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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CURVA DO SONHO / Ursula K. Le Guin
A CURVA DO SONHO / Ursula K. Le Guin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Você e Confúcio são ambos sonhos, e eu, que digo que vocês são sonhos, sou eu mesmo um sonho. Isso é um paradoxo. Amanhã, um homem sábio poderá explicá-lo; esse amanhã não virá em dez mil gerações.
CHUANG TSE: II

LEVADA PELA CORRENTE, LANÇADA PELAS ONDAS, pelo oceano com toda a força, a água-viva está à deriva nas profundezas marinhas. A luz a atravessa e a escuridão a penetra. Levada, lançada, impelida de lugar nenhum a lugar algum - pois no fundo do mar não há referência, apenas próximo ou distante, superior e inferior -, a água-viva flutua e oscila; suas pulsações internas são delicadas e rápidas nas ondas atraídas pela Lua em meio às enormes pulsações causadas pela rotação da Terra. Flutuando, oscilando, pulsando, a mais vulnerável e exígua das criaturas têm como proteção a violência e a força de todo o oceano, ao qual confiou sua existência, seu movimento e sua determinação.
Mas aqui se erguem os obstinados continentes. Os bancos de cascalho e as falésias rochosas irrompem da água para o ar, esse espaço exterior seco e terrível, de esplendor e instabilidade, onde a vida não tem sustentação. E neste momento, neste momento as correntes enganam e as ondas traem, rompendo seu ciclo infinito, para se lançarem, como espuma estrondosa, contra as rochas e o ar, rompendo...
O que a criatura feita das correntes marinhas fará na areia ressecada pela luz do dia; o que fará a mente, a cada manhã, ao acordar?
Suas pálpebras foram cauterizadas, para que ele não conseguisse fechar os olhos, e a luz entrou em seu cérebro, cáustica. Não conseguia virar a cabeça, porque blocos de concreto caídos o imobilizavam, e deles saíam vergalhões de aço que prendiam sua cabeça como uma morsa. Quando desapareceram, ele conseguiu se mexer novamente; sentou-se. Estava nos degraus de cimento; um dente-de-leão florescia ao lado de sua mão, crescendo em uma pequena rachadura nos degraus. Depois de algum tempo, ele se levantou, mas assim que ficou em pé, sentiu-se mal, como se fosse morrer, e soube que era o envenenamento pela radiação. A porta estava a apenas dois passos de distância, porque a cama de ar, quando inflada, preenchia metade do quarto. Ele chegou até a porta e a abriu, transpondo-a. O corredor de linóleo, interminável, se estendia ali, por quilômetros, ondulante, e longe, muito longe, ficava o banheiro masculino. Começou a caminhar até lá, tentando segurar na parede, mas não havia nada em que se segurar e a parede se transformou em chão.

 

 

 

 

 

 

— Agora, calma. Vá com calma.

O rosto do vigia do elevador pendia acima dele como uma lanterna de papel, pálido, adornado por cabelos brancos.

— E a radiação — ele disse.

Mas Mannie pareceu não entender, respondendo apenas: — Vá com calma.

Ele voltou para a cama em seu quarto.

— Você está bêbado?

— Não.

— Usou alguma droga?

— Estou passando mal.

— O que você está tomando?

— Não consegui achar o encaixe — ele falou, querendo dizer que esteve tentando trancar a porta por onde os sonhos vinham, mas que nenhuma das chaves encaixara na fechadura.

— O paramédico está vindo do 15º andar — Mannie disse, em tom baixo em meio ao rugido da arrebentação das ondas.

Ele estava se debatendo e tentando respirar. Um estranho se sentava em sua cama, segurando uma injeção hipodérmica e olhando para ele.

— Foi isso — o estranho disse. — Ele está recuperando os sentidos. A sensação é de estar no inferno? Fique calmo. Você deve se sentir no inferno. Tomou tudo isso de uma vez? — Mostrou sete pequenos envelopes recobertos em alumínio do armário de automedicação. — Péssima combinação, barbitúricos e anfetamina. O que você estava tentando fazer a si mesmo?

Era difícil respirar, mas o mal-estar tinha passado, deixando apenas uma fraqueza terrível.

— Todos estão datados desta semana — anunciou o paramédico, um homem jovem com rabo de cavalo e dentes tortos. — O que significa que não pegou tudo com seu próprio cartão farmacêutico, então tenho que denunciar você por pegar emprestado. Não gosto de fazer isso, mas fui chamado e não tenho escolha, entende? Mas não se preocupe, com essas drogas, não é crime, você só receberá um aviso para se reportar à delegacia e vão mandá-lo à Faculdade de Medicina ou à clínica local para ser examinado, e então encaminhá-lo a um médico ou um psiquiatra para TTV, Tratamento Terapêutico Voluntário. Já preenchi um formulário a seu respeito, usei sua carteira de identidade; tudo o que preciso saber é: há quanto tempo está usando mais do que sua dose individual?

— Uns dois meses.

O paramédico rabisca um papel sobre as coxas.

— E de quem você pegou cartões farmacêuticos emprestados?

— Amigos.

— Preciso dos nomes. — Depois de algum tempo, o paramédico disse: — Um nome, pelo menos. Só formalidade. Não vai dar problema para eles. Olha, só serão repreendidos pela polícia e a controladoria do DESAS vai verificar os cartões farmacêuticos deles por um ano. Só formalidade. Um nome.

— Não posso. Eles estavam tentando me ajudar.

— Olha, se você não me der nomes, estará resistindo e será preso ou condenado à Terapia Obrigatória em uma instituição. De qualquer forma, eles podem rastrear os cartões pelos registros de automedicação, se quiserem, isto aqui só economiza o tempo deles. Vamos lá, apenas me dê um dos nomes.

Ele cobriu o rosto com os braços para evitar a iluminação insuportável e disse: — Não posso. Não consigo fazer isso. Preciso de ajuda.

— Ele pegou meu cartão emprestado — o vigia dos elevadores disse. — É. Mannie Ahrens, 247-602-6023.

A caneta do paramédico rabiscava sem parar.

— Nunca usei seu cartão.

— Então, confunda os caras. Não vão conferir. As pessoas usam os cartões farmacêuticos das outras o tempo todo, eles não têm como conferir. Eu empresto o meu, e uso o de outro sujeito, o tempo todo. Tenho uma coleção dessas repreensões. Eles nem sabem. Já tomei coisas de que o DESAS nem ouviu falar. Nunca pegaram você antes. Fica frio, George.

— Não posso — ele falou, querendo dizer que não podia deixar Mannie mentir por ele, não podia impedi-lo de mentir por ele, não podia ficar frio, não podia continuar.

— Você vai se sentir melhor em duas ou três horas — o paramédico disse. — Mas fique em casa. De qualquer forma, tem um engarrafamento enorme no centro da cidade, os condutores da CTM estão tentando outra paralisação e a Guarda Nacional está tentando operar a frota do metrô; o noticiário diz que virou uma tremenda bagunça. Fique quieto em casa. Preciso ir, vou a pé para o trabalho, droga, são dez minutos daqui, naquele complexo habitacional estatal lá em Macadam. — A cama sacudiu quando ele se levantou. — Sabia que tem 260 crianças naquele complexo sofrendo de kwashiorkor? Todas de famílias de baixa renda ou que recebem assistência básica e não estão comendo nenhuma proteína. E que raios eu posso fazer a respeito? Mandei cinco requisições de porções mínimas de proteína para aquelas crianças e nada chega, só vêm papelada e desculpas. Ficam me dizendo que as pessoas que recebem assistência básica podem comprar comida suficiente. Claro, mas e se não tem comida para comprar? Ah, dane-se. Vou aplicar injeções de vitamina C nas crianças e fingir que a inanição é escorbuto...

A porta se fechou. A cama balançou quando Mannie se sentou onde o paramédico estava. Sentia-se um cheiro fraco, adocicado, como o da grama recém-cortada. Na escuridão de um piscar de olhos, com uma névoa se erguendo à toda volta, a voz de Mannie diz, ao longe: — Não é incrível estar vivo?


2

O portal de Deus é a não existência.

CHUANG TSE: XXIII

O CONSULTÓRIO DO DR. WILLIAM HABER NÃO tinha vista para o monte Hood. Era uma sala interna no 63º andar da Willamette East Tower e não tinha vista alguma. Mas em uma das paredes sem janelas havia um grande mural com a fotografia do monte Hood e o dr. Haber o contemplava enquanto se intercomunicava com a recepcionista.

— Quem é esse tal de Orr que está subindo, Penny? O histérico com sintomas de hanseníase?

Ela estava a apenas um metro de distância, na sala ao lado, mas um interfone, assim como um diploma pendurado na parede, inspira confiança no paciente, tanto quanto no médico. E não é apropriado para um psiquiatra abrir a porta e gritar: “Próximo!”.

— Não, doutor, esse aí é o sr. Greene, amanhã, às 10h. Este foi recomendado pelo dr. Walters da Faculdade de Medicina, um caso de TTV.

— Abuso de drogas. Certo. Estou com o prontuário aqui. Ok, quando ele chegar, mande-o entrar.

Enquanto falava, ele conseguia ouvir o rangido do elevador subindo e parando, as portas rangendo; então passos, hesitação, a porta de fora se abrindo. Agora que estava prestando atenção, também conseguia ouvir portas, máquinas de escrever, vozes e descargas nos escritórios de todo o corredor, e nos andares de cima e de baixo. O verdadeiro macete era aprender a não escutar nada disso. As únicas divisórias maciças que sobraram estavam dentro de sua cabeça.

Agora Penny estava realizando o procedimento de primeira consulta com o paciente e, enquanto esperava, o dr. Haber contemplou mais uma vez o mural e imaginou quando aquela fotografia fora tirada. Céu azul, neve dos pés ao topo do monte. Anos atrás, na década de 1960 ou 1970, com certeza. O efeito estufa fora bastante gradual e Haber, nascido em 1962, se lembrava claramente do céu azul de sua infância. Agora, a neve eterna tinha desaparecido de todas as montanhas do mundo, até do Everest, até do Érebo, garganta de fogo na costa descampada da Antártica. Mas, óbvio, eles poderiam ter colorido uma fotografia recente, falsificado o céu azul e o pico branco; não tinha como saber.

— Boa tarde, sr. Orr! — ele disse se levantando e sorrindo, mas sem estender a mão, porque muitos pacientes atualmente tinham grande aversão ao contato físico.

O paciente, hesitante, recolheu sua mão quase esticada, tocou seu colar com nervosismo e disse:

— Como vai.

O colar era a costumeira corrente longa de aço prateado. As roupas eram simples, típicas de quem trabalha em escritório; o corte de cabelo era conservador, na altura do ombro; a barba, curta. Cabelos e olhos claros, um homem baixo, frágil, bonito, um pouco mal alimentado, com boa saúde, entre 28 e 32 anos. Nada agressivo, sossegado, tímido, contido, convencional. O período mais valioso da relação com um paciente, Haber sempre dizia, eram os primeiros dez segundos.

— Sente-se, sr. Orr. Certo! Você fuma? Os de filtro marrom são tranquilizantes, os brancos são sem nicotina. — Orr não fumava. — Agora, vamos ver se entendemos sua situação. A controladoria do DESAS quer saber por que você vinha pegando os cartões farmacêuticos de seus amigos emprestados para conseguir mais rebite e remédios para dormir do que sua dose individual de automedicação. Está certo? Então, eles mandaram você para os caras lá de cima do monte, que recomendaram Tratamento Terapêutico Voluntário e o mandaram para fazer terapia comigo. Tudo correto?

Ele ouviu o próprio tom de voz, amigável, tranquilo, planejado para deixar a outra pessoa à vontade; mas aquele ali estava longe de ficar calmo. Piscava muitas vezes; sentado, sua postura era tensa, a posição de suas mãos era exageradamente formal: um retrato clássico de ansiedade reprimida. O paciente assentiu com um movimento de cabeça como se, ao mesmo tempo, estivesse engolindo em seco.

— Ok, ótimo. Até aí, nada fora do normal. Se você estivesse estocando seus remédios para vender a dependentes ou para usá-los em um assassinato, então estaria encrencado. Mas como simplesmente os tomou, sua punição não será pior do que algumas sessões comigo! Agora, óbvio, o que quero saber é por que os tomou, para que possamos descobrir juntos um estilo de vida melhor para você, que vá mantê-lo, em primeiro lugar, dentro dos limites de dosagem de seu cartão farmacêutico e talvez, em segundo, livrá-lo da dependência de qualquer droga de uma vez por todas. Agora, seu costume - por um instante, seus olhos se desviaram para o prontuário enviado pela Faculdade de Medicina - era tomar barbitúricos por algumas semanas, então, por algumas noites, passar para a dextroanfetamina e daí voltar para os barbitúricos. Como isso começou? Insônia?

— Eu durmo bem.

— Mas tem sonhos aflitivos.

O homem olhou para cima, assustado: um lampejo de terror explícito. Seria um caso simples. Ele não tinha defesas.

— Mais ou menos — ele disse, com a voz rouca.

— Para mim, foi um palpite fácil, sr. Orr. Eles costumam me mandar os sonhadores. — Abriu um sorriso para o homenzinho. — Sou especialista em sonhos. Literalmente. Um onirólogo. Sono e sonho são minha área. Certo, agora posso passar à próxima dedução, que é: você usou fenobarbitona para eliminar os sonhos, mas descobriu que, com o hábito, a droga tem um efeito supressivo cada vez menor até não fazer mais nenhum efeito. O mesmo com a dexedrina. Então, revezou entre eles. Certo?

O paciente assentiu com a cabeça, de modo frio.

— Por que seu período com dexedrina ficava sempre mais curto?

— Ela me deixava nervoso.

— Aposto que sim. E aquela última dose combinada que você tomou foi uma maravilha. Mas não particularmente perigosa. Mesmo assim, sr. Orr, está fazendo algo muito perigoso. — Ele fez uma pausa de efeito. — Está se privando dos sonhos.

O paciente assentiu outra vez.

— Tenta se privar de comida e água, sr. Orr? Tentou ficar sem ar nos últimos dias?

Ele manteve seu tom amistoso e o paciente conseguiu dar um sorriso breve e infeliz.

— Você sabe que precisa dormir. Como precisa de comida, água e ar. Mas percebeu que dormir não é suficiente, que seu corpo insiste com a mesma força em ter sua dose de sono com sonho? Se for sistematicamente privado de sonhos, seu cérebro vai fazer coisas muito esquisitas com você. Vai deixá-lo irritado, com fome, incapaz de se concentrar... Isso soa familiar? Não é só a dexedrina! Propenso a devaneios, inconstante no tempo de reação, esquecido, irresponsável e propenso a fantasias paranoicas. E, no fim, vai forçá-lo a sonhar, seja lá como for. Nenhum remédio disponível vai impedi-lo de sonhar, a menos que o mate. Por exemplo, o alcoolismo severo pode levar a uma condição chamada mielinólise pontina central, que é fatal; a causa é uma lesão na região inferior do cérebro resultante da falta de sonhos. Não da falta de sono! Da falta de um estado muito específico que se dá durante o sono, o estado de sonho, o sono REM, o estado D. Uma vez que você não é alcoólatra, nem está morto, sei que o que quer que tenha tomado para suspender seus sonhos só funcionou em parte. Portanto, você (a) está em más condições físicas pela privação parcial de sonhos e (b) está tentando passar por um beco sem saída. Agora, o que o fez entrar no beco sem saída? O medo dos sonhos, dos sonhos aflitivos, suponho, ou sonhos que você considera aflitivos. Consegue me contar algo sobre eles?

Orr hesitou.

Haber abriu a boca e a fechou de novo. Muitas vezes sabia o que os pacientes iam dizer e podia dizê-lo por eles melhor do que diriam por si mesmos. Mas o que importava era que dessem aquele passo. Não podia dá-lo por eles. E, afinal de contas, esta conversa era uma mera preliminar, um rito residual dos dias gloriosos da análise. Sua função era auxiliá-lo a decidir como deveria ajudar o paciente, se era necessário um reforço positivo ou negativo, o que ele deveria fazer.

— Não tenho mais pesadelos do que a maioria das pessoas, acho — Orr dizia, olhando para as mãos. — Nada especial. Tenho... medo de sonhar.

— De sonhar sonhos aflitivos.

— Qualquer sonho.

— Entendo. Você tem ideia de como esse medo começou? Ou de que tem medo, o que deseja evitar?

Como Orr não respondeu de imediato, mas ficou sentado olhando para baixo, para as próprias mãos, quadradas, avermelhadas, pousadas imóveis sobre seu joelho, Haber provocou um pouco:

— É a irracionalidade, a desordem, algumas vezes a imoralidade dos sonhos, é algo assim que o deixa desconfortável?

— Sim, de certa forma. Mas por um motivo específico. Entende, aí... aí... eu...

Eis o ponto crucial, a chave, pensou Haber, também observando aquelas mãos tensas. Pobre coitado. Tem sonhos eróticos e complexo de culpa por causa deles. Enurese na infância, mãe compulsiva...

— E aqui que você para de acreditar em mim.

O camaradinha estava mais doente do que parecia.

— Um homem que lida com sonhos, tanto o sonhar acordado como dormindo, não se preocupa muito em acreditar e desacreditar, sr. Orr. Não são categorias que eu use muito. Não se aplicam. Então, ignore isso e continue. Estou interessado. — Será que isso soara condescendente? Ele olhou para Orr a fim de ver se a afirmação tinha sido mal-interpretada e, por um instante, cruzou o olhar do homem. Olhos extraordinariamente belos, Haber pensou, e ficou surpreso porque beleza também não era uma categoria que ele usasse muito. As íris eram azuis e cinza, muito claras, quase transparentes. Por um instante, Haber se esqueceu e contemplou de novo aqueles olhos claros, esquivos; mas apenas por um instante, então a estranheza da experiência mal se fixou em sua mente consciente.

— Bem — Orr disse, falando com certa determinação —, tive sonhos que... que afetaram o... o mundo não onírico, o mundo real.

—Todos nós temos, sr. Orr.

Orr olhou-o fixamente. O perfeito ator-escada.

— O efeito dos sonhos no estado D, imediatamente anterior ao despertar, sobre o nível emocional geral da psique pode ser...

Mas o ator-escada interrompeu-o.

— Não, não é disso que estou falando. — E, gaguejando um pouco: — O que quero dizer é que sonhei algo que depois se tornou realidade.

— Isso não é difícil de acreditar, sr. Orr. Estou falando muito sério ao dizer isso. Foi apenas depois da ascensão do pensamento científico que qualquer pessoa se sentiu inclinada a questionar uma afirmação dessas, quanto mais a desacreditar dela. Sonhos proféticos...

— Não sonhos proféticos. Não consigo prever nada. Apenas altero as coisas. — As mãos estavam cerradas com força. Não admira que os figurões da Faculdade de Medicina mandaram este para cá. Sempre mandam para Haber os pirados que não conseguem endireitar.

— Pode me contar um caso? Por exemplo, consegue se lembrar da primeira vez que teve um sonho desses? Quantos anos tinha?

O paciente hesitou por um longo tempo e, por fim, disse:

— Dezesseis, acho. — Seus modos ainda eram doces; ele demonstrava um medo considerável do assunto, mas sem uma atitude defensiva ou hostil em relação a Haber. —Não tenho certeza.

— Conte sobre a primeira vez que você tem certeza.

— Eu tinha dezessete. Ainda morava na casa dos meus pais, e a irmã da minha mãe estava morando com a gente. Ela estava se divorciando e não trabalhava, só recebia assistência básica. Ela meio que incomodava. Era um apartamento normal de três cômodos, e ela estava sempre lá. Deixava minha mãe uma fera. Ela não tinha consideração, a tia Ethel, quero dizer. Monopolizava o banheiro; ainda tínhamos um banheiro no apartamento. Ah, e ficava fazendo uma espécie de brincadeira comigo. Meio brincadeira. Entrava no meu quarto sem a parte de cima do pijama, e por aí vai. Ela só tinha uns trinta anos. Aquilo me deixava meio tenso. Eu ainda não namorava... Você sabe. Adolescentes. É fácil deixar um garoto excitado. Eu ficava ressentido com aquilo, quer dizer, ela era minha tia.

Ele olhou para Haber para ter certeza de que o médico sabia o que o deixava ressentido e que não desaprovava seu ressentimento. A permissividade insistente do final do século XX produzira tanta culpa e medo em relação ao sexo nas gerações seguintes quanto a repressão insistente do fim do século XIX. Orr temia que Haber pudesse ficar chocado por ele não querer ir para a cama com a tia. Haber manteve sua expressão neutra, mas interessada, e Orr prosseguiu, com dificuldade.

— Bem, eu tinha um monte de sonhos meio que ansiosos e essa tia sempre estava neles. Costumava aparecer disfarçada, do jeito que as pessoas, às vezes, aparecem nos sonhos; uma vez ela era um gato branco, mas eu sabia que também era a Ethel. Bom, uma noite ela enfim conseguiu me fazer levá-la ao cinema e tentou me fazer tocar nela, e quando chegamos em casa, ela continuou se insinuando em volta da minha cama e dizendo que meus pais estavam dormindo e tal... Bem, depois que finalmente a tirei do meu quarto e consegui dormir, tive um sonho. Bem realista. Conseguia me lembrar dele inteiro quando acordei. Sonhei que Ethel tinha morrido em um acidente de carro em Los Angeles e que chegara um telegrama. Minha mãe estava chorando enquanto tentava preparar o jantar, e eu sentia pena dela, mas não sabia o que fazer. Isso foi tudo... Só que quando levantei, fui para a sala. A Ethel não estava no sofá. Não havia mais ninguém no apartamento, só meus pais e eu. Ela não estava lá. Ela nunca tinha estado lá. Não precisei perguntar. Eu me lembrei. Sabia que tia Ethel morrera em um acidente de carro em uma rodovia de Los Angeles seis semanas antes, voltando para casa depois de consultar um advogado sobre o divórcio. A notícia viera por telegrama. O sonho todo foi só uma espécie de revivência de algo parecido com o que tinha realmente acontecido. Só que não tinha acontecido. Até o sonho. Quer dizer, eu também sabia que ela tinha morado com a gente dormindo no sofá da sala, até a noite anterior.

— Mas não havia nada para mostrar isso, para provar isso?

— Não. Nada. Ela não tinha estado lá. Ninguém se lembrava dela, a não ser eu. E eu estava errado. Agora.

Haber fez um gesto prudente de compreensão com a cabeça e coçou a barba. O que aparentara ser um caso moderado de dependência de drogas agora parecia uma grave aberração, mas nunca um sistema delirante lhe fora apresentado de modo tão direto. Orr devia ser um esquizofrênico inteligente; estava dizendo meias verdades, tentando enganá-lo com inventividade e astúcia esquizóides. Mas faltava a ele a tênue arrogância íntima dessas pessoas, à qual Haber era extremamente sensível.

— Por que acha que sua mãe não percebeu que a realidade tinha se alterado desde a noite anterior?

— Bem, ela não sonhou aquilo. Quer dizer, o sonho alterou a realidade, sim. Criou, de forma retroativa, uma realidade diferente, da qual ela fez parte desde o princípio. Por estar nela, não tinha lembrança de nenhuma outra. Eu sim, lembrei-me das duas, porque eu estava... lá... no momento da alteração. Essa é a única forma como consigo explicar isso, sei que não faz sentido. Mas preciso ter alguma explicação ou então encarar o fato de que sou doido.

Não, esse camarada não era tímido.

— Não estou no ramo dos julgamentos, sr. Orr. Estou em busca de fatos. E os acontecimentos mentais, acredite em mim, são fatos. Quando se vê o sonho de outro homem, enquanto ele o sonha, registrado em preto e branco no eletroencefalograma, como vi dez mil vezes, não se fala dos sonhos como “irreais”. Eles existem, são acontecimentos; deixam uma marca atrás de si. Ok, suponho que você teve outros sonhos que pareceram surtir o mesmo tipo de efeito...

— Alguns. Não por muito tempo. Apenas quando estressado. Mas pareciam... estar acontecendo com mais frequência. Comecei a ficar assustado.

Haber se inclinou para a frente.

— Por quê?

Orr tinha um olhar vazio.

— Assustado por quê?

— Porque não quero alterar as coisas! — Orr disse, como se afirmasse o muito óbvio. — Quem sou eu para me intrometer no modo como as coisas acontecem? E é meu psiquismo inconsciente que altera as coisas, sem qualquer controle inteligente. Tentei a auto-hipnose, mas não deu certo. Os sonhos são incoerentes, egoístas, irracionais... imorais, como você falou há um minuto. Vêm de nosso lado não socializado, não vêm? Ao menos em parte? Não queria matar a coitada da Ethel. Só a queria fora do meu caminho. Bem, em um sonho, é provável que isso seja drástico. Sonhos são atalhos. Eu a matei. Em um acidente de carro a milhares de quilômetros de distância, há seis semanas. Sou responsável pela morte dela.

Haber coçou a barba de novo.

— Por isso — ele disse, lentamente — as drogas que suspendem o sonho. Para que você possa evitar responsabilidades adicionais.

— Sim. As drogas impediram os sonhos de se formarem e se tornarem realistas. Apenas certos sonhos, os muito intensos são — ele buscou uma palavra — efetivos.

— Certo. Ok. Agora, vejamos. Você não é casado, é um desenhista projetista do distrito ferroviário Bonneville-Umatilla. O que acha do seu trabalho?

— Bom.

— Como está sua vida sexual?

— Fiz um teste de casamento. Terminamos no verão passado, depois de uns dois anos.

— Você desistiu? Ou ela?

— Nós dois. Ela não queria filhos. Não éramos para casar.

— E desde então?

— Bom, tem umas garotas do escritório, não sou... um garanhão, na verdade.

— E quanto aos relacionamentos interpessoais em geral? Sente que se relaciona satisfatoriamente com as outras pessoas, que têm um lugar na ecologia emocional de seu ambiente?

— Acho que sim.

— A ponto de poder dizer que não há nada de errado com a sua vida. Certo? Ok. Agora, me diga: você quer, quer de verdade, abandonar essa dependência química?

— Sim.

— Ok, ótimo. Agora, você vem tomando os remédios porque quer ficar longe dos sonhos. Mas nem todos os sonhos são perigosos, apenas certos sonhos realistas. Você sonhou que sua tia Ethel era um gato branco, mas de manhã ela não era um gato branco, certo? Alguns sonhos são adequados, seguros.

Ele esperou o gesto de assentimento de Orr.

— Agora, pense nisto. Como se sente em relação a colocar essa coisa toda à prova, e talvez aprender a sonhar com segurança, sem temer? Vou me explicar. Você tem medo, literalmente, de sonhar, porque sente que alguns de seus sonhos têm essa capacidade de afetar a vida real de formas que você não consegue controlar. Agora, isso pode ser uma metáfora complexa e significativa, pela qual seu inconsciente está tentando dizer ao seu consciente algo sobre a realidade, a sua realidade, a sua vida; algo que seu lado racional não está pronto para aceitar. Mas podemos tomar essa metáfora de forma muito literal: não há necessidade de traduzi-la, a esta altura, em termos racionais. Seu problema no momento é este: você tem medo de sonhar e, ainda assim, precisa sonhar. Tentou a supressão por meio de remédios, não funcionou. Ok, vamos tentar o oposto. Vamos fazê-lo sonhar, de propósito. Vamos fazê-lo sonhar, intensa e realisticamente, bem aqui. Sob minha supervisão, em condições controladas. Para que você possa assumir o controle sobre o que, para você, parece ter se descontrolado.

— Como posso sonhar sob encomenda? — Orr perguntou, com um desconforto extremo.

— No Palácio dos Sonhos do Doutor Haber você pode! Já foi hipnotizado?

— Para um tratamento dentário.

— Ótimo. Ok. Esse é o método. Ponho você em transe hipnótico e sugiro que vai dormir, que vai sonhar e o que vai sonhar. Você vai usar um trancap para garantir que tenha um sono genuíno, não apenas um transe hipnótico. Enquanto está sonhando, eu o observo, fisicamente e com um EEG, O tempo todo. Acordo-o e você fala sobre a experiência do sonho. Se tudo correr bem, talvez ache um pouco mais fácil enfrentar o sonho seguinte.

— Mas não vou sonhar de um jeito efetivo aqui, isso só acontece em um sonho a cada dezena ou centena. — As racionalizações defensivas de Orr eram bastante coerentes.

— Aqui você pode sonhar qualquer estilo de sonho. O conteúdo e o estado emocional dos sonhos podem ser quase totalmente controlados por um paciente motivado e um hipnotizador devidamente treinado. Faço isso há dez anos. E você ficará bem ali comigo, porque estará usando um trancap. Já usou um?

Orr fez que não com a cabeça.

— Mas sabe o que é.

— Ele manda sinais por eletrodos que estimulam o... cérebro a se deixar levar.

— É quase isso. Os russos o têm usado há cinquenta anos, os israelenses o aprimoraram e nós subimos no barco e o produzimos em massa para uso profissional na tranquilização de pacientes psicóticos ou no transe alfa. Eu estava trabalhando há alguns anos com uma paciente com depressão severa em TTO em Linnton. Como muitas pessoas depressivas, ela não dormia muito e tinha pouco sono de estado D, sono com sonho; tendia a acordar quando entrava no estado D. O efeito do círculo vicioso: mais depressão, menos sonhos; menos sonhos, mais depressão. Quebrá-lo? Como? Não temos nenhuma droga que atue no aumento do sono D. A EEC - estimulação eletrônica do cérebro? Mas isso envolve implantar eletrodos, e profundamente, nos núcleos de sono; melhor evitar uma operação. Eu estava usando o trancap nela para estimular o sono. E se o sinal difuso de baixa frequência se tornasse mais exato e fosse dirigido de modo localizado para a área específica no interior do cérebro... ah, sim, claro, dr. Haber, isso é moleza! Mas, na verdade, como eu tinha o requisito de pesquisa eletrônica em meu currículo, só levei uns dois meses para desenvolver o aparelho básico. Então, tentei estimular o cérebro da paciente com a gravação das ondas cerebrais de um participante saudável nos estados apropriados, os vários estágios de sono e sonho. Não tive muita sorte. Descobri que o sinal de outro cérebro pode ou não provocar uma reação no participante; tive de aprender a generalizar, fazer uma espécie de média a partir de centenas de registros de ondas cerebrais normais. Então, enquanto trabalho com um paciente, estreito a média mais uma vez, a ajusto: quando o cérebro do participante está fazendo algo que quero que repita, registro aquele instante, o aumento, amplio e prolongo, o executo novamente e estímulo o cérebro a acompanhá-lo com seus próprios impulsos mais saudáveis, se me perdoa o jogo de palavras. Agora, tudo isso envolveu uma quantidade enorme de análise de reações para que um simples EEG com um trancap se convertesse nisso — e ele fez um gesto apontando a floresta eletrônica atrás de Orr. A maior parte do maquinário estava escondida atrás de painéis plásticos, porque muitos pacientes ou ficavam com medo da máquina ou se identificavam excessivamente com ela, mas ainda assim aquilo ocupava um quarto do consultório. — Esta é a Máquina dos Sonhos — disse ele, com um sorriso — ou, em termos prosaicos, o Ampliador; e o que isso fará por você é garantir que vai dormir e que vai sonhar do modo que quisermos: depressa e com leveza, ou de forma demorada e intensa. Ah, a propósito, a paciente teve alta de Linnton no verão passado, totalmente curada. — Ele se inclinou para a frente. — Disposto a tentar?

— Agora?

— Quer esperar o quê?

— Mas não posso pegar no sono às 16h30... — Então, ele pareceu desorientado. Haber tinha começado a cavoucar a gaveta abarrotada de sua mesa, e agora apresentava um documento, o formulário de Consentimento para Hipnose, exigido pelo DESAS. Orr pegou a caneta que Haber lhe estendeu, assinou o formulário e colocou-a sobre a mesa, em um gesto submisso.

— Certo. Ótimo. Agora, me diga, George. Seu dentista usa uma fita hipnótica ou é do tipo “faça você mesmo”?

— Fita. Estou no três na escala de suscetibilidade.

— Bem no meio do gráfico, hein? Bem, para que a sugestão funcione no que tange ao conteúdo do sonho, vamos querer um transe razoavelmente profundo. Não queremos um sonho de transe, queremos um sonho de sono verdadeiro; o Ampliador vai proporcionar isso. Mas queremos ter certeza de que a sugestão vá bem fundo. Então, para evitar passar horas apenas condicionando você a entrar em transe profundo, vamos usar a indução v-c. Já a viu ser realizada alguma vez?

Orr balançou a cabeça. Ele parecia apreensivo, mas não fez objeção, havia nele um jeito receptivo, passivo, que parecia feminino, ou mesmo infantil. Haber reconhecia em si mesmo uma reação protetora/intimidadora em relação a esse homem submisso e fisicamente frágil. Dominá-lo e tratá-lo com condescendência era tão fácil a ponto de ser quase irresistível.

— Eu a utilizo na maioria dos pacientes. É rápida, segura e eficaz, de longe o melhor método de indução da hipnose e o menos problemático para ambos, o hipnoterapeuta e o paciente.

Orr com certeza ouvira relatos assustadores sobre pacientes que sofreram danos cerebrais ou foram mortos por uma indução v-c excessivamente prolongada ou inepta e, embora tais medos não se aplicassem ali, Haber devia cuidar deles e acalmá-los, para que Orr não resistisse à indução como um todo. Então, ele prosseguiu com a conversa fiada, descrevendo os cinquenta anos de história do método de indução v-c e, depois, desviando totalmente do tema da hipnose, voltando ao tema do sono e dos sonhos, a fim de tirar a atenção de Orr do processo e colocá-la no objetivo da indução.

— Veja, a distância que precisamos transpor é o abismo entre a condição de vigília ou transe hipnótico e o estado de sonho. Esse abismo tem um nome comum: sono. Sono normal, estado S, sono não REM, não importa o nome que você queira. Agora, existem, grosseiramente falando, quatro estados mentais pelos quais nos interessamos: vigília, transe, sono S e estado D. Quando se observam os processos de atividade mental, o estado S, o estado D e o estado hipnótico têm algo em comum: sono, sonho e transe liberam, todos, a atividade do subconsciente, a mente subconsciente; todos tendem a empregar o processo primário de pensamento, enquanto a atividade mental de vigília é o processo secundário, racional. O estado D, o transe e o estado de vigília são os que têm mais em comum, enquanto o estado S, o sono, é completamente diferente. E não se pode ir direto do transe a um verdadeiro sonho do estado D. O estado S deve se interpor. O normal é que só se entre no estado D quatro ou cinco vezes em uma noite, a cada uma ou duas horas, e só durante quinze minutos por vez. No resto do tempo, o indivíduo está em um ou outro estágio do sono normal. E então você vai sonhar, mas de modo habitual, não realista; a atividade mental no sono S é como a de um motor em marcha lenta, uma espécie de ladainha em imagens e pensamentos. O que buscamos são os sonhos do estado D, realistas, carregados de emoção, memoráveis. Nossa hipnose, associada ao Ampliador, garantirá que os captemos, atravessando o abismo neurofisiológico e temporal do sono, direto para o sonho. Então, precisaremos de você aqui no divã. Minha área foi criada por Dement, Aserinsky, Berger, Oswald, Hartmann e outros, mas o divã adotamos direto do papa Freud... Mas o usamos para dormir, ao que ele se opunha. Agora, o que quero, só para dar a partida, é que se sente aqui nos pés do divã. Sim, desse jeito. Você ficará aí por algum tempo, então fique à vontade. Você disse que tentou a auto-hipnose, não é? Certo, vá em frente e use as técnicas que utilizou. Que tal a respiração profunda? Conte até dez enquanto inspira, segure o ar contando até cinco, assim, isso, excelente. Pode, por favor, olhar para o teto, bem acima de sua cabeça? Ok, certo.

Enquanto Orr, obedecendo, inclinava a cabeça para trás, Haber, bem ao lado dele, esticou a mão esquerda e a colocou rápida e silenciosamente atrás de sua cabeça, pressionando o polegar e um dos dedos, com firmeza, na parte inferior atrás de cada orelha; ao mesmo tempo, com o polegar e o dedo da mão direita, ele pressionou forte a garganta exposta, bem abaixo da barba loira macia, onde o nervo vago e a artéria carótida passam. Ele estava consciente da pele fina e pálida sob seus dedos; sentiu um primeiro movimento sobressaltado de protesto e então viu os olhos claros se fechando. Sentiu um tremor de satisfação por sua habilidade pessoal, seu instante de dominação sobre o paciente, ao mesmo tempo em que murmurava, com suavidade e rapidez:

— Agora você vai dormir; feche os olhos, durma, relaxe, deixe sua mente ficar vazia, você vai dormir, está relaxado, vai ficar solto; relaxe, libere...

E Orr caiu para trás no divã como um homem morto a tiros, sua mão direita solta, flácida, ao lado do corpo.

Haber ajoelhou-se ao lado dele de imediato, mantendo os pontos de pressão com a mão direita, de leve, e sem interromper o ritmo brando e rápido da sugestão.

— Agora você está em transe, não adormecido, mas em profundo transe hipnótico, e não vai sair dele e despertar até que eu diga para fazer isso. Você está em transe agora, cada vez mais imerso no transe, mas ainda consegue ouvir minha voz e seguir minhas instruções. A partir de agora, sempre que eu tocar sua garganta como estou fazendo agora, você entrará em transe hipnótico imediatamente. — Ele repetiu as instruções e prosseguiu. — Agora, quando eu lhe disser para abrir os olhos, você vai abri-los e enxergar uma bola de cristal flutuando à sua frente. Quero que mantenha sua atenção fixa nela e, enquanto faz isso, fique ainda mais imerso no transe. Agora abra os olhos, isso, ótimo, e me diga quando enxergar a bola de cristal.

Os olhos claros, agora com um olhar curioso e introvertido, ignoraram Haber fixando-se no nada.

— Agora — disse o homem hipnotizado em um tom muito baixo.

— Ótimo. Continue olhando para ela e respirando normalmente; logo você estará em um transe muito profundo...

Haber espiou o relógio. A ação toda levou apenas dois minutos. Ótimo, ele não gostava de perder tempo com os meios, a questão era chegar aos fins desejados. Enquanto Orr estava deitado contemplando a bola de cristal imaginária, Haber se levantou e começou a equipá-lo com o trancap modificado, removendo-o e recolocando-o várias vezes para reajustar os minúsculos eletrodos e posicioná-los no couro cabeludo, sob os espessos cabelos castanho-claros. Falava com frequência, em voz baixa, repetindo as sugestões e, às vezes, fazendo perguntas desinteressadas, para que Orr não caísse no sono ainda e continuasse conectado a ele. Assim que o capacete estava no lugar, ele ligou o EEG e, por algum tempo, observou-o para ver como estava aquele cérebro.

Oito dos eletrodos do capacete se ligavam ao EEG; dentro da máquina, oito canetas anotavam um registro permanente da atividade elétrica do cérebro. Na tela, que Haber observava, os impulsos eram reproduzidos diretamente, rabiscos brancos trêmulos sobre o cinza escuro. Ele conseguia isolar e ampliar cada um deles, ou sobrepor um ao outro, de acordo com sua vontade. Era uma cena da qual ele nunca se cansava, o Filme sem fim, programa do Canal Um.

Não havia nenhuma das irregularidades sigmoides pelas quais ele estava procurando, que coincidiam com determinados tipos de personalidade esquizóide. Nada fugia do comum no padrão completo, exceto o fato de que era diferente. Um cérebro simples produz um conjunto de padrões em zigue zague e contenta-se em repeti-los; aquele não era um cérebro simples. Seus movimentos eram súbitos e complexos e as repetições não eram nem frequentes nem constantes. O computador do Ampliador podia analisá-las, mas, até ver a análise, Haber não seria capaz de isolar um fator único, exceto a complexidade em si.

Ao dar o comando que fazia o paciente parar de enxergar a bola de cristal e fechar os olhos, Haber conseguiu, quase no mesmo instante, um traço alfa forte e nítido em doze ciclos. Brincou um pouco mais com o cérebro, obtendo registros para o computador e testando a profundidade hipnótica, então disse:

— Agora, John... — Não... inferno, qual é o nome do paciente? — George. Agora você vai dormir em um minuto. Vai adormecer e sonhar, mas não vai dormir até que eu fale a palavra “Antuérpia”. Quando eu disser isso, você vai dormir, e dormirá até que eu repita seu nome três vezes. Então, quando estiver dormindo, terá um sonho, um sonho bom. Um sonho nítido e agradável. Não um sonho aflitivo, de modo algum; um sonho agradável, mas muito nítido e realista. Esteja certo de se lembrar dele quando acordar. O sonho será sobre... — Ele hesitou por um instante, não tinha planejado nada, confiara na inspiração. — Sobre um cavalo. Um grande cavalo baio galopando em um campo. Correndo. Talvez você monte o cavalo, ou o capture, ou talvez apenas o observe. Mas o sonho será sobre um cavalo. Um sonho realista — qual foi a palavra que o paciente usou? —, efetivo, sobre um cavalo. Depois disso não vai sonhar mais nada e, quando eu falar seu nome três vezes, vai acordar se sentido calmo e descansado. Agora, vou mandá-lo dormir... dizendo... "Antuérpia”.

Obedientes, às pequenas linhas dançantes na tela começaram a se alterar. Tornaram-se mais fortes e lentas, logo os fusos do estágio 2 do sono começaram a aparecer, e então uma insinuação do profundo ritmo delta do estágio 4. Assim como os ritmos cerebrais se alteravam, a pesada matéria habitada por aquela energia dançante também se alterava: as mãos estavam frouxas sobre o peito, de respiração lenta, e o rosto estava indiferente e imóvel.

h.gjdgxsO Ampliador obteve um registro completo dos padrões do cérebro em vigília; agora estava gravando e analisando os padrões de sono S; logo estaria captando os padrões do início do sono D do paciente e até seria capaz, nesse primeiro sonho, de reenviá-los ao cérebro adormecido, ampliando suas próprias emissões. Na verdade, deveria estar fazendo isso agora. Haber esperava uma demora, mas a sugestão hipnótica e a longa privação parcial de sonhos do paciente o estavam levando ao estado D imediatamente: assim que ele atingiu o estágio 2, começou a nova ascensão. As linhas oscilantes e lentas na tela tremularam aqui e ali, agitaram-se de novo, começaram a acelerar e a dançar, assumindo um ritmo rápido e dessincronizado. Então a ponte de Varólio estava em atividade e o traço do hipocampo apresentava um ciclo de cinco segundos, o ritmo teta, que não aparecera de forma clara neste paciente. Os dedos se moviam um pouco; sob as pálpebras fechadas, os olhos se mexiam, observadores; os lábios se abriam para uma respiração profunda. O homem adormecido sonhava.

Eram 5h06.

Às 5hll Haber pressionou o botão preto, DESLIGAR, do Ampliador. Às 5hl2, notando que os desenhos irregulares e os fusos do sono S reapareciam, ele se inclinou sobre o paciente e disse seu nome com clareza três vezes.

Orr suspirou, mexeu o braço com um gesto amplo e solto, abriu os olhos e despertou. Haber removeu os eletrodos de seu couro cabeludo com alguns movimentos ágeis.

—Tudo bem? — ele perguntou, amigável e seguro.

— Tudo.

— E você sonhou. Disso eu tenho certeza. Pode me contar o sonho?

— Um cavalo — Orr disse, com a voz rouca, ainda aturdido pelo sono. Sentou-se.

— Era sobre um cavalo. Aquele — e abanou a mão em direção à fotografia, do tamanho de uma janela que decorava o consultório de Haber, uma foto do grande cavalo de corrida Tammany Hall em ação em um prado verdejante.

— E o que você sonhou? — Haber perguntou, satisfeito. Ele não tinha certeza de que a sugestão hipnótica afetaria o conteúdo do sonho em uma primeira sessão.

— Ele... Eu estava caminhando naquele campo e ele ficou algum tempo à distância. Então, veio galopando até mim e, depois de um período, percebi que ele ia me atropelar. Mas não tive nenhum medo. Percebi que talvez conseguisse pegar a rédea ou girar e montá-lo. Sabia que, na verdade, ele não podia me machucar porque era o cavalo do seu quadro, não um cavalo de verdade. Foi tudo como um jogo... Dr. Haber, alguma coisa naquele quadro chama sua atenção por ser... incomum?

— Bem, algumas pessoas o consideram muito dramático para o consultório de um psiquiatra, um pouco opressivo. Um símbolo sexual em tamanho natural bem em frente ao divã! — Ele riu.

— Isso estava aí uma hora atrás? Quer dizer, não era a vista do monte Hood quando eu entrei, antes de eu sonhar com o cavalo?

Ai, meu Deus, era o monte Hood, o homem tinha razão.

Não era o monte Hood não podia ter sido o monte Hood era um cavalo era um cavalo

Era uma montanha

Um cavalo era um cavalo era...

Ele estava encarando George Orr, fixo e sem expressão, vários segundos devem ter se passado desde a pergunta de Orr; ele não pode ser pego, precisa inspirar confiança, ele sabia as respostas.

— George, você se lembra daquele quadro como sendo uma fotografia do monte Hood?

— Sim — Orr disse, com seu jeito um tanto triste, mas inabalável. — Lembro. Era ele. Coberto de neve.

— Humm. — Haber assentiu, com prudência, ponderado. O frio terrível no fundo do peito passara.

— Você não?

Os olhos do homem eram tão fugazes na cor, contudo claros e diretos na expressão: os olhos de um psicótico.

— Não, infelizmente, não. É Tammany Hall, três vezes campeão em 1989. Sinto falta das corridas, é uma vergonha como nossos problemas de alimentação acabam com as espécies inferiores. Claro, um cavalo é um anacronismo perfeito, mas gosto do quadro, tem vigor, força... a autorrealização total em termos animais. É uma espécie de representação ideal do que um psiquiatra se esforça para alcançar em termos de psicologia humana, um símbolo. E a origem de minha sugestão para o conteúdo de seu sonho, claro, por acaso eu estava olhando para ela... — Haber olhou de soslaio para o mural. Óbvio que era o cavalo. — Mas, escute. Se você quer ter uma terceira opinião podemos pedi-la à srta. Crouch, ela trabalha aqui há dois anos.

— Ela vai dizer que sempre foi um cavalo — Orr afirmou, calma e tristemente. — Sempre foi. Desde meu sonho. Sempre foi. Pensei que, talvez, como você me sugeriu o sonho, poderia ter uma lembrança dupla, como eu. Mas imagino que não tenha. — Mas seus olhos, não mais abatidos, voltaram a encarar Haber com aquela clareza, aquela paciência, aquele pedido silencioso e desesperado por ajuda.

O homem estava doente. Precisava ser curado.

— Gostaria que você voltasse, George, amanhã, se possível.

— Bom, eu trabalho...

— Saia uma hora mais cedo, e venha às 16h. Você está em TTV. Explique a seu chefe, e não veja nenhuma desonra nisso. Cedo ou tarde, 82% da população faz TTV, sem mencionar os 31% que fazem TTO. Então, esteja aqui às 16h e trataremos de trabalhar. Vamos chegar a algum lugar com isso, sabe? Agora, aqui está a prescrição para o meprobamato, que vai manter seus sonhos moderados sem suprimir completamente o estado D. Você pode recarregá-la no posto de automedicação a cada três dias. Se tiver um sonho ou qualquer outra experiência que o assuste, me telefone, de dia ou de noite. Mas, usando isso, duvido que aconteça e, se estiver disposto a trabalhar duro comigo, não precisará mais de medicamentos por muito tempo. Vai acabar com todo esse problema dos seus sonhos e ficará livre. Certo?

Orr pegou o cartão IBM de prescrição.

— Seria um alívio — disse. Sorriu, um sorriso hesitante, infeliz, mas não desprovido de humor. — Outra coisa a respeito do cavalo... — ele falou.

Haber, vários centímetros mais alto, baixou o olhar para ele.

— Ele se parece com você — Orr disse.

Haber ergueu os olhos rapidamente para o mural. Parecia. Grande, saudável, peludo, de cor castanha avermelhada, avançando a todo galope...

— Será que o cavalo em seu sonho se parecia comigo? — ele perguntou, com uma sagacidade amistosa.

— Sim, parecia — o paciente respondeu.

Quando ele saiu, Haber se sentou e olhou, inquieto, para o mural com a fotografia de Tammany Hall. De fato, era grande demais para um consultório. Que droga! Queria poder pagar por um consultório com janela e vista!


3

Àqueles que recebem a ajuda do céu chamamos filhos do céu. Eles não aprendem isso com aprendizado. Não o elaboram pela elaboração. Não compreendem por meio da compreensão. Permitir que a razão se detenha diante do que não pode ser racionalizado é uma elevada conquista. Aqueles que não conseguirem fazê-lo serão destruídos no vórtice do céu.

CHUANG TSE: XXIII

GEORGE ORR SAIU DO TRABALHO ÀS 15h30 e foi a pé até a estação de metrô; ele não tinha carro. Se economizasse, poderia ter pago por um Volkswagen a vapor e pela taxa de quilometragem dele, mas para quê? O centro da cidade era fechado aos automóveis, e ele morava no centro. Aprendera a dirigir nos anos 1980, mas nunca tivera um carro. Pegou o metrô de Vancouver e voltou para Portland. Os vagões já estavam lotados; ele ficou onde não conseguia alcançar as alças e barras, seguro apenas pela pressão compensadora dos corpos por todos os lados, às vezes levantando o pé e flutuando quando a força da multidão (m) excedia a força da gravidade (g). Um homem ao seu lado segurava um jornal e nunca conseguia abaixar o braço, mas mantinha o rosto enfiado no caderno de esportes. A manchete, “GRANDE ATAQUE AÉREO PERTO DA FRONTEIRA AFEGÔ, e o subtítulo, “Afeganistão ameaça intervir”, encararam Orr por seis estações. O homem com o jornal abriu caminho para sair e foi substituído por dois tomates sobre um prato verde de plástico acima de uma senhora idosa com um casaco verde de plástico, que ficou parada pisando no pé esquerdo de Orr por mais três estações.

Ele pelejou para descer na parada da East Broadway e foi arrastado ao longo de quatro quarteirões pela multidão que saía do trabalho e engrossava cada vez mais até chegar à Willamette East Tower, um poço de concreto e vidro grande e espalhafatoso que competia, com obstinação vegetal, por luz e ar na selva de prédios similares à sua volta. Muito pouco da luz e do ar alcançava o nível da rua; o que chegava ali era o calor e uma chuva fina. A chuva era uma velha tradição de Portland, mas o calor - 21°C em 2 de março - era uma consequência moderna da poluição atmosférica. O eflúvio urbano e industrial não foi controlado com antecedência suficiente para reverter a tendência cumulativa já em operação em meados do século XX; levaria vários séculos para o C02 ser eliminado do ar, se é que isso aconteceria. Nova York seria uma das maiores vítimas do efeito estufa, já que a calota polar continuaria derretendo e o nível do mar subindo; na verdade, toda BosWash estava ameaçada. Havia algumas compensações. A Baía de São Francisco já estava subindo e acabaria cobrindo todas as centenas de quilômetros quadrados de aterros sanitários e o lixo depositado neles desde 1848. Já Portland, separada do mar por 130 quilômetros e pelas cadeias montanhosas da costa do Pacífico, não era ameaçada pela elevação do nível da água; apenas pela queda de água.

Sempre chovera no oeste do Oregon, mas agora a chuva era incessante, constante e morna. Era como viver sob um aguaceiro de sopa quente, para sempre.

As Cidades Novas - Umatilla, John Day, French Glen - ficavam a leste da cordilheira das Cascatas, no que tinha sido, trinta anos antes, um deserto. O verão ali ainda era terrível de tão quente, mas chovia apenas 1.100 milímetros ao ano, comparados aos 2.800 milímetros de Portland. A agricultura intensiva tornou-se possível, e o deserto floresceu. French Glen possuía agora uma população de 7 milhões. Portland, com apenas 3 milhões e sem potencial de crescimento, fora deixada para trás na marcha do progresso. Isso não era novidade para Portland. E que diferença fazia? A subnutrição, a superpopulação, a imundície do ambiente eram a norma. Havia mais escorbuto, tifo e hepatite nas Cidades Antigas; mais violência de gangues, crime e assassinatos nas Cidades Novas. Os ratos dominavam umas e a Máfia, as outras. George Orr ficou em Portland porque sempre vivera lá e porque não tinha motivos para acreditar que a vida em qualquer outro lugar seria melhor, ou diferente.

Com um sorriso desinteressado, a srta. Crouch o fez entrar imediatamente. Orr pensava que os consultórios dos psiquiatras, como as tocas dos coelhos, sempre tinham uma porta da frente e uma dos fundos. Este não tinha, mas ele duvidava que ali os pacientes pudessem se deparar uns com os outros na chegada ou na saída. Na Faculdade de Medicina, disseram que o dr. Haber possuía apenas uma pequena clínica psiquiátrica e que era, em essência, um pesquisador. Aquilo deu a ele a impressão de alguém bem-sucedido, único, e o jeito cordial e habilidoso do médico a havia confirmado. Mas hoje, menos nervoso, Orr viu mais coisas. O consultório não exibia platina e couro, provas de sucesso financeiro, nem trapos e garrafas, provas de desinteresse científico. As poltronas e o divã eram de vinil, a mesa era de metal revestido por plástico com acabamento em madeira. Absolutamente nada era genuíno. Com seus dentes brancos e a crina baía, o enorme dr. Haber bradou:

— Boa tarde!

Aquela afabilidade não era fingida, mas era exagerada. Havia certa cordialidade no homem, certa expansividade, que era real; mas que se tornara artificial, revestida com maneirismos profissionais, distorcida pelo modo nada espontâneo como o médico se colocava. Orr sentia nele um desejo de agradar e um desejo de ajudar; o médico, ele pensou, não estava muito seguro de que outras pessoas existiam, e queria provar que existiam ajudando-as. Ele bradava “boa tarde!” tão alto porque nunca tinha certeza de que obteria uma resposta. Orr quis ser simpático, mas nada pessoal lhe pareceu adequado; ele disse:

— Parece que o Afeganistão pode entrar na guerra.

— Humm, isso estava previsto desde agosto. — Ele deveria saber que o médico estaria mais informado sobre as questões mundiais do que ele, que costumava estar parcialmente informado e três semanas atrasado. — Acho que isso vai fazer os Aliados tremerem — Haber continuou —, a menos que atraia o Paquistão para o lado iraniano. Aí a Índia pode ter de enviar mais do que um suporte simbólico aos isragípcios. — Aquele era o termo teleglota para a aliança Nova República Árabe/Israel. — Acho que o discurso de Gupta em Delhi demonstra que ele está se preparando para essa possibilidade.

— Ela continua se espalhando — Orr disse, se sentindo inadequado e desanimado. — A guerra, quero dizer.

— Isso preocupa você?

— Não preocupa você?

— Irrelevante — respondeu o médico, dando seu sorriso largo, barbudo, como um grande deus urso; mas ele continuava desconfiado, desde o dia anterior.

— Sim, me preocupa. — Mas Haber não tinha merecido aquela resposta; quem pergunta não pode se retirar da pergunta, assumindo objetividade, como se as respostas fossem um objeto. Entretanto, Orr não expressou esses pensamentos; estava nas mãos de um médico que, com certeza, sabia o que estava fazendo.

Orr tendia a acreditar que as pessoas sabiam o que estavam fazendo, talvez porque geralmente considerasse que ele mesmo não sabia.

— Dormiu bem? — Haber quis saber, sentando-se sob o casco da pata esquerda traseira de Tammany Hall.

— Muito bem, obrigado.

— O que acha de voltar ao Palácio dos Sonhos? — Ele observava com interesse.

— É claro, acho que é para isso que estou aqui.

Ele viu Haber levantar e dar a volta na mesa, viu a mão enorme vir em direção ao seu pescoço e, então, não aconteceu nada.

—... George...

O nome dele. Quem chamou? Não era uma voz conhecida. Terra seca, ar seco, o estrondo de uma voz estranha em seu ouvido. A luz do dia e nenhum destino. Nem caminho de volta. Ele acordou.

A sala quase familiar; o homem alto, quase familiar, vestindo um volumoso Gernreich castanho-avermelhado, de barba ruiva, dentes brancos e olhos escuros e opacos.

— No EEG, parecia um sonho curto, mas vívido — disse a voz grave. — Vamos ver isso. Quanto mais imediata a lembrança, mais completa.

Orr se sentou, sentindo-se um tanto zonzo. Ele estava no divã, mas como chegara ali?

— Vejamos. Não foi muita coisa. O cavalo de novo. Você me falou para sonhar com o cavalo de novo, quando fui hipnotizado?

Haber balançou a cabeça, sem confirmar nem negar, e escutou.

— Bem, aqui era uma estrebaria. Esta sala. Com palha, manjedoura, forquilha no canto e assim por diante. O cavalo estava ali. Ele...

O silêncio de expectativa de Haber não permitia evasiva.

— Ele fez um tremendo monte de merda. Marrom, fumegante. Um monte absurdo. Parecia o monte Hood, com a corcundinha do lado norte e tudo mais. Cobria todo o tapete e meio que ameaçava cair em mim, então eu disse: “É só a fotografia de uma montanha”. Aí acho que comecei a acordar.

Orr ergueu o rosto, ignorando o dr. Haber e olhando para o mural atrás dele, a fotografia do monte Hood que ocupava toda a parede.

Era uma imagem serena em tons ligeiramente esmaecidos e pretensamente artísticos: o céu acinzentado, a montanha marrom claro ou marrom avermelhado com pontos brancos próximo ao cume e o primeiro plano com copas de árvores escuras e amorfas.

O médico não olhava para o mural. Observava Orr com olhos interessados, opacos. Riu quando Orr terminou; não por muito tempo, nem muito alto, mas um pouco agitado, talvez.

— Estamos chegando lá, George.

— Onde?

Orr se sentia desmazelado e tolo, sentado ali no divã, ainda zonzo de sono, tendo se deitado ali e dormido, provavelmente de boca aberta e roncando, indefeso, enquanto Haber observava os saltos e piruetas de seu cérebro e lhe dizia o que sonhar. Sentiu-se vulnerável, usado. E para quê?

Era evidente que o médico não tinha nenhuma lembrança do mural com o cavalo, nem da conversa que tiveram a respeito dele; estava imerso por completo naquele novo presente e todas as suas lembranças levavam a ele. Então, ele não podia ajudar em absolutamente nada. Mas agora andava de um lado para o outro do consultório, falando ainda mais alto do que de costume.

— Bem, (a) você pode sonhar e sonha conforme ordenado, você segue as sugestões de hipnose; (b) você reage ao Ampliador de forma esplêndida. Portanto, podemos trabalhar juntos, com rapidez e eficiência, sem narcose. Prefiro trabalhar sem as drogas. O que o cérebro faz sozinho é infinitamente mais fascinante e complexo do que qualquer possível reação a estímulos químicos; por isso criei o Ampliador, para dar ao cérebro um meio de se autoestimular. Os recursos criativos e terapêuticos do cérebro, acordado, dormindo ou sonhando, são praticamente infinitos.

Se pudermos apenas encontrar as chaves para todas as fechaduras... O poder do sonho, por si só, é algo com que mal podemos sonhar! — Ele deu uma grande risada, já tinha feito aquele trocadilho muitas vezes. Orr sorriu, desconfortável; aquilo o atingiu de modo um pouco pessoal. — Agora estou seguro de que seu tratamento consiste em usar seus sonhos, não em fugir deles e evitá-los. Enfrentar seu medo e, com minha ajuda, compreendê-lo. Você tem medo de sua própria mente, George. É um medo com o qual nenhum homem pode viver. E você não precisa. Ainda não viu como sua própria mente pode ajudá-lo, o modo como pode usá-la, empregá-la criativamente. Tudo que precisa fazer é parar de se esconder de seus próprios poderes, não os suprimir, mas os libertar. Podemos fazer isso juntos. Agora, isso não lhe parece o certo, a coisa certa a ser feita?

— Não sei — respondeu Orr.

Quando Haber falou sobre usar, empregar os poderes mentais dele, por um momento Orr pensou que o médico se referia a seu poder de alterar a realidade pelo sonho. Mas se quisesse dizer aquilo, com certeza teria dito de maneira clara? Sabendo que Orr precisava desesperadamente de confirmação, caso pudesse dá-la, ele não a negaria sem motivos.

Orr estava com o coração partido. O uso de narcóticos e comprimidos estimulantes causava desequilíbrio emocional; ele sabia disso e, portanto, continuou tentando combater e controlar seus sentimentos. Mas essa decepção estava além do controle. Agora ele percebia que se permitira sentir alguma esperança. Não tivera dúvidas, no dia anterior, de que o médico estava consciente da troca da montanha pelo cavalo. Não ficara surpreso ou assustado com o fato de Haber tentar esconder sua consciência na primeira mudança; sem dúvida o médico fora incapaz de admitir o fenômeno até para si mesmo, de absorvê-lo por inteiro. O próprio Orr tinha levado muito tempo para conseguir encarar o fato de que estava fazendo algo impossível. Ainda assim, permitiu-se ter a esperança de que Haber, conhecendo o sonho e sendo a causa dele enquanto era sonhado, pudesse perceber a mudança, se lembrasse dela e a confirmasse.

Não valia a pena. Não havia solução. Orr estava onde tinha estado há meses: sozinho, sabendo que estava louco e sabendo que não estava louco, simultânea e profundamente. Aquilo bastava para deixá-lo louco.

— Seria possível — ele perguntou, envergonhado — você fazer uma sugestão pós-hipnose para que, na verdade, eu não sonhe? Já que consegue sugerir que eu sonhe... Assim eu poderia me livrar das drogas, ao menos por algum tempo.

Haber se colocou atrás da mesa, arqueado como um urso.

— Duvido muito que isso funcione, mesmo por uma noite — ele disse, sucinto. E então, de repente, voltou a bradar: — Esse não é o mesmo rumo estéril que você tem tentado seguir, George? Drogas ou hipnose, é sempre a supressão. Você não pode fugir de sua própria mente. Você enxerga esse fato, mas ainda não está muito disposto a enfrentá-lo. Tudo bem. Veja desta forma: você sonhou duas vezes, bem aqui, nesse divã. Foi tão ruim? Causou algum mal?

Orr sacudiu a cabeça, desanimado demais para responder.

Haber continuou falando e Orr tentou prestar atenção nele. Agora, ele discorria sobre sonhos acordados, sobre a relação deles com os ciclos de uma hora e meia dos sonhos noturnos, sobre sua utilidade e valor. Perguntou a Orr se algum tipo particular de sonho acordado era de seu agrado.

— Por exemplo — ele disse —, muitas vezes sonho com atos heroicos. Sou o herói. Estou salvando uma garota ou um colega astronauta ou uma cidade sitiada, ou o planeta inteiro que está amaldiçoado. Sonhos messiânicos, sonhos de bom samaritano. Haber salva o mundo! É divertido para caramba, contanto que eu os mantenha no lugar deles. Precisamos dessa exaltação do ego que tiramos dos sonhos acordados, mas quando começamos a depender disso, nossos parâmetros de realidade ficam um pouco precários... Há também os sonhos acordados do tipo ilhas dos mares do sul: um monte de executivos de meia idade estão nessa. E o tipo mártir-sofredor-magnânimo e as várias fantasias românticas da adolescência e o sonho acordado sadomasoquista, e por aí vai. A maioria das pessoas reconhece a maioria dos tipos. Quase todos nós já estivemos na arena enfrentando os leões, ao menos uma vez, ou jogamos uma bomba e destruímos nossos inimigos, ou salvamos a virgem pneumática no naufrágio de um navio, ou compusemos a Décima Sinfonia de Beethoven por ele. Que estilo você prefere?

— Ah, a fuga — Orr disse. Ele precisava realmente se recompor e responder para aquele homem que estava tentando ajudá-lo. — Fugir, me livrar de alguma coisa.

— Livrar-se do trabalho, da batalha diária?

Haber parecia se recusar a crer que Orr estava contente com seu emprego. Sem dúvida Haber tinha muita ambição e achava difícil acreditar que um homem poderia viver sem ela.

— Bom, é mais a cidade, a multidão, quero dizer. Gente demais em todos os lugares. As manchetes. Tudo.

— Mares do sul? — Haber quis saber, com seu sorriso de urso.

— Não. Aqui. Não sou muito imaginativo. Sonho acordado com ter uma cabana em algum lugar longe das cidades, talvez nas cadeias montanhosas da costa do Pacífico, onde ainda existem algumas das antigas florestas.

—Já considerou comprar uma?

— Terras para recreação custam cerca de 38 mil dólares o acre, nas regiões mais baratas, nas reservas do Sul do Oregon. Sobe para 400 mil para um lote com vista para a praia.

Haber deu um assovio.

— Vejo que você considerou... e então voltou a sonhar acordado. Graças a Deus, isso é gratuito, hein! Bem, está a fim de tentar de novo? Ainda temos quase meia hora sobrando.

— Você poderia...

— O que, George?

— Me deixar ficar com a lembrança?

Haber deu início a uma de suas complexas recusas.

— Agora, como você sabe, o que é vivenciado durante a hipnose, incluindo as orientações dadas, é normalmente bloqueado à lembrança quando se está acordado, por meio de um mecanismo similar ao que bloqueia a lembrança de 99% de nossos sonhos. Reduzir esse bloqueio seria lhe dar muitas orientações conflitantes em relação a algo que é um assunto bastante delicado, o conteúdo de um sonho que você ainda não sonhou. Isso... o sonho... eu consigo orientar você a lembrar. Mas não quero que a lembrança de minhas sugestões se misture com sua lembrança do sonho que realmente sonhou. Quero mantê-las separadas para obter um relato nítido do que você de fato sonhou, não do que acha que deveria ter sonhado. Certo? Sabe, pode confiar em mim. Estou nessa para ajudá-lo. Não vou pedir demais. Vou pressioná-lo, mas não demais nem muito rápido. Não vou fazê-lo ter pesadelos! Acredite em mim, quero esclarecer isso, compreender isso, tanto quanto você. Você é um paciente inteligente e cooperativo, e um homem corajoso por suportar tanta ansiedade, sozinho, por tanto tempo. Vamos superar isso, George. Acredite em mim.

Orr não acreditava nele totalmente, mas Haber era tão convincente quanto um pastor. E, além disso, Orr queria conseguir acreditar nele.

Então não disse nada, mas se deitou no divã e se submeteu ao toque da mão enorme em sua garganta.


— Ok! Prontinho! Com o que você sonhou, George? Vamos ver esse sonho saído do forno.

Ele se sentiu enjoado e tolo.

— Algo sobre os mares do sul... cocos... não consigo me lembrar. — Esfregou a cabeça, coçou-se sob a barba curta, inspirou fundo. Ansiava por um copo de água gelada. — Então, eu... sonhei que você estava caminhando com John Kennedy, o presidente, acho que descendo a Rua Alder. Eu estava mais ou menos seguindo, acho que estava carregando algo para um de vocês. Kennedy estava com o guarda-chuva erguido... eu o vi de perfil, como nas moedas antigas de cinquenta centavos... e você disse: “O senhor não vai mais precisar disso, senhor presidente” e o tomou de sua mão. Ele pareceu incomodado com isso, falou algo que não consegui entender. Mas tinha parado de chover, o sol havia saído, então ele disse: “Suponho que agora você esteja certo”... Parou de chover.

— Como você sabe?

Orr suspirou.

— Você vai ver quando sair. Por hoje é isso?

— Estou preparado para mais. Bill está no governo, entende!

— Estou exausto.

— Bem, então tudo bem, concluído por hoje. Escute, e se fizéssemos as sessões à noite? Permitindo que você durma de forma natural, usando a hipnose apenas para sugerir o conteúdo do sonho. Isso deixaria sua jornada de trabalho livre, e meu horário de trabalho é à noite, metade do tempo; uma coisa que pesquisadores do sono raramente fazem é dormir! Isso aumentaria tremendamente nossa velocidade e evitaria que você precisasse usar alguma droga supressora de sonhos. Quer tentar? Que tal sexta à noite?

— Tenho um compromisso — Orr disse, e ficou surpreso com a própria mentira.

— Sábado, então.

— Tudo bem.

Saiu levando seu casaco de chuva úmido no braço. Não havia necessidade de vesti-lo. O sonho com Kennedy fora muito efetivo. Ele não tinha dúvidas sobre esses sonhos quando os tinha. Não importava quanto o conteúdo fosse sem graça, ele acordava desses sonhos se lembrando deles com profunda clareza e se sentindo debilitado e irritado, como alguém se sentiria depois de fazer um enorme esforço físico para resistir a uma força esmagadora, massacrante. Sozinho, ele não passava por um desses mais de uma vez por mês ou uma vez a cada seis semanas; foi o medo que o deixou obcecado. Agora, com o Ampliador que o mantinha no sono com sonho, e com as sugestões hipnóticas insistindo que ele sonhasse de modo efetivo, em dois dias, entre quatro sonhos, três foram efetivos. Ou seja, descontando o sonho do coco, que fora mais exatamente o que Haber chamara de um mero murmúrio de imagens, três em três. Ele estava exausto.

Não estava chovendo. Quando saiu pelo portal da Willamette EastTower, o céu de março estava alto e límpido acima dos desfiladeiros de ruas. O vento mudou, soprando do leste, o vento seco do deserto que de tempos em tempos vivificava o clima úmido, quente, triste e cinzento do vale de Willamette.

O ar mais límpido elevou um pouco seu estado de espírito. Ele endireitou os ombros e saiu, tentando ignorar uma tênue vertigem que devia ser resultado combinado de fadiga, ansiedade, duas sonecas curtas em um período não habitual do dia e uma descida de elevador de 62 andares.

Será que o médico disse a ele para sonhar que tinha parado de chover? Ou a sugestão fora para sonhar com Kennedy (que agora, pensando bem, tinha a barba de Abraham Lincoln)? Ou sobre o próprio Haber? Ele não tinha como saber. A parte efetiva do sonho fora a interrupção da chuva, a mudança do clima; mas isso não provava nada. Muitas vezes, não era o elemento aparentemente extraordinário ou evidente de um sonho que era efetivo.

Ele suspeitava que Kennedy, por alguma razão subconsciente, fora um acréscimo que ele mesmo fizera, mas não podia ter certeza.

Desceu até a estação East Broadway do metrô com inúmeras outras pessoas. Colocou uma nota de cinco dólares na máquina de bilhetes, pegou seu bilhete, entrou na escuridão sob o rio.

A vertigem aumentou, no corpo e na mente.

Passar sob um rio: era uma coisa estranha a se fazer, uma ideia realmente esquisita.

Atravessar um rio, cruzá-lo, caminhar nele, nadar nele, usar barco, balsa, ponte, avião, subir e descer na incessante renovação e fonte de correnteza: tudo isso faz sentido. Mas passar sob o rio envolve algo que é, no sentido fundamental da palavra, perverso. Há trilhas, na mente e fora dela, cuja mera complexidade demonstra claramente que, para se chegar a elas, um retorno equivocado deve ter sido tomado muito tempo antes.

Havia nove túneis para trens e caminhões sob o Willamette, dezesseis pontes sobre ele e margens concretadas que se estendiam por 43 quilômetros. O controle de inundação no rio e em seu maior afluente, o Columbia, alguns quilômetros rio abaixo a partir do centro de Portland, era tão desenvolvido que nenhum rio subia mais do que 13 centímetros, mesmo depois das chuvas torrenciais mais longas. O Willamette era um elemento útil do ambiente, como um animal de carga enorme, dócil, dominado com arreios, correntes, varas, selas, freios de boca, chinchas, peias. Se não fosse útil, obviamente teria sido concretado, como as centenas de riachos e córregos que desciam na escuridão das colinas da cidade, sob ruas e prédios. Mas sem ele, Portland não seria um porto; os navios, as longas fileiras de barcaças, as grandes balsas de detritos ainda o subiam e desciam. Então, os caminhões, trens e os poucos carros particulares tinham de passar sobre o rio, ou abaixo dele. Acima das cabeças dos passageiros do trem da CTM no túnel Broadway havia toneladas de rochas e cascalhos, toneladas de água corrente, um monte de embarcadouros e quilhas de navios transatlânticos, as enormes estruturas de concreto das pontes e acessos elevados das rodovias, um comboio de vagões a vapor carregados com galinhas em gaiolas de bateria, um avião a jato a dez mil metros de altura, as estrelas a mais de 4,3 anos-luz. Na escuridão subfluvial, pálido sob as luzes fluorescentes e tremulantes do vagão do trem, George Orr cambaleou se segurando em uma alça de aço de uma barra bamba entre milhares de outras almas. Sentiu a gravidade sobre si, o peso que o pressionava eternamente. Pensou: estou vivendo em um pesadelo do qual, de tempos em tempos, acordo, no sono.

Os atropelos e choques das pessoas que desciam na parada da estação Union destruíram esse pensamento sisudo em sua mente; ele dirigiu toda a sua concentração para continuar segurando a alça na barra. Ainda tonto, temia perdê-la e precisar se submeter de forma completa à força (m); poderia ficar enjoado.

O trem arrancou outra vez com um ruído que combinava igualmente profundos roncos abrasivos e altos gritos pungentes.

Todo o sistema da CTM tinha apenas quinze anos, mas fora construído com atraso e de modo apressado, com materiais de qualidade inferior, na época, e não antes, do colapso da economia dos carros particulares. Na verdade, os vagões dos trens tinham sido produzidos em Detroit e demonstravam isso na durabilidade e nos sons. Cidadão urbano e passageiro do metrô, Orr nem sequer ouvia aquele barulho. As terminações de seus nervos auditivos eram, na verdade, consideravelmente opacas à audição, embora ele tivesse apenas trinta anos e, em todo caso, o barulho fosse apenas o som de fundo do pesadelo. Ele estava pensando mais uma vez, após ter confirmado seu direito à alça na barra.

A ausência de lembrança da maioria dos sonhos o intrigava desde que, pela necessidade, passara a se interessar pelo assunto. Parece que o pensamento não consciente, seja na primeira infância ou no sonho, não fica disponível à lembrança consciente. Mas ele perdia a consciência durante a hipnose? De forma alguma: ficava bem desperto, até ser comandado a dormir. Por que, então, não conseguia se lembrar? Aquilo o preocupava. Ele queria saber o que Haber estava fazendo. O primeiro sonho daquela tarde, por exemplo: será que o médico apenas lhe dissera para sonhar com o cavalo outra vez? E, o que seria constrangedor, ele mesmo tinha acrescentado a merda de cavalo? Ou o médico especificara a merda, o que seria constrangedor de um jeito diferente? Talvez Haber tivesse sorte por não ter acabado com um monte enorme e fumegante de esterco no carpete do consultório. Em certo sentido, óbvio, isso aparecera: na foto da montanha.

Orr se endireitou como se tivesse sido cutucado enquanto o trem berrava ao entrar na estação da Rua Alder. A montanha, ele pensou enquanto 68 pessoas o acotovelavam, empurravam e espancavam ao passar por ele rumo à porta. A montanha. Ele me disse para colocar a montanha de volta em meu sonho. Então, fiz o cavalo colocar a montanha de volta. Mas se ele me disse para colocar a montanha de volta, ele sabia que ela tinha estado ali antes do cavalo. Ele sabia. Ele viu o primeiro sonho alterar a realidade. Ele viu a alteração. Ele acredita em mim. Não sou louco!

Uma alegria tão grande preencheu Orr que, entre as 42 pessoas que estavam se enfiando no vagão enquanto ele pensava nessas coisas, as sete ou oito imprensadas ao seu redor sentiram um leve, mas nítido, calor de benevolência ou alívio. A mulher que não conseguira tirar a alça dele sentiu uma interrupção abençoada da dor aguda em seu calo; o homem que se espremia contra ele do lado esquerdo de repente pensou na luz do sol; o velho sentado e encolhido bem à sua frente se esqueceu, por um instante, de que estava com fome.

Orr não raciocinava rápido. Na verdade, ele não raciocinava. Chegava às ideias de um jeito lento, sem nunca deslizar pelo gelo firme e cristalino da lógica nem planar nos turbilhões da imaginação, mas pelejava e se arrastava no terreno pantanoso da existência. Ele não enxergava as relações entre as coisas, o que é, dizem, a característica da inteligência. Ele sentia as conexões - como um encanador. Na verdade, não era um homem burro, mas não usava nem a metade do que poderia usar do cérebro, nem com metade da rapidez. Somente depois de sair do metrô, no lado oeste da ponte Ross Island, caminhar colina acima por vários quarteirões, subir dezoito andares de elevador - até seu apartamento de um cômodo medindo 2,50 x 3,30 metros no condomínio Corbett (more barato e com estilo no centro da cidade!), que tinha vinte andares exclusivos para locação e era feito em aço e concreto barato -, colocar uma fatia de pão de soja no forno infravermelho, tirar uma cerveja da parede refrigeradora e ficar algum tempo diante da janela (ele pagava o dobro por um cômodo externo) olhando para as colinas ao oeste de Portland, cobertas por torres cintilantes, cheias de luzes e vida, ele, enfim, pensou: por que o dr. Haber não me disse que sabe que meus sonhos são efetivos?

Ruminou esse pensamento por alguns instantes. Trabalhou nele, tentou sustentá-lo, considerou-o muito vultoso.

Pensou: agora Haber sabe que o mural se alterou duas vezes. Por que não falou nada? Ele deve saber que eu estava com medo de estar louco. Diz que está me ajudando. Ajudaria muito se me dissesse que consegue enxergar o que eu enxergo, se me dissesse que não é apenas delírio.

Agora ele sabe - Orr pensou, depois de um longo e demorado gole de cerveja - que parou de chover. Entretanto, quando eu lhe disse isso, ele não foi olhar. Talvez estivesse com medo. Deve ser isso. Está assustado com essa coisa toda e quer saber mais antes de me dizer o que realmente pensa a respeito. Bem, não posso culpá-lo. Estranho seria se ele não estivesse assustado.

Mas quero saber o que ele fará quando se acostumar com a ideia... Quero saber como vai interromper meus sonhos, como vai evitar que eu altere as coisas. Preciso parar, isso já foi longe demais, longe demais...

Sacudiu a cabeça e deu as costas para as colinas radiantes e incrustadas de vida.


4

Nada perdura, nada é preciso e seguro (exceto a mente de uma pessoa pedante), a perfeição é o mero repúdio da inexatidão marginal e inelutável que é a característica mais profunda e misteriosa do Ser.

H. G. WELLS, UMA UTOPIA MODERNA

O ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA FORMAN, ESSEBECK, GOODHUE e Rutti ficava em um edifício-garagem de 1973 adaptado para uso humano. Muitos dos antigos edifícios do centro de Portland tinham essa origem. Em determinada época, aliás, a maior parte do centro da cidade fora formada por locais para estacionar carros. No começo, eram, em sua maioria, terrenos planos asfaltados, entremeados por cabines de cobrança ou parquímetros, mas quando a população cresceu, eles subiram. Na verdade, os edifícios-garagem com elevadores automáticos haviam sido inventados em Portland há muito, muito tempo; e antes que os carros particulares sufocassem com os próprios escapamentos, os edifícios-garagem com rampas tinham chegado a quinze e vinte andares. Nem todos foram demolidos depois dos anos 1980 para dar espaço a arranha-céus de escritórios e apartamentos; alguns foram adaptados. Este, no número 209 da Rua Burnside, ainda tinha o cheiro fantasmagórico da fumaça de gasolina. Seus pisos de cimento estavam manchados com excreções de inúmeros motores, os rastros dos pneus dos dinossauros estavam fossilizados na poeira de seus corredores cheios de ecos. Todos os andares possuíam um declive estranho, uma assimetria, devido à construção da rampa helicoidal central do edifício; no escritório da Forman, Esserbeck, Goodhue e Rutti nunca se tinha certeza de estar totalmente ereto.

A srta. Lelache se sentava atrás de uma estante de livros e arquivos que quase separava seu quase escritório do quase escritório do sr. Pearl; ela pensava em si mesma como uma Viúva Negra.

Estava ali sentada, venenosa - rija, reluzente e venenosa - aguardando, aguardando.

A vítima apareceu.

Uma vítima de nascença. Cabelos como os de uma garotinha, castanhos e finos, uma barbicha loira, pele branca macia, como a barriga de um peixe; obediente, gentil, gago. Merda! Se ela pisasse nele, ele nem sequer rangeria.

— Bem, acho que é um... um caso de... de direito à privacidade, mais ou menos — ele estava explicando. — Quer dizer, invasão de privacidade. Mas não tenho certeza. Por isso quis uma consulta.

— Bem. Desembucha — disse a srta. Lelache.

A vítima não conseguia desembuchar. Sua garganta gaga estava seca.

— O senhor está em Tratamento Terapêutico Voluntário — a srta. Lelache falou, referindo-se ao bilhete que o sr. Esserbeck lhe enviara previamente — por infração das normas federais de controle de distribuição de medicamentos nas farmácias de autoatendimento.

— Sim. Se eu concordar com o tratamento psiquiátrico não serei processado.

— Essa é a essência da coisa, sim — a advogada disse, seca. O homem lhe dava a impressão de não ser exatamente um boboca, mas era tão ingênuo que dava raiva. Ela pigarreou.

Ele pigarreou. Maria vai com as outras.

Aos poucos, entre muitas idas e vindas, ele explicou que sua terapia consistia basicamente em sono e sonho induzidos por hipnose. Ele tinha a sensação de que o psiquiatra, ao orientá-lo a sonhar determinados sonhos, poderia estar infringindo seu direito à privacidade conforme definido na Nova Constituição Federal de 1984.

— Bem, algo parecido aconteceu no Arizona no ano passado — disse a srta. Lelache. — Um homem em TTV tentou processar seu terapeuta por induzir nele tendências homossexuais. Óbvio que o psiquiatra estava apenas usando técnicas clássicas de condicionamento e o reclamante, na verdade, era um homossexual terrivelmente reprimido; ele foi preso por tentar violentar um menino de doze anos em plena luz do dia no parque Phoenix, antes mesmo de o caso ser levado à corte. Acabou na Terapia Obrigatória em Tehachapi. Bom, o que estou tentando dizer é que o senhor precisa ser cauteloso ao fazer esse tipo de alegação. A maioria dos psiquiatras que atendem pacientes encaminhados pelo governo são, eles mesmos, profissionais cautelosos e respeitáveis. Agora, se o senhor conseguir fornecer exemplos, alguma ocorrência, isso pode servir como evidência concreta; mas a mera suspeita não é suficiente. Na verdade, eles poderiam colocá-lo na Obrigatória, isto é, no Hospital Mental de Linnton, ou na cadeia.

— Eles poderiam... talvez apenas me dar outro psiquiatra?

— Bom. Não sem um motivo concreto. A Faculdade de Medicina o encaminhou para esse tal de Haber, e eles são bons por lá, sabe. Se o senhor apresentasse uma queixa contra Haber, os homens que a ouviriam na condição de especialistas muito provavelmente seriam caras da Faculdade de Medicina, talvez os mesmos que entrevistaram o senhor. Se não houver evidências, eles não vão confiar na palavra de um paciente contra a de um médico. Não nesse tipo de caso.

— Um caso de doença mental — o cliente concluiu, em tom triste.

— Exato.

Ele não disse nada por um instante. Por fim, ergueu os olhos para encontrar os dela, claros, límpidos — um olhar sem raiva e sem esperança; então sorriu e falou:

— Muito obrigado, srta. Lelache. Lamento ter desperdiçado seu tempo.

— Certo, espere! — ela pediu. Ele pode ser ingênuo, mas com certeza não parece maluco; nem sequer parece neurótico. Só parece desesperado. — Não precisa desistir tão facilmente. Eu não disse que não temos um caso. O senhor alega que quer se livrar das drogas e que, agora, o dr. Haber lhe dá uma dose mais forte de fenobarbital do que a que o senhor estava tomando por conta própria; isso poderia justificar uma investigação. Embora eu duvide muito que funcione. Mas a defesa do direito à privacidade é minha especialidade e quero saber se houve violação de privacidade. Eu só disse que não me contou seu caso... se é que tem um. O que, especificamente, esse médico fez?

— Se eu contar — o cliente afirmou, com desoladora objetividade —, a senhorita vai me achar maluco.

— Como sabe disso?

A srta. Lelache era refratária a influências, qualidade excelente em uma advogada, mas sabia que levava aquilo um pouco longe.

— Se eu contasse — o cliente disse, no mesmo tom de voz — que alguns dos meus sonhos exercem certa influência sobre a realidade e que o dr. Haber descobriu isso e está usando... esse meu talento para fins pessoais, sem meu consentimento... a senhorita acharia que sou maluco. Não acharia?

A srta. Lelache ficou olhando para ele por algum tempo, com o queixo nas mãos.

— Ok, continue — ela pediu por fim, em tom enfático. Ele estava corretíssimo a respeito do que ela estava pensando, mas até parece que ela iria admitir isso. De qualquer forma, e daí se ele era maluco? Quem, sendo são, conseguia viver neste mundo e não enlouquecer?

Ele baixou os olhos para as próprias mãos por um minuto, claramente tentando organizar os pensamentos.

— Sabe, ele tem aquela máquina. Um dispositivo parecido com um gravador de EEG, mas que produz uma espécie de análise e retroalimenta as ondas cerebrais.

— Quer dizer que ele é um cientista maluco com uma máquina infernal?

O cliente deu um sorriso abatido.

— Quando eu falo, parece que é assim. Não, acredito que ele tenha uma excelente reputação como cientista pesquisador, e que se dedique de forma genuína a ajudar as pessoas. Com certeza não tem a intenção de me prejudicar ou a qualquer outra pessoa. Seus motivos são muito elevados. — Ele viu o olhar de desilusão da Viúva Negra por um instante e gaguejou. — A... a máquina. Bem, não sei dizer como funciona, mas, de qualquer maneira, ele a está usando para manter meu cérebro no estado D... que é como ele chama... um dos termos para o tipo especial de sono que um indivíduo tem quando está sonhando. É bem diferente do sono normal. Pela hipnose, ele me manda dormir e depois liga sua máquina para que eu comece imediatamente a sonhar; normalmente não é assim. Ao menos é dessa forma que entendo. A máquina garante que estou sonhando e acho que também intensifica o estado de sonho. Então, eu sonho o que ele me diz, na hipnose, para sonhar.

— Bem, isso soa como um método infalível para um psicanalista conseguir analisar sonhos. Mas em vez disso ele está lhe dizendo o que sonhar, por sugestão hipnótica? Então, suponho que, por algum motivo, ele o está condicionando por meio dos sonhos. Veja, é fato consumado que, sob sugestão hipnótica, uma pessoa pode e irá fazer praticamente qualquer coisa, quer sua consciência permitisse ou não aquilo em seu estado normal. Esse fato é conhecido desde meados do século passado e foi estabelecido legalmente desde o caso Somerville contra Projansky em 1988. Bem, existe alguma base para acreditar que esse médico está usando a hipnose para lhe sugerir que faça alguma coisa perigosa, algo que o senhor considere moralmente repugnante?

O cliente hesitou.

— Perigosa, sim. Se a senhorita admitir que um sonho pode ser perigoso. Mas ele não me orienta a fazer coisa alguma. Apenas a sonhá-la.

— Bem, e os sonhos que ele sugere são moralmente repugnantes para o senhor?

— Ele não... não é um homem mau. Tem boas intenções. O que contesto é que ele está me usando como um instrumento, um meio... mesmo que seus fins sejam bons. Não posso julgá-lo... meus próprios sonhos tinham efeitos imorais, foi por isso que tentei suprimi-los com drogas e entrei nesse caos. E quero sair dele, me livrar das drogas, ficar curado. Mas ele não está me curando. Está me encorajando.

Depois de uma pausa, a srta. Lelache perguntou:

— A fazer o quê?

— A alterar a realidade, sonhando que ela é diferente — o cliente disse, de forma obstinada e desesperançosa.

A srta. Lelache mergulhou a ponta do queixo entre as mãos novamente e fixou o olhar por alguns instantes na caixa azul de clipes sobre a mesa, no ponto mais baixo de seu campo de visão. Lançou um olhar furtivo para o cliente ali sentado, gentil como nunca; mas ela agora pensava que ele com certeza não seria esmagado se ela pisasse nele, nem rangeria, sequer estalaria. Era extremamente sólido.

As pessoas que procuram um advogado têm a tendência de ficar na defensiva caso não estejam na ofensiva; estão, naturalmente, tentando obter algo: uma herança, uma propriedade, uma liminar, um divórcio, uma reclusão, o que for. Ela não conseguia imaginar o que aquele sujeito, tão inofensivo e sem defesas, estava tentando obter. O que ele dizia não fazia o menor sentido e, mesmo assim, não parecia sem sentido.

— Tudo bem — ela disse, cautelosa. — Então, o que há de errado com o que ele está fazendo através de seus sonhos?

— Eu não tenho o direito de alterar as coisas. Nem ele de me fazer alterá-las.

Céus, ele acreditava de fato naquilo; estava completamente no fundo do poço. Ainda assim, sua ética a atraía, como se ela também fosse um peixe nadando em círculos no fundo daquele poço.

— Alterar as coisas como? Que coisas? Dê um exemplo! — Ela não tinha compaixão por ele, como deveria ter por um homem doente, um esquizofrênico ou paranoico com delírios de manipulação da realidade. Ali estava “mais uma vítima destes nossos tempos que põem à prova a alma de um homem”, como disse o presidente Merdle com sua oportuna capacidade de corromper uma citação, em seu discurso sobre o Estado da Nação.

E ali estava ela sendo cruel com uma pobre, miserável e ensanguentada vítima com lacunas no cérebro. Mas a srta. Lelache não sentia vontade de ser bondosa com aquele homem. Ele podia suportar.

— A cabana — ele falou, depois de ponderar um pouco. — Em minha segunda consulta, ele estava perguntando sobre ter um lugar nas reservas do Oregon, sabe, um lugar no campo como nos romances antigos, um lugar para onde fugir. Óbvio que eu não tinha um. Quem tem? Mas semana passada ele deve ter me orientado a sonhar que sim. Porque agora tenho. Uma concessão de terra do governo, por trinta anos, depois da Floresta Nacional de Siuslaw, perto de Neskowin. Aluguei um carro elétrico e dirigi até lá no domingo para vê-la. É muito bonita, mas...

— Por que o senhor não deveria ter uma cabana? Isso é imoral? Muitas pessoas estão entrando nos sorteios para essas concessões desde que algumas das reservas foram abertas para isso no ano passado. O senhor só é um sortudo dos infernos.

— Mas eu não tinha — ele explicou. — Ninguém tinha. Os parques e florestas eram reservas estritamente ambientais, o que havia sobrado delas, com acampamentos apenas nas margens. Não existiam cabanas concedidas pelo governo. Até sexta-feira passada. Quando sonhei que existiam.

— Mas, veja, sr. Orr, eu sei...

— Eu sei que sabe — ele disse em tom suave. — Eu também sei. Sei que decidiram conceder partes das reservas nacionais na primavera passada. E eu me inscrevi, e meu número foi sorteado e assim por diante. Só que também sei que isso não era verdade até sexta-feira. E o dr. Haber também sabe disso.

— Então, seu sonho de sexta-feira — ela perguntou, zombando — alterou a realidade retrospectivamente para todo o estado do Oregon e afetou uma decisão em Washington no ano passado e apagou a memória de todo mundo, exceto a sua e a do seu médico? Que sonho! Consegue se lembrar dele?

— Sim — ele respondeu ressentido, mas seguro. — Era sobre uma cabana e o riacho diante dela. Eu não esperava que a senhorita acreditasse, srta. Lelache. Não acho nem mesmo que o dr. Haber se deu conta ainda; ele não vai esperar e se acostumar com a ideia. Se fizesse isso, seria mais cauteloso. Veja, funciona assim: se ele me dissesse, sob hipnose, para sonhar que existia um cachorro cor-de-rosa na sala, eu faria isso; mas o cachorro não poderia estar lá, já que cães cor-de-rosa não existem na ordem natural, não são parte da realidade. O que aconteceria: ou eu encontraria um poodle branco tingido de rosa e um motivo plausível para ele estar ali ou, se ele insistisse que fosse um cão rosa autêntico, eu teria de alterar a ordem natural para inserir nela os cães cor-de-rosa. Em todo o mundo. Desde o Pleistoceno ou seja lá quando os cães surgiram. Eles teriam sempre existido nas cores preta, marrom, caramelo, branca e rosa. E um dos cães cor-de-rosa entraria perambulando pelo corredor; seria o collie dele, ou o pequinês da recepcionista ou algo assim. Nada de milagroso. Nada artificial. Cada sonho abrange toda sua trajetória. Apenas haveria um cão cor-de-rosa normal e corriqueiro ali quando eu acordasse, com um excelente motivo para estar ali. E ninguém teria consciência de alguma coisa diferente, exceto eu... e o doutor. Eu mantenho as duas lembranças, das duas realidades. O dr. Haber também. Ele está ali no momento da alteração, sabe sobre o que é o sonho. Ele não admite que sabe, mas eu sei que sabe. Para todas as outras pessoas, sempre houve cães cor-de-rosa. Para mim, e para ele, há... mas não havia antes.

— Trajetórias temporais duplas, universos alternados — disse a srta. Lelache. — O senhor assiste a muitos programas de TV antigos?

— Não — o cliente respondeu, quase tão seco quanto ela. — Não estou pedindo que acredite nisso. Com certeza não sem evidências.

— Puxa, graças a Deus!

Ele sorriu, quase riu. Tinha um rosto bondoso; parecia, por algum motivo, gostar dela.

— Mas veja, sr. Orr, como raios o senhor conseguiria evidências dos seus sonhos? Especialmente se destrói as evidências toda vez que sonha, alterando tudo desde o Pleistoceno?

— A senhorita pode... — ele disse, de repente intenso, como se tivesse recuperado a esperança — pode, agindo como minha advogada, pedir para estar presente a uma das sessões com o dr. Haber... se estiver disposta?

— Bem. É factível. Isso pode ser conseguido, se for por uma boa causa. Mas veja, convocar uma advogada como testemunha em um possível caso de violação de privacidade vai arruinar toda a relação terapeuta-paciente. Não que a relação em curso pareça muito boa, mas é difícil julgar de fora. A verdade é: o senhor precisa confiar nele e, sabe, ele também tem que, de certo modo, confiar no senhor. Se colocar uma advogada contra ele porque quer tirá-lo da sua cabeça... Bem, o que ele pode fazer? O dr. Haber está, supostamente, tentando ajudá-lo.

— Sim. Mas está me usando com fins experi... — Orr não prosseguiu; a srta. Lelache havia enrijecido, a aranha tinha, enfim, avistado sua presa.

— Fins experimentais? Será que está? O quê? Essa máquina de que o senhor falou... é experimental? Tem a aprovação do DESAS? O que o senhor assinou, alguma autorização, algo além dos formulários do TTV e do termo de consentimento para a hipnose? Nada? Parece que poderia haver motivo para queixa, sr. Orr.

— A senhorita conseguiria vir observar uma sessão?

— Talvez. A linha a seguir seria a dos direitos civis, claro, não a de privacidade.

— Entende que não estou tentando criar problemas para o dr. Haber? — ele perguntou, parecendo preocupado. — Não quero fazer isso. Sei que ele tem boas intenções. Mas só quero ser curado, não usado.

— Se os motivos dele forem benignos, e se ele estiver usando um dispositivo experimental em uma cobaia humana, então ele deve considerar isso completamente rotineiro, sem ressentimentos; se for legal, ele não terá problema algum. Já fiz dois trabalhos como este, a serviço do DESAS. Observei um novo indutor de hipnose em atividade na Faculdade de Medicina, que não funcionou, e acompanhei uma demonstração de como induzir agorafobia por sugestão, para que as pessoas fiquem contentes em meio à multidão, no Instituto em Forest Grove. Esse funcionou, mas não foi aprovado, decidimos que isso está sob o controle das leis de lavagem cerebral. Mas é provável que eu consiga um requerimento do DESAS para investigar esse troço que seu médico está usando. Isso deixaria o senhor fora da equação. Não irei como sua advogada, de forma alguma. Na verdade, talvez eu nem o conheça. Sou uma funcionária credenciada pela UALC como observadora do DESAS. Depois, se não chegarmos a lugar nenhum com isso, o senhor e ele ficam com a mesma relação de antes. O único problema é que preciso ser convidada para as suas sessões.

— Sou o único paciente psiquiátrico em que ele está usando o Ampliador, ele me falou isso. Disse que ainda está trabalhando nele... aperfeiçoando-o.

— Então, o que quer que ele esteja lhe fazendo com isso, realmente é experimental. Ótimo. Tudo bem. Verei o que posso fazer. Vai levar uma semana, mais ou menos, para aprovar os formulários.

Ele pareceu angustiado.

— O senhor não vai sonhar que eu deixei de existir durante essa semana, sr. Orr? — ela disse, ouvindo a própria voz quitinosa, estalando as mandíbulas.

— Não voluntariamente — ele respondeu com gratidão... Não, por Deus, aquilo não era gratidão, era afinidade. Ele gostava dela. Era um pobre coitado maluco e psicótico drogado, ele queria gostar dela. Ela gostava dele. Estendeu sua mão marrom, ele correspondeu com sua mão branca, igualzinho àquele maldito botton que a mãe dela sempre deixava no fundo da caixa de contas, SCNN ou SNCC ou alguma coisa à qual ela pertencera lá na metade do século passado, a mão negra e a mão branca juntas. Meu Deus!


5

Quando perdemos o Grande Caminho, encontramos a benevolência e a virtude.

LAO TSE: XVIII

SORRIDENTE, WILLIAM HABER SUBIU OS DEGRAUS DO Instituto Onirológico do Oregon e atravessou as altas portas de vidro polarizado, entrando no frio seco do ar-condicionado. Ainda era 24 de março e lá fora já estava uma sauna, mas ali dentro tudo era fresco, limpo e calmo. Piso de mármore, mobília discreta, balcão de recepção de cromo escovado, recepcionista bem maquiada:

— Bom dia, dr. Haber!

No corredor, saindo da ala de pesquisas, Atwood passou por ele com os olhos vermelhos e os cabelos desalinhados depois de uma noite monitorando os EEGS dos pacientes adormecidos; atualmente os computadores faziam muita coisa, mas ainda havia momentos em que uma mente não programada se fazia necessária.

— Dia, chefe — Atwood murmurou.

E a srta. Crouch, no escritório dele:

— Bom dia, doutor!

Ele estava feliz por ter levado Penny Crouch consigo quando se mudou para o escritório de diretor do instituto, no ano anterior.

Ela era leal e habilidosa, e um homem no comando de uma grande e complexa instituição de pesquisa precisa de uma mulher leal e habilidosa na antessala de seu escritório.

Esticou o passo para entrar em seu refúgio.

Largou a maleta e os fichários no divã, alongou os braços e, então, como sempre fazia ao entrar no escritório, caminhou até a janela. Era uma grande janela de canto com vista abrangente para o leste e o norte: o contorno do Willamette, cheio de pontes, aproximando-se do pé das colinas; dos dois lados do rio, as incontáveis torres da cidade, altas e lácteas sob a névoa da primavera; os subúrbios sumindo a perder de vista no interior remoto até onde os contrafortes se elevavam, e os montes. O Hood, imenso, embora distante, plasmando nuvens em seu topo; na direção norte, o longínquo Adams, como um dente molar; e então o cone perfeito do Santa Helena, de cuja longa encosta cinzenta e envergada, ainda mais distante em direção ao norte, se destacava um domo descoberto, como um bebê procurando a barra da saia da mãe: o monte Rainier.

Era uma vista inspiradora. Nunca deixava de animar o dr. Haber. Além do mais, depois de uma semana inteira de chuva, a pressão barométrica estava elevada e o sol ressurgira sobre a neblina do rio. Devido às milhares de leituras de EEG, ele estava plenamente ciente das relações entre pressão atmosférica e sensação de sobrecarga mental, e quase sentiu seu psicossoma flutuar com aquele vento forte e seco. Preciso manter isso assim, essa melhora no clima, ele pensou depressa, de forma quase sub-reptícia. Várias séries de pensamentos encadeados se formavam ao mesmo tempo em sua mente, e aquela nota mental não era parte de nenhuma delas. Foi rapidamente elaborada e arquivada na memória com a mesma rapidez, enquanto ele acionava o gravador sobre a mesa e começava a ditar uma das muitas cartas exigidas na administração de um instituto de pesquisas científicas ligado ao governo. Era uma tarefa padronizada, claro, mas precisava ser feita, e ele era o homem para fazê-la. Não se ressentia, embora aquilo reduzisse drasticamente seu tempo de pesquisa. Em geral, agora ele só ficava no laboratório cinco ou seis horas por semana e tinha apenas um paciente, embora, óbvio, supervisionasse a terapia de muitos outros.

Um paciente, entretanto, ele fizera questão de manter. Afinal, era psiquiatra. Tinha enveredado pela pesquisa sobre o sono e a onirologia para, em primeiro lugar, descobrir aplicações terapêuticas. Não estava interessado no conhecimento isolado, na ciência pela ciência: não havia utilidade em aprender algo que não era aplicável. A relevância era seu princípio. Teria sempre um paciente para lembrá-lo do compromisso fundamental, para mantê-lo em contato com a realidade humana de sua pesquisa relativa à estrutura desequilibrada da personalidade de determinadas pessoas. Pois não há nada importante, exceto as pessoas. Uma pessoa só é definida pelo grau de sua influência sobre outras pessoas, por seu círculo de inter-relações; e moralidade é um termo completamente desprovido de sentido, a menos que seja definido como o bem que uma pessoa faz por outras, pelo cumprimento de sua função no todo sociopolítico.

Seu paciente atual, Orr, viria às 16h, pois tinham desistido das sessões noturnas, e - a srta. Crouch o lembrara durante o horário de almoço - um inspetor do DESAS viria observar a sessão de hoje para garantir que não havia nada ilegal, imoral, inseguro, insensível, in-etc. em relação ao funcionamento do Ampliador. Governo intrometido dos infernos.

Aquele era o problema do sucesso: a publicidade, o interesse público, a inveja profissional, a rivalidade com os pares que o acompanhavam. Se ainda fosse um pesquisador do setor privado, associado ao laboratório de sono da PSU e com um consultório na Willamette EastTower, a probabilidade seria de que ninguém percebesse seu Ampliador até que ele decidisse que estava pronto para ir para o mercado, e ele teria sido deixado em paz para refinar e aperfeiçoar o dispositivo e suas aplicações. Agora, lá estava ele, realizando a parte mais reservada e delicada de seu negócio - a psicoterapia de um paciente desequilibrado -, então o governo teve que enviar um advogado intrometido que não compreendia metade do que acontecia e se equivocava quanto ao resto.

O advogado chegou às 15h45 e Haber, com passadas largas, foi até a antessala do escritório para cumprimentá-lo - cumprimentá-la; no fim das contas, era uma mulher - e deixar uma primeira impressão amistosa e simpática de imediato. Era melhor que vissem que ele não tinha medo, era cooperativo e cordial. Grande parte dos médicos deixavam seu ressentimento evidente quando recebiam um inspetor do DESAS, e esses médicos não conseguiam muitos subsídios do governo.

Não era nada fácil ser cordial e simpático com aquela advogada. Ela estalava e tinia. O estalo do pesado fecho de latão na bolsa, o tinido das pesadas bijuterias de cobre e latão, os sapatos de saltos grossos e o enorme anel de prata com o desenho horroroso de uma máscara africana, as sobrancelhas franzidas, a voz dura: tac, tec, tic... Depois de vinte segundos, Haber suspeitou que todo aquele conjunto era, na verdade, uma máscara, como o anel denotava: muito som e fúria significavam timidez. Isso, entretanto, não era da sua conta. Ele jamais conheceria a mulher por trás da máscara e essa mulher não era importante, contanto que ele conseguisse deixar a impressão certa na srta. Lelache, a advogada.

Se as coisas não tinham se passado com cordialidade, ao menos não tinham dado errado; ela era competente, já fizera aquilo antes, e fez a lição de casa para aquela missão em especial. Sabia o que perguntar e como ouvir.

— Esse paciente, George Orr — ela perguntou —, não é um dependente, certo? Está diagnosticado como psicótico ou desequilibrado depois de três semanas de terapia?

— Desequilibrado, segundo a definição do termo pelo Departamento de Saúde. Profundamente desequilibrado, com tendências a distorcer a realidade, mas está melhorando com o tratamento atual.

Ela tinha um gravador de bolso e estava registrando tudo: a cada cinco segundos, como exigia a lei, aquela coisa fazia tip.

— Poderia, por favor, descrever o método terapêutico que está empregando tip e explicar o papel que esse dispositivo tem nele? Não me diga como tip funciona, isso está em seu relatório, mas o que ele faz. Tip por exemplo, em que seu uso difere do Elektroson ou do trancap?

— Bem, esses dispositivos, como você sabe, produzem vários pulsos de baixa frequência que estimulam os neurônios no córtex cerebral. Esses sinais são o que poderíamos chamar de genéricos; seu efeito sobre o cérebro é obtido, basicamente, de modo semelhante ao das luzes estroboscópicas em um ritmo instável ou ao do estímulo auditivo, como a batida de um tambor. O Ampliador gera um sinal específico, que pode ser captado por uma área específica do cérebro. Por exemplo, como você sabe, um paciente pode ser treinado para produzir o ritmo alfa quando quiser; mas o Ampliador pode induzi-lo sem qualquer treinamento, mesmo quando estiver em uma situação que, em geral, não favorece o ritmo alfa. A máquina transmite um ritmo alfa de nove ciclos por meio de eletrodos em posições específicas e, em segundos, o cérebro consegue aceitar aquele ritmo e começar a produzir as ondas alfa tão regularmente quanto um zen-budista em transe. De modo similar, e com maior proveito, qualquer estágio do sono pode ser induzido, com seus ciclos e atividades regionais típicos.

— Ele pode estimular o centro do prazer, a área da fala?

Ah, o brilho moralista nos olhos de observadores da UALC, sempre que vinha à tona aquela parte do centro do prazer! Haber dissimulou toda sua ironia e irritação e respondeu com sinceridade amistosa:

— Não. Não, veja bem, não é como a EEC. Não é como uma estimulação elétrica ou química de qualquer área; não envolve nenhuma intromissão em áreas específicas do cérebro. O Ampliador apenas induz a alteração da atividade do cérebro como um todo, a mudança para outro de seus estados naturais. É quase como uma melodia que gruda na mente e faz uma pessoa bater os pés. Assim, o cérebro inicia e mantém a condição desejada para análise ou terapia, pelo tempo necessário. Dei a ele o nome de Ampliador para chamar atenção para sua função não criativa. Nada é imposto de fora. O sono induzido pelo Ampliador tem, precisa e literalmente, a forma e as características do sono normal naquele cérebro específico. A diferença entre o dispositivo e as máquinas elétricas de sono pode ser comparada à dos ternos feitos por um alfaiate particular e os de produção em massa. A diferença entre ele e a implantação de eletrodos é... ora... a de um bisturi para uma marreta!

— Mas como o senhor cria os estímulos usados? Por exemplo, tip o senhor registra um ritmo alfa de um paciente para usar em outro tip?

Ele vinha evitando aquela questão. Não pretendia mentir, óbvio, mas não adiantava falar sobre uma pesquisa incompleta até que estivesse concluída e testada; aquilo poderia dar uma impressão totalmente falsa a alguém que não era especialista. Entregou-se à resposta com prontidão, contente em ouvir a própria voz em vez de estalos, tinidos de pulseiras e tips; era curioso que ele só ouvisse aqueles pequenos sons irritantes quando ela estava falando.

— No início, usei um conjunto genérico de estímulos, uma média calculada a partir dos registros de vários pacientes. O paciente depressivo mencionado no relatório foi tratado com sucesso dessa forma. Mas senti que os efeitos eram mais aleatórios e erráticos do que eu gostaria. Comecei a fazer experimentos. Em animais, óbvio. Gatos. Nós, pesquisadores do sono, gostamos dos gatos, sabe; eles dormem muito! Bem, com cobaias animais descobri que a linha mais promissora era usar registros prévios de ritmos do próprio cérebro do paciente. Uma espécie de autoestimulação por meio de gravações. Veja, é a especificidade que busco. Um cérebro reage a seu próprio ritmo alfa imediatamente e de forma espontânea. Agora, é claro que existem oportunidades terapêuticas em aberto seguindo a outra linha de pesquisa. Poderia ser possível impor, de forma gradual, um padrão um pouco diferente do emitido pelo próprio paciente: um padrão mais saudável ou mais completo. Um que fosse registrado com antecedência, daquele paciente, se possível, ou de um paciente diferente. Isso poderia resultar em algo tremendamente útil nos casos de danos, lesões e traumas cerebrais; poderia ajudar um cérebro lesionado a restabelecer antigos hábitos por novos meios... algo que o cérebro luta muito e por muito tempo para fazer por si mesmo. Isso poderia ser usado para “ensinar” novos hábitos a um cérebro que tem o funcionamento anormal e assim por diante. No entanto, a esta altura, tudo isso é especulação; caso e quando eu retomar as pesquisas nessa linha obviamente farei um novo registro no DESAS. — Isso era totalmente verdade. Não era necessário mencionar que ele estava fazendo pesquisas seguindo aquela linha, já que, até o momento, aquilo era bastante inconclusivo e seria apenas compreendido de forma equivocada. — O modelo de autoestimulação por gravação que estou usando nesta terapia pode ser descrito como isento de efeito no paciente, além daquele exercido durante o período de funcionamento da máquina: cinco a dez minutos. — Haber conhecia mais sobre qualquer especialidade dos advogados do DESAS do que ela conhecia sobre a dele; percebeu que ela concordou, em um leve movimento de cabeça, com a última frase; era exatamente nisso que estava interessada.

Mas então ela perguntou:

— O que a máquina faz, então?

— Sim, eu ia chegar a isso — Haber respondeu e reajustou seu tom rapidamente, uma vez que a irritação estava começando a transparecer. — O que temos neste caso é um paciente com medo de sonhar: um oneirófobo. Meu tratamento é, basicamente, um condicionamento simples dentro da tradição clássica da psicologia moderna. O paciente é induzido a sonhar aqui, sob condições controladas; o conteúdo do sonho e o estado emocional são manipulados por meio de sugestão hipnótica. O paciente está sendo ensinado que pode sonhar em segurança, de modo prazeroso, et cetera, um condicionamento positivo que vai deixá-lo livre da fobia. O Ampliador é o instrumento ideal para esse objetivo. Garante que ele irá sonhar, incitando e, depois, reforçando a atividade típica de seu estado D. Um paciente pode levar até uma hora e meia para passar pelos vários estágios do sono S e alcançar o estado D sozinho, um tempo impraticável para sessões terapêuticas que acontecem durante o dia e, além disso, durante o sono profundo a força das sugestões hipnóticas relativas ao conteúdo do sonho poderia se perder parcialmente. Isso não é desejável; enquanto ele está em condicionamento, é fundamental que não tenha qualquer sonho aflitivo, qualquer pesadelo. Portanto, o Ampliador me oferece tanto um dispositivo de economia de tempo como um fator de segurança. A terapia poderia ser realizada sem ele, mas isso provavelmente levaria meses. Com ele, estimo que leve semanas. O Ampliador pode resultar em uma grande economia de tempo, em casos apropriados, como a própria hipnose se mostrou para a psicanálise e para a terapia de condicionamento.

Tip disse o gravador da advogada e bong disse seu próprio comunicador de mesa em um tom fraco, profundo e autoritário.

Graças a Deus.

— Aí está nosso paciente. Agora, srta. Lelache, sugiro que você o conheça e podemos conversar um pouco, se quiser; depois, talvez você possa ficar invisível ali naquela poltrona de couro do canto, certo? Sua presença não deve fazer nenhuma diferença real para o paciente, mas se for lembrado dela o tempo todo, isso pode retardar demais as coisas. Ele é uma pessoa em estado bastante severo de ansiedade, entende, com tendência a interpretar os fatos como ameaças pessoais, e uma série de delírios defensivos constituída... como você poderá observar. Ah, sim, e o gravador desligado, com certeza, uma sessão de terapia não é para ser gravada. Certo? Ok... ótimo. Sim, olá George, entre! Esta é a srta. Lelache, a inspetora do DESAS. Ela está aqui para ver o Ampliador em uso. — Os dois deram um aperto de mão de maneira ridiculamente formal. Clang, blém! fizeram as pulseiras da advogada. O contraste divertiu Haber: a mulher desagradável e violenta, o homem submisso e desinteressante. Não tinham absolutamente nada em comum.

— Agora — disse ele, gostando de comandar o espetáculo —, sugiro darmos andamento ao que interessa. A menos que você, George, tenha algum assunto especial em mente sobre o qual queira conversar antes. — Com os próprios movimentos, que pareciam tímidos, ele ia organizando as coisas: Lelache na poltrona do canto, Orr no divã. — Ok, então, ótimo. Vamos liberar um sonho; que, por acaso, vai constituir, para o DESAS, um registro do fato de que o Ampliador não solta as unhas dos dedos de seus pés, não enrijece suas artérias, não explode sua mente nem tem absolutamente nenhum efeito colateral que seja, exceto, talvez, uma leve queda compensatória nos sonhos desta noite. — Quando terminou a frase, ele estendeu a mão direita e colocou-a na garganta de Orr, de modo quase casual.

Orr recuou do toque como se nunca tivesse sido hipnotizado.

Depois, se desculpou.

— Desculpe. Você avançou muito de repente.

Era necessário hipnotizá-lo de novo, empregando o método de indução v-c, que era perfeitamente legal, claro, mas um pouco mais dramático do que aquele que Haber gostaria de utilizar na frente de uma observadora do DESAS; ele estava furioso com Orr, em quem vinha percebendo uma crescente resistência nas últimas cinco ou seis sessões. Uma vez que tivesse o homem sob controle, colocaria uma fita que ele mesmo editou com todas as tediosas repetições de aprofundamento do transe e a sugestão pós-hipnótica para a nova hipnose: “Agora você está confortável e relaxado. Está mergulhando em um transe cada vez mais profundo”, e assim por diante. Enquanto a fita tocava, ele voltou à sua mesa e examinou alguns papéis com uma expressão calma e séria no rosto, ignorando Lelache. Ela ficou imóvel, sabendo que o procedimento hipnótico não deve ser interrompido; estava olhando pela janela, para as torres da cidade.

Haber, enfim, parou a fita e colocou o trancap na cabeça de Orr.

— Agora, enquanto o estou conectando, vamos falar sobre o tipo de sonho que você terá, George. Você tem vontade de falar disso, não tem? — Houve um movimento lento de concordância do paciente. — Da última vez que esteve aqui, falamos sobre algumas coisas que o preocupam. Você disse que gosta de seu emprego, mas não gosta de pegar o metrô para ir trabalhar. Você se sente cercado pela multidão... comprimido, prensado. Sente-se como se não tivesse um espaço mínimo, como se não fosse livre.

Ele fez uma pausa e o paciente, que sempre fora taciturno na hipnose, por fim respondeu apenas:

— Superpopulação.

— Uhum, essa foi a palavra que você usou. Essa é sua palavra, sua metáfora, para esse sentimento de falta de liberdade. Bem, agora vamos discutir essa palavra. Você sabe que lá atrás, no século XVIII, Malthus deu o alerta sobre o crescimento populacional; e houve outra crise de pânico cerca de trinta, quarenta anos atrás. A população com certeza aumentou, mas todos os horrores que eles previram simplesmente não se realizaram. Não é tão ruim quanto disseram que seria. Aqui nos Estados Unidos, sobrevivemos bem e, se nosso padrão de vida precisou ser reduzido de alguma maneira, é ainda mais elevado do que na última geração. Mas, talvez, o pavor excessivo da superpopulação, da aglomeração excessiva, não reflita uma realidade externa e sim um estado mental íntimo. Se você se sente cercado por uma multidão quando não está, o que isso significa? Talvez que tenha medo do contato humano, de ficar perto das pessoas, de ser tocado. Então, encontrou uma espécie de desculpa para se manter distante da realidade. — O EEG estava funcionando e, enquanto falava, Haber conectava o Ampliador. — Agora, George, vamos conversar um pouco mais e depois, quando eu disser a palavra-chave, “Antuérpia”, você vai cair no sono; quando acordar, se sentirá revigorado e alerta. Não vai se lembrar do que estou dizendo agora, mas vai se lembrar de seu sonho. Será um sonho realista, realista e agradável, um sonho efetivo. Você vai sonhar com essa coisa que o preocupa, a superpopulação: terá um sonho em que descobre que, na verdade, não é isso que o preocupa. Afinal, as pessoas não podem viver sozinhas. Ser colocado na solitária é a pior espécie de confinamento! Precisamos de pessoas à nossa volta. Para nos ajudarem, para ajudarmos, para termos com quem competir, para aguçar nossa inteligência. — E assim sucessivamente. A presença da advogada limitava demais seu estilo; ele tinha que colocar tudo em termos abstratos em vez de simplesmente dizer a Orr com que sonhar. Claro que ele não estava falsificando seu método a fim de ludibriar a observadora; seu método só não era imutável, ainda. Ele o alterava de sessão em sessão, buscando o modo seguro de sugerir o sonho exato que queria, e sempre enfrentava resistência que, para ele, às vezes parecia ser um excesso de literalidade do processo primário do pensamento e, outras vezes, uma teimosia positiva da mente de Orr. O que quer que fosse, o sonho quase nunca acontecia do modo como Haber tinha pretendido; e esse tipo vago, abstrato, de sugestão poderia funcionar tanto quanto qualquer outro. Talvez despertasse uma menor resistência inconsciente de Orr.

Fez um sinal para que a advogada se aproximasse e observasse a tela do EEG que, de seu canto, ela espiava. Então prosseguiu:

— Você terá um sonho no qual não se sente cercado, pressionado pelas pessoas. Vai sonhar com todo o espaço livre que existe no mundo, toda a liberdade para se mover. — E, por fim, disse: — Antuérpia! — e indicou os traços do EEG de modo que Lelache visse a mudança quase instantânea. — Observe a desaceleração em todo o gráfico — ele murmurou. — É um pico de alta voltagem, veja, outro... Os fusos do sono. Ele já está entrando no segundo estágio do sono ortodoxo, do sono S, não importa o termo com que você se deparou, o tipo de sono sem sonhos realistas que acontece entre os estados D durante a noite toda. Mas não vou deixá-lo afundar no quarto estágio, já que ele está aqui para sonhar. Estou ligando o Ampliador. Não tire os olhos desses traços. Consegue ver?

— Parece que ele está em vigília de novo — ela murmurou, incrédula.

— Exato! Mas não está em vigília. Olhe para ele.

Orr deitava-se de costas, com a cabeça um pouco inclinada para trás de modo que sua barba curta e clara se projetava para cima. Dormia profundamente, mas havia uma tensão em torno de sua boca; ele suspirou.

— Vê os olhos dele se movendo sob as pálpebras? Foi assim que flagraram pela primeira vez esse fenômeno único do sono com sonho, lá atrás, em 1930; e o chamaram de sono de movimento rápido dos olhos, REM, por anos. É muito mais do que isso, entre tanto. É um terceiro estado da existência. Todo o sistema autônomo dele está tão mobilizado quanto possível em um instante emocionante da vida em vigília; mas seu tônus muscular é zero, seus maiores músculos estão mais profundamente relaxados do que no sono S. As áreas cortical, subcortical, hipocampal e medial do cérebro, todas tão ativas quanto na vigília, apesar de ficarem inativas no sono S. A respiração e a pressão sanguínea se elevaram ao nível de vigília, ou mais altas. Aqui, sinta a pulsação. — Ele pressionou os dedos no pulso frouxo de Orr. — Oitenta ou oitenta e cinco, ele está começando. Está tendo um momento agradável, o que quer que seja...

— Quer dizer que ele está sonhando? — Ela parecia assombrada.

— Correto.

— Todas essas reações são normais?

— Definitivamente. Todos passamos por esse processo a cada noite, quatro ou cinco vezes, por pelo menos dez minutos em cada uma. Eis na tela um EEG de estado D bastante normal. A única anormalidade ou peculiaridade que se pode captar é um pico elevado ocasional bem no meio dos traços, uma espécie de efeito causado por ideias repentinas que nunca vi em um EEG de estado D antes. Seu padrão parece semelhante a um efeito que foi observado em eletroencefalogramas de homens que se dedicam muito a certo tipo de trabalho: trabalho criativo ou artístico, pintura, escrita poética, até mesmo à leitura de Shakespeare. O que este cérebro está fazendo em todos esses instantes, eu ainda não sei. Mas o Ampliador me dá a oportunidade de observá-los sistematicamente e depois, mais à frente, de analisá-los.

— Não existe a possibilidade de que a máquina esteja causando esse efeito?

— Não. — De fato, ele tentara estimular o cérebro de Orr com a gravação de um desses picos, mas o sonho resultante dessa experiência tinha sido incoerente, uma mistura do sonho atual com o anterior, durante o qual o Ampliador registrara o pico. Não havia necessidade de mencionar experiências inconclusivas. — Na verdade, agora que ele está no meio desse sonho, vou remover o Ampliador. Observe, veja se consegue identificar quando eu retiro o estímulo. — Ela não conseguiu. — De qualquer forma, ele pode produzir uma torrente de informações para nós; fique de olho nesses traços. Você pode captar isso primeiro no ritmo teta, ali, vindo do hipocampo. Isso acontece nos outros cérebros, sem dúvida. Nada de novo. Se eu conseguir descobrir quais outros cérebros, em qual estado, posso ser capaz de especificar com muito mais exatidão qual é o problema deste paciente; poderia haver um tipo psicológico ou neuropsicológico ao qual ele pertence. Você entende as possibilidades de pesquisa com o Ampliador? Sem nenhum efeito no paciente, exceto o de colocar seu cérebro temporariamente em quaisquer que sejam seus estados normais e que o médico queira observar. Olhe ali! — Ela perdeu um pico, óbvio; a leitura do EEG em uma tela em movimento exigia prática. — Saltou um fuso. Ainda no sonho... Ele vai nos contar sobre isso logo em seguida. — Ele não conseguia continuar falando. Sua boca ficou seca. Ele sentia aquilo: a mudança, a chegada, a alteração.

A mulher também sentia. Parecia amedrontada. Segurava seu pesado colar de latão perto da garganta como se fosse um talismã; com consternação, choque, terror, ela contemplava a vista pela janela.

Ele não tinha esperado aquilo. Imaginara que apenas ele poderia estar ciente da alteração.

Mas ela o escutara dizer a Orr o que sonhar; ficara do lado do sonhador; ela estava ali, no meio de tudo, como ele. E, como ele, tinha se virado para olhar pela janela, para as torres sumindo, desaparecendo como em um sonho; sem deixar uma ruína para trás, quilômetros de subúrbios se dissolvendo como fumaça ao vento; a cidade de Portland, que tivera uma população de um milhão de pessoas antes da Era da Peste, mas não tinha mais de 100 mil pessoas nesses dias de Recuperação, que era uma bagunça e um emaranhado, como todas as cidades dos Estados Unidos, mas unificada por suas colinas e seu rio de sete pontes coberto de neblina, o antigo edifício do First National Bank que dominava a linha do horizonte no centro da cidade, e muito além, acima de tudo, as montanhas pálidas e serenas...

Ela viu aquilo acontecer. E ele percebeu que nunca tinha imaginado que uma observadora do DESAS poderia ver aquilo acontecer. Ele não pensara naquela possibilidade. E aquilo significava que ele mesmo não acreditara na alteração, no que os sonhos de Orr faziam. Embora tivesse sentido aquilo, visto acontecer uma dúzia de vezes a esta altura, com perplexidade, medo e júbilo; embora ele viesse testando e usando o poder efetivo dos sonhos de Orr por quase um mês, mesmo assim ele não acreditara no que estava acontecendo.

Naquele dia todo, desde sua chegada ao trabalho, ele não pensara sequer uma vez no fato de que, uma semana atrás, ele não era diretor do Instituto Onirológico do Oregon, porque não havia instituto. Desde a última sexta-feira, o instituto passara a existir fazia dezoito meses. E ele fora seu fundador e diretor. E, sendo assim, para ele e para todos da equipe e seus colegas da Faculdade de Medicina, e o governo que o havia financiado, ele, exatamente como todos os outros, tinha aceitado aquilo por completo como sendo a única realidade. Ele suprimira de sua memória o fato de que, até sexta-feira passada, as coisas não eram assim.

Aquele tinha sido, de longe, o sonho mais bem-sucedido de Orr. Começara no antigo consultório do outro lado do rio, sob aquela maldita fotografia enquadrada do monte Hood, e terminara neste escritório... e ele tinha estado ali, visto as paredes à sua volta se modificarem, percebido que o mundo estava sendo refeito, e se esquecera disso. Tinha esquecido tão completamente que nunca sequer se perguntou se um estranho, uma terceira pessoa, poderia ter a mesma experiência.

O que tal visão faria àquela mulher? Será que ela compreenderia, ficaria louca, o que faria? Manteria as duas lembranças, como ele, a verdadeira e a nova, a antiga e a verdadeira?

Ela não podia. Ela iria interferir, trazer outros observadores, estragar todo o experimento, arruinar os planos de Haber.

Ele teria de impedi-la a qualquer custo. Voltou-se para ela, preparado para agir com violência, com as mãos apertadas.

Ela só ficou parada ali. Sua pele marrom havia se tomado pálida, sua boca estava aberta. Ela estava atordoada. Não podia acreditar no que tinha visto por aquela janela. Não podia e não acreditava.

A extrema tensão física de Haber cedeu um pouco. Ao olhar para ela, ficou bastante seguro de que a mulher estava confusa e traumatizada a ponto de ser inofensiva. Mesmo assim, ele devia agir depressa.

— Agora ele vai dormir por algum tempo — ele disse. Sua voz soou quase normal, embora enrouquecida pela rigidez dos músculos da garganta. Ele não fazia ideia do que ia dizer, mas foi em frente, qualquer coisa que quebrasse o feitiço. — Vou deixá-lo passar por um curto período de sono S. Não muito longo, ou a lembrança que ele terá do sonho será pobre. Bela vista, não? Esses ventos do Leste que temos tido são uma dádiva divina. No outono e no inverno passo meses seguidos sem enxergar as montanhas. Mas quando as nuvens se abrem, lá estão elas. É um lindo lugar, o Oregon. O estado mais preservado do país. Não foi muito explorado antes do Colapso. Portland estava apenas começando a crescer no fim dos anos 1970. Você nasceu no Oregon?

Depois de um minuto, ela acenou com a cabeça, atordoada. O tom pragmático da voz dele estava, ao menos, conseguindo influenciá-la.

— Vim de Nova Jersey. Quando eu era criança, a degradação ambiental era horrível. A quantidade de demolições e limpeza que a Costa Leste teve que fazer, e ainda está fazendo, depois do Colapso é inacreditável. Aqui, a superpopulação e a má gestão do meio ambiente ainda não tinham causado estrago, exceto na Califórnia. O ecossistema do Oregon ainda estava intacto. — Aquela conversa, exatamente sobre o tema crítico, era perigosa, mas ele não conseguia pensar em mais nada, como se estivesse sendo forçado. Estava de cabeça cheia, suportando dois conjuntos de lembranças, dois sistemas completos de informação: um do mundo real (já não mais) com uma população de quase 7 bilhões que aumentava em progressão geométrica, e um do mundo real (a partir de agora) com uma população de menos de um bilhão e ainda não estabilizada.

Meu Deus, ele pensou, o que Orr fez?

Seis bilhões de pessoas.

Onde elas estão?

Mas a advogada não pode perceber. Não pode.

— Já esteve no Leste, srta. Lelache?

Ela olhou para ele de um jeito distraído e respondeu:

— Não.

— Bem, por que se dar ao trabalho? Seja como for, Nova York está condenada, e Boston também; e, de qualquer maneira, o futuro deste país está aqui. Este é o polo de crescimento. Aqui é que é bom, como costumavam dizer quando eu era criança! Aliás, por acaso você conhece Dewey Furth, da sede local do DESAS?

— Sim — ela disse, ainda zonza, mas começando a reagir, a agir como se nada tivesse acontecido. Um espasmo de alívio percorreu o corpo de Haber. De repente, ele quis se sentar, respirar fundo. O perigo tinha passado. Ela estava rejeitando aquela inacreditável experiência. Estava se questionando agora: o que há de errado comigo? Por que raios olhei pela janela esperando ver uma cidade com 3 milhões de pessoas? Estou sofrendo alguma maldição maluca?

Óbvio, pensou Haber, um homem que viu um milagre iria rejeitar o que seus olhos testemunharam, se aqueles a seu lado não viram nada.

— Está abafado aqui — ele disse com um toque de solicitude na voz, e foi até o termostato na parede. — Vou manter aquecido. Antigo hábito de pesquisador do sono; a temperatura corporal cai durante o sono e não queremos ter vários voluntários ou pacientes com coriza. Mas este aquecedor elétrico é eficiente demais, fica muito quente, me deixa atordoado... Ele deve acordar logo. — Mas Haber não queria que Orr se lembrasse do sonho com clareza, o relatasse e confirmasse o milagre. — Acho que vou deixá-lo continuar mais um pouco, não me importo com a lembrança desse sonho, e ele está no meio do terceiro estágio agora. Deixemos que fique ali enquanto terminamos a conversa. Há algo mais que você queira perguntar?

— Não, acho que não. — As pulseiras dela tilintavam, com hesitação. Ela piscou, tentando se recompor. — Se o senhor enviar a descrição completa da sua máquina, e do modo como opera, dos usos que está fazendo dela no momento, dos resultados, tudo isso, você sabe, para o escritório do sr. Furth, isso deve ser o ponto final... O senhor obteve a patente do dispositivo?

— Fiz a solicitação.

Ela assentiu.

— Pode valer a pena. — Ela tinha caminhado, tilintando e fazendo ruídos baixos, em direção ao homem que dormia, e agora estava parada olhando para ele com uma expressão esquisita em seu rosto marrom magro. — Você tem uma profissão estranha — ela disse, de modo abrupto. — Sonhos; observar o cérebro das pessoas funcionando; dizer a elas o que sonhar... Imagino que faça grande parte de sua pesquisa à noite...

— Costumava fazer. O Ampliador pode nos livrar um pouco disso; usando-o, seremos capazes de obter sono sempre que quisermos, do tipo que quisermos estudar. Mas alguns anos atrás houve uma época em que eu nunca ia para a cama antes das seis da manhã, por trinta meses. — Ele riu. — Agora me vanglorio disso. Meu recorde. Atualmente, deixo para minha equipe a maior parte do turno da noite. Vantagens da meia-idade!

— As pessoas adormecidas são tão distantes... — ela comentou, ainda olhando para Orr. — Onde elas estão...?

— Bem aqui — Haber respondeu, e deu um tapinha na tela do EEG. — Bem aqui, mas incomunicáveis. É o que torna os humanos tão inquietantes no que diz respeito ao sono. Sua total privacidade. Quem dorme vira as costas para todos. "O mistério do indivíduo é mais intenso no sono”, disse um autor da minha área. Mas é claro que um mistério é apenas um problema que ainda não resolvemos... Agora ele precisa acordar. George... George... Acorde, George.

E ele acordou como normalmente fazia, depressa, passando de um estado a outro sem gemidos, olhares ou recaídas. Sentou-se e olhou primeiro para a srta. Lelache, depois para Haber, que tinha acabado de remover o trancap de sua cabeça. Ele se levantou, se alongando um pouco, e foi até a janela. Ficou parado olhando para fora.

Havia um equilíbrio único, um caráter quase monumental na postura de sua silhueta delgada: ele estava completamente imóvel, imóvel como o centro de algo. Surpreendidos, nem Haber nem a mulher falaram.

Orr se voltou e olhou para Haber.

— Onde eles estão? — disse. — Para onde foram todos eles? — Haber viu os olhos da mulher se arregalando, viu a tensão dela crescendo e percebeu o perigo. Falar, ele deve falar!

— Eu diria, pelo EEG — ele disse, e ouviu a própria voz sair grave e calorosa, exatamente como queria —, que você acabou de ter um sonho extremamente carregado, George. Foi desagradável; foi, na verdade, quase um pesadelo. O primeiro sonho “aflitivo” que teve aqui. Certo?

— Sonhei com a Peste — Orr disse, e estremeceu dos pés à cabeça, como se ficasse enjoado.

Haber assentiu. Sentou-se atrás da mesa. Com sua docilidade peculiar, seu modo de fazer o que fosse habitual e aceitável, Orr veio e se sentou do lado oposto, na grande poltrona de couro colocada ali para entrevistados e pacientes.

— Você teve que superar o pior, e superá-lo não foi fácil, certo? Esta foi a primeira vez, George, que o fiz lidar com uma ansiedade real em um sonho. Desta vez, sob minha orientação conforme sugerido na hipnose, você se aproximou de um dos elementos mais profundos de seu mal psíquico. A aproximação não foi fácil, ou prazerosa. Na verdade, aquele sonho foi infernal, não foi?

— Você se lembra dos Anos da Peste? — Orr questionou, sem agressividade, mas com algo de incomum na voz. Sarcasmo? E ele procurou Lelache, que tinha se recolhido na poltrona do canto.

— Sim, lembro. Eu já era um homem adulto quando a primeira epidemia ocorreu. Tinha 22 anos quando o primeiro anúncio foi feito na Rússia; aqueles poluentes químicos na atmosfera estavam se misturando e produzindo cancerígenos virulentos. Na noite seguinte, divulgaram as estatísticas do hospital da Cidade do México. Então, descobriram o período de incubação e todo mundo começou a fazer as contas. Aguardando. E houve motins e fodaços, a Seita Apocalíptica e os Vigilantes. Meus pais morreram naquele ano. Minha esposa, no ano seguinte. Minhas duas irmãs e os filhos delas depois. Todo mundo que eu conhecia... — Haber estendeu as mãos. — Sim, eu me lembro daqueles anos — ele disse lentamente. — Quando preciso.

— Eles resolveram o problema da superpopulação, não é? — falou Orr, e desta vez deixou nítida sua deliberação. — Nós realmente resolvemos.

— Sim. Eles resolveram. Não existe superpopulação agora. Havia alguma outra solução, além da guerra nuclear? Agora não há fome constante na América do Sul, na África ou na Ásia. Quando os canais de transporte estiverem plenamente restaurados, não haverá nem mesmo os bolsões de fome que ainda restaram. Dizem que um terço da humanidade ainda vai dormir com fome à noite; mas em 1980 era 92%. Agora não há mais transbordamentos do Ganges causados pelo monte de corpos de pessoas mortas de inanição. Não há carência de proteínas e raquitismo entre as crianças da classe trabalhadora de Portland, Oregon. Como havia... antes do Colapso.

— A Peste — disse Orr.

Haber se inclinou para a frente sobre a grande mesa.

— George. Diga-me. O mundo está superpovoado?

— Não — o homem respondeu. Haber pensou que ele estava rindo, e recuou um pouco, apreensivo; então, percebeu que foram as lágrimas que deram aos olhos de Orr um brilho estranho. Ele estava quase enlouquecendo. Melhor assim. Se ele perdesse o controle, a advogada ficaria menos inclinada a acreditar em qualquer coisa que ele dissesse e que se encaixasse com alguma lembrança que ela mantivesse do ocorrido.

— Mas há meia hora, George, você estava profundamente preocupado, ansioso, porque acreditava que a superpopulação era uma ameaça atual à civilização, a todo o ecossistema da Terra. Ora, não espero que essa ansiedade tenha desaparecido, longe disso. Mas acredito que suas características mudaram, desde que você a superou no sonho. Está ciente, agora, de que esse sentimento não tinha nenhuma sustentação na realidade. A ansiedade ainda existe, mas com esta diferença: agora você sabe que ela é irracional... que ela se ajusta a um desejo interno, e não a uma realidade externa. Isso é um começo. Um ótimo começo. Foi um avanço enorme em apenas uma sessão, com um sonho! Percebe? Agora possui uma ferramenta para lidar com tudo isso. Está acima de algo que estava sobre você, esmagando-o, fazendo-o se sentir pressionado e espremido. De agora em diante a luta será mais justa, porque você é um homem mais livre. Não sente isso? Já não se sente, neste exato momento, menos cercado pela multidão?

Orr olhou para ele, depois para a advogada mais uma vez. Não falou nada.


Houve uma longa pausa

— Você parece abatido — Haber disse, um afago verbal no ombro. Ele queria acalmar Orr, levá-lo de volta a seu estado normal de modéstia, no qual ele não teria coragem de, na frente de uma terceira pessoa, mencionar seus poderes oníricos; ou então fazê-lo sucumbir, se comportar com uma anormalidade óbvia. Mas não faria nenhum dos dois. — Se não houvesse uma observadora do DESAS nos espreitando ali no canto, eu ofereceria a você uma dose de uísque. Mas é melhor não transformarmos a sessão de terapia em uma festinha, não é?

— Você quer ouvir o sonho?

— Se você quiser.

— Eu os estava enterrando. Em uma das grandes valas... Eu trabalhei mesmo nas Forças Funerárias, quando eu tinha dezesseis anos, depois que meus pais pegaram a peste... Só que no sonho as pessoas estavam todas nuas e pareciam ter morrido de inanição. Montes delas. Eu tive de enterrá-las todas. Ficava procurando por você, mas você não estava lá.

— Não — Haber disse em tom tranquilizador —, ainda não apareci nos seus sonhos, George.

— Apareceu, sim. Com Kennedy. E como um cavalo.

— Sim, bem no começo da terapia — Haber concordou, descartando aquilo. — Então, este sonho usou de fato algum material de lembranças reais de sua experiência...

— Não. Nunca enterrei ninguém. Ninguém morreu de Peste. Não houve Peste alguma. É tudo parte da minha imaginação. Eu sonhei isso.

Merda, que bastardinho imbecil! Ele tinha que perder o controle? Haber ergueu a cabeça e manteve um silêncio tolerante, sem interferir; era tudo que ele podia fazer, pois um movimento brusco poderia levantar as suspeitas da advogada.

— Você disse que se lembrava da Peste; mas não se lembra também de que não houve Peste nenhuma, que ninguém morreu de contaminação por câncer, que a população apenas continuava crescendo sem parar? Não? Não se lembra disso? E você, srta. Lelache... Você se lembra das duas sequências?

Mas, diante disso, Haber se levantou:

— Sinto muito, George, mas não posso permitir que a srta. Lelache seja envolvida nisto. Ela não é qualificada. Seria inadequado que ela lhe respondesse. Isto é uma sessão psiquiátrica. Ela está aqui para observar o Ampliador, e nada mais. Devo insistir nisso.

Orr ficara muito pálido, as maçãs do rosto sobressalentes. Ele estava sentado, olhando fixo para Haber. Não falou nada.

— Temos um problema aqui e temo que há apenas uma maneira de acabar com ele. Cortar o nó górdio. Sem ofensa, srta. Lelache, mas como pode ver, o problema é você. Simplesmente estamos em um estágio em que nosso diálogo não pode admitir um terceiro membro, mesmo que não participante. O melhor a fazer é suspender a sessão. Neste instante. Começamos de novo amanhã às 16h. Ok, George?

Orr se levantou, mas não se dirigiu à porta.

— Por acaso você já pensou, dr. Haber — ele perguntou, com calma suficiente, mas gaguejando um pouco —, que pode... pode haver outras pessoas que sonham do modo como eu sonho? Que a realidade está sendo alterada sem dificuldades, sendo substituída, renovada, o tempo todo... só que nós não sabemos? Apenas a pessoa que sonha sabe, e aquelas que conhecem seu sonho. Se isso é verdade, acho que temos sorte por não saber. Isso é bastante confuso.

Amistoso, evasivo e tranquilizador, Haber foi conversando com ele até a porta e até que ele saísse.

— Você testemunhou uma sessão crítica — ele disse a Lelache, fechando a porta atrás de si. Enxugou a testa, permitiu que o cansaço e a preocupação aparecessem em seu rosto e em seu tom de voz. — Uau! Que dia para ter uma observadora presente!

— Foi muitíssimo interessante — ela afirmou, e as pulseiras trepidaram um pouco.

— Ele não é um caso perdido — Haber disse. — Uma sessão como esta dá, até para mim, uma impressão bastante desencorajadora. Mas ele tem uma chance, uma chance real, de solucionar esse padrão delirante em que está preso, esse imenso terror de sonhar. O problema é que se trata de um padrão complexo, e uma mente à qual não falta inteligência está presa nele; George é muito rápido em tecer novas teias às quais se prender... Se ao menos ele tivesse sido encaminhado à terapia dez anos atrás, quando estava na adolescência; mas é óbvio, a Recuperação mal tinha começado há dez anos. Ou mesmo há um ano, antes que ele começasse a usar drogas para destruir toda a sua orientação de realidade. Mas ele tenta, e continua tentando, e ainda pode vencer por meio de um sólido ajuste de realidade.

— Mas você disse que ele não é psicótico — Lelache observou, com certa ambiguidade.

— Correto. Eu disse desequilibrado. Se ele enlouquecer, vai enlouquecer por completo, provavelmente na linha esquizofrênica catatônica. Uma pessoa desequilibrada não é menos propensa à psicose do que uma pessoa normal. — Ele tinha a impressão de estar vomitando um dilúvio de palavras sem sentido há horas e agora não conseguia mais controlar nada daquilo. Felizmente, a srta. Lelache lhe deu um aperto de mão e foi embora.

Haber foi primeiro até o gravador escondido em um painel na parede, perto do divã, no qual ele gravava todas as sessões de terapia: gravadores que não emitiam sinais eram um privilégio especial de psicoterapeutas e da Agência de Inteligência. Ele apagou a gravação da última hora.

Sentou-se em sua cadeira atrás da grande mesa de carvalho, abriu a última gaveta, retirou copo e garrafa e serviu uma dose substancial de bourbon. Céus, não havia nenhum bourbon meia hora atrás, nem nos últimos vinte anos! Os cereais eram preciosos demais, com 7 bilhões de bocas para alimentar, para produzir álcool. Não havia nada além de pseudocerveja ou (para os médicos) álcool 99% puro; era aquilo que preenchera a garrafa em sua mesa meia hora atrás.

Em um só gole, bebeu metade da dose, e depois fez uma pausa. Olhou pela janela. Depois de algum tempo, se levantou e ficou parado em frente a ela, olhando para os telhados e árvores. Cem mil almas. A noite estava começando a cair sobre o rio silencioso, mas as montanhas permaneciam imensas e claras, distantes, na altura da luz do sol.

— Um brinde a um mundo melhor! — o dr. Haber disse, erguendo seu copo para o Criador, e terminou seu uísque em um gole prolongado, saboroso.


6

Resta-nos talvez aprender... que nossa tarefa está apenas começando e que nunca nos será dada sequer uma sombra de ajuda, salvo a ajuda do Tempo, impenetrável e inconcebível. Talvez tenhamos de aprender que o infinito turbilhão de morte e vida, do qual não podemos escapar, pertence à nossa própria criação, à nossa própria busca... que as forças integradoras dos mundos são erros do Passado... que o infortúnio eterno não é mais do que a fome eterna do desejo insaciável - e que os sóis extintos apenas são reavivados pelas paixões inextinguíveis de vidas desvanecidas.

LAFCADIO HEARN, PELO ORIENTE

O APARTEMENTO DE GEORGE ORR FICAVA NO último andar de uma antiga casa de madeira, alguns quarteirões acima do pé da colina, na Avenida Corbett, uma parte deteriorada da cidade onde a maioria das casas tinha quase um século, ou muito mais do que isso. Ele era formado por três cômodos amplos, um banheiro com banheira de pés arqueados e, entre os telhados, vista para o rio, pelo qual subiam e desciam navios, iates, embarcações de lazer, troncos de árvore, gaivotas, pombos em voos giratórios.

Ele se lembrava perfeitamente de seu outro apartamento, claro, aquela quitinete de oito metros quadrados com fogão embutido, cama inflável e banheiro comunitário no fim do corredor de linóleo no 18º andar da torre do condomínio Corbett, que nunca fora construído.

Desceu do bonde na Rua Whiteaker e andou, subindo a colina e as escadas largas e escuras. Entrou, jogou a pasta no chão e o corpo na cama e largou-se ali. Estava aterrorizado, angustiado, exausto, desnorteado.

— Preciso fazer alguma coisa, preciso fazer alguma coisa — ficava dizendo a si mesmo, desesperado, mas não sabia o quê. Nunca soube o que fazer. Sempre fez o que parecia necessário, a coisa seguinte a ser feita, sem questionar, sem se obrigar a nada, sem se preocupar. Mas aquela segurança o abandonara quando começou a usar drogas e, a esta altura, estava completamente perdido. Deve agir, tem que agir. Deve se recusar a deixar que Haber continue usando-o como um instrumento. Deve tomar seu destino nas próprias mãos.

Ele estendeu as mãos e olhou-as, depois mergulhou o rosto nelas; estava úmido pelas lágrimas. Ah, inferno, inferno, ele pensou com amargura, que tipo de homem eu sou? Lágrimas na minha barba? Não é de admirar que Haber me use. Como ele poderia evitar? Não tenho força alguma, não tenho personalidade alguma, nasci para ser um instrumento. Não tenho destino algum. Tudo o que tenho são sonhos. E, agora, outras pessoas os comandam.

Preciso me afastar de Haber, pensou, tentando ser firme e decidido, mas, ao mesmo tempo em que pensava nisso, sabia que não conseguiria. Haber o havia fisgado, com mais de um anzol.

Uma configuração onírica tão rara, na verdade única, dissera Haber, era preciosa para a pesquisa: a contribuição de Orr para o conhecimento humano se mostraria imensa. Orr acreditava que Haber falava com sinceridade e sabia o que estava dizendo. Aliás, o aspecto científico daquilo tudo era o único que, em sua imaginação, mostrava-se promissor; parecia-lhe que talvez a ciência pudesse extrair algo bom de seu dom peculiar e terrível, dar àquilo um fim benéfico, compensando um pouco o enorme dano provocado.

O assassinato de 6 bilhões de pessoas inexistentes.

Na cabeça de Orr, uma dor de rachar. Ele encheu uma bacia funda e trincada com água gelada e mergulhou o rosto todo nela por meio minuto de cada vez, emergindo vermelho e molhado como um bebê recém-nascido.

Então, Haber o prendera com uma linha, em termos morais, mas onde ele o fisgava mesmo era no anzol legal. Se Orr desistisse da terapia voluntária, ficaria sujeito a um processo por obter drogas ilegalmente e seria mandado para a prisão ou para uma incubadora de doidos. Aí não tinha saída. E se ele não desistisse, mas apenas reduzisse as sessões ou deixasse de cooperar, Haber teria um instrumento efetivo de coerção: as drogas supressoras de sonhos, que Orr só conseguia obter com as prescrições que ele dava. Agora, mais do que nunca, ele estava incomodado diante da ideia de sonhar espontaneamente, sem controle. Em seu estado, e sendo condicionado, no laboratório, a sonhar todas as vezes de forma efetiva, ele não gostava de pensar o que poderia acontecer se tivesse sonhos efetivos sem as restrições racionais impostas pela hipnose. Seria um pesadelo, um pesadelo pior do que aquele que acabara de ter no consultório de Haber, disso ele estava certo, e não tinha coragem de permitir que isso acontecesse. Ele precisava tomar os supressores de sonhos. Essa era a única coisa que ele sabia que devia fazer, a coisa que devia ser feita. Mas só podia tomá-los com a permissão de Haber, portanto precisava cooperar com ele. Fora capturado. Rato na armadilha. Percorrendo o labirinto para o cientista maluco; não tinha saída. Nenhuma chance, nenhuma.

Mas ele não é um cientista maluco, Orr pensou, de forma nada brilhante; ele é consideravelmente são, ou era. O que o desvirtua é a possibilidade de poder que meus sonhos lhe dão. Ele continua atuando em um papel, e isso lhe dá um papel gigante a interpretar. De modo que está até usando a ciência como meio, não como fim... Mas seus fins são bons, não são? Ele quer melhorar a vida da humanidade. Está errado?

Sua cabeça doía de novo. Ele estava embaixo da água quando o telefone tocou. Depressa, tentou secar o rosto e o cabelo e voltou ao quarto escuro, andando às cegas.

— Alô, Orr falando.

— Aqui é Heather Lelache — disse uma voz suave e desconfiada de contralto.

Uma sensação de prazer irrelevante e pungente surgiu dentro dele, como uma árvore que crescesse e florescesse toda em um momento, com as raízes em seus quadris e as flores em sua mente.

— Alô — ele repetiu.

— Quer encontrar comigo uma hora dessas para conversarmos sobre aquilo?

— Sim. Com certeza.

— Bem. Não quero que fique imaginando que há algum caso a ser defendido usando aquela coisa, o Ampliador. Aquilo parece estar em perfeita conformidade. Passou por extensos testes laboratoriais, ele tem todas as verificações apropriadas, passou por todos os canais apropriados, e agora está registrado no DESAS. Óbvio, ele é profissional mesmo. Eu não tinha compreendido quem ele era na primeira vez que o senhor me falou dele. Um homem não chega àquele posto a menos que seja muito bom.

— Que posto?

— Bem, a diretoria de um instituto de pesquisas financiado pelo governo!

Orr gostava do modo como ela quase sempre iniciava suas frases intensas, desdenhosas, com um “bem” brando, conciliador. Ela lhes tirava os pés do chão antes de prosseguir, deixava as frases suspensas, sem sustentação, no vazio. Tinha coragem, muita coragem.

— Ah, sim, entendo — ele disse, vago. O dr. Haber conseguira a diretoria no dia em que Orr conseguira sua cabana. O sonho da cabana tinha acontecido durante a única sessão que durara a noite toda; nunca tentaram fazer outra. A sugestão hipnótica do conteúdo do sonho fora insuficiente para os sonhos da uma noite e Haber desistiu, por fim, às 3h; conectando-o ao Ampliador, o abasteceu com padrões de sono profundo pelo resto da noite, para que pudessem ambos relaxar. Mas na tarde seguinte fizeram uma sessão e, nela, o sonho sonhado por Orr foi tão longo, tão confuso e complicado que ele nunca teve absoluta certeza daquilo que alterou e de quais ações benéficas Haber realizara daquela vez. Ele foi dormir no consultório antigo e acordou no escritório do IOO: Haber promovera a si mesmo. Porém, havia mais a dizer sobre aquilo... desde aquele sonho, o clima parecia um pouco menos chuvoso; talvez outras coisas tivessem mudado. Orr tinha se oposto a produzir tantos sonhos efetivos em um período tão curto. Haber imediatamente concordou em não forçar que ele fosse tão depressa e deixou que passasse cinco dias sem sessões. Apesar de tudo, Haber era um homem bondoso. E, além disso, não queria matar sua galinha dos ovos de ouro.

Uma galinha. Exato. Isso me descreve perfeitamente, Orr pensou. Uma maldita galinha branca idiota e sem graça. Ele perdeu uma parte do que a srta. Lelache estava falando.

— Desculpa — ele disse —, perdi algo. Acho que estou um pouco lerdo agora.

— Está se sentindo bem?

— Sim, tudo bem. Só meio cansado.

— O senhor teve um sonho perturbador, sobre a Peste, não foi? Quando acabou, estava com uma aparência horrível. As sessões sempre o deixam assim?

— Não, nem sempre. Essa foi uma das ruins. Imagino que pôde perceber isso. A senhorita estava marcando de nos encontrarmos...

— Sim. Segunda-feira, no almoço. Você trabalha no centro, não é, na Bradford Industries?

Para o próprio e sutil espanto, ele percebeu que sim. Não existiam os grandes projetos de abastecimento de Bonneville-Umatilla, para trazer água das gigantescas cidades de John Day e French Glen, que não existiam. Não havia nenhuma cidade grande no Oregon, exceto Portland. Ele não era o desenhista projetista do distrito, mas de uma empresa privada de ferramentas no centro; trabalhava no escritório da Rua Stark. Obviamente.

— Sim — ele confirmou. — Saio das 13h às l4h. Podemos nos encontrar no Daves, na Ankeny.

— Esse horário está ok. Então, no Daves. Vejo você lá na segunda.

— Espere — ele disse. — Ouça. Você vai... se incomodaria de me contar o que o dr. Haber falou, quer dizer, o que ele me contou sobre o sonho quando fui hipnotizado? A senhorita ouviu tudo, não ouviu?

— Sim, mas não poderia fazer isso, estaria interferindo no tratamento. Se ele quisesse que você soubesse, ele lhe contaria. Seria antiético. Não posso.

— Acho que está certa.

— Sim, me desculpe. Segunda-feira, então?

— Tchau — ele disse, repentinamente dominado pela depressão e por um mau pressentimento, e colocou o fone no lugar sem ouvi-la se despedir. Ela não poderia ajudá-lo. Era corajosa e forte, mas não tão corajosa. Talvez tenha visto e sentido a alteração, mas teve que deixar aquilo de lado, rejeitar a ideia. Por que não? Aquela dupla lembrança era um fardo pesado a carregar e ela não tinha nenhum motivo para tomá-lo para si, nenhum motivo para acreditar, nem mesmo por um instante, em um doido insensato que afirmava que seus sonhos se tornavam realidade.

Amanhã era sábado. Sessão longa com Haber, das 16h às 18h ou até mais tarde. Não tinha saída.

Era hora de comer, mas Orr não estava com fome. Não acendera as luzes em seu quarto de teto alto, iluminado pelo pôr do sol, nem da sala de estar, que nunca encontrara um jeito de mobiliar nos três anos em que vivia ali. Agora ele vagava pelo apartamento.

As janelas davam para as luzes e para o rio; o ar cheirava a poeira e início de primavera. Havia uma lareira emoldurada por madeira, um velho piano vertical com oito teclas brancas faltando, uma pilha de restos de lenha coberta perto da lareira e uma mesa japonesa de bambu deteriorada de 25 centímetros de altura. A escuridão baixava suavemente sobre o piso de pinho nu, que não fora polido nem varrido.

George Orr se deitou naquela leve escuridão, se esparramando, de bruços, o cheiro de pó do chão de madeira em suas narinas, a dureza do piso sustentando seu corpo. Deitou-se imóvel, sem dormir, em algum lugar além do sono, mais além, mais distante, um lugar onde não há sonhos. Não foi a primeira vez que esteve ali.


Quando levantou, foi para tomar um comprimido de clorpromazina e ir para a cama. Haber tinha testado fenotiazinas com ele esta semana; pareciam funcionar bem, deixando-o entrar no estado D quando necessário, mas atenuando a intensidade dos sonhos de modo que nunca atingissem o nível efetivo. Estava bom, mas Haber dissera que o efeito diminuiria, exatamente como o de todas as outras drogas, até que não houvesse nenhum efeito. Nada impediria um homem de sonhar, ele afirmara, exceto a morte.

Naquela noite, pelo menos, Orr dormiu profundamente e, se sonhou, os sonhos foram fugazes, sem peso. Não acordou antes de quase meio-dia de sábado. Foi à geladeira e olhou lá dentro; ficou em pé observando-a por algum tempo. Tinha mais comida ali do que ele já vira na geladeira de uma só pessoa em toda sua vida. Em toda sua outra vida. Aquela vivida entre 7 bilhões de outros, na qual a comida, nas condições da época, nunca era suficiente.

Na qual um ovo era um luxo mensal: “Hoje ovulamos!”, sua quase esposa costumava dizer quando comprava os ovos racionados a que tinham direito. Curioso; na vida atual, ele e Donna não fizeram um teste de casamento. Legalmente falando, nos anos pós -Peste isso não existia. Havia apenas o casamento de verdade. Em Utah, como a taxa de natalidade ainda estava abaixo da taxa de mortalidade, estavam tentando até reinstituir o casamento poligâmico, por motivos religiosos e patrióticos. Mas ele e Donna não tiveram qualquer tipo de casamento desta vez, apenas viveram juntos. E ainda assim, não durou. A atenção dele se voltou para a comida na geladeira outra vez.

Ele não era mais o homem magro, ossudo, que fora no mundo de 7 bilhões de pessoas; na verdade, era bastante robusto. Mas comeu a refeição de um homem faminto, uma refeição enorme: ovos cozidos duros, torradas com manteiga, anchovas, carne desidratada, aipo, queijo, nozes, um pedaço de halibute frio coberto com maionese, alface, picles de beterraba, biscoitos de chocolate... tudo que ele encontrou nas prateleiras. Depois dessa orgia, sentiu-se muito melhor fisicamente. Enquanto bebia um pouco de café autêntico, não pseudocafé, pensou em algo que o fez sorrir de verdade. Pensou: naquela vida, ontem, sonhei um sonho efetivo, que extinguiu 6 bilhões de vidas e alterou toda a história da humanidade pelo último quarto de século. Mas nesta vida, que criei na mesma hora, eu não sonhei um sonho efetivo. Eu estava no consultório de Haber, certo, e sonhei; mas não alterei nada. Tem sido assim desde o princípio, eu simplesmente tive um sonho aflitivo sobre a Era da Peste. Não há nada de errado comigo, não preciso de terapia.

Nunca tinha olhado a questão daquela maneira antes, e isso o divertiu o suficiente para que sorrisse, mas não exatamente com alegria.

Sabia que sonharia outra vez.

Já passava das duas. Lavou-se, encontrou seu casaco de chuva (de algodão verdadeiro, um luxo na outra vida) e saiu a pé a caminho do Instituto, uns três quilômetros de caminhada, subindo, passando pela Faculdade de Medicina, e subindo um pouco mais até entrar no Washington Park. Ele podia chegar lá de bonde elétrico, claro, mas eles eram irregulares, davam voltas e, em todo caso, não havia pressa. Era agradável caminhar pela chuva tépida de março nas mas sem agitação; as árvores estavam se enchendo de folhas, as castanheiras prestes a se iluminarem com flores.

O Colapso, a praga cancerígena que reduziu em 5 bilhões a população humana em cinco anos e em outro bilhão nos dez anos seguintes, tinha abalado as civilizações do mundo em suas raízes e, ainda assim, no final, as deixara intactas. Não alterara nada de forma radical; apenas numericamente.

O ar continuava poluído ao extremo e de maneira irremediável - aquela poluição datava de décadas antes do Colapso; na verdade, era sua causa direta. Agora, não era muito prejudicial para ninguém, exceto os recém-nascidos. A Peste, em sua variedade leucemóide, ainda que da forma seletiva - refletida, por assim dizer -, escolhia um de cada quatro bebês nascidos e o matava em seis meses. Aqueles que sobreviviam eram praticamente imunes ao câncer. Mas havia outras aflições.

Ao longo do rio, nenhuma fábrica expelia fumaça. Nenhum carro circulava emporcalhando o ar com o escapamento; os poucos que existiam eram movidos a vapor ou bateria elétrica.

Também não havia mais pássaros cantando.

Os efeitos da Peste eram visíveis em tudo, ela ainda era, em si mesma, endêmica, e ainda assim não evitara que a guerra eclodisse. Na verdade, a batalha no Oriente Próximo era mais selvagem do que fora em um mundo mais povoado. Pelo regimento, os Estados Unidos estavam fortemente comprometidos com o lado isragípcio em termos de armamentos, munições, aviões e “conselheiros militares”. A China estava igualmente imersa no lado iraquiano -iraniano, embora ainda não tivesse enviado soldados chineses, apenas tibetanos, norte-coreanos, vietnamitas e mongóis. A Rússia e a Índia se mantinham isoladas em um nível constrangedor, mas agora que o Afeganistão e o Brasil acompanhavam os iranianos, o Paquistão deveria se posicionar do lado isragípcio. A Índia, então, entraria em pânico e se alinharia à China, que poderia intimidar a URSS a ponto de pressioná-la para o lado dos EUA. Isso levaria ao alinhamento de doze Potências Nucleares ao todo, seis de cada lado. Assim diziam as especulações. Enquanto isso, Jerusalém estava em escombros e a população civil da Arábia Saudita e do Iraque vivia em covas no chão enquanto tanques e aviões lançavam fogo no ar e cólera na água, e os bebês engatinhavam para fora das covas cegados por napalm.

Ainda se massacravam pessoas brancas em Joanesburgo, Orr observou uma manchete em uma banca de jornal de esquina. Anos haviam se passado desde o Levante, e ainda havia gente branca para massacrar na África do Sul! As pessoas são resistentes...

A chuva caía tépida, poluída, suave sobre sua cabeça nua enquanto ele subia as colinas cinzentas de Portland.

No escritório com a ampla janela de canto, pela qual se via a chuva, ele disse:

— Por favor, dr. Haber, pare de usar meus sonhos para melhorar as coisas. Isso não vai funcionar. E errado. Eu quero ser curado.

— Esse é o único pré-requisito essencial para sua cura, George! Querer a cura.

— Você não está me dando uma resposta.

Mas aquele homem grande era como uma cebola: tirando, uma depois da outra, camadas de personalidade, crença, reação, infinitas camadas, não havia fim, não havia um centro para ele. Nenhuma parte em que ele parasse, tivesse que parar, tivesse de dizer: “Fico por aqui!". Nenhum ser, apenas camadas.

— Você está usando meus sonhos efetivos para alterar o mundo. Não quer admitir para mim que está fazendo isso. Por que não?

— George, você deve compreender que faz perguntas que, do seu ponto de vista, podem parecer sensatas, mas que, do meu ponto de vista, são literalmente sem resposta. Não vemos a realidade da mesma maneira.

— Mas de maneira próxima o suficiente para sermos capazes de conversar.

— Sim. Felizmente. Mas nem sempre para sermos capazes de perguntar e responder. Ainda não.

— Posso responder às suas perguntas, e respondo... Mas, seja como for: veja. Você não pode continuar alterando as coisas, tentando dirigir as coisas.

— Você fala como se existisse algum tipo de imperativo moral universal. — Olhou para Orr com seu sorriso cordial, pensativo, coçando a barba. — Mas, na verdade, não é o propósito exato do homem na Terra... fazer coisas, alterar as coisas, dirigir as coisas, criar um mundo melhor?

— Não!

— Qual é o propósito, então?

— Não sei. As coisas não precisam ter um propósito, como se o universo fosse uma máquina na qual cada parte tem uma função útil. Qual a função de uma galáxia? Não sei se nossa vida tem um propósito e não acho que isso tenha importância. O que importa é que somos um componente. Como um fio no tecido ou uma folha de relva no campo. A relva existe e nós existimos. O que fazemos é como o vento soprando a relva.

Houve uma breve pausa e quando Haber respondeu, seu tom de voz já não era amistoso, reconfortante, tranquilizador. Era totalmente neutro e tinha um desprezo quase imperceptível.

— Você tem uma perspectiva estranhamente passiva para um homem criado no ocidente judaico-cristão-racionalista. Uma espécie de budista por natureza. Já estudou os misticismos orientais, George? — A pergunta, com sua resposta óbvia, era de franco desdém.

— Não. Não sei nada sobre isso. Sei, sim, que é errado forçar o padrão das coisas. Não vai funcionar. Tem sido nosso erro por uma centena de anos. Você não... não entende o que aconteceu ontem?

Os olhos opacos, escuros, encontraram os seus.

— O que aconteceu ontem, George?

Nenhuma chance. Não tinha saída.

Agora, Haber estava empregando thiopental sódico nele, para baixar sua resistência ao procedimento hipnótico. Ele se submeteu à aplicação, observando a agulha deslizar na veia de seu braços com um único instante de dor. Era o caminho a seguir, sem escolha. Orr nunca tivera qualquer escolha. Era apenas um sonhador.

Haber foi para algum lugar, fazer alguma coisa, enquanto a droga surtia efeito; mas voltou exatos quinze minutos depois, turbulento, amistoso e indiferente.

— Certo! Vamos dar continuidade, George!

Orr entendeu, com uma clareza desoladora, o que ele iria continuar hoje: a guerra. Os jornais estavam recheados; até a mente de George, refratária às notícias, estivera ocupada com esse assunto a caminho dali. A guerra avançava no Oriente Próximo. Haber acabaria com ela. E com os assassinatos na África, sem dúvida. Porque Haber era um homem bondoso. Queria tornar o mundo melhor para a humanidade.

Os fins justificam os meios. Mas e se nunca houver um fim? Tudo que temos são os meios. Orr se deitou de costas no divã e fechou os olhos. A mão tocou sua garganta.

— Você vai entrar em estado hipnótico agora, George... — disse a voz rouca de Haber. — Você está...

escuridão.

Na escuridão.

Ainda não era totalmente noite: o fim do crepúsculo no campo. Os conjuntos de árvores pareciam pretos e úmidos. A estrada em que ele estava caminhando apanhava a luz tênue, derradeira, do céu; estendia-se longa e em linha reta, uma velha rodovia de interior, com o asfalto preto rachado. Uma galinha andava uns cinco metros à frente dele, visível apenas como uma mancha branca oscilante. Vez ou outra, ela cacarejava um pouco.

As estrelas estavam aparecendo, brancas como margaridas. Uma enorme estava florescendo bem à direita da estrada, em um ponto baixo sobre o campo escuro, bruxuleante e branca. Quando ele ergueu os olhos para vê-la outra vez, já tinha se tornado maior e mais radiante. Está enormescendo, ele pensou. Parecia se tornar avermelhada à medida que se iluminava. Enormevermelheceu. Os olhos flutuavam. Pequenos raios verdes-azulados correndo em tomo dela em um ziguezague browniano, redemunhando. Um halo amplo e encorpado pulsava em volta da grande estrela e de minúsculas faíscas mais claras, tênues, pulsantes. Ah, não, não, não!, ele disse quando a grande estrela se iluminou enormemente em uma EXPLOSÃO ofuscante. Orr caiu no chão, cobrindo a cabeça com os braços enquanto o céu explodia em raios de luz morta, mas não conseguiu desviar o rosto, devia observar e testemunhar. O chão ondulava para cima e para baixo, grandes dobras oscilantes percorrendo a pele da Terra.

— Deixe, deixe! — ele gritou, soltando a voz, com o rosto em direção ao céu, e acordou no divã de couro.

Sentou-se e colocou o rosto nas mãos suadas e trêmulas.

No mesmo instante, sentiu a mão pesada de Haber em seu ombro.

— Experiência ruim de novo? Droga, pensei que livraria você com facilidade. Falei para você sonhar com a paz.

— Sonhei.

— Mas, para você, foi perturbador?

— Eu estava assistindo a uma batalha no espaço.

— Assistindo? De onde?

— Da Terra. — Ele recontou o sonho de forma resumida omitindo a galinha. — Não sei se pegaram um dos nossos ou se nós pegamos um dos deles.

Haber riu.

— Queria que pudéssemos ver o que acontece lá! Nos sentiríamos mais envolvidos. Mas é óbvio que esses embates acontecem a velocidades e distâncias que a visão humana simplesmente não está equipada para acompanhar. Sua versão é muito mais pitoresca do que a realidade, sem dúvida. Parece um bom filme de ficção científica dos anos 1970. Eu costumava ver esses filmes quando era garoto... mas por que acha que sonhou com uma cena de batalha quando a sugestão foi paz?

— Só paz? Sonhe com a paz... foi tudo o que você disse?

Haber não respondeu de imediato. Ocupou-se dos controles do Ampliador.

— Ok — ele enfim respondeu. — Desta vez, como experiência, vamos deixar você comparar a sugestão com o sonho. Talvez encontremos o motivo de ele ter se revelado negativo. Eu falei... Não, vamos rodar a fita. — Ele foi até um painel na parede.

— Você grava a sessão inteira?

— Claro. É a prática psiquiátrica padrão. Você não sabia?

Como eu poderia saber, se isso é encoberto, não há nenhum sinal sonoro e você não me contou, Orr pensou; mas não disse nada. Talvez fosse a prática padrão, talvez fosse a arrogância pessoal de Haber, mas em qualquer um dos casos ele não podia fazer muito a respeito.

— Estamos aqui, deve ser mais ou menos aqui. Agora, o estado hipnótico, George. Você está... aqui! Não desista, George!

A fita fez um ruído. Orr balançou a cabeça e piscou. Os últimos fragmentos de frases eram da voz de Haber na fita, óbvio, e ele ainda estava tomado pela droga indutora de hipnose.

— Vou ter de pular um pedaço. Certo. — Agora era a voz dele na fita de novo, dizendo: —... paz. Chega de assassinatos de humanos por outros humanos. Chega de luta no Irã e na Arábia e em Israel. Chega de genocídio na África. Chega de estoques de armas nucleares e biológicas, prontas para serem usadas contra outros países. Chega de pesquisa sobre formas e meios de assassinar pessoas. Um mundo em paz consigo mesmo. A paz como um estilo de vida universal na Terra. Você vai sonhar com esse mundo em paz consigo mesmo. Agora você vai dormir. Quando eu disser... — Ele parou a fita de repente, para não fazer Orr dormir com a palavra-chave.

Orr esfregou a testa.

— Bem — ele disse —, segui as instruções.

— Não exatamente. Sonhar com uma batalha no espaço cislunar... — Haber parou tão abruptamente quanto a fita.

— Cislunar — Orr repetiu, sentindo um pouco de pena de Haber. — Não estávamos usando essa palavra quando fui dormir. Como estão as coisas no Isragito?

A palavra criada em uma realidade antiga teve um efeito impactante e curioso ao ser pronunciada nesta realidade: como o surrealismo, parecia fazer sentido e não fazia, ou parecia não fazer sentido, e fazia.

Haber caminhou de um lado para o outro pela sala comprida e elegante. Antes, passou a mão pela barba ondulada, castanho avermelhado. O gesto era calculado e familiar para Orr, mas quando Haber falou, Orr percebeu que ele estava procurando e escolhendo as palavras com cuidado, sem confiar, desta vez, em sua inesgotável fonte de improviso.

— É curioso que você usou a Defesa da Terra como símbolo ou metáfora da paz, do fim da guerra. Ainda assim, não é descabido. Apenas muito sutil. Os sonhos são infinitamente sutis. Infinitamente. Pois, na realidade, foi essa ameaça, esse risco imediato de invasão por alienígenas que não se comunicam, que são ilógicos e hostis, que nos forçou a parar de lutar entre nós mesmos, para voltar nossas energias agressivo-defensivas para fora, para ampliar o avanço territorial e incluir toda a humanidade, para juntar nossas armas contra um inimigo comum. Se os alienígenas não tivessem atacado, quem sabe? Na realidade, ainda poderíamos estar lutando no Oriente Próximo.

— Saímos da frigideira para o fogo — Orr disse. — Não percebe, dr. Haber, que isso é tudo o que você consegue de mim, toda vez? Terminar a guerra foi uma boa ideia, concordo plenamente com isso. Até votei no partido Isolacionista na eleição passada porque Harris prometeu nos retirar do Oriente Próximo. Mas acho que não consigo, ou meu subconsciente não consegue, sequer imaginar um mundo sem guerra. O melhor que ele consegue fazer é substituir um tipo de guerra por outro. Você falou “chega de assassinatos de humanos por outros humanos”. Então, sonhei com os alienígenas. Suas ideias são sensatas e racionais, mas é o meu inconsciente que você está tentando usar, não minha mente racional. Racionalmente, talvez eu pudesse inventar que, na espécie humana, as pessoas de uma nação não tentam exterminar as pessoas de outras; na verdade, racionalmente é mais fácil conceber isso do que entender os motivos para guerrear. Mas você está lidando com algo que é externo à razão. Está tentando alcançar objetivos progressistas, humanitários, com uma ferramenta que não é apropriada para o trabalho. Quem tem sonhos humanitários?

Haber não disse nada e não demonstrou nenhuma reação, então Orr prosseguiu.

— Ou talvez não seja só meu inconsciente, minha mente irracional; talvez seja minha totalidade, todo o meu ser, que simplesmente não serve para esse trabalho. Sou muito derrotista, ou passivo, talvez, como você disse. Não tenho desejos suficientes. Talvez isso tenha a ver com o fato de eu ter essa... essa capacidade de sonhar de maneira efetiva; mas se não tiver, pode haver outros que consigam fazer isso, pessoas com mentes mais parecidas com a sua, com quem você pode trabalhar melhor. Você poderia testar, não posso ser o único, talvez eu apenas tenha me tornado consciente do que acontece. Mas não quero fazer isso. Quero escapar do anzol. Não aguento. Quer dizer... veja, tudo bem, a guerra no Oriente Próximo já terminou há seis anos, ótimo, mas agora há os alienígenas lá em cima, na Lua. E se eles aterrissarem? Que tipo de monstros você desencavou de meu psiquismo inconsciente em nome da paz? Nem eu sei!

— Ninguém sabe qual a aparência dos alienígenas, George — Haber respondeu, em um tom sensato e reconfortante. — Todos nós temos sonhos aflitivos em relação e eles, só Deus sabe! Mas, como você colocou, já faz mais de seis anos desde que eles desceram na Lua, e ainda não chegaram à Terra. A esta altura, nossos sistemas de mísseis de defesa são plenamente eficientes. Não há motivo para pensar que vão aparecer agora, se não o fizeram ainda. O período de risco foi ao longo dos primeiros meses, antes que a defesa fosse mobilizada com base na cooperação internacional.

Orr ficou algum tempo sentado, de ombros caídos. Queria gritar com Haber: “Mentiroso! Por que está mentindo para mim?” Mas esse ímpeto não era forte. Aquilo não levaria a lugar nenhum. Até onde ele sabia, Haber era incapaz de agir com sinceridade porque mentia para si mesmo. Ele podia ter compartimentado a própria mente em duas metades herméticas: em uma delas, sabia que os sonhos de Orr alteravam a realidade e os empregava com esse objetivo; na outra, o que sabia era que estava usando hipnoterapia e ab-reação onírica para tratar um paciente esquizóide que acreditava ter sonhos que alteravam a realidade.

O fato de que, assim, Haber pudesse ter interrompido a comunicação consigo mesmo era, para Orr, bastante difícil de imaginar; sua própria mente era tão resistente a tais divisões que ele demorava para reconhecê-las nos outros. Orr tinha aprendido que elas existiam. Crescera em um país governado por políticos que mandavam pilotos em bombardeiros para matar bebês e assim tornar o mundo seguro para que as crianças crescessem.

Mas aquilo, agora, era no velho mundo. Não no admirável mundo novo.

— Estou entendendo — ele disse. — Você tem que ver isso. É psiquiatra. Não vê que estou desmoronando? Alienígenas do espaço sideral atacando a Terra? Olha, se me pedir para sonhar outra vez, o que você vai conseguir? Talvez um mundo completamente insano, produto de uma mente insana. Monstros, fantasmas, bruxas, dragões, mutações... todas as coisas que carregamos dentro de nós, todos os pavores da infância, terrores noturnos, pesadelos. Como você pode evitar que isso tudo se manifeste? Eu não consigo impedir. Não tenho controle!

— Não se preocupe com controle! É liberdade que você está se esforçando para conseguir — Haber respondeu em tom violento. — Liberdade! Seu psiquismo inconsciente não é um reservatório de horror e depravação. Essa é uma noção vitoriana tremendamente destrutiva. Ela incapacitou a maioria das melhores mentes do século XIX e tolheu a psicologia por toda a primeira metade do XX. Não tenha medo do seu psiquismo inconsciente! Ele não é um poço escuro de pesadelos. Nada parecido! É um manancial de saúde, imaginação, criatividade. O que chamamos de “mal” é produto da civilização, suas coações e repressões, que deformam a autoexpressão espontânea, livre, da personalidade. O propósito da psicoterapia é exatamente esse, remover esses medos e pesadelos infundados, trazer à tona o que está inconsciente à luz da consciência racional, examiná-lo de forma objetiva e descobrir que não há nada a temer.

— Mas há — Orr disse muito baixinho.

Enfim, Haber o deixou ir embora. Orr saiu ao crepúsculo de primavera e ficou parado um instante nos degraus do Instituto com as mãos nos bolsos, olhando para a iluminação das ruas da cidade, lá embaixo, tão embaçadas pela névoa e pelo anoitecer que pareciam piscar e se deslocar como os vultos minúsculos e prateados dos peixes tropicais em um aquário escuro. Um teleférico ruidoso subia a colina escarpada em direção ao retorno ali no ponto mais alto do Washington Park, em frente ao Instituto. Orr foi até a rua e embarcou no momento em que o teleférico fazia o retorno. Seu caminhar era esquivo e ainda sem direção. Movia-se como um sonâmbulo, como alguém empurrado.

 

 


CONTINUA