Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A DAMA DA MEIA NOITE
Castelo de Coverly, Inglaterra, janeiro de 1135
— Vamos lá, diga-me! Como é seu noivo? Acaso é bonito? — Claire perguntou a Júlia, sua melhor amiga e também prima distante. Sua voz estava impregnada com aquele tipo de curiosidade, bem própria da adolescência.
— Acho que sim... — Júlia respondeu, sacudindo os ombros sem demonstrar muito interesse pelo assunto. Aliás, parecia mais preocupada em pentear seu cabelo dourado. — Para quem prefere os morenos, não deve haver homem mais bonito — completou com uma ponta de ironia, mostrando que não estava nem um pouco impressionada com o futuro marido.
Claire olhou para a amiga, meneando a cabeça, inconformada com sua atitude fria.
— Ora, Júlia! Fala de seu noivo como se ele fosse um qualquer que seu pai escolheu a esmo, só para castigá-la! Seu noivo, porém, é um barão, muito rico e poderoso, respeitado por toda a corte!
Em vez de retrucar, Júlia fixou toda atenção em uma minúscula mancha de vinho na manga de seu vestido verde. Durante alguns segundos, agiu como se não existisse mais nada no mundo, além daquela desagradável nódoa escura. Então, de repente, como se tivesse acordado de um transe, voltou a agir de acordo com seu temperamento festivo e alegre, desatando a fita que prendia a extremidade de uma das tranças da prima.
Claire riu, tentando reaver a fita azul, enquanto a prima corria pelo quarto, como nos velhos e bons tempos de infância. Sem dúvida alguma, aquela era a Júlia que conhecia! E não gostava de vê-la taciturna e preocupada, como acontecera minutos atrás.
— E daí que ele é um barão? Esperava um conde para marido! — Júlia retomou a conversa com ares de superioridade e arrogância.
Claire arregalou os olhos, impressionada, não com as palavras, mas sim com a expressão da amiga. Como em um passe de mágica, aquele ar esnobe parecia destruir todo e qualquer sinal da incrível beleza de Júlia, transformando-a em uma pessoa desprovida de encantos. Aliás, não era a primeira vez que percebia esse efeito desagradável na aparência da prima. Porém, para não magoá-la, jamais lhe dissera uma palavra sobre isso.
— Do que está se queixando, afinal? Meu noivo, Haimo d Audemer, é apenas um cavaleiro do rei; sem considerar o fato de ser o segundo filho de um nobre, o que o priva de qualquer direito ao título e às propriedades do pai.
Alheia às palavras animadoras de Claire, ela continuou a enumerar os pontos negativos de seu casamento:
— O Castelo de Hawkswell não é nenhuma maravilha! Durante a semana que estive lá para as celebrações do noivado, pareceu-me um lugar excessivamente frio e misterioso. Não é como Tinchley! — Sacudiu os ombros, coberta de desânimo.
— Por que seu pai o escolheu para genro, enfim?
— Ora, Claire! Nem parece que vivemos no mesmo reino! Não ouviu dizer que o rei Henrique está morrendo? — ralhou, meio impaciente. — Caso sua filha Matilde suba ao trono, todos os nobres que lhe são leais estarão em condições privilegiadas!
— Bem sabe que não me interesso muito por política... — desculpou-se, com um sorriso pueril. Na verdade, ao contrário de Júlia, que adorava estar bem informada sobre os acontecimentos do reino, tinha horror às intrigas e disputas da corte, preferindo viver como se nada daquilo existisse.
— Enfim, como o barão de Hawkswell faz parte dos defensores da provável futura rainha, papai acertou esse casamento. Embora seja partidário de Estevão de Blois — Júlia concluiu a explicação com ar professoral.
Após um breve silêncio, Claire retomou a conversa:
— Não se preocupe com o Castelo de Hawkswell... Tenho certeza de que, em pouco tempo, irá modificá-lo ao seu gosto e torná-lo o mais elegante de toda Inglaterra!
Júlia enfim sorriu, mais animada.
— Espero que Haimo traga-me para visitá-la assim que nos casarmos. Se for preciso, irei implorar-lhe que me conceda esse favor!
— Humm! — Júlia protestou, tornando a ficar mal-humorada. — Não compreendo porque seu pai não irá trazê-la para meu casamento na primavera! Gostaria tanto que estivesse aqui comigo!
Claire suspirou, melancólica. Também era doloroso estar longe da amiga em um momento tão importante como aquele. Mas o que poderia fazer? Seu pai já decidira...
— Papai disse que estaremos muito próximos do meu casamento para viajarmos. Além disso, quer estar bem longe daqui quando o rei Henrique der seu último suspiro, deixando o trono para sua insuportável filha.
— Homens! — a prima redargüiu com desprezo. — Resolvem tudo sem se importarem com nossos desejos ou vontades!
As duas ficaram quietas por alguns minutos, perdidas em seus próprios pensamentos. Dessa vez, entretanto, foi Júlia quem quebrou o silêncio:
— Não faz idéia dos boatos que circulam na corte sobre o meu futuro marido... Fiquei horrorizada!
— Que boatos são esses?
Júlia fixou os olhos azuis em Claire, em busca de um pouco de conforto e esperança.
— Parece que lorde Hawkswell conquistou muitos corações na corte, tanto entre as servas quanto entre as damas... Dizem até que tem um filho bastardo, herança dos tempos em que era apenas um cavaleiro.
— Não pense nesses boatos... As pessoas adoram falar sobre a vida alheia, inventando estórias mirabolantes. Além do mais, muitos nobres solteiros têm filhos bastardos pelo mundo. — Esforçou-se, ao máximo, para aparentar uma calma que estava longe de sentir. No fundo, estava cada vez mais preocupada com o destino da amiga.
Uma risada amarga ecoou pela sala.
— Certamente que sim! Afinal, os homens controlam o mundo! Eles fazem o que querem, só restando às mulheres obedecê-los! Já se deu conta disso?
Claire baixou os olhos, constrangida. Sabia que Júlia dizia a verdade, mas pensar nisso não lhe seria de nenhuma ajuda. Pelo contrário, esses pensamentos a deixariam apenas triste e revoltada... Preferia preocupar-se com a felicidade que esperava encontrar em seu casamento.
Conhecia muito pouco o noivo. De fato, o vira apenas duas ou três vezes. Mas, como todos lhe diziam que o amor era fruto da convivência, tinha esperança de que ela e Haimo acabassem perdidamente apaixonados! Então, recriminando-se por aquele instante de egoísmo, quando a amiga precisava de sua ajuda, voltou a se concentrar nos problemas de Júlia.
— Não pense assim, querida! Mesmo que esses boatos sejam verídicos, esse comportamento de lorde Hawkswell é fruto da vida livre e despreocupada de um solteiro. Certamente, depois de desposá-la, ele mudará de conduta! — Exibiu um de seus sorrisos mais ternos e afetuosos. — Verá o quanto ele vai se apaixonar por você, amando-a e respeitando-a como sua esposa. Serão felizes juntos e terão muitos filhos, os legítimos herdeiros do Castelo de Hawkswell.
— Pode ser... — Júlia suspirou, desanimada, voltando a pentear o cabelo.
Castelo de Coverly, Inglaterra, maio de 1140
— Devia ter adivinhado que a encontraria aqui fora, Claire. Junto com os filhos dos servos...
Devido ao tom irritado, lady Claire percebeu que o irmão não estava nada satisfeito com aquela descoberta, mas isso não a surpreendia. Neville nunca escondera o ódio e o desprezo que sentia pelos ingleses que os serviam. De fato, não era exagero dizer que ele demonstrava mais afeto por seu falcão e cães de caça.
— Desculpem-me, crianças. Agora preciso me retirar — murmurou em inglês, à pequena dupla de cabelos loiros feito palha que a fitava com verdadeira adoração.
Depois, lançando um olhar significativo na direção de Neville, completou: — Há uma tempestade formando-se no horizonte.
Bran e Elga também fitaram lorde Neville com o canto dos olhos, tampando as bocas para não rirem.
— Pare de falar essa língua de bárbaros, Claire! — ordenou, ainda mais ríspido do que antes. — Se deseja perder seu tempo com os servos, seria melhor que os ensinassem a falar francês. Assim eles poderiam se comunicar conosco, seus mestres!
Decepcionada, Claire tornou a olhar para o irmão. O corpo alto e forte de Neville bloqueava o sol, lançando uma sombra gigantesca sobre ela e as crianças, que estavam sentadas na grama do pátio de Coverly.
— Na verdade, antes que se aproximasse, estava ensinando-lhes francês, milorde. — Esforçou-se para suprimir da voz qualquer sinal de reprovação. Não queria deixá-lo ainda mais zangado na presença das crianças.
A pobre Elga já estava toda encolhida, tremendo de medo, diante do semblante irado do lorde normando. Bran não reagia de forma diferente... Embora ainda fossem pequenos, os dois já tinham aprendido a cultivar o medo e a obediência ao senhor daquelas terras.
— Posso lhe assegurar que, muito antes do que imagina, estarão falando francês como se tivessem nascido nos arredores de Paris — Sorriu-lhe, tentando conquistar sua simpatia. — Não é isso o que deseja, milorde?
Neville recusou-se a responder, olhando ao redor, como se as crianças não existissem.
— Bem, pelo visto, acho que nossa conversa não poderá esperar até o fim de minha aula, não é? — Claire comentou, procurando adivinhar o que o irmão teria a lhe dizer com tanta urgência.
— É óbvio que não! — Seus olhos pareciam lançar pequenas labaredas de fogo, tamanha era sua fúria. — Estou muito descontente com sua insolência, irmã!
Ela permitiu-se alguns instantes de devaneio, deixando que sua mente a levasse para bem longe dali. Contudo, como não poderia fugir para sempre, voltou a enfrentar o irmão, antes que ele perdesse o pouco da paciência que lhe restava.
— Oh! Deve estar se referindo à minha recusa em casar-me novamente! Bem... bem... — Meneou a cabeça, tranqüila, fazendo questão de demonstrar que ele não a assustara, como fazia com as crianças inglesas. — Sinto muito se o desagrado, mas não posso fazer nada sobre isso, Neville.
— Deve-me obediência, Claire de Coverly!
— Tem razão, milorde. Contudo gostaria de lembrá-lo da promessa que me fez quando Haimo d Audemer morreu... Acaso, não se recorda? — Arqueou as sobrancelhas, assumindo uma posição desafiadora.
Meu Deus! Como havia mudado nos últimos anos! A jovem sonhadora, meiga e obediente havia dado lugar a uma mulher forte e decidida, que não tinha medo de lutar pelo que desejava!
Antes que Neville pudesse retrucar, voltou a atacá-lo:
— Casei-me uma vez para satisfazer os desejos e os interesses de minha família. Porém, no funeral de Haimo, você garantiu que jamais tornaria a me pedir isso. Pois bem, estou protegida por sua palavra. Ou será que não honra suas promessas?
Podia sentir os músculos do irmão contraindo-se de ódio, debaixo da máscara de frieza e superioridade que ostentava.
— Mas Haimo morreu sem lhe deixar dinheiro ou filhos! Dessa forma, acabamos não ganhando nada com esse casamento! — redargüiu, em tem acusador. Parecia culpar Claire pelo terrível acidente que matara o cunhado.
Haimo d Audemer quebrara o pescoço em uma queda de cavalo, morrendo no mesmo instante.
Ela sacudiu os ombros.
— Como já lhe disse, sinto muito, mas não posso ajudá-lo, Neville. Já cumpri minha parte no acordo e não pretendo me casar novamente apenas para satisfazer sua vontade. — Olhou de relance para as crianças. — Aliás se esse é o único assunto que tem a tratar comigo, ambos estamos perdendo tempo. É melhor eu voltar para os meus alunos...
— De fato, embora esse assunto não lhe agrade, precisamos falar um pouco mais sobre isso. Dispense esses pequenos bastardos!
Claire abriu a boca para protestar, dizendo-lhe que Elga e Bran eram filhos tão legítimos quanto ela e Neville. Porém, pensando no acesso de fúria do irmão, preferiu calar-se. Os meninos já estavam assustados demais para assistirem a uma cena deprimente daquelas.
— Brinquem um pouco no pátio, crianças. Continuaremos nossa aula mais tarde — comunicou-lhes, em inglês. — Então irei lhes contar a história de um poderoso dragão normando que foi castigado por um bravo cavaleiro da Inglaterra.
As crianças reprimiram o riso como da outra vez, mirando o "dragão", bem na frente de lady Claire. Depois saíram correndo pelo pátio, com Bran imitando os prováveis urros daquele animal tão fantástico, quanto assustador.
Claire quedou-se a observá-los, esquecendo-se, por alguns segundos, da presença do irmão. Por fim, retornando à realidade, ergueu-se do gramado e fitou Neville de Coverly.
— Estou ouvindo, milorde. Diga-me o que deseja! — De repente, percebeu que estava com o nariz empinado e os braços sobre o ventre, exatamente como o irmão.
Livrando-se daquela pose autoritária, acrescentou:
— Antes que comece, quero que fique bem claro que não vou desposar Fulk de Trouville! Um patife como esposo já é o bastante! Não quero repetir a dose!
— Não precisa ser Fulk — Neville argumentou, impaciente com a teimosia de Claire. — Há muitos outros nobres com os quais nosso tio gostaria de fazer alianças.
— Nosso tio! — ela protestou. — Pelo amor de Deus, Neville! Será que nunca vai aprender a andar com suas próprias pernas? Não consegue pensar em nada que não venha da cabeça de lorde Tresham?
Apenas quando terminou a última sílaba, Claire percebeu a tolice que acabara de fazer. Se havia uma coisa que Neville odiava era ter sua autoridade contestada.
Todas as vezes em que isso acontecia, ele agia como um tirano, fazendo com que suas ordens ganhassem o peso de leis e fossem cumpridas imediatamente a qualquer custo.
— Nosso tio, o conde d Evreux e duque de Tresham, é um homem muito importante, amigo íntimo do rei Estevão — Neville advertiu-a, entre os dentes. — Sempre considerei um ato de prudência seguir seus conselhos.
A resposta fora muito mais branda do que Claire esperava. O irmão parecia estar fazendo um esforço inacreditável para conter seus ímpetos de cólera.
Hum! Parece bom demais para ser verdade... O que será que ele está tramando?, pensou, desconfiada.
— Claire... — ele recomeçou, em tom muito gentil, quase carinhoso. — Se não pretende se casar, o que deseja fazer de sua vida? Certamente, não está pensando em viver apenas para ensinar um bando de servos ignorantes, não é? Deveria empregar seus talentos com os que merecessem.
— Obrigada, irmão! Estou boquiaberta com seu espírito caridoso! — replicou, áspera e irônica. — Para sua informação, sinto-me extremamente feliz e útil quando ensino algo a essas crianças. Aliás, eles não são bastardos, nem seres inferiores, como adora dizer!
Por um minuto, pensou que Neville fosse reagir violentamente, berrando-lhe desaforos ou ordenando que ficasse em seus aposentos, como se ainda fosse uma menina.
Contudo, outra vez, ele a surpreendeu, limitando-se a menear a cabeça para os lados, em sinal de descontentamento.
— Importo-me com essas crianças muito mais do que imagina! — ela declarou, sincera. — Elas significam mais para mim do que Haimo jamais significou. Ou até mesmo você... Junto delas, posso ser eu mesma, sem ter que violentar minha consciência para agradar os outros!
— Adora crianças, não é? — Neville enfatizou, atacando o ponta fraco da irmã. — É uma pena que não queira ter seus próprios filhos... Ainda é muito jovem, Claire. Se desposasse alguém, poderia ter uma dúzia de bebês. Será que nunca pensa nisso?
Claire desviou os olhos, a fim de que ele não percebesse o quanto isso machucava sua alma. Tinha a sensação de que um punhal estava cravado em seu peito, cada vez que pensava nesse assunto. Entretanto preferia nunca sentir o gosto da maternidade, a desposar outro nobre insensível e fanfarrão!
— Sim... Gostaria muito de ser mãe — admitiu, com voz fraca. — Mas somente se eu encontrar um homem a quem possa amar de verdade! Nem mesmo uma "dúzia de filhos", como você diz, vale o sacrifício de aturar outro Haimo em minha vida! Caso isso nunca aconteça, ficarei feliz cuidando dos filhos de outras pessoas.
Embora aparentasse determinação e confiança, Claire sabia que não teria escolha, se Neville realmente quisesse forçá-la a se casar. A menos, é claro, que entrasse para um convento. Porém, apesar de desiludida com os homens e o amor, não tinha vocação para ser freira.
— Ora, vamos entrar, Claire. Tio Hardouin pode explicar-lhe outras maneiras de ser útil a nossa família, assim como a nosso rei.
Ela empalideceu, sentindo o coração parar por alguns segundos.
— Outras maneiras?! Sobre o que está falando, milorde?
Neville a encarou, impassível.
— Acredito que nosso tio deseja dizer-lhe tudo pessoalmente. — Girando nos calcanhares, seguiu para o interior do castelo, fazendo sinal para que ela o acompanhasse.
Claire respirou fundo, em uma tentativa de manter o auto-controle. Alguns minutos se passaram e continuou em pé, imóvel, no meio do pátio. Entretanto, pouco a pouco, a curiosidade foi minando sua teimosia, até que não conseguiu mais se controlar e correu atrás do irmão. Precisava saber o que Hardouin d Evreux estava planejando para ela. O tio não mencionara uma só palavra sobre isso, quando chegara ao castelo, no início da manhã.
Com passos rápidos, alcançou Neville, que parecia ter perdido a língua de tão silencioso.
Enquanto cruzava o imenso pátio interno do castelo, Claire ainda achou um modo de esquecer temporariamente todas aquelas preocupações.
Uma das lavadeiras estava flertando com um arqueiro.
Pareciam tão apaixonados, que um casamento não tardaria a acontecer no povoado que cercava o Castelo de Coverly. O arqueiro era um bom homem, do tipo que não precisava espancar a esposa para conquistar seu respeito...
— Ah! — suspirou, em tom quase inaudível. Será que algum dia encontraria um homem que a amasse daquele modo simples e verdadeiro?
Enquanto os pensamentos a conduziam para um mundo de sonhos, adentrou o castelo, subindo dois andares da imensa escada espiral que dava acesso aos aposentos principais. Sim, pois nenhum quarto seria bom o suficiente para Hardouin d Evreux, a não ser o do próprio senhor de Coverly!
Nessas ocasiões, Neville cedia seus aposentos, sem um murmúrio sequer. No entanto Claire sentia que isso o desagradava profundamente.
Parando diante da pesada porta de carvalho com o brasão da família entalhado bem no centro, Neville sorriu, sarcástico. Não era nem um pouco agradável ter que bater na porta, antes de entrar em seu próprio quarto.
— Quem é? — uma voz inflexível e autoritária indagou, do outro lado.
— É Neville, tio. Trouxe Claire para vê-lo.
— Entrem.
Os irmãos obedeceram, como se ainda fossem crianças.
Lá dentro, a escuridão reinava quase absoluta. Todas as janelas estavam fechadas e somente uma vela grossa iluminava o quarto.
Assim que se acostumou à penumbra, Claire conseguiu distinguir a figura imponente e majestosa do tio.
Sentado em uma poltrona perto da lareira, que estava apagada, lorde Hardouin acompanhava cada gesto da sobrinha. Dava a impressão de que podia adivinhar-lhe os pensamentos mais secretos, tão intenso e penetrante era seu olhar.
— Aproximem-se — disse, em tom imperioso, fazendo sinal para que também se sentassem.
Claire ocupou uma cadeira mais afastada, deixando que Neville ficasse entre ela e o tio. Embora não confiasse muito no irmão, tinha menos confiança ainda em lorde Hardouin, conde d Evreux e duque de Tresham.
— Por favor, tio, desculpe os trajes informais de minha irmã... — Neville falou, cauteloso, quebrando o silêncio aterrador que tomara conta do aposento. — Claire estava no pátio, com algumas crianças plebéias, e achei melhor não fazê-lo esperar até que ela trocasse de roupa. Aliás, acho deplorável que minha irmã se misture com esse tipo de gente, mas...
— A menos que tenha algo útil a dizer, fique em silêncio, sobrinho! — Hardouin o interrompeu, sem o menor constrangimento. Então, voltando-se para Claire, entrou no assunto, de forma direta e incisiva: — Neville contou-me que rejeitou o barão que ele havia arranjado para desposá-la.
Com um gesto involuntário, ela apertou uma dobra do vestido entre os dedos, tentando conter o nervosismo que ameaçava turvar-lhe o raciocínio. Mais do que nunca, precisava ficar bem atenta às palavras e propostas do tio, famoso por sua astúcia de raposa.
De alguma forma, a Igreja e o Estado deveriam formular alguma lei que garantisse às viúvas o direito de continuarem como tal. Porém isso não passava de um sonho impossível e distante! Homens poderosos como Hardouin d Evreux, sempre arranjariam um jeito de obrigar as mulheres da família a fazerem exatamente o que desejavam.
Um espasmo de pavor sacudiu-lhe o corpo, enquanto histórias terríveis dominavam-lhe a mente, aos borbotões. Ouvira muitos relatos sobre garotas, ainda mal saídas da infância, obrigadas a desposar tipos cruéis e odiosos; ou então senhoras de meia-idade que tiveram que unir-se a jovens violentos e pródigos. Tudo para satisfazer os interesses de parentes poderosos e desumanos.
Sentia-se entre a cruz e a espada, sem ter para onde fugir, ou a quem pedir ajuda. De repente, a segurança de um convento pareceu-lhe uma alternativa muito melhor do que ter que se submeter aos caprichos de um homem como Fulk de Trouville. Contudo restava-lhe saber se ainda poderia fazer essa escolha...
— Por favor, milorde... — começou a se explicar, com voz trêmula. Mas, à medida em que falava, ia ganhando mais e mais coragem. — Quero que compreenda que não sou contrária a casamentos. Espero tornar a me casar algum dia... Só não quero ter como marido o barão de Trouville.
Os dois homens continuaram quietos e imóveis, forçando-a a expor todos os seus argumentos.
— Fulk é cruel é sangüinário! Dizem até que gosta de torturar pessoas inocentes... Não posso viver ao lado de alguém assim, tio! — encerrou seu discurso, em uma súplica comovente. Sabia que Hardouin gostava de mulheres meigas e frágeis e, se isso fosse suficiente para afastá-la de um casamento indesejável, seria a moça mais cândida sobre a Terra.
— Oh! Não vim aqui para discutir sua falta de interesse no barão de Trouville — o tio redargüiu, irônico. — Ele é um tolo que traria poucas vantagens para nosso família. Aliás, se nunca mais quiser se casar, respeitarei sua vontade, sobrinha.
Claire jogou a cabeça para trás, como se tivesse levado um tapa no rosto. Aquele excesso de compaixão não combinava com Neville e muito menos com o tio. Por alguns segundos, chegou até a questionar sua capacidade de audição; mas logo certificou-se de que estava ouvindo muito bem. Em seguida, dúvidas atrozes passaram a torturá-la...
Que planos torpes o conde teria em mente para sua sobrinha? Será que chegaria ao ponto de propor-lhe como marido alguém pior do que Fulk de Trouville?
Percebendo os temores de Claire, Hardouin adiantou-se:
— Vejo que está desconfiada... Mas, não há motivo para isso. — Fez uma pausa, voltando-se para um queijo enorme, sobre uma mesa lateral. Cortou uma fatia, saboreando-a lentamente, sem oferecer nem uma isca aos sobrinhos. — Quero apenas lhe sugerir uma maneira de ajudar nossa família e o rei Estevão, sem que precise se casar com ninguém... — comunicou por fim, cravando os olhos impiedosos no rosto aflito de Claire.
Ela queria pedir-lhe mais explicações, todavia estava muda de espanto e medo.
— O que tenho a lhe propor irá exigir toda sua inteligência e perseverança, qualidades que seu irmão, que não enxerga um palmo à frente do nariz, não se cansa de queixar-se que você possui.
Neville abriu a boca para protestar, com os punhos cerrados de ódio. Todavia, antes que proferisse a primeira sílaba, Hardouin fez um gesto com a mão, ordenando-lhe silêncio.
— Deseja que eu faça algo para ajudar a causa do rei Estevão? — Claire perguntou, tentando pôr ordem em seus pensamentos. — E isso não tem relação com alianças através de casamentos?
A garganta estava seca e o coração batia descompassado, tamanha era sua aflição. De alguma forma, pressentia que um círculo se fechava ao seu redor, empurrando-a diretamente para uma armadilha. Será que poderia esperar um pouco de demência daqueles homens insensíveis?
— Vejo que compreendeu exatamente o teor de minhas palavras, Claire — Hardouin declarou, satisfeito. — Aliás se aceitar minha proposta, também terá uma ótima recompensa. Não apenas lhe darei uma propriedade, como também, uma grande soma, capaz de garantir sua independência até o fim da vida, sem que precise de um marido. Ou, se preferir, poderá se casar com alguém de sua escolha; contanto que não seja inimigo de nossa família.
Ela deu um beliscão discreto no braço, para ter certeza de que estava acordada. Em seguida, mantendo a voz e o semblante tranqüilos, do mesmo modo que seu tio fazia, resolveu examinar melhor aquele terreno pantanoso para onde estava sendo conduzida.
— Como espera que eu empregue minha "inteligência e perseverança" a serviço do rei, milorde?
Hardouin saboreou mais um pedaço de queijo antes de dar a resposta. Tudo isso fazia parte de sua técnica ardilosa para minar a confiança da sobrinha, deixando-a frágil e desesperada; assim ela não teria meios de escapar de suas garras.
— Estou me referindo à sua grande fluência na língua inglesa, bem como à afinidade que possui com os camponeses e seu modo de vida rústico. — Levantou-se da poltrona, alisando o longo cabelo dourado de Claire.
Mesmo sem entender aonde ele pretendia chegar com aquela conversa, ela estremeceu.
— Vê, com esse cabelo loiro e os olhos azuis, pode passar tranqüilamente por uma mulher inglesa.
— E por que eu deveria fazer isso, tio?
— É uma mulher perspicaz, Claire. Sabe como ter a aparência que melhor lhe convém no momento adequado. Exatamente como está fazendo agora...
— Do que está falando, milorde? — resolveu fingir-se de desentendida.
— Entrou nesse quarto com o firme propósito de refutar toda e qualquer pressão para desposar o barão de Trouville. Todavia, sabendo que não poderia enfrentar-me abertamente, assumiu uma postura meiga e frágil para tentar me manipular.
Claire engoliu em seco, apavorada. Sua máscara havia caído na frente de todos, dando-lhe uma incômoda sensação de nudez.
— Isso pode funcionar com Neville e muitas outras pessoas, mas jamais surtirá efeito sobre mim. — O conde lançou um olhar desconcertante, beirando o desprezo, para o sobrinho. Logo voltou a se concentrar na moça.
— Gosto de me considerar um estudioso da alma humana, Claire. Sempre estou atente aos mínimos detalhes do comportamento daqueles que me cercam. Portanto posso ver sua verdadeira natureza por debaixo dessa falsa candura!
— Desculpe-me, tio... Não tinha a intenção de... — balbuciou, sem saber ao certo o que dizer.
Ele a interrompeu com uma risada maliciosa.
— Ora, menina, não se preocupe! Admiro essa sua qualidade!
Claire buscou os olhos do irmão, ansiosa por respostas. Mas logo percebeu que ele compartilhava de sua perplexidade. Neville também não tinha a menor idéia sobre o teor dos planos do tio.
Como Hardouin pudera enxergar sua verdadeira personalidade? Estava certa de que agira com todo o cuidado para parecer obediente, assim que atravessara a porta daquele quarto. A menos que ele tivesse visto, pela janela, sua discussão com Neville no pátio do castelo... Ou então, pior... Poderia ter espiões em Coverly, vigiando cada passo de seus sobrinhos.
"Minha nossa, isso é horrível!", concluiu, chocada com aquela possibilidade, nada remota, diga-se de passagem.
O conde d Evreux era famoso por saber tudo sobre todos, o que se devia tanto ao seu grande poder de observação, quanto a uma discreta e poderosa rede de espiões, espalhada por toda a Europa.
Sentindo que já havia brincado demais com os nervos da sobrinha, Hardouin decidiu acabar de uma vez com o suspense.
— Quero que use suas habilidades, passando-se por uma inglesa, a fim de se aproximar do barão de Hawkswell.
Ao ouvir aquele nome, Claire quase desfaleceu, lembrando-se de sua pobre prima Júlia.
— Pensei que ele fosse leal à imperatriz Matilde — limitou-se a dizer.
— Bem, minha cara sobrinha, acha que precisaria de sua ajuda para chegar perto de alguém sob os domínios de Estevão? — redargüiu, sarcástico.
Certamente que não!, Claire respondeu mentalmente. De súbito, como uma flecha, uma idéia infame passou-lhe pela cabeça...
— Milorde, não espera que eu me preste a nenhum papel indecoroso, não é mesmo? — Colou os olhos no chão, enquanto o rubor tingia sua face de vermelho. — Não está sugerindo que eu compartilhe da cama de lorde Hawkswell, para espioná-lo?
Hardouin riu maldosamente da ingenuidade da sobrinha.
— Isso jamais passou por minha cabeça! Segundo o que Neville me contou a seu respeito, fazê-la passar por amante de lorde Hawkswell seria desastroso e inútil! Parece que não tem nenhum interesse em compartilhar a cama com mais ninguém, não é, Claire?
Ela aprumou os ombros e ergueu o nariz, cobrindo-se de dignidade. Contudo sentia uma dor lancinante na alma, que esmagava seus sentimentos sem misericórdia.
Com os olhos cheios de lágrimas, virou-se para Neville, em busca de alguma explicação para aquele comentário maldoso. Todavia, subitamente, o irmão desenvolvera um interesse gigantesco por suas luvas, de onde não desgrudava os olhos. Percebendo que seria impossível inquiri-lo, tratou de enxugar o rosto e encarar o tio.
— Se não sirvo para amante de lorde Hawkswell, de que maneira espera que eu me aproxime dele? E qual seria a finalidade disso?
Um brilho de satisfação iluminou os olhos de Hardouin. Divertia-se com os lampejos de astúcia, em meio à ingenuidade de Claire. Talvez, se ela não tivesse tantos escrúpulos, pudesse transformá-la em uma grande discípula...
— O barão de Hawkswell controla todo o vale ao sul de Londres. É um guerreiro incansável e temido, a serviço de Matilde. Aliás, é um de seus mais fiéis vassalos. Já tentamos de tudo, porém não conseguimos fazê-lo passar para o lado de Estevão.
— Enfim, um homem de honra! — Claire exclamou com ironia. — Que raridade!
Hardouin arqueou uma das sobrancelhas, em evidente desagrado. Contudo prosseguiu:
— Estevão quer dominá-lo!
— Então planeja emboscar lorde Hawkswell, fora de suas terras — Claire completou, sagaz. — Mas, o que eu tenho a ver com tudo isso?
Ignorando o sarcasmo da sobrinha, Hardouin limitou-se a responder:
— Está enganada, Claire. Não disse que Estevão planeja capturá-lo. Simplesmente queremos que ele passe a defender nossa causa, rejeitando a imperatriz Matilde.
Ela franziu a testa, cada vez mais confusa.
— E qual seria o meu papel nessa trama? Ele é viúvo, mas, logo no início, disse-me que esse plano não envolvia casamento. Também não espera que eu o seduza... Então, o que quer de mim?
— Claire... Claire... Está menosprezando suas qualidades ao considerar apenas essas duas hipóteses — o tio comentou, jocoso. — Elaborei um esquema complexo, baseado em sua aparência inglesa e seu grande talento para dissimulação.
Tinha que concordar quanto à aparência. Enquanto os normandos, em geral, tinham olhos e cabelos escuros, ela era loira e clara como os saxões. Costumavam dizer-lhe que era a cópia exata da avó saxã.
Andando de um lado para outro da sala, o conde voltou a explicar seu plano:
— A esposa do barão deu à luz uma criança, uma menina, para ser correto, antes de morrer de febre no ano passado. Ele também possui um filho ilegítimo, que vive em Hawkswell. — Deu um sorriso vitorioso. — Pelos rumores, parece que é um pai muito devotado... Portanto esse é o ponto fraco de lorde Alain!
— Sinto dizer, milorde... Mas continuo sem entender o que espera de mim.
Hardouin voltou-se para encará-la.
— O que desejo de você, sobrinha, é que vá para o Castelo de Hawkswell, como uma simples moça inglesa, e consiga tornar-se a preceptora dessas crianças.
Claire ficou pasma. Havia subestimado seu poderoso tio...
— Quer que eu faça às vezes de espiã? — Sua voz agora deixava transparecer o nervosismo que lhe corroía as entranhas. — Francamente, meu tio, acha que ele deixaria escapar segredos de estado na frente de uma criada?
— Mas é óbvio que não! — retrucou, enfático. — Tenho outros planos para você. Assim que conquistar uma posição de confiança junto a lorde Hawkswell, quero que rapte seus filhos e os traga para mim! Certamente, ele passará para nosso lado, se as crianças estiverem em perigo!
— Quer... Quer... que eu rapte as crianças? — em estado de choque, Claire gaguejou, e Hardouin abriu um largo sorriso.
— Isso mesmo, minha sobrinha! Não é um plano brilhante? — Ignorando o espanto e a repulsa no rosto dela, prosseguiu: — Quem iria suspeitar de uma simples serva?
— Mas... tio — o jovem lorde Coverly protestou, tão estarrecido com aquele golpe quanto a irmã.
— Cale-se, Neville. Está parecendo um idiota! — Olhou para Claire, como se estivesse diante de uma mina de ouro.
— Assim que ganhar a confiança deles, invente uma desculpa e saia do castelo com as crianças. Estarei esperando, ansioso, para pôr as mãos nos filhos de lorde Hawkswell!
— Milorde, o que o leva a crer que conseguirei me infiltrar no castelo dos inimigos? — questionou, confusa e atormentada por montes de dúvidas.
— O quê? Está se opondo ao meu plano, Claire? Pensei que gostaria de vingar a morte de Júlia. Não eram tão amigas?
Decididamente, Hardouin sabia como abordar uma pessoa, atacando seus pontos fracos. Sem dúvida, esse era o único motivo capaz de fazê-la tomar parte de um plano sórdido como aquele! Mas, embora odiasse Alain de Hawkswell por tudo o que fizera a Júlia, a idéia de raptar crianças inocentes era repulsiva!
— E se eu me recusar a fazer parte desse estratagema?
Hardouin arregalou os olhos, surpreso com a ousadia daquela jovem.
— Então, minha cara, acho melhor ir se acostumando com a idéia de ser esposa de Fulk de Trouville.
— Mas, disse que não iria me obrigar a aceitá-lo como marido... — lembrou, aludindo ao início daquela conversa. — Também falou que respeitaria meu desejo de não voltar a me casar! — A indignação e a revolta alastravam-se por seu corpo rapidamente, como se fossem um veneno poderoso, destruindo todos os seus sonhos e esperanças...
— De fato, disse isso, Claire. Contudo não tenho a menor paciência com pessoas improdutivas! — Sua voz era fria e cortante como a lâmina de uma espada. — Se não quer prestar auxilio à sua família, o mínimo que espero é que se case e deixe de ser um fardo para nós!
Seu rosto ficou vermelho de raiva e humilhação. Ser considerada "um fardo" era extremamente desagradável! Reprimindo o choro, que ameaçava vir à tona a qualquer instante, resolveu enfrentar o tio. Nada poderia piorar sua situação... Ao menos, era o que pensava...
— Acredito que ainda me resta a escolha de tornar-me freira — exclamou, decidida a cumprir aquela promessa, se eles não a deixassem em paz. Até mesmo entrar para um convento era preferível, a render-se aos caprichos de Hardouin d Evreux.
— Duvido que isso aconteça! — ele devolveu-lhe o desafio. — Nenhum convento da Europa irá aceitá-la se eu for contra.
Não havia dúvidas de que Hardouin conseguiria fazer com que isso acontecesse. Sem dote para entregar a qualquer ordem religiosa, que abadessa iria cometer a loucura de recebê-la, contrariando a vontade de um parente poderoso?
Ao mesmo tempo, uma voz ganhava força em seu interior... Será que não devia fazer algo para vingar a memória de Júlia?
O silêncio tomou conta do quarto, enquanto ela enfrentava uma verdadeira guerra interior para chegar a uma conclusão. Neville não se arriscava a abrir a boca, agindo como se não estivesse presente. Quanto ao conde d Evreux, aguardava com paciência, confiante de que a sobrinha havia caído em sua armadilha.
— Como pode saber que serei aceita como ama? — disse, por fim, já quase aceitando participar daquele plano. — As crianças já devem ter quem cuide delas.
— De fato, meus espiões apuraram que há apenas uma mulher responsável pelos filhos do barão. E, como já é uma senhora idosa, deverá ficar aliviada por receber ajuda.
— Que conveniente! — Claire declarou em tom ácido! Era impressionante a capacidade que Hardouin tinha para avaliar um problema por todos os ângulos! — Bem, voltando ao nosso trato. Se concordar com esse plano, ficarei livre, assim que lhe entregar as crianças?
Ele fez um sinal afirmativo.
— Nesse caso, poderia dar-me a escritura das terras que irei receber?
— Quanta desconfiança, minha menina!
Claire o fuzilou com os olhos.
— É bom ser previdente, não acha, tio? Assim posso evitar surpresas desagradáveis.
— Se é uma garantia por escrito que deseja, já pode se considerar uma mulher de posses, livre como um pássaro!
Não poderia haver comparação mais infeliz. A poucos metros de Hardouin, estava a gaiola de ouro, com seu falcão peregrino.
Claire contemplou a ave majestosa, que trazia uma corrente de ouro presa aos pés. Não pôde deixar de se comparar àquele falcão. Afinal, mesmo ganhando uma propriedade, continuaria à mercê das vontades da família, como se estivesse presa em uma gaiola. E, do mesmo modo que aquela ave só era solta quando Hardouin queria que caçasse, Claire também seria forçada a se curvar aos desejos do tio, quantas vezes ele precisasse de sua ajuda.
Contudo, ao contrário do falcão, posso pensar em algo para me libertar do julgo de meu tio!, concluiu, vendo nascer uma esperança. E, dentro desse contexto, ter suas próprias terras, iria melhorar bastante sua situação.
O castelo de Alain de Hawkswell ficava a um dia de viagem da propriedade de lorde Coverly. Situado na entrada do vale que levava a Londres, às margens do rio Hawkswell, esse castelo era uma grande fortaleza. Graças à localização privilegiada e às muralhas sólidas, ninguém poderia atravessar o vale, sem a autorização do poderoso senhor desse feudo.
Escondida entre as árvores do bosque, a oeste do castelo, Claire pensava na melhor maneira de entrar naquela fortaleza. O plano de seu tio podia ser brilhante, como ele mesmo gostava de gabar-se, no entanto havia deixado esses "meros detalhes" a cargo da sobrinha.
Sentiu um frio na espinha, ao lembrar que estava totalmente a sós naquele bosque, agora que os soldados de Coverly, devidamente disfarçados de camponeses, já haviam se afastado. Para uma mulher, não era nada seguro vagar desacompanhada pelos feudos, ainda mais quando faltavam poucas horas para o cair da noite.
De repente, algo caiu bem em cima de seu nariz, tirando-a daquele estado de concentração absoluta.
Assustada, olhou para a copa das árvores, sem avistar nada suspeito.
Deve ter sido um esquilo, pensou, tranqüilizando-se. Já havia muitas coisas sérias e perigosas com que se preocupar, além dos pequenos animais silvestres da floresta.
Ajeitou, o melhor que pôde, seu vestido de lã rústica, torcendo para que pudesse realmente iludir lorde Hawkswell e seus seguidores de que era inglesa. Caso contrário, estaria perdida!
Não demorou muito e outra semente caiu-lhe sobre o rosto. Com o dobro de atenção, vasculhou os galhos e ramos das árvores, em busca de alguma pista. Era coincidência demais que um simples esquilo pudesse acertá-la no mesmo ponto, duas vezes seguidas!
Então um riso abafado de criança denunciou aquele arteiro. Lembrando-se, em tempo, de que deveria passar por uma serva inglesa, falou:
— Pelo bom Deus! Quem está aí em cima?
Outro riso, dessa vez um pouco mais alto, veio do meio das folhagens. Não tardou e um rostinho moreno, com olhos escuros e vivos, tornou-se visível.
— Desculpe... — uma menina disse, em inglês com sotaque afrancesado, olhando fixamente para Claire. — Espero não tê-la machucado!
A criança parecia tão ansiosa, que Claire sentiu-se impelida a acalmá-la.
— Não me machucou, menina. — Sorrindo, acrescentou, bem-humorada: — Ainda bem que meu nariz é forte!
A menina riu a valer, pendurada no alto de uma das árvores.
— O que está fazendo aí? — Claire indagou ao acaso. A cautela lhe dizia que precisava concentrar todos os seus esforços encontrando um meio de entrar no castelo.
— Estou me escondendo — a pequena replicou, com seriedade.
— De quem?
— De Ivy, minha velha ama. Ela quer me dar um banho, mas eu não estou com vontade. Por isso resolvi me esconder na floresta. Quando eu voltar, ela já terá se esquecido dessa história de banho. — Cheia de determinação, até mesmo para um adulto, a menina perguntou: — Qual é o seu nome?
— Haesel — Claire disse, usando o nome falso tipicamente inglês que escolhera ainda no Castelo de Coverly. — E o seu? — retribuiu a pergunta, embora tivesse uma ligeira intuição sobre a identidade da criança.
— Sou lady Peronelle, a única filha do barão de Hawkswell — anunciou, solene, ensaiando uma mesura, que quase a fez cair da árvore.
— Oh! Cuidado, milady! Segure-se bem firme! — Claire gritou, alarmada. — Talvez seja melhor descer daí.
— Não se preocupe, nunca caí — Peronelle acrescentou, após ter se ajeitado sobre o galho. — Mesmo assim, vou descer, porque quero conhecê-la. Parece muito bonita daqui de cima.
Claire observou a menina deslizar pelo tronco da árvore, pronta para segurá-la, se fosse preciso. Porém a pequena Peronelle demonstrou ter a agilidade de um esquilo, tal era a segurança e a rapidez com que se movimentava por entre os galhos.
Parece que a sorte estava à favor de Claire. Mesmo sem querer, acabara conhecendo exatamente um dos filhos de lorde Hawkswell, ou como Hardouin gostava de se referir a eles: um dos seus "objetivos". Reprimiu sua consciência culpada, repetindo mentalmente a mesma desculpa que passara a recitar nos últimos dias.
Não vou fazer nenhum mal às crianças. Ao contrário, vou cuidar para que ninguém as machuque até que sejam devolvidas, sãs e salvas, ao pai.
Peronelle endireitou-se, ajeitando sua roupa bastante suja, devido a tantas estripulias. Então fitou Claire demoradamente.
— Nossa! Como você é alta!
— De fato, milady. Meu irmão costumava chamar-me de vareta, quando éramos crianças. — Até agora não dissera nenhuma mentira, pois aquele era um dos inúmeros apelidos infames com os quais Neville gostava de provocá-la na infância.
— Vareta? — Aquele apelido fez com que Peronelle caísse na risada novamente.
Deixando-se contagiar pelo bom humor da criança, Claire surpreendeu-se sorrindo para ela.
— Fala muito bem inglês, milady.
— Obrigada — Peronelle respondeu, sentando-se perto daquela desconhecida. — Minha ama é inglesa.
Claire sentiu o sangue gelar nas veias. Nunca fora capaz de enganar uma mulher inglesa sobre sua origem normanda! Porém, à essa altura, não havia mais como desistir. Teria que tentar...
Pensando bem, se uma criança tão pequena quanto Peronelle havia conseguido fugir da ama, talvez essa mulher não fosse tão atenta ou esperta como deveria...
Sé lhe restava torcer para que isso fosse verdade!
— Gostaria de ir comigo até o castelo e conhecer Ivy? — a menina convidou, apontando para a gigantesca construção de pedra à sua frente.
Mal cabendo em si de felicidade, Claire fez um gesto afirmativo.
— Seu pai não vai ficar zanga...
— Então está aqui, Perry! — uma voz forte, mas igualmente infantil, ecoou pela clareira, interrompendo a pergunta de Claire. — Estive procurando você por toda parte!
Ao se deparar com a desconhecida, que acompanhava a irmã, o garoto ficou perplexo, examinando-a de alto a baixo.
— Quem é essa mulher, Perry? — indagou, falando apenas em francês.
Por sua vez, Claire também o observou com atenção. Não devia ter mais do que seis anos, era forte e moreno como a menina.
— Quem é você? — ele quis saber, desconfiado. — Como se atreve a falar com minha irmã?
Novamente, suas suspeitas se confirmaram. Aquele era o outro filho de lorde Hawkswell, o pequeno bastardo que partira o coração de Júlia.
Será que saiu parecido com o pai ou com a mãe?, essa dúvida instigou sua curiosidade. Nunca vira Alain de Hawkswell. Apenas os parentes mais próximos haviam comparecido ao casamento da prima, e, nas poucas cartas que lhe enviara, Júlia jamais descrevera o homem que seu pai a obrigara a desposar.
— Quem é você, mulher? — o menino repetiu a questão, com um olhar desafiador.
— Também quero saber o mesmo sobre você, garoto — retrucou, veemente, esquecendo-se de que deveria agir como uma serva.
— Perguntei primeiro! — Voltando-se para a irmã, ralhou em francês: — Peronelle, quantas vezes tenho que lhe dizer para não falar com estranhos, ou vir sozinha até a floresta? Pode ser atacada por foras-da-lei! — Olhou de relance para Claire.
— Haesel não é uma fora-da-lei! — a menina apressou-se a defender a recém-conhecida. — Ela é amável e simpática! Aliás, quero que volte conosco para o castelo!
— O quê? — Apreensivo com aquela idéia, ele tornou a fitar Claire, de modo ainda mais desconfiado.
— E por que não? — Peronelle redargüiu, determinada.
— Quero que ela conheça Ivy e isso é tudo, Guerin! — Virou-se para Claire, falando em inglês: — Haesel, este é meu irmão Guerin. Tenho certeza de que ele não tinha a intenção de ser grosseiro com você.
Se pretendia conquistar a confiança de ambos os filhos do barão, era melhor começar o quanto antes. De outra forma, corria o risco de ser rejeitada pelo menino.
— Milady, ele só estava querendo protegê-la como todo irmão mais velho deve fazer! — disse, defendendo a posição do menino. — Pode haver gente má perambulando pelos arredores do castelo. Por isso não deveria andar por aí, sem ninguém para lhe socorrer em caso de necessidade.
Dirigindo-se ao menino, fez-lhe uma reverência, respeitosa.
— É filho do lorde Hawkswell, não é? Sinto-me honrada em conhecê-lo.
— Sou Guerin de Hawkswell — apresentou-se, começando a simpatizar com Claire. — Seu nome é Haesel?
— Isso mesmo, milorde.
— Bem, pode vir conosco, se quiser. Preciso levar minha irmã de volta ao castelo antes que comece a chover. Papai está para chegar e Ivy tem medo de que ele se zangue, se Perry ainda não tiver voltado.
Então Alain de Hawkswell trata a ama de seus filhos com a mesma crueldade que dispensou à esposa? Ele não passa de mais um tirano, sem coração, exatamente como eu o havia imaginado...
Nem terminara de concluir aquele pensamento, Peronelle contestou o irmão:
— Ora, Guerin, deve estar mais preocupado do que Ivy! Sabe muito bem que papai nunca disse uma palavra ríspida para nossa boa ama!
Ao ouvir aquilo, Claire ficou um pouco confusa. Porém, no momento, não tinha tempo para pensar no provável caráter do barão. Devia por em prática o plano de seu tio...
— Venha conosco, Haesel — a menina voltou a convidá-la, estendendo-lhe a mão minúscula.
Uma idéia revolucionária cruzou sua mente, como um raio que ilumina a floresta durante uma tempestade. Estava com os dois filhos de lorde Hawkswell nas mãos.
Poderia muito bem levá-los para Hardouin agora mesmo, sem ter que correr o risco de entrar no castelo do inimigo.
Isso, é claro, se os soldados que a escoltaram até ali, ainda estivessem à espreita...
Olhou ao redor, esperançosa, mas não encontrou nenhum sinal da presença deles. Certamente, já deviam ter se retirado para alguma taberna mais próxima.
Com um suspiro desanimado, pegou a modesta trouxa de roupas que trouxera e seguiu as crianças, rumo ao coração dos domínios de lorde Hawkswell.
Enquanto caminhavam, Claire observava Peronelle, encontrando inúmeros traços semelhantes aos de Júlia...
A menina tinha os mesmos olhos lépidos e inteligentes, o nariz arrebitado e as covinhas! Olhando melhor, viu que até seu andar era idêntico ao da mãe! Na verdade, a pequena era uma cópia exata, embora morena, de sua querida amiga.
Um pouco emocionada com aquelas semelhanças, passou a examinar o menino... Guerin era muito diferente da irmã. Tinha traços aristocráticos e altivos, o nariz era retilíneo e o rosto, oval. O único aspecto que compartilhava com a meia-irmã era o tom dos olhos e cabelos, escuros como o ébano.
Será que sabiam que eram apenas meio-irmãos, ou desconheciam completamente suas origens? Sim, pois, tratavam-se de igual para igual, sem dar relevância ao fato de Peronelle ser filha legítima e herdeira de lorde Hawkswell, enquanto Guerin não passava de um bastardo, cuja mãe era uma serva.
A própria Claire ficou chocada com o teor de seus sentimentos pelo menino. Nunca sentira esse tipo de preconceito. Porém, lembrando-se de Júlia, não podia deixar de sentir uma certa aversão pelo menino e seu pai.
Meu Deus! Será que o barão obrigara Júlia a reconhecer Guerin como seu filho primogênito? Isso era revoltante!
Nesse exato momento, chegaram às muralhas do castelo e Claire ficou boquiaberta com sua grandiosidade. Como a prima pudera achá-lo insignificante? Era muito maior e mais fortificado do que o próprio Castelo de Coverly.
— Venha, Haesel. Não tenha medo — Peronelle a chamou, percebendo a hesitação de moça. Mal poderia adivinhar seus verdadeiros receios...
Inexpugnável foi a melhor palavra que encontrou para definir, com exatidão, o espírito daquele castelo. Só podia rezar para que o barão não fosse tão inatingível quanto aquelas velhas paredes de pedra sólida...
Assim que seus sapatos de couro rústico pisaram na ponte levadiça, um arrepio de pavor percorreu-lhe o corpo. Ao atravessar aquela ponte, sua tarefa de raptar as crianças estaria oficialmente iniciada. Uma vez do outro lado, não poderia mais recuar... Se é que, em algum momento, realmente tivera outra opção, além daquela.
Lorde Hardouin fizera questão de frisar que, caso tentasse enganá-lo, teria prazer de caçá-la pelo reino, como se fosse uma pobre raposa acuada por sua matilha de cães.
Para piorar a situação, no exato momento em que chegava ao meio da ponte, ouviu um barulho ensurdecedor de cavalos, aproximando-se da entrada do castelo.
— Pai! — Peronelle gritou com alegria, para um homem enorme, todo vestido de negro, à frente de um grupo de cavaleiros fortemente armados.
Conforme se aproximavam, Claire reconheceu, apavorada, dois homens, presos entre os demais cavaleiros. Eram Ivo e Jean, pertencentes ao grupo de soldados de Hardouin que a trouxeram até ali.
Petrificada de medo, não ousou encará-los.
Em um piscar de olhos, a menina afastou-se do irmão e, antes que alguém pudesse detê-la, correu diretamente ao encontro do cavalo de guerra do pai.
Sem pensar em mais nada, além da tragédia iminente, Claire correu para junto da criança. Já podia até vê-la pisoteada pelas patas vigorosas do animal.
Como sempre acontece nos momentos que antecedem os grandes desastres ou acidentes, os minutos ficaram mais longos e os gestos das pessoas, mais pesados e lentos, apenas para nos lembrar de nossa impotência diante do destino.
Pressentindo a gravidade da situação, lorde Alain puxou com força as rédeas do animal, tentando freá-lo sem sucesso.
Quando o choque parecia inevitável, Claire conseguiu alcançar a menina, tirando-a da rota de colisão com o cavalo.
— Peronelle! — o pai bradou, em desespero, saltando do gigantesco animal. — Quantas vezes, tenho que lhe dizer para não se aproximar do meu cavalo desse modo? Ele não é dócil como seu pônei Dacy. Podia ter morrido!
Ao aproximar-se da menina, que ainda estava nos braços de Claire, ele notou a presença da jovem serva que salvara a vida da filha.
Claire mordeu a língua para não lhe fazer um sermão mais do que merecido. Como ele podia ser tão enérgico com uma criança que acabara de passar por uma situação terrível daquelas? Devido ao seu papel humilde, teve que permanecer calada. Porém, como a menina continuasse à tremer, escondendo o rostinho nas mangas rústicas de seu vestido de serviçal, viu-se na obrigação de dizer algo.
— A criança está muito assustada, milorde...
Um par de profundos olhos negros cravou-se em seu rosto.
— Quem é você, mulher? — indagou, visivelmente irado com aquela intromissão. — Aliás, como se atreve a me dizer como devo tratar minha própria filha?
Claire olhou para o chão, lutando para parecer humilde, quando na verdade, tinha vontade de agredi-lo fisicamente.
— Sou Haesel, milorde. — Suspendendo os olhos por um segundo, percebeu que ele continuava irritado com sua intervenção. Por isso acrescentou: — Eis sua filha, milorde.
Nesse exato momento, ela notou a presença de um jovem cavaleiro, atrás de lorde Alain, que a olhava com simpatia, encorajando-a a prosseguir. Também simpatizou com ele de imediato.
Lorde Hawkswell fixou os olhos em Peronelle, descontraindo a rigidez da fisionomia. Ajoelhando-se, tirou o elmo e abriu os braços, chamando a menina.
— Peronelle, venha cá, minha filha!
Ela correu para o colo do pai, passando os braços em torno de seu pescoço.
Apesar da raiva que sentia por ele, Claire ficou emocionada ao testemunhar aquele cena de carinho entre um poderoso guerreiro normando e sua filha.
— Ah! Minha filha! Não sabe que é a maior fortuna que possuo? Morreria de desgosto se alguma coisa a machucasse. Por isso gritei! Não queria assustá-la.
Sua voz, embora forte e decidida, era tão quente e carinhosa quanto um abraço. Por alguma razão especial; Claire queria ouvir mais daquilo...
— Só queria vê-lo, papai.
— Eu sei, filha. Mas, quem que prometa que nunca mais vai se aproximar do meu cavalo como acabou de fazer.
— Está bem, papai. Prometo!
Nesse instante, Guerin aproximou-se, suplicando com os olhos, para que o pai notasse sua presença.
Lembre-se de mim, papai! Também estou aqui!, aquele rosto infantil parecia dizer, embora nenhuma palavra escapasse de seus lábios.
Finalmente, lorde Hawkswell dirigiu sua atenção ao filho. Todavia, após um olhar de ternura, tomou a fechar o rosto.
— Guerin, saiu do castelo assim que acabei de virar as costas. Aonde foi, quando dei ordens expressas para que não atravessasse as muralhas?
O menino estremeceu e Claire não pôde deixar de sentir compaixão por ele.
— Estava na floresta, pai... — respondeu, vacilante, apertando a barra da túnica, com gestos nervosos.- Fui buscar Peronelle.
— Ah! E onde encontrou sua irmã, Guerin?
— Ela estava na beira do bosque, conversando com essa mulher. — Apontou para Claire.
— Peronelle, ordenei-lhe que jamais saísse do castelo! E, quanto a você, Guerin, também lhe dei ordens para que vigiasse sua irmã. Como deixou que ela escapasse dessa forma?
— Mas, papai! — a menina o interrompeu, sem pestanejar. — Sei que fiz mal em fugir de casa, por causa de um banho. Só que, graças a isso, conheci Haesel!
Pai e filhos voltaram suas atenções para Claire.
— Ela não é linda? — Peronelle continuou a falar, coberta de entusiasmo. — Eu a estou levando para conhecer Ivy. Quero que ela também seja minha ama, papai! Prometo que vou obedecê-la sempre! — Diante do olhar cada vez mais desconfiado de lorde Hawkswell, a menina foi intensificando suas súplicas: — Por favor papai, diga que ela pode vir conosco! Por favor...
Alain de Hawkswell pôs um dedo sobre a boca da menina, tentando conter aquela verdadeira enxurrada verbal.
— Fique quieta, minha filha. Está fazendo mais barulho do que cem crianças juntas!
Em seguida, voltou a examinar Claire da cabeça aos pés, sem disfarçar uma expressão de desprezo e desconfiança.
Durante aquela inspeção, ela sentiu-se enrubescer, controlando-se para agir como uma serva inglesa.
— Peronelle... — ele começou explicando, sem desviar os olhos de Claire. — Tem um coração bondoso, mas não sabe quem é essa mulher para colocá-la dentro de nossa casa.
— Oh! Ela se chama Haesel! Eu e Guerin a conhecemos na floresta. Ela não é linda? — tornou a repetir a mesma história, enfatizando a beleza de Claire.
O nobre e a filha estavam falando em francês. E, de algum modo, Claire tinha a impressão de que ele a estava testando, para ver se ela também falava aquela língua.
— Sim, ela tem um certo encanto... — admitiu, com um brilho malicioso no rosto.
Tinha vontade de esbofeteá-lo, mas, reprimindo a raiva, manteve a cabeça abaixada, enquanto apertava as mãos.
— Não vamos levá-la para o castelo, Peronelle — o barão comunicou, sempre em francês, dando por encerrado aquele assunto. — Ela pode ser uma fugitiva e você já tem uma ama. Sua obrigação é obedecer Ivy, do mesmo modo que deve respeito a mim, entendeu?
— Mas, papai...
— Já chega, filha. — Sua ordem era firme, mas carinhosa. — Já tenho coisas demais para me preocupar no momento. Como, por exemplo, esses prisioneiros.
Só então, Claire lembrou-se dos homens de Hardouin. Havia se esquecido completamente deles, desde que Peronelle correra ao encontro do cavalo.
— Quem são eles, papai? — Guerin indagou, ainda tentando achar um meio de chamar a atenção do pai.
— Ainda não sei, filho. Estavam vagando pela floresta, com um grupo de estranhos. Como não puderam se explicar, acho que fazem parte da horda de mercenários de Estevão.
— O que vai fazer com eles? — o menino quis saber.
— Ficarão presos até me revelarem o que faziam nessas terras. Matamos outros dois que tentaram fugir, mas esses acabaram se rendendo...
Olhou para Claire, com uma boa dose de desconfiança.
— Vá embora daqui, mulher. E agradeça a Deus por não levá-la presa, junto com esses homens!
Claire sentiu as pernas vacilarem. Não podia ter ido tão longe, apenas para fracassar. Precisava tentar algo...
— Milorde... — disse, pronta para fazer-lhe mil súplicas, se necessário. Contudo foi interrompida por um potente trovão que cortou o ar.
Em segundos, uma chuva pesada começou a castigar tudo ao redor, encharcando-lhes até os ossos.
— Papai, agora, deve deixar que ela entre no castelo! — Peronelle pediu, com voz chorosa. — Está chovendo e ela pode morrer de febre, do mesmo jeito que mamãe!
Alain de Hawkswell ficou pálido como a própria morte, ao ouvir aquela menção à esposa falecida. Porém isso passou despercebido para Guerin, que veio fazer coro as súplicas da irmã.
— Por favor, papai! Só por essa noite. E nosso dever cristão! Não pode mandá-la embora, debaixo de um temporal, como se fosse uma criminosa!
Claire ficou ainda mais emocionada com aquelas palavras tocantes. Não esperava que as crianças tivessem se apegado a ela com tanta rapidez... Chegava a ter remorsos, ao lembrar que teria que traí-los...
Lorde Hawkswell resistiu o quanto pôde às súplicas dos filhos, parecia suspeitar de Claire. Por fim, acabou reconsiderando sua decisão:
— Está bem, não podemos ficar discutindo aqui na chuva. Vou permitir que ela entre, mas, apenas por essa noite. Não posso hospedar todo mendigo que vier pedir asilo em meu castelo!
As crianças bateram palmas de contentamento.
— Quanto a você, lady Peronelle — disse, bem sério. — Quero que tire essas roupas molhadas e peça desculpas a Ivy, por ter sido tão levada.
A criança assentiu, de imediato.
— Ficará conosco por essa noite, mulher — comunicou-lhe seu veredito, em inglês.
Claire ajoelhou-se, agradecida.
— Obrigada, milorde!
Então todos seguiram para o interior do castelo, enquanto a chuva ficava cada vez mais forte.
Passar apenas uma noite em Hawkswell não serviria aos propósitos de Hardouin. Mas, de qualquer forma, já era um começo. E, se a sorte lhe sorrisse novamente arranjaria um meio de esticar sua permanência ali.
"Tenho um certo encanto, não é?", as palavras sarcásticas e maliciosas de lorde Alain não lhe saíam da cabeça. Não compreendia exatamente por que, mas aquele comentário a deixara furiosa. Iria fazê-lo aprender a respeitar uma mulher, nobre ou não!
Os olhos atentos de Alain de Hawkswell acompanharam os filhos e a jovem inglesa, até que eles desapareceram no topo de uma das escadas em espiral do castelo.
A mulher, que a filha chamava de Haesel, havia conquistado definitivamente o coração das crianças em um curtíssimo espaço de tempo. Ou era uma pessoa incrível, ou havia algo estranho nessa história toda...
De fato, era forçado a concordar com Peronelle: a moça era muito bonita. Alta, esbelta, de cabelos loiros e rosto harmonioso, ela até parecia uma das antigas deusas das lendas celtas. Porém, apesar das roupas pobres e da fala humilde, havia um toque aristocrático no modo como se movia. Não sabia precisar exatamente o que era, mas Haesel não parecia uma simples serva.
Que besteira!, pensou consigo mesmo, chamando-se à razão. A moça não passava de uma serva, sem família, vagando pelo mundo. Na certa, aprendera alguma noção de etiqueta em algum castelo onde servira.
Esvaziou a taça de vinho, olhando fixamente para o fogo que crepitava na lareira. De alguma forma, aquela mulher mexera com seus instintos masculinos. Seu corpo latejava de desejo e a boca estava seca, sedenta por beijos sensuais.
Não estava habituado com esses súbitos delírios de luxúria, próprios da adolescência. Ao contrário, orgulhava-se por ser bastante controlado nesse aspecto.
Afinal um nobre, principalmente em épocas turbulentas como as que estavam vivendo, não podia correr o risco de ficar à mercê de uma paixão. Poderia estar se apaixonando por alguma espiã, infiltrada pelo inimigo.
De repente, do meio das labaredas, viu surgir a figura lasciva e quase etérea de Haesel. Como gostaria de tê-la entre os lençóis de sua cama, esquentando seu corpo...
Irritado, esfregou os olhos, para afastar aquela visão. O que estava acontecendo com ele, afinal de contas? Só podia ser o vinho! Devia ter bebido demais!
Afastou a taça, decidido a não tomar mais nenhuma gota até o fim da noite. Além disso, precisava pensar em um modo de descobrir quem eram aqueles dois prisioneiros.
Algo lhe dizia que deviam ser gente de Estevão. Caso isso se confirmasse, teria que saber o que seu inimigo andava tramando, para colocar soldados tão próximos de seu castelo.
Em meio a todas aquelas preocupações, ficou boquiaberto quando a imagem daquela jovem loira voltou a se infiltrar em sua mente, desviando-lhe o raciocínio de questões tão importantes.
Júlia também era loira... Talvez fosse isso que o atraísse naquela estranha. Contudo Haesel era muito mais bela do que a esposa. Além disso, desde que ficara viúvo, já arranjara alguém para compartilhar sua cama, de modo que seu interesse por ela não era movido por solidão...
Gilda, uma camponesa de seios fartos e pele macia, costumava recepcioná-lo muito bem, sempre que ia a sua cabana, na aldeia. Contudo jamais lhe prometera algo em troca, fazendo questão de manter os sentimentos bem distantes de seus desejos carnais.
— Amor... — murmurou, com um suspiro de escárnio.
Não acreditava em amor entre homem e mulher. Isso tudo não passava de um monte de fantasias de jovens sonhadores! Na realidade, os casamentos eram arranjados apenas para satisfazerem os interesses de ambas as famílias envolvidas. E, mesmo sendo um nobre rico e poderoso, também devia se sujeitar a essas leis.
Algum dia, Matilde iria arranjar-lhe outra esposa entre as filhas de seus aliados mais importantes. E, de fato, não se importava nem um pouco com isso. Até mesmo seu casamento com Júlia obedecera essas regras.
Apesar disso, poderíamos ter sido muito felizes, se..., interrompeu os pensamentos de forma brusca, levantando-se da poltrona. Não queria pensar em Júlia.
Andou em círculos pela sala, sentindo um calor inebriante dominar-lhe o corpo... A imagem de Haesel não o deixava em paz! Talvez estivesse incomodado com aquela moça, simplesmente porque ela o desprezara.
Sim, não tinha a menor dúvida sobre isso! Embora não tivesse lhe faltado com o devido respeito, a moça inglesa parecia detestá-lo. Sentira um ódio profundo vindo dela, no breve instante em que seus olhos se cruzaram.
Poderia não ser uma questão pessoal. Muitas jovens inglesas simplesmente odiavam os normandos, não sem motivo, diga-se de passagem. Senhores da Inglaterra há mais de setenta anos, esses nobres tratavam os ingleses, em geral, pobres e humilhados, como pessoas inferiores. Talvez, além desse fator, Haesel tivesse sofrido algum abuso nas mãos de um nobre normando.
Será que, ao fitá-lo, aquela mulher loira lembrava-se do homem que lhe tirara a virgindade? Também não tinha dúvidas de que ela não era virgem! O modo como andava e o calor que emanava de seu corpo indicavam-lhe que ela já havia sido tocada por um homem.
— Por Cristo! Se continuar assim, daqui há pouco, estarei fazendo poesias e recitando-as como um trovador! — ralhou consigo, em voz alta.
Já estava ficando assustado com todas aquelas divagações. Não era um homem sentimental; ao contrário, era prático e observador, como todo bom estrategista deveria ser.
Que poder teria aquela mulher para despertar-lhe sensações e comportamentos que jamais havia experimentado antes? Será que ela era uma feiticeira? Afinal, em poucas horas, conquistara a afeição das crianças e mexera profundamente com seus sentimentos... Também poderia ser uma espécie de anjo, enviada para proteger seus filhos...
— Nossa! A cada instante estou ficando mais supersticioso! — murmurou, irritado com os próprios pensamentos.
De qualquer forma, era incontestável que havia uma aura de mistério e magia em torno de Haesel; um motivo a mais para mandá-la embora no dia seguinte. Aliás, ela não havia demonstrado vontade de permanecer em seus domínios.
Estranho! Essa hipótese o aborrecia...
Provavelmente, a idéia de ir ao castelo não passara de mais uma decisão impulsiva de Peronelle. Conhecendo muito bem a filha, não era difícil imaginar que a menina havia resolvido trazer a nova amiga para lhe fazer companhia. Aliás, devido à cor do cabelo e dos olhos, Haesel devia lembrar-lhe a mãe.
Esboçou um sorriso triste. Essa era a explicação mais verossímil para o apego da filha com a estranha, em vez de pensar em bruxas, anjos e ninfas da floresta.
Além disso, a própria Peronelle fizera essa comparação ao mencionar a morte de Júlia, por causa daquela maldita febre.
Para Haesel, a idéia da criança deveria ter surgido como uma boa alternativa para fugir de uma tempestade que se aproximava.
O único ponto que continuava a intrigá-lo, dentro dessa nova abordagem do problema, era a reação de Guerin. Ainda não conseguia encontrar algo que explicasse a intervenção do menino a favor daquela estranha.
Pensando bem, Guerin tinha um coração caridoso. Por isso devia ter se compadecido da pobre moça.
Alain de Hawkswell suspirou com ternura, meditando um pouco sobre o menino. Guerin sempre estava à procura de pássaros ou filhotes feridos para que pudesse cuidar deles. Isso não significa que fosse fraco ou covarde, pois não vacilava quando tinha que alvejar algum animal durante as caçadas. Só não admitia nenhum tipo de crueldade, muito menos ficar de braços cruzados diante do sofrimento de alguém.
De fato, iria sentir muita falta do filho, quando tivesse que enviá-lo a outro castelo no ano seguinte, durante seu período de formação como cavaleiro.
Segundo a tradição, todo menino da nobreza deveria ficar sobre a guarda de outro nobre, que não fosse o pai, a fim de que fosse treinado para sagrar-se cavaleiro.
No entanto, Alain já havia decidido que Guerin só deixaria seus domínios se os distúrbios, provocados pelas disputas ao trono, estivessem sob controle. Jamais iria arriscar a vida do menino. Jamais! Nem mesmo que Matilde lhe ordenasse!
De repente, um barulho de passos chamou-lhe a atenção. Era um ruído leve e distante, como alguém andando na ponta dos pés. Sem despertar suspeitas, Alain vasculhou a sala com os olhos, procurando pela espada. Mas, nenhum sinal da arma.
O pajem deveria tê-la levado, juntamente com a armadura. Entretanto não se lembrava disso...
A serva!, recordou, apavorado. Será que ela era uma inimiga que viera ao castelo apenas para lhe causar mal?
Temendo pela segurança dos filhos, correu para a escada que conduzia ao aposentos principais do castelo.
Antes que subisse o primeiro degrau, deparou-se com Peronelle, trêmula e lívida como cera. Guerin e Haesel vinham logo em seguida, ambos igualmente pálidos.
Ao avistar o pai, a menina jogou-se em seus braços protetores. Estava tão assustada, como se tivesse acabado de ver um fantasma.
— Perry, o que aconteceu? — quis saber, mas a menina soluçava, incapaz de pronunciar qualquer palavra. Então, irado, fitou Haesel. — O que fez à minha filha?
A moça empalideceu ainda mais.
— Na... da, milorde... — gaguejou, atônita. — Foi a velha ama... Nós a encontramos... morta!
Não foi preciso dizer mais nada. Deixando a filha sob os cuidados de Haesel e Guerin, subiu a escada correndo, rumo ao quarto onde as crianças dormiam com a ama.
A boa Ivy estava em uma cadeira, perto da janela aberta, com o corpo inerte. Seus olhos estavam imóveis e um fio de sangue escorria-lhe da boca, enquanto a cabeça pendia para o lado.
Alain pôs a mão no peito de Ivy, buscando algum sinal de vida, mesmo sabendo que isso seria inútil. Devido à palidez da pele, devia ter morrido há algumas horas.
Com uma profusão de criados naquele castelo, por que logo as crianças tiveram que encontrá-la? Pobres crianças!
Justamente agora que os pesadelos causados pela morte de Júlia e de padre Peter acabaram, tiveram que presenciar aquela cena aterradora! Com certeza, voltariam a ter sonhos ruins, acordando assustados no meio da noite, por um bom tempo. E, pior, não teriam mais a velha ama para confortá-los!
A menos que... Oh! Não!, apressou-se a pôr um ponto final na idéia maluca que lhe passara pela cabeça.
Acabara de decidir mandar a jovem inglesa embora e não iria voltar atrás! Não podia ficar próximo de uma mulher que mexia tanto com seus instintos, só porque ela estava ali, no momento em que seus filhos precisavam de conforto feminino.
Devia haver dúzias de mulheres no feudo que fariam qualquer coisa para ter a honra de cuidar dos filhos de seu amo e senhor. Além do mais, não poderia arriscar a vida das crianças, colocando-as sob a tutela de uma completa desconhecida.
Com um gesto caridoso, fechou para sempre os olhos de Ivy, fazendo uma prece por sua alma. Em seguida, foi ao encontro dos filhos.
Haesel levara as crianças para perto da lareira, a fim de que o calor das chamas secasse suas roupas encharcadas. Guerin e Peronelle estavam abraçados a ela, que, apesar de visivelmente perturbada com a visão da morta, tentava conter seu nervosismo, para consolar os dois pequenos.
— Lamento muito, mas nossa Ivy foi chamada por Deus — ele confirmou, provocando um ataque de choro na filha. Tomando a menina no colo, tentou confortá-la:
— Não fique assim, querida. Ivy não sofreu. Já estava com bastante idade, você sabe, e tinha o coração fraco... Iria acontecer mais cedo ou mais tarde.
Voltando-se para Guerin, viu que o menino esforçava-se bravamente para conter as lágrimas; mesmo assim, soluços escapavam de seus lábios...
— Está tudo bem, Guerin. Não há problema em chorar, quando alguém que gostamos parte.
Ouvindo aquilo, o menino liberou as lágrimas, afundando o rosto no peito de Haesel.
— Quero que se lembrem que Ivy foi para o céu. Era uma mulher muito caridosa e benevolente; por isso agora está feliz, junto dos anjos e da Virgem Maria.
Assim que o choque inicial foi passando, Peronelle dirigiu-se a Alain, em pânico:
— Quero minha ama, papai! O que vamos fazer sem Ivy? — Fungou algumas vezes, enquanto lágrimas sofridas escorriam-lhe pela face angelical. — Ela sempre morou nesse castelo, cuidava de mim desde que nasci, não pode ir embora!
Voltou-se para Haesel, buscando socorro em seus braços. E agora?, Alain indagou-se, apreensivo. Tinha que agir depressa, antes que a situação se complicasse, escapando de seu controle.
— Encontraremos outra ama na aldeia — prometeu, com voz paternal. — Tenho certeza de que há um monte de mulheres tão carinhosas quanto Ivy, que vão adorar cuidar de você, minha filha.
— Quero que Haesel seja minha nova ama, papai! — Peronelle exclamou, convicta.
— Não, ela não pode ficar aqui. Haesel não pertence ao nosso feudo. — Olhou para a serva inglesa, fazendo-lhe sinal para que não se manifestasse. — Além disso, deve ter obrigações a cumprir em outra parte.
— Se pedir, ela ficará! — a menina insistiu, suplicante.
O menino, que até agora mantivera-se calado, decidiu participar da conversa:
— Ela nos contou que é livre, portanto não haverá nenhum problema, se vier morar conosco, papai.
Era praticamente impossível que uma mulher jovem e bonita como Haesel, vagando sozinha pelas estradas, fosse livre. Contudo não havia nenhuma marca em sua testa, para indicar que fugira anteriormente. Isso devia ser considerado...
— Perry disse que iria obedecê-la e eu também! Prometo! — Guerin voltou a dizer, enfático. Como a mãe, jamais desistia de algo que desejava.
Com os olhos ainda lacrimejantes, os filhos o fitaram, esperançosos. Estavam lhe implorando que deixasse Haesel ficar em Hawkswell. Seria correto decepcioná-los em um momento difícil como esse?
Sem saber que solução tomar, Alain perscrutou o rosto de Haesel, à procura de uma resposta. Porém ficou ainda mais confuso com o que viu. Não havia nenhum sinal de súplica; parecia orgulhosa demais para isso. Contudo, uma aura de honestidade e ternura a envolvia.
A voz da razão continuava a insistir para que a mandasse embora agora mesmo. Aquela mulher só poderia lhe causar problemas. Todavia, de súbito, surpreendeu-se, indagando:
— O que me diz, Haesel? Gostaria de ficar em Hawkswell e ser a ama dos meus filhos? Preciso de alguém amável e carinhosa, que os trate como se tivessem nascido de seu próprio ventre.
Ela não esboçou nenhuma reação, estava petrificada.
— Pense muito bem antes de me responder. Já deve ter percebido o quanto essas crianças são importantes para mim! Portanto não terei clemência com aqueles que os machucarem.
Ao terminar seu discurso, Alain percebeu que fora excessivamente severo e ameaçador com a jovem, embora essa não fosse a sua intenção. Mesmo assim, não moveu uma palha para desfazer o mal-entendido.
Uma sombra de preocupação turvou o brilho daqueles olhos azuis. No entanto lorde Alain não deu a devida importância àquele detalhe. Considerou o fato muito natural, diante de toda a responsabilidade que a moça iria assumir, se ficasse. Nem de longe poderia imaginar o que de fato havia por trás daquela expressão soturna...
— Aceito, milorde... — murmurou, por fim, para alívio das crianças. — Sinto-me honrada por ser a nova ama de seus filhos e prometo cuidar muito bem deles!
Em meio a toda aquela tristeza, era bom ver um lampejo de felicidade, mesmo que fugaz, no rosto dos filhos. Contudo não estava satisfeito apenas porque arranjara uma maneira de minimizar o sofrimento das crianças. No íntimo, também estava um pouco eufórico por saber que a bela Haesel continuaria sob seu teto.
— Muito bem, crianças — ergueu-se, tentando agir de modo prático. — Agora que já acertamos tudo, por que não vão até a cozinha e comem algo quente? Depois, podem ajudar Haesel a se acomodar no castelo.
Peronelle e Guerin acataram a ordem do pai, correndo para a porta.
Em tom mais baixo, para que apenas Haesel ouvisse, Alain acrescentou:
— Vou tomar as providências para que o corpo seja removido para a capela. Mantenha as crianças na cozinha o máximo que puder.
— Certamente que sim, milorde — sussurrou.
— Venha, Haesel! — Peronelle chamou, obrigando Claire a partir.
Antes de se afastar de lorde Alain, no entanto, ela surpreendeu-se, sorrindo para ele.
Alain teve a sensação de que Rouquin, seu gigantesco cavalo, o havia derrubado da sela. Corpo, instintos e sentimentos foram chacoalhados vigorosamente por aquele simples sorriso.
Uma hora mais tarde, Claire finalmente foi avisada de que o corpo de Ivy já fora removido para a capela. Então resolveu levar as crianças de volta ao quarto, para que se banhassem e vestissem roupas limpas.
Os três atravessaram vários salões e corredores até chegarem à escada que conduzia aos aposentos principais. O silêncio e a penumbra reinavam no castelo, devido à morte de Ivy.
Enquanto subia a escada atrás das crianças, Claire olhou, esperançosa, para o salão de armas, à procura de lorde Alain. Contudo nem sinal dele...
Mas o que é isso?, ralhou consigo mesma, perplexa por acalentar o desejo de revê-lo. Não conseguia entender o que estava acontecendo com seus sentimentos, em relação a Alain! O ódio parecia estar se misturando com uma pitada de ternura... No entanto teve que deixar essas preocupações para mais tarde, já que assuntos mais urgentes exigiam sua atenção.
Ao chegarem à porta do quarto, as crianças ficaram imóveis e pálidas, como estátuas de mármore.
— Ela... já... se... foi? — gaguejou Peronelle, cobrindo o rosto com as mãos, dominada pelo medo.
— Sim, podemos entrar. Ivy não está mais aqui. Ela já foi levada para a capela — Claire respondeu, tentando passar confiança para seus pupilos. Então, girando a maçaneta, abriu a porta de madeira maciça para que eles vissem, com seus próprios olhos, que o quarto estava vazio.
Meio desconfiados, os irmãos adentraram o aposento pé ante pé, olhando para os lados, como se procurassem algum vestígio da antiga ama.
— O que aconteceu com o espírito de Ivy? Também foi embora ou vai voltar para assombrar esse quarto? — Guerin indagou, de repente, exigindo de Claire muito tato e paciência.
Ela respirou fundo, em busca de inspiração. Afinal teria que satisfazer as expectativas das crianças, utilizando apenas os recursos que uma serva ignorante teria.
Era uma pena que tivessem visto Ivy daquele modo aterrador, ainda mais sob o ponto de vista infantil. Todavia ficava se perguntando se não era melhor assim, do que criar ilusões para poupá-los da morte de um ente querido. Por mais difícil que fosse, a morte era uma realidade para esses pequenos; não uma história distante e fantasiosa como a que lhe fora apresentada quando a mãe morrera.
Em um piscar de olhos, sentiu-se uma garotinha outra vez, um ou dois anos mais velha do que Peronelle. Para explicar o desaparecimento de sua mãe, todos lhe disseram que ela havia partido e ficaria longe por muito, muito tempo. Quiseram poupá-la da terrível verdade: a mãe morrera durante o parto do terceiro filho, que também perdera a vida horas depois. Contudo essa mentira causou-lhe muito mal. Durante anos, Claire sentiu-se traída e abandonada pela mãe até que finalmente soube da verdade.
Assim concluiu que deveria ajudá-los a enfrentar essa perda de modo positivo, lembrando de Ivy por sua bondade e carinho, não pela última cena.
— É claro que ela não irá assombrar esse quarto, nem qualquer outro cômodo do castelo! — respondeu, convicta. — Disseram que Ivy era uma pessoa de bom coração que os amava como se fossem seus filhos. Portanto ela foi direto para o céu.
— Ela vai se esquecer de nós? — Guerin tornou a perguntar, tomado por um misto de dor e curiosidade.
— Lógico que não! Lá do céu, ela vai continuar a observá-los, pedindo aos anjos que os protejam de todos os males. — Deu um sorriso confortador — Guardem apenas as lembranças do carinho e afeição Ivy, e, dessa forma, uma parte dela sempre continuará viva em seus corações.
— Mas seu corpo vai ficar na capela, para podermos visitá-la sempre que tivermos saudades? — Peronelle questionou fungando.
— Não, querida — Ajoelhou-se ao lado da menina, ficando apenas um pouco mais alta do que ela. — As mulheres do castelo irão lavar e vestir Ivy com uma mortalha, antes de colocá-la em um caixão, depois, ficarão orando por sua alma, até que seu corpo seja finalmente enterrado.
— Enterrado?! — Peronelle repetiu, horrorizada — Vão pôr minha Ivy debaixo da terra? Mas assim ela não conseguirá respirar? — Seu corpo frágil estava trêmulo, e lágrimas sentidas rolavam por seu rosto.
Claire a abraçou cheia de ternura.
— Ouça, criança. Lembra-se do que eu contei sobre o céu? Pois bem, apenas o corpo velho e doente de Ivy será enterrado, sua alma já ganhou um outro corpo, que jamais irá morrer — explicou, rezando para que a menina compreendesse e acreditasse em suas palavras.
— E as mãos de Ivy estarão livres daquelas veias inchadas e dolorosas das quais ela sempre reclamava. No céu, ela também não precisará mais se preocupar com dores de estômago sempre que comer carne de porco — Guerin argumentou com seriedade — Tenho certeza de que agora seu cabelo é preto e ondulado como na época em que era jovem.
Claire sentiu que Peronelle estava começando a se acostumar com a idéia da morte, pois parou de tremer e as lágrimas foram ficando cada vez mais escassas, até sumirem totalmente. Agradecida, lançou um olhar carinhoso para seu pequeno pupilo, Guerin.
Peronelle respirou fundo, despedindo-se da tristeza.
— Que bom que Ivy está bonita e feliz lá no Céu! Mas nunca vou me esquecer dela... Sentirei muita saudade! — Após alguns instantes de silêncio, acrescentou, jogando-se nos braços de Claire: — Estou feliz que você seja nossa nova ama, Haesel! Venha, vou mostrar-lhe sua cama.
Eles só tornaram a ver lorde Alain durante o jantar, o momento mais solene e festejado do dia em todos os castelos. Apesar da ausência de música e apresentações de grupos de entretenimento, em respeito à Ivy, uma atmosfera especial quebrava a tristeza do momento.
Com os rostos limpos, cabelos penteados e vestindo túnicas imaculadas, Guerin e Peronelle entraram no salão, indo diretamente para a cabeceira da mesa, onde o pai os esperava. Caminhando mais devagar, Claire aproveitou para fazer uma análise detalhada da sala.
Exatamente como em Coverly e na maioria dos castelos, a sala principal, palco dos grandes banquetes e -festas, era retangular e muito alta. Antigos estandartes, com os brasões das famílias que juraram obediência àquele feudo, pendiam das vigas do teto, enquanto ricas tapeçarias cobriam as paredes. Todas as janelas ficavam no lado leste da sala e, quando escurecia a iluminação era garantida por tochas presas nas paredes do lado oeste e castiçais com velas sobre as mesas. Os tapetes gigantescos, que revestiam quase todo o assoalho, eram novos e belos, Claire notou, satisfeita.
— Ah! Finalmente chegaram! — Alain exclamou ao ver os filhos. — Por acaso, não ouviram os arautos chamarem para o jantar?
— Ouvimos sim, papai. É que Haesel disse que devíamos trocar de roupa, pois estávamos parecendo camponeses, que haviam passado o dia inteiro correndo e pulando pela floresta — Guerin respondeu, em inglês para que Claire pudesse entender o que falavam. No entanto o pai havia usado a língua francesa.
Lorde Alain contemplou o filho, com um misto de severidade e indulgência.
— Estou de pleno acordo com esse argumento — admitiu, por fim, falando em inglês. — Contudo, daqui para a frente, seria mais apropriado que fizessem essa magnífica transformação antes da hora do jantar. Deixaram um bando de famintos habitantes de Hawkswell esperando, meu filho. Um verdadeiro nobre sempre deve colocar seu povo antes de si mesmo.
Claire teve que fazer um esforço sobre-humano para manter um ar inexpressivo e envergonhado. Embora impressionada com a consideração de lorde Alain por seu povo, sentiu o sangue ferver de raiva. Primeiro, por ele ter sido áspero com Guerin, que nem havia superado a morte da ama. Segundo, ele falara em inglês apenas para que ela também recebesse aquela descompostura.
— Peço-lhe desculpas, pai — o menino apressou-se a dizer. — Não vou permitir que isso aconteça outra vez.
Lorde Alain beijou a testa do filho, apreciando sua resposta. Em seguida, indicou-lhes um lugar à mesa.
— Acomodem-se logo para que a refeição tenha início.
Enquanto as crianças se dirigiam para seus lugares, o barão bateu palmas e um jovem servo veio trazer-lhe uma tigela de prata com água, para que lavasse as mãos.
Automaticamente, Claire começou a acompanhar as crianças, provocando risos nos nobres que a rodeavam. Então um homem alto e desajeitado, que mais tarde descobriria se chamar sir Gautier, levantou-se para interceptá-la.
— As servas não se sentam à mesa do barão, moça — avisou, com forte sotaque francês. Seu rosto magro exibia uma expressão de zombaria e desprezo. — Seu lugar é ali! — disse, mostrando-lhe duas mesas mais afastadas, na sala contígua.
Claire queria morrer de vergonha! Gostaria que um buraco se abrisse sob seus pés, livrando-a daquela situação constrangedora! Sentindo-se miserável, dirigiu-se para a mesa dos criados, enquanto risos ecoavam à sua volta sem cessar.
Os servos não se sentavam na mesa de seus senhores! Como pudera se esquecer dessa regra tão rígida da sociedade feudal?
Por um instante, a força do hábito sobrepujara a razão e Claire havia se comportado como a dama que era. Entretanto deveria convencer todos no castelo Hawkswell de que não passava de uma humilde serva! Jamais deveria permitir que sua concentração a abandonasse novamente, nem mesmo por um segundo! Sua vida poderia depender de detalhes como esse!
Ainda preocupada com aquela distração, Claire acomodou-se no último lugar vago na mesa dos servos. Ao seu lado, estava um homem alto e corpulento.
— Então pretendia sentar-se na mesa com lorde Hawkswell? — ele zombou, em um inglês sofrível.
Claire olhou ao redor, à procura de outro lugar para ficar. Entretanto não havia escapatória, teria que sentar-se ao lado desse homem inconveniente.
— Eu não conhecia essas regras, pois é a primeira vez que trabalho em um castelo — retrucou, dizendo uma meia verdade. — Mas isso não lhe dá o direito de escarnecer de mim!
Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso com aquela reação espirituosa.
— Quanta altivez para uma simples serva, não acha, minha pequena?
Ela mordeu a língua por mais aquele deslize. Precisaria conter seu orgulho, ou acabaria traindo sua origem nobre. Aparentando humildade, tentou consertar a situação:
— Desculpe-me, sir... Só estou envergonhada por meu erro.
Sua modéstia convenceu o soldado de que falava a verdade, pois ele voltou a sorrir-lhe.
— Seja bem-vinda a Hawkswell, minha pequena — saudou Claire, com um gesto magnânimo. — Não sou nenhum "sir", pois ainda não fui sagrado cavaleiro.
— Obrigada — agradeceu, sem nenhum entusiasmo.
— Todos me chamam de Hugh le Gros, que significa Hugh, o Grandalhão, minha pequena. Lá adiante, está Hugh la Jaune-Tête, Hugh, o Cabeça Amarela — continuou a falar, apontando para outro soldado, no meio da mesa, cujos cabelos eram claros como palha.
— Ah! — ela exclamou, irritada com aquele tratamento íntimo. Não dera nenhuma confiança a ele para que se pusesse a chamá-la de 'minha pequena'.
— Hugh la Jaune-Tête é o capitão de armas — o acompanhante prosseguiu, ignorando o desinteresse de Claire. — Hei! Deixe-me servir-lhe um pouco desse ensopado de coelho. Não é um prato tão fino quanto os que servem na mesa principal, onde queria sentar-se, mas também é muito gostoso, minha pequena.
Claire sentiu o sangue ferver com mais aquela provocação. Tinha vontade de virar a tigela com o tal ensopado na cabeça daquele pretensioso, metido a engraçado. Porém conseguiu controlar-se a tempo de não fazer uma besteira.
— Sou Haesel.
— De onde vem, Haesel? — Como ela hesitasse em responder, Hugh adiantou-se: — Confesse, minha pequena... Já reconheci a cadência de seu sotaque... Vivia perto de Shrewsbury, não é?
Claire deu um riso amarelo. Ele não poderia estar mais enganado sobre sua origem. Além de excelente conquistador, será que Hugh le Gros também se considerava um perito em sotaques? Que idiota! Contudo achou mais sábio concordar com aquele normando tolo, do que iniciar uma perigosa discussão sobre suas raízes.
Fingindo estar concentrada apenas na comida, Claire interrompeu o diálogo. Só tirava os olhos de seu prato, de vez em quando, para verificar como as crianças estavam. Porém, aparentemente, não havia motivo para preocupações. Guerin e Peronelle pareciam estar reagindo bem à morte súbita da ama.
De repente, seus olhos azuis pousaram sobre lorde Alain e, como se tivessem adquirido vontade própria, recusavam-se a se afastar daquele homem poderoso.
Ele, ao contrário, não parecia ter nenhum interesse por Claire, preferindo manter uma conversa animada com o padre, sentado à sua direita. Nem uma única vez, olhou na direção dela.
Meu Deus! Alain de Hawkswell era o homem mais charmoso e atraente que já vira! Seu corpo musculoso parecia transpirar virilidade por todos os poros. Quanto ao rosto, era forte e orgulhoso, como convinha a um guerreiro destemido. Como Júlia conseguira desprezar o charme irresistível daquele homem?
— Lorde Alain é muito sedutor... É nele que está pensando, não é? — uma mulher risonha e de face corada indagou, adivinhando-lhe os pensamentos mais secretos. — Sou Annis, uma das lavadeiras do castelo — apresentou-se, com uma expressão amistosa.
Chocada com aquele excesso de extroversão, Claire retribuiu-lhe o cumprimento com um sorriso tímido.
— Meu nome é Haesel.
Deveria sentir alívio por estar sendo aceita pelos outros, apesar do inconveniente Hugh le Gros. Em vez disso, estava incomodada por ter sido surpreendida admirando lorde Alain.
— Sim, pode-se dizer que milorde é um homem e tanto — concordou, escolhendo as palavras com cuidado. — Contudo não era para lorde Alain que estava olhando, observava o padre... Ele me lembra alguém... — mentiu duas vezes seguidas.
— É possível! Padre Gregory chegou a esse castelo há dois dias apenas. — a mulher informou ao acaso. — Ele foi enviado, após a morte repentina do padre Peter.
Padre Gregory era um homem roliço, de altura e idade medianas, com um sorriso agradável no rosto.
— É bom que não acalente nenhuma esperança em relação a lorde Alain. Ele não se deixa dominar pelos encantos de nenhuma mulher... — Annis disse, voltando a falar sobre o barão de Hawkswell. — Ele tem agido assim, desde que aquela sua esposa distraída morreu de febre. Que sua alma inútil descanse em paz!
Claire calou-se, decidida a encerrar a conversa naquele instante. Estava ofendida com o jeito cruel e desumano como a mulher falara sobre a pobre Júlia!
A própria Annis encarregou-se de dar prosseguimento ao diálogo, sem se importar com o silêncio da companheira.
— Bem, na verdade, milorde não aderiu ao celibato. Quando a luxúria domina seu espírito, ele visita minha irmã na aldeia — declarou, com uma ponta de orgulho na voz.
— Sua irmã é amante de milorde? — Claire retrucou, sentindo uma dor aguda no peito, como se fosse atingida por uma seta com veneno. No fundo, gostaria de entender porque aquela revelação a deixava tão furiosa e amargurada... Afinal, a vida amorosa daquele homem não lhe dizia respeito!
— Amantes?! Nossa! Isso faz com que as visitas de lorde Alain pareçam mais regulares do que são na realidade! — Annis declarou, espirituosa. — Ele só vai vê-la duas ou três vezes por mês.
Claire não emitiu nenhum som, nem expressou qualquer emoção. Estava apática e indiferente, como se fosse uma rocha.
Mais uma vez, entretanto, a própria Annis encarregou-se de manter conversa. Com um sorriso malicioso, não tardou a acrescentar:
— Por outro lado, Gilda é única mulher que tem recebido esse tipo de atenção de milorde, desde que ele ficou viúvo. Sabe, minha irmã é uma mulher de sangue quente, que sabe como agradar um homem na cama... — Aproximou-se mais de Claire, confidenciando-lhe: — Ela diz que milorde é um amante fantástico!
— Espero que sua irmã tenha momentos muito agradáveis com ele! — declarou, demonstrando um despeito que gostaria de ocultar. — Quanto a mim, prefiro não me envolver com nenhum desses nobres! Tentar conquistá-los é como agarrar a lua: impossível! Aqui em Hawkswell, quero apenas tomar conta das crianças e nada mais!
— É uma garota esperta! — Annis afirmou, aprovando aquela decisão. Logo, porém, deu um suspiro profundo, cheio de melancolia. — Mas ainda é muito jovem para desprezar os carinhos de um homem, Haesel. As noites tornam-se longas e frias, quando os ventos de inverno sopram ao redor das paredes de pedra desse castelo... Deve ficar feliz se aparecer um homem para dividir a cama com você.
Descontente com a indiferença de Claire, Hugh le Gros aproveitou a pausa na conversa entre as duas para cativar a atenção da moça mais uma vez.
— Aceita um pedaço de queijo? — ofereceu, tocando a mão de Claire. Sem dar-lhe tempo de responder, cortou uma fatia, com a mesma faca que usava para levar lascas do ensopado de coelho até a boca.
Tentando ocultar o asco que sentia por aquele homem, Claire pegou o queijo.
— Ah! Nossa garota de cabelos dourados deve estar faminta! — comentou, aproximando-se mais de Claire. Com o olhar transbordando de luxúria e desejo, sussurrou-lhe ao ouvido: — Talvez haja outras coisas que despertem seu apetite, minha pequena... Sendo assim, ofereço-me para satisfazê-la no que precisar... Aliás, posso lhe garantir que não sou conhecido como Hugh, o Grandalhão, à toa.
Embalado pelo vinho, ele resolveu empreender um ataque mais direto e vigoroso. Dessa forma, colocou a mão sobre o joelho de Claire, por baixo da mesa, para que os outros não vissem.
Ofendida e surpresa com a atitude de Hugh, ela empinou o nariz, tirando aquela mão imunda de sua perna.
— Dispenso qualquer ajuda de homens como você! E ficaria imensamente agradecida, se parasse de me tratar com toda essa intimidade, Hugh le Gros! Não sou o tipo de mulher que imagina! — afirmou, com os olhos injetados de raiva. — Além disso, pretendo gastar toda minha energia cuidando das crianças.
Hugh mordeu os lábios e ficou vermelho de indignação.
— Não está se considerando superior demais, sendo apenas uma serva fugitiva? — A cada palavra, sua ira ia aumentando, acompanhada pelo tom de sua voz. — Quero que saiba que há uma legião de mulheres que ficariam felizes por receberem meus favores!
Claire empalideceu ao perceber que todos na sala olhavam para ela.
— Deixe-o falar, Haesel! Hugh se imagina como o melhor amante da região. O que se pode fazer, além de ignorá-lo? — Annis aconselhou, apoiando a atitude da nova companheira. Então, dirigindo-se para o soldado, disse, zangada: — Pare de importunar a moça, Hugh Não percebe que ela não gostou de você? Fique quieto em seu lugar, que milorde já está olhando para cá!
Com o coração batendo, descompassado, Claire lutou com heroísmo contra o impulso de olhar para a mesa principal. Por fim, não resistiu e acabou cedendo à tentação de observar Alain. E, no mesmo instante, foi tomada por forte arrependimento...
Oh, Deus! Nada teria sido mais embaraçoso do que aquilo! De seu trono, lorde Alain olhava diretamente para ela e, em uma questão de segundos, seus olhares acabaram se cruzando.
Para a decepção de Claire, aquele rosto moreno era inescrutável, como a própria fortaleza de Hawkswell. Ele parecia usar uma máscara, evitando, assim, que suas emoções e sentimentos viessem à tona.
Incapaz de adivinhar-lhe os pensamentos, ela continuou a observá-lo, enquanto várias dúvidas a afligiam...
Teria visto o soldado importuná-la? Ou, mais importante ainda, será que a vira rechaçar as investidas daquele conquistador? Talvez ele só tivesse dado atenção ao acorrido, quando Hugh erguera a voz... Se fosse assim, lorde Alain poderia pensar que não passava de uma encrenqueira vulgar, desqualificada para cuidar de seus filhos!
Sentindo-se transpassada por aqueles olhos profundos, que mais pareciam flechas flamejantes, ela estava a ponto de se retirar da mesa. Porém, antes que se levantasse, os criados entraram no recinto, trazendo a sobremesa. A refeição estava chegando ao fim, portanto, mais alguns minutos e poderia sair daquele lugar na companhia de seus pupilos.
Ignorando os aromáticos bolos de mel que os criados estavam lhe servindo, lorde Alain levantou-se. Com a cabeça erguida e passos firmes, como convinham ao senhor de um castelo, ele rumou na direção de Claire. Sem aparentar nenhum receio, Hugh continuou bebendo vinho como se nada de anormal tivesse acontecido. Claire, ao contrário, tremia dos pés à cabeça, como se fosse uma condenada esperando para receber a sentença de morte. Virgem Maria! Será que ele vinha para repreendê-la pessoalmente? Pior ainda, poderia vir para expulsá-la do Castelo de Hawkswell!
Como ambas as possibilidades eram aterradoras, ela começou a rezar com fervor para que escapasse do castigo de lorde Alain! Porém, a cada segundo, ele chegava mais perto da mesa, sem desviar os olhos dos dela. Por fim, com o coração quase explodindo de agonia, acabou fechando os olhos.
De repente, sentiu uma brisa suave no rosto e tornou a abrir os olhos, pronta para enfrentar seu destino. No entanto, para surpresa e alivio, Alain de Hawkswell havia passado diretamente por ela, sem lhe dirigir nenhuma palavra de censura.
— Reparou no rosto de milorde, Haesel? Parece que uma tempestade cobria seus olhos! — Annis comentou, meio eufórica. — Hugh, seu tolo! Não lhe disse que acabaria desagradando nosso amo com seus excessos?
— Não... reparei... — Claire gaguejou, ainda assustada. — Ele deve estar zangado comigo...
— Le Gros, acho que já é hora de sair dessa sala. Sozinho, é claro.
Nenhum dos três havia percebido a aproximação do outro homem, que agora estava parado atrás de Hugh.
Claire o identificou rapidamente: era Verel, o escudeiro de lorde Alain.
— E por que deveria me importar com o que você acha, hein? Se está incomodado com minha presença, saia você! — Hugh respondeu, grosseiro. Seus olhos fuzilavam o oponente e a mão escorregava para perto do punho da espada.
— Vá em paz, enquanto ainda pode, Le Gros. Não deseja ser banido dessa sala pôr me desacatar, não é? — Verel argumentou, razoável. — Apenas saia e não volte a importunar essa moça. Tenho certeza de que deve haver, nesse castelo, pelo menos uma mulher que não se importe com seus modos rudes! Portanto, vá procurá-la.
Le Gros continuou a encarar o jovem escudeiro com animosidade, como se estivesse prestes a atacá-lo. Todavia, ao notar a aproximação de sir Gautier, conteve seus ímpetos belicosos e levantou-se, preparando-se para sair.
— Garoto intrometido! — Hugh ainda vociferou, cambaleando devido ao excesso de vinho. — Está fazendo uma tempestade por nada!
— Vai continuar achando que não há motivos, quando milorde o expulsar do castelo por causa de seu jeito fanfarrão? — Annis atacou, defendendo Claire com afinco. — Sei muito bem que já foi advertido outras vezes pelas mesmas razões! De agora em diante, deixe Haesel em paz, ou terá que se ver comigo! Entendeu, seu normando gordo?
Hugh retirou-se da sala, praguejando em francês. Por sorte, antes de corar, Claire lembrou-se que não poderia demonstrar ter entendido todas aquelas obscenidades.
— Ele irá deixá-la sossegada agora, eu espero. Sabe, acho que ele tem medo de mim — Annis gabou-se, com um sorriso afetado. O escudeiro olhou ao redor para não rir.
— Obrigada, Annis — Claire disse, com sinceridade. — Aliás, obrigada aos dois. Estou muito agradecida.
— Bem-vinda a Hawkswell! — Verel saudou, fitando-a com admiração. Logo começou a sorrir-lhe. — Na realidade, foi você quem me fez um favor... Não é bom para um escudeiro passar um dia sem um ato cavalheiresco.
— Ah! Então esse foi o seu "ato cavalheiresco do dia"? — Claire redargüiu, retribuindo o sorriso. Gostava da companhia do jovem escudeiro; ele era muito amável e gentil, o oposto do desconfiado lorde Alain.
Nesse exato minuto, as crianças vieram ao seu encontro, segurando grossas fatias de bolo.
— Já terminamos de comer, Haesel. E você? — Peronelle indagou, jogando-se em seus braços — Ainda não escureceu totalmente... Por favor, podemos ir até o jardim do pátio brincar um pouco de cabra-cega?
Guerin também reforçou os pedidos da irmã. Felizmente, não havia mais nenhum sinal de angústia ou medo pela morte de Ivy nos rostos das crianças.
— Será que seu pai vai se importar?
— Claro que não, Haesel! — o próprio Guerin fez questão de tranqüilizá-la. — Ivy sempre nos deixava ir para o pátio depois do jantar, sempre que o tempo estava bom.
Depois de andar a esmo no alto da muralha que cercava castelo, lorde Alain finalmente sentou-se em um degrau. Estava próximo da torre norte, sobre a passagem que ligava o salão principal com o pátio interno. Lá de cima, pôde ver o mal-humorado Hugh le Gros dirigir-se para seu quarto, com passos cambaleantes.
Ao avistá-lo, sentiu a raiva voltar a envenenar-lhe o sangue e teve vontade de arremessar uma pedra sobre a cabeça do soldado! Mas conteve-se. Não ficaria bem agredir um de seus vassalos, por causa de uma serva recém-chegada ao castelo. No mínimo, iriam pensar que estava apaixonado pela moça.
Que absurdo! Eu, lorde de Hawkswell, apaixonado por uma serva que, além de tudo, é uma desconhecida!, pensou, mais horrorizado diante da hipótese de estar sob o efeito da seta de Cupido, do que pela origem social da moça.
Precisava acalmar-se, ou não conseguiria dormir naquela noite; estava excessivamente irritado... Tinha tanto ódio de Hugh quanto de si mesmo, pois não conseguira manter os olhos afastados de Haesel durante todo o jantar! Pelo menos, tomara o cuidado de admirá-la somente quando tinha certeza de que ela não iria perceber seu olhar. Não queria que Haesel soubesse que havia despertado desejos primitivos e intensos no senhor de Hawkswell.
Mesmo à distância, havia percebido as investidas insolentes de Hugh le Gros sobre a pobre moça. Por isso resolvera deixar o salão, antes que perdesse a paciência e acabasse dando um soco no soldado!
"Nossa, o que está acontecendo comigo?", indagou-se, angustiado. Sentia algo diferente por Haesel, um sentimento que jamais havia experimentado antes. Não era apenas desejo de tocar aquele corpo voluptuoso, beijando seus cabelos loiros com sofreguidão; queria muito mais do que isso! Afinal, Gilda bastava para aquecê-lo, quando seu corpo clamava pelas carícias de uma mulher.
Deu um suspiro, amargurado.
Ah! Como gostaria de mimá-la e protegê-la, deitar a cabeça em seu colo para que ela me afagasse como faz com meus filhos!
Apesar de forte, esse desejo era insano! Não tinha a mínima intenção de se casar, nem de ter uma vida em comum com nenhuma mulher. Prova disso, é que preferia visitar a amante ruiva em sua cabana, do lado de fora da muralha, do que trazê-la para a segurança do castelo. Assim, podia partir quando quisesse.
Suspeitava que Gilda também apreciava aquele arranjo; afinal, isso lhe garantia liberdade para receber outros amantes, enquanto lorde Alain estava ocupado longe dali. Até mesmo a possibilidade de Gilda dormir com outros homens jamais o incomodara... Então por que ficara furioso com Hugh le Gros por ter tentado seduzir Haesel?
Era inútil tentar se convencer de que pretendia apenas evitar que as mulheres do castelo fossem molestadas pelos homens. O ódio que sentira, ao ver Hugh colocar a mão no joelho de Haesel, impedia Alain de se agarrar a essa desculpa... Aliás, pelo mesmo motivo, não podia alegar que se preocupava com a moça apenas porque seus filhos gostavam dela...
Nesse instante, risos infantis, vindos do pátio, fizeram-no abandonar aqueles devaneios. Levantando-se, deixou que a brisa quente de verão soprasse em seu rosto, sob a luz prateada da lua.
Lá embaixo, Peronelle e Guerin gritavam e riam, cheios de alegria, enquanto giravam Haesel, que estava com uma venda nos olhos.
Depois de soltá-la, as crianças começaram a correr ao seu redor, rindo com mais intensidade sempre que ela roçava os dedos por suas túnicas, sem, contudo, conseguir agarrá-los.
Por fim, Peronelle aventurou-se perto demais e Haesel conseguiu prendê-la. A menina ainda tentou se soltar, mas seus esforços foram inúteis diante da sagacidade e rapidez da jovem ama.
Atento à brincadeira, lorde Alain ouviu os protestos da filha se transformarem em risos de felicidade, quando a ama a dominou, fazendo-lhe cócegas na barriga.
Então Haesel deu-lhe um abraço carinhoso, beijando-lhe o cabelo negro.
Seu coração de pai encheu-se de ternura, diante daquele gesto afetuoso, que parecia tão natural para Haesel como a própria respiração. Entretanto, conforme seu olhar afastou-se delas, viu que Guerin estava parado, perto das duas, esperando por um pouco de carinho.
Embora seu rosto infantil não deixasse dúvida do quanto desejava ser afagado pela nova ama, não movia um músculo para chamar sua atenção.
Esse menino tem a dignidade de um nobre!, Alain observou, orgulhoso do menino. Ao mesmo tempo, sentia remorso por vê-lo tão solitário. Se pudesse, gritaria para que Haesel também o abraçasse...
De repente, Haesel tirou a venda e segurou o braço de Guerin, puxando-o para perto de si. Então ela o abraçou com o mesmo carinho e afeição que demonstrara por Peronelle, fazendo a felicidade de pai e filho.
Não demorou muito e as crianças acabaram derrubando a ama na relva, aninhando-se em seu colo, como se fossem pequenos pássaros em busca de afeto e proteção maternais. Os três riram, felizes, dando a impressão de que se conheciam há anos.
Lorde Alain não desviava os olhos daquela cena, encantado com a meiguice de Haesel. Talvez a jovem ama não tivesse conquistado apenas o coração das crianças, mas também o do próprio senhor daquele castelo...
De qualquer forma, só o tempo poderia confirmar isso...
As crianças já haviam adormecido há um bom tempo e Claire continuava acordada, rolando de um lado para outro no catre estreito e duro que lhe deram. Sua cama, se é que aquele colchão rústico e irregular sobre uma armação de madeira poderia ser considerado como tal, ficava entre os leitos de Guerin e Peronelle, para que pudesse acordar, ao menor ruído ou chamado de seus pupilos.
Nunca imaginara que fosse sentir tanta saudade de sua cama macia e confortável, revestida com perfumados lençóis de linho! Bem, de fato, se realmente fosse uma serva inglesa rude e ignorante como Haesel, aquela cama simples teria sido a melhor de toda sua vida.
Quando já estava quase pegando no sono, um pensamento tenebroso passou por sua mente, despertando-a de imediato. O que teria acontecido com Ivo e Jean, os homens de Hardouin foram capturados por Alain de Hawkswell? Meu Deus! Estivera tão envolvida com os acontecimentos das últimas horas, que se esquecera completamente deles!
Sentou-se na beira da cama, com o coração aos pulos e a garganta seca. Estava em pânico! O corpo parecia petrificado, como se uma feiticeira a tivesse transformado em pedra; mas a mente trabalhava em ritmo acelerado, formulando uma série de hipóteses para o problema.
Será que lorde Alain havia torturado os prisioneiros para descobrir o que faziam nas proximidades do castelo?
"Ele disse que os prisioneiros estavam em uma cela, abaixo do celeiro", pensou, recordando uma conversa que ouvira entre lorde Alain e sir Gautier.
Nossa! Provavelmente, a essa hora, estariam em um cubículo escuro e úmido, debaixo da terra, com os corpos quebrados e cheios de feridas... Afinal, era muito comum torturar prisioneiros para se obter informações.
Imagens horríveis dos aparelhos utilizados para tortura nos calabouços dos castelos povoaram a mente de Claire, fazendo-a sentir remorsos por estar desfrutando daquele conforto relativo. Pois, apesar de tudo, estava segura e alimentada, em um local quente e limpo.
Ivo e Jean, como o resto dos homens que a escoltaram até Hawkswell haviam tratado Claire de modo rude, contudo não lhe faltaram com respeito. De qualquer modo, importava-se com seus destinos, pois não suportava ver ninguém sofrendo...
Sim, já havia decidido! No dia seguinte iria procurá-los para saber o que lhes acontecera e ver se poderia ajudá-los. De repente, na escuridão do quarto, um pensamento ainda mais assustador tomou-a de assalto... E se, sob tortura, eles tivessem revelado sua identidade e os verdadeiros propósitos de sua presença no castelo?
Durante alguns segundos, Claire teve a sensação de que o coração havia parado de bater e o sangue estava frio como se estivesse à beira da morte. Não conseguia pensar em nada, tamanho era seu nervosismo.
Aos poucos começou a respirar fundo, lutando para se acalmar. Do contrário, não conseguiria refletir sobre a situação caótica em que estava metida...
Lorde Alain não era o tipo de homem que permitiria que um traidor permanecesse cinco minutos entre suas paredes depois de ter sido desmascarado. Deixar que jantasse no salão ou brincasse com seus filhos, acabando até por dormir no mesmo quarto que eles, estava totalmente fora de cogitação! Portanto Ivo e Jean não haviam revelado nada, ou então ainda não tinham sido torturados...
Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Não conseguia imaginar que aqueles homens rudes e cruéis, recrutados pessoalmente por Hardouin na Normandia, ficassem em silêncio diante da dor, apenas para proteger uma mulher. Mais do que nunca, era imperativo encontrar Jean e Ivo dia seguinte! Talvez, se lhes prometesse uma recompensa adicional quando aquela missão chegasse ao fim, conseguiria convencê-los a guardarem segredo sobre ela.
Na manhã seguinte, quando Claire e as crianças entraram no salão principal, ela percebeu que teria que colocar de lado seus planos para encontrar Jean e Ivo.
Ao menos, por algum tempo.
Muitos habitantes do castelo de Hawkswell já estavam acordados, participando da primeira refeição do dia, incluindo o próprio lorde Alain. Aliás, ao avistar os filhos, ele fez sinal para que a ama os levasse ao seu encontro.
— Crianças, façam a refeição com rapidez — disse, ignorando por completo a presença de Claire. — O funeral de Ivy terá início assim que os servos terminarem de limpar esse salão. Portanto temos pouco tempo para ir à capela, render-lhe nossas últimas homenagens.
Guerin e Peronelle arregalaram os olhos, assustados, ficando imóveis perto de Claire. Essa atitude pareceu irritar o pai, que contraiu os músculos da face, impaciente.
— É melhor começarem logo a comer. O tempo está se esgotando.
Claire engoliu em seco, transbordando de indignação. Antes de mais nada, ele deveria dar bom dia aos filhos!
Além disso, as crianças ainda estavam meio sonolentas para que ele lhes falasse com tanta rispidez e, ainda por cima, sobre um assunto tão triste quanto aquele.
Ele é um insensível, sem coração!, explodiu, mentalmente, é claro, já que não poderia externar sua revolta como Haesel.
Depois de acomodar as crianças ao lado de lorde Hawkswell, ela se dirigiu ao seu lugar, na mesa dos servos, tomando a precaução de baixar os olhos. Pois, se alguém olhasse dentro deles, veria o brilho da revolta, completamente inadequado para uma humilde serva.
Era óbvio que também teria que comparecer ao funeral de Ivy para dar apoio às crianças, o que lorde Alain certamente não faria. Será que ele era tão insensível, a ponto de não perceber as marcas de sofrimento naquelas faces infantis? Guerin tentava ser forte, mas ainda estava muito abatido com a morte da ama. Quanto à irmã, apesar dos esforços de Claire para consolá-la, ainda tinha dificuldade para aceitar o fato de que o corpo de Ivy seria colocado debaixo da terra.
As crianças ainda não tinham terminado de comer o pão, quando lorde Alain subitamente levantou-se, comunicando:
— Vamos, já está na hora.
Guerin ergueu-se de imediato, engolindo seus temores junto com um gole de leite, para seguir os passos do pai. Contudo Peronelle não demonstrou a mesma coragem...
A menina tardou a sair da mesa, lançando olhares aflitos na direção de Claire. Só conseguiu reunir forças para prosseguir quando viu que a ama também havia se levantado. Então correu até a entrada da sala, ficando à sua espera.
— Não se preocupe, querida. Tudo vai acabar bem — Claire murmurou, segurando a mão minúscula que a menina lhe estendera. Peronelle estava gelada, como se tivesse brincado na neve, e seu rosto, sempre tão faceiro, perdera todo o colorido e a vivacidade.
Movida por um impulso incontrolável de ternura e amor, abraçou a criança, mantendo-a de encontro ao peito até perceber que ela estava mais calma.
— Agora precisamos ir, querida — disse, com um sorriso confiante.
Peronelle enxugou as lágrimas e, de mãos dadas com Haesel, apressou-se a seguir o pai, que já estava bem distante. O sol estava começando a iluminar o pátio, praticamente deserto e silencioso à essa hora. Dentro de poucos minutos, o movimento de servos, soldados e cavaleiros tomaria conta daquele lugar, agora ocupado apenas por algumas galinhas, porcos e cabras.
Guiadas por Peronelle, atravessaram o imenso pátio, quase duas vezes maior do que o do Castelo de Coverly, rumando para a torre sul, do lado direito do portão principal. Lorde Alain e Guerin seguiam bem à frente e, durante todo o percurso, não se voltaram uma só vez para trás. Por fim, elas chegaram ao seu destino: a capela onde o corpo de Ivy estava sendo velado.
A capela do Castelo de Hawkswell era uma construção antiga, de dois andares, toda feita de pedras. O oratório ficava sob a reentrância de uma enorme janela, decorada com um vitral da Virgem Maria orando. Sobre o altar havia um belíssimo e antigo crucifixo de madeira, em cuja base ficava um cordeiro e acima da cruz, uma pomba de prata. Um feixe de luz do sol atravessava o vitral e incidia diretamente sobre o rosto da ama, desmanchando-se em raios vermelhos, azuis e dourados.
— Olhe o rosto de Ivy, Haesel! — Peronelle exclamou, assim que puseram os pés na capela. — Parece um arco-íris! — A voz da menina ecoou por toda a capela, chamando a atenção de lorde Alain.
Imediatamente, ele olhou na direção da filha, sem ocultar a surpresa que a presença de Haesel lhe causava. No entanto não lhe dirigiu a palavra, limitando-se a fazer um gesto para que Peronelle se aproximasse.
Sem saber se era bem-vinda, Claire permaneceu na soleira da porta.
— O rosto de Ivy está assim por causa do sol da manhã que reflete as cores do vitral — lorde Alain explicou, apontando para a imagem colorida da Virgem Maria.
Enquanto a menina ainda tentava entender a mágica daquele fenômeno, olhando ora para o corpo da velha ama, ora para o vitral, ele voltou a dizer:
— Agora precisamos rezar pela alma de Ivy, crianças.
— Rezarei, papai. Mas, ela não precisa de nossas orações... — Guerin anunciou, convicto de suas palavras. — Ivy era tão boa que foi direto para o céu, tenho certeza disso.
Claire observou lorde Alain contemplar o filho com uma expressão indecifrável.
— Não há dúvida de que está certo quanto à bondade de nossa Ivy, Guerin. Nesse caso, talvez deva rezar para que Deus o ilumine para que seja tão bom quanto ela foi — explicou, com sabedoria. Em seguida, ajoelhou-se e uniu as mãos para orar.
Claire também tentou rezar mas não conseguiu se concentrar na oração. Só conseguia pensar na imagem do poderoso senhor, ajoelhado junto dos filhos, orando por uma simples serva de seus vastos domínios. Além do mais, outro raio de sol começou a incidir sobre aquela cabeleira negra, criando a ilusão de um halo de luz acima de sua cabeça.
Ele merece esse halo tanto quanto Hardouin! No fundo, eles não são nada diferentes!, pensou, irônica e amargurada.
— Pai — Guerin chamou, assim que Alain ergueu a cabeça. — Quando era um garotinho, Ivy também costumava lhe dar um beijo de boa-noite, depois de contar histórias sobre Jesus e seus apóstolos?
Claire levou um choque. Até agora não tinha percebido que Ivy não fora apenas ama de Guerin e Peronelle, mas havia cuidado do próprio lorde Alain!
Com os olhos atentos a cada movimento dele, viu que piscou duas ou três vezes, emocionado, antes de responder ao filho. Então compreendeu que ele também estava enfrentando a perda de uma pessoa querida e sofria com isso.
Será que esse é o motivo que o levou a ser rude no salão?, indagou-se, em pensamento, cada vez mais atônita quanto personalidade de Alain de Hawkswell. Ele parecia ter poder quase sobrenatural para surpreendê-la.
— Sim... — ele respondeu, enfim, após um longo silêncio. — Mas, naquela época, Ivy preferia contar as histórias de Beowulf, o Grande Cavaleiro. Acho que dei-lhe bastante trabalho... Fui um garoto muito peralta, que se cansava de aprontar travessuras.
Seus olhos negros estavam inexpressivos, como se estivesse muito longe dali. Debruçando-se sobre o caixão, posou um beijo na testa de alabastro da antiga ama. Após um instante de hesitação, as crianças repetiram seu gesto. Pouco tempo depois, o som inconfundível de muitos passos chegou até a capela, anunciando o início da missa. Peronelle então virou-se para Haesel, fazendo-lhe sinais para que ela se aproximasse.
Claire olhou para lorde Alain, porém, mais uma vez, ele limitou-se a ignorá-la. Interpretando aquilo como uma autorização, foi para perto de seus pupilos, de onde assistiu a toda a cerimônia.
Quando a missa chegou ao fim, oito servos seguraram o caixão, carregando-o para fora da capela, com passos lentos e solenes. Padre Gregory abria o cortejo fúnebre, acompanhado por dois coroinhas, enquanto lorde Alain, seus filhos e Haesel vinham logo após o corpo. Os demais habitantes do castelo, que decidiram participar do enterro, seguiam atrás do senhor de Hawkswell.
Em silêncio quase absoluto, quebrado apenas pelas orações em latim de padre Gregory, atravessaram o pátio e saíram do castelo pelo portão principal. Pois, para chegar ao cemitério, a procissão tinha que passar pelos casebres, aos pés da muralha sul do castelo, que constituía o vilarejo de Hawkswell.
Durante o percurso, todos que cruzavam com o cortejo, ajoelhavam-se e faziam o sinal da cruz, ou então fechavam portas e janelas, com o intuito de demonstrar respeito. No entanto, contrariando esse costume, em certo momento, uma mulher alta e esguia, cujos cabelos ruivos ficavam pouco escondidos debaixo do véu, emergiu de uma das casas. Ela ficou a observar a procissão, como se admirasse um desfile de artistas saltimbancos. Tinha uma expressão provocante e lasciva no rosto.
Mesmo antes que sir Gautier dirigisse um gesto de reprovação para a mulher, Claire soube instintivamente que se tratava de Gilda, a amante do senhor de Hawkswell.
Por sua vez, assim que a avistou, lorde Alain fez um aceno com a cabeça, dando permissão para que Gilda se juntasse ao cortejo.
Claire ficou decepcionada consigo mesma, ao perceber que a simples visão daquela mulher a deixava furiosa. Afinal, não era da sua conta se a amante de lorde Alain participava ou não do enterro da velha ama!
Claire, você está aqui para realizar uma tarefa para Hardouin que irá valer sua liberdade! Nada do que acontecer aqui deve lhe importar!
O enterro transcorreu na mais perfeita calma, sem nenhum incidente para atrapalhá-lo. Mesmo as crianças agiram de modo exemplar, deixando Claire aliviada e orgulhosa. Estivera muito preocupada com a reação de seus pupilos, principalmente de Peronelle, quando o caixão afinal baixasse à cova.
Felizmente, antes que começassem a cobrir o buraco na terra, Annis aproximou-se das crianças, entregando-lhes duas rosas. Em seguida, sussurrou-lhes algo no ouvido e os dois jogaram as flores sobre o caixão. Essa atitude simbólica conseguiu preparar-lhes o espírito para o próximo e derradeiro passo do enterro.
Quando o coveiro começou a jogar terra sobre o caixão, Guerin e Peronelle choraram, mas não fizeram nenhum escândalo.
Agora tudo havia terminado. Um a um, todos foram saindo do cemitério, passando ao largo da nova sepultura. A atmosfera era densa, carregada de tristeza e sofrimento.
Claire havia se esquecido completamente de seus planos para localizar Ivo e Jean. No momento, só se importava em achar algo agradável que pudesse distrair Peronelle e Guerin. Era de cortar o coração ver a melancolia tomar posse daqueles rostos infantis...
Talvez, nos próximos dias, pudesse levá-los até um jardim para que colhessem flores, com as quais iriam decorar a sepultura de Ivy. Agora, entretanto, esquecer aquela cerimônia seria o melhor remédio.
Só que nem tudo correu como estava planejando...
— Terá algumas horas de descanso, Haesel — lorde Alain a informou, com voz retumbante. — As crianças devem assistir às aulas com padre Gregory, como de costume.
— Mas, milorde... — tentou protestar, porém calou-se a tempo, engolindo a indignação. Não era conveniente .que uma serva contestasse a ordem de um superior, ainda mais tratando-se do próprio senhor do castelo.
"Mas, por Deus! Será que ele não compreendia que os filhos precisavam de um pouco de distração, em vez das lições aborrecidas de um padre?"
— Acho que será melhor se Guerin e Peronelle seguirem sua rotina habitual — ele explicou, como se pudesse ler os pensamentos tortuosos de Haesel. — Ficará livre até a hora do jantar.
Esse não é um dia comum, milorde... pensou em argumentar, porém não emitiu uma só palavra. Com uma expressão desolada, limitou-se a olhar as crianças se afastarem com o padre. Embora se esforçasse para não demonstrar os verdadeiros sentimentos que lhe iam pela alma, bastava um mínimo de sensibilidade para perceber os vestígios de raiva pulsando em cada músculo de sua face.
Essa serva inglesa é bastante incomum, Alain concluiu, intrigado. Pois, mesmo acalentando nítidos desejos de revolta, Haesel era inteligente e perspicaz para conter seus ímpetos.
Notando a ruga de apreensão na testa de lorde Alain, Claire resolveu frear os impulsos belicosos que lhe turvavam a mente. Em vez de atracar-se com o senhor daquele castelo, deveria gastar energias na conclusão daquele plano, que representava sua liberdade. Sem as crianças, teria a oportunidade de localizar os dois prisioneiros.
— Há algum problema se eu explorar o castelo, milorde? — indagou, tomando cuidado para manter os olhos baixos e o tom de voz subserviente. Para dar um toque de realismo àquelas palavras, teve que recorrer a uma mentira: — Nunca estive em um lugar tão grande e rico como esse! Na cabana onde morava, havia apenas um cômodo e, durante o inverno, tinha que dividi-lo com a vaca e o porco.
Um ar de desgosto apoderou-se daquele rosto moreno e viril; porém, não tardou a desaparecer, dando lugar a uma expressão de profundo tédio.
— Não me interessa o que faz do seu tempo, enquanto as crianças estiverem com padre Gregory — comunicou, ríspido. — Apenas não distraia os homens que estão de guarda nos portões e não aborreça Guy, o ferreiro. Ele estará colocando as ferraduras no meu cavalo de guerra e sempre fica de mau humor quando faz isso.
Sem fazer mais nenhuma consideração, lorde Alain se virou, começando a deixar o cemitério com os outros.
Contudo sir Gautier veio se juntar a ele, apressado.
— Milorde, há muitos assuntos que exigem sua atenção. O chefe da guarda quer lhe falar, seguido pelo carcereiro. E também há correspondência da imperatriz...
Claire tomara a precaução de manter-se próxima o bastante parar ouvir a conversa entre os dois homens. Por isso, quando o serviçal mencionou a figura da imperatriz, teve um sobressalto.
Correspondência de Matilde!, repetiu mentalmente, cheia de esperanças. Precisava ter acesso ao conteúdo daquela mensagem de qualquer forma, pois poderia conter algo que interessasse ao tio. Talvez, se aquela informação fosse muito valiosa para Hardouin, ele acabasse desistindo da idéia grotesca de raptar as crianças!
— Como sempre, sua majestade exige que lhe responda imediatamente e queime a carta, assim quer terminar a leitura — sir Gautier acrescentou, para desespero de Claire.
Os dois homens estavam conscientes de sua presença. No entanto, como julgavam que ela não compreendesse francês, falavam sobre aqueles assuntos de estado sem nenhum constrangimento.
Fingindo-se de desentendida, ela teve que reprimir a frustração que a invadiu ao ouvir a última frase. Seu plano havia ido por água abaixo... Pelo visto, dificilmente teria a chance de ler aquela carta, antes que fosse destruída.
— Sim, sim... — lorde Alain resmungou, com traços de impaciência na voz. — E o que mais?
— Ah! O chefe do canil pediu-me para informá-lo que sua cadela favorita acabou de dar à luz uma ninhada e...
Com um suspiro pesado, ele interrompeu sir Gautier:
— Infelizmente, os cãezinhos terão que esperar. Antes de tudo, verei o chefe da guarda e o carcereiro. Em seguida, encontre-me em meus aposentos para vermos o que Matilde deseja dessa vez.
Nesse momento, os três chegaram à escada externa que conduzia ao salão principal, onde ela finalmente deixou de segui-los. Enquanto os homens rumavam para o grande salão, Claire seguiu para o pátio.
Estava aliviada. Parece que lorde Alain tinha afazeres de sobra para mantê-lo ocupado durante todo o dia. Portanto poderia circular pelo castelo, à procura dos soldados de Hardouin, sem se preocupar em ser flagrada em algum lugar suspeito pelo senhor de Hawkswell.
Com um estudado ar de inocência, dirigiu-se ao celeiro, rezando para que pudesse encontrar a cela com facilidade. Em seu percurso, cumprimentou vários conhecidos, fazendo de tudo para não despertar a atenção de nenhum morador do castelo.
Depois de adaptar a visão à penumbra do celeiro, constatou que, por sorte, não havia nenhuma pessoa presente. Pilhas e mais pilhas de sacos de grãos, frutas, carne e peixe salgados iam do chão de pedras ao teto, deixando o ar impregnado com um odor forte, que mesclava o cheiro de todos esses alimentos. Porém não havia nem sinal de portas, escadas ou qualquer outro tipo de passagem que levasse a um piso inferior. Será que ele havia se referido a outro celeiro do castelo?
— Não pode ser... — sussurrou, dando voz aos pensamentos. Poderia haver outros depósitos de mantimentos em um castelo, porém, um único lugar recebia o nome oficial de celeiro. Definitivamente, estava no lugar certo. Bastava apenas procurar melhor.
Conforme avançava para o interior do cômodo gigantesco, um silêncio sobrenatural apoderou-se do lugar, deixando Claire arrepiada. Mas, embora estivesse com muito medo, não desistiu, passando a examinar tudo com atenção dobrada.
Andava pé ante pé, temendo deparar-se com alguma aranha ou rato, seu grande pavor desde a infância, ou , então algo muito pior... Poderia ser surpreendida por algum guarda.
Sua imaginação fértil, incentivada pelo pavor, pregava-lhe muitas peças. A todo instante, imaginava que um soldado enorme e mau sairia do meio dos mantimentos para atacá-la. Por fim, com os nervos à flor da pele, resolveu dar por encerrada aquela inspeção, concluindo que a cela deveria ficar em outro ponto do castelo.
Justamente quando estava saindo daquele lugar soturno, a poeira e o cheiro de bolor, vindos de alguns mantimentos estocados, demonstraram sinais de força... Infiltrando-se nas narinas de Claire, provocaram-lhe alguns espirros.
Logo a seguir, ela ouviu um ruído distante e abafado, como se fosse um lamento. Teria vindo do assoalho?
Com a pulsação acelerada, permaneceu imóvel e com os ouvidos bem abertos, à espera de mais algum som e a guiasse. Como não aconteceu mais nada nos momentos que se seguiram, decidiu arriscar...
— Olá. Tem alguém ai? — perguntou em inglês. A princípio, o único som que chegou aos seus ouvidos eram as batidas apressadas de seu coração. Contudo, escutou uma voz masculina, que parecia sair do piso de pedras...
— Quem está aí? — alguém retrucou, em inglês com sotaque normando.
— Eu... — disse, calando-se abruptamente. Deveria identificar-se como Claire ou Haesel? Afinal, como poderia ter certeza de que falava com um dos homens de Hardouin. — Quem é você? — decidiu indagar, atenta à direção do som.
— Ivo de Caen! E você, quem é? — A voz parecia passar pelas fendas entre as pedras, bem debaixo de onde Claire estava.
— Ivo! Há mais alguém com você? — Não poderia revelar-se até que tivesse a certeza de que não havia nenhum guarda com o soldado do tio.
— Somente Jean — respondeu, passando a falar em francês. — É você, lady Claire?
— Sim... — Também começou a usar a língua francesa. — Aonde estão?
— Está no celeiro, não é?
— Isso mesmo.
— Bem, estamos em uma cela, bem debaixo de você. Venha até aqui.
— Mas como? Não vejo nenhuma porta.
— Há um alçapão no assoalho. Tateie até encontrá-lo!
— Está certo — ela assentiu.
Arrependida por não ter trazido um lampião ou mesmo uma vela, Claire passou a tatear cada centímetro do chão com os pés até esbarrar em uma saliência mais acentuada. Agachando-se, ergueu aquela pedra com as mãos, descobrindo uma argola de ferro, com cerca de quatro polegadas de diâmetro.
— Acho que encontrei... — comunicou, ofegante. — É uma argola de metal?
— Isso mesmo! Agora, puxe-a para cima e venha até aqui! — Ivo ordenou, irritado com aquela demora.
Por um momento, Claire hesitou, sentindo o rubor subir-lhe à face, diante daquele tom desrespeitoso. Mas, creditando a irritação do soldado ao seu confinamento, acabou seguindo suas indicações.
No começo, apesar de seus esforços, o alçapão não se moveu. Porém, como mantivesse força constante, acabou por suspendê-lo, o que revelou uma passagem estreita para baixo. Olhou dentro do buraco, avaliando os prós e os contras de entrar ali. Lá adiante, havia uma luz fraca, mas suficiente para tornar possível a descida por uma escada de pedra bastante íngreme. Porém, não havia nenhum sinal de Ivo ou Jean. Será que acabaria dentro da cela, onde eles estavam?
Esse pensamento causou-lhe calafrios.
Apesar de estarem supostamente do mesmo lado, não confiava em nenhum daqueles homens que a escoltaram de Coverly até Hawkswell. Eles pareciam olhá-la como se fossem lobos famintos diante de uma ovelha desprotegida.
— Essa escada acaba diretamente dentro de sua cela? — quis saber, antes de mergulhar naquele lugar assustador.
Ouviu gargalhas desprezíveis.
— Acha que o barão de Hawkswell seria tão tolo, a ponto de permitir que assustássemos os homens que vêm nos trazer comida? Não, milady, nossa cela fica na base da escada. Desça até aqui e verá.
Seria um truque para agarrá-la? Pode ser... Mas, de qualquer forma, não poderia manter aquele impasse por mais tempo. Alguém poderia chegar.
Reunindo toda a coragem de que dispunha, resolveu ir ao encontro dos homens de Hardouin.
As paredes eram úmidas e frias, mas não havia lodo cobrindo-as. E, uma vez lá embaixo, viu que a precária iluminação vinha de uma tocha, fixada ao lado de uma porta de madeira, com um buraco na parte superior, protegido por barras de ferro. Esse buraco, apesar de pequeno, permitiu que visse os rostos de Ivo e Jean.
— Já era hora, milady! — Jean a saudou, satisfeito.- Trouxe a chave para nos soltar?
— Chave?! — repetiu, perplexa. — Não, claro que não! Não sei onde é guardada. Vim apenas para ver como estavam.
— Não lhe disse que ela não se preocuparia em trazer a chave? — ouviu Ivo dizer a Jean.
Reprimindo a indignação por mais aquela amostra de desrespeito, voltou a perguntar:
— Já foram interrogados? Passaram por alguma tortura?
— Sim, já fomos interrogados pelo próprio barão de Hawkswell. Mas não lhe dissemos nada.
— Não foram feridos? — insistiu na pergunta, preocupada com o estado dos dois homens. — Estão bem?
— Claro que não estamos bem! Passamos apenas por um interrogatório, não por uma sessão de tortura! Todavia estamos com fome, frio e a comida que milorde nos envia mais parece lavagem de porcos! — Jean informou, em uma explosão de fúria.
— Ele disse que os torturaria? — continuou insistindo, ignorando a má vontade dos homens. Não suportava a idéia de tortura, nem de pessoas presas em condições sub-humanas. Dando uma espiada através das barras, sentiu a ansiedade diminuir. Embora fosse pequena, havia cobertores e palha na cela.
— Não, mas certamente o fará! Por isso encontre a chave e tire-nos daqui depressa!
Claire exasperou-se com a truculência daqueles homens. Afinal, não haviam sido torturados e também não estavam em condições desumanas.
— Sinto que tenham sido presos. Mas não será assim tão simples libertá-los! — comunicou, imprimindo um toque de autoridade na voz. — Mesmo se conseguisse tirá-los dessa cela, acabariam recapturados, tentando escapar do castelo.
Sentiu farpas de ódio saírem dos olhos dos dois. Contudo não se intimidou, prosseguindo com sua explicação.
— Isso iria significa o fim de nossa missão a favor do rei Estevão! Lorde Alain moveria céus e terras para descobrir quem os havia libertado.
Ivo fez um gesto obsceno, mostrando que pouco se importava com a causa de Estevão.
Disposta a não permitir que eles a tirassem do sério, Claire agiu como se não tivesse visto aquela provocação.
— Precisam ser pacientes. Talvez, quando lorde Alain ficar convencido de que não sabem nada, concorde em libertá-los.
— Claro que sim, e o Papa é uma mulher! — Jean redargüiu, uma risada grotesca.
— Pelo menos, terão que esperar até que eu aprenda a me deslocar por esse castelo. Quero lembrá-los de que estou aqui há menos de um dia — ponderou com firmeza, demonstrar medo. — Assim que for possível soltá-los com uma boa margem de segurança, eu o farei! Enquanto isso, tentarei trazer-lhes algo melhor para comerem.
— Nossa, quanta gentileza de sua parte, milady! Estou emocionado com seu espírito caridoso! — Ivo resmungou. — A culpa é toda sua por estarmos aqui!
— Minha!?
— Sim! Teríamos encontrado um meio de raptar os filhos de lorde Hawkswell sem sua ajuda... Mas teve que se intrometer em nosso caminho, não é?
Como ele ousava tratá-la daquela forma vulgar e, ainda por cima, acusá-la de um monte de mentiras! Jamais pedira a Hardouin para participar daquele plano!
Ao contrário, fora praticamente forçada a tomar parte dele, mesmo ferindo sua consciência!
— Não me culpem por sua própria incompetência! — repreendeu, com firmeza digna de uma rainha. — Se tivessem se escondido corretamente, lorde Alain jamais teria capturado!
De repente, um ruído de passos interrompeu aquela discussão. Logo, a chama bruxuleante de uma tocha passou a iluminar a escada.
Com o sangue congelando dentro das veias, Claire teve a sensação de que o coração parou debater por alguns segundos.
— Quem está aí? — um voz inconfundível indagou, em francês.
Lorde Alain! Mas o que ele faria ali, àquela hora? Será que já havia se desvencilhado do chefe da guarda, do carcereiro e da correspondência da imperatriz Matilde?
— Já disse, quem está aí? — voltou a perguntar, dessa vez em inglês.
Não havia escapatória. Por mais difícil que fosse, teria que enfrentar aquela situação...
— Sou... eu, milorde... Haesel — gaguejou, em pânico, diante da possibilidade de ser desmascarada.
Ele terminou de descer a escada, antes de tornar a lhe dirigir a palavra.
— O que faz aqui, Haesel? — Sua voz estava tão fria como as paredes que os rodeavam. — Por que está falando com esses homens?
Buscando refúgio na figura da serva simplória, Claire tentou explicar o que parecia impossível:
— Disse que eu podia andar pelo castelo, milorde... Acabei vindo ao celeiro e esse homens me chamaram. Isso é tudo! Não pretendia provocar sua ira, eu juro! — Nesse ponto, estava sendo sincera.
Fez uma pausa, esperando alguma reação exasperada de Alain. Porém ele permaneceu em silêncio, perscrutando seu rosto, com um olhar desconfiado e impiedoso.
— Fiquei com pena deles... — voltou a falar, enquanto as pernas tremiam mais do que as bandeiras do castelo em dia de ventania. — Disseram que estavam com frio e fome, milorde... Só queria diminuir seu sofrimento como uma boa cristã.
Por um segundo, ela teve o pressentimento de que a ira de Alain era tão grande que iria esbofeteá-la. Mas ele não moveu um músculo sequer, aumentando o nervosismo e a angústia de Claire.
— Sua piedade é tão grande a ponto de levá-la para dentro da cela desses homens, Haesel? Talvez assim, possa fazer de tudo para aquecê-los e tornar sua estada aqui mais agradável... — acabou quebrando o silêncio com esse comentário mordaz.
Lágrimas sentidas e autênticas rolaram de seus olhos, por ser humilhada daquela maneira. Sabia que ele estava com a razão, afinal, não passava de uma espiã enviada pelo inimigo. Contudo era doloroso ter que aceitar a verdade.
— Claro que não, milorde! — exclamou, entre soluços.- Só estava falando com eles!
Passaram-se mais alguns minutos, longos e angustiantes, até que Alain finalmente tornou a falar. Durante todo o tempo, entretanto, ele a mediu de alto a baixo, cheio de desconfiança.
— Muito bem, Haesel. Vamos dizer que, dessa vez aceitarei sua desculpa. — Seu rosto estava tomado por desgosto e suspeita. — Nunca mais volte aqui embaixo, entendeu?
Ela fez um sinal aquiescente com a cabeça, enquanto as lágrimas molhavam-lhe a tez macia.
— Esses homens são mercenários, perigosos e cruéis. Não teriam o menor escrúpulo em estuprá-la e cortar seu pescoço no instante seguinte. Agora, saia daqui!
Claire não esperou segunda ordem. Subiu a escada o mais depressa que suas pernas trêmulas lhe permitiram. Mentalmente, agradecia a Deus que Alain não a tivesse ouvido falar em francês.
Assim que Haesel partiu, Alain voltou-se aos seus hóspedes involuntários, que estavam atrás das grades da porta.
— Bem, já tiveram tempo suficiente para reconsiderarem suas posições durante a noite. Portanto, de uma vez por todas, o que estavam fazendo na floresta de Hawkswell?
— Já lhe dissemos... Estávamos indo ao encontro das forças do rei Estevão — o homem chamado Jean respondeu, com má vontade.
— Como ontem, continuo a não acreditar nisso! — Alain redargüiu, com uma segurança que estava longe de sentir; ainda mais depois de ter encontrado a nova serva conversando com os prisioneiros. — Nenhum batalhão de Estevão está acampado nas proximidades de Hawkswell, pois tenho o controle absoluto do vale.
— Se não quer acreditar no que dizemos, o problema é seu! — o outro homem afirmou, ríspido.
— Acham que sou um idiota para cair nessa história absurda? Pois quem está em apuros aqui são vocês, não eu! Afinal, não estou confinado em uma cela — Alain devolveu a provocação, com um sorriso de ironia nos lábios. Em seguida, franziu o cenho, adquirindo uma expressão impiedosa. — Por que estão aqui? Esperavam se infiltrar no castelo?
— Não, milorde. O que ele disse é verdade! — o prisioneiro de nome Ivo garantiu.
— É uma pena que continuem a insistir nessa mentira. — Alain comentou, sacudindo os ombros com descaso.
— Então vai nos torturar, milorde? Não temos medo! — Jean bradou, embora a inquietude em seu olhar denunciasse o contrário.
— Pode ser... Ou talvez, simplesmente, esqueça que estão aqui embaixo... — Deu uma risada ameaçadora. — Imaginem, homens, nada de comida ou de água, ninguém para visitá-los... As horas transformando-se em dias, os dias em semanas... Por quanto tempo agüentariam?
— O bastante para ver esse castelo cair nas mãos de Estevão! — Ivo fez questão de retrucar, cuspindo para o lado com desprezo.
Aquela resposta seria apenas uma provocação, ante a ameaça iminente de tortura ou de fome? Ou talvez, conhecendo algum plano de Estevão para atacar o castelo em breve, acreditassem em uma libertação rápida? Só o tempo poderia solucionar essa dúvida...
Embora não deixasse transparecer, Alain não aprovava o uso de tortura para arrancar informações de nenhum prisioneiro. Por isso a melhor alternativa para fazer com que falassem seria mantê-los presos pelo máximo de tempo. Assim acabaria minando a confiança e a resistência de ambos.
O fato inesperado nessa história toda era a estranha presença de Haesel naquela parte do Castelo de Hawkswell. Embora ela agisse como se estivesse explorando sua nova moradia, havia uma enorme distância entre andar pelos corredores, cômodos e escadarias sem fim de um castelo e erguer um alçapão, descendo em um calabouço subterrâneo.
Sua intuição lhe dizia para ficar bem atento aos passos daquela desconhecida. E, até agora, seus pressentimentos jamais falharam...
Deu um sorriso maroto ao lembrar das caras de espanto de sir Gautier e do chefe da guarda, quando resolvera interromper a conversa, sem dar-lhes nenhuma explicação.
Afinal, como poderia dizer que tivera um pressentimento de que deveria ver os prisioneiros naquele instante? Se fizesse isso, no mínimo, iriam pensar que estava louco, ou então enfeitiçado.
Bem, de certa forma, todos os moradores do castelo já estavam acostumados com esses seus rompantes, apesar de continuarem ficando boquiabertos. Circulavam até boatos de que o barão podia ler pensamentos e enxergar a verdadeira alma das pessoas... A velha Ivy costumava dizer que ele herdara esse dom de um antepassado druida...
De qualquer maneira, Alain sabia apenas que, às vezes, independente de sua vontade, imagens lhe vinham à cabeça, seguidas por estranhos pressentimentos, os quais sempre se confirmavam. Contudo, dessa vez, ficara tão atônito quanto seus servos, ao se deparar com Haesel, conversando com os prisioneiros.
Abandonando repentinamente aqueles devaneios, voltou-se para os homens de Hardouin:
— Falam inglês? — perguntou, tentando pegá-los desprevenidos. Caso a resposta fosse negativa, a história de Haesel iria por terra... Afinal, ela alegava não falar francês.
— Essa língua de bárbaros? Ja...
Alain ouviu um barulho, acompanhado por um gemido, como se Ivo tivesse levado um tapa no ombro.
— O suficiente para trocar algumas palavras com aquela garota loira — Jean encarregou-se de fornecer a resposta apropriada.
— Sim, aquela moça seria capaz de me fazer falar até latim! — Ivo comentou, malicioso. — É sua amante, milorde?
Sem retrucar, Alain retirou-se, antes que acabasse estrangulando aqueles dois! Não sabia porque, mas ouvi-los falar sobre os atributos físicos de Haesel o deixava furioso!
Ansiosa para ficar bem longe do arrogante Alain de Hawkswell, Claire subiu às pressas a escada que conduzia ao celeiro. Estava à beira de colapso nervoso.
Lágrimas de ódio e humilhação escorriam de seus olhos sem parar, e o corpo tremia todo, parecendo uma bandeira sacudida pelo vendaval.
"Que homem desprezível! Como ele se atrevera a lhe falar com tanta crueldade e desprezo, dando a entender que não passava de uma tola, ignorante e simplória?
E pior, aqueles olhos negros passearam por suas curvas, cheios de desconfiança!
Meu Deus! Tivera o pressentimento de que seu coração iria parar de bater de tanto medo, quando as labaredas de ódio daquele olhar fixaram-se em seu rosto!
Culpa, remorso e vergonha explodiram em seu íntimo, dando-lhe a terrível sensação de que era a pior mulher sobre a face da Terra! Será que Júlia fora vítima desse mesmo tratamento desumano?
Movida pela vingança, empurrou alguns barris de mantimentos para cima do alçapão, bloqueando a saída do subterrâneo. Sentiu uma prazer indescritível só de imaginar Alain forçando a passagem inutilmente até perceber que estava trancado lá embaixo! O poderoso senhor de Hawkswell seria obrigado a permanecer ali, na companhia de tipos asquerosos, como Jean e Ivo, até que alguém do castelo desse por sua falta e viesse libertá-lo!
— Isso vai dar-lhe uma lição! — murmurou, empurrando mais um barril.
O que vai acontecer quando ele sair daí?, a voz da razão finalmente conseguiu se fazer ouvir por Claire.
Ela ficou imóvel. Mesmo que levasse algumas horas, cedo ou tarde, ele acabaria saindo daquela prisão improvisada... E, quando isso acontecesse, estaria furioso como um animal ferido!
Com certeza, Alain iria descarregar toda sua raiva sobre ela, expulsando-a do castelo! Isso, é claro, se não resolvesse torturá-la ou prendê-la em alguma cela escura... Sem mencionar a possibilidade de mandar executá-la!
Por todos os santos! Deveria entregar as crianças para os homens de Hardouin agora mesmo, sem perder um segundo! Poderia arranjar algum pretexto para tirar Guerin e Peronelle das aulas de padre Gregory. Em seguida, levaria os pupilos para o fatídico passeio na floresta.
Mais uma vez, entretanto, a prudência teve que se fazer presente para impedir que Claire fizesse uma tolice.
Esse era seu segundo dia no castelo, portanto sua figura ainda não inspirava a confiança necessária para garantir o sucesso desse plano. Mesmo que conseguisse convencer o padre a entregar-lhe os dois pequenos, o que seria praticamente impossível, os guardas de Alain jamais iriam permitir que cruzasse os portões e a ponte levadiça, na companhia dos filhos do barão.
De forma alguma, poderia permitir que o ódio e o ressentimento conduzissem seus planos para raptar as crianças! Todos os detalhes teriam que ser muito bem analisados para que não houvesse falhas nem imprevistos no momento da execução. Conforme já decidira, antes desse confronto com Alain, o melhor seria explorar o castelo, fazendo amizade com seus moradores.
A hipótese de prender lorde Alain naquele calabouço era muito tentadora e, por um triz, não havia conseguido seduzi-la. Porém, como seus objetivos transcendiam aquela vingança mesquinha, retirou os barris de cima do alçapão e saiu do celeiro, com um ar de inocência estampado no rosto.
A essa hora da manhã, o pátio interno do castelo já estava repleto de gente, cada qual ocupado com seus muitos afazeres. Homens e mulheres andavam de um lado para outro, carregando cestas e fardos em um ritmo frenético que duraria até o pôr do sol.
Olhando ao redor, Claire iniciou sua excursão pela direita da entrada do salão principal. Logo encontrou um homem alto e robusto, empenhado em forjar uma espada.
— Bom dia, moça. Sou Ewald, o armeiro, o que parece óbvio, não é? — apresentou-se, simpático, fazendo uma alusão às ferramentas que o rodeavam.
— Bom dia, Ewald — retribuiu o cumprimento, com um sorriso gentil. — Sou Haesel, a nova ama dos filhos de lorde Alain.
Alguns segundos se passaram até que ela tornasse a respirar normalmente outra vez. Ficara apreensiva, com medo de que o armeiro percebesse algum traço duvidoso em seu sotaque. Como ele continuasse a dirigir-lhe uma expressão bondosa, concluiu que havia passado pelo crivo de mais um autêntico inglês.
— Sim, eu sei quem é. Também fiquei sabendo que, ontem à noite, repeliu com veemência às investidas grosseiras de um certo galanteador...
Ela acompanhou o olhar de Ewald até o topo das muralhas ao redor do castelo, dando com Hugh le Gros, que fazia a ronda com uma lança em punho.
— É... — admitiu, voltando a fitar Ewald. — Mas como sabe disso?
— Annis é minha esposa — explicou. — Não estive no jantar de ontem, mas ela me contou o que aconteceu. Se esse soldado voltar a incomodá-la, basta dizer a Annis, que eu me encarregarei de puni-lo pelo atrevimento.
— Obrigada, é muita gentileza de sua parte.
— Seja bem-vinda a Hawkswell, Haesel! — Lembrando-se da espada que tinha nas mãos, acrescentou: — A conversa está boa, mas acho melhor voltar ao trabalho. Senão nunca vou terminar essa arma.
Discretamente, observou a oficina de Ewald, bem como a sala ao lado, onde ficavam guardadas muitas armaduras e armas dos mais variados tipos e modelos. Então despediu-se e voltou para o imenso pátio.
Respirou fundo, tomando fôlego. Ainda havia muito o que andar se quisesse ter uma noção geral de como era o Castelo de Hawkswell!
Ao final de duas horas, Claire já havia visitado a sala de fermentação, a estrebaria, a gigantesca cozinha e os estábulos. Conhecera muitas pessoas e nenhuma delas desconfiara de sua verdadeira origem nobre e normanda.
Meio cansada de sua peregrinação, deixou os estábulos para trás, chegando ao reservatório de água do castelo, abastecido por três poços. Em um canto, debruçada sobre um enorme tanque, encontrou Annis.
A lavadeira a recebeu com entusiasmo e carinho, fazendo com que se sentisse realmente querida. Depois, apresentou-lhe uma companheira de serviço, Lyssa.
— Estou feliz por conhecê-la! — Claire disse, radiante. No entanto a reação indiferente da moça teve o mesmo efeito de um banho de água fria em seus ânimos.
Sem deixar se abater por aquela demonstração gratuita de pouco caso, resolveu insistir. Talvez a moça fosse tímida... — De antemão peço-lhe desculpas, caso eu venha a confundir seu nome. Já conheci tantas pessoas esta manhã, que minha cabeça está zonza! — Sorriu, tentando conquistar a simpatia de Lyssa. — Vejamos: Hertha é a cervejeira, Guy, o ferreiro, Marie, Tansy, Flora e Peter trabalham na cozinha... Ah! Claro! Também conheci seu marido, Annis.
— Ewald é um bom homem! — ela exclamou, com um rilho apaixonado no rosto.
Lyssa, entretanto, continuou calada, medindo cada centímetro do corpo de Claire com um olhar desdenhoso e cheio de rancor.
Claire já estava começando a se preocupar com aquela atitude hostil. Será que havia algo errado com seu sotaque? Enfim, acabaria desmascarada?
Percebendo o clima tenso entre as duas, Annis piscou a Claire. Em seguida, olhou significativamente para Hugh le Gros, que ainda fazia a ronda na muralha, acima de onde estavam.
Aquele gesto simples lançou um foco de luz sobre o problema. A jovem lavadeira estava apaixonada por le Gros, por isso considerava a desconhecida como sua rival! Claire teve que se esforçar para reprimir o riso, diante temores absurdos da moça. Ao menos, restava-lhe o consolo de não ter despertado suspeitas quanto à sua identidade.
Após aquela descoberta hilária, despediu-se das lavadeiras e continuou a explorar o pátio. Faltava ainda a ala sul, no extremo oposto à entrada do salão principal. Tinha que saber o que havia no bloco retangular, próximo à torre da capela.
Como se tivesse adivinhado as dúvidas de Claire, sir Gautier passou por ela, apressado, entrando exatamente no prédio em questão. Portanto concluiu tratar-se dos aposentos dos cavaleiros e demais moradores importantes castelo.
Satisfeita com a descoberta, ela deu meia-volta, aproximando-se mais uma vez da capela. Então, ao passar por um dos enormes vitrais coloridos, ouviu as vozes de Guerin e Peronelle recitando lições de catecismo. Dessa forma, também ficou sabendo em que ponto do castelo o padre lecionava para as crianças.
Bem, agora que já tivera uma visão geral da cidadela, como era chamada a parte interna das muralhas, já era tempo de aventurar-se do lado de fora.
Passando através do portão e da ponte levadiça do castelo, ficava uma grande faixa de terra, protegida por uma segunda muralha; essa área também era conhecida pelo nome de pátio externo. O vilarejo, o cemitério e algumas áreas para o cultivo de alimentos e criação de animais ficavam dentro desse espaço protegido. Além da segunda muralha, estendiam-se os grandes domínios do feudo de Hawkswell, composto por bosques e campos para a agricultura.
Claire não teve dificuldade alguma para atravessar o portão, pois Hawkswell não estava em estado de alerta. No entanto, como acontecia com qualquer castelo, diante da iminência de qualquer perigo, ninguém poderia cruzar essa linha sem a permissão de um cavaleiro. Afinal, essa era a única passagem por onde os invasores poderiam penetrar no interior da fortaleza.
Uma vez do outro lado, resolveu seguir para a esquerda. Além de saber que o vilarejo e o cemitério ficavam à direita, queria evitar qualquer possibilidade de encontro com Gilda. Não sabia bem o porquê, mas aquela moça ruiva a deixava terrivelmente irritada.
Por sorte, seguindo o caminho que escolheu, acabou se deparando com um surpreendente e bem cuidado jardim, onde a grande vedete era a rosa. Havia roseiras de várias cores e tamanhos, exalando um perfume inebriante. Magnólias, camélias, bocas-de-leão, trepadeiras e inúmeras outras espécies também compartilhavam os canteiros, criando uma atmosfera de rara beleza.
Claire riu, extasiada com aquela festa de cores e perfumes. Já descobrira o lugar onde as crianças poderiam colher um magnífico buquê para o túmulo de Ivy.
Então sentou-se sobre a relva macia, deixando sua mente vagar pela terra da fantasia e dos sonhos...
Perdeu o noção do tempo que ficou naquele mundo contemplativo, onde nenhum problema ou dúvida poderiam , atormentá-la. Porém, como nada dura para sempre, uma indagação feita ao acaso, a obrigou a abandonar aquele estado de paz para cair, outra vez, na dura realidade...
Será que Júlia também encontrava a mesma alegria e tranqüilidade que estou experimentando, ao redor desses canteiros?
Pronto! A tristeza voltou a assolar seu coração, como uma erva daninha que vai chegando devagar e, em pouco tempo, domina tudo! Pensar em Júlia fez com que Claire recordasse sua difícil e perigosa missão nesse castelo.
Sentindo outra vez o peso da responsabilidade sobre os ombros, levantou-se da relva e prosseguiu seu caminho. Um pouco à frente, na direção da torre norte, começava uma horta gigantesca, duas vezes maior e com o triplo de variedades de legumes da horta do Castelo de Coverly. Trabalhando com esmero em um dos canteiros, Claire encontrou o responsável por aqueles jardins: um velho desdentado e com rosto cheios de rugas, que se apresentou como Lew.
Após uma rápida conversa, ela continuou avante, encontrando agora um tanque lindo, onde era criada a maioria dos peixes que abastecia o castelo. Embora houvesse vários rios cortando a região, nem sempre era seguro pescar, pois havia o risco de ataques de inimigos ou mesmo de foras-da-lei, que vagavam de um feudo a outro, escondendo-se nas florestas. Além disso, era muito prudente manter fontes de abastecimento dentro dos limites das muralhas. Assim, em caso de guerra, um castelo poderia ficar sitiado durante meses.
A seguir, chegou ao pomar, dominado por macieiras e cerejeiras. Seduzida pelo odor convidativo das frutas, Claire não resistiu à tentação e apanhou algumas cerejas maduras de um galho.
Mais à frente, havia um amplo gramado, palco de concorridas disputas entre cavaleiros, nas épocas de festas, mas que, no dia-a-dia, também era utilizado como área de treinamento.
Gostaria de prosseguir com aquela excursão, dando a volta completa ao redor da muralha externa. Porém esse passeio teria que ficar para outro dia, já estava tarde. Se não se apressasse, não conseguiria chegar à cidadela antes da refeição do meio-dia!
Enquanto caminhava, apressada, pelo mesmo caminho que viera, ia comparando a prosperidade e a segurança daquele castelo com a figura imponente de seu mestre: Alain de Hawkswell. Como pudera crer que seria capaz de desafiar o poder desse homem, dentro de uma fortaleza como essa?
Com uma ruga de preocupação na testa, lorde Alain sentou-se ao redor da mesa principal, ladeado pelo padre e por sir Gautier, cavaleiro que também administrava o castelo.
Sir Gautier conhecia seu mestre muito bem para saber que devia deixá-lo em paz, sempre que aquela expressão distante e perturbada dominava-lhe o rosto. Contudo o mesmo não acontecia com o padre, que chegara ao castelo há poucos dias e, por isso, ainda não tivera tempo de conhecer todas as nuances de humor do barão.
A todo custo, padre Gregory tentava manter um diálogo com milorde, enveredando por vários temas diferentes, sem obter sucesso.
— Esse assado de antílope está formidável, não acha, milorde? — tentou mais uma vez, sem desanimar, mastigando uma fatia da carne suculenta.
Alain olhou para a face rosada do padre, com as bochechas muito salientes, devido ao excesso de comida na boca e o comparou a um esquilo. Mesmo assim, não achou graça na semelhança, nem sentiu-se inclinado a prosseguir com aquela conversa tola, quando sua mente fervilhava de dúvidas.
— Talvez... Não estou com muito apetite hoje.
— Nada como um enterro, logo de manhã, para estragar o dia da gente. É como se uma nuvem negra tivesse coberto o brilho do sol... — o padre retrucou, meneando a cabeça, como se compartilhasse da mesma aflição. No entanto, as palavras seguintes deram outras dimensões aos seus sentimentos: — Sei que as crianças gostavam muito da velha ama, milorde. Contudo não deve permitir que a morte de uma mulher do povo, com o corpo marcado pelo passar de muitos anos, possa entristecê-lo. Deve agarrar as rédeas do dia em suas mãos e manobrá-las de acordo com sua vontade.
Alain colocou a taça de vinho na mesa, com violência. Certamente, o sucessor do caridoso padre Peter não passava de um tolo, fútil e bajulador! Sentia o cheiro de problemas no ar...
— Pensei que todos fossem iguais perante os olhos de Deus, padre Gregory! — argumentou, com o rosto crispado censura e indignação. — Ou será que "uma mulher do povo, com o corpo marcado pelo passar de muitos anos", boa e caridosa, é considerada "inferior" pelo Altíssimo? — A expressão zangada de Alain ou a ironia de seu comentário devem ter alertado padre Gregory de que entrara em um terreno perigoso, pois ele se apressou a desfazer o mal-entendido:
— Oh! É claro que tem razão, milorde! Suas palavras sábias só vêm acrescentar mais uma qualidade às muitas que possui. No entanto devo alertá-lo que se preocupa demais com os destinos de seu povo. Em seu lugar, jamais teria abandonado meus importantes afazeres para comparecer ao funeral de uma serva.
Alain deu as costas ao padre, virando-se para sir Gautier. Se tivesse que dizer algo àquele idiota pomposo, certamente suas palavras viriam acompanhadas por um bom soco, que era o que ele merecia.
De todas as asneiras que padre Gregory dissera, entretanto, em um aspecto estava com a razão. O enterro daquela manhã envolvera tudo em uma atmosfera de agonia e dor, como se, de fato, uma nuvem negra estivesse pairando sobre o castelo. Era como se a morte estivesse rondando Hawkswell, com seu odor maligno e nauseabundo...
Primeiro, fora o bom padre Peter, agora era Ivy... Duas mortes repentinas e igualmente dolorosas para todos os moradores do castelo em um curto espaço de tempo. É claro que ambos eram idosos e as condições em que seus corpos foram encontrados não levantavam suspeitas de nenhum crime. No entanto não deixava de ser uma coincidência infeliz... Além disso, todo aquele ritual de sepultamento fazia emergir do fundo de sua alma o remorso pela morte de Júlia. Havia tantas coisas que gostaria de ter-lhe dito, tantas maneiras de tentar alcançar seu coração endurecido... Mas era tarde demais para desculpas e nada poderia alterar isso!
Voltou a pegar a taça, procurando afogar as mágoas com alguns goles de vinho. Porém isso só fez mudar a direção de suas preocupações... Em vez de ficar remoendo as tristes lembranças de seu casamento com Júlia, passou a pensar na atitude esquisita da nova ama de seu filhos, Haesel.
Não havia digerido as explicações pueris da moça sobre o porquê de estar no calabouço, conversando com os prisioneiros. Será que ela era tão inocente assim, a ponto de entrar em um buraco escuro e fétido como aquele, onde ficavam assassinos perigosos, apenas por seus deveres cristãos? Ou ela estaria escondendo algo?
Imediatamente, lançou um olhar furtivo para Haesel, sentada na mesa dos criados. Guerin e Peronelle a ladeavam, disputando sua atenção, como se participassem de um torneio de vida ou morte. Ciente da disputa entre os irmãos, ela distribuía seus carinhos com igualdade, sem privilegiar um deles em detrimento do outro.
— Pai, deixe-nos sentar com Haesel dessa vez... — Peronelle lhe suplicara, com os olhos lacrimejantes. — Estou tão triste com a morte de Ivy e só Haesel sabe como acalmar minha dor.
— Deus foi tão bondoso ao mandá-la para cuidar de nós, quando resolveu chamar Ivy ao céu! — Guerin acrescentara, acabando por derrubar suas últimas restrições àquele pedido.
Agora, ao observar os dois, rindo felizes com Haesel, tinha certeza de que tomara a decisão correta, deixando que fizessem a refeição na mesa dos servos.
Diante do modo afetuoso como ela tratava seus filhos, seria justo suspeitar de Haesel? Uma boa farsante poderia iludir muitas pessoas, mas ninguém jamais conseguiria enganar o coração de uma criança, fingindo dispensar-lhe um afeto que não sentia.
Meu Deus! Não sabia o que pensar sobre essa mulher que, de súbito, invadira sua vida!
— Milorde, esta tarde, devemos preparar uma resposta para a carta de lady Matilde. Também precisamos ponderar a melhor estratégia para combater o novo golpe de Estevão — sir Gautier lembrou, interrompendo os devaneios do barão.
Alain respirou fundo, relembrando o conteúdo da carta da imperatriz.
Matilde estava colérica com a mais recente tática usada pelo rival para desafiar seu poder. Sem nenhum escrúpulo, Estevão vinha distribuindo, entre os seus vassalos, os mesmos feudos que já pertenciam aos nobres leais à causa da imperatriz. Graças à essa estrategia, os senhores feudais recém-empossados lutavam bravamente para defender suas propriedades e conquistar toda a Inglaterra para Estevão.
Na segunda parte da carta, Matilde passava de um tom solene e preocupado para algo mais prepotente. Exigia que Alain, custe o que custasse, pusesse um fim nas pretensões absurdas de Hardouin d Evreux de conquistar qualquer parte dos domínios estratégicos de Hawkswell. Por que ele ainda não partira para o ataque, esmagando as tropas do duque de Tresham, como se fossem um punhado de folhas secas sob seus pés?
Fácil reclamar, milady. No entanto sabe perfeitamente o motivo que me obriga a permanecer em meu castelo, Alain havia pensado ao ler aquelas palavras agressivas como os golpes de um machado. Para Matilde, dar ordens era tão natural quanto respirar!
Como de costume, ela encerrava a carta, fazendo inúmeras considerações sobre Guerin. Entre outras coisas, sugeria nobres que poderiam recebê-lo para seu treinamento de cavaleiro e enumerava uma série de jogos de guerra que o ajudariam a desenvolver as habilidades para luta. Chegava ao ponto de mencionar as famílias com as quais Alain deveria fazer alianças, através do possível casamento precoce de Guerin!
Um sorriso fortuito escapou-lhe dos lábios, ao pensar naquela questão... O que Matilde iria dizer quando soubesse que Guerin não pretendia se casar, muito menos tornar-se um cavaleiro? Certamente, ela teria um colapso nervoso ao descobrir que o menino resolvera seguir a carreira eclesiástica. E, antes que pudesse se refazer do choque e tirar algum proveito dessa decisão, ela receberia um novo golpe... Guerin também não pretendia entrar para nenhuma ordem ilustre, nem tornar-se um alto membro do clero. Desejava apenas ser um padre simples e humilde.
— Milorde? Já pensou em como iremos responder às provocações de lorde Hardouin? Deve demonstrar firmeza e ousadia, caso contrário, ele pensará que Hawkswell é um lugar fácil de ser pilhado — sir Gautier advertiu.
— Concordo com sua opinião, meu bom Gautier — passando as mãos pelo cabelo, com um gesto de tédio. — Contudo deixarei essa tarefa para outro dia. Esta tarde, pretendo levar meus filhos até o canil para que possam ver a nova ninhada.
Na manhã seguinte, Claire foi despertada pelo barulho ensurdecedor de um trovão, enquanto uma monumental tempestade desabava sobre o vale de Hawkswell. Aflita com as intempéries climáticas, deu um longo suspiro, desejando que o sol voltasse a brilhar o mais depressa possível. Chuva significava confinamento, o que iria retardar e muito o cumprimento de sua missão!
Para seu desespero, entretanto, aquele desejo não se realizou...
Durante cinco dias consecutivos, não parou de chover um só minuto em Hawkswell, com a alternância entre leves chuviscos e violentas pancadas. Em conseqüência disso, Claire teve que abandonar temporariamente qualquer piano de levar seus pupilos para um passeio na floresta, quando iria entregá-los aos homens de Hardouin.
Só lhe restava ser paciente e esperar pelo momento adequado.
Sua consciência culpada não se cansava de repetir que as chuvas ininterruptas eram um castigo de Deus, por ter concordado em participar de algo tão sórdido quanto o rapto de crianças inocentes. Ainda por cima, devido à essa demora, estava se afeiçoando cada vez mais a Peronelle e Guerin, o que tornaria tudo muito mais difícil...
Outro problema decorrente desses longos dias chuvosos era arranjar atividades para entreter as crianças e mantê-las dentro do castelo. Para tanto, teve que recorrer à toda sua criatividade, inventando jogos ou lembrando de velhas brincadeiras de sua própria infância. Mesmo assim, na tarde do quinto dia, seu repertório já havia se esgotado...
Aproveitando uma ligeira diminuição na intensidade da chuva, as crianças conseguiram convencer Claire a levá-las ao estábulo, para que pudessem lhe mostrar seu pônei Dacy.
Não satisfeitos com esse rápido passeio, também se aventuraram a correr pelo pátio alagado, como se fossem dois pássaros que acabavam de sair de um gaiola.
Ela só conseguiu tirá-los da chuva, prometendo que fariam um passeio pelas redondezas tão logo o sol voltasse brilhar. Então levou os dois de volta ao quarto e pediu aos outros servos que enchessem a banheira com água quente para aquecer as crianças.
Enquanto os irmãos brincavam na banheira, aproveitou para trocar suas roupas encharcadas por outras, secas e limpas, atrás de um biombo. Em seguida, secou os longos cabelos loiros com uma toalha e os ajeitou em uma trança, que saía da nuca e alcançava sua cintura.
Apesar de todas as precauções de Claire, as crianças acordaram resfriadas e com febre na manhã seguinte, justo quando o sol tornava a visitar o vale. Graças a isso, enfrentaram mais dois dias de confinamento, quase sem deixar a cama.
Claire desdobrou-se para cuidar dos dois, recorrendo às indicações de padre Gregory para preparar cataplasmas e chás à base de ervas. Acabou descobrindo que o bom homem possuía um vasto conhecimento sobre plantas e poções medicinais.
Sempre que o desespero e a ansiedade ameaçavam por causa daquela semana perdida, procurava buscar consolo no fato de que as crianças estavam se recuperando rapidamente.
Em sua décima noite no castelo, ao deitar-se em sua modesta cama, Claire fez um balanço de sua estada em Hawkswell, concluindo que seu tempo não fora de todo perdido. Já podia deslocar-se com facilidade para qualquer ponto do castelo; havia encontrado Jean e Ivo, e lorde Alain parecia ter aceitado sua desculpa por falar com os prisioneiros, pois nunca mais tornara a mencionar o assunto.
Também fizera algumas amizades entre os habitantes do castelo, o que seria de grande ajuda para a conclusão de sua tarefa. Quanto menos desconfiassem de sua presença, mais fácil seria ultrapassar aquelas muralhas de pedra, levando consigo os filhos do barão de Hawkswell. Embora nem todos simpatizassem com ela, Annis, padre Gregory e Verel, o sorridente escudeiro de lorde Ajam, procuravam fazer de tudo para que se sentisse em casa.
Sem dúvida alguma, seu maior trunfo era ter conquistado o afeto e a confiança de Peronelle e Guerin. Os dois corriam, ansiosos, ao seu encontro, após as aulas do padre, contando o que haviam aprendido. Também preferiam sentar-se com ela, durante as refeições, em vez de ficarem junto do pai, na imponente mesa principal.
Uma pontada de remorso queimou-lhe as entranhas, como se tivesse engolido um ferro em brasas, ao pensar na decepção que seus adoráveis pupilos teriam, quando descobrissem que era uma farsante. Talvez nunca mais voltassem a confiar em alguém...
Oh, Meu Deus! O que vai ser de mim? Sentia-se inquieta e cheia de remorso pelo que iria fazer. Estava começando a pensar se não teria sido melhor ter se casado com aquele terrível pretendente que o irmão escolhera.. Pelo menos assim, não teria que viver com aquela dor na consciência.
Atormentada, sentou-se na cama, observando carinhosamente as crianças. Dormiam tão quietas e tranqüilas, sem imaginar o perigo que as rodeava.
"Não, isso nunca! Posso entregá-los a Hardouin, mas jamais permitirei que lhes aconteça qualquer mal!", pensou, determinada. Estava disposta a cumprir essa promessa de qualquer maneira, mesmo que tivesse que sacrificar a própria vida.
Mais calma, voltou a se deitar, procurando esvaziar a mente de qualquer preocupação. Já era bem tarde da noite e ainda não conseguira adormecer. Apesar de seus esforços, as crianças logo voltaram a ocupar-lhe os pensamentos.
Naquele mesmo dia, vivera uma cena muito terna com os dois...
Guerin chegara da aula, dizendo-lhe que preferia muito mais as aulas de padre Gregory do que as maçantes lições do falecido padre Peter.
Ao ouvir aquilo, os olhos de Peronelle encheram-se de lágrimas.
— Mas Ivy gostava muito do padre Peter, então ele devia ser um bom homem.. Acho que eles devem estar juntos no céu — murmurara, caindo em um pranto convulso.
Pobres crianças! Tão jovens e já haviam enfrentado a perda de tantas pessoas queridas! Como se não bastassem as mortes de Ivy e do padre Peter, não fazia muito tempo que Júlia falecera.
Pensar na amiga, levara Claire a se indagar como deveria ter sido o relacionamento de Guerin com a madrasta. Como não tinha coragem de abordar aquele assunto e as crianças evitavam falar sobre Júlia, sabia muito pouco sobre a curta vida da prima em Hawkswell. De repente, outra questão veio perturbá-la... Quem seria a mãe de Guerin, afinal? Estaria viva ou morta? Ninguém, nem mesmo o menino, jamais havia feito qualquer menção à essa mulher misteriosa...
Claire virou-se mais algumas vezes na cama, procurando encontrar uma posição mais confortável. Conseguiu apenas substituir as dúvidas sobre a origem de Guerin por outro problema... Será que fizera bem ao permitir que as crianças lhe "ensinassem" francês?
Peronelle e Guerin estavam tão felizes com a possibilidade de poderem lhe ensinar algo, que não teve coragem de decepcioná-los. É claro que tomava o cuidado de repetir as palavras e frases curtas com vários erros de pronúncia, para que não desconfiassem de que o francês era sua língua materna. Porém, isso iria modificar bastante sua situação em Hawkswell...
Até agora, lorde Alain e seus cavaleiros não se importavam em tratar assuntos importantes perto dela, crentes de que não entendia um palavra de francês. No entanto, daqui em diante, seria mais difícil conseguir informações no castelo.
Pelo menos, deveria ter evitado mostrar muitos "progressos" na frente de lorde Alain, recriminou-se, recordando a visita que fizeram ao canil.
Pudera perceber o brilho de surpresa e desconfiança nos olhos de Alain, ao constatar a rapidez com que a pobre e ignorante Haesel estava aprendendo a nova língua. Todavia ele não fora o único a se surpreender. Claire também ficara perplexa com o amor e o carinho que ele dedicava aos seus cães, que o adoravam.
Enquanto as crianças brincavam com os animais, Alain tivera a paciência de explicar à bela serva inglesa a diferença entre as várias raças que possuía. Alguns dos animais, entretanto, já eram conhecidos de Claire; pois, como em todo castelo, os cães preferidos tinham a honra de transitar pelo salão principal.
Empolgados para mostrar ao pai o excelente trabalho que estavam fazendo com Haesel, Guerin e Peronelle resolveram aproveitar aquele ambiente para ensinar novas palavras francesas para a ama. Novamente, para não decepcionar as crianças, Claire se permitira realizar muito mais acertos do que a prudência lhe recomendava...
Em dado momento, lorde Alain resolvera substituir os filhos, passando a ministrar-lhe pessoalmente as lições. Com uma expressão indecifrável, ele apontava algo e dizia o nome em francês, que deveria ser repetido por Claire. De repente, ele apontou para o muro e disse, meio ao acaso:
— La mére.
— Le... — ela começara, calando-se, de súbito, ao perceber que estivera prestes a corrigi-lo! Muro, em francês, era le mur e não la mére, como ele dissera.
Aquele interesse repentino de lorde Alain no aprendizado de Haesel, na verdade, não passava de uma encenação bastante astuta para desmascará-la! Portanto ele andava muito mais desconfiado a seu respeito, do que poderia imaginar...
— Desculpe-me, milorde. Como foi mesmo que disse? — ela indagara, humildemente, recorrendo, mais uma vez, a suposta ignorância de Haesel para se defender.
— Minha cabeça já está fervendo com tantas palavras novas.
Ele tinha cravado um olhar inquisidor no rosto de Claire, como se quisesse desvendar seus pensamentos mais íntimos.
Passaram-se alguns segundos, antes que ele tornasse a falar, porém Claire tivera a sensação de que foram horas.
— Acho que já aprendeu coisas demais para um único dia... De qualquer forma, também devo retornar às minhas obrigações.
De súbito, um ruído vindo da cama de uma das crianças forçou Claire a abandonar todas aquelas recordações para se concentrar no presente. Levantando-se, viu que Peronelle chorava baixinho, embora continuasse dormindo.
Carinhosa, sentou-se perto da menina e afagou-lhe os cabelos negros até que tornasse a ficar tranqüila.
Iguais aos de Alain... surpreendeu-se a pensar, enquanto segurava uma mecha do cabelo de Peronelle.
Lorde Alain... Lorde Alain... Ah?... Meu Deus! O que está acontecendo comigo? Por mais que tente, quando dou por mim, estou pensando nesse homem! Isso já está se transformando em idéia fixa! Apertou a cabeça com as mãos, como se esse simples gesto bastasse para livrá-la da imagem inesquecível de Alain de Hawkswell.
Atormentada, foi até a janela em busca de um pouco de ar fresco. Embora não estivesse com febre, tinha a sensação de que o corpo estava pegando fogo.
Nossa! Será que não conseguiria dormir essa noite? Há horas vinha tentando pegar no sono, porém, com o passar do tempo, estava ficando mais nervosa e aflita.
Se tomasse um pouco de vinho, certamente iria se desligar de todas aquelas preocupações, acabando por adormecer. No entanto não estava em seu quarto, no Castelo de Coverly, onde uma jarra de vinho sempre era mantida ao lado da cama.
Ali em Hawkswell, se quisesse um taça da bebida, teria que descer até o salão principal, ou ir diretamente para a cozinha. Todavia ambas as alternativas eram muito perigosas naquela hora da noite; poderia ser molestada por algum homem embriagado que ainda vagava pelos corredores do castelo.
De qualquer modo, precisava fazer alguma coisa, Se ficasse mais algum tempo ali no escuro, pensando, acabaria enlouquecendo! Além disso, poderia até acordar as crianças com toda a sua agitação. Talvez um passeio pela torre conseguisse acalmá-la...
Sem pensar duas vezes, jogou o modesto xale sobre os ombros e saiu do quarto. A essa hora da noite, dificilmente iria encontrar alguém naquela parte do castelo, onde poderia admirar as estrelas e sentir a brisa refrescante do norte.
A belíssima lua cheia foi a primeira coisa que viu, ao chegar ao alto da torre, dois andares acima do quarto das crianças. Então, enfeitiçada pela grandiosidade da natureza, sentou-se em uma saliência do muro e ficou a observar o céu estrelado, que até parecia um traje de veludo negro, salpicado de diamantes. Fizera bem ao trazer o xale; a brisa noturna estava mais forte do que poderia imaginar, agitando seus cabelos.
Finalmente, depois de bocejar algumas vezes, levantou-se, sabendo que já estava na hora de regressar ao quarto. Contudo, no intimo, não estava com a menor vontade de deixar esse lugar belo e tranqüilo, onde os problemas não poderiam alcançá-la. Por isso resolveu contrariar a voz da prudência, ampliando sua permanência ali em cima.
À luz do luar, contemplou o vale e, depois, o pátio interno do castelo, Tudo parecia mergulhado em sono profundo, e apenas algumas tochas continuavam acesas ao redor da muralha e em alguns pontos do pátio. Os únicos a quebrarem essa calmaria eram os guardas que faziam a ronda noturna.
Tentando retardar mais um pouco sua partida, Claire continuou a observar o cenário ao acaso. Porém acabou descobrindo uma luz, vinda de uma janela do outro lado do pátio, indício de que não era a única pessoa a sofrer de insônia naquela noite.
Curiosa, concentrou-se naquele ponto iluminado, concluindo que deveria ser o quarto de padre Gregory. Um pensamento estranho passou-lhe pela cabeça: o que o calmo padre Gregory estaria fazendo, acordado até aquela hora?
Como uma gota em um oceano, logo aquela observação perdeu importância. Havia tantas coisas sérias para se preocupar, em vez de imaginar o que o padre estaria fazendo de madrugada. Então virou-se para o lado de fora das muralhas. Com um pequeno esforço, dava para distinguir a estrada que levava a Londres, a maior e mais importante cidade da Inglaterra.
"Aquele que controla Londres, é o senhor de todo o reino", todos diziam. E, nesse momento, os cidadãos londrinos favoreciam o rei Estevão, dando as costas à imperatriz Matilde. Mas, será que essa situação persistiria por muito tempo? A Inglaterra estava vivendo dias difíceis. Dois herdeiros disputavam a coroa, mergulhando o reino em uma sangrenta guerra civil.
De um lado, estava Estevão de Blois, sobrinho de Henrique I. Com o apoio de uma boa parte da nobreza, resolvera contrariar a vontade do tio, usurpando o trono que deveria ser da prima.
No outro extremo, havia Matilde, imperatriz do Sacro Império, que fora nomeada herdeira do trono da Inglaterra por seu pai. No entanto, embora fosse chamada de rainha por seus defensores, ainda não fora de fato coroada. Para conseguir o que lhe era de direito, precisaria persuadir os líderes de Londres a aceitá-la como soberana.
Claire e toda sua família eram partidários de Estevão, enquanto o poderoso senhor de Hawkswell era um dos principais defensores de Matilde.
Nesse cenário de lutas, intrigas e traições, era difícil prever quem seria o vencedor. Entretanto, segundo os relatos de Hardouin, a partir do ano cristão de 1140, a rede de espionagem do rei Estevão começara a se mostrar deficiente. Em conseqüência, os partidários do rei pareciam estar sempre um passo atrás de Matilde, como se tudo não passasse de um gigantesco tabuleiro de xadrez.
Tantas eram as dúvidas que a afligiam, que teve a sensação de que sua cabeça iria explodir!
Se a situação da Inglaterra podia ser comparada à um jogo de xadrez, que papéis estariam representando Guerin, a pequena Peronelle e ela própria? Aliás, caso seguisse à risca os planos de Hardouin, quem poderia garantir que lorde Alain ficaria à mercê dos desejos de Estevão? E, mesmo que ele o fizesse isso seria suficiente para que os partidários do rei dessem um xeque-mate na imperatriz? O pior de tudo era saber que aquele não era um jogo de brincadeira, lidava com a vida de pessoas, cada lance poderia significar a destruição ou a morte de muita gente.
Afinal, por que deveria se preocupar com pessoas que tinham olhos para jogos de poder e ambição? No fundo, Hardouin, Estevão, Matilde, lorde Alain e todos os outros nobres seriam capazes de vender a própria família por poder! Todos eles se mereciam! A única diferença entre eles é que estavam em lados opostos...
Uma voz interior, vinda do recantos mais profundos sua alma, tentou defender Alain, alegando que ele jamais poderia ser posto ao lado do diabólico Hardouin Evreux. Contudo, reprimiu essa voz com veemência, comentando que precisava pensar em si mesma, ou acabaria esmagada por aquela rede de intrigas.
Mal podia acreditar que, assim que completasse aquela missão, estaria livre! Ou melhor, teria a mesma liberdade que as mulheres de sua época poderiam desfrutar, para quem nada tinha, aquilo parecia o paraíso!
Motivada pela possibilidade de escolher seus próprios caminhos dali para a frente, desviou a atenção para a vista de Hawkswell, á sua esquerda. No silêncio da noite, pôde ouvir o canto apaixonado do rouxinol, que tava seduzir alguma fêmea. Mas, de repente, quebrando aquela atmosfera romântica, o grito pavoroso de uma coruja cortou o ar.
Claire ficou toda arrepiada, embrulhando-se no xale. Sua antiga ama costumava dizer que as corujas carregavam as almas perdidas de todos que haviam morrido sem receber os sacramentos. Mais alguns minutos e sentiu um calafrio na espinha, ao ouvir o grito desesperado de um animal, provavelmente um coelho ou um esquilo, que devia ter sido apanhado pela coruja.
Tremendo dos pés à cabeça, disse a si mesma que era ridículo deixar que uma antiga superstição a assustasse daquela maneira. Mas esse argumento não surtiu o efeito esperado e continuou a bater o queixo de medo. Então recostou a cabeça na pedra fria do parapeito, enquanto o coração pulsava acelerado.
Fora um grande equívoco, vir até a torre, crente de que o brilho da lua pudesse ajudá-la a dormir. Só conseguira arranjar mais problemas para se preocupar...
— Quem está aí? — uma voz rouca indagou em francês, quase matando Claire de susto.
No mesmo instante, ela se ergueu, olhando na direção da voz. Porém a penumbra envolvia o recém-chegado, impedindo-a de identificá-lo.
— Qui... — começou a falar em francês, mas, ao perceber a falha, passou imediatamente para a língua inglesa. — Quem é você? Não posso vê-lo.
Em vez de responder, o estranho começou a avançar, para desespero de Claire, que foi retrocedendo até se encostar na parede.
— Por que pergunta? Acaso estava à espera de alguém? — ele retrucou, cínico. Iluminado pelo luar, sua identidade finalmente foi revelada... O estranho não era outro senão lorde Alain em carne e osso!
Vestia a mesma túnica que usara no jantar, revelando que ainda nem havia tentado dormir, e segurava um cálice nas mãos. A luz do luar, seus cabelos negros ganhavam reflexo azulado, tornando-o mais atraente e sedutor... Mas que absurdo! Como posso pensar em uma coisa dessas nesse momento!?, repreendeu-se, confusa com as emoções contraditórias que a invadiam.
— Não estou esperando ninguém, milorde... O que faz aqui? — Tola! Como serva, não tem o direito de questionar senhor!
Ele estava tão próximo agora, que Claire pôde vê-lo suspender as sobrancelhas, irônico e surpreso com a iminência daquela pergunta.
— O que eu estou fazendo aqui?! Ora, esta torre é minha! Ou acaso não sou o senhor de Hawkswell? — apesar das palavras arrogantes, não havia fúria em sua voz, mas sim, sarcasmo. — Existe alguma razão, que eu desconheça, que me impeça de vagar por aqui e beber vinho, quando quiser?
Confusa, Claire fez um gesto negativo com a cabeça. Gostaria de sair correndo dali, mas estava encurralada a uma das paredes da torre, às suas costas, e o gigantesco Alain bem à frente, bloqueando-lhe o caminho.
— Claro que não, milorde... Não quis dizer isso... — tentou desculpar-se, gaguejando. — Só estava surpresa por vê-lo aqui. Pensei que todos estivessem dormindo à essa hora...
Aproximando-se ainda mais de Claire, ele bebeu um pouco da taça, antes de responder:
— Sim, é o que eu deveria estar fazendo. Mas estou sem sono. — Fitando aqueles olhos azuis, de maneira sarcástica e perturbadora, acrescentou: — Bem, agora já respondi sua pergunta, vou devolver-lhe a mesma então. O que faz aqui? Está esperando algum amante? Hugh Le Gros, talvez?
Ela ficou lívida, diante de tamanha ofensa.
— Não, milorde! Se estivesse à procura de um homem, certamente não seria Hugh! Mas o fato é que não...
Ele a cortou, áspero:
— Tem certeza? Hugh parecia bastante empolgado com você naquele jantar.
— Desculpe-me, milorde. Se pensa assim, não deve ter me visto rechaçar as propostas indecentes dele!
Lorde Alain sacudiu os ombros, com tédio.
— Algumas mulheres gostam de seduzir os homens, fingindo desprezá-los. Pensei que essa fosse sua tática...
Claire ficou muda de espanto, ao ouvir aquela insinuação maldosa. Que direito ele tinha para humilhá-la daquela maneira e, ainda por cima, injustamente?
— Pois está muito enganado a meu respeito, milorde! Não sou esse tipo de mulher! — exclamou, enfática, assim que conseguiu recuperar a voz. — Aliás, coincidência ou não, só vim até aqui pelos mesmos motivos que o senhor, isto é, insônia!
A firmeza e a cólera de Claire o deixaram sem ação por alguns momentos. Contudo, quando tornou a falar, estava mais sarcástico do que nunca:
— Muito bem, vamos admitir que não estava à espera de Le Gros ou de qualquer outro... Por acaso não lhe ocorreu que algum homem poderia encontrá-la aqui em cima e pensar que estivesse à procura de companhia?
Ela empalideceu. Nesse ponto, ele estava com toda a razão.
— Meus soldados patrulham as muralhas durante toda a noite, Haesel — ele prosseguiu, atento à cada nuance da fisionomia de Claire. — São bons homens, porém um tanto rudes; estão acostumados a pensar que mulheres decentes não deixam seus quartos no meio da noite para contemplar a lua... Ainda mais usando trajes tão sumários.
Constrangida, Claire baixou os olhos, apertando ainda mais o xale contra o corpo. Só agora recordava que vestia penas uma fina camisola de algodão, por baixo do xale.
Não tinha coragem de fitá-lo outra vez. Fora acusada de ser uma mulher leviana e seus trajes pareciam confirmar as suspeitas dele. Tinha vontade de esbofeteá-lo!
Mas, mesmo a humilde Haesel, não poderia extravasar sua raiva dessa forma.
Sentiu as lágrimas umedecerem seus olhos, mas cerrou dentes com força e engoliu o choro. Era orgulhosa; feria morrer a chorar na frente dele agora!
— Estava muito abafado lá no quarto e eu não conseguia adormecer. Também fiquei com medo de acordar as crianças... — voltou a insistir naquela desculpa, que, de contas, era verdadeira. Sua voz estava rouca e trêmula, mas conseguia disfarçar bem a ira. — Sinto muito o ofendi, milorde. Voltarei ao quarto agora mesmo! Nunca pensei que vir até aqui pudesse desagradá-lo.
Fez um movimento para afastar-se, no entanto acabou detida pelas mãos fortes e quentes de Alain.
— Não, fique mais um pouco, Haesel — disse, mudando radicalmente sua postura. Em vez de cínico, agora estava gentil e até amável. — Gostaria que me perdoasse, se a tratei injustamente. A falta de sono sempre me deixa mal-humorado. Além do mais, fico furioso só de imaginar que pudesse ser atacada por algum de meus homens.
Ele parecia ter esquecido que ainda segurava o pulso dela, pois não fazia a menor menção de soltá-lo. Talvez ignorasse o quanto aquele simples toque mexesse com as emoções dela, elevando seus batimentos cardíacos às alturas.
Através daqueles dedos, Claire tinha a impressão de que passava um fluxo de água fervente que ia incendiando-lhe as entranhas, à medida em que penetrava em seu corpo. Contudo não era algo ruim; ao contrário, sentia-se embriagada de felicidade, com o corpo entorpecido praticamente implorando para receber mais carícias...
Os minutos foram passando e continuaram naquela mesma posição, em silêncio absoluto. Ele parecia esperar por uma resposta, enquanto ela olhava fixamente para a mão que lhe segurava o pulso.
— Ainda não a ouvi dizer que me perdoa, Haesel — Alain murmurou, retomando o diálogo.
— Oh! Lamento, milorde! — respondeu, assustada, como se saísse de um transe. Logo em seguida, percebendo o ridículo de sua reação, procurou impor um pouco de dignidade à sua triste figura. Até parecia uma adolescente apaixonada, diante de seu primeiro beijo, e nem sequer fora beijada ainda. Endireitando os ombros e fazendo o possível para remover aquela expressão abobalhada do rosto, após uma breve pausa, acrescentou: — Não há nada para ser perdoado, lorde Alain. Tem toda a razão sobre minha vinda à esta torre.. Foi um gesto muito imprudente de minha parte, que jamais tornarei a repetir.
— Tome, beba um pouco deste vinho — ele recomendou, entregando-lhe a rica taça de ouro com incrustações de pedras preciosas. — Vai ajudá-la a relaxar.
Claire hesitou, sabendo que o mais prudente seria recusar a oferta e voltar para o quarto das crianças. Com aquela camisola fina e o xale, sentia-se quase nua, como ele próprio tivera a indelicadeza de lhe dizer! Além disso naquele momento, sem aquela expressão arrogante e convencida, ele parecia o homem mais sedutor e atraente da face da Terra! Como poderia resistir a todos aqueles encantos, ainda mais sob os efeitos da magia da lua?
Surda aos apelos da prudência, permaneceu onde estava, hipnotizada pelo olhar penetrante de Alain. Alguns goles de vinho não iriam lhe fazer nenhum mal, muito pelo contrário, talvez lhe trouxessem o tão desejado sono.
Percebendo a indecisão de Claire, ele resolveu dar-lhe um ligeiro incentivo:
— Se não compartilhar da minha taça, terei a certeza de que não me perdoou, Haesel.
— Já que coloca as coisas desse modo, milorde... Provarei do seu vinho. — Sua voz era um sussurro rouco e sensual, como o miado de uma gata.
Enfeitiçado pela beleza daquela mulher, Alain levou-lhe a taça aos lábios para que ela provasse a bebida aromática... Nesse instante, nem sequer lembrava que era o senhor do castelo e ela, a serva: em seu coração, eram apenas homem e mulher.
Sem desviar os olhos dele, Claire lentamente sorveu um pouco do vinho adocicado e, ao mesmo tempo, instigante.
— É delicioso, lorde Alain... — comentou, com os lábios molhados com a bebida carmim.
— Chama-se hipocraz, Haesel. É um vinho misturado com mel e canela.
Claire sabia disso. Freqüentemente costumava bebê-lo no Castelo de Coverly. No entanto, como Haesel, não poderia admitir o fato.
— As crianças estão muito felizes com sua companhia... — Alain admitiu, fazendo-lhe um surpreendente elogio. Embora houvesse lhe soltado o pulso, estava tão próximo, que ela podia sentir seu hálito quente. — Tem se esforçado bastante para diminuir a dor dos meus filhos pela morte de Ivy.
— São crianças muito sensíveis e inteligentes. Foram muito bem educadas por Ivy e o padre que morreu há pouco tempo. E também pela mãe de Peronelle, sua falecida esposa, milorde.
Mas que tola! Não conseguia entender porque fizera aquela alusão à Júlia justamente agora... A menos que, inconscientemente, pretendesse impor alguma distância entre os dois.
Se sua intenção fora afastá-lo, tivera êxito completo! Alain virou-se de costas, contemplando o vale, sob as sombras da noite. Um silêncio sepulcral abateu-se sobre eles e a atmosfera ficou densa, como se faltasse ar.
Mesmo sentindo-se culpada por ter criado aquele clima pesado, Claire não teve coragem de dizer mais nada. Aliás, nenhuma desculpa poderia devolver a serenidade e a harmonia anterior.
— Então já chegou aos seus ouvidos que Guerin não era filho de lady Júlia?
Ela baixou a cabeça, em silêncio.
— Bem, a verdade é que Júlia dedicava muito pouco tempo a Peronelle e nenhum ao pequeno bastardo que eu a obriguei a receber neste castelo, como costumava referir-se a Guerin. Aliás, ela não perdia uma só oportunidade de chamá-lo de "bastardo imundo".
Tornou a fitá-la, exibindo a mesma fisionomia distante de sempre. Agora, entretanto, também havia traços de sofrimento.
Claire estava petrificada. A cada palavra dele, sentia que uma parte de seu coração se despedaçava, como se fosse atingido por um dardo. Era terrível ouvi-lo dizer aquelas coisas sórdidas sobre sua querida Júlia, a mulher que elegera como ídolo. Entretanto, por mais que lhe doesse, sabia que ele falava a verdade... E isso era o mais triste...
— Jamais a culpei por ter ódio de mim ou mesmo por não gostar de meu filho, fruto de um romance clandestino... Podia entender seus sentimentos — ele prosseguiu, como se aquela confissão lhe tirasse um peso da alma. — Mas nunca a perdoei por descontar sua raiva em nossa filha inocente! Por isso foi um alívio para ambos, quando ela morreu.
Essa última frase foi o golpe de misericórdia no machucado coração de Claire. Durante alguns segundos, teve a sensação de que iria desfalecer. Tudo começou a rodar e a vista escureceu. Todavia era muito mais forte do que imaginava e, logo, reuniu forças para encará-lo, um tanto incrédula. Seria mesmo possível que Júlia tivesse se voltado contra a própria filha?
— Eu a choquei com minha sinceridade, Haesel? — ele indagou, irônico. — Acha que sou muito odioso e cruel? Seu olhar de indignação parece me dizer que vai deixar o castelo tão logo amanheça.
— Não... é isso, milorde... — balbuciou, ainda enfrentando a turbulência gerada por aquele verdadeiro ciclone, que sacudira suas emoções. Estava desorientada, sem saber se estava à favor de Alain ou de Júlia... Por fim, deixou que o coração a guiasse. — Sinto muito que carregue tanta mágoa no peito, milorde. Deveria buscar consolo para suas aflições no fato de ter acolhido Guerin. Poucos pais demonstram tanta consideração por seus filhos bastardos.
O rosto sombrio e pesado de Alain se descontraiu.
— Tem um modo bastante peculiar e carinhoso de ver as coisas, Haesel... Beba mais um pouco de vinho.
Dessa vez, Claire aceitou a oferta de imediato e não tardou a sentir os efeitos relaxantes da bebida em seu corpo. Precisava espairecer, ou seu cérebro iria explodir com tantos problemas e preocupações. Uma voz interior, cada vez mais desesperada, continuava a insistir que já era hora de regressar ao quarto das crianças.
Sem dar atenção aos apelos de sua consciência, devolveu a taça a lorde Alain, depois de tomar alguns goles. Hipnotizada por aquela beleza máscula, viu que ele bebeu no mesmo ponto onde seus lábios haviam terminado de tocar a taça.
— Tome o restante... — ele sugeriu, entregando-lhe a taça outra vez.
Ela esticou a mão para recebê-la e, acidentalmente, seus dedos tocaram nos dele. Ondas de calor e prazer a tomaram de assalto, deixando-a ainda mais vulnerável aos encantos de Alain de Hawkswell.
— Está feliz aqui, Haesel? — quis saber, de súbito, quando ela terminava de sorver o conteúdo da taça.
Ela o fitou, surpresa com aquela pergunta. Em geral, os nobres não se interessavam pelos desejos e vontades de seus servos.
Nesse momento, uma gota de vinho escorreu dos lábios de Claire, maculando a alvura de sua pele. Mas, antes que pudesse limpá-la, lorde Alain colheu o líquido com o dedo, aproveitando para acariciar-lhe a face macia.
— Feliz? — ela repetiu a palavra, tentando conseguir algum tempo para se recuperar dos efeitos daquele toque. — O padre do meu vilarejo costumava nos ensinar que a felicidade não é deste mundo... O máximo que podemos sentir é satisfação...
Ele riu, jogando a cabeça para trás, com charme.
— Que seja! Está satisfeita com sua vida em Hawkswell?
— Oh! Sim, milorde. Acho que sim...
O que ele espera que eu diga?, questionou-se, sem saber aonde ele pretendia chegar com aquele assunto.
— Então devo ficar satisfeito com sua resposta?
Cada vez mais confusa, com os próprios sentimentos, Claire limitou-se a fazer um aceno positivo com a cabeça.
— Bem, Haesel, vamos selar nosso acordo de paz com um beijo, tendo a lua por testemunha — propôs, colocando a taça no chão.
— Acordo... de... paz? Beijo!? — balbuciou, amedrontada. No entanto não estava com receio de Alain, mas sim de seus próprios sentimentos. — Por quê?
— Ora, ambos somos cristãos e acabamos de nos entender, após trocarmos palavras ríspidas. Como estamos em paz agora, nada mais justo do que comemorarmos com um beijo.
Por um triz, não retrucou se ele também costumava beijar o ferreiro, os soldados ou mesmo sir Gautier cada vez que decidiam um assunto pendente, mas não conseguiu emitir nenhum som. Estava quieta e ofegante, a espera do tão falado beijo...
Devagar, ele se aproximou e tocou o rosto de Claire com lábios quentes, beijando primeiro um lado e, depois, o outro. Durante esse procedimento, Alain fechou os olhos, enquanto ela fez questão de deixá-los bem abertos. Ao sentir aquele corpo viril roçando no seu, foi sacudida por uma enxurrada de emoções tão fortes quanto estranhas... Jamais havia experimentado esse tipo de sensação antes, nem mesmo durante o inicio de seu casamento com Haimo d Audemer... Ondas de frio e de calor alternavam-se sucessivamente; o ventre queimava, como se tivesse engolido brasas, e o mundo parecia girar ao seu redor. Em meio a tudo isso, uma única coisa a preocupava: admirar o rosto aristocrático e belo de Alain de Hawkswell.
Enfim, ao abrir os olhos, ele deparou-se com o olhar contemplativo de Claire, colado em sua face. Instintivamente, sorriu surpreso por ver que ela os mantivera abertos.
— Ah! Quis ver se eu não iria devorá-la, depois de dar-lhe o beijo da paz?
Outra vez, ela só conseguiu mover a cabeça, tentando negar a afirmação dele. No entanto, no intimo, receava que Alain estivesse com a razão.
Paciente, ele aguardou que Claire parasse de tremer, segurando-a com firmeza pelos ombros.
Aqueles dedos pareciam queimar-lhe a pele, passando através do xale e da camisola, como se essas roupas nem existissem.
— Está pronta para retribuir o beijo? — perguntou, sim que a respiração dela voltou ao normal.
Se não estivesse recostada na parede, certamente teria ido ao chão. Nunca havia lhe passado pela cabeça que ele pudesse lhe fazer um pedido semelhante!
— Beijo!? Eu?
Bastou observar de relance o brilho desafiador no rosto de Alain, para saber que ele jamais a deixaria sair dali, a menos que fizesse o que lhe dissera. Já que havia deixado a situação chegar nesse ponto, o melhor a fazer seria terminar logo com isso e correr para a segurança do quarto dos pupilos!
O que a preocupava é que não se sentia como uma condenada, prestes a enfrentar o chicote do carrasco. Muito pelo contrário... Apesar de toda essa hesitação, estava ansiosa para beijá-lo!
Nos minutos que se seguiram, o tempo pareceu adquirir uma duração diferente, mais lenta e pausada. Em conseqüência, cada gesto, cada movimento podiam ser observados em todos os seus detalhes.
Tomando coragem, Claire subiu na ponta dos pés e deu um beijo suave e terno naquela face morena. Depois, prendeu a respiração, virando-se para beijar a outra face. Enquanto realizava esse movimento sutil, algo inesperado aconteceu...
Talvez ele tivesse se movido, ou então, inconscientemente, ela própria fora a responsável por aquela mudança... De qualquer forma, em vez de beijar o rosto de Alain, sua boca pousou diretamente sobre aqueles lábios!
Sua primeira reação foi de espanto e repúdio. Com bravura, tentou afastar-se daqueles braços que envolveram sua cintura como duas tenazes. Mas, nos momentos seguintes, sua luta foi perdendo a intensidade até que toda sua energia acabou canalizada em outra direção: explorar loucamente cada centímetro daquela boca!
Sem nenhuma hesitação, Ajam a beijava voluptuosamente, puxando-a cada vez mais para junto de seu peito musculoso. Enquanto isso, suas mãos continuavam a agir, fazendo massagens sensuais nas costas e coxas de Claire.
Quando aquele longo e eletrizante beijo chegou ao fim, continuaram colados um ao outro, loucos de desejo e excitação.
— Ah! Haesel... Doce, Haesel... — suspirou em seu ouvido, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha.
Claire sentia-se em delírio de paixão, como se estivesse em um mundo de sonhos, envolta por nuvens macias e perfumadas... No entanto os pensamentos seguiam um caminho próprio, dissociados das sensações físicas.
Como pudera permitir que aquilo acontecesse? Será que ele iria possuí-la ali mesmo, na torre? Perguntas, recriminações e conselhos sábios foram empurrados para o fundo de sua mente. Naquele momento, só queria saciar seus desejos de mulher!
— Haesel... — ele sussurrou mais uma vez, passando a acariciar-lhe o seio macio.
— Hei, vocês! O que estão fazendo ai? — uma voz zombeteira ecoou pela torre.
Os dois levaram tamanho susto com aquela interrupção que, no mesmo instante, afastaram-se. Alain praguejou, furioso, virando-se para encarar aquele bisbilhoteiro inconveniente. Claire, por sua vez, encolheu-se contra a parede, descobrindo que havia perdido o xale durante aquelas tórridas caricias. Não tinha nenhum pingo de coragem para fitar o intruso.
— Milorde! — ele exclamou, apavorado, ao reconhecer barão de Hawkswell. Aliás, parecia mais perplexo do que os dois. — Perdoe-me, não sabia que se tratava do senhor, Eu juro!
Hugh le Gros! Só faltava isso para que a noite ficasse completa!, Claire pensou, identificando o soldado mais falastrão e namorador do castelo.
Constrangida, tentou se esconder atrás da silhueta forte de Alain. Tinha plena consciência do quanto a camisola devia estar transparente, sob o reflexo da lua, bem como dos olhos ávidos de Hugh sobre as curvas sinuosas de seu corpo.
— Suma daqui, soldado! — lorde Alain gritou, com toda a autoridade que lhe competia.
De qualquer modo, o pobre Hugh já estava se retirando, cabisbaixo, ciente de que cometera um grande deslize.
— Deveria tê-lo atirado pelo parapeito! — Alain acrescentou, com os punhos cerrados de ódio, assim que Hugh partiu. Então, esquecendo-se por completo da raiva, voltou-se novamente para Claire: — Minha querida Haesel, estou tão...
— Não me toque! — interrompeu, empurrando Alain para o lado para que pudesse passar. Uma força imensa havia brotado em seu íntimo, expandindo-se por todo o corpo, como se estivesse mesclada ao sangue. Já era hora de recuperar o controle de seus atos, pois não agüentava mais ficar à mercê daqueles instintos e desejos de luxúria!
Atônito, ele não fez nenhum movimento para detê-la. Contudo seus olhos negros soltavam faíscas de ódio. Jamais fora tão desprezado por uma mulher, muito menos por uma serva!
Cheia de dignidade, Claire pegou o xale no chão e o jogou sobre os ombros. Em seguida, deu meia-volta e saiu da torre a passos largos, ignorando a presença do homem que fazia seu coração bater mais depressa... Não interrompeu sua marcha, nem se voltou para trás, até alcançar o quarto das crianças.
Com a respiração ofegante e o corpo molhado de suor, deitou-se em sua cama, cobrindo-se até a cabeça com o modesto lençol. Estava tão perturbada que não se lembrou nem mesmo de observar as crianças. Só queria dormir e esquecer...
Nunca poderia existir nada entre Alain de Hawkswell e ela, lady Claire de Coverly! Havia uma verdadeira muralha de razões a separá-los: pertenciam a famílias rivais; fora casado com Júlia e a fizera muito infeliz... Mas, sem dúvida, o pior de todos era o motivo que a levara ali, disfarçada de serva...
Sim, era melhor esquecer a voracidade de seus beijos, a ternura de suas carícias lascivas. Afinal, aquele homem era proibido!
Claire perdeu a noção do tempo, chorando baixinho em sua cama. Não conseguia pensar em nada, pois um redemoinho de idéias confusas e desconexas agitava sua cabeça. Só conteve o pranto ao lembrar das crianças que dormiam ao seu lado. Já era uma sorte imensa não tê-las acordado quando entrara no quarto, pisando duro.
Todavia, se continuasse fazendo barulho, não demoraria a ter que dar explicações sobre seu estado lamentável para os dois pequenos.
Cobrindo a boca com as mãos para sufocar os soluços, levantou-se e foi verificar se os dois estavam bem. Felizmente, para prevenir qualquer imprevisto durante a noite, uma vela sempre era mantida acesa no quarto das crianças, o que quebrava a escuridão total.
Os irmãos dormiam tranqüilamente, sem suspeitar das agruras pelas quais a nova ama havia passado em tão pouco tempo no castelo.
Ao observá-los, no entanto, os pensamentos de Claire acabaram recaindo em Júlia...
Pela Virgem Maria! Era difícil acreditar que a prima teria desprezado aquela menina doce que, antes de tudo, era sua própria filha. Se fosse verdade, a imagem maravilhosa que criara sobre Júlia iria por terra...
Se bem que maltratar um menino inocente, que não tem culpa pelo erro dos pais, não é nem um pouco digno... a voz da razão advertiu, voltando-se para Guerin.
De fato, era assustador descobrir que Júlia fora capaz de cometer semelhante maldade, descarregando naquela criança, nascida antes de seu casamento com Alain, todo o ódio que sentia pelo marido.
Confusa e cheia de remorsos, voltou para a cama. Era injusto condenar Júlia apenas pelo que Alain lhe dissera... Afinal, vivera toda sua infância e adolescência ao lado da prima, enquanto aquele homem não passava de um desconhecido!
Aquele homem! Meu Deus! O que havia de tão extraordinário em Alain de Hawkswell para fazê-la cair a seus pés, louca de desejo e de volúpia?
Em um piscar de olhos, todas as cenas vividas na torre vieram-lhe à mente, deixando-a transtornada de vergonha, culpa e frustração! Graças ao bom Deus, Hugh le Gros interrompera aquele beijo no momento exato! Mais alguns segundos e não teria reagido, se Alain quisesse possuí-la ali mesmo ou em seus aposentos... Aliás, isso era o que mais desejava naquele instante. Com um único beijo, ele conseguira destruir as defesas de Claire, tornando-se o senhor de seu corpo. Junto dele, nada mais lhe importava... Os planos de Hardouin, sua tão sonhada liberdade, os perigos de ser desmascarada, enfim, tudo parecia pequeno e insignificante, comparado os prazeres que ele poderia lhe conceder! Miserável!, pensou, revoltada com o poder de sedução de Alain. Como ele tivera a ousadia de tratá-la como uma cortesã comum, do tipo que se sujeita a qualquer humilhação em troca de algumas moedas? Ele que procurasse a tal de Gilda para satisfazer seus desejos! Lágrimas quentes voltaram a rolar por seu rosto, quando pensou na bela moça ruiva, a atual amante de lorde Alain... Por que o envolvimento dele com aquela aldeã a incomodava tanto? Esse assunto não lhe dizia respeito. Ou pelo menos, não deveria...
Então a verdade surgiu límpida e cristalina, diante de seus olhos. Podia enganar a todos, porém seria impossível continuar mentindo para si mesma...
Desde o primeiro momento cm que o vira, Alain de Hawkswell havia mexido com seus instintos femininos, despertando-lhe desejos e sensações que jamais julgara possuir. Poderia desprezá-lo, ter ódio dele, mas uma coisa não podia negar: ele a atraía e muito!
Além disso, não podia culpá-lo por tudo o que acontecera na torre; tivera a sua própria parcela de responsabilidade. Não havia tomado nenhuma iniciativa de partir; aceitara o vinho que ele lhe oferecera e, acima de tudo, não fizera nada para impedir que ele a beijasse.
E que beijo! Ainda podia sentir o gosto daqueles lábios colados aos seus, enquanto seu corpo ficava todo arrepiado, clamando por carícias mais ousadas. Deixando de lado o pudor e a situação caótica que os envolvia, admitiu como teria sido bom fazer amor com ele!
Claire corou de imediato. Embora tivesse sido casada, jamais sentira paixão ou desejo por Haimo. Ao contrário, considerava aqueles momentos de intimidade matrimonial apenas como um dever, uma dolorosa obrigação. Aliás, graças à selvageria e brutalidade do marido, aquelas relações poderiam até ser consideradas estupros.
Que Deus a ajudasse a resistir contra aquela tentação, que atendia pelo nome de Alain! Sim, pois estava decidida a nunca mais ceder às investidas dele. Não queria se transformar em uma mulher imoral, traindo seus princípios e os interesses de sua família.
Daqui para a frente, teria que concentrar todos os seus esforços para concluir os danos de Hardouin e conquistar a liberdade:
Isso... Tenho de buscar estímulo no fato de ficar livre.
Depois que conseguisse suas terras, nunca mais teria que se sujeitar às vontades dos homens! Nunca mais.
— Haesel! Haesel! Acorde. — uma voz infantil a chamou, ao mesmo tempo em que era sacudida pelos ombros.
— Qu est-ce que... — começou a falar em francês. Felizmente, em uma fração de segundos, a memória retornou, advertindo-a de onde estava. No mesmo instante, passou para a outra língua: — O que foi? O que aconteceu?
Guerin estava sentado na beira de sua cama, com o rosto pálido e uma ruga de preocupação na testa. Parecia não ter notado que Claire havia respondido em francês.
— Chorava alto, Haesel. Está doente?
Ainda com as pálpebras pesadas de sono, esfregou os olhos com as mãos, para tentar focalizar melhor as imagens. Então viu que Peronelle também se levantara, com uma expressão de puro pavor no rosto infantil.
Sentiu-se péssima por ter assustado as crianças, mas, mesmo tempo, estava feliz que eles a tivessem socorrido, livrando-a de um pesadelo horrível.
— Não se preocupem, queridos. Estou bem. Foi apenas um sonho ruim... — apressou-se a acalmar seus pupilos. Sorriu-lhes, tentando convencê-los de que dizia a verdade.
— Mas já é de manhã...- Peronelle retrucou, confusa, apontando para a suave claridade da aurora que penetrava pelas janelas do quarto. Aninhando-se no colo de Claire sem cerimônias, prosseguiu: — Pensei que pesadelos só acontecessem de noite.
— Nem sempre, querida...
— Qual foi o seu pesadelo. Haesel? — Guerin quis saber. — Ivy sempre nos pedia que lhe contássemos os nossos. Alegava que, dessa forma. os monstros que não nos assustariam e acabariam se desmanchando no ar, como se fossem fumaça, e não poderiam nos fazer mal.
— Eu... Eu não me lembro... — mentiu, com as imagens assustadoras ainda bem nítidas em sua mente. Como poderia dizer-lhes que o "monstro" era seu próprio tio desalmado, fazendo-lhe ameaças terríveis, caso não cumprisse sua parte do plano.
— Ora, não se preocupe, Haesel! Esse monstro já deve ter ido embora com a luz do sol! — Peronelle tentou confortá-la, agindo como se fosse uma adulta. Em seguida, para alívio de Claire, mudou subitamente de assunto: — Estou com fome. Podemos fazer a refeição matinal?
— Sim, já é tarde. Estávamos esperando que você acordasse, quando começou a chorar — Guerin revelou.
Sentindo remorsos por ter assustado as crianças, Claire levantou-se depressa e trocou a camisola por seu vestido verde. Na verdade, seu guarda-roupa era extremamente reduzido, composto por meia dúzia de peças rústicas, algumas conseguidas graças à bondade de Annis. Mesmo assim, fazia questão de ajeitar-se o melhor possível com aqueles trajes modestos, perfumando-se e mantendo os cabelos impecáveis.
O primeiro problema da manhã seria o confronto com lorde Alain. Deveria torcer para que ele não repreendesse os filhos por aquele atraso. Caso isso acontecesse, teria que explicar-lhe que a culpa era toda sua. E, nessa altura dos acontecimentos, queria evitar ao máximo todo contato direto com ele.
É claro que não poderia morar ali, desempenhando a função de ama, e nunca mais tornar a dirigir a palavra ao senhor do castelo. Porém tinha esperanças de que aquilo só viesse a ocorrer quando já tivesse banido, para os confins de sua memória, as lembranças daquele beijo arrebatador. Talvez assim pudesse enfrentá-lo, sem que o rosto enrubescesse...
Todas essas preocupações foram inúteis. Pois, quando chegou ao grande salão, junto com as crianças, não havia menor sinal de lorde Alain. Mas, em vez de alívio, ficou desapontada...
Talvez ele também estivesse tentando evitar aquele encontro... Ou então, depois que "Haesel" havia despertado o seu apetite sexual, tivesse ido passar a noite com Gilda, na aldeia. Sentiu o sangue ferver de raiva ao considerar a última hipótese como a mais provável. Apesar de não se confrontar com Alain naquela manhã, ela não conseguiu escapar ilesa da refeição, sem receber uma reprimenda. Antes de levar as crianças para aulas, padre Gregory a admoestou por aquele atraso. As crianças haviam perdido a missa e, sem dúvida, aquela falta não havia passado despercebida para lorde Alain.
Então ele esteve aqui! Tomar conhecimento desse fato com que se sentisse leve como uma pluma. Significava que ele havia passado a noite no castelo e não na aldeia!
— Desculpe-me, padre. Não perderemos a missa amanhã — prometeu, lutando para disfarçar sua alegria. Assim que ficou sozinha, entretanto, pensamentos nada agradáveis começaram a minar sua efêmera felicidade...
De acordo com sua própria teoria, se Alain estivera presente à missa logo cedo, estava provado que dormira no castelo. Contudo isso não excluía a possibilidade de que tenha feito uma rápida visita à Gilda durante a madrugada. Pare de se preocupar com isso, Claire! Ou irá pôr tudo perder!, a voz da razão a repreendeu, obrigando-a a concentrar nos motivos de sua presença ali. A primeira providência era descobrir se lorde Alain estava dentro ou fora do castelo. Conforme a resposta, veria se era seguro visitar Ivo e Jean para levar-lhes pouco de comida, conforme lhes prometera.
Com esse objetivo em mente, escondeu pedaços de queijo e de pão em seu xale e deixou o recinto. Dessa vez. deveria fazer tudo com calma e bastante cuidado, para não ser apanhada em flagrante!
Com o máximo de discrição, para não despertar suspeitas, vasculhou os principais pontos do castelo aonde poderia encontrar lorde Alain, ou ter alguma pista acerca de seu paradeiro. Após algumas tentativas frustradas... acabou por vê-lo sair do canil, acompanhado por uma matilha de cães.
Claire abaixou-se, fingindo tirar algum pedregulho da sola do sapato. Precaução inútil, pois, ele estava tão ocupado com os cães que nem notou sua figura, continuando seu caminho para o estábulo.
Ela não pensou duas vezes para segui-lo até lá, contudo parou na porta. Atenta a todos os movimentos dele, iniciou uma conversa com Ewald, o armeiro, como pretexto para sua presença ali. Desse modo, pode ver quando Alain montou seu garanhão e vestiu uma luva de couro que chegava até seu cotovelo.
Certamente, era uma luva apropriada para aparar falcões de caça. Porém onde estaria o pássaro? Claire não vira nenhum soldado segurando o animal, nem havia viveiros nas proximidades do estábulo ou em qualquer outra parte do pátio...
Enquanto isso, montando seu cavalo negro, Alain atravessou o portão principal, acompanhado apenas por seus cães.
Encerrando aquela conversa tola com Ewald. Claire continuou a segui-lo, mantendo uma distância segura. Estava intrigada com o paradeiro do pássaro. Será que ele o guardava na aldeia?
Não, impossível! Nenhum nobre manteria um pássaro tão valioso fora de seu castelo. A menos que...
Engoliu em seco, sem coragem de completar o raciocínio. Mesmo assim, não demorou muito para que aquela idéia voltasse a perturbá-la com força total...
A menos que ele guardasse o falcão na cabana de sua amante!, concluiu, por fim, sentindo uma pontada no estômago. No entanto não teve coragem de admitir que, agora, continuava a segui-lo para saber se ele iria visitar Gilda. Encobriu aquele motivo, dizendo para si mesma que só estava se certificando de que poderia ir até a cela de Ivo e Jean, em segurança.
Sem perdê-lo de vista, andou entre as cabanas da aldeia, ignorando a presença de seus moradores. Na verdade, nem conseguia distinguir os vultos, tão intensa era a raiva que sentia no peito.
Depois de cruzar a segunda muralha, ele parou, no borda da floresta. Logo tirou algo pequeno do cinturão.
Claire apertou os olhos e pôde ver que o objeto era uma bola de couro, atada à luva de lorde Alain por um cordão comprido. O que viu em seguida, causou-lhe grande divertimento e admiração.
Alain deu um assobio e arremessou a pequena bola para longe. Minutos depois, um falcão gigantesco emergiu da floresta, apanhando a isca com a velocidade de um raio.
Sem saber que era observado, Alain deu uma risada de satisfação e orgulho quando o pássaro pousou em seu braço, trazendo a bola nas garras. Então retirou o objeto do mascote, fazendo-lhe um cafuné na cabeça emplumada.
Como prêmio, o falcão ainda ganhou um pedaço de carne crua que seu mestre trazia guardado em um alforje, preso à sela.
Quando o pássaro finalmente terminou de devorar aquele petisco, retornou aos ares, seguindo do alto lorde Alain e a matilha de cães.
Claire deu um suspiro profundo, maravilhada com a cena que acabara de testemunhar. Aquele falcão era tão bem treinado que vivia em total liberdade na floresta, sem nenhuma venda para cegá-lo, ou cordas atadas às ganas. Bastava um assobio agudo para que atendesse ao chamado do mestre.
Quanta diferença entre esse pássaro e o falcão peregrino de Hardouin! O infeliz mascote do tio era mantido preso em uma gaiola de ouro, com a cabeça coberta por um capuz e sinos de prata amarrados às garras, para denunciarem seus mínimos movimentos. Só desfrutava de um pouco de liberdade durante as inúmeras caçadas de seu dono. Nessas ocasiões, era libertado para que voasse pelos ares e trouxesse alguma prenda preciosa para seu mestre. Após cumprir sua tarefa, no entanto, o capuz era recolocado e as garras amarradas à luva do tio.
Um calafrio passou-lhe pela espinha. Novamente pensou na semelhança entre o pássaro de Hardouin e sua própria situação... Sua gaiola de ouro era o Castelo de Coverly; o capuz era o dever de cumprir todas as vontades da família; faltavam-lhe apenas os sinos!
Jesus! Será que essa missão em Hawkswell, sob a promessa de conquistar minha independência, também não passa de uma efêmera ilusão de liberdade?
Não teve oportunidade de avaliar melhor essa hipótese, pois uma voz feminina, grosseira e nada amistosa, dirigiu-se a ela, em inglês:
— O que pensa que está fazendo aqui?
A primeira reação de Claire foi de susto, como se tivesse sido desmascarada. Então, controlando os nervos, virou para enfrentar sua interlocutora. Qual não foi sua surpresa ao descobrir que se tratava de Gilda, a amante de lorde Alain! A ruiva a fitava de alto a baixo com tanto desprezo e ódio, que Claire, instintivamente, retrocedeu alguns passos.
— Quem, eu? Só estou dando um passeio — disse, fingindo indiferença. Não devia nenhuma desculpa àquela mulher, lembrou-se, com o orgulho ferido.
— Deve ser muito bom não ter nada para fazer, além de seguir meu senhor por aí.... — Gilda provocou, com uma risada vulgar. — Ninguém mais aqui em Hawkswell tem tempo para ficar vagando á toa.
A audácia e a ferocidade daquele ataque verbal sacudiram Claire, deixando-a aturdida. Logo, porém, o choque foi dando lugar à ira incontrolável. Não iria permitir que Gilda a maltratasse!
— Não estava seguindo ninguém! Só deixei o castelo para dar uma volta — Claire repetiu sua desculpa. — Não tenho nenhuma obrigação para cumprir à tarde, porque cuido das crianças de lorde Alain. Mas isso não é da sua conta!
— Tudo o que diz respeito a lorde Alain é da minha conta sim!
Motivada por uma raiva imensa, que não era outra coisa, além de ciúme, atacou a rival, sem piedade:
— Ah, é mesmo? Então, em vez de me importunar, deveria mantê-lo ocupado! Ou será que não consegue fazer isso?
A mulher ergueu as sobrancelhas, colocando as mãos na cintura, em uma pose desafiadora. Estava disposta a partir para um confronto físico, mas, antes, retrucou, sarcástica:
— Faço meu trabalho à noite, sempre que milorde me deseja. E quando ele não está na minha cama, sou livre para fazer o que quero, como aquele falcão!
As duas trocaram olhares inflamados de cólera e rivalidade.
— Nossa! Quanta imponência e altivez para uma pobre serva! Até parece que é diferente de mim! Mas, na verdade, camponesa! — Gilda zombou, com um sorriso de escárnio. — Não passa de uma fugitiva! Aliás, você tem um jeito estranho de falar... De onde é que veio?
Antes que as suspeitas de Gilda seguissem para caminhos perigosos, Claire resolveu satisfazer sua curiosidade, usando as suposições de Hugh le Gros.
— Do norte... Mas, certamente, você nunca esteve tão longe. — No íntimo, achou divertido que Gilda a rotulasse de fugitiva em um esforço para tentar menosprezá-la.
A outra apertou os lábios, com raiva.
— De fato, nunca saí dessas terras! Mas por que iria deixar Hawkswell, se tenho tudo o que preciso aqui mesmo? — Ergueu a cabeça, mirando Claire com desdém. — Sou amante do grande senhor do castelo, que sempre me dá presentes generosos!
Com um ar de orgulho e superioridade, Gilda esticou a mão para a rival. Em um de seus dedos, havia um anel escuro com uma pedra tosca no centro. Não passava de uma jóia barata, vendida em qualquer feira da Inglaterra por um pene ou dois.
Recuperando a razão, Claire encheu-se de piedade pela moça que tentava impressioná-la, exibindo um anel ordinário e sem valor. Duvidava até mesmo que ela o tivesse ganho de lorde Alain.
— Parece acreditar que quero tirar o barão de sua cama — ponderou, mais complacente, pensando na vida difícil e sem perspectiva da pobre moça.
— E não é o que pretende? — Gilda contra-argumentou, incrédula. — Como se pudesse!
— Não importa se posso ou não... — Nesse momento, lembrou-se de empregar os argumentos que uma serva como Haesel usaria. — O fato é que não quero ser amante de nenhum nobre!
Pensou que essa desculpa seria definitiva para convencer a ruiva de que não representava nenhuma ameaça para seu romance com o senhor de Hawkswell, Mas, em vez de apaziguar-lhe os ânimos, só conseguiu irritá-la ainda mais.
— Por quê? Acaso, acha que é boa demais para isso? — avançou em sua direção, como se fosse agredi-la fisicamente.
Claire deu mais dois passos para trás, o que só aumentou a hostilidade da rival. Então, compreendendo que o único meio de se livrar de Gilda era mostrar coragem, partiu para o ataque. Com um gesto rápido, tirou uma faca que guardava na faixa da cintura e ameaçou sua oponente.
— Não me deito com nenhum homem por dinheiro ou presentes!
Gilda a encarou, com uma animosidade assustadora, sem esconder o desejo de esganar Clame. Porém, pensando na faca, conteve seus impulsos.
— Como já disse, você é imponente demais para o meu gosto, estranha! Mas vou lhe dar um aviso... Fique longe do meu senhor e não terá nada a temer de mim.
— Não tenho medo de você — Claire replicou, avançando alguns passos, com a faca em punho. — E também não estou nem um pouco interessada em me tornar o passatempo do barão!
Percebendo que perdera tempo demais discutindo com a mulher ciumenta, Claire deu-lhe as costas e voltou ao castelo. Já era hora de se preocupar com assuntos mais importantes, aproveitando que lorde Alain e as crianças estavam ocupados, cada qual com suas atividades.
Enquanto lorde Alain caçava e lady Claire ouvia as queixas furiosas dos dois prisioneiros, uma carta importante era lida, em um castelo muitas milhas a sudeste...
"Para meu senhor, conde d Evreux e duque de Tresham,
Saudações.
Lady Claire conseguiu ser admitida em Hawkswell. No entanto os homens que a escoltaram não tiveram muita sorte. Foram surpreendidos na floresta pelo próprio lorde Alain, à frente de uma patrulha. Houve um combate feroz e dois de seus homens acabaram mortos e outra dupla foi capturada e trazida para o castelo. Não há indícios de que estejam sendo torturados em troca de informações. Contudo, creio que concordará comigo que seus destinos não nos importam, milorde.
Sua sobrinha está se saindo muito bem nessa missão e desempenha seu papel de serva inglesa com tanta naturalidade que eu próprio me deixaria iludir, caso não soubesse da verdade. Até mesmo lorde Alain aceitou-a de imediato como a pobre camponesa que alegava ser. Todavia duvido que ele permitisse que uma estranha cuidasse dos filhos, se a antiga ama não tivesse morrido no mesmo dia em que lady Claire chegou ao castelo. Maravilhosa coincidência, não acha?
Embora um pouco cauteloso no início, a cada dia que passa lorde Alain tem se mostrado mais satisfeito com a nova ama. Portanto não tenho dúvida de que muito em breve milady consiga levar as crianças para fora das muralhas, sob o pretexto de um passeio.
O restante de seus soldados está escondido na floresta, milorde. Entretanto peço-lhe que envie mais quatro homens, junto com o portador desta carta, para substituir os que foram mortos ou capturados.
Seu fiel servo."
Uma risada aterrorizante escapou da boca de Hardouin, enquanto o fogo da lareira destruía a mensagem recém-recebida.
— Padre Gregory, eu o verei mais tarde — Alain comunicou, deixando a mesa, após terem almoçado. — Uma vez que a chuva destruiu todas as perspectivas de atividades fora do castelo, irei cuidar de minha correspondência. — Fazendo um rápido exame de consciência, reiterou-se: — Suponho que não tenho motivo para me queixar, pois, estive caçando na floresta ainda esta manhã, antes que o tempo mudasse.
— Ah! É esplêndido que escreva suas próprias cartas, quando ainda existem tantos nobres analfabetos! No entanto ficaria imensamente satisfeito se pudesse tirar esse fardo de seus ombros, milorde — o padre se ofereceu, levantando-se também. — Só precisa ditar a mensagem e eu me encarregarei de escrevê-la.
— Esse é o problema, padre. Não sei bem o que vou escrever até que segure a pena entre meus dedos — desculpou-se, com um sorriso gentil, pondo a mão sobre o ombro do padre. — Portanto só estaria desperdiçando o seu tempo e o meu.
— Oh! Mais um motivo para que eu o ajude, milorde! — padre Gregory exclamou, insistente. — Como padre, sou treinado na arte da retórica.
— Agradeço seus préstimos, bom padre. Mas, mesmo sabendo que sua ajuda poderia aprimorar a qualidade minhas cartas, não posso aceitá-la. Acredito que o duelo entre a pena e o papel é um excelente exercício para o pensamento.
— Não tome essa recusa como algo pessoal, padre Gregory. Ele jamais delegou essa função a ninguém, nem mesmo a mim, o administrador do castelo — sir Gautier comentou, inconformado, enquanto lorde Alain subia a escada para seu quarto.
Assim que se viu a sós em seus aposentos, Alain sentiu-se fatigado e sem inspiração para responder a carta para a imperatriz. Havia tantas coisas que queria dizer-lhe, mas ela não gostaria de ouvir ou ler! Matilde dificilmente aceitava conselhos, característica que herdara do pai, o Henrique I.
Pois bem, já que pusera de lado a mensagem da imperatriz, iria responder a carta de Hugh Bigod. Esse nobre estava tentando convencê-lo a tomar parte nas batalhas, por ele mesmo iniciadas em Anglia do Leste, contra o rei Estevão. Mas como poderia explicar que um poderoso e valente nobre, como o barão de Hawkswell, não estava disposto a arriscar a prosperidade de seus domínios e a segurança dos filhos, travando uma guerra contra o rei? Além do mais, o próprio Bigod não era um homem confiável; vivia mudando de lado, ao sabor do vento. Em um mês ou dois, talvez voltasse a ser um dos mais fiéis vassalos de Estevão novamente!
Após várias tentativas frustradas de colocar no papel sua decisão, acabou desistindo da tarefa. Sua mente estava muito longe dali, presa às lembranças da noite anterior.
Para ser sincero, não ficara tão surpreso ao encontrar Haesel na torre, como fingira estar. Atacado por forte insônia e atento aos mínimos ruídos da noite, o ranger das dobradiças, na porta do quarto dos filhos, chamara sua atenção. Sabia que se tratava da jovem e exuberante serva inglesa, pois nenhuma das crianças jamais havia deixado os aposentos no meio da noite.
No início, mantivera-se quieto, em seu próprio quarto, consumindo mais uma taça de vinho. Porém, à medida em que o ruído de passos parecia conduzir à torre norte, resolvera investigar aquele mistério. Embora não devesse explicações a ninguém do castelo, levara uma taça cheia de vinho para servir de pretexto à sua visita inusitada à torre, no meio da madrugada.
A cada degrau, sua raiva ia crescendo assustadoramente, motivada por suspeitas de que Haesel iria encontrar-se com Hugh le Gros ou qualquer outro soldado.
Uma serva, mais interessada em seduzir um guerreiro do que se concentrar nas próprias obrigações, era um perigo para a segurança de Hawkswell! Quem sabe, o objetivo de Haesel fosse exatamente este: distrair os guardas da muralha!
Enfurecido, chegara ao topo da longa escadaria, já imaginando o modo como iria colocar Hugh e Haesel para fora de seus domínios! Contudo, ao ver que ela estava sozinha, observando o céu, toda sua ira havia se dissipado, como por encantamento.
Fizera de tudo para se convencer de que ficara apenas feliz por não ter que castigar nenhum de seus homens, mas, no intimo, não podia negar que a beleza daquela mulher, mexera drasticamente com seus sentidos. Estava zonzo e emotivo, sem saber como agir, diante de tanta formosura... O luar mudara o dourado daqueles cabelos para uma tonalidade mais platinada, conferindo a Haesel uma aura de misticismo, como se fosse uma fada das antigas lendas celtas.
Embevecido por aquela visão, ficara imóvel por muito tempo, somente a observá-la. No entanto, assim que ela se virara, percebendo sua presença, perdera a cabeça e começara a atacá-la com palavras! Por que fora tão ríspido e mal-humorado, quando tudo o que gostaria de fazer era cobrir aquela boca de beijos?
Meu Deus! Aquela mulher o tirava do sério complemente! E, o que era pior, em vários sentidos! Sem que ela fizesse nenhum esforço para isso, conseguia seduzi-lo, provocando-lhe os mais ardorosos e incontroláveis desejos. Bastava contemplá-la, para sentir o sangue ferver e o corpo latejar, como se não passasse de um adolescente, face às primeiras descobertas sexuais. Além disso, perto dela, não conseguia pensar direito. dizendo coisas ou agindo de uma maneira que jamais faria. se estivesse sob o domínio da razão.
Que idéia maravilhosa trazer aquela taça de vinho!
Graças a isso, conseguira minimizar o clima desagradável, gerado por suas criticas ásperas. Embora não houvesse um pingo de vulgaridade na atitude de Haesel, qualquer serva prudente teria recusado de pronto a oferta para compartilhar da taça de um nobre.
Apertou a cabeça entre as mãos, atordoado por tantas dúvidas! Por que tudo o que se referia a Haesel era ambíguo e contraditório? Ela era humilde e modesta, como uma serva deveria ser, contudo seus gestos e palavras pareciam envoltos em um véu de fidalguia, próprios da nobreza. Era bela e sedutora, embora mantivesse uma postura cândida e inocente. Por fim, o passado dessa mulher era um completo enigma!
Como lorde e membro da nobreza normanda, Alain tinha o direito de decidir o destino de qualquer um de seus vassalos; podia, inclusive, escolher para amante qualquer mulher inglesa descomprometida. Todavia jamais se valera desse artifício para conquistar os favores de nenhuma jovem. Só havia se deitado com mulheres que desejaram sua companhia de livre e espontânea vontade.
Gilda, sua atual amante, já costumava deitar-se com homens em troca de moedas ou de alguns presentes há muito tempo. Aliás, não tinha dúvidas de que a ruiva continuava a fazê-lo, mesmo contando com o poderoso senhor de Hawkswell entre os freqüentadores de sua cabana. O mesmo não poderia ser dito sobre Haesel...
Sim, ao senti-la em seu braços, tivera a certeza de que ela não era virgem... O modo como respondera aos seus beijos e carícias denotava alguma experiência no campo amoroso. Ao mesmo tempo, tivera a sensação de que era a primeira vez que ela estava experimentando o prazer compartilhado entre um homem e uma mulher. Além disso, ela relutara em entregar-se à paixão, o que nenhuma mulher leviana faria, se tivesse a oportunidade de seduzir o senhor de um castelo.
Será que Haesel fora possuída à força por algum guerreiro selvagem? Isso era muito freqüente nesses tempos de guerra e brutalidade... Ah! Como gostaria de mostrar-lhe as delícias da arte do amor!
Então sua mente atormentada o levou mais uma vez para as lembranças daquela noite; no exato momento em que Hugh le Gros interrompera aquele beijo avassalador...
"Maldito, Le Gros!", praguejou, em pensamento. Se não fosse por aquela intromissão, talvez tivesse possuído aquela mulher deslumbrante! Em vez disso, fora para a cama morto de desejo e paixão, depois de ter chegado tão perto do paraíso!
Poderia ter ido consolar suas frustrações nos braços quentes e sempre carinhosos de Gilda. Mas, cada vez que lembrava da doçura daqueles lábios e o perfume daqueles cabelos loiros, chegava a sentir asco da ruiva. Não queria ir para aquela cabana na aldeia, mas sim para a cama de Haesel, que havia se refugiado no quarto de seus filhos! Aliás, esse fora o único motivo que o impedira de arrombar aquela porta e suplicar pelo amor daquela mulher!
Minha nossa! O que estava pensando? Acaso estaria enlouquecendo de paixão?
Mal conseguira pregar os olhos durante o resto da noite. Por isso, tão logo os primeiros raios da aurora surgiram no horizonte, dera início a uma verdadeira maratona de atividades. Pelo menos assim, tentaria ocupar a mente e o corpo com outros assuntos, além de Haesel. Não resolvera passar o dia caçando na floresta simplesmente para adiar aquele reencontro. Ao contrário, ao constatar a ausência de Haesel durante a refeição matinal, tivera receio de que ela partira de Hawkswell, assustada ou ofendida com sua reação impetuosa. Qual não fora seu alívio e alegria ao avistá-la na mesa dos servos, na hora do almoço!
Demonstrando muita fibra, ela não havia lhe dirigido um olhar sequer. Agira como se Alain não existisse! Contudo as profundas olheiras sob os olhos e a palidez do rosto contrastavam com a aparência de calma que queria expressar.
Com certeza, de agora em diante, Haesel tomaria todas as precauções para não ficar a sós em sua presença! Tampouco faria passeios pelo castelo para admirar as estrelas... Ela o desprezara com veemência!
De súbito, um raio de esperança cruzou-lhe o cérebro... E se tentasse vencer as barreiras de Haesel com carinho, afeto e perseverança? Será que ela se renderia a seus desejos? Poderia tentar... De qualquer forma, tomaria todo o cuidado para que nenhum bisbilhoteiro, como o intrometido le Gros, pudesse atrapalhar uma segunda chance de seduzir Haesel!
Com um misto de ansiedade e angústia, havia aguardado pelo almoço, quando ela deveria estar presente. Mas, agora que vira Haesel, sentia-se de mãos atadas!
Tentar abordá-la estava totalmente fora de cogitação! A tentativa frustrada da noite anterior ainda era muito recente para que tivesse sucesso nessa nova aproximação.
Teria que ser paciente. Porém, assim que a conquistasse, não deixaria que partisse tão cedo, se é que algum dia permitiria que ela se fosse...
Gilda ficada possessa ao descobrir que fora substituída, embora, no fundo, ela sempre soubesse que nunca haveria futuro para aquele relacionamento. No entanto, depois de dar-lhe um generoso presente de despedida, ela iria se acalmar, dirigindo seus afagos e carícias para seus outros visitantes.
Esquecendo-se por completo da carta para Hugh Bigod, Alain passou a fazer planos para o futuro... Todos envolvendo Haesel, é claro!
Iria mantê-la ao seu lado para sempre, até mesmo quando a imperatriz cumprisse a palavra de arranjar-lhe um casamento com outra herdeira normanda. Aliás, essa era uma promessa que não fazia a menor questão de ver cumprida. Se não precisasse de um filho legítimo para herdar o título de barão de Hawkswell, jamais aceitaria desposar outra moça nobre e bem-nascida como Júlia! Não queria nenhuma aristocrata esnobe em seu castelo, maltratando o povo e referindo-se a Guerin como bastardo!
Respirou fundo, esticando os braços para o alto, a fim e afastar a tensão. No fundo, mais cedo ou mais tarde, teria que se resignar com a idéia de um novo casamento arranjado, como sempre acontecia na nobreza. Entretanto, o coração seria livre para amar a mulher que desejasse!
O burburinho de vozes infantis, entremeado pelo timbre leve e inconfundível de Haesel fez com que Alain afastasse aqueles devaneios para se concentrar no movimento de sua porta... Logo, no entanto, tudo silenciou, quando as crianças e a ama entraram no quarto contíguo. Bastou ouvir aquela voz, doce como o canto de um pássaro, para que a paixão, que o consumia, voltasse a incendiar o corpo, como se estivesse em uma fogueira!
Ele riu, com uma expressão maliciosa na face. Já que não era possível estar com Haesel, ao menos, poderia vê-la.
Aproximando-se da parede que dividia os dois quartos, ergueu um pedaço da pesada tapeçaria, que narrava as peripécias de um antepassado, revelando um pequeno orifício. Ele próprio fizera aquele buraco entre as pedras, quando Júlia ficara irritada com a transferência de Peronelle para o mesmo quarto ocupado por Guerin e a antiga ama. Para apaziguá-la, fornecendo-lhe um meio de observar os procedimentos de Ivy, quando julgasse estar a sós com o bebê.
Aquela tentativa não alcançara nenhum sucesso, uma vez que Júlia não se preocupara com o estado do bebê. Sua única preocupação era a convivência entre a filha e o irmão bastardo.
Desde o início, o grande usuário desse buraco de observação fora o próprio Alain. Embora confiasse plenamente na falecida Ivy, temia que as crianças tivessem qualquer problema durante a noite e a velha não pudesse ouvi-los.
Agora, entretanto, daria uma nova utilidade para o buraco: observar a bela e sedutora ama das crianças.
Ali estava Haesel, sentada na cadeira que pertencera a Ivy, com Guerin e Peronelle ajoelhados aos seus pés para ouvirem estórias.
— Sendo um rei, Alfred não estava habituado a executar tarefas simples, como cuidar de um fogão. Por isso, assim que ficou a sós na cozinha, seus pensamentos o levaram para bem longe dali; esqueceu de vigiar os bolos que assavam e passou a se preocupar com uma maneira de expulsar os dinamarqueses da Inglaterra.
Claire fez uma pausa, conferindo maior ênfase dramática narrativa. As crianças pareciam petrificadas, de emoção e ansiedade, enquanto aguardavam pelo resto da história.
— É lógico que os bolos acabaram queimando! — Claire anunciou, em tom solene, provocando uma verdadeira enxurrada de risos em seus dois pupilos. — E, quando a viúva voltou para a cozinha, Alfred ainda estava sentado diante do fogão, sem nem perceber o cheiro de queimado que se espalhava pelo ar.
Guerin e Peronelle tornaram a rir.
— E o que a viúva fez? — o menino quis saber, aflito com o desfecho da historia.
— Ora, ela ficou furiosa com aquele tolo que permitira que seus deliciosos bolos fossem transformados em cinzas! Mas não sabia que aquele mendigo era na verdade o rei.
Peronelle bateu palmas de contentamento, o irmão, no entanto, continuava preocupado.
— Ele não disse à viúva que era o rei?
— Oh! Imagino que alguém lhe contou posteriormente, mas não adiantou! Para a viúva, Alfred seria sempre o homem que havia deixado seus bolos queimarem!
O menino arregalou os olhos, boquiaberto.
— Não se preocupe, Guerin... — Claire procurou tranqüilizá-lo. — Alfred podia ser um péssimo cozinheiro, mas era um excelente rei! Sem ele, a região de Wessex teria sido conquistada pelos dinamarqueses e, em conseqüência disso, hoje em dia toda a Inglaterra poderia ser pagã.
— É mesmo? — ele inquiriu, meio desconfiado.
— Sim. Alfred lutou contra os dinamarqueses até que o rei deles concordou em ser batizado e deixar a Inglaterra para sempre.
Aquela resposta satisfez Guerin, pois seu semblante, antes carregado e tenso, descontraiu-se em um sorriso de alivio.
— Conte-nos mais histórias sobre os heróis ingleses. Haesel! — ele pediu, cheio de entusiasmo. Mas logo voltou a ostentar uma fisionomia de preocupação. — Há outros, não é? Os padres nunca nos contam nada sobre eles. Em geral, dizem que os ingleses tiveram muita sorte por terem sido conquistados pelos normandos, responsáveis pela civilização dessas regiões inóspitas e bárbaras.
Do outro lado da parede, Alain ouviu a risada doce e sensual de Haesel.
— Eles têm a coragem de dizer isso? Que absurdo! — protestou, entre risos. — Ora, crianças, precisam lembrar que eles são padres normandos e isso faz uma enorme diferença!
As crianças se entreolharam, atrapalhadas.
Claire sentiu-se no dever de explicar sua posição. O engraçado é que também era uma normanda, mas estava defendendo o ponto de vista dos ingleses, culturalmente injustiçados. Aliás, desde sua infância, ficava irritada com esse sentimento de superioridade de seu próprio povo, o que não era nada cristão!
— Na História da Humanidade, os vencedores sempre procuram valorizar suas próprias conquistas, menosprezando as qualidades de seus oponentes para que eles se sintam inferiores. — Respirou fundo, procurando manter-se calma. — Bem, os padres que lhes disseram essas bobagens sobre os ingleses devem ter se esquecido das leis feitas pelo rei Alfred, que até hoje são utilizadas. Isso, sem mencionar os vários livros que ele mandou traduzir do latim, para que o povo pudesse conhecê-los.
Dessa vez, até Alain ficou perplexo. Não esperava tanta erudição de uma serva. Realmente, essa mulher não era nada comum...
— E quanto aos heróis ingleses? — Peronelle insistiu, cada vez mais interessada naquele assunto.
Claire vasculhou a memória, à procura de algo interessante. Era delicioso lembrar de todas as histórias e lendas que ouvira de suas amas inglesas durante sua própria infância.
— Deixe-me ver... Posso lhes contar a história de Hereward, o Vigilante. Duvido que haja muitos normandos que conheçam os feitos desse herói. — Calou-se, de súbito, meio hesitante. No fundo, queria apenas provocar ainda mais interesse nas crianças. — Bem, talvez seja melhor deixarmos Hereward no esquecimento...
Sua tática teve êxito absoluto! Peronelle e o irmão protestaram com veemência contra a ameaça de silêncio da ama.
— Conte-nos, Haesel!
— Sim, agora que mencionou o nome de Hereward, vai ter que nos contar sua história!
Alain acompanhava o desenrolar da cena com grande interesse. Estava duas vezes fascinado pela jovem inglesa. Além da perspicácia e da boa memória, possuía um jeito todo especial para cuidar de crianças. Ela conseguia manter a disciplina apenas com amor, sem usar palavras severas ou ameaças.
— Hereward, o Vigilante! — a menina repetiu, rindo. — Esse nome é muito engraçado!
— Pode parecer estranho para seus ouvidos normandos, Peronelle. Mas, para os ingleses, Hereward é uma lenda!
— Por quê?
— Bem, ele se recusou a aceitar o domínio normando, depois que William, o Conquistador, venceu os ingleses em Senlac e tomou o trono. — Fez uma pausa estudada e acrescentou, em tom confidencial: — Hereward jurou jamais se curvar diante de um rei normando. Por isso ele se refugiou na floresta com muitos outros guerreiros ingleses, os quais, sob sua liderança, continuaram a lutar contra os invasores.
As crianças ficaram mudas, completamente extasiadas. Além de nunca ter lhes contado essas histórias, a velha Ivy não possuía nem um terço da eloqüência, sutileza e imaginação fértil de Haesel. Recorrendo a artifícios de entonação, gestos, olhares e pausas, ela conseguia acrescentar um colorido especial a cada frase ou trecho da narrativa, tornando tudo mais interessante.
— O rei William não tentou capturá-lo? — Guerin indagou.
— Claro que sim! Mas Hereward era muito esperto e, por muito tempo, conseguiu manter seu grupo rebelde a salvo dos ataques normandos.
— Como? — foi a vez de Peronelle questionar.
— Ora, ele conhecia essas florestas como a palma de sua mão, o que não acontecia com os normandos. Portanto conseguia "desaparecer" dentro da mata fechada, bem no nariz de seus inimigos. Aos poucos, mais e mais homens foram se juntando ao grupo de Hereward, em sua luta para reconquistar a Inglaterra.
— O que aconteceu com ele, então?
Claire deu um suspiro triste.
— Um dia um espião infiltrou-se entre seus homens, revelando ao rei William como chegar até o acampamento de Hereward.
— O rei o matou? — a menina interrompeu, aflita com o destino do herói.
— Não, mais uma vez Hereward e alguns de seus homens conseguiram fugir, mantendo a lenda em torno de seu nome. Muitos dizem que ele jamais foi capturado e que rumou para a Terra Santa, a fim de lutar contra os infiéis — Haesel concluiu.
Do outro lado da parede, Alain sorriu, com um misto de contentamento e dúvida. Podia ter a certeza de que Haesel faria o possível para que seus filhos aprendessem que os ingleses não eram inferiores aos normandos. Para tanto, ela não hesitaria em lhes contar a versão inglesa da conquista da Inglaterra.
Talvez devesse se preocupar com o fato, pois não era prudente que seus filhos passassem a admirar um homem como Hereward, o Vigilante, um rebelde que desafiara a autoridade normanda. Mas, no fundo, achou essa experiência mais útil do que perigosa. Afinal, conhecendo os dois lados da mesma história, seus filhos seriam capazes de tirar suas próprias conclusões, desenvolvendo a justiça e o senso crítico.
— Agora, conte alguma história sobre os santos — Guerin sugeriu, com um olhar cheio de candura. — Que tal a vida de São Jorge?
— Não, deixem-me reservar algumas histórias para mais tarde. Agora, preciso cerzir algumas roupas — Haesel retrucou, para decepção das crianças.
Em seguida, tentando conciliar os interesses de todos, propôs:
— Que tal se continuarmos com as lições de francês? Posso repetir as palavras, enquanto trabalho. Aliás, parece que ficaremos presos nesse quarto pelo resto do dia, pois uma tempestade está se aproximando.
Alain suspirou, resignado, deixando cair a tapeçaria que ocultava o buraco. Era sempre Guerin quem pedia histórias de santos, nunca Peronelle.
É óbvio que o menino nasceu com vocação para a vida religiosa... Por Deus, lutarei para que ele siga seu caminho, sem me importar com as prováveis retaliações de Matilde!, ele pensou, com o semblante anuviado. Contudo, antes que esse problema viesse à tona, teria que enfrentar os desmandos da imperatriz por um outro motivo: a ordem para que desposasse outra herdeira.
Os pensamentos de Claire a levaram para bem longe do quarto das crianças, enquanto fingia se concentrar nas palavras francesas que seus pupilos se esforçavam para lhe ensinar.
Depois daquele confronto com a hostil Gilda, no lado de fora das muralhas, retornara para o pátio interno e, sem que ninguém a visse, havia se esgueirado até o calabouço, debaixo do celeiro.
Em vez de lhe agradecerem, os dois soldados de Hardouin mostraram-se bastante ofendidos com sua oferenda.
— Um pedaço de pão? Isso é o melhor que pôde fazer, milady? — Jean rosnara, como se fosse um cão selvagem. ansioso para trucidar sua vítima.
— Por acaso, acha que eu poderia esconder uma tigela de ensopado em minhas vestes, sem chamar a atenção de alguém? — rebatera, esforçando-se para não demonstrar medo. — Já foi muito arriscado trazer-lhes essa garrafa de vinho e ainda continuam a reclamar.
— Nossa! Está se transformando em uma excelente ladra, milady! — Ivo havia zombado, sarcástico. — Mas ainda não conseguiu roubar a chave de nossa cela, estou certo? Também devo presumir que, tampouco levou aqueles pirralhos para fora desse castelo, o grande motivo que trouxe todos nós até aqui, não é?
— Já lhes disse que não vou arriscar o sucesso do nosso plano, tentando precipitar as coisas! Aliás, se interessa saber, estou prestes a levar as crianças para um passeio do outro lado das muralhas!
— Verdade? Estou impressionado! — Jean dissera, irônico, ficando muito parecido com uma cobra que destilava veneno pela língua. — E quando será esse grande dia? Já fiz onze marcas na parede, uma para cada dia que estou aqui.
— Em breve... — Era irritante ser acuada por uma dupla de mercenários sem caráter. — As crianças gostam de mim, ou seja, confiam na minha palavra. O pai está começando a confiar em mim também, o que é imprescindível para que nosso plano tenha sucesso.
— Até agora não acrescentou nada de novo ao que já os revelara da última vez em que esteve aqui!
— Só estou refrescando-lhes a memória! Além disso, tivemos cinco dias consecutivos de chuva e as crianças ficaram doentes! Aliás, parece que vai chover de novo esta tarde.
— Não diga? Pois saiba que, se eu estivesse livre, o castelo de Hawkswell já estaria nas mãos do conde d Evreux à essa altura!
— É muito fácil dizer! — Cerrara os punhos, tomada a ira. Por que ainda se preocupava com esses patifes arrogantes? — Agora vejo nitidamente porque meu tio escolheu-me para essa missão em vez de confiá-la a homens como vocês!
A reação furiosa e veemente de Claire havia pego os dois prisioneiros de surpresa. Por isso eles acabaram se calando.
— Meu tio deve ter imaginado que eu agiria de modo lento e cuidadoso, conquistando a confiança do barão e das crianças, antes de raptá-las! Ao contrário de vocês, que, certamente, iriam amarrar os dois logo na primeira oportunidade, tentando atravessar o portão do castelo na base da força bruta!
— Isso é melhor do que tentar fazer amizades por todo o castelo! — Jean tornara a falar, com a aspereza que lhe era característica.
— Seus tolos! Agindo assim, só conseguiriam assustar as crianças! E o conde não deseja arriscar a segurança delas!
— Ouviu isso, Jean? — Ivo dissera, soltando uma gargalhada histérica. — Milady não quer que as crianças corram nenhum risco!
Os dois riram a valer, enquanto Claire os observava, indiferente. No entanto, por trás daquele ar de superioridade, ela tremia dos pés a cabeça, com receio do que pudesse vir a acontecer com as crianças...
— Por que está tão preocupada assim com esses fedelhos? Acaso, está ficando com pena deles, milady? — Jean perguntara, trocando o cinismo por uma expressão ameaçadora. — Antes que comece a ter idéias para mudar de lado, gostaria de lembrá-la de que Hardouin é especialmente cruel com os traidores.
Ela fora sacudida por tremores ainda mais fortes. Seus nervos já não estavam mais suportando toda aquela tem são. Sabia muito bem que Hardouin sentia um prazer animalesco em torturar pessoas, contudo relutava em aceitar que o tio pudesse machucá-la. Afinal, ambos tinham o mesmo sangue nas veias!
— Sim, milady. É melhor fazer, de uma vez por todas, o que a trouxe a esse lugar — Ivo fizera coro ao companheiro, dividindo o mesmo olhar feroz.
Aquele era o momento de reagir, ou ficaria à mercê daquela dupla de tratantes violentos! Além do mais, já era hora de encerar a visita, para não correr nenhum risco de ser novamente surpreendida ali.
— Quanto a isso, não precisam temer! Cumprirei minha parte nesse acordo no momento certo! — Erguendo o queixo, fitara os dois com um ar de fidalguia. — Uma vez que não apreciaram o pão que lhes trouxe, não tornarei a visitá-los. Pelo menos, até que tenha novidades importantes para lhes dizer.
Surpresa com tanta concentração de ódio em seu próprio corpo, Claire dera as costas aos seus cúmplices, dirigindo-se para a escada com passos seguros. Porém, no íntimo, tinha dúvidas de que a origem de toda aquela fúria era apenas o jeito arrogante e desrespeitoso como fora tratada pelos soldados. Talvez sua consciência estivesse começando a se rebelar contra a sordidez daquele plano...
A atração intensa que passara a sentir por lorde Alain poderia fazê-la faltar ao acordo que fizera com o tio? Ou estaria vendo um fundo de verdade nas palavras de Ivo e Jean, sobre as reais intenções de Hardouin em relação às crianças?
Meu Deus! Recusava-se a aceitar que, em sua sede de poder, o conde d Evreux fosse capaz de maltratar aquelas crianças! Tampouco teria coragem de torturar a própria sobrinha! Hardouin era cruel, ambicioso e implacável, mas não podia ser um animal sangüinário como Jean e Ivo queriam fazê-la acreditar. Pelo menos, estava se apegando com unhas e dentes a isso...
— Já aprendi palavras demais, crianças! — anunciou de súbito, voltando a se concentrar no presente. — Que tal me ensinarem algumas frases simples, tais como, estou com fome e a que horas é o jantar?
Peronelle recebeu a idéia de braços abertos, passando a dizer os exemplos citados por Haesel em francês.
Fingindo um pouco de dificuldade, mas sem os exageros do canil, ela repetiu as frases várias vezes deixando seus professores mirins muito orgulhosos.
— Está indo muito bem, Haesel. As vezes, tenho até a impressão de que fala francês tão bem quanto nós! — Guerin a cumprimentou, eloqüente.
— Obrigada, querido — agradeceu, com um sorriso falso nos lábios. Na verdade, sentia-se péssima. Estava tão deprimida que chegava a ter dores pelo corpo. Tinha a impressão de que as garras afiadas do remorso estavam perfurando cada centímetro de seus órgãos.
Aquelas crianças eram muito puras e boas. Estavam felizes com sua presença ali e sentiam um prazer inocente ao acompanhar seus "progressos" no aprendizado do francês. Por Deus, como podia enganá-los? Imagine a decepção que teriam quando descobrissem que não passava de uma espiã disfarçada, que viera até Hawkswell somente para raptá-los! E quanto a lorde Alain?
Oh, Deus! Nem queria pensar no que ele sentiria, assim que essa grande farsa terminasse!
Pare com isso, Claire!, chamou-se a atenção, procurando barrar aquela onda de sentimentalismo, antes que perdesse o controle sobre si mesma. Contudo seu desejo de levar a cabo aquele plano estava sofrendo ataques simultâneos de duas fontes distintas: a consciência e o coração. Além do carinho cada vez maior pelas crianças, um outro motivo vinha despertar sua rebeldia contra os desmandos do tio... Estava se deixando fascinar pelos dotes sedutores de seu inimigo!
Graças a uma lufada de força de vontade, varreu aqueles pensamentos e dúvidas para o fundo de sua alma, trancando os ouvidos para quaisquer súplicas de seu coração atormentado. Ao menos, por enquanto, estaria livre do remorso, o que era imprescindível para se concentrar em medidas efetivas para alcançar seus propósitos.
Ao ocupar seu lugar à mesa, naquela noite, Claire só tinha um pensamento: arranjar um pretexto para tirar as crianças do castelo o quanto antes. Seus nervos não suportariam por muito mais tempo essa situação dúbia e perigosa. Porém, nem acabara de se sentar, notou a presença de um convidado, junto de lorde Alain.
De onde estava, não conseguia ter uma visão clara do rosto do visitante, o que só fez aumentar sua ansiedade e medo.
— Quem é aquele estranho? — indagou para Annis, esforçando-se para parecer natural.
Nessa noite, a lavadeira estava bem à frente de Claire, na companhia de Ewald, seu marido e armeiro do castelo.
— Está se referindo àquele homem, ao lado de lorde Alain? — Annis retrucou, dando uma virada rápida para trás, a fim de observar o desconhecido.
Claire fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Um dos soldados contou a Ewald que se trata de um mensageiro de lorde Brian FitzCount.
— Quem é esse nobre? — voltou a perguntar. E óbvio que lady Claire sabia quem era esse nobre, conhecimento ao qual a pobre Haesel jamais teria acesso.
Portanto, para dar mais verossimilhança ao seu disfarce, tinha que agir como a serva.
— É um dos nobres leais à imperatriz Matilde, cujo castelo foi sitiado pelas tropas do rei Estevão, no ano passado.
— O que será que ele deseja de lorde Alain? Será que a imperatriz mandou chamá-lo para lutar com suas tropas? — Claire fez força para revestir seu rosto com uma expressão de ingenuidade e ignorância. Precisava demonstrar que fazia todas aquelas perguntas à toa, por pura curiosidade; caso contrário, começaria a levantar suspeitas dos moradores do castelo.
— Isso ainda não aconteceu e espero que esse dia nunca chegue! — Annis exclamou, enfática, fazendo o sinal da cruz. — Sei que os castelos podem ser atacados, mesmo com a presença de seus senhores. Mas, quando os nobres estão ausentes, participando de alguma guerra com seus soldados, os poucos homens que restam para guardar as muralhas não são capazes de resistir por muito tempo aos ataques! Nem queira saber o que os inimigos fazem com o povo, ao redor das fortalezas dominadas!
Claire ficou em silêncio, compartilhando dos receios de Annis. Porém, após uma pausa considerável, tornou a tocar no assunto, bombardeando a amiga com novas e instigantes perguntas:
— Não acha estranho que lorde Alain ainda não tenha sido chamado? Ouvi dizer que a imperatriz Matilde vem enfrentando uma situação muito difícil, o que a levou a convocar para a luta todos os seus vassalos.
Annis encolheu os ombros, com descaso.
— Isso tudo não me importa, é assunto para os nobres. Só agradeço a Deus que ainda estejamos fora da guerra. Mas quem sabe por quanto tempo?
— Sim, e quem pode dizer que a guerra não vai chegar aos portões de Hawkswell. Se o rei Estevão resolver transformar milorde em um de seus seguidores? — Ewald acrescentou, entrando na conversa das duas.
Claire gostaria de tranqüilizá-los, revelando que os seguidores de Estevão não pretendiam atacar o castelo para obter a lealdade de lorde Alain. Como não poderia fazer a menor menção a esse planos, engoliu suas angústias com um bom gole de vinho.
— Isso está nas mãos de Deus... — foi tudo o que disse. Em seguida, lançou um olhar perscrutador para a mesa principal, percebendo que lorde Alain mantinha uma conversa animada com seu convidado. Gostaria de ser uma abelha para poder ouvir aquela conversa, sem despertar suspeitas!
Que homem de princípio aquele! Ao mesmo tempo em que parecia muito terno e amoroso em relação aos filhos, continuava leal à causa de Matilde. Muitos nobres, que antes haviam jurado fidelidade à imperatriz, já passaram para o lado de Estevão, em troca de terras, ouro e outras vantagens reais. Contudo Alain permanecia sólido como uma rocha, do lado que escolhera para defender desde o princípio daquela disputa.
Afinal de contas, o que levara Alain de Hawkswell a ficar do lado de Matilde? Seria uma simples questão de lealdade aos desejos do velho rei? Podia ser, mas sua intuição lhe dizia que isso não era tudo...
A maioria dos nobres que juraram respeitar os direitos da herdeira de Henrique I, mudaram de idéia assim que tiveram que se entender com a arrogante e prepotente Matilde. Essa mudança ocorreu, em especial, após a coroação de Estevão como rei, e, até agora a imperatriz do Sacro-Império não havia sido coroada rainha da Inglaterra.
Será que Alain era mais honrado do que os outros nobres? Se esse fosse o motivo, Claire era obrigada a se render à sua tenacidade. No entanto era extremamente perigoso admirar os princípios e a coragem do homem que estava tentando derrotar. Isso poderia enfraquecê-la...
Em desespero, agarrou-se à idéia de que Alain não poderia ser tão honrado assim. Afinal, tinha um filho bastardo, que parecia educar para ser o próximo barão de Hawkswell, e obrigara a esposa a viver sob o mesmo teto que essa criança! Pobre Júlia...
— Como era o casamento de lorde Alain e a falecida lady Júlia? — indagou, de repente, levada pela grande mágoa que a morte da amiga abrira em seu peito.
Annis a fitou desconfiada.
— Está fazendo um monte de perguntas sobre um homem por quem alega não ter nenhum interesse especial... Passou a vê-lo com os mesmos olhos de Gilda, ou estou enganada?
Claire sentiu o rubor tingir-lhe a face de vermelho.
— Claro que não! É apenas curiosidade! Eu...
— Ora, não precisa ficar envergonhada só porque Gilda é minha irmã — Annis declarou, imperturbável. — Gilda faz as vezes de prostituta desde seus treze ou catorze anos. Se milorde deixar de visitá-la, não irá demorar muito para que arranje outro que possa substitui-lo.
Mesmo depois de ouvir isso, Claire não teve coragem de encará-la. Continuava embaraçada pelo fato de Annis suspeitar da natureza de seus interesses por lorde Alain, o quê, de fato, era verdade! Além disso, será que Gilda tinha contado à irmã que a vira seguindo os passos de milorde, no pátio externo?
— Definitivamente, está enganada! — insistiu, forçando o cérebro para achar alguma explicação para seu interesse naquele assunto. — Só perguntei sobre Milady por causa das crianças. Queria saber como viviam antes da morte de lady Júlia, se ela e lorde Alain eram felizes.
Annis ainda a encarou com certa desconfiança. Aos poucos, foi aceitando a desculpa de Claire. Afinal, ela parecia tão sincera e interessada pelas crianças.
— Bem, sabe como são os casamentos entre os nobres, não é? Tudo não passa de arranjos entre as famílias. Eles não se casam por amor como nós, mas por interesse.
Lançou um olhar voluptuoso para o marido, o qual foi prontamente correspondido com um beijo apaixonado.
Por um momento, Claire não pôde evitar de sentir uma ponta de inveja da felicidade do casal. É claro que sabia sobre aquelas regras, e como! Sentira os efeitos daqueles "arranjos entre as famílias" na própria pele!
— Mesmo assim, acho que lorde Alain gostava de lady Júlia, quando se casou com ela... — Annis acrescentou, assim que o beijo acabou, sem perder o fio da meada.
— Ao menos, ele parecia muito feliz durante a cerimônia nupcial, na capela.
— E lady Júlia? Ela também parecia feliz?
A lavadeira fez uma pausa, remoendo um pouco aquela pergunta. Então cortou uma fatia de queijo, voltando a falar:
— Quando ela chegou ao castelo, parecia furiosa e desafiadora. Acho que não estava nem um pouco satisfeita com seu casamento. Mas, na manhã da cerimônia, em vez de cólera havia apenas medo em seu rosto... Até fiquei com pena, parecia tão jovem.
Claire concordou com a opinião de Annis. Sabia o quanto a prima estava aterrorizada com a idéia de mudar-se para bem longe do castelo onde crescera, a fim de desposar um homem que jamais havia visto. Tudo isso para satisfazer o desejo de seu pai, que almejava uma aliança com o poderoso lorde de Hawkswell. Júlia também tinha medo do que a esperava na cama de seu futuro marido...
Esse pavor da noite de núpcias fora causado pela irmã mais velha de Júlia, que entrara para um convento tão logo havia se tornado viúva. Ela narrara à irmã caçula todos os horrores de se perder a virgindade, carregando nas cores dramáticas. Em vão, Claire tentara destruir essa imagem monstruosa, alegando que nem todos os casamentos deviam ser tão infelizes quanto aquele. No entanto, como ainda era solteira e virgem nessa época, Júlia não lhe dera ouvidos.
— E depois do casamento? — Claire insistiu no assunto, escondendo a emoção que sentia ao lembrar da amiga morta. — As coisas mudaram?
Annis olhou com malícia na direção de lorde Alain.
— Lady Júlia parecia muito feliz na manhã seguinte, o que se repetiu por quase um mês. Milorde também parecia muito contente; andava pelo castelo, assobiando e sorrindo, como se caminhasse em nuvens. — A mulher respirou fundo; com desânimo. — Infelizmente, isso não durou muito...
— O que foi que aconteceu?
— Bem, lorde Alain teve que viajar por alguns dias e, quando voltou, trouxe consigo um bebê. Era o pequeno Guerin. Claire fingiu estar chocada com aquela revelação.
— Quer dizer que Guerin não é filho de lady Júlia? Então quem é a mãe dele? Seria Gilda?
Annis fez um movimento enfático com a cabeça.
— Não. Milorde nem olhava para Gilda naquela época. Aliás, ninguém sabe quem é a mãe de Guerin. Deve ser alguma mulher francesa, pois, antes de se casar, lorde Alain passou algum tempo em Anjou, na corte da imperatriz Matilde e seu marido, o conde Geoffrey.
Claire gostaria de saber o que acontecera àquela infeliz garota francesa. Teria morrido durante o parto ou ainda vivia, escondida em alguma parte do Sacro-Império?
— Lady Júlia não deve ter ficado nada satisfeita com a chegada do bebê, não é?
— Você ficaria? — Annis retorquiu, áspera. — Pois eu não! Jamais perdoaria um homem que me traísse!
— Eu também não... — Claire concordou com a mulher, pensando nos tormentos que Júlia devia ter enfrentado sozinha, nesse local estranho. — E quanto a Peronelle?
— Ah! A menina é filha legitima do casal. Ela nasceu cerca de um ano depois do casamento. Mas já era tarde demais para unir os dois... Milady ignorava Guerin, deixando-o inteiramente sob os cuidados de Ivy. Agia como se o menino fosse invisível!
— Como assim? — Sentia uma lança fincada no peito, dilacerando seu coração. Mesmo assim, precisava saber o que acontecera com Júlia.
Annis meneou a cabeça, também ficando triste com aquelas lembranças.
— Durante toda a gravidez, lady Júlia parecia deprimida e miserável e mesmo o nascimento de Peronelle não conseguiu alterar seu estado. Milady não tinha interesse por mais nada; a filha, o marido, o castelo pareciam não existir... Quando a febre a atacou, no inverno passado, ela nem sequer tentou resistir... Deixou-se vencer pela morte.
— Será que teriam sido felizes, se lorde Alain não tivesse trazido Guerin para viver em Hawkswell? — Claire indagou-se, em voz alta.
Annis sacudiu os ombros.
— Jamais saberemos, não é? Mas, se quer minha opinião, acho que ela foi uma tola por não perdoá-lo!
Claire ficou muda, atordoada.
— Ora, Annis! Disse que nunca perdoaria o homem que a traísse! — argumentou, em confusão, assim que recuperou a voz.
— E mantenho o que disse! No entanto milorde não traiu a esposa. Guerin é fruto de um relacionamento que terminou antes das bodas de lorde Alain e lady Júlia! Por esse motivo, acho que ela deveria tê-lo perdoado!
Claire calou-se, pensativa. Na verdade, Annis estava certa... Júlia fora muito infantil e rancorosa ao não perdoar o marido por um erro do passado! Se ao menos pudesse ter estado junto da amiga para aconselhá-la...
O jantar já estava prestes a terminar, quando Claire finalmente vislumbrou uma chance de conseguir um salvo-conduto para sair do castelo, acompanhada por seus pupilos. Lorde Alain e seu hóspede estavam deixando o recinto e tudo indicava que seguiriam para uma reunião com sir Gautier, nos aposentos de milorde.
Ao seguir na direção dos dois homens, Claire encontrou as crianças no meio do caminho. Sem perder tempo, conseguiu convencê-los a irem brincar no pátio interno, sob a promessa de que logo iria se juntar a eles.
— Milorde... — chamou, em tom respeitoso, interceptando a marcha de Alain.
Já com o pé no primeiro degrau, ele virou-se na direção daquela voz. Ao dar com a figura esguia e tentadora de Haesel, arqueou as sobrancelhas, com um ar malicioso e provocante.
Claire engoliu em seco, sentindo um calor insuportável e anormal tornar conta de todo seu corpo.
— Milorde... Desculpe-me por importuná-lo... Só queria saber se... — começou outra vez, gaguejando. Mantinha os olhos no chão, sem coragem alguma de erguê-los.
Temia não ter forças para sustentar o olhar, diante das lembranças do beijo impetuoso que trocaram na noite anterior.
Então, deixando-se vencer pela curiosidade, olhou de relance para o hóspede e quase caiu de postas, fulminada por um ataque cardíaco. Minha nossa! Tinha certeza de que conhecia esse homem! Pensando melhor, o próprio Haimo os havia apresentado, durante as comemorações da coroação do rei Estevão, alguns anos atrás. Não conseguia recordar o nome dele, mas isso não vinha ao caso.
Minha Nossa Senhora, será que ele se lembra de mim? O que vou dizer se me perguntar o que estou fazendo aqui? Estava em pânico! Mais do que nunca precisava encontrar uma solução rápida para o problema. Mas, como faria isso?
— Sim, Haesel? O que deseja? — lorde Alain retrucou, obrigando-a a lembrar que havia deixado seu pedido pela metade.
Por um segundo, ela teve a sensação de que ia desfalecer. Ficou pálida como cera e a vista escureceu, mas antes que os sintomas se agravassem, lembrou que um desmaio só iria chamar a atenção do hóspede para sua pessoa. Portanto tratou de controlar os nervos e manter-se firme e forte no papel de serva inglesa.
Lançando um segundo olhar na direção do homem, conseguiu se tranqüilizar um pouco. Ele estava do lado esquerdo de lorde Alain, cujo corpo encobria parcialmente visão do rosto de Claire.
— Ah! Sim... — conseguiu dizer, com muito custo. — Gostaria de pedir-lhe permissão para levar as crianças até floresta amanhã... — Calou-se novamente. Devido ao medo, as idéias estavam meio embaralhadas em sua cabeça.
Alain continuava a fitá-la, à espera de uma explicação. Estava adorando aquele nervosismo de Haesel, pois, acreditava que sua presença máscula e viril a estivesse perturbando. Jamais poderia imaginar a verdadeira causa aquele comportamento arredio...
— Por causa da chuva, os dois têm passado tanto tempo trancados nesse castelo que achei que adorariam fazer um passeio pelo bosque. Respirar um pouco do ar fresco floresta lhes faria bem... — enfim conseguiu explicar o ponto de vista.
Deus! Se lorde Alain resolvesse apresentá-la ao convidado, teria que encará-lo! Então precisaria de um milagre para que ele não a reconhecesse!
De repente, no meio de toda aquela confusão mental, uma idéia foi tomando corpo. O que aquele homem estaria fazendo ali, como um mensageiro de um dos maiores aliados da imperatriz Matilde? Afinal, ele estivera na coroação de Estevão, agindo como um leal súdito do rei..
Por sorte, ele pareceu não dar muita importância a Claire. Ao ver que se tratava de uma serva maltrapilha, que falava apenas inglês, ele virou-se para o lado oposto, esperando que o barão terminasse aquela conversa.
Alain, por sua vez, não tinha a menor intenção de apresentá-la. Nenhum nobre jamais apresentava seus servos a outros nobres, a menos que fosse designá-los para algum serviço. No entanto, mais uma vez, ela havia se esquecido de que não estava em Hawkswell como lady Claire de Coverly, mas sim como uma humilde criada.
— Tem toda razão, Haesel! — ele concordou, animado. — Um passeio pelo bosque será muito bom para as crianças! Mas peça à cozinheira que prepare algo para levarem. — Em seguida, ele se voltou para a escada, fazendo um gesto para que o hóspede o seguisse.
Enquanto os dois desapareciam no topo da escadaria. Claire continuava imóvel, lá embaixo, feito uma estátua. Graças a Deus, conseguira escapar da humilhação de ser desmascarada! Todavia a presença daquele homem, como mensageiro de Brian FitzCount, a intrigava. Afinal, ele era um vassalo de Matilde ou de Estevão?
Claire gemeu, sentindo um aperto no coração. Se ele fosse um dos homens de Estevão, fingindo estar do lado da imperatriz, Alain corria perigo!
Ela tentou encontrar algum consolo no fato de ter obtido permissão para deixar o castelo com as crianças. Aliás, não esperava que fosse conseguir isso com tanta facilidade! Estava aliviada! Em menos de vinte e quatro horas, entregaria Peronelle e Guerin nas mãos dos inimigos de lorde Alain...
Esse pensamento a fez cair no velho dilema... O que a com a culpa e o remorso de ter traído a confiança e pessoas que acreditaram em sua palavra?
Lembre-se da promessa de Hardouin de ter suas próprias terras! Nunca mais terei que me curvar diante das exigências de meu tio ou de Neville!, repetiu para si tensa, diversas vezes.
Por que será que aquela idéia não parecia mais tão agradável quanto antes?
— Seja bem vindo, milorde! — Gilda disse, com um sussurro envolvente, ao abrir a porta para lorde Alain.
Chovia forte lá fora, de modo que as roupas e as botas de Alain estavam encharcadas e sujas de lama.
— Oh! Milorde! Não devia esperar na chuva! Basta abrir a porta e ir entrando. Afinal, tudo o que há aqui dentro lhe pertence... Incluindo eu, milorde.. — a moça protestou, com suavidade, passando os braços em torno do pescoço dele.
Com essa manobra, os seios fartos encostaram no peito musculoso de Alain, ao mesmo tempo em que lhe ofereceu os lábios carmins para serem beijados.
Ignorando aquela boca, Alain desvencilhou-se da mulher. Então tirou uma sacola de couro, encoberta pelo manto, e a pôs sobre a mesa. Tinha esperanças de que sua reação fria às carícias de Gilda, o oposto do que sempre acontecia, pudesse alertá-la sobre os verdadeiros motivos dessa sua visita.
— Trouxe-lhe um presente, Gilda — comunicou, sabendo que ela não aceitaria muito bem o que tinha a lhe dizer.
Ela jogou os cabelos para trás, com um riso afetado e vulgar.
— Obrigada, meu adorado! Usarei esse dinheiro para comprar algo bonito para agradá-lo... — Sua voz foi desaparecendo no ar, à medida em que seus olhos percebiam a quantidade elevada de moedas que lorde Alain havia colocado sobre a mesa.
Ele permaneceu em silêncio, com uma expressão séria e compenetrada.
— Por Deus, milorde! Isso é muito mais do que costuma me dar... — De repente, tudo fez sentido, como as peças de um quebra-cabeça que se encaixam após inúmeras tentativas. Erguendo os olhos, buscou os dele, quase em desespero. — Por que está fazendo isso, milorde?
— Gilda, eu... — começou, calando-se logo depois. Tentava escolher as palavras adequadas para aquele momento.
Mesmo sabendo que iria ferir apenas o orgulho feminino de Gilda, gostaria que houvesse um modo de encerrar esse relacionamento sem magoá-la! Sabia que ela não o amava, mas, em consideração aos instantes de prazer que haviam desfrutado juntos, queria diminuir seu sofrimento.
— Está querendo me dizer adeus, não é? — Estava pálida e com os lábios trêmulos. — Essa é sua maneira de se despedir de mim? — Apontou para a pilha de moedas de ouro sobre a mesa.
Alain engoliu em seco, chateado com essa situação constrangedora.
— Gostei muito dos momentos que passamos juntos, Gilda. Acho que sabe disso, não é?
— Então por que vai acabar com eles, milorde? — Fez a pose sensual, olhando para a cama. — Ainda não terminei de lhe mostrar tudo o que posso fazer... Venha, deite-se comigo! Eu o farei desfrutar de prazeres indescritíveis!
Sem se comover com os apelos e convites da mulher, Alain manteve-se impassível.
— Não, Gilda! Vim até aqui somente para lhe dizer que está tudo acabado entre nós.
Ela afastou-se; parecia ter sido empurrada com violência para trás, embora ele nem sequer a tivesse tocado. Seu rosto estava contraído, com uma expressão de dor e agonia profunda.
— Está me expulsando de Hawkswell, milorde? — a moça indagou, com um fiapo de voz. — Devo juntar meus pertences e partir? Mas, quando?
— Claro que não, Gilda! — Aproximou-se dela, tocando-lhe o ombro para lhe transmitir segurança. — É livre para ficar ou partir, conforme seu desejo.
"De agora em diante, não precisará mais temer minhas chegadas repentinas, enquanto entretém outros amantes...", acrescentou mentalmente.
Recuperando-se do choque inicial, ela juntou forças para reagir. Afastou-se de Alain, olhando-o com um misto de agonia e de raiva. Parecia uma raposa ferida pela lança de um caçador.
— É por causa da nova serva, não?
Ele preferiu se fazer de desentendido.
— Do que está falando, Gilda? Não entendo aonde quer chegar com essa conversa.
— Posso ser ignorante, milorde! Mas tenho os olhos muito abertos! — A cólera tomou conta de seus movimentos. Em uma questão de segundos, a palidez de sua face foi substituída pelo vermelho-fogo. — Acha que não percebi o modo como olha para aquela serva fugitiva, de cabelos loiros? Aquela que todos chamam de Hayley ou coisa parecida!
— Haesel — ele a corrigiu. — Essa mulher não tem nenhuma relação com o que está acontecendo conosco. Gilda. Ela é apenas a ama dos meus filhos.
Aquele protesto soou falso até mesmo para seus ouvidos. Contudo não poderia permitir que seus desejos por Haesel fossem devassados pela língua afiada de Gilda.
Pelo menos, até que conseguisse conquistar os favores da jovem serva...
— De onde tirou essa idéia maluca de que estou interessado nela? — tornou a questionar, fingindo desprezo por Haesel. — Já vinha pensando em dispensá-la de suas obrigações comigo há um bom tempo, muito antes da chegada de Haesel ao castelo.
Farpas de ódio saíram dos olhos verdes de Gilda. Estava ainda mais furiosa com aquela desculpa, que até se esqueceu de que falava com o senhor do castelo de Hawkswell.
— De onde tirei essa idéia, milorde? — repetiu, irônica. — Talvez seja do brilho de desejo e cobiça em seus olhos, quando ela está por perto. Muitas pessoas já perceberam isso também, de modo que não precisa continuar negando!
Aquela revelação o sacudiu com a força de um terremoto. Meu Deus! Se Haesel continuasse a resistir contra suas investidas, ficaria desmoralizado diante de seu povo. Entretanto jamais forçaria um mulher a se deitar em sua cama contra a vontade. Se a jovem inglesa quisesse desprezar suas carícias, paciência! Teria que suportar o fato.
— Milorde, sabe muito bem que não precisa escolher uma de nós... Pode ficar com as duas! Afinal, é um nobre normando. — Gilda propôs, deixando a raiva de lado para tentar salvar sua situação. — Posso lhe prometer que, em pouco tempo, virá correndo para meus braços, cansado daquela loira pálida e esnobe!
Deu outra gargalhada histérica, passando as mãos pelas curvas do corpo, de forma insinuante.
— Essa loira tem um jeito estranho de se portar... Até parece que tem o rei na barriga! Mesmo assim, garanto que ela não vai saber como agradá-lo, milorde... Não como eu...
Alheio àquela argumentação, Alain se dirigiu para a porta.
— Desejo-lhe sorte, Gilda. — Então deixou a cabana, sem olhar para trás. Não queria ferir ainda mais os sentimentos da moça, afirmando que uma mulher com Haesel jamais o faria perder o interesse.
Segundos depois de ter fechado a porta, pôde ouvir o barulho das moedas sendo arremessadas contra a parede, seguido por soluços e choro. Gilda parecia inconsolável!
— Nossa! Há comida suficiente para dez pessoas aqui dentro! — Claire exclamou, ao receber a cesta da cozinheira. — Crianças, vamos encontrar um bom local para o nosso "dejeuner sur l'herbe", como seu pai disse que devo chamar esse passeio na floresta.
Peronelle soltou risos de satisfação e Guerin bateu palmas.
— Vamos comer na floresta! — a menina comunicou a Verel, o escudeiro de lorde Alain, que estava passando pela cozinha nesse momento.
Ágeis como coelhos, as crianças saltaram os degraus de pedra que separavam a cozinha do pátio, impacientes com a demora da ama. Estavam tão alegres e excitadas com aquele passeio, que nem haviam percebido a expressão taciturna e cabisbaixa de Claire.
Contrastando com a leveza dos pupilos, ela caminhava com dificuldade, como se estivesse carregando vinte quilos nas costas. Não havia nenhum motivo para sentir-se feliz. Em vez do sonhado banquete na floresta, as crianças seriam capturadas pelos homens de Hardouin e acabariam comendo aquelas guloseimas como prisioneiras. Então saberiam que a mulher em quem confiavam e estavam começando a amar não passava de uma vil traidora!
Enquanto atravessavam o pátio, rumo ao portão principal, encontraram padre Gregory, diante de seus aposentos.
— Estamos a caminho de nosso "déjeuner sur l'herbe", padre — Guerin disse, com o peito estufado de felicidade.
O rosto angelical do padre iluminou-se com um sorriso.
— Que notícia maravilhosa, pequeno Guerin! — Virando-se para Claire, cumprimentou-a: — Fazer um passeio pela floresta foi uma excelente ideia! Que Deus a abençoe, minha filha!
— Obrigada, padre. — agradeceu, retribuindo o sorriso. Porém, por trás dessa aparência alegre, escondia um certo receio de que o padre quisesse acompanhá-los nesse passeio fatídico. Ele parecia muito entusiasmado com a idéia... Sabia que deveria convidá-lo, ao menos, por educação, mas não tinha coragem de dizer uma palavra.
Afinal, que faria se ele aceitasse o convite?
"Falsa!", recriminou-se, com fúria, enquanto prosseguiam naquela marcha. O sorriso, a ternura com as crianças, lealdade... Tudo falso!
Ignorando os conflitos de Claire, todos os moradores de Hawkswell, que encontrava pelo caminho, saudavam-na com carinho e amizade; até mesmo a sisuda Hertha, cervejeira, reservou-lhe um sorriso! Tudo isso só aumentava seu sentimento de culpa...
Como iriam amaldiçoar seu nome, ao descobrir sua participação no rapto das crianças! Esse pensamento a deixou ainda mais arrasada, como se isso ainda fosse possível.
Já estavam atravessando o portão, quando, de repente, a voz poderosa e familiar ecoou pelos ares.
— Hei! Esperem um pouco!
Claire virou-se devagar, embora já soubesse quem iria encontrar: lorde Alain! Ao contrário dela, ele caminhava rapidamente, vestindo roupas de caça.
Jesus! De alguma forma, ele devia ter desconfiado da teia que havia se armado ao redor de seus filhos e vinha para impedi-la! Certamente, seria aprisionada no mesmo calabouço que Jean e Ivo... Se é que lorde Alain não lhe reservaria um destino pior: a morte!
À medida em que foi recuperando o auto-controle, Claire notou que não havia nenhum traço de ira ou qualquer outra emoção negativa no rosto dele. Ao contrário, lorde Alain parecia feliz e despreocupado. Bastou apenas uma faísca daqueles olhos negros para transformar o gelo de seu coração em brasa pura.
— Milorde, aconteceu algo? — disse, hesitante. — Estávamos justamente a caminho da floresta, mas, se não quiser, podemos deixar esse passeio para outro...
Antes que concluísse a frase, Peronelle a interrompeu, chorosa, e, como de costume, Guerin juntou-se às súplicas da irmã. Contudo, no íntimo, Claire desejava que Alain a impedisse de levar as crianças para fora das muralhas de Hawkswell.
— Nada de caras tristes ou protestos, crianças! — ele avisou, bem-humorado. — Não vim impedir esse passeio, mas sim fazer algumas modificações... Se aceitarem, é claro.
— Pois não, milorde? — Claire retrucou, ansiosa apara acabar de vez com a angústia que a consumia.
— Oh! Essas mudanças não serão um transtorno para vocês, assim espero. — Continuava a sorrir-lhes, parecendo a imagem viva de um querubim. — Só queria saber se poderia acompanhá-los nesse "déjeuner sur l'herbe".
Peronelle e Guerin jogaram-se nos braços do pai, mal cabendo em si de tanta felicidade.
— Claro que sim, papai! Por favor, venha conosco. — a menina exclamou, esfuziante. — Diga a ele que pode vir, Haesel!
— Vir conosco... — repetiu, enfrentando uma gigantesca confusão mental. Não conseguia colocar as idéias em ordem e tudo parecia estranho e sem nexo.
Pai e filhos se entreolharam, sem compreender o que estava acontecendo com a moça. Mas, antes que a situação se complicasse para Claire, ela conseguiu reagir e, em um estalar de dedos, entendeu o que estava acontecendo.
— Ah! Milorde, deseja nos acompanhar no passeio?
Todos fizeram um sinal afirmativo com a cabeça.
Minha nossa! O que faria agora? Estava perdida!
— Não é maravilhoso, Haesel? — o menino indagou, recebendo apenas um sorriso amarelo como resposta.
Na verdade, os pensamentos de Claire a levaram para muito longe dali, de modo que mal podia ouvir o que diziam a sua volta. Temores, angústias e incertezas formaram um torvelinho poderoso em sua mente, que a impedia de visualizar qualquer saída segura para aquela crise. O que aconteceria com lorde Alain, quando os mercenários de Hardouin surgissem do meio do bosque? Como pai e guerreiro que era, ele jamais permitiria que levassem os filhos sem lutar. No entanto, por que estava sozinho e desarmado, poderia ser ferido ou até mesmo morto pelos invasores!
— Lamento, filhos... Mas, tenho outra alteração a sugerir — lorde Alain anunciou, deixando o suspense no ar. — Em vez de caminharmos pela floresta, poderíamos ficar no pátio externo.
— Pátio externo?! — as crianças exclamaram juntas, meio confusas. Ainda não haviam avaliado muito bem as conseqüências daquela mudança de planos, por isso seus rostos mesclavam alegria e decepção.
— Exatamente. Seria muito agradável saborear essa comida debaixo das árvores do pomar. Além disso, teríamos diversão extra... Mandei Verel e outros guerreiros praticarem nos arredores.
Claire sentiu o sangue fluir por suas veias outra vez, como se tivesse voltado à vida, após chegar bem perto da morte. Lentamente, a cor foi retornando à sua face, antes pálida e inexpressiva.
— O que me dizem? — ele indagou, por fim. Havia um entusiasmo infantil em seus olhos negros, mesclado à valentia e à autoridade que emanavam de sua figura. Essa mistura incomum o tornava ainda mais atraente.
A princípio, Claire não acreditou no que acabara de ouvir. O poderoso barão de Hawkswell, que tinha o direito de decretar a vida ou a morte de seus vassalos, submetera uma de suas decisões à apreciação dos filhos! Jamais vira tamanho exemplo de modéstia entre os nobres.
As crianças também estavam perplexas, mas por outro motivo. Queriam saber onde seria aquele passeio, afinal. Ansiosas, olhavam ora para Claire, ora para o pai.
— Fantástico, milorde! — apressou-se a responder. agarrando-se com garra àquela tábua de salvação, que lhe era atirada na última hora. Se permanecessem no pátio externo não haveria perigo de serem molestados pelos homens de Hardouin.
Peronelle e Guerin soltaram gritos de felicidade, comemorando a decisão.
— E quanto ao seu convidado, milorde? Ele também nos fará companhia? — Claire perguntou, tendo um sobressalto ao se lembrar do nobre que conhecera em Londres.
Temia que ele também a reconhecesse.
Nossa! Essa vida dupla de espiã era cheia de reviravoltas mirabolantes, sempre em ritmo vertiginoso. Tantas incertezas, desconfianças e receios estavam acabando com seus nervos. Em um instante, gozava de segurança e tranqüilidade, mas, no próximo, estava à beira de um abismo!
— À essa hora, Brys de Balleroy deve estar se preparando para partir.
Novamente, Claire experimentou uma sensação de alivio.
— Deixe-me ajudá-la com a cesta. Deve estar pesada... — Uma expressão inocente e zombeteira tomou conta de seu semblante, como a de um garoto traquina depois de ter aprontado alguma arte. — De fato, devo confessar que informei à cozinheira que talvez tomasse parte nesse passeio. Por isso, conhecendo meu grande apetite, ela deve ter reforçado a quantidade de comida.
Aqueles olhos negros cintilaram de um modo malicioso. como se despissem Claire mentalmente. Parece que "seu grande apetite" não se limitava aos ensopados e bolos, mas também a ela.
— Sans dou te, monseigneur — retrucou propositalmente em francês, para distraí-lo. Não queria que ele percebesse os efeitos arrasadores que um simples olhar exercia sobre seu corpo.
— Ah! Vejo que progrediu bastante no francês! Trés bien! Vamos para o pomar! — Dirigindo-se para os filhos proclamou: — Já vou avisando que estou faminto, poderia devorar sozinho todo o conteúdo dessa cesta.
Entre protestos de Guerin e Peronelle, o pequeno grupo cruzou os portões, avançando para o pomar. Quem não os conhecesse diria que eram uma família unida e feliz.
Ao chegarem ao seu destino, escolheram um recanto agradável, debaixo de uma macieira. Claire ocupou-se de ajeitar a comida sobre uma toalha que trouxera do castelo. Lorde Alain, acompanhado pelos filhos, afastou-se para observar seus homens, que treinavam arco e flecha, ali perto.
— Nossa! Isso é um verdadeiro banquete! -exclamou, ao retornar para junto de Claire. — Devo enviar meus cumprimentos à cozinheira.
Era uma festa para os olhos ver todas aquelas guloseimas dispostas graciosamente sobre a toalha! Havia bolo de carne, ensopado de frango, tortas de cereja, pão, um pote de manteiga fresca, queijo e uma garrafa de vinho.
Alain acomodou-se no chão, recostando-se no tronco de uma árvore; os filhos o ladearam e Claire sentou-se bem à sua frente. Então teve início o banquete!
— Humm! Adoro as tortas de cereja de Marie! — Guerin afirmou, lambendo os dedos melados com o recheio de frutas.
— Guerin! Devia reservar as tortas para a sobremesa! — Peronelle criticou, com autoridade maternal. Entretanto, para certificar-se de que não seria privada daqueles prazeres, reservou logo duas fatias para si mesma.
— Essas regras não se aplicam para refeições ao ar livre — Alain avisou, devorando uma coxa de frango. — A única regra que vale é dividir o que tem com seu irmão.
— Devíamos comer desse modo todos os dias! — a menina ponderou, enfática, ignorando a bronca do pai. — Não acha, Guerin?
— Que tolice! O que faríamos nos dias de chuva ou durante o inverno?
— Ora, estava me referindo apenas aos dias de sol. Não seria divertido, Haesel?
— Sim — assentiu, admirando os traços fortes de lorde Alain, protegida pela sombra providencial de um galho. Ele parecia tão tranqüilo e bem-humorado, o oposto do cavaleiro normando que a recebera com rispidez no dia de sua chegada ao Castelo de Hawkswell.
— Um pouco de vinho, Haesel? — Sorriu-lhe de modo encantador, enquanto derramava o líquido aromático em uma das canecas de madeira que viera dentro da cesta.
Aquele sorriso estava envolto em uma aura de brilho e magia, como se tivesse a pretensão de imitar as estrelas.
Claire respirou fundo, tentando manter o auto-controle. Sentada na relva macia, à sombra da macieira, olhando fixamente para Alain, sentiu-se transportada para o mundo etéreo das fadas das antigas lendas inglesas. O que lhe importava os desejos absurdos do tio, sua missão ali, os conflitos entre Estevão e Matilde?
Nada! Absolutamente nada!
Naquele momento, esqueceu-se do tempo, de sua verdadeira identidade, até mesmo da presença das crianças que adorava... Todos os seus sentidos e a razão estavam voltados apenas pra ele. Aquele homem enigmático, um autêntico mestre da alquimia, capaz de unir qualidades opostas, transformando-as em uma mistura homogênea e rara! Fruto desse processo, a personalidade marcante de Alain mesclava autoridade com carinho, imponência com modéstia, paixão com ternura...
Ah! Meu Deus! Tinha uma vontade louca de jogar-se naqueles braços fortes, cobrindo seus lábios de beijos vorazes e apaixonados. Queria que ele a possuísse com toda a intensidade, aplacando o desejo que a atordoava, sem se importar com o que viesse depois!
Infelizmente, como todo sonho desaparece ao despertarmos, feito uma nuvem de fumaça, do mesmo modo, Claire logo voltou a si. Tinha a sensação de que passara horas naquele redemoinho de idéias alucinadas, embora tivesse passado apenas alguns minutos entregue àqueles devaneios de luxúria. Ainda bem que não fizera nenhuma loucura, permanecendo imóvel e calada.
Se Alain havia percebido o que se passara em sua mente, era uma incógnita. Ele brincava com as crianças, ostentando uma expressão indecifrável no rosto. Contudo mantinha os olhos fixos em Claire...
— Hei! Seus marotos! Comeram a torta inteira, sem deixar nenhuma isca para Haesel e eu! — gritou, de súbito, fingindo estar zangado.
— Desculpe, pai... A torta estava tão gostosa, que nem percebi... — Guerin baixou a cabeça, constrangido, desenhando círculos no chão com a ponta dos pés.
— E você? O que tem a me dizer, mocinha? — exigiu uma explicação de Peronelle.
Mais desenvolta que o irmão, a menina não se demorou nas desculpas. Como era seu costume, preferiu agir de modo prático, encontrando uma alternativa para o problema.
— Não fiz por mal, papai... Mas já sei como resolver isso! Eu e Guerin vamos colher algumas cerejas para que vocês tenham uma sobremesa!
Antes que lorde Ajam pudesse se manifestar, ela levantou-se, correndo na direção das cerejeiras.
— Vamos, Guerin!
— Hei! Cuidado com as vespas! — Claire recomendou, lembrando que vira várias colmeias perto das árvores.
— Não se preocupe, sabemos evitá-las! Já estamos crescidos! — o menino respondeu, endireitando-se para parecer mais alto.
— Crescidos!? Eles mal saíram dos cueiros! — lorde Alain comentou, com uma mistura de ironia e orgulho.
— São boas crianças, milorde!
Seus olhares se cruzaram, e os dois mergulharam em um silêncio absoluto. Tudo estava tão calmo e quieto que podiam ouvir até mesmo o pulsar apressado de seus corações.
Inesperadamente, Claire sentiu-se dominada por uma timidez arrebatadora. Desviou o olhar, enrubescendo diante dos pensamentos eróticos que povoavam sua cabeça.
Não estava habituada com esses arroubos de paixão... Sua vida com Haimo sempre fora desprovida de ternura, amor e desejo... As únicas emoções fortes que sentira ao lado do marido foram medo, ódio e revolta.
— Sim, são crianças maravilhosas! Eu os amo demais! — ele voltou a falar, sentindo que deveria pôr fim àquele silêncio constrangedor. — Eles gostam muito de você, Haesel.
Ela colou os olhos no chão, mortificada pelo remorso.
— São muito amáveis e carinhosos comigo, milorde. Chego a ficar emocionada com tanta afeição! — Podia sentir os olhos penetrantes de Alain, analisando minuciosamente cada um de seus gestos.
— Já deve ter percebido que se tornou uma pessoa muito importante na vida deles, não é? Acho que foi Deus quem a enviou a Hawkswell para alegrar a vida dos meus filhos... — "E a minha também", acrescentou, em pensamento.
Claire ficou ainda mais acabrunhada, encolhendo-se como se estivesse morta de frio. Não fora exatamente Deus quem a enviara, nem estava ali para o bem das crianças...
"Ai, Virgem Sagrada! Volta e meia, minha consciência vem me torturar com as mesmas acusações! Até parece uma ladainha, repetida à exaustão! Talvez nunca mais volte a ter paz..."
— Obrigada, milorde... — balbuciou, sentindo que precisava dizer algo para não despertar suspeitas. Porém não tinha coragem de encará-lo, copiando o gesto de Guerin, fazendo círculos no chão com os pés.
— Espero que esteja feliz aqui em Hawkswell, Haesel.
— Sim, estou gostando muito daqui. Fui muito bem recebida por todos... Tratam-me com carinho e procuram fazer com que eu me sinta em casa. — Sentiu uma punhalada no peito. Toda vez que pensava nisso, seu sofrimento aumentava.
— Parece que também está conquistando o coração de todo o meu povo, Haesel... — "incluindo o meu!", gostaria de dizer, mas seu orgulho exacerbado não lhe permitiu.
— Até mesmo sir Gautier, sempre tão racional e exigente, não se cansa de elogiá-la.
Claire sorriu com timidez.
— É mesmo? Pois ele sempre me olha com severidade, como se estivesse desaprovando tudo o que faço.
Lorde Alain riu, balançando a cabeça, cheio de charme.
— Ora, não dê importância para isso. Sir Gautier sempre foi meio rabugento, mas tem um bom coração. Aliás, devo adverti-la de que ele tem uma certa atração por moças bonitas, especialmente as loiras, como você...
Novamente a face ficou ruborizada. Tinha a sensação de que lorde Alain estava usando a figura do velho cavaleiro para falar sobre seus próprios sentimentos por ela.
Sem graça, levantou-se da relva, olhando para as muralhas sólidas do castelo, como pretexto para dar uma pausa àquele diálogo. Precisava de alguns segundos para se recompor, pois estavam enveredando por assuntos um tanto tórridos e perigosos...
— Sempre viveu aqui, lorde Alain? — quis saber, aflita para mudar os rumos da conversa.
Ele acompanhou o olhar de Claire, observando a imponente torre norte do castelo. Seu semblante encheu-se de orgulho.
— Sim, nasci aqui mesmo. Essas terras foram dadas a meu pai pelo rei Henrique I, como recompensa por sua lealdade.
O pai de Claire também fora um dos mais leais vassalos do rei Henrique. Contudo, quando seu primogênito morrera e o rei proclamara Matilde como sua herdeira a coroa da Inglaterra, lorde Coverly decidira afastar-se da corte. Recusava-se a se tornar um vassalo de uma mulher geniosa e irascível!
Como não podia compartilhar daquelas informações com Alain, preferiu mudar de assunto outra vez.
— Era o filho mais velho, milorde? Tem irmãos ou irmãs?
— A resposta é não para a primeira pergunta e sim para a segunda. — Encostou a cabeça no tronco, ante o peso daquelas lembranças trágicas. — Era o terceiro filho do barão, cujo destino seria a carreira eclesiástica.
Ele fez uma pausa, com o olhar perdido no horizonte.
Claire respeitou aquele silêncio, concluindo que tocara em um assunto muito delicado para o barão. Mas, para sua surpresa, após alguns instantes, ele fez questão de lhe contar o que acontecera com sua família.
— Meus dois irmãos eram filhos da primeira esposa de meu pai. Gervaise, o primogênito, acabou morrendo no naufrágio do White Ship, juntamente com o jovem príncipe, filho de Henrique I. Já ouviu falar sobre esse desastre, não foi, Haesel?
Ela hesitou. Será que uma serva inglesa saberia a história do naufrágio que matara o herdeiro da coroa da Inglaterra e muitos jovens das famílias mais nobres?
Sem chegar a nenhuma conclusão definitiva, decidiu arriscar.
— Foi por causa disso que a filha do rei Henrique tornou-se a herdeira do trono? — retrucou, cautelosa.
— Isso mesmo.
— E o que aconteceu com seu outro irmão, milorde?
— Dois anos mais tarde, uma daquelas febres que atacam os castelos e povoados durante o inverno abateu-se sobre Hawkswell. — Deu um suspiro angustiado. — Levou meu irmão, minha mãe e uma das minhas irmãs.
— Sinto muito. É muito triste perder tantos entes queridos de uma só vez. — Condoeu-se daquela tragédia. — Quantos anos tinha naquela ocasião?
— Sete. — Uma nuvem de angústia pairou sobre seu rosto, turvando-lhe o semblante, sempre tão seguro de si. Então, quando perdera a mãe, lorde Alain não era muito mais velho do que Guerin na época em que Júlia morrera.
— Tem outras irmãs?
— Sim, mais uma. Ela é abadessa em um convento em Yorkshire.
— Yorkshire? — repetiu, como se jamais tivesse ouvido aquele nome antes. — Fica muito longe daqui?
Ele sorriu da singela ignorância da moça.
— É um lugar muito distante daqui. Fica ao norte, perto da Escócia. Por isso, raramente vejo minha irmã.
Não precisava fazer muito esforço para saber que o pai também havia morrido. Caso contrário. Alain ainda não teria recebido o título de barão de Hawkswell.
— É barão há muito tempo, milorde? — Estava cada vez mais curiosa sobre a história da família dele. Não compreendia por que, mas sentia uma vontade incontrolável de conhecer tudo o que se referia a Alain.
— Meu pai já estava muito velho e cansado quando sagrei-me cavaleiro. Porém, talvez tivesse vivido mais alguns anos se eu não... — interrompeu a frase, abruptamente.
— Ele morreu quando eu estava servindo em Anjou, na corte da imperatriz Matilde e seu marido, Geoffrey, o Belo.
O que será que ele iria dizer? Havia desapontado o pai de alguma maneira, durante sua permanência do outro lado do canal da Mancha? Seja o que for, ele logo se encarregou de encobrir qualquer pista sobre aquele assunto.
Um pintassilgo começou a cantar, de um galho da macieira, bem acima de onde estavam. Sua melodia doce e um tanto melancólica tocou o coração de ambos, impelindo-os a uma nova etapa de silêncio.
Cada um dos dois mergulhou profundamente em seus próprios sonhos, temores e devaneios, como se estivessem sozinhos em ilhas remotas e isoladas.
— Que mulher intrigante você é, Haesel! — Alain exclamou, por fim, recuperando a vivacidade. — Conseguiu fazer com que eu lhe contasse minha história, embora ainda não saiba nada sobre você! Precisamos equilibrar essa situação imediatamente!
Nesse exato momento, as crianças retornaram fazendo um grande alvoroço.
— Colhi mais cerejas do que Guerin! — a menina gabou-se, esticando a cesta repleta de frutas.
— Claro que sim! Pois ocupou-se em colher as que estavam no chão! — Guerin atacou, ofendido. — Colhi as minhas no alto das árvores, papai!
— Ambos fizeram um excelente trabalho, meus filhos! — afirmou, conciliador. — Agora, sentem-se. Haesel estava prestes a me contar sua história. — Com um olhar matreiro e perspicaz, indagou-lhe: — Não é mesmo?
Peronelle sentou de pronto, deitando a cabeça no colo do pai. Guerin, todavia, continuou imóvel, incomodado com algo.
— Mas, papai... Verel prometeu ensinar-me a manejar um arco.
— Muito bem. Mas use apenas um arco de madeira. Ainda é muito jovem para usar um arco-cruzado!
O menino mal ouviu as últimas sílabas e já estava correndo para junto dos guerreiros, leve com um pássaro.
— Os meninos são todos iguais. Adoram lutas, armas e cavalos! — Claire comentou, sorrindo ao recordar as brincadeiras de Neville, quando ainda eram crianças.
— Fico muito feliz sempre que Guerin se interessa por esse tipo de esporte. Ele é muito sério e compenetrado. — Respirou fundo, sabendo que isso ainda iria causar-lhe muitos desentendimentos com Matilde. — Talvez, se desenvolver alguma habilidade no arco e flecha, possa se entrosar melhor com os outros meninos, quando tiver que partir.
— Refere-se ao treinamento para cavaleiro? — arriscou-se a perguntar. — Mas ele deseja se tornar um padre, não é mesmo?
Alain fez um sinal aquiescente.
— E eu apoiarei sua decisão, seja ela qual for! Contudo quero que ele tenha a certeza de que está seguindo o caminho correto. — Em tom mais brando, quase confessional, revelou: — Sabe, quando descobri os prazeres que se pode desfrutar junto de uma mulher, agradeci a Deus por não ter seguido a carreira eclesiástica. Por isso quero que ele conheça o mundo antes de fazer sua escolha!
Claire ouvia tudo com atenção, sorvendo cada palavra como se fosse um néctar delicioso. Lorde Alain conversava com ela como se não existissem diferenças sociais entre os dois. Ele parecia ter se esquecido de que era um nobre e ela, uma simples serva! Aliás, esse não era um privilégio seu, pois em suas andanças pelo castelo, vira que ele tratava todos os seus subalternos com respeito e consideração, o que era raro para um nobre! Talvez esse fosse um dos muitos motivos pelos quais o povo de Hawkswell o idolatrava.
— O que fazia quando era pequena, Haesel? — Peronelle pediu, feliz por ter a atenção dos dois adultos só para si. — Onde morava e como eram seu pai e sua mãe?
Claire tomou fôlego. Não seria fácil inventar uma história verossímil em um piscar de olhos. Como não tinha alternativa, resolveu mesclar um pouco de ficção com a pura realidade.
— Nasci nas proximidades do País de Gales — começou, lembrando-se que Gilda e Hugh le Gros acreditavam que fosse daquela região.
— Já esteve em Gales? — Peronelle perguntou, com os olhos brilhando de curiosidade. — Sabe falar galês?
— Nunca fui até lá... Jamais havia me afastado de casa, até que cheguei aqui. Quanto à língua, meu pai a falava, mas nunca cheguei a aprendê-la.
— Sua família era numerosa, Haesel? — lorde Alain quis saber, alternando-se com a filha naquele verdadeiro interrogatório.
— Minha mãe teve apenas dois filhos, eu e Neville.
— Neville?! Esse não é um nome francês?
Claro que é!, pensou, amaldiçoando-se por aquele descuido. Agora não adiantava chorar, precisava arranjar uma explicação convincente para esse fato. E rápido!
— Ele foi batizado com o nome do senhor do feudo, que era um nobre normando.
Passado o susto, riu-se da expressão divertida de lorde Alain. Pelo jeito, ele devia ter concluído que Neville era o filho bastado de algum nobre.
— Nossa casa era uma cabana rústica com apenas dois cômodos. Um para nós e o outro para os animais, durante os meses de inverno — continuou a narrar, dando asas à imaginação.
— Viviam todos em um único cômodo?! — Peronelle manifestou-se, chocada com aquele fato. — Sua mãe, seu pai, você, seu irmão e os animais ficavam debaixo do mesmo teto?
— Isso mesmo. Mas éramos felizes assim, pelo menos, até minha mãe morrer... — Esse ponto era verdadeiro. A felicidade reinara no Castelo de Coverly enquanto sua mãe ainda vivia.
Claire quase não podia mais se lembrar do rosto dela, que morrera há mais de dez anos. Contudo sua meiguice, vivacidade e força ficariam gravados em sua memória pelo resto de sua vida. A todo custo, a mãe tentara ensinar-lhe a ser forte em um mundo dominado por homens...
— Meu pai morreu quando fiz dezesseis anos — contou outra verdade.
Desde então, Neville passara a ser o novo senhor de Coverly. Mas, como era muito jovem e inexperiente para assumir tantas responsabilidades, ainda mais em um período de guerra, acabara se curvando ante os caprichos e vontades do tio, Hardouin d Evreux.
— Que história triste! — a menina exclamou, deixando escapar um bocejo. Seus olhos escuros mantinham-se abertos com grande dificuldade, pois as pálpebras estavam extremamente pesadas.
— O que esse Neville achou de sua fuga, Haesel? — lorde Alain inquiriu, aninhando a filha no colo.
— Não lhe contei — mentiu, sacudindo os ombros com descaso. — Ele não pode ser responsabilizado pelo que não sabia, não é?
Gostaria de gritar a plenos pulmões que Neville sabia exatamente onde estava e não fizera nada para ajudá-la. Ao contrário, ele a forçara a tomar parte dos esquemas sórdidos do tio!
— Oh! Acho que fiz sua filha adormecer com minha história, milorde. — Sorriu carinhosamente para Peronelle, que fora derrotada pelo sono.
Alain alisou os cabelos da filha, com o olhar embevecido de amor. Então, com cuidado, colocou-a sobre uma cama improvisada com sua capa. A menina deu alguns suspiros, mas não despertou.
Em seguida, ele vasculhou as redondezas até avistar Guerin, que estava bem distante, recebendo lições de manuseio de arco com Verel.
— Bem, parece que finalmente ficamos a sós, Haesel!
Lorde Alain sorriu para Haesel, como se tivesse ganho uma batalha árdua.
Era bom demais para ser verdade! Peronelle dormia pesadamente, Guerin estava longe, com a atenção voltada apenas para as lições de Verel, e, por causa das copas densas das macieiras, também estavam protegidos dos olhares indiscretos dos sentinelas das muralhas.
Claire sentiu um frio na espinha, ao perceber o perigo que essa situação representava. O desejo e a luxúria estavam impressos no rosto de Alain, de modo que não havia a menor dúvida quanto às suas intenções de abordá-la. Mas isso ainda não era o pior... Seu maior problema era que não confiava em si mesma!
Aquele homem sedutor e vibrante mexia com todas as fibras de seu corpo, como jamais sonhara que alguém pudesse fazer. Sentia calores, alternados com ondas de frio, a pele ficava arrepiada e as pernas tremiam; tudo isso só porque havia se imaginado nos braços dele...
Não! Precisava resistir a esses apelos carnais, lutando contra os encantos desse homem, enquanto ainda estava em condições de fazê-lo!
— Milorde, eu... — começou a dizer, fazendo menção de levantar-se. Seus movimentos só não foram mais rápidos, porque suas pernas estavam muito trêmulas.
Adivinhando o que se passava na mente de Claire, ele adiantou-se, interceptando-lhe a ação. Contudo não precisou segurá-la, bastou fixar os olhos bem dentro dos dela.
Em um segundo, imagens de tórridas cenas de amor e paixão invadiram os pensamentos de Claire, boicotando quaisquer tentativas de agir racionalmente. Seus instintos de mulher clamavam para serem saciados!
— Não precisa me chamar de "milorde" quando estivermos a sós, Haesel. Diga apenas Alain. — Sua voz era rouca, pausada, incrivelmente sedutora.
"Minha Nossa Senhora, ajude-me a resistir à essa tentação!", orou, em desespero. A cada instante que passava, seu auto-controle ficava mais fraco e tênue, como se fosse uma corda prestes a se romper.
Vendo que ela empalideceu ainda mais com suas palavras, Alain procurou acalmá-la, com um tom meio irônico e malicioso:
— Ah! E não há nada a temer. Não vou atacá-la!
Claire sentiu a raiva dominar-lhe os sentidos. Mas que desaforo! Como ele podia ser tão arrogante assim?!
— Que tal provarmos essas cerejas? As crianças se esforçaram bastante para colhê-las — ele sugeriu. Sem esperar por uma resposta, levou uma fruta aos lábios, despertando o desejo de Claire. Em seguida, escolheu mais uma e ofertou-lhe, de modo provocante.
Claire inclinou-se para a frente, a fim de apanhar a cereja, mas ele continuou a segurar a fruta entre os dedos.
— Permita-me... — sussurrou, lacônico, aproximando-se cada vez mais dela. Então, aproveitando-se de sua hesitação, ele levou a fruta até seus lábios.
Um espasmo de prazer a sacudiu, enquanto saboreava a cereja adocicada. Entretanto não era a fruta que lhe causava essa sensação de volúpia, quase abandono, mas a própria sensualidade daquele momento.
Inconscientemente, lembrou-se da cena bíblica, na qual Adão e Eva provam o fruto proibido. Só que dessa vez era o homem quem tentava seduzir a companheira...
— Humm! — sussurrou, extasiada, ao terminar de saborear a fruta.
— Aceita outra?
Ela limitou-se a fazer um aceno lânguido com a cabeça. A essa altura, já estava completamente dominada por aquele olhar penetrante e enigmático. Não teria forças para lhe negar qualquer pedido...
Ciente de seu poder de sedução, Alain escolheu mais uma cereja, bem madura e vermelha, repetindo o gesto anterior.
À primeira mordida, um líquido espesso escorreu dos lábios de Claire, aumentando a carga erótica da situação.
— Como se diz suco em francês, Alain? — perguntou, invertendo as posições desse jogo de sedução.
Perturbado, por ouvi-la proferir seu nome sem o título, ele ficou petrificado por alguns segundos. Sempre tivera um jeito todo especial para tratar as mulheres, conseguindo despertar-lhes desejos adormecidos e paixões incontroláveis. Todavia ninguém jamais o deixara sem ação, como Haesel acabara de fazer... De caçador estava prestes a se transformar em caça...
— Juteux — murmurou, ainda atordoado com a enxurrada de sensações que brotavam de seu peito, espalhando-se rapidamente por todos as extremidades de seu corpo.
— Juteux... — ela repetiu, sugando todo o sumo daquela fruta, como se o estivesse fazendo um convite à sedução. Não sabia porque estava agindo dessa forma ousada e provocante. Talvez quisesse dar-lhe um pouco de seu próprio remédio, para equilibrar o jogo... Ou então estava cedendo aos seus impulsos mais primitivos e misteriosos.
Estava começando a perceber que havia uma outra Claire, guardada a sete chaves, dentro de sua alma. Era uma mulher mais impetuosa, sensual, lasciva e insaciável, capaz de derreter uma geleira com o calor de seu olhar...
E pensar que Haimo sempre a considerara fria e desinteressante! Que tolo! O brutamontes de seu marido nem sequer conseguira despertar essa parte de seu ser por um instante fugaz!
— Mais uma... — pediu. Seus lábios estavam ainda mais rubros e tentadores devido ao suco da cereja.
Alain pegou mais uma fruta da cesta, porém, em vez de levá-la até a boca de Claire, pousou seus lábios nos dela.
No início, sorveu com delicadeza os resíduos adocicados da fruta, enquanto passava os braços em torno das costas e cintura de Claire. Gradativamente, contudo, o beijo foi ficando mais quente e voraz e suas carícias, mais ousadas.
Naqueles braços, Claire sentia ter renascido e descoberto um novo significado para a vida! Tudo ao seu redor ganhava mais cor e alegria, tornando-se absolutamente especial! Viver não era mais um castigo ou uma provação divina, pelo contrário, era uma dádiva de Deus!
Quando afinal seus lábios se separaram dos dele, ela não sentiu remorso, nem culpa, apenas um frenesi de pura felicidade! Agora, tinha certeza de algo muito importante: ele também a desejava!
— Ah! Haesel... — um doce murmúrio escapou-lhe da boca, como se fosse o canto de um rouxinol. — Gostaria de levá-la para longe daqui; um lugar discreto, onde pudéssemos nos entregar plenamente à paixão...
Ela sorriu, compartilhando o mesmo desejo.
Infelizmente, não podiam consumar a paixão que os consumia nesse momento, pois gozavam de uma relativa privacidade. Havia o risco de que Peronelle acordasse de súbito; sem falar em Guerin, que poderia retornar a qualquer momento.
— Alain... — ela sussurrou, entre suspiros de prazer, enquanto ele mordiscava o lóbulo de sua orelha.
— Eu sei, querida... Jamais fiquei tão ansioso, à espera do anoitecer!
De súbito, olharam-se dentro dos olhos, em mútua e sagrada contemplação, ficando em silêncio. Laços invisíveis e indissolúveis de pura luz os envolveram, criando ao redor deles um casulo de amor, compreensão e ternura. Era como se fossem duas metades de um único ser que, após um longo período de separação, afinal, voltava a se unir... Dessa vez, para todo o sempre!
Ambos tinham uma impressão forte e indescritível de que já se conheciam profundamente de um passado longínquo, onde eram chamados por outros nomes e vestiam roupas distintas e etéreas.
"Meu adorado esposo...", uma voz antiga e cheia de saudade ecoou pela mente de Claire, vinda dos recantos mais profundos e misteriosos de sua alma. Não podia encontrar nenhuma explicação plausível para o que estava lhe acontecendo. Mas, nesse instante, não queria se preocupar com pensamentos racionais... Queria apenas entregar-se essa corrente de sensações maravilhosas que brotavam de seu peito, expandindo-se para todas as extremidades de seu corpo.
"Minha Alena... Finalmente, tornamos a nos reencontrar!", esse pensamento, carregado de emoção, varreu todo o corpo de Alain com a fúria de um vendaval. Sentiu espasmos de alegria, misturados a uma saudade infinita, como jamais pensou que fosse possível existir. Não sabia o que estava acontecendo, mas, assim como Claire, isso não tinha a menor importância. Queria apenas sentir, não entender...
Talvez a única explicação para o que estava lhes acontecendo estivesse nas antigas lendas celtas, que, apesar da perseguição implacável dos padres e dos dominadores normandos, continuavam a circular entre o povo inglês. Os antigos habitantes da Grã-Bretanha, de quem descendiam os ingleses, acreditavam que as pessoas voltavam a renascer, após a morte.
Verdade ou mentira? Ninguém poderia dizer com certeza. O fato é que Claire e Alain estavam sentindo na pele os efeitos de um fenômeno tão incrível, quanto desconhecido. Se estavam sofrendo uma alucinação, ou milagrosamente haviam se reconhecido de uma outra vida, a resposta verdadeira e definitiva pertencia apenas a Deus. Portanto cada qual deveria escolher a explicação que melhor satisfizesse seus anseios íntimos...
Inesperadamente, o som agudo de uma trombeta cortou os ares, quebrando a magia daquele momento sagrado.
Saindo daquele transe, Alain sentiu-se arremessado com toda violência para a realidade. Ainda zonzo, percebeu que aquele som não era proveniente de um instrumento qualquer, mas sim do chifre em espiral, que só era utilizado em raras ocasiões, como a visita de hóspedes muito ilustres ou acontecimentos graves no feudo.
Não havia tempo para explicações. Como senhor de Hawkswell, era sua responsabilidade descobrir o que estava acontecendo em seus domínios e tomar as providências adequadas. Por isso levantou-se de um salto, limitando-se a dizer:
— Espere aqui com Peronelle. Não quero que ela acorde sozinha.
Atordoada por todas as experiências que acabara de vivenciar, Claire demorou a entender o que estava se passando. Seus pensamentos só começaram a clarear, quando Verel, Guerin e os outros soldados vieram correndo ao encontro de lorde Alain. Algo muito sério acabara de acontecer!
O pequeno grupo já estava prestes a correr para o portão principal, no exato momento em que um intrépido cavaleiro avançou por entre as árvores do pomar.
Parando ao lado de lorde Alain, desmontou, esbaforido.
Apesar do elmo, Claire pôde reconhecê-lo com facilidade. Era Brys de Balleroy!
— Milorde, acabo de retornar, trazendo-lhe uma notícia muito grave. — Tomou fôlego para prosseguir a narrativa. — A cabana de um de seus servos, nas proximidades do campo de cultivo à oeste, foi brutalmente atacada. O camponês foi morto, mas cheguei bem a tempo de surpreender um mercenário estuprando sua mulher.
Claire observou o choque e a raiva tomarem conta do semblante de Alain. Seus traços ficavam mais duros e impiedosos, à medida em que ouvia os relatos do outro homem.
— O que fez com o patife?
— Ele tentou escapar, mas não foi muito longe. Eu o transpassei com uma flecha!
Alain meneou a cabeça, em silenciosa aquiescência.
— Mas ele não poderia ter feito todo aquele estrago sozinho — ponderou, olhando para oeste.
De Balleroy fez um gesto afirmativo.
— Vislumbrei um vulto embrenhando pelo bosque, enquanto eu e meu escudeiro perseguíamos o outro facínora. Mesmo assim, milorde, toda aquela destruição não pode ter sido obra de apenas dois homens.
Claire teve uma forte dor no estômago, como se tivesse levado um soco. Não havia dúvidas de que se tratavam dos homens de Hardouin!
Entediados com a longa espera, aqueles miseráveis deviam ter atacado aquela pobre gente para passar o tempo. Não haviam posto fogo na cabana, como era costume em pilhagens, para que a fumaça não chamasse a atenção dos sentinelas das muralhas. Contudo, por uma incrível coincidência, foram surpreendidos por Brys de Balleroy e seu pequeno grupo. Somente por isso, o crime viera à tona com tanta rapidez.
Uma idéia assustadora invadiu a mente de Claire, dando-lhe um choque...
Se De Balleroy for um dos homens de Estevão, esse ataque pode ter sido uma armadilha!
— E a mulher? — Alain quis saber, cada vez mais transfigurado pelo ódio. — Onde ela está?
— Meu escudeiro a está trazendo mais lentamente. Ela está muito ferida, milorde. Além de estuprá-la, os malditos a espancaram com violência.
Alain cerrou os punhos, com os olhos injetados, cada traço de seu rosto transpirava um misto de rancor e vingança. Parecia um urso prestes a dilacerar sua presa.
— Eles vão pagar por isso! Ninguém molesta o povo de Hawkswell enquanto eu for o senhor dessas terras. Verel! — bradou para o escudeiro. — Convoque todos os cavaleiros e forme uma patrulha. Sairemos do castelo, à caça desses miseráveis, assim que todos estiverem armados!
— Milorde, espere! Tenho algo importante para lhe dizer! — Claire o chamou, aflita, ao ver que Alain se afastava junto com os outros homens.
Bufando, impaciente, ele se virou para encará-la.
— Haesel, não tenho tempo para conversar agora. Deixe esse assunto para mais tarde!
Algo na fisionomia de Claire deve tê-lo alertado de que se tratava de um assunto realmente grave. Pois, apesar da pressa, ele interrompeu a marcha.
Ela o encarou, com o coração aos pulos, à espera de que os outros homens se afastassem.
— Milorde, deve acreditar em mim... — começou, sabendo que não seria nada fácil dizer o que precisava. — Já vi esse tal cavaleiro De Balleroy na companhia do nobre responsável pelas terras onde eu vivia. Ambos eram vassalos do rei Estevão!
Ele afastou-se alguns passos, atônito com aquela revelação.
— Acha que De Balleroy é um dos homens de Estevão? — Arqueou as sobrancelhas, sem compreender aonde ela queria chegar com aquilo. — Mesmo assim, o que isso teria a ver com esses foras-da-lei que se refugiaram na floresta de Hawkswell?
— E se não forem foras-da-lei, milorde? — Seu tom era grave e, ao mesmo tempo, deixava transparecer grande astúcia. — Esse ataque pode ser uma armadilha para fazê-lo sair do castelo. Não vá, eu lhe imploro!
Lágrimas sentidas rolaram por sua face, só de imaginar Alain aprisionado por aqueles facínoras, que poderiam inclusive tirar-lhe a vida!
Ele a fitou, compadecido de seu sofrimento.
— Doce, Haesel — murmurou, enxugando-lhe as, lágrimas com a palma das mãos. — Não tema por mim. Tenho muitas razões para crer na lealdade de De Balleroy. Portanto, tudo irá terminar bem.
Por um segundo, quase caiu na tentação de acabar com aquela farsa, revelando os planos maquiavélicos do tio. No entanto as palavras ficaram presas em sua garganta, devido ao medo. Mas, dessa vez, seus receios eram causados por razões diferentes... Não temia mais castigos, torturas ou mesmo a morte, nem as prováveis retaliações de Hardouin; só se afligia ao pensar na desilusão de Alain ao descobrir que era uma impostora.
— Pelo que parece, esses homens são realmente foras-da-lei, que não devem lealdade a nenhum senhor... — ele continuou a lhe explicar, gentil. — E, de modo algum, posso permitir que essa escória mate e ataque meu povo impunemente, não concorda?
Ela engoliu em seco, empurrando toda a verdade para o fundo da alma. Então assentiu, com um gesto bastante contido.
— Agora tenho que partir, Haesel. Os homens devem estar à minha espera e ainda tenho que vestir a armadura. Por favor, ajude a cuidar da pobre mulher que está sendo trazida para o castelo.
Mais uma vez, ela fez um aceno aquiescente, mordendo os lábios com força para não cair em um pranto convulso. Sabia que sua missão em Hawkswell seria difícil, porém, jamais poderia avaliar as dimensões dos conflitos interiores que seria obrigada a enfrentar. Fazer amizades, deixar que as pessoas se afeiçoassem e confiassem nela, para depois traí-las da maneira mais sórdida e cruel!? Por Deus! Nada, absolutamente nada no mundo poderia justificar um ato desses! Isso não era digno de um ser humano!
Chorando suas mágoas, debaixo da macieira, pôde ver quando a patrulha, liderada por lorde Alain, atravessou os portões da muralha externa. Todos vestiam armaduras e carregavam um arsenal completo de armas, incluindo espadas, maças, lanças e flechas. De fato, estavam a caminho de uma batalha sangrenta!
Aquela visão duplicou o sofrimento de Claire; se é que isso ainda era possível. Entretanto, lembrando-se da mulher ferida que prometera cuidar, criou forças para reagir. Enxugando as lágrimas, acordou a pequena Peronelle, que ainda dormia o sono dos justos, e retornou ao castelo. Agora, só lhe restava rezar para que Deus e seus anjos protegessem lorde Alain, o senhor de seu coração!
A camponesa fora levada para a cabana de Annis e Ewald, no vilarejo, protegido pela muralha externa. Após certificar-se de que Peronelle e Guerin ficariam sob a supervisão zelosa de padre Gregory, Claire correu até lá, disposta a ajudar no que fosse preciso.
Por Deus! Ao ver o estado da mulher, seus olhos encheram-se de lágrimas de piedade e revolta. Jamais vira alguém vítima de tanta crueldade e selvageria!
De Balleroy não exagerara ao descrever os abusos sofridos por aquela pobre criatura! Aqueles vilões miseráveis a espancaram tanto, que mais alguns minutos e a teriam matado de pancadas.
Todo seu corpo estava coberto de assustadoras manchas roxas, sem contar os cortes, feitos à faca, nas pernas, braços e seios. Devido a socos, um dos olhos estava fechado e os lábios sangravam muito, com uma pequena marca em espiral, provavelmente causada por algum anel do agressor. No lado direito de sua face, havia um corte profundo em forma de um "P", indicando que um dos malditos ainda tivera a ousadia de cravar suas iniciais naquela vítima indefesa!
Pedindo perdão a Deus, por alimentar pensamentos e vingança, Claire desejou que Alain capturasse aqueles animais que se diziam homens e os fizesse pagar por tanta maldade!
Engolindo o choro, que a toda hora embaçava seus olhos, limpou os ferimentos da mulher com uma mistura de água e ervas, colocando todo seu amor e carinho em cada gesto. Então, com a ajuda de Annis, passou a aplicar ungüentos nas feridas.
Graças aos bons anjos, aprendera a manipular algumas ervas medicinais com sua antiga ama, que conhecia os segredos dos antigos povos da Inglaterra. Embora os padres torcessem o nariz para essas práticas pagãs, por ser uma católica devotada e caridosa, Claire jamais tivera problemas. Ao contrário, eles viam essas suas habilidades como uma dádiva de Deus!
— Ela disse alguma coisa? — Annis indagou, ao retornar para junto da enferma com mais um pote de ungüentos.
— Não, ela está em estado de choque — respondeu, aplicando uma nova camada de ervas naquele detestável "P".
Por mais que se esforçasse para atenuar os contornos daquela letra, Claire sabia que a cicatriz iria permanecer no rosto da mulher para sempre, juntamente com várias outras, espalhadas pelo corpo. No entanto, sem sombra de dúvida, as piores marcas ficariam gravadas na alma da infeliz.
Embora o estado letárgico em que ela se encontrava assustasse um pouco Annis, no momento, Claire o considerava uma bênção! Dessa forma, era poupada das dores dos machucados e da perda do marido.
— Está fazendo um excelente trabalho — Annis elogiou, sentando-se ao seu lado.
Claire agradeceu, com um sorriso triste. Perdera a conta do número de vezes que tivera que usar aqueles mesmos conhecimentos para cuidar dos machucados que Haimo lhe causara. O esposo era um adepto convicto do uso da força bruta no trato com as mulheres. E, depois, ainda era acusada de ser fria!
Enquanto mantinha as mãos ocupadas com os curativos, repetia mentalmente uma infinidade de preces para que nada de mal acontecesse a Alain.
Talvez estivesse enganada sobre a autoria daquele ataque. Afinal, bandos de foras-da-lei, que roubavam e matavam sem piedade, infestavam as florestas da Inglaterra.
Todavia a lembrança de um dos mercenários de Hardouin, mais precisamente o sargento, não lhe dava sossego... Aquele homem usava um anel grosso, com a imagem de um dragão em alto-relevo. Poderia ser uma coincidência, mas o corte no lábio da mulher a levava a acreditar que ele fora um dos agressores!
— Está preocupada com ele, não é? — Annis falou, mais como se constatasse um fato do que fizesse uma pergunta.
Claire não teve forças para negar. Sabia que a verdade estava nítida em seus olhos.
— Não se preocupe. Ele é um guerreiro muito hábil e poderoso — Annis procurou confortá-la, colocando a mão em seu ombro. — Por que não volta para o castelo agora? Posso terminar de fazer os curativos.
— Tem certeza de que não vai mais precisar de minha ajuda?
— Vá tranqüila. Você já fez tudo o que podia por essa mulher. Além disso, podem precisar de você no castelo. Sempre que uma patrulha saía da fortaleza para uma missão que envolvesse certo risco, todos os moradores se mobilizavam para recebê-los. Ataduras, ungüentos e até uma dose extra de comida eram preparados para o caso de qualquer eventualidade.
De repente, uma sombra avançou sobre as três mulheres, vinda da porta da cabana, que fora deixada aberta para facilitar a iluminação.
Claire ergueu os olhos, levando um susto imenso ao ver que se tratava de Gilda. A ruiva avançou em sua direção, com os cabelos desgrenhados e o rosto contraído de ódio. Parecia estar a um passo de perder a razão.
— Aqui está você! — disse, enrolando as sílabas. Annis colocou-se na frente de Claire, bloqueando a trajetória da irmã.
— Vá embora, Gilda! Parece que tomou um barril de cerveja!.
— É tudo culpa sua! — bradou, tentando alcançar Claire com os braços. — O que acha de ser a nova amante do barão, hein? Ou ainda não está interessada?
Annis empurrou a irmã para trás, defendendo a amiga.
— Pare de dizer bobagens e vá para sua casa! Como pode ver, temos muito trabalho a fazer por aqui! — Impaciente, apontou para a cama, onde a mulher estava deitada.
— Não é bobagem! Estou lhe dizendo a verdade, Annis! Essa estranha, de cabelos dourados, roubou lorde Alain de mim! — Gilda insistiu, fuzilando Claire com os olhos.
— Ele nunca mais irá me visitar, avisou-me esta manhã... Deu-me uma bolsa cheia de moedas e disse que estou livre para receber quem quiser... — Soluços amargurados interromperam seu discurso.
— Ora, isso não tem nada a ver com Haesel! — Annis afirmou, convencida da inocência da amiga. — Quantas vezes eu lhe avisei que isso iria acontecer um dia? Mas recusou-se a me ouvir! Achava que conseguiria prendê-lo para sempre, como se fosse uma dama da corte!
— É culpa dela! — Gilda gritou outra vez, apontando para Claire. — Ela está dormindo com lorde Alain!
— É mentira! — Claire manifestou-se, indignada com aquela acusação injusta. — Nunca me deitei com lorde Alain.
Gilda deu uma gargalhada histérica.
— Mas pretende deitar-se, não é mesmo? Você o deseja muito, posso ver o brilho da luxúria em seus olhos!
Claire empalideceu ao ouvir aquela frase. Seus sentimentos por Alain eram tão óbvios assim?
— Algum dia vai sentir na própria pele o que eu estou passando agora, garota! Ele vai se cansar de você também e, quando isso acontecer, irá trocá-la por outra!
— Não é verdade! — Claire protestou, sem saber direito a que parte específica estava se referindo. Diante das ameaças amargas de Gilda, estava confusa, magoada e com medo.
— Se não tem interesse em lorde Alain, vá embora de Hawkswell! — a ruiva desafiou, com arrogância. Em seguida, voltou a rir. — Mas, se o que digo for verdade, não serei mesquinha com você. Faço questão de lhe contar que tipo de carícias lorde Alain gosta de receber, quando está na cama!
— Gilda! Vá embora neste instante! — Annis bradou, furiosa como uma leoa. — Algumas vezes, como agora, tenho vergonha de sermos da mesma família!
— Não, Annis... — Claire manifestou-se, procurando pôr panos quentes naquele tumulto. — Quem deve partir sou eu. Afinal, Gilda é sua irmã.
Annis, entretanto, não mudou de opinião. Solidária. pôs a mão no ombro da amiga, encarando a irmã com um misto de desprezo e cólera.
— Não vai sair dessa cabana, Haesel! Sua presença é muito bem-vinda aqui! Além disso, fez uma grande trabalho, cuidando dessa mulher com dedicação e carinho. Gilda, ao contrário, não ajudou em nada e só veio semear discórdia.
As duas trocaram olhares afetuosos.
Comovida, Claire ficou com os olhos úmidos, diante dessa demonstração explícita de amizade. Em vez de ajudar a irmã a rechaçá-la dali, Annis preferiu ficar do seu lado! Sentiu uma admiração imensa por essa mulher de fibra e caráter!
Quando voltaram a olhar para a porta, Gilda já havia desaparecido dentro da noite.
— Sinto muito pelo que minha irmã lhe disse, Haesel — Annis desculpou-se, envergonhada. — Mas não guarde rancor de Gilda. Ela disse uma monte de asneiras porque estava com a cabeça virada pelo excesso de cerveja... É claro que você... — interrompeu a frase, sem coragem de conclui-la.
— Não seria amante de lorde Alain? — Claire terminou o pensamento, no lugar da amiga.
A lavadeira não conseguiu esconder a curiosidade.
— E você é?
— Não, nunca me deitei com milorde!
Pelo menos até agora... Mas, se minha permanência em Hawkswell se estender por muito tempo, não terei forças para resistir ao charme irreverente desse mestre da sedução!, pensou, lembrando do que acontecera no pomar.
— Acredito em sua palavra, Haesel. Porém vejo a chama do desejo bailando lá no fundo de seus olhos azuis... — Soltou um riso malicioso. — Está apaixonada por milorde, não é mesmo?
Claire baixou a cabeça, sem coragem de encarar a amiga. Já que a verdade estava nítida em sua face, seria inútil continuar sustentando aquela mentira. Ao mesmo tempo, seu orgulho excessivo não lhe permitia confirmar o fato em voz alta. Por isso deixou que o silêncio falasse por si...
— Ora, vamos! Para que tanta vergonha? — Annis insistiu, brincalhona. — Que mulher, em sã consciência, conseguiria manter-se impassível frente a uma homem como lorde Alain? E não é porque ele é um nobre, não!
Claire sorriu, meio encabulada. Não tinha o hábito de falar livremente sobre amor, sexo e sentimentos, como as pessoas do povo faziam. Entre os nobres, tudo sempre vinha envolto em um manto inexpugnável de hipocrisia e falsidade.
— Se algum dia vier a se envolver com lorde Alain, não precisa se preocupar comigo, ou sentir remorsos de Gilda — Annis prosseguiu, deixando que sua intuição conduzisse a conversa. — Com seu jeito vulgar e debochado, ela não consegue manter o interesse de um homem por muito tempo. Antes mesmo de sua chegada, milorde já estava cansado dela.
— Pode ser, mas Gilda acredita que eu apressei o fim de seu relacionamento com lorde Alain. — Lembrando-se de que deveria usar a lógica de uma serva como Haesel, acrescentou: — Além disso, não quero me tornar uma cortesã!
— Ora, uma mulher bonita e meiga como você jamais terá o mesmo fim que Gilda! — Suas palavras vinham impregnadas de convicção. — Mesmo que venha a ser amante passageira de milorde, isso não impede que, no futuro, algum homem de Hawkswell se case com você!
— Obrigada pelos conselhos, Annis. Jamais vou esquecer o quanto foi bondosa e gentil comigo.
A mulher balançou a cabeça, meio sem jeito por receber aquele elogio.
— Isso não foi nada, só fiz que minha consciência mandou.
"Ao contrário de mim...", Claire concluiu, angustiada.
— Agora, é melhor voltar para o castelo. Já está ficando muito escuro lá fora. — Deu uma olhada na enferma, que permanecia imóvel na cama. — Não se preocupe com ela, Haesel. Irá se recuperar; ao menos, dos ferimentos do corpo...
Claire concordou, com um aceno de cabeça. Então despediu-se de Annis e deixou a cabana, olhando ao redor. à procura do vulto de Gilda. No momento, a última coisa que queria era um novo confronto com a ruiva.
Por sorte, não havia o menor sinal da moça, como se ela tivesse se dissipado no ar, feito fumaça. Aliás, Claire não cruzou com mais ninguém em seu trajeto até os portões da muralha interna. Tudo estava assustadoramente quieto como sempre acontece antes das grandes tempestades.
Com medo de que aquele incidente pudesse se transformar em algo muito mais grave e imprevisível, o povo do vilarejo havia se refugiado em suas cabanas, ou então, corrido para dentro das muralhas internas do castelo.
Afinal, um pouco de cautela não era de se estranhar para quem já havia testemunhado tantas desavenças simples terminarem em combates sangrentos.
A medida em que avançava para a parte do castelo habitada pela família do nobre, a preocupação e o remorso tornaram a pesar sobre os ombros de Claire. Enquanto estivera ocupada com os curativos da camponesa, conseguira afastar aqueles pensamentos de sua mente. Agora, no entanto, eles pareciam voltar com força redobrada, mesclados a uma infinidade de dúvidas quanto a um possível envolvimento amoroso com Alain de Hawkswell.
O que aconteceria se acabasse se rendendo aos beijos vorazes e às carícias inebriantes de Alain? Certamente, viveriam um romance lindo e mágico, embora efêmero como uma brisa de verão... As conseqüências desse rompimento, entretanto, seriam muito mais trágicas do que as de um simples romance entre um nobre e sua serva.
Afinal, cedo ou tarde, seu disfarce acabaria sendo revelado. Ah! Se Annis soubesse o quanto sua situação era complicada!
Mesmo que abandonasse o plano do tio, revelando toda a verdade a Alain, ele jamais a perdoaria por ter se infiltrado no castelo do modo que fizera. Ele nunca mais tornaria a acreditar em sua palavra e passaria a tratá-la como se fosse a mais vil das criaturas sobre a face da Terra!
As possíveis torturas que sofreria, a prisão ou mesmo a morte não a amedrontavam. Contudo sua alma sensível não suportaria o desprezo do homem que, a cada dia, conquistava novos territórios do seu coração!
Com tenacidade e perseverança inacreditáveis, suportara os maus tratos e as humilhações constantes de Haimo. Todavia só conseguira essa proeza porque jamais havia amado o marido. Mas, com Alain, tudo seria diferente... Um olhar de ódio dele iria machucá-la mais do que um ferro em brasas sobre sua pele!
Deu um sorriso melancólico, imaginando um possível meio de fazer aquela revelação patética...
— Sabe, Alain, não sou Haesel, uma pobre serva inglesa. Na verdade, sou lady Claire de Coverly e vim para seu castelo, disfarçada, com o propósito de raptar seus filhos.
Não! Definitivamente, não poderia dizer-lhe a verdade!
Ao mesmo tempo, outra decisão estava bem clara em sua cabeça... De maneira alguma, levaria a cabo os planos de Hardouin! Tremia só de imaginar Guerin e Peronelle nas mãos daqueles mercenários impiedosos, que o tio contratara para levá-los de volta ao Castelo de Coverly!
Agora, só havia uma coisa a fazer... Assim que lorde Alain retornasse ao castelo, são e salvo, daquela perseguição aos supostos foras-da-lei, iria embora de Hawkswell. Porém não voltaria para Coverly.
Não seria fácil esquivar-se dos mercenários que vagavam pelos bosques de Hawkswell, à sua espera. Contudo, com fé e um pouco de sorte, acabaria chegando a Londres. Então, aproveitando-se do anonimato em que mergulhara, buscaria refúgio em algum convento.
A idéia de se tornar uma freira jamais a agradara; muito menos agora, que descobrira o que era o amor verdadeiro. Seu consolo era a certeza de que não causaria nenhum mal para aqueles que amava.
Depois de tomar essa decisão, Claire sentiu um grande alívio na alma. A tristeza permanecia; aliás, tinha certeza de que esse sentimento seria seu companheiro inseparável até o fim de seus dias. Porém as garras afiadas e insensíveis do monstro chamado remorso, finalmente a deixaram em paz.
Afastando-se um pouco de seus conflitos interiores, prestou mais atenção ao que acontecia ao seu redor. Em cada rosto, em cada gesto havia apenas inquietude e apreensão.
Até mesmo as paredes sólidas do castelo pareciam ter adquirido vida, compartilhando da expectativa de seus moradores, quanto à chegada da patrulha de lorde Alain. Enquanto Claire cruzava o grande pátio interno, o sentinela da torre norte gritou para a multidão que ali se aglomerava, à espera de notícias:
— Vejo um pequeno grupo saindo do bosque!
— É a patrulha de lorde Alain, Diccon? — Ewald questionou, do pátio, resumindo o sentimento de todos.
O sentinela apertou os olhos, fazendo um esforço sobre-humano para distinguir algum sinal conhecido em meio àqueles cavaleiros.
— Sim! É lorde Alain e nossos homens! Eles estão retornando! — Diccon anunciou, com a voz embargada de emoção.
Logo depois, o som inconfundível do chifre de guerra de Hawkswell soou ao longe, confirmando a visão do sentinela.
Claire permaneceu imóvel onde estava. Mesmo se quisesse, não conseguiria mover um músculo, devido à tensão nervosa.
— Estão todos com milorde? — foi a vez de Hertha indagar, erguendo a voz possante acima do burburinho que tomava conta do castelo.
Dessa vez, entretanto, a resposta não foi multo animadora.
— Lorde Alain está trazendo alguém em seu cavalo.
— Atravessado na sela? — Ewald replicou, esperançoso. — Talvez seja o corpo de um dos malfeitores!
— Não, milorde o carrega em seus braços — o sentinela corrigiu, com pesar. — Parece que está muito ferido, mas não consigo ver quem é...
— Oh! Deus! Tenha misericórdia! — Lyssa berrou, caindo de joelhos, com as mãos erguidas para o céu. — Que não seja Hugh! Que não seja Hugh!
Lágrimas escorreram pelo rosto de Claire ao testemunhar aquela cena comovente. A guerra era algo terrível que mutilava ou tirava a vida tanto dos nobres, quanto dos homens simples do povo. Será que algum dia o ser humano aprenderia a resolver suas diferenças de um modo mais pacífico, que não envolvesse derramamento de sangue?
Durante alguns instantes, frases como a de Lyssa ecoaram por todo o pátio, apenas alterando o nome do soldado. Junto com o choro das mulheres e as súplicas a Deus, ouviam-se também perguntas insistentes sobre a identidade do cavaleiro ferido. Todavia a patrulha ainda estava a uma distância considerável do castelo, de modo que o sentinela era incapaz de atender os apelos da multidão. A ansiedade e a angústia da espera foram crescendo vertiginosamente, até atingir níveis insuportáveis, que beiravam a histeria coletiva.
— É Verel, o escudeiro de lorde Alain! — o sentinela gritou, por fim, para alívio de alguns e sofrimento de outros. — Ele tem uma flecha ou pedaço de lança cravado bem no meio de sua barriga... Posso ver o sangue escorrer através da cota de malha.
Ao ouvir a informação, um gemido de desespero ecoou pelo pátio, em uníssono.
— Que Deus tenha piedade de nos! — Claire ouviu padre Gregory orar em latim. Virando-se na direção da voz, pôde vê-lo na porta da capela, começando a rezar um Pai-Nosso.
O resto do povo acudiu, aflito, para junto dos portões. a fim de receber seus valentes soldados. No meio do tumulto, Claire conseguiu divisar duas cabecinhas morenas, que corriam de um lado a outro do pátio.
Cheia de tenacidade, tentou interceptar as crianças, antes que pudessem presenciar mais uma cena triste e assustadora.
Novamente o chifre tocou e os portões da muralha externa foram abertos, ao mesmo tempo em que a ponte levadiça era baixada. Logo os homens, liderados por lorde Alain, entraram em Hawkswell, debaixo de saudações entusiásticas do povo do castelo e da cidadela ao seu redor.
De longe, parecia que Alain não estava ferido; no entanto, Claire precisava poupar seus pupilos de uma surpresa desagradável e dolorosa. Apertando o passo, conseguiu alcançar as crianças, antes que cruzassem os portões da muralha interna.
— Guerin! Peronelle! — gritou, conseguindo segurar-lhes pelos braços. — Seu pai está bem, mas o escudeiro Verel foi ferido. Preciso que me ajudem a socorrê-lo!
Antes que tivessem tempo de protestar, ela tomou fôlego e deu-lhes uma boa razão para obedecê-la:
— Corram para o quarto e preparem o máximo de ataduras que conseguirem. Não tardarei a ir buscá-las.
Graças a Deus, ambos a obedeceram de pronto, afastando-se rapidamente daquele palco de horrores. Seus rosto infantis mesclavam alívio, pelo retorno seguro do pai, sofrimento, pelo estado de Verel, e alegria, por serem úteis naquela hora de emergência.
Depois que as crianças partiram, Claire voltou toda sua atenção para Alain. Movida pelo desespero, atravessou uma verdadeira muralha humana até chegar bem perto de onde ele estava, montado em seu garanhão, ainda com Verel nos braços.
Os dois homens estavam cobertos de sangue, que escorria, feito cascata, pelas pernas do cavalo até chegar ao chão. Embora a ferida do escudeiro fosse bem visível. o sangue era tanto que mal dava para saber se aquela era a única fonte.
Jesus! Será que Alain também está ferido?, esse pensamento passou-lhe pela cabeça, provocando-lhe uma dor atroz no peito.
Ewald e sir Gautier foram ao encontro do barão para ajudá-lo a desmontar e socorrer o ferido.
— Devagar, pelo amor de Deus! — Alain ordenou, enquanto os outros homens tentavam tirar Verel de cima do cavalo. — Ele não pode suportar mais solavancos!
Realmente, o sentinela não exagerara ao descrever o estado de Verel. Uma flecha conseguira perfurar a armadura, atingindo em cheio seu abdômen, de onde escorria sangue em profusão. Seu corpo parecia pesado e inerte, como se a vida já o tivesse abandonado.
Assim que removeram o elmo, Claire pôde ver que o rosto do jovem tinha a expressão da morte... Havia perdido a consciência, estava excessivamente pálido e com os lábios roxos. Além disso, nenhum ruído, por mais leve que fosse, escapou-lhe da boca, quando sir Gautier e Ewald o tomaram dos braços de lorde Alain.
Desviando o olhar daquela visão tétrica, Claire concentrou-se em Alain. Precisava saber se ele estava ferido ou não!
Felizmente, ele não aparentava ter nenhum ferimento. ao menos, nada que fosse grave. Todavia saltou do cavalo como se todos os músculos de seu corpo doessem, devido à fadiga e ao esforço. Entregando o corcel a um cavalariço, retirou o elmo e sacudiu os cabelos negros, molhados de suor. Então seu olhar encontrou-se com o de Haesel e ambos permaneceram imóveis; suas almas pareciam em plena comunhão, como se não houvesse mais ninguém no pátio.
— Mal conseguimos avistar o bando, até que um dos patifes acertou Verel! — Alain contou a Haesel, atormentado pelas lembranças da batalha. — Ainda consegui revidar, cravando uma flecha na cabeça do maldito! Mas. agora, sinto que deveria tê-lo poupado para fazê-lo falar...
Ignorando as dezenas de olhares curiosos que acompanhavam os mínimos movimentos do casal, Claire aproximou-se dele para confortá-lo. Teria se jogado em seus braços, sem nenhum constrangimento, caso não tivesse sido interrompida pela voz grave de sir Gautier.
— Milorde, para onde devemos levá-lo? — o cavaleiro indagou, hesitante.
— Para os meus aposentos! — replicou, desviando o olhar de Haesel, como se despertasse de um sonho.
Saindo do meio da multidão, padre Gregory passou por Claire com uma agilidade espantosa para um homem tão corpulento.
— Mas, milorde... — manifestou-se, respeitoso. — Há muitos degraus até seus aposentos. Verel seria submetido a esforços demasiados; talvez perdesse mais sangue ainda.
Alain o encarou, meio perplexo, como se aquelas palavras não fizessem o menor sentido.
— Poderia levá-lo para meu quarto, fica bem mais próximo daqui — o padre explicou, cheio de lógica. — Além disso, é onde guardo todas os meus ungüentos e ervas medicinais. Após uma rápida reflexão, Alain assentiu com um gesto. Não havia tempo a perder.
Claire deveria ir ao encontro das crianças, ver como estavam. No entanto suas pernas teimaram em acompanhar lorde Alain. Quando deu por si, estava na porta do quarto do padre, observando sir Gautier e Ewald colocarem Verel na cama.
— Temos que fazê-lo beber um pouco desse suco — padre Gregory avisou, manipulando algumas de suas ervas com grande experiência. — Isso irá ajudá-lo a agüentar a dor, enquanto removemos a flecha.
— Não podemos retirá-la agora! Verel está muito fraco, não vai suportar! — Ewald protestou, com veemência.
Padre Gregory o fuzilou com os olhos.
— Se deixarmos a flecha por mais tempo em sua barriga, seguramente ele morrerá antes do amanhecer!
Diante da veracidade daquela afirmação, todos se calaram.
Livre para agir, o padre se entregou ao preparo daquela operação, enquanto Ewald e sir Gautier retiravam a armadura de Verel. Lorde Alain mantinha-se na cabeceira da cama, tentando inutilmente estancar o sangue com pedaços de tecido.
— Pronto! — o padre exclamou, levando uma caneca até a boca do doente. Com dificuldade, conseguiu fazê-lo beber mais da metade da mistura amarga. — Agora, temos que aguardar alguns instantes para que o remédio faça efeito.
— Ele vai sobreviver, padre? — Alain indagou, torturado pelo sofrimento do escudeiro. — Resta-nos alguma esperança ?
— Sempre há esperança, milorde. Devemos rezar para que Deus tenha compaixão desse rapaz.
Alain cerrou os punhos. irado com aquela resposta vaga.
— Diga-me a verdade, padre! O ferimento é mortal?
Padre Gregory respirou fundo, encarando a fúria do nobre com uma placidez invejável.
— Não há muita chance de sobrevivência; o ferimento é grave e ele perdeu muito sangue. Mas, como era muito saudável, ainda poderá levar alguns dias antes de morrer.
— Nesse caso, talvez deva ministrar-lhe a extrema unção. — Claire ouviu Alain sugerir, com voz fraca e abatida.
— Oh! Claro que sim! Vou buscar o Santíssimo na capela agora mesmo!
Juntamente com os outros três homens, ela aguardou. com o peito tomado de angústia, o retorno do sacerdote. Embora padre Gregory afirmasse que o escudeiro poderia agüentar mais alguns dias, temia que ele não sobrevivesse para receber os últimos sacramentos. Cada respiração ofegante de Verel parecia ser a derradeira...
No momento em que o padre retornou com os objetos sagrados, ironicamente, o rapaz apresentou uma discreta melhora. Piscou os olhos, recobrando parte da consciência, e seu ritmo respiratório estava mais regular.
— Poderiam me deixar a sós com o enfermo? — padre Gregory pediu, solene. — Não sei se Verel terá condições de se confessar; mas é meu dever tentar. E, como bem sabem, apenas eu estou autorizado por Deus para ouvir seus pecados.
— Verel não tem nenhum pecado escabroso para confessar, padre! — lorde Alain bradou, enfurecido. Todavia saiu do quarto, fazendo sinal para que os outros o acompanhassem.
Assim que a porta se fechou, cobriu o rosto com as mãos, num gesto de puro desespero e raiva.
— Tolo pomposo! — desabafou, em uma demonstração explícita de desagrado, diante dos procedimentos do novo padre do castelo. Então, recuperando o auto-controle, dirigiu-se para Claire, com inesperada rispidez: — Volte para junto das crianças.
Ela abriu a boca para protestar, alegando que poderia ser útil no tratamento de Verel. Graças aos seus conhecimentos de ervas, já estava habituada a cuidar dos soldados feridos do Castelo de Coverly, com grande sucesso, diga-se de passagem. Porém calou-se no último segundo. Não poderia fornecer-lhe uma explicação consistente, sem por em risco seu disfarce.
Ao perceber que fora muito rude, descontando em Haesel toda a raiva que sentia por aquela situação, Alain tentou se redimir. Tocou-lhe a face com a ponta dos dedos te disse, com voz aveludada:
— Por favor. O que está para acontecer não será nada agradável, e não quero que testemunhe tanto sofrimento. Além disso, Guerin e Peronelle devem estar aflitos e você possui um talento especial para confortá-los.
Pelo menos, em relação às crianças, ele estava certo. Por isso, ela se afastou, sem protestos.
Peronelle estava sentada em sua cama, mastigando um pedaço de bolo de mel, com gestos mecânicos. Guerin, por sua vez, permanecia em pé, defronte à janela, observando as estrelas. Assim que os dois perceberam a presença de Haesel, correram para ela, jogando-se em seus braços.
— Aonde está papai? — Peronelle exigiu saber; o pequeno rosto estava marcado por emoções que só deveriam molestar adultos, tais como, aflição e melancolia.
— Como está Verel? Padre Gregory conseguiu fazê-lo melhorar? — foi a pergunta ansiosa de Guerin, que sempre colocava o bem-estar dos outros antes de si mesmo.
Claire tomou fôlego, preparando-se para uma conversa difícil. Não poderia enganar as crianças sobre o real estado de Verel; ao mesmo tempo, também não desejava fazê-los sofrer ainda mais. Portanto teria que recorrer a todo seu tato em oratória para dizer a verdade, de forma suave e cuidadosa.
Ajoelhando-se, ficou da altura das crianças. Então começou a explicar:
— Seu pai e padre Gregory estão cuidando de Verel. Ficariam orgulhosos se vissem como ambos estão se esforçando para curá-lo! — Respirou fundo, para conter as lágrimas que já estavam escapando de seus olhos. — Mas vocês sabem... Ele está muito ferido...
Oh! Deus! Ao ver a dor estampada naqueles rostos infantis, teve um aperto no coração. Como queria prometer-lhes que Verel ficaria bom! Mas não tinha o direito de dar-lhes falsas esperanças... Afinal, as chances do escudeiro sobreviver eram muito escassas, e as crianças precisavam estar preparadas para essa perda.
— Como puderam atacar Verel? Ele é tão bondoso!
— Ninguém poderia tê-lo ferido! — Peronelle desabafou, em sua lógica infantil, caindo em um pranto desesperado.
Guerin também começou a protestar, embora lutasse para conter o choro.
— Não compreendo! Por que papai teve que sair do castelo com aquela patrulha? Ele não nos disse nada!
Claire envolveu as crianças em um abraço forte e protetor. Os três permaneceram enlaçados, compartilhando das mesmas dores e aflições por longos minutos.
Então, sentindo que deveria dizer-lhes algo, Claire se recompôs.
— Há homens muito malvados no mundo, crianças. Muitos deles são foras-da-lei, que vivem escondidos nas florestas, molestando pessoas inocentes.
Dois pares de olhos, ansiosos por mais informações, ficaram cravados no rosto de Claire.
— Um dos camponeses de Hawkswell foi atacado e morto por um desses bandos. Seu pai teve que correr para tentar capturá-los; por isso não teve tempo para lhes dar nenhuma explicação!
— E papai conseguiu apanhá-los? — o menino indagou.
— Milorde apanhou um deles e o puniu exemplarmente; contudo, antes disso, esse bandido conseguiu ferir Verel.
— Quero ver Verel! E papai! — Guerin gritou, afastando-se de Claire e da irmã, cujos olhos já estavam inchados de tanto chorar.
— Sinto muito, querido. Mas, no momento, isso não é possível — Claire retrucou, usando a dose certa de firmeza e ternura na voz. — Estão tratando do ferimento de Verel, e nossa presença ali só iria atrapalhar.
O menino fungou, enquanto duas lágrimas escaparam a rigidez de seu auto-controle, escorrendo por sua face. Então o sofrimento transformou-se em pura revolta e ódio, deixando o menino desfigurado.
— O que vamos fazer então, Haesel? Ficar sentados aqui, comendo bolo de mel, enquanto Verel está se esvaindo em sangue? — Franziu a testa, exalando ódio por todos os poros. — Queria ser adulto para ir atrás dos bandidos que fizeram isso!
Claire ficou gelada por presenciar aquela transformação. Jamais vira sentimentos tão mesquinhos e sórdidos no rosto puro e bondoso de Guerin. De maneira alguma poderia permitir que esse triste acidente abalasse a fé do menino de que sempre havia algo de bom em todo ser humano, até mesmo no mais cruel.
Mas, afinal de contas, o que poderia dizer ao menino? Não apenas entendia, como também compartilhava de sua revolta e de seu desejo de vingança; principalmente, depois de ver o que haviam feito àquela pobre camponesa, ultrajada e ferida com todos os requintes de crueldade!
Como se não bastasse tudo aquilo, o remorso voltava a torturá-la... Tinha certeza de que aqueles bandidos eram os mesmos homens que a escoltaram até Hawkswell.
Portanto, de alguma forma, sentia-se culpada pela morte do camponês, os ferimentos da mulher e de Verel.
Após alguns instantes de hesitação, orou a Deus para que a ajudasse a solucionar esse dilema. Acima de tudo. não podia deixar que os germes da maldade fossem plantados nos corações daquelas crianças!
— Meu querido, sem dúvida alguma, todos os malfeitores devem ser punidos — disse, ainda sem ter certeza dos argumentos que usaria. — Contudo não devemos nos esquecer de que, acima da justiça dos homens, está Deus, onipotente e glorioso! E ninguém consegue escapar do acerto de contas com Ele, o Pai de todos nós.
Sob o impacto daquelas palavras, Peronelle parou de chorar, fitando Claire, com uma tênue fagulha de esperança nos olhos escuros. Guerin, apesar de parecer mais calmo, ainda enfrentava violentos conflitos interiores.
— Quando Deus julgar adequado, esses criminosos pagarão por todo o mal que fizeram, acreditem! — Claire prosseguiu, repetindo as palavras que ecoavam por sua cabeça, sem saber de onde vinham. — Mas não devemos alimentar sentimentos de vingança, nem ficar felizes com a punição de ninguém! Ao contrário, devemos orar para que esses pobres pecadores recebam a misericórdia divina e, após pagarem seus pecados no purgatório, consigam alcançar a felicidade do céu!
Essas frases foram decisivas para banir, de uma vez por todas, o ódio do coração de Guerin.
Emocionado e com remorso, ele tornou a encarar Claire, com os mesmos olhos piedosos de sempre.
— Está certa, Haesel! Estou envergonhado de mim mesmo...
— Oh! Não, querido! Não se sinta mal com o que acabou de acontecer! — exclamou, ainda percebendo aquela inspiração divida fluir por seu corpo e alma até se transformar em palavras. — Somos seres humanos e estamos sujeitos a sentir amor, ódio, inveja e todos os outros sentimentos bons e maus, próprios da natureza humana!
— O que devemos fazer, então, Haesel? — Peronelle quis saber, sentindo-se confusa.
— Ser bom não é permitir que nos façam mal, nem deixar de punir aqueles que merecem castigo. Mas não devemos ficar alegres com isso! — explicou, perplexa com a profunda sabedoria do que acabara de dizer.
— Isso é muito complicado, Haesel! Parece até contraditório... — o menino protestou.
Por um momento, Claire não soube o que responder. De fato, a principio, aquilo parecia incoerente. Então, para sua surpresa, como em um passe de mágica, tudo fez sentido.
— Quando sentirmos que algo ruim está tentando fincar raízes no nosso coração, devemos lutar contra essa erva daninha que tenta se apoderar de nós! — esclareceu, enfática. — Caso contrário, não seremos muito diferentes dos bandidos e outros pecadores que condenamos.
Os três ficaram em silêncio por alguns instantes, refletindo sobre aquilo tudo, cada qual à sua maneira.
— Deus está triste comigo, não é? — Guerin retrucou. consternado. — Pensava que era caridoso... Mas, quando fui testado, fracassei...
— Ora, meu menino, está muito enganado! Como bom Pai, Deus sempre nos perdoa, quando estamos realmente arrependidos! — Claire afirmou, com segurança. — Além disso, as provas e os obstáculos da vida servem para que possamos aprender algo de bom, mesmo que seja perceber nossos pontos fracos. — Enquanto falava, sentiu que deveria aplicar esse raciocínio à sua própria situação.
— E isso não é ruim? — Peronelle voltou a indagar, ainda confusa.
— Claro que não! Ter consciência de nossas fraquezas é o primeiro passo para combatê-las! — Fez uma rápida análise de seus procedimentos nas últimas semanas, sorrindo com a sabedoria de quem já provara desse mesmo remédio amargo. — E, posso lhes garantir, enxergar nossos próprios defeitos exige muita coragem e força de vontade para nos modificar!
— Onde aprendeu tudo isso, Haesel? — o menino perguntou, atônito com a intensidade daquelas explicações. — Os padres nunca nos ensinaram essas coisas sobre Deus nas aulas de catecismo.
Ela encolheu os ombros, dando um sorriso maroto.
— Para falar a verdade, não sei! Falei o que estava em meu coração.
Os três sorriram juntos, sentindo-se de bem com a vida. Mas, essa tranqüilidade durou pouco... Logo a lembrança do escudeiro, à beira da morte, voltou a ocupar-lhes as mentes...
— Podemos ir até a capela, rezar por Verel? — Guerin sugeriu, com os olhos brilhando de esperança.
Claire estava relutante sobre tirar as crianças da segurança daquele quarto. Afinal, o resto do castelo vivia um verdadeiro alvoroço, com homens guardando armas, enquanto repetiam incansavelmente cada detalhe daquela excursão. Além disso, como a capela era ao lado dos aposentos do padre, temia que as crianças pudessem ouvir os gritos de Verel, quando a flecha fosse retirada de seu corpo.
— Lamento, mas não devemos sair desse quarto até amanhã — anunciou, vendo o desapontamento no rosto das crianças. — Mas podemos rezar por Verel aqui mesmo.
Mais uma vez, a menina fez questão de perguntar:
— E será igual?
— Claro que sim! — Abriu um largo sorriso. — Desde que rezemos com o coração, não importa onde estivermos. Nossas preces sempre chegarão até Deus! Isso não é maravilhoso?
Os irmãos concordaram, voltando a demonstrar esperança.
Minutos mais tarde, os três rezavam com todo o fervor pela recuperação de Verel.
Alain jogou-se pesadamente em sua poltrona, diante da lareira da sala de troféus.
Ainda vestia partes da armadura e a cota de malha, sujas de sangue e lama, que usara na perseguição dos foras-da-lei. Sentia-se exaurido, como se toda a força tivesse abandonado seu corpo de uma só vez; erguer uma simples taça parecia-lhe o mais severo dos exercícios.
— Está exausto, milorde... — a voz melodiosa de Haesel ecoou pela sala vazia. — Seria um sonho?
Abrindo os olhos, viu Haesel em carne e osso, na entrada da sala. Mais atrás, próximos da escadaria, estavam Guerin e Peronelle.
— Vou buscar-lhe alguma comida, milorde. Tem alguma preferência? — ela tornou a falar, tomando as rédeas da situação.
— Não, Haesel! — retrucou, antes que ela deixasse a sala. — Não tenho o mínimo apetite. Só preciso de alguém que me ajude a tirar essa armadura... — Sua voz foi diminuindo até desaparecer. Essa era uma das obrigações de Verel...
— Faço questão de auxiliá-lo, milorde — sir Gautier anunciou, com seu vozeirão potente, ao entrar na sala. Mostrando eficiência, chamou um dos servos que passava pela porta, ordenando: — Leve água quente e toalhas para os aposentos de lorde Alain.
Com grande sacrifício, Alain ergueu-se da poltrona e, ajudado por sir Gautier, seguiu para seu quarto. Ao passar pelas crianças, limitou-se a fitá-las com carinho. Não estava em condições de conversar com ninguém, muito menos com seus adoráveis filhos. Sentia-se esgotado física e emocionalmente.
— Milorde! — Haesel ousou chamá-lo, calando-se, de imediato, ao receber um olhar furioso de sir Gautier. Porém, antes que o cavaleiro a repreendesse verbalmente a ousadia, o próprio lorde Alain voltou-se para ela, fazendo sinal para que prosseguisse.
— Como está Verel? — indagou, com receio de que a resposta fosse desagradável.
— Ainda respira... — limitou-se a dizer, vendo o abatimento no rosto dos filhos. — A flecha foi retirada e padre Gregory está aplicando vários tipos de ungüentos para tentar estancar a hemorragia.
— Ele está consciente?
— Não, caiu em um sono profundo, tão logo a flecha foi arrancada de seus abdômen.
Em seguida, continuou a galgar os degraus da imensa escadaria, mostrando a Haesel que a conversa estava encerrada.
Com o coração apertado, ela o viu desaparecer no andar superior, abraçada às crianças, que recomeçaram a chorar. Queria muito encontrar uma maneira de fazê-lo repousar e comer um pouco, mas, no momento, sabia que essa batalha já estava perdida. Os deveres do senhor de Hawkswell estavam à frente de tudo.
Levou muito tempo até que Claire conseguisse acalmar as crianças outra vez e fazê-las dormir. Quando, enfim, teve certeza de que estavam em sono profundo, levantou-se de seu catre. Pé ante pé, para não despertá-los, vestiu um manto de lã e saiu do quarto.
Agonia e desespero queimavam em seu peito, chegando a causar-lhe falta de ar. Só conseguiria um pouco de paz, depois de saber se lorde Alain estava bem.
Com esse pensamento em mente, esgueirou-se até o quarto dele, abrindo a porta com o máximo de delicadeza para não provocar ruídos. Lá dentro, levou alguns segundos até que seus olhos se acostumassem com a penumbra, pois apenas uma vela, bastante afastada da cama, ousava desafiar o reinado absoluto da escuridão. Por fim, conseguiu vislumbrar um vulto adormecido, sobre a cama.
Minha nossa! Aquilo bastou para excitar sua imaginação fértil... Em um estalar de dedos, estava bem longe dali, recordando a tarde maravilhosa que haviam desfrutado juntos no pomar. Os beijos ardentes, as carícias trocadas...
Mal posso esperar até que anoiteça..., Alain havia sussurrado em seu ouvido, sedutoramente.
Com certeza, se a rotina do castelo não tivesse sido atropelada pelo ataque e a perseguição daqueles bandidos, à essa hora, estaria deitada com ele nessa mesma cama! Deu um sorriso travesso, corando diante do erotismo das imagens que lhe vinham à cabeça...
Não demorou muito e a moralidade freou seus devaneios apaixonados, chamando-lhe a atenção! Como podia admitir a hipótese de fazer amor com um homem que não era seu marido? E pior, disfarçada de serva como estava, só poderia almejar tornar-se sua concubina! Era degradante!
Respirou fundo, assustada, ao se dar conta do que sua presença ali representava! Meu Deus! Onde estava com a cabeça para, deliberadamente, invadir o quarto de um homem, no meio da noite? E pior, não se tratava de qualquer homem, mas sim do senhor daquele castelo! Já estava prestes a sair, quando atentou para um barulho bastante curioso, vindo da cama. Então teve que tampar a boca para não rir! Não poderia haver descoberta mais hilária e anti-romântica do que aquela: lorde Alain roncava!
Distraída, teve ter deixado escapar alguma risada, pois, ele se moveu na cama.
— Quem está aí? — a pergunta soou, com o efeito de chicotada nos nervos de Claire.
E agora? Como iria se explicar? Em pânico, permaneceu imóvel e sem fala.
Ele tornou a repetir a pergunta, sentando-se na borda da imensa cama.
— Sou... Eu... Milorde... Haesel — gaguejou, sentindo o coração querer sair-lhe pela boca.
— Haesel?! — ele repetiu, tão surpreso quanto ela. — O que faz aqui, mulher?
Ela quase caiu de costas, de susto e de vergonha, ao perceber, finalmente, que aquele homem não era lorde Alain. Quem estava deitado, roncando, na cama do barão de Hawkswell era o roliço padre Gregory!
— Vim... ver se milorde estava bem... — Na falta de um bom pretexto, respondeu com a verdade. Gostaria que um buraco se abrisse debaixo de seus pés, livrando-a daquela situação embaraçosa.
O homem apanhou a vela e aproximou-se de Claire, que tremia como vara verde.
— No meio da noite?
Sacudiu os ombros, constrangida. Então, de súbito, inverteu as posições, passando de caça à caçadora...
— E o senhor? O que está fazendo aqui, no quarto de lorde Alain?
Teve a impressão de captar um brilho diabólico nos olhos do padre; mas, se isso de fato ocorreu, foi muito passageiro. Logo, o bom homem exibiu a mesma expressão amável de costume. Talvez tudo não tivesse passado de uma ilusão de ótica; afinal, estava meio escuro... Mesmo assim, Claire ficou intrigada.
— É claro que era minha obrigação passar a noite ao lado do moribundo. — começou a explicar, colocando-se na defensiva. — Mas lorde Alain insistiu tanto para que eu viesse para cá e repousasse um pouco, que acabei cedendo à sua vontade.
— Milorde está tomando conta de Verel?! — ouviu-se dizer, estupefata. Pobre Alain! Ele estava exausto, precisava descansar, antes que acabasse desmaiando de fadiga e inanição!
— Sim. Milorde sente-se culpado pelo acidente de Verel. Por isso não o contrariei. — Uniu as mãos, em uma prece silenciosa. — Só Deus sabe, se o escudeiro estará vivo ao amanhecer.
Os dois ficaram quietos por algum tempo, meditando.
— O que veio fazer aqui, minha filha? — ele quebrou o silêncio, retornando àquele assunto desagradável.
— Já lhe disse, padre. Estava preocupada com milorde... Ele não comeu nada desde que a patrulha retornou, por isso... — Calou-se, tendo uma idéia excelente, capaz de resolver dois problemas de uma só vez. — Ora, vou levar alguma comida quente para lorde Alain, lá nos seus aposentos, padre Gregory — Minha filha, seria mais prudente que voltasse para o quarto das crianças — ele argumentou em vão, pois Claire já havia partido, rápida como um tufão.
Decidida a executar aquele plano, muniu-se de um castiçal e foi direto para a cozinha. Por sorte, pôde contar com a ajuda valiosa de Peter, que estava dormindo em um dos cantos, perto da lareira. Juntos, esquentaram uma porção de ensopado de coelho, fizeram um chá de ervas digestivas e, depois, arrumaram tudo dentro de uma cesta. É claro que Claire acrescentou um pedaço de pão, queijo e uma garrafa de hipocraz, o vinho favorito de milorde.
Escoltada por Peter, Claire atravessou o imenso pátio interno, o qual, à essa hora da noite, ganhava um aspecto desolado e assustador. Finalmente, quando chegou ao seu destino, a reação de Alain agiu como um balde de água fria em seus ânimos.
— Haesel?! — Alain exclamou, com uma mescla de fúria e surpresa, ao vê-la parada na soleira da porta. — O que faz aqui?
Não esperava ser recebida com festa, nem com elogios ou agradecimentos pela iniciativa; mas ficou terrivelmente ofendida com os modos ríspidos dele. Não eram as palavras que a magoavam, mas o jeito como ele as dissera.
Deixando vir à tona seu orgulho de nobre, simplesmente ignorou a presença de lorde Alain. Concentrou toda sua atenção no garoto que, ainda sonolento, mal podia compreender o que estava se passando ali.
— Obrigada por me acompanhar, Peter. — Pegou a cesta de suas mãos. — Pode voltar a dormir agora.
— Não quer que eu a espere, Haesel? — o menino perguntou, cheio de boa vontade.
— Não se preocupe, Peter. Posso me arranjar sozinha. — Sorriu-lhe agradecida — Tenha uma boa noite.
Apenas quando o garoto se foi, fechando a porta atrás de si, ela se dignou a fitar lorde Alain. À essa altura, ele estava de queixo caído com a petulância e iniciativa daquela simples serva; embora, no íntimo, sentisse que sua admiração por ela havia aumentado.
Sem dar nenhuma explicação, Claire levou a cesta para perto de uma mesa, onde começou a dispor as guloseimas que trouxera.
— Verel não pode comer nada, Haesel. Ele continua inconsciente — foi seu único comentário até aquele momento. Sua perplexidade o impedia de raciocinar direito.
Essa mulher não era apenas linda, meiga e sedutora era uma autêntica caixa de surpresas!
— Oh! Claro que não, milorde! — exclamou, lutando para aparentar calma. No entanto um toque de impaciência podia ser notado em sua voz. — Isso é para o senhor.
— Não tenho fome!
— Eu sei... Mas precisa fazê-lo! — afirmou, evitando encarar Alain para que ele não notasse toda a impetuosidade de sua expressão. — Se pretende ter forças para cuidar de Verel, o mínimo que tem a fazer é se alimentar! Caso contrário, acabará adoecendo!
Aquele argumento pareceu ter efeito sobre a teimosia de Alain. Mesmo hesitante, ele se aproximou, aos poucos, da mesa, inalando o aroma delicioso dos petiscos.
— Talvez esteja com a razão...
— Certamente que sim, milorde! — Mordeu a língua, percebendo que esse comentário fora muito pretensioso. Logo, apressou-se para consertar o estrago... — A segurança de muitas pessoas aqui em Hawkswell está em suas mãos. Portanto deve manter-se forte e saudável para enfrentar quaisquer opositores. E se as forças do rei Estevão resolverem sitiar o castelo, por exemplo?
— Todas essas responsabilidades pesam sobre meus ombros, Haesel. Mas, no momento, um de meus vassalos precisa muito de mim. — Fez uma pausa; então, desabafou:
— Tenho que cuidar de Verel, minha consciência exige isso!
— Não deve se culpar pelo que aconteceu a ele, milorde. Por mais triste que pareça, Verel estava se preparando para ser um cavaleiro. Logo um acidente como esse jamais poderia ser descartado.
— Ele ainda nem foi sagrado cavaleiro... Talvez nunca o seja! E tudo por minha culpa! — Sem perceber, erguera o tom de voz, o que fez com que a última frase ficasse ecoando pelo quarto durante alguns segundos.
Diante do mal-estar que tomou conta do recinto, Alain encarou Haesel, com olhos febris e alucinados.
— Aquela flecha era para ter me atingido, Haesel! — revelou, em um rompante de emoção. — Verel percebeu o ataque e, em uma fração de segundo, colocou-se na minha frente.
Claire teve que se apoiar na cadeira para não ir ao chão. As pernas mal tinham forças para mantê-la de pé, de tanto que tremiam. Por experiência própria, sabia que o remorso era capaz de destruir uma pessoa; portanto, de forma alguma, queria que ele continuasse sofrendo daquela maneira. Tinha que fazer algo para reanimá-lo!
— Compreendo sua dor, milorde. Mas minhas palavras continuam valendo. Deve pensar em seus outros súditos — ponderou. Desse momento em diante, já não queria mais saber se uma serva como Haesel falaria coisas desse tipo ou não! Só pensava em ajudar Alain!
Ele olhou de relance para a comida, dividido entre a idéia de se auto-penitenciar, ou ceder às necessidades do corpo. Hesitante, acabou cortando uma fatia bem fina de queijo.
— Ora, milorde! — exclamou, fingindo estar ofendida. — Experimente também o ensopado. A pobre cozinheira saiu da cama no meio da noite, só para poder esquentar isso para o senhor!
Devido àquela mentira, Claire fez um grande esforço para não corar; se bem que, no fundo, não estava dizendo nenhuma inverdade. Marie era muito devotada ao seu amo e, caso soubesse de suas intenções, teria feito questão de preparar algo para lorde Alain pessoalmente!
— Está certo... Mas vou apenas provar! — assentiu, fazendo aquela concessão em respeito à sua boa e fiel cozinheira.
Claire sentou-se respeitosamente do outro lado da mesa. Tinha a intenção de entretê-lo com uma boa conversa, de modo que ele não percebesse o quanto estava comendo.
— Como estão as crianças? — quis saber, bebendo um cálice de vinho. — Nem pude lhes dar atenção, no meio de toda essa balbúrdia...
— Estão preocupados com Verel, assim como todos no castelo. Mas rezamos bastante e acho que as preces também os confortaram. Os dois acabaram adormecendo, milorde.
— Já lhe disse para me chamar apenas de Alain, quando estivermos a sós, Haesel — ele a corrigiu, terno.
— Desculpe-me, Alain — repetiu o nome, com um sorriso encantador nos lábios. — É o hábito.
Seu plano estava dando certo. Sem perceber, ele já estava devorando todo o ensopado. Em sua busca por assuntos, acabou perguntando sobre o escudeiro. Afinal, as preocupações de Alain estavam totalmente voltadas para o jovem ferido.
— De onde Verel veio?
Naquela época, qualquer pessoa do povo sabia que os filhos dos nobres eram enviados para outros feudos, para serem treinados como cavaleiros. Era uma preparação árdua e longa que obedecia uma rígida ordem hierárquica. Primeiramente, o jovem ocupava o cargo de pajem; após alguns anos, poderia vir a se tornar escudeiro. Por fim, quando o nobre responsável por sua educação o julgasse digno de pertencer à Ordem da Cavalaria, tornava-se um de seus membros. Infelizmente, muitos jovens não concluíam essa jornada, perdendo a vida antes de alcançar seus objetivos... Só esperava que esse não fosse o caso de Verel.
— Ele é de Shropshire.
Claire não esperava uma resposta tão curta, de modo que teve que insistir no assunto, para não deixar que a conversa se encerrasse ali.
— Há quanto tempo ele está aqui em Hawkswell?
Entre um bocado e outro de comida, ele respondeu:
— Verel veio para esse castelo quando meu pai ainda era o barão. Como esse título já me pertence há mais de sete anos, creio que está conosco há uns sete ou oito anos. — Deu um longo suspiro, como se sustentasse sobre os ombros o peso do mundo. — Eu o promovi a escudeiro ainda no ano passado...
Não podia deixar que ele pensasse no quanto Verel era jovem, por isso, tratou de desviar esse ponto, com habilidade.
— Ele é muito gentil.
— Oh, sim! Júlia costumava dizer que ele iria despedaçar muitos corações na corte.
Naturalmente, Alain não poderia avaliar o quanto a simples menção do nome de Júlia a magoava. Porém, em vez de se entristecer, deveria ficar feliz, pois ele não tocava no nome da esposa com facilidade. Logo esse era um sinal de que confiava nela.
E pensar que antes de conhecê-lo, o julgara culpado ela infelicidade e morte da amiga! Pobre Júlia, deixara que a morte a levasse, por falta de alguém que lhe desse bons conselhos!
— Hei! Sua garota arteira! Acabei comendo a travessa toda, enquanto conversávamos! — ele exclamou, de súbito, percebendo que fora ludibriado.
Ela riu, sacudindo os ombros com ar vitorioso.
— Exatamente, milorde! E agora, tenho outra sugestão a lhe fazer... Mas, dessa vez, não haverá nenhum truque. Eu juro!
Essa mulher era um verdadeiro mistério! Ela falava com a desenvoltura de uma dama, embora jamais deixasse de ser respeitosa como uma serva...
— Vamos lá, o que tem a me dizer?
— Por que não dorme algumas horas, milorde? Eu mesma posso tomar conta de Verel. — Diante da expressão incrédula de Alain, acrescentou: — Também sei manipular algumas ervas e já cuidei de muitos feridos no lugar onde morava.
— Você é muito bondosa, Haesel — retrucou, enternecido com a oferta. — Mas, conforme sua previsão, comer algo restabeleceu minhas forças. Agora, já tenho condições de enfrentar o resto da noite, velando por Verel. Além disso, ficarei mais tranqüilo, sabendo que estará com meus filhos, caso eles acordem assustados.
Diante desses argumentos, não mais havia o que insistir.
— Como quiser, milorde. — Levantando-se, pegou o castiçal que deixara sobre um baú, perto da porta.
— Gostaria que eu a acompanhasse até o salão principal? O pátio fica muito escuro à essa hora.
Estava louca para dizer um "sim". Queria muito a companhia dele, mesmo que fosse apenas para atravessar o pátio! Porém não seria justo tirá-lo de perto de um doente, apenas para satisfazer seus desejos egoístas.
Com dor no coração, retrucou:
— Não se preocupe, Alain. Estarei bem, não tenho medo do escuro. — Antes de sair, prometeu: — Voltarei para visitar o enfermo, assim que as crianças forem para as aulas.
— Obrigado, Haesel.
Aquele agradecimento sincero ecoou por sua cabeça, como se fosse a mais bela das músicas, enquanto caminhava pela noite fria.
Hugh le Gros estava de guarda na muralha naquela noite. Por isso vira com precisão, quando Haesel e Peter saíram da cozinha e se dirigiram para os aposentos do padre. Pouco depois, observara que o menino fizera o caminho de volta, sem sua bela acompanhante.
Malicioso, ficara a imaginar se a sensual e inatingível moça de cabelos loiros passaria a noite nos braços de Lorde Alain, sob o pretexto de ajudá-lo a cuidar de Verel. Afinal, também era de seu conhecimento que padre Gregory fora dormir em outra parte do castelo.
De repente, para sua surpresa, eis que surge Haesel no pátio, andando apressada. Cedendo aos seus impulsos mais primitivos, Hugh deixou seu posto, na muralha, e correu para interceptar aquela mulher.
— Até que enfim, você será minha! — disse, enfático, agarrando-a pela cintura.
Ainda zonza, por aquela abordagem violenta e insólita, Claire levou alguns segundos para compreender o que estava acontecendo. Logo em seguida, começou a se debater, tentando desesperadamente se libertar de seu agressor com chutes e tapas.
Sua reação foi inútil. Perto daquele homem corpulento, sua força poderia ser comparada a de uma formiga diante de um touro. Além do mais, isso só conseguiu excitá-lo, pois ele começou a rir com a mesma vulgaridade de Gilda.
— Hugh le Gros! — bradou, reconhecendo o infame. — O que pensa que está fazendo, seu verme?! Solte-me agora mesmo!
— Quem é você para me dar ordens? Não passa de uma desconhecida, errante! — replicou, empurrando-a para um cubículo, debaixo da torre norte. — Aqui dentro, ninguém irá ouvir suas lamúrias, enquanto eu tomo posse do que quero.
Como um animal acuado, Claire olhou ao redor, em busca de algo que pudesse ajudá-la a escapar do ataque daquele homem. Para piorar sua situação, a sala estava completamente vazia; não havia nem mesmo uma pedra no chão, que pudesse servir-lhe de arma!
Não demorou muito, ele partiu para uma segunda investida, tentando arrancar-lhe a saia a todo custo.
Decidida a lutar contra aquele homem odioso até a morte, se fosse preciso, cravou as unhas no rosto dele com toda a força que conseguiu reunir.
Hugh urrou de dor, arremessando Haesel contra a parede.
— Poderíamos ter nos divertido muito juntos... Mas, você estragou tudo. — Seu olhar tinha um brilho demoníaco. Passando a mão pelo sangue que escorria do rosto, prometeu: — Quando eu terminar, vai se arrepender de ter nascido!
Gelada de pavor, Claire viu aquele homem se aproximando, sentindo que não poderia fazer nada para impedi-lo. Então ele se deitou sobre seu corpo frágil, lutando para imobilizá-la, tarefa das mais difíceis, já que ela se debatia com uma fúria selvagem.
— O que está acontecendo aqui? — uma voz máscula e imponente ecoou pelo cubículo, em francês.
Com a vista ofuscada pela tocha trazida pelo recém-chegado, tanto Claire, quanto Le Gros ficaram imóveis por alguns instantes, tentando desvendar sua identidade.
Oh, Deus! Aquele homem iria salvá-la daquele bruto ou simplesmente se contentaria em ser o segundo, naquele ataque desumano?
— Já disse! O que está acontecendo aqui? Responda-me, homem! — o desconhecido tornou a perguntar.
Le Gros levantou-se, ainda segurando os braços de Claire.
— Parece que é óbvio, senhor... Estou tentando fazer sexo com essa mulher!
— Não me parece que ela esteja de acordo! — o homem afirmou, atento à expressão de pânico no rosto de Claire.
Le Gros balançou os ombros, com desprezo.
— E daí? Ela não passa de uma serva mesmo...
— Solte a moça imediatamente!
— Não dou a mínima importância para sua opinião! — Hugh rosnou, entre-dentes. — Aliás, se quiser, também pode se divertir com a garota...
Com um movimento rápido, o outro agarrou o pescoço de Le Gros, obrigando-o a soltar a moça. Então deu-lhe alguns socos e pontapés, mais do que merecidos, e o jogou perto da porta.
Como se ainda fosse possível, Claire sentiu o sangue ficar ainda mais gelado ao reconhecer seu defensor... Era Brys de Balleroy!
Levantando-se com dificuldade, Hugh encarou o oponente, com a língua afiada e cheia de insolência. Parecia disposto a enfrentar sir Brys também...
— Pode ser um cavaleiro, mas não é meu senhor. Portanto não lhe devo obediência.
Sem demonstrar medo, De Balleroy respondeu àquela provocação com mais um soco.
— Não sou o barão de Hawkswell; todavia ele me incumbiu de cuidar da vigilância das muralhas essa noite, enquanto trata de Verel. — Sua voz era fria como a lâmina de uma espada. — Agora, volte para seu posto, verme! Mas tenha a certeza de que relatarei o que tentou fazer aqui para lorde Alain com riqueza de detalhes!
Suando frio, Hugh retirou-se. Antes, porém, lançou um olhar de ódio e rancor para Claire. Sabia que lorde Alain não tolerava esse tipo de ataque e costumava ser severo nas punições desses crimes.
De Balleroy acompanhou a partida de Hugh com os olhos, pronto a desferir-lhe um golpe de espada, se ele ainda tentasse reagir contra sua ordem. Só depois que o tratante desapareceu daquela saia, virou-se para a moça, ainda caída no chão.
— Está bem? — perguntou, em inglês, estendendo-lhe a mão. Contudo, assim que a luz iluminou o rosto da moça, Brys de Balleroy ficou pálido, como se uma flecha o tivesse atingido. — Oh, Deus! É você, lady Claire?
Não havia como mentir. O brilho de convicção nos olhos de Brys de Balleroy demonstrava que ele não tinha dúvidas de que estava diante de lady Claire de Coverly!
— Obrigada por me salvar, sir Brys — ela agradeceu, em francês fluente. — Não sabia que permanecera no castelo, após a perseguição...
Endireitando os ombros e erguendo o pescoço, Claire tentou aparentar o mínimo de dignidade antes que a conversa enveredasse por caminhos tortuosos e inevitáveis...
O motivo de estar em Hawkswell, disfarçada de serva inglesa, por exemplo!
— Achei que seria mais prudente adiar minha partida, para ver se lorde Alain precisaria de mais alguma ajuda... — respondeu, ainda atordoado com a descoberta. — Mas... Mas, por todos os santos, lady Claire! O que estava acontecendo aqui? Aquele homem estava lhe fazendo a corte?
— Ora, aquele bruto tentou me estuprar! — A indignação tomou conta de seu semblante. — Como pôde pensar em outra coisa, mesmo que fosse por um instante sequer?
— Peço-lhe minhas desculpas, milady... E que tudo está me parecendo tão insólito e confuso que... — Não conseguiu terminar a frase. Seu cérebro trabalhava freneticamente, tentando encaixar todas as peças daquele complicado quebra-cabeça, mas seus esforços pareciam inúteis.
Ela esperou pacientemente até que Brys recomeçasse o diálogo, sustentando o porte orgulhoso e repetindo para si mesma que manteria a dignidade até o fim.
— A noite passada, pensei ver uma mulher muito parecida com milady, sentada na mesa dos servos, junto com os filhos de lorde Alain... — ele quebrou o silêncio, recapitulando os acontecimentos em voz alta. — Achei a semelhança incrível, mas não dei muita atenção ao fato. Afinal, o que lady Claire de Coverly estaria fazendo aqui em Hawkswell, fingindo ser uma serva? Seu marido é um dos mais ferrenhos seguidores de Estevão...
— Era... — corrigiu, tremendo dos pés a cabeça. — Haimo morreu há quase um ano.
— Que sua alma descanse em paz. — Sua expressão de desprezo contradizia o teor de suas palavras. — Mesmo assim, milady, o que está fazendo aqui? — Tocou de leve a manga do manto grosseiro de Claire, como se não acreditasse em seus próprios olhos. — E vestida dessa forma.
— Eu... Não posso lhe dizer... — balbuciou, mordendo os lábios para não ceder à pressão das lágrimas que ameaçam dominá-la. Meu Deus! Não poderia encarar Alain, quando Brys revelasse sua verdadeira identidade!
— Compreendo, milady! — Sua voz adquiriu um tom áspero e cruel. — É uma espiã de Estevão! Infiltrou-se no Castelo de Hawkswell para atraiçoar lorde Alain, meu grande amigo e aliado da imperatriz Matilde!
— Não é verdade! Imploro que acredite em mim, sir Brys! — gritou, com veemência. É claro que sua missão era muito pior do que espionar, contudo isso não importava mais. Afinal, já havia decidido partir de Hawkswell, sem cumprir as exigências do tio.
Brys de Balleroy não se deixou convencer com tanta facilidade. Continuou a fitá-la, cheio de suspeita.
— Eu juro que não pretendo causar nenhum mal ao senhor de Hawkswell! — ela insistiu, com olhar suplicante.
— Jura pelo crucifixo? — indagou, tirando o objeto sagrado de dentro da cota de malha.
Virgem Santa! Agora, não havia mais nenhum meio de retroceder. Com coragem, beijou o crucifixo e disse:
— Juro pela cruz de Jesus que não causarei nenhum mal a lorde Alain de Hawkswell, nem a nenhum de seus vassalos.
Aquele gesto simples e, ao mesmo tempo, grandioso pareceu satisfazer o cavaleiro. Sua voz tornou-se mais suave, quase terna, porém ele a brindou com uma chuva de perguntas:
— Está se escondendo de alguém, então? Por que está se fazendo passar por uma serva inglesa? Será que sua família pretende arranjar-lhe um marido que despreza?
Bem, ao menos, a última pergunta correspondia à verdade. Portanto Claire assentiu com um gesto de cabeça, sem nenhum remorso.
— Querem que eu me case com um homem tão detestável e cruel quanto Haimo!
Brys arregalou os olhos verdes, simpatizando com a causa da moça.
— Devo admitir que era revoltante ver uma moça tão distinta e meiga casada com alguém tão mau quanto Haimo. Teve muita sorte por ter se livrado dele, milady. E não a culpo por tentar fugir de outro matrimônio como aquele.
— Obrigada por me compreender, sir Brys — agradeceu, sincera. Então, lembrando-se de suas próprias suspeitas sobre a lealdade do cavaleiro à causa de Matilde, resolveu esclarecer o assunto: — Mas você também é um dos homens de Estevão, não é? Veio até Hawkswell para espionar lorde Alain?
Ele a fitou, indignado e furioso, como se tivesse recebido a pior ofensa.
— Não me olhe desse modo, sir Brys! Minha pergunta é muito justa! — exclamou, com seu jeito impetuoso. — Esteve presente à coroação de Estevão, onde, aliás, fomos apresentados!
Ele acabou se descontraindo, conquistado pelas maneiras cativantes daquela mulher. Ela sabia ser meiga ou enérgica, quando necessário, alternando esses momentos tão contraditórios com o máximo de espontaneidade. Sem dúvida, lady Claire de Coverly era muito especial!
— Tem razão, sua pergunta é mais do que justa, milady. Mas não sou um dos homens de Estevão. Assim como Alain, sou leal à imperatriz. — Vendo ainda sinais de dúvida no rosto de Claire, esclareceu: — Na verdade, quando me viu na coroação, estava espionando para Matilde.
— Jura isso pela cruz?
Sem hesitação, ele beijou o crucifixo que trazia pendurado no peito.
— Juro pela cruz que não pretendo fazer mal a um fio de cabelo que seja de lorde Alain ou de qualquer outra pessoa aqui de Hawkswell! Excluindo aquele malfeitor que tentou atacá-la...
Os dois trocaram olhares de cumplicidade, satisfeitos com os juramentos mútuos.
— Pode dizer a verdade a lorde Alain sobre sua origem, milady! — Brys exclamou, de súbito, tentando convencer Claire a acabar com aquele disfarce. — Ele irá protegê-la. Eu lhe prometo! Não pode mais continuar fingindo que é uma serva; é ultrajante!
Ela tentou sorrir, mas sua fisionomia ficou ainda mais triste.
— Sei que ele me protegeria, sir Brys... Mas há razões muito fortes que não me permitem acabar com essa farsa. Acredite em mim! Não causarei mal a ninguém, contudo não posso dizer quem sou a lorde Alain! — Claire o fitou. implorando-lhe ajuda. — Por favor, prometa-me que não lhe dirá nada!
Ele levou algum tempo para se decidir, sem saber qual o caminho mais justo a tomar. Por fim, acabou cedendo às súplicas comoventes de Claire. Qualquer que fosse o motivo que a trouxera a Hawkswell, via sinceridade naqueles belos e profundos olhos azuis.
— Está bem, milady. Guardarei segredo sobre sua identidade. Mas pretende passar o resto de sua vida aqui, como ama das crianças? — Meneou a cabeça, inconformado. — Jesus! Alain acredita que você é uma serva inglesa!
Claire desviou o olhar, enxugando discretamente duas lágrimas que rolaram por sua face.
— Não ficarei muito tempo aqui... Pretendo partir em breve.
— Nesse caso, está tudo bem. — Arqueando as sobrancelhas, com um certo toque gentil, ele continuou: — Devo partir amanhã, pois já estou um dia atrasado, devido àqueles foras-da-lei. Mas estarei de volta até o fim da semana. Se aceitar minha ajuda, farei questão de levá-la aonde quiser, milady!
Sentindo que não havia segundas intenções naquela oferta, apenas o desejo sincero de auxiliá-la, sem esperar nada em troca, ela finalmente conseguiu sorrir.
— Obrigada novamente, sir Brys. Contudo, devido ao ferimento de Verel, devo adiar minha partida. Não seria justo abandonar lorde Alain e as crianças em um momento difícil como esse!
— Entendo seus motivos e fico feliz ao ver que também se preocupa com Alain. Sabe, éramos como irmãos no passado...
Meio envergonhada, Claire acabou confessando:
— Não vai acreditar, mas tentei alertá-lo sobre sua presença na corte de Estevão! Achei que fosse um espião!
Enquanto ambos riam, as últimas palavras de Brys continuaram a ecoar por sua cabeça. Então, decidida, indagou:
— O que quis dizer com "éramos como irmãos no passado"? Por acaso, brigaram?
— Bem, não foi exatamente uma briga... — Olhava para os lados, evasivo.
— Então, o que aconteceu para afastá-los?
Vendo que não conseguiria escapar das perguntas incisivas de Claire, resolveu satisfazer-lhe a curiosidade. Ao menos, em parte...
— Em pleno furor da adolescência, acabamos disputando as atenções de uma mesma mulher. — Passou as mãos pelo cabelo ruivo, com gestos nervosos. — Que tolice! Hoje ela não significa nada para nenhum de nós. Embora nossa amizade tenha sobrevivido àquela provação, nunca mais foi como antes... Mas já é muito tarde, lady Claire.
— Haesel! — replicou, com energia. — Por favor, precisa tomar bastante cuidado para não me chamar por meu verdadeiro nome.
— Ficarei atento, Haesel! — Beijou-lhe a mão, com um gesto galante. — Partirei com o nascer do sol e espero que Deus a proteja.
— Só posso agradecer-lhe mais uma vez e dizer que o incluirei em minhas preces.
Brys de Balleroy deu um sorriso radiante. Bem-humorado, avisou:
— Agora vou escoltá-la de volta ao quarto das crianças. para evitar que mais algum abusado tente agarrá-la! — "Embora, no fundo, não possa culpá-los por alimentarem esse sonho...", acrescentou, mentalmente.
— Mi... Milorde?
A princípio, lorde Alain pensou estar sonhando ou confundindo seus desejos com o burburinho que tomava conta de Hawkswell todas as manhãs. Mesmo descrente, ergueu a cabeça, fixando os olhos em Verel, que continuava deitado em seu leito de morte, pálido e sem forças para mover um músculo.
Após alguns instantes de observação, percebeu que não fora ludibriado por uma tola miragem. Para seu grande espanto, o escudeiro abriu os olhos e, com imensa dificuldade, virou o rosto em sua direção!
— Verel?! — exclamou, quase sem fôlego de tão emocionado. Encarando o jovem enfermo com a ternura de um pai, disse: — Estou bem aqui, meu fiel escudeiro! Como se sente?
— Estou com sede, milorde...
A voz estava muito fraca e trêmula, mas o simples fato de o rapaz estar falando já significava uma vitória. Afinal, diante da gravidade de seu estado, até mesmo os mais crédulos haviam perdido as esperanças de vê-lo acordar novamente.
Alain tocou a testa de Verel e constatou o óbvio: ele estava em brasas. Pegando uma jarra de água fresca, sobre a mesa de cabeceira do padre, entornou seu conteúdo em um copo de madeira.
— Aqui está... — disse, levando a água até os lábios do moço. — Beba devagar, sem agitação.
Ele obedeceu, tentando poupar esforços. Contudo, volta e meia, fortes espasmos de dor o sacudiam, enquanto gotas geladas de suor escorriam-lhe pela face.
— O que aconteceu? — Verel quis saber, em um dos intervalos da dor, quando esta se tornava menos insuportável. — Lembro apenas que estávamos perseguindo os bandidos pela floresta... De repente, tudo ficou escuro...
— Foi alvejado pelos foras-da-lei. Seu tolo, aquela flecha se destinava a mim e você se jogou na minha frente, recebendo-a em cheio! — explicou, fingindo estar zangado. Depois, sorriu-lhe, com gratidão e ternura. — Vai ficar bom, Verel. Só precisa descansar, enquanto seu corpo se recupera do ferimento.
Em vez de responder, o escudeiro deu um gemido de dor, contorcendo-se na cama. Os espasmos estavam ficando cada vez mais intensos e prolongados.
— Tenha calma, Verel. Por acaso, esperava que um ferimento desse tipo não doesse nada, hein? — tentou acalmá-lo, em tom de brincadeira. No íntimo, estava mais aflito do que o rapaz, por vê-lo sofrer daquele modo. — Vou chamar padre Gregory. Ele pode preparar-lhe algo que diminua a dor...
Nem havia acabado de proferir aquela frase, a porta do quarto se abriu e o próprio padre Gregory entrou, como se tivesse adivinhado os desejos de lorde Alain.
— Ah, eis que surge nosso pároco! — Levantando-se da cadeira, anunciou, exultante: — Veja quem acordou, padre!
Padre Gregory piscou os olhos várias vezes, como se estivesse diante de um autêntico milagre. No entanto. demonstrando ter tato, não deixou que o doente percebesse sua surpresa.
— Bom dia, Verel. Vejo que acordou na hora costumeira.
— Ele está febril e com dores, padre — Alain informou.
Padre Gregory observou atentamente o rapaz, dirigindo-se, logo em seguida, para sua prateleira de ervas e medicamentos.
— Em um piscar de olhos, terei uma poção para aliviar-lhe todos esses tormentos. — Dirigindo-se para lorde Alain, sugeriu, com bom senso: — Por que não come algo e descansa um pouco em seus aposentos, milorde? Graças ao senhor, pude dormir algumas horas e estou em condições de ficar com ele pelo resto do dia.
Alain assentiu. Agora que Verel apresentava melhora poderia descansar sem remorsos. Entretanto tinha esperanças de encontrar Haesel antes de se trancar em seu quarto. Queria compartilhar com ela aquela boa notícia, bem como agradecer-lhe pela solicitude da noite passada.
Ao deixar o quarto do enfermo para trás, lembrou que aquela teria sido sua primeira noite de amor com Haesel, caso aqueles terríveis incidentes não tivessem acontecido. Porém, embora não tivesse mencionado o assunto, quando ela viera lhe fazer companhia, o desejo estivera nítido em seu coração.
Enquanto cruzava o pátio, avistou De Balleroy que andava apressado, carregando dois alforjes de couro.
— Brys! Que bom vê-lo antes de sua partida! — chamou, indo na direção do amigo.
De Balleroy sorriu, satisfeito com o encontro.
— Ora, eu não iria partir sem procurá-lo. — Franzindo o cenho, indagou: — Como está seu escudeiro?
— Oh, Brys! Até parece um milagre! Verel sobreviveu a esta primeira e tenebrosa noite! — informou, com um misto de entusiasmo e confiança. — Ele despertou há pouco, bebeu água e conversou comigo. Padre Gregory está cuidando dele agora.
O cavaleiro voltou a exibir um sorriso, só que, dessa vez, era pleno de satisfação.
— Fico feliz com a notícia, Alain.
Aproximando-se um pouco mais do amigo, para que os transeuntes não o ouvissem. Brys contou-lhe o incidente envolvendo Haesel e Hugh le Gros. Todavia tomou o cuidado de manter em sigilo a identidade de lady Claire de Coverly.
À medida em que tomava ciência daquele fato escabroso, o rosto de Alain ia ficando vermelho como uma maçã. Ódio, revolta e fúria mesclavam-se em seu íntimo como se fossem os ingredientes de uma massa de pão.
O resultado era uma cólera gigantesca, como jamais havia sentido antes. A muito custo, estava conseguindo se conter, na frente de Brys, quando tudo o que desejava era esganar o miserável que ainda se considerava seu soldado! Ciente de que o amigo estava atento a todos os seus movimentos, tomou cuidado para ocultar o que realmente sentia pela bela serva inglesa.
— Ele deve ter atacado Haesel, assim que ela deixou o quarto do padre — concluiu, com o rosto crispado de ódio.
— Não apliquei nenhum castigo àquele bastardo imundo, Alain. Mas adiarei minha partida de bom grado se me permitir puni-lo.
— Não, Brys. Isso será um privilégio meu! Só posso agradecer-lhe por ter impedido aquele ataque a tempo. — Tocando seu ombro, disse: — Agora é melhor partir. Sabe o quanto a imperatriz detesta esperar.
Os dois trocaram olhares e sorrisos de cumplicidade. Eram grandes conhecedores do mau gênio de Matilde! Em seguida, despediram-se e cada qual seguiu seu destino.
Respirando fundo, para controlar a ira que ameaçava dominá-lo, Alain desviou-se de seu antigo itinerário. Em vez de ir para o salão principal, rumou para o alojamento dos soldados.
Hugh la Jaune-Tête, o capitão da guarda, foi a primeira pessoa que encontrou, ao entrar na sala comunitária daquela parte do castelo.
— Aonde está Le Gros? — indagou, ríspido, com cara fechada. La Jaune-Tête levantou-se de um pulo, assim que vislumbrou a figura imponente e aristocrática de lorde Alain.
— Ele está dormindo, milorde. Esteve de guarda a noite anterior — explicou, sem entender os motivos que traziam seu senhor até ali. — Posso servir-lhe, milorde?
— Não — respondeu, lacônico, dirigindo-se para o alojamento ocupado pelos soldados e cavaleiros do castelo.
Só de imaginar as cenas descridas por Brys de Balleroy, sentia o sangue ferver.
Acabou por encontrar Le Gros dormindo pesadamente, embalado por forte ronco. Sem hesitação, Alain pegou a primeira jarra de água que encontrou, despejando todo seu conteúdo no rosto daquele atrevido.
Hugh le Gros deu um salto, gritando uma série de palavras de baixo calão. No entanto, ao perceber que aquela ousadia partira do senhor do castelo, conteve os ímpetos, assumindo uma postura mais modesta e subserviente.
Isso só conseguiu irritar ainda mais os ânimos de Alain, que não via a hora de socar aquele rosto macilento. Apesar disso, não foi desleal, esperou até que Le Gros estivesse plenamente desperto para acertar-lhe um murro no queixo, que o jogou longe.
— Isso é por Haesel! — Virando-se para o capitão, que o seguira até ali e observava aquela cena, boquiaberto, disse: — Le Gros deve partir de Hawkswell em uma hora. Não deverá levar nada mais, além do que lhe pertence. Certifique-se de que minha ordem seja cumprida.
La Jaune-Tête ouvia a ordem, com ar aparvalhado. Lorde Alain não costumava tratar seus homens dessa maneira. O que Le Gros fizera de tão grave para irritá-lo?
Alheio às dúvidas do capitão, Alain continuava seu discurso, cada vez mais irritado.
— Não quero entre os meus homens alguém que deixe seu posto! Ainda mais para cometer atos sórdidos contra meus próprios súditos!
Hugh le Gros levantou-se do chão, ainda atordoado, à essa altura mais pelo rumo dos acontecimentos do que pelo soco.
— Mas, milorde... — tentou se explicar. — Está me expulsando daqui sé porque tentei flertar com uma serva?
— Flertar?! — repetiu, exasperado com toda quela hipocrisia. — Desde quando uma tentativa de estupro pode ser considerada um flerte? Além disso, não me importa se ela é uma serva ou nobre, não tolero esse tipo de abuso em meus domínios!
— Isso é apenas porque deseja Haesel para si mesmo. — Le Gros retrucou, desrespeitoso.
— Cale-se! — La Jaune-Tête ordenou, levando a mão à bainha da espada. Se fosse preciso, estava pronto para defender seu senhor de qualquer ataque.
— Deve estar louco de desejo por aquela serva inglesa, para agir desse modo, milorde. Poderíamos tê-la dividido perfeitamente... — Le Gros voltou a provocar, ignorando os comandos do capitão.
Alain sentiu uma espécie de bola de fogo, que pulsava em seu estômago, explodir, irradiando ódio por todas as partes de seu corpo. Quando deu por si, estava espancando aquele insolente com uma fúria incontrolável.
— Isso é por mim! — afirmou, ao dar o último soco. Então saiu do alojamento, deixando Hugh le Gros caído em um canto.
Com passos firmes, passou pelo salão principal sem dirigir o olhar para ninguém. Estava furioso com a ousadia e o desrespeito daquele soldado; aliás, tivera que se conter para não transformar aquela expulsão em enforcamento. Também perdera todo o apetite e, nesse instante, só uma coisa lhe importava: falar com Haesel!
Sem perder tempo vagando pelo castelo, foi direto para os aposentos dos filhos, onde julgou que os três estivessem. Com cuidado para não fazer ruído, abriu a porta do quarto, vendo que Haesel estava cortando o cabelo de Guerin, perto da janela. Peronelle brincava no chão com uma boneca de pano.
— Fique quieto, Guerin! Ou posso acabar cortando sua orelha, em vez das mechas de cabelo! — ela ralhou, em tom firme, mas maternal.
— Ora, Haesel! Não entendo porque preciso cortar o cabelo! — o menino protestou, franzindo a testa. — Perry nunca corta o seu!
— Perry é menina, por isso pode deixar os cabelos bem compridos. Mas, segundos nossos padrões sociais, os homens devem deixá-los curtos. A menos, é claro, que queira ficar parecido com um bárbaro.
Muito a contragosto, ele fez uma careta, cruzando os braços no peito. Mas parou de reclamar.
— Pensei que quisesse ser padre, Guerin... — Haesel trouxe o assunto à baila, determinada a vencer a resistência do menino. — Caso siga a carreira eclesiástica, terá que cortar uma auréola no alto da cabeça. O que me diz, então?
Essa idéia causou um acesso de riso em Peronelle, porém Guerin permaneceu sério.
Alain continuou na soleira da porta, observando aquela cena familiar, fascinado pela candura de Haesel. Minha nossa, como desejava essa mulher!
Ele deve ter feito algum ruído involuntário, ou talvez seu olhar penetrante acabou por atiçar a percepção aguçada de Haesel. Pois, de repente, ela se virou para trás e o surpreendeu.
— Milorde! Não sabia que estava aqui! — exclamou, enquanto sua voz misturava-se aos cumprimentos esfuziantes das crianças.
Como sempre, Peronelle correu ao encontro do pai, agarrando-se aos seus joelhos. Alain a pegou no colo, dando-lhe um forte abraço.
— Como está Verel, papai? — a menina foi logo perguntando.
— Graças a Deus, posso lhes contar que ele melhorou e parece que está fora de perigo!
Gritos animados das crianças encheram o quarto de alegria.
— Bem, mas precisam saber que vai levar algum tempo até que ele se recupere totalmente e volte a brincar com vocês pelo pátio. O ferimento foi muito grave, vocês sabem. — Enquanto falava, não desviava os olhos do rosto perfeito e expressivo de Haesel.
— Oh, milorde! Que boa notícia! Parece que Deus ouviu nossas preces!
Alain ficou comovido com tanta naturalidade. Essa mulher era única e especial! Gostaria de tomá-la nos braços agora mesmo, cobrindo-a de beijos e carícias.
Então lembrou que, antes de mais nada, precisava tratar de um assunto nada agradável...
— Haesel, precisamos conversar. — Virando-se para os filhos, informou: — Crianças, fiquem brincando aqui dentro, mas, comportem-se. Eu a devolverei em um instante.
Depois, fez sinal para que ela o acompanhasse até seu quarto. Sua expressão trazia impresso o peso da preocupação.
— Milorde? — indagou, assim que ele fechou a porta.
— Haesel, antes de partir, Brys contou-me o que aconteceu a noite passada.
Uma palidez mortal cobriu-lhe a face, antes rosada. Tinha confiança de que sir Brys não quebraria a promessa, revelando sua identidade, mas as lembranças do ataque a deixavam muito constrangida.
— Oh, Deus! Estou tão envergonhada que tenha ouvido essa história, milorde...
— Alain, lembra-se? Pode me chamar assim quando estivermos a sós.
Claire sorriu, ainda tímida.
— Graças a seu amigo, sir Brys, fui salva a tempo! — Respirou fundo, enquanto lágrimas contidas rolavam por seu rosto. — Oh, Alain! Tive tanto medo!
Ele a envolveu em um abraço terno e protetor.
— Tentei escapar daquele homem asqueroso! — Claire contou, sacudida por tremores intensos. — Mas ele era muito mais forte do que eu, e todas as minhas tentativas pareciam inúteis!
— Sei disso, minha querida, e lamento profundamente o que ocorreu. Mas prometo que isso nunca mais irá acontecer. — Beijou seus cabelos loiros, impregnados com um delicioso perfume de jasmim. Depois, com voz solene, anunciou: — Expulsei Le Gros de Hawkswell. Ele deverá partir tão logo consiga acordar.
Intrigada, ela levantou a cabeça, cravando os olhos azuis no rosto de Alain.
— Afinal, depois da surra que lhe dei, levará algum tempo até que ele desperte — explicou, com um sorriso triunfante nos lábios.
Claire continuou a fitá-lo, porém, agora exibia um ar de preocupação.
— Mas, milorde, Le Gros é um soldado valoroso, não é? Não acho justo que se prive de um homem assim, só por minha causa.
— Tolice! Aqui em Hawkswell todos sabem que não tolero abusos desse tipo. Como posso confiar em um soldado capaz de atacar uma mulher, ainda mais alguém de seu próprio feudo! — Acariciou seu rosto macio, contornando aquela boca sensual com a ponta dos dedos. — Não quero que se preocupe com nada, minha doce Haesel.
Os dois trocaram olhares apaixonados e, em uma decorrência natural disso, acabaram se beijando. Um beijo longo e apaixonado, daqueles que Claire achava que existissem apenas nas histórias de amor que as servas de Coverly lhe contavam em seus tempos de criança. Podia sentir o corpo másculo de Alain colado ao seu, pulsando de desejo, enquanto cada uma de suas fibras experimentava um torpor, próximo ao êxtase. Por fim, seus lábios se soltaram, muito a contragosto para a ambos.
— Agora, preciso dormir algumas horas, Haesel. Estou exausto e minha cabeça parece que vai explodir.... Padre Gregory está cuidando de Verel, de modo que terá que entreter as crianças por toda a manhã.
Antes que Claire se ressentisse por aquela despedida súbita e fria, logo após terem trocado um delicioso beijo de amor, ele apressou-se a desfazer o mal-entendido.
— Tornaremos a nos ver quando tudo estiver mais calmo, minha querida.
Ela sorriu, satisfeita com aquela frase, que trazia implícita a promessa de um novo e envolvente encontro de amor.
— Descanse em paz, Alain... — sussurrou, ao partir. Tivera vontade de acrescentar "meu amor", mas não conseguira reunir coragem suficiente para dizer isso em voz alta.
Claire atravessou o pátio, com a determinação estampada no rosto. Caso fosse preciso, estava decidida a arrastar Alain para jantar no salão principal e, de forma alguma, aceitaria um "não" como resposta!
Mesmo que negasse, ele devia estar exausto e faminto. Dormira apenas quatro horas e retornara para junto de seu escudeiro, de onde não arredara pé durante o resto do dia. Se continuasse assim, acabaria caindo doente.
— Milorde... — saudou, respeitosa, ao entrar no quarto. Padre Gregory sorriu-lhe com discrição, sentado próximo das prateleiras de ervas. Alain, entretanto, estava cabisbaixo, ao lado do doente.
Ao se aproximar da cama, Claire constatou, alarmada, que o estado de Verel não era nada animador. O moço estava muito abatido e com os lábios esbranquiçados.
Embora mantivesse os olhos abertos, estavam imóveis e sem brilho, como se não enxergasse mais nada.
— O que aconteceu? Disse que ele havia melhorado esta manhã... — questionou, baixinho, profundamente abalada com aquela visão.
— Parece que me adiantei... — Alain retrucou, melancólico. — Padre Gregory já havia me alertado sobre possíveis recaídas...
— Ferimentos como esse causam grandes estragos ao corpo. Portanto o estado do enfermo torna-se imprevisível e muito oscilante — o padre manifestou-se, abandonando o silêncio. — Só nos resta orar.
— Oh! Eu rezarei com muita fé e fervor, padre! — Voltando-se para Alain, disse: — Vim buscá-lo para jantar no salão, milorde.
— Não vou sair daqui.
— Mas deve! — insistiu, sem receio de parecer intrometida. — Guerin e Peronelle estão aflitos com seu estado, assim como todos os moradores do castelo.
— Deve ouvir os pedidos dessa moça, milorde. Ela está certa. Precisa comer e descansar um pouco, antes que também adoeça.
Alain não esboçou a mínima reação, como se mal tivesse ouvido o que ambos acabavam de lhe dizer.
— Vá sossegado, milorde. Cuidarei de Verel com o máximo de zelo — o padre assegurou, cheio de boas intenções. — Aliás, deixe-me passar a noite com ele, enquanto dorme em seu quarto.
De repente, a voz da prudência intrometeu-se nos pensamentos de Alain, convencendo-o a ceder.
— Está bem, participarei do jantar. Contudo retornarei para junto de Verel, logo em seguida.
Sabendo que aquilo era o máximo que conseguiria arrancar dele, Claire não insistiu mais.
Enquanto caminhavam para o salão, Alain não trocou uma só palavra com ela. Estava preocupado, de mau humor e furioso por ela ter conseguido convencê-lo a sair do lado de Verel.
Pelo menos, ele vai participar de uma refeição decente, ela repetiu para si mesma, tentando não se deprimir com aquele tratamento frio.
"Para lorde Hardouin, conde d Evreux e duque de Tresham.
Saudações, milorde.
Deve estar impaciente com a demora na conclusão de seu plano, mas posso lhe garantir que lady Claire tem se esforçado bastante para executá-lo. Ela conquistou a simpatia das crianças, a confiança de lorde Alain e de todos os moradores de Hawkswell. Esse atraso deve-se a uma série de contratempos lamentáveis.
No início, uma chuva torrencial assolou essa região por vários dias consecutivos, impedindo-a de sair do castelo. Quando afinal o tempo melhorou, sua sobrinha tentou levar as crianças para um piquenique na floresta. Eu mesmo a vi atravessar os portões do pátio interno, carregando uma cesta de piquenique, na companhia dos pirralhos. No entanto, na última hora, lorde Alain os abordou, transferindo o passeio para o pomar, sob a segurança da muralha externa. Naquela mesma tarde, infelizmente, descobriu-se que seus homens atacaram a cabana de um dos camponeses de Hawkswell.
É claro que lorde Alain desconhece a verdadeira identidade dos agressores — ele pensa que se trata de um bando de foras-da-lei. Mesmo assim, ataques dessa natureza são muito raros nessas terras, o que torna impraticável, no momento, qualquer incursão de lady Claire e as crianças à floresta. Todavia creio que, com algum jeito, ela logo conseguirá um modo de contornar esse problema.
Na verdade, apenas um fator tão bizarro quanto inconcebível, está me preocupando, milorde. Tenho notado que uma paixão forte e avassaladora está nascendo entre sua sobrinha e lorde Alain. Portanto temo que ela acabe se rebelando contra as ordens de raptar os filhos do barão.
Espero suas sábias orientações.
Seu leal servo."
Hardouin amassou o papel, com fúria, jogando-o na lareira.
— Algo errado, tio? — Neville questionou, sabendo que Hardouin lia uma mensagem de seu informante em Hawkswell.
— A infeliz da sua irmã acabou se apaixonando justamente por nosso inimigo, lorde Alain! Com isso, está pondo em risco o sucesso de todo o plano!
— Acalme-se, milorde. Tenho certeza de que Claire não se atreveria a desobedecê-lo.
— Acho bom mesmo, Neville! Pois, se ela ousar interferir em meus planos, irá se arrepender amargamente! Arranjarei para ela um marido tão cruel que fará Haimo e Fulk de Trouville parecerem santos!
Neville arregalou os olhos, assustado, esforçando-se para não tremer diante do tio.
Hardouin andou em círculos, apertando as mãos de ódio. De súbito, virou-se para o sobrinho, com uma expressão satânica na face.
— Já sei como neutralizar qualquer suposta tentativa de traição de sua maldita irmã! — Um riso horripilante ecoou pela sala. — Usarei, contra ela, seu próprio segredo!
Na manhã seguinte, Claire só ficou sabendo que Verel ainda vivia, quando o padre pediu que todos orassem pelo escudeiro, durante a missa.
— Será que ele vai conseguir se recuperar? — Annis indagou, logo depois, ao sentar-se à mesa para o desjejum.
— Ele está nas mãos de Deus — disse, com pouca vontade de manter um diálogo. Uma montanha de preocupações estava se acumulando em sua cabeça, deixando-a mais do que angustiada.
— Pelo menos, a mulher do camponês está melhor — a amiga informou, enquanto mastigava um pedaço de pão.
Claire a fitou, sentindo uma mistura de alegria e remorso. No meio de tantos acontecimentos, havia se esquecido completamente da pobre camponesa atacada.
— Que bom! E como ela está?
— Não fala quase nada, mas, ao menos, começou a se alimentar. — Annis sacudiu os ombros, melancólica. — Deve sentir que precisa fazer isso pelo bem do bebê, que carrega no ventre.
Claire ficou de queixo caído. Cuidara da mulher, mas não percebera nenhum sinal de gravidez em seu corpo machucado.
— Ainda não está muito visível, contudo ela está grávida de uns dois meses — a outra explicou, compreendendo o espanto da amiga. — Foi um verdadeiro milagre não ter perdido a criança por causa da violência que sofreu, não acha?
— Sem dúvida! Além disso, esse bebê vai dar-lhe um bom motivo para continuar a viver. — Estava emocionada com aquela revelação.
— Lorde Alain irá arranjar-lhe um trabalho aqui dentro do castelo. Isso se Tom não se oferecer para desposá-la. — Meneou a cabeça, com um olhar maroto. — Ele também é viúvo e, sendo jovem, ela não ficará sozinha por muito tempo, a não ser que queira.
Claire ficou calada, pensando em tudo aquilo. Tudo era tão diferente no Castelo de Coverly! Se uma viúva se recusasse a casar novamente, Neville não teria o menor escrúpulo de expulsá-la de suas terras, só com as roupas do corpo! Alain, ao contrário, era justo e respeitava os desejos de seu povo; não admira que fosse tão amado por todos!
Durante o resto do dia, Claire não viu Alain uma só vez, pois ele se recusava a deixar a cabeceira de Verel.
Além disso, ela estava sobrecarregada de tarefas, uma vez que as aulas matinais das crianças estavam suspensas para que o padre também ficasse junto do escudeiro.
Pressentindo que Verel havia piorado, Guerin e Peronelle estavam excessivamente agitados e inquietos; nada conseguia manter a atenção dos dois por muito tempo.
Claire já não sabia mais o que fazer para distraí-los, quando, de súbito, teve uma idéia.
Já que a morte rondava o castelo, precisava preparar seus pupilos para essa possível eventualidade. Assim, caso o rapaz morresse, as crianças não ficariam revoltadas contra Deus, achando que suas preces haviam sido em vão. Portanto nada melhor do que fazer uma visita ao cemitério, onde estavam os corpos das pessoas queridas que haviam partido. Ali seria mais fácil para eles lembrar que a alma dos bons cristãos ia para o céu, enquanto o corpo voltava à terra que lhe dera origem.
Com a permissão do jardineiro, colheram algumas flores e foram colocá-las nos túmulos de Ivy e de padre Peter. Depois, oraram por suas almas.
— Não quer pôr um pouco de flores no túmulo de sua mãe, Peronelle? — Claire sugeriu, de repente, incomodada pelo fato de a menina jamais mencionar Júlia.
Ao ouvir aquilo, Guerin afastou-se, com uma expressão ressentida.
Ele sabe que não era filho de Júlia!, concluiu, atenta ao comportamento esquivo do garoto.
— Acho que não... — Peronelle respondeu, chocando Claire com sua indiferença. — Ela nunca gostou da minha companhia mesmo.
Embora não derramasse uma lágrima, Claire chorou por dentro; foi um pranto sofrido e silencioso, feito do sangue que parecia escorrer de seu coração machucado.
Acabara de ouvir a confirmação de que Júlia realmente havia negligenciado a própria filha!
— Quero que seja minha mamãe, Haesel! — a menina exclamou, começando a chorar. Então agarrou-se às pernas de Claire, que ainda continuava em choque.
Ajoelhando-se, abraçou a menina com todo seu amor.
Agora, seu rosto também estava banhado em lágrimas.
— Oh, Perry! Fico muito feliz por ouvir isso, mas...
— Nunca tive mãe, Haesel... Mas agora quero que seja você! — Guerin afirmou, jogando-se nos braços de Claire.
— Meus queridos, eu amo vocês dois! Mas, prestem atenção... Isso nunca será possível. Seu pai é um nobre normando e eu não passo de uma serva inglesa. — Deus era testemunha do quanto gostaria de ser a mãe daquelas crianças e esposa de Alain... Contudo, embora mentisse em relação a sua origem social, ser sobrinha de Hardouin d Evreux era o pior dos obstáculos para aquele casamento.
— Ora, Haesel! Meu pai não se importa com isso. Ele é diferente dos outros nobres — Guerin declarou, orgulhoso.
— Sim, eu sei...
Um homem que mantinha o falcão livre na floresta, preso apenas pelos laços da afeição, e que era tão amado por seu povo só podia ser especial!
— Ele gosta muito de você! Sabemos disso! — Peronelle acrescentou, com ar de sabedoria. — Prometa que vai ficar sempre conosco, Haesel! Por favor!
Virgem Santíssima! E pensar que só estava esperando que Verel melhorasse para partir...
— Perry, não posso lhe fazer essa promessa! Isso não está em minhas mãos!
— Mas...
Nesse exato momento, as trombetas soaram, anunciando o jantar.
Agradecendo a Deus por aquela bendita interrupção, Claire levantou-se, sacudindo a poeira da saia.
— Vamos, crianças! Precisamos correr se quisermos lavar as mãos e o rosto antes que o jantar seja servido.
Graças a um artifício bastante sagaz, Claire conseguiu desviar a atenção das crianças daquele assunto desagradável e penoso para ela durante todo o jantar.
Prometendo levá-los até o canil após a refeição, fez com que a conversa girasse em torno de temas relacionados diretamente com animais de estimação, como nomes, particularidades de raças e as preferências de cada um. Guerin gostava mais de cachorros, enquanto a irmã, de gatos.
Quando os três já estavam a caminho do canil, rindo e cantarolando, como se estivessem imunes à nuvem de preocupações que rondava Hawkswell, encontraram padre Gregory que acabara de sair do celeiro.
— Que bom vê-la, Haesel! Estava justamente à sua procura.
Ela gelou, sentindo o mundo desabar ao seu redor. Entretanto manteve-se quieta.
— Acabei de falar com os prisioneiros de lorde Alain e eles me pediram para convencê-la a visitá-los — o padre prosseguiu, com voz calma.
— Lamento, padre. Não posso fazer isso.
— Mas, minha filha, pense ao ato de caridade que estará fazendo ao visitar aqueles pobres homens! Eles só querem agradecê-la por ter sido tão bondosa... Estão em uma situação muito difícil...
Claire queria gritar com todas as suas forças que, de maneira alguma, voltaria a falar com aqueles dois mercenários! Motivos não lhe faltavam para isso, a começar por sua decisão de não cumprir o trato com Hardouin. Porém, ao perceber os olhares desapontados das crianças, teve que engolir a repulsa e acatar o pedido do padre.
— Está bem, falarei com eles por um instante, padre Gregory.
Os rostos das crianças ficaram radiantes. Como bons cristãos, prezavam gestos de caridade e benevolência.
— Fico feliz, minha filha — disse, juntando as mãos, como se suas preces tivessem sido atendidas. Depois disso, despediu-se dos três, seguindo para seu quarto.
Após instruir as crianças para que esperassem por ela no canil, Claire foi sozinha até o celeiro. Logo ao chegar, viu que o alçapão estava aberto, sinal incontestável de que o padre tinha certeza absoluta de que conseguiria trazê-la até ali. Então, respirando fundo, começou a descer os degraus de pedra que levavam ao calabouço.
— Até que enfim, a bela dama se dignou a nos visitar! — Ivo zombou, ao vislumbrar a figura altiva de Claire.
Ela engoliu a raiva, consciente de que precisava manter a calma e o auto-controle.
— O que querem? — indagou, sem rodeios.
— Como tem a coragem de nos fazer essa pergunta? Sabe muito bem o que queremos, milady! — Jean respondeu, em tom ameaçador. — Por que ainda não tirou as crianças desse castelo?
— Deviam perguntar isso aos seus comparsas! Eles atacaram a cabana de um camponês de lorde Alain; mataram o pobre homem, estupraram sua mulher e ainda feriram o escudeiro do barão! — Sua voz era firme e afiada como um punhal. — Graças a esse incidente, não conseguirei atravessar as muralhas com as crianças por um bom tempo!
— Quisera estar entre eles para me vingar dessa gente de Hawkswell! — Jean exclamou, rindo para o colega.
Claire sentiu asco daqueles homens maus, que não possuíam um pingo de piedade em seus corações endurecidos, se é que o possuíam.
— Felizmente, estão trancafiados aqui! — disse, em uma explosão de revolta. — Se querem saber a verdade, não vou mais tomar parte nesse plano diabólico de meu tio! Lorde Alain é um homem honrado e justo, que não merece ter os filhos raptados para ficar à mercê dos desmandos de Hardouin!
— Não pode fazer isso, sua maldita! — Ivo bradou, com os olhos injetados de fúria. — Lorde Hardouin vai trucidá-la, isso se eu não puser minhas mãos em você antes!
— Não tenho medo de meu tio, muito menos de vocês! — Já estava se preparando para galgar os degraus de volta ao celeiro, quando um pensamento terrível a deixou petrificada... aqueles dois revelassem sua identidade para Alain, antes que pudesse fugir do castelo? Era uma hipótese que merecia atenção. Afinal, mesmo que isso não os ajudasse, pelo menos, conseguiriam vingar-se dela. Minha nossa! De maneira alguma, poderia permitir que isso acontecesse! Caso contrário, Alain jamais iria acreditar que era inocente e havia resolvido desistir daquele plano.
Reunindo todas as suas forças, voltou para perto da cela, disposta a enfrentar aqueles tratantes.
— Antes que pensem em me trair, quero avisá-los que pretendo contar a verdade a lorde Alain ainda esta noite! — blefou, atenta à reação dos dois. — Minha situação vai ficar difícil, mas a de vocês estará ainda pior...
Houve alguns instantes de silêncio, o que aumentou ainda mais a tensão do ambiente.
— Nem quero pensar no que irá lhes acontecer, quando milorde souber o que vieram fazer aqui!
— Desgraçada! Duvido que tenha coragem de fazer isso! — Jean começou a gritar, acrescentando um monte de desaforos.
Ivo, no entanto, pareceu ter compreendido a gravidade da situação. Empalideceu e ficou quieto, como se estivesse morto de medo, ante uma visão terrível. Após alguns segundos, manifestou-se:
— Cale-se, idiota! — Substituindo então a zombaria e o desrespeito por modéstia e afabilidade, chamou Claire: — Hei, milady! Não faça isso! Podemos fazer um acordo que seja conveniente para nós três.
Embora mantivesse uma expressão de tédio e indiferença, Claire respirou aliviada. Era exatamente aquilo que esperava ouvir! Afinal, de maneira alguma, pretendia contar a verdade a Alain. Planejava fugir de Hawkswell sem deixar pistas, conforme dissera a Brys de Balleroy.
— Se ficarem de boca fechada sobre minha identidade e o plano de lorde Hardouin, também me comprometo a manter esse nosso segredo. Contudo, se suspeitar que planejam me trair, não hesitarei em revelar tudo a lorde Alain. Entenderam?
Sem demora, os homens assentiram, amedrontados.
Claire sabia que não poderia confiar naqueles dois, mas pretendia partir, antes que a verdade viesse à tona.
Naquela noite, estava praticamente impossível pegar no sono. Há horas, Claire rolava de um lado para outro da cama, sem conseguir sequer cochilar. Tivera muitos sustos, emoções e confrontos para um dia só!
Felizmente, as crianças não enfrentaram o mesmo problema. Ambos estavam tão exaustos que dormiram feito anjos, pouco depois de se acomodarem entre os lençóis.
Atenta aos mínimos ruídos da noite, não lhe passou despercebido o barulho do trinco da porta do quarto de lorde Alain. Imediatamente, teve um sobressalto, seguido por uma forte sensação de angústia. Não sabia porque, mas sentia o coração apertado e dolorido, como se uma lança o tivesse atingido.
Poderia ser apenas padre Gregory, retornando para mais uma noite de sono, enquanto o barão ficava de vigília ao lado de Verel. Contudo tinha o pressentimento de que, dessa vez, lorde Alain decidira dormir em sua própria cama...
Prendeu a respiração, assustada. Apenas uma mudança muito drástica no estado de Verel poderia afastar Alain da cabeceira do doente. Ou o moço estava fora de perigo, ou então acontecera o pior!
Com o passar dos minutos, sua aflição foi aumentando, até atingir um nível insuportável. Não poderia ficar ali deitada, sem saber o que havia acontecido até o amanhecer!
Sem hesitar, pulou da cama e esgueirou-se para fora do quarto das crianças. Sobre a camisola rústica, usava apenas o velho xale de lã.
Com cuidado, abriu uma fresta da porta dos aposentos do barão, o suficiente para que pudesse dar uma espiada em seu interior. Em meio à penumbra, procurou distinguir o vulto de seu ocupante.
— Haesel, é você? — a voz inconfundível de Alain a chamou, no mesmo instante em que acabara de identificá-lo.
— Sim, milorde...
— Entre.
Claire obedeceu, fechando a porta atrás de si.
— E Verel? — perguntou, embora já suspeitasse da verdade, devido ao semblante transtornado de Alain.
— Está morto.
Por um segundo, teve a sensação de que a vida também abandonara seu corpo, tamanho o choque que sentiu ao ouvir aquela notícia. Embora lamentasse profundamente a morte daquele jovem valoroso e honrado, o que mais a angustiava era pensar no sofrimento das crianças ao tomarem conhecimento do fato; bem como no remorso e aflição que Alain deveria estar sentindo.
— Foi minha culpa! — ele quebrou o silêncio, com um desabafo emocionado. — Ele deu a vida por mim e não pude fazer nada para salvá-lo!
Sentiu uma ternura imensa por aquele cavaleiro imbatível e poderoso que, ao contrário da maioria dos homens, era capaz de ter compaixão por seus semelhantes.
— Oh, por Deus! Não deve se mortificar pelo que aconteceu, Alain! Verel quis salvá-lo porque o admirava, como todos aqui em Hawkswell! Pense no que teria acontecido a toda essa gente se você tivesse morrido. — Claire sentia as palavras fluírem por seus lábios, como uma cachoeira de águas límpidas e cristalinas. Suas frases eram guiadas por seu coração, com o único intuito de confortá-lo.
Tocado pela sinceridade e doçura daquela jovem desconhecida que, em pouco tempo, havia se transformado na senhora de seu coração, Alain permitiu-se conceder uma pausa em todo seu sofrimento.
De fato, Haesel estava certa. Por mais que lhe doesse a perda de Verel, era forçado a admitir que o heroísmo do rapaz fizera um grande benefício a todo o povo de Hawkswell. Sendo o senhor daquele feudo, sua morte iria desencadear uma verdadeira avalanche de catástrofes, que atingiria não somente seu povo, mas também seus amados filhos. Se morresse, os inimigos de Matilde não tardariam a invadir suas terras, massacrando seus vassalos, desorientados pela falta de seu líder. Peronelle e Guerin teriam sorte se continuassem vivos, mas seus futuros seriam sombrios; principalmente, se desconfiassem da verdadeira origem do menino.
— Tem razão, Haesel — admitiu, em tom quase inaudível, após um longo silêncio. — A vida é uma luta sem tréguas, que não aceita nenhum tipo de apatia. Por isso, embora a morte de Verel ainda queime em meu peito, preciso pensar em meus deveres como senhor de Hawkswell.
Ela sorriu, feliz por vê-lo reagir àquele duro golpe.
— Deite-se comigo por um instante... — ele a chamou. alisando os lençóis de linho de sua cama gigantesca. — Não vou "atacá-la", só quero ficar perto de alguém que se importe comigo.
Claire hesitou. Sabia que Alain estava sendo sincero e, após conhecê-lo melhor, tinha certeza absoluta de que ele jamais faria amor com uma mulher contra sua vontade. Mesmo assim, não podia negar que a intensa atração que existia entre eles era um fator imprevisível.
Antes que pudesse decidir o que fazer, suas pernas agiram por conta própria, levando-a para perto dele. Tremeu ao sentir o cheiro másculo e extremamente sedutor que exalava daquele corpo repleto de músculos, coberto apenas por uma fina túnica de lã.
Alain também sentiu algo muito especial dominar-lhe os sentidos. Jamais experimentara uma sensação como essa antes. Era uma espécie de explosão de felicidade, que lhe causava vertigens, calafrios e torpor. Completamente hipnotizado por aquele olhar, mistura insólita de meiguice e sensualidade, quedou-se a admirá-la, como se observasse um ser divino, um ser angelical, ou então uma fada das antigas lendas.
Os dois permaneceram em silêncio, lado a lado, sem se tocarem. Sensíveis no corpo e na alma, nesse momento, não precisavam de palavras ou toques para alimentar a paixão que os envolvia, como uma nuvem mágica. Por fim, um beijo inevitável marcou o início da união de suas almas.
Agindo instintivamente, entre carícias e beijos cada vez mais apaixonados, começaram a se despir, livrando-se daqueles trajes incômodos, grandes obstáculos para a total consumação de seu amor.
Após o primeiro impacto, em um lampejo de razão, Claire viu-se nua sobre os lençóis. Instantaneamente, as lembranças das experiências dolorosas com Haimo vieram-lhe à mente aos borbotões, dominando-a por inteiro. Em uma fração de segundo, sentiu-se remetida ao passado, encolhendo-se e choramingando como uma criança indefesa diante de uma punição horrível.
— Haesel, minha querida... O que houve? — Alain indagou, preocupado com a súbita mudança de sua amada.
Incapaz de responder, ela começou a chorar. Não compreendia, nem controlava o que estava lhe acontecendo. Embora ainda não tivessem consumado aquela relação, já podia sentir que Alain seria diferente do maldoso Haimo. Mesmo assim, um medo irracional e incontrolável a dominava, ofuscando até mesmo a chama da paixão que ardia em seu corpo.
Em vez de repudiá-la ou seguir em frente à força, ele continuou a acariciar Claire, com mais ternura e suavidade. Infelizmente, já vira muitas mulheres vitimas de homens violentos, para saber que ela deveria ter passado por alguma experiência dramática.
Aos poucos, o carinho de Alain conseguiu sobrepujar as muralhas do medo, e Claire entregou-se a ele. A hesitação do princípio logo cedeu lugar a sensações indescritíveis de puro prazer e êxtase absoluto. Era como se tivesse alcançado o céu!
Ainda zonza de felicidade, apertou as mãos de Alain, quando ele se deitou ao seu lado, com o peito arfando e uma expressão plena de alegria no rosto.
— Minha adorada, sonhava com este momento desde o primeiro instante em que a vi, com os cabelos molhados pela chuva e um ar de incerteza na face — confessou, alisando uma mecha de cabelo loiro que roçava-lhe o seio.
— Oh, Alain! Devo admitir que sempre quis o mesmo, mas lutei contra esse sentimento até o último instante... — Sorriu emocionada, enquanto lágrimas de júbilo escorriam de seus olhos. — Somente agora descobri o que é o amor!
Ele a apertou nos braços, beijando-lhe a boca com paixão. Compartilhava daquelas emoções, pois, embora já tivesse possuído muitas mulheres, apenas agora aprendera a diferença entre amor e sexo.
— Minha querida dama da meia-noite! — exclamou, perdidamente apaixonado por Claire.
— Dama da meia-noite?! — repetiu, intrigada com o modo como ele a chamara.
— Isso mesmo. A noite, como uma fada das histórias de Ivy, você me envolve com seus encantos etéreos e místicos, levando-me às portas do paraíso. Apenas sob a luz da lua, podemos seguir livremente os impulsos dos nossos corações, sem nos importar com o mundo que nos cerca com suas regras rígidas e implacáveis.
— Não pensei que apreciasse as lendas dos antigos povos... — comentou, mudando ligeiramente o foco da conversa. Estava desconcertada com tantos elogios.
Alain riu, erguendo-se daquele leito de amor, sem se preocupar com a nudez. Em seguida, estendeu as mãos para Claire, chamando-a:
— Venha, minha querida. Preciso mostrar-lhe algo.
Ela o seguiu, com o corpo nu envolto apenas em seus longos cabelos loiros, como se fossem uma tênue capa de seda dourada.
Afastando a tapeçaria da parede, Alain mostrou-lhe o orifício por onde podia espiar os acontecimentos no quarto dos filhos.
Perplexa, ela o fitou, à espera de alguma explicação.
— Quando Peronelle nasceu, eu mesmo fiz esse buraco para que Júlia pudesse observá-la durante a noite. — Sacudiu os ombros, com tristeza. — Mas ela nunca se interessou em cuidar da filha...
Claire engoliu em seco. Porém, após descobrir a verdade sobre o caráter egoísta e mesquinho de Júlia, havia decidido não sofrer mais por ela.
— Tem me espionado, então?! — exclamou, de súbito, com a face tingida de vermelho.
— Confesso que quase sucumbi à tentação de admirá-la durante o banho... Mas, por respeito, controlei-me. — Acariciou-lhe o rosto. — Entretanto, como sempre fiz, desde que as crianças nasceram, não me privei de observá-las, a fim de ter certeza de que estavam se entendendo bem com você. Foi assim que ouvi suas histórias sobre os heróis ingleses, como Hereward e Beowulf.
— E aprovou meu desempenho como ama? — perguntou, bem-humorada.
— Você é maravilhosa, Haesel! Com as crianças e comigo! — dizendo isso, tomou Claire nos braços, carregando-a de volta para a cama.
Entre gemidos de êxtase e sussurros de paixão, entregaram-se novamente ao amor, unindo seus corpos como se fossem apenas um único ser.
Na manhã seguinte, o dia amanheceu cinzento e triste, com pesadas nuvens negras cobrindo todo o vale de Hawkswell. Era como se a natureza também compartilhasse da mesma dor que lorde Alain e seus vassalos sentiam pela morte de Verel.
O sino da capela chamou para a missa de corpo presente com dezoito badaladas, uma para cada ano de vida do jovem escudeiro, e a maioria dos moradores do castelo compareceu à cerimônia.
Vestindo uma rica túnica verde-musgo, ornada com o brasão e as jóias de sua família, lorde Alain estava à direita do caixão, prestando as últimas homenagens ao seu valente escudeiro. Muito abatidos, seus filhos estavam ao lado, na companhia de Haesel que se esforçava para consolá-los.
Observar o sofrimento daquelas crianças cortava o coração de qualquer um. A cada instante, uma delas afundava o rosto nas roupas simples de Claire, deixando o tecido molhado de lágrimas.
A morte de Verel fora um grande choque para Guerin e Peronelle. Mais do que quaisquer outros do castelo, os dois estavam confiantes e esperançosos da plena recuperação do amigo. Portanto não fora nada fácil acordá-los, aos primeiros raios da aurora, para dar-lhes aquela notícia triste.
Claire fizera questão de estar junto de Alain naquele momento, confortando tanto os filhos quanto o pai. Na verdade, embora os conhecesse há poucas semanas, amava aqueles três como se fossem sua própria família. Eram tão diferentes da frieza e da maldade de Hardouin ou de Neville, isso para não mencionar o cruel Haimo...
Talvez, desde a morte de seus pais, não tivesse mais sentido os verdadeiros laços de amor, dependência e carinho que unem uma família. Que pena que teria que deixar tudo isso para trás, logo que partisse!
Envergonhada por pensar em seus próprios infortúnios, quando as pessoas que amava necessitavam de sua solidariedade e compaixão, baniu aquele assunto da cabeça, concentrando-se apenas na cerimônia.
— Papai, Verel não será enterrado no cemitério onde estão Ivy e o padre Peter? — Guerin perguntou, confuso, ao ver as pessoas se dissiparem à porta da capela, em vez de acompanharem o cortejo fúnebre.
— Não, filho. O corpo de nosso amigo será enviado para seus pais, lady e lorde Darrow. — Respirou fundo, angustiado ao pensar na dor daquela família. — Eles tem o direito de sepultá-lo junto aos seus antepassados, em Darrowfield.
O menino baixou a cabeça, compreensivo.
Agarrada à saia de Claire, Peronelle mantinha-se em silêncio, quebrado apenas por um ou outro soluço mais forte.
Ainda estavam diante da capela, quando sir Gautier veio chamar lorde Alain para solucionar alguns problemas do castelo. Antes de se afastar, entretanto, ele deu um abraço afetuoso em cada um dos filhos e dirigiu um olhar de ternura e paixão para Claire.
Um par de olhos sinistros acompanhou aquela cena com grande interesse. Sorvia cada gesto, cada palavra e expressão com um prazer insaciável, como se estivesse provando um líquido raro e delicioso. Não perdeu sequer um detalhe, principalmente a troca de olhares entre lorde Alain e sua suposta serva, bem como a fisionomia extenuada e feliz de lady Claire.
Com certeza, eles se tornaram amantes! Posso ver as provas dessa infâmia inscritas em seus rostos apaixonados! Preciso agir depressa para neutralizar qualquer ação de lady Claire. Caso contrário, essa traidora poderá arruinar de vez os planos de lorde Hardouin!
— Muito bem, sir Gautier. Do que se trata? — Alain indagou, assim que chegaram à biblioteca do castelo. Ali poderiam conversar à vontade sobre assuntos estratégicos e secretos, sem o perigo de serem ouvidos por ninguém.
— Precisa responder a carta da imperatriz, milorde. Já faz dois dias que chegou.
— O que Matilde deseja dessa vez?
Sir Gautier encheu o peito, preparando-se para resumir o conteúdo da carta. Desde os tempos em que fora cavaleiro do pai de lorde Alain, era parte de suas atribuições fazer relatórios sobre a correspondência recebida e também redigir todas as cartas e documentos de Hawkswell.
Embora fizesse questão de escrever suas próprias cartas, Alain permitia que sir Gautier continuasse a ler e a resumir a correspondência que chegava ao castelo.
O velho cavaleiro sentia-se orgulhoso por desempenhar essa função.
— Além das considerações de costume sobre o futuro de Guerin, a carta traz uma grande novidade. Matilde finalmente arranjou-lhe uma noiva, milorde!
Surpreso com a notícia, Alain engasgou, ficando vermelho de cólera e susto. Essa notícia não poderia ter chegado em pior hora! Justamente quando descobrira o amor nos braços de Haesel, seria forçado a desposar outra mulher!
— Trata-se da jovem filha de lorde de L Aige. Deve conhecer essa família, não é? — sir Gautier prosseguiu. alheio à reação de desagrado de Alain. — Os De L Aige são muito ricos e poderosos, com grande influência na corte de Estevão e de Matilde. Felizmente, mantiveram-se fora da disputa entre os dois monarcas.
Alain compreendia muito bem todas as implicações daquele casamento. Na verdade, Matilde não poderia ter-lhe arranjado uma união mais vantajosa. Desposando lady Simone, receberia um valioso dote da noiva e, graças às ligações da família De L Aige, Hawkswell ficaria sempre em posição favorável ao rei da Inglaterra, não importando quem estivesse no trono. Contudo, apesar de todas essas vantagens, não poderia ficar imune aos desejos de seu coração. Amava Haesel e não queria perdê-la sob hipótese alguma!
Uma possível solução para esse impasse seria manter Haesel como amante, enquanto desposava lady Simone. De fato, esse procedimento não iria causar nenhum escândalo na sociedade, contanto que não colocasse as duas mulheres sob o mesmo teto. Muitos nobres respeitados não tinham escrúpulos em manter uma, duas ou até mais amantes bem à vista da corte.
Decididamente, não posso fazer uma coisa dessa! Não seria justo com nenhuma das duas!, concluiu, afastando aquela idéia perniciosa de sua cabeça. Além disso, só de imaginar a dor que causaria a Haesel, quando a informasse de seus planos, sentia uma dor aguda no peito.
Haesel não era como Gilda, que se sujeitaria a qualquer coisa para manter os favores de um nobre. Sua alma sensível acabaria esmigalhada, caso aceitasse desempenhar um papel daqueles. Tinha certeza de que ela partiria antes que a jovem lady Hawkswell chegasse ao castelo e descobrisse sua existência.
Respirou fundo, meditando sobre aquela possibilidade.
A vida sem Haesel não teria mais sentido! Tudo ficaria sombrio e melancólico, sem nada que pudesse confortar seu coração, atormentado por todas as responsabilidades que cabiam a um senhor feudal. Além disso, nenhuma nobre normanda trataria Guerin e Peronelle com o mesmo amor e carinho de Haesel. E, mesmo que não fosse tão fria e desumana quanto Júlia, sua nova esposa iria desprezar o menino, que todos acreditavam ser seu filho bastardo com uma serva.
— Lady Simone de L Aige tem apenas quinze anos, mas dizem que é muito bela e meiga — sir Gautier continuava a falar sobre as vantagens daquele casamento. No entanto já estava preocupado com o silêncio e a fisionomia carregada de lorde Alain.
Lentamente, ele fitou o cavaleiro e, com toda a calma do mundo, expôs sua posição sobre aquele assunto:
— Não vou me casar com lady Simone de L Aige.
Sir Gautier ficou mudo de espanto. Estava pálido e ofegante, como se estivesse cara a cara com um urso.
— Matilde não pode me tratar como um garoto, que deve obedecer todas as suas ordens sem retrucar! — À medida em que tomava consciência da felicidade e da sensação de alívio que sua decisão lhe causava, sua voz ia se tornando mais forte e vibrante.
— Mas, milorde... — tentou argumentar, recuperando-se do primeiro impacto. Precisava demovê-lo daquela idéia absurda o quanto antes! — Já esperávamos que isso fosse acontecer. Aliás, chegou até a pedir à imperatriz que lhe arranjasse uma noiva o mais breve possível!
Era verdade. No entanto a entrada de Haesel em sua vida havia mudado tudo! Agora que conhecia o aconchego e a felicidade que o amor autêntico traz àqueles que o experimentam, não iria abrir mão disso por nada!
— Já me decidi. Não vou me casar com lady Simone, nem com nenhuma outra mulher que não seja escolhida por mim!
Sir Gautier suspirou, resignado. Conhecia Alain o suficiente para saber que ele já tomara uma posição e. quando isso acontecia, raramente voltava atrás.
À medida em que o sol se punha, o coração de Claire começou a bater mais depressa, tomado por ansiedade e excitação. Contou os minutos até que as crianças adormecessem, após o jantar. Por fim, quando teve certeza de que os dois peraltas foram vencidos pelo sono, esgueirou-se até os aposentos de Alain, como na noite anterior. Estava morta de saudades, pois não haviam se encontrado durante o resto do dia.
— Ah, minha dama da meia-noite! — ele a recebeu com um suspiro, extasiado. — Essa longa espera estava se transformando na pior das torturas! Temia sucumbir de paixão e acabar invadindo o quarto das crianças, à sua procura.
Sorrindo de alegria, Claire correu para os braços de Alain, entregando-lhe os lábios úmidos e sensuais.
Trocaram um beijo longo e voluptuoso; por vezes, beirando a violência, tamanha era a saudade que sentiam um do outro. O desejo os consumia com a fúria devastadora de um vendaval, não sobrando espaço para nenhuma outra forma de comunicação, a não ser a linguagem do corpo. Precisavam amar-se com urgência, como se suas vidas dependessem disso. Fazer amor era o oxigênio que os mantinha vivos.
Entre gemidos e beijos, deitaram-se na cama, amando-se com sofreguidão. Na ânsia louca de saciarem aquela paixão, já haviam se despido, quase sem perceberem.
Tudo era muito natural e espontâneo quando estavam juntos; seus corpos estavam em tal sincronia que dava a impressão de terem sido feitos para se completarem.
Por fim, ofegantes e trêmulos de felicidade, deitaram-se lado a lado, de mãos dadas. Agora poderiam conversar calmamente, sem que seus corpos exigissem pressa para serem saciados.
Claire apoiou-se nos cotovelos, observando a fisionomia altiva de Alain. Não importava o que lhe acontecesse, aqueles momentos felizes estariam gravados em sua memória para sempre, dando-lhe forças para suportar quaisquer desventuras que o destino lhe reservasse.
— Quisera que a noite jamais terminasse, minha adorada.
Ela deitou a cabeça sobre o peito de Alain, escondendo o rosto. Não queria que ele percebesse a nuvem de tristeza que se apossara de seu semblante. Mais alguns dias e teria que partir...
— Eu te amo, Alain! — exclamou, entre lágrimas, movida por uma enxurrada de emoções, tão incontroláveis quanto contraditórias. Quando ele descobrisse quem era, talvez viesse a odiá-la. Seu único consolo era compartilhar com ele o sentimento que inundava seu coração; nesse ponto, não havia farsas, nem mentiras, apenas a verdade.
Ele ergueu o rosto de Claire, enxugando-lhe as lágrimas carinhosamente com as mãos.
— Oh, Haesel! Por que chora? Acaso não a faço feliz?
— Claro que sim! Jamais pensei que pudesse existir tanta felicidade na Terra! — Sorriu-lhe de modo encantador, com os olhos ainda embaçados pelo choro. — Só estou com medo de que isso chegue ao fim logo...
— Não tema, minha querida. Um amor como o nosso jamais irá se acabar. Nada nem ninguém conseguirá nos separar! Não sabia que o amor verdadeiro é uma bênção divina, capaz de resistir a todas as provações? — Olhou dentro daqueles olhos azuis, buscando a alma de Claire. Então, declarou, solene: — Eu também te amo, Haesel.
Eles se abraçaram fortemente, ficando assim, colados um ao outro, por longos minutos. Queriam esquecer o mundo que os cercava com seus preconceitos, maledicências e regras de disciplina. Em seus corações, eram apenas um homem e uma mulher que se amavam; e isso era tudo o que lhes importava!
De repente, Alain quebrou aquela atmosfera de encantamento que os envolvia, trazendo-os para a realidade. Se bem que, para Claire, suas palavras pareciam saídas de um conto de fadas...
— Haesel, quero me casar com você.
À princípio, ela pensou que estivesse delirando, embriagada pela felicidade que a presença desse homem lhe causava. Afinal, ninguém em sã consciência poderia acreditar em uma proposta daquelas. Aos poucos, entretanto, foi percebendo que não estava louca, nem sonhando acordada; Alain estava realmente disposto a desposá-la!
No mesmo instante, a confusão tomou conta de sua mente e de seu coração, mergulhando-a em um redemoinho de emoções antagônicas e tempestuosas. Tudo aquilo era maravilhoso e absurdo demais para ser verdade... Desposar Alain era o que mais desejava no mundo! Mesmo assim. não podia ir se entregando aos seus sonhos sem considerar os prós e os contras da situação, que por sinal eram muitos.
— Isso é loucura! — conseguiu dizer, com muito custo, ainda com a voz fraca. — Você é um nobre normando e eu, uma serva inglesa!
— Qual é o problema? Nós nos amamos, e isso é tudo o que deve nos importar! — Sua expressão era de uma sinceridade profunda e comovente. — Por conta do que sinto por você, acabei de recusar o casamento com uma nobre normanda, escolhida por Matilde. Agora, quero tomá-la minha esposa perante os olhos de Deus e dos homens, Haesel!
Claire queria gritar que aquilo era um absurdo, um ato insano, mas, não conseguiu emitir uma só palavra... Um trovão pareceu ecoar em sua cabeça, mostrando-lhe um novo caminho a seguir; de repente, tudo passou a fazer sentido.
Se ele tinha coragem para contrariar a imperatriz e toda a sociedade, casando-se com uma serva, ela também deveria agir como uma pessoa de fibra e enfrentar todos os seus medos. Seguiria os apelos de seu coração, aceitando unir-se ao homem que amava! É claro que isso implicava em contar-lhe quem realmente era: lady Claire de Coverly, prima de Júlia e sobrinha do terrível e ardiloso Hardouin d Evreux. Contudo jamais mencionaria o que de fato a trouxera até o Castelo de Hawkswell. Temia que nem mesmo o mais forte dos amores resistisse a uma revelação pesada como aquela...
— Eu aceito — disse, timidamente, após uma pausa prolongada, que pareceu durar horas para os nervos de Alain.
Ao ver a expressão de alívio e de infinita alegria no rosto dele, rendeu-se à explosão de contentamento que fluía por suas veias, misturado ao seu sangue.
— Oh, Alain! Estou tão feliz! Quero muito ser sua esposa e mãe de Guerin e Peronelle!
Selaram aquele acordo com um beijo impetuoso e emocionado, prenúncio de uma nova vida para ambos. Em seguida, passaram a se amar louca e insaciavelmente...
Um último pensamento ainda perturbou Claire, antes de se entregar inteiramente aos domínios da paixão. Seria melhor dizer-lhe a verdade no dia seguinte; assim manteria intacta a grandiosidade daquele instante mágico.
Na manhã seguinte, Guerin e Peronelle foram os primeiros a receber a notícia, da boca dos próprios noivos. E, certamente, ninguém ficou mais feliz do que eles. Pularam, bateram palmas e abraçaram Haesel, chamando-a de mamãe. Essa reação esfuziante dos filhos bastou para confirmar a Alain que tomara a decisão certa.
Em menos de uma hora, a notícia do inusitado casamento de lorde Alain com a serva Haesel espalhou-se pelo castelo inteiro. Por todo canto, comentava-se o assunto com alegria e júbilo. Os habitantes de Hawkswell, que já admiravam seu amo por ser justo e bondoso, agora se orgulhavam ainda mais dele. Desposar uma serva inglesa era um ato de coragem que também valorizava um povo tão desprezado pelos nobres normandos. Além disso, Haesel era muito querida por todos, exceto Gilda e alguns outros de má reputação no castelo.
Uma pessoa sinistra, entretanto, odiou aquela novidade acima de tudo. Após analisar a situação, concluiu que já era hora de fazer lady Claire pagar por ter traído seu amo, lorde Hardouin.
Alheia à presença dessa criatura das sombras, Claire reuniu-se com Annis, Marie e suas ajudantes para falar sobre os preparativos do casamento. Mal cabendo em si de alegria, Annis cumprimentou a amiga com um abraço caloroso e sincero.
— Agora, precisamos arranjar-lhe roupas de dama, Haesel — declarou, enfática. — Não fica bem andar por aí vestida com esses trajes simples.
A cozinheira e suas ajudantes concordaram de imediato, apesar da hesitação de Claire. Logo, ficou decidido que Annis se encarregaria de preparar o enxoval da nova senhora de Hawkswell, usando os veludos, os brocados e demais tecidos nobres, guardados em uma sala especial do castelo.
Marie, no entanto, estava mais preocupada com as comidas que iria preparar para as comemorações. Queria um cardápio sofisticado e inesquecível para aquela data, digno das festas na corte de Matilde.
Claire ouvia tudo, satisfeita por ver que seu casamento também era do agrado do povo de Hawkswell. Contudo, até que esse dia chegasse, fazia questão absoluta de manter suas atividades normais como ama de Perry e Guerin.
Desse modo, seguiu sua rotina com precisão, sendo que a única mudança que aceitou fazer foi preparar-se com zelo para o jantar daquela noite. Era uma data especial, pois iria sentar-se à mesa de lorde Alain pela primeira vez.
Um pouco antes do jantar, foi para o quarto banhar-se e vestir o traje de veludo azul, bordado com pérolas, que Annis lhe arranjara.
Já estava quase pronta, quando, de súbito, percebeu um envelope colocado de maneira estratégica sobre sua cama. Devia estar tão entusiasmada com os preparativos, que nem o havia notado ao entrar no quarto.
"Para Haesel" estava escrito no centro do envelope. Com o coração em sobressalto e as mãos trêmulas, começou a ler a mensagem, ficando mais pálida e nervosa, à medida em que tomava ciência do conteúdo assustador daquelas linhas, escritas em francês...
"Cara lady Claire, Lorde Hardouin, seu tio, tem olhos por toda parte, incluindo este castelo. Portanto ele me pede para lembrá-la dos compromissos que assumiu, antes que essas tolas fantasias de amor lhe turvassem a razão. Esqueça esse ridículo casamento com lorde Alain e cumpra seus deveres sem mais demora! Caso contrário, uma das crianças sofrerá na pele, por sua traição! Estou certo de que me compreendeu perfeitamente."
É claro que a carta não estava assinada.
Ao terminar de lê-la, Claire sentia-se gelada e catatônica, como se tivesse acabado de receber o beijo frio da morte. A vida parecia não mais pulsar em seu corpo, tão grande era o medo, o choque e a revolta que a dominavam.
Assim que conseguiu sair daquele estado de apatia, pensamentos terríveis tomaram-lhe a mente de assalto.
Meu Deus! Se existe um espião de Hardouin entre estas paredes, Alain e as crianças correm risco de vida!
Durante o jantar, Claire não conseguiu se descontrair nem por um segundo. Estava nervosa e apreensiva, por causa da carta anônima que recebera.
Discreta, observou todos os rostos à sua volta, tentando flagrar qualquer atitude suspeita que a levasse ao temido espião. Afinal, essa pessoa não poderia ser um simples servo, já que sabia escrever e dominava o francês com perfeição.
Outra hipótese possível, apesar de remota, era que algum dos mercenários de Hardouin tivesse escrito aquela mensagem e arranjado um jeito de fazer com que chegasse às mãos de Claire. Isso a tranqüilizava um pouco, mas, só um pouco...
De qualquer forma, ficaria de olhos bem abertos, à espera de que esse tratante se denunciasse. Até lá, seria capaz de sacrificar sua própria vida para proteger as crianças!
O nervosismo de Haesel não passou despercebido para Alain. Contudo considerou o comportamento da noiva natural, diante da pressão de ser apresentada oficialmente como a futura baronesa de Hawkswell.
Mais tarde, entretanto, quando ficaram a sós em seus aposentos, ela ainda se mostrava agitada e aflita, como se algo a incomodasse.
— O que houve, querida? Parece nervosa... — Alain comentou, assim que ela esquivou-se de seu beijo de boas-vindas. — As crianças a maltrataram?
— Claro que não! Eles são maravilhosos! — exclamou, com veemência, fugindo daqueles olhos perscrutadores.
— Então o que foi? Acaso alguém a desprezou ou ofendeu?
Ela fez um gesto negativo com a cabeça.
— Todo o povo de Hawkswell está sendo muito bom comigo. Parece que nosso casamento caiu nas boas graças de seus súditos.
Alain cravou os olhos escuros em seu rosto, à procura de pistas que o ajudassem a descobrir os motivos daquele comportamento reservado.
Sabendo que não conseguiria esconder a verdade por muito tempo, caso ele continuasse a pressioná-la, Claire achou melhor se afastar. Nesse momento, sentia-se fraca e sem coragem para confrontá-lo com os fantasmas que a atormentavam.
— Só estou cansada...
Alain a abraçou, compreensivo.
— Minha querida dama da meia-noite! Estou sendo cruel com você! Passamos as últimas duas noites praticamente em claro, fazendo amor. E ainda teve que suportar a energia inesgotável das crianças durante o dia. — Deu-lhe um beijo terno na face. — Deve estar exausta!
Claire sentiu o corpo inteiro arrepiar-se com aquele toque, ao mesmo tempo em que seu coração se contorceu de remorso por esconder-lhe a verdade. Queria cobri-lo de beijos e carícias, mas sabia que, se o fizesse, teria que acabar com aquela farsa. Como o medo falou mais alto do que a paixão, só conseguiu recuar.
— Descanse esta noite, Haesel. Ambos tivemos um longo dia — Alain declarou, sem demonstrar mágoa.
Ela agradeceu com um sorriso e, mais do que depressa, retornou ao quarto das crianças. Com o coração pesado de remorso, prometeu a si mesma que contaria toda a verdade no dia seguinte.
Dois dias se passaram e Claire não conseguiu reunir coragem para revelar a trama de Hardouin. No entanto seu comportamento estranho já estava chamando a atenção de várias pessoas. Além de parecer angustiada e nervosa, não deixava as crianças sozinhas por um instante, a não ser durante as aulas de padre Gregory. Quanto a Alain, procurava evitá-lo a todo custo, arranjando desculpas esfarrapadas para não passar as noites com ele. Só conseguia pensar em descobrir o espião e proteger Guerin e Peronelle!
— Precisamos provar seu vestido de noiva — Annis anunciou, logo após o almoço. — Do contrário, não conseguirei aprontá-lo para o casamento!
Claire lançou um olhar desesperado para as crianças. Estava um lindo dia de sol, portanto seria difícil afastar seus pupilos do pátio, enquanto experimentava as roupas do enxoval. Ao mesmo tempo, já usara todas as desculpas possíveis para escapar de Annis no dia anterior, de modo que não poderia mais adiar aquele compromisso.
— Crianças, venham comigo até o quarto. Prometo que faremos um belo passeio pelo pátio, assim que eu experimentar as roupas.
Os dois foram unânimes ao protestar. Não podiam entender porque Haesel estava agindo daquele modo esquisito nos últimos dias, nem mesmo Ivy costumava ser tão zelosa e preocupada assim.
Usando muito tato e simpatia, ela conseguiu convencê-los a colaborar. Porém, ambos estavam ficando cada vez mais arredios e desconfiados de sua vigilância cerrada.
Annis observou toda a cena, achando exagerada a preocupação de Haesel. Todavia manteve-se calada.
Assim que chegaram ao quarto, entretanto, Claire se deu conta das dificuldades daquela situação. Como iria se despir na frente de Guerin?
— Que tal esperarem por mim nos aposentos de seu pai? — sugeriu, percebendo que teria que ceder um pouco.
Os irmãos se entreolharam, aceitando aquela proposta sem pestanejar.
— Mas prometam-me que não irão sair dali até que eu vá encontrá-los! — Seu olhos azuis pareciam suplicar para que as crianças a obedecessem.
— Está bem... — disseram em coro, correndo para fora do quarto, como dois pássaros que ganhavam a liberdade.
— Não devia se preocupar tanto assim com as crianças — Annis aconselhou, enquanto fazia os ajustes no belo vestido azul celeste que a noiva deveria usar na cerimônia de casamento. — Afinal, os filhos do barão estão perfeitamente seguros dentro das muralhas do castelo.
Os olhos de Claire encheram-se de lágrimas e o coração ficou apertado. Oh, Deus! Como gostaria de compartilhar suas aflições e temores com Annis! Mas deveria ser cautelosa; qualquer um no castelo, com exceção de lorde Alain, poderia ser o espião ou seu cúmplice...
Annis nem percebeu a melancolia de Haesel. Falava sem parar, excitada com o casamento da amiga com o barão de Hawkswell. Aquilo até parecia um conto de fadas!
— Nunca teve filhos? — indagou, tentando puxar conversa. — Desculpe se estou sendo muito bisbilhoteira, acontece que sabemos pouco sobre sua vida antes de chegar a Hawkswell.
— Está tudo bem. — tranqüilizou-a. — Não tive filhos, porém já fui casada... Ele morreu há um ano. — disse, sem nenhuma emoção na voz. — Deus me perdoe, mas aquela morte foi uma bênção para mim! Meu marido era um homem muito cruel e violento...
Annis lançou-lhe um olhar reconfortante. Já vira muitas mulheres, do povo e até da nobreza, sofrerem nas mãos de maridos inescrupulosos. Por isso compreendia o ressentimento de Haesel.
— Com lorde Alain, garanto que será a mais feliz das mulheres sobre a face da Terra! Ele conseguirá apagar todas essas cicatrizes de mágoa e tristeza que você ainda traz no coração.
Ela sorriu, de pleno acordo com a opinião de Annis. Ninguém poderia desejar um marido melhor do que Alain.
— Deve ser por isso que anda nervosa e preocupada com as crianças... Acalme-se e aproveite a fase dos preparativos! — continuou a dar conselhos à noiva, enquanto a fazia provar um vestido atrás do outro.
Angustiada com a demora, Claire nem prestava atenção nos trajes ou na conversa. Só queria sair dali depressa e ficar junto de Guerin e Peronelle! Afinal, quando terminou de experimentar aquela montanha de vestidos, sais, capas e camisolas, correu para os aposentos de Alain. Então, teve uma terrível surpresa... Seu grito de pavor cortou o ar, atraindo Annis e o próprio lorde Alain, que estava nas proximidades. Ao entrarem no quarto, os dois encontraram Haesel branca e com os olhos esbugalhados, como se tivesse acabado de ver um fantasma.
— As... crianças... sumiram... — gaguejou, dominada pelo pânico.
— Ora, devem ter se cansado de esperar e foram para o pátio — Annis comentou, aliviada por saber que nada de grave acontecera. Pela reação de Haesel, esperava se deparar com uma tragédia.
— Procure por eles, Annis — lorde Alain ordenou, enquanto procurava acalmar a noiva.
Agora, tinha certeza de que Haesel estava lhe escondendo algo muito sério. Desde o anúncio do casamento, ela havia se transformado em uma outra pessoa. Andava melancólica e atormentada, com os nervos à flor da pele, além de fugir de qualquer contato mais íntimo. Iria esclarecer aquele assunto, agora mesmo!
— Precisamos encontrá-los! — ela afirmou, de repente, já correndo para a porta.
Diante da aflição de Haesel, Alain começou a se sentir angustiado com o paradeiro dos filhos. Iria achá-los primeiro, mas, depois, teria uma conversa muito séria com a noiva.
Graças aos santos, logo que chegaram ao salão principal, encontraram Peronelle na companhia de Annis. Claire abraçou a menina, chorando convulsivamente.
— Não queria deixá-la triste. Prometo que não vou mais desobedecê-la — a menina desculpou-se, afagando os cabelos cor de mel de Haesel. — Só fui brincar com os gatinhos...
— Aonde está Guerin? — Claire indagou, ansiosa.
— Ele foi ver os cães.
Nem acabou de ouvir isso, saiu correndo na direção do canil, sem esperar por Alain ou Peronelle.
— Oh! Deus! — gritou, assim que chegou ao pátio.
Padre Gregory vinha carregando Guerin. O menino estava desacordado, com o corpo coberto de sangue.
— O que aconteceu? — Alain bradou, tomando o filho nos braços.
— Não sei o que houve, milorde... — o padre explicou, consternado. — Eu o encontrei caído, perto da sala de armas. Parece que foi atingido no ombro por um golpe de adaga ou punhal.
Alain nem prestou atenção ao que o padre dizia, nesse instante, só se preocupava em socorrer Guerin para que não tivesse o mesmo fim de Verel. Todavia, mais tarde, iria investigar pessoalmente o que acontecera ao filho.
Claire entregou Peronelle aos cuidados de Annis e fez questão absoluta de tratar do ferimento do menino. Sua postura era tão determinada e segura, que nem mesmo Alain ou padre Gregory conseguiram afastá-la da cabeceira de Guerin. Recorrendo às suas experiências com ervas, preparou um ungüento para estancar o sangue que jorrava do ombro do menino.
Alain e o padre, reduzidos a posição de coadjuvantes, apenas a observavam agir com a perícia de uma curandeira, encarregando-se de providenciar o que ela lhes pedia.
Horas mais tarde, quando o sol estava se pondo, a situação pareceu se normalizar. A hemorragia diminuíra e Guerin parecia respirar com menos dificuldade.
Entretanto continuava inconsciente.
Então Alain dispensou a companhia do padre, pedindo que orasse pelo restabelecimento do filho. Mais do que nunca, queria ficar a sós com Haesel. Uma série de perguntas sem respostas girava em sua cabeça, como peças de um enigma que precisava decifrar.
— O que tem a me dizer? — inquiriu, sem rodeios. — Como desconfiou de que as crianças corriam risco de vida?
Claire respirou fundo, reunindo todas as suas forças, e encarou Alain. Enfim, chegara o momento de acabar com aquela farsa.
CAPÍTULO 19
— Não consigo imaginar quem poderia fazer mal ao meu filho! Meus únicos inimigos são os seguidores de Estevão... — Alain comentou, tomado por intensa confusão mental.
Coisas muito estranhas vinham acontecendo em Hawkswell há um bom tempo. As mortes súbitas de padre Peter e de Ivy, a prisão dos soldados de Estevão em suas terras, o ataque dos foras-da-lei, a morte de Verel, culminando com o ataque a Guerin dentro do próprio castelo! Isso tudo não poderia ser apenas um amontoado de coincidências, deveria existir algo por trás de todas essas tragédias e incidentes... Sentia que, de alguma forma, as pistas estavam bem à vista, só precisava ordená-las!
Mas não sabia como, nem por onde começar...
Haesel também andava estranha. Por que havia começado a se preocupar tanto com o paradeiro das crianças? Com certeza, devia estar sabendo de algo... Então, como se um raio o tivesse iluminado, as coisas começaram a fazer sentido.
— Há espiões de Estevão no castelo, não é? — indagou, à espera de uma confirmação. Traços de ódio e desconfiança marcavam seu rosto.
Ela fez um sinal afirmativo, já se preparando para a próxima e inevitável pergunta.
— Como sabe disso?
— Trata-se de uma longa e triste história. Só espero que possa me perdoar, quando estiver tudo esclarecido...- Manteve o olhar fixo no rosto de Alain, cuja expressão de desapontamento de amargura a feriam mais do que cem chibatadas. — Para começar, meu nome não é Haesel, nem sou uma serva inglesa. — Respirou fundo.
— Sou lady Claire de Coverly.
— Claire de Coverly... — ele repetiu, vasculhando a memória à procura de pistas sobre aquele nome familiar. — Minha nossa! Júlia falava sempre de você! É irmã de Neville de Coverly e sobrinha de lorde Hardouin d Evreux, um dos mais fortes aliados de Estevão!
— Isso mesmo.
Alain ficou petrificado. Labaredas de ódio e desprezo pareciam dançar em seus olhos, que não se desviavam, nem por um segundo, do rosto de Claire.
— Então foi enviada a Hawkswell para me espiar?
— Infelizmente, milorde, minha tarefa aqui era muito pior... — Tomou fôlego e prosseguiu com a confissão: — Meu tio queria que eu raptasse seus filhos para forçá-lo a se submeter ao rei Estevão.
— Jesus Cristo! Um plano desses só poderia sair daquela mente diabólica! — Buscou os olhos de Claire, com desespero. — Por que aceitou participar dessa trama? Por quê?
— Fui forçada!
— Ah, é? Gostaria de entender como!
— Meu tio ameaçou casar-me com um homem tão bruto quanto meu falecido esposo. Se eu cumprisse minha parte nesse trato, ganharia minha liberdade.
— Agora me lembro... Seu marido era o asqueroso Haimo d Audemer. — Jamais o vira tão irônico antes. — Acaso, também o matou, milady?
— Claro que não! Ele quebrou o pescoço em uma queda de cavalo. — Já não se importava mais em limpar as lágrimas que rolavam por sua face, feito uma cascata. — No entanto, confesso que tive vontade de matá-lo muitas vezes.
A sinceridade de Claire pareceu sensibilizá-lo um pouco, pois sua expressão tornou-se menos sarcástica.
— O que iria fazer então, Haesel? Ou melhor, lady Claire?
— Logo no começo, afeiçoei-me às crianças e desisti do plano. Pretendia fugir para bem longe daqui. Entrar para um convento ou esconder-me em algum lugar onde pudesse escapar das garras de meu tio. — Cruzou os braços no seio, como se esse gesto pudesse diminuir a dor que sentia no coração. — Mas, então, Verel acabou morrendo e nós nos tornamos amantes...
Os olhos escuros de Alain ficaram vermelhos de cólera, ao juntar mais algumas peças daquele quebra-cabeça.
— Os bandidos que atacaram meu camponês e mataram Verel são homens de Hardouin! Assim como os prisioneiros que estão no calabouço, não é?
— Sim... — ouviu-se dizer, com voz fraca. Sentia vertigens e pontadas no estômago, mas apoiou-se em um móvel, ocultando seu mal-estar. O pouco orgulho que lhe restava exigia que se portasse com dignidade até o fim.
— Eles me trouxeram até aqui e deveriam escoltar-me de volta ao Castelo de Coverly, quando eu conseguisse capturar as crianças.
— Por que me fez acreditar que me amava, quando tudo não passava de uma mentira?
Claire achou que não fosse suportar tamanha dor. Porém o sangue dos Coverly corria em suas veias, exigindo que se defendesse daquela acusação injusta. Ergueu a cabeça, aprumou os ombros, encarando Alain em posição de igualdade.
— Nenhuma acusação que me fizer estará à altura das recriminações de minha própria consciência, milorde. Sei que estava errada e, por isso mesmo, já havia desistido de colaborar com o plano de meu tio... No entanto, isso não lhe dá o direito de duvidar do amor sincero que sinto por seus filhos e por sua pessoa!
— Como posso acreditar em você, depois de tudo o que me contou?
— Sei que não será fácil... Mas faça um exame em seu coração e verá que não menti ao dizer que o amava! Além de tudo, você mesmo disse que um amor como o nosso poderia superar qualquer barreira!
— Vejo que é sagaz e astuta como seu tio, milady! Está usando minhas próprias palavras contra mim. — Todos os seus gestos vinham carregados de ironia. — Só posso lhe dizer que me apaixonei por Haesel, uma serva inglesa, meiga e carinhosa. Eu a amava tanto que estava disposto a desposá-la!
— Amava? — retrucou, vacilante.
— Sim, pois agora vejo que Haesel não existe. Estou diante de outra pessoa, uma completa desconhecida, e não sei o que sinto por você!
— Iria lhe contar a verdade! — murmurou, desesperada para que ele acreditasse no que dizia. — Só estava reunindo coragem para fazê-lo...
— E quando seria isso, milady? Após as nossas núpcias? Ou será que isso também fazia parte dos projetos de Hardouin? Afinal, ser minha amante não deveria estar à altura de uma nobre de tão ilustre família normanda...
Inesperadamente, Claire ficou estática, como se não passasse de um ser inanimado. As lágrimas cessaram, junto com a agonia e o desespero. Não sentia mais nada, era como se tivesse morrido por dentro...
— Parece insignificante dizer-lhe isso agora, mas estava disposta a ficar em Hawkswell, mesmo que fosse apenas sua amante. Aceitaria esse papel com felicidade até que Matilde lhe designasse uma nova esposa. Só então partiria, tomando os votos sagrados em algum convento. Mas nada disso importa mais... — Uma calma mórbida, filha da total ausência de esperança, comandava seus gestos. Todos os vínculos que a prendiam à vida havia se desfeito... Estava pronta para receber a morte de braços abertos.
Então, olhando ao acaso para o menino inconsciente, vítima das ambições desmedidas do tio, percebeu que ainda lhe restava tarefas a cumprir. Tirou a carta ameaçadora do bolso, entregando-a para Alain.
— Hardouin tem espiões dentro do meu castelo! — ele afirmou, ainda aturdido, após passar os olhos rapidamente pelo papel amarfanhado.
— A princípio, recusei-me a aceitar essa hipótese. Cheguei até a pensar que um dos mercenários de meu tio tivesse convencido um servo a colocar essa mensagem entre as minhas coisas.
— Sim, mas, diante do acidente de Guerin, não há como duvidar do fato. Há um espião entre meus vassalos mais nobres! — Estava branco, como as velas que iluminavam o quarto.
— Todos são suspeitos...
— Preciso apanhar esse facínora inescrupuloso, antes que faça mais algum mal aos meus filhos! — Ele cerrou os punhos, mesclando ódio e determinação.
Mesmo após aquela conversa, Claire não se afastou da cabeceira de Guerin por um minuto. Aquela noite seria decisiva para salvá-lo e esta tornara-se a razão de sua vida. Ela mesma preparou todos os ungüentos e chás que ministrou-lhe, apegando-se a esses cuidados com tal afinco que estava disposta a morrer ou matar se tentassem tirá-la dali. Nem mesmo padre Gregory, tão hábil na manipulação de ervas medicinais, conseguiu chegar perto do enfermo.
Talvez por piedade, ao vê-la sofrer tanto, ou porque seu coração lhe dissesse que ainda podia confiar em Claire, Alain permitiu que cuidasse do filho. Aliás, pelo mesmo motivo, levou a assustada Peronelle para junto da ama, mandando que dois guardas guardassem a entrada do quarto. Ninguém deveria entrar ou sair, sem sua autorização. Além das crianças e de Claire, apenas padre Gregory era admitido no quarto.
Embora não quisesse se afastar do leito de Guerin, Alain foi obrigado a fazê-lo. Tinha que tomar providências para descobrir a identidade daquela cobra venenosa que se infiltrara em seus domínios.
Com esse objetivo em mente, foi direto ao calabouço onde estavam aprisionados Ivo e Jean. Esses tratantes deveriam saber algo sobre o espião e iriam falar a qualquer custo! Estava disposto a usar até tortura para que abrissem a boca! No entanto, assim que a porta da cela foi aberta, lorde Alain deparou-se com mais uma surpresa desagradável...
Os dois prisioneiros estavam mortos, estendidos no chão, sem nenhum ferimento que pudesse indicar a causa.
Envenenamento! Alain concluiu, após examinar rapidamente os corpos. Seu inimigo era muito mais ardiloso e astuto do que imaginava.
Acabrunhado, deixou o calabouço com passos lépidos, esquivando-se da conversa entre sir Gautier e os soldados, que os acompanhavam, sobre a morte dos prisioneiros.
Queria estar junto dos filhos para protegê-los!
Dessa forma, só conseguiu apaziguar seu coração angustiado, quando viu as crianças sãs e salvas, sob a tutela de Claire.
Guerin ainda estava inconsciente, porém a respiração voltara ao normal e a face estava menos pálida. Peronelle por sua vez, dormia calmamente, com a cabeça apoiada no colo de Claire. Assustada com o acidente do irmão, a menina só conseguira se acalmar junto de sua querida ama.
Só Deus poderia explicar porque ainda tinha coragem de deixar aquela impostora cuidar de seus filhos. Embora contrariasse quaisquer impulsos racionais, sentia que ela não permitiria que fizessem nenhum mal às crianças.
Meu Deus! Não sabia o que pensar sobre essa mulher! Amor e ódio, confiança e temor mesclavam-se em seu coração, confundindo-o. Será que algum dia conseguiria perdoá-la?
"Atire a primeira pedra quem nunca pecou", a célebre frase de Jesus Cristo lhe veio à mente, como um ensinamento de humildade e perdão. Afinal de contas, quem era ele para recriminar eternamente alguém que cometera um erro, do qual, aliás, já estava arrependido?
Com o coração aliviado pelo bálsamo do perdão, sentou-se em uma cadeira, perto da cama.
— Claire... — sussurrou, com voz aveludada.
Ela moveu a cabeça na direção de Alain, mas não teve coragem de encará-lo. Culpa, remorso e vergonha davam-lhe a triste sensação de que era a pior criatura sobre a face da Terra. Já havia se decidido, em vez de fugir, aceitaria qualquer punição que Alain quisesse impingir-lhe como forma de penitência.
— O ferimento não foi profundo. Ele ficará bom — limitou-se a dizer.
— Claire, fui muito áspero e injusto com você. Em minha ira, não pesei as palavras, acabando por magoá-la. — Tocou-lhe o braço, de leve. — Poderia me perdoar?
Perplexa, ela finalmente atreveu-se a encará-lo.
— Como pode me pedir tal coisa, se eu mesma é quem deveria suplicar seu perdão?
Ele segurou-lhe as mãos entre as suas, beijando-as afetuosamente.
— Minha querida, quando lhe disse que um grande amor poderia ultrapassar qualquer obstáculo, não imaginava o que teria que enfrentar.
Ambos sorriram.
— Agora, entretanto, sei que estava certo. Eu a amo ainda mais, por sua coragem e fibra! — prosseguiu, guiado por seu coração. — Ao revelar toda a verdade, sujeitando-se até a ser executada, deu-me a maior prova de amor. Poderia simplesmente ter mantido a farsa, ou então fugido de Hawkswell.
Lágrimas voltaram a rolar pelo rosto de Claire, só que, dessa vez, eram de alegria.
— Isso quer dizer... — Não conseguiu completar a frase, tão emocionada estava.
— Ainda aceita minha proposta de casamento, lady Claire de Coverly?
Tomando cuidado para não despertar Peronelle, escorregou para fora da cama e jogou-se nos braços de Alain.
— Teremos que enfrentar muitos obstáculos...
— Sei disso! E quanto à resposta? Ainda não disse se me aceita como marido?
— Ora, seu bobo, é claro que aceito! — Selou o compromisso com um beijo voraz e alucinado, extravasando toda a angústia que vivera nas últimas horas.
— Nesse caso, tão logo Guerin se recupere, celebraremos nossas núpcias. — O peito arfava e os olhos ardiam de paixão, despertada por aquele beijo. Todavia, infelizmente, teve que se conter; não poderiam consumar seus desejos nesse momento. — Bem, há algo que preciso lhe contar sobre meu passado...
Claire tentou silenciá-lo com outro beijo, mas Alain esquivou-se. Por intuição, ela sabia que se tratava do nascimento de Guerin e não queria discutir esse assunto. Amava o menino como se fosse seu filho, não lhe importando quem fosse a mãe verdadeira.
— Não quero que haja nenhum segredo entre nós, minha querida. As vezes, culpo-me por não ter dito a verdade a Júlia, deixando que ela se afundasse mais e mais naquele mundo de solidão e tristeza que a levou à morte...
— Não foi sua culpa — apressou-se a defendê-lo. — Amava Júlia como se fosse minha irmã. Entretanto as evidências forçaram-me a reconhecer que ela cultivou sua própria infelicidade, por puro egoísmo.
Alain agradeceu-lhe com um olhar terno. Mesmo assim, iniciou sua narrativa:
— Ainda era um jovem cavaleiro, sem perspectiva de vir a ser o barão de Hawkswell, quando acabei fascinado pelos encantos de uma dama da corte, mais velha e experiente que eu. Lutei contra essa paixão o quanto pude, pois a dama era casada. No entanto acabamos vivendo um tórrido e efêmero romance. Desse relacionamento, restou apenas amizade e o pequeno Guerin.
Fez uma pausa, olhando carinhosamente para o filho.
— Muito sagaz, ela usou a desculpa de um retiro espiritual para se refugiar em um convento, antes que os sinais da gravidez se tornassem evidentes. Foi lá que Guerin nasceu e, pouco depois, foi entregue a mim.
Claire estava atônita.
— Quando souber o nome dessa dama, irá compreender porque esse segredo envolve muito mais do que a reputação de uma nobre da corte. Na realidade, as origens de Guerin abalariam os alicerces da nobreza européia...
— Não me diga que a mãe de Guerin é a imperatriz Matilde? — arriscou, sentindo o sangue gelar.
— Ela mesma — sua expressão era melancólica. — O jovem príncipe Henrique, fruto de seu casamento com o conde d Anjou, será o herdeiro das coroas da Inglaterra e do Sacro-Império. Contudo Matilde pretende reservar terras e títulos importantes para Guerin.
— Ele conhece a identidade da mãe?
— Não faz a menor idéia. Pretendo contar-lhe a verdade quando for mais velho.
Agora tudo fazia sentido! A lealdade de Alain à imperatriz, bem como o motivo de estar afastado das batalhas contra as tropas de Estevão. Permanecendo em Hawkswell, Alain poderia manter seu filho em segurança!
De repente, o menino abriu os olhos, sussurrando os nomes de Haesel e do pai. Ambos correram até ele, constatando que a febre havia cedido e o ferimento não sangrava mais.
Amanhecia em Hawkswell, e a aurora trazia esperança de um futuro mais feliz para todos.
Após dois dias de convalescença, a recuperação de Guerin já era um fato incontestável. As cores haviam retornado à sua face e já estava difícil mantê-lo de repouso na cama.
Depois de ter certeza de que o filho não teria uma recaída infeliz, como acontecera com Verel, Alain passou a empreender patrulhas pela floresta, a fim de capturar os mercenários de Hardouin. No entanto seu maior tormento era criar uma armadilha para o temível espião que se esgueirava pelo castelo como uma víbora, antes que houvesse mais alguma vítima. Por esse motivo, resolveu manter em segredo a verdadeira identidade de Claire.
Peronelle também estava exultante de felicidade com a melhora do irmão. Entretanto, em sua inocência infantil, não entendia porque deveria ficar presa ali.
Claire já esgotara seu repertório de histórias e brincadeiras para mantê-la entretida, porém nada mais conseguia satisfazer a menina.
— O que acha de rezarmos um pouco na capela, Peronelle? — padre Gregory sugeriu, tentando ajudar a ama, que aparentava grande cansaço.
A menina bateu palmas, achando aquela idéia maravilhosa. Então, lembrando que o pai lhe ordenara que não saísse de perto da ama, lançou-lhe um olhar suplicante.
De fato, Claire quase não pregara o olho desde o acidente de Guerin e a morte dos prisioneiros. Andava pálida e com olheiras fundas, além de sentir vertigens e enjôos. Mesmo assim, relutava em ficar longe das crianças por um minuto que fosse. Dessa vez, entretanto, os apelos de Perry e do próprio padre foram tão veementes que, talvez por cansaço, acabou cedendo. Afinal, acompanhada pelo padre, a menina não estaria correndo nenhum risco.
Logo que os dois saíram, Guerin adormeceu, mergulhando o quarto em um silêncio quase absoluto. Parecia que o destino conspirava para que ela finalmente pudesse descansar alguns instantes. E, de fato, Claire acabou cochilando, recostada em uma poltrona, à beira da cama.
De repente, acordou sobressaltada, com o coração apertado. Correu até Guerin, mas ele ainda dormia, tranqüilo como um anjo.
— O que houve? — Annis indagou, ao perceber a aflição da amiga. Além do padre, era a única pessoa que tinha livre acesso àquele quarto.
— Não sei... Sinto uma angústia muito forte, como se algo ruim estivesse para acontecer... — murmurou, ofegante.
— Acalme-se, deve ter sido apenas um pesadelo... — Correu buscar um copo de água para Claire.
Oh, Deus! Será que acontecera algo a Alain? Ele partira bem cedo, com uma patrulha, disposto a prender ou exterminar os mercenários que rondavam o castelo.
— E Peronelle?
— Ainda não voltou. — Annis riu. — Pela demora, o padre deve tê-la convencido a rezar um rosário inteiro!
Ao ouvir aquilo, uma idéia terrível infiltrou-se em seus pensamentos, ganhando mais consistência a cada segundo... E se padre Gregory fosse o espião?
Meu Deus! Como não havia pensado nisso antes? Havia muitos rumores de que membros do clero participavam de intrigas e disputas na corte. O próprio arcebispo de Canterbury havia se declarado leal a Estevão, conclamando seus fiéis e subordinados a combaterem Matilde.
— Annis, cuide de Guerin para mim. Preciso encontrar Peronelle — disse, já transpondo a porta do quarto.
Enquanto corria pelo pátio, sem sentir o solo sob seus pés, rezava para que estivesse enganada sobre o padre. No entanto, ao chegar a seu destino, encontrou a capela completamente vazia!
— A floresta! — exclamou, em desespero, sabendo que esse era o único lugar para onde poderiam ter ido.
Não havia um segundo a perder! Precisava encontrar aquele homem, antes que conseguisse sair do castelo com a pequena Peronelle!
Feito louca, seguiu em direção à muralha externa, esbarrando em algumas pessoas e animais, durante sua busca desenfreada. Embora aparentasse certa alienação, seus olhos varriam cada centímetro da área, na esperança de avistar o padre ou a menina. Porém acabou chegando à borda da floresta, sem achar nenhum vestígio dos dois.
Respirou fundo, petrificada de medo e desânimo. Como gostaria que Alain estivesse ali agora! Mas isso seria impossível! Tampouco poderia pedir ajuda a alguém, pois, até explicar do que se tratava, teria perdido um tempo valioso. Tempo, aliás, do qual não dispunha!
Sem outra alternativa, tratou de reunir coragem e se embrenhou na floresta, voltando a correr, sem dar importância aos espinhos que rasgavam suas roupas e feriam sua pele. Porém, como não havia pistas, não tinha meios de saber se estava na direção certa ou não. De súbito, não auge do desespero, acabou caindo, ao tropeçar em um emaranhado de galhos e raízes.
Oh, Deus! Tenha piedade de Perry! Ajude-me à encontrá-la, antes que algum mal lhe aconteça!, rezou com todo fervor, entre lágrimas de agonia.
Subitamente, ainda com os olhos embaçados pelo choro, avistou um pedaço de tecido amarelo, preso em um arbusto. Ao pegá-lo, teve certeza de que se tratava de um fragmento da roupa de Peronelle. Mais confiante, voltou a correr por entre as árvores; dessa vez, sabendo que estava no rumo certo!
Alguns minutos depois, quase teve um espasmo de felicidade ao ouvir a voz da menina, lamentando-se com o padre. Claire apressou o passo e logo veio a encontrá-los, em uma clareira!
— Pare aonde está, padre Gregory! — gritou, com firmeza.
Surpreso com aquela aparição, ele fitou Claire com os olhos injetados de rancor.
— Haesel! — Perry exclamou, sorrindo. No entanto não pode se aproximar da ama, uma vez que o padre a segurou fortemente pelos ombros.
— Solte a menina! — ela ordenou, empunhando a faca que levava presa à cintura.
— Não dê mais um passo, ou a pequena irá pagar por sua traição, lady Claire! — Para provar que não estava blefando, o padre apertou o pescoço da criança como se quisesse esganá-la.
Claire ficou paralisada. Tinha que pensar e agir rápido ou as duas iriam parar nas mãos cruéis de Hardouin!
— Ótimo! Parece que não perdeu de todo o juízo, milady! — retrucou, irônico, mostrando a verdadeira personalidade. — Agora, só precisamos esperar que os soldados cheguem e a missão estará cumprida!
Assustada e surpresa com aqueles acontecimentos, Peronelle não tinha forças para reagir. Apenas fitava Claire, com olhos arregalados, implorando por ajuda.
— Seu verme! Conseguiu enganar todos com perfeição! — praguejou, revoltada. Sabia que o fim estava próximo... Ele estufou o peito, soltando uma risada maldosa, muito parecida com a do próprio conde d Evreux.
— Agradecido, milady! Para mim, isso não é ofensa, mas um grande elogio!
Ao ouvir aquilo, Claire teve uma idéia... Talvez, se conseguisse distrair aquele tolo vaidoso, pudesse libertar Peronelle antes que os soldados aparecessem.
— Pelo que vejo, deve ter mantido meu tio a par de tudo o que aconteceu em Hawkswell nessas últimas semanas... — disse, pondo seu plano em prática.
— Evidente que sim! Aliás, sinto dizer-lhe, milady... Lorde Hardouin saberá castigá-la como merece por sua traição!
— Como pôde machucar uma criança como Guerin? — retrucou, em uma explosão de fúria; não restava dúvidas de que ele fora o autor do atentado ao menino.
Outra risada ecoou pela floresta, como se tivesse saído do inferno.
— Sua tola, devia ter dados ouvidos à carta que lhe enviei! Em vez disso, pensou que poderia vigiar as crianças para sempre! — Escarneceu, com ar vitorioso. — Consegui atacar o menino bem na sua vista, assim como, agora, estou com Peronelle em minhas mãos!
— Não sente remorsos, padre?
— Minha única preocupação é servir lorde Hardouin, mostrando-lhe minhas inúmeras qualidades!
Embora estivesse cada vez mais enojada com aquelas confissões, Claire não perdia um só movimento do padre.
— Também matou Ivo e Jean, não foi?
— Ainda duvida? Aliás, esses não foram os meus únicos feitos nesse castelo! — Uma expressão de puro deleite tomou conta de seu rosto gorducho. — A velha Ivy e Verel que o digam!
Peronelle soltou um leve gemido, demonstrando que, apesar da apatia, estava ouvindo tudo o que acontecia ao seu redor.
Claire ficou zonza, ao assimilar aquela extensa e sórdida lista de maldades! De fato, padre Gregory era um discípulo digno de seu mestre, o desalmado Hardouin d Evreux!
— Jesus! Também teria envenenado Guerin, se eu não tivesse me responsabilizado por seu tratamento! — concluiu, em voz alta, aterrorizada com a frieza daquele homem.
— E por quê não? — indagou, com toda a naturalidade. — Afinal, lorde Hardouin só precisava de um dos filhos do barão de Hawkswell!
— Seu monstro! — exclamou, rezando a Deus por demência! Pois, a cada minuto, as chances de salvar Peronelle ficavam mais escassas. Os soldados do tio não tardariam a chegar...
— Se tivesse cumprido sua parte, milady, minha participação nesse plano não teria sido necessária! Dessa forma, lorde Hardouin ainda possuiria um informante em Hawkswell! — Olhou para Claire, cheio de ódio e desprezo. — Não foi nada fácil penetrar nesse castelo!
— Vai me dizer que também foi responsável pela morte de padre Peter? — Claire redargüiu, em tom de zombaria.
— Claro que sim! O arcebispo de Canterbury não poderia me enviar para esse castelo, enquanto o antigo pároco estivesse vivo!
— É mentira! — bradou, percebendo que ele começava a se descuidar de Peronelle. — Não estava em Hawkswell, quando padre Peter morreu!
— De fato, estava longe daqui! Essa tarefa exigiu todo meu empenho, paciência e habilidade! — gabou-se, cheio de orgulho. — Levei meses para conquistar a confiança do velho Peter, mantendo uma correspondência assídua com ele, sob o pretexto de discutir teologia! Por fim, enviem-lhe um vidro de tônico para suas dores nas costas...
— Está mentindo! — insistiu. — Se houvesse veneno nesse remédio, alguém iria desconfiar!
— Por isso mesmo considero essa tarefa minha obra-prima! O veneno estava muito diluído, de modo que uma só dose não faria mal a uma mosca! Contudo seu uso prolongado e constante causaria morte certa! — Envaidecido com seu próprio feito, enfim, padre Gregory se descuidou da menina.
Sabendo que não teria outra chance como essa, Claire o empurrou para longe e pegou Peronelle no colo. Então saiu correndo pela floresta, tentando avistar as muralhas do castelo.
Possesso de raiva, o padre gritava uma série de maldições e pragas. Todavia, devido ao seu peso, ficava cada vez mais difícil alcançar as fugitivas.
Quando já acreditava ter se livrado do padre, Claire teve uma infeliz surpresa... Em um piscar de olhos, os homens de Hardouin as cercaram!
Perry, afundou o rosto nos cabelos da ama, morta de medo. Agora, só um milagre as salvaria! Mesmo assim, Claire não desistiu. Empunhou a faca novamente, disposta a jamais se entregar sem luta!
— Desista, milady! Está tudo acabado! — o padre declarou, ofegante, juntando-se ao grupo.
Claire fechou os olhos, por um instante, preparando-se para morrer em defesa da menina.
— Fiquem longe delas! — a voz inconfundível de Alain ecoou pela floresta, enquanto seu cavalo se colocava entre as duas e os soldados inimigos.
— Se quiser libertá-las, terá que nos enfrentar! — o capitão inimigo respondeu, preparando-se para a luta.
Antes que ela pudesse ter certeza de que não estava sonhando, ouviu Alain ordenar-lhe, preocupado:
— Leve Peronelle daqui, Claire!
Em seguida, teve início um combate feroz e sangrento. E, devido ao equilíbrio entre os dois grupos, ninguém poderia prever quem seria o vencedor...
Cobrindo a cabeça de Perry, para que ela não se assustasse ainda mais com aquelas cenas bárbaras, Claire afastou-se do local do combate. Rezava sem parar para que Alain conseguisse derrotar os inimigos!
— Maldita! Vai pagar por ter destruído nossos planos! — padre Gregory gritou, seguindo Claire. Trazia na mão uma adaga, a mesma que deveria ter usado para ferir Guerin.
Antes que ele conseguisse chegar mais perto das duas, Alain conseguiu interceptá-lo, cravando-lhe uma flechada certeira no ombro direito.
— Acabou, padre Gregory! Foram derrotados! — ele exclamou, apontando para a cena do combate.
Os homens de Hardouin haviam sido completamente esmagados pela tropa de Hawkswell.
Padre Gregory soltou mais uma de suas risadas diabólicas. Então, com um gesto rápido, tirou um frasco minúsculo da cintura e sorveu todo seu conteúdo. O veneno deveria ser extremamente forte, pois ele começou a se contorcer pelo chão, feito um verme rastejante. Em uma questão de segundos, estava morto!
— Oh, que horror! — Claire exclamou, agarrada a Peronelle. Ambas tremiam e choravam sem parar.
Alain desmontou e foi ao encontro das duas. Pegou a filha no colo, puxando Claire para perto de seu corpo.
— Agora está tudo bem, minhas queridas! Estão salvas!
Os três ficaram abraçados assim por muito tempo. Enquanto isso, laços de amor os envolviam completamente, agindo como um bálsamo divino que acalmava suas almas e curava todas as feridas de seus corações atormentados.
— Vamos para casa! — ele disse, por fim, dominado pela emoção. Por baixo de seu reluzente elmo negro, lágrimas de alívio e felicidade banhavam seu rosto de guerreiro.
Após aquele terrível confronto na floresta, a paz voltou a reinar em Hawkswell. Guerin recuperou-se plenamente do ferimento sofrido e Peronelle, apesar do trauma causado pela perseguição, aos poucos voltou a ser a menina alegre e travessa de sempre.
A verdade sobre padre Gregory veio à tona, causando um enorme escândalo na corte e no alto clero da Igreja, que acabou revertendo a favor de Matilde.
Alain revelou a todos a verdadeira identidade de Claire, declarando que ela arriscara a própria vida para salvar Peronelle. No entanto teve o bom senso de ocultar os reais motivos que a trouxeram a seu castelo. Temia que Matilde, em um acesso de cólera, condenasse à morte a mulher que ousara participar de um plano contra a vida do próprio filho. O fato de Claire ter se arrependido e auxiliado na captura dos malfeitores seria irrelevante para a vingativa imperatriz.
No início, os moradores de Hawkswell acharam estranho que a serva inglesa fosse uma nobre normanda. Claire, no entanto, já conquistara o respeito de todos com seu jeito meigo e espontâneo, de modo que passou a ser ainda mais admirada por sua valentia.
As crianças, cujos corações já pertenciam a Claire, acharam aquela história empolgante, digna de um conto de fadas. Mas, às vezes, ainda a chamavam de Haesel por engano. Fosse serva ou nobre, nada iria alterar o amor que sentiam por ela, sua nova mãe, talvez a primeira pessoa que realmente estava desempenhando essa função.
Dessa forma, assim que o novo padre chegou ao castelo, Alain de Hawkswell tornou lady Claire de Coverly sua legítima esposa perante as leis da Igreja. E, Deus não tardou a abençoar essa união, plantando uma semente divina no ventre da noiva.
A nobreza, entretanto, não compartilhava da mesma felicidade dos noivos e do povo de Hawkswell por esse casamento. Afinal, tratava-se da união entre um poderoso aliado de Matilde e a sobrinha de lorde Hardouin d Evreux, o mais temido defensor de Estevão. Todavia, como a Inglaterra enfrentasse um período de batalhas intensas, passaram-se quase três meses sem que nenhuma das duas alas se manifestasse oficialmente sobre essa união.
Foram dias de incerteza e de medo para Claire. Temia que um dos grupos, senão ambos, exigisse o fim desse matrimônio. Poderiam conseguir que a Igreja anulasse o casamento, ou então marchar para Hawkswell com seus exércitos, obrigando o barão a repudiar a esposa. Em qualquer uma das hipóteses, tinha certeza de que Alain não iria ceder. Entretanto, embora evitasse comentar esse assunto com ele, jamais iria permitir que sua felicidade custasse a dor e a destruição do povo; partiria para bem longe se houvesse qualquer ameaça de guerra por sua causa.
Em uma bela tarde de outono, Claire colhia maçãs com Peronelle e Guerin, quando sentiu que aquele impasse enfim estava prestes a ser resolvido...
Alain veio encontrá-los, trazendo algumas cartas presas ao cinturão. Embora brincasse com os filhos, Claire podia ver claramente que algo o preocupava, por trás daquela máscara de alegria.
Não havia mais nenhum segredos entre os dois e estavam em tal sintonia, que eram capazes de perceber e interpretar a mais sutil alteração fisionômica no parceiro.
— Temos que conversar — Alain anunciou, logo confirmando as suspeitas da esposa. — Acabei de receber uma carta de Matilde.
— Do que se trata? — quis saber, sem ocultar sua agonia.
Ele sorriu, tentando tranqüilizá-la.
— Não se aflija, minha querida. Está tudo bem.
Então, deixando as crianças sob os cuidados da nova ama, os dois seguiram para o jardim.
— Leia você mesma — disse, entregando-lhe uma carta com o sinete do Sacro-Império.
Com mãos trêmulas e voz oscilante, Claire começou a ler a mensagem da imperatriz.
"Para Alain, barão de Hawkswell, e sua esposa, lady Claire de Coverly.
Saudações.
Então, milorde, rejeitou o casamento com Simone de L Aige, que empenhei-me em arranjar-lhe, para fazer sua própria escolha! Tal ousadia desagradou-me terrivelmente!
Contudo, devo admitir, não fiquei surpresa com sua atitude.
Desde a época em que freqüentava minha corte, já demonstrava não ser o tipo de homem que se deixa dominar por nada ou por ninguém. Gosta de trilhar seu próprio caminho, meu caro barão! Talvez seja isso o que eu mais admire em sua pessoa. Aliás, sinto que o pequeno Guerin herdou essa sua mesma determinação, ou devo denominá-la simplesmente de teimosia?
De qualquer forma, quanto ao futuro do garoto, resolvi deixá-lo livre para escolher seu destino. Se Guerin deseja seguir sua vocação religiosa, que assim seja!
Surpreso com minha decisão?
Talvez a maturidade esteja amolecendo um pouco meu coração inflexível, meu caro Alain. Afinal, é muito triste ver parte da Inglaterra mergulhada em sangue e destruição.
Bem, voltando a tratar de seu matrimônio, dou-lhe minha aprovação. Como não podemos prever de que modo essa disputa irá terminar, pode ser um ato de prudência possuir laços familiares tão íntimos com nossos rivais.
Quanto a lorde Hardouin, conde d Evreux e duque de Tresham, tio de sua esposa, devo informar-lhe que não precisamos mais nos preocupar com suas armadilhas e redes de espionagem. Ele foi morto em Nottingham, quando Roger de Gloucester, nosso aliado, sitiou a cidade.
Sinceros votos de paz e harmonia para você e sua esposa.
Matilde, imperatriz do Sacro-Império e rainha da Inglaterra."
— Não acredito... Hardouin está morto! — Claire murmurou, meio atônita e aliviada.
De forma alguma, poderia lamentar aquela morte, não apenas pelo mal que o tio lhe causara, mas também por todas as atrocidades que ele infligira a milhares de pessoas. Ao mesmo tempo, sua consciência cristã não lhe permitia ficar feliz com a desgraça alheia, mesmo tratando-se de alguém tão desumano como Hardouin.
— Que Deus tenha piedade de sua alma — disse, por fim, fazendo o sinal da cruz.
Alain deu-lhe um forte abraço. Não esperava uma reação diferente de sua querida Claire. Por respeito, embora aquela notícia o enchesse de alegria, guardou esses sentimentos para si.
— Bem, o que me diz da aprovação de Matilde? — indagou, mudando de assunto.
Claire sorriu e, por um momento, seu rosto pareceu mais brilhante que o próprio sol.
— É maravilhoso! Até parece um sonho! — Logo em seguida, arqueou as sobrancelhas, meio desconfiada. — Que estranho... Quando chegou ao pomar, estava certa de que algo o preocupava... O que está me escondendo, milorde?
— Ah, minha dama da meia-noite! Nada escapa aos seus olhos perspicazes! Vejo que pode até ler meus pensamentos!
— Ora, não tão bem quanto você, Alain!
Os dois riram, em deliciosa cumplicidade. Então ele tirou outra carta do cinto, entregando-a para Claire.
— Esta mensagem acabou de chegar ao castelo. Como estava em seu nome, não tomei a liberdade de abri-la.
Agradecida, lançou-lhe um olhar maroto. Realmente a gentileza e a consideração de Alain eram qualidades muito raras, mesmo entre a nobreza. A maioria dos homens não teria o menor escrúpulo em abrir as cartas da esposa, sendo que muitos nem sequer as entregariam à real destinatária.
Em meio àqueles pensamentos, toda sua alegria se transformou em uma expressão de pavor, assim que partiu o lacre.
— Oh, céus! É de Neville! Agora que Hardouin está morto, será que meu irmão resolveu levar adiante a vingança de nosso tio contra mim? — Afastou a carta, apertando-a de encontro ao peito, aflita. — Não tenho coragem para continuar a leitura.
Alain passou o braço em torno dos ombros de Claire, demonstrando que jamais a deixaria desamparada.
— Seja o que for, minha querida. Só terá paz depois de tomar ciência do conteúdo dessa mensagem. — Procurando descontraí-la, brincou: — Além do mais, onde está a mulher corajosa por quem me apaixonei?
Ela deu um sorriso vacilante, esbanjando charme. Sem dar atenção às batidas descompassadas de seu coração, passou a ler o texto em voz alta:
"Para minha irmã, lady Claire de Coverly e, de agora em diante, baronesa de Hawkswell.
Congratulações por seu casamento com lorde Alain.
Desde que nosso tio morreu, venho fazendo um profundo exame em minha consciência. Você mesma cansou de me dizer que eu precisava pensar e agir por conta própria, ignorando a influência nefasta de Hardouin ou de qualquer outro nobre poderoso. Pois bem, enfim, resolvi seguir seu conselho, irmã.
Reconheço que falhei ao permitir que Hardouin a obrigasse a participar daquele esquema sórdido e peço que me perdoe por isso. Também devo confessar-lhe que não quero alimentar nenhuma inimizade entre nós, Claire. Infelizmente, não poderemos manter um relacionamento mais estreito até que a guerra termine, pois continuo leal à causa do rei Estevão. Contudo aguardo, ansioso, o dia em que a paz volte a reinar na Inglaterra e possamos iniciar um novo relacionamento como irmãos, baseado em amor e confiança.
Que Deus abençoe seu casamento.
Lorde Neville de Coverly."
Claire suspirou, completamente perplexa.
— Nenhuma atitude de Neville poderia me surpreender tanto! Às vezes, sinto que ele muda de opinião ao sabor do vento.
— Talvez esse seja seu ponto em comum com o rei Estevão — Alain comentou, aludindo ao temperamento volúvel do monarca.
— Sim, mas nosso amor jamais ficará à mercê do vento inconstante; é sólido como uma pedra preciosa! — confessou, com o olhar transbordando de paixão.
Sem encontrar palavras que exprimissem a grandiosidade de seu amor por Claire, Alain preferiu se expressar com um beijo longo e impetuoso.
Ana Seymour
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