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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CURA QUÂNTICA / Deepak Chopra
A CURA QUÂNTICA / Deepak Chopra

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CURA QUÂNTICA

 

                           O poder da mente e da consciência

                           na busca da saúde integral

 

Uma viagem às fronteira da nova medicina, integrando corpo e mente.

Uma nova medicina vem surgindo, na qual a mente, a consciência, a compreensão e a inteligência ocupam importantes papéis.

Um de seus arquitetos é o dr. Deepak Chopra, consagrado autor de Conexão Saúde e O Retorno do Rishi, cujo método — a que deu o nome de Cura Quântica — engloba o lado físico e biológico do ser humano, mas vai além, como mostram alguns temas deste livro:

 

             O Corpo Possui Mente Própria

             Fantasmas da Memória

             O Nascimento de uma Doença

             O Que Você Vê, Você se Torna

             Corpo de Bem-Aventurança

 

Baseando-se tanto na ciência moderna como na ancestral sabedoria do Ayurveda, o autor relata casos reais e histórias fascinantes em apoio a um modelo de saúde e bem-estar que está em perfeita harmonia com o mais profundo conhecimento espiritual.

 

Nos últimos anos surgiu uma abordagem da medicina, na qual a mente, a consciência e a inteligência ocupam papéis importantes. O dr. Deepak Chopra, um de seus idealizadores, batizou-a de Cura Quântica, e neste livro nos apresenta esse novo modelo de saúde e bem-estar, baseando-se em conhecimentos da medicina moderna ocidental, e da antiga sabedoria oriental, o Ayuverda. O dr. Chopra também reforça as propostas de suas publicações anteriores — Conexão Saúde e O Retorno do Rishi —, onde dá ênfase às energias positivas e à Meditação Transcendental. Em A Cura Quântica, o dr. Chopra nos mostra que o corpo humano é controlado por uma “rede de inteligência”, que determina se estamos saudáveis e bem integrados com a Natureza, sendo capazes, assim, de derrotar doenças cardíacas e câncer, entre outros males. Por meio de uma narrativa envolvente, com relatos de pacientes e noções básicas de física e biologia, o autor nos mostra como as células de nosso organismo estão ligadas às forças do cosmo e como o pensamento individual se relaciona com as unidades fundamentais da matéria e da energia. Indispensável para quem quer manter ou recobrar a saúde, A Cura Quântica é um livro cheio de mistério, maravilha e esperança.

 

                     Uma Introdução Pessoal

— Tenho um paciente chinês que está em fase terminal de um câncer na cavidade nasal. Seu rosto foi afetado, e ele sofre dores quase o tempo todo. Mas ele também é médico e acho que deve­ria ouvir isto.

Concordei, do outro lado da escrivaninha. Estávamos nos últi­mos dias do mês de outubro de 1987, em Tóquio. Eu fazia uma visita a um japonês especialista em câncer, que poderia me aju­dar a testar uma nova teoria. Ela estava ligada a um dos grandes mistérios da medicina: o processo da cura. Naquela ocasião eu ainda não havia descoberto o conceito “cura quântica”, mas este foi o assunto que discutimos por mais de uma hora.

Depois nos levantamos e nos dirigimos às alas dos pacientes. Enquanto caminhávamos, pude admirar de passagem os bem cui­dados jardins Zen do hospital. As crianças dormiam na ala in­fantil e passamos por ali em silêncio. Quando chegamos ao setor dos quartos particulares, o médico japonês se deteve diante de certa porta, dando-me passagem.

— Doutor Liang — disse ele —, pode nos dedicar alguns mi­nutos de sua atenção? — O quarto estava na penumbra. Um ho­mem de quarenta e alguns anos, mais ou menos de minha idade, jazia na cama. Virou a cabeça, cansado, quando entramos.

Nós três tínhamos várias coisas em comum: éramos do Orien­te e havíamos abandonado nossas terras para estudar medicina ocidental avançada. Somando os três, tínhamos cinquenta anos de especializações. Mas o homem deitado no leito era o único que estaria morto no mês seguinte. Cardiologista em Taiwan, ele recebera, havia menos de um ano, o diagnóstico de câncer nasofaríngeo. Naquele dia seu rosto estava coberto por tiras largas, que chegavam quase até os olhos. O encontro foi um momento difícil. Não baixei o olhar ao cumprimentá-lo, mas o dr. Liang, sim.

— Viemos conversar um pouco — murmurou o médico japo­nês. — Não está se sentindo cansado demais?

O homem no leito fez um gesto amável e aproximamos nossas cadeiras. Comecei a explicar minhas idéias, como fizera antes com meu anfitrião. Em resumo, eu acreditava, por princípio, que a cura não é um processo físico, mas mental. Quando víamos a re­composição de um osso fraturado ou a regressão de um tumor maligno, estávamos condicionados, como médicos, a observar, de início e principalmente, o mecanismo físico. Mas esse meca­nismo é apenas uma tela. Expliquei-lhes que por trás existe algo bem mais abstrato, uma espécie de know-how que não pode ser visto ou tocado.

No entanto, eu estava convencido de que esse know-how fosse uma força poderosa sobre a qual não tínhamos suficiente contro­le. Apesar dos esforços para influenciarmos o processo de cura quando ele falha, a medicina não pode explicá-lo. A cura é viva, complexa, holística. Lidamos com ela presos a nossos meios li­mitados e ela parece obedecer a nossos limites. Mas quando acon­tece alguma coisa estranha, como um câncer avançado que desa­parece súbita e misteriosamente, frustra-se a teoria médica. Nossos limites parecem, então, muito artificiais.

Em minha clientela particular, muitos pacientes com câncer sararam completamente depois de considerados incuráveis, com prognóstico de poucos meses de vida. Não considerei essas curas como milagres; achei que eram a prova de que a mente pode aprofundar-se o suficiente para mudar os próprios modelos que formam o corpo. Ela pode, por assim dizer, apagar os enga­nos impressos na planta básica, destruindo qualquer doença co­mo câncer, diabetes ou um mal das coronárias que tenha afetado o modelo corporal.

Minhas palavras soavam confusas porque eu estava falando lo­go após a experiência mais notável de minha vida profissional. Poucas semanas antes, durante uma visita à Índia, um dos maio­res sábios vivos me transmitira algumas técnicas usadas há mi­lhares de anos, assegurando-me que elas restaurariam em minha mente as capacidades de cura. Falo do Maharishi Mahesh Yogi, mais conhecido no Ocidente como o fundador da Meditação Transcendental, ou MT. Venho meditando há quase oito anos e prescrevo rotineiramente a MT a minha clientela. (O mais irôni­co foi ter aprendido a meditar com um americano em Boston, e não na Índia.)

Certa tarde eu visitava o Maharishi num lugarejo novo, cha­mado Maharishi Nagar, a aproximadamente oitenta quilômetros de Nova Délhi. Estávamos a sós, na casa modesta em que ele vive, cercada pelos edifícios da escola e do hospital ainda em cons­trução. Esse é um dos raros locais que eu ainda considero como a verdadeira Índia. Sente-se ali que uma grande cultura antiga conserva sua dignidade e sua enorme sabedoria. Graças ao Ma­harishi, os antigos sábios védicos não parecem tão remotos e se­parados de nós por milhares de anos, mas muito próximos. O lugarejo, de fato, é muito próximo do local exato em que o sr. Krishna passou a noite ensinando ao grande guerreiro Arjuna os segredos da iluminação. A história é relembrada na poesia épica do Bhagavad Gita.

Subitamente, o Maharishi falou, olhando para mim:

— Gostaria de vê-lo a sós, amanhã, em meu quarto. Pode vir logo depois de sua meditação matinal?

Surpreendi-me, mas não o pressionei com perguntas. Na ma­nhã seguinte chegava a sua porta. O Maharishi estava sentado em posição de lótus, sobre um sofá coberto de seda. Convidou-me a entrar e nos sentamos juntos, em silêncio.

— Venho esperando um longo tempo para explicar algumas técnicas especiais — declarou muito simplesmente. — Acredito que serão a medicina do futuro. Eram conhecidas no passado lon­gínquo, mas foram se perdendo na confusão dos tempos; agora quero que as conheça e, ao mesmo tempo, explique clara e cien­tificamente como funcionam.

Durante as horas seguintes, ele me ensinou uma série de téc­nicas mentais, inclusive a que denominava “sons primordiais”. Seu uso está ligado à prática da meditação, embora sejam pres­critas no tratamento de males específicos, inclusive os considera­dos incuráveis no Ocidente, como o câncer. O Maharishi explicou-me claramente que aquelas eram as terapias mais fortes do Ayur­veda, a velha medicina tradicional indiana. Ensinou-as com muita simplicidade, e não foi difícil aprender o que eu deveria fazer com meus pacientes quando voltasse para casa. Ao mesmo tempo, com­preendi que ele estava me pedindo para ir muito além do papel de médico que se conhecia no Ocidente.

Quando terminamos, eu havia preenchido com anotações vá­rias páginas do caderno. O Maharishi sorriu com aquela doçura penetrante e aquela compaixão que sempre revejo ao me lem­brar dele.

— Esse conhecimento é extremamente poderoso — repetiu. — Comparadas a ele, as drogas e a cirurgia a que você está habi­tuado são métodos muito grosseiros. Levará tempo ainda, mas as pessoas vão se desenvolver e compreenderão isso. — Depois, virou-se com absoluta naturalidade para receber outros visitan­tes que o procuravam para matricular as crianças na escola de Maharishi Nagar.

Poucos minutos depois, eu estava sozinho na soleira da porta, observando o deserto e aquela paisagem vermelha e nua a dis­tância. Este é um lugar cuja existência a maioria dos ocidentais ignora. Poderiam acreditar que ali se iniciara uma importante mu­dança no conceito médico? Conheço muitos médicos pesquisa­dores e não pude conter o riso ao imaginar suas reações. A ciência tem uma base física muito sólida e extremamente convincen­te aos olhos de qualquer médico. Já o poder da mente é duvido­so na mesma proporção.

Para ser franco, naquele momento as dúvidas pouco me atin­giam. Eu seguia pela trilha empoeirada até minha hospedagem, com o sol indiano queimando minha nuca, e me sentia exultan­te. Não era uma sensação de convencimento, mas de uma alegria quase impessoal, incontrolável. Não sabia por quê, mas alguns grandes segredos me haviam sido revelados e eu me sentia trans­portado aos céus. Tinham me mostrado como penetrar no ocul­to e, naquele momento, nem o calor nem a poeira ou qualquer outro vínculo material me importavam. Nem meu próprio ceti­cismo me incomodava, apesar de saber que logo começaria a me oprimir. Enfrentei algumas decisões difíceis: tinha de imaginar uma forma de tornar aquelas técnicas dignas de crédito. Certas pessoas poderiam descartá-las como cura pela fé; outras me acu­sariam de vender falsas esperanças.

Precisava demonstrar que aquela era uma ciência por seus próprios méritos. Como fazer isso? A resposta acabaria por surgir. O pensamento indiano tem se baseado sempre na convicção de que Satya, a verdade, triunfa por si.

— A verdade é simples — encorajava o Maharishi. — Apresente-a com clareza, deixe que se afirme e não se perca em complicações.

O nome Ayurveda originou-se há mais de quatro mil anos; em sânscrito, significa “a ciência da vida”. O fato de crescer na Ín­dia, como foi meu caso, não assegura que se aprenda muito so­bre essa antiga ciência. Minha avó costumava esfregar açafrão nas picadas de insetos, quando eu era criança, e nos avisava para nunca comermos frutas ácidas com leite. Era assim o Ayurveda em mi­nha casa. O Ayurveda foi eclipsado, de forma geral, pela medici­na ocidental científica e reprimido pelo progresso em seu pró­prio local de nascimento. Fora das culturas interligadas da Ín­dia, do Tibete, Nepal e Sri Lanka, o Ayurveda é desconhecido, embora tenha deixado marcas duradouras. Os sistemas populares de medicina oriental que lançaram algumas raízes no Ocidente, como a acupuntura chinesa, foram baseados nos princípios do Ayurveda há milhares de anos.

O conhecimento primordial do Ayurveda dispersou-se através dos séculos. Os indianos que vivem de acordo com os valores da tradição, principalmente no campo, ainda procuram seguir as prá­ticas aiurvédicas, mas deram a elas muitas interpretações dife­rentes. Muitas visões são parciais e até estrábicas. Qualquer vaidya, ou médico védico, costuma citar antigos mestres do Ayurveda, como Charaka e Sushruta, com toda a autoridade. Isso não sig­nifica, porém, que suas prescrições sejam iguais às do vaidya da vila mais próxima.

Muitas técnicas aiurvédicas desapareceram por completo; infelizmente, logo aquelas que mais poderiam oferecer contribui­ções à medicina moderna. Os antigos médicos da Índia eram tam­bém grandes sábios e tinham como crença principal a idéia de que o corpo é criado pela consciência. Um grande yogi ou swami também acreditava nisso. Portanto, a medicina que exerciam era de consciência, e o tratamento transcendia o mal físico e atingia além, o âmago da mente.

Quando você observa os mapas anatômicos do Ayurveda, não vê os órgãos internos descritos nos manuais de anatomia, mas sim um diagrama do fluido da mente enquanto cria o corpo. O Ayur­veda trata desse fluir. Antes de encontrar o Maharishi, eu consi­derava o Ayurveda uma medicina folclórica, porque só via seus costumes populares: ervas, dietas, exercícios e regras incrivelmente complicadas para a vida diária, que apenas “ficam no ar” quan­do crescemos na Índia.

No entanto, o interesse do Maharishi centrava-se no Ayurveda perdido e em sua capacidade de curar pacientes por meio de mé­todos imateriais. Depois que ele me ensinou esses métodos, eu também esperava contar a outros como funcionavam. Por esse motivo desejava conversar com médicos interessados, como o que conheci em Tóquio.

Naquele momento, eu repetia isso a um homem moribundo, numa cama de hospital a milhares de quilômetros de casa, e quem sabe a que distância de sua ancestralidade espiritual... Minhas palavras se perdiam no silêncio do quarto sombrio. O dr. Liang já aparentava cansaço. Não dissera nada, mas, quando nos le­vantamos para sair, tocou meu braço.

— Esperamos que você tenha razão — disse ele. — Obrigado.

Enquanto voltávamos pelas alas, tornei a olhar para os peque­nos jardins Zen através das janelas. Eram plantados em áreas pou­co maiores que os quartos do hospital, mas cada um deles era modelo de devotado carinho. Os teixos, aparados com absoluta precisão, estavam lindos na quente claridade de outubro. Quan­do chegamos a meu carro no estacionamento, o médico japonês apertou calorosamente minha mão. Eu lhe disse que primeiro co­meçaria a testar as novas técnicas na América, mas ele seria in­formado de todo novo passo que fosse dado.

Enquanto voltava ao hotel, resolvi que escreveria ao médico o que o Maharishi me havia contado sobre a vida de um vaidya, um médico védico:

— Um vaidya é um guerreiro invencível porque combate o elemento da morte. Um vaidya doa, é um doador da vida e, por­tanto, querido pela natureza.

O significado dessas palavras é de que o médico precisa fazer uma viagem ao interior, estendendo sua compreensão para além dos limites do corpo físico até o núcleo de uma realidade mais profunda. Sua responsabilidade é resolver o enigma da vida e da morte. A solução acena no horizonte com a mesma urgência e alegria que animavam os sábios antigos. Saltando pelo vazio do tempo e do espaço, sobrevivendo às ondas de destruição que aba­lam a humanidade, a antiga sabedoria Védica nos fala com pro­funda simplicidade: no perfeito desígnio da natureza, nada mor­re. Um ser humano é tão permanente quanto uma estrela; am­bos são iluminados pelo resplendor da verdade.

Sinto, a cada dia, a importância da viagem interior. Acredito que ainda estou dando os primeiros passos, mas quero transferi-los aos outros, neste livro. A prática da medicina é, agora, cheia de esperança para mim. Não precisei dos conhecimentos do Ayur­veda para descobrir que os médicos lutam contra a morte. Preci­sei deles para descobrir que venceremos.

 

                             A FISIOLOGIA OCULTA

 

                                     Na realidade mais profunda,

                                     além do espaço e do tempo,

                                     talvez sejamos, todos,

                                     membros de um só corpo.

                                                           Sir James Jeans

 

                   Após o Milagre

Em minha carreira médica, por várias vezes tive o privilégio de presenciar curas miraculosas. A mais recente iniciou-se no ano passado, quando uma moça indiana de 32 anos me procurou em meu consultório próximo à cidade de Boston. Vestida num sári de seda azul, sentou-se em silêncio diante de mim. Procurando manter-se sob controle, ela apertava fortemente as mãos entrela­çadas no colo. Chamava-se Chitra, como declarou. Dirigia uma loja de importações com o marido, Raman, num bairro de Nova York.

Poucos meses antes, Chitra notou um pequeno caroço em seu seio esquerdo, sensível ao toque. Submetera-se a uma cirurgia para extirpá-lo, mas infelizmente o cirurgião chegou à conclusão de que se tratava de tumor maligno. Procedendo a um exame mais profundo, ele descobriu que o câncer já atingira os pulmões.

Depois de retirar o seio doente e boa parte do tecido a sua vol­ta, o médico de Chitra receitou-lhe as doses iniciais de radiação; a seguir, fez com que se submetesse a intensa quimioterapia. Es­se é o procedimento habitual nos casos de mama e tem salvado muitas vidas. Mas o câncer de pulmão era mais difícil de ser tra­tado, e qualquer um poderia perceber que Chitra se encontrava numa situação muito perigosa.

Ao examiná-la, notei nela muita ansiedade e procurei encorajá-la. Foi quando me surpreendeu com uma declaração tocante:

— Não me incomodo se tiver de morrer, mas sei que meu ma­rido ficará muito solitário sem minha companhia. Às vezes, fin­jo que estou dormindo, mas passo a noite acordada, pensando nele. Sei que Raman me ama, mas também sei que, depois que me for, ele vai começar a se encontrar com as jovens americanas. Não consigo suportar a idéia de perdê-lo para uma delas. — De­pois de uma pausa, olhou-me com expressão de sofrimento e pros­seguiu: — Sei que não devia dizer essas coisas, mas acho que o senhor compreende.

Não nos acostumamos com a dor que o câncer provoca, mas sofri ainda mais ao pensar que o tempo era o grande inimigo de Chitra. Por enquanto ela mantinha um aspecto saudável. Vinha até escondendo seu mal dos parentes, porque detestava a idéia de ser observada enquanto definhava. Mas ambos sabíamos que seria um processo difícil para ela.

Ninguém pode afirmar que conhece uma cura para câncer de mama em estado avançado. A terapia convencional tinha feito tudo o que era possível por Chitra. Como o câncer já atingira outro órgão, os dados estatísticos indicavam menos de 10 por cento de chance de cinco anos de sobrevivência, mesmo com a mais in­tensa rotina de quimioterapia que se pudesse adotar em segurança.

Pedi-lhe que começasse um novo processo de tratamento, co­mo o prescrito pelo Ayurveda.

Chitra, como eu, também crescera na Índia, mas tinha uma vaga idéia do que era o Ayurveda. A geração de seus avós fora a última a “acreditar” nessa medicina, eu imaginava; atualmen­te, qualquer indiano progressista que viva numa grande cidade daria preferência à medicina ocidental, se tivesse condições de mantê-la. No intuito de explicar a Chitra por que eu queria que ela desse as costas ao progresso, afirmei-lhe que seu câncer não era apenas uma doença física, mas holística. Todo seu organis­mo sabia que ela estava com câncer e sofria com ele; um exame do tecido dos pulmões demonstraria que as células malignas tinham migrado para lá, enquanto a amostra de tecido do fígado seria negativa. Mas o fígado era irrigado pelo mesmo sangue e recebia os sinais da doença, vindos dos pulmões. Tal conheci­mento, por sua vez, afetava as funções desse órgão.

Da mesma forma, quando ela sentia dor no peito ou era obri­gada a sentar-se por feita de ar, os sinais percorriam todo seu corpo, saindo do cérebro e voltando a ele. Sentindo a dor, o cérebro era obrigado a reagir. O cansaço que ela sentia, aliado à depressão e à ansiedade, era uma reação cerebral com conseqüências físi­cas. Portanto, seria errado pensar em seu câncer apenas como um tumor isolado que precisava ser destruído. Chitra sofria de um mal holístico que exigia uma medicina holística.

A palavra holística, que desagrada aos médicos ortodoxos, significa apenas um enfoque conjunto da mente e do corpo. Acre­dito que o Ayurveda realize essa união melhor do que qualquer alternativa, apesar de não demonstrar o fato de modo muito apa­rente. Na verdade, várias técnicas de mente-corpo, amplamente divulgadas como a hipnose e o biofeedback, chamam bem mais a atenção que o Ayurveda. Se Chitra tivesse adoecido em Bom­baim, sua terra natal, sua avó teria receitado alimentos naturais, traria da farmácia aiurvédica um saquinho de papel pardo com ervas medicinais e insistiria para que a neta ficasse na cama. Pres­creveria vários purgantes e óleos de massagens, para limpar o corpo das toxinas que geravam o câncer. Se houvesse na família algu­ma tradição espiritual, a moça teria começado a meditar. Em re­sumo, eu a trataria do mesmo modo, com algumas coisas a mais. Ainda não existe nenhum motivo científico que explique por que esse sistema funciona, a não ser que é assim. O Ayurveda atingiu algo profundo na natureza. Seus conhecimentos não são baseados na tecnologia, e sim na sabedoria, no que eu poderia de­finir como a compreensão segura do organismo humano, adqui­rida através de muitos séculos.

— Quero que você passe uma semana ou duas em uma clíni­ca especial, fora de Boston — disse a Chitra. — Algumas coisas que vão lhe acontecer podem parecer extraordinárias. Você está habituada à idéia de um hospital como um local com respiradores, câmaras de oxigênio, aparelhos de transfusão e quimiotera­pia. Comparado a isso, o tratamento que lhe daremos na clínica não será nada. Em princípio, quero que seu corpo atinja um pro­fundo estado de descanso.

Chitra era uma pessoa confiante e concordou em ir. Em parte, é claro, porque não tinha outra alternativa. A medicina moderna fizera todo o possível, usando a estratégia do ataque físico contra seu câncer. A vantagem inicial obtida ao se investir contra uma doença deve-se à esperança de extirpá-la o quanto antes do cor­po. A enorme desvantagem é que todo o organismo se danifica nesse ataque contra uma parte dele. No caso da quimioterapia, existe o perigo real de enfraquecer de tal modo o sistema imunológico que fique aberta uma porta para que outros tumores can­cerosos possam se desenvolver no futuro. No entanto, o câncer de mama não tratado é considerado mortal, e a medicina atual é capaz de extirpá-lo a curto prazo. Em um clima emocional em que a opinião é influenciada pelo medo, as pessoas preferem correr os riscos da cura, em vez do mal.

Eu mencionava a Chitra a clínica onde trabalho, o Maharishi Ayurveda Health Center, em Lancaster, no Estado de Massachu­setts. Ela passou ali uma semana em tratamento e aprendeu o programa de automedicação que deveria usar em casa, incluin­do mudanças na alimentação, algumas ervas aiurvédicas, uma ro­tina diária de exercícios simples de ioga e as instruções de Medi­tação Transcendental. Esses meios pareciam diferentes à primei­ra vista, mas todos visavam, no fundo, trazer tranqüilidade a seu dia-a-dia e, assim, construir uma base para a cura. No Ayurve­da, o requisito mais importante para a cura de qualquer desor­dem orgânica é um nível profundo e completo de relaxamento.

Esse princípio se baseia no conceito de que o corpo sabe como manter o equilíbrio, a não ser que esteja abalado pela doença; desse modo, se alguém deseja restaurar a capacidade de cura do próprio organismo, é necessário que faça tudo para readquirir o equilíbrio. Trata-se de uma idéia muito simples, mas de profundas conseqüências. Chitra também aprendeu duas técnicas mentais especiais, que atuariam diretamente nas raízes de seu cân­cer (falarei mais sobre esse assunto depois).

 

Chitra seguia religiosamente seu programa e vinha me ver a cada seis semanas. Continuou também com o tratamento de qui­mioterapia prescrito por seu médico de Nova York. Quando fa­lamos sobre o assunto, eu declarei:

— Se pudesse tratá-la pelo Ayurveda e nada mais, eu o faria. A piora de seu estado físico seria bem menor. Mas você veio me procurar já muito doente e sabemos que a quimioterapia atua de fora para dentro. Vamos combinar o processo externo e interno, na esperança de que levem à cura completa.

Segui o progresso de Chitra durante quase um ano. Ela sem­pre me ouvia numa atitude confiante, mas, ao voltar a cada con­sulta, era evidente que não estava melhorando. As radiografias dos pulmões continuavam ruins, ela respirava com crescente di­ficuldade e parecia mais fraca e abatida, à medida que o mal avan­çava. Finalmente, chegou o dia em que Chitra não apareceu no horário marcado. Esperei a semana toda e acabei ligando para sua casa.

As notícias não eram boas. Raman, o marido de Chitra, disse-me que repentinamente ela tivera uma febre muito alta, preci­sando ser hospitalizada no fim de semana. Seus pulmões vinham, há algum tempo, vazando fluido para a cavidade pleural que os rodeava, e o médico suspeitava que se havia instalado uma infec­ção. Com um prognóstico tão pessimista, não havia nenhuma ga­rantia de que Chitra pudesse deixar o hospital.

Então, aconteceu uma coisa muito curiosa. Depois de um dia ou dois de antibióticos, a temperatura de Chitra, que estava em 40°C, baixou ao normal, o que intrigou seu médico. Era muito raro uma febre tão alta baixar assim rapidamente, tratando-se de uma infecção em paciente terminal. Poderia haver outro motivo além da infecção? Ele decidiu fazer novas radiografias. No dia seguinte, Raman me telefonou, exultante e confuso.

— Ela não tem mais câncer! — exclamou com grande alegria.

— O que quer dizer? — perguntei.

— Eles não encontraram mais nenhuma célula cancerosa, na­da. — Mal conseguia se conter. — A princípio, o oncologista de Chitra achou que tinham trocado a chapa pela de outro paciente e quis fazer novos exames, mas agora está convencido.

Arrebatado e aliviado, incapaz de explicar aquela súbita salva­ção, Raman considerava o restabelecimento de sua esposa um mi­lagre. Quando telefonei para Chitra no hospital, ela ficou re­petindo:

— Você conseguiu, Deepak.

— Não, não, Chitra. Foi você que conseguiu — eu insistia.

Eu nunca poderia imaginar que seus tratamentos, tanto o convencional como o aiurvédico, resultassem em cura tão rápida. Fazendo uma retrospectiva, vejo que aquela febre alta foi uma es­pécie de queima do câncer em extinção, um processo conhecido como necrose do tumor. Mas o mecanismo exato ligado a esse processo não tem explicação. Se existe algum tipo de cura mira­culosa, aquela foi uma, eu tenho certeza.

Em poucas semanas nossa alegria começou a mudar. O “mi­lagre” de Chitra não se mantinha. Primeiramente, a sensação sur­giu em seu íntimo. Em vez de se mostrar capaz de confiar na­quela recuperação inexplicável, ela entrou em conflito, com um medo mórbido de que o câncer voltasse. Procurou-me e pergun­tou se devia prosseguir com a quimioterapia.

— Faz dois meses que o câncer desapareceu — disse eu. — Seu médico encontrou novas células cancerosas?

— Não — ela admitiu. — Mas ele acha que a quimioterapia me curou e que eu devia prosseguir o tratamento.

Comecei a me sentir frustrado. Eu sabia, tanto quanto seu médico, que a quimioterapia a que Chitra se submetera não produ­zia, pelo que se conhece, uma recuperação total daquele tipo. Não, certamente, em um caso avançado, quando o câncer já começara a atacar outras partes do corpo. Além disso, era óbvio que a mo­ça estava esgotada pelo sofrimento anterior. A quimioterapia lhe provocara uma náusea quase constante e seu cabelo caíra de mo­do assustador; além disso, ela se envergonhava por ter-se sub­metido à extirpação dos seios. Tudo isso comprometia o trata­mento aiurvédico que estávamos iniciando. Se ela recebesse do­ses ainda mais elevadas de quimioterapia, aumentariam sua de­pressão, a tendência às infecções e a fraqueza em todos os sentidos.

Ao mesmo tempo, porém, eu não tinha motivos suficientemente fortes para dizer-lhe que não continuasse. E se viesse a sofrer uma recaída em seis meses e acabasse morrendo?

— Prossiga com a quimioterapia — concordei —, mas com nos­so programa também, está certo?

Ela concordou.

Durante alguns meses, Chitra continuou livre da doença, mas também se mantinha perturbada e confusa. Parecia que seu câncer fora mais fácil de vencer do que aquela dúvida sinistra invadin­do sua vida e impedindo-a de estar bem.

O dilema torturante de Chitra é o verdadeiro ponto inicial des­te livro. Ela precisava de uma explicação para voltar a ficar bem. O que havia lhe acontecido? Sua cura era um milagre, como pen­sara no início, ou apenas um estágio na agonia, como acabou por temer? Acredito que se possa encontrar uma resposta apro­fundando-se mais o conhecimento da ligação entre a mente e o corpo.

 

As pesquisas de curas espontâneas de câncer realizadas tanto nos Estados Unidos como no Japão demonstraram que, pouco antes do restabelecimento, quase todos os pacientes passam por uma alteração de consciência. A pessoa sabe que vai sarar e sen­te que a energia responsável pela cura está em si mesma, mas que não se limita apenas a ela. Estende-se além de seus limites pessoais, por toda a natureza. Sente, subitamente: “Não me li­mito a meu corpo, tudo o que existe a minha volta faz parte de mim”. Tais pacientes, nesse momento, atingem aparentemente um novo nível de consciência, que inibe a existência do câncer. As células cancerosas, então, desaparecem literalmente do dia para a noite ou, pelo menos, estabilizam-se e não prejudicam mais o organismo.

Esse mergulho em um grau mais profundo de consciência pa­rece ser a chave, mas não surge necessariamente num impulso. Chitra vinha cultivando esse estado de forma deliberada, através das técnicas aiurvédicas. Portanto, sua capacidade de se manter em um nível mais elevado de consciência estava surpreendente­mente relacionada com sua condição. Ela conseguia, de algum modo, motivar a ausência do câncer, mas com a mesma facilida­de poderia voltar a ele. (Penso nisso como se fosse uma corda de violino cujo som varia na medida em que o dedo sobe ou des­ce por ela.) A palavra que vem à mente, quando um cientista pensa nessas mudanças súbitas, é quantum. Ela significa um sal­to descontínuo de um nível de função para outro, mais elevado: a transição quântica.

Quantum é também um termo técnico, antes conhecido ape­nas pelos físicos, mas agora presente na linguagem popular. Pre­cisamente, um quantum é “a unidade indivisível em que as on­das podem ser emitidas ou absorvidas”, na definição do eminente físico britânico Stephen Hawking. Para os leigos, o quantum é um bloco de construção. A luz é formada por fótons, a eletrici­dade, pela carga de um elétron, e a gravidade, pelo graviton (um quantum hipotético, ainda não encontrado na natureza). E o mes­mo acontece com todas as formas de energia, cada qual baseada em um quantum que não pode ser subdividido em nada menor.

As duas definições, a do salto descontínuo para um nível mais elevado e o grau irredutível de uma energia, parecem aplicar-se a casos como o de Chitra. Sendo assim, eu gostaria de introduzir o termo cura quântica para explicar o que aconteceu com ela. Ape­sar de ser uma palavra nova, o processo, em si, não é. Sempre existiram pacientes em que não se observa o curso natural de cu­ra. Por exemplo, uma pequena minoria não definha com o cân­cer, outros desenvolvem tumores muito mais lentamente do que a estatística prevê para aquele tipo de mal. Muitos restabeleci­mentos são de origem igualmente misteriosa, como os casos de remissão espontânea e o uso eficiente de placebos, ou “drogas enganadoras”, que também indicam o salto quântico. E por quê? Porque em todos esses casos a consciência profunda parece ter promovido um drástico salto quântico no mecanismo da cura.

A consciência é uma energia pouco valorizada pela maioria das pessoas. Geralmente não enfocamos nossa consciência mais pro­funda nem usamos sua verdadeira energia, mesmo nos mais di­fíceis momentos de crise. Talvez seja esta a razão pela qual as “cu­ras milagrosas” são recebidas com um misto de espanto, descrença e reverência. Mas todos possuem esse nível mais profundo de consciência. Talvez, até alguns desses milagres sejam extensões de capacidades normais. Por que não consideramos um milagre o corpo soldar um osso partido? Como processo de cura, é complexo de­mais para ser imitado pela medicina; envolve um número incrí­vel de processos perfeitamente sincronizados, dos quais a medi­cina conhece apenas os principais, e de modo imperfeito.

O motivo pelo qual a mesma pessoa considera milagre a cura do câncer e não pense o mesmo a respeito da fusão de um osso do braço está ligado à união entre mente e corpo. O osso quebra­do parece soldar-se fisicamente, sem a intervenção da mente; mas a cura espontânea do câncer, segundo se acredita em geral, de­pende de uma qualidade especial da mente, de um profundo de­sejo de viver, de uma perspectiva heroicamente positiva, ou qual­quer outra habilidade rara. Isso significa que existem dois tipos de cura, uma que é normal, outra, anormal ou, pelo menos, ex­cepcional.

Acredito que essa distinção seja falsa. O braço partido solda-se porque a consciência o emenda, e o mesmo acontece na cura mi­lagrosa de um câncer, na longa sobrevivência de um caso de AIDS, na cura pela fé e mesmo na capacidade de viver até a idade avan­çada, sem se deixar abater por uma doença. A razão de nem to­dos conseguirem levar o processo de cura até onde devem resulta do fato de nos diferenciarmos drasticamente quanto a nossa ca­pacidade de mobilizá-la.

Podemos comprovar isso nas diferentes reações das pessoas diante da doença. Uma fração mínima, bem menos de 1 por cento de todos os pacientes que contraem um mal incurável, consegue curar-se. Um número maior, mas ainda abaixo dos 5 por cento, vive bem mais que a média. Isto é confirmado pelos 2 por cento de aidéticos que conseguiram sobreviver mais de oito anos en­quanto a grande maioria não passa de dois. Essas descobertas não se restringem às doenças incuráveis. Pesquisas demonstram que apenas 20 por cento dos pacientes com doenças sérias, mas curáveis, recuperam-se com excelentes resultados. Sendo assim, cerca de 80 por cento deles não conseguem sarar, ou curam-se parcialmente. Por que é tão desproporcionalmente elevado o ín­dice de insucesso nas curas? Qual será a diferença entre um so­brevivente e alguém que não consegue sobreviver?

Aparentemente, os pacientes bem-sucedidos aprenderam a mo­tivar a própria cura e conseguiram, nos casos mais felizes, ir além. Descobriram o segredo da cura quântica. São os gênios da união entre a mente e o corpo. A medicina moderna não consegue se igualar nem de longe na reprodução de suas curas, porque ne­nhum tratamento baseado em drogas ou cirurgia consegue pre­cisar tão bem o prazo, ser tão maravilhosamente coordenado, tão benigno e livre de efeitos colaterais, tão fácil. A capacidade des­sas curas vem de um nível tão profundo que não se pode ir mais além. Se soubéssemos o que os cérebros fazem para motivar os corpos, teríamos a unidade básica do processo de cura em nos­sas mãos.

Até agora, todavia, a medicina não conseguiu dar o salto quân­tico e a palavra quantum ainda não tem aplicação clínica. Como a física quântica lida com aceleradores de altíssima velocidade, você pode pensar que a cura quântica emprega radioisótopos ou raios X. Mas o significado é o oposto. A cura quântica afasta-se dos métodos da alta tecnologia e penetra nos meandros mais pro­fundos do sistema mente-corpo. É nesse núcleo que ela se inicia. Para atingi-lo e aprender a provocar a resposta de cura é necessá­rio que você atravesse todos os níveis mais densos do corpo: cé­lulas, tecidos, órgãos e sistemas; atingirá, então, o ponto de união entre a mente e a matéria, o ponto em que a consciência real­mente começa a causar um efeito.

O quantum em si, o que é e como se comporta, ocupa a pri­meira parte deste livro. A segunda parte apresentará a mistura do quantum e do Ayurveda, promovendo uma união das duas culturas na tentativa de se chegar a uma resposta. O panorama científico do Ocidente confirma, surpreendentemente, a visão dos antigos sábios da Índia. Esta é uma viagem que derruba barrei­ras e ignora obstáculos culturais. A meu modo de ver, toda a his­tória precisa ser descoberta. Chitra me fez esse pedido, portanto estou escrevendo para ela e para todos os pacientes como ela. Até descobrirem uma resposta, continuarão com suas vidas presas por um fio.[*]

 

                   O Corpo Possui Mente Própria

Quando afirmei que ninguém pode declarar que conhece a cura do câncer de seio, estava dizendo apenas meia verdade. Se uma paciente conseguisse promover o processo de cura de dentro pa­ra fora, essa seria a cura do câncer. Casos de cura semelhantes ao de Chitra surgem quando internamente se opera uma mudança radical, afastando-se o medo e a dúvida junto com a doença. Mas o local exato dessa mudança leva a profundos mistérios. Ele de­safia a sabedoria médica a responder até a pergunta básica: a mu­dança ocorreu na mente de Chitra, em seu corpo, ou em ambos? Para descobrir isso, a medicina ocidental começou recentemente a se afastar das drogas e da cirurgia, que são o apoio principal da clínica médica, em direção ao campo mais amorfo e geralmente desconcertante, conhecido como “terapia do corpo e da mente”. Esse movimento foi quase forçado, porque a velha confiança ape­nas no corpo físico começou a se desagregar.

A medicina do corpo e da mente deixa muitos médicos extremamente intranqüilos. Consideram-na mais um conceito do que um campo verdadeiro. Se puder escolher entre a nova idéia e a química familiar, um médico dará preferência à segunda: penicilina, digitálicos, aspirina e Valium não exigem nenhum con­ceito novo do paciente (ou do médico) para fazer efeito. O problema surge quando a química não atua. Levantamentos recen­tes, na Inglaterra e nos Estados Unidos, demonstraram que apro­ximadamente 80 por cento dos pacientes sentem que sua queixa principal, a razão que os levou ao médico, não fora satisfatoria­mente atendida ao deixarem o consultório. Estudos clássicos, da­tados do fim da Segunda Guerra Mundial, mostraram que os pa­cientes saíam do hospital da Faculdade de Medicina de Yale mais doentes do que no dia em que haviam chegado ali. (Esses estu­dos correspondem a outros, semelhantes, que demonstraram que os pacientes com queixas de doenças mentais sentiam-se melhor enquanto estavam na lista de espera para uma consulta com o psiquiatra do que depois, quando eram realmente atendidos por ele. Portanto, este não é o caso da simples troca de um médico que trata do corpo por um que trata da mente.)

Diante disso, uma cura miraculosa simplesmente reforça a necessidade de reexame dos conceitos básicos da medicina. O ra­ciocínio lógico da medicina atual pode impressionar ou, pelo me­nos, bastar, quando receitamos penicilina para curar uma infec­ção; mas a natureza dessa lógica é capaz de inspirar medo. Mui­tos médicos ficaram maravilhados ao testemunhar curas como a de Chitra, sem nenhuma pista para explicá-las; o termo comum para elas é recuperação espontânea, rótulo conveniente mas pouco esclarecedor, além do fato de o paciente ter sarado por si. As re­cuperações espontâneas são muito raras: uma pesquisa, em 1985, calculou que ocorrem na média de uma em 20 mil casos diag­nosticados de câncer; alguns especialistas acreditam que são ain­da mais raras (menos de dez em 1 milhão), mas ninguém sabe ao certo.

Recentemente, passei várias horas da noite conversando com um oncologista, ou especialista em câncer, do Oriente Médio, que trata de milhares de pacientes por ano. Perguntei-lhe se conhecia algum caso de recuperação espontânea.

— Sinto-me pouco à vontade com esse termo — ele respon­deu, dando de ombros. — Tenho visto tumores regredirem com­pletamente. É muito raro, mas acontece.

Às vezes, tais recuperações ocorriam apenas por si mesmas? Ele admitiu que isso acontecia ocasionalmente. Pensou por um momento e declarou que, pelo que se sabe, certos tipos de melanoma (um câncer de pele extremamente letal, que mata com muita rapidez) desaparecem por si mesmos. Mas não sabia explicar co­mo isso acontecia.

— Não paro para pensar nesses raros incidentes — disse ele. — O tratamento do câncer é uma questão de estatística, obede­cemos a números. Uma enorme maioria de pacientes reage a certas linhas de tratamentos e não há tempo para pensar na minoria in­finitesimal que sara por alguma razão desconhecida. Além dis­so, sabemos por experiência que muitas dessas recuperações são apenas temporárias.

Ele achava que as recuperações completas ocorriam numa proporção de menos de um caso por milhão? Respondeu-me que não eram tão raras assim.

Não desejaria, então, como cientista, descobrir o mecanismo que existe por trás delas, mesmo que ocorresse apenas um caso em 1 milhão ou em 10 milhões? Ele novamente deu de ombros.

— É claro que deve haver um mecanismo por trás delas — admitiu. — Mas não estabeleci minha clínica para cuidar disso. Deixe-me dar-lhe um exemplo: oito anos atrás, um homem me procurou queixando-se de uma tosse que doía no peito. Fizemos algumas radiografias e descobrimos que tinha um grande tumor entre os pulmões. Ele foi internado no hospital, tiramos material para a biópsia e o diagnóstico do patologista foi de um carcino­ma extremamente mortal, de crescimento rápido e muito malig­no. Avisei meu paciente — prosseguiu ele — de que o submete­ríamos imediatamente a uma cirurgia para aliviar a pressão cria­da por seu tumor e depois o trataríamos com radiações e qui­mioterapia. Ele ficou profundamente aborrecido com a idéia do tratamento e recusou. Oito anos depois, um homem veio me pro­curar com um nódulo linfático muito inchado no pescoço. Tirei uma amostra para a biópsia, que revelou tratar-se de um carci­noma do mesmo tipo encontrado no pulmão de meu antigo cliente. Foi quando percebi que se tratava do mesmo homem. Examina­mos seu peito com raios X — o médico continuou a relatar — e não havia o menor traço de câncer no pulmão. Normalmente, 99,99 por cento dos pacientes sem tratamento teriam morrido num prazo de seis meses; cerca de 90 por cento não teriam sobrevivi­do cinco anos, mesmo com o máximo de terapia. Perguntei-lhe como tratara o câncer anterior e ele me disse que não tinha feito nada, apenas decidira que não ia se deixar morrer de câncer. E talvez ele recuse novamente o tratamento para esse segundo câncer.

Por definição, a medicina científica lida com resultados previsíveis. Ainda assim, sempre que surge um caso de recuperação espontânea, seu comportamento é totalmente imprevisível. Es­ses casos podem ocorrer sem a presença de uma terapia, ou po­dem ser acompanhados pelo tratamento convencional do câncer. Dentre as muitas alternativas referentes ao câncer que hoje exis­tem nos Estados Unidos, cada qual com mérito próprio, nenhu­ma provou recuperações espontâneas melhor que o tratamento padrão de radiação e quimioterapia nem que seu efeito seja pior. Tampouco parece influenciar o estágio que a doença já atingiu. Tanto os pequenos tumores como os grandes e extremamente ma­lignos podem desaparecer virtualmente, da noite para o dia. Co­mo são casos muito raros e que ocorrem ao sabor da sorte, as recuperações espontâneas vêm nos ensinando muito pouco so­bre a causa do câncer e o modo como acontece uma cura “im­possível”.

Parece razoável supor que o corpo está Constantemente em luta contra o câncer e que vence a imensa maioria das batalhas. Mui­tos tipos de câncer podem ser induzidos em tubos de ensaio ou em animais de laboratório, com o uso de substâncias tóxicas (carcinógenas), dietas ricas em gordura, radiações, estresse excessivo e vários tipos de vírus, entre outras coisas. Como vivemos sub­metidos a todas essas condições em grau elevado, elas devem cau­sar dano a nosso organismo. Sabe-se que o DNA (ácido desoxirribonucléico) se deteriora em tais condições, mas ele é capaz de se recompor ou distinguir a matéria perigosa, livrando-se dela.

Isso significa que tumores ainda no estágio inicial podem ser percebidos e frequentemente combatidos pelo organismo. Se ampliarmos a escala desse processo, teremos o “milagre” de uma recuperação espontânea. Na realidade, não se trata de um mila­gre, de modo nenhum, mas de um processo natural que ainda precisa ser explicado, do mesmo modo que a cura da pneumo­nia pela penicilina seria considerada miraculosa, se não pudés­semos explicá-la por meio da teoria do germe da doença. O fato é que o mecanismo oculto nessas curas milagrosas não é místico nem fortuito, portanto merece ser investigado.

Na prática comum, depois do milagre o médico volta à rotina de sempre, que inclui os conceitos habituais. Mas até esses, que compõem o material de trabalho da faculdade de medicina, fo­ram deformados. Para dar apenas um exemplo: desde que pas­sou a ser considerada um campo de pesquisa científica racional, a medicina tem aceitado a degeneração das funções cerebrais nos idosos como uma ocorrência natural. Essa deterioração foi toda documentada com “tristes” descobertas: quando envelhecemos, nosso cérebro se atrofia, fica mais leve e perde milhões de neurônios a cada ano. Temos o máximo suprimento de neurônios aos 2 anos e, aos 30, o número deles começa a diminuir. A perda de cada célula cerebral é permanente, já que os neurônios não se regeneram. Baseado nesse fato tão conhecido, o declínio da capacidade cerebral parecia cientificamente aceitável; triste, po­rém inevitável; o envelhecimento leva obrigatoriamente à falta de memória, à diminuição da capacidade de raciocínio, ao enfraque­cimento da inteligência e sintomas correlates.

No entanto, essas suposições consagradas pelo tempo agora provaram-se errôneas. Pesquisas meticulosas com idosos saudá­veis, comparadas às que a medicina realizava habitualmente com pessoas idosas doentes e hospitalizadas, revelaram que 80 por cento dos americanos sãos e sem distúrbios psicológicos (como solidão, depressão ou falta de estímulo externo) não sofrem significativa perda de memória ao envelhecer. Pode diminuir a capacidade de reter novas informações, o que explica o fato de pessoas idosas esquecerem números de telefone, nomes e perambularem pela casa à procura de objetos. Mas a capacidade de recordar antigos acontecimentos, a chamada memória distante, na realidade até melhora. (Uma autoridade em envelhecimento costuma citar Cí­cero: “Nunca vi um velho que esquecesse onde seu dinheiro es­tava escondido”.)

Nos testes de pessoas com 70 anos de idade, comparados aos de jovens de 20, os velhos conseguiram melhores resultados nes­sa área da memória. Depois de terem treinado diariamente, por alguns minutos, o que chamamos de memória recente, os idosos quase alcançaram os jovens, que estavam no auge de sua capaci­dade mental.

Talvez a “plenitude da vida” deva ser prolongada. O segredo, como quase todo o resto do declínio “natural” da velhice, de­pende dos hábitos mentais, e não do conjunto de circuitos do sis­tema nervoso. Enquanto uma pessoa se mantiver mentalmente ativa, continuará com a mesma inteligência da juventude e da idade madura. Todo mundo continua perdendo mais de 1 bilhão de neurônios durante a existência, numa média de 18 milhões por ano, mas essa perda é compensada por outra estrutura: os filamentos cerebrais semelhantes a ramos, chamados dendrites, que ligam as células nervosas umas às outras.

Toda célula nervosa costuma apresentar um formato bastante individual, mas possui um núcleo típico, bulboso, de onde se ir­radiam braços finos como um polvo. Esses braços, ou axônios, lembram árvores, e os primeiros anatomistas os batizaram de den­drites, que em grego significa “árvore”. Seu número varia desde menos de uma dúzia a mil por célula, servindo de pontos de con­tato para que um neurônio envie sinais a seus vizinhos. Com o crescimento de novas dendrites, um neurônio pode abrir mais canais de comunicações em todas as direções, como um painel telefônico distribuindo novas linhas.

Não sabemos como um pensamento é realmente formado en­tre as células cerebrais ou como se inter-relaciona esse vastíssi­mo número de ligações com milhões de dendrites se unindo em certos pontos principais do corpo, como o plexo solar, sem falar dos bilhões e bilhões do próprio cérebro. Contudo, experiências demonstraram que novas dendrites podem se formar durante a vida toda, até a idade avançada. A opinião geral é de que esse novo crescimento nos proporciona a estrutura física para que a função cerebral não diminua. A senilidade não é fisicamente nor­mal em um cérebro saudável. Uma rica multiplicação de den­drites pode até ser a causa oculta da sabedoria crescente na ve­lhice, uma época em que a vida é cada vez mais encarada em sua totalidade ou, em outras palavras, fica mais interligada, as­sim como as células nervosas se interligam através das novas den­drites.

Esse exemplo demonstra como a medicina pode estar radicalmente errada ao insistir em que a matéria seja superior à mente. Pode ser verdade que uma célula nervosa crie pensamentos, mas é igualmente verdadeiro que o pensamento cria células nervosas. No caso das novas dendrites, é o hábito de pensar, de recordar e manter a atividade mental que cria o novo tecido. Mas essa não é uma descoberta isolada. Curiosamente, logo que o conceito de uma “nova velhice” pareceu razoável aos olhos dos médicos, muitas formas de degeneração começaram a ser encaradas de outro modo.

Por exemplo: enquanto você praticar exercícios, a musculatu­ra de seu corpo não enfraquecerá e sua força não diminuirá du­rante a vida, apesar de haver um lento declínio de energia. Você pode treinar para uma maratona aos 65 anos, contanto que esteja em boa forma física e treine sensatamente. Do mesmo modo, seu coração muda com a idade e torna-se menos elástico, bombean­do menos sangue por batida, mas as doenças coronárias e o en­durecimento das artérias, até poucas décadas atrás considerados normais na velhice, agora também podem ser evitados, depen­dendo da alimentação e do estilo de vida. Outro mal da velhice, os derrames cerebrais, diminuíram em 40 por cento durante a última década, graças ao melhor controle da hipertensão e à di­minuição de gordura na dieta alimentar. Grande parte dos males senis “inevitáveis” foi explicada pela deficiência de vitaminas, por uma dieta alimentar pobre e pela desidratação. O resultado global dessas descobertas levou a drástica mudança no enfoque da velhice; um resultado menos evidente, porém, é o de que to­do o organismo, em qualquer fase da vida, precisa ser repensado.

 

O que acontece agora em todos os ramos da medicina é que o corpo saudável vem demonstrando maior poder de recupera­ção e versatilidade do que se suspeitava. Enquanto a faculdade de medicina ensina que o micróbio A causa a doença B e é trata­da pela droga C, a natureza parece achar que essa é apenas uma opção entre muitas. O enfoque mental no tratamento do câncer, por exemplo, seria ridicularizado há uma década. Mas as pes­soas parecem capazes de participar de seu tratamento de câncer e até controlar o curso da doença, usando os pensamentos. Em 1971, o dr. O. Carl Simonton, radiologista da Universidade do Texas, conheceu um homem de 61 anos que sofria de câncer na garganta. A doença já progredira muito e ele mal conseguia en­golir, chegando a pesar 42 quilos.

O prognóstico de seu caso não só era extremamente ruim — os médicos lhe davam apenas 5 por cento de chance de sobrevi­vência de cinco anos após o tratamento — como, por outro lado, o paciente estava tão debilitado que provavelmente não corres­ponderia às radiações — a terapia normal em seu caso. Levado pelo desespero e, além disso, curioso em tentar um enfoque psi­cológico, o dr. Simonton sugeriu a seu paciente que ampliasse a ação das radiações por meio da prática de visualização. Ele foi ensinado a visualizar seu câncer o mais vividamente possível. De­pois, pediram-lhe que visualizasse seu sistema imunológico sob qualquer imagem que desejasse, “vendo” as células brancas do sangue atacarem com sucesso as células cancerosas e as expulsa­rem do corpo, deixando restar apenas as saudáveis.

O homem disse que visualizou suas células imunológicas co­mo se fossem uma névoa de partículas brancas cobrindo o tu­mor, assim como a neve cobre uma rocha escura. O dr. Simon­ton aconselhou-o a ir para casa e repetir essa visualização várias vezes por dia. O homem concordou, e logo seu tumor pareceu regredir. Em poucas semanas, estava visivelmente menor, e a res­posta do paciente às radiações, quase livre de efeitos colaterais; depois de dois meses o tumor havia desaparecido.

Naturalmente, o dr. Simonton ficou surpreso e confuso, em­bora exultante, por ter a abordagem psicológica se revelado tão poderosa. Como um pensamento consegue derrotar uma célula cancerosa? Na verdade, esse mecanismo era totalmente desconhe­cido, já que a complexidade desnorteante dos sistemas imunológico e nervoso, evidentemente envolvidos no caso, continuava um mistério. O paciente, por sua vez, aceitou a cura sem grande sur­presa. Contou ao dr. Simonton que sofria de artrite nas pernas e que não conseguia pescar no rio, como gostava. Tendo se livra­do do câncer, porque não poderia acabar com a artrite por meio de visualizações? Poucas semanas depois, foi exatamente o que aconteceu. O homem ficou livre do câncer e da artrite, durante os seis anos em que continuou sob controle.

Esse caso, agora famoso, passou a representar um marco da medicina mente-corpo, mas infelizmente essa não é a história toda. A terapia de visualização do dr. Simonton (que passou a abran­ger um programa maior mente-corpo) ainda não inspira confiança na cura do câncer. Uma de minhas pacientes foi bem-sucedida e, ao que parece, curou um câncer no seio, mas empregou a téc­nica por conta própria, sem assistência médica constante. Levan­tamentos estatísticos a longo prazo, no entanto, levam-nos a ques­tionar se esses resultados esporádicos são superiores aos do trata­mento convencional. Atualmente, a terapia convencional apre­senta grande vantagem. Se, por exemplo, uma mulher com cân­cer no seio o descobrir enquanto for bem pequeno e localizado, a chance de se curar ultrapassa os 90 por cento (uma “cura” sig­nifica a sobrevivência de três anos, no mínimo, sem a volta da doença). Em comparação, os casos de recuperações espontâneas, numa estimativa mais generosa, seriam bem inferiores a um dé­cimo de 1 por cento. Até que terapia mental e outras alternativas ultrapassem as radiações e a quimioterapia, não serão os tratamentos preferidos. Mesmo que os pacientes desejem tais enfo­ques, a maioria dos médicos ainda os teme e não confia neles.

Ainda que o paciente do dr. Simonton seja um caso raro, basta para abalar nossa concepção de como o organismo cura a si pró­prio, porque nele a natureza descobre uma forma de combater a morte nunca antes tentada por nenhum médico. E nesse caso há também a sombria possibilidade de que os médicos, com suas tentativas habituais, estejam reprimindo a natureza em vez de ajudá-la.

Médicos curiosos e ousados recorreram às experiências com inovações nas terapias mente-corpo durante a última década, usan­do desde biofeedback e hipnose até visualizações e mudança de comportamento. Os resultados de todo esse grupo foram duvi­dosos e difíceis de se interpretar. Durante três anos, o psicólogo Michael Lerner empreendeu extensa pesquisa em quarenta clí­nicas que ofereciam enfoques alternativos para o tratamento do câncer, com métodos que variavam desde o emprego de ervas e da macrobiótica até a visualização de imagens mentais positivas. Ele descobriu que esses “centros complementares de combate ao câncer” eram geralmente mais procurados por pacientes de me­lhor nível cultural e mais prósperos, e que os médicos que os dirigiam também eram sérios e bem-intencionados, mas nada que se aproximasse da cura do câncer havia sido descoberto nos lu­gares que visitou.

Ao entrevistar os pacientes, uma razoável porcentagem (40 por cento) pensava ter obtido ao menos uma melhora temporária na qualidade de vida. Outros 40 por cento declararam ter experimen­tado uma melhora real em suas condições, variando desde poucos dias a vários anos. Aproximadamente 10 por cento dividiram-se entre os extremos do espectro, um grupo declarando que não con­seguira nada com o tratamento, e outro, que havia se recuperado parcial ou totalmente da doença. Em geral, os registros de enfo­ques alternativos demonstram que eles dão certo conforto e alívio aos pacientes, mas os dados sobre recuperação são desapontadores, não diferindo muito dos da terapia comum.

Existem, porém, problemas mais sérios do que resultados inconsistentes: o campo do tratamento mente-corpo continua enfrentando a incapacidade de provar, rigorosamente, seu princí­pio básico: a mente influencia o corpo e pode levar à saúde ou à doença. Parece evidente por si mesmo que pessoas doentes e saudáveis vivem em diferentes estados mentais, mas a conexão causal continua indefinida. Em 1985, na Universidade da Pen­silvânia (EUA), uma importante pesquisa sobre câncer no seio não conseguiu encontrar a relação entre a atitude mental das pa­cientes e sua chance de sobrevivência além de dois anos. No ar­tigo que acompanhava a pesquisa, publicado no famoso New En­gland Journal of Medicine, todo o conceito de que as emoções afetam o câncer foi combatido. Declarava: “Nossa idéia de que a doença é um reflexo direto do estado mental é, em grande parte, crendice popular”.

O jornal recebeu um dilúvio de cartas, em particular de médi­cos que discordavam violentamente da conclusão do artigo. Sem dúvida, se não é razoável não considerar as atitudes mentais co­mo fator de enfermidade, é menos razoável ainda considerar tal pensamento como “crendice popular”. Qualquer médico que exerça a profissão sabe que a vontade do paciente em se curar é parte vital do tratamento. Mesmo integrando a medicina “se­vera”, a maioria dos médicos aceita a idéia de que a atitude, a crença e as emoções são atuantes. Hipócrates declarou, na auro­ra da medicina ocidental, que “um paciente mortalmente doen­te poderia se recobrar pela fé na deusa de seu médico”. Inúme­ras pesquisas modernas confirmam isso, demonstrando que as pessoas que confiam em seu médico e se entregam a seus cuida­dos têm maior possibilidade de se curar do que aquelas que en­caram o tratamento com desconfiança, medo e antagonismo.

Após o artigo, os ânimos se agitaram e surgiram grupos cer­rando fileiras por lealdade, mas o assunto ficou ainda mais con­fuso. Três pesquisas independentes, realizadas em meados de 1980, sobre dados de sobrevivência após câncer no seio, chega­ram a resultados totalmente diferentes. Em uma delas, as mulheres que demonstraram atitudes fortemente positivas viviam mais que as de atitudes negativas, não importando o quanto o câncer estivesse avançado. Aparentemente, as emoções positivas ajuda­vam a cura de estágios adiantados da doença, com metástase do câncer, enquanto pacientes com emoções negativas morriam por pequenos tumores diagnosticados logo no início.

Mas uma segunda pesquisa concluiu que qualquer atitude drástica exteriorizada, em vez de reprimida, ajudava na sobrevivên­cia em relação a essa doença mortal. Enquanto a primeira pes­quisa baseava-se no bom senso, na idéia de que a positividade é melhor que a negatividade, a segunda fazia o mesmo sob outro ângulo, com a idéia de que vale a pena lutar e não desistir. Foi divulgada a chamada personalidade do câncer, que reprime as emoções e, de alguma maneira, transforma essa repressão em cé­lulas malignas. O oposto seria o tipo “o forte sobreviverá”, po­dendo essa força ser positiva ou negativa.

Tudo isto obedece a certa lógica, exceto a pesquisa publicada no New England Journal of Medicine, que, apoiada por outras, não encontrou correlação entre nenhum padrão emocional e a sobrevivência ao câncer de seio após dois anos. Mesmo ao ga­nhar popularidade e se transformar em uma das inovações mais bem recebidas desde a vacina Salk, o conceito de tratamento mente-corpo continuava abalado. Agora um novo sistema tornou-se familiar: o público é informado de alguma brilhante vitória, enquanto os resultados clínicos desapontadores que se seguem são conhecidos apenas em círculos médicos restritos.

Um exemplo clássico foi a divisão dos pacientes de ataques do coração, dos quais mais de três quartos são homens de meia-idade, em personalidades tipo A — de alto risco — e tipo B — de baixo risco. A personalidade tipo A seria o motorista exaltado, o traba­lhador compulsivo, Constantemente perseguindo metas e enchendo o organismo de hormônios de estresse — oposta à do tipo B, mais tranqüila, tolerante e equilibrada. O tipo A sofria do “mal de viver com pressa”, portanto parecia lógico que seu coração aca­basse se rebelando e surgisse uma doença coronariana.

Infelizmente, pesquisas controladas indicaram que essa divi­são amplamente aceita não é tão certa. Na realidade, as pessoas possuem parte da personalidade do tipo A e parte da do tipo B, além de variar muito a tolerância ao estresse, chegando alguns grupos a declarar que se sentem melhor sob tensão. Finalmente, uma pesquisa realizada em 1988 revelou que, se um homem so­fre realmente um ataque do coração, o tipo A sobrevive mais que o tipo B. Seu impulso de vencer é aparentemente um benefício quando chega o enfarte.

As complexidades da relação entre mente e corpo não podem ser resolvidas com simplicidade. Se alguém perguntar por que uma mente positiva não pode estar facilmente relacionada à boa saúde, o que parece um dos fatos mais evidentes da vida, a res­posta dependerá, em primeiro lugar, do que ela entende por “mente”. Essa não é uma questão filosófica, mas de ordem prá­tica. Diante de um paciente com câncer, seu estado mental é jul­gado pelo modo como se sente no dia do diagnóstico, muito an­tes ou muito depois? O dr. Lawrence LeShan, autor de estudos pioneiros desde os anos 50, relacionando as emoções ao câncer, voltava à infância de seus pacientes para descobrir a semente som­bria que envenenava sua vida psicológica, e criou a teoria de que ela permanecia adormecida durante anos no subconsciente, antes de provocar a doença.

Em minha própria clínica, conheci um paciente com câncer no pulmão, que vivia confortavelmente com uma lesão do tama­nho de uma moeda naquele órgão, havia mais de cinco anos. Ele nem suspeitava de que a lesão fosse cancerosa e, como já estava com mais de 60 anos de idade, ela crescia lentamente. No entan­to, logo que lhe contei que a lesão se coadunava com o diagnósti­co de câncer no pulmão, ele ficou extremamente agitado. Em um mês, começou a tossir com sangue, e em três meses estava mor­to. Se seu estado mental contribuiu para esse triste final, aparen­temente agiu bem rápido. Esse paciente podia viver com seu tu­mor, mas não com o diagnóstico.

A questão seguinte é ainda mais relevante: na personalidade geral do paciente, o médico está interessado na “mente”, e is­so significa seu subconsciente, suas atitudes, suas crenças mais profundas, ou alguma coisa ainda não plenamente compreen­dida e definida pela psicologia? Pode ser que o aspecto da men­te relacionado ao adoecer ou sarar nem seja especificamente humano.

Numa pesquisa sobre doenças cardíacas realizada na Universidade de Ohio (EUA), na década de 70, coelhos foram alimentados com uma dieta muito tóxica e com alto índice de coleste­rol, para o bloqueio das artérias, procurando duplicar-se o efeito que esses alimentos exercem sobre as artérias humanas. Em to­dos os grupos de coelhos começaram a surgir os resultados espe­rados, menos em um, que estranhamente apresentava 60 por cento a menos de sintomas. Nada na psicologia dos coelhos podia ex­plicar sua alta tolerância à dieta, até se descobrir, por acaso, que o estudante encarregado de alimentar aquele grupo gostava de coelhos e os agradava. Ele carregava cada animalzinho durante alguns minutos, antes de lhe dar a comida; por incrível que seja, isso bastou para que os bichos tolerassem a dieta tóxica. Expe­riências repetidas, em que um grupo de coelhos recebia trata­mento neutro e outro recebia amor, demonstraram os mesmos resultados. Vemos mais uma vez que o mecanismo que causa tal imunidade é completamente desconhecido. É espantoso pensar que a evolução dotou a mente do coelho de uma reação de imu­nidade que pode ser desencadeada pelo carinho humano.

Existe até uma possibilidade, como argumentariam muitos médicos, de que a mente seja uma ficção científica. Quando acha­mos que ela está doente, o que realmente tem a doença é o cére­bro. Seguindo-se essa lógica, as desordens mentais clássicas co­mo depressão, esquizofrenia e psicoses são, na realidade, desor­dens cerebrais. Mas tal lógica apresenta evidentes impropriedades, pois seria como afirmar que as colisões acontecem por cul­pa dos carros. Mas, como o cérebro é um órgão físico, podendo ser pesado e dissecado, inspira maior segurança à medicina do que a mente, impossível de ser definida após tantos séculos de introspecção e análise. Os médicos ficam muito felizes por não terem de opinar a esse respeito como filósofos.

A capacidade dos modernos psicotrópicos — as drogas influenciadoras da mente que aliviam os principais sintomas de doenças mentais como depressão, manias, ansiedade e alucinações — é muito maior do que a de qualquer tratamento existente no pas­sado. A psiquiatria química provavelmente estará alinhada ao la­do de sua oponente, a medicina mente-corpo, formando a revo­lução médica de nosso tempo. Ela tem apresentado sérios resul­tados clínicos para confirmar isso, inclusive com numerosas in­dicações de que os desequilíbrios químicos no cérebro estão di­retamente ligados a doenças mentais.

Nada poderia parecer mais intocável do que a loucura plena de um esquizofrênico crônico, sofrendo de alucinações visuais e vozes interiores, com pensamentos distorcidos e completa de­sorientação física e mental. Talvez baste perguntar em que dia estamos para provocar confusão e terror no esquizofrênico. No entanto, a diferença estrutural entre esse estado mental e a sani­dade pode ser rapidamente determinada por uma substância quí­mica chamada dopamina, secretada pelo cérebro. Essa relação com a dopamina, conhecida há duas décadas, comprovou que os esquizofrênicos produzem em excesso essa substância quími­ca de importante desempenho no processo das emoções e per­cepções; portanto, uma alucinação seria a percepção do mundo exterior que ficou desordenada na codificação química do cérebro.

Essa hipótese foi simplificada em 1984, quando um psiquiatra da Universidade de Iowa (EUA), dr. Rafiq Waziri, reviu o que se sabia sobre a química cerebral dos esquizofrênicos, descobrindo a deficiência numa molécula ainda menor, a serina, um aminoácido comum, encontrado na maioria dos alimentos protéicos. Ela vem sendo considerada um dos elos de origem na formação da dopamina. Incapazes de metabolizar corretamente a serina, os cérebros dos esquizofrênicos superproduzem a dopamina para compensar tal deficiência. Esse processo exato ainda é desconhe­cido. Poderia a esquizofrenia total, considerada a mais estranha e complexa das desordens mentais, depender do modo como são digeridos os alimentos?

Descobertas anteriores no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA) demonstraram que a química básica do cérebro é tão variável que pode ser modificada por uma simples refeição.

O dr. Waziri reforçou sua teoria cuidando de um grupo de esquizofrênicos e alimentando-os com um suprimento dietético de glicina, um produto químico supostamente produzido como parte do mecanismo da dopamina. Ele pensou que o excesso de glici­na talvez pudesse secundar o efeito da serina, reequilibrando a dopamina. Alguns esquizofrênicos do grupo reagiram de forma dramática e puderam interromper a medicação sem nenhum epi­sódio psicótico. Pela primeira vez, em anos, ficaram com os pen­samentos livres da doença e das drogas potentes usadas no tra­tamento.

Um enfoque das doenças mentais sob o prisma da alimenta­ção seria bem mais benigno do que o das terapias atuais. A pos­sibilidade de serem descobertas novas ligações alimentares tam­bém é tentadora. Entre os livros mais vendidos de culinária, um foi pioneiro ao apresentar listas de “alimentos felizes” e “alimentos tristes”, em apoio à teoria de que os aminoácidos neles contidos chegam diretamente ao cérebro e se transformam em substân­cias químicas que produzem estados de ânimo positivos ou ne­gativos. O leite, o frango, bananas e verduras estão entre os ali­mentos “felizes”, porque estimulam a dopamina e outras duas substâncias “positivas” do cérebro. Em contrapartida, alimen­tos doces e gordurosos são “tristes”, porque estimulam a acetilcolina, uma substância química “negativa”. Os críticos decla­ram, justificadamente, que a química do cérebro não é tão sim­ples assim — os níveis elevados de dopamina de um esquizofrê­nico podem ser considerados positivos? Tampouco é provável que a mudança na ingestão de aminoácidos leve diretamente a uma desejada química cerebral, do mesmo modo que a quantidade de colesterol na alimentação não corresponde diretamente à quan­tidade que existe no sangue.

Se a sanidade pode ser conservada por meio dos alimentos, capazes de promover até a melhora no estado de espírito, os princí­pios básicos da medicina mente-corpo ficam ainda mais confu­sos. Você pode confiar na mente para curar artrite e, ao mesmo tempo, alegar que comer chocolate o deixa deprimido? Isso sig­nificaria uma contradição: a mente domina a matéria, exceto quan­do a matéria domina a mente. No clima atual de descobertas am­bíguas, as duas posições opostas — tratamento do corpo através da mente e da mente através do corpo — ficam igualmente no ar.

O resultado é que nenhum esclarecimento adequado surgiu de toda essa confusão; o mundo subjetivo da mente continua sendo uma energia traiçoeira, caprichosa em sua capacidade de curar ou gerar a doença. Muitos médicos de tendência materialista fi­cariam ansiosos por concluir que a química deve ser a resposta a todos os nossos mistérios mentais e físicos.

Não acho que seja assim. Em minha especialidade, a endocrinologia, foram descobertas algumas das primeiras substâncias quí­micas que afetam a mente: os hormônios endócrinos. Encontro todos os dias pacientes com sintomas que podem ser explicados como defeitos de equilíbrio hormonal — a idéia distorcida da rea­ção de um diabético por baixa do teor de açúcar no sangue, as mudanças de temperamento durante o ciclo menstrual e até uma depressão característica, que é o primeiro aviso de certos tipos de câncer (um tumor no pâncreas, por exemplo, pode ser pe­queno demais para ser detectado, mas espalhará cortisol e outros “hormônios estressantes” na corrente sanguínea, deprimindo o paciente).

Apesar disso, vejo muitas falhas no argumento de que apenas precisamos de um conhecimento mais profundo da química do organismo. O corpo possui muitas substâncias químicas (literal­mente, milhares delas) produzidas em padrões espantosamente complexos, que surgem e acabam rapidamente, quase sempre em frações de segundo. O que controla esse fluxo constante? Não podemos desvincular a mente da união mente-corpo. Afirmar que o corpo se cura usando apenas substâncias químicas é como declarar que um carro troca de marchas usando apenas a transmis­são. Evidentemente, o motorista é necessário, porque sabe o que está fazendo. Embora durante vários séculos a medicina tenha conservado a idéia de que o corpo funciona por si, como uma máquina automotivada, ele também deve precisar de um motorista. De outro modo, a química de nosso corpo seria uma confusão de moléculas flutuantes, em vez do maquinário incrivel­mente ordenado e preciso que é, sem dúvida.

Numa época mais ingênua, achavam que o motorista era um homenzinho a que chamavam homúnculo e que vivia sentado no coração, mudando todas as marchas necessárias para dirigir o corpo. O homúnculo desapareceu na Renascença, quando pe­la primeira vez os anatomistas começaram a dissecar cadáveres para verificar o que tinham por dentro. O homúnculo não foi encontrado no coração (onde também não acharam a alma), mas isso fez surgir uma evidente distância entre a mente e o corpo. Desde então, muitos cientistas procuraram preencher esse vazio com o cérebro, declarando que a função cerebral é controlar to­das as outras funções do organismo. Mas essa resposta leva a uma nova questão, já que o cérebro é apenas outra máquina: ainda é necessário que se encontre ali o motorista. Posso argumentar que está ali, mas se transformou em um ser bem mais abstrato que o homúnculo ou até que o próprio cérebro. Ele é feito da energia inteligente que nos motiva a viver, agir e pensar.

Isso pode ser provado? O próximo passo será nos aprofundar­mos na inteligência interior do corpo, procurando descobrir o que a motiva. O campo da medicina mente-corpo não tem disposi­ções nem regras inflexíveis, o que é muito bom. Durante déca­das a medicina tem entendido que muitas doenças possuem um componente psicossomático, mas lidar com esse aspecto tem si­do como tentar represar o vento. Deve existir algum “corpo pen­sante” dentro de nós, respondendo aos comandos da mente, mas onde pode estar e de que é feito?

 

                   A Escultura ou o Rio?

Contar o número de células do corpo humano é uma tarefa tão difícil como contar o número de pessoas existentes no mundo, mas a estimativa aceita é de 50 trilhões, cerca de 10 mil vezes a atual população da Terra. Isolados e expostos em um micros­cópio, os vários tipos de células — do coração, fígado, cérebro, rins etc. — são semelhantes a olhos inexperientes. Uma célula é basicamente um saco fechado por uma membrana exterior, a parede celular, cheio de uma mistura de água e espirais quími­cas. Exceto as células vermelhas do sangue, todas as outras pos­suem um núcleo que protege as espirais muito retorcidas do DNA. Se você tocar uma partícula do tecido do fígado, verá que tem a aparência de fígado de boi; teria de pressioná-la com força para verificar se é especificamente humano. Mesmo um geneticista com grande prática teria apenas 2 por cento de chance de notar a di­ferença entre nosso DNA e o de um gorila. Assim, diante da quan­tidade de funções do fígado — mais de quinhentas foram relacionadas recentemente — não poderíamos ter a menor idéia com apenas um simples exame ocular.

Uma coisa é inquestionável, apesar da confusão no assunto mente-corpo: as células humanas evoluíram até um estágio no­tável de inteligência. O número de atividades Constantemente coordenadas em nossos corpos é infinita, no sentido literal do termo. Como os ecossistemas da Terra, nossa fisiologia parece operar em compartimentos estanques que, na verdade, estão visivelmente ligados: nós comemos, respiramos, falamos, pensamos, digeri­mos os alimentos, expulsamos as infecções, purificamos nosso san­gue das toxinas, renovamos nossas células, descartamos matéria inútil, votamos nas eleições e muito mais do que isso. Cada uma dessas atividades se entrelaça no tecido do todo. (Nossa ecologia é mais semelhante à do planeta do que muita gente pensa: mi­núsculas criaturas perambulam por nossa superfície, tão igno­rantes de nosso vasto tamanho quanto nós de seu tamanho ínfi­mo. Colônias de ácaros, por exemplo, passam todo seu ciclo de vida em nossos cílios.)

Dentro da vasta organização do corpo, as funções de uma sim­ples célula — como um dos 15 bilhões de neurônios do cérebro — propiciam assunto para um extenso artigo médico. Os volu­mes dedicados a qualquer dos sistemas de nosso organismo, co­mo o imunológico ou o nervoso, ocupam várias prateleiras de qual­quer biblioteca médica.

O mecanismo de cura reside nessa complexidade geral, mas permanece oculto. Qualquer um desses processos que envolvem a cura de um corte superficial na pele — por exemplo, o de coa­gulação do sangue — é incrivelmente complexo. Tanto que, se esse simples mecanismo falha, como acontece com os hemofíli­cos, a medicina científica mais avançada não consegue repetir a função prejudicada. Um médico pode receitar drogas para esti­mular o fator perdido de coagulação do sangue, mas essa ação é temporária, artificial e apresenta efeitos colaterais indesejáveis. O período de restabelecimento do corpo não é o normal, assim como não ocorre a magnífica coordenação de uma dúzia de pro­cessos relacionados. Como comparação, uma droga fabricada pelo homem é como um estrangeiro numa terra em que todos são pa­rentes de sangue. Ele nunca partilhará dos conhecimentos que os outros já têm ao nascer.

Devemos admitir que o corpo tem uma mente própria. Quando compreendemos esse aspecto misterioso de nossa natureza bá­sica, desaparece a natureza milagrosa que atribuímos à cura do câncer. Os corpos de todo mundo sabem como curar um corte na pele, mas aparentemente poucos deles sabem como curar o câncer.

 

“Todo médico compreende que é a natureza quem cura as doenças”, Hipócrates escreveu, pela primeira vez, há dois mil anos. Então, qual a diferença entre a forma comum de cura e a “mira­culosa”? Talvez a diferença seja mínima e exista apenas em nos­sas cabeças. Se você está descascando batatas e corta o dedo, o corte se cura e, evidentemente, você não fica deslumbrado com isso, porque o processo de cicatrização — a coagulação do san­gue para fechar o corte, a formação de uma crosta e a regenera­ção da nova pele e dos vasos sanguíneos — parece uma coisa ab­solutamente normal.

Mas devemos compreender que essa noção de normalidade nada tem a ver com o conhecimento do que é a cura ou de como controlá-la. É triste constatarmos que o volume de conhecimen­to existente nos livros médicos refere-se mais à morte do que à vida. A maior parte do saber médico foi obtida realizando au­tópsias em cadáveres, examinando-se tecidos no microscópio, analisando-se sangue, urina e outros subprodutos do corpo. É verdade que os pacientes são examinados enquanto estão vivos, com testes de partes isoladas do corpo. Mas o conhecimento ad­quirido dessa forma é rudimentar se comparado ao volume de dados ultra-sofisticados dedicados à morte. O poeta Wordsworth escreveu esta frase memorável e sucinta: “Nós matamos para dis­secar”. Nenhuma declaração a respeito das limitações da pesquisa médica pode ser mais verdadeira.

A primeira coisa morta no laboratório é a delicada trama da inteligência que mantém o corpo coeso. Quando uma célula de sangue chega à borda de um corte e começa a formar um coágu­lo, não viajou até ali ao acaso. Sabe realmente aonde quer ir e o que fazer quando chegar, com a mesma certeza de um especialista — com mais até, de fato, já que age de forma completamen­te espontânea e não procura adivinhar. Mesmo que se reparta o conhecimento dessa célula em partículas cada vez menores, à pro­cura do segredo de algum hormônio determinado ou de uma en­zima que sirva de mensageiro, não encontraremos um fio de pro­teína com o rótulo “inteligência”; mas não há dúvida de que ela está atuando.

Parte dessa inteligência dedica-se à cura e aparentemente é uma energia muito poderosa. Existem misteriosos sobreviventes a to­das as doenças fatais e não só ao câncer. Apesar de não se conhe­cer nenhum caso de cura espontânea de AIDS, sabemos que al­gumas pessoas conseguem sobreviver por muito tempo — umas vivem mais de cinco anos — porque, de algum modo, seus siste­mas imunológicos conseguiram se defender de uma doença que em condições normais seria totalmente devastadora. Os pesqui­sadores tendem a considerá-las dotadas de uma fisiologia extraor­dinária, caprichos bioquímicos da natureza. Partindo de amos­tras de sangue e isolando qualquer componente pouco comum que consigam detectar nas células imunizadoras dessas pessoas, os biologistas moleculares esperam descobrir o ingrediente des­conhecido que as protege. Se esse alvo for alcançado — uma ta­refa extremamente tediosa e difícil, dada a complexidade do sis­tema imunológico —, só então, depois de anos de testes de mi­lhões de dólares, poderá surgir uma nova droga que beneficie a humanidade.

Assim, o que todos precisam é da capacidade de fabricar essa droga maravilhosa no próprio organismo, como aconteceu com a primeira pessoa que a produziu. E tal capacidade não pode ser sintetizada. Comprar a droga não é tão bom quanto fabricá-la? Não, por muito tempo ainda. O que chamamos ingrediente ati­vo de uma droga feita pelo homem tem muito pouco know-how, comparado à substância química original produzida pelo orga­nismo. Talvez fosse mais correto chamar essa droga de ingrediente inerte.

A razão disso está no nível de nossas células. A membrana externa, ou parede celular, de cada uma delas está equipada com numerosos pontos receptores. Essa parede é macia, mas os re­ceptores são viscosos — são formados por complexas cadeias mo­leculares cujos últimos elos ficam abertos, à espera de outra mo­lécula que se prenda a eles. Para uma droga atuar — morfina, Valium, digitálicos ou qualquer outra —, é necessário que seja a chave que corresponde exatamente a um receptor escolhido na parede celular, e a nenhum outro.

Hormônios, enzimas e outras substâncias químicas produzi­das por nossos corpos têm admirável conhecimento de quais re­ceptores combinam. As próprias células parecem realmente ca­pazes de encontrar um ponto entre vários — é fantástico seguir seus sinais em um microscópio eletrônico, enquanto traçam li­nhas retas até os pontos em que são necessárias. O corpo tam­bém é capaz de produzir ao mesmo tempo centenas de diferen­tes substâncias químicas, orquestrando-as em relação ao conjunto. Se você ouvir uma forte explosão vinda da rua e se sobressal­tar em sua poltrona, numa reação instantânea, esse mesmo efei­to ocorre diante de um complexo evento interno. O gatilho para esse evento é o jorro de adrenalina liberado pelas glândulas supra-renais. Levada pela corrente sanguínea, essa adrenalina comuni­ca as reações ao coração, que começa a bombear o sangue mais rapidamente — às veias, que se contraem e forçam a elevação da pressão arterial; ao fígado, que põe mais combustível na fórmula de glicose; ao pâncreas, que segrega tanta insulina que mais gli­cose é metabolizada; e ao estômago e intestinos, que param imediatamente de digerir os alimentos para que a energia seja desviada a outro lugar.

Toda essa atividade que se desenvolve num ritmo violento e com efeitos poderosos em todo o organismo é coordenada pelo cérebro, que usa a pituitária para distribuir os sinais hormonais acima descritos. Além disso, outras sinalizações químicas percor­rem os neurônios, fazendo com que a vista focalize melhor, os ouvidos fiquem mais aguçados, os músculos das costas se rete­sem e a cabeça se volte em sinal de alerta.

Para fazer com que todas essas reações se desencadeiem e ces­sem novamente (ao contrário da droga fabricada pelo homem, o organismo sabe como reverter cada processo desses com a mesma perfeição com que iniciou), ocorre um mecanismo de ajuste, se­melhante ao da chave na fechadura. Tudo parece ilusoriamente simples, mas quando se procura repetir esse evento com alguma droga os resultados estão longe de ser tão precisos e a orquestra­ção tão perfeita. Na realidade, são caóticos. A injeção de adrena­lina, insulina ou glicose puras no corpo causa um choque vio­lento. Essas substâncias químicas começam imediatamente a fluir por todos os pontos receptores sem a coordenação vinda do cére­bro e, em vez de se comunicarem com o organismo, elas o assal­tam com teimosa insistência. Embora a composição química da adrenalina seja idêntica à produzida pelo organismo, o ingrediente crítico da inteligência precisa estar presente; de outro modo, a ação da droga não passa de um arremedo da reação verdadeira.

Vou relatar aqui um exemplo de complicações resultantes da aplicação de uma droga aparentemente simples. Pacientes com hipertensão geralmente são aconselhados a baixar sua pressão sanguínea pelo uso de diuréticos — drogas que retiram água das células e do organismo através da urina. É isso, exatamente, o que os rins fazem o tempo todo enquanto monitoram delicadamente a química do sangue, assegurando o equilíbrio exato da água, do material inútil e dos sais necessários, ou eletrólitos. Mas o diuré­tico tem apenas um objetivo e é obcecado por ele: percorre o corpo bradando “Água! Água!” a todas as células que encontra.

Como resultado, reduz-se a tensão do fluido nos vasos sanguíneos, na realidade o que o médico deseja, mas o nível de água em todo o organismo também é afetado. O cérebro pode, então, ser forçado a doar parte de seu líquido, o que em condições nor­mais só faria em caso de extrema urgência, provocando tontura e náuseas no paciente. Nada mais sério acontece na maioria dos casos; porém, às vezes, certas funções cerebrais também se aba­lam, sobretudo em pacientes mais idosos: se tomarem bebidas alcoólicas, mesmo com moderação, podem ficar tão confusos a ponto de esquecerem de ingerir água ou alimentos na quantida­de necessária. Isso poderá provocar um estado de desnutrição alia­do a uma desidratação grave. Segundo alguns endocrinologistas, a desidratação induzida por certos diuréticos na presença de ál­cool ou tranquilizante é a principal causa de morte entre ameri­canos idosos.

Todas essas conseqüências, leves ou graves, são comumente chamadas de “efeitos colaterais” indesejáveis dos diuréticos. Mas tal denominação é inadequada, pois se refere apenas aos efeitos que, bons ou maus, se reúnem no mesmo pacote. Basicamente, um diurético trabalha penetrando nos átomos de sódio, levando o cor­po a descartar-se do excesso de sal, o que faz baixar o nível de líquido nos tecidos, já que a água se alia ao sal em nossos corpos, assim como ocorre na água do mar. O diurético nada pode aju­dar se for retirado muito sal de um local onde a água ainda é necessária. Já que a estrutura atômica do potássio é próxima à do sal, o diurético também pode forçá-lo a se exaurir, levando à fraqueza, fadiga e cãibras nas pernas. (Efeitos menos nocivos são notados geralmente pela perda de vestígios de outros elementos como o zinco e o magnésio.) Além dos sinais comuns de carên­cia de potássio, podem surgir outras complicações — os digitálicos, drogas comumente ministradas a pacientes que sofrem do coração para aliviar a angina (dor no peito), serão mais tóxicos se o organismo estiver com baixo teor de potássio. Ironicamente, suspeita-se hoje em dia que a deficiência de potássio seja o elo causal da alta pressão sanguínea, o que significa que o diurético possa ser o promotor da própria condição que ele pretende curar.

A frustrante realidade, no que se refere aos pesquisadores médicos, é já sabermos que o corpo vivo é a melhor farmácia inven­tada até hoje. Ele produz diuréticos, analgésicos, tranquilizan­tes, soníferos, antibióticos e tudo mais que é fabricado pelas in­dústrias de drogas, mas sua produção é muito superior. A dosa­gem é sempre certa e ministrada no horário adequado; os efeitos colaterais são mínimos ou inexistentes; as indicações para o uso estão incluídas na própria droga, como parte de sua inteligência.

Pensando em fatos tão conhecidos, cheguei a três conclusões. Primeira, essa inteligência está presente em qualquer parte de nos­so corpo. Segunda, nossa inteligência interior supera de longe qualquer outra com que se procure substituí-la a partir do exte­rior. Terceira, essa inteligência é mais importante que a própria matéria de nosso corpo, já que sem ela a matéria ficaria disper­sa, sem forma e caótica. A inteligência é que faz a diferença en­tre a casa projetada pelo arquiteto e uma pilha de tijolos.

Por enquanto, manteremos a definição da palavra “inteligên­cia” tão simples e prática quanto possível. Em vez de nos refe­rirmos à inteligência de um gênio, que pode parecer exaltada e abstrata, eu a encararia simplesmente como know-how. O que quer que você pense sobre inteligência em termos abstratos, não há dúvida de que ao corpo deve ser creditado uma enorme base de conhecimento.

A inteligência interior do corpo é tão poderosa que, quando se desvia, o médico tem pela frente um antagonista temível. Por exemplo, cada célula do corpo é programada por seu DNA para se dividir até determinado ponto, quando a célula-mãe se repar­te em duas. Como todo o resto regulado por nossa inteligência interior, esse processo não é puramente mecânico. A célula se di­vide em resposta à própria necessidade interna, aliada aos sinais gerados pelas células vizinhas e por órgãos distantes que “falam” com ela por meio de mensagens químicas. A divisão da célula é cuidadosamente calculada — e uma decisão bem pensada, a não ser no caso do câncer.

O câncer é o comportamento selvagem e anti-social de uma única célula, que se reproduz sem seguir o padrão, sem sinais de nenhum lado, a não ser, aparentemente, de seu próprio DNA enlouquecido. Por que isso acontece ninguém sabe. É bem pos­sível que o próprio corpo saiba como reverter o processo, mas, por qualquer razão igualmente desconhecida pela ciência, nem sempre consegue. É apenas uma questão de tempo, desde o iní­cio do processo até que as células cancerosas consigam invadir um órgão vital, com células normais, e venha então a causar a morte. Quando chega a crise final, as células cancerosas pere­cem com o resto do organismo, condenadas por seu apetite incontido de auto-expansão.

Até agora, a medicina não descobriu como enviar uma mensa­gem às células cancerosas em tempo de impedir que se realize o trágico destino criado por elas. Os produtos químicos que um médico pode usar contra o câncer não possuem nenhuma efi­ciência no nível da inteligência. O câncer é dotado de mau cará­ter enquanto as drogas são simplórias. O oncologista, portanto, recorre a um ataque mais violento, a uma forma de envenena­mento. Geralmente a droga administrada contra o câncer é tóxi­ca para todo o organismo, mas, como as células cancerosas cres­cem muito mais depressa que as normais, elas ingerem maior quantidade do veneno e morrem primeiro. Toda a estratégia é um risco calculado. O paciente precisa ter sorte; seu médico pre­cisa ser extremamente arguto quanto à dosagem e ao prazo da quimioterapia, questões absolutamente vitais no tratamento. O câncer pode, então, ser derrotado, e anos de vida útil serão so­mados à existência do paciente.

Ironicamente, porém, essa terapia pode falhar porque enfra­quece a própria inteligência que normalmente protege nossos cor­pos da doença. Muitas drogas de combate ao câncer são extre­mamente danosas ao sistema imunológico do corpo; eliminam a medula óssea que fabrica nossas células brancas, provocando um efeito devastador sobre sua quantidade no sangue. À medida que o tratamento de quimioterapia progride, o paciente torna-se mais suscetível a novas formas de câncer e, em certo número de casos — que chega a 30 por cento, no caso do câncer de mama —, surgem outros tipos de câncer e o paciente morre. Além dis­so, estatisticamente, não é possível matar todas as células malig­nas. Estima-se que um paciente típico de câncer possua cerca de 10 bilhões de células cancerosas. Se a quimioterapia for 99,9999 por cento eficiente, 1 milhão delas irão sobreviver, mais do que o suficiente para começar o processo de novo.

As células cancerosas não se formam do mesmo modo; algu­mas são mais duras que outras, portanto mais difíceis de se ma­tar. Pode ser que destruindo as células mais fracas, numa espé­cie de seleção darwiniana, deixemos as mais fortes sobreviver. Nes­se caso, a quimioterapia estaria, na realidade, produzindo um mal virulento em vez de curá-lo. (Do mesmo modo, as persistentes infecções por estafilococos que os pacientes contraem nos hospi­tais são, em geral, muito resistentes aos antibióticos, porque ape­nas as bactérias mais teimosas conseguem viver no ambiente es­terilizado dos centros cirúrgicos e agüentar o contínuo bombar­deio das injeções de penicilina.) Podemos facilmente imaginar a variedade de “supercânceres” que pode surgir de uma ou duas dessas células malignas dotadas de maior resistência ao tratamento.

De qualquer modo, a velha promessa de que a quimioterapia iria acabar com o câncer em nossa geração — tão difundida nos anos 50 — perdeu a crença inicial. Atualmente, alguns tipos de câncer são vencidos pouco a pouco, como a leucemia linfocítica infantil e certos linfomas de Hodgkin, enquanto outros grandes assassinos como o câncer do pulmão e do cérebro continuam vir­tualmente intocáveis por meio da quimioterapia.

 

Nada do que eu disse até agora sobre o know-how do corpo é hipotético. Fomos todos informados, médicos e público em ge­ral, sobre a maravilhosa complexidade do organismo humano. Mas insistimos em continuar pensando no corpo segundo um mol­de obsoleto: ele é considerado basicamente matéria, mas dotado de um técnico eficaz em seu interior, que o põe em movimento. Esse técnico já foi chamado de alma; agora a tendência é rebaixá-lo a um simples fantasma dentro da máquina, mas que continua tendo a mesma importância. Porque podemos ver e tocar nossos corpos, carregar seu sólido peso de um lado para o outro e bater nas portas se não formos avisados disso, sua realidade parece ser a de um material primário — como é o contorno de nosso mundo.

Mas esse contorno tem em si um ponto cego. Apesar da enor­me superioridade de know-how do corpo, que naturalmente os cientistas reconhecem, uma quantidade mínima de tempo e di­nheiro é dispendida na tentativa de compreender o organismo vivo como um todo. Isso acontece por um bom motivo. O filóso­fo grego Heráclito foi o autor do famoso comentário: “Não po­demos entrar num rio duas vezes no mesmo lugar”, já que ele está em constante mudança com a chegada de novas águas. O mesmo acontece com o corpo. Todos nós nos parecemos muito mais com um rio do que com qualquer coisa petrificada no tem­po e no espaço.

Se você pudesse ver seu corpo como realmente é, nunca o ve­ria repetir-se. Noventa por cento dos átomos de nosso corpo não estavam nele há três meses. De certa forma, a configuração das células ósseas permanece a mesma; no entanto, átomos de todos os tipos atravessam livremente as paredes celulares, o que signi­fica que adquirimos um novo esqueleto a cada três meses.

A pele se renova a cada mês; adquirimos novo revestimento no estômago a cada quatro dias com a renovação constante da superfície que entra em contato com os alimentos a cada cinco minutos; as células do fígado se renovam de modo mais lento, mas novos átomos flutuam tranquilamente através delas, como a água no leito de um rio, fabricando um fígado a cada seis se­manas. Mesmo no interior do cérebro, cujas células não são subs­tituídas depois que morrem, o teor do carbono, nitrogênio, oxi­gênio etc. é hoje inteiramente diverso do de um ano atrás.

É como se vivêssemos num edifício cujos tijolos fossem sistematicamente trocados a cada ano. Se for seguida a planta origi­nal, ele continuará parecendo o mesmo prédio.

O corpo humano também continua parecendo o mesmo, dia a dia, mas através dos processos de respiração, eliminação e ou­tros vive em constante sistema de troca com o resto do mundo. Certos átomos — de carbono, oxigênio, hidrogênio e nitrogênio — percorrem o corpo muito rapidamente, como parte essencial do que nos servimos de modo mais imediato: os alimentos, o ar e a água. Se apenas existissem esses quatro elementos, estaríamos literalmente criando novos corpos todos os meses. Mas o ritmo de renovação é retardado por outros elementos que não nos per­correm tão depressa. O cálcio ligado a nossos ossos pode levar um ano inteiro para ser reposto — algumas autoridades ampliam esse prazo a vários anos. O ferro, componente que fabrica as cé­lulas vermelhas do sangue, mantém-se no organismo com muita tenacidade, sendo perdido principalmente através do descarte das células mortas da pele ou da própria perda de sangue.

Mesmo que os índices de mudança possam diferir, ela sempre está presente. Isso a que chamo “inteligência” assume o contro­le de todas essas mudanças para não virarmos simples pilhas de tijolos. Esse é um dos fatos mais evidentes da fisiologia, mas a inteligência é tão mutável, de movimento tão rápido — tão viva, em outras palavras — que os livros de medicina não lhe dedicam quase nenhum espaço.

Para se ter uma idéia de como é limitado nosso conhecimento atual sobre o assunto, basta considerar a estrutura de um neurô­nio. Os neurônios que compõem o cérebro e o sistema nervoso central “falam” entre si através de aberturas chamadas sinapses. Essas aberturas separam filamentos estreitos como galhos, as dendrites, que crescem nas pontas de cada célula nervosa. To­do mundo possui bilhões dessas células, divididas entre o cére­bro e o sistema nervoso central, e, como vimos, cada uma gera dúzias ou mesmo centenas de dendrites (o total é estimado em 100 trilhões). Isso significa que, a qualquer momento, as possí­veis combinações de sinais saltando através das sinapses do cérebro excederão o número de átomos do universo conhecido. Os sinais também se intercomunicam à velocidade do raio. Nosso cérebro leva poucos milionésimos de segundo para ler esta frase, organizando um padrão exato de milhões de sinais que logo em seguida se dissolvem e jamais voltam a se repetir exatamente da mesma forma.

Quando eu estava na faculdade, aprendemos um modelo sim­ples de comunicação de carga elétrica entre neurônios: a carga de eletricidade forma-se de um lado da sinapse e, quando cresce o suficiente, salta como uma faísca através da abertura, dando sinal a outra célula nervosa. Mesmo considerando esse mecanis­mo correto (o que na realidade não é), a descrição de nosso livro de neurologia, em 1966, não ensinava quase nada sobre o modo de agir dos neurônios na vida real; o modelo descrito no livro faz sentido apenas para uma única célula nervosa, isolada e pa­rada no tempo, afastada do contexto. Na verdade, a ação que ocorre nas aberturas, pelo sistema nervoso, é comparável a um compu­tador cósmico reduzido a uma escala microscópica. Esse fantás­tico computador funciona continuamente, operando centenas de programas ao mesmo tempo, distribuindo-se em múltiplos bi­lhões de bits de informação a cada segundo e, o que é ainda mais miraculoso, sabe como se conduzir.

Realmente, não foi nosso estudo de medicina que falhou neste caso. Como é possível a qualquer livro descrever todo esse pro­cesso? Pensar é formar dentro de nós padrões tão complexos, rá­pidos e de uma riqueza tão variada quanto a própria realidade. O pensamento é o espelho do mundo, nada menos do que isso. A ciência simplesmente não tem os instrumentos para observar tal fenômeno, que é, ao mesmo tempo, vivo e infinito. O corpo humano não interrompe seu movimento para que o estudem, pelo menos não como um todo. Portanto, quando causa impacto à ciên­cia, como no caso de uma cura espontânea de câncer, a medicina vacila em seu caminho, espantada por descobrir que a vida não se comporta de modo tão simples quanto o modelo de laboratório.

Em 1986, um impacto abalou todo o campo da pesquisa cere­bral: o neurocirurgião mexicano dr. Ignacio Madrazo implantou com sucesso células saudáveis no cérebro de um paciente que so­fria de mal de Parkinson.

Não só se realizou o transplante, que antes era considerado impossível, como o paciente demonstrou impressionante melhora, recuperando 85 por cento de suas funções normais. Antes da ci­rurgia, esse paciente, um fazendeiro mexicano de trinta e tantos anos, tornara-se quase incapaz por causa da doença. O mal de Parkinson atinge cerca de 1 por cento das pessoas com mais de 50 anos. Começa com tremores nos músculos, rigidez dos mem­bros ou uma tendência a mover-se muito lentamente. A causa imediata desses sintomas é a deficiência de dopamina, a mesma substância química cerebral que causa a esquizofrenia, quando produzida em excesso. Por razões ainda desconhecidas, as célu­las nervosas que produzem dopamina, localizadas em uma parte da base do cérebro chamada substantia nigra, começam a mor­rer, gerando a deficiência. Sem dopamina suficiente, a capacidade do cérebro em regular os movimentos dos músculos diminui e finalmente desaparece.

Qualquer dos sintomas do mal de Parkinson, ou todos eles, agrava-se com o tempo até o paciente ficar totalmente incapaz. O dramaturgo Eugene O’Neill contraiu o mal de Parkinson de­pois dos 50 anos. Ele sentia cada vez mais dificuldade em escre­ver, porque o tremor das mãos aumentava. Havia planejado um ciclo de quatro peças que seria sua obra-prima, mas a doença destruiu tudo: um simples olhar aos manuscritos revela que O’Neill mal conseguia desenhar garranchos e riscos, patéticas le­tras ilegíveis. Com heróica resistência ele transferiu suas palavras ao papel, mas até hoje ninguém foi capaz de decifrar o que elas querem dizer.

No México, o paciente de Madrazo, embora bem mais jovem que a média dos doentes de Parkinson, estava preso ao leito por­que sofria tremores rítmicos e constantes que o impediam de an­dar sem ajuda. Depois da cirurgia ele voltou a andar, correr, alimentar-se, trabalhar no jardim e, como mostrou um filme a seu respeito, foi capaz de carregar novamente seus filhos no colo.

A operação do dr. Madrazo abriu novos horizontes a outros doentes de Parkinson, que apenas nos Estados Unidos ultrapas­sam 1 milhão de casos. Em fins de 1987, realizaram-se no mun­do duzentas operações semelhantes. Madrazo executou mais vinte intervenções com sucesso considerável. (As tentativas anteriores a essa cirurgia tinham falhado, assim como iriam falhar as ou­tras, posteriores. Madrazo acredita que seu sucesso se deve à es­colha da exata localização dos implantes.) Mas só agora começam a ser consideradas as conseqüências a longo prazo — subi­tamente, quase sem aviso, os neuropesquisadores viram-se dian­te de algo até então só possível em ficção científica: um “trans­plante cerebral”.

O que torna um enxerto de tecido cerebral tão surpreendente é que a medicina sempre acreditou que o cérebro não fosse ca­paz de se curar — por esse motivo, quase todos os danos cere­brais causados por doenças ou acidentes eram considerados irre­versíveis. Somente em 1969 um pesquisador em Cambridge, Godfrey Raisman, provou através de um microscópio eletrônico que as células nervosas danificadas podem induzir novo crescimen­to. Recentemente, Madrazo demonstrou que o cérebro não só é capaz de se curar como aceita tecidos de outros órgãos. No caso da doença de Parkinson, ele usou células da glândula supra-renal, que também produz dopamina; a cirurgia também pode ser rea­lizada usando-se o tecido cerebral de outra pessoa ou até de um feto de porco.

Atualmente os neurocientistas estudam a hipótese de que o cérebro seja dotado de um complexo sistema químico de restaura­ção, quase totalmente desconhecido até poucos anos atrás. Um grupo de pesquisa sueco demonstrou que a perda de memória em ratos pode ser revertida injetando-se neles uma das mais im­portantes substâncias químicas de reparo no cérebro, a proteína-chave chamada NGF, ou fator de crescimento nervoso. Por ana­logia, os danos cerebrais associados ao mal de Alzheimer, que também envolve perda de memória, podem ser tratados da mes­ma forma. Além disso, a experiência sueca indica um avanço so­bre o enxerto de tecidos cerebrais porque não usou tecidos vivos nem cirurgia.

Um após outro, os princípios básicos da fisiologia do cérebro vêm sendo reconsiderados e drasticamente modificados. Os avan­ços continuam a ser revolucionários: outra equipe sueca mostrou-nos que as células nervosas podem ser implantadas na retina, cuja superfície é apenas uma extensão e alargamento do nervo óptico. Depois do implante, as células começam a desenvolver novos ra­mos, confirmando a tese de que a regeneração do cérebro é pos­sível e normal. Novamente, essa pesquisa envolveu animais de laboratório em vez de seres humanos, mas a aplicação no trata­mento de cegos é evidente; do mesmo modo, outros enxertos po­dem beneficiar vítimas de traumatismo craniano, derrame e ou­tros males cerebrais.

Quero enfatizar que nenhum desses avanços seria possível sem a mudança de conceito por parte da ciência. É estranho pensar que os mesmos médicos que, em 1989, falam confiantemente da cura do cérebro demonstravam essa mesma confiança ao declará-la impossível, em 1985. Na verdade, as bases do enxerto cerebral são bem antigas: datam de 1912, quando Elizabeth Dunn, a pes­quisadora do Instituto Rockefeller, implantou células nervosas no cérebro de um rato e foi bem-sucedida. Sua pesquisa foi recebi­da com total indiferença. (Isso me faz lembrar que, segundo re­gistros da literatura médica, observou-se por mais de 140 vezes o mofo da penicilina matar bactérias, antes que Alexandre Fle­ming “descobrisse” o fato. Antes dele, todos os pesquisadores haviam se aborrecido porque suas culturas de laboratório, tão cui­dadosamente desenvolvidas, ficavam estragadas pela invasão do mofo verde. O próprio Fleming jogou fora suas culturas infesta­das de bactérias, e só mais tarde compreendeu que havia descoberto a fabricação de uma droga maravilhosa.)

Outro pioneiro no campo do enxerto de cérebro, Don M. Gash, agora na Universidade de Rochester, foi desencorajado no início da carreira por um catedrático que lhe disse:

— Doutor Gash, o senhor é um jovem com uma brilhante car­reira pela frente. Não perca seu tempo com essa idéia boba que não pode ser verdadeira.

A simples noção de que um transplante foi realizado desperta grande ceticismo. Críticos do processo de Madrazo ressaltaram que o prazo de convalescença de seus pacientes, iniciado poucas semanas após o implante das células cerebrais, era muito rápido para dar tempo ao novo tecido de “pegar”. Pode ser que o cérebro sare totalmente por si mesmo, segregando, em resposta ao corte cirúrgico, substâncias químicas que não são produzidas pelas novas células (assim como uma ostra expele madrepérola em res­posta a um grão de areia em sua concha).

 

Talvez essas descobertas não nos informem tanto sobre o mo­do de se conduzir um transplante, mas sirvam de estímulo à busca de novas capacidades do cérebro como órgão vivo e dinâmico. Por mais que venha sendo glorificado pela medicina moderna, ele é a parte mais petrificada do petrificado modelo escultural do corpo, já que nem era capaz de se recuperar. Diante disso, esta é uma afirmação suspeita. Todas as células de nosso corpo, desde um folículo capilar, um neurônio ou uma célula do cora­ção, surgem de um filamento duplo de DNA no momento da concepção. Tudo o que você pode fazer — pensar, falar, correr, tocar violão ou dirigir um país — desenvolve-se de uma capaci­dade programada dentro dessa molécula inicial. Sendo assim, dizer que um neurônio não pode se curar é o mesmo que afirmar que seu DNA ficou aleijado. Seria uma proposta razoável? Sem dú­vida, o DNA decidiu ser uma célula cerebral em vez de cardía­ca, o que acarreta a manifestação de determinadas partes de seu potencial em detrimento de outras.

Mas isso difere totalmente da afirmação de que qualquer capacidade do DNA tenha sido perdida. Nada é perdido no DNA. Cada célula do corpo contém, o tempo todo, todas as infinitas possibilidades do DNA, desde o momento da concepção até a morte. A prova disso está no procedimento a que chamamos clone: teoricamente, alguém pode pegar uma célula do interior da maçã do rosto e, mediante certas condições, produzir uma cópia idêntica a você, ou um milhão delas. O genial na natureza é que ela não fabricou 1 milhão de clones iguais; na verdade, apenas os organismos mais primários consistem em células idênticas, e a maior parte deles é feita de uma só célula, como a ameba. Ain­da assim, nesse sentido, a diferença entre a ameba e o ser huma­no se desfaz no nível do DNA: tudo o que a ameba é está contido em seu pequeno pacote de DNA, e tudo o que você é está contido no seu. Portanto, não deve ser tão surpreendente que um neurônio realmente se decida (em circunstâncias que não compreendemos muito bem) desobedecer à própria norma de não se recuperar e, de repente, comece a fazer exatamente isso.

A verdade, neste assunto, é que o cérebro é complexo demais para se transformar em modelo, e a ciência, por definição, tra­balha com modelos. Eles são úteis, mas todos, sem exceção, pos­suem pontos cegos em seu interior. Para observar um cérebro em funcionamento, ou qualquer função do corpo, sem a pre­sença de um modelo, teríamos de vê-los como algo abstrato e aparentemente contraditório, preservando o aspecto imutável em meio à mudança dinâmica.

No aspecto imutável, o corpo é sólido, estável, como uma escultura congelada. No mutável, ele é móvel e fluente como um rio. Segundo o ponto de vista científico herdado de Newton, tem sido mentalmente impossível unir esses dois aspectos ao mesmo tempo. Lembro-me de um físico ter comentado que Newton comparava a natureza a um jogo de bilhar. Com isso, ele queria dizer que os físicos clássicos estudam coleções de ob­jetos sólidos — as bolas de bilhar — movendo-se em linhas re­tas, impulsionados por leis fixas de movimento. O jogo consis­te em predizer em cada caso a direção, a velocidade, a força ci­nética etc., como um cavalheiro inglês, à tarde, em seu jogo de sinuca. Mas para fazer esses cálculos você precisa parar o jogo e desenhar-lhe um modelo, completando-o com fórmulas para os ângulos e trajetórias apropriados, e assim por diante.

A ciência aceitou, em princípio, um sistema petrificado para mapear tudo o que acontece no mundo material; foi, portanto, natural que a idéia da escultura precedesse a idéia do rio. Mas o rio não parou de correr para satisfazer a ciência — a beleza do corpo humano está em se renovar a cada momento. Sendo assim, como fazer um mapa do corpo humano a cada instante? Esse é o novo dilema que teremos de enfrentar. Se pudermos resolvê-lo, chegaremos bem mais perto daquilo que procura-mos; não mais o conhecimento para ser guardado em bibliote­cas, mas novas capacidades de programar nosso computador cósmico.

 

                   Mensageiros do Espaço Interior

Subir até Machu Picchu, a cidade-fortaleza dos incas, é uma tarefa difícil. Depois de cruzar uma passagem no alto dos An­des, a quase 5 mil metros de altura, onde o oxigênio é rarefeito a ponto de causar tontura, a cidade surge acima das nuvens, e seus muros só são atingidos por meio de 3 mil degraus de pedra. Essa foi a última fortaleza tomada por Pizarro quando conquis­tou o Peru, em 1532. É espantoso pensar nos atletas corredores que faziam a ligação entre Machu Picchu e todos os vilarejos es­palhados pelos quase 4 mil quilômetros que formavam o impé­rio inca. Esses corredores eram mensageiros velozes, donos de uma resistência quase sobre-humana. Corriam descalços, cobrindo imensas distâncias a cada dia — o equivalente a duas ou três ma­ratonas olímpicas. Algumas de suas trilhas saíam do cume das montanhas rochosas do Colorado e subiam ainda mais de 1,5 quilômetro.

Devem ter sido esses corredores — olhos e ouvidos do impera­dor Atahualpa — que o avisaram da aproximação dos espanhóis. Agindo traiçoeiramente, Pizarro apoderou-se de uma fortuna quando sequestrou (e depois matou) Atahualpa. Espero que a lenda seja verdadeira quando diz que a maior parte do incalculá­vel tesouro dos incas foi escondida a tempo em local secreto. (Pizarro, que era excepcionalmente ganancioso, mesmo para um con­quistador, foi assassinado por rivais invejosos em 1541.)

Se pensarmos no cérebro humano qual uma fortaleza como Machu Picchu, ele também deve ter mensageiros para transmitir seu comando aos pontos mais distantes do império — neste caso, o dedão do pé. As trilhas físicas são bem visíveis — o sistema ner­voso central percorre a coluna vertebral, ramificando-se para os lados a cada vértebra da espinha dorsal; esses nervos principais depois se subdividem em milhões de outros, mais finos, que se comunicam com todas as partes do corpo. Os primeiros anato­mistas viram os nervos maiores no século 16, mas o sistema ner­voso continuava um segredo. Quem eram os mensageiros que le­vavam as mensagens do cérebro e as traziam de volta a ele?

Muitas pessoas ainda pensam que os nervos trabalham eletricamente, como um sistema telegráfico, porque até quinze anos atrás era o que os compêndios médicos ensinavam. No entanto, na década de 70, iniciou-se uma série de importantes descober­tas, centralizada numa nova classe de substâncias químicas ins­tantâneas, chamadas neurotransmissores. Como o próprio nome diz, essas substâncias transmitem impulsos nervosos; atuam em nosso corpo como “moléculas comunicadoras” através das quais os neurônios podem falar com o resto do corpo.

Os neurotransmissores são os corredores que partem do cére­bro e voltam a ele, informando a todos os órgãos nossas emoções, desejos, lembranças, intuições e sonhos. Nenhum desses even­tos fica apenas no cérebro. Do mesmo modo, nenhum deles é estritamente mental, já que podem ser codificados em mensa­gens químicas. Os neurotransmissores tocam a vida de cada cé­lula. Sempre que um pensamento quer se formar, essas substân­cias químicas também precisam agir, porque ele não pode existir sem elas. Pensar é praticar química cerebral, promovendo uma cascata de respostas através do corpo. Já vimos que essa inteli­gência, como know-how, invade a fisiologia — e agora adquiriu uma base material.

Isso tira o mistério do nome deste capítulo, mas não sua dramaticidade. Na verdade, nenhum acontecimento recente na biomedicina foi tão revolucionário quanto essas descobertas. A che­gada dos neurotransmissores em cena torna a interação da mente e da matéria mais móvel e fluente do que nunca — muito mais próxima do modelo do rio. Os neurotransmissores também aju­dam a preencher o espaço que aparentemente separa a mente do corpo, um dos mistérios mais profundos que o homem tem en­frentado desde que começou a pensar no que ele é.

 

No início, em 1973, só dois neurotransmissores pareciam necessários: um, para ativar uma célula distante, como um múscu­lo, e outro, para diminuir a atividade. Duas substâncias quími­cas do cérebro, a acetilcolina e a norepinefrina, fazem exatamen­te isso — são os sinais de “partida” e “parada” do sistema ner­voso. Foram consideradas revolucionárias na época, porque se pro­vava que o impulso enviado por uma célula nervosa a outra não era elétrico, mas de natureza química. Imediatamente, a noção aceita de pequenas faíscas saltando de neurônio a neurônio ficou obsoleta. Mas o novo modelo químico continuou, no início, a pre­servar a teoria básica de que apenas dois sinais eram necessários. Os computadores feitos pelo homem operam usando esse tipo de ligação binária, e o cérebro aparentemente fazia o mesmo.

Então, quando os biologistas moleculares de todo o mundo começaram a investigar o assunto mais a fundo, surgiram vários ou­tros neurotransmissores, cada qual com uma estrutura molecu­lar diferente e, aparentemente, com uma diferente mensagem a transmitir. Em termos estruturais, muitos deles foram se relacio­nando e ligando; como os peptídios, complexas cadeias de ami­noácidos do mesmo tipo, existentes nas proteínas que formam cada célula, inclusive as cerebrais.

À medida que essas descobertas emergiam, direta ou indiretamente, muitos e muitos enigmas começaram a ser solucionados. Se você puder pegar um gato adormecido, retirar um pouquinho de seu líquido espinhal e injetar em um gato acordado, este cairá imediatamente no sono. Isso acontece porque o cérebro do gato faz com que o corpo adormeça quimicamente, com sua pró­pria poção sonífera. Para que o animal torne a acordar, é preciso ser injetado seu oposto químico, um sinal de despertar, na colu­na vertebral.

Nos humanos, onde se opera o mesmo mecanismo químico, o corpo não é acordado de manhã por um grosseiro alarme in­terno, mas por uma série de sinais espaçados, leves de início e progressivamente mais fortes, que nos tiram do sono em vários estágios. Todo o processo envolve uma transição gradual, em qua­tro ou cinco ondas, da bioquímica do sono à bioquímica do esta­do de vigília. Se esse processo é interrompido, você não desperta tão completamente como deveria — a bioquímica de duas fases distintas se mistura. É por isso que os pais de recém-nascidos, obrigados a levantar várias vezes durante a noite, não se sentem muito normais durante o dia. Os relógios despertadores também nos arrancam de nosso padrão natural de despertar, provocando uma espécie de embriaguez que pode persistir o dia todo, até que novo período de sono e despertar reajuste a química mente-corpo.

Eis um exemplo que se aplica a esse tema: todos os camelos demonstram grande tolerância a altos índices de dor — são capa­zes de mascar um ramo de espinheiro, enquanto apanham de va­ra do homem furioso que carregam às costas. Pesquisadores curiosos examinaram as células cerebrais do camelo e descobri­ram que elas produzem grande quantidade de uma substância química específica que, ao ser injetada em outros animais, faz com que também ignorem a dor. Portanto, o sono e a tolerância à dor, como já se sabe, dependem de mensageiros químicos precisos, produzidos no cérebro.

Uma a uma, várias outras funções que antes estavam “na ca­beça” agora são ligadas a neurotransmissores específicos. Os es­quizofrênicos que sofrem de alucinações e pensamentos psicóti­cos geralmente melhoram muito se forem submetidos a uma má­quina de diálise renal, que filtra as impurezas do sangue. Como vimos, os pesquisadores do cérebro estabeleceram o fato de que um neurotransmissor chamado dopamina existe em níveis anormalmente elevados no cérebro dos esquizofrênicos. O tratamen­to normal dessa doença impõe o uso de drogas psicoativas que suprimam a dopamina; talvez a máquina de diálise possa real­mente removê-la ou retirar qualquer subproduto do fluxo san­guíneo.

Em meados dos anos 80, pouco mais de dez anos depois do primeiro avanço, mais de cinquenta desses neurotransmissores e neuropeptídios já eram conhecidos. Todos os cinquenta podem ser produzidos de um lado das sinapses entre nossos neurônios e, quando as cruzam, podem ser recebidos pelos pontos recepto­res do outro lado. Existe, assim, uma incrível flexibilidade de co­municação entre uma célula e outra. O neurônio, em si, passou a ser visto como um produtor de mensagens que não diziam ape­nas “sim” ou “não”, como um computador. O vocabulário do cérebro é bem mais vasto, englobando milhares de combinações de sinais diferentes, a perder de* vista, já que novos neurotrans­missores continuam a ser rapidamente descobertos.

Que tipos de mensagens as células nervosas trocam entre si? A resposta é espantosa, porque certos segmentos de nosso voca­bulário químico parecem tão específicos quanto a conversa nor­mal, enquanto outros são muito ambíguos. Nossa tolerância pa­ra a dor, como a do camelo, depende da classe de substâncias químicas descobertas nos anos 70, chamadas endorfinas e encefalinas, que agem naturalmente no corpo, como analgésicos. A palavra endorfina significa “morfina interna” e encefalina, “den­tro do cérebro”. E essa é a história delas: são uma versão da mor­fina produzida pelo próprio cérebro.

Tal capacidade, desconhecida até então, de fabricar opiáceos internos despertou muito entusiasmo. Já se suspeitava de que o corpo deveria ser capaz de regular a sensação de dor. Apesar de insistente, ela nem sempre desperta nossa plena atenção. Emo­ções fortes, por exemplo, podem suplantar os sinais de dor do corpo, como acontece com a mãe que entra correndo para salvar o filho numa casa incendiada, ou um soldado ferido que conti­nua lutando, ignorando a dor dos ferimentos. Em circunstâncias mais comuns, todos somos capazes de desviar nossa atenção de pequenas dores — não reparamos numa dor de garganta, por exemplo, quando estamos conversando interessadamente com alguém.

Mesmo sendo comum a dor atingir um patamar e depois diminuir, nenhum mecanismo justificava esse fato. Agora, a medi­cina já pode encontrar a explicação, no uso desses analgésicos in­ternos — as endorfinas e encefalinas —, de que qualquer neurônio é capaz de produzir à vontade. O público em geral logo ficou sabendo que o cérebro produz narcóticos até duzentas vezes mais fortes que qualquer produto que se possa comprar na rua, com a grande vantagem de que nossos próprios anestésicos não são cumulativos. Talvez, no futuro, um médico venha a anestesiar seus pacientes estimulando alguma região de seus cérebros, pro­porcionando à medicina ocidental uma forma científica da acu­puntura chinesa.

A morfina e as endorfinas bloqueiam a dor preenchendo determinado receptor nos neurônios e impedindo a entrada de ou­tras substâncias químicas que trazem a mensagem da dor. Sem essas substâncias não pode haver sensação de dor, independen­temente do motivo físico que a provoque. Segundo esse modelo, uma molécula de endorfina é como uma palavra específica, a pa­lavra “anestésico”. Podemos imaginar que, quando a palavra “dor” chama a atenção do cérebro, ele tem a opção de respon­der com a palavra “anestésico”. Infelizmente, essa imagem sim­ples foi toldada por pesquisas recentes.

Descobriu-se que os níveis de endorfina no corpo não correspondem na base de um-para-um à dor que se sente. Isso pode ser provado pelo emprego de placebos, ou drogas falsas. Pacien­tes com muita dor frequentemente sentem-se aliviados ao rece­ber um placebo, em geral uma pílula de açúcar, com o aviso de que é um poderoso anestésico. Nem todos reagem assim, mas geralmente entre 30 e 60 por cento dos pacientes declaram que a dor passou. Esse resultado, chamado efeito placebo, é conheci­do há séculos, mas é altamente imprevisível. O médico não pode avaliar previamente que pacientes serão beneficiados nem o quanto.

Em primeiro lugar, por que uma pílula inofensiva de açúcar pode aliviar a dor, mesmo a mais aguda, de úlcera péptica ou de cirurgia traumática? As endorfinas devem ser a resposta, se­gundo foi descoberto. Uma droga chamada naloxone age como antagonista químico da morfina, o que significa possuir a capa­cidade de expulsar as moléculas de morfina de um ponto recep­tor. Quando o naloxone é administrado depois de um anestésico, a sensação de dor volta instantaneamente. Quando é eliminado, a mesma coisa acontecerá com o placebo. Os pacientes que fica­ram livres da dor com a pílula de açúcar declararam que ela vol­tou depois que tomaram naloxone. Isso significa que as endorfi­nas e a morfina devem ser basicamente a mesma droga, com a única diferença de que as primeiras são fabricadas pelo corpo e a outra, do ópio da papoula.

No entanto, mais uma vez, apenas certa porcentagem dos pacientes apresentou esse resultado. Naloxone fez a dor voltar com toda a força em determinados pacientes; em outros, o efeito pla­cebo continuou agindo totalmente; e em outros, ainda, voltou apenas uma dor mais fraca. Os pesquisadores ficaram ainda mais confusos, e assim continuam até hoje. As endorfinas são, sem dúvida, os anestésicos internos, mas descobrir essas novas molé­culas não foi a resposta completa.

Estudos sobre a dor já demonstraram que a morfina não é quimicamente idêntica às endorfinas, que estas interagem de um mo­do mais completo que as drogas narcóticas e que qualquer for­ma de tratamento para alívio da dor — morfina, endorfinas, acu­puntura ou hipnose — tem efeito muito variável. Também foi des­coberto que as endorfinas não podem se transformar em produ­tos farmacêuticos satisfatórios, porque nossos anestésicos inter­nos causam tanto vício quanto a heroína, se injetados.

Em pouco tempo, as mesmas complicações frustrantes que os cientistas enfrentaram com as endorfinas e encefalinas abrange­ram todos os outros neurotransmissores. Acontece que um neurônio não se limita, simplesmente, a captar o sinal de uma célula nervosa vizinha e passá-la incólume à sinapse seguinte. Essa é apenas uma escolha entre outras. Mesmo não sendo possível des­crever exatamente como os neurônios recebem suas mensagens químicas, ou como as transportam pelos próprios axônios (ou tron­cos), sabe-se que o processo deve ser muito flexível. A célula ner­vosa pode mudar a mensagem no trajeto, transformando a subs­tância química que recebeu no ponto A em outra diferente no ponto B. Os pontos receptores nas pontas das células nervosas também podem se modificar para receber diferentes tipos de men­sagens; a estação expedidora do outro lado da sinapse é igual­mente versátil.

Na verdade, essa confusão é altamente encorajadora para nos­sos propósitos, porque prova que o corpo não pode ser compreen­dido sem o ingrediente perdido da inteligência. A aparência físi­ca das endorfinas ou de qualquer outra substância neuroquímica não tem a mesma importância de seu know-how — como es­colhem seus pontos de contato, o que as impele a agir, como “fa­lam” com o resto do corpo numa coordenação exata, e assim por diante. Mesmo no meio de uma verdadeira revolução química, a mente é superior à matéria. De fato, a estrutura molecular de qualquer neurotransmissor é hoje considerada completamente se­cundária diante da capacidade do cérebro em empregá-la.

Os biologistas celulares constataram com enorme surpresa que, no que diz respeito às moléculas, os neurotransmissores não têm nada de especial. Toda a proteína de nossos corpos é construída por cadeias de vinte aminoácidos básicos, e essas cadeias formam novos arranjos em alongamentos chamados peptídios. Os neuropeptídios têm assinatura própria, diferindo de outras cadeias de peptídios do corpo, mas a mesma fábrica, nosso DNA, produz todos eles. O DNA é o manancial para todas as proteínas que refazem as células, produzem outras, repõem peças defeituosas do código genético, curam cortes e arranhões etc.

Sem se preocupar em inventar uma nova classe de substâncias químicas, o DNA descobriu novo uso para suas matérias-primas familiares, os aminos, aminoácidos e peptídios. E, mais uma vez, apenas a capacidade de fazer esses diferentes produtos é crucial. Não há nada de especial nas moléculas em si, mesmo que sua descoberta por um biologista molecular seja especial para a ciência.

Então, de onde vem a capacidade de fazer os neurotransmissores? Talvez devêssemos procurar a contribuição vinda da men­te. Afinal, não é realmente a molécula de adrenalina que leva a mãe a entrar em um prédio em chamas para salvar o filho, ou uma molécula de endorfina que a protege de sentir as labaredas? O amor a impulsiona, a determinação cega protege-a da dor. O que acontece, apenas, é que esses atributos de sua mente encon­traram um caminho químico que o cérebro pode seguir para fa­lar com o corpo.

Agora chegamos ao âmago da questão. A mente, em qualquer definição, é imaterial, mas desenvolveu uma forma de trabalhar em parceria com essas complicadas moléculas comunicadoras. São tão intimamente associadas que, como vimos, a mente não pode ser projetada no corpo sem tais substâncias químicas. Mas essas substâncias não são a mente. Ou são?

Toda essa situação paradoxal foi resumida de modo inteligente há vários anos pelo eminente fisiologista australiano Sir John Eccles, ganhador de um Prêmio Nobel, durante uma conferência aos parapsicólogos que debatiam assuntos rotineiros da PES (Per­cepção Extra-Sensorial), como telecinésia — a capacidade de mo­ver objetos físicos com a mente.

— Se vocês querem ver um caso real de telecinésia — disse ele à audiência —, considerem as proezas da mente sobre a ma­téria realizadas pelo cérebro.

É espantoso que, a cada pensamento, a mente consiga mover átomos de hidrogênio, carbono, oxigênio e outras partículas das células cerebrais. Aparentemente, nada estaria mais distante do pensamento insubstancial do que a sólida matéria cinzenta do cérebro. Toda essa façanha é realizada sem nenhuma ligação evidente.

O mistério do domínio da mente sobre o corpo ainda não foi bem explicado pela biologia, que prefere continuar estudando estruturas químicas sempre mais complexas, operando em níveis mais refinados da fisiologia. Mas permanece evidente que nin­guém encontrará uma partícula, por menor que seja, intitulada “inteligência”. Tal evidência se acentua quando compreendemos que toda matéria de nossos corpos, pequena ou grande, foi dota­da de inteligência ao ser modelada. O próprio DNA, apesar de reconhecido como o dirigente mental-químico do corpo, é essen­cialmente formado pelos mesmos blocos básicos de construção que os neurotransmissores que ele fabrica e controla. O DNA é como uma fábrica feita de tijolos que também os fabrica. (O grande matemático austríaco Erich Von Neumann, além de ser um dos inventores-descobridores do moderno computador, tam­bém se interessava por todos os tipos de robôs. Uma vez inven­tou, no papel, uma máquina verdadeiramente engenhosa, um robô capaz de fabricar robôs iguais a ele — em outras palavras, uma máquina auto-reprodutora. Nosso DNA conseguiu a mesma coisa em grande escala, já que o corpo humano nada mais é que va­riantes de DNA fabricados pelo DNA.)

Pode parecer fácil pensar no DNA, com seus bilhões de bits genéticos, como uma molécula inteligente; sem dúvida, ele é bem mais esperto que uma molécula simples como a de açúcar. Que esperteza o açúcar pode ter? Mas o DNA, na verdade, não passa de fios de açúcar, aminos e outros componentes simples. Se eles não são “espertos” a princípio, o DNA não poderia vir a sê-lo apenas por reuni-los. Seguindo essa linha de raciocínio, por que o átomo de carbono ou de hidrogênio no açúcar também não é esperto? Talvez seja. Como vimos, se a inteligência está presente no corpo, deve vir de algum lugar e esse lugar pode estar em qual­quer canto.

 

Ao seguir o próximo passo da história do neurotransmissor, estaremos diante de outro salto quântico no que diz respeito a complicações, mas, surpreendentemente, a relação entre mente e matéria começa de fato a ficar mais clara. Descobriu-se que as áreas do cérebro mediadoras de nossas emoções — as amígdalas e o hipotálamo, também conhecido como “cérebro do cérebro” — são especialmente ricas em todas as substâncias do gru­po neurotransmissor. Isso significa, portanto, que onde os pro­cessos de pensamento são abundantes (o que quer dizer que muitos neurônios estão fortemente agrupados) também estão as substân­cias químicas associadas ao pensamento. Nesse momento, ainda havia uma divisão mais ou menos definida entre as substâncias químicas que saltavam o espaço entre as células cerebrais e as que partiam do cérebro pela corrente sanguínea. (Em meu cam­po, a endocrinologia, uma das qualidades definidoras do hormônio é que ele flui pela corrente sanguínea, um processo geralmente bem mais lento que o da transmissão de uma célula nervosa, que registrou uma velocidade superior a 360 quilômetros por hora; um sinal enviado da cabeça ao dedo do pé leva menos de um qüinquagésimo de segundo.)

Foi só quando a ciência pensou que podia isolar as substân­cias químicas cerebrais e categorizar suas posições que, inespe­radamente, o corpo mostrou o quanto é complicado. Pesquisa­dores do National Institute of Mental Health descobriram recep­tores igualmente abundantes em outros pontos fora do cérebro. Desde o início da década de 80, foram descobertos receptores para neurotransmissores e neuropeptídios nas células do sistema imu­nológico chamadas monócitos.

Receptores “cerebrais” em células brancas do sangue? Não se poderia exagerar o significado dessa descoberta. No passado, pensava-se que o sistema nervoso central fosse o único capaz de enviar mensagens ao corpo, assim como um complicado sistema telefônico, ligando o cérebro a todos os órgãos com quem queria “falar”. Nesse esquema, a função dos neurônios seria como a das linhas telefônicas: transmitir os sinais do cérebro. Era essa sua única função, e não havia outra similar na fisiologia.

Soube-se, então, que o cérebro não se limita a mandar impul­sos que viajam em linhas retas pelos axônios, ou ramos, dos neu­rônios; eles circulam “inteligência” livremente, através de todo o espaço interior do corpo. Ao contrário dos neurônios, que estão fixos num ponto do sistema nervoso, os monócitos do siste­ma imunológico viajam pela corrente sanguínea, o que lhes dá livre acesso a todas as outras células do corpo. Dotado de um vocabulário cuja complexidade espelha o do sistema nervoso, o sistema imunológico evidentemente manda e recebe mensagens com a mesma variedade. Se o fato de estarmos felizes, tristes, pen­sativos, animados etc. obriga nossas células cerebrais a produzi­rem neuropeptídios e neurotransmissores, as células imunológicas também devem ser felizes, tristes, pensativas e animadas — devem, enfim, ser capazes de expressar toda a gama de “pala­vras” que os neurônios empregam. Os monócitos podem ser con­siderados, então, como neurônios circulantes.

Com essa descoberta, o conceito de célula inteligente tornou-se uma realidade possível. Um tipo de inteligência localizada já era conhecido: a que o DNA possui em cada célula. Desde o início de 1950, quando Watson e Crick delinearam a estrutura do DNA, a pesquisa provou que essa molécula notável, quase infinitamente complexa, codificava toda a informação necessária para criar e sustentar a vida humana. Mas a inteligência dos ge­nes foi vista inicialmente como fixa, porque o DNA é a substân­cia química mais estável do corpo e, graças a essa estabilidade, cada um de nós pode herdar os traços genéticos de nossos pais — olhos azuis, cabelos crespos, traços do rosto etc. — e preservá-los intactos para transmiti-los a nossos filhos.

O know-how transportado pelos neurotransmissores e neuro­peptídios representava algo muito diferente: a alada e fugaz inte­ligência da mente. A maravilha é que essas substâncias químicas “inteligentes” não estão apenas no cérebro, cuja função é pen­sar, mas no sistema imunológico, cujo papel principal é nos de­fender das doenças. Do ponto de vista de um químico do cére­bro, essa súbita expansão das moléculas mensageiras torna seu trabalho mais complexo. Mas, para nós, a descoberta de uma in­teligência “fluente” confirma o modelo do corpo comparado a um rio. Precisávamos de um material básico para afirmar que essa inteligência flui por todo nosso corpo, e agora o temos.

Qualquer indivíduo percebe que sua mente está cheia de um confuso fluir de impressões, amorfas demais para serem fixadas, para descrevê-las, a psicologia as reduziu a termos igualmente amorfos, como a famosa frase livre associação de idéias (experiên­cia individual considerada como uma série contínua de ocorrên­cias). Hoje, como se fosse um fluxo de água que você realmente pode ver e tocar, os pesquisadores do cérebro descobriram cas­catas de substâncias químicas cerebrais. Mas, ao contrário do flu­xo, essas cascatas não seguem um leito, mas fluem por toda a parte. Não deixam de fluir nem por uma fração de segundo. Um cientista do cérebro realmente pára o tempo ao examinar os com­ponentes da cascata. As substâncias químicas que ele quer en­contrar são mínimas — foram necessários os cérebros de 300 mil carneiros para formar um miligrama da molécula que o cérebro usa para estimular a tireóide. As células receptoras também não são fáceis de se captar. Dançam continuamente na superfície das paredes celulares e mudam de forma ao receber novas mensa­gens; qualquer célula pode contar com centenas ou até milhares de pontos de contato, mas apenas um ou dois podem ser analisa­dos ao mesmo tempo. A ciência aprendeu mais sobre a química do cérebro nos últimos quinze anos do que em toda a história anterior, mas ainda somos como estrangeiros que tentam apren­der o idioma da nova terra lendo rabiscos em papéis apanhados na rua.

 

Até agora ninguém foi capaz de captar exatamente como a cas­cata de substâncias químicas se modela, para fazer tudo o que a mente consegue. Lembranças, sonhos e todas as atividades diá­rias da mente permanecem um profundo mistério no que diz res­peito a seu mecanismo físico. Mas agora sabemos que a mente e o corpo são como universos paralelos. Tudo o que acontece no universo mental necessariamente deixa sinais no físico.

Recentemente, os pesquisadores do cérebro conseguiram uma forma de fotografar o percurso dos pensamentos em 3D, como um holograma. O processo, conhecido como PET (tomografia por emissão de pósitron), consiste em injetar-se na corrente san­guínea glicose, cujas moléculas de carbono foram marcadas com radioisótopos. A glicose é o único alimento do cérebro que a uti­liza muito mais depressa que os tecidos comuns. Conseqüente-mente, quando a glicose injetada atinge o cérebro, as moléculas marcadas de carbono são detectadas, enquanto ele as utiliza, e registradas em três dimensões pelo monitor, mais ou menos co­mo ocorre numa tomografia. Observando essas moléculas girarem enquanto o cérebro pensa, os cientistas viram que cada acontecimento distinto no universo da mente — como a sensação de dor ou de uma intensa lembrança — desencadeia novo modelo químico do cérebro, não apenas em um ponto, mas em muitos. A imagem se modifica a cada pensamento e, se fosse possível am­pliar a imagem para o corpo todo, não restaria dúvida: ele tam­bém se modifica ao mesmo tempo, graças às cascatas de neuro-transmissores e moléculas mensageiras afins.

Como se pode ver agora, nosso corpo é a imagem física, em 3D, do que estamos pensando. Esse fato notável escapa de nossa observação por vários motivos. Um deles é que o contorno físico de nosso corpo não muda tão drasticamente a cada pensamento. Mesmo assim, é evidente que o corpo projeta os pensamentos. Literalmente, podemos ler a mente de outras pessoas pela mu­dança constante de suas expressões faciais; quanto a nós mesmos, ainda que sem notar, também registramos os milhares de gestos da linguagem do corpo como um sinal de nosso estado de espíri­to e das intenções das pessoas para conosco. Filmes realizados em laboratórios que estudam o sono demonstraram que muda­mos de posição dúzias de vezes durante a noite, obedecendo a comandos do cérebro de que não temos consciência.

Em segundo lugar, não vemos nossos corpos como pensamen­tos projetados, porque muitas mudanças físicas que eles causam são imperceptíveis. Elas envolvem alterações mínimas da quími­ca celular, da temperatura do corpo, da carga elétrica, da pressão sanguínea e assim por diante — e nada disso é registrado por nossa observação. No entanto, podemos ter certeza de que nosso corpo é suficientemente fluido para espelhar qualquer evento mental. Nada se move sem movimentar o todo.

 

As últimas descobertas da neurobiologia reforçaram ainda mais a idéia dos universos paralelos da mente e do corpo. Quando os pesquisadores prosseguiram, indo além do sistema nervoso e do imunológico, começaram a descobrir os mesmos neuropeptídios e seus receptores em outros órgãos, como os intestinos, rins, es­tômago e coração. Existe a expectativa de que também possam ser encontrados em outras partes do corpo. Isso significa que nos­sos rins podem “pensar”, no sentido de que podem produzir neu­ropeptídios idênticos aos encontrados no cérebro. Esses pontos receptores não são apenas manchas viscosas. São questões à es­pera de respostas na linguagem do universo químico. É muito provável que, se em vez dos poucos rabiscos em papéis tivésse­mos um dicionário completo, conseguiríamos descobrir que ca­da célula fala tão fluentemente quanto nós.

Em nosso corpo, as perguntas e respostas prosseguem sem fim. Apenas uma pequena glândula, como a tireóide, tem tanto a di­zer ao cérebro e a suas companheiras, as glândulas endócrinas, e através delas a todo o corpo, que essa cascata de conversas in­fluencia dezenas de funções vitais como o crescimento, o índice metabólico e muito mais. A rapidez de nosso pensamento, nossa estatura, o tamanho de nossos olhos, por exemplo, dependem em parte do conselho da tireóide. Portanto, podemos concluir com segurança que a mente não fica confinada ao cérebro como nu­ma divisão precisa, que serve a nossa conveniência. A mente se projeta a qualquer ponto do universo interior.

Um dos pesquisadores mais avançados e competentes no cam­po da química cerebral, dr. Candace Pert, diretor da divisão de bioquímica cerebral do National Institute of Mental Health, sa­lientou que é muito arbitrário afirmar que o DNA ou um neuro-transmissor pertença ao corpo, em vez de à mente. O DNA é quase tão puro conhecimento quanto é matéria. O dr. Pert se refere a todo o sistema mente-corpo como uma “rede de informações”, e dá menor ênfase ao nível grosseiro da matéria e maior ao nível sutil do conhecimento.

Na realidade, existe algum motivo para se manter a mente e o corpo afastados? Pert, ao escrever, prefere englobá-lo em uma palavra — bodymind (corpo-mente). Se esse termo for adotado, isso indicará claramente que um muro caiu. Ele ainda não rece­beu apoio da ciência médica, mas isso pode mudar muito rapi­damente. A cada dia fica mais claro que o corpo e a mente são espantosamente semelhantes. Já se sabe que a insulina, um hor­mônio sempre identificado ao pâncreas, também é produzida pelo cérebro, enquanto substâncias químicas cerebrais como o transferon e o CCK são produzidas pelo estômago.

Isso mostra que nossa divisão organizada do corpo em siste­mas nervoso, endócrino, digestivo e assim por diante é apenas parcialmente certa e, em breve, poderá ser ultrapassada. Há pouco tempo, ficou absolutamente comprovado que as mesmas subs­tâncias neuroquímicas influenciam todo o conjunto corpo-mente. Ao nível dos neuropeptídios tudo é interligado; portanto, ao se­parar essas áreas, estamos simplesmente fazendo o mau uso da ciência.

Um corpo que pode “pensar” é muito diferente daquele que a medicina considera atualmente. Digamos que, ao menos, ele sabe o que lhe acontece não apenas no cérebro, mas em todos os pontos receptores das moléculas mensageiras, o que significa cada célula. Isso explica, em grande parte, os efeitos colaterais das drogas até então desconhecidos. Algumas delas têm um nú­mero incrível desses efeitos. Se eu consultar meu Physician’s Desk Reference, o índice médico de todos os remédios que podemos receitar, vou encontrar páginas e páginas sobre corticosteróides. O corticosteróide (ou apenas esteróide) mais comum é a cortisona, mas todo o grupo é muito receitado no tratamento de queimaduras, alergias, artrite, inflamações pós-operatórias e dúzias de outros males.

Se não conhecêssemos a existência dos pontos receptores, os esteróides pareceriam muito estranhos. Digamos que eu receite esteróides a uma mulher que sofre de um caso difícil de artrite. Eles acabariam com as inflamações das juntas de um modo dra­mático, pois uma série de coisas estranhas poderia ocorrer. Ela começaria a se queixar de cansaço e depressão; depósitos anor­mais de gordura surgiriam sob a pele; e os vasos sanguíneos fica­riam tão frágeis que começariam a surgir grandes manchas, difí­ceis de desaparecer. O que pode ligar sintomas tão diferentes?

A resposta está ao nível dos receptores. Os corticosteróides repõem certas secreções do córtex das supra-renais, uma camada fofa e amarelada que se deposita sobre elas. Ao mesmo tempo, eles suprimem outros hormônios das supra-renais, como as se­creções da glândula pituitária, que se localiza no cérebro. Logo ao ser ministrado, o esteróide percorre o corpo e inunda todos os receptores que estão “ouvindo” certa mensagem. Quando um deles é ocupado, o que vem a seguir não é uma ação simples. A célula pode interpretar a mensagem de várias formas, depen­dendo do tempo que esses pontos continuem repletos. Nesse ca­so, o receptor fica ocupado indefinidamente. (O fato de outras mensagens não serem recebidas é importante, assim como a per­da de inúmeras ligações com outras glândulas endócrinas.)

A célula pode apresentar reações agudas ao preencher um receptor. Por analogia, basta observar uma mariposa pousada no beiral do telhado numa noite de verão. No inseto macho, as an­tenas peludas da cabeça são, na realidade, pontos receptores que se desenvolveram para fora do corpo. Quando o sol se põe, a ma­riposa espera um sinal emitido por uma fêmea na vizinhança, através de uma molécula chamada feromônio. Como são criatu­ras pequenas, o número de feromônios que enviam pelo ar é in­finitesimal, se comparado ao volume total do ar e sua imensa carga de pólen, poeira, água e outros feromônios secretados por ani­mais de todas as espécies, inclusive o homem. É difícil imaginar que duas mariposas possam se comunicar a longa distância.

Mas, quando uma única molécula de feromônio toca a antena do macho, seu comportamento se transforma. Ele persegue a fê­mea e inicia um complicado ritual de conquista pelo ar, que precede a cobertura. Biologicamente falando, o que causa esse com­portamento tão complexo é uma única molécula.

Quando receito esteróides a uma paciente que sofre de artrite, trilhões de moléculas e pontos receptores estão envolvidos nisso. Assim, os vasos sanguíneos, a pele, o cérebro, as células de gor­dura etc. apresentam diferentes reações. Em meu guia médico, as conseqüências do uso de esteróides por longo prazo incluem diabete, osteoporose, supressão do sistema imunológico (a pes­soa fica mais suscetível às infecções e ao câncer), úlceras pépticas, hemorragia interna, elevação do colesterol e muito mais. Até a morte pode ser incluída entre os efeitos colaterais, porque o uso de esteróides por muito tempo força o córtex das supra-renais a se contrair (exemplo de como um órgão pode se atrofiar por falta de uso). Se o esteróide for retirado muito rapidamente, as glândulas supra-renais não têm tempo de se regenerar. A paciente fica sem uma defesa adequada ao estresse, que os hormônios for­necidos pelas supra-renais ajudam a debelar. Ela pode ir ao den­tista para extrair um dente do siso — uma tensão geralmente den­tro dos limites normais —, mas, sem os hormônios ad-renais, pode entrar em estado de choque. Uma extração de dente pode até matá-la.

Reunindo todos esses sintomas, podemos perceber que os esteróides são capazes de causar, literalmente, qualquer reação. Eles podem ser a causa imediata ou apenas a primeira peça do jogo — a diferença não importa à paciente. Para ela, não há diferença entre a osteoporose causada por esteróides ou “o mal em si”. O mesmo se aplica à depressão, à diabete ou à morte. Um único mensageiro causou todas elas. Na verdade, não existe esse único mensageiro — cada qual é um fio na rede de inteligência do cor­po. Tocando um deles, toda a rede estremece.

Compreendo que isso faz com que as drogas pareçam muito mais perigosas do que pensávamos, mesmo em uma época obce­cada em catalogar desastres médicos. Estamos habituados a uma idéia mais limitada do que são os efeitos colaterais — um toque amargo aliado à doçura, como o espinho na rosa ou a ressaca após uma garrafa de vinho. Em vez disso, um efeito colateral se ex­pande e se transforma em alguma coisa que o corpo pode pen­sar. Estamos geralmente protegidos de danos mais sérios, por­que o corpo reage obedecendo a certas regras estreitas. Um pa­ciente que toma aspirina pode provocar uma hemorragia da pa­rede do estômago, mas não um ataque cardíaco. No entanto, ca­da célula do corpo tem uma ampla área de ação — é um ser cons­ciente, que percebe o mundo a sua volta. Os efeitos colaterais descritos por meu guia médico são apenas os observados até agora.

Li recentemente a história de um médico, membro de uma equi­pe hospitalar, que ficou aflito quando um de seus pacientes, ho­mem de 70 e tantos anos, subitamente passou a agir de modo paranóico. Obcecado pela idéia de que sua casa ia ser assaltada por ladrões, comprou uma arma para guardar sob o travesseiro. Certa noite, aterrorizou a esposa ao saltar da cama e correr esca­da abaixo com a pistola, começando a procurar furiosamente os assaltantes atrás das poltronas. Sabendo que a alucinação do ma­rido era perigosa, a mulher o levou imediatamente ao médico. O paciente não tinha nenhum antecedente de doença mental nem estava tomando nenhum remédio além do digitálico para estabilizar o ritmo de seu coração. Considerando sua idade, o médico concluiu que seu diagnóstico era o mal de Alzheimer.

No entanto, ele encaminhou o paciente a um neurologista pa­ra fazer uma tomografia que não acusou nada de anormal.

— Aposto que esse homem está tendo alucinações por causa do uso do digitálico — comentou o neurologista.

O médico, também professor de medicina em Nova York, nunca vira esse efeito colateral em seus trinta anos de prática, embora se lembrasse de algum comentário vago sobre o assunto. Ele re­duziu a dosagem do digitálico e, dez dias depois, o paciente vol­tou ao normal. Parecia um fato muito estranho que a medicação, tão específica para o coração, levasse à insanidade. Se esse pa­ciente tivesse sofrido alucinações décadas atrás, quando o guia médico ainda não registrava esse efeito colateral, nenhum médi­co acreditaria. Mais recentemente, o próprio médico em questão só acreditou depois de uma série dispendiosa de exames que afas­taram qualquer outra possibilidade.

O que este caso nos ensina é que nunca podemos saber o que o corpo está pensando, ou em que parte dele. E perfeitamente possível que o coração do homem tenha enlouquecido, ou me­lhor, tenha movimentado o gatilho que desencadeou a paranóia. O cérebro e o coração têm muitos pontos receptores em comum; e, o que é mais importante, compartilham o mesmo DNA, o que significa que a célula do coração pode se comportar como uma célula cerebral, uma célula do fígado ou qualquer outra do orga­nismo. Após cirurgias cardíacas em que é feito o corte do tórax, é comum pacientes sofrerem crises psicóticas e começarem a ter alucinações. A explicação para isso é que eles, subitamente, co­meçam a ver homenzinhos verdes passeando pelo lençol, por­que ficam deitados de costas no vazio estéril da unidade de trata­mento intensivo, embriagados pela falta de oxigênio no cérebro. Mas, por acaso, não seria possível responsabilizar o coração por essas alucinações? Simplesmente, o trauma da cirurgia poderia fazer o coração pensar que a realidade enlouqueceu, comunican­do tal notícia ao cérebro.

 

A descoberta de neurotransmissores, neuropeptídios e molé­culas mensageiras de todos os tipos ampliou enormemente nosso conceito de inteligência. Mas, se cada célula tem um número in­finito de mensagens que pode enviar e receber, é também evi­dente que apenas um pequeno número delas pode ser ativado em determinado momento. Quem ou o que controla tais mensa­gens? O fato é que essa é uma pergunta explosiva. Em qualquer laboratório de pesquisas, as reações surgem automaticamente após o início da experiência: basta apenas misturar uma substância química a outra. Mas alguém precisa escolher essas substâncias na prateleira e iniciar a experiência.

Tradicionalmente, a medicina vem preferindo ignorar esse fa­to quando se aplica ao corpo humano. Vemos agora que, com milhares de substâncias químicas em sua prateleira, uma célula não é obrigada apenas a escolhê-las, misturá-las e analisar os re­sultados; em primeiro lugar, precisa fabricar essas substâncias quí­micas, descobrindo milhares de fórmulas para criar novas molé­culas de poucos elementos básicos — carbono, hidrogênio, oxi­gênio e nitrogênio. Para isso, é preciso uma inteligência. Portan­to, acompanhando a história dos neuropeptídios, acabamos che­gando a uma radical mudança de ponto de vista. Porque, pela primeira vez na história da ciência, a mente tem uma base visí­vel para se posicionar. Antes, a ciência declarava que somos má­quinas físicas que, de alguma forma, aprenderam a pensar. Ago­ra, desponta a idéia de que somos pensamentos que aprenderam a criar uma máquina física.

 

                   Fantasmas da Memória

Recentemente, recebi em meu consultório de Boston uma jo­vem de 20 e tantos anos, que trabalha parte do tempo como mo­delo. Depois de esconder, durante anos, que sofria de um pro­blema alimentar, sua família conseguiu persuadi-la a procurar tra­tamento. A jovem era obcecada pelo corpo desde a adolescência. Com o tempo, essa preocupação tornou-se excessiva e acabou aflo­rando como uma dupla doença: anorexia nervosa e bulimia.

Observando essa moça atraente e vistosa, aparentemente nor­mal, fui levado a pensar que seu problema teria solução fácil. Mesmo com extensa pesquisa e grande publicidade nos últimos tempos, a anorexia e a bulimia continuam a ser doenças muito enigmáticas. Por que certas moças, entre as quais muitas bem-educadas e de posses, passam a cultivar uma incontrolável ob­sessão por regimes e perda de peso? As anoréxicas criam medo dos alimentos e horror ao ato de comer. Vivem confinadas a um ritual padronizado de comportamento, que acaba por levá-las à inanição voluntária (ainda sem admitir que estão magras demais) e, às vezes, até a morte.

A bulimia, doença companheira da anorexia, pode surgir separadamente ou coexistir com ela, como no caso dessa moça. Na bulimia, o horror aos alimentos assume a estranha forma de ingestão exagerada de comida. Geralmente, a quantidade de ali­mentos que um bulímico consome pode ser enorme — cerca de 2 mil a 50 mil calorias de uma vez (2 mil calorias diárias são sufi­cientes para sustentar um homem vigoroso de 70 quilos). Essa grande quantidade de alimento é devolvida pelo vômito, o que gera tremenda tensão no aparelho digestivo e em todo o corpo.

A doença dessa moça, em particular, tinha avançado a tal pon­to que ela se obrigava a vomitar todos os dias para manter o peso um pouco abaixo do normal, como seu trabalho exigia. Contou-me que só de olhar uma sobremesa começava a suar e o coração disparava. Ela era muito inteligente e ouviu atenta minha expli­cação de que a raiz de seu mal estava no fato de se enganar com sua auto-imagem. Como nossa sociedade vive obcecada pelo ideal da magreza, muitas mulheres procuram viver com a imagem ín­tima que fazem de seus corpos e que não combina com sua apa­rência física. No entanto, no caso dela, tal imagem não dizia “pre­ciso ser magra”, mas afirmava “nunca serei magra o suficiente”.

Para explicar essa doença paradoxal, é necessário que se abandone a distinção entre mente e corpo, pensando em um único sistema corpo-mente. Isso se deve ao feto de se tratar de uma doen­ça holística, o oposto cruel da saúde holística. Nas mulheres anoréxicas, a idéia distorcida “preciso ser mais magra” domina a mente como um fantasma malvado e enganador. Mesmo depois de longa hospitalização e de exaustivo tratamento psiquiátrico, raramente a paciente volta a comer como uma pessoa normal. A pessoa normal teria de lutar para não comer e, quando o cor­po chegasse ao estado de inanição, seus sinais de fome suplanta­riam todos os outros no corpo-mente, até o desejo pelo alimento sair vencedor. Para alguém que sofre de anorexia, a relação é exa­tamente inversa — a compulsão de evitar a comida é irresistível.

Enquanto eu discorria sobre o assunto, a moça me olhou tristemente e murmurou:

— Então, os fantasmas existem realmente, não é?

Fiquei atônito e respondi, depois de um momento:

— É verdade, mas esse fantasma pode ser exorcizado.

Falávamos do fantasma da memória, uma certa lembrança escolhida e armazenada no corpo. A memória parece uma coisa mui­to abstrata, enquanto os alimentos são bem concretos. Mas, nes­te caso, a memória é muito mais real. Se uma pessoa é compulsivamente magra ou gorda demais, isso não depende, em princí­pio, do que ela come. Essa é a verdade para condições menos estranhas que a anorexia. Durante séculos, a obesidade tem sido considerada uma falha de caráter, o que em épocas religiosas chamava-se pecado da gula. Com isso, afirmava-se que os gor­dos, usando mais energia e suficiente autodisciplina, poderiam ser magros como os outros; bastava comer menos.

Agora, tornou-se reconhecido que os regimes não resolvem o problema dos doentes crônicos (como também não resolvem o caso contrário, enchendo de alimentos os anoréxicos), porque o cérebro de um gordo manda sinais irresistíveis para que se ali­mente em excesso. Como são emitidas essas mensagens e como transformá-las no oposto é uma questão em aberto. A menos que se atinja algum tipo de controle em um nível muito profundo, as pessoas obesas podem passar a vida toda forçadas a fazer regi­mes, numa tática autoderrotista que só piora a distorção mental. A perda de 2,5 quilos é registrada no cérebro como fome. Na próxima vez em que oferecerem comida ao obeso, seu cérebro não vai querer de volta apenas os 2,5 quilos, mas 4 quilos — pa­ra se garantir contra a fome seguinte. Sabe-se de casos em que obesos até ganharam peso com regimes, apenas com as calorias necessárias para sustentar o metabolismo basal. Isso aconteceu porque o cérebro é capaz de alterar o metabolismo de tal forma que as calorias passam a ser estocadas como gordura, em vez de serem queimadas como combustível.

Ninguém sabe por que a inteligência é tão incapaz de trans­formar essas distorções da auto-imagem. Os fantasmas ficam mais fortalecidos à medida que lutamos contra eles. Apesar de os ano­réxicos desmentirem que têm um problema, quando o médico consegue vencer essa barreira de defesa fica evidente que existe uma profunda lacuna no corpo-mente, com parte do sistema lutando para manter a racionalidade, e outra enviando furiosos im­pulsos irracionais.

Certa vez, passei horas aconselhando outra vítima de anore­xia, uma mulher de 30 e alguns anos, que, embora pesasse me­nos de 40 quilos, acabara de ter um filho. Seu declínio físico era rápido (10 por cento dos anoréxicos morrem de inanição delibe­rada ou de causas ligadas à má nutrição). Seu caso era especial­mente estranho, porque o que ela mais apreciava era ir para casa e cozinhar para a grande família italiana, servindo pratos de massa a dúzias de irmãos, irmãs, primos, tias e tios.

Nossa conversa prosseguia razoável, apesar da natural dificuldade, até que ela me fez uma pergunta repentina:

— Você acha, realmente, que vai conseguir me afastar disso com essa conversa? Compreendo tudo perfeitamente, sabe? O que não adiantou nada. Deixe-me em paz. É assim que preciso me alimentar. — Diga-me — ela prosseguiu, olhando-me com indisfarçada hostilidade —, quantas pessoas deixaram de fumar por­que você conversou com elas? Todas sabem o que a nicotina po­de causar, o perigo de câncer no pulmão e tudo o mais. Mas não adianta falar com elas nem comigo.

Encostei-me na poltrona, sentindo ondas geladas de ódio enquanto ela falava. Como conseguia conviver com tudo aquilo, na­quele emaranhado confuso de idéias?

— A verdadeira questão não é se posso ajudá-la, não é mes­mo? — comentei, quando se acalmou. — Trata-se de saber se você é capaz de se ajudar. — Ela pareceu ligeiramente mais amigável e continuei: — Sabe, você não está me ferindo por não comer. Não está ferindo ninguém, mas apenas algo que não passa de uma imagem. Tudo está em seu interior, e essa é a parte mais difícil, tanto para você, como pessoa, quanto para mim, como seu médico.

Essa história não tem um final rápido e feliz. Sem dúvida, mi­nha paciente estava certa quanto à inutilidade de conversarmos sobre a doença. Ela continua sendo uma pessoa muito hostil e confusa, mas tenho esperança de que, no grupo de discussão de problemas que passará a freqüentar, outros anoréxicos e bulímicos poderão ajudá-la. Para exorcizar seu fantasma da memória, ela terá de chegar ao nível em que ele vive. Até o fantasma desa­parecer, pacientes como ela não sentem que sofrem de uma doença — eles são a doença.

Afirmo isso de modo categórico. O que acontece quando você vê uma cobra e dá um salto para se desviar dela? O pensamento gerado pelo medo — “Cuidado, uma cobra!” — vem a sua men­te no mesmo instante em que a adrenalina o leva a saltar. Geral­mente, a idéia e a ação estão ligadas a tal ponto que o pensamen­to consciente nem encontra tempo para formar palavras. Você apenas vê a cobra e salta. Portanto, não existe espaço para erguer uma divisão entre eles. No caso de um anoréxico, a simples vi­são do alimento desperta uma onda de revolta. Talvez a vista e o cheiro de pão fresco enviem o pensamento “Oh, não posso co­mer isso”, enquanto o estômago se contorce, as glândulas saliva­res secam e todo o trato digestivo é alertado e deixa de funcionar.

Claro que essa é uma reação distorcida, mas ocorre junto com o pensamento, e não há espaço para se erguer uma divisão entre ambos. O que funciona, neste caso, é algo que podemos deno­minar “impulso de inteligência”, o que significa um pensamen­to e uma molécula ligados como os dois lados de uma moeda. Assim que surge o impulso, não há mais volta. O pensamento é a molécula, a molécula é o pensamento. No instante em que acontece, o impulso de inteligência constitui toda a realidade in­terior do paciente. Quando uma pessoa anoréxica sente repulsa pela comida, sua reação (pelo menos, naquele momento) é a de ser sua própria doença. O mesmo é verdade para um obeso que procura resistir à comida, ao fumante que procura não fumar outro cigarro, e assim por diante.

Você não pode mudar um pensamento depois de tê-lo formu­lado — todo o esforço interno de tais pacientes é uma tentativa inútil. Mas existe outro componente no impulso de inteligência, além do pensamento e da molécula. O terceiro componente é o silêncio; esse é o componente que não se vê. Como todos nós, os anoréxicos precisam arrancar esses pensamentos da região mais profunda que a das idéias, porque é ali que a cura pode surgir.

A compreensão horrível do anoréxico “eu sou minha doença” pode ser verdadeira, mas não é definitiva. Se a pessoa conseguisse transcender suas compulsões, observando-as sem se envolver, a doença terminaria. Sendo apenas uma testemunha silenciosa, fi­caria livre do fantasma. Arquimedes declarou que se tivesse uma alavanca longa o suficiente e um local para apoiá-la poderia mo­ver a Terra — presume-se que teria de ficar em pé no espaço ex­terior. A anoréxica precisa desse local; infelizmente, o ser huma­no é confinado ao espaço interior. Ninguém tem um sistema ner­voso extra pendurado no armário, no caso de o primeiro ficar com idéias estranhas. É triste, mas inevitável: não há lugar lá fora para ficarmos em pé.

 

Sem nos apercebermos, confiamos muito no fato de nossos pensamentos desencadearem as substâncias químicas adequadas pa­ra nossos corpos; a mente e suas moléculas mensageiras são com­binadas de um modo automático e perfeito. Mas esse processo pode ser interrompido e, então, a convulsão resultante será co­mo acionarmos dois programas diferentes no mesmo computa­dor — quando o input está avariado, não é de se estranhar que o printout, seu corpo, fique em desordem. Por exemplo, uma das drogas mais ambíguas já descobertas é o Valium.

Ele pertence a uma classe de substâncias químicas chamadas benzodiazepinas, usadas tanto como tranquilizantes quanto co­mo soníferos. Quando surgiram, essas substâncias foram consi­deradas revolucionárias. Suas predecessoras, os barbituratos, apre­sentavam efeitos notórios: provocavam grande dependência; in­duziam ao sono de má qualidade, porque bloqueavam os sonhos, e uma overdose poderia ser fatal. Em contrapartida, o Valium e seus similares davam mais sono, provocavam menos ressaca e era mais difícil ocorrer uma overdose; no início, ainda, pareciam não criar dependência. No auge de sua popularidade, calculava-se que ele representava uma quarta parte de todas as receitas fornecidas nos Estados Unidos.

Agora, já se sabe que o Valium provoca dependência e produz irregularidades no sono (interferindo com o terceiro e quarto es­tágios do sono profundo e sem sonhos) e que também ocorrem sérios sintomas de reabsorção, depois de uso prolongado. Se ob­servarmos no plano dos receptores da parede celular, nada disso é surpreendente, porque o Valium vence a competição das subs­tâncias neuroquímicas do organismo e ocupa seus pontos recep­tores. Esse tipo de interferência talvez fosse vantajoso, se ele ape­nas competisse com os neuropeptídios responsáveis pela causa das sensações de ansiedade (chamados octadecaneuropeptídios). Mas o efeito calmante da droga não vem sozinho; o Valium con­funde todo o sistema nervoso. Além disso, descobriu-se recente­mente que os monócitos do sistema imunológico também são agre­didos por ele. Portanto, quando um médico receita o que consi­dera um sonífera ou tranquilizante, está afetando ao mesmo tempo o sistema imunológico, criando grande confusão entre os receptores celulares.

Ninguém sabe se isso tem causado algum mal, principalmen­te porque as descobertas sobre o sistema imunológico são recen­tes demais. Talvez se descubra que a natureza já dotou nossos corpos de alguma substância interna semelhante ao Valium, o que significa que estamos reproduzindo mal alguma coisa que já existe de forma quase perfeita. Se me perguntarem se gosto da idéia de introduzir diariamente a mesma substância química em mi­nhas células imunológicas, de um modo tão indiscriminado co­mo aconteceu com o Valium a milhões de pacientes, principal­mente mulheres, durante trinta anos, a resposta é óbvia.

As células imunológicas têm uma razão para cada receptor. Usam-nos para pensar, agir, compreender e responder com pre­cisão. Uma pessoa utiliza os mesmos dois olhos para ver o mun­do todo; uma célula, no entanto, tem um olho diferente para ca­da coisa. Em outras palavras, um receptor Constantemente ocu­pado deixa a célula cega para determinada coisa. Numa época em que a incidência de casos de câncer na mama continua aumentando, enviar mensagens desconhecidas para dentro do sis­tema imunológico parece uma medida muito arriscada.

Atualmente, está acontecendo no tratamento das doenças mentais uma “revolução química”, de aparência tão milagrosa quan­to a do Valium, trinta anos atrás. Os médicos têm receitado a seus doentes mentais certas substâncias que alteram a mente, os psicotrópicos. São drogas que afastam os sintomas evidentes da doença, principalmente a depressão, a mania e as alucinações. Os sintomas geralmente são aliviados, algumas vezes até de mo­do súbito e dramático, pois muitos pacientes não toleram o em­botamento mental nem a fadiga, que são os efeitos colaterais mais comuns. Não que tais efeitos sejam simples: certos antidepressivos podem piorar a depressão do paciente durante as primeiras semanas, ou transformá-la no oposto, tornando-a uma mania furiosa.

Os críticos dessas terapias à base de drogas costumam chamá-las de “lobotomias químicas” e as acusam de destruir a digni­dade humana do paciente. Sem dúvida, ocorrem muitos abusos, principalmente nos grandes hospitais públicos para doentes men­tais, que possuem poucos funcionários para o atendimento. É ne­cessária uma percepção aguda para se estabelecer a dosagem cor­reta de qualquer droga psicotrópica, e contam-se muitas histó­rias sobre pacientes deprimidos que reagiram de modo tão nega­tivo aos medicamentos que acabaram se suicidando em vez de se curarem. Mesmo assim, o sucesso nesse campo está representado pelo momento em que o uso de determinadas drogas possa curar a esquizofrenia e a depressão ao mesmo tempo; não hoje, mas no futuro.

Ainda não existe nenhum esquizofrênico curado por proces­sos químicos. Isso acontece simplesmente porque é mais difícil ser uma pessoa normal do que não ter alucinações. Quando você interrompe as visões e as vozes que enchem a cabeça e os ouvi­dos de um paciente, não encontra uma pessoa normal, mas uma verdadeira concha. Alterar o nível químico de dopamina, mes­mo que fosse um processo mil vezes superior ao atual, não bastaria para levar à cura. A razão está contida na lição que apren­demos com os próprios neurotransmissores: para cada avanço quí­mico surge também uma barreira química.

A boa notícia sobre os neurotransmissores é que eles são ma­téria. Um pensamento saudável ou louco é difícil de ser apreen­dido por ser inatingível; não é nada que se possa tocar ou sentir. Mas os neurotransmissores são tangíveis, sem dúvida, apesar de tão minúsculos e com vida tão curta. O papel do neurotransmis­sor é combinar-se a um pensamento. Para isso precisa ter molé­culas tão flexíveis quanto as idéias, igualmente fugazes, vagas, mutantes e leves.

Tal flexibilidade é uma espécie de milagre e ao mesmo tempo uma maldição, já que ela cria uma barreira quase intransponí­vel. Nenhuma droga fabricada pelo homem pode imitar essa fle­xibilidade, tanto atualmente quanto num futuro previsível. De fato, nenhuma droga se equipara a um pensamento. Basta exa­minar a estrutura de um receptor para isso ficar evidente. Os re­ceptores não são fixos; eles foram apropriadamente descritos co­mo semelhantes a folhas flutuantes do lírio aquático que emer­gem do núcleo da célula. Como as folhas desses lírios, suas raí­zes penetram até o centro, onde fica o DNA. Muitos tipos de mensagens entram em comunicação com o DNA, e seu número é potencialmente infinito. Portanto, durante todo o tempo, ele fa­brica novos receptores e faz com que flutuem até a parede celu­lar. Não existe um número fixo nem uma disposição determina­da dos receptores na parede celular. Provavelmente, nem mesmo deve existir limite para sua sintonia. A parede de uma célula po­de ter tão poucas folhas de lírios aquáticos quanto um tanque no inverno, ou pode ficar tão cheia delas como o tanque na épo­ca de seu florescimento, em junho.

O único fato constante sobre um receptor é sua imprevisibilidade. Por exemplo, pesquisadores descobriram recentemente que um neurotransmissor chamado imipramina é anormalmente pro­duzido no cérebro de pessoas deprimidas. Enquanto localizavam a distribuição dos receptores de imipramina, eles se surpreenderam ao encontrá-los não apenas nas células cerebrais como nas da pele. Por que a pele criaria receptores para uma “molécula mental”? O que esses receptores da pele teriam a ver com a de­pressão?

Uma resposta plausível é que a pessoa fica deprimida por in­teiro — está com o cérebro triste, a pele triste, o fígado triste e assim por diante. Do mesmo modo, os pesquisadores examina­ram pacientes que se queixavam de aflição o tempo todo e des­cobriram níveis anormalmente altos das substâncias químicas epinefrina e norepinefrina em seus cérebros e nas glândulas supra-renais. Mas também foram encontradas grandes concentrações nas plaquetas do sangue, o que demonstrava que eles também tinham “células sanguíneas aflitas”.

Os médicos sentiram-se frustrados ao perceberem a complexi­dade desse assunto em termos gerais. As esperanças de cura da esquizofrenia, depressão, alcoolismo, dependência de drogas e ou­tros males foram afastadas em meados dos anos 70, pouco de­pois de serem isoladas as primeiras endorfinas, em 1973. Agora, a barreira química está mais forte do que nunca, enquanto a con­firmada flexibilidade das moléculas mensageiras vem sendo di­vinizada.

 

Ao pensar nesse problema, tive de me colocar uma questão mais profunda: uma droga pode realmente exorcizar o fantasma da me­mória? Minha experiência médica responde que não — já vi por demais pacientes “curados” por drogas e que, ainda assim, trans­mitiam uma doentia sensação de vazio. Para começar, em vez de se confiar nas drogas, é preciso que se descubra como a memó­ria doentia do paciente entrou em seu sistema químico. Porque é mais do que evidente que a memória imaterial está ali. Talvez valha a pena colocá-la numa molécula, mas a vida da memória não depende disso. O caso seguinte serve como exemplo.

Walter cresceu nas ruas do sul de Boston, no fim da década de 70; sentia o mesmo ódio violento que nutriam todas as pes­soas negras que vinham morar naquele bairro. Para escapar disso e da pobreza que o perseguira a vida toda, entrou para o Exér­cito ao completar 18 anos. Seis meses depois estava no Vietnã. Participou de combates e sobreviveu, mas dois anos depois, quan­do voltou às ruas, estava viciado em heroína, usada por muitos soldados para tornar a guerra menos traumática.

Ao contrário da maioria, Walter não tinha motivo para sair do Exército quando voltou. Finalmente, a polícia acabou prendendo-o e, por ordem do tribunal, ficou sob meus cuidados no hospital de veteranos, especializado em drogas.

Nossa maior preocupação era simplesmente a de desintoxicar o organismo de Walter. Se fosse um caso comum, sairia pela porta giratória depois disso e estaria de volta às ruas. Mas, enquanto ficou no hospital, passei a visitá-lo regularmente. Ele era, sem dúvida, uma pessoa excepcional. Apesar de seu desespero, não parecia corroído pela violência interior e lutava corajosamente con­tra o vício. Walter ficou meu amigo. Seu progresso clínico foi rá­pido; um ano depois da desintoxicação, mantinha seu emprego e falava animadamente sobre a vida normal que desejava levar.

Foi quando aconteceu um estranho incidente. Um dia, o carro de Walter enguiçou e ele foi obrigado a ir para o trabalho de me­trô, o que não fazia desde muitos meses. Pegou o trem para Dorchester, uma linha muito antiga, com velhos trilhos barulhentos. Detestou o ruído do trem e não conseguiu ignorá-lo. O ventila­dor estava quebrado em pleno calor de julho. Poucos minutos depois de ficar fechado naquele compartimento quente, abafa­do, passou a achar o vagão insuportável. A sensação desagradá­vel se transformou em extrema agitação e, quando saiu do me­trô, estava completamente louco, irracional. Nada do que foi fei­to acalmou sua agitação. Quando o vi, dois dias depois, Walter tinha voltado à heroína e dessa vez não demonstrava desejo de se recuperar.

O que aconteceu a esse homem? Uma explicação química não é suficiente para o incidente do trem. Continuo me lembrando dele com seu terno riscadinho de trabalho, confiante e prepara­do para a nova vida, mas obrigado a voltar ao mesmo trem que usava quando tinha problemas e era dependente de heroína. Em algum meandro traiçoeiro da memória, o passado voltou e com ele seu anseio pela droga. Onde se escondera aquela ânsia du­rante um ano inteiro antes de voltar? De certo modo, é isso o que a medicina começa a elucidar: a memória de uma célula é capaz de viver mais tempo que a própria célula.

Em qualquer ponto do corpo-mente duas coisas se aliam — uma partícula de informação e uma partícula de matéria. Das duas, a informação tem vida mais longa que sua matéria sólida correspondente. Enquanto os átomos de carbono, oxigênio, hi­drogênio e nitrogênio giram por nosso DNA como pássaros de passagem, que descansam um pouco e continuam a migrar, a par­tícula de matéria se modifica, mas sempre existe uma estrutura à espera dos próximos átomos. O DNA nunca movimenta mais que um milésimo de milímetro de sua estrutura precisa, só por­que os genômios, partículas de informação no DNA (eles são 3 bilhões), lembram para onde tudo vai. Esse fato nos leva a compreender que a memória deve ser mais permanente que a maté­ria. Então, o que é uma célula? É uma memória que construiu um pouco de matéria a sua volta, formando um modelo específi­co. Nosso organismo, portanto, é apenas o lugar que nossas me­mórias chamam de lar.

É difícil discutir essa conclusão à luz de tudo o que sabemos até agora sobre as formas de inteligência química, e a medicina resiste teimosamente em aceitar tais implicações. Por exemplo, em geral se acredita que as pessoas dependentes de álcool, cigar­ros ou drogas adquirem uma dependência “química”, o que sig­nifica que suas células ficam viciadas em nicotina, em álcool, he­roína etc.; porém, se as estudarmos no plano da química do or­ganismo, vamos descobrir que a heroína ou a nicotina colam-se aos mesmos receptores das paredes celulares que todos possuem. Um dependente não tem receptores que exibam anseios anormais.

Por analogia, a parede do estômago de um homem gordo não é viciada em comida — apenas aceita o que lhe dão. Na verdade, parece que a memória das células é que se vicia com a substância que provoca o hábito e ela continua criando células distorci­das que refletem sua fraqueza. Em outras palavras, um vício é uma memória distorcida. É apenas nossa inclinação material que continua atendendo à célula. (Essas memórias perniciosas podem ser herdadas, quando um vício se espalha por famílias inteiras, mas, mesmo que seja um “gene de dependência” específico, so­mos forçados a considerar as condições imateriais que levaram o DNA a enviar esse gene. Nossos ouvidos são formados porque um gene os codificou; no entanto, em primeiro lugar, a razão de terem se desenvolvido há milhões de anos certamente foi imate­rial — algum organismo começou a responder ao som.)

Quando se cuida de um dependente, desintoxicando seu organismo e mantendo-o afastado do álcool e das drogas durante muitos anos, todas as células antigas que haviam ficado “quimica­mente dependentes” se acabarão. Mas sua memória permanece­rá, e, se lhe dermos uma chance, ela o levará de volta às substân­cias que provocaram a dependência. Um cardiologista colombiano, meu amigo, deixou de fumar há quinze anos. Nesta primavera foi visitar sua terra natal e resolveu ir ao cinema, um aconteci­mento raro em sua vida. Ele é um homem muito ocupado, mais do que os cardiologistas em geral, e nem se lembrava mais do último filme a que tinha assistido. Havia um intervalo na sessão e, ao chegar à sala de espera, ele sentiu uma vontade incontrolá­vel de fumar.

— Sabe, passei a adolescência em Bogotá — contou-me de­pois — e costumávamos fumar nos intervalos dos filmes. Eu vol­tei ao mesmo cenário e a necessidade de fumar foi imediata. Achei-me diante da máquina automática de cigarros, procurando moe­das no bolso. Só consegui me controlar repetindo: “Isso é uma loucura, você é um cardiologista”. Foi o único modo de resistir. Mesmo assim, saí correndo do cinema e até hoje fico imaginan­do como o filme acabou.

O que torna o vício tão assustador é que os receptores do cére­bro estão sempre dispostos a cooperar com as instruções da mente. Lembre-se de sua reação de tensão ao ouvir o motor de um carro a suas costas, quando, então, a adrenalina é infiltrada em seu sangue. Sabemos que parte da reação geral é o estômago e os in­testinos interromperem o processo de digestão. Mas, como a rea­ção do estresse é temporária, essa é uma atividade correta do or­ganismo e acontece automaticamente.

Porém, se você prefere viver em um ambiente que cria estres­se constante, chegará um momento em que seu organismo vai querer voltar a digerir os alimentos. Surgirá, então, um conflito profundo, porque a reação ao estresse será de dizer “não” ao es­tômago, enquanto outra parte do cérebro (o hipotálamo, prova­velmente) dirá “sim”. A desordem resultante criará contrações no estômago e cólicas nos intestinos. Esses órgãos começam a per­der seu ritmo natural e, se você não lhes der chance de recuperá-lo, acabarão se transformando em vítimas de memória errônea, tão certamente quanto alguém contrai um vício. O estômago vai co­meçar a produzir suco gástrico nas horas erradas, o cólon entra­rá em espasmos e a suave articulação do sistema gastrintestinal entrará em colapso. Disso resultam as úlceras e a irritação per­manente do cólon, que afetam tanta gente sob tensão.

No caso de um dependente, uma das reações bloqueadas pela droga é a capacidade de pensar racionalmente e perceber as coi­sas com nitidez. Enquanto seus receptores estão cheios, o vicia­do sente-se eufórico e sua percepção fica suavemente embotada, uma condição que pode ser agradável a curto prazo, mas devas­tadora se continuar por longo tempo — sem a clara percepção das coisas, o cérebro não pode emitir as instruções básicas para pensar, comer, trabalhar, relacionar-se com outras pessoas e tu­do o mais. Todas as atividades da vida exigem pensamento claro, e ele precisa de grande quantidade de neurotransmissores dife­rentes, mas o viciado restringe-se apenas a alguns e prende-se a eles desesperadamente.

 

Do mesmo modo, uma explicação estritamente física para o câncer também não é convincente. Ela precisa estar ligada a al­guma distorção mais abstrata; talvez possa ocorrer uma memória distorcida ao nível celular. Digamos que um médico mande um paciente submeter-se a um exame de raios X e descubra um tu­mor maligno. Um ano depois, o mesmo tumor aparecerá em ou­tra chapa. O médico não pode se referir a ele com precisão como o mesmo câncer, porque as células que viu um ano antes foram inteiramente substituídas.

O que ele está vendo, de fato, é o resultado de uma memória que persistiu, reencarnando uma, duas e mais vezes em novo tu­mor. O câncer não é tanto uma célula louca e transviada como a planta básica distorcida dessa célula, um conjunto de instru­ções errôneas que transformam o comportamento celular normal numa mania suicida de câncer. Quando temos sorte, o organis­mo enfrenta essa situação em nível primário. O DNA percebe qualquer desvio da memória, inclusive tumores incipientes, e os elimina rapidamente.

Sendo assim, não sabemos como apagar as memórias cancero­sas no plano celular, porque não podemos penetrar na parede da célula e “falar” com o DNA. No entanto, já se sabe que esse passo importante é dado quando o sistema imunológico segrega certos agentes contra o câncer, chamados interleucinas — uma classe de proteínas que se assemelha aos hormônios. Nossas cé­lulas imunológicas produzem interleucinas em muitas situações — cortes, arranhões, infecções, ferimento nos tecidos internos e alergias são capazes de provocá-las. (O nome “interleucinas” foi escolhido porque os pesquisadores primeiro descobriram que essas substâncias químicas enviam sinais entre leucócitos, ou células brancas do sangue.)

Como surgem naturalmente, as interleucinas existem em quantidades mínimas; portanto, ficam proibitivamente dispendiosas se forem imitadas em escala comercial. Apesar desse obstáculo, os pesquisadores extraíram recentemente grande quantidade de interleucina-2 (IL-2) e fizeram transfusões em 450 pacientes em estado avançado de câncer de pele e do fígado (o custo atual de uma série simples de tratamento chega a 80 mil dólares). Com essa terapia, entre 5 e 10 por cento dos pacientes tiveram rápida regressão de seus tumores, mas sofreram sérios efeitos colaterais que chegaram a matar alguns deles. A questão de que a IL-2 po­de influenciar o resto do corpo a longo prazo continua sem resposta.

Apesar dos recuos, as interleucinas estão chegando ao ponto de serem transformadas na nova promessa de cura do câncer, co­mo o interferon, uma substância química bem próxima dela que foi a esperança de cura nos anos 70. Grupos de engenheiros geneticistas já estão competindo nos cálculos de fabricação dessa substância em escala comercial. Com desapontamento, percebe-se que nasce mais uma falsa esperança. Por que a promessa nun­ca é cumprida? A medicina conhece centenas de fatos sobre as interleucinas, como o seguinte: “As cadeias alfa e beta da interleucina-1 são apenas 26 por cento homólogas no nível aminoácido de seus genes”; ou seja, ambas se prendem aos recepto­res “com grande afinidade no raio molar de 10-10”. Quando compreendemos tal jargão, esses fatos não são insignificantes.

Mas literalmente eles não declaram nada sobre a inteligência das interleucinas, que é o ponto mais importante. Se as interleu­cinas “sabem” quando e onde devem lutar contra o câncer, não são suas moléculas que devem nos interessar, mas algo invisível — a capacidade das células em reconhecer que a memória can­cerosa está presente e precisa ser erradicada. Isso não pode ser injetado no corpo. A guerra do organismo contra o câncer é uma briga de inteligência contra inteligência. As manifestações físicas — interferon, interleucina, hormônios, peptídios etc. — podem ser consideradas como armas, se assim o desejarmos, mas pri­meiro é necessário um bom alvo.

No sentido mais profundo, é por isso que não tenho fé no en­foque de um “projétil mágico”. A penicilina foi um tiro certo porque não era necessário que o alvo desejado fosse tão preciso, uma vez que o antibiótico entra na corrente sanguínea, ataca au­tomaticamente as paredes celulares da bactéria e as destrói. Da mesma forma, a quimioterapia primitiva contra o câncer era uma bala grosseira, semelhante à batalha química da Primeira Guerra Mundial. (De fato, as drogas mais tóxicas usadas contra o câncer eram chamadas agentes alquilantes, criados com mostarda de ni­trogênio, o infame gás de mostarda que tanto aterrorizou os sol­dados naquela guerra.) Tipos mais recentes de quimioterapia, co­mo os vários hormônios das supra-renais e o estrógeno, deriva­dos do próprio corpo, tinham um alvo menos aproximado; mas agora vemos que esse avanço, na realidade, pode ser o último sus­piro da teoria de um projétil mágico.

Em determinado ponto, as substâncias químicas que se quer usar são tão precisas que sua ação só é eficiente dentro de limites mínimos. Quando se tem um hormônio como alvo, é preciso atin­gir seu receptor e não apenas as amplas avenidas da corrente san­guínea que a penicilina percorre. Se o receptor que se pretende atingir está envolvido num processo complexo, como no caso das interleucinas, nenhum alvo será suficientemente preciso, porque a vida ou a morte da célula implica uma perfeita correspondên­cia de cada um dos elementos químicos dela. Por analogia, quando se desafina uma corda de um piano, todo o instrumento ficará desafinado; uma sonata não soará corretamente se uma nota es­tiver fora do tom.

Não pretendo fazer com que isto pareça uma afirmação sentenciosa. Milhões de pacientes foram bem-sucedidos no tratamento com drogas contra o câncer. A toxicidade da quimioterapia tem sido Constantemente reduzida e, em muitos casos, os indesejados efeitos colaterais, que davam tão má reputação ao tratamento, di­minuíram muito; em especial, se considerarmos o risco de dei­xar um câncer sem tratamento. E, ainda assim, é verdade que o câncer é incurável se não for percebido no início. Se um pa­ciente com câncer no pulmão vem me procurar, nem a desco­berta prematura adianta. Posso submetê-lo à radiação e dar a is­so o nome de terapia, mas em 95 por cento dos casos trata-se apenas de um breve alívio — talvez seja um meio que ele e eu encontramos de afastar o desespero por não existir nenhum tra­tamento para o caso. Outros tipos comuns de câncer, como os melanomas, pertencem à mesma categoria.

Precisamos desesperadamente de uma medicina sem projéteis. Se observarmos as interleucinas sem nos influenciarmos por seu aspecto material, perceberemos que seus maiores atributos são invisíveis. As interleucinas são produzidas pelo DNA das célu­las imunológicas em dosagens, combinações e prazos exatos — fatores mais importantes que a própria molécula.

Uma célula branca engolfando um invasor, como um micró­bio ou uma célula cancerosa, é de uma simplicidade decepcionante quando visto em microscópio. Parece uma gota de âmbar envolvendo uma mosca. Na realidade, não existe processo mais complicado no corpo humano. Uma interleucina entra no cená­rio em um ponto bem determinado, numa manobra exata. Pode­mos chamar a isso de “caça ao câncer”, mas grande parte do pro­cesso imunológico é altamente abstrata. Ele é quase todo condu­zido por troca de informações. Atingir o alvo não é um dos maiores objetivos da campanha.

Antes que um macrófago, ou célula imunológica, chegue a segregar qualquer agente anticâncer, o sistema imunológico toma várias outras providências. Primeiro, precisa notar que o proble­ma existe e identificá-lo exatamente; uma célula cancerosa não é um vírus, e nenhum dos dois é um micróbio. Usando uma classe de mensageiros chamados células-T ajudantes, o corpo avisa o resto do sistema imunológico para se ativar e começar a produzir células assassinas naturais. Para se certificar de que as assassinas não vão destruir o alvo errado, o corpo coloca um rótulo quími­co nos macrófagos com a identidade do inimigo, e eles o mostra­rão às outras células que encontrarem. Isto é apenas um simples esboço da sequência inicial de ação do sistema imunológico, que tem muitas ramificações, justaposições e desdobramentos inexplicados.

Tendo apenas sondado a grande complexidade do sistema imunológico durante os últimos cinco anos, os pesquisadores gostam de compará-lo ao cérebro sob tal aspecto. Como o cérebro, esse sistema tem uma capacidade fenomenal de absorver novas infor­mações, percebendo e gravando na memória a identidade de qualquer nova doença no organismo, escolhendo bilhões de partícu­las de conhecimento. Com a mesma facilidade, poderíamos di­zer que o cérebro e o sistema imunológico não são iguais — eles são o mesmo sistema, porque operam na mesma rede química.

A única diferença entre uma célula imunológica e uma cere­bral é que o DNA de cada uma preferiu enfatizar alguns e supri­mir outros aspectos de seu conhecimento total. A interleucina tem uma estrutura aproximada à de um neuropeptídio (a literatura de pesquisa a denomina “polipeptídio semelhante ao hormônio”). Isso significa que, quando nossas emoções se unem a moléculas, como um cavaleiro e sua montaria, elas escolhem montarias quase idênticas à da interleucina. Seria falso chamá-las de mensagens de cura, ou mesmo dividir as células entre as que levam tais men­sagens e as receptoras, porque, apesar de certas células imunoló­gicas segregarem interleucinas como parte de seu papel específi­co, qualquer célula do corpo é virtualmente capaz de recebê-las e, portanto, de fabricá-las. Talvez essa capacidade “silenciosa” seja ativada em recuperações espontâneas.

Ou serão os níveis de pensamento que travam uma luta corpo a corpo com os fantasmas da memória, e essas células físicas que vemos não passam de cápsulas das balas detonadas e espalhadas pelo campo de batalha? Para que essa última possibilidade seja verdadeira, a mente precisaria ser diretamente conscientizada de que há a ameaça de uma memória cancerosa. É certo que o vi­ciado e o anoréxico sabem que esse fantasma está ali. E já men­cionei certos tumores, como o do pâncreas, que primeiro tornam o paciente instável e deprimido, para só depois de algum tempo o médico descobrir fisicamente o tumor maligno. Esse aviso prévio depende da efetiva presença de uma célula cancerosa. No entan­to, isso não exclui um aviso ainda mais prematuro.

Para descobrirmos de onde ele pode vir, teremos de nos aprofundar ainda mais na questão da afinidade entre a inteligência e a matéria. Acredito na necessidade imperiosa de que isso seja feito antes que a teoria do projétil mágico entre em colapso. A interleucina não é uma bala, mas uma partícula de vida em movimento com a inteligência do cavaleiro invisível. A própria vida é inteligência que está em toda a parte, montada em substâncias químicas. Não devemos cometer o engano de pensar que cava­leiro e cavalo são um só. A inteligência é livre para ir aonde de­sejar, mesmo até onde as moléculas não conseguem.

 

                   O Corpo Mecânico Quântico do Homem

Noventa anos depois de começarem a surgir, os insights da físi­ca quântica continuam sendo um mistério para a maioria das pes­soas. Mesmo assim, quando se compreende o significado da des­coberta dos neuropeptídios, a compreensão do quantum exige apenas mais um passo. Essa descoberta foi muito importante por ter mostrado que o corpo é suficientemente fluido para se mis­turar à mente. Graças às moléculas mensageiras, eventos que apa­rentemente não têm nenhuma ligação — como um pensamento e uma reação do corpo — agora mostram-se mais consistentes. O neuropeptídio não é um pensamento, mas move-se como ele e serve como ponto de transformação. O quantum faz exatamen­te a mesma coisa, só que o corpo estudado nessa questão é o uni­verso, ou a natureza como um todo.

Precisamos estudar o quantum de uma molécula. Um neuro­peptídio aflora na existência ao toque de um pensamento, mas de onde vem esse afloramento? Um pensamento de medo e a subs­tância em que ele se transforma estão de algum modo ligados a um processo oculto na transformação da não-matéria em matéria.

A mesma coisa acontece em toda a natureza, só que não costumamos chamar esse processo de pensar. Quando você chega até o nível dos átomos, a paisagem não é mais feita de objetos sólidos movendo-se à volta de outros, como parceiros de dança que seguem passos previsíveis. As partículas subatômicas são sepa­radas por enormes espaços, numa proporção, para cada átomo, de 99,999 por cento de vazio. Isso é verdade quando se trata de átomos de hidrogênio do ar, de átomos da madeira de que são feitas as mesas, assim como de todos os átomos “sólidos” em nossas células. Portanto, tudo o que consideramos sólido é tão vazio quanto o espaço intergaláctico.

Como essas tão vastas extensões de vazio, salpicadas de longe em longe por partículas de matéria, podem se transformar em seres humanos? Para responder a essa questão é necessária uma perspectiva quântica. Com a compreensão do quantum, entra­mos numa vasta realidade que abrange desde os quarks às galá­xias. Ao mesmo tempo, o comportamento da realidade quântica acaba ficando muito íntimo — de fato, ela é a linha mais tênue que separa o corpo humano do corpo cósmico.

 

Em seu projeto monumental para convencer todos os físicos a seguirem certas leis consistentes e racionais, Isaac Newton ex­plicava as obras da natureza em termos de corpos sólidos, movi­mento em linhas retas e constantes fixas que regulavam todos os eventos físicos. Este é o modelo da natureza como um complica­do jogo de bilhar, sendo Newton o principal jogador. Como a ma­téria e a energia permaneceram dentro dessas regras estabeleci­das, não havia necessidade de teorizar sobre um mundo oculto; tudo acontecia às claras. Podemos expressar essa idéia com um simples diagrama:

 

                 A à B

             __________

                                              

Aqui, A é uma causa e B, um efeito. Estão ligados por uma linha reta, demonstrando que causa e efeito estão ligados logica­mente no mundo que nos é familiar, o mundo dos sentidos. Se A e B são duas bolas de bilhar, fazer com que uma bata na outra é um evento previsível.

No entanto, se A for um pensamento e B, um neuropeptídio, esse diagrama já não serve. Não existe uma linha reta de ligação entre um pensamento imaterial e um objeto material, mesmo que seja minúsculo como uma molécula-peptídio. Em vez desse, é necessário um diagrama que tenha uma curva:

 

               A          B

 

                     U

 

O formato em U mostra que o processo que deve acontecer não se realiza acima da linha, no mundo racional de Newton. Existe uma transformação oculta em andamento, a de um pen­samento em molécula. Essa transformação não leva nenhum tempo nem acontece em algum lugar — realiza-se apenas por impulso do sistema nervoso. Quando você pensa na palavra rosa, muitas células nervosas precisam ser acionadas (ninguém sabe quantas, mas digamos 1 milhão, o que talvez seja absurdamente pouco), mas essas células não se comunicam umas com as outras passan­do a mensagem de A a B, a C, e assim por diante, até todo o milhão tê-la recebido. O pensamento apenas acontece, localizando-se subitamente no espaço e no tempo, e com ele todas as células do cérebro mudam sincronicamente. A perfeita coordenação desse pensamento-evento com 1 milhão de células cerebrais que fazem os neurotransmissores certamente aconteceu abaixo da linha.

Toda a área abaixo da linha não é uma região para ser visitada no espaço nem no tempo; ela apenas está presente aonde quer que você vá, quando seus pensamentos se transformam em mo­léculas. Ela poderia ser imaginada como uma sala de controle que relaciona qualquer impulso mental com o corpo. Em qual­quer tempo, os 15 bilhões de neurônios do sistema nervoso po­dem ser coordenados com perfeita precisão pelo comando abai­xo dessa linha.

A mesma mudança de causas e efeitos, de linhas retas em cur­vas, em formato de U, ocorreu ao nascer a física quântica. Mes­mo quando tudo na natureza parecia acontecer acima da mesa de jogo, de acordo com a teoria clássica newtoniana — obviamente os físicos deixam os eventos mentais fora do quadro —, umas pou­cas coisas não podiam ser explicadas sem uma curva. A mais evi­dente era a luz. A luz pode se comportar como A, uma onda, ou B, uma partícula. As duas são totalmente diferentes na física newtoniana, já que as ondas são imateriais e as partículas, con­cretas. Mas a luz, de algum modo, atua como uma ou outra, de­pendendo das circunstâncias. Nesse caso, deve ter feito uma curva abaixo da linha:

 

         Particula     Onda

 

                         U

 

É fácil ver a luz como uma onda ou vibração. Um prisma divi­de a luz branca nas várias cores do arco-íris, e isso ocorre porque ela se compõe de diferentes comprimentos de ondas luminosas; tal fato se torna aparente quando as ondas são separadas em um espectro. A luz de uma lâmpada incandescente tem seu próprio espectro de comprimentos de ondas, que é gerado quando a ele­tricidade atravessa o filamento de tungstênio. Mas, quando se diminui sua luminosidade gradativamente até que reste um mí­nimo de luz, ela não se irradiará como uma onda e sim como uma partícula. (Ainda não existe nenhum interruptor com dimmer que seja tão sensível e exato, mas os físicos difundiram a luz de tal forma que ela expôs sua “granulosidade”.) A natureza tam­bém equipou nossos olhos para reagirem fisicamente à luz nesse nível quântico — se apenas um fóton penetra na retina, um lampejo é transmitido pelo nervo óptico. Mas nossos cérebros não processam apenas esse lampejo.

A palavra “quantum” — do latim, que significa “quanto” — descreve a menor unidade a ser chamada de partícula. Um fóton é um quantum de luz, porque não se pode dividi-lo em partícu­las menores. O fóton se manifesta quando um jorro de elétrons atinge um átomo de tungstênio; os elétrons em movimento na eletricidade colidem com os elétrons que giram na órbita exte­rior do átomo de tungstênio, e dessa colisão precipita-se um fó­ton, um quantum de luz. Esse quantum é uma partícula muito estranha, porque não tem massa, mas para nossos propósitos o que importa nele é sua capacidade de se transformar em uma onda de luz, tendo de fazer a curva abaixo da mesa. A transformação ocorre em um domínio desconhecido, que escapa às leis de Newton.

Já que não estamos procurando estudar física, não vou entrar em maiores detalhes. Basta saber que depois de Einstein, quan­do Max Planck e outros físicos pioneiros foram capazes de, na virada do século, demonstrar a natureza quântica da luz, disso resultaram muitas conclusões bastante curiosas. Fatos considera­dos evidentes no mundo dos sentidos precisaram ser conciliados com estranhas distorções de tempo e espaço — e o foram. Como no caso do neuropeptídio, o quantum é capaz de deixar a natu­reza tão flexível que se torna possível a inexplicável transforma­ção de não-matéria em matéria, de tempo em espaço, de massa em energia.

Este modelo para um evento quântico básico mostra a curva que sempre sai fora do alcance dos eventos comuns:

 

           Onda de Luz     Foton

                            

                               U

 

Como o pensamento e o neuropeptídio, a luz não pode ser uma onda e um fóton ao mesmo tempo; é uma coisa ou outra. E é claro que a lâmpada de tungstênio não passa a uma outra reali­dade quando é desligada. Mas, de algum modo, a natureza esta­belece suas leis para que a luz possa ser A ou B, enquanto ambas são mantidas dentro da mesma realidade, construindo um ponto de transformação. (Ainda hoje muitas pessoas acreditam que Eins­tein destruiu a teoria de Newton quando, de fato, ele salvou e expandiu a crença do próprio Newton na ordem perfeita.)

Uma visão surpreendentemente elegante da mente e do corpo pode surgir desse evento básico; para isso, basta um diagrama:

 

       A       B à C à D à E à etc

 

             U

 

A mente e o corpo ficam acima da linha. A é um evento men­tal, um pensamento; todas as outras letras correspondem a processos físicos que se seguem a A. Se você fica com medo (A), as outras letras são os sinais enviados às glândulas supra-renais, a produção de adrenalina, o batimento cardíaco rápido, a pres­são do sangue elevada, e assim por diante, correspondendo a B, C, D etc. Todas as mudanças físicas no organismo podem estar ligadas a uma cadeia natural de causa e efeito, exceto o espaço depois de A. Esse é o ponto em que primeiro ocorre a transfor­mação do pensamento em matéria — e precisa ocorrer, ou os ou­tros eventos não acontecerão.

É preciso haver uma curva em algum ponto da linha — e nes­se ponto ela se rompe, porque a mente não toca a matéria acima da mesa. Se quisermos erguer o dedo mínimo (A), um médico pode acompanhar o neurotransmissor (B) que ativa o impulso que percorre o axônio do nervo (C), fazendo uma célula muscu­lar responder (D), o que resulta no dedo se erguendo (E). Mas nada do que o médico possa descrever explicará o que acontece de A a B — isso exige uma curva. A imagem assemelha-se a uma fila de pessoas passando baldes umas às outras, onde todas o apa­nham da anterior, menos a primeira, que o pega não sabendo de onde. De lugar nenhum.

“Lugar nenhum” é um termo quase exato neste caso, porque não se pode descobrir o ponto em que os fótons se transformam em ondas de luz. O que acontece exatamente nessa zona “?” não é conhecido pelos físicos, tampouco pela medicina. As curas mi­lagrosas parecem exemplos de mergulho na zona “?”, porque, em tais casos, a cooperação da mente com a matéria provoca um inesperado salto quântico; mas, como outros episódios mente-corpo, realiza-se de modo misterioso.

Muitos anos atrás, um bombeiro de Boston, com bem mais de 40 anos, chegou certa noite ao pronto-socorro de um hospi­tal suburbano, queixando-se de súbitas e violentas dores no peito. O médico interno o examinou e não encontrou nada de anor­mal no funcionamento de seu coração. O paciente partiu pou­co convencido e logo voltou com os mesmos sintomas. Foi enviado para que eu, como médico da equipe principal, o examinasse, mas também não encontrei nada de errado em seu coração.

Apesar do exame completo, o bombeiro voltava repetidamente ao hospital, quase sempre tarde da noite. A cada vez que che­gava, sempre agitado, ele insistia com absoluta certeza de que estava sofrendo do coração. Mas nenhum exame, inclusive os mais sofisticados ecocardiogramas e angiogramas, registrou o menor problema. Finalmente, diante da crescente ansiedade do homem, fiz-lhe uma recomendação para aposentadoria, não por incapacidade física, mas puramente por motivos psicológicos. A diretoria do setor médico do Departamento de Bombeiros re­cusou o pedido por não ter provas materiais do caso. Dois me­ses depois, o homem apareceu pela última vez no pronto-socorro. Dessa vez viera estendido na maca, porque sofrera um enfarte violento. O ataque cardíaco destruiu 90 por cento do músculo do coração; dez minutos depois, o paciente estava morto. Mas, antes, ele teve energia suficiente para virar a cabeça em minha direção e murmurar:

— Agora o senhor acredita que eu sofria do coração?

O que esse caso atesta de modo tão dramático é que a curva da zona “?” é de tal forma poderosa que pode mudar qualquer realidade física no organismo. Acho que devo chamar o ocorri­do de efeito quântico, porque não seguiu as regras de causa e efeito observadas pela medicina e estabelecidas como reações normais do corpo. Muitas pessoas cultivam receio de ter um ataque cardíaco, mas não morrem dele; no caso oposto, muitos ataques do coração ocorrem sem o menor aviso da mente. Mes­mo se afirmássemos, de acordo com a medicina mente-corpo, que um pensamento causou o ataque do coração, como ele en­controu o meio de levar avante sua intenção fatal?

Ao programar o conceito de “ataque do coração” em um computador, saberemos exatamente o que estamos fazendo. Para obter os dados processados, os circuitos poderão ser ativados para levá-los à tela e os manipulamos segundo o método opera­cional de seu sistema. Mas o pensamento “ataque do coração” não agiu desse modo com meu paciente. Ele não sabia de onde viera o pensamento; quando este surgiu, ele não conseguiu es­capar; em vez de ficar em seu lugar, o pensamento invadiu o corpo todo com resultados desastrosos. Essa é apenas a metade do mistério de um evento quântico — a metade negativa; a via­gem à zona “?” também pode ter resultados positivos admi­ráveis.

Outra paciente minha, uma senhora tímida de mais de 50 anos, veio me procurar há dez anos queixando-se de fortes dores ab­dominais e de icterícia. Imaginando que ela sofresse de cálcu­los biliares, encaminhei-a imediatamente à cirurgia; porém, quando estava na mesa, revelou-se um grande tumor maligno que lhe invadira o fígado, com ramificações por toda a cavida­de abdominal. Julgando o caso inoperável, os cirurgiões fecha­ram a incisão sem tocar em nada. Como a filha pediu para não contarmos nada à mãe, disse-lhe que os cálculos biliares haviam sido removidos e que a operação fora bem-sucedida. Imaginei que a família contaria a verdade depois de algum tempo, porque provavelmente a mulher tinha poucos meses de vida — pe­lo menos poderia vivê-los com tranqüilidade.

Oito meses depois, espantei-me ao vê-la de volta a meu consultório. Vinha fazer exames de rotina, que não revelaram icte­rícia nem dores, ou qualquer sinal de câncer. Só um ano de­pois ela me fez um comentário estranho.

— Doutor — disse ela —, há dois anos eu tinha certeza de que estava com câncer, e eram apenas cálculos biliares; então, jurei a mim mesma que nunca mais ficaria nem um dia doente na vida.

O câncer dessa senhora nunca reapareceu. Ela não usou nenhuma técnica e aparentemente se curou a partir de uma pro­funda resolução, o que lhe bastou. Também devo chamar esse caso de evento quântico, devido à transformação fundamental em nível mais profundo que o dos órgãos, tecidos, células e até do DNA, ocorrida diretamente na fonte de existência do corpo, no tempo e no espaço. Meus dois pacientes — uma, com pensamentos positivos, e outro, com negativos — consegui­ram mergulhar no domínio “?” e dali ditaram a própria realidade.

 

Casos tão misteriosos como esses serão, realmente, exemplos de eventos quânticos? Um médico poderia criar objeções, con­siderando que estamos apenas fazendo metáforas, que o mun­do oculto das partículas elementares e das forças fundamentais exploradas pelos físicos quânticos é muito diferente do mundo oculto da mente. Ainda assim, pode-se argumentar que a re­gião inconcebível de onde tiramos o pensamento de uma rosa é a mesma de onde emerge um fóton — ou o cosmos. A inteli­gência, como vamos descobrir, tem muitas propriedades quân­ticas. Para deixar isso claro, começaremos com o esquema fa­miliar exposto nos livros de estudo, que apresenta o corpo hu­mano verticalmente, com uma hierarquia de sistemas, órgãos, tecidos e células:

 

         Sistema

         Órgão

         Tecidos

         Células

         DNA

 

Nesse quadro, cada nível do corpo está logicamente relacio­nado ao seguinte — enquanto nos mantemos acima da linha, os processos que se assemelham à vida acontecem numa sequên­cia definida. Isso pode ser demonstrado pelo feto no útero: um bebê começa como partícula de DNA situada no centro do óvulo (célula) fertilizado; com o tempo, a célula se multiplica até for­mar uma bola de células suficientemente grande para começar a se dividir em tecidos e finalmente em órgãos, como o cora­ção, o estômago, a espinha dorsal e assim por diante; então surge todo o sistema nervoso, o aparelho digestivo e o respiratório; por fim, no exato momento do nascimento, os trilhões de célu­las do recém-nascido estão coordenados para manter a vida de todo o organismo, sem o auxílio da mãe.

Mas se o DNA é o degrau inicial dessa escadinha organiza­da, o que o faz se expandir, em primeiro lugar? Por que ele inicialmente se divide, no segundo dia da concepção, e começa a formar o sistema nervoso no décimo oitavo? Como todos os eventos quânticos, algo inexplicável acontece abaixo da super­fície, para formar a inteligência onisciente do DNA. O que nos importa não é o DNA ser complexo demais para ser compreen­dido nem tratar-se de uma molécula supergenial; o que torna o DNA tão misterioso é que ele vive no ponto exato da trans­formação, como um quantum. Ele passa toda sua vida gerando mais vida, o que definimos como a “inteligência ligada às substâncias químicas”. O DNA está Constantemente transferindo mensagens do mundo quântico para o nosso, ligando novas par­tículas de inteligência e novas partículas de matéria.

Localizado no meio de cada célula, completamente fora de cena, o DNA consegue coreografar tudo o que acontece no palco. Pode soltar pedacinhos de si mesmo, que viajam pela cor­rente sanguínea como neuropeptídios, hormônios e enzimas, en­quanto faz aflorar outros, até a parede da célula, como recepto­res, instalando antenas para ouvir as respostas a um turbilhão de perguntas. Como o DNA consegue ser simultaneamente a pergunta, a resposta e o observador silencioso de todo o processo?

A resposta não está no plano da matéria. Há muito tempo os biólogos moleculares subdividiram o DNA em componen­tes menores, mas toda a operação continua acima da linha do inundo newtoniano:

 

             DNA

             Submoléculas Orgânicas

             Átomos

             Partículas Subatômicas

 

Como já vimos, o DNA não é feito de nada em especial. Seus filamentos de material genético podem ser subdivididos em mo­léculas mais simples, como açúcares e aminas, e essas, em áto­mos de carbono, hidrogênio, oxigênio etc. Quando não está no DNA, um átomo de hidrogênio ou de carbono não tem nenhum tipo de aparelho de controle do tempo em si. Em bilhões de com­binações diferentes, o hidrogênio e o carbono simplesmente exis­tem; mas no DNA eles contribuem para um controle do tempo, uma habilidade de produzir algo novo a cada dia, que perdura nos seres humanos por mais de setenta anos — cada estágio da vida se desenvolve de acordo com o prazo estabelecido pelo DNA. (Em certas árvores, o DNA tem programação para mais de dois mil anos.)

Não importa de que distância seja visto, o terreno em que se apóia a escadinha não é muito firme. Quando se observa além dos átomos e se começa a subdividir o DNA em elétrons, pró-tons e partículas ainda menores, deve ocorrer um evento quânti­co. De outro modo, ficaremos na situação embaraçosa de afir­mar que a vida é feita do nada — espaço vazio, sem matéria nem energia —, que é tudo o que se consegue quando se continua dividindo as partículas sólidas além de certo ponto.

No nível quântico, matéria e energia tornam-se algo que não é matéria nem energia. Os físicos, às vezes, referem-se a esse es­tado primordial como “singularidade”, uma construção abstrata e sem limite no tempo e no espaço, mas que representa a com­pressão de todas as dimensões expandidas do universo. No Big Bang, o universo surgiu de uma grande explosão a partir da sin­gularidade — assim é a teoria —, que, por analogia, devemos cal­cular como um ponto menor que a menor coisa que existe. Ain­da assim, esse estupendo evento da criação acontece em outra escala todas as vezes que se pensa, por exemplo, na palavra “rosa”.

Não existe nenhum pedacinho de matéria em um local defini­do guardando essa palavra para nós — ela surge na existência vinda de uma região que simplesmente sabe como organizar matéria e inteligência, mente e forma. Os átomos surgem e se vão em nosso cérebro, mas a palavra “rosa” não desaparece. Agora che­gamos a um ponto muito interessante. A singularidade é muito explorável hoje em dia; ela não existia antes do Big Bang, já que fica fora do tempo e do espaço; portanto, tem de estar aqui e agora — de fato, está em toda a parte e não se confina ao passado, ao presente nem ao futuro. A física quântica usa gigantescos acele­radores de partículas e outros equipamentos misteriosos para ar­rancar da zona “?” ainda que um lampejo desse mundo oculto. A trilha de uma nova partícula elementar que passe girando à velocidade de um milionésimo de segundo será uma grande des­coberta, porque significa que a zona desconhecida foi alcançada e um lampejo de sua realidade trazido para a nossa. Haveria pos­sibilidade de estarmos fazendo a mesma coisa enquanto pensa­mos, sentimos, sonhamos ou desejamos?

Como seria o nível quântico em nosso interior? Poderia ser, simplesmente, a extensão lógica de algo a que já estamos muito familiarizados, o neuropeptídio. A grande capacidade do neuro­peptídio é a de obedecer aos comandos da mente com a veloci­dade da luz. Acredito que ele seja capaz disso porque está na fron­teira da zona quântica. A ciência já descobriu que centenas de neuropeptídios existem e são criados pelo corpo todo. É necessá­rio apenas mais um passo para descobrirmos que todas as nossas células são capazes de fabricar qualquer dessas substâncias. Se isso for confirmado, o corpo todo será um “corpo pensante”, a criação e expressão da inteligência. Eis um outro diagrama que demonstra a situação:

 

       Mente           Corpo

 

                       U Corpo Mecânico Quântico

 

                 Inteligência

 

Já sabemos que a inteligência pode assumir a forma de um pensamento ou de uma molécula; isso está representado no diagra­ma como “mente” e “corpo”, as duas escolhas possíveis da in­teligência. As duas, porém, estão sempre unidas, mesmo que apa­rentem estar separadas. Para coordená-las, inseri um nível quân­tico, chamado “corpo mecânico quântico”. Não se trata de algo físico, mas de uma camada de inteligência, a camada em que o corpo se estrutura e se organiza como um todo. Dela vem o know-how que torna as moléculas “vivas”, em vez de inertes.

Não devemos assumir que os pensamentos se transformem em mensageiros químicos, um de cada vez. É bem sabido que, de algum modo, todos os bilhões de partículas de nosso organismo atuam como uma grande molécula de DNA, como acontece no desenvolvimento incrivelmente complexo de um feto, bem coor­denado no útero da mãe — do primeiro dia ao nono mês, todo o DNA de seu organismo atua como um só. O mesmo se verifi­ca conosco hoje.

Talvez os efeitos quânticos não estejam exclusivamente “lá fo­ra”, no espaço, mas “aqui” também. Não temos “buracos ne­gros” onde a matéria e a energia desaparecem para sempre? Cha­mamos a isso de “esquecimento”. Não aumentamos e diminuímos a velocidade do tempo como acontece com um viajante es­pacial, quando seu foguete acelera até quase a velocidade da luz? E, ainda, quando um escritor é capaz de pensar uma história to­da em um instante, mesmo que leve horas para escrevê-la? Em compensação, podemos passar meia hora nos esforçando para lem­brar o nome de alguém, o que surgirá instantaneamente no mo­mento em que encontrarmos a zona intemporal chamada memó­ria, de onde o tal nome será recuperado.

 

Sempre que um evento mental precisa encontrar uma contrapartida física, trabalha por meio do mecanismo quântico do cor­po humano. Esse é o segredo da forma como se associam sem erros os dois universos: o da mente e o da matéria. Não importa que possam parecer diferentes, a mente e o corpo estão embebi­dos de inteligência. A ciência tende ao ceticismo diante de qual­quer argumento de que é a inteligência que trabalha na natureza (essa é uma estranha anomalia histórica, já que todas as gerações que nos precederam aceitavam sem questionar algum tipo de or­dem universal). No entanto, se não existe nada fora da realidade comum que possa unir coisas e acontecimentos, somos levados a um conjunto de impossibilidades.

Podemos observar esse fato na lei da gravidade. O bom senso nos diz que dois objetos separados por um espaço vazio não de­vem ter qualquer ligação entre si; no jargão dos físicos, eles ocu­pam sua “realidade local”. Mas a Terra gira em torno do Sol, a cuja órbita é presa pela gravidade, mesmo que ambos sejam dois corpos separados por um espaço vazio de 150 milhões de quilômetros. Ao descobrir essa violação da realidade local, New­ton ficou chocado e recusou-se a especular como isso acontecia. Desde então, a realidade local tem levado um golpe após outro. A luz, as ondas de rádio, os raios laser e todas as outras forças eletromagnéticas viajam pelo espaço vazio; matéria e antimatéria parecem existir em universos paralelos, sem contato físico; as partículas subatômicas possuem rotações que combinam com outras, não importando o quanto estejam distantes no tempo e no espaço — a rotação combina até extremos opostos do univer­so. O que significa, portanto, que a idéia ditada pelo bom senso da realidade local verdadeira só é válida em determinado nível.

A realidade global, como é explicada pelos físicos quânticos, é mais profunda. Uma famosa formula matemática, conhecida como teorema de Bell (seu autor foi o físico John Bell), estabele­ce que a realidade do universo deve ser “não-local”; em outras palavras, todos os objetos e eventos no cosmos estão interligados e reagem às mudanças de estado dos outros. O teorema de Bell foi formulado em 1964, mas, algumas décadas antes, o grande astrônomo inglês Sir Arthur Eddington havia antecipado essa in­terligação ao dizer: “Quando o elétron vibra, o universo estre­mece”. Os físicos agora aceitam a interconexão como um princí­pio normativo, junto a muitas formas de simetria que se esten­dem pelo universo — por exemplo, existe a teoria de que cada buraco negro pode ser ligado, em algum lugar, a um “buraco branco” correspondente, mas nenhum foi observado até hoje.

Que tipo de explicação conseguiria satisfazer a exigência de Bell, de uma realidade não-local, totalmente interligada? Teria de ser uma explicação quântica, porque, se a gravidade está presente em toda a parte ao mesmo tempo, se os buracos negros sabem o que os buracos brancos estão fazendo e se a mudança da rota­ção de uma partícula causa mudança igual, mas oposta, em qual­quer ponto do espaço exterior, é evidente que essa informação está viajando de um lado a outro, mais rápida que a luz. Isso não é explicado na realidade comum, nem por Newton nem por Einstein.

Teóricos contemporâneos como o físico britânico David Bohm, que trabalhou profundamente com as implicações do teorema de Bell, tiveram de supor a existência de um “campo invisível” que mantém toda a realidade unida, um campo que possui a proprie­dade de saber o que está acontecendo em qualquer lugar ao mesmo tempo. (A palavra “invisível”, aqui, significa que, além de não ser visto pelos olhos, é também imperceptível para qualquer ins­trumento.) Sem nos aprofundarmos mais nessas especulações, podemos perceber que o campo invisível é muito semelhante à in­teligência oculta do DNA e que ambos se parecem muito com a mente.

A mente tem a propriedade de manter todas as nossas idéias armazenadas, digamos, em um reservatório silencioso, onde são organizadas com exatidão em conceitos e categorias.

Sem definirmos o processo como “pensamento”, talvez veja­mos a natureza pensar através de muitos canais diferentes, dos quais nossas mentes estão entre os mais privilegiados; ela pode criar sua realidade quântica e, ao mesmo tempo, experimentá-la. Um evento quântico no campo das ondas de luz pode ser muito objetivo, mas e se a realidade quântica estiver presente apenas no campo de nossos pensamentos, emoções e desejos? Eddington disse claramente que, como físico, acreditava que “a matéria-prima do mundo era matéria presente”. Portanto, o corpo mecâ­nico quântico, como uma forma de inteligência, tem seu lugar plausível em uma realidade não-local.

A beleza de uma imagem tão simples reside no fato de que a inteligência é simples; as complicações surgem quando alguém procura detalhar toda a maquinaria incrivelmente complexa do sistema mente-corpo. Os padrões das ondas cerebrais de um psi­cótico, na longa tira de papel do encefalógrafo, são semelhantes aos de um poeta, não importando a sofisticação da análise poste­rior. Ao pensar nos milhares de horas necessárias para a descri­ção científica das consequências químicas de um dia na vida de uma célula, um neurocientista meu amigo comentou:

— Somos obrigados a concluir que a natureza é inteligente por­que é complicada demais para ser chamada de qualquer outra coisa.

Ele poderia, do mesmo modo, ter dito “simples demais”. Um cérebro humano que muda seus pensamentos em milhares de substâncias químicas a cada segundo não é, afinal, tão compli­cado quanto inconcebível. Na Índia antiga, acreditava-se que a inteligência se espalha por toda a parte; era chamada de Brahman, palavra sânscrita que significa “grande”. Consideravam-na um campo invisível. Um ditado de milhares de anos atrás afirma que o homem que não encontrou Brahman é como um peixe se­dento que não encontrou água.

Toda nossa fisiologia pode se transformar tão rapidamente quan­to um neuropeptídio, que é parte do corpo mecânico quântico. Porque podemos mudar assim como o mercúrio, a qualidade flui­da da vida é natural em nós. O corpo material é um rio de áto­mos; a mente, um rio de pensamentos; e o que os mantém uni­dos é um rio de inteligência.

 

Pode parecer que o corpo mecânico quântico só se envolva em questões de vida ou morte, mas isso não é verdade. Vivemos ne­le sem pensar, naturalmente, como um todo. Tenho uma pacien­te que percebeu esse fato enquanto estava sentada na grama, co­mendo pão francês e ouvindo Mozart. Durante dois anos seu ca­so tinha sido muito frustrante. Ela sofria e se queixava de vários sintomas desagradáveis, inclusive irritação nos intestinos, dores de cabeça, fadiga, insônia e depressão, que resistiam a qualquer tentativa de cura. Nenhum desses males era fatal, mas ela vivia muito infeliz. O tratamento convencional com antidepressivos e tranquilizantes ajudou pouco e também não consegui nada com o uso do Ayurveda.

Então, certo dia, ela foi a Tanglewood, a sede de verão da Sinfônica de Boston e lugar ideal para um piquenique. Ela estendeu a toalha xadrez no gramado e deitou-se ao sol, ouvindo música, enquanto comia seu lanche em paz. Ficou muito feliz com aqui­lo tudo e dormiu tranquilamente naquela noite, como não acon­tecia há anos. Mas estava tão habituada a ser doente que não no­tou a nova situação. Passou-se outro ano de sofrimentos e che­gou a época de voltar a Tanglewood, quando a mesma coisa acon­teceu — todos os sintomas desapareceram durante o dia e ela dor­miu maravilhosamente bem à noite.

Mas dessa vez ela reparou no que acontecia. Veio me procurar alegremente, sacudindo o recorte de um jornal médico com um artigo sobre a síndrome de SAD (desordem afetiva sazonal), que descrevia o mal que costuma provocar séria depressão durante o inverno, sem causa aparente. Agora, sabemos que a causa está ligada ao órgão pineal, no interior do cérebro; essa glândula endócrina, oval e achatada, embora cercada de massa cerebral, rea­ge às mudanças da luz do sol como se fosse uma espécie de “ter­ceiro olho”, o que todos querem desenvolver na Nova Era (al­guns animais menos evoluídos, como a lampreia, realmente pos­suem um terceiro olho). Em certas pessoas, a exposição insufi­ciente ao sol, no inverno, dispara suas secreções pineais; a glân­dula passa a produzir em excesso um hormônio chamado melatonina, que provoca depressão.

— Veja — disse ela —, tenho sofrido essa síndrome o tempo todo e bastou que me sentasse ao sol para ficar novamente com a glândula pineal normal.

— Sinto muito — respondi —, mas essa doença costuma apa­recer no inverno. — O rosto dela demonstrou desapontamento e logo prossegui: — No entanto, você colocou o dedo num ponto muito importante; agora sabemos que sofre de uma deficiência que tem tratamento.

— E qual é? — ela perguntou.

— Deficiência de piquenique — disse eu e, pela primeira vez, vi seu rosto se iluminar em um verdadeiro sorriso.

Ela prossegue seu autotratamento. Regularmente foge da paisagem cinzenta do escritório e vai sentar-se ao sol para almoçar na companhia dos amigos, ouvindo Mozart. Isso não pode pare­cer um remédio muito evoluído e, em certo sentido, não é; mas funciona, porque precisamos da Natureza para libertar nossa na­tureza. Vivemos cercados pela melhor influência de cura — ar puro, luz do sol e beleza. Na Índia, o Hipócrates do Ayurveda, um grande médico e sábio chamado Charaka, prescrevia um pouco de luz solar para todas as doenças, além de uma caminhada pela manhã; seu conselho jamais perderá o valor.

Se encontro uma campina verdejante, salpicada de margaridas, e sento-me à beira de um regato de águas cristalinas, descobri um remédio. Ele suaviza meus sofrimentos como o colo de minha mãe, quando eu era pequeno, porque a Terra é realmente minha mãe e a campina verde, seu colo. Você e eu somos estra­nhos um ao outro, mas o “ritmo” interno de nossos corpos ouve as mesmas ondas do oceano que nos embalavam em época ante­rior à memória.

A Natureza é a cura do homem, porque ela é o homem. Quando o Ayurveda diz que a lua é nosso olho direito e o sol, nosso olho esquerdo, não devemos zombar. Foi banhando-nos à luz da lua, ao sol e no mar que a Natureza formou os corpos que habita­mos. Esses foram os ingredientes que nos proveram, a cada um, de nossa parte da Natureza — uma concha, um sistema de sus­tentação de vida, um companheiro íntimo, um lar por sete déca­das ou mais.

A descoberta do domínio quântico abriu caminho para se perceber a influência do sol, da lua e do mar no fundo de nós mes­mos. Só estou me reportando a isso na esperança de que aí exista mais possibilidades de cura. Já sabemos que um feto humano se desenvolve lembrando-se das formas e imitando um peixe, anfí­bios e mamíferos primordiais. As descobertas quânticas nos per­mitem penetrar em nossos próprios átomos e relembrar o univer­so primordial. Em eras passadas, surgiram no universo a luz e o calor para durar 20 bilhões de anos; mas cada ser humano é uma nova centelha iluminando o fogo que irradia a vida. Na Ín­dia védica, o mesmo fogo sagrado que havia na Terra, Agni, ser­via para nomear o calor digestivo do estômago e o fogo solar no céu.

Sir Arthur Eddington afirmou certa vez que duas realidades deviam ser conhecidas em seus próprios termos: uma trivial e outra de suma importância. A trivial era a realidade mecanicista investigada pela ciência; a importante era a realidade humana da experiência comum. Na realidade científica, afirmou ele, a Ter­ra é uma partícula de matéria girando em volta de uma estrela medíocre, perdidas ambas entre bilhões de objetos estelares mais importantes. Mas, na realidade humana, ela continua sendo o centro do universo, porque a vida que abriga é a única coisa im­portante, pelo menos para nós.

A expressão mais pungente dessa idéia surgiu de uma paciente que tinha muitos problemas de saúde, inclusive câncer. Para read­quirir sua perspectiva, ela resolveu escrever algumas experiên­cias importantes do passado. Uma das que lhe ocorreu foi de quan­do era ainda bem mocinha; deu-lhe o título “Mas Como Eu Posso Ser a Lua? — 16 anos de idade”.

 

Estou deitada a sós no pasto escuro, exceto pela magnéti­ca lua cheia. Há uma completa sensação de quietude. Meu ser é parte da Terra e, ao mesmo tempo, parte da pura luz branca da lua. Nada mais importa. Por um segundo imagino: “Estou morta?” Não tem importância — estou passan­do uma hora nas mãos de Deus e Ele se transformará em parte de mim.

 

Um número surpreendente de pessoas teve experiências como essa, a que Eddington denominava “o contato místico com a Ter­ra”. Minha paciente, tempos depois, afastou-se de sua experiên­cia e foi-se habituando gradualmente ao desgaste do trabalho e das preocupações familiares que nos separam a todos da Nature­za; no caso dela, o acúmulo de estresse fez com que adoecesse frequentemente. (Sua vida mais recente recebeu um título cáus­tico: “Ir Contra a Natureza — Isso é a Vida Adulta?”)

O estranho é que, no momento em que deixou de contrariar a Natureza, o velho sentimento de ligação voltou com a mesma força. Quase aos 30 anos, ela foi visitar uma praia no Pacífico e escreveu:

 

Durante horas, sozinha na praia, voltei a ficar com Deus. Eu era a onda que crescia e arrebentava, seu ruído, sua for­ça. Eu era a areia morna e vibrante, viva. Eu era a brisa suave, livre. Eu era o céu puro e sem fim... Sentia apenas um amor enorme. Eu era mais que meu corpo e sabia dis­so. Esse momento foi absolutamente belo e purificador.

 

Também como médico acredito no que ela descreve. Nosso mecanismo interno de cura combina perfeitamente com o externo. O corpo humano não se parece com uma colina verde, mas suas cinzas, sua água cantante, a luz do sol e a terra não foram esque­cidas; foram simplesmente transformadas em nós. (Existe um bom motivo para todas as medicinas antigas afirmarem que o homem é feito de terra, ar, fogo e água.) Como o corpo é inteligente e conhece esse fato, sente-se livre quando volta ao lar da Natureza. É com enorme alegria que reconhece a mãe. Essa sensação de liberdade é vital — permite que as naturezas interna e externa se misturem. O mesmo é verdade para o corpo mecânico quân­tico: ele é apenas uma porta de volta à Natureza. Não há neces­sidade de explicá-lo, a não ser por um triste fato: o intelecto, in­do contra a Natureza, fez um Ótimo trabalho de bloqueio dessa porta.

 

Existem outras coisas para se dizer a respeito do corpo mecâ­nico quântico, mas não consigo pensar em mais nada que seja necessário saber. A medicina de hoje quer dar um salto além dos problemas atuais, só que esse desejo se transformou em espera. Um colega meu de faculdade, em Nova Délhi, teve ascensão me­teórica nos Estados Unidos como pesquisador e, antes de com­pletar 45 anos, já lecionava na Faculdade de Medicina de Har­vard. Recentemente, jantamos juntos em um restaurante de Bos­ton e depois, durante a conversa, ele fez uma previsão:

— Houve uma reunião com os principais pesquisadores de medicina em Washington — comentou sombriamente — e todos concordamos que até 2010, aproximadamente, ainda não haverá cura para os casos mais graves de câncer e nenhum avanço na compreensão da AIDS.

Esse sombrio prognóstico deve ser evitado a qualquer preço. Pode ser impecável do ponto de vista científico, mas não faz sen­tido na perspectiva quântica. Somos todos eficientes navegado­res nos domínios da zona “?”, onde a ciência ainda tateia com uma réstia de luz. Isso não sugere uma solução? Os misteriosos colapsos da inteligência do corpo, que ocorrem no câncer e na AIDS, podem ser devidos a uma única distorção — uma curva errada nas regiões ocultas da inteligência do DNA. Para ver co­mo o problema mente-corpo pode ser resolvido, precisamos exa­minar mais de perto essas curvas e sua origem invisível.[†]

 

                   Em Lugar Nenhum e em Toda a Parte

Ninguém jamais verá o corpo mecânico quântico. Isso pode ser um problema para muita gente. Além dos cientistas, todos nós ficamos mais à vontade com coisas que podemos ver e tocar. De um modo geral, a história da medicina moderna consiste na busca dos objetos sólidos causadores das doenças, embora quase todas elas ajam no domínio do invisível, além de qualquer coisa que o olho humano pode perceber.

Um observador atento do século 15, na Europa, poderia ter conjeturado que um rato em casa representava o perigo da peste bubônica (na realidade, os ratos eram tão comuns que essa liga­ção nunca foi feita); uma pulga no pêlo do rato estaria mais pró­xima da verdadeira causa, mas só quando o sangue do rato é exa­minado no microscópio é que a bactéria Pasteurella pestis se tor­na visível. É assim que se descobriu o enigma da Peste Negra, um castigo tão antigo da raça humana que, acredita-se, dizi­mou o exército persa quando marchava contra a Grécia, no sécu­lo V a.C.

Sem o microscópio, o que seria uma bactéria? Algo invisível a olho nu, e, ao mesmo tempo, tão grande quanto o mundo, já que alcança todos os lugares da Terra, até os pólos. Chegaria e sairia como a fumaça, penetrando pelas portas e janelas bem seladas. Se acreditássemos apenas em nossos sentidos, a capa­cidade de um organismo de estar por toda a parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo pareceria uma coisa fantástica. O mun­do quântico é, em essência, apenas mais um passo na escala des­cendente do invisível. Ao contrário de bactérias menores, ou vírus, um único fóton, elétron ou qualquer outro objeto do mun­do quântico não pode ser percebido por intermédio de nenhum meio que amplie a capacidade de visão ou tato. Eles estão, realmente, em toda a parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo.

Até recentemente não havia a menor ligação entre esse fato e a medicina, porque o menor vírus é ainda milhões e milhões de vezes maior que uma partícula elementar. Os germes tam­bém não são muito estáveis no tempo e no espaço, mas os obje­tos quânticos lampejam dentro e fora da existência previsível. Se a Pasteurella pestis penetrar em seu sangue, ficará ali de mo­do absoluto e definitivo, ao contrário dos mésons, simples fan­tasmas que deixam traços luminosos numa chapa fotográfica, durante poucos milionésimos de segundo, e desaparecem da exis­tência material; e muito diferente do neutrino, que atravessa todo nosso planeta sem ser percebido e sem que nada obstrua seu caminho.

Essa ampla diferença na escala entre médicos e físicos quân­ticos manteve as duas ciências a salvo e afastadas até 1987, quan­do um imunologista francês, Jacques Benveniste, realizou uma experiência considerada ultrajante por todas as visões não-quânticas do mundo. À primeira vista, o início da experiência pareceu inócuo. O dr. Benveniste pegou um tipo comum de anticorpo chamado IgE (imunoglobina do tipo E) e o expôs a certas células brancas do sangue, chamadas basófilos. É bem conhecida a reação provocada pela interação desses dois elemen­tos — o anticorpo IgE firma-se nos locais receptores específi­cos e espera. Ele aguarda uma molécula invasora flutuando na corrente sanguínea, da qual precisa se defender. Nesse caso, o invasor não é um germe, mas um antígeno, uma substância que causa alergias.

Se você é alérgico a ferroadas de abelhas, as moléculas do ve­neno desse inseto, quando inoculadas em seu sangue, atraem o anticorpo IgE em poucos segundos. Ele, por sua vez, desen­cadeia uma complexa cadeia de reações na célula, que ativa ao máximo a resposta alérgica do corpo; o basófilo solta uma subs­tância química chamada histamina, que provoca inchaço, ver­melhidão, coceira e falta de ar, típicos de um ataque alérgico. O mistério nas alergias está no fato de o antígeno (substância agressora que entra no organismo) ser geralmente inofensivo — lã, pólen, poeira —, só que é tratado pelo sistema imunológico como um inimigo mortal. Para se descobrir a causa dessas alergias, elas foram profundamente estudadas no plano celu­lar, e um dos resultados revelou um domínio maior do IgE.

Esses dados são suficientes para compreendermos a experiên­cia do dr. Benveniste. Ele coletou um pouco de soro de sangue humano, repleto de células brancas e IgE, e o misturou a uma solução preparada com sangue de cabra que, sem dúvida, acionaria a liberação de histamina. Essa segunda solução continha um anticorpo anti-IgE, que representa o veneno da abelha, o pólen ou outro antígeno. Quando o IgE e o anti-IgE se encon­traram, a reação no tubo de teste foi exatamente igual à de uma pessoa gravemente alérgica, com alta produção de histamina.

Então, Benveniste diluiu o anti-IgE dez vezes mais e tornou a adicioná-lo, seguindo-se a mesma reação. Ele continuou di­luindo, seguidas vezes, e, como antes, cerca da metade do IgE continuava reagindo (40 a 60 por cento). Isso o surpreendeu, porque a solução estava muito além do limite em que seria qui­micamente ativa. Então, o dr. Benveniste decidiu diluir o IgE ainda mais, tornando a solução dez vezes mais fraca a cada pro­va, até ter certeza de que não havia mais nenhum anti-IgE. A última diluição continha uma parte de anticorpo para 10120 par­tes de água; esse número, escrito por inteiro, seria 10 seguido de 119 zeros. Usando uma constante chamada número de Avogadro, ele confirmou matematicamente que era impossível a água conter uma só molécula de anticorpo. Quando adicionou essa “solução”, que já era apenas água destilada, desencadeou-se a reação de histamina com a mesma força anterior. (No filme clássico de Humphrey Bogart, Uma Aventura na Martinica, há uma frase capciosa: “Você já recebeu a ferroada de uma abelha morta?” Neste caso, a abelha também é invisível.)

Apesar do resultado absurdo, Benveniste repetiu a experiên­cia setenta vezes e pediu a outros grupos de pesquisadores que a repetissem em Israel, no Canadá e na Itália, e todos chega­ram ao mesmo resultado: descobriram que se pode acionar o próprio sistema imunológico com um anticorpo que não está presente no organismo. Em nosso vocabulário, Benveniste ha­via descoberto o fantasma da memória — ele mesmo se pergunta se a água não contém o fantasma gravado de moléculas que an­tes estavam ali. Seus resultados foram publicados, com relu­tância, na prestigiosa revista britânica Nature, em junho de 1988. Os editores expressaram francamente seu desgosto pelo resultado, afirmando, com absoluta razão, que ele não apresentava “base física”. As células brancas humanas agiam como se o anti-IgE as atacasse por todos os lados, quando, na realidade, não estavam em lugar nenhum.

 

A medicina reluta em atravessar a porta quântica, mesmo que tenha sido claramente aberta por essa experiência.* Foi ampla­mente divulgada a notícia de que Benveniste estava dando cré­dito aos métodos da homeopatia, um sistema de tratamento inventado pelo médico alemão Samuel Hahnemann, que conti­nua popular em toda a Europa. O termo “homeopatia” vem de duas raízes gregas que significam “sofrimento similar”; define-se, assim, o princípio fundamental homeopático de que “o se­melhante cura o semelhante”. A homeopatia enfrenta todas as doenças usando o método de Benveniste: pequenas porções de substâncias antagônicas são administradas ao paciente para que ele construa uma imunidade ou afaste a doença já instalada.

 

* Em julho de 1988, um mês depois de publicar as descobertas de Benveniste, Nature enviou uma equipe de investigação à França para assistir a sua experiência e esclarecer a descrença geral. Infelizmente, ele não foi capaz de repetir resultados consistentes na presença dos visitantes; algumas tentativas foram bem-sucedidas e outras, não. Poste­riormente, Nature repudiou seu trabalho, dizendo que os resultados eram uma “de­cepção”. Seguiu-se calorosa controvérsia que persiste até hoje. Benveniste ainda de­fende seu trabalho (o relatório original foi assinado por mais doze pesquisadores de quatro países). Embora a capacidade de recordar da água seja inexplicável, não se po­de, porém, imputar-lhe a capacidade de esquecer! Esses podem ser os dois lados de uma mesma moeda.

 

Quando a medicina convencional aplica uma vacina antivariólica, o que aparentemente funciona é a lógica da homeopatia — o vírus morto na vacina estimula anticorpos antivaríola no orga­nismo. (Esse método de lutar contra a varíola existe desde a China antiga, onde os médicos usavam escamações das feridas para es­fregar em pequenos cortes nos braços das pessoas que queriam se proteger contra o mal.) Porém, diferindo da vacina, a homeo­patia baseia-se mais nos sintomas do que nos verdadeiros orga­nismos causadores da doença.

Servindo-se de um elaborado sistema de venenos e ervas tóxi­cas que imitam os sintomas da verdadeira doença, a homeopatia dá ao corpo uma amostra do que ele quer curar. As sementes trituradas de Nux-vomica, por exemplo, que contêm estricnina, seriam receitadas contra a fadiga crônica e a irritabilidade, por­que produzem esses sintomas. A experiência de Benveniste não endossa a lógica homeopática como um todo, exceto sob o as­pecto em que demonstra que o corpo pode reagir a uma micro-dose de substância estranha. O restante da homeopatia continua ambíguo. (O princípio “semelhante cura semelhante” é aceito e até ampliado no Ayurveda, determinando ervas, minerais e até cores e sons relacionados a cada parte do corpo, no tratamento. No entanto, o Ayurveda não segue a lógica homeopática de que o corpo deve adoecer para se curar.)

Acredito que a importância mais profunda da experiência de Benveniste seja a demonstrada em um dos diagramas quânticos do último capítulo:

 

               A       B à C à D à E à etc

 

                     U

 

Notamos que um processo corporal é como uma fila de pes­soas com baldes: uma cadeia de eventos passando de um a ou­tro, exceto o primeiro balde (B). Esse parece ter surgido não se sabe de onde, mesmo que algum impulso inicial (A) evidente­mente o tenha acionado; o que Benveniste fez tão maravilhosa­mente bem foi despojar esse modelo, deixando só o essencial:

 

           Nenhuma Molécula       Uma Molécula

 

                                              U

 

Continuamente passamos por um estado de não-molécula se transformando em molécula. Quando você tenta se lembrar da primeira vez em que dirigiu um carro, sabe que as substâncias químicas presentes na ocasião já se desvaneceram (a maior parte antes mesmo do fim do passeio). Hoje, ao recriar a lembrança, ao ver o carro novamente e sentir o volante em suas mãos, você está disparando reações celulares que começam em “lugar ne­nhum”, já que as células de seu cérebro estão vazias das velhas moléculas, como a água de Benveniste.

Se pudermos explicar como o corpo-mente faz para transfor­mar não-moléculas em moléculas, muitos mistérios do cérebro serão esclarecidos. Depois que surge essa minúscula partícula de matéria, a seqüência segue as leis bem conhecidas da natureza. Fora da homeopatia, posso citar um exemplo bem mais claro nos estranhos casos psiquiátricos conhecidos como personalidades múltiplas. Nada no campo mente-corpo parece tão inexplicável porque, quando uma pessoa com múltiplas personalidades mu­da de uma para outra, o corpo também muda.

Por exemplo, uma personalidade pode sofrer de diabete, e o organismo terá insuficiência de adrenalina enquanto aquela personalidade estiver no controle. As outras, porém, podem não so­frer desse mal, mantendo, portanto, os mesmos níveis de açúcar no sangue como as pessoas normais. Daniel Goleman, um psi­cólogo que também escreve freqüentes reportagens sobre temas relacionados a mente-corpo, cita o caso de um menino chamado Timmy, que costuma adotar quase uma dúzia de personalidades diferentes.

Uma delas fica com urticária quando ele bebe suco de laranja. “A urticária surge”, descreve Goleman, “mesmo quando Timmy toma suco de laranja e a tal personalidade emerge quando o suco ainda está sendo ingerido. E mais: se Timmy voltar enquanto a reação alérgica ainda está presente, a coceira da urticária cessa imediatamente, e as bolinhas de água começam a desaparecer.”

Quando li pela primeira vez esse artigo, fiquei muito entusiasmado. A literatura médica não declara que as reações alérgicas podem desaparecer assim, à vontade. Como poderiam? As célu­las brancas do sistema imunológico, cobertas de anticorpos IgE, estão simplesmente à espera do contato com um antígeno; quan­do o contato ocorre, elas reagem automaticamente. Mas, no cor­po de Timmy, é necessário que as células brancas pressintam a aproximação das moléculas de suco de laranja para tomarem a decisão — se devem reagir ou não. Isso significa que a própria célula é inteligente, respondendo a minha pergunta. Além disso, sua inteligência está dividida em parcelas iguais em cada uma das outras moléculas, e não mantida em uma especial, como o DNA, já que o anticorpo e o suco de laranja se encontram o tempo todo com átomos muito comuns de carbono, hidrogênio e oxigênio.

Dizer que as moléculas tomam decisões é um desafio ao está­gio atual da ciência — como se o sal às vezes se fizesse sentir sal­gado e outras vezes, não. Mas passar de um evento mente-corpo a outro é sempre uma projeção da inteligência: no caso de Timmy, o que nos espanta é a notável rapidez e intensidade com que isso acontece. Quando percebemos o fato de que ele escolhe ser alér­gico — senão, como poderia desencadear e afastar a crise de urticária? —, encaramos a possibilidade de que também podemos estar escolhendo nossas doenças. Não temos consciência dessa escolha, porque ela é tomada muito abaixo do nível de nossos pensamentos conscientes. Mas, se está presente, deveríamos tam­bém ser capazes de mudá-la.

Todos nós podemos mudar a biologia de nossos corpos, de um extremo a outro. Quando você está muito feliz ou profundamen­te deprimido, não é a mesma pessoa, fisiologicamente falando. Os casos de personalidade múltipla demonstram que essa capa­cidade interna de nos modificarmos está sob controle preciso.

Quero comentar sobre um caso que ocorreu na família Cho­pra, relacionado a este assunto e, curiosamente, ao anticorpo IgE.

Meu pai é cardiologista na Índia. Durante muitos anos foi mé­dico do Exército, o que nos levava, de posto a posto, por todo o país. Quando eu era criança, ele foi enviado a Jammu, um lu­gar distante ao norte, no Estado de Cachemira. Não me lembro de nada durante essa nossa estada, mas durante anos ouvi co­mentários sobre as horríveis alergias que minha mãe sofreu lá. Vivia atormentada com o pólen de uma flor nativa que enchia os campos a cada primavera. Ela sofria fortes crises de asma; seu corpo inchava e surgiam na pele grandes vergões vermelhos e bo­lhas (esse estado é conhecido como edema angioneurótico).

Meu pai sempre foi muito devotado a minha mãe e, penaliza­do com seu sofrimento, costumava levá-la toda primavera a Srinagar, capital de Cachemira. O ar dessa cidade é livre do pólen, e ela se sentia feliz por estar nesse vale montanhoso, que é um dos mais belos lugares da Terra.

Certa primavera, as chuvas violentas deixaram as estradas intransitáveis e meu pai decidiu que deviam antecipar a volta para casa. Tomaram o avião, que pousou uma hora depois. Ele segu­rou o braço de minha mãe para confortá-la, mas já via as man­chas na pele e o esforço que ela fazia para respirar. A alergia de minha mãe era tão forte que o comissário aproximou-se e per­guntou o que acontecia.

— Não há nada a fazer — explicou meu pai. — É o pólen que existe em Jammu.

— Jammu? — O comissário olhou espantado. — Ainda não chegamos lá; aqui é Udhampur, a primeira parada. Não o avisaram?

Meu pai ficou muito admirado. Quando olhou para minha mãe, notou que as manchas na pele estavam desaparecendo. Depois disso, durante anos, ele costumava sacudir a cabeça e murmurar:

— Basta dizer a palavra Jammu e sua mãe adoece.

Quando lhe contei sobre a experiência do IgE, ele ficou muito aliviado; já havia uma resposta científica para nosso mistério fa­miliar. Minha mãe tem só uma personalidade, mas essa mudan­ça foi total e imediata.

Muitos casos de personalidade múltipla vêm sendo estudados e observados, especialmente pelo dr. Bennett Braun, um psiquiatra pesquisador especializado nesse campo. Quando a personalida­de do paciente muda, verrugas, cicatrizes e erupções da pele sur­gem e desaparecem, assim como crises de hipertensão e de epi­lepsia. Uma determinada personalidade pode não distinguir as cores, mas essa capacidade retorna com a volta de outra perso­nalidade. É quase uma regra que uma das personalidades seja infantil e, quando ela emerge, os corpos dos pacientes reagem a doses menores de medicamentos. Em um desses casos, basta­ram 5 miligramas de tranquilizante para o paciente ficar calmo e sonolento como quando era criança, enquanto uma dose vinte vezes mais forte não causou efeito no adulto.

Aturdidos, os pesquisadores estão à procura de um mecanis­mo que explique tais ocorrências, aparentemente impossíveis: acre­dito que acabem descobrindo com um simples exame que a mu­dança quântica ocorreu. Uma personalidade não tem moléculas, sendo feita apenas de memórias e tendências psicológicas; mas são mais permanentes do que as células afetadas. Este não é um mistério profundo — como vimos, cada molécula do corpo está envolvida numa partícula de inteligência visível.

O termo “memória” não é usado pelos físicos, mas é facilmente encontrado no mundo quântico — ainda que separadas por imen­sas distâncias de espaço-tempo, as partículas sabem o que cada uma está fazendo. Quando um elétron salta em nova órbita, ro­deando um átomo, seu parceiro antielétron (ou pósitron) precisa reagir, não importa onde esteja no cosmos. O universo é, de fato, inteiramente ligado por esse tipo de rede de memória.

Para um físico, o único quebra-cabeça da experiência de Benveniste é que ninguém acreditou que os eventos quânticos pudessem ocorrer no nível das moléculas. Um fóton se instala no limiar de um quantum, onde vibrações fracas e dispersas são a regra. Algumas dessas vibrações morrem no nada, enquanto ou­tras se ampliam e entram na realidade material como energia. Para começar, como o fóton não é quase nada, pode lampejar dentro e fora da existência. Mas uma molécula como o IgE é tre­mendamente mais substancial do que essas vibrações flutuantes. Se não fossem, as moléculas poderiam saltar dentro e fora da exis­tência sem aviso — junto com coisas feitas de moléculas, como baleias azuis e arranha-céus. Já que isso não acontece, não pare­ceu necessário investigar moléculas com memória.

Para entender como a molécula trabalha, precisamos saber mais sobre o nível quântico da natureza. Sua peculiaridade, sua dife­rença de todos os outros estados de matéria e energia e seu vazio. Já vimos que o núcleo de um átomo é quase totalmente vazio, assemelhando-se, guardadas as proporções, ao espaço intergalác­tico. O mesmo acontece conosco, já que somos, evidentemente, feitos de átomos. Isso significa que somos feitos de vazio; mais que qualquer outra coisa, ele é nossa matéria-prima.

Em vez de observarmos o espaço entre as estrelas como um vazio frio e sem vida, deveríamos encará-lo com os olhos de um físico, vendo que está cheio de energia invisível à espera de se aglutinar em átomos. Cada centímetro cúbico do espaço está cheio de energia, numa quantidade quase infinita, embora grande parte dela esteja em forma “virtual”, isto é, represada, sem tomar parte ativa na realidade material. (Uma frase maravilhosa do antigo Upanishad indiano afirma: “A força que penetra o universo é bem maior do que a que brilha através dele”. No que se refere aos objetos quânticos, na maior parte em forma virtual, essa é uma verdade literal.)

Nossos sentidos não estão preparados para enxergar o vazio co­mo o útero da realidade, sendo mais adaptados a um nível mais grosseiro da Natureza, cheio de flores, pedras, árvores e de nos­sas famílias. Dizem que o olho humano pode distinguir 2 mi­lhões de tonalidades de cor, cada qual ocupando uma estreita faixa de energia luminosa. Mas nosso mecanismo óptico não conse­gue registrar essas vibrações energéticas como tal. Menos ainda, registramos um pedaço de mármore sólido como vibrações, em­bora, no fundo, seja a mesma coisa que a cor.

Enquanto a luz vai mudando de uma cor a outra, cada peque­na graduação exerce enorme influência. A luz visível, por exem­plo, dá ao mundo a forma e a definição que nossos olhos perce­bem. Se mudarmos ligeiramente para baixo, para a faixa infra­vermelha, nosso olho passará a sentir calor, mas ficará cego. Se o elevarmos até os raios X, o olho pode ser destruído. Cada gra­duação quântica é muito tênue, mas significa uma realidade com­pletamente nova no nível grosseiro das moléculas e das coisas vi­vas. O espectro de luz é como uma corda contínua, vibrando mais lentamente em um ponto e mais rapidamente em outro. Faze­mos nosso lar de uma pequena parte desse espectro, mas todo o comprimento é necessário para existirmos. Começando do ze­ro, as vibrações da corda são responsáveis pela luz, pelo calor, pelo magnetismo e por inúmeras outras formas mais discretas de energia que povoam o universo. Em poucos degraus, a escada da criação passou do espaço vazio à poeira intergaláctica, depois ao Sol e, finalmente, à Terra vivente. O que isso demonstra é que o vazio, o ponto zero da vibração, não é o nada, mas o ponto inicial de tudo o que existe. E esse ponto está sempre em contato com todos os outros — a continuidade não sofre interrupções.

A razão de se discutir o vazio subatômico é o fato de o experimentarmos sempre que pensamos. Como em toda a extensão do universo, algo material — o neuropeptídio — surge não se sabe de onde. Nesse caso, não são os átomos do neuropeptídio que são criados, porque para isso é necessário hidrogênio, carbono, oxigênio etc., já presentes na glicose que o cérebro usa como com­bustível. O que surge não se sabe de onde é a configuração do neuropeptídio, o que é magia suficiente.

No mesmo instante em que você pensa “Sou feliz”, um men­sageiro químico transforma sua emoção, que não tem nenhuma existência sólida no mundo material, numa partícula de matéria tão perfeitamente afinada a seu desejo que todas as células de seu corpo, literalmente, ficam sabendo dessa felicidade e a compar­tilham. O fato de você ter a possibilidade de falar a 50 trilhões de células na linguagem que elas entendem é tão inexplicável quanto o momento em que a Natureza criou o primeiro fóton no vazio.

Essas substâncias químicas do cérebro são tão ínfimas que a ciência levou muitos séculos para descobri-las. No entanto, se considerarmos as moléculas mensageiras como a mais refinada expressão material de inteligência que o cérebro pode produzir, te­mos de admitir que ainda são grosseiras para se construir a pon­te entre a mente e o corpo. De fato, nada poderia ser refinado o bastante, já que um dos lados da ponte que desejamos alcan­çar, a mente, não é pequena em nenhum sentido físico — calcu­lar que um pensamento tem tamanho é um absurdo. A mente não está solta no espaço, ocupando um lugar, nem mesmo o ne­cessário para um elétron, que é infinitesimal. A bobagem evidente de guardar a mente numa caixa foi uma das principais ra­zões de a ciência ter separado, desde o início, a mente da maté­ria, já que toda matéria pode ser fechada em alguma caixa. Felizmente, surge a física quântica para salvar o construtor da pon­te. Ela surgiu para explorar essas regiões aparentemente absur­das nas fronteiras do espaço-tempo.

A física quântica ficou com a responsabilidade de medir as menores coisas possíveis. O átomo, apesar de muito pequeno, mos­trou, desde aproximadamente 1900, que tinha um núcleo; quando este foi aberto, a menor unidade pareceu ser o próton, até novas divisões do átomo revelarem, no Emite da existência material, par­tículas ainda menores, chamadas quarks. Além do quark, as di­visões aparentemente acabaram.

Alguém poderia pensar que deva existir um material especial na formação do quark. Por estranho que pareça, isso não é ver­dade. Na Grécia antiga, o filósofo Demócrito propôs, em pri­meiro lugar, que o material do mundo fosse composto de partí­culas mínimas e invisíveis, a que deu o nome de átomos, em grego “não divisível”. Quando Platão ouviu sua teoria (que não podia ser testada experimentalmente, é claro), fez uma objeção que mis­teriosamente previa a física quântica. Se pensarmos em um áto­mo como uma coisa, argumentou ele, ela necessariamente tem de ocupar algum lugar no espaço; sendo assim, pode ser partida e ocupar um espaço menor. Qualquer coisa que possa ser parti­da em dois não é a menor partícula que constitui o mundo ma­terial.

Com esse raciocínio impecável, Platão demoliu a teoria de que todas as partículas sólidas sustentam o bloco básico de constru­ção da Natureza, não apenas o átomo, mas o próton, o elétron e o quark. Todas elas podem ser divididas em duas partes num processo infinito, mesmo que na realidade isso não aconteça. Se­ja o que for que constrói o mundo, tem de ser algo tão mínimo que não ocupe lugar no espaço. Platão argumentou que o mun­do nasceu das formas perfeitas invisíveis, semelhantes às geomé­tricas. Os físicos modernos, por sua vez, estudam alternativas mais tangíveis como a matéria invisível chamada “partículas virtuais”, além dos campos de energia. A famosa equação de Einstein E = MC2 provou que a energia pode ser transformada em matéria, e isso permitiu um avanço da física para além da barreira do “menor que o mínimo”.

Ninguém pode afirmar com segurança do que é feito um quark, mas certamente não é de um pedaço de matéria sólida — o quark já está além do limite das coisas que se podem “ver” ou “to­car”, mesmo empregando-se instrumentos científicos que ampliem nossos sentidos; seu bloco de construção pode ser apenas uma vibração que tem o potencial de se transformar em matéria. Por­tanto, ele é menor que o mínimo. Para um físico, todos os tama­nhos acabam em um número específico — 10-33 centímetros cú­bicos — uma fração inconcebível que pode ser escrita como um décimo precedido de 32 zeros; é conhecido como o limite de Planck, um tipo de zero absoluto para o espaço, como existe o da temperatura.

Mas, quando essa barreira é alcançada, o que existe além? Nes­se ponto a ciência da física emudece. Mas é fascinante perceber que todos os descobridores da física quântica foram basicamente platônicos. Ou melhor, acreditavam que o mundo das coisas fosse uma sombria projeção de uma realidade mais vasta e invisível, ima­terial. Alguns, como Einstein, surpreenderam-se com a ordena­ção geral da Natureza, sem lhe atribuir nenhuma inteligência. Outros, como Eddington, declararam simplesmente que a matéria-prima do universo era “substância mental”. Eddington defende sua posição com um argumento lógico tão elegante quanto o de Platão. Ele declara que nossa imagem do mundo é basicamente a formação de impulsos cerebrais. Essa formação, por sua vez, surge de impulsos que percorrem os nervos nos dois sentidos. Esses impulsos vêm de vibrações de energia nas bases dos ner­vos. Na base da energia está o vazio, o vácuo quântico. Qual parte é real? A resposta não está em nada porque a cada passo, ao lon­go do caminho, desde as vibrações de energia aos impulsos nervosos e à formação do cérebro, tudo não passa de um código.

Não importa onde você procure, o universo visível é fundamentalmente um conjunto de sinais. Mas todos esses sinais formam um todo, transformando vibrações totalmente sem sentido em complexas experiências que possuem significado humano. O amor entre marido e mulher pode ser cruamente traduzido em dados físicos, mas com isso perde sua realidade. Além disso, diz Eddington, todos esses códigos demonstram a existência de uma coisa mais real, algo além de nossos sentidos. Ao mesmo tempo, também é algo muito íntimo, para que todos possamos ler o có­digo e transformar vibrações quânticas ao acaso em uma realida­de ordenada.

Uma boa imagem para isso seria a de um pianista tocando um estudo de Chopin. Onde está a música? Você pode encontrá-la em diversos níveis — nas cordas vibrando, no bater dos marte­los, nos dedos que tocam as teclas, nas notas escritas na partitu­ra ou nos impulsos nervosos produzidos no cérebro do pianista. Mas todos esses níveis são apenas códigos; a realidade da música é a forma invisível, difusa e bela que desperta nossas lembranças sem estar presente no mundo físico.

 

Para ser como o quantum, o corpo não precisa banir suas moléculas para outra dimensão; ele precisa apenas aprender a reformá-las em novos padrões químicos. São esses padrões que transitam dentro e fora da existência, assemelhando-se ao que acontece nos tubos de ensaio de Benveniste. Se pensarmos seria­mente em saltar de um rochedo e nosso coração começar a bater com força, teremos gerado adrenalina usando um estímulo tão invisível quanto o IgE da experiência. Do mesmo modo, uma das personalidades de Timmy lembra-se de como é ser alérgica a suco de laranja, mesmo que ela possa ficar escondida em al­gum domínio invisível durante dias inteiros. Mas, assim que ela volta, o corpo obedece a seu comando.

Procurei fazer com que tudo isso parecesse razoável, ao con­trário dos editores da revista Nature, quando declararam que, se a experiência IgE fosse verdadeira, deitariam por terra duzentos anos de pensamento racional na biologia. Mas a biologia agora vai ter de mudar e, com ela, a medicina. Ao contrário do que os médicos supõem atualmente, o pâncreas anormal de um dia­bético não é tão real quanto a mentalidade distorcida que se in­filtrou nas células pancreáticas.

Essa compreensão abre as portas da cura quântica. As técni­cas mentais usadas pelo Ayurveda dependem da capacidade de controlar os padrões invisíveis que ordenam nosso corpo. Há pou­co tempo, uma senhora idosa, minha paciente, vinha sofrendo de fortes dores no peito; tinham feito o diagnóstico de angina pectoris, um dos sintomas mais comuns de doença cardíaca em esta­do avançado. No período de janeiro a março daquele ano, ela se lembrava de ter tido sessenta crises de angina e tomou compri­midos de nitroglicerina para obter alívio. Recomendei-lhe que empregasse a “técnica do som primordial” para doenças cardía­cas, e ela me disse que ia praticar sozinha. (O conceito de “tera­pia do som primordial” foi um pouco discutido na introdução e novos detalhes serão dados mais adiante.)

Em julho, cerca de dois meses depois, minha paciente escreveu-me declarando que as crises cardíacas tinham passado no dia em que aprendeu a técnica, e nunca mais voltaram. Ela sente-se bem e ativa — muitas pessoas que sofrem de angina têm medo de es­forço físico, mesmo que seja pequeno. Ela foi abandonando a me­dicação aos poucos, por conta própria, e recentemente matriculou-se numa escola, com aulas diárias. Ficou muito orgulhosa por me contar essa última novidade, já que está com 88 anos de idade.

A explicação para esse resultado, em meu modo de ver, é que a ligação mente-corpo passa a ficar sob controle. Eu também gos­taria de dizer que a técnica Ayurveda não é mágica; ela apenas imita a Natureza. Há alguma diferença entre minha paciente, que faz sua angina pectoris desaparecer, e uma personalidade múlti­pla que faz a mesma coisa?

Um médico cético poderia negar que a angina tem, geralmen­te, duas causas. Uma é o espasmo das artérias coronárias, os vasos sanguíneos que alimentam o coração de oxigênio. Se elas se contraem durante um espasmo, o músculo cardíaco não recebe oxigênio e grita de dor. Minha paciente deve ter sofrido esse tipo de angina, diria o cético. A outra causa é o bloqueio de gordura nas artérias coronárias, o que não poderia ser curado por uma técnica mental. Eu seria forçado a responder que ambos os casos envolvem a memória. Os bloqueios de gordura não são tão subs­tanciais quanto parecem. Se alguém se submeter a uma revascularização do coração e trocar as artérias velhas e entupidas por outras desobstruídas, as novas frequentemente se entopem em questão de meses. Isso acontece porque o vaso sanguíneo foi mu­dado, mas não o fantasma da memória — ele ainda quer acumu­lar placas gordurosas nas artérias.

Em contrapartida, muitos pacientes que se submetem a essa cirurgia não voltam a sentir as dores fortes e assustadoras no pei­to, mesmo com as artérias entupidas, porque estão certos de que a cirurgia os curou. Os cirurgiões já experimentaram até operações-placebo, simplesmente abrindo e fechando o peito, e em boa por­centagem dos casos os pacientes sentiram alívio da angina. Mi­nha paciente, na realidade, não tinha as artérias coronárias blo­queadas, mas o mecanismo oculto na angina era igualmente real; seu cérebro não fazia um exame prévio dos vasos sanguíneos com raios X, antes de reagir com dor.

Se tenho uma paciente que sente medo, posso apertar sua mão e garantir-lhe que vai se sentir melhor; isso acontece até mesmo sob anestesia. Você pode segurar a mão de um paciente em um momento difícil da cirurgia e ver o efeito calmante nos monito­res que medem a pressão sanguínea e o registro das batidas car­díacas. O coração e o cérebro, ao que parece, estão ligados bem mais profundamente do que as células. Constatamos essa verda­de sempre que um bebê está aninhado nos braços da mãe. Em poucos minutos os dois respiram no mesmo ritmo, mesmo que a criança esteja dormindo, e começam a sincronizar-se as batidas dos corações (não batem em uníssono, batida por batida, já que as do coração do bebê são bem mais rápidas que as da mãe). Essa ligação corpo-mente é invisível, mas quem poderia chamá-la de irreal? Tem passado silenciosamente de geração a geração. Tal­vez nos envolva a todos em um grande laço de afinidade. Vindo de seres humanos distintos, preocupados com seus problemas pes­soais, ela ajuda a moldar a espécie humana.

 

Assim que a ciência tenha se recobrado do choque da expe­riência IgE, um novo domínio precisa ser explorado: o domínio do vazio. A física quântica descobriu algo misteriosamente rico a respeito do espaço vazio. Agora estamos chegando ao ponto de estender essa riqueza a uma dimensão humana.

O universo em seu estado primordial foi comparado a uma so­pa de energia que se transformou em partículas de matéria. Eu nos comparo, portanto, a uma sopa de inteligência — só que não sopa, absolutamente, mas inteligência que aprendeu a cristalizar-se em partículas orgânicas, belas, precisas e poderosas, a que cha­mamos pensamentos. Isso faz com que o vazio em nosso interior seja muito mais entusiasmante que o outro, o que criou o universo.

 

                   Testemunha Silenciosa

Penso que a necessidade premente de uma medicina quântica fica devidamente demonstrada pelo estudo do seguinte caso: um jovem israelita chamado Aaron, de 24 anos, ligou para meu con­sultório.

— Sinto-me perfeitamente saudável — disse ele —, mas meu médico só me deu noventa dias de vida. Ele me pediu alguns exames e descobriu que tenho uma doença incurável no sangue. Isso aconteceu exatamente há vinte e três dias.

Mal conseguindo conter a emoção, ele contou toda a história, cheia de estranhas passagens. Seu diagnóstico surgiu de modo inteiramente acidental. Devido a um antigo ferimento, ficara com um desvio no septo e respirava com dificuldade. Aaron tinha che­gado aos Estados Unidos diversos anos antes, para estudar co­mércio. Afinal, resolveu procurar um cirurgião em Chicago para corrigir o defeito do nariz, e ele pediu-lhe exames de sangue de rotina.

Quando os resultados chegaram do laboratório, o médico fi­cou muito perturbado. Eles mostravam que Aaron estava com grave anemia: sua contagem de hemoglobina — componente do sangue que transporta oxigênio pelo corpo todo — tinha caído de 14, normal, para 6 (uma contagem de 12 seria considerada o limite de anemia). Seu hematócrito tinha caído para 16; isso significa que seu sangue fora centrifugado para separar as célu­las vermelhas do plasma, e elas ocupavam apenas 16 por cento do volume total. No sangue normal esse volume estaria próximo dos 40 por cento.

Aaron procurou imediatamente um hematologista, que lhe fez uma série de perguntas.

— Tem sentido falta de ar ultimamente?

— Não — respondeu Aaron.

— Acorda sufocado no meio da noite?

— Não.

— Seus tornozelos têm inchado? — O hematologista observou-o seriamente. — Você sente cansaço o tempo todo, não é?

Aaron sacudiu negativamente a cabeça.

— Isso é impressionante! — exclamou o médico. — Com sua contagem de hemoglobina você poderia ter uma crise de insufi­ciência cardíaca congestiva a qualquer momento.

Aaron ficou chocado, mas o médico tinha o direito de se ad­mirar, observando aqueles exames. No caso de uma anemia gra­ve, o coração precisa trabalhar muito mais que o normal para su­prir todo o oxigênio necessário para o resto do corpo. Isso, alia­do à falta de oxigênio que ele também sente, leva o músculo car­díaco a inchar e a sofrer uma insuficiência congestiva. O pacien­te começa a acordar à noite, sentindo-se sufocado até a morte, e isso pode finalmente acontecer.

O hematologista, espantado, pediu o exame de uma amostra da medula óssea de Aaron. O corpo contém normalmente ape­nas 280 gramas de medula óssea, mas isso é suficiente para pro­duzir nosso suprimento total de glóbulos vermelhos do sangue, numa média de 200 bilhões de novas células por dia. No exame, a medula de Aaron não mostrou sinais dos precursores das célu­las vermelhas que deviam estar presentes. O hematologista per­cebeu, então, que a raiz do problema de Aaron estava na parali­sia da medula óssea (chamada anemia aplástica), mas não podia determinar a causa. Mesmo sem apresentar sintomas, Aaron estava gravemente doente.

— Ninguém sabe ao certo qual o tempo de vida de uma célu­la vermelha do sangue — disse o médico. — O cálculo aceito é de cento e vinte dias, mas poderia ser um mês. Já que as células vermelhas de seu organismo não estão sendo repostas, sinto muito, mas você não deve ter mais que noventa dias de vida.

Enquanto Aaron o ouvia atordoado, o médico explicou que a medicina tinha pouco a fazer por ele. O tratamento possível se­ria um transplante da medula óssea, mas era uma grande inter­venção cirúrgica que, se ele sobrevivesse, provavelmente não o salvaria. Ele podia tomar uma transfusão de sangue para aumentar a contagem das células vermelhas, mas a súbita injeção do san­gue de outra pessoa acabaria lesando a medula óssea; além dis­so, quando a medula percebesse que a contagem estava novamente elevada, poderia interpretar como sinal para reduzir ainda mais sua função.

Como não sentia nenhum sintoma, Aaron hesitou em se sub­meter a um transplante. O hematologista deu-lhe duas semanas para se decidir. Também declarou que tinha o dever legal de aconselhá-lo a colocar seus negócios em ordem o mais rápido pos­sível. (Aaron não foi propriamente tratado com compaixão em nenhuma dessas etapas. Durante a conversa, ele contou ao mé­dico que sua irmã mais velha tinha morrido de repente, de um modo trágico, na Faculdade de Direito. A causa da morte não ficou muito clara, mas foi atribuída a uma doença, provavelmente hereditária, do sangue. Ouvindo isso, o hematologista ficou en­tusiasmado e pediu a Aaron que descobrisse a causa precisa da morte da irmã, porque os dois casos juntos dariam um Ótimo ar­tigo para os jornais. Quando Aaron me contou esse incidente mais tarde, fiquei tomado pela fúria.)

No dia seguinte ao diagnóstico, Aaron começou a sentir falta de ar e não conseguia dormir. Procurava desesperadamente um meio de se curar. Quase por acaso, começou a fazer meditação e soube de nossa clínica aiurvédica. Um mês depois, era meu paciente em Lancaster.

— O que me deixa mais esperançoso — disse eu — é você ter se sentido saudável até descobrir que havia algo errado. Vamos supor que esteja controlando esse mal, portanto faremos tudo o que pudermos para permitir que seu organismo se cure.

Eu desconhecia a causa de sua doença, mas enquanto entrevistava Aaron fui descobrindo que existiam vários motivos de preocupação. O primeiro era o próprio diagnóstico assustador que o deixara em pânico. Nessas condições, é difícil observar como o corpo-mente pode descobrir um caminho para a cura. Além disso, Aaron parecia uma pessoa tensa e muito esforçada. Tinha trabalhado em quatro empregos ao mesmo tempo, enquanto es­tudava, esforçando-se ao máximo para comprar um carro e pa­gar as despesas da faculdade. A pressão do estudo também era enorme. Ele tomava vitaminas Constantemente, além de uma me­dicação contra úlcera, que acalmava a dor crônica no estômago. Poucos meses antes, havia sofrido uma tendinite quando jogava tênis e tomou um agente antiinflamatório para diminuir o incha­ço. É sabido que tais drogas suprimem as funções da medula ós­sea. Pedi-lhe que interrompesse toda a medicação.

Ele ficou duas semanas na clínica e, pela primeira vez, encon­trou um ambiente livre do estresse “normal”. Continuou a me­ditar, comia obedecendo a uma simples dieta vegetariana de acordo com seu tipo físico e recebeu uma série de massagens que o Ayur­veda prescreve para purificar o organismo. Ensinei-lhe também a técnica do som primordial, aconselhável para suas condições. Uma noite, a enfermeira o apanhou andando pelo corredor com o cabelo molhado, e ele confessou que tinha saído para nadar. Fiquei muito feliz ao saber disso, pois outro paciente com a con­tagem do sangue de Aaron estaria tomando oxigênio ou transfu­sões de sangue. Aquele sinal era mais que encorajador.

Quando ele saiu da clínica, pedi-lhe que não fizesse novos exa­mes de sangue, pelo menos por duas semanas. Uma amostra exa­minada em Lancaster mostrou que seu suprimento de células ver­melhas imaturas, chamadas reticulócitos, estava quatro vezes mais elevado do que no momento em que ele chegou à clínica. Como são essas as células que mais tarde se transformam nos glóbulos vermelhos, achei que sua doença tinha cedido. Aaron acaba de ultrapassar o prazo de vida prognosticado pelo médico. Ele ain­da tem uma grave anemia, mas, em contrapartida, não apresen­tou sinais de enfraquecimento físico. Na verdade, sua anemia até diminuiu um pouco.

 

Em meu modo de pensar, Aaron está na linha divisória entre dois tipos de medicina. A primeira é a comum, científica, a cujos métodos estou profundamente habituado, mas que já não me inspira uma confiança tão absoluta. Não foi a medicina co­mum que falhou no caso de Aaron. Os médicos descobriram a presença de seu mal nos diversos níveis do organismo, dos teci­dos às células e às moléculas. Em seu caso, o tecido era a medula óssea, as células eram os glóbulos vermelhos do sangue e a mo­lécula era a hemoglobina. Para um médico treinado na medicina convencional, esse é o fim do caminho; um caminho que levou dois séculos de profunda investigação racional para ser encon­trado. O que há mais para se descobrir, quando se sabe até o que existe de errado com as moléculas de uma pessoa?

Essa lógica é impecavelmente científica, mas perigosamente des­ligada da carga normal de vida. Por “carga normal” refiro-me a como uma pessoa come, dorme, os pensamentos que transitam em sua mente, o que ela vê, cheira, ouve e o que penetra em seu organismo através de todos os seus sentidos. Você pode di­zer que o corpo é feito de moléculas, mas dirá com a mesma jus­tiça que ele é feito de experiências. Essa definição combina com nossa auto-imagem, o que não é científico, mas é fluido, mutá­vel e vivo. Dessas experiências comuns é que se origina a segun­da medicina, a do quantum.

Às vezes podemos pensar que a vida diária é simples demais para despertar o interesse da ciência. Na verdade, ela é comple­xa demais. Apesar de uma molécula de hemoglobina ser estru­turada de 10 mil átomos, pode ser isolada e mapeada — feito que mereceu vários prêmios Nobel. No entanto, é impossível saber o que a hemoglobina está fazendo enquanto você inspira o ar, porque cada célula vermelha contém 280 milhões de moléculas de hemoglobina, cada qual colhendo oito átomos de oxigênio. Considerando que os pulmões expõem ao ar em cada inspiração cerca de um quarto de sangue, contendo 5 trilhões de células ver­melhas, o número total de trocas químicas é astronômico. Todo o processo se desintegra rapidamente em um torvelinho caótico de atividades.

Quando se abre um corpo humano durante uma cirurgia, o que se vê não é o traçado bem definido dos livros de anatomia, com os nervos na cor azul, os vasos sanguíneos vermelhos, o fí­gado verde bem separado da vesícula biliar amarela. Em vez dis­so, o olhar não treinado enxerga uma confusão de tecidos quase indistintos, avermelhados e molhados; um órgão esconde-se im­perceptivelmente sob outro. A grande maravilha é a ciência mé­dica ter aprendido tanto sobre esse caos pulsante. Mas, em troca do conhecimento, a ciência pagou um alto preço por ter de aban­donar a experiência comum. Afinal, enchermos o pulmão de ar não representa o caos, a não ser para um biólogo molecular. A respiração é o ritmo fundamental da vida, em que se baseiam todos os outros ritmos.

Eric Cassell, um professor de fisiologia de Cornell (EUA), es­clarece ironicamente que um médico, ao fazer perguntas ao pa­ciente, não está tentando descobrir o que há de errado com ele; procura, sim, saber quais sintomas podem estar ligados a uma doença conhecida e classificada. A diferença é sutil, mas muito importante, pois nos lembra que todo o sistema de órgãos, teci­dos etc. foi organizado intelectualmente para facilitar a classifi­cação do corpo. Devem existir outros pontos de vista que são mais verdadeiros por natureza, já que estão baseados na experiência comum, e desafiam a aparente desordem exterior para compreen­der seu verdadeiro significado.

O caos é apenas uma aparência, uma máscara, e sob um olhar diferente metamorfoseia-se em pura ordem. Até a descoberta de seu código, a dança da abelha parecia um caos, uma confusão de voltas e guinadas. Agora, sabemos que é um conjunto preciso de direções para indicar às outras onde existe uma fonte de néc­tar. Isso não significa que a dança tenha mudado do caos à or­dem, e sim sua aparência mudou para nossos olhos. Do mesmo modo, se você examinar a pressão sanguínea de um paciente car­díaco algumas vezes, os dados dificilmente formarão algum pa­drão; porém, se ele ficar Constantemente ligado ao monitor, sur­girá um padrão bem definido, com picos e vales que ocorrem no espaço de um ou dois dias. Esse feto só foi descoberto recen­temente e permitiu que os cardiologistas descobrissem a hipertensão em pacientes que costumam apresentar pressão normal no consultório médico, porque os picos só ocorrem à noite. Sente-se claramente a mudança de maré, mas ninguém sabe ainda seu significado. A máscara do caos apenas começa a ser rompida.

As duas medicinas não precisam ser antagônicas, mas por enquanto estão claramente voltadas em direções opostas. Para um hematologista, é irrelevante que Aaron esteja tenso, excitado, cheio de substâncias dúbias no organismo, apavorado com a idéia de morrer. Para um médico védico, essas são as cargas primárias da doença — entraram no nível quântico, onde ele se transforma na pessoa que é. O hematologista não está sendo desapiedado; po­de sentir profundamente o que está acontecendo com Aaron, mas não consegue provar a ligação entre a disfunção da medula óssea e os quatro empregos ao mesmo tempo. Esse é o limite da noção newtoniana de causa e efeito, onde se desfaz a base da medicina científica comum.

Não se pode fazer perguntas para descobrir o que realmente causa a doença do paciente. No caso de Aaron, eu gostaria de saber como ele se sentiu com a morte da irmã, o que ele come no café da manhã, quem são seus amigos, como ele costuma fi­car quando perde uma partida de tênis — na verdade, quero sa­ber sobre qualquer experiência importante. Isso é praticamente impossível. São tantas as influências que nos pressionam todos os dias que a idéia de casualidade desaparece. Eu consideraria absurdo dissecar o cérebro de um poeta para se descobrir a causa de seus sonetos; seu córtex não poderia ter deixado de exibir padrões específicos de ondas cerebrais para produzir um soneto, mas elas se evaporaram e foram levadas a um domínio além do tempo. Começa a parecer igualmente absurdo considerar que uma causa física isolada se oculte na disfunção da medula óssea de Aaron. A vida dele também seguiu no tempo, e quero descobrir o que já se evaporou.

Sei que isso pode parecer chocante. Como podemos descobrir a cura sem uma causa? Mas todas as causas físicas são, no máxi­mo, parciais. Se você quiser que alguém fique resfriado, vai pre­cisar de muito mais que um vírus. Pesquisadores incubaram ví­rus de resfriado e os depositaram diretamente na parede da mu­cosa do nariz de seus pacientes, descobrindo que, com o tempo, só 12 por cento adoeceram. Esse resultado seria maior se as pes­soas em teste fossem expostas a golpes de ar, ficassem com os pés em água gelada para ter arrepios, ou a qualquer outro recurso puramente físico. A experiência comum, um jogo complexo de forças internas e externas, desafia as regras de causalidade que funcionam como as bolas de bilhar.

 

A medicina convencional já reconhece que a experiência co­mum pode exercer um papel complexo na doença. Por exemplo, as estatísticas mostram que solteiros e viúvos são mais suscetíveis ao câncer que os casados. Sua solidão é chamada de fator de risco — também poderia ser chamada de carcinógeno. Então, por que a cura da solidão não é cura para o câncer? Pode ser, mas em um tipo de medicina diferente da que praticamos agora. Um médico védico está mais interessado no paciente que tem à frente do que em sua doença. Ele reconhece que o que faz a pes­soa é a experiência — as tristezas, as alegrias, os rápidos momentos traumáticos, as longas horas sem fazer nada em especial. Os mi­nutos de vida se acumulam silenciosamente e, como grãos de areia depositados por um rio, podem finalmente se empilhar numa for­mação oculta que irrompe como uma doença.

É impossível ver e interromper o processo de acumulação. Posso ficar sentado no meio de um engarrafamento de trânsito e pen­sar “Bem, agora não está acontecendo nada comigo”, mas, de fato, estou recebendo, ou ingerindo, todo o mundo a minha vol­ta. Meu corpo vai metabolizando tudo o que vejo, ouço, cheiro e toco, transformando tudo isso em mim. É tão certo que faz isso quanto ingere meu suco de laranja.

A carga que se transforma no que sou é constante e moldada antecipadamente na forma final, A ciência não será capaz de medir esse processo porque não pode organizar meus sentidos e emo­ções em uma escala. Quanta solidão é necessária para ser trans­formada em câncer? Essa é uma pergunta sem sentido. O carcinógeno é invisível. Lembro-me de uma noite que passei no setor de emergência de um hospital de subúrbio, atendendo um gran­de número de pacientes. Houve um acidente com um trem tar­dio e tive de trabalhar quase freneticamente ao lado de um cole­ga para ajudar as dezenas de pacientes que poderiam estar em estado de choque. Fizemos curativos e pequenas cirurgias, acal­mamos seus nervos e entalamos ossos quebrados. Nosso traba­lho parecia sem fim, mas depois de cinco horas havíamos dado conta de tudo e nos sentíamos como heróis.

Então, a ambulância chegou novamente, e o motorista nos avisou:

— Estamos com uma menininha de dois meses, inconsciente. Ela não dá sinais de respirar, está sem pulso e começando a ficar azul.

Eu gelei e reparei no olhar de desespero do outro médico. Sabíamos o que nos esperava. A maca saiu da ambulância com a criancinha perdida no meio dos lençóis brancos. Colocar o tubo endotraqueal em sua garganta e começar a massagem cardíaca eram providências terríveis, mas foi o que fizemos. Desde o pri­meiro momento, sabíamos que seria inútil; era o que a medicina chama de caso súbito de síndrome mortal infantil. Ela afeta be­bês aparentemente normais e não existe causa conhecida. O aten­dimento de emergência geralmente não adianta, por mais rápido que seja.

Depois de um tempo que nos pareceu razoável, tiramos nos­sos instrumentos e fechamos os olhos da menininha. Fui falar com os pais, um casal jovem e bem de vida, que parecia arrasa­do. Só pude aconselhá-los a freqüentar um grupo de apoio for­mado por outros pais que haviam perdido filhos nas mesmas con­dições. Eles saíram ainda em estado de choque e nunca mais voltei a vê-los. Quem pode medir o que aconteceu comigo? Não me lembro do rosto de nenhuma vítima daquele acidente de trem, embora tenha passado horas cuidando delas. Mas o cabelo loiro e os olhos azuis da criancinha permanecem tão vivos em minha mente quanto no primeiro minuto em que a vi. Ela penetrou em mim. Não sei onde vive dentro de mim — é realmente um míni­mo de matéria cinzenta em meu córtex? Seria ridículo procurar em que lugar. O importante é que todo meu ser é feito de expe­riências como essa. Metabolizei centenas de milhares de coisas assim a cada dia, e, se você quiser vê-las em detalhes, basta olhar para mim.

Enquanto estou cercado pela carga da vida, não há pausa na corrida dos acontecimentos que me fazem ser o que sou. Em contrapartida, minha natureza pode se aprofundar mais nas coisas que vejo e ouço. Pode ser que eu tenha um ponto zero, como o ponto zero da vibração que dá início ao espectro da luz.

Se você saísse de meus pensamentos, sentidos e emoções, sobraria o espaço vazio equivalente. Mas, como o espaço vazio da física quântica, meu “espaço interior” pode não ser vazio; eu argumentaria que nosso espaço interior é um campo rico de in­teligência silenciosa que exerce poderosa influência sobre nós.

 

A inteligência é facilmente localizada e ao mesmo tempo impossível de ser encontrada. O know-how do corpo parece o re­sultado de uma complexidade de partes diferentes separadas de acordo com as próprias funções — digestão, respiração, metabo­lismo etc. Apesar dessa divisão de trabalho bastante real, a inte­ligência continua igualmente em toda a parte, como uma gota do mar compartilha o sal de todo o oceano. O fluido no corpo tem o gosto salgado do oceano e é igualmente rico em magnésio, ouro e outros vestígios de elementos. A vida começou no mar e só estamos vivos fora dele porque carregamos em nós um ocea­no interno.

A sensação de sede é estimulada pelo hipotálamo, um pedaci­nho do cérebro do tamanho do nó de um dedo, que se liga aos rins pelos nervos e mensageiros químicos. Os rins monitoram Constantemente a necessidade de água do corpo “ouvindo” os sinais do sangue. Esses sinais são químicos, como os neuropep­tídios, mas nesse caso as moléculas envolvidas são os sais, as pro­teínas e o açúcar do sangue, além dos mensageiros específicos. O sangue, por sua vez, recebe esses sinais de todas as células do corpo, cada qual cuidando da própria necessidade de água. Em outras palavras, quando você bebe água, não está apenas obede­cendo a um impulso do cérebro, mas ouve um pedido de todas as células do corpo.

Se você beber um pequeno copo de água, estará repondo ape­nas 1/400 do total de líquido corporal, mas satisfará as necessi­dades precisas de 50 trilhões de células diferentes. Uma admi­nistração tão exata é frequentemente atribuída só aos rins, mas já vimos que eles trabalham consultando Constantemente o cor­po mecânico quântico — todo o campo da inteligência. O nive­lamento da inteligência não é aparente no aspecto físico das cé­lulas; ela coexiste com a extensa especialização do corpo. O neu­rônio, cuja parede celular é equipada com um milhão de bom­bas de sódio-potássio, não se parece nem um pouco com uma célula do coração ou do estômago. Mas a integridade da mensa­gem “hora de tomar água” é constante em toda a parte.

Na física, um campo é tudo aquilo que propaga uma influên­cia sobre uma expansão do espaço muito vasta ou até infinita. Um magneto cria um campo magnético a sua volta; pequenos magnetos têm um campo fraco que se estende por poucos centí­metros, enquanto os pólos magnéticos da Terra são suficiente­mente poderosos para cobrir todo o globo. Qualquer coisa que caia dentro de um campo sentirá seu efeito; é por isso que as agulhas magnéticas das bússolas se alinham automaticamente com a polaridade magnética da Terra. Localizada no campo de inteli­gência do corpo, cada célula está alinhada com o cérebro, que se mantém como pólo norte magnético.

Uma célula é um pequeno afloramento no campo, enquanto o cérebro é imensamente maior. Mas a célula, quando “fala” com o resto do corpo, não é inferior a ele na qualidade do que diz. Como ele, ela precisa correlacionar sua mensagem com trilhões de outras; precisa participar de milhares de trocas químicas a cada segundo; e, o que é mais importante, seu DNA é igual ao de qualquer neurônio. Além disso, o menor impulso de inteligên­cia é tão inteligente quanto o maior. De fato, não há sentido falar em porções importantes ou insignificantes de inteligência. Preci­samos apenas nos lembrar do encadeamento que constrói a do­pamina: a incapacidade de transformar a proteína serina em um metabólito igualmente pobre chamado glicina leva a uma ligeira elevação do nível de dopamina, com o catastrófico aparecimento da esquizofrenia que invade a mente.

Cada célula é um pequeno ser sensitivo. Estando no fígado, no coração ou no rim, ela “sabe” tudo o que você sabe, mas à moda dela. Naturalmente, estamos acostumados com a idéia de que somos mais espertos que nossos rins. O próprio conceito de “bloco de construção” significa que o tijolo é mais simples que o edifício. Isso é verdade em uma estrutura sem vida, mas não em nós. Por exemplo, o impulso nervoso de preocupação pode surgir no estômago, como uma úlcera, no cólon, como um es­pasmo, ou na mente, como uma obsessão; no entanto, são as vá­rias manifestações dele apenas. A preocupação vai se transfor­mando de órgão em órgão, mas cada ponto do corpo sabe que ela existe e cada célula se lembra disso. Você pode se esquecer conscientemente, só que a sensação da preocupação está presen­te e o obriga a se lembrar, porque parece estar em toda a parte.

Já comentamos que, se você visse seu corpo como realmente é, observaria uma constante mudança aliada a uma complexa au­sência dela. Seria como um prédio com os tijolos constantemente mudados ou uma escultura que é, ao mesmo tempo, um rio. O obstáculo que a medicina tem enfrentado até agora é um as­pecto de nossa natureza — o fluir e mudar — que foi sacrificado em favor do outro — o estável e fixo. Agora, tendo observado no nível quântico, talvez consigamos reunir os dois numa unida­de que englobe nossa verdadeira dupla essência — o impulso da inteligência. Esse impulso é a menor unidade que se preserva intacta (sem mudança) enquanto passa pela transformação (mu­dança). Se os impulsos de inteligência não tivessem essa propriedade peculiar, não poderiam ser o bloco básico de construção do corpo; um impulso puramente mental ou uma partícula pu­ramente física teria essa característica.

Mas nenhum dos dois pode sobreviver à mudança. As molé­culas que formavam seu cérebro no primeiro dia em que pensou na palavra “rosa” não estão mais presentes, mas o conceito ain­da está. Ao mesmo tempo, você não precisa pensar sempre na palavra “rosa” para recordá-la; pode ter milhões de pensamen­tos diferentes, literalmente, sem nunca se referir a ela. Mas na próxima vez em que quiser usá-la estará ali, sem confusão. Ela retém sua integridade porque o impulso de inteligência contém mente, matéria e o silêncio que une as duas.

A estrutura física do corpo reflete a inteligência e lhe dá uma forma projetada, mas ela não fica presa numa moldura de carne e osso. Uma espantosa confirmação desse fato está no cérebro. Karl Lashley, um pioneiro da neurofisiologia, procurou locali­zar a memória no cérebro e realizou uma experiência simples com ratos de laboratório. Ele os ensinou a correr pelo labirinto, uma habilidade que lembram e guardam em seus cérebros do mesmo modo que adquirimos nossas habilidades. A seguir, ele removeu sistematicamente uma pequena porção de tecido cerebral. Lash­ley supunha que, se os ratos ainda se lembrassem de correr pelo labirinto (medindo a velocidade e precisão), os centros de me­mória ainda estariam intactos. Pouco a pouco, ele foi retirando a massa cerebral; no entanto, os ratos, curiosamente, continua­vam lembrando como correr pelo labirinto. Finalmente, com mais de 90 por cento do córtex retirado, ficou apenas um pedacinho do tecido cerebral. Mas os ratos continuavam lembrando como correr pelo labirinto, tendo perdido apenas um pouco da preci­são e rapidez.

Essa experiência, entre outras, sugere a revolucionária idéia de que cada célula do cérebro pode armazenar todo o cérebro en­quanto, ao mesmo tempo, conserva sua tarefa específica. Isso é exatamente o que descobrimos: todo impulso de inteligência é igualmente inteligente, abrindo infinitas projeções possíveis da mente no corpo.

John Lorber, um neurologista britânico, especializou-se no exa­me de pacientes hidrocefálicos — suas cavidades cranianas são cheias de líquido, em lugar do tecido cerebral. Geralmente, essa doença é perigosa e pode levar a um sério dano mental.

Um dos pacientes de Lorber, no entanto, era um estudante universitário muito bem-dotado, que estava para se formar em matemática. Seu QI era próximo a 130. Foi encaminhado a Lorber pelo médico da família, ao notar que a cabeça de seu paciente estava inchada. O estudante se submeteu a uma tomografia cujo resultado revelou um córtex de apenas 1 milímetro de espessura, em vez dos 4,5 centímetros normais. Em outras palavras, o flui­do havia substituído 98 por cento dos neurônios necessários pa­ra pensar, lembrar e realizar todas as outras funções mais eleva­das do cérebro, que estão centralizadas no córtex cerebral. Com 2 por cento do córtex normal, esse homem estava fisiologicamente na mesma situação dos ratos de Lashley, e ainda assim era infi­nitamente mais capaz — na verdade, era normal ou acima da mé­dia em todos os aspectos.

 

Cada vez mais, vamos sendo atraídos para perto do campo silencioso da inteligência como nossa realidade fundamental. No entanto, mais uma vez coloca-se o problema de uma mente si­lenciosa que, na aparência, nada contém em si. Se retroceder­mos quase cem anos, encontraremos um dilema semelhante. Es­tava para nascer uma nova ciência chamada psicologia, mas havia dificuldade em qualificá-la como tal, porque precisava de um objeto de estudo. Obviamente, todas as pessoas possuem uma psi­que, mas ninguém tinha visto ou tocado uma. As perguntas mais simples sobre ela haviam ficado sem resposta durante séculos. A psique era a alma, a mente, a personalidade, ou as três juntas? Ninguém poderia fazer a primeira experiência de psicologia an­tes de resolver essas dúvidas.

O momento decisivo chegou quando William James, um bri­lhante filósofo de Harvard que também se formara em medici­na, estabeleceu que a psicologia tinha, realmente, um objeto de estudo. Ou melhor, milhares de objetos — todos os pensamen­tos, emoções, desejos e impressões que passavam pela mente. Ja­mes chamou-os de “fluxo da consciência”. Se havia uma essên­cia mental, ou alma, como afirmavam os pré-psicólogos desde a época de Platão, a ciência não poderia descobri-la. James não afirmou que essa essência invisível não existia, mas não via for­ma de comprová-la cientificamente.

Ele defendeu o fluxo da consciência em um plano puramente pragmático, ponderando que nada na mente poderia ser consi­derado tangível, a não ser os objetos (pensamentos) que passa­vam por ela. Se alguém está sempre pensando ou sonhando — ninguém sabe o que se faz mentalmente no sono profundo e sem sonhos —, a realidade da mente tem de ser esse contínuo fluir de pensamentos e sonhos. James era um observador arguto; e devia ser mesmo, considerando-se que, basicamente, fundou o campo da psicologia com dados colhidos na própria cabeça (como Freud, ampliando esses dados no campo dos sonhos e do inconsciente). Mas James deixou de perceber um aspecto mínimo da mente que parecia irrelevante: o fluxo da consciência não é feito apenas de objetos flutuando ininterruptamente; entre cada pensamento existe um lapso de silêncio.

Pode ser pequeno, quase imperceptível, mas esta lacuna está ali e é absolutamente necessária. Sem ela, pensaríamos assim: “Eugostodestealmoçoedasobremesamassecomerdemaisprecisoverquantotenhoeondeestáminhacarteira...”, e assim por diante. Essa ligeira pausa, como é intangível, ainda não tem um papel na psicologia moderna, completamente orientada para os conteúdos da mente e a mecânica do cérebro. Mas essa pausa se transforma no elemento principal, se estamos interessados no que fica além do pensamento. A cada fração de segundo, temos o lampejo de um outro mundo que está em nós e, ao mesmo tempo, obscura­mente fora do alcance. Um verso do antigo Upanishad indiano descreve lindamente essa idéia: “Um homem é como dois pom­bos pousados numa cerejeira. Um pássaro está comendo o fruto, enquanto o outro olha em silêncio”. O pássaro que é a testemu­nha silenciosa é esse profundo silêncio que existe em todos nós e que aparenta não ser nada, quando, na realidade, é a origem da inteligência.

O fascinante na inteligência é ser como uma flecha com uma única direção: você pode usar sua inteligência para moldar uma molécula e, ao olhá-la, não pode tomar a inteligência de volta. Quando o poeta Keats escreveu seu soneto To an Evening Star (A uma Estrela do Anoitecer), começou com o verso melancóli­co “Ó suave embalsamadora da silenciosa meia-noite”. Se ele ti­vesse sido submetido a um eletroencefalograma enquanto escre­via, a leitura das ondas cerebrais teria formado um padrão típi­co; mas, por mais que examinassem, jamais encontrariam uma estrofe de poesia.

Do mesmo modo, todas nossas moléculas são dotadas de uma pequena parcela de inteligência que influencia tudo o que fazem, mas que não enxergamos ao observá-las. O DNA nos dá um bom exemplo disso. Localizado no núcleo de cada célula, está Cons­tantemente banhado num torvelinho de moléculas orgânicas flu­tuantes, os blocos básicos de construção do corpo material. Sempre que quer se ativar, o DNA atrai essas substâncias químicas e as usa para formar um novo DNA. Essa é uma parte essencial da divisão celular — um filamento duplo de DNA precisa se divi­dir ao meio, como um zíper, e depois cada metade se transfor­mar em novo DNA, completo, atraindo em si as moléculas apro­priadas. No banho de torvelinho, as moléculas vagam cercando o DNA e lhe fornecem as “letras” para combinar — existem só quatro: A, T, C e G, respectivamente adenina, timina, citosina e guanina. O DNA combina essas quatro letras em uma infini­dade de arranjos diferentes, alguns curtos (são necessárias três letras para codificar um aminoácido básico), outros muito lon­gos, como as cadeias de polipeptídios, que podem ser vistas saindo do DNA como pequenos ramos.

O DNA sabe exatamente que informação escolher e como reunir tudo para cada coisa que quer “dizer” quimicamente. Além de se formar, ele sabe como formar um RNA, ou ácido ribonucléico, que é seu gêmeo quase idêntico e seu correspondente ativo. A missão do RNA é afastar-se do DNA para produzir proteínas, mais de 2 milhões, que constroem e reparam nosso corpo. O RNA é como conhecimento ativo, em comparação com a inteligência silenciosa do DNA.

O DNA não trabalha apenas pela memória rotineira. Pode inventar novas substâncias químicas à vontade (como um novo anticorpo, quando apanhamos um novo tipo de gripe). Não se sa­be exatamente como isso se processa, embora alguns biologistas moleculares tenham descoberto espaçadores que separam as di­ferentes palavras genéticas, ou genômios. Também é fato seguro que apenas 1 por cento do material genético do DNA é usado em sua complicada codificação, no auto-reparo e na fabricação do RNA, ficando os 99 por cento restantes dedicados a algo que a ciência médica desconhece.

Esse silêncio enigmático tem estimulado grande curiosidade, especialmente entre pessoas que acreditam que o ser humano não usa sua plena inteligência. William James aventurou o cálculo de que usamos apenas 5 por cento de nossa inteligência — referia-se à capacidade mental —, enquanto uma pessoa como Einstein, por exemplo, utiliza até 15 a 20 por cento. Não se sabe como essa porcentagem pode ser traduzida em DNA útil, mas pode­mos calcular que o DNA mantém armazenado em silêncio um grande vocabulário — um geneticista calculou que o número de “palavras” moleculares produzidas em uma única célula, se traduzidas para o inglês, encheriam uma biblioteca de mil volumes. E esse é o produto de apenas 1 por cento ativo que conseguimos compreender. Graças à descoberta do DNA recombinado (peças de material genético que podem ser embaralhadas dentro e fora da sequência, nos filamentos do DNA), o vocabulário potencial pode ser infinitamente maior do que suspeitamos; as combina­ções de “letras” codificadas no DNA já são suficientes para criar todas as formas de vida sobre a Terra, desde a bactéria e o bolor a todas as plantas, insetos, mamíferos e pessoas.

Alguém poderia supor que, se o organismo for mais comple­xo, maior será a quota de DNA; na realidade, porém, uma mar­garida tem cem vezes mais DNA que um ser humano. A conta­gem dos genes não é muito esclarecedora: a diferença entre o DNA de um homem e o dos chimpanzés e gorilas é de cerca de 1,1 por cento. Essa diferença parece surpreendentemente pequena e altamente suspeita. É possível que essa fração mínima englobe todas as diferenças entre um primata da selva e o Homo sapiens, com nossos cérebros tão superiores? Os evolucionistas que her­daram a fé de Darwin no materialismo insistem em que sim. O assunto fica um pouco confuso quando se compreende, mais uma vez, que a contagem de genes não é importante — dois tipos di­ferentes de moscas-das-frutas (drosófilas) são muito mais aparen­tados do que os homens e os chimpanzés, mas seus DNAs dife­rem bem mais.

 

Outro modo de demonstrar que nosso silêncio interior está vi­vo e inteligente é compará-lo ao de uma máquina. Quando um computador tem um problema a resolver, usa seus impulsos elétricos, que precisam ser separados por intervalos, formando uma série complexa de dados codificados em 1 e 0. Isso permite que o computador resolva qualquer problema que possa ser transfor­mado em informação, já que toda informação pode ser codifica­da em 1 e 0, como nossa linguagem pode ser transformada em pontos e traços no código Morse. O cérebro humano também se aproveita da informação codificada mecanicamente, mas os intervalos de separação não são vazios; são agentes que permitem à mente tomar a direção que desejar. Em outras palavras, um computador tem espaços finitos feitos de vazio e nós temos inter­valos infinitos cheios de inteligência.

Podemos tirar qualquer coisa do intervalo. Mozart tirou sinfo­nias inteiras de uma só vez, e não nota por nota. Como ele mes­mo descreveu, cada linha musical estava composta e orquestrada em sua mente. A matemática, assim como a música, tem muitos mistérios. Uma indiana chamada Shakuntala Devi multiplicava números de treze algarismos de cabeça, chegando a soluções de 23 algarismos em 26 segundos (menos tempo do que levamos para ler em voz alta esses números: 7.686.369.774.870 X 2.465.099.745.779 = 18.947.668.177.995.426.773.730).

Se você mandar um computador somar 2 mais 2, a resposta pode estar certa ou errada; se você perguntar a um menino de 5 anos de idade a mesma coisa, ele pode responder algum nú­mero, ou dizer “Quero sorvete de baunilha”. Podemos deduzir que está aborrecido ou talvez muito cansado para uma lição de aritmética. Sendo assim, não é correto dizer que a resposta dele é um erro de computação; simplesmente, a mente do garoto não está sob nosso controle. Não se pode criar um programa que in­clua todas as reações possíveis de um ser humano enquanto ele interage com o mundo a sua volta.

A meu ver, isso tudo justifica a complexidade da experiência comum, que, na verdade, está bem distante de qualquer modelo científico que procura descrevê-la. A antiga visão de que o cére­bro é um computador estável no tempo e no espaço, com várias funções localizadas, e restrito a sua flexibilidade, é injustificada. O dr. Gerald Edelman, um neurocientista vencedor do Prêmio Nobel, definiu o cérebro muito mais como um processo do que uma coisa, e um processo em contínua evolução. Por exemplo, é verdade que a memória depende de duas pequenas peças de hardware de cada lado do cérebro, chamadas hipocampo; se os dois lados são danificados (por derrame ou doença), a capacida­de de lembrar é destruída.

Ainda assim, dentro dessa limitação física, o cérebro de cada um é único, tanto na estrutura como no conteúdo. Não existe ninguém com as mesmas ligações de neurônios, e em cada um desenvolvem-se Constantemente outras novas ligações a partir do momento do nascimento, dando origem a todas as memórias, que tornam você completamente diferente de mim. (Uma ligação não precisa ser física; os sinais faiscantes do cérebro estão sempre crian­do novos padrões e reformando-os em novos modelos.)

Edelman afirma que ninguém repete uma lembrança literal­mente. Quando você se recorda de um rosto familiar, alguma coisa é diferente; se não o próprio rosto, o contexto que o levou a lembrar-se, que agora pode ser triste, quando antes era alegre. A memória é, portanto, um ato criativo. Cria novas imagens e um novo cérebro ao mesmo tempo. Edelman concorda com a teo­ria de que toda experiência que alguém tem na vida muda a ana­tomia do cérebro. Além disso, não é tão verdadeiro afirmar que o hipocampo seja a sede da memória, porque qualquer recorda­ção — o primeiro dia em que você viu uma plantação de narcisos — salta e tremula por todo o córtex, tocando outras memórias aqui e ali, passando a novas interpretações e necessitando ser re­criada a cada vez que se deseja lembrá-la. Ao contrário de qualquer computador, nós lembramos, reconsideramos e mudamos nossas mentes. O universo foi criado uma vez, mas nós nos re­criamos a cada pensamento.

 

Em suma, tudo depende de como se constrói em silêncio. Qualquer coisa que possa ser experimentada à luz da existência — amor ou ódio, doença ou morte — brota de um nível mais pro­fundo e flutua acima, pouco mais que uma bolha. Alguém pode procurar furar as bolhas, uma a uma, mas elas flutuam e sobem interminavelmente. Se quisermos navegar pelo campo da inteli­gência, precisamos aprender a mergulhar até as profundezas, onde a testemunha silenciosa em nosso interior nos aguarda. Este é nosso próximo passo: seguir o silêncio interior e conhecer seus locais secretos.

 

                   O Mistério do Vazio

Recentemente, encontrei uma paciente que recebeu, em 1983, um diagnóstico de tumor maligno no seio direito. Por razões pes­soais, ela recusou todas as formas de tratamento convencional, inclusive radiação, quimioterapia e hormônios. Disse-me que o tumor era bem grande, mas não atingira nenhum nódulo linfáti­co embaixo do braço.

— Acho melhor examiná-lo — disse eu.

— Mas devo avisá-lo — ela hesitava — de que muitos médicos se assustam quando o vêem, por causa do tamanho. Geralmente não deixo nenhum médico me tocar, porque seu olhar amedron­tado me assusta. Eu não me assusto sozinha. Pode não acreditar, mas nunca senti que estivesse em perigo. Só fico abalada quan­do vejo o medo do médico. Eles até chegam a dizer coisas do tipo “Como ousa ser tão cruel com seu marido, negando-se a ser operada?” Achei que talvez uma médica fosse mais compreen­siva — ela prosseguiu. — Mas, quando a consultei, ela pareceu mais horrorizada que todos os outros. Perguntou: “Por que veio me ver, se não quer remover isso?” E eu respondi: “Porque quero sua orientação, pois o tumor cresceu muito pouco nos últimos cinco anos, e quero sua assistência”. Ela levantou-se quase tre­mendo e me disse: “Não volte aqui a não ser que esteja resolvida a remover isso. Não aguento nem olhar”.

Eu não fazia idéia de qual seria minha reação. Cerca de meta­de das mulheres diagnosticadas com câncer de mama tem tumo­res confinados no seio. O tratamento normal costuma ser a re­moção da mama ou apenas do tumor, com radiação no local pa­ra matar qualquer célula cancerosa que tenha ficado. Nas duas situações, quando não há tratamento posterior, 70 por cento dos casos não apresentam reincidência nos três anos seguintes. Com algum tipo de quimioterapia, desde a mais leve à mais forte, a proporção de sobreviventes a longo prazo pode se elevar a 90 por cento. Essa mulher havia decidido desafiar as probabilidades a favor da paciente — e não seria a primeira a sobreviver, contra­riando os médicos.

Quando ela se deitou na mesa de exame e vi o tumor, com­preendi por que outros médicos tinham se chocado. Ele tomava grande parte do seio. Controlei minha reação e esperei que o medo não transparecesse no olhar.

— Sabe — falei baixinho —, não acredito que esteja em perigo por causa disto. Você me disse que não sente nenhum perigo, e isso me basta. Mas esse tumor é um desconforto. Você está ne­gando a si mesma uma vida mais agradável por ter de cuidar dis­to. Por que não procura um cirurgião e pede para remover este estorvo?

Aparentemente, ela encarou o problema por um ângulo inteiramente novo. Concordou logo que não havia vantagem em conservar o tumor e indiquei-lhe um cirurgião.

Um de seus comentários à saída ficou em minha lembrança.

— Não me identifico com esse tumor — falou serenamente. — Sei que sou muito mais que ele. Vive em meu corpo, vem e vai, mas não me toca bem no fundo. — Quando ela saiu do con­sultório, parecia feliz.

Senti que aquela mulher tinha razão em seu modo de ver. O medo no olhar de um médico é como um golpe terrível de con­denação e, na situação dela, eu não teria acreditado muito nas chances de me recuperar. Os impulsos de meu cérebro não diriam “Garanto que vou sarar”. Em vez disso, estariam dizendo “Eles falam que provavelmente vou sarar”, o que é uma coisa bem diferente.

Quando um médico olha uma paciente e diz “Você tem um câncer no seio, mas vai ficar bem”, o que realmente está falan­do? A resposta é bem incerta. Por um lado, se suas palavras re­confortantes inspirarem confiança, podem ser suficientes para mu­dar o quadro da paciente. Por outro lado, se ele realmente acha que ela está condenada, alguma coisa em sua voz transmitirá es­sa mensagem e criará uma confusão destrutiva.

Inspirado no termo “placebo”, foi criado recentemente um ou­tro, com sentido oposto, “nocebo”, que define os efeitos negati­vos da opinião de um médico. No caso do placebo, o remédio falso é dado e o paciente se recupera porque o médico disse que lhe faria bem. No caso do nocebo, o paciente recebe o remédio verdadeiro, mas não reage, porque o médico deu sinais de que ele não adiantaria.

Se adotarmos um ponto de vista completamente materialista, não notaremos uma diferença aparente entre a cirurgia que essa senhora tinha se recusado a fazer e a que, por fim, concordou em se submeter. Só que agora ela identifica a cirurgia com a cu­ra, enquanto antes a considerava uma violência. Se um paciente encara o tratamento como violência, seu corpo fica cheio de emo­ções negativas e de substâncias químicas associadas a elas. É fato documentado que, em clima de negativismo, a capacidade de cura diminui muito — pessoas deprimidas não só baixam a reação imu­nológica como, por exemplo, enfraquecem a capacidade de re­cuperação de seu DNA. Portanto, suponho que minha paciente tinha uma causa justificada para esperar até que suas emoções lhe dissessem para ir em frente.

 

Esse caso me faz lembrar que sempre existem dois centros de ação nas pessoas: a cabeça e o coração. As estatísticas médicas dão informações à cabeça, mas o coração guarda um conselho próprio. Em anos recentes, a medicina alternativa ficou mais atraente por trazer de volta o coração, usando o amor e o carinho na cura. Sem esses ingredientes, o efeito nocebo pode surgir, por­que o clima dos hospitais modernos transmite uma dose podero­sa de negativismo. Os episódios psicóticos que se iniciam, sem mais nem menos, nas unidades de tratamento intensivo revelam como é pouco saudável manter pessoas confinadas em pequenos espaços esterilizados. (Quando era pequeno, meu filho demons­trava igual fascinação por hospitais e prisões, o que me parecia um temor que ele não sabia explicar. Se passássemos de carro diante de uma dessas instituições, ele invariavelmente perguntava: “Papai, tem gente morrendo aí dentro?”)

A grande desvantagem de declarar que precisamos trazer o coração de volta à medicina é que ele pune as pessoas pelas fraque­zas emocionais. O coração pode ser muito frágil, mas pode en­durecer com o sofrimento ou apenas com a vida. Os livros sobre cura holística gostam de dizer que as pessoas doentes “precisam” de sua doença. A psiquiatria tem o hábito de apontar o dedo quan­do declara que as doenças crônicas equivalem simbolicamente a autopunição, vingança ou a um profundo sentimento de des­valia. Não vou discutir esses critérios; quero apenas sugerir que podem ser nocivos a um processo de cura, em vez de colabora­rem com ele. Já é bem difícil termos todos de enfrentar nossa falibilidade, mesmo nas melhores ocasiões. Podemos ter realmente expectativa de melhora quando nós mesmos somos desfavoráveis?

A raiz do problema é que qualquer coisa pode funcionar co­mo um nocebo, assim como outra qualquer pode agir como pla­cebo. Não é remédio falso nem os modos do médico que assiste ou o cheiro antiséptico do hospital que podem fazer bem ou mal; é a interpretação que o paciente lhes dá. Além disso, a verdadei­ra guerra não é travada entre a cabeça e o coração; algo mais pro­fundo, no domínio do silêncio, cria nossa visão da realidade.

A compreensão básica que quase todos temos a nosso respeito vem do pensar e do sentir, o que parece natural; mas sabemos muito pouco sobre o campo do silêncio e de como ele nos con­trola. Aparentemente, a cabeça e o coração não são toda a pessoa. O fluxo da consciência, sempre cheio de pensamentos, age como uma tela para manter esse silêncio oculto, e a aparência sólida do corpo físico é outro tipo de tela, já que não podemos ver as moléculas que estão em constante movimento dentro de nós e tampouco nossas plantas básicas, que são o que gostaría­mos de modificar.

A planta básica da realidade é um conceito importante. Cada impulso da inteligência provoca um pensamento ou uma molé­cula, que passa certo tempo no mundo relativo — o mundo dos sentidos — antes do impulso seguinte. Nesse sentido, cada pen­samento é como uma parcela do futuro, quando é criado, uma peça do presente, quando é experimentado, e uma peça do pas­sado, quando já se foi. Enquanto cada impulso for saudável, o futuro não será desconhecido — fluirá naturalmente do presen­te, momento a momento. (Isso explica por que as pessoas que aproveitam cada dia ao máximo têm fama de conservar as facul­dades mentais intactas até a idade avançada; o fluxo da inteligência nunca seca.)

Um diagrama para ilustrar essa situação pode ser útil:

 

               Pensamento   A àB à C à D à E etc

 

                       Corpo Mecânico Quaântico

 

                                       Inteligência

 

 

Acima da linha está o fluxo de pensamentos que nunca termi­na, ao menos enquanto estamos acordados. Um pensamento é ligado a outro numa cadeia sem fim; e nossa experiência normal mantém essa cadeia de eventos acontecendo infinitamente no ei­xo horizontal, mas bem rasa no eixo vertical. É possível passar a vida toda ouvindo o inventário da mente sem nunca mergulhar em sua fonte. Mas ao tocar na fonte é que a mente cria seus padrões de inteligência. Esses padrões são inicialmente apenas plan­tas básicas, mas, o que quer que eles representem, vão perdurar e formar nossas idéias e crenças a respeito da realidade.

O campo da inteligência é muito suscetível de mudanças, tan­to para o bem como para o mal. Há dois anos, encontrei uma moça, com aproximadamente 30 anos, que resolveu se internar em Lancaster para tratar de câncer no seio. Seu estado era muito grave, porque a metástase do tumor maligno já tomara a medula óssea e se espalhara pelo corpo todo. Por isso, ela sofria dores constantes nos ossos. Depois de ter recebido os drásticos trata­mentos habituais, com séries de radiação e quimioterapia recei­tadas por seu médico de Denver, ela viajou de sua terra natal até Boston para fazer o tratamento aiurvédico. Reagiu muito bem a ele e, depois de passar ali uma semana, as dores nos ossos desa­pareceram. Ela não recebeu promessas a respeito do câncer, mas voltou para casa com esperança e Otimismo. Infelizmente, quan­do contou a seu médico que havia melhorado, ele negou tal possibilidade e disse que aquilo estava só na cabeça dela, já que não recebera nenhuma terapia ortodoxa para aliviar os sintomas. No dia seguinte, as dores nos ossos voltaram. Ela me telefonou apa­vorada, e pedi-lhe que voltasse a Boston imediatamente. A moça concordou e, felizmente, depois de uma semana a dor havia de­saparecido outra vez.

Sem querer causar nenhum mal à paciente — tenho certeza de que pretendia adotar uma atitude realista —, o médico dessa moça cometeu um erro cruel. Ele supôs que o que estava na cabeça dela não fosse verdadeiro, ou, ao menos, que fosse muito infe­rior à realidade do câncer. Sendo treinado em métodos científi­cos, ele conhecia os efeitos de vários tipos de malignidade e, ao encontrar um resultado inesperado, procurou enquadrá-lo no âm­bito do previsível. Os médicos levam os pacientes a resultados previsíveis o tempo todo, porque o treinamento do curso de me­dicina focaliza apenas o eixo horizontal.

Toda a motivação da pesquisa médica procura reforçar cada vez mais as ligações entre causa e efeito. Nossos bisavós sabiam vagamente que os germes existiam; hoje podemos detalhar anatomicamente milhares de vírus e bactérias específicos, até os me­nores grupos de aminoácidos, e ir mais além. Infelizmente, isso nos deixa muito pouco espaço para qualquer viagem pelo eixo vertical, que poderia nos levar a uma realidade bem mais profunda.

Ao preencher o questionário médico, um paciente recente ano­tou que “uma vez tive um tumor no cérebro”. Perguntei-lhe o que significava aquilo e ele me contou a seguinte história: cinco anos antes, quando vivia em Michigan, começou a ter vertigens súbitas. Seu estado foi piorando: ele vomitava, tinha visão dupla e pouco a pouco foi perdendo o equilíbrio e a coordenação mo­tora. Procurou um hospital e fizeram uma tomografia do cére­bro. Os médicos o informaram de que o exame havia revelado uma massa escura na parte anterior do cérebro, de dimensões maiores que um limão; na opinião deles, estava com um tumor no cérebro. Uma biópsia do tumor revelou que era, de fato, um tipo de câncer maligno e de crescimento rápido.

Como o tumor era grande e estava em local muito delicado, foi considerado inoperável. Os médicos receitaram grandes do­ses de radiação e quimioterapia, sem o que o homem estaria morto em seis meses. Essa terapia provocaria grandes efeitos colaterais, quase tão maus quanto os sintomas da doença. Alguns seriam desagradáveis, como náuseas, dores de cabeça e irritação da pe­le; outros poderiam ser mortais, devido ao enfraquecimento do sistema imunológico, o que o deixaria propenso a contrair diver­sos tipos de câncer no futuro. Ainda havia a possibilidade de so­frer ansiedade e depressão por longo período. Mesmo com o má­ximo de tratamento para que o tumor regredisse, não havia pro­babilidade de cura total, só que isso seria melhor que nada.

O paciente não conseguiu aceitar tal opinião, embora fosse baseada em estatísticas. Mudou-se para a Califórnia e começou a participar de um grupo de meditação; praticou uma série com­pleta de regimes alimentares, de técnicas mentais, de exercícios e de visualizações. Encorajou-se e adotou uma atitude positiva em relação a sua condição. Milhares de pacientes de câncer, em geral de grupos sociais mais instruídos, adotam essas medidas que a medicina convencional considera como tentativa de encon­trar falsas esperanças. Mas, neste caso, o homem começou a sentir-se melhor, e dentro de seis meses os sintomas haviam pratica­mente desaparecido. Esperançoso e ansioso ao mesmo tempo, ele voltou a Michigan e fez nova tomografia. Esta não mostrou si­nais da existência de câncer e tampouco vestígios de algum no passado.

Em resposta a isso, os médicos o informaram de que ele não havia sarado do câncer, porque nunca ouviram falar de fato semelhante. Explicaram que, na realidade, devia ter acontecido al­guma troca de tomografias e que o paciente com o tumor era ou­tro. Pediram desculpas pelo engano e o avisaram de que, daque­le momento em diante, se desligavam do caso. O paciente ficou profundamente aliviado por não ter mais nenhum sintoma, em­bora acreditasse na primeira tomografia, que tem seu nome e o número do registro no serviço social. Quando entrei em contato com o hospital para pedir sua ficha médica, fui informado de que ele nunca se tratara de câncer lá e que haviam trocado seu exame pelo de outro paciente, com tumor cerebral.

Tudo o que posso concluir é que, apesar dos exames de raios X e da biópsia, esses médicos não conseguiram aceitar o fato de que houvesse ocorrido uma regressão do tumor, simplesmente porque sua experiência ditava que isso era impossível. Nunca se pode subestimar o poder da doutrinação. O treinamento médico é altamente técnico, especializado e rigoroso, mas desenvolveu-se como qualquer outra atividade humana — com pessoas coli­gindo experiências e usando-as para compor explicações e mo­delos. Esses modelos, por sua vez, servem para doutrinar novos construtores de modelos e, em pouco tempo, essa doutrinação se transforma em lei.

É fascinante que um grande estudo sobre quatrocentos casos de recuperação espontânea de câncer, mais tarde interpretado por Elmer e Alyce Green, da Menninger Clinic, tenha descoberto que todos os pacientes apresentavam apenas uma coisa em comum — cada um tinha mudado de atitude antes de ocorrer a cura, en­contrando um meio de ser útil, corajoso e positivo. Em outras palavras, eles romperam com a doutrinação (mesmo que os mé­dicos não tenham rompido com a deles). O mistério que tolda essa descoberta, que seria tão clara, está ligado à casualidade. Tais recuperações ocorreram por causa das novas atitudes ou parale­lamente a elas? Talvez a casualidade seja delicada demais para ser definida neste caso, sendo substituída por um processo ge­ral, holístico, de sentir-se melhor mental e fisicamente ao mes­mo tempo. Ao perceber a expulsão do câncer, o sistema mente-corpo deve saber que o processo está encaminhado e pode gerar mais pensamentos positivos simultaneamente.

Seja como for, ele funciona, e a chave parece ser a espontaneidade. Canalizar internamente atitudes positivas já provou ser, como terapia planejada, apenas um meio casualmente bem-sucedido de combater a doença. A absorção positiva não costuma ser muito profunda. A consciência é mais penetrante do que a medicina calcula. No entanto, mesmo quando ignorado, o campo silencio­so da inteligência sabe o que está acontecendo. Afinal, ele é inte­ligente; seu conhecimento ultrapassa defesas e telas, indo além do que esperamos.

Para ilustrar essa idéia: durante décadas, os cirurgiões julga­ram que um paciente anestesiado ficava inconsciente; sendo as­sim, não se influenciava com o que acontecia na sala de cirurgia. Depois, foi descoberto (hipnotizando-se pacientes pós-operados) que a mente “inconsciente” ouvia todas as palavras murmura­das durante a operação. Quando os cirurgiões comentavam em voz alta que a condição do paciente era pior do que haviam ima­ginado ou que a chance de cura era pequena, os operados ten­diam a cumprir as previsões sombrias de não se recuperar. Co­mo resultado dessas descobertas que forçam a idéia de nocebo, a prática comum atual é evitar comentários negativos durante as operações. Sem dúvida, quanto mais positivamente um cirurgião expressava as opiniões, melhor era a convalescença do paciente.

Seria ainda melhor usar essa inteligência extremamente sensí­vel e poderosa na cura do paciente. O objetivo do mergulho na área do corpo quântico é mudar a própria planta básica em vez de esperar pelos sintomas na superfície, quando só então serão manipulados pela medicina. O caso da moça com dor nos ossos é um aviso de que a tela de defesa que nos mantém tão firmes, acima da linha e longe de nosso eu mais profundo, é sempre fei­ta por nós. Portanto, pode ser objeto de revisão em qualquer época. Construímos Constantemente padrões de inteligência e olhamos através deles para que nos informem o que é real. Se vemos dor, existe dor, mas, se não a vemos, ela acaba.

A natureza não nos fez ignorantes a respeito de nosso eu mais profundo. Pacientes anestesiados sabiam o que se passava o tem­po todo, presumivelmente desde os idos de 1850, no início da cirurgia moderna. O campo silencioso da inteligência está fora de alcance por uma escolha nossa que tem sido reforçada através de gerações de liames culturais. Às vezes, uma nova realidade força seu reconhecimento e então as coisas podem mudar. Surgem no­vos padrões de inteligência e pode ocorrer uma profunda trans­formação, mas esta não difere essencialmente das transformações mente-corpo que já comentamos.

A realidade normal é como um encantamento — muito necessário, já que vivemos de hábitos, rotinas e códigos que consideramos garantidos. O problema surge quando se pode criar o encantamento, mas não quebrá-lo. Se nesse mesmo instante alguém conseguisse mergulhar abaixo da realidade diária, até sua fonte, teria uma experiência notável. O psicólogo Abraham Maslow, pio­neiro no estudo dos aspectos positivos da personalidade huma­na, fez uma descrição clássica da experiência de se aprofundar: “Esses momentos foram de pura e positiva felicidade, quando todas as dúvidas, todos os medos, todas as inibições, todas as ten­sões e todas as fraquezas ficaram para trás. Em seguida, a auto­consciência se perdia. Toda a separação e distância do mundo desapareceram...”

Apesar de serem raras as experiências como essas — Maslow chamava-as de “experiências de pico” por isso —, elas têm um poder de cura que se prolonga muito além de sua breve duração, que pode ser de poucos dias ou de apenas algumas horas. Maslow recorda que dois de seus pacientes — um deles sofria longos períodos de depressão e às vezes pensava em suicídio; o outro tinha graves crises de ansiedade — ficaram imediata e perfeita­mente curados depois de passarem espontaneamente por tais ex­periências (apenas uma vez em cada caso).

Maslow também fala da “reconciliação com a vida” que pes­soas conseguiram por intermédio desses momentos: “Elas sentiam-se unificadas com o mundo, fundidas nele, realmente lhe pertencendo, em vez de ficar do lado de fora, observando”. (Uma dessas pessoas, por exemplo, disse ter se sentido como um membro da família, não como órfão.)

Qualquer revelação súbita de uma realidade mais profunda traz consigo enorme poder — basta provar que a vida fica indiscuti­velmente mais valiosa. Os pacientes de Maslow reconheceram essa força interior como uma coisa completamente fora do comum. Não é energia ou resistência, gênio ou insight, mas o que está na base de tudo isso. A compreensão de Maslow parou no mo­mento crítico — ele nunca foi realmente capaz de proporcionar a alguém uma experiência de pico —, mas continuou fascinado por acontecimentos como esses, que transcendem a vida normal. Em 1961, depois de muitas décadas escrevendo e pensando so­bre o assunto, ele concluiu que o que havia observado fazia parte da vida normal, realmente, e não da mística:

“O pouco que eu já havia lido sobre experiências místicas es­tava ligado à religião, com visões do sobrenatural. E, como a maio­ria dos cientistas, eu as desdenhei e não lhes dei crédito, considerando-as bobagens, talvez alucinações, talvez histeria e, quase com certeza, patológicas. Mas as pessoas que me falavam dessas experiências não eram assim — eram as mais saudáveis!”

Como ele encontrou tais experiências em menos de 1 por cen­to da população, encarou-as como acidentais ou momentos de ple­nitude. Acredito que foram vislumbres de um campo que é a base da vida de todos, mas que continua indefinido. A conclusão é que devemos mergulhar muito profundamente se quisermos transcender a realidade normal. Estamos em busca de uma ex­periência que vai remodelar o mundo.

 

 

Achar o vazio de silêncio que separa nossos pensamentos pa­rece relativamente fácil, mas, como ele é uma fração de segun­do, não pode servir de caminho. O corpo quântico não está se­parado de nós — ele é o que somos —, embora não o vivenciemos neste momento. Se estivermos sentados pensando, lendo, fa­lando, respirando, digerindo etc., isso é tudo o que acontece aci­ma da linha.

Eis uma analogia que destaca o corpo mecânico quântico: pe­gue uma barra de magneto, ou ímã, e cubra com uma folha de papel. Depois, despeje no papel umas limalhas de ferro e sacu­da ligeiramente. O que vai surgir é um padrão de linhas cur­vas, uma dentro da outra, formando um arco do pólo norte ao sul do ímã, e vice-versa. O desenho geral que você fez repre­senta um mapa das linhas das forças magnéticas, antes invisí­veis porque as partículas de ferro não tinham se alinhado para mostrar a imagem.

Nessa analogia vemos toda a atividade mente-corpo acima do papel e o campo da inteligência por baixo. As limalhas de ferro, movendo-se em volta da atividade mente-corpo, alinham-se automaticamente com o campo magnético, que é a inteligência. O campo é completamente invisível e indiscernível até mostrar sua energia ao mover algumas partículas de matéria a sua volta. E a folha de papel? Ela é o corpo mecânico quântico, a tela fina que mostra exatamente quais os padrões de inteligência manifes­tados no momento.

Nessa simples comparação existe mais do que você pode ter suposto no início. Sem o papel para separar os dois, o ímã e o ferro poderiam não interagir de modo tão ordenado. Procure aproximar um ímã de algumas limalhas de ferro. Em vez de formar linhas regulares e espaçadas, elas se amontoarão sem forma sobre a superfície do ímã. Com o papel entre eles, você vê a imagem do campo magnético e, se girar o ímã, poderá obser­var as limalhas movendo-se para espelhar o novo campo cria­do. Se você não soubesse o que é um magneto, juraria que o ferro estava vivo, porque aparentemente se movia sozinho. Mas, na realidade, é o campo oculto que gera essas aparências como a da vida.

Eis um quadro verdadeiro de como o corpo-mente se relacio­na, de fato, com o campo da inteligência. Os dois continuam se­parados, mas a divisão é invisível e não tem nenhuma espessura. É apenas um vazio. O único modo de alguém saber que o nível quântico existe é porque as imagens e padrões ficam brotando pelo corpo. Sulcos misteriosos aparecem pela superfície do cére­bro; belos torvelinhos, exatamente como no miolo do girassol, surgem nas moléculas de DNA; o interior do fêmur tem tramas maravilhosas de tecido ósseo, como os suportes entalhados de uma ponte pênsil.

Para qualquer lado que você observe não há caos, e essa é a maior prova de que realmente existe uma fisiologia oculta. A in­teligência transforma o caos em padrões. A idéia de se processar bilhões de mensagens químicas a cada minuto implica um caos incrível, ainda que a complexidade do sistema mente-corpo seja enganosa: emergem de nossos cérebros imagens coerentes, como uma fotografia de jornal que mostra uma imagem coerente for­mada por milhares de pontinhos. A matéria de nosso corpo nunca se desintegra numa pilha sem forma e sem mente — até o mo­mento da morte. Em resposta à pergunta óbvia “Então, onde es­tá o corpo quântico?”, podemos responder com segurança que ele fica em um vazio infelizmente difícil de ser descrito, já que é silencioso, não tem espessura e existe por toda a parte.

Agora, mergulhar no campo da inteligência parece fácil: re­quer apenas uma viagem pelo vazio. Porque, mesmo que ele não tenha espessura, forma uma barreira superior a qualquer porta de aço. Podemos simplificar nosso diagrama para mostrar o que acontece, dificultando a viagem:

 

                     Inteligência       Ativa

 

                               Intervalo

 

                   Inteligência     Silenciosa

 

Toda a história está contida na diferença entre inteligência ati­va e silenciosa. Confirmamos que essa diferença é muito real. O DNA pode ser ativo ou silencioso; nossos pensamentos podem ser expressos ou armazenados em gavetas de silêncio; podemos estar acordados ou dormindo. Todas essas mudanças exigem uma viagem através do vazio, mas não uma jornada consciente. Para ver como é o sono, você teria de ficar acordado, o que é impossí­vel. Se procurar a diferença entre um DNA ativo e um adorme­cido, não encontrará nenhuma alteração química, já que os dois DNAs são fisicamente idênticos. E sempre acontecerá isso com todas as transformações da mente e do corpo.

Essa mesma dificuldade existe na física — um fóton é uma mas­sa de luz e uma onda de luz, mas ambas surgem de um campo oculto. Na superfície da realidade vemos fótons ou ondas de luz, mas a razão de ambos existirem na mesma realidade é que pree­xistem como meras possibilidades no campo quântico. Quem já fotografou uma possibilidade? Ainda assim, o mundo quântico é feito disso. Se você diz uma palavra ou cria uma molécula, re­solveu agir. Uma pequena onda se eleva da superfície do oceano, transformando-se em um incidente no mundo do espaço-tempo. Todo o oceano permanece atrás, um reservatório vasto e silen­cioso de possibilidades, ondas que ainda virão a se formar.

Enquanto dançam pelo papel, as limalhas de ferro podem se entreolhar, dizendo: “Bem, assim é a vida, vamos mergulhar em seus mistérios”. Decididas a fazer isso, podem começar um pensamento-aventura do tipo que denominamos silêncio. Não importa que seus pensamentos fiquem muito aventureiros, nunca cruzarão o vazio. Ele é uma porta que dá passagem só em uma direção no que se refere ao pensamento, e esse é seu verdadeiro mistério.

Sob determinada perspectiva, parece ridícula a idéia de que somos afloramentos de um grupo invisível infinito. O corpo de um homem é um volume de carne e ossos ocupando muitos cen­tímetros cúbicos de espaço; sua mente é um mecanismo espan­tosamente complicado, mas finito e cheio de uma determinada quantidade de concepções; sua sociedade é uma organização gros­seiramente imperfeita, ligada a uma história de ignorância e conflito.

Estranhamente, esses fatos tão evidentes nunca foram questionados. Confiamos em nossas experiências finitas do dia-a-dia, que são boas o suficiente para dirigirmos um carro, ganharmos a vi­da e irmos à praia, mas não convincentes o bastante para a irre­sistível experiência do infinito. Essa experiência repetida através dos séculos faz algumas pessoas suspeitarem que a realidade seja muito diferente e mais vasta do que a mente, o corpo e a socie­dade geralmente aceitam.

Einstein experimentou essa realidade. Deixou o testemunho de momentos em que se sentiu “liberto da própria identificação com a limitação humana”:

“Em tais momentos, um ser imagina que está parado em qual­quer ponto de um pequeno planeta, olhando maravilhado a be­leza fria, mas profundamente comovente, do eterno, o incomen­surável. A vida e a morte fluem pelo ser e não há evolução ou destino, só Ser”.

Apesar de tais palavras soarem como um insight ou percepção espiritual (Einstein se considerava profundamente espiritualiza­do), essa experiência é, na verdade, um lampejo que penetra num nível de nossa consciência que pode ser mapeado e explorado. Sem exercer controle sobre sua percepção mais profunda nem ter nenhuma explicação convincente para o que está acontecen­do, a pessoa sente que o estado de silêncio enlevado não é apenas o vazio. Em sua maior parte, as grandes tradições de sabedoria foram fundadas por um ou por poucos indivíduos que compreen­deram o universo por intermédio deles mesmos. Para resolver o mistério do vazio precisamos consultar os que estiveram ali; se encontraram um mundo real, então novos Einstein virão a se­guir, outros Einstein da percepção profunda.

 

                                 CORPO DE BEM-AVENTURANÇA

 

               Em cada átomo existem mundos dentro de mundos.

                               Yoga Vasishtha

 

                   No Mundo dos Rishis

Um menino que vive na Índia não precisa sonhar com uma máquina do tempo. Quando eu tinha 7 anos, uma caminhada de dois minutos me levava do hospital militar onde meu pai tra­balhava para o grande bazar de Poona. Lá, as antigas fragrâncias pairavam no ar — açafrão, poeira, sândalo e fogareiros (eu mal as notava, pois minha atenção estava toda nos encantadores de serpentes). No hospital, o único cheiro era o de Dettol, um lí­quido para limpeza parecido com o formol, que fazia o nariz ar­der. Os físicos comparam o tempo a uma flecha; na Índia, a fle­cha se curva e encontra a si mesma, voltando para trás. Nós nos adequávamos a isso. Se um soldado aparecia com um ferimento de perfuração no pé, meu pai lhe dava uma injeção contra téta­no, mas, se o homem quisesse sair mancando e fazer uma ofe­renda a Shiva, papai compreendia.

Atualmente, quando volto para lá, olho pela janela do avião e vejo bois puxando arados a poucos metros da pista. Nas cida­des, não é raro executivos em impecáveis ternos de casimira in­glesa se desviarem de sadhus, ou homens santos, calmamente sen­tados no meio da calçada vestidos de tanga ou com mantos ala­ranjados. Essa cena diária assemelha-se a um sítio arqueológico cujas camadas estão irremediavelmente misturadas, ou, melhor ainda, onde elas emergiram do solo e ganharam vida.

No entanto, cada sítio precisa ter uma camada básica. Neste caso, é a constituída pelos sadhus. Os homens santos da Índia datam de pelo menos 3 mil anos antes do nascimento de Cristo. Suas palavras foram registradas e transmitidas no sânscrito ori­ginal, que tudo indica ser o primeiro idioma do homem. Seu lar tradicional ainda é o Himalaia, onde eles vão se sentar em samadhi, ou em profunda meditação, durante dias ou semanas se­guidas. Para os sadhus, a vida é totalmente dedicada ao silêncio interior. Em raras ocasiões, ocorre-lhes o pensamento de que de­vem fazer uma peregrinação. Então, pegam suas tigelas de es­mola e partem para o sul, confiando em que a natureza lhes pro­verá o alimento e o abrigo necessários. Nestes tempos modernos, geralmente eles podem embarcar em qualquer ônibus ou trem sem pagar passagem.

Quando eu era criança, o que sabia dos sadhus vinha de um de meus tios, o irmão mais velho de papai, que viajava por todo o país vendendo equipamento esportivo. Nós o chamávamos de Bara Uncle, ou “tio grande”, um nome que o destacava de nos­sos parentes menos importantes. Invariavelmente ele chegava a nossa casa com presentes como tacos de hóquei na grama (a Ín­dia costumava derrotar o resto do mundo nesse esporte pouco conhecido), bolas de futebol ou raquetes de badminton (esporte parecido com o tênis, mas jogado com peteca). As crianças, é claro, esperavam suas visitas com ansiedade.

Bara Uncle era alegre e conversador. Gostava de contar longos casos sobre as maravilhas que encontrava em seu caminho. O mais interessante aconteceu em Calcutá. Meu tio estava abrindo ca­minho entre a multidão quando quase tropeçou num velho sadhu sentado perto do meio-fio. Com um gesto distraído, enfiou a mão no bolso, encontrou dois armas (cerca de dois centavos de dólar) e colocou-os na tigela do homem santo. Este lançou-lhe um olhar e disse:

— Faça um desejo. Peça o que quiser.

Surpreso, meu tio falou quase sem pensar:

— Quero um pouco de burfi.

Burfi é um doce indiano, em geral feito de amêndoas ou coco. Com um movimento calmo, o sadhu levantou a mão direita, materializou dois pedaços de burfi fresco e entregou-os a Bara Uncle. Perplexo, meu tio ficou paralisado por alguns segundos, o bastante para que o homem santo se levantasse e desaparecesse na multidão. Bara Uncle nunca mais o viu. De certa forma, con­seguiu uma troca justa, pois com os dois annas poderia ter com­prado dois pedaços de burfi numa banquinha de rua. Entretan­to, sempre que contava essa história, balançava a cabeça e la­mentava:

— Ainda penso em tudo o que poderia ter pedido.

Quando menino, eu acreditava piamente no relato de Bara Un­cle, mas na Índia contemporânea as pessoas tendem a olhar para um sadhu e imaginar com ceticismo se ele será mesmo alguém especial. A partir da década de 20, cientistas da Europa e Esta­dos Unidos começaram a visitar a Índia para observar os vários swamis, yogis e sadhus de todos os tipos. Alguns haviam conse­guido notáveis graus de controle sobre o corpo — aparentemen­te eram capazes de suspender a respiração por vários minutos e baixar os batimentos cardíacos quase a zero. Um procedimento típico era enterrar um desses “santos”, como são chamados no país, numa caixa colocada a dois metros de profundidade, uma suposta experiência científica, embora muito grosseira. Depois de alguns dias, quando a caixa era desenterrada, tinha-se, ou não, um resultado. O desejado era encontrar o santo com vida. Quase todos os estudos fisiológicos dessa época são muito superficiais e muitos refletem essa estranha combinação de ciência com es­petáculo de parque de diversões.

O controle que um sadhu exerce sobre o corpo, no entanto, ainda é físico e não representa o objetivo fundamental de sua exis­tência. Essas pessoas estão decididas a romper a máscara das apa­rências físicas. Em nossa terminologia, querem deixar o mundo “acima da linha”, para descobrirem o que jaz abaixo dela. De fato, tradicionalmente a vida indiana tem sido organizada para tornar essa busca possível. Depois de um homem estudar, for­mar uma família e gozar os prazeres da existência material, espera-se que faça sanyasa — ou seja, que renuncie à vida de chefe de família, pegue a tigela e saia em busca de algo além. Quando se diz que ele está buscando Deus, a verdade, a realidade ou a si mesmo, estas são expressões corretas, porque a essência dessa pro­cura é a meta ser desconhecida. O homem está partindo para um outro mundo que não pode ser avistado deste em que estamos. Para usar novamente nossa terminologia, ele está querendo atra­vessar o vazio.

Ao crescer, passei a usar ternos de modelo ocidental e a des­viar de santos na calçada, mas, à medida que analisava mais profundamente as questões da medicina mente-corpo, voltava-me para as antigas tradições da Índia. A segunda parte deste livro centra-se no que descobri. O mundo conhecido de nossos sentidos, dos átomos e moléculas não se rompe abruptamente; ele vai se mati­zando imperceptivelmente numa realidade diferente. A certa al­tura, porém, uma realidade se sobrepõe a outra. Tempo e espa­ço adquirem um significado diferente; desaparecem as claras di­visões entre a realidade interna e externa. Encontramo-nos num mundo nunca tão bem explorado como na Índia. Em sua forma mais pura, o sadhu é um investigador da realidade transcenden­tal que fica além do vazio — essa é a tradição que ele segue, uma das mais antigas e sábias de nosso planeta. Compreender suas descobertas nos levará por uma nova estrada, longe da física, mas ainda assim na mesma linha, à procura de nós mesmos.

No Ocidente, antes do advento da teoria da relatividade, não se questionava se o tempo, o espaço, a matéria e a energia ocu­pavam compartimentos de realidade separados. Nossos sentidos detectam uma árvore como totalmente diferente de um raio de luz ou de uma centelha de eletricidade; podemos sentir que o tempo é uma entidade mais misteriosa, capaz de correr mais de­vagar, acelerar ou até parar, mas jamais diríamos: “Gosto mais de Nova York do que de Segunda-feira”. Parece óbvio que tem­po e espaço, matéria e energia são pares separados, pelo simples motivo de que nenhum pode ser transformado no outro. O mundo normal dos sentidos pode ser esquematizado numa forma bem conhecida por nós:

 

           Tempo / Espaço / Matéria / Energia

 

                                  Intervalo

 

Depois que Einstein publicou a equação E = MC2, foi preci­so modificar essa visão simples e corriqueira, pois então se tor­nou possível (como o provou a bomba atômica) transformar a ma­téria em enormes quantidades de energia. A teoria geral da rela­tividade fez o mesmo pela separação entre tempo e espaço. Atual­mente, a física lida com uma entidade fundida chamada tempo-espaço, que pode ser curvada para se ajustar a certas circunstân­cias (sempre que um objeto viaja com uma velocidade próxima à da luz, por exemplo). Depois de provar que a natureza era muito menos compartimentada do que a ciência anteriormente pensa­va, a relatividade abriu outra possibilidade, ainda mais surpreen­dente. Einstein sugeriu que existe um campo subjacente como pano de fundo para todas as transformações do espaço-tempo e massa-energia. Isso implica um nível de natureza totalmente fun­dido; em outras palavras, há uma região de espaço-tempo-matéria-energia.

Einstein estava intuitivamente convencido dessa possibilidade — a demolição máxima do mundo dos sentidos — numa época em que ninguém mais tinha visão para pensar nela com serieda­de. Começando na década de 20, ele passou os últimos trinta anos de sua vida isolado dos outros físicos de sua geração e em grande parte ignorado, procurando computar a matemática de uma “teoria do campo unificado’’. Essa teoria uniria as forças básicas da criação e assim explicaria o universo como um todo. Em vez de quatro compartimentos, haveria um só.

“Unir”, no sentido em que os físicos usam a palavra, significa provar que duas coisas que parecem totalmente diferentes podem se transformar cada uma na outra, num nível mais profundo da natureza. O fóton e a onda de luz são exemplos clássicos disso: eles parecem inteiramente diferentes; no entanto, num nível infi­nitesimal da natureza, chamado escala Planck, que é mais de um bilhão de bilhão de vezes menor do que o menor dos átomos, o fóton e a luz podem ser unidos. Ninguém ainda conseguiu re­solver a matemática de um campo unificado. Isso seria equiva­lente a resolver toda a zona oculta que rotulamos com um “?” (No entanto, uma nova teoria, que recebeu o nome de superfilamento, pode ter, enfim, resolvido o problema, trinta anos após a morte de Einstein.)

Em face de um problema que o pensamento racional não po­de solucionar, a ciência necessariamente se detém, mas outras vias podem ser abertas. Milhares de anos atrás, os antigos rishis, ou videntes da Índia, também refletiram sobre a questão de a natureza ser essencialmente unificada. Um rishi é semelhante a um sadhu no sentido de que sua vida é dedicada ao silêncio e à vivência interior, mas os rishis estão mais distantes no tempo — eles foram responsáveis pela escrita dos antigos textos do Ve­da, ou verdade revelada, como o Rig Veda, que talvez seja mi­lhares de anos anterior às pirâmides egípcias.

Se você perguntar a um indiano moderno o que são os Vedas, ele dirá que são livros que contêm as palavras dos rishis, mas na verdade o Veda é o conteúdo vivo da consciência dos rishis. Um rishi foi capaz de ver tão fundo na natureza das coisas que até mesmo Deus se senta a seus pés para aprender — essa lição pode ser encontrada no Yoga Vasishtha, onde o jovem Senhor Rama, uma encarnação divina, suplica ao sábio Vasishtha que o instrua.

Não estou enfatizando aqui o valor espiritual do rishi e seu conhecimento. Até bem recentemente na história da humanidade, todas as culturas misturavam livremente religião, psicologia, fi­losofia e arte num todo homogêneo. No entanto, filamentos in­dividuais podem ser puxados desse todo; neste caso, estou inte­ressado no que os rishis tinham a dizer sobre a natureza funda­mental da realidade (no Yoga Vasishtha, Deus também demons­trou um vívido interesse pelo assunto). Assim como nós, eles eram capazes de dividir a natureza em espaço, tempo, matéria e ener­gia, mas voltavam as costas para esse tipo de abordagem que do­mina de modo tão absoluto nossa maneira de ver o mundo e de pensar nele.

Em lugar disso, os rishis optaram por resolver o problema da forma mais prática imaginável. Resolveram atravessar o vazio e entrar na zona “?”, onde o pensamento não pode chegar. Usa­ram uma distorção simples em sua percepção, mas que teve pro­fundas consequências — foi como virar o mundo objetivo pelo avesso. Para fazer isso, os rishis tiveram de analisar a natureza de uma maneira imprevista, que pode ser representada por ou­tro esquema:

 

               Acordado / Dormindo / Sonhando

 

                                     Intervalo

 

Esse diagrama é tão válido como o anterior, mas olha para o mundo de um ponto de vista puramente subjetivo. Em vez de ver o tempo, espaço, matéria e energia “lá fora”, os rishis obser­varam que a realidade começa “aqui dentro”, com nossa percepção consciente. Em qualquer instante, raciocinaram, uma pessoa pre­cisa estar em um dos três estados de percepção subjetiva — acor­dado, dormindo ou sonhando. Os antigos admitiam que a realidade era diferente em diferentes estados de consciência — um tigre no estado de sonho não é um tigre no estado acordado ou de vigília. A realidade obedece a leis inteiramente diferentes e, por similaridade, as leis do estado de sono, embora não conheci­das pela mente consciente, devem ser distintas das dos estados de vigília e de sonho.

Os rishis analisaram mais a fundo e detectaram, entre esses três estados, um vazio que atua como um agente, enquanto uma rea­lidade se transforma em outra. Por exemplo, pouco antes de ador­mecer, a mente vai pouco a pouco abandonando o estado de vi­gília, recolhendo os sentidos, deixando para fora o mundo acor­dado; porém no ponto de junção antes de a mente adormecer, abre-se um rápido vazio, idêntico ao que ocorre num átimo de segundo entre dois pensamentos. É como uma pequenina janela que se abre para o campo que se situa além tanto do estado de vigília como do sono. Essa compensação abriu a possibilidade de se deixar para trás as fronteiras comuns dos cinco sentidos, mergulhando-se no vazio.

Considerando-se que o Ocidente é supostamente prático, e o Oriente, místico, é fascinante descobrir que os rishis eram muito mais ávidos por experiências diretas do que um físico quântico. Sua abordagem subjetiva denominava-se Yoga, a palavra em sâns­crito para “união”. (Os vários exercícios ensinados nas escolas de yoga pertencem apenas a um de seus ramos, o chamado Hatha Yoga; aqui vamos falar da abordagem mais poderosa do Yo­ga, que é mental.) Como o rishi e o físico quântico procuram uma camada subjacente da unidade na natureza, pode-se ver ime­diatamente a semelhança entre o Yoga e a busca de Einstein por uma teoria do campo unificado. A diferença mais importante entre os dois é que os rishis, não sendo teóricos, declaravam que o cam­po unificado existe no mundo real — ele é uma experiência e não mera construção mental.

Do ponto de vista subjetivo dos rishis, o campo unificado só poderia ser um outro estado de consciência, ao qual deram o no­me de turiya, ou “o quarto”, para deixar claro que ele não fazia parte dos três estados — vigília, sono e sonho. Eles também se referiam a ele como para, ou “além”, significando que esse campo unificado transcendia a experiência ordinária. Mas como pode­ria existir um quarto estado? A resposta era dupla. Primeiro, os videntes disseram que o quarto estado existe em todos os luga­res, mas está oculto pelos outros três estados, que funcionam co­mo uma divisória. (Alguns textos antigos declaram que o quarto estado foi misturado aos outros três, como leite na água, e que descobri-lo é tão difícil como separar o leite da água.) Segundo, que o quarto estado pode ser vivenciado diretamente apenas de­pois que a mente tenha transcendido sua atividade normal, o que exige técnica especial de meditação.

A própria palavra “rishi” denomina uma pessoa que apren­deu a entrar no quarto estado sempre que quiser e observar o que existe lá. Essa capacidade aprendida não é “pensar”, no sen­tido em que usamos este termo — todo o fenômeno é uma expe­riência imediata, como reconhecer a fragrância de uma flor ou o som da voz de um amigo. Ele é imediato, não-verbal, e dife­rente do perfume de uma rosa, totalmente transformador. En­quanto meditavam profundamente absorvidos em sua própria per­cepção subjetiva, os rishis exploravam o turiya como olharíamos para o Grande Canyon, por exemplo. Como indivíduos, esses vi­dentes têm nomes, mas a entrada no transcendental obscureceu as margens do que consideramos identidade pessoal. Vasishtha, por exemplo, não é apenas o nome de um dos maiores dos anti­gos rishis, mas também o de uma parte integral do Veda — o conhecimento transcendental — que o homem Vasishtha foi o primeiro a perceber; para conhecer realmente aquela parte do Veda, é preciso estar na “consciência Vasishtha”. Em suma, es­ses sábios observaram a existência em sua forma mais pura.

 

Apesar de todas as intenções e propósitos, o Ocidente não ti­nha meios para testar de forma sistemática a existência do quar­to estado. Carente da técnica certa, a comunidade científica tem ignorado o turiya. De fato, muitos cientistas o considerariam irrelevante ou ameaçador. A simples noção de “união” traz à mente imagens indesejadas: dissolver-se num estado de nada ou perder a identidade como uma gota desaparecendo no oceano. A des­peito de ocasionais explosões de entusiasmo por idéias orientais, o progresso do conhecimento no Ocidente tem dependido sobre­tudo da observação externa, e não da interna.

No entanto, se existe um estado que transcende os três habi­tuais, parece lógico que ele deva se manifestar de vez em quan­do, nem que seja por acaso. Vejamos a experiência vivida por Char­les Lindbergh em 1927, durante os momentos mais críticos de sua aventura. Quando estava no segundo dia de seu histórico vôo sobre o Atlântico, ele descobriu que havia ultrapassado os limi­tes da exaustão física. Temendo perder o controle do avião, pro­curou evitar um desastre entregando-se ao sono e esperando manter-se no curso. Então, como Lindbergh conta em sua auto­biografia, ocorreu uma notável mudança de percepção:

 

Por várias vezes, no segundo dia de meu vôo, voltei ao estado consciente, alerta o bastante para perceber que estivera voando enquanto não estava nem dormindo nem acor­dado. Meus olhos tinham ficado abertos. Eu reagira às indicações dos instrumentos e me mantivera, de uma forma geral, dentro do curso da bússola, mas perdera o sentido de tempo e da circunstância. Por períodos imensuráveis, eu parecia me expandir para fora de meu avião e de meu cor­po, independente dos valores mundanos, com a capacidade de apreciar a beleza, a forma e a cor, sem depender de meus olhos.

 

Em criança, Lindbergh já deitara nos milharais da fazenda do pai e experimentara uma sensação similar, de estar “além da imor­talidade” enquanto olhava para o céu. Entretanto, o episódio so­bre o Atlântico Norte foi mais longe. Lindbergh concluiu sobre o acontecimento: “Foi uma experiência onde tanto o intelecto como os sentidos foram substituídos pelo que poderia ser denominado uma percepção sem matéria... Reconheci que a visão e a realidade interagem, tal como a energia e a matéria”.

Isso parece o equivalente subjetivo das transformações espaço-tempo que Einstein provou serem possíveis no campo objetivo. No entanto, essa experiência subjetiva é notoriamente difícil de se quantificar, em especial se ela ultrapassa o intervalo normal de percepção. Os fisiologistas esperaram o final da década de 60 até que algum deles se aventurasse a considerar válido que os rishis haviam mesmo acrescentado uma nova dimensão à mente humana. O que tornou isso possível foi um súbito crescimento no interesse pela meditação, em particular pela Meditação Trans­cendental, ou MT, que foi trazida da Índia para os Estados Uni­dos, em 1959, por seu fundador, Maharishi Mahesh Yogi.* Ten­do se iniciado em meados dos anos 60, a MT conquistou grande popularidade. No ano de seu auge, 1975, quase meio milhão de americanos aprenderam a técnica. A MT também tornou-se al­go aceita em quase todos os lugares fora da Cortina de Ferro (e, muito silenciosamente, em alguns dentro dela).

 

* Como ela é ainda a meditação mais confiavelmente pesquisada de que dispomos, estou me concentrando na MT e em sua origem nos Vedas. Outras tradições de meditação — Zen, tibetana, chinesa etc. — têm valiosas aplicações médicas e significado espiritual so­fre os quais não estou qualificado para discutir, mas, mesmo assim, respeito.

 

Outros mestres indianos haviam viajado ao Ocidente antes do Maharishi, mas ele foi o primeiro a derrubar as barreiras cultu­rais em grande escala da população. Quando começou a ensinar, a maioria das pessoas do Ocidente nem tinha ouvido falar na pa­lavra “meditação”, e muitas a encaravam com descrença, em parte devido a uma confusão de linguagem. Costumamos dizer “vou meditar sobre isso”, no sentido de que pretendemos ponderar sobre o assunto; para alguns, a meditação é sinônimo de con­templação ou mesmo de oração. É difícil compreendermos que para um rishi a meditação pode significar apenas dhyan, o termo sânscrito que corresponde a conduzir a mente ao repouso, no si­lêncio do quarto estado. (A palavra dhyan deu origem a vários termos similares em toda a Ásia, como, por exemplo, a palavra japonesa zen.) Para que tal distinção ficasse bem clara, o Maharishi acrescentou a palavra “transcendental”, enfatizando que a mente precisa ir além, ou transcender seus limites habituais, pa­ra atingir o turiya.

Para o Maharishi, descer do Himalaia, onde vivia há catorze anos, e entrar direto na América moderna foi um ato notável. Os ashrams — locais de retiro religioso na Índia — ao longo do Ganges, na área mais isolada do Uttar Kashi — o “vale dos san­tos” —, constituem a parte menos mundana da Índia, um país onde as regiões mais adiantadas nem mesmo dispõem de telefo­nes confiáveis. Olhando para uma foto datada de 1964, posso ima­ginar a notável impressão que o Maharishi causou. Ela foi tirada à margem do lago Big Bear, no alto das montanhas acima de Los Angeles. Sob o abrigo de altos pinheiros, foi preparado um pi­quenique, embora o solo estivesse coberto por meio metro de neve. A luz apresenta uma cintilante característica alpina. Uma dúzia de pessoas estão na foto, onze delas são ocidentais usando sobre­tudos e jaquetas de esqui. A outra — o Maharishi — se destaca. Ele está tranquilamente sentado numa manta estendida sobre a neve, vestindo apenas o traje tradicional de monge, constituído de túnica de seda branca, sandálias e xale. Parece baixo, mas é bem desenvolvido; os cabelos longos e barba não estão aparados, o que também é regra entre os monges.

Nessa época, o Maharishi já vivera seus momentos de choque cultural. Em sua primeira visita aos Estados Unidos, em 1959, um jornal de San Francisco anunciou a Meditação Transcenden­tal como um “tranquilizante não medicamentoso” e a elogiou como uma promissora cura para a insônia. Uma vez que esse ar­tigo foi o primeiro a respeito da chegada do Maharishi, os anfi­triões do mestre apressaram-se em lhe mostrar.

Leram a reportagem em voz alta e aguardaram sua reação. O Maharishi permaneceu sentado em silêncio e depois emitiu uma única palavra: “Cruel”. Os anfitriões ficaram chocados. “Sinto vontade de voltar correndo para casa”, disse o Maharishi em voz baixa. “Este país me parece estranho. Os valores aqui são diferentes.” Ele levou algum tempo antes de poder rir com a idéia de os americanos quererem dormir, quando sua intenção era acordá-los. Mesmo atualmente, as pessoas ficam surpresas com a reação inicial do Maharishi, porque meditação tornou-se a se­nha para relaxamento e seus benefícios, inclusive um sono me­lhor. Os médicos com quem converso sobre meditação em geral me garantem que, acreditem ou não nela, seu objetivo é o rela­xamento. Só sob a luz do Veda pode-se compreender por que essa visão é tão míope.

 

O Veda representa uma imensa expansão da mente humana. O melhor meio de descrevê-lo é como o conteúdo total do com­putador cósmico. Todos os dados na natureza são canalizados para ele e dele fluem todos os fenômenos naturais. O controle sobre esse computador está localizado no cérebro humano, cujos bi­lhões de conexões neurais lhe dão suficiente complexidade para refletir a complexidade do universo.

O cérebro não é importante como objeto, dizem os rishis. Ele é importante porque nossa própria subjetividade brilha através dele; quando nosso cérebro nos mostra o mundo, está na reali­dade nos mostrando a nós mesmos. Por analogia, quando uma imagem surge num espelho, acontece uma mistura. O espelho é o reflexo; o reflexo é o espelho. Da mesma forma, a única reali­dade sobre a qual podemos saber alguma coisa é a que está refletida no cérebro — portanto, tudo o que existe está dentro de nossa subjetividade.

Normalmente um físico não concordaria com isso, uma vez que aprecia o método objetivo e encara a subjetividade como um ini­migo virtual. Um físico diz “Isto é um próton”, e não “Esta é minha sensação para o que é um próton”. Na verdade, o Veda não carece de conhecimento objetivo — ele deu origem a suas próprias ciências da botânica, fisiologia, astronomia etc. —, mas os rishis não achavam que a objetividade fosse o modo mais con­fiável de se conhecer coisas, em especial depois de se investigar mais fundo do que a superfície da natureza. A verdade, diziam, é que a subjetividade não pode ser nem reduzida nem expandi­da. A natureza é como uma faixa de rádio. Quando prestamos atenção a um objeto isolado — uma pedra, uma estrela ou uma galáxia inteira —, estamos escolhendo uma estação na faixa. O resto, é óbvio, tem de ser excluído — mas apenas naquele nível de consciência.

Pode ser que outros níveis de consciência recebam mais fai­xas, ou mais de uma faixa de cada vez. Atualmente, os físicos estimam que nossos sentidos escolhem menos de um bilionésimo de ondas de energia e de partículas que os cercam. Vivemos numa “sopa de energia” incrivelmente maior do que o mundo que vemos. Pensa-se hoje em dia que o universo visível seja ape­nas uma versão minúscula da criação original, o resíduo de uma realidade muito maior que ruiu em algum período antes de o tem­po começar, reduzindo suas dez dimensões originais para nossas quatro. (Quero me desculpar pelo uso da frase “antes de o tem­po começar”, que é um paradoxo gritante, mas não há outro modo de expressar verbalmente como ocorreram os eventos pré-Big Bang.) Também parece que, no momento da criação, nosso uni­verso estava preenchido com um bilhão de vezes mais energia do que agora observamos com radiotelescópios; o restante foi reab­sorvido pelo mesmo campo oculto para onde foram as outras seis dimensões.

Os rishis afirmavam que, por meio da consciência expandida, até essa inconcebível realidade perdida podia estar a nosso alcance. Os físicos teóricos admitem que as dimensões perdidas e os campos de energia invisíveis, na verdade, não foram para nenhum lugar; eles apenas recolheram-se para “dormir” no campo primordial. Do mesmo modo, o nível transcendental de percepção está dis­ponível em todos os lugares; você não precisa ir a nenhum ponto em especial para encontrá-lo. Só é necessário acordar. William James expressou essa idéia numa famosa passagem:

 

Nossa consciência normal quando estamos acordados, ou consciência racional, como a chamamos, não passa de um tipo especial de consciência, enquanto, em toda sua volta, separadas dela pela mais delgada das telas, jazem formas potenciais de consciência completamente diferentes. Pode­mos passar pela vida sem suspeitar de sua existência; mas, aplicando-se o estímulo requerido e com um simples toque, elas estão lá, em toda sua plenitude.

 

Se muito mais da realidade está próximo, por que não pode­mos tocá-la? Os pesquisadores encontraram a pista de uma res­posta fazendo experiências com gatos recém-nascidos. Os gatinhos nascem com os olhos fechados e o nervo óptico mal desen­volvido. À medida que vão abrindo os olhos, o mecanismo da visão vai amadurecendo; esses dois eventos sempre acontecem si­multaneamente. No entanto, descobriu-se em meados da década de 70 que, ao se tapar os olhos de um gatinho por dois ou três dias, enquanto ele está na fase de abrir os olhos pela primeira vez, o animal ficará cego para sempre. Durante esse breve mas crítico período, a experiência de ver é a responsável pela forma­ção das conexões interneuronais no cérebro, que tornam possí­vel a visão.

Essa foi uma descoberta muito importante, já que os biólogos continuam discordando sobre o que é mais importante no comportamento, a genética ou a experiência. Trata-se da velha ques­tão a respeito de uma característica: se é inata ou adquirida. Um pássaro aprende a cantar imitando a mãe? Ele cantará se for cria­do em isolamento? A experiência com os gatinhos mostrou que tanto a “natureza” como a “criação” são essenciais. O cérebro do gatinho é programado para a visão; no entanto, ele requer o ato de ver para que sua programação se desenvolva adequada­mente. Só que existe uma implicação mais profunda em tudo is­so: nosso cérebro pode estar limitado exatamente dessa forma. Muitas coisas “lá fora” não existem para nós, não porque sejam irreais, mas porque “aqui dentro” o cérebro não está moldado para percebê-las. Somos como rádios que aparentemente dispõem da capacidade de captar todas as estações, mas que mantêm sintonia cativa em apenas três — acordado, dormindo e sonhando.

Como nosso cérebro é o único rádio de que dispomos, jamais poderemos saber se existe o quarto estado, a não ser que nosso sistema nervoso esteja preparado para isso. É plenamente possí­vel que estejamos envoltos e banhados pelo transcendente e ain­da não o tenhamos sintonizado.

Sob essa luz, o Veda é como a faixa inteira do rádio. Ao longo do tempo, porém, seu significado se distorceu à medida que as pessoas foram perdendo contato com a pura percepção. Em vez de ficar com a consciência védica, a Índia ficou com os livros védicos. Eles afirmam que o Veda é supremo e universal, mas é óbvio, pelo estado atual da Índia, que o real poder do Veda deixou de existir, restando apenas a forma. É como saber que existe o computador cósmico, ter o manual de instruções com­pleto para operá-lo, porém não se lembrar de ligá-lo na tomada.

Para conduzir as pessoas à pura percepção, o Maharishi precisava afastá-las da superfície da vida. Os mestres orientais que haviam feito isso antes tinham deixado a impressão de que interiorizar-se significava um sacrifício dos valores mundanos e da realidade objetiva. O Maharishi adotou a posição exatamente oposta, dizendo que o único propósito de transcender era expandir a mente. Se a subjetividade expande, então seu reflexo — o mundo visível — deve se expandir junto. A longa degeneração da sabe­doria indiana levou ao mal-entendido de que a renúncia é o ca­minho para o turiya, e o desprendimento, a meta da vida.

“Vida com base no desprendimento! Esta é uma completa distorção da filosofia indiana. Ela não apenas destruiu a senda da realização como tem levado os que buscam a Verdade a se perde­rem. De fato, deixou-os impossibilitados de atingirem a meta.”

O Maharishi escreveu estas palavras em 1967, quando foi publicado seu importante comentário sobre o Bhagavad Gita. Elas sopram como um vento forte através do torpor da doutrina orien­tal. Em todas as tradições, não apenas na hindu, o peso do des­prendimento e da renúncia exerceu um efeito nocivo. Prevalece a opinião de que a mente deve ser forçada a ficar inativa se o objetivo é atingir o silêncio. Uma representação vívida do Veda diz que meditar é como domar um elefante selvagem. O animal deve ser amarrado a uma estaca e gritar e pisotear até ficar com­pletamente exausto. Então, pode-se começar o processo de doma.

O Maharishi afirma que esse é um erro fatal. Na verdade, a mente deseja encontrar o quarto estado e irá procurar por ele se a deixarem seguir suas tendências naturais. Então, a meditação é apenas um veículo (o Maharishi o chama de “esforço sem es­forço”) para colocar a mente na direção certa. A prova mais ób­via de que ele está correto vem do vazio silencioso que surge na­turalmente no espaço entre os pensamentos. No entanto, o Veda nos fornece uma analogia de apoio: pensamentos são como on­das do oceano. Subindo e descendo, elas vêem apenas o próprio movimento. Dizem “Sou uma onda”; porém a verdade maior, a que não vêem, é “Sou o oceano”. Não existe separação entre as duas, por mais que as ondas possam supor. Quando a onda se aplaina, ela instantaneamente reconhece que sua fonte, o oceano — infinito, silente e imutável —, esteve sempre lá.

O mesmo vale para a mente. Quando ela pensa, é toda ativida­de; quando pára de pensar, volta a sua fonte de silêncio. Só quando a mente tocar a pura percepção é que será localizado o real reser­vatório do Veda. A experiência do Veda, portanto, não é antiga nem mesmo particularmente hindu. Ela é universal e pode ser obtida a qualquer momento por qualquer pessoa. O segredo é não se mover na horizontal, como a corrente da consciência nor­malmente flui, mas aprofundar-se na vertical. Essa descida ver­tical é transcender, meditar, dhyan, “ir além” — todas as mani­festações de uma mente que cessa de se identificar com ondas e começa a se identificar com o oceano.

Se esse argumento é correto, então a natureza da mente e da conexão mente-corpo tem de ser reconsiderada. O ponto que Arquimedes procurava — um lugar para apoiar-se e mover o mun­do — na verdade existe. Ele está dentro de nós, coberto pelo fas­cinante mas enganador espetáculo cinematográfico do estado de vigília.

Isso talvez explique por que a medicina mente-corpo tem se mostrado tão inconsistente. Tomamos como correto, sem racio­cinar muito, que uma pessoa que sobrevive ao câncer ou conse­gue curar a si mesma de uma doença fatal opera com a mesma maquinaria mental de qualquer outro ser humano, e isso não é verdade. Os processos mentais podem ser superficiais ou profun­dos. Ir fundo significa entrar em contato com o projeto básico da inteligência e modificá-lo — só então a visualização de lutar contra o câncer, por exemplo, pode ser forte o bastante para der­rotar a doença. Entretanto, a maioria das pessoas não consegue fazer isso; sua força de pensamento é fraca demais para disparar os mecanismos adequados.

 

A questão prática é se a meditação é forte o bastante para melhorar de forma radical nosso poder de pensamento. Vários estu­dos realizados por cientistas associados ao Maharishi mostraram que a meditação pode, de fato, induzir mudanças profundas, muito além do simples relaxamento para o qual a maioria das pessoas do Ocidente a usa, além mesmo das aplicações médicas de ali­viar tensões ou diminuir o nível de pressão sanguínea, e assim por diante.

O primeiro cientista ocidental a realizar um trabalho impor­tante com o quarto estado foi o fisiologista americano Robert Keith Wallace, que provou sua existência. Em 1967, Wallace era um estudante de pós-graduação na UCLA (Universidade da Califór­nia, em Los Angeles), onde começou as pesquisas para sua tese de Ph.D sobre mudanças fisiológicas que ocorrem durante a MT. Usando os métodos dos modernos estudos biomédicos, ele fez medições em praticantes de MT ao longo de vários anos. Ligou-os (sem desconforto) a aparelhos para medir ondas cerebrais, pres­são sanguínea, batimentos cardíacos e outros indícios de altera­ção física. Os pacientes meditavam durante vinte minutos, usan­do o procedimento mental uniforme ensinado a todo o pratican­te de MT.

Wallace logo começou a reunir uma considerável amostragem de resultados incomuns. Primeiro, descobriu que algo muito real acontecia ao corpo em meditação. Poucos minutos depois de ini­ciarem a prática, os pacientes entravam num estado de profundo relaxamento, marcado por respiração e batimentos cardíacos mais lentos, pelo surgimento de ondas alfa no EEG (eletroencefalo­grama) e pela diminuição de consumo de oxigênio detectada na respiração. Essa última medição foi particularmente importante, porque mostrou que a taxa metabólica do corpo, ligada ao con­sumo total de combustível nas células, havia caído — os fisiolo­gistas se referem a essa redução metabólica como estado “hipometabólico”.

Os meditadores chegavam ao relaxamento mais profundo com rapidez. São necessárias de quatro a seis horas de sono para se atingir o período onde o consumo de oxigênio cai a seus níveis mais baixos, mas os meditadores o conseguiam em alguns minu­tos. Além disso, no sono a queda é em geral inferior a 16 por cento, enquanto os praticantes da MT alcançavam reduções rela­tivas que momentaneamente chegavam ao dobro. Wallace ficou impressionado com esses números porque nunca havia sido re­gistrado um estado de relaxamento tão profundo. O estudo reve­lou que as sensações subjetivas experimentadas durante a medi­tação e posteriormente relatadas — silêncio interior, paz e relaxa­mento — tinham uma base física real. Era muito importante tam­bém o fato de os pacientes não terem adormecido nem entrado em transe. Eles estavam completamente acordados em seu inte­rior, experimentando mesmo uma sensação de percepção amplia­da. Wallace então concluiu que a meditação era um estado de “vigília hipometabólica”. Uma vez que suas medições diferiam de quaisquer outras feitas com pessoas acordadas, dormindo ou sonhando, ele concluiu que verificara um estado de consciência absolutamente novo — o quarto estado.

Certos meditadores apresentaram mudanças físicas que ultrapassaram a média. Como aconteceu com iogues estudados na Índia e no Himalaia, sua respiração pareceu cessar por longos perío­dos. No nível subjetivo, esses estados mais profundos foram vivendados como um silêncio interior absoluto, uma sensação de enorme expansão e de profundo conhecimento. A mente se es­vaziou de pensamentos específicos, mas ficou com a clara per­cepção de “Eu sei tudo”. Ninguém foi capaz de explicar tais ex­periências porque os instrumentos científicos são grosseiros de­mais para analisá-las e até mesmo para detectá-las.

No entanto, para alguém versado em literatura védica, estava claro que esses pacientes vivenciavam um tipo profundo de per­cepção transcendental. O Yoga Vasishtha, uma das maiores fon­tes sobre a experiência direta com o transcendente, diz sobre o quarto estado: “Quando há a suspensão da respiração sem es­forço, esse é o estado supremo. É o Eu. É a pura, infinita cons­ciência. Aquele que atinge esse estado não sofre”. Seria difícil encontrar melhor descrição do que a que os fisiologistas estavam vendo. Wallace procurou medições físicas feitas com meditadores Zen, no Japão, e encontrou resultados comparáveis. No en­tanto, o impressionante era que seus pacientes americanos, a maio­ria deles jovens, pós-hippies e novatos em meditação, estavam atin­gindo as mesmas marcas dos adeptos Zen que já praticavam meditação há dez anos.

Visto sob uma luz diferente, o que Wallace fez foi legitimar a conexão mente-corpo. Atualmente, aceita-se o fato de que o cor­po de um indivíduo reage espontaneamente a seu estado de cons­ciência, como afirmaram os rishis. O paradoxo é precisarmos aprender a mergulhar dentro de nós mesmos. A meditação nos ensina a controlar um processo que nos influencia Constantemente, dia e noite, quer percebamos isso, quer não.

Recentemente conheci uma mulher da cidade de Boston, de 60 e poucos anos, que há muito sofria de lenta degeneração do músculo cardíaco chamada cardiomiopatia. Existem vários tipos desse mal e o dela era considerado idiopático, ou seja, sem causa aparente. Seu principal sintoma na época do diagnóstico era fal­ta de fôlego sempre que fazia algum esforço, e descobriu-se que isso decorria do aumento do tamanho do coração, o que o fazia funcionar mal. A medicina pode fazer muito pouco ou quase nada nesses casos, o que deixou essa senhora muito preocupada. Por sugestão médica, ela foi internada para se submeter a um angiograma.

O propósito de um angiograma é determinar se existe bloqueio das artérias coronárias, os vasos que levam oxigênio para o cora­ção. O cardiologista calculava que, se houvesse algum bloqueio, parte dos sintomas poderia dever-se a uma moléstia arterial, que é tratável. Com muita apreensão, a senhora submeteu-se ao exa­me. O angiógrafo, também médico, foi a seu quarto algum tem­po depois.

— Tenho boas notícias — disse ele. — Seus vasos estão lim­pos. Você não tem nenhuma doença nas artérias coronárias. Em minha opinião, não há necessidade de cirurgia. — Quando esta­va saindo, virou-se para ela e observou: — Se seu estado piorar, a única coisa que pode ser feita é um transplante cardíaco.

A mulher nunca ouvira isso antes e, poucos dias depois, co­meçou a ficar sem fôlego não apenas depois de esforços, mas sem­pre que se deitava. Incapaz de dormir e cada vez mais ansiosa, ela voltou a seu cardiologista, que não encontrou nenhum moti­vo para o agravamento dos sintomas. Depois de várias consul­tas, eles tiveram uma conversa mais franca e a mulher confessou que temia precisar de um transplante. O médico garantiu-lhe que seus temores eram infundados — nada em seu estado justificava a adoção de um procedimento tão drástico. Daquele dia em diante, os novos sintomas desapareceram.

 

Mais uma vez podemos ver que a realidade subjetiva e a reali­dade objetiva estão intimamente ligadas. Quando a mente mu­da, o corpo não tem outra escolha senão mudar. A realidade ob­jetiva, é óbvio, parece mais fixa do que nossos humores, desejos passageiros e repentes de emoção subjetivos. No entanto, talvez não seja assim; ela é mais como uma corda de violino que pode manter um tom, mas também pode mudar de tom à medida que o dedo desliza nela — essa imagem me ocorreu quando eu pensava no caso de Chitra, narrado no início deste livro, mas serve para todos nós.

O tom da corda é nosso nível de consciência. Esse é um atri­buto interno básico, um ponto focal para onde convergem todos nossos pensamentos, emoções e desejos, como um par de óculos de lentes verdes, que faz o mundo todo parecer verde. A maioria das pessoas não percebe o quanto seu tom é consistente, mas ou­tras têm uma boa consciência dele — uma pessoa deprimida ir­radia depressão, ainda que se esforce para agir de uma maneira positiva; uma pessoa hostil pode enervar todos os ocupantes de uma sala, mesmo ao dizer coisas inofensivas. O nível de cons­ciência das pessoas se ajusta em diretrizes amplas. Ninguém é absolutamente hostil ou alegre, inteligente ou simplório, satisfei­to ou descontente; existem dezenas de gradações sutis em cada personalidade.

O mais importante a salientar é que tudo o que se pensa e se faz é determinado por esse ponto — não se pode, pensando, pas­sar para um nível de consciência mais alto ou mais baixo. Isso ajuda a explicar por que a meditação não é simplesmente um outro modo de pensar ou de introspecção — um erro que os ocidentais tendem a cometer. Na verdade, ela é um meio para se deslizar até um novo tom. O processo de transcender, ou “ir além”, des­prende a mente de seu nível fixo e permite que ela exista, nem que seja por um momento, sem nenhum nível. Ela apenas vi­vencia o silêncio, vazia de emoções, impulsos, desejos, medos e de tudo o mais. Depois, quando a mente volta a seu tom habi­tual (o nível de consciência), ela adquiriu um pouco de liberda­de para se movimentar.

De um ponto de vista médico, uma doença pode representar uma desafinação na corda do violino. No entanto, por algum mo­tivo, o sistema mente-corpo não consegue um modo de se soltar dali, de deslizar para um tom mais saudável. Se isso for mesmo verdade, então a meditação pode ser uma poderosa ferramenta terapêutica, permitindo que o corpo se solte da doença. Os pes­quisadores da meditação perceberam esse potencial no final da década de 60, quando descobriram que muitos estudantes que usavam álcool, cigarros e drogas leves abandonaram esses hábi­tos poucos meses depois de começarem a meditar. Podemos di­zer que eles se desprenderam de um antigo nível de consciência que precisava desses estimulantes; em termos de neuropeptídios, a explicação talvez seja que a meditação liberou certos locais re­ceptores, oferecendo moléculas mais satisfatórias do que as do álcool, nicotina ou maconha.

 

Por volta de 1978, Robert Keith Wallace já passara mais de uma década analisando efeitos mente-corpo separados em meditadores MT. Decidiu, então, percorrer um outro caminho e in­vestigar uma área mais complexa, holística: o envelhecimento hu­mano. O processo de envelhecimento tem sido tradicionalmente aceito sem contestações como um aspecto inevitável na vida nor­mal, e variações dele são consideradas casos particulares. Algu­mas pessoas vivem mais tempo do que outras devido a genes pri­vilegiados, a um forte sistema imunitário ou boa sorte, mas não existe um fator antienvelhecimento que possa ser aplicado a to­dos. Se houvesse um, os anciãos de 70 anos seriam mais unifor­memente saudáveis em suas funções corporais, como acontece com a maioria dos jovens de 20 anos.

No entanto, não existe prova científica de que o envelhecimento seja normal — ele é apenas algo que sofremos. São tantas as ten­sões envolvidas na vida “normal” que se pode considerar que a fisiologia humana está sempre sob uma pressão anormal — de­vido ao barulho, à poluição, a emoções negativas, à dieta inade­quada, ao tabagismo, ao consumo de álcool etc. Somente a “doen­ça de estar com pressa” já basta para apressar o envelhecimento em quase todos nós. Se a meditação contrabalança esses fatores, ela poderá revelar algo completamente novo sobre o processo de envelhecimento.

Wallace começou, então, a medir um grupo de meditadores adultos para estabelecer o que se denomina “idade biológica”. A idade biológica mostra como está funcionando o corpo de uma pessoa em comparação com as normas do conjunto da popula­ção. Ela nos dá uma medida mais verdadeira que a da idade cro­nológica de como o envelhecimento está progredindo, porque duas pessoas com a mesma idade, 55, por exemplo, podem ter orga­nismos muito diferentes entre si. De início, Wallace só se con­centrou em testar três variáveis simples: pressão sanguínea, acui­dade auditiva e visão de perto. As três vão se deteriorando de maneira constante, à medida que o corpo envelhece biologicamente, e, portanto, servem como marcos adequados.

Wallace descobriu que os meditadores, como um grupo, eram significativamente mais jovens em termos biológicos do que se poderia esperar em sua idade cronológica. E mais, a diferença entre as duas idades não era pequena — a meditadora que obte­ve a melhor contagem era vinte anos mais jovem que sua idade cronológica. Uma descoberta notável foi a verificação de que a menor idade biológica estava diretamente relacionada ao tempo que a pessoa vinha se dedicando à prática da meditação. Wallace descobriu uma linha divisória entre os que meditavam há menos de cinco anos e os que meditavam há cinco anos ou mais. O pri­meiro grupo mostrou-se, em média, cinco anos mais jovem em termos biológicos, enquanto o segundo obteve uma média de doze anos mais jovem. Um estudo complementar feito posteriormen­te na Inglaterra concluiu que cada ano de meditação regular di­minuiu cerca de um ano no envelhecimento. Outra descoberta que impressionou a equipe de Wallace foi que os pacientes mais velhos mostraram resultados tão bons quanto as pessoas muito mais jovens. Um paciente típico, de 60 anos, que meditava há cinco anos ou mais, tinha a fisiologia de uma pessoa de 48 anos de idade.

Outro importante ponto levantado por esse notável estudo é que os pacientes não estavam procurando envelhecer mais deva­gar. O que faziam era apenas remover uma barreira invisível, e então as mudanças físicas desejáveis aconteciam por conta pró­pria. Tudo indica que esse desabrochar espontâneo não seja es­pecífico das três variáveis medidas. Em 1986, um estudo para os seguros de saúde Blue Cross-Blue Shield, feitos com base em 2 mil meditadores em Iowa, mostrou que eles eram muito mais saudáveis do que toda a população americana em dezessete im­portantes áreas de doenças graves, tanto mentais como físicas. Por exemplo, o grupo de meditadores fora 87 por cento menos hospitalizado do que não meditadores, para doenças cardíacas, e 50 por cento menos, para todos os tipos de tumores. Havia re­duções igualmente impressionantes em desordens do aparelho res­piratório, aparelho digestivo, depressão clínica e assim por dian­te. Embora o estudo tenha se limitado a um único grupo, os re­sultados constituem uma notícia encorajadora para alguém in­clinado a seguir um programa holístico de prevenção.

 

O quarto estado poderá desempenhar importante papel em nos­so futuro. Na fonte da percepção humana jaz um nível de cons­ciência supernormal, mas que pode se tornar normal uma vez que nos acostumemos a vivenciá-lo. Se o turiya é o local de nas­cimento da mente, por que não pode ser sua residência perma­nente? Essa é a próxima área a ser explorada, ao se investigar se a natureza é unificada não só no modelo hipotético de Eins­tein, mas também em nós mesmos.[‡]

 

                   O Nascimento de uma Doença

Os rishis adotavam uma posição simples no debate mente-corpo. Tudo, diziam, vem da mente. Ela projeta o mundo exatamente como faz um projetor de filme. Nosso corpo é parte do filme, assim como tudo o que lhe acontece. Para um rishi, a maravilha não era conseguirmos nos tornar doentes ou saudáveis, mas o fa­to de não nos vermos fazendo isso. Se pudéssemos ser testemu­nhas silenciosas de nós mesmos, veríamos isso e muito mais. O próprio céu, o oceano, montanhas e estrelas estariam se derra­mando de nosso cérebro — todos eles também pertencem ao fil­me. Se o ponto de vista dos rishis é correto, então temos falhado por colocar tanta fé na realidade objetiva. No entanto, nossa estrutura de referência objetiva não parece errada. No todo, ela nos serve bem; o céu e as estrelas parecem existir “lá fora” totalmente independentes de nós. Estaremos sendo enganados por nosso pró­prio filme?

Para compreender os rishis é preciso adotar sua perspectiva, o que significa sair da realidade comum do estado de vigília, ao menos levemente. Conseguindo isso, começamos a compreender que a mente é mesmo uma criadora poderosa. Tive um pequeno mas revelador lampejo desse fato há pouco tempo. Eu estava num avião lotado, decolando de Bombaim. Tudo transcorria com normalidade até que o sinal “Não Fume/Aperte o Cinto” voltou a se iluminar no mesmo instante em que o comissário corria para a cabine de comando. O piloto, então, anunciou pelo alto-falante: “Senhores e senhoras, por favor, mantenham-se em suas poltro­nas. Vamos voltar a Bombaim para uma aterrissagem de emer­gência”. Sua voz denotava um leve tremor e, enquanto permanecíamos todos sentados em tenso silêncio, uma jovem aeromo­ça indiana começou a soluçar.

Poucos minutos depois pousamos aos solavancos e três caminhões de bombeiros correram em nossa direção; podíamos ouvir as sirenes gemendo, acima do ronco dos motores. Nada mais acon­teceu. Ninguém se dignou a nos dar explicações sobre o inci­dente. Os passageiros foram logo conduzidos para outro avião; quase metade preferiu ficar em terra. Eu não me sentia muito perturbado pelo que acontecera e fui um dos que embarcaram. Cerca de dez dias depois, quando peguei outro vôo, tinha a mente em paz. No entanto, assim que apareceu o aviso “Não Fu­me/Aperte o Cinto”, acompanhado do som característico, meu coração disparou. De início, não entendi o motivo, mas logo per­cebi que eu criara em mim um pequeno reflexo condicionado. Os cães de Pavlov salivavam ao ouvir o sino, e eu fiz meu cora­ção se acelerar diante de um som semelhante. Então notei que, tão logo me ocorreu a explicação, os batimentos cardíacos volta­ram ao normal.

Por alguns segundos, estive presente ao nascimento de um impulso que moldou minha realidade. É plausível que eu tenha inadvertidamente criado a mim mesmo reunindo milhões de impul­sos como esse. Eles vêm rápidos e furiosos demais para eu analisá-los — seria como pedir a uma cachoeira que conte suas gotas —, mas o importante é que são totalmente abstratos. Para os rishis, o mundo inteiro foi construído, camada por camada, a partir da pura abstração. Porque nos entregamos de boa vontade, um fil­me de caubói com John Wayne nos parece real, apesar de saber­mos que tudo o que vemos são raios de luz saltando sobre uma superfície plana e branca. Um sonho consiste inteiramente de impulsos neurológicos disparando em seu cérebro; no entanto, en­quanto você está nele, está convencido de sua realidade. (Todos nós conhecemos aquele tênue e desapontador momento que acon­tece quando o sonho deixa de ser convincente. Em vez de estar voando, começamos a sentir que “é só um sonho”, e, depois de um breve esforço, voltamos ao mundo objetivo.)

Da mesma forma, a realidade que se aceita no estado de vigília só é conhecida por meio de impulsos que disparam no cérebro. Quando tocamos uma flor, o ato de tocar junta os campos de for­ça e matéria em nossa mão com os campos de força e matéria na flor. Todos esses campos são altamente abstratos; porém o to­que não nos parece abstrato. Ele nos convence. Os rishis coloca­vam enorme ênfase no quanto todos nos convencemos. Uma fa­mosa parábola a esse respeito foi criada por Shankara, a maior mente filosófica da tradição védica:

Um homem está andando pela estrada à noite e vê uma gran­de cobra enrolada no chão. Foge apavorado e acorda todos com seus gritos de “Cobra! Cobra!” Os habitantes de sua aldeia tam­bém ficam aterrorizados; as mulheres e crianças não querem mais sair de casa por causa da cobra, e o cotidiano começa a ser per­turbado pela apreensão de todos. Então, alguém mais valente re­solve dar uma olhada na tal cobra. Pede ao homem para lhe mos­trar o lugar onde a viu e, quando chegam lá, descobrem que não é uma cobra, mas uma corda enrolada no meio da estrada. To­dos os nossos medos, disse Shankara, foram construídos a partir de uma ilusão semelhante. De fato, nada de real pode ser sepa­rado daquilo que nos dizemos que é real.

 

Essa linha de raciocínio não é especificamente indiana — pode ser adaptada com facilidade a uma estrutura de referência mo­derna. Pense no que acontece quando dois ímãs se aproximam. O campo magnético os repele. Se esses ímãs fossem racionais, sentiriam” algo sólido entre eles e criariam o toque a partir de uma abstração, tal como todos nós fazemos.

Quando você toca um objeto, o que faz com que lhe pareça duro, áspero, liso etc. é a interpretação efetuada em seu cére­bro. Basicamente, os cinco sentidos são apenas ferramentas. O toque, na verdade, é o cérebro estendendo-se para o mundo, usando células nervosas especializadas para registrar determi­nadas informações — dentro de uma faixa muito estreita, deve­mos lembrar — que são completamente diferentes das registra­das pelo cérebro de uma cobra, quando ela “toca” o ar com a língua.

Do mesmo modo, os terminais nervosos que formam a retina de nossos olhos são também extensões do cérebro. Em sua estru­tura, a retina não passa de um conjunto de terminais nervosos abrindo-se num buquê, como a ponta cortada de uma corda. A corda é o nervo óptico, formado por um milhão de fibras nervo­sas entrelaçadas. Embora se localizem mais profundamente do que os terminais nervosos sob a pele, as células sensoriais do olho também estão “tocando” o mundo exterior. Não existe diferen­ça intrínseca entre o campo de luz contatado por nosso olho e o campo de energia que sentimos com os dedos — a verdadeira distinção entre visão e tato se realiza no cérebro. O mesmo vale para os outros sentidos. A audição, o olfato e o paladar depen­dem de células especializadas que enviam impulsos diretamente ao cérebro para serem interpretados. Sem essa interpretação, na­da poderia existir.

Todas as coisas que existem estão ligadas a nossos sentidos e nossos sentidos estão ligados ao cérebro. A noção comum de que “esta cadeira é uma coisa dura” não é verdadeira, até que se re­formule a afirmação, dizendo-se: “Esta cadeira é dura porque meu cérebro a fez parecer assim”. (A cadeira não é nada dura para um raio cósmico, que a atravessa como se fosse ar. Um neu­trino atravessa toda a Terra com igual facilidade.) Usando tal per­cepção, os rishis ainda foram mais longe. Notaram que não pre­cisamos tocar fisicamente um objeto para saber como ele é ao toque. Responda a esta pergunta: “O que é mais macio, um guar­danapo de linho engomado ou uma pétala de rosa?” Você pode facilmente comparar os dois em sua mente, usando uma imagem de toque, sem precisar sair para procurar um guardanapo ou uma rosa.

A razão que lhe permite fazer isso é que você passou para um nível mais sutil do sentido do tato. Da mesma forma, existem sons, visões, cheiros e sabores sutis. No entanto, esse nível da mente não é o final — na meditação pode-se ir mais longe, além dos cinco sentidos sutis (chamados Tanmatras no Ayurveda), até se chegar à consciência em seu estado unificado. Os textos védi­cos comparam isso ao ato de se seguir os cinco dedos da mão até onde eles se juntam na palma. Subjetivamente, a imagem vi­sual de uma rosa ficaria cada vez mais fraca na tela da mente, até não restar mais nada do que a tela em si. Então, estaríamos na verdadeira origem dos sentidos, o campo da inteligência. É desse modo, deduziram os rishis, que todo o mundo da realida­de física assume uma forma.

A esta altura, parecemos imersos em profunda filosofia; po­rém, de fato, cada camada de tato, visão, audição, olfato e pala­dar influencia nossa vida cotidiana. Se você gosta de ostras e eu as detesto, a diferença não é causada pelas ostras em si ou por nossas papilas gustativas. O contato entre as moléculas da ostra e os receptores do paladar em nossas bocas é igual para nós dois. No entanto, no processo da gustação, surge seu prazer ou meu desgosto. Isso mostra que todos os dados em bruto da experiên­cia devem passar pelo filtro da inteligência e que nunca duas pes­soas os avaliam exatamente da mesma maneira.

Quando algo parece mudar no mundo, diziam os rishis, na verdade é você que está mudando. Um cirurgião amigo meu, tam­bém indiano, conquistou certa fama como gourmet. Ele sempre teve preferência por omeletes, quanto mais exóticas, melhores. No entanto, a última vez que almoçamos juntos num domingo, ele não pediu omelete. Curioso, perguntei-lhe por que e a res­posta foi: “Não suporto mais o gosto de uma omelete”. Contou-me, então, que o prazer que sentia ao comê-las havia se modifi­cado instantaneamente no início daquela semana.

Ele estava em casa, batendo ovos para fazer uma omelete, observado pelo filho Arjun, de 6 anos. À medida que ia quebrando os ovos, atirava as cascas para um lado. Por acaso, algumas delas caíram dentro de um pequeno saco de papel com alpiste, que ia ser colocado no jardim para os pardais.

— Não faça isso — disse Arjun, muito sério. — Os passari­nhos vão pensar que seus filhinhos morreram e não vão querer comer.

Em geral, meu amigo fica muito orgulhoso com as observa­ções precoces do menino, mas de repente descobriu que não con­seguiria suportar o gosto da omelete que estava preparando, nem de qualquer outra. A ciência seria incapaz de medir a mudança que ocorreu nele, porque é espectral e individual demais. A idéia de que uma omelete tem gosto bom não pesa mais do que a de que ela tem gosto ruim. O mesmo vale para qualquer outra sen­sação. Um travesseiro de penas de ganso é macio? Não, para al­guém com enxaqueca, que geme de dor quando a cabeça o toca. Um avião a jato é veloz? Não, para quem o vê da Lua. Em su­ma, não existe fim na maneira como uma impressão de sentido pode ser interpretada, e são infinitas as maneiras como o corpo pode reagir a ela.

 

Os rishis diziam que a vida é construída por nossa participa­ção nela. Nada é bom ou mau, duro ou mole, doloroso ou agra­dável. Depende de como o vivenciamos. O mesmo vale para a doença. Uma doença não é o contato molecular de algum orga­nismo externo com as moléculas de nosso corpo. (Como vimos, mesmo colocando-se uma gota de vírus de gripe concentrada no nariz de uma pessoa, a probabilidade de ela contrair a doença não é mais do que uma em oito.) Não é nem mesmo o fluxo de toxinas em seu corpo ou a ação de células fugitivas. Na visão dos rishis, uma doença é uma sequência de momentos que vivemos, durante a qual avaliamos cada partícula ínfima da vasta entrada de dados que vêm em torrente de todos os cantos de nosso mun­do, inclusive de nosso corpo.

Nosso corpo também é um mundo. Quando entrei em contato com o Ayurveda, fiquei profundamente impressionado com os seguintes versos dos antigos textos:

 

           Como é o corpo humano, assim é o corpo cósmico.

           Como é a mente humana, assim é a mente cósmica.

           Como é o microcosmo, assim é o macrocosmo.

 

Essas palavras são passíveis de muitas interpretações. O que significam para mim é que em minha existência cotidiana estou encarregado de cuidar de dois mundos, o pequeno dentro de mim e o grande a minha volta. Minha avaliação de cada minúsculo detalhe “lá fora” — o céu, o sol, a possibilidade de chuva, as palavras que outras pessoas dizem, as sombras lançadas pelos pré­dios — está acompanhada de um evento “aqui dentro”. A cada segundo, abrem-se para mim escolhas infinitas, para alterar a for­ma do mundo, pois ele não tem outra forma senão a que lhe dou. O eminente neurologista Sir John Eccles afirmou isso com toda a clareza quando escreveu: “Quero que você perceba que não existe cor no mundo natural, nem sons — nada desse tipo; ne­nhuma textura, padrões, beleza ou fragrância...” Em suma, na­da é tão importante no universo como sua participação nele.

A abordagem subjetiva dos rishis encontrou um desaguadouro de enorme utilidade no Ayurveda. Comumente classificado como um sistema de medicina, o Ayurveda poderia ser chamado com igual justiça de um sistema para se curar ilusões, para se estirpar a convincente qualidade da doença e deixar que uma rea­lidade mais saudável ocupe seu lugar. (O nome em si sugere que o Ayurveda deve ser entendido como a medicina em seu sentido mais amplo. Ele vem de duas raízes do sânscrito: Ayur, ou “vi­da”, e Veda, que significa “conhecimento” ou “ciência”. O sig­nificado literal, então, é “ciência da vida”.)

Os pacientes ficam curiosos sobre que tipos de tratamentos são especificamente aiurvédicos — novas pílulas para experimentar, exercícios, dietas ou terapias orientais mais antigas? Respondo sim a todos, mas, então, com certo embaraço, tenho de acrescentar que passo grande parte de meu tempo só conversando, procu­rando ajudar as pessoas a não ficarem tão convencidas de sua doen­ça. No Ayurveda, esse é o primeiro e mais importante passo pa­ra a cura. Enquanto o paciente está convencido de seus sinto­mas, continua preso a uma realidade onde “estar doente” é a entrada de dados que predomina. O motivo pelo qual a medita­ção é tão importante no Ayurveda é que ela conduz a mente para uma “zona livre”, intocada pela doença. Enquanto não se tem conhecimento da existência de tal lugar, a doença dará a impres­são de estar dominando por completo. Essa é a principal ilusão que precisa ser destruída.

É inegável que criamos cenários e então ficamos convencidos por eles, até nossas próprias células. Uma moça de Boston, que fazia faculdade em Vermont, recentemente me foi trazida para uma consulta pelos pais. O casal se sentira muito aflito quando a filha voltou para casa no meio do período letivo, queixando-se de dores agudas no peito. Elas haviam se iniciado enquanto a moça se recuperava de uma gripe e, ao longo da semana, tinham se tornado tão intensas que todos se alarmaram. Uma noite a moça teve uma crise feia — começou a sentir falta de ar, palpitações e tonturas e, com o passar das horas, ficou tão assustada que os pais apressaram-se em levá-la até o pronto-socorro mais próximo.

Quando lá chegaram, todos estavam quase em pânico. O mé­dico auscultou o coração da moça, detectou um pequeno sopro e resolveu pedir um ECG, o eletrocardiograma. A leitura mos­trou batimentos ectópicos ocasionais, ou seja, extra-sístoles fora do ritmo cardíaco. Então, o médico recorreu à ultra-sonografia para fazer um exame mais sofisticado, chamado ecocardiograma, por meio do qual constatou um defeito real no coração.

— Ela tem prolapso da válvula mitral — informou aos pais. — Isso significa que, quando uma das válvulas do coração se fe­cha, ela forma uma espécie de balão voltado para o ventrículo. Quero que ela passe a noite na unidade de terapia intensiva — acrescentou o médico.

Em menos de uma hora a moça estava na cama, recebendo soro com morfina para a dor e oxigênio extra por meio de peque­nos tubos presos ao nariz. A sua volta, via vítimas de ataques cardíacos e derrames, algumas à beira da morte. A jovem achou toda a experiência altamente aflitiva e começou a ter alucinações, por causa da morfina, quando adormecia.

Na manhã seguinte, uma análise cuidadosa dos exames levou os médicos a diagnosticarem que a dor provavelmente não se de­via apenas ao prolapso da válvula mitral, mas também à pericar­dite, uma inflamação do pericárdio, a membrana que envolve o coração. A paciente foi medicada com fortes antiinflamatórios, além de betabloqueadores para diminuir os batimentos cardía­cos. A dor do peito cedeu, mas a moça não conseguiu tolerar os betabloqueadores, cujos efeitos colaterais são a sonolência e a desorientação mental.

Os medicamentos foram substituídos, mas resultaram em no­vos efeitos colaterais e na expansão da constelação de sintomas da paciente. Os novos medicamentos tinham como objetivo dila­tar os vasos sanguíneos, mas com isso a pressão caiu demais, fa­zendo a jovem se sentir zonza e enjoada; por vezes, ela desmaia­va de repente. A moça conseguiu tolerar esses efeitos colaterais sobretudo porque desejava continuar na escola a qualquer custo. Sempre que procurava diminuir a medicação, por menos que fos­se, a dor do peito voltava com força total, acompanhada de ou­tros sintomas. Ela regressou à casa dos pais nas férias de verão e certa noite, durante o jantar, teve uma crise de dor que os dei­xou assustadíssimos. Começou a hiperventilar, o que fez sua mãe sair correndo em busca de um saco de papel para que respirasse dentro dele; porém, poucos minutos depois, a jovem sentiu pal­pitações violentas, vomitou e acabou perdendo a consciência. Os pais passaram aquela noite e muitas mais em claro, sentados a seu lado.

Uma vez que os médicos que a atendiam não podiam fazer mais nada, os pais procuraram outros caminhos. Leram uma reporta­gem sobre o Ayurveda e, certo dia de julho, a família — mãe, pai e filha — veio à Clínica Lancaster. Procurei obter o máximo de informações sobre a história médica da paciente, olhei os exa­mes e fiquei muito surpreso.

— Sua dor não vem do coração — falei; e, para provar, pres­sionei firmemente o esterno, o osso no meio do peito que cobre o coração. A moça estremeceu. — Ainda está dolorido porque o que você teve no início foi uma inflamação aqui, onde se jun­tam a cartilagem das costelas e o esterno. É uma condição cha­mada costocondrite, que às vezes aparece depois de um resfriado ou de outra infecção por vírus.

A moça e os pais pareciam perplexos, mas continuei desmontando o quebra-cabeça, peça por peça. Na noite em que a tinham levado para o pronto-socorro, sua alta ansiedade havia causado as extra-sístoles. O diagnóstico principal, prolapso da válvula mi­tral, é um pequeno defeito que ocorre em quase 10 por cento das mulheres de estrutura física delicada como a dela. O motivo disso não é conhecido e não existem evidências conclusivas so­bre o porquê de essa condição causar dor, embora isso aconteça em alguns pacientes. Da mesma forma, o sopro cardíaco que cos­tuma acompanhar o prolapso da válvula mitral não parece ser perigoso. A pericardite foi uma má leitura do ECG — a violência da crise provavelmente deixou o médico do pronto-socorro an­sioso demais por encontrar algo errado. Os sintomas restantes — náuseas, vômitos, palpitações, tonturas, desmaios, falta de ar e hiperventilação — foram causados pelos medicamentos ou dire­tamente pela paciente.

— Procurei retomar o momento em que nasceu sua condição — expliquei —, para lhe mostrar como ela se construiu, passo por passo. Na sua forma atual, sua doença é um reflexo. Ela está sendo mantida viva por suas próprias expectativas.

A essa altura os pais da moça pareciam muito ofendidos. Eu imaginava a ansiedade que haviam sentido naquelas noites passadas em claro, pensando que a filha corria um real perigo. Para fazê-los compreender que eu não estava culpando ninguém, contei-lhes sobre minha experiência no avião, quando o aviso de “Aper­tem os Cintos” fez meu coração disparar. Com o acréscimo de um pouco mais de medo, minhas palpitações poderiam ter sido o início de um “problema cardíaco” tão convincente como o da filha deles.

Mas continuavam perturbados. Quando a moça sofria dores lancinantes no peito, pensavam nela como uma vítima da doen­ça. Agora eu lhes dizia que ela mesma se provocava aquilo. A era da medicina mente-corpo fez disso um ponto extremamente delicado. A vida parecia mais simples quando uma doença sem micróbios era considerada como “coisa da cabeça”. Os micró­bios foram em grande parte dominados, mas isso, em vez de nos deixar livres das moléstias, as tornou muito mais enigmáticas. Estou esperando o câncer me atacar ou é minha personalidade que o está dando a mim? O caso dessa moça é um exemplo per­feito. Um cardiologista talvez apontasse o defeito no coração co­mo a causa da dor; um psiquiatra diria que o defeito não causava nada — a jovem simplesmente entrara em pânico. As drogas que tomou lhe induziam o vômito, mas ela continuava vomitando quando eram retiradas. A pressão baixa pode causar desmaios, mas ansiedade também pode. A medicina moderna tem estado numa gangorra, debatendo esses pontos interminavelmente.

O resultado, de acordo com estudos de pacientes, é um enor­me aumento na culpa. A linha entre sondar os medos do pacien­te e alimentá-los é muito tênue. Já passei horas aconselhando pes­soas com câncer. Elas ouvem atentamente, porque “o médico está falando”. Digo-lhes que podem derrotar o câncer, e elas, bem rápido, concordam ansiosamente. Mas, quando me vejo sozinho outra vez, sou perseguido pelo pensamento terrível que percebo oculto em seus olhos: “O senhor diz que estou doente e que o causador disso sou eu mesmo”.

A moça estava em silêncio fazia certo tempo.

— Então estou criando esta coisa? — disse, finalmente.

— Não, mas você, com toda a certeza, está participando dela. Procure retirar essa participação. Aposto que tudo vai mudar.

— E como faço isso?

— Você tem de fugir de seu próprio condicionamento — falei. — Na próxima vez que tiver uma crise, procure se afastar um pouco dela; deixe a dor estar lá, da forma mais inocente que puder. — Acrescentei que, se conseguisse isso, todos seus males provavelmente iriam se evaporar.

Ela me ouviu e agradeceu, e não a vi mais por duas semanas. Achei que talvez houvesse tocado em muitos nervos expostos. Eu fizera sua doença algo cada vez mais pessoal, enquanto o que a família desejava era que ela fosse impessoal. A medicina conven­cional abandona seu caminho para colocar as doenças em caixas bem-arrumadinhas, com rótulos, só para eliminar o elemento pes­soal. Eu notara, ao conversar com a paciente, que ela dava gran­de importância a seu diagnóstico. Fazia um prefácio para cada episódio, dizendo: “Quando fico com prolapso da válvula mi­tral...” Era como se essas palavras explicassem tudo, como uma rede que reunia todos os sintomas e os mantinha ligados. Quan­do mencionei isso, a moça ficou pensativa. Investira tanto nas palavras “prolapso da válvula mitral”, que elas haviam se torna­do um tipo de invocação mágica. Era essencial quebrar o encan­tamento dessa magia, que pode ser incrivelmente poderosa.

Enganei-me quando pensei que a paciente não se impressio­nara com nossa sessão. Por curiosidade, telefonei para sua casa a fim de saber como estava passando. As notícias foram muito boas; a moça abandonara todos os remédios, e as crises agora limitavam-se a ocasionais acessos de dor no peito. Os pais contaram que, às vezes, a viam sentada, de olhos fechados, e, quando lhe perguntaram o que fazia nesses momentos, ela explicou:

— Só fico olhando a dor, até ela ir embora.

Os outros sintomas — tonturas, vômitos, desmaios etc. — ha­viam desaparecido.

 

Em psicologia, existem certos sentimentos extremos — como repugnância, receio, horror, temor da autoridade — que muitas pessoas não conseguem enfrentar. Quando ficam horrorizadas ou paralisadas de susto, são capazes de jurar que a emoção vem de fora delas. Em casos de paranóia, poderiam até pensar que “eles” estão transmitindo essas sensações para seu interior por meio de algum tipo de magia. (“Eles” podem ser marcianos, comunis­tas ou vizinhos.) Freud chamava tais sentimentos de nossas emo­ções “excepcionais” e passou muitos anos observando-os em pa­cientes neuróticos e psicóticos.

No entanto, a excepcionalidade está sempre presente, creio eu. Ela é o meio de a natureza colocar um véu sobre nossos medos mais secretos; ela nos esconde nossa dor interna até o momento em que essa dor rompe uma represa invisível e chega aos borbo­tões. Então, surge o pensamento gêmeo: “Isto está acontecendo a mim ou eu o estou fazendo a mim?” Não importa se o resulta­do é uma doença ou apenas uma sensação de extremo descon­forto. O importante é evitar que o paciente fique enroscado em suas dúvidas — esse é o caminho da paralisia total.

A medicina já pagou um preço muito alto por não lidar de for­ma adequada com a natureza pessoal da doença. Para começar, despertamos a culpa sem sermos capazes de aplacá-la. As pes­soas ficam horrorizadas diante da idéia de que são as culpadas por seus males. Os médicos não imaginam que estão atiçando essa culpa. Talvez ela tenha nascido de tanto o paciente ouvir que ninguém é culpado. Mas, quando se diz que viver do jeito certo irá ajudar a impedir um enfarte ou um câncer, não se tem de aceitar que viver do jeito errado ajudará a causar essas mesmas doenças?

A saída para a questão da culpa e da responsabilidade está em desembaraçá-la do sofrimento. Quando eu tinha minha clínica particular de endocrinologia, via pacientes obesos cujo peso lhes significava um alto risco de se tornarem diabéticos. Eu os alerta­va sobre o perigo de continuarem a comer demais. Ao mesmo tempo, sabia que estava alimentando sua culpa, que só os levaria a comer mais. Quando o paciente era um fumante inveterado, eu costumava ser muito firme e dizer: “Por Deus, você sabe que precisa deixar de fumar. Pense nos riscos que está correndo”. Muitos desses pacientes eram ex-soldados que eu atendia no hospital de veteranos em Boston. Depois de me ouvirem, eles iam para a lanchonete no primeiro andar, onde cigarros subsidiados pelo governo eram vendidos com grande desconto. (Eu também com­prava os meus lá, pois me tornara fumante na época em que fa­zia os plantões noturnos como interno.)

De fato, nenhuma outra doença revela os paradoxos da culpa e da responsabilidade como o câncer de pulmão. O público está bem consciente de que essa é quase exclusivamente a doença do fumante. Isso coloca a responsabilidade nos ombros do paciente, mas então surge um segundo pensamento. Será que essa pessoa não é viciada em nicotina? Um relatório do departamento de saú­de, de 1988, afirma que sim, e que esse vício pode ser mais difí­cil de vencer do que o do álcool e da heroína. Isso significa que não estamos lidando com uma situação racional.

Ao longo de vinte anos, Sigmund Freud procurou deixar de fumar depois que seu médico o informou de que vinte charutos por dia — sua média normal — prejudicavam o coração. Certa vez ele parou por sete semanas, mas teve palpitações piores do que antes. Tornou-se intoleravelmente deprimido e viu-se força­do a voltar para os charutos. Quando não fumava, como o pró­prio Freud contou a seu biógrafo, “a tortura era maior que o po­der humano podia suportar”. Já vi pacientes com câncer avan­çado de pulmão, esperando pelo tratamento com radioterapia, que saíam para o corredor para fumar um cigarro — o que significa que a prevenção pode ser impossível, porque teria de começar antes de o primeiro cigarro ser fumado.

Em todas as doenças, e não apenas no câncer de pulmão, os pacientes frequentemente estão viciados demais, sentindo-se cul­pados demais ou só convencidos demais para serem ajudados. Não há como negar o traço profundamente irracional no homem. No hospital de veteranos, recebíamos todas as variedades de al­coólatras, inclusive alguns em lamentáveis condições físicas, mal nutridos, que a polícia recolhia nas ruas. Um dos males mais fre­quentes do alcoolismo avançado é a pancreatite, ou inflamação do pâncreas. Todos aqueles que chegavam com essa doença ti­nham de ser tratados com muito cuidado. Não podiam comer, porque a solicitação do pâncreas para a digestão só o tornava mais inflamado e dolorido. Os pacientes vomitavam com uma única colherada de alimento. Tínhamos de alimentá-los por via intra­venosa e inserir um tubo em seu estômago para sugar os sucos digestivos que continuavam a inflamar o pâncreas. Além disso, injetávamos antibióticos para lutar contra a infecção que muitas vezes se instalava.

Isso era o máximo que podíamos fazer para arrancar esses homens da beira da morte; porém, quando éramos bem-sucedidos e eles recebiam alta, quase sempre assistíamos ao mesmo ritual. Por uma janela do segundo andar, podíamos ver um bar que fi­cava perto do hospital. Nossos pacientes saíam, atravessavam a rua com passos trôpegos e entravam no bar. O primeiro gole vi­nha dez minutos depois da cura. A compaixão por essas pessoas tinha seus limites. Qualquer um de nós poderia ser perdoado por dizer: “Se você quer beber e fumar, se não se exercita e insiste em comer alimentos ricos em colesterol, então pior para você”. Sem dúvida, muita gente diz isso, ou pelo menos pensa nisso. No entanto, a essência da compaixão está em reconhecer como é difícil para alguém ser bom. Perdoar uma pessoa é deixá-la ser livre, mesmo quando ela abusa dessa liberdade além da exas­peração.

Na Índia, existe uma história sobre o sadhu e o escorpião:

Um homem está andando pela rua e avista um sadhu ajoelha­do ao lado de uma valeta. Chega mais perto e vê que o sadhu está observando um escorpião. O animal quer atravessar a vale­ta, mas quando entra na água lamacenta começa a se afogar. O sadhu, com todo o cuidado, estende a mão para salvá-lo, mas, assim que toca o escorpião, é picado por ele. O escorpião volta para a água, novamente começa a se afogar e, quando o sadhu o levanta, recebe outra picada.

O homem vê isso acontecer três vezes. Finalmente, não se con­tem mais e exclama:

— Por que você continua a se deixar picar?

O sadhu responde:

— Não há nada que eu possa fazer. É da natureza do escor­pião picar, mas é de minha natureza salvar.

O motivo pelo qual a sociedade montou a instituição da medi­cina é garantir que nosso instinto de salvarmos uns aos outros nunca morra. Esse instinto é o mesmo que não vê culpa nas fra­quezas de outra pessoa e toma para si responsabilidades por pro­blemas que não são seus. Se eu entrasse num hospital e notasse que a centelha da compaixão desapareceu, poderia escrever a pa­lavra “fim” na medicina — a escuridão teria vencido.

 

A medicina moderna ainda é dominada pela noção de que a doença é causada por agentes objetivos. Uma análise sofisticada mostra que isso é apenas em parte verdadeiro. Uma doença não pode se instalar sem que exista um hospedeiro para aceitá-la, daí as tentativas atuais de se compreender nosso sistema imunológi­co. Tanto a antiga medicina grega como o Ayurveda baseiam-se na idéia de que o hospedeiro tem o máximo de importância. Os gregos acreditavam na existência de um fluido chamado physis que permeava todas as coisas vivas. O fluxo do physis ligava os órgãos internos do corpo ao mundo exterior e, quando havia equi­líbrio entre os dois, o corpo estava saudável. (Essa premissa ain­da continua se refletindo no uso que fazemos das palavras “físi­ca” para explicar o mundo exterior e “fisiologia” para explicar o interior.) Já o Ayurveda diz que é preciso o equilíbrio de três elementos, os doshas, para a manutenção da saúde. O que im­porta não é se existem physis ou doshas, mas que o estado de equilíbrio do indivíduo determina se ele está doente ou sadio.

A medicina está retornando a essa noção, a mais antiga em to­das as artes de cura, mas noto que um ar impessoal ainda paira sobre tudo. Estamos montando uma coisa concreta chamada sis­tema imunológico e prendendo todas nossas esperanças nele. A idéia original, como expressa pelos gregos e pelo Ayurveda, era muito mais orgânica. Um paciente não era uma coleção de célu­las hospedeiras, mas alguém que comia, bebia, pensava e agia. Se um médico queria modificar os doshas ou o physis de alguém, fazia-o mudar de hábitos. Dessa maneira, chegava diretamente à raiz da participação do paciente no mundo.

Existem dúzias de sistemas médicos no mundo, muitos deles profundamente conflitantes. Como, então, podem curar e ao mes­mo tempo discordar tanto entre si? O que é veneno para mim é cura para um homeopata. Suponho que a resposta esteja no fa­to de que todos os tipos de medicina funcionam auxiliando o pa­ciente a suportar sua doença, de momento em momento, até que seja restabelecido o equilíbrio da balança, com o peso saindo da enfermidade para a cura. Não posso ser mais específico porque o processo não acontece em livros, mas em seres humanos. Al­gumas pessoas se curaram de câncer bebendo apenas suco de uva. Por isso creio que, se for possível restabelecer o equilíbrio corpo-mente, então o sistema imunológico do doente reagirá. As célu­las do sistema imunológico não julgam se o médico acredita em medicina convencional, em homeopatia ou no Ayurveda. O fato é que todos os sistemas são capazes de funcionar, desde que pro­piciem uma mudança de participação na doença. No entanto, creio que o Ayurveda se destacará dos outros, porque ele reconhece a necessidade de curar pacientes curando-se primeiro sua rea­lidade.

Considero cada vez mais a importância da realidade do paciente. Um médico de meia-idade, radiologista, veio me procurar de­pois de receber o diagnóstico de que estava com leucemia. Ele possuía um conhecimento extremamente sofisticado sobre sua doença, uma forma de leucemia imprevisível, chamada leucemia mielogênica crônica, que afeta os mielócitos, um dos tipos de gló­bulos brancos do sangue. Apesar de o médico ainda não ter ou­tros sintomas senão alguma fadiga durante o dia, a estatística de mortalidade, que ele também conhecia a fundo, era sombria. A média de sobrevivência era de 36 a 44 meses. Em contrapartida, como a doença é imprevisível, o tempo de vida poderia ser mui­to maior.

Antes de me procurar, esse médico estivera no principal insti­tuto do câncer de Nova York. Depois de vários exames de sangue foi-lhe oferecida a escolha de tentar tratamento com drogas experimentais. Não existe remédio específico para esse tipo de leucemia e nenhuma das drogas lhe dava a promessa de que a expectativa de vida poderia aumentar.

Depois de ponderar, o médico rejeitou o tratamento e come­çou a ler tudo o que encontrava sobre recuperações espontâneas, inclusive algo escrito por mim. Por isso viera me procurar para uma consulta. A medida que conversávamos, notei que um de­talhe em particular o preocupava.

— Quero acreditar que me curarei disto — contou-me. — Mas existe algo que realmente me perturba. Li sobre muitas recupe­rações de câncer, mas não encontrei nada parecido em relação à leucemia.

Qualquer um via como sua mente médica estava funcionando. O tipo de leucemia que o acometera está ligado a um compo­nente genético denominado cromossomo Filadélfia. Os exames haviam se revelado positivos e, para um paciente médico, esse era o fim da história — ele estava geneticamente condenado. A única coisa que poderia esperar era um milagre, algo que talvez encontrasse no Ayurveda, mas não conseguia achar relatos sobre curas milagrosas da leucemia em nenhum lugar.

— Olhe — falei —, você está obcecado com estatísticas sobre essa doença. Não pense nelas. Afinal, o que quer é derrotar as estatísticas, concorda?

— Eu sei, eu sei — disse ele, meio distraído. — Mas não con­segui encontrar um único caso de recuperação espontânea na li­teratura. Eu poderia ser o primeiro, claro, mas...

Foi então que tive um estalo.

— Por que você não diz a si mesmo que tem um outro tipo de câncer? — sugeri. — Assim, pelo menos teria a esperança de uma remissão.

O rosto do médico se iluminou e ele aceitou minha sugestão com entusiasmo. Em seguida, dei-lhe mais boas notícias. Eu aca­bara de ler um artigo que afirmava haver ligação entre leucemia infantil e estresse. Aquele homem tinha uma doença completamente diferente, mas levava uma vida incrivelmente estressante. Estava se divorciando da mulher, seus sócios tinham aberto um processo contra ele, os filhos, já crescidos, não o procuravam; além disso, meu paciente precisava sustentar duas casas e três Mercedes. O diagnóstico da doença fora feito no meio da ranco­rosa ação de divórcio, quase por acidente, e agora sua esposa in­sistia em continuar com ele. Alegava ter medo de ficar sozinha depois da morte do marido.

— Acabei de ler que há uma ligação entre o estresse e a leuce­mia infantil — falei.

Meu paciente sorriu ao ouvir isso, porque o cientista nele viu uma conexão causal entre o estresse, a ativação de “hormônios do estresse”, como o cortisol, e a supressão do sistema imunoló­gico. Talvez fosse isso que estivesse lhe acontecendo. Ninguém até então lhe falara a respeito de qualquer ligação entre o estres­se e sua doença, mas agora ele tinha um fio em que se agarrar.

O médico foi embora e continuou a passar bem. Quando vol­tou para nova consulta, perguntou-me se deveria fazer um hemograma. A leucemia causa uma desastrosa elevação no número de glóbulos brancos; uma contagem mais baixa lhe provaria que estava realmente melhor.

— Se a contagem for ruim — ponderei —, você ficará depri­mido e aumentará seu estresse. Se for boa, você continuará se sentindo bem. Por que não adiar o exame de sangue até que al­guns sintomas se manifestem?

Ele concordou comigo e saiu.

Vi meu paciente de novo na semana passada. Ele me contou que acreditar que tinha câncer em vez de leucemia estava fun­cionando bem.

— Então, por que usar o nome “câncer”? — sugeri. — Você poderia se dizer que tem uma doença crônica sem nome. Se ela não tem nome, você não precisará se preocupar com estatísticas. Há pessoas que vivem por longo tempo com doenças misteriosas.

Essa tirada final deixou-o absolutamente encantado. Ele apertou minha mão com tremendo alívio e, pela primeira vez, concordou em vir à clínica para começar o Ayurveda. Até agora, não fiz nada por esse homem, exceto mudar o rótulo de sua doença, mas a partir disso ele modificou toda a avaliação de seu estado. Agora temos a oportunidade de testemunhar o nascimento de uma cura.

 

                   “O Que Você Vê Você se Torna”

Quando pressionados a dizer a verdade maior, os videntes vé­dicos emitiam duas palavras que deixam de ponta-cabeça todas nossas noções aceitas sobre a realidade: Aham Brahmasmi. Em tradução livre, seria: “Eu sou tudo, criado e não criado”, ou, mais sucintamente: “Eu sou o universo”.* Ser tudo, ou mesmo algo além dos limites do corpo físico, soa muito estranho aos ou­vidos ocidentais. Conta-se uma história sobre uma dama inglesa que viajava pelo norte da Índia e foi levada às cavernas ao longo do Ganges, onde os iogues se entregavam à meditação profunda. Ela foi recebida por um deles com grande amabilidade. No final da visita, disse-lhe:

 

* O sânscrito diz literalmente “Eu sou Brahman”. Brahman é um termo de grande abrangência e, portanto, intraduzível; ele significa todas as coisas na criação — mentais, físicas e espirituais —, bem como sua fonte não criada.

 

— Pode ser que o senhor não saia com frequência daqui, mas seria um prazer levá-lo para conhecer Londres.

— Madame — respondeu o iogue com toda a tranquilidade —, eu sou Londres.

Em suas parábolas, os rishis demonstravam grande talento para enganar o intelecto. Uma das mais famosas é sobre um jovem chamado Svetaketu, que saiu de sua casa para estudar os Vedas. Na antiga Índia, isso significava morar com os sacerdotes e decorar longas passagens dos textos sagrados. O rapaz fica fora de casa por doze anos. Quando finalmente retorna, está todo or­gulhoso dos conhecimentos que adquiriu. Seu pai, um tanto abor­recido, mas achando graça, decide acabar com aquela pose. Eis um trecho do diálogo que se segue:

— Vá apanhar um fruto daquela figueira-brava — diz o pai de Svetaketu.

— Aqui está, senhor.

— Abra-o ao meio e diga-me o que está vendo dentro dele.

— Muitas sementinhas, senhor.

— Pegue uma delas, abra-a ao meio e diga-me o que vê dentro.

— Nada, senhor.

Então, o pai disse:

— A mais sutil essência dessa fruta é nada para você, meu fi­lho, mas, acredite-me, desse nada surgiu esta enorme figueira-brava.

E acrescentou:

— Aquele Ser, que é a essência mais sutil de tudo, a suprema realidade, a alma de tudo o que existe, Aquele é você, Svetaketu.

Na verdade, essa é uma história muito quântica. O universo, como a enorme figueira-brava, surge de uma semente que nada contém. Sem uma metáfora como a da semente e a árvore, nossa mente não tem como captar o que é um nada assim, uma vez que ele é menor do que o conceito “menor”, e mais antigo do que o Big Bang. O mistério mais profundo do conto é que o próprio Svetaketu é feito dessa mesma essência inimaginável, que tudo permeia. Para descobrir o que o pai de Svetaketu quis dizer, de­vemos explorar o sentido de percepção, que é a base da sabedo­ria dos rishis.

 

“Eu sou tudo” implica uma capacidade de transcender o flu­xo normal do tempo e os limites normais do espaço. A despeito de seu brilho intuitivo, Einstein não saiu do rio do tempo, exce­to mentalmente. Ele afirmou que teve experiência de auto-expansão onde não havia “nem evolução nem destino, só Ser”, mas esses episódios não entravam diretamente em seu trabalho científico. Como todos os físicos, Einstein mantinha-se fiel ao mé­todo objetivo e escrupulosamente excluía sua própria consciên­cia de suas teorias. Sua procura por um campo unificado que abrangeria todo o tempo e espaço foi um empreendimento pura­mente matemático.

Para os rishis essa é a atitude que torna a física incompleta. Não somos meros espectadores espreitando o campo unificado — diziam —, nós somos o campo unificado. Cada pessoa é um ser infinito, não limitado pelo tempo e espaço. Para atingirmos além do corpo físico, precisamos ampliar a influência da inteli­gência. Mesmo quando estamos tranquilamente sentados, cada um de nossos pensamentos cria uma onda no campo unificado. Ela ondula através de todas as camadas de ego, intelecto, mente, sentidos e matéria, propagando-se em círculos cada vez maiores. Somos como uma luz que irradia não fótons, mas consciência.

À medida que se irradiam, nossos pensamentos têm um efeito sobre tudo o que existe na natureza. A física já reconhece esse fato para fontes de energia. Qualquer luz, seja uma estrela ou uma vela, envia suas ondas por todo o campo quântico do eletromagnetismo, indo até o infinito, em todas as direções. Os rishis to­maram esse princípio e o humanizaram. O sistema nervoso de­les, de fato, registrava o efeito distante que um pensamento pro­duz, e isso lhes era tão real como nos é ver a luz. Mas somos limitados em nossa percepção; estarmos confinados ao estado de vigília nos impede de perceber as mudanças sutis que estamos produzindo em todos os lugares.

Algum efeito está sempre presente. “Deve ficar firmemente estabelecido na mente de cada indivíduo”, escreveu o Maharishi em Ciência do Ser e Arte de Viver*, “que ele é parte de toda a vida do universo, e que seu relacionamento com a vida universal é de uma célula com o corpo inteiro.” Por milhares de anos os rishis afirmaram a existência dessa relação — o homem se mo­vimenta, vive e respira no corpo cósmico. Se é assim, então a natureza está tão viva como nós; a distinção entre “aqui dentro” e “lá fora” é falsa, como se as células do coração não dessem importância às da pele, porque elas não estão em seu interior.

 

* Publicado no Brasil pela Editora Best Seller. (N. do E.)

 

“Os limites da vida individual não se restringem aos do cor­po”, continuou o Maharishi, “nem mesmo aos da família de al­guém ou da casa de alguém; eles se estendem muito além dessas esferas, para o horizonte ilimitado da vida cósmica infinita.”

Sabendo disso, os rishis tornaram-se indivíduos extremamen­te poderosos, mas não no sentido comum. Enquanto a maioria dos homens está interessada no poder material, os rishis deseja­vam o poder da percepção. Para eles, o nível material do mundo era grosseiro. O real poder da natureza está bem perto da fonte, e o poder máximo deve estar dentro dela.

Compreender que a mente está acima da matéria não é uma noção mística. Se você quer construir um arranha-céu, não co­meça por juntar concreto e aço; você procura um arquiteto, cujo intelecto prepara o projeto que deve existir antes do início da obra. Esse projeto contém mais do poder para se construir um prédio do que o contido na mão-de-obra. Certos campos, como a músi­ca, a matemática e a física quântica, praticamente não progri­dem sem gênios que trabalham em profundo silêncio — o méto­do de investigação preferido por Einstein não era trabalhar em laboratório, mas realizar experimentos mentais. Tinha por hábi­to fazer isso muito antes de alcançar fama e posição. Como ele um dia recordou, estava colocando relógios aqui e ali no univer­so, antes de poder comprar um de verdade para sua casa.

Para os rishis, pareceria estranho colocarmos nossa inteligên­cia em campos tão pequenos e isolados de conhecimento. Nosso condicionamento social proíbe a perspectiva cósmica, não por condená-la, mas porque fornece ocupações que nos distraem. Para quem está cercado de tijolos e argamassa, é difícil aprender arquitetura. Atualmente, um campo como a medicina é tão com­plicado que, se alguém disser “Este paciente pode ser tratado por meio do fluxo da inteligência”, será ouvido com descrédito.

O estado ilimitado não é visto com frequência em nossa sociedade, enquanto seu oposto é absolutamente epidêmico. Todos os dias os psiquiatras deparam com pacientes aleijados por limites, pessoas que programaram em si mesmas a culpa, a ansiedade ou inseguranças inomináveis. Os que adquiriram fobias são exem­plos extremos desse fato, uma vez que seu medo mortal é abso­lutamente desproporcional em relação a qualquer perigo real. Se você leva um agorafóbico — alguém que teme espaços abertos — para passear de carro, ele demonstra intensa ansiedade. Se você parar num campo aberto e o mandar sair do carro, ele ficará tão paralisado como uma pessoa normal ficaria se lhe ordenassem saltar num precipício. Tente forçá-lo, e o agorafóbico reagirá co­mo se estivesse lutando pela vida.

A angústia mais aguda do fóbico é saber que ele criou a pró­pria condição. Entretanto, sua vontade não é suficiente para rom­per o padrão que ele programou na própria fisiologia. (Um ago­rafóbico da Inglaterra estava tão infeliz e envergonhado de sua fobia que resolveu se suicidar. O método que escolheu foi dirigir seu carro por 3 quilômetros, algo que, tinha certeza, lhe seria letal! Quando isso falhou, de início ele sentiu-se apavorado, mas pouco depois descobriu que sua fobia havia diminuído. Aciden­talmente esse homem descobrira a terapia chamada “imersão”, que os psiquiatras usam às vezes para arrancar fóbicos graves da irrealidade.)

Os limites criados pela ciência são os mais confinadores. Pes­soas que nunca ouviram falar em Veda geralmente conhecem a palavra Maya, ou ilusão. Em sânscrito, ela significa “o que não é”. Esse termo é muito mal compreendido — os rishis não usavam a palavra “Maya” para dizer que algo não existe, como uma miragem. Maya, na verdade, é a ilusão de fronteiras, a criação de uma mente que perdeu a perspectiva cósmica. Ela surge quando se vê um milhão de coisas “lá fora” e se deixa de perceber uma coisa, o campo invisível que é a origem do universo. Para quem lê os textos dos grandes rishis, não é de admirar que eles considerassem Maya um mau substituto para a perspectiva cós­mica. O Yoga Vasishtha diz: “Na infinita consciência, em cada átomo dela, universos vêm e vão, como partículas de pó flutuan­do num raio de luz que brilha através de um furo no telhado”.

A realidade quântica transborda das páginas de Vasishtha por­que ele percebeu a perspectiva que ela lhe mostrou: “Em cada átomo existem mundos dentro de mundos”. Demolir as frontei­ras não faz o mundo relativo desaparecer, mas lhe acrescenta uma outra dimensão de realidade — a realidade torna-se ilimitada. Quando as paredes caem, o mundo pode se expandir. E isso, de acordo com os rishis, é o que faz toda a diferença entre um mun­do que poderia ser um paraíso e um que se transforma num inferno.

 

O mecanismo por trás das fobias pode ser usado de maneira exatamente oposta, ou seja, na demolição de paredes, e não em sua construção. Podemos falar com igual facilidade, e com mui­to mais alegria, de pessoas que dominaram medos supostamente normais. As equipes de construção de arranha-céus costumavam incluir uma grande proporção de índios mohawk, que eram cria­dos sem medo de alturas. A mesma coragem pode ser formada pouco a pouco por meio da prática, como acontece, por exem­plo, com o malabarista que caminha numa corda bamba.

Essa flexibilidade não se limita a estados psicológicos. Os nutricionistas têm abundantes provas científicas para demonstrar que o corpo precisa receber certa quantidade diária de vitaminas e de minerais para não sucumbir a doenças da carência — o caso clássico é o do escorbuto, um mal que afligia toda a Marinha in­glesa na época em que os homens se alimentavam apenas com biscoitos, carne salgada e rum, sem receberem a vitamina C en­contrada em frutas e hortaliças.

No entanto, durante séculos e séculos existiram culturas em todo o mundo que nunca ingeriram a quantidade de vitaminas considerada necessária para o ser humano e se adaptaram perfeitamente bem. Os índios tarahumara do norte do Estado de Sonora, no México, ficaram famosos entre os estudiosos da fisiolo­gia, porque podem correr de 40 a 75 quilômetros por dia, em altas altitudes, sem nenhum desconforto. Tribos inteiras fazem maratonas desse tipo todas as semanas; quando o vencedor de uma delas foi examinado dois minutos depois de cruzar a linha de chegada, um fisiologista americano constatou que os batimentos cardíacos desse homem estavam mais vagarosos do que no início da corrida.

O que amplifica esse notável feito é que os tarahumara praticamente só se alimentam de milho. Uma família consome cerca de 100 quilos por ano, metade dos quais são transformados em cerveja. Outras fontes de nutrição, como raízes, são disponíveis apenas em pequenas quantidades durante uma limitada época de colheita. Sendo capazes de sobreviver com uma dieta tão absur­damente abaixo do padrão normal, esses índios mostram uma fle­xibilidade quase infinita do sistema mente-corpo. Por ironia, po­vos nativos desse tipo têm uma adaptação tão perfeita que, ao serem alimentados com uma dieta “balanceada”, fortificada com vitaminas e minerais, muitos deles desenvolvem, em proporções epidêmicas, doenças cardíacas, hipertensão, problemas de pele e dentes cariados, males que não tinham antes.

Não há dúvida de que esses exemplos desafiam toda nossa concepção do que é normal. Temos amplos indícios, em nossa pró­pria cultura, de que o que existe de mais normal em nós é a ca­pacidade para criar nossa própria realidade. Como disse Sir John Eccles aos parapsicólogos, achamos incompreensível que nosso pensamento seja capaz de mover moléculas; no entanto, sempre convivemos confortavelmente com essa “impossibilidade”. Os rishis simplesmente ampliam muito nossa “zona de conforto”, conduzindo-a para dentro da normalidade do infinito.

Já sabemos que, se um impulso de inteligência quer realizar alguma coisa, ele o faz, usando intelecto, mente, sentidos e matéria. A inteligência pode criar uma fisiologia onde ocorrem pen­samentos de cura, mas também pode criar o oposto. Se tivéssemos uma “fiação”, como um computador, a fisiologia de cada indivíduo seria previsível. No entanto, a realidade não é essa. A inteligência cria novos circuitos a sua escolha e isso torna cada pessoa única. Cada experiência da vida modifica a anatomia do cérebro. Os dendrites novos que surgem nas células cerebrais de idosos ativos são apenas um exemplo disso.

Ainda mais extraordinária é a seguinte experiência: o dr. Her­bert Spector, do National Institute of Health, ministrou poly-I:C a um grupo de camundongos. Essa substância química esti­mula a atividade das células-T, as matadoras naturais que exis­tem no sistema imunológico, para assim aumentar a defesa dos animais contra a doença. Cada vez que um camundongo recebia sua dose de poly-I:C, liberava-se essência de cânfora perto dele.

Esse esquema de injeção de substância química e liberação de cânfora prosseguiu durante algumas semanas. Quando o poly-I:C foi retirado e Spector expôs os camundongos apenas ao chei­ro de cânfora, descobriu que a contagem de células imunológi­cas aumentou novamente, mesmo sem o produto químico. Em outras palavras, só o odor tornou os animais mais fortes contra a doença. Seria possível fazer o contrário e diminuir a imunida­de dos camundongos apenas com um cheiro?

Mais tarde, uma equipe da Universidade de Rochester demonstrou que isso é possível. Um grupo de ratos recebeu ciclofosfamida, um produto químico que diminui a eficiência do sistema imunológico. Ao mesmo tempo, foi dada aos ratos água adoçada com sacarina, que substituiu a cânfora como agente neutro. Quan­do a droga foi retirada, os animais continuaram a apresentar queda na contagem das células imunológicas sempre que bebiam a água. O que entusiasmou os pesquisadores foi a descoberta de que o sistema imunológico tem capacidade de aprendizagem. Ele rea­ge diretamente a estímulos externos e não apenas ao ambiente interno da corrente sanguínea.

Entretanto, num sentido mais amplo, essas experiências nos mostram que o corpo não está ligado a reações previsíveis. A inteligência de uma célula é criativa. O mecanismo previsível que reage de forma positiva ao poly-I:C e de forma negativa à ciclofosfamida pode se transformar e reagir a qualquer outra coisa. Mais ainda, ele pode dar uma viravolta e reagir com resultados opostos — o cheiro de cânfora poderia ter sido associado a qual­quer uma das drogas.

Então, não existe uma conexão fixa entre o tipo de experiência que se introduz no corpo e o resultado disso — nosso sistema nervoso está construído para o ilimitado. Quanto mais pensamos nisso, mais notáveis são as implicações. O cheiro de cânfora não fez nada para causar a mudança nas células imunológicas; os ca­mundongos poderiam ter sentido o perfume de rosas ou ouvido um quarteto de Mozart. O que realmente aconteceu dentro de­les foi a criação de um impulso de inteligência, uma entidade totalmente fluida que coordena um fragmento do mundo não-material com um fragmento do mundo material.

 

Os antigos rishis conheciam isso muito bem. Um verso dos Ve­das diz: “O que você vê você se torna”. Em outras palavras, a simples experiência de perceber o mundo é que faz de você o que é. E existe prova disso. Crianças que crescem em lares onde falta amor apresentam uma série de sintomas emocionais — po­dem ser infelizes, neuróticas, esquizofrênicas, doentias, raivosas etc. Entretanto, a condição mais estranha é a denominada nanismo psicossocial. Essas crianças não crescem; induzem em si mes­mas uma deficiência do hormônio de crescimento produzido pe­la hipófise e, por isso, continuam pequenas e fisicamente subde­senvolvidas.

Ignorando o relógio biológico, o início da puberdade se atrasa e também pode haver atraso na aquisição de faculdades mentais típicas da idade, fato não diretamente controlado pela hipófise. O mal não se deve ao mau funcionamento da glândula, pois quan­do essas crianças são colocadas num ambiente carinhoso seu es­tado pode reverter de forma espontânea, e elas rapidamente atin­gem o tamanho normal para a idade.

Crescer é um resultado geneticamente programado, que já vem embutido no indivíduo quando ele nasce. No entanto, as crianças com nanismo psicossocial desafiam essa programação porque não se sentem amadas. Mesmo se recebem injeções de hormônio hipofisário, muitas se recusam a crescer.

Um estudo feito com homens adultos vítimas de ataques cardíacos mostrou que o fator mais significativo em sua recupera­ção — ou seja, sobrevivência — não tinha nada a ver com dieta, exercícios, tabagismo ou desejo de viver. Os que se recuperaram foram os que se sentiam amados por suas esposas; os que não pensavam assim tenderam a não sobreviver. Nenhuma outra cor­relação estudada pelos pesquisadores revelou-se tão forte.

Durante anos fui perseguido pela lembrança de um de meus primeiros pacientes, um camponês indiano chamado Laxman Govindass. Eu ainda estudava medicina em Nova Délhi e meu tra­balho no hospital ligado a minha escola, o All-India Medical Ins­titute, limitava-se a examinar pacientes com doenças comuns, que os médicos não tinham tempo para atender. Os acadêmicos de­monstravam ali pouco interesse por alcoólatras fisicamente ar­ruinados como Laxman Govindass.

Ele era um lavrador que se entregara ao vício da bebida a tal ponto que a família o abandonara. Um filho o havia levado até a porta do hospital e o deixara ali, dizendo: “Aqui é onde prova­velmente você vai morrer”. Como todos os camponeses interna­dos, o sr. Govindass estava muito apreensivo e totalmente deslo­cado. Os internos cuidaram bem de sua cirrose, mas não se de­ram ao trabalho de conhecê-lo como pessoa. Acabei fazendo isso porque, como estudante, tinha boa parte do dia livre e habituei-me a seguir o funcionário que servia o jantar, ocasião em que conversava com os pacientes.

Fiz amizade com o sr. Govindass sentando-me em sua cama e trocando algumas palavras com ele; na maior parte do tempo, ficávamos os dois olhando pela janela. A cada dia que passava, o sr. Govindass piorava um pouco e ninguém lhe dava mais do que uma semana de vida, duas no máximo, inclusive eu. Logo chegou o momento de eu deixar o hospital para trabalhar num posto de saúde, num vilarejo a 60 quilômetros da capital, obedecendo ao sistema de rodízio de estudantes. Então, fui despedir-me do sr. Govindass. Para animá-lo, falei que estaria de volta em um mês.

Ele olhou-me muito sério e disse:

— Agora que o senhor vai embora, não tenho mais por que viver. Vou morrer.

Sem pensar, retruquei:

— Não seja tolo. O senhor não pode morrer até eu voltar para vê-lo.

Uma vez que o sr. Govindass estava extremamente fraco — pesava menos de 40 quilos —, os médicos que o atendiam espera­vam seu falecimento a qualquer momento.

Fui para o interior e, em pouco tempo, já não pensava mais em meu paciente. Um mês depois, quando voltei ao hospital-escola, estava passando por um corredor quando vi o nome “Laxman Govindass” na porta de um dos quartos. Apressei-me a en­trar, sentindo-me estranhamente apreensivo, e lá estava ele, dei­tado na cama em posição fetal. Pouco restava dele além de pele e ossos, mas, quando o toquei, virou seus enormes olhos para mim.

— O senhor voltou — murmurou. — Disse que eu não podia morrer sem vê-lo de novo. Agora eu o estou vendo. — Em segui­da, fechou os olhos e morreu.

Já relatei esse incidente, um dos mais importantes de minha vida, em outro livro. Naquela ocasião, senti duas emoções — uma grande culpa por ter sentenciado aquele homem a sofrimento tão prolongado e um enorme respeito pela conexão mente-corpo que o mantivera vivo. Agora percebo que estava vendo a verdade do ilimitado, a capacidade de nossos impulsos de inteligência faze­rem o que querem, apesar de todas as regras que talvez tenham de ser quebradas. O impulso que compartilhei com o sr. Govindass foi amor. Embora tivesse surgido num corpo debilitado, o amor teve o poder que sempre tem — deu nova vida. Ele perfu­rou o Maya no corpo do sr. Govindass e desafiou a morte. Com base na delicadeza daquele impulso, um fio tão fino como o de uma teia, mas forte como aço, poderia ser fundada uma nova me­dicina.

 

A possibilidade de que cada pessoa seja um ser infinito está se tornando cada vez mais real. Abençoados com a total flexibili­dade de nosso sistema nervoso, todos temos a escolha de cons­truir fronteiras ou derrubá-las. Cada pessoa está continuamente fabricando uma variedade infinita de pensamentos, lembranças, desejos, objetos etc. Esses impulsos, ondulando pelo oceano da consciência, tornam-se sua realidade. Se você soubesse controlar a criação de impulsos de inteligência, seria capaz não só de for­mar novos dendrites nas células cerebrais como também de tudo o mais.

“O que você vê você se torna” é uma verdade que molda toda a fisiologia, inclusive a do cérebro. Isso foi demonstrado por uma engenhosa experiência criada pelos psicólogos Joseph Hubel e Da­vid Weisel, de novo envolvendo gatinhos recém-nascidos. Três grupos de gatos foram colocados em ambientes cuidadosamente controlados, enquanto estavam abrindo os olhos. O primeiro era uma caixa branca pintada com listras horizontais pretas; o segundo era uma caixa branca com listras verticais; o terceiro era uma caixa inteiramente branca.

Depois de ser exposto a essas condições durante os poucos e cruciais dias em que a visão se desenvolve, o cérebro dos gati­nhos acomodou-se a elas para sempre. Os animais criados num mundo com listras horizontais não podiam ver corretamente na­da que fosse vertical — trombavam em pernas de cadeira, cuja verticalidade tinha pouca ou nenhuma realidade para eles. O lo­te que ficara na caixa com listras verticais apresentava o proble­ma exatamente oposto, sendo incapazes de perceber linhas hori­zontais. Os gatinhos criados na caixa toda branca tinham uma desorientação maior e não conseguiam se relacionar com nenhum objeto de forma correta.

Esses animais tornaram-se o que viram, porque os neurônios responsáveis pela visão estavam agora rigidamente programados. No caso dos seres humanos, o cérebro sacrifica parte de sua per­cepção ilimitada sempre que percebe o mundo por meio de fron­teiras. Sem a capacidade de transcender, essa cegueira parcial é inevitável. As impressões estão sendo continuamente deposita­das em nossos neurônios, e isso não vale apenas para a visão, mas para todos os sentidos. Embora estejamos acostumados a chamar as mais fortes de “estresse”, de fato, todas as impressões criam alguma limitação.

Para ilustrar: pesquisadores do M.I.T., trabalhando no início da década de 80, procuraram compreender como funciona a au­dição humana. Ela parece ser passiva, mas na verdade cada pes­soa escuta o mundo de uma maneira bem seletiva e interpreta de modo particular os dados que chegam a seus ouvidos. (Um músico, por exemplo, ouve tonalidade e harmonia onde alguém, sem ouvido para música, só escuta ruídos.) Uma das experiên­cias foi fazer pessoas ouvirem ritmos curtos, simples (1-2-3 e 1-2-3 e 1-2-3) e depois treiná-las a ouvir o ritmo de uma forma dife­rente (1-2, 3-e-l, 2, 3-e-l, 2). Depois que começaram a ouvir os ritmos de maneira diferente, os pacientes relataram que os sons lhes pareciam mais novos e alegres. Sem dúvida, a experiência ensinara essas pessoas a alterar ligeiramente suas fronteiras invi­síveis. No entanto, o resultado mais interessante foi que, ao vol­tarem para casa, essas pessoas descobriram que as cores lhes pa­reciam mais vivas, a música soava mais feliz, o sabor dos alimentos de repente parecia delicioso, e tudo a sua volta dava a impressão de ser mais digno de amor.

Uma pequenina abertura da percepção causou uma mudança na realidade. A meditação, por sua vez, porque abre mais canais de percepção e os conduz a um nível mais profundo, causa maior mudança ainda, embora esta não se afaste muito do modo nor­mal como usamos nossa percepção. A construção de fronteiras continuará sendo um fato da vida. O que os rishis fizeram foi infundir liberdade a essa atividade, elevando-a a um nível que transcende os desejos e pensamentos pequenos do ego isolado.

Comumente, o ego não tem escolha senão passar a vida erigindo com desespero uma fronteira após outra. Ele faz isso pelo mes­mo motivo que as cidades medievais construíam muralhas — para se proteger.

O ego acha que o mundo é um lugar hostil, perigoso, porque tudo o que existe está separado do “Eu”. Essa é a condição co­nhecida como dualidade, uma grande fonte de medo — os Vedas a chamam de única fonte do medo. Quando olhamos “lá fora”, vemos todo tipo de ameaça potencial, todo trauma e dor que a vida pode infligir. A defesa lógica do ego é se emparedar junto com as coisas mais agradáveis — família, prazeres, lembranças felizes, rostos e atividades conhecidas. Os rishis não propunham a demolição desses limites defensivos, embora muitos acreditem que fosse essa sua intenção. Tanto no Oriente como no Ociden­te, enraizou-se a idéia de que os sábios indianos condenavam a “ilusão da vida”; no entanto, como explicou o Maharishi, a rea­lidade védica não se baseava em tal absurdo.

 

P: A dualidade é apenas uma ilusão?

MAHARISHI: Se a dualidade é uma ilusão, então a unidade não será estabelecida. Ambas possuem seus valores e, sem a dualidade, a unidade não tem substância. Ambas são naturais, ambas são verdadeiras. Essa é a natureza do mundo. Como luz e escuridão, as contradições existem, estão lá. O pólo norte está lá, como também está o pólo sul.

 

Dois opostos polares fundem-se num todo — esse princípio co­loca o campo silencioso ativo da vida numa perspectiva adequa­da. Quando os rishis descobriram a unidade, o silencioso campo da inteligência, descobriram o outro pólo que torna a vida com­pleta. Os antigos textos explicam isso como Purnam adah, purnam idam — “Isto é pleno, aquilo é pleno”. O Maharishi prosse­guiu para explicar como “as plenitudes” se complementam:

 

“Existem 100 por cento de diversidade e 100 por cento de unidade, ambas executando seu trabalho ao mesmo tempo. Essa é a natureza do trabalho da criação — essa é a verda­deira realidade. Uma nos parece real e a outra, irreal. Mas a realidade é que ambas são reais ao mesmo tempo. A água é real, o gelo também. Eles se opõem; no entanto, sua afi­nidade é tão grande que o gelo não pode existir sem a água — ele é água e nada mais do que água. Assim, a unidade e a diversidade estão lá, juntas e ao mesmo tempo”.

 

A meta mais alta da existência, então, é atingir “200 por cento da vida”. O sistema nervoso humano pode realizar isso porque é flexível o bastante para apreciar tanto a diversidade da vida, que é infinita, embora cheia de limites, como o estado unificado, que também é infinito, mas absolutamente ilimitado. Por pura lógica, nenhuma outra possibilidade poderia existir. Ninguém re­cebeu um computador cósmico e ouviu: “Lembre-se, você só pode usar metade dele”. Ninguém impôs limites aos padrões de inteligência que podemos criar, modificar, misturar, expandir e usar. A vida é um campo de possibilidades infinitas. Assim é a glória da total flexibilidade no sistema nervoso humano.

Esse é um aspecto de tremenda importância. Ele diz que po­demos passar ao largo das escolhas limitadas a que estamos acos­tumados e caminhar diretamente até a solução de qualquer pro­blema. A base para essa asserção é que a natureza já estruturou a solução em nossa consciência. Os problemas estão no campo da diversidade, enquanto as soluções estão no campo da unida­de. Ir direto ao campo da unidade automaticamente nos faz achar a solução, que o sistema mente-corpo leva então para fora — esse era o atalho dos rishis.

Os estudos de Robert Keith Wallace sobre o envelhecimento são um excelente exemplo de como funciona o atalho. A atual sabedoria científica afirma que o envelhecimento é uma área com­plicada, mal compreendida. A gerontologia, o estudo dos ido­sos, só se tornou uma especialidade a partir da década de 50, quando o mapeamento do DNA permitiu que se imaginasse uma possível existência de genes especiais para o envelhecimento (até agora não foi encontrado nenhum, embora se saiba que certos mecanismos de envelhecimento estão codificados geneticamente em animais inferiores). Agora que a gerontologia está a todo va­por, ela se encontra atulhada de teorias conflitantes e de uma quan­tidade imensa de dados obtidos de projetos de pesquisa, que levarão décadas para se encerrar.

Esse esforço intensivo em pesquisas não fez as pessoas envelhecerem mais devagar. O principal avanço no campo foi documentar que pessoas saudáveis não têm de se deteriorar automaticamente, à medida que vão ficando mais velhas, um aspecto já constatado há anos, sem a ajuda de bancos de dados. A geron­tologia tem tido algumas valiosas aplicações médicas, como o re­conhecimento de que muitos sintomas senis, antes considerados permanentes, são reversíveis. Eles não são sinais de deterioração do cérebro, mas o subproduto da má alimentação, do isolamen­to, da desidratação e de outros fatores existentes no ambiente de cada pessoa. Fora isso, a gerontologia vai progredindo pouco a pouco, forjando pequeninos elos em teorias a princípio apenas conjeturais. Quanto a fazer o povo americano comer melhor, exercitar-se de maneira sensata e praticar a prevenção de doen­ças, a especialidade está de acordo com o restante da medicina.

Entretanto, a pesquisa de Wallace partiu da hipótese de que as pessoas não envelhecem em partes separadas, mas como seres humanos inteiros. Por conseguinte, o envelhecimento contém um grande elemento de escolha. Se os idosos podem manter suas faculdades mentais, usando-as continuamente, então a prática da meditação, que abre a percepção por completo, deveria fazer mais ainda. A descoberta básica de Wallace, como já mencionei, foi que aqueles que meditavam há bastante tempo tinham, de fato, diminuído a idade biológica de cinco a doze anos. (Também fo­ram constatados altos níveis do quase desconhecido hormônio de­nominado DHEA [dehidroepiandrosterona]; especulou-se que, de certa forma, o DHEA ajuda a retardar o envelhecimento e talvez iniba a aparição e o desenvolvimento do câncer.)

Essa pesquisa sugere que o envelhecimento é controlado pela consciência. Atuando no habitual nível de pensamento confuso e superficial, aceleramos o processo do envelhecimento em nos­sas células; à medida que passamos para a região silenciosa do transcendente, porém, a atividade mental cessa e, aparentemen­te, a atividade celular a acompanha. Se isso é verdade, então o envelhecimento pode ser programado em diferentes níveis de per­cepção. Se nos programamos para nos deteriorar, como era regra em gerações anteriores, então isso se torna realidade. A progra­mação desse tipo não é questão de simplesmente pensar ou acre­ditar. Atitudes positivas, vivacidade mental, desejo de sobrevi­ver e outras características psicológicas podem facilitar a velhice; sem dúvida, elas ajudam a romper o rígido condicionamento so­cial em que muitas vezes os idosos se vêem presos. No entanto, mudar de fato o processo de envelhecimento em si é uma ques­tão diferente, muito mais profunda.

Oficialmente, a gerontologia não reconhece nenhum meio de revertê-lo ou retardá-lo — uma posição rígida demais, quando se considera que o envelhecimento nem mesmo tem sido ade­quadamente definido. Os rishis contestariam essa atitude, dizendo que a ciência não conseguiu atingir o nível de consciência onde o envelhecimento pode ser derrotado. Em 1980, um jovem psi­cólogo de Harvard, Charles Alexander, foi a três asilos de idosos na periferia de Boston e ensinou a cerca de sessenta residentes — todos com, no mínimo, 80 anos de idade — três técnicas mente-corpo: uma, de relaxamento típico (do tipo usado em programas de combate ao estresse), Meditação Transcendental e um conjunto de jogos de palavras a serem feitos diariamente, com o objetivo de estimular a criatividade e aguçar a mente.

Cada pessoa aprendeu uma só técnica, e os grupos as usavam sem supervisão. Quando, depois de algum tempo, foi feito o acompanhamento, constatou-se que os meditadores obtiveram a me­lhor contagem em testes sobre melhora do aprendizado, diminui­ção da pressão sanguínea e maior saúde mental — aspectos que se deterioram com a idade. Essas pessoas também relataram que se sentiam mais felizes e não tão velhas como antes. O resultado mais surpreendente, porém, só veio à luz três anos depois. Quando Alexander voltou aos asilos de idosos, cerca de um terço dos re­sidentes que lá encontrara na primeira vez havia morrido, inclu­sive 24 por cento dos que participaram do programa mente-corpo, mas que não haviam aprendido a meditação. No entanto, entre os meditadores, a taxa de mortalidade era zero. Eles agora esta­vam com uma idade média de 84 anos, e esse foi um dos mais raros e belos casos em que a ciência realizou uma experiência que imediatamente proporcionou o dom da vida. Ainda que limitado em seu alvo, esse é um dos mais esperançosos resultados no cam­po do envelhecimento e uma vitória para o atalho dos rishis. Ele demonstra que basta expandir a percepção para aumentar o tem­po de vida. Qual será a expectativa de vida para meditadores que começaram a prática aos 20 anos em vez de aos 80? O tempo dirá.

 

O pressuposto que sufoca a vida é sentir que se é um prisio­neiro do próprio corpo, que parece funcionar de forma mecâni­ca. Um dos mecanismos mais bem estudados é a curva de re­troalimentação homeostática, uma função reguladora semelhan­te à dos termostatos. Um termostato que regula o aquecimento ou o ar-condicionado está ajustado, por exemplo, para uma tem­peratura específica, digamos de 21°C, e é sensível a um interva­lo de temperatura que compreende alguns graus acima e alguns abaixo do ponto determinado. Ligando-se e desligando-se auto­maticamente, o aparelho mantém uma temperatura quase está­vel. A “sabedoria” de um termostato é muito limitada; podería­mos dizer que é um interruptor inteligente, mas com apenas uma idéia na cabeça, enquanto as curvas de retroalimentação do cor­po conseguem equilibrar não apenas a pressão sanguínea como também o nível de oxigênio nas células, o metabolismo da glico­se, a concentração de oxigênio e o dióxido de carbono etc., sem nos esquecermos dos milhares de substâncias químicas produzi­das com milimétrica precisão em todo o organismo.

Uma vez que o termostato sempre volta ao ponto preestabele­cido e o corpo também, não estaríamos diante de um tipo de funcionamento rígido que não pode ser negado e que, de fato, é ne­cessário a nossa existência? O maior dos fisiologistas do século 19, Claude Bernard, fez a famosa afirmação: “A vida livre é a fixidez de nosso meio interior” — em outras palavras, o que nos faz livres é a capacidade de nossos termostatos se manterem em determinada posição. Por mais brilhante que tenha sido essa per­cepção de Bernard, ela contém um grave erro. Quando um ter­mostato registra que o ambiente está com dezoito ou 24 graus em vez de 21, ele encara essas variações como erro, pois, para ele, só 21 é certo. No corpo, porém, vários pontos de ajuste po­dem ser considerados como certos. O normal é apenas o ponto para o qual voltamos a maior parte do tempo. Se alguém corres­se a maratona sem o aumento da pressão sanguínea, dos bati­mentos cardíacos, do metabolismo da glicose e da produção de suor a um ponto drasticamente acima do “normal”, cairia morto.

“Normal” é apenas a zona onde gostamos de viver. Não se trata de uma regra, mas de uma preferência. Os índios tarahu­mara, talvez por descenderem de antigos corredores que levavam mensagens através dos Andes para todo o império inca, se ajus­taram a um “normal” diferente do nosso, mais adequado a seu modo de vida. Desafiando uma dieta de escassez, o que queriam fazer — correr 75 quilômetros por dia — era mais importante do que meras normas corporais. Seu corpo se adaptou à inteligên­cia, sem perguntas, e não o contrário. Graças ao hábito de seguir um estilo de vida, pode ser difícil adaptar-se instantaneamente quando a mente deseja uma mudança — pessoas obesas não de­vem saltar da poltrona e lançar-se numa maratona —, mas o po­der da adaptação precisa receber o devido valor. Apesar de toda nossa programação fisiológica e milhares de termostatos ou me­canismos de homeostase, podemos modificar nossas habilidades, esquecê-las, adquirir novas etc. Essa é a glória máxima de um ser humano, e ela não pode ser atingida sem a liberdade total.

 

O Ocidente não esconde suas dúvidas sobre a idéia de uma consciência mais alta, que vê com um misto de desejo, perplexidade e desagrado. Eu viajo pelo menos dois dias por semana, o ano todo, falando sobre o Ayurveda para muitos tipos de pla­téias, constituídas tanto de médicos como de leigos, e rapidamente aprendi como era sensível o nervo em que estava tocando. Um entrevistador de televisão do Canadá apresentou-se a mim per­guntando sem rodeios: “O senhor pode dar cinco justificativas para me convencer de que não é um charlatão?” Um apresenta­dor de Los Angeles, mais bem-humorado, inclinou-se para mim com mística antecipação e indagou: “Diga-me, doutor, o senhor já esteve aqui... antes?” Fiquei tão surpreso que só consegui re­trucar: “Estamos todos aqui o tempo inteiro”.

Desde a década de 60, a proliferação do conhecimento fortui­to sobre o Oriente tem sido ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição, pois, embora muitas pessoas lancem aqui e ali frases com as palavras nirvana, Atman e dharma, e quase todo mundo deixe passar o termo karma numa conversa sem nem mesmo pis­car um olho, o real sentido dessas palavras tem sido distorcido. Venho procurando demonstrar que o conhecimento védico é sis­temático e completo; que ele é tão abrangente como nossa mais avançada ciência; e que muitas das coisas que mais desejamos, como a libertação das doenças e uma velhice saudável, podem ser obtidas por meio desse grande tratado sobre a existência humana.

No entanto, eu estaria traindo a sabedoria dos rishis se não apresentasse sua expansão final, cujo precedente não está claramente definido no Ocidente — ou está confinado à doutrina religiosa. Os rishis procuravam um estado de total percepção. Para eles, isso não era filosofia nem religião, mas algo natural por ser hu­mano. O quarto estado não é um final, mas uma porta. E o que existe do outro lado? A única resposta completa teria de vir dos milhares e milhares de páginas dos livros védicos, que funcio­nam como a enciclopédia das experiências registradas pelos ris­his. A resposta mais simples é dizer que cada rishi encontrou o Eu Superior. Um meditador de Connecticut fez uma descrição exata desse encontro:

 

“Uma das experiências mais constantes de minha meditação é a de uma percepção expandida, de não mais estar confinado ao interior de minha cabeça, mas sendo tão ou mais infinito que o universo. Às vezes, sinto as fronteiras da mente sendo empurradas para fora, como a circunferên­cia de um círculo que nunca pára de se ampliar, até que o círculo desaparece e só resta o infinito.

É uma sensação de grande liberdade, mas também de na­turalidade, muito mais real e natural do que estar confinado a um lugar tão pequeno. Às vezes, a sensação de infini­dade é tão forte que perco a noção do corpo ou da matéria — só a percepção infinita, ilimitada, um eterno, imutável contínuo de consciência”.

 

Todos terão de responder a isso em seus próprios termos. Es­pero que tenhamos assentado fundações sólidas, de modo que esse relato possa aparecer envolto em sua verdadeira luz, não co­mo uma auto-ilusão, mas como um real encontro com o silen­cioso campo da inteligência. Anteriormente eu disse que o cor­po, em sua verdadeira natureza, é o imutável mesclado com o mutável. O motivo disso é que toda a natureza exibe esses dois estados paradoxais, porém complementares. À medida que se ex­pande a percepção, a imensa esfera da mutação e a igualmente imensa esfera da não-mutação abrem-se à mente. Um antigo poe­ma chinês, de autoria de Hsu Hsu, diz:

 

             A primeira onda está retrocedendo,

             A segunda onda prontamente chega,

             Assim, muitas camadas do tempo,

             Assim, muitas vidas.

 

Podemos atribuir essa bela dádiva da percepção, ao mesmo tempo serena e abrangente, a uma pessoa comum do Estado de Con­necticut? Creio que devemos fazê-lo, pois a mesma bioquímica que sustenta tal experiência está disponível a todos, independentemente do tempo. Nosso DNA recorda-se de tudo o que jamais aconteceu aos seres humanos. Seria ridículo supor que somente o DNA chinês ou indiano pode desencadear estados de consciência mais altos; seria empobrecedor afirmar que eles não são reais. O relato do meditador termina com essa maravilhosamente exata avaliação da realidade quântica: “Por vezes há um interessante paradoxo de atividade e repouso ao mesmo tempo, e sinto em minha percepção que estou me movendo com infinita velocida­de e mantendo-me perfeitamente imóvel, ao mesmo tempo. Essa é a experiência do sempre mutável junto com o nunca mutável”.

Qualquer pessoa que queira absorver o pleno benefício do conhecimento védico deve enfrentar o fato de que estados normal­mente inconcebíveis como infinidade, eternidade e transcendência são reais. Essas palavras não pertencem ao vocabulário do esta­do de vigília ordinário, mas tampouco estão distantes dele. To­dos possuímos o poder de criar realidade. Então, por que fazê-la no interior de fronteiras, quando o ilimitado está tão perto?

 

                   Corpo de Bem-Aventurança

Não existe experiência mais bela do que vivenciar o mundo se expandindo além de seus limites habituais. São momentos em que a realidade assume todo seu esplendor. Os Vedas chamam essa experiência de Ananda, ou bem-aventurança; diz-se que ela é uma outra qualidade inerente à mente humana, mas coberta por camadas de percepção embaçada. Bem-aventurança é uma palavra desconfortável no Ocidente; assim como iluminação, pre­cisa ser desmistificada. Vamos começar por uma descrição pes­soal do que é estar em bem-aventurança. Um belo relato é o da­do pelo fisiologista Robert Keith Wallace. O cenário é o Nepal, onde ele esteve em 1974, no intervalo de um congresso que se realizava na Índia.

 

Junto com um amigo físico, subi até Katmandu, a capital, para estar mais perto do Himalaia. Encontramos um lindo lago alpino, onde os antigos príncipes nepaleses costumavam passar o verão. Por menos de um dólar, alugamos um barco e o empurramos até a água. Era um dia claro e com vento, de céu limpo, perfeito para se empinar papa­gaios. Eu havia comprado um no bazar, vermelho vivo e construído para acrobacias. Levantei-me, e ele se lançou de minha mão assim que o soltei ao vento.

Logo, o papagaio era um pontinho vermelho flutuando bem alto no ar rarefeito. Fiquei olhando para as grandes montanhas que nos cercavam. Embora seus picos estives­sem ocultos pelas nuvens, transmitiam uma aura de gran­deza e de paz. Enquanto eu olhava, as nuvens dispersaram-se de repente. Fiquei absolutamente impressionado. O que eu tomara por montanhas eram apenas contrafortes! Além de­les, como deuses de outrora, elevava-se a verdadeira cordi­lheira do Himalaia, incrivelmente majestosa.

Mal conseguíamos falar diante de tanto poder e beleza con­centrados naquele cenário fabuloso. A sensação de possuir um Eu pequeno e isolado desapareceu, e em seu lugar es­tava a deliciosa sensação de fluir por entre tudo o que eu contemplava. Experimentei uma sensação de completa plenitude contida em meu próprio silêncio. Bem de acordo com isso, o pico mais alto diante de nós era o Annapurna, cujo nome significa “plenitude de vida”.

Parado ali no lago, vi de modo direto a realidade onde o tempo é, de fato, eterno. O mesmo poder que criara essas montanhas estava fluindo dentro de mim. Se eu quisesse encontrar a fonte do tempo e do espaço, só precisaria colo­car os dedos sobre meu coração. A única palavra adequada para descrever minhas sensações naquele momento é “bem-aventurança”.

 

O que, sem dúvida, se destaca nessa experiência é seu sentido de revelação. As pessoas que se viram diretamente tocadas pela bem-aventurança sentem que, de repente, ficaram expostas à vi­da como ela realmente é. Comparada a isso, sua visão ordinária era insípida e distorcida; vinham aceitando uma imagem emba­çada em lugar da coisa real. Vivenciar essa bem-aventurança a cada hora do dia seria um sinal de completa iluminação, mas mes­mo um breve encontro é significativo — ele nos permite sentir ondas de consciência que vão emergindo do campo do silêncio, atravessam o vazio e se infundem em cada célula do organismo. Esse é o despertar do corpo.

No Ayurveda, a bem-aventurança está na base de três técnicas de cura extremamente poderosas. A primeira é a meditação, já comentada. Ela é importante porque remove as fronteiras da mente e a expõe a um estado de consciência ilimitado. As outras duas, que me foram ensinadas pelo Maharishi em 1986 e 1987, são mais específicas. A primeira delas é a técnica psicofisiológica aiurvé­dica — o termo psicofisiológico significa “mente-corpo” (muitas vezes usamos seu nome informal, a técnica da bem-aventurança). A segunda técnica de cura denomina-se som primordial; já men­cionei rapidamente suas origens na Introdução.

Para explicar como essa cura funciona, deixe-me dar um exem­plo tomado da hipnose. Uma das mais surpreendentes descober­tas da pesquisa da hipnose é que os sujeitos podem fazer as mãos ficarem frias ou quentes, criar erupções na pele e até bolhas, pou­cos minutos depois de introduzida a sugestão hipnótica. Isso não é, rigorosamente falando, uma peculiaridade do transe hipnóti­co — estudos feitos sobre o biofeedback mostraram que pessoas ligadas à aparelhagem podem fazer coisas similares em seu esta­do de consciência normal. O que estou querendo demonstrar com tais exemplos é como o poder da atenção pode alterar o corpo. O Ayurveda tem feito uso desse princípio por milhares de anos. De fato, uma vez que a premissa básica do conhecimento védico é que a consciência cria o corpo, nada mais natural que tenham sido descobertas técnicas para focalização da atenção.

A técnica da bem-aventurança e do som primordial estão nes­sa categoria. A consciência é unicamente percepção. Você pode estar ciente de que sua mão está quente, e isso é percepção passi­va; porém, como demonstraram as pesquisas com hipnose, você também pode fazer sua mão ficar quente, e isso é percepção ati­va ou atenção. A atenção exerce muito mais controle do que co­mumente se imagina, porque somos vítimas da percepção passi­va. Uma pessoa que está sentindo dor tem ciência dela, mas não de que pode aumentá-la, diminuí-la, fazê-la aparecer ou desaparecer. No entanto, tudo isso é verdade. (Certas pessoas, por exem­plo, conseguem andar sobre brasas porque sabem controlar seu nível de dor; o mais notável é que também conseguem evitar que os pés se queimem — isso também está sob o controle da atenção.)

No Ayurveda, todo sintoma de doença, desde uma pequena dor muscular no pescoço até um câncer disseminado, está sob o controle da atenção. No entanto, entre nós e os sintomas exis­tem barreiras — os véus chamados Maya — que nos impedem de exercer nossa atenção de forma terapêutica. Todos os tipos de medicina mente-corpo procuram remover esses obstáculos, de mo­do que possa ocorrer a cura. Fora do Ayurveda não se usa a pa­lavra Maya, mas qualquer termo que explique a mesma coisa é aplicável a isso. Já usei outras frases, como “barreiras no silên­cio”, “o fantasma da memória” e “a máscara da matéria”. Nas atuais circunstâncias, onde a medicina mente-corpo está apenas começando a provar seu valor e precisa tomar cuidado para não pisar nos calos da ciência, as técnicas para romper o Maya ainda são rudimentares. Por sorte, a natureza dispôs as coisas de modo que abordagens mente-corpo de todos os tipos consigam funcio­nar. Tanto dar boas risadas como tomar diariamente um copo de suco de uva podem derrotar uma doença fatal, se o paciente acre­dita com firmeza no tratamento.

Seria melhor, no entanto, dispormos de uma ciência da percepção. É isso que o Ayurveda fornece. Também seria útil dis­pormos de uma teoria que propicie a essa ciência um sólido ali­cerce filosófico. O conhecimento védico se encarrega disso. Quan­do ensino às pessoas as técnicas de cura aiurvédica do Maharis­hi, não as estou induzindo a entrar num mundo védico ou em algum mistério. Minha intenção é fazê-las compreender que sua própria percepção cria, controla e altera seu corpo. Isso é um fa­to, não apenas uma visão védica das coisas.

Quando o corpo sente dor, uma área distorcida da percepção está gritando, pedindo socorro ao resto da percepção. Nosso ins­tinto natural é providenciar esse socorro. O modo como mobili­zamos nossas plaquetas e fatores de coagulação do sangue para curar um corte não é mais do que a percepção trazendo ajuda. Um ferimento se cura porque a inteligência trabalha nele. Penso que isso está plenamente claro a esta altura.

Algumas pessoas têm a sorte de ser criaturas tão naturais que, quando ficam com câncer, por exemplo, não bloqueiam a ânsia inata de se curar. Sem dúvida, existem no mundo milhares de pessoas desse tipo que não foram estudadas e, por isso, em vez de receberem o rótulo de miraculosas por parte da religião ou da ciência, permanecem como os mudos e inglórios seres utópi­cos do processo de cura.

O Ayurveda estende essa capacidade a todos. A abordagem aiurvédica é tomar um processo já em andamento no corpo e ajudá-lo com naturalidade e sem tensões. Qualquer dor ou doença que você tenha é como uma ilha de desconforto cercada por um oceano de conforto, pois, em comparação com qualquer enfermidade, sua percepção saudável é tão grande como um oceano. Partindo-se da hipótese de que você tem uma constituição normal, não existe motivo inato para que não possa curar qualquer doença com a percepção. (Na velhice ou em alguns males crônicos, nos­sas aptidões se esgotam; portanto, nesses casos, o Ayurveda não pode garantir a cura, porque às vezes ela não está presente no esquema da Natureza.)

A técnica da bem-aventurança propicia ao paciente a experiência de si mesmo como pura percepção, o oceano de bem-estar que é nossa escora básica e nosso sustentáculo. Apenas com o uso dessa técnica é possível “afogar” uma enfermidade em consciência e curá-la. Todavia, também é útil focalizar a atenção mais precisa­mente num determinado ponto para se obter a cura, algo seme­lhante ao hipnotizado que focaliza a atenção para fazer surgir uma bolha. Para isso, usa-se a técnica do som primordial. Com ela, pode-se tratar uma área específica, como um tumor ou articula­ção atacada pela artrite, um coração fraco ou artérias entupidas. Nesse caso, não se está atacando a desordem com o som primor­dial, mas prestando maior atenção a ela, olhando-a tão de perto que a distorção da percepção, espreitando no fundo da desordem, volta a se corrigir. Nos capítulos anteriores, chamei esse proces­so de banir o fantasma da memória.

Juntos, a meditação, a técnica da bem-aventurança e o som primordial constituem a aplicação prática de tudo o que estive explanando, ou seja, o instrumento da cura quântica. Deixe-me ilus­trar com um caso e em seguida explicarei sua conexão com a bem-aventurança.

Laura é uma jovem mulher de Boston que teve câncer de seio aos 30 e poucos anos. Diante do diagnóstico, escolheu, por mo­tivos pessoais, não se submeter a nenhum tratamento convencio­nal, apesar da ansiosa insistência de seu médico, que afirmava que, sem tratamento, ela morreria em menos de dois anos. Hoje, três anos depois, Laura continua viva e tem a aparência perfeita­mente normal. As chapas radiográficas revelam que o tumor não diminuiu, mas o crescimento, se é que houve algum, tem sido muito pequeno. Isso significa que ela ainda corre perigo; no en­tanto, em sua mente, seu atual estado é uma grande vitória.

Embora o câncer ainda esteja presente, ele não seguiu o que os médicos chamam de “história natural esperada”. O dr. Yujiro Ikemi, um dos maiores especialistas do Japão em medicina psicossomática, acompanhou 69 pacientes que considera terem tido regressões espontâneas de câncer. Segundo o dr. Ikemi, não é necessário que as células cancerosas desapareçam por comple­to — ele procura outros sinais, como um crescimento anormal­mente vagaroso de um tumor, o fato de o paciente não se mos­trar debilitado e de o mal não ter se espalhado para outras partes do corpo. Esses sinais são suficientes para indicar uma regressão espontânea, afirma o médico japonês, e Laura apresenta todos eles.

Laura já meditava quando a conheci. Em 1987, ela se inter­nou para duas semanas de tratamento aiurvédico e lhe ensina­ram o som primordial e a técnica da bem-aventurança, que po­dem ser usados concomitantemente com a meditação. Digamos que a mente acomodou-se na meditação e está se vivenciando co­mo silêncio. A bem-aventurança, como a inteligência, está nesse silêncio. Você não pode “sentir” que é inteligente, mas pode sentir bem-aventurança. A técnica da bem-aventurança faz a inteligên­cia emergir, para a mente registrá-la de várias maneiras — um calor em alguma parte do corpo, formigamento, impressão de fluir e outras sensações físicas. A bem-aventurança permanece abs­trata, mas um tipo de “luminosidade” está sendo obtida com a técnica. Em contrapartida, o som primordial é bem focalizado, pois leva a percepção da bem-aventurança diretamente para a área do corpo. (Não é preciso pensar em tudo isso como se estivesse acontecendo separadamente. O nível de consciência da bem-aventurança sempre está presente; as técnicas apenas atraem a mente consciente para ele. Uma vez vivenciada a bem-aventurança, ocorreu a conexão mente-corpo.)

Logo que aprendeu as técnicas, Laura começou a sentir efei­tos positivos. Segundo me contou, os sons primordiais foram di­reto para a área do seio, às vezes induzindo uma sensação de latejamento, calor ou mesmo dor. No entanto, quase sempre ela começava a técnica sentindo dor na região e a prática a fazia de­saparecer. Os resultados mais comoventes, em termos subjetivos, vieram com a introdução da bem-aventurança. Pedi a Laura que escrevesse sobre suas experiências, quer tivessem sido alegres, do­lorosas ou indiferentes, e ela concordou. O último relatório diz:

 

As experiências durante a técnica da bem-aventurança não são tão profundas como eram quando comecei um ano e meio atrás, mas naquela época havia um medo e um pesar pro­fundamente enraizados, uma sensação de impotência e de intensa ansiedade, de sorte que o contraste foi muito grande quando comecei a vivenciar a alegria e a bem-aventurança.

Naquela época, eu me dava conta de grandes buracos negros em minha percepção. Não os vejo mais, e a sensação de permanente felicidade é mais estável. No entanto, ainda existem dias onde a alegria e a bem-aventurança são tão poderosas que mal consigo contê-las. Hoje, raramente experimento o medo, apenas uma ansiedade generalizada que em geral consigo controlar com um pouquinho de atenção.

 

Enquanto outras mulheres nessa posição estão devastadas pelo tratamento, com cicatrizes profundas, tanto físicas como men­tais, é impressionante que Laura, ainda suspensa entre a vida e a morte, possa terminar sua carta assim:

 

Há um ano e meio, eu só estava 99 por cento certa de que o câncer seria eliminado. Só no mês passado passei a estar 100 por cento certa. Agora não tenho dúvidas. Confio no apoio da Natureza. Ainda não sei que forma exata to­mará esse apoio, ou quando virá, mas estou menos preocu­pada com a manifestação final do que com minha abertura de consciência. Consigo ver claramente em minha consciên­cia o seio perfeito.

 

Laura é uma observadora sensível de sua própria percepção e a vê fluir com grande exatidão. Para ela, existe uma enorme diferença, de dentro para fora, entre estar doente e estar em pro­cesso de cura. As técnicas que vem usando não pedem a visuali­zação, mas Laura diz que consegue ver o tumor quando se sente ansiosa ou pesarosa. Creio que essa imagem representa um elo direto entre sua percepção e o progresso do câncer.

Qual será o resultado final? Laura e eu concordamos que o processo em si é o resultado. Cada dia é um todo — não um passo para a recuperação sonhada, mas um fim em si mesmo, um dia que deve ser vivido em sua plenitude, como se a doença não exis­tisse. Como estou muito mais doutrinado do que Laura, devido a minhas experiências anteriores com câncer, muitas vezes penso que ela está muito adiante de mim em sua jubilosa confiança.

 

A bem-aventurança pode ser objetiva ou subjetiva. Você pode percebê-la como uma sensação, mas ela também resulta numa mudança mensurável — pode alterar os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea, a secreção de hormônios e uma série de ou­tras funções. É por isso que a medicina a utiliza. O paciente exe­cuta as técnicas ayurvédicas “com a cabeça”, mas, ao mesmo tempo, a bem-aventurança está recriando seu corpo. O que acontece é que o corpo passa a receber um sinal de seu próprio projeto básico, não um desenho material, mas a planta que existe na cons­ciência.

Como essa planta é invisível, ela precisa encontrar um meio de chegar à existência material. Para fazer isso, a Natureza em­prega a bem-aventurança — uma vibração que forma uma ponte entre mente e matéria, permitindo que cada pequenina parte do corpo se una a um pouquinho de inteligência:

 

                         Mente   à   Corpo (DNA)

 

                                         Bem Aventurança

 

Esse diagrama descreve a conexão mente-corpo como se fosse uma transmissão de rádio; a mente envia impulsos de inteligên­cia, o DNA os recebe e a bem-aventurança é o veículo transpor­tador. No papel, esses três elementos aparecem separados, po­rém, na realidade, estão completamente fundidos. A mensagem, o mensageiro e o receptor são um só. Claro, já vimos a conexão mente-corpo dezenas de vezes antes, mas não tínhamos a “cola” que evita que mente e corpo tomem direções opostas: a bem-aventurança.

O DNA assume agora especial importância. Um único neuro­peptídio, ou qualquer outra molécula mensageira, transporta ape­nas um minúsculo pedacinho do sinal enviado pela mente. A adre­nalina, por exemplo, está correlacionada com o medo. Isso pare­ce significar que cada pensamento ativa uma molécula, mas se­ria como dizer que a estação 101.5, num rádio FM, recebe ape­nas uma única música. De fato, o corpo pode receber uma varie­dade de sinais graças ao DNA.

Estamos habituados a pensar no DNA apenas como uma estrutura material, ou seja, “o projeto da vida”. Ele, porém, não tem nada de estático. Dois dias atrás eu estava tranquilamente sentado, quando vi o DNA com o olho da mente. Eu o vi se ace­lerar com tamanha velocidade que uma existência humana, des­de o momento da concepção até o da morte, encaixou-se no es­paço de poucos minutos.

O que vi não foi uma substância química, mas um processo de incrível riqueza e dinamismo. Tudo na vida vem do DNA — carne, osso, sangue, coração e sistema nervoso; a primeira pala­vra de um bebê e o primeiro impulso de andar de uma crianci­nha; o amadurecimento da razão no cérebro; o conjunto de emo­ções, pensamentos e desejos que cintilam como relâmpagos de verão por entre as células. Tudo isso é DNA. Chamá-lo de es­quema básico é pegar o caroço e largar a fruta. Imagine-se indo a uma concessionária Mercedes-Benz, pagando 30 mil dólares no caixa e recebendo o desenho do projeto do automóvel, em vez do carro. Agora, imagine o desenho transformando-se no auto­móvel de verdade — e não apenas isso, mas ligando-se sozinho, percorrendo as ruas, substituindo as próprias peças. Só assim se pode comparar um projeto com o DNA. (O desenho também precisaria ter outro talento impressionante: qualquer peça — car­burador, pneus, até mesmo uma lasca de tinta da porta — teria de saber como se transformar num automóvel inteiro.)

Seja lá o que faz o DNA ser tão dinâmico, não é visível em sua forma material; as moléculas em si são participantes passi­vos no tempo. Podem mudar, como fazem o hidrogênio e o oxi­gênio quando se combinam para formar a água. No entanto, o DNA molda ativamente o decorrer do tempo. Esse é um aspecto tão importante que preciso explicá-lo mais longamente; de outra forma, o verdadeiro milagre do DNA ficaria desconhecido.

Nos últimos anos, os pesquisadores ficaram intrigados com um gene em particular, denominado “per gene” (per — de periódi­co), existente no DNA de uma mosca-das-frutas. Como parte de seu comportamento herdado, esses insetos emitem um som à noite para atrair os parceiros. Normalmente repetem esse chamado de maneira rítmica, uma vez a cada sessenta segundos.

Ronald Konopka, pesquisador-chefe na Universidade Clarkson, foi o primeiro a ligar o ritmo do “canto” da mosca com o per gene. Ele também descobriu que o ritmo podia se modificar. Quando o per gene sofre uma mutação, produz intervalos meno­res ou maiores entre os chamados. Por exemplo, uma mosca emite o som a cada quarenta segundos; outra, a cada oitenta segundos.

O fascinante nessa descoberta é que cada tipo de mosca-das-frutas ajusta sua vida a uma diferente duração do dia. A normal, com intervalo de sessenta segundos entre os chamados, segue o padrão de 24 horas; a que tem chamado mais rápido, com inter­valos de quarenta segundos, segue um dia mais curto, de dezoito a vinte horas; a mosca de chamado mais lento, com intervalos de oitenta segundos, segue um padrão longo, com um dia de 28 a trinta horas. A interpretação convencional é que o per gene es­tabelece o ritmo diário do inseto. Um efeito similar pode ser vis­to nos seres humanos: quando confinado a uma caverna, onde não pode ver a luz nem consultar um relógio, o homem dorme e acorda seguindo um ciclo regular, não de 24, mas, em geral, de 25 horas. Este parece ser o ritmo diário, ou circadiano, estabelecido pelo DNA humano. Da mesma forma, a mosca-das-frutas não se importa com a hora em que o sol nasce ou se põe; para elas, quando o ritmo de seu chamado muda, o dia muda. Isso significa que o sentido de tempo vem de dentro, ativado pelo per gene.

Essa conclusão é muito mais surpreendente do que a convencional que afirma que o DNA controla o ritmo no interior da célula. Eu, porém, digo que o ritmo controla o próprio tempo. O per gene é o elo entre o tempo “lá fora” e o DNA “aqui den­tro”. Ele literalmente cria o tempo como a mosca-das-frutas o conhece. Na física, Einstein demonstrou que não existe um me­didor de tempo no mundo relativo; um viajante espacial pensa­ria que o relógio de sua nave está tiquetaqueando da maneira ha­bitual, exatamente como faz na Terra. No entanto, se ele atingis­se uma velocidade próxima à da luz, o relógio de fato estaria andando mais lentamente do que aqueles em funcionamento na Ter­ra. Isso não seria uma ilusão; cada processo biológico, inclusive a velocidade com que o viajante espacial envelheceria, também seria mais lento. Será que as moscas-das-frutas estudadas não são o equivalente, no reino dos insetos, ao viajante espacial de Eins­tein? Afinal, elas estão vivenciando o tempo como mais rápido ou mais lento, ainda que não estejam viajando a uma velocidade próxima à da luz, mas a partir de seus próprios sinais internos.

Uma mosca de canto rápido não tem como saber que está vi­vendo no “tempo rápido” (partindo-se da hipótese de que ela está isolada de outros tipos de mosca). Ela emite o mesmo nú­mero de chamados “por dia”, como fazem as normais ou lentas, sem perceber que seu dia (dezoito a vinte horas) está inteiramen­te determinado em seu interior. Mas o que o per gene faz na verdade?

Um outro pesquisador, Michael Young, da Universidade Rockefeller, juntou-se a Konopka e descobriu que o per gene funciona codificando certas proteínas na célula que regulam o ritmo. São essas proteínas, combinando-se e descombinando-se em ciclos, que fazem o dia parecer curto ou longo para a mosca. Genes si­milares e proteínas codificadas também foram encontrados em camundongos, frangos e seres humanos. Isso nos deixa muito mais próximos do entendimento de como o DNA cria toda a realida­de. Ele manipula as moléculas segundo ritmos, ou vibrações, que decodificamos como tempo. Outras vibrações são decodificadas como luz, som, textura, odores etc. Sir Arthur Eddington cha­ma a tudo isso de “fantasias da mente”, pois essencialmente ne­nhum de nossos insumos sensoriais é mais que um sinal trans­mitido a nós por meio do DNA — vibrações puras, abstraías, que transformamos em eventos “reais”, no tempo e no espaço. Se um gene pode regular o tempo, então ele está apenas a um passo de regular o espaço também. De um ponto subjetivo, não existe o tempo e o espaço, mas apenas nossa participação nele. Como a mosca-das-frutas, medimos as horas pelo relógio que existe em nosso interior.

Aqui chegamos a uma encruzilhada. Os biólogos têm consciên­cia de que, se as proteínas de uma célula regulam os ritmos des­sa célula, então algo deve regulá-las. E o que faz isso? Um dos caminhos conduz a uma explicação materialista e, claro, é o que a ciência prefere. Alguns biólogos acreditam que a parede celu­lar deixa que as substâncias químicas a atravessem até determi­nada taxa e que essa taxa é nosso medidor de tempo, nosso reló­gio molecular. Outros dizem que o relógio é, na realidade, um código químico impresso no DNA, que é lido em sequência desde o momento da concepção até a morte. Nenhuma dessas explica­ções permitiu uma análise minuciosa satisfatória. Se os rishis es­tão certos, nunca haverá nenhuma — não existe resposta quando se considera apenas o nível das moléculas.

Como está óbvio a esta altura, os rishis escolheriam um cami­nho diferente e diriam que nosso relógio interno é a inteligência. O per gene não passa de uma peça mecânica, um fio ou válvula no rádio do DNA. O tempo se expressa por meio dele, tal como uma emoção se expressa por meio de um neuropeptídio. O tem­po cavalga uma molécula e, mais uma vez, não devemos confun­dir o cavalo com o cavaleiro. Os sinais para tempo, espaço, mo­vimento, textura, odores, visão e todo o resto do mundo vêm do nível da inteligência silenciosa. Lá é onde realmente vivemos, e o milagre do DNA é mostrar-se capaz de transformar tantas men­sagens abstraías na vida em si.

Se você sai para dar um passeio num dia cálido de outono, sentindo as folhas secas de carvalho sob seus pés, cheirando a terra úmida e generosa, apreciando a luz outonal enquanto ela brinca entre os galhos das árvores, está vivenciando o mundo por meio de seu DNA. Ele impõe uma seleção definida sobre tudo o que existe. Você não sente o cheiro dos gases argônio e xenônio no ar nem vê os raios ultravioletas do sol. Você pode andar sobre as folhas, mas não através dos troncos das árvores. A incrível com­plexidade do musgo verde fica registrada em sua mente como uma placa de partículas finas. Do pólen, esporos, bactérias, ví­rus e outros micróbios que flutuam no ar às centenas em cada centímetro cúbico, você não registra nada. A razão desse foco especial está em você mesmo. São folhas, árvores, odores e luz humanizados.

Se seus sentidos fossem suficientemente refinados, você iria mais longe e tomaria consciência de que é o bosque. Não se trata ape­nas de que ele esteja enviando sinais para você “lá de fora”, mas também que você está mesclando seu próprio sinal ao dele. Ne­nhum de seus órgãos sensoriais está separado do contínuo da na­tureza. Seu olho é um receptor de luz especializado, que se fun­de com a luz que ele percebe. Se não houvesse luz, seu olho se atrofiaria, como acontece com os olhos dos peixes de caverna. Se a estrutura de seu olho se modificasse — por exemplo, se ca­da olho pudesse girar independente do outro, como os de um camaleão —, cada objeto adquiriria relações completamente diferentes no espaço. Essa, então, seria uma experiência sua, e na­da no mundo relativo existe fora da experiência.

Uma abelha que se aproxima de uma flor vê apenas o néctar, bloqueando a visão das pétalas — para o olho da abelha, o que existe é o néctar. Quanto a nós, ver um ímã significa enxergar um pedaço de ferro bem delineado, mas não o campo magnético radiante em torno dele. Portanto, no que diz respeito a nossa vi­são, o que existe é a barra de ferro. Acrescente a isso todos os sentidos e você terá, então, o mundo que você está continuamente criando. Esse mundo foi construído há mais de 600 milhões de anos pelo DNA, e, no entanto, em última análise, ele expressa sua inteligência interior, tendo no DNA um hábil serviçal. O DNA serve você de uma forma que é sua, como serve as outras criatu­ras nas formas que são delas.

O DNA transforma as vibrações de luz em olhos e o som em ouvidos. Transforma o tempo num chamado de acasalamento para as moscas-das-frutas e na marcha da História para o homem. Dá aos morcegos seu sonar e cria a sensibilidade dessas criaturas aos raios infravermelhos. Entretanto, em todo o caso, o DNA é ape­nas o rádio. Ninguém jamais descobrirá o segredo do espaço-tempo olhando para o DNA ou para qualquer outra coisa material. Essa tentativa é tão fadada ao fracasso como se tentássemos desmontar um rádio para encontrar a música. Os rishis encon­traram o nível da música: é a bem-aventurança.

A bem-aventurança é a vibração que a inteligência envia ao mundo. De fato, podemos demonstrar nossa existência nos ter­mos de um único diagrama que abrange mente, corpo, DNA e a bem-aventurança num todo indivisível:

 

                                       DNA

 

                                                     Corpo

 

                   Mente

 

                                                 Bem Aventurança

 

Com muita razão poderíamos denominar essa figura como cír­culo da vida. Nela vemos a bem-aventurança como um sinal con­tínuo, que liga mente, corpo e DNA numa eterna conversa. Os três participantes compartilham igualmente do que é dito — o que a mente sabe é também de conhecimento do corpo e do DNA. As experiências de uma pessoa ressoam nos três níveis. Alguém não pode estar triste, ou feliz, doente, sadio, dormindo ou acor­dado, sem enviar uma mensagem a todos os cantos do espaço in­terior.

Talvez você não acredite que possa “conversar” com seu DNA (outro preconceito que vem de se ver o DNA apenas como um diagrama material), mas, de fato, você o faz continuamente. As substâncias químicas que atravessam você a uma velocidade impressionante a um toque do pensamento, os receptores nas pare­des celulares, que esperam pelas mensagens dessas substâncias, e qualquer outra partícula de vida são fabricados pelo DNA. (Tenho plena ciência de que estou resumindo um longo processo. O DNA fabrica diretamente apenas o material genético, mas, usando seu gêmeo ativo — o RNA —, dá origem a todas as nos­sas proteínas, células e tecidos.) O pensamento ocorre no nível do DNA porque, sem que um neurônio envie um neuropeptí­dio, ou outro mensageiro, não pode haver pensamento.

A técnica aiurvédica denominada “som primordial” tira van­tagem direta desse fato. Desenhei a bem-aventurança como um círculo, para representar um sinal constante, ininterrupto. No en­tanto, pode haver rupturas no círculo, que ocorrem quando o DNA, a mente e o corpo não estão em perfeita sincronia. O Ayur­veda diria que muitas doenças se iniciam quando há uma inter­rupção desse tipo — a bem-aventurança como que escapa de seu sulco, perturbando a inteligência da célula. Para consertar a rup­tura é preciso inserir um sinal específico no círculo — um som primordial. Desse modo, usa-se uma vibração para curar uma vibração.

 

Sei que tratar a doença com um som mental parece algo bas­tante incomum. Para compreender isso, necessitamos estabele­cer um vinculo mais íntimo entre bem-aventurança e campo quân­tico. Por volta da década de 70, os desintegradores de átomos do mundo já vinham funcionando há quarenta anos; e existiam, en­tão, centenas de “hadrons”, uma classe de partículas subatômi­cas que proliferavam com excessiva abundância para ser consi­deradas elementares para qualquer padrão. Teria o universo “ti­jolos” mais simples do que esses hadrons? O modo de sair do dilema foi teorizar que eles não seriam variações de partículas, mas de uma forma de onda subjacente.

Essa forma de onda recebeu o nome de “supercorda”, porque se comporta de maneira semelhante a uma corda de violino. A teoria da supercorda diz que bilhões e bilhões de cordas invisí­veis permeiam o universo, e suas diferentes frequências originam toda a matéria e energia da criação. Certas vibrações também po­dem se transformar em tempo e espaço — o prefixo super indica que essas cordas, na verdade, residem muito além de nossa limi­tada realidade quadridimensional. Ninguém jamais as verá, por mais poderosos que venham a ser nossos instrumentos.

Para esclarecer o que é uma supercorda, o físico Michio Kaku faz uma analogia com a música. Imagine que um violino está fo­ra de vista, sendo tocado dentro de uma caixa. À medida que as cordas vibram, produzem diferentes tons, acordes, sequências de notas e timbres. Se você fosse um alienígena que não soubes­se o que é música, acharia cada uma dessas coisas completamen­te diferentes entre si — a nota dó poderia ser como um átomo de hidrogênio, enquanto o mi bemol seria um fóton. Somente abrindo a caixa e vendo que, na verdade, todos os sons vieram de um único violino, você ficaria convencido de que eles tinham uma fonte unificada.

Da mesma forma, o campo fundamental da natureza está constantemente vibrando e produzindo variações das mesmas “no­tas”, mas nossos sentidos estão organizados de tal maneira que transformam essa igualdade em diferenças. Percebemos o ferro como uma nota sólida, o hidrogênio como uma nota gasosa, a gravidade como uma nota pesada, e assim por diante. Somente com a exposição das supercordas ficaria evidente a unidade sub­jacente, e elas não são expostas abrindo-se uma caixa, mas por meio de fórmulas matemáticas demonstrativas de que todas as formas de matéria e energia se ajustam ao modelo supercorda — e até agora todas elas se ajustam. Portanto, a física quântica tem agora seu primeiro bom candidato a uma teoria do campo unifi­cado, justificando a fé de Einstein na ordem do cosmos.

Por mais impressionante que pareça, os rishis védicos também perceberam que o cosmos era permeado de cordas. Deram-lhes o nome de sutras, do qual deriva a palavra “sutura”, dos cirur­giões. Em sânscrito, sutra pode significar um ponto de costura (ou sutura) e também uma linha ou frase verbal. Se você pensar num sutra como uma linha, então o universo inteiro é tecido co­mo uma teia diáfana, a partir de fios de inteligência, bilhões e bilhões deles. Como notas tocadas no violino escondido, o nível fundamental do mundo todo, segundo os rishis védicos, é feito de sons. Como surgem antes de qualquer outra coisa, eles são primordiais — daí o termo som primordial.

É preciso mais de um som para fazer o universo. No entanto, os rishis tinham um para começar, uma vibração chamada Om, que surgiu na ocasião do Big Bang. Om é uma sílaba sem signi­ficado — trata-se apenas da primeira onda que quebra o silêncio cósmico. À medida que vai se quebrando em muitas ondas me­nores, o Om se subdivide em diferentes subfreqüências que com­põem a matéria e a energia de nosso universo.

Desde que você abra sua mente à possibilidade, não será mais surpreendente que estrelas, galáxias e seres humanos possam ser criados a partir do Om, em vez de a partir de uma supercorda. Ambos são abstratos. Voltando ao violino escondido, Kaku es­creveu: “Os tons criados pela corda em vibração, como um dó ou si bemol, não são mais fundamentais do que qualquer outra nota. O que é fundamental, contudo, é o fato de que um único conceito — as cordas que vibram — pode explicar as leis da har­monia — ou, no caso do universo, as leis da Natureza”.

O Om pode ser representado como uma linha reta cujo tom cai no infinito, como a suprema supercorda. Não é por acaso que a sílaba Om soa como um zumbido; quando os rishis sintoniza­vam com o som do universo, ouviam mesmo um zumbido cós­mico. Se você fosse um iluminado, seria capaz de ouvir sua pró­pria vibração, que é tão individual como uma assinatura; por exemplo, você poderia “ouvir” seu DNA como uma frequência específica vibrando em sua percepção. Da mesma forma, cada neuropeptídio, como qualquer outra substância química, teria ori­gem num som.

Começando pelo DNA, o corpo inteiro se desdobra em mui­tos níveis e, em cada um, o sutra, ou sequência de sons, vem primeiro. Portanto, colocar um som primordial de volta no cor­po é como lembrá-lo da estação em que deveria estar sintoniza­do. Com base nisso, o Ayurveda não trata o corpo como uma pe­lota de matéria, mas como uma teia de sutras.

Nem preciso dizer que levei muito tempo para explicar tudo isso a mim mesmo. Quando comecei a administrar os programas aiurvédicos na clínica de Lancaster, eu mantinha um pé firme­mente plantado em meu consultório particular de médico endocrinologista — embora me sentisse afinado com a teoria aiurvé­dica, ainda estava apreensivo com seus resultados. Eu fazia uma verdadeira ponte aérea entre meu consultório e a clínica todos os dias da semana. Certo dia de outubro, entrei no restaurante da clínica e notei um dos pacientes de câncer, um homem de meia-idade, almoçando tranquilamente numa mesa de canto, em com­panhia da esposa. Ele tinha câncer de pâncreas, uma condição fatal que é também extremamente dolorosa. Quando o homem se internara, cinco dias antes, seu rosto estava cinzento e enruga­do devido a meses de sofrimento. Fui até sua mesa para cumprimentá-lo. Enquanto me aproximava, ele me olhou por aca­so. Foi um desses momentos que fazem o coração parar. Seu ros­to estava relaxado e transmitia impressão de paz; seus olhos mostravam-se inegavelmente tocados pela bem-aventurança. Perguntei-lhe como se sentia e ele me disse que não sentia mais nenhuma dor; depois de quatro dias de tratamento aiurvédico deixara, por si próprio, de tomar todos os analgésicos. Alguns dias depois, o paciente saiu da clínica e, até a época em que fale­ceu, continuou praticamente livre de drogas.

Isso ainda não pode ser considerado uma cura, mas é um grande passo em sua direção. Estou convencido de que a percepção es­taria curando mais pessoas atualmente, se não fizéssemos diag­nósticos tão tardios das doenças, depois que anos de estresse te­nham endurecido a fisiologia, dificultando a penetração da bem-aventurança. Entretanto, o portão está sempre aberto, nem que haja apenas uma fresta. Todas as técnicas de cura aiurvédica atuam dentro da premissa de que em primeiro lugar trata-se o doente e, depois, a doença.

A perspectiva de se tornar novamente uma pessoa sadia, em vez da luta contra um mal que se sabe incurável, dá esperanças a pacientes que, de outra forma, não teriam nada em que se agarrar senão tristes estatísticas. Um aidético da Alemanha foi tratado com o Ayurveda por dois anos, como parte de um programa pi­loto de combate à AIDS. Tendo sido diagnosticado em 1984, ele continua vivo no momento em que estou escrevendo este livro, agosto de 1988 (80 por cento dos pacientes de AIDS morrem den­tro de dois anos após o diagnóstico), e leva uma vida normal, sem nenhum sintoma aparente.

Um programa similar está sendo desenvolvido na Califórnia, tratando aidéticos e mantendo-os sob constante observação clíni­ca para se verificar se tanto a fase ativa como a fase latente da doença podem ser afetadas com o tratamento aiurvédico. Os dois grupos são pequenos e os aidéticos sabem que o Ayurveda não está prometendo uma cura, mas os médicos supervisores afirmam que estão observando melhoras, especialmente na capacidade de os pacientes suportarem a fadiga debilitante que lhes mina a for­ça e a vontade.

A simples extensão do período de latência, dando ao paciente mais alguns anos antes que a doença produza sintomas, seria um avanço importante. No entanto, encontrei um aidético, não liga­do à clínica, que parece ter feito melhor do que isso. Um músico de Los Angeles, de 40 e poucos anos, veio me procurar dois anos atrás para aprender a técnica da bem-aventurança; não o revi até este ano, quando apareceu para aprender o som primordial. Per­guntei como estava passando e ele respondeu que precisava me contar uma coisa — tinha AIDS.

O diagnóstico fora feito quatro anos antes, depois que ele contraíra pneumonia. Sua enfermidade não era típica, causada pelo pneumococo, mas uma infecção por um protozoário chamado Pneumocystis carinii. Essa é uma das doenças mais comuns que atacam os aidéticos quando ocorre o colapso do sistema imuno­lógico. O músico curou-se dessa crise e decidiu mudar de vida. Aprendeu a meditar e, pela primeira vez em sua vida adulta, aban­donou a rotina de noites em claro, bebedeiras, pílulas, fumo e promiscuidade, que estivera ligada a sua carreira. (É interessan­te notar que um estudo de acompanhamento de aidéticos com um período de sobrevivência mais longo demonstra que todos eles tomaram uma decisão do tipo “vou assumir o controle’’, a respeito de sua doença. A medicina comum não consegue expli­car por que essa atitude é um salva-vidas tão bom, mas é assim que ela funciona.)

Dois anos depois que o músico aprendeu a técnica da bem-aventurança, sua saúde havia melhorado a ponto de ele ter um aspecto absolutamente normal. A técnica da bem-aventurança tornou-se o principal foco de sua determinação em derrotar a AIDS.

— Não penso em mim mesmo como estando em luta contra a doença — observou. — Só estou aprendendo como era errada a sensação de angústia e infelicidade em que eu vivia.

Em seu interior, ele começou a vivenciar uma gama de emo­ções muito mais positivas — contou-me que jamais imaginara que poderia ficar viciado em felicidade. Hoje, quatro anos depois do diagnóstico original, esse homem parece perfeitamente saudável e, exceto por alguma fadiga, vive como se a AIDS não existisse.

A cada ano que passa, os congressos internacionais sobre a AIDS revelam maior desânimo no combate à doença. A AIDS é causada pelo vírus HIV e suas mutações — o pesadelo dos pes­quisadores —, pois ele pertence a uma classe de organismos es­pecialmente ardilosos e desnorteantes, denominados retrovírus. Mesmo um vírus normal, como o responsável pelo resfriado co­mum, tem notáveis poderes para enganar o sistema imunológico do corpo.

Ao contrário do que acontece quando reage às bactérias, nos­so DNA misteriosamente se esquece de como lutar contra um vírus invasor — de fato, parece cooperar com ele. Quando um vírus chega à parede celular, é como se ela se derretesse, e ele a penetra sem resistência, sendo praticamente conduzido até o núcleo da célula, onde o DNA, muito prestativo, interrompe suas operações normais e passa a fabricar proteínas para produzir no­vos vírus.

Um vírus de resfriado ou de gripe contenta-se em deixar o DNA fabricar proteínas para ele, mas um retrovírus como o HIV vai além, mesclando-se às combinações químicas do DNA, mascarando-se como material genético da célula hospedeira. Ali ele “dorme” até o dia — que pode chegar anos depois — em que o DNA é disparado para lutar contra outra doença. Então, o retrovírus “desperta” e passa a se multiplicar aos milhões, usan­do a célula hospedeira como incubadora, o que acabará por matá-la. Ela se rompe, soltando uma horda de vírus letais na corrente sanguínea. Cada etapa do ciclo é tão misteriosa e complicada que o vírus da AIDS logo conquistou a fama de ser o mais complexo organismo mórbido já conhecido. Nenhuma droga é capaz de combatê-lo. O AZT, que ajuda a adiar a fase ativa, tem efeitos colaterais significativos, o que impossibilita seu uso em alguns pacientes.

Não tenho a intenção de negar a abordagem típica da medici­na ocidental. Quando surge uma doença que ameaça a vida, é necessário tomar medidas drásticas — nisso todos concordam. Acredito, porém, que encarar a doença como uma distorção da inteligência poderia representar um passo na direção de um ní­vel mais profundo de compreensão e, portanto, do tratamento.

Tanto o câncer quanto a AIDS parecem casos onde a sequên­cia adequada de sutras deve estar se distorcendo no mais pro­fundo dos níveis. Em outras palavras, são falhas de inteligência, como “buracos negros”, onde a bem-aventurança desvia-se de seu padrão normal. O que torna ambas as doenças tão intratá­veis é que esse desvio está muito fundo — trancado no interior da própria estrutura do DNA. Isso faz com que o mecanismo auto-reparador da célula se quebre ou se volte contra si mesmo. No caso do câncer, o DNA parece querer cometer suicídio, ig­norando seu conhecimento sobre a divisão celular correta.

Em ambas as doenças, a distorção da bem-aventurança aparentemente penetra até os campos de força que mantêm o DNA unido. (A física celular é um campo complexo, mas acredita-se que uma célula inicialmente sente os vírus e interage com eles ao detectar suas ressonâncias químicas e eletromagnéticas; esses sinais são interpretados pelo DNA e presumivelmente também conseguem enganá-lo.)

A partir da perspectiva dos sutras, ou sons védicos, deve ha­ver uma distorção na seqüência adequada de inteligência à me­dida que ela vai se abrindo no mundo relativo. Ao “ouvir” o ví­rus em sua vizinhança, o DNA o confunde com um som bené­volo ou compatível, como acontecia com os antigos marinheiros gregos que ouviam o canto da sereia e eram atraídos para a des­truição. Essa é uma explicação plausível quando se toma cons­ciência de que o DNA, que está sendo explorado pelo vírus, não passa de um feixe de vibrações.

Se essa explicação é válida, então o remédio é reformar a sequência inadequada de sons, usando-se o som primordial do Ayurveda (conhecido como Shruti nos textos sânscritos, a partir do verbo que significa “ouvir”). Esses sons são basicamente como moldes de cerâmica — colocando-se o molde na sequência dis­torcida, consegue-se realinhar o DNA rompido. Esse tratamen­to é sutil e delicado em seus efeitos, mas alguns resultados preli­minares têm sido muito interessantes. Uma vez restaurada a se­quência de som, a espantosa rigidez estrutural do DNA nova­mente o protegerá contra novos rompimentos.

Creio que no futuro próximo o Ayurveda florescerá e nos aju­dará a criar uma nova medicina, uma medicina de conhecimen­to e compaixão. Sob seu melhor aspecto, a medicina atual já con­tém esses ingredientes — o sistema médico enfrenta problemas, mas seus males são transcendidos por pessoas dedicadas. Elas serão as primeiras a ver que o Ayurveda não entra em conflito com sua profissão de médico. O Ayurveda só pode auxiliar o pro­cesso de recuperação e trazer a cura até nosso controle.

 

                     O Final da Guerra

Se alguém me perguntasse qual a exata definição de cura quântica, eu responderia: a cura quântica é a capacidade de um mo­do de consciência (a mente) para corrigir espontaneamente os erros em outro modo de consciência (o corpo). Trata-se de um proces­so fechado em si mesmo. Se me pedissem uma definição mais abreviada, eu diria apenas que a cura quântica produz a paz. Quando a consciência se fragmenta, desencadeia uma guerra no sistema mente-corpo. Essa guerra está por trás de muitas doen­ças, originando o que a medicina moderna define como compo­nente psicossomático das enfermidades. Os rishis talvez a deno­minassem “o medo nascido da dualidade” e a considerassem não um componente, mas a principal causa de todas as moléstias.

O corpo enviará vários sinais para indicar que existe uma guerra. Há pouco tempo uma mulher franco-canadense veio me procu­rar porque sofria do mal de Crohn, uma grave perturbação in­testinal caracterizada por diarréia crônica, incontrolável e acom­panhada de dolorosa inflamação. Embora a causa do mal de Crohn seja desconhecida, sabe-se que ele ataca principalmente jovens adultos e pode estar ligado a uma deficiência no sistema imuno­lógico. O trato intestinal é muito sensível a estados emocionais e, no caso dessa paciente, não me surpreendi ao ouvir que ela trabalhava longas horas sob forte tensão em uma agência de pro­paganda no centro de Boston.

Depois de conversar um pouco com ela, descobri que, alguns anos antes, aprendera a meditar. Perguntei se ainda se entregava à prática e a paciente respondeu que não tinha tempo; quando ocasionalmente sentava-se para meditar, não adiantava muito, por­que em geral adormecia em poucos minutos.

Então, eu quis saber se ela havia adaptado sua dieta para aju­dar sua condição, se diminuíra o ritmo de vida ou se pensara em se transferir para um emprego menos estressante. Demonstran­do certa impaciência, a mulher respondeu não, de novo — não pretendia permitir que aquela doença, que lhe causava tantas di­ficuldades, governasse sua vida.

— Olhe — falei —, você tem uma doença muito grave. Se essa inflamação persistir, talvez seja necessário operá-la para se reti­rar partes do intestino. E então, o que você vai fazer?

A paciente estava muito a par de sua enfermidade, e não tive de me alongar muito sobre algumas tristes possibilidades que a esperavam. A cirurgia em questão envolve considerável desfigu­ração, já que, ao se remover parte do intestino, é preciso colocar um tubo e bolsa externos para se recolher a eliminação. Apesar de todo esse desconforto, a doença não está curada e tende a vol­tar em outras partes do intestino.

— É por isso que estou aqui — respondeu a mulher. — Quero uma técnica mental que me ajude a continuar a levar uma vida normal.

Eu via o resultado do que os rishis chamavam de Pragya aparadh, o equívoco do intelecto. O corpo da paciente estava gritan­do por cura, e era o que pedia sempre que a mulher tinha uma crise. Ela nem mesmo podia fechar os olhos para meditar, sem que o corpo se agarrasse em desespero a algum tipo de alívio sob forma de sono. No entanto, sua mente interpretava esses gritos de socorro como irrelevantes ou aborrecidos. A mulher insistia em levar uma “vida normal” extremamente estressante, que seu organismo não estava preparado para suportar.

— Esse não é um tipo de doença contra o qual você pode lu­tar — falei —, porque não há ninguém para combater a seu lado.

Expliquei que os mesmos neuropeptídios que registravam o estresse em seu cérebro eram produzidos em seu intestino. Quan­do ela sentia medo, frustração ou preocupação, emoções idênti­cas estavam sendo vivenciadas em seu abdome — literalmente idênticas.

Acrescentei que, em minha opinião, ela não necessitava de uma nova técnica mental — precisava deixar seu corpo fazer o que que­ria, ou seja, curar-se. O melhor meio de cooperar para isso era dar ao corpo o descanso que ele estava exigindo, meditar, modi­ficar a dieta e se dar conta de que nenhuma gratificação extraída do emprego poderia superar o perigo em que se colocara. A na­tureza procurava lhe dizer algo muito importante e, uma vez que prestasse atenção a ela, seus problemas se corrigiriam por si.

— Em um caso como o seu — prossegui —, você já tem o me­lhor remédio com o qual poderia sonhar... sua própria atenção. Neste momento, a qualidade dessa atenção é temerosa e tensa, e por isso não há melhora. No entanto, assim que sua percepção se assentar e perder o medo, seu corpo irá se recuperar. Só de­pende de você.

A paciente ouviu-me com interesse, mas senti que não estava gostando do que eu dizia. O equívoco do intelecto é insidioso. Ele se recusa a acreditar que tudo está acontecendo numa reali­dade mente-corpo e cria a ficção de que o corpo doente está em algum outro lugar, em qualquer lugar que não seja aquele em que se encontra.

A enfermidade é um nítido sinal de que há uma guerra em andamento. De acordo com o Ayurveda, o conflito está se de­senrolando “aqui dentro”, ao contrário do que afirma a teoria da doença causada por micróbios, que procura nos dizer que a guerra começou “lá fora”, por invasores de todos os tipos — bac­térias, vírus, carcinógenos etc. — que estão à espreita, prontos a nos atacar. Contudo, pessoas saudáveis vivem entre esses peri­gos com muita segurança. Somente quando o sistema imunológico falha, como no caso da AIDS, nos conscientizamos de que nossa pele, pulmões, mucosas, intestinos e muitos outros órgãos aprenderam a coexistir com organismos externos em delicado equi­líbrio. A pneumonia que os aidéticos habitualmente contraem é causada por uma variedade do pneumocystis, sempre presente nos pulmões de todos nós. O vírus da AIDS ativa essas enfermida­des de dentro para fora, ao demolir uma parte do sistema imu­nológico (as células-T), rompendo assim a rede de informações que nos mantém como um organismo.

De fato, somos essa rede, que se projeta no mundo como cor­po, emoções e ações. A rede também não termina conosco. A idéia simplista de que os micróbios são nossos inimigos mortais é ape­nas meia verdade, porque eles também fazem parte dessa rede. Todo o mundo vivo está indissoluvelmente ligado ao DNA, que ao longo de um canal evoluiu como bactérias, em outro como plantas e animais e num outro ainda como ser humano. O am­biente “lá fora” coopera com o “aqui dentro” como duas pola­ridades, em certo sentido completamente opostas, mas em outro totalmente complementares. Se você olhar para a realidade do ponto de vista de todo o DNA, não apenas o humano, então há uma rede global de informações que deve ser mantida viva e saudável.

Os vírus, por exemplo, são capazes de sofrer mutações muito rapidamente — é por isso que a vacina que o imuniza contra a gripe deste ano em geral não será eficaz no próximo. O vírus da gripe já deve ter sofrido mutação em algum lugar do mundo, transformando-se numa linhagem completamente diferente. (Um dos muitos talentos inauditos do vírus da AIDS é sua capacida­de de sofrer mutações cem vezes mais rápido do que um vírus típico, como o causador da gripe.) Os pesquisadores recentemente especularam se o motivo pelo qual os vírus sofrem mutações com tanta rapidez está na necessidade de acompanharem o passo do surgimento de novas variantes de bactérias, levando assim, a to­das as partes do planeta, a notícia de que a vida está mudando.

Pegar uma gripe, portanto, é como se atualizar com as notícias. Seu DNA fica sabendo sobre as alterações que estão desa­fiando o DNA do mundo e, então, enfrenta o desafio, não de forma passiva, mas ativamente. Ele precisa provar sua viabilida­de sobrevivendo ao vírus. O sistema imunológico se apressa a enfrentar o invasor, e eles se engalfinham em batalhas, molécula contra molécula. Toda a operação ocorre num átimo, e não há espaço para erro. As células macrófagas avançam rapidamente para descobrir a identidade dessa nova forma de vida, sondar suas fra­quezas vitais; em seguida, mobilizam o material genético em seu próprio DNA, que romperá as moléculas do vírus, tornando-as inofensivas.

Ao mesmo tempo, as células imunológicas também destroem qualquer uma das células do corpo que deram abrigo ao invasor. Essas células hospedeiras infectadas ainda não morreram de gri­pe. Elas estão empanturradas de vírus vivos que constituem uma ameaça, mesmo depois de as células imunológicas terem elimi­nado toda a gripe que circula na corrente sanguínea. Para matar uma célula hospedeira infectada, certas células imunológicas (as células-T, exterminadoras) prendem-se externamente a ela e fa­zem buracos na parede celular. Como um pneu que se esvazia, a célula hospedeira perde seu conteúdo líquido e vai murchan­do, até morrer.

No entanto, a célula hospedeira não é apenas eliminada; seu DNA também é destruído por outros sinais vindos das células imunológicas agressoras. Esse é um aspecto absolutamente fas­cinante de todo o processo. O que realmente acontece é que um pedacinho de seu DNA (a célula imunológica) está destruindo outro pedacinho de seu DNA (a célula hospedeira), que de fato não passa de uma cópia de si mesmo. A única diferença entre os dois é que o segundo pedacinho de DNA, o do interior da célula hospedeira, cometeu o equívoco de cooperar com o vírus da gripe. Ninguém sabe por que isso acontece. Como vimos no capítulo anterior, nossas células misteriosamente deixam-se ma­tar de dentro para fora, quando os vírus as atacam. Em termos físicos, o vírus não é páreo para a célula, pois é milhares de vezes menor e menos complexo. Como escreveu um médico, é como se uma bola entrasse pela janela de um arranha-céu e todo o pré­dio ruísse.

Você poderia pensar que equívocos desse teor demonstram a imperfeição da inteligência do corpo, mas isso seria superficial demais. O que realmente acontece num caso como o que descre­vi é um notável exemplo da cura quântica em funcionamento; de fato, a idéia de que está havendo uma guerra é outra meia verdade, pois, quando um pedacinho do DNA destrói outro, es­tamos sendo testemunhas de um processo totalmente autocontido. Cada segmento da reação contra a doença, desde as células patrulheiras, que de início vão de encontro ao invasor, às células hospedeiras, que o abrigam, aos macrófagos, às células-T ajudan­tes, às células-T exterminadoras, às células-B e assim por diante, são todos o mesmo DNA expressando suas várias capacidades. Em outras palavras, o DNA decidiu montar, em seu próprio fa­vor, um drama em que todos os personagens são desempenha­dos por ele mesmo.

Por que o DNA usaria uma máscara para sucumbir ao vírus e outra para avançar e destruí-lo? Ninguém até agora conseguiu uma resposta para essa profunda questão, mas ela deve ter sua lógica no esquema da vida, o drama maior encenado por todo o DNA do mundo. Só posso especular que estamos presencian­do o DNA enriquecer a vida, acrescentando-lhe o máximo de variações que possivelmente podem existir no planeta.

Nada do que acontece ao DNA é perdido; tudo fica no inte­rior do sistema autocontido. Uma vez derrotado o vírus da gri­pe, o DNA registra o combate produzindo novos anticorpos e “células de memória” especializadas, que ficam flutuando no sis­tema linfático e na corrente sanguínea por anos seguidos, aumen­tando o imenso depósito de informações que o DNA vem acu­mulando desde que a vida começou. É assim que ele faz de você um ator no palco do mundo.

Quando olho pela minha janela, vejo uma via expressa com várias faixas de circulação, onde os carros trafegam em alta velocidade. De tempo em tempo, um avião a jato passa mais baixo, assustando um bando de pássaros. Gaivotas circulam pelo céu, pois estou a uns 40 quilômetros do mar e posso sentir o cheiro característico do oceano, rico em vida marinha. Todo esse espe­táculo, inclusive eu, é a peça teatral do DNA, que foi projetada a partir de uma molécula cuja responsabilidade é desdobrar-se em nova vida, sem jamais comprometer a vida como um todo. Alguém, certa vez, estimou que o DNA de todas as pessoas que já viveram caberia numa colher de chá; no entanto, se o DNA contido no núcleo de uma única célula do corpo fosse desenrola­do, seus fios, colocados uns após outros, mediriam 1,5 metro. Isso significa que o filamento genético contido nos 50 trilhões de células do corpo tem 75 bilhões de metros de comprimento — o bastante para ir e voltar à Lua 100 mil vezes. Os Vedas di­zem que a inteligência do universo se estende “do menor dos menores até o maior dos maiores”, e o DNA é a prova física des­sa afirmação.

Portanto, deve ser errado pensar que o conflito seja a norma. Em geral, existe paz entre seu DNA e os DNAs que estão “lá fora”. Para cada vez em que foi necessária uma guerra contra uma doença, existem dezenas, senão centenas, de vezes em que seu corpo venceu um ataque sem nenhum sintoma externo. Só quando há uma distorção “aqui dentro” é que o sistema imunológico per­de sua capacidade de defender, curar e lembrar em completo si­lêncio.

Tendemos a esquecer que a paz é a regra. Os psiquiatras e sociólogos aceitam como certo que o homem moderno está profundamente dividido em sua psique. O aumento dos males relacionados ao estresse, à depressão, à ansiedade, à fadiga crônica e à “doença da pressa” são sinais dos tempos. O ritmo frenético de trabalho, da vida em geral, acostumou-nos ao tumulto. Hoje, as pessoas já estão plenamente doutrinadas pela idéia de que um certo grau de conflito interno é normal. A guerra, parece, foi ini­ciada por nós e está fazendo suas baixas, como sempre acontece.

Tudo isso é o que eu gostaria de ter explicado a Chitra, a jo­vem mulher com câncer no seio cuja história abriu este livro. Ela teve a sorte de receber uma cura que pareceu milagrosa; no en­tanto, enquanto eu escrevia estes últimos capítulos, seu caso modificou-se por completo. As células do câncer haviam sido der­rotadas, mas não a memória delas. Como Chitra continuava ex­tremamente ansiosa com a possível volta da doença, concorda­mos que deveria prosseguir com a terapia convencional. Ao mes­mo tempo, ela prometeu praticar a meditação e a técnica da bem-aventurança que eu lhe ensinara. Fiquei sem vê-la por um mês, e, então, Chitra ligou dando-me más notícias; seus médicos ha­viam detectado uma dúzia de pequenas sombras em sua tomo­grafia e as haviam interpretado como câncer cerebral. Domina­da por extremo pavor, ela começou uma radioterapia intensiva, desta vez acompanhada de quimioterapia experimental. Mas es­tava enfraquecida pela contenda anterior com o câncer de seio e sofreu graves efeitos colaterais, inclusive depressão. Parou de meditar e não voltou mais para o tratamento aiurvédico. A con­tagem de plaquetas em seu sangue caiu violentamente — as pla­quetas são células críticas no processo de coagulação —, o que significava que seria perigoso demais prosseguir com a quimio­terapia. Os médicos constataram que a medula óssea estava pro­duzindo anticorpos que atacavam suas próprias plaquetas (pro­vavelmente uma reação às muitas transfusões que Chitra recebe­ra) e pensaram num transplante de medula. No entanto, antes procuraram trocar o plasma sanguíneo. Durante o procedimen­to, Chitra teve uma crise e logo desenvolveu grave anemia e uma série de infecções.

A essa altura, seu caso estava se tornando um desastre cres­cente. Ela recusou uma outra transfusão de sangue, apavorada com a idéia de pegar AIDS. Devido à agitação, precisou ser me­dicada com morfina e Valium, administrados por via intraveno­sa. Sua percepção foi ficando cada vez mais embotada e pouco depois Chitra entrou em coma, provavelmente devido ao choque, ao que se seguiu uma pneumonia. Os médicos informaram seu marido de que ela talvez não se recuperasse e, um dia depois, Chitra morreu. Ela não foi vítima do câncer, mas do tratamento, e não posso deixar de pensar que a morte por câncer talvez fosse mais humana.

O falecimento dessa inocente e dedicada jovem foi um grande golpe para todos aqueles que a conheciam. Embora eu não tives­se consolo a oferecer, liguei para Raman, o marido, que estava terrivelmente abalado. Durante alguns meses nós dois havíamos visto Chitra entrar na luz da vida e voltar para a sombra da mor­te, compartilhando com ela extremos de alegria e de desespero. Foram feitos sinceros esforços para salvá-la, porém não posso me livrar do sabor amargo de conhecer, como todos os médicos, a barbárie de nossa atual abordagem do câncer.

Diariamente, um médico especializado na área vê pacientes que se submeteram a algum devastador tratamento de câncer que foi considerado bem-sucedido porque as células doentes desapare­ceram, mas se esquece do enfraquecimento do corpo como um todo, do constante perigo da volta do câncer causado pelo trata­mento em si e do permanente estado de medo e depressão que tão comumente acompanha a cura. Viver em constante temor, mesmo sem câncer no corpo, não é um bom estado de saúde. A guerra não acabou; desapareceram apenas os conflitos aber­tos, cedendo lugar à guerrilha clandestina.

A atual filosofia no tratamento do câncer é que a mente terá de aguardar enquanto o corpo suporta a devastação. Em outras palavras, encoraja-se um combate aberto no sistema mente-corpo. Como isso pode ser chamado de cura? Num choque entre men­te e corpo, o paciente está lutando nos dois campos, pois trata-se de sua mente e de seu corpo. Não está claro que, quando surgir um perdedor, o derrotado será ele mesmo?

O aspecto vital não é como ganhar a guerra, mas como manter a paz. O Ocidente não chegou a esse discernimento nem com­preendeu que a manifestação física de uma doença é um fantas­ma. As células cancerosas que os pacientes temem e os médicos combatem são apenas fantasmas — elas vão e vêm, despertando esperanças e desespero, enquanto o verdadeiro culpado, a me­mória que cria a célula cancerosa, continua sem ser detectado. O Ayurveda nos dá os meios de chegarmos diretamente ao nível de consciência capaz de exorcizar essa memória. Pensando em Chitra, imagino quanto tempo levaremos antes de ampliarmos nossa visão. Pedimos heroísmo de pacientes numa hora em que têm muito pouco dele a dar, ou os tratamos como estatísticas, transformando a sobrevivência num jogo de números. O Ayur­veda nos manda colocar a responsabilidade pela doença num ní­vel mais profundo de consciência, onde também poderá ser en­contrada uma cura em potencial.

Dizer que a profunda percepção de um paciente seja respon­sável por seu câncer é algo que perturba muitas pessoas — e é assim que deveria ser. O Ayurveda, como eu o vejo, não concor­da que exista uma, assim chamada, personalidade cancerosa nem aceita que emoções superficiais, estilos de comportamento e ati­tudes causem câncer. Alguns pesquisadores estão convencidos de que pacientes que reagem com desânimo e depressão ao câncer têm maior probabilidade de morrer da doença do que os que pos­suem um forte componente em sua personalidade — cujo nome é “vontade de viver”. Isso parece indiscutível, mas será que ajuda?

Uma pessoa afetada pelo câncer passa naturalmente por ciclos de emoção; sua vontade de viver é suscetível a loucas oscilações, de um extremo a outro. Isso não é motivo para se esperar o sur­gimento do perfil de uma “personalidade cancerosa típica”. (Parte das pesquisas originais que supostamente comprovaram a exis­tência da “personalidade cancerosa típica” baseou-se em gru­pos de dimensões insignificantes, alguns com apenas 25 mulhe­res, todas com um único tipo de câncer, o de seio.) Por que os psicologicamente sadios, que já dispõem de uma vantagem tão grande, seriam os únicos com esperanças de cura?

Essa não é uma pergunta inútil. Recentemente eu estava num avião e por acaso sentei-me ao lado de uma mulher de uns 60 anos, cheia de vivacidade. Logo vi que era uma americana do tipo clássico — vigorosa, prática, muito decidida em suas opiniões. Sua família vivia no Estado do Maine há gerações e se tor­nara muito próspera. Como meus pensamentos estavam todos vol­tados para as questões relativas ao tratamento do câncer, o as­sunto logo surgiu em nossa conversa.

A senhora ergueu o queixo num gesto decidido.

— Não creio que todos esses médicos saibam do que estão fa­lando — declarou. — Minha mãe teve câncer de seio em 1947. Foi internada para a remoção do caroço e depois voltou para ca­sa para cuidar dos quatro filhos. Meu pai implorou-lhe para re­tornar a Boston e fazer uma mastectomia, mas ela disse que esta­va ocupada demais para isso e também para ficar doente. Conti­nuou levando uma vida perfeitamente normal. Depois de algum tempo, meu pai conseguiu convencê-la, e ela submeteu-se à mas­tectomia. Ficou por isso, pois na época não existia radioterapia ou quimioterapia.

— O que aconteceu com ela? — perguntei.

— Nada — respondeu a mulher. — Minha mãe viveu mais doze anos, até estar com mais de 70, quando teve uma pneumonia. A família toda reuniu-se em torno de seu leito, ela despediu-se de nós e três dias depois morreu.

Ouvindo essa história, de repente vi, com um misto de pasmo e tristeza, o que ela revelava — o paradoxo de ser normal. É absolutamente normal estar-se ocupado demais para ficar doente, pois esse é exatamente o tipo de conscientização que o sistema imunológico adora. Quando você é você mesmo e não um “doente de câncer”, a complicada corrente da resposta imunológica, com suas centenas de operações precisamente cronometradas, põe-se a trabalhar com sede de vingança.

Porém, quando você se entrega ao medo e ao desamparo, a corrente se quebra. Você começa a enviar para fora os neuropeptí­dios associados a emoções negativas, estes se prendem às células imunológicas e a reação imunológica perde sua eficiência. (Não se sabe exatamente por que isso acontece, mas a queda no estado imunológico de pacientes deprimidos está bem documentada.) Aqui entra o paradoxo: se você reagisse ao câncer como se ele não fosse grande ameaça, do modo como reage a uma gripe, te­ria melhores probabilidades de se recuperar. Contudo, um diag­nóstico de câncer faz com que todo paciente sinta-se completa­mente anormal. O diagnóstico em si dá início ao círculo vicioso, como uma cobra que vai comendo o próprio rabo até desaparecer.

O motivo de eu ter ficado ao mesmo tempo triste e atônito foi que, de repente, me dei conta de como o sistema imunológico é, ao mesmo tempo, infinitamente belo e terrivelmente vulnerá­vel. Ele forja nosso elo com a vida; no entanto, este pode se que­brar a qualquer momento. O sistema imunológico conhece to­dos os nossos segredos, todos os nossos sofrimentos; sabe por que uma mãe que perdeu um filho pode morrer de pesar, porque ele mesmo já morreu de pesar antes dela. Ele conhece cada momen­to que um doente de câncer passa na luz da vida ou na sombra da morte, porque transforma esses instantes na realidade física do corpo.

O câncer, ou qualquer outra doença, não é mais do que a sequência desses momentos passageiros, cada um com emoções pró­prias e com uma química mente-corpo particular. Em outras pa­lavras, as células doentes são um ingrediente entre incontáveis outros; apenas são mais intangíveis. O Ayurveda afirma que muitas condições diferentes interagem para criar a doença — o organis­mo causador da enfermidade desempenha um papel nela, mas é ajudado pela resistência imunológica do enfermo, pela idade, pela dieta, pelos hábitos, pela época do ano e por muitos outros fatores que contribuem para o eventual resultado clínico. Estu­dos médicos ocidentais provaram fartamente que o estilo de vida e a estrutura emocional da pessoa influem em seu estado de saú­de, mas nos falta a onisciência para avaliarmos todos esses fato­res. Um doente de câncer tem toda uma vida atrás de si, povoa­da de pensamentos, ações e emoções que ninguém mais com­partilha com a mesma exatidão.

O fato de as emoções jazerem tão fundo não significa que os cancerosos não consigam alterá-las. Pessoas podem ser salvas de seus sentimentos de desânimo e impotência, chegando a um nível ainda mais profundo. Não importa se alguém está envolvido em grande desespero ou enorme autoconfiança, pois ambas as emoções são fantasmas. Por isso o Ayurveda dedica muito me­nos atenção às emoções superficiais do que a atual medicina psi­cossomática. O fundamento racional de a medicina védica tratar o câncer (ou a AIDS) com as técnicas do som primordial e da bem-aventurança está em que esses são apenas níveis de cons­ciência comuns a todos, tanto aos fortes como aos fracos.

O próximo caso é o mais bem-sucedido até agora no tratamento de câncer com essas técnicas. A paciente é uma mulher com quase 40 anos, chamada Eleanor. Em 1983, quando morava no Colo­rado e trabalhava numa companhia de computação, ela recebeu o diagnóstico de câncer de seio em estado avançado, já com metástases nos nódulos linfáticos da axila. Os médicos a submete­ram a duas mastectomias em pouco tempo. A paciente reagiu mui­to mal à radioterapia e à quimioterapia que se seguiram. Incapaz de tolerar os efeitos colaterais, Eleanor abandonou o tratamento, embora tivesse sido alertada pelos médicos de que o câncer já se espalhara para os ossos. Os cancerosos com esse tipo de me­tástase têm apenas cerca de 1 por cento de probabilidade de so­brevivência.

Acontece, porém, que em 1986, em plena doença, Eleanor começou a prática da meditação a conselho de seu médico de famí­lia. Por intermédio da MT, ela ficou sabendo do Ayurveda. Internou-se na clínica de Lancaster, onde passei a atendê-la e a instruí-la no som primordial, para o tratamento do câncer. Os resultados foram notáveis. As fortes dores causadas pela doença nos ossos desapareceram (esse incidente já foi mencionado an­tes, no capítulo 9) e sempre que Eleanor voltava para casa para novas radiografias seu médico encontrava cada vez menos bolsões de câncer ósseo.

Já havia passado muito tempo para que essas regressões tivessem sido causadas pelo tratamento anterior. Em geral, um tu­mor bombardeado com radiação ou atacado pela quimioterapia encolhe muito rapidamente. Se Eleanor sobreviver mais dois anos, entrará na lista privilegiada de pacientes que venceram todas as probabilidades. No entanto, o que eu quero deixar bem claro aqui é a completa mudança que ocorreu nela. Pedi-lhe para escrever a história de sua doença, partindo de um ponto de vista interior para o exterior. O que me enviou é um notável documento. Inicia-se com o momento mais angustiante de sua vida, quando ela es­tá prestes a entrar na sala de operações para se submeter à am­putação do seio:

 

Ainda não anestesiada, estou deitada na ante-sala do cen­tro cirúrgico do hospital City of Hope. Uma enfermeira passa carregando um enorme seio num saco de plástico. Meus seios me parecem tão pequenos, inocentes e desamparados. Eu havia amamentado meus filhos e me sentia bem a respeito de meus seios; eram bonitos, femininos e macios — eu confiava neles. Agora, só estou deitada aqui, esperando alguém tirar fora pelo menos um deles.

Estou trêmula e assustada. Cada nervo de meu corpo parece estar gritando por ação, querendo fugir antes que seja tarde demais, mas empurram minha maca para a sala de operação. Sinto que estou entregando meu corpo a um estupro de degradação. Tenho 35 anos e tudo isto está indo contra meu sentido do que é correto.

Terminada a operação, começa o impacto emocional. A imagem que tenho de meu corpo é ruim — não quero que os médicos me vejam, muito menos meu marido. Estou mais do que nua. Estou me despindo de minha forma feminina, infectada pelas semanas seguintes, presa a tubos ligados a drenos em meu corpo. Os vidros de tampa vermelha tilin­tam quando tento andar.

 

Com o passar dos dias, Eleanor recuperou-se o suficiente para começar seis meses de quimioterapia. De início, disseram-lhe que suas probabilidades de cura eram altas, mas, quando fizeram uma mamografia do seio restante, constataram a presença de câncer.

Foi marcada nova mastectomia.

 

Agora quero mesmo fugir. Durante meses ouvi dizerem que eu tinha câncer; depois, que não tinha; depois, que ti­nha de novo. Estou tão cansada de cirurgias e de incerte­zas! Tenho febre, horríveis suores noturnos, sofro dores, humilhação, dúvidas sobre meu corpo, meu espírito, meu se­xo — tudo. Tudo em que confiei me traiu.

Câncer bilateral, mastectomia bilateral e, por fim, reconstrução bilateral dos seios. Espero que isso seja o fim e que eu possa ir me recuperando dos outros sintomas. Depois, ficar boa de novo, apesar das desvantagens.

 

Logo depois, Eleanor começou a praticar a MT. De início, ti­nha reservas e até mesmo ceticismo, mas isso deu lugar a “um sentido de aceitação interior”. Passados quatro meses, ela desco­briu que estava grávida. Os médicos lhe haviam dito que a qui­mioterapia a deixaria estéril, o que acontece com cerca de 25 por cento das mulheres mais jovens, subindo a 85 por cento em mu­lheres com mais de 40 anos. Para as que não ficaram estéreis, dar à luz é extremamente arriscado, mas para Eleanor a idéia de ter outro filho tinha especial importância:

 

Para mim, essa gravidez era um símbolo de plenitude e entrosamento com a Natureza. Era um milagre, e eu estava feliz. Então, quando ouvi de meus médicos que devia abortar para salvar minha vida, tive a impressão de estar vivendo um pesadelo. Com o prosseguimento da gravidez, fiquei ain­da mais doente. Explicaram-me que meus exames indica­vam câncer estrógeno-positivo e que as chances de sobrevi­vência eram mínimas. Enfrentei tudo e continuei gerando meu filho, uma decisão que me trouxe paz.

 

Depois do parto bem-sucedido de um menino, Eleanor desco­briu que o câncer retornara, dessa vez atacando os ossos:

 

De volta ao câncer, e o passeio na montanha-russa recomeçou. Os médicos do City of Hope predisseram que eu viveria “talvez mais seis meses, mas provavelmente não mais de dois anos”. (Isso aconteceu há catorze meses, em março de 1987.) O câncer avançara muito para o interior dos os­sos (as radiografias revelaram uma dúzia de locais cancero­sos, em especial nas costelas e vértebras) e eu me sentia muito doente, literalmente arrebentada até os ossos. O plano de tratamento previa doses maciças de quimioterapia “pelo resto de sua vida”, o que dava a impressão de que eu não ficaria neste mundo por muito tempo.

 

Eleanor reagiu mal à quimioterapia e, a conselho do médico de família, que sugerira a MT antes, procurou a clínica de Lan­caster em junho, para fazer o tratamento aiurvédico. Quando a examinei, reconheci que estava mesmo gravemente enferma. Não podia lhe prometer uma cura, mas disse-lhe que havia mais pos­sibilidades do que ela poderia imaginar — seu núcleo interior não fora violado pelo câncer, e tentaríamos fazê-la entrar em contato com ele. Depois de duas semanas, Eleanor começou a sentir-se muito melhor, tanto física como mentalmente, e saiu da clínica sem dores. Parece que esse foi o momento decisivo:

 

Depois de voltar ao trabalho, à quimioterapia e às dúvidas, aconteceu algo especial. Certa manhã, uma pomba en­trou voando num dos armazéns da companhia, e ninguém conseguiu espantá-la de lá. Duas ou três horas mais tarde, quando cheguei para o trabalho, a pomba me seguiu enquanto eu subia as escadas e pelos corredores, até minha sala; depois, pousou tranquilamente em minha escrivani­nha, bem a minha frente. Peguei-a com toda a delicadeza e no mesmo instante senti-me dominada pela emoção, en­quanto compartilhávamos o conforto uma da outra.

Alguns meses se passaram depois que a soltamos no cam­po. Em setembro, fiquei sabendo que a tomografia de meus ossos não mostrava nem piora nem melhora. A quimiotera­pia estava me causando muitos efeitos colaterais. Eu não pre­tendia abandoná-la, mas os hemogramas indicavam conta­gens sempre ruins, o que significava que o tratamento de­via ser interrompido, ao menos temporariamente. Assim que parei, comecei a me sentir melhor, e então decidi que não continuaria com a quimioterapia, mesmo arriscando-me a morrer.

Em dezembro, voltei a Lancaster. Minha estada lá foi maravilhosa; haviam chegado certas ervas especiais para mim, e aprendi a técnica do som primordial para usar em casa. No final de dezembro, outra tomografia dos ossos não reve­lou alterações. Isso confirmou minha crença de que a quimioterapia era superficial. Continuei com minhas técnicas e, quando fiz nova tomografia em março, três meses depois, ela revelou que todas as bolsas de câncer, exceto uma bem pequenina, haviam desaparecido.

O radiologista sorriu e disse que não sabia como isso podia ter acontecido sem a quimioterapia. Ele abraçou-me e, quando eu saía, falou: “Isto vai entrar para a História”. Meu médico de família ligou para o radiologista para obter uma interpretação completa dos exames: assim que desligou, disse-me que eu estava quase completamente curada.

Não pude conter as lágrimas ao ouvir a notícia. Imaginei como eu pudera duvidar desse resultado. Tocada pelo amor e pela perfeição da Natureza, só sentia um único, suave de­sejo de me sentar de novo na terra, cercada de paz, numa celebração de flores da primavera, e desfrutar de tudo o que acontecera e do que sou.

Para encerrar, devo acrescentar que sou realista; compreen­do a abordagem típica do Ocidente quanto a este evento. Também sei que existem grandes possibilidades aqui. To­das as verdades de minha experiência, de certa forma, se somam numa única verdade, mas, quando penso que a cap­tei, ela foge de mim. Fico, então, me sentindo humilde e um tanto tola por tentar dividir a plenitude. Entretanto, es­tou muito, muito tranqüila e em paz, depois de ter tido tantas provas de que a plenitude é a perfeição.

 

Eleanor progrediu muito. No ano passado estava na pior cate­goria para sobreviver a sua doença; agora, muitas autoridades como o dr. Ikemi considerariam seu caso como uma regressão espon­tânea. Seu estado geral de saúde é bom; não existem sinais de debilitação. Oito meses depois de se submeter à última quimio­terapia, o câncer de ossos foi desaparecendo até só restar uma pequena sombra nas radiografias, e não está definitivamente pro­vado que ela seja cancerosa. A química sanguínea de Eleanor, que se tornara anormal devido à doença ativa, agora voltou aos padrões normais — uma prova muito maior do que a fornecida pelas radiografias de que Eleanor está se recuperando.

Eu não temo por ela agora, mesmo se tiver de recomeçar sua batalha. Eleanor está além de batalhas — ela irradia a paz sobre a qual escreve, e conversar com ela faz com que me sinta feliz e seguro, sobretudo porque compreendo como é rara essa paz. Eleanor descobriu a alegria a partir do desespero da doença. No instante em que a memória da saúde voltou, trouxe-lhe poder suficiente para durar uma vida inteira.

 

                                                                                Deepak Chopra  

 

DEEPAK CHOPRA nasceu na Índia em 1947 e lá se formou em medicina. Desde 1971 exerce a profissão nos Estados Unidos, onde foi chefe de equipe do New England Memorial Hospital. Em 1985, tornou-se presidente-fundador da Associação Americana de Medicina Védica. Hoje é diretor do Maharishi Ayurveda Health Center em Lancaster, Massachusetts, e também professor-assistente de ciências médico-sociais na Escola de Medicina da Universidade de Boston. Realiza conferências sobre saúde e autoconscientização nos EUA e em diversos países. Esteve no Brasil em 1988 para o lançamento de seu livro Conexão Saúde.

 

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