Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CRUZ DE FOGO - P.3 / Diana Galbadon
A CRUZ DE FOGO - P.3 / Diana Galbadon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Nossa viagem de volta à Colina do Fraser foi muito mais rápido que o trajeto ao Alamance, em que pese a ir sempre custa acima. A companhia de milicianos se desfeito nada mais receber a baixa do governador; seus membros se dispersavam depressa para retornar a suas casas e a seus campos.

Por isso nosso grupo era muito mais reduzido: apenas duas carretas. Alguns homens que viviam perto da Colina decidiram viajar conosco: os dois moços Findlay, por exemplo, posto que no trajeto passaríamos frente à casa do sua mãe.

Joguei uma olhada dissimulada aos irmãos, que estavam ajudando a descarregar a carreta para instalar o acampamento noturno. Bons moços, embora calados. Respeitavam ao Jamie e pareciam lhe ter um respeito quase religioso, mas durante essa breve campanha tinham formado uma peculiar aliança com o Roger. Essa estranha fidelidade continuou inclusive ao debandá-la companhia.

Os dois tinham ido ao Hillsborough para visitá-lo. Levavam-lhe três maçãs tempranas, verdes e disformes, obviamente roubadas de alguma pomar alheio. Ele as tinha agradecido com um largo sorriso; antes de que eu pudesse impedir-lhe agarrou uma e lhe deu uma heróica dentada. Levava uma semana sem tragar mais que sopa; esteve a ponto de morrer engasgado, mas a tragou, asfixiado e ofegante. E os três sorriram de brinca a orelha, olhando-se sem dizer nada, com lágrimas nos olhos.

 

 

 

 

Durante a viagem, os Findlay estavam acostumados a estar perto do Roger, sempre vigilantes e preparados para saltar em sua ajuda quando as feridas das mãos lhe impediam de fazer algo. Jamie me tinha falado do Iain Mhor, o tio dos moços; obviamente, tinham muita experiência quanto a adivinhar as necessidades não expressas.

Roger se tinha recuperado com celeridade, posto que era jovem e forte; além disso, as fraturas não eram graves. Mas duas semanas era pouco para que os ossos quebrados se soldassem; eu teria preferido mantê-lo enfaixado por uma semana mais. Entretanto, como era óbvio que a restrição o irritava, o dia antes da partida lhe tinha tirado os entalados dos dedos, contra meu parecer e lhe advertindo que devia cuidar-se muito.

–|Ni te ocorra! –disse-lhe, ao ver que ia retirar da carreta um pesado saco de provisões.

Ele me olhou com uma sobrancelha em alto; logo se encolheu tranqüilamente de ombros e deu um passo atrás, para que Hugh Findlay carregasse com o saco. Assinalou as pedras que Iain Findlay trazia para rodear a fogueira; logo, ao bosque próximo. Podia recolher lenha?

–É obvio que não –respondi com firmeza.

Ele fez o sinal de beber e arqueou as sobrancelhas. Ir a por água?

–Não. Bastaria com que te escorregasse um cântaro e…

–Pode escrever, Sassenach? –perguntou Jamie, que se tinha detido junto à carreta e observava a cena.

–Escrever? Escrever o que? –perguntei, surpreendida.

Mas ele já tinha passado junto a mim para revolver em busca de seu maltratado portátil.

–Cartas de amor? –sugeriu, com um grande sorriso–. Ou sonetos, possivelmente? –Arrojou- o escritório dobradiça ao Roger, que o recebeu limpamente nos braços, apesar de meu chiado de protesto. Mas talvez, antes de compor um poema épico em honra ao William Tryon, possa me relatar como foi que nosso mútuo parente tratou de te matar, não?

O jovem lhe dedicou um sorriso torcido e fez um lento gesto afirmativo.

Começou a escrever enquanto se montava o acampamento; fez uma pausa para jantar e logo retomño a tarefa. Com apenas me olhá-lo doíam as articulações dos dedos.

–Ai! Basta já disso!

Apartei a vista da frigideira que estava esfregando com um punhado de juncos e areia. Brianna estava entretida em um combate mortal com seu filho, que se arqueava para trás contra seu braço, retorcendo-se e dando patadas, em um dessas enloquecedoras rabietas ante as que até os pais mais abnegados pensam no infanticídio.

–O que te passa? –interpelou Bree, irritada. E lutou com o Jemmy até obter que se sentasse pela metade; ao parecer tratava de lhe trocar o fralda para deitá-lo.

–Tal vê não esteja cansado ainda –sugeri–. Mas já comeu, verdade’

–Sim. E pode que ele não esteja cansado, mas eu sim.

Era certo. Tinha caminhado junto à carreta a maior parte do dia, a fim de aliviar o esforço dos cavalos nas costas, cada vez mais levantadas. Também eu.

–Deixa-o aqui e vete a te lavar, quer? –propus.

O menino, erguido sobre as mãos e os joelhos, oscilava para diante e para trás, entre horríveis relinchos. Agarrei uma grande colher de madeira e a movi tentadoramente ante ele. Ao vê-la deixou de chiar e se sentou em cuclillas, suspicaz.

Adicionei à ceva uma taça de lata e a pus no chão, perto dele. Isso foi suficiente; rodou sobre o traseiro, agarrou a colher com ambas as mãos e iniciou o intento de enterrar a taça a golpes bree dirigiu um olhar de profunda gratidão e desapareceu no bosque, pelo pendente que conduzia ao pequeno arroio.

Jamie alargou um braço por cima de meu ombro para me pôr uma taça na mão e se sentou a meu lado.

––Slainte, mo nighean donn –disse com um suave sorriso, levantando sua própria taça em um brinde.

–Hum. –Fechei os olhos, inalando os fragrantes vapores–. É correto dizer slainte quando não é uísque o que bebe? –O conteúdo da taça era vinho.

–Não vejo por que não –respondeu ele, com lógica–. Ao fim e ao cabo é só um desejo de boa saúde.

–Certo, mas acredito que dizer “saúde” é um desejo mais prático que figurativo, ao menos com certo tipo de uísque; quer dizer expressas a esperança de que a pessoa com quem brinda sobreviva à experiência de bebê-lo.

Seus olhos se enrugaram em uma risada divertida.

–Ainda não matei a ninguém com o destilo, Sassenach.

–Não me referia ao teu. –Fiz uma pausa para beber outro pouco–. Ah, que rico! Pensava nesses três milicianos do regimento do coronel Ashe.

        Um sentinela tinha descoberto a esses três homens bêbados perdidos, depois de ter consumido uma garrafa de algo que acontecia uísque, conseguido Deus sabe onde. Como a companhia do Ashe não contava com cirurgião e nós acampávamos ao lado, chamaram-me em meio da noite para que os atendesse o melhor possível. Os três sobreviveram, mas a gente tinha perdido a vista de um olho e outro ficou com certo grau de lesão cerebral.

Jamie se encolheu de ombros. A embriaguez era uma dessas coisas da vida. E o mau licor, o mesmo.

–Thig a seo, a chuisle! –clamou. Jemmy, perdido o interesse pela taça e a colher, engatinhava para a cafeteira que tínhamos deixado entre as pedras da fogueira, para que se mantivera quente. O menino não emprestou atenção à ordem, mas foi posto fora de perigo pelo Tom Findlay, quem o enlaçou com um braço pela cintura para entregar-lhe a seu avô, apesar de seus pataleos.

–lhe sente-se ordenou Jamie com firmeza.

Sem lhe dar tempo a reagir, plantou-o no chão e lhe entregou sua bola de trapo. O menino o agarrou; seu olhar pícaro foi de seu avô à fogueira.

–isso arroja ao fogo, a chuisle, e te darei uma surra –lhe informo Jamie, afetuoso.

Jem contraiu a frente e fez uma eloqüente panela, mas não arrojou a bola às chamas.

–A chuisle? –repeti, tratando de imitar Essa pronúncia é nova. O que significa?

–Pois… –Ele se esfregou a ponte do nariz com um dedo–. Significa “meu sangue”.

–Isso não se diz mo fuil?

–Sim, mas esse é o sangue que brota quando te machuca. A chuisle é algo assim como… “OH, você, em cujas veias corre meu próprio sangue”. Em geral o diz só aos meninos de sua família.

–Que encantador. –Deixei minha taça vazia no chão para me recostar contra seu ombro. Ainda estava cansada, mas a magia do vinho tinha gentil os rudes borde do esgotamento, me deixando agradavelmente atordoada–. O diria ao Germain? Ou ao Joan? Ou acaso a chuisle tem um sentido muito literal?

–Como apelativo para o Germain preferiria um petit enmerdeur –respondeu, com um leve bufo de diversão–. Ao Joan…. Sim, à pequena Joan diria a chuisle. É sangue do coração, compreende? Não só do corpo.

Jemmy tinha deixado cair sua bola de trapo e contemplava encantado as vaga-lumes que começavam a titilar inteire a erva, ao cair a escuridão. Já com o estômago cheio e um agradável descanso, todo mundo começava a sentir o efeito sedativo da noite.

Junto ao fogo se ouviu um forte sussurro de matas. por ali emergiu Brianna, molhada, mas muito mais animada. deteve-se junto ao Roger para lhe apoiar uma mão nas costas e jogou uma olhada ao que estava escrevendo. Então ele levantou a vista e, encolhendo os ombros em um gesto resignado, reuniu as páginas já escritas de sua obra e as entregou. Ela se ajoelhou a um lado para ler, com o sobrecenho franzido pelo esforço de distinguir as letras à luz do fogo.

–Foi boa idéia fazer que Roger escrevesse –comentei–. Não vejo o momento de saber o que aconteceu.

–O mesmo digo –concordou Jamie–. Mas agora que Willliam Buccleigh desapareceu, pode ser mais importante saber o que é o que acontecerá.

–Assim não te interessa descobrir se sua primo é ou não capaz de assassinar a sangue frio? –perguntei.

Ele emitiu um grunhido surdo que podia passar por risada.

–É um MacKenzie, Sassenach. Um MacKenzie do Leoch.

Os Fraser eram duros como pedras, haviam-me dito. O mesmo Jamie descrevia com estas palavras aos MacKenzie do Leoch: “Encantados como cotovias do campo… e ardilosos como raposas”.

–O que?

A exclamação da Brianna desviou minha atenção para o outro lado da fogueira. Olhava ao Roger com as páginas na mão e uma expressão onde se mesclava o regozijo e a consternação. A cara do Roger estava volta para ela, mas levantou uma mão para sossegá-la e olhou para os homens que bebiam sob a árvore, para assegurar-se de que ninguém a tivesse ouvido.

Vi um reflexo de luz nos ossos de sua cara. Logo sua expressão trocou em um instante da cautela ao horror. levantou-se precipitadamente, com a boca aberta.

–Não! –bramou.

Foi um grito terrível, potente e áspero, mas com um sotaque horrivelmente estrangulado, como se o tivesse arrojado com um punho fundo na garganta. Petrificou a todos quantos o ouviram… incluído Jemmy, que tinha abandonado às vaga-lumes para reatar sigilosamente sua investigação da cafeteira. Levantou a vista para seu pai, detendo a mão a quinze centímetros do metal quente. Logo enrugou a cara e rompeu a chorar, assustado.

Roger alargou os braços por cima da fogueira para levantá-lo. O garotinho chiou e esperneou, tratando de escapar desse terrorífico desconhecido. Bree se apressou a fazer-se carrego dele, estreitando-o contra o seio, com a cara contra seu ombro. Tinha empalidecido pela impressão.

Roger também parecia fortemente impressionado. levou-se uma mão cautelosa ao pescoço, como se não estivesse seguro de tocar sua própria carne. Ainda tinha uma marca escura baixo o mandíbula, deixada pela corda; era visível até à luz vacilante do fogo, junto com a linha mais pequena e pulcra de minha própria incisão.

Passada a surpresa inicial causada por seu grito, os homens se levantaram para aproximar-se.

–Diga algo mais –o insistiu Hugh Findlay.

–Sim, senhor, tente-o-se somou Iain, radiante a cara redonda–. Diga… diga “Três tigres comem trigo em um trigal”.

A sugestão foi sossegada com um vaio. Seguiu uma chuva de propostas entusiastas. Roger começava a se desesperar-se e apertava os dentes. Jamie e eu nos tínhamos levantado; percebi que meu marido se dispunha a intervir de algum modo.

Então Brianna se abriu passo; Jemmy, acoplado a seu quadril, observava a cena com intensa confiança. Ela estreitou a mão do Roger e lhe dedicou um sorriso que logo que tremia um poquito.

–Pode dizer meu nome? –perguntou.

O sorriso do Roger se parecia com a sua. Chegou-me o ruído áspero do ar em sua garganta, ao tomar fôlego. Nesta oportunidade falou com muita suavidade, mas todos guardavam silêncio. Foi um sussurro penoso e denso. A primeira sílaba golpeou com força para brotar entre as cordas vocais danificadas; a última foi apenas audível. Mas disse:

–Brrria… na.

E ela rompeu a chorar.

 

        Tinha-me sentado frente a Jamie em seu estudo para lhe fazer companhia; eu ralava raízes de sanguinária enquanto ele lutava com as contas do trimestre. Ambas eram tarefas lentas e tediosas, mas assim podíamos compartilhar a luz de uma mesma vela e desfrutar da mútua companhia.

-Olhe isto!- exclamou Jamie-. Um tonel de brandy a doze xelins; duas peças de musselina a três com dez cada uma; loja de ferragens… Para que demônios necessita Roger produtos de uma loja de ferragens? Acaso pensa tocar melodias com uma enxada? Loja de ferragens, dez com seis!

-Acredito que isso foi por uma grade de arado- disse, pacificadora-. Não é para nós. Roger a comprou para o Geordie Chisholm.

        Jamie contemplou penosamente as cifras e se passou uma mão pelo cabelo.

-Sim- disse-. Só que Geordie não terá nem um penique até que se enfaixam as colheitas do ano próximo. De modo que serei eu quem deve pagar agora esses dez com seis xelins, verdade?

        Deixei cair em um frasco o extremo da raiz que terminava de ralar. A sanguinária tem o nome bem posto; o suco de sua raiz é vermelho, acre e pringoso. No regaço tinha uma terrina cheia de raladas úmidas e rezumantes; pelo aspecto de minhas mãos, haveria-se dito que acabava de estripar a uns quantos animalejos.

-Tenho o cordial preparado de cerejas, seis dúzias de garrafas- ofereci-lhe. Como se ele não soubesse! Durante toda uma semana a casa inteira tinha cheirado a xarope para a tosse-. Fergus pode as vender em Salem.

        Jamie assentiu com ar distraído.

-Sim, conto com isso para comprar sementes de milho. Tem algo mais que se possa enviar a Salem? Velas? Mel?

-Acredito que posso prescindir de quarenta e cinco litros de mel- disse, com cautela-. E possivelmente de dez dúzias… bom, de uma grosa de velas.

-Acreditava que esta tinha sido um bom ano para suas colméias- observou.

        Era certo. Minha primeira colméia se expandiu; agora tinha nove em torno de meu pomar. delas tinha extraído quase duzentos e vinte e cinco litros de mel e cera suficiente para trinta dúzias de velas. Por outra parte, tinha pensado dar outro uso a esses produtos.

-Necessito um pouco de mel para a clínica- expliquei-. É um bom elemento antibacteriano para as feridas.

-De acordo, fica com o mel. Posso vender o sabão?

        Assenti, agradada. Depois de muitos e precavidos experimentos, tinha obtido por fim produzir um sabão que não cheirava a porco morto encharcado em lejía nem eliminava a capa superior da epiderme. Mas em vez de soro requeria azeite de girassol ou de oliva, ambos muito custosos.

        Tinha uma troca planejada com as mulheres cherokees: o que me sobrava de mel por seu azeite de girassol, para fazer mais sabão e xampu. Ambos se venderiam a preços excelentes em qualquer parte. Ao menos isso pensava eu, mas não estava segura de que Jamie acessasse a pôr dinheiro nessa empresa, que demoraria meses em frutificar, se podia obter lucros imediatas vendendo o mel. Não obstante, se o fazia ver que podíamos ganhar muito mais com o sabão que com o mel sem elaborar, não teria dificuldades em me sair com a minha.

        antes de que pudesse expor as perspectivas se ouviram pisadas em ligeiras no corredor e uns suaves golpes na porta.

-Passe- ordenou Jamie, erguendo as costas.

        O senhor Wemyss apareceu a cabeça, mas imediatamente vacilou, um pouco alarmado pelas sanguinárias manchas de minhas mãos. Jamie o convidou com um cordial movimento de pluma.

-Sim, Joseph?

-Posso lhe falar de um tema privado, senhor?

        Apartei a cadeira, mas quando ia recolher minhas coisas ele me deteve com um gesto.

-OH!, não, senhora. Eu gostaria que você também estivesse presente, se não lhe incomodasse. trata-se do Lizzie; a opinião de uma mulher me seria muito valiosa.

-É obvio.- Voltei a me sentar, já com curiosidade.

-Do Lizzie? encontraste marido para nossa pequena, Joseph?- Jamie deixou a pluma no tinteiro.

-Acredito que sim, senhor Frase. Esta manhã veio Robin McGillivray para pedir a mão de minha Elizabeth para seu moço Manfred.

        Arqueei as sobrancelhas um pouco mais. Até o que eu sabia, Manfred McGillivray não tinha visto o Lizzie mais de cinco ou seis vezes, nas que logo que tinham trocado umas poucas frases de cortesia.

        Quando o senhor Wemyss descreveu a situação, as coisas ficaram algo mais claras. Jamie tinha prometido uma dote para o Lizzie, consistente em uma parcela de boa terra; seu pai, já livre de seu contrato de servidão, tinha direito também a cinqüenta acres, que ela herdaria. A parcela dos Wemyss confinava com a dos McGillivray; unidas, constituíam uma granja muito respeitável. Pelo visto, agora que Ute McGillivray tinha a suas três filhas casadas ou convenientemente comprometidas, o matrimônio do Manfred era o passo seguinte de seu plano magistral. depois de examinar a todas as moças casaderas de trinta quilômetros à redonda, decidiu-se pelo Lizzie e enviado ao Robin para que iniciasse as negociações.

-Bom, os McGillivray são uma família decente- disse Jamie, judicioso. Enquanto refletia, afundou um dedo em minha terrina de sanguinária ralada e riscou uma linha de marcas vermelhas em seu secante-. Não têm muita terra, mas ao Robin vai bastante bem e o pequeno Manfred é muito trabalhador, por isso me hão dito.

        Robin era armeiro e tinha uma pequena loja no Cross Creek. Manfred fazia sua aprendizagem com outro armeiro do Hillsborough; então já cobrava jornal.

-Levaria-a a viver ao Hillsborough?- perguntei. Isso podia influir muito no Joseph Wemyss. Embora era capaz de algo por assegurar um futuro a sua filha, amava profundamente ao Lizzie e perdê-la-a partiria o coração.

-Diz Robin que não, que planeja exercer seu ofício no Woolam’s Creek, sempre que puder pagar uma loja pequena. Viveriam na granja.- Jogou uma olhada de reojo ao Jamie e logo apartou a vista; o sangue subiu sob sua branca tez.

        Meu marido inclinou a cabeça e vi que contraía a boca. De modo que era ali onde entrava ele nas negociações. Woolam’s creek era um pequeno assentamento que se estava desenvolvendo ao pé da Colina do Fraser. Embora o moinho e as terras que se estendiam ao outro lado do arroio eram propriedade dos Woolam, uma família de quaisquer, para o lado da colina todo pertencia ao Jamie.

        Até o momento tinha proporcionado terras, provisões e ferramentas ao Ronnie Sinclair, Theo Frye e Bob Ou’Neill, para uma oficina de tonelero, uma ferraria (ainda em construção) e um pequeno armazém de produtos vários; segundo as condições, nós participaríamos eventualmente das lucros, mas no momento, não haveria ganhos.

        Se Jamie e eu tínhamos planos para o futuro, o mesmo podia dizer-se do Ute McGillivray. Certamente, ela sabia que Jamie faria quanto pudesse pelo Lizzie, pois sentia uma estima especial por ela e seu pai. E certamente, isso era o que Joseph Wemyss pedia agora com muita delicadeza: poderia Jamie proporcionar ao Manfred um lugar no Woolam’s Creek, como parte do acordo?

        Ele me olhou pela extremidade do olho. Eu encolhi imperceptivelmente um ombro; perguntava-me se Ute McGillivray, em seus cálculos, teria tido em conta a fragilidade física do Lizzie. Havia muitas jovencitas mais fortes que ela e melhor dotadas para a maternidade. Mesmo assim, no caso de que morrera de parto, deixaria mais ricos aos McGillivray, tanto pelas terras de seu dote como pela propriedade do Woolam’s Creek. E não era tão difícil conseguir outra esposa.

-Suponho que se poderia fazer algo- respondeu Jamie, cauteloso. Vi que seu olhar ia para o livro de contas, com suas deprimentes colunas de cifras.

-Já me arrumarei isso- disse-. Mas o que diz a menina? Aceita ao Manfred?

        O senhor Wemyss pareceu duvidar um pouco.

-Diz que sim. É um bom moço, embora sua mãe… Boa mulher, muito boa- acrescentou imediatamente-, só que um pouco… né… Mesmo assim…

        Voltou-se para mim, enrugada a estreita frente.

-Para falar a verdade, senhora, não estou seguro de que Lizzie saiba o que quer. Sabe que é uma boa partida e que estaria perto de mim.- Sua expressão se abrandou ao dizê-lo. Logo voltou a ficar firme-. Mas eu não gostaria que aceitasse só por me agradar.

-Compreendo- disse-. Quer você que fale com ela?

-OH, senhora!, estaria-lhe muito agradecido.- levantou-se quase de um salto, aliviado pelo alívio. depois de estreitar fervorosamente a mão ao Jamie, inclinou-se várias vezes ante mim e saiu por fim, com muitas reverências e murmúrios de gratidão.

        A porta se fechou atrás dele, e Jamie moveu a cabeça, suspirando.

 

        A única vela, a ponto de consumir-se, arrojava sombras movediças pela habitação. Levantei-me para ir para a prateleira em busca de outra. Para minha surpresa, Jamie se aproximou também; e, procurando detrás das velas novas e médio consumidas, extraiu das sombras um achaparrado relógio-candelabro.

        Pô-lo no escritório e utilizou uma das velas para acendê-la. A mecha já estava enegrecida: a vela tinha sido utilizada anteriormente, embora não estava muito consumida. A um olhar do Jamie fui silenciosamente a fechar a porta.

-Crie que chegou o momento?- perguntei em voz fica, me detendo seu lado.

        Ele moveu a cabeça sem responder. Logo, com um suspiro, voltou para mim o livro de contas. Ali pude ver o estado de nossos assuntos, apresentado em branco e negro: fatal, no que a efetivo se referia. Além da armería para o Manfred McGillivray e a modesta dote do Lizzie, devíamos confrontar os gastos normais da criação e a manutenção do gado, mais um ambicioso plano para subministrar grades de arado a todos os arrendatários, muitos dos quais ainda estavam lavrando à mão.

        E além de nossos próprios gastos, carregávamos com uma onerosa obrigação: a maldita Laoghaire MacKenzie Frasier, aliás Mau Raio a Parta.

        Não era exatamente uma ex-mulher, mas tampouco deixava de sê-lo. Convencido de que minha ausência era definitiva (se é que não tinha morrido), Jamie se tinha casado com ela por insistência de sua irmã Jenny. Em pouco tempo foi óbvio que esse matrimônio era um engano; ao reaparecer eu se pediu a anulação, para alívio de todos os envoltos.

        Jamie, generoso até o excesso, tinha acordado lhe pagar uma importante pensão anual e atribuir uma dote a cada uma das filhas do Laoghaire. a do Marsali se ia pagando pouco a pouco em terras e uísque; quanto ao Joan, não havia notícias de bodas iminente. Mas logo terei que pagar o dinheiro com o que a mãe mantinha em Escócia seu próprio estilo de vida, qualquer que fosse… e não o tínhamos.

        Jamie refletia melancolicamente, com os olhos entreabridos. Não me incomodei em lhe sugerir que Laoghaire podia solicitar uma licença de mendicante e sair a pedir esmola pela paróquia. Apesar da opinião que lhe merecesse essa mulher, ele se considerava responsável e não havia mais que dizer.

        Provavelmente não aceitaria tampouco pagar a dívida em tonéis de pescado em salmoura e sabão de lejía. Assim só ficavam duas alternativas: pedir um empréstimo a Yocasta, coisa muito desagradável, ou vender outra coisa. Vários cavalos, por exemplo. uns quantos porcos. Ou uma jóia.

        A vela ardia com força; a cera que rodeava a mecha já se fundiu. Já se podia ver através do claro atoleiro de cera derretida: três gemas, escuras contra o cinza dourado da vela, que não chegava a ocultar do todo seus vívidos matizes. Uma esmeralda, um topázio e um diamante negro.

        Jamie os olhava sem tocá-los, com as densas sobrancelhas unidas em concentração.

        Não seria fácil vender uma daquelas pedras nas colônias da Carolina do Norte; provavelmente seria necessário viajar ao Charleston ou ao Richmond. Mas se podia fazer, e desse modo conseguiríamos dinheiro suficiente para pagar ao Laoghaire sua libra de carne e cobrir os gastos crescentes. Mas as gemas tinham um valor que foram mais à frente do dinheiro: eram a moeda que permitia viajar através das pedras; protegiam a vida do viajante.

        As poucas coisas que sabíamos desse perigoso trânsito se apoiavam, em sua major parte, nos escritos do Geillis Duncan ou no que ela me havia dito; sustentava que as gemas brindavam ao viajante, não só amparo contra o caos nesse inefável espaço entre os estratos do tempo, mas também também em alguma possibilidade de conduzir, de escolher o momento no que surgiria.

        Levada por um impulso, retornei à prateleira e, me pondo nas pontas dos pés, procurei provas o pacote de couro escondido entre as sombras. Pesava na mão. Desembrulhei-o com cuidado e depositei a pedra ovalada no escritório, junto à vela. Era uma opala grande, cujo ardente coração se traslucía na matriz opaca, graças ao esculpido que cobria a superfície: uma espiral, primitivo desenho da serpente que devora sua própria cauda.

        A opala era propriedade de outro viajante, o misterioso índio chamado Dente de Lontra Marinha. Um índio que alguma vez falou inglês e cujo crânio mostrava obturações de prata na dentadura. Ele tinha chamada “ passagem de volta” a essa gema. Ao parecer, não só Geillis Duncan acreditava que as pedras preciosas tinham algum poder nesse horrível lugar… intermédio.

-Cinco, disse a bruxa. Apontou Jamie, pensativo-. Disse que se necessitavam cinco pedras?

-Isso pensava ela.- Embora a noite era cálida, me arrepiou a pele ao pensar no Geillis Duncan, nas gemas… e no índio que tinha conhecido em uma ladeira escura, com a cara grafite de negro em sinal de morte, justo antes de encontrar a opala e o crânio sepultado com ele. seria seu crânio o que tínhamos enterrado, com obturações de prata e tudo?

-Deviam ser gemas polidas ou esculpidas?

-Não sei. Disse que as esculpidas eram melhores, mas não sei por que… nem tampouco se tinha razão.

        Esse era sempre o problema: sabíamos tão pouco…

        Ele emitiu um pequeno bufido e se esfreguei a ponte do nariz com um nódulo.

-Pois bem: temos estas três e o rubi de meu pai. São quatro pedras esculpidas e polidas. E logo, este pequeno “ bobi” - referia-se à opala- e a de seu amuleto, que estão em bruto.

        O caso era que as pedras esculpidas ou polidas valiam muito mais, em efetivo, que a opala ou a safira em bruto. Entretanto, podíamos nos arriscar a perder uma pedra que possivelmente representasse, algum dia, a diferença entre a vida e a morte para o Bree ou Roger?

-Não é provável- disse, em resposta a seu pensamento mais que a suas palavras-. Bree ficará, ao menos até que Jemmy seja maior, possivelmente para sempre.

        depois de tudo, quem podia renunciar a um filho, à possibilidade de conhecer seus netos? Não obstante eu o tinha feito. Esfreguei distraídamente meu anel de ouro.

-Sim, mas o moço…

-Não. Ele não abandonaria ao Bree e ao Jemmy.- Disse-o com firmeza, mas em meu coração havia uma faísca de dúvida.

-Ainda não- disse Jamie, em voz baixa.

        Aspirei fundo, mas não disse nada. Sabia muito bem a que se referia. Roger, envolto em seu silêncio, parecia afastar-se cada dia mais. Ele ainda sorria, jogava com o Jemmy e se mostrava sempre atento com a Brianna, mas a sombra de seus olhos não cedia jamais. Quando não o requeria para alguma tarefa, desaparecia durante horas inteiras, às vezes todo o dia. Caminhava pelas montanhas e retornava depois do obscurecer, exausto, sujo de pó… e silencioso.

-Não dorme com ela, verdade? Desde que aconteceu aquilo.

-Algumas vezes. perguntei. Mas acredito que ultimamente já não.

        Bree fazia o impossível por aproximá-lo, por arrancar o das profundidades dessa crescente depressão. Mas tanto para o Jamie como para mim era óbvio que nossa filha estava perdendo a batalha e sabia. A notava cada vez mais calada e ojerosa.

-Se ele… retornasse… haveria cura para sua voz? Lá, em seu próprio tempo?- Jamie deslizou um dedo sobre a opala, seguindo a espiral com os olhos.

        Eu suspirei outra vez.

-Não sei. Lhe poderia ajudar… possivelmente com uma operação ou com terapia de foniatría. Até que ponto melhoraria, ninguém pode sabê-lo. O fato é que… poderia recuperar sem ajuda boa parte de sua voz, se se esforçasse. Mas não o fará.

        Jamie assentiu com a cabeça. Quaisquer que fossem as possibilidades de padre médica, o certo era que, se fracassava o matrimônio, não ficaria nada que retivera o Roger ali. E se então decidia retornar…

        Jamie se incorporou na cadeira para apagar a vela.

-Ainda não- disse na escuridão, com a voz firme-. Faltam algumas semanas antes de que terei que enviar o dinheiro a Escócia; já se verá se podemos fazer outra coisa. por agora conservaremos as pedras.

 

        O pacote chegou em agosto, graças ao Jethro Wainwright, um dos poucos vendedores itinerantes o bastante empreendedores para subir pelos levantados e serpeantes caminhos que conduziam à Colina. Avermelhado e ofegante pela ascensão e o esforço de descarregar a sua burra, o senhor Wainwright me entregou o envio com uma inclinação de cabeça e, a meu convite, dirigiu-se agradecido à cozinha, enquanto seu asno mascava a erva do pátio.

        Era um pacote pequeno, uma espécie de caixa bastante pesada, envolta em oleado, cuidadosamente costurado e pacote com barbante para maior segurança. A etiqueta dizia, simplesmente: “ Ao senhor James Fraser, cavalheiro, Colina do Fraser, Carolina.”

-O que crie que é?- perguntei-lhe à burra. Era uma pergunta retórica, mas a amigável besta levantou a cabeça e zurrou em resposta.

        O ruído despertou os correspondentes gritos de curiosidade e bem-vinda entre o Clarence e os cavalos; em poucos segundos apareceram Jamie e Roger por um lateral do celeiro, Brianna do silo e o senhor Bug.

-O que é?- Brianna ficou nas pontas dos pés para olhar por cima do ombro de seu pai, que tinha pego o pacote-. Não vem do Lallybroch, verdade?

-Não, não é a letra do Ian… nem a de minha irmã- replicou Jamie, depois de uma vacilação muito breve-. Mas viajou muito…- Olhou o dorso do pacote e sacudiu a cabeça-. Tinha um selo, mas desapareceu.

-Hum.- O senhor Bug moveu a cabeça contemplando o pacote com ar dúbio-. Não é um azadón.

-Não, não é uma cabeça de azadón- confirmou Jamie, sopesando o pacote-. Tampouco um livro, muito menos uma mão de papel. E não recordo ter encarregado outra coisa. Poderiam ser sementes, Sassenach? O senhor Stanhope prometeu te enviar algumas do jardim de seu amigo, verdade?

-OH, poderia ser!- Era uma possibilidade estimulante; o senhor Crossley, amigo do Stanhope, tinha um grande jardim ornamental, com muitas espécies exóticas e importadas.

        Roger e Brianna intercambiaram um olhar. Para eles, as sementes eram muito menos interessantes que o papel ou os livros. Mesmo assim, qualquer carta ou pacote era algo tão novidadeiro que ninguém queria abri-lo enquanto não se desfrutou de todas as especulações possíveis sobre seu conteúdo.

        Ao final não o abrimos até depois de jantar. Jamie apartou o prato vazio, agarrou o pacote com a devida cerimônia, sacudiu-o uma vez mais e me entregou isso.

-Esse nó requer a mão de um cirurgião, Sassenach- disse com um grande sorriso.

        depois de beliscar a corda durante vários minutos consegui desatar o nó e enrolei o barbante com esmero, para um uso futuro.

        Então Jamie cortou cuidadosamente a costura com a ponta da faca e extraiu, entre exclamações de assombro, uma pequena caixa de madeira. Seu desenho era simples, mas elegante; era feita de madeira escura polida, com as dobradiças e o fechamento de bronze.

        Jamie levantou delicadamente o fechamento com um dedo e apartou a tampa para trás. Dentro havia um pequeno saco de veludo vermelho escuro. Desatou a corda que o franzia, e extraiu lentamente um… objeto.

        Era um disco dourado e plano, de uns dez centímetros de diâmetro. Boquiaberta de assombro, notei que tinha o bordo um pouco levantado, como um prato, e que estava decorado com símbolos diminutos. Na parte central do disco se via uma estranha peça de filigrana, feita de um metal prateado. tratava-se de um pequeno dial aberto, parecido à esfera de um relógio, mas com três braços que uniam seu bordo exterior ao centro do disco dourado.

        O pequeno círculo de prata estava também decorado com ocultos impressos, possivelmente muito pequenos para a vista, e unido a uma peça em forma de lira que descansava no ventre de uma enguia de prata, larga e plaina, cujo lombo se ajustava perfeitamente ao bordo interior do disco dourado. Em cima havia uma barra de ouro, afiada nos extremos como uma agulha de bússola muito grosa, que estava atravessada por um eixo que passava pelo centro do disco e que lhe permitia girar. Ao longo dessa barra se lia, em letra clara: “ James Fraser.”

-É um astrolábio- informou Jamie.

        Em sua cara inferior, o objeto apresentava uma superfície plaina, com vários círculos concêntricos gravados, a sua vez subdivididos por centenas de marcas e símbolos diminutos. Esse lado tinha uma peça giratória, como a agulha da outra cara, mas de forma retangular e com os extremos curvados para cima, aplanados e recortados de modo que os entalhes formavam um par de miras.

        Bree alargou um dedo para tocar com respeito a reluzente superfície.

-meu deus!- disse-. Isso é ouro de verdade?

-Em efeito.- Jamie depositou cuidadosamente o objeto em sua palma estendida-. E o que eu gostaria de saber é por que?

-por que um astrolábio e por que de ouro?- perguntei.

-por que de ouro- respondeu, franzindo o sobrecenho-. Faz tempo que desejava ter um instrumento assim e não podia encontrar nenhum entre o Albani e Charleston. Lorde John Grei me prometeu que faria que me enviassem um de Londres; suponho que é este. Mas por que é de…

        A atenção de todos estava ainda fixa no astrolábio, mas ele a desviou para a caixa em que tinha vindo. Como cabia esperar, no fundo havia uma nota, bem dobrada e selada com lacre azul. A insígnia não era a habitual meia lua sorridente com estrelas de lorde John, a não ser um escudo desconhecido: mostrava um peixe com um aro na boca.

        Jamie franziu o sobrecenho ao vê-lo; logo rompeu o selo e a abriu.

 

Senhor James Fraser, Cavalheiro

Colina do Fraser

Colônia Real da Carolina do Norte

Meu estimado senhor:

        Tenho a honra de lhe enviar o objeto anexo com os cumpridos de meu pai, lorde John Grei. Em ocasião de minha partida para Londres, deu-me instruções de conseguir o melhor instrumento possível; sabedor da alta estima que lhe merece a amizade de você, cuidei-me que assim fora. Espero que mereça sua aprovação.

        Seu seguro servidor,

William Ransome, lorde Ellesmere,

Capitão do 9º Regimento

 

-William Ransome?- Brianna se tinha levantado para ler por cima do Jamie. Olhou-me com as sobrancelhas franzidas-. Diz que lorde John é seu pai, mas o filho de lorde John não é ainda um menino?

-Tem quinze anos.- A voz do Jamie encerrava uma nota estranha.

-… não é Grei- dizia Brianna.

-Não.- Jamie seguia olhando a nota que tinha na mão e parecia algo distraído. Sacudiu por um instante a cabeça, para desprender-se de algum pensamento, e voltou para assunto que o ocupava-. Não- repetiu com mais firmeza, deixando a nota-. O moço é enteado do John; seu pai era o conde do Ellesmere; o menino é o nono desse título. Ransom é o sobrenome do Ellesmere.

        Mantive o olhar fixo na mesa e na caixa vazia, temerosa de que minha cara transparente revelasse algo mais, embora só fora o fato de que havia algo que revelar.

        Em realidade, William Ransom não era filho do oitavo conde do Ellesmere, mas sim do James Fraser; percebi a tensão com que Jamie me tocou a perna por debaixo da mesa, embora sua cara expressava agora uma leve exasperação.

-Pelo visto lhe compraram uma nomeação ao moço- disse, dobrando pulcramente a carta para guardá-la novamente na caixa-. De modo que foi a Londres e ali comprou isto por indicação do John. Suponho que, para um moço de sua criação, “ bom” significa necessariamente chapado em ouro.

        Jamie examinou o astrolábio, fazendo girar com o índice a enguia de prata.

-É magnífico, sim- reconheceu, quase relutante.

-Muito bonito.- O senhor Bug fez um gesto de aprovação-. Para topografia?

-Assim é.

-Para topografia?- perguntou Brianna-. Isto é para medir as terras?

-Entre outras coisas.- Jamie fez girar o astrolábio e empurrou brandamente a barra plaina, fazendo girar as olhar recortadas-. Isto… se usa como teodolito. Sabe o que é isso?

        Brianna assentiu, interessada.

-Claro. Conheço distintas formas de topografia, mas pelo general usávamos…

-Disse que sabia medir terras, recordo-o.- Jamie observou a sua filha com aprovação-. Por isso queria isto, embora pensava em algo menos vistoso. De estanho teria sido mais útil. Mesmo assim, enquanto não tenha que pagá-lo…

-me deixe ver.- Brianna estendeu uma mão para agarrar o objeto e moveu o dial interior, absorta.

-Sabe usar o astrolábio?- perguntei-lhe, dúbia.

-Eu sim- assegurou seu pai, com certa presunção-. Aprendi na França.- E se levantou-. Vamos fora, moça. Ensinarei-te a calcular a hora.

 

-Sim, exatamente aí.- Jamie se inclinou atentamente sobre o ombro do Bree, assinalando um ponto do dial exterior. Ela ajustou cuidadosamente o interior e moveu ligeiramente o marcador.

-As cinco e trinta!- exclamou, ruborizada de prazer.

-E trinta e cinco- corrigiu Jamie.

-Esta é a primeira vez que sei a hora exata desde que abandonei a casa dos Sherston.- Bree não emprestava atenção ao instrumento que tinha nas mãos. Vi-a procurar os olhos do Roger, sorridente. Um momento depois ele respondeu com seu sorriso torcido. Quanto tempo teria passado para ele?

        Bree devolveu cuidadosamente o astrolábio ao Jamie, quem imediatamente começou a esfregá-lo com as abas da camisa para lhe tirar as impressões digitais.

-O que outra coisa pode fazer com isso, papai?

-OH!, muitas coisas. Pode saber qual é sua posição, tanto em terra como no mar, calcular a hora, localizar determinada estrela no céu…

-Muito útil- observei-, mas não tanto como um relógio. Mas suponho que seu maior interesse não era saber a hora.

-Não.- Ele guardou meigamente o astrolábio em seu saco de veludo-. Devo medir corretamente a terra das duas concessões, quanto antes.

-por que?- Bree já se ia, mas para ouvir isso se voltou com uma sobrancelha em alto.

-Porque fica pouco tempo- explicou Jamie-. Vós dois sabem o que se mora.- Jamie olhou ao Bree e ao Roger-. Embora o rei caia, a terra perdurará. E para conservar estas terras através de todo isso é necessário medi-la e registrá-la devidamente. Quando há distúrbios, quando a gente deve abandonar sua terra ou deixar-se desapropriar… recuperá-la é um trabalho infernal, mas se pode, sempre que ter uma boa escritura para provar que alguma vez te pertenceu.

        Lallybroch… o salvamos graças à escritura. E o jovem Simon, o filho do Lovat… ele também brigou por sua terra depois do Culloden, e ao fim recuperou a maior parte. Mas só porque tinha papéis para demonstrar que tinha sido dela. Por isso.

        Abriu o estojo para depositar em seu interior, com suavidade, o saco de veludo.

-Quero ter papéis. E qualquer que seja o Jorge que com o tempo governe, esta terra será nossa. E tua- acrescentou brandamente, elevando os olhos para a Brianna-. E depois, de seus filhos.

 

        Brianna tinha subido até a casa grande para agarrar emprestado um livro. Depois de deixar ao Jemmy na cozinha com a senhora Bug, dirigiu-se ao estudo de seu pai.

        Fergus havia trazido três livros mais de sua última viagem ao Wilmington: uma série de ensaios do Michel do Montaigne (não lhe serviriam, pois estavam é francês), um maltratado exemplar do Moll Flanders, pelo Daniel Defoe, e um volume muito magro, de coberta branda, escrito pelo B. Franklin: Médios e maneiras de obter a Virtude. Não há muito que pensar, disse-se, retirando Moll Flanders. O livro estava muito desgastado, mas parecia completo.

        Um súbito estrondo na consulta de sua mãe a arrancou da contemplação do livro. Por instinto procurou o Jem com o olhar, mas não estava ali, claro. depois de deixar precipitadamente o volume em seu lugar, saiu do estudo correndo, só para encontrar-se com sua mãe, que ia da cozinha.

        Chegou à porta da clínica apenas um segundo antes.

-Jem!

        A porta do grande armário estava entreabrida; no ar pendia um forte aroma de mel. No estou acostumado a havia uma vasilha rota, em meio de um atoleiro dourado e pringoso. Jemmy se tinha sentado no centre, generosamente lubrificado, com os olhos azuis absolutamente redondos e a boca aberta em um gesto de surpresa culpado.

        O sangue subiu à cabeça do Bree. Levantou-o por um braço, pringoso e tudo.

-Jeremiah Alexander MacKenzie!- disse, em tom zangado-. É um menino muito mau!

        depois de inspecioná-lo apressadamente se por acaso estivesse machucado ou sangrando, deu-lhe um açoite no traseiro, o bastante forte como para que lhe ardesse a palma da mão.

        O chiado resultante lhe provocou um sentimento de culpa. Mas, ao ver o resto do açougue que lhe rodeava, teve que dominar o impulso de surrá-lo outra vez.

        Molhos inteiros de romeiro seco, tomilho e milenrama tinham sido arrancados do secador e pareciam pedaços. Uma das estropia onde estavam as gazes pendurava desprendida da estantería, e o tecido estava completamente rasgado. Pelo estou acostumado a rodavam garrafas e jarras; algumas tinham perdido as cortiças e se derramaram pós e líquidos multicoloridos. Um grande saco de linho, cheio de sal grosa, estava meio vazio; em qualquer parte havia punhados de seus cristais jogados com abandono.

        Pior ainda: o amuleto de sua mãe jazia no chão, com a taleguilla rota, esmagada e vazia. Ao redor, viam-se trocitos de novelo seca, alguns ossos diminutos e outros restos.

-Sinto-o muito, mamãe. escapou-se. Não estava atenta. Devi ter mais cuidado…

        Claire um pouco aturdida pelo tumulto, olhou a seu redor para fazer um rápido inventário. Logo se inclinou para levantar o Jemmy, sem fixar-se no mel.

-Bom, a esta idade o tocam tudo- disse ao Bree, mais divertida que zangada-. Não se preocupe, querida; é só desordem. Graças ao céu não chegou às facas. E os venenos também estão bem acima.

        Brianna sentiu que seu coração voltava a diminuir o passo. Sentia a mão quente, palpitante de sangue.

-Mas seu amuleto…- assinalou.

        Pela cara de sua mãe passou uma sombra ao ver aquela profanação.

-OH!- Claire aspirou fundo, deu uns tapinhas ao Jemmy nas costas e o deixou no chão.

-Sinto muito- repetiu Brianna, impotente.

        Sua mãe, fazendo um esforço visível, subtraiu importância ao assunto com um gesto; logo se agachou para recolher os fragmentos do chão.

-Sempre me perguntei o que haveria dentro- comentou, enquanto recolhia com cuidado os ossos diminutos-. Do que crie que seja isto? De musaraña?

-Não sei.- Brianna se sentou em cuclillas a seu lado para subir as coisas-. Suponho que seriam de camundongo ou morcego.

        Sua mãe a olhou, surpreendida.

-Pois sim que é preparada. Olhe isto.- Beliscou do chão um objeto pequeno e pardo, como de papel, e o ensinou. Ao inclinar-se para olhar melhor, Brianna viu algo que parecia uma folha seca e enrugada, mas em realidade era uma parte da asa de um morcego diminuto.

-” Pata de sapo, olho de tritón, / asa de morcego, língua de galgo” - citou Claire, enquanto depositava o punhado de ossos na encimera-. O que quereria dizer com isso?

-Quem?

-Nayawenne, a mulher que me deu a taleguilla.

        Jemmy, esquecidas as regañinas, deu procuração se de um grampeia cirúrgica a que lhe estava dando voltas, como se estudasse suas possibilidades comestíveis. Brianna se perguntou se devia tirar-lhe mas como não tinha fio e sua mãe sempre esterilizava seus instrumentos metálicos em água fervendo, decidiu deixar-lhe no momento.

        O menino ficou com o Claire enquanto ela ia à cozinha a por água quente e alguns trapos com os que limpar o mel. A senhora Bug roncava brandamente em uma poltrona, profundamente dormida, com as mãos cruzadas sobre o arredondado ventre e o lenço comodamente torcido para uma orelha. Retornou nas pontas dos pés, com o cubo de água e um montão de trapos. A maior parte do lixo estava já recolhimento; sua mãe se arrastava a quatro patas, olhando por debaixo dos móveis.

-perdeste algo?- Jogou uma olhada ao última prateleira do armário, mas não faltava mais que a vasilha de mel. As outras garrafas já estavam tampadas e em seu sítio; tudo estava mais ou menos como de costume.

-Sim.- Claire se agachou um pouco mais para olhar debaixo do armário-. Uma pedra. Mais ou menos deste tamanho.- Mostrou o índice e o polegar curvados, indicando em diâmetro de uma moeda pequena-. De cor azul cinzenta, translúcida em alguns pontos. É uma safira em bruto.

-Estava no armário? Talvez a senhora Bug a trocou de lugar.

        Claire se sentou sobre os talões.

-Não, não toca nada aqui dentro. Além disso, não estava no armário, a não ser ali.- Assinalava a mesa onde tinha posto a taleguilla vazia do amuleto, junto aos ossos e os restos de novelo.

        Fizeram uma rápida inspeção da estadia, seguida por outra mais minuciosa, sem descobrir sinais da pedra. Claire se passou uma mão pelo cabelo, olhando ao Jemmy com ar pensativo.

-Olhe, ódio dizer isto, mas não crie que…?

-Não chateie!- A preocupação da Brianna tinha crescido até converter-se em leve alarma. agachou-se diante do Jemmy-. Tinha trocitos de folhas secas pegos com mel ao redor da cara, mas suponho que era só romeiro ou tomilho…

        Ofendido por esse atento escrutínio, ele tratou de golpeá-la com o grampo, mas lhe sujeitou a boneca com mão de ferro e lhe tirou o instrumento.

-Não se pega a mamãe- disse automaticamente. Isso não se faz. Jem… te comeste a pedra da abuelita?

-Não- disse ele, também automaticamente. E se apoderou novamente do grampo-. Meu!

        Lhe farejou a cara, com o que o pequeno se inclinou para trás em ângulo alarmante. Não estava segura. Mas não parecia romeiro.

-Vêem cheirá-lo- disse a sua mãe-. Eu não estou segura.

        Claire se agachou para fazê-lo e Jemmy chiou de risonho alarme, disposto a um divertido jogo de “ Lhe como” . Mas se levou uma desilusão; sua avó se limitou a inalar profundamente.

-Gengibre silvestre- disse, com decisão. Logo agarrou um pano molhado para limpar as manchas de mel, face aos crescentes uivos de protesto-. Olhe.

        Assinalava a pele já limpa ao redor da boca. Brianna as viu com claridade: duas ou três ampolas diminutas.

-Jeremiah- disse severamente, tratando de olhá-lo aos olhos-. Responde a mamãe. Comeste-te a pedra da abuelita?

        Jemmy desviou a cara e se retorceu para escapar. Em um gesto de amparo, pôs as mãos atrás.

-Não pega- disse-. Não s’faz!

-Não te surrarei- tranqüilizou-o ela, aferrando um pé já em fuga-. Mas quero saber. Tragaste-te uma rocha assim de grande?

        Mostrou o tamanho entre o polegar e o índice. Jemmy lançou uma risita.

-Bonito- disse. Essa era a palavra que preferia agora. Aplicava-a sem distinção a qualquer objeto que gostasse.

        Brianna fechou os olhos com um suspiro de exasperação. Logo olhou a sua mãe.

-Temo que sim. Fará-lhe mal?

-Não acredito.- Claire observou a seu neto com ar pensativo.

        Logo foi abrir um dos armários altos e extraiu um grande frasco de cristal marrom.

-Azeite de castor- explicou, enquanto revolvia uma gaveta em busca de uma colher-. Não é tão rico como o mel, mas sim muito efetivo.

 

        O azeite de castor, por efetivo que fora, requeria tempo. Brianna e Claire aproveitaram a espera para limpar a clínica, sem apartar a vista do Jemmy, a quem puseram a jogar com seu cesto de peças de madeira. Logo se dedicaram a preparar remédios. Como o dia era temperado e agradável, deixaram a janela aberta, embora isso as obrigasse a matar moscas, sacudi-los mosquitos e retirar algum besouro entusiasta das soluções borbulhantes.

-Cuidado, tesouro!- Brianna se apressou a varrer com a mão uma abelha que se posou sobre os brinquedos do menino, antes de que Jemmy pudesse agarrá-la-. Inseto mau. Ai!

-Cheiram seu mel- explicou Claire, afugentando a outra-. Será melhor que lhes devolva um pouco.- Pôs uma terrina de aguamiel no batente; em poucos segundos as abelhas se arracimaban em seu bordo para beber golosamente.

-Olhe que são obstinadas…- comentou Brianna.

-Pois com a obstinação pode chegar muito longe- murmurou Claire, distraída, enquanto removia a solução posta a esquentar sobre o abajur de álcool-. Acredito que isto já está. O que pensa você?

-Disso sabe muito mais que eu.- Mas a moça se inclinou a farejar-. Acredito que sim; cheira bastante forte.

        Claire retirou a terrina da chama e filtrou o líquido esverdeado por uma gaze.

-Sempre teve vocação pela medicina?- perguntou Brianna, com curiosidade.

        Claire negou com a cabeça, enquanto esmiuçava com uma faca um punhado de casca de disco.

-Quando era jovencita não me passava pela cabeça. Então, como a maioria das garotas, pensava me casar, ter filhos, atender a meu lar… Ouça, crie que Lizzie está bem? Ontem à noite me pareceu vê-la um pouco amarela, mas talvez fora a luz das velas.

-Eu a vejo bem. Mas não sei se estiver realmente apaixonada pelo Manfred.

        A noite anterior tinham celebrado o compromisso do Lizzie e Manfred MacGillivray com um jantar opípara, a que assistiu toda a família do noivo. A senhora Bug, que queria muito ao Lizzie, esmerou-se como nunca; não era de sentir saudades que agora dormisse.

-Não- disse Claire, francamente-. Mas enquanto não esteja apaixonada por outro, acredito que não importa. Ele é um bom moço e bastante bonito. E Lizzie simpatizou com sua sogra; isso também é bom, dadas as circunstâncias.

-Talvez simpatize mais com a senhora MacGillivray que com o Manfred. Era muito pequena quando perdeu a sua mãe; e desfruta de ter outra vez um pouco parecido.- Brianna olhou ao Claire pela extremidade do olho. Recordava muito bem a sensação de não ter a sua mãe… e a bem-aventurança de voltar a encontrá-la.

        Claire esfregou entre as mãos a casca esmiuçada, deixando-a cair em um frasco pequeno cheio de álcool.

-Sim. Mesmo assim me parece melhor que Lizzie e Manfred esperem um pouco até conhecer-se melhor., acordou-se de que as bodas se celebraria o verão seguinte, quando Manfred já tivesse sua oficina instalada no Wollam’s Creek-. Espero que isto resulte.

-O que?

-A casca de disco.- Claire tampou o frasco e o guardou no armário-. O registro do doutor Rawlings diz que se pode utilizar como substituto da casca de quina. Como quinina, já entende. E é muito mais fácil de conseguir, além de muito mais troca.

-Estupendo. Espero que funcione.- A malária do Lizzie estava latente desde por volta de vários meses, mas sempre existia o perigo de que se manifestasse.

        Enquanto amassava um punhado de salvia no morteiro retornou ao tema anterior, que perdurava em sua mente.

-Diz que quando foi menina não pensava ser médico. Mas depois não parecia pensar em outra coisa.

        Tinha lembranças dispersas, mas muito vívidos, da época em que sua mãe estudava medicina: o aroma de hospital que trazia no cabelo e na roupa, o contato fresco e suave da bata cirúrgica que às vezes trazia posta quando ia lhe dar as boa noite, se chegava tarde do trabalho.

-Bom- disse Claire-. Quando sabe quem é e para que nasceste, sempre encontra a maneira de fazê-lo. Não só as mulheres. Seu pai… refiro ao Frank… Ele era muito bom historiador. A matéria gostava e tinha o dom da disciplina e a concentração. Assim chegou a ter êxito, mas em realidade não era sua… sua vocação. Ele mesmo me disse isso: poderia haver-se dedicado a outra coisa sem que lhe importasse muito. Mas há pessoas às que lhes importa muitíssimo, e nesses casos… Para mim a medicina era muito importante. Ao princípio não sabia, mas com o correr do tempo me dava conta de que estava feita para isso. E uma vez que soube…

-Sim, mas… não sempre pode te dedicar à carreira para a que nasceste, verdade?- perguntou Bree, pensando na garganta lesada do Roger.

-Pois não, às vezes a vida obriga a algumas costure- murmurou sua mãe-. E no caso da gente comum, freqüentemente a vida que levam é a vida que encontraram. Ali tem ao Marsali, por exemplo. Não acredito que tenha pensado nunca fazer algo distinto. Sua mãe se dedicava à casa e a criação dos filhos; ela não vê motivos para não fazer o mesmo. Entretanto… teve uma grande paixão, Fergus, e bastou isso para arrancá-la do caminho trilhado que teria seguido sua vida.

-Para arrojá-la a outra igual?

-Sim, só que na América em vez de Escócia. E tem ao Fergus.

-Como você tem ao Jamie?

        Claire levantou a vista, surpreendida. Bree estranha vez o chamava pelo nome de pilha.

-Sim. Jamie é parte de mim. Igual a você. Mas nem você nem ele me enchem por completo. Sou o que sou: médica, enfermeira, curadora, bruxa… como a gente queira dizê-lo; o nome não importa. Nasci para isso e o serei até que mora. Se lhes perdesse, a ti ou ao Jamie, já não voltaria a me sentir completa, mas ainda ficaria isso.- Continuou em voz tão suave que Brianna teve que esforçar-se para ouvi-la-. Por um tempo, depois de… retornar… antes de que você nascesse… isso era tudo o que tinha. Só o conhecimento.

        De fora lhes chegou um ruído de botas; logo, a voz do Jamie, dirigida em cordial comentário ao frango que lhe tinha cruzado no caminho.

        Amar ao Roger, amar ao Jemmy, não era suficiente para ela? Sem dúvida alguma, devia sê-lo. Mas teve ao horrível e oca sensação de que talvez não o era. antes de que o pensamento pudesse expressar-se em palavras, apressou-se a perguntar.

-E papai?

-O que tem que ele?

-Sabe… é dos que sabem quem é? O que crie?

-OH, sim. Sabe- asseverou Claire-. É um homem. Que não é pouco.

 

        Brianna fechou o livro com uma mescla de alívio e mau pressentimento. Jamie lhe tinha sugerido que ensinasse as primeiras letras a algumas meninas da Colina, e ela não se opôs. Durante um par de horas a cabana se enchia de vozes alegres.

        Mesmo assim ela não era professora por natureza; ao terminar cada lição sentia sempre alívio. Mas o mau pressentimento a seguia, lhe pisando os talões. Quase todas as meninas vinham sozinhas ou aos cuidados de uma irmã maior. Anne e Kate Henderson, que viviam a três quilômetros, acudiam acompanhadas pelo Obadiah, seu irmão maior.

        Bree não sabia com certeza como nem quando tinha começado aquilo. Talvez o primeiro dia, quando ele a olhou aos olhos com um leve sorriso e lhe sustentou o olhar por um segundo de mais, antes de deixar a suas irmãs com um tapinha na cabeça.

        Bree detestava ter que sair à porta ao terminar cada lição. As garotinhas se disseminavam em uma revoada de vestidos e risitas. E Obadiah estava ali, esperando, já reclinado contra uma árvore, já sentado no brocal do poço; uma vez o tinha encontrado descansando no banco, frente à porta.

        Essa constante incerteza de não saber onde estaria a punha dos nervos, quase tanto como seu semisonrisa e a careta ufana e zombadora com que se despedia, quase com uma piscada, como se soubesse dela algo secreto e vergonhoso, algo que, no momento, preferia reservar-se.

        Obadiah não lhe dizia nada; não o fazia gestos indecorosos. Como protestar porque a olhava? Era ridículo. Ridículo, também, que um pouco tão simples lhe fizesse subir o coração à garganta quando abria a porta.

        Reuniu coragem para deixar sair às meninas. Quando se disseminaram olhou ao redor. Ele não estava ali: nem junto ao poço, nem sob a árvore, nem no banco… não estava.

        Anne e Kate já foram pelo centro do claro, com o Janie Cameron, as três da mão.

-Annie!- chamou Bree-. Onde está seu irmão?

-foi a Salem, senhorita- respondeu-. Hoje jantaremos em casa do Jane!

        A tensão despareció lentamente de seu pescoço e seus ombros. Jemmy dormia, arrulhado por à recitação nasal do alfabeto. Podia aproveitar sua sesta para ir ao sibil a por um pouco de leite de manteiga.

        O sibil estava fresco e escuro; o ruído da água que corria pelo canal de pedra era sedativo. adorava estar ali, admirar as folhagens de algas aderidas à pedra, à deriva na corrente.

        Saiu devagar do sibil, com o cântaro de leite e de manteiga em uma mão e uma parte de queijo na outra. Faria uma omelete francesa de queijo para o almoço; preparava-se rápido e ao Jemmy adorava. Ainda sorria quando, ao apartar a vista do atalho, encontrou-se com o Obadiah Henderson, sentado em seu banco.

-O que faz aqui?- Sua voz soou seca-. As meninas disseram que tinha ido a Salem.

-E assim foi.- Ele ficou de pé para aproximar-se, com essa semisonrisa insinuante nos lábios-. Já retornei.

-Pois as meninas já se foram- disse, com toda a frieza possível-. Estão em casa dos Cameron.

        Embora o coração lhe palpitava com força, passou junto a ele com intenção de deixar o cântaro no alpendre. Quando se agachou, lhe apoiou uma mão na parte baixa das costas. Por um momento ficou petrificada. Ele não retirou a mão nem tentou acariciar nem apertá-la, mas esse peso era como uma serpente morta contra suas costas. Bree se girou em redondo e deu um passo atrás.

-Trouxe-te algo- disse Obadiah-. De Salem.- Ainda tinha o mesmo sorriso nos lábios.

-Não o quero- disse ela-. Quer dizer… obrigado, mas não. Não deveste fazê-lo. A meu marido não gostaria.

-Não tem por que inteirar-se.- Ele se aproximou um passo; ela retrocedeu. O sorriso se fez mais larga.

-Dizem que seu marido não passa muito tempo em casa, ultimamente- comentou com voz fica-. Deve te sentir sozinha.

        Aproximou-lhe uma manaza ao rosto. Nesse momento se ouviu um ruído estranho, carnudo. A cara do moço ficou em branco e seus olhos se dilataram de repente.

        Ela o olhou um instante, sem a menor ideia do que tinha acontecido, até que Obadiah baixou os olhos exagerados à mão estendida. Então Bree viu a pequena faca parecida na carne do antebraço e a mancha vermelha que ia crescendo na camisa, ao redor.

-Vete daqui- disse Jamie em voz baixa, mas clara. Saía das árvores, olhando ao Henderson sem nenhuma cordialidade. Chegou em três passados compridos e arrancou a faca parecida no braço do moço-. Vete e não volte jamais.

        O moço se foi, aferrando o braço ferido, a tropeções. Logo correu para o caminho e despareció entre as árvores. O pátio ficou em silêncio.

-Tinha que fazer isso?- foi o primeiro que ela conseguiu dizer. Estava aturdida, como se ela mesma tivesse recebido algum golpe.

-Teria preferido que esperasse?- Seu pai a agarrou por um braço para obrigá-la a sentar-se no alpendre.

-Não, mas… não poderia… lhe haver dito algo, nada mais?

        Sentia os lábios intumescidos e nos márgenes de seu campo visual flutuavam pequenos brilhos de luz. Compreendeu remotamente que estava a ponto de deprimir-se. Então se inclinou para diante, com a cabeça entre os joelhos e a cara sepultada no seguro refúgio do avental.

-Mas se o fiz. Hei-lhe dito que se fora.- O alpendre rangeu quando Jamie se sentou a seu lado.

-Já sabe a que me refiro.- Sua voz soava estranha, sufocada pelas dobras do avental-. O que queria fazer? te exibir? Que segurança tinha de cravar uma faca a essa distância? E o que era isso? Um canivete?

-Sim. Quão único tinha no bolso. E em realidade não queria cravar-lhe admitiu Jamie-. Quis jogá-lo contra o muro da cabana, para lhe dar um golpe desde atrás quando ele desviasse a cabeça para o ruído. Mas se moveu.

        Bree fechou os olhos e respirou profundamente pelo nariz para assentar o estômago.

-Sente-se bem, a muirninn?- perguntou ele, com voz fica. Apoiou-lhe brandamente uma mão nas costas, algo mais acima que Obadiah. Era agradável: grande, morna e consoladora.

-Estou bem, sim- assegurou ela, abrindo os olhos-. Perfeitamente.

        Então ele se relaxou um pouco; seus olhos se aquietaram, mas sem apartar-se dela.

-Bem, me diga: esta não foi a primeira vez, verdade? Quanto tempo leva este caipira te rondando?

-Desde a primeira semana- disse.

        Ele alargou os olhos.

-Tanto? E por que não o há dito a seu marido?- inquiriu ele, incrédulo.

-É que… verá, eu não acreditava… quer dizer… Não era assunto dele.

        Como seu pai se enchesse os pulmões de ar, sem dúvida para algum comentário mordaz sobre o Roger, apressou-se a defendê-lo.

-É que… é que… em realidade ele não fez nada concreto. Só olhar. E… sorrir. Ia eu a lhe dizer ao Roger que ele me olhava? Não quis que tomasse por débil ou indefesa.- Não obstante tinha sido ambas as coisas e sabia-. Não queria… lhe pedir que me defendesse.

-Para que demônios crie que estamos os homens?- perguntou Jamie em tom de total desconcerto-. Quer ter o de mascote? Como falderillo? Como um pássaro enjaulado?

-Não compreende!

-Ah, não?- Seu bufo era, talvez, uma risada sardônica-. Levo trinta anos casado; você menos de dois. O que é o que não compreendo?

-Não é… Você e mamãe não são como Roger e eu!- estalou.

-Claro que não- disse, sem alterar-se-. Sua mãe tem em conta meu amor próprio, e eu, o seu. Acaso crie que ela é uma covarde, incapaz de defender-se sozinha?

-Eu… não.- Brianna tragou saliva, perigosamente perto das lágrimas, mas decidida a não as deixar escapar-. Mas é diferente, papai. Somos de outro lugar, de outra época.

-Sei muito bem- replicou ele; sua boca se curvou em uma semisonrisa irônica e sua voz se fez mais suave-. Mas não acredito que os homens e as mulheres tenham trocado muito.

-Talvez não.- Ela tragou saliva para afirmar a voz-. Mas talvez Roger sim que tenha trocado. Desde o Alamance.

        Jamie tomou fôlego para falar, mas o deixou escapar lentamente sem dizer nada. Tinha retirado a mão, e ela sentiu sua falta.

-Sim- disse ao fim, em voz baixa-. Pode ser.

        Brianna ouviu um golpe surdo no interior da cabana; logo, outro. Jem tinha despertado e estava arrojando os brinquedos do berço. Em um momento começaria a chamá-la para que o tirasse. levantou-se com brutalidade.

-Jem está acordado. Devo entrar.

        O menino estava de pé, obstinado ao flanco de seu berço e impaciente por escapar. Assim que ela se inclinou para levantá-lo, jogou-se em seus braços.

        “ Deve te sentir sozinha” , havia dito Obadiah Henderson. E estava no certo.

 

        Satisfeito depois da comida, Jamie se apoiou no respaldo com um suspiro. Quando ia levantar se, a senhora Bug se levantou súbitamente da mesa, agitando um dedo admonitório.

-Não, não, senhor! Não vá, que tenho o merengue recém feito e isso não pode esperar!

-Acredito que vou arrebentar, senhora Bug, mas ao menos morrerei feliz- informou-lhe Jamie-. Venha… mas devo ir a por algo enquanto você o serve.

        Com assombrosa agilidade, considerando que acabava de consumir meio quilograma de salsichas especiadas com maçãs fritas e batatas, abandonou a cadeira e desapareceu pelo corredor rumo a seu estudo.

-Quero medengue!- Jemmy golpeou a mesa com a mão, cantando a todo pulmão-: Dêem-me-gue! Dêem-me-gue!

        Roger olhou ao Bree com uma semisonrisa; alegrou-me notar que ela a captava e a devolvia.

        Jamie chegou justo quando o merengue para sua aparição. Ao passar junto ao Roger alargou uma mão e depositou frente a ele um livro contável envolto em tecido, coroado pelo pequeno estojo de madeira que continha o astrolábio.

-Acredito que o bom tempo se manterá por um par de meses mais- disse como quem não quer a coisa.

-Sim?- A palavra saiu afogada e apenas audível, mas bastou para que Jemmy interrompesse seus gorjeios para olhar a seu pai, boquiaberto. Perguntei-me se era o primeiro que Roger havia dito em todo o dia.

-Pois sim. Fergus baixará à costa antes da primeira nevada. Seria bom que pudesse levar os informe de topografia para apresentá-los em New Bern, não crie?

        E cravou a colher no merengue com ar decidido, sem levantar a vista. Só encheu o silêncio o choque das colheres contra os pratos de madeira. Por fim falou Roger, que não havia meio doido a sua.

-Posso… fazer isso.

        Possivelmente só se tratava do esforço que requeria o passado do ar por sua garganta lesada, mas na última palavra houve uma ênfase que arrancou uma careta a Brianna. Foi muito leve, mas eu a vi… e também Roger, que baixou a vista a seu prato.

-Vele- disse Jamie, em tom ainda mais despreocupado-. Ensinarei-te como se faz. Pode partir dentro de uma semana.

 

Ontem à noite sonhei que Roger partia. Faz já uma semana que sonho com sua viagem, desde que papai o propôs.

        Em meu sonho Roger punha suas coisas em uma bolsa grande, enquanto eu esfregava o chão. Ele não deixava de me estorvar e eu tirava a bolsa de no meio uma e outra vez, para poder esfregar outra parte.

        Quero e não quero que se vá. Ouço todas as coisas que não diz; ressonam em minha cabeça. Não deixo de pensar que, quando se tiver ido, haverá silêncio.

 

        Passou abruptamente do sonho ao despertar. Sabia que ele se foi, mas levantou a cabeça para comprová-lo. A mochila já não estava junto à porta, nem tampouco o hatillo de comida.

        A noite anterior tinham feito o amor antes de dormir. Ao princípio ela pensou que não aconteceria, mas quando se aproximou para rodeá-lo com seus braços, ele a estreitou com força, beijou-a longamente e, por fim, levou-a a cama.

        Em sua ansiedade por lhe assegurar seu amor com o corpo, de lhe dar algo de si para que se levasse, esqueceu-se por completo de si mesmo; o clímax a surpreendeu. Deslizou uma mão para baixo, entre as pernas, recordando a sensação de ver-se repentinamente envolta em uma grande onda, indefesa, varrida para a praia. Oxalá Roger se deu conta. Não havia dito nada; nem sequer abriu os olhos.

        Na escuridão prévia ao amanhecer, deu-lhe um beijo de despedida, sempre calado. Ou não foi assim? Brianna se levou uma mão à boca, súbitamente insegura; mas na carne suave e fresca de seus lábios não havia pista alguma.

        Tinha-lhe dado um beijo ao despedir-se? Ou era só um sonho?

 

O relincho dos cavalos no cercado anunciava visitas. A curiosidade fez que abandonasse meu último experimento para me aproximar da janela. No pátio não havia homens nem cavalos, mas os animais seguiam soprando como quando viam alguém desconhecido. portanto o visitante vinha a pé e se dirigiu para a porta da cozinha.

Esta hipótese foi quase instantaneamente respaldada por um guincho que veio da parte traseira. Apareci a cabeça ao corredor, bem a tempo para ver a senhora Bug, que saía da cozinha correndo entre alaridos de pânico.

Passou como uma bala, sem lombriga, e saiu pela porta principal, deixando-a aberta. Isso me permitiu vê-la cruzar o pátio e desaparecer no bosque, sem deixar de gritar a todo pulmão. Quando olhei para o lado oposto, foi quase um desencanto ver um índio na porta da cozinha, com cara de surpresa.

- Osiyo –disse cautelosamente.

Respondeu a minha saudação com um sorriso brilhante e disse algo do que não entendi nada. Encolhi-me de ombros, impotente, mas sorri a minha vez. Assim passamos vários segundos, nos saudando com a cabeça e intercambiando sorrisos, até que o cavalheiro colocou a mão pelo pescoço de sua camisa interior e extraiu um cordão de couro com uma fileira de negras unhas curvas: as garras de um ou mais ursos.

Exibiu-as as fazendo repicar um pouco, enquanto olhava de um lado a outro, com as sobrancelhas arqueadas, como se procurasse a alguém sob a mesa ou dentro dos armários.

- Ah! –exclamei- . Você procura a meu marido. –Imitei o gesto de quem aponta um rifle- . O Mortos de ursos?

Minha inteligência foi recompensada com um dê-lhe o de dentes sãs.

- Acredito que voltará em qualquer momento –disse- . Quer beber algo?

Seguiu-me de boa vontade. Quando Jamie entrou, estávamos sentados à mesa, compartilhando o chá e intercambiando cabaçadas e sorrisos. Meu marido vinha acompanhado, não só da senhora Bug, que não se separava de suas abas e olhava com suspicacia ao visitante, mas também do Peter Bewlie.

Peter apresentou a nossa hóspede como Tsatsa’wi, irmão de sua esposa a Índia. Vivia a uns cinqüenta quilômetros além da Linha do Tratado, mas estava passando uma temporada com os Bewlie.

- Ontem à noite, enquanto fumávamos um cachimbo depois de jantar –explicou Peter- , Tsatsa’wi disse a minha esposa que na aldeia tinham um problema. E ela me contou isso , porque ele não fala nosso idioma nem eu o seu, só algumas palavras soltas e frases de cortesia. Como lhes dizia, ele se referiu a um urso malvado que os acossa há meses.

- Eu diria que Tsatsa’wi está bem equipado para as ver-se com essa besta –comentou Jamie, assinalando com a cabeça o colar de unhas.

- Sim –afirmou Peter- . É muito bom caçador, mas parece que o urso em questão não é um urso qualquer. E por isso lhe hei dito: “ vamos dizer se o ao MAC Dubh; talvez queira ir liquidar a essa besta.”

- Pois estes dias não posso ir, mas talvez quando tivermos recolhido o feno… Sabe o que acontece com esse urso problemático, Peter?

- Pois sim –disse o homem, alegremente- . É um fantasma.

Jamie não pareceu muito impressionado; simplesmente, esfregava-se o queixo com ar dúbio.

- Hum. me diga o que tem feito.

O urso tinha dado a conhecer sua presença um ano atrás, embora durante um tempo ninguém o viu. Houve algumas depredações normais: desapareciam as fileiras de pescado ou de espigas de milho postas a secar frente às casas; alguém roubava a carne de vos abrigos… Ao princípio os habitantes da população pensaram que se tratava de um urso um pouco mais ardiloso do normal: em geral aos ursos importa muito pouco que os vejam.

- Vinha só de noite, compreendem vocês? –explicou Peter- . E não fazia muito ruído. Pela manhã, ao sair, a gente descobria que lhe tinham roubado as reservas sem um ruído que despertasse. Pelos rastros souberam de um princípio que se tratava de um urso.

A gente da aldeia, muito acostumada a vos ursos, tinha tomado as precauções de costume: transladar as provisões a zonas mais protegidas e soltar os cães de noite. como resultado disto, vários cães desapareceram, novamente sem ruído algum.

Ao parecer os cães se voltaram mais precavidos ou a fome do urso aumentou. A primeira vitima foi um homem; apareceu morto no bosque. Logo, faz já seis meses, o animal se levou a um menino.

A vítima era um bebê, arrebatado com berço e tudo da borda do rio, enquanto sua mãe lavava roupa para o entardecer. Não houve ruídos nem mais rastros que um grande rastro de garra desenhada no barro.

Nos meses seguintes houve outras quatro mortes. Dois meninos que recolhiam morangos silvestres, já avançada a tarde. Um dos cadáveres apareceu com o pescoço partido, mas pelo resto intacto. O outro desapareceu; as marcas indicavam que o tinham miserável bosque dentro. Uma mulher foi parcialmente devorada em seu próprio milharal, também para o entardecer. A última vítima foi um homem que tinha saído a caçar ao urso.

- dele não encontraram nada, salvo o arco e alguns farrapos de roupa ensangüentada –disse Peter.

- De modo que eles mesmos o caçaram? –perguntei- . Quer dizer, ao menos o tentaram.

- OH!, sim, senhora Claire. Assim foi como ao fim descobriram o que era.

Uma pequena partida de caçadores saiu em busca do urso, armada de arcos, lanças e os dois mosquetes que a aldeia se vangloriava de possuir. Buscaram-no durante quatro dias; acharam alguns rastros, mas não eram recentes, e nenhum sinal do urso em si.

- Tsatsa’wi ia com eles –disse Peter, levantando um dedo para seu cunhado- . Uma noite ele montava guarda com outro, enquanto o resto dormia. Contou que, muito depois de sair a lua, afastou-se um pouco para urinar. Retornou bem a tempo para ver que a besta se levava a seu amigo, morto, com o pescoço triturado entre seus fauces.

Tsatsa’wi seguia o relato com atenção. Ao chegar a esse ponto fez um gesto que parecia ser o equivalente cherokee do sinal da cruz: um gesto rápido e sério para repelir o mal. Logo começou a falar; suas mãos se moviam para representar os fatos seguintes.

Naturalmente, tinha gritado para alertar a seus camaradas restantes; depois correu para o urso para assustá-lo, com a esperança de fazer que soltasse a seu amigo, embora era evidente que já estava morto.

Os caçadores foram acompanhados de dois cães, que também se arrojaram contra o urso, entre latidos. A fera soltou a sua presa, mas em vez de fugir carregou contra Tsatsa’wi. Ele se jogou em um lado, enquanto o urso se detinha o tempo suficiente para varrer de um zarpazo a um dos cães. Logo desapareceu na escuridão do bosque, açoitado pelo outro cão, uma chuva de flechas e um par de balas de mosquete; nada o tocou.

Buscaram-no com tochas, mas foi impossível encontrá-lo. O segundo cão voltou com ar envergonhado e os caçadores, completamente desanimados, retornaram à fogueira e passaram o resto da noite acordados; pela manhã voltaram para a aldeia.

- Mas por que acreditam que é um fantasma? –Brianna se inclinou para diante; seu horror inicial tinha dado passo ao interesse.

Peter a olhou com uma sobrancelha arqueada.

- Ah!, é que não o há dito. Ou talvez sim, mas de um modo que eu não compreendi. A besta era muito maior que um urso normal e completamente branca. Diz que, quando se voltou a olhá-lo, seus olhos resplandeciam, vermelhos como as chamas. Imediatamente supuseram que era um fantasma; por isso não os surpreendeu muito que as flechas não o tocassem.

Tsatsa’wi voltou a interrompê-lo; assinalou primeiro ao Jamie, logo deu uns golpecitos a seu colar de unhas e por fim, para minha surpresa, apontou o dedo para mim.

- Eu? –disse- . O que tenho que ver com isso?

O cherokee deveu perceber meu tom de surpresa, pois se inclinou sobre a mesa e me agarrou uma mão para acariciá-la, não em gesto de afeto, mas sim para apalpar a pele. Jamie comentou, divertido:

- É muito branca, Sassenach. Talvez e urso tome por um espírito afim.

Sorria de brinca a orelha, mas Tsatsa’wi assentiu com muita seriedade. Logo me soltou a mão e emitiu uma espécie de grasnido, como o de um corvo.

- OH! –exclamei, bastante intranqüila. Não recordava como se dizia em cherokee, mas ao parecer os habitantes dessa aldeia não só tinham ouvido falar do Matador de Ursos, mas também também do Corvo Branco. Para eles qualquer animal branco era significativo… e freqüentemente sinistro.

Foi assim que uma semana depois, com o feno já colhido e quatro meias cabeças de gado de veado apaciblemente penduradas no abrigo de defumar, partimos para a Linha do Tratado.

 

Integramos a partida Brianna e Jemmy, os dois gêmeos Beardsley, Peter Bewlie, que devia nos guiar até a aldeia, Jamie e eu. A mulher do Peter se adiantou com a Tsatsa’wi. Em um princípio Brianna não queria vir, mais por medo de levar ao Jemmy a território selvagem que por não participar da caçada. Jamie insistiu, assegurando que sua pontaria seria muito valiosa. Como ainda não queria desmamar ao menino, viu-se obrigada a levá-lo consigo.

Quanto aos Beardsley, ao que Jamie queria consigo era ao Josiah.

- O moço já matou ao menos dois ursos –me disse- . Vi as peles na congregação. E se seu irmão quer vir, não vejo nenhum inconveniente.

- Tampouco eu –coincidi- . Mas por que quer que venha bree? Você e Josiah não são suficientes para lhes enfrentar com o urso?

- Possivelmente –replicou ele, deslizando um trapo azeitado pelo canhão de seu rifle- . Mas se duas cabeças são melhor que uma, três serão ainda melhor, não? Sobre tudo se a terceira dispara como essa moça.

- Sim? –disse, cética- . E que mais?

Ele me olhou com um grande sorriso.

- Acaso crie que tenho outros motivos, Sassenach?

- Não, não acredito: sei.

Ele inclinou a cabeça para a arma, rendo. Mas depois de um momento de limpar e esfregar disse, sem levantar a vista:

- Vale… não me pareceu má idéia que a moça faça amigos entre os cherokees. Se por acaso algum dia necessita um sítio aonde ir.

Não me enganou com esse tom despreocupado.

- Algum dia. Quando comece a Revolução, quer dizer?

- Sim, ou… quando você e eu morramos. Seja quando for –acrescentou, enquanto olhava com um só olho com o passar do canhão, para comprovar o alinhamento.

Normalmente obtinha não pensar nesse recorte do periódico, com a notícia de que certo James Fraser e sua esposa, da Colina do Fraser, tinham morrido em um incêndio. Outras vezes o recordava, mas relegava a possibilidade ao fundo de minha consciência, por não pensar nela. de vez em quando, não obstante, despertava em meio da noite, tremendo e aterrorizada, nos rincões de minha mente.

- O recorte dizia “ sem filhos superviventes” - assinalei, decidida a vencer o medo- . Crie que Bree e Roger se irão… para algum lugar…antes de que aconteça?

A viver com os cherokees, possivelmente. Ou às pedras.

- É possível. –Estava sério, com a vista fixa em seu trabalho. Nenhum dos dois estava disposto a admitir a outra possibilidade. Em todo caso não fazia falta.

Apesar de sua relutância inicial, Brianna parecia estar desfrutando de da viagem. Também os Beardsley o passavam bem. A extirpação das adenoides e as amídalas infectadas não tinham curado a keziah de sua surdez, mas estava muito melhor. Podia ouvir tudo o que lhe dizia em voz bem alta, embora parecia entender com facilidade quanto seu irmão lhe dissesse, embora fora em voz muito baixa. Perguntei-me o que pensaria dos cherokees… e os índios dele e seu irmão. Peter dizia que essa tribo considerava os gêmeos como seres benditos e afortunados. Tsatsa’wi ficou encantado quando soube que os Beardsley participariam da caçada.

Josiah também parecia divertir-se, até onde uma podia apreciar, pois era muito reservado. Mas conforme nos aproximávamos da aldeia acreditei notá-lo algo nervoso.

Também notei que Jamie estava um pouco inquieto, mas em seu caso suspeitava os motivos. Não lhe incomodava absolutamente colaborar em uma caçada e lhe alegrava ter a oportunidade de visitar os cherokees. Mas possivelmente lhe incomodava que se proclamasse desse modo sua reputação de Matador de Ursos.

Esta hipótese ficou demonstrada na terceira noite da viagem. Acampamos a uns quinze quilômetros da aldeia; chegaríamos sem dificuldade por volta de meio-dia.

Enquanto cavalgávamos notei que tratava de decidir algo; quando nos sentamos para jantar, em torno de uma grande fogueira, quadrou súbitamente os ombros e se levantou para aproximar-se do Peter Bewlie, que contemplava o fogo com ar sonhador.

- Há algo que devo dizer, Peter. Sobre esse ouso fantasma que vamos procurar.

Peter levantou a vista, sobressaltado. Mas sorriu e lhe fez um oco a seu lado.

   - Sim, MAC Dubh?

- Pois verá, o certo é que eu não sei muito de ursos. Em Escócia se acabaram faz anos.

Peter arqueou as sobrancelhas.

- Mas se disse que tinha matado a um grande urso sem mais arma que uma adaga!

- E assim foi. Mas eu não cacei a essa besta. Ela me seguiu, de modo que não tive alternativa. Não estou muito seguro de que eu vá ser de muita ajuda para descobrir ao urso fantasma. Certamente é um animal muito ardiloso, não?, se levar meses inteiros entrando e saindo dessa aldeia, sem que ninguém o tenha visto mais que um momento.

- Mais ardiloso que o urso normal –acrescentou Brianna, contraindo um pouco a boca. Jamie lhe cravou um olhar penetrante, que desviou para mim ao ver que me engasgava com a cerveja.

- O que? –inquiriu, irritado.

- Nada –ofeguei- . Absolutamente nada.

Ao nos dar as costas, aborrecido, Jamie descobriu que Josiah Beardsley também estava fazendo caretas de risada contida.

- O que! –ladrou-lhe- . Estas duas são umas loucas –nos assinalou agitando o polegar para trás- , mas o que passa contigo?

Imediatamente o menino apagou o sorriso e tratou de parecer sério, mas lhe contraíam as comissuras da boca e um forte rubor lhe acendia as bochechas enxutas, visível até à luz do fogo. Jamie entreabriu os olhos. Ao Josiah lhe escapou um ruído sufocado, que podia ser uma risada. Com a vista cravada no Jamie, cobriu-se a boca com uma mão.

- E bem? –perguntou meu marido, cortês.

Keziah, ao notar que acontecia algo, pegou-se a seu gêmeo para lhe emprestar apóio. Josiah fez um breve movimento para ele, mas sem apartar a vista do Jamie. Ainda estava vermelho, mas parecia haver-se controlado.

Bom, será melhor que o diga, senhor.

- Sim, será melhor.

O menino respirou fundo, resignado.

- Não sempre era um urso. Às vezes era eu.

Jamie o olhou fixamente um momento. Então foi sua boca a que começou a contrair-se.

- Ah, sim?

   - não sempre –explicou Josiah. Mas quando suas vagabundagens o levavam perto de alguma das aldeias índias (“ Só se tinha fome” , apressou-se a acrescentar) espreitava do bosque, para aproximar-se depois do obscurecer e fazer-se com algo comestível. Permanecia na zona alguns dias, comendo das provisões da aldeia até ter recuperado as forças e continuava com suas caçadas. Quando tinha reunido umas quantas peles retornava à cova.

Brianna, já sem rir, tinha escutado a confissão do Josiah com a frente enrugada.

- Mas você não… quer dizer, sem dúvida alguma não foi você quem se levou a bebê com a tabela que lhe servia de berço. E tampouco matou à mulher que apareceu meio comida, verdade?

- OH!, não. Para que? Não acreditará você que comi isso eu, verdade? –Sorriu ao dizê-lo- . Às vezes tive tanta fome que teria podido fazê-lo, se tivesse encontrado a algum morto, sempre que fora recente –acrescentou, judicioso- . Mas não tanto como para matar deliberadamente a alguém.

- Não nunca pensei que lhe tivesse comido –disse isso Brianna secamente- . Só me ocorreu que, se alguém os tivesse matado, por qualquer motivo, o urso poderia ter mordiscado os cadáveres.

Peter assentiu com ar pensativo. Parecia interessado, mas essas confissões não lhe impressionavam.

- Sim, é o que faria um urso –disse- . Não são exigentes para comer. Não fazem ascos à carniça.

Jamie fez um gesto afirmativo, mas não desviou sua atenção do Josiah.

- Isso me hão dito, sim. Mas Tsatsa’wi disse que tinha visto o urso quando se levava a seu amigo. De modo que arbusto às pessoas, não?

- Bom, a esse o matou –disse Josiah. Mas seu tom tinha um tom estranho; Jamie o olhou com mais atenção, arqueando uma sobrancelha. Josiah moveu lentamente os lábios, como se tratasse de tomar uma decisão. Logo jogou uma olhada ao Kezzie, que lhe sorriu.

Por fim o menino se voltou para o Jamie com um suspiro.

- Não pensava dizer nada sobre esta parte –confessou francamente- . Mas você foi honesto conosco, senhor, e não me parece bem que vá atrás desse animal sem saber que mais poderia haver ali.

- Que mais? –Jamie baixou lentamente a parte de pão que estava a ponto de morder- . Que mais poderia haver ali?

- Pois…, tenha em conta que o vi uma só vez –advertiu Josiah.

- E onde estava então?

Perto da aldeia a que nos dirigíamos. Não era a primeira vez que Josiah andava por ali. Seu objetivo era uma casa no extremo da aldeia; ali havia fileiras de milho postas a secar sob os beirais. Pensava que poderia agarrar uma e escapar com bastante facilidade, sempre que não despertasse aos cães da aldeia.

- Se acordadas a um os tem a todos uivando detrás de ti –disse, movendo a cabeça- . E só faltavam um par de horas para que amanhecesse. De modo que me escorri lentamente, atento se por acaso algum desses pícaros dormia enroscado junto à casa que estava vigiando. Enquanto espreitava no bosque tinha visto sair dela uma silhueta. Como nenhum dos cães se alterou, era razoável pensar que essa pessoa vivia ali. O homem se deteve para urinar; logo, para alarme do Josiah, carregou-se ao ombro um arco e um carcaj e se dirigiu diretamente para o bosque onde ele estava oculto.

- Não acreditava que ele viesse a por mim, mas subi a uma árvore, muito rápido e sem fazer nenhum ruído –disse, sem gabar-se.

O homem devia ser um caçador que saía cedo, rumo a um arroio longínquo onde veados e mapaches foram beber quando amanhecia.

Josiah continha o fôlego, escondido em sua árvore, apenas um par de metros por cima de sua cabeça. O homem desapareceu em seguida entre os densos matagais. Quando o moço estava a ponto de descender, ouviu uma súbita exclamação de surpresa, seguida pelo ruído de uma breve resistência que concluiu com um horrível ruído a golpe.

Josiah caminhou brandamente pelo bosque em direção aos ruídos susurrantes que se ouviam. Ao olhar cautelosamente entre os ramos de um cedro distinguiu uma silhueta humana tendida no chão; outra se inclinava sobre ela, lutando para lhe tirar um objeto.

- O homem estava morto –explicou Josiah, tranqüilamente –Suponho que aquele homenzinho lhe afundou a cabeça com uma pedra ou um pau.

- Homenzinho? –Peter tinha escutado o relato com muita atenção- . Como era? Viu-lhe a cara?

- Não, só vi sua sombra que se movia. –Entrecerró os olhos para fazer um cálculo mental- . Acredito que era mais baixo que eu; mais ou menos assim. –Alargou uma mão, indicando algo menos de um metro e médio.

Mas o assassino se viu interrompido quando saqueava o cadáver, Josiah não notou nada até que ouviu o súbito ranger de um pau partido e o farejar inquisitivo do urso que busca algo.

- Como correu aquele ser para ouvi-lo! –comentou- . Passou a meu lado como uma flecha, tão perto como está você de mim. Foi então a única vez que pude vê-lo.

- Bom, não nos tenha em incerteza –disse, vendo que se detinha beber um gole de cerveja- . Como era?

- Pois… Eu tivesse jurado que era o mesmo diabo, senhora. Embora eu imaginava ao diabo maior –acrescentou, dando outro sorvo.

Naturalmente, este comentário provocou alguma confusão. Ao pedir mais elucidação tirou o chapéu que Josiah se referia a sua cor: o misterioso “ menor” era negro.

- Só quando fui a essa sua congregação inteirei de que alguns tios normais são negros –explicou- . Não sabia que houvesse gente assim.

Para não chamar a atenção desse ser, o moço se ficou imóvel; foi assim como ouviu o urso que dava conta do desafortunado aldeão.

- É como diz o senhor Peter –disse, assinalando ao Bewlie com um gesto- . Os ursos não são muito exigentes. A esse não o vi, de modo que não sei se era branco ou não; mas que se comeu a esse índio, vá que se o comeu.

A lembrança não parecia perturbá-lo. Em troca vi que Brianna contraía as fossas nasais ao escutá-lo. Jamie intercambiou um olhar com o Peter.

- Bom –disse ao fim- . Parece que não todas as maldades cometidas na aldeia de seu cunhado se podem atribuir ao urso fantasma, não? Também estava Josiah roubando comida e esses pequenos demônios negros matando às pessoas. O que diz você, Peter? É possível que um urso se afeiçoe à carne humana, uma vez que a provou, e logo saia a caçar gente?

Peter assentiu lentamente, com a cara enrugada, concentrado.

- É possível, MAC Dubh –reconheceu- . E se houver um negro bode rondando pelo bosque, quem sabe agora a quantos matou o urso e a quantos o diabo negro? Mas o urso carrega com a culpa de tudo.

- Mas quem é esse pequeno demônio negro? –Perguntou Bree. Os homens se olharam entre si. Logo se encolheram de ombros, quase ao uníssono.

- Deve ser um escravo fugitivo, não? –disse ao Jaime- . Um negro livre em seu são julgamento não teria por que andar sozinho por território selvagem.

- Pode que não esteja em seu são julgamento –insinuou Bree- . Escravo ou livre, se lhe der de matar às pessoas…

Jamie pigarreou.

- Suponho que sua mulher não falou de demônios negros, verdade, Peter?

- Não, não acredito, MAC Dubh. Quão único recordo, nesse sentido, é o do Homem Negro de Poente.

- E o que é isso? –perguntou Josiah, interessado. Peter se arranhou a barba.

- Pois… não deveria dizer-lhe a ninguém, mas os chamanes dizem que em cada um dos quatro rumos vive um espírito. E cada espírito tem uma cor distinta, de modo que, quando cantam suas orações e coisas pelo estilo, chamam o Homem Vermelho de Levante, por exemplo, para que ajude à pessoa pela que cantam, porque o vermelho é a cor do triunfo e o êxito. O norte é azul: o Homem Azul vai a pela derrota e as dificuldades; a ele o convoca para que dê dores de cabeça a seu inimigo, compreendem? O Homem Branco do Sul é paz e felicidade; lhe canta pelas mulheres grávidas e coisas assim.

Jamie parecia a um tempo surpreso e interessado.

- parece-se muito aos quatro airts, os quatro pontos cardeais de Escócia, verdade, Peter?

- Pois sim –reconheceu Bewlie- . Não é estranho que os cherokees tenham as mesmas idéias que os escoceses das montanhas?

- OH!, nem tanto. –Jamie assinalou com um gesto o bosque escuro, mais à frente do pequeno círculo de luz que irradiava a fogueira- . Eles levam o mesmo tipo de vida que nós, não? São caçadores e habitantes da montanha. Podem ter visto as mesmas coisas que nós.

Peter assentiu lentamente, mas toda essa filosofia impacientava ao Josiah.

- Então, é ou não o Homem Negro de Poente? –inquiriu.

Os dois giraram a cabeça para ele.

- O Poente é o lar dos mortos –disse Jamie com voz fica.

Peter assentiu, muito sério.

- E o Homem Negro de Poente é a morte mesma –acrescentou- . Ao menos, isso dizem os cherokees.

Josiah murmurou que essa idéia não gostava de muito. A Brianna, ainda menos.

- Não acredito que o espírito de poente vá pelos bosques rompendo a cabeça às pessoas –declarou com firmeza- . O que Josiah viu era uma pessoa. Um negro. Ergo, trata-se de um negro livre ou de um escravo fugitivo. E dadas as circunstâncias, voto por escravo fugitivo.

Não me pareceu que o assunto desse para um processo democrático, mas lhe dava a razão.

- Tenho outra idéia –disse, percorrendo aos pressente com o olhar- . E se fosse esse homenzinho negro o que devorou às pessoas que apareceu meio comida? Não há canibais entre os escravos africanos?

Jamie pareceu divertido pela idéia.

- Bom, suponho que na África haverá algum que outro canibal –reconheceu- . Mas não soube que nenhum entre os escravos. Não acredito que fossem muito adequados como serventes domésticos, verdade? Poderiam te morder o culo apenas lhes voltasse as costas.

Esse comentário nos fez rir e alívio um pouco a tensão. Todos iniciamos os preparativos para nos deitar.

Jamie, depois de intercambiar um olhar com a Brianna, anunciou que ambos fariam o primeiro turno de guarda; Josiah e eu, o seguinte; Peter e Kezzie, o último. Até então não tínhamos montado guarda, mas ninguém protestou pela decisão.

   Peter e os gêmeos Beardsley dormiram em poucos segundos; ouvia-os roncar ao outro lado do fogo. Eu também começava a me adormecer, arrulhada pelas vozes fica do Jamie e Bree.

- se preocupa seu marido, a nghiean? –perguntou ele, brandamente.

- Estou preocupada com ele desde que o enforcaram –disse- . Agora também tenho medo.

- Hoje não corre mais perigo que ontem, moça… nem que qualquer outra noite desde que partiu.

- É certo –respondeu ela, seca- . Mas o que a semana passada nós não soubéssemos de ursos fantasmas nem de assassinos negros, não significa que não estivessem por ali.

- É justamente o que queria dizer –observou ele- . Seu medo não reduzirá o perigo, compreende?

- Sim, mas crie que me preocuparei menos por isso?

- Não, não acredito.

Houve um breve silêncio. Logo Brianna voltou a falar:

- Não deixo de pensar. O que farei se acontecer algo… se ele não retornar? Durante o dia estou bem, mas de noite não posso deixar de pensar…

- OH!, bom –murmurou ele. Vi-lhe levantar a vista às estrelas- . Quantas noites há em vinte anos, a nighean? Quantas horas? Pois esse é o tempo que passei me perguntando se minha esposa ainda vivia, como estariam ela e meu filho. Para isso está Deus. Preocupar-se não serve de nada; orar sim… às vezes –acrescentou com franqueza.

- Sim- reconheceu ela, algo insegura- . Mas se…

- E se ela não tivesse retornado –a interrompeu Jamie, com firmeza- , se você não tivesse vindo… se eu jamais tivesse sabido… ou se tivesse tido a certeza de que as duas tinham morrido… Nesse caso eu teria contínuo vivendo, a nighean, e fazendo o que devia fazer. E o mesmo fará você.

 

Roger, suarento, abriu-se passo por um denso bosquecillo de eucaliptos e carvalhos. Tinha vontades de legar ao arroio, e não só pela água, que sim a necessitava, pois, embora de noite começava a fazer frio, os dias seguiam sendo calorosos e antes do meio-dia lhe tinha terminado a água que ficava no cantil. Mas mais que a água precisava sentir o ar livre. Ali abaixo, ao pé da montanha, os bosquecillos de discos e louros eram tão densos que logo que permitiam ver o céu; onde o sol conseguia abrir-se passo, a erva crescia até o joelho.

levou-se ao Clarence, a mula, mais apta que os cavalos para a marcha arruda dos territórios selvagens, mas alguns lugares eram muito árduos inclusive para ele. Deixou-o amarrado em terras mais altas, com seu cilindro de mantas e seus alforjas, e continuou abrindo-se passo entre a maleza para chegar até o seguinte ponto que devia medir.

Fazia calor. tirou-se a jaqueta e a atou à cintura; logo se enxugou a cara com a manga da camisa e continuou a marcha; o astrolábio se bamboleava, pendurado de seu pescoço por uma correia. Do alto de uma montanha podia ver as covas brumosas e os ravinas boscosos, com certo prazer sobressaltado ao pensar ao pensar que todo isso era dele.

Queria terminar de uma vez com essa selva e voltar para terras mais altas. Embora um se sentisse miúdo ante as árvores gigantescas da selva virgem, podia-se respirar baixo eles. Era incompreensível que um lugar assim pudesse alterar-se… mas assim seria. Ele sabia bem. Mas se já o tinha visto! Tinha conduzido seu carro por uma estrada asfaltada, construída em meio de um lugar que alguma vez tinha sido como esse. Sabia que podia trocar. E enquanto lutava por atravessar os matagais de zumaque e amora, era consciente de que aquele lugar podia tragar-lhe sem vacilar um segundo.

   Mesmo assim havia algo sedativo na tremenda escala da espessura. Entre as árvores gigantescas e a vida selvagem que pululava ali encontrava um pouco de paz: em paz o deixavam as palavras que lhe amontoavam na cabeça, a preocupação nos olhos da Brianna, a crítica nos do Jamie; uma crítica suspensa, que pendia ali como a espada do Damocles. Deixavam-no em paz os olhares de compaixão ou curiosidade, o esforço constante e penoso de falar, a lembrança do canto.

Durante os primeiros dias de medir o terreno não havia dito uma palavra; era um imenso alívio não ter que fazê-lo. Mas agora começava a falar de novo; desgostava-lhe o som maltratado e rouco das palavras, mas não lhe afligia tanto, pois não havia ninguém que o escutasse.

Por fim ouviu o gorgoteo da água sobre as pedras e, ao sair de um bosquecillo de salgueiros tenros, encontrou o arroio a seus pés, com o sol faiscando na água. depois de beber e molhá-la cara, escolheu os pontos da ribeira de onde faria suas medições. Extraiu o livro do registro, tinta e a pluma do zurrón que levava a ombro, e tirou o astrolábio da camisa.

Enquanto realizava suas medições e tomava nota no livro, cantou pelo baixo, sem reparar na quebrada distorção dos sons.

 

Muito em breve descobri por que meu nome parecia importante para a Tsatsa’wi: a aldeia se chamava Kalanun’yi, Cidade do Corvo. Quando chegamos não vi nenhum, mas ouvi o grasnido rouco de uma entre as árvores.

Os habitantes da aldeia nos saudaram com entusiasmo, serviram-nos uma abundante comida e nos atenderam durante um dia e uma noite. A tarde do segundo dia nos convidaram a participar de uma invocação à deidade cherokee da caça, para lhe pedir que favorecesse a expedição contra o urso fantasma.

Até que conheci o Jackson Jolly eu ignorava que entre os chamanes índios havia tanta diferença de talento como entre o clero cristão. naquela época, eu já tinha conhecido a vários das duas classes, mas os mistérios da linguagem me tinham impedido de descobrir que a vocação de chamán não implicava necessariamente magnetismo pessoal, poder espiritual nem dom de predicación.

Ao ver as facções endurecidas de quem se apinhava na casa do sogro do Peter Bewlie, compreendi que Jackson Jolly, pese ao encanto pessoal ou os vínculos com o mundo espiritual que pudesse ter, carecia infelizmente do dom da palavra.

O chamán ocupou seu posto ante o lar, vestido com uma manta de flanela vermelha similar a um xale e com uma máscara que representava a cara de um pássaro; já então notei certa expressão resignada em algum dos pressente. Quando começou a falar, em voz alta e monótona, a mulher que estava a meu lado trocou pesadamente de posição e suspirou. Jolly era um chamán sincero, indubitavelmente, mas também muito aborrecido.

O cântico para a caçada do urso era bastante monótono; incluía intermináveis repetições de “ Hei! Hayuya, hayuya’haniwa, hayuya’haniwa…” . Logo, ligeiras variações sobre o mesmo tema; cada verso terminava com um estimulante” Yoho!” , que te agarrava por surpresa.

Entretanto, a congregação exibiu mais entusiasmo durante essa canção. Por fim compreendi que o problema não estava no chamán, provavelmente. O urso fantasma assolava a aldeia desde fazia vários meses; já deviam ter passado por essa cerimônia em concreto várias vezes, sem êxito algum. Não se tratava de que Jackson Jolly fora mau pregador, mas sim de que seus fiéis sofriam certa perda de fé

Ao terminar o cântico, Jolly plantou ferozmente o pé no lar, para acentuar algo que dizia; logo extraiu de sua saca uma varinha de salvia e, depois de lhe prender fogo, começou a caminhar pela habitação, defumando aos pressente. A multidão lhe abriu aconteço cortesmente, lhe permitindo dar várias voltas em volto do Jamie e os gêmeos Beardsley, enquanto cantava e os perfumava com volutas de fumaça fragrante.

Terminada esta fase da cerimônia, o chamán retornou a seu posto junto ao fogo e começou a cantar outra vez. Começava a me doer as costas. Ao fim Jolly pôs fim a seus procedimentos com um grito; logo se retirou um trecho para tirá-la máscara e secar o suor da frente, muito agradado consigo mesmo. Então o chefe da aldeia se adiantou para parlamentar; a gente começou a mover-se, inquieta.

Me desperecé tão discretamente como pude, enquanto me perguntava o que haveria para jantar. Distraída com essas reflexões, ao princípio não me precavi de que os movimentos se feito mais pronunciados. Logo a mulher que estava a meu lado se ergueu bruscamente, dizendo algo em voz alta e autoritária, e inclinou a cabeça a um lado para escutar.

O chefe calou imediatamente; a meu redor a gente olhava para cima, com o corpo rígido e os olhos dilatados. Eu também o ouvi: o ar se encheu de um sussurro de asas.

- Que diabo é isso? –sussurrou-me Brianna.

Eu não tinha nem idéia, mas o ruído se fazia cada vez mais forte. O ar começava a vibrar em uma espécie de trovão constante, comprido.

- Tsiskwa! –gritou um homem da multidão.

E de súbito se produziu uma correria para a porta.

Ao sair pensei primeiro que se tratava de uma repentina tormenta. O céu estava escuro, trovejava e uma luz estranha, opaca, piscava sobre todas as coisas. Mas não se percebia umidade alguma no ar.

- Pássaros, Meu deus, são pássaros!

Logo que ouvi a voz da Brianna detrás de mim, entre o coro de assombro que me rodeava. Todos estavam de pé na rua, olhando para cima.

Era terrorífico, sim. Eu nunca tinha visto nada parecido; a julgar por sua reação, tampouco a maioria dos cherokees. Era como se a terra se estremecesse. O ar tremia, vibrando ante o bater de asas como um tambor castigado por mãos frenéticas.

A paralisia da multidão não durou muito. Aqui e lá se ouviam gritos. De súbito a gente pôs-se a correr; todos entravam depressa em suas casas e voltavam a sair armados de arcos. Em poucos segundos, uma perfeita descarga de flechas se elevou por entre as nuvem de pássaros; os corpos emplumados choviam do céu, lassos e ensangüentados, atravessados pelos dardos.

Mas não eram corpos quão único caía do céu. Uma suculenta deposição me golpeou o ombro. Era toda uma chuva de partículas, nociva precipitação lançada pelo ensurdecedor bando, que levantava pequenas baforadas de pó na rua. Retrocedi para me refugiar sob os beirais de uma casa, com a Brianna e Jemmy.

Desde esse refúgio, sobressaltados, vimos que os aldeãos puxavam entre si, disparando a toda pressa; uma flecha seguia a outra. Jamie, Peter Bewlie e Josiah tinham deslocado a por seus rifles e disparavam entre a multidão, sem incomodar-se sequer em apontar. Não era necessário, pois ninguém podia falhar. Os meninos, manchados pelos excrementos, escorriam-se por entre as pernas para recolher as aves quedas e as amontoavam nas soleiras das casas.

Aquilo deveu durar uma meia hora. Passamo-la acurrucados sob os beirais, médio ensurdecidos pelo ruído e hipnotizados pela incessante torrente que passava pelo alto. Por fim passou o grande bando; atrasado-los, separados dos borde, também desapareceram por sobre a montanha.

A aldeia suspirou ao uníssono. Vi que a gente se esfregava as orelhas, tratando de tirar o bater das asas. Em meio da multidão, Jackson Jolly sorria de brinca a orelha, generosamente talher de excrementos e plumas, fulgurantes os olhos. Disse algo com os braços estendidos e os que estavam perto murmuraram uma resposta.

- Estamos benditos –me traduziu a irmã da Tsatsa’wi; parecia profundamente impressionada. Assinalou com um gesto ao Jamie e aos gêmeos Beardsley- . O Antigo Branco nos enviou um grande sinal. Acharão ao urso, sem dúvida.

 

Os caçadores partiram para dia seguinte, antes do amanhecer. Brianna, em que pese a sua relutância a separar-se do Jemmy, subiu à arreios com ligeireza. Quanto ao menino, estava muito entretido em revolver o conteúdo dos cestos para emprestar atenção à partida de sua mãe.

As mulheres dedicaram o dia a depenar, assar, defumar e preservar as pombas com cinza de lenha. Por minha parte ajudei às cozinhar, matizando a tarefa com entretidos diálogos e permute proveitosos. Tinha levado comigo cem litros de mel e algumas ervas e sementes importadas da Europa. As negociações foram rápidas; ao cair a noite tinha trocado minha mercadoria por quantidades de ginseng, calambuco e algo muito pouco freqüente: uma chaga. Segundo me havia dito, este enorme cogumelo verrugoso, que cresce em abedules vetustos, tinha fama de curar o câncer, a tuberculosis e as úlceras. Parecia-me um elemento útil para qualquer médico.

Quanto ao mel, tinha-a trocado por cem litros de azeite de girassol, envasilhado em grandes sacos de pele; estavam amontoados sob os beirais da casa onde nos hospedávamos, empilhados como balas de canhão. Cada vez que saía me detinha olhá-los com satisfação, imaginando todo o sabão suave e fragrante que poderia fazer com esse azeite. Com um pouco de sorte poderia vendê-lo a bom preço e obter o dinheiro que terei que lhe mandar ao Laoghaire “ mau raio a parta” .

O seguinte dia o passamos nos hortas com minha anfitriã, outra das irmãs da Tsatsa’wi, chamada Sungi, mulher alta e de rosto doce, que aparentava uns trinta anos. Sabia umas quantas palavras de inglês, mas por sorte algumas de seus amigas o falavam melhor…, pois meu vocabulário cherokee se limitava a “ olá” , “ bom” e “ mais” .

Sungi pôs ao Jemmy a cargo de suas duas meninas; obviamente lhes advertiu que tivessem muito cuidado, pois assinalou várias vezes o bosque.

- Bom Matador de Ursos vir –disse- . Este urso não ouso. Não falar nós.

- OH, ah! –disse, assentindo com ar inteligente.

Outra das mulheres colaborou ampliando a idéia; explicou que todo urso razoável emprestava atenção à invocação do chamán, que convocava ao espírito do urso, a fim de que caçadores e animais se encontrassem adequadamente. Dado a cor desse urso, sua teima e sua conduta maligna, resultava evidente que não era um urso de verdade, a não ser algum espírito maligno que tinha decidido manifestar-se como tal.

- Ah! –exclamei, com um pouco mais de compreensão- . Jackson mencionou ao “ Antigo Branco” ; se referiria ao urso? –Entretanto, Peter havia dito que o branco era uma das cores favoráveis.

Outras das índias (quem me havia dito seu nome inglês, Anna), riu um pouco escandalizada.

- Não, não! Antigo Branco, o fogo.

Outras damas intervieram com gorjeios. Finalmente compreendi que o fogo, embora obviamente poderoso e merecedor de um trato intensamente respeitoso, era uma entidade benéfica. dali que a conduta do urso parecesse tão atroz: aos animais brancos normalmente os tratava com respeito e os considerava portadores de mensagens do outro mundo (nesse ponto uma ou duas delas me olharam de esguelha), mas esse urso não se comportava de maneira compreensível.

Dado o que eu sabia sobre a ajuda que o animal tinha recebido do Josiah Beardsley e o “ pequeno diabo negro” , eu o compreendia muito bem. Por não implicar ao Josiah, mencionei que tinha escutado certos relatos, sem especificar onde, segundo os quais existia um homem negro que vivia no bosque e fazia costure más. Sabiam elas algo disso?

- OH, sim! –asseguraram-me. Mas eu não tinha por que me preocupar. Existia um pequeno grupo de homens negros que viviam “ por ali” ; assinalaram o outro lado da aldeia e os canaviais invisíveis ao outro lado do rio. Era possível que essas pessoas fossem demônios, sobre todos considerando que vinham do oeste.

E era possível que não fossem. Alguns caçadores da aldeia os tinham seguido cautelosamente durante vários dias para ver o que faziam. Os caçadores informavam que esses homens negros viviam na miséria, vestidos com farrapos e sem casas decentes. Um demônio que se respeitasse não podia viver assim.

Não obstante, eram tão poucos e tão pobres que não valia a pena atacá-los; além disso, os caçadores disseram que só havia três mulheres, as três muito feias. E que depois de tudo, sim podiam ser demônios. De modo que decidiram deixá-los momentaneamente em paz. Os homens negros nunca se aproximavam da aldeia, acrescentou uma das índias, enrugando o nariz; os cães os farejariam.

Ao mediar a tarde os caçadores retornaram.

- Quatro zarigüeyas, dezoito coelhos e nove esquilos –informou Jamie, enquanto se limpava a cara e as mãos com um pano molhado- . Também encontramos muitas aves, mas com tanta pomba não nos incomodamos nas caçar, salvo um bonito falcão que George Gist queria pelas plumas. –Vinha castigado pelo vento e com o nariz avermelhado pelo sol, mas muito animado- . E Brianna, bendita seja, matou um bom alce ao outro lado do rio. Um tiro no peito, mas o derrubou… e ela mesma lhe cortou o pescoço, embora não é nada fácil fazê-lo quando a besta ainda esperneia.

- OH!, que bem –disse, um pouco desfalecida ao imaginar um esperneio de pezuñas afiadas e chifres letais muito perto de minha filha.

- Não se preocupe, Sassenach –disse ele- . Ensinei-lhe a fazê-lo como se deve. aproximou-se de detrás.

- Viram algum urso, por acaso, ou estavam muito ocupados?

Ele me olhou com um olho entreabrido por cima da toalha com que se estava secando a cara, mas respondeu com afabilidade.

- Descobrimos muitos sinais de sua presença. Josiah tem boa vista para isso. Não só o esterco, mas também também uma árvore com cabelo enganchado na casca. Ele diz que cada urso tem um par de árvores preferidas e vai arranhar se ali uma e outra vez, de modo que, se queríamos matar a um em especial, podíamos acampar perto e esperar.

- E neste caso essa estratégia não servia?

- Acredito que teria servido –respondeu ele, muito sorridente- , mas não era o urso que procurávamos. Os cabelos aderidos à árvore não eram brancas, a não ser pardos.

Mesmo assim a expedição não tinha sido um fracasso. Os caçadores completaram um grande semicírculo em volto da aldeia e entraram no bosque, onde exploraram até chegar ao rio. E na terra branda da zona baixa, perto do canavial, encontraram rastros de pegadas.

- Josiah disse que eram diferentes das que tinha deixado o urso cujo cabelo vimos. E Tsatsa’wi acredita que eram como as do urso branco que matou a seu amigo.

A conclusão lógica, em que coincidiam todos os peritos pressente, era que o urso fantasma tinha sua toca no canavial. Esses cañares eram lugares densos, sombreados e frescos no calor do verão, povoados de aves e pequenas presas.

- Nesses lugares não pode entrar a cavalo, verdade? –perguntei.

- Não, e tampouco se pode avançar muito a pé, porque são muito densos. Mas não temos intenção de entrar em busca do urso.

O plano consistia em prender fogo ao canavial, para que o urso saísse pelo lado oposto ao plano, onde o poderia matar com facilidade. Mas o fogo faria sair também a muitos outros animais, por isso se tinha avisado aos habitantes de outra aldeia, distante uns trinta quilômetros, para que seus caçadores participassem. Com um pouco de sorte poderiam reunir provisões para todo o inverno, e o maior número de caçadores impediria que o maligno urso fantasma pudesse escapar.

- Muito eficiente –comentei, divertida- . Espero que não façam sair também aos escravos.

- O que?

- Diabos negros ou algo assim. –contei-lhe o que tinha sabido do assentamento de escravos fugitivos.

- Pois não acredito que sejam diabos –disse secamente- . Mas me parece que não correm perigo. Têm que viver ao outro lado do canavial, na borda oposta. Mesmo assim perguntarei. Há tempo. Os caçadores do Kanu’ornamento’yi demorarão três ou quatro dias em chegar.

 

Os dias seguintes foram agradáveis, embora reinava uma sensação espectador que culminou com a chegada do Kanu’ornamento’yi.

depois das devidas cerimônias e um grande festim de bem-vinda, consistente em higaditos de pomba defumados com maçã frita, a grande partida de caça saiu ao amanhecer, equipada com tochas de pinheiro e braseiros, além de aros, mosquetes e rifles. Depois de despedi-los com um café da manhã adequado, os que não participávamos da caçada retiramos às cabanas, para nos entreter com a cestería, a costura e a conversação.

Pensava aproveitar a conversação do dia para perguntar pelos componentes do amuleto que Nayawenne fazia para mim. Claro que, por ser ela uma curandeira tuscarora, talvez as crenças subjacentes não fossem as mesmas, mas o do morcego despertava curiosidade.

- Sobre os morcegos há um conto –começou Sungi.

- Os animais e os pássaros decidiram jogar um partido de bola –disse Anna, traduzindo com facilidade o que narrava Sungi- . Por então os morcegos caminhavam em quatro patas, como os outros animais. Mas quando chegou o momento de começar a jogar, os outros animais lhes disseram que não podiam, pois eram muito pequenos e sairiam esmagados. Os morcegos se desgostaram.

Sungi franziu o sobrecenho com cara de morcego aborrecido.

- Então os morcegos se aproximaram dos pássaros e lhes ofereceram jogar em seu bando. Os pássaros aceitaram o oferecimento; com folhas e palitos fizeram asas para os morcegos. As aves ganharam o jogo e os morcegos ficaram tão contentes com suas asas que…

Sungi se interrompeu abruptamente e levantou a cabeça para farejar. Todas as mulheres que nos rodeavam fizeram o mesmo. Nossa anfitriã se levantou depressa para aparecer à porta, com a mão apoiada no marco.

O aroma de fumaça que flutuava no ar desde fazia uma hora se acentuou muito. Levantei-me para seguir ao Sungi, com as outras mulheres.

O céu tinha começado a cobrir-se de nubarrones, mas a nuvem de fumaça era ainda mais escura: um borrão negro que se amontoava sobre as árvores distantes. O vento cavalgava os borde da tormenta próxima; frente a nós passaram torvelinhos de folhas secas, com um ruído de pés pequenos e precipitados.

Sungi disse algo que não entendi, mas seu sentido era óbvio. Uma das mais jovens se umedeceu um dedo com saliva e o levantou, mas era desnecessário: eu sentia o vento contra a cara o bastante forte para me levantar o cabelo dos ombros. Soprava diretamente para a aldeia.

Imediatamente as mulheres ficaram em movimento: correram pela rua para suas casas, chamando os meninos; aqui e lá se detinham para recolher na saia a carne posta a secar ou arrancar dos beirais uma réstia de cebolas, alguma cabaça.

Eu não sabia com certeza onde estava Jemmy; uma das meninas índias o tinha levado a jogar, mas na confusão não tinha visto qual era. Levantei-me as saias para correr rua abaixo, aparecendo em interior de cada casa sem que ninguém me convidasse.

Encontrei ao Jemmy na quinta casa, profundamente dormido com outros meninos de distintas idades, todos acurrucados como cachorrinhos em uma manta de búfalo. Despertei com toda a suavidade possível, enquanto desenredava ao Jemmy.

Quando saímos à rua, o aroma de fumaça se acentuou muito. A evacuação estava em plena marcha; a gente (mulheres em sua maioria) abandonava apressadamente as moradias, empurrando para diante aos meninos e carregado com hatillos com seus pertences.

Os caçadores se levaram a maioria dos cavalos. Quando cheguei ao curral de sarças só ficavam três. Um dos anciões da aldeia estava montado em um e tinha pelas bridas ao Judas e ao outro animal, preparado para levar-lhe O meu estava selado, com as alforjas e um freio de corda. O ancião, à lombriga, disse algo com um grande sorriso e assinalou ao Judas.

- Obrigado! –exclamei.

O homem se inclinou para agarrar diestramente ao Jemmy, a fim de que eu pudesse montar e me fazer carrego das rédeas; logo me entregou ao menino com muito cuidado.

Os cavalos estavam inquietos. Sabiam tão bem como nós o que era um incêndio e a idéia gostavam ainda menos. Sujeitei com firmeza o freio com uma mão e ao Jemmy com a outra.

- Bem, besta –disse ao Judas, fingindo autoridade- . Vamos já!

O cavalo estava muito de acordo com essa proposição: encaminhou-se para a abertura da perto como se fora a linha de chegada de uma carreira, com o que enganchou minhas saias nos espinhos do cercado. Compu-me isso para reprimi-lo apenas o suficiente para que o ancião e seus dois cavalos saíssem do curral e ficassem a nossa altura.

O homem me gritou algo e assinalou para a montanha, na direção oposta ao fogo. O vento lhe cruzava o comprido corto cinza contra a cara, afogando suas palavras. O apartou, mas em vez de incomodar-se em repetir, limitou-se a pôr suas arreios na direção que tinha indicado.

Açulei ao Judas com o joelho para que o seguisse, mas o mantive a rédea curta. Joguei um olhar vacilante para a aldeia, onde a gente continuava saindo das casas, todos com o rumo que tinha indicado o ancião.

Bree deveria buscar ao Jemmy assim que notasse que a aldeia estava em perigo. Demorei-me para esperá-la, face à crescente agitação do Judas.

O vento já açoitava as árvores, arrancando baforadas de folhas verdes, vermelhas e amarelas que aconteciam, raudas, ou convertiam minha saia e o pele do cavalo em uma colcha de retalhos outonais. Todo o céu se pôs cárdeno; ouvi os primeiros rugidos do trovão sob o assobio do vento e o sussurro do fogo. Até através da fumaça, percebia-se o aroma da chuva iminente, e isso me deu uma súbita esperança. O que a situação requeria era justamente um bom chuvarada; quanto antes, melhor.

Encontrei a Brianna e ao Jamie no meio do povo, nos buscando ansiosamente com a vista. Jemmy lançou um chiado de gozo ao ver sua mãe e se jogou em seus braços, com o que esteve a ponto de cair sob os cascos nervosos dos cavalos.

- Caçaram o urso? –perguntei ao Jamie.

- Não! –gritou ele, para fazer-se ouvir por cima do ruído do vento- . Vamos, Sassenach!

Bree já ia para o bosque, onde o último dos índios já desaparecia entre as árvores. Mas ao ficar livre do Jemmy eu tinha pensado em outra coisa.

- Um minuto! –gritei, enquanto desmontava.

Arrojei as rédeas ao Jamie, que se inclinou para as apanhar. Gritou-me algo que não cheguei a entender.

Estávamos ante a casa do Sungi e eu tinha visto os odres de azeite de girassol empilhados sob os beirais. Arrisquei-me a jogar uma olhada em direção ao canavial. O fogo se estava aproximando. Mesmo assim estava quase segura de que os cavalos nos permitiriam nos distanciar do incêndio. E não pensava deixar a mercê do fogo as lucros de todo um ano de mel.

Sem emprestar atenção aos bramidos furiosos do Jamie, corri ao interior da casa para escavar como um ganso entre as cestas disseminadas, esperando, contra toda esperança, que Sungi não houvesse… Por sorte, não. Com um punhado de tiras de couro na mão, saí correndo. Ajoelhada entre o pó e a fumaça formados redemoinhas, atei um cabo ao pescoço de cada odre e os atei de dois em dois, rodeando as ataduras tanto como pude. Logo, carregada com uma dessas incômodas juntas, voltei me cambaleando para os cavalos.

Jamie, à lombriga, agarrou os dois pares de rédeas com uma só mão e se inclinou para agarrar a correia improvisada que unia os odres; carregou-os sobre a cruz do Gideon, deixando pender um saco a cada lado.

- Vamos! –gritou.

- Um mais!

Judas soprava e punha os olhos em branco, mostrando os dentes em um gesto de medo, mas Jamie o reteve com força, enquanto eu cruzava o segundo par de odres sobre a cadeira. Logo montei.

Assim que Jamie afrouxou o punho de ferro com que sujeitava o freio, Judas arrancou. Eu tinha a corda nas mãos, mas compreendi que não serviria de nada; limitei-me a me aferrar à cadeira como se nisso me fora a vida; com os odres de azeite ricocheteando contra minhas pernas, voamos para a segurança das terras elevadas.

A tormenta estava muito mais perto; o vento tinha cessado, mas o trovão ressonava com forte estrondo, fazendo que Judas cravasse os cascos e saltasse como uma lebre a campo aberto. Detestava os trovões. Ao recordar o que tinha acontecido a última vez que o montei durante uma tormenta de chuva, inclinei-me contra seu lombo, obstinada como um dificuldades e muito decidida a não me deixar cair em sua carreira louca.

de repente nos encontramos no bosque; os ramos desfolhados se lançavam como látegos contra mim. Apertei-me mais ao pescoço do animal, com os olhos fechados par evitar que fossem arrancados. Judas tinha diminuído a marcha, por necessidade, mas ainda estava apavorado.

Quando voltou a trovejar, ele perdeu pé nas folhas escorregadias e escorregou de flanco, estrelando-se contra um grupo de arvorezinhas. A elástica madeira nos salvou de danos maiores. levantou-se com muita dificuldade e continuamos avançando. Abri um olho com cautela; Judas parecia ter encontrado um atalho; era uma linha difusa que serpenteava por entre o denso matagal, para diante.

Mais à frente, as árvores voltaram a fechar-se; já não vi mais que uma claustrofóbica série de troncos e ramos entrelaçados, aos que se entreteciam restos amarelados de madressilva silvestre e brilhos de trepadeiras escarlates. O denso da maleza fez que o cavalo diminuísse a marcha ainda mais; por fim pude tomar fôlego e me perguntar onde estaria Jamie.

Estalou novamente o trovão; depois de sua esteira ouvi um relincho agudo detrás de mim. É obvio: se Judas detestava os trovões, Gideon detestava seguir a outro cavalo. Viria muito perto, esforçando-se por nos alcançar.

Judas avançou alguns passos mais e se deteve em seco, ofegando. Sem esperar a que um novo trovão o pusesse em marcha outra vez, apressei-me a desmontar e atei a corda a uma árvore pequena.

Bem a tempo. Estalou o trovão, tão forte que o senti na pele. Judas se elevou de mãos com um alarido, atirando da corda, mas eu a tinha enrolado ao tronco. Afastei a tropeções de seu pânico. Jamie me agarrou desde atrás e disse algo, mas os trovões afogaram sua voz.

Aferrei a ele, tremendo pela adrenalina da reação tardia. A chuva já era intensa, frescas as gotas contra minha cara. Ele me beijou na frente; logo me conduziu para um enorme disco, cujos leques de agulhas quebravam a chuva, formando abaixo uma cova fragrante, quase seca.

Quando a adrenalina que me circulava pelo corpo começou a esgotar-se, dispus de um momento para olhar em redor; então caí na conta de que não fomos os únicos habitantes desse refúgio.

- Olhe –disse, assinalando para as sombras.

Os rastros eram leves, mas óbvios; alguém tinha deixado ali, depois de comer, um pulcro punhado de ossos pequenos. Os animais não eram tão ordenados; tampouco amontoavam a pinaza para formar uma cômoda travesseiro.

Jamie fez uma careta para ouvir os trovões, mas assentiu.

- Sim, é um posto de assassino, mas não acredito que o tenham usado ultimamente.

- Um posto do que?

- De assassino –repetiu ele. Um relâmpago, a suas costas, acendeu uma lâmina vivida que deixou sua silhueta impressa em minha retina- . Assim chamam os sentinelas; são os guerreiros que montam guarda fora da aldeia, para deter quem quer que chegue sem avisar. Vê?

- No momento não vejo nada. –Alarguei uma mão, a provas, e ao tocar a manga de sua jaqueta procurei o refúgio de seu braço. Fechei os olhos com a esperança de recuperar a visão, mas seguia vendo o fulgor contra as pálpebras apertadas.

Os trovões pareciam afastar-se um pouco; ao menos já não eram tão freqüentes. Pisquei; via outra vez. Quando Jamie se apartou, fazendo gestos, descobri que estávamos de pé em uma espécie de cornija, com a face da montanha em levantado pendente a nossas costas. Mais acima, oculto à vista por uma fileira de coníferas, abria-se um estreito claro; obviamente tinha sido feito pelo homem, pois essa era a única classe de claro que havia nessas montanhas. Mas entre os ramos se apreciava uma vista deslumbrante do pequeno vale em que se elevava a Cidade do Corvo.

A chuva tinha amainado, mas desde esse ponto se podia ver que as nuvens não formavam uma só tormenta, a não ser várias. O canavial ainda fumegava; era uma coroa baixa e plaina, de cor cinza muito clara contra o céu entrevado. Até à altura em que estávamos, o aroma de queimado irritava o nariz, extrañamente misturado ao da chuva. Aqui e lá se viam línguas ígneas que ainda ardiam entre os canos, mas era evidente que o fogo se extinguiu em sua major parte; o seguinte chuvarada o sufocaria por ompleto. Também vi que a gente voltava para a aldeia, em pequenos grupos que saíam do bosque com vultos e meninos a rastros.

- Tudo bem, Sassenach? –A mão do Jamie se apoiou em meu pescoço, cálida, e seus dedos esfregaram com suavidade o perfil tenso de meus ombros.

- Sim. Parece-te que não haverá perigo ao baixar? –Do caminho só sabia que era estreita e levantada; agora estaria lamacenta e escorregadia pela folhagem molhada.

- Não –disse- , mas não acredito que…

interrompeu-se abruptamente para observar o céu, com o sobrecenho enrugado. Logo olhou para trás; eu logo que podia ver o contorno dos cavalos, que estavam muito juntos ao casaco da árvore onde eu tinha pacote ao Judas.

- ia dizer que não me parecia muito seguro ficar aqui –disse ao fim- . Mas essa tormenta avança depressa; já vê os relâmpagos que cruzam a montanha, e os trovões…

Com melodramática oportunidade, um marcado retumbar de trovões rodou pelo vale. Um dos cavalos lançou um agudo relincho de protesto e atirou do freio, fazendo repicar a folhagem. Jamie olhou para trás com expressão sombria.

- Suas arreios odeia os trovões, Sassenach.

- Já o tinha notado –disse, acurrucándome contra seu calor.

- Sim. O mais provável é que se parta o pescoço, e lhe parta isso para ti, se quando estão baixando…

Um novo trovão afogou suas palavras, mas compreendi o que tentava dizer.

- Esperaremos –disse firme.

E me abraçou desde atrás, apoiando o queixo em meu cocuruto com um suspiro. Assim esperamos juntos, ao casaco do disco, a que chegasse a tormenta.

 

Roger despertou pela metade, com o aroma de fumaça lhe queimando a garganta. Tossiu e voltou a afundar-se no sonho; depois de um almoço leve à borda do rio se tendeu à sombra de um salgueiro, para descansar uma hora.

de repente, incorporou-se piscando, alarmado por um chiado distante. O grito se repetiu, longínquo mas potente. A mula!

Fumaça… cheirava a fumaça, sim. Médio sufocado, tratou de conter a tosse. Cada vez que tossia era como se lhe rasgasse a malha cicatrizada da garganta.

- Lá vou! –sussurrou em direção ao Clarence.

Tinha deixado a mula maneada em um prado, ao bordo do canavial, mas não estava muito longe.

- Outra vez –murmurou, aplicando seu peso a um grupo de canos tenros para abrir-se passo-   -. Grita outra vez… demônio.

O céu estava escuro. Ao ficar em marcha a provas, recém arrancado de seu sonho, sua única idéia da direção era Clarence.

O que acontecia? O aroma de fumaça era notavelmente mais potente; conforme se liberava do atordoamento causado pelo sonho e o pânico, caiu na conta de que algo ia mau. Os pássaros, que a meio-dia estavam acostumados a estar dormitados, estavam agitados; revoavam por cima de sua cabeça. O ar, inquieto, sacudia as folhas rasgadas do cañar. Roger sentiu um roce quente na cara; não era o calor úmido, aderente e envolvente do lamacento canavial, a não ser algo seco e quente, que lhe provocou um paradoxal calafrio. Céu Santo, aquilo se estava incendiando! A fumaça lhe subiu ao peito, aferrou aos pulmões; queimava, lhe impedia de respirar a fundo.

- Clarence –ofegou, tão alto como pôde.

Não serve de nada; logo que podia ouvir sua própria voz sobre a crescente agitação dos canos. Quanto à mula, já não a ouvia. Era possível que esse teimoso animal já estivesse reduzido a cinzas? Não; o mais provável era que tivesse esmigalhado os trapos que o maneaban para galopar para um lugar seguro.

A fumaça o tinha invadido tudo em nuvens cada vez mais densas, que se arrastavam perto do chão e surgia, sufocante, entre as matas. Agora lhe era possível ouvir o incêndio: era um cacarejo suave, como de alguém que riera pelo baixo, com a garganta cheia de cicatrizes.

Os salgueiros. Sua mente se aferrou à idéia dos salgueiros; à distância distinguiu uns quantos, apenas visíveis sobre os canos ondulantes. Os salgueiros crescem perto da água; ali estava o rio.

Quando chegou à água, capoteó até o centro do arroio e ali se deixou cair de joelhos, com a cara bem perto da água.

Ali o ar corria, refrescado pela água; bebeu-o a grandes goles, ao ponto de tossir outra vez, o corpo lhe sacudiu em uma série de espasmos desgarrantes. Encomendou sua alma a Deus e fugiu, sufocado e a tropeções, com os calhaus deslizando-se sob seus pés; fugiu durante tanto tempo como suas pernas trêmulas quiseram levá-lo, até que e fumaça o aferrou pelo pescoço para lhe encher a cabeça, o nariz e o peito, e o sufocou. A banda de cicatrizes era uma mão que espremia, privando-o do ar e da vida; deixava só trevas detrás de seus olhos, iluminados pela vermelha piscada do fogo.

 

Lutava. Lutava contra o laço corrediço, contra as ataduras de suas bonecas, e lutava sobre tudo com o vazio negro que lhe esmagava o peito e lhe fechava a garganta. Lutava por um último e precioso gole de ar. Corcoveou com as forças que ficavam. E logo rodou pelo chão, com os braços livres.

Uma mão, ao agitar-se, golpeou contra algo. Era brando e lançou um chiado de surpresa.

Imediatamente sentiu umas mãos nos ombros e as pernas. sentou-se, com a visão fraturada e o peito palpitante pelo esforço de respirar. Algo o golpeou com força na metade das costas. engasgou-se, tossiu, tragou ar suficiente para seguir tossindo, no fundo chamuscado de si mesmo, e um enorme coágulo de escarro negro saiu de seu peito, quente e viscoso como uma ostra podre sobre a língua.

Cuspiu-o com uma arcada; a bílis subiu, ardente, pelo canal espremido de sua garganta. Voltou a cuspir e se incorporou, ofegante.

Não teve consciência de ninguém, absorto como estava no milagre do ar e o fôlego. Havia vozes a seu redor, caras difusas na escuridão; tudo cheirava a queimado.

A água lhe tocou a boca. Levantou a vista, piscando, e lacrimejou pelo esforço de olhar. Sentia os olhos chamuscados; luzes e sombras se rabiscavam. Piscou com força; as lágrimas quentes foram um bálsamo para o ardor dos olhos e refrescaram sua pele ao correr pelas bochechas. Alguém lhe sustentava uma taça contra os lábios: uma mulher, com a cara enegrecida pela fuligem. Não, não era fuligem. Entreabriu os olhos, sem deixar de piscar. Era negra. Uma pulseira?

Bebeu apenas um sorvo de água, levantou as mãos para agarrar a taça. Isso lhe surpreendeu: esperava sentir a dor nos dedos quebrados, na carne intumescida… mas suas mãos estavam sões e úteis. Procurou automaticamente o oco do pescoço, esperando a dor e o assobio do âmbar. Incrivelmente, tocou carne sólida. Respirou; o ar assobiava em seu nariz e descia por sua garganta.

Estava sentado em uma choça desancada. Dentro havia várias pessoas e outras mais espiavam da porta. Em sua maioria eram negros, todos vestidos com farrapos, e nenhum parecia sequer remotamente amistoso.

A mulher que lhe tinha dada água parecia assustada. Ele tratou de lhe sorrir, mas tossiu outra vez. Ela o olhou por debaixo do trapo puído que levava sobre as sobrancelhas. A parte branca de seus olhos era de cor escarlate; tinha os lábios inchados e bordeados de vermelho. Os seus deviam estar igual. O ar ainda estava denso de fumaça; ao longe se ouvia o estalar dos canos, partidas pelo calor, e o rumor agonizante do incêndio. A pouca distância um pássaro lançou um grito de alarme e calou abruptamente.

Perto da porta se estava desenvolvendo uma conversação em sussurros sibilantes. Os homens que dialogavam… não: discutiam… lhe jogavam uma olhada de vez em quando; suas caras eram máscaras de medo e desconfiança. Fora começava a chover; não pôde sentir o aroma da chuva, mas sim o ar fresco na cara, e ouviu o tamborilar das gotas na coberta, às árvores.

esforçou-se por reconhecer as palavras, mas só ouvia um balbuceio. Esses homens não falavam inglês, nem francês, nem gaélico. No mercado do Wilmigton tinha ouvido uns tordos recém gastos que tagarelavam com o mesmo murmúrio rouco e secreto. Alguma língua africana… ou mais de uma.

Tinha a pele cheia de ampolas, quente e dolorida em vários pontos; o ambiente da choça era tão caloroso que o suor lhe corria pela cara, misturado com as lágrimas. Mas de repente sentiu um calafrio na base da coluna: não estava em uma plantação; nessa zona das montanhas não havia nenhuma. As poucas terras isoladas que existiam ali eram muito pobres para ter escravos, muito menos nesse número. Algumas tribos de índios tinham escravos, mas não eram negros.

Só cabia uma resposta possível e sua conduta a confirmava: eram escravos fugitivos, seus captores… seus salvadores? Escravos fugitivos que viviam ali em segredo.

A liberdade dessa gente, possivelmente a vida mesma, dependia do segredo. E ali estava ele, como uma ameaça vivente. O teriam salvado do fogo? Nesse caso estavam arrependidos, a julgar pelos olhares que lhe jogavam os homens reunidos junto à porta.

Um dos que discutiam se separou do grupo para sentar-se em cuclillas ante ele, depués de apartar à mulher. Seus estreitos olhos negros o percorreram da cara ao peito. Logo, de novo olharam para cima.

- Quem você?

Não parecia que o belicoso interrogador queria saber seu nome. Antes bem, que propósitos tinha. Pela mente do Roger passaram raudamente várias possibilidades. Qual seria a melhor para conservar a vida?

O metal do astrolábio lhe tinha queimado no incêndio, levantando rápidas ampolas que, ao estalar, pegaram o metal à pele com seu líquido viscoso. Agora, ao mover-se, o objeto se desprendeu por seu próprio peso, arrancando as partes de pele; no centro do peito tinha agora um emplastro em carne viva.

Afundou dois dedos pelo pescoço da camisa e atirou brandamente da cinta.

- To-pó-gra-fo –grasnou; as sílabas passaram a viva força por entre a fuligem e as cicatrizes de sua garganta.

Seu interrogador olhou com fixidez o disco de ouro, dilatados os olhos. Os homens que estavam à porta puxaram entre si para aproximar-se de ver.

Um deles lhe arrebatou o astrolábio. Ele deixou que o passasse pela cabeça, sem fazer esforço algum por retê-lo, e aproveitou o interesse dos homens por aquele vistoso objeto para juntar lentamente os pés. que tinha o astrolábio elevou a voz para dizer algo que parecia um nome. Ante a porta houve um movimento; alguém se abria passo entre os pressente.

A mulher que entrou tinha o mesmo aspecto que os outros; vestia um roupa folgada esfarrapado, molhado pela chuva, e um trapo quadrado pacote em torno da cabeça lhe ocultava o cabelo. A única diferença era que seus membros fracos tinham a cor parda sardenta e curtida da pessoa branca. Manteve os olhos fixos no Roger enquanto se aproximava do centro da cabana. Só o peso do astrolábio que trazia na mão apartou seu olhar dele.

adiantou-se um homem torto, alto e de ossos grandes, que assinalou o astrolábio com um dedo e disse algo que soou a pergunta. Ela moveu lentamente a cabeça, seguindo com um dedo as marcas do disco, com intrigada fascinação. Logo lhe deu volta.

Roger viu que esticava os ombros ao ver as letras gravadas. Em seu peito surgiu uma faísca de esperança. Ela reconhecia esse nome.

- Você não erez Jamez Frazer –disse.

Podia ter qualquer idade entre vinte e sessenta anos, embora não havia cãs no cabelo castanho claro das têmporas. As rugas da cara pareciam dever-se à fome e as privações mais que aos anos. Roger a sorriu deliberadamente; ela estirou a boca por reflexo, em uma careta vacilante; mesmo assim bastou para que ele visse as incisivas partidas em ângulo. Com os olhos entreabridos chegou a distinguir a fina cicatriz que atravessava uma sobrancelha. Era muito mais magra do que Claire lhe havia descrito, mas isso era compreensível.

- Não sou… James Fraser –confirmou com voz rouca- . Mas você é… Fanny Beardsley…verdade?

Apesar dos dentes não estava seguro, mas a expressão de horror que cruzou pela cara da mulher foi uma sólida confirmação. Os homens também conheciam esse nome. O caolho se adiantou imediatamente para lhe estreitar o ombro; os outros se aproximaram com ar ameaçador.

- James Fraser é… o pai de minha mulher- esclareceu ele- . Quer notícias… da criatura?

Da cara da Fanny desapareceu a expressão de suspeita. Embora não se movia, a seus olhos subiu um anseia tal que Roger teve que resistir o impulso de retroceder.

- Fã? –O homem alto se aproximou dela; seu único olho ia e vinha com suspicacia entre a mulher e Roger.

Ela disse algo, quase em um sussurro, e levantou uma mão para cobrir a do homem, que seguia apoiada em seu ombro. A cara de seu companheiro ficou súbitamente em branco, como se alguém lhe tivesse passado um rascunho. Ela se voltou para olhar o de frente e lhe falou em voz baixa, com tom premente.

Na choça a atmosfera tinha trocado; ainda estava carregada, mas à ameaça geral se mesclava agora um ar de confusão. Os homens agrupados perto da porta se olharam entre si; logo, carrancudos, ao casal que discutia em sussurros. Roger permanecia imóvel, reunindo forças. Se se via obrigado a correr, não poderia fazê-lo a muita velocidade nem chegar muito longe.

A discussão cessou abruptamente. O homem alto se voltou e fez um gesto brusco para a porta, dizendo algo; os outros grunhiram de surpresa e desaprovação, mas se retiraram lentamente.

Apenas a porta desancada se fechou atrás deles, a mulher o agarrou pela manga.

- me diga –lhe exigiu.

- Um… momento. –Ele voltou a tossir e se limpou a saliva com o dorso da mão- . Você me… tira… daqui. Logo… te direi… tudo que sei.

- diga-me isso

Os dedos da mulher lhe cravaram no braço. Ele sacudiu a cabeça, entre tosses. O homem alto apartou a Fanny para aferrá-lo pela camisa.

- lhe diga, homem, ou te estripo!

- Não –disse com teima- . Me tirem… daqui. Logo lhes contarei.

O homem vacilou. Seu único olho voltou para a mulher.

- Segura que sabe?

- Sabe, sim.

- Era… menina. –Roger lhe sustentou o olhar com fixidez, resistindo a necessidade de piscar- . Isso… tem que sabê-lo.

- Vive?

- me tire… daqui.

Não era alta nem corpulenta, mas sua urgência parecia encher a choça e parecia fazê-la vibrar. Durante um comprido minuto seguiu com os olhos ardentes cravados nele e os punhos apertados. Logo girou sobre os talões para lhe dizer algo violento ao homem, nessa estranha língua africana.

Ele tratou de discutir, mas foi inútil; a corrente de palavras o golpeava como a água de uma mangueira de incêndios. Por fim levantou as mãos em frustrada rendição e arrancou o trapo que cobria a cabeça da mulher. depois de desatar os nós com compridos dedos velozes, sacudiu-o para formar uma atadura, sempre resmungando pelo baixo.

   Quão último Roger viu, antes de que o homem lhe enfaixasse os olhos com o trapo, foi a cara da Fanny Beardsley, as pequenas tranças gordurentas que lhe rodeavam os ombros e seus olhos ainda fixos nele, ardentes como brasas.

 

Não saíram sem ouvir protestos; durante um trecho, rodeou-os um cor de vozes furiosas e mãos que lhes atiravam das roupas e as extremidades. Roger caminhava, com a mão apoiada no ombro da Fanny Beardsley para guiar-se. O assentamento parecia pequeno; ao menos passou muito pouco tempo antes de que as árvores se fechassem em torno deles. O homem e a mulher intercambiavam ocasionalmente algum comentário, mas logo ficaram em silêncio. Embora a atadura estava muito apertada para ver nada, um pouco de luz se filtrava por debaixo; assim podia calcular as mudanças de hora. Quando saíram da choça mediava a tarde; quando ao fim se detiveram, a luz tinha desaparecido quase por completo.

Tiraram-lhe a atadura e ele piscou; o súbito da luz compensava o escasso. O anoitecer estava avançando. encontravam-se em um terreno baixo, já meio coberta pela escuridão. Fanny Beardsley se enfrentou a ele; sob o dossel do enorme castanho parecia mais miúda, mas tão apaixonada como na choça. Ele tinha tido tempo de sobra para pensar. Devia lhe dizer onde estava sua filha ou fingir que o ignorava? Se o dizia, faria ela algum tento por recuperá-la? E nesse caso, quais podiam ser as conseqüências para a menina, os escravos fugitivos… e inclusive para o Jamie e Claire Fraser?

Nenhum dos dois havia dito nada sobre quão feitos tinham acontecido na granja dos Beardsley, além de explicar que ele tinha morrido de uma apoplexia. Mas Roger os conhecia o suficiente para tirar deduções da expressão afligida do Claire e a impassível do Jamie. Mas se ele não sabia o acontecido, Fanny sim… e bem podia ser algo que os Fraser preferissem manter oculto. Se a senhora Beardsley reaparecia no Brownsville para reclamar a sua filha, haveria algumas pergunta que responder… e talvez a ninguém beneficiava que as respondesse.

Mas o céu ardente banhava sua cara de fogo. Frente à fome desses olhos em chamas ele não pôde menos que dizer a verdade.

- Sua filha… está bem –começou com firmeza.

Ela estrangulou uma pequena exclamação, no fundo de sua garganta. Quando terminou de escutar o que Roger sabia, as lágrimas lhe corriam pela cara, abrindo sulcos na fuligem e o pó que a cobriam, mas seus olhos se mantinham bem abertos, fixos nele, como se ao piscar pudesse perder alguma palavra vital.

O homem permanecia algo mais atrás, cauteloso e vigilante, com a atenção concentrada na mulher, mas de vez em quando jogava um olhar ao Roger. Por fim ficou junto a sua companheira, com o único olho tão brilhante como os dela.

- Ela ter o dinheiro? –perguntou.

- Sim, herdou… toda a propriedade… do Aaron… Beardsley –lhe assegurou Roger, com a garganta irritada de tanto falar- . O senhor… Fraser… se ocupou… disso.

Ele tinha acompanhado ao Jamie a Corte de Órfãos, para que emprestasse testemunho sobre a identidade da menina. Richard Brown e sua esposa receberam a custódia da criatura… e seus bens. Tinham-lhe dado o nome da Alicia, vá ou seja por que sentimentos profundos ou por que indignação.

- Não importa que ela negra?

Viu que o olho do escravo se desviava para a Fanny Beardsley e se apartava imediatamente. A mulher ouviu em sua voz o sotaque de incerteza e girou para ele como uma víbora ao ataque.

- tua Ez! –disse- . Não pôde ser dele, não, não!

- Sim, isso você dizer –replicou ele, ressentido- . Dão dinheiro a menina negra?

Ela golpeou um pé contra o chão e o esbofeteou. O homem lhe apartou a cara, mas não fez outro intento de escapar de sua fúria.

- Creez acazo que a teria abandonado zi houvesse zido branca? –gritou Fanny, esmurrando-o nos braços e no peito- . Zi tive que deixá-la foi por tua culpa, tua! Você e eze maldito pele negro!

Foi Roger quem lhe sujeitou as bonecas e as reteve apesar de suas resistências. Deixou-a chiar até ficar rouca. Por fim ela se derrubou em lágrimas.

O escravo, que tinha presenciado todo isso com uma mescla de vergonha e cólera, fez um gesto de estender os braços para ela. Foi um movimento imperceptível, mas bastou para que ela se jogasse em seus braços, a soluçar contra seu peito. Ele a abraçou com estupidez, balançando-a sobre os talões descalços. Lhe via envergonhado, mas já nem iracundo.

Roger pigarreou com uma careta de dor. O escravo levantou a vista para ele.

- Vete, homem –disse brandamente. Logo, antes de que Roger pudesse mover-se, acrescentou- : Espera… Verdade, homem, a menina boa vida?

- Está… bem…cuidada. –Mas queria lhes oferecer algo mais- . É… bonita –acrescentou por fim. Já quase tinha perdido a voz; não era mais que um sussurro- . Uma menina… bonita.

A cara do homem trocou, apanhada entre o sobressalto, a consternação e e prazer.

- OH! –disse- . Isso por sua mamãe, seguro.

E deu uns tapinhas muito suaves nas costas a Fanny Beardsley. Ela tinha deixado de soluçar, mas mantinha a cara apertada a seu peito, quieta e silenciosa. Já tinha escurecido quase por completo; a intensa penumbra apagava quase toda a cor; a pele da mulher parecia igual a de seu companheiro.

O homem só vestia uma camisa empapada e tão rota que sua pele escura aparecia através dos farrapos, mas levava um cinturão de corda de que pendia um saco de tecido basta. Rebuscou ali com uma só mão e tirou o astrolábio para devolver-lhe ao Roger.

- Não lhe vais ficar isso perguntou ele.

O escravo sacudiu a cabeça.

- Não, para que? –acrescentou, com um gesto irônico na boca- , talvez ninguém deve buscar você, mas sim procurar coisa.

Roger agarrou o pesado disco e se passou a cinta pela cabeça.

- Ninguém… virá –disse.

Girou em redondo e se afastou, sem ter idéia de onde estava nem para onde ia.

 

Os cavalos se apaziguaram um pouco, mas ainda estavam intranqüilos. Jamie se abriu passo entre as coníferas até o pequeno claro.

- Pois se vocês não gostam de –lhe ouvi dizer- , para que vieram?

Gideon lançou um suave relincho de prazer ao vê-lo. Quando ia aproximar me para ajudá-lo, um movimento fugaz atraiu minha vista para baixo.

Apareci para vê-lo. Parecia um cavalo, embora vinha de uma direção diferente da que tinham tomado refugiados.

- É Clarence! –gritei.

- Quem? –chegou-me a voz do Jamie do outro lado do saliente.

- Clarence! A mula do Roger!

Vinha ao trote pelos milharais em aro, com as orelhas para diante e obviamente feliz de reincorporar-se à sociedade. Estava selada, mas sem cavaleiro.

- tem quebrado a manea para fugir. –Jamie estava junto a meu ombro e contemplava a pequena silhueta do mulo- . Vê?

Em meu alarme eu não o tinha notado, mas em uma das patas dianteiras tinha um trapo que ondulava na carreira.

- Suponho que isso é melhor. –Suavam-me as mãos. Sequei-me as Palmas contra as mangas, por não apartar a vista- . Quer dizer… se estava maneado é porque Roger não ia montado nele; não é que se cansado e possa estar lesado.

- Ah!, não. –Jamie parecia preocupado, mas não dava amostras de alarme- . Só terá que andar muito.

De repente estalou um relâmpago; o trovão que lhe pisava nos talões foi tão forte e súbito que dava um coice e estive a ponto de perder o equilíbrio. Jamie me aferrou de um braço para impedir que caísse e me separou do bordo. Os cavalos alvoroçavam no extremo oposto do precipício. Ele se voltou nessa direção, mas de repente se deteve, com a mão ainda em meu braço.

- O que? –Segui a direção de seu olhar; só via a face do ravina, uns três metros mais abaixo, festoneada de pequenas novelo.

Soltou-me o braço e, sem responder, caminhou para o ravina, onde havia uma velha árvore queimada. Com muita delicadeza, alargou a mão para extrair algo da casca morta. Aproximei-me de olhar; na palma de sua mão mostrava vários cabelos largos e ásperos. Cabelos brancos.

A chuva começava outra vez sua tarefa de empapar quanto estivesse à vista. Os cavalos lançaram um penetrante par de relinchos; não gostavam absolutamente ver-se abandonados assim.

Joguei uma olhada ao tronco da árvore; havia cabelos por toda parte, enganchados nas gretas da casca. Pareceu-me ouvir a voz do Josiah: “ Os ursos têm árvores especiais para arranhar-se. Cada urso volta para mesmo, uma e outra vez.” E traguei saliva com dificuldade.

- Se os cavalos estão assustados –disse Jamie, muito pensativo- , talvez não seja tão somente pelos trovões.

Talvez não, mas tampouco ajudavam. No fundo da costa estalou um relâmpago e o trovão ressonou com ele. Outro dueto chegou lhe pisando os talões, e outro, como se uma bateria anti-aérea estivesse disparando sob nossos pés. Os cavalos estavam histéricos e eu me sentia a ponto de imitá-los.

Ao sair da aldeia me tinha posto o capote, mas já tinha o capuz e o cabelo pegos ao crânio; a chuva me castigava a cabeça como uma corrente de pregos. Jamie também tinha o cabelo pego. Através do aguaceiro me fez uma careta e um gesto que indicava: “ Espera aqui” , mas sacudi a cabeça e fui atrás dele.

Os cavalos estavam se desesperados, com as crinas empapadas e os olhos exagerados. Ao ver isso Jamie apertou os lábios e jogou uma olhada ao sítio onde tínhamos visto a árvore onde arranhar-se, invisível de ali. Houve outro relâmpago e o trovão estremeceu a rocha; os dois cavalos puxaram, relinchando. Isso decidiu ao Jamie, que aferrou as rédeas do Judas para imobilizá-lo. Pelo visto íamos descer da montanha, por escorregadio que estivesse o caminho.

Subi à cadeira em uma confusão de saias molhadas e, bem obstinada, tentei gritar palavras reconfortantes ao ouvido do Judas, que dançava pela ansiedade de iniciar a marcha. Estávamos perigosamente perto das coníferas do bordo; inclinei-me quanto pude para o lado oposto, tratando de que se apartasse dali.

O ar cheirava a enxofre; olhei a meu redor, alarmada. As árvores, as rochas, a terra mesma estavam banhados de luz azul. Pela superfície do ravina, a poucos metros de distância, vaiavam diminutas serpentes de eletricidade branca, brilhante.

Girei-me para chamar o Jamie e o vi montado no Gideon; tinha a boca aberta e me gritava algo, mas todas as palavras se perderam na reverberação do ar.

As crinas do Gideon começaram a arrepiar-se como por arte de magia. O cabelo do Jamie se elevou desde seus ombros, atravessado por cabos de azul crepitante. Cavalo e cavaleiro refulgiam em uma luz infernal que delineava cada músculo da cara e os membros. Uma rajada me percorreu a pele. Um momento depois Jamie se jogava de suas arreios contra mim. Os dois voamos para o vazio.

O raio caiu antes de que chegássemos ao chão.

Quando voltei em mim, cheirava a carne queimada e o ozônio ardia na garganta. Sentia-me como se houvessem me tornado do reverso e tivesse todos os órgãos à vista.

Ainda chovia. Permaneci imóvel durante um momento, enquanto a chuva me corria pela cara e me empapava o cabelo; os neurônios de meu sistema nervoso voltavam lentamente para funcionar. Um dedo se contraiu por si só. Tratei de fazê-lo deliberadamente e o consegui. Flexionei os dedos; não se moviam bem. Mas alguns minutos depois tinha posto em funcionamento os circuitos necessários para me incorporar.

Jamie estava escancarado de costas a pouca distância, como um boneco de trapo, em um matagal de zumaque. Aproximei-me engatinhando e descobri que tinha o olhos abertos. À lombriga piscou; no flanco de sua boca se contraiu um músculo, em um intento de sorriso.

Não se via sangue e seus membros, embora torcidos de qualquer modo estavam retos. A chuva lhe estava acumulando nas conchas dos olhos. Ele piscou violentamente e girou a cabeça para deixar escorrer a água. Apoiei uma mão em seu estômago; sob minhas mãos percebi o grande pulso abdominal, lento, mas firme.

Não sei quanto tempo estivemos inconscientes, mas a tormenta tinha passado também. Os relâmpagos cintilavam além das montanhas, recortando os picos em marcado relevo.

- Está bem, Sassenach?

- Estupenda –assegurei. Ainda me sentia agradavelmente remota- . E você?

- Ainda não sinto os dedos dos pés- disse- ; pelo resto, estou bem. Mas os cavalos…

Olhou para cima e notei que tragava saliva.

Os cavalos guardavam silêncio.

Tínhamos cansado uns seis metros por debaixo do saliente da montanha, entre abetos e calambucos. Eu podia me mover, sim, mas não tinha intenção de fazê-lo. Fiquei sentada, fazendo inventário, enquanto Jamie se sacudia e iniciava a ascensão até a cornija do “ assassino” .

Os cavalos deviam ter morrido. por que nós não? Ao perceber o aroma de carne queimada me percorreu um pequeno calafrio. Teríamos sobrevivido só porque estávamos condenados a morrer dentro de quatro anos? Quando nos chegasse o turno, jazeríamos entre as ruínas incendiadas de nossa casa, convertidos em cascas de carne chamuscada e fedorento?

“ Queimada até os ossos” , sussurrou a voz de minha memória. As lágrimas se mesclaram em minha cara com a chuva, mas eram lágrimas longínquas: pelos cavalos, por minha mãe; por mim, ainda não.

Jamie retornou, empapado até os ossos e sem fôlego. Notei que tinha perdido os dois sapatos.

- Judas morreu –disse, sentando-se a meu lado. Estreitou-me com força a mão fria; a sua também tinha perdido o calor.

- Pobrecito –disse. As lágrimas correram mais depressa, arroios mornos que se mesclavam com a chuva geada- . Ele sabia, verdade? Sempre detestou os trovões e os relâmpagos, sempre.

Jamie, com um murmúrio consolador, rodeou-me os ombros com um braço para que apoiasse a cabeça contra seu peito.

- E Gideon? –perguntei ao fim, levantando a cabeça.

- Está vivo –disse- .Tem uma queimadura com o passar do ombro e a pata dianteira, e as crinas lhe chamuscaram por completo.

- Crie que poderá baixar se o leva pela brida? Tenho…tenho um bom bálsamo para as queimaduras.

- Sim, acredito que sim.

Estendeu-me a mão como apoio para que me levantasse. Ao girar para sacudir as saias enrugadas vi algo.

- Olhe –disse, com a voz reduzida a um sussurro- . Jamie, olhe.

A três metros de distância, costa acima, erguia-se um grande abeto do Canadá; a parte superior da taça tinha desaparecido limpamente; a metade dos ramos restantes fumegava, reduzidas a carvão. Entre um ramo e o coto do tronco se via uma massa enorme e arredondada, colocada ali como uma cunha. A metade era negra, pois as malhas se carbonizaram, mas o cabelo da outra metade se erguia em molhadas puas brancas, com a cor cremosa do trillium.

Jamie ficou olhando o cadáver do urso, com a boca entreabierta. Logo a fechou lentamente e moveu a cabeça. Quando girou para mim perdeu a vista entre as montanhas distantes, onde os relâmpagos, em sua retirada, ainda estalavam silenciosamente.

 

Os pés lhe estavam congelando sob o único edredom. Ainda estava dormitada, mas não poderia voltar a conciliar o sonho se não procurava mais casaco. levantou-se com muita dificuldade, com os olhos reduzidos a ranhuras, e caminhou descalça pelo estou acostumado a gelado para ver como estava Jemmy. Dormia bem fundo em sua pequena cama de plumas, com o edredom subido até as orejitas rosadas.

Revolveu em busca de um segundo edredom e o estendeu sobre a cama. Grunhiu de chateio ao ver que a taça de água estava vazia. Sentiu desejos de voltar para a cama e afundar-se em um sonho profundo e abrigado, mas com a garganta seca não poderia.

Junto à soleira havia um cubo com água de poço. Entre caretas e bocejos, abriu o ferrolho com muita suavidade e saiu; o ar frio lhe retorceu a anágua em volto das pernas. Médio agachada, procurou provas na escuridão. O cubo não estava. Onde…?

Pelo rabilo do olho detectou um movimento fugaz que a fez voltar-se em redondo. Por um momento pensou que era Obadiah Henderson, sentado no banco junto a sua porta. Ao ver que a sombra se levantava, seu coração se apertou como um punho. Mas o reconheceu imediatamente. encontrou-se nos braços do Roger antes de que sua mente pudesse ordenar os detalhes a consciência.

- É você –dijo.Lloraba- . voltaste para casa!

- voltei para casa, sim –lhe sussurrou ao ouvido- . Está bem? E Jem?

- Estamos bem, os dois. E você? –Sorveu as lágrimas pelo nariz- . O que fazia aqui fora, Céu Santo? por que não chamaste?

- Estou bem, sim. Não quis te assustar. Pensava dormir aqui e chamar pela manhã. por que chora?

Só então bree caiu na conta de que, se ele falava em sussurros, não era por não despertar ao Jem; sua voz era só um murmúrio quebrado e sem fôlego. Mas tinha pronunciado as palavras com claridade, sem esforço, sem a dolorosa vacilação de antes.

- Pode falar –lhe disse, limpando-se apressadamente os olhos com o dorso da boneca- . Melhor, quero dizer.

Apoiou os dedos na cicatriz morna e desigual; logo tocou a incisão que lhe tinha salvado a vida, uma linha branca e nítida entre os cabelos da barba.

- Ainda te dói quando falas?

- Dói –respondeu ele, nesse grasnido débil e rouco- . Mas posso falar. Farei-o…Brianna.

 

Eu tinha muito que objetar ao fogo do lar: das lascas sob as unhas e o breu nas mãos, às ampolas, as queimaduras e a enfurecedora indocilidad do elemento. Entretanto devia reconhecer duas coisas a seu favor: era inegavelmente quente, e iluminava o amor com uma luz de beleza tão tênue que se podiam esquecer todas as vacilações da nudez.

Nossas sombras mescladas corriam juntas na parede: aqui um braço, lá a curva de umas costas, como parte de uma besta ondulante. A cabeça do Jamie se elevou à parte: um grande animal de juba que se erguia por cima de mim, arqueando as costas ao extremo.

Estendi a mão através dessa extensão de pele reluzente e músculo estremecido, roçando o pêlo faiscante dos braços e o peito, até sepultá-la na tibieza de seu cabelo e guiá-lo, ofegante, ao oco escuro de meu seio. Mantive os olhos semicerrados; também as pernas, pois resistia a renunciar a seu corpo, à ilusão de unidade…se acaso era uma ilusão. Quantas vezes mais poderia retê-lo assim, até no feitiço de luz do fogo?

Soltei-lhe os ombros para tocar com ternura os robustos redemoinhos de seu cabelo. Ele girou a cabeça para me beijar o peito; logo, com um suspiro, deslizou-se para um flanco.

- O que faz, tesouro? –perguntei-lhe.

- Asseguro-me de que minha roupa não se queime.

Entre uma coisa e outra, não tinha emprestado muita atenção enquanto ele ia arrojando meus objetos, mas todas pareciam estar longe das chamas; a saia formava um pequeno montículo junto à cama; o sutiã e a anágua tinham cansado em rincões opostos. A banda que utilizava como sustento não estava à vista.

- É formosa –me sussurrou.

- Se você o disser…

- Não me crie? Menti-te alguma vez?

- Não é isso. Se você o diz tem que ser verdade, porque você faz que o seja.

- Pensa o mesmo de mim, Sassenach? –perguntou súbitamente.

Parecia tímido. Olhei-o com surpresa.

- Se pensar o que? O que é formoso? –Minha boca se curvou involuntariamente. Ele sorriu a sua vez.

- Tanto como isso… não, mas ao menos se pode suportar minha cara.

Segui com um dedo a tênue linha branca que lhe cruzava as costelas, velho rastro de uma espada. A outra cicatriz, mais larga e grosa, da baioneta que lhe tinha esmigalhado uma coxa ao longo. O braço que me sujeitava, bronzeado e curtido, com o pêlo branqueado por largas jornadas de sol e trabalho. Perto de minha mão, seu pênis se curvava entre as coxas, já suave, pequeno e tenro, em seu ninho de pêlo avermelhado.

- Para mim é formoso, Jamie –disse ao fim, brandamente- . Tão formoso que me rompe o coração.

- Mas sou velho –objetou, sorridente- . Já tenho cãs na cabeça; minha barba se há posto cinza.

- Chapeada –corrigi.

- Cinza –insistiu ele, com firmeza- . E, em cima, escassa. E mesmo assim…- Seus olhos se abrandaram ao me olhar- . Mesmo assim ardo quando me aproximo de ti, Sassenach; acredito que assim será até que ambos fiquemos reduzidos a cinzas.

- É uma expressão poética? –perguntei com cautela- . Ou o diz literalmente?

- OH!, não. Não referia a… Não. –Rodeou seu braço em torno de mim, com a cabeça inclinada para a minha- . Não penso nisso. Se deve ser…

- Não será.

Uma breve risada me agitou o cabelo.

- Parece muito segura, Sassenach.

- O futuro se pode alterar. Eu o faço em cada momento.

- Seriamente?

Apartei-me um pouco para olhá-lo.

- Seriamente. Aí tem ao Mairi MacNeill. A semana passada, se eu não tivesse estado ali, teria morrido junto com seus gêmeos. Mas eu estava ali, e não morreram.

Pus uma mão detrás de minha nuca para observar o reflexo das chamas, que ondulava como água nas vigas do teto.

- Às vezes penso… São muitos aos que não posso salvar, mas a alguns sim. Se alguém sobreviver graças a mim e depois tem filhos, e estes lhe dão netos, e assim sucessivamente… Pois quando chegar minha época haverá no mundo trinta ou quarenta pessoas que, de outro modo, não teriam estado ali, verdade? E todas elas terão feito costure em sua vida. Não te parece que isso é trocar o futuro?

- Sim –murmurou ele. Agarrou-me a mão livre para seguir, com um comprido dedo, as linhas da palma- . Sim, mas é o futuro de elos o que troca, Sassenach, e possivelmente assim estava decretado. –Atirou brandamente dos dedos. Um nódulo rangeu como os lenhos que crepitavam no lar- . Os médicos salvaram a muita gente no curso dos anos, sem dúvida.

- É obvio, e não só os médicos. –Incorporei-me, impelida pela potência de meu argumento- . É que não importa, não te dá conta? Você. Você mesmo salvaste vistas em alguma ocasião. Fergus, Ian? Os dois andam pelo mundo, fazendo coisas, procriando e todo isso. Você trocou seu futuro, verdade?

- Sim, talvez. Mas não podia fazer outra coisa, ou sim?

Essa declaração tão simples me deixou muda. Passamos um momento em silêncio, contemplando o jogo da luz contra o muro caiado. Por fim, ele se moveu a meu lado e voltou a falar.

- Não o digo por procurar compaixão –esclareceu- , mas de vez em quando me doem um pouco os ossos, sabe?

Alargou a mão estropiada sem me olhar e a fez girar à luz, de modo que a sombra dos dedos torcidos formasse uma aranha no muro.

de vez em quando. Eu sabia, claro que sim. Conhecia os limite do corpo… e seus milagres. Tinha-o visto sentar-se ao terminar a jornada, com o esgotamento escrito em cada linha de seu corpo.

- Sei –disse com suavidade.

- Mas contigo não –disse, me cobrindo a mão- . Sabe que minhas dores só desaparecem quando estou em seu leito, Sassenach? Quando te possuo, quando estou em seus braços, minhas feridas se curam e minhas cicatrizes ficam no esquecimento.

- As minhas também.

Durante um momento me acariciou o cabelo em silêncio. Estava revolto e emaranhado devido a nossos esforços anteriores; ele alisou um cacho e outro, penteando-os um a um com os dedos.

- Sua cabeleira é como uma grande nuvem de tormenta, Sassenach –murmurou já dormitado- . Todo escuridão e luz ao mesmo tempo. Não há dois cabelos da mesma cor.

Era certo; a mecha que tinha entre os dedos mostrava fios blanquísimas e outras chapeadas ou loiras; nervuras escuras, quase como a pelagem das martas, e vários restos do castanho claro de minha juventude. Afundou os dedos sob a massa; senti que sua mão se curvava contra minha nuca como contra um cálice.

- Vi minha mãe em seu ataúde –disse por fim- . As mulheres lhe tinham trancado o cabelo para que tivesse um aspecto decoroso, mas meu pai não o permitiu. Queria vê-la por última vez tal como era para ele. Foi pessoalmente ao ataúde, desfez-lhe as tranças e estendeu a cabeleira com as mãos, cobrindo o travesseiro.

Fez uma pausa; seu polegar ficou imóvel.

- Eu estava ali, quieto no rincão. Quando todos saíram para receber ao padre me aproximei sigilosamente. Era a primeira vez que via uma pessoa morta.

Deixei que meus dedos se fechassem sobre seu antebraço. Uma manhã minha mãe me deu um beijo na frente; logo voltou a me colocar a forquilha que me tinha desprendido de meu cabelo cacheado e saiu. Jamais voltei a vê-la. Velaram-na com o ataúde fechado.

- Era…ela?

- Não. –Contemplava o fogo com os olhos entreabridos- . Não de tudo. Lhe parecia, mas nada mais. Como se alguém a tivesse esculpido em madeira de abedul. Mas seu cabelo… isso ainda tinha vida. Isso ainda era…ela.

Ouvi-o tragar saliva e pigarrear um pouco.

- A cabeleira lhe cruzava o peito, cobrindo ao menino que jazia com ela. Pensei que não gostaria de sufocar-se desse modo. E retirei as jubas vermelhas para deixá-lo à vista. Meu hermanito, acurrucado em seus braços, com a cabeça em seu seio, abrigado e em sombras sob a cortina de cabelo. E em seguida pensei que não, que estaria mais contente se o deixava assim. E voltei a alisar a cabeleira de minha mãe para lhe cobrir a cabeça.

Seu peito se elevou sob minha bochecha. Deslizou lentamente as mãos por meu cabelo.

- Não tinha uma só cã, Sassenach. Nenhuma.

Ellen Fraser tinha morrido de parto para os trinta e oito anos. Minha mãe, aos trinta e dois. E eu… eu tinha a riqueza de todos esses anos largos que elas tinham perdido. E mais ainda.

- Para mim é um gozo ver como lhe tocam os anos, Sassenach –sussurrou- , pois significa que vive.

 

Por um momento acreditou que não poderia levantar a mão até o fecho.

Os braços lhe penduravam como se levasse pesos de chumbo, e os músculos do antebraço saltavam e tremiam pelo esgotamento. Teve que fazer dois intentos, e até então só pôde agarrá-lo torpemente entre o índice e o major; o polegar não podia fechá-lo.

        Brianna deveu ouvir seus tapas, pois a porta se abriu de súbito; sua mão caiu sem forças. Logo que viu um brilho de cabelo revolto e uma cara sorridente, com uma bochecha manchada de fuligem; imediatamente tinha os braços de sua mulher ao redor do corpo e sua boca sobre a sua própria. Estava em casa.

        -tornaste! –disse Bree, soltando-o.

        -Sim.. –E bem que se alegrava. A cabana cheirava a comida quente e a sabão de lejía.

        -Papai, papai! –Jemmy saltava de entusiasmo, obstinado a um banquinho para não perder o equilíbrio-. P...piiii!

        -Olá, olá –disse Roger, alargando uma mão para baixo para dar uns tapinhas à cabeça esponjosa do pequeno-. Quem é o menino de papai?

        -Eu! Eu! –E sorriu com uma enorme expansão de gengivas rosadas, mostrando todos seus dientecillos brancos.

        -Temos uma surpresa para ti. Olhe isto! –Foi rapidamente para a mesa e fincou um joelho no chão, a um passo do Jemmy. Logo lhe aproximou as mãos-. Vêem com mamãe, bonito. Vêem aqui, bebê, vêem com mamãe.

        Jemmy se balançou precariamente, soltou uma mão e, alargando os braços para sua mãe, deu dois passos de bêbado até cair contra ela, chiando. Brianna o apanhou e o pôs em direção ao Roger.

        -Vêem com papai –o respirou-. Anda, vêem com papai.

        -Vamos, amiguito, vêem aqui.

        Jemmy se aferrou um momento, inclinado para diante; logo soltou a mão de sua mãe e se cambaleou para o Roger, em três passos cada vez mais velozes, e se deixou cair de cabeça no abraço salvador de seu pai.

        -Assim eu gosto! Agora o tocará tudo, verdade?

        -Como se agora não tocasse nada! –exclamou Brianna, pondo os olhos em branco.

        -E o que outra coisa têm feito hoje? –perguntou Roger, sentando-se à mesa.

        -O que outra coisa? –Ela dilatou os olhos; logo os entreabriu-. Não te parece que aprender a caminhar é suficiente para um dia?

        -É obvio; é estupendo, maravilhoso –se apressou ele a reconhecer-. Dizia-o só por cercar conversação.

        -Pois bem, esfregamos o chão, embora a diferença não se note... –Baixou a vista com certo desgosto às toscas pranchas manchadas-. preparamos a massa do pão, só que não llevou, de modo que jantará com bolachas.

        -eu adoro as bolachas –assegurou ele imediatamente.

        -Sem dúvida. –Bree arqueou uma vermelha sobrancelha-. E para a fome não há bolacha dura.

        Roger riu. Lhe estava passando o frio, e embora pouco lhe faltava para cair do tamborete, de puro cansado, encontrava-se bem. E faminto. Seu estômago grunho, espectador.

        -Uma bolacha com manteiga seria bom começo –disse-. Que mais? Cheiro algo rico. –Farejou para o caldeirão borbulhante, esperançado-. Guisado?

        -Não: penetrada. –Bree cravou um olhar fulminante no caldeirão-. A terceira do dia. Não é muito o que entra nessa porcaria, mas não pude levar a roupa suja ao caldeirão grande da casa, porque tinha que esfregar o chão e fiar. Se lavas fora tiver que ficar a atender o fogo e remover, de modo que não pode fazer quase nada mais nesse tempo.

        O olhar da Brianna se centrou no Roger, como se reparasse nele pela primeira vez.

        -E você, senhor MAC Kenzie, o que esteve fazendo? diria-se que vem da guerra.

        Tocou-lhe brandamente a cara; na frente lhe estava formando um galo; Roger sentiu uma pequena pontada de dor ante o contato.

        -Algo assim. Jaime me esteve ensinando os rudimentos da esgrima.

        Riu com acanhamento ao ver que ela arqueava as sobrancelhas.

        -Com espadas de madeira, suponho.

        Várias espadas de madeira. Já tinham quebrado três, embora as armas improvisadas não eram ramillas, por certo.

        -E te deu uma estocada na cabeça? –A voz da Brianna soou dura.

        -Né... não, não exatamente.

        -O que significa “não exatamente”?

        -Olhe... ensinava-me um pouco chamado corps Á corps, que ao parecer significa, em francês: “envolve a espada de seu adversário à tua e, enquanto ele trata de liberá-la, dá-lhe um joelhada nos cojones e um golpe na cabeça”.

        Brianna deixou escapar uma risada escandalizada.

        -Ou seja que lhe...?

        -Não, mas faltou pouco. –Roger fez uma careta de recordá-lo-. Na coxa tenho um moretón do tamanho de minha mão.

        -Está lesado em algum outro lugar? –Brianna franziu o sobrecenho, preocupada.

        -Não. –Lhe sorriu, sem retirar as mãos do regaço-. Cansado. Dolorido. Esfomeado.

        O cenho se apagou e o sorriso da moça reacendeu se, embora entre suas sobrancelhas ficou uma pequena ruga. depois de tirar do aparador uma bandeja de madeira, ficou em cuclillas junto ao lar.

        -Codornas –disse com satisfação, enquanto utilizava o atiçador para retirar vários vultos enegrecidos das cinzas-. Trouxe-as papai esta manhã. Disse-me que não as depenasse, que as pusesse ao fogo envoltas em barro; por isso tivemos que fazer uma segunda penetrada.

        As codornas pareciam simplesmente pedras chamuscadas, mas pelas gretas do barro surgiam volutas tentadoras. Roger sentiu desejos de agarrar uma e comer-lhe imediatamente, com barro queimado e tudo. O que fez foi medir sob o guardanapo que cobria o prato; ali descobriu as criticadas bolachas. Com os dedos estirados, conseguiu arrancar uma boa parte e o colocou silenciosamente na boca. Jemmy, ao ver o pão, alargou a mão entre prementes ruídos de exigência. Roger rompeu cuidadosamente um trocito mais e o deu, mas no trajeto esteve a ponto de que lhe caísse. Tinha perdido a metade da unha do polegar que lhe gotejava, muito vermelha.

        Jemmy cravou a vista no polegar ferido. Logo se meteu o sua na boca para chupá-lo ruidosamente. Em realidade parecia boa idéia. Esse dedo ardia com uma dor surda e sentia todos os dedos frios e rígidos. depois de jogar uma olhada à costas da Brianna, meteu-se o polegar na boca. Sentiu-o estranho, grosso, duro e com o sabor metálico do sangue e a sujeira fria. Mas de repente encontrou o oco; língua e paladar se fecharam em volto do dedo ferido, em uma pressão cálida e sedativo.

        Jemmy lhe deu um golpe na coxa, seu sinal acostumado para pedir “aúpa”; ele o agarrou pela parte traseira do fralda e o subiu até seu joelho com a mão livre. O pequeno se revolveu um pouco até sentir-se cômodo; logo se relaxou em súbita paz, com a parte de pão espremido em uma mão, enquanto se chupava silenciosamente o dedo.

        Roger se relaxou pouco a pouco, com um cotovelo apoiado na mesa e o outro braço sustentando a seu filho. O denso fôlego do menino, sua pesada respiração contra as costelas, eram um tranqüilizador acompanhamento para os ruídos caseiros que Brianna fazia ao servir o jantar. Para sua surpresa o polegar deixou de lhe doer; mesmo assim o deixou onde estava, muito exausto para pôr em tecido de julgamento essa estranha sensação de comodidade.

        Seus músculos também se relaxavam gradualmente ao abandonar o estado de alerta nervoso em que se mantiveram durante várias horas. Em seu ouvido interior ainda ressonavam as enérgicas indicações: “Usa o antebraço, homem... A boneca, a boneca! Não aparte a mão assim, manten perto do corpo. Isso não é um pau, homem! É uma espada! Usa a ponta.”

        A cabeça lhe bamboleou no pescoço. Com uma piscada, voltou abruptamente do chiar das espadas de madeira a cálida penumbra da cabana. Brianna amaldiçoava pelo baixo ante o aparador, golpeando os vultos de argila enegrecida com a manga de uma adaga, em um intento de parti-los.

        “Cuida o movimento dos pés. Atrás, atrás! Sim, agora vêem para mim. Não, não te estire tanto...”

        “Não apanhe a folha com a tua; arroja a fora. Golpeia, golpeia para apartá-la! Vêem mim, investe! Manten perto, perto... sim, bem... ja!”

        Lhe deslizou o cotovelo e sua mão caiu. Ele se ergueu com uma sacudida; sujeitando ao menino dormido. Piscou, com a vista imprecisa pela luz do fogo.

        Brianna também deu um coice de culpabilidade e fechou sua caderneta de apontamentos. Uma vez de pé o escondeu depois de um prato contra a cara posterior do armário.

        -A comida está lista –disse apressadamente-. Vou a por... o leite.

        Roger trocou de posição ao Jemmy. O menino dormia profundamente, com o polegar bem sujeito na boca.

        o do Roger estava molhado de saliva; sentiu um rubor de abafado. O teria desenhado assim Bree? Não seria a primeira vez que o desenhava em posições que ele considerava comprometedoras. Ou talvez estava registrando seus sonhos?

        Depositou brandamente ao Jemmy em seu berço, sacudiu as migalhas úmidas da colcha e se esfregou os nódulos arroxeados. Da despensa chegavam ruídos de chapinho. aproximou-se sigilosamente ao aparador para extrair o livro de seu esconderijo. Não eram sonhos, a não ser desenhos. Apenas umas poucas linhas rápidas, a essência do esboço. Um homem morto de cansaço, ainda alerta: com a cabeça em uma mão, o pescoço dobrado de esgotamento e o braço livre rodeando um pouco entesourado e indefeso. Tinha-o titulado Em garde, com sua letra inclinada e angulosa.

        Fechou o livro e voltou a pô-lo em seu sítio. Bree estava de pé na porta da despensa, com a jarra de leite na mão.

        -Vêem comer –lhe disse brandamente-. Precisa repor forças.

 

Cross Creek

Novembro de 1771

Não era a primeira vez que dirigia uma espada do século XVIII; nem o peso nem a longitude o agarraram por surpresa. A cazoleta estava um pouco torcida, mas nem tanto que impedisse o ajuste da mão no punho.

        -Está um pouco maltratada –lhe havia dito Fraser, com um olho entrecerrado para olhar a espada ao longo, antes de entregar-lhe mas a folha está bem equilibrada. Prova-a, a ver se te entende com ela.

Estavam no Cross Creek, na transitada ruela da ferraria; uns quantos transeuntes se detiveram observá-los e lhes oferecer comentários úteis.

-Quanto pede Moore por essa parte de lata? –perguntou alguém, despectivamente-. mais de dois xelins seria um roubo a mão armada.

-É uma boa espada –assegurou Moore-. Era de meu tio, que serve em Forte Stanwyck. Esse aço matou a mais de um francês e não tem racho.

-Que não tem racho! –exclamou o depreciativo-. Mas se estiver tão torcida que, se queria trespassar a um homem, acabaria te cortando a orelha!

As gargalhadas da multidão afogaram a réplica do ferreiro. Roger baixou a ponta da espada e a elevou lentamente. Como diabos se prova uma espada? Terei que fazê-la ondular de um lado a outro? Cravá-la em algo?

-Ah!, se o que o jovem quer é uma espada, Malachy McCabe tem uma melhor, que ficou depois do serviço. Acredito que se desfaria dela por três xelins, no máximo. –O sapateiro do outro lado da rua assinalou a espada com ar sagaz, e os lábios franzidos.

-Esta não é uma peça elegante –acrescentou um ex-soldado de idade amadurecida, com a cabeça inclinada a um lado-. Mas serve, posso assegurá-lo.

Roger estendeu o braço, que saía a defender a qualidade de sua mercadoria. O ferreiro saltou a um lado com um grito de sobressalto, entre os uivos da multidão

Uma vez forte e nasal, a costas do Roger, interrompeu suas desculpas.

-Aqui, senhor! me permita lhe oferecer um adversário mais digno de seu aço que um ferreiro desarmado!

Roger, ao girar sobre seus talões, encontrou-se frente a frente com o doutor Fentiman, que desenvainaba uma folha larga e fina, colocada dentro de sua fortificação de passeio. O doutor, a quem Roger dobrava em tamanho, blandió seu estoque com afável ferocidade. Obviamente o impulsionava um almoço oneroso; a ponta de seu nariz refulgia como uma lâmpada de Natal.

-Medimos nossa habilidade, senhor? –Fentiman agitou a espada de um lado a outro, fazendo cantar a estreita folha no ar-. A primeiro sangue, sim? O que diz você?

Roger olhou ao Jaime, que se tinha apoiado contra a parede e parecia divertido. A resposta foi um encolhimento de ombros e uma sobrancelha arqueada.

“Prova-a, a ver se te entende com ela”, havia dito seu sogro. Pois bem, um duelo com esse mosquito bêbado era uma boa maneira de prová-la. Roger levantou a espada e cravou no doutor um olhar ameaçador.

-Em garde –disse.

O grupo de curiosos lançou um rugido de aprovação.

-Gardez vous –replicou imediatamente o médico.

E investiu. Roger girou sobre um talão e Fentiman passou como uma bala, com o estoque apontando como uma lança. Moore, o ferreiro, saltou a um lado bem a tempo para evitar pela segunda vez que o trespassassem, entre sucessivas maldições.

-Acaso me escolheu como branco? –gritou agitando o punho.

Sem preocupar-se por isso, o doutor recuperou o equilíbrio e carregou novamente para o Roger, lançando chiados agudos para respirar-se. Possivelmente o doutor não fora um mau espadachim quando estava sóbrio, mas em seu estado atual resultava fácil desviar suas estocadas frenéticas e seus loucos arrebatamentos... sempre que a gente emprestasse atenção.

Em seguida Roger soube que lhe seria possível pôr fim ao duelo em qualquer momento, com apenas parar o fino estoque do doutor com o fio de seu próprio aço, quanto mais pesado. Mas começava a desfrutar daquilo, de modo que pôs cuidado em parar os golpes com a parte plaina da folha.

Gradualmente tudo foi desaparecendo de sua vista, salvo a ponta cintilante do estoque; os gritos da multidão se reduziram a um zumbido de abelha; o pó da ruela e o muro da ferraria eram apenas visíveis. Roçou a parede com o cotovelo, retrocedeu e se moveu em círculos para ganhar espaço, tudo de uma maneira inconsciente.

O estoque golpeou contra sua folha, travou-se e se liberou com um chiado metálico. Tangidos, estalos e o assobiar do ar vazio, e o ritmo ressonante que vibrava nas bonecas com cada golpe da espada do médico.

Vigia o toque, segue-o, aparta-o. Não sabia o que estava fazendo, mas o fazia. O suor lhe corria até os olhos; sacudiu a cabeça para apartá-lo e esteve a ponto de receber uma investida na coxa, mas a deteve muito perto e desviou o estoque para trás.

O doutor se cambaleou, perdido o equilíbrio. No ar poeirento soaram gritos ferales:

-Agora! lhe dê! Atravessa-o!

Roger viu o colete bordado do doutor, descoberto, cheio de mariposas de seda, e sufocou o impulso visceral de investir contra ele. Impressionado pela intensidade do apresso, deu um passo atrás. Fentiman, ao perceber sua debilidade, saltou para diante com um uivo, o aço pontudo. Roger deu meio passo a um lado e o médico passou veloz, roçando em sua trajetória o esporão de um cavalo de tiro.

O animal emitiu um grito de indignação, e imediatamente espadachim e espada voaram pelo ar, até estelar se contra a fachada da oficina do sapateiro. Fentiman caiu a terra como uma mosca esmagada, rodeado de fôrmas e sapatos esparramados.

Roger se manteve quieto, ofegante e acalorado pela luta. Jaime lhe retirou brandamente os dedos do punho da espada. O sangue lhe fazia cócegas por toda parte. Logo que ouvia as risadas, os convites a beber um gole; tampouco percebia as palmadas de felicitação que choviam contra suas costas.

-Um enema, um enema, que lhe ponham um enema! –gritava uma banda de aprendizes depois do doutor, ao que se levavam para lhe aplicar os primeiros auxílios no botequim mais próximo. O proprietário do cavalo se trabalhava em excesso solícitamente sobre o grande baio, embora este parecia mais desconcertado que ferido.

-Suponho que o doutor ganhou. depois de tudo foi ele o que extraiu o primeiro sangue.

Roger só soube que tinha falado para ouvir sua própria voz, extrañamente tranqüila.

-Basta-te com isso? –Jamie o olhava interrogativamente; ainda sustentava a espada na palma da mão.

-Sim –disse-. Com isso basta.

-Bem. Pode servir –acrescentou Jamie despreocupadamente. E lhe voltou as costas para pagar ao ferreiro.

 

Finais de novembro de 1771

Pela quarta vez em vários minutos, Roger se teve que recordar que do ponto de vista médico não era possível morrer de frustração sexual. tendeu-se de costas, com cuidado para que o colchão não fizesse ruído, e cravou a vista no teto. Não serve de nada; pelos borde do couro engordurado que cobria a janela, o sol do amanhecer caía a correntes sobre a cama, e pela extremidade do olho podia ver as pernas douradas de sua esposa, iluminadas como por um refletor.

Fechou os olhos, mas isso não serve de nada; em seguida começou a ver imagens da noite anterior; Brianna, à luz tênue das brasas, faiscantes as chamas de seu cabelo entre as sombras, e um súbito brilho na curva de um peito nu, ao deslizar a camisola pelos ombros.

Por tarde que fora, por cansado que estivesse, desejava-a desesperadamente. Mas outra personita a tinha necessitado ainda mais. Entreabriu um olho e se incorporou um pouco, só para olhar por cima dos cachos revoltos da Brianna, o berço ainda em sombras pega à parede. Não havia sinais de movimento.

Havia entre os dois um velho acordo. Como ele estava acostumado a despertar ao menor ruído, enquanto que ela se encontrava aturdida e torpe, era Roger quem lhe levantava quando soava a sereia do berço. Elevava ao vulto empapado e lhe uivem e atendia as necessidades imediatas da higiene. Quando o entregava a sua mãe, Brianna já estava o bastante espabilada para tirar a camisola e acomodar ao menino no refúgio de seu corpo.

Roger se tinha ficado dormido enquanto Bree ainda o estava reconfortando, mas despertou quando ela se deu a volta na estreita cama, lhe roçando a coxa com suas nádegas. Ao sentir a pressão do traseiro, logo que pôde conter-se para não atacá-la da retaguarda. Detiveram-lhe pequenos ruídos de sucção ao outro lado do Bree: Jem ainda estava na cama.

Permaneceu imóvel, escutando, rezando para que ela se mantivera acordada o tempo suficiente para devolver ao pequeno vadio a seu berço; às vezes mãe e filho dormiam juntos; nesses casos, pela manhã despertava uma desconcertante mescla de aromas: a mulher desejável e a pis de bebê. Aquela noite tinha sido ele quem se ficou dormido apesar das moléstias, esgotado detrás ter acontecido o dia derrubando árvores na montanha.

Inalou profundamente. Não: o menino estava em seu berço. Na cama não havia mais aromas que o da Brianna, um terrestre aroma de mulher, uma vaga e doce nuvem de suor e untuosa disposição.

Alargou uma mão sigilosa para lhe acariciar docemente a nádega mais próxima. Era fresca, suave e redonda como uma cabaça.

Ela emitiu um suave murmúrio e se desperezó lujuriosamente, arqueando as costas; o modo em que subó o traseiro convenceu ao Roger de que o mais prudente era pôr o edredom a um lado, lançar-se em cima de l e alcançar seu objetivo nos dez segundos escassos que se requeriam.

Chegou até o passo de arrojar o edredom. No momento em que separava a cabeça do travesseiro, uma figura redonda e clara surgiu lentamente pelo bordo do berço, como uma das luas do Júpiter. Um par de olhos azuis o observou com clínica objetividade.

-Mirtos! –disse ele.

-OH, erda! –disse Jemmy, em alegre mímica. E ficou de pé para saltar obstinado ao bordo do berço, enquanto cantava -:Erda, erda, erda!

Brianna despertou sobressaltada, piscando através de cachos enredados.

-O que? O que acontece?

-Né... algo me picou. –Roger devolveu discretamente a seu sítio o bordo do edredom-. por aqui deve haver uma vespa.

Bree se apartou o cabelo da cara e bebeu da taça que tinha na mesa; sempre despertava sedenta.

Um lento sorriso se desenhou em sua boca larga e suave ao olhá-lo.

-Sim? Pois miúdo aguijonazo tem. Quer que telo esfregue? –E deixou a taça para rodar graciosamente sobre um cotovelo, com a mão estendida.

-É uma sádica –disse Roger, chiando os dentes-. Não há dúvida. Deve havê-lo herdado de seu pai.

Ela se incorporou, rendo, para ficá-la camisa pela cabeça.

-Mamãe! Erda, mamãe! –dizia-lhe Jemmy, radiante, enquanto ela o levantava com um grunhido de esforço.

-Patife –lhe disse ela, afetuosa-. Esta manhã não é precisamente o favorito de papai. É muito inoportuno. –Enrugou o nariz-. E que mal cheira.

-Depende da perspectiva, suponho. –Roger ficou de lado para observá-la-. Desde seu ponto de vista foi perfeitamente oportuno.

-Sim. –Brianna o olhou com uma sobrancelha arqueada-. Desde aí a palavra nova, não?

-Pois não é a primeira vez que a escuta –observou Roger, seco. E se sentou para tirar as pernas da cama, esfregando-a cara e o cabelo com uma mão.

-Bom, agora teremos que encontrar a maneira de passar do abstrato ao concreto verdade? –Pôs ao Jemmy de pé no chão e se ajoelhou frente a ele. depois de lhe dar um beijo no nariz, tirou-lhe o alfinete de segurança dos fraldas-. OH, puaj! Não te parece que aos dezoito meses vai sendo hora de aprender a usar a bacinilla?

-A quem o pergunta, a mim ou a ele?

-Uf!... Dá igual. Ao que tenha uma opinião para me dar.

Jemmy, obviamente, não a tinha. Animosamente estóico, ignorava o decidido assalto que sua mãe efetuava contra suas partes íntimas, utilizando um pano molhado em água fria. Brianna o agarrou em braços para sentar-se com ele na cadeira de balanço, junto ao lar.

-Quer um lanche? –ofereceu-lhe, abrindo o decote de sua camisa com ar lhe convidem.

-Sim, por favor –exclamou Roger, sinceramente.

Bree se pôs-se a rir, não sem solidariedade, enquanto acomodava ao Jemmy em seu regaço para que mamasse.

-te toca o seguinte turno –assegurou ao Roger-. Quer porridge de aveia ou papa fritas?

-Não há outra coisa na carta? -Maldita seja! Tinha estado a ponto de consegui-lo. Tinha que voltar a começar.

-Pois claro que sim. Torradas com geléia de morangos. Queijo. E ovos, mas terá que ir ao galinheiro para buscá-los; na despensa não fica nenhum.

Ao Roger custava concentrar-se no tema do café da manhã ao ter diante a Brianna, à luz tênue da cabana, com as largas coxas estendidas sob a camisola e as calças colocadas sob a cadeira. Ela pareceu detectar sua falta de interesse culinário, pois contemplou com um sorriso sua própria nudez.

-Está muito bonito, Roger –disse pelo baixo. Sua mão livre foi posar se na cara interior de uma coxa.

-Você também. –A voz de seu marido soou sensual. Estava mais que bonita.

Ela deu um tapinha nas costas do Jemmy.

-Quer visitar tia Lizzie depois do café da manhã, tesouro? –perguntou-lhe sem olhá-lo. Seus olhos estavam fixos nos do Roger; sua boca larga, curvada em um lento sorriso.

Ele não se acreditou capaz de esperar até depois do café da manhã sem tocá-la sequer. O xale estava nos pés da cama; o pôs na cintura, por respeito à decência, e foi ajoelhar se junto à cadeira de balanço.

-Amo-te –lhe sussurrou ao ouvido. Ela girou a cabeça para beijá-lo; foi um fugaz contato de lábios suaves.

-Eu também te amo –disse.

No momento em que ele se decidia a se aprofundar na matéria, um forte murro sacudiu as pranchas da porta, acompanhado pela voz de seu sogro.

-Roger! Está aí? te levante agora mesmo!

Brianna deixou no chão ao Jemmy; para ouvir a voz de seu avô, o menino lançou um chiado enlevado e correu a golpear a porta fechada.

Date pressa! –A luz alagou a cabana ao correr o corpo da janela, deixando ver a larga cara do Jamie Fraser, avermelhada pelo entusiasmo e o sol da manhã-. Te mova, homem. Não é hora de andar por aí com o traseiro ao ar. MAC Leod diz que há bestas atrás da colina.- Enviou um beijo ao Jemmy-. A ghille ruaidh, a cariem! Ciamar a tha thu?

Roger se esqueceu do sexo e o pudor. ficou a camisa pela cabeça, com movimentos bruscos.

-Que classe de bestas? Veados, eleve?

-Não sei, mas se trata de carne!

Com uma última e ofegante olhar ao corpo de sua esposa, Roger agarrou suas meias três-quartos.

 

Ao meio dia, entre grunhidos e ofegos, os homens penetraram na zona verde escura das coníferas. Ninguém dizia nada; mesmo que se detinham um instante para agarrar fôlego, a quietude do bosque proibia tudo bate-papo desnecessário.

        Ao redor a espessura parecia serena... e deserta. Possivelmente porque chegavam muito tarde, quando os animais já tinham contínuo sua marcha, possivelmente porque MAC Leod havia visto mau. Ao sair ao outro lado da colina, os homens se encontraram a pleno sol. O ar era escasso e frio. Ao chegar a um sítio ao casaco do vento, o grupo se deteve em muda apreciação.

        Jamie se adiantou até o bordo de uma saliente rochosa, com o acréscimo acobreado lançando reflexos ao sol, e girou de um lado a outro, olhando para baixo entre as árvores, com os olhos entreabridos. Roger viu que dilatava as fossas nasais e sorria para seus adentros. Talvez farejava a presa.

Fraser moveu a cabeça. Logo se voltou para o Fergus para lhe dizer algo em voz baixa e subiu pela cornija até desaparecer.

        -Esperemos –disse Fergus a seus companheiros, lacônico.

        Os homens se sentaram a conversar sobre voz baixa, fedorentos. Se na frescura do bosque não se notava, ali acima, ao sol, era evidente o fedor a suor recente, que se impunha às capas mais profundas de sujeira e aromas físicos.

        Roger se disse que talvez não era um olfato animal extraordinário o que fazia tão difícil aproximar-se da presa a pé, a não ser a fetidez dos seres humanos. Ele não cheirava desse modo, ou sim? Por curiosidade inclinou a cabeça para respirar dentro do decote aberto de sua camisa. Sentia que um fio de suor lhe corria pelo dorso do pescoço, sob o cabelo. Secou-o com o bordo da camisa; antes de retornar a sua casa se daria um banho, embora o arroio estivesse talher de gelo.

        A importância da ducha e os desodorantes não era por uma simples questão estética, refletiu. Ao fim e ao cabo, alguém se habitua a quase qualquer fetidez habitual. O que não tinha compreendido na segurança do meio moderno, relativamente inodoro, era as conseqüências mais íntimas do aroma.

Às vezes uma baforada ao azar despertava sem prévio aviso suas reações mais primitivas, fazendo que se sentisse como um sujo mandril.

        Um toque no cotovelo o sobressaltou. deu-se a volta, com um braço estendido em rápida defesa. Jamie o esquivou limpamente e lhe sorriu. Logo assinalou com a cabeça o bordo da cornija.

        -Encontrei-os –disse.

 

Jamie fez um gesto com a mão e Fergus acudiu imediatamente. O francês apenas lhe chegava ao ombro, mas não parecia ridículo. Com sua única mão a modo de tela, olhou para onde Fraser assinalava. Roger se aproximou por detrás deles para olhar costa abaixo. Uma grosa linha de altas árvores nuas marcava o curso de um arroio. Fraser, ao vê-lo, assinalou para baixo com o queixo.

        -Junto ao arroio. Vê-o? –disse.

        Ao princípio Roger não viu nada. Logo divisou algo: um arbusto, ao final do pendente, movia-se de forma distinta à provocada pelo vento ao agitar os ramos próximos. Era uma sacudida brusca, como se algo atirasse dele para alimentar-se.

-O que é isso?

A súbita aparição de um vulto escuro foi suficiente para lhe revelar que o animal era grande, muito grande.

-Não sei. É maior que o veado. Um wapiti, possivelmente. –Fraser olhava com atenção, entreabrindo os olhos para protegê-los do vento.

-Um alce americano, possivelmente? –Fergus franziu o sobrecenho sob a mão que dava sombra aos olhos-. Alguma vez vi nenhum, mas são muito grandes, não?

-Não. –Roger sacudiu a cabeça-. Quer dizer, sim, mas isso é distinto. cacei alces americanos... com os mohawks. E não se movem assim.

-É verdade. Não são nem veados, nem eleve... E há mais de um. Vêem-no?

Roger entreabriu muito os olhos; mas ao ver o que Fraser fazia, imitou-o: balançava-se de um pé ao outro, deixando que seus olhos vagassem pela paisagem. Aqui e lá, entre os cinzas e pardos descoloridos entre manchas de folhagem perene, havia um deslocamento, um nó no desenho da natureza: movimentos estranhos que não causava o vento. Embora cada besta era invisível em si, sua presença se detectava pelas sacudidas dos arbustos próximos.

-Eu tinha razão! Tinha razão, verdade, MAC Dubh? –gabou-se MAC Leod, passando de um a outro a cara radiante de triunfo-. Não vos disse que tinha visto bestas?

-Cristo, há todo um rebanho –sussurrou Evan Lindsay, como eco de seu pensamento. A cara do montanhês refulgia de espera. voltou-se para o Jaime-. Como faremos, MAC Dubh?

-É difícil saber; estão em terreno aberto. Não podemos encurralá-los em nenhuma parte. –chupou-se um dedo para apreciar a brisa; logo assinalou-. O vento vem do oeste; descendamos pelo regato até o pé do pendente. Logo Roger e eu passaremos ao flanco, perto dessa grande saliente rochosa. Vêem-na?

Lindsay assentiu lentamente; o dente torcido mordiscava o lábio.

-Estão perto do arroio. Dêem um rodeio; lhes mantenha longe até chegar perto desse grande cedro. Vêem-no? Logo lhes dissemine: dois a cada lado do arroio. Evan é o melhor atirador, que esteja preparado. Roger MAC e eu nos aproximaremos do rebanho pir atrás para impulsioná-los para vós.

Fergus assentiu.

-Compreendo –disse, estudando o terreno, lá abaixo-. E se nos vêem se lançarão por aquele pequeno desfiladeiro, onde ficarão apanhados. Muito bem. Allons-e!

 

Ao ver que Jamie carregava e martelava sua arma, Roger fazia o mesmo, com uma mescla de entusiasmo e maus presságios ante o acre aroma da pólvora. Dado o tamanho das bestas que seguiam, até ele tinha possibilidades de dar no branco.

        Na maleza, para diante, ouviu-se um pequeno estalo e um pouco de cabelo vermelho apareceu na vista. Para ali foi, com a mão fechada em volto da culatra, morna e sólida a madeira em sua palma, com o canhão apontando para cima por cima do ombro.

        Enquanto rodeava sigilosamente um arbusto de zumaque, Roger sentiu que algo cedia súbitamente sob seu pé e se tornou para trás para não perder o equilíbrio. Ao ver o que tinha pisado sentiu um forte impulso de rir, apesar da imediata desilusão.

        -Jamie! –chamou, sem preocupar-se já pelo sigilo ou o silêncio. O cabelo brilhante do Fraser apareceu por entre uma cortina de louro, seguido por seu dono.

        -Não sou um grande rastreador –disse Roger, assinalando para baixo-, mas pisei em tantas coisas destas que sei as reconhecer. –Raspou o flanco de seu sapato contra um tronco cansado-. Olhe o que é o que estivemos espreitando!

        Jamie se deteve em seco. Logo se aproximou para agachar-se junto ao manchón pardo e corrugado. depois de tocá-lo com a ponta de um dedo, levantou a vista para o Roger com uma mescla de diversão e desconcerto.

        -Que me crucifiquem! –disse. Sempre em cuclillas, inspecionou a espessura com o sobrecenho enrugado. Logo murmurou-: Mas o que fazem aqui?

        Por fim se incorporou para olhar para o arroio, onde o sol, já em descida, lançava reflexos cegadores entre os ramos.

        -Não tem nenhum sentido –disse, entreabrindo os olhos-. Só há três vacas na Colina e esta manhã vi ordenhar a dois. A terceira é a do Bobby MAC Leod. E acredito que ele saberia reconhecer a sua própria vaca. Além disso...

        Girou lentamente sobre os talões para jogar uma olhada à levantado pendente que acabavam de baixar. Não fazia falta dizer nada. Para descender por ali, qualquer vaca teria necessitado um pára-quedas.

        -Há mais de uma, muitas mais –apontou Roger-. Você mesmo as viu.

        -É certo, mas de onde vêm? –Jamie enrugou a frente, intrigado-. Os índios não criam ganho, muito menos nesta temporada. Se tinham alguma besta, a estas horas já está carneada e defumada. E em cinqüenta quilômetros à redonda não há nenhuma granja da que possam vir.

        -E se fosse um rebanho selvagem? –sugeriu Roger-. Podem haver escapado faz muito tempo e estiveram vagando por ali.

        Aos olhos do Jamie apareceu um ar calculador, como eco do gorgoteo esperançado que emitia o estômago do Roger.

        -Nesse caso serão presas fáceis –disse seu sogro.

        Meia hora depois emergiram no ribazo do arroio que tinham visto de acima.

        -por que não me ocorreria trazer cordas? –murmurou Jamie, enquanto se abria passo entre os salgueiros tenros da ribeira, ao rodear o vau-. Uma coisa é a carne, mas leite e queijo...

        O murmúrio se apagou ao abandonar o arroio para seguir um rastro na folhagem; entrava novamente no bosque.

        Os dois homens se separaram sem dizer nada, a passo fico. Roger aguçava quando podia o ouvido no silêncio do bosque. Deviam estar perto; adeus pouco experimentada do moço tinha detectado o recente dos sinais. Estava refrescando; teriam que procurar os outros e acampar quanto antes, pois o crepúsculo era curto. Uma boa fogueira iria bem; melhor ainda se tinham algo para assar nela.

        Agora foram descendendo para um pequeno terreno baixo, onde a terra, ao esfriar-se, despedia volutas de bruma outonal. Jaime se tinha adiantado um pouco e caminhava com tanta firmeza como o escarpado do chão lhe permitia; pelo visto o caminho ainda era visível para ele, face à densa vegetação.

        -Roger.- Jamie assinalou algo com a cabeça-. Olhe.

        Apartou um ramo grande e Espinosa, pondo ao descoberto o tronco de um sicómoro grande. Parte da casca se desprendeu, deixando uma mancha blancuzca e lhe gotejem na casca cinza.

        -As vacas se esfregam assim? –Roger contemplou a mancha com cara de dúvida, extraindo uma mecha de cabelo escuro e lanzudo, apanhado na áspera casca.

        -Sim, às vezes –replicou Jamie-. Mas que me leve o diabo se alguma vez vi essa pelagem em uma vaca. por que crie que...?

        Algo se moveu junto ao cotovelo do Roger. Ao voltar-se, o moço se encontrou com uma monstruosa cabeça bruna que espiava por cima de seu ombro. Roger gritou e retrocedeu. Sua arma se disparou com uma forte explosão. Continuando, sentiu algo que acontecia seu lado a toda velocidade e um golpe seco. encontrou-se de bruces sobre o tronco de uma árvore, sem fôlego. Jamie estava de joelhos na folhagem, procurando freneticamente a arma do Roger.

        -Vamos! –disse-lhe-. Te levante, Roger! Por Deus, são bisões!

        Um momento depois estava de pé e seguia ao Jamie, que saltava como um veado entre as matas. O bosque já não estava em silêncio; por diante se ouviam ruídos de ramos que se rompiam e graves bufos. Alcançou ao Jamie na costa; subiram-na trabalhosamente. Ali estavam: oito ou nove bestas enormes e lanzudas, que corriam em grupo fechado, troando a colina.

        Jamie cravou um joelho em terra, apontou e disparou, sem efeito visível.

        Não havia tempo para deter-se recarregar; era preciso manter o rebanho à vista. Um meandro de arroio cintilou entre as árvores, mais abaixo e à direita. Roger se lançou costa abaixo, em um arrebatamento de entusiasmo. Ouviu que Jamie lhe seguia lançando a gritos exortações gaélicas.

        Uma exclamação diferente fez que Roger se detivera para olhar para trás. Fraser se tinha detido, com a cara petrificada de espanto. antes de que o jovem pudesse dizer nada, o espanto mudou a fúria. Jamie aferrou o mosquete pelo cañon e, mostrando os dentes, golpeou o chão com a culatra. Apenas se deteve antes de levantar a arma para golpear outra vez, e outra; seus ombros se sacudiam com o esforço.

        -Que diabos...?

        Então a viu. Umas ondas marrons, duras, grosas e escamosas se retorciam entre as matas de ervas. A cabeça da serpente estava esmagada e seu sangue manchava o mosquete do Jamie, mas o corpo ainda se retorcia como um verme.

        -Basta! Está morta. Ouve-me? Basta, hei dito? –Sujeitou ao Fraser por um braço, mas seu sogro se liberou para dar uma coronhada mais. Por fim se deteve.

        -Deus Santo! O que aconteceu? Picou-te?

        -Sim, na perna. Pisei-a.

        -Vêem te sentar e vejamos isso.

        Jamie deu uns passos vacilantes e se deixou cair em um tronco cansado. Logo procurou o bordo do meia três-quartos com dedos trêmulos, mas Roger os apartou para descalçá-lo. As marcas das presas eram muito claras: uma dobro punção vermelho escuro na pantorrilha.

        -É venenosa. Tenho que cortar.- Roger desenvainó sua adaga.

        Mordendo-os lábios em um gesto de concentração, oprimiu a ponta da faca contra a pele, justo por cima de uma dessas punções. Então Fraser agarrou a mão do Roger com a sua e empurrou com um grunhido cruel. A ponta se afundou súbitamente, dois ou três centímetros. Quando o sangue emanou ao redor da folha, os dedos que apertavam se retiraram.

        -Outra vez. Com força. E date pressa, homem, pelo amor de Deus. –A voz do Jamie era firme.

        O jovem se preparou para utilizar a força necessária e cortou com celeridade: duas marcas em cruz sobre as punções, tal como indicavam as guias de primeiros auxílios. Logo deixou cair a faca e aproximou a boca às feridas. Chupou com toda a força possível, enchendo-a boca de um sabor a metal quente. Sugava e cuspia em silencioso frenesi, salpicando de sangue as folhas amarelas.

        Algo o aferrou pelo cabelo da nuca e devorou com força, obrigando-o a deter-se. Levantou a cabeça, ofegando.

        Basta já, ouve-me? –disse Jamie com suavidade-. vais deixar me seco. –E moveu timidamente o pé descalço, fazendo uma careta ao ver-se a perna. Roger se sentou sobre os talões e aspirou uma baforada de ar.

        Fiz mais... desastre... que a serpente.

        A boca lhe encheu de saliva; tossiu e voltou a cuspir. Fraser, em silêncio, ofereceu-lhe a cigarreira de uísque; ele se enxaguou a boca com um sorvo e, depois de cuspi-lo, bebeu a fundo.

        -Está bem? –limpou-se o queixo com o dorso da mão; ainda tinha sabor a ferro. Assinalou com a cabeça a perna macerada.

        -Resisto. –Jamie estava ainda pálido, mas uma comissura de sua boca se desviou para cima-. vá ver se os outros estão à vista.

        Não os via; do alto da saliente rochosa só se divisava muito ramos nus que se agitavam de um lado a outro. Rouco de tanto gritar contra o vento, Roger baixou de novo a costa.

        -Não há sinais de ninguém.Pode caminhar? –Roger se inclinou para seu sogro.

        -Posso, mas pouco.

        Roger sentiu a primeira pontada de intranqüilidade. Fazia quanto sabia; nas guias de primeiros auxílios, o passo seguinte era sempre “imobilizar o membro e levar a paciente a um hospital quanto antes”. Os cortes e a sucção eram para retirar o veneno da ferida, mas ao parecer tinha ficado uma boa quantidade, que se disseminava lentamente pelo corpo do Jamie. Não tinha tido tempo de extrai-lo tudo... se é que tinha extraído algo. E o m’s parecido a um hospital, Claire e suas ervas, estava a uma jornada de distância.

        -Dói muito? –perguntou, sobressaltado.

        -Sim.

        Obscurecia a toda velocidade. Era evidente que essa noite não iriam a nenhuma parte; nas montanhas era impossível orientar-se na escuridão, inclusive se Fraser tivesse podido caminhar. Ficava um pouco de pão de milho; quanto à água, não era difícil de conseguir; entre o sussurro das árvores ouvia o gorgoteo de um arroio algo mais abaixo. Mas antes convinha recolher lenha, enquanto houvesse luz.

        -Seria melhor acender uma fogueira. –Jamie falou de repente, sobressaltando ao Roger com esse eco de seus pensamentos. Abriu os olhos para olhar uma mão e a fez girar, como se não a conhecesse.

        -Noto espetadas nos dedos –comentou com interesse. Logo se tocou a cara com uma mão-. Aqui também. Me dormiram os lábios. Sabe se isso é o habitual?

        -Não sei. Suponho que sim, se te bebeste o uísque.- Era uma piada patética, mas foi um alívio que o aceitasse com uma débil risada.

        -Não. –Jamie tocou a cigarreira que tinha a um lado-. Pareceu-me que mais tarde podia me fazer falta.

        -É verdade. Fique aqui; não deve te mover. vou procurar um pouco de lenha. Os outros verão a luz do fogo.

        -Traz também a serpente –lhe disse Jamie, quando já se afastava-. O justo é justo. Que nos sirva de jantar!

        Roger sorriu de brinca a orelha, apesar de sua preocupação, e inclinou o descida da costa com um gesto tranqüilizador.

        Enquanto se inclinava para arrancar um grosso nó de um tronco brando e podre, perguntou-se quais eram as possibilidades. Fraser era corpulento e muito saudável. Sobreviveria, sem dúvida.

        Mas havia quem morria por mordidas de serpente, e ocorria com certa freqüência.

        Não podia deixar de olhar para a costa, cada poucos minutos; sentia uma pequena pontada de alarme cada vez que Fraser ficava fora de sua vista. E se se derrubava antes de sua volta?

        Mas se tranqüilizou um pouco ao recordar algo. Não, tudo estava bem. Jamie não morreria essa noite, nem pela mordida da serpente nem por frio. Não era possível; estava destinado a morrer em um incêndio dentro de alguns anos. Por uma vez, a fatalidade futura representava tranqüilidade no presente. Respirou fundo e deixou escapar o ar com alívio. Logo reuniu valor para aproximar-se da serpente.

        Embora estava morta, teve que fazer um esforço de vontade para recolhê-la. Era tão grosa como sua boneca e media perto de um metro vinte. Jamie a esfolou enquanto ele acendia o fogo. Pela extremidade do olho viu que seu sogro estava extrañamente torpe; o intumescimento de suas mãos devia ter piorado. Mesmo assim trabalhava com empecinamiento: cortou a serpente e, com dedos trêmulos, trespassou as partes de pálida carne crua em uma ramilla ao meio cortar.

        Terminada a tarefa, Jamie estendeu o pau para a fogueira, mas esteve a ponto de que lhe caísse. Roger conseguiu sujeitá-lo e, através da ramilla, percebeu o tremor que lhe sacudia a mão e o braço.

        -Está bem? –disse. E lhe tocou a frente.

        Fraser se tornou para trás, em ofendida surpresa.

        -Sim –disse. Mas logo fez uma pausa-. Em realidade... sinto-me algo estranho –admitiu.

        -Te deite um momento, quer? –sugeriu, tratando de mostrar-se despreocupado-. Se puder, dorme. Já despertarei quando a comida esteja preparada.

        A carne da serpente gotejava, lhe vaiem. Pese ao leve desgosto que lhe provocava a idéia de comer-lhe Roger sentiu que o estômago lhe ressonava.

        Obscureceu por completo antes de que a carne estivesse cozida. Roger foi procurar água; logo amontoou braçadas de ferva secas e lenha no fogo, até que as chamas crepitaram mais altas que ele; se os outros homens se encontravam em um rádio de um quilômetro e médio não deixariam das ver.

        Fraser se incorporou dificultosamente para comer.

        -Os índios faziam algo contra as mordidas de serpente?

        -Sim –respondeu Roger, cauteloso-. Tinham raízes e ervas que mesclavam com esterco ou cereais quentes para fazer cataplasmas.

        -E resultava? –Fraser sustentava uma parte de carne na mão queda, como se estivesse muito exausto para levar-lhe à boca.

        -Vi-o fazer só duas vezes. Em uma ocasião pareceu dar resultado. Não houve inchaço nem dor; ao anoitecer de mesmo dia a menina estava bem. Na outra ocasião... não resultou. E em sua época, o que fariam?

        -Te aplicar uma injeção de um pouco chamado soro antiofídico.

        -Uma injeção? –Jamie não parecia entusiasmado-. Claire me fez isso uma vez. Eu não gostei de nada.

        -Mas serve?

        Seu sogro respondeu sozinho com um grunhido.

        em que pese a sua preocupação, Roger devorou sua ração e também o que Jamie deixou da sua. Fraser se tinha tirado a camisa de caçador, a pesar do frio, e permanecia sentado, com os olhos fechados, oscilando um pouco. Roger se sentou em cuclillas a seu lado para lhe tocar o braço. Deus Santo, estava ardendo!

        Mas abriu os olhos com um leve sorriso. O jovem lhe ofereceu uma taça de água, que ele aceitou com mão torpe. Por debaixo do joelho, sua perna estava grotescamente tumefacta, quase até o dobro de seu tamanho normal.

        Roger se perguntou, inquieto, se podia estar equivocado em sua convicção de que o passado não se pode trocar; nesse caso, o momento e a maneira em que Fraser morreria estava fixada; seria dentro de uns quatro anos. Sem essa certeza, o aspecto do Jamie era muito preocupem-se. E até que ponto estava convencido, ao fim e ao cabo?

        -Poderia estar equivocado. –Jamie tinha deixado a taça e o olhava com serenos olhos azuis.

        -Sobre o que? –perguntou ele, sobressaltado para ouvir seus pensamentos expressos em voz alta. Acaso tinha falado em murmúrios sem dar-se conta?

        -Sobre a mudança. Você dizia que não era possível trocar a história. E se te equivoca?

        Roger foi atiçar o fogo.

        -Não me equivoco –assegurou, tanto para si como para o Fraser-. Pensa, homem. Você e Claire trataram de deter o Carlos Estuardo, de trocar o que fez... e não puderam. Não se pode.

        -Isso não é de tudo certo –objetou Fraser.

        -por que não?

        -É certo que não pudemos evitar a sublevação... mas isso não dependia só de nós e dele: habia muita outra gente relacionada. Os chefes que o seguiam, esses malditos irlandeses que o adulavam... e até o Luis. Ele e seu ouro. –Agitou uma mão para descartar o tema-. Mas isso não tem nada que ver. Diz que Claire e eu não pudemos detê-los. E é certo: não pudemos deter o começo. Mas poderíamos ter impedido o final.

        -Refere ao Culloden? –Roger, com a vista cravada no fogo, recordou vagamente aquele dia longínquo em que Claire lhes tinha contado, a ele e a Brianna, a história das pedras... e do Jamie Fraser. Sim: ela tinha falado de uma última oportunidade para impedir a matança final dos clãs...

        -Se matavam ao Carlos Estuardo...

        -Sim. Se o tivéssemos feito... mas nem ela nem eu pudemos nos decidir. –Tinha os olhos quase fechados, mas moveu a cabeça, inquieto, obviamente incômodo-. Muitas vezes me perguntei se foi por decência... ou por covardia.

        -Ou possivelmente por outra coisa –apontou Roger, abruptamente-. Não se sabe. Se Claire tivesse tratado de envenená-lo, arrumado a que teria acontecido algo: talvez se teria cansado o prato, o teria comido o cão ou teria morrido outro em seu lugar. As coisas não teriam trocado!

        Fraser abriu lentamente os olhos.

        -Assim que você pensa que tudo está predeterminado, né? O que o homem não tem livre-arbítrio? –esfregou-se a boca com o dorso da mão-. E quando decidiu retornar em busca da Brianna, e logo outra vez a por ela e o pequeno, não foi por livre decisão? Estava destinado a fazê-lo?

        -Eu... –Roger se interrompeu, com os punhos apertados contra as coxas. de repente, por cima do aroma de lenha queimada, parecia elevar-se o das águas do quilha do Gloriana. Logo se relaxou com uma breve risada-. Mau momento para ficar filosófico, não te parece?

        -Pois sim –aceitou Fraser, em voz baixa-. Só que talvez não tenha outro. –E prosseguiu antes de que Roger pudesse responder-: Se não haver livre-arbítrio... tampouco pecou nem redenção verdade?

        -Jesus! –murmurou Roger, apartando o cabelo da frente-. Saio com Olho de Águia e acabo sentado sob uma árvore com o Agustín da Hipona!

        Jamie não fez conta, absorto no seu.

        -Claire e eu escolhemos não matar. Não quisemos derramar o sangue de um homem. Mas o sangue do Culloden não cai assim sobre nós? Não quisemos cometer o pecado, e mesmo assim o pecado veio por nós?

        -É obvio que não. –Roger ficou de pé, nervoso, e foi atiçar o fogo-. O que aconteceu no Culloden não foi sua culpa. Como podia sê-lo? Todos os que tomaram parte nisso, Murria, Cumberland, todos os chefes... Não foi obra de um só homem!

        -Crie que tudo está determinado? Estamos condenados ou salvos do momento de nascer, sem que nada possa trocá-lo? E é filho de um pregador! –Fraser riu entre dentes.

        -Sim –afirmou Roger. sentia-se de uma vez torpe e inexplicavelmente zangado-. Quer dizer, não, não é isso o que acredito. Só que... pois... se algo já aconteceu que uma maneira, como poderia acontecer de outra?

        -Só você crie que aconteceu –apontou Fraser.

        -Não acredito. Sei!

        Hum. Sim, porque vem do outro lado do assunto; tem-no atrás. E se acaso você não pode trocar algo, mas eu sim, porque para mim ainda está para diante?

        Roger se esfregou com força a cara.

        -Isso não tie... –Mas se interrompeu. Como dizer que não tinha sentido? Às vezes pensava que nada no mundo tinha já sentido-. Possivelmente –reconheceu, cansado-. Deus sabe; eu não.

        -Sim. Pois bem, suponho que o averiguaremos muito em breve.

        Roger o olhou com aspereza ao perceber uma nota estranha em sua voz.

        -O que quer dizer com isso?

        -Você crie saber que morri dentro de três anos –disse Fraser, com clama-. Se morrer esta noite será porque está equivocado, não? O que crie que aconteceu não terá acontecido; por ende, o passado se pode trocar, sim?

        -Não vais morrer! –espetou-lhe Roger.

        -Alegra-me ouvi-lo. Mas agora eu gostaria de beber um poquito desse uísque. Tira a cortiça, quer? Com estes dedos não poderei sujeitá-lo.

        Entregou a cigarreira a seu sogro para que bebesse.

        -Te deite –resmungou, quando Jamie teve terminado-. Vou a por mais lenha.

        Não podia estar-se quieto; embora tinha um montão de lenha à mão, vagou pela escuridão, sempre à vista do fogo.

        Tinha passado muitas noites como essa. Noites nas que tinha lutado com as alternativas, muito inquieto para tender-se em um cômodo leito de folhagem, tão atormentado que não podia dormir.

        As opções eram claras, mas nada fáceis de escolher. Por uma parte, Brianna e tudo o que a acompanhava; o amor e o perigo, a dúvida e o medo. Por outra. A seguridd de saber quem e o que era ele, certeza a que tinha renunciado pela mulher que era sua esposa... e o menino que podia ser seu filho.

        Tinha escolhido. Por si mesmo, sem que nada o obrigasse. Assim como tinha escolhido beijar ao Morag. Torceu a boca ao pensá-lo, pois então não tinha idéia alguma das conseqüências dessa pequena ação.

        Do bosque, detrás dele, surgiu um ruído; lhe arrepiou o cabelo da nuca antes de reconhecê-lo; não era risada, como tinha acreditado no princípio, a não ser o grito longínquo de um jaguar.

        Levantou-se para rodear silenciosamente a fogueira, olhando para as sombras. Fraser estava tendido na escuridão, muito quieto. As manchas lhe tinham estendido à cara. Roger notou que suas facções tinham um aspecto congestionado; pálpebras e lábios estavam algo tumefactos. À luz vacilante resultava impossível saber se respirava ainda.

        Ajoelhou-se para sacudi-lo com força.

        -Ouça! Está vivo? –Quis dizê-lo em tom de brincadeira, mas o medo era evidente em sua voz.

        Fraser não se moveu. Logo abriu lentamente um olho.

        -Sim –murmurou-. Mas não é um prazer.

        Roger não voltou a deixá-lo. Limpou-lhe a cara com um pano molhado e lhe ofereceu mais uísque, que ele rechaçou. Logo tomou assento junto à silhueta tendida, atento a cada fôlego.

        Jamie trocou de posição e o movimento lhe arrancou uma queixa. Roger o acalmou lhe apoiando uma mão no ombro.

        ‘Não vá”, pensou; as palavras não sortes eram uma bola dura em sua garganta. “Fica conosco. Fica comigo.”

        Passou comprido tempo ali, com a mão apoiada no ombro do Fraser. Tinha a absurda idéia de que isso equivalia a sujeitá-lo, a mantê-lo ancorado à terra. Se o sujeitava até o amanhecer todo estaria bem; se retirava a mão todo teria terminado. O fogo se ia consumindo, mas ele adiava a necessidade de atendê-lo para não soltar ao Jamie.

        -MacKenzie? –Foi só um murmúrio, mas ele se inclinou imediatamente.

        -Sim. Aqui estou. Quer água? Uma gota de uísque?

        Alargou a mão para a taça, derramando água em seu nervosismo. Fraser bebeu dois goles e a apartou com um gesto.

        -Não sei se estiver no certo ou não –disse. Sua voz soava rouca, mas clara-. Mas se te equivoca e morro, pequeno Roger, há coisas que devo te dizer. Não quero deixá-lo para quando for muito tarde.

        -Aqui estou –repetiu ele, sem saber o que outra coisa dizer.

        -Bonnet. Devo te dizer o que tenho em marcha.

        -Sim? –Pela primeira vez o jovem sentia algo mais que preocupação por seu sogro.

        -Há um homem chamado Lyon; Duncan Innes te dirá como encontrá-lo. Trabalhava na costa; compra a quão contrabandistas operam nos bancos exteriores. Durante as bodas me buscou para me propor um negócio com o uísque.

        O plano era bastante simples. Jamie queria enviar aviso a esse tal Lyon para lhe informar de que estava disposto a comercializar com ele, sempre que se reunisse com ele trazendo para o Stephen Bonnet, como prova de que tinha um homem com a reputação e a habilidade necessária para dirigir o transporte ao longo da costa.

        -A reputação necessária –replicou Roger, pelo baixo-. Tem-na, sim.

        -Não o aceitará com tanta facilidade; quererá impor suas condições, mas acabará por acessar. lhe diga que tem suficiente uísque como para que valha a pena. lhe dê um tonel de dois anos para que prove, se for preciso. Quando vir o que a gente está disposta a pagar por isso, aceitará com gosto. O lugar...

        Interrompeu-se, com a frente enrugada, e respirou um par de vezes antes de continuar.

        -Eu pensava que fora no Wylie’s Landing, mas se deve ir você, escolhe um lugar de seu agrado. Leva aos Lindsay para que lhe cubram as costas, se quiserem. Se não, procura a outro, mas não vá sozinho. E vê disposto a matá-lo ao primeiro disparo.

        Roger assentiu, tragando saliva com dificuldade.

        -Não deixe que te aproxime tanto como para te alcançar com a espada –disse-. aprendeste, mas não o suficiente para te enfrentar ao Bonnet.

        -E você sim? –disse Roger, sem poder conter-se.

        -OH!, sim –disse seu sogro, em voz baixa-. Se sobreviver. –Logo, com um ataque de tosse, levantou a mão para descartar momentaneamente ao Bonnet-. Quanto ao resto... vigia ao Sinclair. É um homem para utilizar, pois sabe tudo o que acontece no distrito, mas jamais lhe dê as costas.

        Fez uma pausa para pensar, carrancudo.

        -Pode confiar no Duncan Innes e no Farquard Campbell –disse-. E no Fergus. Fergus te ajudará, se puder. Quanto ao resto... –Voltou a trocar de posição, com outra careta-. Te cuide do Obadiah Hendersonl te porá a prova. Muitos o farão; deixa-os... mas ao Henderson não. te enfrente a ele à primeira oportunidade; não terá outra.

        A voz do Fraser se apagou, já afônica. Teria perdido a consciência? O ombro no que Roger apoiava a mão estava lasso, inerte. Não se atreveu a mover-se.

        de repente Fraser contraiu uma mão. Tinha os dedos inchados como embutidos e a pele, vermelha e brilhante. Roger a cobriu com a mão livre e sentiu que os dedos se moviam, tratando de agarrá-la.

        -Lhe diga a Brianna que estou orgulhoso dela –sussurrou Jamie-. Que minha espada seja para o pequeno.

        O jovem assentiu com a cabeça, sem poder falar. Logo caiu na conta d que Jamie não podia vê-lo e pigarreou.

        -Sim. O direi.

        Esperou um momento, mas Fraser não disse nada mais. O fogo estava quase consumido, mas a mão que sustentava queimava como as brasas. Uma rajada de ar passou como uma navalhada, lhe agitando o cabelo contra a bochecha, e arrancou do fogo uma súbita chuva de faíscas.

        Aguardou tanto como lhe pareceu prudente, enquanto a fria noite se escorria em solitários minutos. Logo se inclinou para fazer-se ouvir.

        -E ao Claire? –perguntou em voz baixa-. Quer que lhe diga algo?

        Temeu ter esperado em excesso, pois Fraser permaneceu imóvel vários minutos mais. Logo a manaza se agitou, fechando pela metade os dedos inchados; foi o fantasma de um gesto, para agarrar o tempo que lhe escapava.

        -Lhe diga... que ia a sério.

 

- Não vi nada igual em minha vida.- Inclinei-me um pouco mais para olhar- . É muito estranho.

- Isso que te aconteceste meia vida como curandeira- murmurou Jamie, vexado- . Não me diga que em sua época não há serpentes.

- No centro de Boston não, não muitas.

        Apoiei cautelosamente uma mão no tornozelo. A pele estava torcida, quente e seca. E vermelha. A cara, as orelhas e o pescoço também tinham a cor de um tomate amadurecido; só tinha escapado a pele clara do peito, mas até ali tinha pontos vermelhos.

- Parece assado a fogo lento- comentei com fascinação, esfregando o sarpullido- . Nunca tinha visto algo tão vermelho.

- Não acredito que esteja em condições de criticar, Sassenach- comentou ele, cravando os olhos em meus dedos, manchados de amarelo e azul.

- OH, maldita seja…!- Levantei-me de um salto e, depois de cobri-lo apressadamente com os edredons, corri para a porta. Distraída pela dramática chegada do Jamie, tinha deixado sem atenção, no pátio, uma tina cheia de roupa em tintura… e com pouca água. Se se consumia de tudo e a roupa se queimava…

        Assim que saí me golpeou na cara um forte fedor a urina e a anil. em que pese a tudo respirei com profundo alívio ao ver ali ao Marsali, vermelha pelo esforço de levantar da tina uma massa lhe jorrem, utilizando a grande forquilha de madeira. Apressei-me a ajudá-la, agarrando uma a una os objetos fumegantes do montão para as tender a secar nas matas de amora.

- Graças a Deus. Disse, agitando no ar os dedos escaldados para refrescá-los- . Tinha medo de ter arruinado tudo.

- Pois… possivelmente fiquem um pouco escuras.- Marsali se passou uma mão pela cara para retirar os finos fios loiros que tinham escapado do lenço- . Mas se o tempo segue bom pode as deixar ao sol para que se decoloren. Anda, vamos tirar a tina antes de que se chamusque!

        As crostas de anil começavam a rachar-se e enegrecer no fundo do recipiente: Quando o retiramos do fogo nos rodeou uma nuvem de homo acre.

- Não aconteceu nada- disse Marsali, entre tosses e abanicándose com a mão- . Deixa, mamãe Claire, que irei a por água para que se encharque. Você tem que cuidar de papai, verdade? baixei assim que me inteirei. Está muito mal?

- OH!, obrigado, querida. Acredito que se reporá- assegurei-lhe, dissimulando meus próprios temores- . Encontra-se muito mal e o vê ainda pior. Em toda minha vida não tinha visto nada assim. Mas se a ferida não se infecta…

- Ah!, sairá adiante- disse Marsali, confiada- . Fergus diz que quando os encontraram, a ele e ao Roger MAC, parecia morto, mas quando cruzaram a segunda colina já estava fazendo umas brincadeiras terríveis sobre a serpente.

        Por minha parte, depois de ter visto o estado de sua perna ferida, não era tão otimista, mas sorri para tranqüilizá-la.

- Sim, acredito que ficará bem. vou preparar um cataplasma de cebola e a limpar um pouco a ferida. vá ver o enquanto vou procurar as cebolas, quer?

        Por sorte havia cebolas de sobra. Arranquei seis das grandes e as levei a cozinha para as cortar em rodelas.

- Deixe, a leannan, eu me encarregarei disso.- A senhora Bug me tirou a faca da mão e cortou energicamente as cebolas- . É para um cataplasma? Sim, isso. Com um bom cataplasma de cebola se cura algo.- Mas jogou para a consulta um olhar cheia de preocupação.

- Posso ajudar, mamãe?- Bree vinha do corredor, também preocupada- . Papai parece um espanto. Está bem?

        Apartei-me o cabelo da cara com o dorso da mão; os olhos me jorravam pelas cebolas.

- Acredito que sim.- Sorvi pelo nariz enquanto me secava os olhos- . E Roger?

- Roger está bem.

        Percebi a pequena nota de orgulho em sua voz; Jamie lhe havia dito que seu marido lhe tinha salvado a vida.

- Dorme- acrescentou- . Necessita algo, mamãe?

- Sim. Pode me buscar algumas cresas? Necessito-as para a perna do Jamie.- Joguei uma olhada carrancuda ao luminoso dia outonal- . Temo-me que a geada matou a todas as moscas; faz dias que não vejo nenhuma. Mas pode procurar no curral; põem seus ovos no esterco quente.

        Pus as rodelas de cebola em uma terrina de cabaça e verti sobre elas um pouco de água quente. Enquanto se coziam voltei para a clínica. No centro da habitação havia uma robusta mesa de pinheiro, que oficiava de uma vez de maca, poltrona de dentista, encimera para preparar drogas ou mesa auxiliar no comilão, segundo as exigências médicas e o número de convidados para jantar. Nesse momento sustentava a silhueta supina do Jamie, apenas visível sob o montão de edredons e mantas. Marsali estava a um lado, com a cabeça inclinada para ele, e lhe dava uma taça de água.

- Seriamente está bem, papai?- disse.

- Pois claro que sim.- Na voz do Jamie percebi uma intensa fadiga, mas uma mão enorme saiu de entre os edredons para lhe tocar a bochecha- . Fergus fez um trabalho estupendo. Manteve ao grupo unido ao longo de toda a noite, pela manhã nos encontrou e nos trouxe para todos sãs e salvos através da montanha. Tem um bom sentido da orientação.

        Marsali manteve a cabeça inclinada, mas sua bochecha se curvou em um sorriso.

- Isso lhe disse. Mas não se perdoa por ter permitido que as bestas escapassem. Diz que teria bastado uma só para alimentar a toda a Colina durante o inverno.

        Jamie desprezou o assunto com um grunhido.

- Bom, já nos arrumaremos.

        Era óbvio que lhe custava falar, mas não quis afastar ao Marsali. A presença de sua filha podia distrair o de sua miséria.

        Abri o armário sem fazer ruído, em busca da grande terrina coberta onde guardava as sanguessugas. Tinha dez ou doze das grandes. Retirei três para as pôr em uma tigela de água limpa, que pus a enfraquecer junto ao braseiro.

        Enquanto dispunha as outras coisas necessárias, escutava os murmúrios coloquiais a minhas costas: Germain, a pequena Joan, um puercoespín nas árvores, perto da cabana do Marsali e Fergus.

        Gaze para a compressa de algodão, a garrafa de álcool e água esterilizada, os recipientes de pedra que continham hidrastis, equinácea e cânfora. E a garrafa com o caldo de penicilina. Ao olhar a etiqueta amaldiçoei para meus adentros: tinha quase um mês; entre a caçada do urso e as tarefas do outono, nas últimas semanas não tinha tido tempo para fazer um cultivo fresco.

        Teria que usar esse. Com os lábios apertados, esmiucei as ervas secas entre as mãos, as deixando cair na taça de madeira de haja.

- As abacaxis cortadas que encontra no estou acostumado a são frescas?- perguntou Jamie. O puercoespín parecia lhe interessar um pouco mais que o novo dente do Joan.

- Sim, verde e fresco. Estou segura de que anda por ali acima, o condenado, mas essa árvore é imensa e de abaixo não o vê. lhe disparar é impossível.

        A pontaria do Marsali era medíocre, mas como Fergus não podia disparar o mosquete com uma só mão, era ela quem caçava para alimentar à família.

- Hum…- Jamie pigarreou com esforço e ela se apressou a lhe dar mais água- . Esfrega um pau com charque de porco e ponha no chão, não muito longe do tronco. Logo, que Fergus se sente a vigiar. Aos puercoespines adoram o sal e a graxa; quando as cheiram se arriscam a descer na escuridão. Uma vez em terra, não precisa esbanjar balas. Basta golpeando-os na cabeça. Fergus pode fazê-lo perfeitamente.

        Ao abrir o cofre de meus instrumentos médicos franzi o cenho ante a bandeja que continha os serrotes e os escalpelos. Escolhi um bisturi pequeno, de folha curva; senti a manga fria sob os dedos. Teria que limpar a ferida, retirando a malha morta, os farrapos de pele e os trocitos de folhas, tecido e pó, pois os homens lhe haviam talher a perna com barro e uma vendagem feita com um sujo lenço de pescoço. Logo poderia molhar as superfícies expostas com solução de penicilina. Oxalá servisse de algo.

- Seria estupendo- disse Marsali, com certa melancolia- . Nunca cacei esse tipo de animais, mas Ian me há dito que estão ricos; são muito gordos. Além disso, as puas servem para costurar e para muitas outras coisas.

        Mordi-me os lábios ao ver os outros instrumentos. O maior era um serrote dobradiça para amputações de urgência, e a idéia de utilizá-lo agora fez brotar um suor frio sob meus braços.

- A carne é graxa- disse Jamie- , mas rica…

        Interrompeu-se abruptamente para trocar de posição com uma queixa afogada.

        Em meus braços e em minhas mãos sentia já cada passado do processo de amputação: a tensão de cortar a pele e o músculo, o chiar do osso, a chicotada dos tendões, os copos escorregadios, pegajoso, sangrantes, que se escorriam dentro da carne atalho como… serpentes.

- Necessita carne graxa. Está muito magra, a muirninn- disse Jamie pelo baixo, a minhas costas- . Muito magra para estar gerando.

        Dava-me a volta, amaldiçoando outra vez para meus adentros. Tinha-me parecido, mas tinha a esperança de me equivocar. Três bebês em quatro anos! E com um marido maneta, que não podia fazer o trabalho rude do imóvel e não queria ocupar-se do que sim podia fazer, como cuidar dos bebês e fermentar o malte, porque eram “ coisas de mulheres” .

        Marsali lançou uma mescla de risada e soluço.

- Como sabe? Não o hei dito sequer ao Fergus.

- Pois deveria… embora ele já sabe.

- Há-lhe isso dito?

- Não… mas durante a caçada me pareceu que seus transtornos não eram uma simples indigestão. Agora, ao verte, soube que era isto.

        As sanguessugas começavam a mover-se, estirando lentamente os corpos como bandas elásticas animadas. Apartei o edredom que cobria a perna do Jamie e pressionei brandamente aqueles parasitas contra a carne tumefacta, ao redor da ferida.

        Analisei a situação, com a frente crispada e me mordendo os lábios. Não sabia que classe de serpente o tinha mordido, mas era óbvio que tinha uma potente toxina hemolítica. Jamie tinha o corpo coberto de capilares arrebentados e sangrantes, tão externos como internos; perto da ferida eram maiores.

        O pé e o tornozelo da perna mordida estavam ainda quentes e avermelhados; melhor dizendo, vermelhos. Esse era bom sinal, pois significava que a circulação profunda permanecia intacta. O problema era melhorar a circulação perto da ferida, o suficiente para evitar a morte maciça das malhas. Mas essas nervuras vermelhas me tinham muito preocupada; podiam ser só parte do processo hemorrágico, mas mais provavelmente eram os primeiros signos da septicemia: envenenamento do sangue.

        Olhei-o entreabrindo os olhos. Estava talher de edredons, tão doente que logo que podia mover-se, mas mesmo assim as linhas de seu corpo eram elegantes e prometiam força. A idéia de me mutilá-lo era insuportável… mas o faria, se era preciso. Deixar aleijado ao Jamie, privar o de um membro… Ao pensá-lome contraía o estômago e me suavam as mãos manchadas de azul.

        Aceitaria-o ele mesmo?

        Agarrei a taça de água do Jamie e me bebi isso inteira. Não pensava perguntar-lhe Ele tinha direito a escolher, mas era meu e eu tinha decidido. Não renunciaria a ele, sem que importasse o que fora preciso fazer para conservá-lo.

- De verá se sente bem, papai?- Marsali me tinha estado observando. Seus olhos foram do Jamie a mim, assustados. Apressei a reacomodar minhas facções em uma expressão de confiança.

        Jamie também me estava observando. Torceu o gesto para cima.

- Pois sim, isso acreditava eu. Mas agora não estou tão seguro.

- O que acontece? Sente-se pior?- perguntei, ansiosa.

- Não, sinto-me bem- assegurou-me, embora era uma mentira descarada- . Solo que quando me machuco, sempre que não há perigo, arreganha-me como uma arpía. Mas quando estou desesperadamente mal fica tenra como o leite. E esta vez não me há dito costure feias, nenhuma palavra de recriminação, desde que cheguei a casa, Sassenach. Significa isso que vou morrer?

        Tinha uma sobrancelha arqueada em gesto de ironia, mas em seus olhos detectei um sotaque de autêntica preocupação. Agarrei fôlego e lhe apoiei as mãos nos ombros.

- Condenado estúpido! Olhe que pisar em uma serpente! Não podia olhar onde punha o pé?

- Não, pois ia costa abaixo, seguindo a mil toneladas de carne- replicou ele, sorridente.

        Senti uma pequena relaxação muscular sob a mão. Tive que reprimir o impulso de lhe devolver o sorriso. Em troca lhe cravei um olhar fulminante.

- Pois me deste um susto de mil demônios!

- E crie que eu não me assustei?

- Não está autorizado- assinalei com firmeza- . Só podemos nos assustar de um em um. E este é meu turno.

        Isso o fez rir, mas à risada seguiu um ataque de tosse e um forte calafrio.

- me traga uma pedra quente para seus pés- ordenei ao Marsali, enquanto o agasalhava apressadamente com os edredons- . E também uma bule cheia de água fervendo.

        Ela voou para a cozinha. Eu joguei uma olhada à janela, me perguntando se Brianna teria tido sorte em sua busca de cresas. Eram insuperáveis para limpar feridas supurantes sem causar danos nas malhas sões.

        Enquanto pensava isso levantei o bordo do edredom para jogar uma olhada a meus outros assistentes invertebrados. Lancei um pequeno suspiro de alívio. As sanguessugas operavam depressa; já tinham começado a inchar-se com o sangue acumulado nas malhas da perna, proveniente dos capilares quebrados. Sem essa pressão, talvez recuperasse uma circulação saudável, a tempo para manter vivos os músculos e a pele.

        Vi sua mão obstinada ao bordo da mesa; seus calafrios piavam a minhas coxas, pressionados contra a madeira. Agarrei-lhe a cabeça entre as mãos; suas bochechas queimavam.

- Não vais morrer!- vaiei- . De maneira nenhuma! Não lhe permitirei isso!- E lhe aproximei a taça de penicilina aos lábios para que bebesse.

        Marsali havia trazido a bule cheia de água fervendo. Verti a maior parte nas ervas que tinha preparadas e, enquanto repousavam, servi-lhe uma taça de água fresca para lhe tirar o sabor da penicilina. Ele tragou novamente, com os olhos ainda fechados, e se recostou contra o travesseiro.

- O que é isso?- perguntou- . Tem sabor de ferro.

- Água. Tudo te tem sabor de ferro; sangram-lhe as gengivas.- Dava- a jarra vazia ao Marsali para que trouxesse mais- . Lhe ponha mel- disse- . Uma parte de mel por cada quatro de água.

- O que precisa é chá de carne- disse ela, observando-o com a frente crispada- . Isso haveria dito minha mamãe. E minha avó. Quando alguém perdeu muito sangue não há como o chá de carne.

        Me ocorreu que Marsali devia estar gravemente preocupada, pois estranha vez mencionava a sua mãe diante de mim, graças a seu natural sentido do tato. Não obstante, por uma vez a maldita Laoghaire estava no certo; o chá de carne teria sido excelente… se tivéssemos tido carne fresca. E não tínhamos.

- Água com mel- disse brevemente. E a joguei da habitação.

        Enquanto ia em busca de reforços para as sanguessugas, detive-me olhar pela janela, para ver o que tinha conseguido Brianna.

        Estava no curral, descalça e com as saias recolhidas por cima do joelho, sacudindo o esterco de um pé.

Isso significava que até o momento não tinha tido sorte. À lombriga na janela agitou a mão. Logo, assinalou a tocha e o limite do bosque. Fiz-lhe um gesto de assentimento; possivelmente um tronco podre oferecesse alguma possibilidade.

        Jemmy estava no chão, a pouca distância, com as andaderas a perto do curral. Já não as necessitava para manter-se em pé, por certo, mas serviam para impedir que escapasse enquanto sua mãe estava atarefada.

        Um ruído me fez girar em redondo; Jamie voltava lentamente para seu ninho de edredons, com o aspecto de um grande preguiçoso carmesim, com meu serrote para amputações em uma mão.

- Que diabos faz?

        Deitou-se devagar, entre caretas de dor e respirando em compridos ofegos. Logo apertou contra o peito o serrote dobrado.

        Levantou o instrumento um par de centímetros.

- Não- disse categoricamente- . Sei o que pensa, Sassenach, e não lhe permitirei isso.

- Sabe que não o faria se não fora absolutamente necessário.

- Não- disse uma vez mais, me olhando com sua familiar obstinação.

- Não sabe o que poderia acontecer…

- Sei melhor que você o que está acontecendo com minha perna, Sassenach- interrompeu-me. Fez uma pausa para respirar um pouco mais- . Não me importa.

- Pode que a ti não, mas a mim sim.

- Não vou morrer- assegurou- . E não quero viver com meia perna. Horroriza-me.

- Pois tampouco eu gosto de muito pensá-lo. Mas e se for preciso escolher entre sua perna e sua vida?

- Não é preciso.

- Poderia sê-lo!

- Não será assim.

- De acordo- disse, com os dentes apertados- . Me dê essa intriga para que o guarde.

- Quero sua palavra. Pode que a febre me faça perder a consciência. E não quero que me corte a perna se não estar em condições de impedi-lo.

- Se chegar a esse estado não terei alternativa!

- Talvez você não- replicou sem alterar-se- , mas eu sim. Decidi-o. me dê sua palavra, Sassenach.

- Me indigna que seja tão impossivelmente…!

        Um alarido fora me impediu de continuar. Voltava-me para a janela, a tempo para que Marsali deixava cair dois cubos cheios ao chão. A água lhe empapou a saia e os sapatos sem que ela emprestasse atenção. Ao seguir a direção de seu olhar afoguei um grito.

        Tinha cruzado a perto do curral sem problemas, rompendo os paus como se fossem fósforos, e agora estava entre as aboboreiras que cresciam junto à casa, mascando as trepadeiras. Era enorme, bruno e lanzudo. E Jemmy, a três metros escassos, olhava-o com os olhos muito redondos e a boca aberta.

        Marsali lançou outro chiado. Jemmy, contagiado por seu terror, começou a gritar chamando a sua mãe. Com a sensação de me mover a câmara lenta tirei o serrote ao Jamie e saí ao pátio. Enquanto baixava os degraus da entrada, Brianna saiu do bosque. Corria em silêncio, com a tocha na mão e a cara tensa, decidida.

        Elevou a tocha para trás em plena carreira e a descarregou em arco ao dar o último passo. Golpeou com todas suas forças, justo detrás das orelhas da enorme besta. Uma fina garoa de sangue foi salpicar as cabaças. O animal, com um bramido, baixou o testuz para lançar-se à carga.

        Bree se fez a um lado para esquivá-lo. Logo se lançou para o Jemmy. De joelhos junto a ele, atirou das correias que o sujeitavam a perto. Pela extremidade do olho vi que Marsali agarrava das sarças uma anágua recém tinta.

        Eu tinha desdobrado o serrote durante minha carreira. Com dois golpes cortei as correias do Jemmy e o levantei para cruzar novamente o pátio. Marsali tinha arrojado a anágua sobre a cabeça do bisão, que sacudia o testuz e se balançava de um lado a outro, desconcertado; o sangue parecia negra contra o verde amarelado do tingido recente.

        Deu um passo e outro. Cravei os dedos em sua lã para sujeitá-lo. Os tremores que lhe percorriam me sacudiram como um terremoto. Como em um sonho, segura do que fazia, deslizei uma mão sob os beiçudos babeantes; seu fôlego quente se meteu dentro de minha manga. O grande pulso pulsava no ângulo da mandíbula; visualizei-o em minha mente: o grande coração carnudo e o sangue que bombeava, cálida em minha mão, fria contra a bochecha, que se apertava à anágua empapada.

        Passei o serrote através do pescoço, cortando com força. Nas mãos, nos antebraços, senti a tensão de cortar a pele e o músculo, o chiar do osso, a chicotada dos tendões, os copos escorregadios, pegajosos, sangrantes, que se escorriam até perder-se.  

        O animal se voltou bruscamente e caiu com um golpe surdo.

        Quando voltei em mim estava sentada em metade do pátio, com uma mão ainda obstinada a seu cabelo; me tinha intumescido uma perna sob o peso da cabeça do bisão e tinha as saias pegas às coxas, fedorentos e empapadas de sangue.

        Alguém disse algo. Ao levantar a vista vi o Jamie a gatas nos degraus da entrada, boquiaberto e completamente nu. Marsali, sentada no chão, com as pernas estiradas para diante, abria e fechava a boca sem dizer nada.

        Brianna se inclinou para mim, com o Jemmy em braços.

- Está bem, mamãe?- perguntou Bree.

        Então caí na conta de que já me tinha perguntado isso várias vezes. Baixou uma mão para apoiá-la brandamente em minha cabeça.

- Não sei- disse- . Acredito que sim.

        Retirei trabalhosamente a perna e me pus de pé, me apoiando nela. Percorriam-na os mesmos tremores que tinham sacudido ao bisão; também a mim. Mas foram cessando. Agarrou fôlego e baixou a vista para a enorme cabeça de gado. Assim, tendida de lado, chegava-lhe quase à cintura. Marsali se reuniu conosco, movendo a cabeça com sobressalto.

- Santa Mãe de Deus, como faremos para carnear todo isso?- disse.

- Pois…- Passei-me uma mão trêmula pelo cabelo- . Suponho que nos arrumaremos isso.

 

        Apoiei a frente contra o frio cristal da janela de minha consulta, piscando ante a cena do pátio. As píceas se destacavam negras contra o resplendor moribundo, ao igual à forca levantada no centro do pátio e os horripilantes restos que pendiam dela. Perto das sarças se acendeu uma fogueira. As silhuetas dos que ali estavam corriam por toda parte, como se entrassem e saíssem entre as sombras e as chamas. Uns davam conta da cabeça de gado pendurada, com ajuda de facas e plainas; outros se retiravam a passo lento, com grandes partes de carne e cubos de graxa.

        Apesar da escuridão, distingui a silhueta alta e clara da Brianna entre a horda de demônios que atacavam o bisão. “ Mantendo a ordem” , disse-me.

        Assim que começaram a aparecer os homens, que vinham de suas casas ao meio vestir, sem barbear e com os olhos brilhantes de entusiasmo, ordenou serenamente que se cortassem madeiros para construir um armação capaz de içar e sustentar uma tonelada de carne. Em um princípio os homens, desgostados por não ter participado da matança, não lhe emprestaram muita atenção. Mas Brianna era alta, chamativa, falava com energia… e lhe sobrava empecinamiento.

- Quem tem feito esse corte?- interpelou, olhando de frente a Geordie Chisholm e a seus filhos, que se aproximavam da cabeça de gado com as facas na mão.

        depois de assinalar a profunda machadada na nuca, passou uma mão lenta pela manga, mostrando o sangue que a manchava.

- E esse?- Um pé descalço assinalou delicadamente o pescoço talhado e o atoleiro de sangue que se coagulava no pátio.

        Da janela vi que mais de uma cara se voltava para a casa, compreendendo ao fim que Brianna era a filha do Senhor, feito que os prudentes tinham muito em conta.

        Mas foi Roger quem trocou a direção da maré, com um olhar frio que pôs aos irmãos Lindsay atrás dele, tocha em mão.

- Ela o matou- disse, com seu grasnido rouco- . Façam o que manda.

        E quadrou os ombros; sua expressão dizia às claras que não haveria mais controvérsia. Ao ver isto Fergus, com um encolhimento de ombros, agachou-se para agarrar a besta pelo rabo.

- Onde quer você que a ponhamos, madame?- perguntou cortesmente.

        Todos os homens puseram-se a rir; logo, com olhadas tímidas e gestos de resignação, somaram-se a contra gosto ao trabalho, seguindo suas indicações.    

        Brianna tinha dirigido a seu marido um olhar de surpresa; logo, de gratidão. Finalmente se fez cargo de tudo o trabalho, com resultados notáveis. Logo que entardecia e o bisão já estava quase despiezado; sua carne, distribuída entre todas as famílias da Colina.

        Joguei uma olhada à mesa, onde Jamie seguia envolto em mantas. Teria querido que o levassem acima, a sua cama, mas ele insistiu em ficar abaixo, onde poderia ouvir o que acontecia.

- Quase terminaram que carnear- disse-lhe- . Brianna fez um trabalho estupendo.

- Seriamente?- Tinha os olhos entreabiertos, mas fixos com esse olhar febril, esse atordoamento empapado em sonhos em que as sombras se retorcem no ar ondulante do fogo.

        Já ficava muito pouco do bisão, salvo um montão de ossos despojados. Chegou-me um vago aroma de carne assada, a lenha queimada e a café. Imediatamente abri a janela de par em par, dando passo a esses apetitosos aromas.

- Tem fome, Jamie?- perguntei. Por minha parte estava faminta, embora não o tinha notado até cheirar a comida.

- Não- disse ele, sonolento- . Não quero nada.

- Deveria tomar um pouco de sopa, se puder, antes de dormir.

        Voltei-me para lhe apartar o cabelo da cara. O rubor se esfumou um pouco, ao parecer; era difícil assegurá-lo à luz incerta do fogo e a vela. Tínhamo-lhe dado aguamiel e chá de ervas em quantidade, de modo que já não tinha os olhos afundados pela desidratação, mas os ossos dos maçãs do rosto e as mandíbulas lhe sobressaíam. Levava mais de quarenta e oito horas sem comer e a febre estava consumindo uma enorme quantidade de energia, com o que esgotava suas malhas.

- Necessita mais água quente, senhora?- Lizzie apareceu no vão da porta, com o Jemmy nos braços.

- Não, Lizzie, obrigado. Tenho suficiente.

        Abriu-se a porta da casa, deixando entrar uma forte rajada que avivou as brasas do braseiro. Escutei ruído de pés descalços nas pranchas do corredor.

        Eu já tinha escutado com antecedência a expressão “ de sangue até as sobrancelhas” , mas semelhante coisa não se via freqüentemente, salvo no campo de batalha. As sobrancelhas da Brianna não eram visíveis, pois eram o bastante vermelhas para confundir-se com o sangue que lhe cobria a cara. Jemmy, depois de olhá-la bem, curvou a boca para baixo em expressão de dúbia inquietação, ao bordo de um grito.

- Sou eu, carinho- tranqüilizou-o ela.

        E alargou uma mão para o menino, mas se deteve antes de tocá-lo. Jemmy não rompeu a chorar, mas escondeu a cara contra o ombro do Lizzie.

        Brianna passou por cima de uma vez o rechaço de seu filho e o fato de que estava deixando por todos lados pisa de barro e sangue a partes iguais.

- Olhe- disse, alargando para mim o punho.

        Abriu os dedos em um gesto reverencial, para me mostrar seu tesouro: um punhado de diminutos vermes brancos se retorcia entre eles. Ao vê-los o coração me deu um tombo de entusiasmo.

- São dos bons?- perguntou ela, ofegante.

- Acredito que sim. me deixe ver.

        Apressei-me a pôr as folhas molhadas da infusão em um prato pequeno, para oferecer aos vermes um refúgio temporário. Brianna os colocou brandamente ali e pôs o prato na encimera, junto ao microscópio, como se contivera pó de ouro em vez de cresas. Agarrei um dos vermes com o bordo de uma unha para pô-lo em um portaobjeto. Fiz gestos ao Bree para que me aproximasse outra vela.

- Só uma boca e uma tripa- murmurei, inclinando o espelho para que refletisse a luz. Era muito tênue para trabalhar com o microscópio, mas talvez alcançasse neste caso- . Pequenos glutão.

        Contive o fôlego para olhar pelo frágil ocular, forçando a vista. As larvas da moscarda azul têm uma só linha visível no corpo; as larvas da mosca borriquera, dois. As linhas são tênues, invisíveis a simples vista, mas muito importantes. As cresas da moscarda azul comem carniça e só carniça: carne morta e em putrefação. Em troca, as larvas da mosca borriquera se cravam na carne viva, para consumir o músculo e o sangue do hóspede. Não era algo que eu queria inserir em uma ferida recente!

        Fechei um olho para que o outro se adaptasse às sombras móveis do ocular. O cilindro escuro do corpo se retorcia para todos lados ao mesmo tempo. Uma linha estava claramente à vista. Havia outra? Olhei até que me lacrimejou o olho. Mas não vi nenhuma outra. Então deixei escapar o fôlego que tinha contido até então, e me relaxei.

- Parabéns, papai- disse Brianna, aproximando-se do Jamie.

- Sim?- disse Jamie- . por que?

- Pelas cresas. São tua obra- explicou. E abriu a outra emano para mostrar uma parte de metal disforme. Era uma bala de rifle esmagada- . As cresas estavam em uma ferida que o bisão tinha nos quartos traseiros. Isto apareceu no buraco, detrás delas.

        Pus-se a rir, tanto de alívio como por diversão.

- Jamie! Disparou-lhe no culo?

- Não acreditava lhe haver dado- disse- . Só tentava desviar o rebanho para o Fergus.

- Talvez deva conservá-la como amuleto- disse Brianna; falava em tom ligeiro, mas havia um sulco entre seus invisíveis retrocede- . Ou para mordê-lo enquanto mamãe te cura a perna.

- Muito tarde- disse, com um débil sorriso.

        Só então viu ela a pequena correia de couro que ele tinha na mesinha, perto da cabeça, marcada com as profundas marcas de seus dentes. Olhou-me com espanto. Eu encolhi um ombro: tinha passado mais de uma hora lhe limpando a ferida da perna; não tinha sido fácil para nenhum dos dois.

        Esclareci-me garganta e voltei para as cresas. Pela extremidade do olho vi que Bree posava o dorso da mão contra a bochecha do Jamie. Ele girou a cabeça para lhe beijar os nódulos, sem emprestar atenção ao sangue.

- Não se preocupe, moça- disse-lhe. Sua voz era débil, mas firme- . Estou bem.

        Deixei cair as cresas em uma tigela de água esterilizada e as removi rápido antes das pôr novamente no leito de folhas úmidas.

- Não doerá- disse, tanto para tranqüilizar ao Jamie como a mim mesma.

- Já sim- replicou ele, com um cinismo impróprio nele- . Já sei disso.

- Em realidade, tem razão- manifestou uma voz suave e rouca a minhas costas.

        Roger já se lavou; tinha o cabelo molhado contra o pescoço da camisa e levava roupa limpa.

- Como está?- perguntou em voz baixa.

- Sairei adiante.

- Me alegro.

        Para minha surpresa, Roger lhe estreitou o ombro em um breve gesto de consolo. Era a primeira vez que o via fazer isso; uma vez mais me perguntei o que teria acontecido entre ambos na montanha.

- Marsali vai trazer te um pouco de caldo de carne- disse-me. E enrugou a frente ao me observar- . Conviria que você também bebesse um pouco.

- Boa idéia.- Fechei os olhos um instante, e respirei fundo.

        Só ao me sentar caí na conta de que estava em pé desde primeira hora da manhã.

- Bom, o tempo e a maré não esperam pelas cresas- disse, enquanto fazia um esforço por me levantar outra vez- . Será melhor que ponhamos mãos à obra.

        Jamie lançou um breve bufo e se estirou; logo, a contra gosto, relaxou o corpo para preparar-se. Observou-me com resignação enquanto eu preparava o prato de cresas e os fórceps; por fim alargou a mão para a correia.

- Não necessita isso- assegurou Roger; aproximou outro tamborete para sentar-se- . O que te há dito é certo: esses insetos não fazem mal.

        Jamie voltou a soprar. O jovem lhe sorriu de brinca a orelha.

- Isso sim: picam que é uma alegria, mas só se pensar nelas. Se lhe as estorvas da mente, não são nada.

- Que grande consolo me dá, MacKenzie.

        Não poderia ter sido mais fácil; simplesmente retirei o emplastro de cebolas e prendi as cresas, uma a uma, nos talhos ulcerados da pantorrilha. Roger se aproximou por detrás de mim para observar.

- Quase parece uma perna- disse, surpreso- . Não o esperava.

        Sorri sem olhá-lo, muito concentrada em minha delicada tarefa.

- As sanguessugas são muito efetivas- disse- . Fez uma porcaria com a faca, pró também foi útil; deixou buracos tão grandes que o pus e o fluido puderam drenar; isso ajudou.

        Era certo; embora a perna ainda estava quente e muito arroxeada, a tumefação tinha cedido notavelmente. Voltavam a ser visíveis a larga morna e o delicado arco do pé e o tornozelo. Eu não me fazia iluda: ainda havia perigo de infecção, gangrena e crostas, mas mesmo assim meu coração estava mais aliviado. Era, reconociblemente, a perna do Jamie.

        Pesquei outro verme por detrás da cabeça, cuidando de não esmagá-lo com o fórceps e retirei o bordo da pele com a magra sonda que tinha na outra mão, para inserir aquela diminuta lombriga nesse oco entre a pele.

- Preparado- disse um momento depois. E repus o cataplasma. Cebolas e alhos fervidos, envoltos em musselina e empapados em caldo de penicilina; assim a ferida se manteria úmida e seguiria drenando. Se a renovávamos cada hora, era de esperar que o calor do emplastro facilitasse também a circulação da perna. Logo, uma vendagem com mel, para evitar qualquer outra invasão bacterial.

        A simples concentração me tinha mantido as mãos firmes. Agora tudo parecia e só ficava esperar. O pires de folhas molhadas repicou contra a encimera.

        Não acreditava me haver sentido tão cansada em toda minha vida.

 

        Entre o Roger e o senhor Bug levaram ao Jamie a nosso dormitório. Eu teria preferido não mover essa perna com um traslado, mas ele insistiu.

- Não quero que durma no chão aqui embaixo, Sassenach- disse ante meus protestos, sonriéndome- . Deve estar em sua cama. E como não quererá me deixar sozinho, isso significa que eu também devo estar ali, não?

        Teria querido discutir, mas em realidade estava tão cansada que não me teria ficado muito se ele tivesse exigido que ambos dormíssemos no celeiro.

        Não obstante, minhas dúvidas retornaram assim que o tivemos instalado.

- Moverei-te a perna- aduzi, enquanto pendurava meu vestido em um dos cabides- . Será melhor que loja um jergón aqui, junto ao fogo, e…

- Nada disso- disse ele, decidido- . Dormirá comigo.

- Seria capaz de discutir até no leito de morte- protestei, chateada- . Não faz falta que esteja sempre ao leme, sabe?

        Ele abriu os olhos para me cravar um tenebroso olhar azul.

- Sassenach- disse brandamente.

- O que?

- Eu gostaria que me tocasse… sem me fazer danifico. Só uma vez antes de dormir. Incomodaria-te muito?

        Fiquei terrivelmente desconcertada ao cair na conta de que ele tinha razão. Apanhada na emergência, preocupada com seu estado, durante todo o dia só lhe tinha feito costure dolorosas e violentas. Marsali, Brianna, Roger, Jemmy… todos o haviam meio doido com doçura, lhe oferecendo solidariedade e consolo. Eu… eu estava tão aterrorizada pelo que podia acontecer, por isso podia lombriga obrigada a lhe fazer, que não me tinha concedido um oco para a ternura. Apartei a vista um momento, piscando até que as lágrimas retrocederam. Então me levantei para me aproximar da cama e o beijei com muito carinho.

- Quero que durma a meu lado, Sassenach- sussurrou.

- Está bem.- Sorri-lhe.

        Ajoelhei-me para sufocar o fogo e apaguei a vela. Depois deitei a seu lado, com suavidade, para não sacudir a cama. Ele estava de flanco, de costas a mim. Imitei a curva de seu corpo com o meu, cuidando de não tocá-lo.

        Sua respiração era artificial, mas estável; mantinha os ombros relaxados. Precisava descansar mais que nenhuma outra coisa. Mas ao mesmo tempo morria por tocá-lo. Queria comprovar que estava ali, vivo a meu lado…, precisava saber como estava.

        Tinha febre? A incipiente infecção da perna, tinha progredido, apesar da penicilina, pulverizando o veneno através do sangue?

        Movi a cabeça com cautela, até ter a cara a dois centímetros de suas costas, e aspirei lenta, profundamente. Sentia seu calor contra a cara, mas o tecido da camisa não me permitia calcular sua temperatura.

        Não havia aroma de pus. Era muito logo para perceber o da gangrena, até se a podridão estivesse começando, invisível sob as vendagens. Mas acreditava perceber um sotaque estranho sob sua pele, algo que nunca antes tinha percebido. Necrose das malhas? Algum subproduto do veneno ofídico? Deixei escapar o ar pelo nariz e inalei de novo, mais fundo.

- Empresto muito?- perguntou ele.

- Ai!- No coice me tinha mordido a língua. Ele se estremeceu apenas, por algo que tomei como risada contida.

- Parece um porco procurando trufas, Sassenach, de tanto como fareja aí detrás.

- Vá, vá- exclamei, um pouco ofendida. Toquei o ponto dolorido de minha língua- . Bom, ao menos está acordado. Como te encontra?

- Como um montão de tripas mofadas.

- Muito pitoresco. Poderia ser um pouco mais concreto?- Apoiei-lhe uma mão no flanco e ele deixou escapar o fôlego; soou como um pequeno gemido.

- Como um montão de tripas mofadas- repetiu, e se deteve para respirar com força- … com cresas.

- Seria capaz de brincar em seu leito de morte, verdade?- Inclusive ao dizê-lo senti um estremecimento de preocupação.

- Pois o tentarei, Sassenach- murmurou, sonolento- . Mas nestas circunstâncias não se pode esperar muito de mim.

- Dói-te?

- Não. Só estou… cansado.- Na verdade falava como se estivesse muito exausto para procurar a palavra correta e tivesse escolhido essa por simples abandono.

- Não sente saudades. Deitarei-me a dormir em outro sítio, para que possa descansar.

        ia apartar os cobertores, mas ele levantou uma mão para me impedir isso

- Não. Não me deixe.- Baixou o ombro para mim e fez um esforço para levantar a cabeça do travesseiro. Intranqüilizou-me ainda mais notar que estava muito fraco para dá-la volta por si só.

- Não te deixarei. Mas talvez seja melhor que durma na poltrona. Não quero…

- Tenho frio- disse brandamente- . Tenho muito frio.

        Oprimi apenas os dedos sob seu esterno, procurando o grande pulso abdominal. O batimento do coração era rápido e mais superficial do que correspondia. Não estava afiebrado. Não só tinha frio, mas também estava gelado ao tato. Isso me alarmou.

        Já perdida a cautela, me acurruqué contra ele, apertando os peitos contra suas costas, com a bochecha apoiada contra sua omoplata. Concentrei-me em gerar calor e irradiá-lo a sua pele através da minha. Com muita suavidade procurei o bordo de sua camisa e atirei dela para cima; logo curve as mãos para as ajustar a redondez de suas nádegas. esticaram-se um pouco, surpreendidas, mas voltaram a relaxar-se.

- Claire- disse ele, pelo baixo- , me toque.

        Não ouvia o pulsar de seu coração, mas sim o meu: um som denso e surdo no ouvido apoiado no travesseiro.

        Deslizei a mão pelo pendente de seu ventre e descendi com mais lentidão, abrindo com os dedos o matagal áspero e frisado, até abranger suas formas arredondadas. O pouco calor que havia nele estava tudo ali. Acariciei-o com o polegar e senti que se movia. Jamie exalou o fôlego em um comprido suspiro e seu corpo pareceu fazer-se mais pesado, afundar-se no colchão ao relaxar-se.

        Sentia-me muito estranha, já sem medo, mas com todos os sentidos sobrenaturalmente agudizados e de uma vez… em paz. Já não tinha consciência de mais ruídos que a respiração do Jamie e o palpitar de seu coração, que enchiam a escuridão.

        Um momento depois comecei a me mover; quer dizer: movíamo-nos juntos. Uma mão se estirou entre os dois, subiu entre suas pernas; a ponta de meus dedos, justo detrás de seu testículo. Minha outra mão o rodeou, movendo-se com o mesmo ritmo que me flexionava as coxas e levantava meus quadris para puxar contra ele desde atrás.

        Poderia havê-lo feito eternamente; talvez era assim. Não tinha noção do passado do tempo: só de uma paz sonhadora e desse ritmo lento e parecido, enquanto nos movíamos na escuridão. Em algum momento, em algum lugar, percebi um palpitar firme: primeiro, em uma mão; logo, em ambas. fundia-se com o batimento do coração de seu coração.

        Ele suspirou larga, profundamente, e eu senti que o ar brotava de meus próprios pulmões. Ficamos em silêncio. E juntos nos deslizamos para a inconsciência.

 

        Despertei com uma sensação de paz absoluta. Imóvel, sem pensar, escutei o palpitar do sangue em minhas veias. Por fim recordei, e, bruscamente, dava-me a volta na cama. Seus olhos estavam fechados; sua pele tinha a cor do marfim antigo. Farejei com pressa. A habitação estava fétida pelo aroma de cebolas, mel e suor febril, mas sem o fedor da morte súbita.

        Golpeei-o com uma mão no centro do peito. Ele deu um coice, sobressaltado, e abriu os olhos.

- Cretino!- disse, tão aliviada ao sentir o movimento de seu peito que me tremeu a voz- . Queria morrer, não?

        Piscou ao me olhar. Tinha os olhos inchados, ainda nublados pela febre.

- Não fazia falta muito esforço, Sassenach- disse em voz baixa, rouca pelo sonho- . Não morrer era mais difícil.

        À luz da manhã entendi claramente o que o esgotamento e os efeitos posteriores do golpe emocional me tinham impedido de notar a noite anterior. Seu empecinamiento em dormir em sua própria cama. As persianas abertas, para ouvir as vozes de sua família e seus arrendatários. E eu, a seu lado. Muito cuidadosamente, sem me dizer uma palavra, tinha decidido como e onde queria morrer.

- Quando lhe trouxemos acima pensou que estava a ponto de morrer, verdade?- perguntei.

- Pois não sabia com certeza- reconheceu lentamente- , mas me sentia muito mal.- Fechou os olhos, como se o cansaço lhe impedisse de mantê-los abertos- . E sigo assim- acrescentou, com certo desapego- m mas não tem por que preocupar-se. tomei uma decisão.

- Que diabos quer dizer com isso?

        Ele respirou fundo um par de vezes; logo girou a cabeça para me olhar.

- Quero dizer que ontem à noite pude ter morrido.

        Era muito certo, mas ele se referia a outra coisa. Expressava-o como se fora algo consciente.

- O que significa isso de que tomaste uma decisão? decidiste não morrer, depois de tudo?- Tratei de falar com ligeireza, mas não me saiu muito bem. Recordava muito bem essa estranha sensação de quietude atemporal que nos tinha rodeado.

- Foi muito estranho- disse- . E ao mesmo tempo não foi absolutamente.

- Seria melhor que me explicasse o que aconteceu.

- Em realidade não sei, Sassenach. Quer dizer, sim, mas não sei como expressá-lo.

        Ainda parecia cansado, mas manteve os olhos abertos e fixos em minha cara, vividamente azuis à luz da manhã.

- Quando Arch e Roger MAC me trouxeram, encontrava-me muito mal, sim- disse- . Terrivelmente decomposto. A perna e a cabeça palpitavam a cada pulsado do coração, a tal ponto que esperava o seguinte com medo. E a escutar os espaços entre um e outro. Embora não o pareça- disse, vagamente surpreso- , há muito tempo entre um e outro pulsado do coração.

        Disse que, nesses intervalos, tinha começado a desejar que o batimento do coração seguinte não chegasse. E pouco a pouco caiu na conta de que seu coração se fazia mais lento… e a dor, mais remoto, como se fora independente dele. Sua pele se esfriava; a febre desaparecia do corpo, deixando na mente uma estranha claridade.

- Agora vem o que não posso explicar, Sassenach. Mas… vi.

- O que viu?- mas já sabia que não me poderia dizer isso Como todos os médicos, havia visto doentes que decidiam morrer. E às vezes olhavam assim, com os olhos muito fixos em algo, ao longe.

        Ele vacilou, esforçando-se por achar palavras. Me ocorreu algo e me apressei a ajudá-lo.

- Conheci uma anciã que morreu no hospital onde eu trabalhava; com ela estavam todos seus filhos, já adultos. Foi muito aprazível.

        Baixei a vista a meus dedos entrelaçados com os seus, ainda vermelhos e inchados.

Morreu. Eu a vi morta; seu pulso se deteve e não respirava. Todos seus filhos choravam junto à cama. E de repente abriu os olhos. Não olhava a ninguém, mas via algo. Logo disse, com toda claridade: “ Oooh!” Assim, com emoção, como uma menina que acabasse de ver algo maravilhoso. E fechou os olhos outra vez.- Pisquei para afastar as lágrimas- . Foi… assim?      

        Assentiu sem dizer nada. Sua mão se esticou na minha.

- Mais ou menos- murmurou.

        Encontrou-se extrañamente suspenso, em um lugar que não podia descrever absolutamente; sentia-se completamente em paz… e via com toda nitidez.

- Ante mim parecia haver… não era exatamente uma porta, a não ser uma espécie de passagem. Eu podia atravessá-lo, se queria. E queria, sim- adicionou, me olhando de soslaio com um sorriso tímido.

        Também sabia o que deixava atrás. E compreendeu que nesse momento podia escolher: ir para diante… ou retroceder.

- Foi então quando me pediu que te tocasse?

- Só você podia me trazer de volta- disse simplesmente- . Eu não tinha forças.

        Senti um grande nó na garganta; não podia falar, mas lhe estreitei a mão.

- por que?- disse ao fim- . por que… decidiu ficar ?

- Porque me necessita- disse muito fico.

- Não foi porque me ama?

       Levantou a vista com a sombra de um sorriso.

- Sassenach… te amo agora e te amarei sempre. Embora more, embora você morra, estejamos juntos ou separados. Sabe.- Tocou-me a cara- . Eu sei de ti e você sabe de mim.

        Logo inclinou a cabeça; o cabelo vermelho lhe caiu sobre a bochecha.

- Não me referia só a ti, Sassenach. Ainda tenho coisas que fazer. Por um momento pensei que talvez não era assim, que lhes poderiam arrumar isso Com o Roger MAC, o velho Arch, Joseph e os Beardsley… Mas se mora uma guerra e …- Fez uma leve careta- . Para minha desgraça, sou chefe. Deus me tem feito o que sou. Deu-me esse dever… e devo fazê-lo, qualquer que seja o preço.

- O preço- repeti, intranqüila.

        Em sua voz percebia algo mais duro que a resignação. Ele jogou um olhar quase indiferente para os pés da cama.

- Essa perna não está muito pior- disse com ligeireza- , mas tampouco melhora. Acredito que terá que cortá-la.

 

        Sentada em minha consulta, olhava pela janela, tratando de encontrar outra maneira. Tinha que haver outro recurso.

        Jamie tinha razão; as linhas vermelhas continuavam ali. Não tinham avançado mais, mas ali estavam, feias e ameaçadores. A penicilina oral e tópica parecia ter causado algum efeito na infecção, mas não o suficiente. As cresas faziam um bom trabalho com os abscessos pequenos, mas não podiam lutar contra a bacteriemia subjacente que lhe estava envenenando o sangue.

        Joguei uma olhada à garrafa de vidro pardo. Isso podia ajudá-lo a resistir um pouco mais, mas só ficava um terço; não era suficiente. E administrada por via oral não causaria efeito suficiente para erradicar à mortífera bactéria, qualquer fosse, que se estava multiplicando em seu sangue.

        O serrote de amputação estava ainda na encimera. Eu lhe tinha dado minha palavra ao Jamie… e ele me havia isso devolvido.

        Apertei os punhos com inexprimível frustração, quase mais potente que minha desesperança. por que, por que, por que não tinha iniciado imediatamente outro cultivo de penicilina? Como podia ter sido tão irrefletida, descuidada e idiota?

        por que não tinha insistido em ir ao Charleston ou ao Wilmington, em busca de algum soprador que pudesse me fazer o êmbolo e o cilindro de uma seringa hipodérmica? Logo teria podido improvisar algo que servisse de agulha. Tanta dificuldade, tanto experimento para obter essa preciosa substância… e agora que a necessitava com desespero…

        Um movimento vacilante no vão da porta fez que me voltasse, tratando de dominar as facções.

        Era um dos Beardsley. Cada vez era mais difícil distingui-los, agora que Lizzie os fazia o mesmo corte de cabelo. Certamente, uma vez que falavam resultava singelo.

- Senhora?- Era Kezzie.

- Sim?- Minha voz devia soar seca, mas não importava; Kezzie não distinguia matizes.

        Trazia um saco de tecido que se movia e trocava de forma.

- Para O Senhor- disse, com sua voz alta, algo inexperiente, me oferecendo a bolsa- . Velho Aaron… dizia que isto funciona. Remói-te serpente grande, buscas uma pequena, curtas a cabeça, bebe o sangue.- E me entregou o saco, que eu aceitei com muita cautela.

- Obrigado- disse fracamente- . Já… verei. Obrigado.

        Keziah me fez uma reverência e saiu, radiante, me deixando em custódia o que parecia ser uma serpente de cascavel pequena, mas muito irritada. Procurei freneticamente algum lugar onde pô-la. Por fim, agarrei o frasco de sal e, sempre sustentando a bolsa com o braço estirado, usei a outra emano para esvaziar o sal na encimera. Logo colocava o saco dentro do frasco e me apressei a lhe pôr a tampa.

        Brianna apareceu a cabeça pela porta.

- Mamãe? Como amanheceu papai?

- Nada bem.- Minha cara deveu revelar a gravidade de seu estado, pois se aproximou de mim, carrancuda.

- Está muito mal?- perguntou pelo baixo.

        Assenti sem poder falar. Ela deixou escapar o fôlego em um fundo suspiro.

- Posso ajudar?

- Por acaso, na Faculdade de Engenharia não lhe ensinaram a fazer uma seringa hipodérmica?

- por que não o disse antes?- perguntou, com calma- . Se não poder fazer uma seringa, ao menos poderei idear algo que cumpra a mesma função. De quanto tempo dispomos?

- De umas quantas horas, ao menos. Se não melhorar com os cataplasmas, teria que cortar ou amputar esta noite.

- Amputar!- Seu rosto ficou exangue- . Não pode fazer isso!

- Posso… mas Por Deus que não quero.- Minhas mãos se fecharam com força, negando sua habilidade.

- Pois me deixe pensar.- Ainda estava pálida, mas a impressão ia passando conforme se concentrava- . Me diga, onde está a senhora Bug? Pensava lhe deixar ao Jemmy, mas…

- foi-se? Não estará no galinheiro?

- Não. passei por ali ao vir. Não a vi em nenhuma parte… e o fogo da cozinha está quase apagado.

        Isso era mais que estranho; a senhora Bug tinha vindo a preparar o café da manhã, como sempre. por que se tinha ido outra vez?

- Mas onde está Jemmy?- perguntei, buscando-o com o olhar.

- Lizzie o levou acima para que veja papai. Pedirei-lhe que o cuide um momento.

- Bem. Ah, espera!

        Minha exclamação fez que se voltasse da porta, com as sobrancelhas arqueadas a modo de pergunta.

- Poderia te levar isso fora, querida?- Assinalei com desgosto o grande frasco de vidro- . Deixa-o bem longe.

- Como não. O que é?

        A pequena serpente de cascavel tinha saído de sua bolsa e estava enroscada em um nó. Ao ver que Brianna estendia a mão para o frasco, investiu contra o vidro. Ela deu um salto atrás, lançando um chiado.

- Ifrinn!

        Apesar da tensão e a angústia, pus-se a rir.

- De onde tirou isso? E para que é?- perguntou ela, já reposta da surpresa inicial. inclinou-se com cautela para dar uns golpecitos contra o vidro. A serpente, que parecia irascível em extremo, atacou com um ruído audível e ela voltou a retirar bruscamente a mão.

- Trouxe-a Kezzie. supõe-se que Jamie sanará se beber seu sangue- expliquei.

        Ela alargou um dedo cauteloso para seguir o curso de uma gota amarelada que se deslizava pelo vidro. Duas gotas, em realidade.

- Olhe isso! tratou que me morder através do cristal! Essa serpente está furiosa. Não acredito que a idéia goste de muito.

- Vale, não importa- disse, me aproximando- . Não acredito que ao Jamie gostasse tampouco da idéia. Nestes momentos não quer saber nada de serpentes.

- Hum…- Ela seguia observando à pequena serpente, com uma ruga entre as sobrancelhas vermelhas- . Há-te dito Kezzie onde a encontrou?

- Não me ocorreu perguntar. por que?

- O caso é que as serpentes estão muito bem feitas- disse, com ar sonhador- . As mandíbulas se desarticulam, o qual lhes permite tragar presas maiores que elas. E as presas se repliegan contra o paladar quando não estão em uso.

- Sim?- Olhei-a com certa desconfiança, mas ela não me fez conta.

- As presas são ocas- continuou, tocando o sítio em que o veneno tinha penetrado no tecido, deixando uma pequena mancha amarelada- . Estão conectados a um saco de veneno localizado na bochecha; desse modo, quando a serpente remói, os músculos da bochecha espremem o saco para fazer sair o veneno, que passa com o passar da presa para penetrar na presa. Tal como se fosse uma agulha. Pensava provar com uma pua de puercoespín afiada, mas isto funcionaria muito melhor. foi desenhado para isso.

- Compreendo- disse, com uma pequena quebra de onda de esperança- . Mas necessitaria algo que servisse de depósito…

- Antes que nada necessito uma serpente maior- disse, girando para a porta- . Vou a pelo Jo ou Kezzie; vejamos se essa saiu que alguma toca e se houver outras ali.

        E partiu prontamente a executar sua missão, levando o frasco, enquanto eu me dedicava a estudar o problema do antibiótico, já renovadas as esperanças. Se se podia injetar a solução, teria que filtrá-la e desencardi-la tanto como fora possível.

        Me teria gostado de fervê-la, mas não me atrevia. Ignorava se as altas temperaturas podiam destruir ou desativar a penicilina… se é que ficava ali um pouco de penicilina ativa. A quebra de onda de esperança que me tinha causado a idéia da Brianna se atenuou um pouco. De nada serviria contar com um aparelho hipodérmico se não tinha nada útil que injetar.

        Abri a porta do armário, levantei a tampa de minha arca de remédios e fui ao estudo do Jamie a por papel, tinta e pluma. A penicilina era, com diferença, o mais efetivo dos antibióticos disponíveis, mas não o único. Comecei a fazer uma lista das ervas que tinha à mão e, sob cada nome, todas as aplicações que lhe conhecia, tivesse-as usado ou não. Toda erva utilizada para estados sépticos era uma possibilidade. Para ouvir passos na cozinha chamei à senhora Bug, pois queria lhe pedir que me trouxesse uma bule de água fervendo.

        Ela apareceu no vão da porta; nos braços trazia um cesto grande. antes de que ou pudesse dizer nada, aproximou-se para plantar o cesto na encimera. detrás dela entrou seu marido com outro cesto e um pequeno barril pequeno aberto, de que surgia um penetrante aroma alcoólico. Rodeava-os um aroma algo rançoso, como o fedor longínquo de um lixeiro.

- Ouvi-lhe dizer a você que não tinha suficiente mofo à mão- começou, ansiosa, mas com os olhos brilhantes- , de modo que hei dito ao Arch: devemos percorrer as casa próximas e ver o que conseguimos para a senhora Fraser. depois de tudo, o pão fica mau tão logo com esta umidade… e Deus sabe quão deixada é a senhora Chisholm.

        Eu olhava fixamente os resultados dessa excursão matinal pelas despensas e depósitos de lixo da Colina. Cascas de pão, bolachas estragadas, cabaças médio podres, porções de bolo com marcas de dentes ainda visíveis na massa… uma variedade de refugos pegajosos e fragmentos em putrefação, todos talheres de partes mofadas, em azul veludo e verde musgo. O barril pequeno estava médio cheio de milho podre; na turva líquida resultante flutuavam ilhas de mofos azuis.

- Os porcos do Evan Lindsay- explicou o senhor Bug, em um estranho arrebatamento de loquacidade. Os dois Bugs me sorriram de brinca a orelha, sujados por seus esforços.

- Obrigado- disse. Sentia-me sufocada, e não só pelo aroma. Os miasmas do licor de milho me fizeram lacrimejar.

 

        Justo depois de obscurecer subi ao piso alto, levando minha bandeja de poções e implementos; sentia uma mescla de excitação e medo.

        Jamie estava recostado contra os travesseiros e rodeado de gente.

- Bem- disse, com uma despreocupação bastante bem fingida- , suponho que estamos preparados.

- Estamos preparados para provar algo novo- disse, sorridente, em um intento de me mostrar confiada- . Se alguém quer rezar, faça-o, por favor.

        Todos se precipitaram a limpar a mesinha. Depositei ali a bandeja; Brianna, que tinha subido comigo, adiantou-se com seu invento, sustentando-o cuidadosamente com ambas as mãos.

- O que é isso, no nome de Cristo?- Jamie observou o objeto com o sobrecenho franzido; logo, a mim.

- É uma espécie de serpente de cascavel feita em casa- explicou-lhe Brianna.

        Houve um murmúrio de interesse e todo mundo estirou o pescoço para ver. Mas a atenção se desviou quase imediatamente, quando apartei o edredom para lhe desembrulhar a perna, entre um coro de murmúrios espantados e exclamações compassivas.

        A carne da perna estava muito vermelha até o joelho, à exceção das partes negras e as que supuravam. Momentaneamente tínhamos retirado as cresas, por medo de que o calor as matasse; nesses momentos estavam em minha consulta, felizmente atarefadas com as partes mais horríveis do gasto pelos Bug. Se conseguia salvar a perna poderiam ajudar com a limpeza posterior.

        Eu tinha revisado cuidadosamente os refugos sob o microscópio, para pôr em uma tigela tudo o que pudesse identificar como portador do Penicillium. Sobre essa miscelânea coleta verti o licor de milho fermentado e deixei repousar a mescla durante todo o dia. Com sorte, se havia um pouco de penicilina crua no lixo, haveria-se disolvido no líquido alcoólico.

        Enquanto isso tinha preparado uma infusão bem forte com aquelas ervas que tinham reputação de ser úteis para o tratamento interno dos estados supurativos. Enchi uma taça com essa solução, extremamente aromática, e a entreguei ao Roger, desviando cautelosamente o nariz.

- Dásela a beber- disse. E adicionei com intenção, cravando no Jamie um olhar firme- : Toda.

        Ele farejou a taça que lhe oferecia e me devolveu o olhar, mas bebeu, fazendo caretas exageradas para entreter aos pressente. Assim animado o humor geral, passei ao grande acontecimento: agarrei de mãos do Bree a hipodérmica improvisada.

        Os gêmeos Beardsley se adiantaram para olhar, cheios de orgulho. A pedido do Bree tinham saído imediatamente; mediada a tarde retornaram com uma magnífica serpente de cascavel, de quase um metro de longitude.

        depois de retirar os sacos de veneno e as presas, encomendei à senhora Bug a tarefa de enxaguá-los repetidas vezes com álcool, para erradicar qualquer rastro de veneno. Bree agarrou a seda engordurada que servia de envoltório ao astrolábio; com uma parte dela costurou um pequeno tubo que se franzia por um extremo com uma prisão fortificada, da mesma forma que os moedeiros. Logo cortou uma parte grossa de uma pluma de peru e, depois de abrandá-lo em água quente, utilizou-o para unir à presa o extremo franzido do tubo. selaram-se as uniões de tubo, pluma e presa com cera de abelha; também se estendeu cera ao longo da costura, para evitar filtrações.

        Deslizei os dedos pela perna para selecionar um bom sítio, livre de copos sangüíneos importantes; depois de limpá-lo com álcool puro, cravei a presa nele, tão a fundo como pude.

- Já.- Fiz um sinal a Brianna, que esperava a meu lado com a garrafa de álcool de milho filtrado. Com os dentes cravados no lábio inferior, ela verteu com cuidado, até encher o tubo de seda que eu sustentava. Uma vez dobrado o extremo aberto, pressionei firmemente com o polegar e o índice, para expulsar o líquido pela presa às malhas da perna.

        Trabalhei ao longo da perna. Bree voltava a encher a seringa a cada injeção.

        A habitação estava em silêncio, mas cada vez que eu escolhia outro lugar todos continham o fôlego, deixavam-no escapar em um suspiro depois da punção e logo, sem dar-se conta, inclinavam-se para a cama, enquanto eu injetava o álcool ardente nas malhas infectadas.

        Não fez falta muito tempo. Ao terminar cobri todas as feridas com mel e esfreguei a pantorrilha e o pé com azeite de gualteria.

        Então todos se retiraram, depois de dar ao Jamie um beijo na bochecha ou uma palmada no homem, lhe desejando boa sorte com vozes gruñonas. Ele respondia às despedidas com um sorriso, um gesto, alguma brincadeira.

        Quando a porta se fechou atrás do último, deixou-se cair contra o travesseiro e fechou os olhos, exalando todo o fôlego em um comprido suspiro. Dediquei-me a ordenar minha bandeja: pus a seringa a encharcar em álcool, arrolhei os frascos e dobrei as ataduras. Logo sentei a seu lado; ele me alargou uma mão sem abrir os olhos.

        Sua pele estava quente e seca. Acariciei-lhe brandamente os nódulos com o polegar; de abaixo chegavam os rumores da casa, discretos, mas cheios de vida.

- Funcionará- disse em voz baixa, ao cabo de um minuto- . Estou segura.

- Sei- disse ele.

        Respirou muito fundo e, por fim, rompeu em soluços.

 

        Roger despertou bruscamente de um descanso negro e sem sonhos. Reconheceu o contato da Brianna, que lhe tocava o braço.

- Né?- incorporou-se súbitamente, com uma rouca exclamação de pergunta.

- Lamento ter que despertar.

        Brianna sorria, mas em sua frente se desenhava visivelmente uma ruga de preocupação. Ele a abraçou por reflexo e se deixou cair de novo contra o travesseiro.

- Hum.- a estreitar era uma âncora que o sujeitava à realidade.

- Está bem?- perguntou ela, em voz baixa.

- Estou bem.- depois de um fundo suspiro, deu-lhe um beijo na frente e se relaxou, piscando- . Que horas são?

- Um pouco passado do meio-dia. Não queria despertar, mas veio um homem e não sei o que fazer com ele.

        Uma comissura de sua larga boca se curvo brevemente, com a mesma ironia que seu pai. Logo alargou a mão para a jarra. O ruído da água ao cair entrou pelos ouvidos do Roger como a chuva em chão ressecado. Esvaziou em três sorvos a taça que lhe oferecia e a alargou novamente.

- Mais, por favor. Um homem?

- Diz chamar-se Thomas Christie. Quer falar com papai; diz que esteve no Ardsmuir.

- Sim?- Enquanto ordenava seus pensamentos, Roger bebeu a segunda taça com mais lentidão- . Vale. lhe diga que estarei ali em um minuto.

        Ele se vestiu com lentidão; sua mente ainda estava gratamente entorpecida. Mas ao agachar-se para resgatar suas meias três-quartos cansados debaixo da cama, algo entre os lençóis revoltas lhe chamou a atenção, justo sob o bordo do travesseiro. Alargou lentamente uma mão para agarrá-lo. Era “ a mujercita” : o pequeno amuleto de fertilidade; polida a antiga pedra rosada, assombrosamente pesado na mão.

        depois de olhá-la fixamente um momento, inclinou-se para escondê-la novamente sob o travesseiro.

        Brianna tinha deixado ao visitante no estudo do Jamie. Roger se deteve um instante, para verificar que todas as partes de seu corpo estivessem apresentáveis e em seu sítio. Dadas as circunstâncias, esse tal Christie não podia pretender muito.

        Três caras se voltaram para ele. Bree não lhe havia dito que Christie vinha com acompanhantes. De qualquer modo era óbvio que Thomas Christie era o major; o jovem moreno, de uns vinte anos, devia ser seu filho.

- O senhor Christie?- Ofereceu a mão ao cavalheiro- . Sou Roger MacKenzie, o genro do Jamie Fraser. Acredito que já conhecem minha esposa.

        Christie, um pouco surpreso, olhou por detrás do Roger, como se esperasse que Jamie se materializasse atrás dele.

- Temo que nestes momentos meu sogro não está… disponível. Posso lhe ser útil em algo?

        O homem assentiu lentamente e lhe estreitou a mão com firmeza. Roger ficou estupefato ao sentir algo familiar, mas ao mesmo tempo completamente inesperado: a característica pressão contra o nódulo da saudação maçônica. Levava anos sem experimentá-lo; mais por reflexo que por raciocínio, respondeu com a contra-senha, confiando em que fora a correta. Pelo visto foi satisfatória, pois a expressão severo do Christie se afrouxou um pouco.

- Talvez, senhor MacKenzie, talvez.- O homem lhe cravou um olhar penetrante- . Procuro terras onde me estabelecer com minha família… e me hão dito que o senhor Fraser poderia estar em situação de me facilitar isso

- Poderia ser- respondeu Roger, cauteloso.

        Perguntava-se se Christie o tinha tentado se por acaso ou se tinha motivos para esperar que seu sinal fora reconhecido. Presumivelmente sabia que Jamie Fraser reconheceria o signo e tinha suposto que seu filho também. Jamie Fraser, franco-maçom? Nunca lhe tinha passado a idéia pela cabeça. E Jamie nunca o tinha mencionado.

- Sinta-se, por favor- disse repentinamente.

        O filho do Christie e a jovencita, que tanto podia ser sua irmã como sua esposa, levantaram-se o entrar ele e permaneciam de pé depois do cabeça de família. Roger lhes ofereceu uns tamboretes e tomou assento depois do escritório do Jamie. Imediatamente agarrou uma pluma do copo de cristal azul, com a esperança de que isso lhe desse um aspecto mais profissional. Que perguntas eram as que correspondia fazer a um possível arrendatário?

- Bem, senhor Christie, vejamos.- Sorriu-lhe, consciente da barba sem barbear nas mandíbulas- . Diz-me minha esposa que você conheceu meu sogro em Escócia.

- Na prisão do Ardsmuir- respondeu o cavalheiro, cravando no Roger um olhar agudo, como se o desafiasse a extrair suas conclusões.

        Roger voltou a pigarrear; sua garganta, embora cicatrizada, ainda tendia a bloquear-se quando estava recém levantado. Mas Christie pareceu tomar aquilo por comentário adverso e se esticou um pouco.

- Jamie Fraser também esteve detento ali- disse- . Suponho que você sabe.

- claro que sim- confirmou Roger- . Tenho entendido que vários dos homens assentados aqui, na Colina, vieram que o Ardsmuir.

- Quais?- interpelou Christie.

- Né… os Lindsay, quer dizer: Kenny, Murdo e Evan- enumerou Roger- . Geordie Chisholm e Roger MacLeod. Acredito que… sim, estou seguro: Alex MacNeill também esteve no Ardsmuir.

        Christie tinha seguido essa lista com estreita atenção.

- Conheço-os- disse, com ar de satisfação- . MacNeill pode responder por mim, se for necessário.

        Embora Roger nunca tinha visto o Jamie entrevistar a um possível arrendatário, de vez em quando< o ouvia falar com o Claire dos que escolhia. Sobre essa base, fez-lhe algumas pergunta sobre seu passado mais recente, tratando de esquivar a cortesia com uma atitude de autoridade.

        Christie disse que tinha sido transladado com os outros prisioneiros, mas teve a sorte de que sua servidão fora adquirida pelo dono de uma plantação da Carolina do Sul, quem, ao descobrir que tinha algum estudo, fez-o preceptor de seus seis filhos; além disso cobrava às famílias vizinhas pelo privilégio de que lhe enviassem também a seus filhos. Uma vez que expirou o prazo de sua servidão, Christie acessou a ficar em troca de um salário.

- Seriamente?- perguntou Roger. Seu interesse pelo homem tinha aumentado notavelmente. Com que professor de escola! Para o Bree seria um gozo renunciar a seu indeseado posto. E esse homem parecia mais que capaz de lutar com escolares intransigentes- . E o que lhe traz por aqui, senhor Christie? Estamos algo longe da Carolina do Sul.

- Minha esposa morreu- disse, mal-humorado- . De gripe. E também o senhor Everett, meu empregador. Seu herdeiro não necessitava de meus serviços e eu não quis ficar ali sem emprego.- Cravou no Roger um olhar penetrante, por debaixo das sobrancelhas hirsutas- . Você há dito que o senhor Fraser não está. Quando retornará?

- Não saberia dizer-lhe Em realidade não podia saber quanto duraria a incapacidade do Jamie. Embora se recuperava sem mais problemas, possivelmente devesse guardar cama durante um tempo. E não queria se despedir do Christie nem obrigá-lo a esperar. O ano estava avançado e não ficava muito tempo, se esse homem e sua família foram passar o inverno ali.

        Os dois homens eram fornidos e fortes, a julgar por seu aspecto. Acompanhava-os uma mulher que podia cuidar de suas necessidades domésticas. E a parte da irmandade maçônica, Christie tinha pertencido ao grupo do Jamie no Ardsmuir. Ele sempre fazia um esforço especial para procurar sítio a esses homens.

        Tomada a decisão, Roger tirou uma folha de papel em branco e desentupiu o tinteiro. Logo voltou a pigarrear.

- Muito bem, senhor Christie. Acredito que podemos chegar a algum… acordo.

        Foi uma grata surpresa ver entrar na Brianna, com uma bandeja de bolachas e cerveja. Deixou-a no escritório, com o olhar pudorosamente baixa, mas ele captou um brilho de diversão entre as pestanas e lhe roçou a boneca, sorridente, para dar-se por informado. O gesto lhe fez pensar na saudação do Christie. Brianna saberia algo dos antecedentes do Jamie, nesse aspecto? Provavelmente não; de outro modo o teria mencionado.

- Brianna, apresento a nossos novos arrendatários- disse- . O senhor Thomas Christie e…

- Allan, meu filho- completou o cavalheiro- , e Malva, minha filha.

        O moço saudou com uma calada inclinação de cabeça, sem apartar os olhos do refrigério. A menina mantinha as mãos recatadamente cruzadas no regaço e logo que levantou a vista. Outro ponto a favor do Christie, pensou Roger, distraído: as meninas casaderas eram poucas.

        Bree saudou cada um com uma inclinação de cabeça e olhou à moça com interesse especial. Um forte alarido na cozinha a fez sair a toda pressa, murmurando uma desculpa.

- Meu filho- murmurou Roger, a modo de desculpa. E ofereceu um jarro de cerveja- . Aceita você um refrigério, senhor Christie?

       Os contratos de arrendatários se guardavam na gaveta esquerda do escritório; ele os tinha visto e conhecia as noções gerais. Para começar, acordariam cinqüenta acres (dois hectares) com possibilidades de arrendar mais segundo fora necessário; o pagamento se efetuaria segundo a situação individual. Uma breve discussão, acompanhada por cerveja e bolachas, e ambos chegaram a um acordo que parecia adequado.

        Roger pôs ponto final ao contrato com um gesto garboso; logo assinou como representante do James Fraser e passou o documento ao Christie, para que o assinasse. Sentia uma profunda e grata satisfação. Um bom arrendatário, disposto a pagar a metade de sua renda oficiando de professor de escola durante cinco meses ao ano.

        de repente caiu na conta de que Jamie teria dado um passo mais. além de oferecer sua hospitalidade aos Christie, lhes teria conseguido um lugar onde hospedar-se até que tivessem teto próprio. Mas não na casa grande enquanto Jamie estivesse doente e Claire, ocupada em atendê-lo. depois de refletir um momento, aproximou-se da porta para chamar o Lizzie.

- Temos um novo arrendatário com família, a muirninn- fixo, sorridente- . O senhor Thomas Christie e seus filhos. Pode pedir a seu pai que os acompanhe à cabana do Evan Lindsay? Está perto das terras que vão ocupar. E acredito que Evan e sua esposa têm sítio para hospedá-los por um tempo, até que possam instalar-se.

- OH!, sim, senhor Roger.- Lizzie, ansiosa e bem disposta, fez uma breve reverencia ao Christie, que respondeu com uma pequena inclinação. Logo olhou ao Roger, arqueando as sobrancelhas finas em seu carita de camundongo- . O senhor está informado?

        Roger sentiu que um leve rubor subia às bochechas.

- Tudo está em ordem- assegurou- . O direi assim que se sinta melhor.

- O senhor Fraser está doente? Quanto o lamento.- A voz suave, desconhecida, surgiu desde atrás, sobressaltando-o.

        Ao voltar tirou o chapéu que Malva o olhava, interrogante. Não tinha reparado muito nela, mas nesse momento lhe impressionou a beleza de seus olhos.

- Mordeu-o uma serpente- disse, abrupto- , mas já está fora de perigo.

        Alargou uma mão ao Christie; esta vez esperava o gesto secreto.

- Bem-vindo à Colina do Fraser- disse- . Confio em que você e sua família sejam felizes aqui.

 

        Jamie estava sentado na cama, celosamente atendido por devotas mulheres e, portanto, desesperado. Sua cara se relaxou um pouco ao ver outro homem. Então despediu com um gesto a suas donzelas. Claire ficou, ocupada com seus frascos e seus instrumentos.

        Roger ia sentar se ao pé da cama, mas Claire lhe jogou dali, lhe assinalando energicamente o tamborete.

- me diga, Roger MAC, atendeste essa ferida que a mula tinha na pata?

- Curei-a eu- informou Claire- . Está cicatrizando bem. Roger esteve muito ocupado em atender aos novos arrendatários.

- Ah, sim?- Fraser arqueou as sobrancelhas, interessado.

- Pois sim, um homem chamado Tom Christie e sua família. Diz que esteve no Ardsmuir contigo.

        Por um instante Fraser o olhou fixamente, inexpressivo. Logo assentiu, recuperando como por arte de magia sua expressão de agradável interesse, e o tempo normal reatou sua marcha.

- Sim, conheço bem ao Tom Christie. Onde esteve nestes vinte anos?

        O jovem lhe informou o que o homem lhe tinha contado de suas aventuras e que condições tinham estabelecido.

- Isso está muito bem, aprovou Jamie, o inteirar-se de que Christie estava disposto a oficiar de professor- . Lhe diga que pode usar os livros que temos aqui.

        A conversação passou a assuntos mais mundanos. Poucos minutos depois Roger se levantou para retirar-se. Tudo parecia estar perfeitamente bem, mas sentia um escuro desassossego. Acaso se tinha imaginado esse instante? Ao voltar-se para fechar a porta viu que Jamie tinha os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o peito. Se não dormir, assim evitava efetivamente qualquer conversação. Claire o observava, com os olhos de falcão reflexivamente entreabridos. Ela também se deu conta.

        Assim não eram imaginações delas. Que diabo passava com o Tom Christie?

 

        Ao dia seguinte, Roger fechou a porta atrás dele e se deteve um momento no alpendre, para respirar o ar frio da avançada amanhã. Jogou uma olhada em redor, apontando mentalmente suas tarefas do dia.

        Tinha a estranha sensação de ter abandonado seu trabalho, não dias, a não ser meses ou anos atrás. Se fechava os olhos um instante, tinha a impressão de que quando voltasse a abri-los-se encontraria em uma rua de Oxford e a perspectiva de uma aprazível manhã de trabalho entre os volúmenes poeirentos da Bodleian.

        Golpeou-se uma coxa com a mão para tirar-se essa idéia. Hoje não. Não estava em Oxford, a não ser na Colina. Devia cortar umas árvores e recolher feno; não o feno semeado, a não ser o que crescia silvestre nas colinas, em pequenas partes de terra. Com uma jarra de cerveja e os sanduíches envoltos dentro de seu saco, foi em busca da foice e a tocha.

        Ao caminhar começou a espabilarse. Os músculos entraram em calor; quando chegou ao primeiro dos prados altos começava a sentir-se normal, solidamente encravado no mundo físico da montanha e o bosque. O futuro tinha voltado para mundo dos sonhos e as lembranças. Uma vez mais estava presente e dava razão de si.

- Melhor assim- murmurou para seus adentros- . Não é questão de cortar um pé.

        E deixou cair a tocha sob uma árvore para agachar-se a cortar a erva.

        Não era a tarefa sedativo e monótona da ceifa habitual. Em que a grande ceifa de surripio dobro ia deixando agradáveis fileiras de erva seca no campo. Este trabalho era de uma vez mais rude, mas mais fácil; requeria agarrar cada arbusto com uma mão e cortar os caules perto da raiz, para logo jogar o punhado de feno silvestre no saco de tecido embreado que levava consigo. Não se requeria muita força, mas sim atenção, mais que o inconsciente esforço muscular de segar o feno semeado.

        Era um trabalho sedativo; muito em breve sua mente começou a divagar para outras coisas. As que Jamie lhe havia dito na negra ladeiras, sob as estrelas.

        Algumas já as conhecia; que Alex MacNeill e Nelson McIver não se levavam bem e por que; que um dos filhos do Patrick Neary parecia que roubava e o que fazer a respeito; que terras vender, quando e a quem. De outras não tinha idéia. Apertou os lábios ao pensar no Stephen Bonnet.

        E o que se devia fazer com o Claire.

.Se morrer, ela deve ir-se- havia dito súbitamente Jamie- . Que se vá. Se o pequeno pode passar, todos têm que voltar. Mas sobre tudo ela. Faz que vá às pedras.

- por que?- perguntou Roger, em voz baixa- . por que deve partir? Passar pelas pedras é perigoso.

- Para ela é perigoso estar aqui sem mim.- durante um momento, o olhar do Fraser se perdeu. recostou-se para trás, com os olhos semicerrados. Repentinamente voltou a abri-los- . Ela é uma Antiga. Se o descobrirem a matarão.

        Logo fechou outra vez os olhos. Não voltou a falar até que os outros os encontraram, ao raiar o dia.

        “ É uma Antiga.” Por desgraça, Fraser o havia dito em inglês. Em gaélico o significado teria sido mais claro. Se houvesse dito ban- sidhe, Roger teria sabido se se referia ao reino das fadas ou a uma mulher sábia, mas humana.

        Sem dúvida não podia… mas talvez sim. Até na época do Roger, os escoceses levavam no sangue a crença nos outros” , embora não o admitissem de tudo. E agora? Fraser acreditava abertamente nos fantasmas, por não falar de anjos e Santos. Para a cínica mente presbiteriana do Roger, não havia muita diferença entre acender velas a Santa Genoveva e deixa fora uma chaleira de leite para as fadas.

        Por outra parte, embora não gostasse de reconhecê-lo, ele jamais haveria meio doido o leite destinado aos Outros nem meio doido um amuleto pendurado sobre uma porta… e não só por respeito à pessoa que os tivesse posto ali.

        Talvez Fraser não estava desencaminhado. Por risível que fora a idéia de que ele e Brianna, e até a mesma Claire, fossem sidheanach, tudo tinha mais de uma cara. Eles eram diferentes, sim. Não todo mundo podia viajar através das pedras; menos ainda eram os que o faziam. E havia outros. Geillis Duncan. O viajante desconhecido que lhe tinha mencionado ao Claire. O cavalheiro cuja cabeça atalho tinha aparecido no páramo, com as obturações de prata intactas. Ao pensar nele lhe arrepiou a pele dos braços.

        Jamie tinha dado sepultura à cabeça, com o devido respeito e uma breve prece, em uma colina próxima à casa; foi o primeiro habitante do pequeno cemitério da Colina. Por insistência do Claire tinha marcado a pequena sepultura com uma parte de granito em bruto, sem inscrição alguma, mas com nervuras de serpentinas verde.

        E se Fraser estava no certo? “ Se o pequeno pode passar, têm que voltar todos.”

        E se não voltavam… algum dia jazeriam todos no claro ensolarado: ele, Brianna, Jemmy, e cada um sob sua parte de granito. A única diferença era que cada um teria seu nome. Mas que datas esculpiriam? O perguntou de súbito, enquanto se limpava o suor da mandíbula. Quanto ao Jemmy não haveria dificuldade, mas o resto…

        Ali estava o problema, certamente; ao menos um deles: “ Se o pequeno pode passar.” Se a teoria do Claire era correta, se a faculdade de passar através das pedras era um rasgo genético, como a cor dos olhos ou o tipo de sangue… Jemmy teria cinqüenta por cento de probabilidades, se era filho do Bonnet; se era do Roger, três de quatro ou possivelmente a certeza.

        Segou grosseiramente um arbusto de erva, sem incomodar-se em sujeitá-la, e as espiguillas voaram como metralha. Então recordou a pequena figura rosada sob o travesseiro. Respirou fundo. E se dava resultado, se nascia outro menino que fora de seu próprio sangue sem lugar a dúvidas? Três probabilidades de quatro… ou possivelmente outra pedra, um dia, no cemitério familiar.

        O saco estava quase cheio e ali não havia mais erva que valesse a pena cortar. O carregou ao ombro para descender a colina até o bordo do milharal mais elevado.

        Ao chegar ao milharal, Roger divisou a silhueta pequena e fibrosa do Kenny Lindsay, que se aproximava entre as árvores.

- Madain mhath, ao Smeòraich!- gritou- . É certo que temos gente nova?

        Roger tinha deixado de surpreender-se ante a velocidade com que circulavam as notícias na montanha. Ofereceu ao Lindsay sua jarra de cerveja e lhe deu detalhes sobre a nova família.

- chama-se Christie, não?- perguntou Kenny.

- Sim. Thomas Christie, com seus filhos, varão e mulher. Deve conhecê-lo; esteve no Ardsmuir.

- Sim? Ah.

        Ali estava outra vez, esse leve estremecimento ante o nome.

- Christie- repetiu Kenny. A ponta de sua língua apareceu um instante, como se degustasse o som- . Hum. Sim. Vale.

- O que acontece Christie?- inquiriu Roger, cada vez mais intranqüilo.

- O que acontece?- O outro pareceu sobressaltado- . Nada, homem. O que poderia passar. Ou sim?

- Não. Quero dizer… Me pareceu que te sobressaltava um pouco ao escutar esse nome. Me ocorreu que podia ser ladrão, alcoólico ou algo assim.

        Pela cara do Kenny passou o entendimento, como o sol por uma pradaria.

- Ah, pois sim, agora compreendo. Não, não, Christie é um tio bastante decente, até onde eu sei.

- Até onde você sabe? Mas não estiveram juntos no Ardsmuir? Isso há dito ele.

- Pois sim, é certo- acordou Lindsay.

        Entretanto, ainda parecia duvidar. Mas de nada serve insistir, salvo para que se encolhesse de ombros.

- Vem um momento a casa, ao Smeòraich?- Kenny assinalou com a cabeça os pinheiros que se elevavam ao outro lado da pradaria.

Roger assentiu, sorridente.

- Obrigado, Kenny.

        Acompanhou ao Lindsay a atender seus animais; o homem tinha duas cabras leiteiras e uma cerda.

- Boa cerda- comentou Roger cortesmente, enquanto Kenny jogava na artesa milho para que comesse.

- Má como as víboras. E assim de rápida, também- disse Lindsay, olhando a de reojo- . Ontem esteve a ponto de me arrancar a mão. Queria levá-la a que o porco do MAC Dubh a servisse, mas não quis.

- Quando uma fêmea não está de humor, não há nada a fazer- comentou Roger.

        Kenny moveu a cabeça.

- Pode ser, sim. Mas há maneiras das abrandar, não? É um truque que me ensinou meu irmão Evan.

        Depois de dedicar ao Roger um sorriso desdentado, assinalou com a cabeça um barril de que emanava o aroma doce do cereal em fermentação.

- Sim?- disse Roger, rendo- . Pois espero que resulte.

- Resultará, sim- assegurou Lindsay, crédulo- . Esta é um demônio para o malte fermentado. O problema é que, se lhe der o suficiente como para que esteja disposta, não pode caminhar muito bem. Teremos que lhe trazer para o macho, quando MAC Dubh se reponha.

- Está em zelo? Amanhã trarei para o macho- prometeu Roger, imprudentemente.

- Se for tão amável, ao Smeòraich.- depois de uma pausa acrescentou, como sem lhe dar importância- : Espero que MAC Dubh se levante logo. esteve em condições de receber ao Tom Christie?

- Não o viu, não… mas eu o hei dito.

- Ah, sim? Que bem, não?

        Roger entrecerró os olhos, mas o observo apartou a vista. Seu desassossego persistia. Presa de um súbito impulso, Roger alargou o braço em cima do feno para lhe agarrar a mão; gesto que o sobressaltou grandemente. A estreitou e lhe tocou o nódulo.

        Kenny ficou boquiaberto e lhe pisquem no raio de sol que entrava pela porta. Por fim deixou o cubo vazia, limpou-se cuidadosamente a mão na saia esfarrapada e a ofereceu ao Roger com ar formal.

        Quando a soltou, a situação entre ambos seguia sendo cordial, mas se tinha alterado muito sutilmente.

- Christie também- observou Roger.

- Pois sim. Todos nós.

- Todos os do Ardsmuir? E… Jamie?- A idéia o deixava estupefato.

        Kenny assentiu outra vez, enquanto se inclinava para recolher o cubo.

- Pois sim. Iniciou-o MAC Dubh. Não sabia?

        De nada servia andar-se com rodeios. Sacudiu a cabeça para descartar o tema. Quando visse o Jamie o mencionaria… sempre que seu sogro estivesse em condições de responder perguntas. Cravou no granjeiro um olhar direto.

- Pois bem, quanto ao Christie, passa algo mau com ele?

        A reticência do Lindsay tinha desaparecido.

- OH!, não. Surpreendeu-me um pouco vê-lo aqui. Não se levava muito bem com o MAC Dubh, isso é tudo. Se tivesse outro sítio aonde ir, não acredito que tivesse vindo à Colina Fraser.

- por que?

- Nada importante- disse, encurvando os ombros- . É que Christie é protestante, compreende?

- Compreendo, sim- replicou Roger, muito seco- . Mas o puseram com os prisioneiros jacobitas. E isso causou problemas no Ardsmuir. É isso o que me quer dizer?

        Era muito provável. Em sua própria época não havia muito afeto entre os católicos e os severos escoceses que descendiam do John Knox e os seus. Nada gosta tanto a esse povo como um pouco de enfrentamento religioso. E no fundo, nisso tinha consistido a causa dos jacobitas. Agarra a uns quantos calvinistas irredutíveis, convencidos de que, se não ajustarem bem a manta, a Batata descerá pela chaminé para lhes morder os pés. Arroja os em um cárcere, cara a cara com homens que rezam em voz alta à Virgem María… Sim, já me imaginava. Jogo de dados os mesmos números, deixariam os distúrbios futbolísticos reduzidos a nada.

- E como chegou Christie ao Ardsmuir?

        Kenny pareceu surpreso.

- Pois porque era jacobita. Prenderam-no com outros depois do Culloden. Foi julgado e enviado a prisão.

- Um jacobita protestante?- Não era impossível, nem sequer difícil. A política tinha criado associações até mais estranhas. Mas sim se saía do comum.

        O granjeiro, com um suspiro, jogou uma olhada ao horizonte, onde o sol descendia entre os pinheiros.

- Anda, vamos dentro, MacKenzie. Já que Tom Christie veio à Colina, será melhor que alguém lhe conte isso tudo. Se me der pressa chegará a tempo para jantar.

        Uma vez gastos os tamboretes e servida o leite de manteiga fresca, Kenny Lindsay cumpriu com sua palavra e iniciou o relato. Conforme disse, Christie era escocês das Terras Baixas; sem dúvida MacKenzie já se deu conta disso. Do Edimburgo. Nos tempos da Sublevação tinha uma boa loja na cidade, recém herdada de seu pai. Tom Christie estava decidido a conquistar uma boa posição.

        Com essa ideia na mente, quando o exército do príncipe Tearlach ocupou a cidade, ficou sua melhor roupa e foi ver ou´Sullivan, o irlandês a cargo do comisariado do exército.

- Ninguém sabe o que aconteceu eles, mas Christie saiu dali com um contrato para prover as provisões do exército das Terras Altas e um convite ao baile dessa noite, no Holyrood.

        Kenny bebeu um comprido gole de leite doce. Ao deixar a taça, com o bigode untuoso de branco, fez um gesto sapiente.

- Sabíamos como eram esses bailes de palácio. MAC Dubh nos falava sempre disso. A Grande Galeria, com os retratos de todos os reis de Escócia, e as chaminés de azulejos holandeses, onde se poderia ter assado um boi. O príncipe e todos quão grandes foram ver o, vestidos de seda e encaixe. E que comida, bom Deus! De que comida nos falava!

        Os olhos do Kenny se fizeram redondos e sonhadores ao recordar as descrições escutadas com o estômago vazio. Distraídamente tirou a língua para lambê-la leite do lábio superior. Logo se sacudiu para voltar para o presente.

- Pois bem- disse, despreocupadamente- . Quando o exército abandonou Edimburgo, Christie foi também com eles, não sei se para cuidar seu investimento ou para manter-se à vista do príncipe.

        Roger notou que nessa lista de possibilidades não figurava a idéia de que o homem tivesse atuado por motivos patrióticos. Já fora por prudência ou ambição, Christie se tinha ficado com o exército… muito tempo. Abandonou-o no Nairn, na véspera do Culloden, para iniciar a volta ao Edimburgo, no boléia de uma carreta do comisariato.

- Se em vez da carreta tivesse montado um dos cavalos, talvez teria chegado- comentou Lindsay, cínico- . Mas não: topou com todo um saco do Campbells. Tropas do governo, entende?

        Roger assentiu.

- Dizem que tratou de fazer-se passar por mascate, mas nessa mesma estrada tinha comprado uma carrada de cereal em um afinca, e o granjeiro jurou e perjurou que Christie tinha estado em seu pátio apenas três dias antes, com um distintivo branco no peito. E isso foi tudo. O levaram. Christie foi parar primeiro à a prisão do Berwick; logo, por motivos que só a Coroa sabia, ao Ardsmuir, aonde chegou um ano antes que Jamie Fraser.

- ele e eu chegamos ao mesmo tempo.- Kenny olhou de sua tigela vazio e agarrou a jarra- . Era um cárcere velho, médio ruída, que levava vários anos em desuso. Quando a coroa decidiu reabri-la trouxeram homens daqui e lá; em total seríamos uns cento e cinqüenta. A maioria, jacobitas sentenciados. Algum ladrão e um ou dois assassinos.

        Para proteger-se ou por consolo, formaram-se pequenos grupos que estavam em constante conflito. Chocavam como calhaus no fluxo, machucando-se mutuamente de vez em quando, enquanto esmagavam a qualquer pobre diabo que ficasse entre ambos.

- Tudo se reduz a comida e casaco, entende?- explicou Kenny, imparcial- . Em lugares assim não pensa em outra coisa.

        Entre os grupos havia um pequeno núcleo de calvinistas teimados, com o Thomas Christie à cabeça. Compartilhavam a comida e as mantas, defendiam-se mutuamente, comportavam-se com uma santurronería que tirava de gonzo aos católicos.

- Se um de nós estivesse queimando-se, esses não haveriam nem mijado sobre ti para te apagar.- Lindsay moveu a cabeça- . Não roubavam comida, não, mas se plantavam em um rincão a rezar em voz alta, e lhe dê com os agiotas, os idólatras e todo isso! E cuidavam de que nós soubéssemos aos quais se referiam! E então chegou MAC Dubh.

- Algo assim como o Segundo Advento, não?- disse Roger, médio para seus adentros. Surpreendeu-lhe que o granjeiro pusesse-se a rir.

- Só se te refere a que alguns já conhecíamos o Sheumais ruaidh. Não, homem. Trouxeram-no em navio. Sabe que Jamie Roy detesta os navios, verdade?

- ouvi algo disso- respondeu Roger, seco.

- Não sei que ouviste, mas é verdade- assegurou-lhe Kenny, muito sorridente- . Entrou na cela cambaleando-se, verde como uma moça; vomitou no rincão e se arrastou até debaixo de um banco. Ali ficou um ou dois dias.

        Passada a crise, Fraser guardou um tempo silencio, até saber quem era quem e o que era o que. Entretanto, era cavalheiro por natureza, senhor e grande guerreiro, homem muito respeitado entre os escoceses das Terras Altas. Todos o tratavam com deferência natural; pediam-lhe opinião, procuravam seu julgamento e os fracos se amparavam em sua presença.

- Isso foi como um mazazo para o Tom Christie- disse Kenny, movendo sabiamente a cabeça- . Tinha chegado a pensar que era a rã maior do lago, entende?

- Entendo, sim. E não gostou de ter um competidor, né?

- Talvez não teria sido tão grave se a metade de sua pequena banda não tivesse começado a escapar de suas rezas para escutar o que MAC Dubh contava. Mas o pior foi o do novo alcaide.

        Bogle, o alcaide originário, tinha sido substituído pelo coronel Harry Quarry , homem relativamente jovem, mas militar experiente, que tinha combatido no Falkirk e no Culloden. A diferença de seu predecessor, tinha certo respeito por quão prisioneiros tinha sob seu mando. E posto que conhecia a reputação do Jamie Fraser, tratava-o como a um inimigo derrotado, mas honorável.

- Pouco depois de assumir o cargo no Ardsmuir, Quarry fez que lhe levassem ao MAC Dubh ante sua presença. Não sei o que aconteceu entre eles, mas logo se converteu em um costume: uma vez por semana os guardas o levavam para que se barbeasse e se lavasse; logo subia para jantar algo com o Quarry e lhe falava do que fizesse falta.

- E ao Tom Christie tampouco gostou disso- adivinhou Roger.

        Começava a formar uma ampla imagem do Christie: ambicioso, inteligente… e invejoso. Era hábil por si mesmo, mas a diferença do Fraser, não tinha nascido em bom berço nem era hábil para a guerra, vantagens que bem podiam resentir a um comerciante com aspirações sociais, até antes da catástrofe do Culloden.

        Kenny moveu a cabeça e a jogou para trás para esvaziar sua taça. Logo, com um suspiro de satisfação, assinalou a jarra com um movimento de sobrancelhas. Seu visitante disse:

- Não, já basta, obrigado. Mas os maçons… como aconteceu? Diz que teve que ver com o Christie?

- Pois verá...- continuou Kenny- . Ao Christie não gostou de nada que MAC Dubh fora o grande; ele acreditava que esse lugar lhe correspondia por direito.- Cravou um olhar ardiloso e avaliador no Roger- . Acredito que não sabia o que costa ser chefe em um lugar assim. Descobriu-o mais adiante. Mas isso não tem nada que ver.- Agitou uma mão, descartando o irrelevante- . O caso é que Christie também era chefe, só que não tão bom como MAC Dubh. Mas havia quem o escutava, e não só entre os chupacirios.

- De verdade?

- Houve mais problemas- esclareceu- . Pequenezes, sim, mas o barruntabas.

        Mudanças e cismas, os pequenos enguiços e fraturas que resultam quando duas massas terráqueas se encontram e se empurram, até que entre elas se levantam montanhas ou uma é subsumida pela outra, em uma ruptura de rocha e terra.

- Dávamo-nos conta de que MAC Dubh estava pensativo, mas ele não está acostumado a dizer a ninguém o que pensa, verdade?

        “ A quase ninguém” , pensou o jovem súbitamente, recordava a voz do Fraser, tão baixa que apenas se ouvia sobre o gemido do vento outonal. “ me disse isso.” O pensamento foi um pequeno calor repentino em seu peito, mas o apartou por não distrair-se.

- Uma noite MAC Dubh voltou para nós bastante tarde, mas em vez de deitar-se a descansar nos chamou. A mim e a meus irmãos, ao Gavin Hayes, Ronie Sinclair… e Tom Christie.

        Fraser tinha despertado silenciosamente aos seis homens para levá-los até uma das poucas janelas da cela, onde a luz do céu noturno lhe iluminava o rosto. Os homens se reuniram a seu redor, com os olhos inchados e os dores da jornada, sem saber o que significaria aquilo. Do último enfrentamento (uma rixa entre dois homens por um insulto sem importância), Christie e Fraser se mantinham afastados.

        Ao princípio, Fraser não disse uma palavra; limitou-se a sorrir, e alargou a mão para o Tom Christie. O outro vacilou um momento, suspicaz… mas não havia alternativa.

- Qualquer haveria dito que MAC Dubh tinha um raio na mão, pela impressão que recebeu Christie. Não sei como se inteirou MAC Dubh de que Christie era maçom, mas assim foi. Terei que ver sua cara quando compreendeu que Jamie Roy também o era! Foi obra do Quarry- explicou, ao ver a pergunta na expressão do Roger- . Ele era um professor.

        Um professor maçom, chefe de uma pequena loja maçônica militar, composta pelos oficiais da guarnição. Como um dos membros acabava de morrer, faltava-lhes um homem para completar os sete requeridos. depois de estudar a situação e explorá-la em algumas conversações cautelosas, convidou ao Fraser a unir-se os depois de tudo, um cavalheiro era sempre um cavalheiro, jacobita ou não.

        Não era uma situação muito ortodoxa, disse-se Roger, mas esse Quarry parecia dos que adaptam os regulamentos a sua conveniência. Também Fraser.

- De modo que Quarry o iniciou. Em um mês passou de aprendiz a artesão e um mês mais tarde era professor. Foi então quando nos decidiu dizer isso E essa mesma noite fundamos uma nova loja maçônica, nós sete: a segunda loja maçônica do Ardsmuir.

        Roger lançou um bufo de risada ao imaginá-lo.

- Vós seis… e Christie.- Tom Christie, o protestante. E o homem, honorável em sua rigidez, não teve mais remedeio que respeitar seu juramento maçônico e aceitar como irmãos ao Fraser e a seus católicos.

- Para começar. Mas aos três meses todos os das celas eram aprendizes. E a partir de então não houve tantos distúrbios.

- Não acredito que ao Jamie tenha prejudicado pertencer à loja maçônica dos oficiais- observou Roger.

- Pois… suponho que não- respondeu Lindsay, vagamente.     

        Logo apartou o tamborete para levantar-se. O relato tinha terminado, já era de noite e terei que acender uma vela. Não deu um só passo para a palmatória de terracota que estava sobre o lar, mas Roger notou pela primeira vez que não cheirava a comida no fogo.

- É hora de ir a por meu jantar- disse, levantando-se- . Quer me acompanhar?

        O homem se animou visivelmente.

- Com gosto, ao Smeòraich. me dê um minuto para ordenhar as cabras e estarei contigo.

 

        À manhã seguinte, depois de um delicioso café da manhã, encontrei ao Jamie acordado.

- Como está?- perguntei, enquanto deixava a bandeja que lhe tinha levado para lhe apoiar uma mão na frente. Ainda tinha febre, mas não tanta como no dia anterior.

- Preferiria estar morto. Assim ao menos a gente deixaria de me perguntar como me encontro- respondeu, resmungão.

        Interpretei seu estado de ânimo como sinal de que voltava para a saúde.

- O que me trouxeste para tomar o café da manhã?- ficou de lado para retirar o guardanapo que cobria a bandeja. Ao ver a tigela de pão com leite me olhou para me acusar da mais profunda traição. antes de que pudesse adicionar outra queixa me sentei no tamborete, a seu lado, e lhe perguntei sem rodeios:

- O que acontece Tom Christie?

        Ele piscou, pego por surpresa.

- por que? Há algo de mau nele?

- Não sei. Não o vi.

- Pois eu tampouco o vi em mais de vinte anos- disse, agarrando a colher para remover suspicazmente o pão com leite- . Se neste tempo lhe brotou uma segunda cabeça, para mim é toda uma novidade.

- Ja!- exclamei, tolerante- . É possível, só possível, que tenha enganado ao Roger. Mas eu te conheço.

        Ante isso levantou a vista e sorriu de flanco.

- Sim? Sbías que eu não gosto de muito o pão com leite?

- Se pretende me extorquir para que te traga uma chuleta, esquece-o- aconselhei-lhe- . o do Tom Christie pode esperar, se for preciso.

- me traga parritch com mel e lhe contarei isso.

        Ao me voltar lhe descobri sonriendo de orelha a orelha.

- Trato feito.- Voltei para meu tamborete.

        Ele refletiu um momento, mas compreendi que só procurava a maneira de começar.

- Roger me contou o da loja maçônica maçônica do Ardsmuir- disse, para ajudá-lo.- Ontem à noite.

        Olhou-me com surpresa.

- E ele como o soube? O há dito Christie?

- Não, foi Kenny Lindsay. Mas ao parecer, Christie lhe fez um sinal maçônico a sua chegada. Em realidade, eu acreditava que aos católicos não nos permitia ser maçons.

        Ele arqueou uma sobrancelha.

- É que a Batata não esteve na prisão do Ardsmuir e eu sim. Mas ignorava que estivesse proibido. Assim Roger também é maçom, né?

- Assim parece. E talvez agora não esteja proibido. Isso virá depois.- Descartei o tema com um gesto da mão- . Mas voltando para o Christie, há algo mais, verdade?

        Ele apartou a vista.

- Sim- disse em voz baixa- . Lembra-te de certo sargento Murchison, Sassenach?

- Vividamente.- Tinha visto o sargento uma só vez, no Cross Creek, mais de dois anos antes. Mas o nome me parecia familiar em relação com um pouco mais recente. Então recordei onde o tinha ouvido.

- Mencionou-o Archie Hayes. Eram dois. Gêmeos. Um deles foi o que disparou contra Archie no Culloden, não foi assim?

- Sim. Era o que cabia esperar desses dois, que disparassem contra um menino a sangue frio. Nunca conheci a um casal tão cruel.- Contraiu a boca, mas sem humor- . Se algo bom tiver feito Stephen Bonnet em sua vida é matar a um desses dois vadios.

- E o outro?- perguntei.

- Ao outro o matei eu.

- por que?- perguntei, vagamente surpreendida ante a serenidade de minha própria voz.

        Então, apartou a vista.

- Por cem razões e por nenhuma- disse em voz baixa. esfregou-se a boneca com ar distraído, como se ainda sentisse o peso dos grilhões- . Poderia te contar exemplos de sua crueldade, Sassenach, e todos seriam certos. enfureciam-se com os fracos, roubavam, golpeavam… e eram dos que desfrutavam da crueldade gratuita. Em uma prisão não havia recursos contra essa gente. Mas não o digo para me justificar. Não há justificação.

        Aos prisioneiros do Ardsmuir os submetia a trabalhos forçados: cortar lenha, picar pedras, as conduzir. Trabalhavam em pequenos grupos, cada um sob a custódia de um soldado inglês armado de mosquete e clava.

- Era verão. Conhece o verão das Terras Altas, Sassenach? A meia luz?

        Assenti. A meia luz estival da noite das montanhas escocesas, a princípios do verão. Tão perto do pólo norte, no solstício do verão o sol apenas fica; desaparece sob o horizonte, mas até a meia-noite o céu se mantém claro e leitoso. O alcaide da prisão aproveitava de vez em quando essa luz para fazer que os prisioneiros trabalhassem até muito entrada a noite.

- Não nos incomodava tanto- disse Jamie. Tinha os olhos abertos, mas fixos no que via, na meia luz estival de sua memória- . Era melhor estar fora que dentro. Mesmo assim, de noite estávamos tão esgotados que logo que podíamos pôr um pé diante do outro.

        Ao terminar a jornada, tanto os guardas como os homens estavam intumescidos pelo esgotamento. reunia-se aos distintos grupos de prisioneiros e os formava em coluna para que partissem de retorno ao cárcere, arrastando os pés pelos brejos, a tropeções e cambaleantes, bêbados pela necessidade de deitar-se e dormir.

- Ainda estávamos junto à pedreira. Devíamos carregar na carreta as ferramentas e os últimos blocos; logo, seguir a outros. Lembrança que levantei um bloco grande e dava um passo atrás, ofegando pelo esforço. detrás de mim se ouviu um ruído. Ao me voltar, vi o sargento Murchison. Era Billy, mas isso não soube até depois.

        O sargento era só uma forma achaparrada na meia luz, invisível a cara contra o céu, cujo matiz era o de uma concha de ostra.

- de vez em quando me pergunto se o teria feito, de lhe haver visto a cara.- Os dedos de sua mão esquerda acariciaram distraídamente a boneca; compreendi que ainda sentia o peso dos ferros.

        O sargento tinha levantado a clava para lhe dar um forte golpe nas costelas; logo a usou para assinalar uma maça abandonada no chão e lhe voltou as costas.

- Não o pensei nem um momento- disse Jamie, com voz fica- . Em dois passos caí contra ele e lhe apertei o pescoço com a cadeia de meus grilhões. Não teve tempo de fazer um só ruído.

        A estrada estava a três metros escassos do bordo do precipício, com uma queda a pico de doze metros; abaixo, trinta metros de água negra e serena, baixo esse vácuo céu branco.

- Atei-o a um dos blocos e o arrojei. Logo voltei para a estrada. Ali estavam os dois homens de meu grupo, como estátuas, me observando à meia luz. Não disseram nada; eu tampouco. Subi e me fiz cargo das rédeas; eles subiram à parte traseira. Alcançamos à coluna e continuamos juntos, sem dizer uma palavra. Ninguém sentiu falta de ao sargento Murchison até a noite seguinte, pois se pensou que estava de licença na aldeia. Não acredito que o encontrem jamais.

        Então pareceu tomar consciência do que estava fazendo e apartou a mão da boneca.

- E os dois homens?- perguntei pelo baixo.

- Tom Christie e Duncan Innes.

        Suspirou profundamente. Logo estirou os braços, movendo os ombros para acomodá-la camisa, embora era folgada. Por fim levantou a mão para girar a de um lado a outro.

- Que estranho- disse, observando a boneca à luz.

- Que coisa?

- As marcas. desapareceram.

- As marcas… dos grilhões?

        Assentiu.

- Tive-as durante anos. Pelos roce, compreende? Não sabia que tivessem desaparecido.

- Quando te encontrei no Edimburgo, Jamie, já não as tinha. Desapareceram faz muito tempo.

        Olhou-se os braços e moveu a cabeça, como se lhe custasse acreditá-lo.

- Sim- disse pelo baixo- . Bom, também Tom Christie.

 

A casa estava em silêncio e era muito tarde para que a gente da Colina viesse de visita. Todos estariam atarefados em dar de comer às bestas, conduzir lenha e água, e acender o fogo para o jantar.

        Agarrei do armário pluma, tinta e o grande registro de casos. Logo, apontei uma cuidadosa descrição do tumor que o pequeno Geordie Chisholm tinha na orelha, que requeria observação, e acrescentei quão medidas tinha tomado recentemente à mão esquerda do Tom Christie.

        O homem sofria de artrite nas duas mãos e tinha os dedos um pouco encolhidos, mas detrás havê-lo observado atentamente durante o jantar, estava quase segura de que o de sua mão esquerda não era artrite, a não ser contractura do Dupuytren: uma estranha retração dos dedos anelares e mindinho para a palma da mão, produzida pelo encurtamento da aponeurosis palmar.

        Em realidade, não tinha que havê-lo duvidado, mas as mãos do Christie Estavam tão calejadas pelos anos de trabalho que não chegava a apalpar o nódulo característico na base do anular, Tinha notado que o dedo tinha um aspecto estranho ao lhe suturar um talho na mão. Após o controlava cada vez que podia persuadir o de que me permitisse examiná-lo, coisa que não acontecia freqüentemente.

        face às apreensões do Jaime, os Christie eram até o momento os arrendatários perfeitos; levavam uma vida tranqüila e apartada, salvo pelas classes do Thomas, que parecia ser um professor estrito, mas efetivo.

        Estive lhe dando voltas à maneira de descrever a contractura do Depuytren sem lhe dar esse nome, posto que o barão Depuytren ainda não tinha nascido. Mas uma imagem vale mais que mil palavras, e eu me acreditava capaz de realizar um desenho linear mais ou menos real. Enquanto o tentava, perguntei-me como obter que Thomas Christie me permitisse lhe operar a mão.

        Era um procedimento bastante rápido e simples, salvo pela falta de anestesia e o fato de que Chistie fora abstêmio e presbiteriano estrito.

        Bocejei, abandonando momentaneamente o problema e retrocedi umas quantas páginas. Queria admirar o pulcro desenho que tinha feito da mordida ofídica e a hipodérmica da Brianna.

        Para minha surpresa, a perna tinha curado bem; houve bastante desprendimento de malhas, mas as cresas se ocuparam disso com muita efetividade; só ficaram duas pequenas depressões na pele, ali onde a víbora tinha parecido as presas, e a fina cicatriz da incisão que eu fiz para limpar as malhas e colocar os vermes. Jaime ainda mancava um pouco, mas isso podia desaparecer com o tempo.

        Cantarolando de pura satisfação, retrocedi umas poucas páginas mais e joguei uma olhada às últimas notas apontadas pelo Daniel Rawlings.

        Josephus Howard... sendo sua doença principal uma fístula do reto, junto com um caso avançado de hemorroides. Tratado com um cozimento de hera terrestre, mesclada com ilumine de potássio e uma pequena quantidade de mel, fervida junto com suco de malmequer.

 

        Uma nota posterior da mesma página, datada um mês mais tarde, referia-se à eficácia deste composto, com ilustrações do estado do paciente antes e depois do tratamento. Observei o desenho; Rawlings não era melhor desenhista que eu, mas tinha conseguido captar notavelmente a moléstia intrínseca do transtorno.

        Acrescentei uma nota à margem, apontando que convinha recomendar uma dieta rica em hortaliças fibrosas como apoio ao tratamento, útil também para acautelar a constipação.

        Jaime já estava em seu estudo. Em um momento me reuniria com ele.

        Quase o passei por cima. Estava pontudo ao dorso do desenho da fístula, obviamente tinha sido acrescentado como comentário casual às atividades do dia.

        falei com o senhor Hector Cameron, do River Run, quem me roga vá examinar os olhos de sua esposa, cuja vista está gravemente afetada. A plantação está a grande distancia, mas enviará um cavalo.

        Incorporei-me para passar a página, fascinada. Queria ver se na verdade o doutor tinha examinado a Yocasta. Certa vez, com alguma dificuldade, tinha-a persuadido de que me permitisse lhe examinar os olhos, e tinha curiosidade por conhecer as conclusões do Rawlings. A falta de oftalmoscopio não havia maneira de saber com certeza a causa de sua cegueira, mas eu tinha uma forte suspeita. E ao menos podia eliminar causas tais como as cataratas e a diabetes.

Perguntei-me se Rawlings teria visto algo que eu tivesse passado por cima ou se seu estado teria piorado notavelmente após.

        Sangrei ao ferreiro (uma pinta), purguei a sua esposa com azeite de sena e administrei ao agto três gostas do mesmo (grátis), depois de ter observado um pulular de vermes nos sedimentos do animal.

        Isso me fez sorrir; por toscos que fossem seus métodos, Daniel Rawlings era bom médico. Perguntei-me uma vez mais o que teria sido dele e se alguma vez poderia conhecê-lo. Não seria assim; não concebia que um médico não retornasse a reclamar instrumentos tão bons como os seus, se estava em situação de fazê-lo.

        Acicateado por minha curiosidade, Jaime fazia algumas averiguações, mas sem resultados. Daniel Rawlings tinha partido para a Virginia, deixando atrás sua caixa de instrumentos, para desaparecer sem deixar rastro.

        Outra página, outro paciente; sangrados, purgações, ampolas abertas a lanceta... Rawlings tinha tido muito que fazer no Cross Creek, mas teria chegado ao River Run?

        Sim, ali estava, uma semana e várias páginas depois.

        Cheguei ao River Run depois de uma viagem espantosa. Parti para amanhecer com o servente negro do senhor Cameron, que me trouxe um cavalo. Não cheguei a lugar seguro até muito depois do obscurecer, exausto e esfomeado. O senhor Cameron me recebeu cordialmente com brandy.

        Depois de ter feito o gasto de procurar um médico, Hector Cameron deveu querer aproveitá-lo, pois fez que Rawlings examinasse a todos os escravos e serventes, e também a ele mesmo.

        Setenta e três anos de idade, estatura meia, largo de ombros, mas um pouco curvado. Mãos tão deformadas pelo reumatismo que não pode dirigir nenhum elemento mais sutil que uma colher. Pelo resto está bem conservado e muito vigoroso para sua idade. queixa-se de despertar de noite, micções dolorosas, Inclino-me por suspeitar uma doença luxurioso da bexiga antes que cálculos ou enfermidade crônica das partes viris interiores, pois o transtorno é recorrente, mas se prolonga muito tempo em cada ocasião, sendo a duração média de cada ataque de duas semanas, acompanhado por irritação do órgão masculino. Febre leve, sensibilidade ao apalpar a zona baixa do abdômen e urina negra, de aroma forte, todo o qual apóia minha opinião.

        Como na casa há uma boa quantidade de arándanos secos, receitei uma infusão, de cujo suco tem que beber três taças ao dia. Também recomendei uma infusão de galio, a beber pela manhã e de noite, por seus efeitos refrescantes e se por acaso houvesse areia fina presente na bexiga, o qual poderia agravar esse transtorno.

        Descobri-me fazendo gestos de aprovação. Não sempre estava de acordo com o Rawlings, quanto a diagnóstico ou tratamento, mas neste caso parecia ter dado no branco. Mas o que teria passado com a Yocasta? Ali estava, na página seguinte.

        Yocasta Cameron, sessenta e quatro anos de idade, trigrávida, bem alimentada e em bom estado general de saúde, de aspecto muito juvenil.

        Não há sinais de enfermidade orgânica nem dano externo dos olhos. O branco está claro; as pestanas, livres de substância alguma; não há tumor visível. As pupilas respondem normalmente se se passar uma luz ante elas e quando a vela. Ao aproximar um candil pelo flanco, o humor vítreo do olho se ilumina sem mostrar defeitos interiores. Noto um leve enturbiamiento que indica uma catarata incipiente na lente do olho direito, mas isto não basta para explicar a perda gradual da vista.

.- Hum- disse em voz alta. As observações do Rawling coincidiam com as minhas. A ontinuación apontava o tempo em que se produziu a perda da vista (aproximadamente dois anos) e o processo, que não tinha sido abrupto, a não ser um encolhimento paulatino do campo visual.

        Provavelmente o período tinha sido mais largo; às vezes a perda era tão gradual que a gente não se precavia até que a vista chegava a estar em grave perigo.

        ...fragmentos de visão cortados como fatias de queijo. Até o que subtração da faculdade é só útil a meia luz, pois a paciente exibe grande irritação e dor quando se expõe o olho a forte luz do sol.

        Vi outros dois casos deste transtorno, sempre em pessoas de certa idade, embora não tão avançado. Minha opinião é que logo a vista desaparecerá por completo, sem que seja possível melhorá-la. Por sorte o senhor Cameron tem um servente negro que sabe ler e o pôs a disposição de sua esposa, para que a acompanhe e lhe advirta da presença de obstáculos, além de lhe ler e lhe dar conta de quanto a rodeia.

        Agora a luz tinha desaparecido e Yocasta estava completamente cega. Com que se tratava de uma doença progressiva; isso não me dizia muito, pois quase todas o eram. Em que data a teria visto Rawlings?

        Podia ser qualquer entre muitas enfermidades: degeneração macular, tumor do nervo óptico, lesão como parasitas, retinitas pigmentosa, arteritis temporário..., mas minha suspeita preliminar era que se tratava de um glaucoma. Recordei que Fedra, enquanto molhava panos com chá frio, havia dito que sua senhora sofria “outra vez” de dores de cabeça, como se se tratasse de algo freqüente. E Duncan me tinha pedido que lhe fizesse um travesseiro de alfazema para lhe aliviar as enxaquecas.

        Mas esses dores de cabeça podiam não ter relação alguma com a vista. Por então eu não tinha perguntado como eram; talvez se tratasse de simples tensão nervosa, em vez da banda de pressão que está acostumado a acompanhar ao glaucoma. depois de tudo, uma arteritis também teria provocado dores de cabeça freqüentes. O te frustrem era que o glaucoma, por si só, não tinha sintomas previsíveis, salvo a cegueira final. devia-se a uma falha na drenagem do fluido ocular, de modo que a pressão interna do olho aumentava até provocar lesões, sem que o paciente nem seu médico recebessem advertência alguma. Mas havia outros casos de cegueira asintomáticos.

        Enquanto contemplava essas possibilidades caí na conta de que Rawlings tinha contínuo com suas notas no dorso da página... mas em latim.

        Par padeé, um pouco surpreendida. notava-se que aquilo era continuação da passagem anterior; a escritura a pluma apresenta um característico obscurecimento e descoloração das palavras, conforme se vai renovando a tinta ao molhar a pluma. Os matizes de cada anotação tendiam a ser diferentes ao trocar de tinta. Não: isso tinha sido escrito ao mesmo tempo que a página precedente.

        Mas por que o passo repentino ao latim? Obviamente, Rawling sabia um pouco dessa língua, o qual revelava que tinha recebido certa instrução formal, embora não na ciência médica. Mas normalmente não o utilizava para suas notas clínicas, além de alguma frase ou palavra ocasional, requerida para a descrição de uma doença. Ali, em troca, havia uma página e meia escritas em latim.

        Folheei o livro para trás para verificar minha impressão. Havia um pouco de latim aqui e lá, mas com pouca freqüência e sempre de igual modo: como continuação de um parágrafo começado em inglês. Era muito estranho. Voltei para a parte referida ao River Run, com intenção de decifrá-la.

        depois de uma ou duas frases abandonei o esforço e fui em busca do Jaime. Estava em seu estudo escrevendo cartas.

        O tinteiro estava à mão, bem cheio, e no escritório havia uma pluma de peru nova. No secante, uma página quase em branco, com três palavras negras e solitárias na cabeceira. Bastou-me lhe ver a cara para saber o que diziam: “Minha querida irmã.”

        O levantou a vista com um sorriso irônico e se encolheu de ombros.

O que posso lhe dizer?

Não sei.

Não posso seguir lhe dizendo que o lamento. –Fez girar lentamente o canhão entre entre o polegar e o dedo médio- . O hei dito em todas as cartas. Se estivesse disposta a me perdoar...

Nesse caso Jenny teria respondido ao menos a uma das cartas que ele enviava fielmente ao Lallybroch, mês a mês.

Ian te perdoou. E os meninos também.- Esporadicamente chegavam missivas do cunhado do Jaime, junto com ocasionais nota do Jovem Jaime e, de vez em quando, umas linhas do Maggie, Kitty, Michael ou Janet. Mas o silêncio do Jenny era tão ensurdecedor que afogava qualquer outra comunicação.

Certamente, seria pior que... –Deixou morrer a frase, com a vista perdida no papel. Em realidade, nada podia ser pior que esse distanciamento.

Ela tinha compartilhado seu coração e sua alma desde dia em que nasceu... até o momento em que, por culpa dele, perdeu ao menor de seus filhos. Ao menos assim o via Jenny.

        Doía-me ver que ele ainda carregava com a culpa do desaparecimento do Ian... e sentia algum ressentimento contra Jenny. Embora compreendia o fundo de sua perda e me solidarizava com sua dor, Ian não tinha morrido, até onde sabíamos. Só ela podia absolver ao Jaime; sem dúvida sabia.

        Por um tempo tínhamos suposto que a carta do Jenny se perdeu no caminho, simplesmente. Mas depois de tanto tempo eu já não tinha esperanças. Jaime Sim.

        - Me ocorreu que devia lhe enviar isto.- Procuro entre os papéis até encontrar uma folha pequena, manchada e suja; o bordo banguela revelava que tinha sido arranco de um livro.

        Era uma mensagem do Ian, única prova concreta de que o moço ainda estava são e salvo. Tínhamo-la recebido em novembro, durante a congregação, através do John Quinze Myers, montanhês que percorria o páramo.

        A nota, escrita em torpe latim a maneira de brincadeira, assegurava que Ian estava bem e que era feliz. casou-se com uma moça “à maneira mohawk”; esperava ser pai na primavera. Isso era tudo. A primavera tinha passado sem mais notícias. Ian não tinha morrido, mas era quase igual. As possibilidades de que voltássemos a vê-lo eram remotas e Jaime sabia. Jaime tocou brandamente o miserável papel. Tinha-lhe contado ao Jenny o que dizia a nota, mas sem lhe enviar o original, e eu sabia por que: era seu único vínculo material com o Ian; desprender-se dele era, de algum modo, entregá-lo definitivamente aos mohawks.

        “Ave! –dizia a nota- . Ian salutat avunculus Jacobus.” Ian saúda seu tio James.

        Para o Jaime era mais que um sobrinho. Ian era especial, um filho adotivo, como Fergus. Mas a diferença do Fergus, levava seu mesmo sangue e, em certo modo, substituía ao filho varão que tinha perdido. Esse outro filho tampouco tinha morrido, mas jamais poderia reclamá-lo.

        - Sim –disse, com um nó na garganta- . Acredito que deveria enviá-la. Deveria estar em poder do Jenny, até se...

        de repente a nota me fez recordar o registro de casos. Agarrei-o, com a esperança de distrair ao Jaime.

        - Hum, falando de latim... aqui tenho um fragmento estranho. Poderia lhe jogar uma olhada?

        - É obvio.- Deixou a um lado a nota do Ian para receber o livro; moveu-o de modo tal que o último raio de sol caísse sobre a página. Logo franziu ligeiramente o sobrecenho.

        - Caramba, este homem sabe tão pouca gramática latina como você, Sassenach.

        - Mil obrigado. Não todos podemos ser eruditos sabe? –Aproximei-me um pouco mais para olhar sobre seu ombro.

        - “Uma raridade...”- disse Jaime, traduzindo com lentidão, enquanto passava o dedo pela página- . “Estou acordado...” Não, acredito que quis dizer “Despertaram ruídos na quarto contigüa. Estou acreditando”... ou seja, acreditei... “que meu paciente ia urinar, e me estou levantando para segui-lo”. por que, pergunto-me?

        - O paciente –informei ao Jaime- , que era Hector Cameron, tinha um transtorno na bexiga. Provavelmente Rawlings queria vê-lo urinar para ver no que consistia a dificuldade, se havia dor, sangre na urina, esse tipo de coisas.

        - Homo procediente... o homem procede... por que diz “o homem”em vez de usar seu nome?

        - Escribia em latim para guardar o secreto –disse, impaciente por escutar o que seguia- . Suponho que, se Cameron via seu nome no livro, sentiria curiosidade. Mas o que passou?

        - “O homem sai...”Da casa ou só de seu quarto? Da casa, tem que ser. “...e eu o sigo. Caminha a passo firme, com celeridade...”E por que não? Ah, aqui está. “Me desconcerto. Dou-lhe... dei-lhe doze grãos de láudano.”

        - Doze grãos? Está seguro de que isso é o que diz? –Inclinei-me sobre seu braço para olhar. Ele assinalou a anotação, inscrita claramente a branco e negro- Mas é uma dose suficiente para tombar a um cavalo!

        - Sim, “...doze grãos de láudano para ajudar ao sonho”, diz. Agora se explica que ao doutor lhe intrigasse ver o Cameron brincando de correr pelo prado em plena noite.

        Dava-lhe uma cotovelada.

        - Segue!

        - Hum, Pois bem, diz que foi a letrina, sem dúvida esperando encontrar ali ao Cameron, mas não havia ninguém e não havia aroma A... né... não parecia que alguém tivesse estado ali recentemente.

        - Não precisa falar com delicadeza só por mim- observei.

        - Sei –disse ele, muito sorridente- . Mas minha própria sensibilidade não calejou ainda, em que pese a meu comprido contato contigo, Sassenach.

        - Esquece sua sensibilidade, por favor –disse, golpeando o chão com um pé- . Onde estava Cameron?

        Ele percorreu a página com a vista, formando as palavras com os lábios.

        - Ele não sabe. Vagou por ali até que o mordomo saiu de seu buraco, tomando-o por um merodeador, e o ameaçou com uma garrafa de uísque.

        - Que arma mais formidável! –comentei, sorridente, imaginando ao Ulises em gorro de dormir, esse blandiendo implemento destrutivo- . Como se diz em latim “garrafa de uísque”?

        - Ele diz aqua vitae; sem dúvida é o mais aproximado que encontrou. Mas deve ter sido uísque, pois diz que o mordomo lhe deu uma medida para lhe curar o susto.

        - Com que não achou ao Cameron?

        - Sim, ao separar-se do Ulises. Estava roncando em seu branco leito. À manhã seguinte perguntou, mas Cameron não recordava haver-se levantado de noite.- Voltou a página com um dedo- É possível que o láudano lhe impedisse de recordar?

- Pode ser, sim – disse, com as sobrancelhas franzidas- . É muito possível. Mas me parece incrível que tenha podido andar por aí com tanto láudano no corpo... a menos que... –Arqueei uma sobrancelha ao recordar os comentários que Yocasta fazia durante nossa discussão, no River Run- . Há alguma possibilidade de que seu tio Hector consumisse ópio ou algo pelo estilo? Se estava habituado a tomá-lo em grandes quantidades teria desenvolvido tolerância.

- Nunca ouvi nada disso. Mas não havia motivos para que me dissessem isso.

        E a verdade. Se Hector Cameron tinha médios para permitir o consumo de narcóticos importados, era assunto exclusivamente dele. Mesmo assim, alguém o teria mencionado.

        A mente do Jaime circulava por outros caminhos.

        - Para que sair da casa em plena noite se só queria urinar, Sassenach? –perguntou- . Sei que Cameron tinha uma bacinilla. Eu mesmo a usei. Tinha seu nome e o escudo dos Cameron pintados no fundo.

        - Excelente pergunta. –Cravei a vista na página cheia de ganchos de ferro crípticos- . Se o homem sofria grandes dores ou dificuldade para urinar, como quando se expulsa um cálculo renal, pôde ter saído para não despertar aos da casa.

        - Não soube que meu tio fora consumidor de ópio, mas tampouco que tivesse muita consideração por sua esposa ou seus serventes.

        - Sem dúvida por isso sua tia se leva tão bem com o Duncan.

        - Ecce homo- murmurou Jaime, pensativo- Um homo francês, possivelmente?

        - O que? –Olhei-o com fixidez.

        - Não te ocorreu, Sassenach, que o homem a quem o doutor seguiu pôde não ser Cameron?

           - até agora não, não me tinha ocorrido. – Inclinei-me para estudar a página- . Mas por que devia ser outro, francês além disso?

Jaime assinalou o bordo da página; ali havia uns pequenos desenhos que me pareceram ganchos de ferro. Um deles era uma flor de lis.

           - Ecce homo –repetiu, tocando-o- . O doutor não estava seguro do homem ao que seguia; por isso não o chama por seu nome. Se Cameron estava drogado, foi outro o que saiu essa noite da casa; entretanto ele não menciona que houvesse ninguém mais ali.

         - Mas poderia não mencioná-lo porque não o comprovou –argüi- . Às vezes adiciona notas pessoais, mas quase todas são estritamente descrições de casos, suas observações sobre os pacientes e os tratamentos aplicados. Mesmo assim... –Franzi as sobrancelhas- . Uma flor de lis rabiscada na margem não tem por que significar nada, muito menos que houvesse um francês ali.

Além do Fergus, não havia na Carolina do Norte muita gente dessa nacionalidade. A flor de lis podia ser um simples gancho de ferro feito ao azar; entretanto não havia outros no livro. Quando Rawlings incluía desenhos, estes eram esmerados e vinham ao caso; utilizava-os como avisos ou como guia par qualquer médico que o seguisse.

Sobre a flor de lis havia uma figura que parecia um triângulo, com um pequeno círculo no vértice e uma base curva; abaixo, uma seqüência de letras. Au et aq.

- Au... ou –disse lentamente- . Aurum.

- Ouro? –Jamie levantou a vista para mim, surpreso. Assenti.

- s a abreviatura científica de ouro, sim. “Aurum et aqua”, ouro e água. Suponho que se refere a goldwasser, pequenas escamas de ouro suspensas em uma solução aquosa. É um remédio para a artrite. E o curioso é que está acostumado a resultar, embora ninguém sabe por que.

- Custoso –observou Jaime- . Mas suponho que Cameron podia pagá-lo.

- Aqui diz que Cameron sofria de artrite.- Franzi o sobrecenho ante a página e seus crípticas nota à margem- . Possivelmente pensava lhe aconselhar o uso de goldwasser para esse transtorno. Mas não entendo a flor de lis nem isto outro. –Assinalei-o- . Não é o símbolo de nenhum tratamento médico que eu conheça.

Para minha surpresa, Jaime se pôs-se a rir.

- Certamente, Sassenach. É uma bússola maçônica.

- De verdade? –Levantei a vista, piscando- . Cameron era maçom?

Com um encolhimento de ombros, passou-se uma mão pelo cabelo.

- Rawlings também deveu sê-lo –disse; em que pese a sua óbvia relutância a falar do tema, não podia deixar de estabelecer relações lógicas- . Do contrário não teria sabido disto.- Um comprido dedo tocou o signo da bússola.

Eu não sabia o que dizer a seguir, assim alarguei a mão livre para o registro e, para minha surpresa, ele me deteve isso.

- deixe-me isso um pouco mais, Sassenach –disse- . Há algo muito estranho nesta idéia de um maçom francês vagando pelo River Run, em meio da noite. Eu gostaria de saber que mais diz o doutor Rawlings quando escreve em latim.

 

Houve um brilho pardo ante a porta e Adso saiu disprado da encimera, como se alguém tivesse gritado: “Pescado!”. Era segunda de suas paixões: Lizzie, que voltava do abrigo com uma terrina de nata em uma mão, um prato com manteiga na outra e uma grande jarra de leite contra o seio, precariamente sustentada pelas bonecas cruzadas. O gato se enroscou a seus tornozelos como uma corda peluda.

- Nada disso, señorito –lhe disse, alargando a mão para resgatar a jarra de leite.

- Ai, obrigado senhora.- Lizzie relaxou os ombros com um pequeno suspiro- . É que não queria fazer duas viagens.

Estronudó e quis limpá-la nariz com o antebraço, com o que pôs em perigo a manteiga. Eu tirei um lenço do bolso e o peguei ao nariz.

- Encontra-te bem, Lizzie? –Sem esperar resposta, agarrei-a por um braço para rebocá-la até a consulta.

- Estou bem, senhora, de verdade –protestou.

Estava pálida. Lizzie sempre estava pálida, mas esse dia sua pele tinha um matiz estranho que me inquietou. Tinha passado quase um ano desde seu último ataque de malária e, em geral, a via bem, mas...

- Vêem aqui. –Levei-a para um par de tamboretes altos- . Sente-se um momento.

Com óbvia relutância, mas sem atrever-se a protestar, sentou-se com os recipientes em equilíbrio sobre os joelhos. depois de jogar uma olhada ao olhar fixo e predatório do Adso, guardei-os no armário.

Pulso normal. A respiração... bem; não era sibilante nem entrecortada. As glândulas linfáticas da mandíbula estavam inchadas, mas isso não era estranho: a malária as tinha deixado permanentemente dilatadas.

Levantei-lhe uma pálpebra com o polegar para observar o círculo cinza, ansioso. Levianamente estava bem, embora um pouco avermelhado. Mas uma vez mais havia algo estranho em seus olhos, embora me fora impossível determinar o que. Talvez um tintura amarelo na parte branca? Agarrei-a pelo queixo para lhe girar a cara para o flanco, sem que resistisse.

- Olá. Tudo bem? –Roger se deteve no vão da porta, com um ave muito grande e muito morta pendurando da mão.

- Um peru! –exclamei, com uma cálida nota de admiração. O peru eu gostava, sim, mas Jaime e Bree tinham matado cinco durante na semana anterior, com o que nossos jantares adquiriam um sotaque de monotonia.

- Disparou-lhe você mesmo? –perguntei, enquanto me aproximava abnegadamente para admirá-lo.

- Não. –Roger tinha a cara avermelhada pelo sol, o entusiasmo ou ambas as coisas- . Golpeei-o na asa com uma pedra –explicou, orgulhoso- . Logo o persegui e lhe parti o pescoço.

- Estupendo. –Meu entusiasmo era um pouco mais autêntico. Quando o limpássemos não teríamos que tirar munições da carne.

passou-se o ave à mão esquerda para me estender a mão direita, envolta em um pano ensangüentado.

- Enquanto lutava com este sofri um pequeno acidente. Poderia...?

Retirei o pano e franzi os lábios ao ver o que havia debaixo. O peru, em sua luta por salvar a vida, tinha-lhe aberto três talhos trincados no dorso da mão. O sangue estava quase coagulado, mas da punção mais fresca surgiam gotas frescas que corriam pelo dedo até cair ao chão.

- OH!, será um segundo. Vêem te sentar. O limiaré Y... Lizzie! Espera um momento!

A moça, que tinha aproveitado a distração para escapar para a porta, deteve-se como se tivesse recebido um balaço nas costas.

- Mas se estiver bem, senhora –rogou- . De verdade, estou boa.

Em realidade só a tinha detido para que se levasse a manteiga e a nata guardos no armário. Para o leite já era muito tarde; Adso estava erguido sobre as patas traseiras, com a cabeça e os ombros dentro da jarra, da qual surgiam pequenos lhe chape isso O ruído era um eco ao que fazia o sangue do Roger ao cair no chão. E isso me deu uma idéia.

- Me ocorre algo. Volta a te sentar Lizzie. Só quero uma gota de seu sangue.

Lizzie não acostumava desobedecer as ordens de ninguém. Desde muito má vontade, voltou a sentar-se no tamborete junto ao Roger.

- Para que quer sangue? –perguntou com interesse- . Pode tirar da minha toda a que queira. –E levantou sua mão ferida com um grande sorriso.

- É muito generoso –disse, enquanto preparava uma parte de linho e um punhado de portaobjetos- . Mas você não tiveste malária.

- Que eu saiba, não. –Roger observava meus preparativos com profundo interesse.

Lizzie emitiu uma risada desolada.

- Se a tivesse tido saberia, senhor.

- Suponho que sim. –O lhe jogou um olhar compassivo- . É horrível, conforme dizem.

- De verdade. Todos os ossos lhe doem como se os tivesse quebrados por dentro. É como se tivesse fogo nos olhos. de repente te brota o suor a mares e logo vem o frio, como para que lhe partam os dentes de tanto tocar castanholas... –Encolheu o corpo em um estremecimento- . Mas eu acreditava que me tinha passado.

- Isso espero –disse. Com uma parte de pano e álcool destilado, limpei a fundo a gema de seu dedo médio.

Cravei rapidamente a lanceta em sua pele; logo agarrei um portaobjeto e apertei a gema. depois de jogar generosas gotas de sangue em cada uma das três placas de vidro, envolvi-lhe o dedo com o pano e a soltei.

Apressei-me a estirar as gotas com outro portaobjetos limpo e pus os três a secar.

- Isso é tudo, Lizzie –lhe disse, sorridente- . Preparar isto me levará algum tempo.

depois de sacudir o avental, saiu da habitação.

- Dicúlpame por te fazer esperar –roguei ao Roger, enquanto retirava do armário três pequenos recipientes de terracota.

Não se preocupe. –Observava-me com fascinação.

depois de verificar que as manchas de sangue estivessem secas, deslizei cada placa em um recipiente. Já podia dedicar minha atenção a limpar e enfaixar sua mão ferida, um procedimento singelo.

- Não é tão mau como eu pensava –murmurei, lhe limpando o sangue coagulado nos nódulos- . sangrou o bastante. Isso é bom.

- Se você o disser... –Não fez nenhuma careta, mas manteve a cara volta para a janela.

- Assim se limpam as feridas –expliquei, enquanto aplicava um pouco de álcool- . Não precisarei aprofundar tanto para as desinfetar.

Ele inalou com um forte vaio. Logo, para distrair-se, assinalou com a cabeça os portaobjetos postos a encharcar.

- Falando de sangue, o que pensa fazer com a da senhorita ratita?

- É um experimento. Não sei se funcionará, mas fabriquei algumas tinturas a base de novelo. Se alguma delas se fixa ao sangue, poderei ver bem as células vermelhas sob o microscópio... e o que contêm.

- O que contêm? - perguntou-me, interessado.

- Plasmodium vivax –respondi- . O protozoo que causa a malária.

- E se pode ver? Eu acreditava que os gérmenes eram muito pequenos, até para o microscópio.

- É pior que Jaime. –Terminei de limpar com a esponja, enxaguar e secar o dorso da mão; na gaze limpa apareciam pequenos emplastros vermelhos- . Falando de sangue –acrescentei como sem interesse- , sabe, por acaso, a que grupo sangüíneo pertence?

Ante isso arqueou uma sobrancelha escura. Ao fim e ao cabo, eu não tinha querido insinuar-lhe subrepticiamente; só procurava uma maneira de abordar o tema.

- Sim –disse lentamente- . Sou zero positivo.

- Que interessante –disse. Substituí a parte de gaze por um limpo e comecei a aplicar a vendagem.

- Em que medida é interessante? –perguntou ele.

- Moderadamente.

Retirei os portaobjetos, que jorravam tintura rosada e azul. Pus uma a secar contra a jarra de leite; logo intercambiei os outros dois, colocando o rosado na tintura azul e viceversa.

- Há três grupos sangüíneos principais –disse, enquanto soprava brandamente contra o portaobjeto posto a secar- . Mais, em realidade, mas esses três são os que todo mundo conhece. Dizemos que uma pessoa é de tipo sangüíneo A, B ou 0. Como qualquer outra característica, determina-se geneticamente. E como os seres humanos são heterossexuais, em geral, herda de cada um de seus pais a metade dos gens que correspondem a qualquer característica.

- Lembrança vagamente ter estudado isso na escola –disse Roger, cortante- . Mas suponho que agora tem certa importância pessoal, não?

- Não sei. Poderia ser.

O portaobjeto rosado parecia seco; apoiei-o brandamente sob o microscópio e me inclinei para graduar o espelho. Enquanto fazia girar a rodinha de enfoque, olhando pelo ocular, continuei:

- O caso é que esses grupos sangüíneos se relacionam com os anticorpos, uns objetos pequenos, de forma estranha, que as células sangüíneas têm na superfície. Quer dizer: a gente de tipo A tem em suas células uma classe de anticorpos; a gente de tipo B, outra diferente, e a de tipo 0 não tem nenhum.

de repente apareceram os glóbulos vermelhos, levemente coloridos, como fantasmas redondos e avermelhados. Aqui e lá, uma mancha de rosado mais escuro assinalava o que podia ser um pouco de refugos celulares ou, possivelmente, um glóbulo branco, maior. Mas não havia muito mais. Enquanto retirava de seus banhos os outros portaobjetos, prossegui:

- Se um dos pais dá ao filho o gen do sangue tipo 0, e o outro lhe dá o do tipo A, o sangue do menino aparecerá como tipo A, pois o que o exame revela são os anticorpos. Mesmo assim, o menino terá também o gen do tipo 0.

Agitei brandamente um dos vidros no ar para secá-lo.

- Meu tipo sangüíneo é 0. Agora bem: sei que o sangue de meu pai era tipo 0. A fim de que tenha aparecido esse tipo, é necessário que seus dois gens tenham sido 0. portanto, o gen A proveio de minha mãe.

Vendo que em suas facções aparecia a familiar expressão de vacuidade, deixei o portaobjeto cn um suspiro. Bree, depois de desenhar uns esporos de penicilina por meu encargo, tinha deixado junto ao microscópio seu bloco de papel e seu lápis de grafite. Procurei uma folha em limpo.

- Olhe –disse. E desenhei rapidamente um gráfico.

 

                Henry                              Julia

                00 = Tipo 0                     A? = A ou AB

                               Claire

                               0A = Tipo A

 

- Compreende? –Assinalei com a barra de grafite- . Não sei com certeza o tipo de minha mãe, mas não importa; para que eu tenha o tipo sangüíneo A, ela tem que me haver passado esse gen, pois meu pai não o tinha.

O seguinte portaobjeto estava quase seco; pu-lo em seu sítio e me inclinei para olhar pelo ocular.

- Os tipos sangüíneos, esses anticorpos, podem-se ver pelo microscópio? –Roger, estava a minhas costas, muito perto.

- Não –disse, sem levantar a vista- . Este não tem tanta resolução. Mas se podem ver outras coisas. Ao menos, isso espero.

Movi a rodinha uma fração de centímetro e as células surgiram à vista. Ali estavam os glóbulos vermelhos, grumos rosados em forma de disco; aqui e lá, dentro de algumas destas células. O coração me palpitava de entusiasmo.

- Vêem ver! –exclamei com deleite. E fiz a um lado.

Roger se inclinou, intrigado.

- O que é o que vejo? –perguntou, entortando os olhos.

Plasmodium vivax –respondi, orgulhosa- . Malária. Esses pequenos grumos escuros que estão dentro das células.

Eu ia e vinha, recolhendo os refugos de minhas operações. Quando me agachei para recolher o pano ensangüentado com que ele se envolto a mão, perguntou:

- E sabe o tipo sangüíneo do Bree, certamente.

- Tipo B –disse, com a vista na caixa de ataduras- . Bastante estranho, sobre tudo entre as pessoas brancas. encontra-se principalmente em populações pequenas e bastante isoladas.

- Populações pequenas e isoladas. Os montanheses de Escócia, por exemplo?

Elevei o visto.

- Possivelmente.

Ele assentiu em silêncio; era óbvio que refletia. Logo agarrou o lápis e desenhou lentamente um novo gráfico no bloco de papel.

 

                Claire                                              Jaime

                A0 = Tipo 0                                     B? = B ou AB

                                       Brianna

                                       0B = Tipo B

 

- Assim é –assenti a seu olhar interrogativo- . Exatamente.

Ele respondeu com um sorriso irônico. Logo baixou a vista para estudar os gráficos.

- Isso significa que pode averiguá-lo? –perguntou ao fim, sem me olhar- . Com certeza?

- Não. –Com um pequeno suspiro, deixei cair o pano no cesto da roupa suja- . Quer dizer, não posso dizer com certeza se Jemmy for teu, mas possivelmente pudesse dizer com certeza se não o for.

Sua tez tinha perdido o rubor.

- Como é isso?

Bree é tipo B, mas eu sou tipo Isso A. significa que terá um gen B meu gen 0; pode ter dado ao Jemmy qualquer dos dois. Você só pôde lhe dar um gen tipo 0, pois não tem outro.

Assinalei com a cabeça uma série de tubos que estavam perto da janela; o soro que continham resplandecia com um matiz de ouro pardusco ante o sol da tarde avançada.

Pois bem, se Bree lhe deu um gen 0 e você, seu pai, deste-lhe outro gen 0, seu sangue será tipo 0; não terá anticorpos e não reagirá ao soro preparado com meu sangue, com a da Brianna ou a do Jaime. Se Brianna lhe deu seu gen B e você lhe deu 0, aparecerá como tipo B: seu sangue reagirá ante meu soro, mas não ante o do Bree. Em qualquer desses casos o pai poderia ser você... ou qualquer outro de tipo sangüíneo 0. Não obstante, se...

Recolhi o lápis que Roger tinha deixado e, enquanto falava, escrevi lentamente, ilustrando as possibilidades.

 

                Brianna                                           Roger

                0B = Tipo B                                            00 = Tipo 0

                                       Jemmy

                                       0B ou 00 = Tipo B ou Tipo 0

 

Mas... –Dava uns toques com o lápis contra o papel- . Se Jemmy resultasse tipo A ou tipo AB, isso significaria que seu pai não era homocigótico do tipo 0. Homocigótico significa que os dois gens são do mesmo tipo, como você.

Apontei as alternativas à esquerda do gráfico anterior.

 

        X                             Brianna                   Roger

A0/AA/AB/BB/B0/00               B0 = Tipo B                     00 = Tipo 0

                        Jemmy                            Jemmy

                        AB = Tipo AB          B0 = Tipo B

                        A0 = Tipo A                     00 = Tipo 0

                        0B/B0 = Tipo B

                        BB = Tipo B

                        00 = Tipo 0

 

Vi que a vista do Roger se desviava por um instante para essa X e me perguntei por que o tinha escrito assim. depois de tudo, o outro possível pai não eram um desconhecido qualquer.

- Tenha em conta que o tipo 0 é muito comum –disse, em tom de desculpa.

- Assim se for tipo 0 ou tipo B, pode ser meu, mas não teremos a certeza. Em troca, se for tipo A ou AB, teremos a segurança de que não é meu.

- É uma análise muito tosco –disse, tragando saliva- . Não posso... quer dizer, sempre cabe a possibilidade de um engano.

O assentiu sem levantar a vista.

- O há dito ao Bree? –perguntou em voz baixa.

- É obvio. Disse que não queria sabê-lo, mas que o fizesse se você o pedia.

Inclinei-me para o microscópio, de costas a ele, para lhe dar um momento de intimidade.

- ...Quatro, cinco, seis ... –Contava as células infectadas pelo baixo, tratando de soslayar a presença do Roger e a súbita lembrança que tinha surto ao lhe dizer qual era o tipo sangüíneo do Bree.

Aos sete anos tinham extirpado as amídalas. Eu não esqueceria a cara do médico ante o gráfico que tinha na mão, com o tipo sangüíneo da menina e o de seus pais. Frank era tipo A, como eu. E dois pais tipo A não poderiam, em nenhuma circunstância, ter um filho tipo B. O médico olhou a ambos, com a cara contrariada pelo sobressalto... e me olhou com olhos cheios de fria especulação.

Frank, bendita sua alma, também viu essa expressão e disse, com desenvoltura “Minha esposa era viúva; eu adotei ao Bree ao pouco de nascer.” Imediatamente a cara do médico se fundiu em desculpas, enquanto meu marido me estreitava a mão com força atrás das dobras de minha saia. Apertei a mão ao recordá-lo, para lhe devolver o gesto... e o portaobjeto se inclinou de repente, me deixando ante os olhos um vidro impreciso.

Roger se levantou minhas costas. Voltei-me para ele. Sorria, com olhos suaves e escuros como o musgo.

- O sangue não importa –disse em voz baixa- . É meu filho.

- Sim.- Me fez um nó na garganta- . Sei.

 

        Essa noite soprava um vento frio do este. de repente, uma rajada inflou o couro engordurado que cobria a janela, desprendendo-o por um lado; a forte corrente de ar disseminou os papéis da mesa e inclinou a chama da vela em um ângulo alarmante.

 

        Roger se apressou a pôr a vela fora de perigo e apertou o couro com a palma da mão, enquanto jogava uma olhada sobre o ombro, se por acaso o ruído tivesse despertado a sua esposa e a seu filho. No lar, as brasas despediram uma súbita língua de fogo. Brianna se moveu ante o roce frio em sua bochecha.

 

        Mas se limitou a acurrucarse um pouco mais sob os edredons. O camastro onde Jemmy dormia agora estava amparado pela cama grande; desde esse rincão não se ouvia nada.

 

        Roger revolveu em um pequeno recipiente de haste, cheio de tolices úteis, até encontrar uma tachinha. Cravou-a em seu sítio com o canto da mão, com o que a corrente se reduziu a uma pequena filtração, e logo se agachou para recolher os papéis cansados.

 

Deixarão que retorne a vaca do Telfer?

Ou não farão nada por mim?

 

        Repetiu mentalmente os versos; ainda os ouvia em voz cascata do Kimmie Clellan.

 

        Era uma canção chamada “ Jaime Telfer of the Fair Dodhead” , uma daquelas balidas antigas, compostas por dezenas de versos e com dezenas de variações regionais, todas as quais se referiam aos esforços do fronteiriço Telfer por vingar um ataque contra sua casa, convocando a ajuda de parentes amigos. Roger conhecia três dessas variações, mas Clellan sabia outra, que incluía todo um argumento secundário sobre o Willie, o primo do Telfer.

 

        Kimmie havia dito que só cantava para passar o momento ou para entreter aos anfitriões cujo fogo compartilhava. Recordava todas as canções de sua juventude em Escócia e gostava das interpretar tantas vezes como a gente quisesse, enquanto lhe mantiveram a gargante bem molhada.

 

        O resto dos presentes na casa grande desfrutaram de duas ou três peças de seu repertório; quarta asa começaram a bocejar e piscar; por fim, com os olhos frágeis, murmuraram uma desculpa e se retiraram em massa à cama, enquanto Roger seguia proporcionando Uísque ao velho e o insistia a repetir a canção uma vez mais, para gravá-la letra na memória.

 

        Mas a memória era imprevisível. Era muito mais seguro confiar as coisas importantes ao papel. A pluma raspava brandamente, captando as palavras uma a uma para as cravar como vaga-lumes na página.

Mas eu arriarei a vaca do Telfer

Mau que em que pese a todo escocês...

 

        A vela emitiu um breve chiado ao chegar a um enguiço da mecha. O resplendor vacilou sobre a folha e as letras se esfumaram abruptamente nas sombras, enquanto a chama se reduzia a uma anã azul, como a súbita morte de um sol em miniatura.

 

-” Mas Willie foi golpeado na cabeça” - murmurou para si-. “ Mas Willie foi golpeado na cabeça, e a espada lhe atravesse o joelho.”

 

        Brianna se moveu na cama, fazendo ranger as barbas das espiga de milho, e levantou a cabeça com um murmúrio inquisitivo.

 

-Não se preocupe- sussurrou ele, jogando um olhar inquieto ao camastro do rincão-. Apagou-se a vela. Segue dormindo.

 

        “ Mas Willie foi golpeado na cabeça...”

 

-Ngm.- Um suspiro e o ruído da cabeça que voltava a cair contra o travesseiro de plumas.

 

        Como um relógio, Jemmy apareceu a seu desde seu próprio ninho de mantas. antes de que Roger pudesse mover-se, Brianna já tinha saído do leito como um míssil teleguiado para arrancar ao menino de seus edredons, atirando de suas roupas com uma só mão.

 

-Bacinilla!- espetou ao Roger, procurando às cegas com o pé descalço.

 

        Impelido à obediência foto instantânea pela urgência de seu tom, Roger se jogou no chão e moveu o braço em um arco pelo negro vazio, sob a cama.

 

        “ Willie foi golpeado na cabeça... e no joelho, pantorrilha?”

 

-Aqui está!

 

        Tinha achado o recipiente de terracota. Enviou-o pelo chão para o Bree.

 

        Ela plantou ali ao Jemmy, já nu, enquanto ela murmurava frases alentadoras.

 

-Bom, tesouro, sim, assim é...

 

        “ willie foi matado na... Não, golpeado.”

 

-Não quer caca?- E o sacudia brandamente por um ombro.

-Querer caca?- sentiu saudades Roger. Essa curiosa expressão se separou de sua mente os restos do verso-. O que significa isso de “ querer caca” ?

 

        Sua opinião pessoal, apoiada em sua experiência de pai, era que os meninos produzem sua própria caca; mais ainda, nascem em estado de caca e em adiante melhoram muito lentamente. Assim o disse, provocando um olhar mortal por parte da Brianna.

 

-O que?- exclamou ela, em tom cortante-. Como que nascem em estado de caca?

 

        Tinha uma mão no ombro do Jemmy, para mantê-lo em equilíbrio; a outra lhe rodeava a tripa; o índice desaparecia nas sombras de abaixo, para controlar sua pontaria.

 

-Caca- explicou Roger-. Parece-me que está claro.

 

        Ela abriu a boca para replicar, mas Jemmy se cambaleou de um modo alarmante, com a cabeça queda sobre o peito.

 

-Não, não!- exclamou ela, sujeitando-o-. Acordada, bonito! Faz caca!

 

        Essa frase insidiosa se instalou na mente do Roger e substituía alegremente a metade do verso esfumado.

 

        “ Willie foi sentado a fazer sua caca, e a espada atravessou a bacinilla”

 

        Sacudiu a cabeça para desprender-lhe mas já era muito tarde: as verdadeiras palavras tinham fugido. Já resignado, agachou-se junto à Brianna para ajudá-la.

 

-Acordada, amigo. Tem que trabalhar.- Levantou o Jemmy o queixo com um dedo e lhe soprou na orelha.

 

        Brianna bocejou, lhe pisquem e carrancuda à luz da vela.

 

-Bom, se você não gosta de “ fazer caca” , como o dizem em Escócia?- interpelou, irritada.

-Pois... acredito recordar que um amigo perguntava a seu pequeno se queria fazer popó- comentou.

 

        Brianna respondeu com um ruído grosseiro, mas Jemmy moveu as pálpebras.

 

-Popó- disse com ar sonhador, como se gostasse do som.

-O que mais você goste- resignou-se Brianna, ainda chateada-. Faz caca, faz popó, mas termina com isso, que mami quer dormir.

-Não deveria lhe tirar esse dedo do... hum?- Roger assinalou com a cabeça a parte em questão-. vais provocar lhe algum complexo.

-Com gosto.- Bree se apressou a retirar a mão, com o que o pequeno objeto saltou para cima, apontando diretamente ao Roger sobre o bordo da bacinilla.

-Né, um mom...!- Alcançou a levantar uma mão como escudo, bem a tempo.

-Popó- disse Jemmy, sonriendo com dormitado prazer.

-Moço preparado!- disse Roger, sinceramente.

 

        Uma momentânea surpresa interrompeu o aplauso da Brianna.

 

        Ele também ficou surpreso. Havia-o dito automaticamente e, para ouvir as palavras, por um momento sua voz lhe pareceu alheia. Muito familiar, mas alheia. Era como quando apontava a canção do Clellan, ouvindo a voz do ancião até enquanto formava as palavras com seus próprios lábios.

 

-Sim, isso, preparado- repetiu com mais suavidade, dando uns tapinhas na cabeça sedosa.

 

        Enquanto Bree deitava ao Jemmy, entre beijos e murmúrios admirativos, ele levou a bacinilla fora para esvaziá-la. Completo esse básico ato higiênico, foi lavar se as mãos no poço antes de voltar para a cama.

 

-terminaste que trabalhar?- perguntou Bree, sonolenta. E se deu a volta para lhe plantar o traseiro contra o ventre, sem mais cerimônias.

-Por esta noite sim.- Rodeou-a com seus braços e a beijou detrás da orelha.

       

        O sonho estendeu uma manta de torpor até suas orelhas e abriu os pulcros armários de sua mente, dando saída para todos os pensamentos e impressões do dia, que se disseminaram em coloridos montões.

 

        resistiu durante alguns minutos à inconsciência para pinçar entre essas riquezas pulverizadas, com a vaga esperança de achar uma parte da canção do Telfer. Mas o que surgiu de entre os escombros não foi a história do malfadado Willie, a não ser uma voz. Nem a sua nem a do velho Kimmie Clellan.

 

        “ Moço preparado!” , disse, com cálida voz de contralto, tinta de risada. Roger deu um coice.

 

-O que há dito?- murmurou Brianna.

-Anda... sei preparado- murmurou ele, repetindo as palavras que se formavam em sua memória-. Isso era o que ela dizia.

-Quem?- Brianna girou a cabeça.

-Minha mãe.- Lhe pôs a mão livre na cintura-. Perguntaste-me o que dizíamos em Escócia. Tinha-o esquecido, mas isso era o que ela estava acostumada me dizer. “ Anda, sei preparado.” Ou: “ Precisa ser preparado?”

-de vez em quando falas de seu pai, mas nunca te ouvi mencionar a sua mãe.

-É que não recordo grande coisa dela.

-Que idade tinha quando morreu?- A mão da Brianna foi posar se na sua.

-Pois... quatro anos, acredito. Quase cinco.

-Hum...- Com esse murmúrio compassivo, estreitou-lhe a mão.

-O que.

-É que... estava pensando... se eu morrera agora... Jemmy é tão pequeno que não recordaria nada absolutamente- sussurrou, com as palavras médio apagadas pelo travesseiro.

-claro que sim- contradisse-a ele automaticamente; queria reconfortá-la, até sabendo que tinha razão.

-Você não a recorda, e foi muito major quando a perdeu.

-Mas sim a lembrança- corrigiu ele, cravando a gema do polegar no ponto onde o pescoço se unia ao ombro-. Só que vagos fragmentos. Há umas poucas coisas que recordo com claridade, como o camafeu que estava acostumado a lhe pendurar do pescoço, com suas iniciais desenhadas com diminutas pedras vermelhas. Eram granadas.

 

        É possível que esse camafeu lhe tivesse salvado a vida ao fracassar em seu primeiro intento de cruzar através das pedras.

 

-Isso é uma coisa, Roger.- A voz do Bree tinha um sotaque de aspereza-. Mas dela, lembra-te? O que saberia Jemmy de mim... ou de ti mesmo... se de nós ficasse só...?- Olhou ao redor em busca de algum objeto adequado-. Seu bodhran e minha navalha?

-Ele saberia muito de nós, e não só pelas coisas que deixássemos, embora lhe serviriam de ajuda.

-Como?

-Pois... –Ela havia tornado a relaxar os ombros-. Você estudou um pouco de história, verdade? Sabe o muito que se pode deduzir dos objetos domésticos, tais como pratos e brinquedos.

-Hum...- Ela parecia duvidar, mas talvez só queria que a convencesse.

-E Jem saberia muito de ti através de seus desenhos- assinalou.

-Acredito que isso é verdade- reconheceu ela, lentamente-. Eu gostaria de saber se Jem será músico... ou desenhista.

-É assim como nos conhecerá melhor- disse em troca, reatando a suave massagem-. Quando se estudar a si mesmo.

-Há algo que me intriga. Quando descobriu o do Jaime, quando ambos começamos para buscá-lo... deveu te perguntar como seria. Quando o achou, resultou ser o que imaginava pelo que já sabia dele ou pelo que sabia de ti mesma?

-Não sei- disse-. Não soube então e sigo sem sabê-lo.

-O que significa isso?

-Quando ouve falar de alguém antes de conhecê-lo, a pessoa não é exatamente como lhe haviam dito nem como imaginava, certamente. Mas tampouco esquece o que tinha imaginado; isso permanece em sua mente e, em certo modo, funde-se com o que descobre ao conhecê-la.- Inclinou a cabeça para diante, pensativa-. Além disso, mesmo que ouve algo de alguém a quem já conhece, isso também afeta sua maneira de vê-lo, não é assim?

-Né? Hum, suponho que sim. Refere-te... a seu outro pai? Ao Frank?

-Suponho que sim.- Ela se moveu sob suas mãos em um encolhimento de ombros-. O que me diz de seus pais, Roger? Seria por isso que o reverendo guardou todas aquelas caixas com suas coisas?, para que mais adiante, ao as ver, soubesse mais deles e as adicionar a suas próprias lembranças?

-Sim, suponho que sim- murmurou ele, inseguro-. De qualquer modo não tenho nenhuma lembrança de meu verdadeiro pai; só me viu uma vez, e por então eu tinha menos de um ano.

-Mas recorda a sua mãe, não? um pouco, ao menos?

 

        A verdade era que nunca tinha feito o intento consciente de recordar a sua mãe. Ao pensá-lo experimentou uma repentina e desacostumada vergonha.

 

-Ela morreu na guerra, não?- Bree tinha retomado a massagem que ele suspendesse, lhe acariciando a coxa endurecida.

-Sim... nos bombardeios alemães.

-Em Escócia? Eu acreditava que...

-Não. Em Londres.

 

        Não queria falar disso. Nunca tinha falado disso. Entretanto esta noite... sentia um eco da breve angustia do Bree ao pensar que seu filho podia não recordá-la.

 

-Minha avó materna era inglesa- disse lentamente-. Viúva. Quando mataram a meu pai fomos viver com ela a Londres.

 

        Respirou profundamente. Bree, ao senti-lo, apertou com firmeza as costas contra seu peito.

 

-Mamãe... minha mãe... era miúda, como a avó. Quer dizer... me pareciam grandes, mas lembrança... lembrança que ficava nas pontas dos pés para retirar coisas da prateleira.

-Como era? Parece-te em algo a ela?

-um pouco- disse ele, lentamente-. Tinha o cabelo escuro, como eu.

 

        A habitação ficou em silêncio, salvo pelo murmúrio do fogo e o suave crepitar dos lenhos. A noite era fria, mas serena; pela manhã haveria névoa; Roger, ao sair, havia sentido a umidade que emanava das árvores, acumulando-se na terra. Mas o interior da casa estava morno e seco.

 

-Eu estava com ela- disse Roger em voz baixa.

 

        Estava de costas, com a vista perdida nas vigas, apenas visíveis para seus olhos adaptados à escuridão.

 

-O que? Com quem?- A pausa do sonho era perceptível na voz do Bree, mas a curiosidade a espabiló um instante.

-Com minha mãe. E minha avó. Quando... a bomba.

 

        Ela girou abruptamente a cabeça, consciente de sua tensão, mas Roger seguiu com a vista cravada nas vigas escuras, sem piscar.

 

-me quer contar isso A mão da Brianna encontrou a sua e a estreitou. Ele não estava seguro de querer fazê-lo, mas assentiu.

-Suponho que lhe devo isso. Reconheceu-. Era de noite. Soaram os alarmes anti-aéreos. Eu sabia o que significavam, mas sempre morria de medo. Não havia tempo de vestir-se. Mamãe me arrancou da cama e me pôs o casaco sobre o pijama. Logo corremos escada abaixo, para o refúgio mais próximo.

 

        Para eles, o refúgio mais próximo era a estação do metro, ao outro lado da rua.

 

-Era estimulante.- Viu a gente apinhada, ouviu os gritos dos guardas sobre o ruído da multidão-. Tudo vibrava: o chão, as paredes, o ar mesmo.

        Fazendo trovejar os pés nos degraus de madeira, correntes de refugiados se equilibravam para as vísceras da terra: ao primeira plataforma, ao de mais abaixo e ao seguinte, como se cavassem para um lugar seguro. Havia pânico, mas pânico ordenado.

-As bombas podiam atravessar quinze metros de terra, mas as plataformas mais abaixo eram seguras.

        Ao chegar ao pé do primeiro lance, correndo empurrando uns com outros por um breve túnel de azulejos brancos, até o batente da escada seguinte. Ali havia um espaço amplo; a multidão se formou redemoinhos nele, cheia pela pressão de quão refugiados provinham do outro túnel, e se reduziu um pouco, pois só uma pequena parte podia apinhar-se no lance seguinte.

-Havia um muro que rodeava o batente da escada. A avó temia que me esmagassem contra ela, pois a gente descia no turba da rua, empurrando desde atrás.

        Nas pontas dos pés, com o peito apertado contra o cimento, alcançava a olhar por cima do muro. Abaixo, as luzes de emergência formavam linhas seguidas ao longo dos muros e pintavam franjas na multidão.

-A pouca distância se ouviu um grande golpe. Vi         que as luzes tremiam. Logo se ouviu um ruído como de algo que se rasgasse ali acima. Todo mundo levantou a vista e começou a gritar.

        A greta aberta no teto não parecia muito alarmante: apenas uma linha negra que serpenteava como uma víbora em um quebra-cabeças, seguindo as linhas dos azulejos. Mas se alargou súbitamente e deixou entrar uma corrente de pó e pedras.

-Ela me soltou- disse, em um sussurro estrangulado-. Soltou-me a mão.

        Piscou com força, tratando de controlar sua respiração, enquanto recompunha os fragmentos destroçados dessa noite. Confusão, frenesi, dor... mas o que tinha acontecido em realidade? Não guardava a não ser uma impressão de caos. Mas tinha sobrevivido a todo isso; devia saber o que tinha acontecido. Só tinha que decidir-se a revivê-lo.

 

        Roger fechou os olhos e deixou que acontecesse.

 

-Ao princípio não o recordava- murmurou ao fim-. Quer dizer, sim, mas recordava somente o que me tinham contado.

 

        Não tinha lembrança algum de que o tivessem levado através do túnel, inconsciente, nem das semanas que tinha passado depois do resgate, transladado com outros órfãos de refúgio em refúgio, de lar em lar, emudecido pelo terror e o desconcerto.

-Sabia meu nome e minha direção, certamente, mas nessas circunstâncias não servia de muito. Meu pai já tinha morrido. Mesmo assim, quando as organizações de socorro localizaram ao irmão de minha avó o reverendo, já tinham conseguido averiguar o que aconteceu no refúgio.

 

        “ Foi um milagre que eu não morrera com todos os que pereceram nessa escada” , disseram. Disseram que minha mãe devia me haver perdido no meio do pânico, que a multidão devia me haver miserável escada abaixo. Foi assim como acabei no nível inferior, onde o teto resistiu.

-Mas agora recorda o que aconteceu?- perguntou em voz baixa.

-Recordava, sim, que ela me tinha solto a mão. Por isso pensei que o resto também era verdade. Mas não foi assim. Ela me soltou a mão.

 

        As palavras surgiam agora com mais facilidade; a opressão da garganta e o peito tinha desaparecido.

 

-Soltou-me a mão... e logo me levantou. Essa mulher miúda... levantou-me para me arrojar por cima do muro, para a multidão que enchia a plataforma de abaixo. Acredito que me desvaneci pela queda... mas lembrança o rugido com que cedeu o teto. Dos que estavam nessa escada não sobreviveu ninguém.

-Está bem- sussurrou-lhe, com voz rachada; a luz do fogo arrebentava em manchones estrelados através das lágrimas-. Não esqueceremos. Nem Jem nem eu. Aconteça o que acontecer, não esqueceremos.

 

        A neve começava a fundir-se. Eu estava indecisa entre o prazer que me causava o degelo e o palpitar da primavera na terra..., e a preocupação pela perda da barreira glacial que nos protegia, ao menos temporalmente, do mundo exterior.

 

        Jamie não tinha trocado de idéia. Dedicou toda uma velada a redigir cuidadosamente uma carta ao Milford Lyon. Dizia que já estava preparado para estudar a venda de seus produtos (leia-se uísque ilegal), tal como o senhor Lyon lhe tinha proposto; agradava-lhe dizer que já dispunha de uma quantidade considerável. Entretanto, preocupava-lhe a possibilidade de que sua mercadoria sofresse algum percalço na entrega (quer dizer, que fora interceptada pelas autoridades alfandegárias ou escamoteada no trajeto), pelo qual desejava alguma segurança de que seria transportada por um cavalheiro de reconhecida capacidade para essas operações.

 

        O senhor Priestly, seu bom amigo do Edenton (a quem, certamente, não tinha visto nunca em sua vida), assim como o senhor Samuel Cornell, com quem tinha tido a honra de trabalhar no Conselho de Guerra do governador, asseguravam-lhe que o mais capaz para tais empresas era certo Stephen Bonnet, cuja reputação era inigualável. Se o senhor Lyon estivesse disposto a acordar uma entrevista com dito senhor Bonnet, a fim de que Jamie se formasse uma impressão própria quanto a fiabilidad do negócio proposto, nesse caso...

 

-Crie que aceitará?- perguntei.

-Se conhecer o Stephen Bonnet ou pode localizá-lo, sim, fará-o. Priestly e Cornell são nomes que têm um efeito mágico.

-E se localizar ao Bonnet...

-irei reunir me com ele.

 

        A carta ao Lyon foi despachada através do Fergus, e eu tratei de não seguir pensando nela. Mesmo assim o assunto continuava espreitando nos rincões de minha mente. O dia em que, ao retornar de atender um parto, encontrei um montão de cartas no escritório do Jamie, o coração me pôs na garganta.

 

        Graças a Deus não havia resposta do Milford Lyon. De qualquer modo tivesse ficado rapidamente eclipsada, pois entre o montão de correspondência havia uma carta dirigida ao Jamie, com a forte letra negra de sua irmã.

 

        Logo que pude me conter para não abri-la imediatamente, se por acaso continha alguma recriminação hiriente, a fim de arrojá-la diretamente ao fogo antes de que Jamie pudesse vê-la. Prevaleceu a honra: consegui me conter até que retornou-se Salem. Uma vez informado do que tinha chegado, lavou-se apressadamente a cara e as mãos antes de ir a seu estudo. depois de fechar cautelosamente a porta, rompeu o selo.

 

        Jenny Fraser Murray escrevia com mão hábil; sua letra era redonda e elegante; as linhas, retas e facilmente legíveis.

16 de setembro de 1771

 

Irmão:

 

        Bem. Depois de ter pego a pluma para escrever esta única palavra, fiquei-me contemplando-a até que a vela se consumou dois ou três centímetros, sem idéia alguma de como continuar. Continuar assim seria esbanjar a cera de abelha, mas se apagar a vela e vou à cama terei arruinado uma folha de papel sem utilidade alguma. Por ende, a economia me obriga a continuar.

 

        Poderia te encher de recriminações. Assim utilizaria a página, além de preservar o que meu marido gosta de qualificar como as maldições mais horríveis que tenha tido o privilégio de escutar em sua larga vida. Isso seria proveitoso, pois em seu momento tomei grandes moléstias para as compor e eu não gostaria que esses esforços se perdessem. Mesmo assim, acredito que o papel disponível não é suficiente para todas elas.

 

        Além disso penso que talvez não convém te arreganhar nem te condenar, depois de tudo, pois poderia interpretá-lo como justo castigo e, desse modo, considerar que já expiaste seu crime, com o que deixaria de te castigar a ti mesmo. A penitência seria muito simples. Se tiver tecido seu próprio cilício, prefiro que continue usando-o, e oxalá te esfole a alma como a perda de meu filho esfola a minha.

 

        em que pese a tudo, suponho que se escrevo é para te perdoar. Sei que algum propósito tinha ao agarrar a pluma e, embora o perdão me parece com a presente uma empresa muito duvidosa, suponho que a idéia me fará mais cômoda com a prática.

 

        Suponho que te perguntará o que me conduziu a realizar este ato, de modo que lhe direi isso.

 

        na segunda-feira passada saí cedo para visitar o Maggie; teve outro bebê, de modo que tornaste a ser tio; trata-se de uma preciosa menina chamada Angélica. Ao entardecer empreendi a volta, mas depois de percorre um trecho minha mula pisou na entrada à toca de uma toupeira e caiu. Tanto a arreios como eu nos levantamos algo coxas; era óbvio que não poderia montar à besta e que não chegaria muito longe se continuava a pé.

 

        Encontrava-me na estrada Auldearn, depois de ter subido a costa desde o Balriggan. Normalmente não procuro nenhum contato com o Laogharie Mackenzie (pois reassumiu esse nome, depois de ter expresso eu no distrito meu desgosto por vê-la utilizar o do Fraser, ao que não tinha direito), mas se aproximava a noite, ameaçava chuva e sua casa era o único lugar onde podia encontrar teto e comida. De modo que desensillé a mula e, deixando que se procurasse seu jantar à beira do caminho, parti coxeando em busca da minha.

 

        Desci por detrás da casa, mais à frente do estábulo, e cheguei a pérgola que você construiu. A estas alturas as trepadeiras cresceram tanto que não se via nada, mas soube que havia alguém ali, pois se ouviam vozes.

 

        Então começou a chover. Era só uma garoa, mas o tamborilo contra as folhas deveu afogar minha voz, pois ninguém respondeu a minha chamada. Aproximei-me um pouco mais, e quando estava a ponto de chamar uma vez mais, ouvi os ruídos de uma estranha hochmagandy dentro da pérgola´

 

-Hochmagandy?- Olhei ao Jaime com as sobrancelhas arqueadas em gesto de pergunta.

-Fornicação- esclareceu ele, lacônico.

 

        Pareceu-me que o melhor era ficar aquieta. Por isso alcançava a oir, a que se abria de pernas era Laoghaire, mas não tinha nem idéia de quem podia ser seu companheiro. Como tinha o tornozelo mais inchado que uma bexiga, não podia caminhar muito mais. De modo que me vi obrigada a esperar sob a chuva, escutando toda essa inhonesté.

 

        Se o te cortejarem tivesse sido um homem de distrito, eu o teria sabido, mas não tinha notícias de que aceitasse cuidados de ninguém, embora vários o tivessem tentado; depois de tudo, ela é a proprietária do Balriggan e vive como uma grande senhora com o dinheiro que você lhe envia.

 

        Escutar aquilo me encheu de indignação, mas mais ainda me surpreendeu descobrir a causa daquilo. Que minha fúria era por ti, por irracional que resulte, dadas as circunstâncias. Mesmo assim, depois de ter descoberto semelhante emoção em meu peito, vi-me obrigada a reconhecer que meus sentimentos por ti não tinham perecido de tudo, na verdade.

 

        Aqui se interrompia o texto, como se Jenny tivesse tido que atender algum assunto doméstico. Na página seguinte se reatava com outra data.

 

        18 de setembro de 1771

 

de vez em quando sonho com o jovem Ian...

 

-O que?- exclamei-. Que jovem Ian nem jovem Ian! Com quem estava Laoghaire?

-Já eu gostaria de sabê-lo- murmurou Jamie.

 

        de vez em quando sonho com o jovem Ian. Freqüentemente, esses sonhos adquirem a forma da vida cotidiana; vejo-o aqui, no Lallybroch; mas ocasionalmente sonho com sua vida entre os selvagens... se é que de verdade ainda vive.

 

        Agora compreendo que, ao fim de contas, tudo se reduz ao mesmo com o que comecei, essa única palavra: “ Irmão.” É meu irmão, tal como o jovem Ian é meu filho. Se ter perdido a meu filho amargura os sonhos, te haver perdido me amargura os dias, Jamie.

 

        Passei-me a manhã escrevendo cartas e me perguntando se terminaria esta, ou a jogaria no fogo. Mas as contas já parecem, tenho escrito a todo mundo e as nuvens se foram, de modo que o sol brilha através da janela e sobre mim cai a sombra das rosas de nossa mãe.

 

        Muitas vezes, ao longo destes anos, ouvi ouvir a voz de minha mãe. Mas neste caso não preciso escutá-la para saber o que me diria. Por isso não arrojarei isto ao fogo.

        Recorda, verdade?, o dia em que rompi a jarrita do leite ao lhe arrojar isso à cabeça, um dia em que me estava chateando. Sei que o recorda, pois uma vez o mencionou ao Claire. Eu vacilava em admitir o delito e você assumiu a culpa, mas pai sabia a verdade e castigou a ambos.

 

        Agora sou dez vezes avó e tenho o cabelo cinza, mas ainda me ardem as bochechas de vergonha e me encolhe o estômago quando recordo aquilo: pai fez que nos ajoelhássemos juntos para nos dar uns açoites.

 

        Você chiava e grunhia como um cachorrinho enquanto te pegava; eu logo que podia respirar e não me atrevia a te olhar. Logo me tocou o turno, mas estava tão alterada pelas emoções que logo que senti os golpes. Sem dúvida, ao ler isto dirá, indignado, que foi só porque pai me tratou com mais suavidade, por ser uma menina. É possível que sim e é possível que não; reconheço que Ian é mais tenro com suas filhas.

 

        Esse dia jurei que não voltaria a ser covarde.

 

        E agora vejo que é covardia continuar te culpando pelo do Ian. Sempre soube o que significa amar a um homem, seja marido ou irmão, amante ou filho. E é perigoso.

 

        Os homens irão onde lhes agrade e farão o que devam; não corresponde à mulher lhes pedir que fiquem, nem lhes fazer recriminações por ser o que são... ou por não retornar.

 

        Sabia quando enviei ao Ian a França, sabia quando te vi partir para o Leoch, com a esperança de que não se esquecesse do Lallibroch nem de mim. Sabia quando o jovem Jamie nadou para a ilha das focas, quando Michael se embarcou para Paris. E deveria havê-lo sabido, também, quando o pequeno Ian se foi contigo.

 

        Mas sempre tive sorte, pois meus homens voltaram para mim sempre. Já estivessem mutilados ou queimados, coxos, desfeitos ou em farrapos, sempre retornaram. Cheguei a supor que era meu direito. E isso foi um engano.

 

        Da sublevação vi muitas viúvas. Não sei por que supus que estava isenta desses sofrimentos, que devia ser quão única não perdesse a nenhum de seus homens e só a um de seus pequenos. Justamente por ter perdido ao Caitlin amei tanto ao Ian, pois sabia que era meu último filho.

 

        Ainda o considerava meu menino, em vez de reconhecer que era um homem. E sendo assim as coisas, sei muito bem que, até se você tivesse podido retê-lo, não o teria feito, pois você mesmo é outra dessas condenadas criaturas.

 

        Agora cheguei quase ao final desta página e me parece um esbanjamento começar outra.

 

        Mãe te amou sempre, Jamie. Quando compreendeu que ia morrer me mandou chamar e me encomendou cuidar de ti. Como se eu pudesse deixar de fazê-lo jamais.

 

        Seu muito afetuoso e amante irmana,

Janet Floresce Arabella Fraser Murray

 

        Jamie reteve o papel um momento; logo o baixou com muita suavidade e apoiou a cabeça entre as mãos, de modo que eu não podia lhe ver a cara. Tinha os dedos enredados no cabelo e se massageava a frente, movendo lentamente a cabeça. Sua respiração se ouvia um pouco entrecortada.

 

        Por fim deixou cair as mãos para me olhar, piscando, intensamente avermelhado e com lágrimas nos olhos. Sua expressão era muito estranho; nela se mesclavam o desconcerto, a fúria e a risada, que era apenas mais visível.

-OH!, Deus- disse. secou-se os olhos com o dorso da mão-. OH!, Cristo, como diabos o consegue?

-O que?- Tirei um lenço limpo do sutiã para dar-lhe

-Fazer que me sinta como se fora em menino de oito anos. Em cima, idiota.

 

        A carta do Jenny me encheu de alegria e aliviou grandemente o coração do Jamie. Ao mesmo tempo, seguia sentindo uma grande curiosidade com respeito ao incidente que ela tinha começado a descrever. Sabia que a do Jamie era até maior, mas ele se cuidava muito de dizê-lo.

 

        Uma semana depois chegou uma carta de seu cunhado Ian; essa não mencionava absolutamente a aventura do Jenny perto do Balriggan, nem o descobrimento feito em ña pérgola.

-Não poderia escrever para lhes perguntar?- insinuei delicadamente-. Ao Ian ou ao Jenny?

-Não poderia- respondeu ele, com firmeza-. depois de tudo não é meu assunto, verdade? Se essa mulher foi alguma vez minha esposa, hoje não o é. E se quer ter um amante, é assunto dele.

 

        No que me tinha contado de seu breve matrimônio com o Laoghaire MacKenzie nada insinuava que sentisse atração física por ela. Havia-a desposado por solidão, ou ao menos isso me havia dito. E eu lhe acreditava. Era homem de honra e eu compreendia sua solidão, pois tinha padecido a própria. Em geral eu conseguia esquecer que tinha compartilhado o leito do Laoghaire, breve e insatisfactoriamente, conforme dizia ele. Mas não esquecia que ela tinha sido e ainda era uma mulher bastante atrativa. O qual me induzia a lamentar que Jenny Murray não tivesse encontrado outra inspiração para trocar de sentimentos com respeito a seu irmão.

 

        Jamie passou o resto do dia calado e abstraído, embora voltou a mostrar-se sociável quando, depois do jantar, Fergus e Marsali vieram com os meninos a nos fazer uma visita. Enquanto ele ensinava ao Germain a jogar às damas, Fergus repetia para o Roger a letra de uma balada que tinha aprendido nos becos de Paris. As mulheres nos sentamos junto ao lar para costurar roupa de bebê, tecer escarpines e, em honra do embaraço do Marsali e o compromisso do Lizzie, nos entreter mutuamente com arrepiantes anedotas do parto.

 

        Já era tarde quando nos deitamos. Jamie estava recostado contra o travesseiro, com as mãos cruzadas detrás da nuca. Para frio, o bastante como para que os cristais da janela se empanassem com nosso fôlego, mas ele não se pôs camisa de dormir. Enquanto me escovava o cabelo pude admirar o espetáculo.

 

        Embora se tinha reposto bem da mordida de serpente, ainda estava mais magro que de costume; isso permitia ver o arco elegante da clavícula e os músculos largos do braço, osso a osso. A pele do peito estava bronzeada ali onde estava acostumado a deixar a camisa aberta.

-A luz da vela te favorece, Sassenach- disse, sonriendo.

-O mesmo pensava eu de ti- disse, enquanto deixava a escova para me levantar.

-Deixemo-la acesa, pois. –Ele alargou uma mão para me impedir que a apagasse. Sua mão rodeou minha cintura, me atraindo-. Vêem a cama e deixa que te olhe. Eu gosto de como se move a luz em seus olhos, como o uísque quando o verte sobre o haggis e logo lhe prende fogo.

-Que poético- murmurei.

 

        Mas não fiz remilgos quando ele me abriu espaço e me tirou a camisa. A habitação estava o bastante fria como para que me encolhessem os mamilos, mas a pele de seu peito era um calor delicioso contra meus peitos. Ele me estreitou com um suspiro de prazer...

 

        Muito mais tarde despertei na escuridão, ao sentir outra vez suas mãos sobre mim. Como ainda estava gratamente dormitada, permaneci inerte, deixando que fizesse sua vontade. Minha mente estava apenas sujeita à realidade; demorei um pouco em notar que havia algo desconjurado, e mais ainda em limpar a mente.

 

        Ele estava curvado pela metade sobre mim, com a cara médio iluminada pelo resplendor do lar. Tinha os olhos fechados e o sobrecenho um pouco franzido; respirava pelos lábios entreabiertos. movia-se quase mecanicamente. Perguntei-me, atônita, se era possível que o estivesse fazendo em sonhos.

 

        Acariciava-me de um modo estranho, monótono, como quem realiza uma tarefa repetitiva. O contato era mais que íntimo, mas também impessoal.

 

        de repente, sem abrir os olhos, retirou o edredom que me cobria e me separou as pernas com uma brutalidade nada habitual nele. Fechei instintivamente as pernas e me escapuli. Então me plantou as mãos nos ombros e me apartou as coxas com o joelho para me possuir com rudeza.

 

        Meu agudo chiado de protesto fez que abrisse os olhos. Olhou-me. Suas pupilas estavam apenas a dois ou três centímetros das minhas, desfocadas. Logo cobraram abrupta consciência. Ficou petrificado.

 

-Quem diabos te crie que sou?- disse, em voz baixa e furiosa.

 

        Ele se separou de mim para lançar-se fora da cama; os cobertores caíram ao chão enquanto desprendia sua roupa do perchero. Alcançou a porta em dois passos e saiu dando uma portada.

 

        Esfreguei-me a cara com as mãos, tratando de espabilarme. Acaso era eu a que sonhava?

 

        Não. Era ele. Médio dormido (ou de tudo) tinha-me tomado pela maldita Laoghaire. Nenhuma outra coisa podia explicar o que me houvesse meio doido com essa desagradável impaciência, tinta de cólera. Obviamente era impossível voltar a conciliar o sonho. Passei alguns minutos contemplando as sombras entre as vigas, mas ao fim me levantei para me vestir.

 

        O pátio estava triste e frio sob a lua. Nada se movia e o vento não era mais que um suspiro entre os pinheiros. Mas a certa distância se ouvia um ruído débil e regular. Caminhei cuidadosamente para ele, na escuridão.

 

        A porta do celeiro estava aberta.

 

        Apoiei-me no marco, cruzada de braços, enquanto ele ia de um lado a outro amontoando o feno sob o claro de lua, para descarregar os nervos. meus ainda me palpitavam nas têmporas, mas começaram a ceder enquanto o observava.

 

        Ele sabia que eu estava ali; notei-o pela forma em que mantinha a cabeça volta para outro lado. Por fim cravou a forquilha no montão e foi sentar se em um banco feito com o meio tronco, a cabeça entre as mãos e os dedos esfregando violentamente o cabelo.

 

        Quando me olhou sua expressão estava a meio caminho entre o desconcerto e uma relutante diversão.

 

-Não entendo.

-O que?- fui sentar me perto dele, com as pernas encolhidas sob o corpo.

-Nada, Sassenach- respondeu secamente, me olhando de soslaio.

-Tão mal estão as coisas?- A maneira de prova, deslizei-lhe uma mão pelas costas.

 

        Ele soltou um profundo suspiro.

 

-Quando tinha vinte e três anos, não compreendia que ao olhar a uma mulher me derretessem os ossos e ao mesmo tempo me sentisse capaz de dobrar o ferro com as mãos. Aos vinte e cinco, não compreendia como se podia adorar a uma mulher e querer violá-la, tudo de uma vez.

-A uma só mulher?- perguntei.

 

        E obtive o que procurava: curve-a em sua boca e um olhar que me atravessou o coração.

-Uma sozinha- confirmou. Estreitou-me com força a mão que eu tinha posado sobre seu joelho, como se temesse que eu a arrebatasse-. Só uma. E isso é o que não entendo tampouco agora. Amo-te, a nighean donn. Amei-te do momento em que te vi e te amarei até que se acabe o tempo.

 

        Percorreu-me uma quebra de onda de calor mas, antes de que pudesse responder, ele se voltou a me olhar, com uma consternação tal que resultou quase cômica.

 

-E se as coisas são assim, Claire, por que quero abordar o primeiro navio que zarpe para Escócia, para procurar um homem a quem não conheço e matá-lo, só por deitar-se com uma mulher sobre a qual não tenho nenhum direito e a que alguma vez pude suportar durante mais de três minutos?

 

        Descarregou o punho contra o tronco e a madeira vibrou sob minhas nádegas.

-Não o entendo, não!

 

        Contive o impulso de lhe dizer: “ Acaso crie que eu sim?” Em troca me limitei a lhe acariciar muito brandamente os nódulos com o polegar. Não era tanto uma carícia como um gesto de consolo, e assim o interpretou ele. Ao fim suspirou profundamente e se levantou.

 

-Sou um parvo- disse.

-Talvez. Mas não irá a Escócia, verdade?

 

        Em vez de responder, levantou-se para passear-se de um lado a outro, chutando com mau humor os grumos de barro seco. Não era possível que estivesse pensando... Custou-me manter a boca fechada, mas aguardei com paciência até que ele se deteve frente a mim.

-De acordo- disse, como se fora uma declaração de princípios-. Não sei por que me irrita que Laoghaire procure a companhia de outro... Não, isso não é verdade: sei muito bem. E não é por ciúmes nem... Bom, sim, mas isso não é o principal.

 

        Olhou-me como se me desafiasse a contradizê-lo, mas eu não abria a boca. Então respirou profundamente, com a cabeça baixa.

 

-Bem, devo ser sincero.- Apertou os lábios um momento. Logo estalou, me olhando-. por que? O que encontra nele?

-Quem em quem? Laoghaire no homem que...?

-É que ela detestava o sexo!- interrompeu-me-. Talvez eu cria ser melhor do que sou... ou você me adula... –Cravou-me um olhar que tratava de ser fulminante, mas acabou em desconcerto-. Sou... sou...?

 

        Eu não sabia se esperava que eu respondesse: “ Sim que o é!” ou “ Não, nada disso!” . Contentei-me com um sorriso que dizia ambas as coisas.

 

-Bem, bem- reconheceu, a contra gosto-. Nunca acreditei que fora por minha culpa. E antes de nos casar eu gostava o bastante. Eu pensava que possivelmente lhe desgostavam os homens em geral ou o ato em si. E nesse caso... pois não era tão grave, porque não era minha culpa, embora me sentia na obrigação de arrumar isso...

 

        Perdeu-se em seus pensamentos, com o cenho enrugado. Logo reatou, suspirando:

-Mas talvez me equivocava. Possivelmente fora culpa minha, sim. E isso é o que agora me atormenta.

 

        Eu não sabia bem o que lhe dizer, mas era óbvio que devia dizer algo.

 

-Acredito que não era tua culpa- assegurei-. Era um problema dela. Embora talvez prejulgo. Ao fim e ao cabo tratou de me matar.

-O que?- deu-se a volta, estupefato.

-Não sabia? Ah...- Tratei de recordar se o tinha contado. Não, provavelmente não. Entre uma coisa e outra, então não me pareceu importante. Pensava que não voltaria a vê-la. E depois..., depois perdeu toda importância. Expliquei-lhe brevemente que aquele dia, no Cranesmuir, Laoghaire fazia que me reunisse com o Geillie Duncan, sabendo perfeitamente que a foram prender por bruxaria, com a esperança de que me prendessem também, como logo aconteceu.

-Essa cadela maldita!- exclamou, mais atônito que outra coisa-. Não, não sabia uma palavra disso. Sassenacha!, crie que me teria casado com ela, se o tivesse sabido?

-Então, só tinha dezesseis anos- aduzi; dadas as circunstâncias, podia ser tolerante e perdoar-. Talvez não esperava que nos julgassem nem que o tribunal queria nos queimar vivas. Possivelmente só pensou que, se me acusavam de bruxa, você perderia interesse em mim.

 

        Ao menos ao lhe revelar esse engano tinha conseguido distrai-lo.

 

        Sua única resposta foi um bufido. Durante um momento se passeou de um lado a outro, inquieto, fazendo ranger a palha pulverizada. Por fim se deteve com um enorme suspiro e apoiou uma mão no banco, a cabeça em meu ombro.

-Perdoa- sussurrou.

 

        Abracei-o para estreitá-lo com força contra mim, até que voltou a suspirar e os nós de seus ombros se relaxaram. Então o soltei. Ele ficou de pé e me ofereceu a mão.

 

        Fechamos a porta do celeiro para voltar para casa, da mão e em silêncio.

 

        Por volta de finais de março, os caminhos que descendiam da montanha já estavam transitáveis. Como ainda não havia notícias do Milford Lyon, depois de alguma discussão se decidiu que Jamie e eu, com a Brianna, Roger e Marsali, viajaríamos ao Wilmington, enquanto Fergus levava os informe das medições topográficas a New Bern, para arquivá-los e registrá-los formalmente.

 

        As moças e eu compraríamos as provisões que nos tinham esgotado durante o inverno, enquanto Roger e Jamie faziam discretas averiguações sobre o Milford Lyon... e Stephen Bonnet. Fergus se reuniria conosco assim que tivesse terminado com o dos relatórios topográficos.

 

        Uma vez localizado o senhor Bonnet, Jamie e Roger iriam ao lugar onde realizava seus negócios e se alternariam para matá-lo a tiros ou atravessá-lo com a espada, depois do qual retornariam às montanhas.

 

        O calor aumentava grandemente conforme descendíamos para a costa. Conseguimos alojamento em uma estalagem pequena e poda, um pouco afastada do mole. Era relativamente troca e cômoda, embora algo pequena e escura.

 

-por que não têm mais janelas?- grunhiu Brianna, depois de tropeçar com o Germain na escuridão do patamar.

-Imposto às janelas- informou-lhe Roger.

-O que? A Coroa cobra impostos às janelas?

-Sim. Às pessoas deveria lhe preocupar mais isso que os selos ou o chá, verdade? Mas ao parecer estão acostumados.

 

        As moças, os meninos e eu dedicamos vários dias a fazer compras, enquanto Roger e Jamie mesclavam os negócios com o prazer em diversos botequins. Já tinham terminado com a maioria de seus recados e Jamie obtinha um pequeno, mas útil ingresso adicional mediante o jogo de naipes e as apostas nas carreiras de cavalos, mas do Stephen Bonnet só tinham sabido que não o via pelo Wilmington desde fazia alguns meses.

 

        Mais avançada a semana, começou a chover até o ponto de ter que passar dois dias encerrados. Marsali ficava levantada até entrada a noite, escutando as rajadas e rezando o rosário ou jogando às cartas com o Jamie, para distrair-se.

 

-Fegus disse que viria de New Bern em um navio grande? O Octopus? Soa a navio de bom tamanho, verdade, papai?

-OH!, sim. Mas acredito que os paquetes também são muito seguros. Não, não descarte essa, moça. Tira o três de espadas.

-Como sabe que tenho o três de espadas?- inquiriu ela, com um gesto suspicaz-. E isso dos paquetes não é verdade. Sabe tanto como eu. Anteontem vimos os restos de um no fundo da rua Elm.

-Sei que tem o três de espadas porque eu não o tenho- disse-lhe Jamie, apoiando sua mão de cartas contra o peito-. E as outras espadas já estão todas na mesa. Além disso, Fergus poderia vir por terra, não em navio.

 

        Uma rajada sacudiu as venezianas.

 

-Outro motivo para não ter janelas- comentou Roger, enquanto olhava a mão do Marsali por cima de seu ombro-. Jamie tem razão: te descarte o três de espadas.

-Ouça, segue você. Eu devo atender ao Joanie.- levantou-se súbitamente e, depois de pôr as cartas nas mãos do Roger, correu à pequena habitação vizinha, que compartilhava com seus filhos. Eu não tinha ouvido chorar ao Joanie. Acima se ouviu um golpe forte e lhe chiem: um ramo que cruzava o telhado. Todos levantamos a vista. Por debaixo do alarido do vento se ouvia o rumor oco do fluxo, que fervia sobre as restingas inundadas, castigando a costa.

 

 

 

        Pela manhã tinha espaçoso e desde mar chegava uma brisa fresca, que cheirava a lavanda marítima, a pinheiros... e trazia o forte fedor de uma besta marítima apodrecendo-se ao sol. O mole ainda mostrava uma deprimente ausência de mastros. Não havia navios grandes ancorados ali, nem sequer um queche ou um paquete, embora o porto do Wilmington fervia de botes, balsas, canoas e pirettas.

 

        Uma delas detectou a nosso pequeno grupo, desconsolado no mole, e se lançou para nós. Os remadores elevaram a voz para nos perguntar se necessitávamos transporte. Ao inclinar-se Roger para rechaçar cortesmente o oferecimento, a brisa do porto lhe arrebatou o chapéu, que foi posar se na espuma das águas parduscas, girando como uma folha.

 

        A embarcação se desviou imediatamente para o chapéu flutuante e um dos remadores o trespassou com a ponta do remo, para levantá-lo em um gesto triunfal. Mas quando a piretta se aproximava do mole, a expressão jubilosa de barqueiro se transformou em estupefação.

 

-MacKenzie!- exclamou-. Que me agarram em um palito de dentes se não ser ele!

-Duff! Duff, velho amigo!- depois de agachar-se para recolher seu chapéu, Roger ofereceu a mão a seu conhecido.

 

        Duff subiu agilmente ao mole e estreitou ao Roger em um abraço viril. Outros observavam cortesmente esse encontro.

 

-Conhece-o?- perguntei a Brianna, que examinava ao velho amigo de seu marido com ar dúbio.

-Acredito que esteve embarcado com o Roger- replicou.

-Mas que pintas tem, homem!- exclamoó o remador, dando um passo atrás. passou-se alegremente a manga pelo nariz-. Jaqueta de grande senhor, e que botões! E o chapéu! Mas se for tão posto que até a mierda te escorregaria!

 

        Roger, rendo, agachou-se para recolher o chapéu empapado. depois de golpeá-lo contra a coxa para desprender uma fibra de alga, entregou distraídamente ao Bree, que continuava observando ao senhor Duff com bastante desconfiança.

 

-Minha mulher- apresentou-a. Logo nos abrangeu em um gesto-. E sua família. O senhor James Fraser, a senhora Fraser... e a irmã de minha mulher, que também é dos MacKenzie.

-Um servidor, senhor... senhoras.- Duff se inclinou ante o Jamie, apoiando um dedo no horrível objeto que tinha na cabeça, breve amostra de respeito. Logo olhou a Brianna e um largo sorriso lhe estirou os lábios-. Ah, assim que te casaste com ela; tiraste-a que suas calcinhas, já vejo.- Com uma cotovelada familiar às costelas do Roger, reduziu a voz a um rouco sussurro-. Teve que pagar ao pai por ela... ou ele te pagou para que lhe levasse isso?- E emitiu um ruído lhe chiem que interpretei como risada.

 

        Jamie e Bree lhe cravaram olhadas identicamente frite ao longo dos retas narizes, mas antes de que Roger pudesse responder o outro barqueiro gritou algo incompreensível da embarcação.

 

-OH!, sim, sim, agüenta a água, homem-. O senhor Duff sossegou a seu sócio com um gesto da mão-. Isso é uma piada- explicou-me em tom de confidência-. Entre marinheiros, sabe você? “ Agüenta a água” , compreende? Porque se não agüentar a água terminará no fundo do porto, não?- E repetiu aqueles chiados, estremecido de regozijo.

 

-Muito gracioso- assegurei-lhe-. Mas ele disse algo sobre uma baleia, não?

-OH, claro! Não é para isso para o que baixastes à costa?

 

        Todo mundo o olhou sem entender.

-Não- disse Marsali, muito conciente de seu encargo para emprestar atenção a outra coisa, nem sequer a uma baleia-. Não, senhor, viemos a ver se houver notícias do Octopus. Sabe você algo dele?

-Não, senhora. Mas diante dos bancos, o tempo esteve traiçoeiro durante todo o mês...- Ao ver que a moça empalidecia se apressou a acrescentar-: Muitos navios devem haver-se desviado, compreende? Podem ter procurado outro porto ou estarão frente à costa, esperando céus mais claros para chegar a este. O que tivemos que fazer nós ao chegar no Gloriana, recorda MacKenzie?

-Sim, é certo- assentiu Roger. Mas seus olhos se tornaram precavidos ante a menção desse navio. Olhou um instante a Brianna e logo, ao Duff-. Vejo que te separaste que capitão Bonnet- disse, baixando um pouco a voz.

-Stephen Bonnet?- repetiu meu marido, olhando-o com interesse-. Conhece você a esse cavalheiro?

-Conheço-o, sim, senhor- disse Duff, fazendo o sinal da cruz-se.

 

        Ao ver isso Jamie assentiu lentamente.

 

-Já vejo, já vejo. Conhece você por acaso, o paradeiro atual do senhor Bonnet?

-Pois bem, quanto a isso...

 

        Duff o olhou especulativamente, apreciando os detalhes de sua vestimenta e seu aspecto. Obviamente se perguntava quanto podia valer a resposta a essa pergunta. Mas sua sócia, ali abaixo, impacientava-se cada vez mais.

 

        Marsali também.

-Onde podem ter ido, senhor? Se tiverem procurado outro porto?- perguntou.

-Bonnet?- Jamie arqueou as sobrancelhas, com uma expressão de uma vez alentadora e ameaçadora.

-vão ver a baleia ou não vão ver a baleia?- chiou o cavalheiro do bote, impaciente por procurar empresas mais rentáveis.

 

        Duff parecia não saber a quem responder primeiro. Seus ojillos parpadeantes foram e vinham entre o Jamie, Marsali e seu sócio, cada vez mais vociferante. Adiantei-me para romper a pausa.

-Que baleia é essa?

 

        Obrigado a concentrar-se nessa pergunta, mais direta, Duff pareceu aliviado.

-Pois a baleia morta, senhora! Uma muito grande que o mar lançou à ilha. Eu supus que todos tinham vindo a vê-la.

 

        Então caí na conta de que o movimento de embarcações não era de tudo casual. Algumas canoas e barcaças grandes se dirigiam, na verdade, para a boca de Cape Fear, mas a maior parte dos botes mais pequenos foram e vinham; já desapareciam na bruma distante ou retornavam dela, trazendo pequenos grupos de passageiros. A sombrinhas de linho brotavam como cogumelos nos botes; entre a gente do mole havia muitos habitantes da cidade, que olhavam ao outro lado com ar de espera.

 

-Dois xelins por passagem completa- sugeriu Duff, para congraçar-se-. Ida e volta.

 

        Roger, Brianna e Marsali se mostraram interessados. Jamie, inquieto.

-Nisso?- perguntou, jogando um olhar cético a piretta que cabeceava abaixo.

 

        O sócio do Duff, um cavalheiro de raça e idioma indetermináveis, pareceu ofender-se ante essa crítica implícita a sua embarcação, mas Duff nos tranqüilizou:

 

-OH!, mas se hoje o mar está muito tranqüilo, senhor, muito tranqüila. Será como estar sentado em um botequim. Não? Muito adequado para conversar- E piscou com afável inocência.

 

        Jamie inalou profundamente e jogou outra olhada a piretta. Por um lado odiava os botes. Pelo outro, por ir detrás o Stephen Bonnet faria coisas muito mais se desesperadas que abordar uma embarcação. Só ficava por ver se na verdade o senhor Duff tinha informação que nos servisse ou se só procurava passageiros. Tragou saliva, procurando valor.

 

Duff, sem esperar, fortaleceu sua posição dizendo ao Marsali, astutamente:

-Na ilha há um farol, senhora. De acima se pode olhar mar dentro, a grande distancia, e ver se houver algum navio ancorado frente aos bancos.

 

        Ela baixou imediatamente a mão a sua bolsa. Com um suspiro resignado, Jamie afundou a mãos em seu sporran.

 

-Será melhor procurar outro bote mais, para que não nos afoguemos todos de uma vez.

 

        À medida que entrávamos na água, o mar não estava tão sereno, mas o subir e descer do fluxo nos embalava apaciblemente.

 

        Joguei uma olhada à costas do Jamie, mas mantinha a cabeça inclinada. Ao remar, seus ombros se moviam em um ritmos fácil e potente.

 

        Resignado ao inevitável, ocupou-se energicamente da situação. depois de chamar um segundo bote, fez que Bree, Marsali e os meninos subissem a ele. A seguir anunciou que ele e Roger agarrariam os remos da piretta, a fim de que Duff pudesse despreocuparse e recordar melhor qualquer dado interessante referente ao Stephen Bonnet.

 

        Duff e Peter se instalaram em um extremo da embarcação. me indicou que me sentasse no outro extremo, frente a eles.

 

-Para que vigie um pouco as coisas, Sassenach.- Jamie me pôs na mão a culatra de sua pistola. Logo, ajudou-me a descender ao bote e se embarcou a sua vez, cautelosamente.

 

        Roger, sentado diante de mim, remava com rítmicas flexões dos largos ombros, claramente habituado ao exercício. Jamie, frente a ele, dirigia os remos com bastante elegância, mas sem tanta segurança.

 

-OH!, sim que poderia me acostumar a isto. O que diz você, Peter?- Duff levantou o largo nariz para a brisa, com os olhos semicerrados, para saborear a novidade de que outro dirigisse os remos.

        Peter, que parecia ser uma exótica mescla de índio e africano, respondeu com um grunhido.

 

-Stephen Bonnet?- inquiriu Jamie, cordialmente, enquanto atirava dos remos.

-Ah!, sim.- Ao parecer, Duff teria preferido adiar indefinidamente o tema, mas um olhar à cara do Jamie o resignou ao inevitável-. O que deseja você saber?- perguntou, encurvando os ombros em um gesto de cautela.

-Para começar, onde está.

-Não tenho nem idéia- respondeu ele, pressuroso e já mais satisfeito.

-Pois bem, onde viu você a esse cretino por última vez?- perguntou Jamie, paciente.

 

        Logo deu uma cotovelada a seu sócio.

-Estava em um botequim do Roanoke, comendo bolo de pescado.

-É você muito observador, senhor Duff- comentou Jamie-. E seu sentido do tempo?

-Né? Sim, já entendo, homem. Quando foi... Fará dois meses, pouco mais ou menos.

-E se você estava tão perto para ver o que o homem comia- observou Jamie, tranqüilamente-, suponho que devia estar compartilhando sua mesa, verdade? Do que falava?

        Duff pareceu um pouco sobressaltado.

-Pois... principalmente, do culo da taberneira.

-Não acredito que esse tema de conversação possa ocupar toda uma comida, por escultural que fora a moça- interveio Roger.

-Homem! Não imagina o muito que se pode dizer sobre o traseiro de uma mulher- assegurou-lhe o marinheiro-. Sem ânimo de ofendê-la- acrescentou pressuroso, inclinando o chapéu para mim.

-Não me ofendeu- assegurei-lhe cordialmente.

-Sabe você nadar, senhor Duff?- perguntou Jamie, em tom de leve curiosidade.

-O que?- O escocês piscou, sobressaltado-. Eu... né... pois...

-Não, não sabe- informou Roger, alegremente-. Disse-me isso.

 

        O outro lhe arrojou um olhar de traída indignação por cima da cabeça do Jamie.

 

-Vá lealdade!- exclamou, escandalizado-. Bom companheiro é você! Olhe que me entregar desse modo...! Que falta de vergonha!

-Bonnet- repetiu Jamie, ainda em tom cortês, mas cortante.

-Mas se lhes digo a verdade: não tenho a menor ideia de onde possa estar esse homem. Quando o vi no Roanoke estava fazendo alguns acertos para trazer certos... certa marcancía. Se isso lhe servir de algo...- acrescentou, grosseiro.

-Que mercadoria? Aonde a trazia? Para levá-la aonde?

-Por isso entendi, caixas de chá- respondeu Duff, cauteloso-. Quanto ao resto, não sei.

-Que resto?

-Vamos, homem, todo navio que navega por esta água leva diferentes tolices. Você tem que sabê-lo.

-Trouxeram chá. De onde? De um navio?

-Sim, o Sparrow- prosseguiu Duff, sem apartar a vista dele-. Ancorou frente aos bancos e fomos em botes para trazer a carga, através da enseada do Joad. Desembarcamos no mole do Wylie e ali entregamos tudo a um tipo.

-O que... tipo?

 

        Duff demorou para responder. Em seus ojillos afundados faiscou um olhar especulativo.

 

-Que não te ocorra, Duff- disse Roger em voz baixa, mas firme-. daqui posso te alcançar com um remo, entende-o?

-Sim?- O outro os olhou a ambos, pensativo, logo, a mim-. Sim, suponho que poderiam. Mas até caso que saiba nadar, MacKenzie, e que o senhor Fraser possa manter-se a flutuação... não acredito que a senhora possa, verdade? Com tantas falddas e anáguas...- Moveu a cabeça, com os lábios franzidos em um gesto caviloso-. Iria ao fundo como uma pedra.

-Claire?- disse Jamie.

 

        Percebi a nota tensa em sua voz. Com um suspiro, extraí a pistola que escondia sob a jaqueta, cruzada em meu regaço.

 

-Bem- disse-. Contra qual disparo?

 

        Peter abriu repentinamente os olhos, tanto que mostrou um anel branco em volto das íris negras. Olhou a pistola, logo ao Duff e, finalmente, ao Jamie.

 

-Dá chá a um homem Butla- disse-. Trabalha p’ s’or Lyon.- Logo assinalou a seu companheiro-. Mata ele- propô-me.

 

        Assim, quebrado o gelo, nossos passageiros demoraram muito pouco em nos revelar o resto do que sabiam.

 

        Tal como Duff tinha insinuado, o contrabando era tão comum na zona que constituía uma prática comercial generalizada; a maioria dos mercados e todos os barqueiros do Wilmington participavam dela, ali e em quase toda a costa da Carolina, a fim de evitar os asfixiantes impostos da mercadoria que se importava por via oficial. Stephen Bonnet não só era um dos contrabandistas mais efetivos, mas também se tinha convertido em todo um especialista.

 

-Traz mercadorias por encargo- disse Duff-. E por quantidade, como quem diz.

-Que quantidade?- inquiriu Jamie.

 

        Duff calculou com os lábios franzidos.

-Nesse botequim do Roanoke fomos seis. Seis, com botes pequenos, dos que podem percorrer as enseadas. E cada um carregou tudo o que pôde. Em total deveram ser umas cinqüenta gavetas de chá.

-E com que freqüência traz essas cargas? Cada dois meses?- Roger se tinha depravado um pouco. Eu não; cravei em nosso barqueiro um olhar duro por cima da pistola, para fazer saber.

-Muito mais freqüentemente- respondeu ele, me observando com desconfiança-. Não poderia assegurá-lo, mas a gente ouça comentários, entende? Por isso dizem outros barqueiros, calculo que em plena temporada traz uma carga cada duas semanas. Desembarca-a em algum ponto da costa entre a Virginia e Charleston.

 

        Isso arrancou ao Roger um grunhido de surpresa.

 

-E a marinha?- perguntou Jamie-. A quem pagamento?

 

        Era uma boa pergunta. Os botes pequenos podiam fugir a vigilância da marinha, mas a operação do Bonnet requeria trazer mercadoria em grandes quantidades, em navios de grande tamanho. Seria difícil ocultar algo a tal escala... e a resposta óbvia era que ele não se incomodava em ocultá-lo.

 

        Duff se encolheu de ombros.

-Homem! Não sei.

-Mas vós não trabalhastes para o Bonnet desde fevereiro?- assinalei-. por que?

 

        Os marinheiros intercambiaram um olhar.

-Tem fome, come pejesapo- disse-me Peter-. Tem massa, come algo mejó.

-O que?

-O homem é perigoso, Sassenach- traduziu Jamie, secamente-. Eles prefere não tratar com ele, salvo em caso de necessidade.

-Terá que vê-lo- disse Duff, entusiasmado pelo tema-. Pode tratar com ele, como não... sempre que seu interesse corra parecido com o seu. Mas possivelmente ele dita repentinamente que o seu corre para outro rumo...

 

        Peter se passou um dedo solene pelo pescoço fibroso.

-E não te avisa- continuou seu companheiro-. Se fizer um momento todo era charutos e havanês, de repente te encontra de costas no chão, tragando sangue... e até dá obrigado por poder tragá-la.

-Assim é colérico, não?- disse Jamie.

 

        Duff, Peter e Roger moveram simultaneamente a cabeça.

-Mais frio que o gelo- disse Roger, com um sotaque de tensão na voz.

-Mata-te sem que lhe mova um cabelo- assegurou Duff.

-Você curta como a aquela baleia- acrescentou Peter, assinalando a ilha.

 

        A corrente nos tinha aproximado muito mais e já tínhamos o animal à vista. As aves marinhas chiavam por cima do cadáver, lançando-se em picamultitud, com lenços e taleguillas contra o nariz.

 

        Nesse momento trocou o vento; um fétido sopro de podridão nos envolveu como uma onda ao romper na praia. Em poucos minutos a quilha da piretta tocou terra. Duff e Peter saltaram para rebocar o casco praia acima; logo me ajudaram a descender, muito galantes: pelo visto não me odiavam pelo da pistola.

 

Os meninos, muito iludidos ao ver a baleia, atiravam de suas relutantes mães como se fossem cometas. Eu as acompanhei, embora mantive a distância prudente do enorme cadáver. Enquanto isso, Jamie e Roger se levaram ao Duff à parte para conversar sobre privado, memorasse Peter cedia à sonolência no fundo do bote.

        Pese ao fedor, alguns dos visitantes mais intrépidos estavam de pé sobre o cadáver e saudavam alegremente aos que tinham ficado na praia.

        Ao olhar praia abaixo, vi que Duff, cada vez mais inquieto, passeava a vista entre a baleia e o bote. Obviamente estava desejoso de voltar para seu negócio antes de que a atração desaparecesse por completo.

        Por fim conseguiu escapar e correu a seu piretta, como açoitado pelos fantasmas. Jamie e Roger se aproximaram de mim, ero os meninos não estavam dispostos a abandonar a baleia. Brianna se ofereceu nobremente a vigiá-los a ambos, a fim de que Marsali pudesse subir ao farol próximo, se por acaso o Octopus estivesse à vista.

        - O que lhe há dito ao pobre senhor Duff?- perguntei ao Jamie- . O via muito preocupado.

        - Sim? Pois não tem por que.- Olhou para a água, onde a embarcação do Duff retornava velozmente ao mole- . Não tenho feito mais que lhe oferecer um pequeno negócio.

        - Sabe onde está Lyon- interveio Roger. Parecia inquieto, mas emocionado.

        - E o senhor Lyon sabe onde está Bonnet, ou ao menos sabe como lhe fazer chegar uma mensagem. Subamos um pouco mais, quer?- Jamie assinalou a escada da torre.

        No alto do farol o ar era mais fresco, mas eu não podia emprestar muita atenção ao panorama.

        - E bem? - perguntei, não muito segura de querer escutar a resposta.

        - encomendei ao Duff que leve uma mensagem ao senhor Lyon. Se todos estivermos de acordo, dentro de uma semana nos encontraremos com o senhor Bonnet no embarcadero do Wylie.

 

- Navegou com nosso Stephen, verdade? Durante quanto tempo? Dois meses, três?

        - Quase três - respondeu Roger.

        “ Nosso Stephen” ? O que pretendia Jamie com essa frase tão doméstica?

        Ele assentiu, sem deixar de contemplar o ir e vir do mar; a brisa liberava fios de cabelo de suas ataduras e as fazia dançar como chamas, pálidas à luz do dia.

Então o conhece o suficiente.

        O jovem apoiou seu peso contra o corrimão. Era sólida, mas estava molhada e pegajosa pela garoa médio seca, ali onde lhe tinha alcançado a espuma das rochas.

        - O suficiente - repetiu- . O suficiente como para que?

        Jamie o olhou à cara, com os olhos entreabridos par protegê-los do vento, mas brilhantes como navalhas.

        - O suficiente para saber que é um homem, nada mais.

        - E o que outra coisa poderia ser? - Roger percebeu o fio em sua própria voz.

        Jamie voltou a contemplar o mar, sombreando-os olhos com uma mão, pois estava de cara ao sol poente.

        - Um monstro - disse brandamente- - Menos que um homem…ou mais.

        Roger abriu a boca para replicar, mas descobriu que não podia. Pois era um monstro o que escurecia de medo seu próprio coração.

        - O que pensavam dele os marinheiros? - Claire se inclinou por cima do corrimão para olhá-lo, desde esotro lado do Jamie; o vento se apoderou de sua cabeleira e a sacudiu em uma nuvem voadora; tempestuosa como o céu distante.

        - No Gloriana? - Ele respirou fundo; uma baforada de baleia morta foi mesclar se com o aroma fecundo das restingas- .Respeitavam-no. Alguns o temiam. - “ Eu por exemplo” - . Tinha fama de ser um capitão duro, mas bom. Competente. Os homens estavam dispostos a embarcar-se com ele, porque sempre chegava a porto são e salvo e suas viagens sempre rendiam boas lucros.

        - Era cruel? - perguntou Claire, com uma tênue enruga nas sobrancelhas.

        - Todos os capitães são cruéis de vez em quando, Sassenach- disse Jamie, com um ligeiro timbre de impaciência- . É necessário.

        Ela levantou a vista para olhá-lo e Roger viu que sua expressão trocava. A lembrança lhe abrandou os olhos; uma idéia irônica esticou a comissura de sua boca. Logo apoiou uma mão no braço do Jamie e seus nódulos empalideceram ao apertar.

        - Nunca tem feito outra coisa que o que devia - disse, em tão baixa que Roger apenas a ouviu. Não importava; obviamente, essas palavras não estavam destinadas a ele. Logo elevou um pouco o tom- . Há uma diferença entre crueldade e necessidade.

        - Sim - disse Jamie, quase para seus adentros- . E uma linha muito magra, possivelmente, entre um monstro e um herói.

 

O estreito estava sereno e plano; com a superfície logo que frisada por diminutas ondas levantadas pelo vento. Menos mal, pensou Roger ao olhar a seu sogro. Ao menos Jamie tinha os olhos abertos, fixos na costa com uma sorte de apaixonada desespero, como se a visão da terra firme, ainda inalcançável, pudesse lhe oferecer algum consolo.

        Roger não se enjoava, mas se sentia quase tão decomposto como ele.

        - Ali está. - Duff se reclinou sobre os remos, assinalando o mole com a cabeça.

        O embarcadero do Wylie parecia uma miragem; flutuava em uma capa de névoa, por cima da água, entre uma densa maleza. Rodeavam-no pantanales, achaparradas bosques costeiros e largas extensões de água. Comparado com os verdes recintos das montanhas, aquilo parecia incómodamente desprotegido. Ao mesmo tempo, estava isolado, a vários quilômetros de qualquer signo de presença humana.

        Em parte, isso era uma falsa impressão; Roger sabia que a plantação estava a um quilômetro e meio de embarcadero. Este consistia em um simples mole de madeira sobre pilote, junto ao qual se levantava uma série de abrigos desmantelados. além dos abrigos, uma perto de paus delimitava um pequeno curral; de vez em quando, Wylie devia transportar seu gado por água.

        Jamie tocou a caixa de cartuchos que pendia de seu cinturão para verificar que ainda estivesse seca. Seus olhos avaliaram o céu. Então Roger caiu na conta de que, se chovia, possivelmente não poderiam confiar nas pistolas. A pólvora negra se empelota com a umidade e, se esta era excessiva, não acenderia. Quão último desejava era enfrentar-se ao Stephen Bonnet com uma arma inútil.

        Suavam-lhe as Palmas das mãos; as esfregou contra as calças sem incomodar-se em dissimular. Levava uma adaga à cintura, junto com o par de pistolas; a espalada estava no fundo do bote; sólida dentro de sua vagem. Ao pensar na carta do John Grei, nos olhos do capitão Marsden, sentiu um sabor amargo e metálico no fundo da garganta.

        A uma indicação do Jamie, a piretta se aproximou lentamente ao embarcadero; todos a bordo estavam alerta a qualquer sinal de vida.

        - Não vive ninguém aqui? - perguntou Fraser em voz baixa, inclinando para o ombro do Duff para inspecionar os abrigos- . Não há escravos?

        - Não - grunhiu o remador- . Nestes tempos Wylie não utiliza o embarcadero tão freqüentemente, pois construiu um caminho novo desde sua casa; vai para o interior e sai à estrada principal ao Edenton.

        Jamie o olhou com ar cínico.

        - E como Wylie não o usa, há outros que o aproveitam, não?

        Roger viu que o mole estava bem situado para o contrabando: da terra não se via, mas o acesso era fácil do estreito. O que a primeira vista tinha tomado por ilha, a sua direita, era na verdade um labirinto de bancos de areia, que separavam da parte maior o canal que conduzia ao embarcadero do Wylie. Havia pelo menos quatro canais menores que entravam nos bancos de areia; dois deles teriam dado capacidade a um queche de bom tamanho.

        Duff riu entre dentes.

        - Homem!, há um pequeno caminho de conchas que leva a casa. Se alguém vier por ali saberão com tempo.

        Peter se removeu, inquieto, assinalando os bancos de areia com a cabeça.

        - Maré - murmurou.

        - OH!, sim, não terão que esperar muito… ou sim. Tudo depende. - O escocês sorriu de brinca a orelha, como se isso lhe parecesse muito gracioso.

        - por que? - grunho Jamie, que não lhe encontrava graça. Agora que a salvação estava à mão se sentia algo melhor, mas obviamente não estava de humor para piadas.

        - A maré está subindo. - Duff deixou de remar o tempo suficiente para tirá-la horrível boina e enjaguarse a frente meio calva- . Durante a maré baixa o canal não têm profundidade suficiente para um queche. dentro de horas ou um pouco mais poderão entrar. Se estiverem ali fora, esperando, virão enseguidaza para liquidar o assunto e partir antes de que troque a maré. Peri se ainda não chegaram, talvez devam esperar a pleamar do entardecer. É perigoso navegar pelos canais durante a noite. Bonnet não é dos que se assustam por um pouco de escuridão, mas se não levar pressa é possível que se atrase até a manhã seguinte. Sim, é possível que devam esperar o bastante

        A piretta se deslizou junto ao mole; Duff projetou um remo contra um desses pilote incrustados de ignorantes, para fazê-la girar diestramente. Jamie subiu ao embarcadero com precipitação, desejoso de chegar a terra firme. Roger o seguiu, carregado com as espadas e o pequeno hatillo que continha os cantis e a reserva de pólvora. ajoelhou-se no mole, contados os sentidos alerta para perceber o menor sinal de movimento humano, mas só se ouviam os gorjeios líquidos dos mirlos no pântano e o grito das gaivotas no estreito.

        depois de revolver dentro de seu saco, Jamie extraiu uma taleguilla, e a jogou no Duff sem dizer nada. Era um pagamento simbólico. O barqueiro cobraria o resto quando retornasse para buscá-los, dentro de dois dias.

        Se tinha êxito, ele mesmo lhe pagaria o resto do dinheiro acordado; se não, faria-o Claire.

        Ambos permaneceram juntos no mole, em silêncio, enquanto a piretta se afastava pouco a pouco. O nó que Roger tinha no estômago se apertava mais e mais.

        de vez em quando se perguntava a quantos homens teria matado Fraser… se acaso os contava, se sabia. Não era o mesmo, certamente, matar a um homem em combate ou em defesa própria, que lhe tender uma emboscada e planejar seu assassinato a sangue frio. Mesmo assim Fraser devia lhe resultar mais fácil.

        Jamie seguia com a vista no bote que se afastava, imóvel como a pedra. Viu-o tragar saliva com dificuldade. Não, para ele tampouco era fácil.

        De algum modo, isso era um consolo.

 

Exploraram brevemente todos os abrigos. Umas ou duas das construções pareciam ter sido utilizadas como moradia. instalaram-se no maior dos abrigos, que se levantava no mesmo mole, e se acomodaram para esperar.

        O plano era muito singelo: disparar contra Bonnet assim que aparecesse. A menos que chovesse, em cujo caso terei que empregar espadas ou facas. Dito desse modo o procedimento parecia singelo, mas a imaginação do Roger não podia deixá-lo assim.

        - Caminha, se quiser - disse Jamie, depois de ter acontecido um quarto de hora vendo os movimentos nervosos de seu genro- . Quando vier, ouviremo-lo.

        - Hum… E se não vir sozinho?

        - Pois nada. Se vier com seus homens teremos que apartar o deles. Levarei-me isso a um dos abrigos pequenos, com o pretexto de conversar sobre privado, e ali o despacharei. Você impede que ninguém me siga. Só necessitarei um minuto.

        - Sim? Logo vem tranqüilamente a informar a seus homens que acaba de matar a seu capitão. E então?

        - Já teria morto. Parece-te que possa inspirar em seus homens tanta lealdade como para que queiram vingá-lo?

        - Pois… não - reconheceu Roger, lentamente.

        - averigüei muitos sobre o senhor Bonnet - observou Jamie, enquanto deixava a pistola- . Tem sócios, mas não amigos. Não navega sempre com a mesma tripulação. Bonnet escolhe a seus tripulantes ao azar, não porque lhe sejam simpáticos, mas sim por sua habilidade e força. Por isso não acredito que lhe tenham muito afeto.

        Roger reconheceu o acertado da observação. No Gloriana reinava a ordem, mas não havia sentido de camadería, nem sequer entre os oficiais. E o que Jamie dizia era verdade: quanto tinham descoberto revelava que Bonnet escolhia a seus assistentes conforme os necessitasse; se levava companhia a essa entrevista, dificilmente fossem tripulantes leais, a não ser marinheiros escolhidos nos moles ao azar.

        - De acordo. Mas se… quando o matarmos, qualquer homem que esteja com o…

        - …necessitará outro emprego - interrompeu-o Jamie- . Não: sempre que não disparemos contra eles nem lhes demos motivos para sentir-se ameaçados, não acredito que se preocupem muito pela sorte de seu capitão. Mesmo assim…

        Recolheu sua espada com o sobrecenho franzido e a deslizou dentro da vagem, para comprovar que não estava entupida.

        - Se por acaso essa fora a situação, levarei-me ao Bonnet à parte, como hei dito. me dê um minuto para me ocupar dele; logo busca alguma desculpa para vir por mim. Mas não te detenha: atravessa diretamente os abrigos e vê para os bosques. Ali nos reuniremos.

        Roger o olhou com ar cético e pigarreou uma e outra vez. Por fim agarrou uma de suas pistolas.

        - Bom. Só uma coisa mais: do Bonnet me encarrego eu.

        Fraser lhe cravou um olhar penetrante. Ele a sustentou, atento ao pulso que começava a martillear dentro de seus ouvidos. Seu sogro ia falar, mas calou. Olhava-o com ar pensativo. E ele podia ouvir os argumentos; pulsavam em seu ouvido interior, junto com o pulso, tão audíveis como se Jamie os houvesse dito em voz alta: “ Nunca mataste a ninguém. Nem sequer sabe o que é uma batalha. Não tem pontaria. Com a espada apenas te defende. Pior ainda: tem medo a esse homem. E se o tenta e enguiços…”

        - Sei - disse, sustentando aquela funda olhar azul- . É meu. Eu me ocuparei dele. Brianna é tua filha, sei… mas é minha esposa.

        - Está em seu direito - disse Jamie formalmente- . Mas não vacile, não o desafie. Mata-o à primeira oportunidade. - Fez uma pausa- . Mas se cai…tenha a segurança de que eu te vingarei.

        - Estupendo - disse- . E se cair você, serei eu quem te vingue. Trato feito?

        Fraser se limito a olhá-lo durante um comprido instante, sem rir. Nesse momento Roger compreendeu por que seus homens o seguiam onde fora e faziam o que ele ordenasse.

        - Um estranho trato - disse ao cabo de um momento- . Obrigado.

 

Não tinham relógio, mas tampouco o necessitavam. Até com o encapotado e o sol invisível, era possível sentir o passar dos minutos, o movimento gradual da terra, conforme foram trocando os ritmos do dia. O chapinho da água contra os pilote trocou de tom, pois a maré crescente retumbava no espaço aberto sob o mole.

        A pleamar chegou e passou; o retumbo sob o mole se tornou oco ao descender a água. Nos ouvidos do Roger, o pulso ia afrouxando, junto com os nós de suas tripas.

        de repente algo golpeou o mole. Jamie se levantou imediatamente, com duas pistolas no cinturão e outra na mão. Inclinou a cabeça para o Roger e saiu.

        O moço ajustou suas pistolas no cinturão e, depois de tocar o punho da faca para assegurar-se, foi atrás dele. Por um momento viu o bote. Um segundo depois estava no abrigo mais pequeno, à direita. Jamie tinha desaparecido; devia estar em seu próprio posto, à esquerda.

        O bote se movia lentamente ao toucinho do mole, ainda sem amarras. Só alcançava a ver um fragmento da popa; o resto estava fora da vista. De qualquer modo não poderia disparar até que Bonnet aparecesse no mole.

        Um cilindro de corda caiu contra as pranchas; ouviu o golpe e logo a pegada de alguém que subia ao corrimão para amarrá-la. Fechou os olhos, tratando de ouvir por cima do trovejar de seu coração. Pisadas. Lentas, mas não furtivas. aproximavam-se dele.

        A porta estava entreabrida. aproximou-se silenciosamente ao bordo, alerta, esperando. Uma sombra atravessou a porta. O homem entrou.

        Roger investiu desde detrás da porta e se jogou contra ele, tombando-o contra a parede com um golpe seco. O homem lançou um grito de surpresa ante o impacto; o som dessa voz o deteve, justo quando rodeava com as mãos um pescoço nada masculino.

        - Mierda! - disse- . Quer dizer…né…lhe rogo que me perdoe, senhora.

        Tinha-a apertada contra a parede, com todo seu corpo contra ela. O resto de sua pessoa tampouco tinha nada de masculino. Com as bochechas acesas deu um passo atrás, ofegante.

        Ela se sacudiu como um cão, acomodou-se a roupa e se tocou timidamente a nuca, ali onde se golpeou contra o tabique.

        - Me perdoe - disse- . Sentia-se de uma vez horrorizado e completamente estúpido- . Não foi minha intenção… Está você ferida?

        A moça era tão alta como Brianna, mas de textura mais sólida, cabelo castanho escuro e cara bonita, de ossos largos e olhos profundos. Sorrio abertamente e disse algo incompreensível, com forte aroma de cebola. Logo o olhou de arriava abaixo com bastante ousadia e, obviamente agradada, subiu os peitos com as mãos em um gesto de inconfundível convite.

Né… Não, temo-me que está equivocada… Não, não toque isso. Não!. Non! Nein!

Lutou com suas mãos, que pareciam decididas a lhe desabotoar o cinturão.

Não, estou casado. Quer parar?

        Desde não ser pelo aroma, Roger teria pensado que era uma alucinação, mas assim, a tão curta distância, as cebolas era o de menos. Embora a simples vista não estava suja, despedia a fetidez arraigada de quem ababa de fazer um comprido viaje por mar. Ele o reconheceu imediatamente. E também um inconfundível fedor a porcos, que emanava de suas saias.

Excusez- moi, mademoiselle. - A voz do Jamie surgiu de detrás; sobressaltada. Olhou ao Roger- . Quem é?

Como diabos quer que saiba? - Em um esforço por recuperar a compostura, Roger se sacudiu a roupa- . Supus que era Boneta ou algum de seus homens, mas obviamente não é assim.

Obviamente. - Fraser parecia disposto a procurar o lado humorístico da situação- . Qui êtes- vous, mademoiselle? - perguntou à moça.

        Ela o olhou com a frente enrugada, sem entender, e disse algo é esse estranho idioma. Ante isso Jamie arqueou as duas sobrancelhas.

        - O que é o que fala? - perguntou Roger.

        - Não tenho nem idéia. - À expressão divertida do Jamie se mesclava certa cautela. voltou-se para a porta com a pistola preparada- . Vigia-a, quer? Não veio sozinha.

        Isso era óbvio: no mole se ouviam vozes. Um homem e outra mulher. Roger intercambiou com seu sogro um olhar de estupefação. Não: a voz não era a do Bonnet nem a do Lyon. E por todos os Santos, o que faziam essas mulheres ali?

        Mas ao aproximá-las vozes, a moça gritou algo nessa língua estranha. Embora não parecia uma advertência, Jamie se apertou junto à porta, com a pistola preparada e a outra emano na adaga.

        A estreita abertura se obscureceu quase por completo. Uma cabeça escura e despenteada apareceu no abrigo. Jamie se adiantou um passo para cravar a pistola sob o queixo de um homem muito corpulento e muito surpreso. Logo o aferrou pelo pescoço da camisa e deu um passo atrás, arrastando-o para o interior.

        Quase imediatamente o seguiu uma mulher; sua textura alta e robusta, suas facções bonitas, identificaram-na imediatamente: devia ser a mãe da moça. Ela era loira; o homem em trocou (possivelmente o pai da jovem?), tão moreno como o urso ao que se parecia.

        - Começo a me sentir muito tolo - disse Fraser a seu genro, e apartou cautelosamente a pistola- . Wer seid Ihr? - perguntou.

        - Não acredito que sejam alemães - disse Roger. Logo assinalo com o pulga a jovem, que observava ao Jamie como se avaliasse seu potencial para um bom exercício entre a palha- . Ela não responde ao francês nem ao alemão, embora talvez tenha fingido.

        O homem os observava a ambos com o sobrecenho franzido, com se tratasse de entender o que lhe diziam. Mas para ouvir o vocábulo “ francês” pareceu iluminar-se.

        - Commente ça vai? - disse, com o acento mais execrável que Roger tivesse ouvido em sua vida.

Parlez- vous français? - perguntou Jamie, sem deixar de vigiá-lo.

        O gigante, com um sorriso, mostrou o polegar e o índice separados por dois ou três centímetros.

        - Um peu.

        O homem sabia umas dez ou doze palavras de francês, o suficiente para apresentar-se; Mijaíl Chemodurow, sua esposa Iva e Karina, sua filha.

        - Rushki - disse, plantando uma mão no peito carnudo.

        - Russos? - Roger os olhava, estupefato. Jamie, em troca, parecia fascinado.

        - Nunca tinha visto um russo- disse- . Mas, pelos pregos de Cristo! O que fazem aqui?

        Essa pergunta foi transmitida com certa dificuldade ao senhor Chemodurow.

        - Eles cochons - disse- . Pour o Monsieur Wylie. - Olhava ao Jamie com ire espectador- . Monsieur Wylie?

        Dado o penetrante aroma que despediam os três russos, não foi surpresa que mencionassem aos porcos. Menos óbvia era a relação entre os porquerizos russos e Phillip Wylie. Mas antes de que pudessem formular a pergunta se ouviu fora um forte golpe e um ruído lhe chiem, como se algum objeto de madeira, de bom tamanho, tivesse golpeado o mole. A isto seguiu imediatamente um coro de bramidos e chiados, porcinos em sua maioria; não obstante, alguns eram humano…e femininos.

        Chemodurow se moveu com assombros celeridade, mas Jamie e Roger saíram do abrigo lhe pisando os talões. O jovem logo que teve tempo de ver que agora eram duas as embarcações amarradas ao mole: além da pequena barco do russo, um bote aberto, de menor tamanho. Vários homens desembarcam do bote, arrepiados do cinturão as pistolas e a adaga.

        - Não te mova, tio - disse o homem que sustentava o mosquete.

        Chemodurow vadeava sem vacilação entre os invasores, chapinhando com essas mãos que pareciam presuntos. Um dos homens tinha cansado à água, empurrando do mole; o russo tinha a outro em seu poder e o estava estrangulando com brutal eficiência, sem emprestar atenção a gritos, ameaças nem golpes.

        Os gritos enchiam o ar; Iva e Karina tinham deslocado para sua embarcação, em cuja coberta apareceram dois dos invasores, cada um aferrando uma versão um pouco mais pequena da Karina. Um dos homens apontou uma pistola para as russas. Deveu apertar o gatilho, pois Roger viu uma faísca e uma pequena baforada de fumaça, mas o tiro falhou. As mulheres, sem vacilar, carregaram contra ele entre alaridos. O homem, apavorado, deixou cair a arma e a menina que sujeitava para jogar-se na água.

        Um golpe seco, horrível, apartou a atenção do Roger dessa cena secundária. Um dos homens, baixo e quadrado, tinha golpeado ao Chemodurow na cabeça com a culatra de uma pistola. O russo, com uma piscada, afrouxou um pouco sua pressão sobre a vítima. Seu atacante fez uma careta, logo sujeitou a arma com mais força e o golpeou outra vez. Então Mijaíl pôs os olhos em branco e caiu ao mole, que se sacudiu pelo impacto.

        Roger procurava com a vista ao Stephen Bonnet em meio da refrega, mas ali não se viam rastros do digno capitão do Gloriana.

        Não teve tempo de decidir se o descobrimento era um desencanto ou um alívio. Nesse momento o homem que tinha golpeado ao Chemodurow se voltou para a ele. Então reconheceu ao David Anstruther, o delegado do condado do Orange. O outro entreabriu os olhos ao identificá-lo, mas não pareceu surpreso de vê-lo.

        A briga, se acaso merecia esse nome, chegava a seu fim. As quatro russas e tinham sido rodeadas e levadas a trancos ao maior dos abrigos; também arrastaram até ali ao cansado Chemodurow.

        Chegado esse momento, um homem alto e elegante se encarapitou do bote. Até sem a peruca nem a jaqueta verde garrafa, Roger reconheceu sem dificuldade ao senhor Lillywhite, sem nenhuma pressa, observou o desenvolvimento dos acontecimentos. Roger viu que apertava melindrosamente a boca ao ver o rastro de sangue. Lillywhite fez um gesto ao homem que sujeitava ao Roger. Por fim a pressão da arma afrouxou um pouco, lhe permitindo respirar profundamente.

        - O senhor MacKenzie, verdade? - perguntou o magistrado, cordialmente- . E onde está o senhor Fraser?

        - No Wilmington - disse, imitando a cordialidade do Lillywhite- . Você também se afastou muito de seu território, verdade senhor?

Não tire o sarro, senhor - deu o magistrado, cortante.

        - Não me passaria pela cabeça - assegurou-lhe Roger, sem perder de vista ao tipo do mosquete, que parecia disposto a reatar suas pressões- . Mas se tivermos que formular essa classe de perguntas, onde está Stephen Bonnet?

        Lillywhite lançou uma risada breve.

        - No Wilmington.

        Anstruther apareceu junto ao cotovelo do magistrado, gordo e suarento. Dedicou ao Roger uma inclinação de cabeça e um feio sorriso.

        - MacKenzie. Encantado de vê-lo outra vez. Onde está seu sogro? E o mais importante: onde está o uísque?

        Lillywhite o olhou com o sobrecenho franzido.

        - Não o encontrastes? revisastes os abrigos?

        - Revisamo-los, sim. Ali não há mais que lixo. - balançou-se sobre a ponta dos pés, ameaçador- . Venha, MacKenzie, onde o tem escondido?

Eu não escondi nada - replicou Roger, com equanimidade- . Não há uísque.

        Começava a relaxar-se um pouco. Qualquer que fosse o paradeiro do Stephen Bonnet, ao menos não estava ali. Sem dúvida não gostariam de descobrir que o do uísque tinha sido uma estratagema, mas…

        O delegado lhe golpeou na boca do estômago. Ele se dobrou em dois e lhe obscureceu a visão.

        Nos márgenes de seu campo visual apareceram manchas luminosas. Agarrou fôlego, ofegante. Estava sentado no mole, com as pernas estendidas para diante, e o delegado o aferrava pelo cabelo.

        - Faz outro intento - aconselhou-lhe Anstruther, sacudindo-o energicamente pela cabeça. A dor foi mais irritante que penoso: ele lançou um sólido murro à coxa do delegado. O homem lançou um chiado e o soltou para saltar para trás.

        - Procurou você na outra embarcação? - inquiriu Lillywhite, sem emprestar atenção ao sofrimento do delegado.

        Anstruther cravou no Roger um olhar fulminante, enquanto se esfregava a coxa, mas sacudiu a cabeça a maneira de resposta.

        - Ali não havia mais que porcos e as moças. E de onde diabos saíram esses? - perguntou.

        - Da Rússia. - Roger tossiu; a dor lhe fez apertar os dentes.

        - Da Rússia? O que têm eles que ver neste assunto?

        - Nada, que eu saiba. Chegaram depois que eu.

        O magistrado lançou um grunhido; parecia aborrecido. Refletiu um momento, carrancudo, e lego decidiu provar outro enfoque.

        - Fraser tinha um acordo com o Milford Lyon. Eu assumi a parte do senhor Lyon nesse acordo. É absolutamente correto que você me entregue o Uísque - disse, tratando de infundir um tom de cortesia comercial a sua voz.

        - O senhor Fraser fez outros acertos- explicou Roger, com igual cortesia- . Enviou-me para que informasse disso ao senhor Lyon.

        Isso pareceu desconcertar ao Lillywhite; olhava ao jovem com fixidez, projetando e colocando os lábios franzidos, como se avaliasse sua sinceridade.

        - Como chegou você aqui? - interpelou Lillywhite, abruptamente- . Se não ter viajado nesse bote…

        - vim por terra desde o Edenton. - Benzeu mentalmente ao Duff por essa informação, enquanto assinalava despreocupadamente por cima de seu ombro. - por ali há um caminho de conchas.

        Os dois o olhavam fixamente, mas ele lhes sustentou o olhar sem intimidar-se.

        - Algo cheira mau, e não é o pântano. - Anstruther farejou audiblemente a modo de exemplo.

        Lillywhite, sem lhe emprestar atenção, seguia observando ao Roger com os olhos entreabridos.

        - Terei que importuná-lo por um momento mais, senhor MacKenzie - disse. E girou para o delegado. - Ponha-o com os russos…se é que o são.

        Anstruther aceitou essa missão com presteza. Os russos se apinharam em um rincão do abrigo, onde as mulheres atendiam solícitamente ao pai e marido ferido, mas todos levantaram a vista ao entrar Roger, com um falatório de saudações e perguntas incompreensíveis. Ele sorriu até onde pôde e apoiou a orelha contra o tabique, a fim de escutar o que Lillywhite e companhia se traziam entre mãos.

        Em um princípio tinha albergado a esperança de que aceitassem sua explicação e se fossem; ainda era possível que o fizessem, mas agora lhe ocorria outra possibilidade, muito mais inquietante.

        Pela conduta dos homens era óbvio que vinham com intenção de apoderar do uísque pela força. E o fato do Lillywhite tivesse permanecido oculto…Certamente, não podia permitir que tirassem o chapéu suas vinculações com piratas e contrabandistas.

        Tal como estavam as coisas, posto que não havia uísque, Roger não podia denunciar nenhum delito por parte do Lillywhite; embora a lei não permitia o contrabando, tais acertos eram tão comuns na costa que o mero rumor não prejudicaria sua reputação dentro de seu condado. Por outra parte, Roger estava sozinho; ao menos, isso pensava Lillywhite.

        Obviamente o magistrado tinha algum vínculo com o Stephen Bonnet…e isso podia sair a luz se Roger e Fraser começavam a fazer perguntas. A operação em que Lillywhite estava envolto, era tão perigosa como para que pensasse matar ao Roger a fim de evitar que se soubesse? Ele tinha a inquietante sensação de que esses dois podiam chegar a essa conclusão.

        Fora se ouviam muitos golpes, gradualmente substituídos por vozes longínquas, enquanto se inspecionavam novamente os abrigos e se estendia a busca ao pântano próximo.

        No teto de lata ressonou um leve tamborilo; começava chover. Estupendo: se lhes molhava a pólvora não poderiam lhe disparar; teriam que degolá-lo. Passou de desejar que Jamie não aparecesse antes de tempo a rogar que não o fizesse muito tarde. Quanto ao que poderia fazer se parecia…

        As espadas. Estariam ainda onde as tinham deixado, no rincão do abrigo?

        Os russos levantaram a vista, com uma mescla de cautela e preocupação. Ele sorriu, lhes indicando por pequenos gestos que não se entremetessem. Se, ali estavam as espadas.

        Chemadurow, que estava consciente, disse algo com voz fanhosa. Imediatamente Karina se levantou para aproximar-se do Roger e lhe tocou brandamente no braço. depois de agarrar uma das espadas que ele carregava, a desenvainó com um assobio ressonante; todos deram um coice, entre risadas nervosas ela fechou as mãos em volto do pomo e elevou a arma por cima de seu ombro, como um rebatedor de beisebol. A seguir ficou em guarda junto à porta, com cenho feroz.

        Os russos lançaram grandes exclamações de entusiasta respaldo. Uma das meninas menores quis agarrar a outra espada, mas ele sorriu, dizendo que muito obrigado mas preferia conservá-la.

        Para surpresa dela, a menina negou com a cabeça e acrescentou algo em russo. Roger arqueou as sobrancelhas, sem compreender. Então a jovencita lhe atirou do braço para levá-lo consigo até o rincão.

        Durante o breve cativeiro, tinham estado muito ocupadas em retirar tudo o lixo e formar um colchão cômodo para o ferido. Assim tinham descoberto a trampilla que se abria no chão, destinada a permitir que os expulse passassem sob o mole com a maré baixa e descarregassem diretamente dentro do abrigo, em vez de fazê-lo no embarcadero.

        A maré estava em descida; havia quase dois metros de altura com respeito à superfície da água. Roger se tirou a roupa até ficar em calças e, desprendendo-se do bordo do oco da trampilla, deixou-se cair de pé, por não mergulhar-se em algo que podia ser um baixio perigoso.

        Mas a profundidade superava sua estatura; afundou-se em uma chuva de borbulhas chapeadas até que seus pés tocaram o fundo arenosos; então se impulsionou para cima e rompeu a superfície com uma corrente de ar. depois de fazer um gesto tranqüilizador ao círculo de caras russas que o olhavam pela abertura, bracejou para o extremo oposto ao mole.

 

Lillywhite se deu a volta, acariciando nervosamente o punho de sua espada. Do teto do abrigo, Jamie observava sua maneira de mover-se e de tocar a arma. O fato de que levasse espada nessas circunstâncias denunciava tanto a familiaridade com a afeição a essa arma.

        Anstruther estava fora de sua vista, apoiado contra o muro do abrigo, sob a saliente do teto. Mas o delegado não lhe preocupava. Era só um valentão de braço curto.

        - Devemos matá-los a todos. É a única maneira de estar seguros.

        Lillywhite emitiu um grunhido de duvidoso assentimento.

        - Pode ser, mas e os homens? Não convém pôr nosso destino em mãos de testemunhas que possam falar. Teríamos podido liquidar ao Fraser e ao MacKenzie sem problemas, onde não nos visse, mas a tantos…Possivelmente seja melhor deixar a esses russos; são estrangeiros e não parecem saber uma palavra de inglês.

        - E como chegaram aqui, eu gostaria de saber? Alguém sabe que estão aqui e virá a por eles, sem dúvida. Já viram muito. E se você quer seguir usando este lugar…

        A chuva seguia sendo ligeira, mas caía sem pausa. Jamie girou a cabeça para limpá-los olhos contra um ombro. Estava tendido de barriga para baixo, braço e pernas estendidos como uma rã para não deslizar-se pelo pendente da coberta. No momento não se atrevia a mover-se. Mas a chuva sussurrava no estreito, abrindo covinhas na água, e arrancava um ruído ressonante ao metal do teto. Se aumentava um pouco mais cobriria qualquer ruído que ele fizesse.

        - …enviar aos homens de volta com o bote. Nós iremos pelo caminho, depois…

        Continuavam falando em voz baixa, mas Jamie compreendeu que já tinha tomado a decisão; Lillywhite só precisava convencer-se de que era necessário e de que não lhes levaria muito tempo. Mas primeiro se despediriam dos homens; o magistrado tinha razão em temer a presença de testemunhas.

        Jogou uma olhada ao abrigo maior, onde estava Roger MAC e os russos. Havia pouca distância entre um edifício e outro: pouco mais ou menos um metro entre teto e teto. Só um abrigo se interpunha entre o maior e ele. Pois bem…

        Aproveitaria a partida dos homens para avançar pelos tetos, crédulo em que a sorte e a chuva impedissem ao Lillywhite e Anstruther levantar a cabeça. apostaria-se por cima da coberta do abrigo e, quando entrassem para fazer o seu, cairia sobre o magistrado de acima; oxalá pudesse lhe partir o pescoço ou, ao menos, incapacitá-lo imediatamente. Podia contar com que Roger MAC corresse para ajudá-lo a dominasse ao delegado.

        No mole não havia ninguém. Lillywhite e o delegado haviam trazido para quatro homens, todos os quais estavam na areia branda, ao sul do embarcadero, pinçando entre a erva, que lhes chegava à cintura. Jamie inalou profundamente e recolheu os pés. Mas ao girar em redondo captou um movimento pela extremidade do olho e ficou petrificado.

        Do bosque saíam vários homens. Por um momento pensou que era outra obra do Lillywhite, mas logo caiu na conta de que tudo eram negros. Todos menos um.

        “ Eles cochons” , haviam dito os russos. “ Pour o Monsieur Wylie.” E ali vinha Monsieur Wylie, com seus escravos, para receber seus cerdos !

        voltou a tender-se de bruces e se arrastou pelo metal molhado, rumo à parte traseira do abrigo. Ficava por ver se Wylie se mostraria mais disposto a ajudá-lo que atravessá-lo com sua própria espada. Mas sem dúvida o homem quereria proteger a seus russos.

 

A água estava fria, mas não tanto como para intumescê-lo, e a maré não era ainda muito forte. Tragou um pouco de ar e continuou bracejando, alerta. Agora estava no lado norte do mole, escondido na sombra intensa que arrojava a embarcação dos russos.

        Não se ouviam vozes por ali. O sussurro da chuva no estreito cobriria qualquer ruído que ele fizesse. Preparado, pois. Com os pulmões cheios de ar, lançou-se para a luz chuvosa, mais à frente do mole.

        Nadou desesperadamente, tratando de não chapinhar; a cada instante esperava que uma bala de mosquete lhe cravasse entre os omoplatas. meteu-se entre as ervas, que lhe açoitaram o braço e a perna; então girou pela metade, ofegante, com a ardência do sal nos cortes. Um momento depois engatinhava pela maleza do pântano, com as totoras ondulando sobre sua cabeça e a chuva lhe castigando as costas.

        Por fim se deteve, com o peito palpitante por falta de ar. E agora que diabos podia fazer? Ter fugido do abrigo esta muito bem, mas não tinha nenhum plano. Procurar o Jamie, supostamente, se é que o conseguia sem que voltassem a apanhá-lo.

        Como se o pensamento tivesse atraído a atenção, ouviu o chapinho de alguém que caminhava a passo lento pelo pântano, a pouca distância. Estava procurando. Ficou imóvel, com a esperança de que a chuva dissimulasse o ruído de sua forte respiração.

        de repente alguém apartou frente a ele, a um palmo de sua cara. No outro extremo, um negro o olhava boquiaberto, com os olhos dilatados pelo assombro.

        - Você não zarigüeya! - disse, em tom de profunda acusação.

        - Não - reconheceu Roger, brandamente. tocou-se o peito com mão trêmula, para assegurar-se de que seu coração seguisse ali dentro- . Sinto muito.

 

Em sua casa, Phillip Wylie era muito diferente de quando estava em sociedade. Para apanhar aos porcos se embelezou com calças folgadas e avental de granjeiro; molhado pela chuva e sem rastros de peruca, pintura, pós nem lunares postiços, conservava sua magra elegância, mas o via muito mais normal e razoavelmente apto. Também um pouco mais inteligente, embora tendia a ficar boquiaberto e insistia em interromper o relato do Jamie com perguntas e exclamações.

        - Lillywhite? Randall Lillywhite? Mas, como pôde…?

        - Concentre-se, homem - disse Jamie, impaciente- . Mais tarde o explicarei melhor, mas ele e esse delegado vão trinchar aos russos como se fossem presuntos de Natal. Temos que nos ocupar disso agora mesmo.

        Wylie lhe cravou um olhar fulminante; logo jogou uma olhada suspicaz ao Roger.

        - Ele tem razão - grasnou o jovem.

        Apertou os lábios em uma linha fina e exalou com força o fôlego pelo nariz. Logo olhou a seus escravos como se os contasse; eram seis, todos armados de varas fortes. Um ou dois levavam facas de cano ao cinturão. Ele assentiu com a cabeça, como se tivesse tomado uma decisão.

Vamos.

        Para evitar o delator rangido das conchas, atravessaram o pântano a passo lento, mas sem pausa.

        - por que porcos? - ouviu que perguntava Jamie, com curiosidade.

        - Não são porcos - explicou Wylie- . Javalis russos, para caça esportiva. Todo mundo diz que, de todos os animais de caça, o javali russo é o adversário mais feroz e mais ardiloso. Proponho-me soltá-los nos bosques de minha propriedade, para que se reproduzam.

        Ao aproximar o embarcadero, Roger divisou um fugaz movimento: a embarcação mais pequena se retirava.

        - renunciaram para nos buscar, a mim e ao uísque, e despedem dos homens. - Jamie se passou uma mão pela cara para enxaguá-la chuva- . O que decide você, Wylie? Não há tempo que perder. Os russos estão no abrigo principal, no mole.

        Uma vez decidido, Wylie não se andava com rodeios.

        - Vamos lá! - disse.

        E agitou uma mão para chamar a seus escravos. Todos correram para o mole. O grupo girou para o caminho de conchas, indo pelo muro com um ruído de avalanche. Parecia que todo um exército inimigo se aproximasse.

        Uma cara sobressaltada apareceu entre os abrigos e se retirou imediatamente. Jamie lançou um de seus selvagens gritos montanhês. Wylie deu um coice, mas logo lhe uniu com um uivo:

        - Saiam daí bodes!

        Os negros, assim respirados, começaram a gritar também e se lançaram para o mole, agitando as varas com entusiasmo.

        Foi quase umas desilusão chegar ao mole e não encontrar a ninguém, salvo aos russos cativos, que estiveram a ponto de decapitar ao Phillip Wylie ao lhe ver abrir a porta de sua prisão sem anunciar-se. fez-se uma breve inspeção do russo e a restinga lhe circuncidem, mas não encontraram rastros do Lillywhite nem do Anstruther.

        - Seguro se vão nadando - disse um dos negros, ao retornar. E assinalo com a cabeça o matagal dos bancos de areia- . Caçamo-los?

        - Não se foram a nado - disse Wylie, pelo baixo. Fez um gesto para a pequena praia vazia, junto ao embarcadero- . Levaram-se meu bote, os vadios.

        Aborrecido, começou a dar ordens para o desembarque dos javalis russos. Chemodurow e sua família já foram para a casa da plantação.

        Um dos escravos saiu do abrigo com uma braçada de armas, o qual recordou ao Wylie seus deveres de anfitrião.

        - Agradeço-lhe a ajuda que me emprestou para proteger minha propriedade, senhor - disse ao Jamie, com uma reverência bastante rígida- . Permite-me lhes oferecer minha hospitalidade, a você e ao senhor MacKenzie?

        - Sou eu que lhe está agradecido, senhor, por nos ajudar a proteger nossa vida - replicou Fraser, com igual rigidez- . E avaliação o oferecimento mas…

        - Será um grande prazer - interrompeu-o Roger - . Muito obrigado.

        E surpreendeu ao Wylie com um firme apertão de mãos. Logo agarrou a seu sogro pelo cotovelo e o levou para o caminho de conchas, antes de que pudesse protestar

        - Mas se não terem por que lhe beijar o culo - disse, em resposta aos rezongos do Jamie, enquanto entravam no bosque- . Que seu mordomo nos dê uma toalha limpa e algo de almoçar; logo iremos, antes de que ele termine com seus javalis. Não tomei o café da manhã e você tampouco. E se for preciso voltar para o Edenton a pé, não penso fazê-lo com o estômago vazio.

        A idéia da comida pareceu devolver um pouco a equanimidade do Jamie. De mútuo acordo, deixaram para mais adiante a análise dos últimos acontecimentos…e as especulações sobre o paradeiro do Stephen Bonnet.

        - Javalis russos, nada menos! - exclamou Jamie quando se detiveram o casaco do bosque. sacudiu-se como os cães- . Não acredito que esse homem tenha visto um javali em toda sua vida! Qualquer diria que pode matar-se sem tanto gosto.

        - Quanto crie que pode lhe haver flanco? mais do que você e eu ganharemos em dez anos, provavelmente. Só para que uns quantos porcos viajem…Quanto? Seis mil milhas? - Roger moveu a cabeça, estupefato.

        Roger tinha visto um fugazmente, enquanto os escravos o tocavam pelo mole.

        - Se que forem grandes - disse- . E quando tiverem engordado um pouco, suponho que serão todo um espetáculo. Mas não sei se isto gostarão, comparado com a Rússia.

        Assinalou com um gesto o bosque úmido e enmalezado.

        - Bom, não lhes faltarão bolotas nem raízes - observou Jamie - . E algum negro de vez em quando, como sobremesa. Suponho que estarão muito bem.

        Roger se pôs-se a rir. Jamie grunho, divertido.

        - Crie que brinco, né? É que você tampouco calçaste javalis.

Não. Talvez o senhor Wylie nos convide a vir…

        Estalou-lhe a nuca. Todo o resto o desapareceu.

 

Em algum momento recuperou a consciência. Consciência de uma dor tão grande que o desmaio resultava imensamente preferível. obrigou-se a espabilarse e levantou a cabeça, embora o esforço fez estalar foguetes dentro de seus olhos e o pôs ao bordo do vômito. apoiou-se nos cotovelos, com os dentes apertados. Ao cabo de um momento sua vista se limpou, embora as coisas eram ainda difusas.

        Demorou um momento em compreender o que acontecia. Os homens estavam uns três metros mais à frente, onde a maleza e as árvores lhe impediam de ver a luta. Não obstante captou um murmúrio, “ A Dhia!” , entre os ofegos e os grunhidos. Então sentiu uma aguda pontada de alívio: Jamie estava com vida.

        Sua espada estava a poucos passos, meio coberta de areia e folhagem. Também uma das pistolas, mas não se incomodou em tocá-la; embora a pólvora estivesse seca, não poderia sujeitar a arma com firmeza. Falhou várias vezes, mas uma vez que teve a mão bem metida na cazoleta da espada se sentiu um pouco melhor; já não a deixaria cair.

        Sentia-se como o javali: o estou acostumado a desconhecido se movia traiçoeiramente sob seus pés. de repente pisou em algo brando, que rodava, e caiu sobre um cotovelo.

        Ao girar torpemente sobre si, embaraçado pelas costas, descobriu que tinha pisado na perna do Anstruther. O delegado jazia de costas, com a coca aberta e expressão surpreendida. No pescoço tinha um grande corte; em redor a areia tinha absorvido muito sangue, avermelhada e fedorento.

        Retrocedeu, e a surpresa fez que ficasse de pede sem pensá-lo. Lillywhite estava de costas a ele, com a camisa de linho molhada e pega à pele. Arremeteu em uma estocada, grunhindo; logo lançou um golpe de plano, parou…

        Jamie mostrava os dentes em uma semisonrisa maníaca no esforço de seguir a arma de seu adversário. Mas tinha visto seu genro.

        - Roger! - gritou, curto de fôlego- . Roger, a cariem!

        Lillywhite, em vez de voltar-se para olhar, investiu, fez fintas, parou e arremeteu.

        - Não…sou…tão tolo - ofegou.

        Sem dúvida pensava que Jamie lhe mentia para induzi-lo a olhar para trás. A visão do jovem se rabiscava novamente nas bordas. aferrou-se de uma árvore, tratando de manter-se em pé.

        - Né - disse com voz rouca. Elevou a espada, a ponta tremia- . Né!

        Lillywhite deu um passo atrás e girou em redondo, com os olhos dilatados pela surpresa. Roger investiu às cegas, sem apontar, mas com toda a força que lhe subtraía no corpo.

        A espada penetrou no magistrado pelo olho. depois de roçar o oco, o metal se cravou em algo e ficou aderido ali. Tratou de soltar a espada, mas sua mão estava agarrada na cazoleta. Lillywhite ficou rígido.

        Já apavorado, retorceu-se em um intento de arrancar a espada. Lillywhite, depois de um espasmo, ficou lasso e caiu para ele, como um enorme pescado. E ele seguia atirando em vão por livrar da arma.

        Por fim Jamie lhe sujeitou a boneca para liberá-lo. Logo o rodeou com um braço e o levou, tropeçando, cego de pânico e de dor. Sustentou-lhe a cabeça e lhe esfregou as costas, murmurando tolices em gaélico, enquanto ele vomitava.

        - Estas bem? - perguntou Roger, em meio de todo isso.

        - Estou bem, sim. E você também, verdade?

        Por fim pôde ficar de pé. Lillywhite jazia de barriga para cima na folhagem. Roger fechou os olhos, tragando saliva.

Vamos. - Jamie lhe agarrou de um braço e o passou pelos ombros.

        Quando saíram do bosque já podia caminhar por seus próprios meios, embora tendia a desviar-se para os lados. Ante eles se levantava a casa Wylie. Cruzaram o prado, sem emprestar atenção aos olhares dos serventes, que se apinhavam nas janelas do piso alto para assinalá-los e murmurar entre si.

        - por que? - perguntou Roger, ao deter-se para sacudir as folhas de sua camisa- . Hão-o ditos?

        - Não. - Jamie extraiu da manga um pouco molhado que devia ter sido um lenço; depois de afundá-lo na fonte ornamental, usou-o para lhe limpar a cara. Depois de jogar um olhar às sujas nervuras resultantes, voltou a esclarecê-lo na fonte.

        - A primeira notícia que tive foi o ruído de sua cabeça, quando Anstruther te golpeou. Agarra isto, que ainda sangra. Quando me voltei a olhar, já estava tendido no chão. E um momento depois uma espada me cruzou pelas costelas, como saída de um nada. Olhe esta. - Colocou os dedos por toucinho talho aberto na camisa- . Agachei-me depois de uma árvore e a gastas obtive desenvainar a tempo. Mas nenhum dos dois disse uma palavra.

        - Céus! É porque tenho a cabeça arrebentada ou em realidade isto não tem nenhum sentido? por que se empanavam tanto em nos matar?

        - Porque nos queriam mortos - explicou Jamie, muito lógico, enquanto se arregaçava para lavá-las mãos na fonte- . Eles ou algum outro.

        - Stephen Bonnet?

Se eu gostasse do jogo o apostaria tudo por ele.

Mas se você gosta do jogo!

Pois já vê.

        Jamie se passou distraídamente uma mão pelo cabelo revolto. Logo se voltou para a casa. Karina e suas irmãs agitavam extáticamente a mão da janela.

O que eu gostaria de saber, neste momento, é onde está Stephen Bonnet.

No Wilmington.

Jamie virou em redondo, franzido o sobrecenho.

O que?

        - Que está no Wilmington - repetiu Roger- . É o que disse Lillywhite, mas eu pensei que brincava.

        Seu sogro o olhou fixamente um momento.

        - Queira Deus que tenha sido uma brincadeira - disse.

 

Comparada com a Colina Fraser, Wilmington era uma metrópole embriagadora. Em circunstâncias normais, as garotas e eu teríamos desfrutado plenamente de suas delícias. Não obstante, a ausência do Roger e Jamie, assim como o caráter da missão que se impuseram, pediam-nos encontrar muita distração.

        Levantávamo-nos com os olhos inchados, entre montões de roupa suja e lençóis úmidos. depois de alimentar e vestir aos meninos, saíamos em busca de qualquer alívio mental que se pudesse achar durante o dia: carreiras de cavalos, lojas ou as veladas musicais pela que rivalizavam, uma vez por semana e em noites sucessivas, as duas anfritionas mais eminentes da cidade.

        A senhora Dunning ofereceu a seu o dia seguinte à partida do Roger e Jamie. As execuções de harpa, violino, clavicémbalo e flauta se intercalavam com recitais de poesia e “ Canções, tão Cômicas como Trágicas” , interpretadas pelo senhor Angus McCaskill, o popular e cortês proprietário da estalagem maior do Wilmington.

        Durante toda a atuação, Brianna luziu um semblante tão apaixonadamente reflexivo que acabou por descontar aos músicos; alguns observavam com nervosismo e se escapuliam para o outro lado do salão, para interpor o clavicémbalo entre ambos. Eu sabia que a atitude de minha filha não se relacionava absolutamente com a execução: antes bem, revivia as discussões que tinham precedido à partida dos homens.

        Brianna se mostrou apaixonada, eloqüente e feroz. Jamie, paciente, sereno e inamovible. Eu mantive a boca fechada; por uma vez fui mais teimosa que qualquer deles. Não podia, a consciência, me aliar com o Bree, pois sabia como era Stephen Bonnet. Tampouco podia me aliar com o Jamie, pois sabia como era Stephen Bonnet.

        Mas também sabia como era meu marido. E se ao pensar que ia enfrentar se com esse homem me sentia como se estivesse pendurada de uma corda puída, sobre um poço sem fundo, também reconhecia que estava equipado como poucos para essa tarefa. além de sua habilidade para matar, tratava-se de um assunto de consciência.

        O que Boneta tinha feito a Brianna não era um crime que Jamie pudesse perdoar, muito menos esquecer. Mas além da simples vingança ou a ameaça constante que esse homem representava para o Bree e Jemmy, Jamie se sentia pessoalmente responsável, ao menos em parte, pelo dano que Bonnet pudesse causar no mundo: a nossa família ou a outras pessoas. Em uma ocasião lhe tinha ajudado a escapar do patíbulo; não teria paz enquanto não corrigisse esse engano. E assim o disse.

        - Estupendo! - vaiou-lhe Brianna, com os punhos apertados aos flancos- . Você terá paz. Perfeito! E que paz teremos mamãe e eu se você morrer? Ou Roger?

        - Preferiria que fôssemos uns covardes?

        - Sim!

        - Não é verdade - assegurou ele - . Agora pensa assim porque tem medo.

        - É obvio que tenho medo! E também mamãe, só que ela não o diz porque pensa que irá de qualquer modo.

        - Se pensar isso, tem razão. - Jamie me olhou de soslaio, com uma ameaça de sorriso- . Conhece-me bem, verdade?

        Olhei-o, mas imediatamente apartei a cara, com os lábios bem fechados, e me dediquei a contemplar os navios ancorados no porto, enquanto a discussão continuava.

        Foi Roger quem lhe pôs fim.

        - Brianna - disse brandamente, quando ela fizo uma pausa para respirar- . Não permitirei que esse homem viva no mesmo mundo que meus filhos ou minha esposa - continuou- . Partimos com sua bênção…ou sem ela?

        Se alguma bênção lhe deu, foi outorgada de noite, na paz do leito. Jamie recebeu minha bênção e meu adeus na mesma escuridão, sempre sem dizer uma palavra.

 

De noite seguinte, a senhora Crawford apresentou em sua velada aos mesmos executantes, pouco mais ou menos, mas com uma novidade: foi ali onde conheci o aroma das velas de mirto.

        - O que é esse perfume encantador? - perguntei no intervalo à proprietária da casa.

        - Cera de mirto - respondeu ela, agradada- . Não a utilizo por si só, embora seja possível, porque se necessita uma tremenda quantidade de bagos cerca de oito libras, para obter umas só libera de cera. De modo que mesclo a cera de mirto com a de abelhas. E fiquei muito satisfeita.

        Assim foi como, ao terceiro dia, pedi emprestados vários cubos a nossa posadera, encarreguei uma cesta com o almoço e reuni a minhas tropas para uma expedição recolectora.

        Brianna e Marsali consistiram imediatamente, embora com pouco entusiasmo.

        - Algo é preferível a ficar sentadas aqui, preocupadas - disse Brianna.

        - Sim, e algo é melhor que o aroma de fraldas sujos e leite azedo - acrescentou Marsali, abanicándose com um livro; a via pálida- . Não me viria mal um pouco de ar fresco.

        Eu não estava segura de que pudesse caminhar tanto com seu volumoso ventre (já estava no sétimo mês), mas ela assegurou que o exercício lhe sentaria bem.

        O senhor Burns, nosso hospedeiro, desenterrou amavelmente um velho carrinho de mão de cabra, que teve a gentileza de nos oferecer. Não obstante, a cabra estava dedicada a comer urtigas no jardim vizinho e recusou deixar-se apanhar. Depois de persegui-la acaloradamente durante um quarto de hora, Brianna declarou que preferia atirar ela mesma do carrinho de mão antes que seguir jogando que te pilho com esse animal.

        - Senhora Fraser, senhora Fraser!

        Já íamos rua abaixo, com os meninos, os cubos e a cesta do almoço no carrinho de mão, quando a senhora Burns saiu correndo da estalagem; trazia uma jarra de cerveja em uma mão e uma vetusta pistola de pederneira na outra.

        - Serpentes - explicou ao me entregar a arma- . Diz meu Annie que a última vez que passou por ali viu dez ou doze víboras.

        - Serpentes - repeti, aceitando a contra gosto o objeto e sua correspondente parafernália.

        ia pôr a pistola no cesto da comida, mas ante a querúbica inocência do Germain e Jemmy decidi que era imprudente lhes deixar uma arma à mão, embora estivesse carregada. Optei por deixá-la cair dentro de um cubo e o pendurei do braço.

        Guiadas pelas indicações da senhora Crawford, percorremos um quilômetro e meio praia abaixo, até encontrar um bosque costeiro.

        - por ali - disse, assinalando a emaranhada vegetação.

        Como teria sido mais difícil continuar com o carrinho de mão, deixamo-la ali. Enquanto os meninos corriam livremente, perseguindo caranguejos e aves, entramos a passo lento no bosque achaparrado.

        face ao espesso da maleza, caminhar por ali era mais agradável que pela praia aberta; as árvores eram o bastante altos para brindar uma grata sensação de intimidade e refúgio; a fina capa de folhagem e pinaza permitia pisar em melhor.

        Jemmy, cansado de caminhar, atirou-me da saia e estendeu os braços.

        - Vamos. - Deixei que o cubo de bagos me pendurasse da boneca e o elevei com um ranger de vértebras; era um menino muito bem fornido. Ele me rodeio comodamente da cintura com os pés talheres de areia e apoiou a cara em meu ombro, com um suspiro de alívio.

        Quando vimos um exuberante grupo de mirtos, não disseminamos até pedernos de vista entre as matas, mas de vez em quando nos chamávamos mutuamente, a fim de não nos extraviar.

        Eu tinha deixado ao Jemmy no chão. Enquanto me perguntava se podia dar alguma utilidade à polpa dos bagos, depois das ferver para extrair a cera, ouvi um suave ranger de pisadas ao outro lado do arbusto.

        - É você, querida? - perguntei, pensando que era Brianna- . Conviria almoçar logo; acredito que está aponto de chover.

        - Pois que amável convite - disse uma voz masculina, muito divertida- . O agradeço, senhora, mas tomei o café da manhã em abundância recentemente momento.

        Ao vê-lo sair de atrás do arbusto fiquei paralisada, completamente emudecida. O estranho é que minha mente funcionava à velocidade da luz.

        “ Se Stephen Bonnet estiver aqui, é que Jamie e Roger estão fora de perigo, graças a Deus” .

        “ Onde estão os meninos?”

        “ Onde está Bree?”

        “ Onde está essa pistola, maldita seja?”

        - Quem é esse, grandmere? - Germain, com algo que parecia uma ata morta pendurando de uma mão, aproximou-se com cautela e olhou ao intruso com os olhos entreabridos.

        - Germain - disse com voz rouca, sem apartar os olhos do Bonnet- , vá a por sua mãe e fica com ela.

        - Com que grandmere? E quem é sua mãe? - O homem nos olhou alternativamente, interessado. Por fim inclinou o sombreio para trás e se arranhou a mandíbula.

        - Isso não importa - disse, com toda a firmeza possível- . Vê, Germain!

        Joguei uma olhada para baixo, mas a pistola não estava em meu cubo. Dos seis tínhamos deixado três no carrinho de mão; indubitavelmente a arma estava em um de esses. Má sorte.

        - OH!, não vá ainda, jovencito. - Bonnet fez um gesto para o Germain, mas o menino, alarmado, se escabulló para trás e lhe arrojou o rato aos joelhos. A surpresa fez que o homem vacilasse um instante, justo o que Germain necessitava para desaparecer entre os mirtos. Oxalá soubesse onde estava Marsali. Quão último precisávamos era que se perdesse.

        Bom, possivelmente havia coisas piores. O último era que Stephen Bonnet visse o Jemmy. E isso foi o que aconteceu um instante depois, quando meu minto saiu das matas. Minha paralisia desapareceu em um segundo: elevei-o precipitadamente e retrocedi vários passos.

        - E quem é este doce hombrecito? - perguntou Bonnet, dando um passo fazia mim.

        - Meu filho - respondi imediatamente.

        - Já vejo que se parece com seu pai. - Nas povoadas sobrancelhas loiras, brilhavam gotas de suor- . E a sua…irmã. Essa encantadora filha dela, encontra-se por aqui, querida minha? Tenho muitos desejos de renovar nossa relação.

        - Não o ponho em dúvida - disse, sem me esforçar por dissimular meu tom cortante- . Mas ela está em casa…com seu marido.

        - Em casa, vá! E a que chama você casa, senhora? - tirou-se o chapéu para secá-la cara com a manga.

        - Pois…a que lhes tenha no campo. Uma granja. - Assinale vagamente para o que me pareceu o oeste.

        - Uma granja - repetiu; um músculo lhe contraiu na bochecha- .E o que lhes trouxe tão longe de sua casa, se me permite perguntar?

        - Não lhe permito - disse- . Quer dizer…pode perguntar-lhe a meu marido. Não demorará para vir.

        - OH!, isso o duvido, minha querida senhora Fraser. Verá você, a estas horas o já estará morto.

        - O que quer dizer?

        - Explicarei-lhe: foi um trato - disse. Sua diversão parecia ir em aumento - . Uma divisão de trabalho, poderia-se dizer. Meu amigo Lillywhite e o bom do delegado se ocupariam dos senhores Fraser e MacKenzie; o tenente Wolff dirigiria a parte da senhora Cameron. Desse modo ficava a meu cargo a agradável tarefa de familiarizar com meu filho e me reencontrar com sua mãe. - Seu olhar se encontrou com o Jemmy.

        Ante isso riu brevemente.

        - Não sabe você mentir, senhora, se me perdoar o comentário. Sabe perfeitamente o que quero dizer, pois me viu lá, no River Run. Francamente, eu adoraria saber o que faziam você e o senhor Fraser. Carnear a essa negra que matou Wolf? Dizem que a imagem do assassino fica gravada nos olhos da vítima, mas a julgar pelo que vi, você não observava os olhos. Era algum tipo de magia?

        - Wolff…Com o que foi ele?

        Nesse momento me dava quão mesmo o tenente tivesse assassinado a uma vintena de mulheres; só queria entretê-lo com qualquer tema de conversação.

        - Pois sim. É um incompetente, é Wolff - disse com objetividade- . Mas como foi ele quem averiguou o do ouro, exigiu participar da empresa.

        Onde estavam Marsali e Brianna? As teria encontrado Germain? Não se ouvia outra coisa que o zumbido dos insetos e o bater longínquo do fluxo. Mas alguém tinha que nos ouvir.

        - O ouro - disse, em voz algo mais alta- . A que ouro se refere? No River Run não há ouro algum. Yocasta Cameron já o haverá dito.

        - Reconheço que a senhora Cameron minta melhor que você, querida, mas tampouco a acreditei. O caso é que o doutor viu esse ouro, compreende você?

        - Que doutor?

        - Rawls…acredito que se chamava. Ou Rawlings - esclareceu Bonnet- . Mas não tive o prazer de conhecê-lo, de modo que poderia me equivocar.

        - Sinto muito, mas ainda não entendo uma palavra do que me diz.

        Eu tentava simultaneamente lhe sustentar o olhar e procurar no chão algo que se pudesse utilizar como arma. Bonnet tinha uma pistola e uma faca no cinturão, mas não parecia desejoso de usá-los.

        - Não? Pois bem, foi Wolff, como lhe dizia. Necessitava que lhe extraíram um dente ou um pouco parecido, e assim foi como conheceu esse médico ruim no Cross Creek. Logo o convidou a beber algo e acabou acontecendo a noite em um botequim, bebendo com ele. Por isso parece, o doutor era outro bêbado. Antes do amanhecer os duas eram unha e carne. Rawlings deixou traslucir que no River Run tinha visto uma grande quantidade de ouro, pois justamente vinha dali, compreende você?

        Rawlings pediu a consciência ou a recuperou o baste para não dizer mais, mas essa revelação foi suficiente para reafirmar à tenente em sua decisão de obter a mão (e a propriedade) da Yocasta Cameron.

        - Mas a senhora não quis saber nada dele. E logo anunciou que tinha aceito ao maneta.Ah!, que golpe cruel para o orgulho do tenente. - Sorria ao dizê-lo; faltava-lhe um molar a um lado.

        O tenente Wolff, furioso e desconcertado, pediu conselho a seu grande amigo, Randall Lillywhite.

        - Ah, Foi por isso que mandou prender o padre na congregação? Para evitar que casasse à senhora Cameron com o Duncan Innes?

        - Assim devia ser. Uma pequena prosternação nos daria a oportunidade de investigar melhor o assunto.

        Essa oportunidade se apresentou durante as bodas. Tal como o tínhamos exposto em nossas teorias, alguém (o tenente Wolff) tentou drogar ao Duncan Innes com uma taça de ponche e láudano. O plano era deixá-lo inconsciente e jogá-lo no riu. Durante o revôo ocasionado pelo desaparecimento do noivo e sua presumível morte acidental, Wolff poderia revisar o lugar a fundo, em busca do ouro…e ao seu devido tempo renovar sua proposição a Yocasta.

        - Mas a negra se bebeu o preparado - disse, sem que lhe movesse o cabelo- . Por desgraça não a matou. E como teria podido dizer quem lhe entregou a taça, Wolff mesclou vidro moído às papa que foram lhe dar.

        - O que quero saber - disse- é que papel desempenha você em tudo isto. O que para ali, no River Run?

        - Não sabe você, querida, que o tenente e eu somos grandes amigos há anos? Ele me pediu ajuda para eliminar ao maneta. Desse modo poderia deixar-se ver em meio da festa, divertindo-se em total inocência, enquanto seu rival sofria um acidente. Uma vez que o láudano falhou, o melhor teria sido lhe dar um bom golpe na cabeça a esse Innes e jogá-lo na água. Mas não houve maneira; passou-se a metade do dia nas letrinas e sempre havia alguém com ele.

        Não havia a meu alcance nada que se pudesse usar como arma. Durante a conversação Jemmy ia perdendo o medo a esse desconhecido e começava a querer largar-se.

        Retrocedi um pouco; Bonnet, ao vê-lo, sorriu sem preocupação. Obviamente não acreditava que eu pudesse escapar. E esperava algo. É obvio, havia-me isso dito ele mesmo. Esperava a Brianna. Compreendia tardiamente que nos tinha seguido da cidade; sabia que Marsali e Brianna estavam perto; era muito mais singelo esperar a que reaparecessem.

        - A senhora Cameron…Innes, nesta ocasião, mostrou-se bem disposta a falar assim que lhe insinuei que seu marido podia perder algumas de suas entesouradas partes. Mas em realidade essa velha embusteira nos mentiu. Mais adiante, ao refletir, me ocorreu que se mostraria mais disposta se se tratava de seu herdeiro. - E olhou ao Jemmy, estalando a língua- . Assim iremos ver sua tia avó, verdade pequeno?

        Jemmy o olhou com desconfiança e se apertou para mim. Eu tinha conseguido me introduzir entre duas matas de mirto. Trataria de lhe distrair com a conversação até que pudesse me girar, deixar ao Jemmy no chão e insisti-lo a correr. Com um pouco de sorte poderia lhe bloquear o passado o tempo suficiente para que ele fugisse…sempre que o menino pusesse-se a correr.

        - Lillywhite - disse, retomando a conversação- . A que se referia você quando o disse que ele e o delegado foram ocupar se de meu marido e o senhor MacKenzie?

        - Pois o dito, senhora Fraser: seu marido morreu. - Tinha começado a olhar além de mim, entre as matas. Obviamente, esperava que Brianna aparecesse em qualquer instante- . O que aconteceu durante as bodas nos fez ver com claridade que não convinha permitir que a senhora Camero tivesse tanto amparo. Se tínhamos que tentá-lo novamente, era mister que ela não tivesse parentes varões aos que pedir ajuda nem vingança. Por isso, me ocorreu que era uma boa oportunidade para eliminá-lo tanto a ele como ao senhor MacKenzie: dois pássaros de um só tiro. Mas logo me pareceu melhor que Lillywhite se ocupasse dessa parte, junto com seu delegado domesticado. - Sorriu- . Enquanto isso eu viria a por meu filho e sua mãe; desse modo não haveria perigo de algo saísse mau. Compreende você? Poderíamos…

        Girei sobre meus talões e plantei ao Jemmy no chão, ao outro lado das matas.

        - Corre! - insisti-o- . Corre, Jem, vete.

        Se escabulló com um brilho vermelho, choramingando de medo. Bonnet chocou comigo.

        Tratou de me apartar de um tranco, mas eu o estava esperando e tratei de lhe arrebatar a pistola que levava a cinturão. Ele se apartou com um movimento brusco, mas eu já tinha pego a culatra; desencapei-a e, enquanto, caía ao chão, com ele em cima, arroje-a para trás.

        Ele rodou para um flanco e se incorporou sobre os joelhos. Imediatamente ficou petrificado.

        - Não se mova…ou pela Santa Virgem que lhe voarei a cabeça.

        Marsali, branca cone um lençol, apontava a vetusta pistola de pederneira contra ele, por cima da curva de seu ventre.

        - Mata-o, mamam! - A cara do Germain, detrás dela, brilhava de ansiedade - . Mata-o! Como ao puercoespín!

        Joan, algo mais atrás, começou a chorar para ouvir a voz de sua mãe, mas Marsali não apartava os olhos do Bonnet. Teria carregado e cevado a pistola? Provavelmente, posto que cheirava a pólvora negra.

        - Vale, vale - disse Bonnet, lentamente.

        Notei que calculava a distância entre ele e Marsali: quatro ou cinco metros, muito para que pudesse alcançar a de um salto. Pôs um pé no chão e começou a levantar-se. Em três passos chegaria até ela.

        - Não deixe que se levante! - Eu também me pus de pede e lhe dava um empurrão no ombro. Caiu de lado e amorteceu o golpe com uma mão. Logo girou para trás, com mais celeridade da que eu teria podido imaginar, e me agarrou pela cintura para me pôr sobre ele.

        de repente me encontrei com seu braço apertado em torno do pescoço, me sujeitando contra seu peito. Houve um sussurro de metal contra a pele e algo frio me tocou o pescoço. Deixei de lutar para agarrar fôlego.

        Marsali tinha os olhos abertos como pratos e os lábios muito apertados. Graças a Deus, seu olhar seguia apontando ao Bonnet e a pistola também.

        - Dispara, Marsali - disse, com calma- . Agora mesmo.

        - Baixa essa pistola, moça - disse Bonnet, com igual serenidade- , se não querer que lhe corte o pescoço no que conto três. Um…

        - Lhe dispare! - ordenei com todas minhas forças. E inalei minha última baforada de ar.

        - Dois…

        - Espere!

        A pressão da folha contra meu pescoço cedeu um pouco; com um comichão de sangue, permitiu-me outro fôlego que já não esperava. Mas não tive tempo de desfrutá-lo: Brianna estava entre os mirtos, com o Jemmy obstinado a suas saias.

        - Solta-a - disse.

        Marsali, que continha o fôlego, deixou-o escapar em um ofego e respirou a fundo.

        - Não me soltará. E tampouco importa - disse a ambas, com firmeza- . Marsali, lhe dispare. Faz-o já!

        Ela esticou a mão que sustentava a arma, mas não pôde fazê-lo. Jogou uma olhada a Brianna; estava muito pálida e lhe tremia a mão.

        - Mata-o, mamam - sussurrou Germain, mas sua voz havia desparecido da ansiedade. Ele também estava pálido e não se separava de sua mãe.

        - Virá comigo, preciosa. Você e o pequeno. - Ao falar Bonnet senti a vibração de seu peito; também percebi a meio sorriso em sua cara, embora não podia vê-la- . Os outros podem ir-se.

        - Não faça conta - disse, tratando de que Bree me olhasse- . Não nos deixará ir, e você sabe. Matará-nos, a mim e ao Marsali, embora diga o contrário. O único que se pode fazer é lhe disparar. Se ela não puder, terá que fazê-lo você, Bree.

        Os olhos da Brianna se desviaram bruscamente fazia mim, espantados. Bonnet grunho, médio divertido, médio vexado.

        - Condenar a sua mãe? Não é capaz disso, senhora Fraser.

        - Ouça, Marsali…te matará, e ao bebê contigo - disse, esticando todos os músculos no esforço de fazer o compreender, de obter que disparasse- . Germain e Joan morrerão aqui, sozinhos. O que aconteça comigo não importa, me acredite. Pelo amor de Deus, dispara já!

        Ela disparou.

        Houve uma faísca e uma baforada de fumaça branca; Bonnet deu um coice. Logo a mão do Marsali se afrouxou, a boca da pistola apontou para baixo…e o projétil caiu à areia, junto com o taco. O tiro tinha falhado.

        Marsali gemeu de espanto. Brianna, com a velocidade do raio, recolheu o cubo cansado e o jogou na cabeça do Bonnet. Ele me soltou para lançar-se até lado, com um chiado. Um momento depois Germain e Jemmy choravam a dueto e Joan chiava como uma louca no bosque.

        Bonnet estava novamente de pé, avermelhado e com a faca na mão. Embora o via furioso, fez um esforço por sorrir a Brianna.

        - Vamos, bonita - disse, elevando a voz para fazer-se ouvir por cima de barafunda- . Só vim a por ti e a por meu filho. Não vou fazer lhes dano.

        - Não é seu filho - replicou ela, em voz baixa e inflamada- . E nunca o será.

        - Não? - exclamou ele, depreciativo- . Pois não é o que me disse naquela masmorra do Cross Creek, meu céu. E agora que o vejo…- Olhou novamente ao Jemmy- . É meu, querida. Me parece, verdade, moço?

        Jemmy, entre uivo, sepultou a cara nas saias de sua mãe. Bonnet se encolheu de ombros e abandonou todo intento de enrolá-la.

        - Vamos - disse. E deu um passo para diante, com intenção de apoderar-se do Jemmy.

        A mão da Brianna saiu de suas saias, armada com uma pistola. Era a que eu tinha arrancado do cinturão desse homem, e apontava ao sítio de onde provinha. Bonnet se deteve em seco, boquiaberto.

        - O que me diz? - sussurrou. Olhava-o sem piscar- . Mantém a pólvora seca Stephen?

        Afirmou a pistola com ambas as mãos e disparou a entrepierna.

        Ele foi veloz, devo reconhecê-lo. Embora não tinha tempo para fugir, cobriu-se a parte ameaçada com ambas as mãos, no mesmo instante em que ela apertava o gatilho. O sangue estalou entre seus dedos em uma densa garoa, sem que eu pudesse ver onde o tinha ferido.

        Retrocedeu com passo vacilante, aferrando-se. Olhava em redor cone se não pudesse acreditá-lo. Sua respiração se fez mais rápida e trabalhosa. Nós o olhávamos, paralisadas.

        Entre ofegos, deu a volta e se afastou, como um inseto que alguém tivesse pisado, com movimentos convulsos. ouviu-se o ruído das matas contra as que chocava. Um momento depois desapareceu.

        - Dizia a verdade? - Brianna se agachou junto a mim- .Crie que terão morrido?

        - Não - disse. Não sentia pânico ao recordar o que Bonnet havia dito; só uma certeza no peito, como um peso pequeno e reconfortante- . Não, não morreram.

        Marsali havia desparecido para ir a pelo Joanie. Germain, inclinado sobre a areia, estudava com fascinação as manchas de sangue.

        - Vamos - disse, enquanto dava tenros tapinhas ao Jemmy- . Acredito que por agora prescindiremos de velas perfumadas.

 

Roger e Jamie reapareceram dois dias depois. Eu estava razoavelmente segura de que Roger tinha uma pequena comoção cerebral, mas ele se negou a deitar-se. Em troca permitiu que Bree lhe sustentara a cabeça no regaço e tocasse o impressionante galo, entre exclamações de horror. Enquanto isso, Jamie nos fez um breve relato da batalha do embarcadero e nós lhes demos uma explicação algo confusa de nossa aventura entre os mirtos.

        - Então Bonnet não morreu? - perguntou Roger, abrindo um olho.

        - Não sabemos - reconheci- . Escapou. Não sei se sua ferida era grave. Não perdeu muito sangue, mas se recebeu o disparo no sob ventre, é mortal, quase com certeza. A morte por peritonitis é muito lenta e horrível.

        Fergus chegou no navio do meio-dia. Trazia triunfalmente as escrituras oficialmente seladas das duas concessões de terras, com o que coroou o dia. Não obstante, as celebrações foram limitadas, posto que ainda ficava um grande cabo solto.

        depois de uma vigorosa discussão, decidiu-se que ele e eu viajaríamos imediatamente ao River Run. A parte jovem de nossa família permaneceria no Wilmington alguns dias mais para concluir os assuntos pendentes; enquanto isso se manteriam alertas se por acaso se falava de algum homem ferido ou moribundo. Depois retornariam à Colina Fraser, com cuidado de não aproximar-se do Cross Creek nem ao River Run.

        - Assim o tenente não poderá influir sobre minha tia lhes ameaçando a ti ou ao menino - explicou Jamie a Brianna. Logo se dirigiu a seus genros. - Quanto a vós, mo charadean, não podem deixar às mulheres e os pequenos sozinhos. Sabe Deus a quem poderiam matar esta vez!

        Ao amanhecer seguinte, partimos sozinhos.

 

Três dias depois, quando já estava entardecendo, chegamos ao River Run.

        - O que opina? - perguntei ao Jamie. Tínhamos detido aos cavalos ao pé do prado, para observar bem a situação antes de nos aproximar da casa.

        - Pelo menos ninguém incendiou a casa - respondeu, íngreme sobre os estribos- . Tampouco há rios de sangue correndo pela escalinata.

        Quando chegamos à porta principal tive a certeza de que algo andava mau. Na casa reinava uma quietude sinistra. O mais estranho era que Ulises não saísse a nos receber. Durante vários minutos ninguém respondeu a nossas chamadas; quando ao fim se abriu a porta, quem apareceu foi Freda, a criada da Yocasta.

        Tinha tão má cara como a última vez que a tinha visto, quase um ano antes, depois da morte de suas mães; mas ao nos ver lhe iluminaram os olhos e relaxou a boca em visível alívio.

        - OH, senhor Jamie! - exclamou- . Tanto como rezei desde ontem, pedindo que alguém viesse a nos ajudar!

        - Sim, pequena. Nunca pensei que eu pudesse ser a resposta a uma prece, mas não tenho objeções. Minha tia…está bem?

        E se retirou sem nos dar tempo a fazer mais perguntas, nos assinalando a escada.

        Yocasta estava tecendo em suas habitações. Para ouvir nossas pegadas levantou a cabeça. antes de que pudéssemos dizer nada, perguntou com voz trêmula:

        - Jamie? - E se levantou.

        - Sim, tia, sou eu. E Claire. O que é o que acontece? - Jamie cruzou a habitação com grande rapidez e lhe agarrou a mão para lhe dar uns tapinhas reconfortantes.

        A cara da anciã sofreu a mesma transformação de alívio que tínhamos visto na Freda. Durante um momento pareceu que lhe falhavam os joelhos, mas ergueu a coluna e se voltou para mim.

        - Claire? Bendita seja Santa Bride por te haver trazido, embora não sei como…Mas deixemos isso por agora. Quer vir? Duncan está ferido.

        Na habitação contigüa, jazia inerte sob um montão de edredons. Em um primeiro momento temia que tivesse morrido, mas se moveu para ouvir a voz da Yocasta.

        - MAC Dubh? - perguntou, intrigado. E apareceu a cabeça entre os cobertores, entortando os olhos na penumbra- . Por todos os Santos, o que te traz por aqui?

        - O tenente Wolff - disse Jamie, algo cáustico- . Soa-te esse nome? - Pois sim, é claro que sim.

        A voz do Duncan tinha um sotaque estranho, mas não lhe emprestei atenção; estava ocupada em acender velas e desenterrá-lo para ver o que lhe acontecia. Esperava me encontrar com uma ferida de pistola ou adaga, mas a primeira vista não havia nada disso. Tive que reordenar a mente para descobrir que tinha uma perna rota.

        Enquanto Freda ia procurar material para lhe entalar a perna, Jamie, informado que Duncan não corria perigo, sentou-se para ir ao fono do assunto.

        - O tenente Wolff andou por aqui? - perguntou.

        - Né…sim. - Novamente essa pequena vacilação.

        - E se foi?

        - Pois sim. - Duncan se estremeceu involuntariamente.

        - Dói? - perguntei.

        - OH!, não, senhora Claire - assegurou-me- foi só…bom…

        - Será melhor que me conte isso sem rodeios, Duncan - advertiu Jamie, com certa exasperação- . E se as coisas são como acredito, eu também tenho algo que te contar.

        O tenente tinha estado no River Run dois dias antes, mas contra seu costume não se apresentou pela porta principal. O que fez foi deixar seu cavalo maneado a um ou dois quilômetros e aproximar-se de pede, com sigilo.

        - Sabemos só porque depois encontramos o cavalo - explicou Duncan, enquanto eu lhe enfaixava a perna- . Mas não suspeitávamos que estivesse aqui. Até que saí para ir a letrina, depois de jantar, e ele se arrojou em cima de mim na escuridão. Estive a ponto de morrer do susto. E logo caso morri seriamente, porque me disparou. Se tivesse tido o braço desse lado, acredito que o teria atravessado. Mas como não o tenho, não houve ferida.

        Apesar de seu discapacidad, Duncan se defendeu ferozmente: golpeou à tenente na cara e carregou contra ele, derrubando-o para trás.

        - Tropeçou com o muro de tijolo e caiu por cima, de modo que se deu um horrível golpe na cabeça.

        - Vá! Então morreu no ato? - perguntou Jamie, interessado.

        - Pois não. - Duncan parecia haver-se tranqüilizado durante o relato, mas nesse momento voltou a inquietar-se- . Verá, MAC Dubh…Eu também me cambaleei ao derrubá-lo, pisei na canaleta da letrina e me parti a perna. E ali fiquei, gemendo junto ao caminho. Por fim Ulises ouviu minhas chamadas e baixou, seguido por Eu.

        Enquanto Ulises ia procurar um par de caballerizos para carregar ao Duncan há a casa, lhe tinha explicado a Yocasta o ocorrido. Depois, entre o dolo da perna rota e seu costume de deixar que o mordomo resolvesse as dificuldades, se despreocupó do tenente.

        - Foi minha culpa, MAC Dubh; reconheço-o - disse, pálido e ojeroso- . Tinha que ter dado um par de ordens. Mas nem seguisse agora sei o que é o que devia mandar, e olhe que tive tempo para pensá-lo.

        O resto da história, que lhe arrancamos em que pese a sua relutância, era que Yocasta e seu mordomo, depois de discutir o assunto, tinham chegado à conclusão de que o tenente já não era uma moléstia, a não ser uma verdadeira ameaça. E estando assim as coisas…

        - Ulises o matou - disse Duncan sem rodeios. Logo fez uma pausa, novamente horrorizado- . Eu me há dito que ela o ordenou. E Deus sabe que é muito capaz disso, MAC Dubh.

        - Céu Santo! - exclamou Jamie- . Se alguém se inteira, Ulises será enforcado no ato…ou algo pior, embora minha tia o tenha ordenado.

        - Assim é - acrescentou Duncan- . Não posso permitir que vá ao patíbulo mas o que farei com o tenente? Terá que ter em conta à marinha, por não falar dos delegados e os magistrados.

        Isso era um ponto decisivo. A prosperidade do River Run dependia em grande parte de que a marinha seguisse comprando madeira e breu. Em realidade, o tenente Wolff era o contato responsável por esses contratos. Era compreensível que a marinha de sua majestade olhasse com maus olhos ao latifundiário que tinha matado a seu representante local, qualquer que fosse seu motivo. Quanto à lei, representada pelo delegado e os magistrado, talvez fura um pouco mais pormenorizada com a situação…mas não com o penetrador. Quando um escravo derramava sangue de um branco, o condenava automaticamente, embora o tivessem provocado. Pouco importava o que tivesse acontecido; embora dez testemunhas declarassem que Wolff tinha atacado ao Duncan, Ulises não se salvaria.

        Jamie se esfregou o queixo com um nódulo.

        - Né…Como foi que…? Quer dizer…Não poderíamos declarar que o fez seu mesmo Duncan? depois de tudo foi em defesa própria. E temos evidências de que o homem veio a te assassinar, com a idéia de desposar logo a minha tia pela força ou, pelo menos, retê-la como refém para que revelasse o do ouro.

        - Que ouro? - Duncan pôs cara de não entender - Mas se aqui não há ouro! Não ficou isso claro o ano passado?

        - O tenente e seus sócios acreditam que sim - informei-lhe- . Mas Jamie lhes contará isso dentro de um momento. Agora bem, o que aconteceu com o tenente?

        - Ulises lhe cortou o pescoço - disse Duncan, tragando saliva- . Com muito gosto diria que fui eu, mas…

        Além de quão difícil teria sido degolar a alguém com uma só mão, era muito óbvio que o tenente tinha morrido à mãos de um canhoto. E Duncan nem sequer tinha mão esquerda. Eu sabia que Yocasta Cameron era canhota, ao igual a seu sobrinho, mas no momento o tato me impedia de mencioná-lo.

        - Onde está Ulises?

        - No estábulo, se é que não se foi já.

        Consciente de que seu mordomo seria condenado a morte se alguém descobria a verdade, Yocasta lhe tinha ordenado selar um cavalo e fugir para as montanhas se via chegar a alguém.

        Jamie respirou fundo e se passou uma mão pela cabeça, pensativo.

        - Bom, o melhor seria que o tenente desaparecesse. Onde o pusestes Duncan?

        - Acredito que está no fosso do andaime, MAC Dubh. Envolto em um tecido coberta de breu e abafado com lenha, como se fura uma cabeça de gado de porco.

        Meu marido voltou a arquear as sobrancelhas, mas se limitou a assentir.

        - De acordo. Deixa o de minha conta.

        Deixei instruções de que dessem ao Duncan aguamiel e uma infusão de chá, eupatorio e casca de cerejeira; logo saí com o Jamie para analisar os diferentes métodos de desaparecimento.

        - O mais singelo seria enterrá-lo em um sítio qualquer, suponho - disse.

        - Hum. - Jamie elevou a tocha de pinheiro para observar, pensativo, o vulto sob o tecido embreado- . Possivelmente. Mas penso nos escravos. Todos sabem o que aconteceu. Se o sepultarmos aqui também saberão. Não o dirão a ninguém, certamente, mas seu fantasma ficasse rondando, não?

        - Seu fantasma? - repeti, me rodeando o xale.

        - É obvio. Assassinado aqui e escondido sem vingança…

        - Seriamente crie que rondaria por aqui? - perguntei, cautelosa- . Ou refere ao que acreditariam os escravos.

        Ele se encolheu de ombros.

        - Não acredito que haja muita diferença. Eles evitarão o lugar onde o enterremos; alguma das mulheres verá seu fantasma de noite e correrão os rumores, como sempre acontece. E chegará o momento em que um dos escravos diga algo no Greenriver; chegará para ouvidos do Farquad e não passará muito tempo sem que alguém deva fazer perguntas. Além disso, a marinha não demorará para procurar o tenente. E se o ancoramos no rio? depois de tudo, era o que ele pensava fazer com o Duncan.

        - Não é má idéia - refleti- . Mas ele queria que Duncan aparecesse. É este lance o rio não tem muita profundidade e passam muitas embarcações. Até se puséssemos um bom peso ao cadáver, é possível que apareça flutuando na superfície ou que alguém o enganche com uma vara. Mas embora aparecesse, haveria algum problema? Ninguém o relacionaria com o River Run.

        - Sim, é certo. Mas se aparecer alguém da marinha fará uma investigação. Alguém deverá fazer perguntas. E que passará se interrogarem aos escravos?

        - Hum, sim. - Tendo em conta o nervosismo dos escravos, qualquer interrogatório faria que algum deles caísse no pânico e dissesse o que não devia.

        Jamie contemplava com expressão abstraída o vulto abafado.

        - Suponho que…poderíamos queimá-lo - disse, tragando bílis- . Ao fim e ao cabo já está no fosso.

        - Não é má idéia - disse Jamie. Sua boca se contraiu em um vago sorriso- . Mas acredito tenho outra melhor.

        Voltou-se para contemplar a casa. Havia luz em algumas janelas, mas todo mundo estava dentro, acovardado.

        - Me acompanhe - disse, súbitamente decidido- . No estábulo deve haver uma maça.

 

O fronte do mausoléu estava fechado por uma grade ornamental de ferro forjado, com uma enorme fechadura; decoravam-na rosas jacobitas de dezesseis pétalas.

        - Parece-te que isto é melhor que enterrá-lo ou queimá-lo? - perguntei em sussurros, embora não havia ninguém por ali.

        - OH!, sim. O velho Hector se ocupará dele e evitará que faça mal a ninguém - assegurou Jamie, como se tal coisa.

        Levantei a tocha para que Jamie visse melhor. Tinha envolto a maça com trapos, par ânus descascar o mármore. Os pequenos blocos da parede frontal, dentro da grade, estavam habilmente talhado de modo que se casassem entre si, e pegos com pouco cimento. Ao primeiro golpe, dois deles de deslocaram vários centímetros. Com alguns golpes mais se abriu um espaço escuro, pelo que se podia ver a negrume interior.

        Jamie se secou o suor da frente e murmurou algo pelo baixo.

O que há dito?

Disse que isto fede - respondeu. Parecia intrigado.

        - Do que te surpreende - perguntei, um pouco irritada- . Quanto faz que morreu Hector Cameron? Quatro anos?

Pois sim, mas não é…

        - O que estão fazendo! - A voz da Yocasta ressonou detrás de mim, agudizada pela agitação. Estava de pé no caminho, fantasmagórica com sua camisola branca. Freda se acurrucaba detrás de sua ama.

        - O que estamos fazendo? Pois sepultando à tenente Wolff, é obvio. - Jamie, sobressaltado pela súbita aparição de sua tia, pareceu um pouco vexado- . Deixa o de minha conta, tia. Não tem por que preocupar-se.

        - Mas não deve. Não, não deve abrir a tumba do Hector! - Yocasta torceu seu largo nariz; obviamente tinha detectado o aroma de podridão.

        - Não te aflija, tia - insistiu ele- . Volta para a casa. Já me arrumarei. Tudo sairá bem.

        - Não, Jamie, não pode! Fecha isso. Fecha-o, Por Deus!

        Em sua voz era inconfundível o pânico. Vi que Jamie franzia o sobrecenho, confundido. O vento voltou a levantar-se em uma pequena rajada, que trouxe para nós um aroma de morte muito mais potente. Jamie trocou de expressão; face aos protestos de sua tia, desalojou uns quantos blocos mais com rápidos golpes de maça.

        - Traz a tocha, Sassenach - disse.

        Fiz-o, com uma crescente sensação de horror. Juntos, ombro com ombro, olhamos pela estreita abertura. Dentro havia dois ataúdes de madeira lustrada, cada um em pedestal de mármore. E no chão, entre eles…

        - Quem é, tia? - perguntou Jamie com voz serena.

        Ela parecia petrificada. No rosto imóvel, os olhos cegos foram de um lado a outro, procurando uma fuga possível. Jamie deu um passo adiante e a aferrou por um braço. O susto a arrancou de seu transe.

        - CO a th’Ann? - bramou- . Quem é? Quem!

        - Chamava-se…se chamava Rawlings - disse vagamente.

        - Como foi? - perguntou Jamie com calma.

        Então, ela fechou os olhos e sotaque cair os ombros em um suspiro.

        - Matou-o Hector.

        - Ah, sim? - Jamie jogou um olhar cínico aos ataúdes e ao vulto que havia no chão, entre os dois- . Que façanha! Ignorava que meu tio fora tão capaz.

        - Antes - esclareceu ela com voz inexpressiva, como se já nada importasse- . Rawlings era médico. Certa vez veio a me examinar os olhos. Quando Hector ficou doente fez que viesse de novo. Não sei bem o que aconteceu, mas o surpreendeu farejando por onde não devia e lhe esmagou a cabeça. Hector tinha mau gênio.

        - Isso parece - comentou Jamie, jogando outra olhada ao corpo do doutor Rawlings- . E como?

        - Ele…escondeu o cadáver; pensava levá-lo a bosque e abandoná-lo ali. Mas logo…piorou e não pôde levantar-se. Um dia depois, Hector morreu. Então…

        Sua mão, larga e branca, apontou para a baforada de ar úmido e frio que surgia da tumba aberta.

        Jamie ficou contemplando o mausoléu violado, com as sobrancelhas juntas em um gesto de concentração.

        - Ouça, e de quem é o segundo ataúde? - perguntou.

        - Meu. - Yocasta começava a recuperar o aprumo; quadrou os ombros e levantou o queixo.

        Jamie me olhou com um pequeno bufido. Era acreditável que essa mulher preferisse deixar um cadáver exposto antes que colocá-lo em seu próprio ataúde, mas assim acrescentava as possibilidades de que fora descoberto. Até no caso de que alguém abrisse o mausoléu, o médico poderia ter descansado ali em total segurança, pois ninguém tivesse aberto o féretro da Yocasta até que chegasse o momento de que recebesse seu próprio corpo. É mulher era egoísta, mas estúpida não, absolutamente.

        - De acordo, coloca ao Wolff, se for preciso - disse- . Pode ficar ali no chão, com o outro.

        - por que não o pomos no ataúde, tia? - perguntou Jamie; notei que a observava com atenção.

        - Não! - havia lhe tornado as costas, mas ante é se girou depressa, feroz a cara à luz da tocha- . É lixo. Deixa que se apodreça no chão!

        Ante essa resposta ele entreabriu os olhos, mas em vez de responder começou a retirar os blocos soltos.

        - O que faz? - Yocasta voltou a agitar-se para ouvir o chiado de mármore, mas se desorientou ao olhar e ficou de cara para o rio. Compreendi então que já estava completamente cega; não via nem sequer a luz da tocha.

        De qualquer modo, nesse momento não podia lhe emprestar atenção. Jamie entrou pela abertura.

        Segui-o, respirando apenas. Os ataúdes tinham placas de bronze, algo opacas pela umidade, mas perfeitamente legíveis. “ Hector Alexander Robert Cameron” , dizia uma; a outra, “ Yocasta Isobeail MacKenzie Cameron” . Sem vacilar, ele levantou a tampa do segundo.

        Não estava cravejada; moveu-se imediatamente.

        - OH! - murmurou Jamie, ao ver o que continha.

        O ouro nunca perde o brilho, por muito úmido que seja o ambiente. Pode passar séculos inteiros no fundo do mar; um dia emergirá na rede de algum pescador, resplandecente como o dia em que foi fundido.

        Os lingotes formavam uma capa no fundo do ataúde. Suficiente para encher duas arcas pequenos, cada um tão pesado que para carregá-los-se requeriam dois homens…ou um homem e uma mulher forte. Cada lingote com sua flor de lis estampada. Um terço do ouro do francês.

        O resplendor me fez piscar. Apartei a vista nublada. Embora o estou acostumado a estava às escuras, ainda se distinguia a silhueta acurrucada contra o mármore claro. “ Farejando onde não devia” . E o que teria visto Daniel Rawlings, que tinha desenhado essa flor de lis na margem de seu registro e essa discreta anotação, “ Aurum” ?

        Então Hector Cameron ainda vivia e o mausoléu não estava hermeticamente fechado. Talvez Hector, ao levantar-se em meio da noite para ver seu tesouro, tinha guiado até ali a seu médico, sem sabê-lo. Nem Cameron nem Rawlings poderiam já nos dizer como tinham acontecido as coisas.

        Senti um nó na garganta pelo homem que jazia a meus pés, o amigo e colega cujos instrumentos utilizava, cuja sombra, junto a meu cotovelo, brindava-me consolo e valor quando tratava de curar a um doente.

        Jamie fechou brandamente o féretro, como se contivera a um ocupante cujos restos tinha perturbado.

        Yocasta seguia imóvel no atalho, com um braço em volto da Freda. Pelos ruídos, a anciã devia saber onde estávamos, mas ainda continuava de cara ao rio, com os olhos fixos à luz da tocha.

        - E agora, o que fazemos? - perguntei ao Jamie.

        Ele se voltou a olhar a tumba um momento. Logo se encolheu de ombros.

        - Deixaremos à tenente aos cuidados do Hector, como estava planejado. Quanto ao doutor…

        Encheu-se lentamente os pulmões, contemplando com ar aflito os ossos que jaziam em elegante leque, pálidos e imóveis: dedos de cirurgião.

        - Acredito que deveríamos levá-lo a casa…à Colina - disse- . Para que descanse entre amigos.

        Passou roçando às duas mulheres, sem lhes dizer nada nem pedir perdão, e foi procurar à tenente Wolff.

 

Bree mantinha a postura em que tinha cansado, medeio em cima de Roger; o coração lhe palpitava com força nos ouvidos.

        - Não está zangada comigo? - sussurrou ele.

        - Não. Nunca te proibi que o lesse.

        Lhe roçou os ombros, fazendo que curvasse a ponta dos pés em uma reação de prazer. O que lhe importava? Não. Provavelmente teria devido sentir-se exposta na intimidade de seus sonhos e seus pensamentos; mas podia confiar-lhe Roger jamais os utilizaria contra ela.

        Além disso, uma vez expostos no papel, seus sonhos se convertiam em algo independente, como seus desenhos: o reflexo de uma faceta de sua mente, mas distinto da mente ou o coração que o tinham criado.

        - Mas o justo é justo. - Apoiou o queixo no oco de seu ombro; ele cheirava bem, a desejo satisfeito- . Agora deve me contar um de seus sonhos.

        Uma risada vibrou dentro de seu peito; quase muda, mas ela a percebeu.

        - Só um?

        - Sim, mas deve ser importante. Nada desses sonhos que todos temos; um que tenha tido só você.

        Arranhou-lhe brandamente o pêlo escuro encaracolado o peito, para que se arrepiasse. Tinha a outra emano sob o travesseiro; se movia um pouco os dedos tocava a silhueta suave da mujercita antiga, como ele chamava. Então podia imaginar que seu próprio ventre se inchava, redondo e duro. Ainda perdurava o espasmo suave na parte inferior do ventre, último efeito do ato amoroso. Aconteceria esta vez?

        Ele moveu a cabeça no travesseiro, pensativo. Seus olhos tinham a cor do musgo, suave e vívido sob a luz velada.

        - Poderia ser romântico - sussurrou- . Poderia dizer que este é meu sonho: você e eu aqui, solos…nós e nossos filhos.

        - Poderia - repetiu ela, lhe apertando a frente contra o ombro- . Mas isso não é um sonho de verdade, a não ser uma fantasia. Já sabe a que me refiro.

        - Sim.

        Roger guardou silêncio durante um momento, larga e queda a mão apoiada contra sua cintura.

        - Às vezes - murmurou por fim - , às vezes sonho que canto. E acordado com a garganta dolorida.

        - O que canta? - sussurrou.

        - Nada que conheça ou que tenha ouvido nunca - respondeu ele, muito fico - . Mas sei que canto para ti.

 

     Tive que deixar minhas tarefas para atender ao Rosamund Lindsay, quem chegou já avançada a tarde com uma grave laceração na mão esquerda, causada por uma tocha enquanto descascava árvores. Ferida extensa, polegar esquerdo quase seccionado; o corte se estendia da base índice, pelo processo estiloide do rádio, levianamente prejudicado. A ferida datava de três dias atrás; tratada com uma tosca vendagem e graxa de toucinho. Extensa sepsia, com supuración, pronunciado inchaço de mão e antebraço. Polegar enegrecido; gangrena evidente; penetrante aroma característico. Linhas vermelhas subcutâneas, indicativas de envenenamento do sangue, do sítio ferido quase até a fossa antecubital.

   A paciente apresentava temperatura alta (40º C aprox.), sintomas de desidratação, desorientação leve, evidente taquicardia.

   Vista a gravidade de seu estado, recomendei imediata amputação do braço à altura do cotovelo. A paciente se negou a isso; insistiu na aplicação de cataplasma de pomba, consistente em aplicar à ferida o corpo falho de uma pomba recém sacrificada (o marido da paciente havia trazido uma). Talhado polegar à altura da base metacarpiana, ligado restos de artéria radial (esmagada na lesão original) e superficiais volae. Limpo e drenado a ferida. Aplicado aproximadamente um onça e meia de pó de penicilina em bruto (origem: casca de casava podre, cultivo n.º23, prep.. 15/4/71) em tópico, seguida por uma aplicação de alho cru triturado (três dentes), bálsamo do Berberis canadensis… e cataplasma de pomba, aplicada sobre a vendagem, por insistência do marido. Subministrado fluídos por via oral: mescla febrífuga de centaura vermelha, sanguinária e lúpulo; água ad lib. Injetado mescla de penicilina líquida (cultivo n.º23), via intravenosa, dose um quarto de onça em suspensão de água esterilizada.

   Rápida deterioração da paciente, com crescentes sintomas de desorientação e delírio, febre alta. Extensa urticária no braço e a parte superior do torso. Tentei aliviar a febre com repetidas aplicações de água fria, sem resultado. Dada a incoerência da paciente, solicitei ao marido autorização para amputar; foi negada sobre a base de que a morte parecia iminente e “ ela não quereria que a enterrássemos a partes” .

   Repetido injeção de penicilina. Pouco depois a paciente caiu na inconsciência e expirou justo antes do amanhecer.

 

   Voltei a molhar a pluma, mas deixei que as gotas de tinta caíssem do extremo

afiado. Que mais devia dizer?

   O enraizado hábito da minuciosidad científica lutava contra a cautela. Era importante descrever o que tinha acontecido, tão a fundo como fora possível. Ao mesmo tempo duvidava se devia pôr por escrito o que podia ser uma confissão de homicídio involuntário.

O certo era que Rosamund Lindsay não parecia ter morrido de septicemia, mas sim de uma reação aguda à penicilina não desencardida; em poucas palavras, por obra de meu remédio. Também era certo que, se não tivesse recebido atenção, o envenenamento do sangue a teria matado igualmente. Na verdade, não havia modo de saber que efeitos teria a penicilina. Mas disso se tratava, verdade? De que alguém mais pudesse sabê-lo.

   Sim, devia incluir uma descrição dos efeitos. Mas a questão era: para quem levava esse registro?

   Mordi-me o lábio, pensativa. Se era só para minha própria utilidade, podia me limitar a registrar os sintomas, os tempos e os efeitos, sem apontar explicitamente a causa da morte. depois de tudo, era difícil que me esquecessem as circunstâncias. Mas se queria que minhas notas fossem de utilidade para alguma outra pessoa… alguém que não tivesse idéia dos benefícios e perigos dos antibióticos…

   Joguei uma olhada ao ataúde, que descansava sobre seus cavaletes, perto das janelas sulcadas pela chuva.

   Rosamund tinha trabalhado em Boston de prostituta; já muito fornida e entrada em anos para exercer provechosamente o ofício, viajou para o sul em busca de marido. Encontrou o refúgio necessário no Kenneth Lindsay, que procurava uma esposa com quem compartilhar o trabalho da casa. Não foi uma união nascida da atração física nem da compatibilidade emocional, mas mantinham uma relação amistosa.

   Jamie se tinha levado ao Kenny, mais desorientado que enfermo, para medicá-lo com uísque, tratamento algo mais efetivo que o meu. Pelo menos era difícil que resultasse letal.

   “ Causa imediata da morte” , escrevi. Fiz outra pausa. Tinha morrido congestionada, com os olhos saltados e a cara azul, sem que o fôlego pudesse passar pelas malhas inchadas de sua garganta.

Senti um nó na minha ao recordá-lo, como se me estivessem estrangulando, e bebi um sorvo de chá de hortelã que se esfriava a meu lado. Não me consolava pensar que a septicemia a tivesse matado com mais lentidão.

Cabia a possibilidade: que a morte se houvesse devido a uma embolia pulmonar. Era uma das complicações possíveis da septicemia e teria explicado os sintomas. A idéia teria podido me tranqüilizar, mas não me parecia muito acreditável. Guiada por meus conhecimentos como pela consciência, escrevi “ anafilaxis” antes de poder pensá-lo duas vezes.

   conhecia-se já o término “ anafilaxis” ? Nos registros do Rawlings não o tinha encontrado, mas ainda ficavam alguns por ler. De qualquer modo seria melhor descrevê-la em detalhe, para quem pudesse ler minhas notas.

   E essa era a incógnita, certamente. Quem as leria? O que aconteceria meu registro caía em mãos de um desconhecido, que tomasse como confissão de assassinato? Era improvável, mas podia acontecer.

   “ Extensa tumefação de membro afetado, estendida à parte superior do torso, a cara e o pescoço. Pele pálida, marcada com manchas avermelhadas. Respiração acelerada e superficial, pulso muito rápido e superficial, com tendência a inaudível. Palpitações evidentes. Lábios e ouvidos, cianóticos. Exoftalmia pronunciada.”

   Não queria voltar a olhar o féretro, mas o fiz, para pedir desculpas. Brianna se voltou a me olhar e imediatamente desviou a cara. O aroma da comida preparada para o velório ia enchendo a habitação, misturado ao da lenha e a tinta… e o carvalho fresco do ataúde.

   O tosco sudário de musselina resplandecia à luz chuvosa da janela. Belisquei com força a pluma entre o polegar e o índice, tratando de esquecer o ruído da cartilagem cricoides do Rosamunde, que eu tinha perfurado com um canivete, em um último e inútil intento de permitir o passo de ar a seus pulmões forcejeantes.

   Entretanto… não existia um solo médico que não se enfrentou ao mesmo, no exercício da profissão. Eu tinha passado por isso várias vezes, até em hospitais modernos, equipados com todo o necessário para salvar a vida… naquela outra época.

   Aqui algum médico futuro se enfrentaria ao mesmo dilema: aplicar um tratamento possivelmente perigoso ou deixar morrer a um paciente que se poderia ter salvado. E esse era meu próprio dilema: equilibrar a remota possibilidade de que me condenassem por homicídio com o valor desconhecido que meus registros pudessem ter para quem procurasse conhecimento neles.

   Quem poderia ser essa pessoa? Molhei a pluma enquanto pensava. As academias de medicina eram ainda poucas e estavam quase todas na Europa. A maioria dos médicos obtinha seus conhecimentos mediante o trabalho de aprendiz e a experiência.

   Rawlings não tinha estudado em nenhuma academia. Mesmo assim, tinha sido todo um médico. Ao ler suas notas se percebia o interesse que dedicava a seus pacientes, sua curiosidade com respeito aos mistérios do corpo.

   Movida por um impulso, voltei para suas páginas. Talvez não fazia mais que dar tempo a meu subconsciente para que tomasse uma decisão… ou possivelmente sentia a necessidade de me comunicar, sequer remotamente, com outro médico, alguém como eu.

   Alguém como eu. Olhei fixamente a página, com sua escritura pulcra e pequena, suas minuciosas ilustrações, sem ver detalhes. Havia ali alguém como eu?

   Bebi meu chá a sorvos, contemplando ao Rosamunde. A simples verdade era que eu não duraria eternamente. Com sorte, ainda ficava muito tempo, mas mesmo assim devia encontrar a alguém a quem pudesse passar ao menos os rudimentos do que sabia.

   Uma risita afogada da mesa: as garotas conversavam sobre sussurros sobre o queijo de porco, o sauerkraut e as batatas fervidas. Não seria Brianna, pensei com algum pesar.

   A eleição lógica teria sido ela, que pelo menos sabia o que era a medicina moderna. Com ela não teria que superar a ignorância e a superstição, nem lhe explicar os perigos dos gérmenes, as virtudes da assepsia. Mas ela não tinha a inclinação natural, o instinto de curar. Embora ver sangue não a perturbava (tinha-me ajudado em incontáveis partos e pequenos procedimentos cirúrgicos), carecia dessa mescla peculiar de empatia e inexorabilidade que necessita o médico.

   Talvez era mais filha do Jamie que minha, disse-me ao observar a luz do fogo em seu cabelo. Tinha seu valor, sua grande ternura… mas era o valor de um guerreiro e a ternura de uma fortaleza capaz de esmagar a vontade. Eu não tinha conseguido lhe acontecer meu dom: o conhecimento do sangue e o osso, os caminhos secretos do coração.

   Em minha concentração não tinha notado que Brianna estava de pé a minhas costas. Apoiou-me as mãos nos ombros e se aproximou um pouco mais, me deixando sentir o calor de seu contato. Marsali se tinha ido; estávamos sozinhas. Começou a me massagear os ombros, movendo lentamente os dedos para o pescoço.

   - - Cansada? –Perguntou.

   - - Hum, resistirei –disse.

   Fechei o livro e me inclinei para trás, momentaneamente relaxada no puro alívio de seu contato. Só então me dava conta de ou tensa que estava.

 

- - Acredito que a matei –disse súbitamente, sem ter tido intenção de falar- - . Foi a penicilina o que a matou.

Os largos dedos não interromperam seu tranqüilizador movimento.

   - - De verdade? –murmurou- - . De qualquer modo não havia outra coisa que pudesse fazer, equivoco-me?

   - - Não.

   - - Não te aflija –murmurou ela, esfregando e massageando- - . De qualquer modo teria morrido, verdade? É triste, mas não fez nada mau. Você sabe.

   - - Sim, sei. –Para minha surpresa, uma lágrima solitária se deslizou por minha bochecha até cair na página, enrugando o papel. Pisquei com força, em um intento de me dominar. Não queria afligir a Brianna.

   Não se afligiu. Retirou as mãos de meus ombros e ouvi o ruído de um tamborete miserável. Logo seus braços me rodearam. Recostei-me contra ela, com a cabeça apoiada sob o queixo. limitou-se a me abraçar, me acalmando com o subir e descer de sua respiração.

   - - Uma vez fui jantar com tio Joe, quando ele acabava de perder a um paciente –disse ao fim- - . Falou-me disso.

   - - Sim? –Surpreendeu-me um pouco; não imaginava que Joe discutisse essas coisas com ela.

   - - Não era sua intenção, mas notei que algo o preocupava, e lhe perguntei. Ele precisava falar. E eu estava ali. Depois disse que foi quase como estar contigo. Ignorava que te apelidasse Lady Jane.

   - - Sim –confirmei- - , por minha maneira de falar.

   - - Disse que às vezes, quando aconteciam essas coisas, o hospital fazia uma espécie de investigação formal. Não era um julgamento, nada disso, a não ser uma reunião dos outros médicos, para saber exatamente que tinha saído mau. Disse que era uma espécie de confissão, dizê-lo a outros médicos que pudessem compreender… e que aliviava.

   - - Estraguem. –Ela se movia um pouco, me balançando como ao Jemmy.

- - É isso o que te inquieta? –perguntou em voz baixa- - . além do que aconteceu Rosamund, o fato de estar sozinha, sem ninguém que possa entender de verdade?

   - - Ao parecer, assim é- disse.

   - - Já passará –assegurou- - . Tudo passará.

   - - Sim. –E sorri, apesar das lágrimas que me empanavam os olhos.

   Não podia lhe ensinar a ser doutora, mas ao parecer, sem sabê-lo, tinha-lhe ensinado a ser mãe.

   - - Deveria ir deitar te –disse- - . Passará ao menos uma hora antes de que cheguem.

   Exalei o fôlego em um suspiro, enquanto sentia a paz da casa a meu redor. A Colina do Fraser tinha sido, para o Rosamund, um refúgio de pouca duração, mas mesmo assim era um verdadeiro lar. Tínhamo-lhe dado segurança e a honraríamos na morte.

   - - dentro de um minuto –disse, me limpando o nariz- - . Primeiro devo terminar algo.

   Sentei-me com as costas erguida ante meu livro, inundei a pluma e comecei a escrever as linhas que deviam ficar ali, pelo bem do desconhecido médico que me seguisse.

 

Despertei empapada em suor. Em meu desordenado sonho tinha chutado o edredom e o lençol, mas mesmo assim minha pele palpitava de calor. Baixei as pernas pelo flanco da cama e me levantei, enjoada e insegura.

   Jamie ainda dormia. moveu-se um pouco, murmurando algo, mas logo recuperou a respiração regular do sonho. Eu necessitava ar e não queria despertá-lo. Apartei o mosquiteiro e saí ao corredor para ir ao trastero.

   Era um quarto pequeno, mas tinha uma janela grande a fim de equilibrar a de nosso dormitório. Ainda estava sem cristais, coberta só pelas persianas de madeira. Ansiosa de sua frescura, tirei-me a camisa; a corrente me roçou os quadris, os peitos, os braços.

   Fechei os olhos, imóvel; um ou dois minutos depois o calor tinha desaparecido, como uma brasa na água, me deixando molhada, mas em paz.

   Ainda não queria voltar para a cama; tinha o cabelo úmido e os lençóis ainda estariam pegajosos. Apoiei-me no parapeito, nua, com a pele agradavelmente arrepiada pelo frescor. O pacífico sussurro das árvores se interrompeu ante o débil pranto de um menino. Olhei para a cabana.

   Estava a cem metros da casa; o vento devia vir para mim para ter trazido o pranto. Como cabia esperar, trocou assim que apareci e a voz se perdeu na revoada das folhas. Mas ao morrer a brisa os gritos me chegaram mais potentes, no meio do silêncio.

   Eram mais fortes porque se estavam aproximando. ouviu-se um rangido de madeira: alguém tinha aberto a porta da cabana para sair. Não se viam abajures nem velas acesas; a breve olhada que pude jogar à pessoa que saía só me mostrou uma silhueta alta, recortada contra o tênue resplendor do lar. Pareceu-me ver uma cabeleira, tanto Roger como Brianna dormiam com o cabelo solto e sem boina.

   Os chiados não cessavam. Eram nervosos, mas não atormentados. Não havia dor de barriga. Um mau sonho? Aguardei um momento, se por acaso alguém trazia para o menino até a casa em minha busca; no caso de agarrei minha camisa enrugada. Não; a figura alta tinha desaparecido no bosquecillo das píceas; ouvi que o pranto se afastava. Isso significava que tampouco havia febre.

O pranto se mesclou ao murmúrio grave de uma voz adulta, que tratava inutilmente de tranqüilizá-lo. Roger, pois.

   Outro ruído se mesclou com o pranto, ali abaixo; parecia uma tosse, mas não cessava e tinha certo ritmo. Apareci a cabeça, precavida como um caracol depois de uma tempestade, e distingui algumas palavras no rouco balbuceio.

   - - Era um hom- bre, e una meu- na, e seu hi- ja Clementine…”

   Roger estava cantando.

   As lágimas me arderam nos olhos; imediatamente retirei a cabeça para que não me visse. Cantava sem melodia, mas mesmo assim era música, um ofego musical banguela e esfarrapado, que aquietou o pranto, como se Jemmy tratasse de reconhecer as palavras, tão penosamente emitidas pela garganta de seu pai.

   - - Era ru- Bia, como um há- dá… depois de sussurrar cada frase tinha que respirar a ofegos, com um ruído como de tecido esmigalhado. Apertei os punhos. Como se por pura força de vontade pudesse ajudá-lo a emitir a voz.

   - - … E calçava o cento e dez. –A brisa ainda agitava as taças das árvores. O verso seguinte se perdeu no murmúrio. Durante um minuto ou dois não ouvi nada, por muito que agucei o ouvido.

   Logo vi o Jamie, muito quieto.

   - - Encontra-te bem, Sassenach? –perguntou do vão da porta.

   - - Sim, estou bem –respondi em sussurros- - . Só necessitava um pouco de ar; não queria despertar.

   - - Sempre acordado contigo, Sassenach<, durmo mal quando não está a meu lado. –Tocou-me a frente um momento- - . Acreditei que tinha febre; a cama estava úmida. Está bem, seriamente?

   - - Tinha calor e não podia dormir, mas estou bem, sim. E você? –Toquei-lhe a cara; tinha a pele esquentada pelo sonho.

   aproximou-se da janela para contemplar a noite comigo. Havia lua enche e os pássaros estavam inquietos; a pouca distância se ouvia o gorjeio de uma curruca tardia; mais à frente, o falar de um mocho caçador.

   - - Lembra-te do Lawrence Stern? –perguntou Jamie. Ao parecer, esses sons lhe recordavam ao naturalista.

   - - Dificilmente alguém poderia esquecê-lo –disse, seca- - . O saco de aranhas secas é impressionante. Por não falar do aroma.

   Stern levava consigo um aroma característico, composto em partes iguais de aromas carnais, a custosa água de colônia que preferia e um vago fedor a podridão, a dos espécimes que colecionava.

   - - É certo. Cheira pior que você.

   - - Eu não cheiro mau! –exclamei, indignada.

   - - Hum… - - Agarrou-me a mão para aproximar-lhe ao nariz- - . Cebolas e alho. Algo picante… pimenta-malaguetas, talvez. Sim, e prego de aroma. Sangue de esquilo e suco de carne. –Tirou a língua como uma víbora para me tocar os nódulos- - . Amido… de batatas… e algo lenhoso. Cogumelos venenosos.

   - - Isso não é justo –protestei, tratando de recuperar a mão- - . Sabe muito bem o que jantamos. E não eram cogumelos venenosos, a não ser cogumelos.

   Logo me levantou um pouco o braço para tocar o pêlo sedoso e úmido da axila.

   - - Eau de femme- murmurou, com os dedos sob o nariz. A risada era perceptível em sua voz- - . MA petite fleur.

   - - E isso que me banhei! –disse, melancólica.

   - - Sim, com sabão de girassol. –Havia um tom de surpresa em sua voz ao me farejar a clavícula.

   Soltei um chiado agudo e ele me cobriu a boca com uma manaza quente. Cheirava a pólvora, feno e esterco, mas não pude dizer-lhe amordaçada como estava.

   Ele se ergueu um pouco e se inclinou mais, até que a aspereza da barba enchente me roçou a bochecha. Sua mão caiu, e senti a suavidade de seus lábios contra a têmpora, o toque de mariposa de sua língua na pele.

   - - E sal –murmurou, quente seu fôlego contra a cara- - . Tem sal na cara e as pestanas molhadas. choraste, Sassenach?

   - - Não –disse, embora sentia um súbito e irracional impulso de fazê-lo- - . Não, suei. Tinha… calor.

   - - Ah, mas aqui… hum…- - Pôs-se de joelhos, com um braço em volto de minha cintura para me reter e o nariz afundado em meu seio- - . OH –disse, e sua voz trocou outra vez.

   Normalmente eu não usava perfume, mas tinha um azeite especial, fabricado nas Índias com flores-de-laranja, jasmim, baunilha e canela. Como só tinha um frasco muito pequeno, usava apenas um toque de vez em quando, em ocasiões que pudessem ser especiais.

   - - Desejava-me –disse, melancólico- - . E eu me dormi sem te tocar sequer. Sinto muito, Sassenach. me deveria haver isso dito.

   - - Estava fatigado. –Acariciei-lhe as largas mechas escuras e os sujeitei detrás da orelha. Ele riu; senti o calor de seu fôlego em meu ventre nu.

   - - Para isso poderia me levantar de entre os mortos, Sassenach, e não me incomodaria.

   levantou-se; face ao escasso da luz, pude comprovar que não se requereriam medidas tão desesperadas.

   - - Faz calor –disse- - . Estou suando.

   - - E crie que eu não?

   Suas mãos me rodearam a cintura. Súbitamente me levantou para me sentar no largo batente. O contato com a madeira fria me fez ofegar; por um ato reflito-me assim do marco a cada lado.

   - - Eau de femme –murmurou ao ajoelhar-se, me roçando as coxas com o cabelo. As pranchas do estou acostumado a rangeram sob seu peso- - . Parfum d’ amour, né?

   Jamie me sujeitava com firmeza pelo quadril; embora não corria perigo de cair, sentia o vazio vertiginoso detrás de mim, a noite clara e interminável, com o céu vazio, semeado de estrelas.

   - - Chist! –murmurou Jamie, muito longe. Agora estava de pé, com as mãos em minha cintura, e o gemido podia ter sido do vento ou meu.

   Envolvi-o com as pernas e acomodei um talão na fenda de suas nádegas; a sólida força de seus quadris era minha única âncora.

   - - Solta –me disse ao ouvido- - . Eu te sustentarei.

   Soltei-me, sim, inclinada para trás no ar, a salvo em suas mãos.

- - Tinha começado a me dizer algo sobre o Lawrence Stern –murmurei comprido momento depois, dormitada.

   - - É verdade. –Jamie se acomodou, com uma mão posesivamente curvada sobre minha nádega- - . Gostava de muito os pássaros. Perguntei-lhe por que cantam de noite a fins do verão.

   - - E sabia por que?

   - - Não, mas ao menos tinha uma teoria.

   - - OH!, melhor ainda –murmurei, com sonolenta diversão.

   - - O que fez foi capturar a vários pássaros e encerrá-los em jaulas forradas de mata-borrão.

   - - O que? –Isso despertou um pouco, embora só fora para rir- - . por que?

   - - Não as forrou por completo; só o fundo –explicou- - . Logo pôs ali um pires com tinta e, no centro, uma taça com sementes, de modo que os pássaros não pudessem comer sem manchá-las patas de tinta. Desse modo, quando saltassem de um lado a outro deixariam rastros no mata-borrão.

   - - Hum. E o que demonstrou com isso?

   - - Havia muitíssimos rastros, Sassenach, mas quase todas em um só lado da jaula. Em todas as jaulas.

   - - De verdade? E que interpretação deu Stern a isso?

   - - Pois… tinha tido a brilhante ideia de pôr uma bússola junto às jaulas. E ao parecer, os pássaros passaram toda a noite saltando e lutando para o sudeste, a direção em que migran quando chega o outono.

   - - Que interessante! –Recolhi-me o cabelo em uma rabo-de-cavalo para refrescar o pescoço- - .Mas ainda não é época de migrar, verdade? E tampouco voam de noite, nem sequer quando emigram.

   - - Não. Era como se sentissem a iminência do vôo, sua atração, e isso lhes perturbasse o repouso. O mais estranho é que a maioria de seus cativos eram aves jovens, que nunca tinham feita a viagem; não conheciam o lugar para o que se dirigiam, mas sentiam sua presença, possivelmente convocando-os, arrancando-os do sonho.

   Movi-me um pouco; Jamie retirou a mão de minha perna.

   - - Zugunruhe –disse com voz fica, roçando com a ponta de um dedo a marca úmida que me tinha deixado na pele.

   - - O que é isso?

   - - Assim o chamava Stern: a insônia dos pajarillos que se preparam a partir.

   - - Significa algo em especial?

   - - Sim. Ruhe é “ quietude” , “ descanso” . E zug, uma viagem de qualquer tipo. Por ende, zugunruhe é inquietação, o desassossego que precede a uma viagem comprido.

   Aproximei-me dele para golpeá-lo afetuosamente no ombro com a frente. Inalei como se saboreasse o delicado aroma de um bom charuto.

   - - Eau d’ homme?

   Levantou a cabeça para farejar com ar dúbio; logo enrugou o nariz.

   - - Eau de chèvre, acredito. Temia que fora algo pior. Como diz mofeta em francês?

   - - O Pew –insinuei, rendo.

   Os pássaros cantaram toda a noite.

 

Jamie sorriu, assinalando com a cabeça para trás.

   - - Vejo que hoje temos ajuda.

   Roger, ao voltar-se, viu que Jemmy partia atrás deles, com a frente franzida em grande concentração e uma pedra do tamanho de um punho apertada contra o peito.

   - - É para a pocilga nova, ‘ghille ruadh? –perguntou.

   Jemmy assentiu com solenidade.

   - - Obrigado –disse seu pai, com gravidade. Alargou a mão- - . Quer que a leve?

   - - Eu levo!

   - - Fica muito longe, ‘ghille ruadh –advertiu Jamie- - . E sua mãe te sentirá falta de, verdade?

   - - Não!

   - - Ouça, onde está mami? –perguntou Roger, tentando outra tática- - . Deve estar preocupada com ti, certamente.

   A pequena cabeça vermelha se sacudiu em veemente negativa.

   - - Claire disse que as mulheres foram costurar edredons –lhe disse Jamie a seu genro- - . Marsali comprou um modelo; pode que tenham começado a obra. –E se sentou em cuclillas junto ao Roger, cara a cara com seu neto- - . Escapaste-te que sua mãe?

   A suave boca rosada, até então muito apertada, contraiu-se em uma risilla.

   - - Já me imaginava –reconheceu Roger, resignado- - . Vêem, pois. A casa. –E se incorporou para elevar ao menino, com pedra e tudo.

   - - Não, não! Não!- Jemmy ficou rígido para resistir e cravou dolorosamente os pés no ventre de seu pai, arqueando-se para trás- - . Eu ajudo, eu ajudo!

   Em seus intentos de fazer-se ouvir por cima dos rugidos de seu filho sem gritar, ao tempo que lhe impedia de cair de cabeça, Roger demorou para ouvir os gritos que chegavam da casa. Por fim recorreu a tampar com a mão a boca aberta do menino.

   - - Ouve? Lizzie te está chamando –disse Jamie a seu neto.

   - - E não só Lizzie. –Outras vozes de mulheres se uniram ao coro, com crescente chateio- - . Mamãe, a avó Claire, a avó Bug, tia Marsali. Todas, por isso se ouça. E não parecem estar muito contentes contigo, moço.

   - - Será melhor que o levemos de volta –decidiu Jamie, não sem compaixão- - . Acredito que vão dar uma surra, pequeno. Às mulheres não gosta que te escape.

   Essa ameaçadora perspectiva fez que Jemmy deixasse cair a pedra para aferrar-se ao Roger.

   - - Suponho que poderíamos levá-lo –disse a seu sogro- - . Só por esta manhã. A meio-dia posso trazer o de volta.

   - - OH!, sim. –Jamie sorriu a seu neto e lhe devolveu a pedra queda- - . Construir pocilgas é coisa de homens, verdade? Não como esses trabalhos de agulhas que tanto gostam às senhoras.

   - - Falando de senhoras… - - Roger apontou o queixo para a casa, onde os gritos do Jemmy!” foram assumindo um tom claramente irritado e tingido de pânico- - . Terá que lhes dizer que está conosco.

   - - Irei eu. –Jamie deixou cair a bolsa que levava a ombro e olhou a seu neto arqueando uma sobrancelha- - . Deve-me uma, moço. Quando as mulheres estão dos nervos se descarregam com o primeiro homem que aparece, seja culpado ou não. O mais provável é que seja meu traseiro o que receba a surra.

   E pôs os olhos em branco; logo, com um grande sorriso, partiu para trote para a casa.

   Jemmy ria.

 

Jamie pareceu demorar comprido momento em reaparecer, mas os gritos indignados das mulheres se sossegaram muito em breve. Se seu traseiro tinha recebido uma surra, parecia havê-lo desfrutado, conforme pensou Roger, cínico. Nos maçãs do rosto tinha um leve rubor e trazia um ar decididamente satisfeito.

   Isso teve imediata explicação quando tirou um hatillo de debaixo da camisa. Ao abrir o pano de cozinha pôs à vista meia dúzia de bolachas, ainda quentes e chorreantes de manteiga e mel.

   - - Acredito que a senhora Bug os destinava ao círculo de costura –explicou, enquanto distribuía o bota de cano longo- - , mas não acredito que os sinta falta de. Havia massa de sobra na terrina.

 

Os postes para a perto estavam amontoados junto ao pilar de pedra. Roger revolveu entre eles até encontrar uma parte estilhaçada; logo fez alavanca com ele para levantar um grande bloco de granito, até que pôde colocar as mãos debaixo. Com a pedra montada nas coxas, incorporou-se muito lentamente.

   - - Papai, papai!

   Ao sentir que lhe atiravam das calças, separou bem os pés, a fim de conservar o equilíbrio sem deixar cair pesada pedra. Logo afirmou as mãos.

   - - O que, filho? –perguntou, olhando com chateio para baixo.

   Jemmy estava obstinado ao objeto com as duas mãos e olhava para o bosque.

   - - Ceddo, papai –sussurrou- - . Ceddo gaaande.

   Ao seguir a direção de seu olhar, Roger ficou petrificado.

   Era um enorme javali negro, a quatro passos de distância.

   - - Mierda –disse Roger, involuntariamente.

   Os pensamentos cruzavam a mente do Roger como trens cargueiros em colisão. Atacaria o porco se eles se moviam? Precisava mover-se; os músculos dos braços lhe tremiam pelo esforço.

   De todo este caos resgatou um pensamento coerente.

   - - Jem –disse, com voz muito calma- - , ponha detrás de mim. Já –acrescentou com ênfase, ao ver que o animal girava a cabeça para eles.

   Então os viu; os ojillos escuros trocaram de enfoque. Deu uns passos para diante; as pezuñas pareciam absurdamente pequenas e primorosas baixo essa mole ameaçadora.

   - - Vê seu avô, Jem? –perguntou, sempre com voz serena.

   - - Não –sussurrou o pequeno. Roger sentiu que se apertava ainda mais contra suas pernas.

   - - Pois olhe para trás. baixou ao arroio. Virá de ali.

   - - Avô! –A voz do Jemmy ressonou atrás dele, em um chiado de medo.

   Para ouvi-la, o javali arrepiou repentinamente uma crista de cerdas na coluna e baixou a cabeça, com os músculos avultados.

   - - Corre, Jem! –gritou Roger- - . Vê com seu avô!

   Uma corrente de adrenalina fez que, de repente, a pedra não pesasse nada. Jogou-a contra o porco que vinha à carga e lhe acertou na paleta. O animal se cambaleou, com um bufido se surpresa; logo abriu a boca em um bramido e carregou contra ele, movendo a cabeça para cortar com as presas.

   Não podia fazer-se a um lado para deixá-lo passar: Jem ainda estava muito perto de suas costas. Chutou-o na mandíbula com todas suas forças; logo se jogou sobre ele, tratando de aferrar-se a seu pescoço.

   Seus dedos escorregaram, sem achar cabo no cabelo áspero nem nos duros cilindros de carne bem firme. Ao sentir algo quente e molhado na mão, retirou-a com presteza. Haveria-o tajeado? Não sentia dor algum. Baixou a outra mão às cegas e, ao encontrar uma pata peluda, atirou com força.

   O porco caiu de lado com um chiado de surpresa e o tirou de cima. Roger caiu sobre as mãos e um joelho, que deu contra uma pedra. Uma descarga de dor lhe percorreu do tornozelo a entrepierna; se acurrucó involuntariamente, paralisado pelo impacto.

   O javali se levantou. sacudiu-se com um grunhido e um repico de cerdas, de cara para o lado oposto. dentro de um segundo giraria sobre si para abri-lo da barriga até a garganta e pisotear os restos. Roger agarrou uma pedra, mas era só um torrão seco que lhe desfez na mão. Da esquerda lhe chegou o ofego de um homem que ia à carreira e um grito lhe açulem:

   - - Tulach Ard! Tulach Ard!

   O javali, para ouvir o grito do Jamie, girou em redondo para enfrentar-se ao novo inimigo. Jamie trazia sua adaga na mão.

   “ Está completamente louco” , pensou Roger, com toda claridade.

   - - Não, não cria –disse seu sogro, ofegante.

   Então caiu na conta de que tinha falado em voz alta. Jamie estava em cuclillas, com o peso equilibrado na ponta dos pés; alargou a mão livre para o jovem, sem apartar a vista do porco, que se tinha detido a escavar o chão e balançava o testuz entre ambos, como avaliando as possibilidades.

   - - Bioran!- exclamou Fraser, com um gesto urgente- - . Um pau, uma lança… me dê algo!

   Uma lança… O poste estilhaçado da perto. Sua perna intumescida ainda se negava a funcionar, mas pôde jogar-se em um lado e agarrar a parte de madeira; de novo em cuclillas, apontou-o para diante, com o extremo quebrado para o inimigo.

   - - Tulach Ard! –uivou- - . Vêem aqui, gordo bode!

   O animal, distraído por um momento, girou para ele. Jamie apontou a adaga entre os omoplatas. Houve um chiado penetrante e o javali girou, emanando sangue pelo profundo talho aberto na paleta. Fraser se jogou para um flanco, mas caiu ao tropeçar com algo. A faca voou de sua mão estendida.

   Roger investiu com a improvisada lança em riste e a cravou com todas suas forças justo debaixo do rabo. O animal, com outro chiado, pareceu elevar-se no ar. O pau se agitou entre as mãos do jovem, esfolando-lhe com a áspera casca. Sujeitou-o com força, enquanto o porco se estrelava contra ela, em um borrão de fúria contorsionada, cabaçadas, rugidos e sangue que voava para todos lados, mesclada ao barro negro.

   Jamie se tinha levantado, sujo e lhe uivem, para agarrar outro poste da perto; descarregou-o contra o porco, que já se levantava, e a madeira golpeou o crânio com o estalo de uma bola contra o taco de beisebol. O animal, um pouco aturdido, sentou-se bruscamente.

   Um guincho desde atrás fez que Roger girasse sobre suas pantorrilhas, Jemmy vinha correndo precariamente para o javali, com a adaga de seu avô sujeito com as duas mãos por cima da cabeça; sua cara brilhava como uma beterraba, cheia de feroz intenção.

   - - Jem! –gritou ele- - . Atrás!

   O porco grunhiu audiblemente atrás dele. Jamie gritou algo. Mas Roger não podia distrair sua atenção. No momento em que se jogava para o menino, um movimento nos bosques, detrás do Jemmy, fez que levantasse a vista. Um raio cinza, pego ao chão; movia-se tão depressa que ele só teve uma vaga impressão do que era.

   Não fazia falta mais.

   - - Lobos! –gritou ao Jamie.

   Alcançou ao Jemmy, tirou-lhe a faca e o cobriu com seu corpo, apertando-se ao chão. Logo esperou, com estranha calma, enquanto o menino se retorcia freneticamente baixo ele.

   - - Quieto, Jem, quieto. Papai está contigo.

   Tinha a frente apertada contra a terra e a cabeça do Jem no oco de seu ombro. Com um braço protegia ao menino. Na outra mão aferrava a adaga. Já se ouvia o lobo, que uivava e gemia para chamar a seus companheiros. O javali colocava uma bulha insuportável: uma espécie de alarido comprido, contínuo.

   Acima se ouviu um zumbido estranho, seguido por um golpe surdo, peculiar; logo, um silêncio repentino e total.

   Roger, sobressaltado, levantou um pouco a cabeça. O porco estava de pé a poucos passos, com a mandíbula pendente, como em total estupefação. Jamie, de pé atrás dele, talher de barro e sangue, mostrava uma expressão parecida.

   O porco caiu de joelhos, com os olhos frágeis, e se derrubou sobre o flanco; de seu corpo aparecia o cabo de uma flecha, frágil e inofensiva comparada com a mole do animal.

   Jemmy chorava e se retorcia baixo ele. incorporou-se lentamente e o estreitou entre os braços. Enquanto acalmava ao Jemmy com automáticos tapinhas nas costas, girou a cabeça para o bosque.

   O índio estava de pé junto às árvores, arco em mão.

   Teve a vaga idéia de procurar o lobo. Estava farejando a cabeça de gado do porco, a poucos passos do Jamie. Mas seu sogro não lhe emprestava atenção. Ele também olhava fixamente ao índio.

   - - Ian –disse pelo baixo- - . OH, Céu Santo! É Ian!

 

Como Lizzie não tinha mãe que se ocupasse de seu enxoval, as mulheres da Colina se agruparam para prover a de coisas tais como anáguas, camisolas e meias tecidas; as damas mais habilidosas costuraram as peças para o edredom.

   Em geral, eu não tinha muito talento nem paciência para a costura, mas contava com uma cozinha grande, com boa luz e também com os serviços da senhora Bug, que mantinha às costureiras bem providas de chá e pão-doces de maçã.

   Quando estávamos dedicadas a acolchoar a coberta de um edredom Jamie apareceu súbitamente na porta do corredor. Ao parecer ele não queria interromper nem chamar a atenção, pois não entrou na cozinha; mas assim que o olhei me fez um gesto urgente com a cabeça e desapareceu para o estudo.

   Joguei uma olhada ao Bree, que estava a meu lado. Ela também o tinha visto; encolheu-se de ombros. depois de cravar a agulha no trabalho, levantei-me com uma desculpa.

Jamie esperava no corredor. Assim que apareci me agarrou de um braço para me levar a porta principal.

   - - O que…? –comecei, intrigada.

   Então vi o índio sentado na soleira. levantou-se para voltar-se para mim com um sorriso.

   - - Ian! –E me joguei em seus braços.

   Dava um passo para atrás, e me sequei os olhos para olhá-lo melhor. Nesse momento algo frio me hociqueó a mão, me arrancando outro pequeno grito.

   - - Você! –disse a Cilindro- - . Não esperava voltar a verte!

   Sobressaltada pela emoção, esfreguei-lhe furiosamente as orelhas. Ele deu um breve latido e agachou as patas dianteiras, meneando o rabo com igual fúria.

   - - Vira-lata! Vira-lata! Aqui vira-lata! –Jemmy irrompeu desde sua cabana, correndo tanto como o permitia o curto de suas pernas. Cilindro voou para ele e o tombou em um alvoroço de chiados.

   O radar maternal da Brianna detectou os chiados e a fez acudir depressa.

   - - O que…?

   Sua vista foi para os vultos que se debatiam na grama, mas Ian se adiantou para abraçá-la e lhe dar um beijo. Seu grito atraiu ao resto das mulheres ocupadas no edredom.

   No meio do pandemónium resultante, notei que Roger tinha aparecido com um arranhão na frente, um olho negro e camisa limpa. Joguei uma olhada ao Jamie; sua camisa não só estava suja perdida, mas também tinha um rasgão no peitilho e um enorme sete na manga. Se tinha em conta o cabelo molhado e a camisa poda daquilo Jemmy era extremamente suspeito.

   - - Que diabo têm feito? –interpelei.

   - - Não tem importância, Sassenach. Mas trouxemos um javali fresco para que o esquarteje… quando tiver tempo.

   - - É a versão local do cordeiro cevado para celebrar o retorno do filho pródigo? –perguntei, assinalando com a cabeça ao Ian, que já estava completamente submerso em uma maré de mulheres. Lizzie, obstinada de seu braço, estava completamente acesa pelo entusiasmo.

   - - Ian veio com amigos? Ou com sua família, possivelmente? –Quase dois anos atrás tinha escrito que sua esposa esperava família.

   Ante isso o sorriso do Jamie se atenuou um pouco.

   - - Não. Está sozinho. Excetuando ao cão, certamente –adicionou, assinalando com a cabeça a Cilindro.

   - - até quando ficará? Há-o dito?

   Jamie respirou a fundo e me pôs uma mão nas costas.

   - - para sempre –disse. Sua voz estava cheia de gozo, mas também tinha um estranho tintura de tristeza que me intrigou- - . voltou para casa.

 

fez-se muito tarde antes de que terminássemos com o javali, o edredom e o jantar.

   - - Ian te há dito algo? –perguntei ao Jamie, quando nos encontramos momentaneamente solos em seu estudo, antes de jantar.

   - - Muito pouco. Só que veio para ficar.

   - - É possível que a sua esposa tenha acontecido algo horrível? E ao bebê? –Sentia uma profunda pontada de aflição, tanto pelo Ian como pela bonita e miúda mohawk, chamada Wakyo’teyehsnonhsa, “ a que trabalha com as mãos” . Ian a chamava Emily. Jamie voltou a negar com a cabeça, já sério.

   - - Não sei, mas algo assim deve ter acontecido, porque não os mencionou sequer… e os olhos desse moço são muito mais velhos que ele.

   Nesse momento Lizzie apareceu na porta, com uma mensagem urgente da senhora Bug referido aos preparativos para o jantar, e tive que ir.

 

- - Estará cômodo aqui embaixo? –perguntei ao Ian, dúbia. Tinha-lhe posto na mesa de cirurgia vários edredons e um travesseiro de plumas.

   - - OH!, sim, tia. –Sorriu-me de brinca a orelha- - . Não imagina em que sítios dormimos Cilindro e eu. –E se estirou com um bocejo- - . Céus!, faz mais de um mês que não me deito já fechada a noite.

   - - Suponho que também te levantaria com o alvorada. Por isso me pareceu que estaria melhor aqui; se quer dormir até mais tarde, ninguém te incomodará.

   Ele se pôs-se a rir.

   - - Só se sotaque a janela aberta, para que Cilindro possa ir e vir a vontade. Embora pareça pensar que se pode caçar muito bem aqui dentro.

   O cão estava sentado em meio da habitação, com os olhos amarelos e lupinos fixos no armário. Depois da porta fechada se ouvia um rumor grave, como de água bulindo em uma bule.

   - - Arrumado pelo gato –comentou Jamie, que entrava nesse momento- - . Nosso pequeno Adso tem muito alta opinião de si mesmo. O outro dia lhe vi perseguindo uma raposa.

   - - E o fato de que você fosse atrás com um rifle não tem nada que ver com o fato de que a raposa fugisse, certamente –assinalei.

   - - Por isso a seu cheetie concerne, não, nada –assegurou ele, muito sorridente.

   - - Cheetie –repetiu Ian, pelo baixo- - . Que bom é poder falar outra vez em escocês.

   Jamie lhe roçou um braço com a mão.

   - - Suponho que sim, a mhic a pheathar. esqueceste o gaélico?

   - - Segui obstinado ao escocês e o gaélico, tio –disse Ian- - . O latim me custava mais.

   - - Não acredito que tenha tido muitas ocasiões de praticar o latim –observou Jamie- - . A menos que passasse algum jesuíta.

   Ante isso o moço fez um gesto estranho. Olhou a ambos; logo, à porta de consulta.

   - - Pois não foi exatamente assim, tio.

   foi jogar uma olhada ao corredor, para assegurar-se de que não houvesse ninguém perto; logo voltou para a mesa. Levava na cintura um saco pequeno, que parecia conter todas suas posses materiais. depois de revolver brevemente nele, tirou um livro pequeno, encadernado em pele negra, e o entregou ao Jamie, que o observou com ar intrigado.

   - - Quando… quando estava a ponto de abandonar a Cidade da Serpente, a anciã Tewaktenyonh me deu este livrinho. Não era a primeira vez que o via. Emily lhe tinha pedido uma página para que eu pudesse lhes fazer saber que estava bem. Receberam aquela nota?

   - - Recebemo-la, sim –lhe assegurei- - . Mais adiante Jamie a enviou a sua mãe.

   - - Ah, sim? –A expressão do Ian se iluminou ao pensar em sua mãe- - . Que bem! Suponho que se alegrará de saber que tornei.

   - - Não o duvide –lhe assegurou seu tio- - . Mas o que é isto? Parece um brevario.

   - - Isso parece. –Ian se arranhou uma rodela de mosquito no pescoço- - . Mas não é isso. Olha-o, quer?

   Aproximei-me do Jamie para olhar por cima de seu ombro. O livro tinha um bordo de papel quebrado, ali onde se arrancou a folha de guarda. Mas não havia título nem letra impressa. Parecia ser uma espécie de livro de viagem; suas páginas estavam cobertas de escritura em tinta negra.

Ao batente da primeira página se destacavam duas palavras, em letras grandes e trementes.

   “ Ego sum” , diziam. “ Eu sou.”

   - - Você é, pois? –murmurou Jamie- - . Bem. E quem é?

   Meia página mais abaixo continuava a escritura, já mais pequena e controlada, embora parecia haver algo estranho nela.

   “ Prima cogitatio est…”

   - - Isto é o primeiro que me vem à cabeça –traduziu Jamie.

 

   Eu sou; ainda existo. Existia nesse espaço intermédio? Forzosamente sim, pois o                                                                                            recordo. Mais adiante tratarei de descrevê-lo. Agora me faltam palavras. Sinto-me     chateado.

 

   As letras eram pequenas e arredondadas, cada uma desenhada por separado, obra de um escrivão pulcro e cuidadoso. Mas se cambaleavam como bêbadas, inclinadas na página. A julgar pela escritura se encontrava muito mal, sim.

   Na página seguinte se afirmou, junto com os nervos do escritor.

 

   Este é o sítio, certamente. Mas também é o tempo correto, sei.

   As árvores e as matas são diferentes. Antes havia um claro ao oeste, que agora está completamente povoado de louros. Quando entrei no Círculo tinha à vista uma magnólia grande; agora desapareceu; em seu lugar há um carvalho tenro. O ruído é diferente. Em lugar dos veículos da estrada, à distância, só se ouvem os pássaros. E o   vento.

           Ainda estou enjoado. Tenho as pernas débeis. Ainda não posso me sustentar de pé. Despertei sob o muro onde a serpente se remói a cauda, mas a certa distância da cavidade onde riscamos o círculo.

   Devo me haver miserável, pois tenho terra e arranhões nas mãos e a roupa. Ao despertar segui tendido durante um momento, muito deso rientado para me levantar. Já estou melhor. Ainda débil e doente, mas jubiloso. Funcionou. triunfamos.

 

- - Havemos? - - repeti, olhando ao Jamie com as sobrancelhas arqueadas,

Ele se encolheu de ombros e voltou a página.

 

A pedra desapareceu. Só fica uma mancha de fuligem em meu bolso. Raymond tinha razão era uma safira pequena e sem polir. Devo apontá-lo tudo, pelo bem de quem possa vir detrás de mim.

 

Um pequeno calafrio de premonição me correu pelas costas, me arrepiando o cabelo da nuca. “ Quem possa vir detrás de mim.” Jamie me jogou um olhar curioso e, depois de uma breve vacilação, voltou a vista ao livro.

   Por fim compreendi o que me chamava a atenção dessa escritura; não tinha sido riscada a pluma.

   - - Caneta –disse- - . Escreveu-o com caneta, Meu deus!

   Jamie se voltou a me olhar. Sem dúvida estava pálida, pois ele fez gesto de fechar o livro. Sacudi a cabeça e lhe indiquei por um gesto que continuasse lendo. Ele enrugou o sobrecenho, mas imediatamente voltou sua atenção à leitura; ao ver a página seguinte arqueou as sobrancelhas.

   - - Olhe –disse com suavidade, girando o livro para mim para assinalar uma linha.

   Estava escrita em latim, como as outras, mas mescladas ao texto havia palavras estranhas, largas e desconhecidas.

   - - Mohawk? –perguntou Jamie a seu sobrinho- - . Esta palavra está na língua dos índios, sem dúvida. Um dos idiomas algonquinos, verdade?

   - - Chove Muito –disse Ian, em voz baixa- - . É kahnyen’ kehaka, a língua dos mohawk, tio. Chove Muito é o nome de alguém. E também isto outro: Caminhante Forte, Seis Tartarugas e O- que- fala- com- os- espíritos.

   - - Eu acreditava que os mohawks não tinham linguagem escrita –comentou Jamie.

   - - Assim é, tio Jamie. Mas alguém escreveu isto. –Assinalou a página com a cabeça- - . E se buscas o som das palavras… - - Encolheu-se de ombros- - . São nomes de mohawks, estou seguro.

   depois de olhá-lo por um comprido instante, Jamie reatou sua tradução.

 

   Eu tinha uma das safiras; Chove Muito o outro. O- que- fala- com-   os- espíritos, um rubi; Caminhante forte agarrou o diamante e Seis Tartarugas, a esmeralda. Quanto ao diagrama, não sabíamos com certeza se devia ter quatro pontas, pelos pontos cardeais, ou cinco, em forma   de tentáculo. Mas como fomos cinco os que fizemos o juramento de sangue, riscamos o círculo com cinco pontas.

 

   Entre essa frase e a seguinte havia um pequeno espaço em branco; logo a escritura trocava, tornando-se firme e homogênea, como se o escrivão tivesse feito uma pausa para reatar seu relato mais adiante.

 

   fui a olhar. Não há rastros do círculo… mas a fim de contas não vejo por que deveria havê-los. Acredito que estive um momento inconsciente; riscamos o círculo na boca mesma da greta, mas ali não há marcas que expliquem como me arrastei ou rodei até o sítio onde me encontrava ao despertar; entretanto há marcas de chuva no pó. Minha roupa está úmida, mas não sei se for pela chuva, pelo rocio matinal ou pelo suor de ter jazido ao sol; quando despertei era quase meio-dia, pois o sol estava no cenit, e fazia calor. Tenho sede. Afastei-me da Greta a rastros antes de me derrubar? Ou a força da transição me jogou em certa distância?

 

   Para ouvir isso tive a muito estranho sensação de que as palavras eram o eco de algo que soava dentro de minha cabeça. Nunca antes as tinha ouvido; entretanto me soavam horrivelmente conhecidas. Sacudi a cabeça para limpá-la; ao levantar a vista encontrei os olhos do Ian cravados em mim, carregados de especulações.

   - - Sim –disse sem rodeios, em resposta a esse olhar- - . Eu também. Brianna e Roger também.

   Jamie, que tinha feito uma pausa para desenredar uma frase, levantou a vista. Ao ver a cara de seu sobrinho e a minha, agarrou-me uma mão.

   - - Quanto pôde ler, moço? –perguntou em voz baixa.

   - - Muito, tio –respondeu Ian, sem apartar os olhos de mim- - . Mas não tudo. –Um breve sorriso lhe tocou os lábios- - . E sem dúvida não decifrei bem a gramática…, mas que o entendo. E você?

   Não estava claro se a pergunta estava dirigida a mim ou ao Jamie. Os dois intercambiamos um olhar vacilante. Logo me voltei para o jovem e assenti com a cabeça. Jamie fez o mesmo, enquanto me estreitava a mão.

   - - Estraguem. –Uma profunda satisfação iluminou a cara do Ian- - . Já sabia que não podia ser uma fada, tia Claire!

 

Ian não pôde manter-se acordado por muito tempo mais.

   - - me diga o que passou depois –exigi ao Jamie ao chegar a nosso dormitório.

   Ele já tinha aceso uma vela; enquanto se desabotoava a camisa com uma mão, abriu o livro com a outra e se afundou no leito, ainda absorto na leitura.

   - - Não pôde achar a nenhum de seus amigos. Passou dois dias buscando-os pela campina próxima, mas não havia rastros. Estava muito aflito, mas ao fim decidiu que devia continuar; necessitava comida e não levava consigo mais que uma faca e um pouco de sal. Devia caçar ou procurar a outra gente.

   Ian dizia que Tewaktenyonh lhe tinha dado o livro com a recomendação de que me trouxesse isso. Tinha pertencido a um homem chamado Dentes de Lontra, que conforme disse ela, era alguém de minha família.

   Na verdade, eu lhe havia dito a essa mulher que Dentes de lontra podia ser “ alguém de minha família” , ao não poder descrever de outra maneira o peculiar parentesco que une aos viajantes do tempo. Nunca tinha conhecido a Dentes de Lontra em carne e osso, mas, se era quem eu acreditava, a ele pertencia a cabeça enterrada em nosso pequeno cemitério, com obturações de prata e tudo.

   Talvez estava a ponto de saber, por fim, quem tinha sido em realidade… e como diabo tinha chegado a tão assombroso final.

   O homem tinha passado algum tempo vagando pelo páramo, embora não se tratava exatamente de vagar, pois seguia um rumo determinado, guiando-se pelo sol e as estrelas. Isso resultava estranho: O que ia procurando?

Fora o que fosse, por fim chegou a uma aldeia. Não falava o idioma dos habitantes, mas, segundo suas notas, afligiu-lhe profundamente descobrir que as mulheres usavam caldeirões de ferro para cozinhar.

   - - Isso é o que disse Tewaktenyonh! –interrompi- - . Quando me falava dele, se é que se trata do mesmo homem- acrescentei pró forma- - , disse que se passeava chateando ao redor dos caldeirões, as facas e os rifles. Afirmava que os índios deviam… Como o disse ela?... Que deviam “ <retornar aos costumes de seus antepasados,porque” do contrário o branco os comeria vivos.

   - - Um tipo muito nervoso –murmurou Jamie, ainda pego ao livro- - . E também afeto à retórica.

   Não obstante, uma ou duas páginas mais à frente se esclarecia um pouco o porquê dessa estranha obsessão com os caldeirões.

   - - “ fracassei” - - leu Jamie- - . “ Chego muito tarde.” - - Ergueu as costas e me jogou um olhar antes de continuar.

 

   Não sei exatamente em que momento estou nem posso averiguá-lo; esta gente não conta os anos por nenhuma das escalas que conheço, até que dominasse bem sua língua e pudesse lhes perguntar. Mas sei que é muito tarde.

         Se tivesse chegado ao tempo que eu queria, antes de 1650, não haveria ferro nesta aldeia, tão longe da costa. Que o utilizem aqui como coisa habitual significa que me encontro pelo menos cinqüenta anos mais tarde, se não mais!

 

   Este descobrimento sumiu a Dentes de Lontra em uma depressão; passou vários dias absolutamente desesperado. Ao fim reuniu forças; não havia nada que fazer, salvo continuar. E partiu sozinho para o norte, com um pouco de comida que lhe deram os da aldeia.

   - - Não tenho idéia do que pretendia fazer –observou Jamie- - , mas devo reconhecer que tinha valor. Todos seus amigos, mortos ou desaparecidos; ele, desprovido de tudo, sem ter idéia de onde está… e mesmo assim continua.

   - - Sim… mas se tiver que te ser franco, não acredito que lhe ocorresse outra coisa –disse. E toquei brandamente o livro. Recordava os primeiros dias, depois de meu próprio passo através das pedras.

   Certamente, a diferença era que esse homem tinha cruzado deliberadamente. Ainda ficava por descobrir por que e como o tinha feito.

   Enquanto viajava sozinho pelo páramo, sem outra companhia que seu pequeno livro, Dentes de Lontra havia resolvido ocupar sua mente com um relato da viagem, seus motivos e suas intenções.

   Possivelmente não tenha êxito em meu intento… em nosso intento. Em realidade, o

   que parece mais provável neste momento é que pereça aqui, em terri tório deserto. Mas nesse caso me consolará pensar que sotaque algum registro de nossa nobre empresa. É o único monumento aviso que posso oferecer a quem foi meus irmãos, meus companheiros de

   aventura.

 

   Jamie fez uma pausa para esfregá-los olhos. A vela estava quase consumida; eu também lacrimejava tanto pelos bocejos que logo que via a página e estava enjoada pela fadiga.

   - - Basta –disse. E apoiei a cabeça em seu ombro, reconfortada por sua morna solidez- - . Já não posso manter desperta, de verdade. E não me parece bem que apressemos seu relato. Além disso, Bree e Roger também deveriam escutá-lo.

   - - Tem razão, Sassenach. –E fechou o livro para depositá-lo brandamente na mesa, junto à cama.

   Em geral me sentia a gosto ali, segura no sítio que tinha criado para mim nesse mundo, e feliz por estar com o Jamie, quaisquer que fossem as circunstâncias. Mas de vez em quando via, com súbita claridade, a magnitude do abismo que tinha cruzado, ou me sentia muito sozinha. E com medo.

   As palavras desse homem, seu pânico e seu desespero, haviam-me devolvido a lembrança de todo o terror e as dúvidas de minhas viagens através das pedras. Me acurruqué contra meu marido dormido, abrigada e protegida. E ouvi as palavras de Dentes de Lontra como se soassem em meu ouvido interno: um grito desolado que ressonava através das barreiras do tempo e o idioma.

   Ao pé daquela página, a escritura em latim se tornou mais precipitada; algumas letras eram só bolinhas de tinta; o final das palavras se perdia em uma frenética dança de aranhas. E logo, as últimas linhas, escritas em inglês, como se o latim do escritor se houvesse disolvido no desespero.

 

               OH, Deus, Meu deus…!

               Onde estão?

 

Só ao dia seguinte pela tarde conseguimos reunir a Brianna, Roger e Ian, e nos retirar em privado ao estudo do Jamie sem despertar uma curiosidade indesejável. A noite anterior, a bruma da fadiga se combinou com a súbita aparição do Ian para que quase tudo parecesse razoável. Mas enquanto realizava minhas tarefas à intensa luz da manhã, resultava-me cada vez mais difícil acreditar que o jornal existisse na verdade, que não fora simplesmente um pouco sonhado.

Não obstante, ali estava: pequeno, negro e sólido no escritório do Jamie. Ele e Ian tinham acontecido a manhã no estudo, concentrados em sua tradução. Ao me reunir com o Jamie compreendi, por ou revolto de seu cabelo, que o relato lhe tinha resultado lhe apaixone, inquietante… ou ambas as coisas de uma vez.

   - - Hei-lhes dito do que se trata –disse sem preâmbulos, refiriéndose ao Roger e ao Bree. Os dois se sentaram em sendos tamboretes, juntos e solenes. Jemmy, que se negava a separar-se de sua mãe, jogava com uma fileira de contas debaixo da mesa.

   - - Têm-no lido tudo? –perguntei, enquanto me deixava cair na segunda cadeira.

   Jamie assentiu. Logo jogou uma olhada ao jovem Ian, que estava de pé junto à janela, muito inquieto para sentar-se. Levava o cabelo curto, mas o tinha quase tão desalinhado como Jamie.

   - - Sim. Não vou ler o resto em voz alta, mas me pareceu melhor começar pelo ponto onde se decide a narrá-lo tudo do começo.

   Tinha marcado a página com a parte de pele curtida que utilizava como sinalizador. Abriu o jornal nesse sítio e começou a ler:

 

   O nome que me deram ao nascer é Robert Springer. Rechaço esse nome e tudo que o acompanha, porque é o amargo fruto de séculos de assassinatos e injustiças, símbolo de roubo, escravidão e opressão…

 

   Jamie comentou, olhando por cima do bordo do livro:

   - - Já vêem por que não quero lê-lo tudo, palavra por palavra; o homem fica tedioso quando toca o tema. –Deslizou um dedo pela página- - . “ No ano de Nosso Senhor… o senhor deles, esse Cristo em cujo nome violam, saqueiam e…” Bom, há mais do mesmo, mas ao fim resulta ser mil novecentos e sessenta e oito. Suponho que estão familiarizados com todos esses assassinatos e saques dos que fala…

   Olhava ao Bree e ao Roger, com as sobrancelhas em alto. Ela se incorporou abruptamente, aferrando o braço de seu marido.

   - - Conheço esse nome –disse, sufocada- - . Robert Springer. Conheço-o!

   - - Conhecia o Springer? –perguntei, com uma sensação estranha.

   - - A ele não, mas vi seu nome nos periódicos. Você não? –voltou-se para o Roger, mas ele sacudiu a cabeça, com o sobrecenho franzido- - . Bom, talvez no Reino Unido não se publicou, mas em Boston foi um caso muito divulgado. Acredito que era um dos Cinco do Montauk.

   Jamie se beliscou a ponte do nariz.

   - - Os cinco o que?

   - - Era só algo que alguns faziam para chamar a atenção. –Brianna descartou o assunto com um gesto da mão- - . Não tem importância. Eram ativistas que defendiam os direitos dos índios americanos. Ao menos assim começaram, mas estavam tão assobiados que até essas organizações os mandaram a fritar pastéis redondos.

   Ao ver a expressão intrigada de seu pai e sua primo, tentou definir as coisas e fazer uma descrição breve, embora confusa, do triste estado em que se encontravam os índios americanos do século xX.

   - - Com que esse Robert Springer é… ou era… um índio de sua época, ou algo assim. –Jamie tamborilou os dedos contra a mesa, com um gesto de concentração- - . Bom, isso concorda com seu próprio relato; ao parecer, ele e seus amigos estavam muito zangados pela conduta dos que chamavam “ brancos” . Suponho que se referiam aos ingleses. Ou aos europeus.

   - - Pois sim, só que por volta de mil novecentos e sessenta e oito já não eram europeus, a não ser americanos, e os índios eram americanos antes que eles. Por isso começaram a denominar-se “ americanos nativos” e …

   Roger a interrompeu em pleno discurso com uma palmada no joelho.

   - - Deixemos a história para depois –propôs- - . O que diziam os periódicos do Robert Springer?

   - - OH!... –Já desconcentrada, Bree franziu o sobrecenho para concentrar-se- - . Que desapareceu. Desapareceram os Cinco do Montauk. O governo os buscava pela voladura de algo… ou por ameaçar fazendo, já não recordo. Os prendeu, mas saíram sob fiança. E da noite para o dia desapareceram os cinco.

   - - Evidentemente –murmurou o jovem Ian, jogando uma olhada ao jornal.

   - - Durante uma ou duas semanas os periódicos falaram muito do assunto –continuou ela- - . Os outros grupos de ativistas acusavam ao governo de havê-los eliminado, para não sofrer abafados do que sairia a reluzir durante o julgamento. E o governo o negava. De modo que os buscou a fundo. Acredito recordar que encontaron o cadáver de um… nos bosques de New Hampshire, Vermont ou algo assim. Mas não se pôde determinar do que tinha morrido. Quanto aos outros, não havia o menor rastro.

   - - “ Onde estão?” - - citei pelo baixo- - . “ Meu deus, onde estão?”

   Jamie assentiu com sobriedade.

   - - Pois sim, acredito que este Springer pode ser o mesmo. –Tocou a página que tinha ante si com um pouco parecido ao respeito- - . Ele e seus quatro companheiros renunciaram a qualquer vinculação com o mundo dos brancos e adotaram outros nomes, que se correspondessem com seus orígenes. Ao menos, isso diz.

   - - Seria o decente –comentou Ian, em voz baixa. Nele havia uma quietude distinta, estranha; vi-me obrigada a recordar que durante os dois últimos anos tinha sido mohawk; tinham-lhe lavado o sangue branco e trocado o nome pelo de Irmão do Lobo, convertendo-o em um dos Kahnyen’kehaka, os Guardiães da Porta do oeste.

   Pareceu-me que Jamie também tinha reparado nessa quietude, mas não apartava os olhos do livro. Enquanto voltava as folhas, uma a uma, ia resumindo seu conteúdo.

   Robert Springer –Lha’wineonawira, “ Dentes de Lontra” , como preferia chamar-se- - , tinha muitas vinculações no tenebroso mundo da política extremista e em outro mais sombrio ainda: que denominava “ chamanismo americano nativo” . Não sei até que ponto se parecia o que ele fazia com as crenças originais dos iroqueses, mas Dentes de Lontra acreditava descender dos mohawks e adotou os restos de tradição que pôde achar… ou inventar.

   “ Foi em uma cerimônia de batismo onde conheci o Raymond.”

   Para ouvir isso me incorporei abruptamente. Ao princípio também tinha mencionado esse nome, mas só agora me chamava a atenção.

   - - Descreve a esse tal Raymond? –perguntei, ansiosa.

   - - Fisicamente, não. Só diz que era um grande chamán, capaz de transformar-se em pássaros ou animais… e de caminhar através do tempo –acrescentou delicadamente, me olhando com intenção.

   - - Não sei –disse- - . Pareceu-me… Uma vez… Mas agora não sei.

   - - O que? –Brianna olhava a ambos, intrigada. Arrumei-me o cabelo.

   - - Não importa. Em Paris conheci alguém que se chamava Raymond. Pareceu-me… Mas o que poderia estar fazendo esse tipo na América do Norte, em mil novecentos e sessenta e oito? –estalei.

   - - Pois você também estava ali, verdade? –assinalou Jamie- - . Deixemos isso a um lado, no momento.

   E continuou traduzindo o texto, com uma linguagem extrañamente artificioso.

   Como Raymond o intrigava, Dentes de Lontra se entrevistou várias vezes com ele, levando consigo a seus amigos mais íntimos. Pouco a pouco conceberam “ um plano grandioso, audaz, de concepção deslumbrante” .

   Houve uma prova. Muitos fracassaram, mas eu não. Fomos cinco os que a passamos, os que ouvimos a voz do tempo; cinco, os que juramos com sangue atacar esta grande empresa, resgatar a nosso povo da catástrofe. Reescribir sua história e corrigir as injustiças, de modo que…

 

   Roger lançou um lamento:

   - - OH!, Por Deus, o que se propunham? Assassinas ao Cristóvão Colombo?

   - - Nem tanto –assinalei- - . Queria chegar antes de mil e seiscentos, conforme diz. Sabe algién o que aconteceu então?

   - - Não sei o que aconteceu então –respondeu Jamie, esfregando-a cabeça com uma mão- - , mas sei muito bem o que se propunha. Seu plano era apresentar-se à Liga do Iroqueses e obter que se elevassem contra os habitantes brancos. Considerava que os colonos ainda eram poucos e que os índios poderiam eliminá-los com facilidade, se os iroqueses ficavam à cabeça.

   - - Possivelmente estava no certo –observou Ian, com voz fica- - . ouvi os relatos dos anciões. Contam que, quando chegaram os primeiros Ou’seronni, deram-lhes a bem-vinda, pois traziam coisas para comercializar. Cem anos depois os Ou’seronni ainda eram poucos… e os Kahnyen’kehaka, os amos, líderes das nações. Poderiam havê-lo feito, em efeito, se tivessem querido.

   - - Mas não teriam podido deter os europeus –objetou Brianna- - . Eram muitos. Ou pretendiam que os mohawks invadissem a Europa?

   Um largo sorriso cruzou a cara de seu pai.

   - - Me teria gostado de ver isso –disse- - . Esses mohwks teriam dado mais de uma dor de cabeça aos Sassenachs. Mas não, por desgraça. –Jogou-me um olhar sardônico- - . Nosso amigo Robert Springer não era tão ambicioso.

   Não obstante, o que planejavam Dentes de Lontra e seus companheiros era bastante ambicioso, sim, e talvez… só talvez… factível. Sua intenção não era impedir por completo o assentamento dos brancos, a não ser pôr aos índios em guarda contra os brancos, estabelecer o comércio em seus próprios términos e negociar de uma posição de poder.

   - - Em vez de permitir que se assentassem em grande número, poderiam manter aos brancos encurralados em populações pequenas. Não deixar que construíram fortificações. Exigir armas do começo. Impor suas próprias condições para comercializar. mantê-los em inferioridade numérica e de armas… e obrigar aos europeus a lhes ensinar a trabalhar o metal.

   - - Prometheus redux –disse.

   Jamie soprou de risada. Roger moveu a cabeça, um pouco admirado.

   - - É um plano de loucos –disse- - , mas terá que admitir que tinham coragem. Talvez teria resultado… se tivessem podido convencer aos iroqueses… e se tivessem atuado no momento adequado, antes de que o poder passasse à mãos dos europeus. Mas tudo saiu mau, não? Primeiro chega em época equivocada, muito tarde; logo cai na conta de que nenhum de seus amigos passou com ele.

   - - Sim. Conforme diz, ao ver que tudo tinha saído mal esteve perto do desespero. Pensou em retornar, mas já não tinha sua pedra preciosa. E esse tal Raymond havia dito que se precisava ter uma a modo de amparo –disse Jamie.

   - - Mas ao final a conseguiu –apontei.

   Levante-me para pinçar na última prateleira, até encontrar a grande opala em bruto; seu fogo interior mexericava através da espiral esculpida na superfície.

   - - Quer dizer… suponho que não podem ter existido muitos índios que se chamassem Dentes de Lontra e estivessem na aldeia da Serpente. Tewaktenyohn, uma anciã mohawk, chefa do Conselho das Mães, deu-me esta pedra na aldeia, quando fomos resgatar ao Roger de seu cautividad. Também me contou a história de Dentes de Lontra e de sua morte.

   A gema também parecia quente; esfreguei cautelosamente a espiral. “ A serpente que se remói a cauda” , havia dito ele.

   - - Sim, mas ele não a menciona. –Jamie, arrellanado na cadeira, passou-se as duas mãos pelo cabelo solto- - . O relato termina quando ele decide que não há remédio; qualquer que fora o ano e embora estivesse sozinho, levaria a cabo seu plano.

   - - Não pode ter acreditado que resultaria –objetou Roger.

   - - Não. O que diz aqui, ao final, é que em seu povo tinham morrido milhares lutando por sua liberdade e que outros milhares morreriam em anos vindouros. Ele percorreria o mesmo atalho pela honra de seu sangue; um guerreiro mohawk não podia pedir outra coisa que morrer no combate.

   Ouvi que Ian suspirava detrás de mim; Brianna inclinou a cabeça e a cabeleira lhe ocultou a cara. Roger estava voltado para ela, grave o perfil. Mas eu não via nenhum deles. Via um homem com a cara grafite de negro em sinal de morte; caminhava de noite através de um bosque lhe jorrem, com uma tocha que ardia em fogo frio.

   Um puxão a minha saia arrancou da imagem. Jemmy estava a meu lado.

   - - Que ezo?

   - - O que…? Ah, é uma pedra, tesouro. Uma pedra bonita, vê?

   Mostrei-lhe a opala e ele o colheu com as duas mãos, deixando cair sentado para observá-lo.

   - - O que eu gostaria de saber –disse Roger, assinalando o jornal- é por que diabos escreveu isso em latim.

   - - Mas se o diz. Tinha estudado latim na escola. Possivelmente por isso se voltou contra os europeus. –Jamie sorriu a jovem Ian, que fez uma careta- - . E lhe ocorreu escrevê-lo em latim se por acaso alguém o encontrava; desse modo não lhe emprestaria atenção, pensando que era só um livro de orações.

   - - É o que pensaram os Kahnyen’kehaka –interveio Ian- - . Mas a velha Tewaktenyonh o conservou. E quando eu… parti, deu-me isso para que lhe trouxesse isso, tia Claire.

   - - Saberia ela o que continha o livro? –perguntei.

   - - Ignoro-o –disse Ian- - . Sabia algo, sim, mas não sei o que. Não me disse isso, tão somente que te trouxesse o livro. –Nos Miro sucessivamente: a Brianna, ao Roger, a mim- - . É certo? –perguntou- - . O que há dito, prima… o que acontecerá com os índios.

   - - Temo que sim –murmurou ela- - . Sinto muito, Ian.

   Embora não tivesse renunciado na verdade a sua verdadeira gente, os Kahnyen’kehaka também eram dos seus. Apesar daquilo que o tinha obrigado a partir, fora o que fosse.

   ia abrir a boca para lhe perguntar o que tinha passado com sua esposa, mas ouvi o Jemmy. retirou-se sob a mesa com sua bota de cano longo e lhe falava em tom coloquial, embora ininteligível. Mas de repente sua voz trocou a um tom de alarme.

   - - Queima –disse- - . Mami, queima!

   Brianna já se levantou de seu tamborete, com expressão preocupada, quando começou o ruído. Foi um som agudo, penetrante, como o que despede uma taça de cristal quando se esfrega o bordo com um dedo molhado. Roger se incorporou, sobressaltado.

   Brianna se agachou para tirar o menino de debaixo da mesa. No momento em que se incorporava, com ele em braços, ouviu-se um súbito “ pau!” , como um disparo, e o ruído cessou abruptamente.

   - - Santo Deus! –exclamou Jamie.

   Era pouco dizer, nessas circunstâncias. Das prateleiras, os livros, as paredes, da saia da Brianna, apareciam lascas de fogo reluzente. Na mesa refulgia um granulado de pontos brilhantes: uma chuva daquelas agulhas tinha atravessado a grosa madeira. Ian lançou uma exclamação e se inclinou para arrancar um fragmento da pantorrilha. Jemmy se pôs-se a chorar. A opala tinha estalado.

   - - Não percebeu nada estranho nessa pedra quando a deu ao menino, Sassenach?

   - - Não. –Ainda estava impressionada pela explosão- - . Hei-a sentido quente… mas tudo está quente nesta habitação. E não fazia nenhum ruído.

   - - Ruído? –Olhou-me com estranheza- - . O ruído que tem feito ao estalar, diz?

   - - Não, antes. Não o ouviste?

   Ele sacudiu a cabeça. Olhei aos outros, Bree e Roger assentiram; os dois estavam pálidos e decompostos. Ian, em troca, moveu a cabeça; parecia muito interessado, mas tinha cara de não entender.

   - - Não ouvi nada –disse- - . Como soava?

   Brianna abriu a boca para responder, mas Jamie levantou uma mão.

   - - Um momento, a nighean. Jem, a ruradh, ouviste algum ruído antes da explosão?

   Jemmy olhou a seu avô com grandes olhos azuis e assentiu com lentidão.

   - - E a pedra que te deu a avó, estava quente?

   Jemmy me cravou um olhar de intensa acusação e voltou a assentir.

   Tínhamos arrancado a maioria das lascas cravadas na madeira; formavam um pequeno montão de fogo quebrado no escritório. Alguém me tinha levantado uma pequena parte de pele no nódulo; levei-me isso a boca; tinha sabor de prata.

   - - meu deus, cortam como cristal quebrado.

   - - É que são cristal quebrado. –Brianna estreitou ao menino um pouco mais.

   - - Cristal? Crie que não era uma opala de verdade? –Roger arqueou as sobrancelhas e se inclinou para diante, para recolher uma daquelas agulhas.

   - - claro que sim… mas as opalas são cristais. Cristal vulcânico duro. –A cara do Bree começava a recuperar a cor- - . Eu sabia que se podiam romper com um golpe de martelo ou algo assim, mas nunca soube de nenhum que fizesse isto..

   Assinalou com a cabeça o montão de fragmentos. Jamie recolheu um dos grandes, entre o polegar e o índice, e me ofereceu isso.

   - - Sostenlo na mão, Sassenach. Sente-o quente?

   - - Sim –disse, inclinando cuidadosamente a palma de um lado a outro- - . Não muito; mais ou menos à temperatura da pele.

   - - Eu o sinto frio –disse Jamie- - . Dáselo ao Ian.

Entreguei a parte de opala ao Ian, que o acariciou com um dedo precavido, como se fora algum animalillo que pudesse morder se lhe chateava.

   - - Está frio –informou- - . Como qualquer parte de cristal, tal como disse a prima Brianna.

   Depois de provar alguma vez mais, ficou estabelecido que a gema estava quente, embora não muito, para a Brianna, Roger e eu, mas não para o Jamie ou Ian. Então já se fundiu a parte superior da grande vela de relógio, com o qual Jamie pôde extrair as pedras escondidas nela. depois de lhes tirar com o lenço o último resto de cera quente, pô-las a esfriar alinhadas no bordo do escritório.

Jemmy observava tudo com grande interesse; parecia ter esquecido sua desventura.

   - - Você gosta, an ghille ruaidh? –perguntou-lhe Jamie.

   O menino assentiu imediatamente e se estirou para elas do regaço de sua mãe.

   - - Queima –recordou logo, e retirou um pouco a mão- - . Queima?

   - - Pois espero que não –disse seu avô. E agarrou a esmeralda, uma pedra grosseiramente polida, tão grande como a unha de seu polegar- - . Toma isto, a bailach.

   Jemmy fez o que seu avô lhe dizia: agarrou a pedra, ainda desconfiado, mas sua cautela se desvaneceu em um sorriso ao observá-la.

   - - Bonita!

   - - Queima? –perguntou Brianna, lista para tirar-lhe

   - - Sim, queima –confirmou ele, muito satisfeito, apoiando-a contra o ventre.

   - - me deixe ver. –Com alguma dificuldade, Brianna conseguiu pôr os dedos na gema, embora Jemmy não estava disposto a entregá-la- - . Está quente –informou- - . Como a opala, mas não queima, não. Se te queimar a tiras imediatamente, entendeste? –ordenou ao menino.

   Roger observava todo aquilo com ar fascinado.

   - - Ele também a tem, verdade? –disse-me brandamente- - . Cinqüenta e cinqüenta, disse, ou três possibilidades de quatro… mas a tem.

   - - O que? –Jamie olhou primeiro ao Roger e logo a mim.

   - - Acredito que pode… viajar. –Me oprimia o peito ao pensá-lo- - . Recorda o que disse Dentes de Lontra. –Joguei uma olhada ao jornal, esquecido no escritório- - . Disse que tinham devido acontecer uma prova para verificar se podiam “ ouvir a voz do tempo” . Sabemos que não todos podem… fazê-lo. Mas alguns podem. Por isso disse Dentes de Lontra, havia uma maneira de averiguar quem podia e quem não antes de fazer o intento.

   - - Crie que “ a voz do tempo” seja…? Jem, ouve algo na pedra? –Roger se inclinou para diante e agarrou ao menino do braço, para obrigá-lo a apartar sua atenção da esmeralda- - . Canta-te, Jem?

   O pequeno levantou a vista, surpreso.

   - - Não –disse, inseguro. Logo- - : Sim. –levou-se a pedra à orelha, carrancudo. Logo a entregou ao Roger- - . Lhe cante, papai!

   - - Não sei canções de rocha –disse com sua voz rouca- - . Só de rock. –E aproximou a esmeralda a seu ouvido, um pouco sobressaltado. depois de escutar atentamente, com uma ruga entre as sobrancelhas, baixou a mão- - . Não… não posso. Não poderia dizer que ouço nada, mas… provem vocês. –Passou- a pedra a Brianna e ela, a sua vez, a mim. Nenhuma de nós ouvia nada em especial; entretanto me parecia perceber algo, se emprestava muita atenção. Não era exatamente um som; antes, uma vibração muito leve.

   - - O que acontece? –perguntou Ian, que seguia os procedimentos com grande interesse- - . Vós três não são sìdheanach, mas por que podem… fazer o que fazem, enquanto que tio Jamie e eu não podemos? Você tampouco pode, verdade, tio Jamie? –perguntou, vacilante.

   - - Graças a Deus, não –replicou seu tio.

   - - É genético, não? –perguntou Brianna- - . Deve sê-lo.

   Jamie e Ian pareceram desconfiar desse término desconhecido.

   - - por que não, se o for todo o resto? O tipo sangüíneo, a cor dos olhos…

   - - Mas todo mundo tem olhos e sangue, Sassenach –objetou Jamie- - . Sejam da cor que sejam, todos podemos ver. Isto… - - Assinalou a pequena coleção de pedras.

   Suspirei com impaciência.

   - - Sim, mas há outras coisas que são genéticas. Tudo, se o pensar bem. Olhe.

   Voltei-me para ele e lhe tirei a língua. Jamie piscou; Brianna lançou uma risada ante sua expressão. Sem lhes emprestar atenção, coloquei a língua e voltei a tirá-la, esta vez com os borde curvados para cima, formando um cilindro.

   - - O que me diz disto? –perguntei- - . Pode fazê-lo?

   Jamie parecia divertido.

   - - É obvio. –Tirou a língua enrolada e a agitou a maneira de demonstração- - . Todo mundo pode, ou não? Ian?

   - - OH!, sim, é obvio. –Ian fez a mesma demonstração- - . Todo mundo pode.

   - - Eu não –esclareceu Brianna.

   Jamie pareceu desconcertado.

   - - Como que não pode?

   - - Blah! –Ela tirou a língua plaina e a revolveu de lado a lado- - . Não posso.

   - - Tem que poder. –Jamie franziu o sobrecenho- - . Mas se for singelo, moça. Qualquer pode fazê-lo! –Tirou outra vez a língua para enrolá-la e desenrolá-la, como um paternal urso formigueiro que incitasse a sua vergôntea com uma apetitosa massa de insetos. Logo olhou ao Roger com as sobrancelhas subidas.

   - - Isso pensaria qualquer, verdade? –disse o jovem, melancólico. E tirou sua vez a língua. Plaina- - . Blah!

   Jamie os observou por um momento. Logo se voltou para mim.

   - - Suponhamos por um momento que tenha razão. por que a moça não pode fazê-lo, se você e eu podemos? Assegura-me que é minha filha, não?

   - - É tua filha, com toda segurança. Como lhe dirá isso qualquer que tenha olhos na cara.

   - - Aceito sua palavra, Sassenach, posto que é uma mulher honorável. Mas como explica o da língua?

   - - Bom, você sabe de onde vêm os bebês –comecei- - . O do ovo e a…

   - - Sei –disse ele, cortante. As orelhas lhe tinham avermelhado um pouco.

   - - Quer dizer: requer-se algo da mãe e algo do pai. Às vezes a influência do pai é mais visível que a da mãe; às vezes acontece ao reverso. Mas ambas… né… influências estão ali. Chamamo-los gens: as coisas que o bebê recebe de seus dois pais, que afetam a seu aspecto e sua capacidade.

   - - Bem, e…?

   - - Pois bem, os gens afetam algo mais que à cor do cabelo ou dos olhos. Agora bem… cada pessoa tem dois gens por cada característica: um do pai, um da mãe. E quando se formam as… né… gametas nos ovários e os testículo…

   - - Possivelmente seja melhor deixar isso para depois, Sassenach –interrompeu Jamie, olhando de soslaio a Brianna.

   - - Não se preocupe, papai, já sei de onde vem os bebês –lhe assegurou ela, sonriendo.

   - - Pois bem. –Voltei a agarrar as rédeas da conversação- - . Tem um par de gens por cada característica: um gen por sua mãe e outro por seu pai. Mas quando chega o momento de transmiti-los a seus próprios filhos, só pode acontecer um dos dois. Porque o menino receberá outro gen de sua mãe, compreendem?

   Olhei ao Jamie e ao Roger com uma sobrancelha interrogativa. Eles assentiram de uma vez, como hipnotizados.

   - - Bem. Dizemos que alguns gens são dominantes e outros, recessivos. Se uma pessoa tiver um gen dominante, será esse o que resulte visível. Pode passar aos descendentes.

   - - Não estudou isto na escola, Roger? –perguntou Bree, divertida.

   - - Pois sim –murmurou ele- - , mas acredito que esse dia não emprestei muita atenção. depois de tudo, não esperava que o assunto chegasse a me importar.

   - - Que bem! –disse, cortante- - . Continúo. Você e eu, Jamie, temos um dos gens dominantes que nos permitem enrolar a língua. Mas também devemos ter cada um um gen recessivo que não permite fazê-lo. E pelo visto, cada um de nós transmitiu o gen recessivo ao Bree. portanto, ela não pode enrolar a língua. Também Roger deve ter duas cópias desse gen recessivo, posto que se tivesse sequer um dos gens dominantes, poderia fazê-lo. E não pode. –Fiz uma reverência.

   - - Qu’ez lhes- ticulos? –inquiriu uma vocecilla. Jemmy tinha abandonado suas pedras e me olhava com profundo interesse.

   - - Né… - - Olhei aos outros em busca de ajuda.

   - - Seus ovos, filho –explicou Roger, dissimulando um sorriso.

   - - Eu tenho ovos? Onde tenho ovos?

- - Né… - - Roger jogou uma olhada ao Jamie, que ficou contemplando o teto.

   - - Bom, é que você leva saias escocesa, tio Jamie –assinalou Ian, sorridente.

   Roger se inclinou para abranger com mão suave a virilha do menino.

   - - Aqui, a bhalaich.

   - - Isso não e’ovos. Isso e’pilín!

   Jamie se levantou com um profundo suspiro, convocou ao Roger com a cabeça e agarrou ao menino da mão.

   - - Vale. Vamos fora, para que lhe ensinemos.

   Roger abriu a porta e se fez a um lado para dar passo a neto e avô. Levado por um impulso, Jamie se voltou para o menino e tirou a língua em forma de cilindro.

   - - Pode fazer isso, a ruadh?

   Brianna ficou petrificada e Roger também. Jamie compreendeu, um segundo muito tarde, e ficou pálido. Roger olhou ao Bree. Algo pareceu cruzar entre ambos. Imediatamente ele agarrou a outra mão do menino.

   - - Ouça, a bhalaich, pode fazer isso?

   - - Ezo o que?

   - - Olhe ao avô.

   Jamie respirou a fundo e tirou rapidamente a língua enrolada.

   - - Pode fazer isso? –repetiu Roger.

   - - Pois sim. –Jemmy, muito sorridente, tirou a língua. Plaina- - . Blah!

   Pela habitação circulou um suspiro coletivo. Jemmy levantou os pés para pendurar-se das mãos do Roger e Jamie. Logo recordou sua pergunta original.

   - - Avô tem ovos? –perguntou.

   - - Tenho, sim –foi a seca resposta- - . Mas os de seu papai são maiores.

 

Desfiz entre as mãos folhas secas de salvia e deixei cair as escamas verdigrises entre as brasas. O sol descendia no céu, mas o pequeno cemitério já estava em sombras, de modo que o fogo refulgia.

   Os cinco tínhamos rodeado em círculo a parte de granito com o que jamie marcasse a sepultura do desconhecido. “ Como fomos cinco, riscamos o círculo com cinco pontas.” De comum acordo, a cerimônia não era só em honra a ele, mas também de seus quatro ignotos companheiros… e do Daniel Rawlings, que jazia a pouca distância, sob o fresno, em sua tumba nova e definitiva.

   A fumaça se elevou do pequeno braseiro de ferro, pálido e fragrante. Eu havia trazido também outras ervas, mas sabia que a salvia era sagrada para os tuscarora, os cherokees e os mohawk, pois sua fumaça desencardia.

   Esfreguei entre as mãos agulhas de zimbro; logo, arruda, a que chamavam “ erva de graça” , e romeiro, que ao fim e ao cabo servia para a lembrança.

   Jamie levantou a cabeça, de um fogo tão intenso como o que ardia junto a seus pés, e se voltou para o oeste, aonde voam as almas dos mortos. Falou quedamente em gaélico, que já todos entendíamos.

 

               Retorna esta noite a seu lar de inverno

             a seu lar de outono, da primavera e do verão;

             retorna esta noite a seu lar perpétuo,

             a seu leito eterno, a seu eterno descanso.

 

             O sonho das sete luzes seja teu, OH, irmão!,

             o sonho dos sete gozos seja teu, OH, irmão!

             o sonho dos sete descansos seja teu, OH, irmão!,

             do braço do Jesus, o Cristo de Graça.

 

             A sombra da morte jaz sobre sua cara, bienamado,

              mas o Jesus de Graça te rodeia com Sua mão;

             perto da Trindade, dava adeus a suas dores:

             Cristo se eleva ante ti e a paz está em Sua mente.

 

 

Ian se aproximou dele. A luz evanescente lhe tocou a cara, iluminando intensamente suas cicatrizes. Recitou-o primeiro em língua mohawk; logo em inglês, para outros.

 

 

             Que a caça seja efetiva,

             que seus inimigos caiam ante seus olhos,

             que seu coração habite sempre contente no albergue de seus irmãos.

 

   - - Terei que repeti-lo muitas vezes –acrescentou, inclinando a cabeça para pedir perdão- - . Com os tambores, entendem? Mas acredito que agora bastará com uma só vez.

   - - Está bem, Ian –lhe assegurou Jamie. E olhou ao Roger.

   Ele tossiu e pigarreou antes de falar. O sotaque rouco de sua voz era tão transparente e penetrante como a fumaça.

 

 

             Senhor, me faça conhecer meu final

             e a medida de meus dias,

             para que compreenda quão frágil sou.

             Hei aqui que tem feito meus dias de um palmo,

             e minha idade é nada junto à Tua.

             Escuta minha prece, OH, Senhor!, e disposta ouvido a meu pranto;

            não negue Sua paz a minhas lágrimas;

             pois sou estrangeiro ante Ti,

             um viajante, como meus pais o foram.

 

 

   Logo guardamos silêncio, enquanto a escuridão nos rodeava silenciosamente. Ao apagá-la última luz, quando a folhagem perdeu seu brilho por cima de nós, Brianna recolheu a jarra de água e a verteu sobre as brasas. Fumaça e vapor se elevaram em uma nuvem espectral; o aroma da lembrança se perdeu entre as árvores.

 

Descemos para a casa pelo estreito atalho, já quase às escuras. Brianna ia diante, nos guiando; os homens, detrás de mim.

   - - Pensaste-o, a cliamhuinn? –perguntou Jamie, a minhas costas. Falava em tom amistoso, mas a formalidade do apelativo deixava claro que a pergunta era séria.

   - - O que? –A voz do Roger soou serena, quase inaudível sua rouquidão.

   - - No que farão, você e sua família. Já sabem que o pequeno pode viajar… e o que significaria ficar.

   O que significaria para todos eles, pensei intranqüila. Guerra, combate, incerteza. O único certo era o perigo. Perigo de enfermidade ou acidente para a Brianna e Jem. Perigo de morte no parto se ela voltava a ficar grávida. E para o Roger, perigo em corpo e alma. Sua cabeça se curou, mas quando pensava no Randall Lillywhite eu via a imobilidade no fundo de seus olhos.

   - - OH! Sim –respondeu ele, invisível detrás de mim- - . Pensei-o… e o sigo pensando… m’athair- ceile.

   Sorri um pouco para ouvir que chamava “ sogro” < Jamie, mas o tom de sua voz era totalmente sério.

   - - Quer que te diga o que penso? E você me dirá o que pensa?

   - - Faz-o, sim. Ainda há tempo para pensar.

   - - O os últimos dias estive recordando ao Hermon Husband.

   - - Ao qualquer? –Jamie parecia surpreso. Depois da batalha do Alamance, Husband tinha abandonado a colônia com sua família. Eu acreditava ter ouvido que estavam em Maryland.

   - - Ele, sim. O que teria passado se ele não tivesse sido qualquer? teria se posto à cabeça dos reguladores para a guerra?

   Jamie grunhiu, pensativo.

   - - Não sei –disse, embora parecia interessado- - . Crie que com um bom líder teriam podido triunfar?

   - - Sim. Ou possivelmente não; é verdade que não tinham armas, mas poderiam haver-se defendido melhor. E nesse caso.

   Já tínhamos a casa à vista. Havia luz nas janelas de atrás; estavam alimentando o fogo e acendendo as velas para o jantar.

   - - O que vai acontecer aqui… Acredito que se a Regulação tivesse tido um bom líder, possivelmente não começaria no Massachussets, dentro de três anos, a não ser aqui.

   - - Sim? E nesse caso, o que?

   - - Quem sabe? Sei o que está acontecendo na Inglaterra nestes momentos: não estão preparados, não têm nem idéia do que arriscam aqui. Se estalará súbitamente uma guerra, se tivesse estalado no Alamance, poderia estender-se com celeridade. Poderia acabar antes de que os ingleses suspeitassem sequer o que acontecia. ficariam economizar anos de guerra, milhares de vidas.

   - - Ou não –apontou Jamie, cortante.

   - - Ou não –coincidiu Roger- - . Mas o fato é que há tempo para os homens de paz… e também um tempo para os guerreiros…

   Brianna tinha chegado à casa, mas se deteve nos esperar. Ela também tinha escutado a conversação. Roger se deteve ante ela e levantou a vista.

   - - Você me convocou –disse ao fim- - . Na congregação, ante a fogueira.

- - Seja vi mo lâmh, Roger an t’oranaiche, MAC Jeremiah MAC Choinnich –disse Jamie, pelo baixo- - . Convoquei-te, sim. “ Vêem meu lado, Roger, o cantor, filho do Jeremiah.”

   - - Seja vi mo lâmh, a mhic mo thaighe –disse o jovem- - . “ Vêem meu lado, filho de minha casa.” Disse-o de verdade?

   - - Sabe que sim.

   - - Nesse caso, eu também o digo de verdade. –Alargou a mão para posá-la no ombro do Jamie. –Estarei a seu lado. Ficaremos.

   Brianna, junto a mim, deixou escapar o fôlego que continha, em um suspiro como o do vento crepuscular.

 

A grande vela relógio se consumou um pouco, mas ficavam muitos desses anéis negros que marcavam as horas. Jamie deixou cair novamente as pedras no atoleiro de cera fundida que rodeava a vela: um, dois, três… e soprou. A quarta pedra, o topázio grande, estava guardado em uma pequena caixa de madeira, envolta em tecido engordurado. Enviaríamo-la ao Edimburgo, dirigida à primo político da senhora Bug, quem podia vendê-la, mercê a suas vinculações com banqueiros; logo, uma vez deduzida uma comissão adequada por sua ajuda, ocuparia-se de transferir os recursos ao Ned Gowan.

   A carta incluída dentro da caixa encomendava ao Ned averiguar se Laoghaire MacKenzie convivia com um homem em estado equivalente ao matrimônio e, nesse caso, insistia-o a declarar completo o contrato entre dita Laoghaire MacKenzie e James Fraser, efetuado o qual os recursos provenientes da venda dessa pedra seriam depositados em um banco, como dote da chamada Joan MacKenzie Fraser, filha da mencionada Laoghaire, para o caso de que a moça contraíra matrimônio.

   - - Está seguro de não querer pedir ao Ned que te diga quem é o homem? –perguntei.

   - - Se ele me decide dizer isso bem. Se não me disser isso, bem igualmente.

   Ao outro lado do corredor, Brianna conversava com a senhora Bug e, ao mesmo tempo, arreganhava ao Jemmy. Interrompeu-a a voz do Roger e o chiado entusiasta do pequeno, quando seu pai o elevou em braços.

   - - Parece-te que Roger escolheu bem? –perguntei em voz baixa.

   A decisão do jovem me alegrava muito… e também ao Jamie, sem dúvida. Não obstante, face à peculiar perspectiva que Brianna, Roger e eu tínhamos dos sucessos vindouros, sabia que meu marido tinha uma idéia melhor do que se morava. E se o passo através das pedras tinha seus perigos, o mesmo podia dizer-se da guerra.

   Ele fez uma pausa para pensar; logo alargou um braço para agarrar um pequeno volume da estantería. Estava encadernado com tecido troca e bastante estragado; era uma edição do Tucídides que tinha adquirido, com a louca esperança de que Germain e Jemmy aprendessem grego ao ponto de poder lê-lo.

   Abriu o livro com suavidade, para evitar que as páginas se desprendessem.

 

   Os mais bravos som, sem dúvida, aqueles que têm a visão mais clara de

o que se mora, de glória e perigo por igual, e mesmo assim saem a seu em-

cuentro.

 

   Tinha as palavras ante si, mas me pareceu que não as lia do papel, a não ser nas páginas de sua memória, no livro de seu coração.

   A porta se fechou com violência. Ouvi que Roger gritava fora, elevando a voz quebrada em advertência para chamar o Jemmy. Logo, sua risada grave e médio sufocada, enquanto Bree lhe dizia algo; sua voz foi um som mais ligeiro, muito longínquo para entendê-lo. Depois, afastaram-se.

   - - Os mais bravos são aqueles que têm a visão mais clara. Pois bem, você sabe, verdade? –observei brandamente.

   - - Ah!, não –disse- - . Eu não. Só há bravura se pode escolher, verdade?

   - - E você crie não ter opções?

   Fez uma pausa. Logo fechou o livro e o reteve entre as mãos.

   - - Não –disse ao fim, em tom estranho- - . Agora não.

   Girou na cadeira para olhar pela janela. Só se via a grande pícea vermelha a um lado do claro e a sombra densa do robledal, detrás dela, onde se enredavam as sarças escapadas do pátio. O sítio enegrecido onde se elevou a cruz ardente já estava densamente talher de cevada silvestre.

   O ar se moveu; então caí na conta de que o silêncio não era tal, depois de tudo. Rodeavam-nos os sons da montanha: reclamações de pássaros, sussurro de água ao longe… e também vozes que falavam no ir e vir murmurando as rondas cotidianas: uma palavra junto à pocilga, uma chamada da letrina. Por debaixo e por cima de todo isso, o ruído dos meninos, gritos e risadas gastos pelo ar inquieto.

   - Suponho que tem razão –disse, ao cabo de um momento.

   Era certo: já não havia opções; me sabê-lo brindou uma espécie de paz. O que tinha que sobrevir, sobreviria. E nós o enfrentaríamos do melhor modo possível, com a esperança de sobreviver; isso era tudo. Se não obtínhamos isso, talvez eles sim. Recolhi entre as mãos seu acréscimo e aferrei a ela como à corda de uma âncora.

   - Mas e as outras opções? –perguntei, enquanto contemplávamos o pátio deserto e as sombras do bosque, mais à frente- - . Todas as decisões que tomou e que lhe trouxeram até aqui? Essas foram reais… e muito valentes, a meu modo de ver.

   Sob a ponta de meu dedo indicador senti a fina linha de sua antiga cicatriz, sepultada sob as ondas avermelhadas. Ele se recostou contra minha mão e girou para me olhar.

   - OH!, bom –disse, com um leve sorriso. Tocou-me a mão e encerrou meus dedos entre os seus- . Você sabe disso, verdade, Sassenach?

   Sentei a seu lado, muito perto, sua mão sobre a minha. Assim passamos um momento, contemplando as nuvens de chuva que rondavam por cima do rio, como uma ameaça de guerra longínqua. E pensei que, qualquer que fosse nossa decisão, talvez tudo levasse ao mesmo.

   A mão do Jamie se esticou um pouco sobre a minha. Olhei-o, mas ele continuava observando algo mais à frente do pátio, além das montanhas e das nuvens longínquas. Estreitou-me os dedos um pouco mais, até que o anel me cravou na carne.

   - Quando chegar o dia em que devamos nos separar –disse em voz baixa, me olhando - , se meus ultimar palavras não são “ te amo” , terá que ser porque não tive tempo.

 

 

                                                                                                    Diana Gabaldon

 

 

              Voltar à “SÉRIE"

 

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades