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A CRIANÇA NO TEMPO / Ian McEwan
Oito
Nessas ociasiões, os pais em apuros podem encontrar certo consolo na bem conhecida analogia entre a infância e a enfermidade — um estado física e mentalmente incapacitante que distorce as emoções, as percepções e a razão, e em que o amadurecimento corresponde a uma lenta e difícil recuperação.
Manual autorizado de puericultura,
Departamento Real de Imprensa
As notícias sobre um manual de puericultura secretamente encomendado pelo escritório do primeiro-ministro apareceram pela primeira vez numa coluna de segunda página do único jornal que não apoiava de forma aberta o governo. A história era astuta em sua reticência, referindo-se apenas a rumores e fontes em geral confiáveis, o que talvez haja encorajado o primeiro-ministro a negar terminantemente, dois dias depois, que tal livro existisse durante a sessão regular de perguntas no Parlamento. A história então foi levada para a parte inferior da primeira página e ofereceu fascinantes citações, embora não anunciasse a posse física do manual. Durante o fim de semana, uma cópia da fotocópia chegou à mão do líder da oposição, e na segunda-feira o jornal publicou uma manchete prevendo a tempestade que se avizinhava e, abaixo dela, reproduziu abundantes acusações do quartel-general da oposição acerca do “grosseiro e imoral cinismo”, “repugnante farsa” e “odiosa traição aos pais, ao Parlamento e aos princípios morais”. Lá pelo meio da semana, outros jornais adotaram a história. Deputados governistas de menor expressão se disseram “preocupados” ou “indignados”. Um debate de urgência foi exigido e concedido, mas adiado por uma semana.
Desde o tempo em que Charles Darke era ministro, Stephen gostava de pensar que tinha um conhecimento especial de como essas coisas se desenrolavam, e até agora tudo corria bem. Uma oposição enfraquecida estava fazendo algum esforço, não havia outras histórias capazes de eclipsar aquela, e após tudo que acontecera nos últimos anos ainda parecia haver uma exigência geral de probidade nas altas esferas de governo.
O atraso de uma semana foi importante. Na quarta-feira, invocando a transparência governamental e a necessidade de um debate com base em informações sólidas, o primeiro-ministro deu ordens para que dois mil exemplares do livro ofensivo fossem publicados e distribuídos aos jornais e a outras instituições interessadas. As rotativas do governo trabalharam a noite inteira e a distribuição começou na madrugada. Os jornalistas tiveram um dia para lê-lo, escrevendo à noite para cumprir os deadlines na madrugada. As resenhas foram no mínimo favoráveis — ou francamente entusiastas. Um jornal sensacionalista publicou na primeira página: “Sente-se, cale a boca e ouça!”. Outro disse: “Garotada, chegou a hora da disciplina!”. Na imprensa séria, era “magistral e bem fundamentado”. Assinalava “o fim da confusão e da infâmia moral no que se escreve sobre cuidados com crianças”; e, no primeiro jornal que publicou a história, “com sua busca honesta pelas certezas o livro resume o espírito de uma época”. Apesar da forma como tinha sido produzido, o manual era exemplar e merecia ampla divulgação. Um punhado de obscuros funcionários públicos, trabalhando com grande velocidade, havia estabelecido padrões que cumpria à Comissão Oficial levar na devida conta. Em sua sabedoria, ou descuido, o governo tinha proposto uma orientação que cabia aos pais respeitar.
Uma vez posto de lado o problema do conteúdo, restava uma questão simples: o primeiro-ministro mentira ao Parlamento durante a sessão de perguntas? Essa simplicidade foi logo obscurecida por rumores, cuja fonte era difícil de localizar, de que o livro não tivera origem no gabinete do primeiro-ministro, e sim num nível intermediário do Ministério do Interior. Dois dias antes do debate de emergência, tanto o manual quanto a mentira haviam desaparecido das discussões. Tratava-se agora de uma questão de apresentação: seria o primeiro-ministro capaz de mostrar-se à altura do momento e ter um desempenho na Câmara dos Comuns que entusiasmaria os deputados governistas arredios, restaurando assim a fé em sua liderança? Embora as explicações honestas fossem até certo ponto desejáveis, as convincentes eram vitais.
Curvado junto ao rádio com uma lata de cerveja, Stephen ouviu a questão se decidir a si própria em meio a um incessante coro de vivas e protestos. A voz bem conhecida, num tom intermediário entre o tenor e o alto, não vacilou numa única sílaba em sua missão de convencer. O gabinete em Downing Street não soubera da existência do livro até uma semana antes. O primeiro-ministro não condenava a feitura do livro apesar da existência da Comissão Oficial. Tratava-se de um documento interno, focalizando as matérias de interesse do ministério pertinente. Aparentemente, só existiam três cópias, que não tinham circulado. A rigor, o ministro do Interior agira de forma inadequada ao não informar o gabinete do primeiro-ministro, o que era lamentável, mas nenhum princípio relevante tinha sido violado. Era uma bobagem infantil sugerir que o governo tencionava publicar o livro em vez do relatório da Comissão. O que ganharia com isso? Era profundamente lastimável que o trabalho da Comissão houvesse se tornado redundante pela necessidade de publicar o livro, porém a culpa pertencia ao funcionário público irresponsável que vazara o documento para a imprensa. Esse criminoso seria processado e punido. Não haveria uma investigação oficial porque o assunto era demasiado trivial. Os nomes dos autores do livro não seriam tornados públicos, nem tais servidores estariam disponíveis para responder a perguntas perante qualquer comitê do Parlamento.
Era sabido que havia uma grande preocupação da parte dos pais e dos educadores com respeito à deterioração dos padrões de comportamento e à falta de responsabilidade cívica de muitos elementos da sociedade, particularmente entre os jovens. A educação em casa claramente desempenhava um papel importante em tal processo, não havendo dúvida de que, no passado, os pais tinham sido induzidos a erro por teorias desavisadas e muito populares acerca dos cuidados com as crianças. Tornava-se imperativo o retorno ao bom senso, e o governo estava sendo chamado a assumir um papel de liderança. Era o que estava fazendo e continuaria a fazer, sem se deixar acovardar por acusações patéticas, pelas calúnias irresponsáveis de seus adversários políticos.
A voz trêmula do líder da oposição estava sendo vencida pela gritaria e o bater de pés dos leais governistas quando Stephen desligou o aparelho. O ministro do Interior, que nunca fora bem visto pelo primeiro-ministro, estaria escrevendo seu pedido de demissão. A Comissão Oficial de Assistência aos Menores acabara de receber uma sentença de morte em código. Tinha sido um trabalhinho caprichado, impressionante. Stephen contemplou o trançado de alumínio do alto-falante e se maravilhou com sua própria inocência. Sentiu, como em outras ocasiões, que não tinha crescido de verdade, que sabia muito pouco sobre como as coisas realmente funcionavam; canais complicados ligavam a verdade e a mentira; na vida pública, os hábeis sobreviventes navegavam com instintos precisos enquanto mantinham uma boa dose de dignidade. Só às vezes, como consequência de algum erro tático, era necessário mentir de forma substancial, ou contar uma verdade importante. Na maior parte do tempo, era uma questão de andar com passadas firmes entre os dois extremos. Será que a vida interior não era em essência parecida?
Stephen preparou um almoço tardio e o levou para a mesa de trabalho. No ar cinzento entre sua janela e dois blocos de apartamentos vizinhos, flocos esparsos eram jogados para cá e para lá por um vento cortante. A neve prometida para março estava chegando. Ele tinha se intrometido de forma incompetente. Não bastava mandar um livro para um jornal, desencadear um processo e esperar. A cultura política era teatral, exigia uma direção constante e ativa de um tipo que ele sabia estar além de sua capacidade. Esperava que Morley não telefonasse. Enquanto elaborava uma versão da conversa que poderiam ter, o telefone junto a seu cotovelo de fato tocou e lhe causou um sobressalto. Era Thelma.
Desde a visita no verão anterior, eles tinham mantido contatos infrequentes. Ela enviara cartões-postais humorísticos, recriminatórios. Achava engraçado — ou fingia achar — que Stephen tivesse ficado tão alarmado com o comportamento de Charles, pois para ela isso provava que Stephen estava entrando na meia-idade. Você costumava ter ideias ousadas, ela escreveu. Defendeu o dadaísmo em nossa mesa de jantar. Agora o dadá aquece os chinelos junto à lareira. Fez de conta que acreditava que ele era pessoalmente responsável por Charles, que tudo era culpa do primeiro romance que Stephen escrevera. Caro Gerontófilo, por favor escreva para Charles um romance louvando as virtudes e alegrias da senilidade. Ou pegue uma tesoura, corte as pernas de sua calça mais comprida e venha nos ver. Ela apreciara a história da subida até a casa da árvore. Charles está instalando uma geladeira. Por favor venha, e o ajude a levá-la para cima. Por trás dessas piadinhas, que às vezes eram muito forçadas, se escondia a acusação de que ele os desapontara. Se Charles havia empreendido uma viagem corajosa a seu passado, ou simplesmente tinha ficado maluco de um modo doce e inofensivo, então ele, Stephen, deveria estar presente para auxiliar o antigo benfeitor. Ele se provara excessivamente melindroso.
Mesmo quando Stephen estivera no pior dos ânimos, seus sentimentos não eram complicados. Charles e Thelma outrora aparentavam ser a corporificação da maturidade ativa e vivaz. A casa deles transpirava solidez e excitação. Num ambiente de calma luxuosa e bem organizada, as pessoas se pronunciavam de forma competitiva, teorias extravagantes ou absurdas eram expostas por cientistas e políticos que bebiam e riam um bocado, indo depois para suas casas a fim de retornar aos seus empregos respeitáveis no dia seguinte. No início, Stephen vez por outra pensava que aquele era o tipo de casa em que gostaria de ter sido criado. Na falta disso, tivera seu colapso nervoso no elegante quarto de hóspedes de Thelma, sentara a seus pés e a ouvira, ou fingira ouvir, além de receber lições de sabedoria mundana de Charles.
Depois que eles demoliram suas vidas e se mudaram para Suffolk, e após testemunhar até que ponto Charles precisara chegar, Stephen sentiu que ele é quem havia sido traído. A perda era toda sua. E ele se protegeu com objeções sensatas: a falsa meninice de Charles e o encorajamento dado por Thelma eram uma questão privada, dos dois. Precisavam de Stephen como certos casais necessitam de um observador para aumentarem seu prazer sexual ou dramatizarem e validarem suas brigas. Ele estava sendo usado. Nenhum dos dois queria lhe explicar o que estava fazendo, tornando assim impossível que ele soubesse como devia comportar-se. Além do mais, quando Charles retornasse à sua antiga vida, o que certamene ocorreria algum dia, não se sentiria envergonhado caso Stephen se mantivesse distante. A amizade deles poderia ser retomada.
Agora que ele tinha seu trabalho, seu árabe e seu tênis, estava menos seguro. Ainda estremecia ao pensar em encontrar Charles de novo vestindo calça curta e falando seu estudado inglês de colegial; mas a curiosidade e o senso de dever de Stephen vinham crescendo. Anteriormente, quando mal se segurava, seguindo dia a dia às apalpadelas, tinha precisado se defender da loucura dos outros. Agora, pensou, podia arriscar mais, ser generoso. E, no entanto, nada fizera. Permanecia preso às rotinas diárias, relutante em perturbá-las mesmo que apenas por um ou dois dias. Esperava por alguma mudança, por algo como o telefonema de Thelma.
A voz dela estava tensa e ofegante. A acústica do telefone acentuava o toque seco de sua língua contra o céu da boca.
“Stephen. Você pode vir imediatamente? Pode chegar aqui ainda hoje?”
“O que está havendo?”
“Não posso dizer agora. Será que pode tentar chegar o mais rápido possível? Por favor.” Ele apertou a lata de cerveja que segurava, provocando um barulho de coisa se partindo que fez Thelma dizer prontamente: “Meu Deus! O que foi isso? Stephen, tudo bem?”.
“Olha”, ele disse, “vou para a estação e pego o primeiro trem. Não sei a que horas ele sai.”
Thelma parecia ter afastado o bocal. “Não vou poder ir te buscar. Você vai ter que pegar um táxi.” Desligou.
Ele levou o resto do almoço para a cozinha, lavou o prato e começou a trancar o apartamento. Ao passar o ferrolho nas janelas, reparou que os flocos estavam ficando mais grossos e mais brancos contra o céu que escurecia. Foi até o quarto e pôs na mala roupas suficientes para uma semana. No escritório, escreveu um bilhete para o sr. Cromarty, que tencionava entregar ao sair, e uma carta ao treinador de tênis, que poria no correio da estação.
Já vestira o casaco e ajustava a secretária eletrônica quando o telefone voltou a tocar.
Uma voz de mulher disse com precisão militar: “Aqui é da Seção de Transporte. Gostaria de falar com o sr. Lewis”.
“Sim?”
“O senhor está sozinho em casa? Muito bem. Por favor não saia nos próximos dez minutos. E mantenha a linha desocupada. O senhor receberá uma visita.” A ligação foi cortada enquanto Stephen exigia uma explicação. Foi até uma janela e olhou para a larga rua congestionada com o tráfego da hora do rush. Visível apenas onde tombava entre feixes de luz vermelha ou amarela, a neve se dissolvia tão logo tocava aquele meio estranho constituído pelo asfalto e pelo metal quente. Sentiu-se tentado a sair imediatamente para a estação, porém a curiosidade o manteve andando de um lado para outro no hall de entrada. Passaram-se mais de dez minutos. A mala estava junto à porta, e ele já se encaminhava para ela quando uma sombra surgiu por trás do vidro fosco um instante antes que a campainha tocasse.
Os quatro homens do lado de fora poderiam ser confundidos com testemunhas de Jeová. Com sorrisos breves e apologéticos, passaram por ele, o olhar fixado à frente para examinar os detalhes — a claraboia no hall, a caixa de luz, os trilhos dos painéis, os rodapés, as portas. Ignorando seu “Olhem aqui!”, se dispersaram pelo apartamento. Stephen estava prestes a ir atrás deles quando mais passos na escada o fizeram chegar ao patamar e olhar para baixo.
Um jovem de óculos, trazendo vários telefones, subia às pressas, seguido por duas mulheres, uma delas carregando uma máquina de escrever e a outra uma mesa telefônica portátil. Havia mais gente nos degraus inferiores. Ouviu alguém escorregar no degrau solto e murmurar um levíssimo palavrão. Os três primeiros passaram por ele apressadamente, sem reparar na sua presença, concentrados nas funções que os faziam desaparecer dentro do apartamento. Esperou que os demais subissem, porém não ouviu nenhum som. Inclinou-se por cima do corrimão e viu a ponta bem engraxada de um sapato preto sete metros abaixo. Aqueles aguardavam.
A pequena sala de jantar que dava para a cozinha estava sendo transformada num escritório. Um aparelho vermelho, um preto e dois brancos haviam sido conectados à mesa telefônica em que pulsavam luzes diminutas. O homem de óculos falava no telefone vermelho, recitando um longo código. Uma mulher já datilografava sem olhar para as teclas e usando todos os dedos, um truque que Stephen sempre admirara. Um dos quatro seguranças desceu da escada de incêndio. Aquilo estava começando a ficar acolhedor. Uma secretária ajeitava sobre a mesa as bandejas de entrada e saída de documentos, uma pilha de papéis de carta e uma caixa rasa que continha grampos coloridos, alfinetes, elásticos e um apontador de lápis em formato de tomate. Alguém trazia uma cadeira e pediu que Stephen fizesse a gentileza de se afastar. Tão logo se deu conta do que estava acontecendo, adotou, para manter a dignidade, um ar de quem se divertia. Cruzou os braços e se encostou no umbral, observando a atividade, quando ouviu um movimento às suas costas e uma voz junto ao ouvido.
“Estávamos saindo da cidade com uma margem de tempo sem precedente entre os compromissos, e o primeiro-ministro insistiu. Vão pôr tudo de volta, prometo.”
O cotovelo de Stephen tinha sido agarrado e ele era levado pelo corrredor a passos lentos por um cavalheiro calvo que usava óculos de meia-lua. Da sala de visitas vinha o silvo de interferência numa transmissão radiofônica de ondas curtas.
“Imaginamos que estariam mais confortáveis no estúdio.”
Pararam do lado de fora e o cavalheiro tirou do bolso de dentro do paletó um formulário impresso e uma caneta, entregando ambos a Stephen. “Lei dos Segredos Oficiais. Assine entre as cruzes a lápis, se não se importa.”
“E se eu me importar?”
“Vamos embora e o deixamos em paz.”
Stephen escreveu seu nome, devolvendo papel e caneta. O cavalheiro deu uma batidinha na porta do escritório e, ouvindo uma voz, abriu a porta para que Stephen passasse e a fechou silenciosamente atrás dele.
O primeiro-ministro, já instalado na poltrona junto à lareira, acenou com a cabeça quando Stephen, ainda de casaco, puxou uma cadeira de madeira e se sentou. Numa prateleira cinquenta centímetros acima da poltrona, na borda da linha de sombra projetada pelo anteparo de uma lâmpada, estava o livro trazido por Morley. Ele tentou não olhar para lá. O primeiro-ministro estava falando com ele. “Espero que me desculpe por tudo isso. Como pode ver, não posso viajar com pouca bagagem.” Por um momento seus olhos se encontraram, depois ambos olharam em outras direções. Stephen não tinha respondido, e o que se seguiu foi neutro, sem tom interrogativo: “O momento é inconveniente?”.
“Estava a caminho da estação.”
O primeiro-ministro, que sabidamente nutria um desdém pelas ferrovias, pareceu aliviado. “Ah, bom. Meu pessoal sem dúvida o levará até lá.”
Tempo suficiente tinha transcorrido para que a insipidez das formalidades fosse abandonada. Limparam a garganta quase simultaneamente. Stephen inclinou-se para a frente na cadeira e contemplou o fogo enquanto se preparava para escutar, ajeitando o casaco em torno do corpo como se buscasse se proteger.
A voz se elevou impessoalmente a fim de pronunciar uma fala decorada. “Sr. Lewis — Stephen, se me permitir —, quero discutir uma questão altamente delicada, um assunto pessoal. Não sei muito sobre você, mas tenho duas recomendações que me dão a esperança de que sejamos parecidos, de que compartilhemos um certo modo de ver o mundo.”
Stephen não objetou. Queria ouvir mais.
“Você trabalhou num dos subcomitês e não discordou das conclusões. E é um amigo íntimo de Charles Darke. Vim aqui correndo um risco considerável de passar vergonha, de parecer ridículo, a fim de falar sobre Charles. Preciso confiar em você. Estou realmente me pondo em suas mãos. Devo avisá-lo de que, se decidir divulgar nossa conversa, ou mesmo minha presença em sua casa, encontrará uma grande dificuldade de que acreditem em você. Tudo isso já foi objeto de cuidados.”
“Isso é que é confiança”, disse Stephen, porém foi ignorado.
“Refleti muito e longamente sobre o que devia fazer. Não vim aqui num impulso. Pensei que podíamos nos encontrar naturalmente, formalmente, e que eu seria capaz de lhe dar ao menos um indício de minhas intenções. Foi uma pena que não pôde comparecer ao almoço.”
O telefone estava tocando na cozinha. Por hábito, Stephen se mexeu, em seguida se encolheu de novo dentro do casaco.
“Antes que prossiga, acho que devo lhe explicar, caso não tenha pensado antes nisso, acerca das limitações excepcionais impostas pelo meu cargo. Isto é, quero me comunicar com Charles de um modo pessoal. Os lugares-comuns são verdadeiros. Liderança significa isolamento. Do instante em que acordo até altas horas da noite, estou cercado de funcionários públicos, assessores e colegas. O cultivo e a manifestação de sentimentos são uma irrelevância em minha profissão, e não posso falar com nenhuma dessas pessoas de forma íntima. No passado isso não representou o menor problema. Só agora, quando tenho alguma coisa a expressar, é que me sinto confinado, curiosamente incapaz. Sem nenhuma diretriz. Outros podem despejar seus pensamentos numa carta e confiá-la ao correio. Por razões óbvias, isso está fora de questão. Quando falo, o telefone é controlado de modo tão complexo, filtrado, monitorado, que uma conversa pessoal se torna impensável. Claro que procurei me comunicar com Charles pelos canais oficiais, mas ele simplesmente ignora esse tipo de coisa. Acho que a mulher dele chega antes. Recentemente, venho me sentindo muito desesperado.”
“Seu discurso há pouco na Câmara dos Comuns não pareceu muito prejudicado”, disse Stephen.
O primeiro-ministro recomeçou falando mais baixo.
“Charles me foi apresentado num almoço que dei para alguns novos deputados, num mês de outubro, faz muitos anos. Sua energia e seu jeito espirituoso — ele parecia decidido a me fazer rir —, seu charme e entusiasmo por todas as posturas do partido davam a impressão de ser alguma coisa bastante implausível. Pensei que estava me pregando uma peça, representando uma paródia que eu não conseguia entender direito, e isso me levou a concluir que ele era inteligente mas talvez não muito digno de confiança. Nos encontros seguintes essa opinião foi revista, e passei a gostar muito dele. Tão jovial, alegre, engraçado, e com uma útil experiência em vários campos de atividade. Ao vê-lo, e nunca o via sozinho, sempre ficava mais animado. Comecei a visualizar um futuro para ele. Algo na área de relações públicas. Pensei que algum dia ele poderia ser um excepcional presidente do partido.
“Eu o promovi, aconselhei a se fazer conhecido, de modo que não fosse difícil lhe oferecer algum cargo. Ele precisava ganhar mais experiência, era o que eu achava. Depois disso não haveria como pará-lo. Quando iniciei o Projeto de Assistência às Crianças me certifiquei de que Charles ficaria responsável por alguns dos subcomitês. Com isso tivemos a oportunidade de nos reunir confidencialmente vez por outra. Ele tinha uma infinidade de ideias, e eu aguardava com grande expectativa esses encontros. Comecei a convocá-los com um pouco mais de frequência do que era necessário. Você talvez considere extraordinário e errado que eu me afeiçoasse por um homem mais jovem…”
“Ah, não”, disse Stephen, “de jeito nenhum. Mas ele é marido de alguém. E você é um defensor dos valores da família.”
“Ah, isso”, disse o primeiro-ministro. “Ele não tem filhos e seria difícil descrever como uma família o relacionamento que mantém com a mulher. Você sabe que ali existe muita infelicidade.”
“Será?”
“Mesmo com Charles no Ministério do Interior, o Projeto em execução e as reuniões regulares do gabinete, eu ainda assim o via muito pouco. Por isso, depois de muita reflexão, chamei o MI5 e, bom, mandei que o seguissem vinte e quatro horas por dia. Obviamente, não suspeitava de nada. Ele era tão leal ao país e ao governo quanto eu. Tomei todos os cuidados para que não abrissem nenhuma ficha sobre ele. Entende, não? Mandar que fosse seguido era um meio de acompanhá-lo o tempo todo. Pode compreender isso?”
Stephen concordou com a cabeça.
“Todas as noites, às sete horas, eu recebia um relato detalhado e datilografado de seus movimentos e contatos durante as vinte e quatro horas anteriores. Tratava de lê-lo na cama, tarde da noite, depois dos despachos do Parlamento e telegramas do Ministério das Relações Exteriores. Me imaginava ao lado dele. Passei a conhecer os hábitos, os lugares prediletos, os amigos dele. Você mesmo aparecia um bocado. Era como se eu fosse o anjo da guarda dele.
“Ao longo dos meses, os relatórios se acumularam, e eu relia aquelas páginas como se elas fossem o meu romance açucarado predileto — não que eu leia essas coisas. Reparei como raramente sua mulher o acompanhava, como ela insistia em se manter distante da carreira política de Charles, pelo menos fora de casa.”
“Ela tinha seu próprio trabalho”, disse Stephen.
“É o que você diz. Outros padrões estranhos no comportamento de Charles estavam surgindo. Havia visitas a endereços particulares improváveis em Streatham, Shepherd’s Bush, Northolt. Foi preocupação, e não ciúme, posso lhe assegurar, que me fez pedir ao MI5 que investigasse mais a fundo. Pode imaginar meu choque quando soube que ele estava visitando prostitutas. Depois ficou claro que esses lugares atendiam a gostos especiais.”
“Que tipo de gostos?”
“Os clientes usavam muitas fantasias. Mais do que isso não quis saber. O que soube é que havia provas claras de uma profunda infelicidade no casamento. Esse era sem dúvida o comportamento de um homem muito solitário. Afinal de contas, nem permanecia fiel a determinado estabelecimento. Achei que devia ajudá-lo, conversar com ele, dar-lhe confiança. Estava elaborando o pretexto para um encontro quando recebi a carta com o pedido de demissão dele. Fiquei perplexo, mais que isso, furioso. Queria que o seguissem em Suffolk, mas o MI5 se queixava sobre a alocação de pessoal sem resultados que a justificassem. Mandar gente para lá sem explicações convincentes teria levantado suspeitas. Por isso, desde então fiquei totalmente afastado de Charles. Só tenho os antigos relatórios e, claro, as minutas de nossas reuniões sobre o Projeto.”
Stephen teve cuidado de manter seu tom de voz neutro. “Por que não aproveitar o dia de hoje e ir lá para vê-lo?”
“Não posso ir a lugar nenhum sozinho. Além dos seguranças, tenho que levar a linha de emergência nuclear, e isso significa pelo menos três engenheiros. E um motorista extra. E alguém do Estado-Maior.”
“Desarme o país”, disse Stephen, “para o bem do coração.”
O primeiro-ministro tinha o dom de ignorar observações irrelevantes. “Gostaria de saber como ele está, o que está fazendo. Você ia me telefonar, lembra-se?”
“Só fiquei por uma noite, e vi mais a mulher dele. Acho que está muito bem, levando as coisas devagar, pensando em escrever um livro.”
“Ele falou sobre a carreira política dele? Chegou a tocar no meu nome?”
“Não, sinto muito mas não falou.”
“Certamente você acha isso bem ridículo, já que ele tem idade para ser meu filho.”
“Claro que não.” O telefone tocava de novo.
O primeiro-ministro deu uma olhada no relógio sobre a mesa de trabalho de Stephen. “O que eu gostaria que fizesse, sr. Lewis, é transmitir uma mensagem simples ao Charles. Gostaria de falar com ele pessoalmente e não pelo telefone. Se ele preferir ser deixado a sós, então respeitarei o desejo dele após um último encontro. É mais fácil para ele me contatar, e ele sabe como fazer isso. Você acha que vai vê-lo em breve?”
Stephen assentiu com a cabeça.
“Então lhe serei muito grato.”
Embora nenhum dos dois se levantasse, a entrevista terminara. Estar sozinho com o chefe do governo era a oportunidade para dar voz a um monólogo interior que ele vinha elaborando havia anos, para confrontar a pessoa efetivamente responsável, e questionar, por exemplo, sua associação aos mais fortes em todas as questões, a exaltação do autointeresse, a venda das escolas, os pedintes, e por aí afora, mas tudo isso parecia secundário diante do que tinham conversado, pouco mais que desbotados tópicos de debate para os quais existiriam respostas ensaiadas.
Stephen pensou em Thelma. “Será um prazer transmitir sua mensagem.”
O primeiro-ministro se pôs de pé, exalando um aroma de água-de-colônia, e sorriu ao trocar um aperto de mãos. “Assinou o formulário?”
“Assinei.”
“Ótimo. Sei que posso confiar em você totalmente.”
O cavalheiro com os óculos de meia-lua ouviu o arrastar da cadeira de madeira; a porta se abriu um momento antes que o primeiro-ministro a alcançasse. Stephen observou as costas que se afastavam e, tão logo se viu sozinho, iniciou os preparativos finais para partir. Apagou o fogo e trancou a janela do escritório. A neve começava a se amontoar no parapeito de pedra. Abriu uma gaveta na mesa e retirou, de um caderno em branco, seis notas de cinquenta libras que guardava para uma emergência.
Chegou no hall a tempo de ver o homem com os aparelhos de telefone saindo pela porta da frente. Os outros o seguiram de perto. O último a ir embora foi um dos seguranças, que, com um gesto teatral, indicou a Stephen que devia inspecionar a sala de jantar. Tudo retornara a seu lugar, até mesmo as xícaras de chá sujas e as revistas velhas. Sobre a mesa havia uma fotografia do cômodo antes da ocupação. Stephen voltou-se para congratular o sujeito pelo trabalho cuidadoso dos colegas, mas ele também havia partido.
Apagou as luzes, pegou a mala e usou três chaves diferentes para trancar a porta da frente. No andar de baixo, o apartamento do sr. Cromarty estava às escuras. Stephen teve de parar enquanto procurava na mala o bilhete que havia escrito e, no momento em que o empurrava por baixo da porta, ouviu seu telefone tocando no andar de cima. Hesitou, calculando suas chances. Talvez, se andasse depressa e fosse competente com as chaves. Mas já tinha se passado tempo demais. Pegou de novo a mala e desceu a escada de três em três degraus. Correu para a calçada, avançando para o rugir do tráfego, o braço já levantado para chamar o táxi que ainda nem tinha visto.
Tinha menos de trinta minutos para esperar pelo trem. Estava muito irrequieto, muito empenhado em proteger os circuitos aleatórios de seus pensamentos para encarar a barulheira úmida de um café na estação. No pub ao lado, bebedores contumazes se acotovelavam diante do balcão e alguém gritava. Por isso, comprou uma maçã, pôs a carta no correio e ficou zanzando pelas plataformas, batendo com o pé contra o frio do reluzente chão de concreto. Aproximou-se de uma locomotiva a diesel que acabara de chegar. Na cabine, o maquinista estava desligando interruptores, fazendo o monstro estacar. Stephen ainda tinha o sonho de ser convidado para subir. Quando menino, nunca ousara se aproximar de um maquinista. Agora era até mais difícil. Ficou aspirando nuvens de vapor e comendo sua maçã, procurando não deixar transparecer sua ridícula esperança, embora fosse incapaz de se afastar, o maquinista poderia ter a inspiração de convidá-lo. Mas o sujeito havia posto um jornal debaixo do braço e descia. Passou por Stephen sem vê-lo.
Mais além das plataformas, perto das altas portas de um vestíbulo onde eram vendidas as passagens, um grupo de mendigos estava reunido em torno de uma cabine de fotos automáticas. Havia mais de cem deles, expulsos das ruas pelo frio. Muitos usavam casacões dos estoques de produtos excedentes do Exército. Tendo ainda dez minutos para gastar, Stephen caminhou na direção deles. Não estavam em ação. Não era permitido pedir esmolas nas estações ferroviárias, e ninguém se arriscaria a dar nada com tantos mendigos ao redor. Mas alguns dos mais otimistas se dirigiam aos passantes aparentemente sem mover os lábios. Os demais estavam em silêncio. Só a expectativa de alguma coisa poderia mantê-los tão plácidos num canto da estação. Talvez houvesse uma distribuição de sopa ou de tíquetes de alimentação.
O fedor adocicado de roupas não lavadas e de bebida alcoólica era forte até mesmo no ar gélido. Um aquecedor de parede de dez metros tinha se transformado num apinhado dormitório. Stephen caminhou por toda a sua extensão. Se conseguissem aguentar mais um mês até que o tempo melhorasse, então tinham toda chance de chegar até o outono seguinte, quando as baixas voltariam a ocorrer. Naquela noite, a minoria sem casacões pesados teria problemas. Ele chegara ao final da fileira de corpos quando deparou com um rosto conhecido. Era duro, de ossos pequenos, por um momento sem idade definida. Pertencia a uma figura encolhida junto às barras de metal, os joelhos erguidos a fim de ceder espaço a um velho corpulento. Os olhos opacos estavam abertos e olhavam para ele sem vê-lo. Stephen começou a pensar que se tratava de um velho amigo, alguém do seu tempo de estudante, ou saído de um sonho. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, daria de cara com alguém que conhecia usando um distintivo de pedinte. E então a viu — a menina a quem tinha dado dinheiro no ano anterior, dez meses antes. Reconheceu, sob o anoraque de náilon, o vestido amarelo, agora cinzento. O rosto, embora inconfundível, estava transformado. A vivacidade zombeteira se fora. A pele ficara áspera, com marcas de varíola, envolvendo frouxamente as feições que pareciam ter se retraído em busca de segurança. Os braços estavam cruzados sobre o peito.
Tinha decidido lhe dar seu casaco. Era velho, e ele estava prestes a entrar num trem aquecido. Tirou-o, descansou a mala no chão e, agachando-se, se posicionou em sua linha de visão, que ela estava cansada ou indiferente demais para ajustar. Tentou recordar-se de como tinha visto Kate naquela menina. Pousou a mão em seu ombro estreito. O homem a seu lado se ergueu, apoiado num cotovelo. Para um sujeito grandalhão, a voz era aguda e deprimentemente jovial. “Olha só! Gosta disso, né? Ela não está interessada.” E riu.
Stephen cobriu a menina com o casaco e tocou sua mão. Estava tão fria quanto o ar em volta. Tocou seu rosto, e os olhos continuaram fixos num ponto distante, a indiferença deles confirmada de modo absoluto. Stephen pegou a mala e endireitou o corpo. Impossível agora pegar de volta o casaco. Não se lembrava de ter esvaziado os bolsos. Atrás dele soou um apito e um trem se pôs ruidosamente em marcha. Pelo relógio da estação, viu que tinha menos de um minuto e meio.
O homem estava com os olhos nele e no casaco. “Vai logo”, ele disse astutamente, “ou perde o trem.”
Stephen sabia que, se registrasse a ocorrência, não sairia de Londres naquela noite. Hesitou um momento, recuou um passo, deu meia-volta e caminhou às pressas, começando depois a correr quando viu um guarda em sua plataforma fechando as portas do trem. Não olhou para trás até que sua mão agarrou com firmeza uma maçaneta gelada. A uns cem metros de distância, oculto durante alguns segundos por um carrinho do correio, o homem, de joelhos, segurava o casaco no alto e revirava os bolsos. A composição estremeceu. Stephen fez girar a maçaneta e subiu, iniciando a procura de praxe pelo assento mais solitário.
* * *
Apenas quatro pessoas desceram duas horas depois na estação de Suffolk, onde não havia nenhum funcionário. Enquanto Stephen procurava um telefone público em toda a extensão da plataforma mal iluminada e depois na frente da estação, os demais passageiros saíram do estacionamento em três carros. A neve parara de cair e formara uma camada de dez centímetros, espalhando a luz esfumaçada de uma lua envolta em nuvens delgadas. A estação ficava nos limites da cidadezinha, quase no campo, numa estrada marcada pelo que pareciam ser lâmpadas elétricas caseiras penduradas no alto dos postes. Stephen parou um momento, impressionado com a novidade do silêncio total. Depois levantou a gola do casaco e seguiu rumo ao hotel, no centro. Do bar deserto pediu um táxi pelo telefone e ficou bebendo sentado junto a uma lareira elétrica que imitava as de carvão.
A motorista era uma mulher simpática e maternal, que fez questão de fechar o cinto de segurança para ele. Herdara as funções do marido, proibido de dirigir dois Natais antes. Agora ele tomava conta da casa e, segundo a esposa, estava adorando. E ela havia descoberto uma nova vida. Falava sem parar e, como dirigia com exagerado cuidado, levaram quarenta e cinco minutos para cobrir os vinte e cinco quilômetros. Stephen desfrutava os poderosos sopros de ar quente no rosto e nas pernas. Afundou-se mais na pelugem de náilon do forro do assento, hipnotizado pelo fluxo da conversa pouco exigente e o balouçante dado felpudo pendurado no espelho retrovisor.
A motorista concordou em entrar com o carro no caminho esburacado que levava à casa dos Darke. Eram oito e meia quando o deixou na borda do bosque. Outra vez ele parou a fim de apreciar o silêncio. Observou as luzes da traseira se afastarem aos saltos e absorveu a imobilidade de tudo, a surpreendente nudez das árvores. Como Thelma e Charles teriam ouvido o carro, esperava uma luz em meio ao arvoredo, uma voz que o chamasse. Aguardou, mas nada aconteceu. Pegou a mala e caminhou na direção do portão, agora não mais oculto. A neve em frente dele não tinha sido perturbada nem havia pegadas na trilha entre as linhas paralelas de arbustos altos e sem folhas — o escuro túnel verde do verão.
A única luz no chalé era o brilho amarelado de uma janela no térreo. Ele bateu de leve e, nada ouvindo, abriu a porta. Thelma estava sentada à mesa de jantar, de frente para ele, iluminada por duas velas. Seu rosto não registrou nenhuma mudança de expressão.
“Sinto ter demorado tanto.” A sala estava fria. Sentou-se ao lado dela. “O que há de errado? Onde está o Charles?”
Ouviu-se um som molhado, alto em meio ao silêncio do campo, quando Thelma chupou o lábio inferior. Passou-se um minuto, tempo suficiente para Stephen lamentar haver dado o casaco. Estava começando a tiritar, precisava que algo acontecesse, quando nada a fim de mantê-lo aquecido. Cobriu a mão dela com a sua. Foi como se tivesse tocado num interruptor. Ela sacudiu a cabeça de um lado para outro, violentamente, depois parou e começou a chorar. A criança que existia nele ficou perturbada ao ver uma mulher mais velha aos prantos. Ela não queria ser consolada. Liberou a mão para cobrir o rosto, encolhendo-se quando Stephen tocou seu ombro.
Pegou uma manta numa poltrona e a cobriu. Achou um aquecedor portátil na sala de visitas e levou para lá. Enquanto Thelma continuava a soluçar, tratou de acender a fornalha em que as cinzas ainda estavam quentes. Apanhou uma garrafa de uísque, dois copos e uma jarra de água na cozinha. A sala estava quente quando ela se acalmou. No entanto, ela ainda cobria o rosto com as mãos. Então se pôs de pé abruptamente e, murmurando desculpas, correu para o andar de cima. Ele ouviu sons no banheiro. Serviu-se um drinque e sentou junto à fornalha a fim de se preparar para ouvir as más notícias.
Ela reapareceu vinte minutos depois com um pesado suéter sobre o braço e carregando uma lanterna. Pôs essas coisas sobre a mesa e se sentou ao lado da cadeira de Stephen, tomando sua mão e a apertando entre as dela. Parecia bem calma agora, apesar de cansada, consumida.
“Fico muito feliz de você estar aqui”, ela disse.
Ele aguardou.
Para dizer o que tinha a dizer, ela se ergueu e ficou junto à mesa, meio de lado para ele. Apertou as dobras de lã do suéter entre o indicador e o polegar. Falou rapidamente, sem inflexões: “Charles está morto. Morreu. Está lá no bosque. Tenho que trazê-lo para cá. Não posso deixar que fique lá fora a noite toda. Quero que me ajude a carregar”.
Stephen havia se posto de pé. “Onde ele está?”
“Perto da árvore dele.”
“Ele caiu?”
Ela sacudiu a cabeça. A tensão no movimento sugeriu que, se quisesse manter o controle, não poderia falar.
“Vou precisar de um casaco”, disse Stephen, “e botas.”
Durante alguns minutos eles tomaram providências práticas em silêncio. Ela lhe mostrou a copa, onde uma jaqueta grossa de trabalhador e um suéter estavam pendurados num gancho. Havia também um par de pesadas botas de borracha com lama seca. Ele achou um pedaço de corda no chão e, sem ter nenhum plano para usá-lo, enfiou no bolso. Antes de saírem, reavivou a fornalha.
Como a lua havia se desembaraçado das nuvens, a lanterna só era necessária onde a trilha se curvava em sombra. Stephen guardou para si as perguntas. Os únicos sons eram o ranger da neve pisada e o farfalhar de suas roupas.
Thelma então falou: “Ele saiu de manhã e não voltou na hora do almoço como de costume. Mais tarde fui procurar por ele e o encontrei quando estava ficando escuro. Não me lembro de voltar para casa. Acho que eu corri. Aí telefonei para você”.
Continuaram a andar e, quando ficou claro que Thelma não iria tomar a iniciativa de dar outras informações, Stephen perguntou com cautela: “Como ele morreu?”.
O tom dela demonstrou dúvida: “Acho que simplesmente se sentou”.
Perto de um riacho congelado passaram pela laje rochosa sob cuja cobertura de neve, bem no fundo das fissuras, havia os ingredientes para uma floresta tropical em miniatura. Mesmo sob o luar era possível ver brotos gordos e viscosos, plantas humildes levantando pequenas hastes através da neve. Uma estação estava perfurando a outra. Nos espaços lisos entre as árvores, a profusão aguardava sua vez. A trilha enveredou para o centro do bosque. Desceram em direção ao carvalho podre, inalterado desde o verão. Dobraram à direita no estreito caminho que se juntava à trilha naquele ponto. Thelma reduziu as passadas ao entrarem na clareira. No outro lado, indistintas em meio às sombras, árvores maduras se erguiam como uma vasta mansão. Tendo guardado a lanterna no bolso, ela aqueceu as mãos sem luvas com o hálito e depois cruzou os braços sob as dobras do casaco. Stephen não conseguia pensar em nada para dizer que não fosse outra pergunta. No bolso da jaqueta encontrara uma bola de gude que fez correr entre os dedos tentando adivinhar, absurdamente, sua cor. Era reconfortante lembrar que não estavam numa região inóspita: a cidadezinha próxima projetava uma luz amarronzada numa parte do céu; dois carros passaram na estrada que ficava a um quilômetro e meio de distância; a terra que eles cruzaram era densamente cultivada, cercada e salpicada de bosques. Só a temperatura seria a mesma caso ninguém jamais tivesse existido.
O paredão de árvores que se debruçava sobre a clareira parecia saber o que ela continha e por que eles tinham vindo. Ao penetrarem nas sombras, Thelma passou a lanterna para Stephen. Ela estava ficando para trás. Quando ele alcançou a primeira das faias, ela estava parada a vários metros dele. Levantou a mão para indicar que Stephen teria de avançar sozinho.
Como muitos de sua geração, Stephen tinha pouca experiência em matéria de morte. Ao caminhar em direção ao segundo cadáver do dia, imaginou um cheiro, que sentiu na garganta, de salões úmidos, tecidos negros, o gás aprisionado nos órgãos vazando aos poucos pelos poros da carne gordurosa. Era uma impressão sem nenhuma base na memória ou em fatos, mas difícil de dissipar. Expeliu o odor no ar límpido. Para se persuadir de que simplesmente tinha vindo executar uma tarefa, carregar um grande peso para um amigo, tirou a corda do bolso e tentou enrolá-la de modo eficiente enquanto andava.
Chegou à pequena clareira mais cedo do que desejava. O feixe amarelado da lanterna cortou algo azul. Parou e deixou a luz retornar. O ar quente expelido por seus pulmões formava nuvens ao redor da cabeça. Havia uma camisa, uma barriga exposta, a cintura da calça de veludo cotelê (que, misericordiosamente, era comprida). Como não estava pronto para levar a luz da lanterna até o rosto, inspecionou as pernas e depois os pés descalços, com os dedos levantados e afastados. Ao lado havia uma pilha de roupas, um suéter sobre um casaco e, caindo pela beirada, sapatos e meias.
Sua dependência de um estreito cone de luz o deixou inseguro. Apagou a lanterna e circundou a clareira, mantendo as costas voltadas para as árvores e contemplando a forma vaga no outro lado. Sua imobilidade o assustava, mas o mesmo acontecia com a ideia de que pudesse se mexer. Charles estava sentado com as costas apoiadas na árvore em que construíra a plataforma. Vinte centímetros acima de sua cabeça se via o primeiro prego. Quando chegou a menos de um metro de distância, Stephen acendeu a lanterna. Uma camada de cinco centímetros de neve se acumulara sobre os ombros de Charles e nas dobras da camisa ao longo dos braços. A camada era mais profunda em seu colo e lhe cobria a cabeça com um formato de cunha. Cobria também a linha do nariz e o lábio superior. O efeito era cômico, desagradavelmente cômico. Stephen retirou a neve com a mão em concha, limpou a cabeça e os ombros, usou o indicador no nariz e no lábio.
Foi esse breve contato com a última coisa, o lábio, que o fez recuar. Era muito flexível, o dedo escorregou até a gengiva, e ele imaginou que havia sentido certo calor. Ficou de frente para o amigo, a um metro e meio de distância, e focalizou a lanterna em seu rosto. Os olhos estavam fechados. Foi um alívio. A cabeça repousava contra a árvore, e a expressão, se havia alguma, era de cansaço. As pernas de Charles estavam estendidas à sua frente e os braços caídos ao lado do corpo, as mãos voltadas para baixo e cobertas de neve. Os três botões de cima da camisa estavam abertos.
Stephen remexeu na pilha de roupas com a lanterna. Se havia algum bilhete, Thelma o tinha achado. Ficou parado, adiando a hora em que teria de pegar o cadáver. Tirou outra vez a corda do bolso, mas não podia conceber nenhum uso para ela. Por fim se ajoelhou aos pés do amigo, abraçou-o pela cintura e começou a arrastá-lo. Ao se erguer, trouxe Charles junto, agarrando suas coxas para ajeitá-lo sobre os ombros.
Já de pé, e dando uma meia-volta desajeitada a fim de encontrar o caminho, ouviu atrás dele, onde a cabeça de Charles tocava a parte de baixo de suas costas, um longo suspiro de desapontamento, sussurrado como a letra “o”. Stephen soltou um pequeno grito e, dando alguns passos para o lado na clareira, jogou Charles na neve. Depois teve de puxar o corpo de volta, apoiá-lo na árvore e repetir a parte mais difícil, quase encostar seu rosto no do amigo. Ao se erguer com o peso pela segunda vez, não ouviu nenhum som.
Ele cambaleava se mudasse de direção de forma muito repentina. Fora isso, tratava-se de uma carga suportável porque bem distribuída. O tênis lhe possibilitara boa forma física. Seguiu pelo caminho, dando-se conta de que deixava para trás a relativa luminosidade da clareira e que a lanterna ficara inacessível em seu bolso. No entanto, a lua estava quase diretamente acima do bosque, as sombras tinham encolhido. De início não foi o peso do corpo que o oprimiu, e sim o frio que se irradiava para os ossos de seu ombro e descia pelas costas. Seu próprio calor estava sendo sugado avidamente, como se em breve eles fossem trocar de posição para que o cadáver, aquecido de volta à vida, levasse o corpo gelado de Stephen para o chalé.
Tiritava ao mesmo tempo que suava. À frente, através das árvores, podia ver o brilho da clareira maior. Thelma permanecia onde a deixara. Ao se aproximar, pensou em jogar Charles a seus pés. Ela poderia colocá-lo na posição certa depois que Stephen descansasse. Mas Thelma deu meia-volta tão logo ele se aproximou e começou a refazer o caminho que os levara até ali. Não olhou para trás ao apertar o passo. Stephen não teve escolha senão segui-la.
Quando chegaram às árvores podadas e subiam a pequena ladeira, o peso já causava dores agudas em Stephen, em especial nas pernas, no pescoço e nos braços, no lugar onde eles estavam cruzados atrás dos joelhos de Charles. Thelma só havia parado uma vez, para tirar a lanterna do bolso de Stephen. Até então não tinham se falado.
À medida que a dor se intensificava, ele resolveu que não soltaria o corpo de Charles antes de chegarem ao chalé. Seria uma reparação, depois do seu triste papel como amigo. Tinha largado o amigo antes, não iria largá-lo agora. Foi com pensamentos heroicos desse tipo que Stephen tolerou a dor. Mas quando finalmente Thelma entrou no chalé e seguiu para a copa, indicando que era onde desejava que o corpo fosse deixado, ele foi incapaz de ativar os músculos certos, que haviam se contraído a ponto de ter perdido o controle sobre eles. Ficou balançando no espaço confinado e fortemente iluminado, sem poder se desfazer da carga. “Puxa ele”, Stephen gritou. “Pelo amor de Deus, tira ele de cima de mim!”
Foi menos por razões de higiene e mais com vistas a restabelecer a linha divisória entre os vivos e os mortos que Stephen rumou imediatamente à cozinha para lavar as mãos. A cozinha agora estava quente demais, abafada. Atravessou a sala de estar. Anos antes, uma parede havia sido demolida para formar uma longa galeria. Havia poucos móveis, o ar era frio e tinha aquele quê de cômodo não usado. Thelma já estava lá, encostada ao parapeito de uma janela, ainda de casaco.
Ele se dirigiu a uma cadeira, mas entendeu que não podia sentar-se. Embora suas mãos dessem a impressão de estar firmes, todo seu ser parecia vibrar a uma alta frequência. Havia um lamento fúnebre em seus ouvidos, ou na sala, nos limites da faixa audível. Ele se afastou da cadeira caminhando pelo assoalho de tábuas enceradas até a parede oposta, e lá se voltou. Gostaria de correr. Achou que seria formidável agora numa quadra de tênis. Thelma atravessou a sala, chegou à janela adjacente e caminhou de volta. Ele retornou, batendo forte com os saltos dos sapatos. Thelma postou-se junto à lareira vazia. Stephen ergueu a vista quando pensou que ela sussurrava, mas foi apenas o som de pele contra pele quando sua amiga esfregou as mãos. Ele buscou o uísque e os copos na cozinha. Era difícil controlar o fluxo.
A bebida estava salgada. “Põem sal nisso?”, ele perguntou. Como ela pareceu confusa, não repetiu a pergunta. De todo modo, após uma pausa, ela assentiu com a cabeça e, segurando o copo com as duas mãos, caminhou pela sala repetindo o trajeto de Stephen. Continuou de costas para ele enquanto bebia.
“Você precisa saber”, disse por fim, ainda sem se voltar, “isso não foi uma surpresa. Ele tentou em Londres, mais de uma vez. Achei que a vinda para cá resolveria o problema. Na verdade, foi só um adiamento.”
“Achei que conhecia ele bem”, disse Stephen. “Mas obviamente eu estava errado.”
“É assim que costuma acontecer. O lado frenético, o lado enérgico e bem-sucedido era público, e o resto, as loucas depressões, eram todas para mim. A mudança para cá era para reconciliar os dois lados…” Ela andara até onde Stephen se encontrava.
“Só que”, ele disse, “aqui eu era o único público.”
Thelma o olhou, sem acusação. “É verdade, ele ficou aborrecido quando você foi embora sem avisar naquele dia, quando esperava por você. Não estava contando com sua aprovação, embora isso pudesse ter sido simpático. O que queria é que você não ficasse chateado.”
Stephen sentiu que lhe faltava o fôlego, os braços pesados. Olhou às suas costas e se sentou. “Acho que fiquei”, disse com tristeza.
Thelma se sentou no braço da cadeira. “Não me entenda mal. No fim das contas não faria a menor diferença. Certamente a coisa não dependeu de sua atitude. Não foi o que eu quis sugerir. Eu poderia ter te contado mais, te preparado para o que te aguardava. Mas Charles era contra isso. Não queria que falássemos sobre ele desse jeito, não queria ser visto como um caso patológico.” E acrescentou: “Naquela época achei que ele tinha razão”.
Um relógio no fundo da sala deu as onze. A última reverberação precisou se perder de todo antes que fosse possível prosseguir na conversa.
Thelma parecia ter alcançado um estado de neutralidade emocional. “Ele não conseguia juntar as pontas”, disse num tom casual. “Queria ser famoso, que as pessoas lhe dissessem que algum dia chegaria a primeiro-ministro, e queria ser o garotinho sem a menor preocupação, sem responsabilidades, sem conhecimento do mundo lá fora. Não era um capricho excêntrico. Era uma fantasia devastadora que dominava todos os seus momentos privados. Pensava sobre isso, desejava isso como certas pessoas desejam o sexo. Na verdade, a coisa tinha um lado sexual. Usava calça curta e fazia com que uma prostituta lhe desse palmadas na bunda fingindo ser uma governanta. É melhor que saiba disso, era uma das coisas que ele queria te contar. Trata-se de uma predileção bastante comum entre uma minoria dos alunos de internatos particulares.
“Mas tinha um lado emocional mais importante que ele achava difícil compreender e mencionar. Queria a segurança da infância, a impotência, a obediência, e também a liberdade que vem junto, liberdade em matéria de dinheiro, decisões, planos, exigências. Costumava dizer que queria escapar do tempo, dos compromissos, agendas, prazos. A infância para ele era a atemporalidade, falava sobre ela como se fosse uma condição mística. Ansiava por tudo isso, falava comigo interminavelmente, ficava deprimido — e o tempo todo estava lá fora ganhando dinheiro, ficando conhecido, criando mil obrigações para ele no mundo adulto, fugindo dos próprios pensamentos. Seu livro Limonada foi muito importante para ele. Disse que era uma parte dele se comunicando com a outra. Disse que o tinha obrigado a reconhecer a responsabilidade por seus desejos, que precisava fazer alguma coisa por eles antes que o tempo eliminasse qualquer oportunidade. Era um alerta sobre a mortalidade. Precisava fazer alguma coisa rápido, ou se lamentar para sempre.”
Assoou o nariz. Manteve o estilo distante, analítico.
“Mas não fazia nada. É difícil romper com a ambição convencional. Houve uma tentativa de suicídio, na realidade pouco convincente. Mudou de emprego e, como você sabe, teve ainda mais sucesso. Os anos passaram depressa, como ele temia. A pressão crescia. Se meteu em política, conseguiu o cargo no governo. Começou a ler outra vez seu livro. Por causa do projeto sobre os cuidados com as crianças. O primeiro-ministro o convidou, o que naquele mundo equivale a uma ordem, a escrever um manual secreto sobre o assunto, o manual que está causando essa confusão toda. Charles e o primeiro-ministro trabalharam juntos nele. Ele estava sendo desejado, e com isso quero dizer sexualmente desejado. Fingia não notar que estava fazendo uma conquista. Sentia repulsa, mas não podia deixar de flertar. Queria seguir em frente, era impossível parar de querer aquilo. Escreveu o manual sob a supervisão de seu líder, releu o livro que você escreveu. Tudo veio à tona de novo, e ele quis fazer planos. Estava desesperado, ele dizia. O tempo se esgotava. Precisava disso aqui, suplicava que eu fizesse tudo acontecer, que deixasse ele ser um garotinho. E no final concordei, pensei que de outro jeito ele iria desmoronar. Obviamente também me servia, o que era bom, porque a coisa não iria funcionar caso eu me sentisse contrariada. Eu queria ir embora de Londres, estava cansada de dar aulas, tinha meu livro para escrever, amo esta casa e a terra em volta.
“Conversávamos com frequência sobre a origem da obsessão, se era alguma coisa do passado que precisava ser revivida ou completada, ou alguma compensação por algo que tivesse faltado. Na realidade, Charles nunca quis ir a fundo. Acho que tinha medo do que poderia encontrar. Talvez fosse sua obsessão se protegendo. Você sabe que a mãe dele morreu quando ele tinha doze anos, por isso é possível imaginar que tenha associado a pré-pubescência a ela. E guardava uma fotografia, uma pequena fotografia horrorosa tirada quando tinha oito anos. Mostra ele ao lado do pai, que era um figurão no setor financeiro, um homem sem graça, eu lembro bem, mas tirânico. Na foto, Charles parece uma reprodução em escala menor do pai — o mesmo terno e gravata, a mesma pose de autoimportância, a mesma expressão adulta. Assim, talvez a infância tenha sido negada a ele. Mas outras pessoas perdem a mãe quando são crianças ou têm pais com horríveis ambições e conseguem crescer sem as ânsias sexuais e emocionais do Charles. Em todas as nossas conversas, acho que nunca chegamos nem perto da raiz do problema.
“Seja como for, largamos tudo e viemos para cá. Durante algum tempo, enquanto fez calor, as coisas correram bem. Mais que isso, foi um idílio. O que a alguém de fora teria parecido ridículo e fantástico se tornou muito comum para nós. Eu era a mãe de um menino que brincava no bosque o dia todo e que voltava para casa na hora de comer e de dormir. Nunca o vi tão feliz, com necessidades tão simples. Ele descobriu que gostava da solidão. Aprendeu o nome das plantas, embora nunca o tenha visto com livros. Em casa, se mostrava simplesmente alegre e afetivo. À noite, dormia direto por dez horas. Antes, não passava de quatro ou cinco. Você veio, e isso foi uma frustração, mas não um revés grave.
“Aí o tempo mudou, e bem de repente, por sinal, e Charles começou a se preocupar com o que poderia estar acontecendo em Londres. Queria que recebêssemos jornais, e recusei. Tentou consertar um rádio velho, e ficou furioso quando não conseguiu. Então passou a dizer como ficaríamos sem dinheiro se não voltasse a trabalhar, o que era uma bobagem. Pior de tudo, ele estava recebendo cartas do primeiro-ministro convidando-o a visitar Downing Street, sugerindo que seria possível obter para ele um posto na Câmara dos Lordes, o que significa receber um título, e um cargo no governo com perspectivas de outros ainda mais importantes.
“Passava a noite sentado, atormentado, e ainda ficava no bosque durante o dia, tentando manter sua inocência. Mas estava se tornando cada vez mais difícil. Na casa da árvore, de calça curta, imaginava se devia usar o nome de lorde Eaton ou se alguém já o havia adotado. Sinto muito, Stephen, não digo isso para fazer graça. Era trágico, mas também totalmente absurdo. Não estou chorando. Não vou chorar. Conversávamos muito, é claro. Entre outras coisas, sugeri que fizesse análise, mas ele tinha a aversão a psicanalistas típica dos ingleses. Quando lhe disse que achava extraordinário que um homem com conflitos tão potentes como os dele se recusasse a empreender qualquer processo de autoexame, teve uma reação terrível de raiva, uma birra de adulto. Na verdade, se deitou no chão e o esmurrou com os punhos fechados.
“Depois disso, ficou cada dia mais deprimido. Estava preso numa armadilha. Se voltasse para Londres, para a vida de antes, sabia por experiência própria que os antigos desejos, as compulsões, começariam a abatê-lo, e ele iria sentir falta da vida simples e segura que tinha criado para si próprio. E, se continuasse aqui, se sentiria eternamente angustiado por sua crescente irrelevância no que começava a chamar de mundo real. Minha paciência estava chegando ao fim. Meu trabalho estava sendo afetado. Estava exausta com a coisa toda. Depois de muita reflexão, achei que ele devia voltar para a política. Tinha sobrevivido naquele ambiente durante anos, e, se fosse ficar infeliz, seria apenas a infelicidade da criança que não pôde ter tudo que queria.
“Depois que tudo isso foi falado e discutido, ele afundou ainda mais, e aí brigamos. Foi hoje de manhã. Ele me acusou de entregá-lo às baratas, impedindo que fosse o que queria ser. Acho que eu perdi a cabeça. Disse que tinha tentado ajudá-lo de todas as maneiras que podia. Agora ele precisava assumir a responsabilidade pela própria vida. E foi isso exatamente o que ele fez. Queria me ferir ao se ferir, raciocínio típico dos deprimidos. Foi para o bosque e se sentou. Ele próprio se entregou às baratas. Em matéria de suicídio, foi petulante e infantil. E, embora nunca deixe de sentir tristeza, acho também que nunca vou perdoá-lo de verdade pelo que fez.”
A raiva de Thelma fizera com que ela se levantasse. Stephen observou enquanto ela andava de um lado para outro. A agitação voltara à sala.
“Se Charles escreveu aquele livro sobre como cuidar das crianças”, ele disse por fim, “por que foi tão duro? Pelo que vi, não parece alguma coisa que pudesse ser escrita por alguém que se sentia como uma criança.”
“Eu li o livro todo”, disse Thelma. “É uma ilustração perfeita do problema do Charles. Foi sua vida de fantasia que o atraiu a escrever o livro, e foi seu desejo de agradar o chefe que o fez escrever o que escreveu. Exatamente o que ele nunca pôde conciliar, e a razão pela qual ele desmoronou. Ele não era capaz de fazer valer suas qualidades como criança — e realmente, Stephen, você devia vê-lo, tão engraçado, direto e delicado —, não era capaz de fazer valer nada disso em sua vida pública. Em vez disso, tudo era uma compensação frenética pelo que considerava ser um excesso de vulnerabilidade. Todo aquele esforço e gritaria, o domínio dos mercados, a necessidade de ganhar as discussões para ficar longe da própria fraqueza. E, honestamente, quando penso nos meus colegas de trabalho, nos círculos científicos e nos homens que os dirigem, quando penso na própria ciência, como ela foi elaborada ao longo dos séculos, tenho que dizer que o caso de Charles foi apenas um exemplo extremo de um problema geral.”
“Tenho certeza de que isso é verdade”, disse Stephen.
Agora a raiva se voltou contra ele. “É o que você diz. Mas pense no seu último ano e em toda a sua infelicidade, o quanto se debateu à toa, a catatonia, quando bem na sua cara estava… bom. Então você pode ver a diferença entre dizer que uma coisa é verdade e saber que é mesmo.”
Stephen tinha se levantado da cadeira. “Do que é que você está falando?”, ele perguntou. “O que estava na minha cara?”
Ela hesitou, e estava prestes a responder quando o breve silêncio se desintegrou com o toque do telefone, impertinente. Mesmo antes que ela respondesse, Stephen se deu conta de que a noite toda ouvira o telefone tocar em vão.
Ela disse: “Sim?… Mas ele está aqui, comigo… Bom… Sim, confie em mim… Eu vou…”. Estendeu o fone na direção dele e cobriu o bocal com a mão livre. Deixou claro que não tinha esquecido de responder à pergunta dele. “Julie”, ela disse. “Julie estava bem na sua cara. Ela quer falar com você.”
Ele pegou o fone e ouviu. Agora Thelma ria abertamente, mantendo os olhos, semicerrados e lacrimejantes, cravados nele.
Nove
Mais que o carvão, mais até que a energia nuclear, as crianças são nosso maior recurso.
Manual autorizado de puericultura,
Departamento Real de Imprensa
Por acaso, um trem noturno vindo da Escócia se desviava para o leste, passando por Norfolk e Suffolk a caminho de Londres e fazendo breve parada na estação local à uma e vinte da madrugada. Stephen tomou emprestado o carro de Thelma, deixando as chaves debaixo do assento como combinado, e chegou à plataforma um minuto antes da hora em que o trem era esperado. Pagou ao fiscal por um compartimento no vagão-leito e pediu para ser acordado tão logo chegassem. Deitou com os pés para o lado do travesseiro e observou, através do olho mágico no vidro fosco, a sombra da parte dianteira do vagão cortar uma nuvem de fagulhas. Do compartimento vizinho vieram os baques surdos de um ato sexual. Por mais de vinte minutos ele se espantou com a cadência imutável dos ruídos, a tremenda perseverança da paixão. Será que algum dia voltaria a sentir igual impulso? Quando o trem começou a reduzir a velocidade a fim de parar na estação seguinte, o ritmo também caiu: ele vinha escutando algo solto que se chocava contra a divisória entre os compartimentos.
Adormeceu ao atingirem os subúrbios mais distantes e foi acordado de repente por uma forte pancada na porta. Confuso, interpretou errado a urgência do sinal e correu rápido demais com a mala para a plataforma, a mesma de onde partira na noite anterior. Ficou balançando ligeiramente de um lado para outro, lembrando-se de quem era. Com exceção dos carregadores que embarcavam sacos de correspondência e revistas num trem próximo, a estação estava deserta. O chão tinha sido lavado. Ainda tonto de sono, procurou um táxi. Não havia nenhum no ponto, como também não havia nenhum tráfego do lado de fora da estação. Caminhou na direção da catedral de St. Paul com a gola da jaqueta de operário de Charles levantada para se proteger do frio e do vento poeirento. Andou meia hora antes de pegar um táxi com as luzes apagadas. O motorista ia para casa, do outro lado do rio, e concordou em deixá-lo na Victoria Station.
Minutos depois, Stephen afastou o painel de vidro que o separava do motorista e ofereceu duzentas e cinquenta libras para ser levado ao Kent.
O motorista imediatamente sacudiu a cabeça. “Negativo, esquece. Com todo o respeito, meu sono é sagrado.”
“Então trezentas.”
“Sinto muito.”
“Duas mil e quinhentas?”
O táxi parou, e o motorista se voltou no assento.
“Só vendo a cor da grana.”
Stephen lhe mostrou as mãos vazias. “Só queria saber se você tinha um preço.”
O homem riu ao arrancar de novo. Ainda sorria quando aceitou o pagamento de Stephen no fim da corrida.
Em parte por causa da distribuição de sopa ali perto, aquela estação estava mais movimentada que a anterior. Junto aos guichês de venda de passagens acontecia uma festa regada a cidra e xerez, um evento tranquilo em vista do número de figuras cambaleantes vestindo casacões. Três mulheres negras, cada qual operando um gigantesco aspirador, se aproximavam pouco a pouco do grupo vindas de direções diferentes. Nas plataformas, dezenas de trabalhadores carregavam os trens sem grande entusiasmo. Ocasionalmente um grito lânguido ecoava no teto distante. No painel com o anúncio das partidas Stephen ficou sabendo que o próximo parador na linha de Dover sairia dentro de três horas, às seis e quarenta e cinco.
Caminhou atrás de um carrinho barulhento cheio de revistas semipornográficas. Quando o carrinho parou, Stephen o contornou para perguntar ao motorista se havia algum trem postal partindo para Dover. Dando de ombros, o homem refez a pergunta para a turma que se preparava para descarregar o carrinho. Duas e vinte, eles murmuraram numa sequência irregular, uma hora e meia atrás. Stephen estava prestes a se afastar quando um dos carregadores, um adolescente, falou com a intensidade de quem gosta de acompanhar os mais variados trens.
“Só o de manutenção é que vai pra lá agora.”
“Onde ele fica?”
“Não vai poder pegar.” De todo modo, apontou para onde a rampa descia na escuridão.
Stephen agradeceu e saiu andando, sem ligar para um brado de “Ei!” às suas costas, seguido, encorajadoramente, por várias gargalhadas.
Após uma advertência de que os passageiros não poderiam passar daquele ponto, a plataforma avançava para além do teto da estação, transformando-se num estreito caminho de escória em meio a uma profusão de trilhos. Duzentos metros adiante, num desvio iluminado por altas luzes de arco, havia uma locomotiva diesel com um único vagão atrás, ambos pintados de um amarelo berrante. Stephen aproximou-se sem nenhum plano específico. Chegou junto à cabine e se viu olhando, lá em cima, para um homem mais ou menos de sua idade com uma boina precariamente equilibrada em densa massa de cachos negros. Stephen considerou a boina um bom sinal, prova de senso de humor.
Teve de gritar por causa da vibração do motor. “Você é o maquinista?”
O sujeito assentiu com a cabeça.
“Gostaria de lhe dar uma palavrinha.”
“Então sobe.”
Galgou com dificuldade, carregando a mala. No espaço quente e apertado havia um número de mostradores e alavancas de controle menor do que esperava. O chão vibrava de forma agradável sob seus pés. Reparou em dois livros de bolso com histórias de suspense, uma garrafa térmica, uma lata de fumo, um binóculo e um par de grossas meias de lã dobradas uma dentro da outra. Mambembe e íntimo como um quarto de aluguel. O maquinista se moveu na direção da outra porta para abrir espaço. Stephen resistiu ao impulso de se acomodar num dos assentos do maquinista. Seria uma audácia.
Em vez disso, descansou a mão no assento e disse: “Gostaria de saber se você poderia me levar até um lugar no caminho de Dover”. Enquanto falava, tirou do bolso de trás da calça as notas de cinquenta libras. “Sei que é estritamente proibido pelas regras…”
Estendeu a mão com o dinheiro. O maquinista sentou-se, encostou o cotovelo no painel de controle e apoiou o rosto na mão fechada. Mal reparou nas notas e encarou Stephen.
“Está fugindo ou alguma coisa assim?”
Como não havia imaginado que teria necessidade de se explicar, Stephen só pôde pensar na verdade. “Recebi uma chamada urgente da minha mulher, minha ex-mulher.” Sentou-se, achando que tinha ganhado tal direito.
“Quando você viu ela pela última vez?” O maquinista enfatizou o pronome, como se conhecesse a mulher em causa.
“No último mês de junho.”
O homem fez uma careta de riso e disse: “Só podia ser”.
Stephen aguardou uma explicação, ou uma decisão, mas o maquinista, ainda apoiado no cotovelo e com a mão livre mexendo nos controles, nada disse. Stephen transferiu as notas para a outra mão. Relutava em guardá-las, não querendo dar a impressão de que retirava o oferecimento. Estava considerando uma nova abordagem quando viu, através do para-brisa, luzes que se moviam lentamente para o lado. O trem avançava a uma velocidade inferior a de quem o acompanhasse a pé. Num pórtico quatrocentos metros à frente, um conjunto de sinais luminosos se alterou, embora ele não pudesse lembrar quais cores tinham sido acrescentadas ou modificadas. O maquinista se endireitara no assento. A velocidade aumentou à medida que atravessaram um rápido e complexo sistema de entroncamentos que os fez passar para o lado oposto do leque de trilhos.
Stephen esperou que a barulheira acabasse antes de dizer: “Obrigado”. O maquinista não olhou em sua direção, porém deu uma ajustada na boina que equivaleu a um reconhecimento.
Era infinitamente preferível olhar para a frente do que para as laterais, não ver paredões de terra ou quintais, e sim quilômetros de fios de metal que iam se desenrolando, assim como equipamentos ferroviários que pareciam estar numa rota de colisão e escapavam por um triz com assombrosa precisão. Ao acelerarem através do sul de Londres, começou a nevar, o que aumentou o prazer de Stephen com o movimento para a frente: atiravam-se contra um turbilhão de flocos de neve cuja extremidade aberta girava em torno deles, como se desejasse envolver ainda mais de perto o trem.
O maquinista estalou a língua nos dentes e olhou para o relógio. “Onde é que você quer ir?”
Stephen deu o nome da parada.
“Ela mora lá?”
“Uns cinco quilômetros para o sul.”
Pela primeira vez desde que tinham começado a se mover, o maquinista olhou para Stephen. “Não precisamos parar nas estações, você sabe, não é?”
Stephen tentou descrever a plantação, a curva na estrada, e depois se recordou do Sino.
“Conheço o pub”, disse o maquinista. “Posso deixar você bem pertinho.”
Saíram do brilho alaranjado dos subúrbios para os restos escuros do campo em meio às cidades-dormitório. A neve diminuiu, por fim cessou de todo. A velocidade deles cresceu. Stephen ainda segurava o dinheiro com firmeza. Ofereceu-o de novo, mas o maquinista manteve os olhos fixos nos trilhos à frente, com uma das mãos sobre uma manivela de latão com formato de lua crescente e a outra enfiada no bolso.
“Dá para sua ex. Acho que ela vai precisar.”
Stephen embolsou o dinheiro e sentiu que o mínimo a fazer era dizer seu nome.
“Edward”, o maquinista retrucou, explicando que levava uma oficina móvel e uma cantina para o lugar onde uma equipe devia entrar em função pela manhã. Iriam trabalhar num túnel, repondo a base da linha que havia sido danificada pela água. Era um túnel velho mas bem construído, um dos melhores do sul. Na semana anterior, à luz das lanternas, haviam admirado o trabalho em tijolos do teto e dos pilares na sua boca.
“É como uma catedral lá dentro. O teto é do tipo que chamam de abóbada de leque, e ninguém nunca vê aquilo.” Dentro de dois anos, a linha seria desativada. “Nunca vão receber de volta”, disse Edward depois de uma pausa. “Vão vender a terra e nunca vão pegar de volta.”
“É irracional”, disse Stephen.
Edward sacudiu a cabeça. “É racional demais, meu amigo. Esse é o problema. Lá está uma catedral no escuro. Para que serve isso? Fecha, constrói uma estrada de rodagem. Mas as rodovias não têm coração. Você não vai ver nenhum menino no alto duma ponte tomando nota dos números dos carros, vai?”
Levou uma hora para chegarem à pequena estação. Tão logo passaram por ela, Edward começou a frear. “Vou te deixar numa passagem de nível. Não tem como se perder. Sobe a colina, desce do outro lado, cruza um bosque até chegar numa encruzilhada. Vira para a direita e vai ver o pub.”
Pararam do outro lado da cancela automática. Stephen apertou a mão de Edward. “Você foi muito legal.”
“Vai, sai logo. Não quero perder o emprego e você tem coisas para fazer.”
Stephen desceu da cabine, e Edward jogou a mala para que ele a apanhasse. Seguiu-se uma comemoração ruidosa. A grande máquina rugiu ao se mover lentamente, os sinos tocaram e as luzes vermelhas piscaram enquanto a cancela voltava a restaurar o direito de passagem para a rodovia.
Mais além da passagem de nível, a colina era íngreme. Nenhum carro tinha passado desde a última queda de neve, e o caminho adiante era uma faixa ininterrupta de branco ladeada por sebes. A lua se encontrava à sua frente, descendo por fim rumo ao horizonte. Era uma estrada assombrada. Ele caminhou em silêncio por sua beirada, sentindo a presença do jovem casal que, a seu lado, empurrava as bicicletas em meio ao vento e à chuva, perdidos em seus pensamentos não expressos e conflitantes. Onde estariam agora aqueles dois? O que os separava dele além de quarenta e três anos? O momento deles ali era um eco que se esvaía. Ele podia ouvir o tiquetaquear seco das rodas traseiras, as passadas diferentes, ora cadenciadas, ora descompassadas. Chegou ao topo junto com eles, parando como haviam feito.
A estradinha reluzente descia e, um quilômetro e meio adiante, fazia uma curva bosque adentro. Pousou a mala no chão e mexeu nas alças, ajustando-as para caberem em seus ombros, e depois deu novo laço no cadarço do sapato com a competência enérgica de um corredor na linha de largada. Endireitou o corpo e respirou fundo algumas vezes. Sentiu o imperativo de sua convocação como uma tensão na parede do estômago, um frio na barriga. Por um derradeiro instante saboreou a energia contida na altitude antes de se curvar e deixar que a colina o conduzisse para baixo, fixando o ritmo de seus passos numa corrida quase sem esforço através da neve. Após os primeiros duzentos metros, sua respiração se adaptara ao baque de cada pisada. Parecia que poderia alçar voo caso jogasse fora a mala. Pisou firme a fim de ajudar a rotação da Terra, de modo que as coisas corriam para ele assim como ele corria para elas. Já estava em meio às primeiras árvores, penetrando no bosque onde a estrada rompia a neve acumulada. Decidiu qual era a árvore diante da qual sua mãe resolvera eliminá-lo. Aumentou a velocidade, embora agora estivesse numa área plana e a respiração se tornasse mais laboriosa. Quatrocentos metros adiante estava a encruzilhada, por isso cortou caminho por um trecho sem árvores mas de superfície irregular, tropeçando nos montinhos ocultos.
A segunda estrada era mais larga. Ele se recordava do cenário e das altas árvores que se amontoavam às suas margens. À frente se viam a cabine telefônica, a elevação e a curva fechada da estrada onde a trilha para pedestres conduzia ao campo da pradaria; mais perto, à direita, ficava o Sino, naquela luz um audacioso esboço a lápis. Chegou à altura da varanda e olhou de relance para além dela. Só então entendeu que sua experiência lá não apenas tinha sido correspondente à dos pais, porém uma continuação, uma espécie de repetição. Teve uma premonição logo seguida por uma certeza, fundada no sorriso de Thelma e na instantânea compreensão de Edward do número de meses, de que toda a tristeza, toda a espera vazia tinha sido envolvida num tempo significativo, dentro do mais rico desdobramento concebível. Apesar de estar sem fôlego, soltou um brado de reconhecimento e subiu correndo a ladeira pelo caminho que levava ao chalé de Julie.
A porta da frente não estava trancada. Abriu-se de imediato para a sala de visitas, cujo calor e tênue aroma de pão e café sugeriam que ninguém dormia. Ao fechar a porta, sentiu o cheiro do perfume de Julie num casaco e num cachecol pendurados atrás dela. A luz do fogo a carvão se espalhava pelo assoalho, o resto do cômodo mergulhado na semiescuridão. Na mesa de trabalho de tampo bem esfregado, perto dos cadernos, havia um vaso de barro com ramos de azevinho e um violino pousado sobre uma flanela amarela. Numa cadeira se via uma pilha bem-arrumada de roupas lavadas e passadas. Ao lado dela, no chão, um livro sobre o céu noturno, uma xícara e um pires. Ele já atravessava a sala quando ouviu, no andar de cima, o estalido bem conhecido da cama, seguido de passos sobre sua cabeça.
Chegou à escada e gritou: “Sou eu”. As sombras dos balaústres fizeram uma reverência e ficaram mais nítidas na parede. Julie estava de pé no topo da escada. Ele acreditou ter visto o branco de sua camisola, mas tudo que podia enxergar claramente era seu rosto iluminado pela vela que trazia à frente. Perguntou-se se ela tinha estado fora do país. Parecia bronzeada.
“Você andou muito rápido”, ela sussurrou. “Vem aqui para cima.”
Estava deitada de novo quando ele entrou no quarto. Stephen tentou esconder o fato de que sua respiração ainda não voltara ao normal. Não queria que ela soubesse que viera correndo. Além do castiçal havia uma lâmpada em cima da cômoda e um fogo aceso na lareira. Sobre o edredom, circundando-a, viam-se livros, jornais, uma revista e páginas soltas de partituras. Flores junto à cama, uma caixa de suco de laranja. Atrás dela, meia dúzia de grossos travesseiros. Ele se postou ao pé da cama e pôs a mala no chão. Por enquanto não queria chegar mais perto.
Ela puxou o edredom mais para cima. Num canto ensombrecido algo escorregou para o chão. “Acho que tive o começo de uma contração logo depois que falei com você. Mas não se preocupe, elas podem durar dias a fio. É para ser daqui a mais ou menos uma semana.”
Stephen disse estupidamente: “Eu não sabia”.
Ela sacudiu a cabeça e sorriu. O branco de seus olhos brilhou na luz doce quando ela levantou a vista na direção dele e mais além. Usava um cardigã em volta dos ombros e, por baixo, uma camisola de algodão desabotoada até o decote entre seus pesados seios. A pele estava escura e parecia quente. As mãos descansavam modestamente onde começava a curva da barriga. Até os dedos, ele pensou, davam a impressão de estarem mais gordos. As mãos se abriram e ela deu uma palmadinha na cama.
“Vem, senta aqui.”
Mas ele ainda se sentia afogueado pela corrida. A camisa empapada grudava na espinha. Precisava de tempo para se ajustar ao confinamento cálido do quarto antes de se sentar junto dela, junto daquela potência. A fim de amenizar a recusa, disse a primeira coisa que lhe passou pela mente: “Vim para cá numa locomotiva, e dentro da cabine”.
“Seu sonho de menino.”
“O maquinista me deixou descer na passagem de nível. Parecia conhecer tudo aqui em volta.” Estava prestes a lhe descrever Edward, a dizer como ela teria gostado dele, quando decidiu que era difícil demais, irrelevante. Perguntou: “Julie, por que você não me contou?”.
“Vem, senta aqui.”
Stephen hesitou, e depois dobrou o paletó e o suéter em cima de uma cadeira, pondo as meias e os sapatos para secar junto à lareira. Ao contornar a cama, o calor das tábuas sob seus pés lhe trouxe de volta a ideia de um lar, de prazeres quase inimagináveis. Sentou-se na beira da cama, não exatamente onde Julie indicara. Mas ela estava decidida a trazê-lo mais para perto. Tomou suas mãos nas dela. Ele foi incapaz de falar, inundado por uma onda de amor maior do que imaginava poder suportar. Luz e calor irradiavam de seu estômago. Sentia-se sem peso, desvairado. Ela sorria para ele, quase rindo. Era o bom humor triunfante de quem via confirmadas suas melhores esperanças. Ele jamais a vira tão bonita. A pele de Julie estava mais lisa, como a de uma criança. O que havia crescido nela não estava enclausurado no útero, e sim enovelado em cada célula. A voz dela era melodiosa e grave quando respondeu à pergunta que ele fizera.
“Precisava esperar, precisava de tempo. Quando descobri, em julho do ano passado, fiquei furiosa comigo mesma, e com você. Me senti tapeada. Parecia tão injusto. Vim pra cá em busca da solidão, queria me fortalecer. Era uma hora muito errada, pensei seriamente em abortar. Mas foi só um período de adaptação, duas ou três semanas. Ficar sozinha por decisão própria pode fazer com que a gente pense com grande clareza. Sabia que não podia enfrentar outra perda. E quanto mais pensava, parecia extraordinária a facilidade com que a coisa tinha acontecido. Lembra como demoramos para ter a Kate? Me dei conta de que o que imaginei como hora errada era realmente uma hora inconveniente. Comecei a pensar nisso como uma dádiva. Devia haver um padrão mais profundo do tempo, suas horas certas e erradas não podiam ser tão limitadas.
“Podia então ter escrito para você. Sei que teria vindo. Ficaríamos bem, acertaríamos as coisas e pensaríamos que o pior havia passado. Mas sabia que era perigoso para mim. Assuntos importantes teriam que ser enterrados se tivesse chamado você naquela época. Vim para cá a fim de encarar a perda de Kate. Era minha tarefa, meu trabalho, se preferir, mais importante para mim que nosso casamento, ou minha música. Mais importante que o novo bebê. Se eu não enfrentasse aquilo, acho que poderia desmoronar. Houve dias péssimos, quando quis morrer. Cada vez que aquela coisa voltava era mais forte e mais tentador. Sabia o que tinha de fazer. Tinha que parar de correr atrás dela em minha mente. Precisava parar de ansiar por ela, esperando vê-la na porta da frente, visualizando-a num bosque ou ouvindo sua voz quando fervia a água para o chá. Precisava continuar a amá-la, mas precisava também parar de desejá-la. Para isso necessitava de tempo e, se durasse mais que a gravidez, assim seria. Não consegui tudo o que queria…”
O olhar de Julie se dirigiu a um canto do quarto. A velha dor estava estrangulando sua voz. Ele sentiu que a dor também dilatava as narinas dele. Deixaram que passasse. As cortinas estavam de todo abertas e, na parte superior da janela, se via o brilho do luar no lado do chalé. Numa mesa sob a janela havia um pacote de produtos médicos prontos para serem usados pela parteira. Junto dele, obscurecido pela sombra do armário, um vaso de narcisos.
“Mas fiz algum progresso. Tentei não evitar pensar nela. Tentei meditar sobre ela, sobre a perda, em vez de ficar só ruminando os pensamentos. Depois de seis meses, comecei a sentir certo alívio com a ideia do novo bebê. Isso foi crescendo, mas muito, muito devagar, Stephen. Ainda havia dias quando parecia que eu não tinha chegado a lugar nenhum. Certa tarde, o pessoal do quarteto veio aqui. Trouxeram uma velha amiga da universidade, uma violoncelista, e tocamos, ou tentamos tocar, o Quinteto em dó maior de Schubert. Quando chegamos no “Adágio”, você sabe como é bonito, não chorei. Na verdade, me senti feliz. Foi um passo importante. Comecei a tocar direito. Tinha parado porque se tornara uma forma de escape. Pegava aquelas peças difíceis e trabalhava furiosamente nelas, tudo para parar de pensar. Agora tocava por tocar, pensava com prazer na vinda do bebê, passei a pensar em você e me lembrar, realmente sentir o quanto a gente se amava. Senti tudo voltar. Lamento que tenha tido que ser assim. Mas sabia que era a coisa certa a fazer. Estou pronta para ir em frente agora. Precisava confiar que você também estava ficando mais forte, seguindo seu caminho. Por isso finalmente te telefonei ontem a tarde inteira. Não pude suportar quando não te encontrei lá…”
Ele queria mostrar como estava muito mais forte. Em sua euforia, estava pronto a pular da cama e demonstrar seu backhand reconstruído, ou pegar uma caneta e exibir sua caligrafia, compor para ela um poema em árabe clássico. Mas não podia largar suas mãos. Os olhos puros e cinzentos de Julie transferiram sua atenção do olho direito dele para o esquerdo, desceram para a boca, retornaram. A boca de Julie estava madura com seu sorriso contido. Ela afastou as cobertas e guiou a mão dele. A cabeça estava encaixada, a pele acima do emaranhado de pelos quente e dura, quase como um osso. Mais acima, sob o seio direito, Stephen sentiu um estremecimento debaixo da palma da mão, um pé que chutava.
Ele estava prestes a falar e olhou para ela. Julie sussurrou: “Ela era uma filha linda, uma menina encantadora”.
Ele concordou com a cabeça, espantado. E foi então, com três anos de atraso, que por fim começaram a chorar juntos pela criança perdida, insubstituível, que eles não veriam crescer, cujo olhar e movimentos característicos jamais poderiam ser dissipados pelo tempo. Abraçaram-se, e, quando tudo se tornou mais fácil e menos amargo, passaram a conversar tanto quanto podiam em meio ao choro, com promessas de amor, pelo bebê, por eles, pelos pais, por Thelma. Na louca expansividade de suas tristezas reunidas, pensaram em curar tudo e todos, o governo, o país, o planeta, mas começando por eles mesmos; e, ainda que nunca pudessem redimir a perda da filha, a amariam através da nova criança, sem nunca fecharem suas mentes à possibilidade de que ela voltasse.
Ao longo desse tempo ficaram deitados na cama, rosto contra rosto. Julie então desvencilhou-se das cobertas com os pés. Levantou a camisola, virou o corpo e se pôs de quatro. Abriu os cotovelos até que o rosto estivesse encostado nos travesseiros. Ele murmurou o nome dela ao ver — num corpo tão digno e potente — o doce desamparo das nádegas erguidas, desordenadamente emolduradas pela bainha rendada da camisola. O silêncio ressoava depois de todas as promessas, mesclando-se com a agitação de bilhões de folhas de pinheiros na plantação. Ele a penetrou delicadamente. Algo estava se juntando em volta deles, ficando mais audível, com um gosto mais doce, mais quente, mais brilhante, todos os sentidos estavam se sintetizando, se condensando na ideia de intensificação. Ela emitiu baixinho, várias vezes, abafados “oh”, cada qual baixando e subindo em intensidade como uma pergunta perplexa. Mais tarde, gritou alguma coisa alegre que ele não conseguiu entender, incapaz que estava de apreender significados. Depois se afastou dele, queria se deitar de costas. Acomodou-se por inteiro e sorveu com força o ar. Ela pousou os dedos de uma das mãos na parte de baixo da barriga e se massageou de leve. Ele relembrou o nome bonito do movimento, effleurage. Com a outra mão o agarrou, apertando mais e mais à medida que a contração ganhava em potência, comunicando assim seu progresso. Ela estava preparada. Controlava a respiração, fazendo exalações ritmadas e constantes que se aceleravam num ofegar mais superficial ao se aproximar do pico. Ela estava sozinha nessa segunda viagem, tudo que ele podia fazer era correr pela praia e lhe gritar encorajamentos. Ela se afastava dele, dominada pelo processo. Seus dedos se fincavam na mão dele. A pulsação de Stephen repercutia nas têmporas, perturbando-lhe a visão. Ele tentou manter o medo longe de sua voz. Precisava se lembrar de suas falas. “Segue com a onda, vamos, não luta contra ela, flutua com ela, flutua…” Então a acompanhou na respiração ofegante, dando grande ênfase à expiração, reduzindo o ritmo à medida que o aperto em sua mão diminuía. Ele suspeitava que a forma de sua participação havia sido elaborada pelas autoridades médicas a fim de combater o pânico causado pela impotência paterna.
Quando a contração passava, eles respiravam bem fundo juntos. Julie punha as mãos em concha diante da boca para evitar o enjoo provocado pela hiperventilação. Falou alguma coisa, porém as palavras saíram abafadas. Ele esperou. Ela deixou tombar as mãos e sorriu com ironia. Ambos voltaram para o quarto, e para si próprios, como se saíssem de um refúgio após uma tempestade. Ele não era capaz de recordar sobre o que vinham conversando. Não importava.
“Você se lembra de tudo?”, Julie perguntou. Não esperava dele nenhuma reminiscência. Queria ter a certeza de que ele sabia o que fazer.
Fez que sim com a cabeça. Gostaria de dar uma olhada num dos livros de Julie. Tal como se recordava vagamente, havia estágios precisos no trabalho de parto, técnicas diferentes de respiração associadas a eles, hora de se segurar, hora em que era importante se soltar. Mas tinham um longo dia pela frente. Haveria tempo suficiente. E ele se lembrava perfeitamente da última vez. Ele tinha sido o enxugador de testa, o telefonista, o entregador de flores, tinha servido o champanhe, bancado o faz-tudo da parteira — e havia orientado Julie. Mais tarde ela disse que ele tinha sido útil, embora Stephen achasse que seu valor havia sido mais simbólico. Ele se vestiu, atravessou o quarto e encontrou um par de meias de Julie para calçar.
“Onde está o número de telefone da parteira?”
“No bolso do meu casaco, pendurado atrás da porta. Põe a água para ferver antes de sair. Prepara duas bolsas de água quente quando voltar. E um bule de chá de jasmim. As duas lareiras precisam ser reavivadas.” Ele também se recordava dessas ordens enérgicas, o direito absoluto da mãe de comandar seus domínios.
Do lado de fora, o amanhecer ainda estava confinado ao céu do oriente. As nuvens haviam desaparecido completamente, pela primeira vez ele viu estrelas. A lua ainda era a principal fonte de iluminação. Seguiu rápido pelo caminho de tijolos calçando os sapatos úmidos, reparando que Julie tomara a precaução de afastar a neve. Como o interior da cabine telefônica na esquina não tinha luz, ele precisou achar os números pelo tato. Quando foi atendido, viu que falava com uma recepcionista no centro médico de uma cidadezinha próxima. Não devia se preocupar. A parteira seria contatada e chegaria dentro de uma hora.
Na volta, ao andar no curto trecho da estrada pelo qual correra menos de uma hora antes, diminuiu o passo e tentou avaliar as transformações; mas era incapaz de fazer reflexões, só conseguia pensar em detalhes, em chá, lenha, bolsas de água quente.
O chalé estava silencioso quando retornou. Preparou a bandeja com o chá, pegou lenha no depósito do lado de fora, avivou o fogo na lareira do térreo e encheu uma cesta para fazer o mesmo no segundo andar. Passou os olhos em vão pelas estantes de Julie em busca de livros sobre parto. A fim de se fortalecer com uma demonstração de competência, passou alguns minutos na pia da cozinha lavando cuidadosamente as mãos.
Equilibrando a bandeja em cima da cesta, e carregando as bolsas de água quente debaixo do braço, subiu cambaleando a escada. Julie estava esparramada de costas. Os cabelos úmidos se grudavam ao pescoço e à testa. Estava agitada, queixosa.
“Você disse que não ia demorar. O que é que andou fazendo?”
Ia discutir com ela quando se recordou que a irritabilidade podia fazer parte do processo, um dos marcadores ao longo do caminho. Mas certamente isso devia aparecer mais tarde. Será que tinham pulado alguns estágios? Serviu o chá e se ofereceu para fazer uma massagem. No entanto, ela não suportava ser tocada. Ele arrumou as cobertas. Relembrando como tinha ficado furiosa na outra vez, quando a parteira se dirigiu a ela como se falasse com uma criança, adotou o tom de voz de um treinador de futebol de fala mansa.
“Mexa a perna, assim. Ótimo. Tudo vai muito bem. Estamos indo bem.” E por aí foi. Ela não se deixou apaziguar de todo, mas seguiu as instruções e bebeu o chá.
Ele soprava as brasas, estimulando as chamas num punhado de ramos, quando a ouviu chamar seu nome. Correu até ela, que sacudia a cabeça. Fez menção de pôr os dedos sobre sua barriga, e depois desistiu.
“Fiquei acordada a noite toda. Estou muito cansada para aguentar isso, não estou pronta.”
As palavras de encorajamento de Stephen foram interrompidas por um longo grito. Ela lutou para inalar, e então veio outro grito, um prolongado urro de assombro.
“Vai com a onda, vai com ela…”, ele começou a dizer. Foi interrompido de novo. Havia perdido o pé. Exortações em favor da respiração ritmada não faziam agora o menor sentido. Um vendaval arrancara as instruções de suas mãos. Julie apertou ferozmente o antebraço dele com ambas as mãos. Os dentes à mostra, os músculos e tendões do pescoço retesados a ponto de se romper. Ele estava perdido. Só tinha mesmo a lhe dar o antebraço.
Gritou para ela: “Julie, Julie, estou aqui com você”.
Mas ela estava sozinha. Aspirou e gritou de novo, dessa vez num desvario, como que eufórica. E, quando não tinha mais ar nos pulmões, não fez nenhuma diferença, o grito tinha de durar ainda mais. A contração ergueu-a da cama, o corpo contorcendo-se para o lado. O lençol chegava à sua cintura, tendo se enroscado em volta do corpo. Ele sentiu a armação da cama tremer com o esforço de Julie. Houve um estalido final no fundo de sua garganta e ela voltou a respirar, jogando a cabeça para trás. Quando olhou para ele, para além dele, seus olhos estavam brilhantes, determinados. O breve desespero tinha sido vencido. Ela estava de novo no controle. Stephen achou que Julie se preparava para dizer alguma coisa, mas o aperto no braço aumentava outra vez e ela não estava mais lá. Seus lábios tremeram ao se comprimir contra os dentes, do fundo do peito veio um gemido estrangulado, o som borbulhante e abafado de um esforço colossal. Depois foi se esvaindo, e sua cabeça tombou de volta sobre os travesseiros.
Ela respirou fundo várias vezes e falou numa voz surpreendentemente normal: “Preciso beber uma coisa fria, um copo d’água”. Ele ia se levantando quando Julie o deteve. “Mas não quero que saia agora. Acho que está vindo.”
“Não, não. A parteira ainda não chegou.”
Ela sorriu como se Stephen tivesse contado uma piada para distraí-la. “Me diz o que consegue ver.”
Ele precisou meter a mão debaixo do corpo dela para liberar os lençóis.
Houve um choque, um abalo, uma desaceleração de tudo quando ele penetrou no tempo dos sonhos. Foi tomado por uma grande paz. Estava diante de uma presença, uma revelação. Contemplava a parte de trás de uma cabeça projetada para fora. Nenhuma outra parte do corpo era visível. A cabeça estava virada para o lençol molhado. Em seu silêncio e total imobilidade, havia uma acusação. Esqueceu de mim? Não se deu conta de que era eu o tempo todo? Estou aqui. Não estou vivo. Stephen olhava o torvelinho de cabelos úmidos em volta do topo da cabeça. Não havia nenhum movimento, pulsação, respiração. Não estava viva, era uma cabeça no cepo e, no entanto, exprimia uma exigência clara e premente. Fiz a minha parte. Qual é a sua agora? Talvez tivesse se passado um segundo desde que ele levantara o lençol. Estendeu a mão. Tocava uma escultura de mármore branco-azulado, ao mesmo tempo inerte e muito determinada. Era fria. A umidade a esfriava, e por baixo havia um calor, mas tênue demais, o calor residual tomado emprestado do corpo de Julie. O fato de que, de repente mas de forma óbvia, ali estava uma pessoa, não vinda de outra cidade ou de um país diferente, mas da própria vida, a simplicidade daquilo estava gerando nele uma grande clareza e precisão de propósito. Ouviu-se dizer algo tranquilizador a Julie, enquanto ele próprio se sentiu reconfortado pela recordação, breve e nítida como um fogo de artifício, de uma estradinha rural ensolarada, dos destroços de um veículo e de uma cabeça. Seus pensamentos estavam tomando formas simples, elementares. Isso é realmente tudo que temos, essa intensificação, essa questão da vida que ama a si mesma, tudo que temos há de vir daí.
Julie ainda não estava pronta para empurrar. Recobrava as forças. Ele escorregou a mão na direção do rosto, encontrou a boca e usou o dedo mindinho a fim de remover o muco. Não havia respiração. Moveu os dedos para baixo, sob a pele tensionada de Julie, buscando o ombro oculto. Podia sentir ali o cordão, grosso e forte, uma criatura pulsante que dava duas voltas em torno do pescoço. Introduziu o indicador e puxou com cuidado. O cordão se soltou com facilidade, copiosamente, e, ao afastá-lo da cabeça, libertando-a, Julie pariu — ele viu num instante como o verbo era ativo e generoso: juntando toda sua vontade e força física, ela deu o empurrão derradeiro. Com um rangido líquido, a criança deslizou para suas mãos. Ele viu apenas as costas compridas, poderosas e escorregadias, com a espinha musculosa e sulcada. O cordão, pulsando ainda, estava pendurado num ombro e enroscado no pé. Ele era somente o apanhador, não o destino final, e só pensava em devolver a criança à mãe. Ao erguê-la, ouviram uma fungada e um único grito lúcido. Lá estava ela, com o rosto para baixo e o ouvido colado ao coração da mãe. Puxaram os lençóis para cobri-la. Como as bolsas de água eram muito pesadas e quentes, Stephen trepou na cama, ao lado de Julie, e mantiveram o bebê aquecido entre os dois. A respiração se estabilizava, ganhando ritmo, e uma coloração mais cálida, um fulgor rosado, se espalhava por sua pele.
Foi só então que começaram a soltar exclamações e a comemorar, beijando e fuçando a cabeça pegajosa que cheirava a um pãozinho saído do forno. Durante vários minutos foram incapazes de formar frases e só podiam produzir sons de triunfo e fascinação, um dizendo em voz alta o nome do outro. Ancorado pelo cordão, o bebê permaneceu com a cabeça entre as mãos fechadas. Era uma criança linda. Seus olhos estavam abertos, contemplando a montanha do seio de Julie. Mais além da cama estava a janela, através da qual podiam observar a lua mergulhando num espaço entre os pinheiros. Logo acima dela se via um planeta. Era Marte, disse Julie. Lembrete de um mundo cruel. Por ora, contudo, eles estavam imunes, era antes do começo do tempo, e ficaram deitados acompanhando o planeta e a lua descerem num céu que se coloria de azul.
Não souberam quanto tempo depois ouviram o carro da parteira estacionar diante do chalé. Ouviram a porta bater e o ruído dos sapatos pesados no caminho de tijolos.
“E então?”, Julie perguntou. “Menina ou menino?” E foi em reconhecimento do mundo a que estavam prestes a se juntar de novo, e para o qual esperavam levar seu amor, que ela enfiou a mão debaixo dos lençóis e apalpou.
Ian McEwan
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