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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CRIATURA / R. L. Stine
A CRIATURA / R. L. Stine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CRIATURA

 

   Eles me chamam Criatura.

   Mas não é nada disso. Sou um ser humano. Uma pessoa.

   Nasci humano. Vivi grande parte da minha vida como humano. Ainda sou humano.

   Ajo como uma pessoa. Penso como uma pessoa.

   Não sou uma criatura!

   É, às vezes sinto uma gana. É um desejo irresistível, não consigo me controlar.

   Fico com uma fome. Tanta fome... como se todo meu corpo precisasse comer. Comer sem parar.

   Ao vaguear pela floresta, sou obrigado a matar para me alimentar. Tenho que golpear, rasgar e mastigar. Encho a barriga e continuo a comer. Deixo os sucos quentes escorrerem pelo meu queixo.

   Depois, me forço a ficar diante do espelho. E então eu choro de dor e tristeza. Choro de vergonha.

   Criatura... sua criatura feia...

   Nem sempre fui assim. Nem sempre fiz questão de esconder o rosto.

   Agora vivo nas sombras. Sem amigos. Sem ninguém em quem confiar.

   Estou muito sozinho.

   Com muita vontade de conversar com alguém. Uma vontade imensa de contar minha história para alguém que escute.

   Só não posso baixar a guarda. Ninguém precisa saber. Ninguém deve jamais saber o que sou.

   É por isso que me forço a olhar no espelho. Olho para minha cara e lembro. Lembro tão bem.

   Lembro por que eles me chamam Criatura.

 

 

   - CROW CROW CROW CROW!

   - Está bem, Seu Corvo - falei com carinho. Acabando de fazer a atadura no pássaro coloquei-o na gaiola com cuidado.

   - CROWW CROWWW! - Ele lutava para bater a asa quebrada.

   - Papai, será que ele vai ficar bom?

   Papai não respondeu, virando a página da revista que lia.

   - Papai, o que você acha?

   Ele pegou um lápis e circulou uma frase da página.

   - Papai?

   - Você disse alguma coisa, Laura? - Meu pai olhou para cima, me encarando ligeiramente através dos óculos de lentes grossas e armação preta.

   - Você acha que a asa vai ficar boa? - perguntei de novo.

   - Que asa? - Papai voltou à revista e começou a rascunhar alguma coisa na margem.

   Percebi a expressão de surpresa no rosto de minha amiga Ellen. Ela ainda não tinha visto a nova personalidade longínqua do papai.

   Longínquo.

   Essa é a melhor maneira de descrever meu pai ultimamente. Mesmo quando estamos juntos no mesmo cômodo, ele parece estar em algum outro lugar.

   Trevo, o gato grandão que eu tinha encontrado na mata, passou me atropelando, quase derrubou a gaiola do pássaro e começou a lamber a mão do papai com a língua comprida.

   Papai puxou a mão.

   - Quer fazer o favor de tirar o gato daqui. Estou tentando me concentrar. - Circulou mais algumas frases, pressionando tanto o lápis que a ponta quebrou com um estalido.

   - Pra onde devo levá-lo? - suspirei. - Não posso mais usar o galpão agora que você está trabalhando lá.

   Papai olhou para o corvo e para Trevo como se os visse pela primeira vez.

   - Por que não posso morar numa casa, Laura? Por que preciso morar num zoológico?

   - Você é um veterinário! Devia amar os animais... lembra?

   Ellen forçou uma risada, mas pude ver que ela estava bem constrangida. Nunca tinha visto meu pai e eu gritando um com o outro. Ela não o via desde... desde que ele mudara.

   Eu tinha parado de convidar meus amigos para ir lá em casa porque nunca sabia o que papai iria dizer ou fazer. Mas Ellen era minha melhor amiga e eu sentia falta dela. Por isso a convidei hoje, mas talvez tenha sido um grande erro.

   Peguei a gaiola numa mão e Trevo na outra. Levei os dois pelo corredor até meu quarto e fechei a porta.

   Pendurei minha câmera fotográfica no pescoço e chamei Ellen.

   Vamos lá, vamos até a mata.

   Nossa casa fica à margem de uma tranqüila estrada rural. O gramado dos fundos é alto e viçoso, acabando na mata, e por isso sempre considerei aquele pedaço da floresta e os pequenos córregos que por ali escoam como parte do meu quintal.

   É onde me sinto mais feliz. É tão lindo na mata, tão tranqüilo e cheio de vida.

   De manhã, antes de sair para a escola, fico no meio do gramado e observo as árvores altas, cheias de folhas, que parecem se esticar até o infinito. Depois inspiro o frescor do cheiro matutino de pinho. Adoro esse cheiro.

   Verifiquei a câmera para ter certeza de que tinha posto um filme novo.

   Ellen escovou o cabelo preto e liso para trás. Ela adora o cabelo que tem. Está sempre a puxá-lo para trás, a levá - lo para um lado e outro, sempre passando as mãos por ele.

   Morro de inveja do cabelo dela. O meu é comprido e castanho-avermelhado. Totalmente sem jeito.

Os olhos de Ellen brilharam.

   - Nós vamos até a mata por causa do seu projeto de ciência? Ou porque você quer ver aquele garoto que encontrou semana passada?

   - Por causa do projeto - reclamei afinal, a vida não gira só em torno dos garotos, sabia?!

   - Bem, foi você que ficou falando sobre ele toda a manhã. "Será que irei vê-lo de novo. Onde será que ele mora? Será que tem namorada?..." - Ela riu.

   - Ok. Ok - Tive de admitir. Eu realmente andava pensando bastante no João desde que o encontrara no Açude da Solidão.

   - É que os garotos não costumam me notar - eu disse -, e ele parecia tão legal. E quando lhe falei sobre meu projeto de ciências, ele realmente demonstrou interesse.

   - Então temos dois projetos - afirmou Ellen. - O projeto de ciências e o projeto do garoto! Vamos lá!

   - Só precisamos encontrar o Toby - eu disse.

   - Você vai para a mata? - papai me perguntou com cara feia. - Você precisa se interessar por outras coisas, Laura. Por que não vai ao cinema?

   Suspirei. Papai sempre adorou a floresta, foi a ele que puxei. Desde que eu era pequena nós dois sempre andamos pela mata por horas a fio, explorando, conversando, rindo. Nós sempre podíamos conversar sobre qualquer coisa.

   Agora ele passava a maior parte do tempo trancado no pequeno galpão do quintal. E estava sempre quieto ou de mau humor.

   - Preciso trabalhar no meu projeto de ciências - retruquei, seguindo Ellen pela porta dos fundos.

   Ela é alta e magrela, só pernas, como um cervo. Com seus olhos grandes e escuros e o rosto redondo, com jeito inocente, Ellen me lembra uma corça, delicada e graciosa.

   E se ela é uma corça, eu sou uma raposa. Meu cabelo castanho-avermelhado lembra uma pele de raposa. Sou baixa e rápida, com olhos castanhos bem separados e tenho um sorriso de raposa.

   Estou sempre comparando todas as crianças que conheço com animais. Acho que é por causa do meu grande amor pelos bichos.

   Ao sairmos, encontramos um dia friozinho e claro de primavera. Uma fileira de nuvens fofas flutuava sobre as árvores e o ar tinha um cheiro fresco e adocicado.

   - Desculpe o papai - eu disse a Ellen ele está tão diferente desde que largou o emprego no hospital veterinário. Estou preocupada com ele.

   - Por que você não liga pra sua mãe. Peça-lhe um conselho - sugeriu Ellen.

   - Já fiz isso. Mas ela disse que eu precisava ser paciente. Ela falou que largar um emprego representa muito e é provável que ele precise de algum tempo para se adaptar.

   - Faz sentido - concluiu Ellen.

   - Queria que mamãe estivesse aqui. Eu realmente sinto falta dela. Telefonemas e e-mails não são a mesma coisa - reclamei.

   Minha mãe mudou-se para Chicago depois que ela e papai se divorciaram cinco anos atrás. Eles me deram uma opção e eu escolhi morar com o papai.

   Algumas crianças podem achar que fiz uma escolha estranha - admiti -, mas eu nunca poderia morar numa cidade. Se não morasse perto da floresta, ficaria maluca.

   - Chicago me parece eletrizante. Eu mudaria para lá num minuto - disse Ellen. E voltou a atenção para um grande pássaro preto que batia as asas sobre as árvores a distância.

   Também fiquei observando. As asas batiam com rapidez contra o corpo do pássaro, com força, de um modo quase frenético.

Outro pássaro surgiu das copas das árvores voando em nossa direção. Depois mudou de rumo abruptamente, indo para o outro lado. Então voltou a dirigir-se para nós. Frenético. Confuso.

   Na mata ecoou um grito agudo, enquanto outro pássaro surgia pairando no ar, sendo seguido por uma nuvem de outros pássaros. Uma nuvem negra de asas batendo. Batendo tão forte que soava como trovoada.

   Pisquei, assustada.

   - O que está acontecendo? - gritei.

   Mais pássaros voaram da mata. Centenas deles voando num círculo fechado. Bloqueando o sol, nos deixando mergulhadas na escuridão.

   Ellen agarrou meu braço.

   - Nossa! O que é isso? - ela murmurou.

   - Não sei - falei ofegante, observando os pássaros, feito um furacão negro rodando em redemoinho sobre as árvores. - Nunca vi os pássaros desse jeito!

   Eles berravam e grasnavam, voando baixo e depois subindo em círculos, sempre em círculos em torno da mata, grasnindo mais alto a cada giro.

   Ouvi o estalar de um graveto atrás de mim. Virei-me e vi que papai tinha nos seguido. Por trás das lentes grossas, ele olhava atentamente o céu. Ao afastar uma mecha de cabelo dos olhos, sua mão tremia.

   - Alguma coisa os instigou - ele balbuciou. - Há algo enterrado ali, Laura. Não vá. Não entre na mata hoje.

 

- Eu... eu preciso entrar - retruquei. - Meu projeto... Papai fixou os olhos na escura nuvem afunilada de pássaros grasnando.

   - Pássaros não agem assim, a não ser que alguma coisa esteja terrivelmente errada - disse ele baixinho.

   E então ele saiu correndo em disparada pelo gramado.

- Papai! - eu gritei. - Papai, aonde é que você vai? Volte! Ele não se virou. Eu só o vi desaparecer entre as árvores.

   - O que ele está fazendo? - perguntou Ellen, com as mãos grudadas no rosto.

   - Não sei - disse eu, me encostando nela. Ficamos olhando a nuvem escura de pássaros em círculos ininterruptos. Seus gritos estridentes e frenéticos ecoavam na minha cabeça.

   Tapei os ouvidos para bloquear o ruído... e os gritos pararam de repente. Agora os pássaros giravam num silêncio lúgubre. O bater das asas ficou mais lento.

   Então eles mergulharam descendo em direção à mata. Escondidos pelas copas das árvores desapareceram. O céu brilhou fulgurante sob a luz do sol e de novo podia-se ouvir o suave sussurrar do vento.

   Ellen tombou no gramado.

   - Aquilo foi tão apavorante. Aqueles pássaros... eles pareciam furiosos. Até achei que fossem nos atacar, mas de repente sumiram.

   - Nunca vi nada parecido antes - eu disse, com o coração aos pulos. - Aposto que papai está certo. Algo os instigou. Mas o quê?

   Com as mãos em volta da boca gritei:

   - Papai? Onde está você?

   Nenhuma resposta.

   Ellen ficou de pé.

   - Você ainda quer tirar as fotos? - Ela levou os cabelos para trás. - Será que é seguro?

   Olhei para o céu acima das árvores. O sol cintilava. Não havia pássaros à vista.

   - Estaremos bem - eu disse a ela.

   Toby, meu pastor alemão, chegou trotando pelo lado da casa e o rabo começou a abanar quando ele nos viu.

   Ele veio correndo até mim primeiro. Sabe que sou sua melhor amiga. Agarrei o pescoço dele e começamos a brincar de luta sobre a grama.

   - Vamos levar o Toby conosco, não é? - perguntou Ellen.

   Confirmei com a cabeça.

   - É claro. Eu não entraria na mata sem ele. Nós exploramos a mata juntos desde que ele era um filhotinho.

   Ellen seguiu na frente pelo gramado. A câmera chacoalhava contra meu peito enquanto eu caminhava.

   - O prazo para entregar o projeto acaba em duas semanas - resmunguei - e quase não tenho fotos.

   Meu projeto de ciências tratava de estudar a fauna e a flora no Açude da Solidão. Eu já havia fotografado os diferentes tipos de plantas. Agora tinha que fotografar alguns animais.

   Eu achava que seria fácil, mas tinha ido ao açude todas as tardes durante uma semana e estava sendo difícil encontrar animais.

   Ellen corria para a mata. O cabelo balançava atrás dela como se fosse o rabo de um cavalo. Toby e eu a alcançamos no limiar da floresta.

   Ela elevou os olhos para o céu acima das árvores.

   - O que você acha que aconteceu? - indagou. - Será que algum bicho grande assustou os pássaros em seus ninhos?

   - Não sei - respondi. - E por que o papai... - interrompi ao escutar o uivo.

   Um berro estridente. O som de um animal machucado.

   Toby levantou a cabeça, retesou as costas e começou a latir furioso.

   O animal uivou novamente.

   Entrei na mata e fiquei escutando com atenção, tentando localizar o som.

   Outro uivo. Um gemido de agonia.

   Mas não vinha da mata.

   Procurei em volta.

   - Uau! Está vindo do galpão - apontei.

   O galpão é quadrado e feito de ripas de madeira. É quase do tamanho de uma garagem para um carro, com uma boa porta de madeira e um telhado reto.

   - O que há lá dentro? - perguntou Ellen. - O que está gritando desse jeito?

   - Não sei - informei. - Papai não me deixa nem chegar perto.

   Ellen olhou de esguelha para o galpão. O uivo finalmente cessou.

   - Laura, não quero que você me leve a mal, mas sua casa está ficando meio sinistra.

   Ri.

   - Que tipo de trabalho ele está fazendo ali? - Ela continuava com os olhos grudados no galpão.

   Suspirei.

   - Algum tipo de pesquisa, acho. Ele fica muito estranho quando eu pergunto sobre isso, então eu não tenho muita certeza. Tentei entrar e dar uma olhada semana passada, mas ele deixa a porta trancada.

   Inclinei-me e acariciei Toby. Depois penetramos na sombra da floresta por uma trilha sinuosa e lamacenta que fazia curvas em torno das árvores altas.

   - Por que seu pai largou o emprego no hospital veterinário? - perguntou Ellen. - Ele foi demitido?

   - Não sei - respondi, tirando um galho do caminho. - Ele não iria me contar. Ele quase nem fala mais comigo. Nem sei o que pensar.

Os olhos de Ellen brilharam. Ela agarrou meu braço.

   - Já sei o que foi, Laura. - Um sorriso matreiro se espalhou pelo rosto dela. - Já sei por que ele largou o emprego. Seu pai andava saindo com a dra. Camila... e ela deu o fora nele!

   - Que nojo! - exclamei e pus o dedo na boca, fingindo que ia vomitar. - Isso não tem nada a ver com o que aconteceu - eu disse. - Papai e a dra. Camila? De jeito nenhum.

   O papai e a dra. Camila se conhecem há quatro anos, desde que ela se mudou para cá para dirigir o hospital veterinário. Se eles estivessem namorando, eu saberia.

   - Você está enganada - eu disse. - Eles nunca tiveram um encontro sequer.

   - Mas ela sempre vem à sua casa - argumentou Ellen.

   - Não mais - murmurei.

   A dra. Camila costumava nos visitar algumas vezes por semana. Nós ficávamos todos juntos, víamos um filme no vídeo ou jogávamos palavras cruzadas. Papai gostava de formar palavras malucas para tentar pegá-la. Era muito divertido.

   Eu amava as visitas dela. Era ótimo ter alguém com quem falar sobre certas coisas - amigos, roupas, professores.

   - Estou lhe dizendo... ela deu o fora nele! - insistiu Ellen.

   Papai e a dra. Camila? Acho que não.

   Mas então por que papai tinha saído do hospital? A dra. Camila dizia que ele era o melhor veterinário do mundo. Ela não iria demiti-lo, iria?

   Saltamos sobre uma árvore caída, coberta por uma camada espessa de líquen verde e amarelo. Estávamos quase chegando ao açude.

   - Vamos falar sobre a fabulosa festa de aniversário que vou dar pra você - eu disse. Queria mudar de assunto. - Preciso de uma lista. Quem você quer que eu convide?

   - Só garotos - Ellen respondeu rindo.

   - Você está brincando, não é? - eu disse.

   - Por que você não convida aquele que conheceu, o João? - sugeriu Ellen. - Eu queria conhecê-lo.

   - Ei! - falei logo. - Eu o vi primeiro!

   Virei-me e vi Toby fuçando uma pilha de folhas mortas. Farejando com vontade, ele começou a escavar furiosamente.

   - Toby, saia daí! - gritei. - Toby... não!

   Ellen fez cara de nojo.

   - Nossa, o que ele está fazendo?

   Ellen não gosta tanto assim da natureza. Ela não gosta de sujeira, dos insetos e dos animais da floresta. Prefere ficar em casa, lendo um livro ou escrevendo no diário. Ela escreve muito bem e é quem edita nosso jornalzinho da escola.

   Mas sendo uma boa amiga, ela entra na mata para me fazer companhia.

   - Toby... saia daí! - gritei.

   O cachorro me ignorou. Grunhindo, enterrou a cabeça na pilha polpuda de folhas marrom e... puxou algo com os dentes.

   - O que é isso? - gritou Ellen. As mãos grudadas no rosto. - O que foi que ele pegou?

   - Deixe-me ver, Toby - eu disse, indo em direção a ele com a mão esticada. - Solta, solta, garoto. O que você tem aí?

   Cheguei mais perto.

   - O que é, garoto? O que você tem aí?

   O cão soltou um grunhido e afrouxou a mandíbula, deixando cair o objeto no chão.

   Ellen e eu fixamos os olhos... e começamos a gritar.

   - É... é um dedo! - berrei. - Um dedo humano!

 

   Toby latiu, o rabo abanando furioso. Depois saiu correndo em disparada rumo a casa.

   - Ai, que horror - balbuciou Ellen, fechando os olhos. - É um dedo mesmo? Acho que vou vomitar.

   Dei mais um passo à frente e cutuquei-o com o sapato. Depois me acocorei para ver melhor.

   - É, é mesmo um dedo - falei quase sem voz, sentindo um frio na barriga. Analisei bem. - Mas... talvez não seja de uma pessoa.

   Ellen tinha escondido o rosto com as mãos e se virado de costas.

   - O que você quer dizer?

   - É que... a pele tem aparência de couro. E a unha é pontuda. E é tão cabeludo...

   - PARE! - Ellen gritou. - Não fale mais disso! Vamos sair daqui, só isso. - E ela começou a voltar para a trilha. Mas eu não me ergui. Observei o dedo mais de perto.

   - Estranho - murmurei -, está rasgado na extremidade. É como se tivesse sido arrancado.

   - Pare com isso - exclamou Ellen estou passando mal. Mesmo!

   - Olhe. Agarre! - gritei, fingindo que jogava o dedo para ela.

   Ela gritou, se esquivando, embora eu não tivesse nada na mão.

   - Não tem nenhuma graça, Laura - murmurou. - Ei, por que você não tira uma foto dele? Pro seu projeto de ciências.

   - Devo fotografar animais inteiros - disse eu -, não só partes.

   Mas acho que deveria levá-lo para casa, pensei. Mostrá-lo ao papai. Talvez ele soubesse o tipo de animal que tem dedos como aquele.

   Eu não queria apavorar Ellen, então peguei o dedo quando ela não estava olhando e deixei-o escondido na palma da minha mão fechada. Assim ela não veria.

   Ficamos andando pela mata. Mariposas brancas pairavam sobre o Açude da Solidão. Eu conseguia ouvir o pic- pic-pic de um pica-pau vindo do alto de uma árvore.

Sim! Ótimo! Eu precisava daquele pica-pau! Olhando pelo visor da câmera procurei a árvore onde ele estava.

   - Preciso ir - disse Ellen. - Aliás, que horas são?

   Eu continuava examinando as árvores.

   - Quase três, acho.

   - Uau! Tenho mesmo que ir. Prometi ao Silvinho Palmer que jogaria tênis com ele às três - disse, e saltando sobre uma pedra ela começou a correr, indo embora.

   Silvinho Palmer. Louro, olhos azuis, grande atleta, ele era a última paixonite de Ellen.

   - E não esqueça de convidá-lo pra minha festa! - ela gritou.

   - Não, espere! - gritei baixando a câmera. - Quem mais devo convidar? Quem mais?

   Ela se virou, levando os cabelos para trás do ombro.

   - Convide todo mundol - berrou, desaparecendo em seguida por trás de um arbusto.

   Dando a volta pelo açude pensei como seria bom se ela não tivesse que ir. Eu estava sozinha na mata e pela primeira vez na vida me sentia tensa por isso.

   Decidi que me sentiria melhor depois de tirar algumas fotos. Só tinha tirado três ou quatro. Precisava muito encontrar alguns animais ou então meu projeto ficaria totalmente manco.

   Fui até a beira do açude. Vamos lá, bichinhos. Onde é que vocês estão se escondendo?

   Estava tão desesperada que tirei uma foto das mariposas que sobrevoavam a água.

   Decidi então sentar e esperar. Talvez, se eu ficar bem quieta, um cervo venha beber água.

   Sentei e fiquei esperando. Com a câmera no colo eu escutava o sussurro das árvores. Um dos meus sons favoritos.

   Logo depois ouvi outro som, desta vez atrás de mim. lira o estalido de um graveto.

   Eu me virei, mas não vi nada.

   Então levantei. E escutei as passadas pesadas de cascos.

   Seria um cervo?

   O som parou.

   Eu me virei e andei alguns passos.

   Atrás de mim escutei os passos novamente.

   Parei. E mais uma vez os passos pararam.

   Estremeci, sentindo um calafrio me subir pela espinha.

   Nunca sinto medo na mata. Nunca. Mesmo quando estou sozinha.

   Mas hoje era diferente.

   Lembrei dos pássaros em círculos... do dedo tenebroso na grama... escutei o aviso do meu pai para que ficasse afastada...

   E agora havia algo me seguindo. Algo se movia furtivamente atrás de mim.

   - Papai? - chamei.

   Nenhuma resposta.

   Escutei atentamente. Ouvi o chilreio agitado dos pássaros no alto de um ramo. O sussurro do vento. O rangido de um galho.

   Segurando o fôlego, dei outro passo. Outro.

   Tentava escutar os passos. E ouvi. O baque pesado de sapatos ou cascos.

   Ofegante, me virei rapidamente.

   - Quem está aí? - gritei.

 

   Um menino saiu de trás das árvores. Olhou para mim com jeito tímido e depois baixou os olhos. Ele era baixo e meio cheinho. O cabelo preto estava meio emaranhado, mas brilhante e quase tão comprido quanto o de Ellen.

   - João... oi! - chamei, suspirando de alívio.

   - Ei, é você! - disse ele, correndo até mim.

   Sorri para ele.

   - Escutei algo me seguindo e... e fiquei sem saber o que pensar.

   Ele ficou com as bochechas coradas.

   - Sou eu, só isso - ele disse baixinho.

   Ele é tão tímido, me dei conta. E é uma gracinha mesmo. Estava com uma calça jeans larga e camiseta preta. Usava uma longa corrente prateada pendurada no pescoço e na mão direita segurava uma vara de pescar.

   Ele apontou para minha câmera.

   - Fotografou alguma coisa hoje?

   - Não, eu... - Olhei para baixo e de repente me dei conta de que estava segurando aquele dedo nojento. Se o João o vir, vai achar que sou uma esquisitona, pensei.

   - Escutei um pica-pau naquela árvore ali - eu disse apontando.

   Quando ele se virou para ver a árvore, deixei o dedo cair no chão. Ele se voltou novamente e pisei em cima.

   - Estou desatinada - eu disse. - Onde estão os animais? Será que entraram em greve?

   - A gente podia trazer alguns - falou João. - Sabe como. Ir a uma loja de animais, algo assim. Conseguir uns hamsters ou tartarugas e trazer para cá.

   - Acho que não - eu disse, rindo. - Mas continue pensando.

   Seguimos até o açude. João chutou uma pedra para dentro da água. O vento soprava os longos cabelos dele.

   - Pegou alguma coisa hoje? - perguntei. Na última vez que tínhamos nos encontrado, ele estava sentado sobre uma pedra lisa, pescando num córrego. Ele me disse que adorava pescar, mas que nunca comia o que pegava. Sempre devolvia os peixes à água. Aquilo me fez gostar ainda mais dele.

   - Não. Hoje não foi um dia de sorte - disse ele. - Vou tentar de novo amanhã.

   - Como vão as coisas no Colégio Valverde? - perguntei. Admito. Havia um sorriso matreiro em meu rosto.

   Ele se virou para mim.

   - Você está zombando de mim porque minha escola é particular, não é?!

   - Claro que não! - insisti. - É só que... bem... os caras que conheço do Valverde são tão metidos. E você não é assim.

   Ele falou rindo:

   - Ei, obrigado por essa.

   Decidi que iria convidá-lo para a festa de aniversário de Ellen. A idéia fez meu coração bater mais rápido e me dei conta de que tinha ficado nervosa.

   Vamos lá, Laura. É simples, é só convidá-lo, eu dizia a mim mesma. Não é grande coisa. Seja corajosa... como a Ellen.

   Respirei fundo.

   - Hã... João?

   O trinado de dois pássaros me interromperam. Eles piavam alto, bem acima de nossas cabeças. Virei a tempo de vê-los, berrando e voando em outra direção.

   Três ou quatro outros pássaros barulhentos se juntaram a eles. Que algazarra! Em forma de um V malfeito eles voaram até sair de vista.

   João sacudiu a cabeça.

   - Qual é o problema deles?

   Nós dois soltamos uma gargalhada. Eu gostava do jeito como os olhos dele se estreitavam, ficando como duas lascas de lua prateada quando ria. Ele me lembrava um urso, um ursinho simpático desses que se vê nos desenhos animados.

   Decidi tentar de novo.

   - Hã... vou dar uma festa pra minha amiga... - comecei.

   Mas não tive chance de acabar.

   A impressão foi que tudo explodiu de uma só vez. As árvores sacudiram, os animais gritaram, os pássaros grasnaram.

   O céu ficou escuro com a revoada dos pássaros, batendo as asas loucamente. O capim arriava com a debandada dos camundongos silvestres passando sobre nossos pés.

   - O... o que está acontecendo? - gritei.

   João se virou, os olhos arregalados de medo e confusão.

   O céu ficou mais escuro, como se a noite já tivesse caído.

   Um guincho estridente soou entre as árvores, ecoando, e sobre os gritos, que mais pareciam assobios, escutava-se o bater furioso de asas.

   - Morcegos! - gritou João.

   É isso mesmo. Morcegos... centenas deles... sobrevoando nossas cabeças, guinchando, preparando-se para atacar e depois descendo em disparada sobre as árvores.

   - Mas... mas... - gaguejei - morcegos não voam de dia!

   Engoli a fala conforme um deles investia sobre minha cabeça. Senti sua asa seca, pontuda, arranhando meu rosto, senti uma rajada de vento quente vindo do corpo dele.

   - Abaixe-se, Laura! - João me agarrou pelos ombros, me jogando no chão. - Abaixe-se! Cubra a cabeça! Eles estão ATACANDO! Cubra a cabeça! Cubra a cabeça!

   Foram as últimas palavras que ouvi. O bater de asas abafou os berros de João. Era como se os gritos estridentes dos morcegos estivessem furando meus tímpanos.

   Fiquei toda encolhida como se fosse uma bola e cobri a cabeça com as duas mãos.

   - Aahh! - Soltei um gemido de pavor ao sentir as asas batendo nas minhas costas e ombros.

   Isto não pode estar acontecendo, pensei estremecendo. Os morcegos não saem durante o dia.

   O que estará acontecendo?

   Senti o bater de asas nas mãos. Senti um puxão lancinante no couro cabeludo.

   - Me larga! - gritei desesperada, tentando arrancar dois morcegos do meu cabelo.

   Todos a minha volta... todos sobre mim... o bater das asas, o arranhar das garras e os gritos... os brados estridentes.

   Não... por favor... não, rezei em silêncio. Vão embora. Vão embora!

   Tentei ficar encolhida como uma bola, mas cada tapa de uma asa, cada golpe de um morcego, cada arranhão de uma garra em minhas roupas fazia com que eu me contor-

cesse apavorada.

   - João... você está legal? - berrei. - João...?

   Nenhuma resposta.

   E então os guinchos estridentes começaram a sumir. O som do bater de asas foi se elevando, se afastando de mim.

   - João? - gritei, ainda com medo de abrir os olhos. - João? Por que você não responde?

 

   - João?

   Agora as asas dos morcegos batiam a distância. Os gritos estridentes foram sumindo até acabar.

   Trêmula, ainda enrolada como uma bola, fui abrindo os olhos devagarinho e levantei a cabeça.

   Gritei novamente.

   Ao meu lado, João estava com a cabeça nos joelhos combatendo dois morcegões.

   Um deles tinha prendido as garras no cabelo de João e batia as asas com fúria, guinchando, lutando para se libertar.

   O outro morcego tinha ficado preso na gola da camiseta e suas asas abertas não deixavam o rosto do João à vista.

   Mas eu ouvia seus gritos desesperados.

   Ele golpeava os morcegos com as mãos.

   Os bichos guinchavam e batiam as asas.

   João ficou de costas no chão. Agarrou o morcego que estava em sua garganta e o apertou até ele ficar quieto.

   As garras contraídas se soltaram e João arremessou o morcego para longe.

   O outro continuava preso no cabelo dele.

   Eu estava paralisada de terror, observando a luta. Então consegui finalmente me mexer. Atirei-me no chão... e tentei alcançar o morcego que se debatia.

   - NÃO! - gritou João. - SAIA! - E ele começou a rolar na lama, segurou o morcego com as duas mãos, cuidadosamente arrancando-o do cabelo.

   O morcego guinchou estridente.

   João o suspendeu e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele se levantou de um salto e começou a correr.

   - João - chamei. - Pare!

   Ele parou no lado oposto de uma pequena clareira. O rosto estava vermelho feito pimentão. Tentava recuperar o fôlego.

   - Não vá embora. Minha casa é logo ali - eu disse. - Meu pai é médico. Quero dizer, veterinário, mas ele sabe tudo sobre morcegos. Deixe ele dar uma olhada nesses cortes e arranhões.

   - Não - disse João, sacudindo a cabeça, com as mãos cerradas em torno dos cabelos. - Que... quer dizer, não, obrigado.

   - Você está com algum corte na cabeça? Eles o arranharam? - perguntei.

   - Acho que está tudo bem - ele insistiu. - Em todo raso, minha mãe está em casa. Ela vai me levar ao médico.

   - Não... espere - eu disse. - Se você estiver com um corte, precisa ver isso agora mesmo. Venha comigo, meu pai vai...

   - Não, está tudo bem. Mesmo. - Ele se virou. E ainda segurando a cabeça começou a correr. Antes de sumir entre as árvores, gritou: - Até logo.

   - Espere! - gritei, forçando a saída das palavras. - Eu queria convidá-lo pra uma festa! João!

   Mas ele já se fora.

   Suspirei e fiquei lá olhando para ver se ainda podia enxergá-lo. Conseguia ouvir o bater de asas dos morcegos a distância.

   Meu corpo inteiro coçava. Ainda conseguia sentir as garras arranhando minhas roupas, conseguia sentir o ar que saía das asas batendo.

   Algo os tinha deixado exasperados, pensei. Da mesma forma que deixara os pássaros mais cedo.

   Alguma coisa nestas matas os tinha assustado. Algo fazia com que agissem desse modo tão estranho.

   Mas o quê?

   Alguns minutos depois eu saía da mata e estava no nosso quintal. A porta do galpão estava bem fechada. Papai estava de volta. Eu podia escutar o barulho que fazia lá dentro.

   Estava louca para contar a ele sobre o ataque dos morcegos. Se tivessem me arranhado ou mordido, teria feito isso, mas não era o caso. Além disso, eu sabia que, quando estava no galpão, ele não queria ser perturbado. Portanto, entrei para preparar o jantar.

   Geralmente nós nos revezávamos para fazer o jantar ou então experimentávamos novas receitas juntos, o que era divertido. Às vezes a dra. Camila se reunia conosco.

Eu realmente sentia falta dela. Estava me dando conta de que a dra. Camila tinha meio que se tornado uma mãe substituta.

   Tirei um frango da geladeira, enfiei a mão e comecei a tirar aquela nojeira lá de dentro.

   Pela janela da cozinha eu podia ver a mata. Tranqüila agora. As árvores balançando suavemente e escurecendo conforme o sol descia.

   O telefone tocou. Tirei a mão rapidamente de dentro do frango e tentei limpá-la das tripas num pano de prato.

Então peguei o telefone. -Alô?

   Era Ellen.

   - Laura... onde você andava? Faz meia hora que estou ligando pra você.

   - Na mata - eu disse. - Foi uma loucura, Ellen. Eu...

   - Não convide o Silvinho pra minha festa - ela interrompeu.

   - O quê?

   - Apague-o da lista - ela disse. - Que imbecil. Só porque eu me atrasei meia hora pro nosso jogo de tênis, ele teve um ataque. Depois tentou enfiar a bola pela minha garganta abaixo a tarde toda.

   - Ellen... - comecei.

   - O que eu posso fazer se o derrotei direto em três sets? Ele é tão imaturo, Laura. E quando eu me ofereci pra dar algumas aulas de tênis, ele me chamou de um monte de nomes infantis e bateu em retirada.

   Ri.

   - Simplesmente corte-o da lista. Certo? - ela falou decidida.

   - Sem problema - eu disse. - Ei... você acabou não vendo o João. Ele estava na mata.

   - Uau, é mesmo?! - ela murmurou. - Eu realmente queria conhecê-lo. Você o convidou pra festa?

   - Eu... eu tentei - disse. - Mas...

   - Ah, eu tenho que ir - Ellen interrompeu meus irmãos estão na maior guerra lá em cima e eu estou tomando conta deles.

   Ela desligou antes que eu pudesse pronunciar outra palavra.

   Deixei o telefone e voltei para a cozinha.

   Pouco tempo depois o jantar estava pronto. Tinha feito uma salada verde, batatas assadas e vagens para acompanhar o frango.

   Levei tudo para a mesa e olhei o relógio. Eram quase sete e nada do papai.

   O que estaria fazendo? Teria perdido a noção das horas?

   Olhei para o galpão pela janela da cozinha. Não queria que o jantar esfriasse e estava tão ansiosa para contar ao papai sobre o estranho ataque dos morcegos e sobre o dedo pavoroso que tinha encontrado.

   Abri a porta dos fundos e com as mãos em volta da boca o chamei.

   Nenhuma resposta.

   Dois tordos ergueram as cabecinhas e ficaram me olhando. Comecei a correr pelo gramado e eles saíram voando.

   - Ei... papai? - chamei, me aproximando da porta do galpão. Um cheiro forte de substância química saía lá de dentro. Lembrava o cheiro de um consultório médico.

Ouvi um ruído baixo, uma lamúria.

   Experimentei abrir a porta e para minha surpresa não estava trancada.

   - Papai? - Empurrei um pouco a porta.

   Vi de relance uma porção de equipamentos, abarrotados até o teto. O que havia entre as mãos do papai? O que estava fazendo aquele ruído?

   Era um bichinho cor-de-rosa.

   Ele segurava o animal numa mão e estava a ponto de lhe dar uma injeção com uma enorme agulha hipodérmica.

   - Papai? O que você está fazendo? - chamei.

   Ele se virou e sua expressão ficou furiosa.

   - Saia daqui! - gritou. - Fora! Vá embora! Nunca mais abra esta porta!

   Dei um passo para trás engolindo a fala e saí fechando a porta. Nunca tinha visto ele ficar tão bravo.

   Minhas pernas tremiam quando saí pela porta.

   Por que ele tinha gritado comigo daquele jeito?

   Por que andava agindo daquele modo?

   Fiquei com os olhos cheios de lágrimas.

   Nas últimas semanas meu pai se tornara um completo estranho para mim. Eu me sentia tão sozinha... e com medo do meu próprio pai.

 

   Comemos em silêncio por um tempo. Ele manteve os olhos no prato e engoliu a comida rapidamente, como se quisesse acabar logo com o jantar.

   Os únicos sons que se ouvia eram o tilintar dos talheres e o áspero crow, crow, crow do corvo machucado lá no meu quarto.

   - Desculpe - papai finalmente ergueu os olhos e me encarou - eu não queria gritar com você.

   Puxei o fôlego.

   - Por que você gritou daquele jeito? - perguntei.

   Ele passou a mão pelos cabelos grisalhos me analisando.

   - Estou fazendo um trabalho muito importante - ele disse. - E não posso ser interrompido. O tempo é fundamental.

   Papai se levantou para tirar a mesa.

   - Sei que tenho andado muito tenso ultimamente. Sei que não tenho prestado muita atenção em você, mas as coisas vão melhorar. Prometo. - Papai sorriu pela primeira vez em semanas. - Que tal jogarmos palavras cruzadas?

   Fomos para a sala de estar e arrumamos o tabuleiro. Ele começou a formar palavras malucas e eu o imitei. E de repente tudo parecia ter voltado ao normal.

   Então achei que não haveria problema em perguntar.

- Papai, em que exatamente você está trabalhando? Ele engoliu em seco. O rosto se contraiu.

   - Não posso falar sobre isso.

   - Por que não? Você não confia em mim, papai?

   - Não posso falar sobre esse trabalho. Não antes de acabar. Não posso discuti-lo com ninguém - suspirou.

   - Mas... - comecei a protestar.

   Ele tirou os óculos, colocando-os sobre a mesa.

       - Chega de perguntas, Ok? Não há mais nada a ser dito - ele falou baixinho.

   - Não sou nenhum bebê - eu disse com a voz trêmula.

- Se você estiver fazendo algum tipo de trabalho secreto, pode confiar em mim.

   - Sinto muito, Laura. Eu realmente não posso discutir este assunto com você.

   Papai se recostou na poltrona e fechou os olhos como se repentinamente estivesse exausto, para os abrir pouco depois.

   - Quer acabar o jogo? - perguntou.

   Acenei afirmativamente com a cabeça, embora fosse a última coisa que quisesse fazer.

   Quando acabamos de jogar, papai me ajudou a guardar o tabuleiro e as peças.

   - Laura, talvez fosse uma boa idéia se você fosse morar com sua mãe por algum tempo - disse ele, com os olhos baixos, fixos na caixa do jogo.

Pus a mão no peito como se tivesse sido apunhalada.

   Aquelas palavras doeram tanto.

   - Você... você quer me mandar embora? - falei engasgada.

   - Talvez seja melhor.

   - Eu tenho que ir embora porque... porque lhe perguntei o que você está fazendo no galpão? - indaguei, tentando segurar as lágrimas.

   - Um dia você vai entender - disse ele baixinho, pondo de volta os óculos. - É para o seu próprio bem.

   - Não! - bradei. - Não! Como pode ser pro meu próprio bem? Você sabe que não quero ir morar em Chicago. Preciso ficar perto da floresta. E a escola? E todos os meus amigos? Eu não posso simplesmente abandoná-los só porque você tem algum tipo de segredo idiota!

   - Laura... - ele ergueu a mão para me silenciar -, sou seu pai. Devo fazer o que é melhor para você. Acredite, não quero mandá-la embora. Amo você mais que tudo, mas...

   Tapei a boca com a mão para segurar um soluço.

   Não posso acreditar que ele esteja dizendo isso, pensei incapaz de impedir todo o corpo de tremer.

   - Está bem, está bem - falei engasgada. - Não vou chegar nem perto do galpão. Prometo. E não vou perguntar mais nada. Nem uma perguntinha sobre seu trabalho.

   Papai me olhou de esguelha.

   - Promete?

   - Prometo - eu disse.

   Mas não havia jeito de cumprir aquela promessa!

   Eu iria descobrir o segredo dele, estava decidida. Vou descobrir que negócio tão secreto é esse. O que pode ser para que ele queira se livrar da própria filha?

   Vou descobrir a verdade.

 

   Aquelas palavras doeram tanto.

   - Você... você quer me mandar embora? - falei engasgada.

   - Talvez seja melhor.

   - Eu tenho que ir embora porque... porque lhe perguntei o que você está fazendo no galpão? - indaguei, tentando segurar as lágrimas.

   - Um dia você vai entender - disse ele baixinho, pondo de volta os óculos. - É para o seu próprio bem.

   - Não! - bradei. - Não! Como pode ser pro meu próprio bem? Você sabe que não quero ir morar em Chicago. Preciso ficar perto da floresta. E a escola? E todos os meus amigos? Eu não posso simplesmente abandoná-los só porque você tem algum tipo de segredo idiota!

   - Laura... - ele ergueu a mão para me silenciar -, sou seu pai. Devo fazer o que é melhor para você. Acredite, não quero mandá-la embora. Amo você mais que tudo, mas...

   Tapei a boca com a mão para segurar um soluço.

   Não posso acreditar que ele esteja dizendo isso, pensei, incapaz de impedir todo o corpo de tremer.

   - Está bem, está bem - falei engasgada. - Não vou chegar nem perto do galpão. Prometo. E não vou perguntar mais nada. Nem uma perguntinha sobre seu trabalho.

   Papai me olhou de esguelha.

   - Promete?

   - Prometo - eu disse.

   Mas não havia jeito de cumprir aquela promessa!

   Eu iria descobrir o segredo dele, estava decidida. Vou descobrir que negócio tão secreto é esse. O que pode ser para que ele queira se livrar da própria filha?

   Vou descobrir a verdade.

 

   Eu olhava para as sombras que pairavam no teto do meu quarto, minha mente rodando.

   - Mas agora é diferente - eu disse. - Ele não quer me contar o que está fazendo. Que tipo de experiência teria que ser um segredo... para a própria filha?

   - Não sei. Mas seu pai não seria capaz de ferir uma mosca. Ele nunca torturaria um animal. É impossível.

   - Ellen, ele perdeu o emprego no hospital veterinário. Quem sabe foi porque estivesse fazendo algo errado - eu disse.

   - Você não pode saber - ela argumentou. Eu sabia que ela estava tentando me acalmar, mas nada que dissesse iria me deixar melhor.

   Finalmente deixei que ela voltasse a dormir. Depois fechei os olhos e peguei no sono também... mas não por muito tempo.

   Um ronco longínquo penetrou meu quarto pela janela aberta, me acordando.

   Dei uma olhada no relógio. Faltava pouco para as duas da madrugada.

   Esfregando os olhos fui até a janela e inspecionei a mata. Fachos de luz trepidavam através das árvores.

   Segurei um bocejo e fixei ainda mais os olhos. As luzes iam lentamente para cá e para lá, pairando lúgubres como fantasmas. Um frio me subiu pela espinha.

   Não há estradas na mata. Nem outras casas a menos de dois quilômetros. Quem poderia estar lá?

   Seria melhor acordar o papai, pensei. Então me virei.

   Não. Mudei de idéia. Não vou acordá-lo. Na verdade, não quero falar com ele agora.

   Mas eu tinha que descobrir quem estava lá fora na mata. Pus o jeans e o top que estava usando de dia e logo depois estava abrindo a porta da cozinha para ir lá fora.

   Nuvens passaram pela lua prateada. O vento vergava o capim alto para um lado e para o outro, mudando de direção. Como as ondas do mar, pensei. Era uma brisa morna, mas me deu um frio na espinha.

   Fechei davagarinho a porta, prestando atenção ao esta- lido suave para ter certeza de que estava fechada. Depois atravessei o gramado correndo em direção à mata.

   Procurei pelas luzes nas árvores, mas tinham sumido. O ronco também cessara.

   - Estranho - murmurei.

   Parei no meio do quintal para ver se escutava algo. Estava tudo silencioso agora. Silencioso...

   Exceto por um grito longínquo.

   Um triste lamento.

   Eu me virei. O choro vinha do galpão.

   O galpão. Eu precisava ver o que havia ali dentro. Era o momento perfeito.

   Papai fechava a porta com um cadeado, mas eu sabia onde escondia a chave. Pé ante pé entrei de novo na cozinha e tirei a chave da xicrinha onde mamãe guardava

seus pacotinhos de adoçante.

   Então me esgueirei para fora. Senti um calafrio de medo ao me encaminhar para o galpão. Dava para ouvir

os animais gemendo, chorando lá dentro. Parecia que estavam me implorando que os resgatasse.

   - Estou indo - sussurrei.

   Mas ao chegar à porta voltei rapidamente ao escutar outro som.

   Um rosnado. E depois o ruído surdo de passadas pesadas.

   Correndo. Correndo rapidamente na minha direção.

   Eu estava muito sobressaltada para me mexer. Fiquei paralisada quando a enorme criatura apareceu pela lateral do galpão.

   Ela deu um salto. Um pulo bem alto. Pegou-me pelos ombros.

   E me derrubou com força no chão.

  

   - Toby! - gritei. - Cai fora! Cai fora!

   Com o rabo abanando sem parar, o cachorro me paralisou no chão e começou a lamber meu rosto. Eu sentia seu bafo quente nas bochechas e ria tanto que não conseguia me desvencilhar dele.

   - Toby... pare! - implorei. - Você está se sentindo sozinho aqui fora? É este o problema?

   Finalmente consegui afastá-lo. Sentei-me e enxuguei a baba do rosto.

   Uma luz me banhou. Eu me Virei para a cozinha e vi as luzes acesas. A porta dos fundos se abriu. Papai enfiou a cabeça para fora. Com uma mão ele segurava as calças de pijama e com os olhos apertados olhava o quintal. Estava sem óculos.

   - Laura? - chamou, a voz cheia de sono. - O que você está fazendo aí fora no meio da noite?

Havia umas luzes - eu disse - na mata. E eu escutei um tipo de ronco. Eu... eu queria ver o que era.

   Papai coçou a testa, seu cabelo grisalho estava todo desgrenhado.

   - Você deve ter sonhado - disse ele franzindo a cara.

   - Não, foi mesmo - insisti. - As luzes se moviam em torno das árvores e...

   - Venha para dentro - ele disse. E me encarou. - Você não estava tentando entrar no galpão, estava?

   - Não, é claro que não - menti, com a chave do cadeado dentro do punho cerrado.

   Por um momento o olhar dele ficou frio. Senti como se aqueles olhos me apunhalassem.

   - Venha para dentro - ele repetiu. - Não quero saber de luzes nas árvores. Estou cansado.

   Suspirei e capitulando, entrei. Dava para ver que não adiantaria conversar com ele.

   Assim que papai subiu, coloquei a chave de volta no lugar. Olhei de relance pela janela da cozinha e vi o galpão. Ainda podia escutar as lamúrias. De repente eu sabia onde poderia encontrar algumas respostas.

   No hospital veterinário.

   Decidi que iria visitar a dra. Camila no hospital veterinário no dia seguinte. Sei que ela e o papai não estão se falando, mas isto não significa que eu não possa falar com ela.

   Ela vai me dizer a verdade sobre o papai. Sei que vai.

   Depois das aulas no dia seguinte, arrumei a mochila, abri caminho na multidão de crianças e saí pela porta da frente da escola.

   Era uma caminhada de uns três quilômetros até o hospital e eu queria chegar lá antes que a dra. Camila saísse.

   O hospital ficava incrustado num beco sem saída do outro lado da mata. Era um enorme prédio de estuque branco com dois andares e um telhado vermelho de inclinação bem pronunciada.

   No início era um prédio pequeno e quadrado, mas se expandiu rapidamente. Agora tinha incontáveis alas, anexos e laboratórios de pesquisa que se estendiam por todas as direções mata adentro.

   Seu interior mais lembrava um velho hotel que um hospital. Os longos corredores iam para lá e para cá, parecendo se estender por quilômetros. As portas eram feitas de carvalho preto e rangiam ao se abrirem. As paredes eram de um tom verde-escuro. Um lustre de cristal pendia sobre a sala de espera, que era mobiliada com velhas poltronas e sofás de couro.

   Como não se parecia com um hospital veterinário, era sempre surpreendente escutar os latidos, urros e trinados dos pacientes.

   Eu já tinha visto as salas de operação algumas vezes quando vinha visitar o papai. Eram brancas, claras e brilhavam de tão limpas. E os laboratórios de pesquisa também eram muito modernos e tinham aquela aparência médica.

   Assim que entrei na sala de espera, fui varrida por uma onda de memórias. Lembrei de tantas visitas. E de várias cenas realmente desagradáveis...

   Lembrei de um adorável filhote de cocker spaniel que tinha sido atropelado por um carro. E da incrível arara vermelha e azul que estava com um grão de milho entalado na garganta. E dos dois enormes cachorros amarelos que começaram a rosnar e brigaram em plena sala de espera, se engalfinhando até o tapete ficar encharcado de sangue.

   Agora a sala estava vazia. Verifiquei o relógio acima da recepção: passava um pouco das quatro e meia. Atrás da escrivaninha sentava-se uma jovem, mexendo numas pastas.

   Pedi para ver a dra. Camila e disse meu nome. Ela pegou o fone, tocou alguns botões e murmurou no receptor.

   Pouco depois a dra. Camila se precipitava sala adentro, com o jaleco branco voando atrás de si.

   - Laura, que bom ver você! - exclamou ela me envolvendo num abraço. - Como é que você está? Senti tanta saudade sua!

   Eu a abracei também, estreitando seu belo cabelo louro, os olhos verde-claros que pareciam estar sempre refletindo a luz e seu sorriso afetuoso. Eu também sentia saudade dela.

   Lembro que às vezes, quando estava zangada com a mamãe, eu desejava em segredo que a dra. Camila fosse minha mãe.

   Dei uma olhada atrás dela, onde havia um quadro com uma moeda de 25 centavos, uma de 10 e uma de 1, fixadas num veludo preto dentro de uma pequena moldura prateada.

Aquilo me fez rir, lembrando do primeiro dia da dra. Camila no hospital há quatro anos.

   Toby havia engolido um troco que eu deixara cair no chão da cozinha e ficou muito mal. Foi a dra. Camila que o operou, sendo um grande sucesso! Ela tinha emoldurado as moedas porque representavam seu primeiríssimo paciente ali.

   A dra. Camila ria e rodopiava comigo como se eu fosse uma menininha.

   - Laura, você veio aqui só para dar um alô?

   Hesitei.

   - Bem... não. - Meu sorriso apagou. - Na verdade, eu queria falar com você. Quer dizer, se você tiver tempo.

   De repente fiquei nervosa. Será que eu realmente podia lhe pedir que me dissesse a verdade sobre o papai?

   - Tudo indica que eu tenho bastante tempo - ela retrucou, mostrando com um gesto a sala de espera vazia. - Tenho passado cada vez mais tempo no laboratório de pesquisa. Deixa a gente meio frustrada, mas é importante.

   Com uma mão no meu ombro ela me guiou para a porta e pelo longo corredor cheio de portas fechadas em ambos os lados. O escritório dela ficava no final do corredor.

Gesticulando, me indicou uma poltrona azul baixa diante da escrivaninha.

   A escrivaninha era de vidro, limpa e sem objetos, exceto por uma pilha de papéis e pastas, além de um telefone. As paredes eram cobertas por fotos emolduradas de animais, alguns dos bichos de estimação que ela tinha cuidado.

   Graciosamente, a dra. Camila deslizou para a cadeira atrás da escrivaninha e levou o cabelo louro para trás dos ombros. Depois apoiou-se no tampo de vidro e sorriu para mim.

   - Esta foi uma surpresa tão boa - disse ela. - Estou tão feliz que você tenha vindo me visitar. Sobre o que quer falar, Laura? Algum problema com garotos? Algo que não pode discutir com seu pai?

   Ri. Nem sei bem por quê. O riso simplesmente saiu.

   - Você consegue conversar bastante com sua mãe? - ela perguntou. Cotovelos na mesa, ela descansava a cabeça nas mãos, me analisando com aqueles olhos verdes intensos.

- Como ela vai?

   Dei de ombros.

   - Ela liga uma vez por semana. E eu a visito bastante - eu disse. - Mas ela está tão longe. Não é como ter uma mãe que está sempre lá pra atender você... - minha voz se arrastou.

   Ela franziu a testa.

   - Entendo o que você quer dizer. E a Ellen, como vai? Por quem está apaixonada esta semana? - perguntou rindo.

   - Semana passada era Silvinho, o jogador de tênis. Esta semana... não sei ainda. - Ri também.

   - Então o que você e seu pai andam fazendo? Continuam jogando palavras cruzadas? Fazendo longos passeios pela mata?

   Respirei fundo.

   - Não andamos jogando muito. Não temos feito quase nada juntos ultimamente.

   Senti uma secura repentina na garganta. Tossi.

   - Ele... sei lá... anda diferente nos últimos tempos.

   As sobrancelhas da dra. Camila se arquearam.

   - Diferente? O que você quer dizer? Diferente como?

   - Bem... ele anda muito quieto e... irritado. Quase não fala comigo. Ele... ele passa um monte de tempo sozinho, trabalhando no galpão.

   - Hmmm... isso não se parece nem um pouco com seu pai. Em que está trabalhando? - perguntou.

   - Eu não sei. Ele não quer me contar - respondi.

   Ela esticou o braço sobre a escrivaninha e apertou minha mão.

   - Laura, é provável que ele só esteja aborrecido. Não é fácil perder um emprego. Você precisa dar um tempo a ele.

   Engoli em seco.

   - Eu... queria lhe perguntar sobre isso. Por... por que o papai saiu?

   Ela soltou minha mão, recostou-se na cadeira e suspirou.

   - Por favor, me conte - implorei. - Por que o papai saiu do hospital veterinário?

 

   - Tive que afastá-lo - disse a dra. Camila por fim.

   Gaguejei.

   - Você quer dizer que... você o demitiu?

   Ela se endireitou na cadeira. As faces coraram.

   - Bem... não é bem essa a palavra. Eu tive que deixá-lo ir porque...

   - Por quê? - interrompi. - Por quê?

   Ela engoliu em seco.

   - É difícil explicar, Laura. Nós... tínhamos objetivos diferentes. Queríamos levar nossas pesquisas para direções opostas.

   Soltei um profundo suspiro. Objetivos diferentes, pensei. Aquilo não parecia errado.

   De repente senti que toda a tensão deixava meu corpo. Era bom ter alguém com quem conversar. Eu sabia que vir aqui era o melhor que podia fazer.

   Recostei-me na poltrona.

   - Que tipo de trabalho o papai está... - comecei a perguntar, mas o telefone tocou.

   - Desculpe - disse ela, fazendo cara feia para o aparelho. Pegou o fone e falou por uns dois ou três minutos. - Não, não dê banho nele - repetia ela. - O pêlo deve ficar seco. Sei, sei. Você terá que aturar o cheiro... Não. Não dê banho nele.

   Após mais alguns minutos ela desligou o telefone e se levantou.

   - Desculpe, Laura. É melhor voltar ao trabalho. Mas volte aqui a qualquer hora. Mesmo! Senti muito a sua falta.

   Nós nos despedimos e fui embora.

   Lá fora, nuvens pesadas tinham encoberto o sol e o ar tinha esfriado. Nuvens de neblina flutuavam baixas.

   Visitar a dra. Camila tinha sido uma boa idéia, mas eu continuava confusa. Não estava mais próxima de descobrir a razão para meu pai estar agindo daquele jeito tão estranho.

   Ao chegar em casa, fui direto para o galpão. Pus o ouvido na porta. Silêncio. Papai não estava lá. Dei uns puxões no cadeado.

   - Você não conseguirá abri-lo desse jeito.

   Pulei para trás de surpresa enquanto João chegava correndo da mata.

   Ele sorriu para mim.

   - Acho que uma chave funcionaria melhor.

   Ri. Estava contente de vê-lo. Ele estava uma gracinha de bermudas largas e camiseta vermelha desbotada.

   Esta vez eu não deixaria de convidá-lo para a festa, estava decidida.

   - Que está fazendo aqui? - perguntei.

   Ele deu de ombros.

   - Ah, eu estava andando pela mata, sabe como é. Aí vi os fundos da casa, mas não sabia que era a sua.

   Ele sorriu e com as mãos levou para trás o cabelo longo.

   - Você devia ter ido até o açude hoje. Vi uma família inteira de cervos lá.

   Revirei os olhos.

   - É claro! Os cervos vão lá quando eu não estou. Não querem que eu tire um dez.

   Nós dois nos viramos ao ouvirmos um rosnado vindo das árvores.

   Um rosnado de cachorro.

   Toby trotou até a margem da clareira. Parou a poucos metros de nós, levantando a cabeça e os grandes olhos castanhos ficaram a nos estudar desconfiados.

   - Ei... de onde você está vindo, garoto? - perguntou João

   - Toby! - chamei. - O que você estava fazendo na mata?

   Ele começou a abanar o rabo, abaixou novamente a cabeça e veio correndo ao nosso encontro. Havia folhas grudadas no pêlo.

   Estiquei a mão para tirá-las dali e depois tentei abraçá- lo, mas ele se safou.

   - Toby, o que está havendo? - perguntei. - Não está contente de me ver?

   Toby foi para cima do João e cheirou as bermudas cáqui, farejando alto.

   João riu e pulou para trás.

   - Ei, pare! Isso dá cócegas. Laura, seu cachorro é maluco!

   Eu me inclinei.

   - Toby, o que está havendo? Venha cá.

   Ele encostou o focinho molhado no meu braço e farejou. Depois começou a farejar as pernas do meu jeans.

   E foi com surpresa que o vi soltando um rosnado.

   As costas dele se retesaram. Ele foi indo para trás, olhando de um jeito feroz para nós dois. Depois, puxou os lábios para trás e mostrou os dentes.

   - Toby... você ficou maluco? Que está havendo, garoto? - gritei. Virei-me para o João. - Ele é o cachorro mais dócil do mundo. Juro!

   João deu um passo para trás.

   - Alguém esqueceu de avisá-lo disso!

   - Calma, garoto - falei para o Toby, ainda agachada. - Calminha agora. O que houve? - perguntei baixinho, tranqüilizando-o.

   O cão rangeu os dentes e começou a rosnar. Eram ros- nados amedrontadores, ásperos, que vinham do fundo da garganta.

   Agora ele abaixara a cabeça, os olhos brilhantes, fixos na gente.

   - Calma, amiguinho... - sussurrei. Minhas pernas de repente ficaram moles. - Toby... sou eu... sou eu...

   Mostrando os dentes, ele abriu a boca num rosnado apavorante. O pêlo se eriçou, ficou com todo o corpo rete- sado... e pulou para atacar.

 

     Não recuei. Fiquei imóvel. Tentei não demonstrar o quanto estava amedrontada.

     Toby parou a alguns centímetros de mim, cerrando as mandíbulas.

         - Calminha... calminha - sussurrei. - Este é o meu cãozinho. Você é um cachorro bonzinho.

     Olhando para cima, vi João de relance, o rosto tenso de medo. Ele havia recuado até a margem da clareira.

         - Laura... - ele chamou. - Levante-se. Afaste-se dele.

     O cachorro rosnou furioso. As laterais do focinho palpitavam conforme ele respirava, ofegando ruidosamente. Uma baba branca escorreu da boca aberta.

         - Cachorro bonzinho... meu garoto... Toby, sou eu... eu...

     Eu não agüentava mais ficar ali agachada. Minhas pernas tremiam demais. Eu não conseguia me levantar.

     Com um grito, caí para trás. Uma queda feia. Sentada na grama, eu estava praticamente face a face com a criatura que rosnava.

   Os dentes pontudos estavam a centímetros do meu rosto. A baba caía em profusão de sua boca, esparramando-se na grama.

   - Por favor... - implorei, levantando as mãos como se fossem servir de escudo para o ataque.

   João apressou-se em minha direção.

   - Saia daí! SAIA! SAIA! - ele gritava, sacudindo os braços e berrando com toda a força.

   Foi uma surpresa quando Toby parou de rosnar. Ele olhou para o João e soltou um lamento de dor. Parecia que estava esvaziando, todos os músculos sumindo.

   Enquanto eu observava aquilo atônita, o cachorro abaixou a cabeça e foi se afastando da gente. O rabo enfiado entre as pernas, as orelhas baixas.

   Choramingando, ele saiu de fininho.

   - Toby? Toby? - falei engasgada. Sentada no chão, eu estava paralisada. A boca tão seca que nem conseguia engolir. Meu corpo inteiro tremia.

   - Ele nunca agiu assim antes - eu disse, me abraçando forte, tentando parar com aquela tremedeira.

   João me ajudou a levantar.

   - Aquele era mesmo o seu cachorro? O que houve com ele? - perguntou.

   - Sei lá - eu disse. - Talvez ele... ele tenha farejado algo - falei engasgada.

   - Farejou algo na gente? - João indagou. - O quê, por exemplo?

   Sacudi a cabeça. Meu coração se acalmou e comecei a me sentir um pouco mais normal.

   - Não faço idéia! - retruquei. - Talvez ele tenha farejado algo na minha calça.

   João me encarou.

   - Na sua calça?

   - Talvez tenha sentido algum cheiro do hospital veterinário. Acabo de chegar de lá. O hospital sempre deixa o Toby nervoso... desde a operação.

   Contei ao João sobre a vez em que o Toby engoliu os trinta e seis centavos.

   Ele continuou a me encarar, sem dizer nada por um longo instante. Parecia estar forçando a mente.

   - O que você foi fazer no hospital veterinário?

   Tirando uma aranha da manga da camiseta, eu disse:

   - Você tem que prometer não dizer nada ao meu pai.

   João riu.

   - Eu nem conheço seu pai.

   - Mesmo assim, você tem que prometer não dizer nada - insisti. - Só fui até lá ver uma pessoa. Alguém com quem eu posso falar. Sobre umas coisas.

   João acenou com a cabeça e, tirando o peso de um pé para o outro, falou:

   - Espero que seu cachorro esteja bem. Eu... gostei de saber onde você mora. - Ele começou a caminhar rumo à mata e logo tomou impulso para uma corrida.

   A festa, pensei. Com todo aquele alvoroço por causa do Toby, esqueci de convidá-lo.

   - Ei, João... - Fui correndo atrás dele.

   - Preciso me apressar! - gritou ele de volta. - Meus pais detestam quando me atraso pro jantar. A gente se vê!

- E ele sumiu entre as árvores.

  

   Nem sequer peguei o número do telefone dele, pensei. Que idiotice!

   Ouvi o ruído de folhas pisoteadas. Claro! Ele está voltando, pensei. Vou convidá-lo para a festa e pegar o número do telefone.

   Fiquei olhando e esperei, mas João não apareceu.

   Escutei. Estava silencioso agora... depois uma voz. Uma voz de homem.

   Caminhei para o interior da mata, seguindo o som.

   Algo caiu no chão como se tivesse quebrado... e engoli em seco. Cheguei mais perto... e vi.

   A frente de um jipe. Era pintado de verde e marrom. Camuflado, ele se misturava perfeitamente às árvores.

   Um jipe do exército, pensei.

   Andei mais alguns passos. Agora conseguia ver todo o veículo. Não era do exército. Era um jipe grande, de teto rijo com um trailer a reboque, também pintado em cores de camuflagem.

   O jipe tinha pneus enormes e pesados pára-choques. Estava estacionado na curva da trilha que levava ao Açude da Solidão.

   O trailer era quase tão grande quanto um furgão e o teto encostava na copa das árvores.

   Fui me aproximando cautelosamente. A porta do motorista estava escondida pelo tronco de uma árvore, então não conseguia ver se havia alguém lá dentro.

   Conforme eu me aproximava, escutei um bam bam bam.

   Sobressaltada, me encostei numa árvore.

   Bam baammm.

   Alguma coisa batia na lateral do trailer. Ou chutava. Um animal.

Engoli em seco ao ouvir um grito. Um grito de dor. Bam bam baammm.

Ele chutou novamente, soltando outro grito abafado. Parei e fiquei observando, escutando a luta da criatura. O que este veículo estaria fazendo ali no meio da mata?

E por que haveria um animal uivando ali dentro?

  

   Dei a volta por trás do trailer e vi dois homens. Os dois usavam macacões azuis e camisas azul-claras. Estavam sentados numa pedra grande, levando um papo e comendo sanduíches de baguete.

   Com um tapa, um deles matou uma mutuca que lhe pousara no alto da cabeça. Ele tinha a cabeça raspada, totalmente careca. O outro era gordo e usava um boné de beisebol virado para trás sobre o longo cabelo desalinhado ruivo-escuro.

   Comecei a caminhar na direção deles. Queria perguntar o que havia dentro do furgão.

   Mas aí enxerguei as espingardas encostadas no tronco da árvore atrás deles.

   Recuei. Um calafrio me subiu pela espinha. Não estávamos na estação de caça. Por que será que eles tinham espingardas? BAAMMM.

   A coisa dentro do furgão deu um chute forte.

   Não gosto disso, concluí. Eu me escondi rapidamente atrás do tronco largo de uma árvore antes que eles me vissem. Fiquei grudada na casca áspera escutando a conversa deles.

   - Por que estamos capturando essas coisas? - indagou o careca.

   - Não faço idéia. Talvez o patrão esteja abrindo um zoológico - respondeu o companheiro.

   Segurando o fôlego, eu escutava.

   - Acabe de comer - disse o gordo. - Precisamos tirar essa coisa logo daqui, antes que ela abra um buraco no trailer de tanto chutar.

   - É, se alguém nos vir, vai ser difícil de explicar - concordou o outro.

   - Ei, você ficaria bem com o uniforme cinza de presidiário! - o companheiro disse rindo.

   Presidiário! Eles estavam fazendo algo ilegal.

   Eles se levantaram.

   Por favor, abram o trailer, pensei. Abram para que eu possa ver o que há lá dentro. Tirei a cabeça detrás do tronco para dar uma espiada.

   Eles não abriram o trailer. Pegaram as espingardas e jogaram dentro do jipe. Depois saltaram para dentro e foram embora.

   Esperei até perdê-los de vista. Depois rumei para casa.

   Minha cabeça rodava com tudo que eu tinha presenciado na mata estes últimos dias. Os pássaros, os morcegos, o dedo pavoroso, as luzes que trepidavam... e agora aqueles homens.

   As luzes devem ter vindo do jipe. Isto eu podia calcular. E os homens devem ter importunado os morcegos e os pássaros.

   Preciso falar com papai, pensei. Preciso contar a ele sobre aqueles homens e as espingardas.

   Corri todo o caminho até o quintal. Ainda no meio do gramado, comecei a gritar:

   - Papai? Você está em casa? Papai?

   Entrei em casa a toda.

   - Papai?

   Nenhuma resposta.

   Nenhum recado na geladeira.

   Olhei em volta e saí para o galpão. Bati na porta com o punho cerrado.

   - Papai? Sou eu! Abra!

   Silêncio.

   - Papai?

   Agarrei a maçaneta e comecei a puxar.

   - Ah! - exclamei ao ouvir um clic bem alto. Logo acima da minha cabeça.

   Olhei para cima... e vi uma câmera. Uma pequena câmera preta, do tipo que eles têm em bancos e lojas para fazer a segurança.

   Ela clicou de novo.

   Isto é loucura, pensei. Loucura! Não posso acreditar que meu pai pôs uma câmera aqui. Ele perdeu a noção.

   Segurei um soluço e dei as costas para a porta do galpão.

   Não agüento mais isso, pensei. Preciso ver o que há lá dentro.

   Corri de volta para a casa. Encontrei a chave na xicri- nha da cozinha e a levei para fora.

   Na porta do galpão parei.

   Será que devo fazer isto? Senti a chave dentro da mão trêmula e recuei.

   Clic.

   Uma onda de desgosto tomou conta de mim enquanto a câmera não parava de tirar minha foto.

   Abri o cadeado. Puxei o fôlego.

   E entrei no galpão.

   - Arrgh! - O forte odor de álcool e outras substâncias químicas fizeram minhas narinas arder. Acendi a luz do teto e olhei em volta.

   Onde estavam os animais? A parede do fundo tinha jaulas de metal empilhadas até o teto, mas elas estavam todas vazias, com a maioria das portinholas abertas.

   Fui até a bancada. Um lado estava cheio de vidros e garrafas. Um longo tubo transparente, cheio de um líquido vermelho-vivo, serpenteava feito um canudo maluco sobre a mesa e acabava desembocando numa garrafa grande.

   Havia seringas espalhadas sobre o resto da mesa, com agulhas longas e curtas. Algumas vazias. Outras cheias de um líquido cor-de-rosa.

   Um gerador elétrico zunia baixinho num canto e sobre ele havia uma pilha de pratos de metal. Um estojo aberto de ferramentas estava abarrotado de chaves inglesas

e alicates. Ao lado ficava a escrivaninha do papai e atrás dela empilhavam-se livros e papéis encostados na parede.

   Meus olhos se movimentavam rapidamente de um lado para o outro. Nada de incomum aqui.

   Fui até a escrivaninha e vi um diário encadernado azul bem no centro. A lâmpada da escrivaninha estava bem acima dele, mirando-o. Inclinei-me sobre a escrivaninha

e estudei o diário.

   Será que era ali que estava o segredo do papai? Seria este o registro do trabalho que ele estava fazendo?

   Abri o caderno com a mão trêmula. As páginas estavam cheias de fórmulas impressas em tinta azul e vermelha.

   Depois de um longo parágrafo a palavra FRACASSO estava escrita em letras maiúsculas. Após outro longo parágrafo a palavra MORREU estava escrita em vermelho.

   "Os animais não respondem." Isto estava sublinhado na página seguinte.

   E então li estas palavras terríveis: "Se os matamos, aprendemos mais. Quantos podemos matar?"

   - Oooh! - gemi. Aquelas palavras me deixaram tonta.

   Papai andava matando animais. Isto já era demais. Erademais para mim.

   Andando de costas, saí do galpão. Fechei a porta e tranquei o cadeado.

   - Preciso sair daqui - disse em voz alta.

   Eu precisava ir a algum lugar tranqüilo, algum lugar onde pudesse pensar.

   Um beija-flor zumbia acima de um bambuzal que balançava sobre o açude. Coloquei o olho no visor da câmera. O beija-flor mirou a água.

   Clic. Bati a foto. Depois baixei a câmera, deixando-a pendurada no pescoço e observei o movimento rápido do beija-flor sobre a água.

   As nuvens passaram pelo sol que caía, lançando as sombras escuras da noite através das árvores. Comecei a sentir gotas frias de chuva na cabeça e nos ombros.

   Nem liguei. Precisava vir para a mata. É aqui que eu precisava estar, onde me sinto em casa. Em paz, cercada pelas árvores, com a água tremeluzindo a minha frente, podia puxar o fôlego e pensar.

   Virei o rosto e vi as enormes folhas da samambaia balançando do outro lado do açude. Deve haver um animal por lá, imaginei. Ergui a câmera. Vamos lá, chamei em silêncio. Apareça. Preciso acabar meu projeto.

   Segurei o fôlego enquanto um quati saía de trás da samambaia. Valeu!

   Não esperei que ele fosse até a água. Bati logo. Duas vezes.

   Peguei você.

   Meu humor começou a melhorar.

   Mas então ouvi vozes atrás de mim, vindo do outro lado da trilha. E um sonoro bam bam bam.

   O quati se mandou. Girei o corpo, dei uns passos em direção aos sons e acabei vendo o jipe camuflado rebocando o trailer.

   Os dois homens caminhavam pela trilha, à frente do trailer, com as espingardas descansando nos ombros.

   Segurei minha câmera e devagarinho fui trazendo até o rosto.

   Vou tirar umas fotos deles. É isso aí! Depois mostro para a dra. Camila.

   Fui até a trilha, foquei os dois homens e rapidinho tirei duas fotos.

   O estalido do obturador ecoou na mata silenciosa.

   Os homens se voltaram num movimento sobressalta- do. Um deles apontou.

   - Ei! - chamou.

   Eu sabia que não conseguiria escapar. Teria que falar com eles.

   - Oi! - eu disse, tentando parecer calma. - O que está havendo? - Acenei para o jipe com o trailer.

   Bam, bam, baammmmm.

   Os homens se entreolharam e não responderam.

   O gordo puxou o boné e ficou me analisando.

   - Você mora por aqui? O que está fazendo na mata? - perguntou. Ele tinha uma voz rouca, áspera, como se estivesse com dor de garganta ou talvez fumado demais.

   - Não é uma boa hora pra estar andando pela mata - disse o companheiro dele com jeito frio. Os olhos cinza- prateados me lembravam o gelo.

   - Eu... estou trabalhando num projeto de ciências - eu disse, e minha mão tremia quando ergui a câmera para mostrar a eles.

   Os dois olharam bravos para a câmera.

   - O que você está fotografando? - o careca perguntou.

   - Plantas e animais - respondi.

   Baammm, baam.

   - Que tipo de animais? - perguntou o careca franzindo a testa.

   - Os que freqüentam o açude - eu disse. - Caxinguelês... coelhos... quatis...

   Os dois concordaram com a cabeça.

   Olhei para as espingardas nos ombros deles. Eles perceberam, mas não disseram nada.

   - Você passeia muito pela mata? - o que estava de boné perguntou, quebrando o silêncio.

   Balancei a cabeça.

   -É. Às vezes.

   - Andou vendo alguma coisa estranha? - perguntou.

   - Não. Nada - respondi, morrendo de vontade de perguntar o que eles estavam fazendo e o que havia dentro do trailer.

   Mas antes que eu pudesse falar qualquer coisa, eles seguraram as espingardas na altura da cintura e vieram até mim. Olhos tão frios, expressões tão duras.

   Segurando as espingardas, eles vinham rapidamente, caminhando a passos pesados na minha direção.

   Não havia como correr.

   - O... o que vocês vão fazer? - sussurrei.

  

   - É melhor você nos entregar essa câmera - disse o careca, apertando os olhos.

   - O quê? - perguntei boquiaberta.

   - É melhor ficarmos com esse filme - disse ele se você não se importa.

   - É claro que eu me importo! - falei alarmada.

   Mas o companheiro dele agiu mais rápido. Agarrou a câmera e puxou-a do meu pescoço.

   - Ei, me dá isso! - gritei. - Preciso dela! É minha! - Tentei agarrar... mas não consegui.

   Ele abriu a câmera e puxou o filme, expondo-o à luz. Ruína total.

   Então me devolveu a câmera.

   - Você não tem o direito de fazer isso - falei fazendo cara feia.

   Eles me deram as costas e foram caminhando rumo ao jipe, com as espingardas na altura da cintura.

   - O que há dentro do trailer? - gritei. - Quem está chutando tanto lá dentro?

   Eles se entreolharam. O careca se virou, descansando a espingarda no ombro.

   - É um cervo - disse o companheiro.

   - É, um cervo - repetiu o careca, os olhos prateados brilhando. - Temos um cervo doente lá dentro.

   - Mas... e as espingardas... - deixei escapar.

   - São pra dar tiros tranqüilizantes - falou o cara de boné.

   - Estamos levando esse cervo pra tratamento - disse o careca -, ele está bem mal. Algo bem sinistro anda acontecendo por aqui.

   - Você deveria ficar afastada da mata por um tempo. - O outro me avisou. - É isso mesmo. E não tire fotos. É perigoso.

   Ele estava me ameaçando?

   Fiquei observando enquanto entravam no jipe. O careca ligou o motor. O jipe roncou, soltando uma nuvem de fumaça preta que foi dar na copa das árvores. Depois

saiu barulhento com o trailer chacoalhando pesadamente atrás.

   Fiquei parada ali na trilha, esperando para me acalmar. Meus punhos abriam e fechavam nos braços caídos.

   - Aqueles dois nojentos são uns mentirosos - disse em voz alta.

   Não era um cervo doente que estava naquele trailer. Como é que um cervo doente poderia chutar com tanta força se estava sob o efeito de tranqüilizantes?

   Aqueles homens estavam definitivamente mentindo.

   Pulei sobre uma pedra branca pontuda e comecei a tomar o rumo de casa. Tinha dado uns poucos passos

quando vi uma criaturinha, meio escondida por um tufo espesso de capim.

   Parecia um porquinho recém-nascido, com uns olhinhos pretos redondos e um focinho rosado que era uma graça.

   Não pode ser um filhotinho de porco, pensei. Não há porcos na mata. Eu me abaixei para ver de perto. Você é um porco selvagem? Talvez seja algum tipo de animal nanico!

   A criaturinha soltou um guincho... e pulou para a palma da minha mão.

   Soltei um grito de surpresa, quase deixando o bichinho cair.

   Ele se sentou na minha palma, me encarando com aqueles olhinhos pretos tão bonitinhos.

   - Uau! Você é um carinha muito amigável - eu disse, levantando a mão para analisá-lo. - Fico contente que não esteja com medo de mim. Gostaria de ter algo de comer pra dar a você.

   Ele inclinou a cabeça redonda para o lado, como se tivesse me entendido. Guinchou de novo, torceu o focinho rosado e abriu a boca. Fiquei boquiaberta ao ver duas

fileiras de dentes pontudos, afiados.

   Realmente preciso fotografar este mocinho, pensei. Mas não tenho filme. Acho que vou levá-lo para casa e tirar a foto lá.

   Ele saltou novamente. Agora para o meu ombro.

   Um segundo depois senti uma pontada de dor no pescoço.

   - Aaiiii! - Chocada soltei um grito ao sentir os dentes da criatura enfiados no meu pescoço.

   "Ei... AAIII!", agarrei, apertando as costas dele, lutando para puxá-lo.

   Mas a dor me fez parar.

   Que dor... que dor...

   Senti uma dor aguda em todo o corpo.

   Os dentes iam tão fundo... e a mordida era tão apertada... que se eu puxasse a criatura, rasgaria toda a garganta!

   - Nããão! - reclamei, apertando o bicho, espremendo-o, lutando para tirá-lo dali.

   Senti um líquido quente descendo pelo pescoço. Meu sangue!

   Ouvi o som de sucção. Sugando e bebendo.

   A dor estava latejante.

   O sangue me escorria pelo pescoço.

   Os dentes pontudos mastigavam e cavavam com força.

   Os sons de sucção foram ficando mais rápidos. Frenéticos.

   Ele está bebendo... me dei conta.

   Bebendo meu sangue.

  

   Apertando o porquinho, podia sentir que ele tinha começado a inchar. A barriga inflou e eu sentia o líquido se mexendo ali dentro.

   Meu sangue!

   Abri a boca, gritando de pavor:

   - NÃÃÃÃÃOO!

   A criatura bebia furiosamente, sugando com força, os dentes cortando minha pele.

   Gritei, e gritei de novo.

   Caí de joelhos. Comecei a me sentir fraca... tão fraca.

   Foi então que ouvi um berro. O pisotear de gravetos.

   Papai saiu de trás das árvores, os olhos arregalados, o rosto contraído pelo susto.

   Ele me viu no chão e ficou de queixo caído ao perceber a criatura no meu pescoço.

   - Não se mexa! Não se mexa! - gritou.

   Num salto ele estava ao meu lado estendendo as duas mãos para segurar a criatura.

   - Não puxe! - falei com voz esganiçada. - Ele vai abrir um buraco...

   Papai cerrou os dentes enquanto lutava para abrir as mandíbulas do bichinho. Ficou com a cara quase roxa.

   - Deeuuu! - ele disse finalmente.

   E caiu para trás. Vi a criatura saltando da mão dele e escapando pelo capim alto.

   Ainda sentia a dor latejante na garganta. Toquei o pescoço e senti o sangue quente escorrendo pela pele.

   - Você está bem? Laura? Você está bem? - papai não parava de repetir. Inclinou-se sobre mim e afastou minha mão para poder ver o ferimento.

   - Eu... não sei - sussurrei.

   - Tome. - Ele puxou um lenço do bolso detrás e me entregou. - Pressione contra o pescoço. Vai estancar o sangue.

   Fiz o que papai mandou e ele me ajudou a ficar de pé.

   - Minha nossa! - murmurei, sacudindo a cabeça. Eu me sentia tonta. - O que houve? O que era aquilo?

   Papai sacudiu a cabeça.

   - Não consegui enxergar direito - ele disse. - Estava muito ocupado tentando separar as mandíbulas... e depois ele saiu correndo. Como é que você está? Está bem?

   - Acho que sim. A dor está começando a sumir. - Respirei fundo. - Mas foi tão doido - eu disse, lembrando do bichinho ao pular na minha mão e depois investir

no meu pescoço. - Ele não me mordeu simplesmente. Estava sugando meu sangue. - Estremeci. - Estava sugando meu sangue como um vampiro.

   - Deixe-me ver seu pescoço. - Papai pegou o lenço encharcado e analisou o ferimento.

   "Não estou gostando nada disso", seu cenho franziu, apreensivo. "Temos que ir ao dr. Davi agora mesmo."

   O dr. Davi nos encaminhou ao consultório imediatamente. Ele é baixo e gorducho, feito um ovo com uma cabeça pequena. Lembra um avestruz.

   - O que aconteceu, Laura? - ele perguntou, me levando para a mesa de exame.

   - Algo a mordeu - disse papai. - Um filhote de caxin- guelê, talvez. Mas não tenho certeza. É difícil dizer porque, seja o que for, tinha perdido o pêlo.

   Olhei para o papai por cima do ombro do doutor. Por que estava mentindo? Não havia jeito de aquilo ser um caxinguelê. Por que ele não disse que era uma espécie de porquinho esquisito?

   O dr. Davi examinou o ferimento.

   - Talvez fosse um animal doente. Podia estar com hidrofobia - falou baixinho. - Ele parecia hidrófobo? - o doutor perguntou.

   - Sinto muito - respondeu papai. - Ele saiu correndo. Simplesmente não sei.

   - As injeções anti-rábicas são bem dolorosas - falou o doutor. - Vou levar uma amostra do seu sangue ao laboratório antes de iniciar as injeções. Os resultados estarão prontos amanhã de manhã, no máximo. Enquanto isso, vou lhe dar uma receita de antibiótico. Comece a tomá-lo em seguida.

   Raiva! Senti um frio na barriga. Tomara que o exame de sangue não dê nada, pensei. Fiquei olhando o dr. Davi preparar agulha e linha para dar os pontos no ferimento.

   Fechei os olhos e lembrei do animal que tinha me mordido. Revi o corpo rosado, o focinho parecido com o de um porco. Não era um caxinguelê, pensei. Definitivamente, um caxinguelê é que não era.

   Pouco depois papai e eu atravessávamos o estacionamento para entrar no carro.

   - Como estou? - perguntei. - Parecida com o Frankenstein?

   Papai passou a mão suavemente pelo meu pescoço.

   - Deve ficar bom, sem deixar uma grande cicatriz - retrucou. - Talvez você sinta uma comichão daqui a um tempo, mas tente não coçar, tá bom?

   - Sim, claro - murmurei.

   - Você está sentindo alguma coisa? - papai perguntou ao chegarmos ao carro. - Está se sentindo meio estranha ou enjoada?

   Sacudi a cabeça.

   - Não, estou bem.

   Entrei no carro e esperei que ele se acomodasse na direção. O dr. Davi tinha me dado uns analgésicos, mas eu ainda sentia o pescoço.

   - Papai, por que você disse ao dr. Davi que era um caxinguelê? - perguntei. - Aquilo não se parecia com um.

   Papai deu a partida no carro e saiu de ré da vaga.

- Eu não vi direito. E, sem o pêlo, era difícil definir o que era. - Mas se parecia com um porco - eu disse. - Tinha um focinho igual ao de um porco. Não se parecia nem um pouco com um caxinguelê. Por que você não disse que se parecia com um porco?

   Papai se virou para mim.

   - Era mais simples, Laura. Só isso. Na verdade, não importa. Vamos esperar o resultado do exame de sangue pra saber o que fazer depois.

   Engoli em seco e olhei pela janela. Seguimos em silêncio por um tempo.

   - Detesto dizer isso, mas estou com um pouco de medo de retornar à mata - confessei.

   - Não se preocupe com isso - disse papai. - Você não vai retornar à mata por um bom tempo.

   Fiquei tão surpresa que meu queixo caiu.

   - O quê? Por que não?

   - Por que não? - Papai arqueou as sobrancelhas. - É você quem está encontrando porcos vampiros! Você acha que a mata tem andado segura?

   - Mas... mas... - comecei a protestar.

   - Mas o quê, Laura? - Papai sacudiu a cabeça. - Não sabemos o que a mordeu. Seja o que for, podia estar hidrófobo. E nós sabemos que anda perigoso. Não são razões suficientes?

   Logo vi que não fazia sentido argumentar. Virei o rosto e fiquei olhando para fora da janela até chegarmos em casa.

   Assim que chegamos, corri para meu quarto e bati a porta. Caí na cama e enterrei a cara no travesseiro.

   Preciso voltar à mata, pensei. Ele não pode me impedir. Não pode!

   Pouco mais tarde ouvi a voz de papai lá embaixo. Ele conversava com alguém ao telefone. Saí da cama e abri um pouco a porta.

   - Ela parece estar bem - disse ele.

   Com quem estaria falando? Dr. Davi?

   - Amanhã. Os exames ficam prontos de manhã - falou papai.

   Não era com o dr. Davi.

   Fui até o alto da escada. Agora conseguia ouvir papai claramente. E escutei o que ele disse em seguida. As palavras mais cruéis, que mais me magoaram na vida.

     - Você pode ficar com a Laura por um tempo? Uma viagem a Chicago agora ajudaria. Eu realmente preciso tirá-la daqui.

  

   Na mesma hora telefonei para Ellen e com voz trêmula implorei que viesse me ver.

   Ela tinha feito as pazes com o Silvinho Palmer e estava pronta para ir a um passeio de bicicleta com ele e dois outros caras. Mas me disse que falaria para eles irem sem ela.

   Pouco depois ela apareceu. Levei-a até meu quarto.

   - Laura, o que está havendo? - perguntou, sentando na beira da cama. - Você estava tão estranha no telefone.

   - É o papai. Ele está me mandando embora! - falei embargada. - Eu... eu o escutei falando ao telefone. Falando com a mamãe. Perguntou se ela podia ficar comigo.

Ele... ele disse que precisava me tirar daqui.

   Num salto Ellen ficou de pé.

   - Não acredito! - Ela sacudiu a cabeça. - Ele não pode mandar você embora assim. O que está havendo com ele?

   - Eu... eu não sei - gaguejei. - Talvez tenha sido por causa do animal que me atacou. - Contei a ela sobre o porquinho e depois mostrei o pescoço.

   - Ai, que horror - ela exclamou. - Dói?

   - Não, mas o papai disse que eu não posso mais entrar na mata. Ele acha que é muito perigoso - contei, passando os dedos pelos pontos. - Mas depois ligou pra mamãe e... e... - falei num soluço.

   - Como pôde fazer isso? - lastimei. - Ele só quer se ver livre de mim. Ligou pra mamãe sem sequer falar comigo. Como pôde, Ellen? Ele nem liga mais pra mim.

   Ellen se apressou a me abraçar.

   - É claro que ele liga pra você - disse ela. - Só ficou aborrecido por causa do ataque. Ele só quer ver você segura. Foi por isso que chamou sua mãe. Mas não está falando sério. Ele nunca mandaria você embora.

   - Ele está falando sério sim - insisti. - Bem sério, Ellen. Ele quer se livrar de mim.

   Respirei fundo e outra idéia me veio à mente. Algo que me deu um calafrio na espinha.

   - Já sei por que ele está fazendo isso. Ele verificou o filme da câmera do galpão. Ele viu que eu andei por lá.

   - Opa! Calma aí. - Ellen ergueu a mão. - Agora seu pai tem uma câmera no galpão?

   Confirmei com a cabeça.

   - E você entrou lá? O que havia? - perguntou.

- Os instrumentos dele e coisas assim. Só - contei a ela. Não quis comentar a respeito do diário que tinha encontrado. Não sabia se meu pai estava ou não matando animais e não queria dizer nada a Ellen até ter certeza.

   - E os animais? E aquele que escutamos gemendo? - ela perguntou.

   - Não havia nenhum animal lá dentro. Não sei o que aconteceu com eles - respondi.

   Eu me joguei na cama.

   - Não vou pra Chicago. De jeito nenhum! - declarei.

   O queixo de Ellen tremeu.

   - Eu realmente espero que não - ela disse baixinho e eu podia ver que estava realmente sentida também. Mas em seguida um sorriso lhe atravessou o rosto. - Pelo menos não até depois da minha festa de aniversário!

   Nós duas rimos.

   Ela sempre sabe como me fazer rir.

   - Preciso fazer com que ele mude de idéia - eu disse. - E o único jeito de fazer isso é descobrindo a razão para que esteja agindo de modo tão estranho. Se...

   Parei de falar ao ouvir um grito agudo vindo lá de fora.

   Nós duas nos viramos para a janela aberta.

   - O que foi isso? - Ellen perguntou.

   Um gemido apavorante soou. Um uivo agudo de dor.

   E depois ouvi um outro ruído.

   Um ganido de animal.

   Fui até a janela e olhei a noite escura.

   Uma figura corcunda se apressava rumo à mata. Podia-se ver que andava sobre quatro pernas. Era do tamanho de um cachorro grande.

   Ao alcançar a beira das árvores, ele parou... e eu engoli em seco. Ergueu-se. Ergueu-se sobre duas pernas... e seguiu entre as árvores.

   Meus olhos varreram o quintal...

E no chão... ... no chão...

Deitado de lado no chão... - Toby! - gritei. - Ah, não! Toby!

  

   Ellen e eu voamos do quarto escada abaixo. Abri a porta da cozinha e cruzei o gramado.

   - Toby! Você está bem? - berrei.

   O pobre cachorro, deitado de lado, gania. As pernas em espasmo, o peito arfando.

   - Toby? Toby?

   Caí ao seu lado. Comecei a lhe acariciar a cabeça. Os olhos dele se reviravam de um jeito doido. A língua estava solta para fora da boca.

   - Ahhhh! Olhe. A perna dele. - Ellen gemeu. - Ahhhh. Que coisa!

   Segui seu olhar. A perna do Toby... ah... a perna do Toby...

   A criatura tinha praticamente arrancado fora.

   O pêlo tinha sido rasgado. Pedaços de carne dilacerados. O sangue corria pela grama. Eu podia ver as veias pulsando ali no meio e um osso aparecendo.

   A respiração paralisou no meu peito. Eu não conseguia me controlar. Comecei a ficar enjoada. Podia sentir o jantar voltando para a garganta e me esforcei para engolir.

   Depois me forcei a desviar o olhar daquele machucado horrível.

   - Toby - sussurrei, acariciando suavemente a cabeça dele. - Você vai ficar legal. Você vai ficar legal.

   O cachorro ganiu baixinho, fraco demais para erguer a cabeça da grama.

   Olhei para cima e vi Ellen correndo, trazendo meu pai e apontando alarmada para Toby.

   - Ele foi atacado! - gritei para papai. - A perna... está bem feia.

   Papai ficou boquiaberto ao ver a perna mastigada.

   - Ele está perdendo muito sangue. Vou estancar o sangue. - Papai tirou a camiseta e rasgou um pedaço.

   "Laura, vá lá dentro e traga as ataduras", disse ele enquanto enrolava a perna do Toby com uma tira da camiseta. "Temos que levá-lo a um veterinário... rapidamente.

Ele vai precisar ser operado.

   Papai e eu carregamos o coitado do Toby para a caminhonete e o acomodamos no banco de trás. Ele nos encarou com aqueles grandes olhos escuros e ficou imóvel.

Estávamos cobertos de sangue.

   - Eu ligo pra você mais tarde - disse a Ellen e entrei na caminhonete ao lado do papai.

   - Espero que ele fique bem - disse Ellen, sacudindo a cabeça com tristeza. Os olhos marejados de lágrimas. - Liga!

   Toby ganiu baixinho lá atrás enquanto papai dava ré ao longo da entrada.

   - Acho que vi o bicho que atacou Toby - eu disse.

   - O que era? - Papai manteve os olhos na estrada.

   - Bem, não sei com certeza. Estava muito escuro pra ver direito. Mas era do tamanho do Toby... - contei.

   - Bem, poderia ser qualquer coisa - papai interrompeu.

   - É - eu disse. - Mas olha que coisa estranha. Ele estava correndo sobre as quatro pernas. Depois parou e correu pra mata sobre duas.

   Papai engoliu em seco.

   - Duas pernas? - exclamou, sem tirar os olhos da estrada.

   - Sim. Não é estranho?

   Papai não respondeu.

   Olhei pela janela. A maioria das casas estava com a luz apagada. Toby choramingava no assento de trás.

   - Ei, espere! - exclamei. - Não é por aqui que se vai ao hospital veterinário! Papai... volte!

   - Não estou indo pra lá - falou baixinho, ainda evitando meu olhar.

   - Mas... mas... - gaguejei.

   - Há um bom lugar em Cachoeiras do Andarilho - disse ele. - Conheço uns veterinários lá. Eles vão...

   - Cachoeiras do Andarilho? Mas fica depois da próxima cidade! - falei alto.

   - É um bom lugar - papai insistiu. - Eles são especialistas neste tipo de cirurgia.

   -Mas papai...

   Ele finalmente se virou para mim. Fiquei chocada ao ver seus olhos frios. A expressão continuava dura.

   - Não discuta, Laura. Eu sei o que estou fazendo.

   - Ok, tudo bem. - Suspirei e me virei olhando pela janela.

   Seguimos o resto do caminho em silêncio. Percebi que papai não chegaria nem perto do hospital veterinário. Nem mesmo numa emergência como esta. Por que será? pensei.

   O que terá feito que não consegue mais encarar a dra. Camila?

   Que coisa horrível terá feito?

  

     Tivemos que deixar Toby no hospital. O veterinário limpou e deu pontos no ferimento, mas não sabia se a perna ficaria a salvo. Tínhamos que esperar para ver.

     Ao chegarmos em casa, não consegui dormir. Fiquei virando na cama a noite inteira, pensando no Toby e no bicho esquisito que o atacou. Estavam acontecendo tantas coisas estranhas na mata.

     Eu precisava descobrir o que estava havendo por lá. E isto seria impossível de Chicago.

     A minha vida toda pareceu repentinamente fora de controle. Eu andava com medo daquilo que mais amava - a floresta. E estava zangada com o papai. Zangada porque ele não confiava em mim. Nem me contava as coisas. Zangada porque ele queria me mandar embora.

     Além disso, eu estava com medo dele, percebi. Não conhecia mais meu próprio pai. Estava com medo do que ele poderia fazer a seguir.

Depois da escola, corri para o hospital veterinário. A dra. Camila me recebeu na sala de espera. Ela parecia estar bem estressada. Tinha olheiras escuras sob os olhos e o cabelo estava despenteado.

   Antes que eu tivesse a chance de dizer oi, ela localizou o ferimento no meu pescoço.

   - Laura, o que houve? O Toby mordeu você?

   - Não. Fui mordida por um... - Eu não sabia o que dizer. Não sabia o que tinha me mordido.

   - Por um o quê? - ela perguntou.

   - Bem, parecia um porquinho. Com dentes realmente afiados. - Soltei uma risada nervosa. - Eu sei que parece loucura...

   - Onde estava esse porquinho? - ela se interessou. - Onde você estava quando foi mordida?

   - Na mata - contei.

   - Um porquinho com dentes afiados correndo pela mata. Parece meio louco, não é? - A dra. Camila franziu o cenho. - E o seu pai o que acha?

   Suspirei.

   - Sei lá. Ele disse ao dr. Davi que era um caxinguelê. Falou isso só porque era mais simples do que tentar explicar como o bicho era de fato.

   - Ah, seu pai também o viu? - perguntou.

   - Acho que sim - respondi.

   A dra. Camila inclinou-se para ver o ferimento mais de perto. Passou os dedos cuidadosamente em volta dos pontos.

   - Isto não está nada bom - murmurou, levantando os olhos para mim. - O médico lhe deu uma vacina anti-rábica? Ou um antibiótico?

   - Pegamos o resultado do exame de sangue hoje de manhã. Não precisei tomar a injeção - informei. - Ele me deu um antibiótico sim. - Fiquei ofegante. - Ah, não.

Papai pegou os comprimidos, mas esqueceu de me dar.

   A dra. Camila pôs o braço sobre meu ombro.

   - Não se preocupe. O ferimento não parece infecciona- do. Só está um pouco inchado. Acho melhor lhe dar uma injeção para diminuir o inchaço.

   Eu tinha esquecido que além de veterinária a dra. Camila também era médica.

   - Tudo bem, mas acho que devia falar com o papai antes - eu disse.

   - Tudo bem - disse ela. - Posso ligar para o seu pai imediatamente e pedir a permissão dele, Ok?

   - Bem... legal - respondi. - Obrigada, dra. Camila.

   Ela sumiu por alguns minutos, me deixando na sala deespera. Ao voltar, tinha um sorriso nos lábios.

   - Ele se desculpou por ter esquecido dos comprimidos, Laura. E disse que seria bom eu lhe dar logo uma injeção.

   - Tá bom. Ótimo! - exclamei. Tentava parecer corajosa, mas odeio injeções!

   Eu a segui até o laboratório. Lá ela tirou alguns vidros de um armário e preparou a injeção.

   - Como... como estava o papai quando você falou com ele? - perguntei.

   - Bem. - Ela me olhou de esguelha. - Bem, talvez um pouco cansado. Por quê? Ele não anda se sentindo bem?

   - Não, não. Ele está bem. Hã... mais ou menos - eu disse.

   - Ele ainda está aborrecido por ter saído do hospital? - ela perguntou.

   - Eu... eu não acho que seja isso - concluí.

   - O que há, Laura? O que está deixando você preocupada? - Ela sentou num banco ao meu lado.

   - Eu tenho impressão de que aconteceu alguma coisa aqui antes do papai ir embora. Alguma coisa ruim. - Respirei fundo.

- Alguma coisa ruim? - a dra. Camila indagou. - O que a faz pensar isso?

   Eu não queria contar nada sobre Toby. Se dissesse que papai se recusara a vir aqui, ela se sentiria péssima.

   Mas não tive escolha.

   - O Toby foi atacado ontem à noite e papai o levou a Cachoeiras do Andarilho. Não quis vir aqui - falei rapidamente.

   A dra. Camila não disse nada. Só concordou com a cabeça.

   - Você sabe por que ele não quis vir aqui? - indaguei.

   Ela não respondeu. Em vez disso, levantou-se, esfregou álcool no meu braço com um chumaço de algodão e ergueu a seringa.

   - AAAI! - Tentei não gritar ao sentir a agulha furando minha pele, mas não resisti.

   A dra. Camila franziu a testa.

   - Não doeu tanto assim, doeu? - Ela esfregou o algodão de leve. - Vai ajudar a desinchar.

     Depois ela me deu um comprimido verde, um antibiótico, para tomar. Colocou o resto dos comprimidos num vidrinho de plástico e me entregou.

   - Não deixe de tomar um todas as manhãs.

   Segurei o vidro.

   - Mas... o que você ia dizer sobre o papai? - perguntei.

   Ela suspirou.

   - Laura, se o seu pai não quer lhe falar sobre o que aconteceu, não sou eu que vou. É ele que precisa fazer isso.

   Ela endireitou o jaleco.

   - Por que você não volta aqui amanhã? Darei uma olhada nos seus pontos e poderemos conversar mais um pouco.

   - Tá bom - concordei. E fui indo para a porta. - Obrigada.

   - Laura... - A dra. Camila veio atrás de mim. - Talvez fosse melhor você ficar longe da mata por um tempo.

   Olhei para ela. Estava repetindo as palavras do papai!

   De jeito nenhum, pensei. Não há o que me faça ficar longe da mata.

   Eu tinha muitas dúvidas.

   E nenhuma resposta.

   Na manhã seguinte eu estava no quintal fazendo o dever de casa. Recostada numa árvore, lia o livro de inglês. Não me importo de fazer o dever se puder ficar sentada lá fora.

   - Ei! Qual é? - João atravessou o gramado vindo até mim.

   - Oi! - Sorri, deixando o livro descansar na grama. Ele estava usando uma calça jeans preta e camiseta cinza, uma graça!

   - Como está seu cachorro? - perguntou.

   - Ainda está no hospital - eu disse, levantando. - O veterinário o operou ontem à noite. Ainda não sabemos se ele vai ou não ficar com a perna.

   João ficou com os olhos arregalados de surpresa.

   - Hã? Seu cachorro está no hospital?

- Não foi por isso que perguntou? - questionei. Ele sacudiu a cabeça.

   - A última vez que eu vi você, ele quase a atacou. Lembra?

   - Ah, é. - Mas tinha acontecido tanta coisa desde então. Contei ao João sobre o terrível ataque que Toby tinha sofrido.

   João gaguejou.

   - Quer dizer... eles podem cortar a perna dele? - Ele enrolou um nó do longo cabelo entre os dedos. - Sinto muito - murmurou. - Que péssima notícia.

   - É mesmo - concordei. - Mas há uma boa notícia. - Respirei fundo. - Estou dando uma festa de aniversário para minha amiga Ellen no próximo sábado. Você vem?

Pronto! Finalmente! João hesitou um pouco.

   - Venho sim, claro - ele disse. - Legal!

   Não posso nem esperar para contar a Ellen que ele vem à festa, pensei. Isso é demais!

   - Por que você não pega sua câmera? - ele disse. - Vamos dar uma caminhada até o açude.

- Grande! - E pouco depois estávamos indo para lá. No início fiquei nervosa de estar na mata, mas não vimos nada de anormal e era muito legal estar passeando com o João.

   Sentamos junto ao açude e ficamos conversando sem parar. Não vi nenhum animal para fotografar, mas na verdade nem estava prestando atenção. Antes que eu pudesse

me dar conta, já estava perto da hora do jantar.

   - Até sábado. - João se levantou, começando a ir embora e depois se virou. - Espero que seu cachorro venha logo para casa.

   - Obrigada - eu disse, observando enquanto ele se afastava desviando os galhos do caminho.

   Devia ter perguntado onde ele mora, pensei. Tenho que me lembrar na próxima vez. Então tive uma idéia. Vou segui-lo até em casa, decidi.

   Dei a volta e corri pela trilha. Podia ouvir os passos de João um pouco à frente.

   Diminuí o passo. Não queria que ele me surpreendesse a segui-lo. Isso não seria nada legal.

   Numa curva da trilha João ficou à vista. Ele caminhava rapidamente, batendo no chão com uma vara que apanhara numa das árvores.

   A trilha seguia por baixo de umas velhas árvores de copas generosas que pendiam baixas sobre o chão. As folhas espessas bloqueavam o sol da tarde, tornando a mata quase tão escura quanto a noite.

   Fiquei bem para trás de João, observando-o através da luz difusa. Agora ele estava correndo, movendo-se apressado pelas sombras que caíam.

   Cheguei ao final das árvores, mas perdi o rastro.

   Olhei ao longo do caminho. Não havia sinal dele. Virei- me e corri os olhos pela clareira gramada à minha direita. Nada. Nada do João.

   À minha esquerda havia um muro de pedra. Era da minha altura. Será que ele tinha pulado? Aonde teria ido?

   - Desisto - murmurei. Dei a volta e comecei a caminhar rumo ao açude, mas parei logo antes das árvores ao ver algo na clareira.

   Dei mais alguns passos para chegar mais perto. Aí me dei conta de que era um tipo de barraco. Uma cabaninha tosca, do tamanho de uma barraca de acampamento.

   - Ei... há alguém aí? - chamei.

   Nenhuma resposta.

   Abri caminho pelo capim alto e fui até lá. As paredes eram feitas de galhos de sempre-verde amarrados com cordas e barbantes. Varetas e folhas tinham sido usadas para tapar os buracos que os galhos não cobriam.

   - Alguém aí? - chamei, mais baixo dessa vez.

   Silêncio.

   Eu me inclinei para a frente e enfiei a cabeça por uma abertura na parede de folhas. Estava escuro lá dentro, mas círculos de raios solares penetravam por cima.

   Meus olhos pararam sobre um dos círculos iluminados... e eu congelei. Os olhos fixos.

   Vi dois dedos cabeludos, de couro, no chão da cabana.

   E ao lado deles... ao lado deles... um montinho de ossos... ossos de animais. A maioria deles tinha sido deixada limpa, mas alguns ainda tinham pedaços de carne e pêlo pendurados.

   E no canto... amontoadas no canto, enxerguei cabeças de animais. Mesmo com a luz difusa, eu conseguia ver claramente. Empilhadas umas sobre as outras. Cabeças de coelho, de esquilo, duas de quati, os olhos esbranquiçados, vidrados, olhando para mim.

   - NÃÃÃO! - gritei sem querer.

   Que tipo de criatura vive aqui? Que tipo de besta constrói a própria casa e guarda animais mortos ali dentro?

   Toda a cabana sacudiu quando puxei a cabeça para fora. Saí voando. Os ossos, as cabeças, os olhos leitosos persistiam na minha mente.

   Dei a volta e corri. Corri pela clareira. Estava a meio caminho para as árvores quando escutei o ronco atrás de mim.

   O ronco de um motor.

   Virei-me... e vi o jipe camuflado correndo pela clareira em minha direção, com o trailer chacoalhando atrás.

   - PARE! - gritei, abanando as mãos.

   Mas o jipe pegou velocidade.

   - PARE! - Dei a volta e comecei a correr.

   O motor roncou. O jipe arrancava pequenas árvores e arbustos conforme ia se aproximando de mim. Atrás dele o trailer chacoalhava para um lado e outro, tanto que achei que iria virar.

   Eles querem me atropelar! É isso. Não vão parar!

   Pulei sobre uma pedra grande e continuei a correr. Mas o jipe estava me alcançando. Cruzei a trilha, baixei a cabeça e corri.

   Não me lembrei daquele muro de pedra até ser tarde demais.

   Não havia tempo para pular. Não havia tempo para contornar.

   Eu estava perdida. Estava sem saída

   Olhei em volta e vi o jipe correndo ao meu encontro.

   Vou ser esmagada contra o muro, pensei. Fechei os olhos, rangi os dentes e retesei os músculos.

   E escutei o cantar de pneus enquanto o jipe freava der- rapando.

   Abri os olhos e vi que tinha parado a centímetros de mim. Fiquei com os olhos arregalados enquanto o motorista colocava a cabeça pela janela.

   Ele pôs a cabeça para fora... e eu o reconheci. E engoli em seco.

   - Ah, nããão. É VOCÊ!

   Eu não conseguia acreditar. Como podia?

   - Papai! - gritei - o... que você está fazendo aí?

    

   Corri para a lateral do jipe.

   - Papai? O que está fazendo aqui? - berrei.

   Seus óculos cintilaram, refletindo o sol que caía. Eu não conseguia ver os olhos dele. Ele franziu o cenho. O rosto vermelho feito pimentão.

   - Entre - ele grunhiu.

   - Papai... responda à minha pergunta - disse.

   - Entre - ele repetiu irritado. - Eu disse para você ficar longe da mata.

   Olhei para ele. Sua expressão era tão fria, tão brava, que mal o reconheci.

   - Vou levá-la para casa - disse ele. - Entre no jipe... já.

   - N... não até que você explique - insisti. - O que há no trailer? O que você está fazendo aqui, papai?

   Ele soltou outro grunhido e com um empurrão abriu a porta do jipe, saltando fora.

   Agarrou meu braço e começou a me puxar.

   - Entre, Laura. Não tenho tempo para isso.

- Ai! Você está me machucandol - reclamei, me debatendo.

     Ele apertou mais forte e me puxou para o outro lado do jipe.

     Ele está totalmente mudado, pensei. Não é a mesma pessoa. Virou uma espécie de monstro.

     Ele me pôs no assento do passageiro à força e bateu a porta.

 

     Todo o meu corpo tremia. Eu me abraçava, tentando segurar aquela tremedeira.

     Como pode? pensei. Estou apavorada. Com medo do meu próprio pai...

     A semana se arrastou. Eu não me sentia muito bem. Estava cansada e fraca, como se estivesse com gripe. O machucado do pescoço doía e latejava.

Papai não falou mais nada sobre me mandar para a mamãe. Meu estômago ficava todo embrulhado só de pensar que ele podia voltar ao assunto. Mas nunca voltou.

     Eu estava bem ansiosa, esperando o dia da festa de aniversário da Ellen, e passei a semana toda planejando. Queria que fosse bem divertida, para a Ellen e para mim também. Eu precisava de algo para me animar.

     No sábado, dia da festa, acordei e corri até a janela. Sim! O dia estava lindo. Ensolarado e quente. O ar trazia um cheiro fresco e adocicado. O verde das árvores brilhava como esmeraldas. Dia perfeito para uma festa.

   A cor favorita de Ellen é azul. Então, depois do café corri lá para fora e cobri o quintal com bandeirolas e dúzias de balões azuis. Arrastei nossa mesa de piquenique até o centro do gramado e pus uma toalha azul por cima.

   Até o bolo de aniversário tinha cobertura de glacê azul!

   Quando ela chegou ficou atônita com o que viu no quintal.

   - Laura, demais! Amei! - exclamou, me dando um abraço e correndo em seguida para cumprimentar os dois garotos que estavam chegando.

   Até o último minuto Ellen tinha acrescentado gente na lista de convidados, depois mudando de idéia e riscando os nomes.

   Acabei convidando todo mundo da nossa sala.

   Pus um som no aparelho portátil de CD e levei para fora as bandejas de pizza. Uns vinte amigos tinham vindo. Estavam todos rindo, brincando e comendo.

   Ellen, cercada de garotos, me mostrou o polegar voltado para cima. Eu podia ver que ela estava curtindo a festa.

   Onde estará o João?, pensei. Eu continuava esperando que ele chegasse. Queria muito que Ellen o conhecesse.

   Verifiquei se havia refrigerante suficiente e espantei umas moscas que sobrevoavam o bolo.

   Ao levantar a vista da mesa, vi papai atravessando o gramado a caminho do galpão. Expressão taciturna, cabeça baixa, ele nem parecia notar o pessoal ou a festa.

   - Papai, você quer uma fatia de pizza? - chamei.

   Ele acenou com a mão, dizendo que não e depois sumiu galpão adentro, fechando rapidamente a porta atrás de si.

   Certo, ele tinha permitido a festa no quintal.

   - Só garanta que ninguém entre na mata - ele disse severo. - Estou falando sério, Laura. Ninguém.

   Suspirei lembrando das minhas festas de aniversário quando era pequena. Sempre havia uma caça ao tesouro na mata. Papai fazia os preparativos. Escondia coisas nas árvores, embaixo de pedras e às vezes até boiando no córrego.

   Ele era tão divertido naquela época, pensei.

   Eu olhava com tristeza para o galpão. Depois, sacudi aqueles pensamentos tristes e voltei para a festa.

   - Hora de cortar o bolo, pessoal! - gritei mais alto que a música. - Ei... quem quer bolo?

   Algumas pessoas começaram a ir para a mesa. Havia meninas dançando no meio do quintal. Um bando de garotos jogava frisbee.

   - Ei, Ellen... venha cortar seu bolo! - gritei, varrendo o quintal com os olhos. - Alguém viu a Ellen? - perguntei.

   Alguns garotos procuraram em volta, tentando me ajudar na busca.

   - Ela saiu com o Silvinho - disse um menino.

   - Hã? Pra onde? - perguntei.

   O garoto apontou para as árvores.

   - Estavam indo pra mata.

   - Ah, não - grunhi. Se papai descobrisse que alguém tinha ido até a mata, acabaria com a festa!

   Eu tinha que trazer os dois de volta... e rápido.

   Atravessei o quintal correndo.

   -Já volto! - disse. Chegando à trilha comecei a chamar: - Ellen? Ei, Ellen? Silvinho?

   Nenhuma resposta.

   Segui a trilha enfrentando o capim crescido, um tronco caído.

   - Ellen? Silvinho? Onde é que vocês se meteram?

   Fiz todo o caminho até o açude, depois dei a volta.

   Como ela podia ter feito isso comigo?, pensei irritada.

Será que não sabe que está me metendo na maior fria?

   Andei em círculos, chamando por eles. Eu estava cada vez mais irritada.

   - Silvinho? Ellen? - eu chamava, os olhos procurando entre as árvores. - Vocês estão aí?

   Nenhuma resposta.

   Um pássaro grasnou. Um ruído feio, seco, como se ele tivesse algo preso na garganta.

   - Ei... se vocês estiverem se escondendo, não tem nenhuma graça! - berrei.

   Escutei passos. Passos rápidos, correndo entre as árvores atrás de mim. Virei rapidamente.

   - Ellen? Silvinho? São vocês?

   - Haahhh haahhh. - Grunhidos de animal. Bem próximos.

   Gelei. A respiração presa na garganta.

   - Haaahhhh. - Um grunhido longo e baixo.

   E depois um guincho agudo, alto. Um grito horrível, pavoroso... como o de um animal sentindo dor.

   Corri em direção ao som.

   O coração pulando, corri de árvore em árvore, procurando freneticamente, assustada com o que poderia encontrar.

   Deparei com uma moita de sempre-verde sacudindo. Um lampejo vermelho manchando o verde. Depois escutei um som longo, alto, de algo sendo rasgado. Até parecia o velcro de um sapato se abrindo.

   Meu coração deu uma falhada conforme me aproximava da moita.

   Ouvi um gemido, baixo e fraco.

   Depois parei ao ouvir o ruído de mastigação. O estalar de ossos se partindo.

   Um som alto de mastigar... mastigar... mastigar...

   Era insuportável. Eu não agüentava mais.

   Precisava ver o que havia do outro lado da moita.

   Com o coração aos saltos, fui contornando o arbusto, olhei para o chão e abri a boca num grito que não acabava mais.

   Um cervo jazia estatelado sobre o capim alto. A cabeça tinha sido arrancada e estava a alguns centímetros do corpo. Um dos olhos olhava no vazio para mim. O outro tinha sido puxado.

   O corpo esquartejado. Ossos brancos e carne encarnada apareciam através da pele rasgada. Um enxame de moscas já estava zunindo em torno.

   - Está... meio comido - falei engasgada.

   Olhava horrorizada para o cervo. A maior parte do seu interior tinha sido esgarçada e devorada. A pele estava solta, como se fosse uma bolsa vazia.

   - Que horror! - gemi, finalmente dando a volta. - Horrível!

Que tipo de animal teria feito aquilo? Não havia ursos por aqui. Então o que seria grande e forte o suficiente... e teria tanta fome... para fazer isso?

E se o cervo não estivesse por ali?, pensei.

Eu estava tão próxima. Será que o animal teria me encontrado? Teria me esquartejado e devorado?

Tive um calafrio dos pés à cabeça. Saí na direção oposta ao cervo morto e então me dei conta de que Ellen e Silvinho continuavam por ali. Precisava encontrá-los.

Precisava ter certeza de que estavam bem. Dei a volta em torno do arbusto de sempre-verde e encontrei a curva da trilha que ia dar no açude.

Já estava seguindo por ela quando ouvi o som de passos novamente. Gritando assustada me virei... e vi um homem vindo em minha direção, correndo. Os óculos cintilando com o reflexo da luz.

     - Papai! - gritei. - Papai... o que você está...

     Não acabei minha pergunta.

     Ao vê-lo se aproximar, fiquei embasbacada de horror com as manchas vermelhas que cobriam toda a frente de suas roupas.

     O vermelho... brilhante, vermelho molhado...

       Meu pai... ele estava coberto de sangue.

 

   - O sangue - murmurei.

   Dei um passo para trás, o corpo tenso de medo.

   Papai estava parado com o corpo arqueado em minha frente, respiração ofegante.

   - Você tinha prometido, Laura. Prometeu ficar no quintal.

   - Mas papai... - apontei - e esse sangue... O que é isso?

   Ele olhou para baixo, como se estivesse vendo aquilo

pela primeira vez. Ficou olhando por um longo instante.

   - Ouvi você gritando - ele disse finalmente e deixei tudo e saí correndo.

   Havia sangue nas mãos dele e vi uma manchinha escurecendo no queixo.

   - Dei um encontrão num galho pontudo - disse ele - e... cortei o peito, acho. Não parei para ver. Achei que você estivesse em apuros.

   Nós nos olhávamos. Eu não conseguia tirar os olhos do sangue vermelho, encarnado. Ainda molhado. Ainda tão molhado.

   Será que eu acreditava naquela história?

   Queria acreditar. Mesmo. Mas lembrei do diário no galpão. Se os matamos, aprendemos mais. Quantos podemos matar?

   Teria sido o papai que tinha matado o cervo?

   Não... não... por favor, não!

   Ele tirou os óculos, enxugando-os na lateral das calças. Lançou um olhar para mim.

   - Você está bem? Ouvi seu grito... está machucada?

   Sacudi a cabeça.

   - Não. Um cervo. Ouvi um cervo sendo atacado. Por algum tipo de animal. Fiquei assustada.

   Olhei para meu pai. Ele não podia ter feito aquilo. Não podia ter arrancado a cabeça do cervo daquele jeito. Não é possível, eu dizia a mim mesma. De jeito nenhum.

De jeito nenhum.

   Ellen e Silvinho e todos os outros estavam nos esperando quando chegamos no quintal. Papai entrou em casa sem ser notado enquanto todo mundo se reuniu a minha volta, conversando ao mesmo tempo, rindo, aliviados.

   - Laura, aonde é que você foi? - perguntou Ellen. - Nós ouvimos você gritar e... ficamos tão assustados.

   - Aonde é que vocês foram? - retruquei. - Eu fui procurar por vocês...

   - Eu e o Silvinho estávamos na garagem - disse Ellen - procurando outro frisbee.

   - Alguém disse que vocês tinham ido para a mata - eu disse, suspirando.

   - Podemos cortar o bolo agora? - um menino gritou.

   Todo mundo riu.

   Cortamos o bolo. Estava um pouco derretido e pesado por ter ficado ao ar livre por tanto tempo.

   A festa acabou cedo. Ninguém mais estava realmente no clima.

   - Sinto muito - desculpei-me com Ellen pela centésima vez enquanto ela se despedia, indo embora com Silvinho e dois outros garotos. - Eu... não devia ter ido para a mata daquele jeito.

   Ellen me abraçou.

   - A festa foi ótima mesmo assim. Ah, esqueci de contar. O João esteve aqui.

   - Hã? Quando?

   - Ele apareceu logo depois que você saiu pra mata, mas como você não estava aqui ele foi embora. Ele não é nada mau. Meio tímido, mas nada mau.

   Fiquei tão desapontada. Por que ele não ficou? Que pena! Mas pelo menos a Ellen finalmente o conheceu.

   Depois que ela e os outros se foram, apanhei alguns pratos e copos de papel e os levei para dentro.

   Mas não consegui acabar a limpeza. Estava muito chateada. E muito confusa. A dra. Camila tinha dito que eu poderia ir até lá conversar quando quisesse... e era exatamente isto que eu iria fazer.

   Ela sabia algo sobre o papai. Algo que não queria me contar. Mas eu precisava arrumar um jeito para que ela soltasse a língua. Eu precisava saber.

   Saí pela porta dos fundos, deixando a porta de tela bater atrás de mim. Peguei a bicicleta e comecei a pedalar a toda a velocidade rumo ao hospital veterinário.

   Esperava que ela estivesse lá. Eu realmente precisava que me ajudasse.

   Alguns minutos depois eu saltava da bicicleta, deixando-a cair na grama. E entrei correndo no prédio.

   Não havia ninguém na recepção. Ouvi um rádio tocando no corredor. Alguns cachorros latiam.

   - Alguém aqui? - chamei.

   Nenhuma resposta. Então fui até o escritório central. Abri a porta.

   - Dra. Camila? - As luzes estavam todas acesas. Vi uma xícara de café e um bolinho meio comido sobre a escrivaninha. Mas nem sinal dela.

   Não saio daqui sem respostas, disse a mim mesma. Não posso conviver com todas estas dúvidas sobre o papai. Ando com medo dele. Não posso ter medo do meu próprio pai.

   Atravessei a sala até a parede dos arquivos.

   Olhei de volta para a porta. Nem sinal da dra. Camila.

   Apressei-me até as gavetas com os arquivos. Após alguns segundos encontrei uma gaveta marcada com REGISTROS DE EMPREGO.

   É isso!, pensei. Puxei a gaveta, que estava abarrotada. Minha mão tremia enquanto manuseava as pastas, procurando pela do meu pai.

   Finalmente encontrei uma com o nome dele. Levantei-a... e abri.

   Vazia. A pasta estava completamente vazia. Alguém tinha retirado todos os registros. A pasta caiu da minha mão. Eu me abaixei para apanhá-la.

E ouvi uma voz sobressaltada vindo da porta. - Laura! O que você está fazendo?

 

   Num salto fiquei de pé.

   - Dra. Camila! - gaguejei. - De... desculpe.

   Seu cabelo louro brilhava sob as luzes do teto. Os olhos verdes se apertaram, me analisando.

   - O que você está fazendo aqui, Laura? O que está procurando?

   Não me segurei. Contei tudo que estava me preocupando.

   Contei sobre o papai ficar trancado no galpão dia após dia. Contei sobre a câmera na porta. Sobre os estranhos gemidos e uivos de animais lá dentro. Contei a ela sobre o sangue. Contei que achava que o papai podia estar matando animais.

   - Estou tão preocupada com ele, dra. Camila - eu disse, incapaz de evitar a voz trêmula -, estou preocupada e com medo dele. E... e ele quer me mandar embora.

Acredita numa coisa dessas? Consegue acreditar que ele realmente me mandaria embora?

   Ela me olhou bem.

   - Uau! - exclamou. - Que péssimo. Não acredito, Laura. Realmente não. Seu pai é um bom homem, mesmo que...

   - Mesmo que... o quê? O que ele anda fazendo? - supliquei. - A senhora sabe? Por que ele deixou o emprego aqui? A senhora precisa me contar! Precisa!

   Ela suspirou se acomodando na cadeira da escrivaninha e me fez sinal para sentar do outro lado, a sua frente.

   - Está bem. Como você está tão chateada, vou lhe contar o que aconteceu - ela acabou dizendo -, mas não é nenhuma bela história, Laura.

   Sentei-me imóvel, com as mãos frias e úmidas cruzadas sobre o colo, e escutei a história...

   - Seu pai e eu estávamos trabalhando juntos numa importante pesquisa genética com animais. Mas comecei a sentir que ele estava indo longe demais. Acabou ficando obcecado. Trabalhava na pesquisa dia e noite. E depois de um tempo já não me contava sobre as coisas que estava estudando. Estava cheio de segredos.

   "Comecei a desconfiar que ele estava levando o trabalho para outro curso, achei que as experiências que realizava com os animais podiam ser cruéis."

   Eu escutava atentamente para entender bem o que a dra. Camila estava me dizendo.

   - Que tipo de pesquisa ele estava fazendo? - perguntei. - O que estava tentando descobrir?

   - Estávamos tentando entender como os genes podem ser usados para combater vírus. Estudando o padrão genético dos animais, esperávamos modificar os genes e evitar

doenças, não só em animais, mas em pessoas também. Você está entendendo? - perguntou.

   - Acho que sim. - Concordei com a cabeça. - E se os animais tivessem genes que pudessem combater vírus, seria possível calcular um modo de criar genes combatentes de vírus em seres humanos - deduzi.

   - Exatamente! - exclamou. - Seria tão incrível. Um milagre da medicina!

   Ela se recostou na cadeira.

   - Mas seu pai começou a exagerar. Eu ouvia uivos terríveis vindos do laboratório e ele não me dizia o que estava fazendo. Era tudo muito perturbador. - Ela suspirou profundamente.

   "Acabamos brigando por causa disso", ela continuou. "Conversamos sobre uma possível demissão e ele prometeu parar.

   "Até que um dia eu estava procurando por algumas das minhas anotações de pesquisa e não consegui encontrar. Ninguém sabia onde estavam guardadas. Ninguém, exceto seu pai.

   "Foi terrível. Como é que eu poderia trabalhar com alguém em quem não pudesse confiar? Então tive que pedir o afastamento dele. Foi muito triste, mas não tive escolha."

   Minha cabeça estava a mil. Fechei os olhos para pensar sobre tudo aquilo que ela me contara. Foi quando lembrei daquele animalzinho choramingando no galpão. Aquele

que ia tomar a injeção.

   Podia ver meu pai introduzindo aquela agulha enorme no pobre animal. E eu sabia que era tudo verdade...

   Saltei da cadeira, dei a volta e saí correndo da sala. E do hospital. Nem lembro se agradeci à dra. Camila ou se disse tchau ou qualquer coisa.

   Peguei a bicicleta e saí chispando dali, com aqueles pensamentos horríveis vociferando em minha cabeça, girando como um turbilhão. E fui dar na mata. Devo ter ficado uma hora mais ou menos caminhando entre as árvores. Aquilo sempre me acalmava, mas não dessa vez.

   Não voltei para casa até bem depois da hora do jantar. Papai estava trancado no galpão. Achei ótimo. Não queria encará-lo.

   Estava sem fome, mas fiz um sanduíche e levei para o quarto. Peguei o telefone umas duas vezes para falar com a Ellen, mas a cada vez mudei de idéia. O que diria a ela?

   Fui dormir um pouco depois das onze e caí num sono profundo, sem sonhos. Algumas horas depois fui acordada por um longo uivo de animal. Vindo lá de fora.

   Sentei na cama, esfreguei os olhos e tirei o cabelo suado do pescoço. Levantei e fui até a janela enquanto outro uivo, longo e triste... um uivo de dor... saía da mata.

   Tufos de nuvens negras serpenteavam a lua. As árvores vergavam, balançando sob uma brisa forte.

   "O que está havendo lá fora?", perguntei a mim mesma.

   Vesti a roupa rapidamente, peguei a lanterna e saí na ponta dos pés para o corredor. Ouvi papai roncando de mansinho ao passar pelo quarto dele.

   Olhei para o relógio da cozinha enquanto me encaminhava para a porta dos fundos. Eram quase três da madrugada.

   Com o facho da lanterna iluminando o caminho à minha frente, atravessei o gramado dos fundos e entrei na mata. A lua aparecia e desaparecia atrás de montinhos de nuvens passageiras. O orvalho deixava tudo brilhando como prata.

   OOOOUUUUUUUUUU.

   Voltei-me para o lado de onde vinham os uivos e com a lanterna varri as árvores. Saí da trilha e fui caminhando rumo ao som. OOUUUUU.

   Tão perto. O som estava tão perto agora.

   Senti um calafrio na espinha. Um frio repentino. Minha mão tremia e quase deixei a lanterna cair.

   Ouvi uma batida de porta. Varrendo as árvores com a lanterna localizei o jipe e o trailer.

   Retive a respiração. Fiz força para parar de tremer. Cheguei mais perto.

Escondida atrás de uma árvore dei uma olhada pela janela do motorista. Não havia ninguém ali. O jipe estava vazio.

   Ouvi uma batida e em seguida outro longo uivo de pesar vindo do trailer.

   Cheguei mais perto, observando os lados com a ajuda da lanterna.

   Ninguém por perto.

Os homens devem ter ido caçar outros animais, calculei.

O que haveria ali dentro? Um cervo não era.

Vou descobrir. Não vou embora sem finalmente descobrir.

OOUUUUUUUUU.

     O gemido ficou ainda mais alto, mais desesperado. Será que a criatura sabia que havia alguém aqui fora?

     A luz da lanterna passou pela parte de trás do trailer e vi um ferrolho longo e prateado na porta. Respirei fundo. Abaixei a luz. Alcancei o ferrolho e puxei com força.

     Ele escorregou facilmente e as portas traseiras começaram a se abrir. OOUUUUUU.

     Fui recebida pelo uivo longo e triste juntamente com um cheiro acre.

     Ergui a lanterna, focando a luz sobre o animal amarrado, sentado no chão.

     Abri a boca para gritar, mas o som não saiu.

     Era um animal? Era uma criatura real, viva?

     - Aahhh! - Um murmúrio apavorado me escapou da garganta. A lanterna sacudia na minha mão. Segurei-a com as mãos para que ficasse firme.

    E fixei os olhos...

   Chocada e impressionada, fixei os olhos naquela criatura feia me olhando de volta. O corpo era enorme, feito o de um porco, mas os braços e as pernas eram humanos.

A pele tinha uma cor creme, mas era enrugada e parecia um couro.

E a cara...

   Ergui a lanterna e a luz tremia sobre sua cara. Uma cara... tão feia... tão estranha...

   Uma cara de porco. Redonda e careca. Um focinho e dois dentes longos saindo curvados sobre o queixo. Orelhas pontudas de porco. Mas os olhos... eram olhos humanos... e pareciam tão tristes.

   Ela abriu a boca e gemeu de novo. Puxava e fazia força contra as cordas grossas que a mantinham sentada.

   Olhando para mim com aqueles olhos tristes, marejados como se estivessem suplicando, jogou o corpo contra a parede do trailer.

   E jogou de novo. E mais uma vez. O corpo farto tremia como gelatina.

   - Não - sussurrei -, não.

   Abaixei a lanterna e recuei. Procurei a maçaneta da porta. Foquei a luz na criatura uma vez mais. E estremeci.

   Meio porco, meio humano. Será que meu pai criara esta besta? Seria isto que andava fazendo em segredo?

   Sem dúvida, a dra. Camila tinha dito a verdade. Papai estava fazendo sua própria pesquisa. Suas próprias experiências aterrorizantes.

   Empurrei a porta. Estava procurando pelo ferrolho quando ouvi vozes.

   Virei-me e vi dois homens vindo por entre as árvores. Os mesmos que tinha encontrado antes.

   Círculos de luz varriam o chão diante deles. Depois os dois levantaram as lanternas, iluminando meu rosto, e lançaram gritos surpresos, furiosos.

Levantei as mãos, protegendo os olhos.

- Será que ela viu? Será? - perguntou o careca.

- Viu - respondeu o companheiro. O careca soltou um grunhido baixo.

Pegue-a - ordenou. - Não deixe que fuja.

   A lanterna caiu da minha mão. Girei o corpo, fugindo das luzes no meu rosto.

   - Ela viu demais - disse um deles. - Não deixe que escape.

   Comecei a correr.

   OOUUUUUU. A criatura uivou e se atirou contra a parede do trailer, que chacoalhou.

   Olhei para trás para ver os homens no meu encalço. A luz das lanternas dançava no chão conforme eles corriam.

   Desviei a cabeça de um galho baixo e quase mergulhei numa moita. Fiz força para correr mais, com os gritos zangados zunindo nos meus ouvidos. Tão próximos...

eles estavam tão próximos atrás de mim.

   Não vou conseguir escapar, percebi. E não consigo enxergar bem o suficiente para encontrar um esconderijo.

   Escorreguei numa poça de lama e caí feio, aterrizando de costas.

   Ouvi a risada de um dos homens. Os raios de luz sobre mim.

   Fiz força para ficar de pé. Agarrei um galho caído de árvore e joguei cegamente na direção deles.

   Ouvi quando bateu no chão.

   Agora os homens estavam quietos, mas ainda correndo em meu encalço. Aproximando-se.

   Sentia uma dor do lado. Minhas costas latejavam devido à queda.

   Eles vão me pegar, percebi. Não posso deixar. Tenho que ir até a dra. Camila. Preciso contar a ela sobre a criatura. Se conseguir chegar até ela, talvez a gente consiga convencer o papai a parar com isso. Juntas, vamos conseguir.

   Com as mãos e os pés escalei um monte de pedras. Depois me escondi rapidamente numa fileira de sempre- verde.

   - Aonde ela foi? - Escutei um dos homens dizendo. - Pare de correr. Nós só queremos falar com você!

   Mentiroso.

   Fiquei colada à segurança de uma grande árvore, mas alguns segundos depois escutei passos esmagando as folhas ali perto.

   Abaixei a cabeça e corri para uma grande clareira.

   Um erro. Um erro terrível. Agora não tinha onde me esconder.

   - Lá está ela! - Escutei um deles dizendo. - Agora eu pego essa menina.

   Vi as lanternas se movendo do outro lado das árvores.

   E comecei a correr pelo capim alto. Mas então tropecei em algo. Algo grande e macio.

   Inclinei-me para ver o que era.

   - Aaarrg! - exclamei, me dando conta de que estava junto ao cervo morto. Os restos do cervo dilacerado.

   O cheiro da carne podre chegou às minhas narinas, me deixando enjoada.

   A pele rasgada pendia solta sobre os ossos restantes.

   Olhei para cima e vi as luzes se mexendo. Os homens corriam em minha direção, abrindo caminho entre as sempre-verdes.

   Em segundos poderiam me ver.

   Onde poderia me esconder? Não havia árvores, pedras ou arbustos na clareira. Como é que eu ia me esconder?

   Respirei fundo.

   Peguei uma borda da pele do cervo e puxei para cima. Estava pesada e úmida.

   O cheiro acre tomou conta de mim. Retive a respiração para não vomitar.

   Puxei a pele o máximo que podia.

   E me joguei para dentro do cervo.

 

   A pele úmida do cervo grudada no meu corpo encolhido ali embaixo. As vísceras pútridas esfregando os joelhos da calça. Eu me acotovelando com os ossos.

   Puxei bem a pele em volta de mim, mas estava escorregadia e era difícil segurá-la.

   As moscas zuniam acima de mim. Eu podia sentir as vísceras úmidas molhando minha roupa.

   Fechei os olhos e segurei bem firme, coberta pela pele do cervo. Senti uma coceira atrás do pescoço, mas não podia coçar. Uma coisa úmida e nojenta caiu na minha testa.

   Foi quando me dei conta de que estava retendo a respiração todo aquele tempo. Parecia que meu peito ia estourar. Precisava respirar. O cheiro pútrido fez com que eu quisesse gritar. Meu estômago estava embrulhado.

   Estou dentro de um animal morto, pensei. Todo o meu corpo começou a tremer. Dentro de um animal morto...

   Escutei os passos esmagando folhas. Vozes.

   - Aonde é que ela foi? Como fomos perder a menina?

   - Não pode ter ido longe.

   Foi uma luta para acalmar o estômago. Tentei não respirar o cheiro fétido, mas já não conseguia reter a respiração. Peguei um pouco de ar e... vomitei.

   - Aaaargh. - Soltei um gemido de enjôo.

   O som dos passos se aproximou. Senti uma batida e me dei conta de que um dos homens tinha chutado o cadáver.

   Fechei bem a boca para evitar o grito a ponto de sair.

   - Parece que esse cervo foi atropelado por um caminhão.

   - Que fedor. Você esqueceu de pôr desodorante hoje?

   Os dois soltaram uma gargalhada.

   - Este cervo não foi morto por um animal comum. - Escutei um deles dizendo. - Você acha que nosso amigo está por aí?

   - Eu não ficaria surpreso. Ele sente a maior fome, não é?

   - Bem, ele é um porco! Ha ha ha!

   - Vamos encontrá-lo logo se ele nos deixar pistas como essa.

   Estremeci por baixo daquele cobertor nojento de pele rançosa. Todo o meu corpo coçava. As roupas estavam umedecidas pelas vísceras do bicho. Molhadas com meu

próprio vômito. Uma nova onda de náusea tomou conta de mim.

   Só queria que eles fossem embora para poder sair dali.

   Mas não. Escutei outros murmúrios. Depois passos. Cumprimentos.

   Alguém mais tinha chegado. Fiz força para escutar o que diziam, mas eles tinham se afastado.

   Foi quando ouvi uma voz claramente.

   - Por que vocês me chamaram?

   Engoli em seco. A pele do cervo me escapou das mãos. Agarrei de volta. Fiz força para ficar quieta.

A voz. Eu a reconhecia. Eu a reconhecia tão bem. MEU PAI.

   Será que eu devia sair? Devia sair do cadáver do cervo e correr para o papai? Ele pode estar meio maluco, pensei, mas não vai deixar que esses homens façam algum mal à própria filha!

   Comecei a levantar a pele, mas parei quando papai falou:

   - Por que me chamaram? Qual é o problema? - perguntou.

   - É sua filha - disse um dos homens.

   - Laura? Ela andou por aqui?

   - Ela abriu o trailer. E viu. Ela viu a criatura.

   - Ah, não! - papai lamentou. - Por que vocês não impediram?

   - Tentamos, mas ela escapuliu. Então decidimos chamá-lo.

   - Ela não deve ter ido longe - disse o outro homem.

   - Bem, vamos encontrá-la! - papai gritou. Parecia muito irritado. - Peguem ela... antes que arruíne tudo!

  

   Meu próprio pai!

   Congelei, paralisada de pavor.

   Meu próprio pai em meu encalço agora. Ele está louco varrido mesmo, pensei. É um verdadeiro monstro!

   Ouvi as vozes sumindo enquanto eles andavam em outra direção.

   - Podem ir agora - disse papai. - Nós a encontraremos de manhã.

   Depois... silêncio.

   Não me mexi.

   Fechei os olhos e tentei raciocinar.

   Não podia ir para casa. Para onde iria?

   Meu próprio pai... Meu próprio pai...

   Eu precisava ir para algum lugar. Precisava encontrar ajuda.

   Saí devagarinho debaixo do cadáver. Minhas roupas estavam molhadas e sujas. Tentei tirar as vísceras fedorentas grudadas nos braços, na testa. Puxei um naco nojento do cabelo.

   Ouvi um dos homens tossindo logo adiante. Virei rapidamente e fui em outra direção. Minhas pernas estavam dormentes, as costas doíam. A cada respiração sentia aquele cheiro nojento.

   Aonde estava indo? Não importava. Eu só queria me afastar daquelas vozes. Ficar longe daqueles homens. Longe do meu pai.

   Eu estava aturdida, me movia como se estivesse num sonho. Alguns minutos depois entrava furtivamente no quintal de casa, sem sequer ter me dado conta de que estava indo para lá.

   Escutei a porta do galpão. Silêncio. Ninguém lá dentro. Então andei sorrateiramente em volta da casa, espiando através das janelas escuras.

   Papai ainda não tinha chegado. Continuava lá fora procurando por mim.

   Trêmula e enjoada, entrei pela porta dos fundos e corri para o quarto.

   - Esta é minha casa - falei em voz alta. - Minha casa.

   Mas já não estava segura ali. Porque morava com um inimigo. Morava com um monstro.

   Arranquei as roupas nojentas e joguei no vão do armário. Tomei um banho rápido, prestando bem atenção, rezando para que meu pai não voltasse.

   A água quente caía como um bálsamo. Queria ficar no banho por horas e passar xampu uma dezena de vezes. Mas sabia que precisava sair dali rapidinho.

Peguei jeans e blusão limpinhos e saí correndo pela porta da frente. Esperava que a escuridão da noite me encobrisse, mas o céu estava rosa-acinzentado agora. Quase manhã.

   Fui direto para o hospital veterinário.

   Caminhei em silêncio pela mata, alerta, olhando... escutando qualquer ruído que pudesse indicar o papai e os homens.

   O orvalho da manhã deixava o solo macio e lamacento. A luz rósea do sol matutino tremeluzia entre as árvores.

   - Ah. - Parei ao ouvir um ruído nos arbustos. Vi que se mexiam. Eu não estava só. Abaixei atrás de uma árvore... e engoli em seco, aliviada ao ver João. Saí correndo do esconderijo até ele e quase o abracei! - João! - Uma risada sobressaltada me escapou da garganta. - O que você está fazendo de pé tão cedo?

   Ele parou a alguns centímetros de mim.

   - Ah... Laura. Oi! O que você está fazendo aqui?

   - É... é meio que... uma longa história - eu disse, ainda nervosa, olhando em volta, com medo de que meu pai aparecesse a qualquer momento.

   - Fiquei acordada a noite toda - contei ao João.

   - Por quê? - ele perguntou. - Você está bem?

   - Preciso de ajuda - eu disse. - Você me ajuda a chegar no hospital veterinário? Alguns homens estão tentando me pegar e...

   Estendi a mão. Ele tinha um troço verde preso no cabelo. Uma lagarta. Agarrei-a.

   - NÃO! - João berrou, me deixando chocada ao sair abruptamente para o outro lado... me deixando com seu cabelo na minha mão!

- AHHH! - nós dois berramos juntos.

Olhei para o longo cabelo preto e brilhante na minha mão. Uma peruca!

Virei-me para o João. Seus olhos esbugalhados de pavor.

E a cabeça dele... era completamente careca.

Com duas ORELHAS DE PORCO pontudas e rosadas no topo!

  

   - Não! - gaguejei.

   João deixou cair o queixo... e pude ver os dentes... duas fileiras. Uma normal... humana, a outra era um conjunto de dentes pontudos de porco.

   - Sinto muito - ele sussurrou -, não queria que você soubesse.

   - Não estou entendendo - falei embargada.

   João ficou com uma expressão irritada.

   - Você vai logo entender! - exclamou. - Sou eu a criatura, Laura. Sou a criatura que anda importunando os animais da floresta. É que não sou normal.

   E soltou um grito furioso.

   - Sou uma criatural Os morcegos, os cachorros, os pássaros... eles têm andado estranhos por minha causa. Porque sou uma anomalia. Porque eles sabem que não sou daqui!

   Mas... - Eu lutava para encontrar as palavras. Não conseguia pensar direito. Não conseguia tirar os olhos da cabeça redonda, careca, das orelhas de porco.

   - E às vezes... às vezes me dá uma fome - disse João, cerrando os dentes pontudos. - Eu faço coisas terríveis. Sinto muito, Laura. Mesmo!

   - O cervo? - Engoli em seco. - Foi você que comeu o cervo? E atacou o Toby? E... e aquela era a sua cabana com todos aqueles ossos e cabeças de animais?

   Ele não respondeu. Arrancou a peruca da minha mão.

   - Eu... eu vim para a mata. Só queria um pouco de ar fresco - ele contou, a voz entrecortada. - Só queria viver em liberdade por um tempo. Estou tão cansado de ficar trancado... escondido... um prisioneiro.

   Então ele se virou, com a respiração pesada, grunhindo feito um animal... e saiu correndo.

   Fiquei paralisada, olhando enquanto ele sumia entre as árvores. Abracei meu próprio corpo tentando raciocinar. Tentando ver o sentido daquilo tudo.

   Como teria se tornado uma criatura daquelas? Teria sido o papai a fazer aquilo com ele?

   Estaria fazendo experiências com seres humanos também?

   Fiquei mal. Tonta.

   - Dra. Camila - chamei em voz alta. Ela precisa me ajudar a entender tudo isso.

   O sol continuava baixo sobre as árvores quando abri a porta da frente do hospital. A recepção estava escura, sem ninguém atrás da escrivaninha.

   Dei uma olhada no relógio. Marcava sete e meia apenas. A maioria do pessoal não chegava tão cedo Ouvi a lamúria dos animais vindo do corredor. Um gato gritou.

Parecia tão humano... como um bebê.

   - Alguém aqui? - gritei. - Dra. Camila? Sou eu... Laura!

   Nenhuma resposta.

   Talvez ela esteja num dos laboratórios de pesquisa, pensei. Sabia que às vezes chegava cedo, antes dos pacientes.

   Comecei a caminhar pelo longo corredor em direção ao laboratório. Só algumas luzes do teto estavam acesas. O corredor sem fim, com suas paredes desmaiadas, portas fechadas e longas sombras, parecia lúgubre na penumbra. O assoalho antigo rangia sob meus pés. Animais gemiam e uivavam.

   - Al... alguém aí? - chamei. - Dra. Camila?

   Abri a porta. Achei que levasse a um laboratório, mas a sala estava cheia de jaulas e sacos de ração.

   Parei, achando que ouvira passos.

   - Dra. Camila?

   Não era. Os sons sumiram. Um cachorro latiu. O assoalho rangeu.

   Fiz a curva, dando em outro longo corredor cheio de portas.

   - Alô! - chamei. - Alguém aqui?

   Abri outra porta. Um laboratório vazio.

   Eu sabia que o laboratório de pesquisas ficava em algum lugar aqui atrás. Mas qual seria a porta?

   Tentei a próxima. Fui recebida por um uivo estridente. Outros animais berraram no escuro. As jaulas chacoalharam com a algazarra.

   Acendi a luz e... perdi o fôlego.

   -Não!

   Fiquei paralisada na porta, olhando para as jaulas alinhadas no fundo do laboratório. Uma parede cheia de jaulas com animais... não eram bem animais...

   Criaturas.

   Criaturas horrendas. Todas elas. Poodles com orelhas pontudas de porco, gatos com focinhos de porco, macacos pelados de pele rosada.

   Mas o pior, o mais hediondo, eram as criaturas nas jaulas altas. Porcos com corpos, braços e pernas humanos. Porcos do tamanho de crianças, de pé, sobre duas pernas. Porcos com longos cabelos escuros na cabeça.

   As criaturas suínas agarravam as grades da jaula com mãos humanas.

   Não. Algumas tinham cascos de porco na extremidade dos braços.

   Entrei na sala e fiquei olhando para uma criatura de corpo suíno pequeno, atarracado... e longo cabelo castanho lhe caindo pelo rosto. Um rosto de porco... com lábios humanos!

   Eles abriram bem a boca, grunhindo e chorando. Batiam os cascos nas grades das jaulas.

   Cheguei mais perto, como se estivesse hipnotizada. O que eram essas criaturas? O que estavam fazendo ali?

Grande demais para a jaula, um porco gigantesco com orelhas, pernas e braços humanos batia a cabeça nas grades. Ao seu lado havia uma minúscula criatura suína. Um

porco com um longo rabo de cavalo!

   A pequena criatura estava mal, deitada de lado numa poça de vômito amarelo. Eu me curvei para enxergar melhor...

   E senti uma mão enorme agarrando meu cabelo.

   A criatura suína gigantesca!

   Grunhindo alto, ela estendeu os braços pelas grades da jaula... e agarrou minha cabeça com as mãos.

   Ãnnn... ãnnn... ãnnnn...

   Esfregou as mãos quentes e úmidas no meu rosto. Depois agarrou meu pescoço... e começou a apertar.

 

   - Ãnnnn. - Soltei um gemido sufocado, lutando para tirar aquelas mãos enormes de mim.

   Mas a criatura era muito forte e me puxou de encontro à jaula. A respiração fedia. As mãos apertavam cada vez mais minha garganta.

   Os animais berravam suplicantes, sacudindo as jaulas, pulando sem parar. Tão alto... tão alto que meus ouvidos zuniam.

   Mas conforme eu ia sufocando, os sons começaram a sumir. As luzes foram enfraquecendo.

   Meu corpo estava a ponto de cair quando escutei uma voz berrando.

   Outro grito zangado. E as mãos enormes largaram meu pescoço. Grunhindo, a criatura puxou os braços para dentro da jaula.

   Eu podia respirar novamente. Esfregando a garganta dolorida, puxava a respiração sofregamente.

   E então me virei e vi a dra. Camila atravessando a sala apressada. A expressão contrariada.

   - O que você está fazendo aqui?

   Ela nem esperou pela minha resposta. Ternamente, pôs um braço em torno do meu ombro e examinou meu pescoço.

   - Você está bem, querida? Consegue respirar? Aquele grandão pode ser perigoso.

   - Eu... eu - Minha garganta doía tanto que mal conseguia sussurrar. - Aquelas criaturas... - disse finalmente, acenando em direção às jaulas. - Foi o papai que fez todas elas?

   Ela estreitou os olhos me encarando.

   - Laura, você não deveria estar aqui.

- Mas... mas... - falei com a voz entrecortada.

   - Você devia ter escutado seu pai - ela disse. - Devia ter ficado longe da mata. - Suspirou. - E agora ele virá para cá procurar você, não é? Virá interromper meu trabalho. Ele já arrebanhou algumas das criaturas que escaparam do meu laboratório. Anda explorando a mata, procurando por elas.

   - N... não estou entendendo! - falei aflita. - Por favor...

   - Bem... não posso deixar que ele me impeça - ela disse irritada. - Não até que eu encontre a cura.

   Pisquei.

   - A cura? - perguntei. - A cura de quê?

   Ela parecia não me escutar. Seus olhos estavam concentrados nas jaulas agora.

Estas pobres criaturas não passam de fracassos - disse, sacudindo a cabeça. - Olhe para elas. Olhe o que fiz a elas. Coitadinhas... Mas eu preciso conseguir. Preciso.

   Ela se virou de costas para mim com os olhos verdes brilhando.

   - Talvez você possa ajudar, Laura.

   Senti um calafrio subindo pela espinha.

   -Hã? Eu?

   Ela me agarrou pelo ombro e aproximou o rosto do meu.

   - Você não se importaria de se sacrificar, não é Laura? Não é? Se fosse para salvar uma vida.

   - M... me sacrificar?

   Notei que estava tremendo de pavor. O que ela dizia? Eu não conseguia entender.

   - Essas criaturas são do meu pai? - perguntei. - Você está tentando curá-las? Vai fazer com que voltem ao normal?

   A dra. Camila recuou um passo. Estudou meu rosto por um instante e depois sacudiu a cabeça.

   - Não, Laura. Não são do seu pai. As criaturas são minhas.

   - Suas? - Minha voz tremeu. - O que está querendo dizer?

   - Você vai logo entender. - Ela pegou meu braço. - Estive preparando você - disse. - Aquela injeção que lhe dei... não era para o ferimento no pescoço. Era uma injeção para preparar você... para uma transferência de gene.

   - Nããão! - Soltei um berro e puxei o braço com força.

   Dei a volta e saí correndo rumo à porta.

   Batendo nas jaulas, as criaturas começaram a berrar e uivar. Olhei para trás e vi a dra. Camila vindo atrás.

   - AAAIIIII! - gritei, dando um encontrão numa jaula próxima à porta. Ela tombou de lado com um estrondo. E dezenas de morcegos alçaram vôo piando.

   Investiram contra o teto, descendo em seguida, voando tresloucados pelo laboratório.

   Enquanto a dra. Camila se debatia com eles, eu atravessei a porta e fugi pelo longo corredor escuro.

   Meus sapatos batiam no tapete gasto, o piso rangendo e guinchando enquanto corria. Eu ainda podia ouvir o bater de asas dos morcegos... e os gritos estridentes

da dra. Camila no meu encalço.

   Ofegante, virei-me para o outro corredor e... dei um encontrão em alguém.

   - Ahhh...! - Uma forte colisão, mas logo recuperei o equilíbrio.

   Dando de cara com o João. Ele estava usando a peruca de novo. Olhava para mim embasbacado.

   - Hã? Você aqui? - gritei. - João, você precisa me ajudar! Preciso fugir dela! Ela está louca!

   Qual não foi minha surpresa quando ele me agarrou pela cintura e me empurrou contra a parede.

   - Peguei! - ele gritou. - Ela está aqui! Eu a peguei, mamãe!

 

   - Hã? O que você está dizendo, João? - Minha voz saiu num guincho.

   Ele não respondeu, me prendendo na parede. Eu me debati, lutando para me livrar, mas não era forte o suficiente.

   A dra. Camila se apressou até nós.

   - Bom - murmurou. Eles me agarraram pelos braços e me puxaram para outro laboratório. E ali me jogaram dentro de uma jaula alta. A dra. Camila bateu a porta e trancou.

   Eu me virei e vi duas criaturas suínas horríveis atrás de mim na mesma jaula. Uma tinha longos cabelos louros e uma cara de porco sardenta. A outra tinha chifres

pretos e pontudos despontando na cabeça de porco. Parecia uma mistura de porco com carneiro.

   - Por favor... deixe-me sair! - supliquei. - Por favor...!

   A criatura sardenta cambaleou para a frente e me cutucou do lado com o casco duro.

   Meu coração deu um pulo quando a outra ergueu as patas peludas e ficou passando uma delas pelo meu cabelo como se o estivesse escovando.

   - Por favor... me deixe sair.

   A criatura chifruda aproximou o rosto do meu. Os dentes à mostra... afiados como lâminas.

   - Isto... isto vai me morder. - Recuei, me afastando da besta e ficando acuada num canto da jaula. - Por favor... me deixe sair.

   - Sinto muito, Laura - ela disse. - Mas não podemos deixar que fuja novamente. Precisamos muito de você.

   - Precisam de mim? Para quê? - Minha voz saiu alta e estridente.

   Os morcegos voavam para dentro e para fora da sala. Olhei freneticamente em volta. A parede de trás estava abarrotada de jaulas empilhadas. As jaulas cheias de porcos guinchando.

   No meio da sala havia equipamentos eletrônicos. Pude detectar três ou quatro monitores de computador. Diversos painéis de controle piscando. Dois cones metálicos fixados nas duas extremidades. Sobre uma mesa brilhante de metal, seringas reluziam sob as luzes do laboratório.

   A criatura suína de chifres grunhiu para mim, mostrando os dentes pontudos e lambendo o focinho com uma língua rosada e comprida. A outra me deu uma pancada com

o casco.

   - Você não pode me prender aqui! - gritei, me jogando sobre as grades e agarrando a porta, lutando para abri-la. Ela nem se movia.

   - Não vai levar muito tempo - a dra. Camila retrucou. - Tudo estará acabado quando seu pai chegar à sua procura.

   Ela pressionava botões e mexia em mostradores no painel de controle.

   - João, traga o porco lá de cima. Jaula número quarenta.

   João obedeceu correndo. Abriu a jaula e pegou umporquinho rosa e branco. Segurando-o firme nas mãos, levou-o para a dra. Camila. Erguendo a cabeça do porco até a altura de um dos cones metálicos, começou a prendê- lo ali.

   Umas luzes piscaram no painel de controle.

   Dois morcegos entraram voando no laboratório e planaram de volta para fora.

   - Você mentiu para mim! - gritei. - Disse que meu pai estava fazendo experiências cruéis.

   - Tinha que mentir. Não havia escolha - retrucou. - Quatro anos atrás, logo antes de mudarmos para cá, descobri um modo de modificar os genes usando choque elétrico.

Estava tão perto de criar um gene que poderia combater vírus. Tão perto. Mas então houve o terrível acidente.

   Ela se virou, olhando para o João. Ele tinha acabado de prender o porco no cone. Agora segurava a perna do bicho enquanto a dra. Camila aplicava uma injeção cheia de um líquido amarelo. O porco soltou um guincho agudo quando a agulha lhe penetrou a pele.

   - Durante uma das transferências de células, João se picou com uma seringa cheia de células suínas. Pulou para trás assustado... direto na passagem da corrente elétrica.

   Meu coração deu um pulo quando a outra ergueu as patas peludas e ficou passando uma delas pelo meu cabelo como se o estivesse escovando.

   - Por favor... me deixe sair.

   A criatura chifruda aproximou o rosto do meu. Os dentes à mostra... afiados como lâminas.

   - Isto... isto vai me morder. - Recuei, me afastando da besta e ficando acuada num canto da jaula. - Por favor... me deixe sair.

   - Sinto muito, Laura - ela disse. - Mas não podemos deixar que fuja novamente. Precisamos muito de você.

   - Precisam de mim? Para quê? - Minha voz saiu alta e estridente.

   Os morcegos voavam para dentro e para fora da sala. Olhei freneticamente em volta. A parede de trás estava abarrotada de jaulas empilhadas. As jaulas cheias de porcos guinchando.

   No meio da sala havia equipamentos eletrônicos. Pude detectar três ou quatro monitores de computador. Diversos painéis de controle piscando. Dois cones metálicos fixados nas duas extremidades. Sobre uma mesa brilhante de metal, seringas reluziam sob as luzes do laboratório.

   A criatura suína de chifres grunhiu para mim, mostrando os dentes pontudos e lambendo o focinho com uma língua rosada e comprida. A outra me deu uma pancada com o casco.

   - Você não pode me prender aqui! - gritei, me jogando sobre as grades e agarrando a porta, lutando para abri-la. Ela nem se movia.

   - Não vai levar muito tempo - a dra. Camila retrucou. - Tudo estará acabado quando seu pai chegar à sua procura.

   Ela pressionava botões e mexia em mostradores no painel de controle.

   -João, traga o porco lá de cima. Jaula número quarenta.

   João obedeceu correndo. Abriu a jaula e pegou um porquinho rosa e branco. Segurando-o firme nas mãos, levou-o para a dra. Camila. Erguendo a cabeça do porco até a altura de um dos cones metálicos, começou a prendê- lo ali.

   Umas luzes piscaram no painel de controle.

   Dois morcegos entraram voando no laboratório e planaram de volta para fora.

   - Você mentiu para mim! - gritei. - Disse que meu pai estava fazendo experiências cruéis.

   - Tinha que mentir. Não havia escolha - retrucou. - Quatro anos atrás, logo antes de mudarmos para cá, descobri um modo de modificar os genes usando choque elétrico.

Estava tão perto de criar um gene que poderia combater vírus. Tão perto. Mas então houve o terrível acidente.

   Ela se virou, olhando para o João. Ele tinha acabado de prender o porco no cone. Agora segurava a perna do bicho enquanto a dra. Camila aplicava uma injeção cheia de um líquido amarelo. O porco soltou um guincho agudo quando a agulha lhe penetrou a pele.

   - Durante uma das transferências de células, João se picou com uma seringa cheia de células suínas. Pulou para trás assustado... direto na passagem da corrente elétrica -continuou ela. - As células dele se misturaram às células suínas.

   Ela acariciou a face dele.

   - Pobre do meu menino... ele... não ficou mais o mesmo. Ele... - Lágrimas se formaram nos olhos dela.

   - Viemos para cá para ter um lugar seguro onde morar - disse João. - Ninguém me conhecia aqui e a mamãe poderia continuar a pesquisa. Para me fazer voltar ao normal.

   - João - gaguejei eu... eu achava que você era meu amigo.

   - Eu não tenho mais amigos, Laura - ele disse baixinho. - Tenho que ficar escondido em casa a maior parte do tempo. Até a fome começar. Aquela fome avassaladora

de carne fresca. Aí tenho que ir caçar na mata... - Sua voz foi sumindo.

   - João - a dra. Camila soluçou eu sinto tanto, tanto.

   - Você vai conseguir reverter isso, mamãe - ele disse num consolo. - Sei que vai.

   Ela se virou para mim.

   - Passo todo o tempo tentando encontrar um jeito de reverter o processo. Todos esses animais estão aqui para isso. Para me ajudar a levar o João de volta ao normal.

   - Mas o papai... - comecei.

Seu pai não aprovava minhas experiências. Ele não sabia do João, que ficava escondido. Mas não aprovou o modo como eu estava tratando os animais. Dizia que contrariava as leis da natureza. Tentou me impedir. Os animais estavam morrendo, mas eu não podia parar. Descobri que se os dissecasse, poderia entender o que estava havendo de errado. Eu precisava matar mais... até encontrar a cura.

   Se os matamos, aprendemos mais. Quantos podemos matar? As palavras do diário encadernado lá no galpão explodiram na minha cabeça.

   - Eram suas aquelas anotações lá no galpão - falei com a voz entrecortada.

   Meu coração afundou. Deveria ter confiado no papai. Ele nunca machucaria um animal. Devia ter acreditado nele. Meu pai jamais seria capaz de machucar um ser vivo.

   A dra. Camila se virou para João.

   - Chega de conversa. Não temos muito tempo. Ajude- me a prender Laura no cone de transferência do outro lado. Aí, aplicaremos a injeção.

   - Não! - gritei, empurrando as duas criaturas suínas. - Não! Por favor!

   - Faz tempo que não tenho um ser humano para a experiência - disse, destrancando a jaula -, mas agora você está aqui. Pense, pode ser você a trazer o João de volta ao normal. Não gostaria?

   - Não! - gritei. - Por favor! Por favor!

   Ela me agarrou com as mãos e me puxou para fora. Depois me empurrou para baixo do cone metálico.

   Esperneei, tentando escapar, mas ela era muito forte. Ela me prendeu contra a lateral da máquina e puxou o cone para baixo, sobre minha cabeça.

   - Espere, mamãe... não! - João berrou. - Não gosto disso. Não posso passar por isso! A Laura é minha amiga!

   - Ela não é sua amiga! - rebateu áspera, apertando a tira embaixo do meu queixo, me mantendo presa ao cone. - Você não entende? O pai dela vai me destruir antes que eu possa curar você!

   - Mamãe... - implorou João.

   A dra. Camila se virou para mim.

   - A corrente vai passar entre os dois cones - ela explicou. - Não dói nada, Laura. Nada mesmo! Nós lhe injetaremos uma substância que vai ajudar as células do porco a se agregarem às suas. E esta máquina toma conta do resto. Você nem vai sentir.

   - Nããão! Nãããão! Por favor! - Eu me debatia.

   Mas já não havia mais tempo.

   Ela pegou uma seringa e... espetou no meu braço. Gritei enquanto a dor pulsava braço acima.

   Ela puxou a agulha para fora rapidamente, secando o sangue com o jaleco. Depois levou a mão até o painel de controle, segurou uma maçaneta e ligou o interruptor.

 

   Escutei o estalido da corrente elétrica.

   Vi João agarrando a mãe pela cintura e tentando puxá-la.

   Nesse meio-tempo, a porta do laboratório se abriu atrás deles.

   - Papai! - berrei. - Socorro!

   A corrente elétrica corria entre os dois cones metálicos. O porco do outro lado guinchava e começou a chutar os cascos.

   Um morcego entrou na sala, voando baixo sobre meu pai e indo direto rumo à corrente elétrica.

   A dra. Camila se virou para encarar meu pai.

   - Saia daqui! - gritou, recuando para longe dele. - Você já fez demais!

   Papai continuou avançando, os olhos ferozes sobre ela, os braços caídos com punhos fechados.

   O morcego passou chispando sobre minha cabeça.

   A dra. Camila deu outro passo para trás.

   - Você não pode me impedir! - ela gritava para o meu pai. - Não pode! Estou lhe avisando...

   Mas ele não parou. Veio até ela. Um passo de cada vez. As mãos com punhos cerrados.

   E ela recuando... recuando..

   E então ela soltou um grito agudo ao tropeçar... e cair de costas... na corrente elétrica.

   Também gritei ao ver o morcego voar através da corrente.

   ZZZAAAAAAP.

   Toda a sala estalou.

   Vi a dra. Camila e o morcego contornados pelo amarelo brilhante.

   Depois o morcego explodindo no estalido da corrente. Suas vísceras borrifaram a dra. Camila enquanto ela gritava apavorada.

   Então fechei os olhos. Ela estava feia demais. Horrorosa!

   Aterrorizante.

   Fiquei de olhos fechados até papai retirar o cone da minha cabeça. Em seguida ele me puxou para o corredor.

   Papai me abraçava apertado. Levantei os olhos para ele, ainda atordoada.

   - Está tudo bem agora, Laura - falou baixinho. - Está tudo acabado. Meu trabalho está feito. Nós a impedimos. Estive coletando as provas, trabalhando duro.

   - Mas papai... - falei engasgada -, as criaturas no galpão. O diário que você roubou dela...

- Tentei impedir que ela continuasse a pesquisa. Sabia que as experiências eram um erro - disse ele. - Foi por isso que ela me demitiu. Mas eu levei as anotações

e estava tentando curar os animais que ela tinha modificado.

   Seguimos pelo corredor até sairmos do prédio.

   - Onde é que eles estão? - perguntei, olhando para trás. - Onde estão o João e a dra. Camila?

   - Fugiram enquanto eu soltava você. Mas não se preocupe. Não irão longe. Nós os encontraremos.

   Chegamos em casa pouco depois e segui papai até a cozinha.

   Ele pegou um envelope em cima do balcão e rasgou pela metade.

   - O que é isso? - perguntei.

   - Sua passagem aérea para Chicago - disse, jogando os pedaços no lixo. - Eu nunca quis mandar você embora, mas estava com tanto medo. Eu sabia o quanto aquelas criaturas podiam ser perversas. Só queria proteger você.

   Ele sacudiu a cabeça.

   - Você não deveria ter corrido ontem à noite. Eu só queria protegê-la, Laura.

   Corri para abraçá-lo. Ficamos assim um bom tempo.

   Em seguida meus olhos se desviaram para a janela da cozinha. Olhei para a mata e pensei no João. Será que o veria de novo?

   E a mata voltaria ao normal agora?

   Alguma coisa voltaria ao normal outra vez?

   Naquela noite eu estava muito cansada. Mas não conseguia pegar no sono.

   Deitada na cama olhava para o quarto crescente lá no céu. Parecia um sorriso. Um largo sorriso no escuro.

   Eu estava finalmente adormecendo. Meus olhos fechando... quando ouvi um som alvoroçado.

   Alguma coisa batendo no vidro da janela.

   Sentei na cama, alerta.

   O que foi aquilo? Um morcego?

   Isso mesmo. Um morcego pairando fora da janela, batendo as asas no vidro.

   - Hã? - Saí da cama e fui me arrastando até a janela.

   Bam bam.

   As asas batiam e arranhavam o vidro com o morcego pairando ali fora.

   Cheguei mais perto. Fiquei olhando as asas batendo, o corpo minúsculo, redondo. As garras...

   E a cara...

   A cara...

   Era a cara da dra. Camila no corpo do morcego!

   Batendo as asas, jogando-se contra a janela, ela olhava para mim. O rosto bem pequeno, onde ficaria a cara do morcego. Os olhos verdes esbugalhados de pavor.

   E então ela abriu bem a boca.

   Olhando uma para a outra, nós duas abrimos a boca e... gritamos, gritamos sem parar.

 

                                                                                            R. L. Stine

 

                      

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