçada e as bombas postas a funcionar. O «Menino Gordo» funcionava dia e noite, ronronando a fraca potência, e só lhe retirávamos gelo quando este era necessário para a nossa despensa frigorífica, onde guardávamos as galinhas mortas e os vegetais.

      - Somos uma comunidade inteiramente refrigerada - dizia o pai. No entanto, a verdade era a de que o gelo não constituía uma necessidade. Era uma novidade, tal como a ideia do pai a respeito da energia geotérmica. Mas para quê fazer um furo de mil e quinhentos metros de profundidade, para atingir as tripas de um vulcão? Para fornecer uma inesgotável fonte de energia ao «Menino Gordo». Uma ideia justificava a outra. Podíamos muito bem passar sem elas mas, tal como ele dizia, para quê viver como os selvagens? «No fim de contas, o Robinson Crusoé voltou para casa! Mas nós ficamos!»

      - Um dia - declarou -, haverá aqui uma conduta autovedante e perpétua, e toda esta fábrica de refrigeração será accionada por energia geotérmica. Teremos gelo a sair das nossas orelhas e não precisaremos de partir nem mais um pedaço de lenha! Pensem no futuro!

      Isso foi no dia em que fizemos o icebergue. Bombeámos água para o «Menino Gordo», mantivemos a fornalha sempre cheia e escutámos os sopros e o borbulhar dentro dos tubos. O pai correu para um lado e para o outro ao longo do trilho para o rio, onde os blocos de gelo ganhavam a forma de um icebergue oval.

      - É bonito e é grátis! Ora descubram-me uma melhor combinação de virtudes!

      Em cada meia hora congelávamos nova dose de blocos e ao meio-dia tudo terminou. Um grande icebergue de um branco-azulado jazia a fumegar e a suar na lama, com a corda de reboque congelada no seu centro. Tinha mais ou menos a forma de um Volkswagen «carocha», mas maior, apoiado sobre uma plataforma de bambu, que primeiro serviu como trenó e depois como jangada. Não tivemos dificuldade em lançá-lo à água. A corda de reboque foi amarrada ao Little Haddy e o motor puxou o gelo ao longo da margem e para dentro do rio. Os crioulos - Harkins, Peaselee e Maywit - seguiam à proa, o senhor Haddy na casa do leme, o gelo estalava, os bambus gemiam e a água enlameada chapinhava à volta de tudo aquilo.

      De todos os estranhos bocados de coisa nenhuma que flutuavam por aquele rio da selva, aquele era o mais estranho em muitos quilómetros.

      - A nossa mensagem para o mundo - disse o pai. - Adorava ver a cara deles quando o avistarem... surgido da mais escaldante, mais doentia selva do hemisfério, cheia de insectos. Levantam os olhos da roupa que estão a lavar. «O que é aquilo?» «É um icebergue, mãe, e vem para aqui!»

      - Vão pensar que é o fim do mundo - afirmou a mãe.

      - Mas não, é o princípio! É a criação, mãe.

      O icebergue corcunda e a oscilar para cima e para baixo fez a curva do rio e desapareceu de vista. As crianças correram pelo trilho de Swampmouth, para poderem vê-lo outra vez. A mãe encaminhou-se para casa e fiquei sozinho com o pai, na margem do rio.

      - Podia ter ido com eles - afirmou -, mas não lhes quis estragar a brincadeira. Podem ficar com a glória. - Olhou para trás, para o «Menino Gordo». - Além disso, tenho de ir inspeccioná-lo, pode ter aquecido demais. Está cheio de veneno e de gás inflamável. Amoníaco e hidrogénio, Charlie... são os seus fluidos vitais! - Olhou para o coto do dedo e acrescentou: - Há perigo em todas as grandes invenções!

      Vi a oportunidade de lhe falar n'«O Acre». Tirando as armadilhas que tínhamos instalado, aí não havia nenhum perigo. Tínhamos comida, água e abrigo. No entanto, receava o que pudesse vir a dizer da árvore das orações e do abrigo-escola. Era capaz de me levar a confessar que um dia nos havíamos despido e comparado os instrumentos. Era capaz de ficar muito zangado, ou de gritar e de nos chamar selvagens. Por isso não disse nada.

      - Sentimo-nos como um pequeno Deus - sussurrou, olhando em volta. Tinha as roupas encharcadas pelos blocos de gelo e pelo suor, os dedos vermelhos de mexer no gelo, o cabelo comprido e um rosto que parecia um machado. Virou os olhos avermelhados para mim e continuou com a mesma tirada, num murmúrio algo admirado: - Deus divertiu-se a fazer coisas como vulcões e icebergues! Foi pena não ter acabado o trabalho. Ah!

      O Little Haddy regressou a Jerónimo ao cair da noite. O Sr. Haddy soltava risinhos de orgulho, mas por fim confessou que o icebergue se começara a desmanchar em Bonito Oriental. Haviam-no libertado e deixado que a corrente levasse os fragmentos para a costa. Estava um pouco bêbado porque na loja chinesa de Bonito trocara um bocado de gelo por uma cabaça de mishla.

      O pai sorria para o rio, talvez imaginando os blocos de gelo a flutuarem até Santa Rosa, as pessoas a apontarem e a apanhá-los, invadidas pelo terror ante a visão de gelo a sair da selva.

      - Foi um belo dia - declarou.

      Não nos custara nada e estávamos todos felizes com o resultado.

      Disse-nos que deixara os Estados Unidos para poder ter dias como aquele, trabalhando juntos e pondo as nossas ideias em prática. Fora com isso que sempre sonhara.

      Nessa noite, na galeria, ouvimos as aves a silenciarem-se no pardacento crepúsculo e os morcegos a começarem a chiar. À nossa volta havia um muro circular de gritos de insectos. Uma leve brisa apressou a escuridão, agitando as árvores. Jogámos um jogo no chão da galeria, à luz dos relâmpagos que separavam as montanhas do céu nocturno.

      - A seguir, será para ali. Território de índios. Vamos levar-lhes uma tonelada.

      Quando apontou para as montanhas, os crioulos e os zambus agarraram­-se com força ao corrimão da galeria, à espera de outro tremor de terra. O Sr. Haddy, muito preocupado, mostrava uns dentes de coelho ainda maiores do que o costume.

      O pai não lhes prestou atenção. Olhava para as montanhas, à espera do clarão de novo relâmpago. Surgiu de repente e iluminou-lhe o rosto.

      - Sentimo-nos como um pequeno Deus - disse.

 

      Durante o dia, Jerónimo era nosso, o nosso projecto, as nossas hortas, os estalos e pancadas das bombas, a doce fragrância a nozes dos bambus cortados, as nossas flores e engenhos. Era quente, mas o calor e a luz queimavam os maus cheiros. Era sempre durante o dia que o pai dizia: «Declaro isto como um êxito!»

      Em Jerónimo, a hora mais fresca era a anterior à madrugada, como a de agora, quando tudo ainda estava escuro como breu e o silêncio na clareira era tão grande que se ouviam as árvores a gotejar. Os odores da selva eram também mais fortes, o prurido das vinhas bravas, os troncos cheios de vermes, o aroma intenso das folhas cheias de seiva, o rio pútrido que passava por nós.

      Esses eram os cheiros e perfumes do princípio da madrugada, erva encharcada em orvalho e pétalas húmidas, que se sobrepunham aos cheiros civilizados de Jerónimo. Tudo era negro sob o céu negro. As estrelas, que à meia-noite se pareciam com pérolas soltas espalhadas pelo céu, não brilhavam àquela hora... eram buracos de luz, como olhos semicerrados em máscaras negras.

      O pai acordara-me e ao Jerry e dissera que devíamos vestir-nos. - Estamos todos prontos - declarou.

      Esperámos no escuro, de pé na erva molhada perto da fornalha do «Menino Gordo», bocejando e tremendo.

      - Estou a pé há horas, organizando as coisas - disse o pai. Via-lhe o brilho da ponta do charuto e mais nada. - Mal preguei olho.

      - O pai não precisa de dormir - afirmou o Sr. Maywit, o que significava que o pai também lhe pregara um dos seus sermões.

      À medida que os olhos se habituavam à escuridão, comecei a ver o Sr. Maywit a agitar-se em volta de um bloco de gelo. Era quase tão grande como o icebergue que o Sr. Haddy rebocara rio abaixo dois dias antes. Algo nos gestos nervosos do Sr. Maywit me disse que ele não vinha connosco. Trabalhava com demasiado entusiasmo, com falta de fôlego e conversando com o Sr. Peaselee, como se estivesse impaciente por nos ver partir e nos quisesse mostrar a porta.

      O bloco de gelo - que na escuridão se parecia com um enorme montão de banha de porco - estava a ser envolvido em folhas de bananeira. Fora fixado a um trenó com um par de patins muito juntos e equipado para ser puxado por homens com arneses.

      - Não me venham falar em rodas - disse o pai.

      No entanto, ninguém dissera nada a respeito de rodas.

      Agitando as folhas de bananeira enquanto as colocavam sobre o bloco de gelo, o Sr. Maywit e o Sr. Peaselee sussurravam qualquer coisa entre eles. A ponta do charuto do pai brilhava no escuro.

      - As rodas são para caminhos pavimentados, não nos levariam a lado nenhum nos trilhos da montanha. Demasiado ineficientes. Podem partir-se ou acabam por se enterrar na lama. Mas aqui o «Patinador» - era o seu nome para o trenó do gelo - limita-se a deslizar por cima de tudo.

      O gelo já não brilhava como banha, estava todo embrulhado. Parecia granito, a pedra de um túmulo. O Sr. Maywit e o Sr. Peaselee desviaram-se para um lado com os olhos brancos muito abertos.

      - Então que tal? - perguntou o pai. - Vêm connosco?

      - Não posso - disse o Sr. Maywit numa voz hesitante e recuando um pouco. - Sou o supervisor-de-campo.

      - Ia-me esquecendo! - gritou o pai, rindo-se dele. - Se és o supervisor­-de-campo, então limpa as valas. Quero-as tão limpas que possa comer dentro delas. Onde está o Sr. Peaselee?

      - Pai? - respondeu ele, que estava agachado e se pôs em pé de um salto, murmurando qualquer coisa.

      - Vem connosco?

      - Não, senhor. Lá há sempre problemas. Contrabandistas. Soldados.

      Ladrões. Gente da Nicarágua. Nas montanhas têm cabuzes, de certeza.

      - Ora... você não sabe o que são problemas. - O pai virou as costas aos crioulos. - Onde estão os meus homens da selva, os meus pisteiros?

      - Aqui, pai.

      Responderam num murmúrio baixo, muito perto. Os zambus haviam permanecido ali a nosso lado, como árvores negras, escutando durante todo o tempo. Francis Lungley, John Dixon e Bucky Smart. Agora via-lhes as cabeças redondas movendo-se por cima dos pontinhos das estrelas, no céu.

      - Atrelem-se e vamos embora - disse o pai. - Volta para a cama Peaselee, dorme bem.

      Saímos da clareira com o pai na frente, os zambus a puxar o trenó e Jerry e eu atrás. O pai continuava a falar.

      - Problemas, diz o homem. Não acho que um declive de quarenta e cinco graus seja um problema. Que problemas podem surgir de meia dúzia de inúteis? Podia fazer com que aquele mestiço gritasse por piedade. Falta de combustível, desemprego, corruptos em Washington, ladrões em cada esquina! Garotos da escola que cheiram cola, doninhas fedorentas em todos os púlpitos, ladrões de velhotas, punks de colarinhos brancos, inflação de dois dígitos e uma fatia de pão a dois dólares! Isso é que são problemas. Rios mortos, cidades que se parecem com Calcutá, isso são problemas. Não se dá um passeio porque se tem medo de levar uma facada nas costelas, por isso fica-se em casa e eles entram pelas janelas. Em certos bairros há maníacos homicidas de dez anos de idade à caça de vítimas. E vão à escola! O país inteiro está à morte! A morte!

      Continuava a falar quando entrámos no escuro trilho que nos levaria para fora de Jerónimo e os pássaros voavam ao som da sua voz.

      - O nosso futuro tecnológico encontra-se nas pequeninas mãos dos japoneses e permitimos que os escravos nos fabriquem coisas. E então aqueles arrivistas condutores de camelos que duplicam freneticamente o preço do petróleo, cada duas semanas? Ouvi alguém a falar de pro­blemas?

      Os molhos de fetos bloqueavam a luz das estrelas por cima da nossa cabeça e o trilho era tão estreito que as folhas nos molhavam os braços de orvalho. De dia aquele trilho era um túnel verde, mas à noite era a garganta de uma gruta. O pai continuou a falar dos Estados Unidos. «Deixam-me como louco», dizia. Seguíamos-lhe a voz e o ranger do trenó. Pouco depois começamos a subir e em breve Jerry se queixava que estava cansado das pernas. As minhas tremiam por causa daquele novo esforço, o da subida, e tinha os pés molhados, mas em vez de lho dizer chamei-lhe parvo e maricas - era o que o pai teria dito - e senti-me mais forte.

      O trilho ziguezagueava por entre sombrias estacadas de árvores. Nunca ali tínhamos estado. Nas curvas mais apertadas os zambus gritavam «Hoop! Hoop! Hoop!», e viravam o trenó. O pai tivera razão, ali as rodas seriam inúteis. Às pedras soltas e a terra mole encravavam-nas. Jerry e eu tínhamos sorte. O trenó avançava tão devagar naquelas curvas apertadas que podíamos parar e descansar. Os patins do trenó deixavam sulcos profundos e nas partes mais íngremes da pista ouvíamos os resmungos sussurrados pelos Zambus.

      - Isto já sem mencionar os Russos... - dizia o pai.

      Estávamos por cima de Jerónimo e avistávamos os seus telhados de bambu, as colunas de fumo de lenha misturadas com a neblina, com colchões de nevoeiro matinal jazendo sobre os campos. O Sol que batia em cheio na alta vertente em que agora nos encontrávamos ainda não chegara a Jerónimo, mas os seus contornos eram bem visíveis mesmo através da neblina. Os caminhos empedrados estavam dispostos entre as hortas como os contornos de uma estrela numa bandeira remendada. Vista dali, parecia maravilhosa, não era nem uma povoação nem uma quinta, mas sim uma colónia de edifícios instalados com precisão, junto do rio, que era uma retorcida veia azul no músculo da selva. A distâncias maiores levantava-se fumo de outras clareiras.

      - Acabaram de sair da cama - disse o pai, vendo as pessoas a mexerem-se em Jerónimo. - Lá vai alguém para o rio, provavelmente, o Figgy.

      Avistei a camisa de saco de farinha do Sr. Haddy.

      - Atraídos por um falso sentimento de segurança - afirmou o pai. - A culpa é minha. «Contrabandistas... ladrões.» Claro que o senhor Peaselee quer voltar para a cama. Sabe que se encontra no Vale Feliz!

      - Lá está a senhora Kennywick - disse Jerry.

      O «Menino Gordo» era uma torre brilhante, as folhas de lata que o cobriam reflectiam os primeiros raios de Sol. Era completamente diferente de tudo o mais em muitos quilómetros, uma coisa maravilhosa num vale já de si cheio de maravilhas. A Sr. Kennywick encaminhava-se para o galinheiro.

      - Dá de comer às galinhas, desfolha o milho - murmurou o pai. - Mãe - declarou Francis, apontando os dedos para a pequenez da mãe a pendurar roupas numa corda.

      - Está bastante atarefada - comentou o pai muito orgulhoso, dando-me uma palmada nas costas.

      Mas a mãe nunca andava assim tão atarefada. Levava as coisas com calma, perguntava-nos sempre se tínhamos fome ou estávamos can­sados, ou se queríamos alguma coisa. Fora graças ao encorajamento da mãe que tínhamos explorado a floresta e instalado o nosso acampamento n'«O Acre». O pai tratava-nos como adultos, o que queria dizer que nos punha a trabalhar. Mas nós éramos crianças... com saudades de casa durante metade do tempo, com medo do escuro e não muito fortes. A mãe sabia-o. Era o pai quem, no que se podia esperar vir a ser um reino de cocos, sol e dias de preguiça, se andava sempre a agitar de um lado para o outro e que não nos largava para que fizéssemos isto ou aquilo.

      Hoje teríamos de viajar durante um dia inteiro e eu sabia que se fosse com a mãe seria diferente. O pai bem podia dizer coisas como «Trabalho para vocês» ou «Digam-me o que devo fazer», mas quem mandava era ele. Fizera de Jerónimo um êxito, fora tudo trabalho seu e sabia-o. No entanto, em momentos como aquele, desejava que a mãe estivesse connosco. Caminharia atrás do trenó junto de nós. Falaríamos com ela a respeito das esperanças que transportávamos às costas, como pára-quedas. Com o pai, escutávamos e suávamos.

      - Teremos de subir pelo menos mais um quilómetro deste retorcido trilho - disse o pai, olhando para cima. - Continuaremos a puxar o velho «Patinador». Quando lá chegarmos, será sempre a descer.

      Apontava para cima, para o que parecia ser o topo da montanha. Era um zimbório que avistávamos de Jerónimo. Uma hora depois, quando o alcançámos, verificámos que não era de modo nenhum o topo da montanha mas apenas o princípio de uma nova vertente. A montanha parecia nunca mais acabar.

      - Quero descansar - declarou o Jerry. - Esperas por mim, Charlie?

      - O pai não vai gostar. Não nos podemos sentar aqui enquanto eles trabalham.

      Jerry tinha a cara vermelha e manchada, húmida do calor, as mãos sujas, e as suas pernas magrizelas arranhadas pelas silvas que cresciam à beira do trilho. Disse-lhe que iria a correr perguntar ao pai. Tinha pena do Jerry mas também eu queria descansar.

      - O Jerry quer parar - disse-lhe. - Está cansado.

      - Diz que está cansado.

      O pai continuou a andar. Virou-se para os zambus.

      - Almoçaremos quando chegarmos ao topo. Como sobremesa teremos uma bela escorregadela monte abaixo, do outro lado, para levar este monólito congelado àquelas incultas áreas selvagens.

      Francis Lungley resmungou.

      - Temos de falar a linguagem deles - disse o pai, piscando-me o olho. Mas onde era o cimo? Aqueles cimos eram tão falsos como os que ficavam em baixo, limitavam-se a revelar-nos outros cimos. Olhando para trás, podíamos ver a sucessão de declives que nos haviam parecido os topos da montanha, até os escalarmos. Trepáramos às nádegas da montanha apenas para vermos, a quilómetros de distância, os seus ombros iluminados pelo sol.

      - Depois disto, será a descer - afirmou o pai, na parte mais íngreme.

      O bloco de gelo oscilava e a sua cobertura de folhas estalava à medida que o puxávamos. Apesar de não os poder ver, ouvia os zambus a ofegar, uma respiração regular e áspera como o esfregar dos dentes de uma serra num tronco.

      Estávamos acostumados à sombra húmida das nossas árvores, a margem pantanosa do rio, às hortas planas e aos abrigos frescos de Jerónimo. Ali em cima as árvores eram finas e ressequidas pelo sol, as vertentes eram rochosas, não havia nem sombra nem abrigo. Ouvíamos o ladrar de cães e de vez em quando cheirava-nos a fumo, mas não víamos pessoas. O pai continuava a falar, a prometer-nos o almoço e predizendo que em breve começaríamos a descer.

      Pouco depois Jerry e eu começámos a caminhar na lama... escorria água do trenó de bambus para o chão. O gelo estava a derreter-se muito depressa, a parte inferior da camada de folhas de bananeira, que era todo o isolamento, já escurecera com a humidade. O ângulo da pista era tão pronunciado que o trenó do gelo não avançava com firmeza num movimento constante, mas saltava de um lado para o outro, soltando esguichos de água.

      Pela calada, eu e o Jerry saímos de detrás do trenó. Os zambus seguiam dobrados pelo meio, presos às correias. Ofegavam com aquele ruído de serra a cortar madeira, escorria-lhes suor dos queixos e tinham os rostos horrorosamente contorcidos. Assim dobrados, lutando para conseguirem avançar quase sobre os joelhos, já não pareciam homens.

      Haviam sido transformados em animais sofredores por causa do esforço, com focinhos de cão e polegares feridos. Tinham as narinas muito abertas e os olhos enterrados sob pálpebras semicerradas, e um ar tão assustador com os pescoços cheios de espuma que não ousámos dizer que o gelo estava a derreter. Por outro lado sabíamos que se o disséssemos ao pai este teria um ataque de fúria.

      Já passava muito da hora do almoço. O pai seguiu à frente mais depressa, para verificar o caminho. Quando regressou e disse: «Vamos fazer um intervalo para o almoço», calculámos que devíamos estar perto do cimo da montanha.

      Jerry e eu transportávamos o almoço nas mochilas. Colocámo-lo em cima de uma rocha - sandes de tomate, milho cozido, goiabas, bananas e «sumo da selva» - e o pai começou a descrever como seria útil ter um cabo elevador naquele trilho tortuoso.

- Instala-se uma série de suportes com um cabo, para que os passa­geiros e a carga deslizem para cima e para baixo, ao longo da montanha - declarou. - Não seria mais difícil de construir do que um teleférico.

      Enquanto os zambus ofegavam e Jerry se queixava dos pés magoados, o pai andava de um lado para o outro no declive, prosseguindo:

      - Dividido em secções... é a melhor maneira. Levantar aqui alguns pilares com umas roldanas a trabalhar... e o carro passava por cima daquelas pequenas falésias. Se se tivesse um sistema de engrenagens, podia ser operado à mão para cima ou para baixo, ou contrabalançado por outro cabo com um peso, e trabalhava sozinho. Então o peso que descesse içava o outro até ao cimo. Não são rochas vulgares as que estão a desgastar-nos os sapatos. São balastro potencial! Oh Deus!

      Aproximara-se do trenó para lhe admirar o tamanho, e verificara que o gelo estava a derreter.

      - Está a encolher! Charlie, por que é que não disseste nada? Vamos, mexam-se antes que se desfaça todo! - Correu para a frente, continuando: - Devíamos tê-lo envolvido em borracha!

      Os zambus suspiravam e enfiaram-se outra vez nas correias.

      A meio da tarde ainda não havíamos chegado ao cimo, mas o pai gritava tanto que os zambus já cambaleavam. Esforçavam-se tanto por lhe agradar que fizeram demasiado força com o trenó em cima de uma pedra. O trenó quebrou-se. Com um gemido quase humano, o bloco de gelo partiu-se ao meio, separando a camada de folhas protectoras e rebentando todo o resto do trenó.

      - Maravilhoso - disse o pai baixinho. - Era mesmo o que precisava agora. Não se preocupem comigo, vou só dar uma volta ao quarteirão. Fiquem aqui, e se tiverem vontade de apanhar os bocados disso, garanto­-lhes que não me meterei no vosso caminho - concluiu, lançando-nos um sorriso fraco e desaparecendo.

      Um minuto depois ouvimo-lo a gritar por detrás de uma rocha. Alarmado, Francis Lungley olhou para mim.

      - É louco - declarou. - É melhor arranjarmos isto.

      Os zambus desamarraram o gelo e resmungando entre eles construíram dois trenós. Passou-se quase uma hora antes de podermos voltar a partir, mas agora o pai e Bucky seguiam presos a um trenó, e Francis e John puxavam o outro. Era ainda pior do que antes porque o pai estava zangado, resmungando com o seu trabalho, esforçando-se e gri­tando. Os dois bocados de gelo eram agora mais pequenos por se terem derretido e as duas equipas deslocavam-se mais depressa ao longo do trilho. Aproximávamo-nos do cimo. Jerry e eu corríamos à frente, ouvindo os homens a respirarem com dificuldade atrás de nós.

      O alto seguinte levou-nos a uma concavidade no flanco da montanha, uma espécie de pequeno vale cheio de flores brancas e de abelhas. A pista, que descia pela primeira vez (mas que subia de novo do outro lado), deu ao pai e aos zambus uma oportunidade para se descontraírem. Quando nos alcançaram, o pai disse-nos:

      - Têm as mãos e os pescoços sujos. Que se passa com vocês, não são capazes de andar limpos?

      Explicámos que tínhamos esfregado sumo de bagas na pele para afastar as moscas e as abelhas. Era o truque que Alice Maywit nos ensinara n'«O Acre». O sumo das bagas era tão bom como um repelente para insectos. Os zambus também o usavam, só que era impossível de ver nas suas peles escuras.

      O pai fora mordido, os pulsos e o pescoço estavam cheios de altos das mordidelas dos insectos. Pensámos que nos agradeceria a informação. Era um tratamento natural, era gratuito e resultava. Porém, odiou a ideia. - Pensam que meia dúzia de insectos me assustam? Bah! Se têm medo dos insectos, então não estão aqui a fazer nada!

      As abelhas voavam à volta dele enquanto falava. Afastou-as com a mão. - Elas sabem quando as pessoas têm medo! Cheiram o medo! Instantes depois foi mordido numa orelha. O lóbulo inchou e ficou pendurado como a carapaça de uma tartaruga. Declarou que não sentia nada.

      O Sol estava à nossa frente, descendo para trás da montanha que tínhamos subido. Encandeava-nos, mas perdera grande parte do seu calor. Perguntei a mim mesmo o que aconteceria quando desaparecesse, porque desde que vivíamos em Jerónimo - há quase sete meses ­voltávamos sempre para casa ao sol-posto. Não nos fora possível chegar à aldeia e Jerónimo ficava a muitas horas de caminho para trás de nós. O pai e os zambus ainda gemiam nos arneses, arrastando os dois trenós.

      - Teremos de ir para casa às escuras - afirmei.

      - Não podemos voltar para casa enquanto não entregarmos este gelo! Entregar onde? Olhei para a carga dos trenós. O isolamento de folhas de bananeira estava bastante largo, como roupa de adulto vestida por uma criança. Já não restava muito gelo.

      - Por que não pensei em isolá-lo com borracha? Aqueles dois palhaços insistiram nas inúteis folhas de bananeira!

      Metade do Sol já desaparecera, restava apenas um segmento de um fruto frio e o rosto do pai tinha um brilho amarelo sob os seus últimos raios. Incitou os zambus, como se quisesse perseguir o Sol até ao cume da montanha. Não obstante, o pôr do Sol foi mais rápido e, enquanto içavam os trenós ao longo do trilho, o Sol pestanejou por detrás das rochas deixando um brilho cinzento-rosado no céu.

      O pai perdera toda a sua determinação. Desprendeu-se das correias e subiu o trilho para ir rosnar ao dia que morria.

      - Muito bem - disse. - Acamparemos.

      - Onde é que vamos dormir? - perguntou o Jerry.

      - Ora, ali mesmo, do outro lado da rua, no Holiday Inn. Vocês dois podem deixar-se ficar junto da piscina enquanto trato de arranjar dois quartos. Querem camas grandes? Pois eu quero e estou esperançado em que tenham televisão a cores e ar condicionado...

      Caminhava em círculos e mordia um novo charuto enquanto falava.

      - Um pátio para grelhados, pingue-pongue, hamburgers e um tipo esquisito a tocar piano no bar. Queres moedas para a máquina dos discos, Jerry? Queres pôr alguns a tocar?

      Jerry começara a chorar. Ajoelhara para prender melhor uma das suas sandálias, pousara a cabeça em cima do joelho e soluçava em silêncio. Tive pena dele, tudo o que perguntara fora onde iríamos dormir, mas o pai continuou a fazer troça com o seu discurso a respeito do Holliday Inn, de um belo duche quente e um bom descanso.

      - Ali vai o Charlie comprar um gelado de chocolate. Tem cuidado ao atravessar a rua, filho!

      Sabia que o pai estava desapontado por não termos conseguido chegar à aldeia índia e por isso, em vez de me deixar abater ou chorar, decidira fazer qualquer coisa de útil.

      - Ando à procura de troncos para construir um telheiro.

      - Estão a ouvir aquilo? Vai ensinar-nos como se faz um acampamento, tal como nos ensinou a fazer fugir os insectos. Temos de deixar as coisas entregues aos rapazes!

      - O Charlie sabe como é... - disse o Jerry.

      - É um hamburger - retorquiu o pai. - Já te conseguiu convencer.

      Era claro que o pai não planeara acampar. Tínhamos comido quase todas as provisões. Não possuíamos tendas nem mosquiteiros, nem lan­ternas, nem cobertores, e apenas um par de pratos. O saco da água estava quase vazio. No entanto, havia várias coisas a nosso favor. Es­távamos na estação seca, portanto não nos choveria em cima, havia poucos insectos num sítio tão alto e durante todo o dia víramos pacas e aves nos flancos da montanha... e podíamos comê-las. O pai viajara com pouca carga na esperança de transpor a montanha, mas falhara e a noite aproximava-se.

      - Não fiquem aí parados! - gritou para os zambus. - Improvisem! Os zambus acenderam uma fogueira enquanto Jerry e eu construíamos um telheiro com paus que encontrámos ali perto. A seguir, juntámos ervas secas, fizemos uma cama lá dentro e tentámos não incomodar o pai, que soltava maldições, cortando uma pequena árvore com a faca.

      O pai não era lá muito bom a fazer acampamentos temporários e ficou surpreendido ao ver a rapidez e perfeição com que montámos o telheiro. Não precisava de ser à prova de água, era apenas para nos proteger do vento, cada vez mais forte à medida que aumentava a escuridão. Quando viu a nossa cama de ervas secas, perguntou:

      - Estão a pensar em pôr um ovo?

      Cortou quatro pequenas árvores e declarou: - Vou fazer um abrigo decente!

      Começou a ligá-las umas às outras, mas a escuridão total surgiu ainda antes de conseguir a primeira estrutura, o que foi uma pena, porque o seu abrigo seria com certeza melhor do que o nosso se o tivesse terminado. Por fim, atirou-o para longe e perguntou:

      - Para quê perder tempo? - Vendo-me com algumas plantas de iautia, comentou: - Andaste a apanhar flores, Charlie? Boa ideia, podes metê-las entre as páginas de um livro. A mãe ficará muito contente!

      Disse-lhe que eram iautias e que as raízes eram tão saborosas como cenouras.

      - Eddoes - afirmou Bucky, pois esse era o nome que davam às iautias. Apanhara uma paca com um pau aguçado e assava-a em cima do lume com o mesmo pau.

      - Não tenho fome! - declarou o pai. - De qualquer modo não como ratos nem ervas.

      Ficou a ver-nos comer e contou-nos como, ao viajar pela Europa Oriental, ficara muito desgostoso por ter descoberto que, em todos os lugares onde comia, os talheres estavam sempre sujos. Havia facas gordurosas, manchas nas colheres e restos da comida do dia anterior no meio dos dentes dos garfos. Noutro sítio, encontrara um cabelo no leite. Continuou a descrever os talheres sujos e fez com que os zambus se rissem, mas eu pensava no estranho que era estarmos ali sentados no chão numa montanha das Honduras, a comer paca assada e iautia também assada, com os dedos, enquanto o pai se queixava de garfos sujos na Bulgária. Em geral, nunca falava de comida e dizia que era indecente louvá-la enquanto a comíamos. Mas naquela noite na montanha não foi capaz de falar de outra coisa além das atormentadoras refeições que comera e dos talheres que não haviam sido decentemente lavados.

      - Estão a derreter-me o gelo - acabou finalmente por dizer e mandou que apagássemos a fogueira.

      Os zambus obedeceram. Tinham feito as suas camas ao lado de galhos baixos, que cortavam o vento. Já não eram os homens que costumava ver em Jerónimo. Aqui, na montanha, eram mais silenciosos e simples e com um ligeiro ar selvagem.

      - Não estou cansado - disse o pai, quando Jerry e eu gatinhámos para o telheiro. - Vou ficar aqui sentado a arrefecer os pés até vocês estarem prontos para partir.

      Sentei-me junto do bloco de gelo, de pernas cruzadas. O pai juntara os dois blocos para concentrar o frio. Podia dizer, pelo brilho quente da ponta do charuto, que matutava em qualquer coisa... talvez nos talheres sujos, mas também suspeitei de que estava de guarda ao gelo, avisara-nos para que não lhe tocássemos. Os zambus murmuraram durante momentos, depois suspiraram e deitaram-se como troncos caídos no chão.

      - Quem me dera que a mãe aqui estivesse - disse o Jerry, adormecendo pouco depois.

      O vento zumbia nos arbustos e arrastava-se de encontro às rochas e às ervas secas. Esse era o único som, o do vento, mas depois ouvi outro ruído por entre o soprar do vento. Era como se alguém martelasse a tecla mais aguda de um piano. Era o gelo a derreter-se, com as gotas a caírem no tacho de alumínio do conjunto de campismo. Eu estava ainda cheio de fome e sede, o som daquela água deu-me ainda mais sede.

      Meti a cabeça de fora do telheiro e vi o pai do outro lado da fogueira apagada, sentado em frente do bloco de gelo. Este, com a sua desajeitada cobertura, estava agora com um quarto do tamanho que tivera de manhã, mas recortado contra o céu estrelado ainda se parecia com uma pedra tumular, e o pai com um cadáver branco que saltara para fora da cova. A luz das estrelas fazia com que o seu rosto se parecesse com uma caveira e dava-lhe braços de osso.

      - Quero dormir na minha própria cama! - gritou.

      Tentei pensar em qualquer coisa para dizer. Por fim, decidi não lhe pedir mais água.

      - Para onde estás tu a olhar? - perguntou, feroz. - Esta é a primeira vez desde a Criação que há aqui gelo a derreter-se! Pensa nisso! Dizes que não é nada de importante?!

 

      Acordei cansado e enfiado em roupas húmidas e recordei-me de que ainda nos encontrávamos na montanha, nós, o pai, os zambus e o gelo. O pai caíra para o lado e adormecera deitado no chão com os braços dobrados e o boné de basebol amarrotado por debaixo do rosto. Acordou rapidamente e negou ter dormido, afirmando que nem passara pelas brasas. Disse que se aborrecera de nos ouvir a ressonar.

      - Não, não falhámos! - declarou, ordenando-me que enchesse o saco, com a água que pingara do gelo para o tacho. - Não se preocupem com as correias - continuou, espreitando por debaixo da cobertura do gelo.

      Meteu os bocados de gelo dentro das mochilas. Cada um deles era mais ou menos do tamanho de uma bola de futebol, salpicados de bocadinhos de folhas acastanhadas e tinham a textura de uma esponja dura. Era tudo o que restava do grande bloco de gelo que arrastáramos desde Jerónimo.

      - Não digam nada. Não façam perguntas. Não quero ouvir nem um pio! Agora, toca a andar!

      Seguiu a correr pelo trilho com a mochila a subir e a descer, batendo-lhe nas costas. Francis Lungley seguiu-o com a outra mochila, depois Bucky e John de mãos vazias, e o Jerry e eu, fazendo o possível para os acompanharmos. Era eu quem levava o saco da água. Batia-me de encontro aos joelhos e impedia-me de correr.

      Era uma manhã fresca e luminosa, com embrulhos de nuvens jazendo de encontro à montanha como fantasmas de peixes mortos. Lá em cima, o pai deteve-se junto de uma crista de rocha. Pensei que estava à nossa espera, mas depois vi que atingira mais um dos cumes da montanha. Era o último. Por debaixo de nós - mas era um planalto e não o vale profundo que esperávamos encontrar - estava a totalidade das Honduras. Um mundo tão vazio... Nunca pensara que uma zona selvagem pudesse ter um ar tão triste.

      Este era um país diferente daquele que conhecíamos... selva ilimitada, vulcões, nenhum mar. Não havia rios que pudéssemos avistar, nem água. Era uma superfície de copas de árvores onde planavam as aves.

      A sua vastidão fez-me sentir pequeno e insignificante. Não havia fumo, nem estradas, nada que dissesse que vivia ali gente. Era Olancho, mas Olancho não passava de um nome. Era coisa nenhuma.

      - Tem um ar tão desolado - disse eu. - Então, nunca viste Chicago!

      As copas das árvores por baixo de nós continuavam até ao horizonte e aquela verdura sem fim dava-nos uma tal impressão de profundidade que nem sequer se parecia com uma floresta. Era um oceano transbordante de folhas bravias, uma maré tão alta que subira ao cume da montanha. O pai sorria-se para tudo aquilo, mas, no entanto, fora ele quem nos dissera que as marés mais altas eram enganosas. Atraíam-nos com a sua aparente mansidão mas se metêssemos os pés lá dentro puxavam-nos e afogavam-nos nas suas correntes ocultas.

      - A partir de agora é sempre a descer.

      Não havia trilho. O pai partiu, correndo ao lado do fio de água de um riacho pedregoso.

      Os zambus disseram que devíamos estar preparados para deparar com mais abelhas. Os índios dali criavam-nas e escondiam as colmeias perto das suas cabanas. E que também tinham cães, cães meio selvagens. No entanto, cheirou-nos a fumo antes de vermos abelhas ou cães e quando o riacho se alargou e transformou num ribeiro soubemos que devíamos estar perto de uma aldeia. A floresta era mais escura, estávamos no fundo do oceano de árvores que havíamos visto e continuávamos a descer. Os meus sentidos diziam-me mais do que eu podia explicar logicamente. O cheiro de água estagnada, fumo de madeira, carne quei­mada, e um outro cheiro mais violento, sujo e rançoso, a latrinas e cães, tudo aquilo misturado. Era o cheiro que eu agora associava com as habitações humanas, não as nossas, mas as de outras pessoas. A limpeza de Jerónimo educara o meu nariz para aqueles intensos odores.

      Podíamos não ter reparado nas cabanas. Eram de folhas e feitas de troncos descascados, com a mesma cor que as árvores que morriam em volta, mas os cães esfomeados correram para nós e Francis exclamou: «Pai, Pai!», enquanto duas araras lhe gritavam de um tronco.

      - Deixem isto comigo - disse o pai. Avistou alguns limoeiros e murmurou: - Bolas de sumo!

      No rio que corria pela aldeia havia mulheres ajoelhadas na lama lavando roupa, batendo calças e camisas sobre as pedras.

      - Aquelas mulheres estão a lavar roupa - comentei.

      - E então? - perguntou o Jerry.

      - Ninguém usa roupas - respondi, pelo menos roupas daquelas. Os índios na clareira da aldeia encontravam-se praticamente nus. Calções era tudo o que usavam, mas calções feitos em farrapos, mais pareciam aventais.

      - Talvez só tenham um par.

      As lavadeiras fugiram quando viram o pai, mas este não parou.

      Patinhou pelo meio do rio, sacudiu a água das sandálias e continuou em direcção aos índios e às cabanas. Estas não eram as periclitantes cabanas de telhado de zinco em que viviam os crioulos do rio, e eram bastante maiores do que os ninhos de rato de Seville. Estas cabanas eram rectângulos altos, apoiados sobre estacas, com telhados salientes e com uma espécie de sótão sob a cobertura de ervas e folhas dos telhados. Havia dez cabanas. O pai ia dizendo:

      - Não há latas de cerveja, não há papéis de rebuçados, não há pilhas... - Seguíamos mesmo por detrás dele. - Não há arcos nem setas. Não vejo armas de espécie nenhuma. Somos, provavelmente, os primeiros brancos que eles vêem. Não façam nada que os possa assustar, nenhum barulho, nenhum movimento súbito.

      Os índios eram castanhos e estava ali cerca de uma dúzia deles, com olhos de chineses, caras pesadas e pernas curtas. Alguns tinham rolos compridos de cabelo presos por detrás da cabeça. Ali só se encon­travam homens, as mulheres haviam-se escondido e não víamos crianças em lado nenhum.

      - Levantem os braços devagar - disse o pai.

      Levantámos os braços devagar.

      - Francis, tu és o especialista em Mosquitos. Diz-lhe quem somos. Francis Lungley ficou com um ar confuso.

      - E quem somos nós, pai? - perguntou.

      - Diz-lhes que somos amigos.

      - Amigos! - gritou Francis. - Amigos!

      - Em inglês não, estúpido! Diz-lhes em Mosquito, ou noutra língua qualquer, que entendam!

      Os índios observavam a discussão entre Lungley e o pai.

      - Não são mosquitos. São paias ou tuacas. Talvez seja melhor dar-lhes bananas...

      - Tu é que me saíste um grande banana - disse o pai, empurrando Francis para o lado. Agora falava-lhes em espanhol e perguntou-lhes se percebiam essa língua. Ficaram a olhar para ele. Disse-lhes que éramos amigos, que tínhamos vindo de muito longe, do outro lado das montanhas. Continuaram a olhar para ele. Disse-lhes que tínhamos um presente para lhes dar. Continuaram a fixá-lo por sob das pálpebras inchadas de chineses. - Talvez sejam todos surdos - comentou o pai. Tirou a mochila de cima dos ombros e aproximou-se dos homens. ­Vamos, abram-na - disse, e traduziu a frase por gestos.

      Um dos índios ajoelhou-se e abriu a mochila.

      - Vêem? Compreende-me perfeitamente.

      O índio olhou para dentro da mochila, depois virou-a de boca para baixo e despejou a água que lá estava dentro. Pronunciou uma palavra, que nenhum de nós compreendeu.

      - Francis, depressa, dá-me a tua mochila.

      Francis abriu a segunda mochila e respondeu-lhe:

      - É só água, pai.

      - Deve restar um bocadinho... apenas um bocadinho...

      Os índios ficaram a ver o pai e Francis a remexerem na sopa do interior do saco molhado.

      - Aqui está! - exclamou o pai, segurando um pedacinho de gelo, tudo o que restava do grande bloco, talvez uns gramas. Seguimo-lo quando avançou para o mostrar aos homens.

      Colocou-o na palma da mão. Talvez a impaciência lhe aquecesse a mão, ou talvez o pedaço de gelo fosse pequeno demais. Fosse o que fosse, a minúscula coisa desapareceu. Antes de poderem olhá-la com atenção, derreteu-se e desapareceu por entre as fendas dos dedos.

      O pai continuava com a mão estendida e molhada, mas os índios olhavam para o coto do dedo.

      - Não posso acreditar - disse o pai baixinho, começando a afastar-se.

      Por momentos pensei que voltava para Jerónimo, mas não... Murmu­rava qualquer coisa em inglês e espanhol. Abandonara-nos em frente dos índios espantados, mas depois voltou e fez um discurso.

      Trouxera-lhes um presente, declarou. Mas o presente desaparecera. Que espécie de presente podia desaparecer? Ah, isso era o mais inte­ressante... era água, mas uma forma de água que eles nunca haviam visto, tão sólida como rocha mas muito mais útil, boa para preservar a carne ou para fazer desaparecer as dores. E era muito fria! Chamávamos­-lhe «gelo», disse, e do outro lado das montanhas tínhamos uma invenção para o fazer, usando a água do rio. Trouxera um bloco dele, grande como dois homens, mas ficara mais pequeno, cada vez mais pequeno, e quanto havíamos chegado à aldeia era já minúsculo. Era uma infelicidade, afirmou, porque agora desaparecera todo, mas alguns momentos atrás ainda teria podido mostrá-lo.

      - Mas voltarei - disse - ... e então verão!

      A maior parte dos índios olhava para o dedo do pai.

      Foi então que um dos índios falou muito claramente e em espanhol. Era um homem de cara quadrada e o que tinha o maior rolo de cabelo, espetado como a cauda de um pónei.

      - Vá-se embora - disse ele, e os seus dentes eram todos negros. O pai riu-se para ele.

      - Já te disse que foi um acidente, Jack. Já estiveste daquele lado? Sabes quanto tempo é preciso para arrastar o gelo até aqui? - Surpreendido pela ordem do índio, começara a falar em inglês. Continuou em espanhol: - A culpa não foi minha! Já alguma vez viram gelo? Já lhe tocaram?

      - Vá-se embora - repetiu o índio.

      - Obrigado. Não comemos desde ontem. Tivemos de dormir na mon­tanha. A nossa água acabou-se e estes garotos não se aguentam nas pernas. Muito obrigado!

      - Vá!

      A palavra foi dita com dureza, os dentes do índio tinham um ar feroz, mas o homem parecia muito assustado. O pai falara muito tentando explicar o gelo, e era capaz de não ter olhado para os índios com a atenção suficiente para se aperceber de que estavam assustados. Talvez pensasse que aqueles ares tinham algo a ver com a maravilha que se derretera e desaparecera.

      Os índios eram cor do barro e permaneciam ali como peças de barro prestes a estilhaçar-se, desfazendo-se em bocados. Quem éramos? Era o que pareciam pensar. De onde vínhamos? Teríamos caído do céu?

      - Verdadeiros selvagens - disse o pai, que ainda não lhes vira o medo. - Creio que não podia esperar outra coisa...

      Olhavam para o dedo do pai enquanto este o agitava de um lado para o outro.

      - Se o gelo não se tivesse derretido, não nos largavam... «Obrigado, são maravilhosos, por favor dêem"nos mais, etc.» Mas, cavalheiros, o nosso plano derreteu-se...

      Agora todos os índios mostravam os dentes, tal como os seus cães haviam feito... dentes negros, lábios duros, olhos semicerrados.

      - Não posso com esta hostilidade neolítica...

      - Nós vamos - disse Bucky.

      - sim, senhor - concordou Francis.

      - Pois eu não me mexo daqui - declarou o pai para os zambus que recuavam. - Então e tu, Charlie?

      - Eu também não - respondi, em espanhol.

      - Ouviram o que ele disse!

      Teriam ouvido? Pareciam tão surdos como quando havíamos chegado.

      O índio que nos dissera para nos irmos embora tirava bocados de pele morta de um cotovelo. A seguir, levantou os olhos e silvou:

      - Vão.

      - Diz-lhes que ficaremos aqui até que nos dêem qualquer coisa para comer. É o mínimo que podem fazer. Um pouco de hospitalidade não os matará. Não somos nem missionários nem cobradores de im­postos.

      Disse-lhes aquilo. Enquanto falava, o pai sussurrava para os zambus:      - Este lugar é muito pior do que Jerónimo! As coisas que eu podia fazer aqui! Eles não têm nada... mas olhem para aquelas cabanas. Sabem como fazer estruturas resistentes. - Quando acabei de falar para os índios, virou-se para mim. - Diz-lhes que queremos qualquer coisa para comer. Não quero nada para mim, vocês é que precisam de encher o estômago. Comemos e vamos embora.

      Os índios, ao ouvirem-me dizer aquilo, ficaram com um ar incerto.

      - Diz-lhes também que faz demasiado calor aqui ao sol. Queremos sentar-nos à sombra.

      O índio que falara (mas que até ali só dissera «Vão-se embora») dirigiu-se para a cabana maior e entrou nela.

      - Deve ir perguntar ao Gowdy se está de acordo - disse o pai.

      O índio reapareceu e fez-nos um gesto, indicando-nos que nos devíamos sentar perto daquela cabana.

      - Rapazinhos amigáveis, não são? - murmurou o pai quando nos sentámos. - Que estarão eles a esconder? Aposto que se passa aqui qualquer coisa que não querem que vejamos. Gostava de bisbilhotar por aí...

      Cansado e esfomeado como estava, ficaria muito mais satisfeito se me fosse embora dali, e sabia que Jerry sentia o mesmo.

      O pai permanecia impassível, continuava a ser o senhor de Jerónimo, se é que não era o Rei de Mosquitia, murmurando para os seus zambus com um ar todo-poderoso. Parecia não reparar - ou se reparava, não se ralava - que os índios tinham atravessado a clareira e estavam sentados em semicírculo à nossa volta, observando-nos.

      - Sim, este lugar cheira mal - dizia o pai. - Não estão organizados. Mas o clima é saudável. Mais fresco do que Jerónimo. Solo fértil. Poucos insectos. Montes de boa madeira dura. Aqui podia-se fazer milagres, se...

      Fechou a boca quando nos trouxeram comida e água. Raramente se mostrava surpreendido com qualquer coisa, pelo que o seu súbito silêncio era tão espantoso como um dos uivos que por vezes soltava. O que o calara haviam sido os homens que traziam as malgas e cestos com comida. Mirou-os espantado e disse, com os dentes cerrados como um ventríloquo:

      - Ora vejam só!

      Três homens magrizelas, que não eram índios, pararam junto de nós. Tinham caras pálidas por debaixo da porcaria e dos bigodes. O pai assobiou baixinho, avaliando-os. Eram altos, ossudos e pareciam ter contusões. Usavam calças rasgadas e sandálias rebentadas. Dois deles tinham tiras de pano na cabeça iguais às usadas por alguns índios. Os rostos eram febris e afundados, com as peles acinzentadas esticadas sobre o crânio. As barbas e as caras ossudas faziam-me pensar nos santos dos livros de imagens. No entanto, quase sorriam e, quando nos colocaram a comida na frente, observaram-nos com olhos curiosos. - Que vos disse eu? - declarou o pai. - Era isto o que eles não queriam que víssemos. Têm escravos brancos!

      A comida eram bananas cozidas, bolos de milho achatados e gordu­rentos, bolinhos fritos e wabooll. A água sabia a pêlo de cão.

      - Agora tudo faz sentido! Eh... - disse para um dos homens, em espanhol vocês deixam que os índios vos digam o que têm de fazer?

      - Mais ou menos. - O homem não parecia preocupado e mantinha o sorriso febril.

      - E que é que vocês fazem para eles.

      - Engraxamos-lhes os sapatos.

      - Não perderam o sentido de humor - comentou o pai, soltando uma gargalhada e passando a tijela de wabool ao Jerry, sem sequer provar.

      Do outro lado da clareira, os índios continuavam a olhar-nos de cabeças baixas. O único som vindo dessa direcção era o rosnar dos cães que tentavam caçar pulgas nos quartos traseiros esqueléticos e escalavrados.

      - Como é que te chamas?

      Um dos homens molhou os lábios ao ouvir a pergunta do pai, mas um outro, de cabelos oleosos, respondeu:

      - Não temos nomes.

      - Ouviram aquilo? Não têm nomes.

      O pai olhou para os índios. A toda a nossa volta, nas árvores altas, as aves piavam e batiam nas folhas com as suas asas, enquanto o som do rio parecia o barulho de pedras a rolarem.

      - Provavelmente capturaram-nos com as lanças e fizeram-nos prisio­neiros - disse o pai para Francis Lungley e os tipos agora fazem todo o trabalho sujo.

      - Gringo - anunciou um dos homens ao ouvir o pai falar inglês. O seu rosto esfomeado dava-lhe uma expressão bem marcada que era, ao mesmo tempo, mal assombrada e amável.

      - Norte-americano, hein? Veio da Missão?

      - Tenho aspecto de missionário? - A seguir o pai falou-lhe baixinho, para que os índios não pudessem ouvir. - Não. Temos uma quinta do outro lado da montanha. Se conseguir chegar até lá, se conseguir escapar-se numa destas noites, estará salvo. É o melhor caminho para a costa.

      O homem fez um aceno com a cabeça e passou a mão pela barba.

      - Que veio aqui fazer?

      - Era o que ia dizer. Trouxe gelo... cerca de meia tonelada. Estes zambus e eu. Estes são os meus rapazes, Charlie e Jerry. Limpa a boca, Charlie.

      - Onde está o gelo?

      - Derreteu-se.

      O homem sorriu.

      - Não acredita?

      - Gelo - disse o homem em espanhol para os outros, e todos eles sorriram. Os três homens ajoelharam-se em frente do pai e o primeiro perguntou:

      - Onde arranjou o gelo?

      - Fi-lo - respondeu o pai, bebendo um golinho de wabool. - Devia ver o que nós lá temos. Hortas, comida, bombas para tirar água, galinhas, esgotos e a maior máquina de fazer gelo de todo o país.

      - Tens um gerador para a electricidade?

      - Não me falem em geradores. Diz-lhes como é, Charlie. Expliquei-lhes que o pai arranjara uma maneira de fazer gelo com o fogo.

      - O teu pai é um homem inteligente.

      - Toda a gente diz isso - respondi.

      - Os índios acabarão por vos matar com trabalho - continuou o pai. - Então, quando já não precisarem de vocês para nada, matam-vos e dão-vos a comer aos abutres. Arranjarão novos escravos. - O rosto tornou-se-lhe sombrio. - Acham que tentarão fazer alguma coisa connosco? - Quem sabe? - respondeu o homem, e os outros confirmaram com acenos.

      - Quero ir-me embora daqui ainda com a cabeça. Acha que os índios nos estão a escutar?

      - Escutam, mas não compreendem. São gente muito simples. São também muito fortes.

      - Calculei isso, mas não deviam deixar-se ficar aqui às ordens deles, não têm esse direito. São prisioneiros, não são?

      O homem que mais falara encolheu os ombros. Aquele gesto abanou­-lhe todo o corpo magro. Ou não estava nada preocupado ou já não se ralava. O pai retomou a conversa:

      - Já viram que como pouco? Vou dizer-lhes porquê. Porque tenho um enorme apetite. Não comendo, faço melhor as outras coisas. Resolvo problemas. Trabalho mais. Essa também é uma forma de comer. Deviam tentar. Se comesse muito não fazia mais nada...

      Durante todo este tempo os zambus comiam e mal prestavam atenção ao que o pai dizia. Este parecia satisfeito por ter alguém novo com quem conversar. Talvez esse facto o fizesse esquecer-se do falhanço da expedição.

      Os homens sussurraram entre eles e depois um dos que ainda não falara perguntou:

      - Não está a dizer a verdade, pois não? A respeito do gelo?

      - Era quase um icebergue - retorquiu o pai. - Derreteu-se e transformou-se em lama, mas há muito mais no sítio de onde ele veio.

      Temos tudo, lá do outro lado.

      - Armas?

      - Não precisamos de armas para nada. Se precisássemos, era capaz de fazer um arsenal. Só se estivesse desesperado.

      Prosseguiu dizendo que o levavam a recordar-se de como se sentira nos Estados Unidos, como um prisioneiro, perto do desespero, com vontade de matar toda a gente, meio louco, por causa da frustração de ver como as coisas corriam, quase como uma escravatura, porque as leis haviam transformado os homens em escravos.

      - E que fiz eu? Peguei em mim e fui-me embora. Aconselho-os a fazerem o mesmo.

      Os índios continuavam agachados no chão, com os seus cães a dez metros de distância. Viam o pai falar com os homens magrizelas. Para mim era impossível dizer em que pensavam quando olhava para o barro liso das suas caras. Os índios podiam ser inofensivos, mas os cães eram parte integrante do seu grupo. A ferocidade dos cães fazia com que os índios parecessem perigosos.

      - Os índios querem que se vão embora - disse o homem de cabelos oleosos.

      - Não sabem o que é bom para eles mesmos - disse o pai. - Não merecem gelo ou qualquer outra coisa, se não são capazes da mais comum das cortesias. Mas vocês - acrescentou - são suficientemente amigos.

      -É do nosso feitio...

      - Os meus zambus provavelmente pensam que são mascadores.

      - Ah, Mosquitia!

      - Gostava de poder fazer qualquer coisa por vocês - declarou o pai.

      - Já nos estará a ajudar se evitar irritar os índios. Basta que se vão embora.

      - Escutem, numa noite escura ponham-se a andar daqui. Desapareçam.

      - Em inglês, acrescentou: - Fujam deles.

      - Os índios dizem que não há trilho para o outro lado da montanha.

      - É claro que dizem, não é? Não são eles que vos irão dar um mapa das estradas...

      - A que distância fica a vossa povoação?

      - A um dia de marcha. Mais, quando se vem carregado com gelo, foi esse o nosso problema.

      - Estarão em casa ao cair da noite.

      - Quase me dá vontade de rebentar com isto tudo, para vos tirar daqui - afirmou o pai, subitamente.

      - Seria uma coisa muito estúpida - disse o homem, sem pestanejar.

      - Então... vocês é que sabem.

      - Vão-se embora... ou eles castigam-nos.

      Deram-nos uma cabaça de wabool, água e um cacho de bananas. Enquanto enchiamos o saco da água, os três homens dirigiram-se para junto dos índios. Estes continuaram sentados no chão mas os cães fugiram quando os viram aproximar-se. Só começaram a ladrar quando atingiram as primeiras raízes salientes, nos limites da clareira. Sem os cães, os índios pareciam mais nus e até um pouco assustados.

      Deixámo-los assim, os índios sentados e os três escravos de pé. Os cães precipitaram-se sobre nós e depois recuaram, empurrando-nos para o ribeiro. Ladravam, rosnavam e mostravam-nos os olhos selvagens e cobardes. Todos os outros homens se mantiveram imóveis. Eram muito pequenos, debaixo da vasta floresta suspensa, a verem-nos partir. As mulheres ainda não estavam à vista. Os homens tinham o aspecto de quem estava a posar para uma velha e assustadora máquina fotográfica.

      - O que não consigo perceber é como foram ali parar... – comentou o pai, quando já nos encontrávamos no trilho.

      - Os tuacas, pai?

      - Não, os outros. - Usou uma palavra espanhola. - Os sem nome.

      - Esta floresta está cheia de macacos - disse Bucky.

      - Os macacos não fazem tantas perguntas...

      Os escravos também não, pensei.

      - Gente, lá em baixo passa-se qualquer coisa de estranho.

      Encaminhámo-nos para fora da floresta e para lá do declive rochoso, em direcção ao sítio onde havíamos subido a montanha. Quando chegámos ao local onde tínhamos acampado na noite anterior, parámos outra vez e passámos o wabool de mão em mão. Sentámo-nos no trenó partido, os restos do «Patinador». O pai disse que um dia um estrangeiro o encontraria e proclamaria que outrora existira ali uma grande civilização, e que colocariam o «Patinador» num museu. Aquilo fê-lo rir-se.

      - Viram a cara daqueles índios quando olharam para o gelo? Olhámos todos para ele.

      - Nem conseguiam acreditar - continuou. - Ficaram gagos! Não sabiam o que dizer!

      Por fim - e porque todos os outros continuavam perfeitamente silen­ciosos - perguntei:

      - Qual gelo?

      - O gelo que lhes mostrei.

      Pensei que me estivesse a testar mais uma vez.

      - Derreteu-se todo, pai.

      - Aquele bocado pequeno.

      Não era verdade.

      - Tu viste-o, não foi, Jerry?

      - Sim, pai.

      Parvo, pensei para mim mesmo.

      - O teu irmão de cara comprida está a tentar dizer-me que perdemos o nosso tempo. Precisas de óculos, Charlie. Os teus olhos não prestam.

      Talvez estigmatismo, hein, Francis?

      - De certeza - confirmou o leal zambu.

      O pai colocou Jerry às cavalitas e transportou-o, enquanto eu cami­nhava atrás com os zambus. Os rostos destes reflectiam bem o seu cansaço. Para os zambus tratara-se de uma viagem confusa, em especial por estarem à espera que os tuacas tivessem caudas... e talvez, na verdade, pensassem que os três magrizelas eram mascadores. Havia um tom cinzento nos corpos dos zambus, e manchas sobre esse cinzento, como as manchas acinzentadas na superfície das uvas pretas. Quanto mais andávamos mais ficavam convencidos de que tinham visto o gelo e os índios espantados. «Estava na palma da mão do pai, como uma pedra.» - Daqui para diante é sempre a descer - disse o pai.

 

      Na descida do trilho, sob o crepúsculo cor de casca de tartaruga, pensei na mentira do pai. Tinha esperanças de que não acreditasse nela, mas como poderíamos evitar que a repetisse?

      Havia uma coisa que talvez resultasse; podia ser que durante a nossa ausência de dois dias algo tivesse corrido mal em Jerónimo, houvesse surgido algum pequeno problema, suficiente para lhe virar a atenção para outras coisas, não um desastre, apenas um obstáculo, para evitar que fizesse um enorme discurso dizendo que o nosso falhanço fora um êxito.

      Os índios não tinham ficado espantados! Não haviam feito mais do que olhar para nós e para os dedos molhados do pai, para depois nos mandarem os seus escravos.

Aquela mentira fazia com que me sentisse mais solitário do que qualquer outra mentira entre todas as que já ouvira.

      No entanto, falara com toda a confiança, afirmando que a expedição fora um triunfo e que estava ansioso por o contar à mãe. Esforcei-me por me recordar de ver gelo nas mãos do pai e espanto nas caras dos índios... mas não me lembrava de nada, nem do gelo nem da surpresa. Fora tudo muito pior e muito mais estranho do que a sua mentira. Haviam-nos dito para nos irmos embora, e depois apareceram os escravos magrizelas para nos espreitarem, e os cães que nos tentavam morder os pés. - Ah, gosto de voltar a casa cansado, no fim de um belo dia com o sol a bater-me nos olhos!

      A minha frente, no trilho, o pai continuava a falar com o Jerry e os zambus.

      - Pode meter-se um homem dentro de gelo e conservá-lo como ao aipo, e livrá-lo das insolações. Essa seria uma boa aplicação para o gelo, aqui por estas bandas. Já alguma vez lhes falei dos avanços da criogenia?

      Aquela voz abria caminho por entre as árvores e deixava-me exausto. A sua confiança era algo que naquele momento não me apetecia ouvir. Assustava-me a ideia de que o pai iria repetir a sua história em Jerónimo... e a sua mentira metia-me medo. «Viram a cara daqueles índios?» A cara dos índios fora de confusão, tinham rugas como os macacos e haviam procurado assustar-nos mostrando-nos os dentes pretos, tal como os cães. Outrora pensava que o pai era muito mais alto do que eu, que via coisas que eu não conseguia avistar. Desculpava os adultos que não concordavam comigo e achava que a culpa era minha, por ser tão baixo. Porém, isto era uma coisa que podia analisar. Vira-a. As mentiras deixavam-me desconfortável, e a mentira do pai, que era também pura gabarolice, desgostava-me e afastava-me dele.

      - O Charlie vem lá atrás a fazer o melhor que pode, gentes! Amava aquele homem e ele chamava-me estúpido e falsificava o único mundo que eu conhecia.

      Rezei para que surgisse um problema. As minhas orações foram ouvidas. As coisas não estavam bem em Jerónimo. Fora o que eu desejara mas, tal como acontece com todos os desejos que nos são concedidos, também fora mais do que eu pedira.

      Jerónimo estava coberta pela tranquilidade e pelo ligeiro vibrar da folhagem. Ficava sempre assim ao crepúsculo, como que difusa e tranquila por causa da maneira como o sol se coava por entre as árvores, e do modo como o rio lançava ligeiros reflexos. Era a escuridão a aproximar-se. Era a maneira como as pessoas se inclinavam de fadiga, depois de um longo dia de sol sem nuvens.

      Porém, naquele entardecer, tudo parecia morto, com uma atmosfera de desaparecimento e de alarme oculto que nos dizia que algo acontecera como o silêncio que se segue a um uivo. Havia guinchos baixos dos lagartos à espreita no meio das ervas, enquanto nos ramos as aves procuravam poleiros para a noite, soltando pios delicados.

      - Houve alguém que esteve aqui e se foi embora - disse o pai, fazendo-nos parar.

      O «Menino Gordo» não estava aceso. A casa dos Maywit estava às escuras, não se via nenhuma das suas lanternas habituais... Janelas abertas, pórtico vazio, nenhum fumo.

      - Allie! - exclamou a mãe... o seu rosto branco à espera na galeria.

      O pai caminhou para ela e perguntou-lhe o que se passara.

      - Pensei que também vos acontecera qualquer coisa - respondeu. - Também?

      - Os Maywit... foram-se embora. Não consegui evitá-lo.

      - Já sabia - afirmou o pai, sorrindo para Francis Lungley.

      Sentia-me responsável. Rezara para que acontecesse qualquer coisa e assim fora. Desejara algo que impedisse o pai de se precipitar para Jerónimo mentindo a respeito de índios espantados, gelo e «Devias ter visto a cara deles!».

      Agora, o pai sorria para Clover que aparecera a correr de debaixo da casa, o abraçava e lhe explicava:

      - Veio um barco a motor que levou todos os Maywit. O homem chamou-te nomes. Era o missionário que mandaste embora no outro dia. A Ma Kennywick gritou-lhe, e o Sr. Peaselee estragou a bomba e a mãe disse que ficavas furioso quando soubesses de tudo. Mas não estás, pois não? Pai, tenho medo!

      O pai olhou em volta para toda a gente e a sua boca curvou-se de satisfação.

      - Por que é que havia de ficar furioso? - perguntou. - Sabia que isso iria acontecer.

      - Então, o Drainy e os outros? - perguntou Jerry.

      - Foram-se embora - respondeu Clover. - Todos, no barco a motor do homem.

      - Que vos disse eu? - inquiriu o pai, sorrindo para os zambus, que lhe devolveram o sorriso.

      A mãe descera da galeria com a April, que se lastimava.

      - Fiz tudo o que pude - continuou a mãe -, mas não me escutaram.

      Não me escutaram, não me reconheceram... estavam tão assustados...

      - Não vale a pena dizeres mais nada - declarou o pai com firmeza. - Sei de tudo isso. Os Maywit fugiram com aquele moralista ignóbil, num qualquer barco poluidor, de um amigo do Figgy. Não precisas de dizer mais nada. Bastou-me olhar para a clareira para o perceber.

      Ao ouvir «Figgy», o Sr. Haddy avançou e interrompeu-os:

      - Uma fantochada. Aquela gente assusta-se por tudo e por nada e não nos dá um momento de paz. Ma Kennywick apanhou um susto de morte e desde aí ficou com dores de barriga. Peaselee também ficou assustado, diz que viu um palerma qualquer com um cabuz. Ainda bem que já cá está, pai.

      O pai aguardou que ele terminasse e depois declarou:

      - Também sei outra coisa. - Sorriu, encheu a boca de silêncio e engoliu-o.

      - O pai sabe. - Agora era Francis Lungley, falando para Bucky. - Esses Maywit têm muito que aprender.

      Se o pai sabia tudo, por que é que não sabia o nome deles?

      - Não se chamam Maywit - afirmei. - Chamam-se Roper. São todos Roper.

      - Quem disse?

      Expliquei-lhe o que os rapazes me haviam dito, mas não lhe falei n'«O Acre», nem que tinham medo dele. Jerry, Clover e April não disseram nada, deixaram-me ficar com as culpas todas, por saber aquilo. O pai continuava a sorrir.

      - Devias ter-nos contado isso antes, Charlie - disse a mãe.

      - Pensei que o pai soubesse.

      - Que mais sabes tu, Charlie? - perguntou o pai.

      Estive quase a responder: «Aqueles homens que disseste que eram escravos não me pareceram escravos e os índios estavam com medo. O gelo derreteu-se antes de o poderem ver. Não nos deixaste descansar, fizeste o Jerry chorar quando falaste no Holliday Inn, a viagem foi terrível, pior do que as que fizemos pelo rio, e provavelmente um falhanço.»

      - Nada mais - respondi.

      - Então, ainda sei mais do que tu - disse (quando é que eu duvidara disso?) -, porque sei que vão voltar.

      Dirigimo-nos para a casa dos banhos e despimos as roupas. O pai pôs os chuveiros em funcionamento... Que maravilhosa invenção! Eram como uma máquina de lavar automóveis, com jactos de água a saírem das paredes por bicos de bambu. Estávamos todos lá dentro, empurrando-nos debaixo dos finos jactos de água, numa semiescuridão, o pai, Jerry, os zambus e eu. O «Menino Gordo» estava apagado, portanto, não havia água quente, mas ninguém se importava. A mordedura inofensiva dos duches retirava-nos a poeira das montanhas e livrava-nos das más recordações. - Eu não ficaria tão certa disso, Allie - disse a mãe.

      - Ela não acredita em mim - comentou o pai. - Passa-me o sabão.

      Tinha muito orgulho no seu sabão. Éramos nós mesmos quem o fabricava, de gordura de porco que trocávamos por gelo, um sabonete amarelo e gorduroso, que parecia um bocado de banha. «Sem aditivos!», dissera. «Ora, até o podíamos comer!»

      - Não estavas aqui.

      - Não precisava de estar.

      - Foi horrível - continuou a mãe. - Esse missionário, o Struss... - Eu sei - respondeu o pai.

      Falando através das paredes da casa dos banhos, a mãe prosseguiu:

      - Parece que ele foi até Seville, no barco. Não sei o que lá viu, mas deve ter sido aquela gente ridícula a rezar. Voltou para nos acusar a todos de blasfémia e de estarmos a espalhar as mentiras da ciência.

      - Ensaboem-se - disse o pai para os zambus, que se lavavam sempre numa posição agachada, sem se levantarem. Além disso, conservavam os calções vestidos quando tomavam banho. Maios via no escuro da casa dos banhos, mas ouvia a água a cair-lhes sobre as cabeças e as suas cuspidelas e resmungos.

      - Estariam de joelhos, a rezar ao frigorífico? - perguntou a mãe.

      - Fosse o que fosse, o Reverendo Struss estava muito zangado. Apareceu a gritar que estávamos a fazer mal, que lhe desviávamos a sua gente. A maior parte da gritaria foi para com os Maywit... a quem chamava Roper. Obrigou-os a irem até ao rio e atirou-lhes água para cima. «Um serviço de purificação», afirmou, para os limpar dos pecados que lhes tínhamos ensinado. O Sr. Kennywick não sabia o que fazer e o Sr. Peaselee ficou esquisito.

      - Podia ter-te dito que isso iria acontecer - respondeu o - Ordenei-lhe que saísse da propriedade. Disse-lhe que dentro de dez minutos e lhe afundarias o barco.

      - Bem pensado - gritou o pai, através da parede. - E afundava mesmo!

      - Encheram os sacos, quer dizer, sacos de papel, com tudo o que tinham, e foram-se embora.

      - Portanto, fugiram de nós.

      - Estão assustados - interveio o Sr. Haddy, com a boca encostada à parede de bambu, os dentes todos de fora. - O pregador falou de soldados, sarilhos e cabuzes.

      O pai fechou a água.

      - Quais soldados? - inquiriu o pai, enquanto nos secávamos.

      - Nas montanhas. Do outro lado das colinas. No rio. No cimo das árvores. Com cabuzes. Russos e sei lá que mais. Peaselee ouviu-os. - Disse que eras quase tão mau como os soldados - explicou Clover.

      - Peaselee disse isso?

      - O homem. O missionário. Chamou-te comunista.

      O pai deixou-nos sair da casa dos banhos. Os zambus pularam, dançaram e agitaram os dedos no ar, para se secarem. O pai tinha um saco de farinha enrolado em volta da cintura, o cabelo a pingar e um corpo branco como mármore. Levantou um braço, como uma estátua em frente de um tribunal.

      - Nada disto é novidade para mim - declarou. - Mas eu vou dizer-lhes uma coisa que não sabem. Vão voltar, podem ter a certeza, porque este lugar é um lugar feliz, e o mundo não o é. O mundo está podre. As pessoas são más, são cruéis, são falsas, fingem sempre que são o que não são. São fracas. Aproveitam-se das outras. Um homenzinho ignorante, que vê Deus numa serpente ou o diabo num trovão, faz-nos prisioneiros se nos conseguir apanhar. Dá a alguém metade de uma oportunidade... e logo esse alguém te transforma em escravo... e conta-te as mais terríveis mentiras. Já os vi, armados em senhores, fingindo ser deuses. E os nossos amigos, os Maywit - desculpa, Charlie, os Roper - sentir-se-ão abandonados lá fora. Terão medo      porque o mundo cheira mal! - Enfiou pelo caminho que dava para a casa, dando largas passadas. - Vão voltar, podem estar certos. Lembrem-se de quando o ouviram dizer, e de quem o disse.

      A mãe desviou-se para! o lado e perguntou:

      - Então, e o gelo, como correu tudo?

      O pai continuava a andar. Resmungou. Escutei com atenção e então ouviu-o dizer em voz baixa:

      - Derreteu-se muito. Eu sabia que era um erro carregar tanto, e para tão longe.

      No fim de contas, o pai não mentira.

 

      Na selva, «O Acre» era nosso. Já não era o mesmo sem o Dainy a pregar, a Alice a cozinhar, a «Pequerrucha» e o Leon a fazerem cestos, mas como agora éramos menos parecia-nos maior e ficávamos mais à vontade. Cada um de nós tinha o seu próprio e resistente telheiro.

      Trouxemos uma corda de Jerónimo e fizemos um baloiço numa árvore, dando um grande nó na ponta livre e sentando-nos nele. Em Jerónimo, o pai não o autorizaria. Não seria útil, porque se não houvesse alguém a balouçar-se nele então limitava-se a estar ali pendurado - seria essa a sua objecção - e era uma boa corda desperdiçada.

      Comíamos raízes de iautia e abacates bravos e reparávamos a camu­flagem das armadilhas, que eram agora quatro, muito bem disfarçadas com raminhos. Um dia, numa das armadilhas, vimos uma cobra a comer outra, com metade já enfiada pela garganta abaixo e as duas a agitarem as caudas. A que comia não se podia afastar nem deixar de comer a outra, pelo que pudemos observá-la em segurança. A seguir levámo-la para Jerónimo.

      - Aí está um perfeito símbolo para a civilização ocidental - disse o pai. Noutro dia apareceu um macaco-aranha na nossa árvore-igreja e sentou-se nela, a limpar os dentes. Observava-nos com curiosidade, como se quisesse brincar.

      A seguir farejou qualquer coisa, saltou da árvore, aterrou perto de um arbusto e arrancou dele um pequeno fruto redondo. Mais um salto e regressou à árvore, comendo o fruto. Mordeu a pele, chupou o interior, depois caminhou ao longo do ramo e afastou-se.

      Foi assim que descobrimos as goiabas. O macaco mostrara-nos que havia vários arbustos desses do outro lado da lagoa, e nesse dia levámos para casa um cesto delas.

      - Podemos fazer compota - disse a mãe.

      Porém, o pai declarou que eram demasiado pequenas e ácidas, por serem bravas. Se quisesse pensar no assunto, afirmou, era capaz de cultivar goiabas doces e grandes como bolas de ténis e «já que estamos a falar de comida é melhor começarem a colher e a descascar, ou não teremos nada para o almoço».

      Em Jerónimo, fazíamos o que esperavam de nós; os trabalhos habituais, mas voltávamos sempre ao nosso acampamento para viver como macacos. Sentíamos a falta dos Maywit - ainda pensava neles com esse nome ­mas sem eles não precisávamos da escola nem da loja. Ainda tínhamos as páginas soltas do livro de hinos do Drainy, mas já não celebrávamos serviços religiosos. De qualquer modo, fazia ali demasiado calor para andarmos a pensar no Inferno.

      N' «O Acre» sabíamos que chegara a estação seca. Em Jerónimo ninguém o sabia ou considerava o assunto com pouco interesse. As hortas continuavam acrescer, mas ali estávamos em contacto com a natureza, não tínhamos invenções.

      «O Acre» era um sítio primitivo, um buraco no meio da selva, mas a erva era macia, a lagoa tornava-o agradável e tínhamos tudo de que necessitávamos. Para nos divertirmos, podíamos nadar ou ba­lançar na corda. A lagoa não parecia afectada pela seca na selva, devia ter uma fonte a alimentá-la, mas o resto da área estava muito seca. Observávamos as formigas a fazerem funerais, procissões delas com pequenos cadáveres e folhas erguidas a servirem de pára-sóis. Viviam cobras nas raízes de uma árvore morta, num dos cantos do acampamento. Mantínhamo-nos afastados daquela árvore mas pensá­vamos em maneiras de as fazer cair nas armadilhas. As cobras e os besouros do tamanho de castanhas não nos assustavam. Havíamos aprendido que as criaturas mais ferozes se comportavam de modo previsível e, apesar de o local outrora nos ter parecido perigoso, agora pensávamos que era muito mais tranquilo do que Jerónimo. Íamos para ali para fugir de Jerónimo, pois desde a construção do «Menino Gordo» que o pai era visitado por gente que queria gelo. Eram conversadores. Tinham ouvido falar do pai e iam cumprimentá-lo. O pai dava-lhes trabalhos simples para eles fazerem e depois iam-se embora levando o gelo nas canoas. Havia sempre estranhos em Jeró­nimo, admirando as invenções do pai ou à procura de gelo.

      - Não sabem fazer nada com esse gelo, excepto arrefecer bunia ­dizia o Sr. Haddy. Bunia era uma bebida amarga que as gentes do local fabricavam da mandioca.

      - Isso não importa - respondia o pai. - Até podem usá-lo em cima da cabeça que eu não me ralo. Uma vez que se acostumem à ideia do gelo, os seus usos acabarão por lhes ser revelados. Cada um deles fará qualquer coisa de diferente, um conservará carne, outro servir-se-á dele para aliviar dores, alguém acabará por ter a ideia de refrigerar o peixe em vez de o fumar, e quantos não se curarão de insolações? Claro, pode levar toda uma geração, mas pensem no futuro... pois mais ninguém o faz! O «Menino Gordo» vai durar para sempre! Não tem peças móveis, Figgy!

      Era frequente o pai dizer que as coisas eram «reveladas». Eram essas as verdadeiras invenções, afirmava, a revelação da utilidade de qualquer coisa e a sua ampliação, a descoberta das suas imperfeições, os melhoramentos... e pô-la a trabalhar para nós. Para ele, uma goiaba brava, que crescia no mato, era uma imperfeição. Era preciso melhorá-la para ser comestível.

      - É uma atitude selvagem e supersticiosa aceitar o mundo tal como ele é. Andem por aí e descubram a utilidade das coisas!

      Deus deixara o mundo incompleto, afirmava. A tarefa do homem era compreender como ele funcionava, trabalhar nele e terminá-lo. Creio que era por isso que odiava tanto os missionários, por estes ensinarem as pessoas a acomodarem-se às fadigas terrenas. Para o pai, não existiam fadigas que não pudessem ser aliviadas por um par de rodas, ou engre­nagens, ou por um sistema de roldanas.

      Porém, em vez de tentar melhorar o mundo, a maior parte das pessoas limitava-se a melhorar Deus. «Deus - o Deus já morto - fora um inventor apressado e igual a muitos que se podiam encontrar nos serviços de registo de patentes. Sim, tivera uma grande ideia ao fazer o mundo, mas pusera-o a funcionar e fora-se embora para outro lado antes de o deixar a funcionar com perfeição. Deus era como o rapaz que põe o pião a girar e depois sai do quarto, deixando-o a cambalear. Como é que se pode adorar uma coisa dessas?», perguntava o pai. «Conheço esse tipo de aborrecimento, mas combato-o.»

      O pai olhava para o rio e dizia: «Vamos endireitá-lo.» Durante todo o tempo em que havíamos arrastado o gelo até ao cimo da montanha não falara de outra coisa a não ser do carro suspenso, para passageiros e carga. Continuava a falar em abrir um furo para extrair o calor do interior da Terra. Por vezes as suas próprias invenções revelavam-lhe coisas inesperadas, a que chamava «revelações extemporâneas». Um exemplo destas deu-se com um dos tubos do «Menino Gordo», que se encontrava a descoberto. O tubo recolhia gotas de água da humidade do ar. O pai acrescentou-lhe mais tubos e tornou o conjunto num condensador que pingava para dentro de um tanque. Era a água mais pura que se podia imaginar, e agora gabava-se de ser capaz tanto de produzir água como de a congelar... com o fogo! Não esperara que aquele tubo frio se comportasse assim. Fora-lhe revelado. Passou a chamar-lhe «Tendão do Jarrete.»

      Nós, garotos, dissemos que se o pai visse «O Acre» ou teria um ataque ou se riria de nós. Era um perfeccionista. Não me podia esquecer da maneira como, na montanha, dera um pontapé no abrigo que estava a construir e se sentara no chão ventoso durante toda a noite dizendo: «Quero dormir na minha própria cama!» Preferia sofrer a dormir numa cabana malfeita e, por vezes, olhava para a comida dos zambus ou para o wabool da Sra. Kennywick e dizia: «Preferia morrer a comer isso.» E falava a sério.

      Não ousávamos dizer-lhe que era possível comer o que crescia nos matos e dormir no chão. As suas armadilhas para mosquitos, as «Caixas de Insectos», convidavam os insectos a entrar por buracos de onde não era possível escaparem-se e mantinham Jerónimo livre deles. No entanto, não eram necessárias redes ou «Caixas de Insectos» se soubéssemos da existência do sumo de bagas que actuava como repelente. «Com medo de uns quantos insectos?», perguntava de vez em quando, e outras vezes dizia: «Não se trata apenas de não os querer na minha pele, não os quero nem sequer a três quilómetros de mim.» Podíamos ter-lhe dito que havíamos aprendido que a maior parte do trabalho era inútil, e que não era preciso uma casa de banhos quando se tinha uma lagoa ou um rio. As cenouras cultivadas pelo pai eram saborosas, mas as iautias bravas eram quase tão boas e não davam trabalho. Declarara fora da lei as bananas e a mandioca. «Fazem-nos preguiçosos e não gosto das implicações das bananas.» E o gelo... era uma maravilha, mas como quase todas as maravilhas, a única coisa para que servia era para nos maravilhar-nos com ele.

      Quanto mais pensava no assunto, mais me convencia de que nós, garotos, permanecíamos em Jerónimo por causa d'«O Acre». Jazia na selva entre as montanhas e o rio, no fim de um trilho sem saída, aberto pelos nossos pés. Era invisível, era seguro.

      Passávamos todas as tardes n' «O Acre» e tínhamos pena de não poder lá dormir. Queríamos provar ao pai que isso era possível, mas, no fim de cada dia, empurrávamos os arbustos para o lado e caminhávamos de regresso a Jerónimo e ouvíamos o barulho das bombas a chapinharem na água antes de vermos as casas. O pai estaria a sorrir porque no fresco do fim da tarde limpava o «Menind' Gordo» e dava gelo aos crioulos do rio ou aos zambus que haviam trabalhado por ele. Ali estava o pai com as grandes pinças para gelo e as roldanas, içando grandes blocos de gelo fumegante do interior do seu gigantesco armário, com a fornalha incandescente.

      Como sempre, quando regressávamos perguntava-nos:

      - Por onde andaram? A fazer asneiras no mato?

      Respondíamos que a nadar ou a passear.

      - Olhem bem para eles, gente! Nós aqui a matarmo-nos com trabalho e eles a passearem à volta do quarteirão.

      A «gente» era o Sr. Haddy, os zambus, o Sr. Peaselee e o Sr. Harkins. Eram ouvintes, pois nunca se calava e andava sempre a falar-lhes dos seus planos. Naqueles dias era a respeito de congelar peixe e enviá-lo para o interior, onde nunca ninguém vira os peixes grandes do rio. «Bagres de um metro! Podiam modificar-lhes a maneira de viver, em especial se tivessem uma mente aberta e ainda não houvessem caído nas garras de um ignóbil moralista a pregar-lhes o fogo do Inferno!»

      Essa era uma das queixas frequentes. Os Maywit não haviam regres­sado. O pai dizia que ficava como louco.

      - E o mais curioso a respeito do fogo do Inferno, é ser um fogo imaginário! O do «Menino Gordo» não é! Tem mais veneno lá dentro do que cem Infernos! Ah, eu podia ensinar uma ou duas coisas a esses missionários a propósito de combustões químicas. Se vissem o hidrogénio e o amoníaco à solta passavam a acreditar em mim, em vez de num Deus morto! Se o «Menino Gordo» rebentasse a tampa...

      Aquelas conversas habituais em Jerónimo faziam d'«O Acre» um lugar mais feliz. O acampamento era o nosso segredo e tínhamos aprendido coisas que nem sequer o pai sabia.

     

      O meu aniversário veio e foi-se... pelo menos o mês. Os meses tinham nomes, mas os dias não tinham números. Fizera catorze anos mas ainda era mais pequeno do que queria ser. Agora, a estação seca abatera-se sobre Jerónimo. Era tudo pó e folhas secas.

      O rio começara a ser cada vez mais estreito e cheirava mal. Tornou-se num fio de água entre profundas fendas abertas na lama borbulhenta, com as moscas a zumbirem por cima e com uma cobertura de pelos verdes. Roncava e saltitava junto do atracadouro. Um pouco para mon­tante transformara-se num pântano e já não se podia ir até Seville. Os nossos barcos estavam encalhados na lama e as bombas à beira da água paravam muitas vezes por causa do lodo e das ervas que arrancavam. Não chovia há meses e era capaz de faltar um mês ou mais até que chovesse de novo, afirmou o pai. Agora só fazia pequenas quantidades de gelo e toda a nossa água potável vinha do condensador do «Menino Gordo», o «Tendão do Jarrete».

      Não tínhamos dito nada ao pai podíamos informar que a fonte da cima, à margem coberta de ervas.

      A horta de Jerónimo estava verde, produzindo tomates, feijões e milho. Alguns dos pés de milho eram tão altos como os beirais da casa. Mas as bombas funcionavam mal. O pai declarou que fora um louco em pensar que o rio continuaria a correr... quando afinal era de tanta confiança como todas as outras coisas deste mundo imperfeito. Voltou a falar na abertura de um furo, já não o geotérmico mas sim um simples poço até às águas subterrâneas. Quem quer que aparecesse naqueles dias era posto a trabalhar no poço.

      O trabalho era duro e não eram muitas as pessoas dispostas a remover terra em troca de um pequeno bloco de gelo ou de um saco de sementes híbridas. O pai predisse que os Maywit regressariam em breve e que Jerónimo voltaria a funcionar a todo o vapor. Há três semanas que dizia aquilo.

      - Vou encarregar-te de tomares conta de Jerónimo, querida – declarou um dia, virando-se para a mãe.

      - Vais a algum lado?

      - Não, mas tenho de pensar no meu poço.

      Odiava o rio e o seu cheiro, e só falava do poço. «Vou trabalhar no meu poço», dizia todas as manhãs, e perguntava a todos os visitantes: «Então, e que vamos fazer a respeito do meu poço?» Ou estava dentro dele ou à sua beira, o rosto vermelho como um tomate, amaldiçoando o rio e o clima, e tentando inventar uma máquina para cavar. «Digamos que funcionará de acordo com o princípio do aspirador, mas que possa cavar e sugar ao mesmo tempo... É preciso dar-lhe dentes e pulmões, equipá-la com garras...»

Queixava-se de que trabalhava com ferramentas do homem das ca­vernas. «Ah, se eu tivesse máquinas pesadas!» Cavava ao lado dos zambus e não fazia mais nada. Se houvesse ferrugem no milho, lagartas nos tomates ou podridão nos feijões, ordenava-nos que tratássemos do assunto. Não aparecia água e continuava a cavar. A tarefa apoderou-se dele como uma febre. Dizia: «Nunca paro até chegar onde quero.»

De repente encerrou o «Menino Gordo». O soprar e gorgolejar da fábrica de gelo era-nos tão familiar que quando uma manhã o apagou, foi como ouvir o meu coração a parar. Tive de suster a respiração para escutar. O «Menino Gordo» já não estava húmido e já não pingava. Parecia ter morrido e também que o pai se tornara mais rígido, mais parecido com a sua invenção.

      - Então, e o gelo? - perguntou a mãe. - Então, e o meu poço?

      Assim, o poço tornou-se mais fundo e suficientemente largo para lá estarem quatro homens de pé, manobrando as pás. Parecia a boca do vulcão do pai e junto dele havia uma pirâmide de terra e pedras «o que prova, se é que é precisa alguma prova, que mesmo com ferramentas primitivas e um pouco de músculos se pode fazer qualquer coisa de construtivo a respeito da porcaria de mundo que herdámos».

      Continuava a não encontrar água. Deixámos de receber visitantes. O trabalho era demasiado duro. O pai abria o poço e quase não comia, dizendo: «Se eu tivesse as máquinas...»

      As bombas agora forneciam-nos apenas um fio verde de rio quase seco. Precisávamos de regar a horta à mão, deitando baldes de água para dentro do tubo que a conduzia aos regos. A mãe ficara enterrada até aos joelhos na lama do rio e nós os quatro, garotos, formávamos aquilo a que o pai chamava «Brigada dos Baldes», passando-os de mão em mão até à margem.

      Uma madrugada estávamos na «Brigada dos Baldes» quando a mãe levantou os olhos e disse:

      - O Sr. Haddy está com muita pressa.

      Corria para fora da selva em direcção ao poço do pai. Nunca ninguém corria para ali, devia ter acontecido qualquer coisa grave.

      - Peaselee diz que há homens no trilho!

      Foi o que o Sr. Haddy gritou para dentro do poço. Ficámos à espera. O pai saiu lá de dentro e atirou a pá para o lado.

      - Que vos disse eu? São os Maywit.

      - Veio a correr para mo dizer.

      - Onde é que ele está?

      - Continua a correr. Já deve ir em Swampmouth, neste momento. O pai reparou que o observávamos.

      - Que ninguém pronuncie uma palavra. Não podemos culpá-los de nada. Estamos satisfeitos por voltarem. Façamos de conta que nunca se foram embora... pois passaram um mau bocado. Acham que isto aqui é seco? Está encharcado, comparado com a seca lá de fora. Escutem, o mundo é um lugar terrível para quem tenha saboreado a vida em Jerónimo. Essa pobre gente vai precisar de toda a nossa simpatia. Sejam simpáticos para com eles. Dêem-lhes algumas ervilhas, ponham-nos a trabalhar. Temos mais umas mãos para o meu poço!

      - Pode ser alguém que queira gelo - disse a mãe.

      - Sei que são os Maywit - replicou o pai.

      Desta vez, o pai estava enganado. Não eram os Maywit quem vinha pelo trilho.

      - Homens – disse a mãe, olhando para cima. Juntámo-nos todos à volta dela. – São três homens, Allie.

      - Também estava à espera deles – declarou o pai, mas com uma voz mais fria. – São escravos.

      - Então, por que é que trazem armas, pai? – perguntou Clover.

      Os zambus pareciam aterrorizados. Um deles disse:

      - Cabuzes.

 

      Naquele momento soube o que sentiam as pessoas em Seville, os crioulos do rio, os índios da montanha ou quaisquer outros que nos vissem a nós, os Fox, a sair da selva. Aparecíamos assim nas suas aldeias, grandes, estranhos e não convidados.   Portanto, merecíamos aquela visita, o que não a tornava mais fácil.

      Os três espantalhos vinham vestidos de uma maneira diferente da que tinham na aldeia índia de Olancho, com camisas sujas de suor, calças imundas e botas. Não os tínhamos escolhido... foram eles que nos escolheram. Era isto o que os selvagens viam. Avançavam direitos a nós, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. Vestidos apresentavam-se ainda com pior aspecto do que quando estavam quase nus na aldeia. Um deles tinha uma espingarda pendurada no ombro e os outros dois traziam pistolas nas mãos. Escutavam e pestanejavam, um pouco estúpidos e um pouco zangados, como se andassem à caça de gatos.

      O rosto do pai contorceu-se, não de preocupação. Fazia cálculos rápidos na sua cabeça, somando, subtraindo, examinando probabilidades, fazendo a álgebra do que podiam querer. Reconheci as roupas dos homens. Eram as que vira a serem lavadas no rio pelas mulheres índias. Os zambus espreitavam da beira do poço com os seus olhos redondos de escravos.

      - Diz-lhes para guardarem as armas, Allie.

      - Deixa-me tratar do assunto. - O pai foi ao encontro dos homens e perguntou: - Então, o que há?

      Os homens sorriram-lhe mas mantiveram as mãos firmes. Olharam em volta para Jerónimo, mantendo-nos silenciosos ante as armas. Não usavam insígnias mas as suas roupas eram todas iguais e assemelhavam-se a uniformes. Os cabelos compridos e as barbas faziam com que parecessem irmãos. Lembrava-me deles como sendo altos, mas ali não o pareciam... eram da altura da mãe. Um dos que tinha pistola usava um cinturão com uma grande fivela de latão. Parecia mais inteligente, menos violento do que os outros dois, talvez por os outros terem falta de dentes. O da espingarda tinha uma ligadura na mão... uma ligadura suja que só podia estar a tapar uma infecção.

      No meio dos índios da aldeia haviam-se mostrado evasivos, quase tímidos... tinham falado connosco em sussurros, dando-nos comida e avi­sando-nos contra os índios agachados. Aqui, porém, não ostentavam qualquer timidez, mostravam-se fortes, como se estivessem habituados a entrar em aldeias e a ocupá-las. Levavam o seu tempo e nem sequer responderam ao pai senão depois de murmurarem qualquer coisa entre eles.

      - Nunca pensámos que viéssemos a encontrá-los. - Quem falou foi o da fivela de latão. Tinha os dentes demasiado grandes para a boca e foi então que vi que não estava a sorrir. Eram apenas os dentes a separar-lhe os lábios.

      - Pois cá estamos - respondeu o pai, sem entoação.

      - Quantos são vocês?

      - Milhares...

      Os homens olharam para trás muito depressa.

      - ... contando com as formigas-brancas - disse o pai. – Estamos infestados.

      - Não gosto destes homens - murmurou-me o Sr. Haddy. - Eh, Lungley...

      Mas os zambus haviam desaparecido. Tinham trepado para fora do poço e fugido para a floresta.

      - Chegaram mesmo a tempo para o pequeno-almoço - afirmou o pai. - Mexe uns ovos para estes nossos amigos, mãe - continuou, sempre em espanhol -, que têm ainda uma longa viagem pela frente.

      Dirigimo-nos todos para a galeria e aí os homens pousaram as armas. Sentaram-se no chão e comeram ovos e feijões, enquanto o pai falava das formigas-brancas. Térmitas, dizia, que se tinham metido em todo o lado, na comida, nas plantas, nos telhados e soalhos das casas. «Estão a comer-nos vivos!»

      Era a primeira vez que ouvíamos falar em formigas-brancas, mas ninguém contradisse o pai porque nunca ninguém o fazia. Os homens escutavam e devoravam a comida. Quando terminaram ficaram a olhar para nós com os rostos pálidos e magrizelas. A comida não lhes atenuara as expressões, só lhes dera um aspecto ainda mais esfomeado e perigoso.

      O homem dos dentes, que já antes falara, afirmou que se lhes acabara a água e que se haviam perdido quando a procuravam, e que tinham acampado na montanha.

      - Sei o que isso é - disse o pai.

      A mãe recolheu os pratos e o mesmo homem - era sempre o dos dentes grandes quem falava - declarou:

      - O seu marido disse-nos que tinha água e comida. Convidou-nos para virmos para aqui, afirmou que tinha de tudo. Lá em cima, nas montanhas, não havia nada.

      - Estamos no fim da estação seca - explicou o pai. - Estamos a senti-la. Está tudo morto ou a morrer. Não veremos chuva ainda durante semanas. Mas as formigas-brancas estão a engordar!

      Ninguém o fez recordar de que se gabara de Jerónimo ser à prova de térmitas.

      - Se as coisas continuarem assim, teremos de começar a comer as formigas.

      - Pff! - fez o homem dos dentes grandes: a ideia não lhe agradava.

      - Meninos da cidade - disse o pai para a mãe.

      Os homens continuavam a respirar com força, como se estivessem zangados.

      - Sabem, nesta zona, quando não há chuva, não há nada para comer. Perguntem a quem quiserem. Estamos no fim das provisões. Há formigas por todo o lado. O rio transformou-se num riacho. Da próxima vez que cá vierem, as coisas serão diferentes.

      - Onde estão os vossos zambus?

      - Provavelmente pensaram que vocês são soldados - disse o pai, franzindo o nariz. - Viram os vossos cabuzes.

      - Cabuzes? Não compreendemos.

      - Arcabuzes... armas. Estão em Mosquitia, agora - explicou. - Não tive tempo para lhes dizer que vocês são amigos. Se calhar, neste momento, já estão a molhar as setas no veneno, não é assim, Charlie?

      Perguntou aquilo de um modo muito casual. Pelo tom de voz percebi o que ele queria que respondesse.

      - Sim - afirmei.

      - Pregaram-lhes um belo susto! - Agora mostrava-se bem-disposto.

      Afastou a cara dos homens e virou-se para o exterior da galeria, onde    jazia o rio malcheiroso e quase imóvel. - Para onde vão?

      - Isto aqui é bonito.

      - Mas está cheio de formigas! - exclamou, encarando-os de novo. - Não vejo nenhumas formigas.

      - Claro que não. Se as víssemos, podíamos matá-las.

      - Onde está o gelo de que nos falou?

      - Já não fazemos gelo. Olhe para aquele rio... É como um esgoto.

      Precisamos de toda a água para as culturas.

      O homem que mantivera a conversa disse muito claramente para os outros:

      - Não está a fazer gelo.

      - Já quase não há rio - continuou o pai. - No entanto, ainda é o suficiente para uma piroga. Este é o Bonito, corre para o Aguan. Posso desenhar-lhes um mapa. Estamos a um dia da costa, vão gostar de lá estar.

      - Gostamos de estar aqui.

      - Quem me dera ter lugar para vocês, mas a maior parte das casas está infestada. Formigas. Têm sorte, não encontrarão formigas junto da costa.

      - Há uma casa vazia aqui ao lado.

      A casa abandonada pelos Maywit. Já a tinham visto.

      - Essa casa não tem telhado - declarou o pai.

      - Está enganado.

      O pai virou-se para o Sr. Haddy e disse:

      - Mandei-te deitar abaixo aquele telhado e o soalho, Figgy. Pega no teu pé-de-cabra e ao trabalho... quero deitado abaixo tudo o que estiver podre.

      Logo a seguir ouvimos o barulho provocado pelo Sr. Haddy ao desmantelar a casa dos Maywit... o estalar e o chiar das tábuas, como se estivessem a matar porcos.

      - Por favor, desculpem-nos - prosseguiu o pai. - Temos trabalho para fazer, não estamos aqui em férias.

      Os homens seguiram-no para o exterior.

      - O meu poço - disse o pai. - Terão de ficar cá em cima, não autorizo armas dentro do meu poço.

      - Arcabuzes... cabuzes - murmurou o homem da espingarda, sorrindo-se. - Vamos dar por aqui uma volta - anunciou o dos dentes grandes.

      - Vão até ao rio. Verão lá uma piroga. É vossa... remem até à costa. - Não é preciso.

      - Isso é o que dizem as formigas.

      Os homens encolheram os ombros.

      - Vou dizer-lhes um segredo - continuou o pai. - Somos auto-sufi­cientes. Podemos alimentar-nos, mas não podemos dar de comer a mais ninguém. É por isso que lhes sugiro que sigam o vosso caminho.

      - Estudaremos a sua sugestão.

      De repente ocorreu-me que os homens falavam espanhol de um modo que eu nunca ouvira. Era um espanhol polido, algumas frases eram inteiramente novas para mim e não faltavam palavras. Eram homens educados que pareciam ali deslocados, num sítio onde o espanhol de toda a gente era uma mistura de crioulo e inglês. Não podia ouvi-los a falar um espanhol tão perfeito sem suspeitar de que eram desonestos. Mas... essa era uma das suspeitas do pai, que desconfiava sempre das pessoas educadas. Percebi que odiava aqueles homens.

      - Bom, então vou fazer-vos outra. Guardem esses cabuzes. Põem-me nervoso. Não lhes vou perguntar onde os arranjaram. - afirmou o pai, cuja paciência se esgotava. - Não vim para aqui para ficar a olhar para o cano de uma arma. E não preciso de mais um buraco na cara, está bem? Vêem algumas fechaduras nestas portas? Algumas vedações? Não? Isso é porque este é o mais pacífico lugar da Terra. Quero conservá-lo assim.

      Os homens limitaram-se a sorrir e a segurar melhor nas armas.

      - Pega numa pá, Charlie, e salta cá para dentro.

      Descemos os dois para o poço. O pai murmurou-me:

      - Pensei que aqueles cavalheiros eram prisioneiros dos índios. Parece­-me que era ao contrário. Dá-me um pontapé, Charlie, sou um parvo!

      Cerca de meia hora depois ouvimos um barulho por cima de nós.

      O Sr. Haddy descia ao poço.

      - A casa dos Maywit está arrumada, dei cabo dela. Era velha mas não vi nenhumas formigas.

      O pai estava de costas para nós, com uma picareta nas mãos. Cavava e pensava.

      - Não gosto daqueles amigos, pai - insistiu o Sr. Haddy.

      - Mais baixo, Fig.

      - Estão sentados debaixo do guanacaste.

      - Está bem. Rebenta com o telhado e o soalho da tua casa e diz ao Harkins para fazer o mesmo. Se não encontrares o Peaselee, derruba a casa dele. Estamos infestados. Vamos queimar essas casas. Charlie, pega no Jerry, arranja um saco de caca de galinha e espalha-a no armazém frigorífico. Molhem-na até que cheire mal. Fechem a entrada do celeiro com tábuas. Digam à mãe o que andam a fazer...

      Deu-nos mais instruções e quando terminou referira-se a todas as construções de Jerónimo, excepto uma.

      - Então e o «Menino Gordo»? - perguntei.

      - Não lhe toques. Certifica-te de que a fornalha está apagada.

      - Então, se as formigas comerem tudo e deitarmos abaixo as casas, não há lugar para os nossos amigos ficarem - afirmou o senhor Haddy com um dos seus sorrisos de coelho.

      - É mais ou menos isso - retorquiu o pai. - Vou acabar com esta situação de um modo pacífico.

 

      Quando chegou a hora do almoço, Jerónimo estava diferente. As casas de Haddy e Maywit não tinham nem telhado nem soalhos, o alpendre de Peaselee fora desmantelado e partido, o celeiro entaipado, o armazém-frigorífico encerrado e sujo de esterco, a casa dos banhos também encerrada e suja de esterco, as bombas desmontadas... Tudo aquilo destruído, afirmava o pai, «no interesse da fumigação». A nossa casa ainda estava inteira, tal como o «Menino Gordo», mas o resto ou fora aberto para o céu ou entaipado.

      - É a guerra contra as formigas.

      O Sr. Peaselee e o Sr. Harkins não voltaram, o que era provavelmente uma bênção porque as suas casas estavam num pobre estado e ficariam preocupados quando as vissem. A mãe disse que Ma Kennywick fora para Swampmouth para ficar com a irmã... as marteladas e pancadas eram mais do que podia suportar. Os zambus mantinham-se fora das vistas, mas eu sabia que apesar de não os podermos ver eles nos obser­vavam por entre os ramos e as folhas.

      Fora uma atitude drástica, aquela de o pai se decidir a deitar abaixo a maior parte das casas habitáveis, mas não era surpreendente e nenhum de nós se preocupava. Já sabíamos que a construção de uma casa podia ser muito rápida, já tínhamos visto como ele o fazia. O pai dizia frequen­temente que a criação e a destruição eram mãe e filha. Desmanchara o Little Haddy peça por peça e depois tornara a montá-lo dando-lhe uma forma mais esguia, para poder navegar rio acima. Confiávamos na sua rapidez e habilidade... mas depois de tantos meses de trabalho para o pôr a funcionar, quem diria que Jerónimo podia ser silenciado e transformado num monte de sucata no espaço de uma manhã?

      Os três homens desapareceram, metendo-se na selva com as armas.

      Voltaram para almoçar.

      O pai estava agora bem disposto. Recebeu-os calorosamente e encheu­-lhes os pratos de comida.

      - Se partirem logo depois do almoço - disse - ainda poderão chegar a Bonito Oriental. Há aí uma loja chinesa, dos irmãos Ling. Têm todo o género de comida enlatada e talvez também rum. Bebidas e música de rádio. Esse é que é um bom sítio para vocês, rapazes da cidade...

      Encontrava-me num canto da galeria com Clover, April e Jerry. - Que fez o pai com as casas? - perguntou Clover.

      - Rebentou-as - respondeu Jerry. - Deitou-as abaixo. O Charlie e eu pusemos caca de galinha no armazém-frigorífico.

      - Está pior do que quando aqui chegámos - afirmou April.

      - Quero ir para «O Acre» - disse Clover.

      - Não podemos - expliquei.

      - O Charlie está com medo.

      - Não estou nada. O pai não nos deixa, quer que o ajudemos.

      - Aqui não há nada para fazer, está tudo estragado.

      - Haddy pensa que esses homens são criminosos - declarou Jerry ­e que vão matar alguém com as suas armas.

      - Não nos podem matar se estivermos n' «O Acre» - disse Clover.

      - Não nos encontrariam.

      - Se o tentassem, caíam nas armadilhas - acrescentou April.

      Era um dia óptimo para irmos para o acampamento e havia mais água na nossa lagoa do que em Jerónimo. Daria tudo para passar lá a tarde a nadar. Queria sair daquele lugar, para depois regressar e descobrir que os homens já lá não estavam e que as casas haviam sido reconstruídas.

      Quando disse isto aos garotos, a mãe repreendeu-nos:

      - Dizer segredos não é boa educação.

      O pai estivera a falar com os homens. De repente levantou-se e declarou:

      - Estes cavalheiros querem saber como perdi o dedo! É uma história interessante!

      Debruçou-se sobre os homens e começou a falar em espanhol.

      - Foi na nossa primeira noite aqui, em Jerónimo. Estávamos enterrados no meio desta selva, convencidos de que nos tínhamos preparado bem, pois trazíamos mosquiteiros, sacos de dormir, tendas, tal como verdadeiros guerrilheiros. Fomos todos para a cama e adormecemos. Tive o meu sonho do costume, o sonho da campainha da porta, o pesadelo do botão da campainha. Encontrava-me à porta do diabo, tentando entrar. Carregava no botão da campainha, ou assim pensava, mas na verdade colocara o dedo no mosquiteiro e fizera-lhe um buraco, fiquei com o dedo de fora. De manhã, acordei e tentei puxá-lo. Só que não tinha lá dedo nenhum, apenas o coto! Durante a noite houve qualquer coisa que me comeu o dedo, um rato, um morcego, um armadilho, um pecari. Temos por aqui muitos bichos.

      Mostrou o coto do dedo aos homens e prosseguiu:

      - Isto foi o que restou! Ainda bem que não enfiei toda a mão cá para fora... pois nesse caso agora usaria um gancho!

      Os homens examinaram o coto do dedo. Não era capaz de dizer se tinham ou não acreditado, mas o pai contara a história muito bem, e de um modo vigoroso.

      - Olhem para as marcas dos dentes! À noite, este sítio fica cheio de criaturas! Isto já não são as montanhas... aqui é a selva, rapazes!

      - Já conhecemos a selva.

      - Mas não esta... Não estamos nem em Olancho nem em Tegoose.

      As gentes daqui são descendentes de piratas e de canibais das Caraíbas. Aranhas do tamanho de cachorros? Abutres que nos limpam os ossos? Isto é a costa de Mosquito! É por isso que vos aconselho a descerem o rio, para onde as portas e janelas possam fechar-se. Se alguém adormecer no exterior nesta zona, de manhã não resta nada... nem os ossos.

      O homem dos dentes grandes virou-se para os amigos.

      - Por exemplo, onde é que vão dormir esta noite? - perguntou o pai. Não responderam.

      - É melhor que seja dentro de casa e longe daqui, ou arriscam-se a perder mais do que apenas um dedo!

      Trabalhámos durante toda a tarde, cavando no poço, fechando as casas e cheios de vontade de ir para «O Acre», enquanto os três homens conversavam uns com os outros. Estavam inquietos e observavam o nosso trabalho. Ostentavam olhos nervosos em rostos doentios e moviam-se como os lagartos, aos solavancos, parando sempre que queriam olhar em volta.

      Cada vez que olhavam para o pai este levantava o coto do dedo e afirmava:

      - Daqui a pouco será escuro!

      Afastavam-se, ignorando-o. Aquela indiferença irritava o pai.

      - Estou a dar-lhes uma oportunidade - declarou, mas num tom quase implorador. - Ofereço-lhes a minha canoa. Seria bom que se fossem embora, aqui escurece muito depressa.

      Os homens brincavam com Clover e April por debaixo da guanacaste. - Onde vamos nós dormir, pai? - perguntou o Sr. Haddy.

      - Há uma cama para ti - respondeu o pai, gritando a seguir para os homens: - Afastem-se dessas crianças!

      Pegou num grande martelo e caminhou para eles, pelo meio das casas rebentadas ou encerradas.

      - Não me importo que fiquem aqui, mas não ponham as mãos em cima dos meus filhos.

      - São crianças muito inteligentes.

      - Têm pais inteligentes - replicou.

      - Sim. Contaram-nos todas as coisas maravilhosas que o senhor con­segue fazer.

      - Eu não contei nada, pai. Foi a April - disse Clover.

      - A Clover falou do teu furo para tirar energia geotérmica dos vulcões - afirmou April.

      - Aquilo é um poço - explicou o pai. - Esta estação seca transformou­-nos a todos em zambus. Lutamos por uma gota de água. Calem essas bocas, garotas, e façam qualquer coisa de útil.

      Os homens afastaram-se para o rio. Não podíamos vê-los, pensámos que se tinham ido embora, mas voltaram ao crespúsculo. Era a hora dos mosquitos e de os morcegos começarem a voar. Os homens davam palmadas nas cabeças, esfregavam os tornozelos e abriam buracos nas camisas, de tanto se coçarem.

      Durante a sua ausência, a disposição do pai modificou-se. Ficou pensativo e mastigou o charuto. Não falou com nenhum de nós mas andou de um lado para o outro a resmungar. Levou as ferramentas para junto do «Menino Gordo», subiu a uma escada e martelou qualquer coisa junto da abertura superior. Porém, quando voltou a ver os homens, começou a rir-se. Já escurecera, o Sr. Haddy trouxe uma lanterna do barco. Os insectos esvoaçavam em torno do vidro da lanterna. Fiquei a olhar, junto de Jerry.

      - Sou um parvo! - exclamou o pai, ainda a rir-se. - Vocês disseram que gostavam disto aqui e eu não vos acreditei. Agora já estou convencido de que falavam a sério. Vão cá passar a noite, não é?

      - Sim.

      - Não me admirava que se decidissem a ficar duas noites ou mais. Talvez até chegarem as chuvas e começarem a semear... e ainda faltam muitas semanas.

      - Ficaremos até estarmos prontos. Depois partimos.

      Ao dizer aquilo, o homem tinha uma cara de insecto, um daqueles que se instalam na vagem de um feijoeiro e abrem caminho até ter comido todo o interior. Os insectos agitam-se um pouco, mas não têm mais expressão do que um par de alicates. Os homens tinham esse aspecto... lábios como pinças e olhos como rebites. Insectos.

      - Não sou nenhum selvagem - disse o pai. - Não vou apoderar-me de vocês e fazê-los prisioneiros. A escolha foi vossa. Agora já é escuro, já não podem ir para lado nenhum. - Pegou na lanterna e colocou-a junto dos rostos deles, levando os insectos a aproximarem-se dos seus olhos de insectos. Os homens olharam para os mosquitos e para as borboletas nocturnas. - Seria uma idiotice irem-se embora agora. Não temos muito, mas o que temos é vosso. Esta infestação... Olhem, está uma térmite aqui no vidro, estão a ver-lhe as mandíbulas?.. Deixou-nos com poucas casas, mas podemos dar-lhes comida e abrigo...

      - É um homem muito sensato.

      - Faço o que posso.

      - Ele compreende.

      - Quando vos vi lá em cima - era uma aldeia tuaca, não era? -, pensei que fossem prisioneiros.

      Os homens sorriram e deram palmadas nas faces e orelhas, para afugentar os insectos. Com a lanterna naquela posição, o pai estava a atormentá-los.

      - Pensei cá para mim: «São escravos!»

      Os homens riram-se e continuaram a afastar os insectos.

      - Mas vocês eram hóspedes daqueles índios - continuou o pai. ­

      Agora são nossos hóspedes. Olhem... - Um mosquito pousara no braço do pai. Deixou-o lá ficar durante um momento e depois deu-lhe uma palmada. Mostrou aos homens o mosquito esmagado e a mancha de sangue. - Morto! Não tenho nenhuma pena dele... aquele sangue não é do mosquito, é meu!

      Os homens recuaram. O pai limpara o sangue com o coto do dedo.

      - Isto é Mosquitia! - exclamou.

      - Tem razão, há muito mais bichos aqui do que nas montanhas de Olancho.

      - A costa de Mosquito está cheia de surpresas. É por isso que gostamos dela, não é verdade, senhor Haddy?

      - Vou dormir no meu barco, pai.

      - Está bem, Figgy. Charlie, leva o Jerry para casa ou são comidos vivos.

      Encaminhámo-nos para casa, que era agora o único edifício ainda intacto em Jerónimo. Jerry pegou-me na mão... Estava preocupado, tinha a mão húmida. Agitava a cabeça para afastar os mosquitos.

      - E os senhores, cavalheiros, podem usar a casamata.

      - De que casam ata está ele a falar? - perguntou Jerry, pois o pai dissera a palavra em inglês. - Não temos nenhuma casamata.

      A lanterna agitava-se, o pai conduzia os homens para o «Menino Gordo». No círculo de luz cheio de traças, colocou a escada junto da parede para dar acesso à abertura superior.

      Alguns minutos depois o pai encontrava-se junto da porta de rede da galeria, falando enquanto a abria.

      - Querem comida. Mete-a neste cesto, mãe, que eu vou lá levá-la.

      A mãe preparou uma vasilha com wabool e depois arranjou doses de feijões e arroz, enrolou-as em folhas de bananeira e meteu-as num cesto.

      - Vamos ter de os aturar - comentou a mãe.

      O pai mantinha um rosto inexpressivo, o longo nariz queimado pelo sol. Olhava para o chão, onde comíamos. Era como se tivesse esgotado todas as suas emoções habituais durante aquele confuso dia e já não lhe restasse nenhuma. Levantou os pés e andou de um lado para o outro, pousando-os a direito como um pato.

      - Ter de os aturar? - perguntou. - Não temos de aturar ninguém. Se eu acreditasse nisso, tínhamos ficado em Hatfield. - A sua voz não tinha entoação e continuava a andar de um lado para o outro. - Ninguém com o mínimo de miolos tem de aturar ninguém para sempre, ou tem de suportar um minuto de opressão. Já provámos isso, mãe. Todos nós escolhemos os nossos próprios «vasos-da-trovoada», sentámo-nos neles e aceitámos as consequências.

      A mãe sorria.

      - «Vasos-da-trovoada» - explicou o pai - era o que costumávamos chamar aos penicos, no Maine.

     

      Já passava da meia-noite mas ainda fazia tanto calor que as árvores e as ervas continuavam cheias de insectos a zumbir. As rãs coaxavam no que restava do rio e conseguia ouvir a corrente a marulhar contra os juncos. Estes foram os ruídos que ouvi segundos depois de acordar. O pai colocara a mão sobre a minha cara. Naquela escuridão, pensei que fosse um dos homens que fora ali para me estrangular.

      - Calça os sapatos e segue-me.

      Não tínhamos luzes, mas, no entanto, na clareira havia o luar suficiente para conseguir ver as casas vazias e as pilhas de madeira arrancadas de telhados e soalhos. Jerónimo fora assim muitos meses antes, quando estávamos a construí-la... estacas avermelhadas numa cratera vazia e o estalar das tendas na selva.

      O pai transportava debaixo do braço uma grossa tábua e nada mais. Era uma arma desajeitada, se é que se tratava de uma arma. Atravessá­mos o armazém-frigorífico, onde pairava um cheiro a caca de galinha. O pai ajoelhou-se na erva e respirou fundo várias vezes. Parecia contar as aspirações do ar.

      - Dei-lhes todas as hipóteses de se irem embora. Até lhes ofereci a minha canoa. - Esmagou um mosquito e mostrou-me a mancha negra no dedo, como fizera antes. - Não tenhas pena dos insectos. Este é o meu sangue.

      Acenei que sim, tinha medo do barulho que a minha voz pudesse provocar.

      - Mas eles recusaram, tu ouviste-os. Estão a planear agarrarem-se a nós, tal como se agarraram àqueles índios. Lembras-te daqueles pobres e patéticos homens, sentados no chão com os malucos dos cães? Charlie, os índios é que eram os prisioneiros!

      - Pareciam assustados.

      - Ah, sim? - O pai baixou a cabeça. - Não costumo enganar-me muitas vezes, mas quando o faço é a sério.

      Aquilo era uma confissão. Não fui capaz de pensar em nada para lhe dizer, que lha facilitasse.

      Agora, olhava para «Menino Gordo». Encolheu os ombros e na sua antiga voz, rouca e trocista, que utilizava quando me queria pôr à prova, disse-me:

      - És capaz de trepar aquela escada e enfiar esta tábua nas dobradiças da porta lá de cima, sem fazeres ruído?

      - Penso que sim.

      - É melhor teres a certeza, Charlie, porque se acordas aqueles insectos, são capazes de começar aos tiros.

      Entregou-me a tábua, que tinha um perfume doce, um aroma a nozes assadas... fora acabada de serrar.

      - Podes fazer com que nos matem a todos - insistiu. Queria que eu largasse a tábua e fugisse. - Bom, toca a trepar.

      Aproximámo-nos da escada e o pai segurou-a. Subia mesmo junto dele e recebi a onda de calor vinda do seu corpo, o cheiro das suas preocupações, que era como um vapor de sangue a pairar no ar. A seguir fui arrefecido por uma ligeira brisa quando atingi o meio da escada. Ainda bem que estava escuro, não podia ver o chão com clareza, apenas manchas de luar, como rolas a comerem na relva, e pedaços de brilho acinzentado nas árvores. Tinha os dedos da mão livre muito brancos, tremiam nos degraus.

      Perto da porta superior, imaginei que podia ouvir os homens a ressonar no interior do «Menino Gordo», na plataforma mais alta, no meio da confusão de tubos. Meses antes vira aqueles tubos e reservatórios e pensara ter tido um relance da mente do pai. Não podia separar uma coisa da outra e agora parecia-me terrível que aqueles intrusos ali esti­vessem, malcheirosos, à espera, e recusando-se a partir. Homens que o pai odiava haviam entrado naquele lugar privado.

      Havia dobradiças de metal fixas na ombreira da porta. O pai devia tê-las colocado naquela mesma tarde, pois eu nunca as vira lá. Em Jerónimo não havia dobradiças, aquela era a primeira.

      Levantei a tábua, encostei-a à porta junto das dobradiças e fi-la deslizar. Encaixava perfeitamente. Porém, assim que acabei de encaixar a tábua, compreendi até que ponto se tratara de um gesto final. Selara a porta... barricara-a, diria o pai. Sentia as pernas fracas e comecei a oscilar. Desci a escada muito depressa, sempre à espera de ouvir um estrondo e tiros.

      - Afasta-te.

      Desencostou a escada da parede do «Menino Gordo» e pousou-a deitada sobre a erva. A seguir encostou a boca à minha cabeça.

      - Tu não subiste aquela escada.

      O seu bafo escaldava-me a orelha.

      - Não fechaste aquela porta.

      Pegou-me no braço e apertou-o.

      - Não há fechaduras em Jerónimo.

      Apertava-me o braço com tanta força que pensei que o osso se quebraria. Puxava-me para a fornalha. Não tínhamos sombras.

      - Quero que faças um teste aos teus olhos. Creio que são tão bons como os meus.   Aposto que consegues ver o mesmo que eu. Olha para ali.

      Ainda a segurar-me o braço com a mão esquerda, fez um movimento com a outra mão. Para lá do coto do dedo estava a fornalha.

      - Alguém deixou o lume aceso - declarou.

      Não havia lume nenhum.

      - Não consigo vê-lo - afirmei. Fiquei com a mão adormecida, ele apertava-a com toda a força.

      - Olha - disse, acendendo um fósforo e colocando-o no monte de aparas. Estava tudo preparado... aparas, raminhos secos, ramos maiores e troncos cortados por cima de tudo o resto. - Alguém acendeu o fogo... e eu disse-lhes para não o fazerem.

      - Sim.

      Largou-me mas não consegui sentir nada naquela mão. Era como se, no escuro, ma tivesse arrancado.

      - Nada de fogos, disse eu! - acrescentou, com um rosto selvagem.

      As aparas de madeira deviam estar embebidas em óleo, porque fizeram um ruído característico quando se incendiaram e puseram a arder os troncos que estavam por cima, num crepitar mais alto do que os sussurros do pai. O fogo rugiu contra os tijolos quando o pai fechou a fornalha. Ouvia-o na chaminé, bem assim como os estranhos ruídos dos líquidos a agitarem-se nos tubos do «Menino Gordo»... arrotos e sons de algo a ser engolido, que naquela noite pareciam muito tristes.

      - Vamos ter de deixar que continue a arder. A fornalha está cheia de troncos. Não podemos fazer nada para a apagar. - Falava mais baixo do que os ruídos à nossa volta. - Foi um diabo qualquer que fez isto.

      - Os homens... - mas que podia eu dizer-lhe, que ele não soubesse já? O pai sabia que os homens que lá estavam dentro iriam ficar congelados. No entanto, queria dizer-lhe qualquer coisa porque estava a vê-los com toda a clareza, esticados e cinzentos, com gelo nos rostos.

      - Começa a contar, Charlie. Quando chegares a trezentos já não haverá homens lá dentro.

      Não disse mais uma palavra e conduziu-me para casa em silêncio. Engolia, como se também estivesse a contar. O estralejar do fogo, os ruídos nos tubos do «Menino Gordo», o estalar das juntas... eram como que o apressado tique-taque de uma contagem de tempo.

      Antes de chegarmos a casa ouvimos raspar e bater, dentro do «Menino Gordo», coronhas de armas de encontro às paredes. O pai continuou a engolir e avançou para o «Menino Gordo».

      - Se se deitarem, ficarão bem.

      As pancadas tornaram-se frenéticas.

      - Estão a tentar rebentá-lo.

      O pai não se mostrava alarmado, ele próprio o construíra com placas de mogno sobre uma estrutura cintada a ferro. Sabia muito bem qual a resistência do «Menino Gordo».

      Ouviram-se quatro tiros lá dentro, e depois alguns mais, abafados pelas paredes duplas. Nem sequer fiquei com a certeza de que se tratava de tiros até o pai dizer que os homens disparavam as armas.

      - Allie, estás bem? - perguntou a mãe, de pé na galeria, com o seu roupão branco.

      O pai respondeu-lhe mas as palavras foram abafadas pelo grande barulho que se seguiu aos tiros... ouviam-se enormes estrondos dentro do «Menino Gordo», como barris a rebolarem por uma escada abaixo. Os homens encurralados tentavam abrir caminho derrubando a porta. Dispararam as armas e o metal tiniu quando as balas atingiram os tubos...

      - Continua a contagem, Charlie.

      Clover, April e Jerry apareceram junto da mãe, na galeria. April chorava e os outros perguntavam:

      - Onde está o pai? Que aconteceu ao Charlie?

      - Que barulhenta fantochada é esta? - perguntou o Sr. Haddy por detrás de nós, com as roupas de dormir, camisola interior e cuecas às riscas. Dançava de um lado para o outro com medo.

      - Baixa a cabeça, Figgy. Vai tudo correr bem. Uns minutos mais...

      - Que estalar é aquele?

      - São grilos.

      Os barulhos aumentaram de intensidade e ouviram-se gritos como que vindos de um túnel, de homens enterrados vivos. Isso e o chiar dos tubos. Eu conhecia aqueles tubos... se lhes tocássemos, o metal frio arrancava-nos a pele dos dedos. Toda a estrutura vibrava. O telhado de zinco chocalhava. No meio da escuridão, aqueles ruídos faziam com que o «Menino Gordo» parecesse maior do que nunca. Os ecos estran­gulados de tantas pancadas, do medo e dos tiros, abriam buracos no ar da noite. A luta era como um inferno dentro de um imenso caixão, pregado sobre pessoas ainda vivas.

      - Estão a estragá-lo... - disse o pai. Não esta,a assustado, mas sim ofendido e zangado. - Não querem deitar-se. Ainda acabam por lhe fazer algum buraco...

      Falava como se tivesse qualquer coisa a estourar dentro da cabeça. Os garotos choravam e o Sr. Haddy continuava a dançar, enfiado nas cuecas às riscas.

      - Não! - gritou o pai, começando a correr.

      Foi então que se deu a explosão. Encheu a clareira de luz que me escaldou a cara. Deu cor a todas as folhas, não verdes mas vermelho-dou­radas, e embateu nas construções em volta - o armazém-frigorífico, a incubadora, o celeiro -, abalando-as com chamas pálidas e depois deitando-as abaixo como se fossem de papel. A explosão arrancou o «Menino Gordo» do chão, rebentou-o e largou-o, fazendo saltar as tábuas como se fossem pétalas, enquanto a bola de fogo saltava para o ar como um balão.

      O pai virara a cara da explosão. Um dos lados da sua cara tinha um ar selvagem, o outro estava negro. Um dos seus olhos era vermelho.

      Fixava-se em mim e era tão brilhante que parecia ir rebentar do sangue acumulado. Tinha a boca aberta. Podia estar a gritar mas os outros barulhos eram mais fortes.

      A explosão terminara mas a sua força ainda fazia agitar as árvores como se estivessem sob uma tempestade. As tábuas que se haviam soltado ardiam agora, e o fogo trepava pelos canos que lançavam jactos de chamas azuis como um maçarico, tudo isto no meio de um intenso cheiro a amoníaco, que me picava no nariz e me fazia arder os olhos.

      O pai correu em direcção às chamas, depois colocou as mãos sobre a cabeça e correu de novo para junto de nós. Tinha a boca negra e eu agora já conseguia ouvir o que dizia:

      - Sigam-me! - gritou.

      Continuámos parados, ninguém mexeu um músculo. - Sigam-me! - repetiu.

      A mãe e as crianças correram para ele, abraçaram-no e seguraram­-no. Pensei que iam deitá-lo ao chão. Choravam e tentavam fazê-lo mexer-se, e todos nós ofegávamos no meio dos vapores de amoníaco. «Pai!» e «Allie!», gritavam.

      - Vamos todos morrer - gemeu o Sr. Haddy.

      - Temos de sair do meio deste veneno - disse o pai, continuando sem se mexer.     Perguntei a mim mesmo se estaria ferido. Tinha a cara arranhada e suja. - Há mais hidrogénio nos tanques, o amoníaco vai cair-nos em cima. Tapem as caras.

      Do outro lado da clareira, iluminando o que restava de Jerónimo, o «Menino Gordo» ardia. Não sabia, até àquele momento, que um fogo tão brilhante pudesse ser tão silencioso. As casas ardiam como se fossem cestos, mas eram as aves que produziam a maior parte dos ruídos. O fogo passou para a própria clareira e para as árvores em volta. Espalhava-se rapidamente. O que fazia com que tudo aquilo se parecesse com o fim do mundo não eram nem as chamas nem a luz, mas sim o cheiro do amoníaco, um cheiro a esgotos podres. Explodiu outro tanque de gás, que provocou uma tremenda ventania de calor e veneno.

      Com gritos terríveis, o pai esfregava os olhos e implorava-nos que o seguíssemos, mas não se movia. Quando o vi assim, com os olhos vermelhos, comecei a chorar e disse:

      - Sei de um sítio...

      Comecei a andar e todos me seguiram, e pouco depois já estavam mesmo atrás de mim, empurrando-me ao longo do trilho.

      Tudo demorara menos de cinco minutos... e eu ainda estava a contar. A seguir, ouviu-se uma série de choques no escuro, como portas a bater numa casa sujeita a uma ventosa noite de Verão.

 

                         A LAGOA BREWER

 

      O incêndio do «Menino Gordo» brilhou durante toda a noite por cima da copa das árvores, como um chapéu luminoso. O cheiro a urina do amoníaco ainda chegava até nós. As chamas traziam Jerónimo para mais perto de nós. As fagulhas que delas saltavam apagavam as estrelas e substituíam-nas por palhas em fogo, enquanto o fumo encobria os céus.

      Encontrava-me sentado no nosso acampamento, «O Acre», torturado pelos mosquitos. Não era capaz de encontrar as bagas pretas de que nos servíamos para manter os insectos afastados durante o dia. Ali, o fumo de Jerónimo não servia para os afastar... e não me parecia bem atear uma fogueira tão perto daquela que destruíra a nossa casa e que ainda ardia daquela maneira violenta e esfomeada com que as chamas consomem as madeiras secas, cuspindo-as para o céu, transformadas em cinzas. O pai encontrara um dos recantos do acampamento e deitara-se. Dormia como os outros. Não pronunciara uma palavra.

      - Vê se dormes, Charlie - disse a mãe, bocejando e, pouco depois, também ela dormia e só fiquei eu acordado.

      Sentado no meio daquelas pessoas adormecidas, descobri então como eram longas as noites do pai, pois em geral era ele quem ficava acordado a vê-las passar. Havia ruídos na escuridão, o estalar de ramos que caíam, os breves estrondos de árvores que não se aguentavam de pé. Havia os guinchos dos morcegos e, por causa do fogo, algumas aves ainda piavam baixinho, enquanto outras berravam como clarinetes. Aque­les sons - principalmente os das aves - não pertenciam à floresta, eram demasiado ásperos, rezingões e irritantes na suave maciez das árvores negras que nos rodeavam.

      Aqueles ruídos eram uma desordem, mais audível à noite, e os piores de todos provinham dos lugares mais escuros. Alguns pareciam súbitos esguichos saídos de um tubo partido. Ouvi a selva a ser rasgada. As criaturas escondidas, e até algumas árvores, tinham vozes. Lançavam para a noite os seus gritos agudos de medo, amedrontadas pelo fogo que agitava todo o céu. Estava como cego e o mundo caía à minha volta como gotas de orvalho. Não parecia existir um remédio para o

tranquilizar, ou deter, ou adormecer. Tudo rugia para mim. Foi então que toda a esperança me abandonou e que, perfeitamente acordado, comecei a preocupar-me. Não se tratava da solidão mas sim de um pesadelo de destruição, de uma gigantesca roda de aço a girar, sempre a girar, soltando um ruído monótono na escuridão intemporal, espalhando penas e garras...

      O pai não se importava com aquele amontoado de ruídos. Noites como esta, que tanto me preocupavam, enchiam-lhe a cabeça de ideias. Assim, quando a madrugada chegou, já o conhecia melhor e receava-o mais do que quando enfrentara a inesperada ruína de Jerónimo.

      - Deixem-no dormir - disse a mãe admirada por ele ainda estar a dormir, pois nunca o vira mergulhado num sono tão pesado.

      Jazia de lado, enrolado como um porco-espinho, com os braços pousados na cara e os joelhos puxados para cima, dobrado num molho de resmungados ressonos. As moscas haviam-lhe pousado na camisa e andavam de um lado para o outro sobre as pregas do tecido, parecendo brincar, imperturbáveis por ele estar tão imóvel.

      Ninguém falava, ninguém queria ouvir o que diria quando acordasse. Agora já era dia. Sentia-me enjoado e pequeno, por baixo das árvores que estremeciam.

      Nas madrugadas da estação seca, as folhas pareciam morrer quando o Sol lhes tocava. O orvalho secava nas ervas e as folhas murchavam, iluminadas como fios de ouro através dos rasgões existentes entre os ramos. Liberta da humidade e da escuridão, a poeira do chão enchia o ar com um cheiro amarelado a decomposição, adocicado durante a primeira hora de luz. O Sol nascente aquecia tudo aquilo em que tocava, todas as coisas vivas, endurecendo-as e doirando-as com a morte. Havia belas moedas douradas nas árvores brilhantes e arbustos inteiros de ressequidos flocos de ouro. Maio Sol aparecia por cima dos ramos mais altos, tudo n' «O Acre» ficava brilhante e morto em volta da lagoa negra.

      Esperámos, quase sem respirar, que o pai acordasse. Passei pelas brasas e observei as aranhas junto da água, o modo como reparavam as teias para apanhar uma mosca que se debatia, antes de caírem sobre o insecto, enrolando-o como a uma múmia. Penduravam as moscas embrulhadas em fios num dos cantos mais altos da teia, tal como os índios penduravam o milho e os pimentos, para secarem.

      - Pobre pai - murmurou Clover.

      - Os seus sarilhos quase o mataram - comentou o Sr. Haddy.

      - Agora estamos bem - disse a mãe. - O Charlie salvou-nos.

      - Isto não é do Charlie. É «O Acre». Pertence a todos nós – declarou Jerry. - Os garotos dos Maywit ajudaram-nos a construir os abrigos... e esse parvo é que fica com os créditos!

      - Vocês não sabiam que fazer a noite passada - repliquei. - Estavam com medo.

      - Eu não!

      - Pois eu estava! - disse o Sr. Haddy. - E rezava. Vi a morte à minha frente. Foi pior do que o Inferno dos pregadores. Prefiro enfrentar tufões e tempestades em vez daqueles fogos. Vi diabos. Vi os espíritos maus a dançarem. Estava com tanto medo que até me sentia satisfeito por morrer.

      - Que aconteceu àqueles homens, Ma? - perguntou Clover.

      - Foram-se embora.

      - Se não foram, então de certeza que vamos ter sarilhos! – acrescentou o Sr. Haddy.

      - Vi-os irem-se embora - afirmei.

      - Não penses nisso, Charlie - a mãe abraçou-me. - Estamos a salvo.

      O teu pai vai ficar muito grato quando acordar.

      - Que está o pai a fazer!? - inquiriu April.

      O seu sono deixava-nos indefesos. Impedia-nos de nos movermos.

      Enquanto continuasse ali deitado, não podíamos partir. Foi então que nos recordámos do importante que ele era para nós. Só o tínhamos conhecido acordado, era assustador vê-lo tão imóvel. Se morresse, está­vamos perdidos.

      O Sol, agora por cima das nossas cabeças, queimava-lhe as costas. As pessoas a dormir libertam um cheiro subterrâneo, um cheiro a sujo, a comida, a suor e a ferimentos... tal como eu imaginava que os cadáveres cheiravam, um odor a adubo aquecido. O pai permanecia imóvel. Podia estar a recuperar de todas as noites que passara acordado, mas parecia, e cheirava, a morte.

      - Ma, vamos morrer? - perguntou April.

      - Não sejas parva - respondeu a mãe.

      Encontrou os nossos cestos e ajudou-nos a apanhar iautias, e goiabas e papaias bravas. Louvou o nosso acampamento, disse que fora um bom trabalho que nos salvara as vidas.

      Ao ver as iautias, o Sr. Haddy perguntou:

      - Vocês, rapazes, gostam de iautias? A minha mãe também as prepara! O pai virou-se e pôs-se de pé num salto.

      - Vamos embora - declarou, mas caiu, de imediato, de joelhos. Estávamos no princípio da tarde. Dormira quase treze horas mas ninguém lhe mencionou esse tempo. «Mentirosos, vigaristas, degenerados que dormem até ao meio-dia...» Eram algumas das pessoas a quem mais odiava. Sempre nos dissera que um sono profundo era uma forma de doença e censurava-nos quando dormíamos demais.

      Sentou-se na erva dourada e pousou as mãos no colo.

      - Para onde é que estão a olhar?

      Tinha uma voz sem entoação, monótona, diferente, como se estivesse drogado, e falava num tom baixo, quase sem mover os lábios. Aparentava estar muito cansado, mas, no entanto, vira-o dormir profundamente durante toda a noite.

      A mãe ajoelhou-se e tocou-lhe no rosto. - Tens o cabelo chamuscado - afirmou.

      Tinha as sobrancelhas eriçadas, a barba e as pestanas queimadas, o que lhe dava uma expressão espantada. Uma das faces estava rosada e sulcada, a que apoiara no chão para dormir. Um dos olhos estava mais vermelho do que o outro. Endireitou o boné de basebol.

      - Tive uma noite terrível, mal consegui dormir.

      - Já tenho visto cães a agitarem-se mais durante o sono. Estava a dormir como uma pedra, não era assim, Ma?

      - Não tenho paciência para mentirosos, logo pela manhã – respondeu o pai.

      A seguir fungou e ficou alerta, como se acabasse de ouvir qualquer coisa. O cheiro a fumo e a amoníaco era ainda muito forte, misturado com o de bambus queimados e chapas quentes. O pai suspirou e o rosto descaiu-lhe. Sorriu com tristeza, recordando-se.

      - Acabou-se - disse, na sua voz abatida.

      - Todo o teu trabalho... - murmurou a mãe. Ainda ajoelhada, começou a chorar. - Tenho tanta pena, Allie...

      - Pois eu estou feliz - retorquiu o pai. - Jerónimo está destruído. - Ardeu como fogo-de-artifício - interveio o Sr. Haddy.

      - Estamos livres - prosseguiu o pai.

      - Desapareceu tudo o que fizeste! - protestou a mãe. - As casas, as culturas, aquelas belas máquinas. Tanto trabalho...

      - Porcarias! Nunca as devia ter feito!

      - Como é que podias saber?

      - Sou o único que poderia sabê-lo. Não foi ignorância, foi subtileza. Esse tem sido sempre o meu problema. Sou demasiado complicado, demasiado ambicioso. Não consigo deixar de ser um idealista. Procurava resolver a situação de um modo pacífico... e rebentou-me tudo na cara.

      - Allie, porquê...

      - E mereci-o. Isto aqui não é lugar para substâncias tóxicas. Nunca mais trabalharei com venenos e com gases inflamáveis. Vou manter as coisas simples... servindo-me da Física e não da Química. Alavancas, pesos, roldanas, varões. Nada de químicos, excepto os que ocorrem na natureza. Elementos estáveis...

      - Mas aqueles homens morreram! - soluçou a mãe.

      - Era o que eu pensava - comentou Clover.

      - Mas não desapareceram. A matéria não pode ser destruída. Per­guntem ao Figgy. Foram eles que pediram a transformação. Tipos como eles merecem o tratamento dado aos perus...

      A mãe pousara os dedos sobre os olhos. Chorava baixinho enquanto o pai se levantava.

      - Pensei estar a construir qualquer coisa - continuou este -, mas estava mesmo a pedir que fosse destruída. É a consequência da perfeição. Neste mundo... a ira da imperfeição opõe-se. Aqueles tipos queriam comer à nossa custa! E o «Menino Gordo» deixou-me ficar mal. O conceito era errado e agora sei porquê, mãe. Nada de mais venenos!

      Disse aquilo de um modo quase queixoso, com as mãos juntas e apertadas.      Dirigiu-se para a lagoa e espreitou a água.

      - Qualquer pessoa pode destruir o que quiser, neste mundo.

      A América foi deitada abaixo por homenzinhos pequeninos...

      Parecia ter o coração despedaçado. Colocou as mãos em taça, encheu-as de água e lavou a cara e os braços.

      - Onde é que estamos? Que lugar é este?

      - É «O Acre» - disse-lhe.

      - O nosso acampamento - continuou Jerry.

      - É aqui que brincamos - esclareceu Clover.

      - Olha que sítio para brincar! Tiveram sempre água?

      - É de uma fonte - expliquei.

      - Podemos nadar nela - acrescentou Jerry.

      O pai olhou em volta. Sabia que ele pensava que o sítio não prestava.

      Quis dizer-lhes que nos sentíamos felizes ali. O pai viu o baloiço.

      - Reconheço aquela corda.

      - O cabo da popa do meu barco - afirmou o Sr. Haddy.

      - Foi ideia do Charlie.

      - E cabanas. Frutos. Cestinhos - comentou o pai, com tristeza. ­Coisas de macacos.

      - Há goiabas neste cesto - interveio Jerry.

      - Come algumas, Allie, ainda não comeste nada - disse a mãe. - Comida de macaco, abrigos de macaco - retorquiu o pai. - Odeio isto. Não queria isto. Para onde nos trouxeste, Charlie?

      - Ele salvou-nos - intercedeu a mãe. - Arranjou-nos comida e água.

      Allie, podíamos ter morrido!

      - Não foi ele quem criou essa comida, nem quem cavou para encontrar água - O pai recusava-se a olhar para mim. - Vamos embora, é tarde, e vocês continuam aí sentados.

      - Não podemos voltar para Jerónimo - disse a mãe.

      - Quem falou em voltar? Quem falou em Jerónimo? Nem sequer quero vê-lo.

      Os lábios da mãe deram forma à pergunta:

      - Então... para onde?

      - Para longe! Para longe!

      - Temos de aproveitar qualquer coisa para levar connosco - insistiu a mãe. - Não podemos ir assim.

      - É assim que quero ir - disse, mas continuou parado apenas com o boné na cabeça e os braços pendentes, saídos das mangas chamuscadas da camisa. Tinha o aspecto do que na verdade era... um homem que se arrastara para fugir a uma explosão.

      - E as ferramentas? A comida? Os sacos e as sementes? O meu barco? Não abandono o meu barco! - exclamou o Sr. Haddy.

      - Está tudo envenenado - afirmou o pai. - Tínhamos demasiadas coisas, demasiado lixo, demasiados bidões de venenos. Foi esse o nosso erro. Sabem o que pode fazer uma inundação de amoníaco? Jerónimo está todo contaminado, e o que não está contaminado transformou-se em carvão.

      - Allie, por favor, não sabes o que dizes!

      - O que eu estou a dizer ainda é pouco em relação à realidade.

      Bom, vamos embora, quero tirar este cheiro do nariz.

      - Para o rio?

      - Mãe - respondeu -, matei o rio!

      - Por que é que não podemos ficar aqui? - perguntou o Jerry. - A cheirar as entranhas do «Menino Gordo»? Aí tens a resposta. Vai ficar a cheirar assim durante um ano e acabarás enlouquecido. Não, quero ir-me embora... - apontou para Este, para as montanhas -... para lá daquelas montanhas ali.

      - Há um rio do outro lado - disse o Sr. Haddy. - O rio Sico. - Sabemos disso, Figgy.

      - Corre até Paplaya e Camaron. Podemos ir para Brewer... é a minha lagoa.

      - Esse é o sítio que nos convém - concordou o pai.

      Para a mãe, aquela afirmação foi demais. Com uma expressão dorida e implorante, perguntou:

      - Como é que sabes?

      O pai mexeu a parte da testa onde deveria estar as sobrancelhas.

      Sorria, feliz:

      - Porque gosto do nome.

      Andou para um lado e para o outro na clareira, pisando os arbustos e espreitando por entre os ramos, como uma pessoa em busca da abertura de um cortinado. A impaciência fazia-o desajeitado e inútil. Por fim, suspirou:

      - Muito bem, Charlie, desisto. Por onde é a saída?

      Indiquei-lhe o trilho.

      - Tal como eu pensava - declarou, começando a andar.

      - É melhor ir eu à frente - disse-lhe.

      - Quem é que te entregou a chefia?

      - Abrimos armadilhas no caminho e cobrimo-las com ramos - expliquei. - Para o caso de aparecerem bandidos. Podes cair lá dentro. - Sei tudo a respeito de armadilhas - afirmou, continuando a andar. Seguimo-lo, transportando os cestos da comida e um recipiente com água.

      Jerónimo ficava entre «O Acre» e o rio. Não havia outro caminho para as montanhas. O pai disse-nos para andarmos mais depressa, mas não podíamos evitar Jerónimo... fumegava no fim do trilho.

      O pai baixou a cabeça.

      - Huuu... - murmurou o Sr. Haddy.

      Jerónimo parecia bombardeado. Era quase tudo pó, um mar de cinzas negras com as árvores em volta queimadas e esquálidas. Como o fogo se espalhara, a clareira era agora maior e assemelhava-se a uma cratera. Os tubos do «Menino Gordo» haviam caído, embranquecidos como ossos, e as bombas estavam tombadas. Não havia uma casa de pé nem um telheiro intacto. Nas hortas, as plantas estavam queimadas e os caules mostravam-se cobertos de bolhas, como se fossem de carne. O milho abatera-se, os tomates haviam rebentado e escorriam suco. Tinham sido cozinhados pelo calor. Alguns frutos pareciam bolsas ras­gadas.

      As ruínas cobertas de cinza não eram nada... quando comparadas com o silêncio. Estávamos acostumados aos pios e aos guinchos dos pássaros e às notas agudas das cigarras. Não havia nem um som, nem um movimento. As aves que vimos estavam mortas, negras e assadas, sem penas, com minúsculas asas e ridículas cabeças esféricas. Os peixes flutuavam na superfície do tanque. Tudo morto, silencioso e malcheiroso, sob o sol da tarde. Algumas redes de dormir mais espessas ainda fume­gavam.

      - Queriam vê-lo... - disse o pai zangado - ... pois encham bem os olhos! Aves distantes cacarejaram nas profundezas da floresta, troçando dele.

      Caminhou através das ervas negras e pegou numa catana com o punho queimado. A seguir dirigiu-se à nossa casa e cortou os pilares que restavam, tornando a ruína completa.

      Continuámos ali de pé, no local onde fora a casa dos banhos. O calor estalara as condutas e recozera alguns dos tubos de barro. O ar queimava e picava-me nos olhos.

      - Não toquem em nada - pediu a mãe.

      - Não há nada em que tocar - comentou o Sr. Haddy.

      - Ouvi o que disseste! - exclamou o pai, que avançava para nós com a catana na mão. Pensei que iria cortar a cabeça do Sr. Haddy, pelo modo como agitava a arma na sua direcção.

      - Sobrei eu, sobraram eles... e sobraste tu, Figgy. Se tens forças para te queixares, então não estás assim tão mal. Mostra alguma gratidão.

      O Sr. Haddy atirou os dentes para fora.

      - O meu barco... todo queimado. Ficou destruído.

      - Perdi tudo o que tinha e ele preocupa-se com aquela porcaria! - Era tudo o que eu possuía neste mundo! - queixou-se o Sr. Haddy e as lágrimas corriam-lhe ao lado do nariz e pingavam-lhe dos dentes.

      - Para que serve um barco se não tens um rio?

      - O rio está ali, pai.

      - O rio está morto. Está cheio de hidróxido de amónio e de peixes com falta de ar. O ar... Já o cheiraste?.. Está contaminado. Vai ser preciso um ano para que este sítio deixe de ser tóxico. Se ficarmos aqui, morremos. - O pai deu um pontapé nas cinzas. - Ele sabia disso... mas queria que eu o dissesse!

      Era mesmo como o pai dizia. O ar estava repleto de cheiro a amoníaco, e presos nas algas, perto da margem do rio, havia peixes mortos e rãs inchadas. Eram mais horríveis do que os pássaros assados caídos nas ervas enegrecidas. Não tinham sido queimados mas sim envenenados. Tivemos de passar pelo meio deles e empurrar-lhes os corpos para o lado para passar para a outra margem.

      O pai atravessou o rio três vezes, transportando as crianças mais pequenas. Durante a última passagem, carregado com o Jerry e lutando com a lama, com o rosto e os braços sujos de cinza, as roupas molhadas e rasgadas, começou a chorar. Parou no meio da água e chorou. Ao princípio, pensei que era o Jerry, pois nunca antes ouvira o pai a chorar. O rosto enrugou-se-lhe, abriu a boca, que ficou quadrada, e vi-lhe as raízes dos dentes. Soltava ruídos ofegantes e pequenos soluços secos.

      - Sei o que estão a pensar. Está bem, admito-o! Poluí tudo isto! Sou um assassino! - soluçou outra vez. - Não estava em mim!

 

      Chapinhara no rio, até à margem, largara Jerry e conduzira-nos para a floresta, caminhando depressa. Depois de chorar não lhe vimos o rosto.

      O terreno era mais alto naquela margem do rio. Uma hora depois deixávamos a selva para trás e encontrávamo-nos entre cedros baixos. Por cima de nós avistava-se uma passagem entre dois dos picos da Esperanzas. Uma das vantagens da estação seca, daqueles dias azuis e sem chuva, era a floresta ser menos densa, mais fácil de atravessar, e haver mais luz no meio dela. Mas também deitava mais cheiros. Em tempo muito quente e sem chuva a floresta cheira mal, solta um odor forte como o das couves. À medida que subíamos, o cheiro atingia-nos em ondas rançosas. Parte do caminho era-me familiar, contei ao pai como andara ali com o Francis e o Bucky, à procura de bambus.

      - Esta noite esses dormem nas suas próprias camas - disse o pai. Caminhava de cabeça baixa, como alguém que procura alguma coisa e volta para trás para a encontrar. Mirou-me de esguelha. Parecia ter sido esbofeteado.

      - Não olhes para trás - ordenou-me.

      Avançámos de costas para o Sol por uma vertente seca, por entre árvores mortas.

Cinco quilómetros à nossa frente, no fim daquela suave vertente, estava a passagem entre os dois picos. Daí avistámos nova cordilheira de montanhas. O Sr. Haddy disse que era a serra de San Pablo. Entre ela e as nossas montanhas situava-se o profundo vale do rio Sico, que corria para nordeste, para a costa.

      A caminho do fundo do vale, o pai sentou-se. Fiquei satisfeito quando    disse que passaríamos ali a noite, pois não dormira nada na noite anterior.

      - Quem me dera ter cobertores - disse a mãe.

      - Cobertores? Com este calor? - perguntou o pai.

      Para o recordar de que perdera o barco, e talvez para sublinhar tal facto, o Sr. Haddy desdobrou o seu enorme certificado de capitão e serviu-se dele para acender uma fogueira.

      - Nem sequer temos onde ferver água - queixou-se a mãe. – Só temos este jarro e está quase vazio.

      - Os rapazes descobrem-nos uma fonte. Sabem mais desta vida de macacos do que nós. Olha para eles, adoram isto!

      Juntámos ervas secas para fazer ninhos na vertente da colina. Sentámo­-nos ali, escutando a brisa nos cedros, comendo o resto dos frutos que trouxéramos d'«O Acre». A mãe descobriu mandioca brava e assou-a na fogueira. O Jerry disse que se fechássemos os olhos sabia a nabo. Quando anoiteceu deitámo-nos nos ninhos. Havia moscas mas nenhum mosquito.

      Na escuridão, por trás de mim, ouvi April sussurrar:

      - Eu vi-o a chorar. Pergunta ao Jerry.

      - É mentira, não estava a chorar - murmurou Clover. – Estava zangado, a culpa foi do Charlie.

      Mais tarde fui outra vez. acordado por Clover:

      - Pai, o Jerry deu-me um pontapé nas costas!

      - Não me apanharão a comer nada disso - dizia o pai nesse momento. - Não sou nenhum campista. De qualquer modo, o problema da maior parte das pessoas é comerem mais do que precisam. Não há nada de bom nessa mandioca...

      Recuperara a fala e voltava a pregar. «Não olhes para trás.» Os três adultos encontravam-se em volta da fogueira, guardando-nos. Senti-me de novo seguro e fiquei à escuta. Entre os gritos dos insectos, o Sr. Haddy falava de tigres. O pai ria-se dele, como se desafiasse um tigre a sério e pudesse atirá-lo de encontro a uma árvore.

      - Assim é que é - afirmou. - Viemos embora quase nus, sem nada.

      Limitámo-nos a partir. Foi fácil.

      Já se esquecera de Jerónimo.

      - Não tínhamos outra solução - disse a mãe.

      - Escolhemos a liberdade. - Tinha uma voz satisfeita. - Foi como sobreviver a um naufrágio.

      - Pois eu não queria naufragar - insistiu a mãe.

      Os insectos chiaram mais uma vez e calaram-se.

      - Viemos embora mesmo a tempo... Eu tinha razão. Estamos vivos, mãe!

 

      Na vertente, mas mais para baixo, os cedros cederam o seu lugar a outras árvores, sapotizeiros e sapodilhas, cheias de sucos gomosos, que me recordaram o fabrico de borracha em Jerónimo, o cheiro a enxofre a ferver e as folhas de borracha em que envolvíamos os blocos de gelo. Parecia-me um desperdício passar por elas sem as aproveitar. Muitas das árvores da selva que cobriam a vertente eram utilizáveis, pois havia palmeiras, bambus e até bananeiras a crescer por entre algumas cabanas de folhas de palmeira, agora desertas. Porém, continuámos a andar pela selva. Eu olhava para aquilo com meus olhos de Jerónimo. Podíamos parar em qualquer lado, dizer que era ali a nossa casa e começar a trabalhar.

      - Não me apetece fazer nada aqui - disse o pai. - Essas árvores? Não sinto qualquer tentação de as lacerar, para depois vir a ter de fazer pares de galochas iguais. Poupem essas árvores. Deixem que se multipliquem e tornem abundantes. Sim, outrora seria capaz de parar aqui e ocupar-me delas... mas agora tive uma experiência.

      O trilho era um rego de terra, depois pedras e rochas. Ouvimos, atrás de nós, o grito de um mutum. O Sr. Haddy acertara-lhe com um pau e agora apertava-lhe o pescoço. Transportou a grande ave negra pendurada pelas patas, como se fosse a sacola do almoço. Disse que a depenaria e assaria quando chegássemos ao rio.

      - O Figgy não mudou - declarou o pai -, mas eu sou outro homem, mãe. Um homem que se recusa a mudar, está perdido. Passei por uma experiência satisfatória.

      Falava acerca da sua «experiência» como outrora falava sobre o seu poço.

      - Fui-me abaixo, lá atrás. Deixar-nos ir abaixo não é assim tão mau.

      É uma experiência. Agora estou mais forte do que nunca.

      Numa voz diferente, e como se quisesse mudar de assunto, a mãe disse: - Espero que encontremos água dentro em breve.

      - Podemos sobreviver sete dias sem água.

      - A andar desta maneira, eu não posso.

      - Passa a água à mãe, Charlie.

      Quando lhe dei de beber perguntei-lhe se o pai se modificara e o que queria isso dizer. Respondeu-me que não queria dizer nada, se se tivesse modificado não falaria tanto no assunto. Explicou-me que o pai estava apenas a tentar animar-nos.

      O pai continuava a falar mas a folhagem mais espessa abafava-lhe a voz e impedia os ecos. Agora estávamos no meio de uma verdadeira selva e já não na vegetação da montanha. Os bambus eram densos. As árvores húmidas ao longo do estreito trilho mantinham-nos frescos. Havia mosquitos e borboletas nas palmeiras, que eram como palmeiras de salão, mas de dimensões enormes. Havia fetos, árvores da borracha, figueiras de folhas manchadas, algumas vermelhas com riscas negras, tudo num ambiente sufocante, como se houvessem crescido dentro de uma garrafa.

      - Antes da minha experiência, nunca pensaria em fazer isto. Escutem, vejam só o que estamos a tentar! É espantoso, realmente. Não tenho nada escondido na manga... e olhem - virou o rosto para nós, no meio do caminho, e puxou para fora os bolsos virados do avesso - ... e nada nos bolsos! Cambaleámos atrás dele, através de manchas de luz verde. Tal como sempre acontecia, a sua conversa ajudava o tempo a passar. O Sr. Haddy disse que se não fosse a descer já não se mexeria mais.

      - Vamos comer o meu pássaro - acrescentou.

      - Pois é - continuou o pai -, eu costumava ir reparar as bombas do Polski e partir para os campos, de manhã, com mais coisas nos bolsos do que tenho agora. Ou quando ia para Northampton. Sempre carregado com coisas materiais. A carteira cheia de dinheiro.

      - Já não temos dinheiro, pai? - perguntou Clover.

      - Para que serviria o dinheiro num sítio destes?

      - Somos pobres - sussurrou Jerry. - Estamos arrumados. Devíamos ter ficado n'«O Acre».

      - O dinheiro não serve de nada, já o demonstrei.

      - Vamos morrer... - queixou-se April.

      - Não gostas deste céu tão límpido, mãe? - perguntou o pai.

      Céu alto e vazio, ardendo de azul, e o nosso pequeno trilho cá em baixo. O trilho tinha agora muitas pedras, algumas tão grandes que precisávamos de as trepar. Por fim deixou de ser um trilho e passou a ser o leito seco de um ribeiro. As pedras haviam sido alisadas pela água corrente.

      - Este é um verdadeiro teste de habilidade - comentou o pai. ­Confiamos apenas nos cérebros e na experiência. Ainda bem que Jerónimo foi destruído!

      - Aqueles três homens podiam ser inofensivos! - disse a mãe.

      - Abutres, queriam viver à nossa custa!

      Olhámos para cima à espera de ver abutres, mas o pai referia-se aos homens.

      - Foi assim que a primeira família enfrentou as coisas - prosseguiu o pai. - É assim mesmo, mãe, somos a primeira família sobre a Terra, caminhando pela estrada da glória, com as mãos vazias.

      - Odiaria morrer daquela maneira - retorquiu a mãe, que ainda estava a pensar nos homens.

      - Há maneiras piores... como aquela com que eles nos pretendiam matar. Os abutres levam sempre o seu tempo...

      A parte inferior das pedras estava húmida e musgosa. Um pouco mais adiante vimos uma poça de lama, a primeira água que víamos desde a partida de Jerónimo.

      - Nesta terra a água tem cheiro - disse o pai. - Tal como o resto.

      No entanto, o cheiro da água era cheiro a estagnação, e nela flutuavam insectos mortos, como folhas de chá a flutuar numa chávena, mas havia mais água a borbulhar debaixo das pedras, deslizando pela vertente e dando às margens de barro a textura da manteiga de amendoim. Escorria, transformava-se num fio, e pouco depois já havia água suficiente para provocar um ruído de água a ferver devagarinho. Tinha um enjoativo cheiro a podridão mas o seu ruído dava-nos esperança, como uma canção muito simples. Ali também já havia animais e aves, macacos a meia altura das árvores, pequenas cutias por debaixo deles, pavas com os seus gritos loucos, e mais mutuns. Se conseguiam viver ali, então também nós o poderíamos fazer. Num lugar perigoso, todos os animais selvagens constituíam uma esperança.

      Caminhámos algum tempo ao longo do riacho. A terra apresentava-se quebrada, dividida em terraços.

      - É assim que nasce um rio - disse o pai. - Estão a vê-lo com os vossos próprios olhos. Não foi preciso ir à procura da informação a um livro. É esta a fonte dos oceanos.

      Era como se o pai houvesse criado o riacho com os seus discursos, como se o convencesse a existir com o barulho e a magia da sua voz. Apenas pela força da sua vontade fizera aparecer aquele agradável vale. Encontrávamo-nos agora numa zona descoberta, sob um forte sol. Na selva, não me sentira exposto, havia tantas espécies de árvores diferentes para nos cobrirem... mas naquele vale parecia que estávamos «na rua», com espessas paredes verdes dos dois lados. O riacho, muito reduzido na época seca, era uma veia verde a correr pelo meio de um largo leito rochoso.

      - Isto é satisfatório - declarou o Sr. Haddy, servindo-se de uma das habituais expressões do pai. - Podemos almoçar aqui... ou junto daquela canoa.

      Havia uma canoa de fundo achatado no rio quase seco. Era de madeira escavada e um homem puxava-a pela areia, para debaixo de um grupo de árvores.

      - Creio que sou o responsável pela invenção daquele barco - afirmou o pai.

      - Mas é uma canoa! - exclamou o Sr. Haddy.

      O pai respondeu que não fazia diferença ser utilizada pelos Zambus ou pelos Mosquitos. Considerara-a como o melhor desenho para ser utilizada no nosso rio e estava muito satisfeito por ver que ali as usavam com as mesmas formas.

      - Esta gente levou mil anos, ou mais do que isso, para inventar um tal barco. Quanto tempo levei eu, Figgy?

      - Estamos a ser observados - declarou a mãe.

      O homem puxara a canoa para a areia. Ficara de pé como uma garça, com uma perna levantada, observando-nos. Era muito magro, não tão escuro como um zambu, e tinha dentes partidos.

      - Naksaa - disse o pai e esta era uma palavra que servia para tudo, que significava «olá», «como está», «bom-dia», «obrigado», e sei lá que mais.

      O Sr. Haddy entregou o mutum morto ao homem, de tal modo que dava a entender que havíamos partido de Jerónimo, calcorreando todo aquele caminho e acampando na montanha só para lhe ir levar aquele presente.

      - Parece um pouco esfomeado - comentou o Sr. Haddy.

      O homem examinava o pai com os olhos muito brilhantes e acabou por dizer:

      - Senhor Parks.

      Ficámos a saber que era um mosquito, porque estes não conseguem pronunciar o efe.

      - Ele conhece-me! - exclamou o pai. - É surpreendente, porque eu modifiquei-me. - Sorriu. - Creio que consegui uma reputação.

      - Sim, é o senhor Farkis - disse o Sr. Haddy para o mosquito.

      - Este homem deu-me a minha horta! - disse o mosquito muito excitado para a mãe. Apontou para lá das árvores, para uma cabana e para pequenos caules de milho. - Os grandes estão ali. Tomates grandes, assim! - continuou, mostrando um punho fechado.

      - Os híbridos! Quase me matei para conseguir fazer gelo e eles só se recordam de mim por causa das sementes que comprei em Florence, no Massachusetts!

      - E pimentos assim!

      - Foste a Jerónimo e trabalhaste, hein? Paguei-te com sementes?

      Foi pena, o gelo... era uma boa ideia, mas um pouco desajeitada.

      - Sim, sim - dizia o mosquito.

      - Inventei este barco - continuou o pai.

      - Toda a gente tem canoas - disse o Sr. Haddy. - E os que não têm destas, têm doutras.

      - É o meu barco - insistiu o pai.

      O mosquito convenceu-nos a irmos ver a sua horta, por isso trepámos pela margem por cima da faixa de areia e encaminhámo-nos para a cabana. Era uma cabana periclitante de ervas e folhas de palmeiras, mas com uma bela horta à sua volta. Tinha aí grandes pés de milho, tomates, pimentos, feijões e abóboras. Havia também melões. Aqueles vegetais tinham um ar deslocado na horta de um índio. Não havia abacates, papaias, cabaças nem maracujás. Era uma horta como as de Hatfield, ou como as de Jerónimo. O mosquito criara-a a partir de sementes que o pai lhe dera, quando atravessara a montanha, meses atrás, para nos visitar. Trabalhara durante um dia ou mais e recebera as sementes como pagamento. Nunca conhecera sementes que rebentassem tão rapidamente ou que dessem frutos tão grandes.

      O pai pegou numa vagem e exclamou: - Maravilhas do Kentucky!

      Havia bananeiras junto da cabana, do tipo a que os índios chamavam plas, por serem arredondadas como uma garrafa, mas o pai afirmou que o índio não merecia qualquer crédito quanto a isso, porque cresciam sozinhas.

      Ouvimos um som de pancadas. Era a mulher do mosquito a bater caules de arroz de encontro a uma madeira, para que os grãos caíssem sobre um tapete de couro. Parou quando o mosquito a chamou e serviu-nos wabool, bananas fritas e milho assado. Depenou o mutum do Sr. Haddy e enfiou-o numa vara, por cima do fogo.

      O pai não quis comer nada.

      - Não te ofendas - disse, recusando o wabool.

      - É o costume deles, sabes bem disso - afirmou a mãe.

      - Então, e os meus costumes? - Perguntou o pai.

      Percebi que não se modificara nada, porque em Jerónimo andava sempre a dizer aquilo. Sorriu-se para o mosquito.

      - Estou a poupar-me para mais tarde. A fome é uma boa coisa. Dá-nos determinação. A comida põe-nos logo a dormir. Essa coisa que tens na mão... - o mosquito segurava no mutum assado e gorduroso ­... é um soporífero. Claro que sabes disso, não sabes? Não estou a falar de morrer de fome, mas sim da fome vulgar. É uma espécie de força, é a mola real da Natureza.

      Sorriu-se para nós, sentados no chão a roer ossos, ao lado do badalhoco do mosquito, que se chamava Ed.

      - Há apenas uma coisa de que sinto na verdade a falta - disse o pai. - Achas que és capaz de me arranjar um banho?

      Falando com cuidado, servindo-se de ruídos e de sinais, explicou que queria um pouco de privacidade, água quente e um cesto. O índio forneceu-lhe tudo o que o pai queria. Pendurou o cesto, feito de fibras muito finas, numa árvore e fez com que o mosquito o enchesse de água quente, de modo a que esta caísse como num chuveiro. Este ritual teve lugar por detrás da cabana do índio. Ouvimos o pai a encorajar o mosquito, a cuspir água e a esfregar-se.

      - O pai tem costumes próprios, é verdade! - comentou o Sr. Haddy.

      - Aquele duche foi melhor do que uma refeição - disse o pai quando voltou para junto de nós. Tinha o rosto vermelho, as orelhas espetadas e deu saltos ao sol, para se enxugar. - Além disso, tirou-me o apetite. Era do que eu precisava. Estou pronto, mãe.

      O mosquito estava admirado com tudo aquilo e com a conversa do pai. Como que para lhe agradar, mandou a mulher à horta para colher vegetais, enchendo quatro belos cestos. Como presente final, entregou-lhe a vara da canoa. O pai fez os gestos habituais para recusar os presentes, mas aceitou-os quando o índio colocou os cestos na canoa e esperou junto dela, dizendo-lhe para embarcar.

      - Está a dizer lukpara, que não se preocupe - traduziu o Sr. Haddy.

      - Levo-a apenas de empréstimo, Fred - disse o pai quando embarcou. - Podes tê-la de volta quando a quiseres.

 

      Foi assim que nesse dia acabámos a flutuar pelo rio Sico abaixo. O pai trabalhava com a vara e o Sr. Haddy debruçava-se à proa à procura de obstáculos. «Pedras», gritava, quando as via. A canoa tinha apenas dez centímetros de borda fora de água, mas não havia uma ruga na superfície do rio. Faltavam cinquenta quilómetros até à costa e o pai calculou que o rio avançava a cinco quilómetros por hora.

      - Demasiado devagar, não é?

      Assim que descrevemos a primeira curva e a cabana do índio ficou fora das nossas vistas, o pai encalhou a canoa na margem. Arranjou uns ramos para nos servirem de assentos, apoiados nas bordas da canoa. Tirou a camisa e improvisou um toldo suspenso por paus amarrados às mangas da camisa, enquanto as fraldas eram presas à borda.

      - Parece uma tenda de oxigénio! Isso é para que não apanhem uma insolação. - A seguir pegou num monte de raminhos. - E isto é para conseguirmos um pouco mais de velocidade. Uma autêntica vassoura de bruxa!

      Amarrou os raminhos à ponta da vara, dando-lhes a forma de uma vassoura achatada e prendendo-os com trepadeiras, para poder remar à popa. Depois fez uma fogueira com folhas verdes, para que o fumo afastasse as moscas. Fumegando, partimos outra vez. Prometeu-nos que chegaríamos à costa ao anoitecer.

      - Viram bem aquela cabana do mosquito? - perguntou. - São todas assim - disse o Sr. Haddy.

      - Isso não faz com que sejam boas, Figgy. Aquela porcaria cairá com as primeiras chuvas. Era um homem generoso e tinha uma horta espectacular, graças a mim, mas a cabana era miserável. - Passámos por mais cabanas na margem do rio, mais mosquitos, porcos e cães. ­Patético - disse o pai.

      - Tens os olhos a brilhar, Allie.

      - Porque acabei de descobrir qual a espécie de cabana apropriada para este terreno.

      - Disseste que ias acabar com as invenções.

      - Não vim para aqui para viver numa cabana de ervas - retorquiu. - Não sou o Robison Crusoé. Mereço alguma confiança, ou não? Eh, não toquem nesses cestos!

      Jerry pegara um tomate e limpava-o no joelho. O pai ordenou-lhe que voltasse a guardá-lo.

      - Paramos para arranjar comida de macaco, se estiverem com fome, mas não comam esses vegetais. São híbridos. Se os comerem estarão a viver do nosso capital. Quando chegarmos ao sítio para onde vamos, abrimo-los e servimo-nos deles para sementes. Estão suficientemente maduros.

      - É injusto - disse a mãe.

      - É propagação - respondeu o pai.

      - Não mudaste nada.

      O pai continuava a abanar a vassoura para um lado e para o outro.

      - Mudei toda a minha maneira de pensar. Nada de mais produtos químicos, de mais gelo, de mais engenhocas. Jerónimo foi um erro.

      Tive de poluir todo o rio para o descobrir.

      - Tudo o que Jerry quer é comer um tomate! - insistiu a mãe.

      - Esse tomate representa uma grande quantidade de tomateiros, mãe.

      Tem lá dentro toda uma horta. Serve-te da imaginação!

      - Por favor, não se zanguem - pediu Clover.

      - O pai está a passar por outra experiência - disse o Sr. Haddy.

      - Calem-se! - ordenou o pai. - Quem é que disse alguma coisa a respeito de miolos avariados?

      O pai continuou a remar rio abaixo, com a vassoura, sempre a gritar. Predisse que antes do cair da noite estaríamos em Paplaya, na costa, a pouca distância da lagoa. O Sr. Haddy virou-lhe as costas e espetou os dentes para fora.

      - Podemos caminhar ao longo da praia até ao Panamá - afirmou o pai. - Podemos caminhar até ao cabo Cod - sugeriu a mãe.

      - Ora, o cabo Cod foi destruído! - declarou o pai, rindo-se. - ' Fugimos mesmo a tempo. Não ficou nada... mesmo nada. Desapareceu, não compreendem?

      - De que estás tu a falar? - inquiriu a mãe.

      - Do fim do mundo. - O pai apontou para norte com o cabo da vassoura. - Daquele mundo! Tudo queimado!

      - Jerónimo é lá atrás.

      - Jerónimo não foi nada, comparado com a destruição dos Estados Unidos. Não foi apenas casas a arder e pânico. Pensem nas pessoas. Recordem-se do mutum do Figgy... da maneira como, depois de assado, a carne se soltava dos ossos. Foi o que aconteceu a milhões de americanos. A carne caiu-lhes dos ossos. A seguir surgiram os devoradores de carne morta. Hatfield está transformada em cinzas.

      As gémeas começaram a chorar. A mãe tentou reconfortá-las.

      - Olha o que fizeste! - disse ela para o pai.

      - A única coisa que fiz foi salvar-nos a todos.

      - É verdade que não ficou nada? - perguntou Jerry.

      - Nada que te interesse ver - respondeu. - Pensas que é mau andar no rio? Oh, rapaz, isto são umas férias quando comparadas com a guerra nos Estados Unidos.

      - Houve lá uma guerra? - inquiriu o Sr. Haddy.

      - Horrenda.

      - Estás a tentar assustar-nos. Deixa de falar dessa maneira, Allie.

      É uma crueldade. Não sabes o que se passou nos Estados Unidos.

      - Sei o que vi. Sei dos exércitos, dos soldados... dos incêndios e matanças. - Batia no rio com a vassoura. - Eles sabiam onde eu estava.

      A mãe segurou as gémeas nos braços, sentadas por debaixo da tenda que o pai fizera com a camisa.

      - Está a brincar, garotas, não lhe prestem atenção.

      - Mas que brincadeira! - disse o pai, olhando para mim e piscando-me o olho! -   Agora estamos a salvo. Este barco e este rio... pensam que é uma situação precária, mas eu digo-lhes que estamos bem. Continuamos vivos. É mais do que posso dizer em relação a muita gente.

      Estávamos em Junho. Um ano antes, partíramos de Hatfield. Duas noites atrás havíamos visto Jerónimo destruído. Na mente do pai, os Estados Unidos tinham sido aniquilados, tal como Jerónimo... O fogo destruíra-os e tudo o que restava era fumo e uma tempestade de veneno amarelo. Foi isto o que nos disse.

      - Andam atrás de mim. Escapei por pouco.

      - Estamos num belo rio - disse eu, querendo que o pai se calasse.

      - Assim é que é falar, Charlie! Estás a ouvir, mãe? O Charlie diz que é um belo rio! Podes apostar que é!

      Não disse mais nada a respeito da guerra na América ou da perda de Jerónimo, que para ele eram a mesma coisa. Falou calmamente, explicando como poderíamos começar de novo e afirmando que o facto de ter escapado à morte por pouco, lhe aguçara o engenho.

      Ali estavam as provas. Encontrávamo-nos numa canoa de quatro metros e a mover-nos rapidamente para a costa. O barco pouco mais era do que uma jangada, mas tínhamos sombra, bancos e uma fogueira para afuguentar os insectos. O pai convertera-o em algo confortável e rápido. Falava de um modo selvagem, mas a sua conversa era como uma criação, e nunca se calou durante a viagem. EU estivera preocupado. No dia anterior vira-o a chorar, hoje gritava a respeito da sua experiência e do fim do mundo. Mostrava-se inquieto e esfomeado, mais imprevisível do que nunca. No entanto, em toda a Terra não existia um homem mais engenhoso.

 

      O Jerry inclinou-se para a frente, no banco feito pelo pai.

      - O pai pensa que é o maior - sussurrou, olhando para fazendo uma careta de desdém.

      - É o maior - disse Clover, baixando a cabeça.

      - Há montes de inventores no mundo, não é o único.

      - Não é igual aos outros - respondi.

      - Seja como for, o mundo foi destruído - afirmou April. - Foi o pai quem o disse.

      - Como é que sabes que não é como os outros? - perguntou Jerry.

      - Têm motivações diferentes - expliquei.

      - Quais?

      Olhei para a popa. Os olhos grandes do pai desafiaram-me a que abrisse a boca. Naquela pausa, o murmúrio de Jerry foi áspero.

      - Não sabes.

      Sabia. O pai era engenhoso porque necessitava de conforto. Nunca o admitiria, mas via-se bem pelo que fizera em Jerónimo e pelas melhorias na canoa. Não se modificara, continuava inventivo e a necessitar de conforto... muito mais do que nós. Estava sempre pronto a melhorar as coisas, mas não era como os outros homens. Não podia explicá-lo ao Jerry enquanto o pai estivesse à escuta. Inventava para ele próprio! Era um inventor porque odiava camas duras, má comida, barcos lentos, cabanas frágeis, sujidade e desperdício... Queixava-se do preço das coisas mas não era por causa do dinheiro... era por não prestarem e se estragarem depois de ele as comprar. Só pensava nele próprio!

      Por isso, em Hatfield, inventara a cadeira hidráulica e a máquina de massajar pés, e isso explicava a sua falta de interesse pelos inventos industriais. Era também uma explicação para a sua mania do gelo e para o facto de ter chorado quando Jerónimo fora destruído. Não queria viver, tal como dizia, como um macaco.

      Os movimentos, as invenções, as viagens eram tudo a mesma coisa, Quando lhe parecera que a América estava perdida, arranjara maneira de sair de lá. Abandonar o país num barco de bananas era mais um

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dos seus esquemas engenhosos. Jerónimo estivera cheio de exemplos da sua criatividade, engenhocas que inventara para fazer com que a vida - a sua vida - fosse mais fácil. Esses esquemas ê tácticas eram uma resposta às imperfeições do mundo. Mas, por vezes, tinha pena dele, o desconforto e a insatisfação punham-lhe a cabeça a andar à roda. Um instante depois, ouvindo os murmúrios de Jerry, a mãe disse-nos:

      - É um perfeccionista.

      - Não estejas aborrecida - pediu-lhe o pai.

      - Mas que lugar para um perfeccionista! - exclamou a mãe, olhando para a selva da margem do rio.

      Toda a gente o considerava como uma pessoa dura, pronta para tudo, mas eu não me deixava enganar. O pai era o oposto de um campista! Cultivava vegetais da melhor qualidade porque não suportava o gosto das bananas e do wabool. Odiava dormir na rua. «É uma selvajaria, é pouco natural dormir no chão nu.» Falava sempre com ternura a respeito da sua própria cama. «Até os animais fazem camas!» Um permanente fornecimento de gelo era a sua resposta aos trópicos, e um complicado sistema de bombas a réplica à estação seca. Gostava de ter as coisas contra ele, dizia, pois isso ajudava-o a pensar. Era ambicioso em relação ao seu próprio conforto e nunca tentara ganhar dinheiro com as invenções... queria apenas viver uma vida que os outros quisessem copiar. O que recebia das patentes era «dinheiro esquisito». «Posso ser egoísta», afirmava, «mas não sou ambicioso.» O egoísmo fizera-o inteligente. Queria as coisas à sua maneira, a sua cama, a sua comida, e o mundo também. As explicações que dava para os aconte­cimentos eram tão engenhosas como as invenções. Teria havido uma guerra nos Estados Unidos? Andariam atrás dele, tal como afirmava? Seria verdade que era perseguido porque «matam sempre primeiro os mais inteligentes?». Não sabíamos, mas se acreditássemos nalguma da­quelas coisas, podíamos ser muito felizes ali. Esquecíamo-nos do calor, ou dos insectos, ou da escuridão que nos sepultava durante a noite. A conversa do pai retirava-nos o sentido do cheiro. Depois de o ouvirmos falar da América, ficávamos reconfortados ao pensar que nos encontrá­vamos tão longe, na costa de Mosquito. Também ele se reconfortava!

      Ali estava o pai, gritando os seus planos e sorrindo ante o nosso espanto. Podia ser uma coisa simples, como melhorar a vara da jangada ou descrever a casa à prova de tudo que iria construir. Mas também podia ser loucura.

      - Mas que porcaria de trabalho que Deus fez neste mundo! Nunca antes ouvira alguém criticar Deus, mas o pai falava de Deus tal como falava dos canalizadores e electricistas desajeitados. «O rapazinho morto com a cabeça à roda», era assim que descrevia Deus. «E a cabeça já quase não tem nada dentro!»

      Raramente se calava, a sua voz já fazia parte dos ruídos da selva depois da nossa fuga de Jerónimo, como os gritos dos pavas, dos insectos e dos tatus, primeiro ao longo do rio Sico, e depois ao longo do rio Negro, em direcção a Paplaya. Mas de todos os sons da selva que ouvi, e alguns podiam ser muito surpreendentes, o mais claro e mais frequente de todos eles era o som da voz do pai a gritar por conforto.

 

      Levou-nos vários dias de «navegação costeira», como lhe chamou o pai, para conseguirmos chegar à lagoa Brewer. Depois de tanta conversa, de tantas remadas e da brisa quente e salgada, esperava ir deparar com qualquer coisa azul... areia, ondas, palmeiras, uma praia. Porém, Brewer era uma lagoa interior, separada do mar por uma faixa de terreno elevado que escondia o oceano e bloqueava o agradável som das ondas a lamberem a areia e a fazer rebolar os seixos.

      Ali, estávamos no meio da lama. A lagoa era larga, lisa e pantanosa, com águas castanhas que se estendiam, paradas, até uma margem castanha. Nem uma ruga na superfície, apenas um espelho de água suja com alguns tufos de ervas e palmeiras cortadas, que pareciam velhos postes de candeeiros. Uma película de lama e de fino lodo cobria tudo à volta e as moscas amontoavam-se onde as algas verdes jaziam a secar, junto àquela poça negra e parada.

      - É assustador - disse a mãe.

      - Não sejas desencorajadora - retorquiu o pai, olhando para mim. - A mãe está aborrecida.

      O Sr. Haddy ficou feliz quando viu a aldeia de Brewer, pois a mãe dele vivia ali. As cabanas estavam empilhadas de encontro à costa. Tinham a forma de campanários e manchas da mesma cor da lagoa. Os zambus remavam em pirogas para os postes que lhes serviam para atracar. Era uma tarde nebulosa e o Sol era um arco purpúreo na neblina do mar cinzento.

      - É aqui que nós separamos - afirmou o pai. - Não vem comigo, pai?

      - Não. Quero dizer, tu é que não vens comigo.

      O Sr. Haddy engoliu em seco, como se quisesse engolir o medo, mas este, ao que parecia, estava-lhe atravessado na garganta agitando-se para cima e para baixo como a maçã-de-Adão. Declarou que ainda não estava pronto para descer a terra.

      - O Figgy está a arrastar os pés.

      - Vão perguntar-me: «Haddy, onde está o teu barco?»

      - Podes falar-lhes da nossa experiência. Tenho mulher e quatro filhos... e nada mais. Ainda não me ouviste queixar-me.

      O Sr. Haddy abriu a boca, aspirou uma grande golfada de ar e lamentou-se:

      - Mas eu não tenho nada.

      Agitando a cana da popa à proa, o pai tirou o relógio do pulso.

      Era um relógio antigo e caro, de ouro, com pulseira também de ouro.

      O pai tinha muito orgulho nele, sobrevivera a todas as nossas fugas e falhanços. Resistente, à prova de água e de grande precisão, era a única coisa com valor a bordo da canoa. O pai costumava dizer que agora valia o dobro do que pagara por ele, e que o seu valor aumentava todos os anos... mas o mais provável era que tivesse tido a sorte de o encontrar na lixeira de Northampton.

      - Isto é dinheiro em caixa, Fig.

      O Sr. Haddy meteu as mãos nos bolsos.

      - Não quero o seu relógio.

      - Já não preciso dele para nada... pois não, mãe?

      Puxou a mão magra do Sr. Haddy para fora do bolso e enfiou-lhe o relógio por entre os dedos que se debatiam. A seguir riu-se:

      - Filho, vê as horas e foge do diabo!

      - Experiência - disse o Sr. Haddy, olhando para a mãe.

      - Guarda-o - respondeu esta. - Tens sido um bom amigo. Sorrindo com tristeza para o relógio e molhando os dentes, o Sr. Haddy perguntou:

      - Para onde vai agora, pai?

      - Vamos remar até ao mais escuro ribeiro desta lagoa. A seguir procuraremos o mais escondido recanto do ribeiro, onde não exista nem gente nem plágio. Árvores, água, terra... são as coisas básicas de que necessitamos. Escondemo-nos aí. Nunca me encontrarão.

      - Não gosta de Brewer?

      - Está demasiado exposta. Não quero ser visitado por patifes.

      A canoa derivara para a aldeia de Brewer, toda cabanas em forma de campanário, fogueiras, lama, zambus e um cão.

      - Quero águas escondidas. Desabitadas. Um canto vazio. É por isso que estamos aqui. Se vem no mapa, não nos serve para nada!

      - A lagoa de Mosquitos não vem em nenhum mapa.

      - É pequena?

      - Pai, é tão pequena - respondeu o Sr. Haddy - que quando lá chegar nem vai acreditar que já lá está.

      Enquanto o pai conduzia a canoa para um dos atracadouros, o Sr. Haddy deu-nos indicações. Dois quilómetros ao longo da costa de Brewer até ao rio, e depois três quilómetros para o interior.

      - Siga em frente até não poder avançar mais.

      A gratidão levava-o a prolongar as instruções, mas quando o largámos e o vimos a patinhar na lama em direcção à casa da mãe, não olhou para trás. Admirava o seu novo relógio, levantando o pulso. Em breve se encontrava rodeado por crianças, crioulos e zambus, que o saudavam.

      Para mim era doloroso vê-lo ir-se embora. Deixara de ser um dos nossos. Estávamos outra vez sozinhos, éramos a primeira família, como o pai repetia tantas vezes. Porém, sem os nossos amigos, o Sr. Haddy, os Maywit, os nossos zambus e a Sra. Kennywick, dava-me a sensação de que éramos a última família.

      Descobrimos o rio que desaguava na lagoa Brewer e seguimo-lo. O pai conduziu a canoa para o sítio onde o rio se abria numa fiada de pequenas lagoas. A última era a lagoa de Mosquitos. Tinha de ser, não se podia ir mais longe. Excepto um riacho que nela desaguava e nem sequer dava para uma canoa, não havia mais água. Era um beco sem saída, onde não se via uma cabana. Já em terra, virámos a canoa de pernas para o ar e apoiámo-la sobre estacas. Aquela era a nossa casa. Havia ali garças e pica-peixes, e por cima das nossas cabeças passavam alguns pelicanos. Por entre as árvores baixas e escuras da margem cambaleavam búfalos de olhos enevoados. A lagoa borbulhava e cheirava a decomposição. Era da cor de fígado cozido. As moscas zumbiam à nossa volta. Até a lama borbulhava, e a pressão do gás provocava buracos nas margens, como pequenas crateras.

      - Aqui, estamos sozinhos! - disse o pai. - Vejam, não há pegadas! Afirmou que a partir daquele momento a nossa vida seria simples... uma horta, pesca e procura de restos na praia. Nada de engenhocas venenosas, nada dos erros cometidos em Jerónimo, nada mais complicado do que uma sanita com água corrente. Uma horta de vegetais aqui, uma capoeira além, uma boa e sólida cabana capaz de aguentar com a chuva.

      - Capoeira? Galinhas? - perguntou a mãe. - Onde é que vais buscar as galinhas?

      - Mutuns - respondeu o pai. - Galinhas é apenas um termo genérico.

      Domesticamos os mutuns... e criamo-los.

      - E que mais?

      - Mais nada. É nisso que está a beleza das coisas. A sobrevivência significa uma actividade total. Não vai haver tempo para mais nada! - Será uma provação - comentou a mãe.

      - As provações não fazem mal a ninguém.

      Nessa noite e em muitas outras depois dela, dormimos debaixo da canoa. Fazia frio de noite e fabricámos potes de fumo para manter os mosquitos afastados. Todos os dias trabalhávamos para tornar o lugar mais confortável. Já o tínhamos feito em Jerónimo, mas aqui não dis­púnhamos de ferramentas até começarmos a procurar coisas na praia. Construímos uma latrina e uma área que servia de cozinha. O pai demarcou a área da horta... Na margem, o solo era tão negro e macio que nem sequer precisava de ser amanhado.

      - Ainda deve faltar um par de semanas até começarem as chuvas. Entretanto, construiremos uma casa verdadeira, à prova de água, e prepararemos as sementes para serem lançadas à terra.

      Logo que começou a construção da nova cabana, April ficou doente. Seguiram-se-lhe Clover, o Jerry e a mãe. Tremiam, ficaram pálidos e com uma febre muito alta. Jaziam por baixo da canoa, gemiam e de vez em quando corriam para a latrina. A mãe disse que era por causa de todas aquelas viagens e também devido à dieta: mandioca e peixe, além de moluscos que encontrávamos na lama.

      - Se é por causa da comida, então por que é que o Charlie não está doente? - perguntou o pai. - E se é devido ao trabalho, por que é que eu não estou deitado de costas?

      - Acusas-nos de estarmos a fingir?! - perguntou a mãe. - Só estava a perguntar.

      - Não nos aborreças, Allie!

      O pai calou-se. Era uma coisa assustadora ouvi-los discutir na tran­quilidade daquela lagoa cinzenta, mas quando se mantinham silenciosos ainda era pior. Durante dois dias não falaram um com o outro, e por causa disso, nós, garotos, só podíamos sussurrar.

      A mãe recuperou, mas continuou muito fraca.

      - Os inválidos podem tratar das sementes - disse o pai, e foram eles que secaram as sementes, enquanto eu e o pai juntávamos materiais para a cabana.

      Descobríramos uma canoa abandonada. Remendámo-la e vedámos-lhe as fendas.

      - Um estúpido qualquer deitou a canoa fora! É um barco em perfeitas condições!

Fizemos viagens diárias ao longo do rio e até Brewer, para recolhermos madeiras, barrotes e tábuas que o mar atirara à costa. A maior parte dessas madeiras tinha parafusos e pregos espetados. Extraíamo-los e depois de endireitados serviam para fixar as fundações da cabana. A procura de objectos atirados à praia pelo mar, deu-nos outros tesouros.

      Na costa, todas as cabanas eram campanários montados sobre estacas. A do pai não era assim, era como uma pequena barca com um fundo como uma banheira, apoiado na margem. Teve grande cuidado em fazê-la à prova de água, primeiro tapando as fendas e depois forrando-a com tiras de lata, para evitar os ratos e a humidade. Esta barca-cabana era maior do que uma canoa, mas também tinha o fundo achatado.

      Um dia passou por ali um zambu. Só nos viu quando o pai o chamou. Tinha um rosto estragado mas usava uma camisa amarela, muito limpa, e um chapéu de palha. Chamava-se Childers. Ia à igreja. Era domingo, afirmou.

      - Preferia que não me tivesse dito isso - declarou o pai.

      Os risos de Childers eram quase todos de medo.

      - Se Deus não tivesse descansado no sétimo dia, talvez conseguisse terminar o trabalho. Nunca pensaste nisso?

      - Estão a fazer uma jangada? - perguntou Childers.

      - É uma casa.

      - Parece uma jangada. Ou uma lancha.

      De facto, assim parecia... uma jangada com telhado, pousada na lama por cima da lagoa de Mosquitos.

      - Quando chegar a chuva, ficarei tão seco como dentro de uma noz.

Pensa nisso.

      O zambu considerou o assunto e depois riu-se, outra vez, de um modo gaguejante, enquanto o pai o observava.

      A diferença entre os dois homens surpreendeu-me e assustou-me. O zambu, na sua camisa amarela, chapéu de palha e bengala... e o pai, alto, ossudo e vermelho, de longos cabelos oleosos, barbas e olhos selvagens, um dedo a menos e calções de pano de vela. O pai estava mais magro do que o zambu! Só agora reparava no seu aspecto selvagem... Se não se soubesse, era caso para pensar que ele é que era o selvagem e não o zambu. Se este tivesse cabelos e olhos assim, eu desatava a fugir. Porém, havíamo-nos habituado ao facto do pai parecer um espan­talho, o selvagem dos bosques...

      A preocupação fazia com que o zambu soltasse risinhos enquanto o pai andava em volta da cabana, salientando-lhe as vantagens.

      Repara como é prática, dizia. Não tem estacas, não pode cair durante um tremor de terra. Nenhuma chuva pode penetrar no telhado alcatroado. Fora feita de restos de barcos afundados ao largo da costa de Mosquito e cada uma das tábuas fora impermeabilizada e amaciada pelo oceano. Tinha duas longas cabinas, para os adultos e para as crianças, cada uma com a sua entrada. Tinha tudo... privacidade, resistência e graça. Permaneceria ali, dizia o pai, muito depois de as barracas de folhas de palmeira serem arrancadas pelas tempestades de Verão.

      - Quero algumas tempestades bem feias para provar que tenho razão. Então, enrolo-me lá dentro e rebento a rir. As paredes espessas conservam­-na fresca e podemos ter uma brisa de ponta a ponta, pela abertura entre as cabinas. Além disso, posso elevar o telhado... mas não sei por que é que me preocupo em dizer-te tudo isto.

      - O meu telhado não deixa passar água - afirmou Childers.

      - Veremos. Mas, com toda a: franqueza, esse é o grande erro que vocês cometem. Falam sempre do telhado, concentram-se sempre na parte de cima. Então, e o chão?

      Childers começara a recuar.

      - O chão também é importante. Não se pode eliminar esse problema espetando as casas sobre estacas, a três metros de altura. Isso só o complica... torna-vos mais vulneráveis, conspícuos e temporários. Olha para o que aconteceu nos Estados Unidos!

      O discurso do pai apanhara o zambu de surpresa. Não respondeu.

      Continuava a andar para trás na costa enlameada.

      - A casa é à prova de água, por cima e por baixo - insistiu o pai.

      - E a tua? Tens o chão à prova de água?

      O zambu avistou a mãe e as gémeas a separarem as sementes em montinhos. Levou a mão ao chapéu, numa delicadeza à moda antiga.

      - Como vai, mãe?

      - Não pises a horta - disse o pai.

      O zambu olhou para baixo. Não havia horta nenhuma. Foi em bicos de pé até à margem, caminhando por sulcos imaginários.

      - Agora está a estragar-me a capoeira!

      O zambu não a via. Não havia capoeira. No entanto, levantou os pés muito alto, abriu os braços e estremeceu de medo, como se tivesse na sua frente uma capoeira invisível.

      - Lembra-te disto: uma experiência não é um acidente. É a recompensa dada às pessoas que a procuram. É um acto deliberado e dá muito trabalho. Preferes ir à igreja... um lugar engraçado para se ir, considerando o estado do mundo e as coisas que o fizeram assim. No sétimo dia, Deus foi-se embora. Por que é que terás de cometer o mesmo erro? Perdes tempo a rezar, quando podias estar a fazer uma casa assim?

      - Não tenho ferramentas - respondeu o zambu, que entrou em pânico e começou a correr.

      O pai seguiu-o, gritando:

      - Também não tenho ferramentas. Tudo o que vês aqui, foi feito com estas duas mãos!

      O zambu partira. Desaparecera ao longo da margem do rio, em direcção a Brewer. Não podia ter ouvido o que o pai dissera e ainda bem porque a afirmação de não ter ferramentas era falsa.

      - Não gostei deste homem por causa da sua malevolente curiosidade - disse o pai.

      Regressou ao trabalho. O pai negara ter ferramentas. Era uma mentira, outra invenção que o reconfortava.

      Tínhamos ferramentas e mais do que isso. A costa de Mosquito fornecia­-nos quase tudo o que precisávamos. Descobrimos uma cabeça de martelo na praia e fizemos-lhe um cabo. Martelando as pontas de ferros aquecidos, fizemos chaves de parafusos e formões. Uma lâmina de serra enferrujada, que jazia nas algas, estava agora brilhante do uso. Recuperávamos arames, latas e garrafas na praia, bem como redes rotas que reparávamos, e pano de vela suficiente para a mãe nos fazer calções para todos e uma bata para ela. As agulhas eram ossos de pássaro. Podia arranjar agulhas verda­deiras em Brewer, mas o pai gostava de matar pássaros («comedores de carne morta») e de lhes afiar os ossos para fazer agulhas;

      Procurar coisas na praia era um trabalho sujo e exaustivo. Quase todos os dias, durante os primeiros tempos na lagoa dos Mosquitos, partíamos antes da madrugada, na escuridão ainda cheia de morcegos, descíamos o rio com a canoa, passávamos por Brewer e íamos até uma aldeia miserável chamada Mocobila. A oeste dali e antes de os zambus acordarem, percorríamos a praia em busca de objectos utilizáveis. Cami­nhávamos lado a lado, eu e o pai - e quando as gémeas estavam suficientemente bem, elas e o Jerry faziam-nos companhia - esgravatando na confusão de madeiras, cordas e algas depositadas durante a noite.

      Descobríamos mais linha de pesca do que necessitávamos, cordas, farrapos e vasilhas de plástico, bocados de alcatrão, remos e pagaias de canoas, tachos de cozinha e talheres. Um dia encontrámos uma escada com quase dois metros, e assentos de retretes em dois dias sucessivos.

      Era como esgravatar na lixeira de Northampton, mas eu não ousava dizê-lo. Tal como em Northampton, a praia estava sempre cheia de aves e por vezes tínhamos de as enxotar para longe. Havia abutres naquela praia e num dia horrível o pai matou um abutre com uma fisga, só para nos mostrar como os outros se alimentariam dele.

      - Em Northampton também era assim - comentou o pai. - Na lixeira? - perguntou Jerry.

      - Na cidade - retorquiu o pai. - Todos aqueles garotos da escola! Observámos os abutres a arrancarem bocados de carne sangrenta da ave morta, enquanto as suas asas se agitavam como um chapéu-de-chuva partido.

      A maior parte das madeiras e acessórios que encontrávamos na praia estavam limpos e embranquecidos pelo mar. O metal apresentava-se enferrujado ou coberto de conchas, mas o pai adorava apanhar qualquer coisa enferrujada que limpava com areia. Restaurou os tachos de cozinha, montou os assentos de retrete na nossa latrina e fez-nos sandálias com pneus velhos.

      Sentia-me satisfeito por estarmos sozinhos. Ninguém podia ver os calções ridículos e as sandálias de fabrico caseiro, ou a sucatada acumulada na lagoa de Mosquitos. O zambu Childers nunca mais apareceu.

      - Funciona aqui uma espécie de darwinismo industrial - disse o pai. - As coisas que vêm dar a esta praia são os restos indestrutíveis que sobreviveram a tempestades, marés, e à corrosão do mar. Provaram o que valem... aguentaram o teste do clima e do tempo. Utilizando-as, estamos a fazer uma instalação que não pode ser destruída. Os nossos náufragos Crusoés habituais vivem como macacos... mas eu não sou nenhum estúpido. Pensa naqueles assentos de sanita... foi uma selecção natural. São eternos.

      Pontapeava para o lado as bonecas de plástico sem braços, calças velhas e bocados de esferovite. Resmungava quando via coletes salva-vidas rasgados e aerossóis esmagados. Habituámo-nos a ouvi-lo dizer: «Ora aqui está uma anilha em perfeitas condições...»

      A mãe chamava «pega» ao pai... Pensei que se referisse à voz, mas referia-se à procura de coisas na praia, ao ajuntamento de lixo. Levava para o acampamento peças que não tinham qualquer utilidade prática - uma foi o arreio de um cavalo, outra um casquilho de lâmpada eléctrica - e dizia: «A sua utilidade ser-nos-á revelada.»

      Além das conversas a respeito dos Estados Unidos («Foi terrível!» - E por que é que se sorria?), nada se modificara, o que se modificara havia sido a nossa situação. Tínhamos uma casa, comida, uma rotina, mas a vida ali era difícil, preenchia-nos o dia todo. A actividade total era uma coisa boa, dizia, a tarefa de sobreviver mantinha-nos saudáveis.

      Não obstante estávamos frequentemente doentes com febres e mordidelas de bichos, e precisávamos de ficar nas redes de dormir. A mãe catava-nos os piolhos da cabeça. Todos os golpes infectavam e precisavam de ser esfregados com água do mar, muito quente.

      O pai nunca adoecia.

      - Não é para me gabar, só que nunca desisto. Continuo a lutar. Mantenham-se limpos e nunca adoecerão.

      Havíamos chegado à lagoa de Mosquitos com uma barra de sabão. O pai nunca explicou onde a arranjara. Calculei que a tivesse tirado ao índio mosquito no rio Sico, depois de ter tomado banho. O sabão desapareceu muito depressa. Havia uma loja em Mocobila, dirigida por um crioulo chamado Sam. O pai chamava-lhe «Tio Sam». Vendia farinha, óleo, cabeças de machados e anzóis aos zambus locais. O pai evitava a loja.

      Um dia, o «Tio Sam» viu-nos à procura de coisas na praia e perguntou ao pai se percebia de geradores, porque o dele estava avariado. O pai arranjou-o mas não quis receber dinheiro. Por fim, depois de o «Tio Sam» o aborrecer muito, acabou por aceitar uma caixa de sabão cor de queijo, para a roupa. Era a única coisa que nos faltava em casa, afirmou, e «quando este se acabar já terei imaginado uma maneira de fabricar mais». Recordou-nos que em Jerónimo fizera sabão com gordura de porco. «Também era bom para as indisposições! Podíamos comê-lo!»

      Esta não era a floresta das chuvas, junto do rio, de que em Jerónimo havíamos começado a gostar. Era costeira e baixa, salobra, cheia de moscas pequeninas. Não havia tapires nem lontras, apenas lagartos, animais parecidos com ratos e aves marinhas que ficavam gordurentas depois de assadas. Matávamos as aves por causa das penas e não da carne, porque o pai queria almofadas macias. Estávamos rodeados por pântanos cheios de árvores mortas. Nas árvores, nuas e cinzentas, cresciam fungos nos sítios onde já não tinham casca. Ao entardecer, os pântanos ficavam cheios de morcegos. Havia palmeiras. O pai desafiou-me a mim e ao Jerry para as treparmos e deitarmos os cocos abaixo. Jerry tinha medo das alturas, começou a chorar antes de chegar ao meio, e já no chão disse-me que o pai era um «patife».

      - Se não cooperares com ele, ficará a odiar-te - expliquei-lhe. - Quero que me odeie - retorquiu Jerry.

      Por vezes pensava que agora que estávamos sozinhos, nos conhecíamos melhor uns aos outros e cada vez gostávamos menos uns dos outros. O pai sabia que éramos fracos e medrosos. Não nos podíamos esconder e tínhamos saudades d'«O Acre».

      A estação seca prosseguia... Onde estava a chuva? Ao fim de três semanas naquele local, notámos que o nível da água na lagoa de Mosquitos descia cerca de trinta centímetros por semana. Apareciam barcos partidos, canoas furadas, crânios de vacas e espinhas de peixes, tudo negro de lama. Um dia apareceu o costado de um barco a remos, delineado como uma janela de igreja, à superfície da lagoa. Puxámo-lo para a costa e descobrimos que ainda tinha preso ao casco um motor fora de borda, coberto de lodo. O pai desmontou o motor e começou a limpá-lo, peça por peça. Servimo-nos do barco como banheira («É só para isso que serve a porcaria dos barcos dos missionários».)

      A mãe disse que não valia a pena andar às voltas com um velho motor fora de borda, quando havia tanta coisa para semear. As sementes começavam a grelar dentro das caixas. Muito em breve teriam de ser semeadas em fila.

      Aquilo transformou-se numa discussão. Se estivéssemos por perto, não teriam gritado como o fizeram, mas nós encontrávamo-nos na canoa, à pesca de enguias. Usávamos o tipo de rede circular, com pesos, que tínhamos visto os homens a atirar ao mar no nosso primeiro dia em La Ceiba. Na altura tivera pena deles, mas agora éramos como esses pobres pescadores.

      - Não vou deitar fora este Evinrude. Nunca se sabe quando virá a ser preciso - ouvimos o pai dizer.

      - Lá está a pega.

      Não os podíamos ver, as vozes chegavam-nos por sobre a superfície da lagoa. Ecos fragmentados atingiam-nos vindos das árvores e da margem, onde os jacintos começavam a murchar.

      - A pega salvou-te a vida, mãe. Se não fosse eu, estávamos todos mortos.

      - Não te podes gabar do que fizeste em Jerónimo. Puseste as nossas vidas em perigo.

      - Mas quem diabo falou em Jerónimo?!

      - Salvaste-nos as vidas... foi o que disseste.

      - Jerónimo foi apenas um erro de julgamento. Fui demasiado ambicioso.

      Pensei que o gelo era a solução, mas agora sei que a autopreservação é a única coisa importante. Salvei-vos as vidas quando vos levei para Jerónimo! - Quase nos fizeste ir pelos ares!

      - Tirei-vos dos Estados Unidos. A América acabou, mãe... acabou mesmo.

      - Como é que sabes?

      - Esta é a prova!

      Mostrara qualquer coisa que não podíamos ver.

      - Lixo - respondeu a mãe.

      - Restos da praia. Os detritos de uma civilização morta... a parte que flutua. A América foi ao fundo e estas coisas flutuaram até à nossa costa solitária.

      - Uma explicação louca!

      - Concordo, mas estamos num mundo louco... e viemos para aqui.

      Conheces um lugar melhor?

      - Allie, vais matar-nos a todos!

      A voz da mãe tremia, amplificada pela água. Continuávamos na canoa, agarrados à rede e aos remos, à escuta.

      - A mãe vai arranjar sarilhos. A culpa é dela - afirmou Clover.

      - És Uma parva, Clover - disse Jerry. - A mãe tem razão, este lugar é miserável.       Espero que lhe dê uma pancada na cabeça.

      - Quero fugir deste maldito lugar - lamentou-se April.

      - E se o pai tiver razão? - perguntei e ficámos à escuta.

      - Estou a tornar-te a vida tolerável - dizia o pai agora. - Mais do que tolerável! Isto aqui é um leito de rosas comparado com o deserto que deixámos para trás!

      - Em Jerónimo?

      - Nos Estados Unidos! Só lá restam os devoradores de coisas mortas! Somos a primeira família, mãe. Sabemos o que lá aconteceu. Logo que semeemos as culturas, seremos auto-suficientes.

      - A tua horta é imaginária! As tuas galinhas são imaginárias! Não. há culturas. Não semeámos nada! Falas de gado e de tecer coisas! Aqui só há lixo na praia. Tudo o que fazes é mexericar nesse motor. Olha para ti, Allie, nem pareces humano!

      Fora o que eu pensara quando aparecera aquele zambu que ia para a igreja, o Childers, com a sua camisa limpa. Portanto, a mãe também reparara... - Estou a pedir-te para olhares para o futuro - insistiu o pai. - Usa a tua imaginação. Provarei que tenho razão... não sou nenhum tirano. Não te manterei aqui contra a tua vontade. Se não estás satisfeita, podes...

      Não se ouviu mais nada. Escutámos, mas tudo o que ouvíamos era a água a marulhar nos lados da canoa e os gritos das garças. Remámos do recanto onde nos encontrávamos e vimos que o pátio estava vazio e ninguém cuidara do lume. O monte de sucata, metais e madeiras, provenientes da praia, parecia-se com restos deixados por uma tempestade.

      A seguir vimos o pai. Estava só, calçando um par de botas de borrachas que não condiziam uma com a outra, pois uma era alta e a outra baixa. Não falou. Adivinhara que tínhamos ouvido a discussão?

      O pai começara a cavar a lama da margem para a horta, logo acima da lagoa. Juntámo-nos a ele sem uma palavra e ajudámo-lo a abrir os regos para as sementes. Trabalhámos durante a tarde com uma disposição sombria e envergonhada.

      A mãe apareceu ao anoitecer. Abraçou-nos e disse que fora dar um passeio... mas não havia nenhum sítio para onde ir passear. Tinha as pernas enlameadas até aos joelhos e ervas nos cabelos, além da cara manchada. Estivera a chorar.

      - Toma um duche - disse o pai - e sentir-te-ás melhor.

      - Mãe, quanto tempo mais vamos ficar neste sítio? -perguntou Jerry. A mãe não respondeu e olhou para o pai.

      - Responde-lhe, mãe - disse este.

      - O resto das nossas vidas.

      O pai pareceu satisfeito. Sorriu e comentou:

      - Temos sorte, parece que vai chover.

 

      Faixas de nuvens cor de cola passavam no céu azul por cima de nós, mas para lá da nossa lagoa, na direcção de Brewer, formava-se todas as tardes um denso banco de nuvens. Permanecia aí, agitando-se. Era de um preto-acinzentado, com a textura do algodão. Havia uma montanha delas, paradas e espessando-se até chegar a noite.

      De manhã o banco de nuvens desaparecera e as faixas e bolas de nuvens eram como balões de gás de encontro a um belo tecto. A nuvem negra regres­sava sempre ao fim do dia, cada vez com um ar mais cruel, mas não chovia.

      O pai gritava connosco para que o ajudássemos a semear a horta, cada vez mais furioso por cada dia que passava. Dizia que éramos preguiçosos, lentos e que nunca aparecíamos quando éramos precisos. Estava irritado por causa da chuva. Prometera-a mas ela não vinha. Com quem gritava mais era com o Jerry.

      Esperávamos que a chuva caísse como caíra em Jerónimo, em ver­dadeiros lençóis de água, embatendo nas árvores. Surgia apenas o habitual amontoado de nuvens negras e ventos incertos. O pai dizia que havia tempestades ao largo e que a qualquer momento poderíamos ficar encharcados. Trabalhava e esperava, naquele calor imóvel, observando o céu alto e escuro por cima dos ramos das árvores, para leste. A tempestade pairava e observava-nos, suspensa, mas não se aproximava.

      A água da nossa lagoa continuava a descer. As cabeças dos lírios aquáticos oscilavam no alto de compridos caules. A terra estava tão seca e a lama endurecera tanto que ficara rija como cimento. Para semear o feijão, o milho e os tomates tínhamos de estalar a crosta da lama e de abrir regos. Transportávamos água em baldes que despejávamos nesses regos, para mantermos as raízes húmidas.

      Aquela era a nossa tarefa, constituíamos a «brigada dos baldes» enquanto o pai trabalhava na construção de uma bomba mecânica. Já fizera uma que fazia subir a água por pás de madeira, despejando-a na margem da lagoa com um grande barulho de tábuas... mas eram precisos sete homens para a pôr a funcionar e o pai continuava a gritar-nos. Portanto, mantivemos os baldes.

      - Por que é que ficam além paradas? - perguntava, contraindo o rosto em direcção às nuvens negras. - Por que é que não chove?

      Transportar água e arranjar comida eram as nossas únicas actividades, mas mesmo assim o calor secava algumas das covas e queimava parte das plantas da horta. À noite comíamos mandioca, peixes do lodo e plantas cozidas. O pai escondia-se, não permitia que o víssemos a comer ou a dormir.

      - Estou à espera de que as coisas melhorem. Não descansarei enquanto isso não acontecer... e nunca me verão a comer porcarias dessas - dizia ele, e explicava que quando não comia necessitava de menos horas de sono.

      Aproveitava as horas da noite para reconstruir o motor fora de borda. Limpou as peças e fabricou novos empanques para os pistões. Não tínhamos gasolina nem óleo e havia buracos vazios nos sítios onde deviam ficar as velas. Parecia não se preocupar com isso. Oleou o motor com gordura de pelicano. Enrolava a corda de arranque e puxava-a, fazendo o motor matraquear. Soltava um cheiro a pelicano assado.

      A mãe dizia que o motor fora de borda era o brinquedo do pai. - Aquela engenhoca mantém-me são da cabeça - explicava o pai. Ao ouvir aquilo, a mãe sustinha a respiração e olhava para ele até o pai virar a cara.

      - Chuva! - gritava para a nuvem negra.

      Gritava tão alto, tão insistentemente e num tom tão imperioso que encolhíamos os ombros à espera de um carga de água. Nunca vinha, havia apenas a nuvem e os ventos variáveis.

      - Quando vim para a costa de Mosquito - disse uma vez - fiquei impressionado ao ver que esta gente tinha feito tão pouco para melhorar a sua maneira de viver. Viviam como porcos. Franzia o nariz ante as suas culturas por tratar e casas miseráveis. Que diabo é que comem... cornos? Mastigam os dedos dos pés? Dormem de barriga para baixo e deixam que a água lhe escorra pelas costas? Com que se limpam? Onde estão as suas ferramentas? Será que sonham? Acerca de quê?

      Estávamos na horta a regar as plantas. Ficámos muito quietos, à escuta.

      - Isto era o que eu costumava pensar - continuou. - Agora, um ano depois, admira-me que tenham tanta coisa!

      - Jerry diz que não respeitas os Zambus - disse Clover. Sentindo-se traído, Jerry ficou com um ar preocupado e infeliz.

      - Admiro imenso essa gente - continuou - apesar de viverem como porcos. Mas isso para mim não serve... viver o dia-a-dia, da mão para a boca, não é o meu género. Esta é uma instalação permanente. Nunca vos prometi que seria fácil. Estamos a colocar as devidas fundações. Isto é um organismo, quando estiver a funcionar as coisas serão diferentes.

      «Pensando em voz alta», falou-nos na criação de mutuns como se fossem perus, de iniciar uma nova «quinta dos peixes» e de curar carne num fumeiro. O principal problema não era a comida, declarou, era a sujidade. Queria colocar tábuas por cima da lama da margem que nos servia de pátio, e construir um convés, uma secção de cada vez, para depois o transformar num largo pórtico tapado com rede, com uma casa de banho. Comida saudável, limpeza, muita água quente e nada de insectos.

      - Estou a ver uma incubadora aqui, uma torre de elevação de água ali, e uma caldeira. Nos trópicos a falta de gelo não constitui problema, mas a falta de água quente, essa sim, é um problema. Quem imaginaria uma coisas dessas? Estou a ver uma espécie de conjunto de passarelas até ao cais, e separações na horta com as plantas a crescerem entre elas. Tudo em pontes e passarelas... os nossos pés nunca tocarão no chão!

      Ia transformar aquele nosso acampamento na lagoa num enorme cais! Era uma boa ideia, mas até agora tudo o que tínhamos era a pequena cabana à prova de água, pousada na lama, e um monte de sucata, uma pilha de madeiras e bocados de metal com quase três metros de altura, que havíamos trazido da praia, peça a peça. O pai dizia que fazia conta de a seleccionar, mas não havia tempo. A horta, a nossa única esperança de sobrevivência, mantinha-nos ocupados. Por outro lado, os ratos já tinham descoberto o monte de sucata e faziam os ninhos lá dentro.

      O nosso acampamento tinha muito pior aspecto do que todas as aldeias dos Mosquitos ou dos Zambus que eu já vira até aí. Sentia-me satisfeito por não termos visitantes, porque sabia que eles o achariam muito estranho. Se não se rissem de nós... iriam ter piedade da nossa vida. Era claro que tínhamos chegado ali sem nada e que agora só possuíamos o que encontrávamos na praia.

      Ao fim da tarde, quando a nuvem negra pairava a leste e o fumo se erguia do acampamento, este parecia-se com uma lixeira numa costa cinzenta, onde gente desesperada se refugiara para morrer.

      - Somos prisioneiros evadidos - disse o pai.

      Era o que ele pensava da América, mas se estávamos perdidos e num beco sem saída, naquele pântano costeiro, não continuávamos pri­sioneiros?

      Esta era a sensação que eu tinha quando me encontrava na lagoa e via a cabana e o monte de sucata. Jerry e eu havíamos aprendido o jeito de atirar a rede circular e estávamos dispensados da «brigada dos baldes» se apanhássemos peixes ou enguias. Gostávamos de remar até à outra extremidade da lagoa, para não podermos ver aquilo a que o pai chamava «casa».

      Cerca de uma semana depois de ter surgido a primeira nuvem de tempestade, Jerry e eu encontrávamo-nos na canoa, à pesca, quando ouvimos um grande estrondo. Pareceu-nos um tiro de canhão.

      - O pai pôs o motor a trabalhar - disse o Jerry.

      Fora também o que eu pensara, ou queria pensar, pois necessitaríamos de um fora de borda para nos podermos ir embora dali.

      Remámos para casa e descobrimos o pai de pé sobre a lama seca e rija. Tinha os olhos vazios e estava à escuta.

      - Puseste o motor a trabalhar! - exclamou o Jerry.

      - E se assim for?

      - Podemos ir para casa - explicou o Jerry. Aquela era uma palavra proibida.

      - Estúpido! - disse o pai.

      O estouro ouviu-se outra vez. Não era o motor, era o rugido de uma tempestade distante.

      - Por que é que vocês nunca acreditam em mim?

      A trovoada continuou, por vezes soando como canhões, outras vezes mais lenta e terrível, como paredes de tijolo a abaterem-se para dentro de uma cave. Como uma civilização a entrar em colapso sob o seu próprio peso, disse o pai. Era para além, onde estava a nuvem.

      - Guerra! - exclamou, sorrindo para nós.

      Do lado oposto da lagoa surgiu uma resposta à trovoada: «Gugn! Gugn! Gugn! Gugn!», e depois outra vez as mesmas quatro notas, mas mais baixas. Era um macaco-uivador. Cada vez que o trovão rugia, os macacos respondiam-lhe.

      Mas a trovoada teve um aspecto muito mais estranho do que este. A toda à volta da lagoa, as criaturas começaram a surgir dos ovos enterrados. Primeiro apareceram iguanas e tartarugas, depois os aligátores. Os ovos estavam escondidos na lama, mas quando aqueles seres escor­regadios e escamosos se arrastaram para o exterior, levavam as cascas atrás de si e deixavam-nas espalhadas pela margem. Por baixo do céu trovejante, a lagoa tornou-se assustadoramente viva.

      O Sr. Haddy surgiu-nos durante aquele período de trovoada, pa­tinhando na margem, vindo de Brewer. Tinha os olhos brilhantes e sorria como uma iguana acabada de sair do ovo, com mucosidades penduradas nos dentes da frente. Trazia-nos um embrulho com moluscos cozinhados, uma galinha viva atada com um fio e um saco de açúcar. Coçou as costas esfregando-as de encontro a uma árvore, sempre a olhar para o nosso monte de sucata. A seguir beijou as gémeas e perguntou:

      - Então, que tal? Estão bem aqui?

      - Passa-me essa corda, Charlie - disse o pai. Não mostrava qualquer surpresa pela visita do Sr. Haddy. Dei-lhe a corda, enrolou-a em volta do arranque do Evinrude e puxou-a, levando o motor a fazer ruído e a cheirar a gordura de pássaro. Os seus cabelos esvoaçaram.

      - Trago-lhes umas conchas.

      - Estamos com cara de quem tem fome? - perguntou o pai, ignorando­-o e continuando a puxar a corda do motor.

      - Hop! Hop! Hop! - fez o Sr. Haddy, imitando bastante bem o barulho do motor.    - Mais um sarilho, com certeza!

      - Isto?

      - Um motor sem velas nem óleo!

      - Isto é apenas para me manter entretido. - Fez novamente girar o motor. - Ajuda-me a pensar. Estou a planear a caldeira e as passarelas. Temos de deixar de pisar lama!

      - Trouxe-lhes açúcar.

      - Açúcar branco - retorquiu o pai. - É a pior coisa que se pode meter na boca. Não tem um grama de nutrientes, apenas calorias que se queimam tão depressa que esgotam todas as vitaminas B e C do nosso corpo. Provoca-nos cãibras, mau funcionamento dos rins, deixa-nos cansados. Sabias disso? E é tão aditivo como uma droga. Figgy, vim para aqui para escapar a esses venenos.

      - Para a próxima trago-lhes gasolina e óleo - continuou o Sr. Haddy.

      - E um par de velas para o motor.

      - Não as quero.

      - Então por que é que está a queimar gordura de galinha?

      - Porque não vamos a lado nenhum.

      O Sr. Haddy avistou o Jerry.

      - Então como estás, Jerry?

      - Não fale com ele, está de castigo.

      - Não consigo perceber como nos descobriu - afirmou a mãe.

      - Vim por um atalho. Olhei para um lado e para o outro. Tenho experiência, e depois ouvi a voz do pai. Que talos trovões? Vamos ter uma bela tempestade, Ma!

      Olhou em volta para o nosso acampamento, mexendo o nariz como um coelho e estudando-o.

      - Um lugar do diabo esta lagoa de Mosquitos.

      - Ainda estamos a instalar-nos - explicou a mãe. - De momento não tem grande aspecto, mas o Allie tem planos. Já sabe como ele é.

      - Sarilhos - respondeu o Sr. Haddy.

      O pai não sorriu. Pôs o motor a trabalhar com a corda e ordenou:

      - De volta ao trabalho, gente.

      - A horta está muito perto da água. Aquela é a vossa barca?

      - Cabana - disse a mãe.

      - Casa - corrigiu-a o pai.

      - Casa, hein? - O Sr. Haddy desenhou-lhe os contornos com a cabeça. - A casa está demasiado perto da água.

      - A água está ali - afirmou o pai, abrindo muito a boca para pronunciar as palavras com clareza e apontando para a lama da margem da lagoa.

      - Vai subir quando vier a chuva. Vai chegar até àquele monte de sucata. Como é que a sucata foi ali parar? Foram os macacos que a trouxeram?

      O pai aproximou-se do Sr. Haddy com a corda na mão, com o ar de quem a queria torcer em volta do pescoço magrizela do pobre homem.

      - Por que é que estás a preocupar toda a gente? - perguntou.

      - Não estou nada, Ma! - exclamou o Sr. Haddy, lançando um apelo à mãe.

      - O Allie está zangado porque ainda não choveu.

      - Não tenho controle sobre a Natureza - retorquiu o pai -, se tivesse o mundo não seria uma confusão tão grande. Falem-me de coisas que eu possa dominar... tal como o meu temperamento. Que estou a controlar neste instante...

      - A chuva chegará quando for a sua hora - disse o Sr. Haddy. ­E quando chegar vai desejar que ela pare. As coisas são assim. Vamos ter chuva, de certeza! Vai ser uma experiência!

      - Ainda não disseste ao que vens - interrompeu-o o pai. – Que queres daqui?

      - Dizer olá e perguntar como estão. Falar-vos do meu barco novo.

      - Diz-nos como perdeste o teu relógio novo.

      Então, era por isso que o pai estava irritado. Dera por falta do relógio, o que mais ninguém notara. O Sr. Haddy não usava o relógio de ouro que o pai lhe dera.

      - Foi uma história igual à do barco. Troquei o relógio por um barco. Não é uma lancha, é à vela. Não consegui navegar com ele em águas tão baixas, portanto, vim a pé. Querem vê-lo?

      - Não - respondeu o pai.

      - Chamei-lhe Omega, como o relógio. É muito bonito.

      - Tive esse relógio durante quinze anos.

      - São... são três e meia - disse o Sr. Haddy virando os olhos implorantes para o sol enevoado, como que para provar que sabia as horas sem relógio.

      - Deste-o!

      - Pensei que aprovavas essas coisas - comentou a mãe.

      - Pelo barco! B um belo barco!

      - Um barco não é resposta.

      - Não fiz nenhuma pergunta.

      - Tenta perguntar a ti mesmo onde estarás dentro de quinze ou vinte anos.

      - Digo-lhes onde vou estar para a semana... no cabo Gracias. ­O Sr. Haddy virou-se para a mãe: - Arranjei um trabalho. Vou fazer carregamentos entre Caratasca e o cabo Gracias. Conhecem o sítio?

      A mãe disse que não.

      - É o cabo que fica na foz do Wonks. Um grande rio, faz com que este Patuca pareça uma mijinha. Quer ir até lá, Ma?

      - Gostaria muito - respondeu a mãe. - Podíamos levar os garotos.

      - Será um belo passeio, sim. Uma óptima água verde e uma grande praia. Mais um par de semanas e a praia vai estar cheia de tartarugas a porem os ovos. Os rapazes poderão nadar e nós podemos ir à pesca. Uma bela vida.

      Fiquei cheio de esperanças, mas uma só olhadela ao pai disse-me logo que nada daquilo iria acontecer. Tinha a cara sombria. Fez-nos um gesto para que nos afastássemos e gritou para a mãe:

      - Queres fazer o favor de deixar de os encorajar? Ainda mal come­çámos a horta! Temos de construir as passarelas, o lago dos peixes e a capoeira. Estou a tentar instalar-me aqui sobre sólidas bases e ninguém me quer ajudar. Figgy - disse, virando-se para o Sr. Haddy -, não vês que temos trabalho para fazer?

      - Esse foi o outro motivo porque aqui vim - explicou o Sr. Haddy, nervoso, agarrando-se ao pulso para esconder o sítio onde estivera o relógio. - Esta lagoa não é sítio para gente decente. É um pântano e está cheio de macacos... não está a ouvi-los? Estão preocupados com a chuva e têm razão. Quando a chuva vier, tudo isto vai ficar inundado, pai.

      - Que é que estás a sugerir?

      - Que Brewer é mais decente para uma família.

      - Estás a sugerir que este é um lugar indecente. Este selvagem, que deu o meu relógio, está a insinuar...

      - Não sejas tão rude, Allie... - interveio a mãe.

      - Houve alguém que o mandou aqui. Quem te mandou aqui, Figgy?

      - Ninguém!

      - Volta para trás e diz a quem quer que te mandou aqui que esta é, agora, a nossa casa. Vivemos aqui. Estamos a fazer um esforço de pioneiros.

      O Sr. Haddy mordeu os lábios.

      - Quero ir com o Sr. Haddy - declarou Jerry.

      - Vês o que fizeste?

      O Sr. Haddy quis mexer-se mas os seus pés haviam-se tornado enormes e resistiam-lhe. Arrastou-os - ainda agarrado ao pulso -, cambaleou e quase caiu.

      - Muito bem, Jerry, larga o balde e vai. Mexe-te... mas lembra-te de uma coisa: se saíres daqui, é para sempre. Não voltes cá. Não quero voltar a ver a tua cara.

      - Allie! - exclamou a mãe.

      Jerry corou e olhou para outro lado quando as lágrimas lhe subiram aos olhos.

      - Então, volta para o trabalho, rapaz - disse o pai e a sua voz parecia lixa.

      - Eu não quis ir, pai - disse Clover e Jerry olhou-a furiosamente.

      - As conchas darão um belo guisado, Sr. Haddy - afirmou a mãe.

      - Sente-se, por favor.

      Porém, o Sr. Haddy ainda não recuperara daquele «Vês o que fizeste?». Olhou para os pés, talvez perguntando a si mesmo porque é que eles não queriam levá-lo dali para fora. A seguir olhou para o pai e ficou com um ar assustado.

      - Ali vem ela - disse o pai.

      A nuvem negra amontoara-se a leste enquanto o pai estivera a trovejar. O vento caiu e durante algum tempo quase não houve ar para respirar. O suor escurecia a barba do pai.

      - Odeio aquela nuvem.

      Ouviu-se o canhão, as paredes a derrubarem-se, os tijolos a caírem na cave da América.

      - A trovoada vai cuspir pedras! - declarou o Sr. Haddy em crioulo.

      Quando se preocupava, falava em crioulo.

      - Vou dizer-te outra coisa. Sei por que é que vieste aqui hoje... porque finalmente ouviste falar dos sarilhos nos Estados Unidos.

      Eu queria que o Sr. Haddy falasse, mas calou-se. O pai deu um passo para ele. O corpo do Sr. Haddy dizia não, mas o rosto dizia sim.

      - Admite-o, Figgy - insistiu o pai, quando outro trovão abalava a lagoa. - Ouvi qualquer coisa... - respondeu o Sr. Haddy.

      - Que foi destruída!

      - Sim, pai.

      - E estás com medo. - O pai fixava o rosto do Sr. Haddy.

      - É verdade.

      - É por isso... - declarou o pai lentamente e já a sorrir - ... que digo que o futuro está aqui.

      A cabana-barca na lama, o barco a remos, a bomba que precisava de sete homens para funcionar, a horta, o monte de sucata, as moscas, os ratos que saltavam de todo o lado, e os macacos-uivadores.

      Quando uma pessoa sofre e tem medo, os seus padecimentos são óbvios e os ferimentos sobressaem. Vi uma amolgadela na testa do Sr. Haddy, em que nunca antes reparara.

      - Antes de te ires embora - continuou o pai -, olha à tua volta. Diz-me o que vês.

      O Sr. Haddy olhou para um lado e para o outro, engoliu em seco e disse: - Está a falar do monte de sucata, pai?

      - É mesmo sucata - murmurou-me o Jerry. - Este sítio é uma lixeira. Era por isso que queria ir com ele. Tu não querias?

      - Vejo uma aldeia em desenvolvimento - dizia o pai. - Vejo garotos saudáveis. Milho nos campos, tomate nas hortas. Peixes a nadar e bombas a gorgolejar. Grandes camas macias. A mãe a tecer num tear. Mutuns que vêm comer à mão. Macacos a apanharem cocos. Uma fábrica de cordas. Um fumeiro. Actividade total! Isso é o que eu vejo. E todo aquele...

      O Sr. Haddy começara a afastar-se cada vez mais depressa, empurrado pela força das palavras do pai. Eram apenas palavras, nada daquilo existia. O Sr. Haddy desapareceu e o pai continuou a falar, agora para nós.

      - ... e todo aquele que não vê nada disso, não tem nada a fazer aqui!

      Pouco depois puxava a corda do arranque do barco.

      Eu pensava no Sr. Haddy, cambaleando no escuro sobre os pés enormes que patinhavam na lama, quando Jerry falou de novo:

- Não querias, Charlie? Não querias ir com ele? -Não-respondi.

- O pai está louco - disse ele, num tom que me fez pele de galinha.

- Se não o ajudarmos, morremos todos. - Não quero ajudá-lo!

      O Jerry sentia-se miserável. Queixava-se das perseguições do pai e do favoritismo para com as gémeas. O pai estava constantemente a ir ter com ele para lhe dizer: «Estás sujo como um porco.» Chamava-lhe molengão, obrigava-o a subir às árvores. De todos nós, Jerry fora o que estivera mais doente com as febres e isso notava-se no seu aspecto: faces pálidas, cabelo comprido e sujo, um pescoço muito magro, cicatrizes nos sítios em que coçara as mordidelas das pulgas-da-areia.

      O clima afectara o pai. Calara-se no meio do silêncio e do calor húmido da lagoa. Começara a trovoada, começaram as discussões com a mãe. Mostrava-se de mau humor, gritava, implicava com o Jerry. Sabia que o Jerry lhe chamava nomes e agora não deixava o pobre rapaz em sossego. O Jerry estava zangado e sem defesa.

      - Quero ir para casa - disse ele e isso era uma palavra proibida. - A nossa casa é aqui - respondi-lhe. Expliquei-lhe que nos tínhamos escapado a tempo da destruição da América. Que já nada restava dela, excepto o que dava à costa na praia, perto da lagoa Brewer.

      - Isso é o que o pai diz.

      - O Sr. Haddy também o disse!

      - Não quero saber - replicou Jerry, coçando as mordidelas. Nunca tivera um aspecto tão doente. - Estou com pena de que o Sr. Haddy  se tenha ido embora. Nunca mais cá volta.

      - Não percebes? Temos de confiar no pai.

      - Não confio nele. Não passa de um homem que dorme na nossa cabana. Não podia reconfortá-lo. A sua zanga provocava-me dúvidas, portanto - em segredo e quando o pai martelava no galinheiro onde pretendia criar mutuns -, perguntei à mãe. Que acontecera aos Estados Unidos? Tinham sido destruídos? A pergunta deixou-a triste.

      - Espero que sim - respondeu.

      - Não - disse eu.

      - Sim - Tirou-me o cabelo de cima dos olhos e abraçou-me. - Sim, porque se foi destruída, somos as pessoas de mais sorte em todo o mundo. - E se não foi?

      - Então estamos a cometer um erro terrível.

      Eu era grande demais para o colo dela. Ajoelhei-me a seu lado e por momentos pensei que o martelar do pai e os trovões eram o palpitar do coração da mãe.

      - Mas é verdade - continuou. - Ouviste o Sr. Haddy.

      Também ouvira o trovão... uma promessa sem provas. A mãe pedia-me que acreditasse nela. Era como o clima, aquele período de trovoadas que não passava de súbitos barulhos, promessas de chuva e tempestades. Ninguém sabia quando viriam, ou como seriam, ou por quanto tempo teríamos de regar a nossa horta de rebentos pendentes para o chão. Ninguém sabia nada.

 

      Quando a chuva chegou, era tão grossa como se estivéssemos a ser castigados por ter duvidado dos trovões... e a partir daí passei a acreditar em tudo. A chuva não se deixava cair, precipitava-se do céu negro como espadas de ferro, cortando-nos as costas e torcendo ramos nas árvores. Enfiava-se na areia, estalava de encontro às pedras, embatia no mar e fazia mais barulho do que as ondas. Não era composta por água, mas sim por lâminas e estilhaços.

      Estávamos na praia naquele dia - o pai, o Jerry e eu - à procura de arame para a capoeira. Do Leste surgiram esguichos de água, quatro ou cinco, depois mais outros, até que a nuvem como que rebentou e caiu sobre nós, num negro-azulado. Libertou gotas grossas e pesadas, seguidas por fiadas delas, como colares, e logo depois surgiram verdadeiras barreiras de água avançando para a praia.

      O boné do pai voou-lhe da cabeça, as suas roupas agitaram-se, fizeram-se pretas e colaram-se-lhe aos músculos. A barba ficou pendente, encharcada, e a seus pés surgiu uma poça quando as gotas da chuva começaram a fazer saltar pedras do chão. Começou imediatamente a gritar. Levantou os punhos ao céu. Escutámo-lo com atenção e até o Jerry tomou uma expressão obediente. Não esperávamos uma coisa assim mas o pai estava satisfeito e quase ofegante por causa da água que lhe caía no rosto.

      - Aí está ela! Que vos disse eu? Agarrem nesse arame! Mexam-se, mostrem que estão vivos!

      Patinhámos por cima da areia e regressámos à nossa canoa, lutando contra o vento que soprava da selva. Metemo-nos nela. O pai remava como um louco e sorria para a chuva que caía no rio. Já tínhamos quase dez centímetros de água no fundo da canoa quando chegámos à lagoa. Vimos o vento atingi-la e agitá-la, fazendo saltar bocados de água.

      - O vento está a girar - disse o pai. - É uma tempestade que anda à roda.

      - Agora não teremos de regar a horta - comentou Jerry.

      Onde estava a horta? Onde estava a cabana? A lagoa escurecera. Uma fita branca ao longo da margem era a espuma das ondas. Então vimo-la. Por baixo das árvores inclinadas, no meio da chuva brilhante que caía, jazia o amontoado do nosso acampamento, negro e encharcado, enquanto à sua volta tudo voava, ramos, folhas, esguichos de água.

      - Descobrirei qualquer coisa para fazeres, Jerry - afirmou o pai. ­Esta chuva vai dar-nos uma nova vida. - Pegou em Jerry pelo braço e gritou: - Agora, acreditas em mim?

      A chuva embatia no rosto de Jerry, mas o pai tinha uma das mãos debaixo do queixo dele e forçava-o a enfrentar a fúria da água.

      - Sim - disse Jerry, com a boca cheia de água. - Sim, por favor!

      As portas da cabana estavam bem fechadas. A mãe e as gémeas encontravam-se lá dentro, mas o barulho da chuva no telhado - pareciam balas - era tão forte que não nos conseguíamos ouvir uns aos outros. Com as janelas fechadas, o ar era sufocante e abafado. Sentámo-nos de pernas cruzadas, comendo peixe e raízes, escutando a chuva a martelar no nosso acampamento e a rufar de encontro ao telhado.

      O pai sorriu e fez movimentos de lábios que queriam dizer: «Estamos bem secos.» A mãe encolheu os ombros como se respondesse: «Isto é terrível!»

      - Ingrata! - gritou-lhe o pai, por cima do ruído da tempestade. Ouvimos barulhos durante toda a noite, o ranger de tábuas soltas arrancadas ao monte de sucata, o barulho de árvores a caírem ali perto, o estralejar da chuva nos remendos de lata das paredes da cabana. Excitaram-me e levaram o meu coração a bater mais depressa. As pancadas do coração mantiveram-me acordado. Imaginei que a chuva expulsara os ratos do monte de sucata, que estavam desesperados, amon­toando-se em volta da cabana, com os dorsos negros e molhados a moverem-se como uma torrente oleosa, mordendo as nossas paredes. A tempestade fizera com que o país parecesse uma vastidão. Éramos um pontinho perdido na enormidade das Honduras, à beira das suas costas violentas.

      As portas faziam o possível por se abrirem. Era a pressão do vento, puxando-as e fazendo tilintar as dobradiças. Nós quatro, os garotos, dormíamos na parte da frente da cabana. Os outros estavam adormecidos mas eu permaneci acordado, tal como na noite em que fugíramos de Jerónimo. Naquela noite, o frenético som da chuva era como fogo... chamas crepitando de encontro à casa, enchendo o ar com o cheiro da lama, parecido com o das cinzas. Carreguei no coração para o acalmar, para poder respirar e dormir.

      Uma das portas batia com muito mais força do que as outras. Agarrei-a, para a segurar, e levei uma pancada no polegar. Quando a larguei de repente, as tábuas iniciaram um matraquear assustador e, antes de as poder segurar, toda a porta se abriu, rebentando com uma tábua e fazendo saltar parafusos da ombreira. A chuva começou a entrar pela janela. Meti o braço de fora para agarrar a porta e uma coisa fria e molhada segurou-me na mão. Antes de conseguir gritar, uma outra coisa fria e molhada surgiu e procurou-me a boca.

      - Não grites! - disse uma voz gaguejante.

      Primeiro pensei que fosse o pai, com uma ideia nocturna e maluca.

      Os dedos amargos estavam na minha boca.

      - Pai... - disse eu.

      Mas não era o pai, era o Sr. Haddy, com o rosto a pingar junto da janela e os olhos molhados e muito salientes. Largou-me e murmurou: - Vem cá, depressa.

      Escapei-me lá para fora apenas com os calções. Era outra das ideias que o pai tivera em Jerónimo... usar o mínimo de roupa, quando à chuva. Dizia que era porque a pele secava mais depressa do que as roupas.

      O Sr. Haddy estava de pé na lama com os braços caídos. Não o conseguia ver com clareza mas ouvia a chuva a bater-lhe no chapéu.

      - Rebentei a tua porta - disse-me.

      - Assustou-me - respondi eu tremendo de frio e com a chuva a escorrer-me pelo corpo e a picar-me a pele.

      Pegando-me na mão e chegando tanto a sua cara à minha que a chuva escorria do rosto dele para o meu, o Sr. Haddy disse:

      - Não digas ao pai que eu vim cá durante a tempestade.

      Os relâmpagos iluminavam-lhe a cara de púrpura, os lábios de preto e os dentes de azul.

      - Como é que veio?

      - Remei e empurrei com a vara - murmurou. - Tu és um bom rapaz, Charlie.

      Fiquei com a impressão de que estava muito zangado e de que me ia morder.

      - O rio não é suficientemente largo para um par de remos - respondi. - Está a subir.

      Olhei e vi o barco a remos na margem.

      - Entra na cabana e seca-te.

      - O pai está lá dentro?

      - Sim.

      - Então não entro. - Patinhou em direcção à margem. – Tenho aqui uma encomenda para ti.

      Tirou um bidão da popa do barco e largou-o na lama. A seguir agachou-se junto dele, puxou de um saco de plástico que tinha na algibeira e estendeu-mo.

      - Isto são velas e aqui tens combustível. Toma.

      - Está a chover, Sr. Haddy - foi tudo o que consegui dizer. Era meia-noite, no meio de uma tempestade, rebentara uma porta e colocara-me a mão na boca... para me levar aquelas coisas. Para que serviriam?

      - É verdade, chove mesmo. É por isso que estou aqui.

      - O pai está a dormir.

      - Está zangado comigo. - O Sr. Haddy rebolou o bidão ao longo da margem, empurrou-o para o monte de sucata e prendeu-o com um pau. - Isto é para o motor fora de borda do pai - declarou.

      - Que faço com estas coisas?

      - Não lhe digas de onde vieram. Diz-lhe que as encontraste. Charlie, queres que eu morra?

      - Não.

      - Então não fales no Haddy. Agora, ajuda-me a empurrar o barco.

      Arrastámos o barco para dentro de água e o Sr. Haddy saltou para o interior. Caiu um raio em cima de uma árvore no outro lado da lagoa. Uma luz amarela-azulada inundou o céu, vibrou como um tubo fluorescente e iluminou as nuvens escuras. O Sr. Haddy estava debruçado sobre os remos.

      - Vai inundar. Os rios vão todos encher e a vossa horta fica debaixo de água. Vai haver água por todo o lado. Então talvez o pai repare o motor e vá até Brewer.    Tomaremos conta dele. Levo-os a todos a Wonks, para pescarem e caçarem tartarugas.

      - O pai não quer que ninguém tome conta dele.

      - Queres morrer afogado?

      - O pai não deixará. Tem um plano. Quer que chova. Está seco, dentro da cabana, é a nossa casa.

      O grito de um macaco-uivador ecoou na noite.

      - Aquele macaco ouviu-te, Charlie.

      Os macacos-uivadores gritavam do outro lado da lagoa, sob os trovões, enquanto o ribombar e o martelar da chuva faziam com que a terra parecesse encontrar-se no fundo de uma gruta, com um céu cheio de pedregulhos grandes demais para poderem ser vistos. À nossa volta, no meio do molhado e do barulho, havia aquele anel de macacos. Lembrei-me de uma coisa.

      - Sr. Haddy, é verdade que os Estados Unidos foram destruídos? ­- perguntei.

      - Mau! Mau! Em todo o lado! Olha... - mas não havia nada para ver…está a encher!

      - Tem a certeza? Onde ouviu isso? Quer dizer, não há nada...

      «A encher», repetia, numa voz aterrorizada. Mexeu os braços. Os remos levantados deram-me a noção de onde estava a superfície.

      - Desaparece tudo!

      Esta foi a última coisa que ouvi. Agitou os remos, virou o barco e remou para a chuva, resmungando qualquer coisa. A costa desapareceu. Levou a lagoa com ele, e todas as árvores, e deixou-me de pé sob as picadas da chuva que caía a direito. A noite era negra tanto por cima como por baixo de mim. A chuva abateu-se sobre o Sr. Haddy e sobre os seus remos. Parecia um homem a remar para dentro de uma montanha. Era tudo chuva e gritos de macacos-uivadores naquele poço de trevas.

      De manhã elevava-se vapor das fervilhantes mas frias águas da lagoa, dos nós de raízes e ervas derrubadas, e das árvores quebradas. A terra estava coberta de vermes cor-de-rosa e toda ela, que parecia em estado de choque por causa das doze horas de chuva intensa, jazia coberta de lixo e imóvel.

      A maior parte dos rebentos da nossa horta estava agarrada à lama, tão achatados como selos, ou flutuava nos regos que havíamos aberto. Todo o terraço em que tínhamos cavado regos deslizara de lado por cima da margem. A horta estava inundada, os rebentos mais pequenos afogados e os maiores derrubados e mostrando os finos cabelos das raízes. Ramos, folhas arrancadas e troncos cobriam a lagoa.

      - Era capaz de apostar que somos as únicas pessoas secas neste país, talvez até no mundo inteiro! - disse o pai.

      - Chove no nosso quintal e ele pensa que todo o mundo ficou molhado - sussurrou Jerry. - Por que é que não nos vamos embora?

      Puxei Jerry para um lado e mostrei-lhe o bidão de gasolina e as velas para o motor.

      - Podemos fugir daqui com esse fora de borda - afirmou o Jerry, mais feliz do que eu o vira nas últimas semanas. - Procuramos o Sr. Haddy... e ele leva-nos para casa!

      - Não podemos ir para casa - retorqui. - O pai tinha razão, desa­pareceu tudo...

      - Não!

      - Foi o Sr. Haddy quem mo disse. Não ia mentir. Por favor, não chores. O aviso não foi a tempo, já começara a chorar. Tapou a cara com o braço para a ocultar.

      - Iremos para outro lado - disse-lhe. - Para Brewer, ou para um lugar qualquer da costa que seja melhor do que este.

      Continuei a falar com ele para que deixasse de chorar e depois obriguei-o a jurar que manteria segredo sobre a gasolina e as velas.

      Clover encontrava-se junto à lagoa com o pai e dizia:

      - A nossa horta está arruinada.

      - O Sol fará com que tudo se endireite - respondeu o pai, mandando­-nos abrir valas para escoar a água.

      Durante a noite as árvores em volta da lagoa haviam ficado com um tom verde brilhante, com as folhas lavadas pela chuva. Pareciam pintadas de fresco. O cinzento desaparecera de todo o lado e sob o céu limpo a lagoa era de um azul profundo. A terra era negra. Insectos deslizavam por sobre a água. As tábuas soltas do monte de sucata haviam-se espalhado por todo o lado, mas depois de as apanharmos e empilharmos o bidão da gasolina ficou oculto. Meti debaixo da minha esteira o saco com as velas. Para que nos serviam se o pai estava decidido a ficar ali? O motor fora de borda, que tinha sido a primeira coisa que eu verificara naquela manhã, não se deslocara com a tempestade. Continuava preso ao tronco e bem enrolado num plástico, como uma perna de vaca.

      O pai declarou que tínhamos de admirar aquele louco desperdício de energia, com a natureza doida a encharcar tudo. Uma chuvada enorme e demencial, como uma tentativa de assassínio a que um homem esperto só conseguia escapar refugiando-se na sua cabana à prova de água... e que não serviria de nada porque ainda estávamos vivos.

      - Mas queriam que morrêssemos!

      A tempestade aterrorizara toda a gente, excepto o pai. Ficou impres­sionado com a maneira como ela destruíra árvores, e maravilhado com as que haviam sido desenraizadas. Calculou que deviam ter caído quinze centímetros de água durante a noite. Que era preciso admirar tal coisa. E olhem para os arbustos esmagados! E pensem na velocidade. Podia-se construir uma máquina que funcionasse com a queda da chuva... a chuva recolhida faria girar uma roda de pás, tal como a dos moinhos de água, mas ainda mais eficiente, porque não sofreria uma resistência tão grande. Mas não se podia contar com a chuva, porque o mundo era imperfeito. A Natureza tentava queimar-nos, matar-nos à fome, afogar-nos, e obrigar-nos a cavar uma horta com um pau, como os selvagens. Surpreendia-nos e metia-nos medo de que algo de mau fosse acontecer. O medo transformava as pessoas em religiosos malucos, em vez de pessoas criativas.

      - Passar-se-ão semanas antes que alguém plante uma horta e, nessa altura, já a nossa dará flores.

      A mãe afirmou que os prejuízos da chuva a assustavam, teríamos de lutar para salvar a horta.

      - Gosto de uma boa luta - retorquiu o pai.

      No decurso daquele dia quente, a maior parte das plantas endireitou-se, tal como ele dissera que aconteceria. Até os rebentos mais pequenos seguiram as ordens do pai, e o que de manhã cedo parecera uma ruína e uma horta inundada, agora crescia outra vez.

      Nesse momento, o importante era proteger as plantas, declarou. Não era a quantidade de chuva o que as prejudicava mais, mas a sua ferocidade, o vento, as rajadas de água, a erosão.

      - Se não tivermos cuidado, as plantas serão arrancadas dos seus buracos. Mas vamos ter cuidado!

      Cortou bocados de bambu que serviram para segurar algumas das plantas, enquanto outras ficavam apoiadas em montinhos de lama. Então, não era uma maneira engenhosa?, quis o pai saber.

      - Só acredito quando tivermos vegetais para comer - afirmou a mãe. - Paciência!

      Para o fim da tarde, as nuvens surgiram e as primeiras gotas atingiram­-nos como pedradas. O pai ordenou ao Jerry e a mim que trabalhássemos nus na reparação da horta. Nós assim fizemos, enterrados na lama até aos tornozelos, com a chuva a bater-nos nas costas.

      - Trata-nos como escravos - queixou-se Jerry. - Gostava de pôr aquele fora de borda a trabalhar e escapar-me daqui.

      - Já escapámos uma vez.

      - Mesmo que a América esteja queimada, mesmo que tenha sido destruída, é melhor do que este buraco malcheiroso. Quero ir para casa.

      - Mas a horta agora está a salvo - disse-lhe. - Quando crescer, as coisas serão diferentes.

      - Por que é que estás sempre do lado do pai?

      - Tinha razão quanto à chuva... tinha razão quanto à horta!

      - Continua a chover - insistiu Jerry, e os trovões comprimiam-lhe o rosto e davam-lhe um sorriso assustado.

      No dia seguinte, metade da horta desaparecera. Algumas das plantas flutuavam na lagoa, para onde haviam sido atiradas com os restos da tempestade, e as outras jaziam, partidas, nos regos. Os bambus não tinham dado resultado, serviram apenas para magoar as plantas, empurradas pela força da chuva.

      - Não vale a pena - disse a mãe.

      - Fazes-me rir! Dizes isso como se tivéssemos uma alternativa! O que fazemos é o que podemos fazer! Não há mais nada. A horta é    a nossa única esperança, mãe. Tens alguma ideia melhor?

      - Fazer as malas e ir embora.

      - Não temos nada para emalar. Não há para onde ir.

      - Há Brewer. O Sr. Haddy disse...

      - O Figgy está muito atarefado a morrer. Estão todos, excepto nós. - Pegara numa pá e reparava os regos, replantando os rebentos. Viu-nos a olhar e declarou: - Mantenham-se a meu lado, gente, ou também vocês morrerão.

      - Odeio-o - disse Jerry, ajoelhando-se, e Clover ouviu-o.

      - Vou contar ao pai o que disseste.

      - Pois eu quero que ele o saiba, parva. Quero vê-lo a disparatar. Clover começou a chorar e correu para a mãe:

      - O Jerry chamou-me nomes!

      - Ninguém se rala - dizia o pai. Atirou com a pá e desembrulhou o motor. Fê-lo girar com a corda, obrigando-o a funcionar. Ao vê-lo naquilo, quase lhe falei nas velas e na gasolina, mas ele dissera: «Não temos nada para em alar. Não há para onde ir.» Ficaria ainda mais furioso. Perguntar-me-ia como as arranjara, porquê e onde. Gritaria se lhe falasse do Sr. Haddy. Desejava que o Sr. Haddy não tivesse aparecido ali, para me sobrecarregar com aquele segredo.

      - Aquilo é para o manter mentalmente são - troçou Jerry.

      Olhei para o pai, que puxava a corda de arranque do motor fora de borda.

      - E não está a trabalhar - continuou Jerry, soltando uma gargalhada.

      Concentrámo-nos no que restava da horta. Parando junto da margem podia agora ver que não fora a chuva a culpada dos maiores prejuízos. O nível da lagoa subira, tal como o Sr. Haddy predissera, e submergira as plantas que se encontravam mais perto da água. Jerry quis ir dizê-lo ao pai, para lhe provar que cometera um erro, mas começou a chover antes de o poder fazer. Despimos as roupas e tratámos da horta. Nesse dia choveu cinco vezes. Ao meio-dia fazia tão escuro que tivemos de acender velas na cabana para ver os caranguejos.

      Alguns dias antes, tudo fora poeira e árvores cinzentas. Agora, en­contrávamo-nos no meio de lama e água. Havia rãs onde antes não existiam, e cobras, e rastos de animais por todo o lado. Os lagartos deixavam marcas em toda a margem, como as notas de uma pauta de música, pequenos sinais de notas acima e abaixo da linha direita deixada pelas caudas. Havia mais aves, mais caranguejos e mais camarões de água doce, trazidos à vida pela chuva. Eram fáceis de apanhar. A mãe cozia-os no fogão e fez-me pensar que podíamos sobreviver sem a horta.

      Uma madrugada, o pai entrou na cabana, muito sorrateiro. Estava cheio de lama no peito, na frente das coxas, nas mãos, na barba, de onde pingava, e no nariz. Estava zangado. Não quisera que o víssemos, mas ficámos todos a olhar e até a mãe ficou intrigada.

      - Flexões - disse, puxando a corda do motor.

      - Os carniceiros voltaram - disse o pai, olhando para cima.

      As gaivotas cinzentas e os gordos pelicanos começavam a voar para o interior para se alimentarem das criaturas surgidas da lama. Seguiam-nos os abutres, que em vez de se alimentarem procuraram poleiros e aguar­daram. O pai gritou para os pássaros, para os assustar. Os pássaros devolveram-lhe os gritos. Odiava aqueles pássaros, afirmou, odiava os seus olhos loucos, os seus bicos sujos, o modo como se lançavam sobre as presas e lutavam pelos restos. Assim, como vingança - porquê, se os pássaros não nos tinham feito nada? - apanhava-os com anzóis iscados, que engoliam, depenava-os e assava-os. Depois comia-os. Uma fome que era ódio. Servia-se das gorduras para olear o motor fora de borda e deixava as penas e o sangue na lama. Uma manhã, vimos que apanhara um abutre e o pendurara bem alto, numa árvore. Aí ficou, linchado, até que as outras aves o desfizeram.

      - Sabes por que é que odeio estes pássaros?

      - Allie, por favor - disse a mãe, virando a cara. - Porque me fazem recordar os seres humanos.

      Negava que a água da lagoa estivesse a subir. Mesmo depois de esta ter coberto a maior parte da horta, continuava a não querer admitir que a lagoa estava a encher. Afirmou que era a terra que assentava. - É um efeito de afundamento. Foi por isso que fiz uma cabana estanque. Estava à espera disto!

      Martelou uma vara graduada na lama, na beira da lagoa. No dia seguinte a vara desaparecera, ou engolida ou arrastada. O pai disse que um abutre a confundira com um monte de excremento e a comera.

      As tempestades tinham-nos limpo o acampamento. A destruição dei­ xara-o mais arrumado. A capoeira para os mutuns, quase pronta, desa­parecera. A latrina estava no meio do rio. As tábuas das passarelas mostravam-se cobertas de lama. A bomba fora-se abaixo... parecia agora pequena e simples, tombada no chão.

      A cabana começara a afundar-se. Inicialmente assentara bem alto sobre a lama, sobre o seu fundo à prova de água, mas agora a lama trepava pelas paredes do fundo, parecia um daqueles jazigos familiares meio embebidos no chão, nos velhos cemitérios.

      A mãe ficou preocupada, afirmou que não podia cozinhar ajoelhada na água, e que aconteceria se a cabana se continuasse a afundar até a lama entrar pelas aberturas? O pai mudou o fogão para o interior e instalou uma chaminé. Mais do que nunca, a cabana parecia agora uma pequena barca e a água da lagoa já chapinhava na sua frente.

      - Allie, a água deixa-me nervosa.

      O pai arranjou uma corda e uma roldana e servindo-se de uma árvore para segurar o conjunto, tentou puxar a cabana para mais longe da lagoa. Esforçou-se, mas foi inútil, a cabana estava bem presa na lama. Deixou-a assim, amarrada à árvore.

      - Isto não devia estar a acontecer - declarou. - Não era para se afundar na lama.

      Acrescentou-lhe troncos laterais, ao nível da lama, para a estabilizar e para evitar que se afundasse mais. Disse que tinha muita pena de não termos tempo para ir até à costa, pois a tempestade devia estar a lançar coisas muito interessantes para a praia. Os mares mais revoltos davam-nos as coisas melhores... correntes de ferro, bidões de aço, metros de pano de vela. Só as marés vulgares é que traziam assentos de sanitas.

      Ficámos na lagoa de Mosquitos e tentámos dar mais segurança ao acampamento. Abrimos valas, tratámos das plantas que restavam, pes­cámos. As tempestades assaltavam-nos. Surgiam pela calada e escureciam o Céu. Gelavam-nos e obrigavam-nos a refugiarmo-nos no interior. Rou­bavam-nos a madeira, rebentavam as valas, enchiam tudo de lama e excitavam os macacos. Essas tempestades eram sempre seguidas por bandos de pássaros em busca de comida.

      - Sacos de areia - disse o pai. - Se tivéssemos sacos de areia, estaríamos bem. Aposto que há montes deles em Mocobila. Não sabem que fazer com eles. Na costa, estão todos muito ocupados a morrer.

      A chuva e a enchente da lagoa roubavam-nos a maior parte do que tínhamos e o vento levava o resto. Agora pouco mais havia do que a cabana. O monte de sucata espalhara-se, o bidão de gasolina desaparecera. Fiquei satisfeito, assim já não tinha um segredo para guardar. Não me meteria em sarilhos e de qualquer modo não havia para onde ir a Jerry disse que em breve o pai desistiria e nos levaria para Brewer.

      Não tinha por onde escolher, o acampamento era um falhanço, fizera mal em esconder-se ali.

      Uma semana depois já não havia horta, não restava um único rebento.

      Não tínhamos mais sementes. Vivíamos de caranguejos. Andávamos por; ali de pernas sujas, a lama secava em cima de nós e originava crostas cinzentas sobre a pele.

«Mantenham-se limpos», dizia o pai, mas o chuveiro de água quente que construíra foi a próxima coisa a desaparecer. A lagoa estava por baixo da metade da frente da cabana e à noite eu podia ouvi-la, pareciam ossos a bater debaixo do chão. A cabana permanecia inclinada para a frente, forçando a corda. Durante as tempestades ouvia-se a corda a ranger. - Entra água? - perguntava o pai. Não entrava, a cabana permanecia seca. Era a sua única satisfação. Gabava-se do facto sempre que chovia.

      - Há água por baixo da frente - disse eu.

      - Da proa - respondeu o pai. - Por baixo da proa.

      Começou a dizer coisas como «Vai para estibordo» ou «Vai para bombordo».

      - Estamos amarrados àquela árvore. Se o cabo se rebentar ou a árvore ceder, passaremos para a canoa. Não seremos arrastados. Jerry, lava o convés.

      Havia uma forte corrente a fluir pela lagoa. O pai entrou em pânico quando a viu. Nos músculos e turbilhões dessa corrente flutuavam arbustos arrancados, ramos, cocos, frutos negros e animais mortos e inchados, todos deslocando-se velozmente para o rio e para o mar.

      A terra amolecera e transformara-se num pântano. As árvores estavam no meio da água, os trilhos tinham desaparecido e a água continuava a subir, até que aquilo que fora um acampamento ficou debaixo de água. A cabana permaneceu de fora, pousada em cima de uma pequena ilha de lama. Haviam surgido novos ribeiros nas margens da lagoa.

      Naquele labirinto de águas enlameadas não conseguíamos avistar um único ser vivo. As aves voavam à nossa volta. O pai amaldiçoava-as de bordo da cabana inclinada. Queria matá-las a todas.

      O mundo afogara-se, declarou.

     

      Fizemos uma lista das coisas de que necessitávamos: correntes, rol­danas, peças para fixar uma roda de pás, madeira para as passarelas, pano de vela, sementes, tubos, bocados de lata, rede de arame, sal.

      - Sementes? - perguntou a mãe. - Mas não há onde as semear! - Hidropónicas - respondeu o pai. - Cultivamo-las dentro de água. Pensa nisso.

      Disse que tinha a certeza de que a maior parte das coisas de que precisávamos jazia na praia perto de Mocobila. Logo que a chuva abran­dasse daria lá uma saltada na canoa, para uma última vista de olhos à costa de Mosquito.

      - E se morremos? - perguntou April.

      - Há coisas piores.

      - O que é que pode ser pior do que a morte? - inquiriu Clover.

      Transformarmo-nos em consumidores de lixo. - O pai deu uma palmada na lista. Já começou a acontecer. Tive de aproveitar este resto de papel e este resto de lápis. Mas não preciso destas coisas... vocês é que precisam.

      Talvez mandem alguém à nossa procura - continuou Clover. - Mandem... quem?

      As pessoas.

      Quais pessoas? Pensas que a Guarda Costeira está lá fora à espera de que enviemos um pedido de socorro? Que há equipas de salvamento à nossa procura, enfiadas em gabardinas? Não... já foram todas torpe­deadas. Acredita no que te digo, somos os únicos sobreviventes.

      - Allie, por que não nos vamos embora todos juntos? Ainda temos canoa. Podemos descer o rio, podemos...

      - Descer o rio! - O pai fez uma careta zangada. - Seguindo a corrente, os ramos partidos, os frutos podres! Não o farei.

      - Por que não?

      - Porque não sou um ramo partido. Só as coisas mortas descem o rio. Há por lá uma verdadeira procissão funerária. Se nos rendermos à corrente, estamos perdidos. - Apontou com o coto do dedo em direcção à costa. - Tudo tem tendência a ir para ali. Mas temos de combater essa tendência, porque lá em baixo está a morte.

      - Podíamos viver em Brewer. Sabes bem isso.

      - Como selvagens, como esses pássaros. Preferia morrer a ter de me alimentar de lixo. Da mão para a boca? Eu? Não, mãe, eu faço coisas, e se não conseguir sobreviver desse modo, partirei envolto em chamas. Transformo-me numa tacha humana, para que esses pássaros não me devorem. Ah!

      - Então, e nós? - perguntou Clover.

      - Arderemos todos! Não é nenhuma desgraça sermos os últimos a partir! Significa que provámos o nosso ponto de vista!

      Continuava a sorrir e o seu rosto brilhava, como se já sentisse o calor dentro dele próprio.

      Pensámos que falava a sério e ficámos muito admirados quando a mãe se riu. O pai desafiou-a com olhos furiosos.

      - Allie, estamos demasiado molhados para podermos arder.

      - Tenho combustível. - Abriu muito a boca, para troçar dela. Ficou com um ar selvagem.

      - Não tens nada!

      - Gasolina - uivou o pai. - Tomamos banho nela... Um só fósforo e ... puf!

      Era como se tivesse dito à mãe que tinha uma arma.

      - Aqui não há gasolina - retorquiu a mãe, recuando.

      - Um bidão dela. - A mãe não disse nada. - Encontrei-o na lama. Houve um parvo qualquer que o deitou fora, devia estar muito ocupado a afogar-se. O bidão chegou à nossa costa. Amarrei-o a uma árvore.

      - Sorriu para os nossos rostos assustados. - Não é nenhuma desgraça morrer à nossa própria maneira.

      Jerry olhou para mim. Abanei a cabeça. Não queria que ele dissesse ao pai que fora o Sr. Haddy quem nos trouxera a gasolina.

      - O Charlie tem velas - declarou Jerry.

      - Charlie não tem tal coisa.

      - Mostra-lhas - pediu-me o Jerry.

      Tirei o saco de plástico de debaixo da esteira e entreguei-o ao pai.

      Rasgou o plástico com um esticão e verificou o estado das velas com a unha do polegar.

      - Encontrei-as na lama - expliquei, olhando para o Jerry, desafiando-o a negar que tivesse sido assim.

      O pai suava. Aproximou-se de mim. Tinha o rosto em brasa, os lábios brancos e estalados. Pensei que me ia bater, ou exigir saber onde as arranjara - o local exacto - para me acusar de mentiroso. Hesitou, talvez envergonhado por ter falado de suicídio e de nos encharcar em gasolina. Abriu a boca para dizer qualquer coisa mas antes de o conseguir fazer a mãe gritou.

      - Allie! - o pai virou-se para ela. Com o medo nos olhos a mãe disse: - A casa mexeu-se!

      O pai sentira-o - o mesmo acontecera com todos nós - no momento em que abrira a boca. Uma pancada suave, um empurrão de encontro às tábuas, um deslizar lateral por debaixo dos nossos pés. O pai começou a rir-se e esqueceu-se de mim.       Correu para o exterior, gritando:

      - Planeei as coisas assim!

      Naquela noite fomos acordados por um trovão que abalou a cabana... mas o trovão era o motor fora de borda a vibrar na tábua a que se encontrava preso. Ecoava por toda a lagoa e pelo pântano em volta. O pai desligou o motor e então pude ouvir os morcegos, o constante martelar da chuva, os macacos a responderem ao barulho feito pelo motor.

      A seguir ficámos a flutuar, sentia a água a lamber a cabana e a balouçar-nos nas redes. A enchente da lagoa elevara a pequena cabana à prova de água e transformara-a numa barca. De manhã tínhamos água à nossa volta e éramos iluminados pelo enlameado brilho das águas da lagoa. As árvores estavam distantes mas a corda continuava a manter­-nos amarrados à árvore solitária, no meio da água. Encontrávamo-nos fora da corrente e o motor estava fixado à amurada do curto convés traseiro. A canoa, com o bidão da gasolina e alguma sucata que o pai salvara, estava amarrada à popa, pois o pai recordou-me de que era assim que lhe devia chamar.

      - Quem tinha razão? - Pegou na mão da mãe e declarou: - Não conseguiria morrer mesmo que o tentasse!

      - E se meter água? - perguntou a mãe.

      Há troncos debaixo de nós! Somos estáveis! Não nos afundamos!

      Planeei as coisas assim!

      A mãe estava junto do fogão, fritando o peixe do pequeno-almoço.

      - Rebocador Annie - disse o pai. - Agora vou comer. Tenho andado a poupar-me para este momento... Pode chover à vontade!

      A cabana raspava no fundo, e quando oscilava com os nossos mo­vimentos sentíamo-la bater na lama por debaixo de nós, a deslizar em terra macia. O pai comeu um pequeno-almoço substancial, depois pegou na vara da canoa e começou a empurrar-nos para águas mais abertas.

      - Logo que chegarmos à costa - disse o Jerry -, vou à procura do Sr. Haddy. Pode levar-nos até La Ceiba. Podemos apanhar aquele barco das bananas.

      - Pai, o Jerry diz que vamos para a costa - gritou Clover. - Queres morrer, rapaz?

      - Mas estamos salvos... foste tu que o disseste!

      - Qualquer pessoa pode flutuar até à costa - retorquiu o pai, empur­rando a vara. - Podia tê-lo feito sem motor. Mas aguentei-me. Lutei contra essa tentação. - Voltou a fazer força na vara. - Não nasci para criar hortaliças. Sou um inventor... fabrico coisas, Jerry. Essa costa de Mosquito não vale nada. É a beira do precipício. Um passo em falso... e desapareces. - Continuou a empurrar a vara, levando-nos para águas mais profundas. - Há morte, lá em baixo. Destroços. Comedores de restos. Tudo o que está partido, podre e morto segue por esse rio em direcção à costa. É o ponto que fica mais perto dos, Estados Unidos. Como é que podemos saber que não está envenenado? Tenho lutado sempre contra a corrente mas foi difícil. Não cedi um milímetro. Quando é que me ouviram dizer: «Muito bem, vamos à deriva e que Deus nos ajude?» Nunca! É por isso que estamos a vencer.

      - Não há sítio nenhum para onde ir... foi o que nos disseste! ­- insistiu Jerry.

      - Estás a tirar essa frase do seu contexto! - O pai mergulhou a vara na lama e ficou agarrado a ela. - Estás a fazer uma citação incorrecta. Não é verdade, Charlie?

      - Se não vamos para a costa, então para onde vamos? - perguntei.

      - Faço coisas! Tenho mapas na cabeça! Nesses mapas há mais lugares seguros do que podem imaginar. Olhem para a casa que construí! Flutua! Olhem para este motor... - Enrolou a corda do arranque e pô-lo a funcionar. - Funciona! Um estúpido qualquer deitou-o fora! Olha para nós, mãe... deslocamos apenas trinta centímetros de água, e quarenta centímetros do lado de fora! Podemos ir a qualquer lado nesta jangada. Podemos fugir desses pássaros. Morrerão todos aqui, mas nós continua­remos a viver. Acham que sou suficientemente louco para me arriscar a que nos afoguemos todos, quando todo o mundo nos pertence?

      Dizendo isto e muito mais coisas, apontou a cabana para o interior, em direcção ao Patuca, guiando-nos contra a corrente.

 

                       A SUBIDA DO PATUCA

 

      - Salvei-vos de uma morte certa - disse o pai.

      Sim, estávamos vivos naquele mundo aquático.

      - O que é que vão fazer por mim?

      Que é que lhe podíamos recusar? Devíamos-lhe tudo. - Terão de fazer o que eu disser.

      De que outra maneira lhe poderíamos pagar?

      - Para cima - declarou. - Para a foz... é um esgoto. Sabem bem disso. Mesmo que fosse verdade, tal não servia para tornar a viagem mais fácil. Cada quilómetro parecia um erro, porque já não estávamos livres. Era como a morte lenta dos sonhos em que nos sentimos encurralados, tentando gritar e não o conseguindo. Ninguém disse nada.

      No espaço de um dia, a nossa situação havia mudado. Dê uma família encharcada e discutindo, com as mãos sujas agarradas a um sórdido monte de lama, cheia de medo ante a hipótese de inundações piores, tínhamo-nos transformado em gente do rio. A nossa principal preocupação era de que o casco se abrisse ao embater em rochas submersas. Iríamos para o fundo como uma pedra. Jerry eu trabalhávamos com a sonda, à proa. O martelar do motor fora de borda deixava as árvores limpas de macacos - que aqui eram babuínos de focinhos brancos e macacos de rabo às riscas - e assustava tudo excepto as borboletas.

      As trovoadas e chuvas da lagoa, bem como a ruína da nossa horta, não passavam de uma memória. Mas no preciso momento em que pensávamos estar salvos e que iríamos para Brewer à procura de um abrigo seguro numa daquelas casas parecidas com campanários sobre estacas, o pai virava-nos para o outro lado e começava a lutar contra a corrente do rio.

      Jerry afirmou que aquilo lhe parecia perigoso.

      Eu disse ao pai que estava assustado.

      - Allie, por que é que não nos arriscamos a ir até à costa? ­- perguntou a mãe. - Pelo menos sabíamos onde estávamos.

      O pai chamou-nos selvagens. Afirmou que fora aquele tipo de pen­samentos que provocara a perdição da carcaça da humanidade. Queríamos morrer todos? O perigo não estava no desconhecido, mas sim no conhe­cido. Só os que se estão a afogar se agarram aos destroços. Os que se dão ao trabalho de procurar o desconhecido serão salvos... mas quem se preocupa em fazê-lo? Claro que era difícil fazer com que aquele barco pesado subisse a corrente de um rio cheio, só com um motor! Isso era a prova de que valia a pena!

      Tivera razão noutras coisas, portanto, acompanhámo-lo naquela e descobrimo-nos a concordar com tudo o que ele dizia.

      - Os dentistas dos Estados Unidos tinham interesses nas fábricas de doces - declarou. - Os médicos eram donos de hospitais. Os bancos de Detroit controlavam os poços de petróleo. A América sofria de cancro! Eu via que tudo ia por água abaixo! Por que razão ninguém mais o via?

      Um dia passou por nós um aerossol contra os insectos. O pai nem sequer se interrogou de onde viria, estava demasiado ocupado a refilar a seu respeito. Surgiram jarros de plástico na água. Protestava ainda mais. Protestava contra as pessoas gordas, os políticos, os bancos, os cereais para o pequeno-almoço, os comedores de restos... Havia abutres enlameados mesmo na nossa frente. Gritava com eles e amaldiçoava as máquinas.

      - Estou ansioso pelo dia em que possa ver-me livre deste motor fora de borda... Transformo-o naquilo que na verdade é, uma picadora de carne.

      Todas as máquinas escavavam túmulos, declarou. Bastava que as deixássemos em paz um minuto, para logo se estragarem. Só serviam para uma coisa... para as enterrarmos.

      - Já tive um poço! - Lambeu os lábios, congratulando-se a si mesmo. - Fiz gelo do fogo!

      Baptizou a nossa casa flutuante de Francis Lungley, depois mudou-lhe o nome para President Fox, e finalmente escrevinhou Victory num dos lados, com um prego. Disse que a casa era o mundo. Tinha cinco metros de comprimento por dois de largura. Ele e a mãe dispunham da «cabina principal» (o fogão, a cadeira, o colchão de penas de pelicano). Com as madeiras em excesso atiradas fora ou cortadas para lenha, a jangada movia-se na água com mais facilidade, com a graça de um barco de canal ou das barcas motorizadas do vale de Connecticut. Logo que saímos do afluente, onde os ramos batiam no nosso telhado, avan­çámos pelo meio do rio, contra a corrente. Para qualquer lado, dizia o pai, desde que fôssemos contra a corrente.

      Entrámos no Patuca no primeiro dia. Ficámos surpreendidos quando descobrimos que aquele grande rio correra durante todo o tempo por detrás do pântano, a leste da nossa pequena lagoa dos Mosquitos, a quatro horas de distância, mas o rio estava bem escondido, só o vimos quando já quase estávamos em cima dele. O pai afirmou que não ficara nada surpreendido, que mais uma vez tivera razão! A chuva fizera o rio galgar as margens e penetrar por entre as árvores, tornando-o silencioso e tão largo que nalguns sítios nem parecia estar a correr.

      O pai conduzia o barco ao longo das margens submersas, onde a corrente era mais fraca. Avançamos devagar, mas tal como ele dizia: «Para quê a pressa? isto não são férias... é a vida!»

      À noite amarrávamos o barco a uma árvore, comíamos e dormíamos, com os potes de fumo a arderem por causa dos mosquitos. Quando se aproximava uma nuvem de mosquitos, os seus milhões de insectos caíam sobre nós como uma terrível rede e provocavam um zumbido agudo, o som que um rádio faz quando está sintonizado entre duas estações.

      Com o rio a murmurar à nossa volta, lambendo os troncos, mais uma vez o pai afirmou que éramos os únicos que restavam em todo o mundo. Se gritasse por socorro, ninguém apareceria. Oh, claro, podíamos encontrar gente perdida, ou selvagens, ou até aldeias inteiras em terrenos elevados, que houvessem sido poupadas, mas éramos os únicos que sabiam que se dera uma catástrofe... o fogo, seguido pelo trovão da guerra, e as inundações, que tinham acontecido na Terra. Como é que alguém ali na costa de Mosquito podia saber que a América fora devastada? Um dos estreitos conceitos do homem era o de que a chuva caía apenas em cima dele... mas o pai sabia que fora geral. Em cada um dos estágios, predissera o que viria a seguir. Até os Americanos tinham visto a escrita nas paredes... e não haviam sido capazes de falar de outra coisa! Mas enquanto permaneciam sentados, lamentando-se e gi­rando os polegares em volta um do outro, o pai tomara contramedidas para evitar a nossa destruição.

      - Por vezes posso ter exagerado - disse -, mas isso foi apenas para vos convencer da seriedade do caso e para vos fazer mexer. Vocês resistem à organização. Durante metade do tempo nem sequer acreditam em mim!

      Que diferença fazia, perguntava, se se enganara a respeito de coisas sem importância? A justeza das suas acções fora comprovada pelos grandes acontecimentos. O que tínhamos visto durante o último ano fora a mais elevada forma de criação. Iludira o espectro que pairava sobre o mundo, removendo-nos para longe de uma civilização frágil e temporária. Todos os mundos acabavam um dia, mas os Americanos haviam-se mantido con­vencidos de que o seu, apesar das falhas óbvias, duraria para sempre. Impossível... mas o pai ia levar-nos em segurança rio acima.

      - Conversa fiada! - exclamou Jerry. - Só conversa fiada!

      O pai não o ouviu, porque gritava:

      - Como é que posso estar enganado, se vou contra a corrente? A costa estava morta. A corrente do rio corria para a costa. Portanto, era lógico que vinha do lado da vida... das montanhas e das nascentes. Aí, entre os vulcões de Olancho, construiríamos a nossa casa.

      Isto foi o que nos disse uma noite, na cabina, depois de atracarmos a casa a uma árvore e com as rãs a coaxar no exterior. Durante o dia também falava, mas com o motor a trabalhar já quase não ouvíamos uma palavra do que dizia.

      O rio parecia nascer do chão. Inundava a selva, era tudo uma vastidão de água. Troncos de árvores com as raízes à mostra passavam por nós aos trambolhões. Chovia menos vezes... uma chuvinha de manhã, uma carga de água à tarde. Mas, tal como o pai dizia, éramos à prova de água. Para beber, aproveitávamos a água da chuva. O sol a brilhar no rio enlameado dava-lhe um tom de latão polido, e punha ligeiros reflexos na selva. Brilhando através da neblina da manhã, espessava o ar de vapores dourados que dançavam por entre os ramos. Nalguns sítios havia verdadeiras nuvens de borboletas brancas, regatas delas pairando mesmo junto à água. Ou então azuis, grandes como pardais, agitando as enormes asas tão lentamente que se moviam como maravilhosos farrapos de seda caídos das árvores.

      Por duas ou três vezes vimos mosquitos ou zambus em canoas, deslizando rapidamente a favor da corrente. Por vezes acenavam-nos, mas a corrente levava-os com tal velocidade que mal os avistávamos e já tinham passado por nós, para lá da última curva.

      - Está perdido - dizia o pai quase sempre que passava um deles. - É um homem morto. Um zombi e não um zambu. Vai para baixo, para morrer.

      Tinham uma aparência molhada mas perfeitamente normal, remando vestidos com as espessas roupas interiores, cavalgando a agitação da corrente.

      Jerry disse que um daqueles dias saltava para a canoa e deixava que a corrente o arrastasse para a costa. O pai soube daquilo, talvez por uma das gémeas, e ordenou-lhe que embarcasse na canoa.

      - Pronto, aí vais!

      Largou a canoa e deixou-a ir rio abaixo. O Jerry estava demasiado aterrorizado para remar. Agarrou-se ao assento e agachou-se com a cabeça encolhida, gritando. Quando o Jerry já quase não estava à vista, a mãe disse:

      - Allie, faz qualquer coisa!

      O pai puxou pela ponta de uma corda. Estava amarrada à canoa. Deu-lhe um esticão, fazendo o Jerry cair com a cara no fundo da canoa.

      O Jerry tremia quado o pai puxou a canoa de volta para junto de nós.

      - Isso foi uma loucura! - protestou a mãe.

      - Provei o que queria. Satisfiz o meu desejo!

      - E se a corda se partisse?

      - Então o Jerry teria o seu desejo satisfeito - respondeu o pai. - Alguém mais quer experimentar? Para a próxima sou capaz de me decidir a largar a canoa. Vai pelo esgoto abaixo. Alguém está interessado?

      Noutro dia apanhou-me meio adormecido sobre a sonda. Como castigo, mandou-me para a canoa, que rebocou atrás do barco («Espero que esse cabo não se parta! O melhor é não te mexeres muito.»), enquanto a minha pequena embarcação saltava e oscilava no seu rasto.

      Passámos por aldeias inundadas. Estavam desertas, com os esqueletos de madeira de pé na água, algumas tombadas, outras apenas com telhados rebentados. Estas cabanas mortas e vazias provavam que o pai tinha razão. Afirmou que as pessoas haviam sido arrastadas pelas águas, ou que eram aquelas que víramos a remar ao longo do esgoto, para se irem afogar no mar.

      - Não precisam disto - afirmou, enquanto se apoderava de limas, abacates e outros frutos das suas árvores. Encontrámos sacos de arroz e feijão nalgumas dessas aldeias. - Não é nenhum assalto - informou o pai. - Não é um roubo. Onde agora estão, já não precisam disto.

      Às vezes, porém, as aves chegavam lá primeiro.

      - Devoradores de carniça!

      Um dia pensámos avistar um avião, mas o nosso fora de borda fazia tanto barulho que não lhe conseguimos ouvir os motores. O pai disse que era um abutre. Quem era o ser humano que tinha o bom senso de ir para ali? Esta era a parte mais vazia de todo o mapa. Em todo o mundo, aquela parte das Honduras era a mais segura e a menos conhecida... a última zona selvagem.

      - Mas não me elogiem por isso... dêem graças a este barco! - o nosso Victory era como um porco de madeira dentro de água, estalando e chiando rio acima. - É futurista!

      A chuva molhara as formigas e fizera-as ganhar asas. Ao pôr do Sol estas térmitas voadoras amontoavam-se no telhado do nosso barco-ca­bana. A selva estava cheia de formigas aladas em busca de alimento. A água do rio mudava de cor à medida que mudava o tempo, e era diferente de hora para hora. Gostava do seu dourado, ou do verde das horas do dia, com a margem de lama vermelha a ver-se por baixo como um bolo ensopado coberto por oscilantes espinafres, bem como do modo como se movia na selva imóvel.

      Ao crepúsculo, o ar ficava repleto de insectos enquanto os pântanos pareciam uma zona doentia nos espaços escuros por debaixo das árvores. O céu clareava à medida que as sombras desciam. As sombras engrossavam e aprofundavam-se. De súbito o céu ficava mais sujo... e era a noite, não se via nada, com um preto tão preto que conseguíamos sentir a sua pelagem de encontro aos nossos rostos... Sem o Sol para o queimar, o cheiro vindo das árvores era como o odor da carne podre. O rio cheio farejava como uma matilha de cães, e as aves andavam aos saltos nos ramos perto de nós, soltando gritos estridentes e altos. Sentia-me sempre mal durante aquela hora de tempo parado, as sobras do dia. Atracávamos e sentávamo-nos entre os potes de fumo da nossa cabana flutuante, comendo o que conseguíamos arranjar nas aldeias afogadas.

- Isto é o futuro - dizia o pai. Espetava o nariz queimado pelo sol junto das nossas caras até concordarmos que estávamos confortáveis, que tínhamos sorte e que nos divertíamos muito. - Assim é que é ­insistia. - O erro fatal que toda a gente cometeu foi pensar que o futuro tinha algo que ver com a alta tecnologia. Eu próprio cheguei a pensar desse modo, mas isso foi antes desta experiência. Oh, Deus, o mundo ia ser feito apenas de foguetões.

      - Monocarris - disse eu.

      - Cápsulas espaciais - acrescentou Clover.

      - Fedorvisão. Videocassetes em vez de escola. Tudo aerodinâmico.

      As refeições iam ser comprimidos... verdes para o pequeno-almoço, azuis para o almoço, encarnados para o jantar. Atiravam-se para dentro da boca... e ali estava toda a nutrição necessária.

      - Fatos espaciais - disse April.

      - Isso mesmo. Gente estupidificada, com orelhas em bico e nomes como «grok», usando capacetes e vivendo em casas cromadas. Passeios, rolantes, cúpulas de vidro sobre as cidades. Nenhum trabalho excepto brincar com computadores e cheirar a fedorvisão. «Metam-se nos foguetes, rapazes, e vamos fazer um piquenique na Lua»... e outras coisas assim.

      - Podia acontecer - afirmou a mãe.

      - Nunca. São tudo tretas.

      - Acho que o pai tem razão - declarou Clover.

      - A ficção científica deu às pessoas mais falsas esperanças do que dois mil anos de Bíblia. Tudo mentiras. O programa espacial... é nisso que estão a pensar? Era um poço sem fundo, um desperdício do dinheiro dos contribuintes. Não há nenhum futuro no espaço! Adoro esta palavra... espaço! É isso mesmo o que eles estão a descobrir... espaço vazio!

      - Também acho que o pai tem razão - acrescentou April.

      - Isto é o futuro. Um pequeno motor num pequeno barco, num rio enlameado. Quando o motor rebentar ou se acabar a gasolina... remamos! nada de homens do espaço! Nada de combustíveis, foguetões ou cúpulas de vidro. Apenas trabalho! O homem do futuro vai ser um cavalo de carga! Não há nada na Lua a não ser pedras e borbulhas, e aqueles de nós que herdaram esta Terra senil e exaurida não terão nada a não ser rodas de madeira, carroças, alavancas e roldanas... a mais simples física do liceu, que deixaram de ensinar quando toda a gente a largou para começar a ler ficção científica. Não... nada disso! Ou cultivamos o que comemos, ou morremos. Nada de pílulas verdes e montes de comida da boa! Trabalho violento... simples mas não fácil. Percebem? Nada de raios laser ou electricidade, apenas a potência dos músculos. O que estamos agora a fazer! Somos as pessoas do futuro, utilizando a tecnologia do futuro. Descobrimo-las!

 

      Queria que nos sentíssemos, no barco-cabana que estalava, como sendo as pessoas mais modernas do mundo, que detínhamos o segredo da existência na nossa enfumarada cabina. Agora nunca falava em trans­formar o mundo com gelo ou com energia geotérmica. Prometia-nos porcaria e trabalho. Era essa a glória, dizia.

      Porém, depois daquelas curtas noites, punha o motor a trabalhar e dirigia a frente da cabana contra a corrente, enquanto o Jerry me sussurrava:

      - Vai matar-nos a todos.

      Mantínhamo-nos junto da beira do rio, dando a volta às saliências da margem e estudando a corrente antes de seguirmos em frente. Fazíamos nove ou dez quilómetros por dia e ainda dispúnhamos de muita gasolina. Que diferença fazia, se a gastássemos toda? Tínhamos o resto das nossas vidas para subir o rio...

      Pensei que toda a gente, excepto o Jerry, estava convencida. Mas um dia, enquanto avançávamos, o motor fora de borda enlouqueceu. Começou a gritar num som cada vez mais estridente, mais frenético e animalesco, e pouco depois lançava um guincho agudo. As aves como que explodiram nas árvores. A seguir houve qualquer coisa que estalou, quatro ou cinco estranhos ruídos e o motor parou. No entanto, os seus ecos continuavam a fazer estremecer a selva. O barco hesitou, fez-se mais leve e sem direcção. Oscilava e girava na corrente.

      Seguíamos rio abaixo, de lado, levados em silêncio pelo rio, sob as formigas que se precipitavam sobre nós.

      - Âncora! - gritou o pai. - Lancem os cabos!

      A nossa âncora era uma beleza - encontrada na praia perto de Mocobila -, um feixe de ferros encurvados na ponta de uma grossa barra. Mas era também muito pesada, foi precisa a ajuda do pai para a deitar por cima da borda e, nesse momento, já íamos com tanta velocidade que pensámos que não agarraria. O pai saltou para a água e nadou para a margem com uma corda. Amarrou a cabana-barco e a âncora prendeu.

      Estávamos numa curva do rio. A corrente fazia-nos oscilar na ponta da corda, no meio do rio, lançando-nos jactos de água de cada lado do casco. Todo o barco vibrava quando ajudámos o pai a subir para bordo. Tínhamos perdido o contrapino - o que não era grande coisa, afirmou -, mas significava que a hélice caíra para o fundo do rio.

      - Não podes fazer uma nova? - perguntou a mãe.

      - Claro que posso - respondeu o pai. - Passa-me aí o torno mecânico, o calibrador, as máquinas-ferramentas, e tudo o resto. Quê? Quer dizer que só temos cuspo e uma chave de fendas? Então vou ter de mergulhar para procurar aquela hélice.

      Olhámos para montante, para os negros cornos da corrente a embater na margem.

      - Não se preocupem - disse o pai. - Temos o resto das nossas vidas para a encontrar. - Sorria e mordia a barba. Virou-se para o Jerry e perguntou: - Por que é que te estás a rir?

      - Por causa do resto das nossas vidas. Parece uma loucura quando diz isso assim.

      - Veremos até que ponto é loucura. Vais mergulhar para a procurar.

      - Então, e os aligátores? - perguntei.

      - Tu não tens medo dos aligátores - retorquiu. - Mergulharás depois do Jerry.

      - Não! - protestou a mãe. - Não deixarei que os rapazes saltem para a água.

      - Escutem-me bem - retorquiu o pai. - Não se trata aqui do que vocês querem ou não querem. Sou o capitão deste navio e estas são as minhas ordens. Quem desobedecer, vai para terra. As vossas vidas estão nas minhas mãos. Abandono-os a todos!

      As suas mãos grandes e cheias de cicatrizes ainda pingavam água do rio. A sua voz era uma arma... ameaçava abandonar-nos a não ser que saltássemos... mas o que eu mais temia era ser atirado para a costa por aquelas mãos. A vida que ali levávamos dera-lhes um aspecto terrível.

      - Amarra-te com isto - disse para o Jerry, dando-lhe a ponta de uma corda para amarrar à cintura. Jerry, com olhos de desafio, atirou fora as sandálias e dirigiu-se para a borda. - Está algures nesta zona - explicou o pai. - Perdemo-la perto daquelas árvores, provavelmente bateu numa pedra. A corrente não tem força para levar para longe um bocado de latão daquele tamanho. Nada primeiro para a margem e depois mergulha e procura-a.

      Jerry tapou o nariz e atirou-se à água como uma pedra.

      - Tenho andado a treinar-vos para uma coisa como esta – continuou o pai. - Foi tudo preparação para a sobrevivência. - Tirou um prego de dentro do bolso. - Isto servirá de contrapino... mas precisamos da hélice. - Segurou o prego entre os dedos. - É sempre algo muito pequeno o que nos salva da selvajaria. As velas de ignição. A hélice. Este prego. O contrapino foi o que manteve a nossa civilização coesa. Não há melhor exemplo para o delicado equilíbrio entre... - Olhou para o rio, para os pequenos e brancos pés do Jerry - Que tal vai ele?

      Jerry veio à superfície e soprou água, mas antes de conseguir nadar foi arrastado pela corrente e agarrou-se ao barco.

      - Não se vê nada, a água tem demasiada lama.

      - Tenta outra vez.

      - O Jerry está cansado, Allie.

      - Poderá descansar depois de encontrar a hélice.

      - Deixa-me ir eu - disse a mãe.

      - E se te afogas? - perguntou o pai.

      - E se o Jerry se afoga? - retorquiu a mãe numa voz baixa e sufocada. - Preciso de ti aqui, mãe - declarou o pai, coçando a barba com os nós dos dedos.

      O Jerry tentou quatro vezes e de todas elas a corrente o puxou para trás, de mãos vazias. Por fim já estava tão cansado que nem conseguia levantar os braços e o pai teve de puxar pela corda para evitar que fosse arrastado pelo rio.

      Era a minha vez. Nadei para a margem e depois mergulhei no sítio em que o pai indicara. Meti as mãos na lama e vasculhei. A lama escorria-me por entre os dedos. O rio agitado era como sopa de hortaliça, onde o sol penetrava provocando longas sombras que pensei serem aligátores. Quando fiquei sem fôlego, subi à superfície e descobri que nadara quase até ao barco.

      - Não estás a fazer isso a sério - disse o pai, obrigando-me a voltar para trás.

      O lodo e as plantas no fundo do rio metiam-me nojo. A corrente puxava-me pelas pernas. A lama flutuava-me para a cara. Mas o pior de tudo era que, preso pela corda do pai, me sentia como um cão à trela. Se permanecesse amarrado, estava à sua mercê, mas se me libertasse da corda seria arrastado pela corrente, para me afogar.

      Era uma vida de cão. Ainda bem que o Jerry lhe dissera o que dissera. Por que é que eu não dizia ao pai o que pensava dele? Uma vida de cão... porque não contávamos, porque ele tinha sempre razão, estava sempre a explicar coisas, e acima de tudo porque nos mandava fazer coisas difíceis. Mas não queria ver-nos ter êxito, queria rir-se à custa dos nossos falhanços. E nem sequer um peixe conseguiria encontrar uma hélice tão pequena no fundo daquele rio.

      Disse-lhe que tinha engolido água, que me sentia mal e não podia mergulhar outra vez.

      Riu-se - como eu já sabia que faria - e disse:

      - As crianças não servem para nada numa crise, o que é irónico, porque as crianças são a causa da maioria das crises. Quer dizer... eu sei tomar conta de mim mesmo! Não preciso de comida, não preciso de dormir, não sofro! Sou feliz!

      - Pai, isto é uma crise? - perguntou April.

      - Algumas pessoas diriam que sim. Temos um motor que não podemos utilizar. Temos um barco que não pode navegar. Temos dois aleijadinhos que não são capazes de encontrar a hélice. Se a âncora, ou aquele cabo, se soltarem, iremos pelo esgoto abaixo. Está a escurecer e estamos no meio da selva. Sim, garota, algumas pessoas diriam que estamos numa situação crítica.

      - Quero experimentar, Allie - disse a mãe.

      Porém, o pai já amarrava a corda em volta da cintura e prendia a ponta livre à borda do barco. Disse que para fixar aquela corda salva-vidas só confiava num dos seus próprios nós.

      Saltou borda fora com um forte chapão. Vimo-lo mergulhar e ficámos à espera de que encontrasse a hélice à primeira tentativa. Voltou à superfície mas nem sequer levantou as mãos. Mergulhou outra vez. Era um nadador suficientemente forte para se aguentar contra a corrente, mas quando mergulhou pela terceira vez, nunca mais o vimos aparecer.

      Esperámos. Observámos a água no local onde mergulhara.

      - Onde está ele? - perguntou Clover.

      - Talvez a encontrasse - disse a mãe.

      Surgiu uma nuvem de mosquitos a zumbir, que logo desapareceu. - Está lá em baixo há muito tempo - comentou April.

      - Está escuro, no fundo - afirmou Jerry.

      Deixámos de suster a respiração.

      Passaram-se mais minutos, não seria capaz de dizer quantos, pois o tempo ali não passava com precisão. O dia era a luz, a noite era a escuridão, o tempo era indiferente. As horas eram todas quentes e iguais, silenciosas e cegas. Podia já lá estar em baixo há uma hora.

      A mãe dirigiu-se à borda do barco e puxou a corda. Levantou-a com facilidade e puxou-a para bordo, enrolando-a até a tirar toda de dentro de água. No sítio onde estivera o nó, a ponta estava esfiapada como a cauda de um vira-latas.

      - Desapareceu! - gritou Clover, ficando rígida. Chorava com tanta força que ficava sufocada, e a seguir chorou ainda mais por se sentir sufocada.

      - Não o vejo - disse o Jerry.

      Mas o Jerry deixara de olhar, estava virado para mim com a cara descontraída, muito branca e cheia de esperança, como alguém sentado na cama, de manhã.

      A mãe abanou a cabeça. Não tirava os olhos da corrente de água que corria rio abaixo e não dizia uma palavra.

      De súbito senti-me forte. Um instante antes a noite caía, mas agora tudo se tornara mais brilhante. O céu estava mais claro. Havia pequenos insectos a agitarem-se por cima do rio. A tranquilidade pairou sobre nós, prateou as águas e fê-las brilhar em faixas, como um túmulo recente. O silêncio selava-o.

      - Está em qualquer lado! Está em qualquer lado - gritou April, mas a sua voz não perturbou o rio ou as árvores. Agarrou-se aos cabelos, agarrou-se a Clover e juntas soluçaram até sufocar.

      - Podemos ir à deriva - declarou o Jerry. - Ficamos amarrados durante a noite e amanhã descemos o rio. Será fácil.

      - E se o pai tinha razão? - perguntei.

      - Não tenham medo - disse-nos a mãe.

      - Não temos medo nenhum! - retorquiu Jerry.

      - Não consigo pensar - lamentou-se a mãe. A sua face atenta, à escuta, era encantadora. Não registava um único som. Não ouviu a April dizer que íamos todos morrer, ou a Clover a chamar pelo pai, ou o Jerry a descrever a nossa fácil viagem rio abaixo até à costa.

      O pequeno Jerry, agora livre, andava aos pulos pelo convés.

      - Escutem - pediu a mãe.

      A água que chapinhava, prateada, a selva... tudo aquilo era um reino de pequenos zumbidos, um reino de insectos, um reino de cigarras.

      Passou por nós um zambu numa canoa. Era como o tempo a passar, a duração das suas idas e vindas. Era o único tempo que ali existia... os movimentos de um homem. Aquele zambu estava vivo.

      - Não morreremos - afirmei.

      A mãe não me ouviu mas eu falava a sério. O nosso barco era pequeno e pairava de modo precário no meio do rio, seguro por uma corda - a mim parecia-me que estava suspenso no ar -, mas nunca me sentira tão seguro. O pai fora-se. Que sossegado que aquele local era. Dúvidas, morte, desgosto - haviam passado como a sombra da asa de uma ave roçando por nós. Agora - ao fim de quanto tempo? - já nos tínhamos esquecido dessa sombra. Estávamos livres.

      - Dentro de um par de dias estaremos na costa - disse o Jerry. - Na costa... morreremos! - lamentou-se Clover.

      Era o que o pai sempre dissera e o que eu julgava acreditar, mas ele desaparecera e levara o medo consigo. Ouvi-me a dizer:

      - Podemos ver-nos livres deste motor. Construíremos um leme. A corrente leva-nos.

      O Jerry tentou fazer com que as gémeas parassem de chorar, pergun­tando-lhes:

      - Não querem ir para casa?

      Ouviu-se um violento chapinhar na água, uma verdadeira explosão naquele mundo de zumbidos. Ali estava a cabeça do pai, molhada, com a barba colada à borda do barco, a hélice de latão a cair nas tábuas e o seu uivo:

      - Traidores!

      A luz desapareceu de repente.

 

      Durante os três dias seguintes, e como castigo, o Jerry e eu seguimos rebocados atrás do barco, na canoa. Comemos e dormimos nela. Agitava-se e saltava como uma rolha de cortiça arrastada na ponta de uma linha de pesca. Mal havia espaço para nos deitarmos. O bidão encontrava-se entre nós e os vapores amargos da gasolina misturavam-se com os fumos do escape do motor fora de borda, que cheiravam a trapo queimado e me deram uma terrível dor de cabeça. Ajoelhávamos na água que penetrava pelas fendas daquele tronco escavado e matávamos o tempo arrastando um anzol à popa, na esperança de apanhar um peixe.

      O pai sentava-se na outra ponta daquela corda de reboque de dez metros, na amurada da popa da cabana-barco, com as costas viradas para nós. Adivinhava-lhe os ombros, o cabelo oleoso, a curva da espinha. Imaginava como seria espetar-lhe uma faca, logo abaixo do colarinho rasgado. Por vezes até me via a fazê-lo. Nessas minhas imagens não havia sangue, gritos ou luta, apenas o som de ar a libertar-se quando a lâmina deslizava e os copos da faca embatiam na carne. A partir daí esvaziava-se, como uma câmara-de-ar com um rasgão. Via tudo tão claramente que até o braço me doía... como se já o tivesse feito, o tivesse furado.

      Escutava-o, pensando cá para mim que ele sabia o que se passava na minha cabeça e sentindo-me culpado. Mas tudo o que ouvia era a mãe a argumentar, tentando convencê-lo a deixar-nos ir para bordo. Não queria discutir o assunto. Dizia que ainda merecíamos pior. Era difícil ouvi-lo, por cima do barulho do motor. Tinha orgulho no facto de nunca nos ter batido nem espancado, num momento de ira. Afirmava que teria sido melhor para nós se nos tivesse espancado no dia anterior, mas a canoa, os insectos e o calor magoavam-nos mais do que se fôsse­mos chicoteados.

      - Vamos cortar a corda! - disse o Jerry. - Vamos mostrar-lhe como é!

      Jerry queria que seguíssemos à deriva. Talvez o pai nos estivesse a testar, para ver se tínhamos a coragem de o fazer. Não deixei que o Jerry tocasse na corda, já me bastava ter medo de que se partisse sozinha ou o pai a cortasse. Naquele dia foram muitas as vezes em que adormeci para de repente acordar em pânico, pensando que girávamos pelo Patuca abaixo naquela minúscula canoa.

      - Se tocares na corda - declarei-lhe -, salto borda fora e nado para a margem. Ficarás sozinho, Jerry! Morrerás.

      Durante o breve período de desaparecimento do pai, quando eu pensara que se afogara tentando recuperar a hélice, não sentira medo. Tínhamos o barco, as nossas redes de dormir e a mãe. Porém, quando trepara para bordo trouxera consigo todo o medo. Mais uma vez me sentia tentado a acreditar que a tempestade varrera todo o mundo e que havia morte na costa.

      - Não acredito nessa conversa - disse-me o Jerry, quando lhe falei no assunto.

      Jerry mostrava-se mais violento na canoa do que jamais estivera no barco ou em qualquer outro lado. Ali, rebocado na ponta de um cabo, dizia muitas coisas proibidas. Falava continuamente a respeito de fugir e voltar para casa. O que dizia dava-me pesadelos porque punha em palavras o que de pior surgia na minha imaginação. Pensei que merecíamos estar de castigo ali na canoa. Aquele era o nosso lugar.

      - Odeio-o - afirmou o Jerry. - É louco.

      Disse-lhe que sem a minha ajuda nunca conseguÍria atingir a costa.

      - Não conseguiremos subir o rio. É impossível.

      - Como é que sabes?

      Pontapeou o bidão da gasolina, duas pancadas que soaram a oco e ressoaram como um tambor.

      - Está quase vazio. O pai não pode manter o motor a trabalhar se não tiver gasolina.

      - Remará.

      - Pois... e andará para trás! - Jerry riu-se ao pensar naquilo e disse estar satisfeito por me ver preocupado. - Vou dizer-lhe que a gasolina está a acabar. Vais ver o ataque de fúria...

      - Acaba com isso - pedi-lhe.

      - Tens medo dele, Charlie. És mais velho do que eu e tens medo.

      Eu não tenho.

      No entanto, a voz falhou-lhe quando o disse e teve de engolir em seco duas vezes para acabar a frase. O castigo a bordo da canoa fazia-o sofrer, mal conseguia dormir e aparentava um ar doente. Quando não se queixava do pai, balbuciava e soluçava como um bebé. Choroso, parecia muito mais novo. Escondia a cabeça entre as mãos e baixava-a, para que o pai não o visse.

      Uma noite, ao ouvir o pai a rir-se na «cabina principal», Jerry declarou: - Gostaria de o matar.

      Depois de a sua voz surgir da escuridão, ouvi-o a respirar pesadamente, como se dizer aquilo tivesse sido um grande esforço.

      - Não seria difícil - insistiu, ofegante. - Podíamos cair-lhe em cima, com um martelo. No cérebro...

      - Não digas isso, Jerry. - Tens medo.

      «Sim, porque está a dizer as coisas terríveis que me vão na cabeça», pensei para comigo. Sentia o macio cabo do martelo na minha mão, ouvia-o estalar de encontro ao crânio do pai, via a cabeça a abrir-se ao meio como um coco e uma pálida água a escorrer.

      - Não - respondi.

      - Quem me dera que ele morresse - declarou, começando outra vez a chorar.       Consolava-me com as suas lágrimas. Chorava por mim.

      Uma manhã afirmou ter visto um avião, um pequeno monomotor cinzento a passar por cima das nossas cabeças. Não o vi e disse-lhe que devia ter sido um sonho. Ou que talvez fosse um abutre, ou um papagaio. Todas as aves que por ali voavam se pareciam com um Cessna ou um Piper Club. Jerry chorou por eu me recusar a acreditar nele. Afirmou que eu falava como o pai, ou ainda pior.

      - O Sr. Haddy deu-te as velas e a gasolina, e foi o pai quem ficou com o crédito! Quem é que pescou na lagoa? Fomos nós. Tratava­-nos como escravos, mas o que aconteceu à horta e a todas aquelas estúpidas invenções? Foram destruídas! Fomos nós que lhe salvámos a vida!

      Mais uma vez exprimia os meus pensamentos e assustava-me. Respondi­-lhe:

      - Se falares ao pai no Sr. Haddy, conto-lhe que disseste que o querias matar. - O Jerry entrou em pânico, sabia que tinha ido demasiado longe. - De qualquer modo, o pai negará tal coisa.

      - Porque é um mentiroso. Está errado a respeito de tudo.

      - Não sabes, não há provas. É possível que tenha razão, O Sr. Haddy concordou com ele! Tens doze anos e a cara suja. Quando o pai te soltou nesta canoa a semana passada, ias morrendo a chorar. Ficaste muito satisfeito quando te puxou para bordo.

      - Enganou-me. Agora não choraria, deixava-me ir - retorquiu, mas tinha os olhos vermelhos como duas feridas.

      O pai olhou para trás e vendo-nos discutir (não podia ouvir o que dizíamos por cima do barulho do motor), acenou com a cabeça e sorriu, como se estivessem a dizer: «É aí que vocês estão bem, estupores!»

      A mãe afirmara que se ele tinha razão então nós éramos as pessoas com mais sorte em todo o mundo, mas que se ele estivesse errado, então cometíamos um erro terrível. Mas a mãe obedecia-lhe... também estava com medo.

      - Talvez acabemos por descobrir se tem, ou não razão - disse eu para o Jerry. - Não quero ir para a costa, se esta for um túmulo. E para que serve falar da América, se ela já não existir? O pai diz que já lá não está... e o Sr. Haddy também. Que é que tu sabes, parvo?

      - Temos uma casa branca num campo verde, com árvores em volta - respondeu Jerry. - Há pássaros nas árvores, pardais e gaios. O sol brilha. A sereia do meio-dia está a tocar nos Bombeiros de Hatfield. As pessoas passam pela nossa casa e olham para a entrada. Perguntam umas às outras: «Onde estão os Fox?»

      - Não - respondi-lhe, mas também eu via tudo aquilo com clareza. Via as nuvens por cima do celeiro do Polski, as colinas do vale e o milho. Chegava-me o cheiro a couves, a pinheiros, a relva cortada, à doçura do esterco a adubar os dentes-de-leão, ao alcatrão quente das nossas estradas de campo.

      - Será que o pai os levou? É o que elas dizem. - Jerry olhou para mim, surpreendido e um pouco assustado. - Charlie, por que é que estás a chorar?

      Coloquei as mãos em frente da cara. - Por favor, não chores. Assustas-me.

      Por fim, o pai deixou-nos ir para bordo. Estávamos tão envergonhados das coisas que havíamos dito que fomos directamente para a proa e começámos a trabalhar com a sonda. Tínhamos a pele queimada e mordida e não nos sentíamos muito bem. O Jerry protestara muito mas no barco limitava-se a ter um aspecto miserável e não dizia uma palavra contra o pai. Em vez disso, amaldiçoava as gémeas. Chegou a dar uma dentada no braço de April e as marcas dos dentes ficaram avermelhadas. Fiquei satisfeito, também eu há muito lhe queria dar uma dentada, bem como à Clover.

 

      Todas as aldeias porque passávamos estavam desertas ou destruídas, restavam apenas paus espetados no ar e algumas árvores de fruto. Eram lugares verdes e fantasmagóricos, enxameados de ratos molhados, com todas as canoas afundadas e trepadeiras novas em volta dos pilares das casas. Nos sítios em que as raízes das árvores estavam à vista, estas pareciam-se com dedos eriçados, manchados de vermelho e preto, enquan­to longas ervas pendiam em cachos das junções dos troncos, como escalpes de bruxas.

      Uma manhã, depois de onze dias a subir o rio Patuca, chegámos a uma aldeia que não fora nem destruída nem inundada, pousada numa alta margem vermelha, numa curva do rio. Havia uma criança agachada na água baixa da margem do rio, fazendo o serviço com um ar distante estampado na cara, como um cão escondido no mato.

      O pai esticou o pescoço para ver melhor a aldeia. A seguir sorriu, parecia reconhecê-la.

      - Sei onde estamos - declarou.

      - Onde, Allie?

      - Já vais ver.

      A criança ouviu o barulho do motor. Tapou-se com o farrapo que segurava e correu para terra. O pai desligou o motor e amarrou o barco a uma árvore.

      Agora, à beira da margem, onde havíamos visto fumo e os cimos dos telhados de palha, encontravam-se cerca de quinze homens. Vestiam farrapos e miravam-nos com os olhos vazios.

      - Mosquitos - disse o pai. - índios.

      Eram negros, eram castanhos, eram amarelados, estavam muito ma­gros. A sua magreza era como a suspeita. Não se moviam.

      O pai saltou para terra e levantou a mão.

      - Eh, olá! Naksaa!

      Pouco depois trocava apertos de mão com os homens e falava a um quilómetro por minuto, tal como sempre fazia quando queria encantar os estranhos. Há muito que não o víamos tão cheio de energia e tão amigável. Tinha o hábito, quando estava bem disposto, de meter o coto do dedo no peito de uma pessoa e fazer-lhe uma espécie de cócegas enquanto falava. Aquilo funcionava com os cães selvagens e com as vacas. Funcionara com o Sr. Haddy. Deu também resultado com os mosquitos.

      Espetava-lhes o dedo nas costelas e dizia:

      - Desta vez safaram-se hein? És um tipo esperto, não és? estás muito satisfeito contigo mesmo. Não se riam - insistia, espetando-os com o dedo. - Onde é que está a graça?

      Os mosquitos riam-se e davam saltos. Apesar de ao princípio parecerem ferozes, agora conversavam amigavelmente com o pai. Já não tinham o ar de estarem interessados em comer-nos, apesar de continuarem esfomeados. Chamaram-nos para a aldeia.

      - Mantenham-se juntos - disse a mãe. - Não gosto deste sítio.

      Deixem, que seja o pai a falar.

      - É a única coisa para que ele serve - comentou Jerry.

      - Cuidado com o que dizes - retorquiu a mãe, deixando chateado.

      - A aldeia é uma porcaria - afirmei. - Esta gente está a morrer de fome. - O pai sabe onde estamos. Escutem o que ele diz.

      Que podia ele dizer? A aldeia era uma assustadora colecção de cabanas feitas de folhas de bananeira e amarradas umas às outras com nós de trepadeiras. Os telhados estavam cobertos com montões de palha. Havia uma savana nas traseiras da aldeia, e a selva - que parecia uma mancha de bolor - ficava para lá dela. O chão estava enlameado das chuvas recentes e tudo aquilo cheirava a porcaria e a wabool azedo, bem como ao fumo de lenha verde. Já antes havíamos visto aldeias iguais. Era a miséria dos índios. Ali perto, um cão mastigava uma cabeça suja de peixe. Uma mulher de cara achatada arrastava um trenó com uma enorme pilha de ramos partidos. Murmurava como louca, enquanto andava. Disse qualquer coisa diabólica para a mãe e riu-se por entre os dentes. Uma outra mulher de cabelos desgrenhados esfregava farrapos num alguidar de folha. Olhou para cima, fez uma careta e voltou ao trabalho.

      - Que vos disse eu? - perguntou o pai, virando-se para nós. Enxames de moscas barulhentas zumbiam em volta da cara das pessoas, dos seus pés sujos e tornozelos cheios de crostas. Passeavam por cima da comida, deslizavam por cima dos potes de cozinhar, de três pés. Não vi qualquer espécie de horta mas havia tufos de bananeiras e mandiocas raquíticas perto de algumas das cabanas. Um porco à solta resfolegava e empurrava uma papaia com o focinho. No meio das cabanas avistámos um telheiro aberto, coberto a chapa. Por cima havia uma tabuleta a dizer «La Bodega». Jerry e eu espreitámos para o interior mas só vimos prateleiras vazias, alguns sacos de farinha pendurados e um candeeiro.

      - Vêem? - disse o pai. - Eu tinha razão.

      Dois mosquitos arrancavam a casca a um tronco. Um deles servia-se de um maço de madeira e o outro de um machadinho. Deixaram de trabalhar e olharam o pai. De repente ficou tudo silencioso, excepto quanto aos grunhidos do porco e aos zumbidos das moscas.

      - É assim mesmo - afirmou o pai.

      Juntara-se uma pequena multidão. As pessoas olhavam para o cabelo da mãe - a viagem pelo rio e o sol tinham-lhe feito aparecer madeixas mais louras do que outras - mas escutavam o pai. Tinham caras mirradas e esfomeadas, com o aspecto envelhecido provocado pela fome. Dois homens usavam peles de cobra em volta do pescoço, vermelhas com tiras pretas.

      - Isto é o futuro! - exclamou o pai, olhando em volta com admiração. O solo enlameado fumegava ao sol. O fumo e o cheiro a ervas podres e a wabool fazia-me semicerrar os olhos. Junto das cabanas esqueléticas, os esfarrapados mosquitos semicerravam-nos também.

      - Tenho de vos dar os parabéns - disse-lhes o pai. - Apertem estes ossos.

      Os índios ficaram surpreendidos, mas voltaram a apertar-lhe a mão e a sorrir.

      - Vocês têm boas ideias.

      Ficaram satisfeitos como se nunca ninguém lhes tivesse dito tal coisa.

      Sorrindo, pareciam menos esfomeados. Um dos mosquitos pigarreou e disse, apontando para dois homens escarranchados sobre o tronco:

      - Estamos a fazer uma nova canoa.

      - Boa ideia.

      - Tens uma machadinha a mais? - perguntou o mosquito que traba­lhava com o maço de madeira.

      - Vocês não precisam de um machadinho. Talvez de um escopro para condizer com esse maço. Tenho um escopro. Podemos chegar a um acordo. Vai ser uma bela canoa.

      - Dá muito trabalho, tio.

      - Sei bem isso. Mas para quê a pressa? Têm todo o tempo do mundo. - Tens uma serra, tio? - A pergunta veio de um dos mosquitos com a pele de cobra em volta do pescoço.

      - Para que é que querem uma serra? Não conseguirão arranjá-la em lado nenhum. Acabaram-se. Acredita no que te digo, amigo, pode muito bem viver-se sem ter uma serra.

      Um homem com cara de cavalo perguntou-lhe se tinha algum enxofre  para fazer goma de mascar das árvores da borracha.

      - Nem me fales em enxofre - retorquiu o pai.

      Havia um carrinho de mão tombado de lado num fosso. O pai pegou-lhe e endireitou-o. Olhou-o com um ar adorador, tal como outrora olhara para o «Menino Gordo». Afirmou que se tratava de uma bela peça de engenharia, a rosa no fulcro, as pegas que funcionavam como alavancas, o perfeito equilíbrio. Um homem podia carregar quatro vezes o seu peso naquele carrinho, sem o menor esforço.

      Os mosquitos ouviam o pai a gabar o velho carrinho de mão com a madeira toda estalada e começaram a olhá-lo como se se tratasse de um objecto mágico.

      - Não vendo o carrinho! - O homem que disse aquilo cuspiu num dedo e limpou o cuspo numa das pegas do carrinho.

      - Não te censuro. Pode vir a fazer-te muita falta, agora que o mundo está meio destruído.

      Já não estavam a olhar para o carrinho de mão. O pai sorriu ante todas aquelas bocas abertas.

      - Ainda não sabiam?

      Os olhos muito abertos disseram que não.

      - Pois é verdade, desapareceu quase tudo. - O pai agitou os braços. - Foram poucos os que escaparam. Para além - fez um novo gesto ­ou estão todos mortos ou a morrer.

      Para além, para jusante, ficava o mundo. Os índios olharam nessa direcção.

      - Por que é que nós não morremos, tio? - perguntou o homem com cara de cavalo.

      - Porque vocês são demasiado espertos, e porque vivem como deve ser.

      Fez-lhes muitos mais cumprimentos, disse-lhes aquilo que nos dissera a nós, que aquela era a aldeia do futuro e que eles eram as pessoas do futuro, os novos homens. Tinham sorte porque viviam uma vida simples, enquanto os outros haviam ido todos para o inferno. Ao ouvi-lo dizer-lhes que estavam no céu, naquela aldeia miserável, com galinheiros a cair aos bocados, frutos podres, um porco e cabanas quase desfeitas, os índios ajeitaram os seus farrapos ao corpo e animaram-se.

      - Pensavam que íamos para a Lua - disse o pai. - Escutem, ninguém irá para a Lua.

      Ofereceram-nos cabaças de wabool e o pai comeu um bocado. O café era feito de cereais esmagados e queimados, mas o pai bebeu-o. Deram-lhe bananas. O pai disse: «Gosto imenso de bananas.» Ofereceram­-lhe um charuto malcheiroso. O pai fumou-o e declarou: «É a melhor coisa que conheço para afastar os insectos.»

      A seguir disseram-nos que aquilo não era uma aldeia, mas sim uma família. Chamavam-se Thurtle. Todos os mosquitos dali eram Thurtles. Eram pais e mães, filhos e sobrinhos, de uma maneira muito complicada, todos Thurtles, grandes e pequenos.

      O pai afirmou não ter ficado surpreendido com o facto. As famílias eram o único laço social que restava. Apresentou-nos e obrigou Clover e April a cantarem uma canção para eles. As gémeas cantaram-lhe o Bye-Bye, Blackbird. Os índios executaram uma dança lenta, andando em círculo e batendo as palmas.

      Esta aldeia, a família Thurtle, era igual a vinte outras que tínhamos avistado e ignorado, mas isso fora meses atrás e o pai era agora diferente. Aquela era a prova de que se modificara. Tornara-se muito paciente. Não lhes pedira para que se modificassem. Não virava a cara quando lhe ofereciam o amargo wabool. Não chamava a atenção para a latrina cheia de moscas nem para o porco magro e amalucado. Disse que aquele era um local notável, que era a aldeia do futuro que nos descrevera havia menos de uma semana, no rio. Louvou a maneira como os índios viviam e disse que tinha uma grande admiração pelos nós de trepadeiras que sustentavam as suas cabanas.

      Enquanto falava as nuvens haviam começado a amontoar-se por cima das nossas cabeças. Surgiu uma chuva miudinha e ao longe ouviu-se a trovoada de barris a rebolar. Os Mosquitos tinham medo dos trovões, a tempestade preocupava-os. O pai afirmou que fora o sentido do medo que os salvara... Cheiravam o perigo ao longe, tal como ele.

      Encontrou um bidão de gasolina nas traseiras da loja. Os índios disseram que era para o gerador, mas que estava avariado. Enferrujara. Aguardavam um novo induzido.

      - Não percam tempo com isso - replicou-lhes o pai. - Para que precisam da electricidade?

      Responderam-lhes que era por causa da luz.

      - E que farão quando as lâmpadas se fundirem? Precisarão de lâmpadas novas, que já não se conseguem arranjar nem por amor nem por dinheiro.

      Não há lâmpadas! Não há nada!

      Acrescentou que tinham o que tinham, e que o que não tinham não existia. Os mosquitos compreenderam a ideia muito mais depressa do que acontecera connosco, a bordo do barco.

      Explicou-lhes que se quisessem óleo poderiam tirá-los das tripas dos peixes ou da gordura de porco, que necessitava daquela gasolina mais do que eles porque já tinha pouco combustível para o motor. Estava disposto a trocar a gasolina por um formão e por um assento de retrete. Acrescentaria também um espelho, se na verdade o quisessem.

      Responderam que estava bem.

      - Trocas - disse-nos, enquanto carregava o bidão da gasolina para a canoa. - É assim que vai ser daqui para a frente.

      Deviam ficar satisfeitos por lhes ter tirado a gasolina das mãos, porque era perigosa e podia provocar um incêndio.

      - Admitam-no! - declarou, espetando o dedo no peito de um homem.

      - Acabei de vos fazer um grande favor!

      O homem soltou uns risinhos por causa do dedo do pai e os outros mosquitos soltaram gargalhadas.

      - Creio que acertaste em cheio, Allie - comentou a mãe.

      - Não consigo evitá-lo, mãe. Gosto desta gente.

      - Estão esfomeados - sussurou-me Jerry. - Estão porcos. Olha para aquelas casas. Não têm nada... Até lhes podemos ver os ossos. Têm o nariz a pingar. Estão a morrer.

      - Foi isso o que o pai disse que aconteceria - respondi-lhe.

      - É horrível.

      - Jerry, o pai tinha razão. - Até o Jerry teve de concordar que o pai previra aquilo.

      - Conhecem o Up lenkins? - perguntava-lhes o pai. Responderam-lhe que vivera um certo Jenkins em Mocoron, mas que morrera da mordidela de uma cobra.

      - Este Up lenkins é um jogo.

      Era um dos nossos jogos em Jerónimo e na lagoa de Mosquitos.

      O jogo envolvia dois grupos de pessoas. Num dos grupos, havia uma pessoa com uma moeda escondida na mão. O segundo grupo tentava adivinhar quem tinha a moeda e gritava coisas como «bater palmas», «coçar» e outras. O grupo que tinha a moeda era obrigado a fazer esses gestos... e geralmente a moeda caía antes de alguém descobrir quem a tinha. Era um jogo idiota mas os Mosquitos gostavam dele e toda a gente se ria. Jogámo-lo no balcão da loja até a chuva passar.

      Por fim o pai olhou para o Patuca e declarou: - Está na hora de partir.

      Queriam que ficássemos, estavam a divertir-se com o Up lenkins e com as cócegas amigáveis feitas pelo dedo do Pai, mas este disse que não queria abusar deles. No rio, quando se juntaram para se despedirem de nós, veio-me à ideia que a terrível predição do pai fora correcta. Eram índios mas pareciam-se connosco. Estavam mordidos, enlameados e esfarrapados, tal como nós. Aquele era o futuro que nos prometera e nós éramos selvagens nesse futuro.

      - Vão subir o rio na jangada?

      O pai disse que sim.

      - Até Mobilgasna?

      - A que distância fica Mobilgasna? - Quatro horas.

      - Vamos mais longe.

      - Wumpoo?

      - A que distância?

      - Dois dias.

      - Então irei subi-lo durante um mês ou um ano. Vou continuar a subir o rio até ele acabar... e não faço conta de parar até lá chegar. - Já no barco, o pai perguntou: - Foi Wumpoo o que eles disseram?

      - Qualquer coisa do género - respondeu a mãe.

      - Wumpoo não me é estranho. Já ouvi esse nome... Mas onde?

      A mãe disse que não sabia. Mas o pai tinha razão, o nome era familiar. Nessa noite, atracados por debaixo de Mobilgasna (a margem era ali mais alta e inclinada, tinha pinheiros e estava coberta de pedras), jazíamos nas nossas redes quando ouvimos o pai dizer para a mãe:

      - Acabaste de ver o futuro. Não é assim tão mau... mas tem um aspecto sujo...

      Nesse momento quase caí da cama. Wumpoo... Guampu... lembrava-me do que era.

 

      Fui o único que se recordou daquele nome, «Guampu», mas tinha motivos para isso. Guardei a descoberta para mim, saboreando o segredo como se fosse um rebuçado. Nunca mais ninguém mencionou o assunto. Os outros estavam calmos, ou então tão deprimidos pela aldeia dos Thurtles que haviam perdido toda a esperança.

Durante os dias que passámos no meio do cheiro a lama quente, naquela tranquila zona superior do rio, os outros deviam estar a pensar que havíamos atingido o fim da nossa viagem. Todo o resto das nossas vidas seria assim, como o pai gostava de dizer, mas eu queria continuar em frente e a flutuar, por causa de Guampu.

      Vimos mais aldeias miseráveis, onde as pessoas tinham queimado bocados de selva para aí instalarem as suas cabanas. Vimo-los a colher arroz, a espalhar sementes, a puxar carros desajeitados e a serrarem troncos em tábuas. Apareceram montanhas, uma cordilheira de cumes amarelos, para Norte e Oeste, com as nuvens a passar por elas, como se fossem cabeleiras postiças a escorregarem dos picos das montanhas. O pai congratulava-se por nos levar de barco em direcção ao futuro. Tínhamos sorte, afirmou. Estávamos salvos, estávamos livres e bem confortáveis. Tínhamos muito que comer e um motor por trás de nós... e talvez fosse o último motor da Terra. Navegávamos em grande estilo. Pelo menos era o que ele dizia.

      Porém a gasolina dos mosquitos era má, tinha água misturada que dava cabo das válvulas, e depois de um dia de pragas e reparações o pai atirou com o motor fora de borda para o rio.

      - Não o quero! Já não preciso dele! É apenas uma dor de cabeça... vou dar-lhe um enterro decente!

      Afundou-se entre as ervas e começou a sangrar arco-íris.

      Impulsionámos o barco com compridos bambus, atirando todo o nosso peso sobre eles à proa e depois caminhando até à popa. Desta maneira avan­çávamos silenciosamente junto da margem do rio, sem provocarmos ondas.

      A corrente ali era mais lenta, até preguiçosa, e o Sol brilhava todo o dia, dando à água um quente aspecto amanteigado.

      As árvores da floresta estavam cheias de aves trepadoras, dos clique­-cliques provocados pelos macacos e dos sons de fritura soltos pelos insectos. Das trepadeiras pendiam flores que pareciam cachos de farrapos coloridos, enquanto outras me faziam lembrar os volantes do badminton. Havia clareiras e praias nas curvas do rio. Qualquer daqueles locais serviria, declarou o pai. Podíamos parar em qualquer lado e dizer que era ali a nossa casa.

      - Então, por que não o fazemos? - perguntou a mãe. - Por mim está bem. Que tal ali?

      A mãe disse que sim, as gémeas concordaram e até o Jerry parecia reconciliado com a sorte apesar do seu mau humor um pouco estúpido. Haviam sido todos dominados pelo pai e atacados pelo calor... Tinham os cérebros queimados pelo sol e pelo vapor do rio como bocados de peixe sobre uma grelha.

      - Não - disse eu -, continuemos. Fiz força na vara de bambu e fingi que ainda estava cheio de energias.

      O pai ficou satisfeito e serviu-se de mim como desculpa para continuar.

      Empurrou a vara e declarou:

      - Se não fosses tu, Charlie, teríamos feito um acampamento ali atrás. O local tinha boa drenagem e uma costa arenosa. Estou espantado... Creio que finalmente consegui fazer qualquer coisa de ti. Só com catorze anos e começas a mostrar que tens têmpera.

      O que eu queria era chegar a Guampu. Como é que o pai se esquecera daquele nome? Talvez por odiar pensar no passado, nos erros e nos fracassos. «Vira as costas e afasta-te depressa...», era esse o seu mote. Inventa uma desculpa para partir. Desaparece. Era isso que fizera dele aquilo que era. Era esse o seu génio. «Não olhes para trás.» No entanto, para mim o passado era a única coisa real, a minha única esperança... e a própria palavra «futuro» deixava-me logo assustado. O futuro dizia alguma coisa ao pai, mas para mim era silencioso, cego e negro. Guampu era parte do passado, e era com este nome em mente que o incitava a continuar a subir o rio.

      O pai acreditava que avançávamos para o futuro, enquanto eu sentia o contrário, como se seguindo em frente pudesse vir a ter um relance do passado. De qualquer modo não era longe e mesmo que estivesse enganado interessava-me saber se a memória me atraiçoara ou não.

      Cinco dias depois de abandonarmos a aldeia dos Thurtles, cerca do meio-dia, ouvimos um avião. O rugido dos motores aproximou-se. Apesar de não o podermos ver, trouxe-me uma sensação familiar... Um avião a passar-me por cima da cabeça era quase como... cortar o cabelo. Baixei-me quando o ouvi e senti-lhe os dentes trepidantes na parte de trás do pescoço. O pai negou que fosse um avião. Era o vento, disse, mas depois ficou silencioso e com a cara de alguém que acaba de se sentar em cima de relva molhada ou de bosta de vaca. Fiquei ainda com mais esperanças em Guampu.

      Mantive-me à proa, observando o rio. Esticando-se na corrente viam-se manchas coloridas de óleo. Avistei uma garrafa verde no fundo de areia e uma lata de Pepsi flutuando, direita na água, bem como uma espuma semelhante à espuma de sabão em pó. Vi uma folha de papel submersa, enrolando-se e desenrolando-se arrastada pela corrente, logo seguida por outras. Pensei na nossa antiga casa, porque cada coisa deitada fora era parte do passado. Aquele era o lixo de um outro mundo. Parecia-me maravilhoso.

      Nesse mesmo dia ouvi cantar, música abafada pelas árvores. A água captava o som, tal como captava a luz, o calor e as mudanças no céu. Fiquei à espera de que alguém falasse.

      - Allie - disse a mãe, à escuta.

      - São pássaros.

      Não eram pássaros, era música de igreja.

      - Quem é que está a cantar? - perguntou o Jerry. - Selvagens - retorquiu o pai.

      - Isto pode ser Guampu - disse eu.

      Descrevemos uma curva, a selva afastou-se um pouco e o sol batia em cheio na margem. Um pouco afastada desta havia uma série de habitações com telhados de chapa ondulada ainda nova, que reflectiam o sol e o atiravam para cima de nós. No centro de uma ampla clareira encontrava-se uma igreja de madeira, pintada de branco, com um telhado muito inclinado e uma torre sineira. Tudo tinha um aspecto glorioso, ordenado e limpo, com uma baía branca entre as árvores pendentes e as trepadeiras, muito direita no meio daquele rio retorcido.

      A cara do pai ficou negra. Do nariz e do rosto haviam-lhe caído bocados de pele fina como papel, deixando marcas vermelhas. Observou as casas, a igreja, os canteiros de flores. Baixou a cabeça como um homem atraiçoado e do pescoço começou a escorrer-lhe suor.

      - Deve ser uma missão - afirmou a mãe que depois, pressentindo a raiva do pai e o cheiro que este largava quando se zangava, não pronunciou mais uma palavra.

      À nossa frente surgiu um cais de atracação, uma pequena plataforma de tábuas fixas e uma fileira de bidões flutuantes. AÍ amarradas avistámos uma lancha baleeira e outras pequenas embarcações.

      - Onde é que estamos, pai? - perguntou Clover. O pai tinha a boca muito fechada, mas nos olhos brilhava-lhe o fogo da energia a que chamava «ira». Passou os dedos pelo cabelo comprido e enfiou a vara no rio, empurrando-nos para mais perto daquele lugar, para mais perto dos cantos e de um outro som, o de um gerador a matraquear debaixo de um telheiro, junto da margem. Ali eram as traseiras da missão. Vimos um cano de esgoto a correr para o rio, e um monte de garrafas e bocados de papel colorido... que para mim era mais uma esperança.

      As canções deixaram de se ouvir. Agora só se ouvia o gerador.

      Avançámos em direcção ao cais. Que corcovada e negra parecia a nossa cabana-barco, quando junto do esguio casco da baleeira, com a sua amurada amarela. O que era a nossa embarcação excepto os restos requeimados e flutuantes de madeiras aproveitadas ao acaso? Tinha um aspecto ridículo e fazia com que o pai parecesse um louco.

      - Veremos o que é isto. - A voz do pai era como lixa de encontro a um balde enferrujado.

      - Vamos embora daqui... - disse a mãe, perdendo o controle dos nervos.

      - Deixemos isto, não temos nada a ver com o assunto. Allie, não!

      - Têm casas verdadeiras - comentou April.

      - Olha, uma tabela - exclamou Jerry. - Jogam basquetebol!

      - São os Spellgood - expliquei, depois de me agarrar com toda a força ao barco.

      - Bah!

      - Diz-nos o que sabes, Charlie - pediu a mãe.

      - São os Spellgood... não se lembram? Disseram-nos que viviam em Guampu.     Foi Emily quem o disse. O pregador e a família do...

      - Quem é a Emily?

      - Uma das raparigas. Estava no Unicorn. Aquela gente que rezava.

      - Logo vi que se tratava de selvagens - respondeu o pai.

      - Allie, talvez eles nos possam ajudar!

      - Não precisamos de ajuda.

      - Estamos nojentos! Olha para nós!

      - Esses moralistas desprezíveis têm-se escondido aqui, a poluírem este sítio. Era de pensar que tivessem mais bom senso. Já nada resta do mundo!

      Saltou para o cais, furioso, fazendo oscilar as tábuas:

      - Tenho novidades para esta gente...

      Seguimo-lo - ou antes, perseguimo-lo - pelas escadas, até onde os caminhos eram bordejados por pedras caiadas de branco. Não havia ali mais do que dez pequenas casas, mas estavam todas elas muito limpas, com canteiros de flores em frente das portas. Dos telhados de metal elevavam-se tremeluzentes e vaporosas ondas de calor. Por detrás das casas havia uma pista relvada, uma pista de aterragem aberta na selva. Não avistámos nenhum avião e não apareceu ninguém para nos receber. Não vimos vivalma, mas as portas da igreja estavam abertas e agora escutávamos o que de certeza era a voz o Reverendo Spellgood.

      - Jee.. .sus... - dizia ele, lentamente.

      - Isto também é o futuro? - perguntou Jerry.

      - Não me esquecerei do que acabaste de dizer, filho! – exclamou o pai, dando um pontapé numa pedra caiada de branco. - Sigam-me! - Voltemos para o barco, Allie.     Vamos embora daqui!

      - Estás com medo.

      - Nunca te vi tão zangado.

      - Isso mesmo - replicou o pai -, diz mal de mim em frente dos garotos.

      Spellgood pregava numa voz esganiçada de papagaio, citando as Escrituras. Samuel, disse, e depois qualquer coisa a respeito de queijos e dos filisteus de Gath.

      - Vai lamentar não se encontrar em Gath.

      Espreitámos pela janela aberta. Fiquei à espera do grito do pai, mas este não o soltou, emitiu apenas um silvo de desgosto vindo das profun­dezas da garganta, como gás venenoso a escapar-se de um tubo, como o «Menino Gordo» a fervilhar.

      A igreja era sombria mas ao fundo, assente em cima de uma mesa e observado por toda uma congregação de índios envergando camisas e vestidos brancos, encontrava-se um aparelho de televisão.

      O aparelho tinha um grande ecrã, talvez do tamanho da porta de um automóvel, e lá estava o rosto de Spellgood a tagarelar no ecrã, a cores, mas num tom amarelo-esverdeado, segurando uma funda e contando uma história. A seu lado encontrava-se um gigante verde com cara de gorila, de presas saídas e capacete, que parecia de plástico. Enquanto Spellgood pregava, colocou uma pedra na funda e preparou-se para a atirar ao boneco gigante que se encontrava a seu lado.

      - Têm aqui televisão - disse o Jerry.

      Os índios estavam tão espantados com o programa que nem davam por nós. Era um milagre para eles... e era um milagre para mim.

      - Este programa deve vir de qualquer lado - comentei. – Talvez venha dos Estados Unidos, via satélite.

      - Impossível - respondeu o pai, numa voz fina e chorosa como a que tivera no dia em que chorara por causa de Jerónimo ter ardido.

      - A América foi destruída.

      - Então, de onde vem o programa?

      - De dentro daquela caixa. É uma videocassete. Uma gravação, um truque, a velha tecnologia. Os índios pensam que é magia! Patético!

      Entrou na igreja acorrer, caminhou ao longo da coxia e desligou o cabo da tomada. Começou a pregar-lhes um sermão e depois gritou «Esperem!», pois logo que a imagem desapareceu os índios levantaram-se e saíram da igreja. Não se mostravam espantados mas apenas aborrecidos e faladores. Pouco depois a igreja estava vazia e os índios vestidos de algodão branco encaminhavam-se para a selva.

      Os Spellgood não estavam à vista em lado nenhum.

      - Voltemos para o barco - ordenou o pai.

      - Não podemos ir dar uma vista de olhos por aqui? - perguntou Clover. - Este lugar não existe!

      Não se contentou em deixar-nos ficar sentados no convés, vendo as casas e gozando aquela visão do passado. Mandou-nos para o interior da cabina e colocou uma tábua de encontro à porta. Ficámos dentro da cabana, perguntando a nós mesmos o que iria acontecer a seguir.

      - Creio que estamos a andar - disse o Jerry. - Está a levar-nos para longe - respondi.

      No entanto, dez minutos mais tarde, a cabina ficou outra vez imóvel. Ouvimos o barulho da âncora a ser lançada à água e o pai a mexer em cordas. Murmurou qualquer coisa para a mãe mas não conseguimos entender nenhuma palavra.

      Quando o sol desapareceu nas fendas da cabina e o ar ficou mais frio, ouvimos um avião por cima das nossas cabeças. Voava baixo, tão baixo como as tesouras do barbeiro, e depois fez-se silêncio.

      Clover perguntou-me por que é que o pai agia daquela maneira tão esquisita e April disse que queria beber. Aborreceram-me com perguntas, até que por fim adormeceram. Adormeci também, mas acordei quando já era escuro. Por que não ir a terra na canoa?

      O Jerry já estava acordado e pronto para fazer tudo o que eu dissesse. Escapámo-nos pela portinhola que o Sr. Haddy partira, quando me dera as velas e a gasolina. Encontrávamo-nos ancorados a meio do rio, um pouco acima de Guampu. Ouvíamos o gerador e víamos as luzes das casas. Porém, mesmo sem aquelas luzes, havia luar suficiente para verificarmos que a canoa desaparecera.

      Jerry encostou a boca à minha orelha e murmurou: - O pai levou-a.

      - Vamos a nado - respondi-lhe.

      Escorregámos para dentro de água e nadámos de bruços para a margem distante, para não fazermos barulho. Todas as luzes da missão se encontravam acesas, piscando de um modo amigável. Nunca pensara em voltar a ver uma luz eléctrica durante o resto da minha vida. O único som que ouvíamos era o do matraquear do gerador, um pouco mais abaixo.

      Avançámos em direcção às casas escondendo-nos em todas as som­bras que conseguíamos encontrar, e depois aproximámo-nos da casa maior, onde víamos uma luz que variava de intensidade. Era na sala dos Spellgood. Encontravam-se todos lá dentro a olhar para a televisão com o mesmo ar hipnotizado com que os índios viam o programa religioso. Os Spellgood comiam gelados em grandes taças, levando as colheres até às caras azuladas. De vez em quando riam-se. O espectáculo era com uns bonecos, um sapo de tecido verde e uma porca de borracha com cabelos sedosos, bem como um homem verdadeiro, com um fato completo, que conversava com eles como se os bonecos fossem humanos... o tipo de espectáculo que provocava ataques de fúrias no pai.

      Emily Spellgood estava deitada no chão. Só se passara um ano desde que a vira pela última vez, mas agora era muito mais alta e magra. Tinha o cabelo curto e usava jeans e ténis. Vendo-a tão bem vestida, fiquei preocupado. Jerry e eu andávamos com o cabelo dema­siado comprido e cobertos de lama do rio. Vestíamos apenas calções completamente encharcados. Senti-me como um selvagem e não queria ficar ali.

      Os Spellgood divertiam-se com o espectáculo de marionetas e até o Jerry se riu, mas obriguei-o a sentar-se debaixo da janela comigo, para pensarmos no que fazer a seguir.

      Permanecemos assim à escuta do programa e dos comentários dos Spellgood. O programa terminou ao fim de vinte minutos. Houve então uma pequena discussão e muitas sugestões.

      - Vamos jogar aos «Invasores do Espaço» - sugeriu um dos garotos.

      - Quero atirar com o teu módulo para o hiper-espaço!

      - Não, vamos ver outra vez Os Marretas. Gostei daquela parte com os bebés que cantavam. Eram bonitos!

      - E que tal O Caminho das Estrelas? - perguntou Emily. – Podemos ver como conseguiram sair daquela deformação temporal.

      - Não - declarou Gurney Spellgood. - É demasiado tarde. Vamos ver qualquer coisa mais apropriada.

      Enfiou uma cassete na caixa preta e apareceu um programa com música de órgão e sermões, chamado Cruzada Mundial por Cristo. Todos comeram mais gelados e cantaram os hinos da televisão.

      - Vamos ficar aqui toda a noite - sussurrei.

      - Não me importo - respondeu Jerry, que parecia a cria de um lobo. - Pelo menos isto é real. Quem me dera que o pai o visse. Onde estará ele?

      Preparava-me para dizer «Ainda bem que não está aqui», quando ouvi bater a porta de rede da entrada. Seguiu-se um ruído de solas de borracha no cimento, semelhante ao das borrachas de apagar. Alguém saíra. Gatinhei para a frente da casa e vi um rapaz mais ou menos da idade do Jerry a olhar, com um ar sonhador, para os insectos que esvoaçavam em volta das luzes. Era um dos garotos dos Spellgood.

      Estava tão arranjado e limpo, com os cabelos tão bem cortados e a camisola branca, que me deu uma boa ideia. Soltei o meu cabelo, que me dava até aos ombros, e agachei-me nas sombras. Soltei um assobio baixo. O rapaz deu um pulo.

      - Quem és tu? - perguntou, nada preocupado.

      - Soy una amiga di su hermana, Emily - sussurrei, pois era-me mais fácil imitar a voz cantada de uma rapariga.

      - Como é que te chamas? - perguntou-me em inglês.

      - Rosa - guinchei. - Emily a casa?

      - Está a ver televisão.

      Disse-lhe, sempre num guinchado espanhol de índios, que a queria ver. - Não devias estar aqui - respondeu-me. - Os tuacas não podem aqui entrar à noite.

      Fingi que se tratara de um capricho e disse-lho, com um ar triste... e estava mesmo triste!

      - Lo siento mucho, chico. Voy a mi kiamp! - dizendo-lhe que lamentava muito e voltava para casa.

      - Ah, espera um momento. Emily! - gritou, entrando em casa.

      Emily apareceu um momento depois, mas enquanto ainda me procurava na escuridão, levantei-me e disse-lhe:

      - Sou eu, Charlie Fox, do barco das bananas. O que matou a gaivota...

      Não tenhas medo, não te quero fazer mal. Lembras-te de mim? Ficou com cara de palerma e perguntou-me:

      - Que estás tu aqui a fazer? Eh, isto é esquisito!

      - Este é o Jerry - expliquei, porque o meu irmão acabava de aparecer das traseiras da casa, como um lobo. - Estamos a subir o rio com os nossos pais. Tivemos de parar.

      - Eh, que te aconteceu? - perguntou Emily quando se aproximou de mim. Estás todo sujo e mais pequeno. Passa-se alguma coisa? Tens o cabelo comprido!

      Fiz-lhe sinal para não fazer barulho.

      - Podemos falar onde ninguém nos oiça? - perguntei, mas era dema­siado tarde, Gurney Spellgood já estava à janela.

      - Falem baixo, Emily - disse, e depois viu-me. - Os teus pais vão andar à tua procura, menina. Amanhã terão muito tempo para conversar.

      A minha cabeça era a única coisa que sobressaía por sobre o terraço da entrada, o que era bom porque eu só tinha os calções vestidos, e o meu cabelo parecia o de uma índia.

      - Não é nada pai - disse Emily. - Apenas um par de tuacas que querem ser baptizadas.

      - Deus ama-te - retorquiu Spellgood. - Toma nota dos nomes, querida, dá-lhes um banho e mais alguma coisa que queiram.

      - Sigam-me - ordenou Emily. Riu-se baixinho enquanto nos conduzia pelo campo, em direcção à igreja que estava mergulhada na escuridão. Fomos para trás dela e sentámo-nos debaixo de uma árvore. - Pensou que vocês eram índios... e eu também! Estão metidos nalgum sarilho, ou quê?

      - Mais ou menos - respondi. - Chegámos aqui esta tarde.

      - Fomos a um baptismo em Pautabusna. Um verdadeiro buraco.

      Fomos todos no avião. Já o viste? É um Cessna Directorial, de nove lugares! O pai tem licença de pilotagem. Já voou quinhentas horas. Um belo avião, com rádio, ventoinhas, tudo...

      - Como é que o arranjaram?

      O que eu estivera quase a perguntar fora «Como diabo o arranjaram», mas ela respondeu:

      - Com donativos. Comprámo-lo em Baltimore e o pai trouxe-o para aqui. Regressámos lá no Unicorn. Pensei que também fosses nele. Andei à tua procura... É verdade. Eh, as coisas que me passaram pela cabeça a teu respeito foram mesmo... proibidas! Por que é que o teu cabelo...

      - Emily - interrompi-a -, como está Baltimore?

      - Está esquisita. Fecharam a igreja drive-in do pai. Não podíamos pagar os impostos, não havia gente suficiente. Foi por isso que lhe deram o avião.

      - A América ainda lá está?

      - Estás maluco; ou quê? - exclamou Emily, rindo-se. - Eh, este miúdo está mesmo esquisito!

      - O meu pai diz que a América foi destruída e que só nós nos salvámos porque estávamos aqui. Foi o que ele disse.

      - Isso é uma parvoíce! - retorquiu Emily.

      Um país inteiro reapareceu aos nossos olhos e começou a brilhar no momento em que ouvi aquelas palavras simples. O pai pareceu-me minúsculo e assustadiço, como uma barata quando se acende a luz.

      - Pois! - concordou o J erry.

      - Eh, e eu que pensava que o meu pai era doido!

      - Pois o meu diz que a América ardeu toda. É o que ele pensa. - Estivemos lá há três semanas. Está na mesma. Aprendi a dançar com patins, mas tivemos de voltar para aqui. Se não fosse o avião, isto seria uma miséria... mas trouxemos cassetes novas. Temos um sistema de vídeo, com jogos. E o Rocky. O pai até nos deixa vê-lo. Diz que tem uma grande mensagem... é acerca do boxe...

      - Eu bem dizia! - exclamou Jerry, dando-me empurrões. - Mentiu-nos durante todo o tempo. Mentiroso! Vou para casa! Não quero continuar a subir o rio no barco!

      - O teu irmão é... esquisito!

      - Emily, temos um grande problema.

      - Sim? Isso é incrível!

      - Podes ajudar-nos?

      - Claro! Posso e quero! Eh, eu pensava muito em ti. Vocês podem aqui ficar.

      - Não. Temos de ir para a costa.

      - O pai pode levá-los no avião. É apenas hora e meia!

      - Não há outra maneira?

      - Pelo rio.

      - Foi por aí que viemos. O pai seguia-nos. Não há estradas?

      - Apenas uma, para ali... - Levantou a mão e apontou para a escuridão do outro lado do rio. - Vai para Awawas. É onde está o nosso jipe, do outro lado do rio. Um Landcruiser da Toyota. Tracção às quatro rodas. É verde, com estofos pretos. Fazemos baptismos em Awawas. Há aí um rio a sério, o Wonks, por onde poderão viajar até à costa. Há muitos barcos.

      - Emily, se nos desses as chaves desse jipe, poderíamos fugir. A mãe guiará até esse lugar que disseste...

      - Awawas.

      - Sim, e aí largaremos o jipe e seguiremos para a costa de qualquer maneira.

      - O teu pai não vai ficar como doido, se não o levarem?

      - Doido já ele é - disse o Jerry.

      - Que faça o que quiser - respondi. - Isso é lá com ele!

      - Não tens medo?

      - Tinha, quando pensava que ele sabia o que dizia. Agora que sei que está enganado, não tenho. E tu, tens medo do teu pai?

      - O pai tem uma arma, uma Mossberg de repetição, com uma mira telescópica. É por causa dos comunistas. Há milhões de comunistas aqui em volta. Eh, se penteasses o cabelo ficavas bonito, parecido com o James Taylor.

      - Dá-nos as chaves do carro, por favor. Teremos cuidado com ele.

      - Não é um carro... é um jipe. Eh, é verdade que o teu pai diz que a América foi destruída? É incrível, sabes? As pessoas do barco falavam muito dele, diziam que era uma pessoa estranha, o passageiro mais esquisito que já lá tinha andado. Eh, espero que não te importes por eu dizer isto! Se alguém dissesse tal coisa do meu pai eu chorava, apesar de ser mais ou menos verdade. Toda a gente dizia que vocês viviam como os Zambus e que andavam de um lado para o outro nus e a treparem às árvores. Quis escrever-te uma carta. Gostas do meu cabelo? Fiz caracóis, mas o pai obrigou-me a cortá-los. Precisas de dinheiro? Tenho andado a poupar. Posso dar-te catorze dólares. Eh, quem me dera ser rapaz!

      Nesse momento, com um silêncio que era quase uma pancada repen­tina, apagaram-se todas as luzes de Guampu. Fora como se alguém pousasse uma tampa preta sobre o local. O gerador deixara de matraquear. Agora consegui ouvir as rãs.

      - Acontece constantemente - disse Emily. - Acabou-se o combustível do gerador.

      Dentro de casa, as vozes ouviram-se muito altas.

      - Estão zangados, estavam a ver a Cruzada Mundial por Cristo! Eh, já te falei no vídeo? É um Sony. O pai faz pregações com ele, pode dizer a missa mesmo quando cá não está, como aconteceu hoje. Os índios ficam malucos quando a vêem, preferem-na aos sermões verdadei­ros. Por vezes só cá ficam quando vêem o pai na TV. Agora todos querem ser baptizados, para poderem assistir...

      - Emily, se não consegues as chaves...

      - Não te preocupes - disse, levantando-se. - Vou buscá-las. No escuro ainda será mais fácil. É melhor que não estraguem o jipe. ­Afastou-se, exclamando: - Que coisa esquisita!

      O Jerry agitou-se logo que Emily se foi embora. E se ela não conseguisse encontrar as chaves? E se o pai andasse à nossa procura? Chorou, riu-se, deu pontapés nas ervas.

      - É um aldrabão... um mentiroso! - exclamou. - Jesus, que vamos nós fazer?

      - Vamos para casa.

      - Hatfield fica tão longe. Nem sequer sabes conduzir um carro.

      Talvez fosse melhor ficarmos aqui. Odeio-o, era capaz de o matar. ­

      Pegou-me na mão.

      - Jerry, tenho medo.

      - Disseste que não tinhas.

      - Aquela rapariga tem razão. O pai é maluco.

      Emily regressou agitando uma lanterna eléctrica e fazendo tilintar as chaves.

      - O gerador avariou-se - explicou. - O meu pai está danado, mandou-o arranjar há pouco tempo. A igreja mandou um homem de Tegoose.

      Apontou a lanterna para a sua própria cara. Estava mais branca, pusera bâton nos lábios e sombra verde nas pálpebras. O vermelho gordurento nos lábios fazia-a mais velha. Sorriu e perguntou:

      - Gostas? - Tinha pintas vermelhas nos dentes. Assustava-me e ex­citava-me. - Eh, tenho estado a pensar, não precisam de ir embora já,.. podem aqui ficar algum tempo. Talvez até vejam os Tuacas, alguns são formidáveis. Depois podíamos ir no avião. Não querem ver televisão?

      - O pai matava-nos - respondi.

      - É incrível... é pior do que o meu. Eh, por que é que o teu irmão está a chorar?

      - Deixa-o... e lembra-te de que isto é segredo. Não fales de nós a ninguém. Tens de o jurar. Jura-me que não dirás a ninguém, nem ao teu pai.

      - Não direi, juro.

      - E se te fizerem perguntas?

      - O pai já te viu e pensa que vocês são índios! Não é a primeira vez que lhe levam o jipe, já têm feito maluqueiras como essa. Atirarei a culpa para os Tuacas. Será fácil.

      Acompanhou-nos até à margem do rio. Antes de nos metermos na água, disse que me queria beijar. Não podia fazê-lo com o Jerry a ver, pelo que lhe pedi para começar a nadar. Quando ouvi o barulho dentro da água, beijei-lhe as faces. Agarrou-me e encostou a sua boca à minha. Tinha os lábios macios, os nossos dentes tocaram-se, cravou-me os dedos nas costas e espetou-me todos os seus ossos no corpo. Mantive os braços caídos.

      Preocupara-me com o regresso ao barco, mas fiquei tão satisfeito por me ver livre dos beijos que o rio até me pareceu fácil de atravessar... mas estava frio. Olhei para trás, avistei a pequena luz da lanterna e apeteceu-me beijá-la outra vez.

 

      Quando subimos para bordo a mãe estava acordada, de pé no exterior da cabina.

      - Por onde é que vocês andaram? - Procurava mostrar-se zangada mas parecia assustada. É fácil de saber como as pessoas se sentem pela maneira como falam na escuridão. Emily já mo mostrara e agora era a vez da mãe.

      - Por ali - respondi. - A ideia foi minha, portanto, não culpe o Jerry. - Olhei em volta em busca da canoa, mas não consegui vê-la. - Onde está o pai?

      - Pensei que vocês estavam com ele. Fiquei aqui de vigia e de repente todas as luzes se apagaram.

      - O gerador avariou-se. - Esforcei-me por conseguir ver a outra margem, mas Guampu estava mergulhada na escuridão. Só se via a selva e as manchas brancas das casas, que pareciam feitas de giz. ­O pai tem andado a mentir-nos, mãe.

      Contei-lhe o que Emily nos dissera acerca de Baltimore e da América.

      «Isso é uma parvoíce.»

      - Não faz diferença - respondeu a mãe.

      - A América está na mesma, Ma! Não se passou nada!

      - O pai odiava-a tal como era. Foi por isso que partiu. É por isso que estamos aqui. Nunca voltará para lá.

      - Pois eu não ficarei aqui! - declarou o Jerry.

      - Nem eu - concordei.

      - Não temos alternativas - disse a mãe. - Somos obrigados a fazer o que ele manda.

      - Estamos a cometer um erro terrível... Foi o que tu disseste!

      - Nunca vos devia ter dito isso - proferiu a mãe, numa voz triste e derrotada. - É verdade, mas temos de nos sujeitar. Agora, esta é a nossa vida.

      Ia para dizer mais qualquer coisa mas o choro impediu-a... um choro miudinho, como os soluços de Clover.

      - Podemos sair daqui, mãe. Está um jipe estacionado ali no meio daquelas árvores, deste lado do rio. - Mostrei-lhe as chaves e expliquei-lhe como as conseguira. - Tu podes levar-nos... aos cinco, antes que ele volte. - Estás a sugerir que abandonemos o pai? Não posso acreditar no que estás a dizer.

      - Pode ser a nossa última oportunidade - respondi. - Por favor, mãe. Acorda as gémeas e vamos. Depressa, ou o pai impedir-nos-á de escapar.

      - Queres que o pai regresse a este barco e descubra que fugimos dele? Isso é uma coisa horrível, Charlie.

      - Quero ir para casa! - exclamei, agarrando no ombro da mãe e sacudindo-a.

      - Então, e eu? Achas que não daria saltos ante a o fazer? Mas olha para esta escuridão... e o pai não sempre muito assustada quando se afasta.

      Não se libertou das minhas mãos mas tremia tanto que a larguei. Se a mãe não queria conduzir o jipe, então nós próprios não poderíamos escapar nele. No entanto, percebia que a mãe começava a ceder... falava como se pudesse vir a acabar por concordar, mas tinha medo. O pai encontrava-se algures no meio da escuridão, na margem ou na canoa.

      - Talvez nos tenha abandonado.

      - Não podemos fazer nada sem ele!

      - Pode não voltar!

      - Por favor, mãe, por favor! - implorou o Jerry.

      - Não consigo pensar bem, com toda esta escuridão - afirmou a mãe, numa voz abalada.

      - Amanhã será demasiado tarde. O Spellgood vai andar à procura das chaves do jipe. Verá o nosso barco... e seremos presos!

      Enquanto falava, surgiu uma luz em Guampu. Agora conseguíamos ver os rígidos perfis das casas. Por detrás delas, tal como o clarão do nascer do Sol, qualquer coisa ardia. As chamas altas deram tons verdes e dourados às árvores mais próximas, inundando-as de luz e dando-lhes frenéticas sombras zambus. O fogo levou as aves a agitarem-se e a piarem. Gritos humanos atingiram-me ao mesmo tempo que o cheiro de gasolina a arder.

      - Fogo - disse Jerry e as chamas iluminaram-lhe o rosto.

      O gerador incendiou-se a seguir. Os tanques rebentaram com um estrondo e atiraram com todo o telheiro para o rio. Lagos de fogo e paus a arder avançaram rapidamente, dançando na corrente. As pessoas de Guampu gritavam e toda a selva estava acordada com os uivos dos macacos e com os ruídos das asas dos pássaros agitando os ramos.

      - Oh, meu Deus! - exclamou a mãe.

      As gémeas acordaram e começaram a chamar de dentro da cabina.

A garganta de Jerry emitia sons baixos e assustados. A mãe choramingava, batendo na amurada do barco com a palma da mão e dizendo:

      - Oh, Deus. Oh, Deus, não devíamos ter parado aqui! Por que é que não continuámos em frente?

      - Jerry, pega nas gémeas - ordenei. - Vamos, mãe, fujamos daqui!

      - Sentem-se! - Era a voz do pai. Apareceu no rio, de pé dentro da canoa com as chamas por detrás dele, a face sombria de ameaças. - Vocês não vão para lado nenhum!

      Debatia-se com a canoa. Mergulhava a pagaia nos reflexos de fogo e acabou por parar junto de nós.

      - Allie, que se passa ali?

      - O fogo está controlado. Ninguém sofreu nada. Não sentirão a falta daquele avião. Ainda bem que o vi... fiz-lhes um favor, acabei com ele. Muito bem, mexam-se, vamos embora!

      - És um mentiroso! - gritou Jerry, atirando-se ao pai. - Mentiste-nos sobre tudo!    Disseste que a América foi destruída!

      - E tinha razão - retorquiu o pai. - Olha para aquelas chamas!

      - Mentiroso! Mentiroso!

      - Charlie, leva este chorão para a proa. Vamos partir!

      - Não iremos contigo, depois de todas as mentiras que nos contaste - disse-lhe. - Fizeste-nos sofrer para nada!

      - Para a proa!

      - Allie, escuta-o! O Charlie tem um plano!

      - Tu! - gritou o pai, empurrando a mãe de encontro à cabina. ­Estiveste sempre contra mim! Tentaste sempre minar as minhas decisões. És tão útil como esses garotos!

A luz do fogo de Guampu e do avião a arder avermelhavam-lhe o rosto, dando-lhe destaque aos cabelos e abrindo-lhe buracos escuros no lugar dos olhos. Nesse momento tive tanto medo dele e das gémeas a chorarem na cabina, que puxei o Jerry para a proa.

O barco oscilava, preso à âncora. Da amurada partiam dois cabos amarrados a uma árvore suspensa sobre o rio na margem oposta a Guampu. Conseguia ouvir a confusão dos Spellgood e as chamas a estalarem como velas ao vento.

      - Vamos matá-lo - disse o Jerry. - Amarramo-lo e damos-lhe com um martelo. Então, já não nos poderá deter... e merece-o.

      - Está bem - respondi.

      - Terás de ser tu a fazê-lo.

      - Como?

      - Com um martelo - sussurrou. - Rebenta-lhe a cabeça.

      Nunca imaginara a coisa com aquelas palavras. Ouvi-lo a repeti-las tornava o acto impossível. Eram palavras selvagens e violentas, «martelo» e «rebentar», que me assustavam com o sangue nelas implícito. Os gritos de Guampu eram como a minha consciência aos berros.

      - Não sou capaz.

      - Se não o fizermos, virá atrás de nós e mata-nos. - Não fales... não digas...

      - Mentiu-nos - disse Jerry. - É perigoso. Queimou-lhes o avião e estoirou com o gerador. Bateu na mãe. É assim que irá ser a partir de agora, se continuarmos com ele... Ou talvez ainda pior...

      - Levantem a âncora! - gritou o pai. - Soltem a corda dessa árvore!

      - Não o faças - continuou o Jerry. - Quer ir-se embora e leva-nos

ainda mais para o interior. Seremos obrigados a ficar lá. Está metido num sarilho por ter provocado aquele incêndio. Nunca voltaremos para casa!

      - A âncora! Depressa!

      - Fujamos daqui - respondi. - Podemos saltar para a margem e ir embora. Vamos, Jerry.

      - Mata a mãe e as gémeas! Sei que o fará.

      De súbito o pai apareceu por trás de nós aos gritos.

      - Que estão vocês a fazer? Ajuda-me com estas cordas, Charlie. Jerry, pega num bambu e começa a empurrar o barco. Se esses selvagens nos vêem, cairão em cima de nós como uma tonelada de tijolos.

      Pousou os pés no centro do rolo da corrente da sonda. Antes de conseguir pensar ou parar, apertei-lha com força em volta dos tornozelos. Tentou mover-se e caiu. Caiu com força, batendo com a cabeça na amurada. Não ficou inconsciente, mas apenas tonto e com um meio sorriso.

      - Desculpa! - disse, aterrorizado. Continuei a pedir-lhe desculpa e avancei para o ajudar, mas, nesse momento, já o Jerry amarrava as mãos do pai, enrolando-lhe um bocado de corda em volta dos pulsos e dos polegares.

      - Os pés! - gritou Jerry. - Ajuda-me! Enrolei o resto da corrente em volta dos pés do pai.

      - Não vou bater-lhe - afirmei. - Não o vou matar.

      - Então, amarra-o com força - continuou o Jerry, ainda a amarrar as mãos do pai, que fora quem nos ensinara aqueles nós.

      - Allie, vem aí gente! - gritou a mãe, da popa do barco.

O pai pareceu compreender mas continuou deitado de costas, suficien­temente quieto para podermos fazer-lhe nós duplos nas mãos e nos pés. Murmurou qualquer coisa de um modo desconexo, como se estivesse drogado, enquanto eu continuava a pedir desculpa por aquilo que estávamos afazer.

      - Têm lanternas - disse a mãe, que não nos podia ver. - Allie, o que é que queres que faça?

      O avião continuava a arder por detrás das casas, mas o incêndio do gerador fora abafado pela selva. Na margem, na escuridão, vimos luzes que se agitavam, candeeiros e lanternas eléctricas.

      A mãe continuava a chamar. Foi a sua voz que acordou o pai, que abriu os olhos e se atirou a nós. Porém, os nós aguentaram-no e fizeram-no cair outra vez. Voltou a bater com a cabeça. Ajoelhou-se e tentou libertar as mãos. O Jerry pegou num tubo de ferro que se encontrava no convés e ergueu-o sobre a cabeça do pai. Arranquei-lho das mãos e atirei-o borda fora. O pai não olhava para cima, resmungava com os nós e depois soltou um lamento de embaraço e ira por não conseguir quebrar as cordas com um esticão.

      - Eh! - disse, numa voz de bêbado, e começou a morder os pulsos.

      Não queria encontrar-me ali quando se conseguisse libertar. Jerry e eu corremos para a popa. Puxei a canoa para o nosso lado do barco, oculto de Guampu, e disse à mãe para embarcar. Agachada no escuro, segurava as gémeas olhando para a margem de Guampu, onde as pequenas luzes dançavam na escuridão e o avião ardia.

      Atingiu-nos um grito vindo da margem. Era Spellgood gritando em espanhol e também numa qualquer linguagem índia, talvez tuaca. A sua voz ressoava como num túnel, como se gritasse por um megafone.

      - Para a canoa, depressa, mãe. Por favor, despacha-te!

      Ouviu-se um tiro, não muito alto mas que tinha a malícia de um dardo envenenado, e que provocou um ruído nas árvores por detrás de nós, na margem mais próxima.

      - Onde está o pai?

      - O pai não vem.

      Outro tiro e mais gritos em dialecto índio por parte do Spellgood.

      - Allie! - chamou a mãe, enquanto colocava April e Clover dentro da canoa. As gémeas taparam as caras. Estavam tão assustadas que já nem tinham fôlego para chorar. O Jerry embarcou a seguir, e depois a mãe, que ainda chamava: - Allie! Allie!

Saltei lá para dentro e remei para longe do barco. Estávamos apenas a seis metros de distância da margem oposta a Guampu, mas antes de conseguirmos percorrer metade do caminho - uma remadela -, uma luz pousou na cabina do barco e iluminou-a por detrás. Estávamos escondidos na sua sombra, olhando para cima.

      O pai levantou-se e enfrentou a luz. Quando tentou tapar a cara vimos que ainda tinha as mãos amarradas.

      - Comunistas - gritou Spellgood. - Satanás!

      - Allie, aqui! - disse a mãe. - Mas que se passa com ele?

      O pai esfregou as mãos amarradas de encontro ao telhado da cabina, batendo os nós de encontro à madeira.

      - Satanás! Diabos!

      - Ajudem-me - pediu o pai, numa voz muito calma.

      Quando falou, ouviu-se um som fraco, quase inocente, como o de uma ameixa muito madura a cair no chão.

      O pai caiu de joelhos gritando:

      - Estou bem! Estou bem! Estou vivo!

      Entretanto, tínhamos atingido a margem. Os garotos saltaram para terra mas a mãe continuou na proa.

      - Allie!

      - Não me abandonem - pediu, levantando as mãos amarradas. - Estou ferido, mãe!

      A mãe arrancou-me a pagaia das mãos e no mesmo movimento mer­gulhou-a no rio e empurrou-nos em direcção ao barco, enquanto eu me agarrava.

      - Quem está aí? - perguntou Spellgood pelo megafone, do outro lado do rio.     Procurava descobrir-nos com a lanterna. - Quem disse isso?

      - Não me posso mexer - gemeu o pai de novo.

      Mantendo a canoa protegida pelo barco, conseguimos rolar o pai do convés para dentro da canoa. Deu um grito, como se lhe tivéssemos partido o pescoço, mas não hesitámos. Com uma das suas pernas caída para dentro do rio e com a água a passar por cima da amurada, remámos para a margem onde nos aguardavam os garotos.

      - Depressa - pediu a mãe.

      - Irei atrás de vocês! - gritou Spellgood.

      - Não consigo sair desta coisa - disse o pai.

      A mãe arrastou-o para a margem. Ainda ocultos da margem oposta pela sombra do barco, desamarrámos-lhe os nós que o prendiam. Mesmo com as mãos e os pés livres, não conseguia mexer-se. Levantava a cabeça mas o resto do corpo jazia, pesado, no chão.

      - Ajuda-me, Charlie - disse a mãe. - Vocês todos, segurem-no! ­Arrastou-o pelo meio dos arbustos enquanto lhe pegávamos nas pernas.

      Agora já havia mais gente na margem oposta. Deviam ter ouvido os tiros. Parecia-me escutar dezenas de vozes. Chamavam-nos e uma ou duas vezes pensei ouvir Emily a pronunciar o meu nome, mas o rio era ali muito largo e a margem de Guampu ficava a mais de cinquenta metros de distância. Continuámos a avançar sem proferir uma palavra até encon­trarmos o jipe. Do outro lado, as vozes continuavam. Era como se estivessem perdidos e feridos, gritando por ajuda na escuridão... mas não por nós.

 

      Ao longo do túnel escuro de folhagem que era a estrada, com a noite a comprimir-se de encontro ao tejadilho, os quarenta quilómetros de trilho cheio de raízes que conduzia a Awawas pareceram-se mais com cem. A mãe conduzia o mais depressa que podia, desviando-se dos obstáculos e moendo as mudanças. Os restantes seguiam em silêncio. Observávamos as aves aninhadas na estrada e as bolas de pêlo que eram juparás, com olhos como lâmpadas eléctricas, imóveis no meio do caminho por onde chocalhava o jipe. Quando a mãe falava, era sempre com o pai.

      - Vais ficar bom - dizia. - Não te abandonaremos, Allie.

      O pai não respondia. Seguia no banco traseiro, com os olhos quase abertos. A camada de lama da margem do rio que o cobria libertava um cheiro a morte.

      Então, ainda no escuro, a estrada acabou. Fomos atirados para o meio de um beco sem saída de árvores, fetos e arbustos que brilhavam sob os faróis, o barulhento estômago da selva. A mãe desligou o motor e puxou o travão. Trepou por cima do seu assento e foi para junto do pai para o confortar, falando-lhe baixinho como se ele estivesse a dormir.

      - Viverás, Allie.

      Com as luzes apagadas podíamos ver as estrelas e o buraco da lua no cobertor do céu. A Lua foi descendo e os ramos desenharam-lhe fendas na face. Não houve sol durante algum tempo, mas apenas uma luz acinzentada que ia subindo e penetrava entre as árvores como a água de uma cheia, dando-lhe um tom ceroso com os farrapos de nevoeiro que, quando o dia nasceu, foram cortados por faixas de sol que se espessaram e nos cegaram. A selva à nossa volta alterava-se de segundo a segundo, de escura para aquosa, enevoada, cerosa e cinzenta. A luz começou a fazer fugir as sombras da selva, uma maré alta de luz com um espelho atrás. Era como se durante todo o tempo houvéssemos fugido da escuridão para a claridade, deslizando para a frente como gente assustada numa canoa silenciosa, para aquele lugar mais brilhante.

Toda a escuridão escorrera já das árvores da manhã, desfazendo-se em lama e água.

      A madrugada mostrou-nos que estávamos sozinhos. Durante a noite a selva era alta e o seu brilho frio pingava escuridão, mas à luz do dia era de um amarelo escasso, quebrado por árvores anémicas, aqui e acolá mais verdes. Aquilo era a margem de um rio, a folhagem da noite tornara-se frágil e cheia de ervas. A nossa frente, onde esperávamos encontrar mais selva, estava a água. Era o Wonks, de onde surgira toda a escuridão.

      - Mãe - chamava o pai e a sua voz era como aquela frágil luz. Não conseguia suportar o seu rosto branco como o de uma cabra, o sangue por debaixo da barba, as meias-luas azuis por debaixo dos olhos. Caminhei para o rio com o Jerry, saltando por cima das raízes. Estava um sapo a meus pés, apeteceu-me trespassá-lo com uma lança, mas depois de ter visto o pai não seria capaz de o fazer. Em vez disso comecei à procura de iautias e de goiabas.

      - Não quero que ele morra - declarou o Jerry.

      Ouvimos vozes e olhámos para trás, para o jipe. Havia dois índios a espreitar pelas janelas. Deviam ter reconhecido o jipe dos Spellgood, porque sorriam e conversavam com a mãe. Aproximámo-nos quando a mãe saiu do carro.

      - Descubram-me um barco - disse. - Água e comida! Depressa! Do pai, só a cabeça estava viva, percebemo-lo quando o pousámos no chão. Era bem óbvio, quando a mãe lhe lavou a ferida. Tinha a cabeça viva, mas o corpo era como uma saca de sementes. A bala entrara-lhe pelo lado do pescoço e saíra pela nuca. Não tinha a espinha partida, mas havia fios vermelhos e de gordura na boca da ferida, e uma mancha azul à sua volta. A mãe cobriu-a com algodão que os índios ferveram, e depois colocaram-no em cima de uma tábua e trans­portaram-no para o rio. Levavam-no com os pés para a frente como os portadores de um caixão, talvez por pensarem que estava morto.

      A mãe colocou-o na proa do barco, que era uma embarcação muito achatada e com um comprido timão de leme. Por essa altura já o choro das gémeas atraíra outros índios, e toda aquela gente parou na margem, observando-nos sem fazerem perguntas. Alguns correram em busca de mais tigelas de arroz e feijão - «comida inglesa», como lhe chamavam - bem como de wabool e de café. Um dos índios disse à mãe que não era nem bom nem mau que o pai tivesse morrido... que todos morriam, era assim o mundo, não se podia nada contra isso, portanto que fosse feliz.

      - Vocês acreditam nisso - respondeu -, mas eu não, portanto não mo peçam. Levem-mo daqui para fora e entreguem as chaves do carro ao pregador.

      Era o que o pai teria respondido. Apoderara-se da sua determinação, numa espécie de pânico. Obrigou-nos a procurar pagaias e varas e dava ordens aos índios. Não tinha o jeito do pai para as improvisações mas sabia como levar os índios a erguerem uma cobertura para a cabeça do pai. Quando um índio tentou insistir em ir connosco, declarou-lhe com firmeza que ficava grata pela oferta mas que não queria a sua ajuda. - Não fico aqui nem mais um minuto - declarou.

      Um dos homens mencionou um serviço religioso, mais gabarola do que piedoso.   Eram do tipo de gente a que o pai outrora denominara de «índios das rezas».

      - Não rezo - retorquiu a mãe.

      Partimos naquele barco de fundo achatado, com a mãe à popa, as gémeas ao centro, com a comida, e o Jerry e eu a remarmos à proa, de cada lado do pai.

      - Subimos o rio? - O pai percebera que navegávamos. Esforçou-se por espreitar por cima das amuradas, mas não o conseguiu.

      - Sim - respondeu a mãe. - Subimos o rio.

      Conduziu-nos para o meio da corrente e aproou para jusante.

 

      A apressada corrente daquele rio era como a do avanço de uma maré, mas permanente. A água corrente tinha ali um aspecto estranho, deslizando ao longo das mais mortas e despovoadas margens. A última vez que havíamos descido um rio fora o rio Sico, quando da fuga de Jerónimo. Porém, comparado com o Wonks, o Sico era um riacho, e isso fora na estação seca. Este era muito mais cheio e largo do que o próprio Patuca. Viajávamos a meio da corrente e avançávamos depressa. Quase não era preciso remar, excepto para equilibrar o barco nas curvas.

      O pai pensava que ainda estávamos no Patuca, e que seguíamos em direcção à nascente. Estava feliz, ou antes, a sua cabeça estava feliz, porque o resto era um saco de areia.

      - Remem com força - disse. - Afastem-se da costa, afastem-se dos selvagens. Há morte, lá em baixo. Escutem, a costa de Mosquito é a costa da América. Sabem o que isso quer dizer.

      Demos-lhe água e wabool, mas não queria comer. Afirmou que queria passar fome até recuperar as forças.

      - Aleijado, não lhes servirei de grande coisa. Passa-se algo com as minhas pernas.

      Com os braços também, pois não podia mexê-los. Éramos nós que lhe enxotávamos as moscas da cara.

      A sua enorme cabeça estava fixa no nicho da proa como a de uma cabra no cabresto, olhando para nós enquanto descíamos o rio a toda a velocidade, dizendo-nos que estávamos salvos porque o subíamos, e, por vezes, chorava.

      Chorava mais quando via os pássaros. Ao princípio eram pássaros inofensivos como os papagaios, mas delirava e os pássaros transformaram­-se em criaturas viciosas. Tornaram-se maiores. Ganharam plumas e garras. Primeiro, por cima de nós pairavam cegonhas, depois falcões-pes­cadores e por fim abutres, os que ele mais odiava. Nunca antes havíamos visto abutres daqueles. Eram negros e enormes, já não eram cinzentos, com as pontas das asas esfarrapadas, pescoços depenados e enormes bicos recurvos. Planavam sem bater as asas, como maldosos papagaios de papel, com um aspecto frágil e paciente no céu de Verão.

      - Levem daqui esses pássaros! - gritava.

      Era o seu velho horror aos «comedores de restos», mas agora que não conseguia mexer os braços ainda tinha mais medo deles, bem como de outras coisas. Do modo como o barco oscilava, pois não poderia nadar. Das moscas que se lhe juntavam em volta os olhos. Dos barulhos súbitos. Do fogo. Não queria ser deixado sozinho e odiava as paragens. Quando nesse primeiro dia nos detivemos numa aldeia da margem, chamada Susca, para procurar ligaduras novas e água, fez com que eu e o Jerry ficássemos junto dele até ao regresso da mãe. Não se mostrava surpreendido por existirem ali aldeias, por passarem outros barcos junto do nosso, por ouvir o clamor dos Mosquitos.

      - É aqui que se encontram os últimos humanos... no alto do rio. Tínhamos descido já mais de vinte quilómetros e deslizávamos para a costa.

      - Tapem-me - pediu. Obrigou-nos a mudar a cobertura da cabeça para não poder ver os abutres que nos seguiam. Além disso, afirmou odiar aquele céu vazio. - Se estivesse na cadeia, nunca espreitaria pela janela.

      Tínhamos sorte, declarou, porque aquele rio era um labirinto. Fácil de entrar, difícil de sair.

      Delirava quando estava acordado, e quando dormia uivava durante os sonhos.       Tinha sempre espuma nos lábios.

      Fácil de entrar? Não poderíamos subir o rio contra a corrente mesmo que o desejássemos. A noite atracávamos o achatado barco junto das aldeias. Nalgumas havia missionários morávios, índios a rezar e gente da Pensilvânia. Não, a América não fora destruída. A mãe pedia comida, água e medicamentos. As pessoas eram simpáticas, davam-lhe tudo o que ela queria. Parámos em Wiri-Pani e Pranza, e num lugar chamado Kisa-Laya onde avistámos carroças cobertas de lama. Informaram a mãe de que nos encontrávamos apenas a três dias da costa, do cabo Gradas a Dios, a que chamavam apenas «O Cabo».

      As gémeas não tinham nada para fazer. Seguiam preocupadas, a tremer de medo por causa da velocidade a que viajávamos. A mãe conservava-se à popa, usando um chapéu de palha de Susca. Segurava no longo timão, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita, mas sim sempre em frente, para a foz, por cima da cabeça do pai.

      Só falava com as gémeas e estava demasiado longe do pai para responder às coisas que este dizia. Queria explicar-lhe que não desejara qualquer mal para o pai, mas apenas permitir-nos escapar. Tínhamo-lo feito da pior maneira possível, descendo um rio que não conhecíamos e com as raparigas doentes. Transportávamos a cabeça do pai para a costa. Mais ou menos de dez em dez quilómetros surgia uma aldeia de

onde os índios nos gritavam em inglês, mas com estranhas pronúncias. Os índios eram cada vez mais pretos à medida que nos aproximávamos da costa, enquanto os abutres que pairavam por cima se faziam maiores e mais repulsivos. Às vezes apareciam aligátores durante a noite, que saltavam das margens e nadavam contra a corrente. Eram cobardes, não nos atacavam e quando nos batiam com os focinhos, fazíamos tochas de farrapos. Por vezes bastava a luz súbita para os deter. As chamas perto das suas narinas verdes detinham-nos sempre.

      Perto da costa o rio era mais enlameado e retorcido, e a terra mais pantanosa, pelo que as garças pareciam camisas penduradas em postes de vedação. Ali fazia mais calor e este levava o pai a delirar ainda mais. O seu delírio levou-me a recordar mais uma vez como em Jerónimo, enquanto trepava pelo interior do «Menino Gordo», tivera um relance da sua mente e verificara como era confusa. Sentia-me esmagado por aquelas canalizações misturadas e contorcidas. Construíra-o tal como ele próprio era, os delírios provinham de todas aquelas órbitas e circuitos, dos feixes de tubos, válvulas, suportes e bobinas... A fábrica de gelo fora a sua dor de cabeça.

      Do que se queixava mais era deste mundo imperfeito. A maior parte do que dizia já eu sabia de cor, mas também afirmou coisas novas.

      - Estou ferido - dizia-o e repetia-o, como se acabasse de o descobrir e não fosse capaz de acreditar. - Não me posso mexer... Não posso fazer nada.

      - Vais ficar melhor.

      - O homem nasceu deste n;tundo imperfeito, Charlie. Portanto, sou imperfeito. Não prestamos para nada. O corpo humano está mal dese­nhado. A pele não é suficientemente espessa, os ossos não têm a resistência necessária, temos poucos pêlos, não temos nem garras nem presas. Caímos e partimo-nos! Nem sequer somos simétricos. Um pé é maior do que o outro, temos uma mão esquerda e uma mão direita, os nossos narizes pingam. Repara onde temos o coração. Não fomos feitos para caminhar de pé... pois essa posição expõe as partes mais sensíveis do corpo, o coração e os órgãos genitais. Devíamos andar a quatro patas e sermos peludos, mais resistentes ao calor e ao frio, e com caudas. Gostaria de saber o que aconteceu à minha cauda. Tive de me fazer inventor, era demasiado fraco para viver de outro modo. Olha para mim. Olha para que serviram as setenta e cinco elevações por dia! Sim, senhor, vou viver a quatro patas a partir de agora. Só para isso é que sirvo... para andar em cima das mãos e dos joelhos!

      Prosseguia assim, repetindo as coisas vezes sem conta, enquanto corríamos rio abaixo sob os bandos de borboletas e sob as sombras de aves hirsutas que voavam tão alto no céu que para as conseguir ver bem tinha de me deitar de costas como o pai.

      - Há pessoas para quem as coisas ainda são piores, Charlie. As mulheres estão em más condições. Escorrem e vertem líquidos. É terrível o modo como vertem os corpos das mulheres. Todo aquele sangue, toda aquela gordura inútil… e têm de carregar sempre com aqueles corpos de um lado para o outro. Não admira que sejam tão loucas, perguntando a si mesmas para que servem. É humilhante ter um corpo com deficiências de construção. Pensei que era o homem mais forte do mundo. Sou apenas polpa. A fraqueza faz-nos inteligentes, mas não há inteligência suficiente quando tudo está contra nós. Vou dizer-te quem vai herdar o mundo... os pássaros devoradores de carniça. Estão prepa­rados para isso, têm tudo a seu favor. Alimentam-se dos falhados. Neste momento o céu da América está negro, coberto desses pássaros. Limitam­-se a pairar, à espera. Afasta-os de mim! Tenho areia nos olhos! Estou vivo mas não consigo ver, mãe!

      Era terrível tentar remar com os gritos do pai mesmo junto aos meus ouvidos. Era tão terrível que eu quase não notava as curvas do rio, e impedia-me de pensar no que aconteceria quando chegássemos à costa.

      O pai insistia em que lhe cobrissem a cabeça. Usava um capuz, como um condenado, e suava lá dentro. Não viu os bandos de patos que levantaram voo, as desajeitadas tarambolas, os flamingos, as aves marinhas que encontrávamos junto de aldeias com nomes ingleses tal como Living Creek e Doyle. Permaneceu silencioso durante longos pe­ríodos. Os seus silêncios eram sempre piores do que os uivos, porque pensávamos que tinha morri do. Ainda cheirava a morte. Sabíamos que estava vivo por causa da sua pele, que caía aos bocados.

      Foi mordido pelas moscas, foi mordido pelas baratas que existiam no barco. As febres abalaram-no. Delirava, lutava e abria os ferimentos.

      - A natureza é contorcida. O que eu queria era ângulos rectos e linhas direitas. Gelo! Oh, por que é que elas vertem? Cortamo-nos ao abrir uma lata de atum e morremos. Uma coisa espetada num pé e a vida escorre-nos pelos dedos dos pés. Para que servem os chifres dos veados? Andemos a quatro patas e viveremos. Com as mãos e os joelhos no chão ficaremos protegidos. Ou isso ou asas.

      Naquele rio inundado, a voz do pai crepitava debaixo do capuz patibular.

      - Escutem-me todos! Deixem crescer asas e nunca mais vos apanham!

      O rio tornou-se mais largo e perdeu a corrente. Agora para avançar precisávamos de remar com força. Com pântanos nas duas margens não havia onde atracar o barco, pelo que prosseguimos durante toda a última noite. Um pouco antes da madrugada avistámos um facho luminoso ­um farol - e ouvimos o marulhar das ondas na praia, junto à foz do rio. Era o Cabo.

      - Que é aquilo? - O pai reconhecera o som. - Não! - gritou, levantando os braços pela primeira vez.

      Arrancou o capuz da cara e disse-me:

      - Charlie, não me mintas. Diz-me onde estamos.

      Dobrei-me, incapaz de falar. Depois tive de me virar para o outro lado pois já estava de dentes à mostra e dentro de mim havia qualquer coisa muito violenta que me incitava a arrancar-lhe uma orelha à dentada.

      - Abutres! - declarou, pronunciando logo de seguida uma frase ter­rível: - Cristo é um espantalho!

 

      Parecia que era verdadeiro tudo aquilo que o pai receara. Predissera aquilo. O céu estava cheio de aves, feios pelicanos, gaivotas e abutres. Circulavam e pairavam por cima da grande curva da praia tropical. Por vezes precipitavam-se para baixo para se alimentarem, porque entre a rebentação remavam enormes tartarugas com bicos de papagaio e pescoços como sacos.

      As carapaças das tartarugas estavam incrustadas de pervincas, e restos de algas. Havia mais tartarugas a agitar as barbatanas na areia, e outras enfiadas nas dunas baixas. Pestanejando e reproduzindo-se, punham ovos castanhos. Tinham os bicos salpicados da saliva espumosa resultante do esforço.

      Não produziam qualquer som. Apenas as aves gritavam, e quando uma tartaruga era lançada à costa por uma onda inimiga, virada de patas para o ar, os abutres atiravam-se ao seu pescoço desprotegido e arrancavam-no da casca. As gaivotas ficavam com os restos. A luz do Sol fazia com que aquele pesadelo ainda fosse mais horrível, com as tartarugas a patinharem em massa ao longo da costa, pondo ovos na areia, as aves a planarem no céu, à espreita, e as ondas violentas. Era o inferno costeiro que o pai nos prometera.

      Escolhemos um sítio isolado no meio de um grupo de palmeiras junto à praia, virámos o nosso barco e montámos acampamento. O pai chorava. Cada vez que tentava falar, rebentava em lágrimas. Era a visão do mar, a costa de Mosquito. As lágrimas diziam-nos que o tínhamos enganado, desiludido, levado para ali para morrer.

      Surgiram índios negros em canoas para nos verem. O pai gritava-lhes que se fossem embora. A mãe foi a pé até Cabo Gracias, à povoação, e tentou arranjar um médico. As pessoas disseram-lhe que os médicos se encontravam no rio, nas missões, ou então em La Ceiba ou em Trujillo, e não ali. Disse-lhes que queria um barco que nos levasse a subir a costa, mas os barcos iam todos para sul, para Bluefields, Porto Cabezas e Lagoa das Pérolas. Riram-se dela quando lhes disse que não tinha dinheiro.

Matámos uma tartaruga e enquanto os abutres pairavam em volta, agitando as asas e observando-nos, assámos a carne gordurosa na nossa fogueira. Agora acreditávamos que todas as previsões do pai se haviam concretizado. Morríamos na costa de Mosquito, na areia quente, entre devoradores de carniça e tartarugas que se afundavam. Era pior do que ele dissera.

      A América estava a salvo - os morávios haviam confirmado a palavra dos Spellgood -, mas estávamos tão longe que isso não nos servia para nada. O inferno é aquilo que não podemos ter. As nossas melhores recordações eram as da vida na selva. Era demasiado tarde para regressar, o rio só podia ser subido com um barco a motor e o vasto e inexpressivo mar fazia-nos sentir solitários e pequeninos. Tínhamos fugido para a costa, mas éramos agora, mais do que nunca, gente abandonada e agarrada a uma faixa de praia. Estávamos cansados, vazios e mal falávamos. O pai conseguia mexer os braços, mas as pernas continuavam imóveis. Jazíamos olhando para as ondas, as tar­tarugas, as aves. Sempre que nascia o dia víamos monstros marinhos espreitando entre as vagas.

      Ao longo surgiam barcos à vela, dos pescadores, mas nenhum se aproximou o suficiente para podermos ver se o Sr. Haddy andava entre eles. Nenhum barco aportava àquela praia e o pai afugentara os negros. As gémeas encontravam-se demasiado doentes para se levantarem. Per­maneciam debaixo do barco, junto do pai.

      A nossa esperança estava na mãe. Continuava todos os dias a caminhar os quase cinco quilómetros através das palmeiras até Cabo Gracias, exigindo remédios e pano para fazer as ligaduras do pai.

      - Não sou uma mendiga - dizia. - Não aceito um «não» como resposta. As pessoas chamavam-lhe «tiazinha» e diziam que era louca. O Jerry e eu apanhávamos ovos de tartaruga e lenha para a fogueira. Escutávamos o pai a implorar que o fizéssemos subir o rio e matávamos as moscas que lhe pousavam em cima.

      - Para que lado fica o rio? - perguntou, numa voz muito baixa. Falava como um bebé a respeito de viver a quatro patas, bem longe, no interior de Mosquitia, e acerca de ir para o mar numa peneira, mas em geral não dizia nada. Ficava a olhar. Os pensamentos toldavam-lhe a testa. As lágrimas amontoavam-se-lhe nos olhos e rolavam-lhe pelas faces, sem que o pai soltasse um som.

      Cinco destes dias enfraqueceram-nos mais do que o rio conseguira, e agora a costa parecia-nos um grande erro. As criaturas que ali viviam alimentavam-se umas das outras. Vestíamos farrapos. Quanto mais tempo ali permanecíamos, mais receávamos o oceano. Nunca nadávamos por causa das tartarugas, e mantínhamo-nos a coberto por causa das aves.

      Quando dormia, sonhava com comida. Sonhava com bolo de chocolate e leite frio. Sonhava com a nossa cozinha em Hatfield, em como algumas noites eu lá fora, às escuras, abrira o frigorífico para me refrescar, e olhara para as prateleiras iluminadas, o queijo, o leite, o bacon, um frasco de compota, uma garrafa de água, uma empada, um jarro com sumo fresco de laranja. A cozinha estava escura, mas o interior do frigorífico era brilhante e cheio de boa comida.

      Um dia os gritos de Jerry interromperam-me esse mesmo sonho, e nunca mais me viria a esquecer dessa interrupção. Jerry avistara um barco à vela vindo de sul. O vento soprava do mar. O barco aproximou-se, navegou sobre uma onda com a grande vela a bater e deteve-se na areia.

      - Pai, um barco!

      O pai ergueu a cabeça e observou o Jerry a correr para o barco à vela. - Pode ser o Sr. Haddy - disse eu.

      - Onde está a mãe?

      Olhei em volta. Estivera a dormir, não sabia para onde ela fora. - Deve estar na aldeia.

      As gémeas dormiam ao lado do pai, de mãos dadas.

      - Vai ver quem é - pediu o pai. Lançou-me um olhar de esguelha, a sua mirada de cobarde, fraca e necessitada de conforto, pronto para abandonar tudo só para se poder escapar... um olhar de culpado, com um pouco de tristeza e de ódio por si mesmo. Vi-lhe o rosto mas só mais tarde compreendi a expressão. - Não há pressa - continuou - não sairei daqui.

      Deixei-o com as gémeas e corri ao longo da praia. Jerry já atingira o barco à vela. Falava com o homem que vinha a bordo e tinha tartarugas amontoadas em volta do mastro e no interior da pequena cabina. Não era o Sr. Haddy, mas estava disposto a conversar. Rasgara a vela principal e precisava de cordas. Falava a respeito das cordas quando ouvi o grito.

      - As gémeas! - exclamou Jerry.

      Fora um grito de criança, agudo, lamentoso e patético.

      - Mãe! Mãe! Mãe!

      - De certeza que aconteceu qualquer coisa - disse o homem do barco ao ouvir as vozes.

      Quando chegámos ao nosso pequeno acampamento, encontrámos as gémeas acordadas, a esfregarem os olhos. O pai desaparecera mas víamos o sulco que o seu corpo deixara na areia, como os rastos de um lagarto, com as marcas das mãos dos dois lados. Andara a quatro.

      - Mãe!

      O som estrangulado chegou-nos do outro lado da duna.

      Conseguira arrastar-se até uma boa distância do campo. Fizera-o com pressa. Jazia num monte de areia virado para Oeste, a direcção da foz do rio. Agora estava imóvel. Por cima dele encontravam-se cinco abutres, que lhe atacavam a cabeça. Davam-lhe cruéis bicadas no crânio e projectavam sombras terríveis sobre o corpo. Tinham bocados de carne nos bicos. As aves olharam para cima, para mim. Interrompera-as, gritando e agitando os braços.

      Não ficaram assustadas, a vitória conseguida fizera-as perder o medo. Hesitaram, deram uns pulos para o lado, deixaram-me ver a cabeça do pai. Apanhei um pau na areia, mas mesmo no momento em que avancei um abutre dobrou-se, bicou e arrancou mais carne, como uma criança que se apodera de qualquer coisa extra porque sabe que será afugentada e que aquele bocado já ninguém lho tira.

 

                     A COSTA DE MOSQUITO

 

      Podíamos continuar a morrer de fome ali, morria gente na costa todos os dias. Porém, a morte de um branco era uma novidade... Um missionário, diziam. Ah, como o pai odiaria tal coisa! A notícia propagou­-se e chegou aos ouvidos do Sr. Haddy. Apareceu por simples curiosidade e ficou connosco quando viu de quem se tratava. Quando chorou, as suas lágrimas recordaram-nos que nenhum de nós chorara. A exaustão era mais forte do que o desgosto.

      Pouco depois as brisas que nos haviam queimado na praia das tar­tarugas, abaixo do cabo Gracias a Dios, empurraram-nos para norte ao longo da costa de Mosquito. Navegávamos com bom vento, com uma carga de tartarugas moribundas.

      Depois da morte do pai, o próprio tempo se modificara. Os dias eram compridos e ininterruptos como uma frase sem vírgulas e sentíamo­-nos perdidos.

      Momentos houve em que quase esperávamos vê-lo aparecer, apesar de sabermos que estava morto. Esperávamos vê-lo surgir algures a nosso lado, saltando para bordo e gritando-nos, tal como no Patuca no dia em que o contrapino da hélice se partira. As aves marinhas pousavam no barco. Vi-as e o vento levou-me os uivos do pai. Quem mais aguardava o aparecimento do pai era o Sr. Haddy. Mantivemo-nos vigilantes. Nunca falávamos dele, nem uma só palavra.

      Navegávamos ao largo de Caratasca e quando atingimos Mocobila quase não a reconhecemos vista do mar. Passámos ao lado da praia de Brewer, onde andáramos em busca de despojos, Paplaya e Camaron. Sentia que me dirigia para casa, mas também que podíamos morrer de um momento para o outro. Não merecíamos mais sorte do que a que fora a nossa, não mencionávamos a morte do pai.

      À noite navegávamos sob velas enfunadas, e de dia o calor fazia-nos parar. O barco subia e descia, mergulhando nas água verdes, levando-nos para onde calhava.

Outrora acreditara no pai e o mundo parecera-me muito pequeno e velho. Agora que ele desaparecera, mal acreditava em mim mesmo e o mundo era ilimitado. Uma parte de nós morrera com ele, mas a parte de mim que restava temia-o mais do que nunca, continuava a esperá-lo, continuava a ouvir a sua voz a gritar: «Vão apanhar-me primeiro... Sou o último homem!» Era o vento, as ondas, todas as aves, todos os gritos da costa. Tal como ele, pensavam em voz alta.

      Uma madrugada, muito cedo, avistámos as luzes de La Ceiba, mas o vento soprava do lado errado. Agarrou-nos e empurrou-nos mais para oeste, para lá das cabanas, mas depois fez-nos voltar para trás até só podermos atracar perto de umas palmeiras, numa praia igual àquela de onde havíamos escapado, a trezentas milhas de distância, e onde o pai jazia sepultado, no meio de ovos enterrados. Nesta nada existia. Detritos de cocos, lixo atirado pelo mar, cabanas sobre estacas, pelicanos, uma vaca... Outro local selvagem e solitário. O pai não se encontrava ali mas a sua voz ainda chegou até nós.

      O desgosto é um sentimento posterior, quando a tristeza se tranquiliza, tornando a nossa memória pesada e sem esperança. Era demasiado cedo para sentirmos fosse o que fosse excepto o choque do alívio, as últimas dores. Havíamos sido esfolados vivos e estávamos em carne viva. Havíamos atravessado um fogo e ainda ardíamos.

      Não, o pai não estava ali... mas a dor era tão forte que nem conseguia lamentá-lo.

      Descemos as velas. Puxámos o barco para terra e caminhámos entre as palmeiras. O que usávamos era tudo o que possuíamos. O Sr. Haddy, porém, tinha uma riqueza em tartarugas. Ajudou a mãe a caminhar, tocando-lhe no braço pela primeira vez e depois enfiando-o no seu, dando-lhe apoio e tomando um ar orgulhoso.

      Para lá das palmeiras havia uma estrada pavimentada, uma carripana estacionada, um motorista. Pouco depois estávamos dentro dela, de regresso à cidade de La Ceiba e a casa. O mundo estava na mesma, nem pior nem melhor do que quando o havíamos deixado... mas apesar de tudo o que o pai nos dissera, o que víamos era um verdadeiro esplendor. Era um mundo glorioso mesmo ali, naquele velho táxi, com o rádio a tocar.

 

                                                                                Paul Theroux  

 

                      

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