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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Dadiva / Danielle Stell
A Dadiva / Danielle Stell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Dadiva

 

Annie Whittaker gostava de tudo a que diz respeito 0 Natal: gostava do frio, das luzes nas árvores dos jardins e das figuras de Pai Natal a reluzir em fila nos telhados; gostava das músicas, de esperar pela vinda do Pai Natal, de andar de patins e de beber chocolate quente logo a seguir; gostava também de comer pipocas com a mãe e de se sentarem juntas de olhos fitos na árvore de Natal, a admirar como tinha ficado bonita. A mãe deixava-a ficar em silêncio diante do brilho das luzes, vendo o deslumbrado rosto de cinco anos encher-se de alegria.

Elizabeth Whittaker tinha quarenta e um anos quando Annie nascera, de uma forma inésperada. Elizabeth já há muito perdera as esperanças de ver concretizado o sonho de ter mais outro filho, pois passara vários anos a tentar engravidar. Tommy tinha dez anos, e o casal aceitara finalmente o facto de terem um filho único. Era um miúdo fantástico, e Liz e John tinham orgulho nele; jogava futebol e basebol na equipa juvenil, e todos os Invernos era a estrela da equipa de hóquei. Era um bom rapaz, fazia tudo o que devia fazer, tinha boas notas na escola, era meigo com os pais e suficientemente travesso para que estes tivessem a certeza de que o filho era absolutamente normal. Não era, de forma alguma, uma criança perfeita, mas sim um bom miúdo. Tinha o cabelo louro de Liz e os olhos vivos e azuis do pai; com um óptimo sentido de humor e uma mentalidade sadia, depois do choque inicial, aceitou de bom grado a ideia dé ter um irmão.

Assim, nos cinco anos e meio que se seguiram, Annie foi para ele o centro de todas as atenções. Franzina e leve como uma pluma, trazia sempre um enorme sorriso nos lábios, e as suas gargalhadas ecoavam pela casa sempre que estava na companhia de Tommy. Todos os dias esperava ansiosamente que o irmão regressasse das aulas, para depois se sentarem à mesa da cozinha a comer bolos e a beber leite. Depois do nascimento de Annie, Liz tornara-se professora substituta e abandonara o seu emprego a tempo inteiro, pois decidira gozar cada momento do seu último filho. E assim fizera; mãe e filha estavam constantemente juntas.

Liz arranjou também tempo para trabalhar durante dois anos como voluntária na escola infantil e agora ajudava no programa artístico da creche que Annie frequentava. Todas as tardes as duas faziam bolos e coziam pão e biscoitos, ou então Liz lia longas histórias à filha, as duas sentadas na grande e confortável cozinha. Era uma vida calma e feliz, e os quatro sentiam-se a salvo das tempestades inesperadas que sucediam nas vidas das outras pessoas. E John tomava muito bem conta da sua família. Dirigia o maior negócio de vendas do Estado, ganhando o suficiente para lhes proporcionar uma vida confortável. Tivera sucesso desde muito nova, pois o negócio pertencera anteriormente ao seu pai e avô. Viviam numa bonita casa na melhor zona daquela localidade e embora não se pudessem considerar, de forma alguma, uma família rica, estavam pelo menos abrigados dos ventos frios de mudança que varriam a vida dos agricultores e dos homens de negócios, tantas vezes adversamente afectados pelas tendências e pelas modas.

Todos precisam de comida, e John Whittaker sempre havia proporcionado à sua família uma boa mesa. Era um homem terno e sensível, que alimentava a esperança de que um dia Tommy também viesse a dedicar-se ao negócio da família, apesar de desejar que, antes disso, o filho frequentasse a universidade. John desejava igualmente o mesmo para Annie, queria que a filha fosse tão inteligente e instruída como a mãe. Annie afirmava que queria ser professora como a mãe, mas John sonhava que a filha se tornasse médica ou advogada. Em 1952, não eram sonhos fiaceis, mas John já colocara de lado uma razoável quantia destinada apenas à educação de Annie. Para a universidade de Tommy, já tinha juntado o dinheiro necessário há vários anos, daí que ambos os seus filhos tivessem financeiramente o caminho aberto. John era um homem que acreditava em sonhos. Sempre defendera que tudo era possível desde que a vontade fosse suficientemente grande e não se poupassem esforços para o alcançar, pois sempre fora um trabalhador diligente. Liz também sempre o tinha ajudado muito, daí que agora John se sentisse feliz por ela poder ficar em casa. Adorava regressar a casa ao final da tarde e encontrar a mulher e a filha aninhadas no sofá, ou então a brincarem às bonecas no quarto de Annie. 0 coração de John sentia-se acalentado por esse quadro familiar. Tinha quarenta e nove anos e considerava-se um homem feliz, com uma mulher maravilhosa e dois filhos encantadores.

- Onde estão todos? - gritou ele nessa tarde ao entrar em casa, a sacudir ainda a neve e o gelo do chapéu e do casaco, enquanto empurrava a cadela, que abanava a cauda e escorregava nas poças que o dono acabara de provocar no chão. A enorme setter irlandesa chamava-se Bess, em homenagem à mulher do presidente. De início, Liz ainda argumentara que era um grande desrespeito para com Mrs. Truman, mas o nome assentava como uma luva à cadela e tinha acabado por ficar, tanto que agora já ninguém se lembrava do motivo por que tinham recorrido àquele nome.

-Estamos aqui! - respondeu Liz.

John encaminhou-se para a sala de estar e encontrou as duas a pendurar bolachas decorativas na árvore de Natal. Tinham passado toda a tarde a decorá-la, e Annie fizera correntes de papel enquanto os biscoitos coziam no forno. - Olá, papá! Não está linda?

- Linda. - John sorriu para a filha e depois ergueu-a nos seus braços com grande facilidade. Era um homem possante, tinha no sangue a herança irlandesa dos seus an tepassados. Mesmo faltando apenas um ano para completar cinquenta anos, tinha o cabelo ainda negro; os olhos, de um azul muito brilhante e intenso, legara-os aos dois filhos. Apesar do cabelo louro, os olhos de Liz eram castanho-claros, por vezes quase cor de avelã. Contudo, o camento o caminho aberto. John era um homem que acreditava em sonhos. Sempre defendera que tudo era possível desde que a vontade fosse suficientemente grande e não se poupassem esforços para o alcançar, pois sempre fora um trabalhador diligente. Liz também sempre o tinha ajudado muito, daí que agora John se sentisse feliz por ela poder ficar em casa. Adorava regressar a casa ao final da tarde e encontrar a mulher e a filha aninhadas no sofá, ou então a brincarem às bonecas no quarto de Annie. 0 coração deJohn sentia-se acalentado por esse quadro familiar. Tinha quarenta e nove anos e considerava-se um homem feliz, com uma mulher maravilhosa e dois filhos encantadores. - Onde estão todos? - gritou ele nessa tarde ao entrar em casa, a sacudir ainda a neve e o gelo do chapéu e do casaco, enquanto empurrava a cadela, que abanava a cauda e escorregava nas poças que o dono acabara de provoar no chão. A enorme setter irlandesa chamava-se Bess, em homenagem à mulher do presidente. De início, Liz ainda argumentara que era um grande desrespeito para com Mrs. Truman, mas o nome assentava como uma luva à cadela e tinha acabado por ficar, tanto que agora já ninguém se lembrava do motivo por que tinham recorrido

àquele nome.

-Estamos aqui! - respondeu Liz.

John encaminhou-se para a sala de estar e encontrou as i   duas a pendurar bolachas decorativas na árvore de Natal. Tinham passado toda a tarde a decorá-la, e Annie fizera correntes de papel enquanto os biscoitos coziam no forno. - Olá, papá! Não está linda?

-Linda. -John sorriu para a filha e depois ergueu-a nos seus braços com grande facilidade. Era um homem possante, tinha no sangue a herança irlandesa dos seus antepassados. Mesmo faltando apenas um ano para completar cinquenta anos, tinha o cabelo ainda negro; os olhos, de P       um azul muito brilhante e intenso, legara-os aos dois filhos. Apesar do cabelo louro, os olhos de Liz eram castanho-claros, por vezes quase cor de avelã. Contudo, o ca9

belo de Annie era quase branco, de tão louro. E ao soror para o pai, esfregando a ponta do nariz no nariz dele, parecia um autêntico anjo. John sentou-a então com suavidade ao pé dele e foi beijar a mulher, enquanto o casal trocava um olhar terno e afectuoso.

-Como correu o teu dia? -`perguntou ela calorosamente. Há vinte e dois anos que estavam casados, e na maior parte do tempo, sempre que os pequenos contra tempos da vida não os afectavam, pareciam mais apaixonados do que nunca. Dois anos depois de Liz ter terminado o curso, casara com John e, nessa altura, já era professora. Foram precisos sete anos para que Tommy nascesse. Já quase tinham perdido toda a esperança de vir a ter um filho, apesar do velho Dr. Thompson nunca ter descoberto o motivo por que Liz não conseguia engravidar e levar uma gravidez até ao fim. Tinham passado por três abortos espontâneos antes do nascimento de Tommy, que lhes pareceu um verdadeiro milagre: Maior ainda foi o nascimento de Annie, dez anos depois. 0 casal admitia facilmente que tinha sido abençoado, e os filhos trouxeram-lhes toda a alegria por que tanto ansiavam e com que sempre sonharam.

-Recebi hoje laranjas da Florida - anunciou John, sentando-se e pegando no cachimbo. A lareira estava acesa e sentia-se o perfume adocicado dos biscoitos e das pipocas. - Amanhã trago algumas para casa.

-Adoro laranjas! - Annie bateu as palmas e pulou para o colo do pai, enquanto Bess colocava ambas as patas nos joelhos de John, juntando-se aos donos. John afastou então a cadela e Liz desceu da éscada para vir preparar ao marido um copo quente de sidra.

- É bom de mais para ser recusado. - John sorriu e seguiu Liz até à cozinha, admirando silenciosamente a sua silhueta esbelta. De mãos dadas com Annie, ouviu logo em seguida a porta da frente bater e Tommy entrar, com o nariz vermelho e as faces muito rosadas, trazendo nas mãos os patins.

- Hum... cheira bem! Olá, mãe... olá, pai.., olá, pequenota! 0 que fizeste hoje? Comeste os bolos todos da mãe? - Tommy passou a mão pelo cabelo de Annie e deu-lhe um abraço, molhando-lhe as faces com o rosto. Estava muito frio lá fora e nevava cada vez mais. -Ajudei a mãe a fazer os bolos... e só comi quatro - respondeu ela com exactidão, provocando o riso de todos. Annie era tão graciosa que quase ninguém conseguia resistir-lhe, muito menos o irmão mais velho ou os pais babados. Mas não estava excessivamente _mimada, era apenas amada por todos, o que se reflectia na forma facil com que enfrentava a vida e respondia a cada desafio. Gostava de todos, adorava rir, jogar e correr ao vento com o cabelo a esvoaçar; gostava também muito de brincar com Bess, mas mais ainda com o irmão mais velho. Nesse momento, fitava-o com um olhar de adoração, tirando-lhe das mãos os patins já bem gastos. - Amanhã podemos ir patinar, Tommy? - Havia um lago ali perto, e Tommy costumava levar muitas vezes a irmã até lá, nas manhãs de sábado. - Se já tiver parado de nevar. Se o tempo continùar assim, nem sequer vamos conseguir encontrar o lago= respondeu Tommy, roubando um dos deliciosos biscoitos da mãe. Eram, de facto, de fazer crescer água na boca e, enquanto a mãe retirava o avental, Tommy não conseguia parar de comê-los. Liz trazia uma blusa que lhe assentava impecavelmente e uma saia cinzenta comprida, e o facto de ainda manter a mesma figura que tinha quando conhecera John no liceu sempre agradara ao marido. Era ainda caloira quando John era já finalista e, durante muito tempo, ele sentira vergonha em admitir que estava apaixonado por uma rapariga tão jovem, mas depois todos acabaram por descobrir. De início, ainda brincaram com eles; porém, passado algum tempo, todos se convenceram da força daquela união. No ano seguinte, John fora trabalhar com o pai e Liz levara mais sete ános a terminar o liceu e a faculdade e depois mais dois a trabalhar como professora. Esperara muito tempo por ela, sem nunca duvidar que essa espera valia a pena. Tudo aquilo que tinham desejado ou procurado sucedeu-lhes lentamente, tal como o nascimento dos filhos, mas tudo de bom nas suas vidas tinha merecido todo o tempo de espera. Agora eram felizes, tinham tudo aquilo que sempre haviam desejado.

-Amanhã à tarde tenho um jogo - mencionou Tommy casualmente, enquanto saboreava mais dois biscoitos.

- Na véspera de Natal? - perguntou a mãe, surpreendida. - Julgava que todos teriam mais que fazer. - Costumavam ir sempre aos jogos do filho, a não ser quan do sucedia algo de força maior. John jogara também hóquei sobre o gelo e futebol e adorava igualmente ambas as modalidades. Liz já não tinha tanta certeza, receava que Tommy pudesse ficar magoado. Ao longo dos anos, mais de um rapaz tinha partido os dentes durante os jogos de hóquei, mas Tommy era cauteloso e tinha sempre sorte. Nunca partira um osso, nem sofrera uma lesão, exceptuando algumas distensões e nódoas negras, as quais John defendia que também faziam parte do divertimento.

- Por amor de Deus, ele é rapaz, não podes mantê-lo para sempre em algodão em rama! - Mas, intimamente, Liz admitia perante si própria que era esse o seu desejo. Os filhos eram tão valiosos para ela que gostaria de poder evitar tudo de mal que lhes pudesse acontecer, tal como a John. Era uma mulher que dava muito valor às bênçãos que lhe haviam sido concedidas.

- Hoje foi o teu último dia de aulas antes do Natal? - quis saber Annie, interessada. Tommy respondeu que sim com a cabeça, com um sorriso nos lábios. Tinha vários projectos para as férias, muitos dos quais incluíam uma rapariga chamada Emily, por quem, desde o Dia de Acção de Graças se sentia interessado. Essa rapariga, cuja mãe era enfermeira e o pai médico, mudara-se para Grinnell nesse mesmo ano. Tinham vivido em Chicago antes, e ela era muito bonita. O suficiente para Tommy a convidar para muitos dos seus jogos de hóquei; mas não avançara para além disso. Agora, tencionava convidá-la a ir ao cinema com ele na próxima semana, e talvez mesmo a acompanhá-lo nalgum programa para a véspera de Ano Novo, apesar de ainda não ter conseguido arranjar coragem para

lhe falar.

Annie também sabia que o irmão gostava de Emily. Um dia, quando Tommy a levara a passear para o lago, Annie reparara na forma como ele olhava para Emily e de pois no encontrão que sem querer lhe dera. Emily estava a

patinar com umas amigas e com uma das irmãs. Annie achava que ela era simpática, mas não conseguia entender o que levava o irmão a gostar tanto dela. Tinha um bonito cabelo, escuro e comprido, e era uma boa patinadora, mas pouco falara com Tommy, apesar de olhar muito para eles. Só quando fizeram tenção de ir embora é que Emily deu muita atenção a Annie.

-Ela só fez isso porque gosta de ti - explicou Annie de forma casual, quando se dirigiam para casa, Tommy carregado com os patins da irmã.

- Porque é que dizes isso? - perguntou ele, tentando parecer pouco interessado, mas apenas conseguindo revelar ainda mais todo o seu nervosismo e insegurança. -Durante todo o tempo em que estivemos a patinar, teve sempre os olhos colados em ti. - Annie atirou o cabelo louro e comprido para cima do ombro, muito segura do que dizia e fazia.

- Como é que sabes?

- Porque sei. Ela está louca por ti, só por isso é que foi tão simpática para mim. Também tem uma irmã mais pequena e nunca é assim tão simpática com ela. Já te disse, ela gosta de ti.

- Sabes muito, Annie Whittaker. Não devias estar ainda a brincar com bonecas? - Tommy tentava não se mostrar afectado pelo que a irmã dissera, mas depois ten tou convencer-se de que era uma patetice preocupar-se

com a ideia que a irmã de cinco anos podia fazer dele. - Gostas mesmo dela, não gostas? - Annie estava a provocá-lo e soltou em seguida uma gargalhada divertida.

- Porque é que não te metes na tua vida? - Fora um pouco áspero com a irmã, o que era raro, mas Annie não prestou a mínima atenção.

- Acho que a irmã mais velha é muito mais gira. -Vou tentar não me esquecer, no caso de algum dia me apetecer sair com uma rapariga mais velha.

- 0 que há de mal nisso? - indagou Annie, sem perceber o reparo de Tommy.

- Nada, tem só dezassete anos - explicou. Annie abanou sabiamente a cabeça.

-É muito mais velha. Bom, se calhar a Emily é que está bem para ti.

- Obrigado.

-De nada - respondeu, muito séria. Os dois correram então para casa e foram beber chocolate quente, para aquecer. Apesar dos comentários acerca das raparigas que ocupavam a sua vida, Tommy gostava realmente de estar com a irmã. Annie dava-lhe sempre a sensação de ser alguém muito importante e muito amado. Ela venerava-o, e nem sequer o tentava disfarçar; adorava-o, e Tommy pagava-lhe com o mesmo amor.

Nessa noite antes de se deitar, Annie sentou-se ao colo de Tommy, enquanto 0 ouvia ler algumas das suas histórias preferidas. Leu-lhe por duas vezes a mais pequena e, depois, a mãe veio buscá-la e levou-a para a cama, enquanto Tommy ficava a conversar com o pai. Conversa-          ' ram acerca da eleição de Eisenhower no mês anterior e das modificações que podia provocar. E depois, como era cos

turre, falaram sobre o negócio. John queria que o filho se formasse em agricultura e que fizesse uma especialização em economia. Acreditavam nos valores mais básicos, mas também mais importantes, como a família, os filhos, a san

tidade do matrimónio, a honestidade, a lealdade e a ajuda aos amigos. Eram muito apreciados e respeitados na comunidade, e todos se referiam a John Whittaker como sendo um bom marido, um bom homem e um patrão justo.

Nessa noite, Tommy foi sair com uns amigos. O.tempo estava tão mau que nem sequer pediu o carro emprestado; preferiu ir a pé até à casa mais próxima de um amigo e depois regressou às onze e meia. Os pais nunca precisaram de se preocupar com Tommy. Aos quinze anos, já fi2era um ou dois disparates mais graves, quando em duas ocasiões, ao beber demasido, vomitara o carro do pai, quando este o trazia de volta para casa. 0 casal Whittaker hão tinha ficado nada satisfeito com o comportamento do filho, mas procurara não lhe dar demasiada importância. Afinal, Tommy era um bom rapaz e todos os adolescentes cometem alguns disparates. John também os havia cometido, e alguns bem mais graves, principalmente na época em que Liz se ausentara para frequentar a faculdade. As vezes, ela ainda o provocava acerca disso, mas o marido insistia que tinha sido um modelo de virtudes, ao que Liz respondia com um erguer de sobrancelha, normalmente seguido de um beijo.

Nessa noite, deitaram-se também mais cedo e, na manhã seguinte, quando olharam pela janela, depararam com nm verdadeiro postal de Natal. A neve cobria tudo de beleza, e, às oito e meia da manhã, já Annie forçara Tommy a ir com ela para o jardim fazer um boneco de neve, que neste caso era uma mulher de neve. Annie usava o boné de hóquei preferido de Tommy, mas ele informara-a que teria de o levar oemprestado" nessa tarde ao jogo, ao que Annie respondera que lhe diria mais tarde se o permitiria. Tommy atirou-a então para o chão coberto de camadas de neve, e ficaram os dois deitados de costas a mexer os braços e as pernas, de forma a desenharem no chão anjos de neve.

À tarde, foram todos assistir ao jogo de Tommy e, apesar da sua equipa ter perdido, ele manteve a boa disposição. Emily fora também vê-lo, rodeada de um grupo de amigas, afirmando que tinham sido estas que tinham queriao vir e que ela apenas resolvera acompanhá-las. Usava Uma saia de xadrez, calçava sapatos rasos e tinha o cabelo escuro apanhado num rabo-de-cavalo que lhe caía pelas costas; e Annie garantia que usava maquilhagem.

- Como é que sabes? - perguntou Tommy, simultaneamente espantado e divertido, quando toda a família tinha já deixado o ringue de patinagem e seguia para casa a pé. Emily tinha também já saído, mais o seu barulhento e risonho, grupo de amigas.

-As vezes, uso a maquilhagem da mãe - respondeu Annie com toda a naturalidade, fazendo os dois homens rir, observando, divertidos, a miniatura de mulher que caminhava a seu lado.

- A mãe não usa maquilhagem - defendeu Tommy com firmeza.

- Usa, sim. Usa pó-de-arroz, muge e às vezes, bâton. - Sim? - Tommy ficou surpreendido. A mãe era bonita, sabia disso, mas nunca suspeitara que houvesse qualquer artificio na sua aparência, ou que realmente usasse maquilhagem.

-As vezes, até pinta as pestanas com uma tinta preta que faz chorar muito! - explicou Annie, provocando 0 riso de Liz.

Conversaram depois sobre o jogo e sobre outros temas; nessa noite, Tommy voltou a sair com os amigos. Uma colega sua veio fazer de baby-sitter para Annie, de forma a que os pais pudessem ir a uma festa de Natal oferecida por um vizinho.

Regressaram a casa por volta das dez da noite, e à meia-noite já estavam na cama, pois Annie adormecera antes mesmo de eles chegarem. Mas, na manhã seguinte, le vantou-se de madrugada, muito excitada pelo facto de ser Natal. Tinha finalmente chegado a véspera do grande dia, e Annie só conseguia pensar naquilo que pedira ao Pai Natal. Queria muito ter uma boneca Madame Alexander, e não tinha a certeza de que iria receber uma. Queria também um trenó novo, e uma bicicleta, mas sabia que era melhor receber a bicicleta na Primavera, no seu aniversário.

Nesse dia, havia muito que fazer, milhares de preparativos para o Natal. Esperavam a visita de uns amigos na tarde do dia seguinte, tendo a mãe resolvido fazer mais alguns bolos. Nessa noite, iriam também à Missa do Galo, à meia-noite. Era um ritual que Annie adorava, apesar de não compreender perfeitamente de que se tratava. Mas adorava ir à igreja com os pais, muito tarde, e de ficar apertada entre os dois no calor da igreja, meio ensonada, a ouvir os hinos e a sentir o cheiro do incenso. Havia uma manjedoura muito bonita na igreja, com todos os animais em volta de José e Maria. E, à meia-noite, colocavam sempre o bebé na manjedoura. Antes de deixarem a igreja, Annie ia sempre ver o bebé Jesus, deitado nas palhas ao lado da mãe.

- É como nós as duas, não é, mamã? - perguntou, aninhada junto de Liz. A mãe baixou-se para a beijar. - É sim. É como nós as duas - respondeu Liz docemente, agradecendo mais uma vez as bênçãos que tinha.

- A mãe ama-te muito, Annie.

-Eu também amo a mamã - sussurrou ela.

Nessa noite, Annie acompanhou mais uma vez os pais à missa, tal como sempre fazia, e adormeceu sentada entre os dois. 0 ambiente não podia ser mais acolhedor e agra dável. A igreja estava quente e a música embalou o seu

sono. Nem mesmo durante a procissão chegou a acordar, mas, à saída, fez questão de ir ver o bebé Jesus, que de facto encontrou na manjedoura: Annie sorriu ao ver a pequena imagem, levantou os olhos para a mãe e apertou-lhe a mão. Liz sentiu lágrimas nos olhos quando encontroU o olhar da filha. Para eles, Annie era como uma dádiva muito especial, enviada apenas para lhes trazer alegria, ternura e boa disposição.

Já passava da uma da manhã quando chegaram a casa, e Annie estava já mais a dormir do que acordada. Quando 0 irmão lhe foi dar um beijo de boas-noites, já ela estava completamente adormecida, a ressonar com suavidade. Tommy achou-a um pouco quente quando lhe beijou a testa, mas não deu muita importância e nem sequer referiu nada à mãe. Annie parecia tão repousada que Tommy achou que não devia ser nada de mal.

No entanto, pela primeira vez numa manhã de Natal, Annie dormiu até tarde e acordou pesada. Na noite anterior, Liz colocara lá fora os pratos com cenouras e sal para as renas e bolos para o Pai Natal, porque Annie estáva demasiado ensonada para o fazer. Mas, ao acordar, Annie lembrou-se de ir ver o que tinham comido. Estava mais ensonada do que era hábito e queixava-se de dores de cabeça, mas não estava constipada, o que levou Liz a pensar que a filha estava a ficar levemente engripada. Na noite anterior, tinha feito muito frio, além de que, há dois dias atrás, quando brincara com Tommy na neve, poderia ter apanhado também frio. Mas à hora de almoço parecia estar já bem. Ficou maravilhada com a boneca Madame Alexander que o Pai Natal lhe trouxera, com os outros brinquedos e com o novo trenó. Foi brincar com Tommy para o jardim e, quando passado uma hora, entrou em casa para vir beber chocolate quente, trazia as faces vermelhas e não podia parecer mais saudável.

-Então, princesa? - exclamou alegremente o pai, fumando o seu cachimbo. Liz oferecera-lhe um outro novo, holandês, muito bonito, e uma armação de madeira feita à mão para colocar todos os cachimbos antigos. - 0 Pai Natal foi bom para ti?

- Muito bom - respondeu com um grande sorriso. - A minha boneca nova é tão linda, papá! - Annie dedicou um outro grande sorriso ao pai, como se soubesse quem lhe tinha dado a boneca; mas é claro que não sabia. Todos se tinham esforçado muito para não destruir o mito, apesar de algumas das suas amigas já saberem a verdade. Mas Liz insistia que o Pai Natal vinha ter com todas as crianças boas, e até mesmo com algumas que não eram assim tão boas, na esperança de se tornarem melhores. Quanto a Annie, não havia dúvida a que grupo pertencia; era uma das melhores crianças, pelo menos para a sua família e para todos quanto a conheciam.

Nessa tarde receberam alguns amigos, três famílias que viviam nas redondezas e dois dos administradores de John, acompanhados das mulheres e filhos. Depressa a casa se encheu de gargalhadas e de brincadeiras. Havia alguns convidados da idade de Tommy, a quem este mostrou a nova cana de pesca. Estava ansioso que chegasse a Primavera para a poder utilizar!

Foi uma tarde muito agradável e, nessa noite, depois de todos saírem, jantaram tranquilamente os quatro. Liz fizera sopa de peru e comeram os restos do almoço e alguns dos doces que os convidados tinham trazido.

- Não vou conseguir comer mais nada durante um mês! - exclamou John, espreguiçando-se na cadeira. Liz sorriu, mas reparou logo em seguida que Annie estava um pouco pálida, tinha os olhos brilhantes e duas rosetas nas faces, parecidas com aquelas que costumava fazer quando brincava com o rouge da mãe.

-Estiveste a brincar com as minhas pinturas? - perguntou Liz com um olhar que era um misto de preocupação e de divertimento.

- Não... foi na neve... e depois eu... - respondeu Annie, muito confusa; em seguida, espantada, ergueu o olhar para a mãe, como se não entendesse o que acabara de dizer e isso a assustasse.

- Sentes-te bem, querida! - Liz debruçou-se para pousar a mão na testa da filha, a qual estava a ferver. Durante a tarde, Annie tinha estado muito bem, brincara com

a boneca nova e com os amigos e, todas as vezes que a mãe a encontrara, corria pela sala ou pela cozinha. - Sentes-te doente?

-Acho que sim. - Annie encolheu os ombros e, subitamente, pareceu ainda mais pequena; Liz puxou-a para si, sentou-a no colo e abraçou-a. Com o corpo da criança junto ao dela, podia concluir que, de facto, Annie estava com bastante febre. Colocou novamente a mão na sua testa e pensou que talvez devesse chamar o médico.

- Detesto ter de o incomodar na noite de Natal - observou Liz, pensativamente. 0 frio tinha-se intensificado de novo, vinha a caminho uma tespestade do Norte e previam mais neve para essa noite.

- Uma boa noite de sono é o melhor remédio - defendeu John calmamente. Por uma questão de temperamento, era bastante menos inquieto do que Liz. - Foram demasiadas emoções para uma criança tão pequena. - A agitação durava há vários dias, com a visita constante de amigos, o jogo de Tommy, a véspera de Natal e todos os preparativos para esse dia. Liz acabou por dar razão ao marido; era, de facto, demasiada excitação para uma menina pequena. - Que tal ires para a cama nos ombros do papá! - A ideia agradou a Annie, mas, quando John a tentou levantar, lançou um grito e queixou-se de dores no pescoço.

- 0 que é que julgas ser? - indagou Liz ao marido, depois deste ter saído do quarto de Annie.

-Apenas uma constipação. No trabalho, todos os dias vejo alguém constipado, por isso calculo que, na escola, as crianças também devem andar assim. Vais ver que não é nada - assegurou ele à mulher, pousando-lhe a mão no ombro. Liz dava-lhe razão, mas recèava sempre algumas doenças, como a poliomielite e a tuberculose. - Não é nada de grave - repetiu John a Liz, sabendo como ela tinha tendência a ficar demasiado preocupada. - Prometo-te.

Liz foi então dar um beijo a Annie e ficou mais tranquila quando a viu. Tinha os olhos brilhantes e, apesar de a testa estar ainda bastante quente e as faces pálidas, parecia ter um raciocínio totalmente coerente. 0 mais certo era ser apenas cansaço e demasiada excitação. John tinha razão: não passava de uma constipação ou de uma pequena gripe.

-Dorme bem e, se te sentires doente, chama-nos - pediu Liz, aconchegando-a entre os cobertores e beijando-lhe a testa. - Amo-te muito, muito, minha querida... e obrigada pelos lindos desenhos que ofereceste a mim e ao papá. - Fizera também um cinzeiro para John, para o cachimbo, e tinha-o pintado de verde, a cor que dizia ser a preferida do pai.

Annie adormeceu mesmo antes de Liz sair do quarto.

Depois de ter arrumado a louça, foi novamente ver a filha. Annie estava ainda mais quente, tinha um sono muito agitado e murmurava alguns sons, mas não acordou quando Liz lhe tocou. Eram dez horas, e Liz julgou ser mais sensato telefonar ao médico.

Ele estava em casa, e Liz explicou-lhe então que Annie estava com febre. Não quis correr o risco de a acordar para lhe medir a temperatura, mas quando a tinha deitado não era preocupante. Liz mencionou o pescoço dorido, e o médico assegurou que era natural que a febre provocasse algumas dores. Concordou com a opinião de John e afirmou que naturalmente Annie estava apenas demasiado cansada e que se constipara durante o fim-de-semana.

- Se a febre não baixar, traga-a aqui amanhã de manhã, Liz, ou chame-me para eu ir vê-la. Telefone-me quando ela acordar; mas vai ver que não é nada de grave. Tenho vários doentes com constipações e febre alta. As constipações não são doenças graves, mas causam muito transtorno enquanto duram. Mantenha-a quente, e pode acontecer que até amanhã a febre ceda.

-Muito obrigada, Walt. - Walter Stone já era o médico da família antes do nascimento de Tommy e tinha-se tornado um bom amigo. Como sempre, Liz senti ra-se mais calma assim que falou com ele. Walter estava certo: era óbvio que não era nada de grave.

Liz e John ficaram durante bastante tempo na sala, nessa noite. Conversaram acerca dos seus amigos, das suas vidas, dos seus filhos, da sorte que tinham, dos anos que ha viam passado desde a data em que se conheceram e de como tinham sido cheios esses anos. Era uma boa altura para fazer uma análise e ser grato.

Liz foi mais uma vez ver Annie antes de se deitar, e a febre não lhe pareceu ter aumentado; pelo contrário, mostrava-se menos agitada, estava sossegada, e tinha a respira ção mais suave. Bess, a cadela, estava deitada aos pés da cama, como era seu costume. E nem a criança nem o cão se mexeram quando Liz saiu do quarto e se foi deitar.

- Como é que ela está? - perguntou John, deslizando para dentro dos lençóis.

- Está bem. - Liz sorriu. - Já sei: preocupo~me de mais; mas não posso evitá-lo.

- É um dos motivos por que te amo tanto. Tomas tão bem conta de todos nós! Não sei o que fiz para merecer tanta sorte.

-Acho que foste apenas muito inteligente por me teres agarrado quando tinha só catorze anos! - Liz não conhecera nem amara nenhum outro homem antes ou de pois de John. E nos trinta e dois anos que tinham passado desde que o conhecera, o seu amor por ele transformara-se em paixão.

- Não pareces ter muito mais do que catorze anos, sabias? - declarou ele, quase timidamente, puxando-a com gentileza para o seu lado. Ela não ofereceu qualquer resistência e, lentamente, John desabotoou-lhe a blusa, enquanto ela deslizava para forá da saia de veludo que usara para o Natal. - Amo-te, Liz - murmurou, perto do pescoço dela. Liz sentiu o desejo aumentar, enquanto as mãos do marido percorram suavemente os seus ombros nus e o peito que aguardava ansioso o seu toque, até os lábios de ambos se unirem com firmeza.

Ficaram muito tempo acordados, até por fim adormecerem, saciados e felizes. A vida de ambos estava cheia de tudo de bom que tinham construído e encontrado ao lon go dos anos; o amor que os unia era um sentimento que ambos respeitavam e valorizavam. Liz adormeceu nos braços de John, pensando no marido. Este mantinha-a perto de si, deitado junto das suas costas com o braço a envolver firmemente a cintura de Liz, os joelhos alinhados com os da mulher e o corpo colado ao dela. Adormeceu com o rosto mergulhado no suave cabelo louro de Liz e dormiram os dois em paz até à manhã seguinte.

Mal acordou, no dia seguinte, Liz foi ver como Annie estava. Ainda a apertar o robe, entrou no quarto de Annie e viu-a deitada, a dormir. Não lhe pareceu doente, mas, logo que se aproximou da cama, verificou que a filha estava muito pálida e que mal respirava. 0 coração de Liz começou a bater descompassadamente quando a agitou um pouco e esperou que ela se mexesse, ouvindo apenas como resposta um suave gemido. Annie não respondeu ao toque da mãe, nem mesmo depois de Liz a abanar violentamente e começar a gritar o seu nome. Tommy ouviu os gritos da mãe antes de John e entrou a correr no quarto para ver o que estava a acontecer.

- 0 que é? 0 que é, mãe? - Era como se tivesse pressentido algo, mal ouvira a voz da mãe. Tinha ainda o pijama vestido, vinha meio a domr e trazia o cabelo despenteado.

- Não sei. Diz ao pai para chamar o doutor Stone; não consigo acordar a Annie. - Liz quase chorava ao murmurar aquelas palavras, Encostara o rosto ao da filha e sentira a sua respiração, mas Annie estava inconsciente, e a mãe concluiu instantaneamente que a febre tinha disparado desde a noite anterior. Nem sequer sentiu coragem para a deixar sozinha e ir à casa de banho buscar o termómetro. - Depressa! - gritou, depois de Tommy sair, tentando sentar Annie. Desta vez, Annie mexeu-se um pouco e emitiu uma espécie de choro abafado, mas não falou, nem abriu os olhos, nem tentou andar. Estava completamente inconsciente do que se passava à sua volta, e Liz resolveu ficar apenas ali sentada segurando Annie, enquanto as lágrimas lhe rolavam suavemente pelas faces. - Por favor, querida... por favor, acorda... vamos... gosto tanto de ti... Annie, por favor... - Um momento depois, John entrou no quarto com Tommy atrás e viu Liz ainda a chorar.

-O Walt já está a caminho. 0 que aconteceu? - Também estava assustado, apesar de não gostar de admitir diante de Liz a sua preocupação. E Tommy chorava baixinho, escondido atrás do ombro do pai.

- Não sei... acho que ela tem muita febre... não consigo acordá-la... Oh, meu Deus! John, por favor... - Liz soluçava, agarrada à filha, envolvendo-a nos seus braços enquanto a balouçava; dessa vez, ela nem sequer gemeu. Permanecia inconsciente nos braços da mãe, com os olhos de toda a família postos nela.

- Ela vai ficar bem. As crianças adoecem e duas horas depois já estão bem, sabes disso. - John tentava esconder o seu pânico.

- Não me digas aquilo que sei ou deixo de saber! Sei apenas que ela está muito doente, é tudo quanto sei! - redarguiu Liz nervosamente ao marido.

- 0 Walt disse, que se for necessário, vai levá-la para o hospital. - Era óbvio para todos que, de facto, isso era necessário. - É melhor ires vestir-te - sugeriu John com calma. - Eu fico com ela.

- Não a vou deixar - respondeu Liz com determinação. Deitou depois Annie de novo em cima da cama e acariciou-lhe o cabelo, enquanto Tommy observava a ir mã, aterrorizado. Estava tão branca que parecia quase morta, e só quando se observava com muita atenção é que se podia ver que ainda respirava. Era muito dificil acreditar que poderia acordar a qualquer momento, a falar e a rir naturalmente, mas, no entanto, Tommy queria acreditar que tal podia ainda acontecer.

- Como é que ela adoeceu tão depressa? Ontem à noite, estava bem - afirmou Tommy, revelando todo 0 choque e confusão que sentia.

-Já estava doente, mas julguei que não era nada. - Liz lançou um súbito olhar a John, como se o culpasse por não terem chamado o médico na noite anterior. Sentia náuseas ao pensar que tinham estado a fazer amor enquanto Annie resvalava para a inconsciência, sozinha no seu quarto. - Devia ter pedido ao Walt para vir ontem à noite.

- Não podias adivinhar que ela ia piorar - assegurou John, sem que Liz lhe respondesse.

Depois, ouviram o médico tocar à porta. John correu a abri-la e deixou-o entrar. Fazia um frio muito intenso na rua, e a tempestade que haviam previsto tinha finalmente chegado. A neve caía, e lá fora o mundo estava tão cinzento e desolado quanto no quarto de Annie.

- 0 que aconteceu? - perguntava o médico a John, enquanto se dirigiam a passos largos para o quarto da doente.

- Não sei. A Liz pensa que a febre subiu muito e não conseguimos acordá-la. - Tinham chegado à porta e, mal se apercebendo da presença de Liz e de Tommy, o médico deu dois passos em direcção à cama de Annie, tocou-lhe, tentou virar-lhe a cabeça e observou-lhe as pupilas. Depois, auscultou-a e verificou-lhe alguns reflexos, no mais completo silêncio, para depois se voltar e encarar os pais e o irmão da criança com uma expressão aflita.

- É melhor levá-la para o hospital e fazer-lhe uma análise à coluna. Julgo que se trata de uma meningite. - Oh, meu Deus! - Liz não tinha a certeza das implicações da conclusão de Watt, mas sabia que era grave, especialmente dado o estado de Annie. - Ela vai ficar bem? - Liz mal pôde murmurar essas palavras, agarrada ao braço de John, enquanto Tommy, que chorava à porta velando pela irmã que adorava, ficava momentaneamente esquecido. Liz podia ouvir as batidas do seu coração nos instantes em que esperava pela resposta do médico. Era um amigo de tantos anos, fora colega de escola de ambos, mas agora mais parecia um inimigo que tinha nas mãos o destino de Annie.

- Não podemos ter a certeza - respondeu, com honestidade. - Ocaso dela é muito grave, gostaria de poder levá-la de imediato para o hospital. Um de vocês pode vir comigo?

- Vamos os dois - decidiu John com firmeza. - Dá-nos só um segundo para nos vestirmos. Tommy, fica aqui com o Walt e a Annie.

- Eu... pai... - Tommy mal conseguia falar, com as lágrimas a correrem mais depressa do que desejava. - Também queria ir... quero estar lá também... - John parecia prestes a protestar, mas depois fez um sinal afirmativo com a cabeça. Compreendia o filho, pois sabia o quanto Annie significava para todos eles; não a podiam perder. - Vai-te vestir. - E depois, voltando-se para o médico: - É só um minuto.

No quarto, Liz já estava a vestir-se. Tinha já colocado a roupa interior, uma cinta e umas meias. Depois deslizou para dentro de uma saia velha e um par de botas, vestiu uma camisola, passou um pente pelo cabelo, agarrou na mala e no casaco e correu para o quarto de Annie.

- Como é que ela está? - indagou sem fôlego ao entrar precipitadamente no quarto.

- Não houve alterações - informou o médico num tom de voz calmo. Estivera constantemente a verificar-lhe os sinais vitais. Tinha a pressão a baixar cada vez mais, o pulso enfraquecido e o coma era ainda mais profundo. Desejava vê-la imediatamente hospitalizada, mas também tinha perfeita consciência de que, mesmo num hospital, havia muito a fazer num caso de meningite.

Um momento depois, John apareceu vestido ao acaso e Tommy entrou logo em seguida, com o fato de hóquei. Tinha sido a primeira roupa que encontrara no armário.

- Vamos - anunciou John, pegando em Annie, enquanto Liz a embrulhava em dois pesados cobertores. A cabecinha pequena estava tão quente que parecia ligada

à electricidade. A testa estava seca e ressequida e os lábios tinham adquirido um tom azulado. Correram para o carro do médico e John entrou para o banco de trás com a filha ao colo. Liz sentou-se a seu lado e Tommy foi no banco da frente, ao lado do médico. Annie agitou-se um pouco no caminho, mas não voltou a emitir nenhum som até chegarem ao hospital, no mais completo silêncio. Liz esteve todo o tempo de olhos postos na filha, retirando-lhe alguns fios de cabelo louro do rosto. Beijou-lhe uma ou duas vezes a testa, mas o calor intenso que os seus lábios encontraram ao tocar a cabeça da filha horrorizou-a.

John levou-a até à sala de-urgências onde as enfermeiras já os esperavam, pois Walt tinha telefonado para o hospital antes de saírem de casa. Liz ficou sempre ao lado da filha, segurando-lhe a mão enquanto lhe faziam a punção à coluna. Tinham-lhe pedido para deixar a sala, mas recusara-se a abandonar a filha.

- Quero ficar com ela - declarara impetuosamente. As enfermeiras tinham trocado um olhar e o médico acedera.

No final da tarde, tinham já a certeza daquilo que Walt suspeitara: Annie contraíra meningite. Durante a tarde a febre subiu ainda mais e ultrapassou os quarenta graus, sem que nenhum dos esforços para a baixar fosse bem sucedido.

Annie permanecia estendida na cama do hospital, na enfermaria das crianças, com uma cortina corrida à sua volta e os pais e o irmão sempre a seu lado. De tempos a tempos, soltava um suave gemido, mas nunca acordou nem se mexeu. Quando o médico veio observá-la, tinha o pescoço completamente hirto. Sabia que, caso a febre não baixasse nem ela recobrasse a consciência, não havia muitas esperanças, mas não havia mais nada a fazer para a reanimar ou para combater a doença. Estava tudo nas mãos do destino. Annie surgira na vida daquela família como uma dádiva, há cinco anos e meio, e nada mais lhes trouxera senão amor e alegria; agora, não havia forma de impedirem que essa dádiva lhes fosse retirada, apenas podiam rezar, ter esperança e implorar-lhe que não os deixasse. Mas enquanto a mãe a beijava e acariciava a pequena mão quente, Annie nada ouvia. John e Tommy pegavam alternadamente na sua outra mão e depois saíam para o corredor, para andar úm pouco e chorar. Nenhum deles alguma vez se sentira tão desamparado, mas era Liz quem se recusava a abandonar a filha ou a desistir sem luta. Sentia que o simples facto de a deixar por um só momento podia implicar a perda daquela batalha. Não ia permitir que Annie deslizasse silenciosamente para a escuridão, ia ficar a seu lado, agarrada a ela, lutando pela sua vida.

- Nós amamos-te muito, querida... todos nós te amamos muito... o papá, o Tommy e eu... Tens de acordar... tens de abrir os olhos. Vamos, querida, força... Eu sei que vais conseguir, vais ficar boa. Isto é apenas um vírus palerma que tens de vencer, não é? Vamos, Annie... vamos, querida... por favor... - Liz falou com a filha durante horas e, até mesmo no final da tarde, recusou-se a sair do seu lado. Depois, finalmente, acabou por aceitar uma cadeira e sentou-se, segurando a mão de Annie. Havia alturas em que ficava em silêncio e outras em que falava com ela, e por vezes John tinha de sair, porque não aguentava ouvi-la sem chorar. À hora do jantar, as enfermeiras levaram Tommy para fora dali, pois estava completamente aturdido, vendo a mãe implorar à irmã que vivesse, a irmã a quem ele tanto amava e que continuava inerte. Apercebia-se da aflição do pai e do desespero da mãe, o que era uma carga demasiado pesada para ele. Limitou-se a ficar ao lado deles, soluçando, mas Liz não sentia forças suficientes para confortar também o filho, limitando-se a abraçá-lo durante algum tempo antes de as enfermeiras o levarem. Annie necessitava demasiado dela; Liz não podia abandoná-la para acompanhar Tommy; teria de conversar depois com o filho.

Tommy tinha saído há cerca de uma hora quando Annie soltou mais um suave gemido e depois bateu ligeiramente as pestanas. Durante um segundo, parecia que iria abrir os olhos, mas não o fez. Em vez disso, gemeu uma segunda vez, mas apertou ao mesmo tempo a mão da mãe e, em seguida, como se tivesse simplesmente passado todo o dia a dormir, abriu os olhos e pousou-os na mãe.

-Annie...? - murmurou Liz, totalmente perplexa pelo que via, fazendo um sinal a John para que se aproximasse mais. Ele tinha entrado na sala e estava perto da por ta. - Querida... eu e o papá estamos aqui, gostamos muito de ti. - Nessa altura, já o pai se tinha aproximado e estavam ambos em pé, ao lado da cama. Annie não podia voltar a cabeça para nenhum dos dois, mas era evidente que os distinguia com clareza. Parecia ensonada e voltou a fechar os olhos logo a seguir; depois, abriu-os de novo lentamente, sorrindo.

- Gosto muito de vocês - afirmou, em voz tão baixa que mal a podiam ouvir. - 0 Tommy...?

- Ele também está aqui. - Havia rios de lágrimas a correrem pelas faces de Liz, que beijou suavemente a testa da filha; John também chorava, sem sequer sentir já vergo nha de mostrar as lágrimas à filha. Amavam-na muito. Faria qualquer coisa para a ajudar a superar aquela fase. - Gosto muito do Tommy... - murmurou de novo muito suavemente. - E gosto muito de vocês... - Em seguida, esboçou um largo sorriso, um sorriso mais perfeito e mais neto ao que nunca. tara a rmagem aa cnança ideal, deitada na cama com o cabelo muito louro, os olhos grandes e azuis e as bochechas arredondadas, 'que os pais adoravam cobrir de beijos. Annie soma para a família, como se soubesse um segredo que eles ainda não sabiam. Tommy entrou nesse instante na sala e pôde também vê-la. Annie olhou para os pés da cama e dirigiu-lhe um grande sorriso. 0 irmão julgou que aquilo significava que ela estava de novo bem e começou de imediato a chorar de alívio, pensando que já não corriam o risco de a perder.

Foi então que, envolvendo-os a todos nas suas palavras, Annie murmurou simplesmente: - Obrigada... – Era apenas um murmúrio. Fechou então os olhos e, com um sorriso nos lábios, voltou a adormecer, exausta pelo esforço despendido.

Tommy abandonou de novo a sala, aliviado pelo que acabara de ver, mas Liz apercebeu-se de algo mais. Pressentia que havia algo de errado, que aquela cena não significava aquilo que parecia significar. E, ao observar a filha, sentia-a cada vez mais distante. A dádiva que Annie sempre fora estava de novo ausente, estava a ser retirada das mãos de todos eles. Tinham-na tido por tão pouco tempo, não mais do que alguns breves momentos. Liz permaneceu sentada ao lado da cama, com a mão pousada na da filha, de olhos sempre postos no seu rosto, enquanto John ia e vinha. Tommy tinha adormecido numa cadeira do corre-

dor. Era quase meia-noite quando Annie finalmente os deixou, sem nunca chegar a abrir de novo os olhos, nem nunca voltar a acordar. Tinha dito tudo quanto precisava de lhes dizer; tinha afirmado a cada um o quanto os tinha amado... tinha-lhes até agradecido. oObrigadon... por cinco maravilhosos anos, por cinco breves anos... o0brigado" por essa tão breve e abençoada vida que lhes fora concedida por tão pouco tempo. Liz e John estavam a seu lado quando faleceu, cada um segurando uma das suas mãos, não tanto com a intenção de a deter, mas mais para lhe agradecer tudo quanto lhes havia oferecido. Já tinham aceite que não podiam impedir que Annie os deixasse, apenas queriam estar presentes quando tal acontecesse.

- Gosto muito de ti... - murmurou Liz pela última vez, quando Annie dava o último e o mais leve dos suspiros. - Gosto muito de ti... - Era já apenas um eco. Annie deixara-os na maior suavidade, a dádiva tinha-lhes sido retirada. Annie Whittaker passara a ser um espírito. E o irmão continuava a dormir no corredor, relembrando-a, pensando nela, amando-a... tal como todos haviam feito... recordando a ocasião, há poucos dias atrás, quando os dois irmãos tinham fingido ser anjos na neve; e agora, ela tornara-se verdadeiramente um deles.

 

0 funeral foi um momento de extrema agonia, uma mistura de dor e ternura, o retrato fiel dos mais horríveis pesadelos de qualquer mãe. Faltavam dois dias para a véspera do Ano Novo e nenhum amigo faltou: compareceram crianças, pais, os professores do jardim-escola, os colaboradores e empregados de John e os colegas com quem Liz ensinara. Walter Stone também não faltou, e confessou-lhes à parte que se recriminava por não ter ido ver Annie na noite em que Liz telefonara; presumira ser apenas uma gripe ou constipação, mas não devia ter partido desse princípio. Admitiu também que, mesmo se o tivesse feito, não teria podido alterar o rumo dos acontecimentos. As estatísticas revelavam que, quase sem excepção, a meningite era fatal para as crianças de tenra idade. Liz e John pediram-lhe com bondade que não se culpasse, embora Liz também se recriminasse por não lhe ter pedido logo para vir observar a filha nessa noite; John, por sua vez, também se culpava por ter garantido a Liz não ser nada de grave, e ambos se odiavam por ter feito amor enquanto a filha, na cama, entrava em estado de coma. Tommy, apesar de não entender muito bem por que motivo se sentia assim, também se culpava pela morte da irmã; devia ter sido possível impedir aquele desfecho, mas nenhum deles o havia feito.

Annie tinha sido, como observara o padre nesse dia, uma dádiva que lhes fora concedida por breve tempo, um pequeno anjo que Deus lhes emprestara, uma amiga que viera uni-los e ensinar a amar. 0 que não podia ser mais verdadeiro. Cada um dos presentes recordava o sorriso travesso, os grandes olhos azuis e o pequeno e belo rosto que provocava em todos um sorriso e lhes enchia os corações de amor e ternura. Ninguém duvidava que ela lhes havia sido enviada como um presente de amor. Restava agora saber como iriam conseguir viver sem a sua presença. Era como se a morte de uma criança funcionasse como uma reprimenda por todos os nossos pecados, como se servisse para recordar a todos o que a qualquer momento se pode perder na vida. Equivale à perda de tudo: da esperança, da vida, do futuro; perde-se o aconchego familiar e tudo 0 que tanto se valoriza. Naquela gelada manhã de Dezembro, Liz, John e Tommy Whittaker eram as três pessoas mais solitárias do mundo. Enfrentaram o frio ao lado da campa de Annie, rodeados de amigos, mas incapazes de se afastarem daquele lugar, sem a poderem abandonar no pequeno caixão branco coberto de flores.

- Não sou capaz - murmurou Liz a John, com a voz sufocada, logo após o final da missa. 0 marido compreendeu imediatamente o que a mulher queria dizer e passou-lhe o braço pelos ombros, receando que Liz perdesse o controlo. Há vários dias que cornam o risco de o fazer e, nesse dia, o estado de Liz tinha-se agravado ainda mais. - Não sou capaz de a deixar aqui... não sou capaz... - Liz engasgava-se com os próprios soluços e, apesar da sua resistência, John puxou-a mais para ele.

-Ela já não está aqui, Liz, já está noutro lugar... está melhor, agora.

- Não, não está melhor! Ela é minha... quero-a de volta... quero a minha filha de volta... - afirmava, soluçando, enquanto os amigos se afastavam incomodados, sem saber como poderiam ajudá-la. Não havia nada a dizer nem a fazer, nada podia aliviar a dor, ou servir de consolação. Tommy permanecia ao lado dos pais, observando-os com o coração apertado pela perda da irmã.

- Estás bem, filho? - indagou o treinador de hóquei ao vê-lo passar, limpando as lágrimas que lhe caíam livremente pelo rosto. Tommy começou por afirmar que sim, mas depois abanou a cabeça e atirou-se para os braços do corpulento treinador, soluçando. - Eu entendo, entendo muito bem.., perdi a minha irmã quando tinha vinte e um anos e ela tinha quinze. É terrível... custa muito. Agarra-te às recordações... Ela era uma criança adorável - afirmou, chorando com Tommy. - Agarra-te a tudo o que viverarn os dois, filho. Ela vai voltar em todas as bênçãos da tua vida; os anjos dão-nos prendas... e às vezes nem reparamos. Mas eles estão presentes. A tua irmã está presente. Quando estiveres sozinho, conversa com ela... ela vai ouvir-te e tu vais ouvi-la... nunca a vais perder.

Tommy lançou um olhar desconfiado ao seu treinador, admitindo que este tivesse enlouquecido; depois fez sinal que compreendia. 0 pai tinha finalmente conseguido afas tar a mãe da campa, embora a uma curta distância. Liz mal podia andar quando chegaram perto do carro, e o pai estava muito pálido; este conseguiu, porém, conduzir para casa; nenhum dos três pronunciou uma só palavra durante o caminho.

À tarde, vários amigos e conhecidos vieram visitá-los e trouxeram comida. Houve quem apenas deixasse a comida ou as flores nos degraus de entrada, para não os enfrentar nem os incomodar. Mas, mesmo assim, havia uma constante multidão em redor deles; havia também muitos que se mantinham à distância, como se receassem que o mesmo lhes pudesse suceder, caso apenas os tocassem; como se a tragédia pudesse ser contagiosa.

Liz e John permaneceram na sala de estar, imóveis e exaustos, fazendo um esforço para receber os amigos, ansiosos por que fosse suficientemente tarde para poder tran car a porta de entrada e parar de atender o telefone. Durante todo esse tempo, Tommy deixou-se ficar fechado no quarto sem ver ninguém. Passou uma ou duas vezes pelo quarto de Annie, mas não conseguiu entrar e, por fim, fechou a porta para não o ver. Só conseguia lembrar-se da aparência de Annie na última manhã, já tão doente, tão inerte e tão pálida, a poucas horas de os deixar. Tinha dificuldade em recordar a irmã quando estava bem, quando ria e brincava com ele. Subitamente, apenas conseguia recordár o rosto de Annie na cama do hospital, os últimos minutos em que tinha murmurado oobrigadan... e depois morrera. Tommy sentia-se perseguido por essas palavras, pela imagem do seu rosto, pelos motivos que lhe tinham provocada a morte. Porque tinha Anííie morrido? Porque tinha aquilo acontecido? Porque não podia ter sido ele em vez de Annie? Mas não confessou a ninguém o qúe sentia, nem disse uma só palavra. Na verdade, durante o resto da semana, a família Whittaker não falou mais. Conversavam com os amigos, quando tinham que o fazer, mas, no caso de Tommy, nem isso.

A véspera de Ano Novo chegou como qualquer outro dia do ano, e o próprio dia de Ano Novo passou despercebido. Dois dias depois, as aulas recomeçaram, mas nin guém referiu o assunto a Tommy, apesar de todos saberem o que tinha acontecido. 0 treinador de hóquei era simpático com ele, mas não voltou a mencionar a sua irmã ou Annie. Ninguém conversou com Tommy sobre a morte da irmã e ele não sabia como enfrentar o desgosto. De repente, até mesmo Emily, a rapariga por quem há meses se interessava, lhe parecia uma afronta, apenas porque discutira sobre ela com Annie. Tudo servia para lhe recordar o que acabara de perder e ele não conseguia suportar esse facto. Odiava aquela dor constante, como se tivesse um membro amputado, e também o facto de se aperceber que todos o encaravam com compaixão. Ou então deviam julgar que ele era estranho; não lhe diziam nada, deixavam-no ficar a sós, e ele a sós ficava. Tal como os seus pais. Passadas as visitas iniciais de todos os amigos, isolaram-se totalmente e até quase deixaram de se ver uns aos outros. Tommy nunca mais jantou com os pais, pois não conseguia sentar-se à mesa da cozinha sem Annie; mal podia regressar a casa depois das aulas e não ir tomar chocolate quente e biscoitos com a irmã. Era muito difícil estar em casa sem ela; por isso, ficava o mais tempo possível nos treinos e jantava sozinho o que a mãe lhe tinha deixado para comer. Na maior parte das vezes, comia de pé, peí~to do fogão e depois deitava fora metade do prato. Nas outras vezes, levava para o quarto uma mão-cheia de biscoitos e um copo de leite e ignorava o jantar. A mãe deixara de comer, e o pai regressava a casa cada vez mais tarde, sem nunca ter apetite. Os jantares em família pertenciam agora ao passado, pois receavam e evitavam o tempo que podiam passar juntos. Era como se soubessem que, estando os três juntos, a ausência do quarto membro da família seria demasiado dolorosa. Assim, escondiam-se, separadamente, de si próprios e dos demais.

Tudo lhes recordava Annie, tudo parecia acordar a dor, que, como um nervo inflamado, só era aplacada por breves segundos; durante o resto do tempo, o sofrimento que causava era insuportável.

0 treinador de Tommy apercebia-se do que se passava com ele, e na Primavera, antes das férias, um dos seus professores chegou a mencioná-lo. Pela primeira vez em toda a sua vida escolar, as notas de Tommy tinham descido muito, sem que ele se importasse com o que quer que fosse. Sem a presença de Annie, nada mais contava.

- 0 miúdo dos Whittaker não está bem - comentou um dia na cantina uma das suas professoras para a professora de Matemática. - Estive quase a ligar para a mãe dele na semana passada, mas depois encontrei-a na rua e vi que está ainda pior que o filho. Ficaram todos muito abalados com a morte da menina no Inverno passado.

- E quem não ficaria? - comentou a professora de Matemática, solidariamente. Era mãe, e não conseguia imaginar como reagiria a uma desgraça daquelas. - A si tuação do Tommy é muito grave? Já chumbou nalguma cadeira?

- Ainda não, mas já faltou mais - respondeu a professora, honestamente. - Costumava ser um dos meus melhores alunos. Sei como os pais dão importância à edu cação do filho. 0 pai até chegou a pensar em mandar o miúdo para um outro colégio melhor, caso ele concordasse e tivesse notas para isso. Agora já não tem.

- Pode ser que melhore. Afinal, só passaram três meses. Vamos dar uma outra oportunidade ao rapaz. Penso que não devemos interferir, nem com ele nem com os pais. É melhor ver como evolui a situação até ao fim do ano escolar. Se as notas do Tommy piorarem, ou se chumbar num exame, então podemos avisar os pais.

-É terrível não poder fazer nada e vê-lo sismpre a piorar.

- Se calhar, não está nas mãos dele. Talvez nesta fase tenha ainda de lutar apenas para sobreviver ao que aconteceu e talvez seja isso o mais importante. Por muito que me custe admitir, por vezes há coisas mais importantes do que os Estudos Sociais e a Trigonometria. Vamos deixar o miúdo melhorar e recuperar o equilíbrio.

-Mas já passaram três meses - relembrou a outra professora.

De facto, corria já o final de Março. A essa data, Eisenhower estava já há dois meses na Casa Branca, a vacina para a poliomielite tinha sido testada com sucesso e Lucille Ball tinha tido o seu muito publicitado filho. 0 mundo movia-se rapidamente, mas não para Tommy Whittaker, cuja vida parara com a morte de Annie.

- Sabes, acho que levaria uma vida inteira para superar um desgosto desses, se fosse o meu filho - desabafou a mais humana das duas professoras.

-Bem sei. - Ficaram as duas em silêncio, pensando nas suas famílias, e no final do almoço concordaram em não fazer nada por mais algum tempo. Mas todos repara vam no que estava a passar-se com Tommy. Parecia já não se interessar por nada. Tinha mesmo decidido não voltar a jogar basebol ou basquetebol nessa Primavera, embora o treinador tentasse convencê-lo do contrário. Em casa, tinha o quarto sempre desarrumado, todos os trabalhos por fazer e, pela primeira vez na vida, estava sempre em desacordo com os pais.

Contudo, estes também estavam em desacordo entre si. A mãe e o pai passavam quase todo o tempo a discutir, e um deles estava sempre a queixar-se publicamente do outro. Ou porque não tinha posto gasolina no carro, ou porque não levara o lixo para a rua, porque não tinha passeado o cão, pago as contas, enviado os cheques, comprado café, respondido a uma carta. Eram sempre motivos insignificantes, mas existia sempre mais algum para os levar a discutir. 0 pai nunca estava em casa, a mãe deixara de sorrir e ninguém tinha uma palavra amável a dizer. Já nem pareciam tristes, mas apenas zangados. Estavam sempre irritados, um com o outro, com o resto das pessoas, com a vida e com o destino que tão cruelmente lhes levara Annie. Mas nunca admitiam isso; limitavam-se a gritar e a discutir por tudo e por nada, nem que fosse pelo custo elevado da factura de electricidade.

Para Tommy, era mais iacil ficar longe dos pais. Passava a maioria do tempo no jardim, sentado debaixo dos degraus da porta de trás a pensar. Tinha começado a fumar, entretanto, e até já levara para beber uma ou duas cervejas. Por vezes, limitava-se a ficar apenas sentado debaixo dos degraus, ao abrigo da interminável chuva que tinha caído durante todo o mês, a beber cerveja e a fumar Camels. Sentia-se assim muito adulto, e uma das vezes chegara a sorrir, imaginando que, se Annie pudesse vê-lo, teria ficado indignadíssima. Mas ela não podia vê-lo e os país já não se importavam com ele; por isso, não interessava o que fazia. E além disso, tinha dezasseis anos; era um adulto.

- Quero lá saber que tenhas dezasseis anos, Maribeth Robertson! - gretava-lhe o pai, numa noite de Março em Onawa, no Estado de Iowa; ficava a cerca de quatrocentos quilómetros do local onde Tommy continuava sentado, debaixo dos degraus de sua casa, a beber, observando a chuva e o vento a vergar as flores da mãe. - Não vais sair com esse vestido transparente é com essa maquilhagem toda. Vai já lavar a cara e tirar esse vestido!

- Paizinho, mas é o baile da Primavera! E todas as raparigas vão usar vestidos elegantes e maquilhagem! - Uma rapariga que tinha acompanhado o irmão mais velho dois anos antes, quando este era da sua idade, apresentara-se muito mais exuberante e o pai não se importara. Mas, sendo a namorada de Ryan, é claro que seria diferente. Ryan podia fazer tudo: era rapaz, mas Maribeth não. - Se queres ir a essa festa, vais ter de levar um vestido decente; se não, fica em casa e ouve rádio com a tua mãe. - A tentação de ficar era grande, mas o baile dos finalistas do seu ano de liceu nunca se repetiria. Sentia muita vontade de não ir, especialmente se tivesse de levar um vestido que a fizesse parecer uma freira, mas também não queria ficar em casa. Uma amiga da irmã mais velha tinha-lhe emprestado um vestido, que, apesar de lhe ficar um pouco grande de mais, ela achara lindo. Era de tafetá azul-pavão, e os sapatos, um número abaixo do seu, apertavam-lhe muito os pés; Maribeth, porém, pensava que valia a pena, pois eram forrados do mesmo tecido. 0 vestido não tinha mangas e fazia conjunto com um pequeno bolero para cobrir os ombros, mas deixava a descoberto a clivagem do peito com que Maribeth fora presenteada, e ela sabia ser esse o motivo por que o pai se opusera.

- Paizinho, prometo não tirar nunca o casaco.

- Com ou sem casaco, esse vestido só vais poder usar aqui em casa com a tua mãe. Se queres ir a esse baile, vai procurar uma outra roupa, se não, o melhor é esqueceres essa festa. E muito francamente, não me importava nada se o fizesses. As raparigas ficam umas ordinárias com esses vestidos curtos! Não precisas de exibir o corpo para atrair 0 olhar de um rapaz, Maribeth. É melhor aprenderes isso desde logo. Se não, amscas-te a trazer para casa o pior tipo de rapaz. Fixa as minhas palavras - ordenou com severidade, enquanto a irmã mais nova, Noelle, colocava os olhos em alvo. Tinha só treze anos, mas era já bem mais rebelde do que Maribeth alguma vez sonhara ser. Maribeth era uma boa rapariga, e Noelle também, mas esta exigia da vida uma agitação muito maior do que a irmã. Mesmo aos treze anos, os seus olhos brilhavam sempre que um rapaz lhe assobiava. Com dezasseis anos, Maribeth era muito mais tímida e também muito mais cautelosa a desafiar o pai.

No final, Maribeth acabou por ir para o seu quarto, atirar-se para cima da cama e ficar a chorar até a mãe aparecer e a ajudar a escolher uma outra roupa. Não tinha muito que vestir, mas tinha um vestido azul-escuro com colarinho branco e mangas compridas que Margaret Robertson sabia que o marido iria aprovar. Mas, só de ver o vestido, os olhos de Maribeth enchiam-se de lágrimas: era horrível.

- Mãe, vou parecer uma freira. Todos vão rir-se de mim! - A escolha da mãe não podia desgostá-la mais; sempre detestara aquele vestido.

- Nem todas as raparigas vão levar vestidos como esse, Maribeth - comentou a mãe, apontando para o vestido azul emprestado. Tinha de admitir que era um vestido bonito, mas no fundo também a assustava um pouco, porque fazia com que Maribeth parecesse uma mulher. Aos dezasseis anos, tinha sido abençoada, ou amaldiçoada, com seios roliços, ancas pequenas, uma cintura estreita e as pernas longas e bem torneadas. Mesmo com roupas simples, era dificil esconder a sua beleza. Era mais alta do que a maioria das amigas e tinha-se desenvolvido muito mais cedo.

Levou uma hora até que se convencesse em levar aquele vestido, enquanto o pai, na sala de estar, submetia o acompanhante de Maribeth a um interrogatório cerrado, sem qualquer subtileza nem piedade. Era um rapaz que Maribeth mal conhecia, mas Mr. Robertson queria saber que tipo de profissão queria ele seguir quando terminasse a escola; o rapaz, muito nervoso, admitiu que ainda não tinha decidido. A essa altura, já Bert Robertson o tinha tentado convencer que um pouco de trabalho duro fazia bem a qualquer rapaz e que também não lhe faria mal nenhum tentar seguir a carreira militar. David O'Connor, desesperado, concordava com tudo, com um olhar cada vez mais aflito; finalmente, Maribeth entrou relutantemente na sala, usando o tão odiado vestido e o colar de pérolas da mãe para alegrar um pouco o conjunto. Calçava sapatos de salto raso azul-escuros, em vez dos sapatos de salto alto em cetim azul-pavão que esperara poder levar, mas, de qualquer forma, ficava muito mais alta do que David; por isso, procurava convencer-se de que não fazia diferença. Tinha consciência de que não estava nada bonita, e sentia que a cor escura do vestido fazia um contraste mortiço com o vermelho flamejante do seu cabelo ruivo, o que a entristecia ainda mais. Ao cumprimentar David, nunca antes se sentira tão feia.

-Estás muito bonita - elogiou David, pouco convencido. Usava o fato escuro do irmão mais velho, o qual se notava bem ser vários números maior do que o seu ta manho. Ao tentar prender no vestido o pequeno raminho de flores que trouxera para oferecer a Maribeth, as mãos tremiam-lhe tanto que a mãe dela se ofereceu para o ajudar.

- Divirtam-se - disse depois em voz baixa ao vê-los sais, sentindo uma leve pena da filha. De certa forma, pensava que Maribeth devia ter podido levar o vistoso vestido azul. Ficava-lhe tão bem, fazia-a parecer tão crescida! Mas não valia a pena discutir com Bert quando este tomava uma decisão, e bem sabia como o marido se preocupava com a filha. Alguns anos antes, duas irmãs de Bert tinham sido obrigadas a casar, e ele sempre lhe dissera que, custasse o que custasse, isso nunca aconteceria com as filhas. Iam ser boas raparigas e iam casar com bons rapazes. Em sua casa, não se daria abrigo a mulheres levianas, não se acobertaria o sexo ilícito nem as ligações promíscuas, e Bert sempre fizera questão de o afirmar alto e bom som. Apenas Ryan tinha liberdade de fazer o que queria. Afinal, era rapaz; tinha dezoito anos e trabalhava com o pai no seu negócio. Bert Robertson era dono da mais bem sucedida oficina de reparações de automóveis em Onawa e, por três dólares à hora, geria um negócio próspero, do qual tinha o maior orgulho.

Ryan gostava de trabalhar para o pai e dizia que era tão bom mecânico quanto ele. Pai e filho davam-se bem e, por vezes, aos fins-de-semana, iam os dois caçar ou pescar, enquanto Margaret ficava em casa com as raparigas; costumavam ir juntas ao cinema ou então Margaret aproveitava para pôr em dia os trabalhos de costura. Nunca trabalhara fora de casa, e Bert orgulhava-se igualmente disso. Não era, de forma alguma, um homem rico, mas podia manter a cabeça erguida em qualquer local da cidade; e não ia ser agora uma filha sua a modificar isso, levando um vestido emprestado a uma festa e pavoneando-se como uma mulher ordinária a oferecer-se. Maribeth era bonita, mas esse era apenas mais um motivo para a manter discreta e assegurar-se de que não perderia a cabeça como as irmãs dele o haviam feito.

Bert casara com uma rapariga simples. Margaret O'Brien tinha pensado em tornar-se freira antes de o conhecer e, já há quase vinte anos, sempre fora uma boa es posa para Bert. Todavia, este nunca se teria casado com ela, caso Margaret tivesse a aparência vistosa que Maribeth tinha procurado ter, ou caso tentasse discordar ou discutir com ele como Noelle costumava fazer. Já há muitos anos chegara à conclusão de que um filho era muito mais fácil de criar do que uma filha, apesar de Maribeth nunca lhe ter causado qualquer tipo de problema. Contudo, defendia umas teorias estranhas acerca das mulheres e daquilo que estas podiam ou não fazer, acerca de frequentar a escola e até mesmo a universidade. Os professores de Maribeth tinham-na convencido de que era muito inteligente e, quanto a Bert, não havia nada de errado acerca de uma rapariga ser instruída, desde que até certo ponto e desde que soubesse quando parar e como utilizar toda essa instrução. Bert costumava dizer muitas vezes que não era preciso frequentar nenhuma faculdade para saber mudar uma fralda. Mas claro que alguma instrução ser-lhe-ia útil no caso da filha, para que esta pudesse depois ajudá-lo no seu negócio; não se importaria se Maribeth estudasse contabilidade e se encarregasse mais tarde da sua escrita, mas as ideias dela eram completamente loucas. Mulheres médicas, engenheiras, advogadas e até mesmo enfermeiras era demasiado para Bert aceitar. Que conversa seria aquela?, interrogava-se. As raparigas deviam comportar-se de forma a não desgraçar as suas vidas ou as de mais alguém... E depois deviam casar-se e ter filhos, tantos quantos os maridos pudessem sustentar ou desejassem; depois de casadas, deviam tomar conta do marido, dos filhos e da casa, sem dar trabalhos a ninguém. Fora isso que ensinara a Ryan, aconselhando-o a não casar com uma rapariga rebelde e a não engravidar nenhuma com quem não fizesse tenções de casar. Mas as raparigas eram completamente diferentes; tinham de manter o bom comportamento... e não aparecer num baile meio despidas, nem enlouquecer a família com novas ideias acerca de liberdade feminina. Por vezes pensava se seriam os filmes a que assistiam com Margaret que lhes tinham incutido aquelas ideias, pois, certamente, não fora Margaret. Era uma mulher sossegada, que nunca lhe dera qualquer tipo de preocupação. Mas Maribeth não era como a mãe. Não deixava de ser uma boa rapariga, mas Bert sempre pensara que as ideias modernas que defendia acabariam por lhe trazer problemas.

Maribeth e David chegaram ao baile mais de uma hora atrasados e todos pareciam estar a divertir-se bastante sem eles. Embora não estivesse previsto que se bebesse no baile, alguns dos rapazes da turma de Maribeth já estavam bêbedos, assim como algumas das raparigas. E, ao entrar, ela reparara também em vários casais dentro dos automóveis estacionados, mas tentara fingir que não tinha notado, pois sentia vergonha de os ver diante de David. Mal o conhecia, e quase não eram amigos, mas mais ninguém a tinha convidado para a festa e ela tinha querido ir, só para ver como era, para estar presente e saber do que se tratava. Estava cansadá de ficar de fora de todos os acontecimentos, de nunca se integrar. Sempre fora diferente dos outros. Durante anos, tinha sido a melhor aluna da turma, e alguns dos colegas detestavam-na por isso, enquanto os restantes simplesmente a ignoravam.

Todas as vezes que visitavam o liceu, os pais envergonhavam-na. A mãe era demasiado tímida e o pai falava muito alto e dava ordens a todos, principalmente à mu lher, que nunca lhe fizera frente. Ficava intimidada e concordava com tudo quanto o marido dizia, mesmo quando este não tinha razão. Bert nunca se coibia de dar as suas opiniões, as quais tinha acerca de tudo, especialmente sobre as mulheres: qual o seu papel na vida, a importância dos homens sobre elas e a irrelevância da instrução. Citava-se sempre como exemplo. Viera como órfão de Buffalo e obtivera sucesso, apesar de ter frequentado o liceu apenas até ao segundo ano. Segundo ele, ninguém precisava de mais do que isso, e o facto de Ryan ter terminado o liceu fora um autêntico milagre. Sempre fora um péssimo aluno e recebera constantes suspensões por mau comportamento, mas, enquanto se tratava de Ryan e não das irmãs, o pai conseguia até julgar engraçadas as atitudes do filho. Ryan teria provavelmente ingressado na marinha e ido para a Coreia, se não fosse o pé chato e não tivesse sofrido uma lesão no joelho, provocada por uma queda durante um jogo de futebol. Maribeth e o irmão não tinham muito a dizer um ao outro. Sempre Ihe custara compreender como pertenciam ambos à mesma família e até como tinham nascido no mesmo planeta.

Ryan tinha boa aparência, era arrogante e não muito inteligente. Não era ~cil verificar que eram parentes. -Afinal, interessas-te por quê? - interrogara um dia Maribeth o irmão, esforçando-se por compreender quem ele era e até talvez de que forma se relacionava com ele. Ryan fitara-a, estupefacto, sem entender por que razão a irmã lhe fizera semelhante pergunta.

- Por carros, por miúdas... gosto de cerveja... e de passar um bom bocado. 0 pai fala de mais em trabalho; não me importo de trabalhar, desde que possa ser sempre em carros, e não num banco ou numa companhia de seguros! Tenho muita sorte em poder trabalhar com o pai. - Sem dúvida - respondeu Maribeth tranquilamente, fazendo um gesto afirmativo com a cabeça e continuando a fitá-lo com os grandes e interrogadores olhos verdes, num esforço por respeitá-lo. - Nunca tens vontade de atingir mais?

- 0 quê, por exemplo? - Ryan mostrava-se confuso. - Seja o que for. Qualquer coisa mais do que trabalhar para sempre com o pai. Como viajar para Chicago, ou para Nova Iorque, conseguir um emprego melhor... ou entrar para a universidade... - Esses eram os seus sonhos. Desejava muito mais, tanto que acabava por não ter ninguém com quem partilhar os desejos. Até mesmo as colegas de turma eram diferentes dela e ninguém entendia por que motivo dava tanta importância às notas e aos estudos. Que diferença fazia? Quem se importava com isso? Apenas Maribeth. E, como resultado, não tinha amigos, e fora obrigada a ir ao baile acompanhada por um rapaz como David.

No entanto, mantinha os seus sonhos, os quais ninguém poderia nunca destruir, nem mesmo o pai. Maribeth queria construir uma carreira e desejava conhecer um local mais interessante onde viver, conseguir um emprego estimulante e continuar a estudar, até onde tivesse meios para isso; eventualmente, desejava também um marido que amasse e respeitasse. Não conseguia imaginar uma vida ao lado de alguém por quem não sentisse admiração; não podia conceber para si uma vida igual à da mãe, casada com um homem que não lhe dava a mínima atenção, que nunca ouvia as suas opiniões e que não se importava com o que ela pensava. Maribeth desejava muito mais do que isso. Tinha tantos sonhos e tantas ideias que todos a julgavam doida, excepto os seus professores, que sabiam como ela era excepcional e desejavam poder ajudá-la a libertar-se das correntes que a aprisionavam. Apercebiam-se de como era importante para Maribeth alcançar, um dia mais tarde, uma educação completa. Mas, as únicas ocasiões em que deixava escapar o que lhe ia no coração, fazia-o quando escrevia redacções para alguma disciplina. No fim era sempre elogiada, mas o valor que lhe atribuíam só era reconhecido por esse breve instante, e nunca chegara a falar com ninguém sobre esse assunto.

- Queres uma bebida? - perguntou-lhe David.

- Hã...? - Tinha o pensamento distante. - Desculpa... estava a pensar noutra coisa... Lamento que o meu pai te tenha feito tantas perguntas. Tivemos uma discussão so bre o meu vestido e fui obrigada a mudar de roupa. - Ao confessá-lo, sentiu-se mais envergonhada do que nunca. - Esse vestido é muito bonito - respondeu ele, nervoso. Era óbvio que estava a mentir, já que o vestido era tudo menos bonito, como Maribeth tão bem sabia. De facto, o vestido azul-escuro era tão simples e apagado que fora precisa muita coragem para o trazer. Mas já estava habituada a ser diferente e a ser ridicularizada, ou, pelo menos, devia estar, pois nunca se integrara, nem nunca tinha sido aceite. Era por esse motivo que David O'Connor se tinha decidido a convidá-la para o baile, porque calculava que mais ninguém o faria. Maribeth era muito bonita, mas era esquisita, todos sabiam disso. Era demasiado alta, tinha o cabelo ruivo e brilhante e um corpo espectacular, mas só se importava com a escola, nunca saía com rapazes e nunca ninguém a convidava. Assim, David presumira que ela aceitaria o seu convite, como de facto acontecera. Não fazia parte de nenhuma equipa desportiva, era baixo e tinha muitos complexos devido à sua aparência. Quem mais poderia ter convidado, a não ser Maribeth Robertson? Fora a única escolha possível, exceptuando algumas raparigas muito feias com quem não quereria sair nem que lhe pagassem. E, na verdade, até gostava de Maribeth. Apenas não simpatizava muito com o pai dela, que o fizera realmente suar enquanto esperava por ela. Já começava a admitir que ficaria ali toda a noite, quando Maribeth apareceu finalmente na sala, usando aquele vestido azul-escuro com o colarinho branco. Não estava mal de todo. Apesar de tudo, ainda se podiam detectar as suas lindas formas, debaixo do vestido feio. E que importância tinha, a6na1, a roupa? Estava excitado por ir dançar com Maribeth, por sentir o corpo dela tão perto do seu, e essa simples ideia era o suficiente para lhe causar uma erecção.

- Não queres uma bebida? - perguntou novamente; ela afirmou que sim, o que não era verdade, mas não sabia o que mais poderia dizer-Ihe. Estava já arrependida de ter vindo. David era muito pouco interessante, mas mais ninguém iria convidá-la para dançar e, além disso, sentia-se ridícula com o vestido azul-escuro. Devia ter ficado em casa a ouvir rádio na companhia da mãe, tal como o pai sugerira. - Já volto - prometeu David, afastando-se, enquanto Maribeth observava os outros casais a dançar. Achou a maioria das raparigas muito bonitas, os seus vestidos tinham cores alegres, saias volumosas e pequenos boleros, tal como aquele que chegara a vestir em casa, mas que não tinha podido trazer.

David demorou muito tempo a voltar e, quando finalmente apareceu, trazia um estranho sorriso nos lábios. Era como se conhecesse um excitante segredo, e, mal Mari beth provou o ponche, percebeu o motivo por que ele estava tão alegre. A bebida tinha um sabor esquisito, o que a fez concluir que Ihe deviam ter misturado álcool.

- 0 que é que misturaram aqui? - perguntou, cheirando o copo e provando a bebida para confirmar as suas suspeitas. Só provara bebidas alcoólicas uma ou duas vezes antes, mas tinha quase a certeza que o ponche estava alterado.

- Só um pouco de sumo ele, sorrindo.

De repente, pareceu-lhe aindá mais baixo e muito mais feio do que quando a tinha convidado para o acompanhar. Era um autêntico idiota, e a forma como a olhava causava-lhe náuseas.

- Não quero ficar alterada - afirmou casualmente, arrependida de ter vindo, especialmente com David. Como sempre, sentia-se como um peixe fora de água.

da alegria... – respondeu.

- Vamos, Maribeth, não sejas desmancha-prazeres. Se beberes pouco, não vais ficar bêbeda, vais sentir-te muito bem.

Olhando-o mais atentamente, Maribeth apercebeu-se de que David estivera a beber quando se ausentara para ir buscar as bebidas.

- Quantos copos já bebeste?

- Os juniores têm algumas garrafas de rum nas traseiras do ginásio, e o Cunningham trouxe vodca.

- Optimo! Grande ideia!

-Foi boa, não foi? - David continuava a sorrir alegremente, contente por ela não ter discordado e não se apercebendo do seu tom irónico. Maribeth fitava-o, enojada, mas ele nem parecia notar.

-Venho já - afirmou ela friamente, como se fosse vários anos mais velha do que o rapaz. Na maioria das vezes, a sua altura e o seu comportamento faziam-na parecer mais velha do que era, mas, ao lado dele, assemelhava-se a um gigante. Media cerca de um metro e setenta e seis, e David tinha menos dez ou doze centímetros do que ela.

- Onde vais? - indagou, preocupado; ainda não tinham dançado.

-À casa de banho - esclareceu, friamente.

-Já ouvi dizer que as raparigas também abriram uma garrafa na casa de banho.

- Depois trago-te um copo - prometeu, desaparecendo por entre a multidão. A banda tocava uma melodia calma, e os casais dançavam agarrados, mas Maribeth sentia apenas tristeza ao atravessar o ginásio onde decorria o baile, observando um grupo de rapazes que tentava em vão esconder uma garrafa. 0 que não podiam disfarçar eram os efeitos da mesma, pois, a mais alguns metros, alguns deles vomitavam contra a parede. Maribeth, porém, já estava habituada a assistir a cenas daquelas, por causa do irmão. Caminhou para o mais longe possível dali e sentou-se depois num banco no outro lado do ginásio, apenas para recobrar o ânimo e deixar passar algum tempo antes de regressar para junto de David. Tinha a certeza que ele ia acabar por ficar bêbedo e ela não se estava a divertir nada; talvez devesse ir andando para casa e esquecer o bile. Depois de mais algumas bebidas, David nem iria notar a sua ausência.

Deixou-se ficar sentada no banco durante bastante tempo. A aragem nocturna começou a causar-lhe arrepios, mas não se importou. Era agradável estar ali, longe de to dos, de David, dos colegas de turma, dos outros que não conhecia e daqueles que se entretinham a beber e a vomitar. Também era agradável estar longe dos pais e, por momentos, chegou a desejar poder ficar ah sentada para sempre. Encostou a cabeça ao banca, fechou os olhos e esticou as pernas, como se flutuasse no ar da noite, enquanto meditava.

- Serão os efeitos de alguns copos a maís? - indagou uma voz cativante perto dela, fazendo-a pular de espanto. Abriu os olhos e viu um rosto que lhe era familiar: era um finalista e uma estrela de futebol que não tinha a mais leve ideia de quem ela seria. Maribeth não podia imaginar o que estaria ele a fazer a seu lado ou porque perderia tempo a conversar com ela. Talvez estivesse a confundi-la com alguma outra pessoa. Endireitou-se no banco e abanou a cabeça, esperando que ele se levantasse e a deixasse de novo sozinha.

- Não, apenas pessoas a mais; aliás, tudo de mais. - Sim, tens razão - afirmou o rapaz, sentando-se no banco ao lado dela, sem ser convidado. Era impossível não reparar em como era atraente, mesmo na fraca luz do luar. - Detesto multidões.

-Não é muito iacil acreditar nisso - observou, divertida, sentindo-se inesperadamente muito à vontade na sua companhia, apesar de se tratar de um herói desportivo do liceu. Mas ali no escuro, sentada num banco perto do ginásio, nada parecia real. - Estás sempre rodeado de gente.

-E tu? Como sabes quem sou? - indagou, intrigado; ele era na verdade, muito bonito. - Como te chamas?

- Cinderela. A minha carruagem acabou de se transformar numa abóbora e o meu acompanhante num bêbedo. Vim aqui para fora para procurar o meu sapato de cristal. Por acaso não o viste?

- Talvez. Mas primeiro vais ter de o descrever. Se não, como posso ter a certeza de que és realmente a Cinderela? - Ele achara graça e começou a tentar perceber por que motivo nunca tinha antes reparado nela. 0 vestido que usava era feio, mas tinha um rosto e uma silhueta bonitos e muito sentido de humor. - És finalista? - Parecia subitamente interessado nela, embora fosse do conhecimento geral que namorava com Debbie Flowers desde que frequentavam o segundo ano do liceu. Até corria o boato que iriam casar assim que terminassem o liceu.

- Não, estou no segundo ano - respondeu, com um sorriso forçado, surpreendentemente honesta, mesmo quando confrontada com o Príncipe Encantado.

-Talvez seja por isso que não me lembro de ti - confessou ele, com franqueza. - Mas pareces mais velha. - Talvez te deva agradecer então. - Maribeth sorriu, pensando que devia regressar para junto de David, ou então voltar para casa. Não devia continuar ali sentada sozinha com um rapaz mais velho, mas sentia-se segura na sua companhia.

- Chamo-me Paul Browne. E tu, Cinderela, como te chamas?

- Maribeth Robertson. - Sorriu de novo e levantou-se.

- Onde vais? - Ele era alto, tinha o cabelo escuro, um sorriso encantador e parecia ter ficado desapontado. - Vou para casa.

- Sozinha? - Ela confirmou. - Não queres uma boleia?

- Não é preciso, obrigada. - Mal podia acreditar que estava a recusar uma boleia de Paul Browne, um finalista tão popular. Quem iria acreditar nela? Pensando nessa enorme conquista, Maribeth sorriu.

- Pelo menos, deixa-me acompanhar-te até ao ginásio. Não vais avisar o teu par de que te vais embora? -Devia avisar, sim. - Caminharam juntos até à entrada principal do ginásio como se fossem velhos amigos, mas, mal se aproximaram da entrada, Maribeth avistou David, trémulo e completamente embriagado a partilhar uma garrafa com um grupo de amigos. Embora existissem supervisores no baile, os estudantes pareciam estar a fazer o que queriam. - Não é preciso avisá-lo de nada - declarou Maribeth discretamente, parando antes de chegarem à entrada e olhando para cima com um sorriso nos lábios. Paul era muito mais alto do que ela. - Obrigada pela companhia. Vou andando para casa. - A noite tinha sido um total fracasso. Exceptuando os últimos minutos em que conversara com Paul Browne, não se divertira nada.

- Não posso deixar-te ir para casa sozinha. Vamos, deixa-me dar-te uma boleia. Ou tens medo que o meu Chevy se transforme também em abóbora?

- Não creio. Não és o Príncipe Encantado? - brincou, sentindo-se logo em seguida envergonhada. Paul era, de facto, um apríncipe encantado", mas Maribeth lamentou tê-lo confessado.

- Serei...? - frisou ele, ajudando-a a entrar no carro, terrivelmente atraente e soústicado. O automóvel de Paul era um impecável Bel Air de 1951, com os novos adereços cromados e o interior em pele vermelha.

- Gosto da tua abóbora, Paul - gracejou ela, fazendo-o rir. Quando Maribeth lhe disse onde morava, Paul sugeriu que fossem antes comer um hambúrguer e beber um batido.

- Não deves ter-te divertido nada, e o teu

acompa nhante pareceu-me um idiota... Desculpa, talvez não devesse ter dito isto... mas o que é certo é que, esta noite, não pensou muito em ti. Aposto que nem sequer dançaste. Para aproveitares melhor a noite, devias divertir-te um pouco antes de ires para casa. 0 que dizes? Ainda é cedo. - De facto era, e Maribeth não precisava de chegar antes da meia-noite.

-Está bem - acedeu timidamente, desejando estar com Paul e mais impressionada com ele do que gostaria de admitir. - Foste sozinho ao baile? - perguntou então, imaginando o que teria acontecido a Debbie.

- Fui, sim. Agora estou de novo por minha conta. - Paul suspeitou, pela forma como Maribeth o interrogara, de que esta sabia da existência de Debbie; não era de estra nhar, pois a escola inteira sabia. Mas não explicou que o namoro tinha terminado dois dias antes porque Debbie descobrira que ele tinha saído com outra rapariga durante as férias de Natal. - Parece que esta noite tenho a sorte do meu lado, Maribeth... - Paul sorriu com todo o seu encanto e foi-lhe perguntando mais sobre a sua vida enquanto se dirigiam para o Willie's, a cafetaria onde, a qualquer hora do dia e da noite, os adolescentes mais populares do liceu se reuniam. Quando entraram, a música da jukebox soava muito alto, e o ambiente não podia ser mais animado. Parecia haver ainda mais adolescentes do que no baile, o que fez Maribeth sentir-se de novo envergonhada pelo feio vestido que trazia, principalmente com Paul a seu lado. Sentiu-se também terrivelmente consciente dos seus dezasseis anos, uma vez que Paul tinha quase dezoito. Contudo, ao apresentá-la a todos os seus amigos, ele parecia aperceber-se da sua timidez. Alguns deles interrogavam-no, desconfiados, querendo saber quem era, mas ninguém desaprovou o facto de ele a ter trazido. Foram até surpreendentemente simpáticos com Maribeth, a convidada de Paul, e esta divertiu-se, riu e conversou com os amigos dele. Partilharam um hambúrguer com queijo e um batido e dançaram juntos algumas músicas, incluindo algumas baladas mais calmas. Paul apertava-a de forma arrebatada nos seus braços, e ela sentia os seios pressionados contra o peito dele. Sentiu também, instantaneamente, o efeito que esse contacto teve sobre Paul, o que a deixou acanhada; mas Paul não a deixou afastar, apertando-a ainda mais e sorrindo-lhe carinhosamente.

- Por onde é que tens andado nos últimos quatro anos? - indagou, com a voz enrouquecida; Maribeth sorriu.

- Será que não andaste demasiado ocupado para reparar onde eu estava? - respondeu com sinceridade, o que agradava bastante a Paul.

- Tens razão, fui um idiota. Esta deve ser a minha noite de sorte... - Puxou-a mais para si e deixou que os lábios tocassem ao de leve o cabelo dela. Havia algo em Maribeth que o excitava. Não era apenas o seu corpo, nem os incríveis seios que sentira enquanto dançavam; era a forma como ela o olhava, a forma como lhe respondia. Havia nela uma inteligência, uma ousadia e uma coragem que faziam crer que não tinha medo de nada. Paul sabia que Maribeth era apenas uma miúda e, dada a sua idade, era natural que tivesse ûcado intimidada com ele, mas tal não acontecera. Maribeth não tinha receio dele nem de dizer aquilo que pensava, e Paul gostava dessa sua franqueza. Terminar o namoro com Debbie afectara a sua auto o bálsamo de que necessitava para a estima e Maribeth era reanimar.

Entraram de novo no carro de Paul, e este voltou-se de imediato para olhar para ela. Não queria levá-la para casa; gostava da sua companhia, gostava de tudo nela. Para Maribeth, o simples facto de estar com Paul era uma experiência inesquecível.

- Não gostavas de ir dar um passeio? São só onze horas. - Tinham deixado o baile tão cedo que lhes sobrara imenso tempo para conversar e dançar no Willie's.

- Devia voltar para casa - respondeu Maribeth ajuizadamente. Paul ligou a ignição, mas, em vez de se dirigir para a morada dela, seguiu na direcção do parque. Ela não ficou preocupada, apesar de não querer chegar tarde a casa, pois sentia-se segura ao lado dele. Até então, Paul tinha sido um autêntico cavalheiro, muito mais atencioso do que David.

- Só mais uma volta e depois prometo levar-te a casa. Não quereria que esta noite acabasse já, foi tão especial para mim... - confessou ele com sinceridade, fazendo a cabeça dela andar à roda com tamanha excitação. Era mesmo o Paul Browne ali a seu lado? E se tudo aquilo fosse mesmo verdade? E se ele começasse a namorá-la, a ela, em vez de Debbie Flowers? Maribeth não conseguia ainda acreditar. - Foi uma noite óptima, Maribeth.

- Para mim, também. Muito melhor do que o pouco tempo que passei no baile - anuiu, rindo. A conversa continuou a fluir animadamente, até Paul parar o carro perto do lago, numa zona afastada, e se voltar para Maribeth.

- És muito especial - afirmou. Maribeth não teve dúvidas de que Paul estava a ser sincero. Ele abriu então 0 porta-luvas, retirou uma garrafa de gim e ofereceu-lhe um pouco. - Não queres?

- Não, obrigada, não bebo.

- Porquê? - Paul pareceu &car espantado.

- Não gosto muito. - Ele continuou a achar um pouco estranho, mas ofereceu-lhe de novo a bebida. Maribeth recusou, mas Paul insistiu e ela acabou por provar, para não o desapontar. Sentiu o líquido transparente queimar-lhe a garganta e os olhos enquanto escorregava, deixando depois uma sensação quente na boca e nas faces. Foi então que Paul a puxou para si e a beijou.

- E agora? Já gostas mais? - perguntou provocadoramente depois de a ter beijado. Maribeth sorriu e fez sinal que sim, sentindo-se um pouco pecadora, mas muito en tusiasmada. Paul era incrivelmente cativante e muitíssimo atraente. - Eu também - afirmou ele, beijando-a de novo, mas, desta vez, desabotoando-lhe em seguida o vestido. Ela tentou manter os botões fechados, mas os dedos dele eram mais hábeis e experientes do que os seus e, em poucos segundos, já lhe percorriam os seios enquanto ele a beijava apaixonadamente, sem que Maribeth fizese a mais pequena ideia de como o deter.

- Paul, não... por favor... - pedia em voz baixa, tentando parecer decidida, mas sem o conseguir. Sabia o que devia fazer, mas era muito dificil não o desejar. Paul,incli nou-se entretanto e beijou-lhe o peito e, de repente, o soutien dela caiu, bem como a parte de cima do vestido. Os lábios dele percorriam-lhe os seios e depois a boca, enquanto os dedos lhe desenhavam os mamilos. Sem se poder controlar, Maribeth soltou um gemido e Paul fez a sua mão deslizar por baixo da saia dela, encontrando-a rápida e facilmente, apesar de ela tentar manter as pernas unidas. No entanto, tinha de fazer um enorme esforço para se lembrar que não queria que Paul continuasse. Preferia ter-se sentido assustada, mas nada do que ele estava a fazer a tinha ainda amedrontado. Pelo contrário, tudo quanto fizera parecia-lhe excitante e delicioso, mas Maribeth sabia que tinha de parar; por fim, afastou-se, trémula e ofegante. Lançou-lhe um olhar pesaroso, abanou a cabeça e Paul compreendeu.

-Não posso continuar. Desculpa, Paul. - Maribeth estava ainda dominada por tudo quanto ele a fizera sentir e tinha a cabeça a andar à roda.

- Eu entendo - respondeu com suavidade. - Entendo... Não devia ter... Desculpa... - Mas, ao pronunciar aquelas palavras, Paul beijou-a novamente, o que fez desencadear tudo de novo, só que, dessa vez, era ainda mais dificil parar. Estavam ambos completamente desalinhados; ao afastar-se um pouco dele, Maribeth reparou, chocada, que Paul tinha a braguilha das calças aberta. Então, ele conduziu a mão dela para onde queria, e, embora Maribeth procurasse resistir, estava demasiado fascinada com o que ele lhe fazia. Era sobre aquilo que sempre fora avisada, e era o que lhe tinham ordenado nunca fazer, mas era também tão avassalador que não podia controlar-se a si mesma, nem a Paul. Este, entretanto, aproximou o corpo das mãos dela e pressionou-as contra o fecho das calças, e Maribeth deu consigo a senti-lo e a acariciá-lo, enquanto ele continuava a beijá-la e a inclinava no banco de trás, ofegante e desejoso, deitado em cima dela. -Céus... Como te quero, Maribeth... oh, querida, amo-te... - Paul levantou-lhe então a saia e fez cair as suas calças, como se tivesse utilizado um só movimento, e ela sentiu-o pressionar o corpo contra o dela, procurá-la e desejá-la desesperadamente, tal como agora também o desejava; com um só gesto de prazer e de dor, penetrou-a em seguida; mal se movendo dentro dela, antes mesmo de o desejar, todo 0 corpo dele estremeceu e o acto consumou-se um segundo depois. - Meu Deus... meu Deus... Oh, Maribeth... - Então, enquanto regressava lentamente à terra, viu-a a fitá-lo em choque, sem poder acreditar no que tinham acabado de fazer, e passou-lhe os dedos suavemente pelo rosto. - Desculpa, Maribeth... Eras virgem... não pude controlar-me... mas és tão bonita e desejava-te tanto... Desculpa, querida.

- Não faz mal. - Era Maribeth quem o confortava, enquanto Paul permanecia ainda dentro dela. Afastou-se, entretanto, lentamente, sentindo-se já de novo excitado, mas sem coragem para fazer outra tentativa. Fez surgir milagrosamente uma toalha de debaixo do banco e tentou ajudá-la a recompor-se, ao passo que Maribeth se esforçava bastante para não ceder à vergonha que sentia. Paul bebeu depois um longo gole de gim, que lhe ofereceu também. Desta vez, Maribeth aceitou, tentando perceber se fora o primeiro gole que a fizera sucumbir aos avanços dele, ou se estaria apaixonada por Paul, ou ele por ela; também não estava certa do que tudo aquilo significava, ou se seria agora ela a sua namorada oficial.

-És incrível - afirmou ele, beijando-a e puxando-a para perto de si no banco. - Lamento que tenha acontecido aqui, hoje, desta forma. Para a próxima será melhor, prometo. Os meus pais vão para fora daqui a duas semanas e, nessa altura, podes ir a minha casa. - Nunca ocorreu a Paul, nem por um só momento, que Maribeth não desejasse continuar a vê-lo. Partia do princípio que ela queria repetir o que acontecera e, embora não estivesse inteiramente enganado, Maribeth não tinha ainda a certeza do que sentia, pois todo o seu mundo tinha desabado numa questão de minutos.

-Tu... e a Debbie... - Mesmo antes de términar, Maribeth apercebeu-se de que estava a fazer uma pergunta tola, e Paul sorriu, fitando-a durante alguns instantes como se fosse um irmão mais velho.

- És muito nova, não és? Por falar nisso, que idade tens?

- Fiz dezasseis anos há duas semanas.

- Ah, já és uma senhora. - Vendo que Maribeth estava a tremer, Paul tirou o casaco e colocou-o à volta dos seus ombros. Ela continuava multo assustada e nervosa pelo que haviam acabado de fazer, mas sabia que tinha que lhe fazer outra pergunta.

- Posso engravidar... pelo que fizemos agora? - Apenas essa ideia era o suficiente para a deixar aterrorizada, mas Paul mostrou-se confiante; e, além disso, não estava muito certa do risco que correra.

- Não é provável... por uma só vez. É verdade que seria possível, mas... tenho a certeza que não vais engravidar, Maribeth. E, para a próxima vez, terei mais cuidado. - Ela não tinha bem a certeza do que implicava esse cuidado, mas calculava que repetissem o que se tinha passado nessa noite; se, de facto, ela se tornasse a sua namorada oficial, tal como Debbie Flowers fora, e se fosse esse o comportamento que Paul espelfiva dela, então também quereria ter cuidado. Tudo o que não desejava nesse momento na sua vida era um filho; até mesmo a mais remota possibilidade de poder engravidar deixava-a a tremer. E também não queria ser forçada a casar, como as suas duas tias, o que subitamente lhe recordou todas as histórias que o pai contava.

- Se ficar grávida, como é que vou perceber! - indagou Maribeth, com toda a honestidade.

Paul, que tinha entretanto ligado o motor do carro, virou-se para ela, admirado por descobrir o quanto ela era inocente; parecera-lhe tão adulta quando a conhecera!

- Não sabes? - perguntou, perplexo, ao que ela abanou a cabeça, honesta como sempre. - Ias dar pela falta do teu período. - Ao ouvir a explicação de Paul, Mari beth sentiu vergonha e limitou-se a acenar com a cabeça para mostrar que tinha compreendido. Contudo, não sabia mais nada sobre o assunto, mas não queria fazer-lhe mais perguntas com receio que Paul a julgasse muito ignorante.

Até chegarem a casa de Maribeth, Paul quase não falou e, quando parou o carro, olhou em volta e só depois a beijou.

- Obrigado, Maribeth. Foi uma noite óptima. - De alguma forma, ela esperava que o facto de ter perdido a virgindade com ele significasse mais do que apenas "uma noite óptima"; no entanto, sabia que não tinha o direito de exigir mais de Paul. Errara ao fazer amor com ele logo na primeira noite em que o conhecera e teria muita sorte se aquele relacionamento chegase a evoluir. Porém, Paul dissera que a amava.

- Para mim, também - acrescentou, cautelosa e educadamente. - Vemo-nos no liceu - despediu-se, esperançosa. Entregou-lhe então o casaco, saiu do carro e subiu a correr os degraus de casa. A porta estava no trinco e ela entrou quando passavam dois minutos da meia-noite, aliviada por todos estarem já deitados. Assim, não teria de responder a nenhuma pergunta, nem teria de entrar em explicações. Lavou-se o melhor que podia, grata por ninguém o poder notar, e ensopou a saia do vestido em água, pendurando-o em seguida, esforçando-se por não chorar. Poderia sempre responder que alguém lhe tinha entornado uma bebida na saia ou que ficara enjoada.

Enfiou a camisa de dormir a tremer dos pés à cabeça e lançou-se em seguida na cama, maldisposta; deixou-se ficar estendida no escuro, no mesmo quarto que Noelle, pen sando em tudo o que acontecera. Tentava convencer-se de que talvez fosse o início de uma relação importante na sua vida, mas não tinha a certeza da importância do que se passara e da forma como Paul Browne o encarava. Foi suficientemente ponderada para duvidar da sinceridade das suas palavras; tinha esperança de estar errada, mas já tinha ouvido outras histórias de raparigas que tinham feito amor e que depois haviam sido abandonadas pelos rapazes que as tinham seduzido. Mas Paul não a tinha propriamente aseduzido", e essa era a parte que mais a assustava. Tinha desejado fazer amor com ele e agora não podia deixar de se sentir chocada por isso. Desejara-o mal ele a tocara, e agora nem sequer se sentia arrependida, apenas assustada com tudo o que sucedera. Deixou-se ficar acordada na cama durante horas, aterrorizada, rezando para não ficar grávida.

Na manhã seguinte, enquanto tomavam o pequeno-almoço, a mãe perguntou-lhe como tinha corrido a festa, e Maribeth respondeu que tinha corrido tudo bem. 0 mais engraçado era que ninguém dava mostras de suspeitar de nada e, a julgar pela forma como se sentia, Maribeth esperava que todos concluíssem que se tinha transformado de repente numa outra pessoa. Era uma adulta agora, uma mulher; tinha feito amor e estava apaixonada pelo finalista mais bonito da escola. Era muito dificil entender a razão por que ninguém o notava.

Ryan estava de mau humor e Noelle discutira com a mãe acerca de algo que fizera na noite anterior. O pai tinha ido trabalhar, mesmo sendo sábado, e a mãe queixava -se de dores de cabeça. Todos tinham as suas vidas e ninguém reparava que Maribeth tinha passado de larva a borboleta e fora a Cinderela do seu Príncipe Encantado.

Durante todo o fim-de-semana, Maribeth andou nas nuvens, mas na segunda-feira foi violentamente projectada de novo para a terra: Paul passeava na escola com o braço à volta dos ombros de Debbie Flowers. Por volta do meio-dia, já todos comentavam a história: Paul e Debbie tinham discutido e tinham-se agora reconciliado; tudo acontecera, porque alguém afirmara que ele saíra com outra rapariga durante o fim-de-semana, e Debbie não o pudera suportar. Ninguém sabia de quem se tratava, mas Debbie tinha ficado furiosa, e no domingo tinham feito as pazes e reatado o namoro. Maribeth ficou com o coração destroçado, mas não conseguiu ficar frente a frente com Paul senão na quarta-feira. Nessa ocasião, ele mostrou-se muito simpático e parou para falar com ela, mas Maribeth estava ocupada a guardar algo no seu cacifo e a tentar desviar o rosto dele. Esperava que Paul continuasse o seu caminho, mas ele tinha-a procurado durante dias e estava contente de a ter finalmente encontrado.

- Podemos ir para outro sítio conversar? - perguntou Paul em voz baixa, o que pareceu a Maribeth extremamente atraente e emocionante.

- Desculpa, mas agora não posso... Estou atrasada para a próxima aula. Talvez mais tarde.

- Não arranjes desculpas. - Paul segurou-lhe ao de leve o braço. - Ouve, lamento o que aconteceu. Mas fui sincero... de verdade... Não teria feito nada se não estives se convencido de que... Desculpa. Ela é doida, mas já estamos juntos há muito tempo. Não quis magoar-te. - Maribeth quase começou a chorar quando percebeu que Paul não estava a mentir. Porque tinha ele de ser um bom rapaz? Mas talvez tivesse sido ainda pior se o não fosse. - Não te preocupes, estou bem.

- Não, não estás - declarou com tristeza, sentindo-se mais culpado do que nunca em relação a ela.

- Estou, sim - assegurou Maribeth, com os olhos subitamente inundados de lágrimas. Desejando que tudo tivesse podido ser diferente, acrescentou: - Esquece esse assunto.

- Quero que saibas que, se precisares de mim, é só avisar. - Maribeth ficou a pensar no que o levara a afirmar tal frase e passou o mês seguinte a tentar esquecer Paula Encontrava-o em toda a parte, nos corredores e até fora da escola. Era como se, de repente, não pudesse evitá-lo. E, no início de Maio, seis semanas após Maribeth e Paul terem feito amor, ele e Debbie anunciaram o seu noivado, planeando o casamento para Julho, logo após terminarem o liceu. E, nesse mesmo dia, Maribeth descobriu estar grávida.

Tinha apenas um atraso de duas semanas, mas vomitava constantemente e sentia todo o corpo modificado. Os seios estavam inchados e tão vulneráveis que lhe doíam constantemente, a cintura aumentava de dia para dia e passava a maior parte do tempo enjoada. Mal podia acreditar que o seu corpo podia sofrer uma mudança tão rápida e pronunciada. Todas as manhãs, depois de vomitar, estendida no chão da casa de banho, rezava para que ninguém a tivesse ouvido, embora soubesse que não o poderia esconder para sempre.

Não sabia que fazer, com quem falar ou para onde se dirigir, e não queria contar a Paul. Finalmente, no final de Maio, foi consultar o médico da mãe e implorou-lhe que não contasse nada aos pais. Chorou tanto que este acabou por concordar, embora relutantemente, após confirmar que Maribeth estava grávida. De dois meses exactamente, segundo o médico. Paul enganara-se, pois, com toda a certeza, ela podia engravidar mesmo "por uma só vez". Maribeth não tinha a certeza se, ao afirmar que não julgava que aquilo pudesse acontecer, ele lhe teria mentido intencionalmente, ou se fora apenas imprevidente; ou talvez ambas as hipóteses. De qualquer forma, era decerto a chamada sorte de principiante, e Maribeth, sentada na marquesa, sentia as lágrimas caírem pelo rosto. Quando o médico lhe perguntou o que tencionavas fazer, segurou o lenço com força, mantendo os punhos cerrados.

- Sabes quem é o pai? - indagou, o que chocou Maribeth e lhe causou ainda maior embaraço.

- Claro - respondeu, nitidamente humilhada e desgostosa. Nenhuma solução para esse dilema seria facil. -E ele está disposto a casar contigo? - Ela abanou a cabeça, com o cabelo ruivo a assemelhar-se a labaredas de fogo e os olhos verdes a grandes oceanos. Ainda não se tinha apercebido bem das consequências do que acabara de descobrir, embora a ideia de forçar Paul a casar-se com ela fosse bastante tentadora, caso o pudesse fazer.

- Está noivo de outra pessoa - esclareceu com a voz enrouquecida. 0 médico fez sinal que entendia.

- Mas dadas as circunstâncias, talvez venha a modificar os planos. Não ia ser o primeiro homem a fazê-lo... - 0 médico esboçou um sorriso triste, sentindo pena de Maribeth; era uma adolescente meiga e doce, e aquela gravidez iria, obviamente, modificar para sempre a sua vida. - Ele nãó, vai modificar os planos - afirmou Maribeth, tranquilamente. Era um caso típico: tinha sido usada apenas por uma noite, o rapaz nem a conhecia, mas prometera que podia contar com o seu apoio, caso viesse a necessitar. Pois bem, necessitava agora de apoio. Mas isso não significava gitè-ele casaria com ela apenas por a ter engravidado.

- 0 que pensas contár áo's téus pais, Manbeth? - indagou o médico, ponderadamenteï

Ela fechou os olhos, dominádá .pelo terror que essa ideia lhe causava, imaginando o momento em que teria de contar a verdade ao pai.

- Ainda não sei.

- Queres que te ajude a conversar com eles? - Era uma proposta simpática, mas não podia permitir que o médico os informasse por ela. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, seria ela que o teria de fazer.

- E é possível... interromper a gravidez? - perguntou, corajosamente. Não estava sequer bem certa sóbre como tal se faria, mas sabia apenas gtie algumas mulheres tinham einterrompido a gravidez". Uma vez, ouvira a mãe e a tia discutirem esse assunto, e a palavra que tinham segredado era oaborto". A mãe afirmara que muitas mulheres corriam risco de vida, mas Maribeth preferia isso a 'ter dé enfrentar o pai.

Todavia, o médico franziu imediatamente as sobrancelhas.

- Isso é dispendioso, perigoso e ilegal, e não; quero ouvir-te falar mais nësse assunto. Na tua idade, a melhor solução é ter a criança e depois entregá-la para adopção. E o que a maioria das raparigas da tua idade faz. 0 nascimento deve ser apenas em Dezembro. Por isso, quando se começar a notar, podias ir para o Convento das Irmãs de Caridade e permaneceres lá até teres a criança.

- Entregar a criança...? - Segundo o médico, era tudo muito simples, mas Maribeth suspeitava que seria bem mais complicado, ou que ele estivesse a ocultar-lhe algo sobre esse processo.

- Exactamente - confirmou, sentindo mais uma vez, pena dela. Era tão nova e inocente! Mas tinha o corpo desabrochado como o de uma mulher adulta e fora isso que a colocara naquela situação. - Não era preciso recolheres-te de imediato. É provável que só venha a notar-se em Julho ou Agosto, ou talvez até mais tarde. Mas tens de contar aos teus pais. - Maribeth fez um gesto afirmativo, sentindo-se como que paralisada. 0 que lhes poderia dizer? Que na noite do baile fizera amor com um rapaz que não conhecia, no banco do carro dele, mas que agora ele não casaria com ela? Talvez a mãe até desejasse manter a criança. Enquanto colocava de novo as roupas, no gabinete, não conseguia imaginar nenhuma destas hipóteses, tal como não imaginava sequer a conversy que teria de ter com os pais. O médico prometera não lhes revelar nada até ela própria o fazer, e Maribeth acreditava na sua palavra.

Nessa tarde, na escola, procurou Paul. Faltavam duas semanas para o final do ano escolar e apercebia-se de que não estava certo pressioná-lo. A culpa era tanto dela quan to dele, ou pelo menos era o que Maribeth pensava, mas não conseguia esquecer o que Paul lhe prometera. Seguiram lentamente pelos relvados do liceu e acabaram por se sentar no banco que ficava nas traseiras do ginásio, o mesmo onde se haviam conhecido na noite do baile; por fim, Maribeth contou-lhe.

- Merda! Não, não podes estar! - Paul deixou escapar um longo e lento suspiro, revelando toda a sua frustração e tristeza.

-Estou, sim. Lamento muito, Paul. Nem sequer sei por que motivo resolvi contar-te, mas cheguei à conclusão que devias saber. - Ele apenas moveu a cabeça, impossibilitado de responder fosse o que fosse naquele momento. - O meu casamento é daqui a seis semanas, e a Debbie matava-me se soubesse. Disse-lhe que tudo o que ela ouviu acerca de ti não passava de boatos e mentiras.

- 0 que ouviu ela? - Maribeth estava curiosa e intrigada por saber que Debbie ouvira falar dela.

- Que saí contigo naquela noite. Todos os amigos que encontrámos no Willie's lhe contaram. Mas tínhamos terminado tudo, era aceitável. Disse-lhe só que não tinha tido importância e que não significara nada. - Contudo, fosse como fosse, ela sentiu-se magoada ao ouvir aquela afirmação. Era com Debbie que Paul se importava e não consigo.

-Mas teve algum significado? - perguntou Maribeth apropriadamente. Queria saber a verdade, e tinha o direito de saber, porque esperava um filho dele.

Paul fitou-a, pensativo, durante alguns instantes e depois acenou com a cabeça.

- Naquela noite, significou. Talvez não tanto como devia, mas significou. Achei-te fomúdável. Mas a Debbie cercou-me o fim-de-semana todo e... chorou. Disse que estava a desconsiderá-la, a enganá-la e que, depois de três anos, Ihe devia mais do que isso. E acabei por lhe prometer que casava com ela depois de terminar o liceu.

-É isso o que queres? - perguntou Maribeth de olhos fitos em Paul, interrogando-se acerca de quem ele era e daquilo que realmente desejava. Era da opinião que Debbie não era a pessoa certa para Paul, mas não sabia se ele se aperceberia disso.

- Não sei o que quero, mas sei que não quero um filho.

- Nem eu. - Maribeth tinha a certeza absoluta. Não podia garantir que não viesse a desejar ser mãe, mas decerto não o queria ser tão cedo e não com Paul como pai do seu filho. Por muito atraente que fosse, depois daquela conversa, tornara-se óbvio para ela que ele não a amava.

Não queria ser forçada a casar com ele, mesmo se Paul concordasse em o fazer, o que lhe parecia totalmente improvável. Não desejava ter um marido que tinha ínentido acerca dela, fingido que nunca tinha saído na sua companhia, nem que alguma vez se interessara por ela. Desejava, sim, ter um dia a seu lado alguém que se orgulhasse de a amar e de ter um filho seu, e não um homem que precisava de ser forçado a um casamento repentino.

- Porque não pensas em interromper a gravidez? - indagou com suavidade, enquanto Maribeth o encarava com um olhar triste.

- Referes-te a ceder a criança para adopção? - Era isso que tencionava fazer e aquilo que o médico aconselhara.

- Não, refiro-me a fazer um aborto. Tenho uma colega que fez um, no ano passado. Podia informar-me malhor e talvez consiga arranjar algum dinheiro... É bastante caro.

- Não, não quero, Paul. - 0 médico convencera-a a não seguir por esse caminho. E ela duvidava, por muito pouco que soubesse, se abortar não seria uma espécie de assassínio.

- Tencionas ficar com a criança? - indagou Paul, em pânico. Como reagiria Debbie? Matá-lo-ia, com certeza.

- Não, tenciono entregá-lo para adopção - esclareceu Maribeth. Tinha meditado bastante e essa parecia ser a única solução. - 0 médico disse-me que, quando se co meçar a notar, posso ficar num convento e que depois as freiras se encarregam de arranjar uns pais adoptivos. - Maribeth voltou-se e, de súbito, fez-Ihe uma pergunta inesperada. - Vais querer conhecer a criança? - Paul abanou a cabeça e desviou os alhos. Detestava a forma como Maribeth o fazia sentir, desajustado, assustado e zangado. Tinha consciência de que não estava a agir correctamente com ela, mas não tinha coragem suficiente para assumir aquela gravidez a seu lado; e não desejava perder Debbie.

- Desculpa, Maribeth. Sinto-me um autêntico canalha. Ela quis responder que era isso que de facto era, mas não foi capaz. Queria dizer-lhe que compreendia, mas também não podia, porque não era verdade. Não compreendia nada: o que lhes havia acontecido, o motivo que os levara a fazer aquilo, porque havia engravidado e porque Paul não casava consigo para casar com Debbie, enquanto ela teria de se esconder num convento para ter o filho dele. Tudo aquilo era incompreensível e incontrolável.

Ficaram mais alguns minutos sentados lado a lado em silêncio e depois Paul afastou-se, deixando-a a pensar que aquela tinha sido a última vez que falaria com ele. Só o viu mais uma vez, na véspera do final do ano escolar, e Paul nem sequer se dirigiu a ela. Limitou-se a fitá-la, voltando-lhe as costas em seguida. Maribeth percorreu sozinha o liceu, com as lágrimas a correrem pelas faces, desejando não esperar um filho dele. Era tudo muito injusto, e a cada dia que passava sentia-se mais indisposta.

A semana que se seguiu ao final do ano passou, e um dia, quando estava ajoelhada na casa de banho a vomitar pela centésima vez, tendo-se esquecido de fechar a porta, o irmão entrou e viu-a.

- Desculpa, mana... Oh, meu Deus... Estás doente? - Ryan mostrou-se imediatamente preocupado com Maribeth, mas, de súbito, como se tivesse acendido uma luz, observou-a mais uma vez a vomitar e compreendeu tudo. - Merda, estás grávida. - Era uma afirmação e não uma pergunta.

Maribeth ficou durante muito tempo com a cabeça apoiada no tampo da sanha e, quando depois finalmente se levantou, deparou com o irmão a fitá-la com uma expressão acusadora, sem qualquer compaixão.

- 0 pai vai matar-te.

- Como é que podes ter tanta certeza de que estou grávida? - Maribeth tentou falar com determinação e irreverência, mas Ryan conhecia-a bem.

- Quem é ele?

- Não tens nada com isso - respondeu, sentindo uma nova onda de náusea a invadi-la, desta vez provocada principalmente pelos nervos e pelo terror.

- Tens de o preparar para enfrentar o pai ou entáo para treinar a fuga! 0 pai vai fazer tudo para defender a tua honra.

- Obrigada pelo conselho - afirmou ela, saindo lentamente da casa de banho. Suspeitava que, a partir desse momento, os seus dias estavam contados, e tinha razão.

Ryan contou tudo ao pai nessa mesma tarde, o qual entrou em casa fora de si e quase derrubou a porta de entrada. Maribeth estava estendida na cama, enquanto Noelle arranjava as unhas e ouvia discos. Mas o pai arrastou-a para a sala, enquanto gritava pela mãe. Maribeth pensara muito sobre qual seria a melhor forma de o pôr a par da sua gravidez, mas Ryan tinha-se incumbido de o fazer por ela.

A mãe saiu do quarto já a chorar, e Ryan mostrava-se zangado, como se a irmã o tivesse também desiludido. 0 pai ordenara a Noelle que permanecesse no quarto e, percorrendo a sala como um touro enraivecido, acusava Maribeth de ser igual às tias, de se ter comportado como uma prostituta e de os ter desonrado a todos. Depois, exigiu saber quem a tinha engravidado; mas Maribeth já estava preparada para essa pergunta e não se importava com o que podiam fazer-lhe; não lhe contaria nada.

Paul tinha-lhe parecido maravilhoso e muito atraente, e teria adorado poder apaixonar-se por ele e sentir que ele a desejava. Mas Paul não estava apaixonado por ela e ia ca sar com outra pessoa. Maribeth não desejava começar a sua vida dessa forma, aos dezasseis anos, e destruí-la para sempre. Preferia ter a criança e cedê-la para adopção, e ninguém podia forçá-la a contar a verdade.

- Quem é ele? - gritou o pai vezes sem fim. - Não sais desta sala enquanto não me responderes!

- Então vamos ficar aqui muito tempo - respondeu calmamente. Tinha pensado muito desde que descobrira estar grávida e chegara à conclusão que o pai não a assustava. Além disso, o pior já tinha acontecido: estava grávida e a sua família já sabia. Que mais poderiam fazer-lhe?

- Porque não nos contas quem é ele? Será um professor? Um homem casado, um padre...? Ou talvez um dos amigos do teu irmão? Quem é, afinal?

- Não interessa. Não vai casar-se comigo - anunciou com serenidade, surpreendida com a força com que enfrentava o furacão que o pai representava.

- Por que razão? - gritou ele.

- Porque não nos amamos; é tão simples quanto isso. - Não me parece nada simples - declarou o pai, cada vez mais zangado, enquanto a mãe chorava e contorcia os dedos. Maribeth sentia-se extremamente culpada por ver a mãe naquele estado, pois detestava magoá-la. - Parece que andaste a dormir com um rapaz de que nem sequer gostavas, o que é o pior de tudo. Até mesmo as tuas tias amaram os homens com quem dormiram! E esses casaram-se com elas e agora levam vidas decentes e têm filhos legítimos. 0 que pensas fazer em relação à criança?

- Não sei, pai. Pensei em dá-la para adopção, a menos que...

-A menos que... o quê? Julgas que vais poder criá-la nesta casa e desgraçar a tua vida e a de todos nós? Só por cima do meu cadáver e do da tua mãe! - A mãe fitava-a com olhos que imploravam que desfizesse essa desgraça, mas Maribeth não tinha forma de o poder fazer.

- Não quero ficar com a criança, pai - informou com tristeza, com os olhos finalmente inundados de lágrimas. - Tenho dezasseis anos, não posso oferecer-Ihe nada e quero poder continuar a minha vida. Não quero desistir dela, e não há nada que eu possa fazer pela criança. Ambos temos direito a mais do que isso.

- Que atitude tão digna! - gritou o pai, furioso com Maribeth. - Teria sido bom se te tivesses lembrado de ser um pouco mais digna antes de levantares a saia! Repara no teu irmão: já namorou muitas raparigas e ainda não engravidou nenhuma! Compara contigo: tens dezasseis anos e uma vida já desperdiçada!

-Mas não tem de ser assim, pai. Posso frequentar a escola das freiras enquanto viver com elas e a seguir regresso a este liceu em Dezembro, depois de ter tido a criança. Posso voltar depois das férias de Natal e dizer que estive doente.

- Sim? E quem pensas que vai acreditar nessa doença? Julgas que não vão comentar? Todos vão ficar a saber! Vais ficar desgraçada e nós também. Vais ser uma vergonha para toda esta família!

- Mas então o que quer que faça, pai? - indagou Maribeth, desesperada, com as lágrimas a rolarem pelas faces. Estava a ser ainda mais dificil do que tinha imaginado e não havia nenhuma solução fácil. - 0 que quer que faça? Que morra? Não posso apagar o que fiz e não sei o que fazer! Não há nada que possa remediar o que aconteceu. - Soluçava, mas o pai continuava inflexível, gelado.

- Vais ter de ter a criança e cedê-la para adopção. - Quer que eu fique no convento? - perguntou, na esperança que o pai afirmasse que podia continuar a morar em casa. Aterrorizava-a a ideia de ir viver para um convento, longe de toda a família. Mas, se o pai preferisse que ela se afastasse, não lhe restava mais nenhuma escolha. - Aqui não vais poder ficar - afirmou o pai com firmeza. - E não podes manter a criança. Vais para o Convento das Irmãs de Caridade, tens a criança e depois voltas para casa. - Em seguida, o pai lançou a última flecha ao seu coração: - Até lá, não te quero ver mais e não quero que vejas a tua mãe, nem a tua irmã. - Por momentos, Maribeth julgou que as palavras do pai lhe tirariam a vida. - A forma como te comportaste é um insulto para todos nós e para ti também. Ofendeste a tua e a nossa dignidade, traíste a confiança que tínhamos em ti. Desgraçaste-nos a todos, Maribeth, nunca te esqueças.

- Porque é que aquilo que fiz é tão terrível? Nunca vos menti, nunca vos magoei, nem nunca vos traí. Só por uma vez fui muito idiota, mas agora estou a pagar caro essa minha estupidez. Vou ter de assumir o meu erro e vou ser obrigada a abdicar do meu filho. Não vos chega? Até que ponto devo ser castigada? - Soluçava e estava destroçada, mas o pai não se comovia.

- Isso é entre ti e Deus. Não sou eu quem te castiga e sim Ele.

- É meu pai e está a mandar-me embora. Não quer voltar a ver-me até eu dar a criança e... está a proibir-me de ver a minha irmã e a minha mãe. - Maribeth tinha a certeza que a mãe nunca desobedeceria ao pai. Conhecia a sua fraqueza, a sua incapacidade para tomar decisões e o receio que tinha do marido. Todos estavam a fechar-lhe a porta e o primeiro a fazê-lo tinha sido Paul; estava completamente só.

- Atua mãe está livre para seguir a sua vontade - afirmou o pai, com pouca convicção.

-A única vontade que a mãe segue é a sua - retorquiu Maribeth, desafiando o pai e aumentando ainda mais a sua irritação -, e o pai sabe isso muito bem.

- Sei apenas que nos desgraçaste a todos! Não julgues que podes gritar comigo, fazer a tua vontade, desonrar a família e trazer para esta casa um filho bastardo. Até paga res pelos teus pecados e emendares a tua vida, não esperes nada de mim, Maribeth. Se não te casas com esse rapaz e ele não quer casar contigo, então não há nada que eu possa fazer por ti. - Voltou as costas, saiu da sala e cinco minutos depois regressou. Maribeth ainda não tinha recuperado forças suficientes para subir ao seu quarto.

0 pai fizera dois telefonemas, um para o médico da família e outro para o convento. Oitocentos dólares seriam o suficiente para cobrir as despesas de Maribeth durante os seis meses de permanência, incluindo as do parto, que estava a cargo das freiras. Estas tinham assegurado a Mr. Robertson que a filha estaria em boas mãos e que o parto teria lugar na enfermaria, assistido por um médico e uma parteira. A criança seria entregue a uma boa família e a filha ser-lhe-ia restituída uma semana depois do nascimento do bebé, desde que tudo decorresse normalmente.

0 pai de Maribeth já se tinha decidido a mandar a filha para o convento, e a quantia necessária estava dentro de um sobrescrito branco, o qual ele entregou a Maribeth com um olhar gélido. A mãe já se tinha retirado para o quarto, em lágrimas.

- Deste um enorme desgosto à tua mãe - afirmou em voz acusadora, negando que, de alguma forma, pudesse ter contribuído para esse desgosto. - Não quero que con tes nada à Noelle. Só precisa de saber que vais viajar e que dentro de seis meses estás de volta. Amanhã de manhã levo-te ao convento. Vai fazer as tuas malas, Maribeth. - Pelo seu tom de voz, ela percebeu que o pai não estava a brincar e sentiu o sangue gelar nas veias. Apesar do relacionamento dificil com o pai, aquela era a sua casa, era ali que viviam os pais, era aquela a sua família, e agora estava a ser afastada de todos eles. Não teria ninguém para a ajudar a suportar os próximos seis meses. Começou a pensar se não teria feito mal em facilitar a vida de Paul, pois, de outra forma, talvez ele a tivesse ajudado... ou talvez até tivesse decidido casar com ela, em vez de Debbie; mas agora, já era demasiado tarde, o pai estava a mandá-la embora, queria-a afastada da família já na manhã seguinte.

- 0 que posso contar à Noelle? - Maribeth mal podia articular as palavras. Abandonar a irmã mais nova cortava-lhe a respiração.

- Dizes-lhe que vais estudar para fora. Diz-lhe qualquer coisa, menos a verdade. A tua irmã é demasiado nova para saber o que aconteceu. - Maribeth mostrou que concordava, já por fim totalmente vencida e demasiado abatida para responder.

Maribeth regressou então ao seu quarto, evitando 0 olhar de Noelle quando esta a viu retirar a mala de viagem. Escolheu poucas roupas paca levar, apenas algumas camisas, calças e um ou dois vestidos que ainda poderia usar nos primeiros tempos. Esperava que as freiras lhe dessem depois outras roupas, pois, dentro em breve, nada do que tinha lhe serviria.

- 0 que estás a fazer? - indagou Noelle, em pânico. Tinha tentado ouvir a discussão, mas não conseguira perceber o que diziam na sala. E, a julgar pela tristeza com que Maribeth a fitou, tremendo, parecia que alguém tinha morrido.

- Vou passar uns tempos fora - informou Maribeth tristemente, desejando poder contar uma mentira convincente; mas tinha sido tudo demasiado duro, demasiado re pentino e violento. Não suportava a ideia da despedida, e mal podia resistir às perguntas insistentes que Noelle lhe ia repetindo. Por fim, acabou por lhe afirmar que teria de ir para outro lugar, para um colégio especial, porque as suas notas não tinham sido tão boas como de costume, mas Noelle, lavada em lágrimas, abraçou-a, aterrorizada por perder a irmã.

- Não vás, por favor... não o deixes afastar-te de mim. 0 que quer que tenhas feito, não pode ser assim tão mau... seja o que for, eu perdoo-te, Maribeth, porque gos to muito de ti... Por favor, fica... - Maribeth era a única pessoa com quem Noelle podia conversar. A mãe era demasiado fraca, o pai demasiado teimoso para sequer ouvir, e o irmão egoísta e tolo de mais. Tinha apenas Maribeth para partilhar os seus problemas, mas, daí em diante, não teria ninguém. A tristeza da pobre Noelle não podia ser maior, e as duas irmãs choraram toda a noite, domúndo abraçadas numa cama estreita. A manhã não tardou a chegar.

As nove horas, o pai colocou a mala de Maribeth na carrinha, enquanto ela permanecia parada de olhos fitos na mãe, ainda com esperanças de que esta fosse suficiente mente forte para dizer ao pai que não podia agir daquela forma. Mas Maribeth sabia muito bem que a mãe nunca desafiaria o marido. Em vez disso, deu um abraço demorado à filha, desejando que ela pudesse ficar e que não tivesse sido tão imprudente, ou que não tivesse tido tão pouca sorte.

- Gosto muito de si, mãe - afirmou enquanto a mãe a abraçava, com a voz entrecortada.

- Irei visitar-te, Maribeth, prometo.

Maribeth mexia apenas a cabeça, sem ser capaz d'e falar. Banhada em lágrimas, abraçou Noelle, que, soluçando, lhe implorava que não a abandonasse.

- Schiu... Não chores... - murmurava Maribeth, que, apesar de estar também a chorar, ainda tentava ser corajosa. - Vai passar depressa. No Natal, já estou de volta.

- Gosto muido de ti, Maribeth - gritou Noelle, vendo a carrinha a afastar-se. Entretanto, Ryan juntara-se também à mãe e à irmã, mas não pronunciara uma só pala vra. Limitou-se a acenar quando o pai começou a atravessar a cidade, percorrendo a curta distância que os separava do seu destino.

Quando chegaram ao convento, Maribeth achou o lugar sinistro. 0 pai estava ao seu lado nos degraus da entrada, e ela carregava a sua pequena bagagem.

- Tem cuidado contigo, Maribeth. - Não fazia tenções de agradecer ao pai a sua atitude. Podia ter sido mais brando, podia ter tentado compreender; podia ter feito um esforço para recordar o que era ser jovem, ou o que significava cometer um erro de tamanhas proporções, mas ele era incapaz de qualquer uma dessas atitudes. Era-lhe impossível exceder a sua natureza, a qual tinha profundas limitações.

- Eu escrevo-lhe, pai - prometeu. Mas o pai não respondeu e ficou um longo instante em silêncio, até finalmente fazer sinal que tinha entendido.

- Vai dando notícias à tua mãe. Sei que vai ficar preocupada contigo. - Maribeth~quis perguntar-lhe se ele também se preocuparia, mas já não se atrevia a fazer-lhe qualquer pergunta.

- Gosto muito de si - murmurou, docemente, enquanto o pai descia os degraus, mas este não se voltou para olhar para ela nem mais uma vez. Levantou apenas a mão,

quando se dirigia já para fora dali, e nunca virou a cabeça. Maribeth tocou então a campainha da porta do convento.

Esperou tanto que sentiu um enorme desejo de descer os degraus e voltar para casa; mas agora já não tinha casa para onde voltar e sabia que a família não a aceitaria de volta até estar tudo terminado. Depois, apareceu finalmente à porta uma jovem freira. Maribeth anunciou quem era e ela baixou a cabeça, pegou na sua mala, fez-lhe sinal para entrar e depois fechou atrás de si a pesada porta de ferro, com um enorme estrondo.

0 Convento das Irmãs de Caridade era um local cavernoso;,escuro e sinistro, onde Maribeth depressa descobriu existirem mais duas raparigas exactamente pelo mesmo motivo que a levava a estar ali. Provinham ambas de cidades próximas, e foi com alivio que Maribeth verificou que não as conhecia. 0 parto de qualquer uma das duas estava para muito breve; na verdade, uma delas, bastante nervosa, com dezassete anos, deu à luz no dia seguinte à chegada de Marïbeth. Teve uma menina, que foi rápida e discretamerité entregue aos pais adoptivos, os quais já aguardavam a sua vinda. A rapariga nunca chegou a ver a filha, e; na opiniãó de Maribeth, todo aquele processo era bárbaro, como se se tratasse de um terrível segredo indecente que tivéssé de ser escondido.

A outra rapariga tinha quinze anos e aguardava entrar, a quálquer momento, em trabalho de parto. Ambas tomavam as refeições na companhia das freiras, acompanhando -as à.capela para fazer orações vespertinas, e só tinham permissão para falar em determinadas horas. Foi também com grande choque que Maribeth descobriu, no seu terceiro dia no convento, que uma delas engravidara do próprio tio. Era uma rapariga infeliz e desesperada, que aguardava com terror a perspectiva de dar à luz.

Durante a noite do quinto dia, Maribeth acordou com os gritos da rapariga, os quais se prolongaram por mais dois dias. As freiras tentaram de todas as formas efectuar o par to, mas a rapariga foi, por fim, enviada para um hospital, onde lhe seria feita uma cesariana. Maribeth perguntou depois o que lhe tinha acontecido, e responderam que ela já não regressaria, mas que a criança tinha nascido bem. Apenas por coincidência, soube também que tinha sido um rapaz. Contudo, sem a presença das duas jovens, sentiu-se aindá mais só, pois estava sempre sozinha com as freiras. Alimentava a esperança de ver chegar brevemente mais

 

Era uma pecadora, pois de outra forma não teria ninguém com quem falar.

Sempre que possível, lia o jornal da região; duas semanas após a sua chegada, viu a notícia do casamento de Paul e de Debbie. Ao lê-la, a sua solidão aumentou ainda mais, imaginando-os em lua-de-mel, enquanto ela se encontrava naquela prisão, a pagar o preço que uma noite passada no banco do carro dele lhe custara. Parecia-lhe extremamente injusto que tivesse de suportar todo aquele peso sozinha, e quanto mais pensava sobre isso, maior era a sua certeza que não podia ficar no convento.

Não tinha nenhum lugar para onde ir e ninguém a quem se dirigir, mas não conseguia suportar a santidade opressiva do convento, embora as freiras a tratassem com bondade. Maribeth pagara-lhes já cem dólares, restavam-lhe móis setecentos e quase seis meses para estar onde escolhesse ficar. Não fazia a mínima ideia de para onde iria, mas sabia que não podia continuar ali fechada, sem mais que fazer senão aguardar o correr dos meses, a chegada de outra prisioneira como ela e o nascimento do bebé que logo lhe seria tirado, até poder regressar por fim a casa dos pais. Permanecer no convento tinha um preço demasiado elevado. Desejava ir para algum sítio onde pudesse levar uma vida normal, trabalhar e ter amigos, e sentia a necessidade de apanhar ar puro, de ouvir vozes e de ver pessoas. Ali, sentia apenas uma constante opressão e a esmagadora sensação de ser uma irredimível pecadora. Mesmo que o fosse, precisava de um pouco de sol e de alegria enquanto aguardava o nascimento do filho. Não sabia por que motivo tal lhe tinha sucedido, mas suspeitava que talvez houvesse uma lição a aprender e que aquele era um momento da sua vida que não deveria ser desperdiçado. Não tinha de ser tudo tão tenebroso quanto as freiras acreditavam que fosse, e assim, na tarde seguinte, Maribeth comunicou à Madre Superior que iria deixar o convento. Justificou-se dizendo que tencionava visitar uma tia, esperando que esta acreditasse. Mas, mesmo que ela duvidasse, Maribeth tinha já a certeza que nada a deteria e que abandonaria aquele lugar.

Deixou o convento na madrugada do dia ségui~te, levando consigo o seu dinheiro, a pequena malá e'tima incontrolável sensação de liberdade. E certo que não pódio regressar a casa, mas tinha um mundo inteiro para exploxar e para descobrir. Nunca antes se sentira tão livre nem too forte; já passara momentos de muito sofrimento quando' fora obrigada a deixar a casa dos pais, e agora sentia que era apenas uma questão de encontrar um lugar onde ficar até ao final da gravidez. Pensou que seria mais facil se abandonasse aquela cidade; por isso, encaminhou-se para a estação de camionetas e comprou um bilhete de ida e volta para Chicago, com a data da vinda ainda por definir. Teria de passar por Omaha, mas Chicago era o local mais distante de que se lembrava, além de que poderia mudar de ideias ao longo do caminho. Tudo o que desejava era sair dali e encontrar um local onde viver sozinha durante os próximos seis meses, até dar à luz o seu filho. Esperou na estação pela primeira camioneta para Chicago e, quando viu a sua cidade de nascença desaparecer de vista, não sentiu remorsos. Subitamente, apenas conseguia sentir entusiasmo pelo futuro, pois o passado, tal como a cidade onde sempre vivera, não lhe tinha oferecido muito. Não tinha deixado amigos para trás, nem iria sentir a falta de ninguém, a não ser da mãe e da irmã. Da estação, escrevera a cada uma um postal antes de sair, prometendo enviar-lhes a nova morada, assim que a conhecesse.

- Vai para Chicago, miss? - indagou o motorista quando ela ocupou um lugar, sentindo-se de súbito adulta e independente.

-Talvez - respondeu, sorrindo. Podia ir para onde quisesse, podia fazer tudo.

Era livre. Não tinha de dar justificações a ninguém, a não ser a si própria, e a única limitação que tinha era o filho que crescia dentro de si. Começou então a ponderar o que deveria dizer no local onde escolhesse ficar. Uma vez que descobrissem que estava grávida, tesa de explicar como tinha ali chegado, o motivo por que viera e por que se encontrava sozinha. Teria também de encontrar um emprego, apesar de não saber fazer muitas coisas; mas sabia limpar uma casa, podia trabalhar numa livraria, tomar conta de crianças, ou talvez servir num restaurante. Estava disposta a fazer quase tudo, desde que estivesse a salvo e, até começar a trabalhar, possuía ainda parte do dinheiro que o pai lhe dera para pagar as suas despesas no convento.

Pararam em Omaha nessa tarde. Estava calor, mas corria uma leve brisa, e Manbeth estava um pouco enjoada, devido à longa viagem de autocarro; sentiu-se melhor após comer uma sanduíche. Havia passageiros a entrar e a sair, deslocando-se a maioria apenas de uma cidade para a outra. Quando pararam nessa noite numa pequena e pitoresca cidade, Maribeth era quem tinha feito a viagem mais longa. Essa cidade pareceu-lhe bonita e muito limpa, e o restaurante onde jantaram estava cheio de jovens, pois existia ali uma universidade. Embora fosse de melhor qualidade, o restaurante lembrou a Manbeth uma cantina, e a empregada que lhe trouxe o hambúrguer com queijo e o batido tinha um bonito cabelo curto e exibia um grande sorriso. 0 hambúrguer estava delicioso e a conta não foi cara, além de que, das outras mesas, ecoavam gargalhadas e era evidente a boa disposição geral. Era um local alegre, o que fez Maribeth regressar com pouca vontade para a camioneta, que seguiria directamente para Chicago. Foi apenas quando saiu do restaurante que reparou: havia um pequeno papel na janela a oferecer trabalho a uma empregada de mesa e a ajudantes de cozinha. Ficou a lê-lo durante alguns instantes e depois voltou lentamente para trás, receando que a julgassem louca e que não acreditassem na história que tencionava inventar.

A mesma empregada que a tinha servido dirigiu-se a ela com um sorriso, julgando que Maribeth se tivesse esquecido de algo. Enquanto esperava, esta hesitava.

- Queria saber se... eu... Reparei agora no anúncio e... fiquei a pensar nesse emprego. 0 que quero dizer é que...

-Que procuras trabalho - finalizou a outra, sorrindo. - Não tens nada de que te envergonhar. São dez dólares por hora, seis dias por semana, dez horas por dia. Fazemos turnos, para conseguirmos ter algum tempo livre para ficar em casa com os filhos. És casada?

- Não... bem, sim... já fui casada, sou viúva. 0 meu marido foi morto na... Coreia.

- Lamento muito. - Ao fixar os olhos de Maribeth, pareceu, de facto, sincera e apercebeu-se com facilidade de que a jovem necessitava realmente daquele emprego, além de simpatizar bastante com ela. Parecia ser muito nova, mas não via nenhum inconveniente nisso, pois a maioria dos seus clientes também o era.

- Obrigada... Com quem devo falar acerca do emprego?

- Comigo. Tens alguma experiência? - Maribeth hesitou, arquitectando uma mentira; mas depois abanou a cabeça, ponderando se deveria contar que estava grávida.

- Preciso muito deste emprego. - Ao segurar a carteira, as mãos tremiam-lhe, na expectativa de vir a conseguir aquele trabalho. Subitamente, sentia um grande desejo de viver naquela cidade. Havia ali uma atmosfera de felicidade, era uma cidade extremamente animada, da qual gostara de imediato.

- Onde moras?

- Ainda não encontrei nenhum sítio onde ficar. - Maribeth sorriu, revelando toda a sua juventude, o que enterneceu o coração da empregada. - Acabei de chegar naquela camioneta. Se me aceitar, vou buscar a minha mala e procuro um quarto. Posso começar já amanhã... - A mulher sorriu. Chamava-se Julie e gostava da aparência de Maribeth. Havia nela uma calma e uma determinação que revelavam que tinha princípios e coragem. Era estranho chegar tão rapidamente a essa conclusão; no entanto, tinha um bom pressentimento a seu respeito.

- Vai buscar a mala à camioneta - pediu Julie, sorrindo de forma calorosa. - Podes ficar comigo esta noite. 0 meu filho foi visitar a avó a Duluth e podes ficar no quarto dele, se não te importares com a desordem... Tem catorze anos e é muito desarrumado. A minha filha tem doze. Sou divorciada. Que idade tens? - perguntou, formulando toda a frase quase de um só fôlego.

Maribeth gritou que tinha dezoito anos, enquanto corria para a camioneta a fim de buscar a sua mala. Dois minutos depois voltou, arquejante, mas sorridente.

- Tem a certeza que não vou incomodar se passar a noite em sua casa? - Sentia-se excitada e feliz.

- De forma nenhuma. - Julie sorriu, atirando-lhe um avental. - Toma, começa a trabalhar. Podes ajudar-me a servir até o meu turno acabar, à meia-noite. - Fal tava apenas uma hora e meia, mas era um trabalho cansativo, pois havia enormes bandejas para transportar e jarros pesados. Maribeth mal podia acreditar no cansaço que sentia quando fecharam o restaurante.

Havia mais quatro mulheres a trabalhar como empregadas de mesa, e alguns rapazes, na sua maioria estudantes de liceu, trabalhavam como auxiliares de cozinha e ajuda vam a levantar as mesas. Esses rapazes tinham quase todos a idade de Maribeth, enquanto que as mulheres estavam na casa dos trinta e dos quarenta. Explicaram-lhe que o dono sofrera um enfarte e que passara a vir apenas durante o período das manhãs e nalgumas tardes. Mas conduzia bem o negócio e era o seu filho quem se encarregava da maioria I   dos cozinhados. Julie contou a Maribeth que saíra algumas vezes com ele, mas que nada mais se passara. Tinha demasiadas responsabilidades na vida para poder interessar-se muito pelo seu lado romântico. Era mãe de dois filhos, e o ex-marido deixara de pagar a pensão deles há já cinco anos. Gastava todo o dinheiro que ganhava a calçar os filhos, a pagar-lhes as consultas médicas e a levá-los regularmente ao dentista, para não mencionar tudo o mais de que necessitavam e desejavam.

- Criar filhos sozinha não é uma tarefa fácil - afirmou, muito séria, enquanto se dirigiam de carro para sua casa. - Alguém nos devia avisar disso antes do divórcio. Sabes, os filhos não vêm ao mundo para serem criados só por um dos pais. Como não tém mais ninguém, não interessa se estou doente, cansada ou com dores de cabeça, porque toda a responsabilidade pesa sobre os meus ombros. A minha família não vive aqui... As colegas do restaurante são muito simpáticas comigo e ajudam-me bastante. Ficam a tomar conta dos meus filhos e posso sempre deixá-los com elas quando tenho algum jantar a que não quero faltar. 0 marido da Martha, uma das colegas, costuma levar o meu filho para pescar sempre que pode. São essas atitudes que contam. E impossível conseguir fazer tudo sozinha e Deus sabe como me esforço! Às vezes, julgo que vou morrer de cansaço!

Maribeth ouvia atentamente, e a sabedoria das palavras de Julie não lhe passou despercebida. Sentiu de novo vontade de contar a Julie que estava grávida, mas não o fez.

- Foi uma pena tu e o teu marido não terem tido filhos - comentou Julie com doçura, como se tivesse lido o pensamento de Maribeth. - Mas ainda és muito jovem e, com certeza, vais casar outra vez. Que idade tinhas quando te casaste?

- Dezassete anos. Casei-me mal terminei o liceu, mas estivemos casados apenas um ano.

- Tiveste pouca sorte, querida. - Julie acariciou a mão da jovem e estacionou o carro junto ao passeio. Vivia num pequeno apartamento virado para as traseiras e, quan do entraram, já a filha dormia há muito. - Detesto ter de a deixar sozinha, porque normalmente tem sempre o irmão em casa. Os vizinhos ficam atentos, mas ela é muito independente. Às vezes vai comigo para o restaurante, quando não arranjo nenhuma alternativa, mas não gostam que a leve. - Era um quadro bastante realista do que significava criar filhos sozinha, e Julie não escondia como lhe era dificil fazê-lo. Ficara sozinha dez anos antes quando os filhos tinham dois e quatro anos, e já vivera noutras cidades, apesar de gostar muito daquela em especial; aliás, Julie previa que Maribeth também viesse a gostar muito de morar naquele local. - É uma cidade pequena, mas agradável, e há muito boa gente a trabalhar na universidade. Costumam frequentar o Jimmy D's, tal como os estudantes. Tenho a certeza que vão todos gostar muito de ti!

Em seguida, Julie indicou a Maribeth onde ficava a casa de banho e o quarto do filho. Chamava-se Jeffrey e ia estar fora por duas semanas. Julie ofereceu a casa a Mari beth até esta encontrar um quarto. Se houvesse necessidade, a filha dormiria com ela quando Jeffrey regressasse, para que Maribeth pudesse ficar com o quarto de Jessica; no entanto, com tantos estudantes na cidade, tinha a certeza que Maribeth depressa encontraria um quarto para alugar.

E estava certa. Ao meio-dia do dia seguinte, já Maribeth tinha encontrado um quarto adorável numa casa particular. Estava decorado com uma combinação de chintz rosa com motivos florais, tinha muita luz e um preço aceitável. Além disso, ficava apenas a seis quarteirões do Jimmy D's, que passaria a ser o seu local de trabalho. Parecia que estava tudo a correr da melhor forma e Maribeth sentia-se feliz naquela cidade, apesar de ter chegado apenas algumas horas atrás. Era como se soubesse que havia uma razão e um propósito para estar naquele local.

A caminho do trabalho, escreveu aos pais um postal a comunicar-lhes a nova morada; pensou, então, mais uma vez em Paul, embora soubesse que era inútil fazê-lo. Iria passar toda a sua vida a pensar em Paul, a imaginar o que estava ele a fazer e onde estaria o filho de ambos? Nesse dia, no Jimmy D's, uma das empregadas de mesa entregou-lhe um uniforme rosa com mangas curtas e um avental branco lavado. E logo nessa tarde começou a servir à mesa. Vários rapazes olharam para ela, e Maribeth deu-se conta de que o cozinheiro também reparara nela, mas ninguém lhe faltou ao respeito. Todos foram simpáticos e educados, e Maribeth notou que as colegas tinham-se encarregado de espalhar que era viúva; ninguém suspeitou do contrário e todos acreditaram que, de facto, o era.

- Como vai isso, miúda? - perguntou Julie perto do final da tarde, impressionada com Maribeth. Tinha trabalhado bem, era agradável para toda a gente e via facilmente que os clientes simpatizavam com ela. Alguns quiseram mesmo saber o seu nome, e os clientes mais jovens indicaram ter gostado realmente dela. Jimmy também tinha gostado de Maribeth; tinha vindo trabalhar nessa tarde e o que vira agradara-lhe: era inteligente e organizada e, segundo ele, só de olhar para ela podia-se concluir que era uma rapariga de confiança. Além do mais, era igualmente bonita, o que convinha bastante num restaurante. Ninguém gostava de ser atendido por uma empregada feia e rabugenta, que atirava o café para diante dos clientes, sem a mínima vontade de estar ali. Para que tal não acontecesse, Jimmy admitia apenas empregadas de mesa que, novas ou velhas, fossem alegres e simpáticas. Queria que fossem capazes de colocar os clientes à vontade, como Julie e as outras empregadas faziam. E agora Maribeth estava também a consegui-lo. Esforçava-se bastante e gastava daquele trabalho; na verdade, estava entusiasmadíssima por se encontrar a trabalhar ali.

No entanto, quando se dirigia para o quarto que era agora a sua nova casa, reparou que estava exausta, mas não deixou por isso de se recordar da sorte que tivera por en contrar tão depressa um trabalho e um sítio onde ficar. Daí em diante, podia prosseguir com a sua vida; podia até requisitar livros da biblioteca e continuar os estudos. Não permitiria que o que tinha acontecido lhe fosse estragar a vida, e já tinha decidido que tal não aconteceria. Aqueles meses equivaliam apenas a um desvio, mas Maribeth decidira que não a fariam perder de vista o rumo que sempre desejara atingir.

Na noite seguinte, estava ela a levantar quando entrou um rapaz muito sério no restaurante e encomendou rolo de carne. Julie informou que ele vinha frequentemente ali jantar ou a meter-se numa mesa.

- Não sei bem porquê - continuou, com convicção -, mas tenho a sensação que esse rapaz não gosta de ir para casa. Não conversa, não sorri... mas é sempre educa do. Deve ser um bom miúdo. Tenho sempre vontade de lhe perguntar o que faz aqui em vez de estar em casa a jantar. Se calhar, não tem mãe... Alguma coisa lhe aconteceu. Tem os olhos mais tristes que já vi. Porque é que não vais servi-lo e o tentas animar? - Julie empurrou Maribeth ao de leve na direcção onde estava o rapaz, ao fundo do balcão. Levara apenas um ou dois minutos a ler a ementa e a decidir o que queria jantar. Já provara quase todos os pratos do restaurante e tinha alguns favoritos que gostava sempre de pedir.

-Boa noite. 0 que é que deseja? - interrogou Maribeth, acanhada, enquanto ele a admirava, dissimuladamente.

- 0 prato puré de batata. -lhe bastante e esforçava-se por não suas formas.

- A acompanhar com salada, milho ou espinafres? - Maribeth permanecia distante.

- Com milho, por favor - respondeu, observando-a. Tinha a certeza de que nunca a tinha visto antes, e era assíduo naquele restaurante. Costumava jantar ali três ou quatro vezes por semana, e por vezes até durante o fim-de-semana. A comida era de boa qualidade e o preço não era elevado. E desde que a mãe deixara de cozinhar, era a única forma que tinha de saborear um jantar em condições.

- Café?

- Não, leite. E como sobremesa, tarte de maçã à la enode - informou, receando que esgotasse; ela sorriu. - Como é que sabe se no fim vai conseguir comê-la? Olhe que servimos grandes quantidades...

- Eu sei. - Sorriu também. - Costumo vir aqui comer muitas vezes. É nova aqui, não é? - Maribeth respondeu que sim, sentindo-se pela primeira vez tímida desde que ali chegara. Era um rapaz simpático; ela suspeitava que devia ter a sua idadé e tinha a impressão que também ele se dava conta desse facto.

- Sim, sou nova. Acabei de me mudar.

- Como te chamas? - Ele era muito directo e muito sincero. Mas Julie tinha razão, havia uma enorme tristeza nos olhos dele. Maribeth quase receava olhá-lo nos olhos, mas sentia-se obrigada a fazê-lo, porque havia nele algo que a atraía; era como se necessitasse de descobrir quem ele era, saber mais sobre aquele rapaz.

- Chamo-me Maribeth.

- Sou o Tom. Muito prazer em conhecer-te.

- Obrigada. - Ela foi então encomendar o jantar e voltou para lhe trazer o copo de leite. Julie brincara já entretanto com Maribeth, argumentando que nunca antes o vira conversar tanto com alguém.

-De onde és? - quis saber ele, quando voltou, ao que ela respondeu. Ele prosseguiu: - ber por que razão mudaste para esta cidade?

- Por uma série de motivos: gosto deste sítio, as pessoas são simpáticas e o restaurante é óptimo. Encontrei um quarto aqui perto, pequeno, mas muito bonito. Tudo se ajustou para que aqui ficasse... - Maribeth sorriu, surpreendida por verificar como era fácil conversar com ele. E, quando voltou para lhe trazer o jantar, ele mostrou-se mais interessado em conversar com ela do que em comer.

Saboreou muito lentamente a tarte de maçã e depois pediu que lhe trouxessem mais outra fatia e outro copo de leite, o que nunca fizera antes. Falou-lhe acerca da modali dade de pesca que se praticava ali nas redondezas e perguntou-lhe se já algum dia pescara.

Maribeth respondeu que sim, há muitos anos, com o pai e o irmão, mas nunca fora muito bem sucedida. Preferia ficar sentada ao ar livre enquanto eles pescavam, a ler e a pensar.

- Podias acompanhar-me para a próxima vez - sugeriu então ele, corando logo em seguida e tentando perceber o que o levara a falar tanto com ela. Desde que entrara no restaurante e a vira, não conseguia tirar os olhos dela.

Deixou-lhe uma generosa gratificação e depois ficou durante alguns minutos diante do balcão, indeciso.

- Bem, obrigado por tudo e até à próxima. - Saiu, e Maribeth ficou a reparar na altura e na magreza dele. Tinha boa aparência, mas não mostrava ter consciência disso, além de que parecia ser também muito novo; talvez o viesse a encarar mais como um irmão do que como um rapaz por quem pudesse vir a interessar-se; contudo, fosse qual fosse o caso e mesmo que nunca mais o visse, tinha sido muito agradável conversar com ele.

Tom, porém, regressou no dia que se seguiu, e no outro dia a seguir a esse, e ficou profundamente desiludido ao verificar que Maribeth tivera um dia de folga e ele não o soubera. Voltou depois após o fim-de-semana.

-Da última vez que aqui vim, dei pela tua falta - comentou, ao pedir frango frito. Tinha um apetite saudável e pedia sempre a refeição completa. Devia gastar todo

o dinheiro que ganhava a entregar jornais ao domicílio em comida, e Maribeth sentia curiosidade em saber se viveria com os pais; finalmente, acabou por lhe perguntar.

- Moras sozinho? - indagou cautelosamente, enquanto trazia a refeição que ele pedira e voltava a encher o copo de leite. Resolveu não apontar o que tinha feito; afi nal, ali no restaurante era hábito oferecerem as segundas doses de café, e decerto Jimmy não iria à falência por pagar um copo de leite a um cliente habitual como Tommy.

- Não, moro com os meus pais, mas... eles... Bem... lá em casa cada um leva uma vida independente. E a minha mãe já não gosta de cozinhar. É professora e vai re gressar ao trabalho no Outono. Esteve muito tempo a trabalhar como professora substituta, mas agora vai voltar a dar aulas no liceu a tempo inteiro.

- Que disciplinas ensina?

- Inglês, Estudos Sociais e Literatura. É boa professora. E quase todos os dias me dá trabalho extra para fazer - acrescentou, piscando os olhos, apesar de Maribeth adivinhar que ele não se importava muito com o fado.

- Tens sorte. Tive de parar de estudar por uns tempos e vou sentir muito a falta da escola.

- Do liceu ou da universidade? - perguntou, interessado. Estava ainda a tentar descobrir-lhe a idade. Ela parecia mais velha do que ele, mas, nalguns momentos, Tommy tinha a impressão que a idade dela era aproximada da sua. Maribeth hesitou apenas um instante antes de responder.

- Do liceu. - Tommy concluiu que ela deveria frequentar o último ano. - Vou tentar estudar sozinha até regressar... depois do Natal - confessou, um pouco na defensiva, e Tommy ficou a pensar porque tersa ela intercompido os estudos, mas achou melhor não perguntar. - Se quiseres, posso emprestar-te alguns livros. Posso também pedir alguns cadernos de exercícios à minha mãe. Tenho a certeza que ia gostar de ajudar. Costuma defender que todos deveriam aumentar os conhecimentos e pesquisar sozinhos. Gostas de estudar? - 0 olhar dela, ao responder que sim, fez Tommy perceber que Maribeth estava a ser sincera. Havia nela uma fome imensa de aprender, um apetite que não tinha sido ainda satisfeito. No seu dia de folga, Maribeth tinha ido à biblioteca requisitar livros que a ajudassem a manter-se a par das aulas que estava a perder.

- Qual é a tua disciplina preferida? - quis saber ela, enquanto retirava o prato de diante de Tommy. Pedira tome de frutos silvestres à la mode, que Tommy adorava, a melhor sobremesa do restaurante.

- Inglês - respondeu, enquanto Maribeth lhe servia a tome, sentindo uma dor nas costas. Mas gostava de conversar com Tommy; os dois tinham sempre muito a dizer um ao outro. - Literatura Inglesa e Escrita Literária. Às vezes, penso que deveria gostar de vir a ser escritor. A minha mãe ia gostar, apesar de o meu pai ter esperança que eu siga o seu negócio.

- Que tipo de negócio é? - interrogou Maribeth, intrigada com Tommy. Era um rapaz inteligente e bonito, mas, no entanto, parecia sempre muito só. Nunca trazia amigos e nunca mostrava ter vontade de regressar a casa. Pensava muito nele e no motivo por que séria tão solitário.

- Produção e vendas - esclareceu. - Foi o meu avô quem iniciou o negócio: primeiro cultivaram produtos agrícolas, mas depois começaram a vendê-los por toda a parte. É muito interessante, mas gosto mais de escrever. Talvez gostasse também de ensinar, como a minha mãe. - Tommy encolheu então os ombros, e Maribeth achou-o de novo muito jovem. Ele gostava de conversar com ela e não se importava de responder às suas perguntas. Também tinha umas quantas para lhe fazer, mas decidiu guardá-las para outra ocasião. Nessa noite, antes de sair, Tommy quis apenas saber quando seria o próximo dia livre dela.

- Sexta-feira.

Tommy ouviu em silêncio, pensando se Maribeth ficaria muito chocada por ele a convidar para ir dar um passeio ou para ir nadar à enseada que havia nos arredores da cidade.

- Será que poderíamos combinar algum programa para essa tarde? De manhã, tenho de ir ajudar o meu pai, mas podia ir buscar-te por volta das duas da tarde. Peço a carrinha do meu pai emprestada e podíamos ir até à enseada, perto do lago. Também podemos ir pescar, se quiseres. - Tommy esperava pela resposta de Maribeth com um olhar ansioso, mas cheio de esperança.

- Gostava muito. Escolhe o programa que preferires. - Maribeth baixou então a voz, para que as colegas não a pudessem ouvir, sem hesitar um segundo. Tommy era o tipo de pessoa em quem se podia confiar, e ela sentia-se extremamente à vontade na sua companhia. Instintivamente, apenas por conversar algumas vezes com ele, Maribeth tinha a certeza que Tommy Whittaker era seu amigo e que nada faria para a magoar.

- Combinaste sair com ele? - perguntou Julie, sorrindo, curiosa, depois de Tommy ter saído.

Uma das empregadas julgava tê-lo ouvido convidar Maribeth para irem pescar, e estavam todas a comentar o sucedido, rindo e brincando sobre o assunto. Apesar de ser muito jovem, todas gostavam muito de Maribeth. E gostavam de Tommy, também, que permanecera um mistério desde que começara a frequentar o restaurante no último Inverno. Nunca lhes tinha explicado nada, limitava-se a entrar e a pedir o jantar. Mas, com Maribeth, animara-se bastante e nunca mais parara de falar.

- Claro que não - respondeu Maribeth à pergunta de Julie. - Não aceito convites de clientes - justificou com presteza, apesar de Julie não ter ficado nem um pouco convencida.

- Podes fazer o que quiseres, sabias? 0 Jimmy não se importa. E este é um miúdo simpático e gosta realmente de conversar.

- É apenas um amigo, mais nada. A mãe dele detesta cozinhar e é por isso que ele vem aqui jantar.

-Bem, com toda a certeza, já sabes a história pleta da vida dele...

- Oh, por amor de Deus... - Maribeth fez uma reta e foi até à cozinha buscar uma bandeja com hambúrguers para um grupo de estudantes. Mas, enquanto regres sava, carregando a bandeja pesada, trazia nos lábios um sorriso e imaginava como seria a sexta-feira seguinte.

 

Na sexta-feira, o pai de Tommy deixou-o sair às onze horas, e ele foi buscar Maribeth às onze e meia. Maribeth vestira umas calças de ganga velhas, uma camisa muito lar ga que pertencera ao pai e calçara sapatos de vela. As calças estavam dobradas até aos joelhos e apanhara o seu cabelo ruivo e brilhante em dois rabos-de-cavalo. Aparentemente, não passava de uma miúda de catorze anos. A camisa larga destinava-se a esconder a barriga, que continuava a aumentar, fazendo já algumas semanas que não conseguia apertar o fecho das calças.

- Olá! Acabei mais depressa do que pensava! Disse ao meu pai que ia pescar, e ele achou a ideia tão boa que me deixou sair mais cedo.

Tommy ajudou-a a entrar na carrinha e pararam depois no pequeno supermercado que ficava no caminho para comprar sanduíches para o almoço. Tommy escolheu uma de carne, mas Maribeth preferiu atum. Ambas as sanduíches eram enormes e apetitosas, e compraram também uma embalagem com seis latas de refrigerante e um pacote de bolachas.

- Queres levar mais alguma coisa? - perguntou Tommy, muito entusiasmado por estar com ela. Maribeth era muito bonita, muito viva, e havia algo nela extremamente adulto. Não vivia com os pais e tinha um emprego, o que a fazia parecer madura e muito mais velha do que era. Maribeth escolheu algumas maçãs e uma barra de chocolate, e Tommy insistiu depois em pagar. Ela ainda o tentou convencer a dividir a despesa, mas ele não o permitiu. Seguiram então ambos para a carrinha, com Tommy a carregar as compras com a sua postura aprumada, muito alto e magro, admirando a silhueta dela.

- Por que motivo saíste de casa tão nova? - perguntou, enquanto se dirigiam para o lago. Ainda não ouvira ninguém comentar que Maribeth era viúva; por isso, calculava que talvez os pais dela tivessem morrido, ou que algo de trágico tivesse acontecido na vida dela. Era raro uma jovem da idade de Maribeth sair de casa e intecrpmper os estudos, e havia algo nela que o fazia suspeitar que deveria ter uma longa história.

- Eu... bem, não tenho a certeza. - Maribeth ficou muito tempo a olhar fiara a janela e depois voltou-se novamente para ele. - E uma longa história. - Encolheu os ombros, recordando o que passara ao sair de casa para ficar recolhida no convento. Tinha sido o local mais deprimente que conhecera, e todos os dias se alegrava por não ter permanecido em tal sítio. Pelo menos ali sentia-se viva, tinha um emprego, tomava conta de si própria e, agora, conhecera Tommy. Talvez ficassem amigos. Começava a admitir que era possível ter uma vida normal naquela cidade. Já telefonara para casa algumas vezes, mas a mãe limitava-se a chorar e não permitiam que falasse com Noelle. Da última vez que telefonara, a mãe afirmara que talvez fosse melhor ela não ligar mais e, em vez disso, escrever. Os pais estavam satisfeitos por a saberem bem e de boa saúde, mas o pai continuava muito zangado com ela e negava-se a falar-lhe até o oproblema dela estar resolvido". A mãe referia-se sempre ao filho que Maribeth esperava como o seu oproblema".

Maribeth soltou um suspiro, relembrando tudo isso; depois, olhou para Tommy. Era um rapaz muito bonito e interessante, e devia ser um óptimo confidente.

-Tivemos uma grande discussão e o meu pai obrigou-me a sair de casa. Ele queria que eu ficasse na cidade onde moramos, mas, depois de algumas semanas, descobri que não podia mais ficar ali. Por isso, vim para aqui e arranjei este emprego. - A forma como o explicava tornava toda a história muito simples, sem incluir o sofrimento que lhe causara, bem como todo o medo e mágoa.

- Mas tencionas regressar? - Tommy estava confuso, pois Maribeth já tinha dito que iria regressar a casa após o Natal.

- Sim. Tenho de voltar a estudar - respondeu ela, mecanicamente. A estrada inclinava-se preguiçosamente na direcção do lago e a cana de pesca de Tommy vinha atrás. -Porque não frequentas o liceu local?

- Não posso - afirmou Maribeth, sem querer aprofundar mais aquele tema. Em seguida, para mudar um pouco de assunto, Maribeth fitou-o e imaginou como se ria a família dele e por que razão ele nunca mostrava querer estar com os pais.

- Tens irmãos? - interrogou cautelosamente quando chegaram, apercebendo-se de novo do pouco que sabia acerca dele. Tommy desligou o motor, fitou-a e ficou em silêncio por um longo momento.

- Tive uma irmã - respondeu depois, pausadamente -, a Annie. Tinha cinco anos. Morreu a seguir ao Natal. - Sem mais uma palavra, saiu da carrinha e foi buscar

a cana de pesca, enquanto Maribeth o observava, ponderando se seria essa a dor que se adivinhava tão facilmente no olhar dele e o motivo por que nunca estava em casa com os pais.

Saiu então também e seguiu-o até ao lago. Encontraram um local sossegado depois de passarem uma pequena enseada, e Tommy resolveu tirar as calças de ganga, pois trazia por baixo calções de banho. Desabotoou também a camisa, enquanto Maribeth o observava. Por breves instantes, veio-lhe ao pensamento a imagem de Paul, mas não existiam muitas semelhanças entre ambas; ou melhor, não existia nenhuma. Paul era insinuante, sofisticado e, acima de tudo, agia como o melhor e mais popular aluno de liceu; era também já casado e fazia parte de uma outra vida. Em Tommy, tudo era puro e completo. Parecia ser extremamente inocente e incrivelmente simpático e Maribeth estava pasmada por verificar até que ponto ele lhe agradava.

Sentou-se na areia ao lado dele, vendo-o prender o isco ao anzol.

- Como era ela? - Fez essa interrogação em voz muito suave, e Tommy não desviou os olhos daquilo que estava a fazer.

-A Annie? - Levantou então o rosto na direçção do Sol e fechou os olhos durante uns segundos antes de a encarar. Não queria falar sobre esse assunto; no entanto, sen tia que podia conversar com Maribeth. Tinha a certeza que iriam ser amigos, mas desejava mais dela. Maribeth tinha umas pernas maravilhosas, uns olhos lindos, um sorriso que o conquistava e um corpo sensacional. Mas desejava também ser seu amigo, desejava poder ser útil e apoiá-la quando precisasse de um amigo. Tommy pressentia que era esse o caso, embora não soubesse porquê, pois havia algo de muito vulnerável em Maribeth. - Era a menina mais doce que podes imaginar. Tinha olhos grandes e azuis e o cabelo muito louro, quase branco. Parecia o anjo que enfeita o topo das árvores de Natal... Mas, às vezes, sabia ser também um pequeno diabo! Gostava de me irritar e seguia-me para toda a parte. Fizemos juntos um enorme boneco de neve antes de ela morrer... - Os olhos de Tommy encheram-se de lágrimas e abanou então a cabeça. Era a primeira vez que falava da irmã, e não estava a ser nada fácil; Maribeth compreendeu. - Sinto muito a falta dela - admitiu, em voz tão baixa que mais parecia um murmúrio.

Maribeth tocou-lhe no braço ao de leve.

-Às vezes, é bom chorar... Calculo como deves sentir a falta dela. Esteve doente durante muito tempo? - Dois dias. Pensámos que era só uma gripe, ou uma constipação, mas afinal era meningite. Não puderam fazer nada no hospital, foi tudo muito rápido. Não consegui parar de pensar que devia ter sido eu a morrer em vez dela. Por que razão teve de ser a Annie? Tinha apenas cinco anos e nunca fez nada para magoar ninguém, só nos trouxe felicidade. Eu tinha dez anos quando ela nasceu... era tão engraçada, tão bonita, tão doce e tão meiga! Parecia um cachorrinho felpudo... - Tommy sorriu, relembrando Annie, e aproximou-se de Maribeth, movendo-se na areia quente e pousando a cana de pesca a seu lado. De uma certa forma, por muito estranho que lhe parecesse, falar sobre Annie causava-lhe agora uma boa sensação, como se por breves instantes a pudesse trazer de volta para junto de si. Nunca mais falara com ninguém sobre a irmã, nem ninguém a referia nas conversas que tinham com ele e, aos pais, não podia dizer nada.

- Deve ter sido muito duro para os teus pais - comentou Maribeth, com uma maturidade que evoluíra paca além da idade que tinha, falando como se os conhecesse.

- Sim. Foi como se tudo parasse depois da morte dela. Os meus pais deixaram de conversar um com o outro e comigo. Agora, ninguém fala, nem saímos mais em con junto, nem ninguém sorri. Eles nunca se referiram mais a ela; aliás, quase nunca mais falaram sobre qualquer outro assunto. A mãe deixou praticamente de cozinhar, e o pai nunca çhega a casa ántes das dez da noite. É como se nenhurn de`nós conseguisse estar em casa sem a presença da Annie. No 0ùtono, a minha mãe vai voltar a trabalhar a tempo inteiro. Parece que a morte dela nos fez desistir a todos. Nãó foi só a Annie que morreu, nós morremos também. Passei a detestar estar em casa, é demasiado triste e deprimente, e odeio passar pelo quarto dela, parece sempre tão vazio...

Maribeth limitava-se a ouvir. Tinha dado a mão a Tommy e tinham ambos o olhar fixo no horizonte, para além do lago.

- Quando pézisas nela, já alguma vez a sentiste ao teu lado? - perguntou erìtãd, sentindo a mesma dor que ele sentia, como se tivesse conhecido Annie. Quase podia ver a imagem dessa menina bonitá que Tommy tanto amara e sentir o sofrimento agudo que a perda dela lhe causara. - Às vezes, sim. Costumo ~cbnversar com ela durante a noite. Talvez seja uma atitude tola, mas, por vezes, tenho a sensação de que ela me ouve. - Maribeth fez sinal que entendia; quando a avó falecera, Também ela tinha feito 0 mesmo e sentira-se bastante mais confortada.

- Aposto que pode ouvir-te, Tommy. Quem sabe se não está sempre ao teu lado a olhar por ti? Talvez esteja feliz agora... Talvez haja pessoas que não estão destjnadas a permanecer para sempre nas nossas vidas. Podem ter vindo só de passagem, podem ter terminado o que aqui vieram fazer mais rapidamente do que todos nós e, por isso, já não precisam de mais uma série de anos para completar a tarefa. Conseguem realizá-la muito depressa, como se... - Esforçava-se por encontrar as palavras certas, pois esse era um assunto que sempre a preocupara, especialmente nos últimos tempos. - E como se certas pessoas surgissem nas nossas vidas para nos trazerem algo: uma dádiva, uma bênção ou uma lição que precisamos de aprender, e foi exactamente por esse motivo que vieram ao nosso encontro. Tenho a certeza que aprendeste alguma coisa com a tua irmã... sobre o amor, sobre partilha e sobre gostar muito de alguém. Esse foi o presente que ela te ofereceu. Ensinou-te tudo isso, e depois partiu. Talvez não tivesse de ficar mais tempo. Deixou-te essa dádiva e depois ficou livre para continuar o seu caminho... Foi alguém muito especial... e terás sempre essa dádiva contigo.

Tommy ouvia, tentando absorver tudo o que Maribeth lhe dizia. Fazia sentido, pelo menos era lógico, mas a dor era ainda muito forte. Contudo, melhorara desde que conversara com Maribeth, que, realmente, parecia entender bem todos os seus sentimentos.

- Gostava que ela pudesse ter ficado mais tempo connosco - desabafou, suspirando. - Gostava também que a tivesses conhecido. - Sorriu, então. - Teria muito para dizer a nosso respeito: se eu gostava realmente de ti, que eras mais bonita do que qualquer outra pessoa e se gostavas ou não de mim. A Annie gostava tanto de dar opiniões! Na maioria das vezes, deixava-me doido!

Maribeth riu, achando essa ideia engraçada, e sentiu pena de não ter conhecido Annie. Mas, se isso tivesse sido possível, nunca teria encontrado Tommy, porque ele nun ca iria jantar três ou quatro vezes por semana ao restaurante, mas estaria em casa, a jantar com a família.

- Que teria a Annie comentado a nosso respeito? - provocou Maribeth, gostando do jogo, gostando de Tommy e sentindo-se extremamente bem ali sentada na areia a seu lado. Aprendera, nos últimos meses, duras lições sobre as pessoas em que deveria ou não confiar, e jurara nunca mais depositar total confiança em ninguém; mas, do fundo do coração, vinha a certeza de que Tommy Whittaker era diferente.

- Teria descoberto logo que eu gosto de ti. - Sorriu, acanhado, e Maribeth reparou pela primeira vez que ele tinha sardas no nariz, embora fossem muito pequenas e, sob a intensa luz do sol, se tornassem douradas. - E teria tido razão, o que, normalmente, não acontecia. - Porém, naquele caso, Annie teria detectado imediatamente o quanto o irmão gostava de Maribeth. Era muito mais madura do que as raparigas que conhecia no liceu, além de ser a mais bonita que alguma vez vira. - A Annie ia gostar muito de ti. - Sorriu docemente e deitou-se na areia a admirar Maribeth, sem disfarçar o quanto esta lhe agradava. - E quanto a ti? Deixaste algum namorado na cidade onde vivias? - Tommy tinha decidido esclarecer de imediato esse ponto, para poder entender até onde poderia ir. Ela hesitou um segundo, pensando se lhe deveria contar a história que inventara acerca do jovem marido que morrera na guerra da Coreia, mas depois resolveu não o fazer. Se viesse a ser necessário, explicá-lo-ia noutra ocasião.

- Não, nem por isso.

- Nem uma relação especial?

Desta vez, Maribeth abanou firmemente a cabeça como resposta.

- Saí apenas com um rapaz de quem pensava gostar, mas estava enganada. E, seja como for, ele casou-se há pouco tempo.

Tommy ficou intrigado; talvez fosse um homem mais velho.

-E ficaste triste? Por ele se ter casado, é claro.

- Não muito. - 0 que mais a entristecia era o facto de ele a ter deixado à espera de um filho, um &lho que ela não poderia manter e que, na verdade, nem desejava. Isso era o que a deixava realmente muito triste, apesar de não o ter explicado a Tommy.

- Que idades tens, a propósito?

- Dezasseis anos. - Em seguida, chegaram à conclusão que tinham nascido apenas com algumas semanas de diferença. Eram exactamente da mesma idade, mas as suas situações eram bem distintas. Por muito distantes que os pais de Tommy agora fossem, ele fazia ainda parte de uma família, tinha um lar para onde ir e voltaria a estudar no início do novo ano escolar. Maribeth deixara de ter tudo isso, e em menos de cinco meses daria à luz um filho, um filho de um homem que nunca a tinha amado. Era terrivelmente assustador.

Tommy decidiu depois ir passear até ao lago, e Maribeth acompanhou-o. Ficaram lado a lado enquanto ele pescava e, quando depois finalmente se aborreceu, voltou ao local inicial para deixar a cana e foi mergulhar na água. Mas Maribeth não o acompanhou, ficou à sua espera na areia. Quando Tommy saiu da água, quis saber por que motivo ela não queria nadar. Estava um dia bastante quente, e a água fresca aliviava o calor da pele. Maribeth teria adorado nadar na companhia de Tommy, mas não queria que ele reparasse na sua barriga saliente. Não tirou vez nenhuma a camisa do pai, e só despiu as calças quando estiveram com os pés dentro de água.

- Sabes nadar? - interrogou ele. Maribeth riu, tindo-se idiota.

- Sei, sim, mas hoje não me apetece. Tenho um certo receio de nadar em lagos. Nunca se sabe o que se pode encontrar debaixo de água.

- Que patetice! Porque não entras na água? Nem seqúer existem peixes: Bem viste que não consegui apanhar nénhum.

- Talvez para a próxima vez - respondeu ela, desenhando figuras na areia com o dedo. Almoçaram debaixo da sombra de uma árvore gigantesca e conversaram acerca das suas famílias e da infância. Maribeth contou-lhe que tinha dois irmãos, Ryan e Noelle, e referiu que o pai defendia que os filhos deveriam experimentar tudo, enquanto as filhas mais não precisavam de fazer além de casar e ter filhos. Contou-lhe também que gostaria muito de seguir uma carreira, de ser professora, advogada ou escritora, e que não queria casar e ter filhos logo após terminar o liceu.

- Pareces-te muito com a minha mãe - comentou Tommy, sorrindo. - Depois de terminar o liceu, fez o meu pai esperar seis anos para se casar. Entrou na universi dade e tirou o seu diploma e só depois puderam casar. Ainda demoraram mais sete anos para me terem a mim, e outros dez para terem a Annie. Penso que devem ter tido dificuldades em ter filhos. Mas seguir uma carreira é algo a que a minha mãe dá muita importância. Costuma dizer que as únicas coisas valiosas que se têm na vida é a inteligência e a educação.

- Quem me dera que a minha mãe pensasse assim! Faz tudo o que o meu pai diz e julga que as raparigas não precisam de frequentar a faculdade. Os meus pais não que rem que eu tire um curso superior, mas teriam permitido que o Ryan entrasse para a faculdade, se ele o quisesse. Mas ele só quis trabalhar na oficina com o meu pai. Podia também ter ido para a guerra da Coreia, se não tivesse um impedimento de ordem médica, mas o pai costuma dizer que ele é um óptimo mecânico. - Maribeth tentava explicar a Tommy coisas que nunca antes comentara com ninguém. - Sempre me senti diferente deles. Sempre desejei alcançar coisas a que ninguém da minha família dá valor: quero frequentar a universidade, quero aprender mais e quero tornar-me bastante culta. Não quero apenas apanhar um tipo qualquer e ter uma série de filhos! Quero fazer algo da minha vida. Todos aqueles que conheço julgam-me louca! - Mas Tommy não a julgava dessa forma, e Maribéth apercebia-se disso, pois vinha de uma família que pensava exactamente da mesma forma que ela. Era como se tivesse sido lançada no local errado quando nascera e ficasse condenada a uma vida inteira de incompreensão. - Acho que, no final, a minha irmã vai acabar por lhes fazer a vontade. Ela protesta, mas é boa rapariga; tem treze anos, e já é doida por rapazes! - Mas, por outro lado, não fora Noelle quem engravidara de Paul Browne, depois de passar uma noite no banco do seu carro; como tal, Maribeth sentia que não tinha o direito de lançar calúnias sobre irmã.

- Um dia, devias conversar com a minha mãe, Maribeth. Ias gostar muito dela.

- Acredito que sim. - Ela fitou-o, curiosa. - A tua mãe iria gostar de mim? As mães costumam desconfiar sempre das raparigas de quem os filhos gostam. - Dela particularmente... dentro de alguns meses. Não, não havia a mínima possibilidade de vir a conhecer Mrs. Whittaker; daí a um mês, não poderia continuar a esconder a sua gravidez, nem sequer poderia continuar a sair com Tommy. Ainda não decidira o que iria dizer-lhe, mas chegaria a hora em que teria de inventar alguma justificação, mesmo se ele entrasse apenas no restaurante e a encontrasse. Teria de lhe repetir a história do jovem marido que morrera na Coreia, mas agora essa desculpa parecia-lhe uma idiotice. Gostaria muito de poder contar-lhe a verdade, mas não 0 podia fazer. Assim, ele descobriria como tinha sido irresponsável e como tudo fora tão terrível e chocante. Maribeth tinha a certeza que Tommy nunca mais a quereria voltar a ver. Por isso, dentro de algumas semanas, teria de lhe dizer que conhecera outra pessoa e tesa de deixar de sair com ele. Nessa altura, já as aulas dele teriam provavelmente recomeçado, e Tommy estaria já de novo ocupado; talvez se apaixonasse logo por alguma colega de liceu, uma das melhores alunas, o par ideal que com certeza faria parte dos conhecimentos dos pais dele...

-Então, em que estás a pensar? - interrompeu ele, entretanto. Maribeth estivera muito longe dali, pensando em todas as colegas por quem ele iria apaixonar-se. - Estavas tão triste, Maribeth... Passa-se alguma coisa? - Tommy sabia que algo a preocupava, mas não tinha ideia de como descobrir o que seria; afinal, só se tinham começado a conhecer há apenas algumas horas, apesar de sentir já um enorme desejo de a ajudar.

Pela primeira vez desde há muitos meses, a dor que sentia pela morte de Annie aliviara um pouco, graças às palavras de Maribeth; agora, Tommy gostaria de lhe retribuir essa ajuda.

- Não, não foi nada... Estava só a pensar... Nada de especial... - Tinha apenas um ser humano a desenvolver-se dentro de si, nada mais.

- Queres ir dar um passeio? - Caminharam até metade do lago, saltando por cima das rochas, passeando pela água e pisando a areia quente. Era um lago muito bonito, apesar de não ser muito grande. Já de regresso, mal atingiram uma comprida lingua de areia, Tommy desafiou-a para uma corada. Contudo, apesar das suas pernas longas e ágeis, Maribeth não conseguiu acompanhar Tommy. Acabaram por cair lado a lado na areia, onde ficaram estendidos, de olhos postos no céu, tentando normalizar a respiração, divertidos.

-Estive quase rocha.

-É mentira... Vinhas muito atrasada!

- Sim, sim, e tu partiste antes de mim! Fizeste batota! - Maribeth ria, com o rosto muito próximo do de Tommy, que a observava, admirando cada um dos seus traços.

- Não fiz nada! - defendeu-se ele, desejando imenso beijá-la.

- Fizeste, sim! Para a próxima, vou vencer-te!

- Sim... claro... Aposto que nem sequer sabes nadar! Tommy adorava provocá-la, estar perto dela, senti-la a seu lado. Pensava muitas vezes em como seria fazer amor com uma mulher. Gostaria muito de descobri-lo... de experimentá-lo a seu lado, mas Maribeth parecia-lhe simultaneamente tão mulher e tão inocente que receava tocar-lhe. Assim, rolou as costas na areia e ficou de barriga para baixo, para que ela não pudesse ver o quanto o iYnpressionava. Maribeth continuou deitada de costas ao lado de Tommy, mas, subitamente, a sua expressão alterou-se. Sentira uma espécie de pontada, uma sensação muita estranha, como se fossem asas de borboletas a bater dentro de si. Era uma impressão completamente nova, mas levou apenas um segundo para descobrir do que se tratava: eram os primeiros sinais de vida do seu filho...

- Sentes-te bem? - Tommy observava-a com preocupação. Reparara que Maribeth tinha alterado a sua expressão, parecendo ter ficado perplexa e distraída.

-Sinto - respondeu ela, subitamente apreensiva pelo que tinha acabado de suceder. Aquela sensação transportara-a de novo para o passado, fazendo-a entender como era real a gravidez e como o tempo estava a passar, independentemente da sua vontade. Tinha já pensado ir visitar um médico para verificar se estava tudo a bem, mas não conhecia nenhum ali na cidade e não gastar muito dinheiro na consulta.

-Às vezes, ficas com o pensamento muito distante - comentou Tommy, imaginando em que pensaria ela quando assumia aquela expressão. Gostaria de conhecer tudo acerca de Maribeth.

- Fico a pensar... nos meus pais... ou na minha irmã... - Costumas falar com eles? - Estava intrigado; havia ainda tantos mistérios em torno dela. Era toda uma situação nova e excitante.

- Escrevo-lhes. É melhor assim. 0 meu pai ainda se irrita muito quando telefono.

- Deves ter tomado alguma atitude que lhe desagradou bastante.

-É uma longa história, um dia conto-te. Talvez da próxima vez. - Partindo do princípio que haveria próxima vez.

- Quando voltas a ter um dia de folga? - Mal podia esperar por voltar a sair com ela. Adorava estar com Maribeth, sentir o aroma dos seus cabelos, ver a expressão do seu olhar, sentir a macieza da sua pele quando davam as mãos ou quando acidentalmente a tocava; gostava também daquilo que Maribeth lhe dizia e das ideias que trocavam. Gostava de tudo acerca dela.

- Tenho algumas horas livres na tarde de domingo, mas depois só volto a ter um dia de folga na quarta-feira. - Queres ir ao cinema no domingo à noite? - convidou Tommy, esperançoso. Maribeth socou. Nunca ninguém a convidara tanto para sair. A maioria dos colegas não mostrava o mínimo interesse nela, exceptuando os mais palermas como David O'Connor. Nunca namorara, nem saíra regularmente com ninguém... nem mesmo com Paul; aquela era uma situação completamente nova para Maribeth, uma situação que lhe agradava muito.

- Com muito gosto.

- Vou buscar-te ao restaurante, se estiveres de acordo. E, se quiseres, na quarta-feira podíamos voltar aqui, ou fazer qualquer outro programa que prefiras.

- Gosto muito deste sítio - respondeu, olhando em volta e fixando em seguida o olhar nele. Estava a ser sincera.

Não saíram antes das seis, depois de o Sol ter começado a afundar-se no céu, e regressaram lentamente para a cidade. Tommy teria gostado de a ter convidado para jan tar, mas prometera à mãe que a ajudaria a instalar uma nova estante para os livros. Além do mais, a mãe insistira em fazer o jantar, o que era raro. Tommy prometera estar em casa às sete horas.

Faltavam vinte minutos para as sete quando chegaram à pequena casa onde Maribeth morava. Ela saiu da carrinha, pesarosa, detestando ter de o deixar.

- Quero agradecer-te a tarde maravilhosa que passei. - Tinha sido o dia mais feliz de há muitos anos, e ele era o melhor amigo que alguma vez tivera. Devia ter sido 0 destino que fizera Tommy surgir naquela altura na sua vida. - Gostei muito.

- Também eu. - Sorriu, de pé ao lado dela, com os olhos atentos aos olhos verdes e brilhantes de Maribeth. Havia nela algo de luminoso que o hipnotizava, e,morria

de desejo de beijá-la. - Amanhã à noite vou ao restaurante jantar. A que horas acabas o teu turno?

- Só à meia-noite - respondeu, desgostosa. Gostaria muito de poder estar livre para sair com Tommy, pelo menos, até acabar o Verão. Depois disso, tudo mudaria, mas, por enquanto, podia ainda fingir que não iria ser assim. Contudo, depois de ter sentido o bebé a mexer dentro de si nessa tarde, sabia que esses dias estavam numerados.

- Trago-te a casa amanhã à noite, depois do trabalho. - Os pais não se importavam que saísse, e poderia dizer-lhes que iria a uma sessão de cinema mais tardia.

- Gostaria muito. - Maribeth sorriu para ele e deixou-se ficar nos degraus de entrada a acenar a Tommy, com um sorriso ainda maior nos lábios.

Quando chegou a casa, ele era o rapaz mais feliz de toda a cidade, e ainda sorria quando entrou em casa, faltavam cinco minutos para as sete.

- 0 que te aconteceu? Pescaste alguma baleia no lago? - A mãe sorria-lhe, vendo o filho guardar o equipamento de pesca. Fizera rosbife, o prato favorito do mari do, e Tommy pressentia que, por algum motivo, a mãe estava a esforçar-se por lhe agradar.

- Não, não pesquei nada... mas apanhei sol, passeei na areia e nadei! - 0 aroma que corria por toda a casa não podia ser mais convidativo, pois Liz fritara pastéis de massa folhada, preparara puré de batata e milho, o que constituía o prato favorito de todos, até de Annie. Contudo, nessa noite, a familiar dor aguda que todos sentiam ao relembrá-la parecia estar um pouco mais atenuada. Conversar com Maribeth acerca de Annie ajudara bastante e, apesar de ter consciência de que era impossível, Tommy desejava poder partilhar essa experiência com a mãe. - Onde está o pai? - Prometeu vir por volta das seis, mas atrasou-se.

Deve estar a chegar. Eu avisei-o que ia servir o jantar às sete. - Mas uma hora depois ainda não tinha regressado a casa, ninguém respondia no emprego, a carne estava já seca e Liz cerrava os lábios, aborrecida.

Às oito e quinze, mãe e úlho começaram a jantar, e, às nove, o pai entrava em casa, claramente alterado pelo excesso de bebida, mas muito bem-disposto.

- Bem, bem, vejo que a senhora resolveu fazer o jantar, para variar! - comentou alegremente, tentando beijá-la, mas ficando a vários centímetros de distância do rosto de Liz. - Qual é o motivo desta celebração?

- Prometeste chegar a casa às seis - aûrmou ela, inflexível -, e avisei-te que o jantar iria ser servido às sete. Pensei que já era tempo de a nossa família voltar a reunir -se para jantar. - As palavras da mãe assustaram Tommy, mas como não parecia provável que tal voltasse a acontecer, pelo menos durante mais algum tempo, resolveu não se preocupar antecipadamente.

-Esqueci-me. Não jantamos juntos há tanto tempo que não me lembrei. - John parecia apenas parcialmente arrependido e, quando se sentou à mesa, esforçou-se por parecer mais sóbrio do que na realidade estava. Era raro chegar a casa bêbedo, mas a vida durante os últimos sete meses fora bastante cinzenta; quando dois dos seus empregados lhe ofereceram alguma distracção e alívio em forma de um ou dois copos de uísque, isso não lhe parecera assim tão reprovável.

Liz serviu-lhe o prato, sem pronunciar vra, mas, ao segurá-lo, John contemplou preendido.

-A carne está muito seca, não está, querida? Sabes que gosto da carne mal passada. - Liz retirou-lhe o prato da frente, despejou o conteúdo para dentro do saco do lixo e atirou-o depois para o lava-louça, com uma expressão desapontada.

-Então tenta chegar a casa antes das nove! Há duas horas atrás, a carne estava mal passada, John - informou, de dentes cerrados.

Ele sentou-se, espantado e aborrecido. -Desculpa, Liz...

Liz voltou então as costas para o lava-louça e fitou o marido, esquecendo-se até mesmo da presença de Tommy. Aliás, os pais agora pareciam esquecer-se sempre do filho, como se, para eles, Tommy tivesse partido com Annie. As necessidades dele tinham deixado de ser importantes; estavam ambos demasiado desesperados para poder auxiliá-lo.

-Já não tem importância, pois não, John? Já nada importa, nenhuma das pequenas atenções que antes foram tão importantes. Desistimos todos.

- Mas não tem de ser assim - contrapôs Tommy, docemente. Maribeth incutira-lhe esperança nessa tarde e, já que não podia partilhar nada mais, gostaria de transmitir esse sentimento. - Ainda aqui estamos, e a Annie ia odiar o que está a passar-se connosco. Porque não tentamos passar de novo mais tempo juntos? Não tem de ser todas as noites, só de vez em quando...

- Diz isso ao teu pai - respondeu Liz, friamente, voltando-lhes as costas para começar a lavar a louça.

- É demasiado tarde, filho. - 0 pai pousou-lhe a mão no ombro antes de sair em direcção ao quarto. Liz terminou de lavar a louça, e em seguida, usando de poucas palavras, colocou a nova estante com a ajuda de Tommy. Iria necessitar dela para arrumar os livros de estudo, quando as ãulas começassem. Mas pouco ou nada conversou com o filho, referindo apenas o projecto a que estavam actualmente a dedicar-se e agradecendo-lhe a ajuda antes de se retirar para o quarto. Era como se tudo nela tivesse mudado nos últimos sete meses, como se toda a doçura e o carinho que a caracterizavam antes tivessem endurecido até se tornarem numa pedra. No olhar da mãe, Tommy detectava apenas desespero, dor e mágoa. Era óbvio que nenhum deles iria resistir ao trauma da morte de Annie.

Quando Liz entrou no quarto, encontrou John a dormir com a roupa ainda vestida. Deixou-se ficar um longo momento a observá-lo e depois fechou a porta do quarto. Talvez já não tivesse importância o que se passava entre eles. Consultara um médico há alguns meses atrás, que a informara não ser possível ter mais nenhum filho; por isso, nem valia a pena tentar. 0 nascimento de Annie trouxera consequências irreparáveis, e agora tinha quarenta e sete anos, além de que sempre tivera muita dificuldade em engravidar, mesmo quando jovem. Desta vez, o médico afirmara não existir esperança.

Já não tinha qualquer relação com o marido, ele nunca mais a tocara desde a noite anterior ao falecimento de Annie, a noite em que ambos tinham acreditado que ela tinha apenas uma constipação. Culpavam-se ainda ambos a si próprios e um ao outro, e a simples ideia de fazer amor com John causava-lhe uma repulsa natural. Liz não desejava voltar a fazer amor com mais ninguém, não queria voltar a sentir-se tão próxima de outra pessoa; não desejava igualmente gostar de ninguém, ou amar tanto quanto já amara, para não sofrer quando perdia os entes queridos; até mesmo em relação a John, ou a Tommy. Distanciara-se de ambos, tornara-se completamente fria, mas essa frieza servia apenas para mascarar a dor.

0 sofrimento de John era bastante mais aparente; estava em permanente estado de angústia e sentia terrivelmente a falta da sua menina, bem como da mulher e do filho. Não tinha para onde se dirigir, nem com quem desabafar a respeito dessa dor, pois ninguém poderia consolá-lo. Poderia ter traído a mulher, mas não desejava ter apenas sexo com alguém, e sim aquilo que tinha anteriormente com Liz. Queria o impossível: recuperar a vida que levava antigamente.

Mexeu-se um pouco quando ela andou pelo quarto a arrumar a roupa. Depois, Liz foi à casa de banho, vestiu a camisa de dormir e acordou-o antes de apagar a luz.

- Vai vestir o pijama - ordenou, como se estivesse a falar com uma criança ou, talvez, com um estranho. Era como se fosse uma enfermeira que olhava por ele e não uma mulher que o amara.

Ele sentou-se na beira da cama a aclarar as ideias,~e em seguida fitou a mulher.

- Lamento o que se passou esta noite, Liz, mas esqueci-me completamente. Talvez estivesse demasiado nervoso acerca de regressar para casa e começar tudo de novo. Não sei... Não tive intenção de deitar tudo a perder. - Mas fora exactamente isso o que fizera. A vida tinha-se encarregado de colocar tudo o que tinham a perder; ela deixara-os e nunca mais voltaria. Nunca - respondeu Liz, sem pensar em si mesma, nem no marido. - Combinamos qualquer dia. - Mas a voz dela indicava que ser totalmente sincera.

-Sim? Gostava muito... Sinto a falta dos nossos jantares em família. Todos tinham emagrecido nesse ano. Haviam sido sete meses muito duros, que haviam deixado marcas em toda a família. John envelhecera, e Liz tornara-se pálida e abatida, especialmente agora que tinha a certeza que não poderia voltar a ter outro filho.

John foi então à casa de banho vestir o pijama e, quando se deitou na cama ao lado de Liz, vinha penteado e a cheirar bem. Mas ela voltara-lhe as costas, e a sua posição indicava bem a rigidez e o desânimo que a dominavam.

- Liz? - chamou ele, no escuro do quarto. - Será que vais perdoar-me um dia?

- Não tenho nada para perdoar, não fizeste nada. - A voz dela estava tão sem vida quanto ela própria, e ambos se sentiam desse modo.

- Talvez se tivéssemos pedido ao médico para vir nessa noite... Se eu não te tivesse convencido que era apenas uma constipação...

- O doutor Stone diz que não teria feito qualquer diferença. - Mas Liz não parecia muito convencida. -Desculpa - murmurou John, sufocado pelas lágrimas e pousando uma mão no ombro da mulher; ela não se moveu, ainda mais rígida e distante depois de ele lhe ter tocado. - Lamento, Liz...

- Também eu - respondeu suavemente, mas sem nunca se voltar para ele, nem sequer o olhar.

Liz nunca chegou a ver John a chorar em silêncio na madrugada, deitado a seu lado, e John também nunca viu as lágrimas que molharam a almofada de Liz. Eram tal como duas pessoas que se afogavam discretamente, mas em oceanos diferentes.

Nessa noite, antes de adormecer, Tommy pensou nos pais e chegou à conclusão que já não existia a mínima esperança de os unir novamente. Para ele, era muito nítido o quanto todos haviam sofrido, a imensa dor que ainda os magoava e o desgosto demasiado grande, impossível de suportar ou de esquecer: Perdera não apenas a sua única irmã, mas também o seu lar e ambos os pais. A única ideia que o aliviava, deitado no escuro a pensar nos pais, era a perspectiva de voltar a encontrar Maribeth. Relembrou as suas longas pernas e o brilhante cabelo ruivo, a estranha camisa velha que ela usava e a corrida pela areia do lago... Recordou uma série de momentos desse dia, e depois deixou-se adormecer, sonhando com Maribeth a caminhar lentamente pela margem do lago, de mãos dadas com Annie.

No domingo, após Maribeth terminar o seu turno, Tommy levou-a a assistir ao filme Até à eternidade, com Burt Lencaster and Deborah Kerr, o qual ambos adoraram. Tommy sentou-se muito próximo dela, com um braço a rodear-lhe os ombros, enquanto comiam pipocas e chocolate. Maribeth chorou nas partes mais tristes do enredo e, no final, ambos concordaram que era um óptimo úlme.

Tommy levou-a depois a casa e fizeram planos para a próxima tarde de quarta-feira. Maribeth lembrou-se entretanto de lhe perguntar como tinha corrido o jantar com os pais, pois, embora já tivesse visto Tommy antes, esquecera-se de lhe fazer essa pergunta.

- Não muito bem - respondeu, pensativo. - Aliás, correu bastante mal. 0 meu pai esqueceu-se da hora a que deveria ter regressado a casa, julgo que foi sair com dois colegas de trabalho. Em resuma, o rosbife ficou seco de mais, a minha mãe ficou zangada e o meu pai apareceu bêbedo. Não foi exactamente uma noite perfeita! - gracejou Tommy. Era uma situação tão má que preferia usar da sua filosofia. - Passam a maior parte do tempo zangados um com o outro. Irritam-se por não poderem alterar o rumo dos acontecimentos, mas o pior é que não conseguem ajudar-se mutuamente.

Maribeth mostrou com um leve menear de cabeça que entendia, e sentaram-se ambos por alguns minutos nos degraus de entrada da casa onde ela morava. A velha senhora que lhe alugara o quarto gostava que ela se divertisse, pois simpatizava muito com Maribeth. Comentava frequentemente que ela estava demasiado magra, e Maribeth pensava que em breve isso deixaria de ser problema; na realidade, mesmo agora, já não o era. Maribeth começara já a ganhar peso, embora ainda conseguisse disfarçar bem esse excesso. Contudo, o avental que usava no serviço começava já a franzir abaixo do estômago.

 

- O que vamos então fazer na quarta-feira? - indagou Tommy, muito satisfeito. - Voltamos ao lago?

- Porque não? Mas gostava de ser eu, desta vez, a preparar o almoço. Posso levar algumas coisas cozinhadas de casa.

- Está bem.

- 0 que é que preferes?

- O que escolheres está bem para mim. - Tudo 0 que Tommy desejava era estar com ela. Sentado no degrau ao lado dela, sentia o corpo de Maribeth cada vez mais próximo do seu, mas, apesar disso, não conseguia arranjar coragem para se inclinar e beijá-la. Tudo nela o atraía, e o simples facto de estar tão próximo de Maribeth causava-lhe até quase uma dor fisica, mas tomá-la nos seus braços e beijá-la era ainda demasiado para ele. Maribeth apercebeu-se que Tommy estava bastante tenso, mas não soube interpretar bem o motivo dessa tensão, que atribuiu ao conflito com os pais.

- Talvez seja apenas uma questão de tempo - comentou então ela. - Só passaram ainda sete meses, tens de lhes dar outra oportunidade. Talvez o facto de a tua mãe voltar a trabalhar melhore a situação.

- Ou talvez a agrave ainda mais - contrapôs ele, não escondendo a sua preocupação. - Quando a minha mãe começar a trabalhar, vai passar a maior parte do tempo fora de casa. Quando a Annie era viva, ela sempre trabalhou em part-time. Agora deve pensar que já não precisa de estar tanto tempo em casa só por minha causa, e até lhe dou razão. Quando tenho aulas, nunca chego a casa antes das seis.

-Achas possível os teus pais virem a ter outro filho? - perguntou Maribeth, intrigada, sem saber ao certo que idade teria o casal. Mas Tommy abanou a cabeça; já tinha pensado nisso, mas julgava que já não lhes seria possível. -A minha mãe já tem demasiada idade para engravidar. Tem quarenta e sete anos, e já antes teve muita dificuldade em engravidar da Annie. Nem sequer tenho a certeza se os meus pais quereriam outro filho, nunca manifestaram esse desejo.

- Os pais nunca referem esses assuntos diante d'os filhos - observou ela somndo, sentindo-se levemente acanhada.

- Sim, é verdade. - Voltaram então aos planos para a próxima quarta-feira e depois Tommy prometeu ir jantar ao restaurante na segunda ou na terça-feira. Nessa altura, Julie já descobrira que Maribeth saía com Tommy, de forma que, sempre que este entrava, as colegas brincavam com ela. Mas faziam-no apenas com boas intenções, pois estavam contentes por verificar que Maribeth arranjara uma companhia tão boa quanto a de Tommy.

Tommy despediu-se então de Maribeth, apoiado num pé e depois no outro, sentindo-se desajeitado e pouco à vontade diante dela, o que era raro. Mas não desejava agir depressa nem lentamente de mais, não queria ser demasiado atrevido, nem queria dar a impressão que não gostava dela. Foi um momento desesperante para Tommy, mas Maribeth fechou em seguida suavemente a porta e começou a subir as escadas para o quarto, pensativa, ponderando o modo de lhe revelar um dia a verdade.

Na tarde do dia seguinte, Tommy acabou por ir visitá-la ao restaurante, e nos dois dias que se seguiram veio sempre buscá-la para a levar a casa depois do trabalho. Na quarta-feira, antes de a ir buscar, decidiu ir ao cemitério de manhã cedo, para visitar Annie.

Ocasionalmente, Tommy voltava ao cemitério para limpar a campa e varrer as folhas secas. Tinha plantado pequenas flores na terra, e aproveitava para deixar o local limpo e arrumado. Fazia-o por Annie e pela mãe, porque sabia que esta se preocupava com o estado em que se encontrava a campa, mas não tinha forças para a visitar.

Enquanto limpava, ia conversando com a irmã, e dessa vez falou-lhe de Maribeth e do quanto gostava dela. Agia como se Annie estivesse sentada algures no ramo de uma árvore a observá-lo do alto, enquanto ele lhe contava as últimas novidades.

- É uma rapariga fantástica... não tem borbulhas, e tem as pernas bonitas e compridas. Não sabe nadar mas, em compensação, cone bem. Ias gostar muito dela! - Sorriu, pensando em Maribeth e na sua irmã pequena. Em alguns aspectos, Maribeth lembrava-lhe o tipo de adolescente que Annie teria sido, caso tivesse um dia completado dezasseis anos. Ambas tinham o mesmo tipo de integridade directa e franca, e o mesmo sentido de humor e de ironia.

Tommy terminou então de arranjar a campa, relembrando o que Maribeth lhe explicara acerca das pessoas que passam pelas nossas vidas apenas para nos trazer uma dádiva ou uma bênção em especial. oTalvez haja pessoas que não estão destinadas a permanecer para sempre nas nossas vidas", observara ela. Fora a primeira vez que ouvira algo que fizera sentido a respeito de Annie. Talvez ela estivesse realmente de passagem... mas gostaria que Annie tivesse podido ficar um pouco mais.

0 pequeno espaço que lhe pertencia limpo e em ordem quando Tommy saiu. Mas como sempre, deixá-la ali sozinha e ler o seu nome na pequena lápide, aAnne Elizabeth Whittaker", deixava-lhe o coração partido. Havia também uma imagem embutida de um pequeno cordeiro, que sempre lhe inundava os olhos de lágrimas.

- Adeus, miúda... - sussurrou antes de se afastar. - Volto em breve... gosto muito de ti... - Ainda sentia muito a sua falta, especialmente quando vinha ao cemité quando chegou a casa de Maribeth, Tommy calado do que era hábito, o que esta notou.

-Algum problema...? - Observando-o, podia verificar que Tommy não se encontrava bem, o que a deixou imediatamente preocupada. - Aconteceu alguma coisa?

- Não. - Mas ficou sensibilizado por eía ter notado, e demorou cerca de um minuto para lhe responder. - Hoje fui visitar a... a campa da Annie, ao cemitério. De vez em quando, preciso de lá ir. A mãe gosta que eu vá, e

eu também... e além disso, a mãe detesta ter de ir ao cemitério. - Tommy esboçou então um sorriso e pousou os olhos na sua amiga, que tinha voltado a vestir a grande e larga camisa, mas, desta vez, com calções e sandáliás. - Falei-lhe a teu respeito, apesar de ela se calhar já saber tudo... - comentou, novamente descontraído na companhia dela. Gostava de partilhar os seus segredos com Maribeth, pois não encontrava nela nenhuma forma de hesitação ou censura. A presença de Maribeth bastava, como se fosse um prolongamento dele próprio, ou alguém com quem tivesse sido criado.

- Sonhei com a tua irmã uma noite destas - informou Maribeth, deixando Tommy perplexo.

- Eu também! Sonhei com vocês as duas a passearem à beira do lago. Senti tanta paz... - comentou; ela concordou.

- Sonhei que a Annie me pedia para tomar conta de ti, e que eu prometia que sim... como uma espécie de sucessão de pessoas: ela partiu, eu cheguei e agora ela pede -me para olhar por ti... e talvez, depois de mim, chegue mais alguém... e depois... É como uma eterna corrente de pessoas a chegar às nossas vidas. Penso que é isso que quis dizer no outro dia: nada é eterno, mas há uma continuação ininterrupta de pessoas que passam pelas nossas vidas e que continuam connosco. Nada pára e permanece, mas tudo corre... como um rio. Será que isto parece uma loucura? - Maribeth voltou-se para Tommy, interrogando-se sobre se as suas divagações filosóficas lhe pareceriam idiotas, mas concluiu que não. Eram ambos muito maduros para a idade, com boas justificações.

- Não, não parece. Mas não me agrada a ideia de existir uma corrente de pessoas, que chegam e partem das nossas vidas, preferia que elas pudessem ficar. Gostava que a Annie ainda aqui estivesse e não quero mais ninguém depois de ti, Maribeth. Por que razão não se pode apenas permanecer?

- Nem sempre podemos ficar - respondeu -, por vezes, temos de prosseguir, como a Annie. Nem sempre temos opção de escolha. - Todavia, Maribeth tinha possibilidade de escolher. Ela e o seu filho estavam unidos e ligados no momento presente, mas, um dia, Maribeth prosseguiria e a criança continuaria a sua vida, no seu próprio mundo, com outros pais. Era como se, naquela fase das suas vidas, nada fosse permanente.

- Não gosto nada disso, Maribeth. Em determinadas situações, as pessoas têm de ficar.

- Nalguns casos, sim, noutros, não. Há quem não possa ficar. Temos de amar essas pessoas enquanto nos for permitido e aprender a lição que nos podem ensinar.

- E quanto a nós? - indagou Tommy, extremamente sério para um adolescente de dezasseis anos; mas, no entanto, também Maribeth era uma jovem bastante séria. - Pensas que temos alguma lição a ensinar um ao outro? - Talvez... Talvez nesta fase das nossas vidas necessitemos um do outro - afirmou, com sabedoria.

-Já aprendi muito contigo acerca da Annie: ensinaste-me a aceitar a situação, a continuar a amá-la onde quer que esteja, e a transportar a sua recordação sempre comigo.

- Também me ajudaste -respondeu Maribeth calorosamente, mas sem explicar no que tinha consistido essa ajuda, o que deixou Tommy curioso. Enquanto se enca minhavam para o lago, Maribeth sentiu de novo o filho mover-se dentro de si. Já o tinha sentido oscilar uma série de vezes depois da primeira, e agora sabia que aquela iria ser uma sensação familiar e amigável. Era diferente de todas as sensações que já havia sentido, mas era agradável.

Quando chegaram à região do lago, Tommy estendeu no chão uma manta que trouxera consigo, enquanto Maribeth descarregava o piquenique. Preparara as sanduíches com ovos e alface, que eram das suas preferidas, fizera um bolo de chocolate e trouxera um cesto de frutas; trouxera também uma garrafa de leite, que ultimamente ela bebia com muita frequência, e alguns refrigerantes. Tinham os dois fome; por isso, decidiram comer de imediato, e em seguida estenderam-se na manta e ficaram a conversar durante bastante tempo. Dessa vez, a conversa foi acerca das aulas, de alguns amigos de Tommy, dos pais de ambos e dos projectos de vida que ambos tinham. Tommy comentou que viajara uma vez para a Califórnia e para a Florida com o pai, para analisar produtos alimentares. Maribeth nunca viajara para parte alguma, mas comentou que adoraria conhecer Nova Iorque e Chicago. Ambos manifestaram o desejo de conhecer a Europa, mas Maribeth julgava pouco provável que alguma vez isso fosse possível. Não tinha meios para viajar para nenhum lado, a não ser para aquela cidade, e mesmo essa deslocação tinha significado uma grande aventura para ela.

Conversaram também acerca da guerra da Coreia e das vítimas que ambos conheciam. Parecia-lhes uma loucura que o mundo estivesse já a braços com uma nova guerra, sendo a última guerra ainda tão recente. Ambos se recordavam do dia em que Pearl Harbour fora atingido, tinham eles então quatro anos. 0 pai de Tommy tinha, nessa altura, já demasiada idade para poder alistar-se, mas o pai de Maribeth estivera em Iwo Jima. A mãe afligira-se durante toda a sua ausência, mas, no final, regressara a casa são e salvo.

- 0 que farias se fosses convocado para a guerra? - quis saber Maribeth, deixando Tommy um pouco confuso.

- Se fosse convocado agora? Ou quando tivesse, dezoito anos? - Era uma possibilidade real, se a acção policial na Coreia ainda não estivesse resolvida daí a dois anos. - Tanto faz. Irias?

- Claro. Teria de me alistar.

- Pois eu não, se fosse homem. Não acredito na guerra - afirmou Maribeth com determinação, enquanto Tommy sorria. Por vezes, ela era engraçada; tinha ideias muito bem definidas, e algumas eram bastante invulgares. -É por seres mulher. Os homens não têm alternativa.

- Mas deviam ter, e talvez um dia, isso venha a acontecer. Os Quakers recusam-se a ir à guerra, o que os torna mais inteligentes do que a maioria.

- Talvez os Quakers tenham medo da guerra - observou Tommy, aceitando todas as tradições em que fora educado. Mas Maribeth era incapaz de aceitar aquilo em que não acreditava verdadeiramente.

- Não creio que tenham medo, são apenas fiéis a si próprios e àquilo em que acreditam. Se fosse homem, recusava-me a participar de uma guerra - repetiu ela teimosamente. - A guerra é uma tolice.

-Não te recusavas, não - objectou Tommy, divertido. - Acabavas por combater, como todos os outros, porque serias obrigada.    

- Um dia, talvez os homens não façam apenas aquilo a que são obrigados; talvez aprendam a questionar as suas atitudes e parem de agir apenas por obrigação.

- Duvido. E, se isso acontecesse, o caos ficaria instalado! Por que motivo iriam alguns homens combater e outros não? O que fariam aqueles que se recusassem? Fugi riam, ou teriam de ficar escondidos? Isso é uma impossibilidade, Maribeth. Deixa a guerra para os homens, eles sabem o que estão a fazer.

- Aí é que está o problema: não penso que o saibam. Tudo o que fazem é envolver-nos a todos em novas guerras sempre que estão aborrecidos. Repara o que se passou agora: acabámos de sair da última guerra e já nos ofereceram outra! - analisou ela, desiludida. Tommy riu. -Porque não te candidatas a presidente? - gracejou então. No entanto, respeitava as ideias de Maribeth e a sua capacidade de se aventurar em novos pensamentos; havia nela uma grande coragem.

Resolveram ir dar um passeio pelo lago e, no regresso, Tommy perguntou a Maribeth se não queria ir nadar. Ela voltou a recusar-se, deixando-o cada vez mais curioso acerca do que a levaria a nunca querer acompanhá-lo. Havia uma jangada na água e Tommy gostaria que Maribeth o acompanhasse até lá, mas, mais uma vez, ela não quis.

-Vamos, diz-me a verdade. - Finalmente acabou por perguntar: - Tens medo da água? Se for esse o caso, não precisas de ter vergonha, só tens de o reconhecer.

- Não tenho medo, não me apetece nadar. - Era uma boa nadadora, mas não queria, de forma nenhuma, ser obrigada a despir a camisa do pai.

-Então, vem comigo. - Estava um dia bastante quente, e Maribeth teria adorado mergulhar na água fresca com Tommy, mas sabia que não podia. Estava grávida de quatro meses e meio. - Vem comigo até à água e vê como está fresca. - Ela concordou em passear pela água, mas nada mais. Como o lago era muito pouco fundo, avançaram bastante até terem a água pelos joelhos. Maribeth parou então numa ponta de areia e Tommy nadou até à jangada e depois voltou para perto dela, com braçadas firmes. Tinha longos braços e pernas compridas e fortes, e nadava muito bem. Fez o caminho de regresso num minuto e depois deixou-se ficar parado junto dela.

- Nadas muito bem - elogiou Maribeth com admiração.

- Fiz parte da equipa de natação do liceu, no ano passado, mas não gostei do capitão. Por isso, este ano, já decidi não me inscrever. - Enquanto caminhavam de volta para terra, Tommy fitava-a com um olhar malicioso e, por fim, salpicou-a com água. - És uma autêntica medrosa... ou então, nadas tão bem quanta eu!

- Não nado, não...! - gritou ela, tentando sacudir a água com que Tommy a ia molhando. Mas ele continuou a brincar com ela, que também não resistiu e acabou por o salpicar. Daí a pouco, estavam ambos a atirar jorros de água um ao outro, tal como duas crianças. Maribeth ficou completamente ensopada e, ao tentar escapar dos ataques de Tommy, perdeu o equilíbrio e caiu sentada na água. De início, ficou surpreendida, mas depois compreendeu que estava molhada dos pés à cabeça e que não havia forma de sair da água sem que Tommy reparasse na sua barriga de grávida. Era demasiado tarde para remediar a situa

ção; por isso, resolveu fazê-lo tombar também a ele, que acabou por cair na água ao lado de Maribeth. Em seguida, esta nadou rapidamente para longe, mas Tommy alcançou-a sem dificuldade, e terminaram ambos a rir e a cuspir água.

Apesar de não acompanhar Tommy até à jangada, Maribeth nadou junto dele por alguns núnutos, enquanto pensava em como fazer para sair da água com alguma gra ciosidade e sem que ele reparasse na sua barriga, mas não foi capaz de descobrir uma solução. Por fim, lembrou-se de lhe dizer que tinha frio, o que era mentira, para assim lhe poder pedir que fosse buscar uma toalha. Tommy ficou um pouco espantado, pois a água estava morna e o sol da tarde bastante quente, mas mesmo assim foi buscar a toalha, que abriu diante dela.

Contudo, Maribeth ainda precisava de sair da água e caminhar na direcção dele. Sentiu vontade de lhe pedir que se voltasse de costas, mas não se atreveu a fazê-lo, continuando mergulhada na água, com uma expressão aflita.

- Passa-se alguma coisa? - Maribeth não sabia que responder, mas depois, finalmente e com alguma relutância, admitiu que sim. Não fizera intenção de lhe contar já a verdade, e ainda não sabia o que lhe diria quando ele descobrisse, mas estava encurralada. - Precisas de ajuda? - Tommy não entendia o que estava a passar-se com Maribeth.

- Não.

- Ouve, Maribeth, sai da água. Seja qual for o problema, vamos arranjar alguma solução. Vamos, deixa-me ajudar-te. - Tommy estendeu-lhe a mão, e esse seu gesto inundou-lhe os olhos de lágrimas. Então, ele avançou pela água até perto dela e, com suavidade, ajudou-a a erguer-se, até Manbeth ficar de pé diante dele. Ela permitiu que Tommy a erguesse, sem oferecer resistência, mas tinha os olhos rasos de lágrimas e nem sequer sabia porque chorava. Tommy envolveu-a gentilmente na toalha, mas depois, ao baixar os olhos, viu o inegável volume, ainda não muito grande, mas já firme e redondo, e um claro indicador de gravidez. Recordava ainda bem a aparência da mãe quando estivera grávida de Annie, além de que Maribeth era demasiado magra para haver qualquer outra justificação. Tonvny fitava-a, pasmado.

- Não queria que soubesses - afirmou Maribeth, desesperada -, não queria contar-te nada. - Tinham água pelo joelho, mas nenhum dos dois se encaminhava para terra. Tommy parecia ter sido atingido por um raio, e Maribeth agia como se alguém tivesse morrido.

- Vamos - afirmou ele calmamente, puxando-a para si e colocando um braço em redor dos ombros dela -, varro-nos sentar. - Caminharam em silêncio até à areia e foram para o local onde tinham estendido a manta. Maribeth pousou então a toalha e desabotoou a camisa do pai. Trazia vestido um fato de banho e calções e, depois do que se passara, já não havia nenhum motivo para continuar a disfarçar a barriga: o seu segredo tinha sido revelado. - Como aconteceu isso? - indagou por fim Tommy, esforçando-se por não fixar os olhos na proeminente barriga de Maribeth. Mas encontrava-se ainda perplexo, e ela sorriu tristemente ao ouvir a sua pergunta.

- Da forma habitual, julgo eu... embora não saiba muito sobre este assunto...

- Tiveste um namorado...? Ou tens um namorado? - corrigiu ele, sentindo o coração apertado. Mas Maribeth abanou a cabeça, desviou os olhos e depois voltou a pousá-los nele.

- Não tive, nem tenho. Apenas agi estupidamente. - Decidira contar toda a verdade, não queria ocultar nada de Tommy. - Fi-lo só uma vez, e com uma pessoa que mal conhecia. Nem sequer tínhamos saído juntos... Ele levou-me a casa, depois de uma festa onde o meu par se embebedou, e era uma espécie de herói do liceu. Fiquei lisonjeada por esse rapaz ter começado a conversar comigo, mas ele soube ser bem mais insinuante do que eu esperava.

Conversou imenso comigo, mostrou-se interessado, levou-me a um restaurante onde estavam todos os seus amigos para comermos um hambúrguer, e deixou-me maravilhada. Depois, estacionou o carro a caminho de casa e... não queria fazer o que fiz, mas ele deu-me a provar um gole de gim e depois... - Maribeth baixou os olhos e fitou a sua barriga saliente. - 0 resto podes adivinhar. Ele disse que não pensava ser possível eu engravidar. Tinha temúnado com a namorada nesse fim-de-semana ou, pelo menos, foi o que afirmou, mas na segunda-feira seguinte já tinham reatado o namoro, e eu apenas passara por idiota. Pior do que isso, destruí a minha vida por causa de um rapaz que nem sequer conhecia e que nunca viria a interessar-se por mim. Levei algum tempo a perceber o que tinha acontecido, mas, quando descobri, ele estava noivo. Casaram-se logo depois do final das aulas.

- Contaste-lhe?

- Contei, sim. Respondeu que queria casar com a namorada e que ela ia ficar muito zangada se soubesse o que se passara... Não quis estragar a sua vida... nem a minha. Não contei aos meus pais quem ele era, porque não quis que o meu pai o obrigasse a casar comigo. Não me quero casar com alguém que não me ame. Tenho dezasseis anos, a minha vida ia ficar acabada. Mas, por outro lado... - Maribeth soltou um suspiro, melancólica. - Bom, é provável que a minha vida tenha, de qualquer forma, terminado. Não foi propriamente uma atitude muito inteligente da minha parte...

- Como reagiram os teus pais? - Tommy estava muito impressionado por tudo quanto Maribeth lhe contava, pela tremenda insensibilidade do rapaz e pela extraordi nária coragem de Maribeth em se negar a fazer o que não era da sua vontade, em face de tamanha desgraça.

- 0 meu pai quis que eu saísse de casa. Levou-me até ao Convento das Irmãs de Caridade, onde devia ter permanecido até nascer a criança. Mas não consegui ficar. Ainda aguentei umas semanas, mas senti-me tão deprimida que

cheguei à conclusão que preferia passar fome, e foi assim que apanhei o autocarro e vim para esta -cidade. Comprei um bilhete com destino a Chicago, pensando que tentaria encontrar lá um emprego, mas parámos aqui para jantar e reparei no anúncio que estava afixado na janela do restaurante do Jimmy. Depois deram-me o emprego, fui buscar a mala ao autocarro e aqui estou! - Ao observá-la, Tommy reparou na vulnerabilidade de Maribeth, bem como na sua extrema juventude e beleza e sentiu-se de imediato dominado por uma onda de ternura e de admiração. - 0 meu pai autorizou-me a regressar a casa após o Natal, depois de já ter tido a criança. Nessa altura, vou poder voltar a estudar - acrescentou ela, com a voz fraca e trémula, esforçando-se por parecer forte, mas soando, até aos seus próprios ouvidos, extremamente desanimada.

- 0 que pensas fazer com a criança? - indagou Tommy, ainda não refeito do que acabara de ouvir.

- Vou entregá-la... para ser adoptada. Quero encontrar uma família boa que a queira, porque não posso tomar conta dela. Tenho dezasseis anos, não sei cuidar de uma criança... não posso oferecer-lhe nada, nem sei o que fazer por ela. Quero voltar a estudar e quero entrar para a faculdade... Se ficar com ela, vou ficar presa para sempre. Mas, além de tudo mais, não tenho nada para lhe oferecer. Por isso, tenho de encontrar uma família que realmente a deseje. As freiras ofereceram-se para me ajudar, mas entretanto mudei de cidade... e aqui ainda não tomei nenhuma atitude nesse sentido. - Maribeth ficou nervosa por referir esse tema, e Tommy continuava perplexo com tudo o que ela lhe ia expondo.

- Tens a certeza de que não queres ficar com a criança? - Não conseguia imaginar o que significaria abdicar de um filho; até mesmo para ele, devia ser medonho.

- Não sei. - Ao pronunciar essas palavras, sentiu o bebé a mexer dentro de si, como se lutasse por ser também ouvido nessa decisão. - Mas não consigo imaginar como poderia tomar conta dele: os meus pais não me ajudam, não ganho o suficiente para o sustentar e... não seria justo para ele. Também não quero ter já um filho. Será isso assim tão detestável? - Os olhos dela ficaram rasos de lágrimas, e Maribeth levantou o rosto para Tommy, em desespero. Era horrível admitir que não desejava aquele filho, mas era verdade. Não amava Paul, não queria ter um filho, nem desejava ser responsável pela vida de um outro ser. Mal podia conduzir a sua vida, quanto mais a de outra pessoa! Afinal, tinha apenas dezasseis anos.

-Livra, Maribeth...! Preocupações não te faltam! - Tommy aproximou-se então mais dela, rodeou-lhe os ombros com um braço e puxou-a para perto de si. - Porque não me contaste nada? Podias ter desabafado comigo.

- Sim, sim... Como? chamo-me Maribeth, engravidei de um fulano que casou com outra pessoa e os meus pais expulsaram-me de casa... Não queres convidar -me para jantar?" - Tommy riu, Maribeth esboçou um sorriso no meio das lágrimas que vertia e, de repente, caiu nos braços dele a chorar de terror, de vergonha e de alívio por lhe ter contado tudo. 0 pranto em que caiu consumiu-lhe toda a força que ainda lhe restava, mas Tommy amparou-a até os soluços cederem. Sentia uma compaixão imensa, tanto dela, como da criança.

- Quando termina o teu tempo? - perguntou, depois de ela estar já mais calma.

- Não antes do final de Dezembro. - Mas faltavam apenas quatro meses, que ambos tinham consciência que não demorariam a passar.

-Já foste ao médico, desde que aqui chegaste?

- Não conheço nenhum médico. - Ela abanou a cabeça. - Não quis contar a verdade às colegas do restaurante, porque tive receio que o Jimmy me despedisse. Mas inventei que tinha um marido que foi morto na guerra da Coreia, para que não fiquem demasiado surpreendidas quando descobrirem que estou grávida.

- Foi bem pensado - comentou ele pressão divertida, mas voltando depressa a

com uma exencará-la com olhos inquisidores. - Estavas apaixonada por dessa criança?

Para Tommy, era muito importante ter Maribeth o tinha amado, e foi com bastante viu negar com a cabeça.

- Fiquei orgulhosa por ele me ter dado atenção, nada mais. Fui uma perfeita idiota. Paca dizer a verdade, ele é um palerma. Tudo o que queria era que eu desaparecesse para não contar nada à Debbie. Chegou a sugerir que fizesse um aborto... não tenho bem a certeza, mas julgo que isso significa arrancar a criança. Ninguém me explicou, só me garantiram que era muito perigoso, além de ser também dispendioso.

Tommy ouvia com a máxima gravidade. Também já ouvira falar do aborto, mas, em termos reais, sabia tanto quanto Maribeth acerca desse tema.

- Fico muito satisfeito por não o teres feito.

- Porquê? - O comentário dele surpreendeu-a; que diferença lhe faria? Teria sido tudo bem iacil para eles, caso ela não estivesse grávida.

- Porque penso que não deves fazê-lo. Talvez a tua gravidez faça parte daqueles acontecimentos... como a Annie. Talvez tenha acontecido por algum motivo.

- Não sei. Já pensei muito sobre isso, tentei compreender por que motivo isto me sucedeu, mas não consegui perceber porquê. Parece que não passou de um azar tremendo! Só aconteceu uma vez! E, afinal, foi o suficiente... - Tommy limitou-se a fazer um sinal afirmativo. 0 conhecimento que tinha sobre sexo era tão vago quanto o de Maribeth, ou talvez ainda mais. E, ao contrário dela, nunca tinha feito amor com ninguém.

Fitou-a então com uma expressão tão estranha que Maribeth se apercebeu de que ele estava desejoso de lhe fazer mais uma pergunta.

- 0 que foi? Diz... seja o que for, podes perguntar... - Tinham-se tornado os melhores amigos, estavam ligados por uma amizade que ambos sabiam que duraria para sempre. Tommy encontrava-se agora envolvido no pacto secreto de Maribeth, passara a fazer parte dele; aliás, a partir dessa data, nunca deixaria de fazer.

- Como foi... fazer aquilo? - indagou, muito corado e terrivelmente envergonhado. Todavia, a pergunta não a horrorizou; aliás, nada mais a horrorizava. Tommy era como um irmão para ela, ou um melhor amigo, ou ainda algo mais do que isso. - Foi bom?

-Não, para mim não foi, mas talvez tenha sido para ele. Mas penso que pode ser muito bom... é excitante e deixa-nos meio estonteados. Faz com que não se pense em mais nada, com que se perca toda a lógica, e com que se esqueça qual a atitude correcta a tomar. Depois de se começar, é como se viajássemos numa espécie de comboio muito rápido, ou então, foi do gim... Mas penso que, com a pessoa certa, pode ser uma sensação óptima. Não sei bem... nem tenho muita vontade de tentar outra vez. Pelo menos, não durante muito tempo, e só depois de ter encontrado a pessoa certa. Não quero voltar a repetir o que fiz e cometer mais outro disparate... - Tommy meneou a cabeça, intrigado com a explicação dela. Era mais ou menos aquilo que esperava ouvir, e o resumo dela impressionara-o. Mas tinha pena de Maribeth ter tido já essa experiência e ele não. - 0 mais triste de tudo é que devia ter tido algum significado, e não teve. E agora, estou à espera deste filho, que ninguém deseja, nem o pai, nem eu, nem mais alguém.

- Talvez mudes de ideias depois de o veres - admitiu Tommy, pensativo. Tinha sentido o coração a derreter quando vira Annie pela primeira vez.

- Não tenho a certeza se o chegarei a ver. As duas raparigas que conheci no convento nunca viram os filhos. As freiras levavam-nos assim que nasciam, e ficava tudo resolvido. É tão estranho trazer um filho dentro de nós estes meses todos e depois entregá-lo a outras pessoas... mas é igualmente estranho ficar com ele. Não é apenas por um dia, é para sempre... Seria eu capaz? Conseguiria ser mãe durante tanto tempo? Não me parece. Mas, por outro lado, às vezes penso que deve existir qualquer coisa errada comigo... Por que razão não desejo que este filho fique para sempre comigo? E se de repente quiser, quando o vir, o que farei? Como poderei sustentá-lo e cuidar dele? Tommy, não sei o que fazer... - Os olhos de Maribeth encheram-se de novo de lágrimas, mas, desta vez, sem qualquer hesitação, ele inclinou-se para a beijar. Foi um beijo que resultou de toda a admiração, ternura e compaixão que sentia por ela, e de todo o amor que já lhe dedicava. Foi um beijo de um homem para uma mulher, o primeiro que ambos experimentavam com esse significado e também o primeiro das suas vidas que reunia tamanha grandeza. Foi um beijo que facilmente daria origem a outros mais, excepto que, naquele momento, nenhum dos dois o permitiria.

- Amo-te - sussurrou Tommy através do cabelo dela, desejando que fosse seu o filho que Maribeth esperava, e não de alguém que ela nunca amara. - Amo-te muito... Vou ajudar-te sempre. - Era uma promessa corajosa para um rapaz de dezasseis anos, mas, no último ano, Tommy transformara-se já num homem.

- Eu também te amo - admitiu ela, embora com toda a cautela, enxugando as lágrimas com a toalha e temendo sobrecarregá-lo com todos os seus problemas.

- Tens de ir consultar um médico - afirmou Tom-. my, num tom profundamente paternal.

- Porquê? - Por vezes, Maribeth ainda parecia muito jovem, apesar de tudo aquilo por que estava a passar. - Tens de saber se a criança é saudável. Quando a minha mãe estava à espera da Annie, ia regularmente ao médico.

- Sim, mas era mais velha do que eu.

- Julgo que se deve ter esse cuidado em qualquer idade. - Foi então que ele teve uma ideia. - Vou descobrir o nome do médico da minha mãe, e depois talvez arranje mos uma forma de ele te examinar! - Ficou satisfeito com tal ideia, e Maribeth achou graça.

- És louco! Vão julgar que o filho é teu e depois contam à tua mãe. Não posso ir ao médico, Tommy.

- Vamos ter de nos lembrar de alguma solução - insistiu ele. - E talvez o médico da minha mãe possa ajudar-te a encontrar alguém que queira adoptar uma criança. Julgo que os médicos costumam fazer isso. Devem conhecer casais que querem ter filhos, mas que não podem fê-los. Houve tempos em que os meus pais pensaram em adoptar uma criança, antes de terem a Annie, mas depois desistiram. Vou arranjar o nome do médico, e depois marcamos uma consulta. - Tommy entrara de alma e coração no assunto, e dispunha-se a ajudá-la a suportar aquela carga, como ninguém antes o fizera. Beijou-a de novo, intensa e longamente, e em seguida, com a máxima suavidade, pousou a mão na barriga dela. A criança movia-se nesse momento, e Manbeth perguntou-lhe se ele o tinha sentido. Tommy concentrou-se então mais intensamente, e depois, com um largo sorriso, respondeu que sim. Não passava de um leve esvoaçar, tal como se a barriga de Maribeth possuísse vida própria, o que aliás, de momento, não deixava de corresponder à verdade.

Mais tarde, resolveram ir de novo nadar, e dessa vez Maribeth acompanhou Tommy até à jangada. No regresso, sentiu-se fatigada; ficaram bastante tempo deitados em cima da manta a conversar calmamente sobre o futuro dela. Maribeth sentia que esse já não seria assim tão negro, pelo menos agora que tinha Tommy com quem partilhar as suas preocupações, mas, mesmo assim, as grandiosas proporções da sua situação ainda a assustavam. Se ficasse com a criança, teria de a manter a seu lado para o resto da vida; se não ficasse, poderia vir a arrepender-se. Era dificil saber qual a atitude conecta, mas, no íntimo, Maribeth sentia que estaria a conceder uma dádiva ao filho, e a si própria, caso o entregasse a outros pais. Um dia, teria mais filhos, apesar de ir lamentar para sempre essa criança, mas não era a altura nem o local apropriados, e as circunstâncias dominavam-na.

Tommy abraçou-a e ficaram a beijar-se durante muito tempo, mas não avançaram para além disso. Sentiam-se ambos inesperadamente em paz quando se dirigiam fiara o quarto de Maribeth, para que esta pudesse mudar de roupa antes de irem jantar e ver um filme. Tudo mudara entre eles, desde essa tarde. Maribeth partilhara o seu segredo com Tommy, e ele mantivera-se a seu lado, apoiando-a. Maribeth tinha agora a certeza que Tommy não a abandonaria. Necessitavam um do outro, mas ela precisava especialmente dele. Formara-se um elo invisível entre ambos, um laço que jamais seria quebrado.

-Até amanhã - despediu-se Tommy, quando a trouxe de volta à casa onde morava, por volta das onze horas. Sabia que agora já não poderia ficar afastado de Ma ribeth, pois precisava assegurar-se de que ela estava bem. Iria mesmo levá-la a casa depois do trabalho, no dia seguinte, apesar de ter prometido à mãe que jantaria com os pais. - Tem cuidado contigo, Maribeth - pediu então, sorrindo-lhe. Ela devolveu-lhe o sorriso e acenou, antes de fechar suavemente a porta. Mais tarde, ao deitar-se, Maribeth pensou na sorte que tivera ao conhecer Tommy. Era o tipo de amigo que nunca tivera, o irmão que Ryan nunca fora e o amante que Paul nunca poderia ter sido. Por enquanto, Tommy era tudo para ela; e nessa noite, mais uma vez, Maribeth sonhou com Annie.

 

Ao longo da semana que se seguiu, Tommy foi todas as noites ao restaurante. No final do dia levava Maribeth a casa e, na noite de domingo, convidou-a para jantar e para ir ao cinema. Contudo, no dia de folga de Maribeth, Tommy recusou-se a levá-la novamente ao lago, pois, em vez disso, tinha arquitectado um plano bem mais importante. Sub-repticiamente, retirara a agenda da mãe e anotara com a máxima cautela o nome e.a morada do médico de Liz. Após a morte do idoso Dr. Thompson, Avery MacLean era o ginecologista de Liz há vários anos, e quem assistira ao parto de ambos os seus filhos. Este último era um distinto senhor de cabelos brancos, mas as ideias e técnicas com as quais trabalhava eram consideradas mais modernas do que os seus modos. Sendo em alguns aspectos cortês e formal, estava extremamente actualizado no que dizia respeito às práticas mais avançadas, e Tommy sabia bem o quanto a mãe gostava desse médico. Sabia igualmente que Maribeth tinha de consultar um médico.

Marcara a consulta em nome de Mrs. Robertson e empregara todos os esforços para que a sua voz se parecesse com a do pai ao telefone: tinha tentado torná-la mais gra ve e esforçara-se por parecer seguro e confiante, apesar de as mãos lhe tremerem exageradamente. Quando lhe perguntaram o nome afirmara ser Mr. Robertson, e justificara que tinham acabado de se mudar para Grinnel, depois do casamento, e que, por isso, a sua mulher necessitava de fazer um check-up. Ficou convencido que a enfermeira acreditara.

- Mas o que é que vou dizer-lhe? - indagou Maribeth, fitando Tommy, aterrada.

- 0 que precisas de lhe dizer? Ele não te vai apenas examinar? - Tommy tentava parecer mais calmo e mais conhecedor do assunto do que realmente era. Os seus co nhecimentos sobre esse tema continuavam bastantes vagos.

Tudo quanto sabia acerca da gravidez era o que ainda se lembrava de há seis anos atrás, quando vira a mãe usar roupas largas; lembrava-se também de ter assistido na televisão, no ano anterior, a um episódio da série I Love Lucy, no qual a protagonista anunciara ter engravidado.

- 0 que quero saber é... o que lhe vou contar acerca... do pai da criança... - Maribeth encontrava-se profundamente preocupada, apesar de admitir que Tommy tinha razão; havia vários aspectos sobre a gravidez que desconhecia, e precisava de conversar com um médico. - Conta-lhe o que disseste no restaurante: que o teu marido foi morto na guerra da Coreia. - Ainda ninguém sabia que estava grávida, mas Maribeth preparara o terreno ao espalhar a notícia da sua viuvez.

Subitamente, pousou nele os olhos espantou-o com a seguinte pergunta: - Vens comigo?

- Eu? Mas... e se... e se o médico Corou até à ponta dos cabelos apenas

E se a examinassem diante dele, se esperassem que conhecesse aquilo que ainda desconhecia? Não fazia a menor ideia dos mistérios que ocorriam nos consultórios dos ginecologistas. Pior ainda era se resolvessem contar aos seus pais... - Não posso, Maribeth... não ia conseguir...

Ela baixou a cabeça, enquanto uma lágrima solitária lhe rolava lentamente pela face e amolecia o coração de Tommy.

- Pronto, pronto... não chores, vou pensar nalguma solução. Talvez possa dizer que somos primos... Não... Assim, a minha mãe ia ficar a saber. Não sei, Maribeth,

talvez o melhor seja dizer que somos amigos e que conheci o teu marido e por isso resolvi acompanhar-te.

- Achas que ele vai suspeitar de alguma coisa? De eu não ser casada? - Eram como dois miúdos que se esforçavam ao máximo por resolver um problema que involuntariamente haviam criado. Contudo, a dificuldade era muito grande e não havia qualquer forma fácil de a resolver.

- Se não lhe contares, ele não vai ficar a saber de nada - respondeu Tommy firmemente, aparentando uma calma que não era genuína. Na verdade, sentia-se aterrori zado por ter de acompanhar Maribeth à consulta, mas não queria desiludi-la, e sabia que, depois de lhe ter prometido que iria, não poderia desistir.

Ambos estavam muitíssimo nervosos quando, nessa mesma tarde, se dirigiram para o consultório. Quase não trocaram uma palavra, apesar de Tommy estar preocupado com o estado de Maribeth. Ainda a tentou confortar quando a auxiliou a sair da caninha e a seguiu para a morada do médico, rezando para não corar.

-Vai correr tudo bem, Maribeth... prometo-te - murmurou quando tinham já entrado, ao que ela respondeu com um mero menear de cabeça. Tommy apenas se encontrara uma vez com o médico, no exterior do hospital onde Annie nascera. Ele tinha ficado com o pai na entrada, pois era muito novo para subir, e a mãe acenara-lhe da janela do quarto, mostrando-lhe orgulhosamente a pequena Annie. Essa recordação trouxe-lhe lágrimas aos olhos, e Tommy apertou mais a mão de Maribeth, tanto para a encorajar a ela, como a si próprio. Entretanto, a enfermeira-chefe levantou os olhos por cima dos aros dos óculos para o casal que acabava de entrar.

- Sim? - Não podia imaginar o que fariam ali, a não ser talvez virem ao encontro da mãe. Afinal, eram ainda duas crianças. - Posso ajudar?

- 0 meu nome é Maribeth Robertson... - murmurou ela, com a voz a falhar especialmente na pronúncia de tal apelido; ainda não acreditava que Tommy conseguira trazê-la ali. - Tenho uma consulta marcada. - A enfermeira franziu as sobrancelhas, depois consultou a agenda e, finalmente, confirmou.

- Mistress Robertson? - perguntou, sem esconder a sua admiração. Talvez a rapariga tivesse mais idade do que aparentáva, mas, acima de tudo, parecia extremamente nervosa.

- Sim - confirmou, com uma voz que mal passava de um suspiro. A enfermeira pediu-lhe então que se dirigisse para a sala de espera e sorriu sozinha, recordando 0 telefonema de Tommy. Eram, obviamente, recém°-casados, praticamente duas crianças, e não pôde deixar de sentir curiosidade sobre o motivo que os teria levado a casar.

Sentaram-se então na sala de espera, trocando murmúrios e tentando não reparar no tamanho das bamgas de algumas das mulheres que ali se encontravam. Tommy nunca antes estivera acompanhado ,por tantas grávidas, e ficaram ambos muito acanhados ao ouvi-las conversar sobre os maridos e os outros filhos, enquanto iam passando as mãos pelas barrigas e tricotando malha. Foi com tremendo alívio que ouviram o misericordioso chamado do Dr. MacLean, que se referiu a ambos como Mr. e Mrs. Robertson. Tommy ficou paralisado ao verificar que não o havia corrigido, mas o médico não tinha qualquer motivo para supor que não fossem casados. Perguntou-lhes depois onde moravam, de onde eram e, finalmente, há quanto tempo se tinham casado. Maribeth fitou então o médico durante um longo instante e depois abanou a cabeça.

- Não somos casados..: sou... 0 Tommy é apenas um amigo... o meu marido morreu na Coreia... - Depois, lamentando ter mentido, mal pronunciara aquele discurso, Maribeth olhou-o com honestidade e, com os olhos humedecidos, declarou: - Não sou casada, doutor. Estou grávida de cinco meses e... o Tommy convenceu-me a vir consultá-lo. - 0 médico admirou-a por estar a proteger o rapaz e julgou essa sua atitude invulgarmente digna.

- Compreendo. - Contristado por tudo quanto ouvira, pousou demoradamente os olhos em Tommy e chegou à conclusão que este lhe era vagamente familiar. Tal vez fosse filho de alguma paciente sua, tinha a certeza que já o vira antes. Na verdade, assistira ao funeral de Annie, onde encontrara Tommy, apesar de nesse momento não se recordar desse facto. - Estão a pensar casar em breve?

Olhou para ambos com compaixão; sentia sempre pena dos adolescentes que enfrentavam situações como aquela. Todavia, o casal respondeu pesarosamente que não, como se temessem que em seguida ele os fosse expulsar do seu consultório. Tommy sentiu-se subitamente arrependido por ter insistido tanto para que Maribeth viesse ao médico.

- Somos apenas amigos - respondeu Maribeth, com firmeza. - 0 Tommy não é responsável por esta situação, eu sou a única responsável. - Mas, entretanto, Maribeth começara a chorar e o médico observava a forma carinhosa como Tommy lhe acariciava a mão.

-Esse agora não é o ponto mais importante - afirmou, amavelmente. - Porque não temos uma conversa a sós, para depois poder examinar-te? 0 teu... amigo... - Sorriu ao pronunciar essa palavra, divertido por pensar que ambos acreditavam que ele não sabia o que na verdade se passara. - 0 teu amigo pode voltar mais tarde para conversarmos os três. Que tal? - Desejava examiná-la, cglocá-la ao corrente do que se estava a passar, saber como fora a reacção dos pais dela, quais os seus planos reais e ainda se fazia tenções de conservar consigo o filho. Aos seus olhos, o casal parecia extremamente apaixonado, e supunha até que um dia se casassem, principalmente se tinham chegado àquele ponto juntos. Talvez estivessem a enfrentar a oposição de ambas as familias e, se assim fosse, desejava ajudá-los o máximo possível; talvez necessitassem apenas de um empurrão na direcção certa.

0 médico levantou-se em seguida para acompanhar Tommy até à porta. Dessa vez, fora ainda pior estar sentado na sala cheia de grávidas sem Maribeth a seu lado. Rezava para que não entrasse nenhuma amiga da mãe que o reconhecesse.

Teve a sensação de que haviam decorrido várias horas até por fim a enfermeira o chamar, para o conduzir de novo ao consultório.

-Penso que talvez queiras agora juntar-te à tua amiga para podermos conversar um pouco - afirmou o médico amigavelmente, vendo-o entrar.

Maribeth lançou-lhe um sorriso, ainda bastante acanhada, mas claramente mais aliviada. 0 médico ouvira as batidas do coração do filho e anunciara que tudo Vindicava que viesse a ser uma criança grande e saudável. Maribeth contara-lhe que desejava encontrar quem o adoptasse, e pediu-lhe que, caso conhecesse alguém que julgasse de confiança, a informasse. 0 médico prometera pensar no caso, mas nada mais havia adiantado, parecendo bem mais interessado em colocar Tommy a par de todas as informações que já fornecera antes a Maribeth: o tamanho e o estado fisico da criança, como seriam os próximos meses de Maribeth, quais as vitaminas que esta deveria tomar e as sestas que deveria fazer, caso o seu horário de trabalho assim o permitisse. Desenvolveu todos esses pormenores, como se Tommy fosse o verdadeiro pai da criança, e este entendeu ser exactamente isso que se estava a passar: o Dr. MacLean acreditava que eles estavam a ocultar-lhe a paternidade de Tommy, pois, por muito que Maribeth insistisse que eram apenas amigos, era óbvio que o médico não a tinha levado a sério; para ele, o carinho que Tommy sentia por Maribeth e o quanto a amava eram por de mais evidentes.

Foi então que, enquanto observava a ambos e os informava acerca dos seus honorários, algo avivou a memória do médico e o fez recordar de quem se tratava o rapaz, deixando-o satisfeito por ele o ter escolhido para analisar Maribeth.

- És o Tommy Whittaker, não és, meu rapaz! - indagou com amabilidade. Não o desejava assustar e estava disposto a guardar segredo, desde que nenhum dos dois pudesse ficar magoado por isso; além do mais, não tinha nenhum motivo de força para contar aos pais dele o que se passara.

- Sou, sim - admitiu Tommy honestamente. - Os teus pais estão a par desta situação?

Tommy abanou a cabeça, terrivelmente corado. Era impossível contar que tinha roubado a agenda da mãe a fim de descobrir a morada do médico.

- Ainda nem sequer conhecem a Maribeth... - Teria gostado muito de a ter apresentado aos pais, mas, dadas as circunstâncias, não o poderia fazer, além de os pais estarem a atravessar uma fase particularmente dificil.

- Talvez tenha chegado a altura de o fazeres - contrapôs ajuizadamente o Dr. MacLean. - Não podes esperar por tempo indefinido, o Natal não tarda muito a che gar. - Faltavam apenas quatro meses para a data indicada. - Pensa nisso, os teus pais são bastante compreensivos. Ultimamente, sofreram um grande desgosto, e estou certo de que isso os irá chocar, mas, pelo menos, irão com certeza ajudar-vos. - Maribeth contara-lhe que a família a tinha afastado, e que o único amigo que possuía era Tommy. - É um fardo muito pesado para carregares sozinho em ombros tão jovens.

- Não precisamos de nada - respondeu Tommy corajosamente, amenizando o problema e convencendo mais uma vez o médico de que era o pai da criança, por muito que Maribeth o negasse. Inspirava-Ihe ternura e admiração a forma como esta o isentava dessa responsabilidade. O médico estava, assim, obviamente impressionado por ambos os jovens e satisfeito por o terem procurado. Marcou então uma nova consulta para o mês seguinte e entregou-lhes um livro muito simples sobre como seria o desenrolar da gravidez nos próximos quatro meses e como decorria normalmente um parto. Não continha fotografias, apenas alguns esboços, mas nenhum dos dois lera antes semelhante informação. De facto, esse livro exigia-lhes um conhecimento que não possuíam, pois muitos dos termos utilizados eram-lhes completamente desconhecidos. Indicava igualmente a Maribeth quais os cuidados que deveria tomar, o que podia ou não fazer e quais os sintomas de perigo que justificavam chamar o médico. Em resumo, o livro deixou-os ambos muito impressionados.

0 Dr. MacLean informara Maribeth de que os custos totais da assisténcia pré-natal e de parto seriam duzentos e cinquenta dólares, além dos custos do internamento hospitalar, os quais somariam mais trezentos dólares. Felizmente, Maribeth retirara a quantia necessária do dinheiro que o pai lhe dera para cobrir as suas despesas no con dento e, assim, possuía ó suficiente para pagar ao médico. Mas continuavam ambos muito preocupados com o facto de este último julgar que Tommy era o pai da criança.

- E se ele contar à tua mãe? - admitiu Maribeth, receosa, não desejando causar nenhum problema a Tommy. Este também estava preocupado, mas acreditava que, por algum motivo, o médico não os trairia. Era um homem bondoso, e não acreditava que o Dr. MacLean fosse contar tudo aos seus pais. E, apesar da sua má interpretação acerca de quem era o pai do ûlho de Maribeth, Tommy estava satisfeito por a ter levado ao seu encontro.

- Não penso que o faça - tranquilizou ele. - Acredito sinceramente que nos queira ajudar. - Tommy confiava no médico e tinha a certeza de que não estava enganado.

- Gostei dele - confessou Maribeth, antes dé saírem para irem tomar um batido de leite. Conversavam a meia-voz acerca do livro que tinham trazido, do trimestre em

que ela se encontrava e de algumas explicações que o médico lhes fornecera em relação ao trabalho de parto e ao momento do nascimento. - Parece bastante assustador - comentou Maribeth, nervosa. - 0 médico disse que posso tomar um tranquilizante... talvez seja uma boa ideia. - Eram ainda muitas as dúvidas de Maribeth. Para uma adolescente de dezasseis anos, era demasiado o que tinha de suportar por um filho que não poderia criar e que nunca mais voltaria a ver; o preço que estava a pagar por meia hora passada no banco do Chevy de Paul Browne era demasiado elevado. Por vezes, Maribeth ainda não conseguia acreditar no que estava a suceder-lhe, mas a consulta médica, a preocupação de Tommy com ela e o facto de ver todos os dias a barriga aumentar, tornara toda a sua situação mais real.

Tommy ia visitá-la ao restaurante quase todos os dias, ou então aparecia depois do trabalho na casa onde Maribeth morava para tomar um refresco, darem os dois um passeio ou irem ao cinema. Mas, no primeiro dia de Setembro, as aulas começaram, o que veio dificultar tudo. Tommy tinha aulas até às três da tarde, em seguida tinha treino e depois ainda o trabalho de distribuição. Quando finalmente podia vê-1a, no final da tarde, vinha já exausto. Mas a sua preocupação por Maribeth nunca diminuía e, sempre que estavama sós, ele tomava-a nos braços e beijava-a. Por vezes, tinham a sensação de serem já casados, quando conversavam acerca de como tinha sido o dia de ambos, acerca do trabalho dela, das aulas dele e dos seus problemas. Também a paixão que os unia parecia ter aumentado, apesarde nenhum dos dois permitir que evoluísse para além do devido, sem nunca passar de úma troca de beijos, abraços e carícias.

- Não quero engravidar... - afirmou uma noite Maribeth, ofegante, enquanto as mãos dele lhe percorriam os seios inchados. Ambos riram, mas ela não desejava fazer amor com ele, não nessa altura, com o filho de Paul a crescer dentro dela. E depois, desejava que fosse diferente; não queria voltar a repetir o que fizera até ela o desejar, decorridos muitos anos, depois de ter terminado o liceu, estar já a frequentar a faculdade e estar também já casada com o homem certo. Então, sim, quereria ter filhos. Não desejava fazer amor com Tommy demasiado cedo e estragar tudo, facto que ele entendia, apesar de, por vezes, o fesejo que sentia por Maribeth o deixar louco.

Em determinados dias, Tommy terminava os trabalhos de casa no quarto de Maribeth, ou num canto mais recolhido do restaurante, enquanto ela Ihe ia servindo batidos e hambúrguers. Por vezes, Maribeth oferecia-se para o ajudar, e quando a senhoria saía de casa, ou quando a porta do quarto estava trancada, estendiam-se os dois na cama e Tommy lia em voz alta, ou então Maribeth fazia os exercícios de química, de álgebra e de trigonometria. Pela idade, estariam ambos a frequentar o mesmo ano escolar, mas só duas semanas após o início das aulas é que ocorreu a Tommy que poderiam fazer todos os trabalhos de estudo em conjunto. Dispôs-se a copiar os objectivos desse ano para ela e a emprestar-lhe os livros, para que, dess~d forma, Maribeth pudesse ficar ciente da matéria que estava a perder na escola e continuar os seus estudos.

- Podes requerer um exame, quando voltares, de forma a não perderes o semestre. - Mas esse era um assunto em que Tommy não gostava sequer de pensar: Maribeth teria de regressar para o Iowa, para casa dos pais. 0 seu desejo era que ela ficasse a seu lado, mas, na verdade, nenhum dos dois sabia o que aconteceria após o parto.

No entanto, no momento presente, a estratégia de Tommy estava a ter bons resultados. Encontravam-se todas as noites depois das aulas de Tommy e do horário de tra balho de Maribeth e ambos efectuavam os trabalhos de casa em conjunto. Maribeth guardava os exercícios que ia realizando e tentava terminar todos os trabalhos. Em termos práticos, continuava a estudar, trabalhando simultaneamente no restaurante de Jimmy, e Tommy estava muito impressionado com a qualidade do trabalho escolar de Maribeth. Apesar das suas boas notas, apercebeu-se ao cabo de poucos dias que Maribeth era ainda melhor estudante do que ele.

-És uma óptima aluna - elogiou, admirando-a, enquanto corrigia uns exercícios de álgebra, consultando uma folha que lhe haviam entregue na aula. Maribeth obtivera "Muito bom>~ em ambos os testes que Tommy lhe entregara nessa semana, além de que, na opinião deste, o trabalho que ela efectuara sobre a guerra civil era o melhor que alguma vez lera; chegou mesmo a desejar que a professora de História o tivesse podido ler.

0 único problema que tinham, era o facto de Tommy chegar todas as noites a casa por volta da meia-noite, o que, ao cabo de um mês, deixou Liz desconfiada. Tommy explicou à mãe que tinha treinos diários, e que estava a ajudar um amigo que tinha dificuldades na Matemática, mas, com a mãe a trabalhar na mesma escola, não era fácil convencê-la que tinha alguma justificação real para não regressar a casa antes da meia-noite.

Contudo, Tommy adorava estar com Maribeth. Por vezes, ficavam a conversar durante horas depois de terem terminado os trabalhos de casa, referindo os seus sonhos e ideias comuns, desenvolvendo também a relação dos temas dos exercícios com os valores, os objectivos e o sentido de ética que ambos defendiam. E, inevitavelmente, conversavam também sobre o &lho que ela esperava, sobre as esperanças que Maribeth tinha para essa criança e sobre o tipo de vida que gostaria que ela pudesse vir a ter. Desejava muito que o filho tivesse a melhor educação possível, bem como uns pais adoptivos que o auxiliassem a progredir no mundo, e não a regredir a posições originadas pelos receios ignorantes das gerações passadas. Maribeth tinha consciência da luta que teria de travar um dia para conseguir entrar na faculdade, pois os pais consideravam o seu desejo fiívolo e desnecessário e nunca o compreeenderiam. Contudo, Maribeth não queria ficar limitada a um emprego como 0 que tinha nessa fase da sua vida; sabia que poderia alcançar muito mais na vida, desde que tivesse acesso aos estudos superiores.

Os professores de Maribeth sempre se haviam esforçado por convencer os pais de que a filha poderia ir longe, mas estes nunca o haviam entendido. E, agora, o pai diria com certeza que ela era exactamente igual às tias, uma vez que engravidara sem estar casada. Maribeth adivinhava que nunca conseguiria apagar essa marca e que, mesmo sem ter o filho nos braços, a família nunca a deixaria esquecer o passado.

- Então porque não ficas com o teu filho? - indagou um dia Tommy.

Maribeth abanou a cabeça em silêncio, pois tinha a certeza de que essa também não seria a solução. Por muito que a situação evoluísse, e por mais doces que se tornas sem os seus sentimentos, ela sabia que não poderia criar o filho, e havia algo no seu coração que lhe dizia que, na realidade, nem sequer desejava poder fazê-lo.

No início de Outubro, foi forçada a admitir perante as colegas de trabalho que estava grávida. Nessa altura, já estas o haviam adivinhado e não escondiam o seu entusias mo, imaginando tratar-se do último presente deixado a Maribeth pelo falecido marido e uma forma maravilhosa de o conservar para sempre na sua memória. Afinal, não tinham como adivinhar que se tratava apenas da memória de Paul Browne, cuja mulher de dezoito anos de idade estaria também já provavelmente grávida e que não possuía o menor interesse pelo filho de Maribeth.

Como não lhes podia contar que desejava entregar a criança para ser adoptada, as colegas traziam-lhe pequenas ofertas, que lhe causavam sempre um terrível sentimento de culpa. Resolveu então guardar todas essas prendas numa gaveta da cómoda, esforçando-se por não pensar no bebé que iria usá-las.

Foi também visitar mais uma vez o Dr. MacLean, que ficou muito contente de a ver e perguntou por Tommy. - É um óptimo rapaz - garantiu, sorrindo, certo de que o descuido do casal teria um final feliz. Eram dois jovens encantadores: Maribeth era uma rapariga amorosa, e o médico tinha a certeza de que os pais de Tommy depressa a aceitariam, se soubessem que estava grávida.

E foi em meados de Outubro que, por mera coincidência, Liz resolveu fazer o seu habitual check-up; nessa consulta, antes de ela sair, o Dr. MacLean lembrou-se então de lhe recordar o óptimo filho que tinha.

- 0 Tommy? - Liz ficou perplexa pelo facto de o médico se lembrar ainda do filho. A última vez que o vira fora há cerca de seis anos atrás, quando Annie nascera, e

Tommy se encontrava no exterior do hospital a acenar para a janela do quarto dela. - Sim, é um bom rapaz - concordou, ainda um pouco espantada.

- Deve ter muito orgulho nele - continuou o médico mostrando ter a certeza do que afirmava e desejando acrescentar muito mais acerca do jovem casal que tanto 0 havia impressionado. Mas não se esqueceu, no entanto, que tal não poderia fazer, por lhes ter prometido guardar segredo.

- Tenho orgulho nele, sim - admitiu Liz, desconcentrada pela pressa que tinha em chegar à escola. Contudo, a caminho de casa, ficou a relembrar o comentário do médico e imaginou se, por algum acaso, Tommy não se teria cruzado com o Dr. MacLean em alguma parte. Talvez o médico tivesse participado nalguma aula, ou tivesse assistido ao parto de algum irmão de um colega de Tommy; contudo, Liz depressa esqueceu o assunto.

Porém, na semana seguinte, uma das suas colegas comentou que encontrara Tommy com uma rapariga muito bonita, acrescentando casualmente que esta estava já em estado avançado de gravidez.

Liz ficou horrorizada ao saber dessa notícia, e em seguida, acompanhada por uma onda de terror, relembrou o inesperado elogio que o Dr. MacLean tecera a Tommy. Ficou toda a tarde a meditar no assunto e decidiu então que, nessa noite, conversaria a esse respeito com Tommy. Mas só à meia-noite é que este regressou a casa.

- Onde estiveste? - quis saber a mãe com voz austera, ao vê-lo chegar. Estava há já algum tempo à espera dele, na cozinha.

- A estudar com uns amigos - respondeu, nervoso. - Que amigos? - Conhecia quase todos os amigos do filho, especialmente agora que ensinava na mesma escola que este frequentava. - Quem são? Quero saber os nomes.

- Porquê? - Subitamente, Tommy parecia muito cauteloso; quando o pai se juntou a eles, reparou num estranho olhar que os pais trocaram.

A hostilidade entre ambos tinha diminuído um pouco desde que Liz começara a trabalhar a tempo inteiro, mas pareciam mais afastados do que nunca. Liz não comentara nada com o marido acerca da rapariga que a colega vira na companhïa de Tommy, mas John ouvira-os falar e viera ver o que estava a suceder. Ultimamente, reparara com desagrado que Tommy quase nunca estava em casa e que chegava muito tarde todas as noites.

- 0 que se passa? - perguntou a Liz, sem parecer muito preocupado. Tommy era um bom rapaz e nunca se metera em apuros; talvez tivesse uma namorada.

- Ouvi uns comentários muito estranhos acerca do Tommy - explicou Liz, com evidente preocupação. - E agora quero que ele me diga a verdade. - Ao olhar para a mãe, Tommy apercebeu-se imediatamente de que esta sabia alguma coisa.

- Que tipo de acomentários muito estranhos"? - inquiriu John. Não parecia nada o género de Tommy. - Quem é a rapariga com quem andas a sair? - indagou então a mãe abruptamente, enquanto o pai se sentava para observar a cena.

- Apenas uma amiga, ninguém especial. - Mas era mentira, e Liz apercebeu-se disso. Maribeth era mais do que uma amiga para Tommy: na verdade, estava comple tamente apaixonado por ela, esforçava-se por a ajudar a estudar e estava muitíssimo preocupado com o futuro do filho que ela esperava.

Contudo, a mãe foi directa ao assunto.

- Ela está grávida? - Tommy reagiu como se tivesse sido agredido por um duro golpe no estômago, e John como se fosse cair a qualquer momento da cadeira. Liz continuou a fitar o filho em silêncio, e depois, finalmente, insistiu: - Então, está ou não?

- Eu.., não... Bem, mãe... É que... não sei... Oh, meu Deus... - Tommy passou a mão pelo cabelo, em completo desespero e totabnente em pânico. - Posso explicar; não é aquilo que parece.

- Ela é... apenas gorda? - admitiu o pai, so. Tommy negou.

- Nem por isso.

- Oh, meu Deus... - murmurou a mãe.

- É melhor sentares-te - sugeriu John a Tommy. Este sentou-se de imediato numa cadeira, mas Liz continuou de olhos fitos nele, completamente aterrorizada.

- Não posso acreditar! - desabafou, angustiada. - Ela está grávida... Tommy, o que andaste a fazer?

- Não fiz nada. Somos apenas amigos. Eu... bem, está bem... somos mais do que isso, mas... oh, mãe... A mãe ia gostar muito dela.

- Ai, meu Deus... - repetiu Liz, dessa vez sentando-se em seguida. - Quem é ela? E como foi isso acontecer?

- Da forma habitual, creio eu - respondeu Tommy, mais calmo. - 0 nome dela é Maribeth e conheci-a este Verão.

- Porque não nos contaste? - Mas como poderia ter contado o que quer que fosse aos pais, que já não conversavam com ele nem um com o outro? A vida familiar que os unia tinha terminado com a morte de Annie, e agora limitavam-se a sobreviver, tal como despojos de um navio num oceano solitário. - De quantos meses está ela? - quis saber a mãe, como se essa informação fizesse alguma diferença.

- De seis meses e meio - respondeu calmamente Tommy. Afinal, talvez fosse melhor que os pais ficassem a saber de tudo. Há muito tempo que desejava pedir a ajuda da mãe, e sempre pensara que, se a conhecesse, esta decerto simpatizaria com Maribeth. Contudo, Liz ficou ainda mais horrorizada.

- Seis meses e meio?! Mas quando começou isto? - Fazia um esforço tremendo para fazer as contas, mas era tudo demasiado perturbador para ela.

- Quando começou o quê? - Tommy não entendeu a pergunta da mãe. - Já disse que a conheci este Verão, ela só se mudou para cá em Junho. Trabalha no restaurante onde costumo ir jantar.

- Desde quando frequentas um restaurante? - 0 pai mostrava-se ainda mais confuso do que a mãe.

-Desde há muito tempo. A mãe deixou de cozinhar e já não jantamos juntos há meses. Pago os meus jantares com o que ganho com o trabalho de distribuição.

- Lindo! - comentou mordazmente o pai, lánçando um olhar reprovador à mulher e voltando a fitar o filho, confuso. - Que idade tem essa rapariga?

- Dezasseis anos.

- Não entendo... - interrompeu a mãe - Se ela se mudou em Junho e está grávida de seis meses e meio... isso significa que engravidou em Maio, ou por volta dessa altura. Engravidaste-a noutro lado e depois ela mudou-se para cá? Onde estiveram, então? - Desconheciam que Tommy se tivesse ausentado para alguma parte, mas também não sabiam que ele jantava num restaurante, ou que tinha uma namorada grávida. Seis meses e meio tornava o nascimento da criança iminente, e Liz estremeceu ao pensar nisso. No que pensariam eles e por que motivo Tommy não lhes havia contado nada? Mas, ao ponderar melhor, tudo começou a fazer sentido. Estavam tão distantes e tão perdidos desde a morte de Annie, principalmente ela e o marido, que era muito natural que Tommy se tivesse envolvido em problemas; afinal, ninguém prestara a devida atenção.

Tommy acabou finalmente por compreender a natureza das perguntas dos pais.

- Não fui eu quem a engravidou, mãe. A Maribeth engravidou em Onawa, e o pai expulsou-a de casa até ao nascimento da criança. Ainda foi para um convento, mas, como não se conseguiu adaptar, veio viver para esta cidade, em Junho. E foi então que a conheci.

-E andaste este tempo todo a sair com ela? Porque não nos contaste?

- Não sei. - Suspirou. - Gostava de vos ter contado antes, porque acredito que vão gostar muito dela, mas tive medo que não aprovassem. Ela é maravilhosa, e está completamente sozinha, não tem ninguém para a ajudar. - A excepção de ti - concluiu a mãe, em pânico.

John, contudo, sentia-se mais aliviado. - Aliás, agora que me lembro - continuou Liz, desvendando todo o enredo -, levaste-a ao consultório do doutor MacLean?

A pergunta da mãe deixou Tommy perturbado.

- Porquê? Ele comentou alguma coisa? - Não devia ter dito nada, tinha-lhes prometido guardar silêncio; mas a mãe abanou a cabeça, negando essa hipótese.

- Não comentou nada, mas elogiou-te, e eu não percebi como podia ele lembrar-se de ti. Já passaram seis anos... E, depois, uma das professoras encontrou-te na se mana passada com ela e comentou que estavas com uma rapariga em avançado estado de gravidez... - Liz levantou os olhos para o seu filho de dezasseis anos, perguntando a si própria se ele faria tenções de casar com a rapariga, quer motivado pela paixão quer apenas por puro cavalheirismo. - 0 que pensa ela fazer com o filho?

- Ainda não tem a certeza. Ela pensa que não pode tomar conta do filho e pretende arranjar alguém que o adopte. Julga ser o melhor para a criança. Ela defende uma curiosa teoria. - Tommy desejava explicar tudo aós pais e fazê-los amar Maribeth tanto quanto ele a amava. - Diz que existem pessoas que vêm à nossa vida por um curto espaço de tempo, como a Annie, para nos abençoar ou para nos trazer uma dádiva de qualquer espécie... É isso que sente ém relação ao filho que espera. Acredita de todo o coração que tem apenas a missão de o trazer ao mundo, e não de permanecer para sempre na sua vida.

-É uma decisão muito séria para ser tomada por uma rapariga de dezasseis anos - comentou Liz calmamente, sentindo compaixão por Maribeth, mas ainda preocupada pela evidente paixão do filho. - E a família dela?

- Recusam-se a falar-lhe ou a deixá-la voltar para casa até ter entregue a criança. 0 pai deve ser um brutamontes e a mãe deve ter medo dele. Em termos práticos, a Maribeth está sozinha.

- À excepção da tua companhia - repetiu Liz, com tristeza. Era um peso enorme para Tommy suportar, mas John não estava nem um pouco preocupado, agora que sabia que Tommy não era o pai dessa criança.

- Gostava muito que a conhecesses, mãe. - Liz hesitou uns segundos, sem saber se ao conhecer Maribeth estaria a valorizar demasiado essa relação, ou se deveria sim plesmente proibir Tommy de continuar a vê-la. Contudo, essa última atitude não lhe pareceu justa para o filho, e Liz lançou um olhar ao marido, em silêncio.

John apenas encolheu os ombros, mostrando não ter qualquer objecção.

- Talvez a devamos conhecer. - De uma certa forma, sentia que deviam essa atitude a Tommy. Se o filho tinha tão boa opinião acerca dessa rapariga, então talvez valesse realmente a pena conhecê-la.

- Ela está ansiosa por regressar à escola. Temos trabalhado juntos todas as noites, tenho-lhe emprestado os meus livros e dou-lhe cópias de todos os exercícios que fazemos nas aulas. Mas está já avançada em relação a mim, mais trabalhos de pesquisa e de leitura do que eu.

- Por que motivo deixou de frequentar a escola? - indagou a mãe, reprovadora.

- Porque precisa de trabalhar e não pode voltar para a escola até regressar a casa, depois do parto.

-E depois disso? - A mãe pressionava-o, mas Tommy não possuía todas as respostas. - Quanto a ti? É sério o que se passa entre vocês dois?

Tommy hesitou, sem querer revelar tudo, que tinha de o fazer.

- Sim, mãe... é sério. Amo-a.

0 pai mostrou ter ficado completamente com a resposta de Tommy.

- Não pretendes casar com essa rapariga, pois não? E espero que não tenciones criar essa criança... Tommy, tens dezasseis anos, não sabes o que fazes. Seria suficiente mente mau se o filho fosse teu, mas, como não é, não precisas de casar.

- Sei que não - respondeu, parecendo um homem a responder ao pai. - Amo-a. Casaria com ela e criaria a criança caso ela o quisesse, mas a Maribeth não me deixa fazer nem uma coisa nem outra. Quer voltar a frequentar o liceu e um dia, se possível, a faculdade. Ela julga que vai conseguir voltar a viver em casa dos pais, mas não estou muito certo acerca disso. Penso também que o pai dela nunca irá permitir que a filha tire um curso superior, pelo que a ouvi contar dele. Mas a Maribeth não quer casar até conseguir terminar os estudos. Ela não está a pressionar-me, pai. Se casasse com ela, teria de ser eu a forçá-la.

- Bem, então não o faças - respondeu o pai, abrindo uma garrafa de cerveja e bebendo um gole. Apenas a ideia de ver Tommy casado com dezasseis anos era o suficiente para o deixar enervado.

- Não faças nada de que mais tarde possas vir a arrepender-te, Tommy - aconselhou a mãe, tentando parecer mais descansada do que estava, pois, depois de tudo quan to ouvira, sentia as mãos trémulas. - Vocês são ambos muito jovens e podem estragar as vossas vidas se cometerem um erro desses. Pelos vistos, ela já cometeu o primeiro erro. Por isso, não sejas tu conivente com o segundo.

-É o que a Maribeth diz. É por isso que pretende que o filho seja adoptado. Pensa que mantê-lo consigo seria apenas mais um erro, pelo qual todos teriam de pagar. Eu não concordo. Acho que, um dia, ela ainda vai arrepender-se por não o ter criado, mas a Maribeth responde sempre que essa criança merece uma vida melhor do que aquela que lhe pode oferecer.

- E talvez tenha razão - concordou a mãe com pesar, acreditando que não existia nada mais triste na vida do que abdicar de um filho, exceptuando talvez perder um, principalmente tratando-se de uma criança muito amada. Mesmo assim, desistir de um filho que se carrega durante nove meses parecia-lhe um autêntico pesadelo. - Há óptimas famílias que desejam muito adoptar um filho... casais que não podem ter filhos, mas que educariam da melhor forma possível uma criança.

- Bem sei. - Tommy, de súbito, pareceu ter ficado muito triste. Passavam trinta minutos da uma da madrugada e estavam já há hora e meia a conversar na coz,~ha, dis cutindo o problema de Maribeth. - Mas acho tudo isso muito triste. 0 que pode ela ganhar por desistir do filho? - Um futuro. Talvez isso seja o mais importante - defendeu a mãe, com sabedoria. - Ela vai desistir da própria vida, se tentar criar um filho, com dezasseis anos, sem uma família para a ajudar. E contigo acontecerá o mesmo, se casares com ela. Não é vida para dois adolescentes que ainda nem sequer terminaram o liceu.

- Prometa-me que vai conhecê-la mãe, e conversar com ela. Gostava muito que a conhecesses melhor e talvez até que a pudesses ajudar nos estudos. Já vai muito mais avançada do que eu, já não sei mais que exercícios lhe dar. - Está bem. - Ao trocarem um olhar, os pais não escondiam a sua preocupação, mas ambos concordaram com o pedido de Tommy. - Trá-la a nossa casa durante a próxima semana. Vou preparar um jantar: - Liz fez com que a sua sugestão soasse como um sacrificio. Tinha passado a detestar cozinhar, apesar de o fazer sempre que necessário; mas agora sentia-se mais culpada do que nunca, pois esse seu hábito levara o filho a ter de tomar as refeições num restaurante, como um órfão. Ainda tentou acrescentar algo sobre esse tema, quando se dirigiam para o vestíbulo, já depois de terem desligado as luzes. - Lamento que... lamento que não te tenha dado a devida atenção - afirmou, com lágrimas nos olhos, em bicos de pés para o poder beijar. - Amo-te muito... mas tenho andado meio perdida nos últimos dez meses.

- Não tem importância, mãe - respondeu Tommy, carinhosamente. - Estou bem. - E de facto estava, graças a Maribeth, que o ajudara ainda mais do que Tommy a

ajudara a ela. Tinham trazido um grande consolo um ao outro.

Tommy foi depois para o seu quarto. Naquele que pertencia aos pais, Liz sentou-se pesadamente na cama a fitar John com perplexidade.

-Mal posso acreditar no que acabámos de ouvir. Ele casava-se com essa rapariga, caso nós o permitíssemos...! -Seria completamente idiota, se o fizesse - observou John, enraivecido. - Talvez não passe de uma ordinária, engravidou com dezasseis anos e agora está a tentar conquistá-lo com uma série de ideias acerca de educação e de querer tirar um curso superior!

- Não sei o que pensar - exclamou Liz, de olhos fitos no marido. - Mas sei que neste último ano temo-nos comportado de uma forma muito estranha: tu tens andado a beber e eu tenho estado ausente, perdida nos meus próprios pensamentos, tentando esquecer o que aconteceu. 0 Tomìny tem comido em restaurantes e começou a namorar com uma rapariga grávida, com a qual quer casar-se. Pode-se dizer que somos uma família complicada, não? - acrescentou, espantada por tudo quanto ouvira e sentindo bastantes remorsós.

- Talvez seja isso o que acontece a todos quantos perdem o rumo na vida - observou John, sentando-se na cama ao lado na mù~her. Estavam mais próximos do que há muitas semanas e, pela primeira vez desde há muito tempo, Liz apercebeu-se de que não se sentia irritada, apenas preocupada. - Pensei que fosse morrer quando... - começou John suavemente, incapaz de terminar a frase que começara.

- Eu também... e creio que mom - admitiu ela. - Sinto-me como se tivesse estado em coma durante todo este último ano. Nem sequer tenho a certeza do que se passou.

John colocou o braço em redor dos ombros de Liz e abraçou-a durante muito tempo. Mais tarde, quando se deitaram, ele não falou com Liz, nem esta com o marido, mas adormeceram abraçados.

No dia de folga de Maribeth, Tommy veio buscá-la paca esta conhecer os pais. Ela tinha escolhido o seu melhor vestido, e Tommy, já um pouco atrasado por vir di rectamente do treino de futebol, estava bastante mais nervoso do que queria parecer.

- Estás muito bonita - elogiou, ao cumprimentá-la. - Obrigado, Maribeth. - Tommy estava grato por ela ter feito um esforço para conhecer os pais dele. Maribeth, por seu lado, avaliava a importância que esse encontro tinha para Tommy e não o queria envergonhar. Já era suficientemente mau o facto de aparecer grávida de quase sete meses. Ninguém no mundo a apresentaria a quem quer que fosse, muito menos aos seus próprios pais, à excepção de Tommy.

Maribeth levava um vestido de lã antracite com colarinho branco e uma gravata em borboleta. Comprara-a num mês em que o dinheiro do salário não fora necessário para nenhuma prioridade, nos tempos em que Tommy começara a convidá-la para jantar fora nos seus dias de folga. Trazia o bonito cabelo ruivo apanhado num rabo-de-cavalo, atado com uma fita de veludo preto. Com um sorriso no rosto, quando Tommy a ajudou a subir para a carrinha do pai, Maribeth assemelhava-se a uma menina de doze anos que levava um balão escondido debaixo da saia. Estava bonita e graciosa, desejando que, acima de tudo, o encontro com os pais de Tommy corresse bem. Estes nada mais haviam acrescentado a Tommy acerca dela, apenas lhe tinham repetido que gostariam de conhecer Maribeth, a qual, ao longo de todo o percurso, permaneceu extremamente silenciosa.

-Não estejas nervosa, sim? - pediu Tommy depois de ter estacionado, enquanto Maribeth reparava com agrado no esmero da casa. Tinha sido pintada há muito pouco tempo e havia vários canteiros de flores na entrada.

 

E certo que nessa altura do ano não tinham flores, mas isso não impedia que não se reparasse imediatamente no cuidado com que a casa era mantida. - Vai correr tudo bem - garantia ele, ajudando-a a descer e caminhando na frente dela até à entrada. Tommy deu-Ihe então a mão, abriu a porta e entraram ambos em casa. Os pais estavam na sala de estar à espera deles, e Tommy reparou de imediato na forma atenta como a mãe observava Maribeth quando esta atravessou rapidamente a sala para os cumprimentar.

Todos se apresentaram com muita delicadeza e cerimónia: Liz ofereceu um lugar a Maribeth para esta se sentar e em seguida perguntou-lhe se desejava chá ou cai. Ela disse preferir Coca-Cola, e John úcou a conversar com Maribeth quando Liz foi até à cozinha ver como estavam os seus cozinhados. Fizera carne assada para o jantar, acompanhada das panquecas de batata que Tommy adorava e de creme de espinafres.

Passado algum tempo, Maribeth ofereceu-se para ajudar e foi até à cozinha para se juntar à mãe de Tommy. Os dois homens ficaram a vê-la atravessar o vestíbulo e, quan do Tommy fez menção de a acompanhar, John tocou-lhe no braço para o impedir.

- Deixa-a conversar com a tua mãe, filho. É bom que a Liz possa conhecê-la. Parece ser boa rapariga - comentou, com bastante franqueza -, e muito bonita também. Foi uma pena o que lhe sucedeu... 0 que aconteceu ao rapaz? Porque não se casaram?

- Ele casou-se com outra pessoa, mas a Maribeth também não queria casar com ele, pai, porque não o amava. - Não tenho bem a certeza se essa atitude revela esperteza ou burrice. É certo que o casamento, por vezes, já é suficientemente dificil, mesmo quando se casa por amor... mas, de qualquer forma, foi corajoso da parte dela. - John acendeu o cachimbo e ficou a observar o filho. De facto, Tommy tinha crescido muito ultimamente. - Não me parece justo que os pais se recusem a vê-la até ela ter tido o filho - comentou John, fitando atentamente o seu filho e imaginando o quanto aquela rapariga significava para ele. Todavia, não era dificil concluir que Maribeth tinha uma grande importância para Tommy, cujo coração estava a descoberto para que todos pudessem avaliar a paixão que sentia. John não pôde deixar de se sentir compadecido.

Quando por fim Liz os chamou para jantar, esta e Maribeth já se tinham tornado boas amigas. Maribeth ajudava a trazer a comida para a mesa, enquanto as duas conversa vam formalmente sobre uma das disciplinas que Liz ensinava. Quando Maribeth declarou que gostaria de poder frequentar uma dessas aulas, Liz ficou pensativa.

- Penso que talvez possa dar-te parte do material de estudo - afirmou Liz. - 0 Tommy contou-me que estás a tentar continuar os estudos, e que o ajudas a fazer os tra balhos. Gostavas que corrigisse alguns dos teus exercícios? Maribeth ficou radiante com semelhante oferta.

- Gostava muito - respondeu, agradecida, ocupando o seu lugar entre os dois homens.

- Pretendes enviar os teus trabalhos para a tua antiga escola ou resolveste fazê-los apenas em beneficio próprio? - Principalmente em beneficio próprio, embora tenha esperanças que, depois de regressar, ainda possa mostrar alguns dos exames que fiz. Talvez assim pudessem avaliar-me. - Se me deixares corrigi-los, talvez possa apresentá-los aqui na escola e pedir que te dêem algum tipo de equivalência. Fizeste alguns dos trabalhos do Tommy?

Maribeth respondeu prontamente que sim com a cabeça, mas foi Tommy, sentado entre ela e a sua mãe, quem falou por ela.

- A Maribeth está já muito mais avançada do que eu, mãe. Já terminou de ler e de fazer os exercícios para todo o ano do meu livro de Ciências e de História Europeia, bem como a maioria dos trabalhos opcionais.

Liz mostrou-se bastante impressionada, e Maribeth prometeu trazer no fim-de-semana seguinte todos os trabalhos que realizara até então.

- Na verdade, até talvez possa dar-te alguns trabalhos extras - observou Liz, passando a carne assada a Maribeth. - Só dou aulas aos últimos anos. - Ambas conti nuaram a conversar animadamente sobre esse tema; no final do jantar, Liz e Maribeth já tinham arquitectado um excelente plano para se encontrarem durante algumas horas na tarde do sábado seguinte, para que, no domingo, Liz pudesse entregar-lhe uma série de exercícios especiais. - Podes terminá-los quando quiseres, sem prazo de entrega. 0 Tommy contou-me que trabalhas seis dias por semana num restaurante e calculo que não seja ~cil conciliar tudo. - De facto, Liz estava admirada por Maribeth ainda possuir força para cumprir os seus turnos de dez horas a servir às mesas. - Por quanto mais tempo pensas continuar a trabalhar, Maribeth? - Liz evitava ter de referir a gravidez, mas era dificil não o fazer, pois a barriga de Maribeth estava enorme.

- Até ao final do tempo, espero. Não posso dar-me ao luxo de desistir. - Precisava do dinheiro que o pai Ihe entregara para pagar as despesas do parto e os honorários do médico e, por isso, vivia apenas do salário. Não tinha forma de desistir antes de tempo, e o simples facto de ter de suportar as despesas inerentes aos cinco ou dez dias imediatos ao parto já representava um desafio. Os recursos de que dispunha eram bastante escassos, mas, felizmente, não necessitava de muito, e, uma vez que não iria conservar a criança a seu lado, não precisava de lhe comprar nada, apesar das colegas insistirem em presenteá-la com um verdadeiro enxoval. Maribeth tentava dissuadi-las, pois as prendas enterneciam-na e faziam-na sofrer ainda mais, mas elas não faziam a menor ideia de que Maribeth não pretendia educar o filho.

- Não te vai ser nada fácil - comentou Liz, compadecida. - Trabalhar até ao final do tempo... Quando estive grávida do Tommy, trabalhei até ao fim, mas julguei

que ele fosse nascer no meio de uma aula! Parei muito tempo antes, quando foi do nascimento da Annie - observou, originando subitamente um silêncio geral na mesa. Liz pousou então os olhos em Maribeth, que encarou de frente o olhar dela. - Creio que o Tommy já te deve ter falado da irmã - murmurou Liz, em voz doce.

Maribeth indicou que sim, com os olhos cheios de todo o amor que sentia por ele, e de toda a compaixão e afecto que dedicava aos seus pais. Annie representava para Maribeth uma presença muito real, pois ouvira tantas histórias e sonhara tantas vezes com ela que sentia que a conhecia.

-Contou, sim - admitiu Maribeth, suavemente. - Deve ter sido uma menina muito especial.

- Foi, sim - concordou Liz, subitamente destroçada. Silenciosamente, John estendeu-lhe a mão sobre a mesa e, ao tocar-lhe os dedos, Liz levantou os olhos para o marido, surpreendida; era a primeira vez que tomava semelhante atitude. - Suponho que todos os filhos são especiais - continuou -, como os teus serão. As crianças sâo uma bênção maravilhosa. - Maribeth não respondeu e Tommy lançou-lhe um olhar, consciente do dilema com que Maribeth se debatia acerca do filho.

Conversaram em seguida sobre o próximo jogo de futebol de Tommy, ao qual Maribeth desejou secretamente poder assistir.

Depois referiram vários outros temas: a cidade onde Maribeth nascera, o ensino que frequentara, e os dias que passara nesse Verão no lago, na companhia de Tommy.

Conversaram sobre muitos assuntos, exceptuando o relacionamento de Maribeth com Tommy e o filho que esta esperava. Por fim, às dez horas, Tommy preparou-se para a levar a casa; Maribeth despediu-se com um beijo dos seus pais e, já na carrinha, deixou escapar um profunda suspiro de alívio, recostando a nuca no assento como se estivesse exausta.

- Que tal me portei? Será que me odiaram? – Tommy ficou comovido com a preocupação de Maribeth e inclinou-se sobre ela para a beijar ao de leve.

- Foste maravilhosa, e tenho a certeza de que os meus pais gostaram muito de ti. Porque julgas que a minha mãe se ofereceu para te ajudar nos estudos? - Tommy sentia-se muitíssimo aliviado: os pais não haviam sido apenas simpáticos com Maribeth, mas francamente amigáveis. Na verdade, haviam úcado bastante impressionados com ela.

Entretanto, ainda em casa, já depois de Tommy ter saído com Maribeth, John elogiou a sua inteligência e boas maneiras, enquanto ajudava Liz a lavar a louça.

- E uma rapariga e tanto, não te parece, Liz? É uma pena que tenha feito aquilo a si própria. - John abanava a cabeça, enquanto limpava um dos pratos. Desde há muitos meses, tinha sido o primeiro jantar que realmente apreciara, e estava muito satisfeito por Liz ter feito um esforço.

- Não o fez sozinha... - respondeu Liz, esboçando um leve sorriso. Contudo, tinha de admitir que John tinha razão; Maribeth era uma rapariga encantadora, e foi exactamente isso o que comentou com o filho, uma hora mais tarde.

Tommy acompanhara Maribeth até ao quarto mas, ao beijá-la, reparara que ela estava realmente fatigada e que as costas lhe doíam bastante. Tinha sido um dia muito longo, e há já algum tempo que começara a sentir-se dorida e indisposta.

- Gasto da tua amiga - comunicou calmamente Liz, arrumando o último prato. John acabara de acender o cachimbo e indicava ao filho, por meio de um gesto, que sentia de igual forma.

-Ela também gostou de vocês. Tem-se sentido muito só, sente a falta dos pais e da irmã... que, quanto a mim, não devem ser muito boas pessoas... Mas a Maribeth já deve estar habituada. 0 pai parece ser um autêntico tirano e a Maribeth contou-me que a mãe nunca tem coragem de o enfrentar. Sei que, apesar de tudo, não é facil para ela que ele fosse nascer no meio de uma aula! Parei muito tempo antes, quando foi do nascimento da Annie - observou, originando subitamente um silêncio geral na,mesa. Liz pousou então os olhos em Maribeth, que encarou de frente o olhar dela. - Creio que o Tommy já te deve ter falado da irmã - murmurou Liz, em voz doce.

Maribeth indicou que sim, com os olhos cheios de todo o amor que sentia por ele, e de toda a compaixão e afecto que dedicava aos seus pais. Annie representava para Maribeth uma presença muito real, pois ouvira tantas histórias e sonhara tantas vezes com ela que sentia que a conhecia.

- Contou, sim - admitiu Maribeth, suavemente. - Deve ter sido uma menina muito especial.

- Foi, sim - concordou Liz, subitamente destroçada. Silenciosamente, John estendeu-lhe a mão sobre a mesa e, ao tocar-lhe os dedos, Liz levantou os olhos para o mari do, surpreendida; era a primeira vez que tomava semelhante atitude. - Suponho que todos os filhos são especiais - continuou -, como os teus serão. As crianças são uma bênção maravilhosa. - Maribeth não respondeu e Tommy lançou-lhe um olhar, consciente do dilema com que Maribeth se debatia acerca do filho.

Conversaram em seguida sobre o próximo jogo de futebol de Tommy, ao qual Maribeth desejou secretamente poder assistir.

Depois referiram vários outros temas: a cidade onde Maribeth nascera, o ensino que frequentara, e os dias que passara nesse Verão no lago, na companhia de Tommy. Conversaram sobre muitos assuntos, exceptuando o relacionamento de Maribeth com Tommy e o filho que esta esperava. Por fim, às dez horas, Tommy preparou-se para a levar a casa; Maribeth despediu-se com um beijo dos seus pais e, já na carrinha, deixou escapar um profundo suspiro de alívio, recostando a nuca no assento como se estivesse exausta.

- Que tal me portei? Será que me odiaram? – Tommy ficou comovido com a preocupação de Maribeth e inclinou-se sobre ela para a beijar ao de leve.

- Foste maravilhosa, e tenho a certeza de que os meus pais gostaram muito de ti. Porque julgas que a minha mãe se ofereceu para te ajudar nos estudos? - Tommy sentia-se muitíssimo aliviado: os pais não haviam sido apenas simpáticos com Maribeth, mas francamente amigáveis. Na verdade, haviam ficado bastante impressionados com ela.

Entretanto, ainda em casa, já depois de Tommy ter saído com Maribeth, John elogiou a sua inteligência e boas maneiras, enquanto ajudava Liz a lavar a louça.

-É uma rapariga e tanto, não te parece, Liz? É uma pena que tenha feito aquilo a si própria. - John abanava a cabeça, enquanto limpava um dos pratos. Desde há muitos meses, tinha sido o primeiro jantar que realmente apreciara, e estava muito satisfeito por Liz ter feito um esforço. - Não o fez sozinha... - respondeu Liz, esboçando um leve sorriso. Contudo, tinha de admitir que John tinha razão; Maribeth era uma rapariga encantadora, e foi exactamente isso o que comentou com o filho, uma hora mais tarde.

Tommy acompanhara Maribeth até ao quarto mas, ao beijá-la, reparara que ela estava realmente fatigada e que as costas lhe doíam bastante. Tinha sido um dia muito longo, e há já algum tempo que começara a sentir-se dorida e indisposta.

- Gosto da tua amiga - comunicou calmamente Liz, arrumando o último prato. John acabara de acender o cachimbo e indicava ao filho, por meio de um gesto, que sentia de igual forma.

-Ela também gostou de vocês. Tem-se sentido muito só, sente a falta dos pais e da irmã... que, quanto a mim, não devem ser muito boas pessoas... Mas a Maribeth já deve estar habituada. 0 pai parece ser um autêntico tirano e a Maribeth contou-me que a mãe nunca tem coragem de o enfrentar. Sei que, apesar de tudo, não é iacil para ela sentir-se excluída. A mãe ainda lhe escreveu algumas vezes, mas o pai nem sequer lê as cartas que ela envia. E também não a deixam falar com a irmã... É tudo uma grande injustiça - exclamou, mostrando-se muito preocupado. Liz deteve-se a observar os olhos do filho, nos quais era fácil detectar o quanto amava Maribeth e a ansiedade que sentia em a proteger.

- Por vezes, as famílias tomam decisões idiotas - acrescentou a mãe, sentindo pena de Maribeth. - Talvez sofram ainda muito tempo por tudo o que se passou, talvez até nunca consigam esquecer.

-A Maribeth quer regressar a casa para terminar o liceu e depois ir viver para Chicaco, se for admitida na universidade.

- E porque não tenta ser admitida aqui? - sugeriu o pai, deixando Liz surpreendida pela extrema facilidade com que se lembrara dessa ideia. De facto, viviam numa cidade universitária, cujo ensino tinha boa reputação, e Maribeth poderia obter uma bolsa de estudo, se assim o desejasse, podendo Liz apoiar a sua candidatura.

- Nunca pensei nisso, nem tenho a certeza se essa ideia alguma vez lhe ocorreu - respondeu Tommy, satisfeito. - Vou conversar com a Maribeth acerca disso, ape sar de que, neste momento, o que mais a preocupa é o nascimento do filho. Ela está bastante assustada, julgo que não tem a certeza do que a espera. Talvez... - Tommy lançou à mãe um olhar hesitante, satisfeito por as duas mulheres se terem finalmente conhecido. - Talvez pudesses conversar com ela sobre isso, mãe. À excepção de mim e das outras empregadas do restaurante, ela não tem mais ninguém com quem falar. E, na maioria das vezes, as colegas apenas a deixam ainda mais assustada. - Do pouco que sabia acerca daquilo por que Maribeth estava a passar, Tommy também era de opinião de que a situação era muito assustadora, pois o desenrolar de todo o processo parecia-lhe extremamente complicado.

-Eu converso com ela - prometeu Liz, com todo o carinho. Daí a pouco, todos foram para a cama, e Liz, deitada ao lado de John, ficou surpreendida por não conseguir deixar de pensar em Maribeth. - É uma miúda extremamente doce, não é? Não posso imaginar como terá sido enfrentar tudo aquilo sozinha... e deve ser tão triste ter de abdicar de um filho... - Só de pensar nisso, brotavam-lhe lágrimas dos olhos, recordando a primeira vez que tomara Annie e Tommy nos seus braços; ambos haviam sido bebés adoráveis e amorosos. A ideia de ter de os entregar a alguém à nascença teria destruído Liz. Mas esta tinha esperado muito pela chegada desses filhos, além de ser também bastante mais velha do que Maribeth. Talvez com dezasseis anos, um filho fosse uma carga demasiado pesáda, e talvez Maribeth estivesse a tomar a atitude mais acertada, ao chegar à conclusão que não poderia tomá-lo a seu cargo. - Será que o doutor Avery vai conseguir descobrir um casal que queira adoptar a criança? - Liz sentia-se inesperadamente preocupada com Maribeth. Tal como Tommy, não podia deixar de recordar que ela não tinha mais ninguém para a ajudar.

- Tenho a certeza que o Avery já fez o mesmo muito mais vezes do que imaginamos. Este não é um caso raro, sabes? 0 que se passa é que, na maioria das vezes, essas ra parigas ficam escondidas em alguma parte. Tenho a certeza que ele vai encontrar uma família adequada para essa criança.

Deitada no escuro, Liz concordou, continuando a pensar nos dois adolescentes, em Maribeth e no seu filho. Eram ambos tão jovens, estavam tão apaixonados e tinham tantas esperanças! Ainda acreditavam que a vida lhes seria propícia e confiavam naquilo que os seus destinos lhes trariam. Liz já perdera há muito esse tipo de fé, pois a dor que sentira ao perder Annie tinha sido demasiado intensa. Agora, tinha a certeza que nunca mais voltaria a acreditar naquilo que a vida oferecia: era demasiado cruel e dramática.

Ainda conversaram mais um pouco sobre Maribeth, e depois John adormeceu. Em certos aspectos, não estavam menos afastados do que antes mas, nesses últimos dias, a distância entre ambos parecia menos aterradora e, por vezes, havia um gesto ou uma palavra carinhosa que a animavam. Liz começara a esforçar-se um pouco mais para quebrar o gelo com o marido, e o jantar dessa noite demonstrara-lhe que devia voltar a cozinhar para a família. Precisavam de se reunir à noite, de se tocar, de se ouvir, de conversar e de trazer de novo esperança uns aos outros. Tinham andado perdidos tempo de mais, mas, lentamente, Liz começava a sentir que estavam a deixar para trás a névoa em que todos se haviam envolto. Agora, já quase conseguia vislumbrar o vulto do marido, tentando aproximar-se dela, ou tencionando fazê-lo, e o de Tommy, que continuava onde sempre havia estado, com a diferença de ter agora Maribeth a seu lado.

Pela primeira vez em muitos meses, Liz adormeceu com uma sensação de paz no coração, e na manhã seguinte, na biblioteca da escola, escolheu vários livros para Ma ribeth e elaborou alguns exercícios. Quando Maribeth regressou, na tarde de sábado seguinte, Liz estava totalmente preparada para a receber, mas não póde deixar de ficar bastante admirada pela boa qualidade dos trabalhos que ela lhe entregou. Na realidade, esses trabalhos eram superiores à maioria daqueles que os seus alunos mais avançados efectuavam.

Ao lê-los, Liz franziu as sobrancelhas e sacudiu a cabeça, deixando Maribeth em pânico.

- Está muito mau, Mistress Whittaker? A verdade é que não tive muito tempo para os fazer, só algumas horas à noite... mas posso estudar mais sobre esse tema, e queria também fazer outra análise literária sobre Madame Bovary. Não creio que essa análise esteja à altura do livro.

- Não digas tolices - interrompeu Liz, fitando-a com um sorriso inesperado. - Esta análise é extraordinária, estou muitíssimo impressionada! - Apesar de Tommy ser um dos melhores alunos, os seus trabalhos, quando comparados com os de Maribeth, chegavam a parecer fracos. Maribeth elaborara um trabalho sobre literatura russa e outro sobre o humor nas obras de Shakespeare; compusera também um editorial sobre a guerra da Coreia, bem como uma composição para a disciplina de Inglês, e todos os seus exercícios de Matemática eram exactos e meticulosos. Era o trabalho de mais elevada qualidade que Liz analisava há anos. Esta fitou então os olhos da adolescente grávida de dezasseis anos, sentada à sua frente, e apertou-lhe suavemente a mão. - Fizeste um óptimo trabalho, Maribeth. Seria o suficiente para recuperares um ano, ou avançares ainda mais. Na verdade, os trabalhos que fizeste são da capacidade de um aluno do último ano.

- É mesmo essa a sua opinião? Acha -los à minha antiga escola?

- Tenho uma ideia ainda melhor - respondeu Liz, empilhando as folhas dos exercícios de Maribeth. - Quero mostrar tudo isto ao nosso director e, dessa forma, tal vez seja possível obteres aqui a tua equivalência. Talvez permitam que realizes, antes de regressares, os exames de equivalência, para que depois possas frequentar logo o último ano.

- Pensa que isso seja possível? Maribeth estava de boca aberta, doida por tudo o que Liz sugerira e avançar um a um como era o primeiros passos.

Maribeth dava-se conta de que os meses que passaria em casa seriam muito dolorosos.

Tinha provado perante si própria que era capaz de morar sozinha, apesar de desejar ainda regressar para casa, mas apenas para poder rever a mãe e Noelle e para terminar o liceu. Contudo, tinha também a certeza de que não conseguiria permanecer por muito mais tempo em casa dos pais. Tinha ido demasiado longe e, no regresso, teria amadurecido de mais para conseguir permanecer em casa durante mais dois anos, após ter entregue o filho aos pais adoptivos. Sabia que nunca a deixariam esquecer o que fizera, principalmente o pai, e, como tal, seis meses até terminar o ano em Junho seria mais do que suficiente. Depois, poderia prosseguir com a sua vida, arranjar'um emprego, e talvez um dia, se a sorte o permitisse, obter uma bolsa de estudo para poder ser admitida na faculdade. Se preciso fosse, Marbeth estava disposta até mesmo a ter aulas à noite; estava preparada para fazer tudo quanto fosse necessário a favor da sua educação, apesar de ter compreendido já muito bem que a sua família nunca aceitaria esse seu desejo.

Liz entregou-lhe então uma lista de exercícios e prometeu analisar o que seria possível conseguir no liceu, com a condição de informar Maribeth daquilo que havia sido decidido.

Em seguida, conversaram mais um pouco sobre outros aspectos relacionados com os estudos, mas prncipalmente sobre Tommy e os seus projectos. Liz estava evidentemen te preocupada com a possibilidade de o filho tencionar casar com Marbeth com a intenção de a impedir de entregar o filho, apesar de nada ter afirmado nesse sentido. Mencionou apenas as faculdades que desejava que Tommy viesse a frequentar um dia, bem como todas as demais oportunidades que tinha em aberto, e Marbeth mostrou compreender em absoluto. Apercebia-se do que Liz estava a tentar dizer-lhe e, por fim, não se conteve; olhou-a directamente nos olhos e começou a falar num tom muito suave.

- Não vou casar com o Tommy, Mistress Whittaker, pelo menos, agora. Ele tem sido maravilhoso comigo, é o único amigo que tive desde que isto me aconteceu. Mas somos ambos muito jovens, e o casamento podem destruir o nosso futuro. Não estou muito certa de que o Tommy compreenda isso - continuou, com pesar -, mas é o que penso. Não estamos preparados para ter um filho, ou, pelo menos, eu sei que não estou. Educar um filho exige muita dádiva, é preciso estar sempre presente, sempre atento... É preciso ser aquilo que ainda não sou: adulta - concluiu, com os olhos cheios de lágrmas, comovendo Liz. Marbeth mal passava de uma criança que transportava uma outra dentro de si.

- Pareces-me muito madura, Maribeth. Talvez não 0 suficiente para enfrentares tudo isso, mas tens com certeza muito para oferecer. Faz aquilo que achares ser o melhor para ti... e para a criança. Apenas não quero que o Tommy sofra, ou que cometa algum disparate.

- Isso não vai acontecer - assegurou Maribeth, limpando as lágrimas -, não o vou deixar fazer nenhum disparate. É claro que, por vezes, também sinto vontade de ficar com o meu filho, mas, depois, o que aconteceria? 0 que faria no mês seguinte ou no ano seguinte? E se não conseguir arranjar um emprego e ninguém me ajudar? E como é que o Tommy conseguira terminar de estudar com um filho para sustentar? Nem ele conseguira, nem eu. Sei que se trata do meu filho, e que não devera referr-me assim a ele, mas quero o melhor para esta trança. Ela tem direito a muito mais do que alguma vez poderei oferecer-lhe. Tem direito a ter uns pais que o amem e que o desejem muito, e que não tenham medo de o ciar, como eu tenho. Gostava de o poder educar, mas sei que não posso e... isso assusta-me muito. - Pensar no filho trazia-lhe dor e mágoa, especialmente agora, que o bebé se tornara tão grande e tão real, movendo-se todos os dias dentro dela. Era dificil ignorá-lo e ainda mais dificil negá-lo; mas, para Marbeth, amar o seu filho significava conceder-lhe uma vida melhor e prosseguir com o seu destino, fosse esse qual fosse.

- 0 doutor MacLean prometeu ajudar-te? - indagou Liz. - Mencionou-te algum casal que queira adoptar uma trança? - Liz estava curiosa, pois sabia de uma série de casais jovens estéreis, os quais teram ficado muito felizes com a possibilidade de adoptar um bebé.

- Não, não me disse nada a esse respeito - respondeu Marbeth, com uma expressão preocupada. - Espero que ele tenha entendido que é mesmo isso que desejo. Talvez ele pense que eu e o Tommy... - Hesitou na conclusão da frase, e Liz riu.

-Também julgo que sim. Pelo menos, foi isso que ele quis dizer-me quando elogiou o Tommy, salientando que era "muito bom rapai>. Deve ter concluído q>5e ele era o pai da criança... Afinal, também pensei o mesmo quando soube o que se passava! Admito que fiquei assustada, mas... não sei, talvez haja coisas bem mais graves. 0 Tommy parece estar a encarar bem o assunta, mesmo não sendo ele o pai do teu filho, o que torna a situação ainda mais complicada.

-Ele tem sido fantástico comigo - afirmou Maribeth, sentindo uma proximidade maior com a mãe de Tommy do que alguma vez sentira com a sua. Liz era cari nhosa, terna e inteligente, e dava mostras de estar a acordar de um ano que tinha sido um terrível pesadelo para toda a família. Era alguém que tinha total consciência de que soúera as consequências de um luto demasiado prolongado.

- O que pensas fazer nos próximos dois meses? - quis saber Liz, oferecendo um copo de leite e alguns biscoitos a Maribeth.

- Trabalhar e continuar a estudar. E esperar que o bebé nasça... está previsto que seja no Natal.

-Então, está para muito breve - comentou Liz, lançando a Maribeth um olhar carinhoso. - Se houver algo que possa fazer para te ajudar, gostava que contasses comi go. - Liz desejava apoiar ambos, Maribeth e Tommy; antes de esta sair, no final da tarde, voltou a prometer-lhe que se informaria sobre o que poderia fazer por ela na escola. Essa perspectiva encheu Maribeth de alegria, a qual, nessa noite, no cinema, contou a Tommy tudo quanto Liz lhe prometera.

Foram assistir ao filme Bwana Devil, a três dimensões, e usaram óculos coloridos para poderem usufruir dos efeitos especiais. Era o primeiro filme a que assistiam desse género e ambos adoraram vê-lo. Foi em seguida que Maribeth revelou a Tommy a conversa que tivera com a sua mãe. Maribeth sentia por ela um grande respeito, e Liz, a cada dia que passava, gostava mais da rapariga. Convidara-a novamente para jantar na semana seguinte e, quando Maribeth o contou a Tommy, este observou que, por vezes, ao vê-la integrada na sua família, quase se sentia já casado com ela. Corou ao confessá-lo, mas era evidente que isso lhe causava um enorme prazer. Aliás, ultimamente, vinha a pensar cada vez mais nesse assunto, agora que o nascimento da criança estava tão próximo.

- Não é má ideia, pois não? - indagou a caminho de casa dela, tentando parecer natural. - A ideia de estarmos casados... - Ao afirmá-lo, Tommy nunca Ihe pare ceu tão jovem e inocente, mas Maribeth já prometera à mãe dele e a si própria que não permitiria que tal acontecesse.

-Até te fartares de mim... daqui a um ou dois anos! Ou quando eu tiver vinte e três anos e já for velha - gracejou. - Repara, faltam apenas sete anos, e nessa altura já podíamos ter oito filhos, pelo menos, se eu seguir este mesmo ritmo! - Maribeth utilizava sempre o seu sentido de humor para se referir a si mesma e a Tommy, apesar de, essa vez, ter a certeza que ele não estava a brincar. - Não brinques, Maribeth.

-Não estou a brincar. 0 problema é mesmo esse: somos ambos novos de mais, como tu bem sabes. - Mas Tommy estava decidido a voltar a conversar com ela sobre esse assunto e a não permitir que Maribeth o rejeitasse. Ainda faltavam dois meses e, antes de estar tudo terminado, desejava fazer-lhe uma proposta formal de casamento.

Na semana seguinte, quando Tommy a levou a patinar, Maribeth continuou a evitar a conversa sobre o mesmo tema. Tinha ocorrido o primeiro nevão, e a superficie gelada do lago estava lisa e brilhante. Tommy não resistira a regressar àquele local que tanto lhe recordava Annie e todas as ocasiões que ele a levara para patinar.

- Costumava vir aqui ao fim-de-semana com ela. Trouxe-a aqui na semana antes da... morte dela. - Tommy forçou-se a pronunciar essas palavras, por muito que ainda o magoassem. Sabia que já era tempo de enfrentar o

facto de Annie ter partido, apesar de ser ainda bastante difícil. - Sinto a falta das brincadeiras dela... A Annie estava sempre a provocar-me por causa das raparigas. Teria dado comigo em louco se te tivesse conhecido! - Tommy sorriu, pensando na sua pequena irmã.

Quando estivera em casa de Tommy, Maribeth conhecera o quarto de Annie. Tinha ali entrado acidentalmente quando procurava a casa de banho e encontrara tudo como ela deixara: a cama pequena, as bonecas, o berço onde as deitava, a estante com os seus livros, a almofada na qual deitava a cabeça e o pequeno cobertor rosa. Maribeth ficou com o coração partido, mas não comentara com ninguém o que descobrira; tinha sido quase como visitar um santuário, que revelava o quanto todos naquela casa sentiam a falta de Annie.

Contudo, naquele momento, Maribeth ria das histórias que Tommy contava acerca das raparigas que a irmã afugentara, na maioria das vezes por as achar muito estúpidas ou muito feias.

- Se calhar, nem eu teria escapado, sabes? - observou Maribeth, deslizando com Tommy pelo gelo, pensando se não seria mais aconselhável parar. - Principalmente agora! Talvez tivesse pensado que eu era um elefante... Pelo menos, é como me sinto! - acrescentou, embora ainda se movesse no gelo com alguma leveza, calçando os patins que Julie lhe emprestara.

-Será que não devias parar? - indagou Tommy, suspeitando que aquela actividade não sena a mais apropriada para o estado em que Maribeth se encontrava.

- Não, não há perigo - respondeu ela com muita calma. - Desde que não caia! - Em seguida, Maribeth deu algumas piruetas para mostrar a Tommy que não tinha sido sempre tão pouco ágil. Este ficou impressionado com a facilidade com que ela deslizava pelo gelo; movimentando sem o menor esforço a sua volumosa silhueta. Mas, subitamente, um dos patins ficou preso e Maribeth caiu pesadamente no gelo. Tommy e uma série de outros patinadores ficaram de boca aberta e correram para ela, aflitos. Maribeth magoara a cabeça e ficara totalmente prostrada, de forma que foram necessárias trés pessoas para a levantar. Quando por fim o conseguiram fazer, ela quase desmaiou. Tommy ajudou-a a sair do gelo, e todos à sua volta se mostraram bastante preocupados.

-Devia levá-la a um hospital - aconselhou em voz baixa uma das mães das crianças que patinavam no lago. - Ela corre o risco de entrar em trabalho de parto. - Tommy ajudou-a a entrar na carrinha e conduziu rapidamente para o consultório do Dr. MacLean, enquanto se recriminava a si próprio e a Maribeth pela tolice que ambos haviam cometido.

- Porque fizeste uma parvoíce tão grande? - perguntava. - E como é que eu pude permitir...? Como te sentes? Estás bem? - Quando chegaram ao consultório médico, Tommy estava desvairado, apesar de Maribeth não ter contracções, e sim uma grande dor de cabeça. - Estou bem - respondeu ela, bastante envergonhada. - Sei bem que fui irresponsável, mas às vezes estou cansada de me sentir tão gorda, tão pesada e tão desajeitada!

- Mas não és nada disso, estás apenas grávida. E é natural que estejas assim. E lá porque não queres a criança, isso não justifica que a tentes matar. - Maribeth começou imediatamente a chorar; quando por fim entraram no consultório do Dr. MacLean, estavam ambos muito perturbados: Maribeth ainda chorava, e Tommy, depois de lhe ter pedido desculpas, voltou a gritar com ela por ter ido patinar.

- 0 que aconteceu? 0 que aconteceu? Meu Deus, mas aúnal o que se passa? - 0 médico não conseguia entender nada do que tinha sucedido, apenas que Maribeth magoara a cabeça e tentara matar o filho. Depois, ela recomeçou a chorar e confessou finalmente que dera uma pirueta porque tinha ido patinar com Tommy para o lago. - Patinar? - O médico ficou surpreendido. Nenhuma outra das suas clientes tivera ainda semelhante ideia. Contudo, tinham ambos apenas dezasseis anos; e tanto Tommy como Maribeth se mostraram suficientefnente mortificados quando o Dr. MacLean lhes deu um pequeno sermão. Proibiu-a de montar a cavalo, de patinar no gelo e de andar de bicicleta, pelo risco que Maribeth correria de cair novamente, principalmente devido ao gelo. Proibiu-a igualmente de fazer esqui e acrescentou, com um leve sorriso: -E também de jogar futebol. - Tommy engoliu em seco e o médico continuou: - Têm de se portar bem. - Finalizou em seguida com uma outra actividade que acreditava que os dois haviam praticado: - E não podem ter relações sexuais até ao parto. - Nenhum dos dois explicou ao médico que nunca haviam tido, ou que Tommy ainda era virgem.

- Posso acreditar que não vais voltar a patinar? - 0 médico lançou-lhe um olhar intenso e Maribeth mostrou-se envergonhada.

- Prometo. - Porém, quando Tommy foi buscar o carro, ela recordou de novo ao médico que não desejava ficar com a criança e que pretendia descobrir uma família que desejasse adoptá-la.

-Estás a falar a sério? - 0 médico ficou surpreendido. 0 filho dos Whittaker estava muito ligado a Maribeth e dedicava-lhe uma profunda dedicação; decerto aceitaria casar imediatamente com ela. - Tens a certeza, Maribeth? - Sim, penso que sim... - respondeu, esforçando-se por parecer adulta. - Não posso cuidar de um bebé. - A família dele não te ajudaria? - Lembrava-se bem de que Liz Whittaker desejara ter um outro filho; mas talvez não aceitassem que o filho fosse pai tão cedo e, além do mais, em solteiro. Fiel à promessa que fizera aos dois adolescentes, o Dr. MacLean nunca perguntaria nada aos pais.

Contudo, Maribeth mostrava estar decidida a esse respeito.

- Nem eu queria que me ajudassem, não seria justo.

Esta criança tem direito a ser' criada poi verdadeiros pais, e não por duas crianças. Como poderia eu cúidar dele e frequentar a escola? Como o alimentarïa? Os meus. páis: nem sequer me deixam entrar em casa, se o levar comigo. - Ao explicar a sua situação ao médico, Maribéth tinha os olhos rasos de lágrimas e, quando Tommy regressou, o Dr. MacLean acariciava-lhe a mão, compadecido; erá demasiado jovem para carregar nos ombros semelhante carga.

- Vou ver o que posso fazer - prometéu calmamente, pedindo a Tommy que conservasse Máribeth deitada nos dois próximos dias. Ixlada de trabalho, de`divertimento, de sexo ou de patinagem.

- Sim, senhor - respondeu ele, ajudando-a .em seguida a caminhar até ao carro, amparando-a com todo 0 cuidado para que Maribeth não escorregasse no gelo que existia no chão. Tommy perguntou-lhe então o qué conversara com o médico; ao entrar, tinha reparado nas expressões sérias dos dois.

- 0 doutor MacLean prometeu ajudar-me a encontrar uma família que queira adoptar a criança. - Maribeth não acrescentou mais nada, mas ficou muito espantada ao verificar que Tommy conduzia para sua casa e não para a dela. - Onde vamos? - interrogou, ainda um pouco perturbada. A ideia de dar a criança não a alegrava nada, mesmo sabendo ser essa a atitude mais acertada; tinha a certeza que iria ser muito dificil.

- Telefonei à minha mãe - explicou ele. - 0 médico disse que só devias levantar-te para tomar as refeições. Tens de ficar o máximo tempo possível deitada e, por isso, perguntei à mãe se podias passar o fim-de-semana connosco. - Oh, não... não devias ter feito isso, não posso ficar... - Maribeth mostrou-se muito aflita, não desejando impor, de modo nenhum, a sua presença, mas já estava tudo programado. Liz não hesitara um só segundo, apesar de ter ficado horrorizada pela irresponsabilidade que os dois revelavam ao terem decidido ir patinar.

- Não te aflijas, Maribeth - pediu Tommy, com toda a calma. - A minha mãe disse que podias ficar no quarto da Annie. - Na voz de Tommy, Maribeth áetec tou uma leve falha. Ninguém dormia naquele quarto há meses, mas isso não impedira Liz de lhe oferecer o quarto de Annie. Quando chegaram, a cama estava feita de lavado e a mãe de Tommy tinha já preparada uma caneca com chocolate quente.

- Sentes-te bem? - perguntou logo, profundamente preocupada. Tendo sofrido vários abortos espontâneos, Liz não desejava que o mesmo sucedesse com Maribeth, prin cipalmente naquela fase adiantada da gravidez. - Foste muito irresponsável! Tiveste sorte de ela não ter perdido a criança - repreendeu Liz o filho. Mas eram ambos muito jovens e, ao repreendê-los, Liz viu que não passavam de duas crianças.

Vestida com a camisa cor-de-rosa que Liz lhe emprestara, deitada na cama estreita que pertencera a Annie, Maribeth parecia ainda mais criança. 0 seu cabelo ruivo formava duas enormes tranças, e as bonecas de Annie fitavam-na alegremente de todos os cantos do quarto. Maribeth dormiu durante horas nesse dia; por fim, Liz resolveu ir verificar se ela estava bem, passando-lhe a mão pela testa para ter a certeza de que não tinha febre. Liz telefonara antes ao Dr. MacLean e ficara mais descansada depois de o ouvir dizer que a queda não prejudicara a criança.

- São tão jovens - comentara o médico, sorrindo. Referira em seguida ser uma pena o facto de ela não poder educar a criança, mas não quisera adiantar nada mais; não desejava que Liz pensasse que estava a ser intrometido. - É tão boa rapariga - afirmara ainda, com o que Liz concordara antes de ter ido ver Maribeth. Esta acordou e informou que a dor de cabeça havia melhorado. Mas ainda se sentia culpada por estar ali naquele quarto, pois, acima de tudo, não desejava perturbar a família de Tommy.

No entanto, Liz ficou surpreendida por concluir que estar de novo no quarto de Annie lhe trazia uma boa senssação. Sentada na cama, contemplando os grandes olhos verdes de Maribeth, Liz pensou então que esta não aparentava ter muito mais idade do que Annie.

- Como te sentes? - interrogou, em voz muito baixa. Maribeth dormira três horas consecutivas, enquanto Tommy saíra para jogar hóquei no gelo, confiando-a aos cuidados da mãe.

- Ainda estou um pouco dorida e custa-me a mexer, mas acho que estou melhor. Fiquei tão assustada quando caí! Julguei que podia ter morto a criança... Não se mexeu durante muito tempo, e o Tommy gritou comigo... Foi horrível.

- Ficou apenas assustado. - Liz sorriu com ternura e tapou-a melhor com os lençóis. - Aliás, o susto foi muito grande para vocês dois. Agora já falta po~lco: mais sete se manas, segundo o doutor MacLean, ou talvez seis. - Para Maribeth, carregar um outro ser humano dentro do seu corpo representava uma tremenda responsabilidade. - Ficava tão excitada antes do nascimento dos meus filhos... Tinha tantos preparativos de última hora com que me ocupar... - Subitamente, Liz pousou os olhos nela e recordou que, com Maribeth, tudo seria muito diferente. - Desculpa - pediu então, com lágrimas nos olhos. Maribeth sorriu e apertou a mão de Liz entre as suas.

- Não tem importância. Obrigada por me ter deixado ficar aqui... Adoro este quarto. É estranho, porque nunca a conheci, mas a verdade é que sinto amor pela Annie. Sonho muitas vezes com ela e com tudo aquilo que o Tommy me conta acerca da sua maneira de ser. Sinto sempre que ela ainda está aqui... nos nossos corações e no nosso pensamento... - Maribeth receava perturbar Liz por referir aquele assunto, mas esta sorriu e concordou.

-Também sinto o mesmo. É como se ela estivesse sempre comigo. - Liz há muito que não aparentava uma serenidade tão grande, e o mesmo se passava com John. Talvez tivessem finalmente vencido a dor, talvez ainda fosse possível viver em família. - 0 Tommy contou-me.

- Não te aflijas, Maribeth - pediu Tommy, com toda a calma. - A minha mãe disse que podias ficar no quarto da Annie. - Na voz de Tommy, Maribeth detec tou uma leve falha. Ninguém domùa naquele quarto há meses, mas isso não impedira Liz de lhe oferecer o quarto de Annie. Quando chegaram, a cama estava feita de lavado e a mãe de Tommy tinha já preparada uma caneca com chocolate quente.

- Sentes-te bem? - perguntou logo, profundamente preocupada. Tendo sofrido vários abortos espontâneos, Liz não desejava que o mesmo sucedesse com Maribeth, prin cipalmente naquela fase adiantada da gravidez. - Foste muito irresponsável! Tiveste sorte de ela não ter perdido a criança - repreendeu Liz o filho. Mas eram ambos muito jovens e, ao repreendê-los, Liz viu que não passavam de duas crianças.

Vestida com a camisa cor-de-rosa que Liz lhe emprestara, deitada na cama estreita que pertencera a Annie, Maribeth parecia ainda mais criança. 0 seu cabelo ruivo formava duas enormes tranças, e as bonecas de Annie fitavam-na alegremente de todos os cantos do quarto. Maribeth dormiu durante horas nesse dia; por fim, Liz resolveu ir verificar se ela estava bem, passando-lhe a mão pela testa para ter a certeza de que não tinha febre. Liz telefonara antes ao Dr. MacLean e ficara mais descansada depois de o ouvir dizer que a queda não prejudicara a criança.

-São tão jovens - comentara o médico, sorrindo. Referira em seguida ser uma pena o facto de ela não poder educar a criança, mas não quisera adiantar nada mais; não desejava que Liz pensasse que estava a ser intrometido. - É tão boa rapariga - afirmara ainda, com o que Liz concordara antes de ter ido ver Maribeth. Esta acordou e informou que a dor de cabeça havia melhorado. Mas ainda se sentia culpada por estar ali naquele quarto, pois, acima de tudo, não desejava perturbar a família de Tommy.

No entanto, Liz ficou surpreendida por concluir que estar de novo no quarto de Annie lhe trazia uma boa sensação. Sentada na cama, contemplando os grandes olhos verdes de Maribeth, Liz pensou então que esta não aparentava ter muito mais idade do que Annie.

- Como te sentes? - interrogou, em voz muito baixa. Maribeth dormira três horas consecutivas, enquanto Tommy saíra para jogar hóquei no gelo, confiando-a aos cuidados da mãe.

- Ainda estou um pouco dorida e custa-me a mexer, mas acho que estou melhor. Fiquei tão assustada quando caí! Julguei que podia ter morto a criança... Não se mexeu durante muito tempo, e o Tommy gritou comigo... Foi horrível.

- Ficou apenas assustado. - Liz sorriu com ternura e tapou-a melhor com os lençóis. - Aliás, o susto foi muito grande para vocês dois. Agora já falta po~lco: mais sete se manas, segundo o doutor MacLean, ou talvez seis. - Para Maribeth, carregar um outro ser humano dentro do seu corpo representava uma tremenda responsabilidade. - Ficava tão excitada antes do nascimento dos meus filhos... Tinha tantos preparativos de última hora com que me ocupar... - Subitamente, Liz pousou os olhos nela e recordou que, com Maribeth, tudo seria muito diferente. - Desculpa - pediu então, com lágrimas nos olhos. Maribeth sorriu e apertou a mão de Liz entre as suas.

- Não tem importância. Obrigada por me ter deixado ficar aqui... Adoro este quarto. É estranho, porque nunca a conheci, mas a verdade é que sinto amor pela Annie. So nho muitas vezes com ela e com tudo aquilo que o Tommy me conta acerca da sua maneira de ser. Sinto sempre que ela ainda está aqui... nos nossos corações e no nosso pensamento... - Maribeth receava perturbar Liz por referir aquele assunto, mas esta sorriu e concordou.

- Também sinto o mesmo. É como se ela estivesse sempre comigo. - Liz há muito que não aparentava uma serenidade tão grande, e o mesmo se passava com John. Talvez tivessem finalmente vencido a dor, talvez ainda fosse possível viver em família. - 0 Tommy contou-me o que tu pensas acerca de certas pessoas que passam pelas nossas vidas para nos abençoar. Gosto dessa ideia... A Annie esteve tão pouco tempo connosco... Cinco anos parece muito pouco, mas agora vejo que foi uma grande dádiva. Fico muito feliz de a ter conhecido, ela ensinou-me muito... sobre o que significa rir, amar e partilhar.

- É isso que eu penso - continuou Maribeth, falando com muita calma e suavidade, enquanto as duas mulheres davam as mãos por entre os cobertores. - A Annie ensinou-lhe muito. Até a mim me ensinou muito sobre o Tommy, e nunca cheguei a conhecê-la. 0 meu filho também me vai ensinar algo, mesmo que só descubra de que se trata depois de alguns dias... ou em poucas horas. - Os olhos dela encheram-se de lágrimas. - E quero dar-lhe a melhor de todas as prendas: uma família que saiba amá-lo. - Maribeth fechou os olhos e as lágrimas caíram pelas suas faces, enquanto Liz lhe beijava a testa.

- E vais consegui-lo. Agora tenta dormir mais um pouco... 0 sono é benéfico para ti e para a criança. - Maribeth concordou, sem conseguir acrescentar mais nada,

e Liz saiu silenciosamente do quarto. Sabia como seriam difíceis os próximos tempos para Maribeth, mas acreditava também que poderiam ensinar-lhe muito e conceder-lhe muitas bênçãos.

Tommy não regressou a casa senão no final da tarde e perguntou por Maribeth mal entrou. A mãe tranquilizou-o com a mesma rapidez com que o filho perguntara.

-Está bem, continua a dormir.

Tommy foi então espreitá-la e verificou que Maribeth dormia profundamente na cama de Annie, agarrada a uma das suas bonecas, como um verdadeiro anjo. Quando saiu do quarto para ir ao encontro da mãe, Tommy sentia-se, subitamente, adulto.

- Gostas muito dela, não gostas, filho?

- Um dia, vou casar com a Maribeth, mãe - assegurou, certo do que afirmara.

- Não faças planos. Nenhum de vocês ainda sabe onde a vida vos levará.

-Encontro-a onde quer que esteja, nunca a vou deixar escapar. Amo-a e... amo o filho dela... - afirmou, mais determinado do que nunca.

- Não vai ser fácil para ela abdicar desse filho - comentou Liz. Preocupava-se muito com os dois, pois ambos enfrentavam uma situação muito difícil: Maribeth por mero acaso, e Tommy por pura bondade.

- Eu sei, mãe... - E, se a opinião dele importasse, nunca tal o permitiria.

Quando Maribeth saiu lentamente do quarto de Annie, à hora de jantar, Tommy estava sentado à mesa da cozinha, ocupado com os trabalhos de casa.

- Como te sentes? - perguntou de imediato, oferecendo-lhe um grande sorriso. Maribeth parecia mais descansada e estava mais bonita do que nunca.

- Sinto que fui muito preguiçosa. - Lançou um olhar cheio de remorsos à mãe de Tommy, a qual terminava de fazer o jantar. Liz voltara a cozinhar bastante nos últimos dias, o que, aliás, deixava Tommy muito feliz. - Senta-te, minha menina, não podes andar a passear de um lado para o outro. Ouviste o que o médico mandou: ou ficas deitada, ou sentada. Tommy, ajuda a tua amiga a sentar-se, por favor. E é melhor que saibas já que amanhã não podes levá-la de novo a patinar no gelo! - Ambos riram como duas crianças travessas, e Liz deu a cada um uma fatia de bolo de chocolate acabado de fazer. Gostava de ter de novo jovens em sua casa e sentia-se satisfeita por Tommy ter trazido Maribeth para junto deles. Era divertido gozar da companhia de uma rapariga, porque, apesar de lhe recordar que não assistiria ao crescimento de Annie, gostava da companhia de Maribeth. 0 mesmo se passava com John, o qual, ao regressar de uma inesperada reunião de trabalho na tarde de sábado, ficara muito feliz por os encontrar reunidos na cozinha.

- 0 que se passa aqui? Alguma reunião? - brincou, satisfeito por encontrar uma atmosfera festiva na cozinha, que há muito se encontrava sempre silenciosa.

- Não, estou a castigar os dois. Hoje, o Tommy tentou matar a Maribeth e lembrou-se de a levar a patinar. - Oh, por amor de Deus... E porque não a levou antes para jogar futebol? - John fitou o filho e relembrou então como os dois eram ainda crianças. Contudo, Maribeth dava mostras de ter sobrevivido.

-Estamos a pensar em nos dedicar, depois do hóquei, ao futebol, pai. Vamos começar amanhã.

- Excelente ideia! - John sorriu a ambos, satisfeito por tudo ter corrido bem.

Mais tarde, depois de jantar, os quatro estiveram entretidos a contar adivinhas e depois a jogar Scrabble. A Maribeth couberam-lhe duas palavras com sete letras e Liz con tou-lhe em seguida o que se passara na escola quanto ao seu desempenho. Tinham-se disposto a avaliá-la e a dar-lhe equivalência e, caso Maribeth concordasse, Liz entregar-lhe-ia quatro exames no final do ano, para que não apenas lhe conferissem a conclusão daquele ano, como também metade do seguinte. Os trabalhos que entregara tinham atingido as melhores qualificações e, caso Maribeth conseguisse uma boa avaliação nos exames finais, teria apenas de concluir mais um semestre para terminar o liceu.

- Conseguiste, miúda! - exclamou Liz, tão orgulhosa dela quanto teria ficado de um dos seus alunos.

- Não, não fui eu que consegui - respondeu Maribeth, não cabendo em si de tão feliz -,foi a Liz quem o conseguiu. - Deixou então escapar um pequeno grito, recordando a Tommy que tinha passado a ser finalista. - Não deites foguetes antes de tempo. A minha mãe ainda pode chumbar-te, se o entender. E olha que é muito exigente... - Nessa noite, a boa disposição era geral. Até mesmo o bebé revelava uma maior agitação, tinha recuperado a sua habitual energia e estava decidido a vingar-se com um visível pontapé de cinco em cinco minutos.

- Estou doido por ti - desabafou Tommy mais tarde, sentando-se na cama ao lado de Maribeth e reparando em mais um pontapé do bebé. - Ele tem razão para estar zangado... Não devia ter dito isto, desculpa.

- Não te desculpes! Adorei ouvir o que disseste! - exclamou ela, sorrindo. Estava ainda muito entusiasmada com as novidades acerca do seu novo estatuto de finalista.

- Os estudos significam muito para ti, não significam? - indagou Tommy, enquanto observava a expressão dela ao comentar que regressaria como finalista.

- Quero apenas terminar o liceu o mais depressa possível, quando regressar. Até mesmo seis meses vão parecer-me uma eternidade!

-Vens visitar-me? - inquiriu Tommy, desanimado. Detestava ter de pensar no regresso de Maribeth para casa dos pais.

- Claro que sim - respondeu ela, sem, no entanto, conseguir parecer muito convincente. - Vou tentar. Tu também podes ir visitar-me. - Contudo, ambos suspeita vam que o pai de Maribeth não os acolheria com o mesmo calor que desfiutavam da parte dos pais de Tommy. Tal como este, também John e Liz estavam a apaixonar-se por Maribeth, e compreendiam agora com toda a facilidade por que motivo Tommy a amava tanto. - Talvez possa vir visitar-te no próximo Verão, antes de ir para Chicago.

- Chicago? Mas porquê Chicago? - queixou-se ele, insatisfeito com apenas um Verão na companhia de Maribeth. - Porque não pensas em frequentar esta universidade?

- Vou concorrer - cedeu ela -, e depois veremos se a minha candidatura é ou não aceite.

- Com as tuas notas, vão implorar-te para ficar!

- Não é bem assim... - Ela achou graça, ele beijou-a e ambos esqueceram as notas, a escola, a universidade e até mesmo o filho que ela esperava, apesar de os pontapés deste último atingirem Tommy, que abraçava Maribeth.

- Amo-te, Maribeth - recordou ele -, amo-vos aos dois, nunca se esqueçam. - Ela indicou que sim, e continuaram abraçados por bastante mais tempo, sentados lado a lado na estreita cama da irmã de Tommy, conversando tranquilamente acerca de tudo a que davam valor. Os pais dele já se tinham deitado e sabiam que o filho continuava no quarto com Maribeth; porém, tinham confiança nele. Daí a pouco, quando Maribeth começou a bocejar, Tommy sorriu e foi então para o seu quarto, entretido a pensar no futuro de ambos.

 

Numa tarde em que Liz e Maribeth elaboravam em conjunto um trabalho de História, a primeira convidou a namorada do filho para passar o dia de Acção de Graças em sua casa. 0 trabalho que analisavam era muito importante, formulado especialmente por Liz para que Maribeth conseguisse adquirir o estatuto de finalista. Assim, todas as noites, depois do trabalho, Maribeth passava horas a estudar, ficando por vezes acordada até perto das duas ou três da madrugada. Sentia uma necessidade extrema de levar a cabo esse seu objectivo com a maior urgência, pois desejava muito conseguir obter a melhor qualificação possível antes de regressar à sua antiga escola. Como tal, encarava todo o trabalho que Liz lhe entregava como o seu futuro passaporte para a liberdade. Tinha intenções bem definidas de terminar o liceu em Junho e de conseguir depois um emprego que lhe possibilitasse a entrada na universidade. É claro que o pai não aprovaria semelhante ideia, e era por essa razão que tencionava ir morar para Chicago.

Contudo, Liz voltou a explorar a possibilidade de Maribeth regressar a Grinnell para frequentar a universidade local. Onde quer que tencionasse ir, Liz oferecera-se para enviar uma recomendação, apesar de ter a certeza de que, dada a elevada qualidade do seu desempenho, Maribeth seria aceite em qualquer instituição. Apenas lhe parecia extremamente lamentável que a sua própria família não se dispusesse a ajudar Maribeth a obter um nível superior de educação.

- O meu pai defende que estudar não é importante para uma mulher - explicou, enquanto guardavam os livros e Maribeth se preparava para ajudar Liz a preparar o jantar. Como era o seu dia de folga, até ajudara Liz a corrigir alguns dos exercícios mais simples do seu ano escolar. - A minha mãe não frequentou a faculdade, mas penso que o deveria ter feito, porque ela adora ler e gosta muito de aprender novas coisas. 0 pai nem sequer gosta que a mãe leia o jornal, diz que as mulheres não precisam de ter acesso a esse tipo de informação, que apenas serve para as confundir. Segundo ele, tudo o que precisam de fazer é tomar conta dos filhos e manter a casa limpa. Sempre o ouvi dizer que não é necessário um curso superior para saber mudar uma fralda!

- Não há dúvida que o teu pai sabe como ser directo - comentou Liz, tentando não revelar a fúria que sentia. Na sua opinião, não existia nenhum motivo que impedisse uma mulher de reunir ambos os aspectos na sua vida, de ser inteligente e educada, além de tomar conta do marido e dos filhos. Sentia-se muito satisfeita por ter recomeçado a trabalhar nesse ano, pois já esquecera como a sua actividade podia ser agradável e compensadora. Passara tanto tempo em casa que os prazeres do ensino tinham-se desvanecido, mas agora, sem Annie, a sua profissão preenchia um vácuo que de outra forma nunca poderia deixar de existir. Se não trabalhasse, decerto sentiria pelo menos que lhe sobrava tempo e, ao ensinar, tinha prazer em ver os rostos entusiasmados e vivos dos alunos. Por vezes, observar esses rostos era o suficiente para clivar o seu sofrimento, embora a dor profunda ocasionada pela perda que haviam sofrido nunca a tivesse abandonado.

Liz e John ainda não referiam o assunto e, nos últimos tempos, não pareciam ter muitos temas de conversa. Não tinham quase nada a dizer um ao outro, mas, pelo menos, as palavras que trocavam eram menos agressivas. Mais de uma vez, a forma carinhosa com que John tocara a mão da mulher ou lhe pedira algo, tinha recordado a Liz a época anterior à morte de Annie e a forma como depois ambos se haviam desligado um do outro. Ultimamente, John regressava mais cedo a casa e Liz esforçava-se para voltar a fazer o jantar. Era como se o facto de terem conhecido Maribeth os tivesse apaziguado a todos e reunido a família. Ela era tão vulnerável, tão jovem, e os dois estavam tão apaixonados! Por vezes, Liz sorria apenas ao observar Maribeth e o filho juntos.

Voltou entãó a repetir o convite para o dia de Acção de Graças, enquanto preparavam as duas o jantar.

- Não quero incomodar - respondeu Maribeth, com sinceridade. Já tinha pensado em se oferecer como voluntária para trabalhar nesse dia no restaurante, atendendo os poucos clientes solitários que desejassem comer peru. A maioria das colegas tinha família e filhos e com certeza desejavam passar esse dia em família. Mas Maribeth não tinha onde estar e, por isso, lembrou-se que seria melhor trabalhar e ajudar as colegas. Sentia-se agora um pouco culpada se as abandonasse apenas para poder estar com Tommy e com os seus pais,-e foi exactamente isso o que explicou a Liz enquanto coloçavam os pratos na mesa.

-Já não devias trabalhar tanto Vieste mês - repreendeu Liz, pousando um prato dë sopa. - Nem devias passar o dia inteiro de pé. - Faltava apenas um mês para o nascimento do bebé e a barriga de Maribeth aumentava de dia para dia.

- Não me importo - respondeu ela calmamente, esforçando-se por não pensar tanto no filho quanto desejaria. Já conseguia detectar o movimento das pernas e dos braços do bebé dentro de si e, por vezes, apenas um movimento era o suficiente para lhe trazer um sorriso aos lábios.

- Por quanto tempo mais tencionas continuar a trabalhar no restaurante? - indagou Liz, enquanto se sentavam para fazer uma pequena pausa.

- Penso que até ao fim. - Maribeth encolheu os ombros, pois precisava de dinheiro.

- Devias parar antes - aconselhou Lia, carinhosamente. - No mínimo, reserva duas semanas para descansar. Mesmo na tua idade, não deixa de ser um processo muito complexo para o corpo da mulher e, além disso, gostava que pudesses dedicar mais tempo aos estudos, quando chegar a altura dos exames. - Liz tinha-os agendado para meados de Dezembro.

-Vou fazer o possível - prometeu Maribeth. De- . pois, as duas mulheres entretiveram-se a conversar sobre outros assuntos, enquanto terminavam a preparação do jantar. Liz tinha acabado de colocar o lume no mínimo, de forma a manter os alimentos quentes, quando Tommy e o pai entraram, exactamente na hora marcada e muí~o bem-dispostos. Tommy estivera a ajudar o pai depois de ter terminado as aulas, e John, pela primeira vez em muitos meses, telefonara para casa para saber a que horas deveriam chegar para o jantar.

- Olá, meninas! 0 que estiveram a fazer? - perguntou John alegremente, dando um recatado beijo a Liz e observando-a em seguida para perceber a sua reacção. Nos últimos dias, parecia existir uma lenta e ténue tentativa de aproximação entre os dois, que assustava um pouco ambos. Tinham passado tanto tempo afastados que a mínima intimidade lhes parecia agora estranha e inoportuna. John dedicou também a Maribeth um sorriso caloroso e reparou na forma como Tommy segurava a sua mão e lhe sussurrava algo ao ouvido.

0 dia tinha sido bom para todos; no final, Liz incumbiu Tommy de convencer Maribeth a vir juntar-se a eles no dia de Acção de Graças. Depois de terem terminado os trabalhos de casa na sala, a conversa surgiu muito naturalmente, já na carrinha a caminho de casa de Maribeth. Nos últimos dias, esta vinha a sentir-se cada vez mais nostálgica, mais susceptível e, por vezes, até mesmo mais receosa. Repentinamente, desejava, de uma forma como nunca antes sentira, uma vontade imensa de se apoiar em Tommy e de contar com a sua ajuda para tudo. Desejava passar mais tempo do que antes na sua companhia, e era com uma enorme felicidade e alívio que o via surgir no restaurante, no seu quarto ou na cozinha dos pais.

- Estás bem? - quis saber ele, ao reparar nas lágrimas que afluíram aos olhos dela quando prometeu aceitar o convite de Liz para o dia de Acção de Graças.

-Estou, estou bem. - Mostrou-se um pouco envergonhada e limpou depressa as lágrimas. - É apenas um ataque estúpido de emoção. Não entendo, mas agora... tudo me faz chorar. Os teus pais estão a ser tão bons para mim, e quase nem me conhecem! A tua mãe está a ajudar-me tanto nos estudos e em tudo o mais... Fizeram tanto por mim, e nem sequer sei como lhes posso agradecer.

- Casa-te comigo - respondeu Tommy muito sério, mas ela apenas riu.

- Sim, claro! Seria um óptimo agradecimento, os teus pais iriam ficar extremamente reconhecidos!

- Acredito que sim. Foste a melhor coisa que aconteceu na minha família, desde há muito tempo. Os meus pais quase nem se falaram neste último ano, excepto para gritar ou para discutir sobre quem se esqueceu de encher o depósito do carro ou de levar o cão a passear. Eles adoram-te, Maribeth. Todos nós te adoramos.

- Não vejo por que razão devas estragar a tua vida apenas porque estraguei antes a minha. Os teus pais são muito boas pessoas.

- E eu também sou - afirmou Tommy, abraçando-a e recusando-se a soltá-la, fazendo-a rir. - Vais gostar ainda mais de mim depois de sermos casados.

- Estás louco!

- Estou - sorriu ele - por ti! Não vais ver-te livre de mim assim tão facilmente!

- Nem quero - confessou ela, com os olhos novamente rasos de lágrimas. Mas, em seguida, voltou a rir, pensando no seu estado. Nunca antes sentira tantas emo ções contrárias, mas o Dr. MacLean avisara-a de que era perfeitamente normal. Estava no último mês e uma série de mudanças radicais estava prestes a acontecer, além de que, no seu caso e na sua idade, era natural que sofresse de súbitas alterações emocionais.

Tommy conduziu-a lentamente para o quarto, demorando-se bastante na entrada. Estava uma noite fria e, ao dar-lhe um beijo de boas-noites, sentiu-a tão próxima de si que detectou os movimentos do bebé, e teve então a certeza de que ina desejá-la para sempre. Recusava-se a aceitar a ideia de que Maribeth nunca viesse a ser sua mulher, a dormir com ele ou a ter um filho seu. 0 muito que desejava partilhar com ela dava-lhe a certeza que nunca desistiria de Maribeth. Beijou-a então de novo e por fim afastou-se, descendo apressadamente os degraus, désalinhado, mas mais atraente do que nunca.

- Porque estás tão feliz? - perguntou-lhe a mãe, quando regressou a casa depois de ter deixado Maribeth. - A Maribeth vem passar o dia de Acção de Graças connosco! - anunciou. Mas Liz apercebia-se de que havia outro motivo para tanta felicidade. Tommy vivia agora de sonhos, de esperanças e do entusiasmo do primeiro amor; por vezes, depois de ter estado com ela, mostrava-se tão animado que quase tocava as raias do histerismo.

- A Maribeth contou-te mais alguma coisa? - A mãe observava-o atentamente. Sabendo como Tommy estava apaixonado, por vezes preocupava-se com o filho, apesar de saber também que Maribeth tinha problemas bem maiores para resolver. Era até bem provável que abdicar de um filho a marcasse para sempre. - Como está ela a lidar com a situação? A data do nascimento do filho está já bem próxima.

Maribeth gozava de boa saúde, é certo, mas, no seu caso, esse não era o principal problema. Teria de dar à luz um filho, sem marido e sem família, seria obrigada a abdi car dessa criança, caso o conseguisse, e teria ainda de enfrentar uma diúcil situação familiar no regresso a casa. No entanto, mostrava-se inflexível quanto ao facto de sair novamente de casa dos pais em Junho, se conseguisse aguentar até lá, do que Liz tinha sérias dúvidas. Partira há cinco meses e, desde então, tornara-se completamente independente dos pais. Para Maribeth, não seria fácil regressar agora a casa e ser obrigada a suportar os castigos que o pai escolheria para punir as suas transgressões.

- Está mesmo decidida a abdicar do filho? - indagou Liz, limpando a louça enquanto Tommy ia comendo uns biscoitos. Gostava de conversar com a mãe, ela entendia bem os assuntos da vida e das mulheres. No último ano tinham conversado muito pouco, mas agora Liz voltara a ser a mãe que sempre fora.

- Creio que sim. Não concordo nada, acho que é uma loucura, mas a Maribeth julga que não pode cuidar do filho da melhor forma. Na minha opinião, ela não quer verdadeiramente abdicar do filho, mas pensa que deve fazê-lo para bem da criança.

- Não pode haver maior sacrifício - comentou Liz com tristeza, pensando que nada no mundo seria mais duro para uma mulher e desejando poder ter outro filho.

-Já a tentei convencer vezes sem conta para desistir dessa ideia, mas ela não me ouve.

- Talvez a Manbeth esteja certa, pelo menos no que lhe diz respeito. Ela deve saber o que pode e o que não pode levar a cabo nesta altura. É muito nova, não tem nin guém para a ajudar, e não creio que a família faça tenções de a apoiar. Seria uma responsabilidade muito pesada, e talvez mais tarde pudesse vir a culpar o filho. Se o mantivesse, seriam duas vidas destruídas. - Custava-lhe a entender, mas tinha de admitir, com toda a sinceridade, que a situação de Maribeth era tudo menos facil.

-É essa a opinião dela. Garante ter a certeza que é essa a única atitude certa que pode tomar. Acho que é por isso que quase nunca fala do filho nem lhe compra roupas

e brinquedos: não se quer afeiçoar. - Contudo, Tommy continuava ainda a querer casar com Maribeth e criar a criança, pois, na sua opinião, era essa a atitude certa. Para tal, estava disposto a enfrentar as suas próprias responsabilidades, as dela e as de mais alguém. Tinha recebido uma boa educação por parte dos pais e era um rapaz excepcional.

- Deves tentar ouvir as razões dela, Tom - avisou Liz. - A Maribeth sabe o que é melhor para ela, independentemente do que possas pensar. Não a tentes obrigar a fazer o que não quer... - Olhou-o então directamente nos olhos, intencionalmente. - Nem te forces a aceitar aquilo com que ainda não sabes lidar. Vocês são ambos muito jovens, e o casamento e a paternidade não podem ser encarados de ânimo leve, nem apenas porque se deseja muito ajudar alguém. Não deixa de ser uma idem, bonita, mas exige que se abdique de muito. Se algo correr mal, como por vezes acontece, as duas pessoas têm de ter muita força para poderem ajudar-se mutuamente. E isso não se consegue as dezasseis anos... - Nem mesmo aos quarenta ou aos cinquenta... Liz e John haviam feito tão pouco para se apoiar um ao outro nesse último ano! Liz apercebia-se agora de como tinham permanecido ambos tão sós e tão solitários, totalmente impossibilitados de se ajudar um ao outro. Marido e mulher haviam-se distanciado totalmente.

- Mas eu amo a Maribeth, mãe - afirmou Tommy com toda a honestidade, sentindo o coração abalado -, e não quero que ela passe por tudo isto sozinha. - Estava a usar de toda a sinceridade com a mãe, que o conhecida muito bem. Sabia o que o filho desejava fazer por Maribeth, mas, por melhores que fossem as suas intenções, e por muito doce que Maribeth fosse, não os desejava ver casados; não tão cedo, nem nessa altura, nem pelos motivos errados.

- Mas a Maribeth não está sozinha, tem-te a ti ao seu lado.

- Sim, mas é diferente - defendeu ele, desalentado. - Ela vai ter de enfrentar esta situação, é também da sua vida que se trata. Deixa-a encontrar o seu caminho e, se for o mais correcto para vocês dais, um dia acabarão por ficar juntos.

Tommy baixou a cabeça, desejando convencê-los a todos que Maribeth deveria educar o filho e casar-se com ele. Mas nem Maribeth nem os pais concordavam, estavam todos a ser muitíssimo teimosos.

No entanto, no dia de Acção de Graças, sentados em redor da mesa, formavam todos uma família feliz. Liz escolhera a melhor toalha de renda que tinham, a qual perten cera ã avó de John e que lhes tinha sido oferecida como presente de casamento. Retirara também o serviço de porcelana que utilizavam apenas em ocasiões especiais. Maribeth trazia um vestido de seda verde-escuro, que comprara especialmente para os dias festivos dessa época, e penteara o espesso cabelo ruivo em ondas largas que lhe caíam, pesadas, abaixo dos ombros. Os grandes olhos verdes conferiam-lhe a aparência de uma menina pequena e, apesar da cintura larga, estava linda. Liz escolhera um vestido azul-claro e iluminara as maçãs do rosto com um toque de muge, o que há muito não fazia. Os dois homens usavam fato completo, e a casa tinha uma atmosfera quente e festiva.

Maribeth trouxera flores para Liz, um grande ramo de crisãntemos amarelos, e uma caixa de bombons que Tommy se ia entretendo a devorar. Depois do almoço, quando se sentaram diante da lareira, nunca antes pareceram tanto uma verdadeira família. Era a primeira ocasião festiva que celebravam sem Annie, o que fizera Liz recear bastante essa data. Mas agora, apesar de ter pensado várias vezes na filha ao longo do dia, a presença de Tommy e de Maribeth aliviara a dor. Nessa tarde, Liz e John resolveram ir dar um longo passeio, e Tommy levou Maribeth a dar uma volta de carro. Apesar de se ter oferecido para trabalhar nesse dia, tinham-lhe concedido todo o fim-de-semana de folga, de forma a poder ficar com Tommy em casa dos pais.

- Nada de patinagem! - gritou Liz quando o carro se afastava e ela e o marido se preparavam para passear com a cadela. Tencionavam passar por casa de alguns ami gos, mas os quatro tinham antes combinado encontrarem-se de novo em casa, dentro de duas horas, para irem ao cinema.

- Onde preferes ir? - perguntou Tommy, conduzindo na direcção do lago. A resposta de Maribeth, no entanto, foi inesperada e deixou Tommy surpreendido, ape sar de algo aliviado. Durante todo o dia, sentira uma vontade secreta de ir até lá, mas tinha receado parecer estranho e inoportuno aos olhos de Maribeth, caso o tivesse confessado.

- Será que te importas de ir até ao cemitério? É que... hoje senti como se estivesse a tomar o lugar da Annie, o que não é verdade. Desejei sempre que ela pudessg estar connosco, para os teus pais se sentirem de novo mais felizes. Não sei explicar bem... mas gostava muito de poder ir até lá cumprimentá-la.

- Sim - exclamou Tommy -, eu também gostava. - Era exactamente isso o que sentira, apesar dos pais estarem muito mais satisfeitos do que há muito costumavam estar, principalmente em relação um ao outro.

De caminho, pararam para comprar flores. Escolheram um ramo de botões de rosas amarelas e cor-de-rosa, enfeitadas com gipsófilas e atadas com um grande laço rosa, o qual pousaram suavemente na campa de Annie, ao lado da pequena lápide de mármore branco.

- Olá, miúda - exclamou Tommy suavemente, relembrando o brilho permanente dos grandes olhos azuis da irmã. - A mãe preparou um peru muito bom, hoje. Mas não terias gostado muito do recheio, tinha passas.

Ficaram sentados lado a lado durante bastante tempo, de mãos dadas, apenas apensar em Annie, sem nada dizer. Era dificil acreditar que ela partira há já quase um ano. Em alguns aspectos, era como se tivessém passado apenas alguns minutos desde que os deixara, mas, noutros, parecia ausente há uma eternidade.

- Adeus, Annie - despediu-se Maribeth em voz baixa antes de saírem. Contudo, ambos tinham a certeza que a levariam consigo. Annie acompanhava-os para toda a parte, nas memórias que Tommy carregava dentro de si, no quarto em que Maribeth ficava e no olhar de Liz ao relembrar a filha.

- Era uma miúda fantástica - afirmou Tommy a caminho de casa, com a voz a fraquejar. - Ainda mal posso acreditar que nos tenha deixado.

- Mas não deixou - respondeu Maribeth docemente -, apenas deixaste de a poder ver, Tommy. Ela está sempre contigo.

- Sim, eu sei. - Tommy encolheu os ombros, revelando possuir apenas dezasseis anos e nem um instante a mais. - Mas ainda sinto muito a falta dela.

Maribeth indicou que compreendia e aproximou-se dele. Os feriados recordavam-lhe a sua família, e falar acerca de Annie fazia-a sentir a falta de Noelle. Não falava com a irmã desde que saíra de casa e, alguns meses atrás, a mãe comunicara-lhe pelo telefone que o pai não permitia que Noelle lesse as suas cartas. Pelo menos iria revê-la dentro em breve, mas e se... algo sucedesse a Noelle, como tinha acontecido com Annie? Apenas essa ideia provocava-lhe um arrepio.

Ao chegarem a casa, Maribeth estava muito calada, e Tommy apercebia-se de que ela tinha alguma preocupação. Chegou mesmo a pensar se teria feito mal em a ter levado ao cemitério, pois no seu estado avançado de gravidez talvez fosse uma visita demasiado perturbadora.

- Sentes-te bem? Não queres ir descansar um pouco? - Estou bem - respondeu, lutando contra as lágrimas. Os pais de Tommy ainda não haviam regressado, tendo eles sido os primeiros a chegar. Foi então que ela o surpreendeu com a seguinte pergunta: - Será que os teus pais se importariam de me deixar fazer um telefonema para casa? É que... talvez neste dia... lembrei-me de Ihes desejar um dia feliz.

- Claro, não há problema. - Tommy estava certo de que os pais não se importariam; e, caso estivesse enganado, suportaria ele mesmo os custos da chamada. Deixou-a en tão a sós, esperando que a telefonista completasse a ligação. Quem atendeu o telefone foi a mãe. Parecia muito atarefada e fatigada, e ouvia-se muito barulho à sua volta. Maribeth recordou então que as tias e as respectivas famílias deveriam estar a passar com os pais esse dia, e ambas tinham filhos pequenos. Daí os gritos que ecoavam pela casa, que impediam a mãe de a ouvir.

- Quem...? Parem de gritar! Não consigo ouvir! Quem fala?

- Sou eu, mãe - respondeu ela, um pouco mais alto -, a Maribeth. Vinha desejar-vos um dia muito feliz. - Oh, meu Deus! - exclamou a mãe, rebentando imediatamente num pranto. - 0 teu pai vai matar-me! - Queria apenas ouvir a sua voz, mãe. - Subitamente, sentiu também vontade de a abraçar e de sentir o toque da mãe. Não se apercebera até então do quanto sentia a sua falta. - Sinto muito a sua falta, mãe.

As lágrimas dançavam nos olhos de Margaret Robertson, que quase soluçava ao ouvir a ûlha.

- Estás bem? - inquiriu em seguida, esperando que ninguém a ouvisse. - Já tiveste a criança?

- Ainda falta um mês... - Nesse momento, Máribeth ouviu rebentar uma discussão do outro lado da linha e, em seguida, alguém retirava o telefone das mãos da mãe e exigia saber, com duros modos:

- Quem fala? - gritou essa voz. Pelas lágrimas da mulher, tinha a certeza de quem se tratava.

- Olá, paizinho. Só queria desejar-vos um dia feliz. - A mão de Maribeth tremia muito, mas ela esforçava-se para manter um tom de voz natural.

-Já resolveste o teu assunto? Sabes a que me refiro... - Lutando de novo contra as lágrimas, o pai pareceu-lhe ainda menos piedoso e mais cruel.

- Ainda não... Foi só para... Queria apenas...

-Já te tinha dito que não telefonasses mais até estar tudo terminado. Volta para casa depois de teres resolvido 0 assunto e de te teres livrado disso. Até lá, não voltes a telefonar para cá, ouviste?

- Ouvi, mas... pai, por favor... - Maribeth ouvia a mãe a chorar; e julgou também ter ouvido Noelle gritar com o pai, afirmando que ele não podia agir daquela for ma. Mas nada o impediu de fazer a sua vontade e, mesmo ouvindo Maribeth soluçar, pousou o auscultador e terminou a chamada. A telefonista voltou então à linha para perguntar a Maribeth se já tinha terminado o telefonema. Contudo, esta chorava demasiado para poder responder. Limitou-se a pousar o telefone e deixou-se ûcar sentada a chorar, como uma criança perdida. Quando Tommy entrou de novo na sala, ficou horrorizado ao ver o estado em que ela se encontrava.

- 0 que aconteceu?

-Ele não me deixou... falar com a minha mãe... - soluçou Maribeth. - E proibiu-me de voltar a telefonar até eu me alivrax disto". Ele... eu... - Nem sequer conse guia explicar a Tommy o que sentia, mas este facilmente podia entender.

Uma hora mais tarde, quando os pais de Tommy regressaram a casa, Maribeth continuava ainda muito abalada, e Tommy tinha-a obrigado a deitar-se, pois receou que tanto choro pudesse provocar o nascimento da criança. - 0 que aconteceu? - indagou Liz, mostrando-se preocupada depois de o filho a ter posto ao corrente de tudo.

- A Maribeth telefonou para casa, mas o pai desligou-lhe o telefone. Parece-me que estava a falar com a mãe e entretanto ele pegou no telefone e proibiu-a de voltar a li gar até ter entregue a criança. Eles devem ser horríveis, mãe. Como é que ela vai voltar para casa?

- Não faço ideia - respondeu Liz, aflita. - Mas a verdade é que esse homem não sabe ser pai. E ela parece ser tão apegada à mãe... Bem, é apenas até Junho... - To davia, era óbvio para Liz o quanto iria ser difícil para Maribeth regressar para junto dos pais.

Dirigiu-se então silenciosamente para o quarto de Annie e sentou-se na cama ao lado de Maribeth, que continuava ainda a chorar.

- Não podes deixar que o teu pai te perturbe dessa forma - afirmou Liz, mantendo entre as suas a mão de Maribeth e acariciando-lhe os dedos, da mesma forma que fazia com Annie. - Não é bom para ti, nem para o bebé. - Porque é que ele é assim tão cruel? Porque não me deixa, pelo menos, falar com a Noelle e com a minha mãe? - Maribeth não se importava de não poder falar com Ryan, pois o irmão era exactamente igual ao pai. - 0 teu pai pensa que está a protegê-los do teu erro. Ele não compreende... Provavelmente, sente-se etnlergonhado pelo que aconteceu.

- Também eu tenho vergonha, mas isso não altera o que sinto pela minha família.

- Não creio que o teu pai entenda isso. És uma rapariga de sorte, tens uma mentalidade sadia e um grande coração. Assim, tens um futuro à tua frente, Maribeth, mas o teu pai não.

- Que futuro tenho eu? A cidade inteira vai comentar o que me aconteceu e todos vão ficar a saber. Mesmo sem ter lá estado, alguém vai deixar escapar qualquer coisa, e todos vão falar sobre mim. Vão odiar-me: os rapazes vão pensar que sou fãcil e as raparigas vão julgar-me ordinária. 0 meu pai nunca vai permitir que frequente a universidade, depois de ter terminado o liceu. Com certeza, vai obrigar-me a trabalhar no seu negócio ou então vai querer que fique em casa a ajudar a minha mãe. Vou acabar por terminar como ela.

- Não és obrigada a aceitar isso - afirmou Liz, com toda a calma. - Não tens de repetir tudo quanto a tua mãe fez. E sabes muito bem quem és, sabes que não és facil, nem ordinária. Vais terminar o liceu e depois decides o que queres fazer com a tua vida. E é isso o que farás.

- 0 meu pai não me deixa voltar a telefonar. Nunca mais vou poder falar com a minha mãe... - Maribeth recomeçou então a chorar, tal como uma criança pequena, e Liz envolveu-a nos seus braços e abraçou-a. Apoiá-la era tudo quanto podia fazer para ajudar Maribeth. Sentia o coração despedaçado ao pensar que aquela rapariga excepcional seria obrigada a regressar para junto de uma família tão pouco compreensiva. Entendia agora melhor por que motivo Tommy desejava tanto casar com Maribeth: era a única forma possível de a ajudar. Quanto a Liz, desejava apenas mantê-la ali segura, afastada dos pais; mas, por outro lado, eles eram a sua família e Liz tinha a certeza que, de uma certa forma, Maribeth sentia a falta deles, pois referia constantemente que teria que regressar após o nascimento do úlho. Apesar das muitas dúvidas que tinha a respeito do que devia fazer, sempre manifestara o desejo de rever a família.

-Verás que, quando regressares a casa, o teu pai vai mudar - afirmou Liz, tentando animá-la. Mas Maribeth abanava a cabeça, enquanto assoava o nariz no lenço de Liz.

- Não, não vai mudar nunca. Vai ficar ainda pior! Todos os dias me vai recordar o que aconteceu, tal como faz com as minhas tias. Passa a vida a fazer comentários acerca do que as levou a casar, o que as deixa muito envergonhadas. Ou, pelo menos, uma delas fica, costumava até chorar. A outra discutiu com ele e ameaçou-o de que o marido lhe bateria, e ele nunca mais voltou a referir o assunto. Agora, já nem sequer fala sobre essa minha tia.

- Talvez se possa retirar daí uma lição - comentou Liz, ponderando o assunto. - Talvez devas salientar bem que não vais tolerar esse tipo de comportamento. - Con tudo, Maribeth era apenas uma adolescente de dezasseis anos. Como poderia fazer frente ao pai? Tinha apenas tido a sorte de encontrar a família Whittaker, pois, sem eles, estaria completamente sozinha a ter a criança.

Passado algum tempo, Liz ajudou-a a levantar-se e preparou-lhe um chá quente, enquanto os dois homens conversavam tranquilamente diante da lareira. Mais tarde, acabaram por ir realmente ao cinema e, no regresso, Maribeth estava já um pouco mais animada. Ninguém voltou a mencionar os seus pais e, mal chegaram a casa, resolveram todos deitar-se mais cedo.

- Tenho tanta pena da Maribeth - comentou Liz com o marido, quando estavam já deitados. A relação do casal estava de novo mais calorosa e conversavam já aber tamente sobre vários assuntos. No quarto deixara de reinar o terrível silêncio do passado.

- 0 Tommy também sente o mesmo - respondeu John. - É uma pena que ela tenha engravidado. - Isso era bastante óbvio, mas Liz encontrava-se agora igualmente preocupada acerca do procedimento dos pais d'e Maribeth.

- Não me agrada nada a ideia de a ver voltar para casa, mas, de uma certa forma, penso que a Maribeth quer regressar.

-A família é tudo quanto tem... e é tão jovem... Mas não vai durar muito: a Maribeth pretende ingressar na faculdade e o pai nunca vai aceitar.

- Deve ser um autêntico tirano. Consegue levar sempre a sua avante... Talvez se alguém conversasse com ele... - observou Liz, pensativamente. - Ela precisa de encon trar uma solução, uma alternativa, de forma a que, caso algo corra mal, tenha algum sítio para onde ir.

- Não quero que a Maribeth se case com o Tommy - afirmou John com firmeza -, pelo menos, por enquanto. São demasiado jovens, além de que ela cometeu um grande erro e precisa de refazer primeiro a sua vida. É demasiada responsabilidade para o Tommy suportar, mesmo que ele o deseje fazer.

- Sei isso muito bem - retorquiu Liz rispidamente. Por vezes, o marido ainda a irritava; nenhum dos dois desejava ver Tommy casado, mas Liz não estava igualmente preparada para abandonar Maribeth. Havia com certeza algum motivo para ela ter atravessado o caminho deles, e era sem dúvida uma rapariga fora de série. Liz estava decidida a não lhe voltar as costas nem deixar de lhe dar o máximo de ajuda possível.

- Penso que deverias manter-te afastada. Não te esqueças que a Maribeth vai dar à luz o filho e depois regressa a casa. Se surgir algum problema, ela pode sempre telefonar-nos, e tenho a certeza que o Tommy vai manter-se em contacto com ela. Está doido pela Maribeth e não vai ser por ela se ir embora que ele a vai esquecer de um momento para o outro! - Todavia, a distância entre ambas as casas representava decerto um grande desafio para a continuação do romance.

- Quero falar com eles - anunciou Liz, lançando um súbito olhar ao marido, que abanou imediatamente a cabeça. - Com os pais da Maribeth.

- Não te metas num assunto de família.

- Não se trata de um assunto de família", e sim da vida da Maribeth. Os pais obrigaram-na a resolver sozinha os seus problemas na altura em que mais necessitava da ajuda deles; abandonaram-na completamente à sua sorte. Na minha opinião, perderam todo o direito de impor condições, já que falharam redondamente em apoiar a filha.

- Com certeza, a visão deles será diferente da tua. - John sorriu, pensando que por vezes adorava a forma como a mulher se empenhava nos assuntos e se preocupava tanto com os outros, enquanto noutras ocasiões o levava ao desespero. Há muito que não a via empenhada daquela forma, sentindo-se muito feliz por Maribeth ter reacendido essa chama em Liz. Na verdade, Maribeth desencadeara muitas outras reacções em todos eles e, de um certo modo, John sentia um afecto paternal a ligá-lo à namorada do filho. - Diz-me depois o que decidiste - pediu, sorrindo mais uma vez antes de apagar a luz.

-Acompanhas-me, se resolver ir visitá-los? - perguntou Liz abmptamente. - Gostava de os conhecer pessoalmente, antes de ela regressar a casa - confessou, sen tindo um invulgar carinho maternal por Maribeth. Talvez um dia viesse a ser sua nora, mas, em qualquer dos casos, não estava disposta a abandoná-la à mercê de uma família insensível.

- A ideia agrada-me bastante - respondeu John, sorrindo para Liz na escuridão. - Suspeito que vou gostar muito de te ver levar a cabo uma lavagem ao cérebro... - Soltou uma gargalhada e Liz riu também. - Só tens de me dizer em que dia vamos - acrescentou depois, ao que ela concordou.

- Vou telefonar-lhes amanhã - comunicou, depois de ter reflectido um pouco. Voltando-se em seguida na cama, pousou os olhos no marido e acrescentou: - Obrigada, John. - Eram de novo amigos, nada mais; mas, pelo menos, já era alguma coisa.

 

Na segunda-feira que se seguiu ao dia de Acção de Graças, com alguma tristeza, Maribeth deu a notícia no restaurante. Antes, conversara de novo com Liz sobre o as sunto e concordara que precisava de algum tempo para se preparar convenientemente para os exames, além de que o parto estava previsto para logo a seguir ao Natal. Deixaria de trabalhar no dia quinze e depois disso os pais de Tommy queriam que ela se mudasse para casa deles e aí permanecesse até ao nascimento da criança. Liz argumentara que Maribeth não deveria ficar sozinha, no caso de algo acontecer. Tinham-Ihe também assegurado que desejavam verdadeiramente que Maribeth ficasse com eles.

Quanto a esta, estava maravilhada pela gentileza com que era tratada e gostava muito da ideia de ficar alojada em casa de Tommy. Começava a ficar nervosa com a proxi midade do parto, e morar com a família Whittaker significaria que poderia estudar com Liz e talvez até conseguir uma melhor qualificação no liceu; não mencionando 0 facto de poder ficar próximo de Tommy. Parecia ser, de facto, a solução ideal e, entretanto, Liz convencera John de que a permanência de Maribeth em sua casa até ao nascimento do filho era algo especial que poderiam fazer por Tommy.

- E ela vai precisar de ficar acompanhada depois do parto - explicava Liz. - Os dias que se seguirem ao nascimento vão ser muito duros para a Maribeth. - Calcula va o sofrimento que a entrega do filho iria causar-lhe, pois, tendo perdido a filha, podia avaliar muito bem o que significaria para Maribeth abdicar do seu bebé. A dor seria bastante intensa e, nessa hora, Liz queria estar perto dela. Sem sequer pensar sobre o assunto, aprendera a amar Maribeth, e a ligação entre ambas tornara-se mais profunda desde que colaborara no projecto de estudos da namorada do filho. A inteligência de Maribeth estava acima da média, mas esta ainda se esforçava bastante para conseguir melhores resultados. Era algo que desejava desesperadamente alcançar, pois consistia na sua única esperança para o futuro.

No restaurante, todos ficaram tristes por saber que Maribeth os deixaria, apesar de entenderem os seus motivos. Ela comunicara que regressaria a casa para ter a criança, mas nunca chegara a confessar que não era casada, ou que não tencionava criar o filho. No último dia de trabalho, Julie organizou uma festa em homenagem de Maribeth e todos trouxeram presentes para o bebé. Ofereceram-lhe pequenas botas, um casaco de malha que uma das colegas tricotara, uma manta azul e rosa enfeitada com patinhos, um urso de peluche e um pacote de fraldas de um dos ajudantes de cozinha; Jimmy ofereceu-lhe uma cadeirinha própria para bebé.

Ao contemplar todos os presentes, Maribeth ficou dominada pela emoção. 0 carinho de todos comoveu-a, mas mais abalada ficou por se aperceber de que nunca chegaria a ver o seu filho usar todos aqueles presentes. Essa conclusão ~-la avaliar pela primeira vez o que realmente significava abdicar do filho. Subitamente, este tomou-se mais real do que nunca, pois possuía roupas, meias, chapéus, fraldas, um urso de peluche e uma cadeirinha. Só não tinha uma mãe e um pai; por isso, mal regressou ao seu quarto após o trabalho, Maribeth telefonou ao Dr. MacLean para saber que progressos este havia feito na tarefa de encontrar uns pais adoptivos para o seu filho.

-Tinha em mente três casais - informou, cautelosamente -, mas tenho sérias dúvidas acerca de um deles. - 0 marido havia admitido sofrer de um problema de alcoo lismo e Avery MacLean receava entregar-lhes uma criança. - Um dos outros casais acabou de descobrir que está à espera de um filho e o terceiro não sei se pretende adoptar uma criança, porque ainda não conversei com eles a esse respeito. Temos ainda algum tempo.

- Duas semanas, doutor MacLean... duas semanas...

- Maribeth não queria trazer consigo o filho para depois ter de o entregar; isso, sim, seria uma tortura. Sabia também que não poderia regressar para casa dos pais de Tommy com uma criança de colo; seria um abuso.

- Vamos encontrar uns pais adoptivos, Maribeth, prometo. E se for necessário, podes deixar o bebé no hospital durante algumas semanas, até encontrarmos o casal certo. Não convém sermos precipitados, pois não? - Maribeth concordava, mas sentia-se subitamente intimidada pela presença da cadeirinha de bebé, num dos cantos do quarto. Todos os colegas lhe haviam pedido que lhes telefonasse depois do nascimento para comunicar o sexo da criança, o que ela prometera fazer. No entanto, ter consciência que tinha mentido a todos dificultara em muito a despedida, principalmente no caso de Julie.

- Cuida de ti, ouviste? - pedira Julie. - Ainda continuo a pensar que devias casar com o Tommy. - E talvez ela o fizesse, depois do nascimento do filho, comenta ram todos depois de Maribeth sair. E o mesmo pensava o Dr. MacLean após o seu telefonema; não desejava ajudá-la a entregar o filho apenas para chegar mais tarde à conclusão de que ela e Tommy lamentavam tê-lo feito. Pensara em conversar com Liz a fim de descobrir qual a sua opinião sobre o assunto, e se de facto o casal tencionava realmente abdicar do filho, mas tinha dúvidas acerca da reacção de ambos os jovens se viessem a saber que consultara os pais de Tommy. Era uma situação delicada, mas apercebia-se agora da impaciência de Maribeth. Era óbvio que esta desejava encontrar urgentemente uma solução, o que o fez prometer, perante Maribeth e perante si próprio, que daí em diante empenhar-se-ia seriamente na busca de uns pais adoptivos.

No dia que se seguiu à despedida no restaurante, Tommy ajudou Maribeth a mudar a sua bagagem para o quarto de Annie. Todos os presentes que lhe haviam oferecido para o bebé, Maribeth colocara-os em caixas que guardaram na garagem, comunicando que as enviaria de pois para o hospital, em nome dos pais adoptivos. Ainda lhe custava muito contemplar tudo aquilo; tornava o estado em que se encontrava demasiado real.

Na manhã de sábado, Liz comunicou que ela e ó marido necessitavam de se ausentar da cidade até ao dia seguinte. John precisava de analisar determinados mercados agrí colas na fronteira do Estado, e estariam de regresso apenas no domingo. Sentia algum receio de os deixar sozinhos, mas discutira anteriormente o assunto com John, e ambos tinham concordado que podiam confiar nos dois jovens.

Tommy e Maribeth ficaram muito satisfeitos pela oportunidade de passarem um fim-de-semana sozinhos, e manifestaram todas as intenções de se comportarem da melhor forma, para não desiludir os pais dele. No estado avançado de gravidez de Maribeth, a tentação não seria muito grande.

Na tarde de sábadó, resolveram ir fazer compras de Natal: Maribeth comprou, para oferecer a Liz, um camafeu, que, embora tivesse sido bastante caro para ela, lhe pa receu muito bonito, além de ser algo que Liz com certeza usaria; e, para John, comprou um cachimbo concebido especialmente para o mau tempo. Enquanto passeavam pelas lojas, Maribeth reparava em todos os artigos infantis, mas forçava-se depois a largá-los e a não os comprar.

-Porque não lhe compras um presente especial? Talvez um urso de peluche ou uma roca... - Tommy pensou que talvez isso a ajudasse a enfrentar a sensação de per da, pois seria um presente que poderia juntar aos outros e enviar aos pais adoptivos. Mas os olhos de Maribeth encheram-se de lágrimas e ela abanou a cabeça. Não desejava imprimir nenhum dos seus traços no filho; mais tarde, poderia dar-se o caso de se sentir tentada a identificar esse traço e a procurá-lo em todas as crianças que usassem ao pescoço um fio com um determinado medalhão.

- Tenho de me desligar completamente, Tommy, não posso envolver-me. - Ao pronunciar essas palavras, um leve soluço prendeu-lhe a voz na garganta.

- Há determinadas coisas de que não podemos nunca desligar-nos - respondeu Tommy, dirigindo-lhe um olhar cheio de significado. Maribeth fez um gesto afirmati vo; na verdade, não desejava distanciar-se de Tommy, nem do filho, mas, por vezes, a vida força-nos a desistir daqueles a quem mais amamos. Em certos casos, não existe qualquer possibilidade de acordo nem de conciliação. Tommy tinha também consciência desse facto, mas já perdera mais do que alguma vez suspeitara que viesse a acontecer e não estava disposto a abdicar de Maribeth e da criança.

Dirigiram-se então para casa com os embrulhos e foi Maribeth quem preparou o jantar. Os pais de Tommy regressariam apenas na tarde seguinte, o que lhes dava a sen sação de serem já casados, com Maribeth a cozinhar, os dois a arrumarem a cozinha e depois a sentarem-se na sala para ver televisão. Assistiram juntos ao programa Show of Shows, e ainda ao Hit Parade; sentados lado a lado, tal como dois recém-casados, Maribeth lançou um olhar a Tommy e soltou depois uma gargalhada, enquanto ele a puxava para o seu colo, para a beijar.

-É como se fôssemos já casados - afirmou ele, adorando aquela sensação e sentindo o bebé dar um pontapé depois de ele a abraçar e lhe acariciar a barriga. A intimi dade que tinham era invulgar, dado o facto de nunca terem feito amor. No entanto, por vezes, era difícil recordar que nunca o haviam feito, e Maribeth, sentada ao colo de Tommy, apercebia-se bem da excitação dele, que aumentava de minuto para minuto. Afinal, ele tinha apenas dezasseis anos e quase todos os movimentos dela o deixavam visivelmente excitado.

- Nunca pensei que raparigas com excesso de peso te excitassem - brincou ela, levantando-se e atravessando a sala com a mão a apoiar os rins, que estavam bastante dori dos. Tinham caminhado muito nessa tarde e, ultimamente, o bebé tomara uma posição muito mais baixa. Não restava qualquer dúvida de que nasceria em breve, ou então que seria um bebé bastante grande. Maribeth era alta, mas tinha as ancas estreitas e sempre fora magra. Todas as vezes que pensava em dar à luz, quase entrava em pânico.

Nessa noite, confessou a Tommy que tinha muito medo, e ele sentiu pena dela, esperando que essa hora não fosse tão dificil quanto ambos receavam.

- Se calhar, nem sentes nada - afirmou, entregando-lhe um copo de gelado, que ambos partilharam com duas colheres.

- Espero que sim - concordou ela, tentando esquecer os seus receios. - O que queres fazer amanhã?

- E se fôssemos comprar uma árvore de Natal e a enfeitássemos antes de os meus pais chegarem? Seria uma boa surpresa para eles. - Maribeth apreciou a ideia, pois gos tava de lhes ser útil e de sentir que fazia parte da família. Nessa noite, quando Maribeth se deitou, Tommy sentou-se na sua cama e por fim deitou-se ao lado dela na estreita cama que pertencera a Annie.

- Podíamos dormir no quarto dos meus pais... Teríamos muito espaço e eles nunca ficariam a saber.

Mas tinham prometido que se portariam bem e Maribeth queria que Tommy se mantivesse fiel à sua promessa. -Descobriam, sim - respondeu com deternúnação. - Os pais sabem sempre tudo.

- E o que a minha mãe pensa - riu ele. - Vamos, Maribeth, não vamos ter outra oportunidade destas. Eles só se ausentam uma vez de cinco em cinco anos!

- Não acredito que a tua mãe gostasse de saber que dormimos na cama dela - respondeu Maribeth, muito séria.

- Está bem, então dormimos na minha. Sempre é maior do que esta! - lamentou-se ele, caindo pela décima vez no chão e provocando o riso dela. Não precisavam de dormir juntos, mas ambos sentiam vontade de o fazer, pois a sensação de estarem próximos era muito agradável. -Está bem. - Maribeth seguiu-o então até ao seu quarto, onde se deitaram muito juntos, ela de camisa de dormir e ele de pijama; abraçados, riram e conversaram como duas crianças; depois, Tommy beijou-a de uma forma intensa e lenta, e ambos sentiram a excitação aumentar. Mas, duas semanas antes do nascimento do filho de Maribeth, pouco poderiam fazer a esse respeito. Ele beijou-lhe os seios, o que a fez gemer enquanto o acariciava; sentindo-o numa excitação muito grande; de facto, Tommy sentia-se de tal forma excitado que chegava mesmo a sentir dor física. Maribeth esforçava-se para recordar que o que estavam a fazer não estava certo, mas não era isso o que ambos sentiam. Estar com Tommy não lhe parecia errado, mas sim o único lugar onde sempre havia querido estar e onde sempre desejaria ficar. Deitada a seu lado, sentindo a sua grande barriga entre ambos, Maribeth interrogava-se sobre se alguma vez chegariam de facto a estar juntos.

-É assim que quero que seja sempre - afirmou Tommy, mantendo-a nos seus braços, enquanto ambos começavam a ceder ao sono. Tinham mantido a excitação até poderem suportá-la, mas depois concordaram que era melhor acalmar e parar o que estavam a fazer. Tantas brincadeiras tinham mesmo provocado algumas contracções a Maribeth. - Quero apenas ficar contigo para o resto da vida - continuou ele, ensonado -, e um dia o bebé dentro da tua barriga será nosso, Maribeth... é esse o meu desejo...

- Também é o meu... - Era verdade, mas Maribeth desejava alcançar igualmente outros objectivos, tal como a mãe dele desejara antes de casar com o pai de Tommy.

- Posso esperar por ti, como o meu pai esperou pela minha mãe. Mas não demasiado tempo - acrescentou, pensando em como era bom sentir os braços dela a abraçá -lo. - Um ano, ou dois, no máximo! - Riu-se e depois beijou-a. - Podíamos casar e ingressar juntos na faculdade. -E vivíamos de quê?

- Podíamos viver aqui - respondeu. - Podíamos frequentar esta faculdade e morar com os meus pais.

Mas essa ideia não agradava a Maribeth, por muito que gostasse dos pais de Tommy.

- Quando nos casarmos, se isso acontecer - afirmou, determinada, mas a bocejar -, quero que sejamos já adultos, para poder assumir as nossas responsabilidades e ter os nossos filhos, por muita tempo que tenhamos de esperar. - Sim, talvez quando tivermos sessenta anos - gracejou ele, também a bocejar, dando-lhe em seguida um beijo. - Só quero que saibas que um dia vou casar contigo, Maribeth Robertson. Vai-te habituando a essa ideia, porque não tenciono mudar de opinião.

Maribeth não se opôs. Limitou-se a sorrir e deixou-se adormecer nos braços dele, pensando em Annie, em Tommy e no seu filho.

 

No dia seguinte, levantaram-se os dois cedo e saíram para comprar o pinheiro. Tommy comprou também um mais pequeno, muito leve e franzino, o qual colocou na mala da carrinha ao lado do grande. Ao chegar a casa, foi buscar as caixas com todas as decorações de Natal e o resto da Carde foi passada a enfeitar a árvore. Ao rever alguns dos enfeites, Tommy ficou com os olhos rasos de água, principalmente ao reconhecer aqueles que haviam sido feitos pela mãe e por Annie.

- Seria melhor não pendurar esses? - considerou Maribeth, pensativa. Pesaram os prós e os contras e chegaram à conclusão de que o facto de os ver decerto entriste ceria Liz, mas escondê-los também lhe causaria tristeza. Não era iacil saber o que fazer; por fim, resolveram pendurá-los de qualquer forma, pensando que ocultá-los seria o mesmo que negar a existência de Annie. E a verdade é que esta tinha vivido com eles e todos tinham em comum as recordações desse tempo. Era melhor admitir essas lembranças do que fingir que nunca haviam acontecido. Assim, cerca das três da tarde, ambos concordaram que a árvore estava bonita e deram por terminada a sua tarefa.

Maribeth preparou umas sanduíches para o almoço, mas, quando guardavam o que sobrara dos enfeites de Natal, Tommy colocou de parte uma caixa pequena e lançou um olhar comprometido na direcção de Maribeth.

- Algum problema?

Ele abanou a cabeça, mas ela sabia que Tommy tinha tido alguma ideia.

- Não. Tenho de ir a um sítio. Queres vir comigo ou estás demasiado cansada?

- Não, sinto-me bem. Onde vamos?

- Já verás. - Retirou então os casacos de ambos, e quando seguiram para a carrinha estava a começar a nevar. Tommy levara consigo a caixa com os enfeites, que colocou na carrinha, ao lado da pequena árvore. De início, Maribeth não tinha a certeza de qual seria a ideia de Tommy, mas, mal começaram a afastar-se, apercebeu-se logo do local para onde se dirigiam: seguiam para o cemitério, pois Tommy desejava levar a Annie a pequena árvore de Natal.

Ao sair da carrinha, ele carregou o pinheiro e Maribeth a caixa com os enfeites. Eram dos mais pequenos que tinham, aqueles que Annie sempre havia preferido: peque nos ursos de peluche, soldados de chumbo a tocar corneta e anjos minúsculos. Havia também uma meada de contas douradas e cabelos-de-anjo prateados. Solenemente, Tommy cravou a árvore num pequeno canteiro de madeira ao lado da campa e, um por um, foram colocando alternadamente os enfeites. Era um ritual de partir o coração, mas, passados poucos minutos, ambos observavam a árvore enfeitada e Tommy relembrava o quanto a irmã gostava do Natal. Na verdade, Annie sempre adorara tudo quanto lhe dizia respeito; Tommy já o havia referido antes a Maribeth, mas, nesse momento, não conseguia dizer nada. Ficou de pé, parado, com as lágrimas a caírem pelo rosto, avaliando o quanto a tinha amado e como sofrera com a perda da irmã.

Pousou então os olhos em Maribeth, que, do outro lado da árvore, exibia a imensa barriga abrigada por debaixo do casaco e a imensa cabeleira ruiva a escorregar do lenço de lã que trouxera a cobrir a cabeça. Ao ver o olhar doce e meigo com que ela o fitava, Tommy concluiu que nunca antes a amara mais.

- Maribeth... - murmurou então ele suavemente, sabendo que Annie aprovaria o que tencionava fazer e que estava certo fazê-lo naquele local. Annie teria, certamente, desejado fazer parte da sua vida e do seu futuro. - Casa-te comigo... por favor... Amo-te...

- Também te amo - respondeu ela, aproximando-se dele e pegando-lhe na mão, que conservou entre as suas, com o olhar úxo nos olhos dele -, mas não posso aceitar... Pelo menos, agora. Não me peças para o fazer.

- Não quero perder-te... - Tommy pousou o olhar na pequena campa onde a irmã jazia, aos pés deles, bem perto da árvore de Natal que lhe haviam trazido. - Perdi

a Annie e não quero perder-te a ti... Por favor, varro-nos casar.

- Por enquanto, não - respondeu ela docemente, desejando dar-lhe tudo, mas receando magoá-lo se o desiludisse. Era muito madura para a idade que tinha e, em alguns aspectos, ainda mais do que Tommy.

- Prometes que um dia te casas comigo? -Prometo-te solenemente, Tommy Whittaker, aqui neste local e nesta data, amar-te para sempre. - Maribeth sentia sinceramente cada palavra dessa promessa. Tinha a certeza que nunca esqueceria o que Tommy havia sido para ela desde o primeiro minuto em que o conhecera. Mas que significado isso viria a ter e a que caminho conduziria as suas vidas, isso ninguém poderia prometer nem adivinhar. Maribeth queria fazer para sempre parte da vida de Tommy, mas quem poderia adivinhar que rumo tomaria a vida de ambos?

- Prometes então que nos casaremos um dia?

- Se estiver correcto e se for essa a vontade de ambos. - Maribeth respondia sempre com honestidade.

- Podes sempre contar comigo - garantiu Tommy, muito seriamente; e Maribeth confiava plenamente nele. - E tu também comigo. Vou ser sempre tua amiga, Tommy... Sempre te amarei. - E, se a sorte os ajudasse, um dia ela tornar-se-ia sua mulher. Mesmo naquela fase da sua vida, com apenas dezasseis anos, esse era também o desejo de Maribeth, apesar de possuir a sabedoria necessária para compreender que, um dia mais tarde, tudo poderia ser diferente; ou talvez não, talvez o amor que os unia aumentasse com o passar do tempo e se tornasse no futuro mais forte do que era no presente. Ou então, talvez os ventos da vida os impelissem a ambos como folhas para cantos opostos do mundo e os separassem para todo 0 sempre. Mas não era essa a vontade de Maribeth.

- Estarei sempre pronto para me casar contigo, na altura que quiseres - afirmou ele.

- Obrigada - agradeceu Maribeth, endireitando-se para o beijar. Tommy retribuiu o beijo, desejando que ela lhe tivesse prometido tudo, mas satisfeito por Maribeth lhe ter dado o que, de momento, podia oferecer-lhe.

Ficaram então em silêncio, admirando a pequena árvore de Natal e pensando em Annie.

-Eu sei que ela também gosta muito de ti - observou Tommy, calmamente.

- Gostava tanto que a Annie pudesse estar aqui connosco!

Depois, levando a mão de Maribeth presa no seu braço, conduziu-a para a carrinha. 0 tempo havia esfriado ainda mais desde que tinham saído de casa, e ambos per maneceram em silêncio no caminho de volta. Algo muito tranquilizador, muito forte e muito sincero os unia, agora que ambos sabiam que poderiam vir a estar ou não juntos no futuro. Iriam fazer tudo ao seu alcance para manter essa ligação o máximo de tempo possível, o que, aos dezasseis anos, representava já uma grande promessa, mais valiosa do que aquilo que muitos alcançam ao longo de toda uma vida. Possuíam esperança, promessas e muitos sonhos, o que era um bom ponto de partida, uma dádiva com que se presenteavam mutuamente.

Em casa, passaram o resto da tarde a conversar tranquilamente na sala, vendo os antigos álbuns de fotografias de Tommy e Annie quando crianças. Quando os pais dele chegaram, Maribeth tinha o jantar já preparado. Liz e John mostraram-se muito satisfeitos por regressar a casa e por os ver, e foi com imenso entusiasmo que descobriram a árvore de Natal que enfeitava a sala. Vendo-a, Liz deteve-se a adurirá-la por muito tempo, analisando ao pormenor todos os familiares enfeites de Natal; por fim, pousou os alhos no filho e sorriu.

- Fico muito feliz por terem decidido pendurar todos os enfeites. Ficaria muito triste se notasse a falta de alguns deles. - Teria sido equivalente a tentar esquecer que Annie alguma vez existira, e isso Liz recusava-se a fazer. - Obrigada, mãe. - Tommy ficou muito contente por terem tomado a decisão certa e, em seguida, dirigiram-se todos para a cozinha para jantar. Maribeth quis saber como tinha corrido a viagem, e Liz respondeu que tudo correra bem. Não se mostrou muito entusiasmada, mas John confirmou a resposta da mulher.

Na verdade, correra tão bem quanto possível, dadas as circunstâncias. Mas todos se mostraram satisfeitos e, durante o resto da noite, reinou pela casa uma atmosfera de paz

e alegria. Liz notou que havia algo de diferente em Maribeth e em Tommy nessa noite; estavam mais sérios e mais sossegados do que antes, e no olhar que trocavam detectava-se um novo laço, mais forte do que aquele que antes existira.

- Será possível que eles tenham feito algo que não deviam na noite passada, John? - indagou Liz nessa noite, no quarto, divertindo o marido com essa pergunta.

- Se te referes ao que estou a pensar, nem mesmo um rapaz de dezasseis anos poderia superar tamanho obstáculo! Os teus receios são completamente infundados.

- Não acreditas que se tenham casado, pois não? - Para o fazer, necessitariam da nossa permissão. Mas o que te leva a ter essa suspeita?

- Parecem-me diferentes: muito mais unidos, como se fossem uma só pessoa, tal como todos os casais deveriam ser.

A viagem fora benéfica para ambos. Estar a sós num quarto de hotel unira-os como há muitos anos nunca haviam estado. John proporcionara também um jantar muito agradável à mulher, além de que haviam conseguido levar a cabo as intenções que tinham antes de partirem.

- Só temos de aceitar o facto de que estão apenas muito apaixonados - afirmou John, calmamente.

- Acreditas realmente que um dia venham a casar-se? - Não seria com certeza a pior solução para nenhum deles, além de que já passaram por muito juntos. No final, talvez se comprove que tenha sido demasiado para ambos, ou, então, pode ter sido apenas uma excelente fase de amadurecimento. Só o tempo o poderá dizer. São uns miúdos fantásticos e tenho esperança de que fiquem juntos.

- Apesar de que a Maribeth pretende esperar bastante - observou Liz, compreendendo-a muito bem. John esboçou um sorriso melancólico.

- Conheço bem esse género de mulheres... - Porém era um género bom, tal como o tempo lhe provara; nem sempre fácil, mas bom. - Se tiver de acontecer, acabarão por encontrar uma forma de ficarem juntos. Caso contrário, terão tida, pelo menos, algo que a maioria das pessoas nunca experimentou ao longo de toda uma vida. De uma certa forma, invejo-os. - A ideia de começar de novo, de iniciar uma nova vida e de esquecer o passado atraía-o bastante. Teria adorado recomeçar uma vida diferente com Liz, mas, para eles, em alguns aspectos, era já demasiado tarde.

- Não invejo nada aquilo por que a Maribeth vai ter de passar - comentou Liz com tristeza.

- Referes-te ao parto? - John ficou surpreendido, pois Liz nunca se queixara muito acerca das experiências que tivera ao dar à luz.

- Não, refiro-me a entregar o filho. Não vai ser nada fácil. - Ele concordou, sentindo uma profunda compaixão por Maribeth. Aliás, experimentava esse sentimento em relação aos dois jovens, pelo sofrimento que ambos teriam de enfrentar ao crescer; contudo, apesar disso, ainda os invejava por tudo quanto haviam partilhado juntos e pela esperança com que encaravam o futuro, quer este os encontrasse juntos ou separados.

Nessa noite, Liz adormeceu muito próxima de John, e Maribeth e Tommy ficaram durante horas a conversar na sala.

Estes sentiam-se exactamente da forma como Liz os havia descrito ao marido: muito unidos, como se fossem uma só carne. Ambos estavam a ser mais do que alguma vez haviam sido e, pela primeira vez em toda a sua vida, Maribeth acreditou que podia ter um futuro.

No dia seguinte, todos acordaram com o despertador. Maribeth tomou banho e vestiu-se a tempo ainda de vir ajudar Liz a preparar o pequeno-almoço. Esta última ela borara um exame especial para Maribeth, o qual, caso aprovado, lhe permitiria avançar para a segunda metade do último ano de liceu; Tommy também tinha um exame final nesse dia, e assim, durante o pequeno-almoço, os exames foram o único tema de conversa. O conselho directivo do liceu permitira que Maribeth pudesse realizar o exame numa sala privativa, no ediúcio da administração, onde Liz se encontraria mais tarde com ela, ainda nessa manhã. Aquele liceu estava a agir de uma forma extremamente cooperante para com Maribeth, fazendo todos os possíveis para a ajudar, graças ao esforço e ao empenho de Liz nessa causa. Antes de se separarem, na entrada da escola, Tommy desejou boa sorte a Maribeth e foi a correr para a sua sala de aulas.

O resto da semana passou muito depressa, e o fim-de-semana que se seguiu foi o último antes do Natal. Liz terminou as suas compras e, quando vinha a caminho de casa, hesitou por uns instantes, mas por fim virou o carro e decidiu ir visitar Annie. Há meses que vinha a adiar essa visita, por ser demasiado penosa; mas, nesse dia, sentiu que tinha de o fazer.

Passou o portão do cemitério e começou a procurar o local onde a haviam deixado, mas, ao aproximar-se, deteve-se, perplexa. Vislumbrou então a pequena árvore, ligei ramente inclinada, com todos os ornamentos a balouçar ao vento, tal como os haviam deixado. Liz dirigiu-se então lentamente para o local e endireitou o pequeno pinheiro, compondo as fitas prateadas e observando os familiares enfeites que, no ano anterior, Annie havia pendurado na árvore da sala. As suas pequenas mãos tinham-nos pendurado com toda a cautela nos ramos que a mãe indicara e, agora, Liz recordava cada palavra, cada som, cada momento e cada silenciosa agonia do último ano. Inesperadamente, ao abrir essas comportas e ao deixar a emoção correr livremente, a dor que embalou Liz não era apenas amarga, mas também doce. Ficou durante muito tempo em silêncio perto da campa da filha, chorando pela sua menina e admirando a árvore que Maribeth e Tommy lhe haviam trazido. Pousou então os dedos nos frágeis ramos, como se se tratasse de uma presença amiga, e sussurrou o nome da filha; ouvi-lo era o suficiente para sentir o coração agitado, como se tivesse sido tocado pelos dedos delicados de um bebé.

- Amo-te muito, minha menina... e nunca vou deixar de te amar... doce, doce Annie... - Não conseguia despedir-se dela, e sabia que nunca o poderia fazer. Liz foi então para casa sentindo-se muito triste, mas também inexplicavelmente em paz.

Foi com alívio que não encontrou ninguém em casa. Deixou-se ficar durante muito tempo sentada na sala de estar, admirando a árvore de Natal e observando os velhos ornamentos que tão bem conhecia. Ia ser bastante difcil atravessar a época do Natal sem Annie; na verdade, cada dia que passava era dificil. Era difícil tomar o pequeno-almoço, o almoço, o jantar, ou ir passear até ao lago sem a filha; era dificil acordar todas as manhãs e saber que ela não estaria presente. E, no entanto, Liz sabia que a vida tinha de continuar. Lamentava apenas que não se tivessem apercebido de que Annie fora apenas uma visita, que viera passar com eles um curto espaço de tempo; mas, se o tivessem sabido, o que teriam mudado no seu modo de agir? Tê-la-iam amado mais? Ter-lhe-iam oferecido mais, ou passado mais tempo com ela? Tinham feito o melhor que sabiam e podiam, mas naquele instante, enquanto sonhava com Annie, Liz não tinha dúvidas de que teria dado uma vida inteira por mais um beijo, por outro abraço ou por mais um momento com a filha.

Continuava ainda sentada na mesma posição, pensando nela, quando Tommy e Maribeth entraram em casa, cheios de vida, com as faces rosadas e geladas, dispostos a relatar pormenorizadamente onde haviam estado e o que tinham feito.

Liz sorriu para ambos, mas Tommy apercebeu-se imediatamente de que a mãe tinha estado a chorar.

- Tenho de vos agradecer - afirmou então Liz, engasgada com as palavras -, por terem levado uma árvore de Natal para o... Obrigada... - murmurou, afastando-se. Maribeth e Tommy ficaram sem saber o que responder, e as lágrimas caíam também pelo rosto de Maribeth enquanto tirava o casaco e arrumava o que trouxera da rua. Por vezes, sentia um desejo enorme de poder ajudá-los, já que a dor que sentiam por terem perdido Annie era ainda muito intensa.

0 pai de Tommy chegou a casa pouco depois, com os braços cheios de embrulhos, e Liz estava já na cozinha a preparar o jantar. Quando viu o marido, olhou-o nos olhos e sorriu. Nos últimos tempos, havia mais calor entre ambos, e Tommy estava muito satisfeito por verificar que os pais já não se agrediam como antes. Aos poucos, todos iam progredindo, apesar de o Natal não ser uma época fácil de suportar.

Na véspera de Natal, foram todos à missa e, devido ao calor da pequena igreja e ao cheiro do incenso, John ressonou baixinho. Liz recordou então os anos anteriores, quando Annie os acompanhava e adormecia entre os pais. No ano anterior, estivera especialmente ensonada, devido à doença que os pais haviam ignorado. De regresso a casa, John foi logo deitar-se, enquanto Liz terminava de colocar os presentes ao pé da árvore. No entanto, esse ano seria diferente para todos eles; não haveria nenhuma carta para o Pai Natal, nem cenouras para as renas, nem o delicioso jogo de faz-de-conta. Também não se ouviriam gritos de alegria na manhã de Natal. Tinham-se apenas ainda uns aos outros.

Ao voltar-se para deixar a sala, Liz encontrou Maribeth no corredor, carregada com presentes para todos, e foi ao seu encontro a fim de a ajudar. Nos últimos tempos, cami nhava muito mais lentamente e com muito maior dificuldade. Sentia-se incomodada já há vários dias, pois a posição da criança estava muito baixa. Maribeth estava satisfeita por ter já terminado os exames, e Liz suspeitava que o nascimento estava para muito breve.

-Deixa-me ajudar - afirmou Liz, auxiliando-a a pousar os presentes ao lado da árvore. Para Maribeth, já era muito difícil baixar-se.

- Já quase não consigo mexer-me - lamentou-se ela, bem-disposta, fazendo Liz sorrir. - Não posso sentar-me, não posso levantar-me, não posso inclinar-me, nem consigo ver os meus pés!

- Já está quase a acabar - afirmou Liz, tentando animá-la. Maribeth fez um sinal afirmativo, e em seguida pousou os olhos em Liz. Há vários dias que queria conver sar com Liz a sós, sem a presença de Tommy ou do pai. - Podemos conversar agora um pouco? - perguntou Maribeth.

- Agora? - Liz mostrou-se um pouco espantada. - Sim, claro que sim. - Sentaram-se no sofá da sala, perto da árvore, a um palmo de distância dos enfeites de Annie. Liz aprendera a conviver melhor com a presença destes na sala e até já gostava de os ver todos os dias. Era quase como se pudesse ver a filha, contemplando algo que ela tocara não há muito tempo; quase como se fosse uma visita da parte de Annie.

- Pensei muito neste assunto - começou Maribeth, um pouco ansiosa -, não sei qual será a sua opinião, mas... quero entregar-lhe o meu filho. - Maribeth quase suspendeu a respiração após ter pronunciado essas palavras. - Como...? - Liz ficou de olhos fitos nela, como se não tivesse entendido. A importância do que Maribeth acabara de declarar desafiava qualquer imaginação. - 0 que queres dizer? - Liz continuava a fitá-la; os filhos não eram algo que se pudesse oferecer aos amigos, como presentes de Natal.

- Quero que a Liz e o John sejam os pais adoptivos do meu filho - anunciou Maribeth com determinação. -Porquê? -Liz ficou petrificada. Nunca lhe ocorrera a ideia de adoptar uma criança; tinha pensado em ter um filho, sim, mas não em adoptar um, e nem sequer imaginava qual seria a reacção de John. Há muitos anos atrás, tinham conversado sobre esse assunto, antes do nascimento de Tommy, mas John nunca manifestara muita vontade de o fazer.

- Quero entregar-vos o bebé, porque gosto muito de vocês e porque sei que são uns pais maravilhosos - explicou Maribeth com toda a doçura. Era o maior presente que lhes poderia dar, bem como ao seu filho. Ainda tremia de nervosismo, mas começava já a estar um pouco mais calma, e tinha total certeza do que afirmava. - Não posso tomar conta de uma criança. Sei que todos julgam uma loucura abdicar de um filho, mas tenho a certeza que não vou poder dar-lhe o que ele precisa. Mas vocês podem. E tenho a certeza que seriam capazes de cuidar dele e de lhe dar todo o apoio, tal como fizeram com a Annie e com o Tommy. Talvez um dia eu venha a ser capaz de fazer o mesmo, mas agora ainda não posso. Nem seria justo para nenhum de nós, embora o Tommy afirme o contrário. Gostava muito que o meu filho ficasse convosco. Nunca o pediria de volta, nem sequer voltaria para vos incomodar, se não me qùisessem perto de vocês... Mas saberia sempre que o meu filho estaria feliz ao vosso lado e que era bem tratado. E é exactamente isso o que desejo para esta criança... - Maribeth chorava e, quando lhe pegou na mão, as lágrimas rolavam também pelo rosto de Liz.

- Não é um presente como os outros, Maribeth. Não se trata de um brinquedo, nem de um objecto, e sim de uma vida. Compreendes bem isso? - Liz queria ter a cer teza de que Maribeth tinha plena consciência do que estava a fazer.

-Sim, bem sei, não tenho pensado noutra coisa nos últimos nove meses. Acredite que sei muito bem o que estou a fazer... - De facto, parecia que sim, mas Liz con tinuava ainda chocada. E se Maribeth mudasse de ideia? E qual seria a reacção de Tommy? Como se sentiria ele ao saber que pretendiam adoptar o filho de Maribeth, ou mesmo qualquer outra criança? E quanto a John? As ideias giravam num frenesim na cabeça de Liz.

-E... quanto ao teu relacionamento com o Tommy? É sério? - Mas com dezasseis anos, como poderia Maribeth saber? Como poderia tomar uma decisão dessas?

-É sério, sim, mas não quero começar uma relação desta forma. Este filho nunca esteve nos meus planos, nem sequer sinto que me tenha sido destinado. Mas acredito que houve um motivo para o ter gerado e alimentado durante nove meses, para o ter trazido para o local certo, para junto das pessoas indicadas. Eu não sou a pessoa certa. Um dia, quero casar com o Tommy e ter filhos, mas não este filho. Não seria justo para ele, mesmo que ainda não se aperceba disso. - Liz concordava em absoluto, mas não podia deixar de ficar impressionada por o ouvir da boca de Maribeth. Pensava que um dia necessitariam de um recomeço, se o relacionamento de ambos se mantivesse, mas por enquanto ninguém o poderia garantir. 0 certo é que começar aos dezasseis anos, tendo a cargo o filho de um outro homem, não seria uma tarefa fácil. - Mesmo se chegarmos a casar-nos, nunca vos retirarei a criança. Ela nem sequer teria de ficar a saber que sou sua mãe... - Maribeth empregava todos os argumentos possíveis para lhe implorar que ficasse com o seu filho, que lhe desse o amor e a vida que merecia ter e que ela sabia nunca poder facultar-lhe. - Sinto que esta criança vos pertence, que foi para vo-la entregar que aqui vim parar, porque assim estava destinado... devido ao que vos sucedeu antes... - Maribeth engasgou-se na conclusão da frase e os olhos de Liz transbordaram de água. - Por causa do que sucedeu com a Annie.

- Não sei o que responder, Maribeth - declarou Liz com toda a honestidade, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas faces. - É a dádiva mais bela que já alguém me ofe receu, mas não tenho a certeza que seja correcto aceitá-la. Não é fácil aceitar o filho de uma outra mulher. -Mesmo que essa mulher assim o deseje e não tenha mais nada para oferecer? Tudo quanto posso oferecer a esta criança é um futuro, uma vida passada junto das pessoas que podem proporcionar e dar-lhe amor. Não é justo que a Liz tenha perdido a sua filha, tal como não é justo que o meu filho não tenha possibilidade de ter uma vida feliz, sem um futuro, sem esperança, sem um lar e sem sustento. Que tenho eu para lhe oferecer? Os meus pais não me déixam levá-lo comigo para casa, nem tenho nenhum outro sítio para onde ir. A única coisa que poderia fazer era continuar a trabalhar no Jimmy D's durante o resto da minha vida, mas mesmo assim, com o meu salário, nunca poderia pagar a uma baby-sitter, se decidisse criar o meu filho. - Maribeth olhava Liz nos olhos, a chorar, implorando-lhe que educasse o seu filho.

- Podias continuar aqui connosco - afirmou Liz, pausadamente. - Se não tens mais nenhum sítio para onde ir, podes morar nesta casa. Não és obrigada a abdicar do teu filho, Maribeth, nem eu permitiria que o fizesses por esse motivo. Não tens de o entregar a ninguém apenas para lhe proporcionar uma boa vida. Se quiseres, podes ficar connosco, como se fosses nossa filha, e nós ajudamos-te. - Liz não queria que Maribeth se sentisse forçada a entregar o filho apenas porque não podia sustentá-lo. Essa ideia parecia-lhe totalmente errada e, caso decidisse educar essa criança, queria fazê-lo de acorda com a vontade de Maribeth, e não por esta não ter condições de a sustentar.

- Mas quero entregar-vos o meu filho - repetiu Maribeth -, quero que sejam vocês a ficar com ele. Eu não posso educá-lo, Liz - confessou, chorando docemen te. A mãe de Tommy tomou-a então nos braços e abraçou-a. - Não posso... não tenho força suficiente para tanto, nem o saberia fazer... não posso tomar conta dessa criança... Por favor, ajude-me... aceite-o. Ninguém pode avaliar como me sinto, sabendo que não posso educá-lo, mas desejando proporcionar-lhe o melhor. Por favor°... - Lançou-lhe um olhar desesperado e, nessa altura, ambas davam livre curso às lágrimas.

- Quero que saibas que podes sempre voltar a esta casa. Se adoptarmos o teu filho, não quero que te sintas obrigada a permanecer afastada. Ninguém precisa de saber que é teu filho, nem a criança teria de o saber... apenas nós. Gostamos muito de ti, Maribeth, e não queremos perder-te. - Liz conhecia também o significado que Maribeth tinha na vida de Tommy, e não queria destruir o relacionamento de ambos por um motivo egoísta, pela sua ânsia de ter um outro filho. Era uma oportunidade única, uma dádiva rara, e Liz necessitava de tempo para ponderar. - Deixa-me conversar com o John.

-Por favor, explique-lhe o quanto eu desejo que o aceitem - implorou, apertando a mão de Liz. - Por favor... Não quero entregar o meu filho a um casal desco nhecido. Seria maravilhoso se o pudesse deixar convosco... Por favor, Liz...

- Veremos - respondeu calmamente, embalando-a nos seus braços, esforçando-se por a acalmar e confortar. Maribeth estava a ficar muito fraca, tal fora a emoção com que implorara a Liz que aceitasse adoptar o seu filho.

Em seguida, Liz aqueceu um pouco de leite para Maribeth e conversaram ainda mais um pouco sobre o assunto; depois, Liz ajudou-a a deitar-se na cama de Annie, tapou-a bem, deu-lhe um beijo de boas-noites e dirigiu-se finalmente para o seu quarto.

Deixou-se ficar bastante tempo parada a observar John, imaginando qual seria a sua reacção e se a ideia lhe pareceria uma total loucura. Tinham também de pensar em Tommy, que poderia não estar de acordo. Havia milhares de considerações a fazer, mas admitir essa ideia fazia o seu coração bater como há anos não batia... Era a maior dádiva de sempre... a dádiva de uma vida que ela não podia conceber, a dádiva de um outro filho.

John agitou-se um pouco quando Liz se deitou a seu lado, o que a fez desejar que o marido acordasse para poderem conversar, mas tal não aconteceu. Em vez disso, John envolveu a mulher nos seus braços e puxou-a para si, tal como costumava fazer nos anos anteriores, antes de a tragédia se ter abatido sobre ambos e os ter entorpedido durante todos os últimos meses. Liz ficou deitada nos braços do marido, a reflectir sobre o que sentia, o que desejava e qual a decisão mais acertada para todos eles. 0 discurso de Maribeth fora bastante convincente, mas não era ~cil compreender se aquela seria de facto a solução mais correcta, ou se o seu intenso desejo a tornara bastante atractiva.

Ficou acordada durante muito tempo, sem conseguir adormecer, desejando que John acordasse. Este finalmente abriu os olhos e fitou-a, como se pressentisse a sua ansieda de. Bastante ensonado, John pestanejou e dirigiu-se a Liz, no escuro.

- Algum problema?

- 0 que dirias se quisesse saber a tua opinião a respeito de termos outro filho? - indagou, completamente desperta, desejando que o marido o estivesse também.

- Diria que estavas louca! - John sorriu e fechou novamente os olhos, voltando a adormecer no minuto seguinte. Contudo, não era essa a resposta que Liz desejava ouvir.

Ficou toda a noite deitada a seu lado, sem conseguir dormir, exceptuando a última meia hora antes do raiar do dia. Liz estava demasiado confusa e nervosa para poder dormir, tinha demasiadas perguntas, receios, preocupações e esperanças por resolver. Por fim, acabou por se levantar e foi até à cozinha em camisa de dormir para beber uma chávena de café. Sentou-se e ficou de olhos fitos na chávena, bebendo o café em pequenos goles; cerca das oito da manhã, tinha já chegado a uma conclusão. Antes disso, sempre soubera qual era verdadeiramente a sua vontadè, mas não tinha tido ainda a certeza se teria coragem de a levar a cabo. Todavia, acreditava que tinha de o fazer, não apenas por Maribeth e pela criança, mas por ela própria, por John e talvez até também por Tommy. Era um presente destinado a todos, e Liz estava decidida a não o recusar.

Levando consigo o café, foi então de novo para o quarto e acordou John, que ficou surpreendido por vê-la já de pé. Nesse ano, não havia razão para pressas, para descer as escadas a correr a fim de descobrir o que o Pai Natal depositara aos pés da árvore durante a noite. Tinham ainda muito tempo para se levantarem, além de que Tommy e Maribeth estavam ainda a dormir.

- Bom dia - murmurou Liz, sorrindo. Mas fé-lo de uma forma tímida e insegura, que recordou a John os tempos em que ambos eram ainda jovens.

- Estás com ar de quem tem algo a anunciar - afirmou, sorrindo. Virou-se de costas e espreguiçou-se.

- É verdade. Tive uma grande conversa com a Maribeth na noite passada - informou ela, aproximando-se da cama e sentando-se a seu lado, rezando para que o marido não recusasse a ideia. Não havia nenhum meio de adiar, atenuar ou falsificar a notícia que tinha para lhe dar. Sabia apenas que tinha de o fazer, o que estava a deixá-la aterrorizada; esse projecto signi&cava tudo para Liz, e desejava tanto essa criança que alimentava igualmente o desejo de que o marido a desejasse com a mesma intensidade, o que temia que não viesse a acontecer. - Ela quer entregar-nos o seu filho.

-A todos nós? - John mostrava-se confuso - Ao Tommy também? Então tenciona casar-se já com o nosso filho? - Sentou-se de imediato na cama, seriamente preo cupado. - Sempre tive receio que isto pudesse acontecer. - Não, não é a todos nós. E a Maribeth não pretende casar com o Tommy, pelo menos por enquanto. É apenas a nós dois. Ela quer que adoptemos o seu filho.

- Nós? Mas por que motivo? - John, mais do que chocado, revelava um raciocínio incoerente.

- Porque nos julga boas pessoas e bons pais.

- E se entretanto mudar de opinião? E o que faremos com uma criança? - Ao ver o terror em que John se encontrava, Liz sorriu; a surpresa que lhe reservava para essa manhã não fora pequena.

- 0 mesmo que já fizemos com os outros dois: não dormimos durante os próximos dois anos, ansiamos por horas de sono, e depois gozamos o prazer que nos propor cionam durante o resto das nossas vidas... ou das deles - acrescentou com tristeza, pensando em Annie. - É uma dádiva, John... por um dia, por um ano, pelo tempo que a vida permitir que a conservemos a nosso lado. E não gostava de a recusar, não queria ser de novo obrigada a desistir dos meus sonhos... Nunca pensei que fôssemos ter outro filho e o doutor MacLean comunicou-me que já não poderei engravidar... Mas, agora, esta rapariga entra na nossa vida e oferece-nos a concretização dos nossos antigos sonhos.

- E se, dentro de alguns anos, quando for adulta ou depois de casada, a Maribeth decidir reclamar o filho? Talvez até o faça mesmo depois de ter casado com o Tommy...

- Creio que temos meios legais para nos proteger. Além disso, ela garantiu-me nunca o fazer. E não acredito realmente que o faça. Penso que a Maribeth acredita sin ceramente que a única forma de proporcionar uma vida melhor ao &lho é entregando-o a pais adoptivos. Ela tem a certeza de não poder educá-lo e implora-nos que o façamos.

-Espera até ela ver o filho - observou John, com alguma desconfiança. - Não há nenhuma mulher que, depois de ter carregado um filho durante nove meses, seja capaz de o entregar assim tão facilmente.

- Há quem o faça - contrapôs Liz, calmamente. - Penso que a Maribeth o possa fazer, não por indiferença, e sim por excesso de zelo. Abdicar do filho e entregá-lo nas nossas mãos é o maior gesto de amor que pode ter para com essa criança. - Ao contemplar o marido, as lágrimas brotaram dos olhos de Liz e espalharam-se pelo seu rosto. - John, desejo muito essa criança. Desejo-a como nunca em toda a minha vida quis alguma coisa... Por favor, não 0 recuses... Por favor, concorda em adoptá-lo. - John fitou longa e intensamente a mulher, enquanto esta se esforçava por não admitir perante si própria que, caso o marido nâo o permitisse, ela viria a odiá-lo. Liz não acreditava que John pudesse compreender plenamente o quanto ela sofrera e o quanto desejava agora essa criança, não para substituir Annie, que jamais regressaria, mas sim para continuar a viver, para lhes trazer de novo alegria, riso e amor, para se tornar uma pequena luz a brilhar no meio da névoa que os envolvera. Era tudo quanto desejava, e não podia compreender por que motivo John não o aceitaria. Caso ele se negasse a fazer-lhe essa vontade, Liz acreditava que definharia e acabaria por morrer.

-Está bem, Liz - respondeu ele, com toda a suavidade, tomando a mão da mulher entre as suas. - Está bem, eu compreendo... - acrescentou. As lágrimas ro lavam pelo rosto de Liz quando esta abraçou John, concluindo como havia sido injusta para com o marido. Afinal, John compreendia e aceitava. Era ainda o mesmo homem que sempre fora, o que a levava a amá-lo ainda mais. Tinham passado por um grande sofrimento, mas tinham conseguido superá-lo. - Vamos responder-lhe que aceitamos. Mas, primeiro, devíamos conversar com o Tommy. Ele tem de pensar da mesma forma que nós para podermos adoptar a criança.

Liz concordou, mas mal pôde esperar que o filho acordasse, o que levou mais duas horas. Tommy acordou antes de Maribeth, e ficou estupefacto quando a mãe lhe contou o que esta lhes propusera. Contudo, nos últimos tempos, Tommy apercebera-se de como Maribeth estava realmente decidida a entregar a criança, pensando ser a melhor solução para ela e para o filho e desejando proporcionar-lhe dessa forma uma vida melhor. E agora que acreditava que talvez fosse possível não perder Maribeth, estava menos obcecado com a ideia de a forçar a casar-se consigo e a educar o filho. Esperava um dia vir a ter filhos com ela, mas, para aquela criança, essa seria, sem dúvida, a solução ideal. Podia ver no olhar da mãe o quanto isso significava para ela. Ao longo da conversa, os pais pareceram-lhe mais unidos e o pai mostrou-se forte, calmo e determinado, segurando a mão de Liz entre as suas. De uma certa forma, não deixava de ser bastante aliciante, pois tratava-se de partilhar o início de uma nova vida.

Quando Maribeth se levantou, todos estavam à sua espera, a fim de lhe comunicar a sua decisão: haviam concordado, de forma unânime, em adoptar a criança. Ela contemplou-os e chorou de alívio; em seguida, abraçou-os, soluçando ainda mais. Aliás, todos choraram, foi um momento de pura emoção para cada um deles; um momento de esperança e de amor, um momento de dádiva e de partilha. Era tempo de começar de novo, com o presente que Maribeth lhes oferecera.

- Tens a certeza? - perguntou-Ihe Tommy nessa tarde, quando estavam a passear. Ela respondeu que sim, mostrando-se absolutamente convencida. Tinham já aberto os presentes e almoçado muito bem. Aquela era a primeira oportunidade que ambos tinham de conversar a sós desde essa manhã.

- É essa a minha vontade - declarou Maribeth, com uma grande calma e força. Sentia uma energia que há muito desconhecia. Caminharam até ao lago onde Tommy ia patinar e depois fizeram o caminho inverso, o que totalizava vários quilómetros. Maribeth, porém, afirmava nunca se ter sentido melhor, aliás, sentia-se capaz de fazer tudo; acreditava que tinha cumprido o seu propósito naquela cidade: viera para lhes entregar a dádiva que lhes estava destinada. E uma vez cumprido esse objectivo, todas as suas vidas ficariam mais enriquecidas apenas pelas bênçãos que haviam partilhado juntos.

No caminho de volta, Maribeth tentou explicar o que sentia a Tommy, que julgou ter percebido, embora, por vezes, fosse bastante difícil ouvi-la atentamente. Maribeth faiava de uma forma tão séria e tão intensa, e era tão bonita que ele se deixava distrair. Quando pararam nos degraus da entrada de casa, Tommy beijou-a, mas sentiu que ela de imediato se contraía e lhe apertava a mão, chegando quase a cair, se ele não a tivesse antes agarrado.

-Oh, meu Deus! Meu Deus...! - exclamou ele então, de súbito aterrorizado, auxiliando-a a sentar-se num dos degraus. Ela apertava o baixo-ventre e tentava recupe rar o fôlego em meio a uma forte contracção. Tommy correu para dentro de casa, chamando pela mãe, que ao ver Maribeth sentada no degrau, com os olhos muito abertos e bastante assustada, concluiu logo que o trabalho de parto começara; e de uma forma muito mais intensa do que haviam esperado.

-Está tudo bem, está tudo bem - repetia Liz, tentando acalmar ambos e pedindo a Tommy que fosse chamar o pai. Queria trazer Maribeth para dentro de casa e chamar o médico. - 0 que andaram vocês a fazer? Foram a pé até Chicago?

- Fomos só até ao lago e voltámos - explicou Maribeth, de novo arquejante. Sentia de novo a mesma dor, que era muito intensa e demorava muito tempo, facto que ela não entendia. Quando a levaram para dentro, afirmou a Liz e a John que não era natural começar daquela forma o trabalho de parto, enquanto Tommy a observava muito nervoso. - Esta manhã tive uma dor de estômago, mas passou depressa - informou Maribeth, sem conseguir acreditar no que estava a acontecer; afinal, não tinha detectado nenhum sinal.

-Tiveste cãibras? - interrogou Liz, muito calma e carinhosa. - Ou sentiste alguma dor nas costas? - Por vezes, era muito facil deixar passar despercebidos os primeiros sinais do trabalho de parto.

- Ontem à noite, senti uma dor nas costas, e hoje tive cãibras quando me doeu o estômago, mas julguei que fosse devido a tudo quanto comemos na noite passada. -Talvez já estejas em trabalho de parto desde a noite passada - respondeu Liz, o que significava que não podiam perder mais tempo em levá-la para o hospital. Era óbvio que tinha sido a longa caminhada que provocara as contracções. 0 período previsto para o nascimento da criança terminava no dia seguinte, o que significava que não haveria atrasos, e que o seu filho mostrava não querer perder mais nenhum minuto. Era quase como se o facto de Maribeth ter tido a certeza que a família Whittaker adoptaria o seu filho tivesse facilitado o nascimento; agora, já não existia forma de o deter.

Depois de a terem levado para dentro de casa, Liz começou a medir os intervalos entre cada contracção, enquanto John telefonava ao médico. Tommy ficou sentado ao lado de Maribeth, segurando-lhe a mão, condoído e infeliz. Detestava vê-la sofrer tanto, mas nenhum dos seus pais se mostrava muito preocupado, apesar de a tratarem com muita ternura e simpatia e de Liz não a ter abandonado nem por um segundo. 0 intervalo entre cada contracção, que era longa e intensa, durava apenas três minutos; John comunicou-lhe então que o Dr. Maciean mandara-os seguir imediatamente para o hospital, onde, daí a cinco minutos, se encontraria com eles.

- Temos mesmo de ir já? - interrogava Maribeth, extremamente jovem e assustada, olhando alternadamente para Liz, para Tommy e para John. - Não podemos ficar aqui mais algum tempo? - Estava prestes a chorar, mas Liz fez-lhe notar que não podia adiar por mais tempo 0 nascimento do filho; chegara a hora de partir.

Tommy separou apressadamente algumas das roupas de Maribeth, que atirou para dentro de uma mala, e cinco minutos depois encontravam-se já a caminho. Liz e Tom my sentaram-se no banco de trás ao lado de Maribeth, um em cada lado, enquanto John conduzia o mais depressa possível por entre as estradas com gelo. Quando chegaram ao hospital, o Dr. MacLean incumbira já uma enfermeira de esperar por Maribeth, a qual sentaram numa cadeira de rodas, preparando-se para levá-la de imediato para dentro; ela, no entanto, acenava freneticamente para Tommy.

- Não me deixes sozinha - implorava, apertando-lhe a mão e chorando, enquanto o Dr. MacLean sorria ao ver tal cena. Iria correr tudo bem; Maribeth era jovem e saudável, e tinha o trabalho já bastante adiantado.

- Verás o Tommy dentro em pouco - assegurou então o médico -, com o teu filho nos braços. - Mas essa promessa apenas a fez chorar ainda mais e Tommy beijou-a com muito carinho.

- Não posso ir contigo, Maribeth, a minha entrada não é permitida. Vais ter de ser forte e, da próxima vez, prometo que estarei do teu lado - declarou, afastando-se um pouco, de forma a permitir que a levassem. Contudo, Maribeth lançou um olhar muito assustado a Liz e pediu-lhe para a acompanhar, ao que o médico acedeu. Seguindo Maribeth até ao elevador, Liz sentia o coração bater acelerado, assim permanecendo também quando entraram na sala de observação e lhe retiraram as roupas para verificar em que estado de adiantamento -ela se encontrava. Nessa altura, o nervosismo de Maribeth era quase incontrolável, o que fez com que a enfermeira lhe administrasse uma injecção para acalmá-la. Depois disso, o seu estado melhorou, apesar de estar com muitas dores. Quando 0 médico a examinou, no entanto, comunicou que a criança não demoraria muito para nascer, pois Maribeth tinha dilatado o suficiente para começar a fazer força.

Nessa altura, transportaram-na para a sala de parto, onde Maribeth, apertando muito a mão de Liz, lhe dedicava um olhar de total confiança.

- Prometa-me que não vai mudar de opinião, Liz... Vai ficar com ele, não vai? E vai amá-lo... vão amar sempre o meu filho...

- Prometo - respondeu Liz, tocada pela confiança de Maribeth e pelo amor que sentiam uma pela outra. - Vou amar sempre o teu filho. Amo-te muito, Maribeth... Obrigada... - acrescentou, antes de as dores dominarem de novo a jovem mãe, que passou a hora seguinte em árduo trabalho de parto.

Durante algum tempo, o bebé esteve virado na direcção errada, e tiveram de usar ferros. Colocaram também uma máscara no rosto de Maribeth, para anestesiar um pouco as dores. Esta não podia estar mais esvaída, confusa e dominada pela dor, mas Liz apertou-lhe a mão durante todo o tempo. Passava da meia-noite quando, por fim, um fraco gemido ecoou pela sala de partos, e a enfermeira retirou a máscara do rosto de Maribeth, para que pudesse conhecer a sua filha. Estava ainda meio adormecida, mas esboçou um sorriso ao ver o minúsculo rosto rosado, dedicando a Liz um olhar repleto de alívio e alegria.

- Aqui tem uma menina - anunciou então Maribeth a Liz. Mesmo ainda sob os efeitos da anestesia, nunca esquecera, nem por um minuto, a quem a criança pertencia.

- É a sua menina - corrigiu o médico, sorrindo para Maribeth e depositando o bebé nos braços de Liz, já que a primeira estava demasiado fraca para poder pegar-lhe. Quando Liz olhou pela primeira vez para a criança que tinha nos braços, reparou no seu cabelo louro-rosado e viu nos seus olhos tanta inocência e tanto amor que quase estremeceu.

- Viva - murmurou, segurando a criança que seria sua, sentindo quase o mesmo que sentira quando os seus próprios filhos haviam nascido. Sabia que nunca esqueceria aquele momento, o qual lamentava não ter partilhado com John. Havia sido para si um imenso significado assistir àquele nascimento, vê-la emergir tão rapidamente e chorar como se quisesse chamar a atenção de todos eles, como se desejasse transmitir-lhes que havia conseguido vir a este mundo. Há muito que esperavam por ela.

Entretanto, administraram uma outra injecção a Maribeth, que adormeceu, exausta. Permitiram então a Liz que levasse a bebé para o berçário, onde foi limpa e pesada. Liz assistiu ao desempenho de todas as tarefas, segurando os minúsculos dedos na sua mão. Alguns minutos depois, viu John e Tommy surgirem na grande montra envidraçada do berçário, onde permaneceram de olhos fitos nelas.

A enfermeira entregou-lhe então novamente a criança, e Liz ergueu-a nos braços, mostrando-a a John, que chorou mal viu a sua nova filha.

- Não é linda? - pronunciou Liz apenas com os lábios. E, de súbito, John viu apenas a sua mulher e tudo aquilo por que ambos haviam passado. Era muito di6cil não recordar Annie quando recém-nascida, apesar daquela criança ser bastante diferente e pertencer-lhes também agora.

-Amo-te - sussurrou ele do outro lado do vidro. Liz repetiu com os lábios a mesma frase; amava-o também e apercebia-se agora com horror e gratidão de que quase se haviam perdido. Mas, facto extraordinário, tinham conseguido vencer, graças a Maribeth, à dádiva que esta lhes oferecera e ao amor que sempre haviam partilhado, mas que quase haviam esquecido.

Tommy ficou entusiasmado ao ver a menina, mas foi com bastante alívio que viu a mãe sair e pôde perguntar-lhe como estava Maribeth. Liz garantiu então ao filho que ela se encontrava bem, que tinha sido muito corajosa e que estava agora a descansar.

- Foi muito dificil, mãe? - indagou, preocupado com Maribeth e impressionado com aquilo que esta havia realizado. A menina nascera com três quilos e setecentos gramas, um peso considerável para qualquer mãe, mas mais ainda para uma adolescente de dezasseis anos que desconhecia o que a esperava. Mais de uma vez, Liz sentiu muita compaixão de Maribeth, mas o médico fora generoso na administração das anestesias. 0 seu próximo parto seria menos dificil e teria decerto compensações bem maiores.

- Não é fácil, filho - respondeu Liz, séria e calma, também ela impressionada pelo que havia presenciado. Principalmente, se todo aquele trabalho fosse em prol de outra pessoa e não se tencionasse manter o filho.

- Ela vai ficar bem? - Os olhos de Tommy colocavam uma infinidade de questões, as quais ele não compreendia totalmente. Mas a mãe dava-lhe ânimo.

- Vai ficar óptima, prometo.

Uma hora depois, transportaram Maribeth para o seu quarto. Apesar de se encontrar ainda semi-inconsciente e bastante aturdida, esta detectou imediatamente a presença de Tommy e procurou a sua mão, repetindo-lhe o quanto o amava e como a menina era bonita. E, de súbito, ao observá-los, Liz sentiu-se dominada como nunca antes sentira por uma onda de pânico. E se Maribeth mudasse de opinião e optasse por casar com Tommy e educar a filha?

- Já a viste? - perguntou Maribeth a Tommy, muito entusiasmada.

Liz lançou um olhar ao marido, e este tomou a mão da mulher entre as suas, de forma a confortá-la. Sabia muito bem o que Liz estava a pensar, pois também ele tinha os seus receios.

-E linda - comentou Tommy, beijando Maribeth, ainda preocupado com a sua palidez. De facto, Maribeth apresentava ainda um tom esverdeado, devido aos efeitos do éter. - É parecida contigo - acrescentou. Mas a bebé tinha cabelo cor de morango, em vez do cabelo cor de fogo da mãe.

- Parece-me que é mais parecida com a tua mãe. - Maribeth sorriu então para Liz, sentindo uma ligação tão forte e especial com a mãe de Tommy que tinha a certeza mais vir a sentir com ninguém. Haviam partilhado o nascimento da sua úlha, e Maribeth sabia que o teria suportado tão bem sem a presença de Liz. Que nome lhe vai dar? - perguntou Maribeth a Liz, retomando lentamente o sono, deixando Liz de novo mais aliviada. Afinal, tudo indicava que Maribeth não tencionava mudar de opinião; tudo indicava que aquela criança seria sua, apesar de ser ainda muito dificil de acreditar, mesmo depois de tudo quanto se passara.

- Que tal Kate? - sugeriu Liz, enquanto Maribeth cerrava as pálpebras.

- É bonito - sussurrou ela antes de adormecer, agarrada à mão de Tommy. - Gosto tanto de si, Liz... - murmurou ainda, já com os olhos fechados.

-Também te amo muito, Maribeth - respondeu Liz, beijando-lhe a face e fazendo sinal a todos para se retirarem. Fora uma noite complicada, e Maribeth necessitava de repousar.

Eram três da madrugada quando saíram do quarto e seguiram devagar pelo corredor, parando diante da montra do berçário. E ali estava ela, muito rosada e envolvida nu ma manta, de olhos abertos a contemplar Liz como se tivesse estado muito tempo à sua espera. En como se aquela criança lhes tivesse sido destinada desde o início. Uma dádiva vinda de um rapaz que não conhecia nenhum deles e de uma rapariga que atravessara as suas vidas como um arco-íris. E enquanto todos contemplavam maravilhados a menina recém-nascida, Tommy olhou para os pais e sorriu: tinha a certeza que Annie a teria adorado.

 

Os dois dias què se seguiram foram frenéticos e absorventes para todos. John e Tommy foram buscar o antigo berço de Annie e pintaram-no de fresco; depois, Liz pas sou várias horas acordada de noite a envolvê-lo em fitas e laçadas de cetim rosa. Aproveitaram algumas das coisas antigas que tinham e compraram outras novas; porém, em meio a toda essa azáfama, Tommy foi até ao cemitério e ficou durante um largo tempo sentado junto à campa de Annie, contemplando a árvore que ele e Maribeth haviam trazido, enquanto pensava no bebé. Detestava saber que em breve Maribeth os deixaria para regressar para casa dos pais. De uma certa forma, o tempo passara muito depressa, e parecia que se tinha resolvido tudo ao mesmo tempo. A maioria dos acontecimentos tinha sido alegre, mas existiam aspectos muito dolorosos.

Contudo, a mãe mostrava-se tão feliz como nunca a vira ao longo de todo o ano anterior, e Maribeth andava calma e séria. Tivera uma longa conversa com Liz e com John logo após o nascimento da filha, e estes haviam-lhe garantido que entenderiam perfeitamente que ela tivesse mudado de ideias. Mas Maribeth insistira categoricamente que tal não havia acontecido; entristecia-a abdicar da filha, mas, agora mais do que nunca, tinha a certeza de que aquela era a solução mais adequada. Assim, no dia seguinte, John convocou o seu advogado e deram início ao processo de adopção.

Mal os papéis ficaram prontos, trouxeram-nos à presença de Maribeth, a qual, depois de ter ouvido as pormenorizadas explicações do advogado, assinou a sua permis são, exactamente três dias após o nascimento de Kate. Renunciou assim ao período de espera, e assinou com a mão trémula, abraçando Liz em seguida. Nesse dia, pediram à enfermeira que não lhe trouxesse a filha, pois Maribeth necessitava de tempo para chorar a sua perda.

Nessa noite, Tommy fez-lhe companhia. Apesar de toda a certeza com que tomara a sua decisão, Maribeth estava melancólica. Ambos desejavam que tudo se tivesse passado de uma forma diferente, embora ela soubesse que não havia tido outra escolha. Tomara a decisão certa, principalmente para a sua filha.

-Juro que da próxima vez será diferente - garantiu Tommy, beijando Maribeth. Tinham passado por tanto juntos que ambos tinham total certeza de que o laço que os unia não seria cortado. Todavia, Maribeth necessitava de tempo para se recompor e para recuperar de toda a emoção que vivera. No dia de Ano Novo, o médico deu-lhe permissão para deixar o hospital com a filha, e Tommy e os pais vieram buscá-las.

Liz levou a menina até ao carro enquanto John tirava fotografias, e todas passaram uma tarde sossegada em casa. Sempre que a bebé chorava, Liz ia ao seu encontro, e Ma ribeth esforçava-se por não ouvir. Não queria ter muito contacto com a filha, porque sentia que não era já a sua mãe e, como tal, empregava todos os esforços para criar uma distância entre ambas. Acreditava que iria existir sempre um lugar para a filha no seu coração, mas nunca se comportaria como uma mãe, nunca a consolaria a meio da noite, nunca a trataria de uma constipação nem lhe leria uma história antes de adormecer. Na melhor das hipóteses, se a ligação que tinha com a família Whittaker permanecesse sólida, tornar-se-iam amigas, mas nada mais além disso. Até mesmo agora, era Liz, e nâo Maribeth, a mãe.

E nessa noite, enquanto Liz embalava a menina e observava o seu sono tranquilo, John admirava a cena. - Já sentes amor por ela, não é verdade? - Ela admitiu que sim, imensamente feliz, ainda incapaz de acreditar que o marido havia concordado tão facilmente com tudo aquilo. - Lá se vão dois anos de sono...

- Faz-te bem - comentou ela, sorrindo, enquanto John vinha ao seu encontro para lhe dar um beijo. Aquela criança voltara a uni-los, dera-lhes uma nova esperança e

recordara-lhes como pode ser doce o início de uma vida e o quanto significa partilhar uma tal experiência.

0 nascimento de Kate aproximara também ainda mais Tommy e Maribeth. Esta mostrava precisar ainda mais dele do que antes, e sentia-se aterrorizada pela ideia de ter de o deixar. Sentia-se extremamente vulnerável, como se não fosse capaz de enfrentar o mundo sem a presença de Tommy. Pensar que teria de regressar para casa dos pais sem ele inspirava-lhe um terror absoluto, e continuava a adiar o dia em que os avisaria de que o bebé já havia nascido. Durante toda a semana tencionara telefonar-lhes, mas nunca fora capaz de o fazer; ainda não se sentia preparada para regressar a casa.

- Queres que seja eu a avisá-los? - sugeriu Liz, dois dias depois de ela ter saído do hospital. - Não quero apressar-te mas parece-me que a tua mãe devia gostar de saber que estás bem. Déve estar preocupada.

- Porquê? - indagou Maribeth, desanimada. Réflectira muito durante essa última semana, e os pais tinham sido um dos assuntos em que mais pensara. - Que diferen ça fará saber agora de mim, se o meu pai a proibiu de falar comigo durante todo este tempo? Nãó foi ela que me ajudou quando precisei, foi a Liz - concluiu Maribeth com rudeza. E não havia como negar essa verdade. Os seus sentimentos para com a família tinham-se alterado completamente, até mesmo em relação à mãe; apenas Noelle mantivera intacto o lugar que sempre ocupara nó coração da irmã.

- Não creio que a tua mãe possa evitar seja o que for - declarou Liz, cautelosamente, pousando a bebé no berço; tinha acabado de a alimentar. - Não é uma mulher muito forte... - Aquela descrição era bem mais exacta do que Liz supunha; a mãe de Maribeth era completamente subjugada pelo marido. - Duvido mesmo que se aperceba de que não te apoiou como devia.

- Teve alguma conversa com a minha mãe? - quis saber Maribeth, mostrando-se confundida. Como poderia Liz conhecer tão bem a mãe?

Ela hesitou uns segundos antes de responder, e por fim decidiu revelar a Maribeth toda a verdade, deixando-a perplexa.

-Eu e o John fomos visitar os teus pais, depois do dia de Acção de Graças. Pensámos que deveríamos fazer isso por ti. Nessa altura, ainda não sabíamos que irias en tregar-nos a criança, mas eu queria muito conhecer a família com quem voltarias a viver. Quero que saibas que, aconteça o que acontecer, ;serás sempre bem-vinda nesta casa. Mas estou convencida de que a tua família te ama, Maribeth, embora o teu pai seja um homem com muitas limitações. Ele nem sequer consegue compreender o motivo por que tu desejas tirar um curso superior. Foi sobre esse assunto que quis conversar com ele, queria ter a certeza que o teu pai te deixaria ingressar na faculdade. Tens apenas alguns meses pela frente até terminares o liceu, o que significa que deves apresentar agora a tua candidatura. Com um nível de inteligência como o teu, deves a ti própria fazê-lo.

- Como reagiu o meu pai? - Maribeth ainda mal podia acreditar que Liz os havia conhecido. Os pais de Tommy tinham percorrido cerca de quatrocentos quiló metros para conhecer a família que a havia rejeitado nos últimos seis meses.

- Respondeu que, se a tua mãe podia ficar em casa a tomar conta dos filhos, também tu poderias fazer o mesmo - contou Liz, usando de total honestidade. Mas não revelou a Maribeth que o pai havia acrescentado: Se ela ainda conseguir arranjar um marido", o que ele duvidava, depois do seu mau passo. - 0 teu pai não consegue ver a diferença, nem se apercebe da jóia preciosa que tem como filha. - Liz sorriu para a rapariga que tanto lhe havia oferecido; desejavam agora poder retribuir-lhe, e Liz e John já haviam discutido esse assunto. - 0 teu pai ficou a pensar que nós te enchemos a cabeça com ideias acerca da faculdade. 0 que eu espero que seja verdade - acrescentou, sorrindo -, pois, de outra forma, vou ficar muito desapontada. Na verdade... - Liz fez uma pequena pausa ao ver John entrar no quarto. - Bom, na verdade, queríamos conversar contigo a esse respeito. Antes de a Annie morrer, tínhamos reservado uma poupança especial para as despesas que teríamos com a sua educação. Tencionamos fazer o mesmo agora com a Kate, mas temos muito tempo pela frente. Para o Tommy, já temos há muito reservado 0 que vamos necessitar para pagar as despesas da universidade e, por isso, queremos dar-te a quantia que reservámos para a Annie. Pelo menos desta forma, Maribeth, vais ter sempre a certeza que podes ingressar na faculdade. Nesta cidade, ou em qualquer outra que queiras escolher.

Maribeth fitava-os, absolutamente petrificada, enquanto John continuava o discurso de Liz.

- Conversei com o teu pai, e ele concordou que devias regressar agora a casa e terminar o liceu ainda este ano. Depois disso, estás livre para escolher o teu destino. Podes, inclusivamente, regressar aqui e ficar connosco. - John lançou um olhar à mulher, que concordou. Tinham decidido os três que, no futuro, anunciariam a Kate que Maribeth era uma amiga da família, mas não a sua mãe. Talvez um dia lho revelassem, depois de adulta, se mostrasse necessidade em conhecer a verdade. Mas, até lá, Maribeth não via nenhum motivo para lhe revelar a verdade, pois não desejava magoar ninguém, nem a filha, nem John e Liz. - Tens a continuação dos teus estudos garantida, Maribeth, o resto só depende de ti. 0 teu regresso a casa não vai ser fácil, o teu pai é um homem bastante difícil, mas julgo qué ele também pensou melhor na sua forma de agir. Ele sabe que cometeste um erro, mas, apesar de não poder afirmar-te que o perdoou, creio que o teu pai vai gostar de te ver regressar a casa. Talvez nos próximos meses, até saíres de casa para entrar na universidade, seja possível criar um ambiente diferente na tua família.

- Detesto a ideia de ter de regressar a casa - admitiu ela, enquanto Tommy vinha juntar-se a eles e se sentava ao lado dela, segurando-lhe a mão. Também ele odiava que Maribeth tivesse de os deixar, e já lhe prometera visitá-la tão assiduamente quanto possível, apesar de a distância ser ainda considerávél; mas ambos tinham consciêpcia de que seis meses não era nenhuma eternidade. Apesar de assim o parecer, pois, aos dezasseis anos, o tempo é quase infindável.

- Não queremos que te sintas obrigada a regressar - salientou Liz -, mas penso que chegou a hora de o fazeres, pela tua mãe, e também para te recompores de tudo quanto se passou na tua vida. - E, em seguida, Liz acrescentou aquilo que havia prometido a John nunca defender perante Maribeth: - Mas não creio que devas permanecer muito tempo em casa dos teus pais. Se o permitires, eles acabam por te enterrar viva. - Maribeth sorriu ao ver a exactidão de tal descrição; viver com os pais era que deixar-se afogar.

-Sei que eles vão tentar dominar-me, mas agora já pouco podem fazer, graças à vossa ajuda. - Maribeth colocou um braço em redor dos ombrós de Liz e abraçou-a, áinda sem conseguir acreditar naquilo qué se dispunham a fazer por ela; mas também havia feito bastante por eles. Enquanto conversavam, a bebé acordou e começou a chorar. Liz foi então directa ao berço e pegou-lhe, entregando-a depois a Tommy, enquanto Maribeth observava a cena. Havia ocasiões em que todos queriam pegar na menina, como se fosse uma pequena boneca que gostavam de admirar, de mimar e de acariciar. Era exactamente o que essa criança necessitava, e era também tudo quanto Maribeth lhe desejara proporcionar. Ao observá-los, ela estava certa de que Kate teria uma vida muito feliz e privilegiada, tal como sempre havia sonhado.

Tommy segurou-a durante algum tempo e depois decidiu entregá-la a Maribeth, que permaneceu alguns minutos hesitante, resolvendo por fim estender os braços e pe gar na filha. Esta, instintivamente, começou de imediato a procurar o peito da mãe, que continuava cheio do leite que a criança nunca chegara a provar. Maribeth sentiu o aroma doce e delicado da filha, perfumada com pó de talco, e entregou-a novamente a Tommy, sentindo-se consumida pela tristeza. Esperava, no entanto, que de futuro fosse mais fácil, quando a sua vida tivesse tomado outro rumo, e Kate lhe fosse menos próxima do que era no momento presente.

- Vou telefonar-lhes esta noite - anunciou então, referindo-se aos pais. Chegara à conclusão que tinha chegado a hora de regressar a casa. Necessitava de fazer as pa zes com a família, para depois ficar livre para prosseguir e construir a sua vida. Contudo, quando falou para casa, nada havia mudado. 0 pai continuava rude e agressivo, indagando se ela já ose tinha livrado daquilo" e se oresolvera o assunto".

- Sim, pai, já tive - É uma menina.

- Não estou interessado em saber. Já a entregaste aos pais adoptivos? - inquiriu abruptamente, enquanto Maribeth sentia transformar-se em cinzas todo o afecto que um dia dedicara ao pai.

- Sim, foi adoptada por um casal de amigos - respondeu com a voz trémula, parecendo muito mais adulta do que na realidade se sentia, agarrada à mão de Tommy. Não guardava quaisquer segredos dele, além de necessitar mais do que nunca do seu apoio. - Tenciono voltar para casa dentro de alguns dias... - Porém, ao fazer aquela afirmação, apertou ainda mais a mão de Tommy, incapaz de suportar a ideia de os abandonar a todos. De facto, era uma ideia extremamente dolorosa; de súbito, regressar para junto da sua família não lhe parecia certo; fazia um esforço para se recordar que seria apenas por pouco tempo. Foi então que o pai a surpreendeu.

- Eu e a tua mãe vamos buscar-te - anunciou rispidamente, deixando Maribeth estupefacta. Por que motivo se dariam a esse trabalho? Maribeth desconhecia que ha viam sido os pais de Tommy que haviam insistido muito a criança - informou friamente - nesse ponto, defendendo que ela não deveria fazer uma viagem sozinha logo após ter dado à luz um filho. E pela primeira vez na vida, a mãe de Maribeth fizera frente ao marido e implorara-lhe que fossem buscar a filha. -Iremos no próximo fim-de-semana, se não houver inconveniente.

- A Noelle pode vir também? - perguntou Maribeth, esperançosa.

- Veremos - respondeu o pai, sem revelar qual seria a sua intenção.

- Posso falar com a mãe? - 0 pai nada respondeu, mas passou de imediato o telefone à mãe, que rebentou em lágrimas mal ouviu a voz da filha. Quis saber se Mari beth se encontrava bem, se o parto havia sido muito dificil, se o bebé nascera bonito e se aparentava ter semelhanças com a mãe.

-É linda, mãe - respondeu Maribeth, enquanto Tommy limpava ternamente as lágrimas que caíam pelo rosto dela. - E mesmo muito bonita - repetiu. As duas ficaram algum tempo a chorar ao telefone, até Noelle interromper a conversa, mostrando-se ávida por ouvir de novo a irmã. A conversa que se seguiu foi apenas uma mistura de exclamações com uma troca informal de informação. Noelle ingressara no primeiro ano do liceu e mal podia esperar que a irmã regressasse para casa, mostrando-se particularmente impressionada pelo facto de Maribeth ir terminar em breve o curso de liceu. Talvez Liz estivesse certa, talvez ela devesse regressar para rever toda a família, por muito dificil que fosse a adaptação à vida em casa dos pais, depois de tudo quanto se passara. Quando Maribeth terminou por fim a chamada, informou Tommy que os pais tencionavam vir buscá-la no fim-de-semana seguinte.

Os dias que se seguiram passaram tão depressa como um relãmpago, à medida que Maribeth se recompunha e se preparava para partir. Liz pedira uma licença no empre go, a fim de poder tomar conta da bebé. Além de lhe dar o biberão, dar banho, e lavar inúmeras máquinas de roupa suja, parecia sobrarem sempre milhares de coisas para fazer. Maribeth sentia-se exausta apenas por observar tanta actividade, o que lhe confirmou que, se tivesse tomado a filha a seu cargo, teria ficado esmagada por tanto trabalho.

- Não seria capaz de fazer tudo isso - confessou com honestidade a Liz, espantada pela quantidade de tarefas por fazer.

- Se tivesses que o fazer, é claro que podias - respondeu Liz. - E, um dia, é isso o que vai acontecer, quando tiveres mais filhos - garantiu. - Quando a tua vida for diferente e menos complicada, quando tiveres ao teu lado o marido que escolheres e quando tiver chegado a altura certa. Então vais estar preparada para fazer tudo o que for preciso.

- Agora, ainda não estava - confirmou ela. Talvez se Tommy tivesse sido o pai, tudo se tivesse passado de uma outra forma. Mas teria sido muito pouco natural criar a fi lha de Paul e começar de uma forma tão errada. Ficou ainda a pensar se o teria conseguido, mas depois concluiu que já não precisava de continuar a alimentar essa dúvida. Tudo quanto tinha a fazer era renunciar à filha e partir; mas essa era a parte mais dificil. Pensar em deixar Tommy causava-lhe uma dor muito profunda, tal como a ideia de abandonar Liz e John, já para não mencionar a filha.

Maribeth chorava agora todos os dias com muita facilidade, e Tommy levava-a a passear sempre que saía da escola. Deram longos passeios e foram até ao lago, onde re cordaram, divertidos, a ocasião em que Tommy a fizera cair na água e descobrira que ela estava grávida. Foram também buscar ao cemitério a árvore de Natal que haviam levado a Annie; percorreram cada local como se tencionassem gravar para sempre nas suas memórias cada momento e cada dia que haviam passado juntos.

- Prometo-te que voltarei - garantiu Maribeth. Tommy fitou-a intensamente, desejando poder apressar ou atrasar o tempo; tudo era preferível a viver o terrível momento presente.

Se não voltares, vou atrás de ti. Ainda não terminou, Maribeth, nunca vai acabar nada entre nós. - E ambos acreditavam, de todo o coração, nessa promessa. 0 amor de ambos era um amor capaz de unir o presénte ao passado, tudo o que necessitavam era tempo para amadurecer. - Não quero que partas - confessou ele, olhando-a nos olhos.

-Também não quero deixar-te - murnmrou Maribeth. - Vou concorrer a esta universidade. - E a outras também, pois ainda não estava muito certa de como se sentiria tão próximo da filha. Mas também não queria perder Tommy. Era dificil prever o que o futuro guardaria para ambos; apenas podiam ter a certeza daquilo que já lhes havia sucedido, e que representava um bem precioso. - Irei visitar-te - jurou Tommy.

- Também virei ver-te - prometeu Maribeth, lutando pela centésima vez contra as lágrimas.

No entanto, o tão temido dia surgiu mais depressa do que esperavam. Os pais de Maribeth chegaram num novo carro que o pai havia arranjado na oficina. Noelle veio também, exibindo a sua indumentária nova com todo 0 nervosismo típico dos seus catorze anos. Maribeth chorou mal a viu e as duas irmãs abraçaram-se, aliviadas por se terem por fim reencontrado. Apesar de todas as modificações que aquela ausência provocara, para elas nada parecia haver mudado.

Os pais de Tommy convidaram toda a família para almoçar, mas os pais de Maribeth afirmaram ter de regressar sem demora. Margaret permanecia de olhos postos na fi lha, fitando-a com tristeza, lamentando todo o apoio que não pudera dar-lhe. Não tivera coragem para tanto, mas agora sentia-se envergonhada por ter existido alguém que o fizera por si.

-Estás bem? - interrogou cautelosamente a mãe, como se receasse até mesmo tocar-lhe.

- Estou bem, sim, mãe. - Maribeth estava muito bonita, e parecia subitamente bastante mais velha; em vez de dezasseis, dir-se-ia ter já dezoito anos. Tinha crescido, já não era mais uma menina, e sim uma mãe. -E a mãe, como está? - perguntou ela, então. A mãe começou de imediato a chorar, pois aquele era um reencontro bastante emocional. Margaret perguntou depois se podia conhecer a neta e, quando a viu, voltou a chorar, afirmando ser exactamente igual a Maribeth quando era pequena.

Colocaram as malas de Maribeth no carro, e esta permaneceu parada à porta, sentindo no estômago o peso de uma pedra. Voltou então para dentro, foi até ao quarto de Liz, pegou em Kate ao colo e embalou-a nos seus braços. A filha dormia tranquilamente, alheia a tudo quanto se passava, sem se aperceber de que algo muito importante estava prestes a abandonar a sua vida para nunca mais regressar da mesma forma, se é que haveria algum dia possibilidade de retorno. Maribeth sabia agora não existir na vida quaisquer garantias, mas apenas sonhos e promessas.

- Vou partir agora - sussurrou aos ouvidos do pequeno anjo adormecido. - Nunca te esqueças do quanto te amo - continuou, vendo a filha abrir os olhos e fitá-la com atenção, como se procurasse concentrar-se naquilo que Maribeth estava a dizer-Ihe. - Quando voltar, já não vou ser mais a tua mãe... nem sequer agora sou tua mãe. Sê uma boa menina... e toma conta do Tommy por mim - pediu, beijando a filha e cerrando as pálpebras. Esqueceu nesse momento tudo quanto afirmara acerca de não possuir nada para lhe oferecer e de não poder proporcionar-lhe a vida que ela merecia. No mais íntimo do seu ser e do seu coração, Kate seria sempre a sua filha, a quem sempre dedicaria todo o amor; e não existia espaço para a mais pequena dúvida. - Sempre te amarei - murmurou com os lábios a tocarem o cabelo macio da filha. Maribeth pousou-a então novamente no berço, relembrando que nunca mais se reencontrariam daquela forma, e também que nunca mais voltaria a estar tão próxima dela. Era o último momento que partilhavam como mãe e filha. - Amo-te muito... - repetiu, esbarrando com Tommy ao voltar-se.

Este estivera presente desde o início, observando-a enquanto chorava silenciosamente pelo sofrimento de Manbeth.

- Não és obrigada a abdicar da tua filha - armou Tommy, por entre as lágrimas. - Sempre quis casar contigo e ainda quero.

- Também eu quero. Amo-te. Mas sabes bem que é melhor assim. É o melhor para todos eles... e nós temos uma vida inteira à nossa frente - concluiu, abraçada a Tommy, estremecendo nos seus braços. - Céus, como te amo! Também a amo muito, mas eles merecem ser felizes. E o que poderia eu oferecer à Kate?

-Es uma pessoa maravilhosa - afirmou ele, segurando Maribeth com toda a força, desejando protegê-la de tudo quanto lhe havia sucedido e mantê-la para sempre nos seus braços.

- Tal como tu - respondeu ela. Depois saíram os dois lentamente do quarto, e Maribeth deixou para trás a sua filha. Sair daquela casa ao lado de Tommy consumiu quase toda a sua força, e tanto Liz como John choraram ao despedir-se de Maribeth, fazendo-a prometer que lhes telefonaria e que voltaria em breve para os visitar. Era também essa a sua vontade, apesar de recear ainda que o seu regresso os fizesse suspeitar que ela tencionava intrometer-se na vida de Kate. Contudo, Maribeth sentia uma enorme necessidade de voltar a vê-los, assim como a Tommy, uma necessidade muito maior do que eles podiam imaginar. E continuava a desejar construir um futuro ao lado de Tommy.

- Amo-te - afirmou Tommy impetuosamente, como se anunciasse a declaração final.

Conhecia todos os temores de Maribeth, todas as dúvidas e hesitações que esta possuía acerca de invadir as suas vidas, mas não estava disposto a desistir dela. Para Mari beth, saber isso era um grande consolo. Tinha a certeza de que, sempre que precisasse, podia contar com Tommy e, por enquanto, necessitava muito de todo o seu apoio.

Esperava igualmente sempre vir a precisar da sua ajuda, mas haviam aprendido a lição de que o futuro era incerto. Nada do que haviam desejado ou planeado resultara conforme o previsto. Nunca haviam adivinhado nem suspeitado que Annie os deixaria tão cedo, ou que Kate fosse surgir nas suas vidas ou ainda que Maribeth as cruzasse como um anjo de passagem. Ao certo, apenas sabiam que podiam contar com muito pouco.

- Amo-vos muito a todos - afirmou Maribeth, abraçando-os mais uma vez, sem forças para os deixar. Foi então que sentiu uma mão tocar-lhe suavemente no braço; era o seu pai.

-Vem, Maribeth, vamos para casa - pediu, com os olhos humedecidos. - Sentimos a tua falta - acrescentou, auxiliando-a a entrar no carro. Talvez afinal o pai não fosse o papão terrível que ela recordava, mas apenas um homem marcado pelas suas próprias fraquezas e visões distorcidas. Talvez, de um certo modo, todos tivessem amadurecido; talvez tivesse chegado o momento adequado para o poderem fazer.

Tommy e os pais ficaram a vê-la afastar-se, desejando que Maribeth regressasse, conscientes de que, se a vida lhes fosse propícia, ela voltaria, quer como visita quer para ficar para sempre. Sentiam uma enorme gratidão por a terem conhecido, pois tinham trocado dádivas preciosas, de amos, de vivência e de aprendizagem. Maribeth restituíra-lhes a vida em troca do futuro que eles Ihe haviam proporcionado.

-Amo-vos - sussurrou Maribeth, debruçada no vidro da janela traseira do carro do pai.

Tommy e os pais ficaram a vê-la acenar até perderem o carro de vista, pensando nela e recordando tudo quanto juntos haviam partilhado, até por fim voltarem para dentro de casa, para junto da dádiva que Maribeth lhes havia deixado.

 

                                                                                            Danielle Stell

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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